sábado, 21 de novembro de 2020 By: Fred

{clube-do-e-livro} Lançamento: Jesus e Javé - Harold Bloom - Formatos: Pdf , epub e txt

JESUS E

JAV��



HAROLD

BLOOM

JESUS E

JAV��

�� S NOMES

DIVINOS

Tradu����o

Jos�� Roberto O'Shea





Copyright �� 2 0 0 5 by Harold Bloom

T��tulo original:

Jesus and Yahweh: The Nomes Divine

Todos os direitos desta edi����o reservados ��

E D I T O R A O B J E T I V A L T D A . Rua Cosme Velho, 103

Rio de Janeiro ��� RJ ��� C E P : 2 2 2 4 1 - 0 9 0

Tel.: (21) 2 1 9 9 - 7 8 2 4 ��� Fax: (21) 2 1 9 9 - 7 8 2 5

www.objetiva.com.br

Capa

F��tima Agra, sobre design original de Honi Werner

Revis��o

Ana Kronemberguer

Marta O S h e a

Antonio dos Prazeres

F��tima Fadel

Editora����o

FA ��� Editora����o Eletr��nica

B 6 5 5 j

Bloom, Harold

Jesus e Jav�� : Os nomes divinos / Harold Bloom; tradu����o de Jos�� Roberto

O S h e a . - Rio de Janeiro : Objetiva, 2 0 0 6 .

2 7 4 p.

ISBN 8 5 - 7 3 0 2 - 7 6 5 - 7

Tradu����o de : Jesus and Yahweh : The nomes divine

1. B��blia - Personagens. 2. Juda��smo. 3. Palestina - Antig��idade - Hist��ria. I. T��tulo C D D 2 2 0 2 9 6 9 3 3

PARA DONALD HARMAN AKENSON

A G R A D E C I M E N T O S

Sou grato ao meu editor, Celina Spiegel. Gostaria tamb��m

de agradecer aos meus assistentes de pesquisa, Brad

Woodworth e Brett Foster, al��m de meu editor de texto,

Toni Rachiele, e meus agentes, Glen Hartley e Lynn Chu,

e sua assistente Katy Sprinkel.

S U M �� R I O

Introdu����o 13

Prel��dio: Oito Reflex��es Iniciais 23

P A R T E I . J E S U S

1. Quem Foi Jesus e o que Ocorreu com Ele? 31

2. As Buscas e os que Buscam Jesus 35

3. As Palavras Enigm��ticas de Jesus 43





4. O Testamento Tardio 59


5. S��o Paulo 71





6. O Evangelho de Marcos 77


7. O Evangelho de Jo��o 93

8. Jesus e Cristo 111





9. A Trindade 119


10. N��o a Paz, mas a Espada, ou a Influ��ncia Divina 135

P A R T E I I . J A V ��

11. O Nome Divino: Jav��

151

12. S�� Jav��

155



J E S U S E J A V ��

10

13. O que Jav�� Quer Dizer com "Amor"? 193





14. O Filho Muito Diferente do Pai 199


15. Jesus e Jav��: O Embate da Genialidade 2 0 9

16. Os S��bios Judeus acerca de Deus 225

17. O Ex��lio Volunt��rio de Jav�� 2 3 3

18. A Psicologia de Jav�� 251





19. A Irreconciabilidade entre Cristianismo e


Juda��smo 2 6 7

2 0 . Conclus��o: Prova de Realidade 271

Embora Adorado por Nomes Divinos,

Jesus e Jav��, ser��s sempre

Filho da Manh��, ao fim da Noite exausta,

Sonho de Viajante perdido.

��� WILLIAM BLAKE, "Port��es do Para��so"

I N T R O D U �� �� O

Este livro �� centrado em tr��s figuras: uma personalidade mais

ou menos hist��rica, Yeshu�� de Nazar��; um Deus teol��gico,

Jesus Cristo; e um Deus humano, bastante humano, Jav��.

Essa senten��a inicial n��o deixa de ser pol��mica, mas minha

inten����o �� apenas esclarecer (se puder faz��-lo) e n��o ofender.

Quase tudo que pode ser sabido a respeito de Yeshu��

procede do Novo Testamento, e de escritos afins ou her��ti-

cos. Tais escritos s��o todos tendenciosos: seu intento em

rela����o a n��s, leitores ou ouvintes, �� evidente e catequizador.

Se digo que Yeshu�� �� "mais ou menos hist��rico", �� porque

quase todos os dados realmente importantes a seu respeito

chegam a mim por meio de textos nos quais n��o posso con-

fiar. As buscas do "Jesus hist��rico", invariavelmente, fracas-

sam, mesmo aquelas empreendidas pelos pesquisadores mais

confi��veis. Tais pesquisadores, por mais zelosos que sejam,

acabam por descobrir a si mesmos, e n��o o esquivo e evasivo

Yeshu��, enigma dos enigmas. Todo crist��o que conhe��o, aqui

ou no exterior, tem o seu Jesus exclusivo. O pr��prio S��o Pau-

lo admitia que Yeshu�� se tornara tudo, para todos os ho-

J E S U S E J A V ��

14

mens: talvez a�� resida a ��nica afinidade aut��ntica que o gran-

de ap��stolo tinha com seu salvador.

Embora o Yeshu�� hist��rico, apesar das multid��es que

por ele anseiam, por elas jamais ser�� alcan��ado, Jesus Cristo

�� um Deus teol��gico lembrado por diversas tradi����es rivais: a

ortodoxia oriental, o catolicismo romano, os protestantismos

normativos ��� luteranismo, calvinismo e suas variantes ���,

bem como seitas, antigas e novas, muitas das quais de ori-

gem norte-americana. A maior parte dessas inumer��veis cris-

tandades h�� de rejeitar, prontamente, minha conclus��o de

que Jesus Cristo e seu suposto pai, Jav��, n��o parecem ser

duas pessoas constitu��das de uma mesma subst��ncia, mas de

subst��ncias deveras muito diferentes. Jav��, desde Filo de

Alexandria at�� o presente, tem sido continuamente alegori-

zado, mas apresenta uma tenacidade sublime, e n��o pode ser

despojado das caracter��sticas absolutamente humanas de sua

personalidade e de seu car��ter. Supondo-se que Jav�� tenha

optado pelo ex��lio, ou por se ocultar do aqui e agora, ou que

talvez seja culpado de deser����o, �� poss��vel compreender por

que Deuses teol��gicos o substitu��ram. Jesus Cristo, o Esp��ri-

to Santo e a Virgem M �� e Maria tornaram-se, na pr��tica, a

Trindade. Jav�� se recolhe, na remota figura do Deus Pai, ou

se mescla �� identidade de Jesus Cristo. Estou sendo apenas

descritivo, e espero me manter distante da ironia, aqui e em

outros trechos deste livro.

Minha cultura �� judaica, mas n��o fa��o parte do juda��s-

mo normativo; definitivamente, n��o acredito na Alian��a.

Aqueles que acreditam, e aqueles que aceitam a submiss��o que

�� o islamismo, afirmam que Deus �� Uno e que Jesus n��o ��

Deus, conquanto o islamismo considere Jesus um predecessor

prof��tico do ��ltimo mensageiro de Al��: Maom��. O monote��s-

mo de judeus e mu��ulmanos �� t��o severo quanto perene.

I N T R O D U �� �� O

15

Mas qual seria, precisamente, a import��ncia do mo-

note��smo? Goethe, grande ironista, observou: "Enquanto estu-

dantes da natureza, somos pante��stas; como poetas, polite��stas;

enquanto seres morais, monote��stas." Nem mesmo Freud,

em nada te��sta, foi capaz de evitar a no����o de que o mono-

te��smo constituiu um avan��o moral, em rela����o ao polite��s-

mo. Freud foi sempre judeu ferrenho, embora ateu; mas por

que ser�� que a obra de sua autoria intitulada Mois��s e o Mo-

note��smo admite, de imediato, que o distanciamento do po-

lite��smo implica um devido "progresso em espiritualidade"?

Por que "a id��ia de um Deus mais augusto" ser�� mais simp��-

tica �� psican��lise do que os deuses confusos do Egito, ou os

deuses irados dos canaanitas?

A resposta parece se referir �� internaliza����o, tanto de

autoridade quanto de paternidade, no Jav�� de Mois��s. Philip

Rieff foi o primeiro a constatar tal resposta, no final dos

anos 1950 e em meados dos anos 1960, antes de a Revolu-

����o Cultural nos propiciar o Freud incontido, segundo

Herbert Marcuse e Norman O. Brown. Atualmente, no in��-

cio do s��culo XXI, uma volta a Rieff faz vingar as suas per-

cep����es, que haviam sido antecipadas pelo profeta Jeremias,

cuja vis��o da Alian��a era de que Jav�� escreveria a Lei em

nossas entranhas.

Quando Yeshu�� surge na condi����o de Deus teol��gico,

transformado, primeiramente, pela cristologia do Novo Tes-

tamento e, ent��o, de modo mais definitivo, pela filosofia

helenista, n��o est�� claro, para mim, at�� que ponto ter�� sido

deformado, visto que Paulo demonstrava pouco interesse na

personalidade de Yeshu��, e os Evangelhos Sin��ticos (os tr��s

Evangelhos al��m do de Jo��o), em tantas passagens, mostram-

se diante dele aturdidos. Mas o Jav�� do texto primevo, j��

metamorfoseado em decorr��ncia da confian��a depositada



16

J E S U S E J A V ��

pelo Redator no Autor Eclesi��stico e no deuteronomista,

praticamente, desaparece entre os grandes rabinos normativos

do s��culo II da Era Comum: Akiba, Ishmael, Tarphon e

seus seguidores.

Toda religi��o, para Freud, reduz-se ao desejo pelo pai,

uma ambival��ncia edipiana que faz de O Futuro de uma Ilu-

s��o o livro mais fraco de Freud, pois baseia-se em uma leitu-

ra equivocada de Hamlet, que tem afinidades com Mon-

taigne e n��o com Cristo. A identifica����o de Freud com

Mois��s contribui para tornar Mois��s e o Monote��smo um dos

mais marcantes entre os escritos extraordin��rios do pensa-

dor austr��aco, em que Jav��, o Deus guerreiro, �� civilizado

por meio de um remorso judaico, de vez que os pr��prios

judeus matam Mois��s, evento imaginado por Freud. Essa

condi����o civilizada, com todo o seu desconforto cultural, ��

o que Freud quer dizer com "monote��smo", o que configura

uma interpreta����o surpreendente. Tal "monote��smo", na

verdade, �� repress��o que estabelece uma civiliza����o benigna,

ao passo que o polite��smo �� visto como um retorno ao estado

de natureza hobbesiano, em que a vida �� algo detest��vel, bru-

to e breve. As estranhas transposi����es freudianas procedem

porque nos conduzem de volta ao Jav�� segundo " J " ��� a Au-

tora original do que �� mais marcante no que chamamos hoje

de G��nesis, ��xodo e N��meros ���, que concede a b��n����o de

"mais vida, em um tempo ilimitado".

Freud era obcecado pela escultura de Michelangelo que

retrata Mois��s, por ele interpretada como representando o

profeta no ato de proteger as T��buas da Lei, e n��o prestes a

atir��-las ao ch��o, furioso e decepcionado com a adora����o do

povo ao Bezerro de Ouro. O autocontrole de Mois��s se fun-

de com a sublima����o freudiana de desejos instintivos. Jav��

n��o ��, em absoluto, uma sublima����o. Ser�� Jesus? Em Mar-



I N T R O D U �� �� O

17

cos, n��o, mas em Mateus, conforme pretendo explicar, sim.

Contudo, �� poss��vel que a an��lise que Freud realiza da na-

tureza humana seja irrelevante, tanto em rela����o a Jav�� quan-

to a Jesus Cristo, sejam eles dois Deuses ou um s��.

Por que seria importante o fato de o cristianismo re-

presentar uma volta ao polite��smo, conforme insistem, guar-

dadas as devidas diferen��as, os rabinos e Maom��? A despeito

do brilhantismo da teologia crist��, culminando em Tom��s

de Aquino, a Trindade �� estrutura t��o sublime quanto pro-

blem��tica, n��o apenas ao separar os conceitos de pessoa e

subst��ncia, mas tamb��m ao apresentar o Esp��rito Santo na

qualidade de uma terceira pessoa crucial, ao lado do Pai e do

Filho, com base em diminutas evid��ncias presentes no Novo

Testamento. Mas tampouco nos Evangelhos Sin��ticos sou

capaz de localizar uma ��nica passagem que identifique de

maneira inequ��voca Jesus com Deus: tal condi����o s�� ��

conferida em Jo��o e, nitidamente, resulta das batalhas que o

referido Evangelho trava com os que ali s��o chamados, em

tom irritadi��o, de "judeus". Todavia, mesmo em Jo��o, a

condi����o est�� presente, mas n��o o nome. Jav�� e Jesus apare-

cem, em Jo��o, vinculados, mas n��o plenamente fundidos.

Os crist��os, em sua maioria, seja nos Estados Unidos

ou em outros locais, n��o s��o te��logos, e tendem a tomar

em um sentido literal as met��foras dogm��ticas. Tal fato

n��o deve ser deplorado, e desconfio que o mesmo fosse

verdade em rela����o aos primeiros crist��os, embora quase

pr��-teol��gicos. O que fica, para mim, cada vez mais claro ��

que, na pr��tica, o surgimento de Jesus enquanto Deus

ensejou o que haveria de se tornar a Teologia Crist��. Em

outras palavras, desde o in��cio, Jesus Cristo n��o era Yeshu��,

mas um Deus teol��gico, e n��o humano. Os mist��rios da



18

J E S U S E J A V ��

Encarna����o e da Ressurrei����o pouco t��m a ver com o ho-

mem, Yeshu�� de Nazar��, e (surpreendentemente) pouco t��m

a ver at�� mesmo com Paulo e Jo��o, se comparados aos te��-

logos que lhes seguiram o rastro.

Jav�� foi e ainda �� a personifica����o mais misteriosa de Deus

at�� hoje ensaiada pela humanidade; no entanto, ele iniciou a

carreira como monarca guerreiro do povo a que chamamos

de Israel. A despeito de encontrarmos Jav�� cedo ou tarde na

vida, confrontamos uma personalidade exuberante e um ca-

r��ter t��o complexo que decifr��-lo �� imposs��vel. Refiro-me

apenas ao Jav�� da B��blia Hebraica, e n��o ao Deus daquela

obra inteiramente revista, a B��blia crist��, com o seu Antigo

Testamento e gratificante Novo Testamento. O historicismo,

seja �� antiga ou renovado, parece ser incapaz de confrontar a

incompatibilidade total existente entre Jav�� e Jesus Cristo.

Jack Miles, o Boswell de Jav��, no livro God: A Biography

(Deus: uma biografia), retrata um Jav�� cujo ponto de parti-

da �� uma esp��cie de falta de autoconhecimento mesclada

com poder total e alto grau de narcisismo. Ap��s diversos

desastres divinos, conclui Miles, Jav�� perde o interesse (in-

clusive em si mesmo). Miles nos faz lembrar, com corre����o,

que Jav��, em 2 Samuel, promete a Davi que Salom��o h�� de

encontrar um segundo pai no Senhor, ado����o que abre o

precedente para Jesus afirmar que �� filho de Deus. O Jesus

hist��rico, evidentemente, insistia tanto em sua autoridade

para falar por Deus quanto em sua ��ntima rela����o com o

abba (pai), e, nesse particular, vejo poucas diferen��as entre

ele e seus precursores, entre os profetas carism��ticos de Is-

rael. A diferen��a aut��ntica surgiu com o advento do Deus

teol��gico, Jesus Cristo, com o qual a linha da tradi����o ��,

I N T R O D U �� �� O

19

efetivamente, rompida. Jav��, a n��o ser pelas quest��es de po-

der, diverge dos deuses de Cana��, principalmente, ao trans-

cender a sexualidade e a morte. Dito de maneira mais abrupta:

n��o se pode conceber Jav�� agonizando. A Cabala contempla

a vida er��tica de Deus, mas defende com severidade a tradi-

����o normativa que afirma a imortalidade divina. Nada no

cristianismo teol��gico �� para m i m t��o dif��cil de apreender

quanto a no����o de Jesus Cristo enquanto um Deus que morre

e revive. O sistema que compreende a Encarna����o, o Perd��o

dos Pecados e a Ressurrei����o p��e por terra tanto a Tanak ���

acr��nimo que denomina as tr��s partes que perfazem a B��blia

hebraica: a Tor�� (os cinco livros de Mois��s), os Profetas e os

Escritos ��� quanto a tradi����o oral judaica. Posso entender

um Jav�� oculto, desertor, em ex��lio volunt��rio, mas o suic��-

dio de Jav�� �� algo que est�� al��m do hebra��smo.

Eu poderia levantar obje����es a m i m mesmo, argumen-

tando que Jav��, n��o raro ultrajante, tamb��m me deixa per-

plexo, e que Jesus Cristo �� um triunfo de imagina����o com-

par��vel a Jav��, ainda que de maneira bastante diversa. Estou

sempre a oscilar entre o agnosticismo e a gnose m��stica, mas

a minha inf��ncia judaica ortodoxa perdura em m i m na for-

ma da rever��ncia a Jav��. Nenhuma outra representa����o de

Deus de que tenho conhecimento se aproxima do Jav�� para-

doxal, conforme descrito pela Autora " J " . Talvez eu devesse

omitir da senten��a anterior as palavras "de Deus", porquan-

to nem mesmo Shakespeare inventou um personagem cuja

personalidade �� t��o rica em termos de contradi����es. O Jesus

de Marcos, Hamlet e Dom Quixote s��o os principais con-

correntes de Jav��, tanto quanto o Odisseu hom��rico, trans-

mutado no Ulisses cuja hist��ria de busca e afogamento re-

duz Dante, o Peregrino, ao sil��ncio. Dennis R. MacDonald,



J E S U S E J A V ��

na obra The Homeric Epics and the Gospel of Mark (Os ��pi-

cos hom��ricos e o Evangelho de Marcos, 2 0 0 0 ) , defende a

hip��tese de que a cultura liter��ria de Marcos era mais grega

do que judaica, o que me parece convincente, visto que o

ecletismo do mais antigo dos Evangelhos fica assim enfati-

zado, embora ligeiramente d��bio, pois o Deus de Marcos

ainda �� Jav��. Mateus ��, com toda raz��o, conhecido como "o

Evangelho Judaico"; j�� n��o se pode dizer o mesmo do Evan-

gelho de Marcos, embora tenha sido composto logo ap��s a

destrui����o do Templo, e no auge da carnificina que os ro-

manos impuseram aos judeus. Hamlet apresenta algo seme-

lhante ��s surpreendentes altera����es de humor t��picas do Je-

sus de Marcos, e t��picas de Jav��. Se Dom Quixote pode ser

considerado o protagonista da escritura espanhola, ent��o, os

seus enigmas podem competir com os do Jesus de Marcos e

os de Hamlet.

N��o temos como saber o quanto do car��ter e da per-

sonalidade de Jav�� ter�� sido fruto da inven����o da Autora " J " ,

assim como o Jesus de Marcos, at�� certo ponto, parece igual-

mente singular, ainda que, sem d��vida, influenciado pela

tradi����o oral, tanto quanto o foi o Jav�� de " J " . Pergunto-me

se o autor do Evangelho de Marcos n��o seria respons��vel

por nos apresentar um Jesus propenso a enunciar palavras

enigm��ticas. Em um contexto que se caracteriza pela expres-

s��o "n��o temos como saber", e no qual aquilo que conside-

ramos f�� paulina substitui a informa����o, o brilhantismo de

Marcos explora os limites do nosso entendimento. O Jesus

de Marcos afirma uma autoridade que, em dados momen-

tos, mascara certa apreens��o quanto �� vontade de Jav��, o

abba t��o amoroso quanto inescrut��vel. Somente o Jesus de

Marcos passa por uma noite de ang��stia, diante da morte





I N T R O D U �� �� O

iminente. Se, conforme pensa MacDonald, o sofrimento de

Jesus repete o de Heitor, no final da Il��ada, �� quest��o que

n��o pode ser resolvida. Jesus morre ap��s pronunciar uma

par��frase aramaica do Salmo 22, um clamor de Davi, seu

antepassado, um pathos distante daquele constatado em

Homero. Indubitavelmente, o Jesus hist��rico existiu, mas

jamais ser�� encontrado, nem precisa s��-lo. Jesus e Jav��: Os

Nomes Divinos n��o visa �� busca. M e u ��nico objetivo �� suge-

rir que Jesus, Jesus Cristo e Jav�� s��o tr��s personagens total-

mente incompat��veis, e explicar como e por que isso se d��.

Entre esses tr��s seres (se assim for poss��vel cham��-los), Jav�� ��

o que me deixa mais aturdido, e, basicamente, rouba a cena

neste livro. S��o infindas as deturpa����es a ele impostas, in-

clusive por grande parte da tradi����o rab��nica, bem como

por pesquisas que permanecem abafadas ��� quer de origem

crist��, quer de origem judaica ou leiga. Jav�� continua sendo

o maior personagem liter��rio, espiritual e ideol��gico do

Ocidente, seja ele conhecido por nomes t��o diversos como

Ein-Sof ("sem fim", na Cabala) ou Al�� (no Alcor��o). Deus

caprichoso, um diabrete, ele me remete a um aforismo do

sombrio Her��clito: "O tempo �� uma crian��a que joga da-

mas; governo de crian��a."

Onde encontrar o sentido de Jav��, ou de Jesus, ou de

Yeshu�� de Nazar��? N��o podemos, e n��o o encontraremos, e

"sentido" talvez n��o seja a categoria certa a ser perseguida.

Jav�� declara-se incompreens��vel, Jesus Cristo permanece su-

focado sob a superestrutura da teologia hist��rica e, quanto a

Yeshu��, tudo o que podemos afirmar �� que se trata de um

espelho c��ncavo, no qual enxergamos t��o-somente as

distor����es que cada um de n��s se tornou. O Deus hebreu, ��

semelhan��a do de Plat��o, �� um moralista ensandecido, en-



J E S U S E J A V ��

quanto Jesus Cristo �� um labirinto teol��gico e Yeshu�� pare-

ce ser figura das mais melanc��licas e solit��rias. A exemplo de

Walt Whitman, ao final de Can����o de Mim Mesmo, Yeshu��

encontra-se parado, em algum lugar, �� nossa espera.

P R E L �� D I O :

O I T O R E F L E X �� E S I N I C I A I S

1. A Nova Alian��a (Testamento) �� inteiramente tardia em

rela����o �� Tanak. At�� certo ponto, as exce����es s��o os logia, ou

ditos, e as par��bolas de Jesus. O enigma que os caracteriza ��,

por vezes, sem precedentes. Hamlet, Kierkegaard e Kafka

s��o ironistas na trilha de Jesus. Toda a ironia ocidental ��

uma repeti����o dos enigmas/charadas de Jesus, um am��lgama

das ironias de S��crates.

2. Uma das fontes da "auto-escuta" shakespeariana �� Chaucer,

mas talvez o principal precursor shakespeariano seja o Jesus

de William Tyndale, na B��blia de Genebra. A internaliza-

����o, em Shakespeare, vai al��m da de Jesus, embora Jesus te-

nha inaugurado o eu interior (em permanente expans��o),

desenvolvido por Santo Agostinho e levado �� perfei����o por

Shakespeare, em Hamlet, ap��s t��-lo reinventado em Falstaff.

3. O Jesus de Marcos talvez seja a maior aproxima����o poss��-

vel do "Jesus hist��rico". Mateus atenua Marcos. Lucas �� mais

independente em rela����o a Marcos, mas tamb��m apresenta

um Jesus, por vezes, mais sombrio do que o de Mateus.



J A V �� E J E S U S

24

4. N��o resta d��vida que o Jesus hist��rico existiu, mas s�� pode

ser resgatado aos peda��os, e poucos historiadores s��o conclu-

dentes ao decifrarem tais fragmentos. "Jesus: Uma Biografia"

sempre encerra um oximoro. Todos os te��logos, desde Filo

at�� o presente, s��o alegoristas, e, uma vez que alegoria �� ironia,

e requer percep����o liter��ria, os te��logos quase sempre falham,

e Plat��o, flagrantemente, foge �� regra. Te��logos sistem��ticos

s��o semelhantes a cr��ticos liter��rios sistem��ticos: Paul Tillich

�� um sucesso relativo, Agostinho �� um fracasso magn��fico e

Northrop Frye tamb��m so��obra. Tanto para Agostinho quanto

para Frye a Tanak deixa de existir, devorada pela Alian��a Tar-

dia. Nem mesmo Marcos, que n��o �� te��logo, oferece-nos um

Jesus plenamente convincente: de quando em vez, o pre��o

das suas melhores ironias �� a perda da equanimidade.

Que devemos fazer? Pois bem, de in��cio, cabe pergun-

tar: quem somos n��s?

N��o obstante a maioria dos estudiosos crist��os, final-

mente, reconhecer Jesus como judeu ��� e, evidentemente,

ele era judeu ���, Jesus �� hoje norte-americano: tornou-se

"multitudo". Nosso Jesus pode ser igualmente batista ou

pentecostal ou m��rmon ou mu��ulmano ou africano ou asi��-

tico ��� tanto quanto judeu. Os paradoxos de Jesus sempre

foram universais, mas seu personalismo �� oitocentista nor-

te-americano, desde a Renova����o de Cane Ridge, ocorrida

em 1 8 0 1 , at�� a Renova����o �� moda circense levada a termo

por Charles Grandison Finney, precursor de Billy Sunday e

Billy Graham. Oitenta e nove por cento dos norte-america-

nos informam, regularmente, aos pesquisadores de opini��o

p��blica do Instituto Gallup que Jesus os ama, de maneira

pessoal e individual. Tal fato sempre me causa espanto, ja-

mais me conduzindo �� ironia.



P R E L �� D I O : O I T O R E F L E X �� E S I N I C I A I S

25

�� poss��vel haver um Jesus Verdadeiro, na presente era

de apropria����o total? Os enigmas de Jesus tornam-se parti-

cularmente complexos no contexto dos Judaismos do Se-

gundo Templo, em que n��o havia doutrina normativa; no

entanto, para ele, tudo come��ava e terminava, exclusivamen-

te, com Jav��, por defini����o, o maior ironista de todos os

tempos. Se h�� um princ��pio singular que caracteriza Jesus,

trata-se da f�� inabal��vel na Alian��a com Jav��. Essa �� a ess��n-

cia da religi��o judaica, seja arcaica, Segundo Templo, ou

seja o juda��smo subseq��ente, de Akiba. A hist��ria n��o co-

nhece judeu mais fiel �� Alian��a do que Jesus de Nazar��. Da��

a ironia das ironias, pois seus seguidores utilizaram-no para

substituir a Alian��a de Jav�� pela Nova Alian��a.

5. Os Evangelhos n��o se propunham a ser o que chamamos

de biografia, mas a servir de fonte de inspira����o para conver-

s��o. Neste aspecto, e em todos os demais, seguem a B��blia

hebraica, que, para n��s, paradoxalmente, n��o constitui his-

t��ria, embora seja o primeiro exemplo de hist��ria. N��o h��

relato a respeito do Rei Davi al��m do que consta da Tanak.

Gra��as a Josefo, sabemos, ao menos, que Jesus existiu, ainda

que como figura perif��rica em um s��culo que culminou com

a destrui����o do Templo de Jav��, pelos romanos, no ano 70

da Era Comum.

6. A busca infinda do Jesus hist��rico tem fracassado, na me-

dida em que s��o poucos os pesquisadores que apresentam

algo al��m de reflex��es da pr��pria f�� ou do pr��prio ceticismo.

A exemplo de Hamlet, Jesus �� um espelho no qual nos en-

xergamos. A consci��ncia da mortalidade parece nos permi-

tir poucas op����es. A culpa �� irrelevante: onde e como en-



J A V �� E J E S U S

26

contrar nossa sobreviv��ncia? Jesus est�� para o Novo Testa-

mento grego assim como Jav�� est�� para a B��blia hebraica, ou

Hamlet est�� para a respectiva pe��a shakespeariana: s��o os

protagonistas vitais, os princ��pios da apoteose, as esperan��as

de transcend��ncia.

Freud, ao reduzir religi��o ao desejo pelo pai, �� relevante

para Jesus, que chamava Jav�� de abba. Sendo c��tico, Hamlet

n��o busca ningu��m. Jav�� escolhe Abra��o e Mois��s, e, se acei-

tarmos o Alcor��o, veremos que Jav�� escolhe tamb��m Maom��.

N��o se pode dizer que o Deus hebreu escolha Jesus, a n��o

ser na qualidade de mais um profeta. Na pr��tica, o Filho do

Homem �� pai de si mesmo, ou ser�� que o Pai �� filho dele

mesmo? O Jesus norte-americano apropriou-se de Jav��, e

pode acabar sendo apropriado pelo Esp��rito Santo, �� medi-

da que nos fundirmos em uma na����o pentecostal, uma in-

corpora����o de hisp��nicos, asi��ticos, africanos e caucasianos,

constituindo um novo Povo de Deus.

7. A rela����o entre Eros e Autoridade, Amor e Lei, �� central

em Jesus, Paulo e Freud. Mas �� tamb��m crucial em Mois��s,

S��crates/Plat��o, Rei Lear e em toda a obra shakespeariana,

particularmente nas duas partes de Henrique IV, Hamlet e

Noite de Reis. Talvez seja esse o "sentido" de Shakespeare: o embate entre Eros e a Lei. Freud chama a Lei de T��natos,

estranhamente, cerrando fileiras com Paulo e Lutero. Jesus,

ao contr��rio dos tr��s, abra��a tanto o amor quanto a Tor��,

conforme os estudiosos, finalmente, come��am a perceber.

Embora individualista a ponto de configurar uma nova vi-

s��o messi��nica, Jesus supera os fariseus (seus maiores rivais)

no que concerne ao respeito �� Lei. O g��nio de Jesus uniu o

amor ao pai (Jav�� enquanto abba), o amor �� Lei, oral e escri-

ta, e o amor �� sua gente. Jesus ser�� sempre o judeu dos j u -



P R E L �� D I O : O I T O R E F L E X �� E S I N I C I A I S

27

deus, o judeu propriamente dito, um triunfo sobre o sofri-

mento, ao mesmo tempo que deseja o Pai, assim como an-

seia pelo Reino onde o amor e a justi��a se harmonizam. Pau-

lo voltou-se para os gentios. Jesus, conforme at�� mesmo os

Evangelhos Sin��ticos deixam claro, n��o o fez. Tiago, o Jus-

to, irm��o de Jesus, foi o seu disc��pulo aut��ntico. �� estranho

que os eruditos n��o percebam que o esp��rito de Jesus apare-

ce, nitidamente, na Ep��stola de Tiago, composta por um

ebionita, ou judeu-crist��o, que sobreviveu ao assass��nio jur��-

dico de Tiago e ao subseq��ente saque a Jerusal��m. Lutero

detestava a Ep��stola de Tiago, e queria expurg��-la da Nova

Alian��a. Mas na referida ep��stola ouvimos a voz dos profetas

no deserto, de Elias e Jo��o Batista, e a voz do pr��prio Jesus, ao

menos uma vez, deixando de lado a extraordin��ria ironia.

8. A Nova Alian��a baseia-se, for��osamente, em uma leitura

err��nea da B��blia Hebraica. Ocorre, por��m, que a for��a dos

tradutores crist��os, em especial, Jer��nimo e Tyndale, obscu-

rece a relativa defici��ncia ��� est��tica e cognitiva ��� do Novo

Testamento Grego, no embate com a Tanak. Mesmo que

Marcos fosse um escritor t��o capaz quanto a javista, o

embate seria in��til, pois a Tor�� (�� semelhan��a do Alcor��o) ��

Deus, ao passo que o argumento central do Testamento

Tardio �� que um homem substituiu as Escrituras.



P A R T E I J E S U S

C A P �� T U L O 1 Quem Foi Jesus

e o que Ocorreu com Ele?

N��o h�� fatos comprovados acerca de Jesus de Nazar��. Os

poucos fatos que constam da obra de Fl��vio Josefo, fonte da

qual todos os estudiosos dependem, s��o suspeitos, pois o

historiador era Jos�� ben Matias, um dos l��deres da Rebeli��o

Judaica, que salvou a pr��pria pele por ter bajulado os impe-

radores da Dinastia Flaviana: Vespasiano, Tito e Dom��cio.

Depois que um indiv��duo proclama Vespasiano como o Mes-

sias, ningu��m deve mais acreditar no que tal pessoa escreve a

respeito da sua pr��pria gente. Josefo, mentiroso inveterado,

assistiu, tranq��ilamente, �� captura de Jerusal��m, �� destrui-

����o do Templo e �� matan��a dos habitantes. Os especialistas

afirmam que Josefo tinha pouco ou nada a ganhar com as

informa����es fragmentadas acerca do galileu Josu�� (Yeshu��,

em hebraico, Jesus, em grego), mas o historiador que traiu

seu povo era t��o sorrateiro que suas motiva����es (se �� que as

tinha) permanecem enigm��ticas. Josefo esclarece que Jesus

de Nazar�� era filho de Jos�� e Maria (M��riam), e irm��o de

Jac�� (Tiago), foi batizado por Jo��o, e depois passou a atrair

pupilos, atuando como mestre sapiencial, sendo, finalmen-

te, crucificado sob ordens do s��trapa romano, P��ncio Pilatos.



J E S U S E J A V ��

32

A leitura e reflex��o sobre materiais aos quais tive aces-

so levam-me a duvidar que Jesus constasse da multid��o de

v��timas de Pilatos. O carism��tico rabino de Nazar�� era peri-

to em evasiva e equivoca����o, era tamb��m um h��bil sobrevi-

vente, desde a inf��ncia, quando os pais lhe disseram que,

embora artes��o, sua descend��ncia o colocava em lugar de

destaque na casa real de Davi, cuja prole carregava consigo a

b��n����o insofism��vel de Jav��. Primog��nito de pais dav��dicos,

Jesus era candidato ao exterm��nio nas m��os dos seguidores

de Herodes e outras autoridades romanas. Entre os judeus,

nunca existira um Messias mais relutante e mais leg��timo. A

id��ia de comandar uma guerra nacionalista contra os roma-

nos e os brutamontes mercen��rios que lhes serviam contra-

riava, inteiramente, a natureza daquele g��nio espiritual ju-

daico, que, involuntariamente e, sem d��vida, infeliz por s��-lo,

era o rei leg��timo dos judeus.

Jesus n��o integrou a resist��ncia, ao contr��rio do que,

inicialmente, fez Josefo, embora viesse a abandonar os com-

panheiros aguerridos, tais como Sim��o bar Giora e Jo��o de

Gischala, l��deres da Guerra Judaica contra Roma, salvando

a pele, �� custa da pr��pria integridade e da estima dos judeus.

Tampouco dispomos de fatos comprovados sobre os ensi-

namentos de Jesus; sequer sabemos se ele teria nascido qua-

tro anos antes do in��cio da Era C o m u m , ou com que idade

teria sido crucificado, levando em conta o registro cronol��-

gico de 33 anos. Conforme reza a lenda, desconfio que fosse

s��bio o bastante para escapar da execu����o, e que tenha se

dirigido ao norte helenizado da ��ndia, limite extremo das

grandes conquistas de Alexandre, onde algumas tradi����es

situam seu sepulcro. Nesse particular, sigo a tradi����o gn��stica,

simplesmente porque os ditos gn��sticos de Jesus, no Evan-



Q U E M F O I J E S U S E O Q U E O C O R R E U C O M E L E ?

33

gelho de Tom��, parecem-me mais aut��nticos do que toda a

gama de pronunciamentos atribu��dos ao rabino de Nazar��

nos Evangelhos Sin��ticos e no mais-que-tardio Evangelho

de Jo��o. N��o h�� uma senten��a a respeito de Jesus, em todo o

Novo Testamento, composta por algu��m que tenha conhe-

cido pessoalmente o relutante Rei dos Judeus, a menos que

(suposi����o improv��vel) a Ep��stola de Tiago seja, com efeito,

de autoria de Tiago, seu irm��o, e n��o de um dos seguidores

de Tiago, os ebionitas, ou "homens pobres", alguns dos quais

sobreviveram ao holocausto de Jerusal��m ao fugir para Pella,

na Jord��nia, obedecendo ao comando prof��tico de Tiago.

Segundo os estudiosos, as ep��stolas de S��o Paulo da-

tam de quarenta anos ap��s a morte de Jesus, os Evangelhos

t��m data����o fixada em cerca de uma gera����o posterior, e o

sumamente helen��stico (e quase gn��stico) Evangelho de Jo��o

data de um s��culo, ao menos, ap��s o poss��vel desapareci-

mento do mestre itinerante dos pobres e dos exclu��dos. N��o

h�� motivos razo��veis para se questionar o consenso dos es-

pecialistas, mesmo que outra pessoa n��o tenha sido crucifi-

cada no lugar de Jesus, conforme sugere, maliciosamente, a

tradi����o gn��stica. Tiago, o Justo, l��der dos judeu-crist��os de

Jerusal��m, na verdade poderia ter sido filho, ou at�� mesmo

neto, de Jac�� (Tiago), irm��o do pr��prio Jesus. Leitores de

hoje em dia, quer crist��os, judeus ou mu��ulmanos, quer c��-

ticos ou fi��is, precisam voltar ao ponto de partida para deci-

frar a hist��ria secreta do pregador carism��tico que, agindo

com sabedoria, declinou de se tornar Rei dos Judeus, mas

que, ironicamente, talvez tenha sofrido como tal, nas m��os

dos romanos.

C A P �� T U L O 2 As Buscas e os que

Buscam Jesus

A menos que a pessoa atue como um profissional da busca de

Jesus, cujo sustento, auto-respeito e sa��de espiritual sejam uma

quest��o de voca����o, conv��m alterar quaisquer planos relati-

vos �� participa����o nesse estranho empreendimento. As adver-

t��ncias sensatas sobejam; uma das minhas favoritas �� expressa

pela sorrateira ironia expressa em um ensaio escrito por Jacob

Neusner ��� homem imensamente erudito ��� e inclu��do em

um livrinho contumaz por ele publicado sob o t��tulo Judaism

in the Beginning of Christianity (O juda��smo no in��cio do

cristianismo, 1984). No quarto cap��tulo, Neusner nos ofere-

ce "A Figura de Hillel: Contrapartida �� Quest��o do Jesus His-

t��rico". O admir��vel Hillel, contempor��neo de Jesus, foi um

fariseu exemplar. At�� mesmo uma obra honrosa, como o

American Heritage College Dictionary (terceira edi����o, 1993),

apresenta duas defini����es de "fariseu" absolutamente in��teis e

inver��dicas, e inaplic��veis a Hillel:

1. Membro de antiga seita judaica que enfatizava uma

r��gida interpreta����o e obedi��ncia �� Lei de Mois��s.

2. Pessoa hip��crita e moralista.



J E S U S E J A V ��

36

N��o culpo os editores do mencionado dicion��rio. �� ex-

ce����o de Paulo e Marcos, o Novo Testamento difama, cruel e

continuamente, os fariseus. No entanto, proponho que a

primeira defini����o descarte a palavra "r��gida" e a substitua

por "santificante". Neusner demonstra que o grande Hillel,

conquanto, sem d��vida, tenha existido, para todos os efei-

tos, �� uma inven����o de rabinos que viveram no s��culo II da

Era C o m u m (e mais tarde). Hillel �� o Jesus do juda��smo, de

vez que Yeshu�� de Nazar��, sem sombra de d��vida, existiu,

mas, na pr��tica, foi uma inven����o do Novo Testamento.

Recomendo o livro de Charlotte Allen, The Human Christ

(O Cristo humano, 1998), relato judicioso e inteligente (es-

crito por uma cat��lica) da com��dia humana que constitui "a

busca do Jesus hist��rico". Ao aludir �� "com��dia humana" e

a Balzac, n��o o fa��o por deprecia����o, apenas por lamentar

que Balzac j�� n��o esteja conosco, para compor uma saga

ficcional capaz de superar a pitoresca e infinda aventura re-

tratada por Charlotte Allen e outros. Temos um enxame

de crist��os, de todas as denomina����es, judeus mais diversos,

secularistas, romancistas (bons e ruins) e multid��es que po-

deriam fazer parte de uma obra-prima de Balzac, se pud��sse-

mos ressuscitar o mago da narrativa francesa, autor que eu,

de todo o cora����o, aprecio mais do que Stendhal, Flaubert e

Proust, ainda que a vivacidade de Stendhal, o talento art��sti-

co de Flaubert e a sabedoria de Proust superem Balzac.

A busca incessante do Jesus "verdadeiro", "hist��rico",

n��o contaminado pelo dogma, �� similar �� minha incapaci-

dade perp��tua de apreender o prot��ico Vautrin, o mais vivaz

personagem de Balzac, na intermin��vel prociss��o de g��nios

que figuram na Com��dia Humana. Vautrin �� Balzac transformado em um homoer��tico mestre do crime, conhecido

como "Esquiva-Morte", tanto pela pol��cia quanto pelo



A S B U S C A S E O S Q U E B U S C A M J E S U S

37

submundo. Cada cr��tico/leitor v�� o seu pr��prio Vautrin, e

cada pesquisador que busca o Jesus "hist��rico", invariavelmente, descobre a si mesmo em Jesus. Como poderia ser

diferente? Isso nada tem de deplor��vel, especialmente nos

Estados Unidos, onde, ao longo dos ��ltimos dois s��culos,

Jesus tem atuado como um protestante sem denomina����o

espec��fica. Se tal afirma����o parece ir��nica, minha inten����o ��,

exclusivamente, literal, e n��o desaprovo a nossa tend��ncia

natural de entabular conversas particulares com um Jesus

nosso. N��o penso que isso torne os norte-americanos mais

am��veis ou generosos, mas, somente em casos extremos, os

torna piores. A n��o ser pelo Hamlet shakespeariano, n��o me

ocorre outra figura t��o vol��til quanto Jesus; ele, de fato, pode

ser tudo, para todos os seres humanos.

Da minha parte, por motivos liter��rios e espirituais, prefiro

o Evangelho de Tom�� a todo o Novo Testamento can��nico,

porque o referido Testamento apresenta-se repleto de um

��dio mal informado contra os judeus, ainda que seja com-

posto, quase na ��ntegra, por judeus que fogem de si mesmos,

desesperados por agradar as autoridades romanas que os ex-

ploravam. Leio, com admira����o, a obra de estudiosos cat��li-

cos, tais como padre Raymond Brown e padre John P. Meier,

mas me pergunto por que n��o admitem o qu��o pouco ��

poss��vel saber, de fato, acerca de Jesus. O Novo Testamento

tem sido revirado por s��culos de estudo minucioso, mas de

todo esse trabalho n��o resulta o m��nimo de informa����o que

exigir��amos no caso de qualquer outra quest��o similar. Nin-

gu��m sabe quem escreveu os quatro Evangelhos, e ningu��m

�� capaz de precisar q u a n d o e onde foram compostos,



J E S U S E J A V ��

38

tampouco que tipo de fontes lhes servem de base. Nenhum

dos autores conheceu Jesus; sequer ouviram-no pregar. O

historiador Robin Lane Fox defende a hip��tese contr��ria,

em favor do Evangelho de Jo��o, mas o argumento constitui

uma das raras aberra����es de Fox. At�� mesmo Fl��vio Josefo,

escritor brilhante e mentiroso inveterado, mostra-se muito

mais interessado em Jo��o Batista do que em Jesus, objeto de

n��o mais que um punhado de men����es sup��rfluas.

Raramente, antigos profetas judaicos e supostos messias

transformavam-se em anjos, e jamais no pr��prio Jav��, moti-

vo pelo qual Jesus Cristo (e n��o Jesus de Nazar��) �� um Deus

crist��o, e n��o judaico. A grande exce����o �� Enoque, que ca-

minhava ao lado de Jav��, e foi por ele al��ado ao c��u, sem ter

de passar pelo inc��modo da morte. Nas alturas, Enoque ��

Metatron, anjo t��o excelso que chega a ser "o Jav�� Menor",

com um trono s�� para si. Consta que o rabino Elisha ben

Abuyah, o mais c��lebre dos antigos minim (gn��sticos) ju-

daicos, tenha ascendido, a fim de verificar que Metatron e

Jav�� sentavam-se em tronos posicionados lado a lado. Ao

retornar, o rabino gn��stico (conhecido pelos oponentes como

Acher, "o Outro", ou "o Estranho") proclamou a heresia

suprema: "H�� dois Deuses no c��u!"

No livro The Human Christ, Charlotte Alien nos faz

lembrar, corretamente, que os Evangelhos estabelecem "Je-

sus Cristo acima da Tor��". U m a vez que a Tor�� �� Jav��, a

no����o situa Cristo acima e al��m de Jav��, o que vai de encon-

tro �� complexidade trinitaria. Quem quer que tenha sido o

Jesus hist��rico, certamente, teria rejeitado tamanha blasf��mia

(conforme ele o faz no Alcor��o). Parece um absurdo que Je-

sus, fiel apenas a Jav��, assim como o foram Hillel e Akiba,

tenha usurpado Deus. Contudo, Jesus n��o �� o usurpador,



A S B U S C A S E O S Q U E B U S C A M J E S U S 3 9

tampouco o foi S��o Paulo (ao contr��rio do que pensavam

Nietzsche e George Bernard Shaw). �� semelhan��a do mentor,

Jo��o Batista, Jesus �� oriundo dos judeus, e veio para os judeus.

O cristianismo se baseia na afirma����o de que Jesus n��o foi

recebido por sua pr��pria gente, mas todas as evid��ncias apre-

sentadas pelo cristianismo s��o pol��micas, suspeitas e inadmis-

s��veis em qualquer tribunal de justi��a.

A ind��stria acad��mica n��o tem por h��bito se disper-

sar, e sempre haver�� buscas do Jesus verdadeiro. Por mais

honrosas que sejam, aqui as dispenso. At�� mesmo os melho-

res especialistas (penso, primeiramente, em E. P. Sanders e

padre Meier) v��em-se for��ados a aceitar como v��lidas deter-

minadas passagens do Novo Testamento, em lugar de ou-

tras, e as explica����es dos crit��rios adotados s��o sinuosas.

For��osamente, os resultados s��o confusos. Desagrada-me a

argumenta����o proposta por padre Meier em favor da histo-

ricidade de Judas Iscariotes, que, na minha vis��o e de outros

��� judeus ou gentios ���, surge como uma fic����o mal��fica

que tem contribu��do para justificar o exterm��nio de judeus

h�� dois mil anos. Sanders jamais me deprime, mas fico per-

plexo quando ele exalta o carisma singular de Jesus, basean-

do-se na lealdade dos disc��pulos. N��o devemos esquecer a

advert��ncia do soci��logo Max Weber contra a "rotiniza����o

do carisma". Carism��ticos existem em abund��ncia, e Hitler

magnetizou toda uma gera����o de alem��es. �� p��fia a argu-

menta����o em prol da singularidade de Jesus como conse-

q����ncia de seu carisma.

No entanto, ao escrever este livro, que, absolutamen-

te, n��o �� para mim uma busca, surpreendi-me tanto com

Jesus quanto com Jav��. Embora eu nele n��o confie nem o

ame, Jav�� n��o pode ser dispensado, pois, ausente ou presen-

te, �� indistingu��vel da realidade, seja esta ordin��ria ou um



J E S U S E J A V ��

40

arremedo de transcend��ncia. Ao menos duas vers��es distin-

tas de Jesus, que constam do quase gn��stico Evangelho de

Tom�� e do extraordinariamente cr��ptico Evangelho de Mar-

cos, parecem-me aut��nticas, embora ami��de sejam antit��ti-

cas. Jav�� �� morte-nossa-morte e vida-nossa-vida, mas n��o sei

quem foi ou �� Jesus Nazareno. N��o o considero antit��tico

nem compar��vel a Jav��: os dois se encontram em sistemas

c��smicos distintos. Jav�� nada tem de grego: Homero, Plat��o,

Arist��teles, est��icos e epicuristas s��o, para ele, estranhos.

Jesus, a exemplo do contempor��neo Hillel e de Akiba, este

surgido um s��culo mais tarde, emerge de um juda��smo

helenizado, ainda que o grau de contamina����o por elemen-

tos gregos seja questionado e question��vel.

Jav�� �� incognosc��vel, por mais que nos aprofundemos

na Tor��, no Talmude e na Cabala. Ser�� Jesus ��� comparado

ao Jesus Cristo da teologia ��� cognosc��vel? O Jesus norte-

americano �� conhecido intimamente, na qualidade de ami-

go e amparo, por dezenas de milh��es de pessoas. O Jesus

norte-americano �� por vezes mais orientado por Paulo do

que pelos Evangelhos: os batistas moderados baseiam-se na

Ep��stola dos Romanos; os pentecostais, que grassam por to-

dos os Estados Unidos, na realidade, substituem Jesus pela

cren��a cin��tica no Esp��rito Santo; os m��rmons, a mais nor-

te-americana e surpreendente das seitas, consideram o Livro

do M��rmon, de Joseph Smith (ou do Anjo Moroni), o Ou-

tro Testamento de Jesus Cristo, mas, em P��rola de Grande

Valor e Doutrina e Assembl��ias, disp��em de escrituras inusitadas, das quais a atual hierarquia da Igreja se esquiva. Atual-

mente, considera-se que Joseph Smith tenha ascendido e se

transformado em Enoque, e talvez no maior dos anjos,

Metatron, ou Jav�� Menor, uma vis��o cabal��stica. N��o co-

nhe��o muito bem esses conceitos ora irradiados de Salt Lake



A S B U S C A S E O S Q U E B U S C A M J E S U S

41

City, mas Joseph Smith e Brigham Young acreditavam na

doutrina de que Ad��o e Deus s��o, em ��ltima inst��ncia, a

mesma pessoa. O humano e o divino se interpenetram na

vis��o de Joseph Smith de maneira muito mais radical do

que na insist��ncia da Igreja Cat��lica de que Cristo ��, ao

mesmo tempo, "homem verdadeiro" e "Deus verdadeiro".

Porque fi��is norte-americanos (inclusive esp��ritos elevados,

tais como Emerson e W h i t m a n ) acreditavam que o melhor

e mais primordial de si mesmos n��o era natural, e sim divi-

no, �� poss��vel, para muitos de n��s, interagir livre e intensa-

mente com Jesus. Talvez n��o seja esse o "Jesus hist��rico",

objeto das buscas dos estudiosos, mas, a meu ver, est�� bem

pr��ximo ao "Jesus vivo" que fala no Evangelho de Tom��.

C A P �� T U L O 3 As Palavras Enigm��ticas

de Jesus

Meus interesses neste livro s��o a personalidade, o car��ter e o

auto-reconhecimento de Jav�� e de Jesus. Tratando-se de

Jesus, tais quest��es s��o reveladas de modo grave em um dis-

curso que, segundo nos �� apresentado, encerraria as pr��-

prias palavras do Nazareno, palavras essas que s��o freq��en-

temente enigm��ticas, e talvez ainda mais ambivalentes do

que amb��guas.

N��o sabemos quantos idiomas Jesus falava: aramaico,

decerto, e, provavelmente, um pouco de grego dem��tico. ��

evidente que lia hebraico, e talvez soubesse falar a l��ngua.

Padre John P. Meier, autor de tr��s volumes magistrais pu-

blicados sob o t��tulo um tanto enganoso, A Marginal Jew

(Um judeu �� margem ��� a serem seguidos de um quarto

volume, bastante necess��rio), acertadamente, define Jesus

como "um g��nio judeu". �� poss��vel ir mais longe: Jesus foi o

maior dos g��nios judeus. �� como se a javista, ou Autora " J " ,

de algum modo, se fundisse com o Rei Davi, com os Profe-

tas (de Am��s a Malaquias), os Autores Sapienciais de J�� e

Co��let (Eclesiastes), os s��bios (de Hillel a Akiba), e com a



44

J E S U S E J A V ��

longa s��rie que vai desde Maim��nides, passando por Spinoza,

chegando a Freud e Kafka. Jesus �� o S��crates judeu, e supera o

mentor de Plat��o na qualidade de mestre supremo da sa-

pi��ncia obscura.

Amor, e n��o ironia, �� o que os fi��is buscam em Jesus.

Talvez estejam certos, pois o sentimento de Jesus est�� mais

para o afeto ir��nico do que para a ironia afetuosa. Quanto a

mim, mais disposto a conhecer do que a crer (seja l�� o que

for), sou, do ponto de vista cultural, judeu. Todavia, n��o

acredito na Alian��a, ao contr��rio de Jesus. A partir de S��o

Paulo, fi��is come��am a ver Jesus como o inventor de uma

Nova Alian��a, mas talvez tenham confundido o mensageiro

com a mensagem.

Jesus nos confronta a todos, fi��is e infi��is, com um

conjunto de enigmas. E como poderia ser diferente? O

islamismo aceita Maom�� como o maior dos Profetas, mas

confere a Jesus uma condi����o singular entre os precursores

do profeta extremo, definitivo, em uma descend��ncia que se

origina em Abra��o. Os judeus t��m com Cristo uma rela����o

negativa, mas n��o, necessariamente, com Jesus, que mal pode

ser responsabilizado pelo que o suposto cristianismo fez em

seu nome. Kierkegaard, outro mestre da ironia (por ele cha-

mada de "comunica����o indireta"), observa, em Julgue por

Si Mesmo!: "O cristianismo tudo conquistou ��� isto ��, foi

abolido!" Evidentemente, o s��bio dinamarqu��s queria di-

zer que s�� �� poss��vel se tornar crist��o em oposi����o �� ordem

estabelecida.

O presente livro questiona a cren��a crist�� de que J e s u s .

pretendia fundar o que se tornou a f�� abra��ada por S��o Pau-

lo. E atrevo-me a contender com Jesus, que se apresentava

como "o pr��prio Jav��", ao mesmo tempo que demonstrava

grande compreens��o dos riscos de tal postura. Quando o



A S P A L A V R A S E N I G M �� T I C A S D E J E S U S

45

recalcitrante Mois��s, no texto da Autora " J " , melancolica-

mente, indaga o nome do Deus que o est�� enviando ao Egi-

to, Jav�� proclama, com impon��ncia: Ehyeh asher ehyeh. A

tradu����o comum �� "Eu sou aquele que sou", a qual assim

explico: "Estarei presente onde e quando estiver presente."

A ironia terr��vel do trocadilho que Jav�� (Yahweh) faz com o

pr��prio nome �� que o oposto tamb��m se insinua: "Estarei

ausente onde e quando estiver ausente", inclusive por oca-

si��o das tr��s destrui����es de seu Templo, dos campos de ex-

term��nio alem��es e do G��lgota.

W i l l i a m Tyndale, m��rtir protestante, o maior dos tra-

dutores da B��blia (ao menos, desde S��o Jer��nimo), reitera as

palavras de S��o Paulo (contidas na vers��o autorizada da B��-

blia) ��� "Pois agora enxergamos atrav��s de um vidro escu-

ro" ��� de modo ainda mais contundente: "Agora enxerga-

mos atrav��s de um vidro, mesmo que se trate de um discurso

obscuro." "Discurso obscuro" traduz o sentido da palavra

grega que significa "enigma". Albert Schweitzer, pregando

em 1905, disse: "O corpo glorificado de Jesus est�� nos seus

aforismos." Existe, por��m, uma dificuldade que Jesus jamais

pretendeu impor: Quais s��o os seus aforismos aut��nticos? A

maioria dos estudiosos aplica crit��rios pessoais para identifi-

car tal autenticidade, mas seus pleitos n��o me convencem.

Cada um de n��s, especialmente nos Estados Unidos, tem o

seu Jesus. O meu remonta �� inf��ncia, �� primeira vez que li os

Evangelhos em vers��o i��diche, deixada por um mission��rio

na porta do apartamento em que mor��vamos, no Bronx. O

Novo Testamento em i��diche (ainda possuo o exemplar) cons-

titui, em si, uma ironia, refletindo dois mil anos de contu-

m��cia judaica, mas a tradu����o ��, a um s�� tempo, h��bil e

austera. Lembro-me tamb��m de uma disciplina sobre o Novo

Testamento grego, cursada com o professor Friedrich Solmsen,



J E S U S E J A V ��

46

na Universidade de Cornell; acabo de reler meu exemplar

do referido testamento, passados 55 anos, e surpreendi-me

com as observa����es indignadas que escrevi nas margens do

livro, principalmente em passagens de Paulo e no Evange-

lho de Jo��o. U m a pessoa cuja primeira l��ngua, a l��ngua ma-

terna, �� i��diche est�� bem habilitada a processar os ditos enig-

m��ticos de Jesus. Se tivesse nascido na Europa oriental dos

meus pais, Jesus teria falado i��diche e, provavelmente, seria

martirizado por alem��es, e n��o por romanos.

Hesito diante da id��ia de uma "tradi����o judaico-cris-

t��". Atualmente, a no����o se aplica a um determinado fen��-

meno sociopol��tico, e parece fazer parte da alian��a entre os

Estados Unidos e Israel. No presente livro, a express��o se

refere �� postura de Tiago, o Justo, irm��o de Jesus, e dos de-

mais integrantes de sua fam��lia e primeiros seguidores, que,

a contragosto, aceitaram a miss��o de Paulo junto aos gentios

e que, mais tarde, foram absorvidos pela Igreja Imperial de

Constantino, ou pelo islamismo.

2

J�� escrevi que as palavras de Jesus s��o, freq��entemente, enig-

m��ticas. O que �� um enigma? Pode ser uma esp��cie de cha-

rada verbal, ou algo incompreens��vel, ou at�� uma pessoa

inescrut��vel. Jesus fala por meio da primeira defini����o, seus

atos ensejam a segunda e ele pr��prio personifica a terceira. A

palavra "enigma" remonta ao grego, passando pelo latim, e

tem por base um voc��bulo grego que significa "f��bula".

Seja recorrendo a aforismos ou par��bolas, Jesus fala

atrav��s de enigmas. �� o poeta do enigma, antecipando Dante,

Shakespeare, Cervantes, John Donne e at�� mesmo Lewis

Carroll e James Joyce, bem como Kierkegaard, Emerson,



A S P A L A V R A S E N I G M �� T I C A S D E J E S U S

47

Nietzsche, Kafka e muitos outros pertencentes �� tradi����o

liter��ria e espiritual do Ocidente. Para avan��ar no entendi-

mento dos ditos enigm��ticos de Jesus, �� preciso definir "enig-

ma", "aforismo" e "par��bola", da melhor maneira poss��vel: 1. ENIGMA

A palavra significa "quest��o ou opini��o cuja resposta ou re-

futa����o requer perspic��cia". Outro sentido �� "perplexidade,

ou mist��rio", e um terceiro sentido, "pessoa inescrut��vel,

por exemplo, Jesus, ou a figura ficcional, Hamlet".

2. A F O R I S M O

Por via do latim e do franc��s, a palavra remonta a um voc��-

bulo grego que significa "defini����o", "ou estabelecimento

de um horizonte". Originalmente, o substantivo se referia a

uma asser����o breve, de autoria de algum autor ou orador

cl��ssico, mas passou a designar qualquer m��xima, ou precei-

to sucinto.

3. PAR��BOLA

Atrav��s da l��ngua francesa, o substantivo "par��bola" origi-

na-se em um termo latino que significa "compara����o", o

que ensejou sentidos tais como "semelhan��a", "prov��rbio" e

"ditos m��sticos"; por��m, basicamente, o voc��bulo remete a

uma narrativa breve cuja li����o tem car��ter moral-espiritual.

