D E V I A M O R R E R
��LTIMOS T��TULOS PUBLICADOS:
I ��� V O L �� P I A DE ENFERMEIRA
2��� SAFARI DO DOUTOR VIRDIS
3 ��� P A V I L H �� O 5
4 ��� BISTURI NO C O R A �� �� O
5 - O P E R A �� �� O A M O R
6 ��� SEU D I A G N �� S T I C O , DOUTOR?
7 ��� ESTE FILHO QUE VOC�� DESEJA
8 ��� A PORTA DE C N H A M O
9 _ INFARTO
10 ��� C H A G A S DO C O R A �� �� O
II ��� POSTO C I R �� R G I C O EM DA N A N G
12 ��� OS FUGITIVOS DO P A R A �� S O
13 ��� A C L I N I C A DO MIST��RIO
14 ��� HOSPITAL NA SELVA
15 ��� VIDAS QUE SE C R U Z A M
16 ��� 0 M �� D I C O DOS LEPROSOS
17 ��� SENHORITA BISTURI
18 ��� UM DOUTOR, POR PIEDADE
19 ��� A C I R U R G I A
20 ��� O PRIMEIRO SUSPIRO
21 ��� 0 M �� D I C O S E M G L �� R I A
22 - U R G �� N C I A S
23 ��� A NOITE DOS L O U 0 0 8
24 - S I N T O M A S
25 ��� P A R A N �� I A
28 ��� 0 A B O M I N �� V E L INTERNO
27 ��� OS M E R C E N �� R I O S DA C A R I D A D E
2 8 ��� U M H O M E M DEVIA MORRER
T��TULOS A SEREM PUBLICADOS:
��� A FEITICEIRA DE OYSTER B A Y
��� �� PRECISO MATAR O DITADOR?
��� O ESCALPELO DE OURO
��� AS FRONTEIRAS DA MORTE
��� C L I N I C A PARTICULAR
��� A FEIRA DOS M �� D I C O S
��� O DIREITO DE MORRER
��� U M A ENFERMEIRA DIFERENTE
��� NASCER OU N��O NASCER
Copyright EUREDIF Paris Franco
and LIANE M��RY
L I A N E M �� R Y
Tradu����o de D. Rodrigues
U M H O M E M
D E V I A M O R R E R
NOBLET EDITORA
Do original franc��s
UN HOMME ALLAIT MOURIR
Pr��ximo Ian��amento
A FEITICEIRA DE OYSTER BAY
Direitos para a l��ngua portuguesa
adquiridos pala NOBLET E D I T O R A E
DISTRIBUIDORA L T D A . Rua Almaida
Torres, 119/183 ��� S��o Paulo, que se
reserva a propriedade desta tradu����o.
D i s t r i b u i �� �� o e x c l u s i v a p a r a t o d o o Brasil: A B R I L S / A ��� Cultural e I n d u s t r i a l ��� R u a
E m i l i o Goeldi, 5 7 5 ��� S �� o P a u l o ��� Capital.
Por volta das seis da manh��, o telefone tocou,
acordando bruscamente Fran��ois. Num reflexo habi-
tual, ele atendeu, �� cabeceira da cama, pensando, com
o mesmo automatismo: "Droga! Uma urg��ncia!" De-
pois um "al��" sem qualquer amenidade.
��� �� voc��, Damien? ��� perguntou uma voz que
chegava aos limites da ang��stia. ��� Aqui �� Duparc.
Era um colega. Fran��ois vociferou:
��� Seu miser��vel! N��o tem vergonha de acordar
algu��m a essa hora?
Ele tinha imaginado tratar-se de um chamado do
hospital; j�� estava pronto para pular da cama. N��o
percebeu a entona����o desolada da voz de Duparc.
��� Desculpe, mas n��o pude esperar. A novidade
�� terr��vel.
Do outro lado do fio, ouviu-se como que um sus-
piro fundo, depois de novo a voz abatida de Duparc.
��� Courtin morreu.
Agora totalmente acordado, Fran��ois assustou-se,
exclamando com uma voz sufocada:
��� Oh!
��� Infelizmente! ��� suspirou Duparc.
Ao sair do pasmo provocado pela not��cia, Fran-
��ois deu livre curso �� sua dolorosa curiosidade:
��� Mas onde, quando, como? �� inacredit��vel! Vi
Courtin h�� tr��s dias atr��s!
��� Entendo seu espanto. Senti o mesmo. Estou
falando da casa dele. N��o preciso nem dizer como a
mulher dele est�� sofrendo, sem poder aceitar esse fim
tio tr��gico e brutal. Nem eu posso, nem voc��, sem
d��vida. No entanto, �� a terr��vel realidade.
��� Mas de que ele morreu, santo Deus? Repito
que vi Courtin no hospital h�� tr��s dias. Acho at�� que
passei por ele ontem. Estava em plena forma, s�� se
queixando, brigando, de uma feridinha no dedo.
��� Pois foi justamente essa feridinha que acabou
com ele em poucas horas. A morte mais idiota que
se possa imaginar, principalmente sendo ele, de certa
forma, um especialista do micr��bio. E foi um que o
pegou, provavelmente por desdenh��-los tanto, dizendo
que os conhecia "como a palma da m��o". Um ab-
surdo.
Duparc resumiu os acontecimentos. Tr��s dias an-
tes, Courtin tinha feito a abla����o de um seio de uma
velha cancerosa:
��� Voc�� sabe, como todo mundo, da mania dele
de n��o colocar luvas para operar. Ele achava que isso
era s�� espet��culo. Ent��o, operou dessa vez, como das
outras, sem luvas. Um dia ou dois antes ele tinha fei-
to um corte pequeno no dedo. Est�� come��ando a en-
tender? Quando tirou o seio da velha cancerosa, saiu
pus, que, naturalmente, atingiu o corte e o infectou.
Um pequeno corte de bisturi feito a tempo, e o drama
idiota teria sido evitado. Mas ele n��o ligou para o
que considerava um detalhe sup��rfluo para ele, quan-
do teria agido imediatamente se se tratasse de qual-
quer outra pessoa.
Duparc suspirou:
��� Veja s��, Damien, ele estava muito familiari-
zado com o perigo, a doen��a, e at�� com a morte. De
tanto conviver com ela, deve ter acabado por achar-se
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invulner��vel. �� absurdo, mas n��o t��o raro na nossa
profiss��o. Em quarenta e oito horas, a infec����o sor-
rateira e fulminantemente invadiu todo o organismo.
Quando a mulher dele me chamou h�� pouco, disse que
ele sentiu tonturas de manh��, que quis ir assim mes-
mo ao hospital mas teve de desistir por causa da forte
febre. Enquanto esteve l��cido, proibiu-a de chamar
qualquer pessoa, e at�� de sair do quarto onde ele aca-
bou concordando em deitar. Foi s�� quando percebeu
que ele estava em estado de coma que ela me chamou.
Vim o mais r��pido poss��vel, mas quando cheguei ele
j�� estava azul e com o cora����o fraco. Entendi logo
que era tarde demais para tentar qualquer coisa. Sim-
plesmente, perguntei �� mulher se ele era religioso. A
um sinal afirmativo da infeliz, sugeri que chamasse um
padre. Foi por isso que tive de falar com voc��. Es-
tou transtornado. Acabamos de perder um grande ho-
mem, nosso velho mestre. Pode-se dizer que perdemos
um pouco da nossa juventude.
��� Voc�� fez bem ��� disse Fran��ois com um in-
finito cansa��o. ��� No seu lugar, teria agido do mes-
mo modo. Afinal, apesar de algumas inevit��veis dis-
c��rdias, estamos todos no mesmo barco e quando as
coisas n��o v��o bem para um de n��s, o que fazer de
melhor, sen��o nos apoiarmos?
* * *
Depois de desligar, Fran��ois levantou-se e foi
para o quarto da mulher. Bateu discretamente, de-
pois, como n��o tivesse resposta, abriu-a tentando fa-
zer menos barulho poss��vel.
Nunca, desde seis meses atr��s, quando ela imp��s
seu desejo de separar os quartos, ele fez a menor in-
trus��o em seu retiro volunt��rio. Mas o momento era
muito cr��tico para ele manter os escr��pulos. Ele sen-
tia a necessidade invenc��vel de aliviar-se do peso de
uma afli����o muito grande para carregar sozinho. E
quem melhor que ela poderia compreend��-lo e parti-
cipar com ele daquela not��cia, apesar da dist��ncia que
tinha sido criada entre suas vidas privadas?
Ele entrou, parou imediatamente. A cama de Ca-
role nem tinha sido desfeita. A conclus��o l��gica veio-
-lhe maldosamente ao esp��rito: "Ent��o ela n��o dormiu
aqui esta noite." Uma pergunta veio-lhe ent��o, n��o
menos l��gica, mas bem mais p��rfida: "Onde ent��o?"
Enfim, e quase simultaneamente, a outra pergunta,
mais venenosa: "Com quem?"
Ele fechou a porta, dessa vez com uma brusqui-
d��o desejada, tentando assim expulsar o sentimento de
instintivo ci��me que o assaltava.
A morte inacredit��vel de Courtin. A ins��lita de-
ser����o da mulher. Tudo parecia ligar-se para derrub��-
-lo. Com os ombros arqueados, os passos incertos, foi
para a sala, direto para o bar e preparou uma dose
grande de u��sque, que engoliu de uma vez. Depois
acendeu um cigarro e foi afundar-se numa poltrona,
com o olhar perdido num passado que lhe parecia ao
mesmo tempo extremamente distante e infinitamente
pr��ximo.
10
O que aconteceu entre Carole e ele chegava ao
absurdo, quase como a morte de Courtin. Uma ferida
moral de nada, mas que, para Carole, tomou propor-
����es desmedidas. Um cortezinho do bisturi da inteli-
g��ncia e do racioc��nio dado a tempo no ferimento de
seu amor-pr��prio, e sua imagina����o n��o teria sido in-
fetada mortalmente. Ela n��o quis dar aquele pequeno
corte de bisturi simb��lico �� ferida do amor deles, ela
deixou-se envenenar, e assim o amor morreu, carre-
gando na mesma est��pida fatalidade sua harmonia pro-
fissional. Carole, que era m��dica ginecologista no hos-
pital onde Fran��ois era cirurgi��o assistente de um
grande superintendente. Carole, ferida, em menos de
quarenta e oito horas encontrou um lugar numa cl��-
nica particular. E aquela foi, para Fran��ois, uma rup-
tura t��o dilacerante quanto a outra, dos lados carnais.
Carole era a mulher mais desej��vel que ele tinha
conhecido; no entanto, desejou uma outra. Oh! N��o
por muito tempo! S�� o ��xtase do momento. Aquela
ere����o espont��nea e totalmente independente do esp��-
rito, completamente dissociada do mental, diante de
uma criatura com certeza menos bonita que Carole. S��
o tempo de obter sua vit��ria de macho e de aplacar
um desejo violento, mas sem nenhuma import��ncia. E
aquela aventura estritamente de pele n��o teria tido ne-
nhuma conseq����ncia se Carole n��o os tivesse surpreen-
dido num beijo, um beijo que era, exatamente, o de
ruptura. Um beijo unicamente ditado por uma esp��-
cia de polidez que, afinal, s�� tinha o jogo eterno do
desejo entre um homem e uma mulher.
Carole mostrou-se implac��vel, sem querer ouvir o
que Fran��ois tentou explicar-lhe durante uma cena
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abomin��vel onde o amor e o ��dio, a ternura e a exas-
pera����o, a do��ura e os insultos combatiam feroz-
mente.
��� Entenda, Carole, foi s�� um incidente na nos-
sa vida. Podia ter acontecido com v o c �� . . . N��s dois
estudamos como malditos na nossa adolesc��ncia. Lem-
bra-se? ��ramos considerados pelos colegas e profes-
sores como os mais bem dotados e os mais brilhan-
tes. Era muito duro, �� verdade, mas o amor que t��-
nhamos um pelo outro dava-nos for��a. Casamos bem
antes da formatura. Foi uma loucura que nem seus
pais nem os meus toleraram, tanto que sofremos como
condenados, mas n��o lig��vamos porque nos am��vamos
e ��ramos um do outro para sempre, para o melhor e
o pior. Juntos, de m��os dadas, atravessamos todos os
obst��culos, galgamos os ��ngremes degraus da nossa car-
reira...
Fran��ois, mais que Carole, estava sem d��vida
mais atrasado no campo do prazer. A vida tinha para
com ele uma d��vida de fantasia, de neglig��ncia, de
"orgia", que provavelmente n��o tinha contra��do com
Carole:
��� Por isso �� que quis dormir com Clara, mal
digamos que foi outro que agiu naquele momento, e
que voc�� n��o est�� frustrada em nada, Carole, meu
amor... Entendo que voc�� sofra, que se sinta cruel-
mente ferida, mas voc�� n��o deve mexer na ferida,
como um animal sem intelig��ncia... Se tivesse acon-
tecido com voc��, eu teria sofrido da mesma forma,
mas teria perdoado,. juro pelo que tenho de mala sa-
grado na terra: voc��!
Mas Carole n��o tinha entendido, n��o tinha admi-
tido.
��� ��� ���
12
Fran��ois arrancou-se da medita����o e foi para o
banheiro, esfor��ando-se para s�� pensar nas opera����es
que ia fazer de manha. Sem ser supersticioso, sur-
preendeu-se vendo a manh�� com o olho ruim, o esp��-
rito atormentado por sombrios pressentimentos. A
morte de Courtin n��o o estaria impressionando mais
do que aconteceria se Carole e ele estivessem t��o uni-
dos quanto antes?
"Por que ela n��o tinha deitado? Era a primeira
v e z . . . " Ele tentava convencer-se de que ela tinha
sido chamada com urg��ncia no meio da noite, de que
a veria de novo ao meio-dia, ou, no mais tardar, ��
noite, mas n��o conseguia. No entanto, tentou incutir-
-se paci��ncia e resolveu ter uma explica����o definitiva
com aquela que, apesar de tudo, continuava sua mu-
lher.
N��o fazia sentido que continuassem a viver sob
o mesmo teto, juntos mas paralelamente, como estra-
nhos bem educados, mas estranhos um ao outro. Ou
ent��o era melhor acabar com aquilo de uma vez por
todas: divorciar. E que cada um refizesse a vida por
um lado. Eles tinham abordado esse assunto de fren-
te. Seria o teste decisivo. Seria a queda total do edi-
f��cio sentimental e material que tinham laboriosa, apai-
xonadamente constru��do. Ou tudo poderia recome��ar,
como no passado.
Fran��ois chegou ao hospital uma hora antes do
previsto para a primeira opera����o.
Uma enfermeira correu at�� ele assim que o viu:
��� Que bom que chegou! ��amos cham��-lo agora
para atender um caso de urg��ncia... Um parto pre-
maturo... A doente foi levada para o quarto 24..
O caso em si �� comum, mas na situa����o particular
acho bastante deplor��vel
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"A�� est��, pensou Fran��ois, a maldita lei do desas-
tre puxando um, o outro, em a����o."
Mas foi com uma voz forte e bem colocada que
ele disse:
��� Vamos ver!
14
Parando num sinal vermelho, Carole percebeu de
repente que estava perto do hospital do marido, ou-
trora tamb��m o dela. Seu cora����o come��ou a bater
mais r��pido e forte, sob o imp��rio de uma emo����o
mais intensa do que ela esperava. N��o tinha preme-
ditado aquele itiner��rio que lhe atirava ao rosto uma
onda de lembran��as amargas e nost��lgicas. E se ti-
vesse podido prever, teria feito um desvio para evitar
aquela esp��cie de confronto com o que estava termi-
nado.
Tendo sido chamada para atender uma urg��ncia
num sub��rbio assim que se deitou, tendo-se demora-
do �� cabeceira de uma doente cujo caso n��o tinha
gravidade org��nica, mas era bastante pesaroso no as-
pecto psicol��gico, Carole tinha preferido terminar a
noite num hotel na entrada de Paris a voltar para
casa. Antes, atravessaria um deserto para chegar at��
Fran��ois. Mas aquele antes n��o existia mais, nunca
mais existiria. Hoje, mesmo quando estavam os dois
no apartamento, que comunica����o era ainda poss��vel?
S�� continuavam ligados por um "sentido de fam��lia".
O sinal abriu. Absorvida pelos pensamentos car-
regados de melancolia, Carole n��o percebeu. Uma bu-
zinada chamou-a �� ordem. Ela saiu, mas s�� para pa-
rar alguns metros adiante, onde, coisa extraordin��ria,
um lugar livre parecia sugerir que fizesse o que cos-
tumava fazer antigamente: voltar ao hospital (cujos
pr��dios e jardim ela via agora) que representava o
universo de Fran��ois e dela mesma.
Antigamente! Era t��o longe ou t��o perto do pre-
sente? Como aquele tipo de avalia����o era relativo, e
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puramente subjetivo! Carole acendeu um cigarro e
teve de fazer um esfor��o para calcular o tempo pas-
sado desde a abomin��vel ruptura. Seis meses. Sim,
remontava a seis meses aquela interrup����o nos ritos
das suas vidas conjugais e profissionais. Simples in-
terrup����o ou ruptura definitiva?
"Seis meses j��! S�� seis meses!" Restava definir
se o tempo passava mais depressa ou mais lentamente
quando se era infeliz, desiludido, sem qualquer espe-
ran��a no futuro, tendo-se perdido a confian��a, a f�� no
ser amado. Os dois sentimentos eram adequados ��
realidade, embora parecessem contradit��rios. De qual-
quer forma, Carole nutria os dois,
"Vou ver Fran��ois ou n��o?" A tenta����o era for-
te, ardorosa. Carole sabia porque hesitava. Sentia-se
ainda ferida demais. Sua ferida ��ntima estava longe
de ter sido cicatrizada. N��o estaria sangrando tanto
quanto no primeiro dia? Tinha total consci��ncia de
que, se tivesse obedecido a um impulso mais profun-
do, j�� teria corrido para junto de Fran��ois, no con-
sult��rio ou na sala de opera����o, estaria totalmente in-
tegrada a ele, n��o teria permitido que uma simples
enfermeira, ou at�� uma anestesista assistente ficasse
junto dele em seu lugar para ajud��-lo a colocar as lu-
vas, a amarrar o avental, p��r a m��scara, enfim subs-
titu�� la em tudo que dizia respeito ao ritual que ante-
cedia o combate da vida contra a morte.
N��o deixava de am��-lo. N��o suportava mais si-
mular a frieza, a indiferen��a. Seu corpo estava gela-
do pela solid��o, enquanto a sensualidade continuava
terrivelmente viva, quente, exigente. "Confesse, minha
pobre Carole, voc�� est�� morrendo de desejo de fazer
o amor." Ela o confessava, mas tinha de inclinar-se
diante da evid��ncia: era Fran��ois que desejava, e ne-
nhum outro. "Voc�� s�� est�� queimando de desejo por
aquele que insiste em recusar. Voc�� optou por um
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papel que n��o lhe conv��m. Imaginou ser mais forte
do que ��. Este �� um esfor��o que est�� impondo para
si mesma h�� tanto tempo e que a desgasta. Mas ainda
se deixa dominar pelo orgulho. N��o quer que Fran��ois
possa imaginar que ainda est�� apaixonada por ele e
que ele pode agir impunemente, humilh��-la, tra��-la,
consider��-la um objeto que se p��e de lado e se igno-
ra �� vontade. No entanto, voc�� s�� pode am��-lo, es-
tar apaixonada por ele. Voc�� o ama ��s escondidas
dele, e talvez tamb��m ��s escondidas de voc�� mesma,
orgulhosa demais, Carole. Voc�� fez do seu amor con-
jugal um amor clandestino, uma dessas paix��es incon-
fess��veis �� qual nos entregamos como a um pecado."
Ela balan��ou os ombros, como se quisesse expul-
sar aquela obsess��o. Esmagou nervosamente o cigarros
no cinzeiro do painel. Ainda n��o tinha dado por en-
cerrado aquela esp��cie de jogo que era jogado dentro
dela pelas advers��rias: duas Carole, duas individualida-
des cuja violenta dualidade n��o conseguia dividi-las to-
talmente. Ainda n��o tinha tomado a decis��o.
Sentindo-se atra��da pela necessidade vital de cor-
rer para Fran��ois, de atirar-se em seus bra��os esque-
cendo tudo que se passou entre eles seis meses antes
e que tinha provocado um div��rcio espiritual, ela re-
tratava-se logo, acusando-se de indignidade.
Se, pelo contr��rio, refugiasse no velho rancor, re-
provava uma obstina����o est��pida, com a qual era a
primeira a sofrer, a ��nica, na verdade. Pois, refletindo
bem, com que facilidade Fran��ois n��o tinha aceitado
a nova situa����o! Veio procur��-la na primeira noite em
que se "exilou" em seu quarto? Certo, na cena tem-
pestuosa que tiveram, ele jurou que s�� amava a ela e
que sua aventura com Clara n��o passou de um "aci-
dente do caminho", sem import��ncia nenhuma, mas
passou a noite toda sem experimentar a irresist��vel ne-
cessidade de t��-la em sua cama, junto dele. E p��de
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dormir sem ela, enquanto ela mordia o travesseiro
inundado de l��grimas...
Carole deu a partida, decidiu continuar seu cami-
nho C o m o se nada tivesse acontecido. Houve um en-
garrafamento. Uma espera intermin��vel. Um desvio
por causa de "homens trabalhando", o que a condu-
ziu inevitavelmente �� rua do hospital, �� entrada do
hospital.
Ent��o n��o teve de decidir nada e achou-se, como
por magia, no estacionamento reservado ao corpo m��-
dico.
* * *
Surpresa, discri����o, as duas excessivas, acolheram
a dra. Carole Damien quando ela entrou no hospital.
Era evidente que a tinham reconhecido, mas ainda
mais evidente que estavam perguntando porque ela
voltava. "Estariam supondo j�� estarmos divorciados?
Clara j�� me substituiu, aos olhos do pessoal?", pensou
Carole, angustiada, exibindo um sorriso que pretendia
ser natural e desenvolto.
A enfermeira-chefe do servi��o de Fran��ois Da-
mien, que estava passando naquele exato momento, di-
rigiu-se logo a ela, com a mesma defer��ncia de antes:
��� Bom dia, doutora. Imagino que queira ver o
dr. Damien...?
��� N . . . �� o . Quero... Bem, eu estava passando.
Carole sentia-se mortalmente embara��ada. A en-
fermeira ajudou-a espontaneamente:
��� Seu marido acaba de chegar. Foi atender uma
doente, um caso de urg��ncia... Ainda n��o foi para a
sala de opera����o, posso avis��-lo de sua presen��a.
18
��� N��o se preocupe! ��� Carole apressou-se a di-
zer. ��� Vo�� esperar meu marido na sala dele.
��� N��o quer mesmo que lhe diga que est�� aqui?
��� Claro que n��o!
E acrescentou, obrigando-se a sorrir:
��� Meu caso n��o tem nenhuma urg��ncia.
A enfermeira sorriu, talvez por coniv��ncia:
��� Nunca se sabe!
A enfermeira afastou-se. Carole foi para a sala
do marido. Sua emo����o cresceu, quando fechou a por-
ta atr��s de si. Junto da sala havia uma outra, reser-
vada ��s consultas privadas, com uma mesa de exame.
Quando trabalhavam juntos naquele hospital, quantas
vezes n��o se fecharam ali, n��o mais que dez minutos,
s�� o tempo de aplacar o desejo brutal que os projeta-
va um para o outro, um no outro apesar de todas as
conting��ncias exteriores?
"Com quem agora ele faz o amor, nessa mesa ou
no canto da porta?", pensou Carole, enquanto a febre
bem conhecida queimava secretamente seu corpo.
Fran��ois era um sensual, um amante-nato, inca-
paz de resistir ao frenesi dos sentidos, fosse qual fosse
o instante em que a flecha de fogo do desejo se plan-
tasse dentro dele. Carole recusava-se a ele h�� seis me-
ses. Talvez tivesse cansado de Clara e rompido com
aquela amante respons��vel por t��o grande estrago, mas
devia t��-la substitu��do. Por quem? Que corpo, que
rosto tinha a nova rival? N��o pertenceria ao corpo
m��dico, como aquela Clara, cantora de uma boite, ou
seria uma das enfermeiras do hospital? Carole n��o to-
lerava essa id��ia, se bem que soubesse que Fran��ois
n��o era homem de abster-se dos prazeres carnais, o
que, ali��s, a decepcionaria obscuramente, pois a ver-
19
dade �� que ela n��o passava de contradi����es desde que
o ritmo de sua vida tinha sido quebrado.
Carole acabou por sentar-se no lugar do marido,
diante da grande mesa de acaju. De repente, viu que
sua fotografia estava de novo na moldura de couro,
aos p��s da l��mpada de cobre.
Seus tra��os contra��ram-se �� lembran��a da cena
atroz na qual ela pegou a velha moldura e jogou-a
no ch��o, quebrou-a, saltando sobre ela, gritando com
uma voz estrangulada pelo desespero e o ci��me:
��� Por que tanto fingimento, se n��o me ama
mais? No seu lugar, ficaria incomodado de beijar mi-
nha amante diante da fotografia da minha mulher! A
n��o ser que precise de meu consentimento, de minha
cumplicidade para estimular-se e ter seu prazer!
E Fran��ois colocou de novo a foto em sua mesa.
Desde quando? Carole n��o podia saber, pois n��o ti-
nha colocado mais os p��s no hospital, desde aquele
dia desastrosamente memor��vel.
20
��� O h . . . Carole! O que est�� fazendo aqui?
A voz de Fran��ois fez com que ela erguesse a
cabe��a, de novo mergulhada nas lembran��as:
��� Bom dia ��� disse ela, levantando-se. ��� Eu
estava passando aqui perto ��� acrescentou, evasiva, de-
sajeitada, n��o querendo que ele pensasse que ela ti-
vesse voltado para ele. ��� Avisaram que eu estava
aqui? ��� ela continuou, negligentemente.
��� N��o. Desci direto do primeiro andar. Estou
com um caso p��ssimo. N��o pensei que fosse v��-la...
Ali��s, n��o �� esse caso que �� p��ssimo.
Ele tamb��m estava terrivelmente embara��ado.
Reinava uma grande desordem em seu espirito:
��� Fui ao seu quarto esta noite, precisava de
voc��. Tinha recebido uma not��cia terr��vel: Courtin
morreu. Lembra-se dele, n��o? Um sujeito formid��vel,
insubstitu��vel! Queria falar dele com voc��, mas voc��
n��o estava...
