sábado, 16 de janeiro de 2021 By: Fred

{clube-do-e-livro} Liivro, Afonso Cruz - A carne de deus

CAPA
A CARNE DE DEUS
AVENTURAS DE CONRADO FORTES E LOLA BENITES
AFONSO CRUZ
BERTRAND EDITORA

PAGINA��O: Cabe�alho e n� de p�ginas 271
Esta obra foi digitalizada e corrigida pelo Servi�o de Leitura Especial da Biblioteca Municipal de Viana do Castelo. Destina-se unicamente a pessoas com necessidades especiais e n�o tem fins comerciais.
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BADANA DA CAPA
Afonso Cruz, quando n�o est� a viajar, realiza filmes de anima��o � �s vezes de publicidade, �s vezes de autor � faz ilustra��es (n�o s� para adultos como para todos os outros tipos de crian�as, tendo alguns livros editados), toca guitarra, banjo, harm�nica, ukulele , canta, escreve e comp�e para a banda de blues/roots. The Soaked Lamb. Produz a sua pr�pria cerveja e usa chap�u. Em Julho de 1971, na Figueira da Foz, era completamente rec�m-nascido e haveria, anos mais tarde, de frequentar lugares como a Ant�nio Arroio, as Belas-Artes de Lisboa, o Instituto Superior de Artes Pl�sticas da Madeira e mais de meia centena de pa�ses.
A trama deste romance, o primeiro que publica, nasceu de v�rias viagens pelo Leste europeu, Am�rica do Sul, �sia e �frica, bem como o fato de ter sido iniciado em organiza��es escusas e religi�es em desuso, por vezes animistas e, ocasionalmente, insalubres, segundo os nossos padr�es de civilidade.
CONTRA CAPA
�As primeiras palavras que sa�ram da boca de Felicijonas Salnius foram um verso inteiro da Odisseia, ainda n�o tinha dois anos. O pai dele recitava Homero com mais insist�ncia do que a m�e lhe dava de mamar e o leite que o alimentou proveio mais das aventuras de Ulisses do que dos mamilos dela. Aos seis anos, brincava com os versos de P�ndaro enquanto as outras crian�as empurravam carrinhos e em 1953 saiu da Litu�nia, pa�s onde nasceu, e emigrou para Portugal e envelheceu em Lisboa. Alguns anos ap�s ter enviuvado foi encontrado �amarrado, na cozinha, a uma cadeira de ferro acolchoada a napa branca. A cabe�a pendia-lhe sobre o peito, um pouco desca�da sobre o ombro esquerdo. No alto da cabe�a tinha um esquadro met�lico profundamente cravado no cr�nio. O roup�o aos quadrados estava cheio de sangue.�
Neste primeiro romance de Afonso Cruz, um thriller sat�rico e psicad�lico, cheio de aventura e suspense, a Ma�onaria encontra-se profundamente envolvida numa geometria criminosa, onde � revelado esse enigma nebuloso que tem sobrevivido nos cantos mais escuros da civiliza��o: o consumo da Carne de Deus.

AFONSO CRUZ
A CARNE DE DEUS
Aventuras de Conrado Fortes e Lola Benites
BERTRAND EDITORA
Lisboa 2008
T�tulo Original: A Carne de Deus
Todos os direitos para a publica��o desta obra em l�ngua portuguesa, exceto Brasil, reservados por Bertrand Editora, Lda.
Rua Prof. Jorge da Silva Horta, 1
1500-499 Lisboa
Telefone: 21 76261 00
Fax: 21 76261 50
Correio eletr�nico: editora@bertrand.pt
Design da capa: Vera Braga
Ilustra��o da capa: Afonso Cruz
Revis�o: Carlos Pinheiro
Pr�-impress�o: Fotocompogr�fica, Lda.
Impress�o e acabamento: Tipografia Peres
Dep�sito legal n.? 275 557/08
Acabou de imprimir-se em Maio de 2008
ISBN: 978-972-25-1733-1
CAP�TULO 1
O professor Felicijonas Salnius vivia num pequeno apartamento alugado na Almirante Reis. O professor era um homem velho que, por coincid�ncia, tinha vivido muitos anos - parece uma evid�ncia evidente, mas n�o � assim, a maior parte das pessoas chega a velho sem ter vivido mais que dois ou tr�s meses, por vezes apenas um fim-de-semana. N�o tinha cabelo e vestia com primor. Roupas que mantinha impec�veis h� mais de quarenta anos. Quando chegava a casa, tirava-as e vestia um roup�o de flanela, aos quadrados, fosse Inverno ou fosse Ver�o. As roupas eram imediatamente poupadas, bem como os sapatos: trocava-os, mal se via em casa, por uns chinelos, tamb�m aos quadrados. Usava uma pera e uns �culos de arma��o de metal e quando sa�a de casa recitava uns versos. Repetia o ritual quando entrava. Muita gente julgava que esse cochichar, que acompanhava as suas entradas e sa�das, eram ora��es. N�o eram, mas eram como se fosse. O professor Salnius era uma pessoa cheia de rituais na vida. Tudo, para
ele, desde a mais quotidiana e aborrecida das a��es deveria ser associado a uma frase que o acompanhasse e que lhe desse outra dimens�o, tal como fazem os sacramentos cat�licos. Quando escovava os dentes recitava uma frase, como urna f�rmula m�gica, uma frase que sublinhasse esse ata t�o
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quotidiano que � a higiene da boca e das gengivas sens�veis. E ele dizia que n�o era apenas os dentes que lavava e esfregava, que aquilo era o ato que o fazia lavar do que gostaria de ter dito e n�o disse e do que gostaria de ter calado e n�o calou. O dent�frico, para ele, era um instrumento m�gico, como ali�s o eram todos, ou quase todos, os momentos da sua vida, viessem em tubos ou noutras embalagens.
Na d�cada de quarenta, Salnius era um fot�grafo com algum sucesso. Tinha-se licenciado em Literatura, mas, por voltas que o destino d� (� como os intestinos, o destino) acabara por se dedicar � fotografia. E n�o se dera mal a despeito dos avisos de familiares contra essa vida menos can�nica que a de professor de Literatura. Na d�cada de cinquenta fora obrigado a dar raz�o aos tais familiares que o avisaram e desistiu da fotografia para se dedicar a uma carreira acad�mica e ao mundo dos livros e das letras que os comp�em. N�o sem antes ter vivido uma vida cheia de vida. E ter continuado a viv�-la dentro das p�ginas dos livros. Os pais morreram, fatalmente, um em Siauliai, e a m�e gra�as a Estaline.
As primeiras palavras que sa�ram da boca de Felicijonas Salnius foram um verso inteiro da Odisseia) ainda n�o tinha dois anos. O pai dele recitava Homero com mais insist�ncia do que a m�e lhe dava de mamar, e o leite que o alimentou proveio mais das aventuras de Ulisses do que dos mamilos dela. Aos seis anos, brincava com os versos de P�ndaro enquanto as outras crian�as empurravam carrinhos e em 1953 saiu da Litu�nia, pa�s onde nasceu, e emigrou para Fran�a onde viveu tr�s anos. Depois, casou-se com uma portuguesa e, acabou por ir com ela para Portugal. Viveram em Coimbra at� � morte dela, altura em que Salnius decidiu comprar um apartamento em Lisboa. N�o foi casual a sua decis�o, havia sido convidado para dar aulas na Faculdade de Letras.
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Reformou-se quando chegou aos sessenta e sete, cansado de ensinar o que n�o � ensin�vel, mas satisfeito, contudo, com a vida que lecionara.
Nestes dias pacatos de reforma, lia compulsivamente e escrevia. Escrevia muito, mas tamb�m apagava muito, por isso, muito pouco dessa produ��o chegava a sair portas fora em dire��o ao p�blico. A maior parte convertia-se em nada, contrariando as leis de Lavoisier que dizem que nada se perde. Salnius fez desaparecer nesse bizarro Nada muito pensamento que daria que pensar. Para onde v�o as frases apagadas? � um dos grandes mist�rios da ci�ncia. Todavia, o professor editou um livro de poesia, um livro muito ignorado, mas de razo�vel qualidade liter�ria, e dois livros sobre simbologia e ritual.
Nestes dias pacatos de reforma, sa�a de casa de manh� e dava uma volta pelo quarteir�o. Pit�goras ia atr�s dele. Era um schnauzer an�o com o pelo muito bem tratado e uma coleira com uma placa de metal onde n�o se lia o nome do c�o. Nessa placa estava apenas gravado um pequeno pentagrama ladeado por um tri�ngulo ret�ngulo e um tetrakis. S�mbolos, os mesmos s�mbolos de que Felicijonas Salnius tanto gostava.
O professor sa�a poucas vezes, al�m das necess�rias aos imperativos biol�gicos do seu c�o com nome de fil�sofo. Perguntavam-lhe muitas vezes sobre a escolha desse ins�lito batismo e o professor explicava. Pit�goras acreditava na metempsicose, essa esp�cie de reencarna��o, e n�o foram poucos, entre fil�sofos neopitag�ricos e �rficos, que se disseram incapazes de magoar um c�o pois temiam a possibilidade de estar a pontapear o pr�prio Pit�goras numa das suas transmigra��es. Certo, certo, � que o pr�prio Pit�goras (o fil�sofo e n�o o schnauzer) se gabava a plenas guelras de se recordar de ter sido um peixe. E at� se lembrava de ter sido uma pedra. Ou talvez
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tivesse sido Emp�docles. Seja como for, ambos transmigravam muito.
�s oito horas, mais minuto menos minuto, Pit�goras saltava para cima da cama do professor e acordava-o com a l�ngua, uma esp�cie de despertar mai�utico. Um Schnauzer, apesar de em muitos sentidos ser completamente pitag�rico, tamb�m tem qualquer coisa socr�tica. O professor levantava-se (n�o sem antes proferir um verso que celebrasse o dia) e, com o sono devido, dirigia-se � casa de banho para as suas higienes rituais. Pit�goras ladrava mostrando a sua urg�ncia e, enquanto isso, Salnius vestia-se com todo o esmero e regalo. Depois, punha a trela no c�o e l� ia dar a volta da praxe, uma volta ao quarteir�o.
Na �ltima semana, nessas voltas que a bexiga do Pit�goras exigia que ele desse, reparou num homem, num homem estranho. N�o que ele fosse estranho, que tivesse esta ou aquela bizarria, mas dava essa sensa��o. Tinha-o visto a primeira vez junto � padaria - onde o p�o era muito mau (mas onde � que, hoje em dia, se faz p�o em condi��es?) - a fumar um cigarro. Pediu lume com uma voz grossa, entrevada, e o professor deu-lhe lume. Salnius tamb�m era um ex�mio fumador, por isso, nessa manh� t�o fria, ficaram ali os dois, durante uns minutos, a falar do tempo que fazia e dessas temperaturas t�o baixas que esse ano havia produzido com toda a sua dedica��o.
- Est� frio, h�? - disse o professor enquanto tentava acender um f�sforo.
- Este planeta est� de pernas para o ar. N�o me lembro de sentir tanto frio em Abril.
- Est� frio, h�? - repetiu o professor enquanto tentava acender um segundo f�sforo. Conseguiu � terceira, j� depois de descal�ar as luvas. Pit�goras tamb�m se mostrava impaciente,
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mas, evidentemente, tinha mais motivos para isso. Havia ali postes e �rvores � sua espera. O frio que se fazia sentir em Abril n�o era assunto que lhe vazasse a bexiga.
Os bafos devidos ao frio, juntamente com o fumo, misturavam-se no ar, os do homem estranho e os do professor. Isso deu a Salnius uma sensa��o de promiscuidade. Afastou-se e despediu-se do tal homem.
No outro dia, voltou a v�-lo. Estava no largo, mesmo em frente � sua porta. O estranho era um homem muito alto, cabelo ondulado e gabardina. Era daqueles homens que, mesmo que n�o o fizesse, parecia trajar sempre uma gabardina. Salnius interrogava-se sobre o que faria ali um homem, no frio e �quela hora, sem c�o para passear.
A terceira vez que o viu foi depois de ouvir a campainha de casa. Abriu a porta e o estranho entrou juntamente com um soco. O professor Felicijonas Salnius, reformado, caiu no ch�o com o nariz partido.
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CAP�TULO 2
O professor Felicijonas Salnius sangrava abundantemente. Atr�s do homem alto que o havia agredido - e que, no dia anterior, lhe tinha pedido lume -, vinham mais dois homens. Ambos gordos, dessa gordura que o dinheiro faz crescer na barriga. Pit�goras ladrou, mas n�o ladrou muito tempo: o homem alto agarrou-o pelo pesco�o e matou-o como se matam as galinhas. O schnauzer transmigrou de imediato.
O professor tentou p�r os �culos e, at�, limpar o sangue que lhe caia no roup�o aos quadrados. Nestas alturas, os homens - sejam eles grandes eruditos ou n�o - reagem de maneiras rid�culas. Salnius, apesar de literato, n�o era exce��o nenhuma.
Prenderam-no na cadeira da cozinha, uma cadeira de ferro acolchoada a napa branca. Fizeram perguntas a que o professor n�o respondeu. Por tr�s vezes n�o respondeu, uma recusa b�blica.
A pol�cia foi encontrar o seu corpo ainda amarrado � cadeira acolchoada de napa. N�o estava num estado muito avan�ado de decomposi��o, como muitas vezes acontece a quem morre e tem vidas solit�rias. E isso gra�as aos vizinhos. Ali�s, a miss�o do vizinho � ser indiscreto e meter-se na vida dos outros vizinhos. Neste caso, meteram-se na morte. O primeiro
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sinal de que algo anormal se passava veio atrav�s do sil�ncio, foi comunicado pelo sil�ncio. A vizinha de baixo, a dona Esm�nia, costumava reclamar ritualmente - todos temos os nossos rituais, uns mais metaf�ricos do que outros, mas rituais na mesma - com o latir do c�o do professor. O sil�ncio da manh� seguinte, altura em que o c�o exibia com mais alarde o seu ladrar, fez despertar a curiosidade da vizinha de baixo. Este foi o primeiro sinal de que algo estranho se passava. Dona Esm�nia n�o esperou pelo segundo sinal. A pretexto de que tinha correspond�ncia colocada por engano na sua caixa do correio - o que era verdade -, subiu os degraus e bateu � porta do professor com uma carta na m�o. O professor Salnius - que se por acaso n�o estivesse amarrado estaria morto - n�o respondeu. Ent�o, face ao mutismo da porta do professor, dona Esm�nia esperou pela senhora que limpava o pr�dio e que tamb�m limpava a casa do professor. Disse que tinha uma infiltra��o na casa de banho, que se calhar o professor tinha ido passar uns dias fora de Lisboa e tinha-se esquecido duma torneira mal fechada que, por acaso, at� j� havia acontecido. Disse assim a dona Esm�nia � dona Clotilde:
- Tenho uma infiltra��o na casa de banho. Parece um chuveiro. J� fui bater � porta do senhor Salnius, mas ele n�o responde. Se calhar foi para fora, quem sabe l� para as R�ssias e esqueceu-se da torneira aberta. Ent�o pensei c� para mim: mas a dona Clotilde tem a chave do apartamento do professor...
A dona Clotilde acreditou na dona Esm�nia e usou das suas chaves para entrar no apartamento do professor. Por via das d�vidas, as duas senhoras voltaram a bater � porta. N�o obtendo resposta, entraram. Viram o c�o morto no corredor j� com a alma completamente transmigrada. No quarto havia roupa cuidadosamente dobrada, em cima da cama, � espera de
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sair de casa para ir passear um c�o com nome de fil�sofo pr�-socr�tico. O professor estava amarrado, na cozinha, a uma cadeira de ferro acolchoada a napa branca. A cabe�a pendia-lhe sobre o peito, um pouco desca�da sobre o ombro esquerdo. No alto da cabe�a tinha um esquadro met�lico profundamente cravado no cr�nio. O roup�o aos quadrados estava cheio de sangue.
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CAP�TULO 3
Os ovos vinham demasiado passados. Lola Benites reclamou. H� quantos anos tomava o pequeno-almo�o no Early Bird? H� muitos.
- H� quantos anos � que venho aqui tomar o pequeno-almo�o? - perguntou Lola ao empregado.
- H� muitos - respondeu o empregado enquanto recolhia o prato.
Lola era uma mulher de trinta e dois anos, alta, de cabelos quase castanhos e segura do que dizia com seguran�a e igualmente segura do que dizia com inseguran�a. Este �, ali�s, um dos grandes segredos que faz com que qualquer banalidade que se diga pare�a assunto de autoridade.
'Chamou o empregado outra vez. O caf� iria arrefecer enquanto esperava por outros ovos.
- N�o est� � espera que v� comer os meus ovos com o caf� frio? - perguntou Lola Benites segurando a ch�vena como se ela tivesse pe�onha ou se o caf� estivesse prestes a arrefecer.
- Evidentemente que n�o - respondeu o empregado enquanto levava o caf�.
Lola Benites era uma mulher que sabia muito bem ser arrogante, ao mesmo tempo que era bonita. Tamb�m era uma
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mulher determinada e de olhos papudos, grandes, rasgados e elegantes, contudo.
Enquanto os seus ovos iam e vinham, Lola olhava o rel�gio ami�de. N�o por ser um admir�vel exemplar herdado duma tia-av�, mas porque queria saber as horas. Muitas vezes, querer saber as horas � motivo para se olhar para o mostrador do rel�gio. Estava impaciente, nesse dia, tinha combinado encontrar-se com Marim Grigore e este estava atrasado. Um caso rar�ssimo, segundo consta. Grigore nunca se atrasa.
Lola era jornalista. Tinha sido despedida e, com o dinheiro da indemniza��o juntamente com o que seu pai abundantemente lhe dava, decidira, h� um m�s, escrever um livro sobre seitas secretas - ou discretas, como alguns preferem - e andava a recolher depoimentos. Neste caso espec�fico, Grigore era o mais desejado dos entrevistados. Num mundo dominado por lobbies, grupos de filosofias duvidosas, grupos sem filosofias, grupos demasiado m�sticos, grupos sem misticismo, Marim Grigore era um o�sis. Tinha a seu cargo uma loja selvagem. Uma loja selvagem � um grupo ma��nico n�o reconhecido pelas duas grandes pot�ncias que dominam esse mundo de pedreiros, cavalheiros e trolhas.
Chamou o empregado uma terceira vez.
- Traga-me a pimenta - disse. E acrescentou: - E o sal.
Fora um amigo do pai, um homem muito bem relacionado, que lhe arranjara maneira de contactar Grigore. Ou melhor, convencera-o a contact�-la a ela. Marim Grigore telefonara-lhe uma tarde, com a sua voz seca e profunda, meio sussurrada. Dar-lhe-ia uma entrevista, mas teria de ser em Londres - o que convinha a ambos, j� que os dois passavam l� a maior parte do seu tempo. Lola assentiu e sugeriu o caf� onde costumava tomar o seu pequeno-almo�o, o Early Bird.
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Grigore concordou e o encontro foi marcado, tendo ele avisado relativamente �s horas combinadas: �Raramente chego atrasado e desgosta-me ter de esperar�.
O empregado deu meia volta para ir buscar a pimenta e o sal, e nessa altura entrou Marim Grigore. A porta abriu-se, o frio de fora fez-se sentir dentro, at� a porta se fechar de novo. N�o trazia fato e isso contrastava com o que Lola esperava. Nestas coisas espera-se sempre um ar burocr�tico. Quando se combina um encontro com um pedreiro espera-se um burgu�s com qualquer coisa de nobre, umas luvas brancas e umas medalhas. Mas Grigore era daquelas pessoas que passam despercebidas. Trazia um sobretudo e, por baixo, uma camisola de gola alta, preta. Felizmente, naquele lugar, o �nico a usar avental era o chefe e alguns funcion�rios da cozinha.
O caf� estava quase cheio. Era grande e no centro de Londres, perto de Trafalgar Square. De fora, mostrava umas grandes janelas e l� dentro, um interior vitoriano. A maior parte das pessoas que o frequentavam falavam outras l�nguas que n�o o ingl�s.
Grigore puxou uma cadeira e sentou-se sem cerim�nias e com a certeza de que se estava a sentar na mesa certa, mesmo sem nunca antes ter conhecido Lola Benites.
Desculpou-se pelo atraso, n�o era h�bito.
- Pe�o desculpa pelo atraso, n�o � h�bito acontecer.
- N�o se preocupe. Vai tomar pequeno-almo�o?
-J� tomei, obrigado.
Grigore trazia umas sobrancelhas muito pretas, grossas como duas colunas - Jachin e Boaz - e umas bochechas, tanto a esquerda quanto a direita, que inspiravam bonomia.
Grigore vivera toda a sua inf�ncia em Brasov, na Rom�nia onde nascera. Viajava bastante e n�o tinha, propriamente, um lugar a que pudesse chamar lar. Apesar desse nomadismo ainda
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tinha uma casa em Brasov e outra em Sibiu, que herdara dos pais e onde passava um ou dois meses por ano. Tinha tamb�m um apartamento em Londres, alugado ao ano e uma pequena casa em Fran�a, em Auvergne. Na verdade n�o era uma casa, era uma caravana cigana, de madeira. A sua vida era muito reservada e n�o era conhecido pelos m�dia. Nem por ningu�m, exceto certos c�rculos muito restritos que o viam como algu�m muito especial ou algu�m muito esquisito, o que vai dar no mesmo.
Teve uma educa��o franc�fona que lhe permitiu estudar em Paris. Aos vinte e dois tornou-se ma�om, foi iniciado no. Grande Oriente de Fran�a e, passados sete anos, desinteressou-se por todo o aparato ritual e pelos assuntos discutidos. Mas, antes disso, um dia, sem se perceber muito bem como, Grigore havia granjeado uma reputa��o �nica nestes meios. Meios que se dividem entre charlat�es, fil�sofos, pessoas que se gabam de saber o segredo dos templ�rios (bem como templ�rios que se gabam de saber o segredo das pessoas), pessoas que gostam de festas e sal�es, negociantes de todo o tipo de produtos, aduladores, eruditos de muitas esp�cies. Enfim, h� de tudo, at� schnauzers.
O telefone de Grigore tocou. Ele, num gesto cort�s, carregou na tecla vermelha sem sequer olhar para o visor e pediu desculpa. Lola apreciou o gesto e aproveitou para tirar o seu bloco. Grigore n�o permitiu que fosse gravada qualquer conversa, por isso, Lola viu-se obrigada a usar o m�todo antigo, o tradicional bloco de notas. J� sabia disso h� uma semana, altura em que combinara este encontro. Um amigo do pai, discretamente ma�om, tinha-lhe falado de um homem not�vel, um romeno, que tinha fundado uma Loja, uma Loja selvagem, sobre a qual muitas coisas se diziam. Coisas boas e coisas m�s.
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Indagou aqui e ali, onde p�de e a deixaram, e chegou a conseguir que Grigore a contactasse.
A jornalista preparou-se para come�ar a entrevista. Pigarreou como uma cantora de �pera e come�ou pelo princ�pio:
- Ent�o, diga-me: qual � o segredo dos templ�rios?
Lola achava que tinha humor, por isso, sorriu para dentro. O empregado trouxe o sal e a pimenta. Pousou-os na mesa.
Grigore sorriu para fora, mas sem responder.
- H� quanto tempo surgiu a �Pers�fone�? - perguntou Lola Benites enquanto rabiscava, sem nexo, as suas folhas pautadas.
- A �Pers�fone� surgiu h� pouco mais de uma d�cada. Foi uma maneira de fazer as coisas como achava que deveriam ser feitas, por isso criei uma Loja com esse nome. Juntamente com outros mestres ma�ons.
- O que significa esse nome? Quer dizer, eu sei que Pers�fone era uma deusa grega que desceu ao Hades, conhe�o o mito, mas o que � que tem a ver com a Loja que criou?
- Esse � um dos nossos segredos. E como tal, mant�m-se assim. Os segredos s�o melhores quando n�o s�o ditos.
- Ah, o famoso segredo dos templ�rios - ironizou Lola Benites. - N�o acha rid�culo tanto secretismo � volta de meia d�zia de s�mbolos e uns aventais?
O telefone de Grigore tocou mais uma vez. Grigore voltou a n�o atender. E tamb�m n�o respondeu � pergunta de Lola.
- E foi irradiado do Grande Oriente de Fran�a quando criou a sua Loja?
- Fui. N�o se pode ter uma Loja selvagem e, ao mesmo tempo, pertencer ao Grande Oriente de Fran�a.
E a entrevista prosseguiu durante mais dois minutos, no mesmo tom formal, aborrecido.
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Mais dois minutos at� o telefone voltar a tocar. Desta vez, Grigore pediu desculpa e atendeu.
Do outro lado as not�cias eram graves. Para saber isso, Lola Benites n�o precisava de ouvir o que se dizia naquele telefonema. A cara de Grigore dizia mais do que o som que ela n�o ouvia do telefone.
O empregado trouxe os ovos. Pousou-os juntamente com um caf� razoavelmente quente ao mesmo tempo que Marim Grigore se levantava da mesa e sa�a do Eady Bird. N�o disse uma palavra, depois de ter desligado o telefone. Levantou-se e saiu.
Lola tentou um gesto que n�o chegou a acontecer. Teve vontade de o agarrar e perguntar o que se passava. Depois, serenou-se. Haveria tempo. E ali estava, com toda a certeza, uma hist�ria que ele saberia contar e que ela saberia escrever.
Bebeu um golo do caf�. Estava quente. Enquanto isso as �ltimas palavras que Grigore pronunciara antes de desligar o telefone soaram-lhe na cabe�a juntamente com o cheiro da pimenta que deixava chover em cima dos ovos meticulosamente cozinhados:
- Um esquadro? Mas isso � macabro - tinha dito Grigore antes de sair.
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CAP�TULO 4
Chovia com azedume. Era um daqueles dias que tornam o ar cinzento, e as pessoas corriam a abrigar-se dumas gotas que ningu�m previra. Conrado Fortes tamb�m correu para debaixo de um toldo para se proteger da borrasca. Debaixo desse toldo amontoaram-se v�rios pe�es que se comprimiram at� se sentirem de algum modo fora do alcance da chuva. No entanto, esta era obl�qua como um poema, e apanhava as pernas dos que tiveram o azar de ficar na periferia. Fortes era uma dessas pessoas que iria ficar com os sapatos e as cal�as ensopados. Ainda tentou comprimir-se um pouco mais, mas a massa humana j� tinha atingido o limite da compress�o e n�o cedeu um mil�metro.
Conrado Fortes era baixo, mais baixo que a maior parte das pessoas baixas. Tamb�m era calvo e um pouco obeso. N�o muito, mas o suficiente para que se fosse preciso apont�-lo no meio do grupo que se espremia debaixo do toldo � para se proteger da chuva -, a maior parte das pessoas n�o hesitaria em cham�-lo gordinho, baixinho ou careca. Ou as tr�s coisas na mesma frase. Ou uma combina��o de duas delas, que era a sua descri��o mais comum.
Conrado Fortes vivia com a m�e. Tinha quarenta e dois anos e o h�bito salutar de fumar charuto. Especialmente ap�s
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as refei��es principais. Nesse dia em que chovia copiosamente, estava completamente desempregado. Era uma daquelas situa��es que se vinha a repetir diariamente h� j� mais de dois
meses. Fora despedido duma grande empresa, multinacional, de telefones (ou telecomunica��es, como se diz hoje em dia). Fortes tinha problemas com os hor�rios, sempre teve. Os atrasos sistem�ticos permitiram-lhe tornar-se desempregado e sem perspectivas nenhumas. Fortes sabia fazer muito poucas coisas.
H� uns dias, uma conhecida, enfermeira que trabalhava num centro de sa�de, tinha-lhe telefonado. Sabia de uma pessoa que precisava de algu�m que soubesse escrever, num com� putador, o que lhe ditavam. Fortes, apesar de escrever s� com dois dedos, sentira-se capaz de responder � demanda e nesse dia de chuva l� ia tentar arranjar esse pari-time que lhe poderia ajudar a pagar mais uma caixa de havanos.
O aguaceiro manteve-se, teimoso, e algumas das pessoas amontoadas debaixo do toldo perderam o medo da �gua e aventuraram-se rua abaixo cobrindo-se com os respetivos casacos, enquanto aqueles mais dados �s letras se cobriam com revistas ou jornais. O espa�o ficou mais confort�vel e Conrado Fortes deixou de sentir as gotas de chuva contra as suas cal�as. Contudo, o mal estava feito e a �gua j� havia logrado atingir as meias castanhas. Tinha os p�s completamente ensopados e, quando os pousava, sentia a �gua a barulhar dentro dos sapatos de couro.
Perguntou as horas a uma senhora que tamb�m se protegia da b�tega. A resposta dessa mesma senhora fez Fortes tomar consci�ncia de que estava atrasado para a entrevista que lhe daria a possibilidade de trabalhar a escrever o que lhe ditavam (usando apenas dois dedos). Saber que se encontrava atrasado n�o provocou nenhuma rea��o especial em Conrado Fortes.
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Ele era um homem habituado a viver estas situa��es. A falta de pontualidade era uma das suas caracter�sticas mais vincadas, mais profundamente enraizadas, mais que a forma do seu nariz ou o tamanho dos seus bra�os. Mas isso, a falta de pontualidade, tem a vantagem de n�o se notar quando se olha para um homem que se protege da chuva debaixo dum toldo. A calv�cie � mais evidente do que falta de pontualidade, nota-se � dist�ncia, ao contr�rio da propens�o para o atraso, que se esconde debaixo da pele e se manifesta cada vez que se combina uma hora.
Fortes, enquanto a chuva insistia em molhar o mundo, entreteve-se a olhar para a montra que tamb�m se protegia da chuva debaixo do mesmo toldo.
Passados quinze minutos, a chuva havia abrandado consideravelmente e as �nicas pessoas que se mantinham debaixo do supracitado toldo eram a senhora que indicara as horas a Conrado Fortes e ele pr�prio. A senhora, todavia, tinha um penteado que justificava tantos cuidados com a �gua que ca�a dos c�us.
Quando a chuva parou sa�ram os dois e despediram-se como se se tivessem conhecido. Ele seguiu at� ao Martim Moniz e subiu a Almirante Reis. Estava mais de meia hora atrasado. Isso n�o o fez estugar o passo e ainda parou algumas vezes para observar as montras de marroquinarias e eletrodom�sticos.
Quando o atraso chegou perto dos quarenta e cinco minutos sentiu que deveria arranjar uma desculpa eloquente. N�o se lembrou de nada em especial, mas culpar os transportes funciona sempre, especialmente quando chove.
Em frente ao pr�dio que era o seu destino, tocou para o terceiro direito. Ningu�m lhe respondeu, mas reparou que a porta da rua n�o estava bem fechada. Por isso entrou. Subiu
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os lances de escada que o levaram at� ao elevador, tocou no bot�o para o chamar. As escadas cheiravam a lixivia e tinham uns grandes vasos com as plantas que foram criadas pelo Criador do Universo com a �nica fun��o de embelezar o �trio dos pr�dios e alguns escrit�rios.
Enquanto esperava, Fortes trauteava qualquer coisa. Subiu, fechou as grades do elevador e reparou que a porta do terceiro direito estava entreaberta. Ouvia-se o som dum aspirador. Fortes bateu na porta, mas n�o obteve resposta. As suas batidas misturaram-se com o ru�do das limpezas e n�o chegaram aos ouvidos da dona Clotilde.
Conrado Fortes foi entrando. Limpou os p�s com cuidado (estavam completamente molhados e havia fortes possibilidades de haver lama agarrada �s solas). Quando deu os primeiros passos, corredor adentro, percebeu que deveria ter limpado melhor os sapatos.
Dona Clotilde n�o o ouviu chegar e, quando se virou, apanhou um susto mortal - sem morrer, contudo - e gritou condizente mente. Gritou e chegou a agarrar no tubo do aspirador para se defender daquele homem gordinho. Depois, perante a rea��o de Fortes, acabou por pousar a arma improvisada. Desligou o aspirador. Fortes ainda mantinha os olhos arregalados de espanto.
- Vinha ter com o professor Salnius ...
Dona Clotilde nunca soube o que era um eufemismo. Era uma senhora que sabia ser direta nos assuntos tratados, por isso disse assim:
- O professor est� morto, mais falecido do que um cad�ver. Mataram-no ontem com uma r�gua de ferro ou o que era aquilo. E quem � o senhor?
Conrado Fortes ficou sem resposta perante aquela geometria. Quando recome�ou a raciocinar, lamentou que o destino
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lhe tivesse roubado a oportunidade de arranjar um trabalho que lhe parecia f�cil, um trabalho que n�o exigia mais do que dois dedos, um de cada m�o. O destino � um grande ladr�o de felicidades. E sem querer, Fortes deixou escapar um esgar que manifestava a sua frustra��o. Dona Clotilde, que n�o era grande leitora de fisionomias, percebeu nesse mesmo ricto uma manifesta��o de dor e perguntou a Conrado Fortes:
- O senhor � parente?
E Fortes, que n�o era mentiroso, ia responder que n�o. Que estava ali para arranjar um trabalho onde usaria apenas dois dedos, um de cada m�o. Mas n�o respondeu isso.
- Sou sobrinho - disse Conrado Fortes espantado consigo mesmo e com a resposta que, misteriosamente, acabara de dar.
- O apartamento j� n�o tem nada do seu tio. Os senhores que aqui vieram, uns estrangeiros, tratar do funeral e do vel�rio (nem sei onde foi o enterro), deram as roupas (bem boas por sinal) a uma daquelas coisas de caridade. Os livros levaram-nos com eles. E era tudo o que havia c� em casa. Mas havia de ver a quantidade de sangue que tive de limpar...
Ficou pensativa a olhar para o ch�o. E continuou:
- Isto da morte d� que pensar ... esta proximidade toda, ter de varrer os restos e limpar o sangue, cria uma grande ang�stia. Angst) como diria quem tivesse vontade de filosofar. At� havia sangue no teto. Isto tudo faz-me lembrar aquela do Heidegger quando ele disse que um homem s� vive realmente quando tem bem presente a sua mortalidade. Ora, isso � bem verdade e nisto de limpar sangue de azulejos h� muita filosofia. At� me sinto mais viva. A cadeira de napa � que n�o consegui limpar muito bem. O senhor est� a sofrer muito com a morte do seu tio? Se est� n�o � preciso. Olhe, conto-lhe
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aquela de Epicuro que diz que a morte n�o existe. Quer dizer, existe, s� n�o existe para o pr�prio. Est� surpreendido?
Fortes estava surpreendido. Era a primeira vez que via uma epicurista com um aspirador.
Dona Clotilde prosseguiu:
- � que quando estamos vivos, a nossa morte n�o existe. Se n�o, n�o estar�amos vivos. E quando morremos, a morte n�o existe porque j� n�o estamos vivos para a poder contemplar. Digo isto muitas vezes nos vel�rios para consolar as pessoas. T�m-me elogiado muito por causa disso.
- Como � que a senhora sabe que quando morremos n�o estamos vivos? Eu tive um primo que se virou dentro do caix�o. Quando o foram abrir para retirar os ossos, l� estava ele, em dec�bito ventral, de barriga para baixo. E a madrinha da minha m�e, quando lhe abriram o caix�o, viram que a tampa estava toda arranhada. E at� era um caix�o muito bonito de cerejeira.
- Pois. Nunca se sabe. � um grande mist�rio, isto de morrer. E o c�o do professor tamb�m foi completamente assassinado. Estava ali morto, com o pescocinho torcido. Depois de a pol�cia sair, pu-lo dentro daquele saco de pl�stico para o levar para o lixo.
E apontou para um saco preto que descansava encostado � parede.
- Gostava de o enterrar, mas n�o tenho vagar. Parece que n�o, mas os animais tamb�m s�o seres humanos.
Nessa altura, dona Clotilde olhou para o corredor. Estava enlameado. Uma pessoa pode conviver com o sangue, com a morte e citar fil�sofos alem�es, mas revela-se incapaz de suportar os outros grandes problemas f�sicos e metaf�sicos do mundo: a lama que parece ser atra�da pela limpeza. A lama n�o surge nos lugares sujos, a lama surge nos lugares acabados
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de limpar. H� quem justifique este fen�meno de muitas maneiras, mas, na verdade, ele � apenas uma prova da n�o exist�ncia de um Deus plenamente bom. Pelo menos, sabemos que Ele n�o � complacente com as senhoras da limpeza. Face a esta demonstra��o de falta de respeito por parte de Deus Todo-Poderoso, dona Clotilde, sem qualquer pudor, come�ou aos berros com Conrado Fortes. Este tentou desculpar-se e chegou mesmo a descal�ar-se, meias inclusive. Atra�da pela gritaria, a vizinha do segundo, dona Esm�nia, apareceu � porta do apartamento do falecido Felicijonas Salnius, professor reformado que vivia com o seu c�o com nome de fil�sofo.
Dona Clotilde informou a vizinha de baixo que aquele homem que se encontrava descal�o no meio do corredor, calvo e com os sapatos na m�o, tinha sido o culpado da gritaria, tinha enlameado o tapete que tinha sido lavado nessa manh�.
- E quem � o senhor? - perguntou a dona Esm�nia.
- � o sobrinho - respondeu a dona Clotilde depois de se acalmar e recuperar as suas virtudes estoicas. - Est� a sofrer muito. Teme, n�o sem alguma pertin�ncia, que os mortos possam estar vivos. At� me falou do primo que, depois de falecido, se virou no caix�o como n�s fazemos na nossa cama para adormecer. Talvez seja isso: as pessoas viram-se no caix�o para adormecer pela eternidade fora. � preciso encontrar uma boa posi��o ... Eu, por exemplo, n�o consigo dormir em tecidos sint�ticos. Se o len�ol tem polyester, viro-me e reviro-me como o primo deste senhor.
- Lamento pela sua perda - interrompeu dona Esm�nia. - Sabe que vieram aqui uns estrangeiros e levaram os livros do seu tio? Uns homens mal-encarados que, sem mais explica��es, levaram o cad�ver do professor e nem nos informaram para onde. Eu teria gostado muito de ter prestado uma �ltima homenagem ao seu tio. Era um homem muito inteligente
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que at� citava a B�blia. Mas os homens que c� vieram eram uns mal-encarados. N�o s�o seus familiares, s�o?
- Acho que n�o ... s� se fosse algu�m do lado da minha m�e - mentiu Conrado Fortes.
- Levaram o corpo e nem sequer comunicaram onde era o vel�rio. Nem um an�ncio no jornal na sec��o dos mortos e falecidos, obitu�rio que � como se chama ...
- Nada - sublinhou a dona Clotilde. - Nem um an�ncio pequenino a dizer onde era o enterro.
- Olhe - disse a outra -, at� tinha correspond�ncia para o seu tio que me puseram na minha caixa de correio, por engano. N�o a entreguei aos mal-encarados que aqui vieram. Ia l� confiar neles ... Nem na pol�cia que nos encheu de perguntas e nem aos jornalistas que aqui vieram.
Tirou uma carta do bolso do avental e entregou-a a Fortes. Este agarrou nela, guardou-a no bolso do casaco. Entrou no elevador e saiu do pr�dio, s� percebendo que estava descal�o quando sentiu o frio das pedras da cal�ada. Sentou-se nos degraus da porta para se cal�ar. Quando se levantou estava um homem muito alto, de gabardina, com um ar que provocava uma certa estranheza, parado em p�, em frente do pr�dio. Fortes pediu licen�a e o homem afastou-se o suficiente para o deixar passar.
Conrado caminhou avenida abaixo com os seus sapatos molhados.
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CAP�TULO 5
Cheirava a cabrito e a grelos. A m�e de Fortes estava na cozinha a fazer o jantar quando o filho entrou. Vinha descal�o porque tinha os sapatos enlameados. Os sapatos, tinha-os deixado � porta, do lado de fora.
Cumprimentou a m�e e caminhou para o quarto. A senhora Fortes foi atr�s dele. Queria saber not�cias da sua entrevista, queria saber se tinha finalmente arranjado trabalho. Conrado Fortes fechou a porta do quarto deixando os vapores a cabrito, que deambulavam pela cozinha e se estendiam pela casa, do lado de fora, juntamente com a sua m�e.
- Conta-me como � que correu - pediu-lhe ela do outro lado da porta de mogno. Ou talvez fosse cerejeira como o caix�o da sua madrinha: isso nunca ficou muito claro com o empreiteiro.
- Conto mais logo ao jantar.
- Hoje � cabrito no forno - disse antes de voltar para a cozinha. Ainda ficou uns segundos encostada � porta � espera que o filho dissesse mais qualquer coisa. N�o disse, por isso, voltou para a cozinha.
A m�e de Conrado era uma senhora pequenina e redonda Como as esferas. Usava o cabelo curto e tinha umas m�os de homem. Cozinhava bem, usava pantufas praticamente a vida
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toda, e apreciava licores anisados. Conrado era o seu filho �nico. Fora casada durante trinta anos com um homem baixinho e redondo como as esferas. Conheceram-se cedo e casaram-se ainda mais cedo. Viveram os primeiros cinco anos do seu feliz matrim�nio em casa dos pais dele, em Viseu. Foram viver para Lisboa quando Casimiro Fortes arranjou um emprego numa tipografia no Bairro Alto, uma oferta irrecus�vel para uma vida aborrecida. Casimiro agarrou essa vida com unhas e dentes, abra�ou-a como abra�ava a mulher � noite e passou a ganhar o suficiente para poder pagar uma moradia nos arredores. O filho de ambos, Conrado, j� havia entrado para a escola, e o pai, ao fim do dia, quase todos os dias, trazia-lhe livros do trabalho. E Conrado arrumava-os por cole��es na grande prateleira do quarto, uns ao lado dos outros e uns atr�s dos
outros. N�o havia muito espa�o. Quando aprendeu a ler, come�ou a l�-los, uns atr�s dos outros tal como estavam nas prateleiras do m�vel de pinho. Enquanto os amigos que n�o tinha jogavam � bola na rua, Conrado lia. Um livro atr�s do outro. E o pai dizia-lhe mesmo: o pior cego � o que n�o quer ler. Por isso, Conrado lia.
A m�e chamou-o para jantar.
- Est� na mesa!
- J� vou - gritou Fortes do quarto.
Tinha o envelope que lhe fora entregue pela dona Esm�nia em cima da cama. Estava a olhar para ele sentado na cadeira onde passava a maior parte da sua vida. Com livros e charutos. Debru�ou-se e arrancou-o da cama. N�o abriu o envelope. Conrado Fortes era um homem honesto (pelo menos era o que ele achava de si mesmo) e sentia-se mal perpetrando aquela viola��o de envelope. N�o poderia ler o correio de outra pessoa. Virou-o para ver o remetente com o sincero
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prop�sito de o devolver. �[o�o Caturra�, lia-se no verso juntamente com uma morada de Coimbra.
Conrado sentou-se em frente ao computador e foi ler as not�cias dos �ltimos dias. Num motor de busca colocou o nome do professor Felicijonas Salnius e leu o que se dizia sobre o homic�dio. Leu os pormenores, o roup�o aos quadrados, a cadeira da cozinha, a napa branca, o modo como estava amarrado e, tamb�m leu sobre o esquadro de metal que fora encontrado enterrado, profundamente enterrado, no cr�nio do professor. A parte do esquadro chamou-lhe a aten��o. Conrado lia muito, sabia que ali havia uma mensagem.
- Est� na mesa - repetiu a m�e. - A comida fria n�o tem gra�a nenhuma.
Conrado levantou-se em dire��o � sala. Dobrou o envelope e guardou-o no bolso de tr�s das cal�as.
Sentou-se � mesa e elogiou o cabrito quando meteu � boca a primeira garfada. Falou com a boca cheia e empurrou o resto com um vinho l� da terra.
- J� tenho emprego - mentiu Conrado (que nem era uma pessoa mentirosa).
A m�e ficou feliz, serviu-se de mais cabrito - apesar de ter o prato cheio. Conrado estava corado. N�o gostava de mentir.
Fora o seu pai que lhe ensinara a n�o o fazer, tinha-lhe dito: � muito feio mentir. E ele acreditou. No dia seguinte, sem qualquer rela��o com o judicioso conselho que dera ao filho, o pai de Conrado n�o acordou. Foi uma morte suave, daquelas que as pessoas comuns e extremamente mortais dizem ser �uma boa maneira de morrer�. Quando a mulher lhe trouxe a limonada que costumava beber, ainda na cama, em jejum, ele n�o se levantou nem bebeu a limonada. Estava frio e, pior que isso, morto. A senhora Fortes n�o gritou nem chorou, ficou
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uns momentos parada, sentada na cama. Depois ergueu-se com as for�as que herdara da vida e comunicou o �bito. Primeiro aos vizinhos, depois �s urg�ncias (h� que ter prioridades). O filho que j� n�o era crian�a nenhuma sofreu o rev�s com mais intensidade do que seria normal. Sentiu, ele que nunca teve amigos, que n�o teria mais livros a entrarem casa adentro e a engordarem a sua estante de pinho. Claramente, isso foi uma racionaliza��o para n�o encarar a morte do pai no seu aspeto mais duro e banal: era a morte do seu pai.
Mas n�o foi apenas isso que lhe trouxe problemas para o resto da vida: quando viu o pai morto, foi a quase nudez da sua m�e que mais o impressionou. Reparou que as mamas da sua progenitora n�o eram completamente sim�tricas, uma era mais arrojada do que a outra, mais espevitada, enfim, maior, e esse desequil�brio passou do leite para a sua cabe�a. A cada mamada sugava essa despropor��o e isso trouxe-lhe, acreditava Conrado, dificuldades sociais, de relacionamento. Um homem n�o pode mamar dessa as simetria toda e crescer normal. Ali�s, a prova � que ele praticamente n�o tinha crescido, continuava a ser um homem pequenino. E calvo como tantos beb�s. Por isso ficou ali de boca aberta a olhar para a sua m�e, aflita, com as suas as simetrias a sa�rem da camisa de noite.
Na cama, estava o corpo do seu pai, tamb�m de boca aberta. A m�e tinha-lhe posto os �culos, uns �culos muito graduados, na cara. E o morto, com os seus �culos postos, n�o via nada, continuava de boca aberta. Conrado tamb�m, mas a sua aten��o estava presa, acorrentada, nessa possibilidade metaf�sica de Deus n�o ter usado de rigorosa simetria para criar as mamas e outras coisas que crescem aos pares. Conrado n�o tinha mais de doze anos quando este drama se deu,
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mas guardou os �culos do pai para um dia os entregar ao Criador do Universo, fosse ele Deus ou aquele senhor simp�tico que pregava o fim dos tempos no Rossio. O problema do Universo resumia-se, com toda a certeza, a umas quantas dioptrias.
Portanto, Conrado teve uma vida passada dentro de livros e letras, principalmente at� � morte do pai. Raramente livros de qualidade. Havia um grande acervo deles, cole��es inteiras, sobre hermetismo, esoterismo, westerns de cordel e outras astrologias, mas muito pouco de literatura pura e dura, daquela que faz dum leitor um erudito respeitado em vez dum homem sem grandes perspectivas sociais. Conrado, depois de tantos anos a ler o que lia, sabia tudo sobre �vnis e gabava-se - em festas - de saber o segredo dos templ�rios. Esse era um segredo que afastava as pessoas. Quando sabiam que ele sabia tais coisas, Conrado ficava sozinho com um copo de vermute na m�o e um charuto na outra. O tal segredo dos templ�rios ficava-lhe na boca como um fio de bacalhau cozido entre os dentes, pronto a sair e ningu�m perto para ouvir. Tamb�m ti�
nha sido abduzido algumas vezes, especialmente depois de beber muito. A maior parte das vezes tinha a sensa��o de que lhe tinham, os extraterrestres, tirado o f�gado e, em vez do �r� g�o, tinham deixado uma grande dor de cabe�a.
- E em que � que consiste o teu novo trabalho? - perguntou-lhe a m�e com a boca cheia.
- Secretariado - respondeu Conrado Fortes. E nesse instante tr�gico em que mentia (ele que n�o era mentiroso), tornou a resolu��o de tentar contactar o remetente da carta, o tal Jo�o Caturra, e fazer-lhe chegar a correspond�ncia extraviada. Depois de tantos anos a ler aventuras mal escritas, sentiu
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alguma adrenalina a ser empurrada suprarrenais fora, sentia que estava no meio de uma trama intrincada com os ingredientes de um dos maus livros que estava habituado a ler. Tinha um cad�ver assassinado com requintes simb�licos e, mais importante que tudo, tinha uma carta dirigida ao morto (que na altura estava vivo). Haveria de falar com o tal Jo�o Caturra.
- E ganha-se bem a fazer isso? - indagou a m�e cheia de grelos na boca.
- Espero que sim - e levantou-se.
Conrado tirou um charuto do frigor�fico - guardava-os na gaveta dos vegetais com uma esponja, para n�o secarem - e voltou para a mesa j� com ele aceso. A sua m�e ainda tinha a boca cheia de grelos. Quando o viu j� com o charuto aceso, levantou os pratos, despejou os restos e, como era h�bito e tradi��o, trouxe um caf� para o filho,
Ficou ali, meditabundo, a fumar o seu havano enquanto a m�e comentava a novela. Ainda pensou em telefonar ao seu �nico amigo, Carlos Ant�nio, mas lembrou-se de que este n�o gostava de ser incomodado depois das oito da noite.
A luz do candeeiro da sala revelava a sua silhueta atrav�s de cortinados rendilhados e brancos. Sentado numa poltrona de couro, Fortes recortava-se � janela. L� fora sentia-se alguma humidade e frio, acima de tudo, frio. A casa onde viviam, a casa que o pai pagou com anos a imprimir livros, era uma pequena vivenda nos arredores de Lisboa, com uma garagem e um jardim onde cresciam sardinheiras e um limoeiro. Do outro lado da rua - uma rua de moradias geminadas - havia uma cabina p�blica. Nessa cabina, um homem muito alto, de gabardina, fazia um telefonema. N�o o fazia do telefone da cabina, mas do seu pr�prio telem�vel.
- Chama-se Conrado Fortes e desconhe�o a liga��o com Salnius. Esteve hoje l� em casa e a vizinha, disse-me a mulher
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da limpeza (que cita Heidegger com grande propriedade), entregou-lhe um sobrescrito ... Sim, claro que trato disso ... N�o ... n�o vive sozinho, vive com a m�e ... j� disse que trato disso.
E desligou o telefone. Guardou-o na gabardina enquanto Fortes se recortava na janela com o fumo do seu charuto e o cheiro do caf�.
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CAP�TULO 6
O vel�rio de Felicijonas Salnius foi discreto. Outros adjetivariam de outro modo. Diriam que o vel�rio foi secreto. Aconteceu numa sala pequena com ch�o aos quadrados pretos e brancos, por vezes brancos e pretos (depende do otimismo ou do pessirr�smo). O templo ma��nico onde decorreu a cerim�nia ficava perto de Coimbra e pertencia a Jo�o Caturra, um homem novo, de trinta e um anos, filho de um empres�rio de azulejos. Jo�o havia sido iniciado na Loja ma��nica �Pers�fone� tr�s anos antes. Era soci�logo na sua outra vida, no mundo profano onde todos vivemos. Profano significa, literalmente, isso mesmo: aquele a quem est� vedada a entrada do
templo (profanum: antes do templo). A casa onde mandou construir esse espa�o sagrado (que era um perfeito quadrado oblongo) fora comprada com o dinheiro dos azulejos que o pai teve engenho de vender e o filho teve sortes de poder gastar. Jo�o comprou esta casa, um antigo solar do s�culo XVIII, com muita alvenaria na fachada e uma grande fonte � entrada. Nessa fonte rugia um le�o de pedra que deitava �gua pelas ventas. Os altos muros de xisto que rodeavam
a propriedade eram cobertos de hera e duma trepadeira invasora origin�ria da Am�rica do Sul. O templo fora, obviamente, constru�do nas traseiras onde a curiosidade chega com mais
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dificuldade. O pedreiro julgou ter erigido uma capela, uma pequena capela com bancos de madeira, duas colunas � entrada (uma j�nia, outra cor�ntia), tr�s degraus para o altar, nichos
e muita pedra. O resto da decora��o, aquilo que caracterizaria esse espa�o como inequivocamente ma��nico, ficou ao cuidado do pr�prio Jo�o.
Marim Grigore presidiu � cerim�nia. Era o vener�vel. Nesse dia estiveram presentes todos os membros da Loja �Pers�fone�: Alexander Hol era o primeiro vigilante e Daim Ku�uk era o segundo (substitu�a o professor nas suas fun��es oficiais). Lutz Popke era o orador, Jo�o Caturra era o mestre-de-cerim�nias, Felicijonas Salnius era o morto, Umberto Troiani era o secret�rio, Laurent Rigaut era o guardi�o, Cada Vidigal era a esmoler e tesoureira.
