Meu amor, era de noite
Vasco Gra�a Moura
Romance
2.a edi��o
Quetzal Editores Lsboa/2001
1. Eug�nia
"- As minhas filhas s�o muito diferentes", - costumava dizer a m�e num meio suspiro, quando n�o tinha mais nada para dizer e pretendia fingir que fazia conversa a respeito da fam�lia. A m�e tinha essa veleidade de dispor sempre de um tema de conversa respeit�vel e num registo id�ntico ao das amigas, mesmo quando nada havia a comentar naquelas tardes cr�nicas de ch�, scones e canasta, em que elas punham a vida em dia, reparavam se as pratas em casa alheia estavam bem areadas, se queixavam dos maridos, falavam dos filhos e criticavam com aspereza as toiletes com que tinham visto n�o sei quem. Al�m disso, a m�e tinha horror ao sil�ncio como a Natureza tem horror ao v�cuo. Era bem educado n�o deixar esmorecer a conversa, como era bem educado n�o falar em doen�as graves com muitos pormenores clinicos ou em quest�es de dinheiro com muitas lamenta��es em causa pr�pria. Mas a exist�ncia das filhas, a sua maneira de ser, os seus problemas de crescimento e forma��o, as diferen�as entre elas, nunca tinham sido coisas que lhe interessassem muito. De resto, que sabia ela dessas diferen�as? Nem n�s, ent�o, ser�amos capazes de perceb�-las, quanto mais de diz�-las?, para al�m da resultante das nossas idades. Essa, n�o faltava mais nada que n�o se notasse. E tamb�m o facto de sermos meias-irm�s, sendo a Constan�a filha do segundo casamento da m�e, que por sinal tinha voltado a casar com um meio-irm�o do meu pai. Coisas do arco da velha. A� a m�e n�o teve grande culpa. O tio Carlos n�o a largava depois de opai a ter largado. Eu tenho mais sete anos do que a Constan�a e tinha passado uns tempos em Londres a estudar ballet. Nem sei se fui mandada para l� para estar mais longe da evolu��o dos acontecimentos. A verdade � que fui para nada, a verdade � mesmo essa, mas al�m disso estava na moda e a m�e sabia-o e sempre podia comunicar �s amigas, � m�ngua de outros assuntos, que a Eug�nia tinha mandado dizer que, ou que a Eug�nia estava a gostar muito do curso, ou que a Eug�nia ia chegar para a semana para as f�rias da P�scoa. Deve t�-lo feito muitas vezes, enquanto estive fora dessa primeira vez.
Mas era assim a m�e, a apresentar-se aos outros como s�brio espelho de virtudes pessoais, maternais, familiares e sociais, apesar daquele segundo casamento t�o estranho. E agora que estou a ficar completamente b�bada, lembro-me dela, a perorar com uma gravidade circunspecta sobre a mat�ria subtilmente critic�vel das diferen�as entre as nossas maneiras de ser, enquanto acendia um cigarro, olhava para o tecto e pousava as cartas como se fosse fazer uma grande tirada sobre as novidades respeitantes ao jovem sexo feminino l� em casa, entre a antropologia, o socialmente correcto e a moral crist�, com a mesma impassibilidade que teria posto na voz se tivesse conseguido uma canasta de m�o na primeira volta e fizesse quest�o de manter a fleuma adequada desse l� por onde desse, por entender que era assim que deviam fazer as pessoas bem educadas. E depois passava a outro assunto ou retocava a disposi��o das cartas e simulava concentrar-se na soma das pontua��es, para evitar lhe fizessem perguntas mais concretas a nosso respeito, a que n�o saberia responder em termos h�beis. Isso, pensava ela, concorria para lhe dar um ar mais elegante de v�tima face ao desembara�o independente das novas gera��es.
Se calhar, nem me lembro tanto assim da m�e, evasiva e distante, pouco terna e mais indiferente do que dura, fria, � isso, fria, impass�vel como um carapau congelado, como se nada na vida tivesse a ver com ela a n�o ser os seus muitos e variados pequenos ego�smos, o seu conforto e a mania das conveni�ncias e dos cosm�ticos. J� nem sei muito bem como � que a m�e �, nem o que ultimamente lhe tem passado pela cabe�a e a chamada que ela me fez na semana passada n�o alterou em nada essa imagem difusa. S� queria falar de partilhas e de escrituras. Eu podia estar a falar com um solicitador. S� me recordo daquele modo enf�tico mas desinteressado que ela tinha para me dizer a cada passo: "- Que horror, mas como � que a menina foi capaz de fazer isso?" � uma entidade remota que tem a ver comigo entre as brumas da mem�ria, mas muito � dist�ncia. A figura da m�e desvanece-se cada vez mais, s� que pensar nela nestas situa��es � uma maneira de fazer os vapores do �lcool desanuviarem, de arrancar utilmente com este cap�tulo de uma coisa que ainda n�o sei muito bem o que � e que tem prazo certo, para me pagarem o adiantamento sobre os direitos.
As manas. Eug�nia e Constan�a. Separadas por alguns anos, a mais velha e a mais nova, a perversa e a boazinha, a avan�ada e a normal, a vadia e a boa aluna. J� que sou eu a m� da fita, n�o preciso de ter escr�pulos especiais, nem a minha editora me agradece. Mantenhamos pois o estatuto de ovelha negra encartada e fa�amos jus a ele. � claro que a editora preferia ver-me debitar as minhas pr�prias mem�rias,os meus casos, a minha proverbial e alcoolizada promiscuidade de camas, e reencontrar aquela acidez mal�fica que atrai os homens como o mel atrai as moscas, mas p�e os cr�ticos tantas vezes do meu lado e faz vender os meus livros. Atrai?..., pensando bem, continua a atrair, n�o tenho raz�es de queixa e conhe�o muitas que est�o bem pior do que eu, j� com uma s�rie de pregas a formarem-se � volta da boca e de p�s-de-galinha � volta dos olhos e a correrem como baratas tontas para as esticadelas de pele.
Hibernam durante umas semanas e depois reaparecem, como quem n�o quer a coisa, afectando um ar despreocupado e jovial que esconde a ansiedade com que esperam a reac��o de quem as v�. Deix�-las ir opando � vontade.
Os meus livros. Terei posto assim tanto de mim nesses volumes? Umas vezes penso que n�o, outras penso que sim, que me reconhe�o mesmo no azedume daquilo que n�o vivi. "Ela vai direita aos factos e transforma tudo em veneno", dizia um cr�tico de jornal aqui h� tempos. Pobre idiota, a pensar que me fazia charme por fingir que intu�a as coisas que, supunha ele, eu gostava de ouvir. Quero l� saber da literatura. Eu limito-me a p�r o veneno � vista e �s vezes at� o diluo, para poder us�-lo em v�rios graus de concentra��o. Mas n�o o invento. Ele est� l�, nas pessoas, nas rela��es humanas, na sucess�o e �s vezes at� no pr�prio ritmo insidioso dos acontecimentos.
N�o se escrevem livros com boas inten��es. Nem sem ter vivido muito por dentro e por fora. Os tipos com quem eu andei que o digam. Uns copos de vodka podem ajudar. Que o digam eles e at� o Mateus, que depois passou a andar muito rente � Constan�a, a� est� um caso de envenenamento de duas vidas, ainda ela n�o tinha enviuvado, e que s� dormiu comigo uma noite. J'ai eu M�nm�e ce sois: Ce n'est pas grand chose, escrevia a George Sand a uma amiga depois de ter dormido com o M�rim�e. Tamb�m com o Mateus... ce n'�tait pas grand chose. Bastou-me essa noite para ver at� que ponto ele era um fraco mergulhado em problemas �ntimos at� � raiz dos cabelos, sem capacidade de tomar decis�es, nem tomates para as aguentar, mas pretendendo assumir grandes posturas de que n�o se conseguia desenroscar. S� se preocupava em escrever bem. Continuo a n�o saber o que isso �. Suponho que est� doente e cheio de problemas familiares e desesperado por causa da Constan�a, mas isso n�o o absolve das suas fragilidades burguesas, das suas atitudes discretamente, pensa ele, bon chic bon genre, das suas preocupa��es �ticas que ningu�m percebe, das suas obsess�es de qualidade na prosa. Venenos. E posso ter a certeza de que ele nunca contou esse caso comigo � minha irm� e de que ela, apesar de ser t�o intuitiva � sua maneira, n�o faz ideia nenhuma do nosso fim-de-semana no Bu�aco, h� j� um bom par de anos, ainda nenhum deles sonhava sequer da exist�ncia do Outro, depois de um congresso insuport�vel de autores em Coimbra, uma daquelas coisas enfadonhas e sopor�feras como s�o todos os congressos de escritores, para mais na Alma Mater; ainda o casamento dele n�o estava em crise, ainda ela estava casada com o Andr� e ainda eu estava a viver oficialmente com o Bernardo.
Enfim, eu bem podia escrever um livro sobre a m�e, a sua frieza g�lida e protocolar e as suas pequenas perversidades dom�sticas, no fundo provavelmente involunt�rias. Tinha ali um bom modelo ao vivo, mas acabaria por ser uma execu��o torpe, um �cido matric�dio, sei l�. E agora n�o s�o essas abomina��es que se pretende das mulheres autoras. J� ningu�m quer saber de �dipos e Jocastas de trazer por casa para nada. Afinal somos tantas e de todas se espera um relato de experi�ncia indubitavelmente pessoal, uma confiss�o de desaire � mistura com umas quecas falhadas aqui e ali, e pelo meio umas frases viperinas e maldade, toda a maldade do mundo, a criar as decep��es e os desencontros numa sociedade cujos padr�es de comportamento e de sensibilidade, dizem eles, dizem elas, dizem todos, mudaram profundamente. S� assim � que ficam uns travos que os leitores l�em como sendo de amargura e de ensinamento da vida, de frustra��o amorosa e de irresolu��o de tudo. J� n�o h� desfechos, h� pontos de suspens�o finais. At� que ponto eu sou a pr�pria maldade que escrevo e que descrevo? Onde � que terei posto o isqueiro?
At� que ponto valeria a pena mudar, deixar de mostrar o meu mundo esborratado de preto, contar uma hist�ria menos rebuscada do que as anteriores, armar em boa pessoa que n�o anda na vida para e por ver andar os outros, mas pactua quanto baste com esse status quo, desenganadamente, lucidamente com tanto �lcool at� se tornava mais f�cil para mim), e mostra que tem de desistir de mudar o curso das coisas s� porque o curso das coisas n�o est� � sua altura? At� que ponto pegar numa hist�ria "da vida de todos os dias", p�r-lhe algumas armadilhas, deixar que as coisas surjam, se misturem e passem, s� com alguns toques mais melanc�licos e mais umas tiradas sobre o destino ou sobre as engrenagens que fazem mover as pessoas? Ou ent�o, talvez pegar nos meus tr�s maridos e transform�-los em personagens num jogo de t�teres, saberes e perfidias entre eles, eu e os outros todos com quem tive alguma coisa a ver e algumas descri��es convenientemente picantes e the book, sendo que o book � o Kamasutra?
Mas vivo h� tantos anos no estrangeiro que j� n�o sei se seria capaz disso, nem se me apetece p�r-me a falar desses tri�ngulos dispersivos e talvez fecundos como se n�o fosse nada comigo, mesmo com muito vodka, muito gin, muita mistura explosiva. Nesta sonol�ncia t�o irritante que me exaspera e acaba por n�o me deixar dormir, acho que sim, mas isso n�o quer dizer nada. � um estado entre a vig�lia e o sono em que tudo se completa sem trabalho, tudo se organiza com tanta lucidez fulgurante que se compreende a vida at� ao �mago, mas n�o se anota nada e depois tudo esquece e s� fica a ressaca baralhada de se terem tido umas ideias geniais. S�o quatro da manh�, est� um calor medonho, � Agosto em Paris e passei uma noite sem homem. Deve ser por causa disso. Que estupidez! Porque � que n�o fui para Roquebrune?
A Constan�a tamb�m n�o sabe que o Andr� me procurou em Paris depois de se ter separado dela, ainda o div�rcio n�o tinha sido decretado mas estava o processo a correr. Precisava de dinheiro, ou n�o tinha onde ficar, ou ambas as coisas, ou l� o que fosse. Veio a minha casa, contou entre dois copos que tinha uma vida complicada e que ainda ia acabar mal, cantou a can��o do bandido desamparado, falou no meu �ltimo livro, o sacana deve t�-lo comprado e lido de enfiada naquela tarde s� para me poder falar dele, depois pediu para tomar um duche, sentou-se ao piano e esbo�ou uns compassos de Gershwin e uma can��o rom�ntica do Sinatra, fumou sem interrup��o, disse que j� n�o tocava havia muito tempo e estava a perder os dedos, bebeu mais uns copos e acab�mos na cama, pastosamente, ensonadamente. Afinal, se ele ia ser meu ex-cunhado, que mal � que isso tinha?
Eu mal o conhecia, s� o tinha encontrado meia d�zia de vezes, sempre com a minha irm�, mas and�mos assim uma semana e fui-o sustentando. Convidei-o para ficar l� em casa uns dias, levei-o aos restaurantes, fui arranjando as coisas de maneira a que ele n�o perdesse a face. No fim de contas ainda era da fam�lia e andava a dormir comigo. Cheguei a emprestar-lhe algum dinheiro. At� que me fartei das suas imprecis�es, das horas a que dizia que ia chegar e a que n�o aparecia, dos saltos a meio da noite para fora da cama para ir escutar � porta da rua, do ar clandestino e perseguido que tinha todo aquele comportamento. N�o falou na Constan�a, a n�o ser para dizer que achava que ela n�o ficava sozinha, que sabia que o Mateus lhe arrastava a asa, que bem tinha notado umas simpatias rec�procas, que j� devia mesmo haver mais alguma coisa entre eles, que talvez estivessem bem um para o outro. E que lhe era indiferente porque tinha muito mais com que se preocupar e v�rias viagens a fazer. Enfim, um dia pu-lo a andar e evaporou-se. Tamb�m nem lhe fez grande diferen�a, nem lhe causou grande desgosto. Talvez alguma inconveni�ncia moment�nea, por ter de procurar outro poiso, outras coxas e outro livro de cheques. Fodia bem, sem pressas por causa do �lcool, mas eu j� n�o tenho idade, nem estatuto, nem paci�ncia para andar com um tipo que s� veste jeans e t-shirt e se p�e a esvoa�ar atrav�s da vida e das rela��es entre as pessoas com o descuido de um p�ssaro de arriba��o.
Agora que o Andr� morreu em Espanha e a Constan�a, ao que posso supor, continua em Portugal mas n�o se sabe onde � que p�ra, digamos que � algures no Alentejo, e todas estas coisas me chegam por fragmentos mais ou menos incoerentes que tenho de completar, estou para aqui a perder o tempo, o feitio e o sono, cheia de sede, quando tinha tanto que escrever. Talvez valesse a pena indagar mais alguma coisa daquela gaja que sustentava o Andr� antes de ele casar com a Constan�a.
Vi uma vez umas fotografias dela no Match. Ao que sei, tinha um grande chateau no P�rigord e muito dinheiro. E era bonita, daquela beleza datada, mas incontest�vel e felina, anos cinquenta, grande trunfa loira e bem penteada a cair em ondas largas, muito b�ton vermelho
cor de sangue, unhas da mesma cor, pernas extraordinariamente bem lan�adas, cheville comme il faut, ancas e busto a condizer, roupas e j�ias car�ssimas. As fei��es correspondiam a um estere�tipo, entre Laureen Baca�l, Catherine Walston, Caroline Blackwood, mas sem Humphrey Bogart, sem Graham Greene, sem Lucien Freud, sem Robert Lowell. Tamb�m o Paris da �poca dela, como o Paris dos tempos do Fitzgerald e do Hemingway, j� tinha passado h� muito e j� ningu�m queria saber da Gertrud Stein nem da Toldas, nem mesmo para os mitos culturais das ind�strias do turismo, incluindo a Gr�co e os seus parceiros deslavados e hirsutos do St.-Germain-des-Pr�s mais tardio.
O marido dela era muito complacente. E o apartamento de Paris era um luxo. Um luxo asi�tico. Parece que apanhavam grandes bebedeiras os tr�s e depois o marido ia � sua vida. N�o sei se era maricas, se preferia ir �s putas, se eram as duas coisas ao mesmo tempo com mais umas variantes do tipo partous discreto. Porque � que o Andr�, que vivia do que ela lhe dava, que andava numa moto car�ssima cheia de cromados que tinha sido presente dela, e que, se quisesse, ainda tinha podido viver melhor, arranjar boas roupas e bons carros, ir aos melhores restaurantes, lan�ar-se sem problemas nogrand monde, sei l�, herdar, sobreviver, desenrascar-se � grande e � francesa, porque � que o Andr� a ter� deixado, sem dizer �gua vai, sem a trocar por coisa melhor, sem lhe ter saido a lotaria, s� para se casar com a minha irm�, simples doutorandazinha sem dinheiro a investigar para a tese umas coisas inomin�veis, sem jeito e sem interesse nenhum, sobre a Amaz�nia e Alexandre Rodrigues Ferreira, os naturalistas do s�culo XVIII e tretas assim, palpitantes de desinteresse?
Foi na altura em que eu vivia o meu romance com o Fritz, ingl�s de gema apesar do nome alem�o. Tamb�m pass�vamos a vida a viajar, a beber e a foder, e a verdade � que eu n�o tinha tempo para me preocupar com o resto. Nem queria. Ia sabendo da fam�lia pelo telefone, uma vez por ano no Natal. Depois oFritz p�s-se na criada, naquele ver�o em Capri, e eu n�o gostei. Era uma serigaita morena�a que nos levava o pequeno-almo�o todas as manh�s e que o Fritz comia no casinhoto dela todas as tardes, enquanto eu me punha a escrever os meus enredos de cat�strofe em frente do Mediterr�neo. Quando descobri, reagi a frio, n�o hesitei, emalei as roupas e o manuscrito em que estava a trabalhar, deixei-lhe duas linhas e vim-me embora da villa dele.
Soube da francesa do Andr� quando a Constan�a e ele fizeram a burrice de se casar e foi nessa altura da minha sa�da de Capri. Por mero acaso de conversa com um conhecido comum, encontrado na viagem de Fiumicino para Heathrow. Desses que sabem tudo sobre toda a gente e mais sobre n�s do que n�s mesmos. Por sinal, acab�mos a dormir num hotel rasca, porque eu comecei logo a querer libertar-me do Fritz, e ele, quando percebeu que a mulher com quem o Andr� tinha casado era a minha irm�, contou-me a hist�ria da tal Jacqueline de qualquer coisa com v�rios outros pormenores de que j� me esqueci, mas umas semanas depois vi esses retratos dela no Match.
Contei o caso numa das minhas short-stories. Tinha sido uma viagem t�o agrad�vel quanto poss�vel naquelas circunst�ncias. Eu n�o queria pensar no Fritz. Nem na villa a meio da encosta. Nem na tipa. E deu-se a situa��o do costume. O "- Tiens, tiens, mais que fais-tu ici?", o pr�-engate no ounge do aeroporto de Roma, entre dois whiskies, o atraso do avi�o, a classe executiva com lugares vagos. A partilha do t�xi � chegada. N�o havia hot�is decentes em Londres. Tudo cheio de �rabes e de pretos. Pediu para deixar as malas no meu quarto. Acabou por ficar l�. O "j� agora". As meias confid�ncias. O lado humano do abandono e da trai��o. A carne fraca. A solid�o. Todos os rodriguinhos do costume. Ambos muito reciprocamente compreensivos e cooperantes. J� nem sei como � que ele se chamava. Foi � vida no dia seguinte e eu tamb�m. Mas a Constan�a...
2. Constan�a
Estou agora sentada � janela, como a menina da can��o alentejana. L� fora, a tarde foi passando enquanto eu ficava para aqui, a tomar um ch� distra�do e com uma revista desca�da no rega�o.
Os castanhos e os azuis, os verdes e os tons de terra h�midos e macios da paisagem foram-se esbatendo e acinzentando sob as nuvens baixas, escurecendo numa sombra uniforme a pouco e pouco, at� serem engolidos pela noite e eu n�o sa� daqui, a n�o ser para acender uma vela quando j� estava escuro de todo e para enfiar uma camisola quando comecei a sentir frio, porque ainda est� frio apesar de Maio ir adiantado. Fa�o de conta que a electricidade ainda n�o est� ligada.
E para aqui voltei, encostando-me ao peitoril e olhando parada l� para fora, a ver se a chuva leve passava e a olhar, a olhar de vez em quando, para aquele retrato que o Mateus me tirou em Londres, e em que tamb�m ficou, vulto escuro e quase sub-repticio, a empunhar a m�quina fotogr�fica, a confundir-se com outras manchas nos reflexos da vidra�a de uma montra. "- Assim fic�mos juntos", disse ele, "eu mais na clandestinidade e voc� � luz do sol. Vamos chamar-lhe "beile et son voyeu?"
� insuport�vel. Vim para o Alentejo para me isolar e ele continua presente em todos os meus pensamentos, talvez em todos os poros da minha pele, de certeza em todas as espessuras do meu corpo. Sinto os dedos dele a percorrerem devagar o meu cabelo. Os olhos dele a irem at� ao fundo dos meus. A sua voz a fazer-me estremecer como uma adolescente apaixonada por um actor de cinema. Talvez passe algum dia, se eu deixar o tempo ir correndo nesta casa.
Esta casa. Esta casa � branca de cal, com alguns desn�veis acentuados do p�-direito, � uma antiga arrecada��o ligada a um lagar de azeite ainda mais antigo, provavelmente ru�nas esbei�adas que foram recuperadas sumariamente e transformadas em morada de trabalhadores bra�ais, deve ter albergado jornaleiros de outras terras quando percorriam o Alentejo de l�s a l�s na altura das ceifas, quase n�o tem m�veis, mas tem grandes espa�os vazios e tranquilos, tem paredes irregulares e pobres em que a luz rasante deposita sombras largas alternando com manchas de um branco ofuscante, como se encorpasse a textura da cal. Esta casa tem tudo o que eu quero como despojamento, calma, amplos sil�ncios, sons simples da Natureza, ch�o lavado de t�buas largas, uma grande lareira de pedra em que ainda n�o pus lenha, talvez devesse mandar vir alguma para dias como o de hoje, tem horizontes a perder de vista atrav�s das portas e das janelas, tem portadas de madeira velha cheias de frinchas, tem um cheiro rural agreste e doce, deve ser bom ter p�o a cozer no forno e a cheirar tamb�m, ouve-se o vento �s vezes a assobiar rente � telha v�, esta casa tem tudo o que eu queria e, mesmo assim, ou se calhar por isso mesmo, n�o h� maneira de o esquecer.
Fal�mos tantas vezes em que hav�amos de ter uma casa assim, � medida da nossa ideia do Alentejo e da nossa ideia de vida e eis-me para aqui sozinha e sem ele. Sei que era um jogo privativo, uma maneira de criarmos o nosso espa�o s� por falar nisso, uma evas�o para os problemas que nos atormentavam. Sei tudo isso muito bem, mas eu precisava de um grau mais forte de realidade. Vendi tudo o que tinha para vir para aqui. Sou capaz de desistir de tudo o que tenho para ficar. Pedi dinheiro emprestado. Vou pagar uma enormidade de juros. Nem sei se vou conseguir. Mas agora tenho isto e mal acredito.
Isto � o resto de uma herdade, um extremo dela longe da ondula��o das searas, que s� se pressentem para al�m dos declives daquela colina no topo do montado que foi de semeadura e que hoje est� ao abandono, coroada por um renque de rochas, que vai mudando de cor com as varia��es da luz do dia e com as esta��es do ano e onde �s vezes passa um rebanho escanzelado junto das azinheiras. Onde por vezes pairam enervantemente os milhafres no seu voo suspenso e intermin�vel.
Quando c� vim da primeira vez, h� seis meses, sem o Mateus saber, para ver a casa e discutir o pre�o, o c�u de Outono estava azul-ferrete e vi, l� no cimo, um bando de perdizes a esgueirar-se atrav�s do restolho. Mas a casa fica c� em baixo, entre uns sobreiros, e tem dois poiais de pedra, uma talha grande e muito velha junto � entrada, e duas oliveiras, a contar uma � outra as desgra�as do pobre que n�o tinha na almotolia azeite para a a�orda, como dizia o Aquilino j� n�o sei em que livro. "Em Maio devem-se visitar os viveiros feitos de qualquer modo, para sachar miudamente o seu terreno, purificando-o das ervas; para dispor nos pequenos azambujeiros o novo ramo, sobre que se deve fazer, a seu tempo, o enxerto; para cortar os pequenos renovos, que nascem debaixo do mesmo enxerto", li esta manh� num caderno despegado e meio esfacelado, nuns restos de livro antigo que estava dentro do arm�rio do corredor, o cap�tulo VI de qualquer coisa que n�o sei o que �, e que se intitula "Calend�rio das opera��es relativas � cultura das oliveiras, distribuidas segundo os meses do ano, nos quais se devem fazer". Oliveirinha da serra. Oliveirinha do monte. Oliveirinhas da solid�o. Penso nestas como no meu olival de um luxo de pobre. Quero viver � sombra do meu olival. S� a mim ningu�m me leva... para ao p� do...
Seja. Vou ficar fora do mundo por uns tempos. Deixo sempre o telem�vel na carrinha, para n�o ter de atender chamadas enquanto aqui estou. A linha da casa, para j�, est� s� ligada ao computador, nem sei onde foi parar o telefone que o empregado da ag�ncia vendedora me disse ter guardado num arm�rio de pau embutido na parede do corredor ou noutro esconso que para ali est� com a porta meio estroncada.
Dou grandes passeios l� fora, bebo �gua fresqu�ssima da bilha, ando e cirando, ando e olho, olho e ando, � a minha agrimensura solit�ria, ensimesmada e desinteressada. Comecei a tratar de uma jardineta nas trazeiras, para onde d�o meu quarto, e onde tenciono renovar as hort�nsias e ir mudando as outras flores e as outras plantas ao sabor das esta��es. Talvez possa criar umas gard�nias c� dentro, mas numa zona exposta ao sol, umas gard�nias cor de marfim que s�o as flores de que ele mais gosta. O problema � que cada um dos projectos que fa�o quanto ao que eu gostaria de fazer tem a ver com aquilo de que ele mais gosta.
Quando vier o homem da vila arranjar o po�o, tenciono come�ar a cultivar a horta. Cavar a terra, abrir regos nela, sachar, plantar ou semear, regar, adubar, podar, mondar, proteger, renovar, tudo pelas minhas m�os. E sentir os cheiros do mangeric�o e dos coentros. E ter poejos, alfaces, alfazema, rosmaninho e cardos. Preciso de ver o tempo a ganhar silenciosamente corpo e consist�ncia atrav�s das plantas, nem que seja das urzes e das beldroegas. Tenho de gerir-me pelas esta��es do ano, ou pelo menos fazer de conta que � assim e de que vou � deriva, sim, mas uma deriva que � ao sabor da Natureza.
O c�o j� anda l� fora em liberdade, aos pulos no
terreiro e a perseguir os gatos e os pardais durante todo
o santo dia. Habituou-se depressa a este lugar. J� salta
o murete de pedra solta que fica depois do quintal, junto ao caminho. � noite aninha-se no cesto que lhe pus
� entrada da cozinha, depois de vir dar � cauda � minha
volta. E onde est� agora. Acho que percebe perfeitamente quando eu quero ficar s�.
�s vezes ou�o m�sica, ou vejo um Filme na televis�o, ou pego num livro. Tenho o computador para o meu trabalho e posso faz�-lo a partir daqui, sem precisar de ir a Lisboa. S� tenho de ir � Faculdade daqui a um m�s. Mas h� umas fichas do Arquivo Hist�rico Ultramarino que ainda tenho de mandar vir ou de ir buscar. Se n�o mas emprestarem, tentarei fazer umas fotoc�pias. H�-de ser aqui o lugar de ir fazendo as coisas e ganhando algum dinheiro.
Para j�, os m�veis que esperem. Fal�vamos em p�r um sof� comprido, ladeado por grandes poltronas claras e acolhedoras em frente � lareira, arranjar uma estopa crua e forte para reposteiros, colocar a mesa do outro lado, criar um est�dio de trabalho depois do arco, com livros e discos, um a grande secret�ria e um arm�rio de portas almofadadas, descoberto por acaso num bracem Elvas, e que n�o cheg�mos a comprar. Era muito caro, que os antiqu�rios j� est�o numa ladroeira, mesmo na prov�ncia. Apeteceu-nos compr�-lo, sim, foi s� isso, e assim, enquanto nos apetecia, mobil�vamos a casa e a imagina��o. Tudo com grandes tapetes de Arraiolos e algumas pe�as de barro austeras, bem escolhidas, e s� pod�amos escolh�-las bem. N�o sei se cheg�mos a falar nos tapetes quando sonh�vamos em voz alta, mas t�o cedo n�o poderei p�r mais do que umas esteiras e tamb�m fica bonito. Afinal ainda s� trouxe uma grande bacia de cobre esverdeado para p�r a lenha e est� para ali, vazia como se n�o fosse necess�ria. Vai ser preciso are�-la um dia destes.
E ele nunca viu esta casa nem sabe dela. E eu fico-me a pensar, a recapitular as nossas frases, os nossos encontros, os nossos olhares, o que diz�amos ao adormecer, as vezes que eu quis acabar com tudo. P�r um ponto final. Viver a minha vida.
No meu caso... Sei l� qual �o meu caso. E lembro-me tanto de como exercitei a minha alma em ir transigindo, procurando desculpas, procurando sa�das, procurando alternativas e acabando por rejeit�-las todas, mesmo quando cedia e cedia muitas vezes. Primeiro por ele estar casado, e depois de a mulher dele se ter ido embora, nem sei j� porqu�, talvez por n�o acreditar que essa partida fosse a s�rio, talvez por n�o me querer sentir respons�vel, mulher fatal, causadora de desgra�as dom�sticas, sei l�, por n�o querer tudo o que se me transformasse numa alternativa eri�ada de outros problemas, por n�o querer que ele amanh� sentisse culpabilidades quanto ao outro lado e ao seu pr�prio papel em toda esta hist�ria. Fico s�, d�i muito, mas antes assim.
� tarde, sei que ele foi ao Norte fazer uma confer�ncia porque me deixou um recado no gravador do telem�vel, sei que volta esta noite e espera que eu lhe ligue a meio da viagem. E sei que n�o o vou fazer, a despeito da minha vontade louca de o fazer, de combinar imediatamente alguma coisa, de correr a precipitar-me ao seu encontro, de encontrar um abrigo em qualquer parte, seja onde for, num hotel ou num palheiro, nem que fosse num alpendre, para ele e para mim, para nos encolhermos e agarrarmos e amarmos e devorarmos.