Ele se interrompeu, esperando que ela dissesse
onde tinha passado a noite, mas ela continuou em si-
l��ncio, olhando-o sem que nada em seus olhos tra��sse
o que ela pensava e sentia, ent��o ele prosseguiu:
��� Voc�� n��o chegou em boa hora, minha pobre
Carole! Preciso operar essa jovem. Uma cesariana,
um caso comum, mas que me inquieta particularmen-
te. Essa menina est�� com a m��scara da morte no
rosto. Infelizmente n��o tenho muito tempo para voc��.
Estamos preparando tudo no bloco operat��rio para a
interven����o. Na verdade, n��o esperava v��-la. Algum
21
problema? Precisa de mim? Oh! Carole, estou t��o
desolado de v��-la aqui numa circunst��ncia que pode-
ria ser uma treva na nossa guerrinha, t��o penosa...
Gente como n��s n��o se pertence, voc�� sabe. �� exa-
tamente o caso agora. Vou fazer uma opera����o muito
s��ria. H�� infec����o, febre, e o cora����o �� muito fraco.
��� De que se trata, exatamente? ��� perguntou fi-
nalmente Carole com gravidade, tomada por instinto
pelos imperativos da profiss��o comum aos dois, e es-
quecendo suas preocupa����es pessoais.
��� Uma garota gr��vida de sete meses. As dores
se manifestaram; na verdade, n��o �� t��o prematuro,
mas, o que me preocupa, �� que a coisa n��o desenvol-
ve. A passagem �� mesmo muito estreita, depois, h��
essa febre, esse pulso e esse cora����o t��o fracos...
��� Se vai ser uma cesariana, n��o vejo nada de
t��o terr��vel ��� cortou calmamente Carole. ��� Isso ��
comum. H�� at�� mulheres que a exigem.
��� Claro ��� ele murmurou, preocupado. ��� A
coisa n��o tem nada de terr��vel, mas...
��� Mas?
��� Repito, ela parece uma menina. Est�� apavora-
da e confiante ao mesmo tempo. Est�� com uma bar-
riga enorme num corpinho mi��do, fr��gil, ainda n��o
formado de todo. �� bem impressionante, eu lhe afir-
mo. E os olhos dela! Toda a esperan��a e toda a an-
g��stia do mundo! O que quer, estou com medo! ���
concluiu Fran��ois febrilmente. ��� Essa urg��ncia caiu
muito mal. Acho que �� a morte de Courtin que me
deixou nesse estado.
��� Pode ser! Eu venerava Courtin, mas tenho
de dizer que ele assumiu plenamente sua vida. Para
ele, n��o h�� mais dilemas, enquanto que, para essa crian-
22
��a, para voc��, tudo continua. Uma cesariana? H�� ope-
ra����o mais simples? Abre-se o ventre, tira-se a crian-
��a e a m��e vai embora uns dias depois com seu pir-
ralho!
Carole animava-se, quase ria, empenhada em le-
vantar o moral do marido, anormalmente baixo.
��� �� verdade. N��o h�� opera����o menos perigosa
e que sangre menos. Muitas mulheres dizem preferi-la
a um parto normal. Sem esquecer que, gra��as �� anes-
tesia, �� bem menos dolorosa.
Eles falavam, discutiam como antes, esquecendo
suas queixas pessoais, devotando-se espontaneamente ��
causa universal, a causa comum aos dois.
��� �� uma jovem de vinte anos, mas voc�� lhe
daria dezesseis. Uma crian��a trazendo outra no ven-
tre... �� pungente, creia.
Houve como que uma corrente magn��tica que pas-
sou entre Carole e o marido e que a incitou a sugerir
fraternalmente:
��� Quer que eu v�� ver essa crian��a? Ainda h��
tempo, antes que seja levada para a sala?
Um brilho de gratid��o passou pelos olhos de
Fran��ois.
��� Voc�� faria isso?
��� Por que n��o?
Ele reprimiu um movimento em dire����o a ela,
disse simplesmente:
��� Ela est�� no primeiro andar, quarto 24.
��� Vou at�� l��.
23
Carole j�� estava �� porta. Fran��ois foi at�� ela,
pegou docemente em suas m��os, mergulhou os olhos
nos dela:.
��� N��o sei bem porque voc�� est�� aqui agora, nem
a que devo essa volta inesperada, nem quanto vai du-
rar, mas, seja como for, bendigo este acaso. Obrigado
por querer estar comigo, Carole. Voc�� est�� sendo de
uma grande ajuda para mim neste momento.
��� Fico muito contente ��� disse ela, com uma
voz neutra.
Ele continuava a segurar suas m��os, a olh��-la no
fundo dos olhos:
��� Voc�� aceitaria ficar comigo durante a opera-
����o? ��� ele perguntou, com uma timidez que ela n��o
conhecia nele e que a perturbou profundamente.
Fran��ois era um homem forte, sempre senhor de
si e de seus reflexos. Nunca ela o tinha visto em tal
estado de d��vida e temor. Que lhe tinha acontecido?
Como se tivesse lido a pergunta no pensamento
dela, ele disse de novo, dessa vez soltando suas m��os
e recuando um passo:
��� Repito, a morte de nosso velho mestre Courtin
afetou-me profundamente. N��o estou totalmente dono
de mim. Estou sendo assaltado por sombrios pressen-
timentos. Preciso de algu��m... Precisava de voc�� e
voc�� veio, est�� aqui.
Ele teve de parar de falar, pois a emo����o estran-
gulava sua voz.
��� E. eu ficarei com voc�� enquanto durar a ope-
ra����o, prometo ��� pronunciou Carole com ardor.
24
Depois, evitando uma emo����o muito violenta:
��� Enquanto isso, vou subir ao 24. At�� logo, no
bloco.
��� Obrigado, Carole.
��� De nada ��� respondeu ela friamente.
E saiu. Fran��ois deixou-se cair numa poltrona,
passou a m��o cansada pela testa. A volta totalmente
imprevis��vel de sua mulher ao hospital provocou-lhe
um choque que vinha acrescentar-se ao recebido algu-
mas horas antes, ao saber da morte de Courtin. Que
sentimento a teria movido a essa volta? Pela expres-
s��o glacial de seu rosto, ele n��o podia iludir-se: seu
rancor continuava o mesmo. Naquele dia, exatamente
como h�� seis meses atr��s, ela n��o lhe perdoava sua
aventura com Clara, seu momento de vertigem sensual.
Fran��ois exalou um profundo suspiro. Por que as
mulheres n��o entendiam que um homem n��o as tra��a
em via de regra se, por acaso, cedesse �� tenta����o fu-
gidia de abra��ar um outro corpo, de conhecer o gosto
de uma outra boca, o prazer de outras car��cias? De
acordo com Fran��ois, a verdadeira fidelidade n��o esta-
va no campo f��sico. Tinha suas ra��zes vitais bem mais
profundas, nas regi��es do esp��rito. Sentir o prazer de
um corpo de mulher, num encontro fortuito, era ape-
nas um despertar da sensualidade, esquecida logo de-
pois de um prazer agudo mas breve, sem nenhum pro-
longamento.
Fran��ois tentou explicar isso a Carole. Em v��o.
S�� seus princ��pios irredut��veis sobre o div��rcio, s�� suas
concep����es rigorosas sobre o casamento tinham-na man-
tido debaixo do mesmo teto que o homem cujo nome
continuava a usar, quando aquela uni��o n��o passava
de apar��ncia. Raros eram os amigos e pessoas de suas
rela����es que sabiam daquele div��rcio ��ntimo, pois os
25
dois, diante de testemunhas, afetavam admiravelmente
um perfeito entendimento conjugal. Mas assim que fi-
cavam sozinhos...
"Por que, mas por que ela voltou ao hospital
hoje? continuava a indagar-se Fran��ois. Ela estar�� que-
rendo renovar nossos la��os de outrora?"
Ele n��o ousava acreditar nisso.
Houve uma batida discreta na porta:
��� Entre! ��� ele gritou, levantando-se e recom-
pondo a express��o habitual.
A enfermeira anestesista apareceu:
��� Est�� pronto, doutor?
��� Estou. Voc��s tamb��m, l�� em cima?
��� Estamos todos prontos. S�� esperamos a doente.
��� Minha mulher est�� com ela ��� disse Fran��ois,
n��o sem um certo orgulho.
��� Eu sei. Estou vindo do quarto 24. Sobre isso,
gostaria de perguntar-lhe...
A enfermeira, jovem e bonita, enrubesceu ligeira-
mente antes de prosseguir:
��� J�� que a dra. Carole Damien est�� de novo
aqui, talvez prefira que ela o assista, doutor...?
Fran��ois sorriu fracamente:
��� N��o, Colette. Vamos deixar as coisas como
est��o. M a s . . . agrade��o-lhe por ter pensado nisso.
��� Bem, doutor, ent��o at�� logo.
��� Sim, at�� logo ��� replicou Fran��ois, observan-
do, como se fosse a primeira vez em que a visse, como
26
Colette tinha pernas bonitas e como ondulava harmo-
niosamente os quadris ao andar.
Mas, quando a porta se fechou, ele n��o pensava
mais sen��o naquela "crian��a" cujo ventre ia abrir, per-
guntando-se ansiosamente:
��� O que vou encontrar?
27
Patr��cia sentia-se, ao mesmo tempo gelada e arden-
te. N��o sentia dores. Estava quase bem. Se Johnny
estivesse ali, estaria at�� totalmente feliz, mesmo saben-
do que ia morrer. Pois ela o sabia. Sentia-o. Tinha
a certeza absoluta de que n��o resistiria mais por mui-
to tempo, de que estava vivendo suas ��ltimas horas,
seus ��ltimos minutos. Ela teria o tempo de ser trans-
portada para a sala de opera����es, de ser operada? E
de qu��? De seu beb��, claro, mas seu beb��, o filho de
Johnny, viveria? Na febre, n��o sabia mais discernir se
queria que aquele filho vivesse ou n��o. Tinha um vago
desejo de lev��-lo com ela, em seu ventre, para onde
a morte iria lev��-la. Mas n��o era uma prova de ego��s-
mo? Johnny, que ela tinha mantido na ignor��ncia de
sua gravidez, n��o ficaria louco de alegria quando lhe
colocassem nos bra��os o beb�� que lhe deram?
"Eu devia ter-lhe contado... Fui louca de escon-
der que estava gr��vida. Louca de desaparecer quando
"se via"."
O arrependimento ro��a-a mais que a febre a con-
sumia. Censurava-se amargamente por n��o ter tido bas-
tante confian��a em Johnny. Uma cabe��a esquentada,
certo, mas o cora����o t��o generoso, t��o puro! Ela o
teria de novo. O nascimento do filho teria tido uma
influ��ncia mais salutar sobre ele que todos os serm��es
do mundo!
Com os olhos fechados, Patricia come��ou a cho-
rar, com as m��os abertas no ventre enorme, gemendo
num filete de voz monoc��rdica e tr��gica:
��� Johnny... Meu Johnny... Venha... Esteja
aqui para receber o filho do nosso amor...
29
��� N��o precisa chorar, meu bem... Vai dar tudo
certo, prometo.
Patr��cia abriu os olhos. Quem estava lhe falando
daquele modo t��o calmo, t��o bom?
Inclinada sobre ela, uma mulher desconhecida sor-
ria-lhe e continuava a distilar palavras doces como mel,
quentes como o sol da primavera:
��� N��o se mexa, �� o mais importante. Seu beb��
est�� sendo cabe��udo, querendo seguir s�� a pr��pria ca-
be��a, mas n��s teremos a ��ltima palavra... Sou a mu-
lher do cirurgi��o que vai cuidar desse bebezinho tei-
moso . . . Sou m��dica, cuido especialmente das mam��es
e seus nen��s...
Falando do modo mais tranq��ilizador poss��vel, Ca-
role observava, escrutava intensamente o rosto da jo-
vem m��e. "Uma verdadeira crian��a! Fran��ois tem
raz��o."
Ela sentia o mesmo que ele. Essa Patricia pare-
cia mais uma crian��a que uma mulher, ou at�� uma jo-
vem. Carole entendia a emo����o do marido. Havia
algo de condenado naquele rosto, naquele olhar. Que
injusto e cruel destino tinha lan��ado aquela garota de
vinte anos num leito de hospital para morrer ali? Pois
ela ia morrer, era certo. A marca tr��gica da morte j��
estava gravada naqueles tra��os juvenis.
No instante em que Carole se perguntava se a
vida j�� n��o tinha evadido daquele pobre corpinho enor-
me e m��nimo, pateticamente tornado grotesco pelo ven-
tre inchado por uma exist��ncia incerta, Patricia er-
gueu-se penosamente. Uma fa��sca ins��lita fazia brilhar
seus olhos desmedidamente crescidos, duas manchas de
febre inflamavam as ma����s de seu rosto, enquanto os
l��bios ressecados e fendidos articulavam sob o pre��o
de um esfor��o sobre-humano:
30
��� D��-me papel e caneta... Depressa... Por...
favor.
N��o veio �� mente de Carole opor-se a essa von-
tade. Para qu��? Apressadamente, abriu a bolsa, tirou
o bloco de receitas, tirou uma folha e colocou-a na m��o
de Patr��cia, com sua caneta:
��� Acha que consegue escrever?
��� Eu preciso.
��� Vou ajud��-la.
Ela firmou o travesseiro atr��s dos ombros e das
costas da jovem m��e:
��� Voc�� est�� bem? Posso ajudar em alguma coisa?
��� N �� o . . . Obrigada... Vai tudo correr bem...
Tenho de avisar Johnny, a senhora entende?
��� Sim, meu bem, eu entendo ��� respondeu Ca-
role, sem compreender nada, evidentemente, do drama
de que era testemunha, sem poder imaginar a que pon-
to, em que medida capital, o destino daquela "crian��a"
ia ser importante para a sua vida.
Inspirada por uma instintiva discri����o, Carole
afastou-se do leito, sem tirar dos olhos a doente que
escrevia ela n��o sabia qual misteriosa mensagem, a
pre��o de um esfor��o, de um desgaste de energia que
provocavam surpresa e admira����o. A testa de Patr��cia
cobriu-se de suor, suas narinas e olhos contraiam-se
de um modo impressionante.
"Ser�� que ela vai ter tempo de terminar antes
que venham busc��-la para a sala de "opera����es?" pen-
sava Carole, angustiada.
��� Pronto... Terminado... ��� foram as palavras
de Patr��cia, que dobrou a folha em quatro e deixou-se
cair para tr��s, num suspiro extenuado.
31
Ela acrescentou, num sorriso perturbador:
��� Agora posso morrer.
��� N��o diga tolices. N��o tem nenhum motivo
para falar assim. O que est�� acontecendo com voc��
acontece com tantas mulheres! Vai ter um beb��, o que
h�� de mais natural que isso? Vai passar um mau mo-
mento, certo, mas depois vai esquecer-se logo.
Carole sentou na beirada da cama e pegou a m��o
de Patr��cia nas suas. Estava queimando como fogo.
Sua testa estava coberta por uma transpira����o gelada.
Patr��cia ficava cada vez mais febril.
��� Pare de agitar-se agora ��� ordenou Carole. ���
Meu marido vai oper��-la num instante. Tudo vai cor-
rer bem, prometo.
Patr��cia esbo��ou um sorriso perturbador, ergueu
para Carole um olhar doloroso:
��� Sei que h�� mentiras piedosas, mas sei tamb��m
que vou morrer... E n��o me importo. S�� tenho o
que mere��o. Devia ter confiado em Johnny... Posso
confiar na senhora?
��� Claro! Pe��a o que quiser, minha filha.
Uma contra����o de dor alterou tragicamente os tra-
��os de Patr��cia, enquanto ela estendia a folha de papel
para Carole:
��� Queria que entregasse essa carta para Johnny,
de suas pr��prias m��os, e que isso seja um segredo que
n��o vai contar nunca para ningu��m. Ele n��o sabe de
nada. �� o pai do meu beb��. N��o lhe contei que es-
tava esperando um filho. N��o queria aborrec��-lo. Fi-
quei com medo de que ele ficasse descontente co-
migo.
32
��� Johnny o qu��? ��� perguntou Carole, que via
os minutos passar e temia a entrada, a qualquer mo-
mento, das enfermeiras, vindo buscar a doente.
��� Tem um envelope?
��� Tenho... Acho j �� . . . ��� disse nervosamente
Carole, remexendo na bolsa.
��� N��o tenho mais for��as ��� balbuciou Patr��cia.
��� Escreva a senhora, por favor.
E Carole escreveu, de acordo com o que lhe di-
tava de forma cada vez mais fraca Patr��cia: "Johnny
Pillot, rua Vercing��torix 13, Paris 14.��."
Enquanto isso, Patr��cia pegou alguma coisa de-
baixo do travesseiro e deu para Carole:
��� Tome, doutora... �� uma foto de meu John-
ny... Guarde-a. Assim poder�� reconhec��-lo melhor,
quando for v��-lo.
Carole pegou a foto, deu uma r��pida olhada. Era
um mostrando um rosto bem jovem, muito viril,
com algo de inquietante no olhar, apesar de direto.
Ouvindo o barulho caracter��stico do carrinho no
corredor, Carole colocou r��pido o envelope e a foto
na bolsa, inclinou-se mais uma vez sobre Patr��cia, cujo
olhar febril era uma muda e tr��gica ora����o:
��� Est��o vindo busc��-la para ajudar a colocar seu
filho no mundo ��� disse ela rapidamente e em voz
baixa. ��� �� meu marido que vai opera la, mas vou
ficar com ele, ao seu lado... Cuidarei de voc��... De
qualquer modo, aconte��a o que acontecer, vou ver seu
Johnny e entregar lhe sua mensagem... Manterei o
segredo, aconte��a o que acontecer, prometo. Depois,
voc�� �� que vai v��-lo... Tudo vai acabar se arranjan-
do, garanto-lhe.
33
Carole calou-se. Patr��cia tinha fechado os olhos.
Teria ouvido? Depois a porta abriu-se e as duas enfer-
meiras entraram puxando o carrinho onde colocaram
a doente, sem uma palavra, com a face impass��vel.
Carole saiu do quarto e foi rapidamente para o
elevador, para ter tempo de preparar e estar junto
do marido quando o "comboio" entrasse na sala de
opera����es.
34
Foi com uma emo����o nova que ela entrou na sala
familiar coberta de ladrilhos azuis at�� o teto. Debaixo
da cial��tica, o enorme farol pendido no teto, de onde
ca��a um raio de luz sem sombra, a atmosfera estava
banhada por uma claridade fria, estranhamente azulada
sobre a mesa de opera����o, toda branca e nua, com seus
pedais, ataduras, correias, toda a sua aparelhagem, que
fazia pensar irresistivelmente numa sombria m��quina
de torturas e supl��cios.
Quando Carole entrou, a enfermeira-anestesista es-
tava acabando de lavar as m��os com ��lcool, enquanto
a enfermeira-instrumentista estava acabando de prepa-
rar as caixas com os instrumentos necess��rios.
Carole procurou seu marido com o olhar, ele apa-
receu, vindo da salinha de esteriliza����o, agitando as
m��os desinfetadas, com o avental n��s bra��os, esperan-
do que a assistente viesse ajud��-lo pois, esterilizado,
limpo, n��o podia tocar em nada que pudesse suj��-lo.
O reflexo de Carole foi imediato:
��� Espere! ��� ela pronunciou surdamente.
Ele entendeu sua inten����o e esperou, fazendo sinal
�� assistente de que n��o precisava mais dela. Logo,
Carole, tamb��m esterilizada e limpa, veio pegar o aven-
tal dos bra��os de Fran��ois e vestiu-o nele, tendo o
cuidado de n��o toc��-lo, de n��o ro��ar nele. Depois,
com as mesmas precau����es infinitas, amarrou os cor-
d��es do avental em suas costas, pegou o capuz bran-
co, colocou-o na cabe��a de Fran��ois, esfor��ando-se pa-
ra fazer com que cobrisse totalmente os cabelos.
35
Im��vel, silencioso, fazendo pensar num padre de
uma esp��cie de religi��o, Fran��ois deixou-a agir, seguin-
do seus movimentos com uma pupila aguda e aprova-
dora.
Depois foi a vez das botas de tecido de uma bran-
cura imaculada, que ela insistiu em cal��ar, depois a
m��scara, uma esp��cie de babador branco que escondia
o queixo, a boca e o nariz at�� os olhos.
��� Obrigado, Carole ��� murmurou Fran��ois bai-
xinho, s�� para ela.
Naquele instante, sua assistente veio apresentar-lhe
uma grande caixa de n��quel:
��� Suas luvas, doutor ��� ela pronunciou com res-
peito.
Foi Carole que apressou-se em peg��-las e vestiu-as
nele.
��� Obrigado, Carole ��� disse ele pela segunda
vez, com uma voz mais profunda, mais segura.
Ela sorriu-lhe do fundo da alma naquele instante
em que ele parecia um cavaleiro armado imaculadamen-
te, com vistas ao combate mais fer,oz e mais nobre: o
da vida contra a morte.
Eles foram para a mesa de opera����es, onde Patr��-
cia estava estendida, inteiramente nua, burlesca e tr��-
gica com seu ventre enorme, seus longos cabelos espa-
lhados e colados pela febre. Estava deitada como um
destro��o deslocado, com os bra��os seguros por correias
de pulso. Dois afastadores mantinham-lhe os bra��os,
dois outros as coxas, dois os ombros.
Uma enfermeira estava acabando de amarrar a
correia s��lida debaixo da mesa. Todos os "soldados"
de uniforme branco estavam ali, prontos a come��ar
36
a luta, l��vidos sob a luz azul espectral que banhava a
sala.
As caixas de n��quel foram apresentadas ao cirur-
gi��o que, com a ponta dos dedos enluvados, come��ou
a mexer nelas, procurando os instrumentos necess��rios:
objetos diversos luzentes, belos de se ver mas impres-
sionantes, pois feitos para cortar, esmagar, arrancar...
Quando escolhia um, colocava-o na tampa virada e,
no grande sil��ncio reinante, ressoavam estranhamente:
pin��as, bisturis, afastadores, v��lvulas,. apreensores, agu-
lhas, fios de a��o, tubos de borracha, uma orquestra
bem singular, composta de instrumentos b��rbaros que
iam dali a pouco entoar alguma cantata de ressurrei-
����o ou alguma marcha f��nebre...
�� enfermeira-anestesista colocou a m��scara no
rosto de Patr��cia, cujo cora����o via-se bater por baixo
das costelas, �� flor da pele. A cada inspira����o e ex-
pira����o, via-se o bal��o atado �� m��scara inchar-se e es-
vaziar como o cora����o de um animal fenomenal. Com
os dedos atr��s do maxilar, a anestesista "luxava" o ma-
xilar, para impedir a l��ngua de cair no fundo da boca.
Com uma pin��a, Fran��ois pegou um peda��o de
algod��o que ele molhou em tintura de iodo e com
o qual pincelou o ventre da jovem m��e.
Esta tinha fechado os olhos e parecia, mais que
nunca, uma v��tima, uma criatura pronta para a imo-
la����o.
Com o olhar acima da m��scara, Fran��ois interro-
gou a anestesista. Esta, com o dedo, levantou a p��l-
pebra da doente, colocou o dedo no branco dos olhos.
Patr��cia n��o se mexeu.
��� Pode come��ar ��� disse brevemente a enfer-
meira.
37
A enfermeira-assistente tinha pintado o campo ope-
rat��rio no ventre todo de Patr��cia. Fran��ois pegou um
bisturi e, num golpe certo, abriu a pele deixada a nu
no centro dos pequenos quadrados de tecido azul.
Aberta, a pele s�� mostrou, inicialmente, uma ca-
mada de gordura branca. Quase n��o houve sangue.
Num segundo golpe de bisturi, o cirurgi��o cortou aque-
la camada de gordura sob a qual apareceu a apone-
vrose de tez nacarada.
Num terceiro golpe de escalpelo, ele fendeu-a.
Como sempre, o sil��ncio s�� era rompido pelo ba-
rulho met��lico dos instrumentos apanhados e recoloca-
dos na tampa virada da caixa de n��quel.
Depois, de repente, a voz breve do cirurgi��o, re-
clamando:
��� Tesouras!
Recebeu uma na m��o, como por magia. Sem he-
sitar, em dois movimentos, um em dire����o aos p��bis,
outro para cima, aumentou o corte. A membrana fina
e amarelada do ep��ploo, que cobria a massa rosa do
intestino, apareceu parcialmente. Mais baixo, a massa
globulosa e arredondada do ��tero.
Come��ou a aparecer sangue, ao tocar-se, aqui e
ah, numa arteriola.
��� Pin��as!
Ia us��-las para segurar os l��bios da abertura, pe-
gar a pele e os quadrados de tecido que a seguravam.
Quando uma arteriola come��ava a sangrar, ele esma-
gava-a logo com uma pin��a que deixava ah, presa ��
carne.
Bruscamente, Patr��cia, do fundo de sua incons-
ci��ncia, come��ou a tossir. Simultaneamente, a mem-
38
brana e um grande pacote de entranhas sa��ram. As
duas m��os do cirurgi��o comprimiam com toda a sua
for��a o am��lgama de carnes sanguinolentas. Depois
ele ordenou,, com a voz enrouquecida.
��� Virem-na!
Uma alavanca foi manobrada. Toda a mesa mo-
vimentou-se, deixando Patricia em posi����o invertida,
com a cabe��a para baixo e os p��s para cima. A massa
do intestino entrou novamente na cavidade abdominal.
Invenc��vel, a ang��stia apossava-se de Carole. O
pressentimento do marido tinha fundamento. Aquela
era uma opera����o "cat��strofe" por excel��ncia. Era pre-
ciso ter preparado a doente, feito an��lises, t��-la inter-
rogado sobre as condi����es do parto, informar-se sobre
seus antecedentes, etc. Carole refletia nas confiden-
cias feitas por Patricia alguns minutos antes: era pro-
v��vel que no come��o ela tivesse querido evitar aquela
gravidez indesej��vel, tentar abortar sem dizer nada a
ningu��m, sozinha, com os meios dispon��veis, sempre
desastrosos...
Carole ouviu nitidamente o suspiro de Fran��ois,
enquanto ele voltava ao "trabalho". Olhou ansiosa-
mente para ele: seu rosto estava duro, tenso. Ainda
que s�� o visse parcialmente, compreendia-o pela expres-
s��o terrivelmente atenta dos olhos. Gra��as a Deus,
suas m��os conservavam a firmeza, a seguran��a! Pro-
gredindo prudentemente, ele reparava os bordos do pe-
rit��nio com pin��as erinas.
Bruscamente, sem motivo aparente, a massa im-
pressionante do intestino saiu pela segunda vez.
��� Droga! Que azar! ��� resmungou o cirurgi��o
entre-dentes.