O templo estava coberto de panos negros lacrimejados por gotas de prata. Um cenot�fio erguia e envolvia o morto, o corpo de Felicijonas Salnius. Aos seus p�s estavam um esquadro e um compasso, enquanto junto � sua cabe�a (que apontava para Oriente), v�rios ramos de ac�cia surgiam verdes com a sua madeira perene e com o seu cheiro a imortalidade. O cheiro mais ef�mero de todos.
No ritual da Loja �Pers�fone�, o jantar fazia parte da cerim�nia. Marim Grigore foi, compreensivelmente, o primeiro a levantar-se e, com o gesto ritual apropriado, a falar.
- A morte do nosso irm�o, n�o � segredo nenhum, trouxe, a todos n�s que aqui estamos presentes, suspei��es e receios v�rios. � natural. Evidentemente, a morte do nosso irm�o foi uma mensagem para a nossa Loja. Nenhum de n�s, imagino, ficou alheio ao facto de que a morte perpetrada foi uma encena��o da morte de Hiram.
Grigore lembrou-se do seu primeiro trabalho, quando ainda pertencia ao Grande Oriente de Fran�a. Tinha vinte e poucos
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anos quando se levantou e se dirigiu, pela primeira vez desde que havia sido iniciado, at� � cadeira do orador para ler a sua vers�o da lenda de Hiram:
- Hiram Abif, diz a lenda, foi o arquiteto do Templo de Salom�o, do Templo de Jerusal�m. Dividiu os seus trabalhadores em aprendizes, companheiros e mestres e a cada um destes deu os sinais, os toques e as palavras secretas que permitiriam reconhecer-se entre eles. No fundo, n�o havia grande segredo nisto. O que Hiram fez foi colocar um selo de qualidade em cada um dos seus oper�rios. Para que n�o aparecesse um leigo a fazer-se passar por aprendiz ou um aprendiz que se arrogasse de mestre, seria preciso que provasse ter instru��o que acompanhasse a sua alega��o. Isso era feito atrav�s de um c�digo composto por sinais secretos. Qualquer pedreiro ao aprender o seu of�cio, recebia � medida da sua aprendizagem umas palavras e uns toques que provariam a outros ter chegado a certo n�vel de instru��o e poder ser remunerado justamente e conforme a sua sabedoria profissional. Dantes n�o havia secretarias a emitirem certificados de finais de cursos, diplomas, mestrados, doutoramentos e bacharelatos. Isso era feito com estas palavras secretas que eram esteio e alicerce de qualquer grupo profissional. Ningu�m gostaria de ter um templo erigido por um oper�rio incompetente sem o certificado que conferiria alguma credibilidade. Um sistema que n�o era perfeito, mas que n�o tinha os aborrecimentos da burocracia. Ora, certo dia, tr�s companheiros, desejosos de saber os segredos e as palavras passe do grau de mestre, tentaram extorqui-los da boca do pr�prio Hiram, Queriam um diploma sem
passar pelo esfor�o da aprendizagem. Este recusou-se a colaborar e foi morto com a r�gua, esquadro e ma�o dos companheiros, foi ferido mortalmente no cr�nio. A lenda diz-nos ainda que os viciosos companheiros, os assassinos de Hiram
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Abif, esconderam o corpo, enterrando-o em local provis�rio perto do local das constru��es do Templo. Esperariam, depois, ocasi�o prop�cia para esconder o corpo com mais efici�ncia. Para marcar o lugar onde haviam enterrado o cad�ver, espetaram um ramo de ac�cia. Ser�, precisamente, gra�as a este ramo de ac�cia que o corpo de Hiram � descoberto e desenterrado para voltar a ser sepultado em lugar e de forma condignos.
Agora, a hist�ria de Hiram havia-se tornado realidade. Um ma�om fora morto, tal como o lend�rio arquiteto do Templo de Salom�o.
Grigore sentou-se. Tal como era exigido nesta ocasi�o, trajava de negro e usava o avental do avesso. A parte de tr�s do seu avental, como � costume, era forrada a preto e decorada com uma caveira prateada, ossos e l�grimas.
Foi ent�o a vez de o secret�rio, Umberto Troiani, falar:
- Avaliando que o crime foi cometido usando simbologia ma��nica, temos todos os motivos para acreditar que foi cometido por ma�ons. Claramente, seriam homens desejosos de saber os segredos da nossa ordem. Ao ponto de matarem por isso (e receio que nenhum de n�s esteja agora em seguran�a). A nossa Loja n�o tem segredos que n�o possam ser revelados. Tem segredos que n�o podem ser facilmente compreendidos, mas, quanto a isso, nada a fazer. Sugiro que publiquemos todos os nossos trabalhos que foram lidos nas nossas sess�es secretas. Penso que a nossa Loja ganhou uma fama que n�o corresponde � verdade. Os outros grupos ma��nicos, ditos regulares ou n�o, acreditam que possu�mos algum tesouro esot�rico. E n�o se enganam muito, mas n�o � um segredo. Se Publicarmos, se tudo ficar acess�vel a todos, nenhum de n�s
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ser� alvo dos mesmos criminosos que atentaram contra a vida do nosso irm�o. Nenhum segredo vale uma vida humana.
Marim Grigore n�o disse que aquilo que Umberto Troiani acabara de dizer j� havia sido decidido com Jo�o Caturra. J� tinham decidido escrever o que sabiam sobre os segredos ma� ��nicos. E Jo�o Caturra havia pedido ajuda a Felicijonas Salnius.
Alexander Hol tomou a palavra depois de Troiani se ter sentado. Discordava radicalmente com a publica��o e a profana��o dos segredos ma��nicos. Se toda a gente tivesse acesso ao conhecimento perpetuado pela Ma�onaria, deixaria de haver cimento entre os membros, um segredo que os unisse na sua partilha.
- Nesse caso - perguntou Daim Ku�uk -, que fazer? Quem quer que tenha morto o nosso irm�o anda a� a monte' e pode ser-nos fatal. Literalmente.
Marim Grigore concluiu a discuss�o:
- As pranchas escritas nesta Loja ser�o divulgadas. Secretas ou n�o, tornar-se-�o p�blicas. Mesmo que isto tenha como consequ�ncia o fim da Loja �Pers�fone�,
A sess�o f�nebre foi encerrada com os procedimentos habituais. A noite prolongou-se � volta da mesa j� sem as formalidades do ritual e sem Alexander Hol, que se retirou logo ap�s o encerrar da pompa f�nebre.
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CAP�TULO 7
Depois de terminada a sess�o, Marim Grigore acabou por, discretamente, falar com Umberto Troiani sobre a decis�o que havia tomado juntamente com Jo�o Caturra, uns meses antes: a decis�o de compilar toda a informa��o e depois, com o consentimento da Loja, publicar a conclus�o dos trabalhos. Jo�o Caturra havia pedido ajuda a Felicijonas Salnius relativamente
a quest�es rituais.
Umberto Troiani era um homem humilde, com um grande senso pr�tico e bons sapatos italianos. Era o seu �nico luxo. Tinha o cabelo crespo e demasiado ondulado para o seu penteado - que era moldura de um rosto redondo, pontuado por uns �culos de massa preta muito graduados. Ajeitou-os com as m�os suadas.
- Ser� que foi esse o motivo pelo qual Felicijonas foi assassinado? - interrogou-se, em voz alta, Umberto Troiani. � Talvez, por isso, por essa decis�o, tivesse experimentado a morte. Talvez houvesse quem quisesse, a todo o custo, impedir que material ritual fosse acess�vel a todos. Nesse caso, o assassino seria algu�m da nossa pr�pria Loja ...
Umberto Troiani n�o evitou o arrepio que o seu pr�prio racioc�nio provocou. Conhecia muitos casos semelhantes, de trai��es e mortes. Durante a sua vida havia viajado muito e tinha
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sido iniciado em v�rias organiza��es, seitas e religi�es, havia visto de tudo. Era um autodidata que mergulhara de cabe�a em in�meras experi�ncias religiosas. A ma�onaria fora a sua paix�o mais duradoura - n�o a ma�onaria de que se fala nos jornais e se especula em livros por vezes s�rios, mas a ma�onaria praticada na Loja �Pers�fone�. Umberto Troiani conheceu Marim Grigore num mosteiro romeno da Mold�via. Estava a passar uns tempos na Bucovina quando, pela primeira vez, viu o romeno que tamb�m fazia o mesmo, passava uns dias naquele mosteiro. Grigore estava sentado na relva a escrever. O italiano tirava fotografias do al�ado lateral, devido �s curiosas pinturas que exibia. Ou, pelo menos, despertaram a curiosidade de Umberto Troiani. Marin Grigore n�o deixou de reparar no interesse deste e aproximou-se do italiano, n�o na- . quela altura, mas durante o jantar no refeit�rio.
- Interessam-lhe as pinturas do al�ado? N�o est�o em muito bom estado ...
- Quando vi aquelas imagens n�o quis acreditar e ainda n�o sei se vi corretamente. Aquelas parecem ser imagens de cogumelos.
-E s�o.
A partir da�, viajaram juntos pela Rom�nia e Hungria, e, mais tarde, pela Gr�cia e Turquia, tornando-se amigos. Os anos foram passando e eles foram-se encontrando, falando sobre as suas descobertas, consolidando a sua amizade constru�da sobre uma curiosa pintura dum mosteiro moldavo, uma pintura de cogumelos, santos, c�u, pecadores, ad�es, evas e infernos.
Quando Grigore fundou a Loja �Pers�fone� n�o se esqueceu daquele viajante italiano que se tinha tornado um dos seus melhores amigos.
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Na noite do vel�rio de Felicijonas Salnius, os dois homens, Marim Grigore e Umberto Troiani, estavam junto ao carro deste �ltimo, encostados ao cap�. O italiano esfregava os bra�os devido ao frio.
- N�o posso concordar contigo, Umberto, parece-me que os assassinos queriam saber o segredo da ac�cia. N�o podia ser um de n�s, todos os membros da nossa Loja conhecem os seus segredos de tr�s para a frente. Teve de ser algu�m de fora. Tudo na morte de Salnius parece indicar que essa � a hip�tese correta. A encena��o da morte de Hiram n�o parece deixar margem para d�vidas ou outras interpreta��es. Era algu�m que queria saber o segredo da ac�cia.
- Mas ent�o por que raio de motivo � que Salnius n�o lhes respondeu? Se tu e o Jo�o Caturra haviam combinado revelar os segredos da nossa Loja e ele estava obviamente ciente dessa decis�o, por que motivo n�o teria Salnius falado? E se falou, porque teriam os assassinos, nesse caso, deixado impl�cita a mensagem de que ele n�o falou? Porque � que usaram essa encena��o da morte de Hiram que diz claramente que ele foi morto por n�o revelar um segredo?
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CAP�TULO 8
Nevava na Transilv�nia, nesse Abril. Os C�rpatos mostravam a sua brancura no topo dos abetos. Lola Benites ficou dois dias em Bucareste antes de apanhar um comboio para Brasov. Escolheu um pequeno hotel no centro, junto � Biserica Neagra. Deambulou pelas ruas, especialmente pela strada Republicii e pela strada Postavarului. Parou para beber caf�. E voltou a parar para beber caf�. Ao todo, mais de quatro e, ao fim da tarde, sentia-se ociosa o suficiente para beber uma
cerveja. Acrescentou mais outra e depois foi jantar.
No outro dia sentou-se numa esplanada, na piata Sfatului, e pediu um crepe e um sumo de laranja. Um homem que aparentava uns sessenta anos aproximou-se. Trazia consigo uns �culos de massa, graduados, pendurados numa cara agreste, cheia de barbas. Os l�bios grossos saiam do rosto como se estivessem com vontade de se ir embora. Carregava uma mala de couro, daquelas com segredo.
Lola n�o deixou de pensar que at� as malas fora de moda t�m segredos.
- Sra. Lola Benites? - perguntou o homem.
E Lola anuiu com a cabe�a e proferiu em franc�s:
- A pr�pria. Presumo que seja o professor Miroiu. Sente-se. Toma alguma coisa?
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-Tomo.
Miroiu fez um sinal ao empregado atrav�s das suas barbas e pediu um caf�.
Lola falara com Miroiu pelo telefone tr�s dias atr�s. Queria saber se no Arquivo de llie Dragomirescu havia algum trabalho, monografias, enfim, algo escrito por Marim Grigore. Miroiu lamentou n�o lhe saber responder. Realmente conhecera Grigore, pois fora aluno do pai deste, Serban, mas ignorava se Marim Grigore alguma vez escrevera alguma coisa. Lola tentou saber mais pelo telefone, mas Miroiu escudou-se na desorganiza��o que pautava a biblioteca e arquivos de que era respons�vel. Queixou-se de que n�o havia dinheiro para informatizar todo o riqu�ssimo acervo de que era deposit�rio. E tempo. N�o tinha nenhum.
- N�o temos dinheiro para computadores, sabe? E se houvesse n�o haveria dinheiro para sal�rios de profissionais que organizassem e indexassem todo o material.
Lola n�o perdeu tempo e perguntou:
- E se eu fosse a�, poderia procurar?
- Ser� dif�cil encontrar alguma coisa. Como lhe disse, n�o h� nada organizado. Mas pode vir.
No outro dia Lola Benites apanhava um avi�o em Londres e aterrava em Bucareste.
Miroiu bebeu o caf� e ela pagou a conta. Levantaram-se os dois e desceram a rua Hirscher. Viraram � esquerda para a Castelului e depois � direita para a Julius Romer. Miroiu parou em frente a um edif�cio igual a tantos outros do centro de Brasov. Era verde e a precisar de pintura. Miroiu abriu a mala em cima de um joelho e tirou um molho de chaves. Abriu a porta e subiram as escadas at� ao segundo andar. Encaminharam-se para uma saleta que se abria no meio de dossi�s, arquivos e livros. No meio dessa Babel, estava uma secret�ria
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de pinho, cheia de pap�is e um telefone cinzento. Lola n�o se deixou intimidar pelos pap�is e tirou o casaco. Atirou-o para cima dum monte de p� e livros, enquanto Miroiu se sentava. Enterrava-se numa velha cadeira como fazia o p�.
- Fique � vontade, procure o que tem a procurar.
E Lola assim fez. Durante horas tentou perceber se havia alguma r�stia de organiza��o naquele monte de pap�is. Havia, mas era uma coisa muito t�nue, quase uma sensa��o. Por isso moveu-se especialmente com a ajuda do acaso que, muitas vezes, at� se presta a guiar como um agente de turismo autorizado. Mas n�o encontrou nada escrito por Grigore. E assim se passou uma manh�.
Miroiu teve de sair, provavelmente para almo�ar, e Lola teve de sair com ele. Miroiu n�o parecia confiar nela.
Voltou � tarde - depois de comer um hamb�rguer, beber um sumo e rematar com um caf� - e continuou a sua busca. Ao final do dia n�o tinha, apesar do esfor�o envolvido, encontrado nada. Nem nos dias seguintes.
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CAP�TULO 9
Desistiu e despediu-se de Miroiu que lamentou aquela demanda v� e chegou a prometer (uma coisa oca, de circunst�ncia) que, se encontrasse qualquer coisa, entretanto, lho faria saber. Lola agradeceu com a frustra��o a envolver-lhe a voz. Partiria no dia seguinte de manh�.
- Sabe, se estivesse � procura de livros do pai de Marim Grigore, seria muito mais f�cil.
- Como? Porque � que n�o me disse que o pai dele tinha escrito livros?
- Sim, sim, o pai dele escreveu muito. N�o lhe disse porque pensei que soubesse. De resto, tamb�m n�o me perguntou e eu n�o sou nenhuma p�tia de Delfos para saber o que lhe vai na alma e o que lhe tece o destino.
- Certo. E o que Serban Grigore escreveu ainda � editado?
- N�o. Desde os anos sessenta que n�o se fizeram mais edi��es. Mas tenho bastantes coisas dele na estante l� de casa. O meu pai e ele eram bons amigos, eram ambos homens de ci�ncia, investigadores. Outros tempos, onde havia alguma esperan�a para este mundo e onde se acalentava a ideia de construir um templo cujas pedras seriam a pr�pria humanidade. O meu pai e Serban Grigore eram pedreiros-livres, homens de
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ideais e de ideias. Parece que a Segunda Grande Guerra veio destruir muitos dos seus planos. O meu pai morreu na pris�o e Grigore n�o se deu bem com Ceausescu ...
- Posso ver esses livros? - inquiriu Lola com voz faminta. A cor voltou a animar-lhe as faces.
- Sim, claro. Ali�s, convido-a para jantar.
A casa de Miroiu era num edif�cio sax�nico com madeiramentos � vista. Tinha uma cor meticulosamente laranja e dois andares. Ambos lhe pertenciam. L� dentro o mundo era con� traditoriamente oposto ao local do seu trabalho. L� dentro n�o havia p� e as coisas, ao contr�rio de tudo neste universo repleto de entropia, tendiam a arrumar-se. Ou assim parecia. O olhar de espanto de LoIa n�o passou despercebido a Miroiu.
- A minha mulher � muito cient�fica no que diz respeito �s arruma��es. N�o h� nada fora do s�tio. Se tiro uns livros da prateleira, quando acordo, j� voltaram para o seu lugar da casa.
A senhora Miroiu era muito alta, com as pernas muito fininhas, como se quisessem passar despercebidas pelas meias. Ela era consideravelmente mais nova do que ele e exagerava na pintura. N�o falava nenhuma l�ngua que Lola pudesse entender, por isso o contacto social entre ambas viu-se emagrecido. E tamb�m n�o era esse, propriamente, o objetivo daquele jantar. Por sinal, um jantar excelente. Rahela Miroiu era uma cozinheira de classe.
O jantar foi relativamente animado, entre mamaliga com queijo e alm�ndegas de carne de vaca. Miroiu revelara-se um bom conversador e um conhecedor de vinhos. As suas barbas, tingidas pelo fumo dos cigarros, agitavam-se quando ria, onduladas. Os seus l�bios cumulavam os sais de t�rtaro que o vinho deixava antes de adentrar garganta abaixo. Rahela fazia-lhe
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sinal para que os limpasse e ele limpava sem grandes efeitos pr�ticos.
Lola tentou que Miroiu trouxesse os livros para a mesa, mas Rahela proibiu. Haveria tempo para isso. Agora era altura de servir caf�.
Quando, por fim, o jantar parecia terminado, Miroiu levantou-se e dirigiu-se � estante. A estante era um m�vel muito grande, caricaturalmente grande, de madeira escura, repleta de livros. Duma prateleira, tirou sete livros e alguns dossi�s de cart�o. Pousou tudo em cima da secret�ria e acendeu o candeeiro.
- Aqui est� tudo o que possuo escrito por Serban Grigore. Ele era antrop�logo.
Puxou a cadeira e convidou Lola Benites a sentar-se nela. Ele, serviu-se de um whisky, serviu outro a Lola e sentou-se numa pequena poltrona de veludo azul com debruados dourados.
Os livros eram estudos cient�ficos, resultados de anos de investiga��es. Alguns estavam escritos em romeno, mas Lola percebia o teor. A maior parte tinha sido grafada em franc�s.
N�o parecia haver nada que lhe pudesse interessar. Lola abriu os dossi�s e a frustra��o reapareceu-lhe no rosto. Mais textos sem qualquer interesse. Apenas estudos acad�micos, cient�ficos, pesquisas. Ao fim de alguns minutos a desfolhar o que tinha � sua frente, percebeu que era material sem qualquer utilidade para ela. No entanto, permaneceu ali, praticamente duas horas, apenas a certificar-se de que n�o haveria um cart�o metido entre as folhas, ou um apontamento nas margens. Miroiu adormecera, entretanto. Ressonava ao lado dum copo de whisky por acabar. Lola Benites tinha dificuldade em admitir uma derrota, mas era evidente que aquela viagem havia sido totalmente em v�o.
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Tossiu quando se sentiu finalmente pronta para se ir embora de m�os a abanar. E Miroiu acordou.
- Ent�o? Descobriu alguma coisa interessante?
Lola disse que sim. Tudo era muito interessante. N�o queria defraudar o seu anfitri�o.
- Ent�o, na pr�xima semana tiro fotoc�pias a tudo e envio-lhe pelo correio. Tem ai material muito raro.
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CAP�TULO 10
A entrada da casa de Alexander Hol dava para uma das transversais da avenida Victor Hugo. Ele, � janela, esperava impaciente enquanto tamborilava as unhas contra o vidro. Fazia-o ao som da m�sica que tinha posto a tocar.
O seu apartamento era muito grande, com tetos e paredes muito decorados e mobili�rio exuberante. A divis�o da casa onde se encontrava e onde recebia as visitas era um quadrado perfeito iluminado por um grande espelho dourado que duplicava a sala. Uma das paredes estava forrada por livros e discos. O resto das paredes, entre as decora��es de gesso, segurava v�rios instrumentos de sopro. Um piano vertical encostava-se, muito direito, � entrada.
Alexander Hol era um dos fundadores da Loja �Pers�fone�, Era o seu membro mais influente fora do Templo e tamb�m o mais rico. Havia muita decis�o de Estado que passava pelo seu consentimento. Se Alexander Hol telefonasse a mostrar o seu desagrado, o mundo mudava de trajet�ria. Diz-se que a inclina��o do eixo da Terra � de 23,45� porque ele assim o decidiu.
Mas n�o tinha sido o seu dinheiro ou a sua influ�ncia na pol�tica e nos neg�cios que lhe permitira fundar a Loja �Pers�fone�. Hol era um empres�rio que tocava trompete nas horas
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vagas e era um grande conhecedor da Hist�ria da Ma�onaria, dos rituais, dos s�mbolos e, acima de tudo, da Geometria. Fora ele o principal respons�vel pela elabora��o dos rituais da Loja �Pers�fone�. Hol n�o acreditava no modelo especulativo em que a Ma�onaria se havia tornado. Era um homem muito ativo que subira a escadaria dos neg�cios a pulso. Come�ou por trabalhar como pedreiro (ao mesmo tempo que tirava o curso de arquitetura) e cedo, muito novo, j� tinha a sua empresa, uma empresa pequena. Em poucos anos tornou-se uma das maiores da Holanda. Aos trinta e cinco anos, Alexander Hol era um dos homens mais ricos da Europa Central.
A campainha tocou e Hol parou de bater os dedos ao som da m�sica para se dirigir ao intercomunicador. Passados instantes, � porta, do outro lado da porta, estava um homem alto,
com todos os cabelos grisalhos e iluminados pela luz da escada. Hol abriu a porta e abra�ou-o. Um abra�o fraterno, entre membros da mesma Loja. Lutz Popke despiu o sobretudo e pendurou-o no bengaleiro da entrada. Sem cerim�nias, parou em frente ao bar e serviu-se dum brandy. Era o mais velho da Loja, um homem de oitenta e quatro anos, engenheiro civil renomado e cheio de f�rias que agitavam as suas c�s. Tinha sido o primeiro a sugerir a cria��o duma Loja selvagem, logo ap�s um dos seus habituais ataques de f�ria (que o levou a abandonar o Grande Oriente de Fran�a). A primeira pessoa com quem falou foi com Alexander Hol, pelas suas cr�ticas sistem�ticas ao que a Ma�onaria se havia tornado ao longo dos anos. A Ma�onaria sofreu uma reviravolta na sua Hist�ria que a mudou profundamente. Esse fora o momento em que uma corpo ra��o se haveria de desvincular do trabalho efetivo, operativo, da profiss�o propriamente dita, para passar a ser meramente especulativa, uma sombra de si mesma. Deixou
de fazer o trabalho para o qual havia sido criada para passar
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o tempo a falar sobre o trabalho que deveriam estar a fazer. Isso aconteceu porque, a determinada altura, a Ma�onaria (n�o a que se conhece hoje, feita de pol�ticos e empres�rios de
avental, mas a operativa) se tornou uma escola de Filosofia que encerrava segredos cobi�ados. A fama dos mestres pedreiros, dos arquitetos, fez com que certos aristocratas (sem a categoria de um servente) desejassem ser iniciados nos mist�rios da constru��o. Mas nunca quiseram estragar as unhas, e a Ma�onaria foi-se tornando cada vez mais simb�lica, cada vez mais cerimoniosa. Foram-lhe ajuntados graus (inicialmente existiam apenas tr�s, mas hoje existem ritos com mais de cem). Os mesmos aristocratas que n�o gostavam de trabalhar a pedra dura gostavam de t�tulos. Foram criados nomes pomposos como Grande Eleito Cavaleiro Kadosch, e outros que tais. Os especuladores n�o queriam estar ao n�vel dum simples pedreiro'. E em aten��o a esses senhores fizeram-se umas trolhas (mais pequenas, mais leves) e outro material de pedreiro para serem usados no ritual, mas apenas simbolicamente. Hoje, um ne�fito quando � iniciado pega num malho e bate uma vez numa pedra que enfeita a entrada do Templo. Isso simboliza o trabalho da pedra bruta. Obviamente que, de trabalho, h� muito pouco envolvido. Logo a seguir � fadigosa pancada de malho, o ritual afirma que o ne�fito j� trabalhou a pedra
bruta. Enfim, tem ali material para especula��o, mas sem a experi�ncia real de onde toda a especula��o nasce e de onde vem toda a simbologia.
Por isso, Hol foi o primeiro a ser contactado por Popke. O terceiro foi Marim Grigore. Este era um m�stico entre politicos e, juntamente com Felicijonas Salnius, era, de longe, a maior autoridade em termos de ritual. Os dois, apesar de terem um temperamento menos conflituoso, abra�aram a ideia. Seria um grande desafio reconstituir e, ao mesmo tempo,
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modernizar, as antigas corpora��es ma��nicas e os seus mist�rios. N�o excluiriam algumas das coisas que, eventualmente, a Ma�onaria especulativa havia acrescentado, nem teriam pejo em
acrescentar, eles pr�prios, outras que achassem pertinentes. O mundo mudara muito desde o Renascimento e eles n�o seriam, evidentemente, alheios a isso. Mas fariam a Loja brotar das suas raizes mais profundas e n�o de ideias trazidas pelos s�culos das Luzes, nem por divaga��es originadas no ocultismo oitocentista e nas mesas de galo.
- Quem � que vem? - perguntou Popke.
- S� estamos � espera do Laurent.
O volumoso Laurent Rigaut n�o tardou a chegar. Com os seus cento e vinte quilos tirou o chap�u. Atirou-o num gesto descuidado para cima do sobretudo que estava pendurado no bengaleiro da entrada. a chap�u de feltro, muito verde-escuro, dava-lhe um aspeto antigo que era sublinhado pelo la�o que usava. Rigaut, juntamente com Popke, Salnius, Hol e Grigore, fora um dos fundadores da Loja.
Rigaut esperou que Hol lhe servisse um whisky. Comentaram a m�sica que soava. Um swing dos anos quarenta. Conversaram um pouco antes de conversarem o que tinham vindo conversar.
O motivo desta reuni�o prendia-se com o desagrado que Hol manifestou no final da Pompa F�nebre de Felicijonas Salnius. No dia seguinte ao vel�rio, Rigaut, com o seu timbre pesado, telefonou a HoI. Tamb�m se sentia desgostado com a decis�o tomada na sess�o f�nebre, sobre a divulga��o das pranchas e trabalhos da Loja. Popke sentia o mesmo, apesar de, tal como Rigaut, n�o se ter manifestado na altura devida como fez Alexander HoI. Lutz Popke, durante a semana que sucedeu ao enterro, ficou a mastigar o assunto e acabou por ligar a Marin Grigore com o prop�sito de o dissuadir de revelar
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material de Loja. Grigore mostrou-se compreensivo, mas n�o mudaria de opini�o. Alegou exatamente o mesmo que havia sido alegado durante a sess�o: existe uma amea�a real que pai�
ra sobre a vida dos membros da Loja �Pers�fone� e segredo algum vale uma vida humana. Popke teve um dos seus ataques de f�ria. Desligou o telefone e contactou Alexander Hol. Este
marcou a reuni�o onde os tr�s se encontravam agora, cada um com o seu respetivo copo e demais queixas.
- � preciso impedir ... - come�ou por dizer Lutz Popke - ... � preciso revogar a decis�o tomada na �ltima sess�o. Custe o que custar. N�o acredito que as nossas vidas estejam amea�adas de modo algum. N�o � f�cil chegar at� n�s. Ningu�m, exceto os pr�prios membros, sabe quem pertence a esta Loja. Estamos completamente protegidos pelo anonimato. Acredito que o caso do Felicijonas seja uma infelicidade isolada. Ele n�o fazia segredo da sua filia��o ma��nica. Seria .f�cil chegar at� ele. E a decis�o tomada na �ltima cerim�nia �, claramente, precipitada. Por� em risco, n�o as nossas vidas, mas todo o trabalho - e foram tantos anos para erguer estas
colunas - que investimos na nossa Loja e na Ma�onaria em geral.
Hol levantou-se enquanto Popke falava, e aproximou-se da janela. Pensava em todos aqueles anos de descobertas, de trabalho. Fora uma tarefa impressionante e que juntou muitas horas de estudo. N�o poderia ser enviada assim para o mundo profano.
- Concordo com o Lutz - disse Rigaut. - Morreu um de n�s em circunst�ncias muito especiais, mas parece-me exagero imaginar que se estende aos outros membros da Loja.
Alexander Hol saiu do torpor onde se encontrava:
- Isso � evidente. Encontr�mo-nos para tentar outra solu��o e, obviamente, impedir essa estupidez que seria divulgar
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os nossos trabalhos. A realiza��o de uma nova sess�o para discutir este assunto seria perfeitamente infrut�fera. O Marin Grigore � o mais influente dentro da Loja e a opini�o dele ter� sempre o apoio da maioria. E mesmo que n�o tenha grandes apoios, ele � neste momento o Vener�vel e pode decidir por si. N�o estou � pera que surja, assim de repente, uma solu��o capaz de o dissuadir a prosseguir com o seu plano. Mas podemos pensar nisso. Durante esta semana, se voc�s puderem, manter-nos-emos em contacto. � preciso que cada um de n�s estabele�a os seus limites e, colocando a m�o na consci�ncia, saiba at� onde ser� justo chegar para impedir esta resolu��o imbecil. At� onde estamos dispostos a agir para salvar - n�o as nossas vidas - mas a vida desta Loja e o trabalho de tantos anos.
Depois de Hol ter falado, ficaram os tr�s em sil�ncio durante uns minutos. A espa�os ouvia-se apenas o tilintar do gelo do copo de Alexander Hol.
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CAP�TULO 11
Ao levantar-se da cama, Conrado Fortes s� tinha um pensamento: a carta. Tinha lido na internet que o professor Felicijonas Salnius tinha sido morto com um esquadro de metal. N�o era uma not�cia importante, por isso n�o coube nas primeiras p�ginas dos jornais nem mereceu destaque especial on-line. Um texto conciso e pequeno com uma descri��o objetiva do ocorrido era o mais vulgar. Conrado, por�m, tinha lido o suficiente de maus livros para saber que um esquadro de metal espetado na cabe�a dum professor reformado quereria dizer mais do que isso. Eventualmente, o professor poderia ter um esquadro em casa, um esquadro que um (ou mais) assaltante tivesse usado oportunamente na calva da v�tima. Mas seria improv�vel. Ele estava amarrado, por isso o assassino n�o usou um objeto que estivesse � m�o. Tinha sido. planeado.
E quem planeia com esquadros � ma�om. Conrado tinha lido o suficiente de hermetismo de supermercado para saber que a Ma�onaria era uma organiza��o poderosa, em que os seus membros usavam aventais de couro branco e tinham poderes m�gicos e pol�ticos. Tamb�m conheciam os segredos dos templ�rios, a Cabala, a espag�ria e matavam para exigir o sil�ncio
ou outra coisa qualquer. Estavam por tr�s de todas as conspira��es
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e de todas as tramas. Sabia que Mozart fora um deles, apesar de ter sido um grande compositor.
E ali estava uma carta que poderia resolver o mist�rio, em cima da sua mesa-de-cabeceira. N�o iria abri-la (Conrado era um ser vivo honesto). Pensou que poderia abrir o envelope com o ferro de engomar, mas afastou a ideia. Afinal, ele era honesto. Em vez disso, foi lavar os dentes e tomar o pequeno-almo�o.
Sentou-se - com o seu pijama e as suas d�vidas - � mesa da cozinha para tomar um caf� com leite e comer uma torrada com manteiga. A m�e de Conrado quase n�o se distinguia dele, n�o fora os rolos na cabe�a:
- Ent�o quando � que come�as a trabalhar? � hoje?
- Ainda n�o. Estou � espera que me contactem.
Acabada a primeira refei��o do dia, Conrado Fortes voltou para o seu quarto. Voltou a olhar o envelope. Voltou a ler o remetente. Era de Coimbra. Ent�o decidiu devolver a carta pessoalmente. Talvez seja alguma coisa importante, t�o importante que mere�a recompensa. Meteu a carta no bolso de dentro do casaco, um casaco que pertencera ao seu pai, com um padr�o demasiado protagonista e os cotovelos co�ados. P�s no bolso de fora uma escova de dentes, dois charutos e um dent�frico, n�o fosse necess�rio pernoitar, e esperou que a sua m�e sa�sse. N�o queria ter de lhe dar explica��es ou ver-se obrigado a mentir, especialmente ele, que n�o era nada mentiroso. Ela ia todos os dias � pra�a, logo ap�s a lavagem e secagem da loi�a do pequeno-almo�o. Enquanto esperava, ligou o computador para saber onde, concretamente, ficava a morada da carta. Quando percebeu mais ou menos onde deveria dirigir-se, desligou o computador.
Logo que ouviu as rodas do carrinho de compras vestiu o casaco. Quando a porta se fechou foi at� � janela da sala
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e viu a sua m�e a caminhar, como sempre fazia, rumo �s aventuras das compras e os seus dif�ceis regateios. Se tivesse reparado com mais aten��o, teria visto, num carro prateado, do outro lado da rua, um sujeito alto, cabelo ondulado, que dava ares sinistros.
Voltou ao quarto com receio que se pudesse esquecer de alguma coisa, apalpou os bolsos para sentir a magra carteira, a carta, as chaves, os charutos e a escova dos dentes. Satisfeito com o resultado da an�lise, dirigiu-se para a porta, saiu e trancou-a muito bem trancada. Abriu e fechou tr�s vezes para se certificar de que ficaria bem fechada. Com a gatunagem que anda a�, pensava Conrado cada vez que sa�a de casa, este comportamento n�o � man�aco-depressivo, � elementar precau��o.
Desceu as escadas e dirigiu-se para a esta��o dos comboios. Quando atravessou a rua para entrar no metro que o levaria � esta��o ferrovi�ria, passou em frente dum carro prateado. L� dentro um homem muito alto, de gabardina, lia o jornal Conrado teve um arrepio, mas atribuiu-o ao frio que ca�a nessa manh�.
Depois de descer as escadas que o levavam � esta��o, parou, olhou para as horas e pensou: partirei mais tarde. Deu meia volta em dire��o � rua.
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CAP�TULO 12
Conrado, antes de apanhar o comboio, foi ter com o tio, o not�vel senhor Ribeiro. Apanhou um autocarro para as Olaias. O tio sabia tudo sobre Ma�onaria, havia at� quem dissesse que sabia demais. A sua ex-mulher at� dizia que ele � que era o Grande Arquiteto do Universo (ex-mulher que, mesmo depois do div�rcio, manteve sempre o mesmo discurso; mas acrescentava: �Por isso � que o mundo � esta desgra�a. E os arredores de Lisboa ainda est�o piores. N�o h� planeamento urbano.�)
Conrado Fortes saiu do autocarro, com o seu passo de passarinho, com os p�s muito pequenos aprisionados nuns sapatos de couro, daqueles cl�ssicos, mas de sola sint�tica. Parou em frente do bloco 12, a olhar para o andar do tio, para ver se o via � varanda a fumar o seu cachimbo. Ele tinha-se divorciado h� pouco tempo e aquela era a primeira vez que o visitava desde que ele havia mudado de casa. Tocou para o d�cimo quarto e esperou. Ningu�m atendeu. Conrado Fortes tocou outra vez, tr�s vezes, pois era essa a sensa��o que tinha sobre tios que estavam ligados a ma�onarias: s� respondiam se o n�mero fosse relevante e, j� se sabe, o n�mero tr�s - e o sete tamb�m - � do mais relevante que h�. A porteira que limpava a entrada abriu a porta.
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- O que � que deseja, o senhor?
O gato da porteira ro�ava-se nas cal�as de Conrado Fortes.
- Vinha falar com o meu tio, do d�cimo quarto.
O gato ronronava.
- O senhor Ribeiro?
- Esse mesmo. � meu tio, irm�o da minha m�e. O meu nome � Conrado Fortes. Sou sobrinho dele.
Conrado deu um passinho para o lado para se desviar do gato. O gato foi atr�s.
- Conhe�o muito bem o senhor Ribeiro. Aqui at� lhe chamam, por gra�a, inquilino Ribeiro. Est� a ver? Como o escritor, o Aquilino ...
Conrado deu um passinho para o outro lado. Para se desviar do gato.
- Qual? - perguntou Conrado enquanto tentava afastar o tareco com um ligeiro pontap�, um gesto subtil. Sem efeito.
- Aquele das terras dos demos que se dava com carbon�rios e ma��nicos.
- Quem, o meu tio?
- N�o, senhor Fortes, o escritor, o escritor. O escritor � que se dava com essa gente. O seu tio n�o se d� com ningu�m. � um mis�gino ou l� como se diz ... N�o, espere ... n�o � mis�gino.
- N�o �? Olhe que talvez seja. Ele tem dificuldades de relacionamento, � uma coisa c�rmica. � tal qual eu. O Carlos Ant�nio �, praticamente, o meu �nico amigo.
- N�o � isso. N�o � mis�gino, � misantropo.
- Ent�o afinal n�o tem problemas de relacionamento?
- Tem, por isso � que � misantropo.
- � tal qual eu. Uma heran�a c�rmica. A minha m�e � que teve sorte, reencarnou bem, e d�-se com toda a gente,
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apesar da diabetes. Este gato � seu? Acha que o meu tio est� em casa?
- Ele est� em casa. Est� sempre em casa. Tem � de tocar tr�s vezes. E n�o � um gato � uma gata, v�-se bem pela cabe�a. � mais pequena nas gatas. Al�m disso, j� viu alguma vez um gato com tr�s cores? S� as gatas � que t�m tr�s cores. Experimente tocar que vai ver que ele atende.
-J� toquei.
- Tocou tr�s vezes?
- Toquei. � um n�mero relevante. O tr�s � do mais relevante que h�. Um n�mero muito simb�lico, espiritual at�. Sou meio al�rgico, n�o pode tirar daqui o gato?
- Gata. E o seu tio n�o atendeu?
- N�o. Por isso � que estou aqui a ter esta conversa consigo. E quanto ao gato?
- Gata. Mas olhe, tem de insistir. Se calhar o seu tio estava na casa de banho ou a aspirar a casa e n�o ouviu. N�o ha que pensar j� em ataque card�aco, vai ver que est� tudo bem. Experimente tocar nove vezes, ou seja, tr�s vezes tr�s. � um tr�s ainda mais perfeito. Ouvi-o dizer isso certa vez quando esperava pelo elevador. Ele carrega sempre muitas vezes nas coisas. � uma doen�a que at� j� fizeram um filme. Milifinha, vem � dona.
- Isso, vai � dona, vai � dona.
- Chamo-me Ant�nia. Como a minha m�e. Bichaninha, bichaninha. Bchhh, bchhh, bchhhh.
- Pois ... Sabe, dona Ant�nia, o meu tio tem uma grande propens�o para o simb�lico, para o espiritual, para n�meros relevantes. O tr�s � um deles. Assim como o sete e o nove, que � tr�s vezes tr�s. Vai � dona, vai � dona.
- Isso n�o � inclina��o, � uma doen�a. O seu tio � maluquinho compulsivo. ElJ- vi o filme, Bchh, bchhh, bchhhhhh.�
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- � tudo simb�lico. Estas coisas todas � nossa volta n�o passam de s�mbolos que encerram mas verdades muito mais profundas, m�sticas, conhecimentos c�smicos. Est� a ver aquele quadro? O das novelas? As ovelhas n�o s�o apenas ovelhas. Temos de olhar para l� das coisas. Os s�mbolos s�o portas. Em cada ovelha que ali pasta h� uma porta c�smica. E nas portas � preciso tocar � campainha tr�s vezes para elas se abrirem.
Conrado, depois de criticar abertamente Alberto Caeiro como acabara de fazer, voltou a tocar, desta feita, nove vezes. Ouviu a voz do tio, do outro lado do intercomunicador, a perguntar quem era. � o Conrado, disse Conrado.
Dona Ant�nia, com a gata ao colo.' olhava para as ovelhas desconfiada. N�o via porta nenhuma e de portas percebia ela. Afinal, era porteira.
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CAP�TULO 13
O tio Ribeiro tinha muitos t�tulos, frutos das muitas organiza��es herm�ticas e m�sticas a que pertencia: Embaixador do Norte e do Sul, Cavaleiro Sagrado do Nous e Ennoia, Lumin�ria do Oriente, Almirante da Chispa Divina, Grande Bar�o do Icosaedro Truncado, Pr�ncipe do Z�nite e, ao mesmo tempo, Profeta do Nadir, Excelso Estratega do Dodecaedro Estrelado e Benfeitor C�smico da Espiral D�rmica. A sua sala refletia isso. Os cortinados tinham qualquer coisa de Lumin�ria do Oriente misturado com Profeta do Nadir e um padr�o de cornuc�pias; enquanto a mesinha de apoio do sof� transparecia o esoterismo dum Pr�ncipe do Z�nite e o misticismo dum �trio de pens�o barata. O tio era muito magro, ossudo. Abriu a porta nu, cal�ado com umas galochas de borracha e abra�ou o sobrinho. Gostava muito dele.
- Estou a faz�-las ao p� - elucidou o tio apontando para as botas. - Se saio sem o trabalho feito em casa dou cabo dos calcanhares.
Tirou uma das botas para mostrar o calcanhar esquerdo. Tinha um penso.
- Aquiles finou-se por causa disto. Era muito vulner�vel nos calcanhares. A vida tende a escoar-se pelos p�s, Conrado, ouve bem o que te digo. � pelos p�s que ela se vai terra adentro,
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os p�s s�o como o ralo da banheira. Nunca saias de casa com sapatos novos. Tens de os moldar primeiro, em casa, habitu�-los ao p�. � como tudo nesta vida: n�o deves p�r ideias novas c� fora sem antes teres andado com elas na tua cabe�a, faz�-las ao p�.
Conrado ficava sempre maravilhado com a sabedoria do tio. Era t�o erudito que, quando se irritava, vituperava em grego antigo ou, quando muito, em hebraico b�blico.
O apartamento estava cheio de alguidares e Conrado n�o se conseguiu desviar de todos. Um deles tinha conseguido abocanhar-lhe o p�. Camada subtraiu-o �quela boca de pl�stico. Tinha o sapato completamente molhado, por isso, descal�ou-o. O seu andar passou a ser assim�trico.
- Tenho infiltra��es - explicou o tio Ribeiro. - � curioso que tenhas tirado o sapato esquerdo. H� a� muita simbologia: � assim que os ma�ons entram no Templo aquando da sua inicia��o. Tu tens isso no 'Sangue, Conrado, tens filosofias esot�ricas no sangue.
- N�o fazia ideia de que, nos templos, andavam sem um sapato.
- Nem precisas de fazer ideia. A inspira��o vem-te do alto. O teu Eu superior sabe tudo, Conrado, tudo!
Conrado baixou a cabe�a, ruborizado pelo elogio. Os seus olhos encontraram-se com o seu p�' descal�o e molhado. O seu Eu superior era muito inteligente, mas incapaz de evitar uns alguidares de pl�stico. Se ao menos andasse de botas de borracha como o seu s�bio tio.
- As galochas d�o jeito quando chove assim dentro de casa - comentou Conrado.
- Meu querido sobrinho, isto que v�s aqui n�o s�o meras infiltra��es do telhado, s�o li��es de Metaf�sica. Depois desses problemas medievos como a quadratura do c�rculo, a trissec��o
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do �ngulo e a duplica��o do cubo, o isolamento do telhado � a verdadeira quimera. O homem at� pode domar ovelhas, ou quaisquer outras vacas, mas o que lhe � imposs�vel � isolar um telhado. A chuva, que n�o passa de �gua a cair, prova que esta corrida tecnol�gica � um embuste. A inevit�vel infiltra��o, em dias de borrasca, coloca o homem no seu devido lugar, es�
frega-lhe a soberba na cara. E l� diz o Talmude (esta � uma cita��o dum prato que a tua m�e tem pendurado na entrada da casa. Recordas-te dessa frase, Conrado?): �� homem, lembra-te de que at� a mosca foi criada antes de ti�, diz o prato. E o Grande Arquiteto do Universo, atrav�s duma simples infiltra��o nos telhados e entrando, como � seu mester, no dom�nio da constru��o civil, d� uma grande li��o moral e teol�gica ao homem e, em particular, � administra��o do condom�nio, lembrando-o que h� sempre algo por cima da sua cabe�a, l� no alto, nos planos superiores, que n�s jamais lograremos conquistar: o isolamento do telhado e os sublimes mist�rios das esferas superiores. E o que � que te traz por c�?
- Venho c� a casa, tio, por causa dum professor, um tal Salnius, que morreu com um compasso e tinha um c�o chamado Anax�goras.
- Exatamente ao contr�rio. Foi com um esquadro que � o oposto dum compasso. E o c�o chamava-se Pit�goras. Li sobre isso no jornal, mas um amigo meu, que � Vener�vel C�smico dos Eons Gn�sticos, elucidou-me sobre o assunto. Aquilo � uma c�pia - papel qu�mico - da morte de Hiram. Passou do plano m�tico para este plano terreno. Acontece por vezes, os mitos escapam-se dos planos c�smicos e aparecem aqui no meio da nossa sociedade. Muitas vezes vestidos de Elvis Presley, mas, outras vezes, d�o casos mais dram�ticos, como a morte do professor Salnius.
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- Portanto, a morte do professor Salnius foi um descuido das esferas mais elevadas? Um mito que se escapou?
- Um mito que se escapou. Um descuido.
-E o c�o?
- Era uma reencarna��o de Pit�goras. Um caso cl�ssico de metempsicose. E digo-te para que n�o continues na ignor�ncia destas coisas herm�ticas e simb�licas: uma das piores reencar� na��es de Pit�goras foi a dele mesmo, de Pit�goras. N�o h� nada pior que uma vida passada a comer vegetais e, pior que isso, de t�nica branca e sand�lias. Ter sido um schnauzer foi uma das
melhores coisas que lhe aconteceu, uma hip�tese de reden��o e de comer carne � vontade. Ossos e tudo. Depois desta, alcan�ou o Nirvana, j� n�o volta � roda do karma e a sofrer as ilus�es de Maya.
- E os assassinos?
- Eram avatares dos assassinos de Hiram. Escaparam-se dos �ons inferiores.
- E esse Riram?
- Era o arquiteto do Templo de Salom�o. Foi morto por aprendizes e companheiros que queriam saber quais os segredos do grau de mestre. Um mestre n�o revela os seus segredos e Hiram acabou morto. Dantes, saber construir era uma virtude cobi�ada, hoje, s� se constroem rotundas. Uma pessoa n�o anda cem metros sem encontrar uma.
- Estive no apartamento do professor. Fui l� porque tinha uma entrevista de emprego. Ia escrever o que ele ditava ...
- E tu sabes escrever � m�quina? Mas diz-me, l� no apartamento desse Salnius, sentiste as vibra��es dos outros planos? As for�as negativas?
- Mal entrei senti logo uns arrepios e reparei que tinha lama nos sapatos.
- S�o as for�as negativas.
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CAP�TULO 14
- Estiveste na Rom�nia a fazer o qu�?
Pl�cido estava irritado. Enfiava um escargot na boca, sem complac�ncia. Lola Benites tamb�m estava irritada. N�o tocava no seu minestrone.
- Fui l� por causa da investiga��o que estou a fazer ...
- Essa coisa das seitas ... O mundo est� cheio de investiga��es dessas, n�o h� originalidade a�.
Mais um escargot.
- J� discutimos isto vezes sem conta. Quando se ouve falar de Ma�onaria, ouve-se falar, invariavelmente, na Grande Loja de Inglaterra ou no Grande Oriente de Fran�a. Mais algumas variantes disto, mas n�o passa daqui. De Lojas selvagens nunca se fala.
Lola continuava a n�o comer o minestrone.
- Deve haver bom motivo para isso: ou n�o h� nada para dizer ou n�o � um tema interessante. Porque � que n�o comes a sopa e deixas os selvagens para a National Geographic? Mas acima de tudo, avisa. Tens de me avisar quando decides voar at� aos C�rpatos. Sou o teu noivo, e h� coisas que exijo saber. Aterrar na Transilv�nia � uma delas.
Lola n�o gostou da atitude. Disse isso com o olhar porque o seu pai acabava de chegar. O minestrone continuava intocado.
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O restaurante era elegante com uma frequ�ncia a condizer. Muita dessa eleg�ncia falava alto demais, mais concretamente uma senhora muito pintada, na mesa ao lado.
Pl�cido, o noivo, vestia-se com garbo. Roupas de marca em forma de fato e gravata. O cabelo muito penteado para tr�s, brilhante do gel, colado � cabe�a, de ator de novelas. A sua voz fina contrastava com o glamour que se desprendia dele aos jorros.
A comida era elegante, tanto quanto um restaurante ingl�s muito caro consegue servir.
- Ol�, pap� - disse Lola. O pai dela beijou-lhe a testa enquanto lhe dizia para se manter sentada.
Os dois homens abra�aram-se. O senhor Benites, muito entroncado, grande e em forma, com os seu cabelos grisalhos, e o noivo, alto e exuberante. Sentaram-se os dois.
- Estiveste na Rom�nia? - perguntou o senhor Benites � filha.
- Estive. Estou a fazer uma investiga��o ...
- Sei. Sobre a Ma�onaria. N�o h� nada novo a�. Mas podias ter avisado o Pl�cido. Acho que ele, tal como eu, deve ser avisado em certas ocasi�es. Aterrar nos C�rpatos � uma delas.
Ao ouvir isto, Pl�cido fez uma cara de vit�ria, um esgar elegante que jorrava glamour. Lola estava quase a perder a tramontana. Mas condescendeu:
- Da pr�xima vez que tiver de ir a Brasov, aviso.
- N�o preciso de te lembrar que o n�mero de conta associado ao teu cart�o de cr�dito �, por coincid�ncia, o meu n�mero de conta.
Lola Benites estava cada vez mais irritada. Pl�cido tinha um sorriso nos l�bios. E um bocado de escargot.
- Tens tido not�cias da tua m�e?
- N�o. O pap� sabe como � raro falar com ela.
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- Da �ltima vez estava no Peru, nos arredores de Cuzco, numa comunidade de hippies. Ela, que sempre detestou sand�lias.
- N�o sei nada da mam�o � muito raro falarmos. Foi sempre assim. Este afastamento n�o aconteceu s� depois do vosso div�rcio.
- Pois. Mas n�o s� se desinteressou de ti, minha filha, tamb�m se desinteressou da causa palestiniana. Deixou a Jord�nia e foi para a Ant�rtida. Depois desinteressou-se pelo buraco de ozono e pelas focas, e sabe-se l� por onde andou depois disso. Agora, sei que est� em Cuzco. Ainda h� menos de vinte anos andava em sal�es londrinos a exibir as joias que comprava com o meu dinheiro. Gostava mais dela nessa altura, antes de ter partido pata o M�dio Oriente. Ficavam-lhe bem os diamantes que comprava. As joias verdadeiras ficam sempre bem em mulheres falsas.
- Pode ser que, finalmente, tenha encontrado um tipo de vida que lhe agrada ...
- No Peru? Ao ar livre? De sand�lias? A tua m�e detesta o ar livre. O ar livre, para ela, � aquele espa�o insuport�vel que se v� obrigada a percorrer cada vez que sai de um hotel de luxo para entrar numa limusina.
Pl�cido mantinha-se calado. Lola ia acumulando motivos para explodir.
- Podemos mudar de assunto? N�o me apetece falar da mam�.
A m�e de Lola Benites n�o tinha uma rela��o profunda com a filha. Nem superficial. Era uma mulher que se movia muito bem em altas sociedades, mas que a certa altura se interessou por causas: o seu ego�smo deu-lhe para ser altru�sta. Abriu-se um buraco de ozono na sua alma e o clima dom�stico mudou radicalmente. Ao ponto de partir para o M�dio
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Oriente para resolver a quest�o palestiniana. E, se tivesse tempo, salvar o mundo. Geraram-se grandes discuss�es que acabaram num div�rcio:
- E aquilo de dizeres que nunca nos separar�amos? � perguntava o senhor Benites exaltado.
- Meu querido: sou uma mulher. No dia em que encontrares uma que diga a verdade, � um travesti.
