sábado, 23 de janeiro de 2021 By: Fred

{clube-do-e-livro} : UM HOMEM DEVIA MORRER- AVENTURAS MÉDICAS - LIANE MERY

U M H O M E M

D E V I A M O R R E R

��LTIMOS T��TULOS PUBLICADOS:

I ��� V O L �� P I A DE ENFERMEIRA

2��� SAFARI DO DOUTOR VIRDIS

3 ��� P A V I L H �� O 5

4 ��� BISTURI NO C O R A �� �� O

5 - O P E R A �� �� O A M O R

6 ��� SEU D I A G N �� S T I C O , DOUTOR?

7 ��� ESTE FILHO QUE VOC�� DESEJA

8 ��� A PORTA DE C N H A M O

9 _ INFARTO

10 ��� C H A G A S DO C O R A �� �� O

II ��� POSTO C I R �� R G I C O EM DA N A N G

12 ��� OS FUGITIVOS DO P A R A �� S O

13 ��� A C L I N I C A DO MIST��RIO

14 ��� HOSPITAL NA SELVA

15 ��� VIDAS QUE SE C R U Z A M

16 ��� 0 M �� D I C O DOS LEPROSOS

17 ��� SENHORITA BISTURI

18 ��� UM DOUTOR, POR PIEDADE

19 ��� A C I R U R G I A

20 ��� O PRIMEIRO SUSPIRO

21 ��� 0 M �� D I C O S E M G L �� R I A

22 - U R G �� N C I A S

23 ��� A NOITE DOS L O U 0 0 8

24 - S I N T O M A S

25 ��� P A R A N �� I A

28 ��� 0 A B O M I N �� V E L INTERNO

27 ��� OS M E R C E N �� R I O S DA C A R I D A D E

2 8 ��� U M H O M E M DEVIA MORRER

T��TULOS A SEREM PUBLICADOS:

��� A FEITICEIRA DE OYSTER B A Y

��� �� PRECISO MATAR O DITADOR?

��� O ESCALPELO DE OURO

��� AS FRONTEIRAS DA MORTE

��� C L I N I C A PARTICULAR

��� A FEIRA DOS M �� D I C O S

��� O DIREITO DE MORRER

��� U M A ENFERMEIRA DIFERENTE

��� NASCER OU N��O NASCER





Copyright EUREDIF Paris Franco


and LIANE M��RY



L I A N E M �� R Y

Tradu����o de D. Rodrigues

U M H O M E M

D E V I A M O R R E R

NOBLET EDITORA

Do original franc��s





UN HOMME ALLAIT MOURIR


Pr��ximo Ian��amento





A FEITICEIRA DE OYSTER BAY


Direitos para a l��ngua portuguesa

adquiridos pala NOBLET E D I T O R A E

DISTRIBUIDORA L T D A . Rua Almaida

Torres, 119/183 ��� S��o Paulo, que se

reserva a propriedade desta tradu����o.

D i s t r i b u i �� �� o e x c l u s i v a p a r a t o d o o Brasil: A B R I L S / A ��� Cultural e I n d u s t r i a l ��� R u a

E m i l i o Goeldi, 5 7 5 ��� S �� o P a u l o ��� Capital.



Por volta das seis da manh��, o telefone tocou,

acordando bruscamente Fran��ois. Num reflexo habi-

tual, ele atendeu, �� cabeceira da cama, pensando, com

o mesmo automatismo: "Droga! Uma urg��ncia!" De-

pois um "al��" sem qualquer amenidade.

��� �� voc��, Damien? ��� perguntou uma voz que

chegava aos limites da ang��stia. ��� Aqui �� Duparc.

Era um colega. Fran��ois vociferou:

��� Seu miser��vel! N��o tem vergonha de acordar

algu��m a essa hora?

Ele tinha imaginado tratar-se de um chamado do

hospital; j�� estava pronto para pular da cama. N��o

percebeu a entona����o desolada da voz de Duparc.

��� Desculpe, mas n��o pude esperar. A novidade

�� terr��vel.

Do outro lado do fio, ouviu-se como que um sus-

piro fundo, depois de novo a voz abatida de Duparc.

��� Courtin morreu.

Agora totalmente acordado, Fran��ois assustou-se,

exclamando com uma voz sufocada:

��� Oh!

��� Infelizmente! ��� suspirou Duparc.

Ao sair do pasmo provocado pela not��cia, Fran-

��ois deu livre curso �� sua dolorosa curiosidade:

��� Mas onde, quando, como? �� inacredit��vel! Vi

Courtin h�� tr��s dias atr��s!

��� Entendo seu espanto. Senti o mesmo. Estou

falando da casa dele. N��o preciso nem dizer como a

mulher dele est�� sofrendo, sem poder aceitar esse fim

tio tr��gico e brutal. Nem eu posso, nem voc��, sem

d��vida. No entanto, �� a terr��vel realidade.

��� Mas de que ele morreu, santo Deus? Repito

que vi Courtin no hospital h�� tr��s dias. Acho at�� que

passei por ele ontem. Estava em plena forma, s�� se

queixando, brigando, de uma feridinha no dedo.

��� Pois foi justamente essa feridinha que acabou

com ele em poucas horas. A morte mais idiota que

se possa imaginar, principalmente sendo ele, de certa

forma, um especialista do micr��bio. E foi um que o

pegou, provavelmente por desdenh��-los tanto, dizendo

que os conhecia "como a palma da m��o". Um ab-

surdo.

Duparc resumiu os acontecimentos. Tr��s dias an-

tes, Courtin tinha feito a abla����o de um seio de uma

velha cancerosa:

��� Voc�� sabe, como todo mundo, da mania dele

de n��o colocar luvas para operar. Ele achava que isso

era s�� espet��culo. Ent��o, operou dessa vez, como das

outras, sem luvas. Um dia ou dois antes ele tinha fei-

to um corte pequeno no dedo. Est�� come��ando a en-

tender? Quando tirou o seio da velha cancerosa, saiu

pus, que, naturalmente, atingiu o corte e o infectou.

Um pequeno corte de bisturi feito a tempo, e o drama

idiota teria sido evitado. Mas ele n��o ligou para o

que considerava um detalhe sup��rfluo para ele, quan-

do teria agido imediatamente se se tratasse de qual-

quer outra pessoa.

Duparc suspirou:

��� Veja s��, Damien, ele estava muito familiari-

zado com o perigo, a doen��a, e at�� com a morte. De

tanto conviver com ela, deve ter acabado por achar-se

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invulner��vel. �� absurdo, mas n��o t��o raro na nossa

profiss��o. Em quarenta e oito horas, a infec����o sor-

rateira e fulminantemente invadiu todo o organismo.

Quando a mulher dele me chamou h�� pouco, disse que

ele sentiu tonturas de manh��, que quis ir assim mes-

mo ao hospital mas teve de desistir por causa da forte

febre. Enquanto esteve l��cido, proibiu-a de chamar

qualquer pessoa, e at�� de sair do quarto onde ele aca-

bou concordando em deitar. Foi s�� quando percebeu

que ele estava em estado de coma que ela me chamou.

Vim o mais r��pido poss��vel, mas quando cheguei ele

j�� estava azul e com o cora����o fraco. Entendi logo

que era tarde demais para tentar qualquer coisa. Sim-

plesmente, perguntei �� mulher se ele era religioso. A

um sinal afirmativo da infeliz, sugeri que chamasse um

padre. Foi por isso que tive de falar com voc��. Es-

tou transtornado. Acabamos de perder um grande ho-

mem, nosso velho mestre. Pode-se dizer que perdemos

um pouco da nossa juventude.

��� Voc�� fez bem ��� disse Fran��ois com um in-

finito cansa��o. ��� No seu lugar, teria agido do mes-

mo modo. Afinal, apesar de algumas inevit��veis dis-

c��rdias, estamos todos no mesmo barco e quando as

coisas n��o v��o bem para um de n��s, o que fazer de

melhor, sen��o nos apoiarmos?



* * *

Depois de desligar, Fran��ois levantou-se e foi

para o quarto da mulher. Bateu discretamente, de-

pois, como n��o tivesse resposta, abriu-a tentando fa-

zer menos barulho poss��vel.

Nunca, desde seis meses atr��s, quando ela imp��s

seu desejo de separar os quartos, ele fez a menor in-

trus��o em seu retiro volunt��rio. Mas o momento era

muito cr��tico para ele manter os escr��pulos. Ele sen-

tia a necessidade invenc��vel de aliviar-se do peso de

uma afli����o muito grande para carregar sozinho. E

quem melhor que ela poderia compreend��-lo e parti-

cipar com ele daquela not��cia, apesar da dist��ncia que

tinha sido criada entre suas vidas privadas?

Ele entrou, parou imediatamente. A cama de Ca-

role nem tinha sido desfeita. A conclus��o l��gica veio-

-lhe maldosamente ao esp��rito: "Ent��o ela n��o dormiu

aqui esta noite." Uma pergunta veio-lhe ent��o, n��o

menos l��gica, mas bem mais p��rfida: "Onde ent��o?"

Enfim, e quase simultaneamente, a outra pergunta,

mais venenosa: "Com quem?"

Ele fechou a porta, dessa vez com uma brusqui-

d��o desejada, tentando assim expulsar o sentimento de

instintivo ci��me que o assaltava.

A morte inacredit��vel de Courtin. A ins��lita de-

ser����o da mulher. Tudo parecia ligar-se para derrub��-

-lo. Com os ombros arqueados, os passos incertos, foi

para a sala, direto para o bar e preparou uma dose

grande de u��sque, que engoliu de uma vez. Depois

acendeu um cigarro e foi afundar-se numa poltrona,

com o olhar perdido num passado que lhe parecia ao

mesmo tempo extremamente distante e infinitamente

pr��ximo.

10

O que aconteceu entre Carole e ele chegava ao

absurdo, quase como a morte de Courtin. Uma ferida

moral de nada, mas que, para Carole, tomou propor-

����es desmedidas. Um cortezinho do bisturi da inteli-

g��ncia e do racioc��nio dado a tempo no ferimento de

seu amor-pr��prio, e sua imagina����o n��o teria sido in-

fetada mortalmente. Ela n��o quis dar aquele pequeno

corte de bisturi simb��lico �� ferida do amor deles, ela

deixou-se envenenar, e assim o amor morreu, carre-

gando na mesma est��pida fatalidade sua harmonia pro-

fissional. Carole, que era m��dica ginecologista no hos-

pital onde Fran��ois era cirurgi��o assistente de um

grande superintendente. Carole, ferida, em menos de

quarenta e oito horas encontrou um lugar numa cl��-

nica particular. E aquela foi, para Fran��ois, uma rup-

tura t��o dilacerante quanto a outra, dos lados carnais.

Carole era a mulher mais desej��vel que ele tinha

conhecido; no entanto, desejou uma outra. Oh! N��o

por muito tempo! S�� o ��xtase do momento. Aquela

ere����o espont��nea e totalmente independente do esp��-

rito, completamente dissociada do mental, diante de

uma criatura com certeza menos bonita que Carole. S��

o tempo de obter sua vit��ria de macho e de aplacar

um desejo violento, mas sem nenhuma import��ncia. E

aquela aventura estritamente de pele n��o teria tido ne-

nhuma conseq����ncia se Carole n��o os tivesse surpreen-

dido num beijo, um beijo que era, exatamente, o de

ruptura. Um beijo unicamente ditado por uma esp��-

cia de polidez que, afinal, s�� tinha o jogo eterno do

desejo entre um homem e uma mulher.

Carole mostrou-se implac��vel, sem querer ouvir o

que Fran��ois tentou explicar-lhe durante uma cena

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abomin��vel onde o amor e o ��dio, a ternura e a exas-

pera����o, a do��ura e os insultos combatiam feroz-

mente.

��� Entenda, Carole, foi s�� um incidente na nos-

sa vida. Podia ter acontecido com v o c �� . . . N��s dois

estudamos como malditos na nossa adolesc��ncia. Lem-

bra-se? ��ramos considerados pelos colegas e profes-

sores como os mais bem dotados e os mais brilhan-

tes. Era muito duro, �� verdade, mas o amor que t��-

nhamos um pelo outro dava-nos for��a. Casamos bem

antes da formatura. Foi uma loucura que nem seus

pais nem os meus toleraram, tanto que sofremos como

condenados, mas n��o lig��vamos porque nos am��vamos

e ��ramos um do outro para sempre, para o melhor e

o pior. Juntos, de m��os dadas, atravessamos todos os

obst��culos, galgamos os ��ngremes degraus da nossa car-

reira...

Fran��ois, mais que Carole, estava sem d��vida

mais atrasado no campo do prazer. A vida tinha para

com ele uma d��vida de fantasia, de neglig��ncia, de

"orgia", que provavelmente n��o tinha contra��do com

Carole:

��� Por isso �� que quis dormir com Clara, mal

digamos que foi outro que agiu naquele momento, e

que voc�� n��o est�� frustrada em nada, Carole, meu

amor... Entendo que voc�� sofra, que se sinta cruel-

mente ferida, mas voc�� n��o deve mexer na ferida,

como um animal sem intelig��ncia... Se tivesse acon-

tecido com voc��, eu teria sofrido da mesma forma,

mas teria perdoado,. juro pelo que tenho de mala sa-

grado na terra: voc��!

Mas Carole n��o tinha entendido, n��o tinha admi-

tido.



��� ��� ���

12

Fran��ois arrancou-se da medita����o e foi para o

banheiro, esfor��ando-se para s�� pensar nas opera����es

que ia fazer de manha. Sem ser supersticioso, sur-

preendeu-se vendo a manh�� com o olho ruim, o esp��-

rito atormentado por sombrios pressentimentos. A

morte de Courtin n��o o estaria impressionando mais

do que aconteceria se Carole e ele estivessem t��o uni-

dos quanto antes?

"Por que ela n��o tinha deitado? Era a primeira

v e z . . . " Ele tentava convencer-se de que ela tinha

sido chamada com urg��ncia no meio da noite, de que

a veria de novo ao meio-dia, ou, no mais tardar, ��

noite, mas n��o conseguia. No entanto, tentou incutir-

-se paci��ncia e resolveu ter uma explica����o definitiva

com aquela que, apesar de tudo, continuava sua mu-

lher.

N��o fazia sentido que continuassem a viver sob

o mesmo teto, juntos mas paralelamente, como estra-

nhos bem educados, mas estranhos um ao outro. Ou

ent��o era melhor acabar com aquilo de uma vez por

todas: divorciar. E que cada um refizesse a vida por

um lado. Eles tinham abordado esse assunto de fren-

te. Seria o teste decisivo. Seria a queda total do edi-

f��cio sentimental e material que tinham laboriosa, apai-

xonadamente constru��do. Ou tudo poderia recome��ar,

como no passado.

Fran��ois chegou ao hospital uma hora antes do

previsto para a primeira opera����o.

Uma enfermeira correu at�� ele assim que o viu:

��� Que bom que chegou! ��amos cham��-lo agora

para atender um caso de urg��ncia... Um parto pre-

maturo... A doente foi levada para o quarto 24..

O caso em si �� comum, mas na situa����o particular

acho bastante deplor��vel

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"A�� est��, pensou Fran��ois, a maldita lei do desas-

tre puxando um, o outro, em a����o."

Mas foi com uma voz forte e bem colocada que

ele disse:

��� Vamos ver!





14


Parando num sinal vermelho, Carole percebeu de

repente que estava perto do hospital do marido, ou-

trora tamb��m o dela. Seu cora����o come��ou a bater

mais r��pido e forte, sob o imp��rio de uma emo����o

mais intensa do que ela esperava. N��o tinha preme-

ditado aquele itiner��rio que lhe atirava ao rosto uma

onda de lembran��as amargas e nost��lgicas. E se ti-

vesse podido prever, teria feito um desvio para evitar

aquela esp��cie de confronto com o que estava termi-

nado.

Tendo sido chamada para atender uma urg��ncia

num sub��rbio assim que se deitou, tendo-se demora-

do �� cabeceira de uma doente cujo caso n��o tinha

gravidade org��nica, mas era bastante pesaroso no as-

pecto psicol��gico, Carole tinha preferido terminar a

noite num hotel na entrada de Paris a voltar para

casa. Antes, atravessaria um deserto para chegar at��

Fran��ois. Mas aquele antes n��o existia mais, nunca

mais existiria. Hoje, mesmo quando estavam os dois

no apartamento, que comunica����o era ainda poss��vel?

S�� continuavam ligados por um "sentido de fam��lia".

O sinal abriu. Absorvida pelos pensamentos car-

regados de melancolia, Carole n��o percebeu. Uma bu-

zinada chamou-a �� ordem. Ela saiu, mas s�� para pa-

rar alguns metros adiante, onde, coisa extraordin��ria,

um lugar livre parecia sugerir que fizesse o que cos-

tumava fazer antigamente: voltar ao hospital (cujos

pr��dios e jardim ela via agora) que representava o

universo de Fran��ois e dela mesma.

Antigamente! Era t��o longe ou t��o perto do pre-

sente? Como aquele tipo de avalia����o era relativo, e

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puramente subjetivo! Carole acendeu um cigarro e

teve de fazer um esfor��o para calcular o tempo pas-

sado desde a abomin��vel ruptura. Seis meses. Sim,

remontava a seis meses aquela interrup����o nos ritos

das suas vidas conjugais e profissionais. Simples in-

terrup����o ou ruptura definitiva?

"Seis meses j��! S�� seis meses!" Restava definir

se o tempo passava mais depressa ou mais lentamente

quando se era infeliz, desiludido, sem qualquer espe-

ran��a no futuro, tendo-se perdido a confian��a, a f�� no

ser amado. Os dois sentimentos eram adequados ��

realidade, embora parecessem contradit��rios. De qual-

quer forma, Carole nutria os dois,

"Vou ver Fran��ois ou n��o?" A tenta����o era for-

te, ardorosa. Carole sabia porque hesitava. Sentia-se

ainda ferida demais. Sua ferida ��ntima estava longe

de ter sido cicatrizada. N��o estaria sangrando tanto

quanto no primeiro dia? Tinha total consci��ncia de

que, se tivesse obedecido a um impulso mais profun-

do, j�� teria corrido para junto de Fran��ois, no con-

sult��rio ou na sala de opera����o, estaria totalmente in-

tegrada a ele, n��o teria permitido que uma simples

enfermeira, ou at�� uma anestesista assistente ficasse

junto dele em seu lugar para ajud��-lo a colocar as lu-

vas, a amarrar o avental, p��r a m��scara, enfim subs-

titu�� la em tudo que dizia respeito ao ritual que ante-

cedia o combate da vida contra a morte.

N��o deixava de am��-lo. N��o suportava mais si-

mular a frieza, a indiferen��a. Seu corpo estava gela-

do pela solid��o, enquanto a sensualidade continuava

terrivelmente viva, quente, exigente. "Confesse, minha

pobre Carole, voc�� est�� morrendo de desejo de fazer

o amor." Ela o confessava, mas tinha de inclinar-se

diante da evid��ncia: era Fran��ois que desejava, e ne-

nhum outro. "Voc�� s�� est�� queimando de desejo por

aquele que insiste em recusar. Voc�� optou por um

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papel que n��o lhe conv��m. Imaginou ser mais forte

do que ��. Este �� um esfor��o que est�� impondo para

si mesma h�� tanto tempo e que a desgasta. Mas ainda

se deixa dominar pelo orgulho. N��o quer que Fran��ois

possa imaginar que ainda est�� apaixonada por ele e

que ele pode agir impunemente, humilh��-la, tra��-la,

consider��-la um objeto que se p��e de lado e se igno-

ra �� vontade. No entanto, voc�� s�� pode am��-lo, es-

tar apaixonada por ele. Voc�� o ama ��s escondidas

dele, e talvez tamb��m ��s escondidas de voc�� mesma,

orgulhosa demais, Carole. Voc�� fez do seu amor con-

jugal um amor clandestino, uma dessas paix��es incon-

fess��veis �� qual nos entregamos como a um pecado."

Ela balan��ou os ombros, como se quisesse expul-

sar aquela obsess��o. Esmagou nervosamente o cigarros

no cinzeiro do painel. Ainda n��o tinha dado por en-

cerrado aquela esp��cie de jogo que era jogado dentro

dela pelas advers��rias: duas Carole, duas individualida-

des cuja violenta dualidade n��o conseguia dividi-las to-

talmente. Ainda n��o tinha tomado a decis��o.

Sentindo-se atra��da pela necessidade vital de cor-

rer para Fran��ois, de atirar-se em seus bra��os esque-

cendo tudo que se passou entre eles seis meses antes

e que tinha provocado um div��rcio espiritual, ela re-

tratava-se logo, acusando-se de indignidade.

Se, pelo contr��rio, refugiasse no velho rancor, re-

provava uma obstina����o est��pida, com a qual era a

primeira a sofrer, a ��nica, na verdade. Pois, refletindo

bem, com que facilidade Fran��ois n��o tinha aceitado

a nova situa����o! Veio procur��-la na primeira noite em

que se "exilou" em seu quarto? Certo, na cena tem-

pestuosa que tiveram, ele jurou que s�� amava a ela e

que sua aventura com Clara n��o passou de um "aci-

dente do caminho", sem import��ncia nenhuma, mas

passou a noite toda sem experimentar a irresist��vel ne-

cessidade de t��-la em sua cama, junto dele. E p��de

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dormir sem ela, enquanto ela mordia o travesseiro

inundado de l��grimas...

Carole deu a partida, decidiu continuar seu cami-

nho C o m o se nada tivesse acontecido. Houve um en-

garrafamento. Uma espera intermin��vel. Um desvio

por causa de "homens trabalhando", o que a condu-

ziu inevitavelmente �� rua do hospital, �� entrada do

hospital.

Ent��o n��o teve de decidir nada e achou-se, como

por magia, no estacionamento reservado ao corpo m��-

dico.

* * *

Surpresa, discri����o, as duas excessivas, acolheram

a dra. Carole Damien quando ela entrou no hospital.

Era evidente que a tinham reconhecido, mas ainda

mais evidente que estavam perguntando porque ela

voltava. "Estariam supondo j�� estarmos divorciados?

Clara j�� me substituiu, aos olhos do pessoal?", pensou

Carole, angustiada, exibindo um sorriso que pretendia

ser natural e desenvolto.

A enfermeira-chefe do servi��o de Fran��ois Da-

mien, que estava passando naquele exato momento, di-

rigiu-se logo a ela, com a mesma defer��ncia de antes:

��� Bom dia, doutora. Imagino que queira ver o

dr. Damien...?

��� N . . . �� o . Quero... Bem, eu estava passando.

Carole sentia-se mortalmente embara��ada. A en-

fermeira ajudou-a espontaneamente:

��� Seu marido acaba de chegar. Foi atender uma

doente, um caso de urg��ncia... Ainda n��o foi para a

sala de opera����o, posso avis��-lo de sua presen��a.

18

��� N��o se preocupe! ��� Carole apressou-se a di-

zer. ��� Vo�� esperar meu marido na sala dele.

��� N��o quer mesmo que lhe diga que est�� aqui?

��� Claro que n��o!

E acrescentou, obrigando-se a sorrir:

��� Meu caso n��o tem nenhuma urg��ncia.

A enfermeira sorriu, talvez por coniv��ncia:

��� Nunca se sabe!

A enfermeira afastou-se. Carole foi para a sala

do marido. Sua emo����o cresceu, quando fechou a por-

ta atr��s de si. Junto da sala havia uma outra, reser-

vada ��s consultas privadas, com uma mesa de exame.

Quando trabalhavam juntos naquele hospital, quantas

vezes n��o se fecharam ali, n��o mais que dez minutos,

s�� o tempo de aplacar o desejo brutal que os projeta-

va um para o outro, um no outro apesar de todas as

conting��ncias exteriores?

"Com quem agora ele faz o amor, nessa mesa ou

no canto da porta?", pensou Carole, enquanto a febre

bem conhecida queimava secretamente seu corpo.

Fran��ois era um sensual, um amante-nato, inca-

paz de resistir ao frenesi dos sentidos, fosse qual fosse

o instante em que a flecha de fogo do desejo se plan-

tasse dentro dele. Carole recusava-se a ele h�� seis me-

ses. Talvez tivesse cansado de Clara e rompido com

aquela amante respons��vel por t��o grande estrago, mas

devia t��-la substitu��do. Por quem? Que corpo, que

rosto tinha a nova rival? N��o pertenceria ao corpo

m��dico, como aquela Clara, cantora de uma boite, ou

seria uma das enfermeiras do hospital? Carole n��o to-

lerava essa id��ia, se bem que soubesse que Fran��ois

n��o era homem de abster-se dos prazeres carnais, o

que, ali��s, a decepcionaria obscuramente, pois a ver-

19

dade �� que ela n��o passava de contradi����es desde que

o ritmo de sua vida tinha sido quebrado.

Carole acabou por sentar-se no lugar do marido,

diante da grande mesa de acaju. De repente, viu que

sua fotografia estava de novo na moldura de couro,

aos p��s da l��mpada de cobre.

Seus tra��os contra��ram-se �� lembran��a da cena

atroz na qual ela pegou a velha moldura e jogou-a

no ch��o, quebrou-a, saltando sobre ela, gritando com

uma voz estrangulada pelo desespero e o ci��me:

��� Por que tanto fingimento, se n��o me ama

mais? No seu lugar, ficaria incomodado de beijar mi-

nha amante diante da fotografia da minha mulher! A

n��o ser que precise de meu consentimento, de minha

cumplicidade para estimular-se e ter seu prazer!

E Fran��ois colocou de novo a foto em sua mesa.

Desde quando? Carole n��o podia saber, pois n��o ti-

nha colocado mais os p��s no hospital, desde aquele

dia desastrosamente memor��vel.

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��� O h . . . Carole! O que est�� fazendo aqui?

A voz de Fran��ois fez com que ela erguesse a

cabe��a, de novo mergulhada nas lembran��as:

��� Bom dia ��� disse ela, levantando-se. ��� Eu

estava passando aqui perto ��� acrescentou, evasiva, de-

sajeitada, n��o querendo que ele pensasse que ela ti-

vesse voltado para ele. ��� Avisaram que eu estava

aqui? ��� ela continuou, negligentemente.

��� N��o. Desci direto do primeiro andar. Estou

com um caso p��ssimo. N��o pensei que fosse v��-la...

Ali��s, n��o �� esse caso que �� p��ssimo.

Ele tamb��m estava terrivelmente embara��ado.

Reinava uma grande desordem em seu espirito:

��� Fui ao seu quarto esta noite, precisava de

voc��. Tinha recebido uma not��cia terr��vel: Courtin

morreu. Lembra-se dele, n��o? Um sujeito formid��vel,

insubstitu��vel! Queria falar dele com voc��, mas voc��

n��o estava...