Ningu��m da equipe de branco dizia uma palavra.
As respira����es estavam suspensas. Carole teve a im-
39
press��o reconfortante de que todos se uniam ao m��-
dico, de que n��o cessavam de confiar nele, acontecesse
o que acontecesse naquela interven����o atingida anteci-
padamente pela fatalidade, talvez...
��� Um pano! Mais r��pido, meu Deus!
Ele pegou no v��o o tecido branco est��ril que lhe
passaram, aplicou-o com todas as suas for��as no intes-
tino, esfor��ando-se para faz��-lo voltar todo para o ab-
d��men, os dedos empurrando rudemente as entranhas,
enfiando o m��ximo que podia os quadrados de tecido.
��� Afastadores!
Era s�� o tempo de pedir, e o que exigia estava em
suas m��os. N��o se podia agir mais rapidamente. To-
das aquelas vidas estavam suspensas numa s��, a que
estava aberta como um animal no matadouro e que
s�� tinha ainda, de realmente humano, a massa dos
cabelos jorrando como alga no vazio, at�� tocar, com
as pontas, o ladrilho. Os dedos do cirurgi��o mergu-
lharam entre as, paredes do corte um afastador para
mant��-lo aberto e segurar a bexiga.
Uma enorme massa de um rosa vinoso, tensa, con-
gestionada, apareceu no fundo da chaga aberta. Era a
matriz, com a crian��a dentro.
Uma crian��a que tinha deixado de viver.
Havia algo de alucinante no espet��culo daquela
crian��a morta antes de ter vindo ao mundo e cujo
ber��o sinistro parecia ser constitu��do de pin��as de to-
dos os tipos, um movimento de n��queis luzentes e frios
sob o c��u azul dos tecidos esterilizados tragicamente
salpicados por manchinhas de sangue.
O beb�� estava inegavelmente morto. Mas a m��e
ainda vivia. Fran��ois parou um instante, inspirou fun-
do antes de perguntar �� anestesista:
40
Enquanto perguntava, ele olhava a bexiga de por-
co atada �� m��scara respirat��ria. Ela s�� se enchia muito
fracamente. Patr��cia respirava, evidentemente, muito
mal, com dificuldade e lentid��o.
A anestesista pegou sua l��ngua com uma pin��a
puxou-a, deixou-a pender para fora. Depois recolo-
cou a m��scara. A bexiga recome��ou a inchar e a de-
sinchar quase normalmente:
��� Est�� tudo bem ��� pronunciou brevemente a
anestesista.
Fran��ois deu mais um profundo suspiro e, sem
hesitar, abriu o ��tero e o envelope membranoso. Uma
cabe��a bem redonda apareceu, um craniozinho j�� com
cabelo mas molhado e pegajoso como o cr��nio de um
cabritinho, afogado no fundo da chaga viva onde as
m��os do cirurgi��o avan��avam-se, introduziam-se, apos-
savam-se do pescocinho vermelho e enrugado com pre-
cau����es ao mesmo tempo rudes e cheias de um mis-
terioso fervor. Dedos que erguiam, tiravam com cui-
dado e for��a o que j�� estava morto, mas que devia
ser apresentado �� vida, ao mundo dos vivos, ao me-
nos por alguns instantes: uma crian��a.
E a crian��a apareceu, arrancada das carnes do
ventre da m��e amarrada como um animal para a vi-
vissec����o, arroxeada, com seu traseirinho de coelho
descarnado, com sua perturbadora caricatura de cai-
xa tor��xica que nunca animaria o menor sopro de
vida. O que aquele embri��o de homem (era um ga-
roto) tinha de viver, viveu no seio da m��e, daquela
m��e que era, ela mesma, uma m��e-crian��a.
Arrancado das carnes da m��e com um som mole
de carne ��mida, o beb�� foi passado a uma enfermeira
41
depois de Fran��ois prender o cord��o umbilical entre
duas pin��as e cort��-lo com a tesoura.
Sem se preocupar mais com aquele homenzinho
que nunca seria inscrito em nenhum estado civil, Fran-
��ois ativou-se junto do ventre aberto da m��e. Come-
��ava a brotar sangue. Demais. Muito mais do que
j�� tinha visto. O que n��o corria bem? Um erro dele?
Imposs��vel. Uma rasgadura? Nesse caso, ele n��o po-
dia fazer nada.
��� Agulhas! ��� pediu, com a voz oprimida.
Era preciso suturar as duas trompas unindo seus
bordos para interromper a hemorragia iminente.
Come��ou a remexer nas carnes mas seus dedos
perdiam-se na composi����o espessa e vermelha. Como
absorver todo aquele sangue? Como tentar encontrar
alguma coisa ali?
"Uma cesariana n��o sangra tanto normalmente?"
��� Compressas!
Os panos amontoavam-se, logo vermelhos. A he-
morragia progredia. O sangue brotava de todos os
lados.
��� Compressas, meu Deus, compressas!
Mas a mar�� p��rpura subia inelutavelmente, trans-
bordava, corria pelo peito da m��e virada de cabe��a
para baixo, abria implacavelmente uma passagem san-
grenta entre os seios, debaixo do bra��o, insinuava-se
pela garganta, atr��s das orelhas, ia inundar os cabelos
lastimosamente impregnados de rubi l��quido.
Todos continuavam inclinados sobre aquele pobre
ventre martirizado, no interior do qual n��o se via mais
42
nada, al��m daquele fervilhar de sangue, daquela exis-
t��ncia humana que se esva��a inexoravelmente.
A histerectomia era o ��ltimo rem��dio, e Fran��ois
pensou nela. Mas onde encontrar os ligamentos para
pin��ar as art��rias no meio daquele borbulhar p��rpura?
Patr��cia come��ou a agonizar tragicamente. Fran-
��ois pegou seu punho. Nenhum pulso. Uma transfus��o
impunha-se. Precisava de um "doador" de urg��ncia.
"N��o h�� tempo, pensou Fran��ois. Ela n��o vai estar
com mais nenhuma gota de sangue quando ele chegar,
ou at�� antes."
��� O pulso est�� parando. Ela est�� morrendo ���
anunciou a anestesista, surdamente.
��� Compressas! Pin��as! ��� resmungou Fran��ois,
mas automaticamente, pois agora ele sabia que o com-
bate estava perdido.
N��o havia mais nada a fazer. E o mais desola-
dor, o mais revoltante era que ele n��o entendia por-
qu��. Todo o seu conhecimento, tudo que tinha apren-
dido sobre o organismo humano estava bruscamente
reduzido a zero.
O rosto de Patr��cia tomou uma cor de cera. Ti-
nha aberto os olhos, mas era um olhar em revuls��o
que lan��ava ��s cegas em torno de si, em todos aqueles
rostos pregados ao dela e que ela n��o veria mais, a n��o
ser do outro mundo, cujo batente misterioso e j�� en-
volvido pelas trevas do nada ela estava atravessando.
De seus l��bios ressecados exalou um ��ltimo suspiro:
��� Johnny...
O bal��o parou completamente de inchar e desin-
char.
43
Foi Carole que se inclinou e recolheu o ��ltimo
suspiro daquela boca de crian��a-v��tima, enquanto seu
marido pegava a m��ozinha que pendia, inerte e ma-
culada por um sangue que escurecia numa velocidade
vertiginosa.
Ele n��o se resignava em admitir a terr��vel, a in-
justa evid��ncia. Tudo nele recusava-se a crer que tudo
estivesse assim terminado, tolamente, inexplicavelmen-
te, quando tudo tinha sido feito para que sobrevives-
sem a crian��a e a m��e. Aquela jovem mam��e de
vinte anos, que n��o passava agora de uma carne pal-
pitante, aberta, ensang��entada, tragicamente tingida de
p��rpura e carmim.
Com um movimento brusco de sombria perturba-
����o, ele arrancou-se da sinistra contempla����o, foi afun-
dar-se num banco, pegou a cabe��a com as m��os, ge-
meu, respirando o enjoativo cheiro do sangue, com
que seus dedos e punhos estavam maculados:
��� Que mais eu podia fazer? Ela j�� chegou con-
denada. Em minha alma e consci��ncia, juro que fiz
tudo que .podia fazer. T��m de acreditar em mim. Se
me considerasse respons��vel por seja l�� o que fosse,
seria o primeiro a confess��-lo. Mas n��o �� isso, n��o ��
isso...
Sua ang��stia de m��dico era pungente de ver e
ouvir-se. Carole tinha corrido para Fran��ois, envolvia
seus ombros curvados com um gesto vasto, envolven-
te, solid��rio:
��� Cale-se. N��o diga mais nada. Voc�� fez o que
tinha de fazer. Todo o resto n��o lhe diz respeito. S6
Deus ��, ou n��o ��, o culpado.
Enquanto falava, Carole tinha-se colocado de
modo que seu marido n��o visse o que se passava na
sala: aquela esp��cie de l��gubre cerim��nia que consis-
44
tia em dar de novo uma forma "humana" ��quele cor-
po aberto. Cerim��nia l��gubre, certo, mas que era ins-
pirada pelo respeito ao indiv��duo, uma sublime piedade,
um sentimento de caridade profunda para com o ser
humano que um Deus de des��gnios impenetr��veis jul-
gou dever chamar para si.
Iam recosturar as terr��veis carnes inutilmente cor-
tadas, fechar de novo a pavorosa fenda do ventre mas-
sacrado em v��o, lavar todo o corpo, limpar cuidadosa-
mente as coxas, os bra��os, as pernas, os cabelos, o
rosto, onde espessos co��gulos de sangue tinham-se for-
mado.
A mesa foi virada de modo a recoloc��-la na posi-
����o horizontal. E quando terminou toda aquela dra-
m��tica toilette, pegaram-na e carregaram-na num ��l-
timo enla��o, um ��ltimo abra��o...
Sem querer, Carole virou-se no momento em que
ouviu os passos dos enfermeiros e enfermeiras saindo
do bloco operat��rio. Viu Patr��cia nos bra��os dos que
a carregavam. Seus bra��os balan��avam-se lentamente,
docemente, no vazio. Seus belos cabelos lavados agita-
vam se, como que embalados por uma brisa leve. Pa-
tr��cia tinha o ar de uma crian��a adormecida mas viva
e confiante nos que a levavam.
"Confiante em mim, a quem confiou seu segredo
antes de morrer", pensou Carole, jurando nunca tra��-
-la contando-o, ser fiel ao juramento a pre��o de sua
pr��pria-exist��ncia.
45
��� Acontece raramente comigo, n��o salvar um
caso desesperado... Acho at�� que �� a primeira vez.
��� Teria de acontecer, um dia ou outro... Di-
gamos que foi privilegiado at�� hoje.
��� Sinceramente, voc�� n��o acha que sou respon-
s��vel em algum aspecto?
��� Claro que n��o.
��� N��o est�� mentindo? N��o est�� sendo motivada
por... um sentimento de caridade?
��� Oh! N��o!
��� Entendo... Sua tend��ncia seria acusar-me, se
tivesse tido a menor oportunidade...?
��� N��o seja tolo, sim?
Carole e Fran��ois estavam frente a frente na sala
do cirurgi��o, depois da dram��tica opera����o. Patr��cia
e seu beb�� j�� tinham entrado para o universo dos "ine-
xistentes". E j�� se surpreendiam de estar sozinhos em
causa, quer dizer, a vida, a vida deles voltava a estar
acima de qualquer coisa, apesar de todas as mortes.
��� O que est�� fazendo agora? ��� perguntou Fran-
��ois com uma certa brusquid��o.
Ela hesitou antes de responder:
��� Nada de especial. E voc��?
��� Tamb��m.
47
Houve um sil��ncio embara��oso, de uma parte e
de outra. Foi Fran��ois que encadeou:
��� Acho que, j�� que voc�� teve a boa id��ia de
passar por aqui, pod��amos terminar o dia juntos... ?
��� Por que tilo?
��� Voc�� est�� livre?
��� N��o de todo, mas com nada de urgente. E
voc��?
��� Tamb��m eu.
��� E ent��o, o que decidimos?
Ele n��o respondeu imediatamente. Olhava-a.
Como se a reconhecesse para al��m de um tempo con-
sider��vel. Ela continuava bela e desej��vel. Ele sur-
preendeu-se desejando-a com mais acuidade do que se
acabasse de viver momentos de intensa febre interior.
Fran��ois era muito sens��vel ao clima exterior, fosse
ele de alegria ou de drama. Acontecia o mesmo com
sua sensualidade. Depois daquela interven����o cir��rgi-
ca desastrosa, a presen��a de Carole tinha o dom de
agu��ar particularmente seus sentidos. Em resumo, ti-
nha um terr��vel desejo de fazer o amor com ela.
Carole tamb��m come��ava a sentir uma alegria es-
quecida. Tudo nela passava-se como se seu esp��rito se
dobrasse para deixar toda a preponder��ncia a sua sen-
sualidade muito cedo e por muito tempo frustrada.
Tinha a necessidade essencial de sentir seu corpo abra-
��ado, apertado, querido por bra��os conhecidos, pene-
trado por uma for��a familiar. A pequena chama per-
manente que a consumia s�� podia ser apagada pelo
homem cujo nome usava. Talvez fosse rid��culo, mas
era assim. E aquele homem estava ali, ao alcance da
48
sua m��o, dos seus l��bios, do seu desejo de mulher...
Por que o recusaria? Uma violenta emo����o, estranha
a eles, havia impelido um para o outro. O que havia
mais a exigir? O mais s��bio, o mais inteligente, o mais
humano n��o era obedecer, ceder ��quele impulso do
instante? E havia necessidade de antecipar o instante
seguinte?
Fran��ois desejava-a como ela queria a ele, que-
ria senti-lo nela, vivo, palpitante, vibrante, no fundo
dela. Carole morria de desejo e de vital necessidade
daquela tomada de possess��o carnal. Ao diabo os fan-
tasmas do esp��rito e, principalmente, da imagina����o!
��� Fran��ois, meu querido... ��� murmurou ela,
com a voz rouca e os bra��os estendidos.
��� Carole... ��� ele respondeu de igual modo,
aproximando-se.
Ela estava apoiada na mesa. Ele abra��ou-a, en-
volveu-a, inclinou-se, com a boca pedinte:
��� Voc��...
��� Querido...
E suas duas vozes tiveram a mesma vibra����o rou-
ca e repleta de desejo sensual.
Ele atraiu-a para si com uma viol��ncia que ele
n��o tentou controlar:
��� Desejo voc��..
��� Eu tamb��m.
Eles n��o procuravam mais manter uma apar��ncia.
Precisavam fisicamente um do outro.
49
Ele abra��ou-a estreita e rudemente. Sua m��o su-
biu ao longo das costas, deslizou febrilmente sob os
cabelos, a nuca encalorada. Seus dedos unharam a
raiz dos cabelos com uma maldade toda sensual.
Colaram-se um ao outro violentamente, procuran-
do um contato cada vez mais pr��ximo. Ela sentiu ime-
diatamente o forte impulso de seu desejo bater pode-
rosamente em sua coxa, na passagem que ela abriu
com o joelho, voluntariamente.
Ela teve um movimento para a frente, com todo
o corpo, em sinal de aquiesc��ncia total a seu desejo
de macho, desejosa de lhe provar que j�� estava intima-
mente aberta �� viril intrus��o, ao retorno da invas��o
carnal muito cedo perdida e enfim reencontrada.
Beijaram-se profundamente. Do intermin��vel bei-
jo exalou e subiu um longo gemido feliz, a profunda
e ardente melodia que seus corpos punham-se a can-
tar, de novo reunidos e prontos para o casamento sen-
sual.
Fran��ois apoiava-se cada vez mais fortemente em
Carole, fazendo-a curvar-se para tr��s, quebrando-a em
duas no c��rculo de ferro de seus bra��os. Suas l��nguas,
respira����es, salivas, confundiam-se selvagemente, en-
quanto que os olhos semi-fechados espreitavam-se, ob-
servando um no outro a subida da vol��pia comum.
A veem��ncia febril daquele abra��o imprevisto era
tamanha que oscilavam como que sacudidos por um
vento forte de tempestade, deixando-se balan��ar para
a frente e para tr��s, num esquecimento total e abso-
luto do resto do mundo.
De repente, Fran��ois mordeu violentamente a l��n-
gua de Carole. Ao golpe da dor aguda, ela soltou um
grito instintivo, tentou soltar-se de um abra��o que a
50
quebrava, ao mesmo tempo que a encantava. Fran��ois
perdeu o equil��brio, tentou abra��ar de novo Carole,
fez um falso movimento, bateu em alguma coisa dei-
xada num canto da mesa, contra a qual ainda manti-
nha a mulher prisioneira. O objeto caiu no tapete, era
a bolsa de Carole. O conte��do espalhou-se: um enve-
lope, uma fotografia.
O reflexo de Fran��ois foi instant��neo e, a bem
da verdade, bastante normal: abaixou para juntar o
que caiu. Viu imediatamente a letra de Carole no en-
velope, o nome e o endere��o escritos ali, depois a fo-
tografia de um homem.
Carole tamb��m abaixou-se para pegar aquilo que
n��o devia cair em m��os estranhas, protestando com
uma voz estrangulada pela perturba����o:
��� Deixei
S�� aquele protesto seria suficientemente expl��cito
para que Fran��ois entendesse que Carole tinha algo
de essencial a esconder-lhe. Mas ele obstinou-se, fu-
riosamente intrigado, sem o tato e a discri����o costu-
meiros. P��de ver o jovem e viril rosto do rapaz, virar
a foto e ler, como em letras de fogo: "Para voc�� que
amo mais que tudo no mundo, Johnny."
��� Voc�� n��o tem o direito! D��-me isso imediata-
mente! ��� Carole continuava a gritar, disputando sel-
vagemente aquilo que devia, custasse o que custasse,
permanecer o segredo de Patr��cia e o seu.
Fran��ois soltou. Podia, fisicamente, ser o
mais forte. Mas seu orgulho, seu amor-pr��prio, sua
suscetibilidade colocaram-se logo acima de todos os
outros sentimentos e at�� de seu desejo. Ele se ergueu.
Seus olhos readquiriram a express��o de dureza e frie-
51
za diante de uma Carole contra��da, apertando nas
m��os a prova flagrante de sua trai����o:
��� Desculpe ��� ele pronunciou num tom glacial.
Sem dizer uma palavra, ela colocou a carta e a
foto na bolsa, que fechou com ci��mes. Um sil��ncio
estabeleceu-se, como que carregado de eletricidade.
Fran��ois tinha desviado os olhos, muito p��lido. Ca-
role arrumava-se febrilmente.
Quem seria o primeiro a romper o sil��ncio? Foi
Fran��ois:
��� Na verdade ��� ele dise com uma voz de re-
pente neutra e totalmente impessoal ��� tinha esqueci-
do completamente de que voc�� e eu ��ramos duas indi-
vidualidades bem distintas uma da outra. Sou imper-
do��vel. Tinha esquecido que n��o estou livre, nem esta
tarde nem esta noite.
Ele suspirou com uma n��tida ostenta����o, teve um
sorriso desajeitado, que se pretendia ir��nico e que n��o
passava de uma careta:
��� Decididamente, a morte dessa garota me de-
sorientou! N��o me queira mal, por favor. Deixo-a
com suas ocupa����es. Pode ir quando quiser.
��� Certo! ��� disse ela, muito p��lida tamb��m, di-
rigindo-se imediatamente para a porta.
Ele acompanhou-a com um olhar sombrio e quan-
do a viu atravessar o batente, disse de forma precipi-
tada:
��� De qualquer forma, ficaria reconhecido se n��o
se esquecesse de que temos visita depois de amanh�� ��
noite. E que gostaria muito de que tudo se passasse
como sempre, em rela����o a nossos amigos.
52
��� Certo! ��� disse ela, pela segunda vez, ainda
mais friamente.
Virada para ele, com a m��o na ma��aneta da por-
ta, ela deixou pesar sobre ele um olhar de desprezo e
��dio:
��� Fa��o a mesma quest��o que voc�� de salvar as
apar��ncias, querido. Bye bye!
E a porta bateu.
Sem pensar no que fazia, Fran��ois correu para a
janela. Ela dava diretamente para o estacionamento
reservado aos m��dicos e cirurgi��es do hospital. Viu
Carole subir no carro, sem nenhum olhar para a ja-
nela da sala do marido, colocar-se no volante, acender
um cigarro antes de dar a partida. "Como se tornou
estranha a mim, irremediavelmente estranha!" pensou
Fran��ois, invadido pela amargura.
Ele sentiu vergonha de t��-la desejado t��o violen-
tamente um pouco antes. No entanto seu desejo con-
tinuava, tenaz, ardente como uma febre m��. Agu��ado
sorrateiramente pela vis��o fugaz daquele rosto de ra-
paz desconhecido, jovem, viril, de olhar ousado, e so-
bretudo obscuramente obcecado pela dedicat��ria que
teve tempo de ler: "Para voc�� que amo mais que tudo
no mundo, Johnny." Ent��o Carole tinha um amante,
mais jovem que ele, mais jovem que ela tamb��m. E
aquele Johnny amava-a mais que tudo no mundo!
"Como ele lhe faz o amor? E ela? Como ela vibra
em seus bra��os, murmura quando o tem dentro de si,
a arrancar-lhe espasmos de prazer?"
Fran��ois sentia-se devorado, cercado, inflamado.
Devorado por um ci��me vergonhosamente excitante.
Cercado pelas chamas de um desejo abrasador e insa-
tisfeito. Devorado por uma necessidade primitiva de
53
vingan��a, de obscura revanche sobre aquela mulher
que era a dele, que usava seu nome e que acabava de
humilh��-lo no que um homem tem de mais poderoso
e de mais vulner��vel: sua virilidade de macho.
Ele n��o podia continuar assim, tenso, queimando,
palpitando, dolorido. Pensou em Clara, aquela aman-
te que ele mantinha por for��a das circunst��ncias, por-
que Carole, com sua intransig��ncia cega, tinha-a im-
posto a ele, mesmo depois que ele n��o teve mais a
aut��ntica necessidade de rev��-la e de possu��-la. Sem
ter muitas ilus��es, Clara continuava dispon��vel, e Fran-
��ois sabia-o, pois bastava um telefonema e ela dizia-
-lhe para vir. Mas tinha de esperar at�� a noite. Todo
um dia para passar com aquela febre no v��o dos rins,
aquela tens��o obstinada tornada ainda mais virulenta
depois das emo����es contradit��rias que o tinham assal-
tado! Conseguiria esperar at�� l��? Que recurso resta-
va-lhe, sen��o dar a si mesmo o prazer para o qual
toda sua for��a de homem continuava dirigida, tensa e
palpitante?
54
��� Oh!... Desculpe, doutor...
Fran��ois virou-se bruscamente, exclamou com
uma voz ensurdecida pela surpresa:
��� �� voc��, Colette? ��� disse ele, com a voz um
pouco perdida.
��� Eu bati... Como n��o respondesse, pensei que
tivesse sa��do com sua mulher... Desculpe ��� repetiu
a jovem enfermeira, cujas faces tinham ficado carmim.
��� N��o tem do que desculpar-se. N��o a ouvi ba-
ter, �� tudo. N��o precisa ficar t��o perturbada.
Colette continuou junto �� porta, visivelmente he-
sitante, sem saber se devia ficar ou sair. Fran��ois di-
rigiu-se para ela:
��� Entre, mas entre logo, menina. Queria ver-
-me? Por qu��? Fale. N��o precisa ficar com essa cara.
��� Estava preocupada com o senhor... A ope-
ra����o foi t��o desastrosa! Queria dizer-lhe que n��o teve
nada com aquela derrota... Fez tudo que era huma-
namente poss��vel fazer...
Enquanto falava com uma voz picada, olhando o
cirurgi��o com um olhar estranhamente brilhante, a en-
fermeira tinha entrado, fechado a porta atr��s de si,
dado alguns passos at�� o centro da sala.
Fez-se um sil��ncio que nem um nem outro tive-
ram a id��ia ��� ou o desejo ��� de romper. Entre eles
alguma coisa edificava-se rapidamente, informul��vel
mas que mais nada viria interromper. Suas vozes ti-
nham-se calado, mas seus olhares continuavam a falar,
55
a trocar sua muda linguagem, enquanto cada um dava
os passos destinados a coloc��-los frente a frente, cada
vez mais perto, peito unido a peito, boca a boca, h��-
lito a h��lito, m��os estendidas, bra��os abertos, impulso
contra impulso...
O encontro deu-se na mesa, a poucos cent��me-
tros do lugar onde Fran��ois, um pouco antes, tinha
abra��ado selvagemente Carole. E foi tamb��m selva-
gemente que ele abra��ou a enfermeira, tanto �� verda-
de que os abra��os ditados s�� pelo desejo de pele tor-
nam-se impessoais no fulgurante instante em que os
corpos se p��em frente a frente.
Ela n��o ofereceu nenhuma resist��ncia. Sua cintu-
ra curvou-se imediatamente para tr��s. Com a m��o
impiedosa Fran��ois levantou o avental junto com a
saia at�� a cintura. Ao mesmo tempo, sua boca ligou-
-se indissoluvelmente �� de Colette. Seus l��bios abriam-
-se imediatamente e suas l��nguas encontraram-se num
beijo voraz e do mesmo modo impaciente.
Unido a ela com toda a sua for��a de homem ator-
mentado pelo desejo de sentir prazer, Fran��ois soltou
uma de suas m��os par ir liberar uma virilidade agora
totalmente desencadeada.
Liberta dos entraves, ela surgiu, foi de encontro
a sua c��pula encarnada, contra uma doce pele desnu-
dada, encontrou logo a entrada da mata morena.
Colette exalou uma queixa de liberta����o extasia-
da quando aquela carne viva e quente entrou nela.
Mas sua excita����o foi t��o grande que expulsou, contra
a vontade, o que come��ava a faz��-la divagar de prazer.
Ela soltou um grito desvairado, quis colocar de novo
em si o que lhe escapava, n��o conseguiu, pois estava
mal colocada, muito torcida, muito deslocada. Entre
as p��lpebras semi-fechadas, ela viu o que corria o ris-
co de acontecer e que ela n��o queria a nenhum pre��o:
aquele estranho craniozinho calvo, que parecia feito de
56
cetim violeta com sua p��rola opalina, e que ia prova-
velmente n��o mais poder conter sua carga de desejo.
Ent��o ela obedeceu a seu ��nico instinto de f��mea ena-
morada: empurrou Fran��ois, curvou-se, colocou-se de
joelhos, p��s as duas m��os em forma de ta��a, balbu-
ciou com uma voz rouca:
��� Deixe.
E ele deixou. De p��. Com as pernas afastadas.