- Disparate. Est�s a ser machista,
- Estou a ser altru�sta. Abandono o lar para acabar com esta insanidade que percorre o mundo. J� viste o que se passa na faixa de Gaza? E o efeito de estufa? Como � que posso continuar a usar casacos de peles com tantos animais a morrer � fome?
- N�o pensas na tua filha?
- Claro que sim. Pensarei muito nela quando estiver no M�dio Oriente.
- E a as festas, as colunas sociais? N�o conseguir�s respirar sem isso.
- Respirar � .um preconceito da classe alta. Sabes, Benites, acho que durante todo este tempo s� desenvolvi relacionamentos ocos, v�os. Os verdadeiros convidados das festas s�o vestidos de haute couture e j�ias. Eles, nesses sal�es, n�o veem pessoas. Somos umas roupas de saltos altos que, por capricho, trazem uma mulher agarrada. Mas e a alma? A alma? Eu sou uma pessoa de carne e osso. N�o sou apenas uma grande dose de bom gosto e um colar de diamantes, tamb�m
tenho sentimentos, emo��es, necessidades, entendes?
- O que � que v�o dizer os amigos? E, ainda pior, o que � que v�o dizer os inimigos?
- Inimigos s�o todos. Todos, entendes? A maior parte deles nem sequer gosta de n�s.
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E agora, vinte anos depois do div�rcio, a m�e de Lola estava no Peru, numa comunidade hippy uma coisa que j� n�o se usa.
- N�o quero falar da mam� - enfatizou Lola, olhando, ora para o noivo, ora para o seu pai.
- Pl�cido, aviso-o j� que esta menina sempre teve um feitiozinho. Desde pequenina. Sai � m�e. Os meus genes amenizaram a coisa, mas n�o conseguiram resolver o assunto. Ainda h� ali material gen�tico que pode envergonhar um futuro marido. S�o coisas muito pequeninas, os genes, n�o se veem a olho nu mas destroem fam�lias. N�o lhe d� muito espa�o, caro Pl�cido. N�o fa�a como eu, sen�o daqui a uns anos est� a v�-la a preocupar-se com o aquecimento global. As mulheres, meu caro, come�am por aterrar na Transilv�nia e um dia chegam a casa preocupadas com a depreda��o dos recursos terrestres. E isso destr�i um casamento. Uma mulher como a minha filha n�o consegue preocupar-se com os pinguins aqui em Londres. Para se preocupar tem de ser na Ant�rtida.
Lola levantou-se, atirou com o guardanapo para cima da mesa como fazem os pugilistas com as toalhas, e saiu sem dizer uma palavra. Estava irritada.
- Nem tocou no minestrone - censurou Pl�cido.
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CAP�TULO 15
O pai de Lola Benites, ao contr�rio da m�e, n�o a deixava dar um passo sem lhe pegar na m�o. Ela, que sempre fora uma menina rebelde, deixava-se mimar pelo pai. Era um homem imponente, ateu e muito rico. E passara esse legado � filha:
- Lola, lembra-te sempre disto: a ignor�ncia � aquela ci�ncia que nos faz acreditar em Deus .
- Ent�o, Ele n�o existe?
- Deus s� existe para quem acredita nele. O que n�o � o nosso caso. Felizmente, n�o acreditamos.
- E se acredit�ssemos?
- Seria um drama: ser�amos ateus que acreditam em Deus ..
Mulhermente, Lola crescera para ser muito atraente, ao ponto de parecer uma evolu��o est�tica da humanidade. A evolu��o � isso mesmo: uma pessoa sabe que evoluiu quando � sua volta s� v� macacos. Lola desenvolveu esse espa�o po�tico que � o seu corpo, tudo com grande eleg�ncia. Enquanto ela o fazia, os homens � sua volta desenvolviam a acuidade visual e, quando ela passava, permitia que eles apanhassem torcicolos. Mas n�o se prendia a nenhum, at� que um dia
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apareceu o imbecil certo. Demora muito at� que aconte�a e a maior parte das mulheres n�o tem essa sorte. A maior parte casa-se simplesmente com o imbecil errado.
O encontro dos dois deu-se numa das festas em que a sua m�e j� n�o era convidada (incompatibilidades com o salvamento do mundo 'e a sobreviv�ncia dos pandas). Pl�cido have�
ria de se tornar noivo de Lola, depois de dois anos de namoro. Ele era um rapaz bem-parecido, alto, de ombros largos e com grande capacidade para calar-se a si mesmo. Na noite em que se conheceram, ele quase n�o falou. O perigo disto � bem conhecido. H� um prov�rbio que o afirma claramente: o n�scio, por se calar, passa por s�bio. Por outro lado, Lola era uma mulher com coisas para dizer, n�o era apenas bela, tinha muita literatura para discutir. O perigo disto � bem conhecido. Uma pessoa quando tem o que dizer faz tudo para ter quem a escute. Pl�cido, apesar de bem-parecido e espada�do, conquistou-a com as orelhas. Limitou-se a t�-las no s�tio, silenciosas e atentas como s� elas sabem ser. A boca dum ouvinte � o maior inimigo das suas orelhas. Deve ser entretida com golos de gim t�nico e uns salgadinhos para que n�o seja tentada a interromper o outro ou, o que seria uma fatalidade, a dizer alguma coisa espirituosa. Enquanto bebe e come, deixa que as orelhas tomem a r�dea da situa��o. � importante salientar que ouvir
� metade da sabedoria. Outra metade � n�o deixar escapar a informa��o pelo outro ouvido. E a �ltima metade � evitar ver televis�o. Pl�cido n�o tinha nenhuma dessas metades. Apesar de calado, n�o ouvia. Entretanto, Lola, falava de literatura russa para n�o parecer pretensiosa, como aquelas que s� falam do lil�s que � a tend�ncia da �ltima esta��o:
- Acabei agora de ler o Crime e Castigo e adorei, acima de tudo, a maneira como Dostoievski aborda a reden��o. E a
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maneira como ele escreve, aquela fluidez. � um livro sublime, n�o �?
Pl�cido como resposta, fez um ligeiro gesto com a cabe�a acompanhado por um arquear da sobrancelha (movimento que funciona sempre). Um gesto desses, subtil, quando � bem feito e acompanhado por uma dentada num croquete, passa exatamente por aquilo que o outro gostaria de ter ouvido. S� tem de ser amb�guo o suficiente para estimular a exegese. Lola estava maravilhada:
- � t�o raro, nestas festas, encontrar algu�m assim t�o conhecedor da literatura russa. Tamb�m gostas dos franceses, de Hugo, por exemplo?
Pl�cido, face a -esta pergunta, olhou nos olhos de Lola � ele jorrava glamour - enquanto bebericava o seu gim. Este gesto queria dizer, na cabe�a de Lola Benites, o seguinte: gosto muito de Hugo, especialmente d' Os Miser�veis, apesar de achar enfadonhas certas passagens. Nunca lhe perdoarei, contudo, que tivesse confundido, numa das suas obras menores, Herodes com Her�doto. S�o duas personalidades hist�ricas completamente diferentes, imposs�veis de confundir: o primeiro n�o gostava de crian�as e o segundo n�o gostava de Hist�ria. Completamente diferentes.
Claro que se, al�m do golo de gim, tamb�m tivesse dado uma dentada num rissol de camar�o, provavelmente j� quereria dizer, aos olhos de Lola, que preferiria franceses de outros tipos, talvez um Balzac, um Stendhal, um Joe Dassin, um camembert.
Ela saiu desse beberete completamente apaixonada. E quando percebeu que Pl�cido n�o era aquilo que imaginava, j� era tarde demais, j� estava debaixo dele a fazer um cruzeiro no Nilo. E pior que isso, o seu pai gostava daquele namorado bem-parecido, que jorrava glamour.
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Ali, junto do Cairo, as pernas de Lola eram os locais de maior interesse tur�stico. Logo a seguir vinham as pir�mides que, dizem, tamb�m s�o consideradas maravilhas do mundo.
A paix�o escondia os defeitos do namorado, e 'quando o frenesi passou, sobrou o h�bito de estar com ele. E esse h�bito nunca lhe permitiu imaginar a possibilidade de acabar com aquela rela��o est�ril. E assim, determinado tempo de namoro - neste caso dois anos - fez com que a rela��o regredisse ao ponto de se tornar noivado.
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CAP�TULO 16
Depois de sair de casa do tio, Conrado era um homem muito mais l�cido, transl�cido at�. Dirigiu-se para a esta��o dos 'comboios, L� chegado, comprou o bilhete e uma revista. S� teria comboio dali a uma hora. Resolveu dar uma volta, uma volta por ali. Ao virar uma esquina, entrou numa igreja, sem nenhum motivo para isso que n�o fosse matar o tempo (uma das raras vezes em que matar n�o � considerado pecado nenhum). E l� entrou Conrado, numa dessas casas de que Deus � propriet�rio e Senhorio.
- Porque mil anos, Senhor, s�o para ti como o dia de ontem que j� passou - dizia o padre quando Conrado entrou com uma t�mida benzedura. N�o se sentia cat�lico. Crist�o esot�rico, como o Pessoa, talvez, mas n�o mais do que isso. Uma pessoa inteligente n�o deve tentar ser mais do que o Pessoa.
Mas a cita��o do padre f�-lo lembrar-se do av� paterno, que era oftalmologista. Gostava do av� paterno. Lembrou-se tamb�m da sua av� paterna. Tamb�m gostava dela, apesar de n�o ser oftalmologista.
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- Piscamos os olhos - dizia o seu av� a um dos seus pacientes - para limpar e humedecer a c�rnea. Mas n�o � s�: piscar os olhos s�o v�rgulas na nossa atividade cerebral, s�o pausas, s�o pequenas pausas. Quando a concentra��o � exigida, piscamos menos.
Sem ter nada a ver com Lisieux e a sua santa Teresinha, o jovem Conrado fundou, em crian�a, o seu Pequeno Caminho: a sua pr�pria teologia do piscar de olhos.
Aconteceu na missa, tinha Conrado Fortes uns sete anos. Foi uma ilumina��o, um �xtase. Quando saiu da igreja exultava, n�o se tinha nas pernas, em nenhuma das duas. Claro que hoje � perfeitamente rid�culo, pat�tico, mas na altura era a coisa mais importante do mundo. Conrado viu claramente a explica��o do mal. Nesse dia, na missa, o padre tinha lido exatamente o mesmo salmo que ouvia agora, trinta anos depois: - Porque mil anos, Senhor, s�o para ti como o dia de ontem que j� passou.
Era isso, pensou o jovem Conrado! Deus piscava os olhos e quanto dura um piscar de olhos de Deus? Mil anos � um dia, um dia s�o mil anos. Ele piscou os olhos no In�cio e ainda n�o os abriu. Para Ele, � um piscar, para n�s � uma eternidade .. Quantos universos nascem e morrem durante um pestanejar? E ele n�o v� nada. Quando abrir os olhos vai ter uma surpresa.
Ao sair da igreja, nesse dia de revela��o e epifania, perguntou � av�, pendurado no bra�o dela:
- Av�, Deus pisca os olhos?
- Com certeza - respondeu ela.
Estava explicado.
Agora, bem mais velho, tudo aquilo lhe parecia rid�culo. O problema de Deus n�o � o piscar de olhos. Teologicamente nem sequer existe a certeza absoluta de Ele ser possuidor de
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p�lpebras. N�o, o problema do Mal � muito mais complexo do que essa teologia do piscar de olhos. O problema do Mal s�o dioptrias. E ao pensar isto lembrou-se dos �culos do seu falecido pai, desses �culos t�o graduados que, no Dia do Ju�zo, entregaria a Deus para que Ele finalmente visse o que se passava c� em baixo, visse o estado em que estava o Pa�s e reparasse na elevada taxa de desemprego.
Depois de morto o tempo, entrou no comboio. Passadas tr�s horas chegou a Coimbra. Apanhou um autocarro para Vales de Baixo.
Olhou para os grandes muros de xisto que envolviam a propriedade e sentiu um certo receio de chegar ali com correspond�ncia que n�o lhe pertencia, ainda por cima dum morto j� enterrado, assassinado e pertencente a uma dessas perigosas seitas ma��nicas cujo objetivo � governar o mundo (se � que j� n�o o fazem - olhando as desgra�as � nossa volta parece que sim). O receio tomou-lhe conta da alma e Conrado pensou que poderia estar a correr s�rios riscos. Pensou que
afinal a sua vida de �cio n�o era uma vida assim t�o m� que merecesse ser trocada por um peda�o de correspond�ncia extraviada. Por isso, decidiu voltar a Lisboa. Apanhar o comboio: voltar a Lisboa.
E quando desviou os olhos dos grandes muros de xisto, pousou-os numa pequena pens�o. No r�s-do-ch�o dessa pens�o estava um bar forrado a madeira escura, desses com ar ingl�s. Havia tempo para beber uma aguardente, ou um rum � dependeria dos pre�os e das marcas - e fumar um charuto antes de mais uma viagem de comboio. Entrou e ficou por l� mais de tr�s horas, sentado. A primeira bebida distraiu-o e a segunda deu-lhe coragem para ficar. No outro dia, sem falta,
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iria bater � porta daquela casa e entregar o correio. � terceira, j� tinha reservado um quarto na pens�o.
Na rece��o, depois de ver o quarto (muito bonito, com vista para a serra), fez aquilo que achava ser umas perguntas discretas sobre o tal Jo�o Caturra, o remetente da carta. A empregada, uma senhora de meia-idade com os cabelos pintados de amarelo e encaracolados numa bola muito redonda, n�o compreendia discri��es. Quando ouviu falar de Jo�o Caturra, descreveu a vida dele com alguns pormenores, todos eles sem grande interesse. Mas tinha come�ado a falar e agora era dif�cil parar.
- � filho do Rei dos Azulejos, e �, tal como o pai, um homem riqu�ssimo com a vantagem de ser solteiro - e acrescentou: - Muito cobi�ado entre as mulheres jovens e �s que ainda o podem cobi�ar. A capela l� atr�s, que est� no jardim (n�o se v� porque os muros s�o muito altos), foi o meu homem que lha fez. � uma capela dedicada a S. Jo�o, de quem os Caturra s�o muito devotos. O meu marido � pedreiro, sabe? e o meu filho tamb�m j� trabalhou no ramo, mas preferiu emigrar para a Su��a. Tem l� mulher e filhos, dois deles, um rapaz e uma rapariga. N�o vem c� muitas vezes, mas telefona; E o meu marido tamb�m j� fez outras obras para o senhor
Caturra, de restauro do solar. O solar antes pertencia aos Figueiredos que perderam a fortuna no jogo e tiveram de vender a casa. E v�m muitos estrangeiros aqui visitar o senhor Caturra (que tamb�m viaja muito). �s vezes ficam por aqui dias seguidos. Correm-lhe bem os neg�cios, os estrangeiros gostam de azulejos. O meu filho (n�o sei se j� lhe disse, mas ele est� emigrado), comprou azulejos ao senhor Caturra para a casa dele l� em Genebra.
Parou de falar para ajeitar os �culos e entregar uma ficha para Conrado Fortes preencher. Porque se baixou para pegar
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no papel, viu-se obrigada a queixar-se das costas. Tirou uma radiografia que tinha atr�s do balc�o e mostrou-a a Conrado que tentava preencher a sua ficha. A senhora entregou-lhe a chave do quarto e mais outra, da porta da rua. Para o caso de chegar mais tarde e n�o estar ningu�m na rece��o.
Depois das formalidades cumpridas, Conrado voltou-se a sentar no bar, num sof� de veludo. Ouvia o barulho das pedras de gelo, umas nas outras, umas nas outras, tlim-tl�o, como os espanta-esp�ritos. A sua m�o tremia junto com o gelo dentro do copo. Ainda era cedo, ainda n�o eram sete e o sol estava a desbrilhar. A noite ca�a, trope�ava com os seus in�meros p�s de estrelas. As estrelas s�o os passinhos da noite. E ele estava ali, com seu ar desempregado, o seu ar mais natural.
O bar era escuro, com candeeiros ultrapassados pela luz dos tempos. As toalhas, dum feltro verde, davam-lhe ar de sala de jogo. O verde, que � o ar com que a natureza melhor se veste, d� ar de jogo se estiver estendido numa mesa.
De repente lembrou-se de que ainda n�o tinha ligado � sua m�e � avisar que n�o ia jantar. Apalpou os bolsos e percebeu que, apesar das suas precau��es, se esquecera do telem�vel. Pagou a conta do bar e subiu para o quarto para telefonar com alguma privacidade. Do outro lado do telefone ouviu gritos. N�o se deviam apenas ao facto de Conrado se ter esquecido do jantar. A sua casa havia sido assaltada. Estava tudo revirado, gavetas abertas, porta arrombada.
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CAP�TULO 17
J� tinha morto mais do que uma vez. Andr� Loury, nisso, era experiente. N�o na morte propriamente dita, porque essa experi�ncia s� a nossa pr�pria nos dar�, mas experiente na morte dos outros que n�o � uma experi�ncia verdadeira. � como aprender craw4 ou mesmo mariposa, s� de olhar para uma lula.
Loury, h� pouco tempo, tinha assassinado Salnius. Tinha-o feito com a sua gabardina muito baixa para o seu corpo muito alto, o seu cabelo ondulado e o olhar estranho (ou dava essa sensa��o). Tinha pele clara, demasiado branca, e umas cal�as afiambradas, com pregas e leve cheiro a usado. Tamb�m exalava um perfume a morto que lhe vinha da profiss�o(e das axilas), uma fragr�ncia que nenhuma grande empresa de cosm�ticos saberia imitar. J� tinha usado mais de quarenta anos da sua vida e isso via-se nos cabelos brancos, entremeados pelos louros, e na c�dula de nascimento falsa.
Viu a m�e de Fortes sair de casa com um carrinho de compras. Estava num carro alugado, prateado, um carro que passava despercebido. Minutos depois de ela ter sa�do de casa, saiu o filho com o mesmo aspeto redondo. Tamb�m baixo e mais calvo. Passou mesmo em frente ao seu carro quando ele lia o jornal, ou fingia que lia. Loury teve um arrepio quando
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Fortes passou com a sua redondez. N�o se olharam, nenhum dos dois.
Esperou uns minutos antes de arrombar a casa de Contado. Certificava-se de que ningu�m se tinha esquecido de coisa alguma e voltaria para tr�s. N�o foi dif�cil a partir da�. L� dentro, abriu o que achou que poderia esconder alguma coisa (e ele sabia onde procurar) revirou tudo, e n�o encontrou nada. N�o havia nada na casa de Fortes que o ligasse � Loja �Pers�fone�. No entanto, tinha em seu poder correspond�ncia que poderia sei importante. Para Loury, o que era importante ou n�o era, .era precisamente o que lhe diziam ser importante. Fen�meno a que n�o � alheio quase toda a sociedade que conhecemos. E matava sem problemas de matar. De facto, remetia a culpa para as suas v�timas. A maior parte das vezes n�o colaboravam nos planos do Bem e continuavam na sua senda do Mal. A sua morte fazia parte dum plano divino e ele tinha as m�os da natureza. N�o fazia outra coisa que o pr�prio ADN da v�tima n�o fizesse. Porque todas as v�timas, bem como todos os assassinos, bem como todos n�s, temos uma ordem no n�cleo das .nossas c�lulas, uma ordem que nos obriga a morrer, um veredicto, uma senten�a fatal. E envelhecemos, que � como quem diz, morremos. Para morrer basta continuar vivo. As�
sim, Andr� Loury, n�o fazia nada que a velhice, essa desgra�ada filha do tempo, n�o fizesse. Nem fazia nada que qualquer acidente mortal n�o fizesse. Nada que a natureza n�o usasse fazer. O Universo, tal como Lao Ts� constatou muito bem, n�o se compadece de seres humanos, muito menos de seres humanos exemplares. Usa at� a compara��o dos c�es de palha, que eram objetos cuja �nica finalidade era serem queimados ritualmente. Lao Ts� disse que o universo tratava os seus filhos como n�s tratamos os c�es de palha. Mas Loury tamb�m estava acima da natureza. Ele tinha uma causa, um prop�sito,
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aquilo que Arist�teles chamaria de telos. Na sua cabe�a, era fazer o bem, e esse bem seria alcan�ado pagando certo pre�o. As suas v�timas eram danos colaterais. Para que a sua causa triunfasse e o mundo se tornasse melhor. Loury n�o sabia o que era o telos, esse des�gnio que o Fil�sofo colocou nas nossas cabe�as, mas sabia que deveria matar por um bem maior. Ou seja, rejeitava a moral ontol�gica, favorecendo a teleol�gica. Ele pr�prio dizia muitas vezes:
- Rejeito a moral ontol�gica.
No fundo, os fins justificavam os meios. Loury, tal como todos n�s, � incapaz de fazer o Mal. Este s� existe nos olhos dos outros e � imposs�vel existir em n�s. Sabemos que fazemos mal, mas ou � sem querer, ou � justificado. Existem muitas maneiras de o fazer: ou porque a v�tima merecia, ou porque o mal n�o existe (� relativo), ou porque � o melhor para aquela pessoa. Por exemplo, j� foi justificado que � melhor que um pecador encontre a morte do que continue a viver no erro. � que esta �ltima hip�tese poder� hipotecar as esperan�as de salva��o eterna. Se morrer, n�o pecar� mais. A tudo isto, podemos chamar de moral teleol�gica. Op�e-se a outra,
� ontol�gica, onde a pessoa se impede de fazer o mal, independentemente do resultado. N�o faz, nem que da� advenha um supremo bem.
E Loury pensava nas raposas. Pensava que se salvasse o coelho seria bom para este, mas um drama para a raposa. Porqu� tirar a uns para dar a outros? No fundo todas as a��es t�m este problema: d�o uma festa na cabe�a dum enquanto esmagam a cabe�a de outro.
Nos dias que se seguiram ao assassinato de Salnius, Loury manteve cuidada vigil�ncia sobre o apartamento. Enquanto, a pol�cia cirandava e um ou outro jornalista brotava, ele mantinha a sua vigil�ncia com a discri��o dum profissional. No dia
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seguinte � infeliz morte do professor Felicijonas Salnius, Loury lia um jornal num carro prateado que havia alugado. Reparou num homem que tocou para o terceiro e subiu. Na janela
do apartamento p�de ver a mulher que fazia as limpezas, uma dona Clotilde, a falar com esse homem redondo que tinha chegado e tinha subido. Pensou, tamb�m ele, subir e ouvir a conversa, mas quando o ia fazer, j� o tal homem vinha a descer. Por isso, esperou � porta. Curiosamente, o sujeito baixo, meio calvo, trazia os sapatos na m�o e umas meias molhadas
nos p�s. Esse homem sentou-se para se cal�ar e levantou-se para se ir embora. Nessa altura, Loury estava mesmo � sua frente, t�o perto que ele, o homem gordinho, teve de pedir licen�a para passar. Quando o fez, Andr� Loury deu-lhe um ligeiro encontr�o, um gesto natural. Enfiou-lhe a m�o no casaco e roubou-lhe o telem�vel. De seguida entrou no elevador e saiu no terceiro. Abriu a porta e a dona Esm�nia saiu. A vizinha olhou desconfiada para aquele homem alto, de gabardina. Ele disse-lhe um bom dia com toda a estranheza que emanava de si mesmo, com o seu cheiro a morto, e ela desceu para o andar/onde vivia, com arrepios convulsivos. Justificou-os com a corrente de ar que n�o se fazia sentir. Entretanto, Loury entrou no apartamento de Salnius pela segunda vez na sua vida. Cheirava a lixivia. Loury disse ser pol�cia e a dona Clotil�
de, que limpava o corredor enlameado, deu-lhe as respostas que ele quis.
Na posse do telem�vel de Conrado Fortes, n�o lhe foi dif�cil chegar ao local onde este vivia.
Andr� Loury pertencia a uma ordem com fortes liga��es � Ma�onaria. N�o � in�dito, na Hist�ria, o facto de existirem bra�os armados desta organiza��o. E a ordem a que Loury pertencia era uma dessas. Era composta por homens de armas e liderada por ma�ons regulares que julgam ser importante ter
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um papel did�tico no mundo e, se for preciso, orient�-lo no caminho das luzes. Usando a for�a. Quando Loury tinha vinte e poucos anos, um homem, estrangeiro, imigrante, que era seu patr�o, apadrinhou-o e iniciou-o nos mist�rios dessas ordens menores.
Loury nasceu rico, filho de pessoas ricas. Teve a melhor educa��o e aten��o. Contudo, .sempre foi uma pessoa problem�tica, apesar do amor que lhe devotavam. Aos dezassete anos fugiu de casa, logo a seguir a n�o ter feito os trabalhos da escola e a ter morto os dois pais. Viu-se, pela primeira vez na sua vida, pobre e isso foi um choque. Fugiu do pa�s e, n�o tendo o que comer, assaltou este e o outro at� que arranjou trabalho, uma coisa clandestina com documentos falsos. Um homem de posses, como os seus progenitores, deu-lhe trabalho, recados arriscados. Aos poucos foi confiando no rapaz e ele foi correspondendo �s expectativas criadas. E este homem, mestre ma�om, ensinou-lhe rituais e a disparar. Iniciou-o na ordem que liderava, ensinou-o a matar em vez de o ensinar a viver. O que � muito mais f�cil. Fez como faz o universo que facilmente destr�i e cria muito pouco. A vida � um desses poucos exemplos de cria��o. O resto desmembra-se a toda a hora, e a Ci�ncia chama a isso entropia. Dantes, chamava-se �o Diabo�. Um homem deixa um bocado de vidro no ch�o e passado certo tempo, n�o sobra sen�o areia. Se, por ventura, deixar nesse mesmo ch�o, essa mesma areia, um vidro muito dificilmente despontar� dali. E uma janela de vidros duplos, nem pensar. O universo abomina a organiza��o tal como a concebemos.
Todos os ma�ons, aquando da sua inicia��o, s�o batizados de novo. A inicia��o � um renas cimento e, nesse novo dealbar, ganha-se um nome simb�lico. O padrinho de Loury, o homem que o iniciou, nunca lhe disse o seu verdadeiro nome.
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Loury conhecia-o por �Lusitano� e amava-o como um pai e dedicava-se a ele como a um deus.
Para interrogar Salnius, o Lusitano tinha enviado, al�m de Loury, mais dois homens, dois ma�ons. Estavam encarregados de interrogar o professor enquanto ele estava encarregue da tortura. Os dois mestres que foram com ele, nunca os tinha visto. Eram homens de meia-idade, com um ar burgu�s e uma barriga que o afirmava com toda a sua gordura. Ele n�o compreendeu, na sua totalidade, as perguntas que foram feitas nessas horas tr�gicas. Falou-se, acima de tudo, no segredo da ac�. cia. E o professor dizia que teria o maior prazer em responder,
mas que primeiro teriam de o soltar. Obviamente Felicijonas Salnius sabia que, se falasse, morreria. Se n�o falasse, tamb�m morreria. Andr� Loury poderia ter explicado isso aos dois ma�
�ons obesos que o acompanhavam para fazer perguntas, mas achou que n�o seria de bom-tom. N�o adiantaria explicar que Salnius nunca falaria. Limitou-se a partir os dedos do professor com um estalido dram�tico. Quando os dois inquisidores perderam a paci�ncia, deram-lhe um esquadro de metal e ele, com uni. gesto can�nico, loquaz, f�-lo atravessar os ossos do cr�nio de Salnius. Loury constatou nessa altura que um c�rebro erudito, apesar de mais musculado por pensamentos, tem a mesma resist�ncia dum c�rebro sem instru��o.
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CAP�TULO 18
L� fora, no seu carro alugado, do outro lado da rua, Loury viu chegar a m�e de Fortes. Tamb�m viu chegar a pol�cia. Estava, nessa altura, sentado num carro alugado, prateado. Quando a pol�cia saiu, Loury telefonou a Gar��o Arouca. Este pertencia � judici�ria.
- Preciso de saber onde foi Conrado Fortes - disse Loury.
- N�o sabemos. Interrog�mos a m�e, mas ela tamb�m n�o sabe. Ali�s, est� num pranto, acha que aconteceu alguma coisa ao filho. Chora convulsivamente.
- Quando souberes alguma coisa, liga-me imediatamente. Para o meu telem�vel.
Caia a noite e Loury ainda estava em frente � casa de Conrado Fortes. O telefone tocou e do outro lado ouvia-se o homem da judici�ria.
- J� sabemos onde est� esse tal Conrado. Foi para perto de Coimbra. Est� hospedado na pens�o de Vales de Baixo. Acabou de telefonar � m�e. Parece que se esqueceu do telem�vel e de a avisar. A m�e dele ligou-me agora mesmo a dizer que o filho estava bem...
Andr� Loury desligou o telefone e ligou o carro. Dirigia-se a Coimbra.
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CAP�TULO 19
O pequeno-almo�o terminava �s dez, mas Contado estava l� muito antes. Enquanto trincava um croissant, entrou uma mulher alta, muito bonita, com umas pernas tamb�m altas. Eram as duas �nicas pessoas na .sala. Conrado Fortes sentiu o cora��o a bater, trincou o croissant com um ritmo card�aco fora de tempo. Um bocado de gelei a escorregou-lhe pelo queixo e foi cair na camisola de l�.
Ela sentou-se, tirou o casaco roxo, cruzou as pernas e bebericou o caf�. Vieram os ovos que ela reclamou. Voltaram para tr�s. C6nrado observava como quem comia um croissant com geleia.
L� fora chovia. Chovia com abund�ncia.
Lola Benites acabou de tomar o pequeno-almo�o e levantou-se. Conrado viu-a atravessar a porta que d� para a sala cont�gua onde era a sa�da e onde se pagava. Se o Carlos Ant�nio visse isto, pensou Conrado.
Depois de pagar, Lola abriu o chap�u-de-chuva, atravessou a rua em dire��o ao muro de xisto que circundava o solar de Jo�o Caturra. Em frente ao port�o tocou � campainha. Falou ao intercomunicador e entrou.
O croissant de Conrado estava no final. Tamb�m ele se dirigiu � sala do lado. Fez o check out e reparou na chuvada que
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ca�a. Correu at� ao outro lado da rua e, debaixo dum salgueiro, ganhou f�lego para correr at� ao port�o. Tocou, falou ao intercomunicador e entrou.
Correu ainda os cinquenta metros que separavam o port�o da entrada do solar. A chuva perseguia-o com a impiedade h�mida que todos lhe reconhecemos. Foi o caseiro quem lhe abriu a porta, o senhor Manuel.
- Entre, o senhor Caturra est� a chegar.
Levou-o at� � sala principal que se abria ao fundo de um corredor. Num sof� de couro estava Lola Benites sentada. Com as mesmas pernas cruzadas com que tinha comido o pequeno-almo�o e feito a geleia cair na camisola de l� de Conrado. Isaac Newton, pobre diabo, ignorava muitas coisas e, certamente, ignorava que a gravidade n�o � respons�vel por todas as quedas. Umas pernas que se cruzam podem fazer cair muita geleia. Enfim, Conrado estava boquiaberto e encharcado. Balbuciou um bom dia (enquanto pensava: o Carlos Ant�nio n�o vai acreditar nisto). Lola respondeu-lhe na mesma moeda.
- Bom dia - disse ela.
Ele olhou para tr�s e viu que tinha deixado pegadas de lama pelo corredor. Mas n�o era tarde demais para se descal�ar. S� com as suas meias, poderia poupar o tapete marroquino que se deitava � sua frente, pelo ch�o da sala. Descal�ou-se, portanto. Lola observava-o mais ou menos incr�dula. Ele pegou nos sapatos, sentou-se, na outra ponta do sof� de couro e pousou-os no colo como dois gatos enlameados.
Ela tirou o seu bloco de apontamentos e p�s-se a folhe�-lo. No dia anterior tinha tido mais uma entrevista que engrossaria o livro que estava a escrever sobre seitas secretas e grupos ocultistas. Tinha visitado um homem, j� atacado pelos anos, um homem conhecido por Teofrasto. Evidentemente, este era um nome de guerra, um nome simb�lico. Teofrasto
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era o primeiro nome de Paracelso, um conhecido charlat�o que tinha queda para a medicina, para curar, para matar e para sofrer o ex�lio. Este Teofrasto que usava o nome de Paracelso aparentava ter uns noventa anos, era baixo com um nariz grosso. Uma cara que inspirava confian�a. Recebeu-a em casa juntamente com uns bolinhos secos e um ch�. Ap�s o lanche, mostrou-lhe o seu laborat�rio. N�o tinha o carisma que ela julgaria encontrar, cheio de provetas e l�quidos coloridos, fumos e fogo-de-artif�cio. Pelo contr�rio, parecia que quase tudo havia sido feito a partir de lixo.
- O material de qu�mica � muito caro, por isso aproveito muita coisa que iria para o lixo para fazer o que preciso. Esta cabe�a moura, por exemplo, foi feita a partir de garrafas velhas. O fundo abobadado presta-se a essa fun��o.
- Um alquimista como o senhor n�o deveria ser capaz de fazer ouro, t�-lo a� aos magotes?
- Ainda bem que pergunta isso. As opini�es sobre a Alquimia dividem-se em duas. Muitos, especialmente depois de Jung, consideram a Alquimia uma met�fora sobre uma ascese espiritual. Sugerem que n�s, alquimistas, usamos compara��es qu�micas para descrever o que nos vai na alma. Tal ideia n�o est� correta. Outros acham que o alquimista � o homem que tenta transmutar um metal vil, como o chumbo ou o cobre, em ouro. Fazer ouro � o objetivo dum empres�rio capitalista, n�o � o objetivo dum alquimista. Dir-me-� que todos os tratados, os antigos tratados de Alquimia, falam na transmuta��o. Efetivamente, existe algo que podemos chamar por esse nome, mas h� que tecer algumas explica��es sobre isso. A Alquimia passou por muitas fases e j� foi muita coisa, mas de uma maneira geral podemos dizer que � uma esp�cie de qu�mica sagrada. Aos que perseguem o ouro, os alquimistas chamam depreciativamente de sopradores.
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Ent�o qual � a diferen�a entre a qu�mica, podemos dizer profana, e essa que apelida de sagrada?
- � que o nosso objetivo n�o est� nas opera��es que praticamos, mas na Filosofia. Por isso se chama de Pedra Filosofal ao resultado que procuramos. E aos alquimistas chamamos de fil�sofo As opera��es qu�micas que fazemos para chegar � Pedra Filosofal s�o uma cria��o filos�fica. Ou seja, cada opera��o tem uma interpreta��o simb�lica. Estamos a repetir a pr�pria cria��o do universo e a observar os seus segredos. No final temos uma Pedra Filos�fica. Tradicionalmente,
esta pedra - que n�o � met�fora nenhuma como julgava Jung - d� ao alquimista tr�s tesouros: a sabedoria, a longevidade e as transmuta��es dos metais.
- Ent�o sempre se transforma alguma coisa em ouro.
- Mais ou menos. Para n�s, sim, existe a transmuta��o. Mas um qu�mico n�o concordaria connosco. Desde Lavoisier que se conhecem os elementos que comp�em a mat�ria. Antes disso, para saber se certo metal era ouro ou n�o, julgava-se isso pelas caracter�sticas exibidas. Ou seja, o ouro dissolve-se apenas com �gua-r�gia - uma mistura de �cido clor�drico com �cido sulf�rico - tem determinado peso e consist�ncia e, acima de tudo, e isto � o mais importante, � incorrupto.
Quer dizer que n�o oxida, n�o � afetado pelo tempo, �, podemos dizer assim, eterno. O objetivo qu�mico dum alquimista � tornar um metal que oxida - como o cobre ou o ferro.� num metal eterno com as caracter�sticas do ouro.
- Mas que n�o � ouro?
- N�o � ouro segundo a qu�mica. N�o � AU. Se eu tiver ferro e o quiser transmutar em ouro, um qu�mico dir� que, no final, tenho ferro. E ele tem raz�o. Mas o ferro est� modificado, torna-se inoxid�vel, ou seja, incorrupto como o ouro e como a maior parte dos faqueiros que se fazem hoje em dia. Para
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que se lhe assemelhe mais ao resultado pretendido � tingido com pigmento dourado. No final temos aquilo que chamamos o �nosso ouro�. Pode ser ferro, cobre ou chumbo que ganha a~ caracter�sticas que prezamos no ouro, acima de tudo, a eternidade.
Teofrasto fez uma pequena pausa antes de continuar:
- A corrup��o a que os metais est�o sujeitos � devida ao ar. N�s tamb�m somos sujeitos precisamente � mesma amea�a. H�-de reparar que � a oxida��o que nos envelhece e podemos at� definir assim a velhice: n�o passa de uma oxida��o.
- Portanto com a mesma pedra que impede a oxida��o dos metais, podemos impedir a oxida��o das c�lulas?
- Talvez. Ainda n�o tive a gra�a de conseguir fazer essa Pedra. De resto, interesso-me mais pela sabedoria que destilo das opera��es de laborat�rio do que pela eterniza��o deste corpo. Sou velho, tenho noventa e quatro anos e n�o desejaria nada t�o aborrecido para o universo como seria a minha imortalidade. Mesmo hoje, j� me vejo entediado, imagine depois de s�culos de profundo �cio. N�o se esque�a de que, nessa altura, j� nem tenho a Pedra Filosofal para fazer.
Depois desta conversa, Teofrasto levou Lola a ver algumas subst�ncias usadas. Viu os sais de am�nio, os �leos de vitr�olo, o esp�rito de vinho, o antim�nio, os v�rios nitratos e a urina podre de onde se extraem, a acetona de chumbo, os tartaratos. E ainda lhe mostrou uma pedra.
- Isto � a pedra vegetal.
- E isso significa o qu�?
- Significa que existem v�rios tipos de alquimia. Al�m do caminho cl�ssico e tradicional - tamb�m chamado universal - existem tamb�m as alquimias vegetal, mineral e animal. Dentro da Alquimia tradicional ou universal existem v�rias vias. A mais antiga usa, preferentemente, �cidos fracos e baixas
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temperaturas e � o m�todo mais demorado. � conhecida por via dos �cidos, m�todo longo ou m�todo h�mido. Existem mais duas vias muito importantes. A seca, que usa sais e temperaturas muito elevadas; e a breve, que usa a press�o. Elas s�o compar�veis � cozinha. Pode-se cozinhar algo usando �cidos como o v� agre ou o lim�o e deixar a marinar de um dia para o outro ou mesmo usando um lume brando. Esse � o m�todo longo. Mas podemos cozinhar no forno. � a via seca. Ou podemos usar a panela de press�o, que corresponde � via breve. E ainda h� um quarto m�todo, que � o mais usado: o misto. Como o nome indica, usa e mistura procedimentos
caracter�sticos das outras tr�s vias.
- Fale-me dessa alquimia vegetal...
- Bom, � feita a partir de mat�rias vegetais. Qualquer planta serve. Normalmente, para come�ar, preferem-se labiadas como o alecrim, a alfazema ou a salva. T�m um �leo f�cil de extrair e suficientemente abundante e limpo. Alguns alquimistas n�o consideram esta alquimia uma via verdadeira; mas a minha experi�ncia diz-me o contr�rio. � poss�vel fazer a pedra vegetal usando um m�todo filos�fico, um m�todo que se assemelha ao da Alquimia universal. Na verdade, a grande diferen�a � que tanto a alquimia vegetal como a mineral n�o t�m resultados universais. Enquanto a Pedra Filosofal pode transmutar qualquer metal no nosso ouro, as pedras vegetais e minerais s� o fazem relativamente a casos espec�ficos. � poss�vel ter uma pedra mineral capaz de transmutar cobre em ouro, mas incapaz de obter resultado id�ntico com o estanho, por exemplo.
- N�o sei se compreendo.
- Realmente � um pouco complicado explicar, numa entrevista, todos os meandros da Arte ...
- J� teve alunos?
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- J�.
- E desistiram ou ainda ai andam?
- Tive um aluno muito promissor, mas mudou de estilo. Persegue, segundo sei, a alquimia animal. E uma alquimia que quase ningu�m conhece. N�o existe nada, absolutamente nada, escrito sobre ela e os seus adeptos herdam os seus conhecimentos oralmente. A isso chama-se cord�o dourado, a esse tipo de transmiss�o, e a �nica pessoa que conheci que sabia fazer a pedra animal era um romeno.
Lola n�o p�de evitar um calafrio.
- Um romeno?
- Sim. Um homem not�vel. Chama-se Marim Grigore.
- E o senhor n�o sabe nada dessa alquimia?
- Sou um perfeito leigo. Nem saberia por onde come�ar.
- Pode-me dizer o nome do seu ex-aluno? Penso que gostaria de o entrevistar.
- N�o vejo porque n�o. Chama-se Jo�o Caturra. Dar-lhe-ia a morada mas n�o a tenho. Todavia, ser� f�cil encontr�-lo. � filho de Ant�nio Caturra.
- O Rei dos Azulejos?
- Esse mesmo.
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CAP�TULO 20
Cheirava a tabaco na sala de Jo�o Caturra. Vinha do charuto de Conrado. Sem cerim�nias, tinha-o acendido e rolava-o entre os dedos. Teve, contudo, o cuidado de perguntar a Lola se se importaria com o fumo. Ela encolheu os ombros e ele acendeu o f�sforo. Fez rodar o charuto fora dos l�bios, entre os dedos, at� o acender com uma aur�ola uniforme. Deu duas fortes baforadas.
Estavam os dois sentados no sof� de couro, um em cada ponta, quando Jo�o Caturra entrou.
O caseiro tinha ido at� � parte mais escondida da propriedade onde Caturra tinha um pequeno laborat�rio. Bateu � porta e informou-o de que tinha duas pessoas, na sala, que queriam falar com ele. '"
- Bom dia - disse Caturra ao chegar junto de Conrado e Lola - O que � que vos traz por c�?
Conrado tossicou cheio de fumo:
-Uma carta.
Ao mesmo tempo, Lola sibilou com alguma coqueteria:
- Preferia falar consigo a s�s.
- N�o tenho muito tempo, e j� tenho segredos suficientes na minha vida. Ouviremos todos o que cada um tem a dizer. As senhoras primeiro.
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- Muito bem. Estive ontem com Teofrasto.
- Teofrasto?
- Conhece-o, evidentemente.
- Sim...
- O senhor Caturra pertence � Loja �Pers�fone�.
Jo�o Caturra estava perplexo.
- Como � que sabe?
- Ainda quer falar sobre isto � frente deste senhor, ou prefere, realmente, falar em privado?
Conrado remexeu-se no seu canto do sof�. O seu corpo mexeu-se como o fumo do seu charuto. Manteve-se calado com aquela express�o de quem vai falar.
- N�o. Ficamos todos aqui. J� lhe disse que tenho segredos a mais.
- Eu sou jornalista. Estou a escrever um livro sobre grupos ma��nicos. Entrevistei Grigore - uma entrevista inacabada. Ainda tenho esperan�as de que ele cumpra o que me prometeu e se encontre comigo mais uma vez.
- Grigore � uma pessoa que cumpre o que promete. Se lhe disse que se encontraria consigo, � porque o far�.
- N�o o disse propriamente, mas teve de sair � pressa e interrompeu a entrevista que me havia prometido. Acho que ainda me deve algumas respostas.
- Em todo o caso, n�o foi ele, com toda a certeza, que a informou de que eu fazia parte da Loja �Pers�fone�,
- Realmente n�o foi. Ningu�m me disse. Sei juntar dois mais dois e chegar � conclus�o que � sete. Teofrasto disse-me que se interessava por um ramo muito ex�tico da alquimia, uma via que s� � transmitida oralmente. Disse-me que Marim Grigore era o �nico que a conhecia. Portanto imagino que tenha estado a aprender com ele. Muito provavelmente, toda a Loja �Pers�fone� � adepta dessa alquimia animal.
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- N�o propriamente ...
- Pode explicar-me isso?
- Por acaso posso. Decidimos h� pouco que acabar�amos com certos segredos e esta ser� uma altura t�o boa quanto outra qualquer. O que irei revelar j� fez demasiadas v�timas, muitas das vezes p~ m�s interpreta��es. Come�arei do princ�pio�
Jo�o Caturra sentou-se no sof� de couro que ficava em frente do outro sof� de couro onde Conrado fumava e Lola rabiscava.
- Desde tempos imemoriais, que se fala disto: da alquimia animal. Nem sempre nos mesmos moldes, mas sempre � volta da mesma mat�ria-prima. Os nossos descobrimentos s�o um exemplo disso. Fala-se na saga de um povo, mas as descobertas foram a saga de uma pessoa. O Infante quis chegar �s Terras do Prestes Jo�o enquanto o povo se estava nas tintas para isso. N�s somos o mesmo povo e continuamos nas tintas. O povo � assim mesmo. Deste Prestes Jo�o dizia-se que era um descendente dos reis magos. Tudo isso faz parte da lenda, mas o esp�rito medieval n�o distinguia entre uma coisa e outra. Provavelmente estavam mais pr�ximos da ver�
dade do que n�s. Mas o Infante era diferente dos irm�os. Nenhum dos irm�os, por mais doutos ou aventureiros que fossem, se interessou pelas Descobertas. Apenas Henrique o fez. Pedro tentou mesmo dissuadir Henrique de tal empresa, alegou que viv�amos num cantinho privilegiado, um pequeno jardim que nos garantia a felicidade. Para qu� procur�-la longe? E ele, se calhar, tinha raz�o. A ci�ncia diz-nos que a felicidade est� do lado esquerdo do nosso c�rebro e at� a podemos estimular com choques el�tricos. Nesse caso, por que motivo haver�amos de a procurar t�o longe desse lugar, t�o longe de n�s? No fundo, D. Pedro estava certo - sem ter certeza nenhuma
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-, a felicidade estava no nosso pr�prio cantinho. O que ele n�o percebeu � que para encontrar essa alegria seria preciso ir at� Oriente � procura dela e s� voltando a casa, depois do p�riplo, seria poss�vel apreciar o tesouro. De resto, existem in�meras est�rias e lendas com esta moral: a demanda circular - ou melhor, em espiral -, em que o her�i sai de casa, deambula, para retomar e descobrir o seu tesouro debaixo do lugar onde sempre viveu e dormiu. Mas D. Henrique n�o
se deixou lograr pelo discurso que ainda hoje ouvimos: somos um pa�s que n�o precisa de ir mais al�m, estamos bem no nosso cantinho. D. Pedro disse-o literalmente, para nos lembrar que tipo de sangue nos corre nas veias, este sangue aguado e brando que se senta em sof�s de couro. Henrique, primeiro, tentou alcan�ar o famoso reino do Prestes Jo�o por terra. Chegou a convencer o pai, D. Jo�o I, Mestre de Avis, a conquistar Ceuta e, levado por um �mpeto de gesta, conquistou-a realmente. Ao olhar para as terras marroquinas que se estendiam � sua frente, percebeu que teria de contornar �frica e fez surgir as embarca��es que o permitissem. Da necessidade de dar a volta ao deserto surgiram as caravelas. Lamentavelmente, pensava-se que �frica era muito mais pequena do que � na realidade. Sobre este interesse do Infante pelas terras do Preste Jo�o muita coisa se disse, mas a tese que corre � que seria o desejo de Henrique aliar-se a um rei crist�o do Oriente e, de certo modo, conquistar o mundo. Mas o que D. Henrique queria era algo menos megal�mano, ou muito mais megal�mano. Queria, como muitos tamb�m j� apontaram, o Graal. Evidentemente tal teoria n�o seria jamais levada a s�rio. E ainda bem. O que � tolo nesta teoria � a ideia de Graal. O Infante tinha acesso � biblioteca dos templ�rios ...
- Eu sabia que os templ�rios haveriam de estar envolvidos ...
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Conrado remexeu-se no sof� (como o fumo do seu charuto). Olhou para os sapatos que se aninhavam no seu colo e resolveu cal��-los.
Caturra fez uma pequena pausa intrigado com a atividade de Fortes, mas depressa retomou o seu discurso.
- Tal como -4izia, Henrique leu sobre o Soma e sobre o Haoma. Ambr�sias, bebidas da imortalidade. No fundo, o mesmo que o Graal. O que ele procurava era uma bebida, uma subst�ncia, que o pudesse fazer vencer a morte. Nisso chegou a empenhar a sua fortuna pessoal e morreu com d�vidas. N�o � uma coisa que n�o se fa�a hoje em dia. Existem pessoas que congelam a cabe�a, e a criogenia � uma grande fonte de rendimentos. Verdadeira alquimia: transforma a esperan�a de imortalidade dos outros em ouro. Enfim, dizia que o Infante tinha lido sobre o Soma. O Soma era uma bebida sagrada que vem mencionada nos Vedas. Era feita de um vegetal, mas ningu�m, hoje, faz ideia de qual. Existem algumas teorias, mas nenhuma certeza. Wasson foi o estudioso que chafurdou mais perto da verdade. O Haoma era o correspon
dente a essa bebida dos antigos persas. Acredita-se hoje que n�o eram a mesma planta, mas tinham efeitos que se assemelhavam e eram tidas como bebidas dos deuses, bebidas que garantiam a imortalidade. E isso leva-nos a...
Caturra interrompeu a sua explica��o. Fitava uma das portas com um esgar de horror.
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CAP�TULO 21
A sala onde estavam tinha cinco metros de p� direito e um tapete marroquino que escapou � lama dos sapatos de Conrado. Um grande candeeiro debru�ava-se sobre a mesa de caf� e dois sof�s de couro encaravam-se � volta. Tinha quatro portas duplas com dourados nas ombreiras. Numa dessas portas, a mesma por onde entraram Lola e Conrado, estava um homem de gabardina, um homem alto e de ar sinistro. Atr�s dele, estendido no soalho estava o caseiro, o senhor Manuel. A sua cabe�a sangrava contra o ch�o.
Nas m�os de Andr� Loury via-se uma pistola muito bem apontada. Jo�o Caturra n�o reagiu. Lola tamb�m n�o. Conrado n�o evitou um grito. Deixou cair o charuto e, preocupado com o tapete, apanhou-o. Queimou-se nos dedos, voltou a gritar, desta vez em cal�o vern�culo, e nesta agita��o, Loury deu um passo em frente, disparou sem querer porque escorregou na lama que os sapatos de Conrado Fortes deixaram no corredor. Caiu desamparado contra a ombreira de dourados. Segurava a pistola, mas estava meio atordoado. Ainda disparou mais duas vezes, sem sequer saber para onde. Lola levantou-se num pulo e correu para a porta oposta �quela em que
o assassino cambaleava. Conrado seguiu-a. Jo�o Caturra n�o fez o mesmo porque estava morto.
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CAP�TULO 22
Conrado corria com o seu charuto na boca. Corria atr�s de Lola. Ele pr�prio n�o sabia se fugia da morte ou se perseguia uma mulher. De resto talvez ambas as coisas fossem verdade. Nessa correria, Conrado Fortes deixava a morte para tr�s, essa morte de gabardina, e perseguia a vida, essa vida de coxas firmes. O corredor chegava ao fim na cozinha. A cozinha tinha uma porta para a rua e os dois correram para ela. Estava fechada � chave. Conrado teve a ideia brilhante de a arrombar e foi contra ela com quase todo o seu peso e com o seu charuto. Sentia que a podia atravessar e, por causa disso, magoou a omoplata.
A chave da porta das traseiras baloi�ava por cima da chamin� e Lola n�o perdeu tempo a magoar a sua omoplata nem a ver Conrado faz�-lo. Ao mesmo tempo que ele massajava o ombro, ela debru�ava-se sobre a fechadura com a chave de ferro que a abria.
Chovia l� fora e eles corriam pela lama das traseiras da casa. N�o sabiam o que fazer. Lola levava o telem�vel na m�o e tentava marcar um n�mero ao mesmo tempo que os seus saltos altos se entretinham na lama e Conrado corria atr�s dela. Deram a volta � casa enquanto ela n�o conseguia fazer o telefonema pretendido. De repente, surgiu � sua frente o port�o do solar. Conrado Fortes abriu os ferrolhos, abriu os port�es
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de ferro. Do outro lado da rua, em frente � pens�o estava o carro de Lola. Ela entrou e Conrado n�o teve pudor de fazer o mesmo. Ela tentava ligar, tentava marcar o n�mero, e ele descal�ava-se: n�o queria enlamear o carro dela.
Quem atendeu o telefone depois de algumas perip�cias foi Gar��o Arouca, da Judici�ria. Lola falou do crime que tinha presenciado. Gar��o Arouca p�s o chap�u e saiu de imediato. Ia para Coimbra.
- O melhor � sair daqui - comentou Conrado Fortes. - O homem da gabardina pode ter recuperado e sabe-se l� o que ele � capaz de fazer.