Ele se interrompeu, esperando que ela dissesse

onde tinha passado a noite, mas ela continuou em si-

l��ncio, olhando-o sem que nada em seus olhos tra��sse

o que ela pensava e sentia, ent��o ele prosseguiu:

��� Voc�� n��o chegou em boa hora, minha pobre

Carole! Preciso operar essa jovem. Uma cesariana,

um caso comum, mas que me inquieta particularmen-

te. Essa menina est�� com a m��scara da morte no

rosto. Infelizmente n��o tenho muito tempo para voc��.

Estamos preparando tudo no bloco operat��rio para a

interven����o. Na verdade, n��o esperava v��-la. Algum

21

problema? Precisa de mim? Oh! Carole, estou t��o

desolado de v��-la aqui numa circunst��ncia que pode-

ria ser uma treva na nossa guerrinha, t��o penosa...

Gente como n��s n��o se pertence, voc�� sabe. �� exa-

tamente o caso agora. Vou fazer uma opera����o muito

s��ria. H�� infec����o, febre, e o cora����o �� muito fraco.

��� De que se trata, exatamente? ��� perguntou fi-

nalmente Carole com gravidade, tomada por instinto

pelos imperativos da profiss��o comum aos dois, e es-

quecendo suas preocupa����es pessoais.

��� Uma garota gr��vida de sete meses. As dores

se manifestaram; na verdade, n��o �� t��o prematuro,

mas, o que me preocupa, �� que a coisa n��o desenvol-

ve. A passagem �� mesmo muito estreita, depois, h��

essa febre, esse pulso e esse cora����o t��o fracos...

��� Se vai ser uma cesariana, n��o vejo nada de

t��o terr��vel ��� cortou calmamente Carole. ��� Isso ��

comum. H�� at�� mulheres que a exigem.

��� Claro ��� ele murmurou, preocupado. ��� A

coisa n��o tem nada de terr��vel, mas...

��� Mas?

��� Repito, ela parece uma menina. Est�� apavora-

da e confiante ao mesmo tempo. Est�� com uma bar-

riga enorme num corpinho mi��do, fr��gil, ainda n��o

formado de todo. �� bem impressionante, eu lhe afir-

mo. E os olhos dela! Toda a esperan��a e toda a an-

g��stia do mundo! O que quer, estou com medo! ���

concluiu Fran��ois febrilmente. ��� Essa urg��ncia caiu

muito mal. Acho que �� a morte de Courtin que me

deixou nesse estado.

��� Pode ser! Eu venerava Courtin, mas tenho

de dizer que ele assumiu plenamente sua vida. Para

ele, n��o h�� mais dilemas, enquanto que, para essa crian-

22

��a, para voc��, tudo continua. Uma cesariana? H�� ope-

ra����o mais simples? Abre-se o ventre, tira-se a crian-

��a e a m��e vai embora uns dias depois com seu pir-

ralho!

Carole animava-se, quase ria, empenhada em le-

vantar o moral do marido, anormalmente baixo.

��� �� verdade. N��o h�� opera����o menos perigosa

e que sangre menos. Muitas mulheres dizem preferi-la

a um parto normal. Sem esquecer que, gra��as �� anes-

tesia, �� bem menos dolorosa.

Eles falavam, discutiam como antes, esquecendo

suas queixas pessoais, devotando-se espontaneamente ��

causa universal, a causa comum aos dois.

��� �� uma jovem de vinte anos, mas voc�� lhe

daria dezesseis. Uma crian��a trazendo outra no ven-

tre... �� pungente, creia.

Houve como que uma corrente magn��tica que pas-

sou entre Carole e o marido e que a incitou a sugerir

fraternalmente:

��� Quer que eu v�� ver essa crian��a? Ainda h��

tempo, antes que seja levada para a sala?

Um brilho de gratid��o passou pelos olhos de

Fran��ois.

��� Voc�� faria isso?

��� Por que n��o?

Ele reprimiu um movimento em dire����o a ela,

disse simplesmente:

��� Ela est�� no primeiro andar, quarto 24.

��� Vou at�� l��.

23

Carole j�� estava �� porta. Fran��ois foi at�� ela,

pegou docemente em suas m��os, mergulhou os olhos

nos dela:.

��� N��o sei bem porque voc�� est�� aqui agora, nem

a que devo essa volta inesperada, nem quanto vai du-

rar, mas, seja como for, bendigo este acaso. Obrigado

por querer estar comigo, Carole. Voc�� est�� sendo de

uma grande ajuda para mim neste momento.

��� Fico muito contente ��� disse ela, com uma

voz neutra.

Ele continuava a segurar suas m��os, a olh��-la no

fundo dos olhos:

��� Voc�� aceitaria ficar comigo durante a opera-

����o? ��� ele perguntou, com uma timidez que ela n��o

conhecia nele e que a perturbou profundamente.

Fran��ois era um homem forte, sempre senhor de

si e de seus reflexos. Nunca ela o tinha visto em tal

estado de d��vida e temor. Que lhe tinha acontecido?

Como se tivesse lido a pergunta no pensamento

dela, ele disse de novo, dessa vez soltando suas m��os

e recuando um passo:

��� Repito, a morte de nosso velho mestre Courtin

afetou-me profundamente. N��o estou totalmente dono

de mim. Estou sendo assaltado por sombrios pressen-

timentos. Preciso de algu��m... Precisava de voc�� e

voc�� veio, est�� aqui.

Ele teve de parar de falar, pois a emo����o estran-

gulava sua voz.

��� E. eu ficarei com voc�� enquanto durar a ope-

ra����o, prometo ��� pronunciou Carole com ardor.

24

Depois, evitando uma emo����o muito violenta:

��� Enquanto isso, vou subir ao 24. At�� logo, no

bloco.

��� Obrigado, Carole.

��� De nada ��� respondeu ela friamente.

E saiu. Fran��ois deixou-se cair numa poltrona,

passou a m��o cansada pela testa. A volta totalmente

imprevis��vel de sua mulher ao hospital provocou-lhe

um choque que vinha acrescentar-se ao recebido algu-

mas horas antes, ao saber da morte de Courtin. Que

sentimento a teria movido a essa volta? Pela expres-

s��o glacial de seu rosto, ele n��o podia iludir-se: seu

rancor continuava o mesmo. Naquele dia, exatamente

como h�� seis meses atr��s, ela n��o lhe perdoava sua

aventura com Clara, seu momento de vertigem sensual.

Fran��ois exalou um profundo suspiro. Por que as

mulheres n��o entendiam que um homem n��o as tra��a

em via de regra se, por acaso, cedesse �� tenta����o fu-

gidia de abra��ar um outro corpo, de conhecer o gosto

de uma outra boca, o prazer de outras car��cias? De

acordo com Fran��ois, a verdadeira fidelidade n��o esta-

va no campo f��sico. Tinha suas ra��zes vitais bem mais

profundas, nas regi��es do esp��rito. Sentir o prazer de

um corpo de mulher, num encontro fortuito, era ape-

nas um despertar da sensualidade, esquecida logo de-

pois de um prazer agudo mas breve, sem nenhum pro-

longamento.

Fran��ois tentou explicar isso a Carole. Em v��o.

S�� seus princ��pios irredut��veis sobre o div��rcio, s�� suas

concep����es rigorosas sobre o casamento tinham-na man-

tido debaixo do mesmo teto que o homem cujo nome

continuava a usar, quando aquela uni��o n��o passava

de apar��ncia. Raros eram os amigos e pessoas de suas

rela����es que sabiam daquele div��rcio ��ntimo, pois os

25

dois, diante de testemunhas, afetavam admiravelmente

um perfeito entendimento conjugal. Mas assim que fi-

cavam sozinhos...

"Por que, mas por que ela voltou ao hospital

hoje? continuava a indagar-se Fran��ois. Ela estar�� que-

rendo renovar nossos la��os de outrora?"

Ele n��o ousava acreditar nisso.

Houve uma batida discreta na porta:

��� Entre! ��� ele gritou, levantando-se e recom-

pondo a express��o habitual.

A enfermeira anestesista apareceu:

��� Est�� pronto, doutor?

��� Estou. Voc��s tamb��m, l�� em cima?

��� Estamos todos prontos. S�� esperamos a doente.

��� Minha mulher est�� com ela ��� disse Fran��ois,

n��o sem um certo orgulho.

��� Eu sei. Estou vindo do quarto 24. Sobre isso,

gostaria de perguntar-lhe...

A enfermeira, jovem e bonita, enrubesceu ligeira-

mente antes de prosseguir:

��� J�� que a dra. Carole Damien est�� de novo

aqui, talvez prefira que ela o assista, doutor...?

Fran��ois sorriu fracamente:

��� N��o, Colette. Vamos deixar as coisas como

est��o. M a s . . . agrade��o-lhe por ter pensado nisso.

��� Bem, doutor, ent��o at�� logo.

��� Sim, at�� logo ��� replicou Fran��ois, observan-

do, como se fosse a primeira vez em que a visse, como

26

Colette tinha pernas bonitas e como ondulava harmo-

niosamente os quadris ao andar.

Mas, quando a porta se fechou, ele n��o pensava

mais sen��o naquela "crian��a" cujo ventre ia abrir, per-

guntando-se ansiosamente:

��� O que vou encontrar?

27

Patr��cia sentia-se, ao mesmo tempo gelada e arden-

te. N��o sentia dores. Estava quase bem. Se Johnny

estivesse ali, estaria at�� totalmente feliz, mesmo saben-

do que ia morrer. Pois ela o sabia. Sentia-o. Tinha

a certeza absoluta de que n��o resistiria mais por mui-

to tempo, de que estava vivendo suas ��ltimas horas,

seus ��ltimos minutos. Ela teria o tempo de ser trans-

portada para a sala de opera����es, de ser operada? E

de qu��? De seu beb��, claro, mas seu beb��, o filho de

Johnny, viveria? Na febre, n��o sabia mais discernir se

queria que aquele filho vivesse ou n��o. Tinha um vago

desejo de lev��-lo com ela, em seu ventre, para onde

a morte iria lev��-la. Mas n��o era uma prova de ego��s-

mo? Johnny, que ela tinha mantido na ignor��ncia de

sua gravidez, n��o ficaria louco de alegria quando lhe

colocassem nos bra��os o beb�� que lhe deram?

"Eu devia ter-lhe contado... Fui louca de escon-

der que estava gr��vida. Louca de desaparecer quando

"se via"."

O arrependimento ro��a-a mais que a febre a con-

sumia. Censurava-se amargamente por n��o ter tido bas-

tante confian��a em Johnny. Uma cabe��a esquentada,

certo, mas o cora����o t��o generoso, t��o puro! Ela o

teria de novo. O nascimento do filho teria tido uma

influ��ncia mais salutar sobre ele que todos os serm��es

do mundo!

Com os olhos fechados, Patricia come��ou a cho-

rar, com as m��os abertas no ventre enorme, gemendo

num filete de voz monoc��rdica e tr��gica:

��� Johnny... Meu Johnny... Venha... Esteja

aqui para receber o filho do nosso amor...

29

��� N��o precisa chorar, meu bem... Vai dar tudo

certo, prometo.

Patr��cia abriu os olhos. Quem estava lhe falando

daquele modo t��o calmo, t��o bom?

Inclinada sobre ela, uma mulher desconhecida sor-

ria-lhe e continuava a distilar palavras doces como mel,

quentes como o sol da primavera:

��� N��o se mexa, �� o mais importante. Seu beb��

est�� sendo cabe��udo, querendo seguir s�� a pr��pria ca-

be��a, mas n��s teremos a ��ltima palavra... Sou a mu-

lher do cirurgi��o que vai cuidar desse bebezinho tei-

moso . . . Sou m��dica, cuido especialmente das mam��es

e seus nen��s...

Falando do modo mais tranq��ilizador poss��vel, Ca-

role observava, escrutava intensamente o rosto da jo-

vem m��e. "Uma verdadeira crian��a! Fran��ois tem

raz��o."

Ela sentia o mesmo que ele. Essa Patricia pare-

cia mais uma crian��a que uma mulher, ou at�� uma jo-

vem. Carole entendia a emo����o do marido. Havia

algo de condenado naquele rosto, naquele olhar. Que

injusto e cruel destino tinha lan��ado aquela garota de

vinte anos num leito de hospital para morrer ali? Pois

ela ia morrer, era certo. A marca tr��gica da morte j��

estava gravada naqueles tra��os juvenis.

No instante em que Carole se perguntava se a

vida j�� n��o tinha evadido daquele pobre corpinho enor-

me e m��nimo, pateticamente tornado grotesco pelo ven-

tre inchado por uma exist��ncia incerta, Patricia er-

gueu-se penosamente. Uma fa��sca ins��lita fazia brilhar

seus olhos desmedidamente crescidos, duas manchas de

febre inflamavam as ma����s de seu rosto, enquanto os

l��bios ressecados e fendidos articulavam sob o pre��o

de um esfor��o sobre-humano:

30

��� D��-me papel e caneta... Depressa... Por...

favor.

N��o veio �� mente de Carole opor-se a essa von-

tade. Para qu��? Apressadamente, abriu a bolsa, tirou

o bloco de receitas, tirou uma folha e colocou-a na m��o

de Patr��cia, com sua caneta:

��� Acha que consegue escrever?

��� Eu preciso.

��� Vou ajud��-la.

Ela firmou o travesseiro atr��s dos ombros e das

costas da jovem m��e:

��� Voc�� est�� bem? Posso ajudar em alguma coisa?

��� N �� o . . . Obrigada... Vai tudo correr bem...

Tenho de avisar Johnny, a senhora entende?

��� Sim, meu bem, eu entendo ��� respondeu Ca-

role, sem compreender nada, evidentemente, do drama

de que era testemunha, sem poder imaginar a que pon-

to, em que medida capital, o destino daquela "crian��a"

ia ser importante para a sua vida.

Inspirada por uma instintiva discri����o, Carole

afastou-se do leito, sem tirar dos olhos a doente que

escrevia ela n��o sabia qual misteriosa mensagem, a

pre��o de um esfor��o, de um desgaste de energia que

provocavam surpresa e admira����o. A testa de Patr��cia

cobriu-se de suor, suas narinas e olhos contraiam-se

de um modo impressionante.

"Ser�� que ela vai ter tempo de terminar antes

que venham busc��-la para a sala de "opera����es?" pen-

sava Carole, angustiada.

��� Pronto... Terminado... ��� foram as palavras

de Patr��cia, que dobrou a folha em quatro e deixou-se

cair para tr��s, num suspiro extenuado.

31

Ela acrescentou, num sorriso perturbador:

��� Agora posso morrer.

��� N��o diga tolices. N��o tem nenhum motivo

para falar assim. O que est�� acontecendo com voc��

acontece com tantas mulheres! Vai ter um beb��, o que

h�� de mais natural que isso? Vai passar um mau mo-

mento, certo, mas depois vai esquecer-se logo.

Carole sentou na beirada da cama e pegou a m��o

de Patr��cia nas suas. Estava queimando como fogo.

Sua testa estava coberta por uma transpira����o gelada.

Patr��cia ficava cada vez mais febril.

��� Pare de agitar-se agora ��� ordenou Carole. ���

Meu marido vai oper��-la num instante. Tudo vai cor-

rer bem, prometo.

Patr��cia esbo��ou um sorriso perturbador, ergueu

para Carole um olhar doloroso:

��� Sei que h�� mentiras piedosas, mas sei tamb��m

que vou morrer... E n��o me importo. S�� tenho o

que mere��o. Devia ter confiado em Johnny... Posso

confiar na senhora?

��� Claro! Pe��a o que quiser, minha filha.

Uma contra����o de dor alterou tragicamente os tra-

��os de Patr��cia, enquanto ela estendia a folha de papel

para Carole:

��� Queria que entregasse essa carta para Johnny,

de suas pr��prias m��os, e que isso seja um segredo que

n��o vai contar nunca para ningu��m. Ele n��o sabe de

nada. �� o pai do meu beb��. N��o lhe contei que es-

tava esperando um filho. N��o queria aborrec��-lo. Fi-

quei com medo de que ele ficasse descontente co-

migo.

32



��� Johnny o qu��? ��� perguntou Carole, que via

os minutos passar e temia a entrada, a qualquer mo-

mento, das enfermeiras, vindo buscar a doente.

��� Tem um envelope?

��� Tenho... Acho j �� . . . ��� disse nervosamente

Carole, remexendo na bolsa.

��� N��o tenho mais for��as ��� balbuciou Patr��cia.

��� Escreva a senhora, por favor.

E Carole escreveu, de acordo com o que lhe di-

tava de forma cada vez mais fraca Patr��cia: "Johnny

Pillot, rua Vercing��torix 13, Paris 14.��."

Enquanto isso, Patr��cia pegou alguma coisa de-

baixo do travesseiro e deu para Carole:

��� Tome, doutora... �� uma foto de meu John-

ny... Guarde-a. Assim poder�� reconhec��-lo melhor,

quando for v��-lo.

Carole pegou a foto, deu uma r��pida olhada. Era

um mostrando um rosto bem jovem, muito viril,

com algo de inquietante no olhar, apesar de direto.

Ouvindo o barulho caracter��stico do carrinho no

corredor, Carole colocou r��pido o envelope e a foto

na bolsa, inclinou-se mais uma vez sobre Patr��cia, cujo

olhar febril era uma muda e tr��gica ora����o:

��� Est��o vindo busc��-la para ajudar a colocar seu

filho no mundo ��� disse ela rapidamente e em voz

baixa. ��� �� meu marido que vai opera la, mas vou

ficar com ele, ao seu lado... Cuidarei de voc��... De

qualquer modo, aconte��a o que acontecer, vou ver seu

Johnny e entregar lhe sua mensagem... Manterei o

segredo, aconte��a o que acontecer, prometo. Depois,

voc�� �� que vai v��-lo... Tudo vai acabar se arranjan-

do, garanto-lhe.

33

Carole calou-se. Patr��cia tinha fechado os olhos.

Teria ouvido? Depois a porta abriu-se e as duas enfer-

meiras entraram puxando o carrinho onde colocaram

a doente, sem uma palavra, com a face impass��vel.

Carole saiu do quarto e foi rapidamente para o

elevador, para ter tempo de preparar e estar junto

do marido quando o "comboio" entrasse na sala de

opera����es.

34

Foi com uma emo����o nova que ela entrou na sala

familiar coberta de ladrilhos azuis at�� o teto. Debaixo

da cial��tica, o enorme farol pendido no teto, de onde

ca��a um raio de luz sem sombra, a atmosfera estava

banhada por uma claridade fria, estranhamente azulada

sobre a mesa de opera����o, toda branca e nua, com seus

pedais, ataduras, correias, toda a sua aparelhagem, que

fazia pensar irresistivelmente numa sombria m��quina

de torturas e supl��cios.

Quando Carole entrou, a enfermeira-anestesista es-

tava acabando de lavar as m��os com ��lcool, enquanto

a enfermeira-instrumentista estava acabando de prepa-

rar as caixas com os instrumentos necess��rios.

Carole procurou seu marido com o olhar, ele apa-

receu, vindo da salinha de esteriliza����o, agitando as

m��os desinfetadas, com o avental n��s bra��os, esperan-

do que a assistente viesse ajud��-lo pois, esterilizado,

limpo, n��o podia tocar em nada que pudesse suj��-lo.

O reflexo de Carole foi imediato:

��� Espere! ��� ela pronunciou surdamente.

Ele entendeu sua inten����o e esperou, fazendo sinal

�� assistente de que n��o precisava mais dela. Logo,

Carole, tamb��m esterilizada e limpa, veio pegar o aven-

tal dos bra��os de Fran��ois e vestiu-o nele, tendo o

cuidado de n��o toc��-lo, de n��o ro��ar nele. Depois,

com as mesmas precau����es infinitas, amarrou os cor-

d��es do avental em suas costas, pegou o capuz bran-

co, colocou-o na cabe��a de Fran��ois, esfor��ando-se pa-

ra fazer com que cobrisse totalmente os cabelos.

35

Im��vel, silencioso, fazendo pensar num padre de

uma esp��cie de religi��o, Fran��ois deixou-a agir, seguin-

do seus movimentos com uma pupila aguda e aprova-

dora.

Depois foi a vez das botas de tecido de uma bran-

cura imaculada, que ela insistiu em cal��ar, depois a

m��scara, uma esp��cie de babador branco que escondia

o queixo, a boca e o nariz at�� os olhos.

��� Obrigado, Carole ��� murmurou Fran��ois bai-

xinho, s�� para ela.

Naquele instante, sua assistente veio apresentar-lhe

uma grande caixa de n��quel:

��� Suas luvas, doutor ��� ela pronunciou com res-

peito.

Foi Carole que apressou-se em peg��-las e vestiu-as

nele.

��� Obrigado, Carole ��� disse ele pela segunda

vez, com uma voz mais profunda, mais segura.

Ela sorriu-lhe do fundo da alma naquele instante

em que ele parecia um cavaleiro armado imaculadamen-

te, com vistas ao combate mais fer,oz e mais nobre: o

da vida contra a morte.

Eles foram para a mesa de opera����es, onde Patr��-

cia estava estendida, inteiramente nua, burlesca e tr��-

gica com seu ventre enorme, seus longos cabelos espa-

lhados e colados pela febre. Estava deitada como um

destro��o deslocado, com os bra��os seguros por correias

de pulso. Dois afastadores mantinham-lhe os bra��os,

dois outros as coxas, dois os ombros.

Uma enfermeira estava acabando de amarrar a

correia s��lida debaixo da mesa. Todos os "soldados"

de uniforme branco estavam ali, prontos a come��ar

36

a luta, l��vidos sob a luz azul espectral que banhava a

sala.

As caixas de n��quel foram apresentadas ao cirur-

gi��o que, com a ponta dos dedos enluvados, come��ou

a mexer nelas, procurando os instrumentos necess��rios:

objetos diversos luzentes, belos de se ver mas impres-

sionantes, pois feitos para cortar, esmagar, arrancar...

Quando escolhia um, colocava-o na tampa virada e,

no grande sil��ncio reinante, ressoavam estranhamente:

pin��as, bisturis, afastadores, v��lvulas,. apreensores, agu-

lhas, fios de a��o, tubos de borracha, uma orquestra

bem singular, composta de instrumentos b��rbaros que

iam dali a pouco entoar alguma cantata de ressurrei-

����o ou alguma marcha f��nebre...

�� enfermeira-anestesista colocou a m��scara no

rosto de Patr��cia, cujo cora����o via-se bater por baixo

das costelas, �� flor da pele. A cada inspira����o e ex-

pira����o, via-se o bal��o atado �� m��scara inchar-se e es-

vaziar como o cora����o de um animal fenomenal. Com

os dedos atr��s do maxilar, a anestesista "luxava" o ma-

xilar, para impedir a l��ngua de cair no fundo da boca.

Com uma pin��a, Fran��ois pegou um peda��o de

algod��o que ele molhou em tintura de iodo e com

o qual pincelou o ventre da jovem m��e.

Esta tinha fechado os olhos e parecia, mais que

nunca, uma v��tima, uma criatura pronta para a imo-

la����o.

Com o olhar acima da m��scara, Fran��ois interro-

gou a anestesista. Esta, com o dedo, levantou a p��l-

pebra da doente, colocou o dedo no branco dos olhos.

Patr��cia n��o se mexeu.

��� Pode come��ar ��� disse brevemente a enfer-

meira.

37

A enfermeira-assistente tinha pintado o campo ope-

rat��rio no ventre todo de Patr��cia. Fran��ois pegou um

bisturi e, num golpe certo, abriu a pele deixada a nu

no centro dos pequenos quadrados de tecido azul.

Aberta, a pele s�� mostrou, inicialmente, uma ca-

mada de gordura branca. Quase n��o houve sangue.

Num segundo golpe de bisturi, o cirurgi��o cortou aque-

la camada de gordura sob a qual apareceu a apone-

vrose de tez nacarada.

Num terceiro golpe de escalpelo, ele fendeu-a.

Como sempre, o sil��ncio s�� era rompido pelo ba-

rulho met��lico dos instrumentos apanhados e recoloca-

dos na tampa virada da caixa de n��quel.

Depois, de repente, a voz breve do cirurgi��o, re-

clamando:

��� Tesouras!

Recebeu uma na m��o, como por magia. Sem he-

sitar, em dois movimentos, um em dire����o aos p��bis,

outro para cima, aumentou o corte. A membrana fina

e amarelada do ep��ploo, que cobria a massa rosa do

intestino, apareceu parcialmente. Mais baixo, a massa

globulosa e arredondada do ��tero.

Come��ou a aparecer sangue, ao tocar-se, aqui e

ah, numa arteriola.

��� Pin��as!

Ia us��-las para segurar os l��bios da abertura, pe-

gar a pele e os quadrados de tecido que a seguravam.

Quando uma arteriola come��ava a sangrar, ele esma-

gava-a logo com uma pin��a que deixava ah, presa ��

carne.

Bruscamente, Patr��cia, do fundo de sua incons-

ci��ncia, come��ou a tossir. Simultaneamente, a mem-

38

brana e um grande pacote de entranhas sa��ram. As

duas m��os do cirurgi��o comprimiam com toda a sua

for��a o am��lgama de carnes sanguinolentas. Depois

ele ordenou,, com a voz enrouquecida.

��� Virem-na!

Uma alavanca foi manobrada. Toda a mesa mo-

vimentou-se, deixando Patricia em posi����o invertida,

com a cabe��a para baixo e os p��s para cima. A massa

do intestino entrou novamente na cavidade abdominal.

Invenc��vel, a ang��stia apossava-se de Carole. O

pressentimento do marido tinha fundamento. Aquela

era uma opera����o "cat��strofe" por excel��ncia. Era pre-

ciso ter preparado a doente, feito an��lises, t��-la inter-

rogado sobre as condi����es do parto, informar-se sobre

seus antecedentes, etc. Carole refletia nas confiden-

cias feitas por Patricia alguns minutos antes: era pro-

v��vel que no come��o ela tivesse querido evitar aquela

gravidez indesej��vel, tentar abortar sem dizer nada a

ningu��m, sozinha, com os meios dispon��veis, sempre

desastrosos...

Carole ouviu nitidamente o suspiro de Fran��ois,

enquanto ele voltava ao "trabalho". Olhou ansiosa-

mente para ele: seu rosto estava duro, tenso. Ainda

que s�� o visse parcialmente, compreendia-o pela expres-

s��o terrivelmente atenta dos olhos. Gra��as a Deus,

suas m��os conservavam a firmeza, a seguran��a! Pro-

gredindo prudentemente, ele reparava os bordos do pe-

rit��nio com pin��as erinas.

Bruscamente, sem motivo aparente, a massa im-

pressionante do intestino saiu pela segunda vez.

��� Droga! Que azar! ��� resmungou o cirurgi��o

entre-dentes.

Ningu��m da equipe de branco dizia uma palavra.