Os enigmas de Jesus, no mais das vezes, circundam a

quest��o da real identidade do pr��prio Jesus. Em dados mo-

mentos, ele os verbaliza como sortil��gios contra Satan��s.

Sortil��gios s��o enigmas postos em pr��tica, m��gicos t��o-so-

mente porque, de quando em vez, funcionam. A fun����o dos

enigmas enunciados por Jesus �� promover a sua grandiosa



J E S U S E J A V ��

48

jornada de auto-identifica����o. N��s constatamos que, quanto

mais tentamos busc��-lo, o nosso eu verdadeiro se perde na

dist��ncia. A apoteose de Jesus �� que a sua identidade genu��-

na talvez tenha se mostrado fatal, pois ele poderia, perfeita-

mente, ter sido o leg��timo herdeiro dav��dico do Reino de

Israel e Jud��, e n��o de um reino fora deste mundo. Visto que

a fam��lia de Herodes assumira autoridade mon��rquica, qual-

quer descendente leg��timo de Davi sempre correria perigo.

O Hamlet shakespeariano, herdeiro da Dinamarca, parece-

me ofuscado pelo Jesus de W i l l i a m Tyndale, admiss��o na

qual sigo David Daniell, bi��grafo do tradutor, her��i e m��r-

tir protestante, inventor de um estilo de prosa inglesa t��o

austero quanto sublime.

Mas por que Jesus costumava falar por meio de enig-

mas? Suas par��bolas seguem e aperfei��oam a tradi����o hebraica:

o pr��prio Jav��, ao longo do texto da Autora " J " , contenta-se

com trocadilhos enigm��ticos, perguntas ret��ricas irrespon-

d��veis e rompantes jocosos que beiram uma f��ria assustado-

ra. "Tal pai, tal filho", responderia, com raz��o, o fiel. Quem

escreveu o Evangelho de Marcos, o primeiro dos Sin��ticos,

era esse tipo de fiel, e voltou a Jav��, ao que o Deus tem de mais

misterioso, a fim de sugerir algo acerca do Jesus secreto.

Paulo e os outros tr��s autores (ou tradi����es) do Evan-

gelho t��m os seus admiradores, sob o aspecto liter��rio, e, em

parte, merecem tal admira����o; contudo, o texto de Marcos

se destaca como enigma dos enigmas, sempre resistente ��

an��lise. A obra de Frank Kermode intitulada The G��nesis of

Secrecy (A g��nese do mist��rio, 1979) continua sendo a ten-

tativa mais brilhante de "pegar" as ambig��idades de Mar-

cos. Relendo o livro de Kermode, passado um quarto de

s��culo, sinto-me estimulado a complementar a an��lise pio-

neira ali contida, desviando a aten����o para conjecturas acer-



A S P A L A V R A S E N I G M �� T I C A S D E J E S U S

49

ca da psicologia de Jesus. At�� mesmo as mais sofisticadas

e s p e c u l a �� �� e s p s i c o s s e x u a i s f r e u d i a n a s p a r e c e m - m e irrelevantes no caso de Jesus, porque sua rela����o com a m��e

e com o suposto pai �� sumamente desprendida; a an��lise

psicol��gica que fa��o aqui, portanto, deve mais a W i l l i a m

James do que a Sigmund Freud, embora eu considere o pai

da psican��lise a maior encarna����o do g��nio judaico desde

Jesus. Tratando-se de uma consci��ncia dedicada somente a

Jav��, a riqueza das experi��ncias religiosas pode ser mais

reveladora do que as vicissitudes do instinto psicossexual.

M e u falecido amigo Hans Frei concluiu seu livro The

Identity of Jesus Christ (A identidade de Jesus Cristo, 1975)

alertando-nos que sempre permanecer��amos a certa dist��n-

cia de Jesus, "porque ele vive para Deus ��� n��o para o tem-

po". Kierkegaard fez a mesma observa����o, ainda que com

uma duplicidade extraordin��ria, ressaltando que os disc��pu-

los contempor��neos de Jesus recebiam-lhe o amor sem con-

tudo compreender tal amor, pois s�� Jesus compreende a si

mesmo com perfei����o. �� temer��rio desafiar Kierkegaard, e

as perplexidades de Jesus s��o ainda mais temer��rias.

Outro a m i g o j�� falecido, Edward Shils, no livro

Tradition (1981), segue M a x Weber, ao considerar Jesus o

carism��tico supremo:

Foi a imagina����o prof��tica ou carism��tica de Jesus que

determinou o seu sucesso. Ele possu��a o dom de suscitar

nos outros o reconhecimento ou a atribui����o de qualida-

des carism��ticas. Jesus alcan��ou tal objetivo em virtude

da originalidade de sua mensagem e da cren��a nessa mes-

ma originalidade. Precisava estabelecer a tradi����o como

ponto de partida; precisava de um p��blico que dispuses-



J E S U S E J A V ��

50

se da mesma tradi����o como ponto de partida. Nesse sen-

tido, ele deu continuidade e desenvolveu a tradi����o, mas,

nesse particular, o mesmo pode ser dito dos rabinos. Je-

sus desenvolveu a tradi����o de modo diferente e mais ori-

ginal, e sua mensagem foi recebida para muito al��m da

Palestina e dos judeus. �� poss��vel que a receptividade

por parte desse bloco mais numeroso de convertidos, re-

crutados junto ao paganismo e n��o apenas ao juda��smo,

tenha resultado de uma mudan��a de circunst��ncias, bem

como da relativa fragilidade das tradi����es do paganis-

mo, diante de um arcabou��o de pensamento religioso

mais aperfei��oado.

Mas ser�� que Jesus acreditava na originalidade de sua

mensagem? N��o seria tal mensagem id��ntica �� do seu mentor,

Jo��o Batista? E seria ela, de fato, distinta da postura de Hillel?

At�� que ponto �� poss��vel estabelecer distin����es entre o

carism��tico e as proclama����es feitas por ele?

Para a maioria dos norte-americanos, a despeito de origem

ou denomina����o religiosa, Jesus �� igualmente ��nico e uni-

versal. Ter�� ele tomado o lugar outrora ocupado por Deus

Pai? Em caso afirmativo, a religi��o norte-americana ter�� se

esquivado do preceito freudiano segundo o qual toda reli-

gi��o se reduz ao desejo pelo pai. Faz algum tempo, venho

rejeitando a no����o marxista de que a religi��o �� o ��pio da

humanidade. Nos Estados Unidos, religi��o �� a poesia da hu-

manidade, tanto a m�� quanto a boa. Ainda assim, vivemos a

Era do Jesus norte-americano, onipresente e intensamente

pessoal. A maioria das pessoas mal sabe ler, e muitas passa-

gens do Novo Testamento s��o dif��ceis, baseando-se em alu-



A S P A L A V R A S E N I G M �� T I C A S D E J E S U S

51

soes constantes �� B��blia hebraica e no "cumprimento" de

preceitos contidos na referida B��blia, que, por seu turno,

n��o �� a mais simples das estruturas verbais. Extensa e mag-

n��fica, a Tanak pouco se assemelha ao "Antigo Testamen-

to", exibido em triunfo romano pelo filho ressentido, o

"Novo Testamento". Todavia, o imprevis��vel e abrupto Je-

sus do Evangelho de Marcos chega a ser sereno e coerente,

comparado ao Jav�� dos trechos mais antigos de G��nesis, ��xodo

e N��meros. O Rei Lear de Shakespeare est�� para Hamlet,

assim como o Jav�� da Autora " J " est�� para o Jesus de Marcos.

Onde fixar o significado do Jesus de Marcos? Kermode,

sagazmente, admira a narrativa de Marcos por ocultar, ao

menos, tanto quanto revela, engendrando mist��rio ao mes-

mo tempo que proclama a boa nova. O Jesus de Marcos n��o

se interessa muito pelos gentios, e mesmo entre os judeus ele

procura salvar apenas um pequeno grupo. Sua postura de

mestre demonstra tamanha complexidade que, nos Estados

Unidos, hoje em dia, ele n��o sobreviveria �� avalia����o insti-

tucional, seja de natureza acad��mica ou religiosa. Esse Jesus

segue Isa��as, ao excluir os que n��o ouvem suas verdades ou

compartilham de suas vis��es. Algum profeta irado, ao estilo

de Elias ou Jo��o Batista, seria um precursor demasiadamen-

te simples para ser seguido por Jesus. Ele se volta para Isa��as,

o Plat��o entre os profetas, na condi����o de verdadeiro

precursor.

O Evangelho de Marcos 4, 11-12 nos apresenta Jesus

parafraseando Isa��as 6, 9-10, sem que Marcos identifique a

fonte. Mateus, entretanto, confere o devido cr��dito, por ci-

ta����o direta. Kermode explica a diferen��a como um reflexo

do descontentamento de Mateus diante da "ferocidade som-

bria do Jesus de Marcos". Caberia tamb��m definir o Jesus

de Marcos como afrontoso em sua f��ria. Cito Isa��as a partir



J E S U S E J A V ��

52

da Tanak publicada pela Jewish Publication Society, e Mar-

cos a partir da vers��o oficial revista da B��blia:

Ouvi, ent��o, a voz do Senhor que dizia: "Quem �� que vou

enviar? Quem ir�� de nossa parte?" Eu respondi: "Aqui

estou. Envia-me!" Ele me disse: "V�� e diga a esse povo:

'Escutem com os ouvidos, mas n��o entendam;

Olhem com os olhos, mas n��o compreendam!'

Torne insens��vel o cora����o desse povo,

Ensurde��a os seus ouvidos,

Cegue seus olhos,

Para que, vendo com os olhos

E ouvindo com os ouvidos,

Ele n��o compreenda com a mente,

Se arrependa e se salve."

Isa��as 6, 8-10

E Jesus disse para eles: "Para voc��s foi dado o mist��rio do

Reino de Deus; para os que est��o fora tudo acontece em

par��bolas, para que olhem, mas n��o vejam, escutem, mas

n��o compreendam, para que n��o se convertam e n��o se-

jam perdoados."

Marcos 4, 11-12

A ironia de Jav�� n��o deixa de ser caracter��stica, tampouco

a de Jesus. Ser�� que tais ironias colidem? A de Jesus alude a

Isa��as 6, 9-10, mas o impacto n��o �� banalizado pela repeti-

����o, assim como a refer��ncia que Robert Frost, em seu not��-

vel poema, "Diretiva", faz a Marcos tampouco �� banalizada

pelos precursores b��blicos:



A S P A L A V R A S E N I G M �� T I C A S D E J E S U S

53

Guardei-o no oco da raiz

De um velho cedro, �� beira d'��gua,

Um c��lice, semelhante ao Graal, encantado,

Para que as pessoas erradas n��o o encontrem,

E n��o possam ser salvas, pois, como diz S��o Marcos,

N��o devem ser.

Em cap��tulo posterior, no qual abordo o Evangelho de

Marcos, retomo essas perplexidades.

3

Ao se valer de enigmas, Jesus expande e modifica as tonali-

dades da Tradi����o Oral de seu povo. Sob esse aspecto, S��o

Paulo tem sido o pior dos guias, ao afirmar: "A letra mata, e

o Esp��rito �� que d�� a vida" (2 Cor��ntios 3, 6 ) . A no����o se

contrap��e a Jesus de Nazar��, que nos diz: "nem sequer uma

letra ou v��rgula ser��o tiradas da Lei, sem que tudo aconte��a"

(Mateus 5, 18). Mateus, evidentemente, judeu (a exemplo

de Marcos, mas n��o de Lucas), em absoluto, n��o nos oferece

um Jesus antinomiano, mas seu protagonista tampouco exi-

be a f��ria do her��i de Marcos, que tamb��m �� sempre o galileu

empedernido, devotado somente a Jav��. H�� diversas vers��es

de Jesus fora do Novo Testamento can��nico, mas esta, a

meu ver, parece bem menos interessante do que as v��rias (ao

menos sete) vers��es de Jesus presentes no livro da Nova Alian-

��a, imbricadas nos quatro Evangelhos, em Paulo, na Ep��sto-

la de Tiago (irm��o de Jesus) e no Apocalipse. O Jesus dos

Atos dos Ap��stolos �� t��o similar ao de Lucas que �� poss��vel

aceitar a avalia����o dos especialistas, de que os dois textos

foram compilados pelo(s) mesmo(s) autor(es) ou organiza-



J E S U S E J A V ��

54

dor (es). Conquanto seja grande o meu desagrado em rela����o

a Paulo e ao Evangelho de Jo��o, este flagrantemente contr��-

rio aos judeus, apraz-me refletir sobre o Jesus por ambos

representado, pois sua personalidade, seu car��ter e a cons-

ci��ncia de identidade por ele demonstrada mal podem ser

percebidas sem, de algum modo, recorrermos a Paulo e

Jo��o.

A primeira observa����o que me cumpre fazer �� que, em

sua totalidade, o Novo Testamento �� obcecado por uma re-

la����o angustiada com a Lei e os Profetas, e procura resolver

a complexa ansiedade resultante dessa influ��ncia devastado-

ra por meio da desleitura mais forte e criativa constatada em

toda a hist��ria liter��ria e textual. O Alcor��o, at�� onde eu sei,

�� o rival que mais se aproxima. Nada na literatura laica,

nem mesmo o triunfo de Shakespeare sobre tudo que o pre-

cedeu, pode se equiparar a Paulo e seus sucessores, tratando-

se da intricada empresa de transformar a B��blia hebraica, o

mais forte dos textos (excetuando-se a obra de Shakespea-

re), no "Antigo Testamento". O Novo Testamento �� um

feito liter��rio not��vel (apesar de demonstrar altos e bai-

xos), mas nenhum leitor secular (que seja letrado) poder��

considerar a sua emin��ncia est��tica compar��vel ��quela da

B��blia hebraica (�� exce����o de Lev��tico e das passagens de

N��meros n��o atribu��das �� Javista). W i l l i a m Faulkner de-

monstrava prefer��ncia pelas hist��rias imensamente varia-

das da B��blia hebraica, comparada ao Novo Testamento

grego, que se esmera para relatar uma hist��ria, nada mais

do que uma hist��ria.

Em que pese toda a teologia crist��, bem como o for-

mid��vel Dante e seus dedicados exegetas, at�� o presente,

nenhum texto posterior logrou "consumar" um anterior, nem



A S P A L A V R A S E N I G M �� T I C A S D E J E S U S

55

mesmo "corrigi-lo". A Rep��blica, de Plat��o, trava batalha com

A Il��ada, de Homero, e Plat��o �� gloriosamente derrotado.

Ulisses, de James Joyce, corajosamente, confronta A Odis-

s��ia, de Homero, e Hamlet, de Shakespeare, e sofre uma derrota sublime. Em termos hist��ricos, tanto o Novo Testa-

mento quanto o Alcor��o eclipsaram a B��blia Hebraica, mas

tal sucesso n��o �� est��tico nem, necessariamente, espiritual, e

talvez Jav�� ainda n��o tenha pronunciado a palavra final a

respeito da quest��o. Todos sabemos que a hist��ria acompa-

nha os grandes batalh��es e, durante algum tempo, privilegia

os vencedores das grandes guerras, mas a hist��ria �� um ironista

cujo g��nio quase se iguala ao de Jesus, e os sinais de uma

guerra apocal��ptica entre a cristandade (chamemo-la assim)

e o mundo do isl�� s��o hoje onipresentes.

4

Sete vers��es de Jesus podem ser consideradas, em sua prov��-

vel ordem cronol��gica: Paulo, Marcos, Mateus, Lucas e Atos,

Tiago, Jo��o e o Apocalipse. Proponho que o esquema cro-

nol��gico seja um tanto irrelevante, visto que algumas dessas

vers��es de Jesus s��o aut��nomas, pouco ou nada devendo ��s

que as antecederam. Tiago, o Justo, austero e sublime irm��o

de Jesus, demonstra total independ��ncia, pois a sua ep��stola

not��vel baseia-se em um Cristo inteiramente impl��cito, cuja

boa nova j�� foi compreendida pelos que o ouviram, sendo a

respectiva "ep��stola", para todos os efeitos, um serm��o

ebionita, ou seja, judeu-crist��o. Embora os estudiosos da-

tem a Ep��stola de Tiago em um per��odo pr��ximo do final do

primeiro s��culo, penso que foi composta menos de uma d��-

cada ap��s a destrui����o de Jerusal��m e do Templo pelos ro-



J E S U S E J A V ��

56

manos. Dirigida, nitidamente, aos crist��os hebreus, confor-

me j�� indiquei, talvez tenha sido obra de algum disc��pulo

de Tiago. Nesse caso, esse suposto seguidor de Tiago, o

Justo, escreveu no melhor estilo grego, e assim poderia ser

egresso do juda��smo alexandrino, juntando-se, mais tarde,

ao grupo de Tiago.

Tiago foi morto entre os anos 62 e 67 da Era Comum.

N��o me interessa muito saber quem escreveu a ep��stola, onde

ou quando, uma vez que a postura e a aura do cristianismo

judaico jamais foram t��o bem explicadas do que nesse elo-

q��ente serm��o. E, cabe lembrar, Tiago era reverenciado por

uma variedade t��o grande de grupos, desde gn��sticos at��

crist��os gentios, que o autor da ep��stola n��o precisaria ser

algu��m que conhecesse o santo s��bio pessoalmente.

N��o h�� refer��ncias expl��citas a Jesus (ou a Paulo) na

Ep��stola de Tiago ��� se bem que a voz de Jesus reverbera,

diretamente, em 2 , 8 ���, mas o exemplo de Jesus �� um pres-

suposto constante. Considerando a vis��vel oposi����o a Pau-

lo, n��o me impressionam os argumentos de especialistas

que sugerem a possibilidade de u m a sutil reconcilia����o

entre Tiago e Paulo. O ataque anti-semita de Martinho

Lutero a Tiago pesa muito mais: Lutero reagiu com f��ria ��

asser����o da ep��stola, de que "um homem se justifica pelas

obras, e n��o apenas pela f��" (2, 4 ) , rep��dio flagrante ��s pala-

vras de Paulo: "Um homem se justifica pela f��, e n��o pelas

obras" (Romanos 3, 2 8 ) .

M e u interesse aqui �� quanto �� vis��o de Jesus internali-

zada na ep��stola, um Jesus para o qual Tiago retorna, ap��s a

Ressurrei����o, reconciliando-se com seu irm��o singular. ��

vi��vel que a tradi����o oral, supostamente, ebionita, tenha

guiado o Jesus que transparece entre as senten��as do serm��o.

Esse Jesus �� um profeta que integra a grande prociss��o ini-



A S P A L A V R A S E N I G M �� T I C A S D E J E S U S

57

ciada com Am��s, na Tanak, qui����, oito s��culos antes da Era

Comum. Em Am��s, Jav�� declama:

Detesto e desprezo as festas de voc��s;

N��o me apaziguam as suas reuni��es solenes.

Ainda que me ofere��am incenso ��� ou oferendas ���

N��o as aceitarei;

N��o prestarei aten����o

��s suas oferendas gordas.

Poupem-me do barulho dos seus c��nticos,

Nem quero ouvir a m��sica dos seus ala��des.

Deixem que a justi��a brote qual ��gua,

E o direito corra qual riacho que n��o seca.

5, 21-24

A tradu����o a cargo da Jewish Publication Society, cor-

reta e vigorosa, carece da eloq����ncia da vers��o autorizada da

B��blia:

Deixem que o julgamento corra qual ��gua, e o direito

qual um grande rio.

Julgamento e direito s��o centrais a Tiago, e ao Jesus que

ele nos apresenta:

Atentem: o pagamento dos trabalhadores que ceifaram os

seus campos, e que por voc��s foi retido por fraude, con-

clama; e os brados dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do

Senhor.

5 , 4

Jesus prometeu o reino aos pobres, e Tiago a eles se

refere como "herdeiros" do reino que h�� de vir, quando o



J E S U S E J A V ��

58

Senhor ressuscitado voltar. "Sapi��ncia" �� o dom divino que

Tiago implora, e, para ele e Jesus, a ess��ncia da Lei est�� em

Levitico 19, 18:

N��o seja vingativo nem guarde rancor contra os seus

concidad��os. Ame o seu pr��ximo como a si mesmo: eu

sou o Senhor.

C A P �� T U L O 4 O Testamento Tardio

Ler o Novo Testamento, na ��ntegra, e na ordem em que os

evangelhos foram dispostos canonicamente, ��, para mim,

uma experi��ncia ��nica, tanto do ponto de vista liter��rio quan-

to do espiritual. As Escrituras crist��s t��m uma rela����o com a

B��blia hebraica bastante diversa daquela que existe entre

Virg��lio e Homero, entre Shakespeare e Chaucer, ou Shakes-

peare e a vers��o inglesa da B��blia. Virg��lio tinha conheci-

mento de Lucr��cio e de outras obras romanas, bem como de

uma ampla gama de literatura grega, inclusive os "moder-

nistas" hel��nicos, ao passo que Shakespeare foi ecl��tico, uma

esponja que absorvia riquezas que iam desde Ov��dio a

Christopher Marlowe. Mas Yeshu�� de Nazar�� preocupava-

se com os Ensinamentos Prof��ticos, que eram os textos prin-

cipais da sua pr��pria gente. Seus seguidores, fossem eles ju-

deus ou crist��os gentios, n��o tinham a menor inclina����o para

descartar os escritos que haviam alimentado seu Senhor Je-

sus Cristo. Por��m, gradativamente, a atitude de tais segui-

dores em rela����o ��s Escrituras Hebraicas passou a ser carac-

terizada por profunda ambival��ncia.



J E S U S E J A V ��

60

Essa oscila����o entre amor e ��dio aos "judeus" tem ins-

pirado uma longa hist��ria de viol��ncia. Paulo, fariseu de for-

ma����o, grosso modo, n��o apresenta a intensidade virulenta de

Jo��o; no entanto, instaurou as leituras equivocadas da B��blia

hebraica que culminaram em Jo��o. Para Paulo, a Ressurrei-

����o, ou o evento de Cristo, proclamou a morte da Tor��:

uma vez que o fim de toda a exist��ncia estava t��o pr��ximo, a

lei moral tornou-se irrelevante. Dois mil anos depois de Pau-

lo, �� um tanto estranho absorver algo que n��o pode ser cha-

mado de simples atraso decis��rio. A Ressurrei����o e a parusia

(a volta de Cristo), contempladas do s��culo XXI da Era Co-

mum, parecem existir em mundos bastante diferentes.

Donald Akenson ressalta o paradoxo de que o cristia-

nismo foi inventado no primeiro s��culo da Era C o m u m ,

antes que o juda��smo rab��nico se desenvolvesse, no s��culo II:

Paulo precede Akiba. Os s��bios normativos do s��culo II n��o

demonstram qualquer continuidade tratando-se dos fariseus,

ou, ao menos, inexistem evid��ncias que estabele��am tal rela-

����o. Contudo, a mishnah, codifica����o rab��nica da Lei Oral,

nada tem de tardia, e n��o apresenta ambival��ncia em face da

Tor��, ou Lei Escrita, em grande parte, complementada pela

pr��pria mishnah. Akiba cometeu um erro crasso ao procla-

mar o guerreiro her��ico ��� Bar Kochba ��� messias, e a rebe-

li��o comandada pelos dois contra Roma, de 132 a 135 da

Era Comum, aniquilou mais judeus do que as fatalidades

registradas sessenta anos antes, quando da destrui����o do Tem-

plo, embora muitos dos rebeldes, ao menos, tenham morrido

lutando. O imperador Adriano, assustado com o n��mero de

perdas sofridas pelas legi��es em combate, anunciou a vit��ria

em uma mensagem ao Senado romano que omitia a f��rmu-

la de praxe: "O Imperador e o Ex��rcito est��o bem." Akiba

ou Jesus Cristo? O juda��smo, por volta do s��culo IV da Era



O T E S T A M E N T O T A R D I O

61

Comum, tinha trocado inimigos pag��os romanos por opres-

sores crist��os romanos.

Na condi����o de cr��tico, aprendi a confiar na advert��ncia que

introduz o primeiro volume dos Ensaios de Emerson ��� n��o

existe hist��ria, apenas biografia ���, bem como na percep����o

emersoniana de que nossas preces s��o enfermidades da von-

tade, e nossas cren��as, enfermidades do intelecto. O Novo

Testamento �� mito e f��; n��o se trata de relato factual, e os

escritos de Josefo, desde logo indignos de confian��a, ainda

foram falsificados por autores crist��os. Jesus carece tanto de

hist��ria quanto de biografia, e n��o temos como saber quais

dos seus ditos s��o aut��nticos. Para quem aceita a Encarna����o,

nada disso importa. Afinal, o juda��smo �� igualmente incer-

to: ter�� o ��xodo, de fato, ocorrido? Os milagres de Cristo,

�� semelhan��a dos de Jav��, s�� convencem os convertidos.

Apenas um n��mero reduzido dos meus contempor��-

neos demonstra suficiente liberdade interior para escrever

sobre textos religiosos antigos sem manifestar as suas respec-

tivas inclina����es espirituais. Entre eles estariam inclu��dos

Donald Harman Akenson, Robin Lane Fox e F. E. Peters. A

meu ver, as autoridades mais confi��veis no que respeita �� vida

de Jesus s��o os j�� mencionados John P. Meier e E. P. Sanders,

respectivamente, cat��lico e protestante; todavia, sendo ambos

homens de f��, compartilham relativa miopia, especialmente

quando esperaram que, de certa maneira, o Novo Testamen-

to pudesse revelar o Jesus verdadeiro ou hist��rico.

Nenhum outro estudioso �� t��o esclarecedor no que

concerne ��quele velho cavalo de batalha ��� "A Busca do

Jesus Hist��rico" ��� do que Akenson. Conforme comenta,



J E S U S E J A V ��

62

com toda a seguran��a, o pr��prio Akenson, houve de fato um

Yeshu�� de Nazar�� que, em algum momento, foi por seus

seguidores transformado em Jesus Cristo. Lamentavelmen-

te, quase tudo o que sabemos a seu respeito encontra-se no

Novo Testamento can��nico, ou em textos crist��os n��o-

can��nicos. A partir dos registros feitos por Josefo, historia-

dor judeu, sabemos apenas que Yeshu�� foi crucificado, por

ordem de P��ncio Pilatos, que o irm��o de Yeshu�� ��� Tiago,

o Justo ��� foi mais tarde apedrejado at�� a morte, por ordem

do Sin��drio judaico, e que Jo��o Batista, predecessor de

Yeshu��, foi executado pelos seguidores de Herodes.

Akenson faz uma avalia����o est��tica, mais elevada do

que sou capaz de realizar, quanto �� unidade do Novo Testa-

mento. No seu julgamento, trata-se de uma fonte ��nica e,

com base nessa fonte, podemos vislumbrar um ou dois as-

pectos de Yeshu�� de Nazar��. Ap��s muitas leituras do Novo

Testamento e de estudos desenvolvidos pelos melhores es-

pecialistas no assunto, infelizmente, n��o consigo vislumbrar,

com clareza, nenhum desses aspectos. Suponho, acompa-

nhando Akenson, que Yeshu�� tenha sido um fariseu, pois,

ironicamente, isso explicaria a f��ria antifarisaica do Novo

Testamento, que precisa distinguir esse fariseu especial de

todos os demais. Al��m desta, n��o tenho outras ila����es.

O procedimento central do Novo Testamento �� a con-

vers��o da B��blia hebraica em Antigo Testamento, a fim de

anular qualquer estigma de retardo que pudesse ser imputa-

do �� Nova Alian��a, quando comparada �� "Antiga" Alian��a.

Maom�� refere-se, constantemente, a personagens e hist��rias

b��blicas, decerto, desconhecidas dos que ouviam suas recita-

����es. Repetidas vezes, tais refer��ncias nos parecem distorcidas,

pois talvez fossem embasadas em fontes judaico-crist��s de

que n��o mais dispomos. Todas essas alus��es s��o aleat��rias,



O T E S T A M E N T O T A R D I O

63

n��o program��ticas. Embora judeus e crist��os fossem "povos

do Livro", aquele livro-fonte n��o era nem a Tanak nem o

Novo Testamento. Seja l�� o que fosse, n��o provocou ansie-

dade em Maom��, que n��o depende de cren��as antigas para

delinear o contorno do discurso de Al��. O chamado "Selo

dos Profetas" (Maom��) corrige vis��es anteriores, �� medida

que as percorre, mas estas lhe servem de mat��ria-prima e

n��o de dire����o.

A rela����o dos autores can��nicos do Novo Testamento

com a Tor�� e os Profetas �� bastante diferente, pois o Messias

desses autores �� considerado como concretiza����o da narrati-

va que vai de G��nesis a Reis, fundida na Babil��nia, e de

todos os mensageiros, desde Mois��s, passando por Elias,

chegando at�� Malaquias. Refazer a ordem em que se encon-

tram as partes da Tanak, de modo que o Antigo Testamento

seja encerrado por Malaquias, e n��o por 2 Cr��nicas, �� ape-

nas o primeiro passo da revis��o. O Novo Testamento desti-

na-se a operar como um prisma atrav��s do qual o texto pre-

cursor deve ser l i d o , revisto e i n t e r p r e t a d o . P a u l o ��

especialmente afeito a esse tipo de revis��o, mas todos os que

o seguem, at�� os autores de Hebreus e do Apocalipse, s��o

extremamente versados nas artes da usurpa����o, invers��o e

apropria����o. Seja como for que julgarmos o Novo Testa-

mento, como literatura ou espiritualidade, trata-se, histori-

camente, da reescrita mais bem-sucedida de todos os tem-

pos. U m a vez que os crist��os, pelo mundo afora, atualmente

superam os judeus �� propor����o de mais de mil para um,

pode-se dizer (se for o caso) que o Novo Testamento resga-

tou a B��blia hebraica, mas tal afirma����o seria err��nea. Os

crist��os resgataram o Velho Testamento deles, diria eu, to-

mando emprestado um grifo de Jaroslav Pelikan.



J E S U S E J A V ��

64

A seq����ncia que compreende G��nesis e Reis configu-

ra uma narrativa ficcional que se faz passar por hist��ria. Ap��s

os desastres da Guerra Judaica e da rebeli��o comandada por

Bar Kochba, os judeus abandonaram a narrativa e a hist��ria,

conforme demonstrou Yosef Yerushalmi, com eloq����ncia,

em Zakhor, digress��o acerca da mem��ria judaica. A literatu-

ra rab��nica, por mais impressionante que seja, particular-

mente no Talmude babil��nico, n��o se assemelha �� Tanak.

O que hoje em dia chamamos de juda��smo tem muito mais

a ver com escritos p��s-b��blicos. A usurpa����o da B��blia

hebraica pelo Novo Testamento constitui uma esp��cie de

trauma que perdura no juda��smo. O coment��rio prevaleceu

sobre a narrativa. No s��culo XX, eu apontaria Kafka, Freud

e Gershom Scholem, na condi����o de maiores figuras da

cultura liter��ria judaica, mas at�� mesmo Kafka foi mais

parabolista do que narrador. Agora, na part��cula do novo

s��culo que me resta ver, ainda n��o est�� claro se o nosso Kafka

��� Philip Roth ��� ��, basicamente, exegeta ou contador de

hist��rias.

Aos 74 anos continuo a buscar respostas para o enigma do

processo atrav��s do qual se opera a influ��ncia, seja na litera-

tura ficcional ou nos textos religiosos. Este livro �� o ponto

m��ximo de algo que teve in��cio, para mim, meia vida atr��s,

quando, no dia em que completei 37 anos, despertei de um

pesadelo e comecei a escrever um ensaio intitulado "O

Querubim Protetor ou a Influ��ncia Po��tica". O ensaio, in-

tensamente revisto, foi publicado seis anos mais tarde, como

primeiro cap��tulo de um livro n��o muito extenso chamado

A Ang��stia da Influ��ncia (1973). Embora n��o tenha sido in-



O T E S T A M E N T O T A R D I O

65

clu��do na vers��o final do livro, lembro-me de ter escrito na

ocasi��o um texto sobre a ang��stia da influ��ncia sofrida pelo

Novo Testamento, em rela����o �� B��blia hebraica, assunto do

presente cap��tulo, "O Testamento Tardio".

Constatei que minha id��ia ��� a ang��stia da influ��ncia

��� costuma ser incompreendida, o que �� natural, uma vez

que baseio a no����o em um processo a que c h a m o de

"desleitura", termo que n��o quer dizer dislexia. Obras pos-

teriores realizam a desleitura de obras anteriores; quando a

desleitura �� forte a ponto de ser eloq��ente, coerente e con-

vincente para muitos leitores, ent��o, ela perdura e, por ve-

zes, prevalece. O Novo Testamento, freq��entemente, reali-

za uma desleitura da B��blia hebraica e, com toda a certeza,

convenceu multid��es. Jack Miles, em um livro surpreendente,

God: A Biography, oferece uma f��rmula ��til para entender a

transforma����o que o Novo Testamento opera na Tanak, con-

vertendo-a em Antigo Testamento, e define o processo como

"a leitura mais forte feita de um cl��ssico, ao longo de toda a

hist��ria liter��ria". N��o concordo com a afirma����o do exu-

berante Akenson, de que o Novo Testamento se aproxima

da grandeza est��tica da Tanak, mas reconhe��o a presen��a,

ainda que intermitente, de maravilhas em Paulo e Marcos,

bem como (ai de mim!) em todo o Evangelho de Jo��o. M u i -

tas dessas maravilhas, no entanto, s��o cria����es de W i l l i a m

Tyndale, o ��nico rival verdadeiro de Shakespeare, Chaucer

e Walt Whitman, quanto �� posi����o de autor mais talentoso

da l��ngua inglesa. O Novo Testamento, na tradu����o de

Tyndale, �� a base da vers��o autorizada da B��blia, quer dizer,

da chamada B��blia do Rei Jaime, e ainda figura (um tanto

reduzido) na vers��o oficial revista. Somente a prosa shakes-

peariana sobrevive �� compara����o com a de Tyndale, e parte



J E S U S E J A V ��

66

da minha paix��o pelo magn��fico Sir John Falstaff decorre

das par��dias que o Cavaleiro Gordanchudo faz ao estilo de

Tyndale.

Influ��ncia �� uma esp��cie de influenza, contamina����o

que outrora se pensava verter das estrelas. A influenza de

Marcos foi transmitida pela Autora " J " , ou Javista; o cont��-

gio de Paulo e Jo��o decorre tanto da Lei quanto dos Profe-

tas. O grande cr��tico Northrop Frye (que me contaminou)

disse-me que a capacidade do leitor pertencente a uma ��po-

ca posterior perceber tal "contamina����o" dependeria, intei-

ramente, de temperamento e das circunst��ncias. Com am��-

vel perf��dia, respondi que ang��stia da influ��ncia n��o era,

primariamente, uma quest��o de cont��gio entre indiv��duos,

mas uma rela����o entre obras liter��rias. Por conseguinte, an-

g��stia de influ��ncia seria resultado, e n��o causa, de uma for-

te desleitura. Com isso, separamo-nos (intelectualmente) para

sempre, embora, na velhice, eu saiba apreciar a ironia de que a

minha cr��tica est�� para a dele, assim como o Novo Testamen-

to est�� para a Tanak, ou seja, espiritualmente, trata-se do in-

verso paradoxal das nossas diferen��as espirituais.

A apropria����o efetuada pelo Novo Testamento ocorre

atrav��s de uma reestrutura����o dr��stica da Tanak. Eis a estru-

tura original da Tanak, comparada �� do Antigo Testamento

crist��o:

ANTIGO TESTAMENTO TANAK

G��nesis G��nesis

��xodo ��xodo

Lev��tico Lev��tico

N��meros N��meros

Deuteron��mio Deuteron��mio

Josu�� Josu��



O T E S T A M E N T O T A R D I O

67

Ju��zes

Ju��zes

Ruth

1 Samuel

1 Samuel

2 Samuel

2 Samuel

Reis

Reis

Isa��as

Jeremias

Ezequiel

Doze Profetas Menores

1 Cr��nicas

Salmos

2 Cr��nicas

Prov��rbios

Esdras

J��

Neemias

Tobias

Judite

Ester

C��ntico dos C��nticos

Macabeus

Ruth

J��

Lamenta����es

Salmos

Eclesiastes

Prov��rbios

Ester

Eclesiastes

Daniel

C��ntico dos C��nticos

Esdras

Sabedoria

Neemias

Eclesi��stico

1 Cr��nicas

Isa��as

2 Cr��nicas

Jeremias

Lamenta����es

Baruc

Ezequiel

Daniel

Doze Profetas Menores



J E S U S E J A V ��

68

A B��blia do Rei Jaime se afasta da estrutura da Tanak, ini-

cialmente, ao incluir o Livro de Ruth entre Ju��zes e 1 Samuel,

talvez porque, na condi����o de ancestral de Davi, Ruth �� tam-

b��m remota ancestral de Jesus. A seguir, introduzindo uma

profunda altera����o, a referida B��blia, depois de Reis, apre-

senta Cr��nicas, Esdras, Neemias, Ester, J��, Salmos, Prov��r-

bios, Eclesiastes e Sabedoria de Salom��o, antes de incluir os

grandes profetas ��� Isa��as e Jeremias ���, cujas lamenta����es

precedem Ezequiel. Em seguida, vem Daniel, a quem �� con-

cedido o status de grande profeta, e, ent��o, o livro �� conclu��-

do com o grupo dos Doze Profetas Menores, de Os��ias a

Malaquias.

Al��m da inclus��o das obras ap��crifas, as principais re-

vis��es crist��s s��o a eleva����o do status de Daniel e a diferen��a

nas conclus��es, em 2 Cr��nicas e Malaquias, este o ��ltimo

dos Doze Profetas Menores:

No primeiro ano do reinado de Ciro, rei da P��rsia, Jav��,

cumprindo o que tinha dito por meio do profeta Jeremias,

despertou a consci��ncia de Ciro, rei da P��rsia, para que

este proclamasse por todo o imp��rio, �� viva voz e por es-

crito, o seguinte: "Ciro, rei da P��rsia, decreta: Jav��, o Deus

do c��u, entregou a mim todos os reinos do mundo. Ele

me encarregou de construir para ele um Templo em Jeru-

sal��m, na terra de Jud��. Todos os que pertencem a esse

povo e vivem entre n��s podem voltar para l��. E que Jav��,

seu Deus, esteja com eles."

2 Cr��nicas 36, 22-23

A conclus��o da Tanak traz a instigante exorta����o de

"voltar" a Jerusal��m, para a reconstru����o do Templo de Jav��.

(Evidentemente, nos dias atuais, a reconstru����o do Templo



O T E S T A M E N T O T A R D I O

69

seria uma cat��strofe universal, pois a Mesquita Al Aksa ocu-

pa o local sagrado, e n��o deve ser removida.) Como transi-

����o aos tr��s primeiros cap��tulos do Evangelho de Mateus,

Malaquias, "o Mensageiro", conclui o Antigo Testamento

crist��o, proclamando a volta de Elias (como Jo��o Batista):

Vejam! Eu mandarei a voc��s o profeta Elias, antes que

venha o grandioso e terr��vel Dia de Jav��.

Ele h�� de fazer com que o cora����o dos pais voltem para os

filhos e o cora����o dos filhos para os pais; e assim, quando

eu vier, n��o destruirei nem condenarei a terra.

Malaquias 4, 5-6

Embora tardia, a Nova Alian��a �� mais intensa do que

nunca no tamb��m tardio Evangelho de Jo��o, a meu ver,

esteticamente forte e espiritualmente arrasador, se deixarmos

de lado a veemente autodeprecia����o judaica, quer dizer, o anti-

semitismo crist��o. Se o Novo Testamento, no tempo de Cons-

tantino, experimentou um triunfo romano, ent��o, a escra-

va exibida na marcha triunfal foi a T a n a k , reduzida ��

servid��o como Antigo Testamento. Toda a hist��ria judai-

ca subseq��ente, at�� a funda����o, h�� mais de meio s��culo, do

Estado de Israel, atesta as conseq����ncias humanas dessa

servid��o textual.

C A P �� T U L O 5 S��o Paulo

Paulo (ele jamais refere-se a si mesmo como Saulo, nas ep��s-

tolas) apresentava-se como judeu oriundo de Tarso, na Cilicia,

onde nasceu, entre os anos 5 e 10 da Era Comum. Provavel-

mente, por nascimento, cidad��o romano, supostamente fa-

lava grego desde a inf��ncia, mas sabia ler hebraico e falar

aramaico, pois era fariseu. Atos 22, 3 estabelece que Paulo

estudou em Jerusal��m, sup��e-se, quando jovem, com o gran-

de s��bio Gamaliel, o Anci��o, o que pode ser verdadeiro.

Segundo sua pr��pria vangl��ria, Paulo iniciou a vida

p��blica como l��der da persegui����o aos judeu-crist��os, at�� que

ocorreu o c��lebre encontro com a voz de Cristo ressuscita-

do, no caminho de Damasco. Aceitando o chamado para ser

ap��stolo de uma figura que desconhecia, Paulo dedicou o

resto da vida �� convers��o dos gentios, segundo o entendi-

mento que ele detinha da Nova Alian��a. Depois do ver��o

do ano 64 da Era C o m u m , foi martirizado, na Roma de

Nero, ao t��rmino de um trabalho apost��lico que durou

trinta anos.

H�� no Novo Testamento, indiscutivelmente, sete ep��s-

tolas de Paulo, compostas entre os anos 51 e 62 (aproxima-



J E S U S E J A V ��

72

damente), o que as torna os escritos crist��os mais antigos de

que dispomos. Se acrescentarmos a meia d��zia de cartas a

ele atribu��das por seus disc��pulos, e a maior parte do Livro

de Atos, e do Evangelho de Lucas, em que Paulo �� o her��i,

veremos que cerca de um ter��o do Novo Testamento ��

paulino. Somando-se a sua primazia, a sua centralidade no

texto e a reinven����o que ele realiza de grande parte do cris-

tianismo, Paulo �� o fundador crucial da religi��o crist��. Yeshu��

de Nazar��, que ao morrer ainda acreditava na Alian��a com

Jav��, n��o pode ser considerado o instaurador de uma nova f��.

A veem��ncia e a viol��ncia da personalidade do ap��sto-

lo ficam aparentes ao longo das cartas, que, de modo geral,

exortam os judeu-crist��os, e n��o os judeus e o juda��smo.

Fariseus, inimigos odiados em Mateus, n��o s��o o alvo de

Paulo, que n��o os considera propensos ao pecado; e, na con-

di����o de aluno dos fariseus, Paulo tampouco se considera

inclinado ao pecado.

W a y n e Meeks, cuja percep����o de Paulo capta, sutil-

mente, a natureza enigm��tica e proteica do Ap��stolo, sur-

preende-me ao defender que o Ap��stolo empreendeu uma

"luta pela paz". Tiago, o Justo (de Jerusal��m), n��o concor-

daria, e uma leitura atenta de Paulo n��o revela temperamen-

to irenista. A Ep��stola de Paulo aos G��latas faz oposi����o a

um grupo que os estudiosos n��o sabem identificar com pre-

cis��o, mas os destinat��rios devem ter estremecido, ao ler o

cat��logo de suas condutas: "imoralidade, impureza, licen-

ciosidade, idolatria, feiti��aria, inimizade, disc��rdia, ci��me, ira,

ego��smo, dissens��o, partidarismo, inveja, embriaguez, fanfar-

ronice e atitudes semelhantes". Pouca coisa mudou.

Existir�� algu��m que goste de Paulo? Apenas Donald

Akenson, a quem dedico o presente livro, demonstra uma

afei����o (ir��nica) pelo ap��stolo, no livro Saint Saul (2000),



S �� O P A U L O

73

salientando corretamente que, nos Evangelhos, Jesus Cristo

�� a divindade, ao passo que Paulo "�� um ser humano incons-

tante, falho e, portanto, absolutamente convincente". Em

1913, no Pref��cio a ��ndrocles e o Le��o, George Bernard Shaw

comparou Paulo a Karl Marx, considerando ambos grandes

perpetradores de equ��vocos que provocaram o desterro de toda

responsabilidade moral. Tal opini��o me parece acertada.

2

Paulo �� mais agitador do que te��logo m��stico, e muito me-

nos pensador sistem��tico. No entender de Paulo, Jav�� se re-

duz a Deus Pai e, em termos pragm��ticos, tem poucas fun-

����es al��m do relacionamento com o Filho. U m a vez que o

Cristo de Paulo, em rela����o ao Jesus hist��rico, permanece

t��o isolado quanto o Deus Pai se isola de Jav��, existe na dou-

trina do ap��stolo um curioso vazio. N��o por acaso Paulo

enfatiza kenosis, o espont��neo esvaziamento do divino, ex-

perimentado pelo Pai e pelo Filho na Encarna����o, e que, em

toda a teologia crist��, implica uma esp��cie de aglutina����o

das duas naturezas divinas. Para Paulo, nem Deus nem Cristo

necessitam de personalidade, qualidade que o ap��stolo pos-

su��a em tamanha abund��ncia que mal precisava busc��-la fora

de si. Visto que a Ressurrei����o, para Paulo, foi exclusiva-

mente espiritual (1 Cor��ntios 15, 4 4 ) , personalidade �� algo

que se torna irrelevante. Quando Freud diz que o ego �� sem-

pre um ego corp��reo, tal afirma����o n��o provocaria Paulo.

Na vis��o de Paulo, Cristo �� Filho de Deus, e n��o Filho do

Homem, conquanto Paulo jamais diga que Jesus declarava

ser o Messias. Marcos, sob esse aspecto, �� consoante com

Paulo, ao contr��rio de Mateus e Jo��o.

Paulo transmite aspectos do esquema Encarna����o-Per-

d��o herdados do cristianismo hel��nico, presumivelmente,



J E S U S E J A V ��

74

colhidos em Antioquia e Damasco, onde judeu-crist��os da

di��spora trabalhavam na convers��o dos gentios. �� consenso

entre os estudiosos que n��o sabemos onde se deu pela pri-

meira vez a fus��o entre as id��ias de Encarna����o e Perd��o.

At�� chegarmos ao Evangelho de Jo��o, a Encarna����o n��o ��

central, talvez porque dependa da preexist��ncia de Cristo,

que desce do c��u. Paulo se evade da Encarna����o, em favor

da Incorpora����o no Corpo Espiritual de Cristo Ressusci-

tado. Na Ep��stola aos Filipenses (2, 6 - 1 1 ) , Paulo cita um

hino, de origem indefinida, em que kenosis recebe a pri-

meira ��nfase crist��:

embora tivesse a forma de Deus,

n��o se apegou �� sua igualdade com Deus,

mas esvaziou-se a si mesmo,

assumindo a condi����o de servo,

e nascendo semelhante aos homens.

E apresentando-se em forma humana,

humilhou-se a si mesmo,

tornando-se obediente at�� a morte, e morte na cruz.

Por isso, Deus o exaltou grandemente,

e lhe deu o nome que est�� acima de qualquer nome,

para que, ao nome de Jesus,

se dobre todo joelho,

no c��u, na Terra e sob a terra,

e toda l��ngua confesse

que Jesus Cristo �� o Senhor,

para a gl��ria de Deus Pai.

A parusia, ou segunda vinda de Cristo, ��quela altura

uma expectativa fabulosa alimentada pela primeira gera����o

de crist��os, guarnece tudo que Paulo escreve. Se Cristo esta-

va destinado a retornar brevemente, a Incorpora����o assume



S �� O P A U L O

75

urg��ncia especial. O per��odo de Ad��o a Mois��s transcorreu

antes da Lei; de Mois��s a Cristo, era o reino da lei; agora, o

Fim Iminente acerca-se de Paulo. Parece um equ��voco falar

de teologia paulina, porque o fim que se aproxima rapida-

mente torna a teologia desnecess��ria.

A eloq����ncia de Paulo �� c��lebre, embora mais vis��vel

na vers��o da B��blia em ingl��s do que no original. Ocorre que

o ap��stolo �� um exc��ntrico obsessivo, que deixa aturdida

qualquer pessoa que diante dele tente adotar uma postura

desapaixonada. E n��o pode ser visto como inovador, ou re-

formista, mas como polemista que defende a f�� �� qual foi

convertido. Nem vil��o nem modelo, Paulo �� o g��nio da s��n-

tese, singularmente estranho, que oculta algo evasivo no fun-

do do seu ser. H�� que se minimizar as especula����es acerca da

psicossexualidade do ap��stolo: por que isso haveria de im-

portar? Paulo desconfiava do entusiasmo m��stico, talvez por-

que o ponto crucial de sua f�� seja a Ressurrei����o como even-

to do Esp��rito, mas tamb��m da hist��ria. Se confrontasse o

gnosticismo crist��o valentiniano de cem anos depois, ficaria

escandalizado diante da proposi����o de que primeiro Jesus

ressuscitou e depois morreu. Algo parecido �� o que ele com-

bate em Cor��ntios.

Nada h�� de gentio em Paulo, embora tenha sido o mai-

or ap��stolo junto aos gentios, segundo confirmado por seu

acordo com Tiago, irm��o de Jesus. Seu modo de pensar e

sentir foi sempre, essencialmente, fariseu. Jav�� e Israel, Pau-

lo sugere, levar��o a termo a reden����o do Povo Eleito. Ser��

que Paulo, que deve ter morrido na expectativa do retorno

de Cristo, acreditava, de fato, que Israel aceitasse Cristo na-

quele momento? N��o tenho uma resposta, a n��o ser que o

Messias de Paulo, certamente, coincide pouco com a expec-

tativa dos judeus, pois estes esperavam um guerreiro vitorio-



J E S U S E J A V ��

76

so. Mas, �� bom lembrar, o Cristo de Paulo tamb��m coincide

pouco com Yeshu�� de Nazar��, levando-se em conta qual-

quer das vers��es do Evangelho, inclusive Jo��o. A desilus��o

(que outro nome podemos dar?) de Paulo �� viver no Final

dos Tempos. Sendo judeu gn��stico, n��o finjo entender Pau-

lo, quase dois mil anos mais tarde. Mas quem pode entend��-

lo? Seu melhor exegeta, W a y n e Meeks, nos diz que "�� razo-

��vel duvidar da possibilidade de uma avalia����o acurada e

consistente do ap��stolo". Sabemos t��o pouco sobre Yeshu��

de Nazar��, que sobre ele n��o podemos pronunciar qualquer

afirma����o exata. Sabemos muito sobre Paulo, mas diante

dele f i c o a t �� n i t o . P a u l o p o d e r i a ser u m p e r s o n a g e m shakespeariano, t��o enigm��tico quanto Hamlet ou Iago.

C A P �� T U L O 6 O Evangelho de Marcos

Os Evangelhos, na forma que hoje deles dispomos, foram

compostos, com toda a certeza, entre o per��odo que com-

preendeu cerca de trinta anos e mais de meio s��culo ap��s a

Crucifica����o de Yeshu��. Os escritos enfocam, quase exclusi-

vamente, os ��ltimos tr��s anos da vida do Nazareno, possi-

velmente, entre as idades de 37 e quarenta anos. O Evange-

lho de Jo��o, entretanto, parece mais voltado para as ��ltimas

dez semanas de vida de Yeshu��. Com base na suposi����o de

que ele tenha nascido por volta do ano 6 antes da Era Co-

mum, a data da Crucifica����o seria o ano 34 da Era Comum,

ou seja, 17 anos antes da primeira carta de Paulo, dentre as

que chegaram aos dias atuais. Marcos, provavelmente, o Evan-

gelho mais antigo, costuma ser datado da ��poca da rebeli��o

judaica contra Roma, ocorrida entre 66 e 70 da Era Comum,

e cujo incidente extremo foi a destrui����o do Templo.

N��o sabemos quem foi Marcos, tampouco onde ele

escreveu, exceto que n��o foi na Terra de Israel. �� muito

improv��vel que tenha conhecido Yeshu��, e o mesmo pode ser

dito a respeito dos autores de Mateus e Lucas. Tampouco

sabemos se Marcos, a exemplo dos demais, baseou-se em



J E S U S E J A V ��

78

algum escrito crist��o anterior, e duvido sempre da acuidade

dos dados, quando se trata da tradi����o oral. Certo �� que

nenhum dos Evangelhos, em si, representa um relato con-

fi��vel dos ensinamentos do Messias ao qual eles se referem,

seja em palavras ou atos.

Em qualidade liter��ria, o Evangelho de Marcos �� bem

mais impressionante na vers��o inglesa da B��blia do que no

original grego, em que uma sensibilidade rara peleja com

uma linguagem inadequada. Estranhamente, Marcos mes-

cla uma esp��cie de realismo javista e um estilo narrativo bas-

tante abrupto, em que velocidade e urg��ncia s��o enfatizadas.

Paula Fredriksen, no livro From Jesus to Christ (De Jesus a

Cristo, 1988, 2 0 0 0 ) , comenta que o protagonista de Mar-

cos "�� um homem que demonstra pressa". �� tamb��m um

enigma total, propenso a indagar dos ouvintes (e dos leitores

de Marcos): "O que diz o povo sobre a minha identidade?"

Que abertura est�� prevista nessa indaga����o? Ser�� que essa ver-

s��o apresenta uma id��ia inicial acerca da identidade de Jesus,

ou ser�� que ele s�� assume uma identidade j�� pr��ximo ao fim?

Barry Qualls registra uma afinidade entre Marcos, a

Javista e Isa��as, que dividem seu p��blico potencial em dois

grupos: aqueles que h��o de compreender, e os que n��o po-

dem confrontar o enigm��tico discurso divino. N��o se trata

de sugerir que Jesus, em contraste com o Jav�� da Autora " J " ,

seja "traquinas". Jesus n��o �� brincalh��o, mas, por vezes, ��

inclinado a mistificar. Contudo, ambos os Deuses (ou as-

pectos de Deus) s��o misteriosos, surpreendentes, embora

conhecidos. O Jesus de Marcos tamb��m se faz presente onde

e quando quer.

Quem n��o leu, na ��ntegra, o Evangelho de Marcos

(ou n��o o fez recentemente) sofre um impacto inevit��vel ao

tentar faz��-lo. A sensa����o de desafio �� apenas um aspecto do



O E V A N G E L H O D E M A R C O S

79

embate; outros incluem um certo atordoamento e uma esp��-

cie de desilus��o vis-��-vis ��s expectativas. O Apocalipse paira

ao longo do Evangelho: os eventos finais s��o iminentes. N��o

nos �� informado se a Guerra Judaica est�� transcorrendo, ou se

Jerusal��m j�� foi destru��da, mas Marcos acredita que est�� vi-

vendo no fim dos tempos. A esquisitice do Novo Testamento

�� que todos os que ali figuram est��o absolutamente convenci-

dos de que Cristo h�� de retornar em breve. Passados dois mil

anos, ele ainda n��o voltou. O texto �� t��o comprometido com

a proximidade do retorno, que eu murmuro, enquanto leio,

um velho ditado rab��nico: "Que venha o Messias, mas que eu

n��o esteja l�� para ver." O autor do Evangelho de Marcos, ��

semelhan��a do Jesus que ali atua, �� t��o apressado quanto re-

servado, e n��o se mostra muito ��vido de nos auxiliar na inter-

preta����o da Boa Nova. A exemplo dos pr��prios disc��pulos,

enxergamos sem discernir. O pobre Pedro, totalmente confu-

so, �� repreendido por Jesus, com sua autoridade costumeira,

que lhe diz que, embora momentaneamente, o disc��pulo e

Satan��s tornaram-se um s��. Somente os diabos (e Marcos),

invariavelmente, sabem ao certo o que Jesus ��.

Frank Kermode, no livro The G��nesis of Secrecy (1979),

sublinha a qualidade paradoxal e peculiar da narrativa de

Marcos:

S��o muitos os n��s: nas par��bolas que mais parecem cha-

radas; na freq��ente justaposi����o de dem��nios perspicazes

e santos obtusos; na felicidade e na gratid��o do estranho

que �� curado; na perplexidade, no medo e no des��nimo

dos seguidores, (p. 141)

Quase todos os estudiosos do Novo Testamento, bem

como outros fi��is crist��os, consideram-se seguidores felizes e



J E S U S E J A V ��

80

gratos. Ser�� que s��o mesmo? Ser�� que a santidade deles trans-

cende a dos disc��pulos? N��o creio que j�� tenhamos absorvi-

do a id��ia perturbadora de que somente o nosso lado demo-

n��aco �� capaz de perceber, perfeitamente, a identidade de

Jesus Cristo. Marcos ��, ao mesmo tempo, mau escritor e ��ti-

mo escritor: vem-me �� mente Edgar Allan Poe, outro exem-

plo raro desse paradoxo, por mais ensandecida que possa pa-

recer a minha compara����o. Ser�� a estranha conclus��o do

Evangelho de Marcos um ��ndice (por assim dizer) de inapti-

d��o ou de genialidade? O momento brusco ali descrito pro-

move a nossa identifica����o com as mulheres diante do se-

pulcro; n��s, tamb��m, fugimos porque sentimos medo:

Quando o s��bado passou, Maria Madalena, Maria m��e

de Tiago, e Salom�� compraram perfumes para ungir o

corpo de Jesus. E bem cedo no primeiro dia da semana,

ao nascer do sol, foram ao t��mulo. E diziam entre si:

"Quem vai tirar para n��s a pedra da entrada do t��mulo?"

Mas, quando olharam, viram que a pedra, que era muito

grande, j�� havia sido retirada. Ao entrarem no t��mulo,

viram um jovem, sentado do lado direito, vestido de bran-

co. E ficaram muito assustadas. Mas o jovem lhes disse:

"N��o fiquem assustadas; voc��s est��o procurando Jesus de

Nazar��, que foi crucificado. Ele ressuscitou; n��o est�� aqui.

Vejam, foi ali que o puseram. Agora voc��s devem ir e

dizer aos disc��pulos dele e a Pedro que ele vai para a Galileia

na frente de voc��s. L�� voc��s o ver��o, como ele mesmo

disse." Ent��o as mulheres sa��ram do t��mulo correndo,

porque estavam com medo e assustadas; e n��o disseram

nada a ningu��m, porque tinham medo.

Marcos 16, 1-8



O E V A N G E L H O D E M A R C O S

81

Nesse ponto �� conclu��do o texto original de Marcos; a

passagem que corresponde a 16, 9-20 �� acrescentada mais

tarde, sendo, nitidamente, um posf��cio editorial que visa a

atenuar essa brusquid��o. Um Evangelho em que a palavra

predileta �� "imediatamente" (com cerca de quarenta ocor-

r��ncias), e que �� todo recortado, tem uma conclus��o condi-

zente, retratando tr��s mulheres circunspectas e devotas, que

correm de um local que j�� n��o �� o t��mulo de Jesus. O obje-

tivo dos Evangelhos �� proclamar a Boa Nova da reden����o.

Marcos �� conclu��do com a frase "porque tinham medo", o

que n��o configura um tom de salva����o. Kermode observa:

"Ou a conclus��o �� intoler��vel e canhestra, ou incrivelmente

sutil." A escolha entre o intoler��vel e o incr��vel n��o �� das

mais fascinantes, mas suponho que n��o precisamos esco-

lher: Marcos ��, alternadamente, in��bil e sutil (volto a dizer,

tanto quanto Poe). Todos conhecemos indiv��duos assim,

embora, de modo geral, n��o sejam escritores. M a s conv��m

lembrar que Marcos n��o ��, fundamentalmente, um escritor.

Segundo consta, residindo em Roma, Marcos aguarda com

ansiedade e, finalmente, recebe a not��cia da destrui����o total

do Templo. A sombra de Isa��as, ele aspira por se tornar pro-

feta. Marcos proclama, segundo a tradi����o hebraica, e de-

monstra razo��vel ansiedade em rela����o ao seu grande pre-

cursor, o primeiro Isa��as, com certeza, o maior dos profetas

depois de Mois��s. Marcos, a um s�� tempo, precisa de Isa��as

e o repele, pois o profeta h�� de ser suplantado, por meio das

realiza����es de Cristo. Visto que o Jesus de Marcos �� reserva-

do, tanto quanto o pr��prio Marcos, �� t��o dif��cil revelar quan-

to ocultar uma verdade que transcende o javismo de Isa��as.