A cabe��a ligeiramente inclinada para assistir ao ceri-
monial de todas as idades, n��o querendo perder nada
do espl��ndido e excitante espet��culo daquela boca de
mulher que se abria para aspir��-lo, guard��-lo entre os
l��bios, faz��-lo dan��ar lentamente, sabiamente em torno
de sua l��ngua, sentir seu gosto, sabore��-lo, sug��-lo
como a uma guloseima refinada de carne e de san-
gue. . .
Ele n��o pretendia deixar-se ir at�� o termo nor-
mal de sua excita����o. Concordava s�� em experimen-
tar o m��ximo poss��vel aquele prel��dio carnal infinita-
mente excitante, infinitamente deleit��vel para os sen-
tidos e para o esp��rito. Assim que sentisse vir o fluxo
de seu prazer, retirar-se-ia de entre os l��bios muito
quentes, arrancar-se-ia da boca t��o acolhedora para ir
inundar o estojo de outros l��bios ainda mais ��ntimos
e mais secretos e que, eles tamb��m, tinham direito ao
orgasmo, �� revela����o sensual, ao prazer de sua carne
feminina.
Mas quando quis retirar-se da boca glutona, duas
m��os obstinadas vieram ret��-lo, quiseram manter na
boca a haste carnosa que a invadia, ajudando com as
duas palmas, no v��o das quais mantinha os dois globos
doces e pesados de onde lan��ava-se o galho vital de
carne e de sangue.
Ent��o ele n��o resistiu mais ao desejo chegado ao
paroxismo e levou para aquele enlameamento vital
57
uma esp��cie de raiva onde a parte de sexualidade vi-
nha confundir-se singularmente com uma necessidade
de revanche espiritual.
Colette, com os olhos fechados, as m��os e a boca
cheias, parecia mergulhada no ��xtase. Seu corpo todo
era percorrido por arrepios �� flor da pele. Sem soltar
o que mantinha com os l��bios e os dedos, come��ou a
ondular, a agitar-se espasmodicamente. Vis��o que teve
o dom de fustigar o desejo de Fran��ois, de reanim��-lo
magicamente. Com uma calma brusca, ele saiu do asilo
ardente, pegou Colette pelos ombros, fez com que se
erguesse, mas para atir��-la na mesa de exames, para
onde a arrastou como uma escrava, uma presa. Ainda
estava tenso, milagrosamente em ere����o. Subia na
mesa onde Colette estava agora estendida, com os bra-
��os em cruz e as coxas amplamente abertas, deitou-se
sobre ela, penetrando-a de uma vez.
��� V��! V��! ��� ele expirou inconscientemente,
perdido de excita����o, como da necessidade de vingar-
-se de Carole.
N��o precisou ficar muito nela. Sua excita����o che-
gou ao ponto culminante, fomentada pelo beijo com
que ela o tinha envolvido e molhado a nudez ��ntima
de seu amante improvisado.
Muitos orgasmos consecutivos fizeram-na vibrar
da cabe��a aos p��s. Ela gemeu surdamente, depois
mais forte, depois gritou seu prazer, que acabou por
explodir espetacularmente, fazendo-a contorcer-se con-
vulsivamente, agarrar-se aos quadris de Fran��ois, bater
os p��s, os tornozelos e as pernas, enquanto suas co-
xas abriam e fechavam espasmodicamente.
Fran��ois ficou nela todo o tempo necess��rio a Co-
lette para voltar do ofuscante abismo do prazer. Ela
abriu os olhos, passeou por ele um olhar um instante
ainda cego, depois rapidamente l��cido. Um sorriso de
estranha confus��o pintou-se ent��o em seus l��bios, ao
58
mesmo tempo que um rubor pudico inflamava suas
faces:
��� O que acontecu comigo? ��� ela balbuciou, re-
cuperando-se.
��� Algo de muito humano ��� replicou Fran��ois,
recuperando-se calmamente. ��� Voc�� voou como uma
rainha.
De p��, arrumando a saia, de repente t��o calma
quanto ele, ela respondeu rindo:
��� Por que como uma rainha? As rainhas sentem
mais prazer que as outras criaturas da terra?
Fran��ois n��o achou necess��rio replicar novamente.
Ali��s, a jovem e maravilhosa enfermeira j�� se prepara-
va para ir, como se n��o tivesse havido nada. Ela sou-
be jogar o jogo do imprevisto. Estava tudo maravi-
lhoso, no melhor dos mundos poss��vel. Foi o que pen-
sou Fran��ois, olhando Colette sair da sala. Iria lem-
brar-se, se houvesse necessidade. N��o sentia mais ne-
nhuma responsabilidade f��sica em rela����o a Carole.
Tudo que acontecesse dali por diante decorreria de um
��nico feito, de sua incompreens��o absoluta. Clara,
Colette e todas as outras que cruzassem seu caminho
n��o estariam ali se Carole n��o lhe tivesse deixado en-
tender nitidamente que estava tudo terminado entre
eles no campo f��sico.
De novo sozinho, Fran��ois riu com amargura:
"Entendo agora a desenvoltura dela no plano sexual!
J�� encontrou um substituto para mim! Tem um aman-
te chamado Johnny e que a ama mais que tudo no
mundo."
Naquele exato momento, o telefone soou oportu-
namente, e Fran��ois foi chamado de volta a si pelos
imperativos imediatos da profiss��o.
59
O homem que abriu a porta para Carole n��o era
o rapaz da foto. J�� desagradavelmente impressionada
com a entrada do pr��dio e a escadaria sombria e os-
cilante, Carole quase voltou. Afinal, aquela hist��ria
toda n��o lhe dizia respeito. Patricia tendo morrido,
ela n��o tinha mais nenhum motivo s��rio de imiscuir-
-se num destino ao qual nada a ligava.
��� Quer ver Johnny, n��o? Ele n��o est��, mas n��o
deve demorar. Entre! Ele n��o me perdoaria, se o dei-
xasse perder t��o bela visita.
Carole entrou, contra a vontade. O rapaz fez-lhe
sinal para sentar-se, depois, sem dizer mais nada, sen-
tou-se tamb��m e mergulhou na leitura de um romance
cuja capa Carole n��o conseguia ver.
Ela acendeu um cigarro, evitando olhar na dire-
����o do jovem, mas sentindo que ele dirigia a todo ins-
tante olhares obl��quos para ela, o que lhe inspirava um
indefin��vel mal-estar. Tudo na sala sombria e suja an-
gustiava-a e aquela ang��stia vinha acrescentar-se �� j��
penosa do objetivo que viera cumprir.
Passaram uns dez minutos. Carole estava a pon-
to de ir embora, deixando para depois o cumprimento
de sua miss��o, quando a porta se abriu bruscamente e
um rapag��o entrou:
��� Ol��, Jef!
Depois ele viu a visitante e calou-se, contentando-
-se em olhar interrogativamente o colega.
61
��� Esta senhora o est�� esperando ��� ele disse, de
um modo malicioso.
Carole levantou-se e, reconhecendo o rapaz da
foto, disse com uma certa precipita����o:
��� Estou aqui da parte de Patr��cia.
Algo iluminou-se instantaneamente no rosto de
Johnny:
��� Ah, sim? Onde ela est��? Por que n��o veio
ela mesma?
Carole lan��ou um olhar tingido de impaci��ncia
para Jef, depois dirigiu-se unicamente a Johnny:
��� N��o pod��amos conversar s��s?
Johnny virou-se imediatamente para o compa-
nheiro:
��� Voc�� ouviu? V�� indo, e logo!
��� Est�� bem, entendi! Sou demais. Vou indo,
mas...
J�� �� porta, virou-se para Carole e acrescentou,
num tom carregado de alguma amea��a:
��� Vou deix��-los, mas saiba que Johnny e eu
n��o escondemos nada um do outro. Somos de certa
forma como dois dedos de uma s�� m��o. Bye!
Ele saiu, batendo ostensivamente a porta. Carole
e Johnny ficaram um instante silenciosos, um diante
do outro. O rosto do Johnny modificou-se conside-
r��vel e rapidamente. Tinha perdido a dureza de
quando chegou. Seu olhar estava agora carregado de
uma longa e ansiosa interroga����o.
Carole decidiu-se a falar:
62
��� Vim trazer not��cias de Patr��cia ��� ela come-
��ou, penosamente.
Johnny teve como que um impulso para ela mas
se conteve e s�� seus olhos puseram-se a brilhar, train-
do a emo����o de que estava possu��do:
��� Onde ela est��? Fale, depressa! Estou t��o in-
quieto, h�� meses! Suponho que, se est�� aqui, �� por-
que conhece bem Patricia e sabe do que houve entre
n��s. Por que ela me deixou de um dia para o outro,
sem dar explica����o, por qu��? Ela deve ter-lhe dito
que eu a amava, que estava a ponto de liberar-me
completamente para casar com ela, para recome��ar
tudo do ponto zero com ela.
Ele calou-se bruscamente, como algu��m que de
repente tem medo de ter falado demais e pergunta te-
meroso :
��� Quem �� voc��?
Com a garganta cerrada, Carole limitou-se a es-
tender ao jovem a carta escrita por Patricia antes de
sua morte e que ela tinha acabado de tirar da bolsa:
��� Tome. Leia isso ��� ela balbuciou com difi-
culdade.
Depois virou-se. Um sil��ncio pesado planou o
tempo todo que Johnny levou para ler a aflitiva mis-
siva. Foi Carole que se virou novamente para o jo-
vem. Ele tinha-se deixado cair numa cadeira, aboba-
do, com os olhos perdidos acima da carta que ele
continuava a segurar entre os dedos, mas sem v��-la
mais.
Carole n��o sabia mais o que dizer, nem o que
fazer. Avan��ou alguns passos para lembrar a Johnny
sua presen��a que, com efeito, ergueu os olhos para
ela, murmurando com uma voz sem resson��ncia:
63
��� N��o �� v e r d a d e . . . N��o �� poss��vel... Essa coi-
sa pavorosa n��o p��de acontecer com ela, com ela que
era a do��ura, a bondade personificada... Mas por que
ela n��o me contou que esperava um filho, j�� que esse
filho era meu?
��� Acho que ela teve medo de ser uma carga
para voc��, que tinha de arrumar sua vida.
E como Johnny lhe lan��asse um olhar vagamen-
te suspeito:
��� Queria que tivesse certeza de uma coisa, John-
ny: pode confiar inteiramente em mim. Sou a mulher
do cirurgi��o que operou sua pequena Patricia. Fui eu
que ouvi seu ��ltimo suspiro. Foi a mim que ela con-
fiou essa carta, como tamb��m sua foto, uma hora an-
tes de ser levada para a sala de o p e r a �� �� o . . . N��o li
o que ela escreveu mas, repito, se precisar abrir-se com
algu��m, estou aqui. Saberia entender tudo, tudo mes-
mo. Sou m��dica, Johnny. E n��o me contento em tra-
tar do corpo. Tento, da maneira que posso, acalmar,
curar as mis��rias da alma. N��o somos todos feitos de
uma mesma carne, n��o estamos todos �� merc�� de fra-
quezas, de erros? N��o h��, em cada um de n��s, um
ladr��o, um usurpador, um assassino em potencial? Por
favor, Johnny, confie em mim. Sejam quais forem
suas confid��ncias, nunca vou tra��-lo.
Johnny tinha levantado a cabe��a. Seu olhar pro-
vava que ele absorvia as palavras da jovem mulher
como se recebe um b��lsamo numa dor lancinante. O
bloco de gelo em que se tornara seu cora����o h�� tan-
tos anos come��ou a fundir-se e ele disse:
��� Sou o que chamam um tipo desprez��vel, se-
nhora. Um desviado, um falido, um inadaptado, um
reivindicador por princ��pio, um contestador, um demo-
lidor sistem��tico incapaz de propor qualquer coisa no
64
lugar do que demoliu. Al��m disso, cheio de ��libis.
Sou um vagabundo, o c��mplice do rapaz que a rece-
beu. Ele �� mais velho que eu. Foi ele que inculcou
em mim id��ias de revolta contra a sociedade, uma dou-
trina mal entendida, mal digerida, a insurrei����o contra
os princ��pios estabelecidos, a anarquia, entende o que
quero dizer? Isso �� que me perdeu a cabe��a desde que
o conheci. Desde n��o sei quanto ou��o-o proclamar
"que �� preciso tirar dos outros o que os outros n��o
nos querem dar", que os capitalistas t��m de ser vomi-
tados, mortos sem escr��pulos e que �� sem escr��pulos
que o indiv��duo deve apropriar-se dos seus bens, etc.
etc. Ent��o, durante anos, eu o acompanhei nos "gol-
pes", entende? At�� o dia em que encontrei Patr��cia e
a mais bela, a mais resplandescente flor da natureza
brotou em meu cora����o: meu amor por ela. E no co-
ra����o dela tamb��m brotou a mesma flor maravilhosa:
seu amor por mim... Desde ent��o, s�� tive uma id��ia
na cabe��a, s�� uma vontade: emendar-me, sair do im-
passe em que me enganei, libertar-me de tipos como
Jef e os outros... Estava a ponto .de conseguir, quan-
do Patr��cia me deixou... E agora est�� me dizendo
que ela est�� morta?
Jchnny pousou em Carole um olhar um pouco
louco, depois gritou com afli����o:
��� Ent��o n��o v�� que estou desesperado?
Espontaneamente, Carole colocou a m��o sobre a
do jovem:
��� Voc�� n��o precisa disso, Johnny. Resolvi aju-
d��-lo com todos os meus meios.
Ele observou-a, ainda incr��dulo:
��� Como posso acreditar? Por que agiria com
tanta bondade comigo, de quem s�� conhece o que aca-
bo de contar, e que �� t��o conden��vel?
65
��� Por qu��? N��o lhe disse, h�� pouco? Sou uma
m��dica, Johnny. Para mim isso explica tudo, justifica
todos os meus feitos e gestos. Tenha em mim tanta
confian��a quanto tenho em voc�� espontaneamente, e
ent��o prometo que poder��, um dia, dar um novo sig-
nificado �� sua vida.
��� Creio em voc��, come��o a acreditar, mas...
��� Mas?
��� N��o �� minha confian��a em voc�� que est�� em
causa.
��� O que ��, ent��o?
Como ele ainda hesitasse, ela insistiu:
��� Vamos, por favor! Diga tudo que est�� em seu
cora����o, ou n��o chegaremos a nada.
��� �� que n��o sou sozinho. Somos um bando
todo... Todos dizendo-se intelectuais incompreendi-
dos, ex-estudantes influenciados por leituras... Aca-
bamos por acomodar tudo a nosso modo de tal forma
que o justo fique de nosso lado, enfim, o que acha-
mos ser justo... o que nos autoriza a pilhar, roubar,
destruir, apossar-nos do que n��o nos pertence!
��� Tudo isso parece-me mais infantil que qual-
quer outra coisa, mais pueril do que voc�� tenha cons-
ci��ncia ��� concluiu Carole. ��� Aposto que tem uma
bela moto, na qual voc�� sai no maior barulho, tonto
de velocidade. Isso tamb��m diz respeito aos jogos da
inf��ncia, com essa diferen��a: voc�� p��e sua vida nesse
jogo. E, quanto ao resto, quero falar de suas "vaga-
bundagens" mais ou menos bem organizadas de anar-
quistas de momento; �� sua liberdade que est�� sendo
exposta.
66
��� J�� pensei nisso tudo. N��o est�� me dizendo
nada que eu n��o saiba, de que n��o tenha tomado cons-
ci��ncia h�� muito tempo. Se pelo menos Patr��cia n��o
me tivesse abandonado! Se tivesse dito que ��amos ter
um beb��! E agora, que posso fazer? �� tarde demais
para voltar atr��s... Sem Patr��cia, n��o tenho mais ne-
nhum motivo de viver e tornar-me um homem digno
desse nome.
��� N��o precisa falar assim. N��o vou abando-
n��-lo.
Quando se deixaram, depois de conversar muito
tempo, um pacto de amizade tinha sido conclu��do en-
tre eles. Confiante na boa f�� de Johnny, Carole pro-
meteu que ia refletir num meio de achar-lhe um em-
prego. Al��m disso, continuaria a v��-lo quantas vezes
suas ocupa����es permitissem, at�� o dia em que o sen-
tisse suficientemente equilibrado na nova posi����o e que
ele n��o precisasse mais dela.
��� Enquanto isso, vou passar para v��-lo depois
das consultas ��� ela prometeu.
��� E eu vou dar um jeito de Jef n��o estar aqui.
��� �� melhor. Tchau. At�� amanh�� e . . . coragem!
* * *
No momento de voltar para casa, �� noite, Carole
reconsiderou tudo. O dia tinha sido muito f��rtil em
emo����es de todo tipo. A morte tr��gica daquela peque-
na Patr��cia, o deplor��vel incidente entre Fran��ois e ela,
exatamente quando iam reaproximar-se do modo mais
belo, sua visita a Johnny e finalmente a ��ltima con-
sulta que tinha feito, que a atormentava por sua ana-
logia com o caso de Patr��cia.
Sua repugn��ncia em ficar sozinha com o marido
tinha dois motivos bem distintos. Ela n��o gostava de
67
ele ter-se apossado do conte��do da sua bolsa e de ter
deixado pesar sobre ela um olhar carregado de sus-
peita. S�� por aquele olhar n��o lhe teria contado nada,
mesmo que n��o tivesse prometido segredo para Patri-
cia. Ele n��o tinha mais direito sobre ela. Era uma
coisa nitidamente estabelecida, n��o havia em que voltar
atr��s. Ela tamb��m tinha raiva dele pela insatisfa����o
de seu corpo. H�� muito tempo n��o fazia o amor. Se
eu voltar para casa agora, no estado febril em que es-
tou, sozinha com ele, n��o poderei resistir. Vai bastar
que ele segure em minha m��o ou me olhe de um certo
modo e eu mergulharei em seus bra��os como uma gata
no cio." Isso ela n��o queria a nenhum pre��o. Nunca
abdicaria de seu orgulho de mulher, sem nada a cen-
surar-se!
A quem recorrer para apagar esse fogo? N��o que
faltassem homens que a desejassem! Um deles agra-
dava-a muito. Ali��s, tinha tentado com ele obter de
novo sensa����es de que se privava voluntariamente com
o marido. Ela foi procurar o dr. Tavernier uma noi-
te, decidida a fazer o amor com ele. Jean era um
belo homem de uns quarenta anos. Ela admirava seu
valor profissional. Sua intelig��ncia seduzia-a, tanto
quanto seu f��sico. Tudo come��ou muito bem. Ele ti-
nha preparado tudo em honra �� sua vinda e ao que,
finalmente, ia materializar-se entre eles. Ela deixou-se
abra��ar, ser acariciada, respondendo a seus beijos e ca-
ricias. A preciosa embriaguez vinha, subia lentamente
nela, esquecendo seu sangue e agu��ando sua excita����o
sensual. Talvez Jean tivesse errado por quer��-la nua e
fora de um sof��. Ele certamente cometeu o erro de
interromper suas car��cias-prel��dio para lev��-la para o
quarto e deixa la sozinha enquanto ia ao banheiro.
Quando ele voltou, nu, incontestavelmente belo com
sua for��a orgulhosamente erigida, Carole, que estava
semi-despida, teve, ao v��-lo, um recuo involunt��rio.
Come��ou a vestir-se de novo com gestos febris.
68
��� Carole! ��� exclamou surdamente o m��dico. ���
O que est�� fazendo?
Ela havia desviado os olhos, enrubescida:
��� Desculpe-me... Mas isto �� imposs��vel...
Jean, que estava vagamente a par do problema
sentimental da jovem mulher, n��o tinha insistido e foi
vestir-se rapidamente. Carole, tranq��ilizada, sorriu-lhe
confusamente:
��� Devo parecer rid��cula, n��o?
��� Tudo, menos isso,
��� Tinha muita vontade de fazer o amor com
voc��, Jean. Estava at�� convencida de que voc�� era o
��nico cujas car��cias eu poderia aceitar... Enganei-
-me... Acabo de ter a prova de que sou incapaz de
aceitar outras car��cias, que n��o as de meu marido...
Se soubesse como estou chateada! Acho isso t��o tolo!
Quando estou morrendo de desejo!
O relacionamento deles continuou t��o amistoso e
de boa camaradagem quanto antes daquela v�� tentativa.
S�� que Carole sentia cada vez mais a necessidade de
liberar seu corpo de sua carga de desejo.
Lembrou-se de repente de Leonora. Como n��o
tinha pensado antes? A impaci��ncia de Carole fez com
que se esquecesse de telefonar para aquela de quem
tinha tratado alguns meses antes e que se tornara sua
amiga. N��o estava quase certa de encontr��-la em casa?
69
��� O h ! Carole!... Que surpresa maravilhosa!
Pensei que estivesse viajando o u . . . que tivesse recon-
ciliado com seu marido. H�� tanto tempo n��o a via!
Entre logo. Eu ia sair...
��� N��o quero incomod��-la...
��� Est�� brincando! Estava entediada. Ia tomar
alguma coisa no Moune ou no Monocle, mas voc�� est�� aqui, contra qualquer esperan��a...
De repente Carole sentiu-se tomada por um imen-
so bem-estar. Leonora a instalara confortavelmente em
seu lugar familiar, num ��ngulo do sof�� panor��mico,
veio sentar-se a seus p��, na grande almofada, depois
de servir-lhe uma bebida.
��� Voc�� veio ser amada, minha gata ��� ela ob-
servou com mal��cia e do��ura.
��� N��o se consegue esconder nada de voc��.
��� Ent��o, que esperamos? Pense que eu tamb��m
estou com car��ncia de afei����o.
Leonora puxou Carole pela m��o e recebeu-a no
peito.
��� Com quem me traiu? ��� ela perguntou, bem
baixinho, �� sua orelha, pegando um seio de Carole.
��� Com ningu��m.
��� Acredito em voc��. �� muito sentimental para
isso. N��o estou censurando, pelo contr��rio. Gosto que
seja s�� minha.
71
��� E voc��, foi fiel a mim? N��o dormiu com nin-
gu��m, desde a ��ltima vez que nos vimos? Nem com
um homem?
��� N �� o . . . Juro... Contentei em acariciar-me
pensando em voc��, imaginando que era sua m��o, sua
boca... Fechando os olhos e concentrando �� relativa-
mente f��cil, sabe? Mas agora que est�� aqui...
Leonora tomou os l��bios de Carole. Elas oscila-
ram lentamente, ca��ram suavemente no tapete, onde se
abra��aram. S�� se ouviram seus gemidos enamorados,
seus gritinhos, o doce e sutil ro��ar de suas peles, o
duplo arquejar de seus peitos esmagados um contra o
outro.
Carole abandonava-se toda �� amiga, imp��dica e
voluptuosa, sem remorsos, pois, com aquela jovem
mulher masculina que mantinha, no entanto, todo o
charme de sua feminilidade, Carole perdia a sensa����o
de trair o marido, enquanto aplacava os desejos de
sua sensualidade.
Por um longo tempo depois do prazer elas conti-
nuaram abra��adas, face junto a face, belamente des-
compostas, despenteadas com uma gra��a toda femini-
na. Havia agora entre elas um clima de ternura e de
confian��a. N��o se faziam nenhuma pergunta indiscre-
ta. Bastava-lhes falar o que n��o era dito abertamente.
Assim Leonora sabia exatamente o que trazia Ca-
role para seus bra��os e que fazia desabrochar de prazer
todo o seu belo corpo ao calor ardente de seus beijos
e car��cias de mulher. Assim Carole sabia que Leono-
ra tinha-se tornado l��sbica depois de banais mas ina-
ceit��veis decep����es ocasionadas por suas aventuras
masculinas.
Ela sabia tamb��m que Leonora amava-a com todo
o seu ser e que esperava o dia em que Carole viria
72
para n��o ir mais embora. Carole n��o destru��a aquela
esperan��a, primeiro para n��o magoar inutilmente uma
mulher que s�� lhe fazia bem, depois porque ela mes-
ma n��o estava t��o segura de que n��o chegaria esse
dia em que Leonora pudesse ser seu ��ltimo ref��gio,
sua ��ltima possibilidade de reconstruir sua vida sexual
e espiritual.
73
��� Al��, �� voc��, Fran��ois? Aqui �� Carole. Acabo
de pedir uma ambul��ncia para a mulher de que lhe
falei, lembra-se, a que devia dar a luz daqui a dois
ou tr��s meses?
Acordado precipitadamente, Fran��ois n��o levou
muito tempo para recobrar a lucidez: -
��� Lembro-me perfeitamente. Algum problema?
��� Uma leve hemorragia. Como lhe disse, tenho
medo de uma placenta pr��via.
��� A h . . .
Fran��ois tinha visto esse caso vezes bastantes para
subestimar sua gravidade. Normalmente, a placenta,
que �� a liga����o entre a circula����o e a m��e, fica na
matriz. �� uma esp��cie de massa achatada ligada bem
alto de um lado. Acontece ��s vezes de ela ligar-se
atrav��s da abertura inferior da pr��pria matriz, o colo,
por onde a cabe��a da crian��a deve passar. A placenta
pr��via n��o d��, em geral, nenhum sinal de sua presen��a
antes do come��o das dores, no momento em que o
colo come��a a dilatar-se para a passagem da cabe��a.
Ent��o as jun����es entre as paredes da matriz e aquela
massa de sangue rompem-se, ocasionando uma hemor-
ragia, �� o efeito produzido sobre a crian��a ainda n��o
nascida, que n��o tem mais, a partir de ent��o, a possi-
bilidade de receber em seus pulm��es o oxig��nio que
devia normalmente chegar-lhe pelo sangue materno, e
cujo afluxo lhe �� assim progressivamente retirado. A
morte fetal �� quase certa, se esse trabalho prossegue.
��� E o beb��, como est��? ��� pergunta Fran��ois.
75
��� O cora����o est�� batendo depressa demais.
��� De que voc�� tem medo, exatamente?
��� De que a hemorragia continue sob a placen-
ta e corte a circula����o.
��� Uma cesariana, ent��o?
��� Claro.
��� Voc�� vai fazer?
Ele n��o ouviu o que ela respondeu porque a li-
ga����o foi cortada. A n��o ser que ela tenha desligado
bruscamente...
De onde teria chamado ��quela hora da noite?
Ela n��o foi assistir a opera����o de sua cliente.
* * *
��� Al��, Fran��ois? Tenho um quisto ovariano para
mandar para voc��. Voc�� tem um quarto livre no hos-
pital? Recomendo-lhe particularmente essa doente. ��
um caso de urg��ncia. Previno o honestamente que ela
foi mal preparada... Ela me veio de um outro m��-
dico, que n��o entendeu bem a dire����o dos aconteci-
mentos . . . Pede ser que ela n��o suporte bem a anes-
tesia . . . Mas confio inteiramente em voc��. Voc�� ��
um modelo de controle e de perfei����o em todas as
suas opera����es...