Lola olhou para ele sem pensar. N�o ligou o carro. Ficou com as m�os a agarrar o volante, crispadas. Sabia que o assassino n�o sairia pela porta principal. Teria, com toda a certeza, uma viatura � sua espera nas traseiras ou em qualquer outro lugar menos prop�cio � curiosidade. Tamb�m tinha a certeza de que o criminoso escaparia. A pol�cia nunca chegaria l� a tempo. Pensou que deveriam ter atacado o homem, que o deveriam ter manietado. Olhou para Conrado como se esperasse isso dele. Voltou a olh�-lo. Ele dava as �ltimas baforadas no seu charuto, com os olhos arregalados em dire��o ao port�o. Ela concluiu que dele nunca esperaria nada.
- � melhor sair daqui - repetiu Conrado.
- N�o h� problema. N�o me parece que o assassino saia para a rua principal aos tiros a uma jornalista e a um homem como o senhor.
- Acha que posso fazer um telefonema do seu telem�vel? N�o sei do meu e receio que a minha m�e possa estar preocupada.
Ela n�o respondeu, mas passou-lhe o telefone para as m�os num gesto lento, quase r�pido. Conrado marcou o n�mero de casa' para dizer o que tinha comido ao pequeno-almo�o, com descri��es requintadas, e que estava tudo bem.
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A m�e avisou-o de que deveria ter mais cuidado com o colesterol e Conrado acatou o reparo com a devida anu�ncia.
Minutos depois chegava a pol�cia e uma ambul�ncia. Entraram no solar do falecido Caturra, de armas em punho. Sa�ram passados minutos. N�o encontraram o assassino, mas puderam apanhar ais cad�veres: de Jo�o Caturra e do seu caseiro, o senhor Manuel.
Camada e Lola foram at� � esquadra prestar depoimento, processo que levou horas. O ch�o de tacos proporcionou alguma distra��o a Conrado que gostava de os observar ali estendidos no ch�o, tudo t�o geom�trico. Todo o espa�o era demasiado iluminado por l�mpadas fluorescentes embutidas num teto falso. O som que se ouvia era o de m�quinas a bater, m�quinas fotocopiadoras a copiar. Por vezes entravam pessoas, por vezes saiam pessoas. Por vezes havia alguma viol�ncia ou amea�as de viol�ncia. Um senhor de meia-idade, repleto dum bigode preto, sentou-se, algemado, ao seu lado. Via-se que estava revoltado com a vida e, quem sabe, at� mesmo com a sociedade. O homem pediu-lhe que ele lhe acendesse um cigarro. Fortes fez-lhe o favor. E quando apareceu um guarda a salientar o facto de ser proibido fumar ali, Fortes apagou-lhe o cigarro. N�o sem antes dar uma passa - ele que nem fumava daquilo. S� fumava charutos. A maior parte dos quais excessivamente inflacionados face � qualidade.
Findas essas horas de espera - e de algumas quest�es � depararam-se com Gar��o Arouca. Este fez-lhes as mesmas perguntas. Eles responderam da mesma maneira. Contudo, o que Arouca queria saber n�o era o mesmo que os outros pol�cias queriam saber. Para Gar��o Arouca, o importante era saber se eles tinham visto bem a cara do assassino.
Parecia que nenhum deles tinha tirado grandes conclus�es sobre isso. A mem�ria, em alturas de maior nervosismo, tem um comportamento bizarro e o melhor que sabe fazer � uma
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exposi��o cubista com certo toque de Braque - por vezes caminha mesmo pelo expressionismo abstrato, nesse caso com intermit�ncias de Pollock - da experi�ncia vivida. Gar��o Arouca apreciava as falhas biol�gicas da humanidade quando estas ajudavam os seus prop�sitos obscuros. O rosto de Andr� Loury fora, na cabe�a de Conrado e Lola, convertido numa am�lgama de barro moldado pela adrenalina. A adrenalina � uma subst�ncia sem grande talento para mexer no barro e com graves problemas de mem�ria, sempre inclinada a desfigurar os rostos que v�, mal surge no sangue, mal sai injetada das suprarrenais. Gar��o Arouca estava satisfeito com o que ouvia. De concreto, sobre Loury havia apenas uma sucinta descri��o f�sica: era um homem alto, de gabardina e aspeto sinistro. Tinham ambos, tanto o homem baixo quanto a jornalista, usado a express�o �sinistro� para descrever o assassino, como se essa caracter�stica repleta de ambiguidade fosse t�o objetiva como a cor dos olhos. E tinham ambos descrito a ga�
bardina como se fizesse parte dos caracteres anat�micos do criminoso. Esqueciam-se de que era uma pe�a de vestu�rio - adequada aos dias de chuva, � certo - mas mais f�cil de mudar do que o formato do nariz, o �ngulo das sobrancelhas ou a geometria das orelhas. Uma gabardina desaparece da nossa apar�ncia assim que � despida e pendurada num cabide ou guarda-fatos.
A barriga de Gar��o Arouca mostrava uns pelos que sa�am, sem qualquer temor, por entre os bot�es da camisa. Na m�o tinha sempre um caf� sem a��car, pouco quente. Bebia muitos ao longo do dia em copinhos de pl�stico, tirados de m�quinas de corredor. Era inspetor da Judici�ria h� muitos anos e um homem corrupto muito antes disso. Ser profissional da pol�cia n�o � desculpa para se ser um homem sem escr�pulos. H� pessoas honestas em todas as profiss�es, e esta, especificamente, n�o � exce��o nenhuma. Poderia ter sido
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um agente �ntegro, mas isso n�o estava no seu feitio. E o que nos corre nas veias � muito dif�cil de contrariar. Se mudar de moral, �tica e, enfim, personalidade, fosse assim t�o f�cil, Gar��o Arouca teria outras prioridades, mudan�as mais prementes, tal como o gosto pelo caf� instant�neo e por filmes de a��o. Para ele, essas caracter�sticas seriam bem mais importantes de
erradicar da sua vida quotidiana do que certas peculiaridades morais, como a honestidade, esse tra�o t�o amb�guo que surge em pessoas fracas e alguns intelectuais. De qualquer modo, Gar��o Arouca n�o se achava moralmente inferior a outra pessoa qualquer, pelo contr�rio, exibia at�, com orgulho, o que achava ser princ�pios. Tal como Groucho Marx disse: estes s�o os meus
princ�pios. Se n�o forem do vosso agrado, tenho outros.
Gar��o Arouca quando se via na obriga��o de contornar a Lei, era porque a Lei precisava de ser contornada, para bem da humanidade em geral. E sabe Deus como a Lei � uma coisa mal feita. As leis s�o como as rotundas, s�o para contornar. H� a� muita gente que n�o merece viver, pensava ele: � uma pena que o continue a fazer.
O interrogat�rio de Lola aconteceu a seguir ao de Conrado. Ele esperou por ela, no corredor, como se fosse algu�m da fam�lia. E sa�ram os dois juntos do edif�cio, Conrado e ela. Ele seguiu-a at� ao carro e teve mesmo a impud�ncia de abrir a porta do pendura quando ela meteu a chave na fechadura.
- Onde � que pensa que vai?
- Lisboa.
- E acha que eu sou obrigada a conduzi-lo at� l�?
- Vai para Lisboa?
- Vou, mas n�o � essa a quest�o.
- Ainda bem. N em sei a que horas tenho comboio. E tamb�m poupo dinheiro. Fico-lhe agradecido. Ser� que podemos parar numa tabacaria?
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CAP�TULO 23
A viagem decorreu com os olhos de Lola postos na estrada e os de Conrado postos nas pernas dela. O Carlos Ant�nio n�o vai acreditar, pensava Conrado. Durante as duas horas que demoraram a chegar a Lisboa, disseram pouca coisa. Conrado manteve-se quase o tempo todo descal�o. N�o pararam em tabacaria nenhuma. Lola, apesar de ter levado Conrado at� Lisboa, ignorou os seus quereres de fumar charuto. Durante a viagem, Lola come�ou a ficar preocupada. N�o estava at� ali consciente, verdadeiramente consciente, do que havia passado, o racioc�nio estava embotado pelos acontecimentos, mas quando come�ou a refletir sobre o assunto chegou � funesta conclus�o de que corria perigo. Para todos os efeitos tinha visto a cara do assassino - apesar de n�o conseguir montar as suas mem�rias num retrato poss�vel - e isso poderia fazer perigar a sua vida. Dela e do homem baixinho que viajava com ela. Meditando sobre tudo isto, pensou que seria de evitar ficar sozinha em casa. Seria at� de evitar a sua pr�pria casa. Na altura
em que chegou a esta conclus�o j� estavam a chegar a Lisboa.
- Acho que corremos perigo.
Conrado resmungou em assentimento.
�H� uns dias morreu o professor Felicijonas Salnius� pensava para si Lola. �Ele pertencia � Loja 'Pers�fone'. Isso foi
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noticiado em todo o lado. Agora matam Jo�o Caturra, tamb�m ele membro dessa Loja. N�o pode ser coincid�ncia. E para n�s, qu� vimos a cara do assassino, n�o me parece seguro ficar
em casa.�
- Acho que n�o � seguro ficarmos a dormir nas nossas respetivas casas. Vou ver o correio e depois experimento uma pens�o. Acho que o senhor Conrado deveria fazer o mesmo.
- Pode tratar-me por tu.
- Muito bem ... Acho que devias fazer o mesmo.
- A mim preocupa-me a minha m�e. Ela vive comigo.
- N�o conheces ningu�m onde ela possa ficar?
- H� um tio ... Mas n�o sei como convencer a minha m�e.
- Talvez explicando-lhe que ela corre risco de vida.
- Pois. Ontem, assaltaram-nos a casa. Ter� sido a mesma pessoa?
- Muito provavelmente. Roubaram alguma coisa?
- Penso que n�o. Estava tudo revirado, mas acho que n�o faltava nada.
- Qual � a tua liga��o com a Loja �Pers�fone�?
- Perd�o?
- Com a Ma�onaria?
- Perd�o?
- N�o tens rela��o nenhuma com a Ma�onaria?
- Nenhuma. Exceto que li alguns livros e at� sei coisas sobre os Templ�rios. Segredos importantes.
- Compreendo ... E o que � que estavas a fazer em casa de Jo�o Caturra?
- Procurava emprego. E tu, o que � que fazias na casa, dele?
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- Estou a escrever um livro sobre Ma�onaria e ordens "secretas. Fui entrevist�-lo. Estes crimes est�o relacionados. \ Penso que quem matou o professor Felicijonas Salnius s� pode ter sido aquele homem alto que matou Jo�o Caturra.
- O da gabardina?
- Evidentemente.
Chegaram a casa dela e pararam em segunda fila. Ela saiu a correr com as suas eleg�ncias, entrou no pr�dio. Era um daqueles edif�cios s�lidos constru�dos nos anos quarenta, cheio de m�rmores, austero e firme. Era uma constru��o que n�o tinha d�vidas.
Saiu com um aviso na carteira. Tinha uma encomenda para receber nos correios. F�-lo-ia no dia seguinte.
Acelerou, a olhar pelos espelhos para se certificar - como nos filmes - de que n�o eram seguidos. Perguntou a Conrado onde � que este vivia e dirigiram-se para l�. Entraram ambos em casa dele. Antes disso, Lola esperou, j� fora do carro, que Conrado se cal�asse.
- Esta � a Lola. � jornalista.
A m�e de Conrado estava maravilhada. Lola tinha umas coxas firmes, ancas vastas, mamas firmes e parecia ser bom partido.
E como Conrado n�o parecia tomar a iniciativa, Lola � que n�o tinha tempo a perder - tomou-a:
- A sua vida pode correr perigo. Tem de sair desta casa e ir para algum lugar seguro.
- Como � que a minha vida corre perigo?
- Pode n�o ser nada ... mas n�s, o seu filho e eu, est�vamos na casa de um homem que foi assassinado ...
- Assassinado? Oh meu Deus, onde � que vamos parar? Ter� o Homem alguma humanidade, ou isso � somente carater�stica
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dos animais? A menina n�o vai acreditar, mas ainda ontem nos assaltaram a casa!
- � precisamente isso que � um problema. Suspeitamos que quem o fez foi a mesma pessoa que matou Jo�o Caturra esta tarde.
-Quem?
- Jo�o Caturra, a pessoa que foi assassinada.
- E quem � que o assassinou?
- N�o sabemos. Mas pode ter sido a mesma pessoa que lhe assaltou a casa.
- Ent�o o assassino tamb�m era ladr�o?
- Aparentemente. S�o atividades que por vezes se confundem. Roubou alguma coisa da vossa casa?
- N�o. S� desarrumou tudo. Pensando bem, n�o fez mais do que o Conrado faz todos os dias. Sabe como s�o os homens solteiros ... precisam duma mulher para lhes fazer tudo. Um homem sem uma mulher � s� meio homem, diz o Talmude. Deus criou v�rias esp�cies de macacos. A uma delas, cheia de defeitos, Ele disse: Depois corrijo. Para j�, fica a chamar-se homem, depois logo se v� o que fa�o com isto. Quando Ele viu tudo desarrumado, criou a mulher.
- Costuma ler o Talmude?
- Tenho uns pratos pintados � m�o que t�m cita��es do Talmude. Est�o pendurados ali na entrada, por cima da mesa do telefone. S�o pratos muito bonitos e que nos ensinam muita coisa. Quando o Conrado era pequeno, era nesses pratos que o pai lhe dava a papa e lhe lia aquela sabedoria toda. Mas a parte dos macacos � da minha cria��o. N�o vi escrito em prato nenhum. Mas olhe, menina Lola, n�o ter� sido por engano?
- O que � que foi um engano?
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- Talvez n�o tenha morrido, o tal Caturra. Um primo meu foi enterrado morto, mas afinal estava completamente vivo. Por engano. Isso de morrer e matar pode ser tudo um grande equ�voco.
- N�o � este o caso, posso-lhe garantir.
Conrado interveio na conversa pela primeira vez:
- N�o � este o caso, mam�o Apesar de nada nos garantir que esse Caturra depois de enterrado n�o se v� voltar dentro do caix�o. Como o nosso primo. O meu amigo Carlos Ant�nio tamb�m me contou um caso parecido que se passou com um cunhado dele. N�o era de Coimbra, mas tamb�m n�o se sentiu bem, fechado num caix�o.
Lola Benites ainda acrescentou o resto das suas suspeitas � conversa:
- E h� uns dias foi assassinado um professor de literatura reformado. Acredito que tenha sido morto pela mesma pessoa ...
- Meu Deus! O mesmo assassino?
I - Penso que sim.
- O tal que tamb�m � um ladr�o?
- Esse mesmo.
Nesta altura, Conrado lembrou-se de que havia mentido � m�e, que lhe tinha dito que trabalhava para aquele professor morto, que tinha um emprego onde usava apenas dois dedos, e acabou por atalhar conversa para mudar de assunto e n�o prolongar o tema:
- O importante agora � assegurar que fica toda a gente bem. Tens de ir para casa do tio Ribeiro. Ao p� dele estar�s segura. Ele � Cavaleiro Sagrado do Nous e da Ennoia e conhece n�meros relevantes. Saber� o que fazer.
Arranjou. uma pequena mochila com aquilo que acharia poder vir a fazer falta enquanto a sua m�e lhe fazia um farnel.
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- Daqui a pouco v�o ter fome. V�o a� umas sandes de chouri�o, dois pacotes de sumo e umas laranjas. Precisam de vitaminas. Agora acho que vou fazer as malas.
E fez as malas. Umas grandes malas que engoliram gavetas e arm�rios. Conrado puxou-as pelas rodinhas at� ao elevador. E do elevador at� ao carro.
Sa�ram em dire��o da casa do tio, nas Olaias.
CAP�TULO 24
N�o foi f�cil estacionar.
- N�o h� lugar em lado nenhum - comentou a Sra. Fortes. - Neste bairro nem pensamentos se conseguem estacionar.
Mas acabaram por conseguir um excelente lugar em cima duma passadeira. Sa�ram carregados de malas e dirigiram-se para o bloco 12.
Tocaram nove vezes.
- Tens de tocar nove vezes - disse a m�e de Conrado.
- Eu sei - respondeu o filho -, nove � um n�mero simb�lico. � um tr�s mais perfeito.
E virando-se para Lola:
- O meu tio � Pr�ncipe do Z�nite e, ao mesmo tempo, Profeta do Nadir. Um homem not�vel. Aqui no pr�dio chamam-lhe, por gra�a, inquilino Ribeiro. Como o escritor.
A m�e de Fortes arrastava as suas pesadas malas. O tio Ribeiro estava vestido. Trajava um fato �s riscas muito engomado, escuro, com um len�o vermelho ao pesco�o.
- Entrem, entrem, entrem. Aqui est�o seguros. Os planos superiores protegem-nos. E o Almeida que � pol�cia. J� o avisei do que se passava e ele vai mandar um carro para ficar aqui � porta. E a menina bonita, quem �?
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- Lola Benites. Prazer.
- O prazer � meu, menina Lola.
- E esse seu amigo, esse Almeida, � de confian�a? - perguntou Lola.
- Do mais honesto que h�. Se n�o fosse honesto n�o poria um carro � n essa disposi��o, � revelia das normas. Uma vez, �amos os dois para Sines (ele � que conduzia), quando de repente parou o carro para se multar a ele mesmo. N�o sei se chegou a pagar a multa porque tamb�m � muito teimoso e, a maior parte das vezes, situa��es destas acabam em tribunal. Mas isto � s� para ver como ele � honesto. O Almeida � do mais honesto que h�. Quer um caf�, um ch�, uns bolinhos?
- Aceito um ch�.
- E eu tamb�m - disse a Sra. Fortes. - De camomila que � por causa do est�mago.
Os ch�s foram servidos, n�o sem tumulto: uma mulher nua, provavelmente chinesa, apareceu na sala.
- Uma mulher nua! - gritou a m�e de Conrado.
- Uma n�o, duas. Tenho outra l� dentro - esclareceu o tio Ribeiro. - Esta � a Luz do Oriente. A outra � do Ocidente. As duas juntas fazem o trajeto da luz. Eu sou uma pessoa espiritual, se n�o fosse usar destes estratagemas j� me teria evolado para os planos superiores. Elas s�o as minhas �ncoras a este mundo. Fazem-me lembrar a carne e n�o deixam que o meu esp�rito se evapore. Mas a minha rela��o com este mundo material � estritamente profissional. N�o h� paix�o en�
volvida. Estritamente profissional. Ela n�o fala portugu�s, � estrangeira.
- De que pa�s � ela, tio?
- Provavelmente � chinesa, a julgar pelos olhos. E pelas maminhas: parecem dois versos de Lao Ts�.
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A Luz do Oriente parecia n�o se importar com a conversa , que se desenrolava sobre si. Levantou o tabuleiro com as ch�venas de ch� vazias e voltou para se sentar no sof� ao lado do
not�vel senhor Ribeiro. Felizmente, a Luz do Ocidente ficou no quarto.
- O senhor � ma�am? - perguntou Lola.
- Sou. Trabalho para a Gl�ria da Humanidade. Para a Gl�ria do Grande Arquiteto do Universo! E qualquer dia apadrinho o meu sobrinho - e voltando-se para Conrado: � Quando estiveres preparado, quando estiveres preparado! Ai, fa�o-te meu irm�o na luz da inicia��o. Conhecer�s a Gl�ria, Conrado!
- Eu conheci uma Gl�ria que era criada do Salema, do primeiro direito (colaboradora como se diz agora). Usava aquelas fardas azuis com avental de rendinhas branco. Uma brasileira muito bonita, especialmente dos joelhos para baixo. As unhinhas dos p�s pintadas de vermelho sa�am dos sapatos com curiosidade de ver o mundo. E a pele dela! A pele dela era dum branco quase negro.
- N�o duvido das tuas gl�rias, mas conhecer�s outras, sobrinho. Conhecer�s outras bem mais altas!
- Mais altas?
- Muito mais altas.
- O Carlos Ant�nio vai ficar cheio de inveja.
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CAP�TULO 25
[pequeno interl�dio sobre os p�s]
- Posso-me descal�ar, tio?
- Liberta-me esses p�s � vontade. Livra-te dessas penitenci�rias de couro que s�o os sapatos. J� te falei da import�ncia dos p�s?
-J�. Mas estas penitenci�rias s�o sint�ticas. � mais barato. E como � para andar a pisar ...
- Ainda pior, ainda pior. Ent�o sublinho, nunca � pouco sublinhar: repara aqui nos p�s da Luz do Oriente, repara bem nisto, Conrado. O que � que tu v�s?
-P�s.
- Nada disso, sobrinho, nada disso. Isto n�o s�o p�s. S�o os instrumentos do Bem. As armas do Grande Arquiteto na sua luta contra as Trevas. Ouviste falar da primeira mulher que Ele criou?
-Eva?
- Essa mesma. N�o ficou ela de esmagar a cabe�a da serpente, do Diabo, do Mal? E com qu�, pode saber-se? Com o calcanhar. Com os p�s. Sabemos que essa serpente que vivia no �den a apoquentar o casal acabadinho de criar, que nem o barro de que foram moldados tinha ainda sido cozido, sabemos, como dizia, que essa serpente era o maligno, o dem�nio
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dos dem�nios, chefe e senhor de todos eles. E diz-se ent�o, aquando da expuls�o do, jardim por pecado de que todos j� ouvimos falar, que a mulher haveria de esmagar a cabe�a do cornudo com o calcanhar. A serpente persegue o calcanhar de Eva e esta, com estes pezinhos (o senhor Ribeiro mais uma vez exibia os p�s da Luz do Oriente, levantando-os), esmaga-lhe a cabe�a e com uma pisadela livra-nos a mulher, do Dem�nio, do Mal e, por arrasto, do Behemot, do Leviat�, de Belzebu, de Satan�s, Mefist�feles e outros pr�ncipes e diabos do mundo l� de baixo e de toda a sorte de esp�ritos malignos, dos que nos atormentam a alma e que s�o respons�veis pela pobre qualidade da programa��o televisiva. E daqui retiramos a conclus�o simples e de not�ria evid�ncia que cabe ao calcanhar ser instrumento de tamanha tarefa, instrumento do Bem, e �nico por excel�ncia capaz de cumprir t�o nobre e grandioso feito. Temos nos p�s a reden��o e quase nem precisamos da luz que a inicia��o ma��nica revela ao ne�fito. Os p�s da mulher n�o s�o p�s, s�o anjos e arcanjos, hordas inteiras, ex�rcitos celestiais. N�o s�o p�s como a gente tem. Cada vez que d� um passo e poisa o calcanhar no ch�o, � o pr�prio c�u que toca na Terra e lhe imprime a marca como se fosse a assinatura do bom Deus, Arquiteto deste e doutros mundos. Os passos da mulher s�o os beijinhos com que o Grande Arquiteto do Universo mima a terra.
- Tu, sobrinho - continuava o not�vel senhor Ribeiro, Profeta do Nadir entre outros t�tulos -, n�o ter�s porventura ouvido falar em sereias? Como � sabido, esses seres n�o t�m alma e por isso andam a percorrer mares � procura do marinheiro incauto que lhas d�. E sabes porqu�, Conrado? Porque n�o t�m p�s. Eis porqu�! Sem p�s n�o h� alma. E depois como � que essas criaturas, essas imita��es de Eva, pisariam
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o mal, a serpente, o drag�o do in�cio? Como, diz-me, se n�o t�m p�s?
�O homem caiu logo ao In�cio, n�o se aguentou em p�, estatelou-se na desgra�a. Estar em p� � oposto disso, � a nobreza do porte e a verticalidade, como uma torre de gl�ria, � a vida. E pisar � a conquista, como disse Zoroastro, �p�e os calcanhares na terra� e como mostra a conhecida gravura onde o rei pastor, David, vence o gigante, que � o pr�prio Mal, um monstro como o Leviat�, Phyton, Tiamat e o Behemot. O p� sobre o vil gigante, que representa todas as sev�cias do homem, diz com o calcanhar: conquistei-te. Venci-te! E bem v�s que o outro, o grotesco gigante, por estar ca�do e por n�o se ter em p�, mostra toda a humilha��o da derrota e toda a ver�
gonha do Mal. O homem nasce do monstro como este pastor do fedorento gigante. A intelig�ncia e o esp�rito do rei venceram a brutalidade, a animalidade, e s�o os p�s que o demonstram. Um por estar poisado na cabe�a do gigante e os outros, os de Golias, por n�o se terem na sua fun��o que � sustentar o corpo a que pertencem. Sem sustento cai-se.
- Ent�o temos a intelig�ncia nos p�s!? - perguntou Lola, ir�nica.
- A intelig�ncia, n�o sei, mas temos a mem�ria. N�o deixamos n�s pegadas como marca do nosso percurso? N�o � por elas, pelo rasto que atr�s de n�s deixamos, que o ca�ador persegue a presa e se, for h�bil na ca�a, conhece-lhes, pelas pegadas, a sua vida, os seus h�bitos, o seu fazer? En�o, se podemos perceber o caminho que algu�m percorreu pelas suas pegadas, podemos sem d�vida concluir que a mem�ria se encontra nos p�s e que por eles se grava na terra, como letras num livro, toda a vida de uma pessoa. E � bem prov�vel que o anjo do Julgamento saiba todos os nossos atos, e, para dizer com mais propriedade a esta conversa, conhe�a todos os nossos
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passos, n�o por aquilo que � porta dos c�us confessamos, mas pelo rasto que os nossos p�s deixaram impressos na terra, que � como um livro escrito com pegadas em vez de letras.
�Um homem se n�o fica em p� � porque caiu em desgra�a, ou morreu, ou ainda pior, escorregou, e assim fica mais que provado que � pelos p�s que ele se eleva e � por os perder que
se perde. E, se estar em p� � estar vivo e de sa�de, conclui-se que a vida e a alma que nos anima se vai pelos p�s como �gua por um esgoto e os calcanhares s�o a porta da alma, basta ver o que aconteceu ao Aquiles. E � conveniente tamb�m falar do �dipo, cujo nome quer dizer calcanhar inchado. A esse penduraram-no pelo p�, ap�s a ignom�nia de se deitar com a m�e. E tamb�m do outro, o c�nico que se chamava Di�genes, que tamb�m entregou a alma pelos p�s, segundo dizem, aquando do c�o que lhe mordeu o tend�o. Tend�o esse que era de Aquiles. Se � pelo calcanhar que conquistamos, � pelo mesmo que nos perdemos.
- Mas os p�s n�o s�o sujos, tio? Tenho reparado que nos rojamos aos p�s daqueles a quem nos humilhamos.
- Suj�ssimos, sobrinho, suj�ssimos. Mesmo quando est�o lavados. Mas s�o os p�s que conquistam e s�o os p�s que d�o a humildade. Quem dera que muitos se prostrassem aos p�s
de outros tantos e ter�amos um mundo bem mais divino ou menos diab�lico. E repara, Conrado, que o Diabo n�o tem p�s de gente. � assim que o reconheces. Levanta-lhe o saio e procura-lhe os p�s. S�o de cabra os p�s ~o Demo. Fedem a bedum e enxofre. S�o o oposto destes (e o not�vel Ribeiro levantava os pezinhos da Luz do Oriente, que era, provavelmente, chinesa).
�E as crian�as s�o como p�s para os adultos. A planta do p�, reparem nisto (o not�vel Ribeiro segurava o pezinho esquerdo da Luz do Oriente e a seguir mostrava o direito para
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dissipar quaisquer d�vidas), tem a forma dum feto. Reparem nisto! Tem a forma inocente da vida, duma crian�a, dum feto. � tal qual uma orelha ou um feij�o-frade.
�Mas concedo que h� muita sujidade nos p�s, ou n�o seriam eles o sustent�culo do corpo e a �nica parte do mesmo que se presta a viver em contacto com a lama, o p�, o esterco e toda a imund�cie, e nisso se assemelham a Deus Criador que tamb�m lhe aprazia mexer na lama e na terra, e com ela fez o homem como podes ler no Bereshit. � a lama que com um sopro divino se torna homem.
- E as centopeias, tio, que t�m tantos p�s? Estar�o elas mais esclarecidas nos mist�rios dos planos superiores?
- O muito n�o faz o bom, Conrado. O homem tem s� dois p�s e � por serem apenas dois que ganham import�ncia. O que � raro � mais importante do que o que abunda. O primeiro � alvo de desejo, e lamentavelmente de cobi�a, o segundo � alvo de desprezo e indiferen�a. Que importam mir�ades de estrelas quando temos a Lua? E as pedras quando h� ouro? � importante o que � pouco. Descal�a-te, sobrinho, descal�a-te. E v�s, senhoras, fazei o mesmo.
- Agrade�o, mas prefiro manter os p�s nas suas penitenci�rias de couro - respondeu Lola e prosseguiu tentando mudar de assunto. - Fale-me das suas atividades como ma�om. Sabe que morreu um professor de origem lituana que era, tal como o senhor, ma�om?
- Sei muito bem, menina Lola, sei muito bem. Uma cat�strofe dos Eons. Um decalque da morte de Hiram, o arquiteto que � a inspira��o de todo o ma�om. Um mito que se escapou da terra dos mitos para se materializar num apartamento da Almirante Reis. N�o acontece todos os dias. Os mitos evitam aquela zona entre o Martim Moniz e a Morais Soares. Uma cat�strofe.
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- Sabia que o professor pertencia a uma Loja selvagem?
- Sabia. Tenho um amigo que � Vener�vel C�smico dos Eons Gn�sticos e ele contou-me tudo. Uma Loja secreta que conhece grandes segredos. Sabem como se vive para sempre. Eu tamb�m sei, mas n�o tenho interesse nenhum nisso. Acho a eternidade uma coisa muito aborrecida.
- Sabe mais alguma coisa?
- Sei que usam aventais como todos n�s.
- � como a Gl�ria - interviu Camada Fortes.
- Quem? - perguntou Lola.
- A Glorinha, que era empregada do Salema. Usava um avental branco com rendinhas.
Lola Benites fez a sua cara mais feia. Sentia-se num universo paralelo.
- N�o sabe mais nada al�m disso: al�m de que usam aventais e conhecem o segredo da vida eterna?
- N�o sei mais nada.
- J� ouviu falar num romeno chamado Marim Grigore?
- Nunca. Quem �?
- Membro dessa Loja selvagem. Parece-me boa pessoa.
- Menina Lola, deixe-me avis�-la. � um aviso que lhe servir� para a vida. � �til, guarde-o na sua carteira: as pessoas que fazem coisas por altru�smo ou pelo bem dos outros podem ser muito mais perigosas. S�o capazes de passar por cima de tudo e de todos por um bem maior. Se fosse por ego�smo, n�o o fariam. Uma pessoa pode matar �s carradas por um mundo melhor, mas dificilmente o far� para ser promovido.
- N�o me parece o caso deste senhor, mas agrade�o o conselho. Ser� que posso falar com esse seu amigo? O tal Vener�vel dos Orbes Sagrados?
- Vener�vel C�smico dos Eons Gn�sticos. N�o pode. Ele � muito cioso do seu anonimato.
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- Dormem c�? - perguntou a m�e de Conrado Fortes.
- � melhor n�o - respondeu Lola -, h� coisas que devo investigar e n�o devo colocar-vos, tamb�m a voc�s, em risco.
- N�o h� risco nenhum - respondeu o senhor Ribeiro. - J� falei com o Almeida. Ele tratar� da nossa prote��o. Ele e os planos superiores.
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CAP�TULO 26
Decidiram que seria melhor procurar uma pens�o e sa�ram j� o sol envelhecia, eram umas seis da tarde. A m�e de Conrado obrigou-o a I:rometer telefonar, a alimentar-se convenientemente e, acima de tudo, comer mais fruta.
Lola conduzia sempre muito atenta para ver se n�o eram seguidos. Ele remetia a sua aten��o, apesar de se sentir um pouco assustado com tudo isto, para as pernas dela. E a tens�o que se gerava na alma deste homem mais baixo que a m�dia era agravada pela falta de charutos.
Acabaram por escolher uma pens�o da Baixa, modesta e escura. Preferiram ficar no mesmo quarto por motivos de seguran�a. Conrado apreciou a op��o enquanto Lola via tudo como um sacrif�cio que lhe poderia poupar a vida.
Felizmente, Lola aventurou-se primeiro nos meandros da higiene, pois a de Conrado era demorada. Ela n�o deixou de pensar no azar que era ter de partilhar o quarto com um homem daqueles. Ele n�o deixou de pensar na sorte que tivera. Se o Carlos Ant�nio soubesse disto, morreria de inveja.
O quarto era espa�oso, com uma janela para um sagu�o. O ch�o era de soalho. Rangia muito, provando a cada passo que era um ser vivo. Mais vivo que Conrado. E quando o dia
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despontou, acordaram os dois. Ela vestida (n�o se tinha despido) e ele no seu pijama listado.
A noite decorreu bem, passou at� ser dia, como fazem as noites, sem grandes sobressaltos.
Levantaram-se e foram tomar o pequeno-almo�o, os dois, como marido e mulher. Insistiram nas torradas e beberam caf�. Quando chegou a altura de pagar, Conrado quis tomar conta das opera��es, mas n�o tinha dinheiro. Por isso, afirmou que pagaria a conta, n�o a deixaria pagar. Tirou a carteira, fingiu que n�o encontrava o cart�o, fez uma careta e lamentou o sucedido.
- Devo ter deixado o cart�o l� em casa.
-Eu pago.
E arrancou a conta das m�os de Conrado.
A manh� estava agrad�vel. N�o chovia, o sol mostrava os seus longos dedos mitol�gicos. Os mesmos que Homero tinha, apesar de ser completamente cego, reverenciado.
- Vou aos correios - disse ela.
- Vou contigo. Nunca se sabe.
E ela aceitou a companhia. A verdade � que estava assustada.
N�o havia a mais pequena esperan�a de estacionar num raio de muitos quil�metros da esta��o dos Correios. Conrado ficou no carro e ela saiu. Voltou passados minutos com um embrulho debaixo do bra�o.
- O que �?
- Fotoc�pias ...
Miroiu tinha, tal como prometido, enviado c�pias de todos os trabalhos de Serban Grigore que tinha em seu poder. Vinham embrulhados numa toalha de mesa para n�o se estragarem.
- E agora? - perguntou Conrado.
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- Agora vamos beber um caf�. Estou a precisar.
Sentaram-se numa mesa que acharam discreta, num caf� t�mido, de esquina e comprido. A luz da rua n�o chegava inc�lume �s mesas do fundo, deixando uma penumbra corrigida por uma ilumina��o nervosa. Ela pediu o caf� - e um copo de �gua - e ele pediu um bolo. Lola deu uma vista de olhos pelas fotoc�pias. J� tinha visto aquilo tudo em Brasov, na casa de Miroiu, mas seria bom rever aqueles escritos, agora que sabia mais coisas. E parou num trabalho que era - pelo menos segundo o que entendia de romeno - sobre licantropia. Ligou de imediato a uma jornalista sua conhecida capaz de traduzir aqueles trabalhos.
- Vamos a casa duma pessoa que conhe�o, uma romena. Precisamos de ter isto traduzido. Pode ser que nos ajude ...
Conrado assentiu, n�o sem se interrogar: �ajuda-nos em qu�? Estamos a enfiar o nariz onde n�o nos diz respeito e que nos poder� ser fatal para a vida toda�. Enquanto ele pensava, ela pagava o bolo e o caf�.
Apareceram os dois � porta de llinca Muresanu. Esta vivia na periferia, em cima de ch�o flutuante. Era uma rapariga nova, com menos de trinta anos, s�bria na maneira de vestir e de
falar. Usava um sotaque de leste e sorria ami�de.
- Esta � a llinca.
Foi assim que Lola a apresentou. Conrado serviu-se de um whisky - que a pr�pria llinca ofereceu - e sentou-se a ver televis�o. Lola sentou-se no mesmo sof� mas com a cabe�a noutro lado. llinca tinha dito que traduzir a:.Suilo ainda demorava, mas Lola mostrou-se irredut�vel. Esperaria.
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CAP�TULO 27
O jornal desse dia trazia a not�cia de mais um ma�om morto em circunst�ncias muito semelhantes �quelas em que encontraram Salnius. Ou seja, tinha um esquadro met�lico a atravessar-lhe o cr�nio, uma morte geom�trica. A v�tima era um mestre do Oriente de Fran�a, um homem honesto e de h�bitos. Chamava-se Damien Galloy, era belga. Foi encontrado no seu apartamento em Paris, amarrado a uma cadeira.
Hol segurava o jornal com um ar triunfante. Esperava a chegada de Lutz Popke e do pesado Laurent Rigaut. Telefonara-lhes mal lera a not�cia e, exultante, impaciente, esperava por eles.
Rigaut foi o primeiro a entrar porta adentro. Abra�ou Alexander Hol com os seus cento e vinte quilos e atirou o chap�u para o bengaleiro. Minutos depois chegava Popke. Trazia um sorriso, despiu o casaco, foi direito ao bar e serviu-se dum brandy.
Hol, sem esperar muito tempo, bateu com as m�os no jornal apontando a not�cia.
- Morreu uma pessoa, um ma�om que n�o pertencia � nossa Loja. Foi morto, tudo indica que sim, pela mesma pessoa que matou Salnius. Um tal de Damien Galloy foi encontrado amarrado a uma cadeira com um esquadro met�lico enterrado
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no cr�nio. Isto prova que � um man�aco qualquer que mata ma�ons, mas n�o anda necessariamente atr�s de n�s, atr�s dos irm�os da nossa Loja. Assim, n�o h� motivo para cumprir as resolu��es da �ltima reuni�o. Elas apoiaram-se na amea�a que pairava sobre a nossa Loja. Ora, essa amea�a n�o nos concerne particularmente, n�o � dos nossos segredos que este assassino anda � procura. Ent�o, n�o h� motivo para os divulgar. Esta morte desarmou o argumento de Grigore.
Popke encheu a goela com o conte�do do copo.
- O melhor � ligar-lhe - disse o alem�o. E pegou no telefone.
Marim Grigore estava em Londres, no seu apartamento. Tinham-lhe ligado na noite anterior a anunciar a morte de Jo�o Caturra. Fora o Mendes da pens�o em frente que o fizera. Grigore gostava de Jo�o Caturra como se pode gostar duma pessoa. Era um jovem inteligente, muito inteligente e com muito potencial. Conhecera-o h� quatro anos numa palestra rara. Teofrasto, um alquimista - dos que realmente j� viram um cadinho -, tinha tido a coragem e a impud�ncia de exibir alguns dos seus trabalhos de laborat�rio. Grigore lembrava-se dessa exposi��o como se fosse hoje. Flores de antim�nio e as estrelas do casamento de Marte e V�nus estavam expostas � curiosidade de qualquer pessoa. Lamentavelmente, s� quem conhece poderia apreciar tudo aquilo. Tal como acontece em todas as outras circunst�ncias da vida. � preciso saber para
fruir. Teofrasto tinha ao seu lado um jovem chamado Jo�o Caturra. Contrastavam: um, muito novo; o outro muito velho. Grigore falou com ambos. Com Teofrasto falou da alquimia animal. Ele desconhecia a sua exist�ncia. Grigore falou-lhe das descobertas do seu pai, Serban Grigore. Mas o velho alquimista n�o se mostrou interessado nessa via:
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- H� mais de cinquenta anos que trabalho em laborat�rio. Tenho o meu m�todo ao qual pretendo continuar fiel. Como a urna mulher. Seria tolice, depois de todo este investimento, come�ar do zero.
Grigore explicou-lhe que esta alquimia n�o precisa do mesmo empenha e labor, mas Teofrasto continuou irredut�vel. No entanto, Jo�o Caturra estava interessado, muito interessado. Falaram um pouco, j� depois de Teofrasto se ter retirado. Por coincid�ncia encontraram-se no dia seguinte na biblioteca da cidade.
Caturra perguntou a Grigore o que era isso da alquimia animal e Grigore sorriu.
- Demora a explicar e muito mais a ensinar.
- Tenho tempo, sou novo.
Grigore gostou dele. Era um rapaz com esp�rito. Era incapaz de deixar um enigma sozinho sentado num sof�. Encontraram-se algumas vezes at� Marim Grigore se sentir seguro relativamente a Jo�o Caturra. Um dia decidiu inici�-lo na alquimia animal. E tamb�m na Loja �Pers�fone�, Nesse dia, disse-lhe:
- O que vais aprender, a alquimia animal, � a chave de muitos mist�rios, desses que fazem encher os escaparates das livrarias.
E Jo�o Caturra empenhou-se. Era, de longe, a pessoa mais capaz que tinha conhecido. Assim, a sua morte foi um choque. Recebeu-a como o tiro que Caturra recebeu no peito. Pousou o telefone e chorou.
No dia seguinte de manh�, ao ler o jornal, ficou realmente admirado. Um ma�am havia sido morto em circunst�ncias em tudo id�nticas � morte de Salnius. Sem qualquer rela��o com a Loja que Grigore tinha fundado. De imediato, telefonou a Umberto Troiani, o secret�rio da Loja �Pers�fone�, e comentou
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o sucedido. Este n�o deixou de se interrogar. Tinha conhecimento de dois ma�ons mortos da mesma maneira, com um esquadro de metal. E um terceiro que tinha sido morto a tiro. Para complicar o racioc�nio, nem todas estas mortes tinham as mesmas caracter�sticas. Ou seja, duas tinham sido executadas com uma mensagem simb�lica enquanto a outra n�o parecia passar de um atentado sem qualquer fundamento ritual. Por outro lado, duas das v�timas - precisamente as que tiveram mortes diferentes - pertenciam � mesma Loja.
Grigore, nessa manh� e depois de falar com Umberto Troiani, pousou o jornal e o telefone. Bebericou o ch� e o telem�vel fez-se soar. Olhou para o visor e viu o nome de Popke.
- Marim? J� leste os jornais de hoje? Mataram um ma�on qualquer como mataram o Felicijonas. N�o � atr�s de n�s que eles andam. A resolu��o da �ltima reuni�o j� n�o faz sentido. N�o h� qualquer motivo para divulgar o que quer que seja ...
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CAP�TULO 28
A cara de Popke foi-se tornando cada vez mais branca. Os seus cabelos brancos levantavam-se. Gaguejava. Desligou o telefone e atirou-o contra a janela. Espumava de raiva. Virou-se para Hol e Rigaut que estavam parados, em p�, sem saber o que fazer ou como reagir.
Popke arquejava. Quando se acalmou um pouco, disse:
- O Jo�o foi assassinado. N�o foi s� aquele ma�om, o Jo�o tamb�m ...
- Com um esquadro? - perguntou Alexander Hol.
- N�o. A tiro. Foi alvejado no peito.
Um sil�ncio muito calado instalou-se entre eles. Popke n�o perdeu tempo e reencheu o seu copo. Falou, depois de beber um golo suficientemente grande para levar todo o conte�do do copo at� ao est�mago:
- Bem, parece-me que este assass�nio n�o tem nada a ver com os outros dois. Este foi a tiro, em circunst�ncias completamente diferentes. Parece-me que Grigore n�o tem motivo algum para achar que os irm�os da nossa Loja correm perigo.
- Como n�o? - arguiu Hol. - Morreram dois membros da nossa Loja na mesma semana.
- Coincid�ncia - ripostou Popke.
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- Coincid�ncia ou n�o - interveio Laurent Rigaut -, se a morte de um ma�om que n�o fazia parte da nossa Loja enfraquecia a argumenta��o de Grigore, a verdade � que a morte do nosso irm�o, do Jo�o, d�-lhe for�a.
- Como assim? - questionou Popke com a f�ria a assomar-lhe �s bochechas. - Pode ser tudo uma infeliz coincid�ncia. O que nos parece mais certo � conjugar as mortes que t�m caracter�sticas id�nticas. E isso n�o nos permite concluir, muito pelo contr�rio, que corramos algum perigo.
E dito isto atirou o copo contra a parede com toda a for�a que era capaz.
- Maldito Grigore!
Hol e Rigaut entreolharam-se. Popke estava vermelho. Os seus oitenta e quatro anos saltavam-lhe das rugas e os cabelos eri�avam-se como os dos c�es. Parecia capaz de matar algu�m se n�o fosse o reum�tico. E a condi��o social. Um homem como Lutz Popke, com aquela idade e saber, n�o se presta a sujar as m�os de sangue. Ali�s, Popke sempre teve dificuldades com o sangue, sanguinem abhorret. Sempre desmaiou quando o viu e sempre evitou fazer an�lises. Bem como m�dicos. Isso permitiu-lhe chegar aos oitenta e tal sem grandes problemas de sa�de. E era um conservador. Gostava de coisas novas, mas abominava novidades. Na verdade, um conservador n�o passa dum homem que tem exatamente as mesmas ideias do seu av� que, na altura, era um liberal, muito provavelmente, amante de novidades.
Alexander Hol, via-se na cara, estava assustado. N�o esperava uma rea��o dessas. E tamb�m havia sido, de alguma forma, tocado pela morte de Jo�o Caturra. De certo modo, estava agora mais pr�ximo de Grigore. Tamb�m n�o gostava que lhe partissem os copos.
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Por outro lado, Laurent Rigaut parecia mais interessado em beber mais um whisky. N�o aparentava, de todo, ter sido afetado pelo ataque de f�ria de Popke. Quem o tivesse observado, teria reparado at� num ligeiro sorriso, uma esp�cie de Gioconda com mais quilos, mas com o mesmo ar enigm�tico.
Quando sa�ram da casa de Alexander Hol, Popke levava um copo na m�o que pousou na mesa do corredor. Dito com pessimismo, ainda estava meio cheio. A viol�ncia com que o fez salpicou o espelho que se abeirava por cima mesa. Ainda vociferou umas amea�as contra Marim Grigore. Umas amea�as que algu�m poderia levar a s�rio. Felizmente estava entre irm�os, pessoas discretas.
Rigaut saiu com essa mesma discri��o. Conduzia o mesmo sorriso enigm�tico. Manteve-se calado e saiu assim, calado. N�o partiu copo nenhum, mas Alexander Hol n�o pode deixar de sentir um arrepio quando ele passou � sua frente em dire��o ao elevador. Chegado ao r�s-do-ch�o, tirou o telefone do casaco. As paredes do �trio do pr�dio onde Hol vivia tinham frescos pintados, cenas da Cria��o. Rigaut olhou-as por momentos como se estivesse a olh�-las. Estava apenas meditabundo. No teto pendurava-se um candeeiro muito grande, cheio de cristais e l�mpadas. Desviou o olhar das paredes para o teclado do telem�vel, procurou o n�mero desejado e carregou na tecla verde.
- Precisamos de nos encontrar. H� uma pessoa que n�o precisa de viver mais tempo.
E desligou o telefone, sempre com o mesmo sorriso.
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CAP�TULO 29
O primeiro texto que Ilinca Muresanu traduziu era sobre o Natal. Lola ficou a l�-lo durante duas horas. Conrado pediu-lhe para resumir o que tinha lido.
- Bem, o que diz aqui � que o Pai Natal � um cogumelo.
- Como assim?
- Serban escreveu que toda a festa do Natal � a sobreviv�ncia sincr�tica dum ritual pag�o que envolvia um cogumelo. � esta a introdu��o. Parece que existe um cogumelo que nasce debaixo dos pinheiros de Natal...
-Junto das prendas? E n�o nasce debaixo dos outros?
- N�o, parece que prefere os pinheiros n�rdicos, aqueles que iconograficamente relacionamos com a �rvore de Natal. Tamb�m nasce debaixo de b�tulas. Tem uma rela��o simbi�tica com estas �rvores, con�feras e b�tulas, e s� cresce debaixo das suas sombras. Esse cogumelo chama-se amanita muscaria. Serban Grigore escreveu que as prendas no sop� da �rvore s�o um s�mbolo do cogumelo que nasce, tamb�m ele, no sop� destas �rvores. De certa maneira, o modo como a celebra��o do Natal tem vindo a ser tratada s� revela o nosso compromisso com o mito. Continuamos, sem saber e inconscientemente, a perpetuar uma certa cultura psicad�lica. Basta olhar para as decora��es das �rvores e para a escolha dos pap�is de embrulho. N�o � s� mau gosto.
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- Eu sabia ...
- Este cogumelo �, na verdade, um alucinog�nio, mas tamb�m � venenoso. N�o � mortal, mas � t�xico. Estamos a falar daquele cogumelo vermelho dos contos de fadas, daquele cogumelo de pintas brancas. Grigore afirma que quando se p�e o cogumelo a secar, se d� uma transforma��o, e a maior parte do �cido ibot�nico que faz parte da sua composi��o torna-se muscimol � este muscimol que � respons�vel pelas vis�es. Segundo Grigore, este cogumelo, esta subst�ncia, era a mat�ria-prima de todas as religi�es primitivas dos povos indo-europeus. Ele afirma que as cores do Pai Natal n�o s�o coincid�ncia nenhuma e que o facto de ele voar tamb�m n�o. A verdade � que a alucina��o deste cogumelo gera dois tipos de-sensa��es facilmente identific�veis: a sensa��o de que somos muito grandes ou muito pequeninos - o que cria as vi�
s�es com duendes e gigantes - e uma grande sensa��o de leveza ou de voo. Da� o tren� voador do Pai Natal e os seus duendes.
- E as renas?
- Quanto �s renas, elas tamb�m encaixam na teoria exposta por Grigore. Ao que parece - e ainda hoje se pode testemunhar - as renas consumiam o cogumelo e os pastores guardavam a sua urina porque as propriedades alucinog�nias do cogumelo passam praticamente inc�lumes e s�o expelidas pela mic��o. Ent�o, eles guardavam a urina de rena em sacos de couro e consumiam-na quando achassem importante.
- Consumiam urina de rena? � esse o esp�rito de Natal?
- Na Sib�ria parece ser comum ...
- Agora percebo o nariz daquela rena, o Rudolf, sempre vermelho como se estivesse b�bedo.
- Mas n�o � tudo. Grigore ainda afirma que todo o folclore romeno sobre vampirismo se baseia no consumo deste cogumelo. Os C�rpatos, com as suas florestas de pinheiros;
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fornecem a melhor mat�ria-prima. Os amanitas s�o abundantes nessa cordilheira. O que as lendas contam � que as pessoas se transformam em criaturas noturnas, especialmente lobos
e corujas. Na primeira parte dos seus trabalhos, Grigore escreve que o cogumelo foi muitas vezes consumido por provocar que se conhece por bersek. Ou seja, era uma f�ria guerreira. Os vikings consumiam-no. Isso explica tamb�m a aura de viol�ncia que existe � volta das hist�rias de vampiros. O cogumelo permitia essas euforia e embriaguez que poderiam ser utilizadas nas batalhas.
- Como a po��o m�gica dos gauleses?
- Quem sabe ... Mas n�o � apenas isso. Grigore diz que existem v�rias maneiras de comer o cogumelo. O problema, aquilo que se quer evitar, s�o as propriedades t�xicas que ele tem. Este cogumelo cont�m, juntamente com o muscimol � a subst�ncia desejada -, um veneno. Para contornar este problema, Grigore acredita que alguns truques seriam necess�rios para o seu consumo ser mais confort�vel. Ao contr�rio de alguns estudiosos que afirmam que os xam�s siberianos bebiam a urina porque havia escassez dos cogumelos, Grigore n�o acreditava nisso. Achava que eles bebiam urina porque a maior parte das subst�ncias t�xicas do cogumelo haviam ficado no f�gado da rena. O f�gado � o �rg�o que limpa o organismo das subst�ncias nocivas, por isso � normal que, passando o muscimol atrav�s da urina, a muscarina, por exemplo tenha sido anulada. Portanto, eles davam o cogumelo a comer �s renas e bebiam-lhes a urina, n�o devido � escassez (ou n�o apenas devido � escassez), mas porque estariam a consumir
uma vers�o melhorada, menos t�xica. Serban Grigore escreveu que, nos C�rpatos, n�o era atrav�s da urina que eles obtinham o muscimol, Era atrav�s do sangue. Em vez de/beberem urina, matavam um animal de grande porte, como um boi, um
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javali ou um veado a quem tinham dado cogumelos - em grande quantidade - e depois bebiam o seu sangue. Da� o mito/dos vampiros nesta regi�o. Parece que era usado o mesmo m�todo nos cultos e mist�rios dionis�acos, atrav�s do sacrif�cio de um touro. Isso dava aos adeptos do culto capacidades prof�ticas, afrodis�acas, aumento da capacidade f�sica. Grigore escreveu tudo isto com min�cia. Chegou a justificar os olhos vermelhos que � imagem de marca do vampiro: s�o as pupilas dilatadas devido aos efeitos do muscimol. As pupilas, quando se dilatam, deixam entrar muita luz. Isso significa que a retina se torna vis�vel e a retina � vermelha. � o mesmo motivo pelo qual ficamos, tantas vezes, com os olhos vermelhos nas fotografias. E o uso deste cogumelo n�o se fica simplesmente pelo Velho Mundo, onde a sua utiliza��o parece omnipresente. No Alasca, os Dogrib usam-no nas suas inicia��es e nessa regi�o fumam-no com prop�sitos divinat�rios, Os Ojibwa tamb�m o usam deste modo. Contudo, tamb�m fumam outro cogumelo semelhante a este, o amanita pantherina. Nas Filipinas, os Luzon tamb�m consomem ritualmente o amanita muscaria. Chamam-no ampacao ...
