sábado, 1 de dezembro de 2012 By: Fred

{clube-do-e-livro} Envio 13 livros da Zíbia Gasparetto em TXT 1





Voltas que a Vida Dá
Zibia gasparetto

SUMÁRIO


VOLTAS QUE A VIDA DÁ................................................. 9
A DIFERENÇA................................................................... 13
A VISITA............................................................................. 15
O RECURSO...................................................................... 17
O CAMINHO....................................................................... 22
OS DETALHES.................................................................. 27
O ENTRAVE....................................................................... 30
O RESPEITO...................................................................... 35
O GENUFLEXÓRIO.......................................................... 39
A LENDA DOS URUÇUS................................................. 43
A CRISE.............................................................................. 45
O COMPROMISSO............................................................ 47
A CLARINADA................................................................... 51
O ESBARRO...................................................................... 54
A PUNIÇÃO........................................................................ 58
A GRAVATA....................................................................... 61
O SABER ESPERAR......................................................... 65
O RETRATO........................................................................ 69
O ARGUMENTO................................................................. 73
OFERTA.............................................................................. 77
A CORRENTE.................................................................... 81
JORNADA NOVA.............................................................. 86
O PASSE............................................................................ 89
O PREÇO DO SILÊNCIO.................................................. 93
A ESPERANÇA.................................................................. 97






VOLTAS QUE A VIDA DÁ

"Meu amigo Ricardo Teixeira de Melo, homem prudente e habilidoso, conseguiu à custa de enorme economia juntar fortuna regular.
Esforçara-se durante muito tempo no trabalho árduo, e a riqueza, coroando-lhe os esforços, o ajudara a estabelecer-se com rendosa indústria manufatureira.
Entretanto, apesar de estar financeiramente bem, Ricardo não modificou sua maneira de ser.
Habituara-se à poupança e ao controle excessivo dos mil réis, sem dar-se conta de que já podia usufruir de maior conforto e menos preocupação com a manutenção
de sua família.
E, assim, ele vigiava o horário dos empregados na fábrica, calculando o custo dos minutos perdidos nos atrasos comuns durante o serviço. Em casa, não permitia
o menor deslize no orçamento magro, jamais propiciando aos familiares o conforto e, às vezes coisas mais necessárias. Quando a esposa, aborrecida, aludia à sua vantajosa
situação financeira, ele dizia:
- Você que pensa! Eu é que sei dos compromissos e responsabilidades! Não. Não posso gastar de maneira alguma.
E a mulher tristemente remendava ao máximo as roupas da família e fazia tremenda ginástica para não sair do magro orçamento doméstico.
Dessa forma, os bens de Ricardo duplicavam sempre, sem que ele mudasse o padrão de vida a que desde jovem se habituara. Ao contrário, com o correr dos anos foi
ficando pior. Não tirava férias para melhor poder vigiar o negócio, era sempre o primeiro a chegar e o último a sair. Não tinha, por isso, tempo para dedicar-se
ao aconchego da familiar. Mal parava em casa. Desenvolvia enorme atividade no sentido de exercer o controle de tudo, e assim a neurastenia tornou-se inevitável,
e com ela o desequilíbrio orgânico.
Mas era inútil a insistência da família. Ricardo não descansava.
Certa madrugada foi chamado às pressas. Irrompera violento incêndio em sua fábrica. Ninguém descobriu a causa do sinistro, entretanto, toda a indústria foi destruída.
Sobrou, diante dos olhos esbugalhados e febris de Ricardo, um amontoado de ruínas fumegantes. Nada pôde ser salvo, nem uma peça. E, como por medida econômica Ricardo
não fizera o devido seguro contra incêndio, ficou positivamente na miséria.
Em virtude do choque emocional, foi acometido de séria enfermidade, guardando leito por algum tempo. Quando melhorou, ficou com o braço direito imobilizado e
inútil. Incapaz de recomeçar a vida por questões psíquicas, além do defeito físico, Ricardo, sem recursos outros para viver, ficou na dependência dos filhos, que
viviam de modesto salário. Todavia, habituados ao pensamento de que o pai gastava pouco, e porque ele nunca lhes dera dinheiro para as menores coisas, obrigando-os
ao trabalho se precisassem de algo, não se sentiam na obrigação de serem pródigos para com ele.
Ainda assim, enquanto os dois rapazes eram solteiros e residiam com os pais, as coisas se arranjaram regularmente, mas depois que se casaram e saíram de casa,
formando seu próprio lar, a situação tornou-se calamitosa.
Ricardo e a esposa recebiam pequena mesada, que mal dava para a modesta refeição, e com seu precário estado de saúde, ele precisava de medicamentos cada vez
mais caros. Seu corpo envelhecido requisitava maior quantidade de agasalho.
E, se alguma vez, engolindo a revolta interior, ele se dirigia aos filhos solicitando aumento da magra pensão, ouvia invariavelmente:
- Por agora é só o que posso dar. Tenho família a sustentar. O senhor não sabe minhas responsabilidades e os meus compromissos!
Quando lhe morreu a companheira, nenhum dos dois abriu-lhe as portas do lar. Alegando necessidade de tratamento especializado e para melhor atendimento médico,
internaram-no em um asilo de velhos.
Foi amargurado e triste que Ricardo retornou ao plano espiritual, depois de algum tempo de perturbação. Trazia um amontoado de queixas contra os familiares,
o que muito prejudicou seu pronto equilíbrio.
Foi por isso visitado por amoroso instrutor, desejoso de ajudá-lo. Diante do carinho e da atenção de que foi objeto, Ricardo não conteve as lágrimas, e com
voz triste, tornou:
- Ai! Meu amigo. Como é bom encontrar almas generosas no caminho! Infelizmente eu não tive essa sorte. Deus me deu por família criaturas sem coração, que jamais
se compadeceram da minha dor.
O mentor amigo, colocando, calmo, a mão sobre o braço do enfermo, perguntou:
- Mas... que fizeste para sanar o mal?
- O que podia fazer? Velho, cansado, só e doente?
- A essa altura pouco, realmente. Entretanto, tiveste inúmeras oportunidades, como pai, de construir o amor e a generosidade no coração dos teus filhos. A criança
é uma plantinha tenra que cresce em torno da estaca que lhe serve de apoio. Se esta for firme e justa, ela crescerá perfeita, na devida posição. Porém, se for mal
colocada, frouxa e indiferente, a planta proliferará irregularmente, será fraca e mirrada. Tiveste, durante o início da vida, ocasião de ensinar os teus a serem
generosos e bons, e perdeste a oportunidade, valorizando apenas a posse efêmera do dinheiro, que infelizmente não te ofereceu felicidade nem segurança; não encontravas
tempo para os laços duradouros da estima e da compreensão.
Chamado à responsabilidade, Ricardo baixou a cabeça, confuso. O mentor prosseguiu:
- Aceita as conseqüências dos teus atos com serenidade e paciência. Se nada plantaste naqueles corações, se nada deste, como querias de lá tirar ou ter direito
a alguma coisa? Valoriza a experiência, e nunca é demais recordarmos os ensinamentos do Cristo quando nos advertiu: "Não vos afadigueis pela posse do ouro, que a
traça corrói e a ferrugem consome, mas ajunteis tesouros no céu e sereis felizes".
E colocando a mão fraternalmente sobre seus ombros curvados, terminou perguntando:
- E queres maior riqueza e maior tesouro do que o amor de pai envolvendo e penetrando um coração de filho?"
Marcos Vinícius


A Diferença


"A porta fechara-se com estrépito. Mariazinha batia o pé, chorosa. Queria a boneca grande, queria!
A mãe preocupada, em vão procurava explicar-lhe por que não podia atender-lhe o desejo.
Contudo a menina desatendia a qualquer raciocínio.
Sua mãe era de condição modesta, não poderia jamais conceder-lhe o pedido. Conseguira comprar-lhe o vestidinho simples, mais alegre, e uma boneca pequena, mas
graciosa. Entretanto, a menina não ficara feliz com o presente materno.
Via a menina rica da esquina, cercada de luxo e presentes caros, de bonecas suntuosas. Não compreendia por que ela não podia ter o mesmo. Julgava que a mãe não
lhe queria dar.
- Minha filha! Compreenda que temos o bastante! Não precisamos de mais para nossa felicidade! Jesus ficará triste se você for vaidosa e a inveja agasalhar-se
em seu coração.
- Jesus não gosta de mim! - dizia ela a chorar. - Por que dá tudo às outras e a mim só isso? A senhora não diz que ele é justo e bondoso?
- É. Jesus nos tem ensinado que Deus é pai bom para todos e colocou cada um de nós no lugar onde precisa estar, para aprender a viver feliz! Não nos deu dinheiro
porque somos muito vaidosos, e o dinheiro nos faria mal. Entenda, filha, é para o nosso bem! Sejamos felizes e agradeçamos ao Senhor o pouco que temos.
A menina calou-se, pensativa, mas trazia ainda a revolta estampada na face. Apanhou a boneca modesta, que a olhava com olhos inocentes, com evidente desgosto.
Foi quando a campainha da porta soou. Seria o pai com algum presente? Correu a abrir, com a fisionomia subitamente animada.
Estacou, surpresa. Pobre mulher trazendo uma criança ao colo e outra pela mão, estendia sua palma suplicante.
A dona da casa correu a buscar algum alimento. Era noite de Natal!
A menina recém-vinda olhava maravilhada para a outra, e seus olhinhos brilhantes iam do vestido novo à boneca que ela carregava.
A outra, fitando-lhe o corpinho magro e maltratado, os pés descalços e os olhos tristes, sentiu-se repentinamente rica.
- Posso ver? - indagou a pobre criança, aproximando-se.
- Pode. Gosta?
- E a boneca mais linda que já vi!
- Você tem uma igual?
A outra balançou a cabeça.
- Não. Mas quando eu crescer, vou ter uma boneca de verdade. Que fala, que anda, que chora e que ri.
- Como assim?
- Deus vai me dar uma, mamãe disse. E será mais bonita do que todas as bonecas mortas que tem por aí.
A outra ficou pensando, pensando.
Quando se foram, a menina, aproximando-se da mãe em atitude humilde, perguntou:
- Mamãe, Deus também vai me dar uma boneca de verdade quando eu crescer?
- Vai, minha filha, se você merecer.
- E para a filha de d. Bety também?
- Sim, minha filha, se ela for boazinha.
- Então, mamãe, Deus é justo mesmo! Porque se os papais da Terra dão para as filhas as bonecas que podem, Deus dá pra todas bonecas iguais!
E sorriu, completamente feliz."
Marcos Vinícius

A Visita


"Conta a história da humanidade que em tempos idos, na velha cidade de Betânia, o Mestre um dia caminhava, cercado de discípulos, rumao à casa de Nain, homem
temente a Deus e cheio de preceitos religiosos, os quais buscava seguir criteriosa e religiosamente.
Cercado da atmosfera virtuosa, respeitado e temido pelos seus, Nain esperava orgulhoso a visita do rabi, certo de que, na sua posição privilegiada, poderia esperar
do eminente Mestre grandes prodígios e demonstrações em sua casa.
Quando mais tarde chegou o senhor Jesus, com alguns discípulos, apressou-se a recebê-lo com deferência.
O meigo rabi, a passos lentos e leves, penetrou na habitação, onde lauta mesa os esperava e os aparatos testemunhavam o desejo que Nain tinha de agradar e parecer
homem de bem.
Na singular simplicidade dos seus gestos, o Mestre tomou assento em lugar discreto e sem atavios, sereno passeando o luminoso olhar pelos demais, que cabisbaixos,
mas curiosos, aguardavam as palavras de Jesus.
Nain apressou-se a falar, dirigindo-se ao Senhor:
- Mestre, não é este o lugar que vos havia destinado em minha casa. Tomai assento no lugar de honra que preparei para vós!
E com a mão designava uma bela mesa, coberta de flores e das mais ricas iguarias da época. Um verdadeiro banquete estava à espera do convidado de honra.
O Mestre, porém, sorriu, e levantando-se, colocou a mão direita carinhosamente sobre os ombros de Nain:
- Meu amigo. Grande é a tua bondade preparando com esmero esta lauta mesa para nos receber. Entretanto, aprende que não devemos seduzir com as satisfações mundanas
aqueles que desejamos agradar. Ao meu coração basta tua sinceridade, tua presença amiga, teus pensamentos carinhosos, para abrigar-me feliz no aconchego do teu lar,
tua harmonia com tua família, teus deveres de solidariedade humana bem cumpridos, para que o ambiente se torne confortável e acolhedor.
E olhando para Nain, que cabisbaixo meditava na sua intolerância para com a esposa e os filhos, na sua intransigência em exigir dos amigos o cumprimento dos
preceitos de sua casta, continuou:
- Pediste-me que viesse a tua casa pregar a Boa Nova, trazendo meus companheiros. Entretanto, que poderia eu dizer-lhes se, homens habituados à vida áspera e
sem regalias, estão agora distraídos, pensamentos voltados às tentações da satisfação das iguarias que preparaste? Se lhes falasse mais tarde, após fazer jus à fartura
da tua mesa, não seria compreendido, porque envoltos na sonolência do estômago bem-satisfeito, não compreenderiam mais minhas palavras. Assim, meu amigo, passemos
à refeição, porque aqui não há lugar para a palavra do Senhor.
E voltando-se para Nain, que decepcionado o ouvia, arrematou:
- Quem quiser entender e ouvir as palavras renovadoras da Boa Nova, deve preparar apenas as flores do coração. Ungir seu pensamento de pureza, de bondade e de
humildade. Porque só assim poderá ter a grandeza suficiente para entender as palavras e a vontade de Deus."
Marcos Vinícius


O Recurso
"Numa cidadezinha do interior, em modesta residência coletiva, existia uma pobre viúva que com dificuldades várias lutava para conseguir o sustento de seus oito
filhos.
Apesar dos seus esforços, a vida difícil e o elevado custo das utlidades fazia com que os donativos tão insuficientes minguassem cada vez mais.
O supérfluo dos mais abastados também se restringia, e assim, dias havia em que nada tinham ela e os filhos para comer.
Mulher de ânimo forte, lavava roupas para ganhar alguns níqueis, que desapareciam no sorvedouro dos preços altos, quase inúteis, tal a sua insuficiência.
Certo dia, porém, sua situação chegara ao extremo da miséria. O inverno rigoroso minava a saúde dos filhinhos, e três deles, de tenra idadade, guardavam o leito,
ardendo em febre e tossindo sem cessar. Nada havia para comer, e o tempo não lhe permitia lavar a roupa de suas freguesas, já que com a chuva incessante não lhe
haviam dado serviço.
Vencida pelo desânimo, começou a pensar em desertar da vida. Batera em todas as portas inutilmente. Devia algum dinheiro às mulheres para as quais trabalhava,
e assim não tinham querido adiantar-lhe mais, dizendo-lhe que com a melhoria do tempo seus filhos ficariam bons.
A pobre mulher, mente escaldante, ouvindo as palavras dolorosas para seu coração de "mamãe estou com fome", começou seriamente a pensar em suicídio, e na maneira
de executá-lo. Daria seus filhos e se mataria.
Seu mentor espiritual, preocupado, sentindo-lhe a situação perigosa, conseguiu do alto permissão para intervir, suavizando-lhe a dura prova, embora a soubesse
necessária ao seu aproveitamento. Conversando com seu colaborador, deliberaram conseguir auxílio material que aliviasse temporariamente a situação, permitindo ao
mesmo tempo que a fé e a confiança nos desígnios de Deus lhe dessem forças para o futuro.
Saiu o espírito colaborador para obter recursos, enquanto o mentor espiritual procurava transmitir à pobre mulher confiança e serenidade. Ela, porém, pensamentos
depressivos, não lhe recebia as ondas de luz e esperança.
Entrementes, o espírito colaborador saíra e decidira procurar certa senhora abastada conhecida por suas obras de assistência social. Parecia-lhe indicada para
o caso, uma vez que o marido da pobre viúva fora um dos empregados nas indústrias de sua família.
Encontrou-a lendo, esticada em confortável poltrona, olhando de quando em vez para a chuva incessante que via cair através dos vidros da janela.
O espírito aproximou-se e começou a falar-lhe aos ouvidos espirituais, contando-lhe as dificuldades da pobre necessitada.
A senhora não lhe registrou a presença, mas perdeu a vontade de ler e começou a recordar-se da viúva com seus oito filhos, cujo marido morrera em um acidente.
Sentiu vontade invencível de ir imediatamente ajudá-la. Levantou-se. Porém, olhando o dia frio e chuvoso, desistiu, pensando:
- Que idéia! Sair com um tempo desses. Outro dia qualquer mandarei alguém ver se eles precisam de alguma coisa. Talvez possa encontrar roupas velhas para eles.
Preguiçosamente, sentou-se novamente, e cobrindo as pernas com gostosa manta de lã, mergulhou com determinação e prazer na leitura. E o espírito, por mais esforço
que fizesse, não conseguiu mais influenciar-lhe o pensamento, afastado da sua atuação pelas garras da preguiça.
Vendo que nada conseguia ali, ele saiu disposto a não perder tempo e encaminhou-se à casa de um espírita que trabalhava já havia algum tempo em grupos de assistência
fraterna, visitando algumas vezes os necessitados, disposto a ajudá-los.
Esperançoso, recordou-se que lhe ouvira em sessões doutrinária dissertações sobre a caridade e a beneficência. Comovera-se mesmo com sua sinceridade.
O dia estava já no fim, e o espírito foi encontrá-lo terminando a refeição da tarde, depois de um dia de trabalho. Alegrou-se vendo a fartura de sua mesa e antegozando
a utilização das sobras que certamente dariam calma e confiança à pobre viúva, alimentando-lhe os filhos.
Aproximou-se dele, tocando-lhe a fronte com a mão e transmitindo-lhe o pensamento de socorro à necessitada.
Lembrou-se o espírita incontinente da pobre viúva que tivera oportunidade de visitar em comissão assistencial e disse à esposa:
- Você não tem noção de economia. Tanta gente passando fome e nós com comida demais. Não está direito. Precisa fazer menos comida e evitar sobras.
A mulher não gostou da advertência e respondeu:
- NÃO posso adivinhar quanto vão comer cada dia. Vocês variam tanto! E quando aparecem visitas de última hora?
- Mas hoje não veio ninguém. Com um tempo desses! Dá-me vontade de levar tudo para aquela viúva que visitei outro dia!
O espírito exultou.
- Ora, com uma chuva dessas? Você se lembra do barro que que teve que enfrentar quando esteve lá?
- É verdade. Não sei o que se passa. Algo me diz que ela precisa de nós. No próximo domingo irei ter com os companheiros do centro e proporei que lhe façam uma
nova visita.
Decepcionado, o espírito viu que ele tomou um livro doutrinário e prazerosamente enterrou-se em uma poltrona e pôs-se a lê-lo, maravilhando-se com a beleza dos
seus conceitos.
O benfeitor espiritual sentiu-se momentaneamente desanimado. A quem recorrer? Aqueles que se diziam cristãos e trabalhadores do bem não tinham conseguido libertar-se
do comodismo e da preguiça. O que esperar dos demais? Em todo caso, precisava tentar.
Orou a Jesus implorando-lhe auxílio. Surpreso, viu-se transportado para uma casa humilde a poucos metros da casa da viúva. Seu interior era modesto e os poucos
móveis que ali havia eram o reflexo fiel da situação precária dos moradores.
Uma mulher jovem, mas prematuramente envelhecida, olhava com desdém para o dinheiro que havia sobre a mesa, deixado por um cavalheiro havia poucos instantes,
numa indiferença à qual os anos a haviam habituado.
Vivia só. Nenhuma mulher da vizinhança olhava para ela. Não concordavam com sua maneira livre de viver. Entretanto, ela jamais ferira os lares, respeitava-os.
Seus admiradores eram todos de fora.
Naquela noite ela sentia-se mais solitária do que nunca e lembrava-se com tristeza da sua orfandade, que separando-a dos demais irmãos, lançara-a a situações
que sua fraqueza não soubera vencer.
Condoído de sua dolorosa situação mental, o espírito aproximou-se e colocou a mão delicadamente sobre sua cabeça, buscando reconfortá-la.
Pensamentos de suicídio que lhe turbilhonavam a mente foram momentaneamente afastados. Teve vontade de fazer algo de bom antes de deixar a vida e, lembrando-se
da viúva, não pestanejou. Juntou todo o dinheiro que possuía e algum alimento e saiu, indiferente ao mau tempo, rumando para a casa da pobre mulher.
Bateu à porta timidamente. A viúva abriu e estacou, interdita.
- D. Maria... Deixe-me entrar por alguns momentos. Preciso falar com a senhora...
A outra, muda, assentiu, e a jovem mulher deu-lhe o dinheiro e os alimentos que trouxera. Sem poder conter-se, a viúva abraçou-a, agradecida, chorando de alegria.
A pobre moça, contagiada pela emoção, chorou também. Sentindo-se compreendida, contou-lhe todo o seu sofrimento, sua solidão e seu desejo de suicídio.
Vendo nela o espelho do futuro se desertasse da vida, deixando os filhos na orfandade, a viúva, profundamente comovida, abraçou-a, dizendo:
- Grande é a bondade de Deus que me permitiu ver a tempo o abismo que ia abrir-se a meus pés. Jamais esquecerei que você foi meu anjo salvador. Se quiser, pode
ficar aqui, trabalhar e começar vida nova. Juntas lutaremos melhor e conseguiremos vencer. Será uma filha para mim.
Abraçadas e comovidas, lembraram-se de dividir os alimentos entre as crianças que, felizes, cercavam sua nova benfeitora. E enquanto elas se apressavam em atendê-las
com alegria, os amigos espituais, olhos marejados e corações felizes, oravam agradecendo ao Senhor."
Marcos Vinícius