As respira����es estavam suspensas. Carole teve a im-

39

press��o reconfortante de que todos se uniam ao m��-

dico, de que n��o cessavam de confiar nele, acontecesse

o que acontecesse naquela interven����o atingida anteci-

padamente pela fatalidade, talvez...

��� Um pano! Mais r��pido, meu Deus!

Ele pegou no v��o o tecido branco est��ril que lhe

passaram, aplicou-o com todas as suas for��as no intes-

tino, esfor��ando-se para faz��-lo voltar todo para o ab-

d��men, os dedos empurrando rudemente as entranhas,

enfiando o m��ximo que podia os quadrados de tecido.

��� Afastadores!

Era s�� o tempo de pedir, e o que exigia estava em

suas m��os. N��o se podia agir mais rapidamente. To-

das aquelas vidas estavam suspensas numa s��, a que

estava aberta como um animal no matadouro e que

s�� tinha ainda, de realmente humano, a massa dos

cabelos jorrando como alga no vazio, at�� tocar, com

as pontas, o ladrilho. Os dedos do cirurgi��o mergu-

lharam entre as, paredes do corte um afastador para

mant��-lo aberto e segurar a bexiga.

Uma enorme massa de um rosa vinoso, tensa, con-

gestionada, apareceu no fundo da chaga aberta. Era a

matriz, com a crian��a dentro.

Uma crian��a que tinha deixado de viver.

Havia algo de alucinante no espet��culo daquela

crian��a morta antes de ter vindo ao mundo e cujo

ber��o sinistro parecia ser constitu��do de pin��as de to-

dos os tipos, um movimento de n��queis luzentes e frios

sob o c��u azul dos tecidos esterilizados tragicamente

salpicados por manchinhas de sangue.

O beb�� estava inegavelmente morto. Mas a m��e

ainda vivia. Fran��ois parou um instante, inspirou fun-

do antes de perguntar �� anestesista:

40

Enquanto perguntava, ele olhava a bexiga de por-

co atada �� m��scara respirat��ria. Ela s�� se enchia muito

fracamente. Patr��cia respirava, evidentemente, muito

mal, com dificuldade e lentid��o.

A anestesista pegou sua l��ngua com uma pin��a

puxou-a, deixou-a pender para fora. Depois recolo-

cou a m��scara. A bexiga recome��ou a inchar e a de-

sinchar quase normalmente:

��� Est�� tudo bem ��� pronunciou brevemente a

anestesista.

Fran��ois deu mais um profundo suspiro e, sem

hesitar, abriu o ��tero e o envelope membranoso. Uma

cabe��a bem redonda apareceu, um craniozinho j�� com

cabelo mas molhado e pegajoso como o cr��nio de um

cabritinho, afogado no fundo da chaga viva onde as

m��os do cirurgi��o avan��avam-se, introduziam-se, apos-

savam-se do pescocinho vermelho e enrugado com pre-

cau����es ao mesmo tempo rudes e cheias de um mis-

terioso fervor. Dedos que erguiam, tiravam com cui-

dado e for��a o que j�� estava morto, mas que devia

ser apresentado �� vida, ao mundo dos vivos, ao me-

nos por alguns instantes: uma crian��a.

E a crian��a apareceu, arrancada das carnes do

ventre da m��e amarrada como um animal para a vi-

vissec����o, arroxeada, com seu traseirinho de coelho

descarnado, com sua perturbadora caricatura de cai-

xa tor��xica que nunca animaria o menor sopro de

vida. O que aquele embri��o de homem (era um ga-

roto) tinha de viver, viveu no seio da m��e, daquela

m��e que era, ela mesma, uma m��e-crian��a.

Arrancado das carnes da m��e com um som mole

de carne ��mida, o beb�� foi passado a uma enfermeira

41

depois de Fran��ois prender o cord��o umbilical entre

duas pin��as e cort��-lo com a tesoura.

Sem se preocupar mais com aquele homenzinho

que nunca seria inscrito em nenhum estado civil, Fran-

��ois ativou-se junto do ventre aberto da m��e. Come-

��ava a brotar sangue. Demais. Muito mais do que

j�� tinha visto. O que n��o corria bem? Um erro dele?

Imposs��vel. Uma rasgadura? Nesse caso, ele n��o po-

dia fazer nada.

��� Agulhas! ��� pediu, com a voz oprimida.

Era preciso suturar as duas trompas unindo seus

bordos para interromper a hemorragia iminente.

Come��ou a remexer nas carnes mas seus dedos

perdiam-se na composi����o espessa e vermelha. Como

absorver todo aquele sangue? Como tentar encontrar

alguma coisa ali?

"Uma cesariana n��o sangra tanto normalmente?"

��� Compressas!

Os panos amontoavam-se, logo vermelhos. A he-

morragia progredia. O sangue brotava de todos os

lados.

��� Compressas, meu Deus, compressas!

Mas a mar�� p��rpura subia inelutavelmente, trans-

bordava, corria pelo peito da m��e virada de cabe��a

para baixo, abria implacavelmente uma passagem san-

grenta entre os seios, debaixo do bra��o, insinuava-se

pela garganta, atr��s das orelhas, ia inundar os cabelos

lastimosamente impregnados de rubi l��quido.

Todos continuavam inclinados sobre aquele pobre

ventre martirizado, no interior do qual n��o se via mais

42

nada, al��m daquele fervilhar de sangue, daquela exis-

t��ncia humana que se esva��a inexoravelmente.

A histerectomia era o ��ltimo rem��dio, e Fran��ois

pensou nela. Mas onde encontrar os ligamentos para

pin��ar as art��rias no meio daquele borbulhar p��rpura?

Patr��cia come��ou a agonizar tragicamente. Fran-

��ois pegou seu punho. Nenhum pulso. Uma transfus��o

impunha-se. Precisava de um "doador" de urg��ncia.

"N��o h�� tempo, pensou Fran��ois. Ela n��o vai estar

com mais nenhuma gota de sangue quando ele chegar,

ou at�� antes."

��� O pulso est�� parando. Ela est�� morrendo ���

anunciou a anestesista, surdamente.

��� Compressas! Pin��as! ��� resmungou Fran��ois,

mas automaticamente, pois agora ele sabia que o com-

bate estava perdido.

N��o havia mais nada a fazer. E o mais desola-

dor, o mais revoltante era que ele n��o entendia por-

qu��. Todo o seu conhecimento, tudo que tinha apren-

dido sobre o organismo humano estava bruscamente

reduzido a zero.

O rosto de Patr��cia tomou uma cor de cera. Ti-

nha aberto os olhos, mas era um olhar em revuls��o

que lan��ava ��s cegas em torno de si, em todos aqueles

rostos pregados ao dela e que ela n��o veria mais, a n��o

ser do outro mundo, cujo batente misterioso e j�� en-

volvido pelas trevas do nada ela estava atravessando.

De seus l��bios ressecados exalou um ��ltimo suspiro:

��� Johnny...

O bal��o parou completamente de inchar e desin-

char.

43

Foi Carole que se inclinou e recolheu o ��ltimo

suspiro daquela boca de crian��a-v��tima, enquanto seu

marido pegava a m��ozinha que pendia, inerte e ma-

culada por um sangue que escurecia numa velocidade

vertiginosa.

Ele n��o se resignava em admitir a terr��vel, a in-

justa evid��ncia. Tudo nele recusava-se a crer que tudo

estivesse assim terminado, tolamente, inexplicavelmen-

te, quando tudo tinha sido feito para que sobrevives-

sem a crian��a e a m��e. Aquela jovem mam��e de

vinte anos, que n��o passava agora de uma carne pal-

pitante, aberta, ensang��entada, tragicamente tingida de

p��rpura e carmim.

Com um movimento brusco de sombria perturba-

����o, ele arrancou-se da sinistra contempla����o, foi afun-

dar-se num banco, pegou a cabe��a com as m��os, ge-

meu, respirando o enjoativo cheiro do sangue, com

que seus dedos e punhos estavam maculados:

��� Que mais eu podia fazer? Ela j�� chegou con-

denada. Em minha alma e consci��ncia, juro que fiz

tudo que .podia fazer. T��m de acreditar em mim. Se

me considerasse respons��vel por seja l�� o que fosse,

seria o primeiro a confess��-lo. Mas n��o �� isso, n��o ��

isso...

Sua ang��stia de m��dico era pungente de ver e

ouvir-se. Carole tinha corrido para Fran��ois, envolvia

seus ombros curvados com um gesto vasto, envolven-

te, solid��rio:

��� Cale-se. N��o diga mais nada. Voc�� fez o que

tinha de fazer. Todo o resto n��o lhe diz respeito. S6

Deus ��, ou n��o ��, o culpado.

Enquanto falava, Carole tinha-se colocado de

modo que seu marido n��o visse o que se passava na

sala: aquela esp��cie de l��gubre cerim��nia que consis-

44

tia em dar de novo uma forma "humana" ��quele cor-

po aberto. Cerim��nia l��gubre, certo, mas que era ins-

pirada pelo respeito ao indiv��duo, uma sublime piedade,

um sentimento de caridade profunda para com o ser

humano que um Deus de des��gnios impenetr��veis jul-

gou dever chamar para si.

Iam recosturar as terr��veis carnes inutilmente cor-

tadas, fechar de novo a pavorosa fenda do ventre mas-

sacrado em v��o, lavar todo o corpo, limpar cuidadosa-

mente as coxas, os bra��os, as pernas, os cabelos, o

rosto, onde espessos co��gulos de sangue tinham-se for-

mado.

A mesa foi virada de modo a recoloc��-la na posi-

����o horizontal. E quando terminou toda aquela dra-

m��tica toilette, pegaram-na e carregaram-na num ��l-

timo enla��o, um ��ltimo abra��o...

Sem querer, Carole virou-se no momento em que

ouviu os passos dos enfermeiros e enfermeiras saindo

do bloco operat��rio. Viu Patr��cia nos bra��os dos que

a carregavam. Seus bra��os balan��avam-se lentamente,

docemente, no vazio. Seus belos cabelos lavados agita-

vam se, como que embalados por uma brisa leve. Pa-

tr��cia tinha o ar de uma crian��a adormecida mas viva

e confiante nos que a levavam.

"Confiante em mim, a quem confiou seu segredo

antes de morrer", pensou Carole, jurando nunca tra��-

-la contando-o, ser fiel ao juramento a pre��o de sua

pr��pria-exist��ncia.

45

��� Acontece raramente comigo, n��o salvar um

caso desesperado... Acho at�� que �� a primeira vez.

��� Teria de acontecer, um dia ou outro... Di-

gamos que foi privilegiado at�� hoje.

��� Sinceramente, voc�� n��o acha que sou respon-

s��vel em algum aspecto?

��� Claro que n��o.

��� N��o est�� mentindo? N��o est�� sendo motivada

por... um sentimento de caridade?

��� Oh! N��o!

��� Entendo... Sua tend��ncia seria acusar-me, se

tivesse tido a menor oportunidade...?

��� N��o seja tolo, sim?

Carole e Fran��ois estavam frente a frente na sala

do cirurgi��o, depois da dram��tica opera����o. Patr��cia

e seu beb�� j�� tinham entrado para o universo dos "ine-

xistentes". E j�� se surpreendiam de estar sozinhos em

causa, quer dizer, a vida, a vida deles voltava a estar

acima de qualquer coisa, apesar de todas as mortes.

��� O que est�� fazendo agora? ��� perguntou Fran-

��ois com uma certa brusquid��o.

Ela hesitou antes de responder:

��� Nada de especial. E voc��?

��� Tamb��m.

47

Houve um sil��ncio embara��oso, de uma parte e

de outra. Foi Fran��ois que encadeou:

��� Acho que, j�� que voc�� teve a boa id��ia de

passar por aqui, pod��amos terminar o dia juntos... ?

��� Por que tilo?

��� Voc�� est�� livre?

��� N��o de todo, mas com nada de urgente. E

voc��?

��� Tamb��m eu.

��� E ent��o, o que decidimos?

Ele n��o respondeu imediatamente. Olhava-a.

Como se a reconhecesse para al��m de um tempo con-

sider��vel. Ela continuava bela e desej��vel. Ele sur-

preendeu-se desejando-a com mais acuidade do que se

acabasse de viver momentos de intensa febre interior.

Fran��ois era muito sens��vel ao clima exterior, fosse

ele de alegria ou de drama. Acontecia o mesmo com

sua sensualidade. Depois daquela interven����o cir��rgi-

ca desastrosa, a presen��a de Carole tinha o dom de

agu��ar particularmente seus sentidos. Em resumo, ti-

nha um terr��vel desejo de fazer o amor com ela.

Carole tamb��m come��ava a sentir uma alegria es-

quecida. Tudo nela passava-se como se seu esp��rito se

dobrasse para deixar toda a preponder��ncia a sua sen-

sualidade muito cedo e por muito tempo frustrada.

Tinha a necessidade essencial de sentir seu corpo abra-

��ado, apertado, querido por bra��os conhecidos, pene-

trado por uma for��a familiar. A pequena chama per-

manente que a consumia s�� podia ser apagada pelo

homem cujo nome usava. Talvez fosse rid��culo, mas

era assim. E aquele homem estava ali, ao alcance da

48

sua m��o, dos seus l��bios, do seu desejo de mulher...

Por que o recusaria? Uma violenta emo����o, estranha

a eles, havia impelido um para o outro. O que havia

mais a exigir? O mais s��bio, o mais inteligente, o mais

humano n��o era obedecer, ceder ��quele impulso do

instante? E havia necessidade de antecipar o instante

seguinte?

Fran��ois desejava-a como ela queria a ele, que-

ria senti-lo nela, vivo, palpitante, vibrante, no fundo

dela. Carole morria de desejo e de vital necessidade

daquela tomada de possess��o carnal. Ao diabo os fan-

tasmas do esp��rito e, principalmente, da imagina����o!

��� Fran��ois, meu querido... ��� murmurou ela,

com a voz rouca e os bra��os estendidos.

��� Carole... ��� ele respondeu de igual modo,

aproximando-se.

Ela estava apoiada na mesa. Ele abra��ou-a, en-

volveu-a, inclinou-se, com a boca pedinte:

��� Voc��...

��� Querido...

E suas duas vozes tiveram a mesma vibra����o rou-

ca e repleta de desejo sensual.

Ele atraiu-a para si com uma viol��ncia que ele

n��o tentou controlar:

��� Desejo voc��..

��� Eu tamb��m.

Eles n��o procuravam mais manter uma apar��ncia.

Precisavam fisicamente um do outro.

49

Ele abra��ou-a estreita e rudemente. Sua m��o su-

biu ao longo das costas, deslizou febrilmente sob os

cabelos, a nuca encalorada. Seus dedos unharam a

raiz dos cabelos com uma maldade toda sensual.

Colaram-se um ao outro violentamente, procuran-

do um contato cada vez mais pr��ximo. Ela sentiu ime-

diatamente o forte impulso de seu desejo bater pode-

rosamente em sua coxa, na passagem que ela abriu

com o joelho, voluntariamente.

Ela teve um movimento para a frente, com todo

o corpo, em sinal de aquiesc��ncia total a seu desejo

de macho, desejosa de lhe provar que j�� estava intima-

mente aberta �� viril intrus��o, ao retorno da invas��o

carnal muito cedo perdida e enfim reencontrada.

Beijaram-se profundamente. Do intermin��vel bei-

jo exalou e subiu um longo gemido feliz, a profunda

e ardente melodia que seus corpos punham-se a can-

tar, de novo reunidos e prontos para o casamento sen-

sual.

Fran��ois apoiava-se cada vez mais fortemente em

Carole, fazendo-a curvar-se para tr��s, quebrando-a em

duas no c��rculo de ferro de seus bra��os. Suas l��nguas,

respira����es, salivas, confundiam-se selvagemente, en-

quanto que os olhos semi-fechados espreitavam-se, ob-

servando um no outro a subida da vol��pia comum.

A veem��ncia febril daquele abra��o imprevisto era

tamanha que oscilavam como que sacudidos por um

vento forte de tempestade, deixando-se balan��ar para

a frente e para tr��s, num esquecimento total e abso-

luto do resto do mundo.

De repente, Fran��ois mordeu violentamente a l��n-

gua de Carole. Ao golpe da dor aguda, ela soltou um

grito instintivo, tentou soltar-se de um abra��o que a

50

quebrava, ao mesmo tempo que a encantava. Fran��ois

perdeu o equil��brio, tentou abra��ar de novo Carole,

fez um falso movimento, bateu em alguma coisa dei-

xada num canto da mesa, contra a qual ainda manti-

nha a mulher prisioneira. O objeto caiu no tapete, era

a bolsa de Carole. O conte��do espalhou-se: um enve-

lope, uma fotografia.

O reflexo de Fran��ois foi instant��neo e, a bem

da verdade, bastante normal: abaixou para juntar o

que caiu. Viu imediatamente a letra de Carole no en-

velope, o nome e o endere��o escritos ali, depois a fo-

tografia de um homem.

Carole tamb��m abaixou-se para pegar aquilo que

n��o devia cair em m��os estranhas, protestando com

uma voz estrangulada pela perturba����o:

��� Deixei

S�� aquele protesto seria suficientemente expl��cito

para que Fran��ois entendesse que Carole tinha algo

de essencial a esconder-lhe. Mas ele obstinou-se, fu-

riosamente intrigado, sem o tato e a discri����o costu-

meiros. P��de ver o jovem e viril rosto do rapaz, virar

a foto e ler, como em letras de fogo: "Para voc�� que

amo mais que tudo no mundo, Johnny."

��� Voc�� n��o tem o direito! D��-me isso imediata-

mente! ��� Carole continuava a gritar, disputando sel-

vagemente aquilo que devia, custasse o que custasse,

permanecer o segredo de Patr��cia e o seu.

Fran��ois soltou. Podia, fisicamente, ser o

mais forte. Mas seu orgulho, seu amor-pr��prio, sua

suscetibilidade colocaram-se logo acima de todos os

outros sentimentos e at�� de seu desejo. Ele se ergueu.

Seus olhos readquiriram a express��o de dureza e frie-

51

za diante de uma Carole contra��da, apertando nas

m��os a prova flagrante de sua trai����o:

��� Desculpe ��� ele pronunciou num tom glacial.

Sem dizer uma palavra, ela colocou a carta e a

foto na bolsa, que fechou com ci��mes. Um sil��ncio

estabeleceu-se, como que carregado de eletricidade.

Fran��ois tinha desviado os olhos, muito p��lido. Ca-

role arrumava-se febrilmente.

Quem seria o primeiro a romper o sil��ncio? Foi

Fran��ois:

��� Na verdade ��� ele dise com uma voz de re-

pente neutra e totalmente impessoal ��� tinha esqueci-

do completamente de que voc�� e eu ��ramos duas indi-

vidualidades bem distintas uma da outra. Sou imper-

do��vel. Tinha esquecido que n��o estou livre, nem esta

tarde nem esta noite.

Ele suspirou com uma n��tida ostenta����o, teve um

sorriso desajeitado, que se pretendia ir��nico e que n��o

passava de uma careta:

��� Decididamente, a morte dessa garota me de-

sorientou! N��o me queira mal, por favor. Deixo-a

com suas ocupa����es. Pode ir quando quiser.

��� Certo! ��� disse ela, muito p��lida tamb��m, di-

rigindo-se imediatamente para a porta.

Ele acompanhou-a com um olhar sombrio e quan-

do a viu atravessar o batente, disse de forma precipi-

tada:

��� De qualquer forma, ficaria reconhecido se n��o

se esquecesse de que temos visita depois de amanh�� ��

noite. E que gostaria muito de que tudo se passasse

como sempre, em rela����o a nossos amigos.

52

��� Certo! ��� disse ela, pela segunda vez, ainda

mais friamente.

Virada para ele, com a m��o na ma��aneta da por-

ta, ela deixou pesar sobre ele um olhar de desprezo e

��dio:

��� Fa��o a mesma quest��o que voc�� de salvar as

apar��ncias, querido. Bye bye!

E a porta bateu.

Sem pensar no que fazia, Fran��ois correu para a

janela. Ela dava diretamente para o estacionamento

reservado aos m��dicos e cirurgi��es do hospital. Viu

Carole subir no carro, sem nenhum olhar para a ja-

nela da sala do marido, colocar-se no volante, acender

um cigarro antes de dar a partida. "Como se tornou

estranha a mim, irremediavelmente estranha!" pensou

Fran��ois, invadido pela amargura.

Ele sentiu vergonha de t��-la desejado t��o violen-

tamente um pouco antes. No entanto seu desejo con-

tinuava, tenaz, ardente como uma febre m��. Agu��ado

sorrateiramente pela vis��o fugaz daquele rosto de ra-

paz desconhecido, jovem, viril, de olhar ousado, e so-

bretudo obscuramente obcecado pela dedicat��ria que

teve tempo de ler: "Para voc�� que amo mais que tudo

no mundo, Johnny." Ent��o Carole tinha um amante,

mais jovem que ele, mais jovem que ela tamb��m. E

aquele Johnny amava-a mais que tudo no mundo!

"Como ele lhe faz o amor? E ela? Como ela vibra

em seus bra��os, murmura quando o tem dentro de si,

a arrancar-lhe espasmos de prazer?"

Fran��ois sentia-se devorado, cercado, inflamado.

Devorado por um ci��me vergonhosamente excitante.

Cercado pelas chamas de um desejo abrasador e insa-

tisfeito. Devorado por uma necessidade primitiva de

53

vingan��a, de obscura revanche sobre aquela mulher

que era a dele, que usava seu nome e que acabava de

humilh��-lo no que um homem tem de mais poderoso

e de mais vulner��vel: sua virilidade de macho.

Ele n��o podia continuar assim, tenso, queimando,

palpitando, dolorido. Pensou em Clara, aquela aman-

te que ele mantinha por for��a das circunst��ncias, por-

que Carole, com sua intransig��ncia cega, tinha-a im-

posto a ele, mesmo depois que ele n��o teve mais a

aut��ntica necessidade de rev��-la e de possu��-la. Sem

ter muitas ilus��es, Clara continuava dispon��vel, e Fran-

��ois sabia-o, pois bastava um telefonema e ela dizia-

-lhe para vir. Mas tinha de esperar at�� a noite. Todo

um dia para passar com aquela febre no v��o dos rins,

aquela tens��o obstinada tornada ainda mais virulenta

depois das emo����es contradit��rias que o tinham assal-

tado! Conseguiria esperar at�� l��? Que recurso resta-

va-lhe, sen��o dar a si mesmo o prazer para o qual

toda sua for��a de homem continuava dirigida, tensa e

palpitante?





54


��� Oh!... Desculpe, doutor...

Fran��ois virou-se bruscamente, exclamou com

uma voz ensurdecida pela surpresa:

��� �� voc��, Colette? ��� disse ele, com a voz um

pouco perdida.

��� Eu bati... Como n��o respondesse, pensei que

tivesse sa��do com sua mulher... Desculpe ��� repetiu

a jovem enfermeira, cujas faces tinham ficado carmim.

��� N��o tem do que desculpar-se. N��o a ouvi ba-

ter, �� tudo. N��o precisa ficar t��o perturbada.

Colette continuou junto �� porta, visivelmente he-

sitante, sem saber se devia ficar ou sair. Fran��ois di-

rigiu-se para ela:

��� Entre, mas entre logo, menina. Queria ver-

-me? Por qu��? Fale. N��o precisa ficar com essa cara.

��� Estava preocupada com o senhor... A ope-

ra����o foi t��o desastrosa! Queria dizer-lhe que n��o teve

nada com aquela derrota... Fez tudo que era huma-

namente poss��vel fazer...

Enquanto falava com uma voz picada, olhando o

cirurgi��o com um olhar estranhamente brilhante, a en-

fermeira tinha entrado, fechado a porta atr��s de si,

dado alguns passos at�� o centro da sala.

Fez-se um sil��ncio que nem um nem outro tive-

ram a id��ia ��� ou o desejo ��� de romper. Entre eles

alguma coisa edificava-se rapidamente, informul��vel

mas que mais nada viria interromper. Suas vozes ti-

nham-se calado, mas seus olhares continuavam a falar,

55

a trocar sua muda linguagem, enquanto cada um dava

os passos destinados a coloc��-los frente a frente, cada

vez mais perto, peito unido a peito, boca a boca, h��-

lito a h��lito, m��os estendidas, bra��os abertos, impulso

contra impulso...

O encontro deu-se na mesa, a poucos cent��me-

tros do lugar onde Fran��ois, um pouco antes, tinha

abra��ado selvagemente Carole. E foi tamb��m selva-

gemente que ele abra��ou a enfermeira, tanto �� verda-

de que os abra��os ditados s�� pelo desejo de pele tor-

nam-se impessoais no fulgurante instante em que os

corpos se p��em frente a frente.

Ela n��o ofereceu nenhuma resist��ncia. Sua cintu-

ra curvou-se imediatamente para tr��s. Com a m��o

impiedosa Fran��ois levantou o avental junto com a

saia at�� a cintura. Ao mesmo tempo, sua boca ligou-

-se indissoluvelmente �� de Colette. Seus l��bios abriam-

-se imediatamente e suas l��nguas encontraram-se num

beijo voraz e do mesmo modo impaciente.

Unido a ela com toda a sua for��a de homem ator-

mentado pelo desejo de sentir prazer, Fran��ois soltou

uma de suas m��os par ir liberar uma virilidade agora

totalmente desencadeada.

Liberta dos entraves, ela surgiu, foi de encontro

a sua c��pula encarnada, contra uma doce pele desnu-

dada, encontrou logo a entrada da mata morena.

Colette exalou uma queixa de liberta����o extasia-

da quando aquela carne viva e quente entrou nela.

Mas sua excita����o foi t��o grande que expulsou, contra

a vontade, o que come��ava a faz��-la divagar de prazer.

Ela soltou um grito desvairado, quis colocar de novo

em si o que lhe escapava, n��o conseguiu, pois estava

mal colocada, muito torcida, muito deslocada. Entre

as p��lpebras semi-fechadas, ela viu o que corria o ris-

co de acontecer e que ela n��o queria a nenhum pre��o:

aquele estranho craniozinho calvo, que parecia feito de





56


cetim violeta com sua p��rola opalina, e que ia prova-

velmente n��o mais poder conter sua carga de desejo.

Ent��o ela obedeceu a seu ��nico instinto de f��mea ena-

morada: empurrou Fran��ois, curvou-se, colocou-se de

joelhos, p��s as duas m��os em forma de ta��a, balbu-

ciou com uma voz rouca:

��� Deixe.

E ele deixou. De p��. Com as pernas afastadas.

A cabe��a ligeiramente inclinada para assistir ao ceri-

monial de todas as idades, n��o querendo perder nada

do espl��ndido e excitante espet��culo daquela boca de

mulher que se abria para aspir��-lo, guard��-lo entre os

l��bios, faz��-lo dan��ar lentamente, sabiamente em torno

de sua l��ngua, sentir seu gosto, sabore��-lo, sug��-lo

como a uma guloseima refinada de carne e de san-

gue. . .