- E o que � que isto nos ajuda?
- Mais � frente, Grigore tem uma s�rie de cita��es sobre os efeitos do cogumelo. Desde �xtases paradis�acos at� � sensa��o de for�a sobre-humana. Este cogumelo sempre foi descrito como um graal, e Serban afirma mesmo que este cogumelo era o Soma dos hindus, a bebida sagrada, a bebida dos imortais. Nesta passagem cita Wasson. E segundo Jo�o Caturra, era esta bebida que o Infante desejava encontrar ao chegar ao Reino do Prestes Jo�o.
- Portanto, D. Henrique n�o queria verdadeiramente descobrir as �ndias, e os Descobrimentos foram apenas a demanda de um cogumelo ou de urina de rena ...
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CAP�TULO 30
O corpo de Jo�o Caturra foi velado no Porto, local onde vivia o seu pai, Ant�nio Caturra, o Rei dos Azulejos. Apesar deste t�tulo r�gio, n�o era somente aos azulejos que Caturra devia a sua enorme fortuna. Come�ou com eles e criou um pequeno imp�rio a forrar casas de banho, mas foi o jogo que o tornou um dos homens mais ricos do mundo. Nunca foi um jogador, mas sabia como nunca perder: a �nica maneira de realmente ganhar ao jogo � ser dono do casino. E foi assim que Caturra deu um pontap� no azar e passou a enriquecer ferozmente atrav�s dessa roleta que � o jogo. Foi uma aposta segura e, hoje, tinha uma grande cadeia de casinos espalhada pe�
lo mundo.
Nenhum membro da Loja �Pers�fone� apareceu no vel�rio - nem no enterro. Marim Grigore temia que, ao faz�-lo se estivessem a expor demasiado aos assassinos. Aparecerem os membros da Loja todos juntos, no mesmo lugar, seria quebrar o anonimato. Grigore, em circunst�ncias normais, n�o teria problema com essa falta de discri��o, mas na conjuntura atual, receava o pior. Por isso, havia ligado a todos os membros de modo a dissuadi-los de o fazerem. Teve, no entanto, a vontade
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de reunir uma sess�o especialmente dedicada ao falecido Jo�o Caturra, mas mais uma vez receou que, se algu�m estivesse a ser seguido, seria muito f�cil identificar todos os membros da Loja. For isso adiou o evento.
Ant�nio Caturra estava inconsol�vel. Ele e o filho nunca foram muito pr�ximos. Ambos mantinham os seus segredos secretos - coisa que raramente os segredos s�o. Ant�nio nunca tinha visitado o filho desde que este se mudara para Coimbra. No seu banco, tinha uma ordem de transfer�ncia autom�tica e, todos os meses, o filho via a sua conta aumentar. Ant�nio Caturra punha uma percentagem do que ganhava na conta do filho, com a devo��o de quem paga o d�zimo. N�o tinha tempo para o visitar - era um homem ocupado, um homem de neg�cios -, mas fazia com que o aparecimento de dinheiro na conta do filho substitu�sse a sua presen�a.
O caix�o foi colocado numa das salas da grande vivenda de Ant�nio Caturra. E o Rei dos Azulejos chorava como se tivesse, ele pr�prio, assassinado o filho. � sua volta ficavam os familiares demasiado bajuladores e alguns bajuladores demasiado familiares. Essa fam�lia n�o contava com a m�e de Jo�o Caturra, porque ela tinha morrido havia tr�s anos. Um cancro que n�o lhe perdoou os ov�rios e seis meses depois de descoberta a doen�a, ela faleceu com todo o seu corpo. Foi um momento tremendo para o marido e, claro, para o filho �nico, Jo�o Caturra. Foi nesses tempos de choro que se viu iniciado na Loja �Pers�fone�. Grigore fora muito importante para que sa�sse da depress�o profunda onde tinha mergulhado com toda aquela dor. O romeno dera-lhe um motivo para viver, uma paix�o. Jo�o Caturra sempre se interessara por ocultismos e esoterismos - apesar de desprezar a Ma�onaria do seu pai - e trabalhava no laborat�rio dum verdadeiro alquimista (se � que estas duas palavras n�o s�o uma grande contradi��o),
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Teofrasto. Foi sob a orienta��o deste que Grigore o conheceu. Na Baviera, um alquimista costumava reunir, no equin�cio de Outono, uma s�rie de outros alquimistas que trabalhavam no
forno e no laborat�rio e nunca se lhes ajuntavam aqueloutros que apenas especulam sobre as coisas. Grigore conheceu Teofrasto numa dessas celebra��es onde se bebia hidromel e, claro, cerveja, que � feita - ainda hoje - segundo m�todo alqu�mico ou semelhante a este. Jo�o Caturra era um aprendiz com esp�rito. Nessa festa servia � mesa. Grigore acabou a noite a conversar com Teofrasto e criaram uma empatia imediata. Encontraram-se com frequ�ncia depois disso. Por diversas vezes as conversas terminavam a falar sobre os diversos tipos de alquimia e, um dia, Jo�o Caturra ouviu falar da alquimia anima Isso despertou a sua curiosidade. Jo�o Caturra era um ouvinte �vido e um jovem inteligente. Provavelmente ele interessou-se tanto pelo tema, n�o pelos atrativos desta via, mas porque era um completo mist�rio para ele. Um enigma que
queria resolver a qualquer custo. Passou a encontrar-se mais vezes com Grigore e quando a m�e morreu, deixou, de todo, de frequentar o laborat�rio de Teofrasto. Este fez o poss�vel para que Jo�o voltasse a trabalhar no seu laborat�rio, mas n�o insistiu muito. N�o estava no seu feitio faz�-lo. Marim Grigore, no entanto, n�o deixou de o visitar e, certo dia, falou-lhe da Loja �Pers�fone� e das ambi��es que tinham para tal ordem. Isso aliciou Jo�o Caturra que pareceu acordar dos mortos. Pouco tempo depois, era iniciado nessa Loja selvagem.
Na sala onde estava o corpo de Jo�o Caturra, havia flores, v�rios arranjos, � volta do caix�o. Tamb�m havia muita coisa partida, uma jarra, um banco de madeira, uma c�moda. Tinham sido partidos por Ant�nio Caturra. N�o � f�cil perder a mulher e, tr�s anos depois, o seu �nico filho. A raiva chegara antes das l�grimas.
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Ant�nio era um homem corpulento com um bigode not�vel, enrolado em dire��o ao c�u. E, tal como o filho, era ma�om. Evidentemente, gostaria de ter proposto o pr�prio filho para se iniciar nos mist�rios ma��nicos da sua Obedi�ncia, mas este recusara sempre. Na altura n�o lhe interessavam os homens de avental, esses filhos da vi�va. At� conhecer Marim Grigore, toda a parafern�lia ma��nica n�o passava, para ele, de um clube de cavalheiros mais ou menos bem-intencionados que n�o sabiam distinguir um esquadro dum compasso.
E Ant�nio chorou todo o dia e toda a noite. O enterro seria no dia seguinte de manh�.
Perto da meia-noite, j� toda a gente se havia retirado. Exceto Ant�nio com as suas l�grimas. E mais tr�s homens: S�lvio Teixeira, Ros�rio Teixeira e Ramos Navarro. Dois irm�os g�meos com duas grandes barrigas, dois homens em quem Ant�nio Caturra confiava acima de tudo, e um terceiro, menos burgu�s, um homem com m�os de ferro. Eram todos irm�os, todos ma�ons, todos homens de bem. Exceto Ramos Navarro que n�o passava de um homem sem educa��o. O seu sistema nervoso n�o controlava os seus bra�os. Quem o fazia era Ant�nio Caturra e esses membros respondiam como se estivessem enraizados nos seus pr�prios ombros.
Em cima da mesa do escrit�rio, os irm�os Teixeira tinham aberto o jornal desse dia.
- Sei que n�o � altura - come�ou S�lvio Teixeira _, mas mataram um ma�om com um esquadro de metal.
- Quem era? - perguntou Caturra.
- Algu�m sem import�ncia alguma para n�s, um belga chamado Damien Galloy. Mas o que � ins�lito � a forma como morreu.
Ant�nio Caturra tinha demasiada dor para pensar naqueles assuntos. Limitou-se a abanar a cabe�a.
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- H� alguma coisa que n�o bate certo - disse o outro irm�o.
Um carro estacionou � porta da vivenda de Ant�nio Caturra. Era um carro prateado, alugado. L� dentro um homem muito alto acendeu um cigarro. Loury abriu o vidro e respirou a noite. A escurid�o entrou-lhe pelas narinas como se fosse o mesmo ar frio que n�s todos respiramos em noites como aquela. Olhou para a vivenda. Continuou a fumar o cigarro que havia acendido. At� meio e depois apagou-o. Preocupava-o a possibilidade de morrer precocemente devido ao tabaco. Loury lidava muitas vezes com a morte, com a morte dos outros, mas lidava muito mal com a sua, a �nica morte importante. Quando comia, comia com modera��o. Mas n�o s�. Preocupava-se em comer cereais integrais, fruta e vegetais, evitava a carne, os a��cares e o excesso de sal. N�o bebia �lcool. O seu �nico vicio era o tabaco, mas planeava aniquil�-lo. Era
bom a aniquilar. Matar um v�cio � mais dif�cil que matar um homem, mas � poss�vel. Andr� Loury abriu a porta do carro e fechou-a com cuidado. Atravessou a rua em dire��o � cancela.
Andr� Loury entrou, a porta estava aberta por causa do vel�rio. Percorreu o corredor, um corredor cheio de objetos, demasiado decorado, e viu uma sala cheia de flores. Com um
caix�o no meio.
O seu primeiro passo para dentro dessa sala foi-lhe fatal. Ramos Navarro agarrou-o por tr�s e, de imediato, com a destreza dum soldado treinado, partiu-lhe a omoplata. F�-lo cair de joelhos sob uma chave de bra�o. Loury gritou. Depois, Navarro chegou-lhe o sapato � barriga num pontap� que lhe partiu duas costelas. Tirou-lhe a pistola que ele levava entalada nas cal�as.
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Quando o grito de Loury se calou, ouviu-se um choro convulsivo. Era Ant�nio, o Rei dos Azulejos.
- Quero que olhes para este caix�o e me digas o que v�s - disse Ant�nio com l�grimas e tom prof�tico.
Ramos Navarro pegou nele e f�-lo debru�ar-se sobre o caix�o. Loury reconheceu a cara de Jo�o Caturra.
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CAP�TULO 31
Nesse instante de trag�dia grega, Loury, debru�ado sobre o caix�o de Jo�o Caturra, percebeu por que motivo iria morrer. A cara do filho do rei dos azulejos era a cara da morte, a cara da sua pr�pria ceifeira. N�o porque era um cad�ver, um morto, mas porque quem o olhava tamb�m j� n�o pertencia a este mundo. Loury j� estava com um p� no Hades e quando olhava para o morto, era ao espelho que se olhava. Quem lho dizia era aquela cara pl�cida que tinha pertencido a um homem de trinta e poucos anos.
- Foi um acidente - balbuciou. - N�o era minha inten��o ... n�o o quis matar ... escorreguei ... a lama ...
- Mataste o meu filho - proferiu Caturra.
Os dois Teixeira observavam impass�veis com as suas barrigas.
- Foi um acidente - repetia Andr� Loury. - Um acidente ... foi um acidente ... eu ... n�o fazia ideia ... um acidente ... havia lama ...
- Tinhas ordens expressas para n�o matar ningu�m e assassinaste o meu filho.
Loury nunca soube o nome de Ant�nio Caturra. Conhecia-o como Lusitano. N�o sabia nada sobre ele, exceto que liderava a ordem que o acolhera como se fosse fam�lia. Nunca
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tinha ido a casa dele. Esta era a primeira vez e a �ltima. V�rias vezes matara sob as ordens deste homem, do Lusitano, que afinal se chama Ant�nio Caturra e � rei dos azulejos. E este n�o fazia ideia da filia��o do filho numa Loja selvagem, muito menos naquela Loja selvagem. Em todo o caso, tinha encarregado Loury da miss�o de descobrir os membros da Loja �Pers�fone�. Evidentemente, sem os matar. Ant�nio Caturra queria interrog�-los antes disso, ou melhor queria que os Teixeira o fizessem.
No final havia sido respons�vel pela morte do pr�prio filho. O que demonstra que a trag�dia grega n�o � uma forma de literatura, mas sim uma forma de profecia.
Navarro ainda agarrava Loury por um bra�o. Com o outro bra�o, que se enrolava como uma cobra constritora, partiu-lhe o pesco�o. Loury evitava os fritos e as gorduras saturadas, mas foi incapaz de evitar aquele abra�o. Passou parte da vida a abster-se das prote�nas animais, da carne vermelha, e foi um bra�o cheio destas que lhe sentenciou o fim da vida. Ouvia-se, na sala onde estava o cad�ver de Jo�o Caturra, os solu�os e as l�grimas do pai deste, juntamente com aquele ru�do t�o caracter�stico dum pesco�o torcido. � como o trinco duma porta a ser fechada para sempre.
- � preciso que o homem gordinho e a jornalista, que estavam em casa do meu filho, morram - disse o rei dos azulejos enquanto se assoava. E Ramos Navarro, sem dizer uma palavra, deu meia volta e levou Andr� Loury enrolado no tapete da sala.
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CAP�TULO 32
Do outro lado do telefone, Ant�nio Caturra, soberano dos azulejos, ouvia uma voz an�nima que j� lhe havia telefonado antes. Conhecia a voz, mas n�o conhecia a cara que lhe correspondia.
- O seu filho morreu. Tem de desistir disto tudo. N�o vale a pena - disse a tal voz ao empres�rio Caturra.
- O meu filho, por muito que o amasse, n�o vale a humanidade inteira. Isto fazemos pelo Homem. H� sacrif�cios que, por maior dor que causem, t�m de ser feitos. O sangue do meu filho salvar� a humanidade e voc� n�o poder� fazer-me desistir agora.
Esta �ltima frase parecera doutrina crist�. Ant�nio Caturra chorava silenciosamente. Tinha ouvido aquela voz, certo dia, uma voz que sabia que ele, empres�rio de azulejos, liderava uma ordem que recrutava os seus membros dentro das Lojas ma��nicas. Aquela voz sabia que ele tinha ordenado algumas mortes - tudo pelo Bem supremo, mas mortes, contudo, crimes que a sociedade ignorante n�o hesitaria em punir.
- Afinal o que � que correu mal? Eu dou-lhe um nome, um nome lituano, o nome de Felicijonas Salnius. Mas, de repente, fico a saber que Jo�o Caturra foi morto a tiro ...
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- O meu filho ... Foi tudo um acidente, um mal-entendido ... um acidente. O Jo�o era meu filho, foi tudo um acidente, uma coisa lament�vel...
- Isso s� agrava as coisas. E agora soube de um tal Damien Galloy, tamb�m ele morto com um esquadro ...
- Uma infeliz- coincid�ncia. N�o tenho qualquer responsabilidade sobre isso, n�o conhe�o o sujeito e soube dessa situa��o h� pouco.
- � muito estranho, contudo, que surja uma morte t�o parecida na mesma altura ... Vai ter de parar com isto. Pelo menos por enquanto. N�o quero mais mortes.
- O senhor aliciou-me argumentando que beneficiaria muito com a posse deste segredo. Disse-me que a humanidade teria ao seu alcance um elixir da imortalidade. Nenhum cancro a afetaria. E disse-me tamb�m que poderia comercializar esta panaceia. Fez-me imaginar os dividendos, os lucros fabulosos e o poder que estaria nas minhas m�os. Entretanto, o meu filho morreu, e agora pede-me para parar?
- N�o lhe pe�o isso. Estou � a ordenar-lhe que o fa�a. Como sabe somos uma organiza��o muito poderosa e ...
- Voc�s, que s�o t�o poderosos, por que motivo n�o est�o j� na posse desse segredo? Pertencem aos mais altos graus da Ma�onaria filos�fica e desconhecem aquilo que todos n�s dever�amos saber mal chegamos ao terceiro grau da Ma�onaria azul, ao grau de mestre: o segredo da ac�cia ... Voc� n�o � poderoso, � apenas um mentiroso.
- Meu caro senhor, isto ter� de acabar por aqui. N�o nos obrigue a atuar.
- A sua amea�a n�o me mete medo algum.
E desligou o telefone. O Rei dos Azulejos n�o tinha realmente medo nenhum.
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CAP�TULO 33
- O ideal seria acabar com todos os membros da Loja �Pers�fone� - disse Laurent Rigaut. - Mas n�o parece exequ�vel. Grigore acha que organizar uma sess�o neste momento seria demasiado perigoso para os intervenientes. E Grigore tem raz�o. Essa seria a altura ideal para aniquilar todos esses imbecis que idolatram o romeno.
Arkadiusz Pilatowski ouvia Rigaut com a sua cara mais calma. Era um homem muito magro e pequenino, seco, com cinquenta e cinco anos, grandes olheiras irradiadas pelos olhos. O cabelo muito liso passeava-se pela testa enrugada. E vice-versa.
- Podia acabar com um de cada vez - disse Pilatowski.
- N�o seja rid�culo. N�o fa�o ten��es de acabar na pris�o.
A sala de Rigaut era oval, decorada com m�veis chineses, m�veis escuros. A obesidade do franc�s espalhava-se pelo sof� enquanto Pilatowski se sentava muito austero numa cadeira de madeira de nogueira. .
- Acho que sei fazer o meu trabalho. H� cinco dias, o senhor mandou-me matar um ma�om, um tal de Damien Galloy. Amarrei-o tal como me ordenou e fiz-lhe um esquadro atravessar-lhe o cr�nio. Ficou bem morto e a policia n�o faz
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ideia, sequer, por onde deve come�ar a investiga��o. Sei fazer o meu trabalho ... A prop�sito, qual foi o motivo desse trabalho?
- Os motivos s�o meus. N�o lhe pago para ser curioso.
Arkadiusz Pilatowski anuiu com um esgar. Efetivamente, recebia muito dinheiro e as respostas n�o lhe interessavam. Tinha feito aquela pergunta apenas para irritar Rigaut. A sua �ltima miss�o fora muito simples. Rigaut tinha-lhe ordenado que matasse um ma�om, um ma�om qualquer que pertencesse a qualquer ordem ma��nica considerada ou autoconsiderada regular. Pilatowski escolheu algu�m f�cil de matar, algu�m honesto, solit�rio e de h�bitos. A honestidade torna as pessoas muito perme�veis � morte, tal como a solid�o. Quando bateu � porta de Damien Galloy, este - que era um sujeito bondoso e n�o acreditava nas m�s inten��es - abriu a porta sem receio. Arkadiusz Pilatowski, que acreditava noutras coisas, entrou porta adentro com um sorriso. Galloy ficou espantado com a atitude daquele homem t�o magro e pequenino. Perguntou, com cordialidade, o que ele desejava. O polaco magrinho n�o disse nada, mas mostrou-lhe o esquadro de metal que trazia consigo ao mesmo tempo que fechava a porta atr�s de si. Fez um sorriso as sim�trico, torto, e as suas olheiras escureceram a sala.
Damien Galloy era um homem de sessenta anos, sedent�rio, habituado a ler. Vivia no centro de Paris, em Montparnasse, num apartamento pequeno, com duas assoalhadas. Por ser ma�om, quando viu o esquadro, reconheceu o s�mbolo e pensou que aquele homem que se encontrava � sua frente era, tamb�m ele, um ma�om, um seu irm�o. Todos os ma�ons s�o irm�os pelo renas cimento que � conferido pela inicia��o. Mas aquele homem n�o era ma�om, nem sabia o que era um s�mbolo - apesar de ostentar um na sua m�o direita.
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Com destreza e rapidez, enquanto Galloy sorria, cravou-lhe o esquadro de metal na cabe�a, um gesto preciso que descreveu, sem o saber, um movimento geom�trico muito simb�lico: tinha feito o gesto do compasso, circular e perfeito, um casamento virtuoso com a rigidez perpendicular e reta do esquadro.
Acertou-lhe na t�mpora esquerda e um esguicho de sangue saltou com toda a f�ria dum gesto mortal. Galloy morreu de imediato. Morreu solit�rio, honesto, com os seus h�bitos e um esquadro enterrado no osso occipital. O homem magrinho amarrou-o a uma das cadeiras da cozinha e saiu.
Damien Galloy morreu porque Rigaut achou que se morresse algu�m que n�o fosse da sua Loja, isso quereria dizer que o tal assassino n�o andava atr�s deles. A morte de Galloy faria com que o argumento de Grigore para a divulga��o dos trabalhos da Loja deixasse de ser aplic�vel. Laurent Rigaut, contudo, cria verdadeiramente que o assassino n�o os estava a perseguir. Salnius havia morrido, mas Salnius nunca escondera a sua [ma��o ma��nica. Mesmo que andasse a� a monte um assassino atr�s deles - coisa em que ele n�o acreditava - n�o chegaria facilmente aos outros membros, visto que eles se protegiam com o anonimato. E Rigaut mandou matar Galloy para demonstrar aquilo em que acreditava: que n�o eram eles que estavam, especificamente, a ser perseguidos. Mas, logo a seguir � morte de Galloy, morreu Caturra e as contas complicaram-se. Tinham morrido dois dos irm�os da sua Loja, apesar de terem sido mortes com caracter�sticas radicalmente diferentes, e Rigaut continuava a crer que havia nisto uma coincid�ncia dif�cil de explicar. Salnius havia sido morto com uma grande carga simb�lica enquanto Caturra fora morto com um tiro. Parecia coisa de assaltante e Caturra tinha muito dinheiro. N�o podia ser obra do mesmo assassino. No entanto, apesar disso,
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Marim Grigore mantinha a resolu��o de publicar os trabalhos da Loja �Pers�fone�.
- O que vai ter de fazer, caro Arkadiusz Pilatowski, � matar Marim Grigore.
Rigaut sentia que, n�o podendo matar todos os que pudessem publicar os trabalhos da Loja �Pers�fone�, pelo menos poderia matar Grigore, o principal respons�vel por essa atitude insana de divulgar os segredos ma��nicos. Sem a sua lideran�a, seria f�cil convencer os outros irm�os a calarem-se.
- N�o vai ser dif�cil, mas vai ser caro, senhor Rigaut.
- Pagarei o mesmo de sempre.
- Desta vez n�o. Desta vez vai ser mais caro. Eu leio jornais e sei que foram mortos dois membros dessa sua Loja. A policia h�-de estar vigilante e h� grandes riscos numa situa��o dessas.
- Muito bem ...
- Vai ser muito mais caro. Al�m da policia, tamb�m h� um assassino a monte. Ou seja, algu�m anda a matar pessoas que fazem parte da sua Loja. Isso pode ser perigoso para mim. Por outro lado, pode ser que veja o seu desejo realizado e esse assassino mate todos os membros dessa seita a que pertence. O defeito disso � que, temo, o senhor Rigaut tamb�m far� parte das v�timas.
- N�o acredito nisso ... As mortes de Salnius e de Caturra foram em circunst�ncias completamente diferentes. N�o pode ter sido a mesma pessoa. E n�o somos nenhuma seita.
- Senhor Rigaut, como sabe, eu mato por oficio. O senhor pode. acreditar que n�o foi obra do mesmo homem, mas eu apostaria a minha reputa��o em como foi o mesmo. Coincid�ncias destas n�o existem. N�o se pode esperar que dois membros duma Loja t�o discreta como essa sejam assassinados com um intervalo de dias e n�o haja rela��o alguma entre
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as duas mortes. Como lhe disse, senhor Rigaut, eu mato por of�cio e sei do que estou a falar: foram obra da mesma pessoa. O motivo pelo qual foram cometidas de modo t�o diferente, n�o sei explicar, mas acidentes acontecem nesta profiss�o. Provavelmente, o assassino viu-se obrigado a disparar, ou talvez fa�a tudo parte de uma mensagem cujos contornos n�o nos s�o ainda evidentes. Mas a sua vida, senhor Rigaut, a sua vida est� por um fio ...
Laurent Rigaut estava p�lido. Pilatowski tinha raz�o. A sua vida poderia estar em perigo.
- Mas o senhor Rigaut � que sabe. Gastando um bocadinho mais, al�m de matar Grigore, posso tamb�m acabar com a vida desse amador que anda a assassinar os seus queridos irm�os.
- Muito bem. Pagarei o que for preciso para que morra quem tiver de morrer. Mas tamb�m far� outra coisa. Quero saber, depois de o matar, quem contratou esse assassino - se � que foi a mesma pessoa que matou Jo�o Caturra e Felicijonas Salnius. E quero saber o que o levou a fazer isso.
O pre�o foi regateado com todo o rigor, acordado com algum cavalheirismo. Rigaut pagou metade em dinheiro. A outra metade pag�-la-ia depois da morte de Marim Grigore. Rigaut retirou-se por momentos para ir buscar a maquia. Tinha-a num pequeno cofre embutido no interior dum arm�rio da casa de banho. Retirou o que precisava e voltou a fech�-lo. Dirigiu-se ao quarto e, do guarda-fatos, na �ltima prateleira, tirou uma mala de couro e p�s as notas todas ti dentro. Contou o dinheiro uma vez mais, para ter a certeza, e voltou para a sala.
Na sala estava uma s�rie de malas. Arkadiusz Pilatowski reparou russo ..
- Vai-se mudar, senhor Rigaut?
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- vou. A minha mulher j� n�o me quer c� em casa. Estamos a come�ar o processo de div�rcio.
- N�o quer que eu a mate tamb�m?
- N�o vale o esfor�o. Mas obrigado pelo apoio.
O anafado Rigaut fora casado durante vinte e sete anos. Umas verdadeiras bodas alqu�micas, um casamento entre o esp�rito e a mat�ria: ela com esp�rito de sacrif�cio e ele com mat�ria gorda. Finalmente tinha chegado ao fim.
- E vai para onde, senhor Rigaut?
- Para j�, para um hotel.
Rigaut deu a Pilatowski todas as informa��es que julgou serem necess�rias para que ele cumprisse a sua miss�o o mais facilmente poss�vel. Deu-lhe a morada do apartamento que Grigore possu�a em Londres e descreveu os poucos h�bitos do romeno. Rigaut sabia que Grigore estaria em Londres durante a semana seguinte, fora ele mesmo quem lho dissera. Grigore achava que seria importante estar acess�vel naquele momento. Claro que a sua ideia de acess�vel � estar em Londres. Mas, pelo menos, sabiam onde estava. Ali�s, Rigaut n�o era o �nico a possuir tal informa��o. Todos os irm�os da Loja �Pers�fone� sabiam onde Marin Grigore estaria nessa semana. Grigore havia telefonado a todos a informar disso mesmo. Po� deria haver a necessidade urgente de o contactarem.
Laurent Rigaut entregou umas fotografias do romeno ao assassino, fez uma descri��o psicol�gica, enfim, municiou o polaco de armas letais - porque uma bala, por exemplo, n�o entra com essa facilidade no alvo; uma bala, para matar como deve ser, exige que o assassino saiba o suficiente para que isso aconte�a. Uma trajet�ria letal � feita de muitas outras informa��es que n�o s�o vis�veis naquele momento. No entanto, a bala � conduzida por elas.
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Avisou Arkadiusz Pilatowski do comportamento err�tico de Marim Grigore.
- O romeno tem comportamentos inesperados.
Pilatowski tremeu ao ouvir isto. Um ligeiro arrepio que lhe dizia para tomar cuidado. N�o gostava de comportamentos inesperados. Isso assustava-o mais que tudo. Esses homens parecem fugir � morte com o seu nomadismo do esp�rito. Quando a morte lhes bate � porta, eles j� l� n�o est�o. Quando se persegue algum animal de h�bitos, � f�cil apanh�-lo, qualquer ca�ador sabe isso. � por isso que os homens s�o mortais. � o h�bito que os mata. � a sedentariza��o, a fossiliza��o das suas vidas, do seu pensamento, dos seus gestos. A velhice �, ali�s, isso mesmo. Pilatowski pensava assim e temia e tremia com os homens que se esquivam ao que � usual, ao que � costume, ao que � h�bito.
Apesar de sentir que esta miss�o poderia ser mais dif�cil do que parecia � primeira vista, face � mala de dinheiro que Rigaut abria � sua frente, depressa esqueceu essa intui��o que acabara de ter. Contou o dinheiro, nota ap�s nota. Enquanto o fazia, Rigaut saiu da sala, dessa sala oval mobilada com chinesices. Voltou a entrar com uma garrafa de whisky) dois copos e um balde de gelo. Pilatowski recusou o whisky.
- O senhor Rigaut est� farto de saber que eu n�o bebo.
Laurent Rigaut riu-se com uma gargalhada cavernosa.
- Esque�o-me sempre. N�o consigo conceber um homem que n�o gosta de whisky.
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CAP�TULO 34
Depois de ter traduzido sem parar, Ilinca Muresanu sugeriu, com toda a sua hospitalidade, que seria prudente que eles ficassem em sua casa. N�o faria sentido procurarem uma pens�o �quela hora quando podiam ficar ali. O apartamento n�o era grande, mas, face �s circunst�ncias, era enorme. Ilinca abriu o sof� cama e foi buscar um colch�o. Lola dormiria no sof�, Conrado, no ch�o.
- Acho que dever�amos tirar � sorte para ver quem fica com o sof� - argumentou Conrado quando viu aparecer o colch�o. Mas Ilinca j� tinha decidido: ele dormiria no ch�o, e Lola no sof�.
E assim se teria tudo passado - uns no ch�o, outros no sof� - se Ilinca n�o tivesse gostado tanto de Conrado Fortes. J� Lola dormia h� horas, esgotada da agita��o dos �ltimos dias, ainda Conrado se mantinha desperto, sentado na cama de Ilinca que, curiosamente, apreciava a sua companhia e o que ele tinha para dizer, inclusive os seus segredos dos templ�rios.
- Sei muito bem qual � o segredo dos templ�rios.
Ela, que apreciava outros mist�rios, abriu-lhe a braguilha e chafurdou na intimidade daqueles arcanos. Conrado revelou tudo o que n�o sabia com gemidos de prazer e a noite fez-se
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prolongar at� Ilinca se dar por venci da. Conrado, ajudado por uma temerosa vodka de abrunho, palinka como se chamava, feita em casa, havia mostrado toda a sua virilidade.
Quem fez o pequeno-almo�o foi Lola. Torrou umas fatias de p�o, misturou o caf� com o leite, espremeu laranjas e fez sumo. Ilinca foi a primeira a aparecer. Trazia um roup�o e era tudo.
Cruzou as pernas com a sensualidade de quem cruza as pernas, e as coxas brancas apareceram para l� do roup�o. Serviu-se de uma torrada, p�s-lhe a devida manteiga e bebericou o caf� com leite com trejeitos de passarinho.
Quando Conrado entrou, ela n�o p�de deixar de comentar:
- � um pequeno vulc�o.
Isso deu cabo do pequeno-almo�o de Lola, que sentiu uma certa n�usea.
Conrado apareceu em cuecas com um charuto na boca. Ilinca tinha-os em casa, do seu ex-marido. J� tinham anos, estavam secos e bons para o lixo, mas Conrado n�o se fez rogado e tirou um da caixa. Cheirou-o com o nariz todo concentrado e chegou � conclus�o de que n�o seria grande coisa, mas que lhe faria bem, estava a precisar.
- Ilinca ...
-Sim?
- O teu ex-marido, deixa-me que te diga, n�o � de confian�a. Um homem pode abandonar a sua mulher como ele te abandonou a ti, que isso � uma coisa que se espera. O homem foi criado assim, essa cobardia j� vem do G�nesis, do momento em que Deus apontou para Eva e pediu justifica��es sobre o fruto proibido. O que � que o homem fez? Escondeu-se atr�s da sua folha de figueira e apontou para Eva. O homem � assim, Ilinca, um cobarde. Abandonar mulheres � algo que
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se pode esperar dele. Agora, abandonar charutos � tenebroso. Qual � o homem s�o que vai deixar os seus havanos numa gaveta da sala e sai porta fora? S� um louco. N�o se pode confiar num homem que abandona os seus charutos.
- Ele n�o presta - concordou Ilinca.
Quando Contado se sentou, ela fez uma pose de gata eri�ada e ainda acompanhou a postura com um movimento das m�os, exibindo as unhas, em garra. O charuto repousava sobre o cinzeiro, mesmo ao lado do requeij�o. Conrado riu-se e ela, prontamente, estendeu-lhe os p�s, primeiro o esquerdo, depois o direito, n�o tendo ele tido pejo algum em chupar-lhe o dedo grande ainda com uma dentada de torrada na boca, meio mastigada.
- Os pezinhos, Ilinca, s�o muito importantes. � pelos pezinhos que a alma se vai embora e os vivos se tornam defuntos. O meu tio, que � Almirante da Chispa Divina, n�o se cansa de repetir: s�o armas do Grande Arquiteto do Universo.
- Armas, Conrado?
- Armas. Destroem o Mal, pisam-no como quem faz vinho.
As n�useas de Lola queriam sair-lhe pela boca, mas conseguiu controlar-se. O seu controlo n�o evitou que fosse a primeira a levantar-se.
Conrado tamb�m sentia algumas n�useas, mas deviam-se a excessos de �lcool cometidos na noite anterior.
- Ilinca, a tua vodka deixou-me uma certa ressaca. Sinto uma dor insistente no chakra sahasrara, que � mesmo aqui no topo da cabe�a.
- Tens de beber mais uma vodka. Faz muito bem a essas coisas de que falas e deixa-te como novo. Especialmente com sumo de tomate, lim�o e pimenta.
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J� na sala, suficientemente longe das desequilibradas for�as pr�nicas de Contado, Lola lembrou-se das palavras de Caturra, quando ele disse que Grigore era homem de palavra e lhe haveria de conceder o tempo estipulado para uma entrevista. Perguntou a llinca se podia usar o seu computador, precisava de enviar um email. Tirou a roupa que estava em cima da cadeira da sala, colocou-a temporariamente em cima dum pequeno ba� de madeira, e sentou-se em frente do teclado com a ideia de escrever ao amigo do pai que a tinha ajudado a ser contactada por Grigore. Escreveu o que tinha a escrever e voltou a colocar a cadeira no lugar, e em cima dela, a roupa que tinha tirado para se poder sentar. Ao pegar numas cal�as, as de Contado - ele mantinha-se em cuecas na cozinha -, um envelope caiu do bolso traseiro como se fosse Outono. Lola dobrou-se para apanhar a carta e met�-la no bolso donde ca�ra e viu o nome do remetente e o nome do destinat�rio: ambos mortos, ambos cad�veres enterrados. O destinat�rio era Felici�
jonas Salnius e o remetente era o tamb�m falecido Jo�o Caturra. Lola correu at� � cozinha com o envelope na m�o. Estava t�o nervosa que llinca tirou de imediato o seu p� esquerdo da boca de Conrado Fortes.
- Tinha-me esquecido dessa carta - disse Conrado. - - Foi por causa dela que fui a Coimbra a casa de Jo�o Caturra.
- E s� agora � que dizes?
- Tinha-me esquecido ...
- Como � que � poss�vel?
- Acho que � k�rmico. J� vem de outras encarna��es, talvez do tempo de Carlos Magno, onde vivi a vida de um f�sico com uma mem�ria prodigiosa, mas que era eticamente muito pouco recomend�vel. A minha m�e tamb�m se esquece das coisas e o fator k�rmico est� acentuado pelo fator gen�tico,
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o que torna o problema muito mais grave. E como se n�o bastasse ainda h� o meu signo ascendente, que est� em G�meos, que s�o do elemento ar. At� seria suport�vel, mas quando acompanhado dum caranguejo de signo solar, regido pela lua ... Um m�dico que me consultou garantiu-me ser um problema antigo que j� vem. de outras vidas ... mas � mais que isso, sei muito bem, ali�s esta falta de cabelo n�o vem por acaso. H� uma certa fragilidade que me � imposta pela influ�ncia da Lua. Tamb�m desconfio duma pequena obstipa��o dum nadi aqui do lado esquerdo que passa por cima do f�gado e que, sem d�vida, me d� umas constipa��es pr�nicas ...
Lola ficou parada, mesmerizada a ouvi-lo, e interrompeu-o com um �imbecil�, dito com toda a convic��o que um insulto pode assumir, enquanto rasgava o sobrescrito. A carta falava de outra pessoa, duma tal de F�tima Rios, e como o seu trabalho seria importante como introdu��o. �Introdu��o para qu�?� interrogou-se Lola. A carta n�o dizia muito mais, mas acrescentava que se n�o fosse poss�vel t�-la a trabalhar com eles em Lisboa, que Caturra se disporia a passar o tempo que fosse preciso no Acre.
Lola dispunha ent�o de mais um nome. N�o fazia ideia se esta F�tima Rios era membro da Loja de Grigore, mas, sem d�vida alguma, tinha qualquer papel de import�ncia na hist�ria. Lola pousou a carta na mesa da cozinha e foi sentar-se, de novo, ao computador. Fez uma busca para saber o que era o Acre - de que nunca tinha ouvido falar. Percebeu que era um estado brasileiro no extremo oeste do pa�s. Uma zona de seringueiros e de pouca fama. Digitou o nome de F�tima Rios juntamente com Acre e foi, facilmente, parar a uma p�gina pessoal de uma pessoa com o nome que procurava. Talvez fosse a mesma da carta. Esta, a da tal p�gina, era etnobot�nica
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e estudava o uso de plantas, principalmente plantas da selva amaz�nica, principalmente entre os Kaxinawa.
N�o perdeu tempo e come�ou a arrumar as suas coisas. Conrado, que tamb�m j� tinha lido a carta, apareceu na sala.
- Afinal a carta n�o adianta nada.
- A carta adianta muita coisa. Parto para o Brasil.
-Agora?
- Agora mesmo.
- Vou contigo. S� tenho de ligar � minha m�e. Onde � que est� o teu telefone?
- Acho que podes pedir � Ilinca para telefonares.
- Noto a� uns ci�mes?
Lola fez uma careta de incredulidade.
- Quanto a viajares para o Brasil, h� muitas ag�ncias de viagens com �timos pre�os ...
E dito isto, agarrou na mala, colocou l� dentro o resto da tradu��o de Ilinca, umas p�ginas que n�o tivera ainda tempo de ler, e despediu-se dela. Dirigiu-se para a porta. Conrado hesitou, mas foi atr�s de Lola com as suas cuecas e pouco mais. Descia as escadas do pr�dio, descal�o, gordinho, e aos berros. Chamava por ela, mas Laia j� n�o o ouvia, j� estava l� fora, caminhava pela cal�ada. Conrado n�o teve medo daquela manh� h�mida e saiu porta fora atr�s dela. Conseguiu apanh�-la antes da primeira esquina. Lola pousou a mala, indecisa se haveria de o espancar ou desatar a rir. Apenas suspirou, um suspiro grande, profundo, e voltou a apanhar a mala.
- Ok. Vens comigo ...
E voltaram para casa de Ilinca para que' Conrado se vestisse e arrumasse as suas coisas. Voltaram a sair os dois, um deles, desta feita, com mais roupa. Conrado sorria com todos os
seus dentes amarelos e com um desodorizante insuport�vel. Foi ele que viu um t�xi e o chamou.
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Foram diretamente para o aeroporto onde conseguiram dois bilhetes para S. Paulo - n�o havia lugares em tur�stica, por isso teriam de viajar em executiva - num avi�o que partiria dali a quatro horas. N�o havia voo interno naquele dia, de S. Paulo para Rio Branco, capital do Acre, mas o mais grave � que tamb�m estavam cheios todos os voo dessa semana. Teriam duas hip�teses de chegar l�: esperar uma desist�ncia ou percorrer aquela dist�ncia - dum lado ao outro do Brasil
- por terra. Seriam, pelo menos, uns tr�s dias dentro dum autocarro. Esse seria um problema para resolver depois de aterrarem em S. Paulo.
A senhora do outro lado do balc�o entregou os bilhetes com os respetivos nomes. Conrado fez quest�o de ficar � janela.
- Quero ver, de l� de cima do ar, a cidade maravilhosa.
- Isso � o Rio de Janeiro.
- S. Paulo tamb�m h�-de ter as suas maravilhas.
- Evidentemente que est�s � espera que eu te pague o bilhete ... - disse Lola enquanto entregava o seu cart�o de cr�dito � senhora que os atendia.
- De certo modo. Estou meio desempregado neste momento. De qualquer maneira a Ilinca disse-me que o teu pai tem muito dinheiro e que te permite gastar como te apetece.
- J� me arrependi de te ter trazido ...
- Achas que posso usar o teu telefone?
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CAP�TULO 35
Um carro estacionou � porta de Ant�nio Caturra. Esse carro j� tinha estacionado naquele lugar uns dias antes. Quem o conduzia naquela altura era Gar��o Arouca e quem o conduzia agora era a mesma pessoa, o mesmo inspetor.
Ant�nio Caturra estava em casa, no escrit�rio, a rever contas e a pensar na vida. Ouviu bater � porta e foi abrir. A cara dum inspetor da judici�ria apareceu � sua frente.
- Boa noite - come�ou por dizer o pol�cia. - Considero que precisa dos meus servi�os.
O rei dos azulejos ficou uns segundos sem rea��o.
- Quem � o senhor?
- Gar��o Arouca, inspetor - e mostrou a carteira.
- E do que � que se trata?
- Vou direto ao assunto. Um defunto que trabalhava para si, pagava-me a mim. Chamava-se Loury e um tal de Ramos Navarro levou-o daqui embrulhado num tapete de Arraiolos. Presumo que Loury estivesse morto, ou ainda pior que isso; incapaz de ver televis�o.
- N�o tem provas disso...
- N�o se trata de ter provas ou n�o, como j� lhe disse, parece-me que precisa dos meus servi�os. A verdade � que esse Ramos Navarro n�o saber� dar conta do recado, � um homem muito simples. Andr� Loury, apesar de tudo, era um
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sujeito capaz. Um homem bom, que sabia matar com justi�a. O que o senhor Caturra tem agora em m�os � um bruto.
- N�o vejo onde quer chegar...
- Parece-me evidente onde quero chegar. Se Loury precisava da minha colabora��o e me pagava, posso receber o que ele recebia mais o que ele me pagava. Estou aqui para o servir.
Perante a indecis�o de Caturra, Arouca insistiu:
- Eu sei quem s�o os membros da Loja �Pers�fone�. Quando foi o vel�rio de Felicijonas Salnius, eu estava l� a vigiar. Vi quem entrou, quem saiu, sei a que horas v�o � casa de banho e qual � o sucesso pop que lhes agrada mais.
Ant�nio Caturra n�o deixou de sentir asco pelo homem que estava � sua frente. Mas o que ele sabia fez-lhe crescer o apetite.
-Entre.
Sentaram-se os dois na sala de Ant�nio Caturra. Falaram de n�meros e de pre�os. Estava muito frio e Caturra tinha a lareira acesa. O fogo crepitava como fazem os lumes.
O Rei dos Azulejos e o inspetor da judici�ria chegaram a acordo e Gar��o Arouca passaria a estar encarregado de todas as opera��es, digamos, mais violentas. Depois de algumas elucida��es sobre quem era membro da Loja e quem n�o era, chegaram � conclus�o de que de Cada Vidigal seria a melhor pessoa para interrogar. E matar, no caso de ela n�o falar.
O Rei dos Azulejos acrescentou:
- Mas h� tamb�m outras pessoas que � preciso eliminar: aquele baixinho que esteve em casa do meu filho e a jornalista que, ao que parece, o acompanhou.
- J� tive o prazer de interrogar os dois. N�o me parece que sejam um problema. Na verdade, n�o conseguem descrever a cara de Loury, mas, mesmo que o fa�am, j� n�o importa. Mas ficarei atento.
- A sua aten��o n�o me chega.
- Muito bem. Farei mais do que estar atento ...
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CAP�TULO 36
No dia seguinte, nos arredores de Lisboa, Ramos Navarro conduzia dois ma�ons de barrigas proeminentes e um inspetor da pol�cia. Pararam em frente a uma pequena vivenda. Quando Cada Vidigal foi � porta para ver quem era - ouviu barulhos - viu os quatro homens e, evidentemente, n�o abriu. Mas n�o era preciso, Gar��o Arouca tinha uma chave, � para isso que servem as chaves. O processo de a adquirir fora relativamente simples: obrigou um marginal seu conhecido a prestar-lhe um servi�o. Teria de assaltar a mulher-a-dias de Cada Vidigal Ela tinha a chave na carteira. Mal ela havia acabado as limpezas, saiu como sempre sa�a para apanhar o autocarro que sempre costumava apanhar. A noite estava agrad�vel para uma noite de Abril - e ela caminhou at� � paragem atrav�s das ruas daquele bairro, atrav�s daquelas ruas t�o pro� p�cias a assaltos de inspetores sem escr�pulos. E a noite � um dia t�o mal iluminado. Ajeitou a carteira, meteu-lhe as m�os l� dentro para tirar o passe. O assaltante assaltou, levou a mala
d correu enquanto Am�lia, a tal mulher-a-dias, gritava por ajuda. A mala desapareceu o tempo suficiente para se tirar um molde da chave e voltou a aparecer. Quem a devolveu foi o pr�prio Gar��o Arouca que a entregou como um her�i e ainda recebeu elogios. No entanto, o assaltante lograra fugir.
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- Infelizmente, o assaltante escapou - disse Gar��o Arouca a Am�lia, que lamentou, mas salientou que o importante era ter recuperado a mala.
- E depois - disse ela - �s vezes nem t�m o que comer ou o que dar de comer � fam�lia. Isso faz com que as pessoas entrem em desespero, cometam loucuras.
- Neste caso devia ser para droga - arguiu Gar��o Arouca.
A vida de um criminoso � feita de erros que empurram o seu autor para mais erros at� cair num abismo. N�o � uma coisa meticulosamente planeada, mas, pelo contr�rio, vai-se desenrolando ao sabor da inspira��o. � normal que, num bom plano, n�o se tenha pensado num pormenor sem import�ncia. Mas � muitas vezes este pormenor que pode fazer ruir o bom plano. Os genes tamb�m s�o coisas muito pequeninas, n�o se veem a olho nu, mas podem arruinar fam�lias. Quando um pequeno detalhe corre mal, ent�o � preciso remendar e, quando tal � conseguido, acrescentaram-se, sem querer, outros pormenores que poder�o fazer ruir o conjunto, e assim continuar� ad infinitum. O criminoso v�-se ent�o enredado numa teia de onde lhe ser� muito dif�cil sair. Gar��o Arouca j� foi apanhado por essa aranha do destino e encontra-se nessa teia como uma varejeira. Mas n�o sabe disso ainda, vai apenas remendando os erros, mas mais n�o faz do que revirar-se nessa teia, envolvendo-se cada vez mais naqueles fios que lhe ditar�o a morte.
Quando saiu dali, Gar��o Arouca percebeu que n�o deveria ter feito aquilo, n�o deveria ter aparecido junto de Am�lia com a carteira roubada, pois quando Carla Vidigal morrer (e ela morrer�, com toda a certeza), a pol�cia ir� interrogar a mulher-a-dias e ela, certamente, contar� o sucedido. Ela tinha visto, e muito bem visto, a sua cara de her�i com uma mala de mulher na m�o. Seria suspeito, extremamente suspeito.
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Provavelmente n�o levaria a investiga��o a lado nenhum, mas mais um caso semelhante, mais um ma�om morto onde ele estivesse por perto e bastaria juntar dois mais dois. Por isso Gar��o Arouca viu-se na obriga��o de usar todo o seu charme de her�i e convidar Am�lia para um caf�. Ela, que at� era solteira e n�bil, aquiesceu e eles acabaram por n�o ir tomar um caf�. Ela entrou no carro do inspetor da judici�ria e os dois foram ver o mar. Ela viu-o muito mais perto do que ele, amarrada dentro dum saco cheio de pedras. N�o sem antes ter experimentado a vol�pia de estar debaixo de Gar��o Arouca contra a sua vontade.
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CAP�TULO 37
Carla Vidigal era esmoler e segundo experto da Loja �Pers�fone�. Era uma mulher jovem, bonita, bem-humorada e com um fatal bom gosto na escolha de restaurantes. Tinha trinta e nove anos e a eleg�ncia duma gazela que faria inveja a muitos poetas. Ibn Arabi jamais seria capaz de compara��es t�o acuradas com gazelas e Allah. Mas n�o fora o seu charme que a fizera ser iniciada na Loja �Pers�fone�. Ela tinha outros defeitos que lhe permitiriam fazer parte dum grupo como aquele: tinha aquilo que se chama esp�rito e era invulgarmente culta. Um fen�meno cada vez mais raro. Al�m disso era perfeitamente capaz de perceber simbologia, mesmo a mais b�sica, fen�meno ainda mais raro do que ser invulgarmente culto.
Vivia em Lisboa, ia ao cinema e lia livros. Nos tempos livres, trabalhava. Era bi�loga, trabalhava numa multinacional. Por in�meros motivos, esperava tudo menos ver-se amarrada
a uma cadeira com quatro homens a amea�arem-na de morte. Ou falaria ou morreria. Cada vivia nos sub�rbios de Lisboa, na Portela, numa pequena casa, num bairro que fora, em tempos, social. Agora era um bairro mortal.
Ela sabia - n�o � preciso ser iniciado para se saber isso - que iria ser assassinada, quer falasse, quer calasse. Claramente, optou pela segunda hip�tese, pela via mais muda. O sil�ncio
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s� seria quebrado para sofrer aos gritos. Infelizmente vivia numa vivenda suficientemente isolada para n�o se ouvir � volta. Especialmente com a m�sica que foi posta a tocar. Cada n�o deixou de pensar que, poderiam ser criminosos hediondos, mas que isso n�o era desculpa para o p�ssimo gosto musical. Para uma pessoa que gostava de coisas mais cl�ssicas, e por vezes jazz aquele pop em altos berros seria um supl�cio maior do que os punhos de Ramos Navarro. Obviamente isto foi um pensamento mais ou menos espirituoso que lhe passou pela cabe�a, mas o primeiro soco que lhe partiu o nariz, especialmente enviado pelo brutamontes encarregado de a fazer sofrer, f�-la mudar de ideias. Ou, melhor, f�-la esquecer as ideias.
Ao seu lado estavam os dois Teixeira, Ros�rio e S�lvio, bem como Ramos Navarro. Quem tinha liderado a opera��o fora Gar��o Arouca. Tinha organizado tudo at� ao momento em que seria premente sair de cena e sentar-se na sala. Era um pol�cia com escr�pulos.
Nesse sentido pensava como Loury e n�o via, propriamente, injusti�as em nada do que fazia, nem mesmo quando tinha de sujar as m�os. Eles eram somente o bra�o que executava, mas n�o a ordem. N�o conseguiam imaginar que pudessem ser culpados do que quer que seja. Tamb�m seria inimagin�vel que Deus - do mesmo modo - fosse capaz de condenar um rel�mpago ao inferno, s� porque foi respons�vel por certas e determinadas mortes. Tamb�m seria impens�vel
imaginar um julgamento divino para averiguar eventuais culpas que certa pedra poderia ter tido ao esmagar certa caixa craniana. E qual � a diferen�a entre uma pedra que cai e uma bala que parte? Nenhuma, mas a segunda tem mais mediatismo.
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Enfim, ali estava Carla, amarrada a uma das cadeiras da sua cozinha, pronta a n�o falar. Tinha os dois bra�os partidos, um deles ao contr�rio e angulava mais de cento e oitenta graus.
Os Teixeira ainda faziam perguntas, mas ela j� n�o tinha for�as para gritar e-ainda menos para continuar viva. Mas l� ia respirando, a espa�os, arquejante. O sangue escorria-lhe pelas faces, abundante, e batia no ch�o com a toda a for�a da gravidade, preenchendo os azulejos da cozinha. Gar��o Arouca estava desejoso de que tudo aquilo acabasse. Sabia perfeitamente que Carla n�o iria falar, mas tudo aquilo fazia parte duma necessidade: um deles falaria, s� n�o se sabia qual. At� l� era preciso continuar a tentar. De qualquer modo, aquele sangue todo mexia-lhe com os nervos, ali�s, ele - tal como tantos homens - n�o lidava bem com o sangue. O sangue tem o seu lugar que � dentro do corpo. � aquela parte de n�s que verdadeiramente tem muito pudor: detesta aparecer e, quando o faz, provoca rea��es mais complicadas do que mostrar as mamas em p�blico. O sangue s� est� bem na escuridade do corpo e se for visto significa que algo est� errado, ou muito errado. Gar��o Arouca, para evitar estas impud�ncias, sa�a regular�
mente da cozinha e sentava-se na sala para fumar um cigarro e abrandar a sua alma. Quando apagou o s�timo dessa noite, Carla expirou. Gar��o Arouca soube isso porque deixou de ouvir os socos de Ramos Navarro e a respira��o irregular da v�tima. Entrou na cozinha e viu a sua cara refletida em metal, no metal do esquadro que estava enterrado no cr�nio de Carla Vidigal. A cabe�a dela pendia sobre o ombro, e a sua alma, caso tal coisa ex�tica exista, esvoa�ava algures naquela cozinha como um p�ssaro que fugiu da gaiola.