O Caminho
No plano espiritual, contam que um homem, imbuído de profundo sentimento religioso, decidiu-se a procurar o caminho mais curto de chegar ao céu.
Depois de muito pensar sobre o que deveria fazer e estudar profundamente os compêndios religiosos mais importantes da época, decidiu-se a cuidar exclusivamente
da sua salvação.
Entretanto, possuía família: esposa e três filhos, que lhe tomavam todo o tempo disponível, pois precisava trabalhar arduamente para mantê-los.
Meditando que Deus alimenta seus filhos e que Jesus ensinara que os pássaros do céu não trabalham nem amontoam em celeiros, resolveu afastar-se do lar a fim
de dedicar-se exclusivamente ao seu aperfeiçoamento espiritual.
Surdo às rogativas da esposa aflita, cujos filhos ainda pequenos impediam de trabalhar, um dia juntou seus pertences, e alegando à mulher chorosa que Jesus ensinara
que cada um deve segui-lo incondicionalmente, sem prender-se aos preconceitos de família, saiu de casa em busca da perfeição.
Caminhou em procura incessante durante longos anos, dedicando-se ao culto puro da religião, em contato com a solidão dos bosques e florestas ou isolado em templos,
onde buscava a ligação através da oração com a divindade.
Fugia ao contato com os demais por achar que estava já acima do nível comum. Possuía no corpo a leveza dos constantes jejuns, mas o espírito ainda buscava incessantemente
a paz e a serenidade almejadas.
O tempo foi passando, seu corpo envelhecendo, seus cabelos ficando brancos e as pernas cansadas, porém, ainda seu espírito procurava a ligação sonhada com a
divindade. Embora com a mesma disposição anterior, a solidão já começava a pesar-lhe, e as saudades do lar enchiam-lhe o coração de profunda melancolia.
"O que terá sido feito dos meus?", pensava muitas vezes.
Acreditando-se joguete da fraqueza, reagia, buscando fugir à depressão.
Com o tempo, sua sensibilidade emotiva o fazia ter visões, onde sempre era o objeto central, e nelas via-se recebendo o prêmio de sua vida sacrificial de repúdio
às paixões carnais comuns à humanidade.
Então, pensava ele, ajudaria a família, a esposa muito ignorante, que não conseguira compreender a superioridade das suas atitudes.
Quando a moléstia o acometeu, só e triste, não gozou do conforto acolhedor de carinho familiar e em triste situação de abandono sofreu penosa agonia. Desencarnou.
Ao despertar no plano espiritual, admirou-se com a tristeza da paisagem. Em zona ressequida e árida, onde o verde não existia, erguia-se grande templo cinzelado
de ouro e pedras preciosas. Nosso amigo penetrou em seu interior e verificou que, apesar da riqueza da sua decoração, ali não existia calor, e tudo era extremamente
inexpressivo. A um canto, longe um pouco do altar ricamente adornado, enorme biblioteca atraiu-lhe atenção, e com espanto, aproximando-se, reconheceu todas as obras
que lera durante todos aqueles anos.
A primeira impressão foi de alegria, mas, depois, a solidão começou a incomodá-lo. Sabia que tinha passado pela morte, entretanto, onde a recompensa pela sua
imensa luta?
O desassossego aumentava à medida que o tempo passava, e ele não conseguia sair do templo, apesar da vontade que tinha de fazê-lo.
Vozes começaram a escarnecê-lo, e ele não conseguia identificá-las. Diziam-lhe:
- Tu não quer ser santo? Não querias saber tudo? Aí tens, pois, o teu ideal convertido em realidade. Convém reler os teus livros. Pode ser que eles te revelem
a maneira de saíres desta situação...
E a pobre criatura, para vencer o tédio e preservar a sanidade mental, começou então a reler os livros que dantes estudara.
Porém, com singular desapontamento, ao reler o Evangelho do Senhor notou que os caracteres já lhe pareciam diferentes, e começou então a duvidar, pela primeira
vez, da eficácia da sua interpretação passada.
Dúvidas terríveis insuflaram-se em seu íntimo, e com lágrimas descendo pelas faces, não suportando mais o peso das suas resoluções passadas, orou ao Senhor implorando
auxílio.
Atendido por entidades superiores, foi levado para uma sala repleta de anciãos respeitáveis, para expor suas necessidades.
Nosso amigo, em lágrimas copiosas, expôs seu caso e concluiu:
- Sinto que não andei bem quanto à minha maneira de agir na Terra. Pensei somente em minha salvação, sem me preocupar com os meus. Agora sei que esse dever eu
não cumpri, e desejaria ajudá-los de alguma forma para poder sentir-me em paz.
O venerável ancião, olhando-o sereno, respondeu:
- Não há, por agora, necessidade de preocupação. Vossa esposa já está aqui e virá falar-vos.
Admirado, ansioso, nosso amigo aguardou a presença da companheira. Entretanto, inesperado jato de luz impediu-o de enxergar bem a criatura que se manifestava
entre eles. Auxiliado por companheiros, aos poucos conseguiu acostumar-se à claridade e pôde perceber que a entidade como que se apagava para que ele pudesse vê-la.
Estupefato, reconheceu naquela criatura radiosa e belíssima a figura humilde e simples da esposa.
Lágrimas emotivas corriam-lhe pelas faces e as palavras morreram-lhe na garganta.
O belo espírito aproximou-se e carinhosamente acariciou-lhe os cabelos encanecidos. Mudos permaneceram envoltos por emoções intraduzíveis.
O ancião, tomando a palavra explicou:
- Meu amigo. A maior conquista do espírito consiste em bem desempenhar na Terra a tarefa que por Deus lhe foi confiada. Enquanto teu espírito, alimentando ilusões,
perdia-se no fanatismo religioso, na modificação dos textos Evangélicos, adaptando-os às tuas imperfeições, sem humildade para compreendê-los, abandonaste a família
ao abandono,fugindo às obrigações mais prementes, negligenciando o burilamento dos teus sentimentos, negando-te a aprender na heterogeneidade do mundo a lição de
fraternidade do Senhor. Enquanto isso, tua mulher lutava sozinha na dura lição terrena para conseguir o sustento dos filhos que abandonaste, e embora lhe faltasse
o tempo para leitura brilhante, teve ocasião de exemplificar no trabalho e na honradez, na tolerância e na bondade, na disciplina rígida a que se impôs pela necessidade,
conseguindo educar os filhos na moral mais pura e no conceito mais elevado, encaminhando-os seguramente na senda da vida. E, se às vezes, quando a luta se exacerbava,
procurava algumas linhas do Evangelho, encontrava nelas alimento e conforto, renovação e luz, porque as podia compreender na grandeza da sua simplicidade. Os sofrimentos
dos seus, suas lutas, deram-lhe a noção exata da alheia necessidade. Assim, ajudou o quanto pôde, não com recursos financeiros, que nunca possuiu, mas com suas mãos
doloridas e calejadas pelo trabalho difícil e rude de cada dia.
Olhando o espírito confuso e triste, que cabisbaixo não ousava interromper, continuou:
- Unidos na Terra, em vida pobre e difícil, tiveram ambos a oportunidade de avançar na conquista da evolução. Escolheste o caminho mais difícil, estéril e longo;
ela soube encontrar o caminho mais curto e proveitoso. Por isso, é imprescindível que retornes à Terra. Sozinho, agora com os conhecimentos didáticos adormecidos,
serás analfabeto e trabalharás duramente para conseguir sustento. Aprenderás, assim, a lição da humildade, e talvez um dia chegues à altura da tua companheira em
planos mais altos.
E rematou, notando a profunda tristeza de nosso amigo:
- Entretanto, aprende que, embora com maiores sofrimentos, todos os caminhos conduzem a Deus."
Marcos Vinícius


Os Detalhes


Certo companheiro era muito meticuloso. Tudo quanto realizava vinha catalogado de maneira perfeita e com o maior número de detalhes possível.
Na firma onde trabalhava, na direção de importante organização, era implacável. Exigia dos seus funcionários perfeição nos mínimos detalhes, sendo por isso malvisto
por seus empregados, que sofriam suas ordens repetidas, vendo voltar inúmeras vezes seu trabalho para que fosse completado.
Em casa, aborrecia a esposa porque suas exigências causavam sempre uma série de problemas. As empregadas domésticas não paravam no emprego. Era o bastante ligeira
ruga em sua camisa ou imperceptível dobra no friso de suas calças para que ouvissem um sermão sobre como se deve passar e conservar uma roupa, devendo repetir a
operação até que ele a julgasse perfeita.
Até nos arranjos da casa nosso companheiro observava os mínimos detalhes, conhecendo um por um os arranhões dos móveis, o lugar exato das cadeiras, dos tapetes,
dos bibelôs, etc.
Sua esposa desdobrava-se em atividades e paciência para que tudo estivesse na mais perfeita ordem. Entretanto, ele sempre encontrava um pequeno detalhe esquecido
para cognominá-la de desorganizada e distraída.
Muitos toleraram os familiares, os poucos amigos. O caso tornou-se pior quando ele adoeceu. No leito, entre uma crise e outra, tornou-se mais exigente, bastando
que sua bandeja com a refeição não chegasse no no minuto exato, com todos os detalhes
Perfeitos, para que ele se dissesse vítima abandonada ao sabor da sorte, sem atendimento e consolo.
Na verdade, apesar da estima familiar, todos sentiram certo alívio quando ele passou para o plano espiritual.
De início, nosso companheiro estranhou muito a mudança de vida. Permaneceu durante longo tempo unido ao lar em que vivera, assistindo à modificação instantânea
e radical que os seus realizaram. A esposa, sentindo a alegria da liberdade, modificou todo o arranjo doméstico, e na indústria que gerenciara, onde por vezes se
refugiava certo de encontrar lá a organização que deixara, teve a surpresa de verificar que, num desafogo, seus funcionários modificavam todo o sistema de trabalho,
sob a orientação de novo e moderno gerente.
Abatido, sentindo-se só e isolado, deprimido, julgando-se vítima do descuido e do desleixo do semelhante, foi atraído pelas preces de alguns antigos companheiros
do plano espiritual a uma assembléia, onde pôde trocar idéias com instrutores desejosos de ajudá-lo.
Desabafou então seu coração. Contou como se dedicara ao lar, desejando aperfeiçoar todos os seus detalhes. Como se dedicara ao trabalho, procurando desempenhá-lo
perfeitamente.
Ao término, exigindo justiça, esperou firme, imponente, resposta, que veio de forma singular, através do diretor da augusta reunião:
- Meu amigo. Sabemos de tudo quanto nos contaste. Não há necessidade de te magoares recordando-o agora. Por um dever de justiça, e porque exiges sempre os menores
detalhes de todas as coisas, achamos necessário, neste instante em que estudamos teu passado, apreciar certas passagens de tua vida, que julgas esquecidas. Acreditamos
que queiras revê-las detalhadamente.
E, diante da surpresa do nosso companheiro, um tanto preocupado e inquieto, em pequena tela colocada diante de seus olhos começou a refletir-se, como em um filme,
a rememoração de toda sua vida, desde a primeira infância, com tal realismo que até os mínimos pensamentos eram registrados.
À medida em que as cenas se sucediam, atingindo a fase da adolescência e da mocidade, nosso amigo foi se tornando agitado. Vendo dissecada sua intimidade, que
julgara impenetrável, remexia-se na cadeira, refletindo no olhar um misto de vergonha e temor. Até que a certa altura, não conseguindo controlar-se, não suportando
mais aquela exibição, gritou:
- Parem! Parem! Pelo amor de Deus!
Imediatamente a tela desapareceu, restando nosso companheiro a soluçar desesperadamente enquanto dizia:
- Para que esmiuçar assim os erros que julguei esquecidos? Sei que estou errado. Não poderia esquecer o passado?
O instrutor espiritual aproximou-se dele, abraçando-o com carinho.
- Medita em tudo que viste. Quando amanhã tornares à Terra, na bênção da reencarnação, lembra-te sempre que não foste capaz de suportar os detalhes de tua própria
vida. Aprende por isso a torna-te tolerante para com as possibilidades alheias, não exigindo de cada um mais do que te possam dar. Procura tu mesmo te aperfeiçoares
cada vez mais, não nas exterioridades, mas nas tuas ações e no teu íntimo, exigindo de ti, isto sim, detalhadamente, a prestação de contas nas obras de cada dia.
Hilário Silva