Mas disse-lhe tamb�m que eu tenho a minha liberdade e sou senhora de mim e ele � que se sente amarrado, nem percebo bem a qu�. Que � certo nunca me ter prometido nada, mas tamb�m n�o o vejo em condi��es de construir uma rela��o est�vel nos termos em que eu a concebo e posso aceitar e quem tem compromissos e sente outras limita��es � ele. E se n�o tem compromissos h�-de ter sentimentos de culpa. N�o sou eu. Eu n�o tenho nenhum compromisso e nenhuma limita��o. E n�o quero ter nenhum remorso. Nenhum sentimento de pecado, como dizem os padres. N�o sei se isto � poss�vel, se calhar at� nem �. Mas tenho uma concep��o de vida e fora dela s� teria sentimentos de culpa e n�o sei viver assim.
Quero poder ir comprar flores com o meu homem, ir passear com o meu homem, ir ao cinema com o meu homem, ir jantar fora com o meu homem, ir para a cama com o meu homem, viajar com o meu homem, ir a tudo com o meu homem e t�-lo comigo sempre que me apetecer, sempre que estar com ele for a coisa mais importante do mundo, porque estar com ele � sempre a coisa mais importante do mundo enquanto ele for o meu homem. Quero tudo isso sem sombras a irromperem-me na vida de todos os dias. Quero ter um Filho do meu homem, mas n�o quero que ele cres�a sem o pai. Quero ter esta casa com ele, viver nela, respirar nela, estar nela com ele. Quero, quero, quero... Nada disto tem l�gica, porque ele agora est� livre, ou pode considerar-se como tal, mas eu n�o acredito e n�o aceito. E talvez eu tamb�m n�o tenha l�gica nenhuma no meu comportamento e nas minhas decis�es. Talvez tudo isto seja um misto de medo e de esperan�a desmedida, de esperan�a louca que me p�e a alma nos p�ncaros da Lua antes de dar um trambolh�o.
�s tantas, tudo era t�o dif�cil, tudo era t�o desolador, que acho que fiz muito bem em dizer basta. Em dizer-lhe que ia sair com uns amigos, passar fora o fim-de-semana, que no grupo havia um tipo que se fazia a mim, solteiro e � procura de companhia, que n�o posso gastar mais a juventude, � espera nem eu sei bem de qu�.
Sei que ele ficou desesperado e s� me censuro por lhe ter mentido. Afinal eu andava a tratar de empacotar a tralha e de fazer a mudan�a para aqui. Nem sei se foi para o enciumar, se foi s� para ver como ele reagia, se foi uma guinada que me deu de repente. Se soubesse mesmo como eu gosto dele, nada de mal lhe ia passar pela cabe�a. Tamb�m sei que n�o aguento mais isto, mas n�o quero que ele se sinta infeliz.
Est�pida que sou. Sei que j� n�o h� casos assim, que nem mesmo os ter� havido nos romances do s�culo dezanove. Levanto-me para beber mais um copo de �gua e volto para aqui. Nem tinha reparado em que j� passa da meia-noite.
L� ao fundo, para a esquerda, onde fica a vila, h� umas luzes de far�is a brilhar de vez em quando. Fico absorta a pensar que podiam ser os do carro dele. Mas � imposs�vel, ele nem sabe c� vir, nem como � que este lugar se chama, nem onde fica a casa, nem onde fico eu. Preparei tudo para lhe desaparecer, como se tivesse morrido, para sair abruptamente da sua vida, para cortar as amarras de uma vez por todas.
H�-de estar a regressar do Norte, ensimesmado a conversar longamente comigo, concentrado em mim at� mais n�o poder e � espera de que eu lhe telefone, a atravessar a chuva, a televis�o dizia � hora do jantar que h� um grande temporal para aqueles lados, a parar de vez em quando, a beber caf� e a elaborar estrat�gias em que nenhum de n�s perca a face perante o outro, para o caso de podermos encontrar-nos ainda hoje, ainda esta noite, daqui a umas poucas horas se houver duas traject�rias que convirjam subitamente, a toda a velocidade, atrav�s da escurid�o de breu, h�-de estar a correr um perigo diferente a cada minuto, a preparar um cat�logo de censuras e um hurror de coisas intensas e doces que quereria dizer-me e que me fariam perder mais uma vez a cabe�a e revogar todas as decis�es definitivas que tomei, se as ouvisse.
Dou-me conta de que nunca me passou pela cabe�a casar com ele, mas agora � como se estivesse outra vez no fim de um casamento. E nisto ocorre-me pensar sobre o que teria o Andr� andado a fazer, desde que nos divorci�mos e at� ter morrido. E o que soube depois n�o ajudou muito. At� podia ter complicado as coisas. Deve ter ido tocar piano para o estrangeiro, ou meter-se por l� nas aventuras do costume, ou andar a escapar-se outra vez de qualquer coisa e a saltitar de casino em casino e de cabaret em cabaret e a beber, a beber at� cair para o lado, e depois a fugir de perigos mais s�rios at� que... Quero l� saber. Ainda bem que n�o deu mais not�cias durante esse tempo. Ali�s, se as desse, era para me pedir dinheiro ou para me meter em mais uma encrenca qualquer.
Fico mais aliviada assim. Tamb�m n�o me interessa nada, afinal o mais emocionante da nossa vida de casados j� n�o tinha nada a ver com ele, as coisas entre n�s j� estavam a chegar ao fim, foi o dia em que o Mateus dan�ou comigo na embaixada e me levou a casa porque o Andr� estava a cair de b�bado e tinha desaparecido. Foi a� que tudo come�ou, embora j� nos conhec�ssemos vagamente da Faculdade. Comoveu-me a maneira desajeitada e terna como me tocou nos dedos, j� no t�xi que nos levava a casa. Nunca percorri assim a marginal, num tempo t�o curto e em tal enlevamento que nem dei por que tivesse passado. E desejei-o logo, intensamente.
Foi h� tanto tempo e � t�o n�tido como se tivesse sido ontem esse resto de noite em que n�o dormi at� de manh�zinha. H� quantos anos � que isto dura? H� dois? H� tr�s? Quantas confus�es conseguimos ultrapassar e quantas se tornaram irremedi�veis? E quantos encantamentos? E quantas contradi��es?
Porque � que estou a ficar enervada, agora, desajustada do que me rodeia, agora, mortificada, agora? Agora que tenho esta casa e as suas paredes r�sticas e brancas. O espa�o que ambos quer�amos quando nos invent�vamos hist�rias sucessivas para uma exist�ncia fict�cia e sossegada.
N�o basta falar em saudades, desejos, ang�stias, alma e corpo em fogo. Tudo isso pode ser muito melanc�lico e torturante, mas escolhi por minha livre vontade. Tenho de aguentar-me no balan�o. Eu fui quem quis o que me rodeia, quem quis a dist�ncia entre n�s, quem tem optado pelo sil�ncio e pela falta de not�cias, quem transformou tudo em humilha��o e vexame, mesmo os desesperos que lhe escondia, mais todas as ins�nias, mais todos os dias estagnados, mais todos os sofrimentos, tantos que dos �ltimos tamb�m j� nem lhe dizia nada, e talvez j� nem esperasse que ele os percebesse, fui quem aguentou tudo e arrostou com tudo at� tomar uma decis�o radical. S� esperava que ele compreendesse uma coisa e era que eu j� n�o aguentava mais viver assim. E embora ele dissesse sempre que compreendia, estava sempre a compreender tudo e a arranjar pretextos para recome�ar e eu a compreender que ele compreendesse e pronta a recome�ar e ele recome�asse. Sabia o que eu sentia e o que eu pensava, como eu sabia o que ele sentia e o que ele pensava. Por isso talvez n�o fossem pretextos, porque n�o se pode falar de pretextos quando o jogo � assim de espelhos, intermin�vel, procurado, secundum Mathaeum. Disparate.
N�o interessa j�. Tratei de quebrar esses espelhos. Mas nem tenho sossego em mim, nem o sossego simples da casa me satisfaz aqui nesta amargura. Afinal estou a chorar. Desolo-me, por mim mesma levada para longes terras, sempre sentada junto a esta janela que n�o d� para parte nenhuma a n�o ser para o boqueir�o da noite. Qual fosse ent�o a causa daquela minha levada... e sinto que vou ficar aqui o tempo todo, at� me transformar numa esp�cie de folha ressequida � espera de uma rabanada de vento.
Uma vez ele escreveu-me uma carta insuport�vel. Dizia mais ou menos (nunca hei-de esquecer isso), "Constan�a, h� pessoas que querem sempre mais e depois preferem n�o ter absolutamente nada. Pode-se querer sempre mais, a partir de bases mais comedidas. � uma quest�o de sentido pr�tico e tamb�m (h�ias!) de pensar a diferen�a de idades, quando a um dos dois j� sobre pouco tempo. Constan�a, eu tenho t�o pouco tempo diante de mim."
Ainda ele n�o sabia que estava doente. Ainda eu n�o sabia que ele n�o me queria como enfermeira, namorada, mesmo amante de algu�m que vai morrer. Ou queria e n�o me queria. Para que estou eu para aqui a recapitular isto? A destru�da sou eu.
Porque � que decorei estas frases que me ofendem e n�o se aplicam a mim? E porque � que n�o lhe dei raz�o, muito embora achasse que ele n�o tinha dados suficientes para "ter" essa raz�o?
E porque � que isso se mistura com a ida a Londres, a volta pela National Gallery e pelo Harrod's, as compras, os restaurantes, as risadas, os projectos falhados de ir a Bilbau ver o Guggenheim, as leves como��es partilhadas por tudo e por nada?
Porque � que isso se mistura, aqui e agora, quando estou neste buraco, enterrada fora do mundo que � o dele, na casa que eu sempre quis ter com ele e que de repente n�o me diz nada a n�o ser pren�ncios de desastre, premoni��es de desalento total, e me d� ainda mais agonias e mais vontade de chorar, caladamente, resguardada de quem pudesse ver-me, sem contactos com gente amiga, sem saber dele, sem falar com ele, sem conseguir deixar de pensar nele?
D�i-me o corpo todo de n�o ter mudado de posi��o. D�i-me a cabe�a de nada do que nos diz respeito me sair da cabe�a. Doem-me os olhos de estar a olhar l� para fora sem ver nada. D�i-me a alma. D�i-me.
Amanh�, terei de levantar-me cedo e de ir � vila, mas sei que n�o vou faz�-lo. A vila parou no tempo com as suas casas baixas e brancas, debruadas de azul-ferrete sob o alinhamento das sacadas, ruas estreitas e muito limpas com lampejos de a�o nas pedras sob o sol ofuscante, um largo com dois solares antigos nas suas dignas cantarias, algumas lojas esquecidas perto da esta��o dos correios, poucas �rvores, alguns caramanch�es e uma fonte ornamental.
Fazia-me bem ir at� l�, perder uma ou duas horas a deambular e a travar conhecimento com as pessoas, comprar umas coisas e olhar para outras, mas j� sei que acabo por nao ir. Que me prenderei a pretextos in�cuos, a pequenos detalhes do arranjo da casa, limpezas de janelas, arrastar de m�veis, p�r flores nas jarras, empilhar caixas, arrumar roupas, loi�as e talheres, passar uns len��is a ferro, desencaixotar uns livros, procurar as edi��es de Lineu, a Viagem Philosophica ao Rio Negro, as fotoc�pias da documenta��o que dizia respeito a Alexandre Rodrigues Ferreira e aos outros naturalistas do s�culo XVIII, verificar as minhas fichas, alinhar a bateria dos dicion�rios, ligar a impressora, pendurar alguns quadros, passar a cozinha a pano, resolver provisoriamente uma pequena fuga de �gua no quarto de banho, e sei de antem�o que tudo ser�o desculpas para n�o me mexer deste lugar, e sei que vai passar o tempo todo at� ser tarde de mais, t�o tarde que j� ser� tarde para tudo o que n�o seja ficar para aqui, outra vez, a ver o cair da noite, o esmaecer progressivo da paisagem pelas sombras.
Talvez telefone aos meus pais, se n�o estiver muito desanimada, mas n�o consigo concentrar-me agora nessas coisas, agora que estou a imaginar em que altura da estrada � que ele est� a passar neste momento. E sei que ele passa o tempo a falar comigo, que sou uma presen�a dentro dele, a dimens�o mais �ntima que ele tem, que ele interpela ou para quem escreve mentalmente.
Sei o que ele me diz, o que ele est� agora a pensar para depois me dizer ou me escrever, imagino que seja assim e tenho a certeza de que � assim, de que tem de come�ar "Meu amor, era de noite", de que tem de falar na doen�a que s� lhe d� dois a tr�s anos de vida e na posi��o de falhan�o perante a mulher que ama, eu, t�o marcada pelo ex-marido dela, o meu, pianista, jogador, traficante sei l� de qu� e b�bado, e sei que continuar� a n�o definir mais nada da nossa vida por n�o querer envolver-me, a mim, pelo t�o curto tempo que lhe resta, a ele.
Sei que enquanto conduz o carro rumina e me escreve mentalmente uma longa carta, a �ltima, sobre a sua vida e a ruptura a que se sente conduzido, sem considerar que a ruptura j� foi criada por mim e que n�o � da doen�a que eu quero saber para cois�ssima nenhuma, mas da minha vida com ele, do tempo que eu queria ter com ele e s� com ele e depois que me lixasse que j� n�o me importava.
Sou capaz de imaginar tudo, palavra a palavra, do seu funcionamento da mem�ria e dos sentimentos e dos sentidos. Sei que come�a <Meu amor, era de noite", n�o, n�o pode come�ar de outra maneira, e sei como continua, seio que ele acha que me h�-de contar entrecortadamente, a rebentar de ang�stia.
3. Mateus
Meu amor, era de noite e eu n�o sabia se ia ao seu encontro ou se ia a fugir de si, ou se era a fugir de mim que eu ia ao seu encontro. E nem sequer sabia se ia ao seu encontro naquela noite de temporal e ventania.
Meu amor, era de noite. O tempo estava irregular e as mais das vezes ca�a uma chuva fort�ssima, a espessar-se em torvelinhos sobre o p�ra-brisas que a ultrapassagem de cami�es e outros carros tornava quase opaco por momentos, numa densa nuvem de lama em que a fuligem dos escapes se misturava �s b�tegas e era projectada para tr�s, contra o vidro, contra os meus far�is, contra os meus olhos, contra mim, decerto contra n�s, como se o temporal nos quisesse arrastar para um precip�cio.
Apesar disso eu conseguia seguir a grande velocidade, ia, cada vez mais impaciente e muito, muito depressa, gosto muito da velocidade, como voc� sabe, gosto de sentir o vento na direc��o, as guinadas do carro sob a sua
for�a e os limites da ader�ncia ao piso, gosto sempre de jogar um misto de partida de xadr�s e de roleta russa contra a estrada, n�o, n�o � nenhuma puls�o suicid�ria, mas um sentido do risco mais agudizado, de uma transgress�o dos limites que sempre esperei n�o envolvesse terceiros, mas me confrontasse com o meu pr�prio destino, com a minha pr�pria destreza, me fizesse recordar de tudo o que em cada momento me importava, atrav�s desse tempo terr�vel, como se fosse por uma ultima vez que sentia essa acumula��o de detalhes e de sensa��es contradit�rias, a que se chama perigo iminente ou risco de vida, e uma certa embriagu�s omnisciente a fazer-nos pairar por cima de tudo o resto.
Na minha vida, a no��o de "�ltima vez" vem aumentando de import�ncia. N�o creio que seja uma quest�o de maturidade, acredito at� que a maturidade evolua quase sempre pela consciencia da elimina��o dos riscos desnecess�rios, e por isso me parece que se trata antes de um sentido do risco e da parada desesperada, quando j� n�o h� nada a perder porque os dados est�o lan�ados e s� nos resta seguir-lhes a traject�ria.
Noto, agora que falo da viagem, que lhe descrevo mais do que de uma prefer�ncia pela velocidade em geral, e por isso lhe digo que ia por vezes quase �s cegas, guiando quase por intui��o apenas, apenas procurando manter-me entre a veda��o esbranqui�ada da placa central e a faixa tracejada que corria � minha direita, sobressaltando-me outras vezes quando o rodado entrava nalguma zona de alarme sonoro ou trepidava
sobre os marcadores met�licos no eixo da via, abrandando sempre que avistava as luzes dif�ceis e turvas de farolins l� mais � frente, como se pudessem transformar-se de repente, de difusos sinais esborratados, numa inst�ncia imprevis�vel da morte, assim anunciada ou prenunciada por umas luzes vermelhas e mi�das no meio das cortinas de �gua que a minha impaci�ncia e os meus far�is atravessavam.
Sei que � perigoso, sei que � mesmo muito perigoso, mas agora isso j� n�o tinha nenhuma import�ncia, tanto me fazia chegar ou n�o chegar, viver ou n�o viver, e, de alguma maneira, eu sabia que n�o me ia acontecer nada de especial, tinha a �ntima certeza de que o meu destino n�o podia ser esse, acabar ali sem voltar a v�-la e a falar consigo de viva voz.
Era tarde, j� muito tarde, meu amor, e eu ia assim a cortar a noite � desfilada, os arbustos no separador da auto-estrada desgrenhavam-se continuamente em sacudidelas desvairadas de desespero, era como se estivessem ali, � luz dos far�is nos dois sentidos, para me varrerem a alma sem piedade, chovia, chovia muito e eu n�o conseguia deixar de esperar uma chamada sua. Ao menos, uma chamada sua. Uma chamada n�o custa nada a fazer e pode ser de uma import�ncia crucial.
Pensei, foi para isso que se inventou o telefone, mais para as situa��es de ansiedade do que para as comunica��es normais e pr�ticas. Eu tinha a certeza de que a chamada viria, atravessando-se no temporal como uma aberta prolongada e lenitiva, muito embora n�o tivesse chegado, nunca mais tivesse chegado, continuasse ainda sem chegar.
Eu tinha a certeza de que ela viria e preparava-me intimamente para quando ela chegasse, num toque agudo de telefone celular, pensando em abrandar muito ou mesmo em encostar � berma, acendendo as luzes intermitentes, ou em seguir muito devagar at� � primeira �rea de servi�o, para poder falar da� sem me desconcentrar com outras coisas, nem prestar aten��o redobrada ao movimento, nem me envolver mais uma vez no perigo enquanto estiv�ssemos em liga��o.
Por v�rias vezes tentei ocupar-me com outras coisas, pensar nos trabalhos que tenho em curso, nas interroga��es que a mim mesmo coloco quanto � nossa vida, nas quest�es pr�ticas de todos os dias, mas sempre com o mesmo resultado de pensar obsessivamente que voc� devia estar a telefonar-me, que tinha coisas muito ansiosas e muito urgentes para lhe dizer, parecia-me inacredit�vel que n�o lhas tivesse dito antes, vinha-me tudo � cabe�a ao mesmo tempo, o que lhe tinha dito de forma incompleta e imperfeita, o que n�o tinha chegado a dizer-lhe, vinha-me tudo � cabe�a numa golfada atordoante de palavras, de ideias, de sentimentos, do que tinha ficado por exprimir e era da maior import�ncia que eu conseguisse ao menos balbuciar, se n�o me fosse poss�vel diz�-lo de modo expl�cito, e tamb�m isso se enrolava numa espiral vertiginosa ao sabor da velocidade, tamb�m isso, pressentido e emaranhado, tinha de ficar para depois, para dali a momentos, quando a sua chamada viesse e a tens�o em que eu estava afrouxasse e eu pudesse deter-me mais sossegado, respirar normalmente, libertar-me daquela catadupa que me envolvia e me arrastava e s� podia ser para junto de si porque, isso, sim, estava escrito no meu destino.
4. Eug�nia
Quanto � Constan�a. Parada, metida consigo, conscienciosa, trabalhadora, aplicada, evadida, escondida n�o se sabe onde. A m�e est� sem not�cias dela. H� dias telefonou-me, ainda estamos t�o longe do Natal, por causa do palacete de Alfama que vai ser vendido e da confus�o das partes a que cada uma de n�s tem direito, porque os dois maridos sucessivos dela, o meu pai e o meu tio, tamb�m herdaram n�o sei quantos av�s cada um, e eu e a Constan�a herd�mos tamb�m qualquer coisa, n�o da nossa progenitura ainda viva, claro, mas da tia Domingas, Madre das Dores Purificadas em religi�o, irm� solteira da av� e a heran�a do tio Luciano ainda est� por partilhar. O palacete de Alfama � uma ru�na que ainda me lembro de ter habitado at� aos cinco ou seis anos, at� ao fim do casamento da m�e com o meu pai. Depois de a m�e, o tio Carlos e n�s duas termos ido viver para a Lapa, s� l� �amos para alguma festa grande da fam�lia e aquilo tinha ficado ao abandono, a perder cali�a e azulejos, com as madeiras a apodrecerem de humidade, os cortinados a es fiarem, e os pap�is de parede a descolarem-se aos bocados. Na altura das festas, come�ava-se a arejar a casa uns dias antes e disfar�ava-se o que se podia daquele mau estado. Havia uma escadaria nobre que subia por entre pain�is de azulejos, e um espa�o c� em baixo, a seguir ao hall de entrada lajeado, com grandes portas de batente envidra�adas e uns grandes vasos de avencas na passagem para a zona de servi�o. E entre o sal�o, que estava quase sempre fechado, e a sala de estar, que era um antigo fumoir onde a m�e jogava a canasta e o pai recebia os amigos �ntimos, havia um quarto de passagem com um harm�nio entalado entre os cortinados de reps acastanhado das duas janelas. O tio Luciano, que era c�nego, professor de cantoch�o no semin�rio e tamb�m um dos propriet�rios da casa (j� me esquecia, mas tamb�m herd�mos dele), sentava-se ao harm�nio sempre que ia l� ficar. Tinha de se deitar muito cedo porque, nas manh�s seguintes a essas noites, precisava de apanhar v�rios transportes para chegar �s oito aos Olivais, onde ia dizer missa, confessar senhoras, ensinar canto gregoriano, transcrever pe�as sacras de polifonias antigas. Nesses fins de tarde, assistia-lhe o privil�gio de jantar mais cedo, para poder ir para a cama antes das nove. E, quando bebia os seus tr�s copinhos de baga�o, passava quase sempre as duas horas, entre as sete e as nove sentado ao harm�nio, a dar ao pedal e a fazer varia��es sobre corais de C�sar Franck. Era muito estranho, ao que mais tarde ouvi comentar, quando ele morreu. Porque o tio Luciano nunca tocava um coral inteiro, nunca executava nada at� ao fim, parava sempre depois de meia d�zia de acordes e fazia umas varia��es e uns enxertos de outras coisas. Variava, retomava a partitura, enxertava, voltava a variar, mas por vezes, quando tinha exagerado na bagaceira, a varia��o consistia em sustentar uma �nica nota durante muito tempo, uma �nica nota cujo timbre, cuja altura, cuja intensidade, lhe diziam alguma coisa de especial naquele momento. �s vezes a nota ouvia-se durante um minuto ou mais, enquanto o transe durava e ele quase encostava um dos ouvidos ao teclado. Um dia, isso foi pouco antes de o pai ir embora, chegaram dois amigos dele para jantar. E desde que entraram, subiram as escadas, chegaram � sala e fizeram os seus cumprimentos � m�e e ao pai, ouvia-se sempre a mesma nota roufenha, como que um mugido longo e aspirado, nem agudo nem grave, provavelmente sa�do do meio da escala, enquanto o pai, sem perder a paci�ncia nem a compostura, comentava para os rec�m-chegados com o ar mais natural deste mundo: "- Isto � o meu irm�o Luciano, que est� � procura de Deus."
E tamb�m houve fados quando a Joaninha prima casou e a m�e e o tio Carlos, o segundo marido dela mas primo da mesma gente, cederam a casa para o copo de �gua, j� eu era mais velha, e a meio da noite algu�m disse para a fadista: "- a Fa�sca, a L�grima!", e a Fa�sca, que era uma das convidadas com veleidades de espont�nea, tinha sido noiva do primo Ter�ncio e por ele tinha sido abandonada na v�spera do casamento, cantou a L�grima cheia de requebros dram�ticos e bisou-a e eu passei umas semanas dos meus dezasseis anos a trautear a toda a hora Cheia depenas, cheia depenas me deito, / e com mais penas, com mais penas me levanto, / no meu peito, j� meficou no meu peito, / estejeito, ojeito de te querer tanto... Se eu soubesse, ai se eu soubesse que morrendo / tu me havias, tu me havias de chorar / por uma l�grima, por uma l�grima tua, / com que alegria me deixaria matar... J� n�o me lembro da letra toda, tamb�m a esta hora e com esta carga, s� me lembro de que o acompanhamento parava quando a voz chegava �quela "l�grima" e se arrastava num arabesco que se prolongava num pian�ssimo e parecia mesmo uma l�grima a correr pelas faces abaixo, e o dobrar das palavras de cada verso ajudava a desdobrar aquela �gua a descer em fio dos olhos, e ressoava no cora��o ainda quente e perfumada, como o arri�re-go�t do vodka, e as primas mais namoradeiras que faziam roda ficavam muito atrapalhadas e comovidas enquanto, aqui e ali, os primos mais espigados, a quererem dar-se ares de homens feitos, bebiam um trago de vinho tinto e rosnavam muito convictos e entendidos...... fadista!", com um "�> muito soprado, a morder o bei�o inferior, antes de a estrofe chegar ao fim.
A Constan�a devia andar pelos nove anos. Era muito mi�da e n�o sei se chegou a ouvir aqueles gemidos lancinantes. Agora at� aposto que sim e que ficou marcada. Mas hoje, como � que se pode ser assim, viver assim, gemer assim, num pa�s med�ocre e sem futuro? Ontem o Rog�rio, que tinha combinado jantar comigo, chegou de Lisboa no avi�o da tarde, veio c� a casa, e ainda ia no primeiro whisky quando desatou a vociferar. Parece que o tinham demitido da Companhia dos Telefones ou l� como � que se chama agora. E dizia-me: "N�o imaginas. Basta pegar num jornal, basta ver um notici�rio de televis�o, basta ouvir a r�dio, basta entrar numa conversa de amigos, para se ver que Portugal � um torvelinho de mis�rias e n�o sai da cepa torta", e nisto eu dei comigo a lembrar-me do fado da l�grima, Portugal a deitar-se cheio de mazelas e a levantar-se com mais mazelas ainda.
"-J� n�o � uma quest�o de fado em Alfama, nem de negro fad�rio, nem de simples m� vida", objectava o Rodrigo muito excitado. "� uma quest�o de sanidade p�blica. Regressou-se aos tempos do caciquismo, do nepotismo, do oportunismo, do corporativismo, do imediatismo, da inconsist�ncia pol�tica, da negociata sem freio, da especula��o desnorteante, do endividamento excessivo, da corrup��o desbragada, das fraudes a torto e a direito, das crises da Justi�a, das crises da Sa�de, das crises da Agricultura, das crises da Educa��o, das crises da seguran�a das pessoas, das crises de tudo e mais alguma coisa, da evas�o fiscal, da derrapagem dos gastos p�blicos, do descalabro, da descida espectacular de todos os indicadores para nos colocarem j� nem sequer na cauda, mas no olho do cu da Europa, olha, parece um fado corrido mas � corrido da degrada��o, do "olha para o que eu digo, n�o olhes para o que eu fa�o", do "salve-se quem puder enquanto � tempo", do "fia-te na Virgem e n�o corras", das insatisfa��es gr�tis, do deixa andar, das promiscuidades extraordin�rias, dos esc�ndalos de meia tigela e dos esc�ndalos de alto gabarito, do futebol como actividade politica e empresarial, do desporto como neg�cio, da politica como neg�cio, da vida como neg�cio, dos erros repugnantes de portugu�s, das colunas sociais pirosas, da falta de qualifica��es, da falta de classe, da falta de n�vel, do subs�dio, da mendic�ncia, do emprego p�blico, da pregui�a, do esmorecimento, do atraso irrecuper�vel, da sem-vergonha".
Estava sufocado. Fazia-me lembrar o velho major Cerdeira, muito alto, muito seco, muito hirto, muito digno, muito mon�rquico, a cofiar os bigodes brancos � Carmona e a dizer ao tio Carlos, um dia, l� em casa, logo a seguir ao 25 de Abril, numa ocasi�o mais confusa do PREC: "- Senhor doutor, aquilo de que Portugal precisava era de uma ditadura militar, mas comandada pelo rei!..", e depois a enfiar o velho d�lman dos tempos da Primeira Guerra Mundial, muito co�ado, com alamares mas j� sem dourados, a fazer a contin�ncia, mesmo sem qu�pi, e a ir-se embora n�o sem se curvar numa grande v�nia a uma das criadas, que ia a passar ao fundo do hall com um tabuleiro de ch�.
Ri-me, s� de me lembrar desse epis�dio, mas o Rog�rio n�o reparou ou n�o fez caso na sua obstina��o e continuou com os olhos a despedirem chispas de indigna��o e raiva, �s vezes a comer s�labas sobre s�labas � velocidade a que falava, como se tivesse um seixo na boca que lhe atropelasse a dic��o, ou a obrigasse a s�bitas derrapagens nas curvas das frases. Bem dizia algu�m conhecido que as pessoas bem educadas n�o comem as s�labas quando falam.
"- E toda a gente sabe que � assim, que est� tudo podre, mas n�o reage, toda a gente � de uma passividade e de uma ignor�ncia de bradar aos c�us, h� quem chegue � universidade t�o bronco que n�o saiba que dois e dois s�o quatro, h� quem saia da universidade t�o bronco que n�o consiga perceber uma simples not�cia de jornal, dou-te a minha palavra de honra, e toda a gente se vai alheando dos grandes problemas numa desgarrada alucinada em favor do que � mais imediato e mais acess�rio, em favor dos grandes chav�es que n�o servem rigorosamente para nada, em favor da grande pagaille, da grande bacanal, da grande orgia em que todos decretam a primeira coisa que lhes vem � cabe�a e ficam muito satisfeitos com a figura que fizeram, em favor da televis�o mais cretinizante do nosso tempo. Toda a gente tem o que merece. Portugal entra no s�culo XXI como o pa�s das coisas mal feitas e das imbecilidades anacr�nicas. Minha rica, volt�mos �s aldrabices e aos expedientes do Constitucionalismo, com os ricos mais ricos e os pobres mais pobres, com muito circo, muita permissividade, muita droga e muitos assaltos � mistura e tamb�m com muito paleio hipocritamente solid�rio a respeito da exclus�o social e tamb�m com muito paleio hipocritamente sabedor a respeito da Europa comunit�ria cujas tetas ordenh�mos enquanto deu para ordenhar, mas est�o agora a ficar secas e ressecas e ainda n�o percebemos o que se vai passar. � isso. N�o percebemos. � o que �."