Se os ouvintes de Isa��as demonstravam dificuldade de com-

preens��o, Marcos desvia-se de Isa��as, retratando os disc��pu-

los como pupilos n��o muito brilhantes de um mestre mer-



J E S U S E J A V ��

82

c��rio que traz "um ensinamento novo!" ( 1 , 2 7 ) . Talvez Je-

sus seja impaciente, conforme seria o caso de qualquer mes-

tre que tentasse anular um m��todo anterior t��o contunden-

te quanto a Tor��. Os disc��pulos, em Marcos, n��o podem ser

culpados. Somente no cap��tulo 13, 14-27 eles tomam co-

nhecimento do mist��rio:

"Quando voc��s virem a abomina����o da desola����o estabe-

lecida no lugar onde n��o deveria estar (que o leitor com-

preenda), ent��o, os que estiverem na Judeia devem fugir

para as montanhas. Quem estiver no terra��o, n��o des��a

para apanhar coisa alguma dentro de casa. Quem estiver

no campo, n��o volte para pegar o manto. Infelizes as

mulheres gr��vidas e aquelas que estiverem amamentando

nesses dias! Rezem para que isso n��o aconte��a no inverno.

Porque, nesses dias haver�� sofrimento como nunca hou-

ve, desde o in��cio da cria����o feita por Deus, at�� agora; e

nunca mais haver�� outro igual. E se o Senhor n��o abre-

viasse esses dias, ningu��m conseguiria escapar; mas ele abre-

viou aqueles dias, pelo bem dos eleitos que escolheu. E se

algu��m, na ocasi��o, disser a voc��s: 'Olhem! Aqui est�� o

Messias!', ou: 'Olhem, Ele est�� ali!' ��� n��o acreditem. V��o

surgir falsos messias e falsos profetas que dar��o sinais e

realizar��o prod��gios para enganar at�� mesmo os eleitos, se

fosse poss��vel. Prestem aten����o! Eu j�� lhes revelei tudo.

"Mas nesses dias, depois do sofrimento,

o sol vai ficar escuro

e a lua n��o brilhar�� mais,

e as estrelas come��ar��o a cair do c��u,

e as for��as dos c��us ficar��o abaladas.

Ent��o, eles ver��o 'o Filho do Homem surgindo sobre as

nuvens' com grande poder e gl��ria. Ent��o, ele enviar�� os

anjos e, dos quatro cantos da Terra, reunir�� as pessoas que



O E V A N G E L H O D E M A R C O S

83

Deus escolheu, do extremo da Terra ao extremo do c��u."

A abomina����o do sofrimento perpetrado no Templo

refere-se a Daniel 9, 27 e, o que �� ainda mais crucial, o mes-

mo pode ser dito sobre a vers��o de Marcos ��� "Filho do

Homem" ��� que, no texto aramaico, significa apenas "al-

gu��m como um ser humano":

Enquanto eu olhava, uma vis��o noturna,

Algu��m como um ser humano

Surgiu com as nuvens do c��u;

Ele chegou ao Dia Final

E foi apresentado a Ele.

Reino, gl��ria e majestade lhe foram oferecidos;

Todos os povos e na����es, falantes de todos os idiomas

devem servi-lo.

Seu reino �� eterno e n��o passar��.

E sua majestade n��o ser�� destru��da.

Daniel 7, 13-14

A desleitura convincente de Marcos altera "algu��m como

um ser humano" pelo apocal��ptico "Filho do Homem". Isso

conduz ao paradoxo maior desse Evangelho cr��ptico. Visto

que tanto Mateus quanto Lucas procedem de Marcos, n��o

ser�� exagero afirmar que o Jesus de Marcos, sumamente sin-

gular e misterioso, tornou-se normativo. Para todos os efei-

tos, n��o ter�� Marcos inventado o Jesus da f��? N��o digo "in-

ventar" no sentido literal, pois os seguidores de Jesus j�� o

proclamavam Filho de Deus, ao menos, um quarto de s��cu-

lo antes de Marcos escrever. Mas tais seguidores n��o nos

deixaram nenhum texto, embora eu prossiga na convic����o

de que Marcos seguiu fontes escritas. Ser�� que esses textos

anteriores retratavam um Jesus sumamente singular e mis-



J E S U S E J A V ��

84

terioso? Enigmas, na minha experi��ncia liter��ria, n��o s��o

transmitidos com facilidade, e costumam passar por modi-

fica����es importantes. Consideremos que Mateus e Lucas nos

apresentam um Jesus bem menos caprichoso do que o de

Marcos. De fato, os Evangelhos de Mateus e Lucas pouco

refletem o retrato do Jesus inconstante e ambivalente pinta-

do por Marcos, um Jesus que se faz imensamente dif��cil de

entender. Depois que Jo��o Batista desaparece do relato de

Marcos, tudo acerca de Jesus se torna, na verdade, amb��guo.

Jesus causa perplexidade em todas as pessoas que encontra, e

a ��nfase obsessiva no impacto que ele provoca �� por demais

idiossincr��tica para n��o ser uma inven����o do pr��prio Marcos.

A fam��lia, disc��pulos, amigos, inimigos e as multid��es de tes-

temunhas sucumbem diante da novidade confrontada.

O Jesus de Marcos �� o mestre do sil��ncio, um sil��ncio

que somos convidados a compreender, se pudermos. Esse n��o

�� o Cristo proclamado por Paulo, nem o Filho de Deus apre-

sentado por Mateus e Lucas, muito menos o Cristo c��smico

do Evangelho de Jo��o. Quem comp��s o texto de Marcos ��

um g��nio t��o original que permanece fora do nosso alcance,

se bem que um Evangelho bizarro possa parecer um oximoro.

Raymond E. Brown, excelente estudioso do Novo Testa-

mento, assumiu uma postura bastante diferente a respeito

do assunto:

Desprezando grande parte da cr��tica b��blica, Kermode

enfatiza a obscuridade de Marcos, de modo que, em meio

a momentos de brilho, basicamente, o Evangelho perma-

nece um mist��rio, semelhante ��s par��bolas, excluindo do

reino, arbitrariamente, os leitores. Deixando de lado as

cr��ticas ao livro de Kermode, que indagam se ele entende



O E V A N G E L H O D E M A R C O S

85

de exegese e se n��o teria substitu��do ci��ncia por arte, cabe

a obje����o de que Kermode isola a escrita de Marcos em

rela����o �� teologia crist�� mais fundamental. Os temas da

desobedi��ncia, do fracasso, do mal-entendido e das trevas

s��o proeminentes em Marcos, mas a morte de Jesus na

cruz, que constitui o momento mais sombrio do mencio-

nado Evangelho, n��o �� o fim. O poder de Deus irrompe,

e um estranho, como �� o caso do centuri��o romano, n��o ��

exclu��do ��� e compreende. A despeito da perplexidade

das mulheres diante do t��mulo, os leitores n��o ficam con-

fusos: Cristo ressuscitou e pode ser visto.

An Introduction to the New Testament [Introdu����o ao

Novo Testamento, 1997] (pp. 153-54)

Eu apenas diria a Brown que a escrita de Marcos e a

"teologia crista mais fundamental" n��o s��o, necessariamen-

te, id��nticas. O centuri��o talvez compreenda, mas, diante

do t��mulo, as mulheres devotas nada compreendem, e sem

os vers��culos mais tarde acrescentados pelos editores cris-

t��os, muitos leitores permaneceriam bastante incertos. O

poder de Deus irrompe apenas no coment��rio teol��gico

aduzido como 16, 9-20, que n��o �� de autoria de Marcos,

cujo Jesus exclama, em aramaico: "Meu Deus, por que me

abandonaste?" (15, 3 4 ) , em seguida, emite um forte grito,

sem palavras, e expira. O lamento de ang��stia ecoa os pri-

meiros versos do Salmo 22, e o texto de Marcos n��o explora

a dor e o desespero com que Jesus morre.

Marcos segue Isa��as em uma passagem que considero extre-

mamente memor��vel, e que j�� citei. Eis, mais uma vez, Isa��as

6, 8-10, seguido de Marcos 4, 10-12:



J E S U S E J A V ��

86

Ouvi, ent��o, a voz do Senhor que dizia: "Quem �� que vou

enviar? Quem ir�� de nossa parte?" Eu respondi: "Aqui

estou. Envia-me!" Ele me disse: "V�� e diga a esse povo:

'Escutem com os ouvidos, mas n��o entendam;

Olhem com os olhos, mas n��o compreendam!'

Torne insens��vel o cora����o desse povo,

Ensurde��a os seus ouvidos,

Cegue seus olhos,

Para que, vendo com os olhos

E ouvindo com os ouvidos,

Ele n��o compreenda com a mente,

Se arrependa e se salve."

Quando Jesus se distanciou, os que estavam com ele, em

companhia dos 12, perguntaram o que significavam as

par��bolas. E ele lhes disse: "Para voc��s, foi dado o mist��-

rio do Reino de Deus, mas, para os que est��o fora, tudo

acontece em par��bolas, para que

'olhem mas n��o vejam,

escutem, mas n��o compreendam,

para que n��o se convertam e n��o sejam perdoados'."

Kermode, confrontando o e n i g m a da passagem de

Marcos e a fonte, em Isa��as, sobrep��e, com grande utilidade,

a mitiga����o que Mateus confere a Marcos, no Evangelho de

Mateus 13, 10-17:

Os disc��pulos aproximaram-se, e perguntaram a ele: "Por

que usas par��bolas para falar com eles?" Jesus respondeu:



O E V A N G E L H O D E M A R C O S

87

"A voc��s foi dado conhecer os mist��rios do Reino do C��u,

mas a eles n��o. Pois, a quem tem ser�� dado ainda mais, e

ter��o abund��ncia; mas daqueles que n��o t��m ser�� tirado

at�� o pouco que t��m. Uso par��bolas para falar com eles

porque assim eles olham e n��o v��em, ouvem e n��o escu-

tam nem compreendem. Desse modo se cumpre para eles

a profecia de Isa��as, que diz:

'�� certo que voc��s ouvir��o, por��m nada compreender��o,

e �� certo que olhar��o, por��m nada ver��o.

Porque o cora����o desse povo se tornou insens��vel,

e eles s��o duros de ouvido,

e fecharam os olhos,

para n��o ver com os olhos,

e n��o ouvir com os ouvidos,

n��o compreender com o cora����o e n��o se converter.

Assim eles n��o podem ser curados.'

Mas felizes s��o os olhos de voc��s, porque v��em, e seus

ouvidos, porque ouvem.

Em verdade, digo a voc��s: muitos profetas e justos deseja-

ram ver o que voc��s est��o vendo, e n��o puderam ver; ou-

vir o que voc��s est��o ouvindo, e n��o puderam ouvir."

A Par��bola do Semeador, que aparece tanto em Marcos

quanto em Mateus, representa a tentativa de Jesus de se-

mear a Palavra de Deus, mas, em Marcos, os disc��pulos n��o

conseguem, absolutamente, compreender. P��ssaros que de-

voram as sementes do Salvador pertencem a (com efeito, s��o

o pr��prio) Satan��s. Ser�� que Marcos compreende a par��bo-

la, ou mesmo a interpreta����o de Jesus? Embora Marcos n��o

o diga, devemos supor que soubesse que o Jesus por ele re-

presentado aludia, constantemente, �� ironia amarga de Isa��as,

em que Jav�� envia um profeta comprometido e motivado,



J E S U S E J A V ��

88

ao mesmo tempo que observa que tal profeta n��o ser�� com-

preendido. Mateus suaviza a aspereza de Marcos, cita, direta-

mente, Isa��as e assim nos oferece um Jesus bem mais con-

vencional, capaz de n��o se importar com qualquer lentid��o

do entendimento, seja entre o povo ou entre os pr��prios

disc��pulos. Mas o que acontece com a percep����o caracter��s-

tica de Marcos, quanto �� personalidade misteriosa de Jesus,

se aceitarmos a revis��o feita por Mateus?

Barry Qualls, seguindo Kermode, ilumina Marcos, a

meu ver, com mais contund��ncia do que qualquer outro

estudioso. Eis Qualls, no ensaio intitulado "S��o Marcos Diz

que Eles N��o Devem" (Raritan Vlll: 4 [primavera de 1989]):

Os autores do Novo Testamento, com sua autoconsci��n-

cia, s��o os exemplos extremos desse confronto e da ang��s-

tia produzida por tal confronto entre escritores decididos

a construir uma f�� que houvesse de triunfar sobre as con-

ting��ncias da hist��ria. Somente Marcos, desejoso de tor-

nar "cativos" os textos hebreus, sente-se �� vontade diante

dos hiatos (com suas decorrentes ambig��idades) existen-

tes nesses textos ��� e diante do trabalho de leitura e inter-

preta����o exigido por tais hiatos.

[...] como Marcos difere dos escritores crist��os que o se-

guiram, e como se assemelha aos primeiros autores

hebreus, de modo especial, �� Javista! Dos autores dos Evan-

gelhos, Marcos �� o que melhor compreende, e n��o teme a

disposi����o da Javista em contemplar o contradit��rio e o

amb��guo, a determina����o hebraica de convocar o leitor a

participar da hist��ria. De maneira sublime, Marcos sen-

te-se �� vontade com os hiatos. "(Que o leitor compreen-

da)", ele diz, em uma surpreendente observa����o parent��tica

inserida no cap��tulo (13, 14), em que ele escreve o seu



O E V A N G E L H O D E M A R C O S

89

pr��prio apocalipse (com ecos de Daniel). A compreen-

s��o, ou melhor, a dificuldade de compreens��o, �� de fato o

tema de Marcos, tanto quanto o tema dos escritores

hebreus que, embora certos das palavras de Deus, preci-

sam registrar qu��o distante as promessas parecem estar

das a����es e dificuldades dos seres humanos. Em Marcos

vislumbramos pela derradeira vez na B��blia (crist��) a li-

berdade da Javista, ao encontrar e recontar, sem estupefa-

����o ou temor, os atos do seu Deus. Depois de Marcos, o

texto �� feito cativo. Marcos, por��m, obcecado por "mist��-

rio, sil��ncio e incompreens��o", conforme diz Kermode,

"prefere as sombras". Prefere permitir aos leitores, a exem-

plo dos seus disc��pulos, ver, ouvir, qui���� compreender, e

quase negar.

[...] As estrat��gias de caracteriza����o, em Marcos, revelam

um autor que busca a ambig��idade. Em Marcos, o "Filho

de Deus" est�� sempre no meio da multid��o, mas sempre

busca um local isolado; sempre falando, mas sempre exor-

tando ao sil��ncio; sempre explicando, embora convicto

de que suas palavras n��o ser��o compreendidas. A fam��lia

do "Filho de Deus", que entra no texto sem qualquer in-

trodu����o, fica perplexa diante da rejei����o expressa pelo

protagonista (3, 31-35); os amigos t��m certeza de que "ele

tinha ficado louco" (3, 21); e os inimigos, como seria de

esperar, repetem tais rea����es e acrescentam outras. Os dis-

c��pulos, desde logo, questionam "quem �� este homem

[...]?" (4, 41) e, continuamente, mostram-se "perplexos

diante das palavras dele", indagando o sentido do uso que

ele faz da linguagem (a id��ia que t��m de reino passa pela

percep����o de qual deles "ser�� o maior", em um reino ter-

restre, parece-lhes incompreens��vel que um reino seja com-

parado a um gr��o de mostarda, par��bola ou n��o). At��



J E S U S E J A V ��

90

mesmo a express��o de Marcos ��� "Filho de Deus" ��� ��

repetida de maneira a solapar autoridade. As ��nicas ocor-

r��ncias da express��o no texto, ap��s o in��cio, s��o nas pala-

vras dos endemoniados, indiv��duos que n��o t��m a menor

dificuldade em ver a liga����o de Jesus com Deus (veja 5,

7 ) , e ao final, nas palavras do centuri��o romano ��� "De

fato, esse homem era mesmo o Filho de Deus" (15, 39)

���, ao ouvir Jesus gritar da cruz. Fora essas situa����es, ou-

vimos as pessoas cham��-lo "filho de Davi". Ouvimo-lo,

muitas vezes, chamar a si mesmo "Filho do Homem". E

ouvimos Pedro dizer "Tu ��s o Cristo" para, ent��o, de-

monstrar um entendimento t��o restrito do sentido dessas

mesmas palavras, que Jesus lhe diz: "Fique longe de mim,

Satan��s!" (8, 29, 33). N��o �� de estranhar que demonstra-

mos tamanha "perplexidade", quando, depois de ser pre-

so, Jesus responde �� pergunta do sumo sacerdote ��� "Tu

��s o Cristo?" ���, afirmando: "Eu sou" (14, 62).

O que Qualls capta �� a urg��ncia impactante da postura

de Marcos, a renova����o que este opera da liberdade demons-

trada pela Autora " J " , ao representar Jav�� como ser excelso,

por��m bastante humano. Quando defendo o argumento, ao

longo deste livro, de que o Deus teol��gico, o Jesus Cristo do

Evangelho de Jo��o e da teologia cat��lica posterior, ��, clara-

mente, irreconcili��vel com Jav��, em parte, quero dizer que o

Jesus Cristo trinitario �� grego, e que Jav�� encerra, precisa-

mente, algo que sempre resiste ao pensamento grego na tradi-

����o hebraica. No entanto, duas vers��es de Jesus, a de Marcos

e determinadas facetas do indiv��duo revelado no semign��s-

tico Evangelho de Tom��, s��o profundamente compat��veis

com o Jav�� de " J " . �� um enigma, para mim, que o Jesus de

Marcos e o Jesus do Evangelho de Tom�� tenham pouco, ou



O E V A N G E L H O D E M A R C O S

91

nada, em comum, mas o extremamente amplo, o Jav�� origi-

nal, tem espa��o suficiente para ambos.

Marcos exibe um orgulho sombrio diante da novidade

perturbadora inerente ao Jesus por ele retratado, mas, �� bom

lembrar, tamb��m o Jav�� de " J " �� sempre desconcertante. Os

dois homens-deuses (express��o infeliz, mas qual seria a al-

ternativa?) rompem os limites que, supostamente, definem

a fronteira entre o antropom��rfico e o teom��rfico. O Jesus

de Marcos �� misterioso, ao passo que o Jav�� de " J " �� infantil

e atrevido; contudo, Qualls tem raz��o, ao relacionar esse Je-

sus a um Jav�� que �� sempre o mestre do inesperado. Quanto

a mim, expressando agora apenas na condi����o de cr��tico li-

ter��rio, n��o creio que o Jesus de Mateus ou de Lucas seja,

verdadeiramente, o Filho de Deus. Por��m, ainda na condi-

����o de cr��tico, reconhe��o que a inusitada for��a liter��ria de

Marcos, ao estilo grotesco de Poe, na verdade sugere que um

Filho de Jav�� vive nas p��ginas do Evangelho.

C A P �� T U L O 7 O Evangelho de Jo��o

' A b r a �� o , o pai de voc��s, alegrou-se porque viu o meu dia.

Ele viu e encheu-se de alegria.' Ent��o os judeus disseram:

'Ainda n��o tens cinq��enta anos, e viste Abra��o?' Jesus res-

pondeu: 'Em verdade, digo a voc��s: antes que Abra��o exis-

tisse, Eu Sou' Jo��o 8, 5 6 - 5 8 ) .

�� tarde demais, na hist��ria ocidental, para qualquer

auto-ilus��o de natureza religiosa ou humana quanto �� apro-

pria����o da B��blia Hebraica pelo cristianismo. ��, certamen-

te, tarde demais, na hist��ria judaica, para n��o se entender

com plena clareza o car��ter e o efeito desse ato crist��o de

usurpa����o total. A melhor descri����o preliminar que conhe-

��o �� a de Jaroslav Pelikan:

O que a tradi����o crist�� fez foi tomar como suas as Escritu-

ras Judaicas, de modo que Justino p��de dizer a Trifo que

as passagens acerca de Cristo "est��o contidas nas vossas

Escrituras, ou melhor, n��o vossas, mas nossas". Na reali-

dade, algumas passagens constavam exclusivamente das

"nossas", isto ��, do Antigo Testamento crist��o. Os te��lo-

gos crist��os sentiam-se t��o seguros em sua posse das Es-

crituras que chegavam a acusar os judeus n��o apenas de as



J E S U S E J A V ��

94

compreender e interpretar mal, como tamb��m de falsifi-

car textos sagrados. Quando encontravam diferen��as en-

tre o texto hebreu do Antigo Testamento e a Septuaginta,

aproveitavam-se do achado para comprovar suas acusa-

����es [...]. A crescente facilidade com que apropria����es e

acusa����es podiam ser feitas era proporcional �� plenitude

da vit��ria crist�� sobre o pensamento judaico. Entretanto,

essa vit��ria se deu, em grande parte, espontaneamente. O

maior respons��vel foi o movimento da hist��ria judaica, e

n��o a for��a superior da exegese, da erudi����o ou da l��gica

crist��.

Volto �� grande proclama����o do Jesus segundo Jo��o:

"antes que Abra��o existisse, Eu Sou". Como descrever o poder

sublime dessa asser����o? N��o ser�� a resposta antit��tica do

Novo Testamento ao momento mais sublime da Javista,

quando Mois��s, angustiado, balbucia: "Se eu me dirigir aos

filhos de Israel e dizer-lhes: O Deus dos antepassados de

voc��s me enviou at�� voc��s, e eles me perguntarem: Qual �� o

nome dele? O que �� que eu vou responder?" Deus disse a

Mois��s: "EU S O U AQUELE QUE SOU."

A vis��o que a Javista tem de Deus, com toda a certeza,

centra-se intensamente nessa passagem de ��xodo (3, 13-14).

Mas a hist��ria da antiga exegese judaica, dificilmente, leva-

ria algu��m a crer que essa passagem crucial suscitasse o me-

nor interesse, ou tivesse qualquer import��ncia para os gran-

des comentaristas rab��nicos. O Exodus Rabbah oferece,

principalmente, midrashim que relacionam o nome de Deus

aos poderes que haveriam de libertar Israel do Egito. Por��m,

a frase ehyeh asher ehyeh, evidentemente, n��o continha for��a

efetiva para os grandes fariseus. De fato, a tradi����o judaica



O E V A N G E L H O D E J O �� O

95

quase ignora essa proclama����o majestosa, at�� que, no s��culo

XII, Maim��nides aborda a quest��o, em seu Guia de Trans-

viados. Um de meus livros prediletos, The Old Rabbinic

Doctrine of God (A antiga doutrina rab��nica de Deus), de

Arthur Marmorstein, em uma se����o de 150 p��ginas, intitu-

lada "Os Nomes de Deus", n��o faz qualquer refer��ncia a

��xodo 3. Ou nos caber�� concluir que ehyeh asher ehyeh fazia

pouco sentido para Akiba e seus colegas, o que penso, pro-

vavelmente, tenha sido o caso, ou devemos recorrer a teorias

d��bias de tabu, que pouco t��m a ver com a for��a de Akiba.

O enigma se torna maior quando a primeva indiferen-

��a rab��nica �� surpreendente express��o ehyeh asher ehyeh ��

contrastada com a obsess��o crist�� por ��xodo 3, obsess��o essa

que surge a partir do Novo Testamento e se torna decisiva

nos Pais da Igreja, culminando na perene preocupa����o de

Agostinho com a referida passagem, uma vez que, para Agos-

tinho, ela representa o ind��cio mais marcante da ess��ncia

metaf��sica de Deus. Brevard Childs, em seu coment��rio a

respeito de ��xodo, esbo��a a hist��ria desse duradouro epis��-

dio da exegese crist��. C o m o devido respeito, discordo da

avalia����o de Childs, de que, nesse caso, os aspectos ontol��-

gicos da interpreta����o crist��, na realidade, configuram al-

gum tipo de continuidade com o texto b��blico ou com as

tradi����es rab��nicas. Esses "matizes ontol��gicos", conforme

o pr��prio Childs �� obrigado a observar, decorrem da vers��o

da Septuaginta e da par��frase sumamente plat��nica de Filo,

em Sobre a Vida de Mois��s: "Diga-lhes que sou Aquele que

��, para que aprendam a diferen��a entre o que ��, e o que n��o

��." Conquanto Childs insista que o conceito n��o pode ser

descartado como pensamento grego, n��o �� outra coisa sen��o

exatamente isso, e explica, mais uma vez, por que Filo foi



9 6 J E S U S E J A V ��

decisivo para a teologia crist�� e t��o irrelevante para a conti-

nuidade do juda��smo normativo.

O enigma que persiste, ent��o, diz respeito �� total au-

s��ncia de interesse rab��nico no texto ehyeh asher ehyeh. Dete-

nho-me nesse ponto porque, na minha leitura, a maior de-

turpa����o que Jo��o imp��e �� B��blia hebraica �� o que chamo de

"transforma����o" das palavras de Jav�� a Mois��s, conforme

constatada na extraordin��ria rea����o de Jesus ��� "Antes que

Abra��o existisse, Eu Sou" ���, que, no fundo, proclama: "An-

tes que Mois��s existisse, Eu Sou." A meu ver, temos aqui a

manifesta����o mais aguda da ambival��ncia tang��vel de Jo��o

diante de Mois��s, ambival��ncia da qual o estudioso mais

arguto tem sido Wayne Meeks. Jo��o joga com e contra o

brilhante jogo de palavras envolvendo "Yahweh" e "ehyeh".

Todavia, ao fazer tal afirma����o, oponho-me �� autoridade dos

estudos mais avan��ados a respeito do quarto evangelho, e,

por conseguinte, preciso lidar com essa dificuldade, antes de

retomar a quest��o da ambival��ncia joanina perante as tradi-

����es de Mois��s. E somente ap��s examinar o embate entre

Jo��o e Mois��s sentir-me-ei �� vontade para especular acerca

da antiga indiferen��a rab��nica �� substitui����o que Deus faz

de seu nome pr��prio pela frase ehyeh asher ehyeh.

Tanto B. Lindars quanto C. K. Barrett, em seus consa-

grados coment��rios a respeito de Jo��o, insistem que as pala-

vras "Antes que Abra��o existisse, Eu Sou" n��o fazem qual-

quer alus��o a "Eu Sou Aquele Que Sou". Um cr��tico liter��rio

deve, de in��cio, registrar que os estudos sobre o Novo Testa-

mento demonstram no����o bastante simplificada quanto ao

que constitui, ou pode constituir, alus��o liter��ria, mesmo

nessa configura����o extraordinariamente singular. Mas cabe

lembrar a leitura ins��pida que Barrett faz da mencionada afir-

ma����o de Jesus: "O sentido �� o seguinte: antes de Abra��o



O E V A N G E L H O D E J O �� O

97

existir, eu j�� existia, conforme hoje sou, e continuarei a ser,

para sempre." O magistral int��rprete moderno de Jo��o,

Rudolf Bultmann, parece-me ainda menos apto a lidar com

a met��fora. Eis sua leitura de Jo��o 8, 57-58:

Os judeus continuam presos nas redes do seu pr��prio

ide��rio. Como poderia Jesus, que ainda n��o tem cinq��enta

anos, ter visto Abra��o! No entanto, a concep����o que o mun-

do tem de tempo e idade �� in��til, quando �� mister lidar

com a revela����o de Deus, assim como �� in��til a concep-

����o mundana de vida e morte. "Antes que Abra��o existis-

se, Eu Sou." Ao contr��rio de Abra��o, o Revelador n��o

pertence ��s galerias de personagens hist��ricos. O ego que

Jesus expressa na condi����o de Revelador �� o "Eu" do Logos

eterno, que, no princ��pio, era o "Eu" do pr��prio Deus

eterno. Contudo, os judeus n��o compreendem que o ego

da eternidade h�� de ser ouvido em um indiv��duo hist��ri-

co, que ainda n��o tem cinq��enta anos, que, na condi����o

de homem, �� um dos seus pares, cuja m��e e pai eles co-

nheciam. N��o compreendem, porque a no����o da "pre-

exist��ncia" do Revelador s�� pode ser compreendida na f��.

Tamb��m em uma nota, Bultmann nega qualquer alu-

s��o �� declara����o de Jav�� ��� "Eu Sou Aquele Que Sou". Acho

ir��nico que, quase dois mil anos depois de S��o Paulo ter

acusado os judeus de literalistas, os principais estudiosos do

cristianismo sejam literalistas inveterados, o que, evidente-

mente, os grandes rabinos nunca foram. N��o posso conce-

ber uma leitura menos contundente das palavras "Antes que

Abra��o existisse, Eu Sou" do que o recuo de Bultmann na

"f��", uma "f��" na "pr��-exist��ncia" de Jesus. Ainda que eu ���

ou quem quer que seja ��� n��o possa questionar um argu-

mento baseado unicamente na f��, se isso �� tudo que Jo��o



J E S U S E J A V ��

98

quis dizer, ent��o, foi mesmo um poeta fraco. Ocorre, po-

r��m, que esse trecho expressa o que h�� de melhor em Jo��o, e,

quando excede, Jo��o �� um leitor vigoroso, por conseguinte,

escritor vigoroso. Quanto ao ponto pol��mico de Bultmann,

satisfa��o-me ao repetir algumas observa����es feitas pelo rabi-

no David Kimhi, quase oitocentos anos atr��s:

Dizei-lhes que n��o pode haver pai e filho na Divindade,

pois a divindade �� indivis��vel, sendo uma em todos os

aspectos da unidade, ao contr��rio de mat��ria divis��vel.

Dizei-lhes mais, que o pai precede o filho no tempo, e

que o filho nasce pela a����o do pai. Embora os termos "pai"

e "filho" tenham implica����es m��tuas [...] aquele chama-

do de pai, for��osamente, vir�� antes no tempo. Portanto,

quanto a esse Deus a quem eles chamam Pai, Filho e Es-

p��rito Santo, a parte �� qual denominam Pai �� anterior

��quela que chamam Filho, pois se coexistissem, seriam

irm��os g��meos.

Cito esse trecho, por um lado, porque muito o aprecio,

mas tamb��m porque essas palavras levantam a verdadeira

quest��o entre Mois��s e Jo��o, entre Abra��o e Jesus, quer di-

zer, a quest��o tripla e pol��mica da primazia, autoridade e

originalidade. Na minha leitura, o tropo de Jo��o afirma n��o

apenas a primazia de Jesus sobre Abra��o (e assim, necessa-

riamente, sobre Mois��s), mas tamb��m a primazia, a autori-

dade e a originalidade de Jo��o diante de Mois��s, ou como

podemos dizer, de Jo��o enquanto escritor diante da Javista

enquanto escritora. Essa �� a dire����o que me interessa, no

presente relato do embate entre a Javista e Jo��o; portanto,

volto-me agora para algumas observa����es gerais acerca do

quarto evangelho ��� observa����es de um cr��tico liter��rio, ob-



O E V A N G E L H O D E J O A O

99

viamente, e n��o de um fiel e/ou estudioso especializado no

Novo Testamento.

Entre todos os evangelhos, o de Jo��o parece exibir o

tom mais angustiado, e a modalidade dessa ang��stia apre-

senta uma natureza que eu consideraria t��o liter��ria quanto

existencial ou espiritual. Sinal dessa ang��stia �� a diferen��a

palp��vel entre a atitude de Jesus, em rela����o a si mesmo, no

quarto evangelho, comparada ��quela que observamos nos

outros tr��s. �� consenso entre os estudiosos que o texto de

Jo��o foi escrito no final do primeiro s��culo, portanto, de-

pois dos Evangelhos Sin��ticos. Um s��culo ��, certamente,

tempo bastante para que uma esperan��a apocal��ptica retro-

ceda e seja substitu��da por uma forte sensa����o de atraso. O

Jesus de Jo��o demonstra certa obsess��o com a pr��pria gl��-

ria, de modo especial, com o que deve constituir essa gl��ria

no contexto judaico. A exemplo do Jesus do gnosticismo, o

Jesus de Jo��o �� dado a dizer "eu sou", e h�� toques gn��sticos

por todo o quarto evangelho, embora a extens��o de tais ves-

t��gios seja discut��vel. Talvez, conforme deduzem alguns es-

tudiosos, exista um evangelho anterior, mais gn��stico, es-

condido no Evangelho de Jo��o. Um artigo interessante, de

autoria de John Meagher, de Toronto, publicado em 1969,

chega a sugerir que, originalmente, Jo��o 1, 14 dizia: "E o

Verbo se fez pneuma e habitou entre n��s", o que encerra

uma formula����o gn��stica, embora, curiosamente, mais no

esp��rito e no tom de grande parte do quarto evangelho do

que "E o Verbo se fez homem".

A flagrante maldade do Evangelho de Jo��o para com os

fariseus traduz, no extremo, uma ang��stia diante da autori-

dade espiritual farisaica, e talvez seja acirrada pelas nuan��as

gn��sticas presentes em Jo��o. Um leitor judeu que possua o

menor senso de hist��ria judaica sente-se amea��ado ao ler



J E S U S E J A V ��

100

Jo��o 18, 28; 19, 16. N��o penso que tal sensa����o tenha a ver

com o suposto pathos ou a (problem��tica) for��a liter��ria da

passagem. Existe algo particularmente errado nas palavras

do Jesus de Jo��o: "Se o meu reino fosse deste mundo, os

meus criados lutariam para que eu n��o fosse entregue as au-

toridades dos judeus" (18, 3 6 ) ; isso implica que Jesus j�� n��o

�� judeu. Esse toque infeliz �� mais um sinal da ret��rica da

ang��stia que predomina no quarto evangelho. A vis��o de

Jo��o parece pertencer a um pequeno grupo ��� supostamen-

te, o grupo dele pr��prio ���, que encontra origem an��loga e

definida no grupo que cercava Jesus, duas gera����es antes.

Segundo avalia����o geral dos estudiosos, a conclus��o original

do Evangelho de Jo��o era a par��bola de Tom��, aquele que

duvidava ��� met��fora expressiva para uma seita ou grupo

que passava por uma crise de f��.

�� em meio a essas expectativas frustradas (talvez de uma

recente expuls��o do mundo judaico) que o embate entre Jo��o

e Mois��s encontra o seu contexto. W a y n e Meeks escreveu,

com grande sensibilidade, sobre a ambival��ncia do quarto

evangelho em rela����o ��s tradi����es de Mois��s, de modo espe-

cial aquelas centradas na imagem de Mois��s como profeta-

rei, am��lgama singular dos dois pap��is que Jo��o procura de-

senvolver e superar em Jesus. Jo��o, e Paulo antes dele,

enfrentou um precursor e rival insuper��vel, e a vit��ria apa-

rente dos primeiros �� ilus��ria. A dignidade est��tica da B��blia

hebraica, e da Javista, particularmente, na condi����o de ori-

ginal fant��stico, est�� al��m da capacidade competitiva do

Novo Testamento, tratando-se de fa��anha liter��ria, assim

como est�� al��m dos textos gn��sticos que sobreviveram e

q u e p o s s u e m a l g u m valor est��tico ��� fragmentos de

Valentinus e o Evangelho da Verdade, possivelmente, escri-

to por Valentinus.



O E V A N G E L H O D E J O �� O

101

H�� tantos embates com Mois��s ao longo do Novo Tes-

tamento que n��o tenho como contrastar Jo��o, sob esse pris-

ma, a todas as demais refer��ncias, mas gostaria de compar��-lo,

brevemente, a Paulo, apenas porque, mais adiante, pretendo

abordar alguns aspectos do embate do pr��prio Paulo com a

B��blia hebraica. Desconhe��o algo mais pungente, em todo o

coment��rio existente acerca de Paulo, do que as observa����es

feitas por Nietzsche, em 1888, em O Anticristo:

Paulo �� a encarna����o de um tipo que �� o oposto daquele

do Salvador; �� o g��nio que odeia, que atua do ponto de

vista do ��dio, segundo a l��gica implac��vel do ��dio [...]. O

que ele desejava era poder; com S��o Paulo, novamente, o

sacerdote aspirava ao poder ��� ele s�� podia se valer de

conceitos, doutrinas, s��mbolos com os quais as massas s��o

tiranizadas, e por meio dos quais se formam os rebanhos.

�� certo que Nietzsche �� extremo, mas poder�� ser refu-

tado? Paulo �� um leitor t��o descuidado, desatento e apressa-

do da B��blia hebraica que muito raramente acerta em algu-

ma passagem; e, em um indiv��duo dotado de tamanho

talento, esse tipo de incompreens��o s�� pode resultar dos dia-

letos do instinto de poder, da vontade de poder em rela����o a

um texto, mesmo quando o texto �� t��o grandioso quanto o

da Tor��. Existe pouca ast��cia antag��nica nas interpreta����es

equivocadas que Paulo faz da Tor��; muitas dessas interpre-

ta����es constituem, na verdade, erros rid��culos. O mais c��le-

bre �� a estranha exegese de ��xodo 34, 2 9 - 3 5 , em que o texto

apresenta Mois��s descendo do Sinai, com as t��buas na m��o,

o rosto reluzente na gl��ria de Deus ��� gl��ria t��o grande que

Mois��s precisa encobrir o semblante, depois que fala ao povo,

e s�� desvel��-lo quando voltar a falar com Deus. A interpre-

ta����o normativa judaica, que Paulo certamente conhecia, era



J E S U S E J A V ��

102

de que o brilho sinalizava o resgate que a Tor�� fazia de ze-

lem, a verdadeira imagem de Deus, perdida por Ad��o, e que

esse mesmo brilho permaneceu at�� o falecimento de Mois��s.

Contudo, eis 2 Cor��ntios 3, 12-13:

Fortalecidos por tal esperan��a, estamos plenamente con-

fiantes, ao contr��rio de Mois��s, que colocou um v��u so-

bre a face para que os filhos de Israel n��o percebessem o

fim daquele esplendor.

N��o h�� como resgatar essa passagem, nem mesmo qua-

lificando-a, com benevol��ncia, como "par��dia" ao texto

hebraico, conforme o faz W a y n e Meeks. N��o se trata de

mentira contra o tempo, ao estilo joanino; ��, simplesmente,

mentira contra o texto. Tampouco �� algo raro em Paulo.

Meeks, de modo comovente, chama Paulo de "Proteu cris-

t��o", e Paulo, com certeza, est�� al��m da minha compreen-

s��o. Proteu �� modelo adequado para muitos outros pap��is,

mas talvez n��o para um int��rprete da lei mosaica. A leitura

feita por Paulo daquilo que ele achava que fosse a Lei pare-

ce-me, cada vez mais, estranhamente freudiana, porquanto

Paulo identifica a Lei com o instinto humano que Freud

queria chamar de T��natos. A confus��o que Paulo faz da Lei

com a morte, presumivelmente, o impede de ver Jesus como

realiza����o transcendental que se reporta a Mois��s. Antes,

Paulo contrasta a si mesmo com Mois��s, e n��o se coloca em

desvantagem. Da��, Romanos 9, 3:

Eu gostaria de ser amaldi��oado e separado de Cristo em

favor dos meus irm��os de ra��a.

O ��mpeto de Paulo talvez possa parecer, a princ��pio,

orgulho judaico, sentimento do qual eu concederia ao Paulo



O E V A N G E L H O D E J O �� O

103

proteico uma boa quantidade, mas a alus��o mosaica altera a

natureza desse orgulho. Todos os exegetas apontam ��xodo

32, 32 como texto precursor. Mois��s se oferece a Jav��, em

expia����o, ap��s a orgia realizada pelo povo em adora����o ao

Bezerro de Ouro: "Mas, agora, ou perdoas o pecado deles

ou, eu te pe��o, risca-me do livro que escreveste." Como com-

parar as duas ofertas de intercess��o? Afinal, o povo pecou, e

Mois��s opta pelo esquecimento, para salvar a sua gente das

conseq����ncias da infidelidade. A for��a alusiva da oferta de

Paulo volta-se contra seus contempor��neos judeus e contra

o pr��prio Mois��s. At�� mesmo os fariseus (por quem Paulo,

diferente de Jo��o, demonstra cont��nuo apre��o) s��o adoradores

do bezerro de ouro da morte, pois a Lei �� morte. E tudo que

Mois��s, supostamente, fez foi abrir m��o de sua grandeza

prof��tica, de um lugar na hist��ria da salva����o. Mas Paulo,

por suposto amor pelos companheiros judeus, disp��e-se a

perder mais do que Mois��s, porque insiste que tem mais a

perder. Ser separado de Cristo �� morrer eternamente, sacri-

f��cio maior do que a oferta mosaica de ser semelhante a al-

gu��m que nunca viveu. Isso �� o que eu chamaria de o con-

tra-sublime demon��aco da hip��rbole, cuja for��a repressiva ��

enorme e muito reveladora.

M a s , volto a Jo��o, cujo embate revisionista contra

Mois��s �� mais sutil. Meeks delineou a respectiva trajet��ria

das alus��es, e, portanto, aqui vou segui-lo, embora ele hou-

vesse de divergir da interpreta����o que ofere��o para a referida

trajet��ria. As alus��es iniciam com Jo��o Batista entoando t��-

pica invers��o joanina, em que o retardat��rio tem franca pri-

mazia ("Jo��o dava testemunho dele, e proclamou: 'Este ��

aquele, a respeito de quem falei: aquele homem que vem

depois de mim passou �� minha frente, porque existia antes

de m i m ' " ) , ao que o autor do quarto evangelho acrescenta:



J E S U S E J A V ��

104

"Porque a Lei foi dada por Mois��s, mas a gra��a e a verdade

vieram atrav��s de Jesus Cristo" (Jo��o 1, 15-17). Mais adian-

te, o primeiro cap��tulo proclama: "Encontramos aquele de

quem Mois��s escreveu na Lei e tamb��m os profetas: �� Jesus

de Nazar��" ( 1 , 4 5 ) . O terceiro cap��tulo, com ousadia, inver-

te um grande tropo mosaico, de um modo sempre descon-

certante para qualquer leitor judeu: "Ningu��m subiu ao c��u,

a n��o ser aquele que desceu do c��u, o Filho do Homem. E

assim como Mois��s levantou a serpente no deserto, do mes-

mo modo �� preciso que o Filho do Homem seja levantado"

(3, 13-14). O g��nio indubitavelmente revisionista de Jo��o ��

aqui impressionante, estritamente do ponto de vista t��cnico

ou ret��rico. Jamais foram feitas revela����es celestiais a Mois��s.

Jesus na cruz ser�� a realiza����o antit��tica de Mois��s levantan-

do a serpente infame no deserto. Mois��s foi apenas uma par-

te, mas Jesus completa o todo. M i n h a rejei����o a uma lingua-

gem tipol��gica, aqui e em outros momentos, �� proposital.

A mesma intensidade de realiza����o antit��tica �� invocada

quando Jesus se declara a concretiza����o do sinal do man��,

conforme seria de esperar do Messias. M a s aqui a ambi-

val��ncia gratuita em rela����o a Mois��s �� mais penetrante:

"Em verdade, em verdade, digo a voc��s, n��o foi Mois��s

que lhes deu o p��o vindo do c��u; �� meu pai quem d�� a

voc��s o verdadeiro p��o que vem do c��u. Pois o p��o de Deus

�� aquele que desce do c��u e d�� vida ao mundo" (6, 3 2 - 3 3 ) . ��

medida que se desenvolve, a met��fora, em um contexto ju-

daico, torna-se t��o chocante que at�� mesmo os disc��pulos se

assustam; a esse respeito, destaco um momento espec��fico,

que marca a crescente viol��ncia de Jo��o contra Mois��s e to-

dos os judeus: "Os pais de voc��s comeram o man�� no deser-

to e, no entanto, morreram. [...] Eu sou o p��o vivo [ . . . ] .



O E V A N G E L H O D E J O �� O

105

Quem come deste p��o viver�� para sempre; e o p��o que eu

vou dar, para que o mundo tenha a vida, �� a minha pr��pria

carne" (6, 4 9 - 5 1 ) . ��, afinal de contas, desnecess��rio afirmar

que nossos pais comeram o man�� e morreram; �� at�� engano-

so, pois, se n��o tivessem comido o man��, n��o teriam vivido

tanto quanto viveram. Mas Jo��o alterna o tom, recorrendo

agora ao contra-sublime demon��aco, e sua hip��rbole contri-

bui para estabelecer uma nova sublimidade crist��, em que

judeus morrem e crist��os vivem eternamente.

Em vez de multiplicar exemplos do revisionismo de

Jo��o, quero concluir minhas observa����es sobre o quarto evan-

gelho examinando, em todo o seu contexto, a passagem com

a qual iniciei o cap��tulo: "Antes que Abra��o existisse, Eu

Sou." Muito me desagrada o trecho que procedo a esclare-

cer, porque nele encontro o que h�� de mais antip��tico e, na

realidade, antijudaico em Jo��o, mas a for��a ret��rica extraor-

din��ria contida em "Antes que Abra��o existisse, Eu Sou"

depende, em grande parte, de contextualiza����o, pois Jo��o

anula o orgulho judaico inerente �� descend��ncia de Abra��o.

O trecho, que compreende a maior parte do cap��tulo oito,

inicia com Jesus no templo, cercado de fariseus e judeus em

processo de se tornarem crentes. ��queles que come��am a ser

persuadidos, Jesus agora diz algo que, certamente, os repelir��:

"Se guardarem a minha palavra, voc��s de fato ser��o meus

disc��pulos; conhecer��o a verdade, e a verdade os liberta-

r��." Eles responderam: n��s somos descendentes de Abra��o,

e nunca fomos escravos de ningu��m. Como podes dizer:

"Voc��s ser��o libertados?"

8, 31-33



J E S U S E J A V ��

106

Parece, retoricamente, p��fio que Jesus agora se torne

agressivo, invocando insinua����es homicidas:

"Eu sei que voc��s s��o descendentes de Abra��o; no entan-

to, est��o procurando me matar, porque minha palavra n��o

entra na cabe��a de voc��s. Eu falo das coisas que vi junto

ao Pai, e voc��s fazem aquilo que ouvem do pai de voc��s."

8, 37-38

Conforme o Jesus de Jo��o, com toda a bondade, est��

prestes a informar, o pai dos judeus �� o diabo. N��o se pode

culp��-los por responder: "Nosso pai �� Abra��o", nem por su-

por que o denunciante est�� tomado por um dem��nio. Olho

o rodap�� da p��gina do texto que estou utilizando ��� The

New Oxford Annotated Bible, Revised Standard Versi��n (1977)

��� e constato que, ao lado do vers��culo 48, quanto �� quest��o

do "dem��nio", os editores, prestimosos, informam: "Os ju-

deus recorrem ao insulto e �� cal��nia." Penso que esse tipo de erudi����o �� uma disciplina maravilhosa, e replico, timida-mente, que qualquer leitura desapaixonada poder�� perceber

que �� o Jesus de Jo��o quem primeiro recorre "ao insulto e ��

cal��nia". Que importa, se os judeus est��o caindo direto na

armadilha ret��rica de Jo��o? Jesus promete que os que nele

cr��em "nunca ver��o a morte", e os filhos de Abra��o (ou fi-

lhos do diabo?) protestam:

"Abra��o morreu, e os profetas tamb��m; e tu dizes: 'se al-

gu��m guarda a minha palavra nunca vai experimentar a

morte'. ��s maior que o nosso pai Abra��o, que morreu?"

8, 52-53



O E V A N G E L H O D E J O �� O

107

Jesus responde chamando-os de mentirosos, mais uma

vez, gratuitamente, e, em seguida os enla��a, com a armadi-

lha mais sutil utilizada por Jo��o, que me traz de volta ao

ponto de partida:

'"Abra��o, o pai de voc��s, alegrou-se porque viu o meu

dia. Ele viu e encheu-se de alegria.' Ent��o os judeus disse-

ram: 'Ainda n��o tens cinq��enta anos, e viste Abra��o?' Je-

sus respondeu: 'Em verdade, digo a voc��s: antes que Abra��o

existisse, Eu Sou.'"

Jo��o 8, 56-58

Quando o Jesus de Jo��o diz "antes que Abra��o existis-

se, Eu Sou", a alus��o, em ��ltima inst��ncia, n��o �� a Abra��o,

mas a Mois��s e �� declara����o que Jav�� fez a Mois��s: "Eu sou

aquele que sou." A met��fora salta por cima de Abra��o, pois

diz tamb��m "antes que Mois��s existisse, Eu Sou", e sugere,

no extremo: "Eu sou aquele que sou" ��� porque sou um,

com meu pai Jav��. A ambival��ncia e a intensidade agn��stica

do quarto evangelho alcan��am a apoteose com essa introje����o

sublime de Jav��, que, simultaneamente, tamb��m �� proje����o

ou rejei����o a Abra��o e Mois��s.

No in��cio dessa an��lise, confessei minha surpresa com

a indiferen��a normativa dos antigos rabinos diante da afir-

ma����o sublime de Jav�� ��� ehyeh asher ehyeh. Se o grande

rabino Akiba um dia especulou acerca dessa frase enigm��ti-

ca, ele guardou para si a especula����o. Mas duvido que tenha

feito qualquer conjectura nesse sentido, pois n��o creio que

um s��bio t��o intr��pido costumasse esconder suas dedu����es,

e n��o sou t��o ferrenho cabalista a ponto de achar que Akiba

ocultasse saberes proibidos ou esot��ricos. Para a mentalida-



J E S U S E J A V ��

108

de normativa do juda��smo mais ou menos contempor��nea a

Jesus, n��o havia, evidentemente, nada de extraordin��rio no

fato de Jav�� se eximir de revelar seu nome e, em vez disso,

afirmar, quase jocosamente: "Diga-lhes que sou eu ��� aque-

le que estar�� presente onde e quando estiver presente ��� quem

enviou voc��." Assim falava Jav��, e assim era Jav��. Por��m,

para o ouvinte tardio do quarto evangelho, assim como para

todos n��s que chegamos tardiamente, "Eu sou aquele que

sou" sempre foi uma esp��cie de mysterium tremendum, ex-

press��o empregada por Rudolf Otto no grande livro The

Idea ofthe Holy (A id��ia do sagrado). Tal mist��rio Jo��o ten-

tou transcender com a formula����o "antes que Abra��o exis-

tisse, Eu Sou". Antes do texto de ��xodo estava o texto que

Jo��o escrevia, em que os judeus seriam arrastados ao universo

da morte, enquanto Jesus conduzia Jo��o ao universo da vida.

N��o vejo como qualquer cr��tico liter��rio que se preze

possa deixar de considerar Jo��o um mau revisionista da Au-

tora " J " e Paulo ainda inferior, a despeito do estranho pathos

caracter��stico da sua personalidade proteica. No embate es-

t��tico entre a B��blia hebraica e o Novo Testamento, n��o

existe, a rigor, competi����o, e quem n��o pensar assim, ent��o,

que Deus o aben��oe.

Mas, com certeza, a quest��o n��o �� est��tica ��� �� bom

lembrar. Estamos todos presos �� hist��ria, e o triunfo hist��ri-

co do cristianismo �� um fato. N��o me sinto compelido a

falar a respeito, mas sinto-me compelido a rejeitar padr��es

idealizados de interpreta����o que esse triunfo instigou, desde

a antiga tipologia at�� o ressurgimento da figura, em Erich

Auerbach, e o Grande C��digo Blakiano de Northrop Frye.

Nenhum texto, laico ou religioso, completa outro texto, e

todos os que insistem no contr��rio t��o-somente homoge-



O E V A N G E L H O D E J O �� O

109

ne��zam a literatura. Quanto �� relev��ncia do est��tico na ques-

t��o do conflito entre textos sagrados, duvido, em ��ltima ins-

t��ncia, que haja outros aspectos mais relevantes para o leitor

esclarecido, o leitor que n��o seja dominado por persuas��es

ou convic����es extraliter��rias. Ler O Livro dos M��rmons, por

exemplo, �� experi��ncia est��tica dif��cil, e admito que poucos

trechos do Novo Testamento me submetem a sofrimento

compar��vel. Mas Jo��o e Paulo n��o pedem para ser lidos em

contraste com O Livro dos M��rmons.

Pode o revisionismo a que o Novo Testamento sub-

mete a B��blia hebraica ser lido de modo menos pol��mico e

destrutivo? Por mim, n��o. M a s n��o devemos nos precipitar

ao descartar uma leitura informada por uma consci��ncia das

trilhas percorridas pelo antit��tico, das estrat��gias revisionistas

desenvolvidas por retardat��rios que buscam se fortalecer,

dispostos a sacrificar a verdade para obter for��a, mesmo quan-

do proclamam a encarna����o da verdade al��m da morte.

Nietzsche n��o ��, absolutamente, o s��bio preferido dos estu-

diosos contempor��neos do Novo Testamento, mas talvez

ele ainda tenha algo vital a lhes ensinar.

O que t��m judeus e crist��os a ganhar, quando se recu-

sam a ver que o desespero revisionista do Novo Testamento

impossibilita, de uma vez por todas, a identifica����o da B��-

blia hebraica com o Antigo Testamento crist��o? Sem d��vi-

da, h�� benef��cios sociais e pol��ticos na idealiza����o do "di��lo-

go", mas n��o h�� nada al��m disso. Mentir para terceiros ou

para si mesmo, a fim de propiciar mais afeto ou coopera����o

entre crist��os e judeus, n��o constitui uma contribui����o ��

vida do esp��rito nem do intelecto. Paulo �� incorrigivelmente

equ��voco em quase todos os assuntos, mas, na minha leitu-

ra, n��o �� um judeu anti-semita; contudo, a deturpa����o por

ele imposta �� Tor�� �� total. Jo��o ��, evidentemente, um judeu



J E S U S E J A V ��

110

anti-semita, e, na pr��tica, o quarto evangelho �� fatal, na con-

di����o de texto antijudaico. Por��m, em termos teol��gicos e

emocionais, o Evangelho de Jo��o �� central ao cristianismo.

Concedo a palavra final ao s��bio a quem a tradi����o judaica

chama Radak, o mesmo David Kimhi por mim j�� citado e que,

por sua vez, como fonte que sustenta a sua argumenta����o, cita

Ezequiel 16, 53: "Eu vou libert��-las, libertar Sodoma e suas

filhas." E ent��o Radak comenta, cheio de raz��o, descartando

de sua perspectiva todos os crist��os, considerando-os hereges

em rela����o ao juda��smo: "Este vers��culo �� uma resposta aos

crist��os hereges que dizem que o consolo futuro j�� foi concre-

tizado. Sodoma permanece arruinada e prossegue inst��vel."

C A P �� T U L O 8 Jesus e Cristo

Ser�� que Jesus se considerava o Cristo, quer dizer, "o ungi-

do", ou o Messias dav��dico? A resposta a essa pergunta deixa

qualquer pessoa aturdida, a menos que o Evangelho de Jo��o

seja considerado superior aos Evangelhos Sin��ticos. Jo��o est��

sempre afirmando esse ponto, mas cabe desconfiar de suas

asser����es, em parte em virtude da cantilena antijudaica, o

que talvez ateste a expuls��o que a comunidade judaica imp��e

ao grupo ao qual ele pertencia. Nos Sin��ticos, Jesus �� evasi-

vo, ou misterioso, no que concerne �� sua identidade, con-

forme seria de esperar, de um lado, por causa dos riscos que

o cercavam, de outro, nitidamente, devido a uma ambiva-

l��ncia consider��vel quanto �� sua autoconsci��ncia. N��o h��

motivos para duvidar que Jesus e os seguidores soubessem

da sua descend��ncia de Davi, e a execu����o de Jo��o Batista

foi uma sombra, ao menos porque ele e Jesus eram parentes

(segundo alguns relatos), a despeito do papel de mentor de-

sempenhado pelo Batista.

Mas que nome Jesus daria a si mesmo, al��m do em-

prego amb��guo de "Filho de Deus" e "Filho do Homem",



J E S U S E J A V ��

112

ambos metaf��ricos? Como par��dia ir��nica do papel de emis-

s��rio divino desempenhado por Jesus, Hamlet se considera

o embaixador da morte junto a n��s, algo mais que profeta,

mas que n��o vem a ser rei messi��nico. Jesus, ao contr��rio de

Maom��, n��o se considerava o "Selo dos Profetas", e preferia

adiar qualquer defini����o precisa da sua voca����o, conquanto

sempre expressasse a certeza de que Jav�� o tivesse chamado.

N��o �� evidente que ele preveja cat��strofe, embora os estu-

diosos se inclinem a essa vis��o.

Quando Jesus se diz filho de Deus, n��o parece sugerir

um sentido literal. Provavelmente, considerava Jos�� do Egi-

to e Davi, ambos favoritos de Jav��, "Filhos de Deus". Toda

Israel, na qualidade de na����o dos filhos de Abra��o, era com-

posta de filhos e filhas de Deus, conforme Jesus, certamente,

os chamava (apesar da insist��ncia do Evangelho de Jo��o em

afirmar que Jesus chamava os compatriotas judeus de filhos

do diabo). Em Marcos, Jesus proclama Deus como seu pai

apenas tr��s vezes, contra 31 vezes em Mateus, e muito mais

de cem em Jo��o. E n��o existe consenso a respeito do que,

precisamente, Jesus queria dizer quando se referia a si mes-

mo como "Filho do Homem". Tudo leva a crer que estives-

se recorrendo �� ��nfase aramaica, em que "Filho do Homem"

ressaltava a precariedade dos homens mortais, sentido que a

express��o parece ter em Daniel 7, 13. H�� poucas bases nos

Sin��ticos para o cristianismo desenfreado de Jo��o e da tradi-

����o teol��gica que o seguiu. Parabolista el��ptico e ir��nico,

Jesus, possivelmente, seria um enigma at�� para si mesmo.

A ironia principal, para quem n��o �� crist��o, �� que o

Jesus vivo dos Sin��ticos n��o acredita ser a Encarna����o de

Jav��, muito menos no momento da morte, quando, deses-

perado, pergunta ao seu abba por que foi por ele abandona-



J E S U S E C R I S T O

113

do. A morte e os relatos da ressurrei����o tornam Jesus um Nome

Divino, desde antes de S��o Paulo, e, for��osamente, a tran-

si����o de Yeshu�� de Nazar�� para Jesus Cristo foi efetuada

pelas primeiras pessoas que aceitaram a convers��o ofereci-

da pelo ap��stolo Paulo. Os estudiosos crist��os que mais me

convencem ��� padre John Meier e E. P. Sanders ��� n��o s��o

ironistas e diferem quanto �� receptividade diante do sobre-

natural, aceito por Meier com base na f�� cat��lica, mas bas-

tante evitado por Sanders, cujo Jesus permanece firmemen-

te judeu, embora seja um carism��tico dotado de tamanha

autonomia que �� capaz de se constituir como autoridade em

si mesmo, transcendendo a Tanak. Sanders nos apresenta

um Jesus que tinha uma rela����o direta com Jav�� ��� talvez

n��o singular, de vez que os profetas, inclusive Jo��o Batista,

possu��am o mesmo atributo.

O Novo Testamento se fundamenta na viol��ncia sa-

grada da Crucifica����o e do suposto desenlace, em que morte

em conseq����ncia de tortura se transforma em ressurgimen-

to dentre os mortos. Trata-se de um padr��o bastante diverso

da turbul��ncia misteriosa observada em Jav��, que estabelece

Alian��as com sua gente, mas que tem liberdade total para

delas se evadir, e que adverte Mois��s, no Sinai, que os anci��os

privilegiados por participar com ele de um repasto n��o de-

vem se aproximar demais. Realisticamente, Jav�� mostra-se

ciente do seu temperamento ao estilo Rei Lear, propenso a

s��bitos acessos de f��ria. A falha tr��gica de Lear �� exigir amor

demais, caracter��stica silenciosa que Shakespeare, com ast��-

cia, toma emprestada ao Jav�� da B��blia hebraica. H�� v��rias

vers��es de Jesus Cristo no Novo Testamento grego, mas

at�� mesmo o Jesus de Marcos, o mais javista que consta dos

Evangelhos, n��o demonstra propens��o a fugir de promessas.