O Entrave
"Manoel Carlos desejava havia muito o lugar de superintendente na firma onde trabalhava, por entender que, melhorando de situação financeira, recebendo maior
remuneração, poderia realizar seus antigos sonhos de fartura e despreocupação.
Desde muito moço vivera cercado de dificuldades, que lhe inutilizavam os esforços, obrigando-o a levar vida modesta e controlada.
Havia anos trabalhava devotadamente, e pela seqüência hierárquica e tempo de trabalho, era a pessoa credenciada para assumir o posto quando houvesse a vaga.
Mas, por diversas vezes, as coisas concatenavam-se de tal modo que outro assumia o lugar, e ele, decepcionado, amargurado, esforçava-se por ocultar sua revolta.
Certa vez, quando tudo parecia certo e as coisas se encaminhavam bem, Manoel Carlos não teve mais dúvidas: obteria a promoção. Entretanto, horas depois, chegou
credenciado funcionário do interior, que havia pedido transferência e ocupara o cobiçado lugar.
Profundamente decepcionado, Manoel procurou por seu superior e desabafou sua mágoa, dizendo-se profundamente injustiçado. Usou termos fortes, e no paroxismo
do desespero, só não foi despedido em consideração aos seus muitos anos de procedimento exemplar.
Aborrecido, retornou ao lar, e deprimido, contou à esposa seu fracasso, ao que ela respondeu:
- Vai ver que Alice tem razão! Eu tinha certeza de que você seria promovido! Olhe, ela acha que você está sofrendo perturbação espiritual! Ela é espírita!
- Você sabe que eu não creio nessas coisas...
- Mas o que ela diz pode ser verdade. Não custa nada irmos a uma sessão espírita. Quem sabe você tem alguém que o prejudica!
Ele estava relutante, mas tanto ela insistiu que resolveu comparecer à reunião. Ficou bem impressionado porque se tratava de um trabalho evangélico do espiritismo
cristão. Ouviu consoladoras exortações de mentores luminares enaltecendo, a paciência, a tolerância, a resignação aos desígnos sábios do alto. Mas sua situação continuou
a mesma. Ele confidenciou à esposa um mês mais tarde:
- Não adiantou o Espiritismo. Tudo continua na mesma.
- Você tem razão. Mas d. Maria me disse que onde fomos não adianta, porque a "mesa branca" não tem poderes para resolver certos casos. Acho que devíamos ir ao
terreiro do seu João. Ele ajudou seu Antônio a arrumar aquele empregão! E fez d. Sinhá achar o dinheiro que havia sido roubado.
E lá se foram os dois para o trabalho que se realizava no terreiro de seu João.
Apesar do ambiente desagradável, cheirando a fumo e a bebida, eles gostaram daquele ar de "mistério" que parecia existir no local. Conversaram com seu João,
expondo seus problemas, e o homem lhes prometeu auxílio, à guisa de polpuda recompensa, da qual receberia um sinal para "iniciar as primeiras despesas", e depois,
quando ele tivesse conquistado a melhoria, o restante.
E as coisas mudaram para Manoel. Dentro de pouco tempo foi-se desanuviando o ambiente na firma e, um dia, com alegria enorme, conseguiu a promoção que o colocava
em destaque, com o dobro do salário.
Os primeiros dias foram de euforia para ele. Sentia-se muito agradecia ao trabalho do seu João. Pagou sua dívida e integrou-se na nova posição.
Tinha maior responsabilidade, porém, sobrava-lhe muito mais tempo disponível e dinheiro para gastar. Começou, então, a apostar nos cavalos para passar o tempo,
e um dia teve a curiosidade de ir ao hipódromo assistir às corridas. Gostou. O ambiente fazia-o sentir-se importante, e havia também belas mulheres, que o atraíam.
Envolveu-se de tal maneira com o novo entretenimento que o que era um passatempo tornou-se uma necessidade. Sua esposa raramente o via em casa e vivia infeliz,
suspeitando de sua ligação amorosa com outras mulheres. O dinheiro que recebia tornou-se insuficiente para manter sua família, pois gastava-o todo no prado. Manoel
Carlos já não podia dispensar aqueles hábitos, que exigiam sempre mais dinheiro à medida que o tempo corria.
Até que, envolvido por pesados compromissos de jogo, passou a desviar quantias da firma em benefício próprio. Quando o escândalo estourou, ele, desesperado e
aflito, não podendo arcar com a responsabilidade dos seus atos, suicidou-se espetacularmente com um tiro no ouvido.
Sua esposa, acabrunhada, aflita pelos sofrimentos que tivera, deixou-se dominar por funda depressão. Sua amiga Alice foi visitá-la, desejosa de ajudá-la de alguma
forma. Espírita convicta, procurou consolá-la através do Evangelho, mas nossa irmã com amargura respondeu:
- Minha mãe sempre dizia que mudar de religião atrai a desgraça, Nós não devíamos ter nos metido com Espiritismo. O que adiantou? Ele teve a melhoria, mas recebeu
a desgraça! Eu não volto mais lá.
Mas a amiga não desanimou, continuou carinhosamente a visitá-la, até que, finalmente, conseguiu levá-la a uma reunião evangélica.
Nossa irmã, envolta em profundo abatimento, parecia não sentir as vibrações delicadas de harmonia e refazimento que envolviam o ambiente.
Quando, porém, foi pedida uma prece em benefício do espírito do seu marido, não conteve a revolta e, num desabafo, culpou o Espiritismo de ter engendrado sua
desgraça.
Dedicado mentor espiritual dirigiu-lhe palavras de carinho e,aos poucos, ela foi serenando. .
- Nós éramos felizes! Manoel, bom marido, honesto e dedicado.
- Mas vocês eram pobres! - lembrou o mentor espiritual.
- Não importa! A riqueza não traz felicidade! Nós vivíamos muito bem com a nossa pobreza, que não era tão rude assim.
Foi quando a voz suave do mentor espiritual tornou-se enérgica e firme:
- Minha filha, é hora de despertar para a realidade. Agora diante das conseqüências dolorosas que te envolvem, com o fracasso da tarefa que te trouxe à reencarnação,
queres lançar a culpa, que pressentes tua, aos ombros de outras criaturas. Lembra-te que, quando vieste ao nosso encontro, há tempos passados, não enxergavas a felicidade
que agora reconheces ter existido naquele tempo. Dizias ser imprecindível a conquista de melhor posição sócio-econômica para completar tua felicidade. Examinando
teu caso,porém, recorremos às fichas do passado de ambos, e lá encontramos erros envolvendo fracassos e derrotas, conseqüência de vício e luxúria. Sabíamos que o
maior benefício para ambos era viver afastados das facilidades e dos excessos, porque ainda não estavam suficientemente seguros nas conquistas espirituais para vencer
o passado! Por isso, aconselhamos a paciência, a resignação, a tolerância. A riqueza é prova difícil, que só muita fortaleza consegue vencer. Por isso, equilibra
o teu espírito e busca orar muito para que ambos tenham outras oportunidades o mais breve possível.
A viúva, mais serena, reconhecendo a razão do seu interlocutor, quis ainda fugir à sua responsabilidade, que lhe era difícil aceitar, e retrucou:
- Isso foi aqui. Mas na outra sessão aonde fomos, os espíritos, mesmo sabendo disso, nos deixaram errar.
- Minha filha! Não podes exigir das crianças que tenham a experiência e o conhecimento de um adulto. Certas criaturas, vivendo no imediatismo do mundo, a ele
se apegam e, do outro lado da vida, continuam a ver apenas as benfeitorias imediatas. A elas, na maioria dos casos não é dado conhecer nem penetrar no passado dos
semelhantes, e quando o conseguem, não lhes interessa o benefício futuro, voltadas que estão ainda às coisas efêmeras.
- Mas, então, somos colocados à mercê dessas criaturas? Por que nossos mentores espirituais não as impedem de conseguir o que lhes pedimos, se esse desejo nos
vai prejudicar?
- Minha filha, não temos pretensão de ensinar a quem quer que seja. Sabemos a verdade, mas desejamos que cada um aprenda a encontrá-la por si. Toda queda representa
nova experiência e, ao mesmo tempo, torna-nos mais fortes para o futuro. Ademais, aprendemos a respeitar o livre arbítrio. Procuramos sempre ajudar, orientando criteriosamente,
imbuídos de carinhoso desejo de amparo, mas se a criatura é surda às advertências, impermeável aos bons conselhos e não vê a realidade, o único remédio é deixá-la
caminhar como deseja, para que, por sua própria experiência, encontre a realidade. E o máximo que podemos fazer para cada um. Porquanto, se os conselhos ajudam e
as exortações levantam, a experiência sempre dará a conquista definitiva!
A viúva de Manoel Carlos baixou a cabeça, vencida. Pela primeira vez reconheceu a justiça divina e intimamente suplicou a Deus a oportunidade de recomeçar."
Marcos Vinícius


O Respeito
José Justino dos Santos, fazendeiro respeitado por todo o norte de Minas Gerais, orgulhava-se profundamente de duas coisas: sua fama de homem de bem e sua bela
fazenda na invernada.
Zeloso de sua família, cuidava diligente da educação dos filhos e do seu futuro. Todavia, se conhecido por bom, era também temido por intransigente com seus
códigos de honra e duro na aplicação do castigo, que sempre ministrava tanto aos servos como aos demais.
Vivia vida tranqüila. Na verdade, porém, nem de leve conhecia a metade dos acontecimentos que lhe invadiam o lar.
Tanto a esposa como os filhos e os servos, tacitamente encobriam os assuntos desagradáveis, a fim de evitarem aborrecimentos.
Por isso, quando sua filha contou em lágrimas à sua mãe que fora seduzida e abandonada, a mulher, temerosa e aflita, pensou unicamente na maneira de ocultar
ao marido tal desgraça. Temia-lhe a justiça inflexível que certamente puniria terrivelmente sua própria filha.
A jovem por alguns meses, para a casa de sua madrinha um tanto distante e, lá, deu à luz um menino, que para poder ser visto sempre pela mãe, foi dado a um dos
empregados do pai, humilde lavrador, para criar.
A jovem regressou ao lar, vivendo traumatizada pela dor de ter que quase ignorar a presença do próprio filho.
José Justino, entretanto, na austera atmosfera de sempre, arvorando-se em juiz, continuava a castigar rudemente todos aqueles que apanhava em erro.
Ignorava, contudo que seu filho mais velho, em quem depositava as mais ardentes esperanças, vivendo na cidade, cursando escola superior, envolvera-se em escabroso
romance com uma senhora casada e sofria chantagem terrível da parte de um salafrário, que para não mostrar ao marido injustiçado algumas fotografias comprometedoras,
exigia somas cada vez maiores.
O rapaz, no paroxismo da angústia, havia alguns meses recorria à mãe, que, por sua vez, subtraía ao pai a importância pedida.
José Justino, pela energia das suas atitudes e sua vida impoluta, provocava profundo temor e respeito em todos. Dizia sempre que soubera realmente educar os
seus e manter bem alta a dignidade da família.
Todavia, a situação era falsa, e um dia, José Justino surpreendeu palestra reveladora entre a esposa e a filha angustiada. Num relance, tomou conhecimento de
tudo. Sentiu-se empalidecer. Fisionomia transtornada pelo ódio, expulsou a filha de casa, ameaçando-a de morte, proibiu terminantemente que seu filho mais velho
regressasse ao lar e passou a derramar toda sua revolta sobre a angustiada esposa.
Tornou-se desconfiado, irascível.
A esposa, amargurada, sofreu vendo sua querida filha escondida em casa do lavrador humilde que lhe agasalhara o filho, e desesperou-se sentindo a angústia do
filho, a quem se viu impossibilitada de enviar dinheiro.
Mas José Justino, se era inflexível, também era pai, e sofreu a tremenda desilusão. Sentiu a solidão do casario vetusto e a morte das suas esperanças felizes.
Pela primeira vez sentiu dificuldade em aplicar castigo aos culpados. Para não sucumbir de dor e desespero, orou ao Senhor em busca de proteção e amparo, de forças
para não fraquejar na energia e na dureza das suas deliberações.
À noite, adormeceu e sonhou que se encontrava em agradável lugar, rodeado de amigos, a quem confidenciou suas desilusões. Ninguém lhe respondeu às palavras doloridas;
afastaram-se discretamente, dando passagem à luminosa figura envergando uma toga negra.
O recém-vindo sentou-se ao seu lado e, depois de cumprimentá-lhe disse:
- Vim ajudar-te. Tua rogativa comoveu-nos.
José Justino, confortado, começou a desfiar suas mágoas, quando o outro interrompeu:
- Sei de tudo. Devo dizer-te, a bem da tua felicidade: não tentes julgar ninguém. Perdoa, José. Recebe tua filha de braços abertos e a ensina-a amar-te mais
pela bondade e pela compreensão do que pelo temor. Abraça teu filho e busca orientá-lo com amor e segurança, rumo à vida honesta que sempre viveste!
O velho fazendeiro estava boquiaberto. Um juiz a dizer-lhe que pactuase com o erro, que perdoasse!
Apenas pôde articular:
- E a justiça? Não estarei sendo conivente com o erro? Não é possível perdoar! Minha formação moral o impede!
- A Deus compete a verdadeira justiça. Acorda para a realidade, José. Esquece os vícios do passado! Como eu, tu foste juiz em encarnação anterior. Rigoroso e
cumprindo à risca a lei humana, cometeste muitas injustiças. Condenaste um pobre homem que furtara para dar pão aos seus filhos a alguns anos de prisão. Depauperado,
o infeliz não suportou a prisão e veio a desencarnar pouco depois, deixando órfão um filho menor, que só e abandonado, fraco e irrefletido, entregou-se a toda série
de loucuras, desencarnando ainda jovem e em precaríssimas condições. A esposa, para manter o lar, então abandonado, escorregou para a prostituição, desesperada e
ainda incapaz de vencer honestamente sua prova.
Fez ligeira pausa, observando serenamente a fisionomia de José Justino que o remorso ensombrava. Continuou:
- Deus-te o Senhor nova oportunidade de refazeres o mal praticado recebendo em teu próprio lar, como teus filhos, a esposa e o filho do homem que rigorosamente
condenaste, para que, com amor e paciência, compreensão e tolerância, lhes ensines novamente caminho certo. Queres agora fugir à tua responsabilidade?
José Justino, envergonhado, sentindo-se arrependido, deixou pender a cabeça, entristecido.
O outro, abraçando-o com carinho, continuou:
- O respeito é uma grande virtude quando advém do amor e da confiança mútuos. Mas, quando imposto pelo terror e pela rigidez de princípios, torna-se veículo
da hipocrisia e da desilusão. Aprende a perdoar, José, e tudo se resolverá.
E no dia seguinte, ao acordar, José Justino surpreendeu a esposa ao pedir-lhe humildemente perdão e mandá-la buscar os dois filho.
Marcos Vinícius


O Genuflexório

Franzino, magro e miúdo, o menino, sentado a um canto da igreja, tinha os olhos fixos, não na pompa dos altares, não na púrpura carmezim dos oficiantes; não
na majestade das imagens mudas e asmática, mas num luxuoso genuflexório, colocado na ante-sala do altar-mor.
Tratava-se de uma peça antiga e artisticamente trabalhada. De maneira negra e estofado em vermelho, trazia já a forma dos muitos joelhos sustentados.
A missa era de gala e o burburinho dos fiéis grande. Entretanto, nem por um instante o jovenzinho desviou os olhos do sóbrio móvel.
Quando o ofício terminou, sua mãe, indiferente ao interesse não observado, chamou-o diversas vezes, e como não obtivesse resposta, puxou-o delicadamente pela
mão, arrastando-o quase nave afora.
Entretanto, funda mudança revelou o menino daí por diante. Sempre que podia voltava à igreja, de onde dificilmente conseguiam tirá-lo. Lá permanecia, quieto,
mudo, ensimesmado, olhos apenas para o genuflexório.
A princípio sua mãe, católica praticante, achou bom que o menino se interessasse pela igreja, mas com o correr dos dias, notando a singularidade do fato, sua
alegria transformou-se em preocupação. A situação chegou a tal ponto que nem a proibição da mãe o detinha. Fugia assim que deixavam de vigiá-lo e ia à igreja.
Um dia, depois de encontrá-lo mais uma vez na igreja em muda contemplação, sua mãe, transtornada, pediu conselho ao padre, que profundamente intrigado, o interrogou:
- Menino o que vem você fazer sempre na igreja?
O menino, sem desviar o olhar do objeto do seu enleio, respondei:
- Olhar, padre.
- Olhar? O quê?
- Aquele lugar onde todos os dias o senhor ou o monsenhor se ajoelham.
- O genuflexório?!!
- Sim. E esse o nome?
- E. Você gosta dele?
- Não sei...
- Olhar!
O interrogatório seguiu por aí afora, sempre versando sobre o esse tema, findo o qual tanto o padre quanto a mãe .estavam mais preocupados e intrigados ainda.
Levando a senhora para a sacristia, o padre falou-lhe de desequilíbrio emocional, de idéias fixas, e aconselhou-a a ir a um bom psiquiatra.
A pobre senhora sentiu-se ainda mais angustiada diante da sombria perspectiva. O psiquiatra procedeu a rigoroso exame e comprovou que a sanidade e o desenvolvimento
mentais eram normais no garoto, e aconselhou a mãe a dar-lhe por algum tempo a liberdade de ir olhar a peça de sua predileção.
Todavia, o padre sentiu-se incomodado com a presença na igreja daquela figura imóvel, olhos fixos, e ao cabo de certo tempo, em reunião com os pais do menino,
resolveu emprestar-lhe a velha peça até que o rapaz se curasse da mania.
Foi assim que o menino levou o genuflexório para casa. Seus olhos brilhavam quando o colocou em seu quarto. Todos os dias passava horas de joelhos, olhos fixos,
sem nada ver.
No paroxismo da angústia, não se conformando com a situacão, foi um dia sua mãe orientada a procurar um centro espírita.
Desconfiada e envergonhada, com receio de ser vista pelos conhecidos, disposta a mais aquele sacrifício supremo, com o coração descompassado, foi à casa de conhecido
espiritista que, inteirado do caso, prometeu-lhe realizar uma reunião em sua casa, levando alguns companheiros.
Na noite que aprazada foi realizada a sessão, e através de um dosmédiuns presentes manifestou-se imediatamente o espírito de uma mulher chorosa e aflita.
Chamava por Marcelo, dizendo que novamente iam separá-los.
O menino, que presenciava a cena, caiu em pranto convulso, numa reação tão inesperada quanto sua apatia era acentuada. Gritava em altos berros:
- Não! Não!!Não!!
No ambiente emotivo que se formou, após serena prece do dirigente da runião, os ânimos se foram acalmando. E enquanto se ouvia ainda os soluços incontidos do
menino, manifestou-se através dos médiuns a suave voz de um mentor espiritual:
- Tranqüiliza-te,Marcelo. Tem confiança nos desígnios do Senhor. Contemplaste hoje parte da tarefa que te competia desempenhar em atendimento do passado. Quando
em encarnação anterior desposaste formosa donzela, a amavas com profundo sentimento. Porém, quando por circustâncias naturais e necessárias à evolução espiritual
de ambos ela adoeceu e morreu, três anos depois, grande foi o teu sofrimento. Não querendo aceitar a vontade sábia do Pai, mandaste construir na rica capela do teu
castelo uma urna especial, onde colocaste o seu corpo, e lá, durante o resto da tua vida na Terra, permaneceste em oração e contemplação constante, como se ela fosse
o próprio Deus! Amando-te também e sem forças para afastar-se do local, fortemente atraída por teu pensamento afetivo, o espírito dela permaneceu a teu lado, surdo
ao apelo e aos conselhos dos amigos do plano espiritual. O tempo foi passando e tu, também velho e alquebrado, vencido por incurável moléstia, passaste para a vida
maior. Entretanto, por circustâncias próprias e caracterísricas, foste, ainda em sono letárgico, após a morte do corpo físico, levado para longe por amigos dedicados.
Lembra-te que quando recuperaste a consciência rogaste permissão para ver a esposa bem-amada. Entretanto, somente o conseguiste depois de muito esforço no campo
moral e muito trabalho em benefício do próximo. Porém, foste encontrá-la ainda jungida, não mais ao seu próprio corpo, que não era o móvel do seu interesse, mas
ao genuflexório que compraste e colocaste junto ao seu túmulo na capela, e onde permanecias durante horas imantado às tuas lembranças. Sem poder ver-te nem saber
o que te havia acontecido, ela ligara-se ao genuflexório, único elemento que no seu entender deveria levá-la a ti novamente. Acompanhara-o por toda parte durante
todos aqueles anos, sempre aguardando ansiosamente o reencontro. Não te ouviu quando procuraste convencê-la da inutilidade do seu gesto, o quanto fizeste redundou
inútil. Reconhecendo-se culpado pela situação, te dispuseste ao sacrifício da reencamação para libertá-la da terrível prisão. Viste o velho genuflexório na igreja
e sentiste de imediato a ligação que se estabeleceu entre tu e ela, que não te viu como criança que ainda és, mas como a figura do seu esposo muito amado. Entretanto,
meu filho, vinhas para libertá-la e não para imantarem-se os dois ao passado distante. Ora conosco para que ela possa libertar-se agora do terrível cativeiro, tão
longo quanto doloroso, e assim estarás livre para continuar tuas tarefas em outros campos. E, um dia, quando ambos disciplinarem os sentimentos, aprendendo a caminhar
rumo à libertação e à felicidade, estarão reunidos para sempre, amando-se com infinito e verdadeiro amor.
O garoto cessou de soluçar e em voz baixa fez profunda prece por aquela que amava.
A resposta foi apenas um murmúrio, mas alguns ouviram:
- Adeus, Marcelo. Compreendo!
E no dia seguinte, sem muitas explicações, o padre, intrigado, recebeu de volta o velho genuflexório.
Marcos Vinícius