Durante esta arenga, ele tinha-se levantado v�rias vezes e dava voltas � sala, repuxava os punhos da camisa com monograma bordado na mesma cor da popeline e j� ia no terceiro whisky. E depois contou o caso dele e o resto da noite foi um aut�nticoflop. Ele estava demasiado concentrado em Portugal, e principalmente na sua demiss�o, para falar de outra coisa ou para pensar noutra coisa que valesse a pena. Tinha tido aquele cargo durante dez anos e nunca se tinha lembrado de fazer reparo nenhum. S� agora que veio para a rua � que passou a doer-lhe. N�o suporto estes machos lusitanos que se v�o abaixo � menor contrariedade. N�o fazia nada essa ideia dele. Como � que eu tinha pensado que depois do jantar ainda pod�amos... O Rog�rio � um med�ocre que n�o os tem no s�tio. S� os med�ocres se importam tanto com a mediocridade dos outros. Quero l� saber da situa��o econ�mica e social. Quero l� saber da Companhia dos Telefones ou l� como � que se chama agora. Quero l� saber da p�tria ingrata, da p�tria exangue, da p�tria ca�tica, da p�tria falida, da p�tria esburgada at� ao osso, da p�tria o que quiserem. Disse-lhe que me do�a muito a cabe�a, que precisava de ir logo para a cama e acabei por n�o ir jantar. Deixei-o ir digerir a crise da p�tria sozinho ou com outra companhia mais prop�cia a desmagoar-lhe as m�goas.
Cheia de penas, cheia de penas me deito... Eu tamb�m n�o percebo como � que a minha irm� n�o tem medo de se ir encafuar num s�tio daqueles, fora do mundo e � merc� de quaisquer bandos de assaltantes, num enlevo c�ndido, numa inconsci�ncia que n�o � pr�pria nem dela nem dos tempos que correm e num pa�s assim. Nem a Princesse de Cl�ves. Se tem tanta coragem para fazer assim, porque � que n�o rompe de vez e n�o sai daquele marasmo? Porque � que, ao menos, n�o se p�e a viajar por uma temporada? Porque � que n�o se p�e a andar daquela porcaria aberrante, com tantos s�tios agrad�veis para viver e para trabalhar, se ela quer trabalhar, e para pensar e estar s�, se ela quer pensar e estar s�, que h� por esse mundo fora? Livra! At� me faz mais sede. Ao contr�rio do porto, o vodka tem a vantagem de n�o se poder beber �s l�grimas. � certo que eu poderia dizer a mesma coisa do Mateus, n�o por ele viver fora do mundo, mas por o mundo lhe ser completamente indiferente apesar de estar dentro dele. Porque � que aquele homem n�o se mete na pol�tica, ou n�o vai para um banco, ou para uma empresa, ou para uma associa��o de industriais, ou para um lobby, ou para outra coisa qualquer? Porque � que n�o regressa ao jornalismo onde fez tanta coisa interessante? Porque � que prefere andar a fazer confer�ncias sobre Stendhal e as veem�ncias amorosas dos seus livros? O que � que ele descortina agora nas Cl�lias, nas Sanseverinas e nas Matildes, que lhe possa interessar para alguma coisa ou servir para alguma coisa? Porque � que anda a deitar p�rolas a porcos? A debitar vulgaridades para plateias de analfabetos que nem sequer vulgaridades percebem? A perder o tempo e o feitio e a deixar-se morrer de amores? Porque � que leva tanto tempo a despegar-se de vez da Constan�a. Ser� porque vai morrer? Mas ent�o mais valia que se despachasse. Com franqueza, eu n�o entendo estas maneiras de ser. A Constan�a � como o pa�s, n�o vai a lado nenhum e fica-se para ali, meditabunda e amargurada, a somar vit�rias morais por via da demiss�o e que n�o lhe h�o-de valer de muito. Cheia de penas, cheia de penas se deita e com mais penas, com mais penas se levanta. Ao menos podia arranjar um gajo divertido que saltasse pra cima dela e n�o um sorumb�tico de caca como o Mateus, que � um n� cego de problemas, anda incessantemente de um lado para o outro, ainda por cima tem a mania das velocidades de carro, qualquer dia espeta-se, e lhe vai murmurando frases depressivas ao ouvido, ou como se fosse ao ouvido.
5. Constan�a
Imagino que ele me est� a dizer isto, a ver claramente o recorte de cada frase como se estivesse a escrev�-la, a ficar exausto da concentra��o. Ainda deve vir antes de Aveiro. Saiu tarde, com certeza muito tarde. Fuma cigarro atr�s de cigarro, h�-de ter o r�dio do carro ligado, vai ficar algum tempo sem conseguir guiar no mesmo ritmo, precisa de parar, de respirar o ar da chuva.
Talvez encoste � berma, mas imagino que acabar� por sair da auto-estrada e meter-se por atalhos. Ele � dali, conhece bem a zona, j� me levou por l�, fic�mos na pousada depois de termos atravessado uma s�rie de terrenos baixos, alguns alagados, perto da costa, donde se viam o mar e umas ilhotas da ria com casas em ru�nas e meia d�zia de �rvores. Lembro-me de que havia umas curvas perigos�ssimas ao chegar a uma povoa��o de pequenas casas e jardins muito floridos nessa altura.
Depois, h�-de sair do carro, dar alguns passos, olhar em volta, recapitular tudo ainda uma vez, retomar o volante e continuar a falar comigo. N�o desiste. Nem eu.
Sempre assumi os meus actos e os meus comportamentos. N�o quero reconhecer esta situa��o perante os meus pais. Nem perante o resto da fam�lia. Nem perante os meus amigos. Nem perante ningu�m e muito menos perante mim mesma. N�o sou assim. N�o quero viver na clandestinidade. N�o faz o meu g�nero. E n�o quero viver � vista de todos com a alma na clandestinidade.
A Matilde dizia-me, no outro dia, quando eu estava doente e desesperada, que a clandestinidade, um certo grau de secretismo a cultivar, pelo menos, era inevit�vel. Que isso tem inconvenientes, mas tamb�m tem vantagens e prazeres pr�prios, sofistica��es e emo��es, hiperintensidade nos encontros, coisas s� nossas que n�o se podem partilhar com mais ningu�m. Que s�o as regras deste jogo e � preciso saber viver com elas, quase como se nesse caso se tivesse uma fun��o espec�fica nas rela��es humanas, num quadro de conjugalidades t�o cada vez mais flex�veis que at� come�am a perder o picante se essa fun��o se tornar indiferenciada.
Sei que a Matilde n�o � c�nica e que n�o estava a autojustificar-se, porque n�o anda com ningu�m h� muito tempo, ela, que prefere os homens casados, mas tem um enorme esp�rito pr�tico e uma capacidade sem limites de aceitar as coisas como elas s�o. E quando lhe contei que uma das minhas colegas da Faculdade, a Felismina, como quem n�o quer a coisa, tinha insinuado que eu andava com o Mateus, ao que respondi sem me dar por achada "Pois ando e ent�o?", o que a deixou com cara de parva, a Matilde observou que mesmo assim, mesmo que corresse � boca pequena que n�s and�vamos um com o outro, nem por isso as coisas deixavam de ser formalmente clandestinas e formalmente ignoradas, projectadas numa esp�cie de limbo social e num plano j� indiferente � culpa nos dias de hoje, sussurradas pelas tias, pelos amigos e pelos colegas, objecto de bisbilhotice e de piscadelas de olho, por eu ter um caso com um homem casado e amarrado a compromissos exteriores a mim, esse era o crit�rio que ocorreria �s almas quando se falasse no meu caso, ou nele, ou na mulher dele, mesmo que j� n�o houvesse mulher dele em cena e ele fosse livre como o ar num dia de vento.
O Andr�, quando j� n�o �ramos nada um para o outro, percebeu que se passava qualquer coisa entre mim e o Mateus. Ainda n�o tinha acontecido nada, salvo uns encontros � vista de toda a gente. Mas ele come�ou a fazer-me uma s�rie de alus�es directas. "Tinham-lhe" dito que eu me encontrava com outro homem. "Tinham-nos" visto na Versalles. "Dizia-se" isto e aquilo... Fazia esses coment�rios com um ar de indiferen�a to tal. Eram factos que ele tratava de registar e abordar objectivamente, at� com alguma amabilidade que me arrepiava toda, que ele enumerava como quem at� nem percebia que as coisas estivessem a correr mal entre n�s, se eu estava a envolver-me dessa maneira com um terceiro e a ele tanto se lhe dava.
Nalguns aspectos, o Andr� era um bandido. Mas noutros, no trato directo, na vida comigo, nas coisas e situa��es a que eu chamo de todos os dias, n�o era m� pessoa, se � que os termos de boa e de m� pessoa podem servir para classific�-lo. E tamb�m tinha uma experi�ncia pessoal muito suigeneris. Aos vinte anos tinha vivido com uma rica�a francesa muito mais velha do que ele. Tinha idade para ser m�e dele embora, por umas fotografias que vi, estivesse muito bem conservada naquela �poca.
Hoje penso que o Andr� durante algum tempo foi sustentado por ela, embora ele nunca tenha falado nisso e eu nunca lho tenha perguntado. Mas percebi que muitos dos contactos que ele tinha em Paris os tinha conseguido gra�as a ela. E "sustentado" talvez n�o seja bem a palavra. O Andr� n�o levava ent�o uma vida cara, andava sempre de jeans e sapatos de t�nis, n�o tinha luxos nem queria t�-los. Era o seu feitio. Mas talvez tivesse sido ela a dar-lhe a moto e muitas vezes lhe teria dado de comer. E isso, devia pagar a conta dos hot�is para onde iam, os bilhetes para os espect�culos, os restaurantes onde se encontravam para almo�ar ou jantar, talvez tenha financiado algumas das primeiras viagens dele
O caso s� terminou quando come��mos a andar juntos e tenho a impress�o de que assisti involuntariamente � cena Final, um dia que ele atendeu o telefone na minha frente e s� se ouviam guinchos que pareciam perfurar o auscultador. S� percebia interjei��es e frases soltas num registo muito agudo, do g�nero: je te le jure..., tu verras..., ne me dis pas �a..., oh l� ia..., mon cul..., tiens..., le pauvre mec... proferidas numa entoa��o enraivecida e sarc�stica.
J� t�nhamos o casamento marcado e eu achei que devia fazer de conta que n�o era nada comigo quanto ao embara�o dele, a responder por monoss�labos e circunl�quios em voz pausada, "�coute, Jacqueline, �coute
-moi..." a algu�m que lhe gritava do outro lado. N�o perguntei nada, comecei por pensar que eram quest�es de dinheiro, ele queixava-se de dever muito dinheiro a algumas pessoas, e s� relacionei as coisas com a francesa muito mais tarde, quando um amigo dele, que ia l� por casa nessa altura, me contou da francesa e dos turbantes que ela punha e acrescentou que ela governava despoticamente, de um lado, o marido, que era um banana cheio de dinheiro ligado �s ind�strias de armamento, e os filhos, que queriam que os deixassem t�o � solta quanto poss�vel, e, do outro, o Andr�, que era um mi�do de boas fam�lias mas sem um tost�o de seu.'
Quando ele me come�ou a vir com insinua��es sobre o Mateus, resolvi n�o reagir. N�o estava propriamente em condi��es de faz�-lo. E sempre embirrei com essa maneira de p�r as coisas, o "disseram-me", o "contaram-me", o "consta que", a escamotear o sujeito real da ac��o em favor de um sujeito indeterminado. Fui tamb�m fazendo de conta.
Aguentei as observa��es sem fazer coment�rios, como se n�o tivesse nada a ver com elas, at� nos separarmos. J� tudo estava completamente deteriorado. Limitei-me a dizer-lhe de olhos nos olhos que nunca lhe tinha sido infiel, primeiro, por uma simples quest�o de princ�pio, ultimamente por uma simples quest�o de bom gosto, e tamb�m porque n�o fazia ideia das trapalhadas em que ele andava metido e n�o queria correr o risco de comprometer ningu�m nalguma hist�ria sinistra em que me visse envolvida por arrastamento.
Se calhar aconteceu a mesma coisa ao Mateus. Estas coisas s�o sempre sim�tricas. Tamb�m lhe h�o-de ter comunicado que o "tinham" visto comigo, ou que se "dizia", ou que "constava" isto e aquilo de n�s. N�o sei como � que ele reagiu, mas n�o deve ter sido muito diferente. A diferen�a � que ent�o j� and�vamos um com o outro e n�o havia nada que conseguisse despegar-nos.
Mas eu n�o quero pensar mais no Mateus. Nunca fui assim e n�o aceito ser assim. E tamb�m n�o quero ser a destruidora de lares, nem a mulher fatal, mesmo que essas categorias j� n�o signifiquem nada nos tempos que correm e mesmo que o que tinha de acontecer j� tivesse acontecido antes de a nossa situa��o se definir.
E agora n�o quero ouvi-lo, n�o quero ouvi-lo, mas � como se o seguisse e o escutasse sempre num transe son�mbulo, enquanto olho fixamente l� para fora e sei que o c�o dorme, que o resto da casa est� fechado, que trouxe len��is antigos de linho que eram do bragal da minha av�, que tenho um xaile de l� e seda no arm�rio, que n�o h� ningu�m nas cercanias, que deixei de fumar h� uma por��o de meses, que provavelmente ningu�m sabe que esta casa recome�ou a ser habitada, que n�o h� mais velas na despensa e vai ficar tudo �s escuras quando esta acabar, se eu n�o acender o candeeiro e eu n�o quero acender o candeeiro, quero desolar-me e escapar � desola��o, j� nem sei o que digo, n�o conhe�o ningu�m por estas paragens, se me acontecer alguma coisa vai ser o bom e o bonito, e ele n�o sabe onde � que eu me encontro e diz-me, diz-me coisas, diz-me sempre mais coisas que eu j� sei.
6. Eug�nia
A minha irm� � realmente diferente, mas esta � uma diferen�a que a minha m�e nunca conseguiria perceber na sua contabilidade pessoal e sum�ria. A Constan�a sempre quis uma vida estabilizada, sem aventuras, sem emo��es fortes, com o quam satis de tudo, com tudo absolutamente normal: um homem dulce et utile em casa, saladas e �gua fresca, m�veis simples, ar puro, flores e �rvores, a alma posta em sossego interior, sensa��o de liberdade mas sempre com regras de vida, enlevadas geometrias da alma, e �lcool, nem v�-lo. Por isso h�-de ser sempre uma inadaptada, a confundir a realidade com os desejos, as emo��es delicadamente pensadas com a brutalidade dos factos. Tanto gentile e tanto onestapare, dizia o Dante e ela � capaz de pensar que se pode ser assim na pr�tica. Mais lhe valia ter ido para carmelita descal�a de olhos em alvo, a gemer as culpas do mundo, ou ter-se contentado com ser uma personagem subalterna de fic��o subalterna. O que ela v� no Mateus � uma "comunh�o" hoje falhada. O que ela quer do Mateus � um halo imponder�vel, em vez dele, que salve essa comunh�o virtual, em vez de salvar ambos. Cheiro de santidade laica pela ren�ncia. Mas tenho a certeza de que nem ela mesma sabe por que � que falhou. N�o se apercebe de que a fasquia n�o pode ser posta assim. Nem de que o Mateus n�o vale isso. Ser� que o Mateus vale ainda alguma coisa? O que a atra�a no Andr� tinha mais a ver com a juventude e as digress�es pela arte, as m�scaras, a fotografia, os entusiasmos pueris � sa�da da adolesc�ncia, algum aventureirismo confundido com criatividade, e viu-se o resultado. Para o Andr� tudo isso acabava por ser secund�rio de todo. A vida de que ele precisava era o contr�rio da inoc�ncia e da contempla��o nos seus v�rios contrabandos, metaf�ricos e reais. Implicava um gosto pela vadiagem e pela aventura desqualificada, pelo risco e pela duplicidade sem categoria, provavelmente pelo crime ou pelas bordas dele. E nenhum panache, bem vistas as coisas.
A mim, fascina-me o que corre mal. Mas n�o gosto de chungarias. N�o preciso de me psicanalisar. N�o � nada de metaf�sico, nada de ontol�gico, nada de doentio nem de obsessivo. � um tema vulgar de Lineu como qualquer outro. O Somerset dizia que um final feliz � t�o bom como um final infeliz. Para mim, s� h� finais infelizes. N�o sei se me d� prazer, � capaz at� de n�o dar prazer nenhum, mas eu tenho uma tend�ncia especial para explorar a desgra�a e as suas consequ�ncias, o desastre e os seus malef�cios, a inadapta��o e as suas crueldades. Nos meus livros, � sempre tudo pelo pior. Trai��es, demiss�es, sexo mal digerido, v�cios m�rbidos, desfasamentos, falhan�os, mortes. � a lei do mundo e � por causa dessa s�rie de fun��es que o mundo � ef�mero demais e palpitante demais e cru demais e eu n�o quero mudar o mundo. N�o vale a pena. Nunca me ocorreu tal coisa. Prefiro servir-me dele tal como �, d�plice e inst�vel. Serei eu, como escritora, incapaz de grandeza e assim t�o diferente dos outros? Mas os livros dos outros, mesmo os que n�o vendem, est�o cheios de par�bolas de horror e de cat�strofes, embora com muita prosa a insinuar que n�o pode ser assim... Ser�o os meus leitores gente �vida de tristezas? Mas levam os meus livros para a praia... Serei afinal uma autora realista, de um real comezinho e tacanho? Mas acusam-me de entrar frequentemente pelas raias do inveros�mil dentro...
N�o posso dizer que n�o gosto da vida. At� gosto. Nem que a vida me tenha castigado. At� nem castigou. Acho que � por eu saber viv�-la enquanto deslizo e escorrego maciamente ao longo dela. A vida vive-se, logo a vida vive-me. Ergo sum. � este o meu cartesianismo sum�rio. Um homem que me d� ponta, uma garrafa que me fa�a sede, uma cama que me convide, umas viagens que me arejem a pluma como deve ser e sinto-me logo novinha em folha. Pronta a recome�ar, a flanar, a escrever e a mudar. Capaz de outro livro e de outra rela��o. � a minha deriva, ao sabor de mim e dos meus impulsos. N�o sou uma devoradora de homens. N�o lhes quero mal, sirvo-me deles e dou-lhes alguma coisa em troca, l� isso dou, despejo conscienciosamente a garrafa e espero sempre que n�o seja a ultima, uso a cama para as minhas vibra��es... c�smicas e sei bastante do assunto, viajo para variar e sai-me caro, escrevo e durmo nos intervalos e d� para viver com alguns excessos de tabaco.
Cheguei aos quarenta e seis anos e nunca gostei de ningu�m como dedica��o total, fixa��o da vida, deslumbramento interior, sei l�, desregulamento do ser. Nunca me passou pela cabe�a preocupar-me com o ser, nem com "s" pequeno nem com "s" mai�sculo, e muito menos consagrar-me exclusivamente fosse a quem fosse. Acho isso exasperante e idiota. S� as perdas de prazer que implicava... Os meus maridos foram parceiros de desplante, de orgasmo e digress�es, contidos dentro das minhas pr�prias regras de n�o haver regra. Contratos claros, sem armadilhas disfar�adas nem amarras s�lidas, e que deixavam, a eles e a mim, toda a liberdade que quis�ssemos. N�o tinham nada de est�pidos, eram belos homens, viris e bem sucedidos na vida, e, quando atingiram o prazo de validade, pu-los a andar. � uma maneira de dizer. Mas eles sabiam que tout passe, tout casse, tout lasse. Vivi com eles a delicia das coisas imperfeitas, como dizia o E�a. Tratei-os bem ao explicar-lhes, de cada vez, que tudo tinha chegado ao fim e que tinha resolvido mudar. Nunca discuti o day afier com eles, nem isso lhes interessava.
Com o Fritz n�o foi bem assim. O Fritz talvez fosse o mais inteligente, o mais culto e o mais interessante, apesar dos seus ademanes de gal� de cinema e da mania das grandezas, a villa em Capri, o Ferrari, as edi��es antigas, a corrida aos leil�es de livros e de obras de arte, a saison onde quer que houvesse saison, a dolce vita onde quer que houvesse dolce v�ta. Respeitava a minha independ�ncia e o meu trabalho, tinha delicadezas e galanterias que j� n�o se usam mas s�o daquelas de que as mulheres gostam sempre, e era um homem a s�rio, sempre dispon�vel para tudo o que fosse preciso. E bebia tanto como eu, sem pestanejar, a aguentar os copos como um cossaco aguenta uma carga de cavalaria. Mas n�o gostei da cena com a criada que ele fodia nos intervalos de me foder. A minha reac��o n�o tinha nada a ver com quebras de pot�ncia. O Fritz podia aviar um regimento de mulheres e ficava na mesma. Mas todos temos as nossas pequenas incoer�ncias contra a pr�pria l�gica das rela��es que constru�mos. E talvez eu estivesse mais enervada porque o meu romance n�o estava a progredir como eu esperava. J� n�o sabia o que havia de fazer �s tr�s personagens principais. Quando h� tr�s personagens principais, em que nenhuma delas perde em rela��o �s outras duas, h� sempre alguma coisa na coes�o da intriga que escapa ao controlo do autor. Como agora me est� a acontecer, num impasse abomin�vel da escrita e com este jejum de homens que espero n�o dure muito. Mas tenho de reconhecer que n�o faz muito sentido ter visto na criada uma rival perigosa e no Fritz um traidor sem escr�pulos, quando ele nunca seria capaz de elaborar nada de interessante sobre a trai��o e s� se deve ter sentido na pele do libertino do s�culo XVIII a saltar na petite soubrette �s escondidas da patroa. Por sua vez, a fulana tinha todo o ar sabiamente desgrenhado de quem est� farta de aviar turistas ricos, (meu Deus, bebi demais, faltam-me os termos), naquele jeito pestanudo de mexer os olhos como se fossem pisca-piscas e anz�is ao mesmo tempo, e naqueles trapos sucintos em que aparecia, a dar �s ancas de perna ao l�u e de camisa a deixar ver as mamocas. Eu, que nunca quis saber de rivais para nada...
Ainda por cima Capri, a Capri em que eu cheguei a dar algumas voltas � procura dos lugares das tabuinhas de Pous�o enquanto o Fritz se debru�ava sobre as minhas reprodu��es e comentava que cem anos antes de Pous�o j�o ThomasJones pintava assim, estava deslumbrante de c�u, �gua e encostas floridas, azuis muito azuis, brancos muito brancos, vermelhos muito fortes, ocres muito ocres, rosas muito rosa, e muitos tufos de todas as cores a despenharem-se entre cardos por montes e encostas, e era bom vestir qualquer balandrau �s tr�s pancadas, descer at� � praia de manh�, passar umas horas a escrever a seguir ao almo�o, dar umas voltas a p� ou de carro com ele ao fim da tarde, a espreitar as villas escondidas nos acidentes do terreno e a decifrar-lhes os nomes (II Rosaio era a do Graham Greene e havia a do Harold Acton, a do Axel Munthe, o bunker detest�vel do Malaparte, a ilha do Massine, Isola Lunga, e tantas outras), tomar um aperitivo e jantar peixe grelhado numa esplanada. topar com umas celebridades descontra�das, ignorar os gay que por ali andavam a derreter-se � sucapa uns com os outros e a menearem os rabos em trist�ssimas figuras, falar com uns velhotes saudosistas da Capri de antigamente, ouvir as hist�rias que tinham para contar, beber, regressar a casa, voltar a beber sem medida e ir para a cama com um homem bronzeado, musculado, vulc�nico, "vesuvial", que sabia o que havia de fazer comigo. Vesuvi�vamos.
H� coisas que eu n�o percebo na Constan�a. Aposto que ela se fartou de dizer ao Mateus que n�o queria ser "a amante" de ningu�m, que nunca aceitaria s�-lo, que tudo nela se revoltava, que at� lhe dava a volta ao est�mago s� de pensar que estava nessa situa��o. E de certeza que tem amigas que lhe dizem que os homens d�o muito menos trabalho e s�o muito menos absorventes quando t�m outras situa��es, mas ela � assim e n�o h� nada a fazer. N�o vai � luta, recusa-a. Agora paga o pre�o dessas minud�ncias.
Estou mesmo a ver a cena. Ele a escut�-la sempre muito calado, homem ainda casado de espinha vergada. Sem tomates. E depois a elaborar como se estivesse a escrever um ensaio, a fazer qualquer coment�rio, num esbo�o de desculpa a meia-voz, escolhendo as palavras com muito cuidado e come�ando por p�r as coisas como se estivesse a fazer uma observa��o gen�rica e impessoal, que a diferen�a entre a amante e a namorada estava em que a primeira aceita a partilha, qualquer partilha com outra mulher, e a segunda, a segunda, ou n�o a aceita, ou nada tem que partilhar porque j� � "tudo dela". O sacana, com opatois do costume de intelectual portugu�s, a cantar a can��o do bandido e a medita��o sobre o destino, a dizer coisas lind�ssimas sobre a trag�dia da paix�o sem limites e os obst�culos avassaladores da vida de todos os dias, a tentar deixar as coisas em aberto, para ver se a Constan�a conclu�a que esse � que era o caso deles e se conformava a partir do simples nominalismo aplicado �s situa��es. E ela a dar-lhe hip�teses de p�r as coisas assim. N�o h� pachorra! Nem para um, nem para o outro.
O Bernardo, a princ�pio, tamb�m me vinha com tretas desse g�nero. Mas eu pus logo tudo em pratos limpos. " Bernardo, se voc� quer andar comigo, tem de arrostar com as consequ�ncias. O problema � seu. Gosto muito de foder consigo, mas n�o estou para ser ma�ada com os seus problemas de casa nem com as suas quest�es de consci�ncia. Cada coisa tem o seu valor. Voc�, que � economista, deve saber muito de valores. Pois trate de ver quais os valores em que aposta." E ele acabou por se decidir. Era novo, forte e inexperiente. E n�o conseguia libertar-se de mim, embora fizesse tudo o que estava ao seu alcance, como ele dizia, metendo os p�s pelas m�os, enquanto n�o era capaz. Deixou a lambisg�ia da mulher e os tr�s filhos ainda ranhosos e de fraldas, fez as malas para minha casa e passou tr�s anos de papo cheio. Eu tamb�m. Era uma das melhores pilas que eu conhe�o. Ainda por cima foi gra�as a essa temporada que ficou director da filial do banco em Londres. Dizem que � um gestor excepcional. Mas um homem que n�o bebe tem de ter algum defeito, mesmo que seja capaz de dar duas seguidas de p�, num v�o de escada, num elevador trancado, na casa de banho de um bar, ou atr�s de uns arbustos nalguma festa. Eu devia ter dado por isso antes. E agora aquele pateta que n�o sabe viver em liberdade, nem conhece o valor da liberdade, agora que o mais dif�cil estava feito, agora que estava livre como um passarinho, voltou para a mulher e para as crian�as, isto �, voltaram eles para o auspicioso reencontro, porque est�o todos a viver em Londres e sentem-se muito bem, muito confort�veis. Shit. Mundo c�o, mundo c�o.
A maior parte dos homens inteligentes, mesmo os mais qualificados, mesmo os mais viris, tem dessas limita��es sentimentais e choramingas, desses arrependimentos fatais, desses convencionalismos insuport�veis. P�em o p� em ramo verde e voltam ao ninho em crise de arrependimento. T�m tudo estragado, mas voltam. Retomam os hor�rios, os compromissos, a teia de rela��es do costume, o bom comportamento, o trato com os meninos, a burocracia dom�stica, o desempenho conjugal � hora marcada. � por isso que n�o d�o para se escrever sobre eles. Tudo muito cinzento, muito sem sal, muito administrativo. Quando muito fica a experi�ncia do gozo que nos deram, da maneira como nos lambiam e penetravam, das fantasias a dois, das loucuras que arremedavam sem limita��es, das performances, das "n" vezes que eram capazes de nos fazer vir na mesma noite. � isso que depois pode passar aos livros, aqui e ali, para alimentar algumas tens�es entre as personagens ou para dar conta mais aut�ntica de algumas emo��es delas, ou mesmo apenas para fingir que elas ocorrem ao longo da prosa.
7. Mateus
A certa altura, apesar da chuva e da pressa, da viol�ncia da escurid�o a desdobrar-se sem fim e da confus�o do percurso, apeteceu-me sair da auto-estrada, meter por uma via secund�ria, percorrer s�tios onde fosse for�ado a abrandar e a olhar, sem a hipnose for�ada das faixas brancas no alcatr�o, mesmo sabendo que, de noite, pouco ou nada poderia avistar, mas precisava de ter a consci�ncia de que havia �rvores nas bermas, de que atravessava povoa��es adormecidas, de que ladeava, aqui e ali, a fachada comprida de algum solar de cantarias e sacadas geometricamente distribu�das ao longo da parede, de pressentir clar�es e zonas menos escuras para depois me engolfar na noite outra vez, para depois ainda, voltar a sentir-me completamente s� nessa luta contra os elementos como num corpo a corpo contra o tempo e o espa�o e o pr�prio destino.
O destino � sempre o que nos acontece sem o termos previsto, querido ou planeado. A nossa liberdade est� no que decidimos fazer com o que nos acontece. Perdi algumas oportunidades de me emaranhar nestes pensamentos e nessas estradas de segunda ordem, s� por me ocorrer como seria mais c�modo atender a sua chamada e rodar lentamente pela auto-estrada enquanto fal�ssemos, ou mesmo, repito, estacionar na berma, talvez com as luzes intermitentes ligadas, estacionar na berma enquanto fal�ssemos, ou mesmo seguir at� � primeira �rea de servi�o, saboreando os meandros da sua voz a chegar-me naquelas circunst�ncias, antecipando a combina��o que n�o deixar�amos de fazer para dali a mais um bocado. Mas depois, como nada acontecia a n�o ser o sil�ncio, decidi-me, pensando que em qualquer parte o seu telefonema havia de me chegar em boas condi��es.
Tomei o primeiro desvio que me apareceu indicado numa placa, dei as curvas do costume para entrar na estrada secund�ria, encontrei-me, quase sem transi��o, numa pista estreita e em muito mau estado, cheia de charcos, de covas trai�oeiras dissimuladas pela �gua na gravilha do pavimento, de sinais de proibi��o e de indica��es tur�sticas que �quela hora n�o faziam qualquer sentido, e dei-me conta de que n�o podia ir t�o depressa como at� ali, mas podia continuar a andar muito depressa, naquelas circunst�ncias, com alguns solavancos mais fortes e mais caixa de velocidades para cima e para baixo.