J E S U S E J A V ��

114

O ponto central da jornada de Jesus de Nazar�� at��

Jesus Cristo �� um conjunto de fatores que podemos chamar

de Encarna����o ���> Messias Crucificado ���> Perd��o, o que n��o

�� judaico, mas que, claramente, resulta de rea����es ocorridas

no sectarismo do Segundo Templo. A partir de meados do

primeiro s��culo da Era C o m u m ��� digamos, duas d��cadas

antes da destrui����o do Templo, em 70, pelos romanos ���,

id��ias de Encarna����o e Perd��o come��am a ser desenvolvidas

por v��rios seguidores an��nimos de Jesus, talvez mais na S��ria

do que na terra de Israel, uma vez que Tiago, o Justo, e seus

seguidores egressos de Jerusal��m e da Galileia eram, basica-

mente, judeu-crist��os e n��o crist��o-judeus. Saulo de Tarso,

supostamente, tornou-se Paulo, o Ap��stolo, em Damasco

ou Antioquia, e passou, em algum momento, a direcionar

sua miss��o aos gentios, firmando um acordo inc��modo com

Tiago, irm��o de Jesus, que n��o tinha interesse em convert��-

los. A Encarna����o, nitidamente, n��o �� cren��a paulina: um

Jav�� que comete suic��dio n��o faz sentido para Paulo, que

tinha sido o fariseu dos fariseus. Todavia, sendo as ep��stolas

de Paulo os textos crist��os mais antigos dentre os que sobre-

viveram, faz tempo que todo o esquema Encarna����o-Perd��o

vem sendo, erroneamente, atribu��do a ele.

Akenson, na obra Surpassing Wonder ( M a r a v i l h a

inigual��vel), associa os componentes do processo Encarna-

����o-Perd��o a uma mescla de fontes que datam da ��poca do

Segundo Templo. A Tanak desconhece o "Filho de Deus",

mas algo similar paira no "Apocalipse Aramaico" de Qumr��

(caverna quatro). O Filho do Homem, profundamente trans-

formado a partir do Livro de Daniel, impregna o Livro de

Enoque, e o chocante 4 Macabeus traz exemplos de reden-

����o nacional efetuada por meio de mart��rios volunt��rios.



J E S U S E C R I S T O

115

Nada disso �� canonicamente b��blico, e tudo isso �� estranho

��quilo que se tornaria juda��smo rab��nico normativo. Os S��-

bios Hebreus se indignavam diante da exuber��ncia de certos

desdobramentos tardios da doutrina crist��, �� medida que

quatro deuses surgiam do pante��o: Jesus Cristo, Deus Pai, a

totalmente original Virgem Santa e M �� e e o n��o-judaico

Esp��rito Santo, que pouco tem a ver com o esp��rito de Jav��

que se deslocava, com grande criatividade, sobre as ��guas.

O tema principal deste livro n��o �� a jornada de Jesus

at�� Cristo, mas a espantosa justaposi����o de dois nomes divi-

nos bastante diferentes, Jesus Cristo e Jav��. Contudo, o hia-

to entre essas duas vers��es n��o pode ser apreendido sem al-

gum entendimento do abismo profundo existente entre o

Yeshu�� hist��rico e o Deus teol��gico, Jesus Cristo. �� poss��vel

que, se tivesse sobrevivido �� Crucifica����o e vivido at�� a ter-

ceira idade, Yeshu�� de Nazar�� ficasse pasmo diante do

cristianismo.

Essa observa����o nada tem de original, e h�� de ser ina-

ceit��vel para milh��es de norte-americanos, por mais multi-

formes e confusas que as vis��es de Jesus tenham se tornado.

Um n��mero surpreendente dessas pessoas acha que j�� vive

no Reino de Jesus, embora Jesus n��o tenha sugerido que ele

pr��prio fosse o Reino; conforme o meu entendimento, Je-

sus se referia ao reino de Jav��, aqui e agora, e n��o no outro

mundo, ou no futuro distante.

Que significava "Reino" para Jesus? E. P. Sanders �� quem

escreve com mais clareza sobre o assunto, no livro Jesus and

Judaism (Jesus e juda��smo, 1985):

A natureza do material que est�� por tr��s dos ditos n��o nos

permite certezas sobre o sentido exato que Jesus preten-



J E S U S E J A V ��

116

dia conferir a um conceito t��o amplo quanto o de "reino

de Deus". Podemos perceber que, nos Sin��ticos, "reino"

apresenta uma gama de significados, mas n��o consegui-

mos saber o grau de ��nfase a ser atribu��do a cada significa-

do. Jamais temos certeza absoluta quanto �� autenticida-

de, e raramente, ou nunca, dispomos de dados sobre o

contexto original das falas. Os fatos nos levam �� convic-

����o de que Jesus buscava um reino futuro. Mas, at�� cer-

to ponto, as conclus��es acerca de sentido e ��nfase de-

pendem da an��lise da linguagem, e, uma vez que tal

an��lise ser�� sempre tentativa, determinadas no����es rela-

tivas �� vis��o que Jesus tem do reino jamais poder��o ser

conhecidas com certeza.

Sanders nos diz que n��o temos como saber, ao certo, o

que Jesus esperava. �� plaus��vel supor que Jesus tampouco

soubesse? Jesus n��o cometeu o que, para ele, seria absoluta

blasf��mia: a usurpa����o do reino de Jav��, conceito que os

te��logos crist��os ainda n��o lograram esclarecer. Outros rea-

lizaram tal usurpa����o, em nome dele, e, sem d��vida, conti-

nuar��o a faz��-lo. N��o encontro, por parte de Jesus, qualquer

transgress��o �� Tor��, especialmente em rela����o ao div��rcio,

diante do qual ele demonstrava uma esp��cie de pavor. Se a

atitude refletia alguma situa����o familiar, novamente, n��o

temos como saber. Sanders inocenta Jesus de blasf��mia, ao

observar que falar por Deus, em absoluto, n��o era proibido.

Profetas se equivocavam, mas as interpreta����es err��neas eram

postas de lado, sem viol��ncia.

�� certo que os seguidores imediatos de Jesus esperavam

que o advento do reino ocorresse enquanto ainda estivessem

vivos. Paulo, ap��stolo tardio, deve ter feito a derradeira ca-

minhada, rumo �� execu����o, em Roma, ainda convencido de



J E S U S E C R I S T O

117

que Jesus retornaria a qualquer momento, expectativa que

continua a vigorar em alguns crist��os, a cada gera����o, mes-

mo que muitos, no ��ntimo, pensem: "Que ele venha, mas

n��o enquanto eu viver."

A Guerra Santa n��o foi inventada pelos que firmaram a

Alian��a com Jav��. �� algo universal, que acontece em todos

os tempos e lugares, e, indubitavelmente, representa o que

Freud, em Al��m do Princ��pio do Prazer, decide chamar im-

pulso de morte. Proponho que Jav�� se aproxime do Princ��-

pio de Realidade, segundo Freud, de modo que ador��-lo vem

a ser uma esp��cie de prova de realidade. Oscar W i l d e dizia

que a vida �� por demais importante para ser levada a s��rio.

Por vezes, isso sugere a ironia da Autora " J " , capaz de insi-

nuar que Jav�� �� por demais importante para ser levado a

s��rio. Jav�� tem um perigoso senso de humor. Talvez o mes-

mo possa ser dito do Jesus de Marcos, mas n��o do Senhor

Jesus Cristo.

Crit��rios est��ticos determinam a prefer��ncia pelo Jav��

de " J " , diante de outras vers��es de Deus presentes na Tanak,

e pelo Jesus de Marcos, diante das vers��es que constam dos

demais Evangelhos. A brusquid��o, em " J " e Marcos, foi trans-

mitida, por meio de William Tyndale, a Shakespeare, perito

na arte da surpresa. O esplendor liter��rio de Jav�� e Jesus ��,

para mim, t��pico secund��rio. Mas a for��a dessas figuras ema-

na da caracteriza����o que consta da narrativa e das justaposi-

����es dram��ticas.

C A P �� T U L O 9 A Trindade

O dogma da Trindade sempre constituiu a linha crucial de

defesa da Igreja contra a imputa����o judaica e isl��mica de

que o cristianismo n��o �� religi��o monote��sta. Pretendo aqui

expor o mist��rio da Trindade, o melhor que possa faz��-lo,

ao mesmo tempo que, de um lado, deixo clara a minha ad-

mira����o pelo brilhantismo criativo e cognitivo do conceito

e, do outro, afirmo a minha perplexidade diante do atrevi-

mento e do esc��ndalo inerentes a esse mesmo dogma. Um

mist��rio, obviamente, requer f��, e, portanto, s�� pode ser ra-

cionalizado, com grande habilidade, por S��o Tom��s de

Aquino, a menos que seja irradiado pelo misticismo, no es-

tilo do Pseudo-Dion��sio, o suposto Areopagita (veja Atos

17, 3 4 ) , que inventou um Deus t��o transcendental que dei-

xa o simples Jav�� muito aqu��m do patamar de um nome

m��stico situado acima de nomes e seres ��� na verdade, mui-

to acima da Trindade. Misticismo, especialmente um misti-

cismo de modalidade t��o sublime, n��o integra o assunto deste

livro, mas �� aqui referido para delimitar meu argumento.

De modo particular, a teologia negativa de Dion��sio, ao in-

sistir que a linguagem n��o �� capaz de oferecer um relato coe-



J E S U S E J A V ��

120

rente do divino, inspirou a Igreja Ortodoxa Oriental, cujos

dogmas v��o al��m dos observados no catolicismo ocidental e

no subseq��ente protestantismo. Volto-me, portanto, para o

dogma ocidental da Trindade, procurando revel��-lo como

estrutura de ang��stia que foi, �� e sempre ser��.

Yeshu�� de Nazar��, que descendia de Davi, tinha por

h��bito dirigir-se a Jav�� como pai ( abbd), mas n��o chegou

nem perto de reduzir Jav�� �� condi����o de "Pai Nosso que

estais no c��u". Essa redu����o �� crist��, e Yeshu��, conforme

sempre devemos reconhecer, n��o era crist��o; era um judeu

do Segundo Templo, fiel �� sua pr��pria interpreta����o da Lei

de Jav��. Acima de tudo, Yeshu�� n��o era trinitario, afirma-

����o, simultaneamente, ��bvia e arrasadora quanto ��s impli-

ca����es. Fundamentalistas norte-americanos aguardam, an-

siosamente, o momento em que Jesus Cristo os arrebatar��

em ��xtase, reunindo-os na imortalidade celestial. Tal expec-

tativa talvez seja central �� religi��o norte-americana, e talvez

seja a mais popular das poesias do nosso tempo, mas, embo-

ra sublime, n��o pode ser considerada javista.

O dogma da Trindade admite como certo que Jav�� j��

foi reduzido �� Primeira Pessoa, Deus Pai. Nem mesmo um

estudioso t��o profundo quanto Jaroslav Pelikan, ou seu pre-

cursor Adolph Harnack, realiza qualquer tentativa de expli-

car a substitui����o de Jav��, sempre assustador e implac��vel,

pela figura de Deus Pai. O poeta-profeta ingl��s do per��odo

rom��ntico, W i l l i a m Blake, ainda hoje erroneamente cha-

mado de m��stico, percebe a quest��o com clareza definitiva,

quando, ironicamente, renomeia Jav��: "Nobodaddy", pai de

ningu��m.

Sem d��vida, n��o devemos indagar do dogma trinitario

quem ��, exatamente, a Primeira Pessoa, mesmo porque o

objetivo misterioso e principal da Trindade �� justificar a subs-



A T R I N D A D E

121

titui����o do Pai pelo Filho, da Antiga Alian��a pelo Testa-

mento Tardio, do povo judeu pelos gentios. Jesus Cristo ��

um novo Deus, segundo o modelo greco-romano de Zeus-

J��piter, que usurpa o seu lugar ao pai, Cronos-Saturno. Ao

estabelecer o cristianismo como religi��o da autoridade roma-

na, o imperador Constantino, astutamente, reconheceu em

Jesus Cristo a continuidade da tradi����o pag��. Jav��, �� seme-

lhan��a de um velho Saturno, recolheu-se ao que restava do

juda��smo, at�� poder retornar, na condi����o de Al�� do isl��.

Concluindo esse pre��mbulo, passo a tratar da Trinda-

de, essa proeza excepcional do mundo crist��o, que assim afir-

ma a sua inoc��ncia diante do ex��lio de Jav��. O monote��smo

pode at�� n��o ser um avan��o em rela����o ao polite��smo, mas o

cristianismo jamais admitiria o recurso pragm��tico repre-

sentado pelos tr��s Deuses, em lugar de um. Onde e quando

teve in��cio o dogma da Trindade? No s��culo IV da Era Co-

mum, Atan��sio, bispo de Alexandria, convenceu a maioria

dos colegas que Jesus Cristo era Deus, argumento ao mesmo

tempo inadequado e, curiosamente, sutil, pois Cristo tam-

b��m foi homem. Mas que tipo de homem? Era uma criatura

ou n��o? Os judeu-crist��os, liderados por Tiago, irm��o de

Jesus, insistiam que sim, a exemplo de ��rio, contempor��neo

e opositor de Atan��sio, mas o credo de Atan��sio venceu o

embate, e Jesus Cristo tornou-se mais Deus do que homem,

na pr��tica, se n��o na teoria.

A teologia ��, necessariamente, um sistema de met��fo-

ras, e a doutrina representa a literaliza����o desse sistema. Sou

levado a crer que a melhor poesia, a despeito de inten����es, ��

uma esp��cie de teologia, ao passo que teologia, de modo

geral, �� poesia med��ocre. No entanto, teologia pode consti-

tuir o que Wallace Stevens denominou "poesia profunda dos

pobres e dos mortos" e, nos Estados Unidos, faz dois s��cu-



J E S U S E J A V ��

122

los, a teologia �� a poesia do povo. A Trindade �� um grande

poema, mas �� dif��cil, sempre um desafio �� interpreta����o. A

sublime ambi����o da Trindade �� reconverter o polite��smo ao

monote��smo, o que s�� �� vi��vel se o Esp��rito Santo for trans-

formado em v��cuo e a exuberante personalidade de Jav�� for

ignorada. Se a Trindade �� de fato monote��sta, ent��o, o ��ni-

co Deus �� Jesus Cristo, n��o Yeshu�� de Nazar��, mas a sua

hiperb��lica expans��o, por meio da qual surge o usurpador

do amado abba.

O Yeshu�� hist��rico, at�� onde for poss��vel identific��-lo,

exibia suas pr��prias ang��stias de contamina����o, inclusive em

rela����o ao precursor imediato, Jo��o Batista, bem como a

outros predecessores, tais como Abra��o, Mois��s e Elias. Mas,

aparentemente, n��o sofria ang��stia de influ��ncia em rela����o

a Jav��, ao contr��rio do metaf��rico Jesus Cristo, cuja identi-

dade �� parte exigia a subtra����o de toda a irascibilidade de

Jav��, que, afinal, era um fracasso enquanto pai. Oscar W i l d e

observou, com mordacidade: "Pais devem ser vistos, mas n��o

ouvidos; eis o segredo da vida em fam��lia." Atan��sio, embora

n��o fosse muito sagaz, pode ser considerado ancestral do divi-

no Oscar, que, conforme dizia Borges, estava sempre certo.

Tendo sido cr��tico de poesia durante toda a vida, admiro o

poema que �� a Trindade, sem, no entanto, am��-lo. Se a Trin-

dade �� mito, ser�� tamb��m sonho de amor? Deus Pai, mera

sombra de Jav��, tem por fun����o principal amar o Filho, J e -

sus Cristo, e amar o mundo, com tamanha intensidade que

sacrificou Jesus para salv��-lo. Jav�� interveio para salvar Isaac

das m��os de Abra��o, literalista exagerado, o mais obediente

dos Aliados, mas n��o se fez dispon��vel para salvar Jesus de



A T R I N D A D E

123

Deus Pai. A met��fora corre livremente na Trindade e, com

certo escr��pulo, entro agora em seus labirintos, de in��cio,

citando o credo atanasiano, conforme fixado em Nic��ia, no

ano 3 2 5 :

Cremos em um s�� Deus, Pai Todo-poderoso [pantokratora],

criador [poi��t��n] de todas as coisas vis��veis e invis��veis;

Cremos em um s�� Senhor, Jesus Cristo, Filho de Deus,

nascido do Pai, apenas gerado, ou seja, da ess��ncia [reali-

dade] do Pai, [ek t��s ousias toupatros], Deus de Deus, Luz

da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado n��o

criado [poi��thenta], da mesma ess��ncia [realidade] do Pai

[homoousion t�� patrt], por ele todas as coisas foram feitas,

tanto na Terra quanto no c��u; que, para n��s, homens, e

para nossa salva����o, desceu e encarnou, tornando-se hu-

mano [enanthr��p�� santa]. Sofreu e, no terceiro dia, ressus-

citou e subiu aos c��us. E de novo h�� de vir para julgar os

vivos e os mortos.

E [cremos] no Esp��rito Santo.

Mas os que dizem, visto que ele n��o existiu desde sempre,

ou n��o existiu antes de sua gera����o, ou foi criado a partir

do nada, ou que a f i r m a m que ele, o Filho de Deus, tem

hypostasis [exist��ncia] diferente, ou ousia [ess��ncia], ou que �� uma criatura, inconstante, mut��vel, ser��o excomunga-dos pela Igreja Cat��lica e Apost��lica.

O alvo aqui �� o herege ��rio, segundo o qual Jesus Cris-

to foi criado por Deus em determinado momento e, portan-

to, era mut��vel. Contra ��rio, esse credo nos oferece uma

ret��rica hoje familiar, embora um tanto tr��pega, quando

fala em "da mesma ess��ncia do Pai". N��o h�� nada b��blico



J E S U S E J A V ��

124

nessa formula����o, nada javista; por��m, sem ela, Jesus seria

mera figura de transi����o, em vez de ser o derradeiro Verbo.

U m a met��fora pode ser retoricamente persuasiva e,

mesmo assim, bastante desesperadora, e homoousion aqui ��

uma extravag��ncia ainda n��o banalizada pela repeti����o. M a s

Jesus e Jav�� n��o s��o feitos "da mesma mat��ria", sentido prin-

cipal da palavra grega homoousios, adjetivo composto, pro-

vavelmente, tomado dos hereges gn��sticos pelos antigos

te��logos crist��os. G. L. Prestige, em livro bastante ��til, God

in Patristic Thought (Deus no pensamento patr��stico, 1936),

compara, de modo fascinante, a afirma����o gn��stica de que

Ad��o, ou homem-deus, assemelha-se �� imagem de Deus, mas

n��o era feito da mesma mat��ria, a exemplo da est��tua de

m��rmore que representava o primeiro-ministro Gladstone,

no National Liberal Club:

�� feita de mat��ria diversa na qual consiste o Sr. Gladstone:

�� a imagem do Sr. Gladstone, mas n��o tem com ele

homoousios.

Ocorre, por��m, que a no����o de homoousion atormenta

todos os pensadores patr��sticos (se assim for poss��vel cham��-

los), e deve continuar a nos perturbar, especialmente os ca-

t��licos, embora n��o os unitaristas, mu��ulmanos e judeus que

ainda cr��em na Alian��a, pois nenhum desses acredita na

Trindade. Os trinitarios ainda n��o haviam esclarecido o di-

lema central da met��fora, visto que o Credo do Conc��lio de

Nic��ia n��o resolve a controv��rsia da fus��o entre Pai e Filho.

A met��fora prosseguia sendo met��fora. Atan��sio, entretan-

to, insistia que Jesus Cristo n��o era criatura, tampouco o

Esp��rito Santo: a Trindade era uma identidade com subs-

t��ncia, n��o apenas uma analogia. Mas, se Deus �� um ser



A T R I N D A D E

125

��nico, como pode ter tamb��m tr��s identidades, cada qual

com a sua pr��pria descri����o?

Santo Agostinho, sagazmente, valeu-se da analogia de

que uma s�� consci��ncia humana re��ne a vontade, a mem��-

ria e o entendimento, mas isso n��o resolve o n�� anastasiano.

Entre a cultura latina de Agostinho e a Trindade grega existe

um hiato que n��o podia ser desfeito por uma guinada para o

interior. Os gregos viam uma ess��ncia e tr��s subst��ncias, ao

passo que os latinos proclamavam uma ess��ncia, ou subst��n-

cia e tr��s pessoas. Para os latinos, a Trindade compreendia

tr��s sujeitos; para os gregos, tr��s objetos ��� mas a diferen��a

era, basicamente, ling����stica e, na pr��tica, nada marcante.

O trite��smo �� t��o sedutor para a imagina����o quanto

qualquer outro polite��smo, e gregos e latinos tinham cultu-

ras ancestrais repletas de deuses, deidades menores e or��cu-

los. Jav�� e seus profetas n��o poderiam ser assimilados pelo

mundo cl��ssico sem que fossem transmutados em formas

conhecidas dos gentios. C o m isen����o, sou capaz de apreciar

a infinita capacidade criativa do trinitarismo, assim como as

ironias equ��vocas da teologia de Plat��o inspiram a minha

leitura do Timeu, que se aproxima muito mais de Atan��sio

do que do 1 Isa��as. Como poderia ser diferente? A grande

f��rmula c��mica de James Joyce era a seguinte: "gregojudeu"

se torna "judeugrego". A despeito de todo o brilho bizantino

magistralmente delineado por Jaroslav Pelikan (que hoje se-

gue a Igreja Ortodoxa Oriental), o cristianismo permanece

polite��sta, desde o Evangelho de Jo��o at�� a contemporanei-

dade norte-americana.

Estava Goethe (que era agn��stico) certo ao admitir que,

moralmente, somos monote��stas? Nossa Lei n��o �� hebraica

nem grega, mas, em ��ltima inst��ncia, romana, e o grande



J E S U S E J A V E

126

historiador, pelo qual continuamos aguardando, seria um

Edward Gibbon norte-americano, capaz de prever o nosso

inevit��vel decl��nio e a nossa queda. Gibbon atribuiu a ru��na

do Imp��rio Romano ao triunfo do cristianismo. A nossa de-

cad��ncia e derrocada talvez venham a ser provocadas pelo triun-

falismo republicano, sem d��vida, baseado em um am��lgama

de fundamentalismo, pentecostalismo e de m��rmons, sen-

do estes ��ltimos os defensores de uma moralidade monote��sta

enquanto, tacitamente, preservam o legado de Joseph Smith,

quanto �� pluralidade de deuses. O trinitarismo est�� morto,

ou morrendo, na Europa (exceto na Irlanda), e definha nos

Estados Unidos, onde at�� mesmo Deus Pai, que n��o �� mui-

to javista, paira �� sombra do Jesus norte-americano.

Volto a enfocar os sutis Padres gregos, que aplainaram

as contradi����es da Trindade, ou, ao menos, as camuflaram.

O melhor estudo sobre o assunto, mais uma vez, �� de Pelikan:

Christianity and Classical Culture (Cristianismo e cultura cl��s-

sica, 1993). Os her��is de Pelikan s��o os chamados capad��cios,

oriundos de uma regi��o turca situada ao norte da Arm��nia

Menor e ao sul de Ponto: Greg��rio de Nazianzeno, os ir-

m��os Bas��lio de Cesar��ia e Greg��rio de Nissa, e sua s��bia

irm�� Macrina, todos decanos da teologia crist�� helenizada.

Esses indiv��duos perceberam, com toda a raz��o, que o Con-

c��lio de Nic��ia n��o tinha conseguido formular uma defesa

convincente contra a acusa����o de que trinitarismo era poli-

te��smo. Armados de um sofisticado platonismo crist��o, eles

se dispuseram, precisamente, a articular tal defesa. Est�� im-

pl��cita em Pelikan a avalia����o de que, nessa miss��o quixotes-

ca, o grupo foi mais bem-sucedido do que Agostinho e

Aquino (esta ��ltima asser����o �� minha, n��o de Pelikan).



A T R I N D A D E

127

Dom Quixote foi qualquer coisa menos um fracassa-

do, mesmo que, finalmente, tenha aceito a derrota, e os

capad��cios de Pelikan tampouco fracassaram, porque sua

arma secreta era a teologia negativa, �� qual confesso afei����o

vital��cia, e da qual Pelikan �� expositor incompar��vel. Essa

espl��ndida modalidade de nega����o ling����stica insiste que toda

linguagem relacionada ao divino, seja b��blico ou n��o, �� irre-

mediavelmente inadequada, pois o transcendental n��o pode

ser apreendido em palavras. Hamlet, indispon��vel aos te��lo-

gos nagativistas, talvez os fizesse duvidar de seus pr��prios

procedimentos, exceto que o mais articulado dos persona-

gens shakespearianos alcan��a a transcend��ncia somente para

ent��o abra��ar o niilismo. O que era chamado de Verbo esta-

va al��m da palavra, e a luz divina brilhava muito mais do

que a luz natural. Basicamente, teologia negativa �� uma t��c-

nica metaf��rica para se expor e desfazer a met��fora. Isso,

para Hamlet, �� prazer, mas para aqueles que buscam a Trin-

dade trata-se de um teste ��rduo. Pai, Filho e Esp��rito Santo

s��o met��foras extremas, ao passo que o Jav�� da Autora " J "

era uma pessoa e uma personalidade, tanto quanto o Jesus

de Marcos. O monote��smo ocidental, proponho eu, conta

com apenas duas dramatiza����es convincentes de Deus: Jav��

e Al��. Jesus Cristo �� met��fora extraordinariamente mescla-

da, enquanto Deus Pai e o Esp��rito Santo s��o analogias t��-

nues. O Jesus norte-americano �� quest��o bem distinta, por-

que se encontra al��m da met��fora e inclui o mito nacional

da Nova Gente, eleita para um futuro de felicidade on��rica,

uma felicidade composta pelo ego��smo emancipado e por

uma solid��o interior que se autodenomina liberdade verda-

deira. Nossos profetas vitais, Emerson e W a l t W h i t m a n ,

foram p��s-crist��os, tanto quanto a na����o em que nasceram,



J E S U S E J A V ��

128

uma vez que o Jesus norte-americano pode ser descrito sem

que seja preciso recorrer �� teologia.

Os capad��cios de Pelikan trafegavam pl��cidamente (talvez

at�� demais) entre o polite��smo grego e o javismo r��gido, ad-

mitindo, de bom grado, que todos os an��logos do divino

eram inadequados. Se a Trindade tinha natureza metaf��ri-

ca, isso n��o os perturbava, visto que a divindade crista, por

defini����o, era desapaixonada. Contudo, considero admir��-

vel a coreografia capad��cia de negocia����es que salva a Trin-

dade, ou ao menos a reconcilia com a cultura plat��nica. O

platonismo crist��o dispensa a ironia socr��tica, ao menos at��

o advento de Soren Kierkegaard, no s��culo XIX, cuja ��nfase

come��ava no ponto em que os trinitarios tinham parado.

Como pode algu��m tornarse crist��o, ele pergunta, em um

reino que proclama a sua cota junto �� cristandade? Se o

cristianismo deve envolver parte do mist��rio do Jesus so-

fredor, ser�� isso alcan����vel quando o novo fiel, simples-

mente, junta-se �� sociedade? A pergunta faria pouco senti-

do no s��culo IV, oprimiria Kierkegaard, um mil��nio e meio

mais tarde, e parece irrespond��vel nos Estados Unidos do

s��culo XXI.

Os estudiosos raramente concordam a respeito de

como e por quem as controv��rsias trinitarias foram resolvi-

das. Pelikan apoia os capad��cios:

A congru��ncia do Trinitarismo capad��cio ("dogma cen-

tral") com a apolog��tica capad��cia resumia-se na afirma-

����o reiterada de que a doutrina ortodoxa da Trindade si-

tuava-se "entre duas concep����es" de helenismo e juda��smo,



A T R I N D A D E

129

"ao invalidar os dois modos de pensar, ao mesmo tempo

que aceitava componentes ��teis de ambos". Greg��rio de

Nissa apresentava a quest��o bravamente: "O dogma ju-

daico �� destru��do pela aceita����o do Logos e pela cren��a no

Esp��rito, enquanto o equ��voco polite��sta da escola grega ��

suprimido atrav��s da unidade da natureza [divina] anu-

lando essa id��ia de pluralidade." Em suma, portanto,

"quanto �� concep����o judaica, que prevale��a a unidade da

natureza [divina]; e quanto �� hel��nica, apenas a distin����o

relativa �� hypostases, sendo assim aplicado o rem��dio con-

tra a vis��o profana, conforme necess��rio, em cada um dos

lados". Essa simetria apolog��tica permitia-lhe declarar: "��

como se o n��mero Tr��s fosse um rem��dio, a ser ministra-

do ��queles que se equivocam em rela����o ao Um, e a afir-

ma����o da unidade, ��queles cuja f�� se encontra dispersa

em diversas divindades". Aos hereges que afirmavam que

o Filho de Deus era uma criatura, mas que, n��o obstante,

adoravam-no como Deus, ele oferecia a alternativa de

cometer idolatria, "adorando outrem que n��o fosse o Deus

verdadeiro", ou cair no juda��smo, "negando a adora����o

de Cristo". Greg��rio resumia o mesmo ponto pol��mico

ao acusar essa vis��o herege de, simultaneamente, "defen-

der os erros do juda��smo e, at�� certo ponto, participar do

paganismo dos gregos", aceitando o que havia de pior em

ambos, enquanto a ortodoxia aceitava o que havia de me-

lhor em ambos.

Christianity and Classical Culture (1993, pp. 249-50)

C o m o devido tato, pode-se observar que mais do que o

"dogma judaico" �� destru��do pela Palavra e pelo Esp��rito

Santo: onde situar a supremacia solit��ria de Jav�� nessa for-



J E S U S E J A V ��

130

mula����o ainda inteiramente grega? J. N. D. Kelly, no livro

Early Christian Doctrines (Primeiras doutrinas crist��s; edi-

����o revista, 1978), registra que o Deus dos trinitarios ��, "es-

sencialmente, racional". Lembrando-me do Jav�� sempre sur-

preendente que nos oferece a Autora " J " , fico, a princ��pio,

um pouco espantado, mas tamb��m mais confiante, quando

Kelly recorre a Agostinho em busca de uma percep����o mais

cautelosa dos limites da capacidade humana de compreen-

der os mist��rios da Trindade:

Enquanto se det��m nessas analogias e explora a sua

signific��ncia ilustrativa, Agostinho n��o se ilude quanto ��s

grandes limita����es dessas mesmas analogias. Em primeiro

lugar, a imagem de Deus na mente do homem ��, em todo

caso, remota e imperfeita: "uma semelhan��a, de fato, mas

uma imagem bem distante [...]. A imagem �� uma coisa no

Filho, outra no espelho". Em segundo lugar, enquanto a

natureza racional do homem exibe as trindades supramen-

cionadas, estas n��o s��o, absolutamente, id��nticas ao ser

humano, da maneira como a Trindade divina constitui a

ess��ncia da Divindade; as trindades representam faculda-

des ou atributos que o ser humano possui, ao passo que a

natureza divina �� simples e perfeita. Em terceiro lugar, o

corol��rio: ainda que a mem��ria, o discernimento e a von-

tade operem separadamente, as tr��s Pessoas coexistem e

suas a����es s��o unas e indivis��veis. Para concluir, embora,

na Divindade, os tr��s integrantes da Trindade sejam Pes-

soas, n��o o s��o na mente do homem. "A imagem da Trin-

dade �� uma pessoa, mas a suprema Trindade, em si, s��o

tr��s pessoas" ��� o que constitui um paradoxo, quando se

pensa que as Tr��s s��o mais insepar��veis do que a Trinda-

de na mente. Essa discrep��ncia entre a imagem e a Trin-



A T R I N D A D E

131

dade em si nos faz lembrar, conforme nos disse o Ap��sto-

lo, que aqui na Terra contemplamos "um espelho obscu-

recido"; mais tarde, contemplaremos "face a face".

Early Christian Doctrines (pp. 278-79)

Se os tr��s membros da Divindade s��o, de fato, pessoas,

n��o o s��o em nossas simpl��rias mentes humanas. A imagem

e a Trindade, em si, n��o podem ser reconciliadas, porque

ora contemplamos um dito obscuro, um dos enigmas que

Paulo n��o p��de resolver. Agostinho deve ser o autor mais

tendencioso do mundo ocidental antes de Sigmund Freud,

mas aqui o grande bispo de Hipona abst��m-se de explicar e

nos diz para pegar ou largar, embora "largar" seja para n��s

arriscado. �� f��cil perceber por que motivo Pelikan prefere os

Padres orientais a Agostinho e Aquino (que surge depois),

mas a quest��o do polite��smo grego em contraste ao mono-

te��smo javista e isl��mico a i n d a n��o foi bem resolvida.

Atuando como mediador entre Pelikan e Kelly, volto a

G. L. Prestige, em 1936. O her��i trinitario de Prestige �� o

Pseudo-Cirilo, te��logo inteiramente desconhecido que vi-

veu no s��culo VI, o inventor da met��fora da "coexist��ncia",

ou "a forma de um Deus em tr��s Pessoas, e n��o tr��s Pessoas

em uma Divindade". O trite��smo p��de assim ser evitado,

mas por meio de uma doutrina t��o intricada e sutil que com-

porta alguma exaspera����o. Ser�� que uma Trindade indivi-

s��vel continua a ser uma entidade tripla? Prestige acredita

que sim, mas at�� que ponto �� poss��vel chegar, no processo

de literaliza����o de u m a met��fora? Cito o elogio que Prestige

faz ao Pseudo-Cirilo, em virtude do meu desejo de ser jus-

to, mas me pergunto o que Jav�� pensaria dessas convuls��es

gregas. A teologia, afinal, foi inventada pelo judeu-plato-



J E S U S E J A V ��

132

nista Filo de Alexandria, a fim de explicar a personalidade

humana de Jav��. Eis Prestige, discorrendo sobre esse her��i

desconhecido:

Entretanto, uma vez descoberta, h�� que se dar o devido

cr��dito ao nosso autor desconhecido, que percebeu a sua

utilidade para as Pessoas da Trindade. Essa foi de fato a

maior e mais s��bia inova����o do nosso autor. A interpreta-

����o talvez seja for��ada, no que toca �� natureza de Cristo,

mas constitui uma descri����o admir��vel da uni��o das tr��s

Pessoas de Deus. E era preciso encontrar uma palavra as-

sim, simples e expressiva, que pudesse cumprir o prop��si-

to. Conforme j�� enfatizado, tanto ousia quanto hypostasis,

termos cruciais da doutrina da Trindade, s��o concretos.

Segue que a doutrina, pelo bem da completude, deve ser

capaz de ser definida a partir de cada um desses dois ter-

mos. Sob o aspecto de ousia, ��nica e concreta, expressa,

objetivamente, em tr��s formas, o ser Divino �� claramente

afirmado, e o monote��smo �� resguardado na doutrina da

identidade da ousia. Mas, inicialmente, em virtude dos

acidentes da controv��rsia e, mais tarde, das tend��ncias

abstratas do s��culo VI, o aspecto sob o qual Deus passou

a ser visto era o de tr��s objetos em uma ��nica ousia. O

termo mais elevado n��o �� hypostasis, e passa a ser necessi-

dade pr��tica e eminente de formular uma defini����o que, a

partir do termo mais elevado, consiga tamb��m exprimir a

contento a verdade da exist��ncia monote��sta de Deus. Sem

tal defini����o, a recorr��ncia do trite��smo seria quase inevi-

t��vel ��� n��o porque a verdade fosse desconhecida, ou n��o

apreciada, mas porque, na aus��ncia de uma f��rmula ade-

quada e ilustrativa, as mentes dos incautos tendem a se



A T R I N D A D E

133

desviar das verdades centrais, inventando heresias peri-

m��tricas. E n��o quer dizer que os "incautos" sejam os mais

obtusos. As mentes mais capazes podem ser as mais estreitas.

God in Patristic Thought (pp. 296-97)

A "descoberta" referida na primeira linha da cita����o

mencionada �� a "coexist��ncia", e Prestige elogia Pseudo-

Cirilo por ter inventado uma met��fora mais adequada do

que qualquer outra criada por outro trinitario. No entanto,

embora o trite��smo seja mantido a dist��ncia, o disp��ndio

com o esp��rito se d�� �� custa da humanidade de Cristo. Tan-

to Yeshu�� de Nazar�� quanto Jav�� s��o irrelevantes para a Trin-

dade, pois n��o eram apenas metaf��ricos, e tudo que �� sobre-

posto �� Trindade n��o passa de met��fora.

C A P �� T U L O 10 N��o a Paz, mas a Espada,

ou a Influ��ncia Divina

O t��tulo deste livro utiliza uma forma da palavra "divino"

como adjetivo e como refer��ncia ao substantivo "divina����o",

uma vez que os nomes Jav�� e Jesus preservam a sua for��a

m��gica. Na realidade, os judeus que continuam a confiar na

Alian��a costumam evitar os dois nomes, embora por moti-

vos bastante diversos.

Na minha idade (acabo de completar 74 anos), inicio

indagando: qual �� o g��nero do meu livro? Tendo sido aman-

te da grande literatura a vida inteira, fa��o cr��tica liter��ria,

mas com uma mescla do que chamo de "cr��tica religiosa",

em que William James �� meu modelo distante. N��o sou cr��-

tico hist��rico de literatura nem de religi��o; estudante de

Emerson, considero a cr��tica mais aliada �� biografia do que

aos mitos que denominamos "hist��ria". No entanto, as bio-

grafias tanto de Jesus quanto de Jav�� n��o podem ser redigidas.

Jack Miles fez o melhor que p��de nos livros God e Christ,

mas essa biografia dupla culmina no suic��dio de Deus, e Jav��

n��o se presta a esse tipo de crise. Desaparecimento, auto-

ex��lio, escapat��rias astutas s��o inclina����es javistas; o suic��-

dio, por��m, jamais.



136

J E S U S E J A V ��

"Jesus", no meu t��tulo, significa, principalmente, J e -

sus o Cristo, um Deus teol��gico. Jav��, em sua primeira e

definitiva carreira, n��o ��, absolutamente, um Deus teol��gi-

co, mas humano, muito humano, e se comporta de modo

bastante desagrad��vel. O cristianismo transforma Jesus de

Nazar��, figura hist��rica sobre a qual dispomos de apenas

alguns fatos, em uma multiplicidade polite��sta que substitui

o amea��ador e misterioso Jav�� por um Deus Pai muito dife-

rente, cujo Filho �� o Cristo, ou Messias ressuscitado. Ambas

essas divindades s��o seguidas por um Paracleto (o que con-

forta) fantasmag��rico conhecido como Esp��rito Santo, en-

quanto M��riam, m��e de Yeshu�� ou Jesus hist��rico, perma-

nece nas imedia����es, sob a designa����o de "Virgem Maria".

O Jesus norte-americano se mant��m um tanto distan-

te desse polite��smo pragm��tico, porque �� o Deus primordial

dos Estados Unidos, e subordina Deus Pai, em um contexto

que insisto em chamar de "Religi��o Norte-americana". Esse

Jesus tem um forte rival no Esp��rito Santo dos pentecostais,

e talvez o nosso futuro constate uma divis��o de poder entre

essas entidades t��o d��spares. Tudo isso �� importante porque

o cristianismo declina na Europa (exceto na Irlanda), e apa-

rece, principalmente, nas Am��ricas, na ��sia e na ��frica, nes-

tes dois ��ltimos continentes competindo com o islamismo,

hoje em dia mais militante do que nunca, desde seu violento

in��cio.

Jav�� se apresenta como o protagonista da Tanak, que,

absolutamente, n��o �� id��ntica ao Antigo Testamento, obra

cativa, arrastada na marcha triunfal do Novo Testamento

(grego) do cristianismo. Jesus Cristo �� o protagonista do

Novo Testamento (ou Testamento Tardio), que revoga a

Alian��a entre Jav�� e Israel. Pol��ticos e figuras religiosas (ain-

da ser��o personagens estanques?) falam de tradi����o judaico-



N �� O A P A Z , M A S A E S P A D A , O U A I N F L U �� N C I A D I V I N A 137

crist��, mas isso �� um mito social. Faria quase o mesmo sen-

tido se falassem de uma tradi����o isl��mico-crist��. H�� tr��s

monote��smos rivais, como costumam ser chamados, mas os

judeus contam atualmente com uma popula����o t��o reduzi-

da, comparada aos crist��os e mu��ulmanos, que esta poderia

quase desaparecer em duas gera����es, ou tr��s, no m��ximo. O

presente livro, por conseguinte, n��o expressa um favoreci-

mento pol��mico de Jav�� em rela����o ao usurpador. Talvez

seja, em certa medida, uma elegia a Jav��. Se �� que tenha

desaparecido, Jav�� deve ser distinguido, claramente, de Je-

sus o Cristo e at�� mesmo de Al��, que, em determinados as-

pectos, est�� mais perto do Deus de Abra��o e Isaac, Jac�� e

Ismael e Jesus de Nazar�� do que as divindades crist��s. Estou

ciente de que essas verdades n��o ser��o bem-vindas, mas qual

verdade �� bem-vinda?

A busca do Jav�� hist��rico (t��o humano que, ��s vezes,

comporta-se como uma pessoa) �� t��o infrut��fera quanto a

busca infinda do Jesus humano ou hist��rico. Invariavelmente,

aquele que busca acaba por encontrar a si mesmo, pois, para

todos os efeitos, a identidade do indiv��duo est�� profunda-

mente envolvida no processo mesmo da busca. Como pode-

ria deixar de ser assim? Tendo passado a vida inteira ao lado

de estudiosos de grande e pequena monta, constato, dia ap��s

dia, que a "objetividade" �� rasa e a "subjetividade" pode ser profunda, fatores que marcam a verdadeira diferen��a entre

uns e outros. Onde, ent��o, estarei eu, no que compete a este

livro?

Na condi����o de cr��tico liter��rio cuja busca, nos ��lti-

mos quarenta anos, tem visado aos segredos da din��mica do

processo de influ��ncia, sinto-me capacitado a examinar o exem-

plo mais importante de tal processo, a ang��stia da influ��n-

cia do Novo Testamento grego em rela����o �� B��blia hebraica,



J E S U S E J A V ��

138

a Tanak. Assim como a B��blia crist��, sem falar da inclus��o

do Novo Testamento, n��o ��, absolutamente, id��ntica �� B��-

blia da Alian��a entre Jav�� e Israel, n��o existe uma ��nica B��blia

crist��: cat��licos, ortodoxos e protestantes diferem em suas

inclus��es e exclus��es. Conforme j�� observei, todos alteram,

significativamente, a seq����ncia da B��blia hebraica, de modo

que a B��blia crist�� �� conclu��da com Malaquias, o ��ltimo dos

profetas menores, cujo nome quer dizer, simplesmente,

"mensageiro", e que assim serve de transi����o a Jo��o Batista,

que surge no princ��pio do Novo Testamento can��nico. A

Tanak �� conclu��da com 2 Cr��nicas e com uma convoca����o

final para a reconstru����o de Jerusal��m e a restaura����o do

Templo de Jav��.

Ler o Novo Testamento ininterruptamente e na ��ntegra �� ex-

peri��ncia est��tica e espiritual bastante ambivalente, seja tal lei-

tura realizada no original grego, seja na tradu����o inglesa mais

expressiva (por William Tyndale) ou na vers��o oficial revista,

a qual passo a citar (exceto quando indicado diferentemente).

Lembro-me da insatisfa����o que senti diante da cr��tica liter��ria

que Northrop Frye aplicou �� B��blia, nos livros The Great Code

e Words witb Power (respectivamente, O grande c��digo e

Palavras com poder), principalmente porque a Tanak conti-

nua cativa em Frye, sendo interpretada como profecia do Novo

Testamento. Quando expressei a Frye tal observa����o, ele res-

pondeu, bruscamente, que a literatura anglo-americana fun-

damentava-se nessa profecia. Mas Frye estava enganado: de

Shakespeare a Faulkner, a B��blia hebraica n��o est�� subordina-

da ao Novo Testamento. John Milton, que, tanto quanto

William Blake e Emily Dickinson, constitu��a uma seita radi-

cal protestante composta por um ��nico fiel, na perspectiva de



N O A P A Z , M A S A E S P A D A , O U A I N F L U �� N C I A D I V I N A 139

Frye, seria considerado um judaizante da B��blia. Para��so Per-

dido leva e retira Jesus da Cruz com uma pressa excessiva, em

seis palavras divididas ao meio por um enjambment "[...] en-

t��o ele morre,/ Mas logo revive. [ . . . ] " Disc��pulo de Frye na

juventude (rompemos intelectualmente, mas n��o emocional-

mente, quando da minha formula����o da ang��stia da in-

flu��ncia), surpreendi-me ao encontrar nos Cadernos de Frye,

publicados postumamente, a seguinte rea����o do cr��tico aos

Evangelhos:

Considero a maior parte dos Evangelhos leitura suma-

mente desagrad��vel. As par��bolas misteriosas, com amea-

��as ocultas, a ��nfase depositada por Cristo em si mesmo,

em sua singularidade, em uma atitude que pode ser carac-

terizada como "ou eu, ou ent��o...", a demonstra����o de

milagres como fa��anhas irrefut��veis e a desilus��o prevalente

quanto ao fim do mundo ��� s��o quest��es a serem explica-

das pela perspic��cia intelectual, e o fato de que elas exis-

tem sempre me parece fazer parte do delicado tecido da

racionaliza����o. A Igreja crist��, com todas as suas manias,

come��ava a se formar quando os Evangelhos foram escri-

tos, e �� poss��vel ver a atua����o da Igreja, abrindo caminhos

e viabilizando o seq��estro do cristianismo por uma socie-

dade deformada e neur��tica. Pergunto-me por quanto

tempo, e at�� onde, �� poss��vel se esquivar ou resistir �� su-

gest��o de que a estrutura����o editorial das Escrituras ��, fun-

damentalmente, um processo desonesto.

Muitos leitores do Evangelho ��� provavelmente, a maio-

ria ��� discordariam de Frye. Visto que n��o tenho qualquer

investimento pessoal nas Escrituras, n��o concordo nem

discordo. Talvez �� exce����o da obra de Santo Agostinho, ja-



J E S U S E J A V ��

140

mais li algo t��o tendencioso quanto os Evangelhos, que

mant��m um prop��sito fixo em rela����o ao leitor e, na condi-

����o de propaganda eclesi��stica, �� poss��vel que pouco tenham

a ver com o hist��rico Yeshu�� de Nazar��. Jamais saberemos.

Os Evangelhos nos apresentam um Jesus t��o mitol��gico

quanto ��tis, Ad��nis, Os��ris ou qualquer outra divindade que

morre e renasce. Um Messias que �� Deus Encarnado e que

morre na Cruz pelo Perd��o de todo pecado humano �� irre-

concili��vel com a B��blia hebraica.

Somente atrav��s de uma desleitura forte e criativa da

Tanak foi poss��vel reparar tamanha disparidade. O Novo

Testamento permanece coeso devido �� postura revisionista

que adota diante da B��blia hebraica. Um certo esplendor

resulta desse revisionismo, queiramos ou n��o. A for��a per-

suasiva dos Evangelhos e da totalidade da estrutura do Novo

Testamento atesta a pot��ncia da proeza criativa, pontilhada

de inconsist��ncias, por��m, mais do que capaz de resistir ��s

autocontradi����es, inclusive quanto a um Jesus cuja miss��o

pretende beneficiar apenas os judeus, e quanto a disc��pulos

que s�� se dirigem aos gentios. Qual seria a rea����o de Yeshu��

de Nazar�� diante da exclama����o de Martinho Lutero: "Morte

�� Lei!", a qual para muitos luteranos alem��es que serviam a

Hitler se tornou: "Morte aos judeus!" Os alem��es n��o te-

riam crucificado Jesus: teriam-no exterminado em Auschwitz,

vers��o germana do Templo. Tanto quanto Hillel, Jesus afir-

mou a Tor��, os ensinamentos e a Alian��a de Jav��.

O livro de Jon D. Levenson, intitulado The Hebrew Bible,

The Old Testament, and Historical Criticism (A B��blia he-

braica, o Antigo Testamento e a cr��tica hist��rica, 1993),

centra-se, com lucidez, em uma constata����o diferenciada:



N �� O A P A Z , M A S A E S P A D A , O U A I N F L U �� N C I A D I V I N A 141

Dizer que a B��blia hebraica demonstra completa integri-

dade em rela����o ao Novo Testamento �� lan��ar uma d��vi-

da grave a respeito da unidade da B��blia crist��. �� como

dizer que se podem ler os primeiros dez livros da Eneida

como se os dois ��ltimos n��o existissem, e isto, por sua

vez, �� dizer que os dois livros finais nada acrescentam de

essencial: a hist��ria poderia, perfeitamente, terminar sem

que En��as matasse Turno. Agora, quanto aos crist��os, di-

zer que o Novo Testamento nada acrescenta �� B��blia he-

braica �� compar��vel aos marxistas dizerem que n��o fazem

obje����o a deixar os meios de produ����o a cargo dos capita-

listas: a asser����o trai a identidade anunciada por aquele

que a pronuncia.

Os comunistas chineses prosseguem afirmando o mar-

xismo, enquanto confiam no capitalismo para o incremento

da prosperidade; todavia, considerando-se que det��m o po-

derio militar, a contradi����o, na pr��tica, n��o faz sentido.

Te��logos crist��os (felizmente) j�� n��o s��o aliados do poder

estatal, mas a ades��o de tais te��logos ao lema da "tradi����o

judaico-crist��" carece de maiores esclarecimentos do que al-

guns deles est��o dispostos a prestar. Se as duas tradi����es n��o

fossem radicalmente diferentes, o que restasse do juda��smo,

permanentemente atacado, j�� teria se dissipado. Os judeus

permanecem obstinados, em parte a fim de n��o cederem ��

for��a e �� fraude, em parte porque existe algo na intensidade

espiritual de Jav�� que, de algum modo, se recusa a diminuir.

Judeus, segundo a eloq����ncia de Tony Kushner, vertem das

p��ginas de livros. Esses livros ��� a Tanak, os dois Talmudes

da Babil��nia e Jerusal��m, e todos os demais coment��rios at��

o presente ��� possuem uma for��a cumulativa que desafia o

tempo e suas afli����es.



J E S U S E J A V ��

142

2

Robin Lane Fox, historiador devidamente c��tico, em seu li-

vro The Unauthorized Version (Vers��o n��o autorizada, 1992),

insiste que "podemos ter certeza" de que nenhum texto b��-

blico, na forma em que hoje deles dispomos, existia ante-

riormente ao s��culo VIII antes da Era Comum, mas n��o

creio nisso. E. A. Speiser, estudioso extraordin��rio, no seu

Anchor Bible G��nesis (G��nese da Editora Anchor Bible),

estabelece o s��culo X antes da Era Comum, a ��poca de Davi

e Salom��o, como a data das camadas mais antigas de G��nesis,

��xodo e N��meros. A Javista, ou Autora " J " , comp��s os tre-

chos primordiais magn��ficos, de algo que foi aglutinado em

outros textos, por obra do autor-editor que, durante o ex��lio

na Babil��nia, organizou a seq����ncia que vai de G��nesis a

Reis. Fox, com toda a raz��o, considera tal conte��do ficcional,

inver��dico, mas hist��ria b��blica, raramente, constitui "ver-

dade", no sentido restrito perseguido pelos historiadores

profissionais, cuja ret��rica permite apenas um tipo de ver-

dade bastante reduzida. Acreditemos ou n��o na Alian��a, ou

que Jesus foi o Cristo, ou acatemos ou n��o Al��, aceitando

M a o m �� como o Selo dos Profetas, n��o parece proveitoso

reduzir Jav�� a uma escolha entre verdade e fic����o. Se Jav�� for

fic����o, trata-se da fic����o mais perturbadora que o Ocidente

j�� vislumbrou. Jav�� ser��, ao menos, a fic����o suprema, o per-

sonagem liter��rio (se assim pudermos cham��-lo) que se presta

�� medita����o, ainda mais do que Jesus Cristo, ou do que as

caracteriza����es shakespearianas mais abrangentes: Falstaff,

Hamlet, Iago, Lear, Cle��patra. " J " �� o Shakespeare de Jav��,

mas n��o �� o inventor de Deus.



N �� O A P A Z , M A S A E S P A D A , O U A I N F L U �� N C I A D I V I N A 143

O in��cio da carreira de Jav�� precede qualquer narrati-

va de que dispomos, o que instiga a imagina����o. Quando

reflito acerca de Jav��, gostaria de saber de onde ele veio, bem

como por que demorou tanto tempo para revelar seu nome.

Ficamos conhecendo suas v��rias personalidades (sete, na

minha conta), mas permanecemos at��nitos diante de seu

car��ter. Porventura ele tamb��m ficasse at��nito, antes de atri-

buir a si mesmo o nome de Jav��. Afinal, ele havia sugado

diversos outros deuses e divindades, e uma certa dispepsia ��

conseq����ncia certa.

Sabemos como ele parece, apesar de ele proibir os seus

retratos. Parece conosco, ou melhor, n��s parecemos com ele,

pois fomos criados �� sua imagem. A Cabala e seus anteceden-

tes nos informam que ele �� enorme, o King Kong c��smico das

divindades. Jack Miles diz que Deus fala sozinho; eu acres-

centaria que Jav�� nunca ouve a si mesmo, como quem ouve

outra pessoa. N��o ��, portanto, um personagem shakespearia-

no e, sensatamente, Shakespeare o manteve fora do palco. Jav��,

que n��o �� narcisista, pode parecer s��-lo. Ricardo II �� narcisis-

ta; Hamlet n��o ��. Por defini����o, Jav��, ao contr��rio de Ricardo

II, n��o pode ter compaix��o de si mesmo. Tampouco tem com-

paix��o de si mesmo Rei Lear (figura que se assemelha a Jav��),

cuja f��ria chega �� loucura. Jav��, que tanto sofre por qualquer

ingratid��o, e �� extremamente ciumento, chega �� insanidade,

durante os quarenta anos em que conduz os israelitas pelo

deserto, na louca jornada do Egito at�� Cana��. Uma gera����o

perece, mas seus filhos alcan��am a Terra Prometida. O pr��-

prio Mois��s, profeta de Jav��, vislumbra a terra, mas nela n��o ��

admitido. Jav��, que costuma criar muita encrenca, cria a maior

delas quando elimina Mois��s. Mas, cumpre lembrar, para

Mois��s, Jav�� �� um desastre desde o princ��pio. Lamento insi-



J E S U S E J A V ��

144

nuar que, de modo geral, Jav�� �� um desastre para todos os seus

her��is, mas essa �� mesmo a longa hist��ria da Tanak, e da mai-

or parte da experi��ncia judaica atrav��s do tempo. Se duvidar-

mos da Encarna����o (at�� S��o Paulo duvidou), ent��o, o debate

recentemente renovado por Mel Gibson acerca da culpa dos

judeus, e n��o dos romanos, pode ser posto de lado. Jav�� tem

culpa.

3

Quando Jav��, muitos s��culos depois, tornou-se o Deus da

Reforma Protestante, pensou-se que ele dizia a cada protes-

tante: "Seja como eu, mas n��o ouse parecer demasiadamen-

te comigo." O Jav�� da Autora " J " n��o precisa fazer outras

admoesta����es, exceto que devemos nos abster de comer o

fruto da Arvore da Vida, que nos tornaria imortais. Theodore

Hiebert, na obra The Yahwists Landscape (A paisagem do

Javista, 1996), observa, com sagacidade, que se trata de vida

eterna na Terra, e n��o em algum reino do al��m. O Jav�� de

" J " gosta de caminhar no frescor da tarde, no Jardim do

Eden, e aprecia um repasto com Abra��o. Jesus, que, quando

pode, rende-se ao vinho e �� boa mesa, nunca �� t��o seme-

lhante a Jav�� quanto nesses banquetes. O "pense na Terra",

de Nietzsche, �� javista, uma vez que o Jav�� de " J " �� fascinan-

te em seu antropomorfismo, o que pode ser constatado quan-

do ele mesmo fecha a porta da arca de No��, ou enterra Mois��s

com suas pr��prias m��os. E o que �� mais importante: Jav��

molda Ad��o a partir de adamak, a terra vermelha, ��mida e

fecunda. Homero mostra-nos a guerra entre deuses e ho-

mens; a Autora " J " vai al��m, retratando mulheres e homens

teom��rficos que caminham e falam com Jav��. Sucintamente:





N O A P A Z , M A S A E S P A D A , O U A I N F L U �� N C I A D I V I N A 145

o Jav�� de " J " n��o �� um Deus do c��u, �� um Deus que se reveza

entre os campos cultivados e os cumes das montanhas.

Frank Cross destaca Jav�� como Deus dos rompantes,

mas tais rea����es configuram t��o-somente um canto de guer-

ra que anuncia o guerreiro divino que subjuga o mar (o Fara��)

e os inimigos terrenos de Israel. Embora passe por um ama-

durecimento consideravelmente matizado, Jav�� inicia de ma-

neira ambivalente, como criador e destruidor, �� semelhan��a

do Vento do Oeste, em Shelley. Mas antes de esbo��ar suas

aptid��es de lutador, concedo a m i m mesmo uma digress��o,

no intuito de descrever a qualidade mais surpreendente de

Jav��: sua estranheza.

Jav�� n��o ��, primordialmente, um deus trapaceiro, e

nem sempre se apraz em agir com perversidade, embora se

permita gerar confus��o entre os pretensos construtores da

Torre de Babel. Mas ele cria todas as coisas, inclusive a cate-

goria do inesperado. O g��nio da Autora " J " , que irrompe

atrav��s do palimpsesto do trecho b��blico compreendido en-

tre G��nesis e Reis, repele o confinamento. N��o h�� limites

para Jav��, motivo pelo qual sua B��n����o �� mais bem definida

como o dom da vida longa, em um tempo ilimitado. O c��u

na Terra �� a sua promessa; o Reino dele, decididamente, ��

deste mundo. Hiebert registra que Jav�� n��o �� nem oniscien-

te nem onipresente; precisa deslocar-se, a fim de levar a ter-

mo, pessoalmente, suas investiga����es.