A Lenda dos Uruçus

Historiando uma lenda antiga, conseguimos recompor uma pequena parte do fragmentário conto dos uruçus.
Havia, muitos anos passados, à margem do Araguaia, uma tribo de índios chamada Itumanim. Era uma tribo misteriosa e pouco numerosa. Vivia nos cerrados, seus membros
organizados em pequenas cabanas de palha, alimentando-se de peixes e frutos.
Jamais aproximavam de outras tribos e fugiam tacitamente ao contato com os brancos.
Porém, quando havia lua cheia, tomavam suas canoas e deslizavam rio abaixo, quietamente, encantados com a beleza da paisagem.
Ceta vez, uma expedição o que demandava o nordeste embrenhou-se naquelas matas, e seja por inexperiência dos seus condutoresou por ascassez de recursos, jamais
chegou ao seu destino.
Atacados pelas febres comuns naqueles sítios, alguns vieram a morrer, e os outros, sem víveres ou medicamentos, um a um pereceram, espalhando-se em redor uns
aqui, outros ali.
E quando os últimos sobreviventes jaziam por terra, os Itumarins começaram a chegar.
Desconfiados, lança em riste, aos poucos e constatando a inexistência de inimigos, a curiosidade foi mais forte, obrigando-os a abrir os pacotes atirados ao
solo, entre risonhos e surpresos.
Eis, porém, que um choro de criança feriu o ar.
Assustaram-se os silvícolas. Procuraram e, a poucos metros depararam-se com a cena dolorosa: uma mulher, estendida no chão, cabelos desalinhados e empastados
de suor, olhos embaciados e o rosto marmóreo, conservava ainda nos braços uma criança de dois ou três meses aproximadamente, como se quisesse protegê-la infinitamente.
Paralisaram-se os recém-chegados, indecisos. A criancinha chorava aflita, desamparada.
Para eles era um branco, um ser quase lendário, perigoso.
Foi aí que o inesperado ocorreu. Mani, a jovem índia, correu para ela e, num gesto rápido, tomou-a nos braços, aconchegando-a ao peito.
Havia dois dias tinha perdido o filho nascituro, e diante da revolta dos seus, aproximou o seio farto da boquinha sedenta e aflita.
Os lábios gulosos apertaram-se no seio moreno e começaram a sugar gostosamente.
Ninguém ousou tirar-lhe a criança, porém o desagrado foi geral. Temiam a má sorte, não podiam desrespeitar a lei da tribo.
A criança intrusa precisava morrer.
Interpelaram Mani, que brincava com os cabelos suaves e louros da criança, encantada com a beleza de sua face branca e rosada.
Negou-se ela a entregar o menino, e vendo que lho queriam tirar à força, ganhou o mato, embrenhando-se nele.
Buscaram-na em vão. Resolveram esperar na aldeia o seu regresso. Sabiam que voltaria.
Mas Mani não voltou. Desapareceu e ninguém mais a viu.
E, contam os caboclos que costumam atravessar aquelas paragens à noite, que altas horas, quando a lua é cheia, Mani aparece em uma canoa descendo o rio, cantando
feliz com seu filho branco nos braços,
E as jovens esposas que esperam seu primeiro filho, dizem que oram por ela, que costuma socorrer as crianças brancas, visitando-as nas horas mortas da noite.
Eis a lenda hoje fragmentada que a história conta, mas sabemos que em cada mulher há sempre um coração de mãe, que é sempre amei, pulsando pela fragilidade do
ser que Deus colocou em seus braços.
Gustavo Barroso
(Homenagem ao Dia das Mães)


A Crise


Certo companheiro, estudioso profundo da doutrina consoladora do Espiritismo, vivia satisfeito com suas conquistas no campo seu conhecimento.
Havia vários anos intentava a conclusão de um trabalho em que pudesse atender aos imperativos da divulgação doutrinária. Elaborara pacientemente, após alguns
anos de pesquisa e dedicação, um livro, onde grafara a experiência que conseguira armazenar.
No seu entender devia o livro servir de exemplo a todos aqueles que desejassem seguir com aproveitamento maior e mais rápido o caminho da libertação.
Naquele dia, ao encerrar a tarefa, sentia-se feliz. Podia esperar a morte com a consciência tranqüila.
Saiu para o trabalho cotidiano. No caminho, ia meditando sobre os detalhes de sua obra, na análise evangélica em confronto com os fundamentos doutrinários. Nada
esquecera, nem um detalhe.
A caridade era tratada em múltiplas facetas, às conquistas das virtudes dedicara grande parte do seu trabalho, salientara a necessidade do esforço próprio em
capítulo bem-cuidado. E, pensava ele, ao desencarnar colheria todo o benefício do seu laborioso trabalho.
Tão imbuído ia desse ideal que foi bruscamente chamado à realidade, sentindo que uma mão ligeira se infiltrava de leve no bolso de seu paletó, dele subtraindo
a carteira.
Num minuto, nosso companheiro segurou a mão atrevida e, como ela lhe escapasse no torvelinho da rua, gritou como louco:
- Pega ladrão!
Alguns populares conseguiram agarrar o dono da criminosa mão. Apareceu o guarda civil, e dentro de alguns minutos nosso companheiro se encontrava em uma delegacia.
Relatou os acontecimentos, dizendo-se vítima da má fé e do roubo. O punguista era conhecido no local como habitual protagonista de cenas idênticas.
Ele saiu de lá ruminando ainda o inesperado acontecimento.
Sentindo-se indisposto, ia distraído e ensimesmado, ao ponto de violenta freada demonstrar-lhe que sua vida estivera por um fio. Por mais que tentasse, não conseguiu
tranqüilizar o espírito, e à noite, já de regresso ao lar, tomou do Evangelho Segundo o Espiritismo. Abrindo-o, leu: "Fora da caridade não há salvação".
Caiu em si. Apresentou-se-lhe a realidade. Sentiu o problema daquela criatura envolvida nos dolorosos acontecimentos, fruto da própria intolerância do homem
e do desajuste social. Corou de vergonha.
Percebeu que por mais que pensasse estar equilibrado, por mais que pensasse estar experiente, bastavam alguns minutos de invigilância para demonstrar-lhe a face
oculta do seu caráter, trazida à tona pela crise momentânea que não soubera vencer.
Resolveu, então, rever toda sua obra, compreendendo que ainda não estava maduro para escrevê-la, e que o conhecimento só é suficientemente prático e aproveitável
se alicerçado na própria experiência.
Marcos Vinícius


O Compromisso
Mauricio de Albuquerque, homem fino, ilustrado e de posiçãodestacada na sociedade, sentia-se entediado. Não havia capricho que não houvesse conseguido realizar,
e sequioso de novas emoções, ingressou na política.
- A política - costumava dizer - é carreira nobre! Vamos trabalhar pelo povo, devolvendo à sociedade o que dela recebemos na vida.
E, com argumentos sólidos, construídos com base na vasta cultura social que detinha, Maurício empolgava nos comícios. Sabia falar ao sentimento do povo e não
havia quem, ao ouvi-lo, deixasse de pensar em sua figura elegante e bem-cuidada.
Eleito deputado com larga margem, sentiu que o cargo era insignificante e desejou mais. Argumentava com os amigos:
- Um deputado possui poder relativo. Para fazer o bem que almejo, preciso ter maiores poderes. Devemos trabalhar para que eu possa subir, a fim de ajudar a humanidade
sofredora!
Por isso, desde o primeiro dia de sua eleição não pensou senão nas eleições para vice-prefeito que se avizinhavam. Tinha projetos de vulto! Planos grandiosos!
Não apresentou nenhum projeto na câmara. Não lhe interessavam pequenos debates. Queria muito mais.
Atendia à soma sempre crescente de correligionários, a quem tudo prometia quando pudesse auferir melhor posição.
Vendo crescer sua popularidade, Maurício calmamente enfrentou e venceu o pleito que disputou. Foi eleito vice-prefeito. Contudo, a vitória mais uma vez não o
dispôs ao trabalho.
- Um vice-prefeito pouco pode fazer; é mera figura decorativa. Eu quero ser prefeito! Somente assim poderei executar nossos planos administrativos.
Foi aplaudido com entusiasmo pelos companheiros.
Maurício não se detinha para pensar. Não exercera nenhum dos cargos para os quais tinha sido eleito. Ocupava-os solenemente, mau tinha pose adequada, mas não
fazia senão propaganda eleitoral.
Certo dia compareceu a seu escritório pobre mulher, mal-vestida, tendo ao colo pálida criança.
Trazia nos olhos a tragédia da miséria física e moral. Maurício quis escapar, mas a visitante cortou-lhe a saída, dizendo suplicante:
- Doutor! Precisamos do senhor!
Contrariado, tanto mais que da infeliz criatura exalava um cheiro desagradável, de mofo, fumaça, suor, Maurício objetou:
- Não posso atendê-la agora. Volte outro dia.
E, com os olhos aflitos, procurava a secretária invigilante que lhe permitira o acesso.
- Por favor, doutor! Não posso esperar mais.
- Entenda-se com minha secretária. Preciso sair.
E afastando-a com brutalidade, saiu apressado. Pensou assim libertar-se dela, mas a cena repetiu-se no dia imediato.
Irritado, advertiu a secretária que não permitisse de forma, alguma a presença da incômoda criatura.
- Não a vi entrar, senhor - retorquiu, admirada, a secretária.
- Pois entrou - chasqueou Maurício, nervoso. - Que isto não mais se repita.
Mas o caso repetiu-se no dia subseqüente. Furioso, Maurício chamou a secretária, mas quando ela entrou na sala, a estranha mulher tinha desaparecido.
Olhando-o agastada, a secretária sugeriu:
- O senhor trabalhou demais na última campanha. Não seria melhor descansar por alguns dias?
- Ora, senhorita, não brinque. A mulher deve ter-se escondido em algum lugar.
Ambos procuraram, inutilmente.
- Foi-se embora - resmungou ele aliviado. - Melhor. Não tenho tempo a perder com mendigos.
Mas no dia imediato, quando entrou em seu gabinete, já lá encontrou a desconhecida. Dessa vez estava acompanhada por dois homens mal-vestidos e taciturnos.
Desejoso de acabar com a situação desagradável, resolveu atendê-la rapidamente. Suspirou resignado e inquiriu:
- O que deseja, afinal?
- Nós votamos no senhor. Estamos esperando o cumprimento das promessas que nos fez quando candidato a deputado. O senhor disse que cuidaria dos pobres, construiria
hospitais, escolas profissionais, daria emprego aos humildes. Estamos esperando.
Extremamente agastado por ver-se advertido por semelhante criatura, adotou um tom paternal para encobrir a irritação e respondeu:
- Como? Acaso não tenho planejado grandes coisas? E as farei assim que for prefeito.
- Mas senhor, meu marido não pode esperar. Está desempregado, Meu filho doente, eu enfraquecida, como fazer?
- O problema não é meu. Faço o que posso! Agora saiam, deixem-me trabalhar.
Eles se foram, mas Maurício tornou a encontrá-los em seu gabinete à espera no dia seguinte, e com eles conversou rudemente, ouvindo-lhes as reivindicações.
A cada dia que entrava no gabinete encontrava-os reunidos, sendo que cada vez seu número aumentava. Outros descontentes a eles se reuniam, elevando cada vez
mais o número de queixosos.
Querendo pôr fim à situação desagradável, discutia com a secretária, ordenando-lhe que vigiasse a porta de entrada para evitar tais visitas. Porém, tudo inútil.
Ao entrar, sempre os encontrava à espera, em quantidade crescente, exigindo o cumprimento das suas promessas eleitorais.
Até que um dia quis enxotá-los à força, dando murros a torto e a direita, depois de despedir a secretária em altos brados.
Foi então que, diante da moça trêmula, entraram alguns enfermeiros, e em poucos segundos dominaram Maurício, colocando-o em camisa-de-força.
E diante do médico surpreso, a secretária esclareceu, ainda nervosa:
- Todos os dias falava sozinho, doutor, e zangava-se comigo porque eu deixava entrar seus imaginários personagens. Hoje foi tomado de verdadeiro acesso de loucura.
Por isso telefonei ao senhor. Coitado do dr. Maurício! Foi excesso de trabalho, doutor, enlouqueceu de tanto trabalhar!
E, voltando-se, ainda viu o olhar colérico de Maurício conduzido em ambulância, e sua voz dizendo, convicta:
- Serei o prefeito! Todos votarão em mim. Vou trabalhar em benefício do povo!
A porta fechou-se e logo a sirene, abrindo caminho, apagou as palavras eloqüentes de Maurício.
Marcos Vinícius


A Clarinada
José Nepomuceno da Silva, homem maneiroso e serviçal, sempre que diante dos amigos gostava de contar casos pitorescos e, às vezes, no auge da narrativa, escorregava
ligeiramente para a senda do exagero, acelerando e aumentando a realidade, na ânsia de despertar admiração dos ouvintes complacentes.
Assim, vivia colecionando histórias e a ninguém desculpava pelos erros do caminho, pelo simples prazer de poder divulgar o acontecimento.
Era por isso temido e aborrecido por muitos, mas sempre havia os que estavam dispostos a ouvir, divertindo-se com seus chistes irónicos.
D. Emerenciana, sua esposa, espírita convicta, não gostava da atitude do marido, descrente e sem religião, fazendo do que para ela era mais sagrado motivo de
comentários pouco construtivos a terceiros. Advertia-o procurando fazê-lo ver que não se brinca com coisas sérias, mas José, com risinho de superioridade, objetava:
- Ora, o que é que tem? Por que não posso contar os casos dos "espíritos" aos meus amigos? - e acrescentava, malicioso, provocando hilaridade geral. - Eles nunca
se importaram!
- Algum dia, quando menos esperar, você sentirá que com essas coisas não se brinca!
E aos amigos tornava, irônico:
-Quando soar a clarinada para mim, obedecerei.
E ao amigos, maliciosos, balançavam a cabeça, divertidos.
Certo dia, porém, José não se sentiu bem. Sua cabeça estava pesadae parecia-lhe impossível reagir ao sono que o acometia. Sem saber o que fazer, teve ainda tempo
de aproximar-se de um sofá e caiu sobre ele, desfalecido.
Gritarias, pedidos de socorro aos vizinhos, a presença do médico que, aborrecido, declarou após o exame que José estava em coma: fora acometido de um colapso.
Durante algum tempo o facultativo tentou ouvir-lhe as batidas cardíacas, em vão. Diante dos familiares estarrecidos, declarou que José estava morto.
Imediatamente, como ocorre em tais circunstâncias, os amigos mais íntimos procuraram tomar as providências legais, e reunindo a documentação, saíram para tratar
do sepultamento, ao mesmo tempo que algumas senhoras piedosas providenciavam lhe o banho e a preparação para o velório.
Emerenciana chorava a um canto, procurando orar pelo amado companheiro. Havia desolação e angústia.
Contudo, José não havia propriamente perdido os sentidos.
No primeiro momento desfalecera de todo, mas recobrara o entendimento, e embora não pudesse ver, ouvia tudo quanto se passava ao seu redor.
Desesperado, tentou fazer algum movimento que demonstrasse estar vivo. Inútil. Não conseguiu. Queria gritar, mas a voz não lhe saía; mover-se, mas o corpo não
lhe obedecia. Parecia-lhe estar vivendo terrível pesadelo. Horrorizado percebeu que estavam se preparando para enterrá-lo.
Foi-lhe indescritível suplício o banho que as piedosas mulheres lhe ministraram, onde o horror misturava-se à vergonha.
Então, em meio a sua desesperação, conseguiu vislumbrar um homem que, sereno e digno, parecia esperar por ele.
Ao seu grito interior o desconhecido respondeu:
- José, na realidade, é dura a lição. Todavia, procura extrair dela o maior benefício possível. A morte nas circunstâncias em que te encontrás será para ti pesado
sofrimento. Procura aproveitar o tempo.
José, sem compreender bem, procurou responder-lhe, mas o desconhecido nada mais lhe disse. Levantou uma das mãos, colocando-a sobre sua atormentada cabeça. Como
por encanto, José passou a enxgar, como uma névoa rarefeita, tudo o que se passava ao seu redor.
Viu, sem que pudesse intervir, a azáfama dos vizinhos na preparação da sala, viu a si mesmo vestido de preto, imóvel, mãos cruzadas sobre o peito. Seu desespero
era intraduzível, mas chegou ao extremo quando trouxeram os paramentos e o caixão.
Foi quando que se lembrou de Deus. Orou em pensamento como havia muito não fazia, e ao término da sentida prece, o desconhecido dirigiu-se a sua esposa, segredando-lhe
algo aos ouvidos.
Imediatamente, d. Emerenciana levantou-se dizendo:
- Não me conformo. Meu José não pode estar morto. Quero outro médico, já! Não deixarei enterrá-lo sem que outro médico venha vê-lo.
Apesar de céticos, ninguém ousou negar esse desejo à viúva, e novo médico compareceu à casa.
Depois de exame cuidadoso, articulou:
- Não estou certo, minha senhora, mas acredito tratar-se de catapsia.
Imediatamente saiu, voltando pouco depois com um medicamento, que injetou no corpo cadaverizado de José.
E ante a estupefação geral, o marido de d. Emerenciana conseguiu ligeiro movimento de reação, demonstrando que ainda vivia.
Desde então, ninguém nunca mais ouviu José contar casos alheios. Para penitenciar-se, contava sempre o seu, ao qual deu o nome simples e elucidativo de Clarinada.
Marcos Vinícius