E andei dessa vez quil�metros e quil�metros de curvas e contracurvas sem me cruzar com ningu�m, at� chegar � primeira zona habitada, j� l� estivemos uma vez, mas talvez voc� n�o se recorde, uma aldeia pobre de pescadores, feita de casas t�rreas, de que, aqui e ali, brilhavam sinistramente algumas paredes cobertas de azulejos baratos, ou o que me parecia s�-lo, j� quase sem luzes e sem movimento nenhum, s� �gua a escorrer em reflexos malignos e uma sensa��o de desconforto total.
Lembraram-me alguns percursos de f�rias da minha inf�ncia e de auto-stop da minha adolesc�ncia, quando fic�vamos parados por uma avaria, no primeiro caso, ou por falta de condutores complacentes, no segundo, em s�tios que n�o ofereciam nenhuma possibilidade, salvo a do bocejo intermin�vel e da exaspera��o, durante horas e horas, por vezes ao sol e por vezes � chuva, por vezes sentados nalguma pedra grande junto da berma, por vezes abrigados nalgum telheiro proporcionado pelo acaso. Lembrou-me uma noite de chuva torrencial, muito pior do que esta, h� muitos anos, nas florestas da Nicar�gua, quando eu l� andava a fazer uma reportagem sobre a guerrilha, e a figura de uma mulher de camuflado, que atravessava a clareira para o lado dos abrigos, enquanto um dos sentinelas come�ava a apitar insistentemente e a gesticular muito para lhe indicar que n�o devia ir para aquele ponto, mas sim para o lado oposto. Ao ouvir os apitos, a mulher deixou-se ficar im�vel no meio da chuva, perto do lugar em que eu estava debaixo de um telheiro, deixou-se ficar ali especada, com o seu cantil na m�o, a roupa enxarcada, a metralhadora a tiracolo, as granadas no cintur�o, a �gua a escorrer-lhe pelos cabelos lisos, os olhos muito claros � luz das lanternas, as faces regulares e escuras como que talhadas em pedra, � espera de que o vigia se aproximasse para lhe dizer, impass�vel, mas investida de uma dignidade de trag�dia grega: "- Pues, mira, en mi tierra se llaman las mujeres con pitos", e continuou a andar na direc��o em que j� ia.
Duravam pouco essas irrup��es da lembran�a na minha cabe�a. A sua chamada n�o vinha, n�o vinha, meu amor, a sua chamada n�o vinha nem sequer para me recomendar prud�ncia, e isso fazia-me seguir num sentimento de ajuste de contas com essa injusti�a, com essa persegui��o dos fados adversos ou que eu sentia como tal, porque nessas ocasi�es tudo adquire uma import�ncia desvairada e desproporcionada que n�o � a medida das coisas, nem tem a escala de coisa nenhuma que n�o sejam os nossos desejos e as nossas frustra��es.
Tudo se torna emblem�tico e simb�lico, tudo � interpretado em fun��o das nossas trag�dias e desgra�as, tudo come�a por ser premonit�rio e, depois, azarado e fatal. E eu, nessas circunst�ncias, n�o ia telefonar-lhe. Teria sido f�cil, muito mais f�cil, mas n�o podia faz�-lo. Ficaria demasiado exposto, exactamente quando entendia que n�o podia mostrar-lhe as minhas fragilidades, emocionais ou outras, exactamente quando fazia ten��o de lhe dizer, ten��o firme, se voc� me telefonasse, que n�o queria nada de si, nem um beijo, nem um sorriso, nem uma palavra, nem um gesto.
Fazia ten��o de lho dizer, tendo a certeza de que n�o chegaria a faz�-lo ou lhe pediria, logo a seguir, que perdoasse tais dislates, que os esquecesse e os desse por n�o proferidos, ou que os atribu�sse ao desespero da paix�o, ou que esperasse at� eu lhe dizer tantas outras coisas que tamb�m precisava de lhe dizer, coisas intermin�veis como esta viagem, coisas decisivas, essenciais para a nossa vida.
Chovia sempre. Atravessei a aldeia, agora tinha parecido que levava uma eternidade a faz�-lo, e tomei por um caminho cuja tabuleta dizia "raia" em letras min�sculas, por debaixo da indica��o de um restaurante, um caminho que era um desastre de terra batida, bordejada de muros baixos a esboroarem-se entre a ru�na pr�pria e a escurid�o daquela hora da noite, pontuados pelo que me parecia ser umas �rvores a retorcerem-se sob a ventania, aqui e ali.
A certa altura tinha deixado de chover, a estrada continuava deserta e pude ent�o p�r os m�ximos a rasgar a escurid�o, projectados nuns vagos planos brancos e fantasm�ticos l� muito � frente e depois, ao dar a curva, numas sebes manhosas escoradas em ripas de madeira e nuns canaviais intonsos e desgrenhados sob o vento. Estava a chegar ao areal e o estrad�o subia por uma esp�cie de duna acentuada at� � zona do farol.
Lembrei-me vagamente de um crime de morte que se dizia ter sido cometido ali havia uns anos. Parei o carro, sa�, deixando a janela aberta, n�o fosse tocar o telefone e ser voc�, meu amor, meu amor t�o esperado, e acendi um cigarro, tendo sido for�ado a reentrar no autom�vel para faz�-lo, por causa do vento que n�o deixava funcionar o meu isqueiro e me zunia sibilante na concha dos ouvidos.
Dei alguns passos. L� em baixo, o mar, tinha uma turva fosforesc�ncia cor de lama, t�o diferente do rodap� insolente de azul que uma vez t�nhamos visto no seu lugar, num dia de sol e calor, quando voc�, de �culos muito escuros e cabelos ao vento, ria perdidamente como se fosse consumir-se numa alegria instant�nea e absoluta, ria naquele riso que eu tanto procurei tantas mais vezes.
Pareceu-me avistar as luzes d�bias de alguma traineira, ou, talvez, de algum barco de contrabandistas que se preparassem para descarregar silenciosamente a sua carga proibida naquela enseada onde n�o devia haver riscos de policiamento numa noite como aquela, mas onde devia ser dif�cil atracar em tais condi��es.
O vento levantava-me a gola do casaco e enfunava-me a camisa, assobiava mal me deixando fumar e queria empurrar-me sacudidamente de lado, entre pios de aves nocturnas, marulhos das ondas e o bater de alguma porta ou persiana que tivesse ficado por fechar na entrada abandonada do farol.
Voltei ao carro e retomei a viagem. A r�dio transmitia uma m�sica estranha, um acompanhamento de guitarra numa valsinha arrastada, com uma voz rouca de mulher, uma voz um tanto ou quanto melanc�lica, um tanto ou quanto ir�nica, Chavela Vargas a cantar t�mate esta botelia conmzgo / en eI �ltimo trago nos vamos / quiero ver a que sabe tu olvido / sin poner en mis ojos tus manos...
Pensei que ainda n�o tinha chegado o momento de tomar um �ltimo copo, mesmo um �ltimo, consigo e mudei de esta��o. A Antena-2 transmitia Beethoven e era a marcha f�nebre suila morte d'un Eroe, da sonata op. 26, o que me fez sorrir de tristeza e pensar que afinal sempre se me sugeria o �ltimo trago atrav�s do pr�prio �ter e se me preparava um lindo enterro e aquela m�sica andava nele em mem�ria de mim, que n�o era her�i nenhum nem queria s�-lo, aquela m�sica que me vinha pela r�dio, podendo ser escutada por si, que costumava sentir-se deprimida com Beethoven e preferia o Charlie Parker e m�sicas de filmes do Almod�var do tipo dolente e balanceado de Piensa en mi, ou a quem vinham as l�grimas aos olhos quando uma letra mais tensa e desolada lhe fazia lembrar aspectos do nosso caso num ritmo vagaroso em que nos pud�ssemos estreitar.
Um lindo enterro. As viagens t�m destas coincid�ncias implac�veis, como se o tempo e o espa�o, contraindo-se pela nossa desloca��o atrav�s deles, se organizassem deliberadamente contra n�s, abrindo trincheiras, erguendo abatises intranspon�veis. Escuta-se o que n�o se esperava e n�o se chega a ouvir o que mais se deseja. Ou ent�o escuta-se o que faria mais sentido escutar-se e a nossa frustra��o s� aumenta com isso.
8. Eug�nia
Tenho ganas de mostrar � Constan�a que por c� as coisas n�o s�o assim. Felizmente ainda h� lim�o. Felizmente ainda h� gelo. Felizmente ainda h� vodka. As minhas unhas est�o uma vergonha. O meu cabelo est� uma desgra�a. Estou a ficar com umas olheiras que descem at� ao canto dos bei�os. Diz-me espelho meu... Amanh� tenho de ir ao cabeleireiro, coisa que ela j� n�o deve saber o que seja. Amanh� tenho uma agenda bem preenchida, coisa que ela nunca soube o que fosse. O pior vai ser este calor. Aqui abafa-se. Tenho de mandar estofar aquele canap�. D�o as cinco da manh� e eles n�o saem daquilo.
N�o se percebe. A nossa fam�lia � de Lisboa, sem rela��es com a prov�ncia, sem herdades no Alentejo, sem quintas na Beira, sem tradi��es rurais no Alto Minho ou no Douro. Tudo muito alfacinha, muito Lisboa antiga, muito Restelo e Caxias, muito razoavelmente instalado na vida. Bem sei que a m�e... Bem fez o pai que n�o a podia aguentar mais e a deixou a jogar canasta enquanto se punha a mexer para o Brasil. S� espero que n�o se perca por l� com alguma "pissic�loga" especializada na terceira idade, ou n�o perca ainda mais dinheiro naqueles neg�cios luminosos e infal�veis, entre aspas, em que costuma meter-se e de que costuma sair ainda mais arruinado do que j� estava. E da� talvez o pai j� tenha voltado a Lisboa, pacato e resmung�o como ele � e com aquela fatal propens�o falimentar que ele tem. Mas a Constan�a podia ter-se ido meter em Cascais ou no Monte Estoril, mesmo l� para os lados de Sintra ou de Colares que sempre s�o mais frescos e h�midos e tamb�m t�m esconderijos, tebaidas, ermit�rios, cartuxas, coisas assim. Agora num monte perdido para l� de Monsaraz, aver crescer os poejos, a olhar para os chaparros, a escutar as rabanadas de vento e as quedas da bolota e ainda por cima a ter de fazer obras... Que raio de solid�o, de emigra��o, de transum�ncia a dela. � certo que eu tamb�m ando solteira. Mas � s� por uns tempos, para n�o me desconcentrar. Se me pusesse agora a catrapiscar algu�m, ia atrasar tudo o que tenho para fazer. Nessas coisas sou muito perfeccionista. Mas s�o fases. Podia ser o contr�rio e resultar. � nisso que est� o prazer do engate, das t�cticas preparat�rias, da execu��o de uma estrat�gia de sucesso garantido. Oui, la drague, mon cher; dizia eu ontem �quele diplomata j� n�o sei donde, na festa dos Em�ry. Dizendo, ia-me ajeitando na poltrona e cruzando a perna e soprando o fumo do cigarro para o ar. Sei que tenho umas pernas afrodis�acas, como diria o Philip Roth, estava bem descascada, tudo mais ou menos � vista, algumas j�ias boas, e o tipo j� n�o sabia onde se meter, at� se lhe torcia todo o la�o do smoking, a descair como um monco de peru pendente do pesco�o, enquanto quase n�o conseguia desfitar da direc��o em que tentava descortinar se eu usava cuecas ou n�o, mas com a matrona da mulher a tr�s passos, uma megera n�rdica e cavalona, ex-valqu�ria deslavada com ar de virtuosamente protestante e um gosto pavoroso, e quando eu lhe disse num trejeito repentino de impaci�ncia "-ponha aqui a m�o, querido", indicando o meu joelho esquerdo, disfar�ou, fingiu que n�o falava franc�s e levantou-se para ir buscar uma bebida. H� de tudo. Um homem � um homem. Um gato � um gato. Um pateta � um pateta. Uma paix�o assolapada n�o � nada. Duvido de que a Constan�a entenda isto. H�-de continuar a deixar-se levar pelos sentimentos mantidos dos deslumbramentos perdidos.
9. Constan�a
Neste momento ele vai falar-me da doen�a. �o que lhe � mais dif�cil abordar, por quest�es de pudor, talvez de medo da morte, de vergonha em rela��o a mim, de falta de coragem, afinal, quanto a n�s e quanto ao resto.
� quando acho mais que fiz bem em vir para aqui. N�o pela doen�a, nem por sombras, por ele eu rastejaria o resto da vida no lajedo de um hospital, n�o pela doen�a, mas pelas indefini��es.
Fiz bem e arrependo-me e volto a achar que fiz muito bem e a arrepelar os cabelos. Mas continuo a poder imaginar tudo. Vai dizer-me como se sente corroido por dentro, como n�o tem coragem de me ver queimar a juventude por causa dele, mas como, ao mesmo tempo, tudo se desmorona sem mim.
J� fal�mos tantas vezes nisso, j� fiz�mos tantas vezes esta digress�o para voltar sempre ao ponto de partida. Come�ou com o folhear de um livro sobre arte do s�culo XX, ao passar numa reprodu��o do Warhol. Ele que detesta o Warhol e tudo o que acha que � cabotinismo, falta de t�cnica, provoca��o gratuita e arte incapaz de perenidade, de repente disse-me que n�o suportava o ef�mero entre n�s.
A princ�pio n�o percebi o que � que uma coisa tinha a ver com outra. S� respondi que as pessoas tamb�m n�o s�o eternas. Ao que ele disse que relativamente umas �s outras deveriam comportar-se como se fossem e que n�o podia mudar a decis�o que tomara em rela��o a mim e eu ainda sem perceber nada.
Com o Andr�, as coisas, a princ�pio, eram mais claras. Nunca penso nele, mas lembro-me agora do nosso encontro no Mus�e de l'Homme, ambos nos servi�os administrativos, ele a tentar ser autorizado a fotografar umas m�scaras africanas e eu a pretender consultar os registos relativos � pilhagem que o Geoffroy Saint-Hilaire tinha feito nas colec��es do Alexandre Rodrigues Ferreira e ambos a darmo-nos conta de que havia ali dois portugueses � procura de qualquer coisa, um atr�s de imemoriais formas africanas do rosto humano,outro em busca de ecos empoeirados das Invas�es Francesas. Precisava desses elementos para a minha tese e para a biografia sempre adiada do naturalista que tinha andado pela Amaz�nia como eu, nessa minha primeira viagem a Fran�a, andava agora na selva parisiense: a registar minuciosamente tudo o que me enchia os olhos.
O que ia ser a minha viagemphilosophica tornou-se a minha jornada sentimental. Talvez o rio Sena fosse ent�oo rio Negro. Logo a seguir o Andr� n�o perdeu tempo e desafiou-me a ir comer bolos numa pastelaria da Place du Trocad�ro. Disse-me que eram "os melhores bolos do mundo" com um ar risonho, mas de quem n�o admite discuss�o. Depois convidou-me para um passeio de moto, ao longo das margens do Sena. Foi bom andar de cabelos ao vento abra�ada a ele, ouvindo as gargalhadas que dava de vez em quando sem eu perceber nada do que ele tentava dizer-me aos gritos, por entre o ru�do do motor e a desloca��o do ar. No fim da corrida, convidou-me para jantar num bistrol e falou da sua vida.
Era filho de um diplomata e tinha crescido, mais ou menos ao deus-dar�, em v�rios lugares do mundo e sentia que n�o pertencia a parte nenhuma. Tinha sido educado em Fran�a nos dois per�odos mais est�veis da carreira do pai. Estava sempre a viajar. N�o queria fazer outra coisa ao longo da vida. Viajar. Dedicar-se � fotografia. Tocar piano.
Fez-me uma grande conversa sobre o Michel Leiris. Contou que tinha vindo de Mo�ambique e preparava uma nova viagem, desta vez � �frica Equatorial. Falou-me do �lbum que estava a preparar sobre as artes primitivas, os rituais de fertilidade e o culto dos mortos.
Tentou explicar-me a sua fascina��o pelas m�scaras, n�o pelo que ocultam do ser humano, mas pelo que revelam da fun��o que lhes � atribu�da no grupo a que ele pertence. Procurou fazer-me perceber o papel delas na est�tica contempor�nea, a recupera��o de uma crueldade das formas a partir do cubismo, os ritmos da ferocidade na representa��o do simb�lico. E baixando subitamente a voz falou, como se estivesse a meditar sozinho para consigo, de uma pe�a singular que tinha visto numa vitrina em Bruxelas.
Durante v�rias semanas, aquela cabe�a de mulher perseguira-o. Passava no Sablon e n�o podia deixar de fazer um pequeno desvio ao seu itiner�rio para ir v�-la, numa das ruas que v�o dar ao rond-pwnt, a rue des Minimes. De repente, ela ali estava, de olhos fixos, fei��es bem modeladas na sua s�bria simplifica��o, boca firme, tez p�lida levemente r�sea, cabelos lisos de cor indefin�vel repartidos ao meio e arrumados para tr�s, a contornarem a nuca.
Dominava a montra da loja de antiguidades ex�ticas e coloniais, sobressaindo ao centro contra o verde-escuro dos bronzes orientais, o castanho-terroso dos barros maya, o preto-mate dos �banos, a ferrugem enegrecida dos ferros, o vazio inquietante dos olhos das m�scaras africanas, o crespo da trama grossa dos tecidos bordados, os ziguezagues berrantes das cer�micas, os brilhos e reflexos inst�veis do tr�fego espelhado na vitrina.
Tinha uma impassibilidade e uma qualidade quase hipn�ticas, e, dizia ele, era como nalguns quadros de Delvaux, traduzia um sentido da ordem e da reconhecibilidade do mundo, mas tamb�m uma liga��o a um despaisamento, a uma estranheza, a um estatuto diferente de saberes e de poderes, de rituais e de gestos da vida pr�tica, distantes e pr�ximos ao mesmo tempo pela for�a intensa e contida que se libertava dela.
Um dia, n�o resistira e tocara � campainha para perguntar ao sujeito um tanto ou quanto desalinhado que veio abrir o que era aquilo e quanto custava. Respondeu-lhe que era uma cabe�a das Celebes e deu-lhe um n�mero muito para al�m daquilo que ele podia gastar. Agora, tinha de tentar ir l� ao menos fazer uma fotografia e depois eu havia de ver e perceber a descri��o que ele me fazia.
S� mais tarde, muito mais tarde, � que eu percebi a rela��o que havia entre a mania das m�scaras e dos rituais nativos e as atitudes e comportamentos dele. Era como se ele acreditasse na possibilidade de conjurar a for�a dos poderes m�gicos e na efic�cia real que estes podiam ter nas quest�es de vida e de morte. Na sua esfera de ac��o e de vontade n�o havia limites. Talvez por isso n�o tivesse grandes escr�pulos nem fosse capaz de sentimentos profundos. Talvez por isso a morte, pr�pria ou alheia, lhe fosse praticamente indiferente. E talvez por isso se empenhasse em correr todos os riscos.
E t�o depois, j� est�vamos a separar-nos, havia de dizer-me que tinha sido uma pena eu n�o ser como a Eva do Manckiewicz, a representar a com�dia das hipocrisias e da ascens�o a pulso, intriga e falsa inoc�ncia num mundo que se sobrep�e ao do teatro mas que tem regras que n�o s�o muito diferentes das dele. O Andr� teria desejado que eu fosse assim, uma esp�cie de aventureira soft, para poder acompanh�-lo em v�rias selvas ou, se n�o o acompanhasse, para poder compreend�-lo e solidarizar-me com ele, esperando por ele � beira do rio de carabina em punho, pronta a disparar contra os crocodilos enquanto ele atravessava a nado, como ele
dizia metaforicamente.
Talvez eu me tenha deixado levar por uma conversa que decorria entre a antropologia, a facilidade evidente de tudo aquilo em que se dizia metido e o vivido, a
experi�ncia densa que ele me transmitia em doses fort�ssimas. E tamb�m a m�sica. Talvez eu tenha achado
ent�o que era t�o emocionante ir � ca�a de cabe�as das Celebes como andar atr�s das marcas e das aguarelas do Alexandre Rodrigues Ferreira. Come�ara a nossa hist�ria para o bem e para o mal. Para o mal.
O meu pai, quando soube que �amos casar e que o Andr� ganhava a vida como fot�grafo e como pianista, tirou os �culos, pousou o jornal e, do fundo da poltrona, resmungou com ostensivo desprezo: "- Fot�grafo? M�sico de cabaret? Mas isso n�o � profiss�o. � viver de expedientes. Profiss�o, profiss�o � ser m�dico ou advogado. At� economista, se quiseres. Mas pianista de bar? Artista da Kodak? Minha filha, v� l� bem no que te vais meter, porque est�s bem arranjada..." A minha m�e
calou-se, mas sei que nessa noite tomou calmamente a minha defesa e que o fez at� alta madrugada. Sem ser pelas boas raz�es, o meu pai tinha raz�o. Eu estava bem arranjada.
Ficou-me muito mais a impress�o de que o charme do Andr� vinha do seu ar vagabundo e descontra�do de quem est� sempre pronto a improvisar uma sa�da, do que da sua arte com a Leica. Punha mais virtuosismo numa fuga aos credores do que na execu��o de um raguite. Talvez fosse um simples traficante de imagens, o que n�o deixava de ser rom�ntico para uma jovem doutoranda cheia de sonhos bebidos na literatura e no cinema, ida a Paris pela primeira vez, mas talvez traficasse noutras coisas, mas traficava noutras coisas, ai de mim, o que podia ser inquietante se a jovem universit�ria ent�o tivesse alguma experi�ncia da vida e os olhos mais destapados.
Os olhos. Falou em tirar-me o retrato num espa�o branco e envidra�ado que conhecia e onde podia trabalhar a contra-luz, para obter imagens tamb�m entre a estranheza e a reconhecibilidade e todas as gamas conceb�veis de cinzentos. Descreveu como via o meu cabelo e o meu nariz e a minha boca e o meu queixo, traduzidos a preto e branco, enquadrados assim e assado, com umas grades por detr�s, ou uma parede de gesso grosso, ou um a escada em espiral.
Nunca cheg�mos a ir tirar o tal retrato, esse, o primeiro de que ele me falou. O s�tio que ele descrevia ficava nas trazeiras de um armaz�m, era uma esp�cie de p�tio com marquise, ou restos de uma estufa de plantas, vidra�as partidas e algumas grandes superf�cies forradas a madeira, mas aparentemente estava sempre fechado com um cadeado grosso.
Hoje penso que era algum lugar de recepta��o de contrabandos, mas talvez tamb�m eu esteja a ser injusta, levada por leituras amargas e informa��es retrospectivas, e talvez ele tenha mesmo pensado em fotografar-me contra uma s�rie de texturas e luminosidades e geometrias mais fora do vulgar.
E � noite ele levou-me a um bar, onde �s tantas se sentou ao piano e tocou temas dela. Tocava bem, n�o sei se por talento imitativo, se por um jeito inato e aperfei�oado. Naquela altura isso nem sequer me veio � cabe�a. Tocava bem, mesmo muito bem e pronto. Fumava muito e bebia muito enquanto tocava. Dois ou tr�s dias depois � que percebi que ganhava algum dinheiro nessas actua��es nocturnas, quando n�o tinha encomendas como fot�grafo e mais nada de que viver. Devemos ter jantado sempre � custa dessa actividade naquela semana.
Eu ent�o sabia quase de cor passagens inteiras da Viagem Philosophica. Quando sa�mos do bar, dei-lhe o bra�o, falei dos �ndios brasileiros e citei qualquer coisa como "� verdade que entre eles a dan�a n�o se deve chamar divertimento, antes � uma ocupa��o muito s�ria e importante que se envolve em todas as circunst�ncias da sua vida p�blica e particular"... e por a� fora, at� "eles t�m dan�as e farsas pr�prias para significarem os diferentes motivos da sua alegria ou tristeza"...
Ouviu-me com uma aten��o divertida, mas, sabendo o que sei hoje, eu � que devo ter-lhe parecido completamente tonta e pretensiosa com esse toque doutoral. E ele como n�o havia de ter-me impressionado naquela primeira noite? Realmente tinhamos pretextado uma dan�a para significar os diferentes motivos da nossa alegria e depois encen�mos uma farsa para significar os diferentes motivos da nossa tristeza. S� que eu a� n�o era realmente a Eva do Manckiewicz e n�o tinha nenhum pre�o de sujei��o final a pagar. Nem queria. Ia embalada na m�sica.
Com todos os seus defeitos, desfasamentos e problemas, o Andr� vivia aquilo por dentro. Para ele era uma forma de autenticidade respirada, de inscri��o an�mica e gen�sica num ritmo e numa batida, de envolvimento do corpo e do esp�rito por dentro da sonoridade dos instrumentos, na sua inter-rela��o com a voz humana e com os efeitos do �lcool, na sua descontrac��o imitativa, na sua procura improvisada da express�o dos sentimentos e das emo��es.
J� para o Mateus � como se o jazz ainda tivesse aver com Jo�o Sebasti�o Bach. E, mais do que a m�sica propriamente dita, o que lhe interessa � o lado combinat�rio, a evoca��o liter�ria, os mitos dos anos 20, Fitzgerald e Hemingway e Gertrud Stein e mais uns quantos numas espeluncas da Rive Gauche em Paris ou nos ('uartos do Aigonquin em Nova Iorque, atmosferas de cabaret e ecos da Berlim do Kurt Weil, cita��es recentes do Timothy Garton-Ash, p�ginas e gatafunhos a desoras, loucura, genialidade e fumo e desespero e desprendimento do amanh�, o barbarismo e a aspereza, e tamb�m os lados mesquinhos da exist�ncia, aparentados com o resto de que ele gosta, na m�sica, no cinema, na literatura, gera��o perdida ao som do banjo e liga��es intertextuais, tudo o que lhe pode suscitar uma formula��o rouca sobre as contamina��es do mundo, desde que ele possa tamb�m ser o autor dela ou, pelo menos, reconhecer-se nela, ou ver o mundo atrav�s disso que � tamb�m o seu mundo.
Porque � que as imagens do Andr� e do Mateus se sobrep�em agora na minha cabe�a? Porque � que o Mateus tamb�m me fotografou e ficou dilu�do nos reflexos da vitrina? A m�sica para um e para outro. As dis son�ncias de um e de outro. A morte de um e a morte dentro de outro. As imagens de um e de outro. N�o quero nenhuma delas e afinal parece que queria que uma expulsasse a outra e depois se expulsasse a si mesma e ao mesmo tempo que n�o me fugisse a do Mateus.
Enredo-me outra vez nessas confus�es aqui, a meio da noite, neste lugar que come�o a n�o saber j� onde �, neste espa�o de repente tornado t�o estranho. N�o quero ficar presa a elas mas fico, quero pensar que estou na minha casa e que este � o meu lugar, mas n�o penso, quero deixar de ouvi-lo, mas n�o consigo, quero esquec�-lo e sinto-me a ganir por ele desde o fundo das v�sceras e da alma.
10. Mateus
Estas coisas adensam-nos a ang�stia. E, se o viajante j� tem tudo pesado, contado e dividido, como eu, torna-se muito mais sens�vel a elas. Sobretudo se estiver condenado � morte, condenado � morte a dois ou tr�s anos de prazo e sem nenhuma esperan�a cl�nica, como � o meu caso. Sobretudo se aguardar uma chamada telef�nica que acaba por n�o chegar, contra todas as certezas que a tornavam infal�vel e confirmando todas as d�vidas de que, contradit�ria e obscuramente, tinha nascido o pr�prio desvario dessas certezas.
N�o se enerve, meu amor, n�o se enerve. Nem se impaciente, � tudo o que lhe pe�o hoje. Apesar de tudo, tenho tido muita sorte em o cancro n�o me ter passado para a alma e come�ado a devor�-la avidamente. Ou ter� e eu n�o cheguei a aperceber-me disso? Estou completamente destru�do, mas enfrento essas coisas com uma grande impassibilidade.
N�o, meu amor, n�o tenho medo nenhum da morte, embora saiba que hei-de borrar-me de p�nico e de tremuras quando ela chegar mesmo, sem rem�dio e sem protelamentos, e o caso for comigo. Mas sinto em mim um certo estoicismo perante tudo o que � irrevers�vel e me amea�a ou toca e acho mesmo que quero morrer.
Quando a minha mulher, ao suspeitar de que voc� e eu t�nhamos um caso, e sob a press�o da situa��o tr�gica da nossa filha, se p�s a andar, n�o tive coragem para esclarec�-la, nem quanto �s exactas propor��es desse caso, nem quanto ao que o m�dico me tinha dito. Para qu�?
Para qu� suscitar compaix�es como �ltimo recurso para prender uma pessoa a quem j� s� se est� ligado por la�os de civilidade e conven��es ultrapassadas, quando se est� aprazado e apenas se precisa da companhia do espelho turvo daquilo que se vai remoendo e pensando e voltando a remoer e voltando a pensar?
N�o sei de nada mais horr�vel e degradante do que esperar que algu�m nos estenda a sua piedade como se fosse uma esp�cie de pr�tese caritativa. Prefiro encarar a figura da morte nos olhos, a s�s e sem subterf�gios, prefiro interpel�-la � minha maneira e cair de p�. Lembra-se do Conde Ciano, genro do Mussolini? Parece que tiveram de amarr�-lo a uma cadeira para o fuzilarem. Eu n�o consigo conceber que n�o se morra com uma certa galhardia, como um homem, como um macho, como um velho bisonte solit�rio que sabe que vai ser liquidado com um tiro certeiro entre os cornos e tamb�m sabe que n�o h� j� nada a fazer, que j� nem a virilidade lhe serve.
Enfrentar ent�o a morte � n�o desistir desse atributo. Afinal o que � que se espera de um escritor com alguma cota��o, se calhar com alguma qualidade?
Que circule nos sal�es em pose intelectual ou am�vel, distante ou pr�xima, que arme em ser incompreendido e vociferante, que cuide minuciosamente da sua obra para que a posteridade possa preparar-lhe uma edi��o cr�tica ileg�vel?
Ou que saiba encarar a morte t�o a frio quanto poss�vel, como o toureiro diante da fera, e transmitir aos outros, mesmo que em termos emotivos, essa sua experi�ncia de aproxima��o l�cida do fim, do sem-valor de todos os seus �xitos, do nenhum interesse de quaisquer admira��es ou aplausos que lhe tenham votado, do lamento da sentimentalidade profunda que o atravessou, requiem in�til a n�o ser para que porventura algu�m venha a reencontrar-se nele e a reviv�-lo?
Escrever � encarar a morte, sempre, n�o � jogar �s escondidas com ela, � fit�-la bem nos olhos e esperar-lhe o embate no retorno, a navalha de ponta e mola assestada ao cora��o, a estocada, o proj�ctil, o que voc� quiser, sempre o fim, sangrento e inexor�vel.