Apesar de imortal, Jav�� envelheceu, e talvez esteja ido-

so demais para se importar com o que ocorre. N��o estou

pensando na apar��ncia de Jav�� como o Anci��o dos Dias, do

Livro de Daniel, que William Blake transformou, ironica-

mente, em Velha Ignor��ncia, ou "Velho Nobodaddy* nas

* "Velho pai de ningu��m". ( N . do T . )



J E S U S E J A V ��

146

alturas". Na figura do Al�� de Maom��, o que mais me im-

pressiona �� o fato de ele continuar, ferozmente, a se impor-

tar com o que se passa, motivo pelo qual o isl�� permanece

militante. O Deus Pai do cristianismo tamb��m se importa,

mas �� uma miniaturiza����o de Jav��, e carece de personalida-

de. Esse decl��nio �� necess��rio no pante��o qu��druplo que ele

compartilha com Jesus Cristo, o Esp��rito Santo e a Santa

Virgem Maria. O livro The Muslim Jesus (O Jesus mu��ul-

mano, 2 0 0 1 ) , conforme editado por Tarif Khalidi, �� uma

chave da diferen��a existente entre Al�� e Deus Pai. O Alcor��o

coloca Jesus na posi����o singular de profeta que antecipa, di-

retamente, Maom��, mas esse �� um Jesus inteiramente desti-

tu��do de cristianismo e "purificado" da Encarna����o, Cruci-

fica����o, Perd��o e Reden����o. Resta apenas a Ascens��o, para

que Jesus seja destacado dos profetas anteriores, embora no

pensamento shi�� e, mais tarde, no sufismo, as ascens��es de

Enoque e do neto de Maom��, Hussayn, estejam relacionadas

a um Jesus gn��stico ��� o Cristo Anjo, conforme ��, por vezes,

denominado. Jesus n��o morre, mas ascende a Al��, e permane-

ce com Al��, a fim de estar presente no Fim (aludido no Alco-

r��o 43:61). Mas, �� bom lembrar, o Alcor��o (61:6) apresenta

Jesus anunciando a vinda de Maom��, na condi����o de selo de

todas as profecias. Al�� se acalma depois que, veementemente,

indaga de Jesus se ele e Maria s��o dois deuses al��m de Deus, e

Jesus responde, placidamente, que jamais disse tal coisa (Al-

cor��o 5:116).

N��o h�� textos judaicos nos quais Jav�� solicite a Jesus

semelhante explica����o, mas tal pedido n��o seria previs��vel.

Volto ao Jav�� anterior, combativo, cuja personalidade guer-

reira �� mais vistosa no Livro de Josu�� (5, 13-15), em que o

Redator mitiga o que ��, nitidamente, uma epifania eston-



N �� O A P A Z , M A S A E S P A D A , O U A I N F L U �� N C I A D I V I N A 147

teante experimentada pelo pr��prio Jav��, prestes a participar

de uma batalha, em Jeric��:

Certa vez, estando perto de Jeric��, Josu�� levantou os olhos

e viu em p�� diante de si um homem portando a espada

desembainhada. Josu�� se aproximou dele e perguntou: "��s

um dos nossos ou dos inimigos?" Ele respondeu: "Eu sou

chefe do ex��rcito do Senhor. Acabo de chegar!" Ent��o

Josu�� prostrou-se com o rosto por terra e perguntou: "O

que diz o meu Senhor a seu servo?" O chefe do ex��rcito

do Senhor respondeu a Josu��: "Tire as sand��lias dos p��s,

porque o lugar onde voc�� est�� pisando �� sagrado." E Josu��

assim o fez.

A Tanak �� uma cavalgada de epis��dios memor��veis, mas

guardo comigo, de modo permanente, essa manifesta����o de

Jav�� como espadachim. O drama desse momento �� h��bil.

Josu��, comandante de Israel, n��o reconhece o soldado e per-

gunta, com bravura: "�� um dos nossos ou dos inimigos?"

Jav�� responde em sua pr��pria pessoa, n��o apenas na condi-

����o de chefe angelical, dizendo: "Acabo de chegar!" E Josu��,

ao pedir ordens, ouve precisamente o que Mois��s capta em

��xodo 3, 4-6: a advert��ncia de que est�� na presen��a de Jav��

e est�� em solo sagrado, de p��s descal��os. Abruptamente, o

Livro de Josu�� prossegue at�� o cerco a Jeric��, e Jav�� determi-

na a destrui����o das muralhas da cidade. N��o vemos o Deus

Pai crist��o de espada em punho.

4

Embora a personalidade e o car��ter de Jav�� n��o sejam o as-

sunto expl��cito do livro, considero o estudo incisivo e com-



J E S U S E J A V ��

148

pacto, intitulado Sinai and Zion: An Entry into the Jewish

Bible (Sinai e Si��o: uma entrada na B��blia hebraica, 1985),

de Jon D. Levenson, bastante ��til para se meditar acerca de

Jav��. A antiga religi��o israelita �� centrada no monte Sinai,

onde a Tor�� foi entregue por Jav��, e no monte Si��o, onde

Salom��o construiu o Templo de Jav��. Levenson salienta uma

verdade: a diferen��a crucial entre o juda��smo talm��dico e a

religi��o b��blica �� que os rabinos enfocavam a B��blia, ap��s a

destrui����o do Templo. Os dois montes, da Alian��a e do

Templo, aproximam Mois��s e Davi, o profeta de Jav�� e o

filho adotivo de Jav��. A op����o de Jav�� por locais elevados

n��o �� infundada, porque, na condi����o de guerreiro, ele des-

ce dos montes para combater os inimigos. Seu Templo, con-

forme demonstra Levenson (seguindo Ezequiel, de modo

particular), �� espiritualmente id��ntico ao luxuoso Jardim do

��den, onde ele se aprazia em caminhar na tarde fresca. Quan-

do Ad��o e Eva s��o expulsos do Para��so (para que n��o se tor-

nem deuses), o Jardim continua a existir, guardado por um

querubim. Por conseq����ncia, a destrui����o do Templo de

Jav�� foi tamb��m a oblitera����o do Para��so, que jamais volta-

ria a existir, a n��o ser que o Templo fosse reconstru��do. Mas

se a pr��pria B��blia substitui o Templo, ent��o, o livro substi-

tui tamb��m o Para��so, no����o que talvez explique por que

Akiba insistia, com tamanha paix��o, que o C��ntico dos

C��nticos, que �� de Salom��o, deveria ser can��nico.

Incapacitado de caminhar no ��den ou de se regalar no

Templo, Jav�� reside na B��blia hebraica. Ali se sente t��o con-

fort��vel que pode prescindir do Terceiro Templo, a menos

que atualmente (conforme a mim parece, embora n��o aos

que ainda cr��em na Alian��a) ele tenha se exilado at�� mesmo

do deleite daquelas p��ginas.

P A R T E I I JAV��

C A P �� T U L O 1 1 O Nome Divino:

Jav��

As quatro letras Y H W H formam o nome pr��prio de Deus

na B��blia hebraica, em que tal nome aparece cerca de seis

mil vezes. Como o nome era pronunciado, jamais sabere-

mos: Yahweh �� apenas uma conjectura, porque a tradi����o

oral guardou o nome sagrado. Elias J. Bickerman, no ensaio

imensamente ��til, "The Historical Foundations of Postbi-

blical Judaism" (As fundamenta����es hist��ricas do juda��smo

p��s-b��blico, publicado em 1949), atualmente dispon��vel na

colet��nea Emerging Judaism (Juda��smo emergente) organi-

zada por Michael E. Stone e David Satran (1989), estabele-

ce que depois que Alexandre, o Grande, conquista a Palesti-

na, em 333 antes da Era C o m u m , o emprego do Nome

Divino passa por mudan��as. Ap��s a volta da Babil��nia, ocor-

rida no s��culo V antes da Era Comum, o nome j�� era consi-

derado m��gico, e n��o podia ser pronunciado. Deus era cha-

mado, ent��o, de Elohim (ser ou seres divinos), ou Adonai

(meu Senhor). A chegada dos gregos, que chamavam Deus de

Theos, incentivou os judeus a se referir a ele como Kyrios,

palavra grega que significa Adonai, ou Senhor.



J E S U S E J A V ��

152

Bickerman atribui �� influ��ncia grega o surgimento de

uma nova intelligentsia, composta de escribas laicos, funcio-

n��rios p��blicos, administradores e consultores comerciais,

para os quais Jav�� era um nome, ao mesmo tempo, arcaico e

proscrito. A ��poca de Hillel e Jesus, era poss��vel viver uma

vida inteira sem jamais ouvir o nome verdadeiro de Deus. E

talvez fosse melhor assim, pois o significado do nome �� t��o

obscuro quanto a pron��ncia.

Jav�� deve ser um nome muito antigo; �� empregado no

grande C��ntico de Guerra entoado por D��bora (Ju��zes 5),

que remonta ao s��culo XI antes da Era Comum, e talvez seja

o texto mais antigo em l��ngua hebraica. Constam refer��n-

cias ao nome j�� no ano 1400 antes da Era Comum, na S��ria.

N��o acredito no mito de que Mois��s adquiriu o nome de Jav��

ao se casar com a filha de Jetro, o madianita (��xodo 3, 1),

porque a voz de Jav��, proclamando em um jogo de palavras

o nome verdadeiro ( ehyeh asher ehyeh ��� "Eu sou aquele que

sou", ou "Estarei presente onde e quando estiver presente"),

reverbera com extraordin��ria autoridade em ��xodo 3, 14.

Algo da aura que comovia os antigos israelitas �� evocado

quando Deus insiste em seu nome pr��prio, que �� a base da

Alian��a com o Povo Eleito.

Todos n��s, cedo ou tarde, refletimos a respeito do

nosso pr��prio nome, ��s vezes, com constrangimento. Jav��

nunca se constrange ao afirmar seu nome verdadeiro, como

se ele mesmo sentisse a for��a carism��tica e o car��ter suges-

tivo daquela s��laba inicial "J��". Imaginemos como nos sur-

preender��amos se algu��m nos fosse apresentado como "Jav��"

Jones ou Shekhinah Smith. Outro dia, em Nova York, sub-

meti-me a um bate-boca, por telefone, com dois floristas

chamados Jesus e Mohamed, mal me dando conta dos no-

mes. O nome Jav�� surte um efeito bastante diferente, ao

menos em mim.



O N O M E D I V I N O : J A V ��

153

Al�� (varia����o de Elohim), desde a composi����o do Alco-

r��o, parece ter perdido pouco, em termos da sobrenaturalidade

do nome. Talvez o mais incisivo dos nomes sobrenaturais hoje

em dia seja Satan��s, que, afinal, �� figura quase t��o proeminen-

te no Novo Testamento quanto Jesus.

C A P �� T U L O 12 S�� Jav��

Ao contr��rio do discurso de Jesus, o de Jav�� n��o ��, essencial-

mente, enigm��tico. A grande exce����o �� o ehyeh asher ehyeh,

jogo de palavras que envolve autodenomina����o, ao qual re-

torno ao longo deste livro. Jesus, supostamente, compreendia

melhor essa express��o terr��vel da vontade de Deus do que n��s

somos capazes de faz��-lo. N��o duvido dos Evangelhos, quan-

do estes nos mostram um Jesus que, quase sempre, se dirige

a Jav�� como abba, palavra aramaica que significa "pai". Jesus anseia por Jav��, e s�� Jav��. Em termos plat��nicos, o amor

de Jesus por Deus Pai �� eros e n��o ��gape (que se torna caritas,

em latim, e a nossa "caridade"), porque eros �� o desejo por algu��m superior, enquanto philia �� amor entre pares, e ��gape

�� o amor de um ser superior por um inferior. Para quem

aceita alguma variedade de cristianismo, entretanto, o amor

de Jesus por Deus �� caritas e n��o anseio. Atualmente, nos

Estados Unidos, onde Jesus substitui Jav�� ou nele �� agluti-

nado, facilmente, confundimos tais sentimentos. Seja o que

for que se queira ver no afeto de Jesus pelo Disc��pulo Ama-

do, freq��entemente identificado como o autor do Evange-



J E S U S E J A V ��

156

lho de Jo��o, ou por M a r i a Madalena, �� mais sensato consi-

derar essas liga����es como caridade, e n��o eros.

N��o creio ser poss��vel compreender a personalidade

de Jesus sem o entendimento pr��vio das qualidades pessoais

de Jav��. Te��logos, de Filo de Alexandria at�� a atualidade,

t��m tentado obscurecer a alus��o freq��ente de Jav�� na B��blia

hebraica como humano teom��rfico. Felizmente, a teologia

fracassa ao ser confrontada com o Jav�� da Autora " J " , cujo

descendente liter��rio mais pr��ximo �� o Rei Lear shakespea-

riano, simultaneamente, pai, monarca e divindade irasc��vel.

W. H. Auden encontrou o Cristo de Shakespeare em Falstaff,

descoberta instigante, por��m errada. O enigm��tico Hamlet

tem tra��os do Jesus de William Tyndale, mas Falstaff �� ir-

m��o de sua contempor��nea hist��rica, a Mulher de Bath, cria-

����o de Chaucer, outra pecadora ferrenha. Se Hamlet, na fi-

gura do esp��rito do pai, tivesse encontrado o fantasma do

Rei Lear, a arte shakespeariana nos teria propiciado um acesso

direto ao anseio de Jesus por Jav��. Se Nazar�� considerava

Jesus ileg��timo, n��o temos como saber, mas acho simplista

reduzir o amor de Jesus por Jav�� �� busca de um pai ausente.

Jesus era um rabino, o que ainda significa mestre, e ensinava

a Tor��, conquanto com desvios muito pessoais. N��o veio

abolir, mas cumprir a Lei, por mais que S��o Paulo, Martinho

Lutero e muitos outros tenham se empenhado, ardentemente,

em compreender mal esse que �� o mais sutil dos mestres,

cuja ironia transcende at�� mesmo a ironia do S��crates de

Plat��o. S��crates n��o era platonista, e Jesus n��o era crist��o.

Ele n��o dizia quem era, e nenhum de n��s ��� crist��os, mu-

��ulmanos, judeus ou secularistas ��� poder�� saber aquilo que

s�� Jav�� sabe.



S �� J A V ��

157

2

Quem foi e quem �� Jav��? Ele est�� sempre a nos dizer; mas a

Tanak, o Talmude, a Cabala, o Novo Testamento e o Alco-

r��o somados jamais ser��o suficientes para abranger tudo o

que nos �� dito e, ao mesmo tempo, n��o dito. M i n h a extensa

experi��ncia lendo Shakespeare, e ensinando a ler a sua obra,

leva-me a desconfiar de todas as abordagens cr��ticas, pois o

poeta e dramaturgo ingl��s nos cont��m. Owen Barfield obser-

vou que ficar��amos desalentados diante da constata����o de

que, ami��de, nossas supostas emo����es teriam sido, primei-

ramente, pensamentos de Shakespeare. Historicizar Jav��, a

meu ver, �� ainda mais in��til do que historicizar Shakespea-

re. Se a pessoa acredita ou n��o ter sido criada por Deus, ��

quest��o aqui secund��ria. Prim��ria �� a nossa necessidade cons-

tante de uma autoridade que sancione o anelo, n��o raro,

desesperado do eu por um mecanismo de transcend��ncia.

Adam B. Seligman, no livro Modernity's Wager (A aposta da

modernidade, 2 0 0 0 ) , articula, de modo correto, o impasse

corrente da sociologia da religi��o: "um Deus que se pode

compreender, um Deus que se pode conceituar, n��o �� um

Deus". Quando, em livros anteriores, chamei Shakespeare

de "Deus mortal", minha inten����o era confrontar um Hamlet

inescrut��vel, que desafiasse todas as nossas conceitua����es.

Isso ocorre de maneira ainda mais intensa com Jesus; toda-

via, ningu��m est�� mais al��m da nossa apreens��o do que Jav��.

Se o indiv��duo o considera um "personagem liter��rio" ou o

Criador, pouco importa nessa luta para alcan��ar o inalcan-

����vel. Pouco me acrescenta a informa����o correta prestada

pelos historiadores da religi��o, de que o deus original de Is-

rael foi El, mais tarde identificado como Jav��. Recomendo a



J E S U S E J A V ��

158

obra admir��vel de Mark S. Smith ��� The Early History of

God (A hist��ria antiga de Deus, 1990) ��� para estudiosos

interessados nas rela����es de Jav�� com as diversas divindades

antigas de Israel, mas a hist��ria �� apenas um meio, e Jav��

est�� al��m de qualquer representa����o, exceto as mais contun-

dentes encontradas na Tanak. Observemos o Deus de M i l -

ton, em Para��so Perdido: n��o �� apenas a grande falha, em um

��pico, afora isso, magn��fico; �� tamb��m absurdamente inade-

quado, se o contrastarmos com o Jav�� apresentado pela Au-

tora " J " , pelos Salmistas e pelos Profetas.

Aprendemos a desconsiderar refer��ncias a "rituais e

cultos", relativamente a Jav��. A pr��pria express��o "culto a

Jav��" tem uma aura de rid��culo. Dois outros termos que tam-

b��m me parecem opacos s��o "monote��smo" e "antropomor-

fismo". Jav�� �� pessoa e personalidade; as divindades de Cana��

s��o bugigangas, enquanto Jav�� �� Homem Divino (e mais que

isso), e seus favoritos ��� Abra��o, Jac��, Mois��s e Davi ��� tam-

b��m s��o teom��rficos. O descendente direto de Davi, Yeshu��

de Nazar��, �� menos teom��rfico, e o �� de maneira que trans-

cende a sutil complexidade dos seus precursores.

A complexidade do pr��prio Jav�� �� infinita, labir��ntica

e para sempre inexplic��vel, a despeito do extraordin��rio ta-

lento interpretativo demonstrado pelos S��bios do Talmude

e da Cabala, bem como pelos mestres sufis que confronta-

ram o Alcor��o, obra inteiramente "falada" por Jav��, enquanto

Al��, expressando a gama das rea����es de Deus diante das nos-

sas falhas, na tentativa de nos submetermos �� sua vontade. As

surpreendentes altern��ncias de Jav��, revelando-se e se ocul-

tando, podem nos levar �� loucura, especialmente porque,

seja na Tor�� ou no Alcor��o, a f��ria de Jav�� costuma ser s��bi-

ta e arbitr��ria. Jav�� ordena a um Mois��s recalcitrante que

des��a at�� o Egito, mas enquanto o profeta se encaminha para



S �� J A V ��

159

o local Jav�� tenta mat��-lo, em um acampamento noturno

no Neguev. E conv��m deter a disputa de culpa pela Crucifi-

ca����o: Jav�� sacrifica Jesus e, de fato, o abandona, ao menos

neste mundo.

O gnosticismo, seja considerado religi��o ou mera ten-

d��ncia, foi levado (em conseq����ncia dessas caracter��sticas de

Jav��) a se tornar aquilo que Hans Jonas chamou de "��xtase

do inaudito". Essa resposta contundente a uma for��a liter��-

ria arrasadora constituiu u m a rebeli��o contra a T a n a k e

Plat��o, e produziu o Jesus gn��stico celebrado por W i l l i a m

Blake, o maior dos poetas-profetas ingleses depois de John

Milton. W i l l i a m Butler Yeats, o mais eloq��ente dos poetas

anglo-irlandeses, trouxe o argumento de Blake ao s��culo XX,

ainda que n��o demonstrasse o amor que Blake demonstra

pela figura de Jesus.

N��o se pode dispensar Jav�� como um "Nobodaddy",

tampouco ser�� o "Deus carrasco", de que fala James Joyce.

Ou seremos entidades transcendentais, ou apenas m��quinas

de entropia, e Jav��, com toda a sua ambival��ncia, estabelece

a diferen��a entre as duas possibilidades, ao menos tratando-

se de culturas que derivam do hebra��smo e sua conseq��ente

heleniza����o, inclusive as religi��es rivais ��� juda��smo, cristia-

nismo e islamismo ��� e sua subseq��ente seculariza����o rela-

tiva. Se Shakespeare nos cont��m (o que, de fato, ocorre),

ent��o, Jav�� cont��m Shakespeare, fosse o poeta-dramaturgo

dissidente cat��lico, protestante, herm��tico ou pioneiro do

niilismo, um precursor misterioso de tudo o que estava por

surgir.

Embora seja um ironista ferrenho, de modo especial nas

perguntas ret��ricas que formula, Jav�� recorre ainda mais



J E S U S E J A V ��

160

freq��entemente �� hip��rbole, figura do excesso ou da des-

trui����o. Jesus, que tamb��m �� grande mestre da ironia, imita

Jav�� no que diz respeito ��s exig��ncias hiperb��licas do seu

ensinamento, insistindo em uma perfei����o imposs��vel de ser

alcan��ada por simples seres humanos. O excesso ret��rico de

Jesus busca nos persuadir a abrir m��o de uma moralidade

mais simpl��ria, em favor de op����es ��ticas mais dif��ceis, de

algo que pode ser chamado de consci��ncia Sublime em rela-

����o a terceiros, em detrimento do nosso ego��smo mais que

natural. De vez que, ao contr��rio do cristianismo, Jesus ja-

mais afirmou ser o Messias, sua ��tica hiperb��lica torna-se

ainda mais desalentadora. Podem Jav�� e Jesus concordar so-

bre essa quest��o, visto que a Lei, a despeito da interpreta����o

equivocada feita por S��o Paulo, n��o nos exige a perfei����o?

Os fariseus deixaram isso claro, e se Jesus, por vezes, discutia

com eles e a eles se opunha, as discord��ncias giravam, basi-

camente, em torno dos anseios incontidos de perfei����o. Tal-

vez por isso ele afirmasse que veio para cumprir a Lei, e n��o

para revog��-la.

Jesus teve um precursor composto: Abra��o, Mois��s, Elias e

Jo��o Batista, mas, em ��ltima inst��ncia, o discipulado foi

definido pela imita����o de Jav��, s�� Jav��. O Jav�� b��blico que

habita uma Galileia pedregosa �� um ser mais severo do que o

Jav�� que habita o Templo, na Jerusal��m da ��poca de Jesus.

J�� no tempo de Jesus, a obstina����o de Jav�� aparece meta-

morfoseada em estranhas altern��ncias de presen��a e aus��n-

cia. L�� estava ele, o mais Santo dos Santos, no Templo de

Jerusal��m, ao mesmo tempo que permitia que os romanos

ocupassem a terra do Povo Eleito e realizassem dezenas de



S �� J A V ��

161

milhares de crucifica����es de zelotes e outros judeus, mesmo

antes da Rebeli��o ocorrida no ano 70 da Era Comum, oca-

si��o em q u e o T e m p l o foi d e s t r u �� d o . Desconfio da

psicobiografia como abordagem ao estudo de Jesus, mesmo

quando o g��nero de Erik Erikson �� exercitado de maneira

t��o respons��vel como o faz John W. Miller, no livro de sua

autoria, Jesus at Thirty (Jesus aos trinta anos, 1997). Faz-se

necess��ria uma biografia mais abrangente e liter��ria, por

exemplo, o retrato perspicaz apresentado por Jack Miles. Mas

a desleitura marcante que Jesus faz de Jav�� (do filho em rela-

����o ao pai), ao insistir na perfei����o humana, �� algo diferente

de psico-hist��ria ou biografia liter��ria. Se Cristo foi, segun-

do Jack Miles, "uma crise na vida de Deus", ent��o, Jesus,

ainda n��o ressuscitado, s�� poderia ser a sua pr��pria crise inter-

na. Mas, cabe lembrar, existe o Jesus gn��stico de Valentino de

Alexandria, um Jesus sobre o qual os valentinianos afirma-

vam: "Primeiro, ressuscitou, e depois morreu." Essa proposi-

����o, t��o brilhante quanto complexa, sugere que s�� desponta-

mos para a verdadeira vida atrav��s de uma transforma����o

m��stica que em muito precede a nossa morte. O conceito se

coaduna mais com meus prop��sitos neste livro do que as

abordagens praticadas por Miller e Miles. Se Jesus, de fato,

ressuscitou ap��s a morte, �� crucial para o cristianismo; na

realidade, trata-se da no����o que lhe �� constitutiva, pois so-

mente tal ressurrei����o pode validar a certeza de que Jesus

tornou-se Cristo ��� ou seja, o Messias.

Conforme o meu entendimento da Transfigura����o,

em que Jesus aparece junto a Mois��s e Elias, tal vis��o justifi-

ca a hip��tese gn��stica e sufi de que Jesus, primeiro, fez-se "o

Cristo Anjo" e, ent��o, somente ap��s aquela ressurrei����o, te-

ria voltado �� condi����o humana e, presumivelmente, morrido



J E S U S E J A V ��

162

na Cruz. Arrisco dizer "presumivelmente" porque gn��sticos

e mu��ulmanos insistem que Sim��o, o Cireneu, que carregou

a Cruz, foi crucificado, em lugar de Jesus. H�� outras tradi-

����es, ainda mais esot��ricas, segundo as quais os soldados

romanos foram subornados, e Jesus retirado da Cruz ainda

vivo. Segundo a Lei Judaica, que ele pr��prio aceitava, Jesus

fora maculado, e, ap��s aparecer aos disc��pulos e ao irm��o

��� Tiago, o Justo ���, passou por um per��odo de purga����o

e, em seguida, optou pelo isolamento, cruzando o Jord��o,

rumo �� terra de Nod, de acordo com a tradi����o de C a i m .

Outras lendas afirmam que Jesus vagueou muito, seguin-

do a trilha das legi��es de Alexandre, o Grande, at�� alcan��ar

a regi��o helenizada do norte da ��ndia. L��, na qualidade de

precursor dos mu��ulmanos, que ainda o celebram como

profeta superado apenas por M a o m �� , o s��bio Nazareno

viveu em paz at�� a velhice, na condi����o de inofensivo ju-

deu gn��stico, qui���� refletindo acerca da ironia de sua pr��-

pria diviniza����o, levada a termo por uma cristandade que

ele n��o buscara fundar.

3

Conforme fizera a vida inteira, aquele Jesus reflexivo deve

ter continuado a meditar acerca do pai, Jav��, que talvez te-

nha perdido o interesse em um filho pr��digo que j�� havia

realizado o prop��sito paterno. O cristianismo sobredeter-

mina e exagera a explica����o desse prop��sito, ao ver em Jesus

a concretiza����o do plano eterno de Deus. Sendo eu judeu

(embora herege), e n��o sendo crist��o judaizado, estou fada-

do a ficar perplexo quanto ao prop��sito de Deus. Jack Miles

�� ex-jesu��ta, a exemplo do grande F. E. Peters, autor do ma-



S �� J A V ��

163

gistral The Monotheists (Os monote��stas, 2 0 0 4 ) , mas Miles

me intriga de modo bastante diverso do meu fasc��nio por

Peters, no que concerne aos embates entre juda��smo, cristia-

nismo e islamismo. Miles formula a mais desconcertante das

perguntas relativas a Jav�� e Jesus: "Antes de ser um desdo-

bramento do car��ter de Deus, n��o ser�� Jesus, o Cordeiro de

Deus, o colapso final desse car��ter?" (Christ, p. 2 5 2 ) . "Sim, ser��", Miles insiste e, como avalia����o estritamente liter��ria,

a no����o me parece irrefut��vel, porque Jesus requer um Deus

mais perfeito do que Jav�� poderia ser. Contudo, eu gostaria

de voltar aos enigmas do car��ter de Jav��, nem tanto em

discord��ncia com minha reflex��o passada a respeito da psi-

cologia pessoal de Jav�� (O Livro de J, 1990), mas em maior

conson��ncia com a constata����o das ang��stias de influ��ncia

do pr��prio Jav��.

Kierkegaard �� a pedra no meu caminho, uma vez que

seu Nabucodonosor, depois que deixa de ser uma fera herb��-

vora, maravilha-se diante de Jav��:

E nada se sabe sobre Ele: quem foi seu pai, ou como Ele

conquistou seu poder, ou quem a Ele ensinou o mist��rio

da sua for��a.

Se Nabucodonosor estava falando de Jesus, a resposta

talvez fosse Jav��, mas quanto a isso tenho minhas d��vidas

tamb��m. Jo��o Batista foi mestre de Jesus (por mais que tal

no����o constranja os Evangelhos), e, tanto quanto Elias, o

Batista parece conhecer os mist��rios de Merkaba, a carrua-

gem de Jav��, segundo descri����o de Ezequiel. Jav�� �� um ad-

moestador, e n��o um mestre: este ��ltimo papel ele confere a

Mois��s e Isa��as, a Hillel e Jesus, a Akiba e Maom��. O Nabu-



J E S U S E J A V ��

164

codonosor de Kierkegaard �� o ep��tome da percep����o do

ironista dinamarqu��s no que toca �� imensa dificuldade de se

tornar crist��o, quando se vive na cristandade. O ��rf��o Jav�� ��

nosso eterno dilema: quem foi o mestre del��. Como pode-

mos ter certeza de qualquer fato acerca de Jav��?

4

Dispomos da Tanak, e dos S��bios que a interpretam nos

dois Talmudes, da Babil��nia e de Jerusal��m, e em coment��-

rios a respeito de ambos. Coment��rios s��o semelhantes ��

seq����ncia de pe��as dentro de pe��as, dentro de pe��as, que se

amontoam em Hamlet, desde a segunda cena do segundo

ato at�� a segunda cena do terceiro ato. A mente de Jav�� ��

mais labir��ntica do que a de Hamlet, infinitamente mais; no

entanto, o enigm��tico Pr��ncipe da Dinamarca continua sendo

o exemplo mais sofisticado de representa����o puramente lite-

r��ria de que temos conhecimento. O Shakespeare de Jav�� ���

a Autora " J " ��� manifestou uma irrever��ncia capaz de inci-

tar o crescimento defensivo da teologia, um esfor��o que sem-

pre visa a explicar os aspectos humanos de Deus (ou de Je-

sus). Prefiro a Cabala �� teologia, como guia da personalidade

de Jav��, e pretendo aqui ensaiar algumas investidas cabal��sti-

cas acerca da natureza de Jesus, embora n��o siga os prece-

dentes da Cabala crist��.

O segmento mais antigo da Tor�� centra-se em Jav��, perso-

nagem muito diferente do Deus Pai do cristianismo e do

Al�� do isl��. O Jav�� descrito pela Autora " J " �� figura ��ntima

para n��s, pr��xima, ao passo que o Deus Pai crist��o isolou-se

no c��u. E Jav�� tem ci��ncia dos pr��prios limites (o que talvez



S �� J A V ��

165

Lhe provoque a ira), mas Al�� possui poderes irrestritos. Existe

aqui uma estranha permuta. A medida que a for��a de Deus

aumenta, sua presen��a diminui. Jav�� caminha lado a lado de

homens e anjos, e com todos conversa: senta-se embaixo dos

terebintos, devorando a refei����o preparada por Sara, e faz um

repasto, no Sinai, acompanhado de 73 anci��os de Israel. N��o

consigo visualizar Al�� ou Deus Pai modelando uma figura de

barro vermelho, e em seguida conferindo-lhe o sopro da vida.

Se Jav�� �� misterioso, �� tamb��m t��o sagaz quanto Jac��, que

ganha o novo nome de Israel. Perverso, curioso, ciumento e

irrequieto, Jav�� �� o mais pessoal dos deuses. A dignidade de

Al�� n��o permite tamanho mergulho nos caprichos humanos.

Os grandes rabinos do Talmude tendem a enfatizar

mais o nosso temor a Deus do que a corporifica����o deste no

status de Jav��, nome espiritual que os rabinos se recusam a

empregar. Em vez disso, os S��bios fazem multiplicar ep��tetos

descritivos e nomes alternativos, com um entusiasmo que

revela capacidade de cria����o, se bem que com um resqu��cio

de inventividade desesperada. Qualquer part��cipe da Alian-

��a (desde que conte com um m��nimo de sensatez) teme a

Deus, que, simultaneamente, proclama preocupa����o com

os judeus e demonstra uma neglig��ncia perversa diante do

seu povo. Tony Kushner segue aspectos distintos da tradi-

����o judaica em Perestroika, pe��a teatral em que os anjos

movem a����o judicial contra Jav��, por deser����o, mas a divin-

dade sofisticada det��m Roy Cohn como imbat��vel advoga-

do de defesa. Ser�� v��lido dizer que Jav�� �� excessivamente

ambicioso e, portanto, trabalha demais?

�� sensato temer Jav��. Haver�� bases para am��-lo? Ou ser�� tal

amor apenas um treinamento que capacita aqueles que o



J E S U S E J A V ��

166

cristianismo chama de m��rtires, os "atletas da morte"? Jav��

espera receber ambos: amor onde existe temor, e temor onde

existe amor, fus��o destrutiva quando se trata de duas pes-

soas, mas adequada, tratando-se s�� de Jav��. Cada um de n��s

precisa decidir se a quest��o diz respeito �� Antiga Alian��a ou

�� Nova, ou se devemos nos submeter a Al��. Se recusarmos as

tr��s alternativas, seremos secularistas, humanistas, niilistas

ou gn��sticos que descartam o Nobodaddy de William Blake.

H�� outras op����es, importadas da ��sia, mas o budismo n��o

me vai bem.

5

Haver�� alguma diferen��a entre o amor a Deus e o amor entre

seres humanos, quando comparamos os S��bios do Talmude

e Jesus? Sim, evidentemente, e trata-se de uma diferen��a im-

portante, mas �� bom lembrar: h�� s��bios e s��bios. Diante de

quase todas as pessoas, Jesus, muitas vezes, comportava-se

de modo ambivalente e (como seria de esperar) carecia da

paci��ncia do grande Hillel, que resistia a todo impulso

escatol��gico. Ephraim E. Urbach, em estudo bastante con-

fi��vel, intitulado The Sages: Their Concepts and Beliefs (Os

s��bios: seus conceitos e cren��as, 1987), reconhece a severi-

dade de Shammai e a intensidade apocal��ptica do velho

Akiba, que incentivou a desastrosa rebeli��o de Bar Kochba

contra os romanos. Hillel, todavia, propiciou um novo en-

tendimento da Tor��, devido ao fato de ter sido, ao mesmo

tempo, puro e humilde. A santidade de Hillel encontrava

express��o nos seus atos, sempre realizados pelo bem celestial,

e na f�� absoluta em Deus, que n��o deixava espa��o para d��vi-

das ou medos.



S �� J A V ��

167

Os atributos demonstrados por Hillel ��� humildade,

paci��ncia, amor ao pr��ximo e a busca da paz ��� n��o dimi-

nu��am o rigor de seus padr��es ��ticos e religiosos, nem o im-

pediam de delegar responsabilidades ao homem, que, segun-

do Hillel, deveria agir em prol do pr��prio aperfei��oamento

e do bem-estar p��blico. O indiv��duo deve se empenhar, pois

"Se n��o sou por mim, quem o ser��?". Mas n��o alcan��ar��

muito atrav��s da reclus��o e do isolamento, e deve lembrar:

"E, sendo por mim, quem sou eu?" Tampouco pode esque-

cer que o tempo �� limitado, e que n��o deve procrastinar ���

"Se n��o for agora, quando?" (Prov��rbios dos Patriarcas, I,

14). A rela����o de um homem com o pr��ximo foi definida

por Hillel n��o apenas pela m��xima a ele atribu��da, em res-

posta ao convertido que pediu que lhe fosse ensinada toda a

Tor�� enquanto ele se apoiava em um dos p��s ��� "O que a ti

�� odioso, n��o o fa��as a teu pr��ximo" ��� (afirma����o que o

futuro convertido poderia ter ouvido de outras pessoas), mas

tamb��m na exig��ncia de que n��o devemos julgar, apressada-

mente, as a����es dos outros, assim como n��o devemos con-

fiar no nosso pr��prio moralismo. O princ��pio �� "N��o con-

fies em ti mesmo antes do dia da tua morte, e n��o julgues o

pr��ximo at�� ocupares o lugar dele" (Prov��rbios dos Patriar-

cas, II, 5 ) . No entanto, a humildade e a autocr��tica de um

indiv��duo n��o s��o desculpas para mant��-lo distanciado da

comunidade. Hillel assim instrui o S��bio que adquiriu as

qualidades da pureza e da humildade: "N��o te afastes da

comunidade [...] e onde n��o houver homens, tenta ser ho-

mem" (Prov��rbios dos Patriarcas, II, 5-6).

Id��ias erradas que circulam a respeito de Jesus posicionam-

no mais proximamente a essa cordialidade humana do que





J E S U S E J A V ��

deveria ser o caso. Hillel n��o portava a espada da consci��n-

cia, mas a paz, t��o-somente a paz. A neglig��ncia de S��o Pau-

lo quanto �� letra e ao esp��rito, �� Lei e ao amor, �� anulada pela

conjun����o de Hillel e Jesus. Para Hillel, o esp��rito santo ti-

nha passado dos profetas �� comunidade de Israel, e os S��bios

remanescentes dirigiram-se �� comunidade, n��o pretenden-

do operar milagres. Tampouco tentaram abolir o Sin��drio e

o Templo, embora condenassem seus desmandos adminis-

trativos. M e u entendimento de Conf��cio �� reduzido, mas

percebo afinidades entre ele e Hillel. Ao contr��rio de Jesus,

Hillel n��o dividiu a popula����o em dois grupos ��� cordeiros

e bodes; antes, pretendia que todos os israelitas fossem "as-

sociados", parceiros de uma Reden����o cont��nua, n��o de um

Reino do C��u, distante e futuro. �� sentimentalismo buscar

reconcilia����o entre Hillel e Jesus, n��o obstante o desejo

dos bem-intencionados. Hillel, na verdade, disse: "Onde n��o

houver homens, tenta ser homem" ��� e n��o uma encarna����o

de Deus. Se �� que �� poss��vel apontar algum elo entre Hillel e

Jesus, ser�� na seguinte observa����o do S��bio: "N��o confies em

ti mesmo antes do dia da tua morte, e n��o julgues o pr��ximo

at�� ocupares o lugar dele." Talvez eu mesmo deva refletir mais

sobre essas palavras do que costumo faz��-lo.

6

Jav��, "antropom��rfico" no Texto " J " que subjaz �� Tor��, ��

apenas em parte transcendentalizado pelos S��bios. M u i t o

t��m me influenciado, desde que foram reeditados, em 1968,

os estudos do rabino Arthur Marmorstein (tr��s volumes em um

s�� tomo) intitulados The Doctrine of Merits in Old Rabbinical

Literature e The Old Rabbinic Doctrine of God, subdivididos em Names and Attributes e Essays in Anthropomorphism



S �� J A V ��

169

(respectivamente, A doutrina dos m��ritos na antiga literatu-

ra rab��nica, A antiga doutrina rab��nica de Deus, Nomes e

atributos e Ensaios em antropomorfismo). Zwi Werblowsky,

apresentando esses livros espl��ndidos, descarta, sem rodeios,

"o arrogante preconceito crist��o" que identificava nos S��bi-

os um moralismo "farisaico" que tinha sido aniquilado por

Jesus e Paulo. Werblowsky �� t��o ��til e contumaz que cit��-lo

�� uma satisfa����o:

Shamayim ��� meton��mia que traduz "Ele que habita o

C��u" ���, sem d��vida, conotava um Deus transcendente,

onisciente, sobrenatural, embora n��o necessariamente um

Deus distante, removido das preocupa����es humanas. Esta

��ltima id��ia, atribu��da aos rabinos, e.g., por Bousset, �� mais

um dos v��os constructos que os estudiosos gentios se apra-

zem em inventar, para se convencerem de que o juda��smo

era uma religi��o carente de vitalidade e calor, e desprovida

de qualquer no����o de proximidade com Deus (e de proxi-

midade do homem em rela����o a Deus). Ainda mais estra-

nha �� a descoberta recente de que a frase "pai nosso no c��u"

��� que, para mentes livres de preconceitos, supostamente,

demonstraria uma certa proximidade com Deus ��� ainda

revela o distanciamento de um Deus transcendental. De

acordo com essa vis��o, o judeu comum, na melhor das hi-

p��teses, diria "meu pai" (abi), ao passo que s�� Jesus poderia dirigir-se a Deus utilizando o termo mais ��ntimo abba.

�� desnecess��rio discutir essas teorias com seriedade, �� vista

do material coligido por Marmorstein. (p. XIII)

O paradoxo da presen��a e da aus��ncia, t��o tr��gico para

os S��bios quanto para Jesus, �� que Jav�� �� absurdamente

imprevis��vel. Pode surgir diante de n��s, no primeiro arbus-



J E S U S E J A V ��

170

to, ou se esconder quando dele mais necessitamos. �� capaz

de rejeitar uma oferenda ou, simplesmente, ignor��-la. S��o

Paulo insiste que a auto-oferta de Jesus, na condi����o de Cor-

deiro de Deus, foi aceita, mas quem pode ter certeza? O

juda��smo ressalta o cr��dito na Alian��a, o cristianismo pro-

fessa a f�� segundo a qual o pr��prio Jesus era ele mesmo a

Nova Alian��a, o islamismo �� a submiss��o �� vontade de Al��,

mas confian��a, f�� e submiss��o n��o constituem conhecimen-

to. A gnose ��� seja a Cabala, o misticismo crist��o ou o sufismo

��� depende do conhecimento que �� conhecido, mas n��o ��

essa a epistemologia de Arist��teles e Hume.

Marmorstein, aprofundando-se no estudo dos S��bios,

percebe que o paradoxo da proximidade e dist��ncia simult��-

neas de Jav�� jamais �� resolvido. Segundo os talmudistas, o

isolamento gradual de Jav��, rumo �� transcend��ncia, �� com-

pensado pelo esplendor visual (embora intermitente) que os

talmudistas denominam Shekhinah, identifica����o levada ao

extremo na Cabala. A antiga doutrina rab��nica considera

Shekhinah a presen��a cont��nua de Jav�� no mundo, no tem-

po em que ele desejava estar aqui, l��, e em todo lugar. Jav�� ��

incompreens��vel sem Shekhinah. Se a "beleza de Israel" (2

Samuel 1 , 1 9 ) foi, de fato, a entrega e o recebimento da Lei

no monte Sinai, tal beleza s�� foi vis��vel devido �� Shekhinah.

Ser�� que Jav�� nos desertou? O rabino Abba bar Mimei, um

dos primeiros Amoraim, cita Jav��: "Meu nome est�� de acor-

do com meus atos." Quais foram esses atos, ao longo dos

vinte s��culos crist��os? Um Deus que se esconde �� uma ques-

t��o, mas um Jav�� que se reduz a um esplendor ocasional j��

n��o merece o nome de Jav��, que afinal significa, basicamen-

te, estar presente.



S �� J A V ��

171

A despeito de como pretendesse ser interpretado, sem

d��vida, Jesus fez-se presente durante o per��odo de um ano

(ou mais) do seu minist��rio, mas ser�� que Jav�� se fez presen-

te a Jesus? �� c��lebre a afirma����o que o Evangelho de Jo��o

atribui a Jesus: "Antes que Abra��o existisse, Eu Sou." Con-

tudo, Abra��o conversava com Jav��, face a face, assim como

o fizera Enoque, mas o Novo Testamento jamais apresenta

Jesus e Jav�� em confronto direto, nem mesmo na Transfigu-

ra����o, em que um Jesus luminoso �� visto ao lado de Mois��s

e Elias, ambos ��ntimos de Jav��. Pelo beijo de Deus morre

Mois��s, sendo sepultado em t��mulo n��o marcado, aberto

pelo pr��prio Jav��, e Elias ascende ao c��u, diretamente, sem

que seja preciso morrer. Visto que a teologia crist��, a partir

de Paulo, insiste que Jesus se torna Deus somente na e atra-

v��s da Ressurrei����o, os fi��is n��o se espantam muito diante

da rela����o distanciada entre o Jesus vivo e Jav��. Jesus, con-

forme podemos perceber, acreditava que seu Pai celestial, ao

menos, visitava o mais Santo dos Santos, no Yom Kippur, o

Dia do Perd��o. No entanto, por que motivo, mesmo no

Testamento crist��o, jamais se verifica um encontro sequer,

face a face, entre Jav�� e seu Filho? Por que os patriarcas e

profetas se envolvem muito mais diretamente com a presen-

��a de Deus? Se Abra��o, Mois��s e Elias s��o homens mais teo-

m��rficos do que Jesus, n��o deveria o Novo Testamento nos

oferecer a l g u m a explica����o a respeito? Ou ser�� Jesus a

encarna����o de Jav��, desde o nascimento, conforme quer

a teologia? Em Israel, as profecias tinham cessado desde

Malaquias, "o Mensageiro", e somente os mu��ulmanos con-

sideram Jesus o profeta que precedeu Maom��, o Selo dos

Profetas. Falta algo aqui, mas a teologia crist�� recusa-se a

lidar com essa estranha aus��ncia.



J E S U S E J A V ��

172

7

M a r k Twain, que n��o era crente, observou que "a B��blia

crist�� �� uma drogaria. O estoque �� sempre o mesmo, o que

muda �� a pr��tica m��dica". Esse estoque, �� hora de observar,

n��o se constitui apenas do Novo Testamento grego, arrastan-

do atr��s de si o cativo dos gentios, o Antigo Testamento hebreu.

A Tanak �� flagrantemente reestruturada e mal interpretada

pelo cristianismo. De vez que a Tanak �� o Livro de Jav��, isso

quer dizer que ele (Jav��) tamb��m �� revisto por Paulo, pelos

evangelistas e todos os te��logos que os seguiram ao longo de

dois mil anos. E se assim Jav�� deixa de ser Jav��, o que h�� de

ser, ent��o, de um Jav�� Encarnado?

Desde Agostinho, passando por Aquino, chegando ao

nosso presente esqu��lido e multimidi��tico, somos inunda-

dos de respostas, mas a pergunta permanece sem explica����o,

tanto quanto a indaga����o do Livro de J��: "Onde encontrar a

sabedoria?" Nem Jav�� nem Jesus s��o respons��veis por Jerry

Falwell, muito menos pelos assassinos de massas que se di-

zem inspirados pelo cristianismo e pelo islamismo. O enig-

ma de Jesus de Nazar�� �� eterno. Ser�� ele, conforme o Evan-

gelho de Jo��o, a consci��ncia ungida, sabedor, desde sempre,

que �� Jav�� encarnado, ou ser�� o protagonista problem��tico

que surge nos Evangelhos de Marcos e Mateus? O Jesus do

Evangelho de Marcos, de modo especial, busca, misteriosa-

mente, as origens da sua pr��pria percep����o do eu, diversa-

mente do her��i-deus-v��tima, ��vido de condena����o, que en-

contramos em Jo��o.

Jaroslav Pelikan, ao concluir um estudo grandioso,

excepcional (em cinco volumes) ��� The Christian Tradition

(A tradi����o crist��) ���, det��m-se, desconcertado (a interpre-

ta����o �� minha, n��o dele), ao falar do Segundo Conc��lio Cato-



S �� J A V ��

173

lico do Vaticano (1962-65). Passada uma gera����o, percebo

que o pr��prio Pelikan �� agora membro da cristandade orto-

doxa, e que encontra na "eclesiologia ortodoxa oriental" uma

santifica����o imune ��s tend��ncias "autorit��rias e jur��dicas"

presentes tanto na Igreja Cat��lica Romana quanto no pro-

testantismo tradicional. O falecido Hans Frei deixava-me

at��nito diante de sua ben��vola profecia de que o futuro espiri-

tual do cristianismo dependia de um retorno ��s origens ju-

daicas. Sendo profundamente gn��stico, n��o sou judeu nor-

mativo, mas minha rever��ncia pela religi��o de Akiba jamais

me abandona, e, em ��ltima inst��ncia, jamais consegui com-

preender Pelikan ou Frei, ambos dotados de uma sensibili-

dade sublime e normativa. O paradoxo do cristianismo sem-

pre h�� de ser a convic����o de que Jav��, a mais desconcertante

das entidades, seja real ou fict��cia, pudesse ter de algum modo

gerado Jesus de Nazar��, que talvez se sentisse profundamen-

te perturbado diante da revis��o do seu papel, efetuada por

indiv��duos que vieram depois dele.

Necessariamente, qualquer pessoa h�� de identificar

mais as origens do seu eu a partir de Agostinho, Descartes e

John Locke, ou mesmo Montaigne e Shakespeare, do que a

partir de Jav�� e Jesus. Isso �� apenas outra maneira de dizer

que somos formados por S��crates e Plat��o, e n��o por Jesus,

por mais ignorantes que sejamos a respeito de Plat��o. A B��-

blia hebraica dominou o protestantismo no s��culo XVII,

mas quatro s��culos mais tarde a nossa sociedade tecnol��gica

e mercantil �� muito mais filha de Arist��teles do que de

Mois��s. Jesus, mesmo que fosse Jav�� Encarnado, n��o teria

apreendido ou compreendido um planeta que haveria de lhe

parecer um mundo submerso, afogado, como se a primeira

alian��a de Jav��, com No��, jamais tivesse sido firmada.





J E S U S E J A V ��

174

Discorrer sobre Jesus �� algo mais afeto a considera����es

sobre Hamlet do que a reflex��es sobre Shakespeare. At��

mesmo as caracteriza����es shakespearianas mais complexas

��� Hamlet, Falstaff, Iago, Lear e Cle��patra ��� parecem trans-

parentes, quando comparadas ao Jesus da Nova Alian��a. Com

quem pode Jesus conversar, intimamente, quando quer fa-

lar de si mesmo? Jav��, supostamente, afei��oa-se de Abra��o e

Mois��s e, no extremo, adota Davi, porque o isolamento

esplendoroso ��� at�� mesmo o de Deus ��� n��o pode prosse-

guir por toda a eternidade. Jack Miles, com eloq����ncia, ex-

pressa o pathos da afli����o de Jav��, e assim corre o risco de ser

censurado por todos (seja qual for o seu monote��smo) os

que se sentem constrangidos diante de um Deus que n��o

seja perpetuamente transcendental.

8

Conforme j�� mencionei, John Milton, em Para��so Perdido,

concede apenas seis palavras �� morte e ressurrei����o de Jesus

Cristo. Encarna����o e Perd��o n��o interessavam a Milton, o

poeta, e tampouco s��o centrais ��s principais tradi����es da

poesia ocidental, a partir do advento do Iluminismo euro-

peu, no s��culo XVII. Wallace Stevens, o poeta norte-ameri-

cano mais i m p o r t a n t e desde W a l t W h i t m a n e E m i l y

Dickinson, no poema "Manh�� de Domingo", contrasta a

Palestina ��� "Terra Santa de sangue e sepulcro" ��� a uma

dan��a nietzschiana de incontida "devo����o ao sol/ N��o como

deus, mas como um deus seria".* Quando jovem, por vezes,

eu via grafite rabiscado no metr�� de Nova York, proclaman-

* Wallace Stevens: Poemas. T r a d u �� �� o e I n t r o d u �� �� o de Paulo Henriques Britto. S��o Paulo: C o m p a n h i a das Letras, 1 9 8 7 , pp. 2 7 , 3 3 . [N. d o T.]



S �� J A V ��

175

do: "Nietzsche est�� morto! Deus vive!" Essa id��ia demonstra

afinidade com muitos conselhos de educa����o norte-ameri-

canos que deliberam em prol do ensino do criacionismo,

contrariamente ao evolucionismo darwiniano. Se Jav�� ainda

vive, talvez tenha se fechado em si mesmo.

9

Um velho ad��gio estabelece que cada um de n��s tem o Deus

que merece. Mas se merecemos um Jav�� t��o irasc��vel, vinga-

tivo e at�� homicida �� outra quest��o. Os cruzados preferem

esquecer que o pr��prio Jav�� tortura e executa Jesus, por ele-

vado des��gnio, se o Evangelho de Jo��o for cr��vel. Qual ser�� a

culpa humana que deve ser expiada pela tortura que Jav��

imp��e a Jesus e pela crucifica����o de centenas de milhares de

outros judeus, nas m��os das for��as romanas de ocupa����o?

De in��cio, dispenso as apologias que S��o Paulo e Santo Agos-

tinho fazem a Deus: na queda de Ad��o, todos pecamos. Os

grandes S��bios do Talmude n��o defendiam essa doutrina

b��rbara, importa����o hel��nica do mito do portador do fogo,

Prometeu, atormentado por um Zeus s��dico, e, no extremo,

o relato xamanista e ��rfico da vingan��a de Dioniso contra os

que dilaceraram e devoraram o deus infante. Jav�� �� a menos

autoconsciente das divindades, em todos os tempos, mas

Jesus, particularmente no Evangelho de Jo��o, �� um milagre

da autoconsci��ncia mais elevada, modelo i m p l �� c i t o de

Hamlet, torre solit��ria shakespeariana e apoteose do auto-

conhecimento. Enquanto Deus Encarnado, o Jesus de S��o

Jo��o n��o �� compat��vel com a B��blia hebraica, mas os cris-

t��os, estranhamente, defendem essa incongru��ncia absolu-

ta, ao afirmarem uma descontinuidade similar entre a Tor��

e o Talmude, o que, sob a perspectiva hist��rica, n��o �� im-



J E S U S E J A V ��

176

procedente. Um Jav�� que inventa a morte n��o ser�� um Jav��

que, mais tarde, cometeria o suic��dio, a menos que se queira

transformar a Tanak em uma trag��dia ir��nica, fa��anha que

�� levada a termo pelo autor amargurado do Evangelho de

Jo��o. Nenhum texto complementa outro, mas h�� revis��es e

revis��es: o Talmude prefigura, o que vem a ser um tipo de

revis��o; por outro lado, S��o Jo��o inflige �� Tor�� um sparagmos

(ou dilaceramento) ��rfico, espalhando os membros do cor-

po de Jav�� como se o Mestre da Presen��a fosse outro Os��ris,

ou um israelita dos dias de hoje, explodido em um ��nibus

por um suicida/homicida palestino. Para Jav��, S��o Jo��o ��

pura encrenca.

10

O retrato mais antigo que, para n��s, define Jav�� �� esbo��ado

pela Autora " J " , que ainda me parece ter sido uma mulher

pertencente �� aristocracia, ativa na Era de Salom��o, e que se

sentia nost��lgica em rela����o ao her��ico pai de Salom��o ���

Davi ���, antepassado de Jesus, que deveria ter atuado, de

fato, como o Rei dos Judeus, comandando-os em sua frus-

trada rebeli��o contra os imperialistas romanos.

J�� escrevi, detidamente, sobre Jav��, em The Book of J

(O livro de J, 1990), mas 15 anos de reflex��o levam-me ago-

ra a rever um tanto a minha posi����o anterior quanto ao Deus

enigm��tico que alterna presen��a e aus��ncia. Hegel, que im-

pulsionou todo o conhecimento teol��gico protestante ale-

m��o, domina Gerhard von Rad, de cuja influ��ncia n��o pude

escapar, em The Book of J. Jack Miles, jocosamente, sugeriu

que eu identificasse a Autora " J " como Betsab��ia, a hitita,

rainha e m��e de Salom��o, no����o que, de bom grado, acatei

em O C��none Ocidental (1995) e G��nio (2003). O distan-



S �� J A V ��

177

ciamento extraordin��rio da Autora " J " , seja em rela����o a Jav��

ou aos Patriarcas, corresponde �� perspectiva de uma mulher

hitita que desposara Davi e gerara Salom��o, e que talvez te-

nha feito seu auto-retrato atrav��s de T��mara, que engana

Jud�� e, com ele, torna-se ancestral de Davi, Salom��o e, final-

mente, de Jesus de Nazar��.

Os estudos b��blicos baseados em Hegel, freq��entemen-

te, fundamentam-se em u m a oposi����o entre a idolatria

cana��nica da natureza e a ��nfase hebraica em Jav��, cujos atos

constituem hist��ria. Em The Book of J, fa��o lembrar que a

Javista n��o demonstra nostalgia pelo nomadismo, que ele ca-

minha, com firmeza, sobre solo agr��cola. A no����o �� refor��ada

pelo livro de Theodore Hiebert The Yahwist's Landscape

(1996), que aponta n��o haver ant��tese ling����stica, no hebraico

antigo, entre "natureza" e "hist��ria" e, com raz��o, atribui ao Jav�� descrito por " J " um reino totalmente terrestre. Sua pr��-

pria Terra �� ad��mica e, para Jav��, n��o precisamos vislumbrar

c��u algum. Conforme j�� observei, Jav�� n��o �� um deus celes-

tial; �� um cultivador de jardins, e se apraz em fazer repastos ��

sombra de um terebinto. Chamar Jav�� de antropom��rfico ��

redund��ncia. Nenhum Deus �� mais humano.

11

Seremos capazes de imaginar uma conversa direta entre Jav��

e Jesus? Se o cristianismo �� verdadeiro, como �� poss��vel tal

conversa n��o ter ocorrido na Terra, visto que, supostamen-

te, haveria de ocorrer na eternidade? Sendo duas pessoas,

mas uma s�� subst��ncia, decerto, n��o teriam se conhecido?

Ou ser��o dois Deuses distintos, antit��ticos, conforme que-

riam algumas heresias antigas? Cristo, por defini����o, �� t��o

Deus quanto homem; por��m, mais surpreendente �� que o



J E S U S E J A V ��

178

mesmo pode ser dito acerca de Jav��, o qual prefere a sombra

ao calor abrasador, aprecia refei����es ao ar livre e �� um guer-

reiro feroz (��s vezes, an��nimo: por exemplo, quando apare-

ce para Josu��). Visto que Jav�� �� belicoso e Jesus prefere n��o

s��-lo, cabe, novamente, invocar o Rei Hamlet e o Pr��ncipe

da Dinamarca, que, a exemplo de Jesus, �� pugnaz, mas que

tamb��m opta por n��o levar seus homens �� guerra. N��o se

pode estabelecer diferen��a entre Jav�� e Jesus, simplesmente,

a partir da mescla de identidades humanas e divinas neles

observadas.

Mas, eu insisto, por que os dois n��o interagem, se nos

lembrarmos que as dificuldades de comunica����o entre pais e

filhos s��o universais? A voz de Jav�� �� ouvida nos Evangelhos

Sin��ticos, tanto no Batismo quanto na Transfigura����o, a

fim de afirmar que Jesus �� seu filho amado, mas a audi��ncia

somos n��s, leitores, conforme Raymond E. Brown enfatiza,

competentemente. Em ambas ocasi��es, os disc��pulos n��o

parecem absorver a informa����o, e, evidentemente, Jesus n��o

precisa da mensagem ��� tampouco a responde. Mais uma

vez, parece que algo est�� faltando. Seremos n��s a ��nica au-

di��ncia privilegiada dos Evangelhos, exceto no caso do Evan-

gelho de Jo��o? Segundo parece, os disc��pulos foram escolhi-

dos por Jesus n��o pelo intelecto, mas pela capacidade de

resist��ncia, especialmente Pedro, personalidade que hoje em

dia poderia ser comparada �� de Rocky, papel em filmes so-

bre a vida de Cristo que parece condizer com Sylvester

Stallone. Pedro �� dado a trapalhadas, conforme Paulo mais

tarde haveria de se queixar.

N��o podemos conferir personalidade ao Esp��rito San-

to, mas ningu��m diria que Jav�� e Jesus seriam duas persona-

lidades, e uma s�� subst��ncia. N��o acho que o mist��rio cons-

tatado em Jav�� e Jesus se estenda ao modo como eles falam.



S �� J A V ��

179

Jav�� �� por demais irasc��vel para depender de enigmas e par��-

bolas, ao passo que Jesus supera Hamlet, quanto �� perspic��-

cia e �� linguagem enigm��tica. Porventura os estilos verbais

de Jav�� e Jesus sejam, simplesmente, t��o diversos que a

intera����o se torna imposs��vel. At�� Shakespeare teria hesita-

do (com um sorriso), se lhe ped��ssemos que nos provesse

um di��logo entre Rei Lear e Hamlet. Em que Jesus e Jav��

mais diferem? Mesmo em Marcos, que mais se aproxima de

" J " , Jesus jamais pode dizer que nada era imposs��vel para

ele. Ele n��o pode realizar milagres em Nazar��. Em Jo��o, Je-

sus fala como Jav��: "antes que Abra��o existisse, Eu Sou".

Mas Jo��o �� quase gn��stico, e chega a ser proto-sab��lico, he-

resia segundo a qual o Filho gera a si mesmo.