O Esbarro
Certo dia, eu, por acaso, caminhava descuidado pelas ruas do Rio de Janeiro, quando encontrei, num esbarro comum em meio aos transeuntes, meu amigo José.
Transpirava por todos os poros e, ao ver-me, desfez a careta de esforço penoso, desmanchando-se em alegre sorriso.
Depois dos abraços e cumprimentos, contou-me que ia com pressa para a residência de sua sogra, que estava passando mal, vítima de moléstia incurável.
Apesar da sua pressa, ainda tivemos tempo para uma cervejinha gelada, e entre um gole e outro José confidenciou:
- Gustavo, esse negócio de morte em família é uma amolação tremenda. Já é a terceira vez nestes quinze dias que sou chamado às pressas para vê-la nas últimas.
Entretanto, quando é quase certo o desenlace, minha sogra parece que recebe novo alento e torna a melhorar. Já estou cansado de ir e vir nessa expectativa, consolando
minha mulher chorosa, escutando opiniões das comadres e vizinhas entendidas quanto ao caso.. Você me conhece. Não é que eu deseje a morte da d. Sinhá, que sempre
foi muito boa, mas estou cansado; bem que ela podia deixar de sofrer!
Sorri, observando a fisionomia vermelha e suarenta de José, obrigado a carregar o peso dos seus 110 quilos ao locomover-se.
- Não se preocupe, José. O dia dela há de chegar... - e acrescentei, mais à guisa de consolo - O nosso também!
Ele fez uma careta:
- Espero morrer de velho, Gustavo. Quando a vida me cansar.
Terminamos a cerveja, despedimo-nos, e foi a última vez que vi José com vida, porque, conforme soube mais tarde, logo após nos despedirmos, ao atravessar uma
rua movimentada, foi atropelado por um automóvel.
A notícia chocou-me profundamente na ocasião, mormente porque conversáramos sobre a morte. Sua sogra, como ele previra, melhorou mais uma vez e durou ainda alguns
meses.
Tínhamos sido colegas de ginásio e inseparáveis nos folguedos da juventude. Quando me bacharelei, ele, por sua vez, cursava o terceiro ano de Engenharia, não
vindo a formar-se por razões financeiras. Casamos-nos. Eu primeiro e ele pouco depois, e por uma decorrência natural das nossas ocupações, espaçamos nossos encontros.
Enquanto eu militava no Jornalismo e na Advocacia, ele trabalhava para uma grande firma no departamento técnico.
José morreu aos 45 anos, deixando esposa e dois filhos inconsoláveis.
Quando adoeci, muitos anos depois, a lembrança do meu amigo José acudia-me constantemente e eu julgava estar abalado pela fraqueza provocada pela doença. Assim,
vencido, prostrado por moléstia invencível, fui perdendo as forças, até que compreendi que algo inusitado se passava comigo.
Parecia-me estar sob o efeito de um soporífero, desses que nos tolhem os movimentos, mas que permitem ainda o funcionamento do raciocínio.
Longo tempo permaneci nesse estado, lutando por conseguir recuperar o equilíbrio, de posse de mim mesmo. As vezes, tinha a impressão de voltar aos dias da minha
juventude, na revivescência de fatos emotivos; outras, caminhava entre pessoas estranhas e ocupadas que nem sequer se apercebiam da minha presença.
Até que um dia, num desses passeios, num esbarro mais violento, reconheci meu amigo José. Estava um pouco diferente, mais sério e composto, mas o mesmo sorriso
amigo distendeu seu rosto quando me viu.
- Estou sonhando de novo - pensei -, o Zé já morreu!
-Você está enganado, Gustavo. Sou eu mesmo! -Vendo minha estupefação, ajuntou: - Vamos conversar em um local sossegado.
Reparei que estávamos na mesma rua onde nos havíamos encontrado pela última vez. Instintivamente procurei com os olhos o bar onde havíamos estado juntos.
- Lá não - atalhou José. - Vamos à praça, mais adiante.
Caminhamos e nos assentamos em um banco do jardim.
A medida que caminhávamos eu me sentia revigorado e lúcido, como quando gozava de saúde, e por isso mesmo o raciocínio mais fácil não entendia o nosso encontro.
- Olhe-me bem!
Olhei.
- Você está bem disposto. Mas essa marca na testa, o que foi isso?
- Foi do acidente. Mas não importa. O certo é que estamamos aqui, e preciso contar-lhe uma coisa extraordinária!
- Espere... não posso compreender por que estamos aqui! Você está morto! Fui ao seu enterro!
- E eu paguei-lhe na mesma moeda. Assisti ao seu com toda as pompas e rituais.
Senti um violento choque, ao mesmo tempo que os males físicos que me afligiam voltaram a molestar-me:
- Você quer dizer que eu...
- Está morto, meu amigo! Ou melhor, está vivo, apesar do seu corpo ter morrido há quase um ano.
Acabrunhado, percebi que ele tinha razão, e ao mesmo tempo senti uma pena infinita de mim mesmo. Meu amigo sorriu e esclareceu:
- De há muito venho desejando este encontro entre nós, mas você fugia de mim sempre que o procurava.
Baixei a cabeça, confuso: nunca gostara da presença de mortos, seja de amigos ou familiares. Parecia-me superstição crer na existência deles.
- Foi quando - continuou meu amigo - lembrei-me do esbarro que tínhamos dado na avenida Rio Branco, na última vez em que mos vimos na Terra, e não tive dúvidas,
utilizei o recurso. Parece que consegui o objetivo.
Levantei os olhos para ele, e vendo-o tão bem disposto e alegre, concluí que a vida que me esperava não podia ser penosa. Retruquei conformado:
- Faz tempo que nos separamos e você ainda se lembra de mim. É um conforto vê-lo neste transe difícil.
- Outros estão em piores condições. Nós podemos considerar-nos felizes.
- Foi muito dolorosa sua morte? Se soubesse como fiquei abalado com o ocorrido!
- No momento mesmo do acidente nada senti, para lhe ser franco. Entretanto foi preciso também um esbarro para que eu acordasse. Minha sogra veio até onde eu
me encontrava e sua presença produziu em mim a concatenação de idéias que estavam esparsas em minha mente pelo choque. Vendo-a, liguei meu pensamento à minha desastrosa
ida à sua casa, e percebendo-lhe o estado de saúde de bom, renovado, no primeiro instante irritei-me porque julgava que mais uma vez me houvessem chamado inutilmente.
Quando ela me contou a realidade, não quis acreditar, precisando ir com ela ao cemitério para ler seu epitáfio e o meu. Entretanto, Gustavo, minha surpresa não foi
somente essa. Muitas outras me estavam reservadas, e certamente a você também surpreenderão.
Parecia-me incrível tudo quanto ouvia, e notando meu estadao de perplexidade, explicou:
- É meu amigo é fácil para você agora encontrar o desfecho para essa história, tão diferente das que costumava escrever, mas dela eu faria uma simples crônica
despretensiosa e a intitularia: "A história de um providencial empurrão", ou apenas "Um caso de associação de idéias pela psicanálise aplicada", método que se usa
até no além-túmulo!
Gustavo Barroso


A Punição
Jarbas de Aguiar era um homem profundamente honesto.
Trabalhava duramente valorizando o minguado salário que se esvaía diante das necessidades numerosas de sua família.
Havia catorze anos exercia o cargo de contra-mestre numa fábrica, e era estimado pelos patrões por sua energia para com os operários, vigiando-os no andamento
do trabalho sob sua responsabilidade.
Por ser homem de rígidos princípios, não tolerava o mínimo deslize, exigindo sempre o máximo de todos.
Certo dia, chamado à sala do gerente, foi informado de que havia sido descoberto um desvio de material, que por sua particularidade, podia-se presumir que tivesse
ocorrido na seção que Jarbas dirigia.
Profundamente chocado, sentiu-se no dever de garantir ao chefe que puniria energicamente o culpado, entregando-o à polícia.
O gerente, entretanto, homem de boa índole, esclareceu:
-Não quero escândalo. Não o culpo pelo ocorrido, essas coisas podem acontecer. Todavia, precisamos descobrir quem são e como realizam o trabalho. Despedirei
o culpado e tudo estará terminado. Afinal, descobrimos logo e os prejuízos ainda são pequenos.
Jarbas deu um pulo, aproximando-se mais da mesa do seu chefe.
- Isso é que não! O sr. precisa punir o culpado! Precisamos dar exemplo aos demais. A impunidade agasalha e estimula o crime. Sou de opinião que o sr. deve avisar
a polícia e o culpado ser preso publicamente, para servir de lição aos demais.
- O sr. acha?
- Claro! Se todos os que erram fossem punidos com severidade, certamente cuidariam de não errar mais. Depois, o caso foi na minha seção, também sou responsável.
Peço-lhe para recorrer à polícia.
- Está bem, se insiste. Mas chamarei um amigo meu que é investigador e fará tudo particularmente.
Via-se-lhe no semblante a contrariedade por assumir tal atitude.
Fingindo tudo ignorar e admitindo o investigador como operário comum, trabalhando com os demais, não foi difícil descobrir o culpado e surpreendê-lo em flagrante.
Imediatamente prenderam-no e dirigiram-se ao gabinete do gerente. Tratava-se de um jovem de dezoito anos, de aparência humilde, que, pálido, não encontrava palavras
para explicar-se. Fazia mais de um mês que estava na firma.
O gerente olhava o rapaz com pena e desagrado. Jarbas, que os acompanhara, censurando o jovem asperamente, continuava:
- Um homem forte como você! Devia se envergonhar! Emporcalhar-se com uma ninharia dessas! Agora vai passar bons dias descansando na cadeia, que é o lugar adequado
para um ladrão como você!
Assustado, profundamente humilhado, o jovem não ousava levantar o olhar.
- E então? - inquiriu o gerente.
O moço não respondeu.
- Não pode explicar sua atitude?
Aturdido, o rapaz balbuciou:
- Gosto de uma moça. Queria me casar com ela.
- ISSo não é motivo, é desculpa - interrompeu Jarbas.
O jovem, percebendo o bondoso olhar do gerente, voltou-se para ele e gritou, desesperado:
- Por favor! É verdade! Podem crer. Eu queria o dinheiro para me casar!
O gerente, cujo filho andava com a mesma idade, comoveu-se subitamente.
- Casar-se! Tão jovem!
Levantando a cabeça com certa altivez, o jovem respondeu:
- Sim. Embora não pareça, sou um homem de bem. Eu preciso me casar com ela. Vai ser mãe e eu sou o responsável!
Parecendo meditar profundamente, o gerente tornou:
- Que idade tem ela?
- Dezesseis!
- Não lhe ocorreu que poderia pedir auxílio a outras pessoas e que escolheu o pior caminho?
- Creio que tem razão. Mas eu estava desesperado. A família dela não sabe de nada. É gente direita, e ela tem medo das conseqüências. íamos fugir juntos.
Vendo que seu chefe se abrandava, Jarbas interveio:
- Não acredito. Se fosse moça direita não estaria nessa situação. Se a família dela fosse honesta, não deixaria a filha às soltas por aí. E essa liberdade em
demasia que aniquila com a honra das famílias. Os pais são culpados por não saberem dar exemplo a seus filhos! É melhor terminarmos logo com isto. Todo crime deve
,ser punido! Por isso, tomei a liberdade de avisar o guarda do posto. Deve ser ele que chega.
De fato, passos ouviam-se do lado de fora.
Pressuroso e fingindo não ver o olhar contrariado do chefe correu para abrir a porta. Parou, surpreso. Uma moça soluçando, de olhos vermelhos, entrou correndo,
e abraçando o joveme em desespero, disse:
- Walter, soube o que aconteceu. Também sou culpada. Eu que tive a idéia. Se você for preso, também devo ir.
Jarbas, olhos arregalados, pálido e trêmulo, não tinha mais argumentos, nem para dizer que aquela moça era sua própria filha!
Marcos Vínícius


A Gravata
Luxuoso carro parou silenciosamente frente ao suntuoso jardim de elegante residência.
Um jovem e refinado rapaz desceu apressado, ingressando quase a correr na casa silenciosa.
Estava irritado e aborrecido. Desagradável acidente forçara o seu regresso. Tinha pressa. Linda mulher o esperava para ir ao teatro, e o tempo inexoravelmente
se esvaía. Ele sabia que se atrasaria. A conquista fora difícil e a jovem era de importante família da sociedade. Depois de meses consumidos em reiteradas tentativas
para sair com ela, pela primeira vez conseguira fazê-la aceitar aquele passeio.
Vestira-se com especial cuidado. Escolhera com atenção a camisa, a gravata fora comprada especialmente após caprichosa e demorada procura, e os sapatos foram
polidos. Cuidara ao máximo de sua aparência. Sabia-a elegante e exigente.
Impaciente, aprontara-se cedo e resolvera passar pelo clube para ver alguns amigos e preencher o tempo que lhe faltava para o encontro marcado.
Estava prestes a despedir-se deles quando acontecera o imprevisto: um dos companheiros, contando uma piada, um tanto entusiasmado, apoiara uma das mãos em seu
braço, exatamente no momento em que levava o cálice de aperitivo aos lábios.
O vinho derramara-se em sua gravata elegante, salpicando-a de manchas, que se espalharam rapidamente.
O jovem dera um salto de susto, tentara limpá-la, mas só fizera sujá-la mais. No auge do desespero, destratara o amigo, que, encabulado, se desculpava.
Aflito olhara o relógio: faltavam dez minutos para a hora aprazada. Como sanar a dificuldade? As lojas tinham fechado. Seus amigos estavam com roupa esporte,
nenhum lhe poderia emprestar uma nova gravata.
Resolvera ir para casa trocá-la. Não podia comparecer ao seu encontro daquela maneira.
Saíra precipitado. Sua casa era distante, e embora pisasse no acelerador, os dez minutos se escoaram no percurso.
Entrou em casa correndo. Por sorte a porta estava apenas com o trinco. Naturalmente seus pais já se tinham recolhido.
Tal era sua pressa que não acendeu a luz. A passos largos galgou a escada, entrou em seu quarto e ligou o interruptor.
Rápido apanhou uma gravata que lhe pareceu a mais indicada e colocou-a ao redor do pescoço. Foi aí que ouviu vozes alteradas no quarto ao lado.
Apesar da pressa, esse rumor desusado prendeu-lhe a atenção. Seus pais eram pessoas educadas e amigas. Jamais discutiriam.
Aproximando-se da porta, ouviu a voz do pai dizer, abafada:
- Garanto-lhe que não tenho mais nada em casa! É tudo.
Outra voz fanhosa e desconhecida berrou:
- Não acredito. Conheço gente da sua marca! Sei que ,seu filho gasta a rodo. Não se faça de bobo. Solte a gaita. Esse revólver não é de brinquedo, moço!
O jovem compreendeu num segundo o que acontecia: sua residência estava sendo assaltada. Precisava fazer alguma coisa!
Aquele indivíduo era perigoso.
Sabia que o pai falava a verdade. Eles não guardavam as jóias ou muito dinheiro em casa. Nervoso, apagou a luz do quarto e, sorrateiramente foi ao escritório
do pai, onde sabia existir um revólver. Fechando a porta, telefonou para o posto policial mais próximo pedindo socorro.
Apanhou a arma e certificou-se de que não estava carregada. Procurou, mas não encontrou as balas. Voltou ao seu quarto. Ao passar pela porta do aposento dos
pais, no corredor, propositadamente fez forte ruído. Seu quarto ficava pegado ao dos seus pais e havia entre eles uma porta de comunicação. Fechando a porta que
dava para o corredor, esperou.
Ouviu a voz assustada do assaltante:
- O que foi isso?
- Não sei... - respondeu o pai.
- Sei que não há ninguém em casa. O criado já está bem amarrado. Preciso ver...
Ruído de porta se abrindo levemente. O jovem sustinha a respiração, enquanto segurava o revólver descarregado.
Quando ouviu passos no corredor, não perdeu tempo. Abriu a porta de comunicação e rápido agarrou o pai, surpreso, e a mãe semi-desfalecida, e arrastou-os ao
seu quarto, fechando à chave a porta intermediária.
Os três sustinham a respiração e não ousavam conversar.
Novos passos no corredor. Uma voz praguejava, ameaçadora:
- Onde estão? Não adianta se esconderem. Ah! Passaram por essa porta.
Ruído forte do trinco sendo forçado. O rapaz colocou-se atrás da porta com a coronha da arma pronta para abater o ladrão, se fosse preciso.
- Vou atirar na fechadura e matá-los como cães! Abram já esta porta!
Silêncio.
O assaltante deu alguns pontapés, mas a porta não cedeu.
Foi quando o ruído da sirene se fez ouvir. Correrias, tiros, e no fim a polícia conseguiu prender o meliante.
Os três respiraram aliviados. Imediatamente, após as primeiras informações dos guardas, cuidou o jovem de ministrar um calmante aos pais.
Quando tudo serenou, o pai perguntou, admirado:
- Você não ia ao teatro? Como conseguiu descobrir o que ocorria e voltar para casa?
Um tanto impressionado ainda pelos últimos acontecimentos, o moço respondeu:
- Eu não sabia de nada. O que me trouxe para casa foram apenas algumas manchas de vinho em minha gravata!
- Providencial foi o braço que as ocasionou, salvando-nos assim a vida!
- Tem razão, papai. - E lembrando-se do amigo a quem ofendi duramente, continuou: - Vou imediatamente telefonar-lhe agradecendo. Devo-lhe também desculpas. Além
do que, preciso telefonar a outra pessoa explicando-lhe o sucedido. Talvez possa perdoar-me.
- Estou certo que ela compreenderá, meu filho.
E enquanto o rapaz corria ao telefone, com mãos trêmulas ainda, o pai pegou a gravata manchada que fora atirada sobre a cama. Fitando-a pensativo, disse à esposa:
- Esta noite devemos a vida a esta preciosa e manchada gravata.
E quando a esposa o olhava um tanto escandalizada, objetou:
- Não foi ela instrumento de Deus?
Marcos Vinícius'


O Saber Esperar
Certa vez, em antiga cidade da Arábia, havia um velho mercador que vivia pobremente em humilde casebre.
Seu velho sonho era o de possuir um belo tapete com o qual pudesse adornar sua casa enquanto vivesse, e seu túmulo quando a morte o convocasse, inexorável.
Entretanto, não desejava um tapete comum, mas um raro e custoso trabalho que encerrasse todas as qualidades e não tivesse nenhum defeito, por mais insignificante
que fosse. Havia longo tempo trabalhava para o sustento e economizava dos seus parcos recursos a fim de amealhar o suficiente para a realização do seu velho sonho!
Após a poupança de muitos anos calculou que já possuía quantia animadora, e resolveu procurar a peça para verificar se já estava em condições de adquiri-la.
Começou então a busca.
Por suas mãos experientes e por seus olhos inquiridores passaram dezenas de peças, em uma variedade verdadeiramente prodigiosa. Todavia, se algumas provocaram
verdadeira explosão de entusiasmo, decepcionava-se em seguida porque logo se atentava em algum defeito.
Gastou assim longo tempo e chegou, por fim, à conclusão de que o tapete com o qual sonhava não existia. Ninguém ainda conseguira fabricá-lo. Os amigos aconselhavam-no
a desistir da busca ou a contentar-se com os belos mas imperfeitos trabalhos que examinara, mas o velho mercador abanava a cabeça, resoluto, dizendo:
- Se o tapete perfeito que eu desejo não existe, é preciso fazê-lo. E, se ninguém consegue fazê-lo, eu farei!
Alguns, observando sua idade um tanto avançada, riam-se dele, acreditando-o senil. Outros tentavam dissuadi-lo, mostrando-lhe sua ignorância na arte difícil
do artesanato. Mas o mercador, obstinado, procurou por uma casa onde se fabricavam lindos e coloridos tapetes e humildemente começou a trabalhar como aprendiz, iniciando-se
na tecelagem.
Depois de algum tempo de esforço e força de vontade, julgou-se com conhecimentos suficientes, e despedindo-se dos companheiros que o tinham ensinado, preparou-se
para iniciar seu trabalho. Adquiriu todo o material, tendo cuidadosa e pacientemente examinado sua qualidade, e finalmente iniciou corajosa mente o trabalho.
Durante os anos que lhe restaram de vida trabalhou na confecção do seu tapete. Cada dia, ao encerrar a tarefa, admirava embevecido sua obra e não hesitava em
desmanchar o ponto que lhe parecia imperfeito. Sentia-se feliz. E pensava:
- Jamais alguém teceu um tapete tão belo e perfeito como este.
Quando desencarnou não havia conseguido terminá-lo, mas seus amigos, conhecendo-lhe o velho desejo, adornaram seu túmulo com o tapete inacabado, procurando assim
cumprir seu último desejo.
Durante muito tempo o espírito do mercador desencarnado permaneceu jungido ao tapete, procurando terminá-lo. Nada pôde afastá-lo dessa obstinação, até que foi
novamente atraído à reencarnação na Terra.
Viveu existência difícil e obscura, procurando por algo que não sabia definir. Quando o sofrimento o atingiu nas lutas de cada dia, objetivando reajuste inevitável
com a Lei, encontrou nele reservas inusitadas de paciência e resignação, de esperança e confiança no porvir. E, assim, seu espírito foi atravessando algumas existências,
enriquecendo-se cada vez mais de virtudes, até que, após uma proveitosa e vitoriosa encarnação, foi recebido festivamente pelos amigos e companheiros alegres no
plano espiritual.
Durante a recepção, emocionado diante de tantas atenções e demonstrações de carinho, num vislumbre retrospectivo, recordou-se de algumas encarnações anteriores,
e, num átimo, lembrou-se, como a criança que se recorda de uma travessura, do seu antigo desejo de obter um tapete perfeito.
Usando os arquivos da memória, desejou rever o tapete inacabado que durante tanto tempo o maravilhara.
Tdavia, o trabalho que se lhe apresentou à visão decepciou-o. Não possuía nada de maravilhoso, pelo contrário. Vendo-o como realmente era, notava-lhe uma porção
de defeitos. Um tanto encabrunhado, verificou que seu sonho de tantos anos não passava de um trabalho de principiante, muito inferior aos que tantas vezes examinara
e se recusara a comprar.
Foi quando notou a presença de luminoso companheiro e amigo, que acompanhando-lhe o pensamento, disse-lhe:
- Não te envergonhes da tua obra, por mais imperfeita que ela agora te pareça. Há muito mais valor na obra que sai das nossa mãos, do nosso esforço, da nossa
vontade, por mais carentes que sejam, do que as que passam pelos nossos olhos, por mais belas que se nos afigurem. O tapete inacabado é precioso para ti, porque
ele deves o desenvolvimento da tua força de vontade, a conquista da humildade, por ter reiniciado, em idade avançada, um aprendizado difícil. Recorda-te que já tuas
mãos não eram firmes, teus olhos não enxergavam claro e teu corpo doía no esforço da posição que o trabalho exigia. A ele deves a conquista da paciência ao construíres
com tuas próprias mãos o trabalho desejado. Olha bem para ele e perceberás o quanto lhe deves!
O ex-mercador, comovido, fitou novamente o velho tapete inacabado, e com espanto notou que ele se revestia de luz em diversos pontos, colorindo-se de maneira
admirável. Em poucos instantes transformou-se no mais belo e maravilhoso tapete que jamais vira.
Surpreso, voltou-se para o amigo, que explicou, sorrindo:
- Enquanto, continuavas tuas lutas na Terra, teus amigos resolveram ajudar-te para que continuasses a confecção do teu tapete. Para isto, constituíram pontos
de contato entre as virtudes que desenvolveste na confecção da peça, impregnando-a. Tu mesmo, à medida que as desenvolvias, colorias e melhoravas o tapete que ora,
na festividade do teu regresso, te entregamos, como símbolo que é da conquista da tua perfeição espiritual, que, como sabes, era e é a única meta que inconscientemente
te norteava os desejos. Leva-o agora para adornar o lar que te espera no aconchego deste regresso feliz e lembra-te sempre que na vida, para a conquista do que almejamos,
é imprescindível saber esperar.
Marcos Vinícius