Tamb�m h� quem diga que escrever � enfrentar o desaire amoroso. Talvez seja tudo a mesma coisa. Num grande romance de amor, e s� uma aguda intui��o do tr�gico faz os grandes romances de amor, o embate com a realidade leva a que haja pessoas que confundem a reserva necess�ria e protegida da vida privada, o que se abriga do olhar dos outros, com uma no��o de hipocrisia, seja em nome das conveni�ncias, seja em nome de pretextos soi-disant mais nobres. Com isso, avariam de todo o recato da privacidade e colocam, sem rem�dio, a hipocrisia no centro da sua pr�pria vida. O contacto com a guerrilha trouxe-me pelo menos uma li��o: quer-se alguma coisa j�, e �-se capaz de dar a vida por isso, mesmo sabendo que esse "j�)> leva anos ou d�cadas e pode n�o chegar nunca ou exigir a passagem de v�rias gera��es.
Mas h� pessoas que dizem querer sempre mais e mais e acabam a reduzir-se ao m�nimo por iniciativa pr�pria. Com isso destroem tudo: o mais que quereriam, o mais que nunca chegam a ter, o menos em que resvalam e a sinceridade que aparentavam.
H� pessoas que garantem solenemente uma coisa e fazem outra, a poucos dias de dist�ncia, fabricando de modo artificial um simulacro de espa�o moral e uma hip�tese de esquecimento, tudo em nome de uma dignidade mal-entendida.
Talvez essas pessoas tenham medo da solid�o e prefiram hipotecar-se ao futuro, contabilizando o presente desde j�. Mas s�o essas pessoas que destroem quem alguma vez acreditou nelas e se entregou de boa-f� a esse desvario. A fic��o nas hist�rias de amor vai beber a� muitas das suas perip�cias e encontra assim muitos dos protagonistas dos romances, desse entrechocar do desvario e da norma em que tudo � irrepet�vel e tudo, no esp�rito do leitor, se acumula numa tens�o insuport�vel, como se fosse poss�vel emendar-se a natureza das coisas e o rumo dos acontecimentos. E tudo isto tem a ver com a morte, at� porque tamb�m j� morreu a sociedade que vibrava com essas hist�rias e as erigia em paradigmas dos sentimentos e das ansiedades.
N�o, meu a mor, n�o quero resvalar para a teoriza��o sociocultural ou liter�ria. Lembra-se de quando fal�mos, e fal�mos e volt�mos a falar tanto, nas minhas impossibilidades, ps�quicas por causa dessa teia de quest�es em que eu me emaranhava, e tamb�m impossibilidades materiais, tamb�m por causa disso, de programar uma vida comum a longo ou, sequer, a m�dio prazo, como se essas falas se enovelassem num labirinto inextricavelmente enredado e devorador da alma no seu pr�prio centro e esse centro, afinal, estava em cada um de n�s e fora de n�s ao mesmo tempo? De quando lhe disse que me recusava a aliar a minha doen�a em progress�o � sua juventude esfuziante? De como procur�mos, ainda por causa disso, conter as nossas vidas e encontrar uma solu��o qualquer, mesmo provis�ria, mas que nos servisse para alguma coisa, uma solu��o "gradualista" como se diz no discurso politico, porque tantos momentos eram incompar�veis e mesmo assim valia a pena respirar-lhes o fulgor de exalta��o e de infort�nio, sem nunca sabermos onde acabava uma e come�ava o outro?
T�nhamos dado um salto a uma aldeia da raia, um pequeno aglomerado de casas brancas e silenciosas empoleiradas na rocha, e est�vamos a visitar um castelo em ru�nas, sobranceiro ao vale onde se estendiam os olivais a perder de vista, acinzentando as encostas e os desniveis do solo.
Estava um dia de muito sol e a sua cara recortava-se contra o pano da muralha por entre um mar de cabelos revoltos. Havia um fio de luz a contornar-lhe a pele com um brilho macio. Sob certos �ngulos, o seu cabelo castanho ficava quase ruivo. Ao longe, a Espanha desenvolvia-se para leste, num plaino infind�vel e azul-fosco que se dilu�a morosamente contra o horizonte. N�s d�vamos voltas � torre do castelo, como se ela fosse o eixo central daquele labirinto em que se desnorteavam as nossas vidas. Um eixo em ru�nas prenunciando outras ru�nas. Era como um desejo de "recuperar Oliven�a", ali t�o perto e t�o manuelina e t�o longe nos seus m�rmores brancos, uma Oliven�a a que nunca chegar�amos a voltar a chamar nossa...
Voc� comoveu-se e mal falava,meu amor,meu querido amor da minha pouca vida. E eu pensava, como penso agora e nada agora desejaria mais, em dar-lhe quase timidamente a m�o, em pegar na sua, de modelado t�o aristocr�tico e firme, de toque t�o leve, t�o expressivo, e dizer-lhe, muito devagar, muito a medo, porque nos conhec�amos havia t�o pouco tempo e and�vamos t�o deslumbrados um com o outro que n�o ous�vamos exprimir nada que nos limitasse, que eu ia morrer dali a pouco.
N�o disse nada e tive a falta de coragem, que hoje considero imperdo�vel, de estimular o nosso envolvimento, argumentando para mim pr�prio que haveria uma pr�xima ocasi�o de pormos as coisas a limpo e que est�vamos a explodir de ternura naquele momento e que esse era o maior e o mais essencial �libi das nossas vidas.
Foi, ent�o, toda minha a culpa, mas n�o tenho remorsos agora. Porque haveria eu de ter remorsos? Por ter criado uma oportunidade, uma esp�cie de "ainda", finito, mas de contornos ilimitados? Gerei em si expectativas naturais, para n�o dizer necess�rias, e preferi mergulhar os olhos nos seus olhos, entrar neles t�o fundo como a m�sica por vezes nos entra pelos ouvidos para atingir o cora��o e a alma, e se n�s gost�vamos de nos olhar dessa maneira!
N�o disse nada, passado algum tempo disse, sim, uma gra�a, e voc� riu-se daquele jeito inimit�vel, num riso de humor e de benqueren�a que n�o acredito voc� tenha jamais conseguido ter para com algu�m, a n�o ser para comigo. A sonoridade do seu riso...
E foi muito, muito mais tarde que lhe contei tudo, cruamente e sem rodeios, quando j� nada mais havia a fazer sen�o passar a outra fase do nosso romance, enterrando-o de qualquer maneira, como ambos pens�vamos, eeu n�o queria v�-la a� ser levada ao engano, ao sabor do entusiasmo, do arrebatamento, da generosidade.
Lembra-se daquele restaurante onde havia rosas muito vermelhas dispostas numa ta�a pequena de vidro sobre cada mesa, a que fomos jantar num regresso j� n�o sei de onde, e da nossa conversa exausta dessa noite, como se tiv�ssemos medo da pr�pria sonoridade das palavras, pronunciadas num quase sussurro da garganta?
O m�dico, fingindo concentrar-se no abotoar de um bot�o da bata branca, mal olhou para mim quando me deu a resposta � pergunta que lhe fiz. Mas foi perempt�rio. Naquele ambiente ass�ptico do consult�rio s� me ocorria que era a si que eu tinha de dizer o que acabava de ouvir. Mas depois calei-me por uns tempos.
Sentia-me como um clianger dos filmes do Hitchcock que fica agarrado a um rebordo, suspenso sobre o abismo, e vai ser salvo no �ltimo minuto, ou pelo menos os espectadores esperam que seja salvo e eu sentia-me um desses espectadores, mas de mim mesmo, � espera de ser i�ado.
Tantas vezes me arrependi, caindo em mim, de o ter feito, por motivos ego�stas ou por auto-estima masculina, e tantas outras, me aprovei por s� lho ter dito muito mais tarde, de um modo quase neutro, com a voz esfor�ando-se por parecer indiferente e sem como��o. Tantas vezes pensei que destruirmos este amor era destruir-nos sem esperan�a, a si e a mim, mesmo nas circunst�ncias em que eu me encontrava, porque eu, apesar de tudo, estava vivo, e voc�, apesar de uma expectativa de vida t�o mais favor�vel do que a minha, acabaria numa morte moral.
Mas era tarde de mais. J� os dados estavam lan�ados e a nossa separa��o, antes de tudo, ia ser, necessariamente, uma prova��o muito dolorosa. Resta-me a travessia da noite, dessa que me espera num quarto de hospital e desta em que vou, desnorteado e desesperado, sem saber de si.
11. Eug�nia
S� me d� vontade de rir esta hist�ria da Constan�a com o Mateus. Para j�o Mateus � muito mais velho do que ela e est� gasto. J� est� gasto h� muito tempo. Nas lonas, my dear. Depois, a mulher p�e-se a andar, mas ao mesmo tempo aproveita para deixar a Constan�a com o peso desse abandono. Parece uma ressaca das grandes. Ou seja, � ela quem apresenta a factura aos dois. As coisas ainda se complicam mais com a filha, insuport�vel e drogada. E mais ainda com a doen�a dele, a entrincheir�-lo numa de sofrer sozinho e de arrostar sozinho o fim pr�ximo. Parece que Madame conhece a Constan�a como os seus dedos, sabe quais s�o os pontos sens�veis dela, deixa o seu lugar marcado a tinta indel�vel e se prepara para assistir a tudo noutras bandas. S�o jogos pr�prios da idade deles, mas n�o da da minha irm� que n�o percebe nada da vida nem dessas manobras.
E depois o Mateus � um tipo sem coragem moral. N�o falo de coragem f�sica, que essa ele tem-na ou tinha-a, pelo menos, nos tempos em que comecei a ouvir falar dele. Como jornalista, e antes de degenerar em autor de arroubos liricos e hist�rias mais ou menos burguesas e mais ou menos policiais e deceptivas, ele tinha estado em v�rios dos s�tios mais perigosos do mundo. Durante a guerra fria, e onde quer que Americanos e Russos se defrontassem por interpostos pa�ses, o Mateus esteve l�. No Leste, no Pr�ximo Oriente, no Vietname, na Am�rica do Sul, em tempos de guerrilha, tamb�m. Chegou a ser largado de p�ra-quedas nas montanhas e a atravessar zonas bombardeadas enquanto os obuses ca�am. Andou dejeep e de camelo a fazer a cobertura das opera��es mais incr�veis. Conheceu gente de todas as ra�as e feitios, de todos os estatutos e prop�sitos, de todas as latitudes e convic��es, viu matar e viu morrer, mais todas as barbaridades da praxe, fez boas reportagens em que ainda assim n�o disse muito do que podia dizer, mas aprendeu por dentro, sobretudo a partir de tudo o que n�o disse, e chegou a trabalhar para jornais estrangeiros importantes. Viveu muitos perigos e muitas emo��es fortes e, honra lhe seja, nunca se gabou disso.
Mais tarde, encerrou esse cap�tulo da vida, e deu em escritor desencantado. Com uma boa bagagem, � verdade, mas desencantado de todo, apesar da experi�ncia que vivera e apesar dos livros que o tinham marcado. Foi uma p�ssima op��o. P�s-se a procurar hist�rias de irrup��o do sofrimento como mola real do intimo das criaturas e do sentido da sua vida. Um sofrImento que, por vezes, estava na pr�pria insignific�ncia das situa��es, das atitudes e dos gestos, mas que era apresentado como estando na origem de um pesado fardo moral. Era como se ele se colocasse do ponto de vista de uma Justi�a ontol�gica num mundo em que todos eram v�timas an�ninas dela e em que acabava por n�o haver sa�da porque tamb�m acabava por n�o haver Justi�a. Por vezes, tudo isso era temperado com uma certa dose de cinismo, disfar�ado de indiferen�a ou de ironia e ancorado no absurdo. As personagens dos seus livros apaixonavam-se, mas nunca davam uma boa foda. Eram capazes de �dio, mas nunca davam uma boa facada, nem sequer metaf�rica. E s� iam at� ao fim, quando o fim fosse uma situa��o-limite para um dado dilema, regra geral a trai��o, grande ou pequena. Mas, a� chegadas, n�o faziam sangue, ficavam-se pelo mon�logo interior a diluir-se nos mon�logos interiores alheios. Era esse o seu ir at� ao fim. Tudo amarguras descompensadas que s� duravam pela economia amb�gua do estilo em que eram ditas e deixavam o leitor com a Impress�o de ter percebido quase nada por n�o alcan�ar a superioridade de voos t�o rarefeitos.
A atitude do Mateus era a de algu�m que podia ter sido outro Malraux (mas ele n�o acreditava na ac��o), ou outro Graham Greene (mas ele n�o acreditava na reden��o), ou outro Le Carr� dos bons velhos tempos (mas ainda menos lhe interessava a espionagem), e tinha conclu�do que nada disso valia a pena, a meio do copo de whisk e numa sociedade med�ocre como a portuguesa
em que tudo se desvivia. O que lhe interessava era escrever bem, sobriamente, enxutamente, sem trepida��es de registo nem falhas de gosto, sobre uma condi��o humana descarnada e incoerente. Mas nos seus �ltimos livros havia mais franqueza e menos posi��es com veleidades filos�ficas. Tamb�m estavam a deixar de ser romances para serem digress�es cerebrais com algumas personagens errantes pelo meio.
O Mateus tinha dinheiro herdado da fam�lia e dir-se-ia cultivar uma certa indiferen�a perante as pr�ticas civilizadas do comum dos mortais, mas por vezes estava disposto a participar nelas depois de ter marcado as suas dist�ncias como entendia. Ent�o dignava-se descer ao povoado e pro ferir umas senten�as. Era um triste, um solit�rio bem instalado na vida, com trejeitos de pensador profundo no meio das sombras e contraluzes em que se movia e via os outros a moverem-se.
Quando dormi com ele no Bu�aco, estava no auge da sua carreira de autor. Era alto, magro, descontra�do, cabelos de um louro j� indefinido, a passar para o grisalho, grandes entradas, olhos cinzentos, cara curtida pelo tempo, e tinha algumas parecen�as com o Henry Fonda com aquele ar enjoado de quem sofre permanentemente de dispepsia ou de uma �lcera no est�mago. Dizia-se que nunca recusava escapadelas mas que n�o era ele a procur�-las. Fui eu a convid�-lo para um copo e para a cama. N�o disse que n�o a uma coisa nem a outra, bebemos uma garrafa de vodka e demos a nossa queca, n�o sem muita prosa desnecess�ria dele, antes e depois. A foder mantinha-se calado e n�o era grande espingarda. Tomava tudo a s�rio, at� aquilo. � o que eu digo, parecia mesmo o Henry Fonda. Comecei a perceber a mulher dele a partir daquele momento e mais tarde confirmei essa primeira Impress�o. Fal�mos da sua vida e da minha, mas ele era muito discreto e o que dizia calmamente da sua intimidade ficava-se pelas generalidades h�beis a que s� se podia dar algum sentido se se conhecesse previamente alguma coisa das caracter�sticas da obra e alguma coisa da vida do homem. Era o meu caso, embora em pequena medida. Felizmente o congresso acabou no dia seguinte e toda a gente abalou suspirando de al�vio, sen�o ele teria tido a cortesia de me aparecer � noite, n�o me dando a entender que tamb�m levava a ida para a cama � conta de expia��o, longe disso, mas porque n�o veria outra coer�ncia, nem outra sa�da "socialmente" airosa depois da noite anterior e, claro, ainda por cima tinha gostado.
Foi com um gajo destes que a minha irm� se envolveu quando j� se estava a desligar do Andr� e, mesmo sem querer, ela deu-lhe a volta ao miolo. Transtornou-o. Tornou-o obsessivo, compulsivo, enervado, dram�tico, centrado na rela��o entre ambos, agarrado �s m�nimas circunst�ncias n�o se sabe como, para preservar a dois n�o se sabe o qu�, numa palpita��o trespassadora vinda n�o se sabe de onde. A vida dele passou a ser um puro mart�rio. De um lado, a mulher e a filha, do outro, a Constan�a. De um lado, todo o peso institucional, toda a press�o da vida de familia com os v�rios problemas graves que nela havia, do outro, o impulso libertador de uma intensidade que ele nunca tinha vivido at� ali, nem tinha querido viver, cuja dimens�o lhe escapava ou talvez at� o aterrorizasse. Estes cerebrais, quando s�o apanhados de surpresa, ficam sem saber o que fazer. Passou a ser como eles e estavam � espera de tudo menos disso.
P�s-se a escrever ferozmente sobre a paix�o, o destino e a morte, a dilacera��o �ntima, o desencontro fatal dos seres que se amam. Sabia-se condenado pela doen�a e tudo para ele vinha tarde de mais. Escrevia do avesso do que ia vivendo fragmentariamente com a Constan�a, que teria preferido as coisas mais bem definidas e assumidas, nisso ela � bem minha irm�, e sobretudo exigia que fizesse uma op��o absolutamente clara para viver com ele e s� aceitaria viver com ele nesse caso, mesmo que tivesse de ficar feita num farrapo se n�o fosse assIm. Mesmo que ele tivesse de morrer dali a pouco. Mas ele n�o era capaz de jogar essa partida e a Constan�a estava de boa-f�. pauvre.
A princ�pio ela manteve-se fiel ao Andr�, apesar do desgaste da situa��o entre ambos e de j� quase n�o o ver. Sentia-se fascinada pelo Mateus, nunca lhe tinha passado pela cabe�a que um homem com o prest�gio dele se interessasse por ela, e, sobretudo, sentia-se compreendida por ele, mesmo nos pontos mais insignificantes. Nesse aspecto, a minha irm� sentia-se mesmo atravessada por ele, era isso, como que vista aos raios-X da alma, o que a fazia estremecer de gratid�o e vibrar de disponibilidade, mesmo sem �lcool para lhe afinar os circuitos. Mas manteve a lucidez quanto ao que pretendia da vida e da� o drama que eles est�o a viver porque provaram o fruto proibido e querem mais e n�o sabem at� que ponto s�o capazes de aguentar uma tens�o que se lhes tornou insuport�vel e neste ponto j� nem as pr�prias raz�es de cada um dos lados t�m qualquer esp�cie de l�gica, s�o posi��es afirmadas e radicadas, enquanto se v�o esquecendo os pr�prios pressupostos que as ditaram e que pareciam t�o evidentes. Como numa guerra civil prolongada. Ela ainda tem desculpa. O Mateus n�o. O Mateus devia saber bem como essas coisas s�o. Com tudo isso, eles perdem o melhor.
12. Constan�a
Meu Deus, meu Deus, � t�o tarde e ele de certeza continua na estrada e eu para aqui, aflita outra vez, neste canto do mundo, desligada de tudo, decidida a n�o telefonar, a n�o dar not�cias, a n�o me deixar abalar pelas emo��es e muito menos pelas saudades.
Porque � que adivinho o que ele me diz, mesmo que esteja semanas e semanas sem o ver, como se tiv�ssemos uma liga��o telep�tica?
E a chuva que n�o p�ra, aqui parece que parou, est� t�o escuro que n�o consigo ver, mas aqui � o Alentejo, chove sempre menos do que nos outros s�tios.
Como naquela noite em que soube que o Andr� estava ligado ao recrutamento de mercen�rios para �frica, se tinha metido no tr�fico de diamantes e de armas e, al�m de se arriscar a levar um tiro num ajuste de contas que lhe estava prometido, provavelmente ia ser preso por uma vigarice qualquer.
Tamb�m chovia desabaladamente quando ele me telefonou, algures de Espanha, dando a entender que ia estar fora uns tempos. A voz era de quem tinha bebido muito, arrastada, nasalada, entaramelada. Mal percebi o que me estava a dizer.
Lembro-me de como fiquei para ali, a pensar para que � que me servia estar casada com um fot�grafo falhado que era b�bado, ou um pianista de jazz que era b�bado e, tinha eu acabado por supor, traficante internacional, sempre ausente e que j� n�o representava nada para mim, nem sequer o sobressalto de me importar com o que pudesse acontecer-lhe. Foi ent�o que decidi p�r um ponto final no nosso casamento.
Lembro-me de no dia seguinte fazer bom tempo e de me sentir t�o aliviada. Talvez amanh� tamb�m esteja bom tempo.
Amanh� a vida muda. Amanh� darei v�rias voltas ao meu olival de duas oliveiras. Talvez uma j� tenha dito � outra onde � que o pobre pode encher a almotolia de azeite para a sua a�orda. Sempre arranjarei maneira de ir � vila comprar umas ferramentas e umas coisas para comer. Hei-de procurar o canalizador para vir ver opo�o. Talvez consiga comprar linho para fazer umas toalhas. Talvez arranje uma empregada que se disponha a vir c� uma vez por semana, para as limpezas pesadas, quando eu tiver de me atirar ao meu trabalho para a Faculdade.
Talvez encontre alguma paz nessas ocupa��es, a pensar em como tudo vai ficar quando as coisas entrarem na sua ordem certa. Mas isso tudo fica para amanh�, agora continuo acordada, bem acordada a escutar interiormente o que ele me diz.
13. Mateus
Meu querido amor da minha vida, e eu que tanto queria escrever-lhe uma carta que a acompanhasse, como uma esp�cie de mapa que nos dissesse respeito, s� a n�s, para cada um de n�s poder saber, a cada momento, onde � que o outro est� e como est�.
Pensei, pensei, achei que n�o era capaz de lhe dizer aquilo que gostava de saber exprimir completamente por me transtornar de mais s� de pensar em si, em termos que as palavras n�o conseguem formular, e tamb�m por me ocorrer que h� v�rios dias n�o nos vemos e que voc� talvez se d� tamb�m conta de como isso � insuport�vel.
Senti-me, sinto-me j� t�o amarrado a tristezas, mesmo antes de esses tempos come�arem, que me parece �s vezes que o melhor seria fazer um cat�logo de saudades, para que soub�ssemos sempre situar-nos a partir delas e para que nos enternec�ssemos com um exerc�cio em que nos poder�amos recapitular, fosse de dia, fosse de noite.
Tudo ponderado, se � que se pode dizer assim nestas minhas circunst�ncias t�o emotivas e t�o desoladas, achei que temos e vamos continuar a ter v�rias saudades de diferente natureza que vou procurar descrever enquanto o meu carro avan�a como se seguisse sem destino e a vejo a sorrir comovida, como s� voc� sabe sorrir e comover-se, � medida que vai lendo e as vai sentindo tantas e t�o fundas, t�o lancinantes, como eu.
A primeira saudade � a de um bem-estar fulgurante e tranquilo, de uma sensa��o que inunda alma e corpo por dentro e que nos leva a sentir que nada est� fora do seu lugar, que se est� certo nesse lugar e certo na rela��o de um com o outro, que tudo � musical e luminoso, que a harmonia est� numa compreens�o intima a vir de uma tens�o permanente de ternura, intelig�ncia, sensibilidade e desejo.
A segunda saudade � a de ver e ouvir, de perto, de se estar ao p� um do outro, de haver olhos que se olham, caras que se v�em, risos deslumbrados que se t�m, palavras que se dizem ou � como se fossem ditas, gestos que se fazem ou apenas se esbo�am, e de se sentir que nisso se � naturalmente intencional nos recados que se d�o por cada um desses meios, como se � naturalmente capaz de adivinhar e de decifrar tudo o que se quer realmente dizer.
A terceira saudade � a que se liga aos momentos mais importantes que se vivem, passeios e paisagens, deambula��es, pessoas que se passam a conhecer, coisas que se contam, confid�ncias repentinamente tornadas necess�rias, sonhos e palpites, express�es que se surpreendem, efeitos de luz, flores, ru�dos do campo e do mar, m�sicas tantas vezes ouvidas quando se atravessa a noite, cores e sabores, emo��es em que o �ntimo e o de fora se combinam de um modo �nico e partilhado como n�o se pode acreditar que a mais ningu�m tenha acontecido, em que o que j� se passou continua a estar presente e � cada vez mais intenso e activo.
A quarta saudade � a do contacto da pele: m�os que se apertam e percorrem, afagos que se aventuram, bocas que se encontram, sensa��es que se sabem de cor e se querem inesgot�veis, corpos � beira de explodir ansiosos, tanta fome e tanta sede, liberdade e pudor, impaciencia e timidez, conten��o e promessa, tudo a renovar-se e a tornar-se ilimitado a cada momento, repassado de uma do�ura que nenhumas palavras conseguem descrever.
A quinta saudade � a da vida pr�tica do dia-a-dia, ideias e projectos, tentativas e certezas, coisas que t�m conta, peso e medida, espessura, ritmo, exist�ncia concreta, efeitos reais, coisas que se v�o criando porque se est� a remar na mesma direc��o e se tem a consci�ncia disso, coisas que s�o reciprocamente induzidas e aperfei�oadas, combina��es de risco e de bom senso que se sente que resultam gra�as a esse empenhamento e a uma alegria da seriedade com que s�o postas em andamento.
A sexta saudade � a que faz com que um esteja sempre a falar com o outro e a fazer parte dele, a respirar nele e a existir nele, veia a veia, fibra a fibra, tecido a tecido, m�sculo a m�sculo, a ter de dizer-lhe sempre do seu amor das maneiras mais variadas e a prop�sito das situa��es mais diversas, com efeitos de luz e sombra, veem�ncia e desvario, ansiedade e contentamento, sem nunca querer ou ser capaz de distinguir esse amor da pr�pria vida e a s� consegnir ser feliz assim.
A s�tima saudade � a mistura transbordante de todas as anteriores, criando uma dimens�o em que cada uma delas leva a todas as outras e recupera todas as outras, como se se estivesse a olhar um caleidosc�pio, ou como se estivesse dentro dele e se fosse parte activa desse universo de reflexos interactivos, de brilhos, jogos de espelhos, formas coloridas, tempos sempre em muta��o, espirais alucinantes mas invariavelmente ancoradas no cora��o das coisas e no cora��o propriamente dito e un�ssono: � uma saudade que funciona como uma esp�cie de cursor no tempo, deslizando para tr�s e para a frente, girando em todas as direc��es, revivendo as anteriores, inventando as pr�ximas, entran�ando umas e outras, agarrando-se a esperan�as, sobressaltando-se com acasos, e sofrendo, sofrendo, sofrendo, s� de pensar que se pode estar a uma dist�ncia de dias ou de apenas umas horas.
14. Eug�nia
N�o. Nem por sombras. A Constan�a e o Mateus entraram, tamb�m eles, em derrapagem. Enquanto escrevo, apercebo-me do jogo das impossibilidades. At� j� fa�o bons pastiches do estilo do Mateus... Est�o j� t�o despojados de tudo que acabar�o por ficar descarnados e ap�ticos numa penumbra desolada. Tamb�m, quem � que se lembrava de viajar por uma noite daquelas, numa peregrina��o sem rumo? Que gente � esta que assenta numa decis�o e depois s� quer pretextos para sabot�-la? Quanto melhor � ser p�o, p�o, queijo, queijo, ter os p�s assentes na terra e n�o esperar por D. Sebasti�o, ainda por cIma o mais idiota dos reis portugueses, mesmo que chova. As cat�strofes e os desastres s� nos livros e nos livros de outro g�nero. Preciso de mais um vodka. A noite est� a ser comprida de mais. Amanh�, j� n�o me lembrarei disto que estou a pensar. Mas agora entrei numa esp�cie de letargia iluminada, dou conta de tudo o que se passa, embrenho-me numa espiral de tudo o que me vem � cabe�a, fica-me tudo t�o claro e f�cil de formular, e por vezes at� sinto que devo estar a perder qualidades, por vezes quase simpatizo com o perfume de melancolia que me chega da hist�ria deles. Doen�as e desgra�as, desencontros, sil�ncios.
J� l� v�o muitos anos. �s vezes, quando bebo mais do que a minha conta e todo o passado se me embrulha num n� mais turvo e indesat�vel, lembro-me do Irineu e pergunto-me o que ser� feito dele. O Irineu era um esp�cime t�pico da esquerda caviar. No fundo, era t�o de esquerda como eu, mas tinha um feitio provocador de quem gostava de dar nas vistas. Falava em luta de classes e em solidariedade social, em liberdades republicanas e em interven��o do Estado na luta contra a exclus�o. Tinha sempre a boca cheia de factos e de n�meros. Escrevia uns textos ileg�veis, a resvalar para o trotskysmo, citava Marx e Engels e Ernst Mandei, pregava contra os malef�cios da globaliza��o, dissertava sobre tudo e mais alguma coisa, e gostava de boazonas.
� estranho como o vodka me faz reviver s�nteses de tudo isso com nitidez absoluta. Fico com a boca a saber a papel de m�sica e vejo esse tempo como se estivesse a adormecer dentro dele, embalada pela mem�ria e anestesiada pela noite, a recapitular o que tinha feito ou me tinha acontecido num determinado dia e a pensar no que tinha de fazer no dia seguinte. � tudo muito simples e bem desenhado, s� que fragment�rio, mas com articula��es muito claras, que reorganizam esse tempo dentro deste tempo e confundem o ontem com o agora. Mas amanh�, se quiser lembrar-me, j� terei esquecido tudo outra vez.
O Irineu gastava muito dinheiro em carros e em roupas, cultivava um ar desportivo e informal, mas tinha a mania dos protocolos, arrepiava-se todo com os maricas e beijava a m�o �s senhoras num gesto muito estudado, em que mal se curvava e levava a m�o delas � boca, olhando-as bem nos olhos. Tinha um complexo de origem da pequena classe m�dia e n�o gostava do nome pr�prio e procurava n�o falar da familia que era gente cheia de massa mas sem pretens�es. Achava-se um sedutor aciganado e de uma esp�cie de aristocracia do jetset clandestino e mal visto, mas acatado porque se via que nadava em dinheiro, falava a mesma lingua do outrojetset e tinha comportamentos semelhantes a ele, coleccionava pintura abstracta, ia aos concertos e �s discotecas e fazia cruzeiros de barco � vela.