��� Voc�� vai vir?
��� Farei todo o poss��vel.
��� M a s . . . Ou��a!... Al��, al��?
Mais uma vez a liga����o tinha sido cortada. Por
que, h�� algum tempo, Carole s�� o avisava das inter-
ven����es cir��rgicas que lhe mandava por telefone?
76
Por assim dizer, n��o se viam mais. Entre as ur-
g��ncias dele e as dela, n��o havia mais meio de falar
tranq��ilamente.
No entanto, Carole continuava a mandar-lhe seus
casos que precisavam de uma opera����o.
* * *
Carole tinha avisado: a doente n��o tinha sido con-
venientemente preparada com sedativos. Tossia a cada
inala����o de ��ter, que devia normalmente preparar para
o relaxamento completo.
Tudo, naquele dia, parecia ligar-se para "n��o cor-
rer bem". A enfermeira-instrumentista era uma nova-
ta, muito intimidada e impressionada com a personali-
dade de Fran��ois Damien. Exatamente no momento
em que Fran��ois ia fazer a incis��o, ela deixou uma
cuveta cair no ch��o lajeado.
��� Sua imbecil! ��� ele resmungou, com o escal-
pelo na m��o.
Ele se refez logo, voltou �� incis��o feita atr��s do
envelope do perit��nio, que era fino como uma folha
de papel. O quisto de que Carole falara estava bem
ali, subst��ncia globular, azulada, do tamanho de uma
laranjinha, ao lado dos ��rg��os genitais. Como se po-
dia esperar, havia ader��ncias.
Mas Fran��ois esperava tamb��m a presen��a de Ca-
role junto dele na sala de opera����o, como antigamente,
quando ele operava. Ela continuava a n��o estar. "Por qu��? Com quem ela est��? Com aquele Johnny de
jeans sujos e cabelos compridos, tamb��m sujos?"
Ele expulsou a obsess��o, continuou a cortar atra-
v��s, do envelope do perit��nio, come��ou a destacar as
fibras aderentes para chegar ao ped��nculo no qual
77
brotava o tumor. Este apareceu finalmente, liberado.
Claramente vis��veis, os vasos sang����neos batiam no fi-
lete do ped��nculo.
��� Ligadura!
Em sua m��o estendida, o fio escuro de borracha
cromado foi colocado para chegar ao ped��nculo e es-
magar os tecidos antes de proceder a uma ligadura
com a borracha.
��� Escalpelo!
Com um barulhinho n��tido, o escalpelo foi colo-
cado na palma de sua m��o. Ele cortou o ped��nculo
entre o quisto e a ligadura, depois deixou o tumor
cair na cuveta previamente estendida, a esperar.
��� Sutura final! ��� pronunciou Fran��ois, decisivo.
��� Mas, doutor ��� protestou timidamente o inter-
no assistente ��� o ap��ndice foi tirado numa outra ope-
ra����o . . . N��o acha que seria bom ligar de novo esse
ped��nculo ou passar uma sutura nele?
Se Carole estivesse ali, ele teria respondido o que
respondeu? Ela fazia-lhe falta. Em todos os aspectos.
Profissional e afetivo. Ele respondeu:
��� Por que prolongar inutilmente a opera����o?
Minha ligadura vai ser completa.
��� Certo, doutor ��� aprovou o jovem interno, en-
rubescendo.
Fran��ois recome��ou a recosturar as paredes do
abd��men. Seus movimentos eram seguros, regulares,
mas seu esp��rito estava arrasado. A aus��ncia de Ca-
role privava-o de uma grande parte de suas possibili-
dades. Tinha uma desagrad��vel consci��ncia disso. Es-
tava certo de que o ped��nculo n��o se desligaria,
78
provocando uma hemorragia perigosa? Os vasos san-
g����neos eram muito importantes. Talvez ele devesse
suturar, passar uma agulha pela haste da ligadura para
impedir com certeza a linha de deslizar.
"Se acontecer algo de desastroso, Carole ser�� tSo
respons��vel quanto eu, se n��o for mais, ele pensou
com rancor. Por que ela n��o est�� aqui para assistir-
-me, como nunca deixava de fazer antes? Ou ent��o
que pare de mandar-me seus doentes! Que os opere
em sua pr��pria clinica! N��o s��o cirurgi��es que fal-
tam!"
Esses pensamentos irritavam-no sem que ele pu-
desse expuls��-los da mente, enquanto abandonava-se
��s m��os de Colette para que ela tirasse seu uniforme.
Ela tamb��m tinha uma raiva obscura dele, por ter-se
deixado tomar como "uma qualquer".
Ele voltou a pensar em Carole, a perguntar-se
onde ela podia estar naquele momento em que preci-
sava dela. "Sem d��vida com Johnny!", ele pensava,
louco de raiva e de ci��mes. E tudo porque ele tinha
tido a infelicidade de dormir com Clara!
Ins��lito e brutal, o desejo assaltou-o. Ele olhou
Colette com mau humor. Era Clara que ele gostaria
que estivesse ali, ao alcance de suas m��os, de seu de-
sejo. "Culpado por culpado, que eu o seja de ver-
dade!"
E resolveu procurar Clara aquela noite mesmo.
79
N��o p��de realizar seu projeto. Pelas seis horas
da tarde, foi de novo por telefone que Carole pediu-
-lhe para ir com urg��ncia ao hospital:
��� N��o perca um minuto, por favor.
��� De que se trata? ��� ele perguntou, num tom
bem acre, pois acabava de ter um sombrio pressenti-
mento.
��� Do quisto que voc�� operou esta manh��.
��� E ent��o?
��� Est�� havendo hemorragia. Venha o mais r��-
pido poss��vel.
��� De onde voc�� est�� chamando? Voc�� vai tam-
b��m? Afinal �� sua paciente.
Ela j�� havia desligado.
Ele tamb��m desligou e saiu apressadamente do
apartamento, para o hospital. Ent��o ele tinha feito
um erro profissional! Era a primeira vez que tal coi-
sa lhe acontecia. Tinha a impress��o de estar perden-
do a raz��o. Por que ele confiou na ligadura simples,
sen��o porque Carole, h�� meses, mantinha-o num esta-
do interior nervoso deplor��vel? "A ligadura deve ter
deslizado do ped��nculo do tumor." Um vento de p��-
nico agitava-o. Lembrou-se da grande quantidade de
vasos sang����neos naquela fina haste. �� claro que ele
n��o ignorava a rapidez com que eles podiam provo-
car a expans��o fatal.
81
Carole n��o estava, quando ele chegou ao hospi-
tal. Ele suspeitava. No entanto, tinha feito exatamen-
te o que era preciso ser feito fora das atribui����es do
cirurgi��o: os internos tinham conseguido doadores, em
vista da transfus��o. A doente precisava de sangue t��o
depressa quanto pudessem fornecer-lhe.
Fran��ois correu para o quarto da operada. O in-
terno que o assistira de manh�� estava inclinado sobre
a doente, com um aparelho �� m��o. Colocado ao lado
do leito, um frasco com uma solu����o escura amarela-
da estava ligado a uma agulha plantada na veia do
bra��o.
O interno mal levantou os olhos para o cirurgi��o
e disse:
��� Os exames de sangue ainda n��o terminaram.
Pensei que seria bom aplicar-lhe soro, enquanto isso.
Era evidente que ele deplorava "o erro" cometi-
do por seu superior de manh��.
��� Daqui a quanto tempo os exames estar��o pron-
tos?
��� Acho que ainda leva uma boa meia-hora.
A preocupa����o de reparar o erro cometido de
manh�� teve o dom de fazer o cirurgi��o recuperar todo
o seu controle. Ele encarou fria e rapidamente a si-
tua����o: a doente estava perdendo sangue numa cad��n-
cia extremamente r��pida. A palidez de seu rosto anun-
ciava a morte iminente. A enfermeira n��o conseguia
limpar o suor que orvalhava de sua fronte t��o r��pido.
O pulso estava acelerado, mas pouco percept��vel. Uma
queixa surda e lancinante escapou dos l��bios da doente:
��� Estou abafada... D��-me ar... Estou abafa-
d a . . .
82
Todos os sintomas da hemorragia estavam ali, sob
os olhos de Fran��ois. "Se ela morrer, eu serei o cul-
pado. Um assassino."
A hemorragia interna ia prosseguir implacavel-
mente em seu caminho sangrento, sua sangrenta corri-
da para o fundo do abd��men, e isso at�� que o cora-
����o parasse de bombear, porque n��o haveria mais
nada para bombear para os vasos, porque uma vida
ia parar por causa do "problema sentimental" do ci-
rurgi��o a cujas m��os a infeliz foi confiada!
Tudo aquilo era est��pido demais, injusto demais,
cruel demais, desumano demais! Fran��ois sentia cres-
cer e subir nele uma dor intoler��vel, vinda do remor-
so. Avaliava as chances que restavam de salvar "sua
v��tima" de uma morte t��o cruelmente injusta: o soro
correndo pelas veias daria ao cora����o um l��quido se-
melhante ao sangue, com o qual trabalhar. Quantas
vidas n��o tinham sido salvas assim, em certas urg��n-
cias ou depois de um choque operat��rio? Mas, naque-
le caso particular, Fran��ois n��o podia nutrir ilus��es.
Com certeza n��o seria suficiente. S�� havia um meio
de salvar aquela mulher: parar a hemorragia e substi-
tuir uma parte do sangue perdido.
A enfermeira-chefe estava ao lado dele, de p��,
ereta, silenciosa. "Silenciosa demais!" pensou amarga-
mente Fran��ois. "Ela tamb��m est�� me julgando e me
condenando. Estava no bloco de manh��, quando ope-
rei e fiz minha ligadura criminosa. Ela tamb��m, como
todas as outras testemunhas de meu erro, considera-
-me um assassino, um a��ougueiro, um carniceiro!"
��� Mande preparar imediatamente a sala de ope-
ra����es! ��� resmungou Fran��ois. ��� Deixe a agulha na
veia e transportem-na com todas as precau����es poss��-
veis. �� prov��vel que fa��amos uma autotransfus��o
N��o dispomos mais de tempo suficiente para esperar o
83
sangue de um doador. A autotransfus��o �� a melhor e
a ��ltima esperan��a que nos resta de salvar essa exis-
t��ncia.
A enfermeira seguiu o cirurgi��o at�� a pe��a cont��-
gua ao bloco operat��rio, sempre ereta e muda, mas aju-
dando-o a vestir seus trajes de opera����o, amarrando
atr��s de suas orelhas os cord��es da m��scara.
��� Mande um t��cnico subir ��� disse-lhe Fran��ois,
dirigindo-se para a sala onde reinava o tumulto silen-
cioso de uma atividade magistralmente ordenada. ���
Podem tirar sangue enquanto opero.
Abelhas brancas, as enfermeiras agitavam-se, es-
tendendo na mesa os curativos esterilizados, arruman-
do os instrumentos.
Fran��ois reclamou uma solu����o de citrato de soda
e um par de cuvetas de esmalte para receber o sangue
da cavidade abdominal.
��� Posso come��ar a anestesia, doutor? ��� infor-
mou-se o enfermeiro anestesista.
��� Espere mais um instante, por favor ��� res-
pondeu Fran��ois com uma voz dura. ��� Ainda tenho
de colocar as toalhas e os curativos. Ali��s, a doente
n��o vai suportar muita anestesia. S�� um pouco de
g �� s . . .
��� Est�� bem, doutor ��� aprovou respeitosamente
a anestesista, mantendo-se pronta junto do aparelho bri-
lhante com todos os seus reservat��rios prateados e suas
v��lvulas.
A mesa operat��ria tinha sido instalada debaixo
das enormes l��mpadas que difundiam raios resplan-
descentes. O interno assistente segurava alto um fras-
co de solu����o de ac��cia. Um outro ajustou aos ouvi-
84
dos as duas pontas de um estetosc��pio e apertou a
pera de press��o sang����nea.
��� Como est�� a intravenosa? ��� perguntou Fran-
��ois.
��� Bastante fraca.
��� Vamos ter de trabalhar depressa.
E pensou: "Ser�� tarde demais?" N��o queria acre-
ditar realmente nisso. Certo, ele n��o tinha de salvar
sempre os doentes. Muitas vezes tinha operado em de-
sespero de causa e sabendo por antecipa����o que per-
deria a batalha. Mas ali, tudo era diferente. Se aque-
la mulher morresse, seria por causa dele, de sua ne-
glig��ncia, seu nervosismo, por causa de Carole, de
Clara, de Johnny, de Patr��cia, de, d e . . .
��� Prontos? ��� ele perguntou, recompondo-se.
��� Prontos ��� ele ouviu de uma s�� voz, ensurde-
cida mas n��tida.
A partir de ent��o, Fran��ois concentrou-se na ne-
cessidade dupla de parar a hemorragia e substituir o
sangue perdido.
Com a m��o r��pida, come��ou pintando o ventre
com um antiss��ptico vermelho. Reconheceu a incis��o
que tinha feito naquela manh�� mesmo com pontos de
seda preta e que ia ter de reabrir, pois aquele era o
meio mais r��pido e o mais seguro. Assim a parede ab-
dominal n��o sangraria. A menor gota de sangue pou-
pada ia contar terrivelmente para a salva����o daquela
exist��ncia humana.
Fran��ois olhou brevemente para a anestesista:
��� Pode come��ar.
85
A anestesista girou imediatamente diversos qua-
drantes e discos em seu aparelho, depois ajustou a
m��scara no rosto da doente deitada. Esta mexeu li-
geiramente no primeiro instante em que o g��s entrou
em seus pulm��es.
Era um g��s acre, ciclopropano, o melhor anest��-
sico para um caso desse tipo, com uma forte propor-
����o de oxig��nio misturada. A paciente n��o suportaria
a mais leve asfixia parcial. Restavam-lhe muito pou-
cos gl��bulos vermelhos em circula����o, mal o bastante
para transportar o oxig��nio que a mantinha ainda viva.
Os fios de seda preta colocados como sutura ter-
minal naquela manh�� mesma foram tirados por Fran-
��ois com precis��o e rapidez. Suas m��os penetraram no
corpo, cada vez mais profundamente, cortando suces-
sivamente, e sempre com a mesma presteza segura, as
linhas que uniam as espessuras subcut��neas.
O perit��nio apareceu, mas n��o com sua apar��n-
cia normal de pergaminho, mas com uma cor azul es-
cura, indicando uma enorme quantidade de sangue li-
vremente espalhado pelo abd��men.
��� Citrato! ��� reclamou Fran��ois.
A enfermeira-instrumentista estendeu-lhe uma
cuveta de esmalte, no fundo da qual havia um pou-
co de solu����o l��mpida.
��� Pronta? ��� perguntou Fran��ois, sempre com
uma voz breve e forte.
��� Sim, doutor.
Ela segurava na outra m��o uma ta��a de esmalte
que ia servir para despejar o sangue na cavidade abdo-
minal. O citrato devia impedir o sangue de coagular.
Ele o manteria fluido, para que pudesse ser bombea-
86
do com a ajuda de um tubo de borracha e, depois,
pela veia do bra��o, colocado de novo em circula����o.
Depois de concentrar-se intensamente um curto
instante, Fran��ois reabriu o perit��nio. Logo jorrou
uma onda de sangue. Fran��ois n��o tentou capt��-la.
A enfermeira estava ali para isso com sua ta��a e sua
cuveta, que ela manobrava do melhor modo que po-
dia. Para o cirurgi��o, a coisa essencial, de vital im-
port��ncia, era agora prender numa pin��a ��queles vasos
a escorrer. Muito sangue da cavidade pelviana n��o
vazaria para fora.
Fran��ois mergulhou profundamente a m��o enlu-
vada, procurando, ao tato, o ped��nculo. Minutos an-
gustiantes come��aram a passar para ele, cujos dedos
s�� encontravam an��is de intestino moles demais e que
lhe escapavam. Enfim, no termo daqueles minutos
que pareceram a ele uma eternidade de ang��stia, seus
dedos atingiram o alto da matriz. Ele deslizou-os de
lado, para onde lembrava-se de ter atingido a fina has-
te. Pelo fraco jato de sangue que come��ou a bater em
seu dedo, ele entendeu que era a art��ria do ped��nculo,
o peda��o cortado e parcialmente reaberto, que espa-
lhava sangue pelo ventre, em pequenos golpes sofrea-
dos, quentes e vermelhos. Seus dedos fecharam o coto.
Ele sentiu nitidamente o batimento da art��ria, que
tentava fazer seu fluxo passar entre os dedos juntos,
mas em v��o.
Ele segurou-a e anunciou num enorme suspiro:
��� Eu a peguei! Eu a peguei!
Ele sentiu nitidamente um suspiro semelhante ao
seu, um suspiro de imenso al��vio exalar dos outros pei-
tos, uma ang��stia diminuir em todos os esp��ritos que o
assistiam.
Ele pediu, com uma esp��cie de alegria:
87
��� Pin��a Kelly!
Pegou o instrumento com a m��o esquerda e o
deslizou ao longo da m��o direita, at�� que pudesse
afastar os maxilares da pin��a e apert��-los em volta do
coto. Seu esp��rito, seus m��sculos, todo o seu ser esta-
va tenso ao m��ximo: se ele apertasse um ponto vital
qualquer ou um anel do intestino, seria a confus��o
total.
Com a certeza de que s�� o ped��nculo tinha sido
preso, come��ou a apertar docemente, com min��cia in-
finita. E no impressionante sil��ncio estabelecido, ou-
viu-se logo o ru��do tranq��ilizador dos ganchos que se
engrenavam.
Fran��ois inspirou longa, profundamente, antes de
declarar com uma voz forte e vibrante:
��� A ligadura do ped��nculo pode esperar at�� que
a transfus��o comece. Agora, sangue nas veias e o
mais r��pido poss��vel!
A sombria po��a de sangue do corpo da operada
foi despejada e vertida na cuveta contendo a solu����o
de nitrato. Um pano branco tinha sido mantido fer-
vendo numa bacia aquecida eletricamente. Uma enfer-
meira envolveu a cuveta com esse pano, enquanto uma
outra enfermeira girava lentamente o conte��do.
Logo, havia pouco l��quido, onde nadavam alguns
co��gulos. O resto do soro foi cuidadosamente derra-
mado no frasco sempre ligado a uma veia. Um funil
de vidro foi segurado com uma pin��a esterilizado e
colocado no fundo do frasco onde foi colocado bem
atentamente o sangue que chegava filtrado no frasco
e o enchia.
Uma pin��a colocada no tubo de borracha foi
aberta. O sangue come��ou a correr pela veia.
88
Fran��ois comentou com uma voz baixa, lenta e
precisa:
��� N��o �� o caso dissimular-se que este processo
�� arriscado. Tamb��m n��o �� o caso esquecer-se que
este m��todo de autotransfus��o �� um precioso recurso
para salvar uma vida quando n��o se tem sangue ime-
diatamente �� disposi����o, o que, infelizmente, n��o �� um
caso raro. �� claro que, assim, o sangue perdido n��o
�� pouco. N��o exageremos a gravidade. Gra��as ao re-
torno �� veia de todo o sangue retirado do ventre, o
perigo de perda total de sangue pode ser considerado
afastado...
Como parasse para respirar, o enfermeiro-aneste-
sista anunciou:
��� A press��o est�� subindo o pulso ficando mais
calmo.
O rosto de Fran��ois iluminou-se sob o imp��rio de
uma satisfa����o intensa:
��� Vejam! Conseguimos acalmar sua fome de ar
respir��vel! Vamos continuar! Est�� faltando a ��ltima
fase do nosso combate antes de cantar a vit��ria final!
Ele inclinou-se sobre a cavidade, viu o ped��nculo
e a art��ria que causaram tanto mal. A primeira liga-
dura continuava no lugar. Ele fez uma nova ligadura,
depois fixou-a. Precisava agora fechar o perit��nio.
Pegou uma agulha e um longo fio de sutura, enquanto
perguntava:
��� A press��o?
��� Est�� subindo.
��� O pulso?
��� Acalmando.
89
��� N��vel do frasco de transfus��o?
��� Passaram setecentos cent��metros c��bicos.
��� Quanto falta?
��� Uns mil, ainda.
��� Obrigado.
Ent��o ele fechou a parede abdominal, camada de-
pois de camada, substituindo os pontos de sutura que
tinha cortado na passagem precoce em dire����o �� fon-
te de hemorragia. Tudo ia terminar logo. Ele ganha-
ra o duro, o acre combate contra a morte. Sentia-se
colossalmente feliz. A tens��o que tinha mantido e
galvanizado durante toda a opera����o ia-se desfazendo
e ele sentia enfraquecer sua resist��ncia f��sica e nervosa.
Tinha de fazer um esfor��o enorme para dar cada pon-
to, mas sabia que ag��entaria at�� o fim, para desmoro-
nar logo depois.
Finalmente, tudo terminou. Mas Fran��ois insis-
tiu em olhar os enfermeiros levando a operada at�� que
sa��ssem da sala de opera����o. Um sorriso extenuado
mas luminoso passeava por seus l��bios no instante em
que Colette tirou sua m��scara.
��� O senhor fez um trabalho not��vel ��� disse a
jovem com um profundo respeito e uma imensa admi-
ra����o nos olhos.
��� Acha mesmo? ��� ele murmurou com uma mo-
d��stia comovente e com um sorriso t��mido.
Quando estava se trocando no vesti��rio, Colette
foi at�� ele. Ele ent��o foi tomado de intimida����o,
quando ela murmurou a seus ouvidos, enquanto o aju-
dava a vestir o palet��, depois dando ela mesma o n��
da gravata:
90
��� N��o poder��amos nos ver �� noite?
Fran��ois hesitou uma fra����o de segundo antes de
responder:
��� Temo que n��o seja poss��vel, meu bem. Minha
mulher convidou amigos, e seria dif��cil para mim n��o
estar em casa hoje �� noite.
E como a jovem ficasse sombria, ele colocou a
m��o paternalmente em seu ombro:
��� Ficar�� para uma outra vez, est�� bem? Se ain-
da me quiser, claro!
Ela n��o respondeu nada e saiu. Fran��ois ficou por
um curto instante bastante perplexo, perguntando-se se
a jovem tinha-se iludido com a mentira que ele lhe
contara.
Alguns minutos depois, ele sa��a do hospital. A
felicidade do triunfo profissional j�� se substitu��ra a
grande amargura de que era feita sua vida privada:
como nos outros dias, n��o veria Carole.
"Bem, nesse caso, vou procurar Clara!" ele deci-
diu raivosamente.
9 1
Ele viu logo que ela n��o estava como de costu-
me, quando sabia que ele ia vir. A primeira coisa que
chamou sua aten����o foi a roupa que ela usava. Ela
recebia invariavelmente de vestido longo, ��s vezes at��
com trajes muito finos. Se bem que ele tivesse telefo-
nado antes e que ela tivesse dito a ele para vir, estava
com roupa comum: uma saia simples e uma blusa.
No entanto sua voz, ao telefone, tinha vibrado de
contentamento, sen��o de alegria aut��ntica. Uma ale-
gria que continuava a fazer seus olhos brilhar, mas
que estava em contradi����o evidente com sua retic��n-
cia e a acolhida mais reservada.
��� Boa noite, Fran��ois ��� disse simplesmente,
com o canto dos l��bios.
Ela nem pensou em mand��-lo entrar e ele teve de
empurr��-la ligeiramente e ele mesmo fechar a porta,
dizendo:
��� Voc�� n��o parece muito contente por me ver,
Clara. Por que n��o disse que eu iria incomod��-la?
��� M a s . . . voc�� n��o est�� me incomodando em
nada, querido. Entre.
��� Obrigado. Parece que j�� entrei. E claro que
n��o foi gra��as ao calor da sua recep����o! Qual �� o
problema? ��� ele continuou com uma sincera joviali-
dade e segurando-a pelos ombros.
��� Nenhum. Est�� tudo muito bem ��� ela pro-
testou fracamente, soltando-se e precedendo-o at�� a
93
sala. ��� O que quer beber? U��sque, como sempre?
Com dois gelos... Sente-se. Vou preparar j��.
Fran��ois estava cruelmente decepcionado. N��o
entendia que reviravolta podia ter acontecido no esp��-
rito de Clara, sempre t��o entusiasta quando o via.
��� Tenho a n��tida impress��o de que atrapalhei
seus planes vindo esta noite ��� ele n��o p��de evitar de
dizer, quando ela voltou para junto dele, n��o sem
usar claramente de evasivas, ocupando-se com banali-
dades, como se quisesse retardar o m��ximo poss��vel o
momento do encontro mais ��ntimo.
��� Nada disso! ��� ela afirmou, sem acrescentar
nada.
Ele olhou-a enquanto ela acendia um cigarro, be-
bia um u��sque, repousava o copo, cruzava as pernas,
sorria vagamente, perdia-se na contempla����o da fu-
ma��a.
Decidido a deix��-la romper aquela esp��cie de
conspira����o do sil��ncio, Fran��ois p��s-se a esperar. Ele
tinha vindo cheio de desejo; sentia agora uma imensa
decep����o, tinha vontade de ir embora, de procurar
Colette, ou uma outra, n��o importava quem...
Mas o que ele esperava n��o demorou a aconte-
cer. Clara virou-se para ele bruscamente e, esmagan-
do o cigarro num cinzeiro, disse-lhe �� queima-roupa:
��� Esta situa����o n��o pode continuar, Fran��ois!
Ele n��o pestanejou; perguntou simplesmente:
��� Que situa����o?
94
Ela balan��ou os ombros, irritada:
��� Voc�� sabe t��o bem quanto eu.
E como ele n��o retrucasse, ela plantou resoluta-
mente o olhar no dele:
��� Como voc�� est�� com sua mulher? Por que
volta aqui regularmente? O que significo para voc��?
Um exut��rio? Sim, �� isso, tudo me indicai Voc�� ti-
nha de avisar-me! J�� me cansei! Entendo perfeita-
mente que essa situa����o seja c��moda para voc��, mas
pensou, um ��nico momento, que podia n��o ser para
mim? Estou cansada de estar �� sua inteira disposi����o
quando voc�� quer, pelo tempo que lhe agrade, enten-
de? N��o sou um objeto que se manipule �� vonta-
d e . . . Tamb��m tenho uma vida privada... amigos,
um trabalho, pensamentos e sentimentos meus...
Voc�� n��o se d�� conta disso! O desejo manda-o fazer
o amor comigo e voc�� vem! Se esse desejo tem um
eclipse, ent��o voc�� me deixa pelo tempo em que n��o
�� de novo despertado! �� disso que estou farta, farta,
mas farta, se voc�� soubesse!