�� preciso come�ar a pensar na pr�xima v�tima�, pensou Gar��o Arouca. �Talvez Daim Ku�uk. Tem filhos e isso ajuda.
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Quem tem filhos � raro, muito raro, n�o colaborar quando a vida deles est� em jogo�.
O defeito dessa estrat�gia seria o facto de ter de viajar at� � Turquia, ainda por cima na companhia de Ramos Navarro, esse bruto, e dos dois aborrecidos Teixeira. Daim Ku�uk vivia
em Istambul.
�Ah! e tamb�m seria preciso tratar do sujeito meio calvo e da jornalista. � pena, � uma mulher bonita. Mas primeiro, a Turquia�
E quando os quatro homens, os dois Teixeira, Gar��o Arouca e Ramos Navarro, sa�ram da casa de Carla Vidigal, nenhum reparou numa mulher, meio escondida pela noite, que os observava. Mal sa�ram, ela pegou no telefone e marcou um n�mero. Olhou para o c�u, que trazia uma lua muito fina. Enquanto os assassinos se dirigiam para os seus carros, ela falava ao telefone.
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CAP�TULO 38
Londres era uma manh� fria nessa manh�. Pilatowski saiu do avi�o em Heathrow com a serenidade de quem n�o � culpado pelo mau tempo. Olhou para o c�u cinzento e inspirou uma golfada de ar frio que se lhe entranhou no corpo como uma doen�a. N�o esperou pelas malas do por�o porque n�o levava bagagem alguma. Nem bagagem de m�o.
Apanhou um t�xi para o Soho, e tocou � campainha dum pr�dio de dois andares, um edif�cio de tijolo. Um homem elegante, de fato de fazenda, colete, gravata, abriu a porta com jovialidade. Pilatowski entrou com o seu ar frio, de manh� londrina, e s� depois cumprimentou aquele homem. Dessa casa saiu com uma pistola no bolso do casaco, uma Magnum Desert Eagle dos anos oitenta (pilatowski era um revivalista). O mais prov�vel seria n�o precisar dela, mas o polaco, al�m de revivalista, era previdente. Sempre, durante toda a sua met�dica carreira, havia usado a faca. Qualquer faca. Era um homem que abominava essa hip�tese matreira de matar � dist�ncia, coisa que a pistola permite. Com a faca h� intimidade. Pilatowski teve colegas de profiss�o que pensavam o oposto e n�o gostavam desse calor humano que a v�tima exala. S�o pessoas que n�o conseguem lidar com as emo��es e evitam a intimidade a todo o custo. Pilatowski achava que n�o existe nada mais
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�ntimo do que a morte. � um momento que deve ser partilhado. Um homem n�o deve morrer sozinho, por isso l� estavam - no fatal momento - as suas m�os, a sua faca, o sangue da v�tima, o calor dos dois corpos, tudo misturado. T�o misturado que, por vezes, tinha dificuldade em limpar o sangue seco das unhas.
Entrou numa pens�o barata, demasiado barata, numa transversal de Oxford Street. Gostava de ficar no centro. Dali at� Trafalgar Square, a p�, n�o eram mais de dez minutos.
Subiu a escadaria que o levou a um quarto andar. Abriu a porta do quarto e deitou-se na cama depois de ter pousado a arma na mesinha de cabeceira. Levantou-se de seguida para se olhar no espelho. Reparou nas olheiras e no ar cansado daquela figura de cinquenta anos, seca e magra. Pilatowski nasceu polaco e aprendeu a matar matando polacos. Era cat�lico fervoroso, como quase todo o pa�s de onde era natural. Arrependia-se com frequ�ncia para garantir um lugar no c�u. Tal como Ivan, o Terr�vel fazia. Determinadas burocracias e leis s�o muletas para o criminoso. Constantino, o primeiro imperador crist�o, s� se batizou na hora da morte. Adiou o sacramento para poder pecar, � vontade, a vida inteira, e arrepender-se no derradeiro momento, cumprindo os requisitos necess�rios para ingressar e engrossar as hostes celestiais. Mandou matar o seu cunhado, fez o mesmo ao seu sobrinho, bem como ao seu pr�prio filho, Crispus, n�o tendo tamb�m qualquer pudor em afogar a sua esposa. Mas no fim da vida arrependeu-se.
Pilatowski n�o se achava capaz, ao contr�rio do imperador Constantino, de saber exatamente quando seria a sua hora fat�dica, a hora da morte. Por n�o saber quando era, arrependia-se todos os dias. Entrava, ao fim do dia numa igreja e confessava-se. Se n�o houvesse disponibilidade para tal, se
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o padre tivesse mais que fazer, Pilatowski sabia ser persuasivo. De qualquer modo arrepender-se-ia logo a seguir.
Portanto, chegado a Londres - cidade que conhecia mal - decidiu gastar a primeira manh� de frio a visitar o Big Ben e o pal�cio de Buckingham. N�o tirou muitas fotografias porque se sentiu desagradado com a luz desse dia. N�o foi ao Madam Thussaud por falta de tempo. Tinha voo de volta, nesse mesmo dia, �s sete, e ainda tinha de matar Marim Grigore antes disso. Por isso, chegado quase � hora de almo�o, voltou para a pens�o. Descansou um bocadinho, n�o mais de meia hora, e saiu para almo�ar. Pediu um bife da vazia que nem acabou de comer. N�o tinha muita fome. N�o deixou de reclamar que a faca n�o cortava - a vazia n�o � propriamente o lombo, � mais saborosa, mas n�o � o lombo. Fez quest�o de que lhe trouxessem uma faca afiada, exig�ncia que, educadamente e com um sorriso, lhe foi satisfeita de pronto. Depois de pagar, ningu�m reparou que faltava uma faca afiada, ningu�m reparou que Pilatowski levava uma faca suja de bife da vazia no bolso do casaco.
Eram duas da tarde quando chegou ao pr�dio onde Marim Grigore tinha o seu apartamento. Tinha de estar no aeroporto �s cinco, cinco e meia, o que significa que deveria apanhar um
t�xi l� para �s quatro e meia, o mais tardar (pilatowski, tal como Grigore, gostava de pontualidade). Isso dava-lhe mais de duas horas para cortar a car�tida do romeno, gesto que n�o demora mais do que segundos. E matar Marim Grigore era muito f�cil, o homem n�o era nenhum presidente da Rep�blica.
E se Grigore n�o estivesse em casa naquele momento? Isso havia sido tratado. Rigaut telefonara a Marim Grigore, alegando que tinha uma encomenda para lhe entregar, uns documentos importantes. N�o lhe disse o que eram por dois
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motivos: o primeiro � que despertaria a curiosidade do romeno; e o segundo � que n�o havia documentos nenhuns. Rigaut garantira assim que Grigore estaria no seu apartamento das duas �s quatro, para receber a tal encomenda. E Grigore n�o era homem de faltar � sua palavra.
Pilatowski cal�ou - n�o devido ao frio - umas luvas. Entrou no pr�dio que tinha a porta aberta e subiu at� ao segundo andar. Levava toda a sua calma e uma faca da carne no bolso. J� no patamar reparou que havia um bilhete na porta do seu alvo. Dizia o bilhete que deveria tocar no apartamento em frente se, por algum acaso, quisesse entregar uma encomenda a Marim Grigore. Pilatowski ficou um pouco baralhado, sem ter a certeza do que fazer. Acabou por tocar na porta do lado. Uma senhora de meia-idade, cabelos grisalhos e �culos grisalhos, abriu a porta com sotaque ingl�s. O polaco disse que queria falar com Grigore, que tinha uma encomenda para
ele. Ela explicou, com ar de professora prim�ria, que Grigore tivera de se ausentar e que a encarregara de receber uns documentos muito importantes.
- Mas onde � que ele foi?
- N�o disse - respondeu a senhora.
- E ausenta-se por muito tempo? Volta ainda hoje? Saiu do pa�s?
- Isso, ele n�o disse. Falou-me foi duma encomenda, que eu teria de receber. Parece que tinha dado a sua palavra de que a receberia e o senhor Grigore � muito cioso dessas coisas. Quando se compromete � para cumprir. Se n�o pode cumprir, � por motivos de for�a maior e arranja sempre uma vizinha que resolva a quest�o.
Pilatowski n�o esperava por isso e quando a senhora voltou a pedir a encomenda, ele tirou a m�o do bolso que trouxe agarrada uma faca afiada. Nessa altura, o polaco percebeu que
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seria demasiado tarde para voltar atr�s. Teria de entregar a encomenda �quela senhora que estava l�vida � sua frente. Ele, com um gesto que fizera dezenas de vezes, um gesto circular, fez com que a car�tida da senhora Dickinson deixasse de irrigar o c�rebro.
O mal estava feito. Grigore, depois desta morte saberia que era um alvo. E Rigaut, que o tinha feito prometer estar em casa, seria o principal suspeito. Ora, isso n�o poderia acontecer, seria preciso fazer desaparecer o corpo daquela simp�tica vizinha.
O maior aborrecimento � que perderia o voo das sete.
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CAP�TULO 39
Marim Grigore n�o estava em casa quando disse que estaria. Isso era rara no seu comportamento. Quando dizia que fazia uma coisa, era incomum essa coisa n�o acontecer. Dessa vez, a desobedi�ncia aos pr�prios princ�pios salvara-lhe a vida. Rigaut tinha-lhe ligado a pedir para estar em casa para receber uma encomenda. Marim Grigore achou estranho mas, de certo modo, plaus�vel.
Nessa manh�, depois de Rigaut ter telefonado, mais uma vez, para o lembrar - e confirmar - da rece��o da encomenda (que encomenda seria essa?), Grigore voltou a atender o telefone. Ouviu um cumprimento em ingl�s que parecia italiano. Umberto Troiani tinha o cond�o de fazer com que tudo o que dissesse, fosse em que l�ngua fosse, se semelhasse a italiano.
- Mataram a Cada! - exclamou Troiani.
Grigore ficou silencioso, durante uns segundos.
-Como? ..
- O mesmo assassino, um esquadra de metal... tu sabes ...
Grigore fincou o seu sil�ncio e UmbertoTroiani continuou:
- Tens de c� vir. Tenho informa��es que s�o muito, realmente muito importantes.
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Grigore correu at� � porta da vizinha, da vizinha que estaria morta umas horas depois, e pediu-lhe o favor de receber uma encomenda. Ela anuiu com a sua perenal boa vontade. Gostava do vizinho que estava tantas vezes ausente, mas que aparentava ser um homem vertical. Descansou-o, e Grigore, descansado, saiu de casa em dire��o ao apartamento de Umberto Troiani. Demorou ainda mais de uma hora porque o tr�nsito n�o ajudou, mas acabou por chegar ileso. Traiam vivia quase em Londres, num apartamento luxuoso, cheio de assoalhadas.
O italiano era particularmente sagaz nas coisas dos s�mbolos que fazem um ma�om - um verdadeiro ma�om e n�o um homem de avental -, e era sol�cito, trabalhador, honesto e aquilo que se chama boa pessoa. Mas mais grave que isso era um grande amigo de Marim Grigore. Era como um irm�o antes de ter sido irm�o pela inicia��o. Era um homem um pouco mais alto do que a m�dia, com o cabelo curto, muito curto e grisalho. Desajeitado nos gestos, como um urso, um pouco obeso (ligeiramente), e deficit�rio no que concerne � moda. Exceto no que diz respeito a sapatos. Italiano de origem, vivia em Londres h� mais de vinte anos.
Era um Umberto Traiam muito nervoso que esperava Marim Grigore. Abriu-lhe a porta enquanto sorria, mas tamb�m tremia. Antes de fechar a porta olhou para um lado, olhou para o outra, e com o seu ar mais preocupado e o seu sorriso, fechou a porta. Um homem nervoso mant�m sempre o seu sorriso.
Marim Grigore entrou e sentou-se com pouca cerim�nia e com as m�os na cabe�a.
- Como � que isto est� a acontecer?
Umberto Troiani fitou-o naquela posi��o e sentiu-se sem for�as.
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- Estive a investigar - come�ou por dizer o italiano. - A princ�pio julgava ser obra de algu�m da nossa Loja, ou melhor, pensei nessa hip�tese; depois, quando soube de um ma�om morto nas mesmas circunst�ncias mas sem rela��o connosco, fiquei na d�vida se ser�amos realmente um alvo. Evidentemente, a morte de Jo�o Caturra s� veio complicar, visto que foi perpetrada de modo completamente diferente do que seria de esperar. Ou seja, sem o esquadro, sem a simbologia da morte de Hiram.
Fez uma pequena pausa antes de continuar.
- A princ�pio equacionei v�rias hip�teses. At� pensei responsabilizar um membro da Loja.
Grigore fez uma careta.
- Sim, sei que somos irm�os, que somos todos ma�ons, mas permiti-me duvidar de todos os que pudessem estar implicados. Obviamente, duvidei primeiro de Alexander Hol. Afinal at� que ponto � que nos conhecemos uns aos outros? Temos rituais em conjunto, segredos, mas n�o temos verdadeira intimidade. Isto tudo n�o passa de uma sombra do que deveria ser uma irmandade. � certo que alguns de n�s s�o grandes investigadores, mas conhecemo-los realmente? � evidente que n�o. E telefonei a um amigo da Pol�cia (sei que n�o vais gostar que eu tenha feito isto) e ele disse-me o que sabia sobre Hol. Nada de muito mau. Mas depois, quando falei de Rigaut, ele disse-me que seria melhor encontrarmo-nos. Combin�mos um encontro nessa mesma tarde, numa brasserie que fica mesmo por baixo da casa dele. O que ele me disse deixou-me perturbado.
Umberto Troiani parou de falar e olhou para Grigore � espera de rea��o. Este mantinha o seu ar vener�vel. O italiano continuou a descrever o que tinha sabido naquele dia, mas com ar mais solene.
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- Bebemos umas cervejas. Ele tinha levado o filho, um beb� de sete meses e nunca consegui a concentra��o necess�ria para conversar como deve ser, entre choros e resmungos. Enfim, tentei saber o que pude, mas ele tentou n�o dizer nada. No entanto, poderia ver-se claramente, tinha muito para dizer. Afinal fora ele que marcara o encontro.
Troiani parou para beber um golo do copo de �gua que tinha � sua frente.
- Este meu amigo come�ou por falar em Popke. Eu perguntei-lhe o que � que Lutz Popke tinha a ver com tudo isto. A verdade � que eles sabem muito mais sobre n�s do que imagin�vamos poss�vel. Calculo at� que saibam quem s�o todos os membros da nossa Loja e tenham mesmo informa��es detalhadas sobre todos n�s. Mas enfim, ele falou de Popke, apesar do meu espanto quando o nome dele foi mencionado. Disse-me que ele tinha colaborado com os nazis durante a Segunda Guerra Mundial. a mais bizarro � que parece ter trabalhado com Otto Rahn. Quando esse membro das SS andava nas suas demandas m�sticas, Popke andou com ele pelo Sul de Fran�a, pelo Languedoc, � procura sabe Deus do qu� ... Na altura ele era apenas um jovem licenciado em arquitetura, mas j� se destacava pelo que conhecia de Geometria Sagrada. Mas
n�o foi sobre Popke que a conversa incidiu. Rigaut parecia preocup�-lo e, parece-me, tem sido alvo de muita investiga��o. Ele, por idiossincrasia e �tica, n�o me poderia adiantar muita coisa, mas n�o se cansou de me avisar que achava Rigaut um elemento muito perigoso e que dever�amos cortar qualquer rela��o com ele. Deu-me a entender que qualquer dia, em breve,
ser� preso e que a Loja poder� sofrer com isso. Gravemente...
- Mas o que � que te levou a pensar que um dos nossos irm�os possa estar envolvido? N�o h� motivos para acreditar
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nisso. As mortes parecem revelar exatamente o oposto. O assassino, tal como os que mataram Hiram, querem saber um segredo e matam porque n�o sabem. Ora, na nossa Loja, ningu�m teria motivos para o fazer. Parece-me que o culpado � algu�m de fora. De resto, todos n�s temos as nossas m�culas no passado. A pol�cia andar� sempre a investigar ordens secretas como a nossa e h�-se sempre encontrar uma falha no nosso passado. Parecendo que n�o, tamb�m somos humanos. As nossas vidas est�o t�o repletas de atos conden�veis quanto o resto das pessoas. Eventualmente, um de n�s poder� ter sido mais problem�tico, mas, julgo, n�o h� motivo para desconfiar deste ou do outro...
Ao dizer isto, Grigore apercebeu-se de que a advert�ncia sobre Rigaut parecia trazer mais problemas do que ele gostaria de acreditar.
- Provavelmente tens raz�o e n�o h� nada para nos preocuparmos em rela��o a Rigaut. Mas podemos imaginar que estamos a interpretar estas mortes dum modo errado. Talvez esta compara��o com a lenda de Hiram seja uma m� exegese. Talvez seja uma coisa completamente diferente, um crime cuja inten��o seja fazer-nos acreditar nisso ... Bom, as hip�teses s�o tantas.
- N�o. Acredito que a nossa interpreta��o seja a correta. N�o compreendo a morte do ma�om que n�o era nosso irm�o, esse tal Damien Galloy. Quanto ao Jo�o Caturra, imagino que tenha sido um percal�o. Imagino que tencionavam interrog�-lo e mat�-lo da mesma maneira que fizeram com o Felicijonas e com a Carla, mas algo inesperado fez com que o Jo�o morresse com uma bala em vez dum esquadro arremessado contra a sua cabe�a.
- E quanto a esse ma�om que n�o fazia parte da nossa Loja?
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- Penso que tamb�m foi um engano. Talvez julgassem que ele era nosso irm�o ...
- E quanto � Carla? - perguntou Troiani.
Grigore fez uma careta de dor.
- Fazemos o mesmo que com a morte do Jo�o. N�o fazemos nada, n�o aparecemos. � essencial mantermo-nos afastados. N�o daremos ao assassino a oportunidade de nos identificar a todos.
- Por outro lado, tal como decidimos na �ltima sess�o, � essencial acabar com os segredos da nossa Loja ...
Grigore, apesar de ter sido quem incentivou a medida n�o deixou de sentir um calafrio ao ouvir Umberto Troiani pronunci�-la. Tinha receio de que isso acabasse com a sua Loja. Ali�s, haveria de, com toda a certeza, acabar com a sua Loja. E nisso tinha de concordar com Alexander Hol: revelar acabaria com a vida ritual. Mas era, evidentemente, a �nica solu��o. Era preciso escrever aquilo o mais brevemente poss�vel e Jo�o Caturra havia sido encarregado, juntamente com Felicijonas Salnius, de o fazer. Agora, teria se ser ele a faz�-lo e com a maior celeridade poss�vel.
- Parto para o Brasil imediatamente.
- Para o Brasil?
- Sim, a F�tima Rios ficou de escrever, com a ajuda do Jo�o Caturra, a primeira parte do trabalho de divulga��o. Vou fazer isso com ela. Penso que em poucos dias poderemos ter um esbo�o razo�vel. Se tudo correr bem teremos um pequeno livro pronto a editar dentro de duas semanas ...
- Vou contigo - disse Troiani.
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CAP�TULO 40
N�o foi dif�cil a Gar��o Arouca perceber que a m�e de Conrado Fortes estava em casa do irm�o. Estava a lidar com amadores. Queriam proteger-se e escolhiam os lugares mais �bvios para esse efeito, como se algu�m que os quisesse matar n�o se lembrasse desse esconderijo incr�vel que era a casa do irm�o. Funciona em muitos filmes, como enredo, mas � uma p�ssima escolha nesta vida - que tem um p�ssimo guionista, mas suficientemente capaz para n�o ser t�o simpl�rio.
Antes de partir para a Turquia sentiu necessidade de saber onde estava o homenzinho calvo e a jornalista. Gar��o Arouca sabia que n�o adiantava interrogar uma m�e. Teria de usar outros m�todos para saber do paradeiro de Conrado Fortes. A melhor maneira foi uma escuta. No dia seguinte j� sabia que a jornalista e o baixinho estavam no Brasil, tantas foram as vezes que eles, m�e e filho, se telefonaram contando tudo o que se passava.
Uma viagem ao Brasil n�o viria a calhar. Tanto pior, que por l� ficassem o tempo que fosse preciso. Primeiro iria � Turquia tratar de Daim Ku�uk, depois esperaria pela vinda do casalinho. E se eles n�o voltassem iria passar umas f�rias/ao Brasil com a sua pistola.
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No aeroporto teve de esperar, foi o primeiro a chegar. Depois dele, chegou Ramos Navarro, com uma mala muito grande, muito velha. Trazia a sua massa muscular, os seus bra�os que se confundiam com pernas, arrastava os passos e parecia mesmo que, quando grunhia, falava. Chegou um quarto de hora depois da hora combinada. Trazia uma barba muito bem feita, demasiado bem feita para a cara de xisto irregular que tinha. Cumprimentou Arouca com um aceno das sobrancelhas e um esgar dos bei�os. Gar��o Arouca contrap�s com um simples bom dia.
E passados dez minutos chegaram os Teixeira, muito iguais, g�meos com todo o seu ADN, e umas malas de pl�stico com rodinhas. Os cabelos, muito lambidos, brilhavam do gel.
Fizeram o check in separados, como se n�o se conhecessem, como se n�o fossem os quatro juntos at� Istambul matar uma pessoa.
Quando aterraram j� era de noite. Tinham marcado hot�is separados, por isso, depois das malas recolhidas da passadeira rolante, cada um procurou o respetivo local reservado para dormir. Os Teixeira tinham um hotel quase bom para pernoitar, enquanto o hotel de Gar��o Arouca tinha uma atmosfera muito duvidosa. Mas n�o era mau de todo: havia um bar no r�s-do-ch�o com snooker e cerveja. Gar��o Arouca passou l� a noite a beber e a jogar. Infelizmente ganhou a maior parte das vezes.
Ramos Navarro escolheu um hotel pequeno, de grande qualidade, com um p�tio interior muito bonito e uma gest�o familiar. A dona tamb�m n�o era feia, apesar de ser rica, e Ramos Navarro passou o ser�o a jogar �s cartas com a senhora. Os seus b�ceps acabaram por ganhar a partida e eles acabaram na cama, na mesma cama. Ramos Navarro, no dia seguinte,
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ainda reclamou: n�o queria pagar a sua estadia, afinal n�o havia usado os seus aposentos. Resignou-se a pagar o que devia quando a dona do hotel, muito bonita por sinal, se prestou
a chamar a policia. Ramos Navarro, n�o s� pagou como deu gorjeta e saiu a resmungar no seu grunhir que at� parecia franc�s.
Nessa manh�, mal saiu do hotel, muito estremunhado, viu-se mesmo em frente de Hagia Sofia, da catedral que � hoje mesquita. Sentiu-se perdido quando olhou para o lado e viu que havia outra mesquita igualmente imponente: a mesquita azul. Por isso ficou com d�vidas sobre a combina��o. Haviam arranjado encontrar-se em frente de qual das mesquitas? Imediatamente dirigiu-se a um pol�cia que - solicito como s�i ser o povo turco - lhe indicou o verdadeiro caminho. N�o � todos os dias que nos apontam t�o excelsa dire��o. Apontar o verdadeiro caminho � a fun��o de algumas religi�es, algumas seitas, alguns democratas e, � exce��o destes, poucos mais se atrevem a faz�-lo.
- Em que mesquita � que combinou? - perguntou o policia.
- Na mesquita azul.
- Esta que v� aqui em frente � Hagia Sofia. A mesquita azul � aquela ali, a azul. A que n�o � azul � esta, a Hagia Sofia.
E Ramos Navarro sentou-se numa geladaria que n�o ficava muito longe. Ainda faltavam cinco minutos para a hora estipulada para o encontro.
Pediu um gelado cheio de bolas e chantilly cheio de frutas cristalizadas e frutos secos. Uma refei��o. Ramos Navarro comeu o gelado delicadamente com o seu bra�o peludo e o mindinho projetado como um minarete.
Daim Ku�uk, o membro da Loja �Pers�fone� que iria ser alvo daquele mesmo bra�o que agora, delicadamente, comia
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um gelado, vivia ali perto, num bairro de vivendas e flores. Gar��o Arouca passara por l� antes de se dirigir para o local onde havia combinado encontrar-se com Ramos Navarro. Levava uma m�quina fotogr�fica, um mapa, e o seu ar mais tur�stico. Isso justificava que olhasse para todos os lados, que visse pormenores, que tirasse fotografias. Passou pela mesquita e avistou de imediato Ramos Navarro com o seu gelado cheio de chantilly. Dirigiu-se at� l�, sentou-se na mesa ao lado e pediu um caf�, um caf� turco com o cheirinho do cardamomo. Enrolou um cigarro e fumou-o com o caf�.
O gelado chegou ao fim e o cigarro de Gar��o Arouca tamb�m. Pagaram ambos, e sa�ram como se n�o se conhecessem. Ramos Navarro seguia atr�s de Gar��o Arouca, uns dez ou quinze metros atr�s.
Daim Ku�uk era um homem alto, com as faces tensas e os olhos duros. Tinha quarenta e tr�s anos e nem sempre era professor de teologia. Este ano, por exemplo, n�o era: resolvera tirar um ano sab�tico para se dedicar � pintura.
O port�o da sua casa abriu-se e Gar��o Arouca entrou, com passos decididos, percorreu o pequeno quintal e bateu � porta. A mulher de Ku�uk abriu a porta e Gar��o Arouca, educadamente, empurrou-a e ela caiu para tr�s com estrondo. Daim Ku�uk apareceu em pijama, com um livro na m�o e os �culos postos. Precisava deles para ler.
Ramos Navarro entrou nessa altura. Deu um pontap� na mulher deitada no ch�o, que chorava compulsivamente, e Gar��o Arouca impediu-o de repetir a proeza. No entanto, manteve a sua arma apontada � cabe�a da mulher. Fez sinal para Daim Ku�uk se aproximar, em sil�ncio, e quando o fez, os bra�os peludos de Ramos Navarro fizeram o seu trabalho.
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Depois de se ter certificado de que o casal estava canonicamente manietado e amorda�ado, Gar��o Arouca subiu as escadas at� ao primeiro andar. Abriu uma porta, a �nica que estava fechada. L� dentro dormiam duas crian�as. Acordou-as e, agarrando em ambas, levou-as para baixo. O rapaz de sete anos chorava mais que a menina de quatro.
Ramos Navarro ordenou que se calassem com um movimento brusco e as crian�as silenciaram o choro, contiveram-no entre solu�os, enquanto olhavam os pais. A m�e estava amarrada em cima do sof�, ensanguentada, e Daim Ku�uk estava preso a uma cadeira. Gar��o Arouca telefonou aos Teixeira que tomavam o pequeno-almo�o num caf� que ficava numa rua paralela � da casa de Daim Ku�uk. Apareceram os dois, passados cinco minutos. Ros�rio Teixeira trazia uma cai�
xa de doces tradicionais debaixo do bra�o, e S�lvio Teixeira trazia um desses doces na boca e um esquadro met�lico na m�o. Fecharam a porta atr�s de si, depois de cuidadosamente terem observado a rua, e sentaram-se no sof� ao lado da senhora Ku�uk. Tiraram mais uns doces da caixa e ofereceram a Gar��o Arouca e a Ramos Navarro. Nenhum dos dois disse que n�o e estenderam as respetivas m�os.
Daim Ku�uk sabia que ningu�m da sua fam�lia escaparia, os bandidos que tinha � sua frente n�o tapavam a cara. Seriam reconhecidos depois- e isso significava que pretendiam matar toda a sua fam�lia, n�o seria ele o �nico a morrer. Quer falasse, quer n�o falasse, veria a morte dos seus filhos e da sua mulher antes da sua.
Gar��o Arouca sabia que Ku�uk estava ciente de que aquele era o momento derradeiro, n�o s� para ele, como para o resto da fam�lia. Isso n�o o preocupava. Uma pessoa, naquelas circunst�ncias, pode saber o que quiser, mas quando vir
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um filho a ser morto � sua frente n�o hesitar� responder a tudo o que lhe perguntarem.
Para assegurar tal estado de esp�rito, Gar��o Arouca colocou uma �pera a tocar, um disco de Wagner daria alguma solenidade, depois colocou o cano da sua arma na boca da filha de Ku�uk. J unto � t�mpora da outra crian�a, Ramos Navarro encostou o cano da sua arma. Daim Ku�uk cerrou os olhos com toda a for�a do universo enquanto o seu filho morria.
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CAP�TULO 41
Pilatowski esperou por Grigore em casa da falecida vizinha. Limpou o sangue que espirrou no corredor do pr�dio e usou sacos do lixo e um cobertor para embrulhar a mulher morta. Sentou-se numa cadeira a beber um copo de �gua, preocupado com o rumo que as coisas levavam e com o sangue seco debaixo das unhas. Com a faca, tentou limpar aquela sujidade. Olhou para o volume que encerrava, muito bem embrulhada, a vizinha de Grigore, e n�o p�de deixar de se lembrar que tivera um pressentimento. N�o � f�cil matar um animal que n�o tenha a regularidade do h�bito a decorar-lhe a vida. O h�bito � a grande companhia da morte, andam tantas vezes de m�os dadas como duas crian�as a brincar. Quando um homem sai da roda da causa-efeito, quando as suas a��es t�m a surpresa dum ato livre sem o automatismo do uso
e do costume, sem o peso do passado, ent�o isso dificulta o trabalho da morte. E Pilatowski, encarna��o da ceifeira, vivia dos h�bitos. Eram eles que lhe permitiam matar as suas v�timas, esperar a melhor ocasi�o, o melhor lugar, a melhor hora. Por isso Pilatowski era muito eficiente. Ele compreendia os mecanismos a que o ser humano se prende, a essa roda viciosa que faz o homem rodar sobre si mesmo, � volta dos mesmos problemas, sempre pequeninos, que vai moendo e tornando
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caricaturalmente grandes. O homem que Pilatowski matava, o homem que vive nestas sociedades burguesas, n�o se preocupa com o que vai comer e onde vai dormir. Ele tem sempre o que comer e dorme sempre no mesmo lugar, todos os seus atos se podem prever com a sagacidade dum deus omnividente. Os seus grandes problemas s�o outros: que gravata comprar, como responder ao diretor que insinuou qualquer coisa, qual ser� a programa��o da televis�o, ser� um romance de Proust mais entediante que a Suma de Aquino ... O homem moderno, das sociedades mais ricas, n�o se queixa por n�o ter o que comer, queixa-se se, por acaso, faltar sal no seu lombo de vaca mal passado. S�o presas f�ceis. Basta digitar um n�mero e eles atendem o telem�vel.
Passadas duas horas de espera, Pilatowski teve fome. Abriu o frigor�fico e tirou um peda�o de coelho. Aqueceu-o no microndas e comeu com prazer. Procurou nas gavetas uma toalha, p�s a mesa com solenidade, serviu-se de mais um copo de �gua e saboreou o prato. O cheiro do tomilho envolveu-lhe as narinas. Lavou a loi�a e arrumou tudo nos seus devidos lugares antes de ligar a Rigaut.
- Grigore n�o estava em casa como seria de esperar.
- Como � que n�o estava em casa? Eu tinha assegurado que sim. Ele garantiu-me que sim ...
- Mas n�o estava e deixou a vizinha encarregada de receber a encomenda. Esperei aqui tr�s horas, mas tenho d�vidas que ele volte.
- Vou tentar perceber o que � que aconteceu.
- Fico � espera.
Rigaut desligou o telefone, nervoso. O que teria acontecido? Grigore era um homem imprevis�vel, mas nunca deixa de cumprir o que promete.
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Pegou no telefone e marcou o n�mero do romeno. Grigore atendeu imediatamente.
- Ent�o? - perguntou Rigaut sem rodeios.
- Tive de sair, mas encarreguei a minha vizinha de receber a tua encomenda.
- Isso foi muito irrespons�vel. S�o documentos importantes.
- Confio plenamente na minha vizinha ...
Ficaram em sil�ncio os dois. Grigore reiniciou a conversa:
- Mataram a Cada Vidigal. Com um esquadro ...
- O qu�? Mais uma morte? O mesmo assassino?
- Tudo leva a crer que sim. Estou a tratar da divulga��o do trabalho desenvolvido na nossa Loja. Temos de acabar com isto o mais depressa poss�vel.
- Onde � que est�s?
Grigore n�o respondeu. Pensava nas advert�ncias de Umberto Troiani. Rigaut poderia n�o ser inteiramente de confian�a. O melhor seria n�o dizer onde se dirigia.
- Agora n�o posso falar - disse Grigore -, telefono-te amanh� ou depois.
E desligou o telefone, mas desligou tarde demais. Rigaut conseguiu perceber que Grigore estava no aeroporto: ouvira o barulho dos avi�es e a voz duma hospedeira num intercomunicador.
Fez mais dois telefonemas e, uma hora depois, sabia que o romeno tinha comprado um bilhete para o Brasil. Certamente, ir-se-ia encontrar com F�tima Rios. Mas Marim Grigore n�o era o seu �nico problema. Precisava de contratar seguran�as, sentia que a sua vida tamb�m corria perigo.
Telefonou a Pilatowski.
- Grigore est� neste momento num avi�o com destino ao Brasil.
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-Ao Brasil?
- Sim, ao Brasil, e preciso que v�s atr�s dele. N�o o quero vivo.
Laurent Rigaut estava nervoso. Aclarou a garganta para voltar a compor a voz num tom seguro, num tom que lhe desse a autoridade que achava ter. Pegou na sua agenda para ler a Pilatowski a morada de F�tima Rios no Brasil. Ditou-a como um professor prim�rio.
Arkadiusz Pilatowski anotou a morada num pequeno bloco que trazia sempre consigo. O Apocalipse fala deste bloco: o livro da morte e da vida.
- N�o teme pela sua sa�de? - perguntou a Rigaut. - Carla Vidigal foi assassinada.
- Como � que sabe?
- N�o lhe disse que trataria desse caso, desse assassino amador que anda a� a monte? Afinal s�o quatro, mas dois deles s� fazem perguntas. Devem trabalhar, quase de certeza, para outra pessoa. Isso faz com que tenha cinco pessoas para matar. De qualquer maneira vamos ter de rever o nosso or�amento. Fazer cinco v�timas n�o � o mesmo que dar cabo de um assassino amador. Ainda n�o sei quem s�o, nenhum deles, mas saberei em breve. Estou certo disso.
- O que � que eles querem? Corro algum perigo?
- N�o sei o que querem. Querem saber alguma coisa que, imagino, o senhor saber� muito bem o que �. Neste momento est�o na Turquia, o que significa que, quanto � sua vida, pode estar descansado. Pelo menos durante os pr�ximos dois dias. Entretanto, temo que Daim Ku�uk seja o pr�ximo.
- Como � que sabe isso tudo?
- Sou uma pessoa competente.
- E sabendo isso tudo deixou que a Carla morresse?
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- N�o era essa a sua vontade, senhor Rigaut? Ainda ontem me disse que o ideal seria matar todos os membros da sua Loja. Bom, tem algu�m a realizar-lhe os desejos e nem tem de pagar nada por isso. Mas fique descansado, intervirei, ou algu�m da minha confian�a intervir�, no caso de a sua vida estar em perigo. At� l�, deixo-os matar quem quiserem.
- N�o. N�o desejo isso.
- Afinal tem compaix�o?
- N�o seja impertinente. Temo que algum dos meus irm�os revele alguma coisa que n�o deva a um desses criminosos. Prefiro que se acabe com isto o mais brevemente poss�vel.
- Posso acabar com isso agora. Basta-me fazer um telefonema, e nem terei de matar nenhum deles ... No entanto, o or�amento mant�m-se.
Desligou o telefone.
Fora muito f�cil para Pilatowski descobrir os assassinos. Estando na posse dos nomes das pessoas que pertencem � Loja �Pers�fone�, e sabendo que estes estavam a ser alvos de um criminoso (ou mais do que um), bastou-lhe colocar algu�m da sua confian�a a seguir Cada Vidigal. O assassino haveria de aparecer. Esta escolha deveu-se a um motivo muito simples. At� agora todas as mortes haviam sido cometidas em Portugal, tanto a de Felicijonas como a de Caturra. Seria de esperar que a terceira o fosse tamb�m. E n�o se enganara.
Leah era a sua pessoa de confian�a. Plena confian�a. Era uma mulher pequenina e magra, de �culos muito graduados, com mais de cinquenta anos e um rosto honesto. Havia seguido Carla Vidigal, sabia quem estava por tr�s da sua morte. E passou a seguir um deles, ou melhor, dois deles. Os Teixeira que eram os mais ing�nuos. Acompanhou-os no voo para Istambul sem que eles se apercebessem.
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Pilatowski apanhou um t�xi para o aeroporto e comprou um bilhete de avi�o para o Brasil. S� arranjou voo para o dia seguinte e teria de fazer escala em Nova Iorque. S� chegaria ao Rio de Janeiro quarenta e oito horas depois. N�o havia pressa. Poderia coagir algu�m a n�o fazer a viagem e ocupar o seu lugar, mas n�o era desses. Cada um tem a sua moral, por mais estranho ou incoerente que nos pare�a.
N�o voltou para a pens�o onde ficara antes, preferiu um hotel junto ao aeroporto. Mas antes fez um telefonema para Istambul.
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CAP�TULO 42
A viagem de avi�o foi longa. Tanto para Conrado, como para Lola. Ele dormiu o tempo quase todo, encostando - de modo perfeitamente inocente mas quase perverso - a sua cabe�a adormecida no ombro de Lola. Ela tentava sacudir aquela press�o, mas a teimosia da gravidade da cabe�a de Conrado falava mais pesado e encostava-se com insist�ncia.
Esperaram muito tempo pelas malas, depois de aterrarem, e decidiram esperar mais na esperan�a de conseguirem lugares num voo para o Acre. Mas nessa noite n�o houve desist�ncias, por isso, optaram por apanhar um t�xi at� � esta��o dos autocarros. Decidiram ir at� Cuiab�, de autocarro, pernoitar, e depois apanhar outro - ou mesmo um avi�o - at� Rio Bran�
co, capital do Acre. Assim, dividiriam a viagem por etapas o que, acreditavam, torn�-la-ia menos desconfort�vel. Demoraram trinta horas a chegar a Cuiab�, apesar de ser normal de� morar apenas vinte e quatro. A mec�nica do autocarro n�o ajudou para que os hor�rios fossem cumpridos.
Chegaram a Cuiab� �s tr�s da manh� e estavam, �quela hora, mais de trinta graus celsius. Arranjaram um hotel no centro. Conrado quis dividir o quarto com ela, mas tal ideia foi completamente posta de parte. Ali�s, ele n�o s� ficou 'Sozinho como n�o foi agraciado com um aparelho de ar condicionado.
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O quarto podia-se gabar de ter apenas uma ventoinha que lutava contra os excessos do clima. O dela tinha um ar condicionado que fazia mais barulho que uma escavadora. Mas refrigerava.
Ainda nessa noite decidiram sair um pouco, parar na primeira lanchonete que estivesse aberta e beber uma cerveja. Pediram uma que dividiram pelos dois. E voltaram a pedir mais outra. A temperatura continuava muita alta para aquela hora e a cerveja, no fundo, parecia n�o ajudar. Conrado suava como se fossem duas da tarde.
Laia quis acabar a noite por ali e acabou mesmo. Pagou e foi-se deitar. Conrado, por seu lado, levantou-se e andou mais um pouco pelas ruas da cidade. Havia muita coisa aberta, restaurantes e bares, e havia muito calor. Parou numa esplanada e pediu mais uma cerveja, que, como costume, era de seiscentos mililitros. Vinha com dois copos apesar de Conrado estar sozinho. Bebeu mais e meteu conversa com a empregada, dois dedos, precisamente. Ela, com o seu cabelo encaracolado, achou piada �quele homem baixinho com t�o pouco cabelo. �s cinco da manh� sa�ram os dois para ir dan�ar, e, depois de dan�arem, foram os dois para o quarto de Conrado que n�o tinha sen�o uma ventoinha.
O pequeno-almo�o de Lola foi acompanhado com Conrado e Fl�via - a empregada que tinha continuado a noite at� �quela hora. No meio dos mam�es, das melancias, das bananas, das mangas e da coalhada, Fl�via mostrava a sua libido satisfeita com caretas sensuais. Passava a sua l�ngua pelos l�bios, pelos seus e pelos de Conrado, e este sorria com o ar mais gal� que a sua calv�cie permitia. Mais um vez, Lola Benites sentiu o seu pequeno-almo�o estragado enquanto a l�ngua irrequieta de Fl�via lhe provocava o mal-estar.
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Lola levantou-se sem disfar�ar alguma irrita��o e saiu com uma pequena mochila. Conrado sorria com Fl�via ao seu colo.
Quando Sin�sio de Cirene, no s�culo IV d. C., resolveu escrever o seu Elogio da Calv�cie) nunca imaginou um Conrado Fortes. Depois de uma defesa t�o eloquente da falta de guedelha, um Fortes poder� ser uma grande facada na argumenta��o de Sin�sio. Esse capricho capilar que cresce nos cr�nios humanos era para Sin�sio uma r�stia de animalidade que tinha, teimosa e aleivosa, persistido para humilha��o dos filhos de Eva. Portanto, perder pelos � aproximar-se do divino e afastar-se da besta. Diz ele que a ovelha � um animal muito est�pido, e intima-nos a olhar para a quantidade de pelos que a cercam. N�o � por acaso, h� aqui uma rela��o. Mas se Sin�sio argumentou muito bem, divinizando o calvo e sublinhando que S�crates e Di�genes, por exemplo, mostravam a sua careca ao mundo, n�o previu Fortes. Contado poderia ser tomado como o exemplo contr�rio ao da ovelha. Se Di�o de Prusa n�o tivesse morrido no s�culo I d. C., teria com certeza utilizado Conrado Fortes para humilhar Sin�sio. O seu Elogio da Cabeleira
poderia ter um ap�ndice para resposta ao Elogio da Calv�cie. No entanto, a argumenta��o d� muitas voltas, e Fl�via, gar�onete numa lanchonete, com uma simples festa na calva de Conrado, fazia a balan�a pender para o lado dos carecas. Um simples gesto duma mulher � muito mais eloquente que tratados cl�ssicos escritos em l�nguas mortas. Para o provar, Fl�via passava a sua m�o pela brilhante cabe�a de Contado Fortes. E a sua l�ngua n�o era das mortas.
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Horas mais tarde, Lola foi bater � porta do quarto de Conrado. Este abriu a porta estremunhado. Fl�via j� tinha sa�do para trabalhar.
- Est� na altura de irmos embora. Temos de pagar e apanhar o autocarro. Temos um a meio da tarde. Amanh� de manh� chegamos ao Acre.
Em Rio Branco escolheram um pequeno hotel junto a uma pra�a, mesmo no centro hist�rico. O interior era todo em madeira e os empregados eram prest�veis.
Foram cada um para o seu quarto, dormir o que n�o tinham dormido nos �ltimos dias, descansar o que n�o tinham descansado.
Lola acordou primeiro e bateu na porta do quarto de Conrado. Ele apareceu em cuecas e ela esperou que ele se vestisse. Sa�ram os dois e subiram a rua � sombra das �rvores, pararam numa lanchonete da pra�a, pediram uma cerveja e tacac�s. A sensa��o que as folhas de jambu, supremo ingrediente do tacac�, provoca na boca fez com que Conrado achasse aquilo uma del�cia. Apanhou os camar�es com os dedos e levou-os � boca quando acabou com o caldo e a goma que nele se mistura. Lola olhava-o sem grande apetite. E perguntou:
- Como � que um homem da tua idade ainda vive em casa da m�e?
- Nunca encontrei motivo nenhum para mudar.
- Talvez um simples desejo de independ�ncia.
- Eu sou independente. A minha independ�ncia � mesmo das independ�ncias mais admir�veis. O meu amigo Carlos Ant�nio disse-me isso uma vez: Conrado, admiro a tua independ�ncia. Pare�o dependente, mas n�o passa dum v�u de ilus�o, � samsara. O facto de viver com a minha m�e s� demonstra o meu desapego, mostra como pode um homem maduro viver com a progenitora sem deixar que isso afete a sua liberdade.
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Sim, porque, para mim, a liberdade � tudo, � a coisa mais importante logo a seguir aos charutos. Uma liberdade sem havanos n�o me diz nada.
- Passas a vida ao telefone com a tua m�e. N�o vejo a� independ�ncia nenhuma.
- Telefono, mas sem apego. A minha rela��o com a minha m�e visa apenas deix�-la feliz. Ela sofreu muito com a morte do meu pai. O meu pai morreu durante a noite. Mas o segredo, j� dizia Buda, � esse, � o desapego. Vivo no mundo sem que ele me suje, sou como a flor de l�tus que nasce no p�ntano, mas n�o desabrocha com lama. Desapego: � esse o segredo. Ouve bem o que te digo. O desapego n�o te deixa trope�ar nas teias de Maya.
Conrado pediu um prato de carne. O tacac�, que era uma del�cia, n�o lhe tinha preenchido todas as necessidades.
- Vais comer mais?
-Vou pois.
O prato vinha muito bem fornido, era uma pir�mide de coisas empilhadas. A carne estava em baixo, mais ou menos a quinze minutos dali, depois de se conseguir abrir caminho atrav�s dos vegetais, da mandioca, do arroz, do tomate, da banana, do feij�o, da farofa, do ovo.
- Mas dizia eu que a minha m�e sofreu muito com a morte do meu pai. O meu pai morreu a dormir, na cama. Ficou com a boca muito aberta e foi-se para outros mundos, reencarnou. E a minha m�e ficou cheia de remorsos porque (v� bem como aquelas pequenas questi�nculas do quotidiano se podem tornar uma dor eterna) lhe disse para afastar os p�s de junto dela. Disse-lhe, j� ele estava morto e hirto como um cad�ver, que ele tinha os p�s frios. A minha m�e sempre reclamou dos p�s frios - tem o signo lunar em peixes e os peixes n�o suportam p�s frios. Vem em todas as astrologias. V� bem,
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Lola, como uma frasezinha t�o pequena pode ser t�o importante. Uma frasezinha pode fazer um universo inteiro entrar em colapso. �Tens os p�s frios, tira-os daqui�, disse a minha m�e. E agora sofre de remorsos por ter falado assim com um morto. O meu pai, ainda por cima, n�o se mexeu. Estava morto com a boca muito aberta, parecia um peixe fora do aqu�rio.
Havia muita farofa entre as suas palavras. E alguma banana. Mas nada o detinha e Conrado continuava a sua explica��o enquanto atacava o prato de churrasco:
- S�o as pequenas coisas, Lola, s�o as mais pequenas que fazem a diferen�a entre o c�u e o inferno. � cient�fico, est� mais que provado, s�o as coisas pequeninas, os pormenores: uma borboleta bate as asas em T�quio e o meu pai morre nos arredores de Lisboa com a boca aberta. Isto provocou uma dor eterna por causa dos p�s frios, porque os cad�veres t�m esta tend�ncia para arrefecer. A minha m�e nunca mais sorriu com a mesma alegria. E a Laurinda, que era l� da rua? A Laurinda tinha um sinalzinho junto das virilhas, mal se via. Ela era linda, lind�ssima, mas o assunto n�o eram as coxas dela (coxas magn�ficas!), mas o sinalzinho. Um pontinho preto perto das virilhas. Isso � que era um mundo. A Laurinda ser� recordada por uma coisa min�scula. L� na rua quando se fala dela h� sempre quem pergunta: �Quem?�. E outro que responde: �Aquela do sinalzinho�. Lembra-te, Lola, de que nascemos dumas c�lulas que nem se veem ao microsc�pio - quanto mais a olho nu - e quando crescemos abrimos buracos na atmos�
fera s� por usar desodorizantes em spray. Tudo coisas pequeninas. � por causa dessas coisas pequeninas que a minha m�e sofre. O planeta � tal qual ela: sofre por uma coisinha, est� moribundo s� porque h� um mam�fero que n�o gosta do cheiro das suas pr�prias axilas.
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�A minha m�e n�o � uma pessoa t�o espiritual como eu. Eu sou um homem muito pneum�tico, enquanto a minha m�e � mais h�lica, por isso sofre mais com estas situa��es. Eu resolvo-as noutros planos, nos planos mais elevados donde os mitos se escapam e onde habitam os n�meros relevantes, o tr�s, o sete e o nove (que � um tr�s ainda mais perfeito). Por isso telefono-lhe muitas vezes, que isso mitiga-lhe as dores.
E, como se n�o bastasse, morreu-lhe uma irm� logo a seguir a ficar vi�va. Ela gostava muito dela. A minha tia, por causa da doen�a, emagreceu tanto que teve de transmigrar e a minha m�e sente muita falta dela. Por isso � que eu lhe telefono muitas vezes: para mitigar as dores.
- N�o sei se acredito nessa desculpa, mas, para ser franca, eu � que tenho problemas de independ�ncia. Apaixonei-me por um imbecil de quem fiquei noiva.
- Tens um noivo?
-Tenho um noivo.
- Um imbecil?
-Chapado.
- Achas que me podes emprestar o telefone?
E a tarde acabou antes que terminassem a cerveja. O Sol foi mais r�pido a p�r-se do que eles a beber. Lola pediu indica��es ao empregado da lanchonete sobre a morada de F�tima Rios. N�o era longe, iriam a p�.
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CAP�TULO 43
A casa de F�tima Rios ficava perto do pal�cio Rio Branco, tinha um aspeto bem tratado, uma cor muito amarela. Quem abriu a porta foi uma mulher que aparentava ter por volta de quarenta anos e ser a empregada dom�stica de F�tima Rios. Trazia um vestido leve, abotoado � frente e um len�o na cabe�a.
- Posso ajud�-los?
- Quer�amos falar com F�tima Rios, por favor - anunciou Lola.
- Sou eu - respondeu a mulher. - O que � que me desejam?
- Viemos da parte de Jo�o Caturra...
-Entrem.
A casa era simples, muito simples, tinha muita madeira e a divis�ria das assoalhadas n�o chegava ao teto. No meio da sala havia uma grande cama de rede e umas almofadas espalhadas pelo ch�o. Uma mesa centrava as coisas, uma mesa baixa com uma garrafa de cacha�a, a meio e aberta, pousada como se fosse uma jarra florida. Umas cartas espalhadas na mesa e um cinzeiro cheio de beatas compunham o resto. Empilhados contra as paredes sem o aux�lio e o conforto dum m�vel que os amparasse, largas centenas de livros.
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- O Jo�o foi assassinado - come�ou por dizer F�tima Rios que se baloi�ava na rede. - Voc�s devem saber isso. Ali�s, eu j� sabia que teria visitas. Entrou-me um colibri pela janela. Por outro lado o qyahuasca tamb�m me preveniu que viriam estrangeiros bater-me � porta. Nem todos teriam boas inten��es. Qual � o vosso caso?
- As nossas inten��es s�o as melhores - disse Lola.
- As melhores - sublinhou Conrado.
- Ent�o, outros devem estar a chegar com menos boas
inten��es. Querem uma pinga? - e estendeu a garrafa de cacha�a e um copo sujo.
Ambos declinaram.
- Eu chamo-me Lola Benites. 'Sou jornalista e estou a escrever um livro ...
- E eu chamo-me Conrado Fortes.
- Ent�o e o que � que vos fez vir at� este lugar?
- Bom, temos em nosso poder, por engano, uma carta que havia sido enviada por Jo�o Caturra a Felicijonas Salnius. N essa carta eles referem um trabalho que pretendiam fazer consigo, algo que parecia importante. Uma esp�cie de introdu��o a algo que pretendiam revelar. Julgo que saber o teor desse trabalho nos ajudar� a descobrir quem est� por tr�s destes assass�nios ...
- E ajud�-la a escrever um livro que venda. � sobre o qu�, o seu livro? Sobre drogas?
- Drogas? N�o, � sobre Ma�onaria e outras organiza��es secretas e esot�ricas.
- Compreendo ...
F�tima Rios, num gesto da cabe�a, inclinando-a para tr�s, gritou um nome. Lola e Conrado estavam sentados nas almofadas que se espalhavam pelo ch�o quando entrou um homem pela porta da sala. Trazia umas cal�as de ganga e botas, bigode
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negro e crespo, barba por fazer, tronco nu, algum)barriga, uma grande cicatriz a atravessar-lhe a cara. No cinto trazia um fac�o e na m�o uma espingarda. Na outra m�o trazia um chap�u de vaqueiro.
Foi direito � garrafa de cacha�a e bebeu diretamente dela. F�tima repreendeu-o por isso e ele encheu o copo que n�o estava limpo, o �nico copo que parecia existir naquela casa, e bebeu dum trago. E, mais uma vez, voltou a encher o copo e a vaz�-lo, tirou uma t-shirt do bolso de tr�s das cal�as e limpou o suor da testa com ela.