Era bom jogador de golfe e um grande cozinheiro. Mimava solicitamente as tias todas, num raio que ia de Lisboa a Cascais, a Salvaterra, a Monsaraz, ao Algarve. � sua maneira, vivia para o social e praticava sistematicamente a regra dos tr�s p�s: detestava tudo o que era pos sid�nio, pires ou piroso, procurava n�o ir a com�cios nem a reuni�es partid�rias, n�o queria cargos no Governo nem ouvir falar de sindicatos, mas tinha a fascina��o do poder e da verbiagem correspondente. Adorava que lhe pedissem a opini�o, a an�lise, o enquadramento politico e remetia-se com eleg�ncia a uma grande independ�ncia moral quando lhe pediam qualquer participa��o ou ajuda mais concreta. Ent�o lavava as m�os. Fazia distin��es especiosas entre estrutura e conjuntura, entre o que era essencial e o que era acess�rio, dissertava sobre a Europa, criticava Galbraith, parecia tu-c�-tu-l� com os grandes l�deres do mundo, tal a precis�o com que analisava as suas posi��es e estrat�gias, como se tivesse tomado o pequeno-almo�o desse dia com eles e eles lhe tivessem feito as mais raras confid�ncias. �s vezes, apetecia-me chamar-lhe o Kissinger da Rua das Trinas. Entretanto o Irineu almo�ava com gente da alta finan�a e, de solteir�o, j� tinha tido alguns casos supostamente escaldantes em Lisboa e arredores. Tinha uma informa��o muito variada, mas f�cil e superficial. N�o chegava a ser cultura. Quando punha gravata e andava de blaser muito assertoado, parecia que trazia uma maced�nia de cores entalada nos colarinhos. Tinha decorado a partir do Kobb� os enredos de todas as �peras e sabia os nomes de todos os cantores a partir dos cat�logos das editoras de discos. E eu era muito nova e deixei-me levar pelo palavreado daquele pimp�o g�nero <pop-AD" de trinta e tal anos que andava de Porsche e assobiava �rias de BeIlini e de Verdi. Azares do bel canto. Sinas. Ci�o!
Foi assim que me casei da primeira vez e devo estar mesmo muito b�bada para me lembrar agora do Irineu. Dois anos depois do meu regresso de Londres e de ter desistido do ballet. Com ele come�aram as viagens, longas excurs�es com demorada escala nos casinos, embora ele arriscasse muito pouco e tivesse uma sorte de corno, e come�aram tamb�m as bebedeiras, numa sede vagarosa que me ia tornando cada vez mais inteligente e sobranceira ao mundo � medida que bebia, at� adormecer numa prostra��o feliz. E fui-me distanciando da fam�lia. J� n�o tinha paci�ncia para a m�e, que, � claro, gostava muito do Irineu e desejava para a Constan�a um partido id�ntico quando ela chegasse � idade de dar o n�, mas n�o tinha o m�nimo interesse em saber como � que eu me sentia no casamento.
Est�vamos casados havia dois anos, quando o deixei em Monte Carlo para ir atr�s de um corredor de autom�veis. Foi uma noite de grandes decis�es. Convenci-me de que ele daria ao meu corpo alguma sensa��o acelerada de borbulhar em champagne e n�o resisti � tenta��o. Quando propus voltar, o Irineu j� n�o quis. Disse-me, pelo telefone e como se estivesse a prever a pr�xima jogada da Sra. Thatcher, que tinha tido sorte ao jogo e n�o queria perd�-la. O cabr�o. Tinham passado oito semanas, o champagne tinha-se evaporado e por momentos achei que me tinha metido numa grande alhada. Mandei-o � merda e desliguei, por uma quest�o de amor-pr�prio. Felizmente as not�cias t�m asas. Nessas oito semanas, ele tinha arranjado a maneira de salvar a face e acabado por regressar a Lisboa com uma italiana espampanante arrebanhada em N�poles, comtessina di niente ou coisa assIm, que trabalhava para a Cruz Vermelha, simulando um coup defoudre que o tinha levado a p�r-me os palitos definitivamente. Eu nunca tinha dado nas vistas. Tinha sa�do muito nova de Lisboa, para estudar balet em Londres. Balet,, imagine-se. Os c�rculos de que ele estava pr�ximo eram de gente da sua idade que mal sabia quem eu era. A m�e iria evitar o t�pico do div�rcio � hora da canasta. O Irineu tinha a sua teia de rela��es importantes e a t�cnica toda de percer sempre que fosse preciso. Lisboa acolheu-os sem surpresa, sem dificuldades e sem retic�ncias. Lisboa j� n�o tem retic�ncias para coisa nenhuma. Acabaram por casar discretamente dali a mais dois anos, essa tipa que n�o tinha interesse nenhum � que estava bem para ele, engordou vinte quilos, t�m uma por��o de filhos, parece que s�o muito felizes e ele continua muito rico e com as mesmas pretens�eS de antigamente, ao que oi�o dizer. Mas deixou-se de socialismos e de especula��es politicas. Consta que vai entrar para a Ordem de Malta.
Contei a hist�ria do corredor de autom�veis no meu primeiro livro, mas disfarcei-o de um homem endividado em fuga aos credores e o caso passa-se entre Longchamp e Deauville, entre duas mulheres que n�o sabem que dormem com o mesmo homem mas se envolvem numa luta sem quartel na disputa de um outro homem, por sua vez dominado pela coca�na e pela ambi��o. Era uma coisa ainda mal estruturada, mas crua, sem rodeios, com cenas er�ticas quase alucinantes e cheia de alus�es a figuras conhecidas, epis�dios de praia e de jogatina, �lcool, muito �lcool, mulheres jovens e dispostas a tudo, dan�as prom�scuas, orgias, neg�cios escuros, politicos decadentes egangsters da finan�a, e em que o Irineu inspirou a figura de um mero comparsa, pronto a trepar na vida seja a que pre�o for, que acaba como efebo de um actor de cinema para lhe sacar algum dinheiro e a mulher convenientemente mal assistida. Aprendi logo que mesmo as situa��es autobiogr�ficas podem ser transformadas noutras e que, mesmo nas que n�o t�m nada a ver com a nossa pr�pria vida, acaba por se projectar qualquer coisa dela. Sempre foi assim do vener�vel Virgilio � infeliz Carson McCullers. O que n�o se pode � perder
o p� na fic��o, nem ter pena das personagens. Tudo corria pelo mais perverso e pelo pior nessas duzentas p�ginas, mas divertia-me fazer aquele exorcismo, depois de abandonar o �s da F�rmula Um e de ser rejeitada pelo meu marido.
Comecei assIm e n�o me arrependo. Tive muita sorte nesta selva da edi��o. O livro vendeu bem, foi traduzido depressa, entrou no circuito dos best-sellers e esse foi o princ�pio da minha independ�ncia. Posso viajar, passar temporadas em Paris, Londres e Nova Iorque, dar um salto � C�te d'Azur, fazer a minha vidinha como me apetece e n�o tenho de dar satisfa��es a ningu�m. � isso a verdadeira liberdade. Ainda hoje uso o mesmo pseud�nimo, Rita Kantic, que me d� um ar jugoslavo, embora toda a gente que me conhece saiba que sou eu quem se esconde por detr�s dele, e ainda hoje tenho a mesma agente liter�ria que me negoceia condi��es leoninas com os editores. E depois aprendi a escrever melhor, a ser mais incisiva e directa, a construir uma intriga, a p�r veneno at� nas s�labas. Naquela altura, tinha vinte e tr�s anos, um corpo bem feito, um grande apetite sexual acumulado e muitas leituras vorazes de teenager a rodopiarem dentro de mim como as t�cnicas de ballet que eu aprendi. Muitos anos dejeuneflile rang�e a preparar-me para digerir a informa��o da adolesc�ncia e para ir mudando de homem ao sabor das minhas fantasias.
Agora tratava-se de rentabilizar esse capital, de ver muito cinema, de perceber uns truques de montagem, de ler muito Eisenstein, de ganhar mundo e de conjugar tudo isso com a ruptura com uma educa��o tradicional. N�o foi muito dif�cil. Cada vez gostava mais de escrever e os meus livros eram cada vez mais bem recebidos. "Beware! She's got a specific and yet fascinating talent for disgrace", dizia o cr�tico do TLS quando saiu a tradu��o inglesa do terceiro. Indeed. Gra�as ao �lcool e ao Irineu que vinha sempre de pijama completo para a cama, o dobrava a preceito sobre uma cadeira quando se punha nu, era completamente convencional e gostava de me chamar puta, puta, puta, enquanto fodia.
15. Constan�a
Tempos em que fal�vamos de ter saudades e que eu quis enterrar de vez. A vela est� a chegar ao fim, a chama aumentou mas vacila cada vez mais e faz um rolo de fumo a crescer para o tecto, o pavio est� enorme, vou deix�-la apagar-se de todo. Entretanto vai bailando a sua agonia alaranjada no reflexo da vidra�a. Tamb�m podia dar um efeito de fotografia, inspirado no Latour. Uma luz que se apaga e se reflecte enquanto se apaga.
N�o preciso de luz nenhuma neste momento. Estou t�o �s escuras como daquela vez em que o Andr� me telefonou de Madrid, a segunda na mesma semana, a pedir-me que fosse urgentemente a um escrit�rio que ficava para os lados da Amadora buscar uma coisa que l� devia estar para ele.
Fiz o que ele me pedia. Depois de dar muitas voltas naquele labirinto, l� encontrei o pr�dio, igual a todos os pr�dios da Amadora, mas numa rua que ningu�m sabia onde era.
O escrit�rio era num primeiro andar. Uma mulher deslavada e vestida com uma bata muito gasta e encardida mandou-me entrar para um gabinete sinistro onde s� havia uma secret�ria de tampo de vidro, duas cadeiras, uma pequena mesa de computador a um canto e um calend�rio muito ensebado do Piqyboy.
Passados uns instantes entrou na sala um sujeito de cabelo e bigode grisalhos, que disse chamar-se Vargas. Vestia uma camisa de caqui e unsjeans muito gastos. Era corpulento e parecia sa�do de um filme sobre a Legi�o Estrangeira. Sentou-se pesadamente � secret�ria, acendeu um charuto cuja ponta tinha aparado muito devagar e perguntou o que � que eu queria enquanto expelia uma baforada espessa na minha direc��o. Disse-lhe.
O Vargas olhou-me com uns olhos em que o t�dio se misturava com uma certa express�o de bondade. Procurou uns pap�is na gaveta. Foi quando o telefone tocou e ele come�ou a falar, creio que em neerland�s. Parecia impaciente e irritado. Quando pousou o telefone, resmungou qualquer coisa como "Cofio..." e deu um empurr�o � gaveta.
Olhou para mim como se quisesse significar um ror de coisas e disse, muito devagar: "- Era melhor a senhora ir-se embora e n�o voltar c�. Isto � um assunto para profissionais. Diga ao seu marido que ainda n�o chegou nada. A empresa est� a reestruturar alguns aspectos. Ou ent�o pode ser que..."
Interrompeu-se, afastou a cadeira da secret�ria e levantou-se para me acompanhar. Acrescentou ainda:
"-Isto � um escrit�rio muito discreto. Diga ao seu marido que n�o devia mand�-la c�. Era melhor para toda a gente. De resto, vamos mudar para Queluz."
abriu-me a porta. N�o percebi o que se passava e o Andr� nunca chegou a explicar-me. Quando me telefonou outra vez, j� estava na Holanda e a sua voz parecia indiferente ao que eu tinha acabado de lhe contar. Disse que n�o me preocupasse porque tudo estava sob controlo.
Continuo �s escuras. T�o �s escuras como daquela outra vez em que ele me pediu para ir busc�-lo no meu carro a uma ruela mal iluminada no Dafundo. Eram duas da manh� e ele insistiu em que fosse no meu carro. Entrou, mandou-me seguir para a marginal em direc��o a Lisboa e n�o disse uma palavra. Volta e meia, olhava para tr�s.
Quando cheg�mos ao Cais do Sodr�, voltou a olhar para tr�s e disse-me para subir a Rua do Alecrim, mas que me despachasse, que fosse o mais depressa que pudesse. Meti uma segunda. O mini disparou por ali acima com um grande barulho do motor. Ele olhava mais vezes para tr�s e s� dizia "- Mais depressa! Mais depressa!>). J� �amos a chegar ao Pr�ncipe Real quando ele disse em voz sacudida e que n�o admitia r�plica: "- Presta muita aten��o. Tens de manobrar muito depressa. Apagas as luzes e voltas ali � direita para irmos ter � Pra�a da Alegria. � sentido proibido, mas n�o faz mal. A esta hora n�o h� movimento. J�! Agora!"
Fiz o que ele me pedia e meti pelo sentido proibido, de far�is apagados. A manobra foi brusca e com grande chiadeira de pneus. Deixei o carro ir abaixo. Foi deslizando na descida. Ainda n�o tinha andado vinte metros e senti passarem no Pr�ncipe Real dois carros a grande velocidade em direc��o ao Rato. Ele recostou-se no assento e acendeu um cigarro.
S� me deixou acender as luzes ao entrarmos na Pra�a da Alegria, creio que por haver l� uma esquadra. Descemos � Avenida, pass�mos o Rossio sem pressas e cheg�mos ao Terreiro do Pa�o. E, depois de darmos mais umas voltas pela Baixa, ele quis ir ficar numa pens�o, para os lados de Santa Apol�nia. Disse que me havia de explicar tudo e mandou-me para casa porque, acrescentou, era mais seguro para ambos. Mas nem sequer me explicou porque � que tinha uma pistola de guerra no saco de que se esqueceu no carro, com a pressa da sa�da.
Quando cheguei a casa tinha tudo de p�s para o ar:
as gavetas abertas, as almofadas e colch�es fora do s�tio, as roupas e os pap�is remexidos, alguns quadros atirados ao ch�o, os tapetes levantados. No dia seguinte, ele telefonou, a pedir que lhe levasse o saco e a correspond�ncia � esta��o de caminho-de-ferro. Disse-lhe do estado em que encontrara a casa. Recomendou-me muito que n�o dissesse nada � policia e n�o fez mais coment�rios. S� me disse que iriam busc�-lo dentro de meia hora, de autom�vel, para ir a Set�bal "fazer umas fotografias". Devo ter dado um tom incr�dulo � minha voz, mas tenho a certeza de que isso s� o fez encolher os ombros. E tamb�m achei que j� n�o valia a pena perguntar-lhe nada.
O horror tinha acontecido antes e foi na noite em que ele me falou mais uma vez da rela��o entre a sua viv�ncia dos rituais m�gicos e a indiferen�a perante a morte. O africano, que acredita na for�a real dos s�mbolos e nos poderes sobrenaturais, s� concebe a liquida��o f�sica do advers�rio pol�tico, porque vive a oposi��o vida e morte nos termos que eles lhe imp�em.
Repetia-me isto na noite em que lhe exigi me explicasse o que andava a fazer e me deixou entrever que se metia em neg�cios de armas e mercen�rios.
Repetia tamb�m, muito s�rio, que raz�o tinha o Salazar, quando afirmava que os povos de �frica tinham condi��es para serem independentes, mas era dali a quinhentos anos. Era bom para se ganhar a vida, acrescentou. N�o fazia mais do que inscrever-se nos ritmos que em �frica levavam � corrup��o e � morte. Acabava por ser muito mais limpo do que fazer como as pot�ncias ocidentais, nas suas hipocrisias sucessivas, prontas a intervir ou a deixar morrer popula��es inteiras, desde que isso conviesse aos seus interesses, ou prontas a exportar direitos humanos �s toneladas, desde que isso desse para o seu gargarejo medi�tico.
E acrescentava que o seu alinhamento era pontual, ditado pela circunst�ncia de que quem d� mais � "qem fica em condi��es de matar melhor e quem pode tratar melhor � quem se safa no fim de contas, para n�o morrer por enquanto e sobretudo para pagar os fornecimentos.
Os pa�ses europeus, com a descoloniza��o, tinham reaberto o dique dito da civiliza��o ocidental que dispUnham e inauguraram uma nova fase da morte por neg�cio internacional privado. Ele n�o fazia mais do que aproveitar o que podia da situa��o e fazer pela vidinha � custa dos pretos, embora corresse riscos, porque �s vezes tamb�m havia uns brancos que ficavam a perder. Ele tinha de ficar na posi��o do mulato, odiado por brancos e por pretos, odiado porque temido, porque participava de dois mundos, porque significava transgress�o das regras em que eles se definiam. Se n�o ficasse, quem perdia era s� ele, porque haveria sempre algu�m para lhe tomar o lugar nesse trato que lhe ia dando para viver quando corria bem, e acrescentando pelo menos algumas emo��es fortes quando corria mal, e que o fazia estar sempre a viajar. Assim, a fotografia tinha-se finalmente constitu�do numa utilidade especial para ele. Dava-lhe um excelente �libi para as desloca��es. O piano j� n�o lhe interessava. E n�o via raz�es para ter escr�pulos, nem para sentir o remorso do homem branco e muito menos o fardo dele.
Eu ouvi tudo aquilo horrorizada. Nessa noite n�o dormi e decidi que n�o podia viver mais tempo com um homem assim.
Mas em muitos aspectos, continuo �s escuras. Nunca soube de quem e por que � que ele andava a fugir. Nunca soube quem me foi revistar a casa nem porqu�. Mas agora n�o interessa. Mudei de casa logo a seguir ao div�rcio. Isto vem-me � cabe�a para eu n�o pensar noutras coisas.
Devia ir-me deitar, a cama j� est� feita, s�o perto de duas da manh�, est� frio e desconfort�vel. Para que fico para aqui, como se estivesse � espera, se n�o tenho nada que esperar nem quero?
N�o quero saber do Mateus e quero saber dele. Vem um homem pela auto-estrada fora. Eo meu homem,ou o meu ex, ou o meu sei l� o qu�, e sei que vem a escrever-me, j� que n�o pode dialogar directamente comigo, e a elaborar o que escreve na cabe�a, j� que n�o pode escrever fisicamente e que fazer isso tamb�m � uma forma de eu existir e de ele existir por mim.
Vem um homem pela auto-estrada fora que eu quero e n�o quero ver e sei tudo o que ele est� a dizer e n�o consigo parar de acompanh�-lo.
16. Mateus
Meu querido amor da minha vida, agora que lhe falei das sete saudades que nos regem o destino, beijo-a a ganir j� cheio delas, cada vez maiores, mais dilacerantes e mais ansiosas por voltar a v�-la muito depressa e sei que isso n�o vai acontecer e que tudo se passa apenas dentro desta minha cabe�a. Afinal � isso que j� me acontece todos os dias, pensei eu, apertando o cinto de seguran�a.
O vento tinha aumentado e o seu telefonema poderia ser por ele arrebatado para muito longe, antes de me chegar. Deitei fora o cigarro, que me sabia a veneno. Liguei a igni��o e pus o autom�vel em andamento.
Eu ia pensando nisto tudo enquanto conduzia, agora ainda mais devagar e mais aplicadamente, o carro para regressar � estrada. Irrompiam-me na mente lembran�as desgarradas de outras situa��es, algumas pueris, outras n�o, todas sem grande nexo.
Porque � que me ocorreu aquele sonho em que eu sonhava que estava a ter um sonho para depois lho poder contar tamb�m em sonhos? posta nas suas m�os, vinha avivar mais coisas, de repente, sem ser para ali convocado, a n�o ser pela minha deambula��o por uma estrada reles e mal conservada, numa noite de intemp�rie e solid�o, a desoras, desbussoladamente a pensar em si.
A prova de um vinho, o sabor de um fruto, a forma de um objecto, uma musiquinha triste e balanceada, irrompiam-me ent�o na cabe�a como outras tantas maneiras e densidades de estarmos cada um dentro do outro, de termos sabido extrair de cada momento tudo o que ele nos podia dar, ultrapassando o ef�mero de tudo por for�a de uma comunica��o intemporal, Imediata, silenciosa e absoluta entre n�s.
Ai de mim, meu amor, era de noite e eu lembrava-me de tudo ao mesmo tempo e naquele emaranhado de recorda��es, repito, j� n�o sabia se ia ao seu encontro ou se ia a fugir de si, se fazia t�bua rasa do meu estado, se me convencia de que nada ia acontecer-me, se pretendia umas horas, apenas mais umas horas, de felicidade total, ou se me esquivava, servindo-me das lembran�as como desditoso pasto para a solid�o, seguindo sem rumo apenas para me atordoar.
E pensava que talvez voc� me telefonasse, dizendo que vinha ter comigo a tal parte, meu querido amor da minha vida, e isso era uma luz voltaica, a princ�pio apenas um ponto muito brilhante, depois uma mancha sem contornos, de uma brancura quase insuport�vel, no fundo do t�nel, e isso tornava-se t�o real que eu dava comigo a recapitular as possibilidades de encontrar um hotel �quela hora da madrugada, j� um hotel que nos albergasse, j� a ver como havia de telefonar para fazer uma reserva, j� a antecipar a sua chegada e o nosso alvoro�o transbordante, a nossa contida e quase acanhada Impaci�ncia ao encontrarmo-nos no hall e as nossas primeiras palavras hesitantes, o nosso encaminharmo-nos decididos para o espa�o que nos esperava, sim, meu amor, eu dava comigo a aumentar a velocidade para que n�o houvesse atrasos da minha parte, porque um atraso, um qualquer, ser-nos-ia fatal e provocaria o nosso desencontro irrepar�vel, o desastre total, dava comigo a redobrar de prud�ncia para chegar s�o e salvo e a horas de poder esper�-la e de ficar a sofrer loucamente e a cantar hossanas triunfais com essa espera, porque eu havia de chegar ao local mais cedo, desse l� por onde desse.
Afinal, pensava eu, quem faz uma confer�ncia sobre Stendhal e a paix�o amorosa, como aquela que eu vinha de fazer numa desconsolada cidade do Norte, negra de frio, negra de granito e negra de chuva torrencial, com a consci�ncia de me ter estado a transpor quanto podia para a mat�ria das minhas considera��es em p�blico, quem faz uma confer�ncia dessas, num strepp-tease an�mico discreto, mas absolutamente claro para quem, como voc�, estivesse por dentro das coisas, das nossas coisas, deveria ter uma intui��o certeira de como gerir subitamente essas situa��es de alegria explosiva e inesperada.
Mas, com os quil�metros andados nesse fugir de si que n�o conseguia deixar de ser ir ao seu encontro, um coeficiente assim, de certeza e de realidade, ia-se dissipando como uma n�voa matinal e eu sabia que voc� n�o ia dizer nada, n�o ia nem telefonar nem marcar encontro comigo, nem chegar a horas ao hotel que eu encontrasse, que tudo o que eu tinha imaginado era um pretexto para me iludir, que a nossa conversa final tinha sido t�o definitiva como terminal havia de ser, dentro de pouco tempo, o meu estado e eu teria ent�o de decidir-me a deixar de lhe aparecer, para lhe evitar o espect�culo da minha progressiva degrada��o f�sica, quando viesse a hora dos cobaltos e das quimioterapias nos espa�os brancos e cromados das cl�nicas, a hora das fadigas insuper�veis, a hora da decad�ncia vil e impar�vel, quando viesse, sei l�, a hora que eu mais temia entre todas, das met�stases a chegarem ao c�rebro e a desregularem-lhe o funcionamento.
Enquanto houvesse em mim uma nesga de liberdade e de lucidez para tomar decis�es, eu tinha de decidir manter o nosso desencontro e a nossa aus�ncia sem condi��es, nos mesmos termos graves em que lhos tinha anunciado, espreitando a sombra a invadir-lhe a face e o baixar das suas p�lpebras, como se a timidez fosse uma primeira arma que a impedisse de escutar-me, e mais tarde puxando desajeitadamente a sua cabe�a para mim, afagando de leve os seus cabelos, despenteando-a ainda uma vez, beijando a sua boca ainda uma vez, estreitando as suas m�os como a agarr�-la, ainda uma vez mas para sempre, balbuciando coisas quase sem sentido, menos a frase que n�o me sa�a da alma "meu amor, meu querido amor da minha vida", como se j� estivesse a morrer e voc� tivesse ido despedir-se de mim, muito triste e muito desolada e muito conformada tamb�m.
Era de noite, meu amor, e a r�dio continuava a transmitir Beethoven, mais uma sonata em que o limiar da indicibilidade era rasgado pelo desespero dos acordes, em que se percorria o acumular das expectativas mais loucas, se vislumbravam momentos de tr�guas, no meio do temporal, de tr�guas com o infort�nio, se adensava subitamente a luz e se espraiava uma ternura incr�vel, para depois dar lugar � viol�ncia do desespero mais tenso e irremedi�vel.
A m�sica tem-me ajudado muito nesses suced�neos de n�s, tem-me feito sonhar acordado enquanto n�o chega o travo da trag�dia, tem-me deixado retomar as palavras e a sua opacidade como se fossem ferros em brasa ou b�lsamos apaziguantes e outra vez ferros em brasa, tem-me ajudado a sentir a morte adiada para al�m do limite que me concederam. No insuport�vel que me diz, a m�sica tem gerado em mim clareiras iluminadas de esperan�a. Mas eu j� tinha revivido tudo isso e sentia-me extremamente fatigado.
Aquele percurso ia levar ainda muito tempo a percorrer at� poder regressar � auto-estrada, mais neutra e mais veloz, mais friamente geom�trica como certos destinos, mas afinal menos prop�cia � divaga��o angustiada a corroer-me como um �cido ingerido sem saber.
Tinha voltado a chover, mas era agora uma chuva mi�da e sem grande import�ncia, e eu continuava a seguir por ali fora, mas agora ia devagar, mais a deixar-me ir ao sabor do andamento do carro do que a tentar chegar fosse aonde fosse, completamente embrenhado noutros pensamentos, a refazer uma vez mais a nossa hist�ria, como se refaz�-la permitisse compreend�-la melhor e compreend�-la melhor permitisse achar-lhe uma sa�da menos dolorosa e desesperante.
17. Constan�a
Agora ele vai falar do meu fim-de-semana. Do que pensa que foi o meu Fim-de-semana. � melhor n�o pensar nisso. � melhor concentrar-me no meu trabalho, tenho de estrutur�-lo de outra maneira e de recapitular os �ltimos tempos da vida do Alexandre Rodrigues Ferreira, depois de nove ou dez anos na Amaz�nia, regressado a Lisboa em 1793, casado durante a expedi��o, talvez num acesso rom�ntico, com Germana Pereira da Cunha e Queir�s, feito s�cio de primeira classe da Academia das Ci�ncias de Lisboa, amigo de Vandeili, recebido � chegada por Martinho de Melo e Castro, a quem se apresentou "mais humilde e rasteiro do que uma cobra, a receber o castigo das minhas omiss�es", nomeado vice-director dos jardins do Pal�cio da Ajuda e do Museu de Hist�ria Natural, a esquivar-se depois �s solicita��es dos nobres que queriam obter pe�as emprestadas sem autoriza��o do Pr�ncipe Regente, � espera de que a mulher viesse do Par�, a viver nos baixos do pal�cio, a receber o h�bito de Cristo, a ocupar-se dos filhos, Germano, Maria das Merc�s, Guiomar Joaquina, esta afilhada de Nossa Senhora das Merc�s e de Vandelli, a ser nomeado para a Real Junta do Com�rcio, a ser criticado pelo seu rival, o padre F�lix de Avelar Brotero, a cair em funda depress�o e melancolia, e depois tr�s anos convulso e entrevado numa cama, como � not�rio, sem esperan�as de restabelecimento, conforme dizem os m�dicos, que apesar de todos os seus conselhos lhe n�o poder�o jamais persuadir a sobriedade, a qual hoje parece ser imposs�vel, visto que o seu embotado est�mago exige cada vez maior quantidade de licores para o estimularem, como escrevia o Brotero, e depois ainda ser tema de uma elegia de Manuel da Costa e S�, a deixar-se levar pela mol�stia cr�nica das doen�as dos tr�picos, a morrer em 1815, quando Geoffroy Sant-Hilaire j� lhe tinha pilhado os materiais que reunira e os Franceses os tinham conseguido levar com eles, ao retirarem, ao abrigo da Conven��o de Sintra, as colec��es, as que eu tinha ido ver ao Mus�e de l'Homme, Place du Trocad�ro, onde h� uma �ptima pastelaria a que o Andr� me levou da primeira vez que nos encontr�mos e me falou de fotografias e de rituais da fertilidade e da morte nas tribos africanas.� t�o estranho que ele tenha morrido mal tinham passado uns quatro meses depois de nos divorciarmos. Tinha sido tudo a bem e muito simples. Ele viera � tentativa de concilia��o e depois � �ltima audi�ncia. N�o havia nada a partilhar, nem filhos que implicassem a regula��o do poder paternal, nem pens�es de alimentos a fixar, nem direito ao arrendamento a atribuir a um dos c�njuges.
Nesse dia, convidou-me amavelmente para almo�ar, quando sa�mos. E disse: "- Foi bom enquanto foi bom. As coisas devem acabar enquanto ainda t�m alguma qualidade." Eu ri-me e recomendei-lhe que tivesse cuidado consigo e se deixasse de opera��es obscuras. Deixei-o no aeroporto. E foi a �ltima vez que o vi.
A J�lia, cunhada, telefonou-me de Madrid, numa noite como a de hoje, de chuva e trovoada, a dar a not�cia. Tinha ido l� � pressa, convocada pela Pol�cia, para identificar o corpo. O Andr� tinha sido atropelado na Calle Vel�zquez, �s cinco da tarde, por um automobilista que se p�s em fuga. O autom�vel veio a ser encontrado no parque de Barajas no dia seguinte. Era um carro roubado a um diplomata. Parece que um BMW cinzento-metalizado.
A J�lia n�o tinha grandes rela��es com o irm�o. Provavelmente chocava-a que ele tivesse morrido assim, mas, por outro lado, tenho a certeza de que respirava de al�vio por n�o haver mais nenhuma embrulhada em que ele se tivesse metido e que acabasse por vir nos jornais para descr�dito da fam�lia.
A sua voz ao telefone tinha resson�ncias de uma grave dignidade ao acrescentar que n�o estava muito convencida de que tivesse sido um acidente, mas, que havia de fazer?, encontrava-se em Espanha, n�o conhecia praticamente ningu�m em Madrid, as formalidades assustavam-na, fazia-se entender mal, precisava de vir embora sem grandes demoras, achou que o importante era providenciar o necess�rio para a remo��o do corpo para Portugal e tratar do enterro o mais depressa poss�vel.
Fiquei a pensar naquilo por v�rias semanas. �s cinco da tarde, em Madrid, o Andr� tinha morrido quando sa�a de uma loja de gravatas. At� isto era estranho. Ele quase nunca usava gravata e nunca se preocupava com essas coisas. Andava quase sempre dejeans e blus�o ou de jeans e camisa desportiva, ou dejeans e t-shirt, com a m�quina fotogr�fica a tiracolo.
A m�quina fotogr�fica n�o apareceu. Nem se sabia se nesse momento a tinha consigo. AJ�lia pelo menos n�o se tinha lembrado de perguntar. Mas tamb�m n�o se encontrava na bagagem que ela foi, depois de cumpridas as formalidades policiais, levantar ao hotel.
Disse-me que era um hotel vulgar�ssimo, nem bom nem mau, ali para os lados da Serrano. Seria Los Galgos que, segundo reza a cr�nica, por vezes abrigava uma fauna lusitana politicamente suspeita? A J�lia, que nunca tinha ido a Madrid, n�o tinha a certeza. Nem tinha reparado, quando o inspector da pol�cia a levou l�, finda a presta��o de declara��es. E tamb�m n�o tinha nenhuma factura porque o gerente tinha sido muito am�vel ao saber da desgra�a acontecida e n�o quis que a conta fosse paga. "- Su hermano, sen ora, ha ilegado nada m�s que ayer", teria dito, com ar penalizado, sempre segundo aJ�lia.