Ele n��o pretendia deixar-se ir at�� o termo nor-

mal de sua excita����o. Concordava s�� em experimen-

tar o m��ximo poss��vel aquele prel��dio carnal infinita-

mente excitante, infinitamente deleit��vel para os sen-

tidos e para o esp��rito. Assim que sentisse vir o fluxo

de seu prazer, retirar-se-ia de entre os l��bios muito

quentes, arrancar-se-ia da boca t��o acolhedora para ir

inundar o estojo de outros l��bios ainda mais ��ntimos

e mais secretos e que, eles tamb��m, tinham direito ao

orgasmo, �� revela����o sensual, ao prazer de sua carne

feminina.

Mas quando quis retirar-se da boca glutona, duas

m��os obstinadas vieram ret��-lo, quiseram manter na

boca a haste carnosa que a invadia, ajudando com as

duas palmas, no v��o das quais mantinha os dois globos

doces e pesados de onde lan��ava-se o galho vital de

carne e de sangue.

Ent��o ele n��o resistiu mais ao desejo chegado ao

paroxismo e levou para aquele enlameamento vital

57

uma esp��cie de raiva onde a parte de sexualidade vi-

nha confundir-se singularmente com uma necessidade

de revanche espiritual.

Colette, com os olhos fechados, as m��os e a boca

cheias, parecia mergulhada no ��xtase. Seu corpo todo

era percorrido por arrepios �� flor da pele. Sem soltar

o que mantinha com os l��bios e os dedos, come��ou a

ondular, a agitar-se espasmodicamente. Vis��o que teve

o dom de fustigar o desejo de Fran��ois, de reanim��-lo

magicamente. Com uma calma brusca, ele saiu do asilo

ardente, pegou Colette pelos ombros, fez com que se

erguesse, mas para atir��-la na mesa de exames, para

onde a arrastou como uma escrava, uma presa. Ainda

estava tenso, milagrosamente em ere����o. Subia na

mesa onde Colette estava agora estendida, com os bra-

��os em cruz e as coxas amplamente abertas, deitou-se

sobre ela, penetrando-a de uma vez.

��� V��! V��! ��� ele expirou inconscientemente,

perdido de excita����o, como da necessidade de vingar-

-se de Carole.

N��o precisou ficar muito nela. Sua excita����o che-

gou ao ponto culminante, fomentada pelo beijo com

que ela o tinha envolvido e molhado a nudez ��ntima

de seu amante improvisado.

Muitos orgasmos consecutivos fizeram-na vibrar

da cabe��a aos p��s. Ela gemeu surdamente, depois

mais forte, depois gritou seu prazer, que acabou por

explodir espetacularmente, fazendo-a contorcer-se con-

vulsivamente, agarrar-se aos quadris de Fran��ois, bater

os p��s, os tornozelos e as pernas, enquanto suas co-

xas abriam e fechavam espasmodicamente.

Fran��ois ficou nela todo o tempo necess��rio a Co-

lette para voltar do ofuscante abismo do prazer. Ela

abriu os olhos, passeou por ele um olhar um instante

ainda cego, depois rapidamente l��cido. Um sorriso de

estranha confus��o pintou-se ent��o em seus l��bios, ao

58

mesmo tempo que um rubor pudico inflamava suas

faces:

��� O que acontecu comigo? ��� ela balbuciou, re-

cuperando-se.

��� Algo de muito humano ��� replicou Fran��ois,

recuperando-se calmamente. ��� Voc�� voou como uma

rainha.

De p��, arrumando a saia, de repente t��o calma

quanto ele, ela respondeu rindo:

��� Por que como uma rainha? As rainhas sentem

mais prazer que as outras criaturas da terra?

Fran��ois n��o achou necess��rio replicar novamente.

Ali��s, a jovem e maravilhosa enfermeira j�� se prepara-

va para ir, como se n��o tivesse havido nada. Ela sou-

be jogar o jogo do imprevisto. Estava tudo maravi-

lhoso, no melhor dos mundos poss��vel. Foi o que pen-

sou Fran��ois, olhando Colette sair da sala. Iria lem-

brar-se, se houvesse necessidade. N��o sentia mais ne-

nhuma responsabilidade f��sica em rela����o a Carole.

Tudo que acontecesse dali por diante decorreria de um

��nico feito, de sua incompreens��o absoluta. Clara,

Colette e todas as outras que cruzassem seu caminho

n��o estariam ali se Carole n��o lhe tivesse deixado en-

tender nitidamente que estava tudo terminado entre

eles no campo f��sico.

De novo sozinho, Fran��ois riu com amargura:

"Entendo agora a desenvoltura dela no plano sexual!

J�� encontrou um substituto para mim! Tem um aman-

te chamado Johnny e que a ama mais que tudo no

mundo."

Naquele exato momento, o telefone soou oportu-

namente, e Fran��ois foi chamado de volta a si pelos

imperativos imediatos da profiss��o.

59

O homem que abriu a porta para Carole n��o era

o rapaz da foto. J�� desagradavelmente impressionada

com a entrada do pr��dio e a escadaria sombria e os-

cilante, Carole quase voltou. Afinal, aquela hist��ria

toda n��o lhe dizia respeito. Patricia tendo morrido,

ela n��o tinha mais nenhum motivo s��rio de imiscuir-

-se num destino ao qual nada a ligava.

��� Quer ver Johnny, n��o? Ele n��o est��, mas n��o

deve demorar. Entre! Ele n��o me perdoaria, se o dei-

xasse perder t��o bela visita.

Carole entrou, contra a vontade. O rapaz fez-lhe

sinal para sentar-se, depois, sem dizer mais nada, sen-

tou-se tamb��m e mergulhou na leitura de um romance

cuja capa Carole n��o conseguia ver.

Ela acendeu um cigarro, evitando olhar na dire-

����o do jovem, mas sentindo que ele dirigia a todo ins-

tante olhares obl��quos para ela, o que lhe inspirava um

indefin��vel mal-estar. Tudo na sala sombria e suja an-

gustiava-a e aquela ang��stia vinha acrescentar-se �� j��

penosa do objetivo que viera cumprir.

Passaram uns dez minutos. Carole estava a pon-

to de ir embora, deixando para depois o cumprimento

de sua miss��o, quando a porta se abriu bruscamente e

um rapag��o entrou:

��� Ol��, Jef!

Depois ele viu a visitante e calou-se, contentando-

-se em olhar interrogativamente o colega.

61

��� Esta senhora o est�� esperando ��� ele disse, de

um modo malicioso.

Carole levantou-se e, reconhecendo o rapaz da

foto, disse com uma certa precipita����o:

��� Estou aqui da parte de Patr��cia.

Algo iluminou-se instantaneamente no rosto de

Johnny:

��� Ah, sim? Onde ela est��? Por que n��o veio

ela mesma?

Carole lan��ou um olhar tingido de impaci��ncia

para Jef, depois dirigiu-se unicamente a Johnny:

��� N��o pod��amos conversar s��s?

Johnny virou-se imediatamente para o compa-

nheiro:

��� Voc�� ouviu? V�� indo, e logo!

��� Est�� bem, entendi! Sou demais. Vou indo,

mas...

J�� �� porta, virou-se para Carole e acrescentou,

num tom carregado de alguma amea��a:

��� Vou deix��-los, mas saiba que Johnny e eu

n��o escondemos nada um do outro. Somos de certa

forma como dois dedos de uma s�� m��o. Bye!

Ele saiu, batendo ostensivamente a porta. Carole

e Johnny ficaram um instante silenciosos, um diante

do outro. O rosto do Johnny modificou-se conside-

r��vel e rapidamente. Tinha perdido a dureza de

quando chegou. Seu olhar estava agora carregado de

uma longa e ansiosa interroga����o.

Carole decidiu-se a falar:

62

��� Vim trazer not��cias de Patr��cia ��� ela come-

��ou, penosamente.

Johnny teve como que um impulso para ela mas

se conteve e s�� seus olhos puseram-se a brilhar, train-

do a emo����o de que estava possu��do:

��� Onde ela est��? Fale, depressa! Estou t��o in-

quieto, h�� meses! Suponho que, se est�� aqui, �� por-

que conhece bem Patricia e sabe do que houve entre

n��s. Por que ela me deixou de um dia para o outro,

sem dar explica����o, por qu��? Ela deve ter-lhe dito

que eu a amava, que estava a ponto de liberar-me

completamente para casar com ela, para recome��ar

tudo do ponto zero com ela.

Ele calou-se bruscamente, como algu��m que de

repente tem medo de ter falado demais e pergunta te-

meroso :

��� Quem �� voc��?

Com a garganta cerrada, Carole limitou-se a es-

tender ao jovem a carta escrita por Patricia antes de

sua morte e que ela tinha acabado de tirar da bolsa:

��� Tome. Leia isso ��� ela balbuciou com difi-

culdade.

Depois virou-se. Um sil��ncio pesado planou o

tempo todo que Johnny levou para ler a aflitiva mis-

siva. Foi Carole que se virou novamente para o jo-

vem. Ele tinha-se deixado cair numa cadeira, aboba-

do, com os olhos perdidos acima da carta que ele

continuava a segurar entre os dedos, mas sem v��-la

mais.

Carole n��o sabia mais o que dizer, nem o que

fazer. Avan��ou alguns passos para lembrar a Johnny

sua presen��a que, com efeito, ergueu os olhos para

ela, murmurando com uma voz sem resson��ncia:

63

��� N��o �� v e r d a d e . . . N��o �� poss��vel... Essa coi-

sa pavorosa n��o p��de acontecer com ela, com ela que

era a do��ura, a bondade personificada... Mas por que

ela n��o me contou que esperava um filho, j�� que esse

filho era meu?

��� Acho que ela teve medo de ser uma carga

para voc��, que tinha de arrumar sua vida.

E como Johnny lhe lan��asse um olhar vagamen-

te suspeito:

��� Queria que tivesse certeza de uma coisa, John-

ny: pode confiar inteiramente em mim. Sou a mulher

do cirurgi��o que operou sua pequena Patricia. Fui eu

que ouvi seu ��ltimo suspiro. Foi a mim que ela con-

fiou essa carta, como tamb��m sua foto, uma hora an-

tes de ser levada para a sala de o p e r a �� �� o . . . N��o li

o que ela escreveu mas, repito, se precisar abrir-se com

algu��m, estou aqui. Saberia entender tudo, tudo mes-

mo. Sou m��dica, Johnny. E n��o me contento em tra-

tar do corpo. Tento, da maneira que posso, acalmar,

curar as mis��rias da alma. N��o somos todos feitos de

uma mesma carne, n��o estamos todos �� merc�� de fra-

quezas, de erros? N��o h��, em cada um de n��s, um

ladr��o, um usurpador, um assassino em potencial? Por

favor, Johnny, confie em mim. Sejam quais forem

suas confid��ncias, nunca vou tra��-lo.

Johnny tinha levantado a cabe��a. Seu olhar pro-

vava que ele absorvia as palavras da jovem mulher

como se recebe um b��lsamo numa dor lancinante. O

bloco de gelo em que se tornara seu cora����o h�� tan-

tos anos come��ou a fundir-se e ele disse:

��� Sou o que chamam um tipo desprez��vel, se-

nhora. Um desviado, um falido, um inadaptado, um

reivindicador por princ��pio, um contestador, um demo-

lidor sistem��tico incapaz de propor qualquer coisa no





64


lugar do que demoliu. Al��m disso, cheio de ��libis.

Sou um vagabundo, o c��mplice do rapaz que a rece-

beu. Ele �� mais velho que eu. Foi ele que inculcou

em mim id��ias de revolta contra a sociedade, uma dou-

trina mal entendida, mal digerida, a insurrei����o contra

os princ��pios estabelecidos, a anarquia, entende o que

quero dizer? Isso �� que me perdeu a cabe��a desde que

o conheci. Desde n��o sei quanto ou��o-o proclamar

"que �� preciso tirar dos outros o que os outros n��o

nos querem dar", que os capitalistas t��m de ser vomi-

tados, mortos sem escr��pulos e que �� sem escr��pulos

que o indiv��duo deve apropriar-se dos seus bens, etc.

etc. Ent��o, durante anos, eu o acompanhei nos "gol-

pes", entende? At�� o dia em que encontrei Patr��cia e

a mais bela, a mais resplandescente flor da natureza

brotou em meu cora����o: meu amor por ela. E no co-

ra����o dela tamb��m brotou a mesma flor maravilhosa:

seu amor por mim... Desde ent��o, s�� tive uma id��ia

na cabe��a, s�� uma vontade: emendar-me, sair do im-

passe em que me enganei, libertar-me de tipos como

Jef e os outros... Estava a ponto .de conseguir, quan-

do Patr��cia me deixou... E agora est�� me dizendo

que ela est�� morta?

Jchnny pousou em Carole um olhar um pouco

louco, depois gritou com afli����o:

��� Ent��o n��o v�� que estou desesperado?

Espontaneamente, Carole colocou a m��o sobre a

do jovem:

��� Voc�� n��o precisa disso, Johnny. Resolvi aju-

d��-lo com todos os meus meios.

Ele observou-a, ainda incr��dulo:

��� Como posso acreditar? Por que agiria com

tanta bondade comigo, de quem s�� conhece o que aca-

bo de contar, e que �� t��o conden��vel?

65

��� Por qu��? N��o lhe disse, h�� pouco? Sou uma

m��dica, Johnny. Para mim isso explica tudo, justifica

todos os meus feitos e gestos. Tenha em mim tanta

confian��a quanto tenho em voc�� espontaneamente, e

ent��o prometo que poder��, um dia, dar um novo sig-

nificado �� sua vida.

��� Creio em voc��, come��o a acreditar, mas...

��� Mas?

��� N��o �� minha confian��a em voc�� que est�� em

causa.

��� O que ��, ent��o?

Como ele ainda hesitasse, ela insistiu:

��� Vamos, por favor! Diga tudo que est�� em seu

cora����o, ou n��o chegaremos a nada.

��� �� que n��o sou sozinho. Somos um bando

todo... Todos dizendo-se intelectuais incompreendi-

dos, ex-estudantes influenciados por leituras... Aca-

bamos por acomodar tudo a nosso modo de tal forma

que o justo fique de nosso lado, enfim, o que acha-

mos ser justo... o que nos autoriza a pilhar, roubar,

destruir, apossar-nos do que n��o nos pertence!

��� Tudo isso parece-me mais infantil que qual-

quer outra coisa, mais pueril do que voc�� tenha cons-

ci��ncia ��� concluiu Carole. ��� Aposto que tem uma

bela moto, na qual voc�� sai no maior barulho, tonto

de velocidade. Isso tamb��m diz respeito aos jogos da

inf��ncia, com essa diferen��a: voc�� p��e sua vida nesse

jogo. E, quanto ao resto, quero falar de suas "vaga-

bundagens" mais ou menos bem organizadas de anar-

quistas de momento; �� sua liberdade que est�� sendo

exposta.

66

��� J�� pensei nisso tudo. N��o est�� me dizendo

nada que eu n��o saiba, de que n��o tenha tomado cons-

ci��ncia h�� muito tempo. Se pelo menos Patr��cia n��o

me tivesse abandonado! Se tivesse dito que ��amos ter

um beb��! E agora, que posso fazer? �� tarde demais

para voltar atr��s... Sem Patr��cia, n��o tenho mais ne-

nhum motivo de viver e tornar-me um homem digno

desse nome.

��� N��o precisa falar assim. N��o vou abando-

n��-lo.

Quando se deixaram, depois de conversar muito

tempo, um pacto de amizade tinha sido conclu��do en-

tre eles. Confiante na boa f�� de Johnny, Carole pro-

meteu que ia refletir num meio de achar-lhe um em-

prego. Al��m disso, continuaria a v��-lo quantas vezes

suas ocupa����es permitissem, at�� o dia em que o sen-

tisse suficientemente equilibrado na nova posi����o e que

ele n��o precisasse mais dela.

��� Enquanto isso, vou passar para v��-lo depois

das consultas ��� ela prometeu.

��� E eu vou dar um jeito de Jef n��o estar aqui.

��� �� melhor. Tchau. At�� amanh�� e . . . coragem!

* * *

No momento de voltar para casa, �� noite, Carole

reconsiderou tudo. O dia tinha sido muito f��rtil em

emo����es de todo tipo. A morte tr��gica daquela peque-

na Patr��cia, o deplor��vel incidente entre Fran��ois e ela,

exatamente quando iam reaproximar-se do modo mais

belo, sua visita a Johnny e finalmente a ��ltima con-

sulta que tinha feito, que a atormentava por sua ana-

logia com o caso de Patr��cia.

Sua repugn��ncia em ficar sozinha com o marido

tinha dois motivos bem distintos. Ela n��o gostava de

67

ele ter-se apossado do conte��do da sua bolsa e de ter

deixado pesar sobre ela um olhar carregado de sus-

peita. S�� por aquele olhar n��o lhe teria contado nada,

mesmo que n��o tivesse prometido segredo para Patri-

cia. Ele n��o tinha mais direito sobre ela. Era uma

coisa nitidamente estabelecida, n��o havia em que voltar

atr��s. Ela tamb��m tinha raiva dele pela insatisfa����o

de seu corpo. H�� muito tempo n��o fazia o amor. Se

eu voltar para casa agora, no estado febril em que es-

tou, sozinha com ele, n��o poderei resistir. Vai bastar

que ele segure em minha m��o ou me olhe de um certo

modo e eu mergulharei em seus bra��os como uma gata

no cio." Isso ela n��o queria a nenhum pre��o. Nunca

abdicaria de seu orgulho de mulher, sem nada a cen-

surar-se!

A quem recorrer para apagar esse fogo? N��o que

faltassem homens que a desejassem! Um deles agra-

dava-a muito. Ali��s, tinha tentado com ele obter de

novo sensa����es de que se privava voluntariamente com

o marido. Ela foi procurar o dr. Tavernier uma noi-

te, decidida a fazer o amor com ele. Jean era um

belo homem de uns quarenta anos. Ela admirava seu

valor profissional. Sua intelig��ncia seduzia-a, tanto

quanto seu f��sico. Tudo come��ou muito bem. Ele ti-

nha preparado tudo em honra �� sua vinda e ao que,

finalmente, ia materializar-se entre eles. Ela deixou-se

abra��ar, ser acariciada, respondendo a seus beijos e ca-

ricias. A preciosa embriaguez vinha, subia lentamente

nela, esquecendo seu sangue e agu��ando sua excita����o

sensual. Talvez Jean tivesse errado por quer��-la nua e

fora de um sof��. Ele certamente cometeu o erro de

interromper suas car��cias-prel��dio para lev��-la para o

quarto e deixa la sozinha enquanto ia ao banheiro.

Quando ele voltou, nu, incontestavelmente belo com

sua for��a orgulhosamente erigida, Carole, que estava

semi-despida, teve, ao v��-lo, um recuo involunt��rio.

Come��ou a vestir-se de novo com gestos febris.





68


��� Carole! ��� exclamou surdamente o m��dico. ���

O que est�� fazendo?

Ela havia desviado os olhos, enrubescida:

��� Desculpe-me... Mas isto �� imposs��vel...

Jean, que estava vagamente a par do problema

sentimental da jovem mulher, n��o tinha insistido e foi

vestir-se rapidamente. Carole, tranq��ilizada, sorriu-lhe

confusamente:

��� Devo parecer rid��cula, n��o?

��� Tudo, menos isso,

��� Tinha muita vontade de fazer o amor com

voc��, Jean. Estava at�� convencida de que voc�� era o

��nico cujas car��cias eu poderia aceitar... Enganei-

-me... Acabo de ter a prova de que sou incapaz de

aceitar outras car��cias, que n��o as de meu marido...

Se soubesse como estou chateada! Acho isso t��o tolo!

Quando estou morrendo de desejo!

O relacionamento deles continuou t��o amistoso e

de boa camaradagem quanto antes daquela v�� tentativa.

S�� que Carole sentia cada vez mais a necessidade de

liberar seu corpo de sua carga de desejo.

Lembrou-se de repente de Leonora. Como n��o

tinha pensado antes? A impaci��ncia de Carole fez com

que se esquecesse de telefonar para aquela de quem

tinha tratado alguns meses antes e que se tornara sua

amiga. N��o estava quase certa de encontr��-la em casa?

69

��� O h ! Carole!... Que surpresa maravilhosa!

Pensei que estivesse viajando o u . . . que tivesse recon-

ciliado com seu marido. H�� tanto tempo n��o a via!

Entre logo. Eu ia sair...

��� N��o quero incomod��-la...

��� Est�� brincando! Estava entediada. Ia tomar

alguma coisa no Moune ou no Monocle, mas voc�� est�� aqui, contra qualquer esperan��a...

De repente Carole sentiu-se tomada por um imen-

so bem-estar. Leonora a instalara confortavelmente em

seu lugar familiar, num ��ngulo do sof�� panor��mico,

veio sentar-se a seus p��, na grande almofada, depois

de servir-lhe uma bebida.

��� Voc�� veio ser amada, minha gata ��� ela ob-

servou com mal��cia e do��ura.

��� N��o se consegue esconder nada de voc��.

��� Ent��o, que esperamos? Pense que eu tamb��m

estou com car��ncia de afei����o.

Leonora puxou Carole pela m��o e recebeu-a no

peito.

��� Com quem me traiu? ��� ela perguntou, bem

baixinho, �� sua orelha, pegando um seio de Carole.

��� Com ningu��m.

��� Acredito em voc��. �� muito sentimental para

isso. N��o estou censurando, pelo contr��rio. Gosto que

seja s�� minha.

71

��� E voc��, foi fiel a mim? N��o dormiu com nin-

gu��m, desde a ��ltima vez que nos vimos? Nem com

um homem?

��� N �� o . . . Juro... Contentei em acariciar-me

pensando em voc��, imaginando que era sua m��o, sua

boca... Fechando os olhos e concentrando �� relativa-

mente f��cil, sabe? Mas agora que est�� aqui...

Leonora tomou os l��bios de Carole. Elas oscila-

ram lentamente, ca��ram suavemente no tapete, onde se

abra��aram. S�� se ouviram seus gemidos enamorados,

seus gritinhos, o doce e sutil ro��ar de suas peles, o

duplo arquejar de seus peitos esmagados um contra o

outro.

Carole abandonava-se toda �� amiga, imp��dica e

voluptuosa, sem remorsos, pois, com aquela jovem

mulher masculina que mantinha, no entanto, todo o

charme de sua feminilidade, Carole perdia a sensa����o

de trair o marido, enquanto aplacava os desejos de

sua sensualidade.

Por um longo tempo depois do prazer elas conti-

nuaram abra��adas, face junto a face, belamente des-

compostas, despenteadas com uma gra��a toda femini-

na. Havia agora entre elas um clima de ternura e de

confian��a. N��o se faziam nenhuma pergunta indiscre-

ta. Bastava-lhes falar o que n��o era dito abertamente.

Assim Leonora sabia exatamente o que trazia Ca-

role para seus bra��os e que fazia desabrochar de prazer

todo o seu belo corpo ao calor ardente de seus beijos

e car��cias de mulher. Assim Carole sabia que Leono-

ra tinha-se tornado l��sbica depois de banais mas ina-

ceit��veis decep����es ocasionadas por suas aventuras

masculinas.

Ela sabia tamb��m que Leonora amava-a com todo

o seu ser e que esperava o dia em que Carole viria





72


para n��o ir mais embora. Carole n��o destru��a aquela

esperan��a, primeiro para n��o magoar inutilmente uma

mulher que s�� lhe fazia bem, depois porque ela mes-

ma n��o estava t��o segura de que n��o chegaria esse

dia em que Leonora pudesse ser seu ��ltimo ref��gio,

sua ��ltima possibilidade de reconstruir sua vida sexual

e espiritual.

73

��� Al��, �� voc��, Fran��ois? Aqui �� Carole. Acabo

de pedir uma ambul��ncia para a mulher de que lhe

falei, lembra-se, a que devia dar a luz daqui a dois

ou tr��s meses?

Acordado precipitadamente, Fran��ois n��o levou

muito tempo para recobrar a lucidez: -

��� Lembro-me perfeitamente. Algum problema?

��� Uma leve hemorragia. Como lhe disse, tenho

medo de uma placenta pr��via.

��� A h . . .

Fran��ois tinha visto esse caso vezes bastantes para

subestimar sua gravidade. Normalmente, a placenta,

que �� a liga����o entre a circula����o e a m��e, fica na

matriz. �� uma esp��cie de massa achatada ligada bem

alto de um lado. Acontece ��s vezes de ela ligar-se

atrav��s da abertura inferior da pr��pria matriz, o colo,

por onde a cabe��a da crian��a deve passar. A placenta

pr��via n��o d��, em geral, nenhum sinal de sua presen��a

antes do come��o das dores, no momento em que o

colo come��a a dilatar-se para a passagem da cabe��a.

Ent��o as jun����es entre as paredes da matriz e aquela

massa de sangue rompem-se, ocasionando uma hemor-

ragia, �� o efeito produzido sobre a crian��a ainda n��o

nascida, que n��o tem mais, a partir de ent��o, a possi-

bilidade de receber em seus pulm��es o oxig��nio que

devia normalmente chegar-lhe pelo sangue materno, e

cujo afluxo lhe �� assim progressivamente retirado. A

morte fetal �� quase certa, se esse trabalho prossegue.

��� E o beb��, como est��? ��� pergunta Fran��ois.

75

��� O cora����o est�� batendo depressa demais.

��� De que voc�� tem medo, exatamente?

��� De que a hemorragia continue sob a placen-

ta e corte a circula����o.

��� Uma cesariana, ent��o?

��� Claro.

��� Voc�� vai fazer?

Ele n��o ouviu o que ela respondeu porque a li-

ga����o foi cortada. A n��o ser que ela tenha desligado

bruscamente...

De onde teria chamado ��quela hora da noite?

Ela n��o foi assistir a opera����o de sua cliente.

* * *

��� Al��, Fran��ois? Tenho um quisto ovariano para

mandar para voc��. Voc�� tem um quarto livre no hos-

pital? Recomendo-lhe particularmente essa doente. ��

um caso de urg��ncia. Previno o honestamente que ela

foi mal preparada... Ela me veio de um outro m��-

dico, que n��o entendeu bem a dire����o dos aconteci-

mentos . . . Pede ser que ela n��o suporte bem a anes-

tesia . . . Mas confio inteiramente em voc��. Voc�� ��

um modelo de controle e de perfei����o em todas as

suas opera����es...

��� Voc�� vai vir?

��� Farei todo o poss��vel.

��� M a s . . . Ou��a!... Al��, al��?

Mais uma vez a liga����o tinha sido cortada. Por

que, h�� algum tempo, Carole s�� o avisava das inter-

ven����es cir��rgicas que lhe mandava por telefone?