Ela estava nervosa. Parecia estar sofrendo. Ele
olhou-a com estupor e afli����o:
��� O que h�� com voc��, Clara? ��� ele pergun-
tou, sinceramente aflito.
��� Acabo de dizer. N��o finja n��o entender.
Ele percebeu que ela tentava superar a perturba-
����o antes de prosseguir, mais calmamente:
��� Em resumo, n��o sou nada para voc��? Voc��
n��o me ama? Nem um pouco... Nem um pouqui-
nho, nada?
95
Ele sentiu que n��o devia dar voltas, que estava
diante de uma sinceridade digna daquela da qual ele
devia dar provas:
��� N��o, Clara. N��o a amo. S�� a desejo ��� ele
respondeu francamente.
��� Obrigada por sua franqueza ��� ela respondeu,
sem ironia. ��� Mas, e eu? Se eu tivesse acabado li-
gando-me a voc��? Se voc�� tivesse ficado indispens��-
vel para mim, Fran��ois? Se me fizesse uma grande
falta quando fica dias e dias sem vir? Se eu s�� tivesse
vontade de fazer o amor com voc��? Se eu tivesse co-
me��ado a ter ci��mes de sua mulher e n��o pudesse
mais aceitar a divis��o? Se, h�� algum tempo, eu pas-
sasse horas perguntando-me o que voc�� est�� fazendo,
com quem e se n��o significo mesmo nada em sua
vida? Enfim, merda, se eu tivesse come��ado a am��-
-lo? ��� ela terminou, numa revolta de todo o seu ser.
Fran��ois ficou um instante aniquilado. Esperaria
tudo de Clara, menos isso. Nada fizera-o prever aque-
la rea����o sentimental. Ele n��o achava nada para res-
ponder, a n��o ser, depois de um momento durante o
qual Clara manteve-o sob a chama aguda de seu
olhar:
��� Sinto muito, Clara, sinto muito realmente.
Ela sorriu corajosamente:
��� Sabe por qu��, pelo menos? Porque o amo e
voc�� n��o me ama? Porque me ama e n��o quer ma-
goar sua mulher? Como voc�� est�� com ela? ��� ela
perguntou, pela segunda vez. ��� Est�� dormindo de
novo com ela, ou continuam em quartos separados?
Preciso saber, Fran��ois ��� ela prosseguiu, implorante,
96
97
em amor, pelo menos, possa-se sobrepujar... No in��-
cio de uma aventura, ou nos acreditamos mais fortes
do que seremos, ou iludimo-nos desmedidamente. De
qualquer forma, nos damos mal. Nunca pensei que
um dia fosse am��-lo de verdade. Eu �� que me enga-
nei, afinal.
Ela levantou-se, firme e orgulhosa:
��� Vamos resumir, querido: n��o est�� de modo
algum nas suas inten����es separar-se definitivamente
de Carole? Seja o que for que ela fa��a, voc�� nunca
vai divorciar-se? Oh! N��o v�� pensar que estou pen-
sando em casar com voc��! N��o. S�� comecei a sonhar
que poder��amos viver juntos... Voc�� n��o �� feliz, nem
eu. Desde que comecei a am��-lo, n��o sei mais ser
feliz... Ent��o, �� isso!
Ela calou-se, de repente, sorrindo febrilmente.
Ele levantou-se.; envolveu-a com um olhar desampa-
rado:
��� Ainda quer fazer o amor comigo? ��� ele per-
guntou, quase humildemente.
Ela balan��ou lentamente a cabe��a:
��� N��o, Fran��ois. N��o h�� condi����es. Acho que
estamos nos vendo pela ��ltima vez. Se insist��ssemos
em nos ver agora, acabar��amos por esperar um do
outro o que um e outro n��o podia oferecer... O que
nos mantinha ligados era um desejo de pele e, princi-
palmente, uma comum desenvoltura em nosso relacio-
namento . . . Essa desenvoltura abandonou-me. Entre
os seus bra��os, no mais ardente do prazer que pro-,
curasse em mim, eu n��o seria mais que um esp��rito
especulador do futuro, e isso eu recuso com firmeza,
98
pois voc�� acaba de me fazer entender que nada de
dur��vel �� poss��vel entre n��s.
Ela fez um movimento de alegre despreocupa����o;
��� S�� nos resta tomar uma ��ltima dose e deixar-
-nos como bons amigos, sem l��grimas de minha parte,
sem rancor da sua. Certo, Fran��ois?
��� Est�� bem, Clara.
E, alguns minutos depois, eles se separaram com
um simples aperto de m��o. "Boa sorte, querido!" ele
pensou ter ouvido Clara dizer no instante em que as
portas do elevador se fecharam. Mas ele podia bem
ter imaginado essas ��ltimas palavras de adeus.
* * *
Ele parou o carro na esquina da rua onde elas
estavam", em grupos loiros, ruivos e morenos; esco-
lheu rapidamente a de cabeio flamejante, ousadamen-
te maquilada, mas ins��litamente vestida como uma
modesta pequena burguesa. Vinte anos? Quarenta?
Os dois eram poss��veis.
99
O barulho de uma porta fechando trouxe-o �� rea-
lidade. Ele viu que estava num quarto desconhecido
ouviu quase em seguida um som de ��gua, depois uma
voz que perguntava:
��� Posso saber antes por quanto tempo?
��� N��o sei ainda. ��� ele resmungou.
Ela reapareceu, ainda vestida mas acabando de
secar-se com uma toalha de cuja cor de sangue Fran-
��ois ia lembrar-se por muito tempo.
Ele conseguiu sorrir:
��� Como se chama?
Ela sorriu fracamente:
��� Isso o interessa? Bem, como queira. Cha: .
mam-me Ghislaine.
��� Mas seu verdadeiro, nome, qual ��?
Ela repreendeu-o com um olhar que parecia sur-
preender-se com aquela fantasia desconhecida; respon-
deu, no entanto, com boa vontade:
��� Marie.
firo que me chamem assim. Mim �� t��o raro! ela
acrescentou_com um acento, na voz, de ���pesar, como-
vente.
100
Depois, vendo que "seu cliente" continuava imp��-
��� N��o vai tirar a roupa? Decida: �� r��pido ou
��� A noite toda ���: murmurou penosamente Fran-
Marie-Ghislaine despiu-se, imaginando o que
aquele cliente estava pretendendo, depois puxou a co-
da cama e deslizou por baixo dos len����is, aca-
bando de despir-se e dizendo:
- Voc�� vem?
��� Vou ��� respondeu Fran��ois, imaginando onde
estava Carole naquele momento, o que estava fazendo
Ele juntou-se a Marie, deslizou para junto dela.
��� Seus p��s est��o terrivelmente frios ��� ela cons-
tatou, erguendo as pernas.
��� Voc�� acha?
��� O que voc�� quer? ��� ela perguntou, erguen-
do se num cotovelo.
��� O que voc�� quiser.
Ela teve um movimento irritado:
��� Voc�� n��o �� um tipo divertido! N��o podia
avisar antes de subir?
��� Eu n��o sabia ��� protestou fracamente Fran-
101
Ele acrescentou sem procurar dissimular o des-
contentamento :
��� Afinal, voc�� deve estar acostumada! Cabe a
voc��...
Ela interrompeu sem c��lera:
��� Tem raz��o. S�� que tenho de dizer-lhe...
Para mim tamb��m as coisas n��o v��o bem esta noite.
Fran��ois sentiu-se estranhamente tranq��ilizado. En-
t��o ele n��o era o ��nico a ter aborrecimentos.
��� Qual �� o problema? ��� ele perguntou no tom
instintivo de quando falava com um doente,
Ela deixou-se cair na cama.
��� �� minha filhinha. Est�� com escarlatina. Ti-
nha de ir v��-la,, mas..ela est�� longe, nalgum ponto de um lugar perdido.
Ela calou-se. Ele tamb��m. Deitados lado a lado,
faziam pensar num velho casal sem curiosidade, sem
desejo, simplesmente lado a lado pela for��a do h��bito
conjugal.
Marie-Ghislaine calculava o n��mero de clientes
que tinha de fazer "subir" antes de poder ir ver a fi-
lhinha, cu pelo menos para estar em condi����es de
mandar a soma necess��ria para ela ser tratada.
Fran��ois pensava em Carole, em Colette, em Cla-
ra, em seus operados e casos de urg��ncia... Em seus
longos anos de estudo...
De repente ouviram um barulho vindo do quarto
vizinho, o grito rouco, abafado e prolongado de um
102
homem, depois, quase em seguida, o som de uma tor-
neira aberta.
Ent��o Fran��ois virou-se e deixou-se cair pesada-
mente sobre Marie.
Foi terrivelmente excitante, e lament��vel para
Fran��ois.
103
��� N��o, senhora, a dra. Carole Damien n��o est��.
��� Mas �� imposs��vel! Ela prometeu que passaria
as duas horas da tarde e j�� s��o sete!
��� Sinto muito, senhora, mas n��o posso dizer-lhe
mais nada. �� prov��vel que a dra. Damien tenha sido
retida e que seu atraso seja totalmente independente
de sua vontade... Assim que vir a dra. Damien, avi-
sarei de seu chamado.
Fran��ois desligou nervosamente o aparelho. H��
mais de um mes esse tipo de cena repetia-se todos os
dias. Ele o sabia pela secret��ria, que atendia em sua
aus��ncia. Mas acontecia, freq��entemente, de ele aten-
der, sabendo quase cora seguran��a o que ia ouvir.
Ficava cada vez mais evidente que Carole estava
relaxando no exerc��cio de suas fun����es, n��o aparecen-
do na hora combinada para a consulta dos clientes,
ela que, antes, era t��o pontual!
V��rios outros detalhes desse tipo vinham confir-
mar ao cirurgi��o sua certeza de que a mulher engana-
va-o agora permanentemente. Ele n��o tinha tido o
primeiro ind��cio no dia em que um envelope e uma
fotografia tinham escapado de sua bolsa? Com que
precipita����o ela n��o se abaixou para peg��-los! E que
s��bito rubor em suas faces, quando se ergueu! Mas
ela sabia que Fran��ois conseguiu reconhecer a letra da
mulher no envelope e ler a dedicat��ria atr��s da foto?
Al��m disso, Fran��ois assistia a uma verdadeira
transfigura����o de Carole. Aquela metamorfose parti-
105
cular aos seres animados por um sentimento interior
exaltante mantido, por ci��mes, secreto.
Fran��ois interrogava-se. Certo, ele sofria quando
media a extens��o, a profundidade do fosso que o se-
parava da mulher. Mas exatamente por que raz��o so-
fria? Que sentimento vibrava nele? Amor? Orgulho?
Simplesmente amor-pr��prio? O fato de ela ter um dia
voltado ao hospital e ficado junto dele durante uma
opera����o tinha feito com que ele tivesse esperan��as de
que os la��os rompidos se renovassem. Faltou pouco,
mas o "renascimento" do amor deles abortou, exata-
mente como um feto mal ligado �� matriz da m��e. No
entanto, tinham estado bem perto de "retomar o ca-
minho" juntos. Tinha de ter acontecido aquele inci-
dente idiota da bolsa, que desajeitosamente ele deixou
cair, aquele envelope dirigido a um homem, aquela fo-
tografia com uma dedica����o a m o r o s a . . . "A carta
para o amante!" Fran��ois n��o desistia. Como n��o
confessava que o sentimento que o torturava era sim-
plesmente o ci��me, esse ci��me de pele, prim��rio, de
que ele, justamente, tanto zombou. N��o queria ainda
reconhecer que sofria em sil��ncio uma tortura igual ��
de Carole quando o surpreendeu beijando, abra��ando
uma outra mulher.
Como sua tend��ncia cient��fica o incitasse a exa-
minar esse problema sob todos os ��ngulos, Fran��ois
chegou a pensar no que sentiria se Carole anunciasse
no dia seguinte sua inten����o de divorciar para refazer
sua vida, segundo a express��o consagrada.
Aquele aspecto do problema era totalmente desa-
grad��vel a ele. Conhecia suficientemente bem a mu-
lher para saber que ela n��o era mulher de aventuras
passageiras e que, se chegasse o dia de ela exigir sua
inteira e definitiva liberdade, seria em nome de um
verdadeiro e grande amor.
106
Ele mesmo, recentemente, tinha sido encostado ��
parede por Clara. Compreendia perfeitamente os sen-
timentos da jovem mulher. Soube imediatamente o que
responder. Mas Carole, na mesma situa����o com esse
Johnny ou algum outro, reagiria como ele? Ela seria
bastante s��lida e profundamente ligada a ele apesar
de tudo, para fazer o que fez Fran��ois?
Essa era a quest��o.
Enquanto isso, os dias, as semanas passavam sem
trazer mudan��as not��veis naquela estranha exist��ncia
conjugal. Por assim dizer, n��o se viam mais. Fran-
��ois, desencorajado de ver Carole no fim do dia, acos-
tumou a sair, primeiro por acaso, sem destino determi-
nado, depois, �� medida em que a noite avan��ava, para
essa ou aquela rua, onde sabia poder encontrar o asi-
lo sexual de que sua vitalidade precisava essencial-
mente.
No entanto, tudo mudava insensivelmente na vida
de Carole. A modifica����o era lenta, subterr��nea, es-
capando sem d��vida �� sua pr��pria investiga����o, mas
nem por isso deixava de ser manifesta.
Notando que Fran��ois voltava cada vez menos
freq��entemente para casa, Carole tomou o h��bito de
passar quase todas as noites com Leonora. Abando-
nava-se �� amiga, mas parcialmente. Nos bra��os dela,
com a boca colada �� de Leonora, s�� restava, verda-
deiramente quente e viva, a parte baixa de seu corpo
nu, enquanto seu esp��rito, sua alma, seus pensamen-
tos permaneciam singularmente revestidos de seus pen-
samentos secretos. Seus sentidos come��avam a flame-
jar, sua sensualidade explodia, brotava, mas como que
fora dela mesma. E de repente, depois de fruir seu
107
prazer, ela ficava como aquelas flores chamadas "sen-
sitivas", cujas p��talas dobram-se ao menor toque.
Isso acabou por exasperar Leonora que, uma noi-
te, com Carole ainda nos bra��os, disse-lhe sem pre��m-
bulos:
��� Essa situa����o entre n��s n��o pode continuar!
Dolente, Carole perguntou:
��� Que situa����o, querida?
��� A nessa, c��us!
Estranha, se bem que confortavelmente enrolada
a Leonora, Carolo ainda perguntou:
��� Por qu��? Voc�� n��o sentiu prazer? N��o a aca-
riciei como era preciso? No entanto, achei q u e . . .
Leonora empurrou Carole e, erguida na cama des-
feita, perguntou:
��� Como voc�� est�� com seu marido? Ainda dor-
me com ele? Por que vem aqui? O que significo para
voc��? Aonde voc�� quer chegar? O que significa tudo
isso? Voc�� me ama?
A resposta de Carole foi espont��nea;
��� N��o. N��o, Leonora, n��o a amo, pelo menos
n��o como voc�� parece querer que eu a ame.
O di��logo entre as duas mulheres foi bem seme-
lhante ao de Clara e Fran��ois. Leonora tinha acaba-
do por gostar de Carole. N��o tolerava mais a divis��o.
Tinha ficado exclusiva, queria Carole s�� para si, o
tempo todo, a vida toda.
108
��� Sinto muito ��� respondeu Carolo, como Fran-
��ois tinha respondido ao ultim��tum impl��cito de Clara.
As duas mulheres deixaram se como tinham-se dei-
xado Fran��ois e Clara.
Fran��ois tinha-se refugiado nos bra��os de uma
prostituta. Carole tinha descoberto uma outra raz��o
de viver, de certa forma fabricou ama nova significa-
����o para sua exist��ncia.
Johnny. O que ela chamava "sua remiss��o". Ele
valia mais o que as correntes contr��rias da vida ti-
nham feito dele. Ela confiou imediatamente nele, e
n��o se arrependeu. Fiel �� sua promessa, Carole, alias
favorecida pelas circunst��ncias, arranjou-lhe um em-
prego com um casal de idade (A mulher era sua clien-
te) que precisava de um jovem para motorista. Al��m
disso, ele fazia diversos outros trabalhos na grande
mans��o de Neuilly, cercada por um grande parque. E
�� noite, depois do trabalho, retirado no quarto que lhe
reservaram e que dava para as ��rvores do jardim,
Johnny mergulhava nos livros. "Quero que se orgulhe
de mim", ele dizia constantemente para Carole. "Eu
j�� me orgulho", ela respondia sem mentir.
Mas ela tinha consci��ncia de que aquele resulta-
do obtido t��o rapidamente s�� se mantinha gra��as ao
apoio constante que ela dava ao jovem. Ele tinha
uma necessidade vital de v��-la todos os dias, pelo me-
nos por uma hora.
��� Sou como uma crian��a aprendendo a andar!
Posso dar alguns passos sozinho mas, se voc�� me dei-
xar caio no ch��o! - ele dizia rindo, mas olhando-a
inquieto, como se temesse que ela o abandonasse.
Ela renovava sua energia ainda muito fr��gil. Via-o
ainda muito desequilibrado no novo caminho para fi-
109
car sem ela. Ele n��o continuava �� merc�� de um en-
fraquecimento moral? E ent��o tudo teria de recome-
��ar, admitindo-se que ele levantasse da eventual "re-
ca��da", que n��o ficasse irrecuper��vel.
Mas um dia, Johnny acabou por perceber que
Carole tinha de fazer n��o poucas proezas para estar
livre e vir apoi��-lo diariamente. Ele sentiu uma gran-
de confus��o, muitos escr��pulos e exprimiu-lhe com
medo:
��� Tenho tanto medo de cans��-la, querida Caro-
le. N��o ignoro como o tempo de um m��dico �� so-
brecarregado. Por minha causa, voc�� n��o deve estar
tendo nenhum momento de descanso. Sei bem que de-
via livr��-las das obriga����es que assumiu comigo, mas
sinto-me ainda fraco demais, tenho ainda muito medo
diante da perspectiva de n��o v��-la mais.
Ela tranq��ilizou-o de modo convincente:
��� N��o vou abandon��-lo enquanto voc�� n��o for
capaz de dirigir-se sozinho.
E. para acalmar totalmente sua inquietude, ela
acrescentou o que pensava e sentia realmente:
��� Voc�� n��o est�� se dando conta, meu pequeno
Johnny, mas voc�� tamb��m est�� me ajudando muito.
Aquele dia ela n��o foi adiante nas confid��ncias.
Foi s�� uma ou duas semanas depois que, pelos la��os
de amizade estreitados entre eles, ela contou-lhe sua
desilus��o, o que a separava do marido.
Tendo dado o primeiro passo, n��o parou e depois
acostumou-se a fazer confid��ncias a Johnny. �� noite,
em vez de ir �� casa de Leonora (com quem tinha rom-
pido definitivamente), Carole ia para Neuilly, subia
110
direto para o quarto do jovem e s�� ia embora bem
tarde.
De in��cio, eles riam das ast��cias que ela tinha de
usar para evitar os moradores da mans��o, passando
pela entrada de servi��o para n��o ter de ver os donos
da casa e explicar-lhes o que ela teria muita dificul-
dade para justificar!
Depois n��o riam mais. Aquela esp��cie de cum-
plicidade tinha insens��vel e sorrateiramente modificado
o clima entre eles. Sem que percebessem, seus encon-
tros tinham tomado um car��ter equ��voco. Quando to-
maram consci��ncia, ficaram um pouco com medo. S��
um pouco, pois, em definitivo, a impress��o que tive-
ram foi infinitamente agrad��vel para eles.
Na verdade, viam-se agora de igual para igual c
sobretudo na inteira realidade que encarnavam: Caro-
le, uma mulher jovem, bela e desej��vel. Johnny, um
rapaz transbordando de vitalidade, belo tamb��m e rico
de uma energia sexual h�� muito tempo inutilizada.
E o que estava sendo preparado sem que se des-
sem conta, o que tinha de acontecer aconteceu. Uma
noite, Carole soube que Johnny desejava-a e, naquele
mesmo instante, percebeu que n��o era insens��vel
��quele desejo, que o queria violentamente.
Mas nem um nem outro, aquela noite, o disse-
ram, cuidando, ao contr��rio, de escond��-lo reciproca-
mente. Houve, no entanto, uma importante modifi-
ca����o em seu relacionamento durante aquela noite ex-
cepcional, que foi a da comum descoberta: Johnny
come��ou a tratar Carole mais intimamente e, inver-
tendo a situa����o, interrogou-a muito sobre sua vida
privada, seus sentimentos profundos e como ela enca-
rava o futuro etc, etc.
111
Johnny com voz contida, mas ardente.
confusa e feliz.
a vejo realmente... Entendo melhor de repente por-
que Patr��cia confiou em voc��... Voc�� �� bonita e
atraente, generosa e compreensiva, como tamb��m
bela...
Johnny.
Um pouco depois, ele criou coragem e pergun-
tou:
��� Voc�� n��o tem amante, Carole?
��� N��o.
��� Acho dif��cil acreditar mas tenho certeza de
que est�� dizendo a verdade. Como voc�� faz?
��� Como fa��o o qu��?
��� Entendeu o que quero dizer.. Voc�� n��o tem
nada de uma mulher insens��vel, , Carole... Deve at��
ser extremamente sensual... V��-se pela dobra de sua
boca, pelo arrepio de seu corpo, ��s vezes, pelo brilho
dos seus olhos... Voc�� deve ter um corpo espl��ndido.
N��o chegou a confessar-lhe que sonhava com ela
�� noite, que procurava imaginar como ela era no amor,
no prazer.
112
��� Voc�� sabe, Johnny, tenho uma vida muito
ocupada. N��o tenho tempo de me interrogar sobre o
que sente ou n��o o meu corpo, se est�� ou n��o frus-
trado.
Ela mentia para recha��ar o desejo devorador que
tinha daquele rapag��o musculoso.
Ele ficou um longo momento sem dizer mais nada.
Tinha colocado a m��o no joelho de Carole. Ela n��o
tirou a m��o dele, mas desviou os olhos. Ele tamb��m
desviou os dele.
��� Seria melhor eu ir embora ��� murmurou Ca
role em voz baixa
Eles murmuravam uma esp��cie de balbuciar fre-
mente.
Carole sentia subir e crescer nela a tenta����o de
deixar a cabe��a rolar no ombro de Johnny, de aban-
donar-lhe os l��bios, o corpo todo e at�� suas profundezas maiores, mais intimas Sob a m��o de Johnny, o joelho de Carole tornava-se uma lareira incandescente, de cujo ardor ele gos-
tava. Ele sentia sua for��a de rapaz firmar-se, mexer
pesadamente, durante, e lutava com desespero contra a
tenta����o deliciosamente angustiante de atirar-se sobre
aquela mulher t��o bonita, de arrancar suas roupas, de
esmagar seu corpo e perder-se nela at�� que ela pedis-
se merc��, at�� que gritasse de prazer.
��� E agora preciso mesmo ir! ��� leia decidiu, le-
vantando-se bruscamente.
113
Ele ficou logo de p��, gritou:
��� N��o!
E tomou-a nos bra��os, abra��ando-a forte, beijando
seu pesco��o, sua testa, suas p��lpebras, deslizando para
os l��bios, para ir beijar a garganta, subindo e parando
para tomar sua boca.
��� N��o precisa... ��� ela gemeu, colando a ele o
ventre, as coxas, o corpo todo percorrido por arrepios
e tremores.
Ele tinha fechado os olhos, exalava sons inarti-
culados, sem poder arrancar-se do beijo acre e chame-
jante, s�� tendo consci��ncia do marulho formado pelo
abra��o deles e das agita����es fant��sticas em sua virili-
dade enlouquecida de desejo.
Sob o pre��o de um esfor��o do qual ela n��o se
imaginava capaz, Carole escapou ao chamejante e te-
m��vel abra��o:
��� N��o devemos! ��� ela repetiu, mas dessa vez
com for��a e veem��ncia.
��� Por qu��, mas por qu��? ��� ele perguntou, de
repente desarmado. ��� Voc�� jurou fidelidade a al-
gu��m? ��� ele acrescentou ingenuamente.
��� A ningu��m, mas sinto que n��o devemos ceder
�� tenta����o, Johnny. N��o sei como explicar... N��o ��
poss��vel entre n��s... Seria estragar tudo entre n��s,
entende?
��� N��o. N��o, Carole, n��o entendo... Voc��
tamb��m me deseja, n��o? Ou ent��o �� que...
��� Cale-se, voc�� vai dizer tolices! ��� ela orde-
nou, de repente maternal. ��� Posso garantir uma coi-
sa, meu pequeno Johnny, h�� um tempo incalcul��vel
114
n��o desejei fazer o amor com um rapaz como desejei
em seus bra��os Disso pode ficar persuadido, acredite
em mim, pois n��o estou mentindo.
��� Ent��o por que recusa aquilo por que queima
de desejo? ��� ele perguntou de novo, mais terno para
tentar convenc��-la.
Um brilho feliz; tingido de mal��cia, atravessou
seus olhos:
��� �� por que tem uns anos a mais que eu?
Ela n��o pode evitar o riso, apesar do pesar que
infligia a si pr��pria renunciando ao prazer:
��� Claro que n��o, Johnny! N��o �� esse o moti-
v o . . .
Depois ela fez um gesto desencorajado e suspirou:
��� �� s�� que tenho a convic����o ��ntima de que n��o
devemos fazer isso, eis tudo. N��o posso fazer nada. E
estou sofrendo tanto quanto voc��, sabe? ��� ela termi-
nou, passeando melancolicamente a m��o pelo rosto
consternado de Johnny. ��� Voc�� �� t��o jovem, t��o bo-
nito!
Ele olhou-a enquanto ela ia para a porta do quar-
to, dirigindo-lhe um adeus silencioso, n��o ousando per-
guntar se ela voltaria, procurando loucamente que pa-
lavras usar.
��� Carole! Espere mais um instante! Tenho algo
a lhe dizer!
Ela virou-se, sorriu fracamente:
��� Estou ouvindo, Johnny ��� ela disse doce-
mente.
��� Bem.. N��o esqueci suas confid��ncias... En-
t��o espero que chegue o dia em que eu possa ajud��-
115
-la a reconquistar sua felicidade na mesma medida em
que voc�� me apoiou, colocou-me de volta no bom ca-
minho.
��� Obrigada, meu pequeno Johnny. ��� ela res-
pondeu simplesmente, com a voz vibrando de emo����o.
Sim, ela estava emocionada, mas tamb��m incr��du-
la quanto ��quela eventualidade. C o m o Johnny poderia
ajud��-la a reconquistar a felicidade com Fran��ois?