O desespero de Jesus n��o pode ser equiparado �� deser����o de

Jav�� (ou dever��amos falar do ex��lio volunt��rio de Jav��?). Se

Jesus disse que o Reino de Deus est�� dentro de n��s, seria

uma indica����o de que agora Deus existe somente dentro de

n��s? Se um grande mestre carism��tico da tradi����o oral nos

fala t��o-somente por meio de ironia e hist��rias enigm��ticas,

ent��o, S��crates poderia ser o Salvador, conforme o foi para

Plat��o e Montaigne. Deixemos de lado Paulo e Jo��o, e en-

xerguemos, claramente, o helenismo de Lucas. O Jesus ju-

daico de Marcos e Mateus n��o �� Jav�� encarnado; antes, �� um

profeta singular e tardio, semelhante a Jo��o Batista, e as pro-

fecias j�� haviam, de fato, cessado entre os descendentes de

Abra��o. Entre os fortes, n��o surgiu a brandura, mas a espa-

da, ou melhor, duas espadas: a cruzada crist�� (hoje em dia

centrada na religi��o norte-americana) e seu i n i m i g o , o

islamismo Wahhabi.



J E S U S E J A V ��

180

Seremos capazes de imaginar Rei Lear na condi����o de

pai do Pr��ncipe Hamlet? O Jav�� segundo " J " , sob determi-

nados aspectos, assemelha-se a Lear; o Jesus de Marcos �� um

dos precursores de Hamlet. Imaginar o Jav�� de " J " na condi-

����o de pai do Jesus de Marcos confunde a minha experien-

cia no que concerne �� reflex��o sobre a alta literatura, em que

pais e filhos divergem, mas n��o existem em esferas distintas.

A teologia, ela mesma um am��lgama de Plat��o e Arist��teles,

�� capaz de tudo imaginar, pois a representa����o convincente

n��o �� uma de suas preocupa����es. Mas a Escritura est�� mais

pr��xima de Shakespeare do que da filosofia. E os paradoxos

de um Deus suicida condizem mais com a trag��dia ateniense

do que com a Tanak. Isso implica que Cristo �� hel��nico, ao

passo que Jesus (em Marcos e Mateus) �� judaico. Paulo �� um

enigma; pouco se ocupa de Jesus, at�� a P��scoa, a Ressurrei-

����o. Ao contr��rio de Jesus, Jav�� n��o disse que o ��ltimo ini-

migo a ser conquistado seria a morte. Jav�� �� o Deus dos

vivos; Cristo, em mais um mist��rio, �� Deus dos mortos. Quem

�� Jesus? Nem Jav�� nem Cristo. Jesus Cristo �� um novo Deus,

assim como o cristianismo foi uma Nova Alian��a.

Fi��is, estudiosos, pol��ticos, todos o negam, mas o

monote��smo ocidental tornou-se um profundo mist��rio.

Inclino-me �� proposi����o de que Jesus Cristo, Al�� e Jav�� s��o

mutuamente antit��ticos. O padre Raymond Brown nos ad-

verte a n��o subestimar o humano em Jesus, mas, na pr��tica,

os fi��is reduziram esse lado humano ao a��oite gibsoniano. O

Jesus norte-americano �� perfeito, conforme o vemos no Evan-

gelho de Jo��o.

Um humano n��o pode ser fisicamente ressuscitado dos

mortos, e nada na B��blia hebraica defenderia o contr��rio,

pois Enoque, Elias e Eliseu ascendem diretamente a Jav��,

sem terem morrido. O entendimento de S��o Paulo quanto ��



S �� J A V ��

181

Ressurrei����o de Jesus �� de que esta foi totalmente espiritual,

mas n��o �� essa a vis��o dos Evangelhos ou dos Atos dos Ap��s-

tolos, em que Jesus (exceto em Mateus) sobe aos c��us espiri-

tual e materialmente. Visto que o pr��prio Jesus ressuscitou

L��zaro e outros, conforme o fizeram Elias e Eliseu antes dele,

sup��e-se que seja capaz de fazer o mesmo para si.

Ser�� poss��vel considerar o Jav�� segundo a Autora " J "

nesse contexto? Tanto Jesus quanto os mu��ulmanos dizem:

"N��o!" Deus n��o aceita ser humilhado, seja por romanos,

alem��es ou norte-americanos. Um Jav�� crucificado (confor-

me quer Miles) �� um oximoro, mas Jav��, como j�� observei,

n��o �� um Deus que morre e revive. A cristologia �� uma ci��n-

cia esquisita, seja da perspectiva do juda��smo ou do islamis-

mo. Mergulhar no estudo dessa ci��ncia tem sido para mim

uma experi��ncia educacional, em nada similar �� perplexida-

de de que sou acometido quando tento apreender o budis-

mo ou o hindu��smo, duas religi��es que me escapam. Tra-

tando-se de cristologia, cultivo a paci��ncia, pois busco sempre

resposta a uma mesma pergunta: como pode Jav�� ser visto

como quem aceita a mortalidade, mesmo que esta constitua

um outro caminho para ele reassumir condi����o e fun����o pr��-

vias? A resposta cristol��gica �� que Deus escolheu se tornar

amor, a todo e qualquer custo. Falando com a voz aut��ntica

da cristologia, o padre Raymond Brown nos diz que n��o

havia outro meio de manifestar a generosidade divina em

rela����o �� humanidade.

W. H. Auden, fundamentado em preceitos crist��os,

desaprova o Pr��ncipe Hamlet, alegando que o personagem

mais talentoso da literatura ocidental moderna n��o amava

Deus, nem outros humanos, nem mesmo a si pr��prio.

Arist��teles observou que a solid��o completa s�� era poss��vel

para uma fera ou uma divindade, e talvez a exist��ncia de



J E S U S E J A V ��

182

Hor��cio ��� o ��nico seguidor leal ��� impe��a Hamlet de in-

gressar na categoria de divindade, fator que destruiria a pe��a.

Na qualidade de sacerdote cat��lico, Brown insistia,

devidamente, que "se Jesus n��o �� 'Deus verdadeiro de Deus

verdadeiro', ent��o, n��o conhecemos Deus em termos hu-

manos". Mas �� certo que conhecemos um Jav�� extremamente

humano, no retrato esbo��ado pela Autora " J " , de um Deus

ansioso, combativo, agressivo e ambivalente, que se apaixo-

na pelo rei Davi, transformado no retrato de Jos��, o substi-

tuto do rei-guerreiro fascinante que gerou Salom��o. A seme-

lhan��a de quase todos os padres cat��licos eruditos, Brown

parece ver em Jav�� apenas um Deus teol��gico, uma esp��cie

de reitor de uma universidade celestial, e n��o um guerreiro.

Os Evangelhos Sin��ticos n��o s��o tratados teol��gicos;

s��o hist��rias ��� sumamente amb��guas no que respeita �� di-

vindade de Jesus. Somente 250 anos mais tarde, no Conc��-

lio de Nic��ia, em 325 da Era Comum, Jesus foi designado

"Deus verdadeiro de Deus verdadeiro". Em Marcos 10, 18,

Jesus declina de ser elogiado como "bom mestre", porque "S��

Deus �� bom, e ningu��m mais". Paulo, em 1 Cor��ntios 8, 6,

preocupa-se em distinguir "um s�� Deus: o Pai" de "um s��

Senhor, Jesus Cristo". Os exemplos se multiplicam, mas os

te��logos, em resposta, prosseguem citando variantes textuais,

complexidades de sintaxe, bem como um punhado de tre-

chos que, embora n��o sejam suspeitos ou equ��vocos, s��o re-

presentados de maneira tendenciosa. O mais c��lebre �� Jo��o

20, 28, em que Jesus aparece uma semana depois da P��scoa,

e o disc��pulo Tom�� se refere ao Salmo 35, 23: "Meu Deus e

meu Senhor." M a s Jo��o, notoriamente, inicia com outra

identifica����o, bastante diferente, do Verbo com Deus, e lagos

�� tradu����o um tanto inadequada do hebraico davar, que vem a ser, simultaneamente, palavra, coisa e ato. Jav�� �� um nome



S �� J A V ��

183

e, portanto, uma palavra, e �� sempre a ess��ncia do ato, e n��o

pode ser descrito como o elemento supremo de um cosmo

de elementos. Os Evangelhos Sin��ticos posicionam Jesus nes-

sa categoria. O Jav�� que consta do trecho da Tor�� atribu��do

a " J " �� por demais din��mico para ser contextualizado, preci-

samente porque davar n��o tem equivalente em grego.

Quais seriam as conseq����ncias ��� para a religi��o, a

cultura e a sociedade ��� se o cristianismo, de qualquer de-

nomina����o, reconhecesse que adora dois, ou tr��s ou at��

mesmo quatro Deuses (Jav��, Jesus, o Esp��rito Santo e M a -

ria), em vez de um s��? O isl��, desde os prim��rdios, tem con-

siderado o cristianismo polite��sta, embora honre Jesus. His-

toricamente, a Igreja reputou o islamismo uma heresia crist��,

assim como os rabinos do s��culo II rejeitavam o cristianis-

mo como heresia judaica. Mas eu gostaria de propor uma

perspectiva diversa, de car��ter pr��tico, ��s considera����es dos

argumentos acerca da divindade: n��o somos todos n��s, em

v��rios sentidos, polite��stas, no que diz respeito a aspectos

cruciais da nossa vida? Por "n��s" n��o quero dizer apenas

judeus, crist��os e mu��ulmanos, mas tamb��m os secularistas,

os agn��sticos, e at�� os ateus declarados. Os norte-america-

nos s��o, necessariamente, p��s-pragm��ticos, conforme ob-

serva Richard Rorty: somente as diferen��as que de fato fa-

zem diferen��a contam nos Estados Unidos. Ser�� que a

admiss��o de que o monote��smo j�� n��o existe faria grande

diferen��a?

Permito-me sobrepor dois s��bios ��� Goethe e Freud ���,

no que diz respeito ��s suas respectivas atitudes divergentes diante

da religi��o. Goethe via-se mais como um deus do que como

um crist��o, enquanto Freud se declarava judeu infiel. Em

homenagem a Jesus, Goethe desprezou Paulo, bem como



J E S U S E J A V ��

184

todo o cristianismo que o sucedeu. Cercado pela Viena ca-

t��lica, Freud, demonstrando discernimento, absteve-se de

psicanalisar Jesus, enquanto identificava em Mois��s um pre-

cursor, cujo monote��smo representava um avan��o para a

cultura, devido �� ren��ncia aos impulsos. Constata-se um salto

estranho, que conta com pouca base racional, na identifica-

����o de Freud com a figura humana de Mois��s. Freud aprazia-

se em se considerar um conquistador espiritual, tendo em

Mois��s um de seus precursores, embora na realidade eu n��o

consiga saber por que raz��o, precisamente, o monote��smo,

em termos freudianos, constitui um triunfo humano. Se qui-

sermos apreender a auto-imagem de Freud, devemos defron-

tar o Mois��s de Michelangelo, escultura que, para Freud,

era um ��cone.

Vis��es de lideran��a s��o, por defini����o, agon��sticas;

competem entre si pelo lugar ��nico, acima dos demais. A

B��blia hebraica oferece Mois��s, Davi e Elias como exem-

plos. �� estranho que a Nova Alian��a tenha de lidar com o

constrangimento que se refere a Jo��o Batista, a quem Jesus, de

in��cio, seguia. Contudo, a B��blia crist�� derrotou e reestruturou

a Tanak, e Jesus Cristo abrange Abra��o, Mois��s e Davi, ao

passo que Elias e seu avatar, na figura de Jo��o Batista, s��o

postos de lado, reverentemente. A vis��o ocidental de lide-

ran��a centra-se em Cristo, desde Constantino at�� a Renas-

cen��a, quando Maquiavel e Shakespeare, cujo Hamlet �� um

contra-Maquiavel, na realidade, abalam o centro. A impor-

t��ncia duradoura de Freud, arrisco-me a afirmar, tem me-

nos a ver com a ci��ncia da mente do que com imagens de

lideran��a no Ocidente. Jesus, Maquiavel, Shakespeare e Freud

formam um quarteto curioso, mas nossos capit��es da pol��-

tica e da ind��stria costumam misturar os quatro, de modo

geral, com uma percep����o limitada de sua heran��a com-



S �� J A V ��

185

partilhada. Jav��, arcaico e exilado, cedeu a lideran��a aos

usurpadores.

Onde podemos, atualmente, situar o Jav�� que foi o

carism��tico dos carism��ticos, que definiu lideran��a em ter-

mos totalmente desconhecidos por Homero e Conf��cio?

Conquanto nenhuma figura p��blica, com toda a raz��o, decla-

re o fato abertamente, a guerra contra o terror �� uma repeti����o

tardia das guerras de Jav��. Nossa segunda invas��o do Iraque

foi a mais infeliz das repeti����es, uma par��dia das Cruzadas.

Maquiavel, que a partir da Renascen��a inglesa foi reduzido a

uma caricatura popular, ainda �� o Messias do realismo geopo-

l �� t i c o , profeticamente d e l i n e a d o no livro Thoughts on

Machiavelli (Reflex��es acerca de Maquiavel, 1958), de auto-

ria de Leo Strauss (1899-1973), or��culo dos neoconservadores

que convenceram George W. Bush a lan��ar a Cruzada de Bagd��.

Strauss �� eloq��ente, ao resumir a substitui����o que Maquiavel

opera da "religi��o" pela "prud��ncia":

A inadequa����o do argumento de Maquiavel n��o pode ser

desculpada atrav��s de refer��ncias ao que ele via em Roma

e na Floren��a contempor��neas. Pois ele sabia que os fatos

not��rios que lhe permitiram falar da corrup����o da It��lia

comprovavam, simultaneamente, a corrup����o do cristia-

nismo na It��lia. Vale mais a pena, embora ainda seja insu-

ficiente, desculpar a inadequa����o do argumento de

Maquiavel recorrendo ao abuso indescrit��vel no ensina-

mento da B��blia, do qual fi��is, em todos os tempos, s��o

culpados. De qualquer maneira, muitos dos leitores de

hoje em dia que disp��em de algum entendimento da B��-

blia, provavelmente, sentem-se menos escandalizados, mas

se espantam diante das sugest��es de Maquiavel. Tais lei-

tores se acostumaram n��o apenas a distinguir entre o cen-



J E S U S E J A V ��

186

tro e a periferia do ensinamento b��blico, mas a ignorar

essa periferia, como algo dispens��vel ou m��tico. Maquiavel

tinha ci��ncia da legitimidade dessa distin����o. A teologia

recente inclina-se a negar que a puni����o divina seja mais do

que o sofrimento que constitui a conseq����ncia natural ou

necess��ria do distanciamento em rela����o a Deus (ou do es-

quecimento de Deus), ou mais do que o vazio, a vaidade, o

sofrimento repulsivo ou glorioso, ou o desespero de uma

vida que n��o seja ligada a Deus, ou confiada a Deus. A

mesma teologia tende a resolver a dificuldade inerente ��

rela����o entre onipot��ncia e onisci��ncia, de um lado, e liber-

dade humana, do outro, reduzindo a provid��ncia ao ato de

Deus permitir que o homem realize seu destino sem maio-

res interven����es divinas, exceto o fato de Deus esperar pela

resposta do homem ao seu chamado. As indica����es de

Maquiavel relativamente �� provid��ncia dizem respeito a uma

no����o de provid��ncia segundo a qual Deus, literalmente,

governa o mundo como um monarca justo governa seu

reino. Ele n��o presta a m��nima aten����o ao fato de que a

prosperidade dos maus e a afli����o dos justos sempre foram

consideradas por fi��is esclarecidos parte essencial do mist��-

rio do outro providencial. Quase podemos v��-lo, no mo-

mento em que ouve as palavras "os que recorrem �� espada,

morrer��o pela espada", e responde: "mas os que n��o recor-

rerem �� espada, tamb��m morrer��o pela espada": Deus n��o

se det��m para pensar que somente os primeiros, ao recorrer

�� espada, submetem-se, inteiramente, ao julgamento da es-

pada e, portanto, condenam-se a si mesmos, percebendo

que nenhum corpo misto �� eterno.

Morremos pela espada, n��o importa se a empunhamos

ou n��o, mas o que aconteceu �� espada tem��vel e ��gil maneja-

da por Jav�� em suas guerras particulares? A pergunta shakes-



S �� J A V ��

187

peariana seria: "o que prometeste a ti mesmo?". Na vis��o

crist��, uma vez que Jesus �� Filho de Deus, isso se traduz na

pergunta ret��rica: "que prometeu Jav�� a Jesus?". Em Hamlet,

conforme Julia Lupton, com muita sutileza, demonstra, o

Pr��ncipe, ao obstruir Cl��udio, �� um anti-Maquiavel, mas ��

tamb��m um Maquiavel ingl��s, subordinando amor ao medo,

como o meio mais confi��vel de induzir obedi��ncia. Jav��, na

pr��tica, �� indiferente ao fato de ser amado ou temido, por-

que tanto amor quanto temor propiciam sacrif��cios que cons-

tituem emblemas da nossa obedi��ncia, uma praxis que cul-

minou na suposta morte de Jesus.

Judeus e crist��os j�� n��o sacrificam animais em altares

sangrentos, mas o javismo s�� dispensou o sacrif��cio de ani-

mais quando os romanos destru��ram o Templo; e os crist��os

deram continuidade �� pr��tica, fazendo-o de maneira subli-

mada, em uma comunh��o na qual p��o e vinho s��o emble-

m��ticos da carne e do sangue de Jesus. O sacrif��cio �� moda

antiga, supostamente extinto, �� realizado diariamente por meio

de viol��ncia religiosa, no mundo inteiro, seja no terrorismo

organizado ou na guerra, que nada mais s��o sen��o sacrif��cio.

Simone Weil atribu��a a culpa de tudo �� B��blia hebraica, ao

mesmo tempo que, surpreendentemente, agregava os Evan-

gelhos e a Il��ada, como "poemas de for��a" que n��o sancio-navam rituais de sacrif��cio. Aquiles, a maior das m��quinas

mort��feras, n��o compreenderia Simone Weil, mas confesso

que tampouco consigo compreend��-la.

Sacrif��cio ��, para mim, o mais desagrad��vel dos assuntos,

mas um livro centrado nos Nomes Divinos, Jesus e Jav��,

dificilmente, poder�� se esquivar do material que o Redator,

exilado na Babil��nia, teceu na estrutura que compreende

G��nesis e Reis, ao incorporar a fonte Sacerdotal, t��o dife-



J E S U S E J A V ��

188

rente, em todos os sentidos, da narrativa javista. " J " , ironi-

camente, evitou o sacrif��cio, apesar do incidente de Aqedah

(a palavra "aqedab" significa "obriga����o"), em que Abra��o quase sacrifica Isaac a Jav��, um modelo extremo do sacrif��-

cio de Jesus na condi����o de Cordeiro de Deus.

O sacrif��cio javista �� assunto t��o perturbador que ne-

nhum estudioso moderno conseguiu igualar a "semiconde-

na��ao" da referida pr��tica proposta pelo excepcional s��bio

do s��culo XII da Era Comum, Mois��s Maim��nides, que na

obra Guia de Transviados insiste ser o sacrif��cio, na melhor

das hip��teses, quest��o secund��ria para a vontade divina.

Maim��nides vale-se da tradi����o prof��tica, especialmente se-

gundo exemplificada na repreens��o que Samuel dirige a Saul:

Samuel, por��m, replicou:

"O que �� que Jav�� prefere? Que lhe ofere��am holocaustos

e sacrif��cios, ou que obede��am �� sua palavra? Decerto,

obedecer vale mais do que oferecer sacrif��cios; ser d��cil ��

mais importante do que a gordura de carneiros. Pois a

rebeli��o �� um pecado de feiti��aria, e a obstina����o �� um

crime de idolatria. Porque voc�� rejeitou a palavra de Jav��,

ele rejeita voc�� como rei."

I Samuel 15, 22-23

Maim��nides tamb��m cita Isa��as 1, 11-13 e Jeremias

7, 21-23:

"Que me interessa a quantidade dos seus sacrif��cios?", diz

Jav��. "Estou farto do holocausto de carneiros

E gordura de novilhos,

E sangue de bois;

E n��o me agradam carneiros e cabritos.



S �� J A V ��

189

Quando voc��s v��m �� minha presen��a,

Quem exige algo de voc��s?

N��o mais pisem meus ��trios,

Trazendo ofertas in��teis;

Incenso �� coisa nojenta para mim;

Luas novas e s��bados, assembl��ias...

N��o suporto injusti��a mesclada a solenidades."

Assim disse Jav�� dos ex��rcitos, o Deus de Israel: "Ajun-

tem os holocaustos que voc��s queimam, com seus sacrif��-

cios, e comam essas carnes! Pois quando tirei do Egito os

antepassados de voc��s, eu n��o falei nada nem dei ordem

alguma sobre holocaustos e sacrif��cios. A ��nica coisa que

lhes mandei, foi isto: Obede��am-me, e eu serei o Deus de

voc��s, e voc��s ser��o o meu povo; andem sempre no cami-

nho que eu lhes ordenar, para que sejam felizes."

Por que a rejei����o prof��tica do sacrif��cio n��o impediu o

suposto sacrif��cio de Jesus? Existe na Tradi����o Oral rab��nica

uma ambival��ncia que, a meu ver, est�� relacionada ao movi-

mento de um Jav�� humano afeito ao jejum (conforme, evi-

dentemente, era o caso de Jesus) a um Deus cada vez mais

transcendente, que n��o requer nenhum sustento al��m de

louvor e obedi��ncia.

A menos que a pessoa seja vegetariana convicta, n��o

ser�� capaz de convencer nem a si mesma quanto �� pr��pria

sinceridade, ao deplorar o sacrif��cio de animais observado

em tantas religi��es do mundo, atrav��s dos tempos. E, uma

vez que, presumivelmente, somente alguns de n��s somos

canibais, o sacrif��cio de seres humanos �� quest��o ainda mais

premente. Isso torna o sacrif��cio de crian��as o horror dos

horrores, inclusive o sacrif��cio de mais de um milh��o de

crian��as judias mortas pelo povo alem��o durante o Holo-

causto promovido por Hitler.



J E S U S E J A V ��

190

Recorro agora a outro estudo, de autoria de Jon D.

Levenson, sob o t��tulo The Death and Resurrection of the

Beloved Son, e subt��tulo The Transformation of Child Sacrifice

in Judaism and Christianity (respectivamente, A morte e a

ressurrei����o do filho amado; A transforma����o do sacrif��cio

infantil no juda��smo e no cristianismo, New Haven, 1993).

O argumento de Levenson, a meu ver convincente, situa a

fonte primeira do sacrif��cio de Jesus na ordem dada por Jav��

a Abra��o, para que imolasse Isaac. O Aqedah estudado por

Levenson �� narrado em G��nesis 22, 1-19, passagem que sem-

pre me deprime, a despeito da brilhante defesa do trecho

feita por Kierkegaard, em Temor e Tremor, uma das obras-

primas da ironia compostas pelo fil��sofo dinamarqu��s.

Kierkegaard interpreta Abra��o como um Cavaleiro da F��

que, no entanto, sabe que Isaac sobreviver��. Esse entendi-

mento �� mais luterano do que judaico, e Levenson o distin-

gue, nitidamente, da exegese de Rashi (s��culo XI da Era

C o m u m ) , que deduzia que Abra��o, profeta, foi capaz de pre-

ver que o filho escaparia. Rashi �� apenas sensato, ao passo

que Kierkegaard reinventa a antiga id��ia crist�� do "absur-

do". Abra��o, segundo o Alcor��o, era mu��ulmano, e somente

Kierkegaard considera Abra��o crist��o antes do fato (por

assim dizer): "Em virtude do absurdo, ele acreditou, pois

n��o se tratava, em absoluto, de uma quest��o de racioc��nio

humano, e seria de fato absurdo que Deus, que dele exigira

o sacrif��cio, subitamente, cancelasse a exig��ncia."

M i n h a conclus��o �� de que a maioria compreende mal o

que Jav�� quer dizer com "amor" e "medo". E. P. Sanders, no

livro Jewish Lawfrom Jesus to the Mishnah (A Lei judaica de

Jesus �� mishnah, 1990), p��gina 2 7 1 , faz a seguinte observa-

����o, extremamente ��til:

S �� J A V ��

191

Hoje em dia estabelecemos uma distin����o n��tida entre "in-

terior" e "exterior", e aqueles entre n��s que s��o protestan-

tes, ou herdeiros da tradi����o protestante, desconfiam de

formas exteriores. Conv��m lembrar que, para os antigos

judeus, "ama teu pr��ximo" e "ama o estranho" n��o eram

mandamentos vagos relacionados a sentimentos contidos

no cora����o, e sim bastante espec��ficos. "Ama" queria di-

zer "usa pesos e medidas justos"; "n��o colhas tua lavoura

at�� o limite do campo, mas deixa um pouco para os po-

bres"; "n��o roubes, n��o ajas com falsidade, n��o mintas";

"n��o deixes de pagar sal��rios devidos"; "n��o abuses do cego

nem do surdo"; "n��o sejas preconceituoso em teu julga-

mento"; "n��o calunies" ��� e assim por diante, pelos

vers��culos de Lev��tico 10, e muitos outros.

Lev��tico 10, supostamente, �� um erro tipogr��fico; o

correto seria Lev��tico 19, 9-17:

Quando voc��s fizerem a colheita da lavoura nos seus ter-

renos, n��o colham at�� o limite do campo; n��o voltem

para colher o trigo que ficou para tr��s nem as uvas que

ficaram no p��; tamb��m n��o recolham as uvas ca��das no

ch��o: deixem tudo isso para o pobre e o imigrante. Eu

sou Jav��, o Deus de voc��s.

Nenhum de voc��s roube nem use de falsidade, e n��o en-

ganem ningu��m do seu povo. N��o jurem falsamente pelo

seu nome, porque voc��s estariam profanando o nome do

seu Deus. Eu sou Jav��. N��o oprimam o pr��ximo nem o

explorem, e que o sal��rio do oper��rio n��o fique com voc��s

at�� o dia seguinte. N��o amaldi��oem o mundo nem colo-

quem obst��culos diante do cego; temam o seu Deus. Eu

sou Jav��.



J E S U S E J A V ��

192

N��o cometam injusti��as no julgamento. N��o sejam par-

ciais para favorecer o pobre ou para agraciar ao rico: jul-

guem com justi��a os seus concidad��os. N��o espalhem bo-

atos, nem levantem falso testemunho contra a vida do seu

pr��ximo. N��o guardem ��dio contra o seu irm��o. Repre-

endam abertamente o seu concidad��o, assim voc��s n��o

carregar��o o pecado dele.

N��o sejam vingativos nem guardem rancor contra seus

concidad��os. Amem o seu pr��ximo como a si mesmos.

Eu sou Jav��.

Observem minhas Leis.

O amor de Jav�� �� condi����o da manuten����o da Alian��a,

nem mais nem menos. N��o creio que Paulo tenha se enga-

nado a esse respeito, mas Agostinho ��� em que pese a sua

grandeza ��� equivocou-se ao interpretar Paulo. Jesus, no

Evangelho de M a r c o s , segundo meu e n t e n d i m e n t o , ��

javista, no que diz respeito �� no����o pragm��tica do amor.

Na terceira idade, come��o a experimentar um certo medo

do Lev��tico, o livro da T a n a k que menos me agrada. Tal-

vez a benevol��ncia moral constitua um amor superior ��

maioria das nossas paix��es.

C A P �� T U L O 1 3 O que Jav�� Quer Dizer

com "Amor"?

O amor de Jav�� pelo povo que ele escolheu depende da

Alian��a, sendo, portanto, condicional e revog��vel. �� lugar-

comum nos estudos do Novo Testamento observar que Paulo

e Marcos n��o jogam Jesus contra os fariseus; o orgulho de

Paulo diante do seu pr��prio juda��smo e do fato de ter senta-

do aos p��s do grande rabino Gamaliel aparece no respeito

aos fariseus, antigos aliados; e, no Evangelho de Marcos, Je-

sus interpreta a Lei, basicamente, a partir de par��metros

farisaicos, embora n��o deixe de faz��-lo ao seu pr��prio modo.

Conquanto Paulo quase siga Jesus ao denunciar o div��rcio

entre homens e mulheres, ainda que Mois��s houvesse legis-

lado em prol da quest��o, o Jesus de Paulo e Marcos, certa-

mente, n��o v�� Jav�� divorciado do povo por ele eleito.

O maior paradoxo do cristianismo, em Lucas, Jo��o e

quase tudo que os segue, �� a rejei����o do povo judeu, consi-

derado (na melhor das hip��teses) obsoleto, e, simultanea-

mente, a depend��ncia quase total da interpreta����o revisionista

da B��blia hebraica. Quando Jesus, na Transfigura����o, apare-

ce ao lado de Mois��s e Elias, tais presen��as sugerem outras:

Abra��o, Isaac, Jac��, Jos��, Eliseu e um ex��rcito melanc��lico,



J E S U S E J A V ��

194

recrutado junto �� tradi����o destes. Jav�� proclama a amada

filia����o de Jesus no momento do Batismo, e �� vital que os

precursores do Filho o reencontrem.

N��o consigo me lembrar de um momento sequer em

que Jav�� expresse amor aut��ntico por algu��m, nem mesmo

quando, em 1 Cr��nicas, promete a Davi que, ap��s a morte

do her��i, Salom��o vai merecer o amor do rei celestial, como

se Salom��o estivesse destinado a ser filho do pr��prio Deus.

A implica����o �� de que Jav�� logrou n��o se apaixonar por Davi,

que pode ser considerado o Hamlet hebreu: poeta, esgrimis-

ta, algu��m que est�� sempre buscando, por meios tr��gicos

mas plenamente conscientes. N��o por acaso Jesus descende

de Davi, embora atrav��s de um ramo mais jovem, n��o aque-

le de Salom��o.

Jav��, �� semelhan��a de Rei Lear, exige uma quantidade

exagerada de amor, estigma freq��ente dos maus pais. N��o

nos �� permitido vislumbrar a Rainha Lear, e falar de uma

hipot��tica Sra. Jav�� constitui a blasf��mia das blasf��mias

(exceto tratando-se dos m��rmons). Se a cham��ssemos de Sa-

bedoria, Shekhinah, Eva ou Virgem Maria, ela se tornaria a

filha incestuosa, a exemplo das filhas de Lot, que talvez bus-

cassem vingan��a pelo fato de o pai t��-las oferecido aos

sodomitas, a fim de proteger os Anjos da Destrui����o. Evi-

dentemente, Jav�� (at�� um novo eros surgir com a Cabala)

ama Davi, mas trata-se de um amor semelhante ao de Lear

por Cord��lia, dotado de uma ternura que esconde irascibili-

dade. Ou melhor, uma vez que o cristianismo troca Jav�� por

um Deus Pai benevolente, Primeira Pessoa da Trindade, as

caracter��sticas de tal ternura desaparecem.

Essa lacuna entre Jav�� e o Deus Pai da Trindade �� mais

uma demonstra����o de que o juda��smo n��o �� o progenitor do

cristianismo. Antes disso, juda��smo e cristianismo s��o irm��os



O Q U E J A V �� Q U E R D I Z E R C O M " A M O R " ?

195

inimigos, ambos tendo se originado nos judaismos do Se-

gundo Templo, verdade que a maioria das pessoas de boa

vontade procura evitar. Visto que h�� mais de um bilh��o e

meio de crist��os, e apenas cerca de 14 milh��es de judeus

sobreviventes que se apresentam como tal, a propor����o �� de

mais de cem crist��os para cada judeu. O mandado de Jav��

aos Eleitos ��� "Crescei e multiplicai-vos" ��� �� ironia terr��-

vel, em um planeta em que os judeus somam menos de um

d��cimo de um por cento da popula����o mundial. Trata-se da

propor����o de m��rmons no universo, mas os m��rmons con-

tam com uma din��mica de crescimento, ao passo que os

judeus continuam a decrescer. Na realidade, o cristianismo

e o islamismo, bem como as religi��es asi��ticas, herdar��o a

Terra que restar, que sobreviver ao ataque ao meio ambiente

perpetrado pela plutocracia republicana norte-americana.

Sou levado a concluir que Jav�� partiu em ex��lio volunt��rio,

abandonando a Antiga Alian��a, e se encontra no espa��o si-

deral, amargando o desamor.

Uma espl��ndida admoesta����o de Baruch Spinoza tem

me perseguido h�� mais de meio s��culo: "�� preciso aprender

a amar a Deus sem jamais esperar que ele nos ame em retri-

bui����o." Eticamente, isso tem certa pung��ncia, mas ser�� hu-

manamente aceit��vel? Se substituirmos Deus por Hamlet,

na asser����o de Spinoza, esta se torna mais compreens��vel

para mim. A defini����o crist�� amplamente aceita ��� "Deus ��

amor" ��� desaparece na aura da inspirada "intoxica����o" de

Spinoza, se aplicarmos a caracteriza����o que Coleridge con-

fere ao grande moralista judeu: "homem intoxicado com

Deus". Se for intoxicada com Deus, a leitora haver�� de sor-

rir, benignamente, diante da minha preocupa����o, mas n��o

estaria Spinoza falando de Jav��, em vez do Deus Pai de Jesus

Cristo? A fam��lia de Spinoza (marranos ib��ricos) voltou para



J E S U S E J A V ��

196

o juda��smo, no ambiente tolerante de Amsterd��, onde a

sinagoga, sem d��vida motivada por uma apreens��o peran-

te os anfitri��es calvinistas, com relut��ncia excomungou a

melhor mente judaica local, em decorr��ncia de um supos-

to "pante��smo", em que Jav�� e sua cria����o nem sempre se

distinguiam.

N��o faz muito sentido dizer que "Jav�� �� amor", ou

que devemos amar Jav��. Ele n��o ��, nunca foi e jamais ser��

amor. Muitos, se n��o a maioria, de n��s, em algum momen-

to, nos apaixonamos por algu��m que n��o �� capaz de aceitar

amor, nem de retribu��-lo, embora ele ou ela talvez exija amor,

mesmo que somente como devo����o ou respeito. No trecho

que vai at�� 1 Cr��nicas, Jav�� estabelece o modelo dessa atua-

����o destrutiva, melhor exemplificada pela Cle��patra shakes-

peariana ��� at�� o quinto ato, quando ela parece se transfor-

mar, ap��s a morte de Ant��nio. Assim mesmo, Shakespeare

confere a Cle��patra uma natureza equ��voca que constitui

um desafio infindo ��s atrizes: como desempenhar o papel de

algu��m que j�� n��o sabe se est�� representando a si mesma?

Quando Jav��, porventura apaixonado por Davi, como tal-

vez estivera com Jos��, precursor de Davi, promete que ser��

um pai para Salom��o, pode tal promessa ser interpretada

como algo que n��o seja dramaturgia divina?

Sei que contrario s��bios do juda��smo e te��logos cris-

t��os, mas estes t��m em comum uma postura tardia em rela-

����o �� B��blia hebraica, ou "Velho" Testamento crist��o. Jav��,

for��osamente, �� imune �� ang��stia de influ��ncia do Deus Pai

crist��o, mas ele exemplifica o que Paul Val��ry chamava de

influ��ncia da mente do poeta sobre si mesma. O Jav�� da

Autora " J " , que vitaliza trechos do que atualmente denomi-

namos G��nesis, ��xodo e N��meros, �� quase id��ntico ao Se-

nhor Deus de 2 Samuel, e paira como o fantasma do pai de



O Q U E J A V �� Q U E R D I Z E R C O M " A M O R " ?

197

Hamlet, em 1 Cr��nicas. De todos os precursores, Jav�� �� o

mais forte e o mais implac��vel.

Nietzsche chamava a aten����o para a tendencia de o

deus progenitor se tornar uma sombra espiritual, sugest��o

acatada por Freud (ainda que lhe negasse a origem) na obra

t��o maravilhosa quanto ensandecida Totem e Tabu, em que

o totem-pai �� morto pelos filhos, um bando de irm��os ini-

migos que canibalizam o pai temido. O ato culposo, segun-

do Freud, �� a origem de toda religi��o e cultura. N��o sou t��o

nefasto a ponto de propor que esses irm��os inimigos sejam

os Deuses do juda��smo, do cristianismo e do islamismo ���

quer dizer, um quinteto extremamente diversificado: Adonai,

o Senhor; Deus Pai; Jesus Cristo; o Esp��rito Santo; e Al��. A

contundente especula����o de Freud, no entanto, �� sugestiva,

at�� mesmo shakespeariana (como seria de esperar).

N��o temos como saber o quanto de Cr��nicas ter�� sido

composto pelo grande Redator da "Academia de Ezra", na

Babil��nia, mas �� certo que o autor organizou a Tanak de

modo a ser conclu��da com Cr��nicas. Inserindo Jav�� no

palimpsesto criado a partir dos tr��s primeiros livros do

Pentateuco, o Redator (a exemplo de Homero, t��o autor

quanto editor) arrisca uma atenua����o revisionista de Jav��,

mas isso �� como tentar acalmar um vendaval. Jav�� n��o pode

ser domesticado. Em termos shakespearianos, Jav�� combina

aspectos de Lear, Falstaff e Hamlet: a f��ria imprevis��vel de

Lear, o vitalismo irresist��vel de Falstaff e a inquieta����o da

consci��ncia constatada em Hamlet. Diante das perguntas

ret��ricas de Jav��, ou bem nos detestamos, a exemplo de J��,

ou revidamos em v��o, a exemplo do capit��o Ahab criado

por Melville, o mais valente e obcecado dos gn��sticos.

Sabemos que, para muitos de n��s, Jav�� continua a ser

a resposta mais acertada para uma pergunta angustiante:



J E S U S E J A V ��

198

"Quem �� Deus?" Um budista, um hindu ou um tao��sta n��o

concordaria, tampouco muitos crist��os, mu��ulmanos e ju-

deus, mas a minha resposta �� a de um cr��tico liter��rio, e se

fundamenta na for��a e no poder da ��nica personalidade lite-

r��ria que, tratando-se de vivacidade e notoriedade, ultrapas-

sa at�� Hamlet, Falstaff, Iago, Lear e Cle��patra. Traduzindo

a quest��o em termos religiosos, o Jav�� de " J " �� a representa-

����o mais convincente de alteridade transcendental que j�� en-

contrei na vida. E, no entanto, Jav�� n��o �� apenas "antropo-

m��rfico" (termo i n �� t i l ! ) , mas �� mesmo absolutamente

humano, e n��o ��, de maneira alguma, um sujeito agrad��vel

��� e por que deveria s��-lo? N��o pretende se candidatar a

cargo pol��tico, n��o busca a fama nem almeja receber trata-

mento favor��vel por parte da m��dia. Se o cristianismo insis-

te que Jesus Cristo �� a boa nova (asser����o tornada inv��lida

pela brutalidade dos crist��os ao longo da hist��ria), ent��o,

Jav�� �� a "m�� nova" encarnada, e a Cabala nos diz que ele,

com toda a certeza, tem um corpo, um corpo imenso. �� algo

terr��vel cair nas garras do Jav�� vivo.

N��o pretendo aqui blasfemar nem ser ir��nico; apenas

persigo algumas perspectivas inovadoras. Amar Jesus �� moda

norte-americana, mas amar Jav�� �� empresa quixotesca, en-

ganosa porque se recusa a tomar conhecimento de todos os

fatos. Podemos respeitar Pr��spero e a ele obedecer, confor-

me todos os personagens de A Tempestade aprendem a fazer,

mas somente Miranda o ama, pois ele foi, para ela, ao mes-

mo tempo, pai e m��e. Nos Evangelhos (exceto Jo��o), Jav�� ��

pai de Jesus somente ao modo pelo qual Abra��o foi pai de

Isaac, segundo a analogia de Aqedah, o quase sacrif��cio da

crian��a como oferenda a Deus.

C A P I T U L O 1 4 O Filho Muit o Diferente

do Pai

Nietzsche, seguindo Jakob Burckhardt, distinguia entre a

no����o hebraica de honrar pai e m��e e a competi����o dos gre-

gos pelo primeiro lugar. Jesus reverencia Jav�� como pai; no

Alcor��o, Jesus nega a Al��, ter algum dia buscado igualdade

no reino Divino, muito menos supremacia.

Que significa ser igual ao Pai? Em The God of Old

(O Deus de antigamente, 2 0 0 3 ) , James Kugel aponta uma

caracter��stica por ele denominada "severidade", que resiste a

qualquer defini����o precisa, mas que se resume �� aura de Jav��.

A met��fora de Kugel �� profundamente evocat��ria dos Sal-

mos, na ��nfase conferida �� brevidade da nossa vida, em con-

traste com a de Jav��. As respostas dos Salmos �� pergunta

"Que �� o homem?" nos remetem �� nossa pr��pria insignifi-

c��ncia, embora raramente com a voz atordoante de Jav�� fa-

lando do meio do redemoinho, no final do Livro de J��. Jav��

ouve o que Kugel chama de "grito da v��tima", mas a severi-

dade torna a sua resposta mais problem��tica ainda. O Deus

de antigamente, segundo Kugel, �� propenso a ficar por tr��s

do mundo, embora por vezes chegue a adentr��-lo. Tudo



200

J E S U S E J A V ��

depende de percep����o, tanto da nossa quanto daquela dos

autores b��blicos.

Ser�� Jesus Cristo, �� semelhan��a de Jav��, um Deus do-

tado de tal "severidade"? O cristianismo insiste que Cristo

ouve o grito da v��tima e intercede, quando pode. Por defini-

����o, Jav�� pode faz��-lo, mas muitas vezes declina de intervir.

A Quaternidade populista crist�� (Pai, Filho, Esp��rito Santo

e Virgem Maria) oferece quatro intercessores potenciais e,

na verdade, muitos outros ��� santos ang��licos e anjos santi-

ficados. A severidade, dificilmente, prevalece, quando tal mul-

tid��o ouve o grito da v��tima. Para Kugel, a B��blia �� agora um

mundo perdido, e quero aqui reafirmar o paradoxo por mim

invocado em livros anteriores: o cristianismo e o juda��smo

j�� n��o s��o religi��es b��blicas, a despeito das asser����es feitas.

Sou incapaz de compreender o que vem a ser aquilo que tan-

tos estudiosos crist��os continuam a denominar "teologia do

Antigo Testamento". A Tanak n��o tem teologia, e Jav�� (re-

petindo o ��bvio) n��o �� um Deus teol��gico. A teologia foi

inventada em Alexandria pelo judeu helenizado Filo, que

interpretou a Septuaginta, assim como Plotino interpretou

Plat��o. A severidade a que se refere Kugel, felizmente, n��o ��

teol��gica e, sem d��vida, aproxima-se das percep����es de Es-

critura relativas a Yeshu�� de Nazar��, e n��o, absolutamente,

ao Jesus Cristo trinit��rio.

Jav�� despreza a reflex��o teol��gica, mas �� dado �� teofania,

ou automanifesta����o. Ainda que seja ilimitado, Jav�� aceita uma

s��rie moment��nea de cerceamentos, a fim de se revelar. Exceto

os aparecimentos em forma de guerreiro e tempestade, as

teofanias tendem a ser atra��das a locais elevados, que n��o s��o

exclusivos a Jav��, mas que, evidentemente, a ele s��o bastante

adequados, e que, portanto, est��o sob o seu controle, seja no

Sinai ou no Si��o, onde Salom��o construiu o Templo, e onde

Isa��as contempla Deus entronizado. Sup��e-se que o trono do



O F I L H O M U I T O D I F E R E N T E D O P A I

201

Templo fosse a representa����o de um trono grandioso, maior,

ocupado por Jav��, em escala gigantesca, no reino dos c��us.

Ser�� que o cristianismo espera que n��s possamos visualizar o

Cristo igualmente entronizado, ao lado do Pai? Tal vis��o apre-

senta dificuldades est��ticas e espirituais. Mencionei antes que

John Milton, talvez ousado demais ao tentar superar essas di-

ficuldades, apresenta-nos um Cristo que comanda um ataque

de Merkaba contra Satan��s, em Para��so Perdido, trecho que

ningu��m considera um sucesso po��tico. Nada na carreira de

Jesus sugere o papel de guerreiro divino.

2

Judeus que continuam a crer na Alian��a n��o encontram o

Jav�� ambivalente que descrevo, assim como crist��os que acre-

ditam que Jesus foi o Cristo contemplam uma figura bas-

tante diversa daquela que eu enxergo. A perspectiva coman-

da nossa rea����o a tudo o que lemos, especialmente tratando-se

da B��blia. Aprendendo dos estudiosos, sejam crist��os ou ju-

deus, ainda assim questionamos o seu condicionamento, que

tantas vezes lhes sobredetermina a apresenta����o. �� evidente

que tal cautela tamb��m se aplica a mim, um cr��tico liter��rio

dividido entre o legado judaico e um desconforto gn��stico

diante de Deus.

James Kugel, a exemplo de Kenneth Kuntz, enfatiza

muito bem que, na B��blia, n��o encontramos Jav��; ele �� que

nos encontra. Afinal, o pr��prio nome sugere que a presen��a

dele depende da vontade. Embora pare��a que Jav�� esteve

ausente ao longo dos ��ltimos dois mil anos, Kugel registra,

de modo implac��vel, que a situa����o dos israelitas n��o era

muito melhor quando Jav��, supostamente, estava de plan-

t��o. Por conseguinte, ser�� tudo apenas uma quest��o de per-

cep����o, ontem e hoje? Agrada-me a observa����o bem-humo-



202

J E S U S E J A V ��

rada de Donald Akenson: "N��o posso crer que um indiv��-

duo que goze de sa��de mental possa gostar de Jav��." Mas,

conforme acrescenta o pr��prio Akenson, isso �� irrelevante,

pois Jav�� �� realidade. Eu iria um pouco mais adiante e identi-

ficaria Jav�� com a "prova de realidade", segundo Freud, que

se assemelha ao entendimento lucreciano do modo como as

coisas s��o. Na condi����o de princ��pio da realidade, Jav�� ��

irrefut��vel. Todos temos de morrer, cada qual na sua hora, e

n��o posso concordar com a cren��a farisaica de Jesus na ressur-

rei����o do corpo. Jav��, tanto quanto a realidade, tem um senso

de humor bastante ��cido, mas a ressurrei����o do corpo n��o ��

uma de suas piadas judaicas ou freudianas.

3

O apelo inspirado pelo Senhor Jesus Cristo n��o pode residir

em seu perfeccionismo, fator no qual ele supera os fariseus.

Em vez disso, a Jesus compete oferecer uma sa��da diante da

realidade da morte, diante do modo como as coisas s��o, e,

portanto, diante de Jav�� tamb��m, que �� substitu��do por um

Deus Pai supostamente mais brando, ao mesmo tempo juiz

e suicida, dependendo de como se quer interpretar a Trin-

dade. Sem dispor de acesso ao Jesus hist��rico, fico at��nito

ante a maneira dividida como apreendo o personagem liter��-

rio Jesus. O componente espiritual que tenho dentro de mim

reage ao menos protogn��stico Jesus do Evangelho de Tom��,

enquanto, na condi����o de cr��tico liter��rio, sou fascinado pelo

misterioso Evangelho de Marcos. Mateus n��o repercute em

mim, e Lucas e os Atos dos Ap��stolos ensejam t��o-somente

meu ceticismo, e Jo��o me odeia e eu reajo �� altura. Paulo cau-

sa-me total perplexidade, mas, em todo caso, mant��m-se ��

margem de quem quer que tenha sido o Jesus hist��rico. D. H.



O F I L H O M U I T O D I F E R E N T E D O P A I

203

Lawrence tinha pavor da Revela����o de Jo��o, o Divino, senti-

mento do qual compartilho.

Por que a maioria das pessoas, em todos os tempos e lugares,

precisa de Deus ou dos deuses? Ou por que Deus precisa de

n��s? Essas perguntas ou n��o t��m resposta ou costumam ser

respondidas de maneira apressada. Os poetas precisam de

Deus porque polite��smo �� poesia. Ser�� Jav�� um poema? Ser��

o Senhor Jesus Cristo um poema? Cristo precisa (ou elege)

nos amar, de acordo com a maioria dos crist��os com que me

deparo, e estes elegem (ou precisam) am��-lo. Um fil��sofo

judeu-franc��s popularizou a no����o radical de alguns judeus

p��s-Holocausto, de que precisam amar a Tor�� mais do que

a Deus. Contudo, toda a Cabala e grande parte do Talmude

agregam a Tor�� e Jav��. Ser�� que a Tor�� nos ama? Quanto a

mim, ignoro Jav��, quando, em dados momentos, ele afirma

amor pelo povo judeu. Concretamente, ele n��o ama o povo

judeu, e isso n��o decorre do fato de termos matado Cristo;

foi ele quem o matou, utilizando como agentes os romanos

e alguns judeus colaboracionistas. Se Jav�� precisava dos ju-

deus, ou dos crist��os, ou dos mu��ulmanos, ou de zoroastria-

nos, hindus, budistas, confucianos, tao��stas e t c , ao que pa-

rece, ele dependia de alimenta����o �� base de oferendas, e

desejava um bombardeio de louvores, ora����es, c��nticos em

a����o de gra��as, al��m de amor desmedido, incessante. Ser��

Jav��, simplesmente, um Rei Lear cosmol��gico e atemporal,

o patriarca dos patriarcas?

4

Pais e filhos podem ��s vezes ter confrontos inflamados, na

literatura e na vida. Freud considerava Os Irm��os Karamazov



J E S U S E J A V ��

204

o maior dos romances, embora muito se ressentisse do anti-

semitismo feroz demonstrado por Dostoievski. �� poss��vel

ver no Pr��ncipe Hal uma mescla de Mitya e Ivan, com o

papel do velho Karamazov dividido entre Henrique IV e

FalstafT. �� certo que Dostoievski aprendeu com Shakespea-

re, assim como Freud (com um tanto de m��-f��) absorveu

muito mais de Shakespeare do que de Dostoievski. Uma lei-

tura edipiana ou hamletiana de Jesus, vis-��-vis seu pai celestial, nada tem de inovadora: assim �� o Jesus gn��stico, incisivamen-te expresso por William Blake, o mais vitalista dos gn��sticos:

"O Filho muito diferente do Pai."

A perplexidade permanente de Jav�� surge do fato de

n��o dispormos de alternativa, a n��o ser compreend��-lo em

termos humanos, e no entanto ele transcende quaisquer ter-

mos a n��s dispon��veis. O car��ter moral de Jav�� desafia aug��-

rios, e sua personalidade �� inconstante. O Jesus de Marcos

compartilha dessa perplexidade, tanto quanto Hamlet. Con-

siderar o Jav�� da Tanak um papel shakespeariano �� inverter

a ordem das coisas: William Tyndale precedeu Shakespeare,

e, finalmente, come��o a entender que a B��blia inglesa, mais

ainda do que Chaucer, embora em fus��o com Os Contos de

Cantu��ria, propiciou a Shakespeare o precedente para que

seu g��nio sobrenatural atuasse no processo de cria����o de

mulheres e homens. Isso n��o quer dizer que Shakespeare

tenha sido um dramaturgo crist��o, se bem que, certamente,

escrevesse para plat��ias crist��s. Jav�� sendo o modelo princi-

pal de Lear, e o Jesus de Marcos sendo o modelo principal

de Hamlet, n��o quer dizer que as cren��as do indiv��duo

William Shakespeare ��� n��o importa quais fossem ��� apa-

re��am no palco. Entretanto, a ironia da Autora " J " �� t��o

generalizada que n��o consigo ver como podemos determi-

nar o grau de confian��a (se houver confian��a) que ela depo-



O F I L H O M U I T O D I F E R E N T E D O P A I

205

sitava no inconstante Jav��, um Deus no qual, decididamen-

te, n��o se pode confiar.

Por vezes, os deuses do Norte e do Oriente s��o trapa-

ceiros, e talvez todas as divindades, inclusive Jav��, tenham,

em ��ltima inst��ncia, origens xaman��sticas, hoje em dia qua-

se sempre imposs��veis de serem rastreadas. Outro paradoxo

�� que Jav�� oscila entre travessuras cru��is e terror moral. Quem

quer que tenha escrito o Evangelho de Marcos trazia algo

sempre na mente: Jav��, ao mesmo tempo, alimenta e explo-

ra o que n��s chamar��amos de narcisismo (dele). Como po-

deria ser diferente? As mem��rias que temos de nossos pais e

nossas m��es, se eles j�� faleceram, ou as experi��ncias que te-

mos com eles em vida, t��m muitas fun����es, mas a principal

�� moderar o nosso narcisismo. Freud considera que isso cons-

titui a forma����o do "sobre-eu" (superego), atrav��s da inter-

naliza����o dos pais. Jav��, terrivelmente humano, n��o tem pais,

ao contr��rio dos deuses dos gregos. J a c k M i l e s , sempre

instigante e objetivo, indaga o que faz Jav�� seguir adiante,

visto que n��o tem precursores. Hamlet conta com o Fantas-

ma e com Gertrudes, e rejeita Of��lia, que deveria ter se tor-

nado sua esposa. Como apreender Hamlet, se o Fantasma

n��o se manifestasse, e se Gertrudes e Of��lia j�� estivessem

mortas?

Na leitura que fa��o da pe��a, Hamlet �� incapaz de amar

quem quer que seja. Ser�� Jav�� capaz de amar algu��m? Os

S��bios insistem no amor de Deus por Israel, apesar das

apostasias de Israel. Jesus, nesse particular, em conson��ncia

com os S��bios do juda��smo, tem convic����o de que seu abba

o ama, at�� bradar, no fim: "Pai, por que me abandonaste?"

Eu gostaria de interpretar o texto de " J " e o Evangelho de

Marcos como hist��rias de amor divino, mas n��o posso faz��-

lo, e continuo a me perguntar: "Por que n��o?" Jav�� ��, com



206

J E S U S E J A V ��

certeza, o mais ardente dos deuses, zeloso e ciumento, mas,

conforme j�� observei, nada nele se assemelha ao amor de

Lear por Cord��lia, ou de Jac�� por Raquel. O amor, dizia

Wittgenstein, n��o �� um sentimento. Ao contr��rio da dor, o

amor �� posto �� prova. N��o dizemos: "Isso n��o foi uma dor

verdadeira, porque passou rapidamente." Com base nesse

teste, Jav�� n��o experimenta amor verdadeiro, seja por Israel,

seja por toda a humanidade. Existem, mais uma vez admito,

tantas vers��es de Jesus quanto de seres humanos. As duas

��nicas que me impressionam s��o incompat��veis entre si: os

Evangelhos de Tom�� e Marcos (que n��o �� compat��vel nem

consigo mesmo). O Jesus gn��stico preconiza percep����o, e

n��o amor; n��o se pode dizer que o Jesus de Marcos ame os

disc��pulos. Se h�� alguma semelhan��a real entre o Jav�� de " J "

e o Jesus de Marcos, deve ser o fato de ambos insistirem em

confundir nossas expectativas. Pode isso ser chamado de

amor? Ser�� amor um sentimento com o qual n��o consegui-

mos, na pr��tica, conviver? Shakespeare n��o conseguia con-

viver com Anne Hathaway, embora, nos ��ltimos anos de

vida, voltasse para casa e para ela. Jav�� n��o podia se casar, a

n��o ser metaforicamente falando, e Jesus n��o se casou, o que

configurava um esc��ndalo na sua tradi����o. S��crates n��o ama-

va a esposa nem os disc��pulos, e n��o se pode dizer que amava

Atenas. Jesus chorou por causa de Jerusal��m, presumivel-

mente, porque amava a sua gente.

5

O grande apelo, mundo afora, do cristianismo e do seu ri-

val, o islamismo, fundamenta-se na simplicidade da inter-

preta����o. O triunfo do cristianismo sobre o juda��smo, nos

primeiros s��culos da Era C o m u m , n��o teria ocorrido em



O F I L H O M U I T O D I F E R E N T E D O P A I

207

bases teol��gicas. "Acredita que Jesus foi o Cristo e ser��s sal-

vo para a vida eterna" s��o palavras que se mostraram irresist��veis

para o povo. Mais tarde, isso foi equiparado a: "Obedece a

Al�� e �� autoridade de Maom��, Selo dos Profetas, e ser��s re-

compensado na outra vida." A sobreviv��ncia do javismo s��

seria vi��vel em rela����o a algo remanescente. N��o foi qual-

quer suposta distin����o entre lei e amor que isolou o juda��s-

mo, mas um trauma hist��rico permanente. N��o espero que

algu��m aceite a minha ila����o de que se apegar apenas a Jav��

era e ainda �� arriscar um trauma perp��tuo. O Jesus de Mar-

cos, que padeceu a noite inteira antes do fim, tinha perma-

necido firme na devo����o somente a Jav��. O leitor pode ar-

gumentar que Jesus salvou um n��mero incont��vel de seres

humanos, mas �� evidente que n��o p��de salvar a si mesmo.

C A P �� T U L O 1 5 Jesus e Jav��:

O Embate da Genialidade

Jack Miles identifica em Jav�� o suposto apropriador de toda a

genialidade judaica: por conseguinte, a circuncis��o torna-se a

afirma����o de que s�� Jav�� �� a for��a do progenitor. O outro

elemento do daemon grego e do genius romano �� assim omiti-do: toda gera����o �� divina e n��o existe alter ego, at�� Satan��s

entrar em cena, no in��cio do Livro de J��. Nos Evangelhos,

Jesus �� mamzer (ou filho natural) de M��riam, mas �� gerado,

diretamente, por um Jav��-Zeus, que assim, pela primeira vez,

cria o g��nio judaico em Yeshu�� de Nazar��. Quando o procla-

ma como Messias, Pedro �� identificado por Jesus como o ap��s-

tolo do alter ego: "Fique longe de mim, Satan��s!" Jesus sabe que a genialidade que Jav�� lhe confere �� uma senten��a de

morte, inescap��vel. N��o h�� B��n����o para Jesus, ao contr��rio

dos Patriarcas e do Rei Davi: o ��ltimo integrante da linha-

gem de Davi n��o receber�� a d��diva terrena de mais vida em um

tempo ilimitado. Aguarda-o somente a reden����o para os outros.

Para todos os efeitos, ser�� Jesus, ent��o, o ressurgimento do

g��nio judaico contra Jav��, ainda que anseie por Jav��? Basean-



210

J E S U S E J A V ��

do-se fortemente em Jo��o, e n��o em Marcos ou Mateus,

Miles, no livro Jesus, contorna essa contraposi����o por meio

de uma identifica����o total de Jav�� com Jesus. Mas o proce-

dimento n��o funciona, uma vez que Jesus e Jav�� s��o perso-

nalidades extremamente diferentes: "O Filho muito diferente

do Pai!" Todas as teologias subseq��entes da Encarna����o aper-

fei��oaram a teologia de S��o Jo��o, mas ignoraram quest��es

de personalidade. O personagem Stephen Dedalus, criado

por James Joyce, endossa Sab��lio, o herege africano, "here-

siarca mais sutil, entre todas as feras da mata", defensor da

tese de que o Pai era ele mesmo seu pr��prio Filho, elimi-

nando assim toda ang��stia relativa �� influ��ncia de Jav��.

Pretendo aqui levar adiante a heresia sabeliana, especial-

mente no que diz respeito �� apropria����o que Jesus faz da

for��a demon��aca e geradora de Jav��, o sublime do g��nio

judaico.

Ter�� import��ncia o fato de Jesus e Jav�� serem perso-

nalidades antit��ticas, uma vez que a teologia crist�� prov�� um

Deus em tr��s pessoas, mas que, no entanto, possui uma s��

subst��ncia? Que subst��ncia? Ter�� Jav�� gerado a si mesmo?

Em caso afirmativo, com quem o fez? A resposta cat��lica

difere muito das quest��es por m i m levantadas, pois o Nasci-

mento Imaculado constitui imagem conceituai perpetuamen-

te popular, e Jav�� n��o tem a�� qualquer envolvimento. Sem-

pre foi dif��cil para a teologia crist�� deslindar a rela����o precisa

existente entre Jav�� e o Esp��rito Santo. Ser�� mesmo poss��vel

que o sopro do Esp��rito Santo, por si s��, ao correr as super-

f��cies das ��guas, tenha dado in��cio �� cria����o?