76

Por assim dizer, n��o se viam mais. Entre as ur-

g��ncias dele e as dela, n��o havia mais meio de falar

tranq��ilamente.

No entanto, Carole continuava a mandar-lhe seus

casos que precisavam de uma opera����o.

* * *

Carole tinha avisado: a doente n��o tinha sido con-

venientemente preparada com sedativos. Tossia a cada

inala����o de ��ter, que devia normalmente preparar para

o relaxamento completo.

Tudo, naquele dia, parecia ligar-se para "n��o cor-

rer bem". A enfermeira-instrumentista era uma nova-

ta, muito intimidada e impressionada com a personali-

dade de Fran��ois Damien. Exatamente no momento

em que Fran��ois ia fazer a incis��o, ela deixou uma

cuveta cair no ch��o lajeado.

��� Sua imbecil! ��� ele resmungou, com o escal-

pelo na m��o.

Ele se refez logo, voltou �� incis��o feita atr��s do

envelope do perit��nio, que era fino como uma folha

de papel. O quisto de que Carole falara estava bem

ali, subst��ncia globular, azulada, do tamanho de uma

laranjinha, ao lado dos ��rg��os genitais. Como se po-

dia esperar, havia ader��ncias.

Mas Fran��ois esperava tamb��m a presen��a de Ca-

role junto dele na sala de opera����o, como antigamente,

quando ele operava. Ela continuava a n��o estar. "Por qu��? Com quem ela est��? Com aquele Johnny de

jeans sujos e cabelos compridos, tamb��m sujos?"

Ele expulsou a obsess��o, continuou a cortar atra-

v��s, do envelope do perit��nio, come��ou a destacar as

fibras aderentes para chegar ao ped��nculo no qual

77

brotava o tumor. Este apareceu finalmente, liberado.

Claramente vis��veis, os vasos sang����neos batiam no fi-

lete do ped��nculo.

��� Ligadura!

Em sua m��o estendida, o fio escuro de borracha

cromado foi colocado para chegar ao ped��nculo e es-

magar os tecidos antes de proceder a uma ligadura

com a borracha.

��� Escalpelo!

Com um barulhinho n��tido, o escalpelo foi colo-

cado na palma de sua m��o. Ele cortou o ped��nculo

entre o quisto e a ligadura, depois deixou o tumor

cair na cuveta previamente estendida, a esperar.

��� Sutura final! ��� pronunciou Fran��ois, decisivo.

��� Mas, doutor ��� protestou timidamente o inter-

no assistente ��� o ap��ndice foi tirado numa outra ope-

ra����o . . . N��o acha que seria bom ligar de novo esse

ped��nculo ou passar uma sutura nele?

Se Carole estivesse ali, ele teria respondido o que

respondeu? Ela fazia-lhe falta. Em todos os aspectos.

Profissional e afetivo. Ele respondeu:

��� Por que prolongar inutilmente a opera����o?

Minha ligadura vai ser completa.

��� Certo, doutor ��� aprovou o jovem interno, en-

rubescendo.

Fran��ois recome��ou a recosturar as paredes do

abd��men. Seus movimentos eram seguros, regulares,

mas seu esp��rito estava arrasado. A aus��ncia de Ca-

role privava-o de uma grande parte de suas possibili-

dades. Tinha uma desagrad��vel consci��ncia disso. Es-

tava certo de que o ped��nculo n��o se desligaria,

78

provocando uma hemorragia perigosa? Os vasos san-

g����neos eram muito importantes. Talvez ele devesse

suturar, passar uma agulha pela haste da ligadura para

impedir com certeza a linha de deslizar.

"Se acontecer algo de desastroso, Carole ser�� tSo

respons��vel quanto eu, se n��o for mais, ele pensou

com rancor. Por que ela n��o est�� aqui para assistir-

-me, como nunca deixava de fazer antes? Ou ent��o

que pare de mandar-me seus doentes! Que os opere

em sua pr��pria clinica! N��o s��o cirurgi��es que fal-

tam!"

Esses pensamentos irritavam-no sem que ele pu-

desse expuls��-los da mente, enquanto abandonava-se

��s m��os de Colette para que ela tirasse seu uniforme.

Ela tamb��m tinha uma raiva obscura dele, por ter-se

deixado tomar como "uma qualquer".

Ele voltou a pensar em Carole, a perguntar-se

onde ela podia estar naquele momento em que preci-

sava dela. "Sem d��vida com Johnny!", ele pensava,

louco de raiva e de ci��mes. E tudo porque ele tinha

tido a infelicidade de dormir com Clara!

Ins��lito e brutal, o desejo assaltou-o. Ele olhou

Colette com mau humor. Era Clara que ele gostaria

que estivesse ali, ao alcance de suas m��os, de seu de-

sejo. "Culpado por culpado, que eu o seja de ver-

dade!"

E resolveu procurar Clara aquela noite mesmo.

79

N��o p��de realizar seu projeto. Pelas seis horas

da tarde, foi de novo por telefone que Carole pediu-

-lhe para ir com urg��ncia ao hospital:

��� N��o perca um minuto, por favor.

��� De que se trata? ��� ele perguntou, num tom

bem acre, pois acabava de ter um sombrio pressenti-

mento.

��� Do quisto que voc�� operou esta manh��.

��� E ent��o?

��� Est�� havendo hemorragia. Venha o mais r��-

pido poss��vel.

��� De onde voc�� est�� chamando? Voc�� vai tam-

b��m? Afinal �� sua paciente.

Ela j�� havia desligado.

Ele tamb��m desligou e saiu apressadamente do

apartamento, para o hospital. Ent��o ele tinha feito

um erro profissional! Era a primeira vez que tal coi-

sa lhe acontecia. Tinha a impress��o de estar perden-

do a raz��o. Por que ele confiou na ligadura simples,

sen��o porque Carole, h�� meses, mantinha-o num esta-

do interior nervoso deplor��vel? "A ligadura deve ter

deslizado do ped��nculo do tumor." Um vento de p��-

nico agitava-o. Lembrou-se da grande quantidade de

vasos sang����neos naquela fina haste. �� claro que ele

n��o ignorava a rapidez com que eles podiam provo-

car a expans��o fatal.

81

Carole n��o estava, quando ele chegou ao hospi-

tal. Ele suspeitava. No entanto, tinha feito exatamen-

te o que era preciso ser feito fora das atribui����es do

cirurgi��o: os internos tinham conseguido doadores, em

vista da transfus��o. A doente precisava de sangue t��o

depressa quanto pudessem fornecer-lhe.

Fran��ois correu para o quarto da operada. O in-

terno que o assistira de manh�� estava inclinado sobre

a doente, com um aparelho �� m��o. Colocado ao lado

do leito, um frasco com uma solu����o escura amarela-

da estava ligado a uma agulha plantada na veia do

bra��o.

O interno mal levantou os olhos para o cirurgi��o

e disse:

��� Os exames de sangue ainda n��o terminaram.

Pensei que seria bom aplicar-lhe soro, enquanto isso.

Era evidente que ele deplorava "o erro" cometi-

do por seu superior de manh��.

��� Daqui a quanto tempo os exames estar��o pron-

tos?

��� Acho que ainda leva uma boa meia-hora.

A preocupa����o de reparar o erro cometido de

manh�� teve o dom de fazer o cirurgi��o recuperar todo

o seu controle. Ele encarou fria e rapidamente a si-

tua����o: a doente estava perdendo sangue numa cad��n-

cia extremamente r��pida. A palidez de seu rosto anun-

ciava a morte iminente. A enfermeira n��o conseguia

limpar o suor que orvalhava de sua fronte t��o r��pido.

O pulso estava acelerado, mas pouco percept��vel. Uma

queixa surda e lancinante escapou dos l��bios da doente:

��� Estou abafada... D��-me ar... Estou abafa-

d a . . .

82

Todos os sintomas da hemorragia estavam ali, sob

os olhos de Fran��ois. "Se ela morrer, eu serei o cul-

pado. Um assassino."

A hemorragia interna ia prosseguir implacavel-

mente em seu caminho sangrento, sua sangrenta corri-

da para o fundo do abd��men, e isso at�� que o cora-

����o parasse de bombear, porque n��o haveria mais

nada para bombear para os vasos, porque uma vida

ia parar por causa do "problema sentimental" do ci-

rurgi��o a cujas m��os a infeliz foi confiada!

Tudo aquilo era est��pido demais, injusto demais,

cruel demais, desumano demais! Fran��ois sentia cres-

cer e subir nele uma dor intoler��vel, vinda do remor-

so. Avaliava as chances que restavam de salvar "sua

v��tima" de uma morte t��o cruelmente injusta: o soro

correndo pelas veias daria ao cora����o um l��quido se-

melhante ao sangue, com o qual trabalhar. Quantas

vidas n��o tinham sido salvas assim, em certas urg��n-

cias ou depois de um choque operat��rio? Mas, naque-

le caso particular, Fran��ois n��o podia nutrir ilus��es.

Com certeza n��o seria suficiente. S�� havia um meio

de salvar aquela mulher: parar a hemorragia e substi-

tuir uma parte do sangue perdido.

A enfermeira-chefe estava ao lado dele, de p��,

ereta, silenciosa. "Silenciosa demais!" pensou amarga-

mente Fran��ois. "Ela tamb��m est�� me julgando e me

condenando. Estava no bloco de manh��, quando ope-

rei e fiz minha ligadura criminosa. Ela tamb��m, como

todas as outras testemunhas de meu erro, considera-

-me um assassino, um a��ougueiro, um carniceiro!"

��� Mande preparar imediatamente a sala de ope-

ra����es! ��� resmungou Fran��ois. ��� Deixe a agulha na

veia e transportem-na com todas as precau����es poss��-

veis. �� prov��vel que fa��amos uma autotransfus��o

N��o dispomos mais de tempo suficiente para esperar o

83

sangue de um doador. A autotransfus��o �� a melhor e

a ��ltima esperan��a que nos resta de salvar essa exis-

t��ncia.

A enfermeira seguiu o cirurgi��o at�� a pe��a cont��-

gua ao bloco operat��rio, sempre ereta e muda, mas aju-

dando-o a vestir seus trajes de opera����o, amarrando

atr��s de suas orelhas os cord��es da m��scara.

��� Mande um t��cnico subir ��� disse-lhe Fran��ois,

dirigindo-se para a sala onde reinava o tumulto silen-

cioso de uma atividade magistralmente ordenada. ���

Podem tirar sangue enquanto opero.

Abelhas brancas, as enfermeiras agitavam-se, es-

tendendo na mesa os curativos esterilizados, arruman-

do os instrumentos.

Fran��ois reclamou uma solu����o de citrato de soda

e um par de cuvetas de esmalte para receber o sangue

da cavidade abdominal.

��� Posso come��ar a anestesia, doutor? ��� infor-

mou-se o enfermeiro anestesista.

��� Espere mais um instante, por favor ��� res-

pondeu Fran��ois com uma voz dura. ��� Ainda tenho

de colocar as toalhas e os curativos. Ali��s, a doente

n��o vai suportar muita anestesia. S�� um pouco de

g �� s . . .

��� Est�� bem, doutor ��� aprovou respeitosamente

a anestesista, mantendo-se pronta junto do aparelho bri-

lhante com todos os seus reservat��rios prateados e suas

v��lvulas.

A mesa operat��ria tinha sido instalada debaixo

das enormes l��mpadas que difundiam raios resplan-

descentes. O interno assistente segurava alto um fras-

co de solu����o de ac��cia. Um outro ajustou aos ouvi-

84

dos as duas pontas de um estetosc��pio e apertou a

pera de press��o sang����nea.

��� Como est�� a intravenosa? ��� perguntou Fran-

��ois.

��� Bastante fraca.

��� Vamos ter de trabalhar depressa.

E pensou: "Ser�� tarde demais?" N��o queria acre-

ditar realmente nisso. Certo, ele n��o tinha de salvar

sempre os doentes. Muitas vezes tinha operado em de-

sespero de causa e sabendo por antecipa����o que per-

deria a batalha. Mas ali, tudo era diferente. Se aque-

la mulher morresse, seria por causa dele, de sua ne-

glig��ncia, seu nervosismo, por causa de Carole, de

Clara, de Johnny, de Patr��cia, de, d e . . .

��� Prontos? ��� ele perguntou, recompondo-se.

��� Prontos ��� ele ouviu de uma s�� voz, ensurde-

cida mas n��tida.

A partir de ent��o, Fran��ois concentrou-se na ne-

cessidade dupla de parar a hemorragia e substituir o

sangue perdido.

Com a m��o r��pida, come��ou pintando o ventre

com um antiss��ptico vermelho. Reconheceu a incis��o

que tinha feito naquela manh�� mesmo com pontos de

seda preta e que ia ter de reabrir, pois aquele era o

meio mais r��pido e o mais seguro. Assim a parede ab-

dominal n��o sangraria. A menor gota de sangue pou-

pada ia contar terrivelmente para a salva����o daquela

exist��ncia humana.

Fran��ois olhou brevemente para a anestesista:

��� Pode come��ar.

85

A anestesista girou imediatamente diversos qua-

drantes e discos em seu aparelho, depois ajustou a

m��scara no rosto da doente deitada. Esta mexeu li-

geiramente no primeiro instante em que o g��s entrou

em seus pulm��es.

Era um g��s acre, ciclopropano, o melhor anest��-

sico para um caso desse tipo, com uma forte propor-

����o de oxig��nio misturada. A paciente n��o suportaria

a mais leve asfixia parcial. Restavam-lhe muito pou-

cos gl��bulos vermelhos em circula����o, mal o bastante

para transportar o oxig��nio que a mantinha ainda viva.

Os fios de seda preta colocados como sutura ter-

minal naquela manh�� mesma foram tirados por Fran-

��ois com precis��o e rapidez. Suas m��os penetraram no

corpo, cada vez mais profundamente, cortando suces-

sivamente, e sempre com a mesma presteza segura, as

linhas que uniam as espessuras subcut��neas.

O perit��nio apareceu, mas n��o com sua apar��n-

cia normal de pergaminho, mas com uma cor azul es-

cura, indicando uma enorme quantidade de sangue li-

vremente espalhado pelo abd��men.

��� Citrato! ��� reclamou Fran��ois.

A enfermeira-instrumentista estendeu-lhe uma

cuveta de esmalte, no fundo da qual havia um pou-

co de solu����o l��mpida.

��� Pronta? ��� perguntou Fran��ois, sempre com

uma voz breve e forte.

��� Sim, doutor.

Ela segurava na outra m��o uma ta��a de esmalte

que ia servir para despejar o sangue na cavidade abdo-

minal. O citrato devia impedir o sangue de coagular.

Ele o manteria fluido, para que pudesse ser bombea-

86

do com a ajuda de um tubo de borracha e, depois,

pela veia do bra��o, colocado de novo em circula����o.

Depois de concentrar-se intensamente um curto

instante, Fran��ois reabriu o perit��nio. Logo jorrou

uma onda de sangue. Fran��ois n��o tentou capt��-la.

A enfermeira estava ali para isso com sua ta��a e sua

cuveta, que ela manobrava do melhor modo que po-

dia. Para o cirurgi��o, a coisa essencial, de vital im-

port��ncia, era agora prender numa pin��a ��queles vasos

a escorrer. Muito sangue da cavidade pelviana n��o

vazaria para fora.

Fran��ois mergulhou profundamente a m��o enlu-

vada, procurando, ao tato, o ped��nculo. Minutos an-

gustiantes come��aram a passar para ele, cujos dedos

s�� encontravam an��is de intestino moles demais e que

lhe escapavam. Enfim, no termo daqueles minutos

que pareceram a ele uma eternidade de ang��stia, seus

dedos atingiram o alto da matriz. Ele deslizou-os de

lado, para onde lembrava-se de ter atingido a fina has-

te. Pelo fraco jato de sangue que come��ou a bater em

seu dedo, ele entendeu que era a art��ria do ped��nculo,

o peda��o cortado e parcialmente reaberto, que espa-

lhava sangue pelo ventre, em pequenos golpes sofrea-

dos, quentes e vermelhos. Seus dedos fecharam o coto.

Ele sentiu nitidamente o batimento da art��ria, que

tentava fazer seu fluxo passar entre os dedos juntos,

mas em v��o.

Ele segurou-a e anunciou num enorme suspiro:

��� Eu a peguei! Eu a peguei!

Ele sentiu nitidamente um suspiro semelhante ao

seu, um suspiro de imenso al��vio exalar dos outros pei-

tos, uma ang��stia diminuir em todos os esp��ritos que o

assistiam.

Ele pediu, com uma esp��cie de alegria:

87

��� Pin��a Kelly!

Pegou o instrumento com a m��o esquerda e o

deslizou ao longo da m��o direita, at�� que pudesse

afastar os maxilares da pin��a e apert��-los em volta do

coto. Seu esp��rito, seus m��sculos, todo o seu ser esta-

va tenso ao m��ximo: se ele apertasse um ponto vital

qualquer ou um anel do intestino, seria a confus��o

total.

Com a certeza de que s�� o ped��nculo tinha sido

preso, come��ou a apertar docemente, com min��cia in-

finita. E no impressionante sil��ncio estabelecido, ou-

viu-se logo o ru��do tranq��ilizador dos ganchos que se

engrenavam.

Fran��ois inspirou longa, profundamente, antes de

declarar com uma voz forte e vibrante:

��� A ligadura do ped��nculo pode esperar at�� que

a transfus��o comece. Agora, sangue nas veias e o

mais r��pido poss��vel!

A sombria po��a de sangue do corpo da operada

foi despejada e vertida na cuveta contendo a solu����o

de nitrato. Um pano branco tinha sido mantido fer-

vendo numa bacia aquecida eletricamente. Uma enfer-

meira envolveu a cuveta com esse pano, enquanto uma

outra enfermeira girava lentamente o conte��do.

Logo, havia pouco l��quido, onde nadavam alguns

co��gulos. O resto do soro foi cuidadosamente derra-

mado no frasco sempre ligado a uma veia. Um funil

de vidro foi segurado com uma pin��a esterilizado e

colocado no fundo do frasco onde foi colocado bem

atentamente o sangue que chegava filtrado no frasco

e o enchia.

Uma pin��a colocada no tubo de borracha foi

aberta. O sangue come��ou a correr pela veia.

88

Fran��ois comentou com uma voz baixa, lenta e

precisa:

��� N��o �� o caso dissimular-se que este processo

�� arriscado. Tamb��m n��o �� o caso esquecer-se que

este m��todo de autotransfus��o �� um precioso recurso

para salvar uma vida quando n��o se tem sangue ime-

diatamente �� disposi����o, o que, infelizmente, n��o �� um

caso raro. �� claro que, assim, o sangue perdido n��o

�� pouco. N��o exageremos a gravidade. Gra��as ao re-

torno �� veia de todo o sangue retirado do ventre, o

perigo de perda total de sangue pode ser considerado

afastado...

Como parasse para respirar, o enfermeiro-aneste-

sista anunciou:

��� A press��o est�� subindo o pulso ficando mais

calmo.

O rosto de Fran��ois iluminou-se sob o imp��rio de

uma satisfa����o intensa:

��� Vejam! Conseguimos acalmar sua fome de ar

respir��vel! Vamos continuar! Est�� faltando a ��ltima

fase do nosso combate antes de cantar a vit��ria final!

Ele inclinou-se sobre a cavidade, viu o ped��nculo

e a art��ria que causaram tanto mal. A primeira liga-

dura continuava no lugar. Ele fez uma nova ligadura,

depois fixou-a. Precisava agora fechar o perit��nio.

Pegou uma agulha e um longo fio de sutura, enquanto

perguntava:

��� A press��o?

��� Est�� subindo.

��� O pulso?

��� Acalmando.

89

��� N��vel do frasco de transfus��o?

��� Passaram setecentos cent��metros c��bicos.

��� Quanto falta?

��� Uns mil, ainda.

��� Obrigado.

Ent��o ele fechou a parede abdominal, camada de-

pois de camada, substituindo os pontos de sutura que

tinha cortado na passagem precoce em dire����o �� fon-

te de hemorragia. Tudo ia terminar logo. Ele ganha-

ra o duro, o acre combate contra a morte. Sentia-se

colossalmente feliz. A tens��o que tinha mantido e

galvanizado durante toda a opera����o ia-se desfazendo

e ele sentia enfraquecer sua resist��ncia f��sica e nervosa.

Tinha de fazer um esfor��o enorme para dar cada pon-

to, mas sabia que ag��entaria at�� o fim, para desmoro-

nar logo depois.

Finalmente, tudo terminou. Mas Fran��ois insis-

tiu em olhar os enfermeiros levando a operada at�� que

sa��ssem da sala de opera����o. Um sorriso extenuado

mas luminoso passeava por seus l��bios no instante em

que Colette tirou sua m��scara.

��� O senhor fez um trabalho not��vel ��� disse a

jovem com um profundo respeito e uma imensa admi-

ra����o nos olhos.

��� Acha mesmo? ��� ele murmurou com uma mo-

d��stia comovente e com um sorriso t��mido.

Quando estava se trocando no vesti��rio, Colette

foi at�� ele. Ele ent��o foi tomado de intimida����o,

quando ela murmurou a seus ouvidos, enquanto o aju-

dava a vestir o palet��, depois dando ela mesma o n��

da gravata:

90

��� N��o poder��amos nos ver �� noite?

Fran��ois hesitou uma fra����o de segundo antes de

responder:

��� Temo que n��o seja poss��vel, meu bem. Minha

mulher convidou amigos, e seria dif��cil para mim n��o

estar em casa hoje �� noite.

E como a jovem ficasse sombria, ele colocou a

m��o paternalmente em seu ombro:

��� Ficar�� para uma outra vez, est�� bem? Se ain-

da me quiser, claro!

Ela n��o respondeu nada e saiu. Fran��ois ficou por

um curto instante bastante perplexo, perguntando-se se

a jovem tinha-se iludido com a mentira que ele lhe

contara.

Alguns minutos depois, ele sa��a do hospital. A

felicidade do triunfo profissional j�� se substitu��ra a

grande amargura de que era feita sua vida privada:

como nos outros dias, n��o veria Carole.

"Bem, nesse caso, vou procurar Clara!" ele deci-

diu raivosamente.

9 1

Ele viu logo que ela n��o estava como de costu-

me, quando sabia que ele ia vir. A primeira coisa que

chamou sua aten����o foi a roupa que ela usava. Ela

recebia invariavelmente de vestido longo, ��s vezes at��

com trajes muito finos. Se bem que ele tivesse telefo-

nado antes e que ela tivesse dito a ele para vir, estava

com roupa comum: uma saia simples e uma blusa.

No entanto sua voz, ao telefone, tinha vibrado de

contentamento, sen��o de alegria aut��ntica. Uma ale-

gria que continuava a fazer seus olhos brilhar, mas

que estava em contradi����o evidente com sua retic��n-

cia e a acolhida mais reservada.

��� Boa noite, Fran��ois ��� disse simplesmente,

com o canto dos l��bios.

Ela nem pensou em mand��-lo entrar e ele teve de

empurr��-la ligeiramente e ele mesmo fechar a porta,

dizendo:

��� Voc�� n��o parece muito contente por me ver,

Clara. Por que n��o disse que eu iria incomod��-la?

��� M a s . . . voc�� n��o est�� me incomodando em

nada, querido. Entre.

��� Obrigado. Parece que j�� entrei. E claro que

n��o foi gra��as ao calor da sua recep����o! Qual �� o

problema? ��� ele continuou com uma sincera joviali-

dade e segurando-a pelos ombros.

��� Nenhum. Est�� tudo muito bem ��� ela pro-

testou fracamente, soltando-se e precedendo-o at�� a

93

sala. ��� O que quer beber? U��sque, como sempre?

Com dois gelos... Sente-se. Vou preparar j��.

Fran��ois estava cruelmente decepcionado. N��o

entendia que reviravolta podia ter acontecido no esp��-

rito de Clara, sempre t��o entusiasta quando o via.

��� Tenho a n��tida impress��o de que atrapalhei

seus planes vindo esta noite ��� ele n��o p��de evitar de

dizer, quando ela voltou para junto dele, n��o sem

usar claramente de evasivas, ocupando-se com banali-

dades, como se quisesse retardar o m��ximo poss��vel o

momento do encontro mais ��ntimo.

��� Nada disso! ��� ela afirmou, sem acrescentar

nada.

Ele olhou-a enquanto ela acendia um cigarro, be-

bia um u��sque, repousava o copo, cruzava as pernas,

sorria vagamente, perdia-se na contempla����o da fu-

ma��a.

Decidido a deix��-la romper aquela esp��cie de

conspira����o do sil��ncio, Fran��ois p��s-se a esperar. Ele

tinha vindo cheio de desejo; sentia agora uma imensa

decep����o, tinha vontade de ir embora, de procurar

Colette, ou uma outra, n��o importava quem...

Mas o que ele esperava n��o demorou a aconte-

cer. Clara virou-se para ele bruscamente e, esmagan-

do o cigarro num cinzeiro, disse-lhe �� queima-roupa:

��� Esta situa����o n��o pode continuar, Fran��ois!

Ele n��o pestanejou; perguntou simplesmente:

��� Que situa����o?

94

Ela balan��ou os ombros, irritada:

��� Voc�� sabe t��o bem quanto eu.

E como ele n��o retrucasse, ela plantou resoluta-

mente o olhar no dele:

��� Como voc�� est�� com sua mulher? Por que

volta aqui regularmente? O que significo para voc��?

Um exut��rio? Sim, �� isso, tudo me indicai Voc�� ti-

nha de avisar-me! J�� me cansei! Entendo perfeita-

mente que essa situa����o seja c��moda para voc��, mas

pensou, um ��nico momento, que podia n��o ser para

mim? Estou cansada de estar �� sua inteira disposi����o

quando voc�� quer, pelo tempo que lhe agrade, enten-

de? N��o sou um objeto que se manipule �� vonta-

d e . . . Tamb��m tenho uma vida privada... amigos,

um trabalho, pensamentos e sentimentos meus...

Voc�� n��o se d�� conta disso! O desejo manda-o fazer

o amor comigo e voc�� vem! Se esse desejo tem um

eclipse, ent��o voc�� me deixa pelo tempo em que n��o

�� de novo despertado! �� disso que estou farta, farta,

mas farta, se voc�� soubesse!

Ela estava nervosa. Parecia estar sofrendo. Ele

olhou-a com estupor e afli����o:

��� O que h�� com voc��, Clara? ��� ele pergun-

tou, sinceramente aflito.

��� Acabo de dizer. N��o finja n��o entender.

Ele percebeu que ela tentava superar a perturba-

����o antes de prosseguir, mais calmamente:

��� Em resumo, n��o sou nada para voc��? Voc��

n��o me ama? Nem um pouco... Nem um pouqui-

nho, nada?