O Retrato

Em augusta sala de nobreza rica, coberta de brocado e de púrpura cinzelada, um homem posava, ereto, para que famoso pintor o retratasse.
Trazia sobre o corpo elegante e bem-proporcionado rica vestimenta bordada, que se completava com as rendas da camisa e os sapatos de cetim.
Tinha pouco mais de trinta anos e conservava ainda no olhar da mocidade, embora misturado ao excesso de satisfações mudanças e à fria frivolidade dos salões.
Exibia nos lábios finos e bem-delineados uma curvatura de superioridade e desdém; nas mãos nervosas e nos dedos recobertos de anéis a impaciência de ter a sociedade
e o tédio das facilidades.
O artista trabalhava calado. O pincel corria incessantemente, e seu olhar sério ia da figura elegante que retratava à tela que gradativamente ia se transformando
na cópia fiel do soberbo modelo.
O gênio trabalhava como que bafejado de profunda inspiração, e o nobre senhor identificou-se, satisfeito, no esboço que já aparecia nítido e bem-traçado.
Depois de algumas sessões, o quadro ficou terminado, e seu dono, muito satisfeito pelo trabalho, deu por ele pequena fortuna.
Mandou colocá-lo no lugar de honra da rica galeria onde figuravam seus ancestrais ilustres, e com satisfação reconheceu-lhe a superioridade em relação aos demais.
E, se antes buscava o espelho para observar cuidadosamente sua figura, em vaidoso culto de si mesmo, passou a observar o retrato, envaidecendo-se da sua figura
jovem, forte, elegante e bela.
Os anos sucederam-se e o nobre fidalgo, sempre que podia, postava-se diante do quadro, embevecido, pensando:
- Como sou belo! Como sou elegante!
Esqueceu-se do espelho, e com o tempo chegou mesmo a esquecer-se de que encanecia e que seu corpo cansado, envelhecido, nem sequer recordava a figura do retrato
de havia tantos anos.
E quando recebia os amigos, mostrava-lhes o retrato, comentava a fidelidade com que fora produzida a tela. Não lhes via a fisionomia divertida nem a tolerância
intencional que lhe demonstravam.
Certo dia adoeceu gravemente. Não podendo levantar-se para ver o quadro, ordenou aos familiares que lhe colocassem o leito na galeria, de forma que pudesse fitá-lo
sempre que abrisse os olhos.
Atendido em seu capricho de doente incurável, durante seus últimos dias de vida permanecia horas e horas fitando a tela, maravilhado. Quando desencarnou, seu
espírito não quis afastar-se do local, jungido ao retrato que venerava.
Longos anos se passaram, até que o quadro, considerado precioso, foi doado a um museu como importante relíquia.
O espírito, que dele não se havia afastado, o acompanhou, e lá assistiu, orgulhoso, às manifestações de admiração e de entusiasmo que o retrato provocava.
Entretanto, cedo observou que outros objetos havia no salão do museu, que também causavam admiração geral, e aborrecido, desejou voltar à sua galeria. Mas não
conseguiu sair dali com o quadro, por mais que desejasse.
O espírito de sua mãe, vendo-o em tão tristes circunstâncias, desejando ajudá-lo, passou a assisti-lo de perto, sem ser vista pois ele - dada sua extrema perturbação
-, mas ministrando-lhe passes e vibrações de amor.
Até que um dia, num repente de lucidez, ele conseguiu ver sua verdadeira face refletida num espelho. O choque foi indescritível!
A certeza de sua velhice e da transformação pela qual seu corpo havia passado arrancaram-lhe dos olhos lágrimas de desespero. Pensou em suicídio, mas todas as
tentativas resultaram inúteis.
Foi então que, no auge da angústia, não desejando aceitar a realidade e a ela adaptar-se, lançou-se de encontro à tela, como se pudesse animar com seu espírito
a figura jovem e arrogante do
Do moço de outrora. E tão forte foi o seu desejo que seu espírito colou-se ao retrato, mergulhando na ilusão, acreditando-se novamente de posse do seu antigo corpo.
E o quadro adquiriu mais força de atração, conseguindo, então, atrair mais e mais público ao seu redor, que se extasiava diante, comentando que a figura do retrato
parecia viva, dando a muitos a impressão de que o moço fidalgo ia sair de repente da moldura e falar.
Assim, o quadro tornou-se uma obra-prima e uma preciosidade de valor incalculável. O pintor imortalizou-se com esse retrato e seu nome gravou-se na história
da Arte com relevo.
Mas, um dia, muitos anos depois, um jovem milionário, amante, conseguiu comprá-lo por fabulosa soma. Com precauções várias e cautela compreensível, acondicionou-o
e embarcou-o no luxuoso iate para levá-lo à sua casa, do outro lado da costa.
O espírito, embora sentindo-se asfixiar dentro da embalagem, não abandonou o retrato um instante. Todavia, a certa altura da viagem, atingido por violenta tempestade,
o barco soçobrou. Salvaram-se todos os tripulantes, com exceção do jovem milionário.
Sentindo-se sucumbir, no auge da angústia, vendo que as águas destruíam impiedosamente o retrato, o espírito que o animava deu vazão ao seu desespero, tentando
por todos os meios evitar a catástrofe, sem o conseguir.
Quando o viu destruído, lembrou-se do jovem milionário, a quem culpou pelo acidente trágico. Enfurecido, procurou-o entre os destroços do barco que lhe enterrara
as ilusões, a fim de exigir-lhe contas pelo acontecido.
Depois de alguma busca, encontrou-o, e em ásperas palavras lanço-lhe em rosto a culpa da perda irreparável.
Vendo-o sereno, irritou-se ainda mais, e quando mais acerbas eram suas palavras, observou, surpreso, que ele se transformavva na figura familiar e firme do pintor
do quadro.
Boquiaberto, calou-se, vencido pela surpresa. O outro avançou para ele sereno, e tornando-lhe a mão com carinho, disse:
- Hoje saldei minha dívida contigo. Quando pintei o teu retrato eu era um pintor comum. Se mérito havia na minha arte, ele foi secundário diante do teu trabalho
no sentido de dar-lhe vida, saturando-o de vibrações vitais, provocando verdadeira atração pública. Tornei-me imortal nas academias da Terra graças a ti. Entretanto,
fui eu o causador da cristalização da tua mente, produzindo o objeto da tua triste ilusão. Assim, eu que te devia a glória, sentia-me cada vez mais culpado pela
penosa situação em que com meu auxílio te colocaste. Por isso, depois de muito pedir a Deus, consegui reencarnar na Terra com a finalidade de ajudar-te, destruindo
a obra que traçara com minhas próprias mãos. Graças a Deus consegui!
E observando o outro, que já de posse da realidade, humilhado e triste, não ousava interrompê-lo, continuou:
- Porém, meu amigo, jamais tornarei a pintar. Assim como procuravas dar vida fictícia ao quadro das tuas ilusões, eu procurava copiar as obras de Deus. Contudo,
compreendi que por mais que faça, jamais poderei imitá-las.
Tomando o braço do amigo, que pálido e triste o ouvia, conduziu-o a novos rumos, desaparecendo ambos rapidamente no horizonte.
E no dia seguinte os jornais da Terra lamentavam em manchetes a morte trágica do jovem milionário, única vítima no infortunado naufrágio, e o desaparecimento
do precioso retrato, obra-prima, perda irreparável para os amantes da Arte.
Marcos Vinícius


O Argumento

Sustentando enorme dificuldade, meu amigo Inácio Nogueira Filho trabalhava para conduzir seus familiares queridos ao aprisco amoroso e consolador do Espiritismo.
Encarando a vida com serenidade e disciplina, tinha já conseguido alimentar seu espírito com a luz da doutrina renovadora do Cristo e sentindo seu coração regozijar-se
com seus princípios elevados, desejava que os seus partilhassem sua felicidade, sendo por ela beneficiados.
todavia, inúteis tinham sido todos os seus esforços nesse sentido. A esposa concordava indiferente com tudo quanto se lhe dissesse sobre a doutrina que abraçara,
como se faz com a criança que nos historia um acontecimento sem importância, e nem sequer penetrava nos seus pensamentos. Os dois filhos, jovens e atraídos pelo
despertar das conveniências sociais e mundanas, olhavam para o pai com uma complacência manifesta quando o ouviam mencionar o Evangelho ou as máximas doutrinárias,
julgando-o intimamente um antiquado, distanciado da realidade.
Inácio sentia-se sozinho, incompreendido no seio da própria família. Contudo, alertado pelos ensinamentos cristãos, mantinha-se fiel a sua crença e estudava
pacientemente o Espiritismo.
Assim, cada dia que passava encontrava Inácio mais confiante e esperançoso, lutando com sinceridade para melhorar suas condições espirituais, suportando resignado
a tolerância ostensiva dos seus. Agindo assim, progrediu a tal ponto que sua sensibilidade mediúnica desabrochou equilibrada e rigorosamente. Impulsionado por
pensamentos edificantes, obedecendo à orientação de generosos mentores, passou ao atendimento de desafortunadas criaturas, que o procuravam para orientação e para
o passe. Tornou-se ocupadíssimo, multiplicando-se no bem.
Porém, em suas novas atividades não logrou o apoio e a compreensão dos familiares, que o julgavam fanático. Exasperavam-se de ver a casa sempre freqüentada por
pessoas estranhas, algumas mal-vestidas, trazendo no rosto a marca do sofrimento e da miséria.
Desta forma, enquanto Inácio progredia espiritualmente, afastava-se cada vez mais do entendimento restrito dos que o cercavam. Lamentava-se ele, pesaroso, mas
confiava em Deus, orando sempre em benefício deles, desejoso de vê-los comungar no mesmo ideal cristão.
Os rapazes, contudo, protestavam veementes contra a atitude paterna. A mãe solicitava paciência, contestando que Inácio, afora o seu fanatismo religioso, era
pai e marido exemplares. Mas eles, não se conformando com que o pai praticasse a mediunidade e a assistência social, alegando envergonharem-se das atividades paternas
diante dos amigos, primeiro um, depois outro, abandonaram o lar a pretexto de emprego e viajaram para cidade distante.
Inácio sofreu profundo golpe em seu amoroso coração, porém, alertando os filhos para os perigos da ambição e da vaidade, abençoou-os, comovido.
Meses depois, a esposa, a pretexto de inesperada doença do filho mais velho, viajou para visitá-lo e não falou em regresso. Algumas mas poucas cartas cada vez
mais espaçadas, até que as notícias cesaram de todo. Depois de algum tempo, recebeu lacônica notícia do casamento do filho com moça de sociedade. Compreendeu, depois,
de algumas tentativas de aproximação, que os seus envergonhavam-se dele, colocando como condição primordial na vida em comum o seu afastamento das atividades religiosas
a que se afeiçoara.
Com a saudade sangrando no coração amoroso, mas sentindo-se indesejado e incompreendido, resignado e em prece resolveu integrar-se completamente na prática do
bem, desfazendo-se dos recursos financeiros de que dispunha em benefício dos pobres. Para não ofender o orgulho da família, adotou singelo pseudônimo. Mudou-se para
quarto humilde, onde continuava sua tarefa na mediunidade, que desabrochava em vigorosa potência do seu espírito lúcido.
Os anos se passaram. Sua fama, as curas que por seu intermédio se multiplicaram, sua humilde bondade, seu imenso amor, atraíam cada vez mais a simpatia geral
e seu nome era pronunciado com respeito e carinho.
Envelhecendo já, continuava trabalhando intensamente em benefício de todos.
Certa noite, enquanto realizava um passe em sofredora criatura na ante-sala do centro espírita onde colaborava havia alguns anos, chegaram algumas pessoas abatidas
e aflitas. Sentaram-se, não antes de indagar se o grande benfeitor cuja fama os estimulara a ir até ali estava atendendo.
A mulher, bastante idosa, enxugou lágrimas discretas. O cavalheiro pálido e abatido que a acompanhava parecia distante, semi-inconsciente, e o outro, ainda,
trazia em seus braços linda criança pálida, evidenciando perturbações motoras. Todos demonstravam cansaço e sofrimento.
Abriu-se a porta. O doente, reconfortado, saiu da sala, e os recém-chegados foram convidados a entrar. Um lampejo de esperança brilhou em seus olhos tristes
e acorreram pressurosos. A porta se fechou.
Estacaram de súbito, interditos e embaraçados. Inácio, comovido, olhos alegres e fisionomia serena, reconheceu a esposa e os filhos queridos. Não como os via
na memória dos tempos felizes, mas como farrapos humanos que o materialismo e a descrença alimentara.
Abriu os braços amorosos e recebeu a esposa em lágrimas de um desabafo incontido.
- Então és tu! - murmurou, comovida. - Como podia pensar? Muitas vezes me perguntei o que teria sido feito de ti, abandonado de todos. Perdoa-nos, Inácio. A
vida nos tem castigado!
Ele ouviu penalizado a história do filho mais velho, envolvido em dolorosa obsessão. O mais moço casara-se com moça rica, bela e sadia, mas inexplicavelmente
sua filhinha nascera doente, desafiando os conhecimentos médicos, e todo o dinheiro dos pais não podia devolver-lhe a saúde. Alguém lhes falara do caridoso médium
que atendia no centro espírita. Tinham viajado de longa distância para uma consulta, tais os fatos que ouviram contar sobre suas curas, mas nunca podiam imaginar
que se tratava dele! Naquele instante de profunda emoção, pediram-lhe perdão, ao mesmo tempo que suplicavam ajuda.
Inácio abraçou-os, comovido, e tornou, suave:
- Jesus guia os nossos caminhos para a felicidade eterna. Não temam a luta e confiem. Vamos orar ao Senhor agradecendo a alegria do reencontro.
Tal a paz, a serenidade, a luz e a bondade que Inácio irradiava ao redor que os seus sentiram-se também serenos.
E, alguns dias após, quando Inácio chegou ao centro espírita, encontrou toda a família renovada, serena, solicitando-lhe a palavra com respeito, e no fim, suplicando
também a oportunidade de colaborar.
Marcos Vinícius