Fui ao enterro no Alto de S. Jo�o dali a poucos dias. N�o podia fazer outra coisa. S� estava fam�lia chegada e n�o era muita. A J�lia, o marido, dois primos, tr�s ou quatro �ntimos da fam�lia. Um padre decr�pito leu uns responsos, aspergiu o caix�o e depois acompanh�mos o corpo at� um gavet�o. � sa�da, ouvi o marido da J�lia a contar vagamente a hist�ria do atropelamento a um dos amigos e a resmungar entre dentes "-N�o, n�o tinha j� nada de seu. E depois c� est� o galego para pagar...." Despedi-me da J�lia que tinha posto os �culos escuros e me fez um aceno amistoso de at� qualquer dia. Estava muito calor e havia um engarrafamento. Os carros n�o paravam de businar. Levei muito tempo a sair dali.
Depois, aJ�lia disse-me que ia dar umas roupas que o Andr� tinha deixado l� em casa e perguntou-me se queria ficar com as outras coisas dele, dois ou tr�s m�veis que lhe tinham cabido em partilhas, umas d�zias de livros, umas quatro m�quinas fotogr�ficas velhas e outro material, equipamento de revela��o de preto e branco, tralhas assIm que se encontravam arrumadas na cave da casa dela, que antes tinha sido a casa dos pais e onde oAndr� tivera sempre um quarto para ele, mesmo quando estava casado comigo.
Respondi-lhe que j� tinha m�s lembran�as que chegassem desse per�odo da minha vida. Que ficaria com fotografias minhas, se houvesse algumas. Dias mais tarde, a J�lia enviou-me v�rias caixas de fotografias e negativos. Eu que visse o que me interessava e deitasse fora o resto. Nem sequer cheguei a abri-las. Arrumei-as num dos arm�rios da saleta, com a inten��o de lhes dar uma vista de olhos quando tivesse tempo e disposi��o. Resolvi deixar o projecto para o Inverno. Quando a lareira estivesse acesa e as noites fossem mais longas, eu podia ir vendo e guardando isto ou aquilo e queimando o que n�o interessasse.
Mas nessa altura eu j� tinha recebido uma esp�cie de mensagem de al�m-t�mulo do Andr�. Exactamente no dia em que a J�lia me telefonou de Madrid, o correio trouxe-me, entre umas encomendas de livros e cartas diversas, um pequeno pacote, enviado em meu nome para a Faculdade de Letras, com um remetente que s� eu podia decifrar. Rionegro. Tinha sido expedido de Barcelona, na antev�spera da morte dele. Como s� fui � Faculdade umas tr�s semanas mais tarde, ainda n�o tinha sabido da sua exist�ncia na altura da chamada dela a anunciar-me o acidente.
Rionegro era o pseud�nimo em que ele tinha chegado a pensar, havia anos, pelo menos na altura em que nos t�nhamos conhecido foi assim, para a sua actividade de fot�grafo retratista que, dizia ele, n�o teria nada a ver com o resto do seu trabalho fotogr�fico. A ideia viera-lhe logo que eu lhe falei da Viagem Philosophica, naquela primeira tarde do Mus�e de l'Homme.
Era como se ele procurasse uma rela��o diferente com a realidade, a das pessoas, a do retrato, uma contrac��o ef�mera e perturbante que aflorasse uma indicibilidade do ser humano a dissolver-se na express�o como a tonalidade nalgumas pe�as de Schubert, uma rela��o que era o contr�rio da que se exprimia na fun��o social da m�scara ao querer agarrar a fun��o individual do rosto. Mas onde � que a m�scara e a cara se encontram?, perguntava ele logo a seguir, acrescentando que nalgum ponto ou nalgum limite se haviam de encontrar e que era isso que perseguia.
Disse logo que Rionegro, tudo junto, dava um �ptimo nome de guerra. Com Paulo ou Chet, ou Carlos, ou..., ou... Depois pusera aquela ideia de parte. Mas volta e meia dizia-me coisas deste g�nero, mudando sempre o nome pr�prio "- Quando o Juan Rionegro mostrar o que vale, ent�o vais ver." Ou ent�o: "- Esta foi o Pepe Rionegro que ta tirou." E uma vez, que estava a tocar num night-club onde eu o tinha acompanhado, chegou a anunciar Rionegro Blues, enquanto piscava o olho na minha direc��o e se punha a improvisar uma m�sica enervada.
(Quem me retrata agora, aqui sentada a esta janela, a passar a noite, de olhos perdidos no escuro, im�vel, m�os cruzadas no rega�o, assim vestida �s tr�s pancadas?)
Durante algum tempo n�o mandei revelar o rolo a cores, �nico objecto que vinha no pacote, embrulhado num rascunho de m�sica garatujado a l�pis numa folha
de bloco notas. Mas, quando a J�lia me telefonou ainda uma terceira vez, j� depois do enterro, continuando a dizer que achava aquilo tudo muito estranho e a policia espanhola tamb�m, pois tinha mandado um inspector falar com ela a Lisboa, resolvi mandar fazer a revela��o. Deio primeiro nome que me ocorreu, Anabela Pimenta, ou Alzira Rodrigues, ou coisa assim.
Em todo o rolo, havia apenas tr�s fotografias aproveit�veis. Mostravam quatro homens � mesa de um restaurante ou de um bar, dois brancos e dois pretos, perto de uma abertura iluminada. Um dos brancos era o Andr�. Tinham sido tiradas do lado de fora de uma porta ou janela envidra�adas, pois havia alguns reflexos para aqu�m das pessoas que ali se viam.
Parecia ser um espa�o muito t�pico ou tradicional, com fotografias de toureiros e cartazes de touradas nas paredes, toalhas de cor viva e um letreiro que anunciava sangrias e orchatas. Um dos pretos, de chap�u na cabe�a ca�do para a nuca, parecia bastante mais alto do que Os outros. Nenhum deles estava a comer, ainda n�o teriam come�ado ou j� teriam acabado, mas havia copos altos e cheios de vinho na frente deles. O Andr� estava, como de costume, em mangas de camisa e fumava um charuto.
Eu n�o conhecia nenhum dos outros. Pensei que podia dar aquilo �j�lia, para ela mandar �s autoridades espanholas. Mas depois decidi n�o o fazer. Aquilo ainda podia trazer-me complica��es e aborrecimentos, quem sabe mesmo se perigos pessoais. O Andr� era pessoa para n�o desistir de mos causar, mesmo depois de morto e enterrado. E eu achava que tinha mais que fazer do que sujeitar-me a isso.
S� percebi que havia ainda um outro lado mais discreto da mensagem dois ou tr�s meses depois, por mero acaso. Li no jornal que a policia belga tinha abatido num tiroteio em Antu�rpia um argelino oupied-noir; ao que parece conhecido traficante de diamantes e de armas, de seu nome R�my Fasimi, portador de um passaporte portugu�s falso sob o nome de Alvaro qualquer coisa.
A hist�ria vinha no Di�rio de Not�cias, porque ajudici�ria, ap�s uma interpela��o ao Governo no Parlamento, tinha dissipado a suspeita de que houvesse uma rede de falsifica��o de passaportes portugueses a operar ligada ao tr�fico. Tudo o que se sabia era que o passaporte parecia ter sido forjado algures na Ucr�nia.
Foi quando me ocorreu de repente verificar o rascunho de m�sica que vinha a envolver o rolo. Quando improvisava algum tema que lhe agradasse, o Andr� costumava anot�-lo assim. E eu tinha acertado em cheio. As notas repetiam-se em tr�s grupos e a alturas diferentes. Mas, de cada vez, eram r�-mi-f�-si-mi. No verso, havia ainda um r�, um sol e um d�. N�o percebi, at� me lembrar de que o Andr� tinha come�ado a aprender a tocar piano em Fran�a em mi�do, quando o pai l� estava colocado na embaixada. A chave daria, se eu tivesse raz�o, "Re-sol-ut". Mas "resolur" de qu�?
Fiquei preocupada. O recado do Andr� quereria dizer-me que procurasse o homem na cadeia? Que o atendesse se ele viesse procurar-me? Ou antes que lhe fugisse e evitasse encontrar-me com ele? Ou ainda que o vingasse e comunicasse o nome dele � policia que poderia seguir essa pista e completar as indaga��es? Haveria algum papel em que o meu nome e o meu endere�o figurassem, anotados para qualquer desses efeitos? E afinal que certezas podia eu ter de que aquela mensagem era realmente para mim? N�o teria sido uma folha do bloco arrancada ao acaso, para proteger o rolo, esse sim, certamente enviado para que eu o recebesse?
E depois, se o Andr� aparecia numa fotografia tirada do exterior de um restaurante, algu�m que n�o ele a devia ter tirado. Provavelmente em Barcelona, de onde eu tinha recebido aquele material. Mas quem? Um s�cio? Um c�mplice? Um inimigo? Como s� ele me podia ter mandado o rolo, devia ser algu�m que trabalhasse com ele. Ou ent�o algum criado a quem ele tivesse dado uma boa gorgeta para fazer as fotografias quando os outros estivessem distra�dos. Mas, se eu estivesse enganada, as coisas podiam n�o ficar por ali no que me dizia respeito.
Nada me obrigava ou impelia a um papel de testamenteira-detective. Aj�lia de certeza que n�o me agradeceria. E eu n�o sentia nenhuma esp�cie de ternura ou gratid�o pelo Andr�. O que tinha sido bom na nossa vida, fora-o para ambos. O resto, eu considerava-o saldado e catalogado � touljamais numa esp�cie de arquivo �ntimo a que n�o costumava abrir as portas. E j� n�o se podia falar de sentimentos vivos entre n�s, havia muito, desde antes do nosso div�rcio, desde muito antes do meu caso com o Mateus.
Mas, pelo sim, pelo n�o, guardei o papel no meu arm�rio na Faculdade, juntamente com umas transcri��es de m�sicas africanas que acompanhavam a tese de mestrado de uma das minhas alunas. E creio que passei umas semanas cheia de medo. N�o sabia o que podia acontecer. Os negativos, misturei-os com os outros, que a minha cunhada me tinha mandado. Depois sosseguei. E tratei de esquecer tudo aquilo rapidamente, quando tive a certeza de que j� n�o viria nenhum sinal de ningu�m. O enigma ficou enterrado tal como o meu ex-marido. Ashes to ashes.
N�o disse nada a ningu�m, nem mesmo ao Mateus. Nessa altura j� faz�amos curtas viagens, pass�vamos por vezes um fim-de-semana, ou �amos, por dois ou tr�s dias, ao estrangeiro. Numa quarta-feira, viemos juntos pela primeira vez ao Alentejo. Nesse dia, um amigo dele tinha publicado um artigo sobre esta paisagem. Lemo-lo juntos, num caf� pr�-hist�rico da vila, aferindo-o pelas nossas impress�es, trocando olhares c�mplices, aflorando as m�os. Lembro-me de que s� levant�mos a cabe�a do jornal quando passou uma velha charrete com v�rias crian�as, uma matrona empertigada e um velho cocheiro de barbas brancas, a atravessar o largo.
Cortei a p�gina do jornal e nunca mais me esqueci desse momento.
Quando se atravessa o Alentejo de autom�vel, a paisagem tem uma qualidade quase musical, nas suas linhas que v�o ondulando como curvas mel�dicas distendidas, sucedendo-se, sobrepondo-se e desdobrando-se ao sabor da velocidade.
Se calha o ar estar transparente e luminoso, como em certos dias de Primavera, e ainda com a intermit�ncia de umas chuvadas, as cores v�m acentuar essa impress�o, com os verdes a variarem do cinzento grave das oliveiras ao esmeralda reluzente dos campos, o violeta incrivelmente intenso de certas manchas rasas em forte contraponto com o amarelo-vivo de outras, as escuras extens�es h�midas da terra j� lavrada, os declives pouco acentuados que se espraiam em tons de camur�a fina, as primeiras papoilas a bordarem as bermas da estrada.
Estas harmonias s�o de uma grande versatilidade:
ora se avista um chaparro altivamente isolado a recortar-se contra um horizonte sem fim, ora um conjunto desgarrado de �rvores que parecem ter para ali crescido ao deus-dar�, ora, num e noutro cabe�o, se reconhece a marca da m�o humana na disciplina geom�trica dos olivais, em fieiras paralelas que real�am a curvatura dos outeiros, com grandes semibreves esf�ricas sucedendo-se numa pauta abaulada.
Entra-se nas povoa��es como na intimidade de algu�m: naqueles lugares de paredes caiadas e m�rmores delidos, entre a mod�stia e a impon�ncia, a soleira gasta e a pedra de armas de lavor semiapagado, o recato despretensioso das habita��es humildes e a tra�a nobre de pal�cios e templos, h� uma escala humana, uma digna hospitalidade � nossa medida, por vezes um despovoamento, branco e silencioso como num espa�o on�rico, onde a sombra acentua fortemente empenas e �ngulos, arcarias e colunas e, entre muros, acontece elevar-se o negrume esguio de um par de ciprestes.
Parece que j� ali ter�amos estado noutra exist�ncia ou noutra fase porventura rasurada da nossa vida, t�o intensamente os "reconhecemos" nessa sensa��o de lavar a alma. Pareceu-nos que j� ali t�nhamos estado os dois. E ent�o v�amo-nos todos os dias. At� que ele foi ao m�dico.
E agora para aqui estou, a lembrar frases impressionistas de um bocado de jornal que falava destes lugares, j� passaram uns anos mas parece que foi ontem, dividida que me encontro entre a lembran�a indiferente de um homem que j� morreu e o desejo desvairado que tenho de um homem que vai morrer. Entre a dimens�o do que recusei porque quis, mas corresponde a uma parte da minha vida, e a dimens�o do que sei que n�o vou ter porque tamb�m recuso, mas n�o queria faz�-lo porque seria, mais do que tudo, a minha vida.
N�o me serve de nada este filme vertiginoso do que li, do que investiguei, do que encontrei, do que aventei. Agora s� tenho uma enorme vontade de gritar ao Mateus
que n�o foi nada disso, de lhe pedir perd�o por lhe ter contado uma r�pida hist�ria para arrumar as coisas, de n�o lhe ter dito que estava a tratar da minha mudan�a, de lhe ter ocultado que tinha comprado esta casa, onde s� posso torcer as m�os de desespero.
Meu Deus, ele agora vai mudar de registo. Vai interpretar mal tudo o que eu lhe disse. Vai pensar sei l�o qu�.
18. Eug�nia
O drama deles � absurdo. Querem e n�o querem. Resolvem que n�o e ficam para ali na esperan�a de uma luz ao fundo do t�nel, cada um na expectativa do outro e supondo que o outro n�o consegue aguentar. O Mateus n�o quer porque est� condenado, mas tamb�m est� mortinho por que alguma coisa seja poss�vel entre eles. Ela n�o quer, porque exige uma perfei��o sem falhas em todas as circunst�ncias da vida, mas est� madura para voltar a cair-lhe nos bra�os. E um n�o, mas... E entretanto s� perdem tempo e se torturam. Sonham-se mais que perfeitos e n�o percebem que as coisas n�o podem ser assim. A Constan�a engendra uma sa�da para espairecer, mas p�e-se a andar para o Alentejo, e o Mateus, sem not�cias dela, vai p�r-se a imaginar coisas e mais coisas. Vai ter a crise de ci�mes da vida dele. Est� na cara. Com ci�mes, ele s� pode cair no kltsch. Mas o pior � que ela vai tom�-lo a s�rio.
Entretanto isolam-se do mundo e a solid�o devora-os. A �nica coisa que t�m de seu � o passado, o de cada
um e o escasso tempo que foi comum a ambos. Passam o tempo a esquadrinhar esse passado, � procura n�o sei de qu�. � tamb�m isso que os condena a penar e lhes d� um registo que tem o seu qu� de choramingas. A m�e acharia isso insuport�vel e impr�prio. Se a Constan�a se divorciou do Andr� e se o Andr�, ainda por cima, j� morreu, porque � que a Constan�a se h�-de lembrar dele? Se o Mateus e a Constan�a resolveram p�r um ponto final no seu caso, porque � que o Mateus passa o tempo agarrado a uma esperan�a que ele mesmo arredou? O que � que os fez terem ido cada um para seu lado? Nem eu conseguiria explicar estas coisas � m�e. S� Pascal do <de coeur a des raisons...", mas at� o Pascal Concluiria que eles s�o parvos. Usam a liberdade que t�m para se recusarem e deixarem de viver a sua vida.
Eu nunca tive ci�mes. Detestei a cena do Fritz Com aquela gaja em Capri, mas isso era uma quest�o de bom-gosto. De nepas �tre dupe. O Fritz disfar�ou, n�o foi frontal, mal esperou que eu sa�sse de manh� para as compras do dia para lhe deixar um bilhete em cima da mesa do telefone a dizer que "da signora", isto �, eu, estaria ausente "alie tre", porque tinha de apanhar o ferryboat para ir a N�poles. Nunca lhe passou pela cabe�a que eu me ia esquecer de levar dinheiro comigo e voltar a casa meia hora depois, de modo a encontrar o bilhete. Reagir como eu reagi n�o s�o ci�mes. � uma quest�o de pontos nos ii, de dar o seu a seu dono, de p�r as criadas no seu lugar. Se eu lhe contasse, a m�e teria achado que fiz muito bem. Quem n�o se sente n�o � filho de boa gente e n�o se pode tolerar que as criadas abusem. Bolas!
Estou mesmo a ver a cara dele, quando, � hora do jantar, depois de ter esperado muito tempo por mim, se dirigiu ao restaurante e o mi�do da portaria lhe entregou a minha carta. At� os m�sculos lhe h�o-de ter afrouxado. H�-de ter cumprimentado os outros casais com um sorriso amarelo, a dar tratos � imagina��o para explicar porque � que eu n�o vinha, porque � que Madame Kantic n�o se encontrava ali com ele. Mas, como n�o � burro, h�-de ter aproveitado bem os dias seguintes com a pequena, enquanto procurava dar comigo em qualquer parte. Nada como tomar estas atitudes e passar a ter o telefone desligado. Foi o que eu fiz. Poderia dizer-se que foram ci�mes? � evidente que n�o. De resto, n�o h� crise de ci�mes que um bom copo n�o dilua at� ficar tudo a flutuar indistintamente. Mas de certeza que a Constan�a e o Mateus n�o bebem. S� se bebem um ao outro interiormente, numa exaspera��o que parte do enlevo, num enlevo que n�o leva a parte nenhuma e que os torna incomunic�veis.
S� lhes resta... suporem-se. A Constan�a sup�e o que ele pensa ou faz. O Mateus sup�e o que ela faz ou pensa. E agem em fun��o disso. De suposi��es tomadas como factos e quiasmos sucessivos a fazerem as vezes da vida. De factos que os afligem at� ao limite. De limites que est�o prontos a ultrapassar desde que encontrem o m�nimo pretexto. E n�o v�o conseguir sair daqui, neste jogo da cabra-cega em que andam aos apalp�es no escuro e se dizem coisas muito exaltadas, ou melhor, cada um diz coisas muito exaltadas ao outro, que n�o as ouve, mas est� a sup�-las.
Isto � completamente diferente daquilo que costuma passar-se nos meus livros. E mesmo nos livros do Mateus nunca tinha acontecido, apesar das grandes tiradas de austero intimismo cheio de insinua��es sobre a experi�ncia da vida e os equ�vocos da exist�ncia. Mas nos meus � que n�o acontece de certeza. Nos meus, as rela��es entre as personagens s�o directas, os di�logos francos, os desejos expressos at� ao fim, os azares, as fatalidades, os desastres t�m uma causa que se percebe e uma consequ�ncia que se torna evidente.
No fim de contas, tanto a Constan�a como o Mateus se desestabilizam sozinhos, cada um por sua conta. Se a Constan�a fosse como eu j� tinha desestabilizado o Mateus, ganho a partida e come�ado a viver com ele, muito feliz apesar dos problemas.
Eu desestabilizei sempre que pude. At� pelo recurso aos "golpes baixos". Quando conheci o Fritz num jantar e me apeteceu ir para a cama com ele, pass�mos uma noite a empernar num restaurante e depois, � sa� da, comecei por atrasar o passo, quando ia � frente dele, a caminho do vesti�rio. Quando calculei que est�vamos quase encostados, cruzei as m�os por detr�s das costas e agarrei-lhe demoradamente o sexo por cima da braguilha. Isto � um golpe baixo em qualquer parte do mundo, no boxe ou fora do ringue.
O Fritz devia estar j� bastante excitado, dos antecedentes e tamb�m de me mirar pelas costas, porque encontrei um volume apreci�vel naquela zona da sua anatomia. Come�ou logo a engatilhar umas frases meigas que lhe traduziam a erec��o, sobre o que pod�amos ir fazer. Mas, quando pensou que me tnnha no papo, eu dei as chaves do carro ao groom, parei a dizer qualquer coisa ao porteiro e, logo que o carro chegou, pus-me a andar, sorrindo ao Fritz com um cordial "- Ent�o at� qualquer dia". O Fritz ficou � rasca, deve ter perdido a ponta toda naquele momento, e n�o atinou com mais nenhuma sugest�o. A verdade � que eu tinha o Jean-Louis � minha espera e n�o me dava jeito deix�-lo pendurado. Era a altura em que eu dormia com um dos meus editores e as coisas ainda n�o estavam completamente clarificadas quanto � separa��o das �guas: os livros para este lado e os prazeres para aquele.
Dias depois, o Fritz convidou-me outra vez para jantar, disse-lhe que sim e inventei um pretexto de �ltima hora para me baldar ao convite. And�mos assim umas semanas, comigo a comandar o jogo do esconde-es conde. Entretanto signifiquei ao editor que s� podia contar com os meus livros. Por essa altura, o Fritz estava j� desvairado. E, quando dormi com ele pela primeira vez, num hotel em South Kensigton, chupei-o de tal maneira que ele n�o conseguiu fazer mais nada e ficou com o ego muito desvalorizado. Devia ser a s�ndroma da primeira noite comigo, porque depois nunca mais consegui arras�-lo dessa maneira, nem com �lcool, nem com outros exerc�cios. Mas entretanto eu tinha conseguido p�-lo domesticado como um c�ozinho pela trela e foi assim at� � cena de Capri e passei uma temporada de papo cheio, verdadeiramente gratificante e exaustiva. Isso j� ningu�m me tira, s� aquela cabra � que mo interrompeu, quando se p�s a cirandar � roda dele, e a p�r tudo � vista, como um descapot�vel de tejadilho arrega�ado.
A Constan�a nunca seria capaz de fazer nada disto. Bastava-lhe um afago na m�o e uma mirada mais a fundo do Mateus para ficar logo toda a tremer, de olho h�mido e brilhante, comovida e atrapalhada, quando o que devia era jogar friamente os seus trunfos para ganhar. Onde eu tinha fome de homem ela s� sabia ter fome de amor. Onde eu me encharcava de vodka e champagne, ela s� bebia copos de �gua. � assim em Portugal, aquilo continua a ser um marasmo de mediocridade apesar de os meus livros l� tamb�m venderem bem.
Ela, assim, posta em sossego, e ele assim, numa de ci�mes violentos, tinha de dar um resultado desastroso, porque ela n�o lhe saberia controlar nem dosear o acesso. Nem queria. N�o percebia mesmo que ele ca�sse nesse extremo. E tamb�m nunca me pediu ajuda ou conselho. Nunca se abriu comigo. Nunca veio visitar-me. Nunca me telefonou. Seguia o seu pr�prio caminho de born Looser; � sua maneira desajeitada e perfeccionista, toda �nsias interiores, toda amor-pr�prio, toda exig�ncias para consigo mesma. O Mateus ia-lhe falando da mulher amada como quem p�e luto na vida, como o Pessoa dizia do Cam�es, e ela babava-se toda de como��o. Como � que depois ele havia de acreditar que a Constan�a ia para um fim-de-semana inocente, apesar de no grupo de amigos que a tinha convidado haver um colega da faculdade que se fazia a ela, o que tamb�m era sabido de toda a gente? Ainda por cima era mentira, ela n�o tinha ido para fim-de-semana nenhum, tinha partido sozinha com o c�o para aquele deserto do Alentejo, enfiar-se naquele monte meio em ru�nas, longe de tudo e de todos, muito convencida de que conseguiria trabalhar e n�o pensar mais nele e de que a solid�o cura todas as feridas. V�-se.
19. Mateus
Tentei situar no tempo e no espa�o quando � que tudo tinha come�ado entre n�s. Acho que foi naquele jantar da embaixada, mas tamb�m posso supor que foi muito antes.
Acho que foi naquele jantar mais ou menos �ntimo da embaixada, dado em honra de um encenador c�lebre, que tinha uma mulher muito atiradi�a que se chegava aos homens e parecia trepar por eles acima enquanto conversava, naquele jantar em que voc� trazia um vestido cinzento e vermelho-escuro que dava um ar fr�gil e quase colegial ao seu corpo e aos seus olhos assustados.
Mas eu sabia, por mero acaso, que aquela hist�ria de um jantar em honra do encenador e da mulher, que aquela cena social e elegante, tudo aquilo, era pretexto para uma conversa��o politica de alto n�vel que se passava numa das salas ao lado.
Sabia, mas n�o estava minimamente interessado. Para mim j� tinha passado havia muito o tempo das intrigas e das conspira��es, das manobras e dos entendimentos, das jogadas e das contrajogadas.
Os protagonistas desse encontro, a come�ar pelo embaixador e pelos seus tr�s ou quatro convidados especiais, tinham-se eclipsado discretamente para a zona da biblioteca, a pretexto de saborearem um conhaque velh�ssimo em paz e sossego.
Surpreendi o olhar de entendimento do n�mero dois da embaixada e da mulher. A partir daquele momento, o andamento da noite passava a ser com eles que tratariam de substituir os anfitri�es durante tr�s quartos de hora.
As pessoas n�o se deram conta de nada. A m�sica ajudava a disfar�ar a situa��o e eu era dos poucos a conhec�-la. Vi passar um dos criados com uma bandeja de copos e garrafas, indo naquela direc��o.
Quando comecei a atravessar por entre os grupos para ir outra vez ao seu encontro, voc� falava com n�o sei quem, enquanto o seu marido lhe voltava as costas, e de repente os nossos olhares encontraram-se e n�o pararam de se procurar desde essa altura.
Depois, o seu marido foi sentar-se ao piano de cauda, a fazer improvisos de jazz enquanto os outros convidados dan�avam, e eu fui busc�-la do outro lado do Steinway, l� onde voc� quase se escondia, atr�s de uma jarra cheia de rosas vermelhas, e primeiro quase tive de arrast�-la para que voc� dan�asse comigo ao ritmo do blues que ele estava a tocar com um certo preciosismo muito estilizado.
J� tinha bebido muito e as pessoas entreolhavam-se, mas a verdade � que ele tocava muito bem. Tinha desapertado o la�o do smoking e pousado o charuto na borda do piano. Um dos criados precipitou-se com um cinzeiro. Algu�m tinha acendido as velas nos candelabros.
Os reposteiros, espessos e meio corridos, davam uma escura nota de caveau ao sal�o, um toque de decad�ncia, n�o sei se logo acentuada, se logo dissipada pela profus�o das velas a multiplicarem-se nos espelhos de �guas envelhecidas e nos dourados das molduras.
Ele volta e meia estendia a m�o e pegava no charuto, para tirar umas puxadas sem deixar de tocar. Ou ent�o ficava com ele entalado nos bei�os, o fumo a correr-lhe para os olhos e a face contra�da, a crispar-se num rictus estranho, mas era como se n�o se sentisse incomodado, a marcar o compasso com acenos da cabe�a e a trautear em surdina a melodia que lhe sa�a dos dedos. Ou ent�o bebia um trago de whisk, enquanto a m�o esquerda mantinha os acordes do acompanhamento. Ou ent�o, dando aos ombros, punha-se a cantarolar o tema, muito sincopadamente, quase como se falasse ao ento�-lo.
A certa altura, voc� pareceu-me encolher os ombros e ter desistido de alguma renit�ncia nos seus passos para se entregar � dan�a. S� mais tarde percebi que voc� era casada com ele. Voc� diz que naquela noite mo deu a entender logo que veio dan�ar, mas n�o me lembro disso.
Lembrava-me, sim, do seu marido muitos anos antes, quando era j� mais do que uma jovem promessa brilhante no mundo da fotografia, na Quinta da Piedade, em Sintra, quando a Marquesa de Cadaval, com o seu ar patr�cio e o seu perfil adunco de �guia imperial descida � terra, tinha convidado alguns amigos para estarem com a Jacqueline Dupr� ou com outra violoncelista conhecida, sei l�, j� n�o tenho a certeza, algu�m de quem se contavam estranhos comportamentos e fulgurantes genialidades.
S� me lembro de que eram sonatas de Beethoven. O seu marido andava ent�o a fotografar celebridades europeias e tinha ido l� para esse efeito. Queria retratar a violoncelista e foi convidado a ficar para a ceia. Mais tarde, n�o resistiu, pediu � Olga para experimentar o piano e p�s-se a tocar blues. Uma cantora americana que tamb�m l� estava foi para junto dele. �s tantas, o seu marido levantou-se e deu o lugar a uma dama pesadona que se atirou a umas varia��es arrastadas sobre toadas folcl�ricas do seu pa�s. As pessoas riam, faziam coro e batiam palmas a compasso.
Naquela noite da embaixada, o seu marido desapareceu da sala e n�o voltou. Provavelmente estava t�o b�bado que se esqueceu de que tinha ido consigo. A partir de certa altura, notei a sua preocupa��o. E, j� muito tarde, era evidente que ele tinha partido.
Antes que os outros se apercebessem da situa��o, propus dar-lhe boleia, de t�xi, porque o meu carro estava na revis�o, mas �amos para o mesmo lado. Voc� ficou embara�ada, mas acabou por dizer que sim, depois de encolher os ombros a simular descontrac��o. Tivemos �s tantas de recusar uma oferta de transporte de um casal que ia a sair. Pretext�mos que ainda �amos beber um copo, com ar descontraid�ssimo e sorridente.
E foi no t�xi, a caminho de Cascais, sim, devia ser a� por alturas da Cruz Quebrada, que as nossas m�os se tocaram muito de leve e se deixaram ficar.
A noite era bem diferente desta. O carro ia devagar, era muito tarde, o ar estava transparente, a enseada pon tilhada de luzes, o mar com uma chapada de luar. Apertei a sua m�o com mais for�a e propus que f�ssemos beber mesmo um copo. Voc� n�o aceitou.
Come�ou ent�o a sua s�rie de recusas. Mas manteve a sua m�o na minha, como depois tantas vezes havia de deix�-la e isso ia bastando �s nossas emo��es, enquanto os nossos dedos se percorriam devagar e n�s nos sent�amos muito comovidos.