"Onde encontrar a sabedoria?", pergunta que surge no

Livro de J��, pode ser aplicada tamb��m a essa mat��ria. Algo

em m i m sempre quer argumentar em favor de um Jesus

gn��stico, o Cristo Anjo, conforme os sufis o chamavam, que



J E S U S E J A V �� : O E M B A T E D A G E N I A L I D A D E

211

paira tremeluzente no Evangelho de Jo��o. Esse Jesus pode

ser encontrado no Evangelho de Tom��, em que a crucifica-

����o �� absolutamente irrelevante. �� lament��vel que o Novo

Testamento can��nico exer��a prioridade hist��rica em rela-

����o a todos os textos gn��sticos que sobreviveram ao tempo,

entre os quais os mais antigos remontam ao s��culo II da Era

C o m u m (exceto, talvez, o Evangelho de Tom��), e que, por-

tanto, constituem uma revis��o da Escritura Crist��, assim

como revisam tanto a Tanak quanto a obra de Plat��o, espe-

cialmente o Timeu. Se existiram textos gn��sticos ainda mais

antigos, n��o os encontramos. Mas dificilmente teremos con-

di����es de saber quais tradi����es orais foram perdidas para sem-

pre no holocausto que os romanos impuseram aos judeus

no primeiro s��culo, culminando na destrui����o do Templo,

no ano 70 da Era Comum. Gershom Scholem, com autori-

dade avassaladora, disse-me, em diversas ocasi��es, que a

Cabala de Merkaba e do Homem Divino Enoque/Metatron

s�� poderia encerrar mist��rios transmitidos oralmente e que

remontavam, ao menos, ao primeiro s��culo antes da Era

C o m u m . O que Scholem (o Milton dos estudos cabal��sti-

cos) chamava de mito de Jesus foi mais um produto das

referidas tradi����es.

Estranhamente, sempre falta algo em todos os relatos

hist��ricos acerca do per��odo relativo ao Segundo Templo,

que cobre quase trezentos anos, desde o levante dos macabeus

contra a S��ria, passando pela rebeli��o dos zelotes contra

Roma, chegando at�� a resist��ncia her��ica de Bar Kochba e

Akiba, em Bethar, diante de Adriano, ep��logo tr��gico ocor-

rido mais de sessenta anos ap��s o fim catastr��fico do Tem-

plo. Jacob Neusner, imbat��vel estudioso das origens judai-

cas, nega todos os mitos inerentes a qualquer tradi����o antiga

que tenha ensejado o "juda��smo normativo" ��� isto ��, o que



212

J E S U S E J A V ��

hoje chamamos de juda��smo rab��nico, talm��dico. Na sim-

ples condi����o de cr��tico liter��rio, ouso observar que Neusner

deve estar certo. Estudiosos da religi��o adoram teologia, mas

onde Jav�� decide se fazer presente n��o pode haver teologia,

porque, conforme venho argumentando, Jav�� n��o ��, absolu-

tamente, um conceito. Jav�� pode conter, em si mesmo, um

abismo assustador, mas existe um abismo quase t��o profun-

do entre Yeshu�� de Nazar�� e Jesus Cristo ��� entre "um j u -

deu sem grande import��ncia", conforme defini����o do padre

Meier, e um ser teol��gico que �� ao mesmo tempo "Deus

verdadeiro" e "Homem verdadeiro", segundo os credos cris-

t��os. Jav�� e Jesus Cristo s��o enigmas distintos, por��m rela-

cionados. Contudo, o que mais importa acerca do Deus da

Tanak �� que ele chama a si mesmo de Jav��, pois ningu��m

mais poderia faz��-lo. Zeus usurpa o trono do pr��prio pai,

Cronos, mas Jav�� n��o tem pai. Bereshith (G��nesis) n��o ��

um recome��o.

Se algu��m n��o tem pai, n��o tem quem o ensine; Jav��, for��o-

samente, �� autodidata. Jesus tem pais, conquanto o Novo

Testamento pouco se interesse por Jos��, e Maria (M��riam)

ali n��o apare��a como a divindade exaltada em 1950 pelo

papa, que proclamou que a M �� e de Deus, ao morrer na Ter-

ra, "ascendeu de corpo e alma �� gl��ria celestial". Um s��culo

antes, em 1854, havia sido proclamada a Imaculada Con-

cei����o de Maria, n��o o Nascimento Imaculado de Jesus (que

havia muito era dogma), mas a declara����o de que a M �� e de

Maria tamb��m sempre fora virgem. Um c��rico, em 1854,

ousou indagar se a av�� materna de Maria tamb��m preserva-

ra a sua virgindade, mas os te��logos da Igreja, astutamente,

sabiam quando parar.



J E S U S E J A V �� : O E M B A T E D A G E N I A L I D A D E

213

N��o estou sendo ir��nico, ao propor a asser����o de que

Maria seja m��e de Jav��, porquanto a Encarna����o implica

Jav�� despojando-se de sua divindade, para morrer na Cruz,

na condi����o de Jesus Cristo. A partir de uma perspectiva

que n��o precisa ser contemplada exclusivamente como ju-

daica ou mu��ulmana, a dimens��o de mist��rio pag��o contida

no cristianismo fica enfatizada, se nos propusermos a consi-

derar a totalidade das conseq����ncias da doutrina trinit��ria.

As palavras de Tertuliano ��� "creio porque �� absurdo" ���

t��m sabor de hist��ria. Ser�� a Crucifica����o mais Teatro do

Absurdo do que drama tr��gico?

2

Fui precedido pelo padre Meier, ao considerar Jesus um "g��-

nio judaico". Jav�� �� o pr��prio g��nio judaico ��� um g��nio

inst��vel, mas assim �� tamb��m o Jesus de Marcos, figura di-

n��mica, sempre se movendo em meio a multid��es. Quando

os norte-americanos dizem "Jesus ajuda" e "Jesus salva", inadvertidamente, invocam o sentido da raiz do nome Yeshu��,

quer dizer, "Jav�� ajuda" ou "Jav�� salva". Ser�� que Jesus e Jav�� t��m modos diferentes de salvar? No Livro de Josu��, quando

Jav�� �� guerreiro no comando dos combatentes israelitas, essa

ajuda conduz �� salva����o da conquista. John Milton, em Pa-

ra��so Perdido, leva adiante tal tradi����o, quando o Cristo do

poema comanda um ataque aos rebeldes sat��nicos, empur-

rando-os abismo abaixo, de maneira que o impacto flame-

jante causado pelos insurgentes no fundo do precip��cio cria

o inferno. Trata-se de um elemento inteiramente javista, mas

que n��o condiz com o Jesus Cristo dos Evangelhos. Confor-

me j�� mencionei, Milton, seita radical protestante composta

de um ��nico seguidor (a menos que o leitor concorde com a



214

J E S U S E J A V ��

proposi����o de Christopher Hill, de que Milton era seguidor

da seita fundada por Ludovico Muggleton), baixa Jesus da

Cruz com uma pressa inusitada, pois se recusa a aceitar um

Jav�� que pratica auto-imola����o.

Repito que o futuro do cristianismo n��o est�� na Euro-

pa nem no Oriente M��dio, mas nos Estados Unidos, na

��frica e na ��sia. Esse cristianismo vindouro ser�� dominado

por Jesus e pelo Esp��rito Santo, e n��o pela figura do Pai.

U m a separa����o pragm��tica entre Jav�� e Jesus torna-se cada

vez maior, e Jav�� n��o sobrevive no ��mbito do cristianismo,

apenas na figura do Al�� isl��mico. O Deus agonizante passou

a ser Jav��, e n��o Jesus.

Todos os deuses envelhecem, inclusive Jav��, embora a

agonia de Jav�� talvez n��o seja terminal, pois o isl�� ainda pode

vencer. Os deuses declinam, acompanhando as economias

continentais, e a crescente aus��ncia da divindade constatada

na Europa pode ser sintoma do decl��nio final do continente

em face da globaliza����o. O Jesus Cristo do protestantismo

evang��lico e do mormonismo �� o Deus n��o-escondido do

mundo corporativo norte-americano.

Por que o cristianismo triunfou, desde que foi adota-

do por Constantino, imperador homicida, at�� ser aos pou-

cos destitu��do intelectualmente, a partir do Iluminismo? Para

o crist��o de f��, n��o h�� problema: a verdade o liberta. Essa ��

tamb��m a resposta do islamismo. As culturas evoluem e decli-

nam; Gibbon, ironicamente, entendeu que a queda do Imp��-

rio Romano foi culpa do cristianismo. Uma vez que o Imp��rio

Norte-americano �� crist��o apenas quanto �� apar��ncia, a cul-

pa do nosso decl��nio e queda haver�� de ser imputada a outro

r��u. Chineses e hindus trabalham mais do que n��s, ao passo

que europeus, cada vez mais, esquivam-se do trabalho. No-

ruegueses, franceses e muitos outros povos, notoriamente,



J E S U S E J A V �� : O E M B A T E D A G E N I A L I D A D E

215

s��o adeptos do absente��smo. Seria a persist��ncia disfar��ada

do cristianismo uma esp��cie de ��tica do trabalho, herdada

da vida dif��cil na Judeia? Ainda identificamos capitalismo

com protestantismo, e id��ias puritanas impregnam a nossa

economia de mercado. A lideran��a capitalista nos Estados

Unidos configura um am��lgama estranho e pragm��tico do

Jesus norte-americano e Maquiavel.

O agon, antigo embate grego por primazia, foi con-

trastado por Nietzsche com a preocupa����o dos hebreus com

o honrar pai e m��e, a primazia dos antepassados. No embate

entre Jesus Cristo e Jav��, a luta �� camuflada por meio da

diminui����o da sublimidade de Jav��, da sua redu����o a Deus

Pai. Quando o Jesus do Evangelho de Jo��o �� levado a dizer

��� "Antes que Abra��o existisse, Eu Sou" ���, devemos inter-

pretar tais palavras como indica����o de que tamb��m Jesus h��

de se fazer presente somente quando assim desejar? Em Isa��as,

tanto quanto em toda a Tanak, a presen��a de Jav�� n��o se

transforma em aus��ncia, nem mesmo quando Jav�� se isola.

Jack Miles, no vigoroso estudo God: A Biography (Deus: uma

biografia), prop��e que Jav�� se retira para o Para��so, termi-

nado o Livro de J��. Esse recuo explica a ang��stia t��pica da

narrativa hebraica; a pergunta da Tanak �� sempre "Jav�� agi-

r��?". Implicitamente, a resposta final �� que ele n��o agir��, e

que nos abandonou, talvez porque esteja enrolado nas con-

tradi����es do seu pr��prio car��ter e personalidade. Os S��bios

do Talmude n��o concordariam com tal interpreta����o, mas

os judeus p��s-Holocausto confrontam esse enigma. O holo-

causto romano dos judeus, cujo primeiro cl��max foi a queda

de Jerusal��m e a destrui����o do Templo de Jav��, e cujo se-

gundo cl��max sucedeu �� devasta����o ainda maior ocorrida

durante a rebeli��o comandada por Bar Kochba, resultou no

avan��o e na perseveran��a do juda��smo rab��nico. Resqu��cios



216

J E S U S E J A V ��

dessa f�� ainda sobrevivem, n��o obstante muitos de seus se-

guidores evitem se perguntar: ainda �� poss��vel confiar em

uma Alian��a que Jav��, na pr��tica, abandonou? Quem per-

deu os av��s nos campos alem��es de exterm��nio haver�� de

confiar em um Jav�� que s�� pode ser impotente ou indiferen-

te? O gnosticismo judaico, na minha avalia����o, teve origem

no holocausto perpetrado pelos romanos.

3

Volto a perguntar: o que os crist��os querem dizer quando

afirmam que Deus �� amor? Os secularistas, ironicamente,

invertem a equa����o, propondo a no����o arriscada de que amor

�� Deus. Desconhe��o quem ama seus inimigos e reza pelos

que o perseguem. S��o Paulo diz que Cristo era filho do amor

de Jav��, enquanto o Evangelho de Jo��o insiste a todo mo-

mento que n��o amar a Deus �� n��o conhec��-lo, exorta����o

que se tornou cr��vel.

Todavia, Paulo e Jo��o abriram o caminho atrav��s do

qual a teologia crist�� chegou �� doutrina da intransitabilida-

de do Pai: a incapacidade de sentir, ou a imunidade ��s emo-

����es humanas. Mas esse �� o Deus plat��nico; n��o �� Jav��, o

ciumento (ou zeloso) Deus dos hebreus. Quando Plat��o

chega a conceituar a sua teologia, j�� superou a exalta����o pre-

matura do eros socr��tico. S��crates n��o aparece nas Leis. Um Deus ap��tico n��o pode ser identificado com amor. Segundo

Eus��bio, Or��genes, o grande te��logo, buscando a perfei����o

de um Deus assexuado, teria se castrado. O gnosticismo,

condenado pela Igreja como heresia, pregava a intransitabi-

lidade de Cristo, que, portanto, n��o sofreu, nem mesmo na

Cruz. N��o houve, por conseguinte, Paix��o.

Or��genes e os gn��sticos eram mais coerentes do que os

crist��os, que afirmavam que Deus era amor, mas era tam-



J E S U S E J A V �� : O E M B A T E D A G E N I A L I D A D E

217

b��m, inteiramente, transcendental, mesmo na condi����o de

Criador. Como �� poss��vel nos amar algo que permanece as-

sim t��o distante? A resposta crist�� h�� de ser o Perd��o, em

que a encarna����o do amor de Deus pelo mundo e pelos seres

humanos aceita o sacrif��cio como o ��nico meio de reconci-

liar Deus e humanos, perdoando-os de todo pecado, desde

Ad��o. Agostinho, conseq��entemente, p��de restaurar a id��ia

de Deus como amor ao vislumbrar Deus na condi����o da-

quele que ama, seu Filho na condi����o de amado e o Esp��rito

Santo como o amor que existe entre o Pai e o Filho. Essa

formula����o �� mais do que inventiva, embora produza novos

enigmas.

4

J�� citei a observa����o de Spinoza que mais me agrada: preci-

samos aprender a amar a Deus sem jamais esperar que ele

nos ame. Um amor n��o correspondido pode trazer benef��cios

aos poetas, mas n��o �� maioria de n��s. Spinoza, embora mar-

ginalizado pelos concidad��os judeus de Amsterd��, intoxica-

ra-se com Jav��, e n��o com o Deus Pai crist��o. Amar e temer

Jav�� s��o a mesma coisa; n��o me recordo de qualquer passa-

gem do Novo Testamento que fale de temor a Deus Pai. O

Deus javista n��o criou por amor, ainda que sua motiva����o

fosse criar um ser humano segundo a imagem de Deus.

Mois��s (Deuteron��mio 6:15) ordena aos hebreus amar a

Deus com todo o cora����o, toda a alma, toda a intensidade,

mas n��o diz que o amor ser�� rec��proco; e os S��bios afirma-

vam que "rever��ncia" traduzia o sentido atribu��do por Mois��s

�� no����o de amar a Deus, pois o contexto desse amor �� a

Alian��a. Isso n��o significa embarcar na ret��rica da equivo-



218

J E S U S E J A V ��

cada concep����o crist�� da "antiga" Alian��a, na qual Jav�� �� o

Nobodaddy criado por Blake. Sup��e-se que o Deus Pai cris-

t��o possa ser amado sem temor, mas na realidade humana,

tanto quanto na espiritual, sempre existe uma fus��o entre

amor e temor, mesmo entre pares.

Jav�� �� uma personalidade desprovida de sexualidade.

Para Sigmund Freud, isso n��o era problema, pois ele se refe-

ria a si mesmo, de bom grado, como "judeu ateu". Considero

a express��o de Freud um paradoxismo; n��o �� f��cil, simples-

mente, descartar Jav��. Se bem que Freud �� menos convincen-

te do que nunca na obra O Futuro de uma Ilus��o. Jav��, que o

islamismo chama de Al��, �� hoje em dia "ilus��o" bastante

perigosa e, assim, constitui uma realidade tanto quanto o foi

no passado. A semelhan��a de Jav��, Al��, no Alcor��o, est�� sem-

pre furioso conosco, com uma f��ria apenas controlada. A

Alian��a de Jav�� com Israel requer um amor reverente e leal,

e oferece em troca um tipo de amor dif��cil de ser descrito,

pois n��o se distingue de compaix��o. "Tenho pena de voc��"

n��o �� o que a maioria de n��s espera ouvir de algu��m em

resposta a uma declara����o de amor; trata-se de uma resposta

por demais divina, e quem poder�� aceit��-la, se n��o for profe-

rida por Deus?

O cristianismo interpreta a passagem do Servo Sofre-

dor, em 2 Isa��as (52, 13; 53, 12) como profecia da crucifica-

����o. Os S��bios da Lei Oral descartavam tal leitura, alguns

sugerindo que o Servo Sofredor era Mois��s, e outros que ele

era tamb��m Jeremias, o profeta, agregado ao povo de Israel.

Existe um estudo bastante ��til da influ��ncia de Jeremias e de

1 Isa��as em 2 Isa��as, intitulado A Prophet Reads Scripture (Um

profeta l�� a Escritura) de autoria de Benjamin D. Sommer

(1998). O fato de o Servo Sofredor "aceitar o destino mais



J E S U S E J A V �� : O E M B A T E D A G E N I A L I D A D E

219

prontamente do que Jeremias" (Sommer, p. 66) n��o dimi-

nui a depend��ncia do profeta tardio em rela����o ao precoce,

conforme se constata em 1 Isa��as, que agrega as figuras

do Servo e de Israel sofredor, conforme Sommer demonstra.

Os Evangelhos, que declaram que Jesus crucificado e ressus-

citado �� a concretiza����o da tradi����o prof��tica de Israel, t��m

uma rela����o bem mais angustiada com Jeremias, com os dois

Isa��as e tamb��m com Zacarias, do que t��m os profetas hebreus

entre si.

Ser�� que o amor divino assume nova dimens��o, quan-

do Jav�� entoa o c��ntico do Servo Sofredor? Nenhum s��bio

rab��nico ou exegeta judeu da atualidade diria que sim, mas

tal atitude, na pr��tica, relega a quest��o �� desleitura que o

cristianismo faz deste poema extraordin��rio:

"Vejam! O meu servo vai ter sucesso,

Subir�� e crescer�� muito.

Assim como muitos ficam espantados diante dele ���

Pois j�� n��o parecia mais gente,

Tinha perdido toda a sua apar��ncia humana ���

Assim tamb��m as na����es numerosas levar��o um susto.

Diante dele os reis v��o fechar a boca,

Pois ver��o uma coisa que nunca ouviram contar

E compreender��o o que jamais ouviram."

"Quem acreditou em nossa mensagem?

Para quem foi mostrado o bra��o de Jav��?

Ele cresceu como broto na presen��a de Jav��,

Como raiz em terra seca.

Ele n��o tinha apar��ncia nem beleza para atrair o nosso olhar,

Nem simpatia para que pud��ssemos apreci��-lo.

Desprezado e rejeitado pelos homens,

Homem do sofrimento e experimentado na dor;



J E S U S E J A V ��

220

Como indiv��duo de quem a gente esconde o rosto,

Ele era desprezado e nem tomamos conhecimento dele.

Todavia, eram as nossas doen��as que ele carregava,

Eram as nossas dores que ele levava nas costas.

E n��s ach��vamos que ele era um homem castigado,

Um homem ferido por Deus e humilhado;

Mas ele estava ferido por causa de nossos pecados,

Caiu sobre ele o castigo que nos deixaria quites;

E por suas feridas �� que fomos curados.

Todos n��s est��vamos perdidos como ovelhas,

Cada qual se desviava pelo caminho,

E Jav�� fez cair sobre ele a culpa de todos n��s."

Foi oprimido e humilhado, mas n��o abriu a boca;

Tal como cordeiro, ele foi levado para o matadouro;

Como ovelha muda diante do tosquiador,

Ele n��o abriu a boca.

Foi preso, julgado injustamente;

Quem seria capaz de descrever-lhe a morada?

Pois foi cortado da terra dos vivos

Por causa do pecado do meu povo, que merecia o castigo.

E a sepultura dele foi colocada com a dos ��mpios,

E seu t��mulo com o dos ricos ���

Embora nunca tivesse cometido injusti��a

E nunca a mentira estivesse em sua boca.

No entanto, Jav�� queria esmag��-lo com o sofrimento:

Se ele entrega a sua vida em repara����o pelos pecados,

Ent��o conhecer�� os seus descendentes, prolongar�� a sua

[exist��ncia,

E, por meio dele, o projeto de Jav�� triunfar��.

"Pelas amarguras suportadas, ele ver�� a luz e ficar��

[saciado.

"Pela sua retid��o, o meu servo a muitos devolver�� a justi��a,



J E S U S E J A V �� : O E M B A T E D A G E N I A L I D A D E

221

Pois carregou o castigo deles;

Decerto, eu lhe darei multid��es como propriedade,

E com os poderosos repartir�� o despojo.

Porque se entregou �� morte

E foi contado entre os pecadores,

Ele carregou os pecados de muitos

E intercedeu pelos pecadores."

O trecho em apre��o cont��m uma resson��ncia que confe-

re a Jav�� uma tonalidade singular, prevista em Jeremias e 1

Isa��as, mas n��o com esse pathos t��o preciso. O fil��sofo judeu-

alem��o Franz Rosenzweig, morto em 1929, no in��cio da meia-

idade, defendia a tese de que Deus se apaixonara por sua cria-

����o. N��o encontro na Tanak qualquer indica����o de que isso

tenha ocorrido, mas o g��nio que comp��s 2 Isa��as mostra-nos

Jav�� (diante do Servo Sofredor) apaixonando-se pelo sofrido

povo de Israel. O grande impacto dessa passagem do Servo

Sofredor resulta de ser ela uma esp��cie de c��ntico de amor

divino. Para mim, �� bastante inc��modo fazer tal coment��rio,

por raz��es hist��ricas e pessoais. ��, para mim, um peso o fato

de ser indisput��vel a usurpa����o que o cristianismo faz desse

poema maravilhoso, ainda que inaceit��vel, a partir de qual-

quer perspectiva judaica.

Embora muito deva aos predecessores, 2 Isa��as �� poeta-

profeta contumaz, e sua originalidade �� assustadora, ao criar

a met��fora do Servo Sofredor. �� importante notar que o

Servo n��o �� figura messi��nica no texto hebraico. O texto 2

de Isa��as celebra o Rei Ciro da P��rsia, de modo bastante

expl��cito, como o Messias, porque o prop��sito do profeta ��

convencer os israelitas acomodados na Babil��nia a abando-

nar o ex��lio e retornar a Jerusal��m, liberta����o que lhes �� pro-

clamada por Ciro, o Messias. A Di��spora Babil��nica pode



222

J E S U S E J A V ��

ser vista como extremamente similar �� condi����o atual dos

judeus norte-americanos, que jamais retornar��o ao Si��o. O

texto de 2 Isa��as n��o parece ter persuadido a maioria dos que

viviam confortavelmente na Babil��nia a optar por uma exis-

t��ncia ��rdua em Jerusal��m.

O Servo Sofredor �� um ser plural, o povo de Israel, ho-

mens e mulheres, sendo tamb��m o profeta aflito, Jeremias.

Se esse poema grandioso �� um c��ntico de amor, trata-se de

um amor dif��cil de ser distinguido da morte. Os cantos de

Walt Whitman que fundem amor e morte s��o an��logos evi-

dentes. A melanc��lica ave mar��tima de "Do Ber��o que Em-

bala sem Cessar" e o tordo solit��rio de "A ��ltima Vez que

Lilases Floresceram �� Porta", em seus cantos de amor e mor-

te, s��o estranhamente semelhantes ao lamento compadeci-

do de Jav�� pelo Servo Sofredor, Israel. Talvez s�� mesmo um

crist��o fervoroso possa considerar que o c��ntico de Jav�� en-

cerra uma inequ��voca express��o de amor.

A Cabala transforma Jav�� em Ein-Sof, "sem fim", e,

com ousadia, aborda a vida sexual de Ein-Sof e da amada

Shekhinah, a presen��a feminina de Jav�� entre n��s. Os des-

dobramentos barrocos que a Cabala apresenta acerca de

Shekhinah partiram das prol��feras (e virtuosas) reflex��es dos

S��bios, nos dois Talmudes e nos midrash. O livro The Sages

(Os s��bios) (pp. 3 7 - 6 5 ) , escrito por Ephraim E. Urbach,

traz uma introdu����o esclarecedora da Shekhinah talm��dica.

Urbach salienta que, para os grandes rabinos, Shekhinah n��o

tinha exist��ncia pr��pria, sendo parte de Deus, isto ��, a pre-

sen��a de Deus no mundo. Mas essa vis��o foi modificada no

s��culo XI, quando surgiram refer��ncias a Shekhinah como

feminina, possuindo vida pr��pria. Na Cabala, Shekhinah

experimenta grande desabrochamento, sendo compar��vel ��

Senhora Sabedoria (Prov��rbios 8, 22; 9, 6 ) .



J E S U S E J A V �� : O E M B A T E D A G E N I A L I D A D E

223

Nos Profetas, Shekhinah jamais �� protagonista, e foi

necess��ria a criatividade da Cabala para que Shekhinah fos-

se associada a qualquer contexto prof��tico. O Servo Sofre-

dor �� toda a Israel, homens e mulheres, e a compaix��o e a

bondade que o Servo suscita em Jav�� n��o s��o f��ceis de serem

definidas; no entanto, constituem fatores centrais no que

toca �� diferen��a existente entre a atitude paternal de Jav��

em rela����o a Israel e a atitude do Deus Pai, da Trindade, em

rela����o ao Filho, Jesus Cristo. Repito que o Servo n��o pode

ser o ungido, o Messias, mas deve ser a v��tima que Ciro, na

condi����o do Messias de Jav��, veio salvar.

C A P �� T U L O 1 6 Os S��bios Judeus

acerca de Deus

Jav��, sendo um Deus profundamente humano, n��o se pres-

ta bem �� teologia, que �� um modo de pensar grego e n��o

hebreu. Conforme j�� observei, a natureza do Deus Pai cris-

t��o �� radicalmente diversa da personalidade e do car��ter de

Jav��. A teologia n��o atribui personalidade a Deus Pai, a Je-

sus Cristo, o Filho, ou ao Esp��rito Santo. Quando os caba-

listas mudaram o nome de Jav�� (seu nome sendo tabu), cha-

maram-no de Ein-Sof, "sem fim". E assim ele era, e ainda ��,

onde quer que hoje se encontre.

O Deus dos gn��sticos �� chamado de Estranho, ou Deus

Estrangeiro, e se afastou do nosso cosmo, qui���� para sem-

pre. N��o considero Jav�� nesses termos, mas talvez sua derra-

deira presen��a na Tanak ocorra como o Anci��o, no Livro de

Daniel (cerca de 164 antes da Era C o m u m ) . O texto �� o

cap��tulo 7, em aramaico, em que v��rias tiranias gent��licas se

manifestam qual feras surgidas do mar, e, nos versos 9-10,

contemplamos o seguinte:

Eu continuava olhando:

Tronos foram instalados,



226

J E S U S E J A V ��

E um Anci��o se assentou,

Trajando uma veste branca como a neve,

E seus cabelos eram claros como a l��.

Seu trono era labaredas de fogo,

Com rodas de fogo em brasa.

Um rio de fogo brotava da frente dele.

Milhares e milhares o serviam,

E milh��es estavam ��s suas ordens.

Come��ou a sess��o e os livros foram abertos.

O cen��rio encerra uma est��tica impressionante, embo-

ra n��o seja dos mais javistas, pois, supostamente, trata-se da

figura de Deus, presidindo uma corte celestial, conforme o

vemos em Isa��as ou J��. Jack Miles, dotado de uma perspic��-

cia exuberante, pensa que Jav�� se torna um anci��o taciturno,

que em breve h�� de se render �� exaust��o. Como ��vido estu-

dante de Jav��, permane��o c��tico e lembro-me de que o Li-

vro de Daniel �� bastante diferente nos contextos do Testa-

mento crist��o e da Tanak. Para os crist��os, Daniel �� um dos

grandes profetas, compar��vel a Isa��as, Jeremias e Ezequiel, o

que constitui um exagero absurdo. Para os judeus, Daniel

n��o �� sequer um poeta menor, sendo situado nos Kethuvim,

ou Escritos, entre Ester e Ezra. Segundo os manuscritos do

mar Morto, os membros da congrega����o de Qumr�� consi-

deravam Daniel um profeta, e, por serem apocal��pticos, sa-

biam reconhecer algu��m que a eles se assemelhasse.

A Autora " J " e demais autores de sagas n��o eram apoca-

l��pticos, e Jav�� tampouco fica �� vontade nesse g��nero. Jav��

perambula pela Terra, como condiz a um intruso. Para os

s��bios hebraicos, aceitar um Deus desconcertante era um

grande desafio, mas eles se desincumbiram da tarefa de ma-

neira brilhante, especialmente na mishnah e no Talmude



O S S �� B I O S J U D E U S A C E R C A D E D E U S

227

babil��nico, obras espl��ndidas. A mishnah codifica a Lei Oral,

em que se fundamenta o juda��smo rab��nico, e costuma ser

atribu��da ao pr��prio "Rabino", o patriarca Jud�� (cerca de

200 da Era C o m u m ) . O Bavli (o Talmude babil��nico) exa-

mina toda a Tor��, escrita e oral, mas �� imposs��vel de ser

datado. Sup��e-se que tenha sido conclu��do entre os anos

520 e 600 da Era Comum, e constitui leitura e estudo bas-

tante interessantes, se comparado �� desabrida mishnah, obra

indubitavelmente grandiosa, mas que a m i m deprime. Con-

forme observa Donald Harman Akenson, a mishnah ��, ao

mesmo tempo, herm��tica e "perfeita", perfei����o, a meu ver,

destrutiva. Em contraste, Bavli �� puro esplendor, merecen-

do ser estudado durante uma vida inteira, mas somente se-

gundo os seus termos pr��prios e rigorosos.

N��o me recordo de uma passagem sequer em que a B��blia

hebraica afirme, explicitamente, que o povo judeu possa se

santificar por meio do estudo; no entanto, sou um dos mi-

lhares que cresceram acreditando na necessidade da leitura e

da reflex��o constantes. A id��ia hoje me parece plat��nica, ten-

do chegado aos rabinos de Jerusal��m e da Babil��nia atrav��s

do helenismo. Trata-se de um enigma, o fato de que muitos

dos s��bios judeus, do primeiro s��culo ao s��culo VI, pudes-

sem confiar na Alian��a de Jav��, ainda que lessem a Tanak

atrav��s de lentes plat��nicas, por assim dizer. O Jav�� desses

s��bios permanecia um deus humano, n��o raro para sua cons-

terna����o, enquanto se empenhavam em explicar o "antro-

pomorfismo" divino ��� conceito que, conforme venho di-

zendo, me desagrada e que n��o posso aceitar nesse contexto.

Os maiores s��bios judeus reconheciam, claramente, que era

melhor vislumbrar os Patriarcas como homens "teom��rfi-



228

J E S U S E J A V ��

cos" do que considerar Jav�� um Deus "antropom��rfico". Mas

destituir Jav�� de suas inclina����es e seus atributos humanos ��

o mesmo que adotar o Deus da teologia plat��nica. A des-

peito de Filo de Alexandria, pr��ncipe dos alegoristas plat��-

nicos judaicos, um nome verdadeiro para Deus, de acordo

com a tradi����o do rabino Akiba, �� Ish (homem). ��xodo

15, 3 entoa, de modo magn��fico: "Jav�� �� Guerreiro, Se-

nhor �� seu nome." Jav�� revela-se ��s legi��es combatentes de

Josu��, general de Mois��s, na condi����o de homem, a fim de

santificar e fortalecer Israel, diante da batalha ��� naquela

��poca, hoje em dia e, sem d��vida, para sempre, uma vez

que todos os mapas s��o armadilhas ilus��rias que oferecem

t��o-somente o suic��dio ao Estado de Israel. Cabe a reflex��o

de que nem mesmo tal suic��dio aplacaria a fome do anti-

semitismo franc��s e de outras na����es europ��ias, um anti-

semitismo que consegue sobreviver mesmo no ocaso do

cristianismo europeu.

O grande Akiba, verdadeiro fundador do juda��smo que ain-

da hoje reconhecemos (mesmo quando n��o podemos aceit��-

lo ou rejeit��-lo, eis o meu dilema), confiava no literalismo

de Jav�� enquanto Ish, Deus enquanto Homem, a despeito

do rabino Ismael e sua escola. Jav�� perambula em ��xodo 13,

2 1 , por mais que essa perambula����o desagradasse os profe-

tas. Acho c��micos os antigos exegetas que, seguindo um Jav��

ambulante, gorjeiam: "Ele n��o est�� caminhando!" Afinal,

um Jav�� ativo e trabalhador, de fato, descansa no s��timo dia,

sem d��vida, vadiando e brincando com a alma, ao modo de

Walt Whitman. Na condi����o de espadachim, Jav�� precisa

de repouso, a exemplo de todo guerreiro. E Jav�� se apresenta

alegre ou zangado e, ami��de, faminto. Sensatamente, Akiba



O S S �� B I O S J U D E U S A C E R C A D E D E U S

229

achava tudo isso bastante aceit��vel, mas tais id��ias suscita-

vam em Ismael, amigo e oponente, obje����es indignadas ��

no����o de que Deus e os anjos precisassem de alimento, ain-

da que os repastos em Mamre e no Sinai, claramente, con-

firmem o apetite de Jav��.

Para a maioria dos ocidentais, ou Deus �� algo pessoal

ou ent��o algo que n��o faz a menor diferen��a. O U n o

neoplat��nico talvez conte com um punhado de seguidores

eruditos, espalhados pelo mundo, mas n��o ser��o mais do

que um punhado. Os cat��licos rezam para Jesus e para a

Virgem M �� e Aben��oada, mas raramente para Deus Pai e o

Esp��rito Santo. Os norte-americanos que abra��am a religi��o,

sejam protestantes ou cat��licos, conversam com Jesus; se

forem pentecostais, sentem-se imbu��dos do Esp��rito Santo.

Jav��, chamado de outros nomes, ainda �� alvo das ora����es

dos judeus, e, com o nome de Al��, �� alvo das preces dos

mu��ulmanos. Para todas essas pessoas, Deus precisa com-

preender, e at�� mesmo compartilhar, muitos sentimentos

humanos, ou seria reduzido �� irrelev��ncia.

Filo de Alexandria, mesmo que tenha sido o m��stico

descrito por Erwin R. Goodenough, escandalizava-se com o

Jav�� humano que consta da Tanak. Isso explica o porqu�� de

Filo ter sido ignorado pelo juda��smo rab��nico, tendo sobre-

vivido, para todos os efeitos, na condi����o de te��logo estra-

nhamente adotado pelo cristianismo. Que fariam os judeus,

diante da asser����o de Filo, de que Jav�� "n��o ��, absolutamen-

te, suscet��vel �� paix��o?".

O literalismo javista de Akiba permanece revigorante,

pois contribui para a preserva����o da extraordin��ria persona-

lidade de Jesus (sem falar na personalidade do pr��prio Akiba).

O que hoje denominamos juda��smo, em qualquer de suas

varia����es, continua a ser, basicamente, a religi��o de Akiba,



230

J E S U S E J A V ��

personalidade dominante (n��o caber�� outra palavra) na

misbnah, e mestre dos grandes s��bios (especialmente, Jud��

ben Uai e Meir) aqui mais citados. Apesar de alguns estudos

recentes, n��o encontro motivo para duvidar da tradi����o his-

t��rica segundo a qual Akiba (40-135 E.C.), j�� idoso, foi mar-

tirizado pelo imperador romano Adriano, ap��s a derrota do

her��ico Sim��o Bar Koziva, a quem Akiba proclamara Mes-

sias, e que passou a ser chamado de Bar Kochba ("filho da

estrela", ver N��meros 24, 17). A rebeli��o liderada por Bar

Kochba (132-135) alcan��ou escala gigantesca, fazendo pa-

recer pequena a guerra judaica e a destrui����o do Templo, e o

literalismo j avista de Akiba foi levado ��s ��ltimas conseq����n-

cias, ao mart��rio.

O literalismo de Akiba conta com um monumento singu-

lar, no c��lebre Shiur Komah, brilhantemente analisado por

Gershom Scholem, no ensaio que empresta seu t��tulo ao li-

vro On the Mystical Shape of the Godhead (Sobre a forma

m��stica da divindade, 1991). Conquanto n��o disponhamos

de manuscritos do Shiur Komah anteriores ao s��culo XI, a

tradi����o oral atribui esse livreto surpreendente ao pr��prio

Akiba, que viveu novecentos anos antes, e, certamente, a

obra �� consoante com os ensinamentos dele. Shiur Komah

significa algo como "a medida do corpo", que, nesse caso,

por incr��vel que pare��a, �� o corpo do pr��prio Jav��. Quando

quer que tenha sido composta, a obra �� grotesca, apresen-

tando um Jav�� imenso, um gigante c��smico, em altura, ex-

tens��o de bra��os e pernas, tra��os faciais e passadas. Akiba

apreciava muito o C��ntico dos C��nticos, de Salom��o, cano-

nizado, exclusivamente, devido �� insist��ncia do her��ico ra-

bino, mas o C��ntico dos C��nticos �� imitado de maneira





O S S �� B I O S J U D E U S A C E R C A D E D E U S

231

canhestra em Shiur Komah, que n��o passa de um amontoado

de fragmentos esot��ricos, em vez de ser um conjunto sublime

e bem estruturado de poemas de amor. �� no Zohar, obra cen-

tral da Cabala, composta por Mois��s de Leon e seu c��rculo, na

Espanha medieval, que as proposi����es simpl��rias de Shiur

Komah tornam-se objeto de elabora����es extraordin��rias.

A cria����o, de acordo com os S��bios, tem por objeto simples

o h u m a n o : J a v �� n��o teve outro prop��sito. E J a v �� foi

mon��stico em sua abordagem: o homem hebreu n��o se divi-

de em corpo e esp��rito, mas �� "alma vivente". O dualismo

paulino, que, afinal, resulta na separa����o cartesiana entre

mente e corpo, �� plat��nico e n��o judaico. Supostamente, o

Deus Pai crist��o, ao contr��rio de Jav��, n��o tem um corpo,

exceto no mormonismo. N��o me recordo de um trecho se-

quer em que Deus Pai se repaste como o faz Jav��, em Mamre

e no Sinai. Vejo pouca diferen��a entre o Deus de Plat��o, nas

Leis, e a divindade do cristianismo, e menos diferen��a ainda

entre o Motor Im��vel, de Arist��teles, e o suposto Pai de

Jesus Cristo, embora o Deus de Arist��teles pouco se impor-

tasse conosco, e a divindade crist�� sacrifique o pr��prio Filho

para nos salvar. "Pessoa desprovida de personalidade" seria

uma descri����o inaceit��vel de Jav��, mas condiz bem com a

Primeira Pessoa da Trindade. O Deus de Santo Agostinho

n��o fica, de modo algum, distante daquele de Plotino, que

modificou a teologia de Plat��o, ao criar a doutrina da Alma

do M u n d o . Plat��o nos instava a "libertar a alma e separ��-la

do corpo". Plotino e Agostinho obedeceram, de bom grado;

os Rabinos S��bios, n��o.



232

J E S U S E J A V ��

Qualquer religi��o que suprima, inteiramente, o "an-

tropom��rfico" tamb��m se desvia de Jav��, que �� homem da

guerra e de muito mais. O rabino Akiba, conforme j�� vimos,

insistia que Deus era, literalmente, Ish, um homem. O as-

pecto de Jesus, como "homem verdadeiro", �� reconcili��vel

com essa no����o, mas o "deus verdadeiro" n��o ��, pois esse

Deus era mais o Deus de Plat��o do que o de Mois��s.

C A P �� T U L O 1 7 O Ex��lio Volunt��rio

de Jav��

Jav�� �� t��o enigm��tico que a sua cria����o do homem, da mu-

lher e do mundo pode ser vista como um ex��lio volunt��rio.

Essa id��ia n��o �� minha; �� cabalista, e talvez remonte a anti-

gas especula����es gn��sticas sobre uma crise ��ntima observ��vel

no pr��prio criador, crise que passo a descrever neste cap��tu-

lo. O ato m��tico denominado zimzum ��� o auto-ex��lio divi-

no ��� �� mencionado nos textos cabalistas medievais e assu-

me posi����o de centralidade ao longo do s��culo XVI, no

trabalho do mestre da Cabala, Isaac Luria, que, durante uma

jornada em Safed, na regi��o norte da Palestina (ent��o domi-

nada pelos turcos), ensinou uma Cabala gn��stica, muito in-

fluente desde ent��o. Shaul Magid, no livro Beginning/Again

(Come��ando de novo, 2 0 0 2 ) , prop��e que zimzum, met��fo-

ra que expressa a "contra����o" ou "isolamento" de Jav�� em

rela����o a si mesmo, e que lhe permite p��r em marcha a cria-

����o, vem a ser um mito de origem do pr��prio Jav��.

O mist��rio de Jav�� reside no fato de ele se autodeno-

minar a presen��a que pode optar por se fazer ausente. Tanto

as gl��rias quanto as cat��strofes da hist��ria judaica dizem

respeito a um Deus que se exila, afastando-se do compro-



234

J E S U S E J A V ��

misso com a Alian��a. Ser�� esse afastamento o pre��o final da

cria����o? O coment��rio talm��dico (at�� onde eu sei) reflete

sobre Jav�� antes do ato da cria����o, o que deixa a Cabala livre

para fazer suas especula����es.

A palavra zimzum deriva de um verbo que significa

"inspirar profundamente". Jav�� tinha problemas de respira-

����o, e em conseq����ncia de tais problemas criou o nosso cos-

mo. Kafka dizia que somos um pensamento de Deus, surgi-

do em um momento de mau humor. Se prendermos a

respira����o at�� ficarmos tontos, constataremos que teremos

grande dificuldade de pensar.

Poucos momentos da literatura s��o t��o memor��veis

quanto o ato de Jav��, descrito em G��nesis 2, 4-7, obra da

Autora " J " ��� mais at�� do que a Cria����o Sacerdotal, em

G��nesis 1 a 2, 3. N��o estamos na Babil��nia, cinco s��culos

mais tarde; estamos, provavelmente, no reino de Salom��o,

cerca de mil anos antes da Era Comum:

Quando Jav�� fez a terra e o c��u, ainda n��o havia na terra

nenhuma planta do campo, pois no campo ainda n��o havia

brotado nenhuma erva: Jav�� n��o tinha feito chover sobre

a terra e n��o havia homem que cultivasse o solo e fizesse

subir da terra a ��gua para regar a superf��cie do solo. Ent��o

Jav�� modelou o homem com a argila do solo, soprou-lhe

nas narinas o sopro da vida, e o homem tornou-se um ser

vivente.

Qu��o deliberada �� a cria����o do homem a partir da

adamah, argila avermelhada? A descri����o acima faz lembrar

uma crian��a que modela um boneco de lama e, em seguida,

com um passe de m��gica, sopra-lhe a vida. �� preciso deduzir

os motivos que levam Jav�� a estender a brincadeira, no in-



O E X l L I O V O L U N T �� R I O D E J A V ��

235

tuito de criar um cosmo que acomodasse Ad��o. Ao faz��-lo,

Deus aceita a autolimita����o: o mundo por ele criado �� uma

realidade que dele se encontra divorciada. �� poss��vel consi-

derar essa separa����o como uma expans��o, e n��o uma retra����o,

mas logo Jav�� demonstra certa ansiedade diante do ato pra-

ticado. No texto de 2 Samuel, livro contempor��neo �� obra

javista (se n��o for tamb��m escrito por ela), relata que Deus

concedeu aos anjos a capacidade de conhecer o bem e o mal.

De algum modo, a serpente obteve esse conhecimento, o

que contribuiu para a interpreta����o err��nea que o cristianis-

mo faz do Anjo Ca��do. Mas a express��o "de algum modo"

n��o se aplica ao ��mpeto de ansiedade observado em Jav��, quan-

to �� possibilidade de Ad��o comer o fruto da ��rvore da Vida e

se tornar um dos Elohim, ou anjos. Pela primeira vez, toma-

mos conhecimento da violenta imprevisibilidade de Jav��.

Ao criar o humano, Jav�� se tornou mais humano ou,

inadvertidamente, revelou que j�� era bastante h u m a n o .

Zimzum �� um ato de capacita����o, no qual, paradoxalmente,

Deus multiplica por retra����o. N��o somos informados por

que (ou mesmo se) Jav�� aceita a autolimita����o, embora, des-

de sempre, manifeste ambival��ncia diante de suas criaturas.

A for��a peculiar da Cabala �� aventurar-se onde o Talmude e

a teologia filos��fica n��o ousaram avan��ar, na duplicidade

amb��gua da personalidade de Jav��, que, a um s�� tempo, de-

fende a nossa exist��ncia e �� por ela consternada. A exegese

que evita o esoterismo tamb��m evita os enigmas da criativi-

dade divina.

A Tanak n��o nos oferece o relato da origem de Jav��.

N��o tem pai nem m��e, e parece rolar das p��ginas de um

livro talvez escrito por ele pr��prio. �� poss��vel que ele tenha

escrito antes de falar, e que tivesse de formar um p��blico

que o lesse e ouvisse. Se for esse o motivo escuso que o levou



236

J E S U S E J A V ��

a arriscar a cria����o, Jav�� difere apenas em grau, n��o em esp��-

cie, de qualquer autor que conhe��o.

O impulso criador de Deus deve ter algum prop��sito

menos narcisista, se bem que me persegue a observa����o ir��-

nica de Freud, de que �� necess��rio se apaixonar, para que o

ego n��o se sufoque de tanto contentar a si mesmo. Mas,

conforme j�� ressaltei, ainda que tenha se apaixonado pelo

Rei Davi, n��o se pode dizer que Jav�� manifeste mais do que

um sentimento de alian��a em rela����o ao povo de Israel, quan-

do tal povo lhe demonstra suficiente lealdade e submiss��o.

O acesso de ci��me de Jav��, similar ao de Otelo, provocado

pela prostitui����o de Israel diante de deuses estranhos, �� su-

perado, em muito, pela ira, similar �� de Lear, provocada pela

ingratid��o do povo. Ainda assim procede a pergunta: por

que Jav�� arriscou sua misteriosa liberdade, ao cometer o equ��-

voco de ex��lio volunt��rio que foi a cria����o?

A Cabala �� importante porque ousa apresentar diversas

respostas a essa quest��o das origens. Com profundidade, a

Cabala tardia, ou "regressiva", de Isaac Luria, volta a colocar

Jav�� �� disposi����o para o seu pr��prio sofrimento e para o nos-

so. Segundo essa tradi����o, existe vida sexual (Freud diria "im-

pulso") no ��mago de Jav��, fator competentemente interpreta-

do no livro Kabbalah and Eros (Cabala e Eros, 2 0 0 5 ) . Ao

impulso de vida, Freud justap��e o impulso de morte, especu-

la����o radical que anima o elegante estudo Al��m do Principio

do Prazer (1919). Agrada-me a no����o de que, enquanto traba-

lhava nesse livro, Freud tenha contemplado brevemente a id��ia

alarmante de que o impulso de morte fosse alimentado pela

destrudo (energia negativa), como complemento da libido na

ordem vital. Felizmente, o Grande Conquistador (conforme

ele gostava de se chamar) descartou a destrudo, por ser por



O E X f L I O V O L U N T �� R I O D E J A V ��

237

demais dualista. Caso contr��rio, andar��amos por a�� falando

desse "combust��vel", assim como nos convencemos de pos-

suir a libido, energia sexual distinta, que, de fato, n��o existe.

Mesmo se, na condi����o de freudianos bons ou maus

(n��o dispomos de outras op����es), atribuirmos uma libido a

Jav��, n��o teremos avan��ado muito na explica����o de seus

motivos para implementar (e estragar) a cria����o. Zimzum ��

met��fora gloriosa para a labuta de Deus, ao quebrar os ve��-

culos por ele concebidos para receber sua luz perigosa, ve��-

culos que foram incapazes de conter a exuber��ncia criativa

de Jav��. �� nessa exuber��ncia, na extravag��ncia da simples

exist��ncia de Jav��, que a Cabala de Luria deposita, com suti-

leza, a gnose subversiva que, para alguns de n��s, ilumina

parte da escurid��o vis��vel da B��blia hebraica.

No Anci��o Edda, figura da mitologia n��rdica, o grande

deus Odin dependura-se na Yggdrasil, a ��rvore do Mundo,

durante nove dias e nove noites, a fim de obter o conheci-

mento das runas. Adquirindo esse saber, Odin espera (em

v��o) escapar do crep��sculo dos deuses, previsto pelas runas.

Ter�� Jav�� pleno conhecimento do futuro? Estar�� esse co-

nhecimento dispon��vel a quem quer que seja ��� a algu��m

que n��o se lembre do passado? Jav�� desafia qualquer anteci-

pa����o. A hist��ria antiga de Jav�� foi registrada pela Autora

" J " ; o desafio reside na pr��-hist��ria de Deus. O Nabucodo-

nosor de Kierkegaard, restaurado �� condi����o humana ap��s

ingerir relva qual um bovino, indaga: quem conferiu sabe-

doria a Jav��? Mas Jav��, antes dos Prov��rbios atribu��dos a

Salom��o, n��o era um Deus s��bio.

A f��bula de Isaac Luria que trata de zimzum e shevirat

ha-kelim, a Quebra dos Vasos, revela o segredo de Jav��: para

poder criar, Deus teve de se diminuir. Um movimento tri-

plo ��� auto-ex��lio, Quebra dos Vasos e a subseq��ente tikkun



238

J E S U S E J A V ��

(restaura����o ou reden����o) ��� define a vida interior de Deus,

e �� improv��vel que tenha iniciado com G��nesis. Perguntar

qual �� a origem da origem parece absurdo, mas por que,

ent��o, consideramos coerente a Morte de Deus, seja no sen-

tido nietzschiano ou crist��o, e n��o o nascimento de Jav��? Os

crist��os reverenciam o nascimento do Menino Jesus, e a des-

cida do Esp��rito Santo, mas te��logo algum especula acerca

da origem do Pai Santificado.

Se o facho de luz da B��blia hebraica tradicional e seu

espelho (a B��blia de Jav��) haver�� de constituir uma perfei����o

que destr��i (Gershom Scholem) ou absorve (Moshe Idel),

seja l�� como for, a Cabala existe para receber essa luz. A pr��-

pria recep����o configura mais Quebra dos Vasos ��� e, por-

tanto, altera a cria����o, ao destruir mundos anteriores. N��o

sendo cabalista, busco na dial��tica da cria����o segundo Luria

algo que os poetas fortes buscaram e encontraram em Plat��o,

inimigo confesso de Homero. Chamemos de caminho in-

certo para a transcend��ncia, ou de trilha do auto-ex��lio de

Jav��, esse objeto de busca.

Luria inicia a doutrina da cria����o invertendo o mito neopla-

t��nico da emana����o, comum a toda a Cabala por ele herda-

da. O nome de Jav�� �� por demais santificado para os cabalis-

tas, assim como o foi para os S��bios do Talmude, que (de

modo geral) o chamaram de Adonai. Os cabalistas, por��m,

chamaram-no de Ein-Sof ("sem fim"), enfatizando-lhe a

natureza infinita e misteriosa. Antes das revela����es de Luria,

em Safed, Ein-Sof criava por meio de emana����es destinadas

ao mundo, enquanto este era por ele criado. Contudo, em

uma mudan��a radical e ousada, Luria passou a enfocar a

vida interior de Deus.



O E X �� L I O V O L U N T �� R I O D E J A V ��

239

Luria n��o inventou o zimzum; tomou o conceito em-

prestado do mestre, Mois��s Cordovero, de Safed, que, por

sua vez, herdara o conceito da tradi����o, tanto da tradi����o

talm��dica quanto da cabalista. Mas Luria, de modo extraor-

din��rio, reinventou o zimzum, assim como Shakespeare her-

dou o humano, o eu interior, de Ov��dio, Chaucer e das tra-

du����es b��blicas protestantes feitas por Tyndale, e, em seguida,

o remodelou. Jamais saberemos se Shakespeare, a exemplo

de seu pai, era dissidente cat��lico, mas a depend��ncia de

Shakespeare em rela����o �� B��blia protestante sugere o contr��-

rio. Isaac Luria, o Le��o sagrado de seu povo, foi um santo

m��stico, e n��o um rebelde, mas devia estar ciente do poten-

cial subversivo inerente ao redimensionamento do zimzum,

de tropo rab��nico neoplat��nico �� abertura gn��stica de um

abismo contido em Jav��, um v��cuo similar �� nossa pr��pria

sensa����o de vazio e sofrimento.

Toda a exegese judaica, desde Hillel e Yeshu�� de Nazar��,

passando pelo Talmude e pela Cabala, at�� o Kusari de Jud��

Halevi e Maim��nides, talvez culminando em Kafka e Freud,

pode ser considerada uma s��rie de iniciativas que visam a

abrir a Tanak ao sofrimento hist��rico do povo que Jav�� es-

colheu como seu. Zimzum, conforme o processo pode ser

interpretado, parece sugerir que o sofrimento judaico tem

in��cio no pr��prio Jav��, em seus atos de cria����o. O termo

original, em todas as acep����es rab��nicas, significa que Deus

deve se voltar para si mesmo, a fim de p��r em marcha a

cria����o. Luria situa a cria����o-cat��strofe na Quebra dos Va-

sos, que n��o foram capazes de abrigar o rigor das luzes do

julgamento de Jav��. Mas isso foi a nossa cat��strofe; o zimzum

foi a cat��strofe de Deus.



240

J E S U S E J A V ��

Na campanha da cria����o, Jav�� come��a recuando. Porventura

o Guerreiro Divino, astuto no combate contra as for��as do

caos, tenha feito uma retirada estrat��gica. Luria �� infinita-

mente sutil, mas o mesmo pode ser dito acerca da Antiga

Doutrina Rab��nica de Deus. Lawrence Fine, em um livro

bastante ��til, Physician ofthe Soul, Healer of the Cosmos (M��-

dico da ama, curandeiro do cosmo, 2 0 0 3 ) , ao perseguir as

fontes do pr��prio Luria, delineia as trilhas de Scholem e Idel.

Em um dos midrash rab��nicos, em ��xodo 2 5 , 8-10, Jav�� res-

tringe a si mesmo, e pouco se faz presente, a fim de caber na

arca port��til da Alian��a. Haver�� alguma diferen��a pragm��ti-

ca entre essa redu����o ao papel da esposa (�� la Jane Austen) e

o recuo que Isaac Luria confere a Deus? Scholem insistia

que sim, mas ser�� que essa diferen��a "faz diferen��a"?

Em termos freudianos, conforme certa vez sugeri a

Scholem, o zimzum pr��-cabalista pode at�� parecer a com��-

dia sinistra do superego de Jav�� empurrando o ego divino,

no����o que o ilustre Scholem descartou com desprezo. Freud,

escreveu Kafka, foi o Rashi das ang��stias judaicas contem-

por��neas, pilh��ria que Scholem se aprazia em me contar.

Fine, com perspic��cia, aponta outro midrashim, em que Deus

se restringe ao Santo dos Santos, no Templo de Jerusal��m.

Ein-Sof quer dizer "sem limites", mas cada ato de um Jav��

excessivamente humano envolve renovada limita����o.

O gnosticismo, judaico e gentio, falava da degrada����o

divina, de uma fissura aberta no "cosmocrator" demi��rgico.

A rebeli��o gn��stica, liter��ria at�� o cora����o das trevas, agre-

gou o Timeu de Plat��o ao G��nesis, fus��o amargamente ir��-

nica que Hans Jonas denominou "intoxica����o do inaudito",

na verdade, um renovar criativo. Scholem e Idel, atuando de

maneira contr��ria, prop��em que o gnosticismo foi apenas



O E X l L I O V O L U N T �� R I O D E J A V ��

241

uma repeti����o tardia de especula����es judaicas arcaicas e, na

realidade, os exemplos pr��-cabalistas de zimzum confirmam

as intui����es de Scholem e as insinua����es exploradas por Idel.

Valentino de Alexandria, que cristianizou o gnosticismo,

parece-me t��o juda��sta quanto Jesus, seja no eloq��ente Evan-

gelho da Verdade ou nos fragmentos de poemas que at�� hoje

constituem o Sublime liter��rio da tradi����o gn��stica.

O grande Nahm��nides (1194-1270) foi, em seu tempo, a

principal autoridade espiritual do juda��smo espanhol, e, ao

se voltar para a Cabala, ele tornou poss��vel ��quele suposto

esoterismo conquistar adeptos, primeiramente, na Catal��nia,

depois, em Castilha. Zimzum foi transplantado dos midrasb

para a Cabala por Nahm��nides, e o conceito se ampliou tanto

que, cerca de um s��culo mais tarde, Shem Tov ben Shem

Tov cita, de um precursor an��nimo, a maravilhosa transfor-

ma����o da cria����o:

O Nome, nosso Senhor, bendito seja, Ele que �� Uno, Sin-

gular e Especial, porque todos dele necessitam, e Ele n��o

precisa de ningu��m, sua sapi��ncia est�� com Ele, e fora

dele n��o h�� nada. E Ele se chama Aleph, a primeira de

todas as letras, correspondendo ao fato de Ele ser Uno

[...] e como Ele inovou e criou o mundo? Como um ho-

mem que cont��m o pr��prio esp��rito e o concentra, e o

mundo permanece nas trevas; e, em meio ��s trevas, Ele

partiu rochas e esculpiu rochedos, a fim de extrair os ca-

minhos denominados "Maravilhas da Sabedoria"; eis o

sentido do verso: "Das trevas, Ele fez a luz"; eis o segredo

das palavras: "fogo tenebroso sobre fogo branco"; eis o

segredo das palavras: "pela frente e pelas costas".



242

J E S U S E J A V ��

Moshe Idel, na obra Absorbing Perfections: Kabbalah and

Interpretation (Absorvendo imperfei����es: Cabala e interpre-

ta����o, 2 0 0 2 ) , diz que essas "trevas" vitais resultam de uma

esp��cie de escava����o divina (p. 5 3 ) . O respectivo trecho me

perturba porque Deus inspirou, com o prop��sito de criar

mat��ria a partir da qual pudesse esculpir rochedos, transfor-

mando-os em caminhos de sabedoria que jamais ser��o tri-

lhados por n��s.

Em Mois��s Cordovero, o conceito de zimzum est�� pre-

sente, mas n��o �� central. Afastando-se do mestre, Isaac Luria

apreendeu, para sempre, essa met��fora. E, no entanto, cons-

ta que Luria tenha escrito apenas uma obra menor, um co-

ment��rio cordoveriano acerca de uma se����o do Zohar. A Es-

pecula����o Luri��nica (se assim pudermos cham��-la) integrava

a tradi����o oral, comunicada a diversos disc��pulos, que n��o

concordam em v��rios pontos. Figura messi��nica, Luria per-

manece um mito da tradi����o judaica. Quatro grandes disc��-

pulos divulgaram-lhe os ensinamentos: Hayyim Vital, Jos��

Ibn Tabul, Mois��s Jonas e Israel Sarug. Alguns dos problemas

quanto ao reconhecimento da vis��o "aut��ntica" de Jesus se

repetem em rela����o a Luria, outro "filho de Jos��" messi��nico.