Johnny e o cirurgi��o algum dia se encontrariam? E
se esse encontro totalmente improv��vel se desse, que
contato poderia ser estabelecido com efic��cia entre o
cirurgi��o e o ex-vagabundo?
116
Naquele dia Carole esteve particularmente ocupa-
da com as visitas m��dicas e uma sucess��o de chama-
dos de urg��ncia.
�� noite, na hora em que normalmente tomava a
dire����o de Neuilly para ver Johnny, estava t��o esgo-
tada, t��o febril, no fim das for��as f��sicas e nervosas,
que teve de renunciar ao passeio.
Foi direta para seu quarto. Tinha a inten����o de
deitar um momento e, se suas for��as lhe permitissem,
ir assim mesmo a Neuilly, mesmo bem tarde, pois
Johnny esperava-a confiante.
De repente a porta abriu-se e Fran��ois irrompeu
no quarto:
��� Desculpe se a incomodo ��� ele disse no tom
glacial que tinha adotado definitivamente para com
ela ��� mas vi quando chegou e tudo me leva a crer
que voc�� p e r d e u a mem��ria.
A surpresa deixou-a muda e precisou de alguns
segundos antes de entender bem que era seu marido
que lhe falava. Mas de que ele falava, exatamente?
A que estava aludindo? Ela olhava-o com uma esp��-
cie de desvario e ele percebeu:
��� Eu a avisei, pela empregada ��� ele censurou
acremente. ��� Convidei dois cirurgi��es amigos meus,
um dos quais me pode ser de grande utilidade na pro-
fiss��o. Exijo que minha mulher presida a esse jantar.
Ele acrescentou com ironia:
1 1 7
��� Pois voc�� ainda �� minha mulher aos olhos do
mundo, n��o esque��a, minha querida Carole.
Cansada demais para reagir como o faria normal-
mente, Carole balan��ou os ombros vencida e suspirou:
��� N��o esque��o nem isso nem muitas outras coi-
sas, pode estar certo, meu querido Fran��ois!
��� Mas esqueceu nossa recep����o esta noite!
Ela sorriu com dolorosa ironia:
��� �� pena que o esquecimento seja imposs��vel!
E, se for poss��vel, o ��, infelizmente, para as coisas que
deveriam ser lembradas, quando nos lembramos t��o
bem do que dever��amos esquecer!
��� Conclus��o? O que voc�� pretende fazer? N��o
vai continuar deitada, recolhida em sua torre de mar-
fim, quando sua presen��a �� totalmente indispens��vel
junto de nossos convidados... ?
��� Est�� bem, eu vou! ��� ela suspirou, resignada.
��� D�� um tempo para eu me preparar, pelo menos, e
deixe-me ceder a um momento de c a n s a �� o . . .
��� Parece que deixo muita coisa h�� um certo
tempo, n��o?
E ele saiu do quarto t��o bruscamente quanto ti-
nha entrado. Carole preparou-se para receber os ami-
gos do marido. Um singular mal-estar oprimiu-a, por
causa do cansa��o f��sico. N��o poderia ir a Neuilly, ape-
sar de toda a boa vontade. Seria a primeira vez em
que faltaria com a promessa, desde que assumiu res-
ponsabilidades para com Johnny. Seria a primeira vez
que Johnny ia esper��-la em v��o. Aquele pensamento
era-lhe intoler��vel. N��o a vendo, o que ele ia pensar?
N��o ia duvidar dela; e como interpretaria aquela au-
s��ncia?
118
Conversando e oferecendo uma apar��ncia serena e
sorridente, Carole estava enregelada. Aquela noite nun-
ca terminaria? Seu mal-estar interior aumentava de
minuto a minuto, tornava-se uma insuport��vel ang��s-
tia, sombrio pressentimento, como se, dotada de uma
segunda vis��o, ela pudesse assistir ao que se passava
ao mesmo tempo no quarto que Johnny, media nervo-
samente com o andar, espreitando o ru��do dos passos
dela; viu a porta de repente abrir-se e empalideceu
mortalmente...
* * *
��� Voc��!
��� Sim, sou eu!
Era Jef.
��� Como me encontrou?
��� Isso, meu velho, n��o se pergunta! Posso
sentar?
Ele olhou em volta, assobiou com admira����o:
��� Nada mal, sua nova resid��ncia! Nada mal
mesmo! E pode-se saber o que voc�� faz agora? N��o
quer responder? Sei, n��o quer mais saber de mim.
Acha que o abandonei?
A voz de Jef estava cada vez mais zombeteira,
carregada de amea��as ainda n��o formuladas:
��� �� que demorei um pouco para encontrar seu
rastro, entende? Mas, digo sem querer censurar, voc��
podia ter dado not��cias. Ent��o, tudo bem com voc��?
Voc�� parece estar muito na sua. O que voc�� faz? De-
ve ter descoberto um trabalho que vale a pena e n��o
pretende esquecer o velho Jef, n��o? ��� ele continuou,
sem tirar de Johnny um olhar carregado de suspeita.
119
��� Chega! ��� disse Johnny surdamente, entreden-
tes. ��� Por que perdeu seu tempo me procurando, e
o que quer exatamente? Devo avis��-lo logo que n��o
tem de. contar mais comigo, para nada.
Johnny afetava uma seguran��a que estava longe
de possuir. Ele n��o tinha medo do que estava acon-
tecendo, e isso desde o dia em que fugiu da rua Ver-
cing��torix, sem deixar explica����o nenhuma para Jef?
Ele n��o esperou sempre, de certa forma, que o antigo
c��mplice aparecesse? At�� surpreendeu-se com o fato
de ele n��o ter vindo antes. Aquela volta tardia era
mais alarmante. Johnny n��o pressagiava nada de bom,
mas sentia de modo tang��vel uma obscura amea��a pou-
sar sobro ele.
��� Perfeito, perfeito! ��� Jef aquiesceu hipocri-
tamente, com um sorriso mau. ��� Em definitivo, voc��
nem me decepciona nem me surpreende. Apostaria
que voc�� ia vir com esse tipo de conversa: o mau ra-
paz que se arrepende dos pecados e volta para o bom
caminho! O bandido que descobre em si uma alma
correta! O velho desviado que renega seu grupo! ��
o sujeito que inspirou muitos romancistas e fez n��o
poucos filmes. Bravo, Johnny! Presumo que seja gra-
��as �� bela e elegante senhora que tive a honra de ver
na rua Vercinget��rix que voc�� deve o favor de ter-se
tornado um "bom burgu��s". Felicita����es! Mas voc��
�� um fingidor vil. Escondeu de mim que estava no
grande mundo!
Johnny empalideceu. Passou por seus olhos um
brilho de ��dio:
��� Pare, Jef! Voc�� n��o tem mais nenhum direito
sobre mim; n��o permitirei que tenha. Sim, �� verdade,
mudei de vida e finalmente estou satisfeito comigo,
enfim, quase. Estou bem em minha pele, respiro em
meu ritmo, encontrei meu verdadeiro caminho. Estou
120
ligando para o dinheiro e nem o quero, se para
tiver de arriscar minha honra e minha felicidade.
De repente ele implorou:
��� D e i x e - m e , Jef. Esque��a-me. Seja livre para
continuar vivendo como quer, mas tamb��m deixe-me
��� Chega! ��� cortou Jef secamente. ��� Pare com
gra��olas. V o c �� vai me fazer o favor de voltar
para casa, e logo. Precisamos de voc��, e voc�� sabe
porqu��. O "golpe" �� para depois de amanh��. H�� mui-
tempo estamos preparando. Est�� no ponto, agora,
neg��cio de ouro. E n��o vai ficar comprometido
o Johnny resolveu ficar "bonzinho". Certo?
Jchnny, consciente da gravidade da situa����o, deu
grande meia-volta. "Antes de tudo, inspirar con-
fian��a em Jef. Ganhar tempo. Voltar atr��s."
��� Est�� bem! ��� ele disse, recuperando o tom de
voz c a atitude de antes. ��� V o c �� tem raz��o. Estou
que estava sendo um imbecil. Era tempo
r��e voc�� me trazer de volta o bom-senso.
Jef desconfiou um pouco, depois declarou:
��� Acredito em voc��. V o u provar. Deixo-o li-
vre at�� depois de amanh�� de manh��. Ali��s, se tentar
qualquer coisa para escapar ou para avisar a pol��cia,
o que lhe custaria?
��� Fale que eu fico sabendo! ��� Johnny aprovou,
com uma desenvoltura perfeitamente simulada.
Se bem que estivessem sozinhos no quarto, Jef
abaixou instintivamente a voz e come��ou a explicar:
��� A q u i est�� o que faremos...
121
Com os maxilares apertados e os punhos cerrados
de raiva impotente, Johnny ouviu at�� o fim, decidido
a n��o levar nada em considera����o, mas, quando, no
fim da exposi����o, Jef deu o endere��o onde o bando
devia operar dali a tr��s dias, ele n��o p��de reprimir
um sobressalto de estupor: a casa particular cuja entra-
da Johnny tinha de facilitar para os companheiros n��o
n��o era outra sen��o aquela onde Carole Damien con-
seguiu empreg��-lo como motorista!
Ent��o seus temores estavam bem fundados! Jef
tinha estado o tempo todo na sua "pista"! Johnny
sentiu-se apanhado na armadilha. Teve �� rea����o que
julgou a melhor e mais prudente: fingiu render-se aos
argumentos amea��adores de Jef, se n��o voltasse para
o bando. Mas, assim que Jef saiu, correu para o tele-
fone e, sem refletir, chamou Carole D a m i e n . . .
* * *
Carole estava conversando com os convidados.
N��o podia evit��-lo, pois tinham-lhe feito uma pergunta,
diretamente, sobre a medicina neo-natal:
��� J�� que me d��o a honra de pedir meu ponto de
vista, vou dizer o que n��o i g n o r a m . . . Os primeiros
instantes que se seguem a um parto s��o decisivos para
os rec��m-nascidos. Particularmente para os prematuros
ou para os beb��s que um mau parto deixou inertes e
amea��ados. Para eles, tudo se decide em poucos mi-
nutos.
��� Acha que se deve, a qualquer pre��o, reani-
mar essas crian��as?
��� Acho que sim, deixando de levar em consi-
dera����o que as conseq����ncias podem ser graves. As
rea����es seguintes s��o importantes, principalmente ao
n��vel do c��rebro, mal irrigado, de uma crian��a manti-
da viva artificialmente.
122
��� Como, na sua opini��o, esse grave problema
pode ser evitado?
��� Essencialmente por uma gravidez cuidada,
consultas freq��entes, o que limita os riscos de acidente.
Naquele instante preciso, a empregada entrou, in-
clinou-se ao ouvido de Carole e murmurou alguma
coisa que a fez levantar-se logo:
��� Desculpem, senhores, mas est��o me chamando
ao telefone. Uma urg��ncia, provavelmente.
* * *
��� Al��, Carole? Aqui �� Johnny. .. Responda- s��
com um sim ou um n �� o . . . Est�� sozinha? N �� o . . .
Ent��o ou��a bem... Preciso v��-la sem falta amanh��.
Tenho uma coisa muito grave a dizer-lhe... Fa��a o
imposs��vel, �� de uma urg��ncia t��o capital quanto uma
vida em perigo... Tem de acreditar em mim... Es-
perei-a hoje em v��o, mas n��o �� por simples capricho
que a estou chamando, Carole, juro... Estou em pe-
rigo. .. Estamos todos em perigo!
Carole, com os dedos pregados ao fio telef��nico,
ficou l��vida ao ouvir Johnny. N��o duvidava dele. Sa-
bia que s�� um motivo muito grave o faria telefonar
para a casa dela e numa hora em que tudo indicava
que n��o estava sozinha.
Se pelo menos ela pudesse ter respondido, pergun-
tado um pouco mais! Mas, de onde estava, podia ver
seu marido que, conversando com os convidados, n��o
a perdia de vista um s�� segundo.
Quando o viu levantar e vir em sua dire����o, per-
turbou-se e balbuciou-se precipitadamente:
��� Certo! Estarei no lugar de costume amanh��
pelas dez horas.
123
Ela desligou no momento em que Fran��ois chega-
va e perguntava, com o olhar e a voz carregados de
suspeita:
��� Quem era?
��� Um engano ��� ela balbuciou, sem conseguir
superar a perturba����o.
��� Um engano? Ent��o voc�� diz "certo" a um en-
gano? ��� observou perfeitamente Fran��ois.
E ele acrescentou num tom cortante:
��� Acho mesmo, minha querida Carole, que as
coisas v��o chegar ao fim entre n��s.
E ele foi para junto dos convidados, abandonando
Carole �� sua ang��stia. Ela sentia-se cercada de todos
os lados. Certo, n��o podia ignorar que sua uni��o com
Fran��ois s�� se mantinha por um fio t��o fr��gil que um
nada podia quebrar para sempre.
Naquele momento, a ang��stia que a dominava ti-
nha uma rela����o direta com Johnny, a quem- as cir-
cunst��ncias totalmente excepcionais tinham levado a
fazer tudo a sua "reden����o", e cuja voz. um momento
antes, estava carregada de ansiedade.
O que lhe acontecera? O que ia contar-lhe no
dia seguinte? Sem t��-lo visto, ela adivinhava que ele
-era presa de uma perturba����o extrema, de um p��nico
insuper��vel. Seu pressentimento, desde o in��cio da noi-
te, n��o a enganara: Johnny corria um perigo terr��vel.
Restava saber a natureza desse perigo.
Ela ouviu os convidados sair, reconheceu a voz
de Fran��ois dizendo-lhes boa noite, percebeu a batida
da porta de seus carros.
Depois foi o sil��ncio. Ela foi deitar, com o cora-
����o batendo. Imaginava o que o marido ia fazer, sem
saber se queria que ele viesse v��-la ou n��o.
124
Desejava-o, mas como se pode desejar algu��m au-
sente, um morto. .. Todo o seu corpo queimava, mas
aquele fogo n��o ia apagar-se no instante em que ela
visse o marido entrar e vir at�� ela n��o para uma ar-
dente, amorosa e apaixonada possess��o, mas para uma
esp��cie de viola����o?
O sil��ncio persistia. N��o. Fran��ois n��o viria. En-
t��o ela sentiu como que uma ternura por ele. Depois
pensou em Leonora. E, tamb��m para ela, sentiu-se
fundir de do��ura. Depois pensou de novo em John-
n y . . . E ent��o a ansiedade assaltou-a novamente e
ela teve de levantar para tomar um son��fero.
Sem saber bem em que ponto estava de sua vida
e da vida dos seres que a rodeavam, Carole caiu num
sono pesado.
125
��� Mas enfim, Johnny, o que quer dizer tudo is-
so? Por que voc�� n��o diz nada? Chamou-me ontem
pelo telefone, suplicou que eu fizesse o imposs��vel para
vir esta manh��, deixa-me preocupada dizendo que tem
algo muito grave para me dizer, e agora que estou
aqui n��o diz nada? N��o pensava merecer tal trata-
mento da sua parte ��� ela acrescentou intencionalmen-
te, pois conhecia por antecipa����o a rea����o do jovem.
��� Carole! ��� ele reagiu com efeito, com uma
veem��ncia dolorosa. ��� Nunca mais diga tal coisa.
Devo-lhe tanto! Posso dizer, "tudo"! E �� por isso
que sou o homem mais infeliz da terra neste momento.
Ele calou-se. Carole n��o quis insistir, de medo
de interromper um impulso poss��vel, uma poss��vel con-
fiss��o.
Johnny, durante a noite, tinha refletido muito na
situa����o em que estava. Tinha-se arrependido de ter
telefonado para Carole, de ter feito aquela esp��cie de
S . O . S . , que ela n��o devia ter entendido e que devia
t��-la preocupado.
De manh��, ele voltou atr��s em sua primeira de-
cis��o: contar para Carole sobre a volta de Jef. N��o
se sentiu com o direito de sobrecarreg��-la mais, de ar-
rast��-la para uma aventura t��o cheia de surpresas e
perigos.
"Tenho de sair dessa por mim mesmo", ele de-
cidiu .
Avisar a pol��cia foi um pensamento que s�� passou
por sua mente um instante. Seria precipitar uma gran-
de c o n f u s �� o inutilmente e, al��m disso, atrair a vin-
127
128
��� Johnny! Em que est�� pensando? Insiste em
n��o dizer nada?
Os solu��os que amarravam sua garganta mudavam-
-lhe a voz. L��grimas nervosas aflu��ram aos olhos de
Carole.
��� Estou desencorajada, Johnny. Tenho a impres-
s��o de que n��o gosta mais de mim, por t��-lo afastado
dele.
Uma revolta repentina tomou posse dela, esgotan-
do suas l��grimas e deixando firme sua voz:
��� Sabe a que pre��o estou aqui neste momento,
a que pre��o fiquei junto de voc�� todas as noites h��
semanas para ajud��-lo a subir do abismo por onde des-
lizou? Meu marido acabou notando minhas aus��ncias
ins��litas, minhas mudan��as de comportamento, meus
atrasos no trabalho, minhas neglig��ncias para com os
clientes... Tanto que agora convenceu-se de que lhe
sou infiel. E como poderia provar que est�� enganado?
Como poderia desculpar-me do dia em que me inter-
rogou, sem que eu pudesse evitar a "inquisi����o"? Como
poderia faz��-lo, sem falar de voc��, o que n��o desejo
a nenhum pre��o? Ali��s, ele nem me daria essa hon-
ra! ��� ela continuou, com indiz��vel amargura. ��� Ele
desligou-se totalmente de mim, tenho certeza. Ontem
surpreendeu-me ao telefone com voc��. Sabe o que dis-
se? "Acho mesmo, Carole, que as coisas entre n��s
est��o caminhando para o fim." E �� para correr, a
qualquer pre��o, para algu��m que me trai, que ponho
meu lar em perigo? Ah, isso, Johnny, isso n��o lhe
129
perdoarei nunca! ��� Carole terminou, deixando as l��-
grimas brotar.
Perturbado, Johnny pegou as m��os dela nas suas,
mexeu nelas febrilmente. Sua voz vibrava com o dese-
jo de persuadi-la:
��� Por favor, continue a confiar em mim. Juro
que sou digno da sua confian��a. Sim, eu lhe gritei
mesmo por socorro, mas, depois, deixei a raz��o inter-
vir, uma raz��o que tinha perdido um pouco quando
lhe telefonei. N��o posso dizer mais nada agora mas,
em nome da amizade excepcional que nos liga, eu lhe
imploro que acredite em mim. Vou viver em breve
horas dif��ceis... Ainda n��o sei se vou sair vitorioso
do combate ao qual vou me entregar mas, aconte��a
o que acontecer, n��o duvide de mim, n u n c a . . . Se-
ria injusto demais!
Carole tinha-se acalmado. N��o chorava mais. Er-
gueu para Johnny um olhar onde a confian��a renascia,
perguntou, apesar de tudo:
��� Voc�� n��o pode mesmo dizer nada que me es-
clare��a um pouco mais? N��o posso ajud��-lo a sobre-
pujar o misterioso obst��culo a que refere? N��o posso
intervir, ainda que pouco, para evitar o perigo de que
voc�� parece amea��ado?
Docemente, mas com autoridade, ele respondeu:
��� N��o, Carole, querida Carole. Voc�� n��o pode
fazer nada por mim a esse respeito. Mas n��o se preo-
cupe exageradamente. Uma intui����o est�� me dizendo
que estou chegando ao fim dos meus t o r m e n t o s . . .
Que vou sair do meu atoleiro!
Um pouco tranq��ilizada, Carole replicou numa
rea����o de energia e de otimismo:
130
��� Quero mesmo acreditar em voc��, Johnay.
Ela caiu nos bra��os dele. Suas bocas se uniram
e ficaram muito tempo ligadas uma �� outra. Mas,
como da primeira vez em que o desejo os surpreendeu,
eles soltaram-se do imposs��vel abra��o e separaram-se
com um simples aperto de m��o acompanhado de uma
troca de olhares que se parecia, estranhamente, com
um adeus...
* * *
Ao deixar Johnny, Carole teve a id��ia de procurar
os amigos para perguntar-lhes se estavam ainda satis-
feitos com seu protegido. O pensamento de que ela
corria o risco de chocar-se com a surpresa e incom-
preens��o deles imobilizou-a e a fez renunciar ao pro-
jeto. N��o queria humilhar Johnny e deixar a suspeita
de que desconfiava dele.
Apesar de todas as suas ocupa����es, o dia pareceu-
-lhe intermin��vel. O comportamento, a conversa de
Johnny atormentavam-na. Gostaria de falar sobre aqui-
lo com algu��m. Com o marido, principalmente. Mas
poderia contar aquela hist��ria extravagante sem atrair
sua zombaria, sua suspeita, seus ci��mes? Antigamente,
poderia ter-lhe falado com toda a franqueza daquela
aventura t��o ins��lita. Mas antigamente estava t��o dis-
tante! E a dist��ncia s�� tinha aumentado entre eles.
Carole chegava a entrever uma ruptura total e defi-
nitiva. Diante daquela eventualidade, ela percebia que
ainda estava ligada ao marido, apesar do estado de
fria neutralidade no qual viviam e coabitavam h��
meses.
O que viria a ser dela, separada para sempre de
Fran��ois? Com toda a honestidade, confessava que
nem sua profiss��o de m��dica teria mais interesse para
131
ela. Carole, no mais fundo de seu cora����o e esp��rito,
s�� vivia verdadeiramente em fun����o de Fran��ois. Aque-
la era a sua certeza.
Mas por que ent��o ela n��o tinha a coragem ���
ou a fraqueza ��� de declarar-lhe isso abertamente?
De que precisava para degelar o bloco inerte no qual
seu cora����o parecia transformar-se assim que via o ma-
rido?
Johnny foi para ela um calor humano que lhe
deu, de novo, sentido �� vida, mas aquela amizade t��o
singular n��o podia ter ra��zes profundas. Nada, em
suma, a justificava realmente, a n��o ser um outro
sentimento, um outro atrativo, e aquele sentimento, e
aquele atrativo mal eram justific��veis: o desejo.
Carole precisou de uma grande coragem, uma enor-
me for��a de vontade para n��o cair nos bra��os de John-
ny e ficar ali uma certa noite, particularmente exci-
tante. Que teria acontecido se ela tivesse cedido ��
ardente tenta����o?
Mais ou menos conscientemente, Carole entrevia o
dia de uma explica����o decisiva entre o marido e ela.
Neste dia, ela poderia, ou n��o, defender-se lealmente.
Poderia, se n��o tivesse tra��do Fran��ois. N��o poderia,
se tivesse tido um amante. N��o tinha tido. (Sua aven-
tura feminina com Leonora podia ser considerada uma
trai����o em rela����o ao homem? Claro que n��o! Essa
era a convic����o leal de Carole.) Ent��o tudo conti-
nuava poss��vel entre Fran��ois e e l a . . .
Na incerteza absoluta do futuro, Carole tomou o
partido de "deixar correr". N��o estava tudo escrito no
destino de cada indiv��duo, desde o nascimento? E
quem, na face da terra, podia ir contra o destino?
* * *
132
Foi Jef que entrou primeiro pela porta que John-
ny abriu assim que viu o carro parar a alguns metros
da mans��o, cujos donos tinham sa��do uma hora antes.
��� Tudo bem? murmurou Jef. ��� Tudo pronto?
V o c �� . . .
Calou-se bruscamente. Pela express��o de Johnny,
entendeu que algo n��o ia bem. Pressentiu que o an-
tigo c��mplice n��o s�� n��o o ajudaria mas que, pelo
contr��rio, iria de encontro a suas inten����es.
��� N��o seja imbecil! ��� ele resmungou.
��� E voc�� v�� embora do modo como veio, ou
ent��o...
Com a m��o no bolso do palet��, Johnny fingiu
apontar um rev��lver para ele.
��� Voc�� est�� maluco? ��� rosnou Jef.
��� Nem um pouquinho. N��o sou mais dos seus,
Jef Voc�� .tem de entender isso. N��o vou deix��-lo en-
trar nessa casa. Houve um tempo em que acreditei
em suas teorias revolucion��rias, mas esse tempo aca-
bou, acabou de vez. Eu entendi. Voc��s n��o passam
de uns anarquistas de nada. De impostores. Culpam
a sociedade por seus fracassos, quando n��o passam de
parasitas, de usurpadores...
Jef entendeu de repente que Johnny n��o estava
brincando. Foi tomado por uma raiva sanguin��ria.
Rugiu:
��� Pare de falar besteiras e deixe-nos passarl
��� Voc�� h��o vai passar! Nem voc�� nem os ou-
tros!
��� Cuidado, Johnny! Deixe-nos passar ou atiro!
133
��� Atiro antes que voc��, Jef!
E Johnny esbo��ou o movimento de atirar. Sem
arma. Mas Jef atirou e com uma arma real.
Johnny levou a m��o convulsivamente ao lugar fe-
rido, no peito, no cora����o. Uma imensa, uma pat��tica
surpresa dilatou seus olhos, enquanto ca��a lenta, pesa-
damente, sem um grito, um suspiro, um nada.
Saindo do del��rio, Jef olhou o corpo inerte com
temor. Os tr��s outros que o acompanhavam pertur-
baram-se:
��� Voc�� ficou maluco?
��� N��o devia ter atirado!
��� N��o precisava fazer isso, Jef!
Jef recomp��s-se:
��� N��o �� hora de lamentar. Temos de cuidar des-
se imbecil do Johnny. Ponham-no no carro e vamos
indo. Enquanto v��o para a rua Vercing��torix, chamo
um m��dico. Talvez n��o pare��a, mas penso em tudo e
prevejo o imprevis��vel.
Isso n��o era de todo falso. Quando da morte de
Patr��cia e da fuga de Johnny, Jef mexeu nos pap��is
do comparsa, encontrou a carta escrita por Patr��cia
antes de morrer numa folha do bloco de consultas da
dra. Carole Damien e, conseq��entemente, seu endere��o
e n��mero de telefone.
Foi o n��mero que ele discou...
* * *
Foi Fran��ois que'atendeu. Por um acaso extraor-
din��rio, Carole estava perto. Ela viu seu olhar estra-
134
nho dirigido a ela, adivinhou que um drama ia-se pas-
sar, sendo Johnny a v��tima.
Tentou conter-se, esperando que o marido a cha-
masse para ouvir algo que ele n��o entendia.
Com efeito, colocando a m��o no receptor, ele per-
guntou precipitadamente:
��� Conhece algu��m chamado Jef?
Ela n��o teve a presen��a de esp��rito de mentir e
respondeu sem reflex��o, como se a resposta viesse do
subconsciente:
��� Conhe��o, por qu��?