95

Ele sentiu que n��o devia dar voltas, que estava

diante de uma sinceridade digna daquela da qual ele

devia dar provas:

��� N��o, Clara. N��o a amo. S�� a desejo ��� ele

respondeu francamente.

��� Obrigada por sua franqueza ��� ela respondeu,

sem ironia. ��� Mas, e eu? Se eu tivesse acabado li-

gando-me a voc��? Se voc�� tivesse ficado indispens��-

vel para mim, Fran��ois? Se me fizesse uma grande

falta quando fica dias e dias sem vir? Se eu s�� tivesse

vontade de fazer o amor com voc��? Se eu tivesse co-

me��ado a ter ci��mes de sua mulher e n��o pudesse

mais aceitar a divis��o? Se, h�� algum tempo, eu pas-

sasse horas perguntando-me o que voc�� est�� fazendo,

com quem e se n��o significo mesmo nada em sua

vida? Enfim, merda, se eu tivesse come��ado a am��-

-lo? ��� ela terminou, numa revolta de todo o seu ser.

Fran��ois ficou um instante aniquilado. Esperaria

tudo de Clara, menos isso. Nada fizera-o prever aque-

la rea����o sentimental. Ele n��o achava nada para res-

ponder, a n��o ser, depois de um momento durante o

qual Clara manteve-o sob a chama aguda de seu

olhar:

��� Sinto muito, Clara, sinto muito realmente.

Ela sorriu corajosamente:

��� Sabe por qu��, pelo menos? Porque o amo e

voc�� n��o me ama? Porque me ama e n��o quer ma-

goar sua mulher? Como voc�� est�� com ela? ��� ela

perguntou, pela segunda vez. ��� Est�� dormindo de

novo com ela, ou continuam em quartos separados?

Preciso saber, Fran��ois ��� ela prosseguiu, implorante,

96



97

em amor, pelo menos, possa-se sobrepujar... No in��-

cio de uma aventura, ou nos acreditamos mais fortes

do que seremos, ou iludimo-nos desmedidamente. De

qualquer forma, nos damos mal. Nunca pensei que

um dia fosse am��-lo de verdade. Eu �� que me enga-

nei, afinal.

Ela levantou-se, firme e orgulhosa:

��� Vamos resumir, querido: n��o est�� de modo

algum nas suas inten����es separar-se definitivamente

de Carole? Seja o que for que ela fa��a, voc�� nunca

vai divorciar-se? Oh! N��o v�� pensar que estou pen-

sando em casar com voc��! N��o. S�� comecei a sonhar

que poder��amos viver juntos... Voc�� n��o �� feliz, nem

eu. Desde que comecei a am��-lo, n��o sei mais ser

feliz... Ent��o, �� isso!

Ela calou-se, de repente, sorrindo febrilmente.

Ele levantou-se.; envolveu-a com um olhar desampa-

rado:

��� Ainda quer fazer o amor comigo? ��� ele per-

guntou, quase humildemente.

Ela balan��ou lentamente a cabe��a:

��� N��o, Fran��ois. N��o h�� condi����es. Acho que

estamos nos vendo pela ��ltima vez. Se insist��ssemos

em nos ver agora, acabar��amos por esperar um do

outro o que um e outro n��o podia oferecer... O que

nos mantinha ligados era um desejo de pele e, princi-

palmente, uma comum desenvoltura em nosso relacio-

namento . . . Essa desenvoltura abandonou-me. Entre

os seus bra��os, no mais ardente do prazer que pro-,

curasse em mim, eu n��o seria mais que um esp��rito

especulador do futuro, e isso eu recuso com firmeza,

98





pois voc�� acaba de me fazer entender que nada de

dur��vel �� poss��vel entre n��s.

Ela fez um movimento de alegre despreocupa����o;

��� S�� nos resta tomar uma ��ltima dose e deixar-

-nos como bons amigos, sem l��grimas de minha parte,

sem rancor da sua. Certo, Fran��ois?

��� Est�� bem, Clara.

E, alguns minutos depois, eles se separaram com

um simples aperto de m��o. "Boa sorte, querido!" ele

pensou ter ouvido Clara dizer no instante em que as

portas do elevador se fecharam. Mas ele podia bem

ter imaginado essas ��ltimas palavras de adeus.

* * *

Ele parou o carro na esquina da rua onde elas

estavam", em grupos loiros, ruivos e morenos; esco-

lheu rapidamente a de cabeio flamejante, ousadamen-

te maquilada, mas ins��litamente vestida como uma

modesta pequena burguesa. Vinte anos? Quarenta?

Os dois eram poss��veis.

99





O barulho de uma porta fechando trouxe-o �� rea-

lidade. Ele viu que estava num quarto desconhecido

ouviu quase em seguida um som de ��gua, depois uma

voz que perguntava:

��� Posso saber antes por quanto tempo?

��� N��o sei ainda. ��� ele resmungou.

Ela reapareceu, ainda vestida mas acabando de

secar-se com uma toalha de cuja cor de sangue Fran-

��ois ia lembrar-se por muito tempo.

Ele conseguiu sorrir:

��� Como se chama?

Ela sorriu fracamente:

��� Isso o interessa? Bem, como queira. Cha: .

mam-me Ghislaine.

��� Mas seu verdadeiro, nome, qual ��?

Ela repreendeu-o com um olhar que parecia sur-

preender-se com aquela fantasia desconhecida; respon-

deu, no entanto, com boa vontade:

��� Marie.

firo que me chamem assim. Mim �� t��o raro! ela

acrescentou_com um acento, na voz, de ���pesar, como-

vente.

100





Depois, vendo que "seu cliente" continuava imp��-

��� N��o vai tirar a roupa? Decida: �� r��pido ou

��� A noite toda ���: murmurou penosamente Fran-

Marie-Ghislaine despiu-se, imaginando o que

aquele cliente estava pretendendo, depois puxou a co-

da cama e deslizou por baixo dos len����is, aca-

bando de despir-se e dizendo:

- Voc�� vem?

��� Vou ��� respondeu Fran��ois, imaginando onde

estava Carole naquele momento, o que estava fazendo

Ele juntou-se a Marie, deslizou para junto dela.

��� Seus p��s est��o terrivelmente frios ��� ela cons-

tatou, erguendo as pernas.

��� Voc�� acha?

��� O que voc�� quer? ��� ela perguntou, erguen-

do se num cotovelo.

��� O que voc�� quiser.

Ela teve um movimento irritado:

��� Voc�� n��o �� um tipo divertido! N��o podia

avisar antes de subir?

��� Eu n��o sabia ��� protestou fracamente Fran-

101

Ele acrescentou sem procurar dissimular o des-

contentamento :

��� Afinal, voc�� deve estar acostumada! Cabe a

voc��...

Ela interrompeu sem c��lera:

��� Tem raz��o. S�� que tenho de dizer-lhe...

Para mim tamb��m as coisas n��o v��o bem esta noite.

Fran��ois sentiu-se estranhamente tranq��ilizado. En-

t��o ele n��o era o ��nico a ter aborrecimentos.

��� Qual �� o problema? ��� ele perguntou no tom

instintivo de quando falava com um doente,

Ela deixou-se cair na cama.

��� �� minha filhinha. Est�� com escarlatina. Ti-

nha de ir v��-la,, mas..ela est�� longe, nalgum ponto de um lugar perdido.

Ela calou-se. Ele tamb��m. Deitados lado a lado,

faziam pensar num velho casal sem curiosidade, sem

desejo, simplesmente lado a lado pela for��a do h��bito

conjugal.

Marie-Ghislaine calculava o n��mero de clientes

que tinha de fazer "subir" antes de poder ir ver a fi-

lhinha, cu pelo menos para estar em condi����es de

mandar a soma necess��ria para ela ser tratada.

Fran��ois pensava em Carole, em Colette, em Cla-

ra, em seus operados e casos de urg��ncia... Em seus

longos anos de estudo...

De repente ouviram um barulho vindo do quarto

vizinho, o grito rouco, abafado e prolongado de um

102

homem, depois, quase em seguida, o som de uma tor-

neira aberta.

Ent��o Fran��ois virou-se e deixou-se cair pesada-

mente sobre Marie.

Foi terrivelmente excitante, e lament��vel para

Fran��ois.

103

��� N��o, senhora, a dra. Carole Damien n��o est��.

��� Mas �� imposs��vel! Ela prometeu que passaria

as duas horas da tarde e j�� s��o sete!

��� Sinto muito, senhora, mas n��o posso dizer-lhe

mais nada. �� prov��vel que a dra. Damien tenha sido

retida e que seu atraso seja totalmente independente

de sua vontade... Assim que vir a dra. Damien, avi-

sarei de seu chamado.

Fran��ois desligou nervosamente o aparelho. H��

mais de um mes esse tipo de cena repetia-se todos os

dias. Ele o sabia pela secret��ria, que atendia em sua

aus��ncia. Mas acontecia, freq��entemente, de ele aten-

der, sabendo quase cora seguran��a o que ia ouvir.

Ficava cada vez mais evidente que Carole estava

relaxando no exerc��cio de suas fun����es, n��o aparecen-

do na hora combinada para a consulta dos clientes,

ela que, antes, era t��o pontual!

V��rios outros detalhes desse tipo vinham confir-

mar ao cirurgi��o sua certeza de que a mulher engana-

va-o agora permanentemente. Ele n��o tinha tido o

primeiro ind��cio no dia em que um envelope e uma

fotografia tinham escapado de sua bolsa? Com que

precipita����o ela n��o se abaixou para peg��-los! E que

s��bito rubor em suas faces, quando se ergueu! Mas

ela sabia que Fran��ois conseguiu reconhecer a letra da

mulher no envelope e ler a dedicat��ria atr��s da foto?

Al��m disso, Fran��ois assistia a uma verdadeira

transfigura����o de Carole. Aquela metamorfose parti-

105

cular aos seres animados por um sentimento interior

exaltante mantido, por ci��mes, secreto.

Fran��ois interrogava-se. Certo, ele sofria quando

media a extens��o, a profundidade do fosso que o se-

parava da mulher. Mas exatamente por que raz��o so-

fria? Que sentimento vibrava nele? Amor? Orgulho?

Simplesmente amor-pr��prio? O fato de ela ter um dia

voltado ao hospital e ficado junto dele durante uma

opera����o tinha feito com que ele tivesse esperan��as de

que os la��os rompidos se renovassem. Faltou pouco,

mas o "renascimento" do amor deles abortou, exata-

mente como um feto mal ligado �� matriz da m��e. No

entanto, tinham estado bem perto de "retomar o ca-

minho" juntos. Tinha de ter acontecido aquele inci-

dente idiota da bolsa, que desajeitosamente ele deixou

cair, aquele envelope dirigido a um homem, aquela fo-

tografia com uma dedica����o a m o r o s a . . . "A carta

para o amante!" Fran��ois n��o desistia. Como n��o

confessava que o sentimento que o torturava era sim-

plesmente o ci��me, esse ci��me de pele, prim��rio, de

que ele, justamente, tanto zombou. N��o queria ainda

reconhecer que sofria em sil��ncio uma tortura igual ��

de Carole quando o surpreendeu beijando, abra��ando

uma outra mulher.

Como sua tend��ncia cient��fica o incitasse a exa-

minar esse problema sob todos os ��ngulos, Fran��ois

chegou a pensar no que sentiria se Carole anunciasse

no dia seguinte sua inten����o de divorciar para refazer

sua vida, segundo a express��o consagrada.

Aquele aspecto do problema era totalmente desa-

grad��vel a ele. Conhecia suficientemente bem a mu-

lher para saber que ela n��o era mulher de aventuras

passageiras e que, se chegasse o dia de ela exigir sua

inteira e definitiva liberdade, seria em nome de um

verdadeiro e grande amor.

106



Ele mesmo, recentemente, tinha sido encostado ��

parede por Clara. Compreendia perfeitamente os sen-

timentos da jovem mulher. Soube imediatamente o que

responder. Mas Carole, na mesma situa����o com esse

Johnny ou algum outro, reagiria como ele? Ela seria

bastante s��lida e profundamente ligada a ele apesar

de tudo, para fazer o que fez Fran��ois?

Essa era a quest��o.

Enquanto isso, os dias, as semanas passavam sem

trazer mudan��as not��veis naquela estranha exist��ncia

conjugal. Por assim dizer, n��o se viam mais. Fran-

��ois, desencorajado de ver Carole no fim do dia, acos-

tumou a sair, primeiro por acaso, sem destino determi-

nado, depois, �� medida em que a noite avan��ava, para

essa ou aquela rua, onde sabia poder encontrar o asi-

lo sexual de que sua vitalidade precisava essencial-

mente.

No entanto, tudo mudava insensivelmente na vida

de Carole. A modifica����o era lenta, subterr��nea, es-

capando sem d��vida �� sua pr��pria investiga����o, mas

nem por isso deixava de ser manifesta.

Notando que Fran��ois voltava cada vez menos

freq��entemente para casa, Carole tomou o h��bito de

passar quase todas as noites com Leonora. Abando-

nava-se �� amiga, mas parcialmente. Nos bra��os dela,

com a boca colada �� de Leonora, s�� restava, verda-

deiramente quente e viva, a parte baixa de seu corpo

nu, enquanto seu esp��rito, sua alma, seus pensamen-

tos permaneciam singularmente revestidos de seus pen-

samentos secretos. Seus sentidos come��avam a flame-

jar, sua sensualidade explodia, brotava, mas como que

fora dela mesma. E de repente, depois de fruir seu

107

prazer, ela ficava como aquelas flores chamadas "sen-

sitivas", cujas p��talas dobram-se ao menor toque.

Isso acabou por exasperar Leonora que, uma noi-

te, com Carole ainda nos bra��os, disse-lhe sem pre��m-

bulos:

��� Essa situa����o entre n��s n��o pode continuar!

Dolente, Carole perguntou:

��� Que situa����o, querida?

��� A nessa, c��us!

Estranha, se bem que confortavelmente enrolada

a Leonora, Carolo ainda perguntou:

��� Por qu��? Voc�� n��o sentiu prazer? N��o a aca-

riciei como era preciso? No entanto, achei q u e . . .

Leonora empurrou Carole e, erguida na cama des-

feita, perguntou:

��� Como voc�� est�� com seu marido? Ainda dor-

me com ele? Por que vem aqui? O que significo para

voc��? Aonde voc�� quer chegar? O que significa tudo

isso? Voc�� me ama?

A resposta de Carole foi espont��nea;

��� N��o. N��o, Leonora, n��o a amo, pelo menos

n��o como voc�� parece querer que eu a ame.

O di��logo entre as duas mulheres foi bem seme-

lhante ao de Clara e Fran��ois. Leonora tinha acaba-

do por gostar de Carole. N��o tolerava mais a divis��o.

Tinha ficado exclusiva, queria Carole s�� para si, o

tempo todo, a vida toda.

108

��� Sinto muito ��� respondeu Carolo, como Fran-

��ois tinha respondido ao ultim��tum impl��cito de Clara.

As duas mulheres deixaram se como tinham-se dei-

xado Fran��ois e Clara.

Fran��ois tinha-se refugiado nos bra��os de uma

prostituta. Carole tinha descoberto uma outra raz��o

de viver, de certa forma fabricou ama nova significa-

����o para sua exist��ncia.

Johnny. O que ela chamava "sua remiss��o". Ele

valia mais o que as correntes contr��rias da vida ti-

nham feito dele. Ela confiou imediatamente nele, e

n��o se arrependeu. Fiel �� sua promessa, Carole, alias

favorecida pelas circunst��ncias, arranjou-lhe um em-

prego com um casal de idade (A mulher era sua clien-

te) que precisava de um jovem para motorista. Al��m

disso, ele fazia diversos outros trabalhos na grande

mans��o de Neuilly, cercada por um grande parque. E

�� noite, depois do trabalho, retirado no quarto que lhe

reservaram e que dava para as ��rvores do jardim,

Johnny mergulhava nos livros. "Quero que se orgulhe

de mim", ele dizia constantemente para Carole. "Eu

j�� me orgulho", ela respondia sem mentir.

Mas ela tinha consci��ncia de que aquele resulta-

do obtido t��o rapidamente s�� se mantinha gra��as ao

apoio constante que ela dava ao jovem. Ele tinha

uma necessidade vital de v��-la todos os dias, pelo me-

nos por uma hora.

��� Sou como uma crian��a aprendendo a andar!

Posso dar alguns passos sozinho mas, se voc�� me dei-

xar caio no ch��o! - ele dizia rindo, mas olhando-a

inquieto, como se temesse que ela o abandonasse.

Ela renovava sua energia ainda muito fr��gil. Via-o

ainda muito desequilibrado no novo caminho para fi-

109

car sem ela. Ele n��o continuava �� merc�� de um en-

fraquecimento moral? E ent��o tudo teria de recome-

��ar, admitindo-se que ele levantasse da eventual "re-

ca��da", que n��o ficasse irrecuper��vel.

Mas um dia, Johnny acabou por perceber que

Carole tinha de fazer n��o poucas proezas para estar

livre e vir apoi��-lo diariamente. Ele sentiu uma gran-

de confus��o, muitos escr��pulos e exprimiu-lhe com

medo:

��� Tenho tanto medo de cans��-la, querida Caro-

le. N��o ignoro como o tempo de um m��dico �� so-

brecarregado. Por minha causa, voc�� n��o deve estar

tendo nenhum momento de descanso. Sei bem que de-

via livr��-las das obriga����es que assumiu comigo, mas

sinto-me ainda fraco demais, tenho ainda muito medo

diante da perspectiva de n��o v��-la mais.

Ela tranq��ilizou-o de modo convincente:

��� N��o vou abandon��-lo enquanto voc�� n��o for

capaz de dirigir-se sozinho.

E. para acalmar totalmente sua inquietude, ela

acrescentou o que pensava e sentia realmente:

��� Voc�� n��o est�� se dando conta, meu pequeno

Johnny, mas voc�� tamb��m est�� me ajudando muito.

Aquele dia ela n��o foi adiante nas confid��ncias.

Foi s�� uma ou duas semanas depois que, pelos la��os

de amizade estreitados entre eles, ela contou-lhe sua

desilus��o, o que a separava do marido.

Tendo dado o primeiro passo, n��o parou e depois

acostumou-se a fazer confid��ncias a Johnny. �� noite,

em vez de ir �� casa de Leonora (com quem tinha rom-

pido definitivamente), Carole ia para Neuilly, subia

110

direto para o quarto do jovem e s�� ia embora bem

tarde.

De in��cio, eles riam das ast��cias que ela tinha de

usar para evitar os moradores da mans��o, passando

pela entrada de servi��o para n��o ter de ver os donos

da casa e explicar-lhes o que ela teria muita dificul-

dade para justificar!

Depois n��o riam mais. Aquela esp��cie de cum-

plicidade tinha insens��vel e sorrateiramente modificado

o clima entre eles. Sem que percebessem, seus encon-

tros tinham tomado um car��ter equ��voco. Quando to-

maram consci��ncia, ficaram um pouco com medo. S��

um pouco, pois, em definitivo, a impress��o que tive-

ram foi infinitamente agrad��vel para eles.

Na verdade, viam-se agora de igual para igual c

sobretudo na inteira realidade que encarnavam: Caro-

le, uma mulher jovem, bela e desej��vel. Johnny, um

rapaz transbordando de vitalidade, belo tamb��m e rico

de uma energia sexual h�� muito tempo inutilizada.

E o que estava sendo preparado sem que se des-

sem conta, o que tinha de acontecer aconteceu. Uma

noite, Carole soube que Johnny desejava-a e, naquele

mesmo instante, percebeu que n��o era insens��vel

��quele desejo, que o queria violentamente.

Mas nem um nem outro, aquela noite, o disse-

ram, cuidando, ao contr��rio, de escond��-lo reciproca-

mente. Houve, no entanto, uma importante modifi-

ca����o em seu relacionamento durante aquela noite ex-

cepcional, que foi a da comum descoberta: Johnny

come��ou a tratar Carole mais intimamente e, inver-

tendo a situa����o, interrogou-a muito sobre sua vida

privada, seus sentimentos profundos e como ela enca-

rava o futuro etc, etc.





111





Johnny com voz contida, mas ardente.

confusa e feliz.

a vejo realmente... Entendo melhor de repente por-

que Patr��cia confiou em voc��... Voc�� �� bonita e

atraente, generosa e compreensiva, como tamb��m

bela...

Johnny.

Um pouco depois, ele criou coragem e pergun-

tou:

��� Voc�� n��o tem amante, Carole?

��� N��o.

��� Acho dif��cil acreditar mas tenho certeza de

que est�� dizendo a verdade. Como voc�� faz?

��� Como fa��o o qu��?

��� Entendeu o que quero dizer.. Voc�� n��o tem

nada de uma mulher insens��vel, , Carole... Deve at��

ser extremamente sensual... V��-se pela dobra de sua

boca, pelo arrepio de seu corpo, ��s vezes, pelo brilho

dos seus olhos... Voc�� deve ter um corpo espl��ndido.

N��o chegou a confessar-lhe que sonhava com ela

�� noite, que procurava imaginar como ela era no amor,

no prazer.

112





��� Voc�� sabe, Johnny, tenho uma vida muito

ocupada. N��o tenho tempo de me interrogar sobre o

que sente ou n��o o meu corpo, se est�� ou n��o frus-

trado.

Ela mentia para recha��ar o desejo devorador que

tinha daquele rapag��o musculoso.

Ele ficou um longo momento sem dizer mais nada.

Tinha colocado a m��o no joelho de Carole. Ela n��o

tirou a m��o dele, mas desviou os olhos. Ele tamb��m

desviou os dele.

��� Seria melhor eu ir embora ��� murmurou Ca

role em voz baixa

Eles murmuravam uma esp��cie de balbuciar fre-

mente.

Carole sentia subir e crescer nela a tenta����o de

deixar a cabe��a rolar no ombro de Johnny, de aban-

donar-lhe os l��bios, o corpo todo e at�� suas profundezas maiores, mais intimas Sob a m��o de Johnny, o joelho de Carole tornava-se uma lareira incandescente, de cujo ardor ele gos-

tava. Ele sentia sua for��a de rapaz firmar-se, mexer

pesadamente, durante, e lutava com desespero contra a

tenta����o deliciosamente angustiante de atirar-se sobre

aquela mulher t��o bonita, de arrancar suas roupas, de

esmagar seu corpo e perder-se nela at�� que ela pedis-

se merc��, at�� que gritasse de prazer.

��� E agora preciso mesmo ir! ��� leia decidiu, le-

vantando-se bruscamente.

113

Ele ficou logo de p��, gritou:

��� N��o!

E tomou-a nos bra��os, abra��ando-a forte, beijando

seu pesco��o, sua testa, suas p��lpebras, deslizando para

os l��bios, para ir beijar a garganta, subindo e parando

para tomar sua boca.

��� N��o precisa... ��� ela gemeu, colando a ele o

ventre, as coxas, o corpo todo percorrido por arrepios

e tremores.

Ele tinha fechado os olhos, exalava sons inarti-

culados, sem poder arrancar-se do beijo acre e chame-

jante, s�� tendo consci��ncia do marulho formado pelo

abra��o deles e das agita����es fant��sticas em sua virili-

dade enlouquecida de desejo.

Sob o pre��o de um esfor��o do qual ela n��o se

imaginava capaz, Carole escapou ao chamejante e te-

m��vel abra��o:

��� N��o devemos! ��� ela repetiu, mas dessa vez

com for��a e veem��ncia.

��� Por qu��, mas por qu��? ��� ele perguntou, de

repente desarmado. ��� Voc�� jurou fidelidade a al-

gu��m? ��� ele acrescentou ingenuamente.

��� A ningu��m, mas sinto que n��o devemos ceder

�� tenta����o, Johnny. N��o sei como explicar... N��o ��

poss��vel entre n��s... Seria estragar tudo entre n��s,

entende?

��� N��o. N��o, Carole, n��o entendo... Voc��

tamb��m me deseja, n��o? Ou ent��o �� que...

��� Cale-se, voc�� vai dizer tolices! ��� ela orde-

nou, de repente maternal. ��� Posso garantir uma coi-

sa, meu pequeno Johnny, h�� um tempo incalcul��vel

114

n��o desejei fazer o amor com um rapaz como desejei

em seus bra��os Disso pode ficar persuadido, acredite

em mim, pois n��o estou mentindo.

��� Ent��o por que recusa aquilo por que queima

de desejo? ��� ele perguntou de novo, mais terno para

tentar convenc��-la.

Um brilho feliz; tingido de mal��cia, atravessou

seus olhos:

��� �� por que tem uns anos a mais que eu?

Ela n��o pode evitar o riso, apesar do pesar que

infligia a si pr��pria renunciando ao prazer:

��� Claro que n��o, Johnny! N��o �� esse o moti-

v o . . .

Depois ela fez um gesto desencorajado e suspirou:

��� �� s�� que tenho a convic����o ��ntima de que n��o

devemos fazer isso, eis tudo. N��o posso fazer nada. E

estou sofrendo tanto quanto voc��, sabe? ��� ela termi-

nou, passeando melancolicamente a m��o pelo rosto

consternado de Johnny. ��� Voc�� �� t��o jovem, t��o bo-

nito!

Ele olhou-a enquanto ela ia para a porta do quar-

to, dirigindo-lhe um adeus silencioso, n��o ousando per-

guntar se ela voltaria, procurando loucamente que pa-

lavras usar.

��� Carole! Espere mais um instante! Tenho algo

a lhe dizer!

Ela virou-se, sorriu fracamente:

��� Estou ouvindo, Johnny ��� ela disse doce-

mente.

��� Bem.. N��o esqueci suas confid��ncias... En-

t��o espero que chegue o dia em que eu possa ajud��-

115

-la a reconquistar sua felicidade na mesma medida em

que voc�� me apoiou, colocou-me de volta no bom ca-

minho.

��� Obrigada, meu pequeno Johnny. ��� ela res-

pondeu simplesmente, com a voz vibrando de emo����o.

Sim, ela estava emocionada, mas tamb��m incr��du-

la quanto ��quela eventualidade. C o m o Johnny poderia

ajud��-la a reconquistar a felicidade com Fran��ois?

Johnny e o cirurgi��o algum dia se encontrariam? E

se esse encontro totalmente improv��vel se desse, que

contato poderia ser estabelecido com efic��cia entre o

cirurgi��o e o ex-vagabundo?

116

Naquele dia Carole esteve particularmente ocupa-

da com as visitas m��dicas e uma sucess��o de chama-

dos de urg��ncia.

�� noite, na hora em que normalmente tomava a

dire����o de Neuilly para ver Johnny, estava t��o esgo-

tada, t��o febril, no fim das for��as f��sicas e nervosas,

que teve de renunciar ao passeio.

Foi direta para seu quarto. Tinha a inten����o de

deitar um momento e, se suas for��as lhe permitissem,

ir assim mesmo a Neuilly, mesmo bem tarde, pois

Johnny esperava-a confiante.