Jav�� �� minha quest��o, e n��o Luria, mas busco apreen-

der o abismo existente no interior da Tanak de Jav�� recor-

rendo �� revis��o radical que Luria realiza de Jav�� como cria-

dor. Conforme ocorre quando leio o Walt Whitman de Folhas

de Relva (obra na qual Scholem identificou analogias fasci-

nantes com a Cabala), n��o consigo separar o literal do meta-

f��rico em Isaac Luria. Para aquela consci��ncia excelsa, que

conversava com os S��bios nos t��mulos em Safed, tal distin-

����o n��o existia, enquanto W h i t m a n quer que os leitores dis-

tingam por si mesmos o literal do figurativo.



O E X I L I O V O L U N T A R I O D E J A V ��

243

Luria �� t��o sutil nos ensinamentos orais que talvez j�� n��o

possamos apreender-lhe a vis��o de cria����o, desastre e reden-

����o, embora Lawrence Fine, generosamente reconhecendo os

gigantes da erudi����o cabalista (Scholem e Idel), a meu ver,

constitua um avan��o diante de tudo que o precedeu.

O mito cosmol��gico ensinado por Isaac Luria ��, sem d��-

vida, a hist��ria mais sofisticada de toda a tradi����o judaica.

O mito n��o apresenta, absolutamente, qualquer semelhan-

��a �� simplicidade breve e elegante do relato b��blico da

cria����o, e mesmo comparados ao mito cosmog��nico da

Cabala espanhola, os ensinamentos de Luria s��o extraor-

dinariamente intricados. Ainda que tenhamos a tend��n-

cia de pensar o mito da cria����o em termos de um relato

��nico e coerente, capaz de ser narrado como qualquer his-

t��ria simples, os ensinamentos mitol��gicos de Luria n��o

chegam a n��s com tais caracter��sticas. Antes, constatamos

uma s��rie aparentemente infinda de no����es que apresen-

tam extrema complexidade, ami��de apresentadas por

m��ltiplos autores e editores, em vers��es fragmentadas e

contradit��rias, (p. 124)

Conforme observa Fine, o problema tem a ver tanto

com a intensidade dial��tica de Luria quanto com as ver-

s��es contradit��rias apresentadas pelos disc��pulos. O que

me fascina, e constitui uma percep����o crucial acerca de

Jav��, �� que Luria entendia o zimzum como um processo

perp��tuo, alimentado por cada inspira����o e expira����o do

sopro divino. Imaginemos que, cada vez que prendemos a

respira����o e, em seguida, expiramos, estar��amos criando e

destruindo um mundo.



244

J E S U S E J A V ��

Morto aos 38 anos, Luria pode ser considerado um g��-

nio po��tico cuja obra foi interrompida, mas o que nos res-

tou de seus ensinamentos, por mais distorcidos que se en-

contrem nas diversas vers��es dos disc��pulos, continua a

iluminar toda especula����o religiosa subseq��ente. Neste li-

vro, recorro ao mito de cria����o pensado por Luria, a fim de

aplic��-lo, diretamente, ao mist��rio de Jav��, prop��sito reco-

nhecidamente rid��culo, em mais de um sentido da palavra

"rid��culo". Os profetas do juda��smo (a mim contempor��neos)

que aceito com toda a sinceridade s��o Gershom Scholem

(1897-1982) e Moshe Idel (nascido em 1947). Scholem, no

estudo "Dez Aforismos sobre a Cabala" (publicado pela pri-

meira vez na Alemanha, em 1958), insiste que toda tradi����o

espiritual aut��ntica �� misteriosa, e que os discursos oral e

escrito protegem os mist��rios com mais efic��cia do que o faz

o sil��ncio. U m a vez que Jav�� �� a pr��pria Tor��, esta obra ser��

t��o incognosc��vel quanto Deus. De acordo com Scholem, as

doutrinas de Luria s��o verdadeiras, literal e metaforicamen-

te; por conseguinte, Jav�� est�� sujeito �� degrada����o divina,

conforme estabelece a especula����o gn��stica Valentina, ou o

herege Tratado sobre os Drag��es, de autoria de Natan de Gaza.

Deve haver um abismo na vontade de Jav��, pois, sem um

momento negativo no ato da cria����o, Deus e o cosmo se

fundiriam. A Lei (Tor��), vista �� luz da Cabala, �� antinomiana,

mas at�� mesmo a Cabala foi desfigurada pela sua pr��pria

teoria neoplat��nica de emana����o, em que a plenitude divina

transborda. Isso foi corrigido pela gnose de Mois��s Cordovero

e Luria, em que Jav�� e sua vontade divina se aproximam,

mas n��o coincidem. At�� mesmo Jav�� precisa ser contempla-

do a partir do nosso posicionamento pessoal; portanto, o

tikkun m��gico (ou restaura����o) proposto por Luria n��o ��

mais nem menos v��lido do que o messianismo ut��pico,



O E X l L i O V O L U N T �� R I O D E J A V ��

245

marxista do maior amigo de Scholem, o cr��tico Walter Ben-

jamin. E, visto que "pode ser pronunciado, mas n��o expres-

so", o nome de Jav�� precisa ser mediado pela tradi����o, para

podermos, ao menos, ouvi-lo, e somente fragmentos semi-

ocultos do nome verdadeiro podem chegar at�� n��s, t��o in-

sond��veis quanto os fragmentos de Franz Kafka (que, se-

gundo Scholem, foi herdeiro secular da Cabala), cujos escritos

t��m para n��s "algo da luminosidade forte do can��nico, da-

quela perfei����o que destr��i".

Sendo Jav��, a Tor�� n��o pode ser lida, e nem mesmo a

sua primeira Autora, " J " , ou a Javista, �� menos esot��rica do

que Luria. Eis meu ponto de partida para desafiar os estudos

b��blicos: buscar o zimzum j�� impl��cito na saga da Javista. A

cr��tica liter��ria, conforme por m i m praticada, consiste em

transformar o impl��cito em algo que precisamos experimen-

tar explicitamente. Mas, em primeiro lugar, quero resumir

as id��ias de Luria acerca da cria����o, seguindo, principalmente,

a orienta����o de Scholem e de Lawrence Fine.

Qualquer concentra����o da presen��a arrasadora de Jav��, para

todos os efeitos, deve ser tamb��m uma contra����o, ou n��o ha-

veria realidade, exceto a realidade de Deus, e tampouco existi-

ria o mal. Ter�� Jav�� se cansado da sua pr��pria severidade e

buscado umas f��rias da realidade? Tal no����o �� um tanto ousa-

da, mas �� sempre bom lembrar que Jav�� �� um deus humano e

n��o uma entidade teol��gica. Jav�� n��o leu Plat��o.

Abandonada no vazio causado pelo zimzum., uma es-

s��ncia da severidade cr��tica de Jav��, ironicamente, produziu

o primeiro Golem, um monstro pr��-humano composto de

mat��ria inane. A exemplo de W a l t Whitman, as ansiedades

de Jav�� s��o apenas superficiais. Qui���� por inconformismo



246

J E S U S E J A V ��

est��tico (pura conjectura minha), Jav�� n��o disparou um raio

de luz no miser��vel Golem, assim criando Ad��o Cadmo, o

andr��geno e primeiro ser humano? Se aplicarmos essa id��ia

ao relato que a Autora " J " faz da cria����o, uma nova perspec-

tiva se abre diante de n��s, tratando-se de G��nesis 2, 7:

Jav�� modelou Ad��o com a argila do solo, soprou-lhe nas

narinas um sopro de vida, e o homem tornou-se um ser

vivente.

Na vis��o de Luria, come��amos qual o Golem e, em se-

guida, a m��o e o sopro de Jav�� nos moldaram. Mesmo ap��s

inspirar fundo (zimzum), Jav�� ainda dispunha de f��lego com

que nos conceder a vida. Scholem, refletindo sobre o mito

luri��nico, identificou met��foras do ex��lio sefardita a partir

da Ib��ria, mas Idel, sutilmente, lembrou-nos de que Luria

era asquenaze, e Fine ressalta que, no s��culo XVI, Safed j��

era uma comunidade de comunh��o m��stica, antes do adven-

to de Luria como inspira����o messi��nica. A genialidade de

Luria conferiu-lhe uma percep����o nova e ��nica da mente de

Deus. Isso me faz pensar se o relato luri��nico da cria����o n��o

pode nos oferecer id��ias perpetuamente renovadas da perso-

nalidade e do car��ter de Jav��, assim como o Evangelho de

Marcos me parece o texto em que os enigmas de Jesus s��o

mais bem explorados.

Segundo Luria, Ein-Sof origina-se de absoluta solid��o

de luz. Os escritos de Ronit Meroz, em sua maioria ainda

n��o dispon��veis em l��ngua inglesa, s��o os mais completos

que j�� vi no que concerne �� criatividade de Luria, e recomen-

do, enfaticamente, o ensaio de Meroz intitulado "Faithful

Transmission Versus Innovation" (Transmiss��o fiel versus



O E X I L I O V O L U N T �� R I O D E J A V ��

247

inova����o) acerca de Luria e seus disc��pulos, impresso nos

Anais de um congresso internacional realizado em comemo-

ra����o ao q��inquag��simo anivers��rio da publica����o do cl��ssi-

co escrito por Scholem ��� Major Trenas in Jewish Mysticism

(Principais tend��ncias do misticismo judaico). Lawrence

Fine, concedendo o devido cr��dito a Meroz, apresenta uma

avalia����o l��cida do mito luri��nico, nas p��ginas 124-49 do

livro Physician of the Soul, Healer of the Cosmos, conte��do ao

qual recorro adiante.

Por que Jav�� opta por abandonar sua exist��ncia solit��-

ria e luminosa? Embora Luria, explicitamente, n��o o diga, o

mito por ele criado me leva a indagar se a luz solit��ria n��o

teria se tornado perigosamente opressora para um Deus sem

fim, ilimitado em auto-sufici��ncia. Jav�� ��, singularmente,

um deus humano, mas a esse respeito explanarei no pr��xi-

mo cap��tulo, que versa sobre a psicologia de Jav��.

O que h�� de mais perturbador sobre Jav�� �� a atitude bastan-

te ambivalente que ele demonstra diante da sua pr��pria cria-

����o. Para um Deus todo-poderoso ��� ao contr��rio de Zeus e

Odin ���, Jav�� mostra-se perp��tua e surpreendentemente afli-

to. Todo leitor da B��blia compreende logo que os atos de

Deus n��o s��o previs��veis. A meu ver, a extraordin��ria utili-

dade explicativa da Cabala, e de modo especial, da Cabala

de Luria, adv��m da identidade praticamente total entre Jav��

e zimzum. Como met��fora, zimzum talvez pare��a um candidato estranho �� fus��o com o divino, mas embora Jav�� seja

t��o literal quanto a vida e a morte, �� tamb��m figurativo, at��

mesmo em seu nome; por conseguinte, zimzum ��, ao mes-

mo tempo, inala����o literal do sopro da vida e imagem de



248

J E S U S E J A V ��

algo que desafia a descri����o ling����stica, a cat��strofe-cria����o

inicial de um abismo primordial operada por Deus.

Reprisar o argumento sinuoso contido no ensaio de

Gershom Scholem "Dez Aforismos sobre a Cabala" serve

para esclarecer o prop��sito de buscar um novo entendimen-

to quanto ��s ambig��idades de Jav��. A semelhan��a de todas

as tradi����es aut��nticas que lhe dizem respeito, Jav�� continua

a ser o Deus oculto, protegido pela Tanak, os dois Talmudes

e a Cabala. E, uma vez que o pr��prio Jav�� �� a Tor��, os Talmu-

des, o Zohar, e toda a Lei Oral, de Mois��s a Isaac Luria, tudo

isso ��, em ��ltima inst��ncia, t��o incognosc��vel quanto Jav��.

Esse fato separa a gnose judaica de Basilides, Valentino e

todo o gnosticismo que os seguiu, inclusive o sufismo xiita,

o catarismo crist��o e grande parte da poesia romana que in-

tegra o c��none ocidental.

U m a vez que o relato de Luria acerca do zimzum e a

conseq��ente Quebra dos Vasos �� verdade literal, Jav�� foi fe-

rido gravemente pelo (e durante o) ato da Cria����o. Um Deus

Supremo, t��o humano, que degrada a si mesmo, ser�� sem-

pre ambivalente em rela����o a tudo e a todos, especialmente

ao seu Povo Eleito. Se, de fato, antes mesmo do trabalho

��rduo empreendido na cria����o, tal povo j�� constitu��a a na-

����o visada, esse Deus vai test��-los e favorec��-los, alternada-

mente, conforme lhe convier. Quando ele est�� de mau hu-

mor, louvores e sacrif��cios em templos n��o bastar��o.

Todos convivemos com um abismo na vontade:

Hamlet exemplifica a nossa condi����o, e poucos de n��s so-

mos capazes de repetir o feito do Pr��ncipe, que consegue

discernir em meio �� verdade niilista aniquiladora. Todavia,

compartilhamos o dilema de Hamlet; n��s tamb��m precisa-

mos ser tudo e nada, em n��s mesmos, quando nos vemos



O E X �� L I O V O L U N T A R I O D E J A V ��

249

diante de Jav�� (a morte), em um confronto final. S��o Paulo

insistia que o ��ltimo inimigo a ser derrotado seria a morte,

mas Paulo viveu e foi martirizado antes que Luria fundisse,

permanentemente, Jav�� e zimzum. Os gn��sticos a quem

Paulo fez oposi����o, de modo especial em Corinto, eram bem

menos ousados.

Luria transformou a opacidade da Lei de Mois��s em

uma transparencia que exp��e os limites de Jav��. Scholem,

que por meio da emana����o pac��fica das Sefirot despreza o

neoplatonismo dos primordios da Cabala, defendia a verda-

de do gnosticismo judaico de Cordovero e Luria, que separa

Jav�� do mito judeu-mosaico da Vontade de Deus. Para

Mois��s, a vontade de Jav�� �� livre. Nos Estados Unidos, hoje

em dia, Jesus e o Esp��rito Santo, no pentecostalismo, apro-

ximam-se dessa Vontade, mas, em absoluto, com ela n��o

coincidem. O Jesus norte-americano e o sempre mais vigo-

roso Paracleto t��m liberdade para pintar o sete, no pa��s e no

exterior, tudo em nome de Jav�� (sem a devida autoriza����o)

��� com quem n��o se pode brincar impunemente, conforme

haveremos de constatar mais uma vez. Isaac Luria, para sur-

presa dos disc��pulos, redimiu Caim, que tinha sido resgata-

do muito antes do seu nascimento ��� pelo zimzum.

A grandeza assustadora de Scholem �� o fato de ele ter

se disfar��ado como historiador de religi��es esot��ricas, en-

quanto, astutamente, tornava-se profeta do gnosticismo ju-

daico, um Cordovero ou um Luria do s��culo XX, cujas cat��s-

trofes n��o est��o diminuindo nos primeiros anos do s��culo

XXI. N��o est�� claro se o Deus da Cabala de Gershom Scholem

�� ut��pico e esperan��oso, ou tentador e malicioso, ou qui����

todas as alternativas anteriores. Os escritos religiosos can��nicos

��� crist��os, judeus, mu��ulmanos, hindus, budistas, at�� mes-



250

J E S U S E J A V ��

mo tao��stas ��� irradiam uma perfei����o e uma luz que nos

destroem, por mais que nos devotemos a absorv��-las. Mes-

mo que o Jesus norte-americano seja, de fato, o filho de Jav��,

quem entre n��s ser�� suficientemente santo para suportar ta-

manha luz?

C A P �� T U L O 18 A Psicologia de Jav��

Se Jav��, em escala gigantesca, assume forma humana, e �� ou

foi outrora Homem, torna-se poss��vel alcan��ar algum en-

tendimento dele por meio da divis��o tripartite da alma, se-

gundo a Cabala: nepbesh, ruacb, nesbamah. Se invocarmos a

Cabala de Walt W h i t m a n (conforme Gershom Scholem a

chamava, em conversa comigo), o que corresponderia ao

" M i m Mesmo", "Eu Verdadeiro ou Eu Mesmo" e "Alma"?

Imaginemos um Jav�� whitmaniano proclamando:

Eu creio em ti, minha alma,

Meu outro eu n��o dever�� a ti se submeter,

Tampouco deves ao outro te submeter.

Assim como �� com Walt, �� com Jav��: o "Eu" �� o gran-

de "Eu sou aquele que sou", ehyeh asher ehyeh, em que a palavra "ehyeh" ("eu serei") �� trocadilho que envolve o nome supremo ��� Jav�� ��� o tetragrama Y H W H . Ainda com mais

ousadia, Jav�� poderia afirmar: "Sou Jav��, um dos r��sticos,

um israelita." Como �� pungente supor Jav�� referindo-se ao

"outro Eu", "Eu Verdadeiro ou Eu Mesmo", como se esti-



252

J E S U S E J A V ��

vesse "dentro e fora do jogo, ao jogo assistindo e sobre o

jogo refletindo", seja em Mamre, nas cidades da plan��cie de

Peniel, ou no Sinai.

A nephesh, ou alma, de Jav�� pode ser chamada de Fic����o

Suprema, a persona de Deus manifestada a fim de situar-se

entre o seu ser vivente e sua neshamah, a alma que �� mist��rio

at�� para ele. De algum modo, entre a nephesh e a neshamah

de Jav�� interv��m a Shekhinah, que reside dentro dele em

uni��o prec��ria com ruach, o sopro da vida. No Deus feito

Homem (de acordo com o Zohar), a parte inicial da alma ��

a nephesh, origem de toda consci��ncia. Mas somente Jav�� e

os esp��ritos de elite entre n��s manifestam ruach, �� medida

que um sentido pleno de santidade �� conquistado, em parte

devido ao estudo da Tor��, em que o pr��prio Deus �� adepto

de neshamah. A alma do pr��prio Jav�� �� a modalidade supre-

ma, reservada aos mestres da Cabala.

Sendo, a princ��pio, elementos do neoplatonismo ju-

daico informados pela reflex��o de Arist��teles acerca da men-

te, esses tr��s graus de consci��ncia assumiram defini����es t��o

variadas que j�� n��o exibem consist��ncia. Algo semelhante ��

"fagulha", ou pneuma, dos gn��sticos sobrevive na neshamah,

"Jav�� em n��s". Na Cabala luri��nica, uma multiplica����o es-

tonteante das fagulhas desafia qualquer sinopse apressada.

Mas, conforme j�� afirmei, Jav�� �� o meu foco. O que pode ser

aprendido desse Deus desconcertante e humano, a partir da

sua cartografia ps��quica e das suas vicissitudes?

A tradi����o pr��-cabalista, talvez mais surpreendente do

que a pr��pria Cabala, insiste que a Tor��, em sua ordem ver-

dadeira (de n��s desconhecida), constitui o nome correto de



A P S I C O L O G I A D E J A V ��

253

Jav��, do qual o tetragrama Y H W H �� mera indica����o. Na

Tor�� oral, recebida por Mois��s no Sinai, o nome verdadeiro

foi inteiramente revelado, com a advert��ncia de que era do-

tado de poder para operar milagres, at�� mesmo ressuscitar

os mortos. Tor�� �� o Grande Nome do pr��prio Jav��, unifi-

cando-lhe a consci��ncia tripartite e, na verdade, constituin-

do-lhe o corpo. Mas, conforme Scholem se aprazia em ob-

servar, a Tor��, tanto quanto Jav��, n��o pode ser conhecida.

Jesus ��� que, em uma ��nica inst��ncia, substituiu o Templo,

a Tor�� e Jav�� ��� �� conhecido por tantos norte-americanos

(de modo especial) que em breve talvez percamos o sentido

da inescrutabilidade de Deus.

A Cabala de Gershom Scholem enfatiza o ato de ouvir

Deus, mais do que o ato de v��-lo, o que talvez configure um

m��todo de apreens��o mais j u d a i c o do que grego. Em

contrapartida, no livro Through a Speculum that Shines (Um

espelho que brilha, 1994), Elliot R. Wolfson prop��e que a

gnose vision��ria seja central �� Cabala. Disc��pulo de William

Blake nos long��nquos dias da minha juventude, sou favor��-

vel �� orienta����o de Wolfson, embora um tanto c��tico quan-

to �� possibilidade de ver os Nomes Divinos, mesmo quando

escritos sem subterf��gios. Contudo, as percep����es de Wolfson

s��o instigantes no que concerne a um problema central em

Jav��: ele preserva a pr��pria visibilidade, mesmo quando in-

siste que n��o pode e n��o deve ser visto:

Os m��sticos judaicos s��o, primordialmente, int��rpretes de

escritura. O interesse na visualiza����o do divino decorre,

diretamente, de ang��stia da influ��ncia diante das teofanias

b��blicas, (p. 394)



254

J E S U S E J A V ��

Para Wolfson, "a vis��o de Deus no misticismo judaico

�� intensamente erotizada". O livro de Moshe Idel, Kabbalah

and Eros (Cabala e Eros, no prelo), confirma a rejei����o vee-

mente que Wolfson faz a um Jav�� basicamente ouvinte. A par-

tir de Wolfson e Idel, proponho um confronto direto entre

dois tipos de mapas da mente: o javista-whitmaniano e o

shakespeariano-freudiano. Um Jav�� movido pelo er��tico, mas

que ��, no entanto, desprovido de lasc��via (visto que a Shekhi-

nah, ao menos, origina-se como presen��a interior), parece-

me algo, pragmaticamente, whitmaniano, semelhante ao

poeta auto-er��tico de A Can����o de Mim Mesmo e do "Eu

Espont��neo". O Homem freudiano ��, radicalmente, incom-

pleto: a exemplo das mulheres e dos homens criados por

Shakespeare, precisa se apaixonar, para n��o se sufocar em

um eu interior saturado, destino que cabe ao pobre Malv��lio,

em Noite de Reis, ao vi��vo Shylock, e principalmente a

Hamlet, que n��o sabe amar. Jav��, �� semelhan��a de W a l t

Whitman, n��o precisa se apaixonar por ningu��m, embora o

Rei Davi quase consiga abalar o solit��rio Deus hebreu.

Whitman, a despeito do que tenha se passado na suposta

debacle homoer��tica (ocorrida no inverno de 1859-60), re-

produz, verdadeiramente, a rela����o de Jav�� com Shekhinah,

ao internalizar a Fantasia ��� a Amante Interior, conforme

Wallace Stevens chamava a Musa que ele, involuntariamen-

te, compartilhava com W h i t m a n . Os protagonistas de

Shakespeare e Freud n��o s��o, a princ��pio, poetas, mas Jav�� ��

poeta. O rabino Akiba ben Joseph, para todo o sempre, o

rabino dos rabinos, insistia na canoniza����o do C��ntico dos

C��nticos, de Salom��o, pois interpretava o referido texto como

um poema do pr��prio Jav��, um galanteio apaixonado, em

que "minha irm��, minha esposa" seria a Shekhinah. Jav�� ��

mais freudiano, ao compartilhar do impulso de morte, con-



A P S I C O L O G I A D E J A V ��

255

forme expresso em Al��m do Princ��pio do Prazer��� e j�� men-

cionei que Freud inventou e, em seguida, rejeitou o concei-

to de destrudo, uma libido negativa que todos n��s acredita-

r��amos possuir, se Freud houvesse resguardado a no����o.

Contrariando Freud: a libido �� um mito; n��o existe energia

sexual isolada. Jav��, a exemplo dos homens e mulheres cria-

dos por Balzac, dilui sua suposta libido em uma energia ge-

ral. Freud, n��o obstante insistisse desconhecer Schopenhauer,

exalta um querer-viver que �� bem mais destrutivo do que

compraz a Jav��.

Macbeth �� a identidade shakespeariana preferida por

Freud, possivelmente porque o impulso al��m do princ��pio

do prazer n��o poderia ser mais ousado do que o �� nesse pro-

tagonista ��� na obra de Shakespeare, o substituto de Jav�� ��

Rei Lear, que deixava Tolstoi enfurecido e que representa

uma linha divis��ria em termos de arte liter��ria. O eu exte-

rior, o Eu Verdadeiro e a alma se desintegram no rei magn��-

fico, assim como ocorre no Jav�� de ��xodo e N��meros, que,

irritado, guia, atrav��s do deserto, na jornada do Egito at��

Cana��, o povo que com ele firmara a alian��a. Inexiste termo

adequado para exprimir a rela����o de Jav�� com sua pr��pria

neshamah, ou alma. Visto que Jav�� �� mais personagem lite-

r��rio do que o foram W h i t m a n e Freud, sinto certo descon-

forto, ao falar da "psicologia de Jav��". Ele jamais vai embo-

ra, se bem que gostaria muito que fosse, pois pensar nele ��

lembrar a minha pr��pria mortalidade. E, no entanto, na

Cabala, somos informados de que Deus �� o Homem primor-

dial. O Zohar diz que nossa obriga����o �� rasgar o v��u da Tor��

e de Deus ��� mas como faz��-lo? Quando nascemos, a nephesh

se nos incorpora, mas Jav�� (ao contr��rio de Jesus) n��o nasce.

Todavia, se o zimzum, ou retraimento volunt��rio, foi a ori-

gem de Jav��, assim como foi a nossa, podemos especular que



256

J E S U S E J A V ��

a primeira inspira����o de Deus criou-lhe a nephesh. O ruach

de Jav�� surgiu, supostamente, no momento em que ele vivi-

ficou Ad��o, mas o que ter�� propiciado a Jav�� a primeira

constata����o da sua pr��pria nephesh? E certo que a uni��o com

a Shekhinah, que vem a ser a componente feminina do pr��-

prio Jav��, para todos os efeitos, enseja a consci��ncia expressa

da pr��pria alma superior de Yahweh.

Existem poucos paralelos (ou talvez nenhum) dessa

situa����o em Shakespeare e em Freud, conquanto haja, com

certeza, um an��logo whitmaniano no in��cio de Can����o de

Mim Mesmo. D. H. Lawrence, que a exemplo de Whitman

criou uma Cabala inteiramente pr��pria, oferece-nos, no breve

romance escrito em final de carreira, O Homem que Morreu,

um Jesus que tamb��m encontra a sua alma superior. Ingl��s

cuja forma����o o levara a rejeitar o anglicanismo, Lawrence

ofendeu, profundamente, T. S. Eliot, conforme evidencia o

manual de heresia moderna escrito por Eliot, Em Busca de

Deuses Estranhos.

O que se pode conjeturar a respeito do conhecimento

que Jav�� tem da sua pr��pria alma? Se o zimzum engendrou

tanto o cosmo quanto o pr��prio Deus (na condi����o de Jav��

diminu��do a Elohim), ent��o, Jav��, desde o in��cio, exibiu uma

ambival��ncia diante da cria����o, inclusive da cria����o do ho-

mem e da mulher. A hist��ria dos judeus �� uma hecatombe

dessa ambival��ncia diante dos Eleitos. Qualquer pessoa que

reflete sobre a B��blia hebraica se pergunta por que Jav�� nun-

ca lamenta ter abandonado a si mesmo.

A litania prof��tica que reverbera por toda a Tanak �� de

que o povo judeu traiu a Alian��a celebrada com Jav��. Em

momento algum nos �� informada a outra verdade, mais ter-

r��vel: a destrui����o que Deus imp��e ao povo aliado. Confor-

me j�� mencionei, Gershom Scholem, que raramente se equi-



A P S I C O L O G I A D E J A V ��

257

vocava, erra ao associar as vis��es de zimzum e shevirat ha-

kelim (segundo Isaac Luria) �� expuls��o ib��rica dos judeus,

fato que n��o teve relev��ncia direta para o Ari Asquenaze,

conforme Luria era conhecido. Por��m, como de h��bito,

Scholem, demonstrando possuir grande imagina����o, capta

os elementos gn��sticos da Cabala, obra que, implicitamen-

te, se dirige �� alma de Deus e ��s aus��ncias divinas em rela����o

�� pr��pria alma.

2

Na longa hist��ria dos judeus, n��o h�� figura mais perturba-

dora do que o falso messias Jac�� Frank (1726-1791), cuja

seita, em sua maioria integrada por cat��licos convertidos,

subsistiu na Pol��nia e em outros locais at�� o final do s��culo

XIX, e que talvez ainda hoje conte com alguns adeptos. Jac��

Frank foi o derradeiro resqu��cio do falso messias Shabbetai

Zevi (1626-1676), de Esmirna, que se converteu ao islamis-

mo, em 1666, arrastando consigo muitos seguidores. O pro-

feta de Shabbetai, Natan de Gaza (1643-1680), defendia a

apostasia de Shabbetai como uma necessidade m��stica (que

o pr��prio Natan, entretanto, n��o abra��ou) e comp��s uma

Cabala inteiramente gn��stica, a qual continua a ser a dou-

trina mais radical de toda a tradi����o judaica, no que se refere

�� apostasia do pr��prio Deus. No Tratado sobre os Drag��es, de

autoria de Natan, a psique do messias �� submetida �� degra-

da����o total, uma descida, um isolamento que, em ��ltima

inst��ncia, resultar�� em eleva����o:

Sabei que a alma do rei messi��nico existe no golem infe-

rior. Pois, assim como o primeiro drag��o emergiu no es-

pa��o vazio, a alma do messias foi criada pela vontade de



258

J E S U S E J A V ��

Deus. Essa alma existia antes da cria����o do mundo, e per-

manece no grande abismo.

Jac�� Frank, cujo esp��rito tamb��m se contorcia ao lado

dos drag��es, foi considerado o nadir da hist��ria judaica pelo

m a i s i d i o s s i n c r �� t i c o dos mestres hass��dicos, o rabino

Nahman, de Bratislava, ainda hoje o grande guia dos sobre-

viventes bratislavos. Tal distin����o manteve-se singular, at��

que a numerosa comunidade Lubavitch, recentemente, es-

colheu um substituto para o Rebe falecido, M e n a c h e m

Schneerson. Na percep����o dos seus respectivos seguidores,

ambos os mestres t��m emin��ncia messi��nica.

Invoco aqui o extraordin��rio Nahman de Bratislava

porque ele dispunha de mais reflex��es significativas acerca

do que eu chamaria de psicologia conturbada de Deus do

que qualquer outro estudioso desde Isaac Luria. Nahman

era bisneto de Baal Shem Tov ("mestre do bom nome"), o

fundador do hassidismo, mas sua personalidade n��o apre-

sentava, em absoluto, a alegria ext��tica dos seus antepassa-

dos. Emocionalmente inst��vel, depressivo e ensimesmado,

Nahman foi tamb��m um g��nio liter��rio, cujas hist��rias ale-

g��ricas, cuidadosamente estruturadas, e cuja obiter dicta pre-

servam a sua for��a ret��rica.

Nahman fala pouco do bisav��, e o di��logo entre os dois

seria imposs��vel. Muitas vezes, quando leio o Rebe bratislavo

sinto-me como se estivesse dentro de um mon��logo dram��-

tico de Robert Browning, digamos, "Childe Roland �� Torre

Negra Chegou". Tamb��m em Nahman, a busca passa por

uma regi��o onde tudo est�� deformado e quebrado, at�� que,

sem percebermos, deparamo-nos com o local procurado.

Depois de passarmos a vida inteira preparando-nos para en-

contrar a tal vis��o, deparamo-nos com o vazio, do qual o



A P S I C O L O G I A D E J A V ��

259

objeto da nossa busca escapuliu. Cercados pela forma viva

dos nossos predecessores (entre os quais, Zohar, Luria e Baal

Shem Tov), confrontamos a aus��ncia de Deus. Embora nossa

rea����o seja her��ica (vale a pena ler as 13 hist��rias de

Nahman), transcendemos a vit��ria e a derrota. Quanto de

Jav�� sobrevive em Nahman, que se considerava o Messias?

Deus, para o bratislavo, n��o �� mera aus��ncia, resqu��cio

de uma antiga presen��a. Depois de um n��mero excessivo de

zimzum, Jav��, diminu��do a Elohim, n��o pode ser diferen-

ciado do vazio c��smico pelo qual ele perambula. A Tor��,

que �� Jav��, foi revista segundo as interpreta����es de Nahman,

inteiramente livres, exceto no que respeita �� esfera mosaica

da conduta certa. N��o existe em Nahman antinomianismo,

tampouco qualquer excesso libertino, do tipo encontrado

em Shabbetai Zevi ou Jac�� Frank. A Lei moral prevalece,

mas aquele que a criou, que foi o pr��prio Ser, evaporou no

vazio da dispers��o e do sofrimento judaico.

A m��xima talm��dica diz, referindo-se a Jav��: "Ele �� o

lugar (makoni) do mundo, mas o mundo n��o �� o seu lugar."

Nahman baseava-se em u m a sabedoria mais sombria: o

mundo �� um lugar do qual Deus se retirou. A Quebra dos

Vasos ��, para Nahman, a vis��o luri��nica mais crucial.

Um Jav�� que est�� sempre a se retrair resulta em um

Deus sem f��lego, cuja mudez final talvez seja similar �� de

algu��m que sofre de um mal na faringe. Af��nico, Jav�� ainda

�� vis��vel, mas apenas como o Anci��o do Livro de Daniel,

longe de ser o trapaceiro vigoroso que consta da saga da

Autora " J " . Contudo, vis��vel ou invis��vel, Deus n��o ��, para

Nahman, um guia, se �� que um guia se faz necess��rio a esse

que �� o mais introspectivo dos Messias, ao menos desde

Yeshu�� de Nazar��.



260

J E S U S E J A V ��

Em um romance comovente ��� The Seventh Beggar (O

s��timo mendigo, 2004) ���, Pearl Abraham conclui a hist��-

ria mais c��lebre de Nahman ��� "Os Sete Mendigos" ���, que

o Mestre, propositadamente, deixou inacabada. Em "Os Sete

Mendigos", os enigm��ticos shnorrers (que s��o, ao mesmo

tempo, velhos e jovens) contam hist��rias que guardam na

mem��ria, embora todos digam Ikh gedenk gornisht ("Eu n��o

me lembro de nada!"). Insinua����es plat��nicas de uma exis-

t��ncia de Deus anterior ao nascimento s��o invocadas, sendo

o toque do bratislavo explicado, competentemente, por

Arthur Green: todo o cosmo e todos n��s somos t��o origin��-

rios quanto Jav��. A pr��pria cria����o precede a Cria����o. To-

davia, somente seis dos sete mendigos plat��nicos contam a

sua hist��ria; a hist��ria do aleijado (de modo geral, identifi-

cado com o pr��prio Nahman), no entanto, nunca se con-

cretiza, pois isso significaria a auto-revela����o do Messias, a

justificativa do pr��prio Nahman. Demonstrando coragem,

Pearl Abraham conta a hist��ria:

E quando as seis hist��rias tinham sido contadas, os

andarilhos voltaram-se para mim, o mendigo que n��o ti-

nha os p��s, e pensaram como era poss��vel eu, sem os p��s,

ir t��o longe, em busca de uma hist��ria que valesse a pena

ser contada. E lhes contei a hist��ria de sete peregrinos que

caminharam por desertos e estepes, subindo montanhas e

colinas, descendo por vales, passando por campos e ria-

chos, no frio g��lido dos invernos e no calor escaldante dos

ver��es, e que, enquanto caminhavam, conversavam. E fi-

caram exaustos, de tanto andar, falar, ouvir e contar. E

lhes contei as seis hist��rias, palavra por palavra, conforme

a mim tinham sido contadas. E quando cheguei �� s��tima

hist��ria, a hist��ria do mendigo que n��o tinha os p��s, con-



A P S I C O L O G I A D E J A V ��

261

tei a hist��ria dos sete andarilhos, arrastando-se e recla-

mando da sorte, cansados e sujos de mato e lama etc. O

tempo inteiro falando, contando hist��rias. E lhes contei

as hist��rias contadas pelos peregrinos, contei-lhes as his-

t��rias, palavra por palavra, e ent��o contei-lhes a minha

hist��ria: a hist��ria dos sete andarilhos. E ficou acordado

que eu, o mendigo que n��o tinha os p��s, lento e sempre

na retaguarda, era no entanto o andarilho mais viajado,

mais experiente, porque a minha hist��ria continha todas

as hist��rias. E falei e caminhei, e, a cada passo, entre um

passo e o seguinte, eu tinha um sonho. Em um desses

sonhos, despertei e vi que o Leviat�� ainda n��o tinha apa-

recido, a hist��ria n��o poderia ser conclu��da. Segui em fren-

te, outro passo, outra hist��ria, outro sonho. Entre um

sonho e outro, acordei e me vi em uma vala na qual se

realizava um casamento e, naquela vala, entre os convida-

dos do casamento, encontrava-se o Pr��ncipe que comete-

ra heresia, mas, enquanto ele ali estivesse, enquanto ou-

visse e acreditasse nas hist��rias, sua sabedoria e a heresia

estariam sob controle. O Pr��ncipe ouvia e se alegrava, as-

sim como seu pai, o velho Rei, tamb��m um dia se alegra-

ra. Para evitar uma nova queda, eu, o mendigo que n��o

tinha os p��s, devo seguir em frente. Detenho-me apenas

para vos dar o presente de casamento, para que possais ser

como eu sou.

Se o Leviat�� de J��, i.e., a morte, a tirania santificada de

Deus perante o homem, ainda n��o emergiu, ent��o a pro-

messa da Cabala ��� de que na Reden����o todos n��s, compa-

nheiros m��sticos de J�� e do Zohar, haveremos de celebrar

a criatura outrora temida ��� ainda n��o pode ser cumprida.



262

J E S U S E J A V ��

A noiva e o noivo, contudo, s��o um novo Ad��o e uma nova

Eva, o Pr��ncipe que cai �� Nahman de Bratislava, e o velho

Rei �� Jav��, disfar��ado como Anci��o do Livro de Daniel. Se

queda, heresia e sabedoria s��o a mesma coisa, isso �� porque o

pr��prio Jav�� trope��ou na heresia da Quebra dos Vasos. Uma

vez que o Ein-Sof luri��nico se agrega aos seus perp��tuos atos

de zimzum, todos os seus atos s��o novas quebras dos vasos.

A grande originalidade de Nahman, o grande desvio

por ele efetuado em rela����o �� Cabala luri��nica, foi negar o

reshimu, o vest��gio da luz de Deus que permaneceu no vazio

do tehiru, o espa��o deixado por Jav�� no zimzum primevo.

Sem o vest��gio salvador que constitui a luz divina, somos

mendigos cujos p��s foram amputados e trope��amos no va-

zio. Quanto da alma de Jav�� sobrevive �� perp��tua Quebra

dos Vasos? Prendendo a respira����o, o velho Rei se encontra

em suspens��o cont��nua, desertando os Eleitos, enquanto os

mundos se arru��nam. N��o obstante o que esse Jav�� tenha se

tornado, �� o c��mulo da ironia cham��-lo de ilimitado, defi-

ni-lo como "Sem Fim".

Se o pr��prio Deus, como Elohim, �� uma cria����o tipificada

pela cat��strofe, ent��o esse Deus, acertadamente, transcende

o mito judaico esot��rico que diz que ele construiu e des-

truiu muitos mundos antes deste em que vivemos. Toda-

via, os S��bios pouco nos ajudaram, ao desbastar as imper-

fei����es de Jav��. Existem vantagens, morais e est��ticas, em

identificar Jav�� como fen��meno pr��-zimzum, como o vazio

ou abismo que resta ap��s a Quebra dos Vasos. Um Jav�� sem

f��lego, ofegante, retraindo-se perpetuamente e se isolando

em Elohim, resguarda o pr��prio dinamismo e mau humor.

N��s (muitos de n��s) gostar��amos que ele fosse embora, mas



A P S I C O L O G I A D E J A V ��

263

ele n��o vai. Freud dizia ser necess��rio nos familiarizarmos

com a necessidade de morrer, no����o javista, mas prefiro o

conselho de Montaigne: N��o vos preocupeis em preparar-

vos para a morte, pois, chegada a hora, sabereis bem como

proceder.

Um crist��o cr�� que Jesus foi o Cristo, ungido antes da

Cria����o, para poder perdoar os pecados do mundo. Os mu-

��ulmanos se submetem �� vontade de Al��, explicitada de

modo contundente no Alcor��o. M i n h a m��e confiava na

Alian��a, a despeito das flagrantes viola����es de Jav��. Shakes-

peare jamais poderia levar Jav�� ao palco, mas criou um re-

trato, uma substitui����o excelente ��� Rei Lear ���, que pode

muito bem ser analisado pelos mitos da Cabala luri��nica.

Suponhamos que a abdica����o de Lear seja o seu zimzum, e

sua insanidade e f��ria sejam a Quebra dos Vasos.

3

Freud endossou a substitui����o er��tica como a nossa segunda

chance de deflagrar o processo de cura da ferida narc��sica

causada pela perda do objeto do desejo: a substitui����o do

progenitor do sexo oposto pelo progenitor do mesmo sexo.

M i n h a interpreta����o do zimzum como "substitui����o" aproxima-se do sentido freudiano. Ao se retrair, Jav�� substitui

uma parte do pr��prio Ser pela sua Vontade. �� certo que tal

substitui����o n��o �� quest��o simples para Deus: com efeito,

mesmo antes de Luria, havia tradi����es que estabeleciam que

o nome de Jav�� foi sempre pr��-zimzum e que, ap��s se retrair,

Jav�� tornou-se Elohim. Vale observar que, na condi����o de

Plenitude do Ser, Deus continua a ser Jav��. Sua Vontade,

uma vez dele isolada, chama-se Elohim. Scholem insistia que,

sem o momento negativo do zimzum, Deus e o cosmo se



264

J E S U S E J A V ��

fundem. Idel localiza em antigos fragmentos de textos ju-

daicos as origens do zimzum, um conceito herdado por

Cordovero e passado a Luria. Conquanto alguns estudiosos

de Scholem ainda se ressintam de Idel, e um cr��tico liter��rio

bem informado como Robert Alter tente descartar Idel, a

perspectiva do tempo come��a a nos mostrar que Idel est��

mais pr��ximo do esp��rito de Scholem do que os disc��pulos

deste. Scholem vislumbrava uma Cabala gn��stica, livre das

teosofias de emana����o caracter��sticas do neoplatonismo, e

Idel demonstra, de modo convincente, que o gnosticismo ��,

em grande parte, uma par��dia de certos elementos fascinan-

tes dos juda��smos arcaicos. Para tal, ele se baseia em textos

antigos, inclusive nas vers��es distintas dos Livros de Enoque,

em que a divis��o entre Deus e homem ��, por vezes, abolida.

O que os posicionamentos de Scholem e Idel ensinam

�� que a psicologia de Jav�� torna-se mais humanizada pelo

impulso de criar um cosmo, homens e mulheres. Impl��cita

em Scholem e Idel, e explicitada por eruditos como Yehuda

Liebes e Elliot Wolfson, concentra-se a for��a da Cabala cris-

t��, que identifica em Jesus Cristo um segundo zimzum, fe-

n��meno que pode ser considerado mais uma retra����o de

Elohim ou Adonai, chegando ao n��vel do Deus Pai da Trin-

dade. Se Jack Miles quer apreender Cristo como uma crise

na vida de Deus, concordo com ele, mas somente a partir da

premissa de que o Deus em apre��o n��o �� o Jav�� origin��rio, e

sim o Deus Pai, uma sombra de Jav��. Se dermos mais um

passo, chegaremos ao momento atual norte-americano, em

que Deus Pai saiu de cena, cedendo espa��o ao Jesus norte-

americano e ao rival, cada vez mais forte, o Esp��rito Santo

do pentecostalismo, que mescla hisp��nicos, norte-america-

nos de origem africana e brancos espoliados, muitas vezes

egressos dos estados do Sul.



A P S I C O L O G I A D E J A V ��

265

U m a sociologia mais atualizada da religi��o norte-ame-

ricana qui���� pudesse fundamentar-se em uma reflex��o sobre

a met��fora do zimzum duplamente encenado por Jav��: pri-

meiro, retraindo-se em Elohim, e ent��o em Deus Pai, sacri-

ficando seu filho pelo bem comum. O Jesus norte-america-

no talvez venha a se tornar excessivamente comprometido

com o direito crist��o de prosseguir como amigo ��ntimo dos

espoliados. O Esp��rito Santo talvez venha a se tornar a di-

vindade reinante nos Estados Unidos (estranha profecia h��

muito tempo anunciada por Thomas Pynchon, em O Leil��o

do Lote 49).

C A P �� T U L O 1 9 A Irreconciabilidade

entre Cristianismo e

Judaismo

Que o t��tulo deste cap��tulo possa decepcionar muitos leito-

res �� algo estranho, depois de dois m i l anos de fatos

irrefut��veis. H��, sem d��vida, benef��cios pol��ticos e sociais,

permanentes e decisivos, que decorrem do mito da "tradi-

����o judaico-crist��", mas as ilus��es, em ��ltima inst��ncia, de-

monstram-se perniciosas, conforme o foram para os judeus

germ��nicos. O "di��logo entre crist��os e judeus" n��o �� sequer

mito ��� no mais das vezes, trata-se de farsa. Jacob Neusner,

nosso maior estudioso dos escritos judaicos que compreen-

dem um per��odo que se estende desde o primeiro s��culo da

Era Comum at�� o s��culo VI (escritos esses compartilhados

por judeus e crist��os), diz, com mordacidade, que as duas re-

ligi��es envolvem "gente diferente, falando de quest��es dife-

rentes, dirigindo-se a gente diferente" (Jews and Christians:

The Myth of a Common Tradition [Judeus e crist��os: o mito

de uma tradi����o comum], 1991, pp. 1-15).

Tal diferen��a, que certamente faz diferen��a, tem in��cio

no contraste marcante delineado por M a r t i n Buber. Os

judeus n��o s��o instados a crer, mas a confiar na Alian��a celebrada entre Jav��, os Patriarcas e os Profetas, de No�� e Abra��o,



268

J E S U S E J A V ��

passando por Mois��s, chegando a Jeremias e, finalmente, ao

rabino dos rabinos, Akiba ben Joseph. Os crist��os cr��em que

Joshua ben Joseph foi o Messias, o Deus Jesus Cristo, encar-

nado, milagrosamente, no ventre de M��riam, sua virgem m��e,

e que ele agora reina eternamente como vice-rei de Deus

Pai, na companhia do Esp��rito Santo, de legi��es de anjos e

de multid��es por ele redimidas e salvas.

Esse Deus Pai crist��o exibe apenas uma leve semelhan-

��a com Jav��, o Pr��prio Deus, chamado de Al�� no Alcor��o e

de v��rios outros nomes na ��sia e na ��frica. Nietzsche nos

advertia a sempre indagar: "Quem �� o int��rprete, e que po-

derio ele busca exercer sobre o texto?"

Jacob Neusner tem um par��grafo espl��ndido que, a meu

ver, marca o ponto de partida da sabedoria quanto ao contraste

que deve ser definido entre esses Deuses rivais, Jesus e Jav��:

Quando, por exemplo, Jesus perguntava ��s pessoas quem

elas pensavam que ele fosse, a resposta enigm��tica mos-

trava-se menos interessante do que a quest��o formulada.

Ocorre que a miss��o que ele se disp��s a realizar, conforme

descrita n��o apenas pelos Evangelhos, mas tamb��m por

Paulo, contemplava a reestrutura����o de todo o saber co-

nhecido, reestrutura����o que procederia do confronto com

o saber desconhecido: uma empreitada taxon��mica. Quan-

do os rabinos da Antiguidade reescreveram �� sua imagem

e semelhan��a toda a Escritura e hist��ria de Israel, descar-

tando per��odos inteiros como se jamais houvessem existi-

do, ignorando trechos extensos de antigos escritos judai-

cos, inventando novos livros para o c��none do juda��smo,

fizeram a mesma coisa: modificaram o que tinham rece-

bido, �� luz do que se propunham a oferecer. Jews and

Christians (p. 102)



A I R R E C O N C I A B I L I D A D E E N T R E C R I S T I A N I S M O E J U D A �� S M O

269

Refiro-me ao Jesus do Evangelho de Marcos, aquele que

mais me interessa, ao lado do Jesus do semign��stico Evan-

gelho de Tom��. O que me absorve bem menos do que o

Jav�� original da Autora " J " , respons��vel pelas camadas mais

antigas do palimpsesto que inclui G��nesis, ��xodo e N��me-

ros, �� o juda��smo que Neusner, com toda a raz��o, julga ter

sido inventado por Akiba e os companheiros rabinos que

viveram no s��culo II da Era C o m u m . A religi��o p��s-crist��

(por mais estranho que isso possa parecer) por eles praticada

baseia-se em uma desleitura forte e convincente da Tanak,

uma interpreta����o que visava a fazer frente ��s necessidades

desesperadas do povo judeu que vivia a ocupa����o e o terror

do Imp��rio Romano. O Templo fora destru��do pelos roma-

nos, no ano 70 da Era C o m u m , e grande parte de Jerusal��m

fora igualmente destru��da. No ano 135, ap��s o holocausto

romano que sucedeu �� grande rebeli��o comandada por Bar

Kochba (a ��ltima vez que Israel resistiu antes dos eventos de

1947), Jerusal��m foi arrasada e Akiba, martirizado, aos 95

anos de idade, pelo abomin��vel Adriano, que massacrou mais

judeus do que qualquer outra figura hist��rica antes de Hitler.

O cristianismo tinha substitu��do o Templo pela pessoa de

Jesus Cristo, enquanto Akiba o reconstruiu em cada lar ju-

deu. Jav��, que, desde a destrui����o do Templo, sentiu-se como

uma esp��cie de sem-teto, pareceu estar em ex��lio volunt��rio,

em algum ponto do espa��o sideral, at�� regressar a Israel, em

1948. No ano de 2004, no momento em que escrevo este

livro, s�� podemos esperar que Jav�� n��o volte a exigir a re-

constru����o do Templo, pois a mesquita Al Aksa foi erigida

na ��rea que correspondia ao Templo, e j�� temos guerras re-

ligiosas suficientes, podendo prescindir de uma cat��strofe

final. Fan��ticos, em Jerusal��m e espalhados pelo fundamen-

talismo protestante norte-americano, est��o sempre a cons-



J E S U S E J A V ��

270

pirar a destrui����o da mesquita inconveniente, e bezerros de

puro sangue s��o criados nos Estados Unidos, como oferen-

das potencialmente capazes de atrair Jav�� de volta ��s imedia-

����es do Templo.

Menciono essa loucura t��o bem atestada apenas para

confessar uma constrangedora diminui����o do meu ceticis-

mo diante de Jav��. Duvidar-lhe a exist��ncia perene �� exerc��-

cio racional, mas ele n��o �� uma entidade est��tica, ao contr��-

rio do Deus Pai crist��o. O assombroso dinamismo de Jav��

faz com que at�� as suas aus��ncias i m p l i q u e m supostas

perturba����es.

Se Jesus Cristo, Deus verdadeiro e homem verdadeiro,

est�� absolutamente distante de Jav�� (suponhamos, ao con-

tr��rio de Yeshu�� de Nazar��), isso ocorre porque formula����es

teol��gicas gregas e mem��rias da experi��ncia hebraica s��o,

simplesmente, antit��ticas.

C A P �� T U L O 20 Conclus��o:

Prova de Realidade

Deplorar a religi��o �� t��o in��til quanto celebr��-la. Onde en-

contrar a transcend��ncia? Temos as artes: Shakespeare, Bach

e Michelangelo ainda bastam para a elite, mas n��o bastam

para o povo. Jav��, seja l�� como for chamado, inclusive de

Al��, n��o �� a divindade universal de um planeta que se en-

contra conectado por meio da informa����o instant��nea; con-

tudo, Jav�� permanece, em quase toda parte. Jesus est�� mais

pr��ximo da universalidade, mas seus mil disfarces s��o t��o

desconcertantes que chegam a desafiar a coer��ncia. Freud, o

derradeiro profeta vitoriano ou eduardiano, subestimava Jav��,

Jesus e Maom��. Considerava-os quim��ricos, e n��o via para

eles grande futuro. Parece ir��nico que o maior dos g��nios

judaicos (ao menos, desde Jesus) n��o tenha sido capaz de

vislumbrar a for��a permanente de textos que n��o podem

desaparecer: a Tanak, o Novo Testamento, o Alcor��o. Se me

fizessem a c��lebre "pergunta da ilha deserta", eu seria obriga-

do a escolher Shakespeare, mas o mundo continua a se afogar

na onda sangrenta das escrituras, lidas ou n��o por ele.

Jav��, de quem me esquivei ao longo de tr��s quartos

de s��culo, tem uma capacidade impressionante de perma-



272

J A V �� E J E S U S

necer e me rondar, se bem que mere��a ser condenado por

deser����o, n��o apenas por parte dos judeus, mas tamb��m de

toda a humanidade sofredora. Neste livro, o int��rprete ��

um judeu cuja espiritualidade reage com grande fervor ��

antiga inclina����o por n��s denominada gnosticismo, e que

talvez n��o seja uma "religi��o", no sentido em que o juda��s-

mo, o cristianismo e o islamismo constituem as principais

tradi����es religiosas ocidentais. Eu gostaria muito de rejei-

tar Jav��, conforme faziam os antigos gn��sticos, conside-

rando-o mero demiurgo que falhara na Cria����o e que acar-

retou, ao mesmo tempo, a Queda. M a s , acontece que,

atualmente, costumo despertar sobressaltado, ��s vezes en-

tre meia-noite e duas horas da madrugada, porque tenho

pesadelos em que Jav�� aparece na forma de v��rios seres,

desde um Dr. Sigmund Freud, que fuma charuto de Hava-

na e se veste em estilo eduardiano, at�� o Anci��o sisudo e

en��rgico que consta do Livro de Daniel. Arrasto-me esca-

da abaixo, melanc��lico e calado, para n��o acordar minha

esposa, e tomo ch�� com p��o preto, enquanto leio passa-

gens da Tanak, excertos da mishnah e do Talmude, bem

como os textos perturbadores que constituem o Novo Tes-

tamento e A Cidade de Deus, de Agostinho. Em dados

momentos, ao escrever este livro, s�� posso me defender

murmurando a m��xima de Oscar W i l d e , de que a vida ��

por demais importante para ser levada a s��rio. Jav��, lamen-

to acrescentar, �� por demais importante para ser ironizado,

mesmo que a ironia possa parecer-lhe t��o natural quanto o

�� para o Pr��ncipe Hamlet.

Ao mesmo tempo que admiro, reajo com ironia a um

livro recente, t��o razo��vel quanto limitado, publicado sob o

t��tulo The End of Faitb: Religi��n, Terror, and the Future of



C O N C L U S �� O : P R O V A D E R E A L I D A D E

273

Reason (O fim da f��: religi��o, terror e o futuro da raz��o) de

autoria de Sam Harris (2004), neurocientista e humanista

secular que, acertadamente, mostra-se ansioso em rela����o ao

futuro da democracia norte-americana. Na pr��tica, n��o divir-

jo de Harris, mas discordo quando ele exige provas da "exis-

t��ncia literal de Jav��". Criador e destruidor, Jav�� est�� bem

distante do cosmo interior da neuroci��ncia. Jav�� cont��m ��� e

n��o pode ser contido. A raz��o n��o �� um instrumento que o

mobilize, por mais que possa contribuir para expandir a de-

mocracia, limitar o terrorismo mu��ulmano e o contraterro-

rismo norte-americano e israelense, ou evitar o horror de uma

guerra nuclear hindu-mu��ulmana, ou do aniquilamento pre-

ventivo de Israel em Teer��. Jav��, embora evidente apenas como

personagem liter��rio, reduziu-nos �� condi����o de personagens

liter��rios menores, elencos de coadjuvantes do protagonista

dos protagonistas, em um universo mort��fero. Jav�� zomba da

nossa mortalidade no Livro de J��; quanto a n��s, somos pouco

convincentes quando dele zombamos, e somos autodestrutivos

quando, �� semelhan��a de Ahab, arpoamos o Leviat��, rei de

todos os filhos da vaidade.

Jav�� santifica a tirania da natureza diante das mulhe-

res e dos homens: eis a sapi��ncia cruel da hist��ria de J��. S��o

Paulo, hebreu dos hebreus, diz que o ��ltimo inimigo a ser

derrotado �� a morte. Os c��ticos, ao confrontar o islamismo,

provavelmente, concordariam com Sam Harris: "O islamis-

mo [...] apresenta todas as caracter��sticas de um grande culto

da morte" (p. 123). Harris cita pesquisas de opini��o realiza-

das em pa��ses mu��ulmanos que refutam, flagrantemente, nos-

sos chav��es de que terroristas suicidas n��o contam com o apoio

da maioria dos mu��ulmanos: �� certo que contam. Se Jav�� ��

senhor da guerra, Al�� �� terrorista suicida.



274

J A V �� E J E S U S

2

Contudo, que diferen��a existe entre a "prova de realidade",

segundo Freud, e a no����o de Sam Harris, de que "nada ��

mais sagrado do que os fatos"? Prefiro mil vezes a id��ia de

W i l l i a m Blake ��� "Pois tudo que vive �� santo" ��� ao Jav�� do

Deuteron��mio, obcecado pela pr��pria santidade, mas nem

o fervor de Blake nem a minha melancolia s��o capazes de

afetar o anseio humano por transcend��ncia. Buscamos a

transcend��ncia secular na arte, mas Shakespeare, o artista

supremo, esquiva-se do sagrado, sabiamente c��nscio dos li-

mites da reinven����o do humano por ele efetuada.

Ao longo deste livro, suspeitei de todos os relatos dis-

pon��veis acerca do Jesus hist��rico, e n��o fui capaz de definir

uma identidade entre o judeu de Nazar�� e o Deus teol��gico

Jesus Cristo. O ser humano Jesus e o Deus Jav�� t��o humano

s��o (a meu ver) mais compat��veis entre si do que o s��o com

Jesus Cristo e com Deus Pai. N��o posso considerar feliz tal

conclus��o, e sei muito bem o quanto ela deve ser inaceit��vel

a crist��os de f��. Por��m, n��o confio na Alian��a, nem em Freud,

nem na oposi����o reducionista, postulada por Sam Harris,

entre "o futuro da raz��o" e o terror de origem religiosa. A

necessidade (ou ��nsia) de transcend��ncia talvez seja uma gran-

de ignor��ncia, mas sem ela estaremos propensos a nos tor-

narmos meras m��quinas de entropia. Jav��, presente e ausen-

te, tem mais a ver com o fim da confian��a do que com o fim

da f��. Ser�� que ele ainda poder�� firmar conosco uma alian��a

que ter�� condi����es de cumprir?





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De: Reginaldo Mendes


Olá, pessoal:
                   Este é mais um livro de nossa campanha de doação  e digitalização de livros para atender aos deficientes visuais.
                   Agradecemos ao Irmão  Bezerra pela doação e ao irmão Fernando pela digitalização.
                 Pedimos não divulgar em canais públicos ou Facebook. Esta nossa distribuição é para atender aos deficientes visuais em canais específicos

O Grupo Mente Aberta lança hoje mais um livro digital !
Desejamos a todos uma boa   leitura !

Jesus e Javé - Harold  Bloom

Livro doado pelo irmão Bezerra e digitalizado pelo irmão Fernando José
Sinopse:

Este livro é centrado em três figuras: uma personalidade mais

ou menos histórica, Yeshuá de Nazaré; um Deus teológico,

Jesus Cristo; e um Deus humano, bastante humano, Javé.

Essa sentença inicial não deixa de ser polêmica, mas a intenção do autor é apenas esclarecer (se puder fazê-lo) e não ofender.

Quase tudo que pode ser sabido a respeito de Yeshuá.


Lançamento  do Grupo Mente Aberta:

https://groups.google.com/forum/?hl=pt-BR#!forum/grupo-de-livros-mente-aberta


Grupo Parceiro  é o Grupo Espírita Allan Kardec:

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