Conrado tentava desaparecer entre almofadas e o corpo de Lola. E Lola temia que a viagem ao Brasil tivesse sido um grande erro. Agarrou na m�o de Conrado como se gostasse dele.
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CAP�TULO 44
Daim Ku�uk tinha os olhos cerrados e n�o os conseguia abrir. Ouvia os solu�os da sua mulher que eram gritos abafados pela morda�a. Gar��o Arouca saiu da sala: n�o apreciava aquele tipo de viol�ncia. Sentou-se na cozinha com o seu ar mais pensativo a olhar para as traseiras e o tempo foi passando sem mais tiros. Passaram-se duas horas e Ku�uk falava e tremia. A sua filha ainda tinha a pistola de Ramos Navarro apontada, e Daim Ku�uk respondia �s perguntas dos dois Teixeira. O turco sabia que dificilmente teriam alguma hip�tese de sobreviver, mas arrastaria esse momento o mais que conseguisse, falaria pela eternidade fora, ou ainda mais tempo, se adiasse as mortes que se adivinhavam. Faria como Xerazade.
De repente, enquanto falava, enquanto respondia aos Teixeira, ouviu outro tiro. Mais uma vez fechou os olhos com a for�a de quem n�o os quer voltar a abrir. Ouvia os solu�os da sua mulher, mas tamb�m a agita��o de S�lvio Teixeira e Ros�rio Teixeira. Ouviu a porta da rua, ouviu mais tiros e abriu os olhos. Ramos Navarro estava deitado em cima do sof�, morto. Os dois Teixeira estavam ajoelhados com as m�os atr�s da cabe�a e dentro da sua sala estavam mais cinco poli� cias. A morda�a foi-lhe retirada e ele teve o sangue-frio de dizer que havia mais outra pessoa na cozinha.
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- Est� t�o morto como este aqui - disse o policia mais encorpado, e apontou para Ramos Navarro.
A sua mulher tinha perdido os sentidos e a sua filha chorava encostada ao sof�. Ku�uk foi at� junto do corpo do seu filho enquanto os Teixeira eram levados para uma carrinha da policia. Sentiu uma m�o sobre o seu ombro. O policia encorpado voltou a falar:
- Lamento termos chegado t�o tarde, mas foi bom chegarmos de todo. O mal � irrepar�vel, mas poderia ter sido pior. Tivemos uma den�ncia e viemos imediatamente ...
Ku�uk, no meio da sua dor, voltou-se para perguntar:
-Quem?
- N�o sabemos. Foi uma den�ncia an�nima. Sabemos que foi feita dum hotel junto ao aeroporto de Heathrow, algu�m com sotaque de Leste. Tem amigos no Reino Unido?
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CAP�TULO 45
- Vai-nos matar? - perguntou Lola a F�tima Rios.
- Credo, n�o. Pelo menos, penso que n�o. Acham que deveria?
O olhar perplexo de Lola fez com que F�tima Rios continuasse a falar.
- Este � o Armando e � perfeitamente inofensivo. A menos que voc�s n�o o sejam.
- Somos completamente inofensivos - garantiu Conrado. - Ao ver o senhor Armando, fic�mos um pouco apreensivos. N�o est�vamos � espera.
- N�o est�vamos � espera - completou Lola Benites - - de ver entrar um homem em tronco nu com uma espingarda nas m�os. E essa faca ...
- Eu j� lhe disse para n�o andar de tronco nu, mas ele n�o me liga. Armando, quantas vezes te disse para vestires a t-shirt? Vezes sem conta, mas ele n�o me ouve. Eu adoraria ficar aqui na conversa, mas eu e o Armando temos um compromisso inadi�vel. Talvez queiram vir connosco?
- Isso � uma amea�a? - perguntou Conrado. - V�o raptar-nos? Eu n�o tenho dinheiro e a minha fam�lia tem ainda menos do que eu. A minha m�e � dona de casa, tem a pens�o
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do meu pai que morreu enquanto dormia, e essas coisas, essas pens�es, em Portugal, s�o rid�culas.
- Parece que n�o me fiz entender. Voc�s fazem o que lhes apetecer. Eu tenho de sair e voc�s parecem ter percorrido meio mundo para falar comigo. Se quiserem aproveitar, acorri. acompanham-me e falamos pelo caminho.
- Acompanhamos, sim senhora - assentiu Conrado levantando-se e sacudindo as cal�as. - Por acaso n�o tem um telefone? Precisava de fazer um telefonema ... A senhora F�tima tem uma energia muito positiva e as cores da sua aura ficam-lhe muito bem com essas tonalidades lilases e rosa ...
- H� uma cabina p�blica aqui em frente.
Lola olhou Conrado com o seu mais frio olhar.
- Toma o meu telefone. Fica com ele.
Sa�ram os quatro e entraram num Volkswagen Bras�lia branco e velho. Armando conduzia, F�tima ia ao lado, enquanto Lola e Contado se sentavam atr�s.
- Ent�o, vieram de onde?
- De Lisboa - respondeu Lola.
- Querem saber o que viria Caturra aqui fazer ... Bom, ele vinha porque queria que eu escrevesse uma esp�cie de introdu��o para um livro que ele iria escrever juntamente com o professor Felicijonas Salnius. Sei que o tema seriam heter�genos, e a minha parte seria mais especificamente sobre o ayahuasca.
- Heter�genos? - perguntou Lola. Conrado ia com a cabe�a fora da janela como gostam de fazer os c�es. Distra�a-se com facilidade.
- Significa, literalmente, gerar Deus em n�s. � uma maneira de falar de subst�ncias vision�rias. T�m outros nomes como psicotr�picos, psicad�licos ou alucinog�nios. Pessoalmente, tanto me faz, mas como as palavras neste tipo de coisa
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podem ser melindrosas, normalmente digo heter�genos em vez de, por exemplo, alucinog�nio. Alucinog�nio � uma palavra mais utilizada por pessoas que consideram estas drogas como perigosas ou como recreativas. Ou ambas as coisas.
- E n�o s�o?
- Dificilmente ser�o verdadeiramente perigosas. N�o sou uma defensora da banaliza��o do seu consumo, mas seriam um flagelo menor comparadas com o �lcool. Imagine a quantidade de crimes que s�o cometidos sob o efeito do �lcool. Desde os mais comuns, os mais b�sicos: a neglig�ncia e a viol�ncia dom�stica. Mas o �lcool est� quase sempre presente na maior parte dos crimes. Obviamente que nunca ouvi falar de nenhum cometido sob o efeito do LSD. � capaz de existir, mas desconhe�o. Evidentemente estas subst�ncias poder�o ter um fim meramente recreativo, mas tamb�m poder�o servir outros prop�sitos.
- Quais?
- Estes heter�genos s�o considerados por muitos - abstenho-me aqui de dar a minha opini�o - como instrumentos de conhecimento. O ayahuasca � referido como uma escola. � atrav�s dele que se aprende sobre tudo: desde a maneira correta de viver at� � medicina. O ayabuasca � a universidade de muitos povos ind�genas da bacia amaz�nica.
- E o que �, concretamente, o ayahuasca?
- � uma decoc��o, normalmente uma mistura de duas plantas. Podem ser mais, normalmente s�o mais, mas para n�o complicar o racioc�nio, falemos em duas. Porque duas s�o imprescind�veis. A pr�pria conjuga��o destas duas plantas intervenientes � motivo para admira��o. Explicar-lhe-ei porqu�: existe um cip� chamado, cientificamente, banisteropis caapi.
� rico em carbolinas, nomeadamente harmalina, harmina e harmol, que em doses relativamente grandes, quase t�xicas,
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� alucinog�nio. Mas raramente � usado nestas quantidades, podendo at� ser perigoso o seu consumo. As carbolinas s�o inibidores da monoamina oxidase, e s�o conhecidas pela sigla IMAO. Mas, na verdade, o grande respons�vel pelas vis�es � outra planta. Por exemplo, a psycbotria viridis. Esta planta '� rica em dimetriltriptaminas, abreviando DMT, subst�ncia com
um grande potencial alucinog�nio. O �nico defeito � que, se tomado sozinho, o DMT sai pela urina tal qual entrou pela boca. Ou seja, n�o � absorvido e n�o tem efeito algum sobre quem a consome. Ent�o, para que tal n�o aconte�a ...
- Outra vez a urina? Li que um cogumelo � consumido ritualmente atrav�s da urina ...
- Mas n�o tem nada a ver com esta hist�ria. Isso � outro mundo. � o velho mundo. O ayabuasca n�o tem absolutamente rela��o alguma com o consumo de urina. Como eu dizia, o DMT que aquela planta cont�m n�o � absorvido pelo organismo, mas se for consumida em conjunto com o tal cip�, o banisteropis caapi, ent�o ela entra no sangue. O cip� abre as portas: cont�m uma subst�ncia, um inibidor da monoamina oxidase, o tal IMAO, que torna os tecidos perme�veis ao
DMT. E como � que um �ndio kachinawa, por exemplo, entre tantas plantas que existem na selva, chegou a esta conclus�o e misturou as duas plantas certas? A maior parte afirma que foi o pr�prio ayabuasca que ensinou os homens. Na verdade, estas duas plantas fazem uma esp�cie de casamento m�tico. Um alquimista n�o deixaria de fazer aqui um paralelo.
- Caturra era um alquimista.
- Isso, n�o fazia ideia. Julgava-o um acad�mico sem qualquer rela��o com essa qu�mica anacr�nica.
- E era um acad�mico, mas al�m disso, tinha um laborat�rio onde fazia as suas experi�ncias.
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-Julgava que a Alquimia era mais uma atividade metaf�rica.
- Eu tamb�m pensava isso, mas pelos vistos, h� quem trabalhe com fornos e minerais. Mas voltando ao seu ayabuasca, �s monoaminas e dimetil n�o sei qu�, continuo sem perceber qual a rela��o dele com os trabalhos da Loja ma��nica a que pertencia Caturra. Eu sei que parece haver drogas envolvidas, especialmente cogumelos, amanita muscana, mas n�o me parece que estivessem metidos em algo ilegal, como o tr�fico de alucinog�nios. Acha que foi por isso que morreram pessoas? Ser� que algu�m andava a traficar subst�ncias ilegais e foi descoberto?
- Quanto a descobrir motivos para assassinatos, n�o sou muito boa, mas tamb�m n�o vejo que rela��o poderia ter uma Loja ma��nica com cogumelos. De qualquer modo o amanita muscaria � perfeitamente legal, segundo sei, n�o existe qualquer legisla��o sobre o seu consumo. Mas quando me pergunta se existe alguma rela��o deste cogumelo com o ayabuasca, posso dizer que h�, claramente, pontos de liga��o. S�o ambos drogas usadas em contextos religiosos e s�o exemplos bem documentados e conhecidos. A maior parte dos povos, seja em que lugar for do globo, sempre usaram subst�ncias deste tipo para entrar em transe, para ter vis�es, para curar, para falar com deuses ou esp�ritos, para incorporar animais, para fazer a chamada viagem xam�nica, para saber o n�mero da lotaria. Catos como o peyote foram e s�o usados no M�xico e no Sul dos EUA; outro cato conhecido por achuma ou San Pedro (dizem que tem as chaves do c�u), com princ�pios ativos id�nticos ao peyote (a mescalina), � muito usado nos Andes; muitos
cogumelos que cont�m psilocibina s�o tamb�m consumidos na Am�Jjca Latina (mas n�o s�, visto que crescem pelo mundo todo); no Gab�o ingere-se a raiz de iboga, uma planta rica
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em iboga�na, um alucinog�nio poderoso; em quase todo o globo h� tamb�m um consumo generalizado de subst�ncias delirantes que est�o normalmente associadas a plantas como o es�
tram�nio, o meimendro, a mandr�gora, a beladona e outras solan�ceas; consomem-se tamb�m ritualmente plantas que cont�m LSA, um familiar do LSD, concretamente trepadeiras como as ipomoeas; e a lista poder� ser t�o extensa quanto a Hist�ria da nossa pr�pria civiliza��o. Portanto quando me pergunta se h� alguma liga��o entre o amanita muscaria, esse cogumelo que � omnipresente nas ilustra��es de livros infantis, e o ayahuasca, s� posso responder-lhe que existe uma liga��o profunda. Ambos fazem parte dum mundo que a nossa sociedade soube esquecer. Ambos criaram religi�es e formaram o nosso pensamento m�gico, mas foram remetidos para o olvido e substitu�dos por drogas recreacionais, dessacralizadas e banalizadas, fontes de neg�cios escuros e caricaturas desta irresponsabilidade humana com que todos pactuamos ...
Armando parou o carro. Estavam junto a uma casa de madeira. Algumas pessoas conversavam � entrada.
- Cheg�mos - disse Armando.
- Cheg�mos onde? - perguntou Conrado com os seus raros cabelos desalinhados pelo vento.
- Vamos participar numa sess�o de macumba.
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CAP�TULO 46
O telefone de Alexander Hol tocou. Eram quatro da manh�. Quem diabo telefonaria �quela hora?
- - Hol, � o Marim.
- Sabes que horas s�o?
- Aqui ainda n�o � meia-noite. Estou no Rio de Janeiro. Acabei de ver um notici�rio e soube do sucedido com o nosso irm�o Daim Ku�uk. O que � que aconteceu concretamente?
- N�o viste no notici�rio?
- Claro que vi, mas quero saber mais coisas. Quem s�o eles, o, que � que eles querem?
- Para j� a Policia anda � tua procura ...
- N�o tenho tempo para prestar declara��es.
- Entraram na casa de Ku�uk e manietaram a fam�lia. O filho dele foi morto com um tiro na cabe�a.
-Meu Deus!
- Para atenuar a desgra�a, algu�m, telefonema an�nimo, ligou � Pol�cia a denunciar os criminosos. Eles eram quatro e um deles morreu durante o salvamento. Era um portugu�s muito peludo que se chamava Ramos Navarro. Foram presos dois ma�ons, irm�os g�meos, uns tais de Teixeira. Com eles estava tamb�m um inspetor da Judici�ria que foi gravemente ferido e est� neste momento no hospital. O nome dele � Gar��o
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Arouca. Julgavam-no morto, mas existe a hip�tese de ele sair de coma. Mas o grande esc�ndalo nos jornais � que os dois Teixeira pertencem a uma ordem que recruta os seus membros entre os altos graus da ma�onaria, e � uma ordem que n�o tem pejo de se aplicar no mundo profano e de fazer valer os seus ideais atrav�s das armas. Um jornal franc�s adianta que Ant�nio Caturra, pai do nosso falecido irm�o, � um dos membros dessa ordem. Entre eles, h� muitos empres�rios conhecidos, bem como pol�ticos. Isto vai mexer muitas coisas e vai dar que falar. Entretanto, soube, h� poucos minutos, que Ant�nio Caturra foi constitu�do arguido ...
- E afinal, sabe-se o que pretendiam?
- Ainda � muito cedo para ter respostas desse tipo, nem sei se as teremos algum dia, mas consta que queriam saber os segredos da nossa Loja.
- E parece-me que tenho raz�o, que a divulga��o dos nossos arcanos ser� a atitude mais acertada para que casos destes n�o se repitam.
- Bom, eles foram apanhados, n�o me parece que estejamos amea�ados.
- Mas podemos vir a estar, de novo.
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CAP�TULO 47
Dona Aninha, muito magra, muito pequena, incorporava este e o outro a um ritmo alucinante. Ali�s, todo o terreiro se exprimia em convuls�es, apesar das mais impressionantes serem as da dona Aninha. Ela, com os seus �culos - com uma das lentes partida -, servia de montada para esp�ritos de todo o tipo. A certa altura foi tomada por um caboclo e, possessa, aquela mulher que n�o pesava mais de quarenta e dois quilos, levantou a bra�os uma outra, obesa, que pesava bem mais de cem. F�-lo com naturalidade, como se apanham flores.
Armando gritava por Ogum e dan�ava na gira, em tronco nu e com os seus bigodes negros. Bigodes que poderiam esconder um Nietzsche atr�s deles, mas n�o era o caso, estes pelos ocultavam menos filosofia.
- Sarav�, S�o Jorge! - gritava ele.
O espa�o era uma grande sala, arejada por duas pequenas janelas e duas portas abertas, violentamente abertas, redes de mosquiteiro, uns tambores e umas figuras de lou�a, orix�s variados, santos de outras religi�es. Sobre o ch�o de bet�o dan�avam homens, mulheres e crian�as com gestos de outros mundos. Uns cantavam e tocavam, outros apenas cantavam, outros ainda gritavam. Houve curas, flores, expuls�es de dem�nios, acabou-se com maus-olhados e todos suavam com
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o peso do calor h�mido. Os esp�ritos baixaram, esp�ritos de caboclos, preto-velhos, baianos, ex�s, pombas-giras, esp�ritos de modos e de outros menos vivos, queimou-se incenso e fi� zeram-se passes, adivinhou-se o futuro e, o que � mais dif�cil, o passado. Desenharam-se figuras no ch�o, a giz, bebeu-se pinga, fumou-se charuto, chorou-se e riu-se.
Lola estava fascinada e tirava fotografias. F�tima mantinha uma calma incoerente com o ambiente. Armando gritava por Ogum (Ogum, ogunh�!) e mostrava o seu fac�o. Conrado tamb�m n�o estava nada bem: estrebuchava admiravelmente. Quando os tambores iniciaram a sess�o, as suas pernas come�aram a tremer e quando a dona Aninha passou junto dele a fumar o seu charuto, de cocar na cabe�a, ele caiu de joelhos sem for�as nas pernas e tomado por convuls�es como se estivesse possu�do. E estava mesmo.
Dona Aninha explicou que Conrado Fortes era um m�dium, um filho de Xang�.
- Os filhos de Xang� s�o grandes e robustos - disse ela.
Lola olhou mais uma vez para Conrado que se enrolava no ch�o como um bicho-de-conta. Ele n�o correspondia ao veredicto da dona Aninha, Conrado n�o era robusto nem grande. E naquele momento estava deitado no ch�o do terreiro enquanto duas mulheres o auxiliavam e o faziam retornar a este mundo de c�o.
No meio da agita��o, Lola n�o sabia o que pensar. De repente um homem daqueles, desequilibrado, � certo, mas um homem deste s�culo, cai no ch�o tomado por convuls�es que
pertencem a outros tempos, uma coisa anacr�nica que s� d� a charlat�es e a alguns povos primitivos. Ela estava estupefacta enquanto Conrado recuperava da sua experi�ncia.
- Ent�o? O que � que viste?
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E Conrado n�o conseguia falar.
- Estou a falar contigo ...
Conrado fez um sinal para que esperasse. Depois disse:
- N�o sei o que me aconteceu. Pareceu-me come�ar a inchar quando me meteram as m�os na cabe�a e cantaram can��es e de repente ficou tudo escuro e n�o me lembro de mais nada. Deve ter sido o kundalini que me subiu sushumna acima.
- Acho que �s filho de Xang�.
- E a minha m�e nunca me disse nada.
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CAP�TULO 48
Dona Aninha sentenciou como uma das mais vulgares pitonisas:
- Tenho uma resposta para a pergunta que me queres fazer.
Conrado n�o sabia que queria fazer uma pergunta, mas achou que se a dona Aninha tinha uma resposta, ele poderia ter uma pergunta. Lamentavelmente, Conrado Fortes descobriu que as perguntas s�o muito mais dif�ceis de fazer do que dar respostas. E tamb�m descobriu que a mem�ria � uma coisa muito vol�vel: a sess�o decorreu e dona Aninha nunca mais se lembrou que sabia a resposta duma pergunta que nunca havia sido formulada, ou sequer pensada.
Perguntas e respostas � parte, Conrado ainda incorporou mais umas vezes, especialmente o caboclo Urubat�o da Guia. Mal ouvia os tambores (s�o tr�s: o rum, o rumpi e o l�), as suas pernas come�avam a tremer e desciam entidades, falanges, legi�es, esp�ritos de mundos paralelos, obl�quos e perpendiculares, esp�ritos que se afainavam em entrar e sair do corpo desempregado de Conrado Fortes, filho de Xang� e sobrinho do tio Ribeiro. Dona Aninha dava-lhe, com a devida cad�ncia (e uma certa decad�ncia), uns charutos e uns tragos de pinga.
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Os esp�ritos baixavam vindos, muito provavelmente, de planos superiores. Entravam e saiam daquele corpo apertado (apesar de ligeiramente obeso) e Conrado estremecia em tupi-guarani com um charuto preso nos dentes e cacha�a a escorrer-lhe pelo duplo queixo. Dona Aninha prestava assist�ncia a esse filho de santo inesperado, enquanto Armando dan�ava � volta dele, rodopiando com a destreza dum aforismo filos�fico. Saudava cada entidade que decidia baixar naquele espa�o p�blico que � o corpo de Conrado Fortes:
- Larori�, Ex�! Laori�!
E Conrado respondia no seu melhor tupi-guarani ou num cal�o extremamente erudito, conforme e de acordo com a entidade que o montava. O suor escorria-lhe pelo corpo com abund�ncia, inundando-lhe todas as pregas que a barriga empilhava em camadas met�dicas, cartesianas.
- Larori�, Ex�! Laori�! - gritava Armando brandindo o fac�o.
Dona Aninha, por vezes, acrescentava um colar de contas ao tronco nu de Conrado. Outras vezes retirava as missangas e punha-lhe um cocar na calva, ou fazia uns passes e incensava-o com ervas. Conforme a entidade.
Enquanto tal assombro m�stico decorria, Lola e F�tima falavam:
- Fale-me mais desse ayabuasca. Deve haver qualquer coisa que me est� a escapar e que deve ter uma rela��o mais evidente com a ma�onaria.
- Bom, j� lhe disse quase tudo o que um leigo pode entender. N�o quer experimentar?
- Tomar essa bebida?
- Sim, dar-lhe-� outra perspetiva e pode ser que encontre algumas respostas.
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- Acha que � poss�vel haver alguma rela��o entre o ayahuasca e a Ma�onaria? Refiro-me � possibilidade de, ritualmente, o qyihuasca ser consumido em Lojas ma��nicas ...
- Acho completamente imposs�vel. O ayabuasca � consumido no Noroeste da bacia amaz�nica, muito longe de qualquer ma�onaria. Mas, se estiver disposta, podemos falar com um amigo meu que � ma�om. Pode ser que a possa ajudar.
- Gostaria muito.
- De falar com o meu amigo ou de tomar o ayahuasca?
- As duas coisas.
- Vai ter de fazer dieta.
- Estou muito gorda para beber esse ch�?

- Acho que n�o, mas para beber o ayahuasca h� certas coisas que n�o se podem comer. Pode ser fatal. Carne e �lcool, por exemplo, s�o proibidos. Come�a a partir de agora a n�o comer nada. Quando tiver uma fome insuport�vel dar-lhe-ei qualquer coisa aceit�vel.
- E entretanto podemos falar com o seu amigo?
- Ainda n�o. Falamos com ele depois de amanh�.
- N�o pode ser hoje?
- N�o. Tem de ser depois de amanh�.
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CAP�TULO 49
Marim Grigore e Umberto Troiani conseguiram duas passagens para Campo Grande. Da� apanhariam um autocarro para Rio Branco.
A viagem at� ao Mato Grosso do Sul decorreu sem qualquer problema e eles hospedaram-se num hotel perto da rodovi�ria, um hotel de esquina e cinzento. Alimentaram-se de past�is de carne e suco de laranja e caminharam pela cidade, sob o calor que ca�a dos c�us e se estatelava no ch�o com a viol�ncia duns quarenta graus celsius.
As not�cias daquele dia n�o adiantavam grande coisa relativamente ao caso do Rei dos Azulejos. Tinha sido preso preventivamente e outros membros daquela ordem para-ma��nica estavam tamb�m a ser interrogados. Os motivos que levaram a mortes t�o aberrantes continuavam por esclarecer, mas a confiss�o dos Teixeira n�o deixava margem para d�vidas: tinham sido respons�veis pelas mortes de Jo�o Caturra, de Felicijonas Salnius, pela morte do filho de Daim Ku�uk e de Cada Vidigal. Por outro lado, e apesar desta confiss�o, declaravam-se inocentes relativamente a Damien Galloy.
Gar��o Arouca mantinha-se em estado de coma.
- Marim, o que � que achas que aconteceu com este Damien Galloy? Eles dizem-se inocentes e tudo leva a crer que
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estejam a dizer a verdade. N�o haveria motivos para mentirem visto que confessaram todos os outros crimes.
Grigore olhou para Umberto Troiani. Estavam sentados numa lanchonete com uma garrafa de cacha�a entre os dois.
- N�o consigo imaginar nada que possa justificar essa morte. Na verdade, n�o consigo imaginar nada que justifique as outras.
- S�lvio Teixeira falou no segredo da ac�cia ...
Umberto Troiani, depois de dizer isto, ficou pensativo e entornou o conte�do do seu copo pela garganta abaixo. O que � que pode justificar isto? - interrogava-se. O segredo da ac�cia � algo que se fala na Ma�onaria aquando da passagem ao grau de mestre. Normalmente � explicado em termos simb�licos e � verdade que a Loja �Pers�fone� decifrou de modo diferente esse mist�rio. E querer saber esse segredo, ou certa interpreta��o dele, ser� motivo e justifica��o para tanta
mortandade?
Ao fim da tarde, enquanto Marim Grigore foi dormir um pouco, Troiani entrou num espa�o comprido com computadores. Sentou-se � frente de um e foi ver se havia mais not�cias. Pediu uma cerveja e bebia enquanto lia.
Ros�rio e S�lvio Teixeira afirmavam que a Loja �Pers�fone� tinha um elixir da imortalidade. Troiani estava perplexo, sem saber o que pensar. �Foi isso que os levou a matar. Querem viver para sempre como todos os mortais. E, no entanto, se lhes dessem a eternidade n�o saberiam o que fazer com ela.�
Ao jantar, Troiani comentou as novidades com Grigore.
- Procuravam a vida eterna.
- Procurar a vida eterna faz morrer muita gente. Se tivessem alguma sageza saberiam que os imortais vivem o mesmo
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problema dos mortais: a trag�dia deles � viverem para sempre e, imagino, existem at� entre eles uns vision�rios, alquimistas, que procuram nos seus laborat�rios o segredo da vida ef�mera.
Troiani sorriu e os dois dedicaram a sua aten��o �s maminhas, �s fraldinhas, ao cupim, ao filet mignon) � picanha, � caipirinha, ao arroz e ao feij�o.
- Telefonei hoje, do quarto, para a minha vizinha. Ningu�m atende e estou preocupado. Pedi-lhe para receber uma encomenda que o Laurent me enviou. Ele tinha-me telefonado antes de sair para ir ter contigo, imediatamente antes de saber da morte da Cada, para se certificar de que eu estaria em casa para receber essa encomenda.
- E o que era essa encomenda?
- Estranhamente, n�o disse. Sugeriu serem documentos importantes, mas n�o fa�o ideia do que poder� ser.
- Estranho. E a tua vizinha n�o tem fam�lia?
- N�o. Tentarei ligar-lhe mais tarde. � noite estar� em casa com toda a certeza.
Depois de jantar, quando Grigore voltou a ligar, ningu�m atendeu.
- Continua a n�o atender - disse Grigore ao desligar o telefone.
- N�o � melhor ligar para a Pol�cia?
- Acho que a Pol�cia tamb�m gostaria de falar connosco e eu n�o tenho tempo a perder.
- N�o h� ningu�m que tenha a chave do apartamento da senhora?
- H� a porteira. Vou ligar-lhe.
Grigore ligou e combinou voltar a ligar uns minutos depois. Quando pousou o auscultador pela segunda vez, estava; l�vido.
- A minha vizinha est� morta, embrulhada em sacos de lixo.
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CAP�TULO 50
Marim Grigore dormiu muito pouco nessa noite. Umberto Troiani tamb�m n�o teve um sono f�cil. No outro dia sa�ram de manh� cedo. A esta��o rodovi�ria ficava a menos de cinco minutos do hotel.
Chegaram ao Rio Branco no outro dia de madrugada. Tamb�m durante a viagem dormiram pouco e, quando sa�ram no seu destino, procuraram imediatamente um local onde pudessem ter acesso � internet.
As noticias faziam de Marim Grigore o principal suspeito da morte da sua vizinha. Tinha sido assassinada com um golpe certeiro na car�tida e depois fora embrulhada em sacos do lixo. Provavelmente para que o cheiro da decomposi��o n�o migrasse pelo pr�dio inteiro.
Umberto Troiani n�o tinha d�vidas.
- Foi o Rigaut.
- Custa-me acreditar que o Laurent fosse capaz disso. Que motivos teria para matar a minha vizinha?
- Por vezes fico espantado com os teus racioc�nios. Ele certificou-se de que estarias em casa. Deverias ser tu a v�tima. Evidentemente, aquilo correu mal. A morte da Cada, no fundo, salvou-te a vida: fez-te sair de casa, apesar de teres prometido n�o o fazer para receber essa tal encomenda ...
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- Mas, ent�o, por que motivo matariam a minha vizinha?
- N�o sei, mas imagino que tenha sido um acidente. Ela viu a cara do assassino e ele matou-a. A seguir embrulhou-a num saco de lixo.
- Demasiado cinematogr�fico. Tenho muitas d�vidas, al�m de saber que o Laurent Rigaut � um homem �ntegro e nosso irm�o.
- Tamb�m o Rei dos Azulejos � nosso irm�o. E exemplar cidad�o. At� se saber que n�o era exemplar.
- N�o � da nossa Loja, nem da mesma Obedi�ncia.
- � irm�o pelo estatuto conferido pela inicia��o e isso n�o o impediu de mandar matar. Nem aos Teixeira, tampouco, que tamb�m s�o nossos irm�os.
- Mas qual o motivo para querer o Rigaut matar-me?
- N�o quer que os trabalhos da nossa Loja sejam divulgados.
- E come�a por matar a minha vizinha para o impedir?
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CAP�TULO 51
A noite anterior havia sido de grandes emo��es. E v�mitos. Lola Benites tinha bebido o ch� do cip�, o qyahuasca e, com os v�mitos, tinha tido as vis�es. Guardou-as para si como um tesouro, mas tinha ficado preocupada com o' que vira. Muito preocupada (apesar de o termo correto ser assombrada).
Conrado n�o tomou o ayabuasca, mas assistiu � cerim�nia que decorreu numa casa que se assemelhava a uma igreja. Era um culto sincr�tico que misturava umbanda com o consumo ritual de ayabuasca, misturava orix�s com dimetiltriptaminas e inibidores de monoamina oxidase.
Desta vez, Fortes n�o incorporou, limitou-se a entediar-se aborrecidamente. Remexeu-se numa cadeira, descal�ou-se e cal�ou-se, esticou as pernas, assobiou. Pensou em adormecer, mas teve medo de ressonar. Foi um toque de telefone que lhe interrompeu o enfado. O barulho vinha da mala de Lola Benites. Conrado abriu-a e retirou o telefone onde, no visor, piscava um nome: Pl�cido. Com destreza, usou o polegar e atendeu com um formal �boa noite�.
- Quem fala? - interrogou Pl�cido.
- Daqui fala Conrado Fortes.
-Quem?
- Fortes. Conrado Fortes.
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- Fa�a o favor de passar o telefone � Lola.
- Imposs�vel, meu caro senhor. Ela est� sob o efeito de dimetiltriptaminas e inibidor de monoamina oxidase. DMT e IMAO, para abreviar.
-Qu�?
- Ayahuasca.
- N�o compreendo. Passe o telefone, j� lhe disse ... Efeito de qu�?
- Dimetiltriptaminas e inibido r de monoamina oxidase. Ayahuasca. N�o posso passar-lhe o telefone. Neste momento ela n�o "sabe que tem m�os.
- M�os? N�o sabe que tem m�os?!
- N�o sabe que tem m�os. Dentro dela � s� luz, mas por fora h� muita escurid�o.
- Para onde � que estou a falar?
,- Para o Brasil.
- Onde?!?
- Brasil. Fica na Am�rica do Sul.
- A Lola est� no Brasil!??
- Neste momento n�o. Est� a viajar pelos planos superiores. Eu � que estou no Brasil. O corpo dela tamb�m c� est�, mas ela, propriamente dita, est� noutras esferas. Nem sequer sabe que tem m�os.
- Ou�a, eu nem sei quem � o senhor, mas exijo falar com a minha noiva!
- Porque � que n�o lhe telefona? Em vez de me ligar a mim?
O telefone desligou-se. Contado ficou, durante uns segundos, a olhar para o visor at� se voltar a enfadar durante o resto da noite.
Ap�s seis horas, Lola parecia ter voltado ao Brasil.
- Ent�o? - perguntou F�tima. - Viu a luz?
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- Vi muitas coisas, mas essa luz n�o sei. � uma palavra t�o religiosa ...
- Isto da luz � uma pergunta comum aqui. Outra express�o que provavelmente ir� ouvir � o merecimento. Se viu muitas coisas � porque teve o merecimento. H� pessoas que tomam ayabuasca durante muito tempo sem o terem. As vis�es n�o aparecem.
- Mas n�o � um alucinog�nio? N�o t�m todos vis�es?
- Nem todos. Alguns n�o t�m o merecimento. E outros t�m experi�ncias que preferem n�o repetir.
- � hoje que vamos falar com o seu amigo ma�om?
- � hoje. Jantaremos com ele. Mas agora vai precisar de descansar.
Foram para casa de F�tima, e Lola descansou, mas n�o descansou o suficiente. O telefone interrompeu-lhe o sono.
-Lola?
- Pl�cido?
- Est�s no Brasil?
A voz dele soava �spera, formal como numa reuni�o de neg�cios.
- Estou. N�o tive oportunidade de te avisar. Foi uma coisa repentina.
- J� falei com o teu pai. Ele n�o est� nada contente.
O telefone desligou-se. Lola ficou uns momentos a olhar para o visor, antes de tentar voltar a adormecer. Conrado assomou � porta.
- O teu noivo ligou enquanto viajavas pelos planos superiores. Disse-lhe que n�o podias atender.
- Atendeste o telefone?
- Estava a tocar e tu n�o podias atender ...
- Mexeste na minha mala e atendeste o meu telefone?
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- Podia ser um telefonema importante. Quando n�o podemos atender, � porque o telefonema � importante.
- � melhor sa�res.
- Est�s irritada comigo?
- Estou prestes a enviar-te para os planos superiores.
Conrado saiu e Lola voltou a adormecer. Na sala estava Armando com uma garrafa de cacha�a, com o seu fac�o ao lado. Convidou Conrado a sentar-se ao p� dele. Encheu mais um copo depois de encher o dele. Entornou um pouco para o ch�o.
- � para o santo - disse Armando.
Conrado fez a mesma coisa e acendeu um charuto. Havia, em cima da mesa, alguns dos que se fumam nos terreiros de Umbanda.
- Sou filho de Xang� - informou Conrado.
- � um bom santo. Voc� vai ser cavalo de caboclo Urubat�o da Guia e de ex� Gira mundo. Xang� � rei, � juiz, � vaidoso, tem tran�as compridas, an�is e pulseiras. Um dia estava t�o triste que desapareceu terra adentro. Eu sou de Ogum. Ogum ogunh�! Ogum ogunh�! Sarav�, S�o Jorge!
E bebeu o copo dum trago, levantando-se. Voltou a ench�-lo e entornou um pouco para o ch�o, j� depois de se voltar a sentar. Nesse mesmo ch�o, jaziam, mortas, duas garrafas de pinga. Completamente vazias. Entornou mais um copo para dentro da boca, limpou os bigodes ao bra�o, e voltou a encher o copo. Entornou um pouco para o ch�o.
- � para o santo. Ogum � orix� guerreiro, passa a vida brigando. Mesmo quando tem �gua em casa, ele se lava com sangue.
- A minha tia (j� faleceu) � que era mais ou menos assim. Mesmo com �gua em casa, andava sempre lavada em l�grimas.
-� Oxum.
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- N�o, � a minha tia (j� faleceu). Chamava-se Em�lia.
- � sua tia e � Oxum. Oxum � assim. Chora muito. Dan�a com um espelhinho e chora muito. A sua tia era de Oxum. Gosta de pomba rola enquanto meu santo Ogum gosta de cachorro.
- Eu tamb�m adoro c�es, mas a minha m�e tem dificuldade em lidar com os pelos. Nunca me deixou ter um. S�o muito fi�is, os c�es.
- Oferecemos c�es a Ogum. Ele gosta de sangue de cachorro. � um santo guerreiro. Tamb�m come galos como Xang�, mas prefere cachorro.
- Eu prefiro galos. J� o Carlos Ant�nio � doido por comida italiana.
- Voc� � mesmo filho de Xang�! Xang� gosta mais de galos. E de c�gados.
- C�gados nunca comi.
Armando, com as suas duas m�os, tamborilava na mesa um ritmo mais ou menos ritmado.
- Esse ai � um ponto de Ogum. B� t� t� tat�. Xang� � mais bat� tat� t�. � um bom santo, Xang�. Meu segundo orix� � Oxossi. � ca�ador, � rei das florestas.
Voltou a encher o copo e a entornar umas gotas.
- � para o santo - esclareceu.
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CAP�TULO 52
O telefone tocou e Pilatowski atendeu. O hotel onde se tinha hospedado ficava em Copacabana. Da varanda do seu quarto via toda a avenida, o cal�ad�o e a praia. Quem lhe ligava era Leah. Era uma mulher em quem Pilatowski colocava muita confian�a. Conheciam-se desde a inf�ncia, brincavam juntos. Nunca tiveram qualquer rela��o rom�ntica. Pilatowski era incapaz de qualquer coisa desse tipo. Tinha uma vez experimentado os trabalhos de Eros com uma puta reles em Crac�via e essa seria a sua �nica experi�ncia sexual, ou quase sexual. Tinha dezasseis anos nessa altura de puberdade. Quando olhou aquela mulher nua, estendida com todas as suas carnes e ligas na cama do bordel, a sua castidade afogou a sua puberdade. No caso de Pilatowski podemos dizer que as hormonas da castidade estavam aos pulos na sua adolesc�ncia e marca�
ram presen�a pelo resto da sua vida. Leah comungava da mesma castidade e era completamente dedicada �quele homem magro e seco. Viviam os dois nessa aridez profunda ligada pela morte dos outros. Ela era baixa como ele, com a pele muito branca e com ares muito honestos, um semblante de grande bonomia, uma senhora que faria lembrar a nossa av�.
A voz de Leah, ao telefone, parecia preocupada:
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- Arkadiusz, soube que Rigaut est� a ser vigiado pela Pol�cia. Em breve o cerco fechar-se-�. Fico preocupada ...
-Com ele?
- Connosco. Ser� que ele, se for preso, n�o falar�? E os telefonemas? Ser� que n�o o teriam sob escuta?
- Provavelmente, mas ele n�o falar�. � um homem obeso, sedent�rio, com muitos h�bitos e muito medo de morrer. E ele sabe que tudo o que diga ou revelar sobre mim ser� apenas a sua senten�a.
- Pensas mat�-lo?
- Primeiro penso honrar o compromisso entre ambos e receber o resto do dinheiro. � muito dinheiro. Depois verei o que fazer se de algum modo me sentir amea�ado. A Loja ma��nica de Rigaut est� mais do que condenada e matar Grigore s� ir� piorar as coisas para ele. Mas ele acha que os segredinhos desses homens de avental, que n�o sabem se acreditam em Deus ou se s�o ateus, s�o mais importantes do que tudo o resto. Fazem uns sinais entre eles, invocam um arquiteto, dizem umas palavras com solenidade e acham que est�o a conduzir a humanidade com essas brincadeiras de crian�as. Rigaut tamb�m se acha invulner�vel, acha que a pol�cia jamais lhe tocar�. Acredita na influ�ncia que � capaz de exercer e apoia todo o seu futuro nisso. � a sua f�, Rigaut � um mau religioso. Deposita a sua esperan�a, n�o em Deus, mas na cor� rup��o, que �, ali�s, a mat�ria deste mundo.
Pilatowski achava-se bom cat�lico, melhor at� que o melhor dos cat�licos, mas o seu pensamento raiava a mais perseguida heresia crist�. Arkadiusz Pilatowski era, na verdade e sem o saber, um gn�stico, um homem que desprezava o mundo, que o considerava obra demon�aca de um demiurgo incompetente que o criou atrav�s da morte e da corrup��o. Acreditava que a multiplica��o do homem seria perpetuar
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o asco da exist�ncia carnal. Pilatowski, como Plotino, tinha vergonha de viver num corpo. Da� que, tal como tantos gn�sticos, espermo gn�sticos, maniqueus, bogomilos, albigenses, catharoi e, em parte, neoplat�nicos, odiasse a mat�ria que comp�e o mundo que conhecemos e achasse aberrante o sexo que multiplica esta par�dia de mau gosto, este mundo de c�o criado por um Deus falso, uma caricatura grotesca dum Deus sem corpo, dum Deus que � somente esp�rito. Pilatowski ia mais longe e n�o se limitava a n�o procriar, tamb�m ajudava o mundo a livrar-se da humanidade. Para isso, usava uma faca. Era o seu �rg�o sexual - j� que ao outro, o de carne e veias, lhe havia sido negada essa fun��o -, uma met�fora freudiana feita de metal afiado: enterrava-o, n�o para dar vida, mas para a roubar. A centelha de esp�rito que cada um carrega escondida na carne, pode enfim ser libertada e voltar ao lugar de onde jamais deveria ter sa�do. Deveria voltar ao seio de Deus, desse Deus ass�ptico e incorp�reo, esse Deus que n�o conhece
o cheiro do suor. A porta de sa�da era o corte feito pela sua faca. Pilatowski n�o o confessava a nenhum padre, mas cria que Cristo era somente um fantasma, um esp�rito que tomou a apar�ncia humana - era apenas ilus�o - para se fazer entender pelos homens e entre os homens. E nisso, apesar de n�o o confessar e guardar tal convic��o na sua intimidade, incorria na heresia docetista, t�o perseguida nos primeiros s�culos da forma��o da Igreja. Se tivesse lido Irineu, especialmente a sua obra Adversus Haereses, saberia como sucumbira ao terr�vel erro que o Concilio Ecum�nico de Calced�nia condenou. Mas Pilatowski n�o conhecia a patr�stica, nem se interessava por ela mais do que qualquer crist�o piedoso. Tamb�m n�o sabia quem era Plotino, mas, como ele, tinha vergonha de viver num corpo. E, na verdade, h� muito neoplat�nico por a�,
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muita gente com vergonha de viver num corpo. Mesmo quando fazem dietas rigorosas.
- A morte de Grigore - disse Pilatowski a Leah - n�o vai impedir que os trabalhos daquela Loja n�o sejam divulgados. S� Rigaut acredita nisso. Seria preciso matar todos os membros daquela seita para impedir tal coisa. E mesmo assim, talvez n�o fosse suficiente. Nunca conheci um segredo que, dito ao ouvido mais pr�ximo, se n�o fizesse ouvir no outro lado do mundo. Um segredo dito em T�quio provoca um furac�o em Los Angeles. Mas eu cumprirei o meu contrato e, quando o fizer, telefono-te. Ir�s a casa de Rigaut cobrar o que me deve. E se for preciso que ele abandone este vale de l�grimas, far�s com que isso se torne poss�vel.
- Conseguiste voo para Rio Branco?
- Hoje � tarde. Houve uma desist�ncia.
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CAP�TULO 53
Quando Lola acordou, dirigiu-se para a sala com passinhos de sono. F�tima estava sentada na rede a beber, Armando encostava-se � ombreira da porta e Conrado fumava um charuto. Em cima da mesa, estavam copos de cacha�a e nas almofadas que cobriam o ch�o sentavam-se Marim Grigore e Umberto Troiani,
F�tima apresentou-os. Lola e Grigore riram-se.
- Tinha-lhe prometido uma entrevista, c� estou eu ...
- Por coincid�ncia. Este mundo n�o � muito grande.
- Determinismo. N�o podemos fugir � nossa palavra. O pr�prio universo, que parece imitar o Estado social, obriga-nos a cumprir os nossos deveres sem que o nosso alvedrio tenha tempo de intervir. Fez-me atravessar um oceano s� para acabar uma entrevista que foi prometida e come�ada em Londres. Prefere que responda �s suas perguntas aqui, ou prefere faz�-lo em lugar mais discreto? Eu, por mim, preferia uma boa conversa durante o jantar, com um bom vinho portugu�s a acompanhar uma rabada no tucupi. Pode ser?
- Penso que sim. Conversamos ao jantar.
O jantar foi servido no terra�o da casa de F�tima. Armando cozinhou, bebeu e serviu.
Grigore prop�s um brinde.
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- N�o h� nada como conversar � volta da mesa. Ali�s, as guildas come�aram assim, � volta da mesa. Os costumes germ�nicos, segundo T�cito, faziam com que todos os assuntos fossem tratados � mesa, regados com brindes copiosos. Este convivium deu origem a muitos ritos. A pr�pria Igreja desenvolveu o seu ritual � volta dum banquete, duma ceia. Lamentavelmente, demasiado simb�lica para ter efeitos no corpo. Os culpados foram os primeiros crist�os. Quiseram evitar bebedeiras e excessos, por isso sugeriram que a missa - que inicialmente era uma verdadeira ceia - se passasse a realizar dum modo menos substancial. As pessoas que comessem em casa, antes da missa, porque l� apenas lhes seria dado um pedacinho de p�o e um golinho de vinho. Para evitar a gula e bebedeiras.
E brindaram todos ao tal convivium.
- As minhas perguntas - come�ou por dizer Lola � mudaram um pouco de teor. Li alguns dos trabalhos do seu pai, Serban Grigore ...
Marim Grigore fez um esgar de espanto.
- Como � que teve acesso a eles?
- Um filho dum amigo do seu pai possui v�rias das coisas por ele escritas. Enviou-me fotoc�pias e uma amiga traduziu. Conhece o senhor Miroiu?
- Conhe�o, conhe�o ... Portanto ficou a saber do cogumelo, do amanita muscaria?
-Sim.
- Quase todas as culturas conhecidas, sen�o todas, usam ou usaram subst�ncias vision�rias. O amanita muscaria � uma das mais comuns. A maior parte das antigas religi�es de mist�rios dependiam dum segredo que seria o conhecimento de certo vegetal ou animal, respons�vel por vis�es, pelo conhecimento dos outros mundos. Esses mundos sempre foram considerados os verdadeiros, em oposi��o a este onde vivemos
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que n�o passa duma sombra ou r�plica imperfeita do outro. Portanto o acesso a esse lugar, ao cerne, ao caro�o da Verdade, era feito atrav�s de subst�ncias como o amanita mascaria.
- A maior parte dos �ndios pensa assim - comentou F�tima Rios. - O verdadeiro mundo � o dos sonhos e aquele que o qyahuasca revela.
Lola, que se tinha passeado por esses mundos na noite anterior, fez um gesto com a cabe�a, de cumplicidade para com o que F�tima dizia. A experi�ncia do ayabuasca faz acreditar que as vis�es s�o mais reais do que tudo o que experimentamos no nosso mundo quotidiano, neste mundo onde vamos ao mercado comprar carne, onde pagamos impostos e discutimos sobre cinema.
- Precisamente. A experi�ncia religiosa diz-nos que existe um mundo de Ideias como nos legou Plat�o, um mundo verdadeiro, um mundo acess�vel atrav�s de drogas sagradas, subst�ncias que abrem as portas desses lugares. Por isso sempre foram descritas como algo que daria sabedoria ou felicidade. Consumir tais beberagens seria entrar no Para�so, nesse espa�o de imortalidade. Por isso tamb�m foram descritas como ambr�sias, panaceias, elixires da imortalidade.
- E o segredo dos templ�rios? - perguntou Conrado.
- Realmente podemos come�ar por ai. Ao falar de cogumelos e de heter�genos estamos a adiantar-nos, e o melhor � come�ar do principio. Passaremos pelos templ�rios.
- O que � que os cogumelos t�m a ver com a Ma�onaria?
- Nada. Absolutamente nada. Mas o principio � o mesmo ... explicarei a seu tempo. Deixem-me criar um fio narrativo coerente. Serei o mais objetivo e sucinto poss�vel.
Grigore prop�s mais um brinde antes de recome�ar.
- A Ma�onaria tal como a conhecemos n�o come�ou de um momento para o outro. De facto, podemos separ�-la em
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dois momentos, dum modo mais ou menos artificioso, mas em dois. Um primeiro momento em que ela � uma irmandade operativa e um segundo em que ela se torna especulativa. Desde que o homem sentiu necessidade de construir edif�cios, desde as primeiras cidades que existem organiza��es de pedreiros. Sempre foi um of�cio como qualquer outro, mas tinha algumas particularidades. Entre elas, uma rela��o muito estreita com a constru��o de templos e de espa�os sagrados. Isso fez com que tivesse desde sempre um car�cter m�gico. At� porque as pr�prias constru��es privadas, simples habita��es, eram recheadas de espa�os sagrados e obedeciam a diretrizes e planos forjados nos c�us por deuses arquitetos. Qualquer habita��o espelhava o pr�prio cosmos. Os pedreiros, tal como membros de outras profiss�es, come�aram-se a juntar, at�: porque o pr�prio trabalho exigia muita gente envolvida. Era necess�rio protegerem-se e assim foi aparecendo o car�cter secreto que de imediato identificamos com ordens como a Ma�onaria. Protegiam-se de modo que n�o houvesse pessoas a construir sem as habilita��es requeridas. O mesmo acontece com um arquiteto moderno: n�o poder� exercer sem ter passado pela escola, sem ter tirado o curso. Isso corresponde a entrar numa irmandade e aprender o of�cio. O segredo era a garantia de reconhecimento: se o aluno - chamemos assim - tivesse acesso a certas palavras secretas e gestos rituais, isso significava que tinha passado por todo o processo de aprendizagem e era um pedreiro qualificado. O segredo era como um diploma. N�o havia nada demais ou de profundamente misterioso neste secretismo. Era apenas a salvaguarda da profiss�o. Os pedreiros organizaram-se em collegia durante o Imp�rio romano, passaram por v�rias vicissitudes durante as conquistas b�rbaras. Aliaram-se a monges e mosteiros, experimentaram a clandestinidade, reorganizaram-se em guildas e irmandades.
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E, efetivamente, tiveram qualquer rela��o com os templ�rios. Sob o meu ponto de vista, nada de muito importante. Mas, com toda a certeza, influenciaram-se mutuamente, especialmente, creio, nos rituais. Do mesmo modo que o contacto muito pr�ximo com o M�dio Oriente trouxe a ambos, templ�rios e pedreiros, novas formas de se organizarem e novos conhecimentos. � indiscut�vel esta troca de culturas e de saberes e � tamb�m evidente que os pedreiros que constru�am igrejas e catedrais, pontes e estradas, na Terra Santa, tiveram contacto com organiza��es de pedreiros do Pr�ximo Oriente. At� porque trabalharam juntos. O resultado � que, durante estes s�culos de cruzadas, muita coisa se absorveu culturalmente e ningu�m estaria em t�o boa posi��o para o fazer como esses pedreiros: era necess�rio que se misturassem com a popula��o, que fizessem com�rcio entre eles para aquisi��o de mat�rias-primas, que usassem m�o-de-obra local. Gra�as �s tradu��es �rabes tiveram acesso aos trabalhos de Euclides e a Arist�teles. Puderam conhecer o orfismo, o neoplatonismo e o neopitagorismo. E foi tamb�m gra�as ao que se podia aprender no M�dio Oriente que Arnaud de Villeneuve. S�o Tom�s, Ramon Lull e Roger Bacon puderam estudar e praticar Alquimia.
Grigore fez mais um par�nteses para cumprir mais um brinde.
- Jo�o Caturra achava que os templ�rios teriam descoberto, numa escola de mist�rios oriental, o consumo ritual de amanita muscaria. Depois de Filipe, o Belo) com a ajuda do papa Clemente V, ter conseguido acabar com a ordem templ�ria, muitos dos cavaleiros do Templo foram torturados e alguns confessaram ter prestado culto a um estranho �dolo: uma cabe�a decepada a que chamavam Baphomet. Muito se tem especulado sobre que coisa seria esta: desde a cabe�a cortada de S. Jo�o Baptista at� � imagem de Cristo, o Mandylion.