De repente a porta abriu-se e Fran��ois irrompeu

no quarto:

��� Desculpe se a incomodo ��� ele disse no tom

glacial que tinha adotado definitivamente para com

ela ��� mas vi quando chegou e tudo me leva a crer

que voc�� p e r d e u a mem��ria.

A surpresa deixou-a muda e precisou de alguns

segundos antes de entender bem que era seu marido

que lhe falava. Mas de que ele falava, exatamente?

A que estava aludindo? Ela olhava-o com uma esp��-

cie de desvario e ele percebeu:

��� Eu a avisei, pela empregada ��� ele censurou

acremente. ��� Convidei dois cirurgi��es amigos meus,

um dos quais me pode ser de grande utilidade na pro-

fiss��o. Exijo que minha mulher presida a esse jantar.

Ele acrescentou com ironia:

1 1 7

��� Pois voc�� ainda �� minha mulher aos olhos do

mundo, n��o esque��a, minha querida Carole.

Cansada demais para reagir como o faria normal-

mente, Carole balan��ou os ombros vencida e suspirou:

��� N��o esque��o nem isso nem muitas outras coi-

sas, pode estar certo, meu querido Fran��ois!

��� Mas esqueceu nossa recep����o esta noite!

Ela sorriu com dolorosa ironia:

��� �� pena que o esquecimento seja imposs��vel!

E, se for poss��vel, o ��, infelizmente, para as coisas que

deveriam ser lembradas, quando nos lembramos t��o

bem do que dever��amos esquecer!

��� Conclus��o? O que voc�� pretende fazer? N��o

vai continuar deitada, recolhida em sua torre de mar-

fim, quando sua presen��a �� totalmente indispens��vel

junto de nossos convidados... ?

��� Est�� bem, eu vou! ��� ela suspirou, resignada.

��� D�� um tempo para eu me preparar, pelo menos, e

deixe-me ceder a um momento de c a n s a �� o . . .

��� Parece que deixo muita coisa h�� um certo

tempo, n��o?

E ele saiu do quarto t��o bruscamente quanto ti-

nha entrado. Carole preparou-se para receber os ami-

gos do marido. Um singular mal-estar oprimiu-a, por

causa do cansa��o f��sico. N��o poderia ir a Neuilly, ape-

sar de toda a boa vontade. Seria a primeira vez em

que faltaria com a promessa, desde que assumiu res-

ponsabilidades para com Johnny. Seria a primeira vez

que Johnny ia esper��-la em v��o. Aquele pensamento

era-lhe intoler��vel. N��o a vendo, o que ele ia pensar?

N��o ia duvidar dela; e como interpretaria aquela au-

s��ncia?

118

Conversando e oferecendo uma apar��ncia serena e

sorridente, Carole estava enregelada. Aquela noite nun-

ca terminaria? Seu mal-estar interior aumentava de

minuto a minuto, tornava-se uma insuport��vel ang��s-

tia, sombrio pressentimento, como se, dotada de uma

segunda vis��o, ela pudesse assistir ao que se passava

ao mesmo tempo no quarto que Johnny, media nervo-

samente com o andar, espreitando o ru��do dos passos

dela; viu a porta de repente abrir-se e empalideceu

mortalmente...



* * *

��� Voc��!

��� Sim, sou eu!

Era Jef.

��� Como me encontrou?

��� Isso, meu velho, n��o se pergunta! Posso

sentar?

Ele olhou em volta, assobiou com admira����o:

��� Nada mal, sua nova resid��ncia! Nada mal

mesmo! E pode-se saber o que voc�� faz agora? N��o

quer responder? Sei, n��o quer mais saber de mim.

Acha que o abandonei?

A voz de Jef estava cada vez mais zombeteira,

carregada de amea��as ainda n��o formuladas:

��� �� que demorei um pouco para encontrar seu

rastro, entende? Mas, digo sem querer censurar, voc��

podia ter dado not��cias. Ent��o, tudo bem com voc��?

Voc�� parece estar muito na sua. O que voc�� faz? De-

ve ter descoberto um trabalho que vale a pena e n��o

pretende esquecer o velho Jef, n��o? ��� ele continuou,

sem tirar de Johnny um olhar carregado de suspeita.

119

��� Chega! ��� disse Johnny surdamente, entreden-

tes. ��� Por que perdeu seu tempo me procurando, e

o que quer exatamente? Devo avis��-lo logo que n��o

tem de. contar mais comigo, para nada.

Johnny afetava uma seguran��a que estava longe

de possuir. Ele n��o tinha medo do que estava acon-

tecendo, e isso desde o dia em que fugiu da rua Ver-

cing��torix, sem deixar explica����o nenhuma para Jef?

Ele n��o esperou sempre, de certa forma, que o antigo

c��mplice aparecesse? At�� surpreendeu-se com o fato

de ele n��o ter vindo antes. Aquela volta tardia era

mais alarmante. Johnny n��o pressagiava nada de bom,

mas sentia de modo tang��vel uma obscura amea��a pou-

sar sobro ele.

��� Perfeito, perfeito! ��� Jef aquiesceu hipocri-

tamente, com um sorriso mau. ��� Em definitivo, voc��

nem me decepciona nem me surpreende. Apostaria

que voc�� ia vir com esse tipo de conversa: o mau ra-

paz que se arrepende dos pecados e volta para o bom

caminho! O bandido que descobre em si uma alma

correta! O velho desviado que renega seu grupo! ��

o sujeito que inspirou muitos romancistas e fez n��o

poucos filmes. Bravo, Johnny! Presumo que seja gra-

��as �� bela e elegante senhora que tive a honra de ver

na rua Vercinget��rix que voc�� deve o favor de ter-se

tornado um "bom burgu��s". Felicita����es! Mas voc��

�� um fingidor vil. Escondeu de mim que estava no

grande mundo!

Johnny empalideceu. Passou por seus olhos um

brilho de ��dio:

��� Pare, Jef! Voc�� n��o tem mais nenhum direito

sobre mim; n��o permitirei que tenha. Sim, �� verdade,

mudei de vida e finalmente estou satisfeito comigo,

enfim, quase. Estou bem em minha pele, respiro em

meu ritmo, encontrei meu verdadeiro caminho. Estou

120





ligando para o dinheiro e nem o quero, se para

tiver de arriscar minha honra e minha felicidade.

De repente ele implorou:

��� D e i x e - m e , Jef. Esque��a-me. Seja livre para

continuar vivendo como quer, mas tamb��m deixe-me

��� Chega! ��� cortou Jef secamente. ��� Pare com

gra��olas. V o c �� vai me fazer o favor de voltar

para casa, e logo. Precisamos de voc��, e voc�� sabe

porqu��. O "golpe" �� para depois de amanh��. H�� mui-

tempo estamos preparando. Est�� no ponto, agora,

neg��cio de ouro. E n��o vai ficar comprometido

o Johnny resolveu ficar "bonzinho". Certo?

Jchnny, consciente da gravidade da situa����o, deu

grande meia-volta. "Antes de tudo, inspirar con-

fian��a em Jef. Ganhar tempo. Voltar atr��s."

��� Est�� bem! ��� ele disse, recuperando o tom de

voz c a atitude de antes. ��� V o c �� tem raz��o. Estou

que estava sendo um imbecil. Era tempo

r��e voc�� me trazer de volta o bom-senso.

Jef desconfiou um pouco, depois declarou:

��� Acredito em voc��. V o u provar. Deixo-o li-

vre at�� depois de amanh�� de manh��. Ali��s, se tentar

qualquer coisa para escapar ou para avisar a pol��cia,

o que lhe custaria?

��� Fale que eu fico sabendo! ��� Johnny aprovou,

com uma desenvoltura perfeitamente simulada.

Se bem que estivessem sozinhos no quarto, Jef

abaixou instintivamente a voz e come��ou a explicar:

��� A q u i est�� o que faremos...

121

Com os maxilares apertados e os punhos cerrados

de raiva impotente, Johnny ouviu at�� o fim, decidido

a n��o levar nada em considera����o, mas, quando, no

fim da exposi����o, Jef deu o endere��o onde o bando

devia operar dali a tr��s dias, ele n��o p��de reprimir

um sobressalto de estupor: a casa particular cuja entra-

da Johnny tinha de facilitar para os companheiros n��o

n��o era outra sen��o aquela onde Carole Damien con-

seguiu empreg��-lo como motorista!

Ent��o seus temores estavam bem fundados! Jef

tinha estado o tempo todo na sua "pista"! Johnny

sentiu-se apanhado na armadilha. Teve �� rea����o que

julgou a melhor e mais prudente: fingiu render-se aos

argumentos amea��adores de Jef, se n��o voltasse para

o bando. Mas, assim que Jef saiu, correu para o tele-

fone e, sem refletir, chamou Carole D a m i e n . . .

* * *

Carole estava conversando com os convidados.

N��o podia evit��-lo, pois tinham-lhe feito uma pergunta,

diretamente, sobre a medicina neo-natal:

��� J�� que me d��o a honra de pedir meu ponto de

vista, vou dizer o que n��o i g n o r a m . . . Os primeiros

instantes que se seguem a um parto s��o decisivos para

os rec��m-nascidos. Particularmente para os prematuros

ou para os beb��s que um mau parto deixou inertes e

amea��ados. Para eles, tudo se decide em poucos mi-

nutos.

��� Acha que se deve, a qualquer pre��o, reani-

mar essas crian��as?

��� Acho que sim, deixando de levar em consi-

dera����o que as conseq����ncias podem ser graves. As

rea����es seguintes s��o importantes, principalmente ao

n��vel do c��rebro, mal irrigado, de uma crian��a manti-

da viva artificialmente.

122

��� Como, na sua opini��o, esse grave problema

pode ser evitado?

��� Essencialmente por uma gravidez cuidada,

consultas freq��entes, o que limita os riscos de acidente.

Naquele instante preciso, a empregada entrou, in-

clinou-se ao ouvido de Carole e murmurou alguma

coisa que a fez levantar-se logo:

��� Desculpem, senhores, mas est��o me chamando

ao telefone. Uma urg��ncia, provavelmente.

* * *

��� Al��, Carole? Aqui �� Johnny. .. Responda- s��

com um sim ou um n �� o . . . Est�� sozinha? N �� o . . .

Ent��o ou��a bem... Preciso v��-la sem falta amanh��.

Tenho uma coisa muito grave a dizer-lhe... Fa��a o

imposs��vel, �� de uma urg��ncia t��o capital quanto uma

vida em perigo... Tem de acreditar em mim... Es-

perei-a hoje em v��o, mas n��o �� por simples capricho

que a estou chamando, Carole, juro... Estou em pe-

rigo. .. Estamos todos em perigo!

Carole, com os dedos pregados ao fio telef��nico,

ficou l��vida ao ouvir Johnny. N��o duvidava dele. Sa-

bia que s�� um motivo muito grave o faria telefonar

para a casa dela e numa hora em que tudo indicava

que n��o estava sozinha.

Se pelo menos ela pudesse ter respondido, pergun-

tado um pouco mais! Mas, de onde estava, podia ver

seu marido que, conversando com os convidados, n��o

a perdia de vista um s�� segundo.

Quando o viu levantar e vir em sua dire����o, per-

turbou-se e balbuciou-se precipitadamente:

��� Certo! Estarei no lugar de costume amanh��

pelas dez horas.

123

Ela desligou no momento em que Fran��ois chega-

va e perguntava, com o olhar e a voz carregados de

suspeita:

��� Quem era?

��� Um engano ��� ela balbuciou, sem conseguir

superar a perturba����o.

��� Um engano? Ent��o voc�� diz "certo" a um en-

gano? ��� observou perfeitamente Fran��ois.

E ele acrescentou num tom cortante:

��� Acho mesmo, minha querida Carole, que as

coisas v��o chegar ao fim entre n��s.

E ele foi para junto dos convidados, abandonando

Carole �� sua ang��stia. Ela sentia-se cercada de todos

os lados. Certo, n��o podia ignorar que sua uni��o com

Fran��ois s�� se mantinha por um fio t��o fr��gil que um

nada podia quebrar para sempre.

Naquele momento, a ang��stia que a dominava ti-

nha uma rela����o direta com Johnny, a quem- as cir-

cunst��ncias totalmente excepcionais tinham levado a

fazer tudo a sua "reden����o", e cuja voz. um momento

antes, estava carregada de ansiedade.

O que lhe acontecera? O que ia contar-lhe no

dia seguinte? Sem t��-lo visto, ela adivinhava que ele

-era presa de uma perturba����o extrema, de um p��nico

insuper��vel. Seu pressentimento, desde o in��cio da noi-

te, n��o a enganara: Johnny corria um perigo terr��vel.

Restava saber a natureza desse perigo.

Ela ouviu os convidados sair, reconheceu a voz

de Fran��ois dizendo-lhes boa noite, percebeu a batida

da porta de seus carros.

Depois foi o sil��ncio. Ela foi deitar, com o cora-

����o batendo. Imaginava o que o marido ia fazer, sem

saber se queria que ele viesse v��-la ou n��o.

124

Desejava-o, mas como se pode desejar algu��m au-

sente, um morto. .. Todo o seu corpo queimava, mas

aquele fogo n��o ia apagar-se no instante em que ela

visse o marido entrar e vir at�� ela n��o para uma ar-

dente, amorosa e apaixonada possess��o, mas para uma

esp��cie de viola����o?

O sil��ncio persistia. N��o. Fran��ois n��o viria. En-

t��o ela sentiu como que uma ternura por ele. Depois

pensou em Leonora. E, tamb��m para ela, sentiu-se

fundir de do��ura. Depois pensou de novo em John-

n y . . . E ent��o a ansiedade assaltou-a novamente e

ela teve de levantar para tomar um son��fero.

Sem saber bem em que ponto estava de sua vida

e da vida dos seres que a rodeavam, Carole caiu num

sono pesado.

125

��� Mas enfim, Johnny, o que quer dizer tudo is-

so? Por que voc�� n��o diz nada? Chamou-me ontem

pelo telefone, suplicou que eu fizesse o imposs��vel para

vir esta manh��, deixa-me preocupada dizendo que tem

algo muito grave para me dizer, e agora que estou

aqui n��o diz nada? N��o pensava merecer tal trata-

mento da sua parte ��� ela acrescentou intencionalmen-

te, pois conhecia por antecipa����o a rea����o do jovem.

��� Carole! ��� ele reagiu com efeito, com uma

veem��ncia dolorosa. ��� Nunca mais diga tal coisa.

Devo-lhe tanto! Posso dizer, "tudo"! E �� por isso

que sou o homem mais infeliz da terra neste momento.

Ele calou-se. Carole n��o quis insistir, de medo

de interromper um impulso poss��vel, uma poss��vel con-

fiss��o.

Johnny, durante a noite, tinha refletido muito na

situa����o em que estava. Tinha-se arrependido de ter

telefonado para Carole, de ter feito aquela esp��cie de

S . O . S . , que ela n��o devia ter entendido e que devia

t��-la preocupado.

De manh��, ele voltou atr��s em sua primeira de-

cis��o: contar para Carole sobre a volta de Jef. N��o

se sentiu com o direito de sobrecarreg��-la mais, de ar-

rast��-la para uma aventura t��o cheia de surpresas e

perigos.

"Tenho de sair dessa por mim mesmo", ele de-

cidiu .

Avisar a pol��cia foi um pensamento que s�� passou

por sua mente um instante. Seria precipitar uma gran-

de c o n f u s �� o inutilmente e, al��m disso, atrair a vin-

127



128

��� Johnny! Em que est�� pensando? Insiste em

n��o dizer nada?

Os solu��os que amarravam sua garganta mudavam-

-lhe a voz. L��grimas nervosas aflu��ram aos olhos de

Carole.

��� Estou desencorajada, Johnny. Tenho a impres-

s��o de que n��o gosta mais de mim, por t��-lo afastado

dele.

Uma revolta repentina tomou posse dela, esgotan-

do suas l��grimas e deixando firme sua voz:

��� Sabe a que pre��o estou aqui neste momento,

a que pre��o fiquei junto de voc�� todas as noites h��

semanas para ajud��-lo a subir do abismo por onde des-

lizou? Meu marido acabou notando minhas aus��ncias

ins��litas, minhas mudan��as de comportamento, meus

atrasos no trabalho, minhas neglig��ncias para com os

clientes... Tanto que agora convenceu-se de que lhe

sou infiel. E como poderia provar que est�� enganado?

Como poderia desculpar-me do dia em que me inter-

rogou, sem que eu pudesse evitar a "inquisi����o"? Como

poderia faz��-lo, sem falar de voc��, o que n��o desejo

a nenhum pre��o? Ali��s, ele nem me daria essa hon-

ra! ��� ela continuou, com indiz��vel amargura. ��� Ele

desligou-se totalmente de mim, tenho certeza. Ontem

surpreendeu-me ao telefone com voc��. Sabe o que dis-

se? "Acho mesmo, Carole, que as coisas entre n��s

est��o caminhando para o fim." E �� para correr, a

qualquer pre��o, para algu��m que me trai, que ponho

meu lar em perigo? Ah, isso, Johnny, isso n��o lhe

129

perdoarei nunca! ��� Carole terminou, deixando as l��-

grimas brotar.

Perturbado, Johnny pegou as m��os dela nas suas,

mexeu nelas febrilmente. Sua voz vibrava com o dese-

jo de persuadi-la:

��� Por favor, continue a confiar em mim. Juro

que sou digno da sua confian��a. Sim, eu lhe gritei

mesmo por socorro, mas, depois, deixei a raz��o inter-

vir, uma raz��o que tinha perdido um pouco quando

lhe telefonei. N��o posso dizer mais nada agora mas,

em nome da amizade excepcional que nos liga, eu lhe

imploro que acredite em mim. Vou viver em breve

horas dif��ceis... Ainda n��o sei se vou sair vitorioso

do combate ao qual vou me entregar mas, aconte��a

o que acontecer, n��o duvide de mim, n u n c a . . . Se-

ria injusto demais!

Carole tinha-se acalmado. N��o chorava mais. Er-

gueu para Johnny um olhar onde a confian��a renascia,

perguntou, apesar de tudo:

��� Voc�� n��o pode mesmo dizer nada que me es-

clare��a um pouco mais? N��o posso ajud��-lo a sobre-

pujar o misterioso obst��culo a que refere? N��o posso

intervir, ainda que pouco, para evitar o perigo de que

voc�� parece amea��ado?

Docemente, mas com autoridade, ele respondeu:

��� N��o, Carole, querida Carole. Voc�� n��o pode

fazer nada por mim a esse respeito. Mas n��o se preo-

cupe exageradamente. Uma intui����o est�� me dizendo

que estou chegando ao fim dos meus t o r m e n t o s . . .

Que vou sair do meu atoleiro!

Um pouco tranq��ilizada, Carole replicou numa

rea����o de energia e de otimismo:

130

��� Quero mesmo acreditar em voc��, Johnay.

Ela caiu nos bra��os dele. Suas bocas se uniram

e ficaram muito tempo ligadas uma �� outra. Mas,

como da primeira vez em que o desejo os surpreendeu,

eles soltaram-se do imposs��vel abra��o e separaram-se

com um simples aperto de m��o acompanhado de uma

troca de olhares que se parecia, estranhamente, com

um adeus...

* * *

Ao deixar Johnny, Carole teve a id��ia de procurar

os amigos para perguntar-lhes se estavam ainda satis-

feitos com seu protegido. O pensamento de que ela

corria o risco de chocar-se com a surpresa e incom-

preens��o deles imobilizou-a e a fez renunciar ao pro-

jeto. N��o queria humilhar Johnny e deixar a suspeita

de que desconfiava dele.

Apesar de todas as suas ocupa����es, o dia pareceu-

-lhe intermin��vel. O comportamento, a conversa de

Johnny atormentavam-na. Gostaria de falar sobre aqui-

lo com algu��m. Com o marido, principalmente. Mas

poderia contar aquela hist��ria extravagante sem atrair

sua zombaria, sua suspeita, seus ci��mes? Antigamente,

poderia ter-lhe falado com toda a franqueza daquela

aventura t��o ins��lita. Mas antigamente estava t��o dis-

tante! E a dist��ncia s�� tinha aumentado entre eles.

Carole chegava a entrever uma ruptura total e defi-

nitiva. Diante daquela eventualidade, ela percebia que

ainda estava ligada ao marido, apesar do estado de

fria neutralidade no qual viviam e coabitavam h��

meses.

O que viria a ser dela, separada para sempre de

Fran��ois? Com toda a honestidade, confessava que

nem sua profiss��o de m��dica teria mais interesse para

131

ela. Carole, no mais fundo de seu cora����o e esp��rito,

s�� vivia verdadeiramente em fun����o de Fran��ois. Aque-

la era a sua certeza.

Mas por que ent��o ela n��o tinha a coragem ���

ou a fraqueza ��� de declarar-lhe isso abertamente?

De que precisava para degelar o bloco inerte no qual

seu cora����o parecia transformar-se assim que via o ma-

rido?

Johnny foi para ela um calor humano que lhe

deu, de novo, sentido �� vida, mas aquela amizade t��o

singular n��o podia ter ra��zes profundas. Nada, em

suma, a justificava realmente, a n��o ser um outro

sentimento, um outro atrativo, e aquele sentimento, e

aquele atrativo mal eram justific��veis: o desejo.

Carole precisou de uma grande coragem, uma enor-

me for��a de vontade para n��o cair nos bra��os de John-

ny e ficar ali uma certa noite, particularmente exci-

tante. Que teria acontecido se ela tivesse cedido ��

ardente tenta����o?

Mais ou menos conscientemente, Carole entrevia o

dia de uma explica����o decisiva entre o marido e ela.

Neste dia, ela poderia, ou n��o, defender-se lealmente.

Poderia, se n��o tivesse tra��do Fran��ois. N��o poderia,

se tivesse tido um amante. N��o tinha tido. (Sua aven-

tura feminina com Leonora podia ser considerada uma

trai����o em rela����o ao homem? Claro que n��o! Essa

era a convic����o leal de Carole.) Ent��o tudo conti-

nuava poss��vel entre Fran��ois e e l a . . .

Na incerteza absoluta do futuro, Carole tomou o

partido de "deixar correr". N��o estava tudo escrito no

destino de cada indiv��duo, desde o nascimento? E

quem, na face da terra, podia ir contra o destino?

* * *

132

Foi Jef que entrou primeiro pela porta que John-

ny abriu assim que viu o carro parar a alguns metros

da mans��o, cujos donos tinham sa��do uma hora antes.

��� Tudo bem? murmurou Jef. ��� Tudo pronto?

V o c �� . . .

Calou-se bruscamente. Pela express��o de Johnny,

entendeu que algo n��o ia bem. Pressentiu que o an-

tigo c��mplice n��o s�� n��o o ajudaria mas que, pelo

contr��rio, iria de encontro a suas inten����es.

��� N��o seja imbecil! ��� ele resmungou.

��� E voc�� v�� embora do modo como veio, ou

ent��o...

Com a m��o no bolso do palet��, Johnny fingiu

apontar um rev��lver para ele.

��� Voc�� est�� maluco? ��� rosnou Jef.

��� Nem um pouquinho. N��o sou mais dos seus,

Jef Voc�� .tem de entender isso. N��o vou deix��-lo en-

trar nessa casa. Houve um tempo em que acreditei

em suas teorias revolucion��rias, mas esse tempo aca-

bou, acabou de vez. Eu entendi. Voc��s n��o passam

de uns anarquistas de nada. De impostores. Culpam

a sociedade por seus fracassos, quando n��o passam de

parasitas, de usurpadores...

Jef entendeu de repente que Johnny n��o estava

brincando. Foi tomado por uma raiva sanguin��ria.

Rugiu:

��� Pare de falar besteiras e deixe-nos passarl

��� Voc�� h��o vai passar! Nem voc�� nem os ou-

tros!

��� Cuidado, Johnny! Deixe-nos passar ou atiro!

133

��� Atiro antes que voc��, Jef!

E Johnny esbo��ou o movimento de atirar. Sem

arma. Mas Jef atirou e com uma arma real.

Johnny levou a m��o convulsivamente ao lugar fe-

rido, no peito, no cora����o. Uma imensa, uma pat��tica

surpresa dilatou seus olhos, enquanto ca��a lenta, pesa-

damente, sem um grito, um suspiro, um nada.

Saindo do del��rio, Jef olhou o corpo inerte com

temor. Os tr��s outros que o acompanhavam pertur-

baram-se:

��� Voc�� ficou maluco?

��� N��o devia ter atirado!

��� N��o precisava fazer isso, Jef!

Jef recomp��s-se:

��� N��o �� hora de lamentar. Temos de cuidar des-

se imbecil do Johnny. Ponham-no no carro e vamos

indo. Enquanto v��o para a rua Vercing��torix, chamo

um m��dico. Talvez n��o pare��a, mas penso em tudo e

prevejo o imprevis��vel.

Isso n��o era de todo falso. Quando da morte de

Patr��cia e da fuga de Johnny, Jef mexeu nos pap��is

do comparsa, encontrou a carta escrita por Patr��cia

antes de morrer numa folha do bloco de consultas da

dra. Carole Damien e, conseq��entemente, seu endere��o

e n��mero de telefone.

Foi o n��mero que ele discou...

* * *

Foi Fran��ois que'atendeu. Por um acaso extraor-

din��rio, Carole estava perto. Ela viu seu olhar estra-

134

nho dirigido a ela, adivinhou que um drama ia-se pas-

sar, sendo Johnny a v��tima.

Tentou conter-se, esperando que o marido a cha-

masse para ouvir algo que ele n��o entendia.

Com efeito, colocando a m��o no receptor, ele per-

guntou precipitadamente:

��� Conhece algu��m chamado Jef?

Ela n��o teve a presen��a de esp��rito de mentir e

respondeu sem reflex��o, como se a resposta viesse do

subconsciente:

��� Conhe��o, por qu��?

��� �� esse Jef, que n��o conhe��o, que est�� pedindo

para eu ir ver imediatamente um ferido.

��� Onde? ��� perguntou Carole, com a voz desfa-

lecida, pois j�� tinha entendido do que se tratava.

��� Rua Vercing��torix, n��mero...

Calou-se bruscamente, e seu olhar ficou mais agu-

do. Acabava de lembrar-se do endere��o lido apressa-

damente no envelope no dia em que a bolsa de sua

mulher caiu e deixou escapar o que continha no ta-

pete do consult��rio.

Continuava com a m��o no receptor, esquecendo

que falava com algu��m e preparando-se para interro-

gar Carole, para encost��-la �� parede.

Mas ela j�� correra para o telefone; arrancou-o

das m��os do marido num gesto enlouquecido:

��� Al��, aqui �� a dra. Carole Damienl �� Johnny

que est�� ferido, n��o? Onde? �� grave?

Como um pesadelo, ouviu uma voz que lhe res-

pondia:

135

��� N��o posso dizer exatamente, mas �� grave...