��� �� esse Jef, que n��o conhe��o, que est�� pedindo
para eu ir ver imediatamente um ferido.
��� Onde? ��� perguntou Carole, com a voz desfa-
lecida, pois j�� tinha entendido do que se tratava.
��� Rua Vercing��torix, n��mero...
Calou-se bruscamente, e seu olhar ficou mais agu-
do. Acabava de lembrar-se do endere��o lido apressa-
damente no envelope no dia em que a bolsa de sua
mulher caiu e deixou escapar o que continha no ta-
pete do consult��rio.
Continuava com a m��o no receptor, esquecendo
que falava com algu��m e preparando-se para interro-
gar Carole, para encost��-la �� parede.
Mas ela j�� correra para o telefone; arrancou-o
das m��os do marido num gesto enlouquecido:
��� Al��, aqui �� a dra. Carole Damienl �� Johnny
que est�� ferido, n��o? Onde? �� grave?
Como um pesadelo, ouviu uma voz que lhe res-
pondia:
135
��� N��o posso dizer exatamente, mas �� grave...
Tem de vir com urg��ncia.
��� Vou j��.
Ela desligou, colocou no marido um olhar feroz
e implorante:
��� Voc�� tem de vir comigo, Fran��ois! Talvez um
homem morra; sou apenas uma m��dica, n��o posso fa-
zer nada por ele. Voc�� �� cirurgi��o e �� de voc�� que
o ferido vai precisar.
��� �� seu amante, n��o? Confesse, mas ent��o con-
fesse!
��� N��o! ��� ela protestou, no c��mulo do deses-
pero.
��� Est�� mentindo! N��o ficaria assim se esse ho-
mem n��o fosse seu amante! Agora estou me lembran-
d o . . . Foi para ele que escreveu, uma carta de amor
provavelmente! Lembro-me tamb��m da fotografia dele
e do que estava escrito nas costas... E u . . .
��� N��o �� hora para cair sobre mim com um ci��-
me injustificado, Fran��ois ��� ela interrompeu, cada
vez mais suplicante. ��� Um homem vai morrer, repito,
�� uma quest��o de minutos... Juro que explico tudo
depois, depois de voc�� ter feito tudo para salvar esse
infeliz.
Mais forte que o ci��me foi a consci��ncia profissio-
nal de Fran��ois. Mais tarde saberia tudo sobre aquela
hist��ria sombria com que, evidentemente, Carole es-
tava envolvida.
��� Eu vou ��� ele decidiu.
��� Vou com voc��. Como m��dica, posso ser ��til.
136
��� S�� como m��dica? ��� ele observou, amb��guo.
Ela n��o respondeu. S�� tinha uma pressa: a de sa-
ber o que tinha acontecido com Johnny.
E Fran��ois pensava: "Vou ter de operar um des-
conhecido. Talvez esse homem morra, e esse homem ��
o amante de minha mulher. Tomou de mim a ��nica
mulher que amei realmente. Eu o odeio! Gostaria que
fosse varrido do mundo dos vivos, e no entanto vou
ter de fazer tudo para que sobreviva. Que Deus per-
mita que eu cumpra meu dever e que minha m��o n��o
trema quando eu tiver feito o primeiro corte..."
Alguns minutos depois, rodavam em dire����o �� rua
Vercing��torix, silenciosos, cada um perdido nos pr��-
prios pensamentos.
De tempo em tempo Carole olhava rapidamente
para o marido, via em seu perfil tenso que ele lutava
contra seus sentimentos profundos, que s�� podiam ser
de ��dio. Lembrava-se da vis��o com que ele a chocara,
sem o querer, no dia em que ela entrou na sala dele
de imprevisto e em que o viu beijar Clara; ela pensava
que errou de repeli-lo tanto...
Fran��ois evocava a mesma lembran��a e sentia seu
cora����o rasgar-se e sangrar, pois conhecia agora, em
toda a sua dolorosa amplid��o, a natureza do sofrimento
de Carole naquele dia e em todos os outros que se
seguiram.
Surpreendeu-se desejando mais que qualquer ou-
tra coisa no mundo arrancar aquele Johnny desconhe-
cido da morte, ainda que, e talvez principalmente se
Carole tivesse de reconstruir sua felicidade com ele.
Foi durante aqueles tr��gicos momentos que Fran-
��ois, abstraindo-se de seus sentimentos pessoais, teve
a no����o exata do que era o verdadeiro amor: o esque-
137
cimento total, o esquecimento absoluto de si em favor
da felicidade total, absoluta, do outro.
* * *
Quando negaram �� rua Vercing��torix, encontra-
ram Jef junto de Johnny, estendido numa cama. O fe-
rido estava com os olhos fechados. Seu rosto era de
uma palidez mortal. Mal conseguia respirar.
��� F a �� a tudo para salv��-lo ��� suplicou Jef, que
tinha mandado embora os outros companheiros.
Sem dar-se ao trabalho de responder, Fran��ois
examinava o ferido. Junto dele, Carole estava incli-
nada sobre aquele a quem quase se entregou e de quem
talvez nunca mais ouvisse a voz, de quem nunca mais
veria, provavelmente, o claro e jovem olhar voltado ao
futuro que ela estava a ponto de oferecer-lhe.
Ao fim de alguns minutos que pareceram um s��-
culo para a ansiedade de Carole, Fran��ois se refez e
limitou-se a declarar:
��� O ferido perdeu muito sangue. O estado dele
�� mesmo muito grave, mas n��o posso operar aqui. Tem
de ser levado com urg��ncia ao hospital.
Jef, desconfiado, protestou:
��� Nada disso! �� uma desculpa! Querem me de-
nunciar �� pol��cia! Johnny n��o vai sair daqui e se ten-
tarem fazer qualquer coisa para alertar os tiras ou os
vizinhos, previno que n��o vou hesitar em atirar!
��� Como queira ��� respondeu Fran��ois calmamen-
te. ��� Mas eu previno que, se n��o me deixar levar
este ferido para o hospital, ele vai morrer, e antes do
fim da noite.
.138
Impressionado com a calma do cirurgi��o, Jef dei-
xou de lado qualquer amea��a e deixou os acontecimen-
tos sucederem-se.
Falando e agindo exatamente como se o jovem
bandido n��o estivesse ali, Fran��ois, depois de ter repa-
rado que n��o havia telefone, virou-se para a mulher e
deu-lhe instru����es:
��� Veja se acha um bar aberto. Telefone para o
hospital e pe��a para mandarem uma ambul��ncia e para
prepararem o bloco operat��rio para nossa chegada.
��� Est�� bem, Fran��ois.
Ao passar na frente dele para sair, Carole ergueu
para o marido um olhar carregado de reconhecimento
e afli����o, confundidos:
��� Obrigada ��� ela balbuciou. ��� Juro que de-
pois voc�� vai saber de toda a verdade.
Fran��ois balan��ou os ombros pesados de cansa��o
e ceticismo e desviou os olhos.
Quinze minutos depois, a sirene de uma ambul��n-
cia soava pelas ruas e avenidas...
* * *
Como Johnny continuasse em estado de coma,
Fran��ois levou-o primeiro para um quarto particular.
Antes de qualquer coisa, ele tinha de tir��-lo do coma
e, para isso, injetar plasma, aquela ben��fica prepara����o
feita da parte fluida do sangue, isolada das c��lulas e
conservada em recipientes esterilizados, prevendo exa-
tamente urg��ncias daquele tipo e apresentando, sobre
a transfus��o, a vantagem de poder ser feita imediata-
mente, sem a longa an��lise para a classifica����o dos ti-
pos sangu��neos, que perde um tempo precioso, quando
139
o que importa mais �� devolver o vigor �� circula����o,
ao corpo todo, evitando a asfixia das c��lulas por falta
de oxig��nio.
Fran��ois fez um segundo exame do ferido, mais
completo que o primeiro, feito num quarto mal ilumi-
nado e sem nenhum instrumento ��s m��os.
Johnny n��o estava mais completamente inconscien-
te. Tinha at�� breves instantes de semi-lucidez. Mas
logo verificou-se que o plasma, em quantidade equiva-
lente a uma transfus��o completa, n��o produzia o efei-
to desejado.
Fran��ois virou-se para Carole, que continuava em
p�� junto dele, com o rosto tenso pela ansiedade:
��� Vou operar.
��� Onde?
��� Do lado do cora����o, provavelmente, pois acho
que detetei v��rias costelas atingidas e fraturadas, que
impedem a a����o normal dele.
��� M a s . . . essa opera����o �� muito perigosa?
��� O que voc�� quer que eu fa��a? N��o tenho es-
colha. De qualquer forma, preciso abrir para saber
exatamente do que se trata.
��� Voc�� me aceita na sala de opera����o? ��� Ca-
role perguntou enrubescendo subitamente.
��� Voc�� �� m��dica; ainda que eu quisesse, n��o te-
ria o direito de proibi-la.
Pelo tom da voz, ela entendeu que ele ainda es-
tava magoado com ela, que continuava a suspeitar dela,
que estava, mais do que nunca, persuadido de que ia
operar o amante dela.
140
A afli����o e a c��lera inflamaram um pouco mais
suas faces, mas n��o teve tempo de responder. Fran-
��ois estava perguntando a uma enfermeira, que espe-
rava suas instru����es:
��� A sala est�� pronta?
��� Est��, doutor.
��� Mande comparar o sangue do ferido ao que te-
mos de reserva. Talvez precisemos fazer uma transfu-
s��o. Calculei que, al��m do ferimento feito pela bala
propriamente, tenha havido um choque violento. Ima-
gino que haja uma hemorragia durante a opera����o.
Ent��o vamos precisar de sangue fresco para substituir
o que ele perdeu.
��� No refrigerador, l�� embaixo, h�� uma reserva
consider��vel de sangue preparado, doutor.
��� Muito bem. Assim ganharemos o tempo nor-
malmente exigido pela procura de um doador e pelo
exame de seu tipo sangu��neo.
O cirurgi��o e a enfermeira conversavam em voz
baixa e r��pida. Carole sentia-se exclu��da da conversa,
o que sentiu penosamente, mas o mais importante era
salvar a vida de Johnny. Para aquela "salva����o" ela
sentia-se preparada para qualquer sacrif��cio, qualquer
resigna����o, qualquer ren��ncia.
141
Johnny estava agora na mesa de opera����o. Seu
estado n��o tinha melhorado e, se havia uma mudan��a,
era para pior: o pulso estava mais fraco, a respira����o
menos profunda.
Fran��ois estava agora debaixo das luzes centradas
para um ��nico ponto: o ret��ngulo de pele tingida de
p��rpura onde ele podia ver nitidamente o ferimento
acima da costela deformada.
A decis��o tinha sido tomada: ele ia operar como
se se tratasse de um ferimento no cora����o, quer dizer,
ele ia cortar um retalho de m��sculo da parede tor��xica
que lhe permitiria obter toda a abertura necess��ria para
o tratamento de um ferimento card��aco antes de des-
locar a costela em quest��o.
A no����o do perigo de uma tal interven����o n��o lhe
escapava, certo, mas ele n��o podia autorizar-se a cor-
rer o risco de uma s��bita hemorragia.
��� Nada de anestesia geral ��� ele declarou. ���
O estado atual do ferido n��o o permite.
A opera����o come��ou. Primeiro uma inje����o de
novoca��na no ferimento, sob o olhar interrogativo dos
assistentes, enquanto fazia a inje����o num c��rculo cada
vez mais largo.
Ele anunciou com uma voz breve mas clara:
��� Acho que �� como se houvesse um ferimento
direto no cora����o. Ent��o vou desnudar uma aur��cula.
143
Um ferimento no cora����o!
Carole aproximou-se dos internos e das enfermei-
ras, que tamb��m tinham-se aproximado e agrupado em
volta da mesa. Nenhum deles ignorava o que aquilo
significava: um caso bastante excepcional! Uma chan-
ce ainda mais excepcional de v��-lo beneficamente fe-
chado, pois era o dr. Fran��ois Damien que tentava a
perigosa interven����o.
Agora Fran��ois sentia-se seguro de si. O mais
duro, o mais angustiante, tinha sido tomar uma deci-
s��o operat��ria. Ele a tinha tomado. Aconte��a o que
tiver de acontecer! Tudo tinha sido feito de modo a
salvar uma exist��ncia humana. Nem ele nem seu pes-
soal podiam fazer mais. A ��nica e ��ltima ajuda que
podiam receber era a de Deus.
Com o escalpelo na m��o, ele fez a incis��o, cer-
cou imediatamente de gaze os bordos da pele cortada.
Sua voz cortou o sil��ncio habitual estabelecido:
��� Elevador periostal, por favor!
��� Aqui est��, doutor.
Uma costela tinha mesmo sido cortada. Com a
m��o firme, Fran��ois destacou o forro fibroso e resis-
tente das duas outras costelas junto dela.
De novo com a voz ensurdecida e imperativa:
��� Constatoma!
Passaram-lhe uma l��mina grande que, como uma
guilhotina, mordia atr��s das costelas. Logo o interno-
-assistente tirou as partes cortadas.
��� Pin��as! ��� pediu o cirurgi��o.
144
No impressionante sil��ncio da sala de opera����o,
s�� se ouvia o sonido met��lico dos instrumentos cir��r-
gicos, as ordens breves dadas pelo cirurgi��o, de quem,
sob a m��scara branca, s�� se via o olhar terrivelmente
atento, extraordinariamente m��vel e que s�� tra��a a
preocupa����o de salvar um homem da morte. Carole
observava os batimentos do cora����o. E o dela batia
tanto mais r��pido e mais forte quanto o de Johnny
ficava mais lento e cada vez menos percept��vel.
Fran��ois continuava com a perigosa interven����o.
Tinha cortado o feixe de m��sculos entre as costelas
at�� que s�� ficasse ali, mantendo a parede exterior, a
costela quebrada.
Abaixo dessa costela (quebrada ele n��o sabia
exatamente porqu�� nem como), os tecidos estavam
sombrios, manchados de sangue. "Isso confirma mi-
nha suspeita de hemorragia interna", pensou Fran��ois,
ao mesmo tempo que temia que a pleura tivesse sido
atingida. "Quem sabe tenha at�� ar no peito?"
De qualquer modo, ele n��o tinha mais escolha.
Agora era evidente que a costela tinha de ser ti-
rada, mas isso podia ser tentado sem provocar o re-
sultado fatal?
Era isso que se perguntava o grupo em volta de
Damien, cujos olhares estavam mais atentos que nunca.
��� Prepare um curativo ��� ordenou Fran��ois ao
interno-assistente.
��� Est�� bem, doutor.
Sem esperar que ele pedisse, a enfermeira-chefe
anunciou:
��� Estou com as pin��as, doutor.
145
Estavam todos prontos.
Fran��ois tamb��m.
Um som de metal mordendo o osso repercutiu
fortemente no sil��ncio impressionante da sala de ope-
ra����o. A manobra do cirurgi��o tinha sido t��o r��pida,
t��o certa, t��o precisa que o osso nem mexeu e Fran-
��ois p��de destacar o aparelho docemente, depois co-
loc��-lo de lado.
Agora era o momento da verdadeira prova: des-
tacar e retirar a extremidade quebrada da costela.
Fran��ois respirou longa, profundamente, antes de
pegar a extremidade quebrada da costela entre os bor-
dos de uma forte pin��a dentada.
Primeiro ele come��ou inclinando-a de frente para
tr��s, com uma estranha paci��ncia, destacando doce-
mente as liga����es musculares para retirar as ��ltimas
fibras do peri��steo.
Quando, logo, nada mais o retinha, ele tirou aque-
le peda��o de osso de seu leito e deixou-o cair vivamen-
te sobre a mesa.
Quando a costela saiu das profundezas da aber-
tura, uma onda sombria seguiu-a.
O rosto do cirurgi��o contraiu-se. Era exatamente
o que ele imaginava e temia. Havia um ferimento no
cora����o.
Ele viu nitidamente a situa����o. Por mais r��pido
que operasse, seria um milagre cir��rgico se, no fundo
daquela abertura atravancada de co��gulos, ele conse-
guisse descobrir a fenda no cora����o e parar o escoa-
mento mortal.
146
O mecanismo de seu pensamento desencadeou-se
precipitadamente. Para evitar o pior, o drama que,
para ele, seria sempre a morte, de um ser vivo, tinha
de completar a incis��o e fazer uma grande abertura.
Separar os feixes de m��sculos restantes, que tinham
sido ligados �� costela quebrada, cortar exteriormente
o fragmento triangular da parede tor��xica que ele pre-
parara.
N��o gastou mais que um instante para fazer tudo
isso.
As cavidades superiores do cora����o e as aur��culas
foram rapidamente expostas, como tamb��m os vasos
principais que penetravam naquela bomba vital ou
saiam dela.
Restava tirar os co��gulos acumulados, o que ele
fez com a m��o extraordinariamente h��bil e segura,
procurando a abertura pela qual o sangue escoava.
O fluxo j�� n��o era t��o abundante. Fran��ois po-
dia cont��-lo s�� com a press��o dos dedos.
A sutura podia ser praticada.
Com igual presteza e seguran��a das m��os, colo-,
cou os pontos de fixa����o acima e abaixo da abertura,
o que lhe permitia erguer, seta dilacerar, as paredes
moles da cavidade para ter um acesso mais f��cil.
O ferimento agora era perfeitamente vis��vel, um
pequeno ferimento na fina parede da cavidade supe-
rior, de forma irregular, mas n��o muito, para permitir
um fechamento satisfat��rio.
��� Cuide das suturas de firmeza ��� ele disse a
seu assistente.
147
Enquanto isso, passou finas agulhas das quais pen-
diam sombrios fios de seda nos dois bordos do feri-
mento, depois amarrou-os de atravessado.
Quase imediatamente depois, o fluxo ritmado pa-
rou. Fran��ois, com uma segunda fiada, refor��ou a
primeira.
��� Est�� tudo pronto para a transfus��o?
��� Est��. Havia em reserva sangue do mesmo
tipo que o do ferido ��� responderam-lhe.
��� Ent��o vamos aplicar-lhe!
Nada faria mais bem ao ferido que aquele san-
gue novo, agora que o efeito deprimente do ferimen-
to no cora����o tinha sido suprimido e que n��o havia
mais a hemorragia obstruindo desastrosamente estrutu-
ras vitais, desregulando as fun����es mais importantes
da vida.
Agora que a pressa e a tens��o tinham passado,
Fran��ois agia mais devagar. Tinha esquecido tudo
que o oprimia na vida privada. Para ele, como m��-
dico, o homem jovem e bonito cuja exist��ncia ele se
obstinava em prolongar, n��o tinha mais nome, identi-
dade. Era apenas um ser humano, cujos batimentos
card��acos, corrida vital do sangue pelas art��rias e veias
ele tinha o dever imperioso de perpetuar.
Carole, ao lado dele, passava quase que pelos
mesmos estados de esp��rito, mas, para ela, Johnny e
Fran��ois continuavam duas presen��as reais e cada
uma dotada de identidade. Pedia a Deus que Johnny
sobrevivesse, mas sua prece mais ardente era de que
o amor entre ela e Fran��ois tamb��m sobrevivesse.
Fran��ois come��ou a lavar a fundo a cavidade,
para afastar qualquer possibilidade de infec����o. A
148
transfus��o estava quase terminada quando ele fez o
��ltimo curativo e preparava-se para afastar-se da mesa.
��� Ele est�� salvo? ��� perguntou Carole com um
ardor que gelou Fran��ois.
��� Em princ��pio, est�� ��� ele respondeu com uma
voz dura. ��� Fiz todo o necess��rio nesse sentido,
mas, com um ferimento no cora����o, n��o se deve ter
muita certeza ��� ele acrescentou, voluntariamente p��r-
fido.
Seu dever de m��dico estava cumprido; seus sen-
timentos pessoais assumiam a preponder��ncia. Ele deu
a si pr��prio o direito de dar vaz��o ao ci��me, ao ran-
cor, ao ��dio do jovem e bonito rapaz que esperava
obscuramente ter salvo.
Ele foi para o vesti��rio. Carole ficou um instante
indecisa. Estavam transportando Johnny para o quar-
to. Tudo impelia-a a seguir o carrinho no qual esta-
va deitado, ainda inconsciente, um homem que ia mor.
rer e a quem Fran��ois deu de novo a vida. Mas tudo
tamb��m a impelia a ir para junto daquele cujo nome
usava e de quem sentia o rancor tenaz, o est��pido e
criminoso ci��me.
��� Ent��o, o que vai fazer? ��� perguntou-lhe
abruptamente Fran��ois, da salinha onde come��ava a
tirar o avental, a m��scara, as luvas, tudo que, em re-
sumo, constitu��a sua segunda personalidade, a do ci-
rurgi��o, acima ou abaixo de sua personalidade pri-
vada.
E como ela n��o se decidia a responder, ele insis-
tiu acerbo:
��� Voc�� vem comigo, volta para casa comigo, ou
fica com ele?
149
E como ela n��o respondesse:
��� Ele! Seu amante!
��� Fran��ois! ��� ela clamou, desesperada.
Ela n��o p��de continuar seu protesto, ou sua re-
volta. A porta do bloco abriu-se, uma enfermeira apa-
receu, com o ar perturbado:
��� Dr. Damien! Acho que vai ter de vir... Seu
operado est�� voltando a si mas n��o parece...
��� J�� vou! ��� respondeu Fran��ois sem hesitar.
Carole seguiu seus passos, consciente de que ia
para o inevit��vel, fosse a fatalidade ou o contr��rio.
150
Ele tomou o pulso inerte do moribundo. N��o
havia mais pulso. Pensou: "Transfus��o... transfus��o",
mas seu pensamento n��o foi mais longe, chocando-se
inevitavelmente com o imposs��vel, com o "tarde de-
mais", inexplic��vel ou n��o. A opera����o tinha sido bem
sucedida, certo, mas era suficiente? Ele tinha de acre-
ditar que n��o. "Todas as opera����es s��o bem sucedi-
das!" Fran��ois pensou amargurado. "As opera����es em
si mesmas s��o todas, ou quase todas, bem sucedidas.
Se isso bastasse! Se aquela vit��ria fosse suficiente para
alcan��ar a outra, a definitiva!"
Johnny come��ava a dar sinais de estar voltando
a si. Subia lentamente do abismo onde o tinham ati-
rado o tiro de Jef primeiro, a anestesia parcial depois,
na mesa de opera����o.
Com os olhos fixos em seu rosto exangue, Caro-
le e seu marido viram seus l��bios mexer-se impercep-
tivelmente, depois abrir-se, enquanto seu olhar pousa-
va por acaso nas cabe��as inclinadas sobre ele.
De repente come��ou a falar. Foi um nome que
escapou de seus l��bios violeta e rachados pela febre:
��� Carole...
Fran��ois teve um incontrol��vel sobressalto. Ao
ouvir ser pronunciado o nome da mulher por Johnny,
viu sua ��ltima d��vida desvanecer-se, desaparecer para
sempre: aquele homem era mesmo o amante de Carole.
Uma contra����o de dor moral alterou seus tra��os:
"Esse homem vai morrer, ele pensou com uma certe-
za gelada. Antes de exalar o ��ltimo suspiro, ele vai
151
falar... Que agonizante pode mentir nos seus ��ltimos
instantes? Pelo que ele disser, vou saber a verdade. ��
em suas ��ltimas palavras que tenho de acreditar."
No entanto Johnny continuava no desenrolar de
seu pensamento, que a imin��ncia da morte tornava ex-
traordinariamente l��cido:
��� Por todo o bem que me fez, s�� tenho tempo
de dizer um ��ltimo obrigado, Carole... Mas ningu��m
aqui embaixo �� dono de seu destino... S�� uma von-
tade toda-poderosa decide o que vai acontecer... Eu
vou, tenho de ir para junto de Patr��cia... Era para
ela que queria voltar a ser um homem honesto...
Depois que morreu, foi ainda em honra �� sua mem��-
ria que persisti em minha resolu����o, gra��as �� sua ami-
zade... Essa amizade t��o pura que, com meu amor
por Patr��cia, foi o sentimento mais belo que conhe-
c i . . . Adeus, Carole...
Ele teve de interromper-se para respirar. Seu
olhar j�� estava com a transpar��ncia do vazio que o
atra��a inexoravelmente:
��� Meu ��ltimo desejo, antes de morrer, �� que
voc�� tenha de volta o amor daquele sem o qual sua
exist��ncia n��o tem sentido... Est�� vendo como n��o
esqueci nada de suas confid��ncias?
Um brilho vivo passou fugidiamente por sua pu-
pilas enquanto ele murmurava:
��� Se �� verdade que existe uma eternidade onde
se encontram de novo as almas, saiba, Carole, que
Patr��cia e eu rezaremos por voc�� e faremos por sua
felicidade tudo que fez pela "reden����o" de Johnny.
Ele fechou os olhos e calou-se. Num ��mpeto, Ca-
role atirou-se nos bra��os de Fran��ois. Ela come��ou a
solu��ar:
152
��� Agora acredita que ele nunca foi meu aman-
te? ��� ela murmurou entre os solu��os.
Ele n��o respondeu. Quando ela sentiu a m��o do
marido acariciar lentamente sua nuca, os solu��os redo-
braram, mas pelo excesso de uma felicidade que ela
n��o esperava mais: recuperar a confian��a de Fran��ois.
Ela prometera contar toda a verdade, mas era in��-
til. Johnny tinha dito o suficiente para que Fran��ois
fosse esclarecido e ficasse convencido muito mais que
com todos os protestos de Carole.
Fran��ois continuava com ela entre os bra��os-, jun-
to de seu cora����o. E a lenta, a tranq��ilizante car��cia
de sua m��o na cabe��a e testa dela provava que ele
acreditava nas palavras do homem que ia morrer.
Sim, Deus fazia tudo bem, na vida e na morte.
E aquela ordem divina queria que Johnny fosse para
junto de Patricia, como tamb��m reatava os la��os de um
esposo e uma esposa unidos por Ele antes.
Johnny morreu alguns minutos depois, sem rea-
brir os olhos. Uma paz infinita estava inscrita em seu
rosto quando o ��ltimo sopro de vida exalou de seu
peito.
Dois dias depois, lado a lado, Carole e Fran��ois
levaram-no para sua ��ltima morada: o t��mulo de m��r-
more, com uma simples cruz, onde repousava e o es-
perava Patricia.
153
De: Bons Amigos lançamentos <
Este livro trata da rotina destes profissionais que fazem tudo possível para salvar a vida dos pacientes. E nesta época de pandemia eles se transformaram em heróis. Recomendamos !
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ele atendeu, à cabeceira da cama, pensando, com
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