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O Mandylion era o nome que os gregos davam ao sud�rio que, cr�-se, embrulhou o corpo de Cristo. A mortalha era dobrada de tal maneira que apenas o rosto ficava vis�vel e h� quem acredite que era esse rosto que era alvo de devo��o por parte dos cavaleiros do Templo. Caturra acreditava noutra coisa. Achava que a cabe�a decepada era a cabe�a do cogumelo, do amanita muscaria. � a parte que se utiliza, deixando o seu p� enfiado na terra. Quem os colhe, literalmente, arranca-lhes a cabe�a. Depois de secos, adquirem estranhas formas, semelhantes a rostos. Aquele era, segundo Caturra, o famoso e intrigante objeto de adora��o dos templ�rios, o Baphomet. O cogumelo abria-lhes as portas do Para�so, e os templ�rios prestavam-lhe culto do mesmo modo, exatamente do mesmo modo que � prestado culto � h�stia na Igreja Cat�lica. Depois comiam aquelas cabe�as decepadas para terem acesso a esses mundos de Ideias. Era a sua comunh�o, a sua h�stia. Na verdade, aquela era a verdadeira Carne de Deus. Em vez do rid��
culo p�o �zimo que � consumido na eucaristia.
Marim Grigore fez mais uma pausa para beber mais um golo de vinho.
- Eis o segredo dos templ�rios segundo Jo�o Caturra.
- E o que � que isso tem a ver com a Ma�onaria? - perguntou Lola.
- Nada, na minha opini�o. Acho que os pedreiros antepassados da Ma�onaria moderna nunca tiveram qualquer rela��o com os amanita muscaria. Nem os ma�ons modernos, tampouco. Ali�s, esses est�o t�o longe dos pr�prios segredos que se arrogam guardi�es como qualquer leigo que nunca tenha ouvido falar em tal grupo de cavalheiros. Mas, adiante. No Oriente Pr�ximo, os pedreiros entraram em contacto com rituais e irmandades, com outras escolas de mist�rio que n�o eram acess�veis no Ocidente. Principalmente com os mist�rios
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de Mitra e seitas sobreviventes de grupos manique�stas e zoroastristas. Os pedreiros descobriram o Haoma, a bebida da imortalidade, a beberagem sagrada dos antigos persas. E isso
mudou radicalmente a Ma�onaria, tornando-a uma verdadeira escola de Mist�rios. Os segredos j� n�o eram apenas umas palavras e uns passes que serviam para prote��o do seu of�cio. Havia agora algo mais importante e misterioso que passara a fazer parte desta profiss�o. Nessa altura, ou a partir dessa altura, o ritual ma��nico fixou-se e podemos at� afirmar que havia apenas um: tornara-se universal. Por certo havia diferen�as entre um ritual escoc�s e um franc�s, mas, dum modo geral e essencial, eram o mesmo. As semelhan�as eram ineg�veis. Portanto, essa nova maneira de viver a Ma�onaria havia-se alastrado por toda a Europa e era o seu fator de uni�o.
- E o que � que aconteceu? Onde � que a Ma�onaria deixou de ser uma escola de mist�rios para passar a ser um clube de cavalheiros e pol�ticos?
- A Ma�onaria, a certa altura come�ou a deixar entrar membros honor�rios - podemos cham�-los assim - pessoas que contribu�am com grandes quantidades de dinheiro e em troca comungavam dos mist�rios da ordem que, por essa altura, eram alvo de cobi�a. Isto tornou-se uma pr�tica generalizada e, a partir de certa altura, estes novos membros que n�o trabalhavam, que n�o eram pedreiros, existiam em mais quantidade do que os outros. E eram mais influentes: eram ricos e nobres. Enfim, � a hist�ria da nossa sociedade. E a ma�onaria foi-se tornando especulativa. Os trabalhadores foram desaparecendo e o segredo da ac�cia ficou esquecido: aos ma�ons honor�rios, este segredo nunca foi revelado. A certa altura, quando estes novos ma�ons especulativos tomaram conta da ordem, ficaram com um ritual vazio, sem o caro�o, sem o se�
gredo. � exatamente esse o ritual que � praticado todos os
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dias em todas as obedi�ncias ma��nicas: um grupo de gestos com algum valor simb�lico, mas sem aquilo que era o grande esteio da ma�onaria, sem o segredo da ac�cia que os antigos persas denominavam Haoma (cuja prepara��o sempre foi mantida alheia do vulgo e era apenas conhecida por sacerdotes). O que os ma�ons de hoje celebram � o mesmo que qualquer pessoa faz ao celebrar o Natal com um pinheiro n�rdico decorado com luzinhas: f�-lo sem ter qualquer ideia de que est� a cultuar um cogumelo. N�o percebe que a �rvore � a mesma que tem simbiose com os amanita mascaria, n�o sabe que as prendas s�o os s�mbolos dos cogumelos. N�o fazem ideia o que simbolizam os duendes, nem o Pai Natal, nem o tren� voador nem as renas embriagadas. N�o faz ideia do papel fundamental da lareira. Os cogumelos eram secos ao fogo para que o �cido ibot�nico se tornasse muscimol, uma subst�ncia bastante mais psicoativa. Ao consumo destes cogumelos era sempre necess�rio o fogo. Era preciso fazer o Pai Natal passar
por ele, s� assim nos daria as prendas. S� depois de seco atrav�s do fogo teria o seu potencial psicad�lico totalmente ativo.
- N�o concordo - come�ou por dizer Umberto Troiani. - N�o concordo com tudo e h� uns detalhes que devo referir. Os pedreiros, os antigos pedreiros, n�o poderiam ignorar o uso do amanita muscaria. Entre os in�meros templos que constru�ram, h� tamb�m in�meros frescos a represent�-los. Esqueces-te, Marim, que foi num mosteiro que nos conhecemos, num mosteiro cujos frescos exibiam cogumelos que substitu�am as �rvores do �den? Os pedreiros n�o poderiam ter ignorado isso. E a capela de Plaincourault? Est� um amanita pintado na sua parede, um cogumelo que n�o deixa margem para d�vidas. E exemplos como este n�o s�o t�o raros. Acho que, por algum motivo, o Haoma dos persas prevaleceu sobre este alucinog�nio. O Haoma permitia vis�es com mais geometria
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(se me � permitido o termo para as descrever), mais condizentes com o m�tier. Por isso o cogumelo foi afastado dos mist�rios ma��nicos e substitu�do pelo Haoma. � imposs�vel que os ma�ons tenham ignorado o amanita mascaria, mas por algum motivo n�o vingou no ritual. .. E tamb�m devo dizer que em muitas representa��es crist�s, o amanita muscaria (sim, porque aparece em muito contexto crist�o) � conotado com o fruto da �rvore do Para�so. Com o fruto da Ci�ncia do Bem e do Mal. Penso que deveria mais acertadamente ser conotado com outra �rvore do Para�so, a �rvore da imortalidade. Mas a primeira tinha muito mais carisma, especialmente entre hereges.
Marim Grigore sorriu e continuou:
- H� sempre detalhes para discordar. A pr�pria ess�ncia do detalhe � essa, a possibilidade de ver duas coisas iguais at� encontrar diferen�as. Ampli�-las ao ponto de se tornarem radicalmente dissemelhantes. Eu e o Umberto observ�mos todas estas coisas de muito perto, de tanto as fixar j� quase s� vemos pormenores, mas o que � importante deixar claro � o facto de que as antigas religi�es baseadas noutros tipos de cultura quase desapareceram (exceto em lugares onde n�o houve, durante s�culos, contacto entre elas). Com o aparecimento das grandes cidades, as outras maneiras de viver o sagrado foram afogadas pela civilidade. Algumas resistiram at� ao adven�
to do cristianismo como � o caso das escolas de mist�rios gregas, romanas e persas, e outras sobreviveram ainda mais anos: as bruxas na Idade M�dia e certas ordens secretas que se ex� tinguiram ou se esqueceram do que sabiam. Todas elas ainda usavam heter�genos como sacramento. N�o resistiram muito tempo, mas certas descri��es do seu uso perduraram no ima� gin�rio das religi�es conquistadoras, em lendas, em sincretismos fabulosos. As ideias de ambr�sias, de bebidas de imortalidade,
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o Graal, certas descri��es do para�so e de bem-aventuran�a, todas essas xaropadas mais ou menos bem intencionadas, n�o passam do folclore que sobrou dessas religi�es de mist�rios. Houve um tempo em que o sagrado era vivido na primeira pessoa e n�o por intermedi�rios, mandat�rios, livros sagrados, deuses revelados e secret�rios dum Deus ciumento. Nessa altura havia uma porta entre os mundos das Ideias e este onde vivemos quotidianamente. Essa porta fechou-se h� s�culos. Hoje, porque abordamos o sagrado dum modo racional, em que o corpo n�o vive essa experi�ncia, toda a nossa tibieza se manifesta num saudosismo absurdo baseado em misticismos de hipermercado, por vezes at� trajados de ci�ncias humanas ... Mas continuaremos amanh�. Acho que se faz tarde .. Amanh� revelarei o famoso segredo da ac�cia. Hoje reparo que alguns de n�s est�o demasiado cansados.
Ao dizer isto apontou para Conrado Fortes que ressonava com a cabe�a ca�da sobre a mesa. Ouviram-se umas gargalhadas e a conversa mudou de tom, aligeirou-se e, passada meia hora, os comensais levantaram-se para ir dormir.
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CAP�TULO 54
O assombro mantinha-se e manifestava-se numa pequena ruga por cima do olho esquerdo de Lola. Ela mantinha aquela preocupa��o e n�o sabia o que fazer com ela. Algo na sua experi�ncia com o ayabuasca havia deixado aquela semente de inquietude, de desconforto.
Mal acordou, foi at� � sala. Armando ressonava, deitado na rede" emanando vapores de cacha�a ainda n�o totalmente processada pelo f�gado. Na mesa estava pousada uma garrafa de pinga quase no fim e Lola n�o teve pudor em servir-se do que restava. Bebeu diretamente da garrafa enquanto se sentava numa almofada, no ch�o. A sua preocupa��o n�o diminuiu com os tragos de aguardente e ela levou as m�os � cabe�a, cada vez mais encurralada pelas vis�es que tinha tido.
Ouviu uns passos e Marim Grigore surgiu � porta da sala.
- Ainda bem que foi o primeiro a acordar. Gostaria de falar consigo.
- Claro. Permita-me que fa�a um caf� e serei todo ouvidos.
Grigore voltou a entrar na sala passados minutos com um caf�, num copo de pl�stico.
- Em que � que posso ajud�-la? � o segredo da ac�cia que a aflige?
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- Tamb�m. Mas n�o � isso que me preocupa mais ...
- Estou curioso por saber o que ser�.
- Ontem � tarde, antes do nosso jantar, fui a um cibercaf� ver as novidades sobre o caso das mortes dos membros da sua Loja. Acontece que Ant�nio Caturra confessou ser de �algum modo� respons�vel pelas mortes de Cada Vidigal, de Felicijonas Salnius, do filho de Ku�uk e do seu pr�prio filho, Jo�o Caturra. A novidade, aquilo que ningu�m esperava, � que ele n�o assume total responsabilidade por esses crimes. Ele garante que algu�m o fez ordenar esses assass�nios.
- Tamb�m li as not�cias. Conhe�o as alega��es de Ant�nio Caturra. Claramente, tenta sacudir a �gua do capote.
- Talvez, mas n�o me parece. Hoje de manh�, mal acordei, telefonei a um amigo, um jornalista, que me deu algumas informa��es que n�o deveria ter dado ... Enfim, estou neste momento na posse de dados que ainda n�o foram veiculados pelos media.
- E vai-me dizer que dados s�o esses?
- Sim, vou. Acontece que Ant�nio Caturra gravava todos os seus telefonemas e, parece, alguns deles, foram feitos por si,
- Provavelmente telefonei ao senhor Caturra ... n�o � nada de anormal. Onde � que quer chegar com isso? Ele era o pai dum membro da minha Loja, seria normal que o fizesse ...
- Nem por isso. O pr�prio Jo�o Caturra n�o falava muito com o pai. Mas o mais grave, senhor Grigore, � que mais do que um dos seus telefonemas est� gravado. Conhece-se o seu teor. Nesses telefonemas o senhor fala em esquadros de metal, fala na morte de Hiram, fala em Felicijonas Salnius. Mais grave que isto � que o senhor diz claramente ser preciso fazer o professor falar, diz claramente que o segredo da ac�cia
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seria uma potencial fonte de lucros. O senhor fez com que Ant�nio Caturra mandasse matar todas aquelas pessoas.
- Isso � um perfeito absurdo. N�o faz ideia do que est� a dizer. � imposs�vel saber quem fez esse telefonema. A voz estava perfeitamente camuflada.
- Tem raz�o, senhor Grigore. Eu menti. Nunca telefonei para nenhum amigo jornalista, no entanto sei o que fez.
-Mas como?
- O ayahuasca. Tive vis�es. Vi o que se passou.
Grigore soltou uma grande gargalhada. Armando continuava a ressonar na rede.
- A menina est� a delirar.
- Pensei que estivesse, mas o senhor acabou de me confirmar outra coisa. Afinal confessou ter ligado a Ant�nio Caturra e, como se n�o bastasse, ainda me assegurou que n�o seria poss�vel reconhecer a sua voz.
- Vejo que talvez me tenha perdido um pouco neste di�logo, mas por outro lado, quem acreditar� em si? Vai provar o qu�? Vai dizer que viu claramente visto com as suas vis�es provocadas por um ch� alucinog�nio? A menina deveria saber que mesmo que se provasse que liguei a Ant�nio Caturra, jamais o que lhe disse seria um crime. Repare que apenas falei na morte de Hiram, mas nunca sugeri que devesse usar essa morte ritual para encenar uma morte real. Tamb�m, se falei em Felicijonas, nunca ordenei - de modo algum - que ele devesse ser morto ou torturado. Limitei-me a afirmar que ele tinha em seu poder segredos que pertencem a toda a humanidade e que, � certo, poderiam ser fonte de lucro. Isso n�o faz de mim um criminoso.
- N�o sei se n�o faz, visto que Ant�nio Caturra est� disposto a acus�-lo. Diz que foi o senhor que o fez ordenar aqueles crimes. Ele s� n�o sabe o seu nome. Mas eu sei.
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- Um absurdo. Nunca fiz tal coisa.
- No entanto, n�o vai ser f�cil provar a sua inoc�ncia.
- Vai ser muito f�cil porque ningu�m sabe que fui eu o autor desses telefonemas. S� a menina � que imagina que fui eu, porque teve umas vis�es. Nada poder� ser mais rid�culo do que isso. Al�m disso eu tenho uma imagem irrepreens�vel Marian Bibin dizia que o maior objetivo do Homem � ser honesto: nem que para isso tivesse de ser extremamente desonesto.
Foi nesse instante que entraram na sala Umberto Troiani e F�tima Rios. Traziam a cara de quem tinha ouvido a conversa.
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CAP�TULO 55
Num segundo, a trama tornou-se complicada. As moiras que tecem o destino dos homens t�m destas coisas e raramente tecem a direito.
Grigore pegou na arma que Armando deixara encostada � parede junto � rede e disparou sobre Umberto que caiu contra a parede, a sangrar do peito. F�tima ajoelhou-se com um grito ao v�-lo cair fulminado. Armando mantinha-se a ressonar. E Lola tentou, nesse desconcertante momento, desarmar Grigore. Em troca da sua tentativa recebeu uma pancada que a fez cair para tr�s com a cabe�a aberta e o sangue a empastar-lhe o cabelo negro. Ficou ali sem sentidos, espalhada pelo
ch�o como os brinquedos duma crian�a. Marim Grigore n�o perdeu tempo: amarrou e amorda�ou F�tima Rios e, depois, com mais calma, fez o mesmo a Lola, que continuava incons�
ciente. Depois das manieta��es cumpridas, parou a olhar para Armando que continuava a ressonar. Se Deus quisesse ou n�o estivesse a descansar, poder-lhe-ia tirar uma costela e fazer
com ela uma mulher que ele n�o acordaria. T�o pesado era aquele sono.
H� uns tempos Grigore soube, por um amigo, que Ant�nio Caturra era membro duma ordem que n�o tinha pejo em usar os seus bra�os dum modo mais rude, n�o tinha pudor em
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intervir na sociedade para fazer vingar os valores que achavam por bem fazer vingar. Porque Ant�nio Caturra era pai do seu amigo J6�o, n�o foi dif�cil conhec�-lo e perceber as fragilidades desse Rei dos Azulejos que era tamb�m Rei dos Casinos. Mas quem sabia jogar era Grigore que decidiu apostar num jogo muito perigoso. Fez um telefonema an�nimo a Ant�nio Caturra aliciando-o com o segredo da ac�cia. Justificando que a sua revela��o poderia ser um bem inestim�vel para a sociedade. Comentou que Felicijonas Salnius estava na posse desse segredo t�o cobi�ado e que seria um grande dia para a humanidade se o professor cometesse a generosidade de o revelar. Grigore apenas aliciou um sujeito extremamente alici�vel.
Umberto Troiani, que sangrava abundantemente do peito, articulou umas palavras a esfor�o. Grigore, que o julgava morto, voltou-se ao ouvir aquela voz rouca e ajoelhou-se junto do amigo.
O que Umberto Troiani balbuciava n�o se compreendia com a sua boca carregada de sangue espesso, mas Grigore sabia qual era a pergunta.
- O meu pai, Umberto, tem in�meros trabalhos escritos algures num arquivo bafiento de Brasov. Todo o trabalho da sua vida est� ali enterrado nesse cemit�rio de palavras. Ningu�m quer saber disto. Jo�o Caturra ser� sempre considerado um m�stico meio alucinado. E ningu�m quer saber que o �nico segredo de todas estas xaropadas a que devotamos a vida n�o � uma aura et�rea cheia de simbolismos, ou uma quinta dimens�o que pode ser conjurada com umas palavras m�gicas, ou um �vni a voar algures, ou uma conspira��o para esconder um romance entre uma prostituta e um deus revelado, ou a hist�ria secreta dum pintor renascentista com sangue mero�
v�ngio. Ningu�m quer saber o que realmente est� por tr�s destes mist�rios, de todas as religi�es de mist�rios. Ningu�m quer
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saber que por tr�s disto tudo h� uma explica��o t�o simples como um cogumelo, um simples cogumelo, ou um cato, ou qualquer outro heter�geno. Que o segredo de todas estas escolas inici�ticas, de todas as que valem a pena, de todas as que t�m alguma tradi��o, n�o passa dum ch� que permite viajar entre os mundos: entre este e o das Ideias.
Umberto deixou cair a cabe�a. J� n�o tinha for�as.
- Era preciso criar o enredo. Para que uma explica��o t�o simples como um ch� fosse apreci�vel pelas pessoas; para que algu�m desse cr�dito, era preciso um enredo de novela policial. Era preciso uma morte dram�tica e Felicijonas prestou-se admiravelmente. E isto permitiu que eu pudesse revelar os segredos da nossa Loja, especialmente o segredo da ac�cia. Tinha a justifica��o perfeita para o fazer. Mesmo que houvesse alguma resist�ncia por parte de alguns membros da Loja, eles seriam obrigados a concordar: seria preciso revelar.
Umberto Troiani j� n�o ouvia nada, mas Grigore, com a voz embargada, continuou como costumam continuar os criminosos nas novelas policiais:
- Mas aquilo tudo descontrolou-se. De algum modo, Ant�nio Caturra identificou os outros membros da nossa Loja, facto que fez perigar todas as nossas vidas. E n�o poderia ter sido mais tr�gico, visto que Caturra veio a ser respons�vel pela morte do pr�prio filho, sem o saber. E eu tentei acabar com tudo, juro ... mas o Rei dos Azulejos n�o me ouviu. Ameacei-o como se fizesse parte duma organiza��o que o pudesse amea�ar, mas ele n�o acreditou. Tentei ... E ainda houve mais mortes, mortes que n�o sei explicar. Talvez Laurent Rigaut esteja por tr�s delas como desconfiavas, Umberto ...
Marim Grigore levantou-se. F�tima Rios estava dobrada aos seus p�s. Amarrada e com muitas l�grimas nos /olhos. Solu�ava para l� da morda�a. Lola j� havia recuperado os sentidos
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e via-se exatamente na mesma posi��o de F�tima, no mesmo ch�o, manietada da mesma maneira, a chorar l�grimas parecidas. Grigore deu um passo por cima dos seus corpos, do de F�tima e de Lola, e dirigiu-se at� � rede onde Armando ressonava de boca aberta. Grigore colocou-lhe o cano da arma na boca e disparou. A cama de rede encheu-se de sangue. De seguida voltou-se para F�tima Rios e exp�s o seu plano como costumam fazer todos os criminosos dos filmes e dos livros. Sempre que chegam a um destes momentos dram�ticos t�m
a urg�ncia incontida de se explicar:
- Receio ter de vos matar a todos. No final darei um tiro a mim pr�prio, na perna e de rasp�o. N�o sou muito corajoso. Porei a arma nas m�os do defunto Armando e culp�-la-ei: afinal, a espingarda � dele. Acreditar�o em mim que sou um cidad�o exemplar. Ainda por cima terei, tamb�m eu, sido alvejado - de leve, � certo, de rasp�o e na coxa. Contarei como consegui fugir e ao sair desta casa, cambaleante, ouvi um tiro. Para a policia, Armando ter� cometido suic�dio depois de matar todas as pessoas que estavam c� dentro. S� eu consegui escapar praticamente ileso.
Grigore fez um sorriso triste e encostou a arma � cabe�a de F�tima Rios.
� porta, de repente, assomou Conrado Fortes, em cuecas e com um charuto na boca. Todos se haviam esquecido dele e Conrado presta-se a ser esquecido. Ainda vinha ensonado, a esfregar os olhos. Marim Grigore voltou-se, apontou-lhe a arma e disparou sem qualquer aviso. Conrado caiu no ch�o com violentas convuls�es.
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CAP�TULO 56
O pai de Arkadiusz Pilatowski, um dia, mostrou ao filho uma faca. Uma bela faca de cabo de osso.
- Esta � a navalha de Occam - esclareceu Grzegorz Pilatowski. - Occam, meu filho, foi o monge que melhor ensinou a arte de matar. Ele, no s�culo XIV, explicou esta arte da seguinte maneira: pluralitas non est ponenda sine neccesitate. E o que � que isto quer dizer? Quer dizer que a solu��o mais simples deve ser a solu��o certa. Entre duas hip�teses que expliquem determinado problema, uma mais complexa do que outra, o homem avisado deve escolher a mais simples.
Grzegorz Pilatowski pegou na faca com um ar muito solene e caminhou com o filho para a entrada da casa. L�, estava amarrado um novilho. Grzegorz espetou-lhe a faca no pesco�o e o pequeno boi ajoelhou-se a sangrar com um mugido muito seco, quase inaud�vel.
- V�s Arkadiusz? Esta � a navalha de Occam. Esta � a maneira mais simples de matar um novilho. Existem outras, mas n�s preferimos esta que � a menos complicada. Usamos a lei da parcim�nia. E depois vendemos a carne ao talho, guardando apenas um peda�o do ac�m para o nosso jantar.
Arkadiusz Pilatowski nunca mais esqueceu esta li��o e, quando o pai morreu, guardou aquela faca. N�o a usava, mas
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tinha-a guardada como uma rel�quia, embrulhada num paninho de seda que fora da sua m�e. Pilatowski julgava que aquela faca de cabo de osso pertencera realmente a Occam, apesar de o seu pai se ter referido a ela apenas como uma met�fora.
Occam era muito pr�ximo dos joaquimitas e outros franciscanos espirituais que gostariam de ter obrigado toda a Igreja a viver na pobreza. Occam, tal como estes, n�o possu�a nada, nem uma faca. Occam n�o tinha mais do que aquilo que achava essencial, e todas as suas posses se resumiam ao h�bito de monge. Essa era a maneira mais simples de envelhecer neste mundo e ele tinha aplicado a sua navalha na sua pr�pria maneira de viver. Ou talvez tivesse sido a sua maneira de viver que lhe houvera inspirado a ideia que ficou conhecida por navalha de Occam. E, s�culos depois, a filosofia do pobre franciscano, dum homem que levara vida t�o austera, servia de ci�ncia para a arte de matar o pr�ximo.
Pilatowski pensava muito nesse dia em que viu o pai matar o novilho e, quando o fazia, vinham-lhe as l�grimas aos olhos. Mas limpava-as de seguida. .
Do outro lado da rua, em frente � casa de F�tima Rios, Pilatowski ouviu uns tiros. Era a �nica pessoa naquela rua, �quela hora da manh�. Alguma coisa se passava l� dentro. Afinal, pensou Pilatowski, talvez n�o seja preciso matar Grigore, talvez ele j� esteja morto. Mais uma vez, Occam parecia iluminar o caminho do polaco, simplificando as coisas.
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CAP�TULO 57
Os espasmos de Conrado surpreenderam Grigore. Como n�o era muito corajoso, mas sabia disparar, f�-lo mais uma vez. E os extravagantes movimentos de Conrado Fortes tornaram-se mais intensos ao ponto de o fazerem levantar e pular em dire��o � arma que o romeno apontava. Conrado Fortes tinha incorporado um guerreiro �ndio, o Caboclo Urubat�o da Guia. Apesar de ser um homem calvo, baixo, redondo, e n�o ter mais do que umas cuecas vestidas, Conrado investia como um touro. Naquele momento, era um homem musculado com uma longa cabeleira em vez dum sujeito de cuecas e ligeiramente obeso.
As balas n�o pareciam ter tido qualquer efeito no seu corpo e, com um gesto, arrancou a espingarda de Grigore. Este, confuso, deu uns passos pa1;a tr�s, enquanto o caboclo Uruba�
t�o da Guia dan�ava com uma espingarda na m�o e gritava qualquer coisa que poderia ser tupi-guarani. Marim Grigore correu para a porta das traseiras, abriu-a e pulou para a rua.
Arkadiusz Pilatowski, que se tinha aproximado daquela porta para tentar perceber o que se passava, fez um gesto largo, um gesto que havia repetido tantas vezes, e espetou a sua faca no pesco�o dum cambaleante Grigore que tinha trope�ado mesmo � sua frente. O romeno morreu como um novilho.
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CAP�TULO 58
A obesidade de Rigaut fora conseguida atrav�s de saborosos h�bitos. Os mesmo h�bitos que Arkadiusz Pilatowski apreciava nas suas v�timas. Rigaut, todos os domingos ao almo�o, todos sem exce��o, encomendava no Hotel Oriental, uma perdiz faisand�e com molho de cogumelos dos c�sares, o famoso amanita caesarea, t�o apreciado por imperadores romanos. Era-lhe servida numa su�te, que mantinha alugada o ano inteiro, pontualmente, �s duas da tarde.
O empregado, que empurrava o carrinho (com o devido repasto) pelos corredores do hotel, reparou numa bela mulher que ajeitava as ligas, levantando a saia mais do que seria de bom-tom. Ela, sem dizer uma palavra encostou-se ao empregado e colou-lhe os l�bios � orelha esquerda. Estavam ofegantes os dois l�bios.
- Aqui n�o - sussurrou ela. - N�o h� um quarto vazio?
E o empregado, com o seu la�o e o seu colete, abriu a porta por tr�s dele e entraram os dois.
- Espera aqui um minuto - respondeu ele. - Tenho de entregar esta refei��o imediatamente. Se n�o, arrefece ...
- Tens de escolher qual das carnes ir�s deixar arrefecer: essa que levas no carrinho ou estas.
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E abriu a camisa mostrando duas mamas muito hemisf�ricas.
Quando o empregado saiu do quarto n�o levava, no carrinho que deixou � porta, o mesmo prato que carregara at� �quele quarto. Leah, vestida de empregada daquele hotel, tinha trocado a perdiz faisand�e com molho de cogumelos, por outra perdiz. No entanto n�o era a perdiz que fazia a diferen�a. Eram os cogumelos. Estes que os c�sares tanto apreciavam � da� o seu nome - foram muitas vezes, ao longo da Hist�ria, substitu�dos por outros, muito parecidos, mas fatais. Na verdade, s�o dos cogumelos mais mortais de todos os cogumelos: amanita phaloides, do mesmo g�nero, coincidentemente, daqueles que eram mencionados nos trabalhos e nas pranchas da Loja �Pers�fone�, os amanita mascaria. S�o todos amanitas: uns d�o a morte, outros uns molhos fabulosos e outros, outros mundos. Leah havia contratado uma prostituta capaz de sedu�
zir um gar�on e o resto cozinhou em casa e aqueceu no micro ondas do hotel. Depois da troca feita, despiu a sua farda, vestiu as suas roupas e saiu pela porta da frente.
Rigaut, esse homem t�o bem nutrido, morreu na su�te para onde se havia mudado, a tal que alugava ao ano. O amanita phaloides tem a propriedade insidiosa de matar com um certo atraso. Demora uns dias a faz�-lo e � exatamente por isso que � um assassino muito eficaz, discreto como um ma�om deve ser. Quando as suas hepatoxinas se manifestam � tarde demais para fazer uma lavagem ao est�mago. Normalmente � tarde demais para qualquer coisa. Diz-se - mas pode n�o passar de um mito - que a �nica hip�tese aquando dos primeiros sintomas � um transplante de f�gado. Ora, os sintomas aparecem tr�s dias depois de ingerido o molho que acompanha a perdiz faisand�e e quando Rigaut chegou ao hospital,
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n�o s� n�o havia f�gados dispon�veis como, se os houvesse, seria tarde demais.
Foram os seguran�as que ele contratara - porque temia pela sua vida - que o levaram para o hospital, mas Laurent Rigaut havia sido mortalmente atingido tr�s dias antes. Era um condenado sem o saber, como todos n�s. Toda a gente foi mortalmente atingida a partir do momento que foi concebida atrav�s do sexo. E isto porque nem toda a vida traz a morte consigo. Durante os primeiros milh�es de anos, quando Deus ainda n�o tinha inventado o sexo e as revistas er�ticas, as c�lulas n�o morriam. Ou melhor, morriam, mas n�o morriam de velhas, de decrepitude. Se n�o houvesse acidentes, viveriam para sempre. Algumas das c�lulas humanas tamb�m s�o vir�
tualmente eternas. Por algum motivo alqu�mico, parecem ter descoberto o segredo da imortalidade e n�o envelhecem como fazem os animais e as av�s. As nossas c�lulas sexuais, bem como as c�lulas cancerosas - vede como s�o t�o parecidas a morte e a vida - s�o eternas. � exce��o destas, todas as outras c�lulas que nos comp�em t�m uma ordem gravada no ADN que � uma senten�a de morte, uma ordem de suic�dio. Ou seja, no nosso nascimento trazemos a nossa senten�a e at� � verdade que a vida traz consigo a morte, mas o que � importante salientar e sublinhar � que nem sempre foi assim, mas apenas desde que existe o nascimento sexuado, pois a reprodu��o anterior a esta inven��o er�tica, sem interven��o de g�metas, n�o traz o envelhecimento juntamente com ela. No fundo, Santo Agostinho tinha raz�o, de um modo perverso: o sexo � o pecado original, quer dizer, desde que ele existe que as c�lulas passaram a envelhecer, a sofrer a corrup��o do tempo, a definhar e, pior que isso, a morrer.
Mas o homem ef�mero pode argumentar que todo o mortal, apesar de fadado a encontrar a fria desonra, a morte, n�o
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sabe em que dia tal fen�meno de pranto, de ranger de dentes, ocorrer�. Isso n�o est� marcado como uma reuni�o de neg�cios. Mas o homem ef�mero engana-se. Todas as mortes foram anotadas num bloco como aquele que Arkadiusz Pilatowski possui - onde escreve o nome das suas v�timas e o modo como morrer�o. Existe um livro, um livro sinistro que tem todas as datas � frente de todos os nomes, a minha e a sua, caro leitor. Um livro ileg�vel para n�s, gra�as a Deus. Um livro escrito com as leis da f�sica que ainda n�o descobrimos e que cont�m todos os destinos de todas as coisas. Ao �nico leitor desse livro, teimam os crentes em cham�-lo Deus. Os ateus chamam-no de acaso, o que vai dar no mesmo: � a mesma divindade.
Por isso, Leah sabia que Rigaut morreria tr�s dias depois, e sabia-o porque tinha espreitado nas p�ginas sebentas desse livro negro onde todos os prazos de validade foram registados. E tamb�m porque sabia fazer um bom molho de cogumelos com o amanita certo.
No dia que antecedeu a l�gubre refei��o de perdiz, Leah tinha aparecido na su�te do avantajado Laurent Rigaut. Era esperada. Pilatowski tinha ligado a dizer que havia cumprido a sua miss�o. Grigore estava morto e Leah iria receber o que lhe era devido. Ela assim fez e recebeu a gorda quantia prometida, mas seria tamb�m fundamental fazer com que o sil�ncio assegurasse uma vida tranquila a gastar tanto dinheiro. Decidiu matar Rigaut, mas n�o seria t�o f�cil como Pilatowski poderia ter pensado. Rigaut tinha contratado seguran�as.
Leah foi buscar a sua inspira��o a Agripina. Esta sobrinha do imperador Cl�udio - e tamb�m sua esposa - decidiu que este deveria experimentar um repasto de cogumelos. Com essa refei��o, matou-o, exatamente da mesma maneira que, dois
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mil�nios depois (mais coisa menos coisa), Rigaut tamb�m sucumbia a esta gastronomia fatal.
Arkadiusz Pilatowski nunca usaria este m�todo, nunca usaria venenos, apesar de estes permitirem matar � dist�ncia, com toda a seguran�a. Nesse pormenor, era muito diferente de Leah, que apreciava estar a tr�s dias de dist�ncia das suas v�timas, e, ao contr�rio dela, gostava de sentir o sangue quente escorrer-lhe pelas m�os. Apesar de se sentir desagradado com o sangue seco nas unhas.
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CAP�TULO 59
Conrado n�o foi alvejado por nenhuma das balas disparadas por Marim Grigore. Ambas se alojaram na parede da casa de F�tima Rios e ali ficaram presas � madeira. A este pequeno milagre n�o fica alheia a ajuda dada pelos espasmos ext�ticos e cat�rticos de Conrado. N�o � f�cil acertar num homem que se contorce em convuls�es, um homem que usando apenas cuecas e charuto se transforma na montada de um garboso caboclo.
Durante os pacatos dias que se seguiram a esta sinistra cena, F�tima Rios, Conrado Fortes e Lola Benites prestaram as declara��es devidas � Pol�cia e foram tentando recuperar das sequelas psicol�gicas que criam aquelas rugas profundas na alma, mais concretamente na testa.
O senhor Benites ligou para a filha numa altura em que esta se preparava para prestar depoimento:
- O Pl�cido n�o est� nada contente contigo, est� furioso. E eu tamb�m n�o estou nada contente, estou furioso. O que � que se passa? Ainda est�s � volta dessa loucura? Desse Grande Arquiteto do Universo e dos seus pedreiros simb�licos?
- Estou no Brasil.
- Isso sei eu, mas n�o gra�as a ti. Foi o Pl�cido que me contou. Disse-me que foi outro homem que atendeu o telefone ...
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- O Conrado.
- Nem quero saber quem seja. O Pl�cido est� triste, chegou at� a solu�ar ao telefone. Quem � esse Conrado? Algum ac�lito dos esquadros e compassos? Creio que o Pl�cido estava a chorar ao telefone. Consegues sensibilizar-te com isso? Estava a chorar. Ele n�o me disse, mas pude perceber por aquele solu�o quando disse o teu nome. E passados minutos estava a assoar-se. A assoar-se! Isto n�o s�o divaga��es simb�licas sobre o segredo dos Templ�rios, isto � a vida, Lola, a vida! Tu est�s a tornar-te igual, igualzinha, � tua m�e, a p�r esses valores que tens acima da fam�lia. De repente, o bem-estar do Planeta � mais importante do que eu (a tua m�e chegou mesmo a dizer isto), e umas sociedades secretas mais importantes do que o Pl�cido. At� onde pode ir o teu ego�smo? Queres chegar ao ponto rid�culo onde chegou a tua m�e? Queres andar pelo mundo fora s� com umas sand�lias e a comer vegetais?
- N�o sei. Mas tenho percebido algumas coisas. Agora que estou longe, vejo as coisas com mais perspetiva. E de longe s�o as coisas pequeninas que saltam � vista: o Pl�cido n�o entende nada de literatura russa.
- Literatura russa? Literatura russa? E o que � que isso tem a ver com o facto de estares no Brasil ao mesmo tempo que demonstras n�o ter qualquer tipo de considera��o por mim e pelo teu noivo? Noivo esse que � sens�vel ao ponto de solu�ar ao telefone quando diz o teu nome. Estava a chorar, Lola, a chorar. Ele gosta de ti. N�s gostamos de ti.
- S�o as pequenas coisas, pap�, essas � que d�o cabo das rela��es. O Conrado tem raz�o. E eu percebi agora que o Pl�cido nunca leu Gorki nem Gogol. E muito menos Tchekov.
- N�o o censuro por isso. Pl�cido � uma pessoa jovial, divertida. N�o precisa de literatura russa na sua vida. Quem � o Conrado?
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- O Conrado � ...
- N�o quero saber quem � - interrompeu o pai. - Est�s presa �s pequenas coisas, aos detalhes. Tens de te concentrar na paisagem, na big picture. P�r as coisas em perspetiva. Bigpicture) Lola! N�o � nessas coisas pequeninas. Como � que olhas de longe e s� v�s detalhes? Tens de te concentrar no todo. E nesse todo, vais ver, h� pessoas que te amam em vez de tolstois e de gorkis.
- Talvez, vou pensar russo. Mas entretanto tenho de ficar aqui mais uns dias.
- N�o. Vais fazer as malas e vens de imediato. Ponto final neste assunto, s� tens de pedir desculpa ao Pl�cido. A mim n�o precisas. E vais voltar no pr�ximo avi�o.
-N�o posso.
- Sabes que o teu cart�o de cr�dito funciona segundo a minha vontade? Aquilo n�o s�o apenas n�meros, tem vontade pr�pria: a minha.
- N�o me vou embora. Primeiro porque o que estou a fazer � importante para mim. E essas amea�as n�o funcionam, nunca funcionaram.
- Ao contr�rio do cart�o, ,que sempre funcionou ...
- Al�m disso - interrompeu Lola -, est� na altura de ganhar uma certa independ�ncia. Tratarei disso quando voltar, o que n�o vai acontecer imediatamente: a Pol�cia n�o deixa.
- A Pol�cia? O que � que se passa? A Pol�cia? E esse Conrado, quem �?
- Tenho de desligar.
Conrado e Lola ficaram mais duas semanas em Rio Branco com F�tima Rios. O choque daquele holocausto n�o passou totalmente, mas eles acabaram por conseguir, j� na segunda semana, desfrutar dumas tardes amenas com urnas cervejas geladas e uns sucos de cupua�u.
262
Lola chegou, inclusivamente, a olhar Conrado de outra maneira. Mas ele nunca reparou nisso. A impress�o que havia causado durante aqueles minutos tr�gicos em que tinha incorporado o Caboclo Urubat�o da Guia fizera com que a imagem dum �ndio valente e guedelhudo se sobrepusesse � do homem baixo e redondo. Lola via Conrado como um homem alto e musculado. A imagem dele havia sido corrigida por um mito que escapara dos planos superiores para embelezar um homem com pouco cabelo.
No jantar de despedida, Lola prop�s uns brindes e bebeu-se com abund�ncia.
- Grigore morreu e nunca cheg�mos a saber qual a liga��o entre os heter�genos e a Ma�onaria ... Afinal, vamos voltar � Europa sem saber o famoso segredo da ac�cia.
F�tima olhou para Lola, sorriu e disse:
- Acho que sei qual � o tal segredo. � f�cil chegar a essa conclus�o quando conhecemos as plantas: as ac�cias, muitas delas s�o ricas em dimetiltriptaminas, em DMT.
- Como o ayahuasca?
- Precisamente. O segredo da ac�cia � esse mesmo. E tamb�m o m�todo adequado ao seu consumo, a prepara��o que possibilite que o alcaloide, o DMT, seja assimilado. Como te disse, este tipo de subst�ncias precisa de outra que torne os tecidos perme�veis � sua absor��o. Se n�o, passa pelo nosso corpo sem qualquer efeito e � despejada pela urina.
- Ent�o qual � a mistura que se usaria para tornar a ac�cia um heter�geno?
- Existem muitas maneiras de fazer substitutos do ayahuasca. Normalmente usa-se uma planta chamada pega num barmala. � nativa do M�dio Oriente e da �sia Central e � um forte inibidor da MAO, da monoamina oxidas e, a tal subst�ncia que permite a absor��o dos alcaloides da ac�cia, do DMT.
263
F�tima fez uma pequena pausa para acabar de beber a cerveja que tinha � sua frente.
- Mas tamb�m - continuou ela - se poderia tomar a ac�cia de modo completamente diferente. N�o � muito dif�cil extrair os alcaloides e depois consumi-los por via intravenosa ou mesmo, simplesmente, fumados. Tamb�m � poss�vel faz�-lo de outro modo, convertendo as plantas em p� para as poder inspirar por um canudo onde os alcaloides entram na corrente sangu�nea atrav�s dos pulm�es. Alguns �ndios consomem-nos assim. Em todo o caso, para saber que m�todo usariam os antigos pedreiros para tomar a ac�cia, s� mesmo perguntando a um membro da Loja �Pers�fone� que esteja com disposi��o para falar. Mas, estando a maior parte mortos, duvido que essa disposi��o se verifique.
- O ritual de inicia��o fala duma bebida amarga e de outra doce. Poder� ser isso uma esp�cie de qyahuasca?
- Sim, mas n�o h� motivo para haver duas bebidas. A amarga � muito f�cil de explicar: uma decoc��o de ac�cia daria uma bebida amarga, t�o amarga quanto o qyahuasca. Mas a bebida doce � mais dif�cil ...
- Al�m da ac�cia - completou Conrado -, a �nica planta que faz parte dos rituais dos primeiros tr�s graus � a rom�. O meu tio Ribeiro � um grande ma�om, � inclusivamente Profeta do Nadir, e aconselha-me muitas vezes a comer rom�, diz que � um fruto m�gico que veio diretamente da boca de Pers�fone que comeu, no Hades, tr�s sementes. Tr�s � um n�mero relevante. A rom� � doce e Pers�fone comia-lhe as sementes. Ser� que pode ser um dos ingredientes dessa esp�cie
de qyahuasca?
- Rom�s? Talvez. Alguns frutos cont�m inibidores da monoamina oxidase. Isso explicaria a do�ura, mas para n�s,
264
� mera especula��o. A peganum harmala, no entanto, � um candidato excelente para conjugar com a ac�cia.
- Mas essa planta n�o faz parte do ritual... O meu tio, que � Cavaleiro Sagrado do Nous e Ennoia, diz que a rom� faz parte dos rituais dos primeiros graus. Est� nas colunas que sustentam o templo. Dessa peganum barmala, o meu tio nunca falou. Acho que n�o faz parte do ritual. E depois, Pers�fone comeu, no Hades, sete sementes de rom�. Um n�mero relevante.
- N�o eram tr�s sementes?
- Tr�s ou sete. Ningu�m sabe muito bem. O que interessa � a qualidade dos n�meros e estes s�o daqueles que querem dizer alguma coisa.
- S�o relevantes.
- S�o. Essa peganum harmala � que n�o sei ... Acho que n�o faz parte.
- Talvez fa�a, de algum modo mais discreto. Talvez o seu nome j� n�o seja conhecido, ou talvez usassem outro nome que acabou confundido com outro s�mbolo qualquer. Ou talvez tenha ca�do em completo olvido. Acontece muito ... O fruto da peganum harmala pode ser confundido com uma rom�. De facto, assemelha-se a uma rom� em miniatura. Dentro dele est�o as sementes que cont�m os inibidores da MAO, pequenas sementes que se podem assemelhar �s da rom� ...
- Bom - interrompeu Lola -, pelo menos j� sabemos, grosso modo, que raio de segredo � esse. A ac�cia cont�m uma droga psicad�lica. Quem diria que uns pol�ticos que t�m um aperto de m�o secreto e usam avental como cozinheiras s�o os sobreviventes duma religi�o de mist�rios que usava uma esp�cie de ayabuasca? Facto que eles pr�prios desconhecem de todo.
265
As cervejas acabaram e os dois, Conrado Fortes e Lola Benites, voltaram para Lisboa. Fizeram escala em Nova Iorque e cruzaram-se, no aeroporto, com um homem magro e seco que se fazia acompanhar duma senhora que sabia cozinhar cogumelos com a mestria dum chef. Ele levava uma mala cheia de dinheiro para gastar na Costa Rica, que era para onde se dirigiam depois daquela aborrecida escala em Nova Iorque.
Conrado telefonou � m�e e, quando aterrou em Lisboa, ela esperava por eles no aeroporto. Tinha deixado o jantar ao lume, em casa do tio Ribeiro.
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CAP�TULO 60
- A eternidade, a mim, .n�o me diz nada - exclamou o tio Ribeiro.
A Luz do Oriente, bem como a Luz do Ocidente, desta vez, estavam vestidas. A m�e de Conrado nunca mais permitiu que elas andassem desagasalhadas (�N�o me importo que estas
luzes andem por aqui, mas precisam dum abejour�). Estavam ambas sentadas ao lado do not�vel Ribeiro, uma � esquerda, outra � direita.
- Quanto � rom� - elucidava o tio de Conrado -, que os �rabes chamavam rumman, � importante, � muito importante. Pers�fone comeu-lhes nove sementes no Hades. Agora, esse segredo da ac�cia, n�o me diz nada. A eternidade � muito tempo e eu j� estou velho. J� n�o vivo o suficiente para usufruir da eternidade.
Lola tinha-os acompanhado para jantar, estava sentada ao lado de Conrado. A m�e deste atarefava-se, entre a cozinha e a sala, trazendo pratos atr�s de pratos. Mas n�o perdia a conversa nem as revela��es que pareciam surgir de planos superiores. Tal qual os pratos cheios de comida.
- � tudo energia - sentenciava Ribeiro -, e eu n�o sou exce��o nenhuma. N�o fora estas duas luzes e j� me tinha tornado uma fa�sca. Z�s, evolava-me. Ficava a pairar. Era s�
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energia. Repara, Conrado, como estou bem iluminado. Uma luz de cada lado, s�o dois candelabros, duas candeiazinhas. S�o elas que n�o me deixam ir embora para outros planos.
E tamb�m fico aqui, neste mundo, por cortesia, por educa��o, se n�o, evolava-me. Repara bem nestas luzes!
- Uma � chinesa. Nota-se pelos olhos - comentou Contado.
Enquanto a Luz do Ocidente era uma loira muito alta que falava, muito raramente, russo.
O jantar acabou com uns whiskies.
- Tamb�m d�o uma boa luz, estes whiskies - rematou o senhor Ribeiro. - Tamb�m me ajudam a n�o evolar para outros planos.
Lola juntou-se � m�e de Conrado que lavava os pratos. �N�o quero homens na cozinha�, havia dito ela.
- Diga-me, menina Lola, diga-me para ver se eu entendo. Ent�o os senhores ma�ons pintavam cogumelos nas paredes das igrejas?
-Pintavam.
- E esses cogumelos representavam a �rvore do �den?
- Representavam.
- A �rvore da ci�ncia do bem e do mal?
- Essa mesma.
- Ora, mas se o faziam era por outros motivos.
- Como assim, dona Fortes?
- N�o era por esses cogumelos serem psicad�licos que eles os representavam em substitui��o da �rvore da ci�ncia do bem e do mal. Eu, menina Lola, fui analfabetizada a vida inteira, mas percebo das coisas. � uma intui��o que eu tenho. Sabe que a B�blia diz, l� no in�cio, que essa �rvore da ci�ncia daria a morte a quem a provasse. Os senhores pedreiros pintavam
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�rvores com formas de cogumelos para mostrar aos fi�is que a �rvore era venenosa. Como os cogumelos.
- Mas olhe que o amanita muscaria n�o � propriamente venenoso, pelo menos no sentido que se refere.
- V� dizer isso �s gentes. O povo todo acha que sim. Os cogumelos seriam a melhor maneira de representar uma planta venenosa. Arranja melhor s�mbolo que esse?
- Sabe, a senhora � bem capaz de ter raz�o. Percebe mais de s�mbolos do que muita gente ...
- Quanto ao cogumelo, o Natal e todas essas coisas, j� n�o tenho nada a dizer. E de ac�cias n�o percebo nada. Mas no que diz respeito aos cogumelos pintados nas igrejas, menina Lola, n�o me deixam d�vidas: representavam a morte. Quem comesse da �rvore morreria. Acredite em mim, menina Lola, � como lhe digo. Tenho uma esp�cie de intui��o.
- Tem, com toda a certeza.
- Sabe, gosto muito que se d� bem com o meu filho. N�o tem amigos.
- E o Carlos Ant�nio?
- N�o existe. � imagina��o dele.
Lola despediu-se depois da sobremesa, do caf� e dos whiskies (que tamb�m emanam a sua luz). Um m�s depois ainda n�o tinha escrito o livro que se tinha proposto escrever e, volvido mais outro m�s, desistiu do projeto, bem como do noivo.
FIM
�NDICE
Cap�tulo 1---------------------------------------------------------------------------------------------------- 7
Cap�tulo 2 ---------------------------------------------------------------------------------------------------12
Cap�tulo 3 ---------------------------------------------------------------------------------------------------15
Cap�tulo 4--------------------------------------------------------------------------------------------------- 21
Cap�tulo 5 ---------------------------------------------------------------------------------------------------29
Cap�tulo 6 ---------------------------------------------------------------------------------------------------36
Cap�tulo 7 ---------------------------------------------------------------------------------------------------41
Cap�tulo 8 ---------------------------------------------------------------------------------------------------44
Cap�tulo 9 ---------------------------------------------------------------------------------------------------47
Cap�tulo 10 --------------------------------------------------------------------------------------------------51
Cap�tulo 11 --------------------------------------------------------------------------------------------------57
Cap�tulo 12 --------------------------------------------------------------------------------------------------60
Cap�tulo 13 --------------------------------------------------------------------------------------------------64
Cap�tulo 14 --------------------------------------------------------------------------------------------------68
Cap�tulo 15 --------------------------------------------------------------------------------------------------73
Cap�tulo 16 --------------------------------------------------------------------------------------------------77
Cap�tulo 17 --------------------------------------------------------------------------------------------------82
Cap�tulo 18 --------------------------------------------------------------------------------------------------88
Cap�tulo 19 --------------------------------------------------------------------------------------------------89
Cap�tulo 20 --------------------------------------------------------------------------------------------------96
Cap�tulo 21 ------------------------------------------------------------------------------------------------101
Cap�tulo 22 ------------------------------------------------------------------------------------------------102
270
Cap�tulo 23 ------------------------------------------------------------------------------------------------107
Cap�tulo 24 ------------------------------------------------------------------------------------------------113
Cap�tulo 25 ------------------------------------------------------------------------------------------------116
Cap�tulo 26 ------------------------------------------------------------------------------------------------123
Cap�tulo 27 ------------------------------------------------------------------------------------------------126
Cap�tulo 28 ------------------------------------------------------------------------------------------------130
Cap�tulo 29 ------------------------------------------------------------------------------------------------133
Cap�tulo 30 ------------------------------------------------------------------------------------------------137
Cap�tulo 31 ------------------------------------------------------------------------------------------------143
Cap�tulo 32 ------------------------------------------------------------------------------------------------145
Cap�tulo 33 ------------------------------------------------------------------------------------------------147
Cap�tulo 34 ------------------------------------------------------------------------------------------------154
Cap�tulo 35 ------------------------------------------------------------------------------------------------161
Cap�tulo 36 ------------------------------------------------------------------------------------------------163
Cap�tulo 37 ------------------------------------------------------------------------------------------------166
Cap�tulo 38 ------------------------------------------------------------------------------------------------170
Cap�tulo 39 ------------------------------------------------------------------------------------------------175
Cap�tulo 40 ------------------------------------------------------------------------------------------------181
Cap�tulo 41 ------------------------------------------------------------------------------------------------187
Cap�tulo 42 ------------------------------------------------------------------------------------------------193
Cap�tulo 43 ------------------------------------------------------------------------------------------------200
Cap�tulo 44 ------------------------------------------------------------------------------------------------203
Cap�tulo 45 ------------------------------------------------------------------------------------------------205
Cap�tulo 46 ------------------------------------------------------------------------------------------------211
Cap�tulo 47 ------------------------------------------------------------------------------------------------213
Cap�tulo 48 ------------------------------------------------------------------------------------------------216
Cap�tulo 49 ------------------------------------------------------------------------------------------------219
Cap�tulo 50 --------------------------------------------------------------------------------------------222
Cap�tulo 51 --------------------------------------------------------------------------------------------224
Cap�tulo 52 --------------------------------------------------------------------------------------------229
Cap�tulo 53 --------------------------------------------------------------------------------------------233
Cap�tulo 54 --------------------------------------------------------------------------------------------243
271
Cap�tulo 55 --------------------------------------------------------------------------------------------247
Cap�tulo 56 --------------------------------------------------------------------------------------------251
Cap�tulo 57 --------------------------------------------------------------------------------------------253
Cap�tulo 58 --------------------------------------------------------------------------------------------254
Cap�tulo 59 --------------------------------------------------------------------------------------------259
Cap�tulo 60 --------------------------------------------------------------------------------------------266


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