Tem de vir com urg��ncia.

��� Vou j��.

Ela desligou, colocou no marido um olhar feroz

e implorante:

��� Voc�� tem de vir comigo, Fran��ois! Talvez um

homem morra; sou apenas uma m��dica, n��o posso fa-

zer nada por ele. Voc�� �� cirurgi��o e �� de voc�� que

o ferido vai precisar.

��� �� seu amante, n��o? Confesse, mas ent��o con-

fesse!

��� N��o! ��� ela protestou, no c��mulo do deses-

pero.

��� Est�� mentindo! N��o ficaria assim se esse ho-

mem n��o fosse seu amante! Agora estou me lembran-

d o . . . Foi para ele que escreveu, uma carta de amor

provavelmente! Lembro-me tamb��m da fotografia dele

e do que estava escrito nas costas... E u . . .

��� N��o �� hora para cair sobre mim com um ci��-

me injustificado, Fran��ois ��� ela interrompeu, cada

vez mais suplicante. ��� Um homem vai morrer, repito,

�� uma quest��o de minutos... Juro que explico tudo

depois, depois de voc�� ter feito tudo para salvar esse

infeliz.

Mais forte que o ci��me foi a consci��ncia profissio-

nal de Fran��ois. Mais tarde saberia tudo sobre aquela

hist��ria sombria com que, evidentemente, Carole es-

tava envolvida.

��� Eu vou ��� ele decidiu.

��� Vou com voc��. Como m��dica, posso ser ��til.

136

��� S�� como m��dica? ��� ele observou, amb��guo.

Ela n��o respondeu. S�� tinha uma pressa: a de sa-

ber o que tinha acontecido com Johnny.

E Fran��ois pensava: "Vou ter de operar um des-

conhecido. Talvez esse homem morra, e esse homem ��

o amante de minha mulher. Tomou de mim a ��nica

mulher que amei realmente. Eu o odeio! Gostaria que

fosse varrido do mundo dos vivos, e no entanto vou

ter de fazer tudo para que sobreviva. Que Deus per-

mita que eu cumpra meu dever e que minha m��o n��o

trema quando eu tiver feito o primeiro corte..."

Alguns minutos depois, rodavam em dire����o �� rua

Vercing��torix, silenciosos, cada um perdido nos pr��-

prios pensamentos.

De tempo em tempo Carole olhava rapidamente

para o marido, via em seu perfil tenso que ele lutava

contra seus sentimentos profundos, que s�� podiam ser

de ��dio. Lembrava-se da vis��o com que ele a chocara,

sem o querer, no dia em que ela entrou na sala dele

de imprevisto e em que o viu beijar Clara; ela pensava

que errou de repeli-lo tanto...

Fran��ois evocava a mesma lembran��a e sentia seu

cora����o rasgar-se e sangrar, pois conhecia agora, em

toda a sua dolorosa amplid��o, a natureza do sofrimento

de Carole naquele dia e em todos os outros que se

seguiram.

Surpreendeu-se desejando mais que qualquer ou-

tra coisa no mundo arrancar aquele Johnny desconhe-

cido da morte, ainda que, e talvez principalmente se

Carole tivesse de reconstruir sua felicidade com ele.

Foi durante aqueles tr��gicos momentos que Fran-

��ois, abstraindo-se de seus sentimentos pessoais, teve

a no����o exata do que era o verdadeiro amor: o esque-

137

cimento total, o esquecimento absoluto de si em favor

da felicidade total, absoluta, do outro.

* * *

Quando negaram �� rua Vercing��torix, encontra-

ram Jef junto de Johnny, estendido numa cama. O fe-

rido estava com os olhos fechados. Seu rosto era de

uma palidez mortal. Mal conseguia respirar.

��� F a �� a tudo para salv��-lo ��� suplicou Jef, que

tinha mandado embora os outros companheiros.

Sem dar-se ao trabalho de responder, Fran��ois

examinava o ferido. Junto dele, Carole estava incli-

nada sobre aquele a quem quase se entregou e de quem

talvez nunca mais ouvisse a voz, de quem nunca mais

veria, provavelmente, o claro e jovem olhar voltado ao

futuro que ela estava a ponto de oferecer-lhe.

Ao fim de alguns minutos que pareceram um s��-

culo para a ansiedade de Carole, Fran��ois se refez e

limitou-se a declarar:

��� O ferido perdeu muito sangue. O estado dele

�� mesmo muito grave, mas n��o posso operar aqui. Tem

de ser levado com urg��ncia ao hospital.

Jef, desconfiado, protestou:

��� Nada disso! �� uma desculpa! Querem me de-

nunciar �� pol��cia! Johnny n��o vai sair daqui e se ten-

tarem fazer qualquer coisa para alertar os tiras ou os

vizinhos, previno que n��o vou hesitar em atirar!

��� Como queira ��� respondeu Fran��ois calmamen-

te. ��� Mas eu previno que, se n��o me deixar levar

este ferido para o hospital, ele vai morrer, e antes do

fim da noite.

.138

Impressionado com a calma do cirurgi��o, Jef dei-

xou de lado qualquer amea��a e deixou os acontecimen-

tos sucederem-se.

Falando e agindo exatamente como se o jovem

bandido n��o estivesse ali, Fran��ois, depois de ter repa-

rado que n��o havia telefone, virou-se para a mulher e

deu-lhe instru����es:

��� Veja se acha um bar aberto. Telefone para o

hospital e pe��a para mandarem uma ambul��ncia e para

prepararem o bloco operat��rio para nossa chegada.

��� Est�� bem, Fran��ois.

Ao passar na frente dele para sair, Carole ergueu

para o marido um olhar carregado de reconhecimento

e afli����o, confundidos:

��� Obrigada ��� ela balbuciou. ��� Juro que de-

pois voc�� vai saber de toda a verdade.

Fran��ois balan��ou os ombros pesados de cansa��o

e ceticismo e desviou os olhos.

Quinze minutos depois, a sirene de uma ambul��n-

cia soava pelas ruas e avenidas...

* * *

Como Johnny continuasse em estado de coma,

Fran��ois levou-o primeiro para um quarto particular.

Antes de qualquer coisa, ele tinha de tir��-lo do coma

e, para isso, injetar plasma, aquela ben��fica prepara����o

feita da parte fluida do sangue, isolada das c��lulas e

conservada em recipientes esterilizados, prevendo exa-

tamente urg��ncias daquele tipo e apresentando, sobre

a transfus��o, a vantagem de poder ser feita imediata-

mente, sem a longa an��lise para a classifica����o dos ti-

pos sangu��neos, que perde um tempo precioso, quando

139

o que importa mais �� devolver o vigor �� circula����o,

ao corpo todo, evitando a asfixia das c��lulas por falta

de oxig��nio.

Fran��ois fez um segundo exame do ferido, mais

completo que o primeiro, feito num quarto mal ilumi-

nado e sem nenhum instrumento ��s m��os.

Johnny n��o estava mais completamente inconscien-

te. Tinha at�� breves instantes de semi-lucidez. Mas

logo verificou-se que o plasma, em quantidade equiva-

lente a uma transfus��o completa, n��o produzia o efei-





to desejado.


Fran��ois virou-se para Carole, que continuava em

p�� junto dele, com o rosto tenso pela ansiedade:

��� Vou operar.

��� Onde?

��� Do lado do cora����o, provavelmente, pois acho

que detetei v��rias costelas atingidas e fraturadas, que

impedem a a����o normal dele.

��� M a s . . . essa opera����o �� muito perigosa?

��� O que voc�� quer que eu fa��a? N��o tenho es-

colha. De qualquer forma, preciso abrir para saber





exatamente do que se trata.


��� Voc�� me aceita na sala de opera����o? ��� Ca-





role perguntou enrubescendo subitamente.


��� Voc�� �� m��dica; ainda que eu quisesse, n��o te-

ria o direito de proibi-la.

Pelo tom da voz, ela entendeu que ele ainda es-

tava magoado com ela, que continuava a suspeitar dela,

que estava, mais do que nunca, persuadido de que ia

operar o amante dela.





140


A afli����o e a c��lera inflamaram um pouco mais

suas faces, mas n��o teve tempo de responder. Fran-

��ois estava perguntando a uma enfermeira, que espe-

rava suas instru����es:

��� A sala est�� pronta?

��� Est��, doutor.

��� Mande comparar o sangue do ferido ao que te-

mos de reserva. Talvez precisemos fazer uma transfu-

s��o. Calculei que, al��m do ferimento feito pela bala

propriamente, tenha havido um choque violento. Ima-

gino que haja uma hemorragia durante a opera����o.

Ent��o vamos precisar de sangue fresco para substituir

o que ele perdeu.

��� No refrigerador, l�� embaixo, h�� uma reserva

consider��vel de sangue preparado, doutor.

��� Muito bem. Assim ganharemos o tempo nor-

malmente exigido pela procura de um doador e pelo

exame de seu tipo sangu��neo.

O cirurgi��o e a enfermeira conversavam em voz

baixa e r��pida. Carole sentia-se exclu��da da conversa,

o que sentiu penosamente, mas o mais importante era

salvar a vida de Johnny. Para aquela "salva����o" ela

sentia-se preparada para qualquer sacrif��cio, qualquer

resigna����o, qualquer ren��ncia.

141

Johnny estava agora na mesa de opera����o. Seu

estado n��o tinha melhorado e, se havia uma mudan��a,

era para pior: o pulso estava mais fraco, a respira����o

menos profunda.

Fran��ois estava agora debaixo das luzes centradas

para um ��nico ponto: o ret��ngulo de pele tingida de

p��rpura onde ele podia ver nitidamente o ferimento

acima da costela deformada.

A decis��o tinha sido tomada: ele ia operar como

se se tratasse de um ferimento no cora����o, quer dizer,

ele ia cortar um retalho de m��sculo da parede tor��xica

que lhe permitiria obter toda a abertura necess��ria para

o tratamento de um ferimento card��aco antes de des-

locar a costela em quest��o.

A no����o do perigo de uma tal interven����o n��o lhe

escapava, certo, mas ele n��o podia autorizar-se a cor-

rer o risco de uma s��bita hemorragia.

��� Nada de anestesia geral ��� ele declarou. ���

O estado atual do ferido n��o o permite.

A opera����o come��ou. Primeiro uma inje����o de

novoca��na no ferimento, sob o olhar interrogativo dos

assistentes, enquanto fazia a inje����o num c��rculo cada

vez mais largo.

Ele anunciou com uma voz breve mas clara:

��� Acho que �� como se houvesse um ferimento

direto no cora����o. Ent��o vou desnudar uma aur��cula.

143

Um ferimento no cora����o!

Carole aproximou-se dos internos e das enfermei-

ras, que tamb��m tinham-se aproximado e agrupado em

volta da mesa. Nenhum deles ignorava o que aquilo

significava: um caso bastante excepcional! Uma chan-

ce ainda mais excepcional de v��-lo beneficamente fe-

chado, pois era o dr. Fran��ois Damien que tentava a

perigosa interven����o.

Agora Fran��ois sentia-se seguro de si. O mais

duro, o mais angustiante, tinha sido tomar uma deci-

s��o operat��ria. Ele a tinha tomado. Aconte��a o que

tiver de acontecer! Tudo tinha sido feito de modo a

salvar uma exist��ncia humana. Nem ele nem seu pes-

soal podiam fazer mais. A ��nica e ��ltima ajuda que

podiam receber era a de Deus.

Com o escalpelo na m��o, ele fez a incis��o, cer-

cou imediatamente de gaze os bordos da pele cortada.

Sua voz cortou o sil��ncio habitual estabelecido:

��� Elevador periostal, por favor!

��� Aqui est��, doutor.

Uma costela tinha mesmo sido cortada. Com a

m��o firme, Fran��ois destacou o forro fibroso e resis-

tente das duas outras costelas junto dela.

De novo com a voz ensurdecida e imperativa:

��� Constatoma!

Passaram-lhe uma l��mina grande que, como uma

guilhotina, mordia atr��s das costelas. Logo o interno-

-assistente tirou as partes cortadas.

��� Pin��as! ��� pediu o cirurgi��o.

144

No impressionante sil��ncio da sala de opera����o,

s�� se ouvia o sonido met��lico dos instrumentos cir��r-

gicos, as ordens breves dadas pelo cirurgi��o, de quem,

sob a m��scara branca, s�� se via o olhar terrivelmente

atento, extraordinariamente m��vel e que s�� tra��a a

preocupa����o de salvar um homem da morte. Carole

observava os batimentos do cora����o. E o dela batia

tanto mais r��pido e mais forte quanto o de Johnny

ficava mais lento e cada vez menos percept��vel.

Fran��ois continuava com a perigosa interven����o.

Tinha cortado o feixe de m��sculos entre as costelas

at�� que s�� ficasse ali, mantendo a parede exterior, a

costela quebrada.

Abaixo dessa costela (quebrada ele n��o sabia

exatamente porqu�� nem como), os tecidos estavam

sombrios, manchados de sangue. "Isso confirma mi-

nha suspeita de hemorragia interna", pensou Fran��ois,

ao mesmo tempo que temia que a pleura tivesse sido

atingida. "Quem sabe tenha at�� ar no peito?"

De qualquer modo, ele n��o tinha mais escolha.

Agora era evidente que a costela tinha de ser ti-

rada, mas isso podia ser tentado sem provocar o re-

sultado fatal?

Era isso que se perguntava o grupo em volta de

Damien, cujos olhares estavam mais atentos que nunca.

��� Prepare um curativo ��� ordenou Fran��ois ao

interno-assistente.

��� Est�� bem, doutor.

Sem esperar que ele pedisse, a enfermeira-chefe

anunciou:

��� Estou com as pin��as, doutor.

145

Estavam todos prontos.

Fran��ois tamb��m.

Um som de metal mordendo o osso repercutiu

fortemente no sil��ncio impressionante da sala de ope-

ra����o. A manobra do cirurgi��o tinha sido t��o r��pida,

t��o certa, t��o precisa que o osso nem mexeu e Fran-

��ois p��de destacar o aparelho docemente, depois co-

loc��-lo de lado.

Agora era o momento da verdadeira prova: des-

tacar e retirar a extremidade quebrada da costela.

Fran��ois respirou longa, profundamente, antes de

pegar a extremidade quebrada da costela entre os bor-

dos de uma forte pin��a dentada.

Primeiro ele come��ou inclinando-a de frente para

tr��s, com uma estranha paci��ncia, destacando doce-

mente as liga����es musculares para retirar as ��ltimas

fibras do peri��steo.

Quando, logo, nada mais o retinha, ele tirou aque-

le peda��o de osso de seu leito e deixou-o cair vivamen-

te sobre a mesa.

Quando a costela saiu das profundezas da aber-

tura, uma onda sombria seguiu-a.

O rosto do cirurgi��o contraiu-se. Era exatamente

o que ele imaginava e temia. Havia um ferimento no

cora����o.

Ele viu nitidamente a situa����o. Por mais r��pido

que operasse, seria um milagre cir��rgico se, no fundo

daquela abertura atravancada de co��gulos, ele conse-

guisse descobrir a fenda no cora����o e parar o escoa-

mento mortal.

146

O mecanismo de seu pensamento desencadeou-se

precipitadamente. Para evitar o pior, o drama que,

para ele, seria sempre a morte, de um ser vivo, tinha

de completar a incis��o e fazer uma grande abertura.

Separar os feixes de m��sculos restantes, que tinham

sido ligados �� costela quebrada, cortar exteriormente

o fragmento triangular da parede tor��xica que ele pre-

parara.

N��o gastou mais que um instante para fazer tudo

isso.

As cavidades superiores do cora����o e as aur��culas

foram rapidamente expostas, como tamb��m os vasos

principais que penetravam naquela bomba vital ou

saiam dela.

Restava tirar os co��gulos acumulados, o que ele

fez com a m��o extraordinariamente h��bil e segura,

procurando a abertura pela qual o sangue escoava.

O fluxo j�� n��o era t��o abundante. Fran��ois po-

dia cont��-lo s�� com a press��o dos dedos.

A sutura podia ser praticada.

Com igual presteza e seguran��a das m��os, colo-,

cou os pontos de fixa����o acima e abaixo da abertura,

o que lhe permitia erguer, seta dilacerar, as paredes

moles da cavidade para ter um acesso mais f��cil.

O ferimento agora era perfeitamente vis��vel, um

pequeno ferimento na fina parede da cavidade supe-

rior, de forma irregular, mas n��o muito, para permitir

um fechamento satisfat��rio.

��� Cuide das suturas de firmeza ��� ele disse a

seu assistente.

147

Enquanto isso, passou finas agulhas das quais pen-

diam sombrios fios de seda nos dois bordos do feri-

mento, depois amarrou-os de atravessado.

Quase imediatamente depois, o fluxo ritmado pa-

rou. Fran��ois, com uma segunda fiada, refor��ou a

primeira.

��� Est�� tudo pronto para a transfus��o?

��� Est��. Havia em reserva sangue do mesmo

tipo que o do ferido ��� responderam-lhe.

��� Ent��o vamos aplicar-lhe!

Nada faria mais bem ao ferido que aquele san-

gue novo, agora que o efeito deprimente do ferimen-

to no cora����o tinha sido suprimido e que n��o havia

mais a hemorragia obstruindo desastrosamente estrutu-

ras vitais, desregulando as fun����es mais importantes

da vida.

Agora que a pressa e a tens��o tinham passado,

Fran��ois agia mais devagar. Tinha esquecido tudo

que o oprimia na vida privada. Para ele, como m��-

dico, o homem jovem e bonito cuja exist��ncia ele se

obstinava em prolongar, n��o tinha mais nome, identi-

dade. Era apenas um ser humano, cujos batimentos

card��acos, corrida vital do sangue pelas art��rias e veias

ele tinha o dever imperioso de perpetuar.

Carole, ao lado dele, passava quase que pelos

mesmos estados de esp��rito, mas, para ela, Johnny e

Fran��ois continuavam duas presen��as reais e cada

uma dotada de identidade. Pedia a Deus que Johnny

sobrevivesse, mas sua prece mais ardente era de que

o amor entre ela e Fran��ois tamb��m sobrevivesse.

Fran��ois come��ou a lavar a fundo a cavidade,

para afastar qualquer possibilidade de infec����o. A

148

transfus��o estava quase terminada quando ele fez o

��ltimo curativo e preparava-se para afastar-se da mesa.

��� Ele est�� salvo? ��� perguntou Carole com um

ardor que gelou Fran��ois.

��� Em princ��pio, est�� ��� ele respondeu com uma

voz dura. ��� Fiz todo o necess��rio nesse sentido,

mas, com um ferimento no cora����o, n��o se deve ter

muita certeza ��� ele acrescentou, voluntariamente p��r-

fido.

Seu dever de m��dico estava cumprido; seus sen-

timentos pessoais assumiam a preponder��ncia. Ele deu

a si pr��prio o direito de dar vaz��o ao ci��me, ao ran-

cor, ao ��dio do jovem e bonito rapaz que esperava

obscuramente ter salvo.

Ele foi para o vesti��rio. Carole ficou um instante

indecisa. Estavam transportando Johnny para o quar-

to. Tudo impelia-a a seguir o carrinho no qual esta-

va deitado, ainda inconsciente, um homem que ia mor.

rer e a quem Fran��ois deu de novo a vida. Mas tudo

tamb��m a impelia a ir para junto daquele cujo nome

usava e de quem sentia o rancor tenaz, o est��pido e

criminoso ci��me.

��� Ent��o, o que vai fazer? ��� perguntou-lhe

abruptamente Fran��ois, da salinha onde come��ava a

tirar o avental, a m��scara, as luvas, tudo que, em re-

sumo, constitu��a sua segunda personalidade, a do ci-

rurgi��o, acima ou abaixo de sua personalidade pri-

vada.

E como ela n��o se decidia a responder, ele insis-

tiu acerbo:

��� Voc�� vem comigo, volta para casa comigo, ou

fica com ele?

149

E como ela n��o respondesse:

��� Ele! Seu amante!

��� Fran��ois! ��� ela clamou, desesperada.

Ela n��o p��de continuar seu protesto, ou sua re-

volta. A porta do bloco abriu-se, uma enfermeira apa-

receu, com o ar perturbado:

��� Dr. Damien! Acho que vai ter de vir... Seu

operado est�� voltando a si mas n��o parece...

��� J�� vou! ��� respondeu Fran��ois sem hesitar.

Carole seguiu seus passos, consciente de que ia

para o inevit��vel, fosse a fatalidade ou o contr��rio.

150

Ele tomou o pulso inerte do moribundo. N��o

havia mais pulso. Pensou: "Transfus��o... transfus��o",

mas seu pensamento n��o foi mais longe, chocando-se

inevitavelmente com o imposs��vel, com o "tarde de-

mais", inexplic��vel ou n��o. A opera����o tinha sido bem

sucedida, certo, mas era suficiente? Ele tinha de acre-

ditar que n��o. "Todas as opera����es s��o bem sucedi-

das!" Fran��ois pensou amargurado. "As opera����es em

si mesmas s��o todas, ou quase todas, bem sucedidas.

Se isso bastasse! Se aquela vit��ria fosse suficiente para

alcan��ar a outra, a definitiva!"

Johnny come��ava a dar sinais de estar voltando

a si. Subia lentamente do abismo onde o tinham ati-

rado o tiro de Jef primeiro, a anestesia parcial depois,

na mesa de opera����o.

Com os olhos fixos em seu rosto exangue, Caro-

le e seu marido viram seus l��bios mexer-se impercep-

tivelmente, depois abrir-se, enquanto seu olhar pousa-

va por acaso nas cabe��as inclinadas sobre ele.

De repente come��ou a falar. Foi um nome que

escapou de seus l��bios violeta e rachados pela febre:

��� Carole...

Fran��ois teve um incontrol��vel sobressalto. Ao

ouvir ser pronunciado o nome da mulher por Johnny,

viu sua ��ltima d��vida desvanecer-se, desaparecer para

sempre: aquele homem era mesmo o amante de Carole.

Uma contra����o de dor moral alterou seus tra��os:

"Esse homem vai morrer, ele pensou com uma certe-

za gelada. Antes de exalar o ��ltimo suspiro, ele vai

151

falar... Que agonizante pode mentir nos seus ��ltimos

instantes? Pelo que ele disser, vou saber a verdade. ��

em suas ��ltimas palavras que tenho de acreditar."

No entanto Johnny continuava no desenrolar de

seu pensamento, que a imin��ncia da morte tornava ex-

traordinariamente l��cido:

��� Por todo o bem que me fez, s�� tenho tempo

de dizer um ��ltimo obrigado, Carole... Mas ningu��m

aqui embaixo �� dono de seu destino... S�� uma von-

tade toda-poderosa decide o que vai acontecer... Eu

vou, tenho de ir para junto de Patr��cia... Era para

ela que queria voltar a ser um homem honesto...

Depois que morreu, foi ainda em honra �� sua mem��-

ria que persisti em minha resolu����o, gra��as �� sua ami-

zade... Essa amizade t��o pura que, com meu amor

por Patr��cia, foi o sentimento mais belo que conhe-

c i . . . Adeus, Carole...

Ele teve de interromper-se para respirar. Seu

olhar j�� estava com a transpar��ncia do vazio que o

atra��a inexoravelmente:

��� Meu ��ltimo desejo, antes de morrer, �� que

voc�� tenha de volta o amor daquele sem o qual sua

exist��ncia n��o tem sentido... Est�� vendo como n��o

esqueci nada de suas confid��ncias?

Um brilho vivo passou fugidiamente por sua pu-

pilas enquanto ele murmurava:

��� Se �� verdade que existe uma eternidade onde

se encontram de novo as almas, saiba, Carole, que

Patr��cia e eu rezaremos por voc�� e faremos por sua

felicidade tudo que fez pela "reden����o" de Johnny.

Ele fechou os olhos e calou-se. Num ��mpeto, Ca-

role atirou-se nos bra��os de Fran��ois. Ela come��ou a

solu��ar:

152

��� Agora acredita que ele nunca foi meu aman-

te? ��� ela murmurou entre os solu��os.

Ele n��o respondeu. Quando ela sentiu a m��o do

marido acariciar lentamente sua nuca, os solu��os redo-

braram, mas pelo excesso de uma felicidade que ela

n��o esperava mais: recuperar a confian��a de Fran��ois.

Ela prometera contar toda a verdade, mas era in��-

til. Johnny tinha dito o suficiente para que Fran��ois

fosse esclarecido e ficasse convencido muito mais que

com todos os protestos de Carole.

Fran��ois continuava com ela entre os bra��os-, jun-

to de seu cora����o. E a lenta, a tranq��ilizante car��cia

de sua m��o na cabe��a e testa dela provava que ele

acreditava nas palavras do homem que ia morrer.

Sim, Deus fazia tudo bem, na vida e na morte.

E aquela ordem divina queria que Johnny fosse para

junto de Patricia, como tamb��m reatava os la��os de um

esposo e uma esposa unidos por Ele antes.

Johnny morreu alguns minutos depois, sem rea-

brir os olhos. Uma paz infinita estava inscrita em seu

rosto quando o ��ltimo sopro de vida exalou de seu

peito.

Dois dias depois, lado a lado, Carole e Fran��ois

levaram-no para sua ��ltima morada: o t��mulo de m��r-

more, com uma simples cruz, onde repousava e o es-

perava Patricia.

153







---------- Forwarded message ---------
De: Bons Amigos lançamentos <



O Grupo Bons Amigos e o Grupo Só Livros com Sinopses têm o prazer de lançar hoje mais uma obra digital  no formato txt , pdf e epub para atender aos deficientes visuais.    

Um Homem Devia Morrer - Aventuras Médicas -  Liane Mery
Livro doado por Edilson e digitalizado por Fernando Santos
Sinopse:

Este livro trata da rotina destes profissionais que fazem tudo possível para salvar a vida dos pacientes. E nesta época de pandemia eles se transformaram em heróis. Recomendamos !

Trecho do livro:

Por volta das seis da manhã, o telefone tocou,

acordando bruscamente François. Num reflexo habitual,

ele atendeu, à cabeceira da cama, pensando, com

o mesmo automatismo: "Droga! Uma urgência!" Depois

um "alô" sem qualquer amenidade.

Lançamento    Só Livros com sinopses e Grupo Bons Amigos:

)https://groups.google.com/forum/#!forum/solivroscomsinopses  


2)https://groups.google.com/forum/#!forum/bons_amigos  


Blog:



Este e-book representa uma contribuição do grupo Bons Amigos e Só livros com sinopses  para aqueles que necessitam de obras digitais como é o caso dos deficientes visuais 

e como forma de acesso e divulgação para todos. 
É vedado o uso deste arquivo para auferir direta ou indiretamente benefícios financeiros. 
 Lembre-se de valorizar e reconhecer o trabalho do autor adquirindo suas obras.




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