Havia um lado quase adolescente naquilo e uma ternura a desoras, mas sem tempo, sem limites, sem palavras. Acho que tudo come�ou ali. Na verdade, n�o sei se nos sal�es do pal�cio, ou na descida dos jardins, por entre os buxos recortados a verde-negro e os jactos de �gua entrecortados de luzes, ou nos passos que demos no saibro at� ao port�o, ou, depois, no banco de tr�s do taxi.
Agora, mais depressa, tudo corre � velocidade a que vou, paralelo � desloca��o do meu corpo e dentro de mim, tudo me rodeia e se mistura e tudo � n�tido como se estivesse a acontecer num sonho programado. S� se me complica a interpreta��o. Quando? em que lugar? em que circunst�ncias? Ter� sido nessa ocasi�o, como agora me parece?
Ou ent�o foi daquela vez em que voc� me disse umas palavras am�veis, umas semanas antes da cena da embaixada, no anfiteatro da Faculdade, quando nos conhecemos e eu percebi, no fim de uma aula, que voc� se interessava por um dos seus alunos e de repente tinha ficado intrigada com uma frase que eu dissera sobre o amor e a morte e notei uma intensidade diferente, uma especial liquidez no brilho dos seus olhos, enquanto a sua cabe�a se imobilizava de aten��o, como se quisesse compreender e reter o sentido �ltimo de cada s�laba.
N�o percebi por que se dedicava � Ci�ncia e � Cultura no s�culo Xviii. Mas percebi que t�nhamos ficado ligados, estranhamente ligados, de uma maneira n�o l�gica, intuitiva, que tinha a ver com os interesses que sentia nascer em mim, como se a conhecesse h� muito tempo, convivesse consigo h� muito tempo, mas s� naquele momento tudo isso estivesse a fazer sentido. Um sentido. Um s� sentido.
Creio que experimentei ent�o fazer uma s�rie de alus�es que s� voc� podia compreender, transpondo para os exemplos e as cita��es alguns aspectos que podiam ser relacionados com o facto de duas pessoas se encontrarem em circunst�ncias especiais para elas.
Porque � que veio ouvir essa li��o, se ela n�o fazia parte do seu curso?
Porque � que prestou uma aten��o t�o cerrada ao que eu estava a dizer?
Porque � que, no fim, me procurou para fazer Uma conversa que eu tomei como uma necessidade de reencontro, um sinal de liberdade, at� involunt�ria talvez, para a minha navega��o?
Porque � que combin�mos tomar ch� e falar de livros, o que n�o cheg�mos a fazer nessa altura, e desde ent�o, desde a noite da embaixada nunca mais conseguimos ter sossego?
Porque � que nos fomos, a pouco e pouco, envenenando da luz interior que s� um ao outro pod�amos dar?
E, ao mesmo tempo, voc� n�o queria ser vista comigo. Temia maledic�ncias e intrigas. Sentia que isso podia prejudicar a sua carreira na Faculdade, talvez mesmo o seu doutoramento. E disse-me que n�o aceitava escapadelas.
Fiz-lhe ver que voc� n�o me deixava, n�o nos deixava, Outras possibilidades. N�o queria que eu definisse a minha vida noutro sentido. N�o queria que f�ssemos vistos. N�o queria que se soubesse. N�o queria deixar o seu marido.
Lentamente, o processo de argumenta��o contra tudo isso foi-se desenvolvendo. Argumenta��o minha, combate seu, em que voc�, parecendo ceder �s minhas raz�es, era aos seus sentimentos que cedia.
Foram semanas e meses de desgaste que aguent�mos porque foram semanas e meses de paix�o. Quando nos encontr�vamos, viamos que tudo tinha batido certo, que t�nhamos pensado um no outro constantemente, que t�nhamos feito as mesmas coisas �s mesmas horas, que nos t�nhamos lembrado disto ou daquilo exactamente ao mesmo tempo, que t�nhamos feito ou abandonado projectos como se tiv�ssemos falado um com o outro.
E foi nessa altura que tive de internar a minha filha para uma desintoxica��o. Nessa outra ang�stia, interrogava-me sobre as minhas culpas quanto a ela, sobre o que podia ter havido de descaso da minha parte que levasse uma rapariga aparentemente feliz e despreocupada, a quem nunca nada havia faltado, julgava eu estar no direito de supor, a cair na droga e a andar a arrastar-se pelas discotecas, a correr para as casas de banho com o namorado que a tinha mobilizado para aquela vida, para se injectarem ambos, para constru�rem o seu mundo pr�prio e altamente murado com parceiros da droga, uma rapariga a desaparecer cada vez por mais tempo para reaparecer, andrajosa e esqu�lida, desinteressada de tudo e de nervos em franja, capaz de tudo para obter a dose necess�ria, de suplicar e de roubar, de fazer chantagem e de se prostituir.
Lembro-me da viagem que, ela e eu, fizemos at� � clinica, do seu mutismo obstinado, das minhas frases que pretendiam ser de ternura e persuas�o, e se calhar mais n�o eram do que severidade in�til, embrulhada em ret�rica desajustada, di�logo entre surdos de duas gera��es, lembro-me do seu olhar apaticamente gelado na carinha sumida e p�lida, quando nos despedimos.
A minha mulher tinha-se recusado a acompanhar-nos, remetendo-se a um sentimento que era quase de �dio implac�vel e sem perd�o em rela��o � filha e em rela��o a mim. Ou talvez de despeito por ter, ela tamb�m, falhado como m�e e n�o querer admiti-lo.
O pessoal da clinica era af�vel e sorridente, como se aquilo n�o passasse de uma casa de habita��o confort�vel, mas eu sa� dali sem nenhuma esperan�a, s� a pensar o que � que eu tinha feito para lhe acontecer aquilo, para a minha filha ter ca�do naquela vida sem alternativas, onde � que come�ava a minha responsabilidade, onde � que tinha estado o meu alheamento dos problemas dela, ou a minha aus�ncia, ou a minha intoler�ncia, ou a minha estupidez, ou a minha permissividade.
E n�o conseguia acusar-me de nada, o que ainda mais me desesperava, porque, ao fim e ao cabo, se alguma culpa houvesse da parte de algu�m, ela teria de ser minha e s� minha, pois era a mim que aquilo acontecia, era sobre mim que o mundo desabava daquela maneira, soterrando-me. S� muito depois � que percebi que a soterrada era ela.
Era isso que eu tinha acabado por ler no seu olhar, no trejeito de quase desprezo ou, pelo menos, de indiferen�a com que pusera o pequeno saco da bagagem a tiracolo, pegara no leitor port�til de cd's, e atravessara o hall encaminhando-se para as escadas, ap�s feita a inscri��o de entrada. E da porta da clinica a fechar-se nas minhas costas e de eu pr�prio a sentir-me ir abaixo e a achar que se passava alguma coisa comigo, que n�o estava muito bem e que tinha de ir ao m�dico por minha vez, e a lembrar-me,numa sobreposi��o de tempos, de quando eu andava com ela ao colo e de quando brincava com ela, muito pequenina, e de quando tinha come�ado a andar e a falar, e de quando eu inventava hist�rias para a entreter ou a fazer rir, e dos brinquedos que lhe tinha comprado, das primeiras viagens em que a tinha levado comigo, e de quanto tinha sonhado para ela, quando fosse grande e pudesse atravessar o mundo sem perigos, formosa e bem segura, inteligente e senhora de si, pronta para amar e ser amada, bonita e generosa.
Agora era a minha filha transformada num pobre farrapo humano, com intermit�ncias brutais de alheamento de tudo e um duro olhar que me acusava friamente de todos os males que lhe tinham acontecido e que eu, pai incapaz e desesperado, tinha deixado para ali desajeitadamente abandonada, sem ter conseguido transmitir-lhe um vislumbre de ternura e compaix�o, entregue a si mesma e �s suas agonias, a pretexto de que a iam desintoxicar e sabendo que s� ia ter dores horr�veis por muito tempo, dores horr�veis no corpo todo e
na alma toda e pelo tempo todo, e que nenhum resultado s�rio ia ser alcan�ado e que acabaria, ou por reincidir ou por morrer.
Foi por essa altura que n�s, meu amor, voc� e eu, come��mos a perceber o que nos acontecia e tamb�m podia destru�r-nos.
Foi pouco depois que a minha mulher se foi embora, talvez menos por suspeitar do nosso caso e mais por lhe ser insuport�vel o caso da nossa filha.
Tamb�m foi por essa altura que voc� come�ou a falar em se separar, dizendo-me depois, tantas vezes, que uma situa��o dessas estava j� definida havia muito e que eu nada tinha a ver com a gota de �gua que lhe fez transbordar o copo.
Mas punha a quest�o sem lhe encontrar sa�da e sem achar que pudesse resolv�-la, sentindo-se amarrada a um conjunto de princ�pios, de conven��es, sei l�, de mem�rias de um afecto morto, talvez at� de qualquer coisa parecida com um grande amor extinto.
S� ent�o me contou as cenas de bebedeira, as noitadas no jogo, as fal�ncias sucessivas por causa das d�vidas, a decad�ncia progressiva da carreira de pianista do seu marido. Voc� aludia a isso tudo serenamente, como se estivesse a ver-se projectada numa hist�ria alheia e falasse de si na terceira pessoa.
Contava casos terr�veis, viagens falhadas, neg�cios estapafurdios, credores e �lcool, sempre �lcool e mais �lcool, credores e mais credores, amea�as e mais amea�as, disfarces e penhoras, aldrabices e fugas em frente com a desgra�a a fazer bola de neve.
E acrescentava, ou eu supunha que acrescentava, pelo menos era assim que eu compreendia o que me dizia, que queria paz e sossego, tratar rapidamente do div�rcio, encontrar alguma tranquilidade de esp�rito, escapar �s cenas de viol�ncia, chantagem e neurose que ele continuava a fazer-lhe.
Falava das vezes em que se tinha visto sozinha, ou tinha tido de regressar sozinha, envergonhadamente, a sua casa. Das suas escapadas para a praia ou para a montanha, para reencontrar algum equil�brio. Das suas horas de desespero e agonia.
E dava-me a entender que n�o haveria nada entre n�s por enquanto, que n�o t�nhamos nenhum envolvimento, e at� que os nossos caminhos tinham for�osamente de descruzar-se, pois s� se sentia livre para preservar a sua independ�ncia e n�o podia aceitar sequer a ideia de que pudesse ter tomado decis�es sob press�o, qualquer que ela fosse.
E, logo depois, dava-me a entender que n�o, que n�o se separava, que era aquela sua mania de se embalar com hist�rias contadas para si mesma, quando eu come�ava a entrar nelas e delas tinha de me fazer sair, porque a teia em que se sentia metida era mais forte do que voc�, que por vezes n�o conseguia compreend�-la bem e se emaranhava nela cada vez mais.
Recordo-me do seu telefonema desesperado, por, ao chegar a casa um dia, ter encontrado um inspector da policia � procura do seu marido. Da chamada que me fez, sim, porque ent�o fez-me uma chamada, por n�o perceber nada do que se estava a passar.
Trapalhadas que tinham a ver com mais uma traquib�rnia dele, uma sociedade na ilha de Jersey, daquelas que se podem constituir com uma libra de capital, para capta��o irregular de investimentos supostamente canaliz�veis para o imobili�rio em Portugal. Gente que ficou sem o seu rico dinheirinho, mas que estava em situa��o fiscalmente insustent�vel. Algu�m que deu com a lingua nos dentes, ou apresentou queixa, e p�s a Policia no encal�o do seu marido.
E atr�s vinham outros neg�cios, cheques sem cobertura, cavalarias altas e baixas, coisas s�rdidas que ficavam a descoberto e at� punham em risco a sua pr�pria seguran�a f�sica.
Consegui-lhe ent�o, embora em termos vagos, saber os contornos gen�ricos do que se estava a passar, gra�as a uns velhos conhecimentos dos tempos da Faculdade. Na verdade, nunca lhe cheguei a dizer que obtive muito mais informa��es, mas n�o quis o odioso de ser eu a dar-lhas.
Aquilo ultrapassava todas as raias do conceb�vel. Mas voc� n�o conseguia libertar-se. Eu pr�prio j� perdi, entretanto, as poucas certezas que tinha quanto aos factos que me descreveram.
Agora, s� aguardava o seu telefonema, entre a chuva e as bermas da estrada. Agora, eu era s� o homem confrontado com o cen�rio da sua pr�pria morte e voc� o piloto da barra que podia ainda ajud�-lo a contornar alguns escolhos antes do naufr�gio inevit�vel.
Talvez tenha sido assim, ou n�o, mas � indiferente, era assim que eu podia ler o que me dizia, era assim que eu podia viver entre o desespero e uma luz que volta e meia se me acendia ao fundo do t�nel.
E agora, se voc� me telefonasse, n�o ir�amos falar disso e ter�amos muitas coisas mais importantes para dizermos um ao outro, tanto mais que resolvi parar numa esta��o de servi�o, para meter gasolina e tomar um caf�, para tentar diminuir a ansiedade que me ia invadindo e que continuava a ser paradoxal, pois eu "tinha a certeza" de que voc� me iria telefonar e sabia que s� uma certeza assim � que podia aguentar-me naquela noite, naquela viagem, naquela tortura continuada, naquele momento em que sa� do carro levando o telefone comigo, n�o fosse voc� falar-me naquele preciso momento.
Volto a escutar, dentro de mim, o blues que dan��mos da primeira vez, arrastado e melanc�lico, de uma �ntima tristeza, surda e alcoolizada como a imagem do pianista a toc�-lo e a gemer-lhe a letra vagarosamente, a tentar imitar os trejeitos roucos de Satchmo. Era um blues e tamb�m era um misto hesitante de marcha f�nebre e de can��o de embalar, muito desalentada e muito triste, no limite entre a fala e o canto, no balancear compassado de uma desola��o sem sa�da, simulando a plang�ncia grave dos trombones e a melodia do trompete com breves mordentes no piano, e uma entrada oscilante, quase hesitante, da voz, a que, no fim de cada verso, uma surdiria respondia num eco tr�gico, e tudo era arrepiante.
Naquela altura n�o me ocorreu nada do que me vem hoje � cabe�a. Mas agora, lembro-me ao mesmo tempo de si e da minha filha, dos nossos passos naturalmente certos na m�sica, das nossas m�os presas uma na outra, do seu corpo encostado ao meu, das nossas caras aflorando-se, do cheiro do seu cabelo, e lembro-me tamb�m daquela menina de dezassete anos internada na clinica, mais adulta na escola dos horrores e mais velha do que eu na falta de esperan�a e de sentido para a vida.
Eu, ao menos, conhe�o o meu estado e mantenho uma lucidez total que sei ir� durar ainda uma s�rie de meses, uma lucidez de sinal semelhante ao que a minha mulher pretextou ao ir-se embora, t�o evidente que n�o tive argumentos para lhe opor nem lamentos para preencherem o lugar dela.
Parei o carro outra vez. Na loja da esta��o de servi�o, a m�quina do cart�o de cr�dito levou uma eternidade a reagir.
Enquanto esperava, deitei uma olhadela pelas capas dos jornais do dia anterior que ainda se alinhavam nas prateleiras. N�o registei uma �nica manchete.
Um casal muito agarrado beijocava-se atr�s de uma prateleira de bebidas, mas nem percebi que idade tinham.
S� pensava que o seu telefonema, agora, n�o ia tardar, e que eu precisava de ganhar tempo e de preparar raz�es para convenc�-la a vir ter comigo e ainda que, se n�o o conseguisse, pois sabia que n�o iria consegui-lo, o pior era isso mesmo!, precisaria sempre de ter pretextos para que a nossa conversa se tornasse mais uma vez intermin�vel, como quando fic�vamos os dois muito calados, sentados um ao p� do outro, sem necessidade de dizermos nada, muito, muito tempo assim, e sent�amos que era a nossa vida que estava em jogo.
Como levava o telefone no bolso, fui tomar mais um caf�. Estava cheio de fome, mas n�o me apetecia comer. O caf� sabia mal e pedi um sumo de laranja. Quando sa�, tinha recome�ado a chover.
Lembrei-me ent�o da sua firmeza, numa tarde em que voc� estava desesperada, sem not�cias do seu marido que deveria encontrar-se algures na Europa, numa capital qualquer, entre a m�sica, a jogatina, alguma sequ�ncia de noitadas com mulheres, a bebedeira total, talvez a pris�o, talvez um tiro.
N�o havia ci�me em si, mas s� inquieta��o, uma inquieta��o que quase a impedia de sentir que estava ao p� de mim, de me ver e � minha ansiedade e ao meu desvairado amor por si. Foi ent�o que voc� respirou fundo, me comunicou que tinha resolvido divorciar-se, que j� n�o aguentava mais, que estava farta dele, me falou das actividades em que ele estava metido, e tamb�m me disse tudo o que eu podia esperar de si. Acho que s� agora compreendo que nada posso esperar de si.
Agora sinto que tudo chegou ao fim e � por isso que este momento � grave. H� muitos anos, quando ainda era jornalista, encontrei-me v�rias vezes em situa��es de guerra em que se sentia, depois de horas ou dias em que nada tinha acontecido, que alguma coisa se ia precipitar. Vi oficiais e soldados, de repente, sem que nada o explicasse e sem quaisquer informa��es novas, recolherem-se por momentos em si mesmos, preparando-se para morrer, como se tivessem captado um aviso premonit�rio no simples ar que respiravam. Pareciam absurdos os seus gestos, ind�cios m�nimos ali�s do que lhes ia por dentro, mas acabavam por ter um sentido confirmado dali a pouco tempo, entre a lama ou a poeira, a chuva e o sol, as �rvores ou as dunas, pelas explos�es s�bitas vindas de todos os lados, entre a gritaria, as correrias, o crepitar das armas. Uma vez, vi um oficial �rabe, um homem culto e educado em Oxford com quem eu tinha falado v�rias vezes, ferido numa dessas situa��es, ser levado de maca todo ensanguentado. Enquanto me olhava fixamente na sua agonia, reuniu for�as para tirar o rel�gio de pulso e atirou-o para longe, para que o tempo n�o corresse. Seria, naquelas circunst�ncias, uma suspension of disbeli, como na literatura, ou uma suspension of believing, num momento de dor aguda, em que a lucidez e a energia vital quanto a tudo o que importa se reduzem � liga��o directa da alma �s tripas? Eu tive sempre sorte. Nem senti o tal pressentimento, nem fui atingido. Mas revivo agora em mim essa experi�ncia que testemunhei nos outros e que tentei descrever nalgumas p�ginas. E chegou a minha vez de me desfazer do rel�gio de pulso. Que o tempo v� para longe, para muito longe.
� natural que, depois de eu ter ficado tanto tempo a desesperar-me e a pensar sozinho, me tenha decepcionado e amargurado ainda mais. E depois de tr�s horas de viagem a remastigar a nossa vida, ainda � mais natural. E n�o queria mago�-la, meu querido amor da minha vida, mas tenho de dizer-lhe que vou come�ar hoje a despeg�-la de mim, a descol�-la da minha alma, a arranc�-la de tudo aquilo que tenho sido nos �ltimos meses, depois de ter aguardado, por muito tempo, ao p� do telefone, horas, horas e mais horas terr�veis, e em v�o, um sinal seu, de desespero, de paix�o, de ter mudado subitamente de ideias, sei l�, de querer vir-se embora.
Eu t�-la-ia ido buscar, ou teria ido ter consigo ao fim do mundo, n�o necessariamente com a veleidade de ficar junto de si, mas apenas para a mudar de lugar. Bastava que me tivesse feito esse sinal, por m�nimo, a qualquer hora do dia ou da noite. Ainda esta noite.
Mas como ele n�o veio e, tudo ponderado, creio bem que, se algum viesse, n�o teria tido esse sentido, antes teriam sido sentimentos de piedade ou semelhantes a motiv�-lo, acho que compreender� que eu n�o aceito esmolas nem bons sentimentos "em vez de". "Em vez de)> tenho as sonatas de Beethoven.
N�o � uma incompatibilidade entre os nossos mundos (a express�o tamb�m � sua e, desculpe, meu amor, � completamente tonta). � sim, uma incompatibilidade entre a minha personalidade e esse tipo de atitudes, como a que voc� tomou. N�o a de descansar ou fugir, mas a de ir para onde foi nas circunst�ncias concretas em que foi.
E assim a trato, pela �ltima vez, de meu querido amor da minha vida, sem desespero, sem viol�ncias passionais, sem a voz embargada, sem recrimina��es, sem press�es de qualquer esp�cie, exausto e sem quaisquer expectativas, mas com a total, desolada e solit�ria naturalidade de esse amor ter sido verdade, a verdade mais funda, mais abaladora, mais importante e mais decisiva da minha vida, e procurando faz�-lo tamb�m sem saudades lancinantes, o que me est� a custar os olhos da cara, n�o lho escondo.
Ali�s, digo "ter sido" s� para preparar o terreno, porque estas coisas levam muito, muito tempo, n�o s�o f�ceis nem r�pidas de descartar e implicam uma cirurgia muito dolorosa e aplicada fibra a fibra. S� quero rasur�-la da lembran�a, de todas as lembran�as do que poderia ter-me sido mais caro e mais essencial.
Dizer-lhe isto, faz parte desse processo, porque me permite organizar com clareza as minhas pr�prias ideias. Gostaria de ter evocado com muito mais emo��o, em vez do que lhe digo t�o calmamente, os poucos mas t�o fulgurantes momentos de sintonia e de felicidade totais que cheg�mos a ter, supondo de cada um que esse era o �ltimo, na quase agonia de acharmos que est�vamos a decidi-lo de vez... de cada vez! Seria muito mais agrad�vel e bem mais magoadamente terno e melanc�lico.
Mas n�o pode ser. Trata-se de me libertar e n�o de me amarrar ainda a um estado de esp�rito que j� n�o pode fazer sentido. Perdeu-se aquela dimens�o de deslumbramento rec�proco e de cumplicidade total que leva �s vezes um homem e uma mulher a estremecerem de permanente surpresa, a respirarem muito fundo e a acharem que a vida vale a pena ser vivida, haja o que houver e sejam quais forem os riscos que se correm.
Quanto a isso, que era o nosso radical privil�gio concedido pelo destino, que era absolutamente �nico e que � muito raro nas rela��es entre as pessoas, eu, que, por mim, me sentia � medida do entusiasmo arrebatado em que est�vamos, j� me tinha demitido de quase tudo, a seu pedido. De quase tudo, menos da mem�ria e das palavras, porque tinha passado a agarrar-me a um res�duo dos meus �xtases, disposto a viver comovidamente desse pobre resto j� que n�o podia ter mais. Ao menos era meu. Agora, por minha iniciativa, meu orgulho, meu amor-pr�prio, respeito que a mim devo, sei l�, pelo que voc� quiser, demito-me de tudo e procurarei construir o esquecimento mais absoluto de quanto se passou entre n�s.
Essa perspectiva deixa-me arrepiado, mas afinal era isso mesmo o que voc� queria, ou dizia que queria, e fica-lhe deste modo plena liberdade para construir o seu futuro, � velocidade que entender, com quem entender, e sem limita��es de que eu, mantendo-me numa postura diferente, pudesse ser a causa directa ou indirecta, volunt�ria ou involunt�ria, pr�xima ou remota.
� t�o pior que � melhor assim. Sei que dizer-lhe isto vai fazer-lhe mal. Mas, se eu tiver raz�o, voc� n�o se zangar�. E, se eu porventura n�o tiver raz�o, desde j� lhe pe�o perd�o humildemente e assumo o odioso dela para seu bem.
As coisas s�o o que s�o. Voc� resolveu p�r um ponto final no nosso caso. Eu resolvi deix�-la, interromper o meu projecto de vida consigo, n�o voltar a v�-la. Tamb�m tomei uma iniciativa sim�trica da sua, mas n�o me conformo com ela. Talvez que, ao impor essa regra a mim mesmo, eu a tenha acatado com a certeza mais �ntima de que voc� havia de quebrar o sil�ncio porque o sil�ncio � t�o insuport�vel para si como para mim. Pode ser que eu me tenha enganado. Que eu tenha afinal mais amor por si do que voc� por mim. Pode ser que eu esteja mais desesperado, mais confrontado com a morte e, por isso tamb�m, mais � beira do sil�ncio e no limite das palavras. O livro em que estou a trabalhar cruzaria a nossa intimidade nesse limite. Mas escreve-a a escrever-se no que me vai pensando a escrever-lhe. E tamb�m o seu livro, enquanto voc� nos escreve. E � o meu enquanto eu a escrevo. Deleaturliberviventium. Afinal que sabemos de n�s a n�o ser que este � o destino a que estamos amarrados e que um livro assim � um romance de amor?
Ainda no presente do indicativo, e desta vez sem quaisquer subtilezas quanto aos tempos verbais, mas antes como naquela triste e leda madrugada, beijo-a com toda a ternura mais triste do mundo
20. Constan�a
Tudo isto � insuport�vel, fico desnorteada, levanto-me
de estic�o, tenho as pernas dormentes, dou uns passos tr�pegos, atravesso a sala em direc��o � porta, corro l� para fora, mal diviso o vulto da carrinha, volto atr�s, acendo a luz exterior, aproximo-me da carrinha, n�o me lembrei de que a tinha fechado � chave, volto outra vez dentro de casa, procuro a bolsa, n�o sei onde est�, fa�o cair uma pilha de livros, encontro a bolsa, remexo-a, finalmente dou com as chaves, precipito-me para o p�tio, quase choco com uma das oliveiras, abro a station, escancaro o porta-luvas, saltam os documentos, enfim, tiro de l�o telefone.
21. Eug�nia
Querida Zita, p�rola das editoras,
Atrav�s do Vasco Gra�a Moura, que � um portador benevolente e que encontrei num restaurante em Bruxelas em v�speras de seguir para a� ~� n�o o via h� tanto tempo que nem sabia que ele agora estava no Parlamento Europeu...), aqui lhe envio o original do meu novo livro, o tal de que fal�mos v�rias vezes ao longo dos �ltimos meses e que eu lhe tinha prometido para a sua nova colec��o de narrativas breves. Foge muito ao g�nero dos que eu costumo escrever e foram traduzidos em v�rias l�nguas. N�o sei se este ter� o mesmo destino. Duvido. O VGM deu-lhe uma vista de olhos e tamb�m me disse isso. Acha-o muito portugu�s na forma como tudo fica sem sa�da, muito "filosofia da saudade", muito "bem passado / mal presente", muito "dor remastigada" � maneira dos autores fin-de-si�de, dos lamechas lusitanos e dos... cbickiets. Ele tamb�m diz que Portugal est� sem sa�da, e eu sei que � preciso dar sempre um certo desconto ao que dizem os politicos quando est�o na oposi��o, mas penso exactamente a mesma coisa e at� falo disso a certa altura do livro.
Num romance, eu j� tenho dito que prefiro que as coisas acabem mal, mesmo o pior poss�vel. Este n�o acaba nem mal nem bem. N�o se sabe ~em) como � que acaba (mal). N�o ligue, estou a gozar comigo mesma... Mas � um romance de amor, coisa que eu nunca me tinha abalan�ado a escrever, uma esp�cie de Trist�o e Isolda sem rei Marco e sem filtro m�gico, s� com fixa��es incontorn�veis. Em mat�ria de filtro, os protagonistas at� bebem t�o pouco que eu tive de beber quanto poss�vel por eles, incluindo toutes mes hontes, como diria o Villon. S� que j� n�o estou en l'afi trenti�me de mon �ge. Quem me dera!
A verdade � que tive de me inventar, como narradora, uma m�e evanescente, uma meia-irm� ensimesmada e uma fam�lia pr�xima que inclui um ex-cunhado e uma esp�cie de pseudocunhado da m�o esquerda. O primeiro est� morto e o segundo para l� caminha. Aquele era um aventureiro incorrigivel, este � um intelectual patol�gico. Conheci os dois com alguma intimidade, mas isso n�o � para aqui chamado, porque s� os conheci assim, e at� biblicamente falando, nos pr�prios meandros do romance em que os fui misturando com a minha vida, mas nunca os vi mais gordos na vida real. Isto �, n�o usei modelos, modelei-os eu segundo as necessidades. O que quase n�o caminha � o essencial da intriga que se polariza entre duas almas geminadas. N�o digo "g�meas" porque seria ainda mais possid�nio. Tudo se passa numa noite chuvosa de Maio, entre um lugarejo alentejano e a auto-estrada do Norte, e elas v�o comunicando � dist�ncia, por uma esp�cie de sintonia, telepatia, ang�stia condividida, o que lhe quiser chamar. Uma das ditas almas est� im�vel e a outra segue ao volante de um carro a grande velocidade em direc��o a Lisboa. Uma recusa o telefone e a outra espera o tempo todo que ele comece a tocar. Entretanto, falam para dentro, esquadrinham-se, repetem-se e prev�em-se. Ou, se quiser ver as coisas noutro plano, a narradora escreve de um autor que est� a escrever um livro em que � criada, entre outras, uma personagem principal, a irm� dela, que tem um caso malparado com esse autor, de modo que ficam os dois a ser os protagonistas em crise de amores fatais. Tr�s, se considerar a pr�pria narradora que vai dizendo de si e deles tamb�m.
Fico a duvidar muito se este � um simples truque de novelista em transe de falta de imagina��o. Talvez fosse mais o resultado de eu ter andado a beber,como acima digo, mas a beber bastante mais do que o costume nos �ltimos tempos, o que me faz imaginar as coisas em c�rculos conc�ntricos e depois � tudo uma grande confus�o. E talvez tudo isso seja devido � minha recente e segunda ruptura sentimental com o Fritz Stanford (voc� lembra-se dele com certeza: conheceu-o, estava
ele comigo, salvo erro, da �ltima vez que nos encontr�mos em Frankfurt e ele at� lhe ofereceu uma xilogravura antiga). Nunca se deve voltar aos amores antigos.
Foi uma decis�o que tive de tomar durante as nossas f�rias em Capri e que me causou algum abalo interior. Isto nem parece meu, mas posso dizer-lho confidencialmente. E o nosso caso j� durava havia bastante tempo, dois? tr�s anos?, enfim, mais do que � costume durarem os meus envolvimentos. Um dia hei-de contar-lhe
o que aconteceu de viva voz. Para j� estou s�, impudicamente s�, o que significa que poderei rever com bastante rapidez pelo menos as primeiras provas.
Fico � espera que me diga o que pensa do opus minzmum.
Um beijo da sua
Rita Kantic
P.S. Por favor pe�a ao revisor para verificar a correc��o de umas cita��es que fa�o do Alexandre Rodrigues Ferreira e do F�lix de Avelar Brotero.
Fim
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