Oferta
Jair Medeiros, antigo e dedicado servidor em casa assistencial espírita, adoeceu gravemente.
Retido ao leito por vários dias, foi forçado pelas circunstâncias a desligar-se temporariamente da casa de trabalho, onde graciosamente prestava serviços.
Durante a fase aguda da moléstia, Jair nem sequer perguntou pelos companheiros de serviço, mas quando melhorou, embora não pudesse ainda levantar-se, dirigiu-se
à esposa carinhosa:
- Maria, por que meus amigos e companheiros foram proibidos de visitar-me? Estive tão mal assim?
- Você esteve mal, mas não foram proibidas as visitas.
- Então... não os vi?
Ela respondeu com simplicidade:
- Não vieram.
Jair lançou-lhe um olhar surpreso. Depois, querendo esconder certo desapontamento, tornou:
- Eles são muito discretos. Vai ver que não quiseram vir para não incomodar, mas se me souberem em melhor estado, virão certamente.
Mas, apesar de desejar demonstrar a costumeira alegria, Jair estava aborrecido.
De temperamento alegre e espirituoso, levava alegria onde aparecesse. Era estimado e cumpridor dos seus deveres. Aliás, sabia que sua ausência prejudicaria o
andamento do serviço no seu setor de atividades.
Mas os dias foram passando e, ainda acamado, Jair sentia-se cada vez mais abandonado pelos companheiros. Ninguém aparecia nem pedia notícias.
Certo dia, solicitou à esposa que telefonasse para a casa assistencial justificando sua prolongada ausência. A resposta foi dada em voz agradável: que ele não
se preocupasse com o seu setor porquanto tudo estava em ordem. Fora muito bem substituído.
Isso o fez sentir-se ainda mais abandonado. Ajudado pelo desânimo físico, começou a ceder a pensamentos depressivos. Não havia necessidade de voltar tão cedo
a suas atividades. Não tinha feito falta nenhuma. Seus companheiros nem sequer tinham tinham telefonado para inquirir sobre sua saúde.
Dias depois, tendo recuperado um pouco as forças, resolveu voltar. Dirigiu-se à casa assistencial, após trinta dias de ausência forçada.
O ambiente efervescia qual operosa colméia. Os assistidos assistentes, em constante atividade, permutavam experiências e, às vezes, carinho.
Sentindo-se feliz com o regresso, coração cheio de alegria, efusivamente dirigiu-se a um cooperador e amigo, que passava com alguns volumes nas mãos. Mas este,
sem parar, apenas respondeu:
- Olá, Jair. O bom filho à casa torna! Estou ocupadíssimo. Ah! Preciso falar com aquela senhora. Ei! Oh! Dona...
E saiu apressado, enquanto Jair deixava cair a mão que finalmente estendera.
Mais adiante encontrou uma senhora amiga e colaboradora do seu setor. Assim que o viu, foi dizendo:
- Olá! Sr. Jair! Sarou? - E como este acenasse afirmativamente com a cabeça, continuou: - Houve modificações no nosso trabalho. Sabe, o sr. Oswaldo é um homem
formidável. Dinamizou o serviço!
E como Jair não soubesse quem era Oswaldo, ela esclareceu:
- Ora! O novo colaborador que o substituiu. Houve tantas modificações que o sr. terá que reaprender tudo.
Jair foi ver o sr. Osvaldo. Com desagrado notou logo as modificações no sistema. Sentiu-se desnecessário. E quando Oswaldo se propôs a ensiná-lo a fazer o serviço
à sua maneira, Jair delicadamente agradeceu dizendo que não reassumiria o posto ainda. Sabendo-o entregue a mãos competentes, poderia convalescer melhor.
Quando se retirou, ia deprimido e triste. Era verdade, pensava, que os companheiros estavam muito ocupados para lhe dar mais atenção.
Ao chegar em casa, sua mulher, ouvindo-lhe o desabafo, ajuntou:
- Eu não dizia? Quantas vezes você deixou de levar-me à casa dos meus, em visita aos parentes, aos passeios, para encerrar-se naquelas paredes, trabalhando em
benefício de pessoas ingratas e ociosas! Deixe de uma vez destas coisas! Manias adqüiridas com essa loucura que é o Espiritismo.
Jair deixou pender a cabeça, abatido, e respondeu:
- Depois de tantos anos, começo a pensar que talvez você tenha razão.
Entretanto, no plano espiritual, uma sombra sinistra instalava-se ao lado de Jair, com funda ascendência sobre sua vontade, ao mesmo tempo que um seu companheiro
dirigia-se à toda pressa para um lugar muito próximo à Terra e de desagradável aparência.
Algumas entidades, trazendo na fisionomia vestígios de apego ao mundo material e aos vícios, reuniam-se, trocando idéias sobre suas atividades.
Com sua chegada, calaram-se, enquanto o recém-chegado com em largo sorriso comentou:
- Hoje concretizamos grande vitória. O caso Jair Medeiros, que nos vinha preocupando pela sua perseverança no bem, inutilizando-nos diversas realizações. Vencemos,
finalmente!
Os outros, rindo sinistramente, rodearam-no, esperando suas conclusões:
- Como sabem, tentamos diversas situações: ele não cedeu, nem à vaidade, nem a luxúria, ou às festas e prazeres, nem às mulheres ou ao dinheiro! Entretanto,
Jonas teve idéia genial. Vendo-o doente e acamado, interceptou toda assistência moral dos seus companheiros de tarefa.
Profundamente interessado, alguém perguntou:
- Como o conseguiu? Por acaso perturbou ou obscureceu , a mente deles?
- De maneira alguma. Isso seria contraproducente. Eles, em sua maioria, conhecem nossa maneira de agir. Correm logo a tomar passe ou recorrem à prece, e nada
podemos fazer. Mas Jonas inventou coisa melhor. Colaborou para o acúmulo de serviço! Trabalhamos arduamente para divulgar as atividades assistenciais da casa, sugerindo
a um número bastante grande de criaturas necessitada que comparecessem ao local. Causamo-lhes problemas de toda ordem, e eles, por sua vez, recorriam aos préstimos
dos cooperadores.
Gozando o suspense de suas palavras, concluiu:
- Vocês precisavam ver como corriam de um lado a outto tentando resolver os problemas daquela gente. Ninguém se lembrou de visitar Jair.
- E os assistentes espirituais, não fizeram nada?
- Claro que fizeram. Tentaram por todas as formas sugerir aos companheiros de Jair que fossem visitá-lo. Eles até o desejavam, mas o serviço não deu folga! -
concluiu alegre. - Você sabe que a grande parte dos assistidos da casa podemos manejar sem interferência, eles nos facilitam as atividades. Agora, meus amigos, o
problema está resolvido: Jair é nosso! A esposa está trabalhando assessorada por companheiro do nosso grupo. E logo o teremos inutilizado.
- E o seu substituto?
- Entusiasmo passageiro! Assim que o abandonarmos, ele debandará, não nos dará trabalho.
E em meio à alegria geral, ajuntou:
- Quem tiver um problema igual de afastar alguém dessas atividades assistenciais é só aproveitar a ocasião e ofertar-lhe a certeza da própria inutilidade. Quanto
aos seus companheiros, serviço neles, bastante serviço é o melhor remédio!
Marcos Vïnícius


A Corrente
Ensimesmado e taciturno, Germano de Figueiredo, sempre que chegava em sua casa, conduzia consigo o desânimo e a queixa.
Não havia nada que o fizesse sorrir, e quando a isso se via forçado por alguma alegria inesperada, o máximo que conseguia era uma careta triste e um simulacro
de sorriso desalentado.
A princípio, sua esposa intentara de todas as maneiras alegrar-lhe a existência, mas baldaram seus esforços. Era o oposto do marido, vibrante e cheia de otimismo.
Germano não sabia sorrir.
Se uma boa surpresa ou um bom evento o atingia, dizia:
- Não alimentemos ilusões. Sabe-se lá o que virá depois?
E, se ao contrário, algum acontecimento desagradável o buscava, suspirava, dizendo:
- Eu já sabia! Minha vida tem sido um acúmulo de sofrimentos...
A esposa sacudia os ombros, resignada. Sabia que Germano não tinha motivos para ser tão pessimista. A vida sempre lhe decorrera equilibrada. Filho de família
honesta e operosa do seio da classe média, recebera regular instrução, empregara-se bem, e se não possuía bens de fortuna, jamais havia sentido falta dos elementos
principais da vida, jamais enfrentara problema doloroso de envergadura. Sua saúde era boa. No entanto, Germano ostentava verdadeira obsessão pelas coisas tristes,
colecionando intimamente verdadeiras tragédias.
Seus próprios filhos evitavam-lhe a companhia, e após certa resistência, a própria esposa desistiu de fazê-lo mudar.
Entretanto, a vida, renovadora e amiga que é, resolveu escrever a lição apropriada. Chamou-o à realidade através da porta reveladora da morte. Germano desencarnou.
E, se nosso amigo se julgava infeliz ao lado dos familiares no amoroso aconchego do conforto doméstico, encontrou então na solidão que o envolveu após o túmulo
razões poderosas para lamentar-se ainda mais. Entretanto, por mais que tentasse, não conseguiu fazer-se pressentido.
- Ai de mim - lamentava-se o infeliz -, meus sofrimento continuam mesmo depois da morte! Jamais terão fim! Sombras me envolvem por toda parte. A paisagem é triste
e sombria... Quando conhecerei a alegria?
Realmente, a paisagem que o cercava era infinitamente triste. Jamais via o sol, e o local para o qual era constantemente atraído, além de escuro, sombrio e sem
vegetação, estava povoado por pássaros horripilantes e criaturas espectrais que procuravam sempre aproximar-se dele, que no paroxismo da angústia e do terror, fugia
espavorido. Então, volvia ao lar terrestre, e a casa lhe parecia envolvida por espesso nevoeiro cinza-escuro, os familiares encobertos por nuvens, como em terrível
pesadelo, jamais consiguindo ouvi-lo, por mais que gritasse.
Quanto mais se queixava e lamentava, mais depressa voltava ao local sombrio, recomeçando a estranha perseguição dos espectros e aves soturnas e a fuga desordenada
e improfícua.
Receando a loucura, Germano aprendeu através do medo e angústia a recorrer à prece, até que um dia foi recolhido em precário estado a um posto de emergência
e socorro no plano espiritual. Atendido por médico dedicado, Germano ia começar a desfiar sua coleide tristezas quando o facultativo impôs-lhe silêncio, dizendo:
- Detém tuas palavras. Conhecemos teu caso. Convém, teu próprio bem, que te prepares para receber o auxílio a que fazes jus, pelas preces de teus amigos e por
acréscimo da bondade do Senhor. Vem comigo.
E parecendo ignorar que Germano se arrastava com dificuldade, conduziu-o à pequena sala, acomodando-o em confortável poltrona.
- Agora Germano, vamos estudar o teu caso. Dizes sempre que não gozaste nenhuma alegria e que só de tristezas foi tua vida
- Sim - concordou ele. - Sofri muito. Só, velho e doente.
- E na mocidade, foste feliz?
- Nem um pouco! Sofri sempre inúmeras desilusões. A vida me foi pesado fardo.
- E a infância? - continuou o mentor com ligeiro sorriso.
- Triste - suspirou Germano. - Tão triste que nem gosto de recordá-la!
- Entretanto, meu amigo, as informações que temos diferem fundalmente. Vejamos.
Ligando delicado aparelho a um canto da sala, Germano, boquiaberto, viu aparecer em sua tela, como em um cinema, a velha e solarenga casa onde residiam seus
pais antes da época do seu nascimento. Assistiu emocionado ao carinho e à alegria de sua mãe preparando-lhe amorosamente o enxoval delicado. Seu pai, radiante e
orgulhoso com sua vinda. Depois, viu-se pequenino, entre a alegria e a felicidade geral, senhor das mais caras atenções. Menino, depois adolescente, e essas sucessivas
recordações banhavam-lhe o espírito perturbado com funda emoção. Reviu seu casamento, as alegrias sublimes da vida e do convívio em família, e no esforço dos familiares
para envolvê-lo em uma aura de alegria e serenidade, no decorrer das cenas sucessivas, começou a notar que ele aparecia sempreem contraste, insatisfeito e triste,
temeroso e infeliz. A revivência do passado despertou nele a sensação do quanto aquele tempo tinha sido feliz. Em confronto com a realidade dura que enfrentava,
e levado pela rememoração emotiva, chegou a antipatizar consigo mesmo nas cenas que assistia, voltado incessantemente ao pessimismo diante das mais caras e suaves
alegrias.
Ao término, o dedicado médico e instrutor espiritual o inquiriu:
- E então? Qual o teu veredito?
Envergonhado, Germano admitiu:
- Não posso dizer que tenha sido infeliz. Afinal, aqueles foram bons tempos! Gostaria de regressar!
O médico sorriu, bondoso:
- Por ora é impossível. Entretanto, se deseja o breve retorno à face da Terra, só há um jeito.
- Qual?
- A inscrição num curso de bom humor. Não ignoras que o pensamento é uma força viva e ativa. As vibrações negativas que alimentaste durante tantos anos atraíram
junto ao teu convívio grande quantidade de espíritos sofredores e infelizes, que se alimentavam dos teus pensamentos depressivos, formando a teu comando extensa
corrente. Criaturas que tens visto ao teu redor e te apavoram pela profunda tristeza que demonstram. Não podes voltar agora à Terra porque não terias forças para
vencer o círculo vicioso eu que te colocaste, agravando e inutilizando as mais profícuas e operosas oportunidades que te fossem oferecidas. Necessitas primeiro de
estagiar em prolongado curso de bom humor, onde aprenderás a encontrar a alegria dentro de ti mesmo e nas mil e uma ocasiões que a vida nos oferece no cultivo do
bem. E, quando tiveres armazenado boa dose de alegria, poderás voltar e estabelecer novo lar terrestre, onde deverás receber por companheiros não aqueles que amas
e que agora estão temporariamente afastados de ti, mas os que aliciaste e aos quais te ligaste pela onda de tristeza voluntariamente cultivada. Terás que aprender
a sorrir e a olhar as coisas belas da vida, apesar da triste corrente que prendeste ao teu espírito e da qual de pronto não poderás te libertar.
Abatido, mas humilde e dignificado por pensamentos novos, Germano considerou:
- Em que condições deverei voltar?
- Em condições justas, no campo vibratório que teceste durante tanto tempo. Tiveste um lar alegre e feliz, não o valorizaste. Filhos normais e inteligentes não
te deram alegria. Vida equilibrada e pacífica e não te sentiste feliz. Tranqüilidade financeira e não aproveitaste o tempo no cultivo dos valores espirituais. Por
determinação dos ajustes do passado, credores de outros tempos se aproximaram de ti em busca do equilíbrio, e tu os aliciaste à corrente da tristeza, arrojando-os
ainda mais na perturbação e no desequilíbrio. Justo, portanto, que no lar que será de luta para manutenção financeira, os recebas como companheiros e familiares,
e se conseguires reconduzi-los ao caminho do equilíbrio e da alegria, terás conseguido romper a dolorida corrente que tanto te incomoda. Poderás, então, ser feliz
e liberto, reencontrando os que amas.
E num gesto carinhoso, mas enérgico, o mentor concluiu:
- Vai meu amigo. Busca recuperar, no recomeço difícil, o tempo perdido.
Marcos Vinícius




Jornada Nova


Serpenteando as colinas qual arabesco caprichoso desenhado pacientemente no verde rude, o cavaleiro descia vagaroso.
Carregava consigo, na bagagem modesta, os presentinhos carinhosos aos familiares que havia cinco anos lhe aguardavam o regresso.
Saíra rumo a novos caminhos, em busca de uma modificação no sistema de vida que sempre fora o seu. Filho de lavradores pobres, sonhava ardentemente ir viver
na cidade. Durante muito tempo amealhou recursos para custear a viagem.
Quantas esperanças, quantos castelos sonhados no verdor sa sua juventude! Ganharia fortuna na grande cidade e voltaria para buscar sua sofrida e cansada mãe,
seu velho e resignado pai. Dar-lhes-ia muitos presentes, comprar-lhes-ia uma casa grande, com água encanada e luz elétrica. Levá-los-ia a morar na cidade.
Foi com o coração entusiasmado que João partiu do lar, levando na lembrança as lágrimas mudas dos olhos tristes da sua velha querida.
E então João voltava, e em seu rosto não brilhava mais o antigo entusiasmo. Em seu lugar havia muita doçura e uma paz que se casava bem à mansidão serena da
manhã e ao azul límpido céu.
Lá, na planície, a pequena casa humilde despertou nele um gesto de ansiedade, mas não apressou a marcha. Chegou, por fim, e sua presença provocou alegre alvoroço.
Seus irmãos acorreram surpresos, e João viu-se abraçado e beijado por todos.
Sua mãe, lágrimas nos olhos, abraçou-o silenciosa, e o pai, quieto e calado, apertou fortemente a mão calosa contra a sua.
Depois que a surpresa permitiu, a curiosidade envolveu João, que voltava da grande cidade. Queriam saber suas aventuras, seus sucessos. Como era a vida na cidade?
Então João contou-lhes as coisas que vira: famílias inteiras dormindo ao relento nas noites frias, crianças pálidas e sem sorriso abrigada em asilos, vivendo
da caridade pública, infelizes mulheres atiradas às sarjetas das ruas suspirando por um pouco de dignidade, homens correndo de um lado a outro, carregando consigo
enormes preocupações e responsabilidades. Homens e mulheres que se consideravam artistas, digladiando-se constantemente em busca da fama, pobres empregadinhos, que
acostumados às aparências, esforçavam-se nas dívidas excessivas para manutenção do seu nível de vida. Criaturas revoltadas e desajustadas, que matam e roubam, sendo
por isso segregados da sociedade em horríveis presídios e caçados como animais.
Boquiabertos, todos ouviram o curioso relato, e a certa altura um dos irmãos perguntou:
- Mas, e tua vida? Que fizeste? Conseguiste fortuna?
João, com o olhar calmo, sorriu e respondeu:
- Sim, consegui fortuna. Sou um homem muito rico!
Os outros relancearam o olhar para sua roupa modesta e sua bagagem, um tanto descrentes. João, porém, prosseguiu:
- Quando saí daqui, levava comigo o desassossego da ambição. Desejava ser rico para levá-los à cidade! Entretanto, conhecendo a realidade, o sofrimento e a luta,
o muito mal que uma cidade grande pode nos fazer, cheguei à conclusão de que a maior riqueza é o amor, a união entre todos e a paz. Aqui, embora humildes, somos
todos ricos de felicidade, de amor, na simplicidade da nossa vida. Senti que colocando-nos aqui, neste afastado, talvez Deus tenha querido nos proteger contra nossas
fraquezas, amadurecendo-nos para o futuro. Certo dia, lá na cidade, pensei: como a vida é curta! O que estou fazendo longe dos meus? Por que atirara fora a felicidade
que Deus me dera de conhecer tão carinhoso lar?
Voltei para dizer que ficarei aqui e que trabalharei alegremente ao lado de todos.
João calou-se: mas viu nos olhos de sua mãe um brilho novo, e talvez pela primeira vez em sua vida, a boca severa e rude de seu pai entreabrir-se em um doce
sorriso.
Marcos Vinícius


O Passe
Agostinho da Silva, dedicado companheiro, militando havia um decênio nas hostes espiritistas, apesar do grande conhecimento da doutrina não gostava de dar passes.
Para ele o passe era um recurso inútil, porquanto achava que o indivíduo deve ter em si mesmo a confiança para prescindir do auxílio do próximo, esperançoso e seguro
de que a Lei de Deus prevê todas as nossas necessidades.
Costumava dizer:
- Sujeitar-se ao passe é declarar publicamente sua falta de fé. Quando for permitida a cura da moléstia que nos acomete, ela se processará sem o passe, com o
médico, sem ele e, às vezes, apesar dele.
Argumentava que o espiritismo não tem rituais. O rito do passe afasta as criaturas mais cultas da doutrina, em prejuízo para sua divulgação. E como pode ser
diferente? Um homem culto, formado, intelectual, como um médico, por exemplo, receber passes de criaturas às vezes ingênuas, às vezes ignorantes, ou ainda em precário
estado de higiene física, provocando mal-estar no paciente? Não. O Espiritismo precisa banir esses rituais e preservar a pureza da doutrina.
Assim seguia Agostinho, perturbando com a lógica dos seus argumentos aqueles que, admirando seus conhecimentos literários, sua verbosidade fácil e sua simpatia
pessoal, tornavam-se também filiados à sua maneira de pensar.
Reuniam-se para estudo e cada vez mais, à força do próprio raciocínio, mergulhavam na confusão. Aos poucos chegaram à conclusão de que também não havia necessidade
de fazer preces, poquanto com elas ninguém conseguiria ludibriar a justiça e evitar sofrimento. "Deus sabe as necessidades de cada um", diziam, "e nós temos que
aceitar tudo resignados".
Entretanto, com o correr do tempo a casa foi se tornando vazia. Os amigos dispersavam aos poucos, as desculpas para o afastamento do trabalho doutrinário de
Agostinho choviam sempre, multiplicando as ausências, até que ele se encontrou só na sala vazia.
Ninguém mais o procurava para o trabalho espírita e, por fim, as desculpas cessaram também.
Deprimido, Agostinho sentiu-se incompreendido. Sua mágoa foi mais funda quando soube, por intermédio de terceiros, que seus mais íntimos amigos freqüentavam
um centro espírita com assiduidade, alguns recebendo, outros dando passes.
Foi assim que, naquela noite, sentiu-se cansado. Desanimdo. Tanta sinceridade, tanto esforço no sentido de purificar a prática doutrinária, tudo inútil.
- A humanidade - pensava ele - estava muito atrasada compreender ideais tão elevados!
Ao penetrar em seu quarto de dormir, seus olhos tristes encontraram-se com o suave e belo olhar do Cristo em feliz e harmoniosa gravura pendurada na parede.
Não orou, porque não estava em seus hábitos fazê-lo, mas do fundo do seu ser brotou um apelo mudo e sincero ao atendimento e à manifestação da justiça.
Deitou-se e dormiu. Sonhou. Encontrava-se em local sombrio e sentia-se envolvido por invencível mal-estar. Apavorado, via-se ambas as mãos mirradas e as pernas
atrofiadas, impossibilitado de locomover-se. Chorava desesperado, esforçando-se por mover os membros enrijecidos, sem conseguir. Parecia-lhe que indestrutível cadeia
o mantinha prisioneiro em tão angustiante e dolorosa situação.
Então, em resposta a suas lágrimas de desespero, um amigo querido mas não identificado no momento, libertou-o, devolvendo-lhe os movimentos. Depois, conduziu-o
a outros lugares, paisagens suaves e agradáveis. Enorme bem-estar o invadiu, retirando aos poucos o peso de suas preocupações e tristezas.
Conduzido à presença de grisalha figura, que lhe despertou de pronto o respeito e a simpatia, não pôde evitar um calafrio de horror lembrando-se da sua situação
de minutos antes.
Após as saudações naturais, tornou:
- Ainda bem que me foram buscar. Estava envolvido em horrível pesadelo.
Calou-se, ainda um tanto impressionado. Seu interlocutor olhou-o com olhos muito lúcidos, mas não lhe correspondeu o sorriso. Calmo e seguro, retrucou:
- Gostaria de retornar àquela situação?
Agostinho levantou-se de chofre:
- Deus me livre! Durou poucos segundos, entretanto, não sei se suportaria senti-la novamente sem abalar minha sanidade mental.
- Todavia - observou o nobre senhor -, durante longos anos perambulaste do lado de cá naquela situação. Não te lembras?
Agostinho sentiu profundo choque. Assustado, teve de relance a visão da sua pálida figura vagueando, desesperada e aflita.
- Mas, por quê? - indagou temeroso.
- Recua mais um pouco e verás.
Agostinho sentiu-se envolvido em um turbilhão. Viu-se em sala distinta, vestindo alvo uniforme, luvas nas mãos, bisturi em punho, operando. Depois as mãos empunhando
a cureta, assassinando crianças nascedouras, impassivelmente e com sorriso nos lábios.
Humilhado, baixou a cabeça, e quando serenou, perguntou:
- Isto é verdade? Fui eu?
- Sim - respondeu-lhe o outro, sereno. - Quando, na tua anterior encarnação como médico, jurando preservar a vida e valorizá-la, muitas vezes a destruíste. Induziste
jovens senhoras ao erro. Levianamente exploraste segredos da profissão em benefício próprio. Vieste para o plano espiritual, após a morte, sofrendo de terrível paralisia
das mãos, que se atrofiaram envolvidas por grossa camada de fluido negativo, acumulado por ti em horas e horas de esforço infeliz. Depois de anos de sofrimento,
de tratamento adequado, ingressaste nas aulas de espiritismo cristão, preparando-te para nova encarnação.. No entanto, apesar de ser melhor o teu estado, havia possibilidades
de, durante a próxima encarnação, vir teu físico a ressentir-se da enfermidade espiritual, nos órgãos atingidos.
Agostinho suspirou, emocionado.
- Para que tal não acontecesse, assististe a aulas de utilização e distribuição dos fluidos, porque nossos especialistas nesses casos opinaram que somente a
renovação constante de energias salutares conseguiriam evitar a consumação da dolorosa contingência. Entre os recursos usados, o passe aos necessitados - pelas circunstâncias
de que se reveste de verdadeiro banho energético, renovador e vigorativo - era a forma possível de preservar-te a saúde física. O cultivo da prece dar-te-ia forças
para vencer as dificuldades, conservando-te em ligação constante com teu grupo de trabalho no plano espiritual, que procuraria ajudar-te da melhor forma.
Boquiaberto, Agostinho ponderou:
- Então dar passe é para mim o remédio?
- Sem dúvida. O mais eficiente, porquanto propiciará oportunidade de, pelo benefício e pela conquista da confiança dos assistidos, orientar e reconduzir, refazer
e auxiliar quantos foram desviados ou feridos pelas tuas mãos.
E continuou suavemente:
-Vê, meu amigo, como é grande, infinita e incomensurável a bondade de Deus?
Com essas palavras sibilando nos ouvidos, Agostinho acordou impressionado.
E, no dia imediato, seus amigos estupefatos o viram, com o Evangelho Segundo o Espiritismo debaixo do braço, penetrar humilde no centro espírita e solicitar
em voz alta o auxílio de um passe!
Marcos Vinícius


Preço do Silêncio
Foi com grande satisfação que em reunião fraterna no plano espiritual revi meu amigo José, de quem me afastara havia algumas encarnações.
Juntos, tínhamos vivido em tempos passados, e eu me lembrava com certo constrangimento de certas passagens levianas que havíamos cometido.
Na verdade, eu me sentia mudado e, um pouco mais experiente, tentei afastar os pensamentos desagradáveis. José, companheiro leviano e irresponsável, apesar de
bom e generoso amigo, tinha o defeito de falar demais. Quando em palestra com alguém, esquecia a noção do equilíbrio e comentava assuntos íntimos, envolvendo reputações,
boatos, e acrescentava, no auge do entusiasmo, novas nuances para colorir o assunto, sem perceber resvalando para a calúnia. Muitas vezes causara intrigas e dissensões,
separações e litígios entre as criaturas.
Fazia-o mais por leviandade do que pelo desejo de causar dano. Geralmente arrependia-se depois, mas o mal já estava feito.
Abracei-o efusivamente, pois que o apreciava, e intimamente procurei armazenar argumentos a fim de neutralizar-lhe o verbo intempestivo.
José abraçou-me alegre, e depois de algumas palavras, juntamo-nos ao resto do grupo em agradável palestra.
Entretanto, grande surpresa me estava reservada. Durante nossas amigas confabulações José apenas pronunciou algumas palavras sérias, pausadas, e eu diria, com
alguma dificuldade. Pareceu-me completamente diferente da pessoa que eu havia conhecido antes. Estava mais equilibrado e mais feliz. Em seu olhar havia entendimento
e doçura.
Satisfeito constatei seu progresso espiritual, e quando juntos nos retiramos da assembléia, José, colocando sua mão em meu braço, tornou:
- Estou satisfeito de ver-te bem disposto. E sei que também notas que estou diferente.
-Tens razão, José. Estás muito melhor agora. - E acrescentei, receoso de recordar os erros do seu passado: - Na verdade todos temos progredido. É da Lei!
- Assim é. Entretanto, toda conquista tem um preço que é preciso pagar. E pagamos com antecedência. É preciso dar para receber.
- Mas noto que tens dificuldade em te expressares. Tu que eras tão versátil e prolixo!
- Sabes que muitos males causei com a língua a serviço da irresponsabilidade. Esse defeito representava para mim sério motivo de preocupação. Vivia atormentado,
enredado pelas dissensões e pelas intrigas que articulava, perseguido pelas consequências dessas atitudes e sentindo-me impotente para dominá-las. A cada existência,
quando voltava para cá, sentia o remorso aumentar, vendo a lista de resgates crescer consideravelmente, dificultando meu progresso espiritual. Em outros campos eu
havia feito muitos progressos, mas quando chegava nessa fraqueza, nada conseguia. Resolvi, por isso, submeter meu caso às entidades superiores encarregadas da nossa
orientação, que carinhosamente se dispuseram a estudar minhas possibilidades. Chegaram um dia a uma solução, e apresentei-me para conhecê-la. Depois de ouvir e assistir,
um pouco envergonhado, ao estudo retrospectivo de meus reflexos condicionados e de minhas atitudes passadas, meu mentor espiritual considerou:
- Acabamos de estudar teu caso. Chegaste a um tal ponto de reação motora que tua vontade é quase inócua para evitar o deslize. Por isso, torna-se preciso paralisar
o veículo do erro, para aprendires de novo e equilibradamente a manter seu controle. Aconselhamos uma reencarnação em que, por diversas circunstâncias, vennhas a
perder a língua. O que será fácil conseguir, porque, como podes ver, ela já está danificada e envolvida pelas vibrações negativas com que a brindaste. Como estás
resolvido a lutar para melhorar, conseguimos, com auxílio da prece, esta dádiva do Senhor. Os detalhes serão estudados com os irmãos reencarnacionistas.
- Confesso que senti grande abalo. Entretanto, quanto mais pensava no caso, mais compreendia que tinham razão. Renasci na França, filho de fidalgos. Contudo,
esquisita moléstia paralisava-me a língua, impedindo-me de falar como as outras crianças. A princípio lutei com todas as minhas forças para fugir à doença, que me
fazia sofrer horrivelmente. Porém, aos poucos, fui me habituando a ela. Tive paralisia completa. Não conseguia emitir nenhum som. . Na aspereza da provação, porém,
sentia-me feliz, parecendo -me que alguma força interior me sustentava. As tentações eram maiores porque as pessoas, sabendo-me impossibilitado de falar, não se
importavam de tratar dos assuntos graves na minha presença. Fui testemunha, assim, de intrigas e mentiras, ódios e perversidades, luxúria e egoísmo, que regurgitavam
nos salões da corte. Mas, assim, fui aprendendo a conhecer a beleza e a força do silêncio, e muitas vezes, presenciando o desenrolar dos fatos, agradecia a Deus
não ter podido falar sobre o assunto. Comecei a notar o perigo das palavras e suas conseqüências. Cheguei ao fim da existência mais equilibrado e sereno. Mas uma
só experiência não foi suficiente. Reencarnei de novo ainda com paralisia parcial da língua. Submetido a longo e doloroso tratamento para falar, recuperei o uso
do órgão enfermo, mas com o auxílio do alto, permaneceu um resquício da atrofia, e eu sofria terrível gagueira. Não podia conversar livremente, pois gaguejava desagradavelmente.
E, com vontade de falar, sentia vergonha, notando o mal-estar que provocava naqueles com quem conversava. Por fim, voltei nesta última encarnação com o órgão normal,
porém, conservando experiência passada, já não sentia vontade de falar. Fui envolvido e tentado por todos aqueles que colecionam os defeitos alheios e os exibem.
Com a graça de Deus, consegui vencer. - E continuou, sorrindo: - Há muitos anos que não falo tanto como hoje! Estou exausto!
Eu conjecturava na perfeição da Lei e respondi:
- Na verdade, alcançaste o progresso desejado, mas a que preço! - Terminei, um pouco chocado com o seu sofrimento.
- Ora, ora, meu amigo! Quantos acidentes seriam evitados se cada um pudesse comandar plenamente seus veículos na vida? E se não conseguem detê-lo e ele se torna
perigoso, é lógico que deve ser recolhido à oficina para conserto. Hoje, verificando o benefício do calar no momento oportuno, acho irrisório ter dado apenas uma
língua para pagar o preço do silêncio!
E eu fiquei silencioso, penetrando fundo na beleza da lição.
Marcos Vmícius


A Esperança
Jazia em um catre humilde, de dor, uma triste criatura, corpo recoberto de chagas, onde as insistentes moscas, pousando irreverentes, aumentavam o desconforto.
O velho corpo alquebrado, pele cobrindo ossos, exangüe e cansado, arquejava de quando em vez, mostrando dessa maneira que a vida ainda adejava nele em pálida despedida.
Ao redor, na choupana humilde, tudo era desolação. O único aposentado, exíguo e infeto, úmido e permeável aos rigores das invetempéries, parecia abandonado e
só, sem a atividade constante do seu ocupante.
Logo era o dia para aquela pobre criatura, sem ninguém que a socorresse, que a amparasse no transe difícil e lhe desse ao menos o conforto de um caldo quente
para aquecer o estômago.
Sombras sinistras rondavam o desolador local, e na sua indigência espiritual, aquele pobre ser alquebrado sentia a aproximação da morte.
Longe dali, porém, em casa confortável, jovem mulher recolhida em prece agradecia ao Senhor a bênção da felicidade doméstica, e coração cantante de fé, buscava
recolher do alto as dádivas do bom ânimo e da esperança para alimentar sua vida feliz.
Mas, inopinadamente, vislumbrou em distensão dos olhos espirituais a cena lúgubre da pobre e solitária criatura agonizante. Chocada, tentou afastar de si a perturbadora
visão que fora arrancá-la da agradável sensação de felicidade ao contato com a vibração mais pura. Porém, quanto mais se envolvia nos eflúvios da prece, tentando
fugir ao ambiente depressivo, mais ele se lhe apareci, numa constância irrecusável.
Então, sem poder vencer do seu coração aquela sensação de desconforto, sem poder afastar de si a cena desagradável que lhe repugnava a visão, resolveu sair em
busca da casinha abandonada que, para ela, estava ainda desocupada.
Apressada, caminhava levando no coração um sentimento angustiado que não podia reprimir.
Ao chegar ao lar humilde, entrou, e vendo o ser exangüe, cuja vida se esvaía, teve instintivamente um movimento de recuo. Mas seu coração de mulher apertou-se
ao observar o abandono e a falta de conforto do ambiente.
Timidamente, balbuciou:
- Senhor. Vim para ajudar-vos no que puder ser útil.
Um gemido doloroso avisou-a de que o enfermo ainda ouvia e estava consciente.
Tocada por um sentimento indefinível, ela, reagindo com a repulsa que a precária situação do doente lhe causava, procurando evitar o cheiro nauseabundo que seu
corpo chaguento exalava, aproximou-se devagar, e então, fixando a face carcomida e macilenta, seu coração se sobressaltou. Um angustioso pressentimento a envolveu,
e ela, esquecendo tudo o mais, deixou se cair de joelhos ao lado do catre.
Aterrorizada, procurou orar ao senhor, embora seu pensamento estivesse confuso e atemorizado, e num repente de emoção, sem poder conter-se, exclamou num grito
que lhe saiu do fundo da alma:
-Pai, perdoa-me!
Ao brado aflito de remorso e de tristeza infinita, o pobre enfermo, abrindo os olhos, fitou com alegria a figura bela, que de joelhos, olhos marejados, esperava
ansiosa uma resposta. E, então, seu rosto se iluminou em alegria incontida, enquanto com dificuldade murmurava, comovido:
- Eu tinha certeza de que haveria de ver-te pela última vez antes de partir. Queria ver-te à distância, pelo menos. Vim de longe, mas a moléstia não me deixou
aproximar de tua casa. Caí aqui, extenuado e doente. Agora, posso ir em paz.
Doce serenidade banhava a fisionomia do enfermo e o ambiente se modificara. Diante do reencontro daquelas criaturas, da pureza dos seus sentimentos, tudo se
transformara.
E a jovem mulher, amargurada e comovida, recordou-se num átimo das divergências entre seu esposo e o velho pai, que viúvo fora residir em sua casa. Dos incômodos
que sua presença lhe causara com sua intromissão em seu lar, a tal ponto de ter-lhe feito sentir a necessidade de viver recluso em seus aposentos e sozinho. Com
o remorso acicatando
o coração, lembrou-se da dor e da intranqüilidade que lera na cansada fisionomia do velho pai, que logo partira, dizendo preferir residir em casa de um amigo muito
chegado, no interior.
A verdade, porém, já o sabia, é que ele se afastara para não perturbar sua paz doméstica, e sem recursos, velho e alquebrado, sofrera todos os rigores do abandono.
Sentindo vibrar as cordas mais íntimas do coração, a filha negligente, deixando rolar as lágrimas amargas do arrependimento, disse com sinceridade:
- Pai, perdoa-me! Fui má e leviana, levar-te-ei agora para casa, seremos felizes juntos, estaremos unidos. Cuidarei de ti e hás de ficar bom!
Reunindo ainda um resquício de força, o velho respondeu:,
- Abençoada és por me ter dado a bênção da esperança nos nos últimos anos da minha vida, e agora preciso partir. Mas, um dia, estaremos juntos para sempre.
Sem ela entender, ela respondeu:
- Mas pai, fui má e injusta, releguei-te ao abandono, como podes dizer que te dei esperança?
- O amor que sinto por ti foi-me luz na aspereza do caminho. Se sofri, se chorei, se me senti abandonado da sociedade, jamais me senti só. As lembranças felizes
do nosso passado estavam comigo, e entre elas, as doces e suaves carícias da tua infância, na ingênuidade pura do teu coração de filha. Ver-te, seguir-te os passos
à distância, rezando pela tua felicidade, foi a força que me sustentou na dura provação. Sou-te por isso infinitamente grato, porque sem a esperança de ver-te e
amar-te, jamais se acenderiam para mim as luzes do coração.
E quando a filha, soluçante e enternecida, deixou pender a cabeça sobre seu peito cansado, ainda pôde sentir, em um último e derradeiro esforço, descer sobre
ela a carícia de sua mão.
Marcos Viníciuc


FIM
Este livro foi digitalizado por Katia Oliveira
e corrigido por Carlos Willians
para o uso exclusivo de deficientes visuais de acordo com as leis
vigentes no Brasil.

Tudo Tem Seu Preço

Zibia Gasparetto
ditado por Lucius

Tudo tem seu preço
VIDA & Q
TKSÂ
Sumário
Capítulo1 9
Capítulo 2 21
Capítulo 3 37
Capítulo 4 53
Capítulo 5 65
Capítulo 6 79
Capítulo 7 91
Capítulo 8 105
Capítulo 9 119
Capítulo 10 135
Capítulo 11 151
Capítulo 12 165
Capítulo 13 179
Capítulo 14 193
Capítulo 15 205
Capítulo 16 219
Capítulo 17 233
Capítulo 18 249
Capítulo 19 263
Capítulo 20 277
Capítulo 21 291
Capítulo 22 305
Capítulo 23 319
Capítulo 24 333
Capítulo 25 351
Capítulo 26 365

Marcelo entrou em casa batendo a porta com força. Foi ao banheiro, lavou o rosto, enxugou-o e respirou fundo, tentando se
acalmar. Precisava controlar a emoção.
Não podia deixar-se dominar por aquele impulso destrutivo. Afinal, ele era uma pessoa equilibrada, estava acostumado a servir
de exemplo para os outros.
No trabalho, quando alguém se irritava ou discutia, os colegas diziam:
- Como você é descontrolado! Olhe para Marcelo. Por que não faz como ele?
Em casa, sempre que havia uma discussão entre os pais ou os três irmãos, Marcelo era logo chamado para apaziguar.
- Não vale a pena se irritar - dizia ele com voz calma. - Não vai resolver mesmo!
Falava com tanta certeza que os ânimos logo se acalmavam.
Até Lúcia, irmã de seu amigo Gérson, procurava-o para pedir conselhos quando
brigava com o namorado, e ele a orientava para que tudo voltasse a ficar bem.
Marcelo gostava muito de ser bondoso. Quando alguém lhe pedia um favor, por mais difícil que fosse, ele se esforçava para
realizálo, ainda que para isso precisasse
deixar de lado alguma coisa pessoal que considerasse importante.
Achava bom ouvir dizer:
- Obrigado, Marcelo! Como você é bom! Obrigado por você existir!
Ele meneava a cabeça negando, mas seus olhos brilhavam de prazer. Ele era bom! As pessoas o amavam!
Olhou-se no espelho: seu rosto estava vermelho, os olhos congestionados. Lembrou-se de uma conversa que ouvira tempos atrás:
- Vamos falar com Marcelo. Ele faz!
- Acha que ele topa?
- Claro! É só dizer que há alguém doente ná família e pronto! Aproveite, porque sei que ele recebeu ontem.
- E se ele desconfiar?
- Ele nunca pensa mal de ninguém! Elogie bastante, comova-se, diga-lhe quanto ele é bom. Garanto que ele nem vai querer
saber detalhes. Dá logo o dinheiro.
Apesar de ter ouvido tudo, quando o amigo veio pedir, ele não teve jeito de dizer "não". Deu o dinheiro!
Marcelo abriu a torneira e lavou novamente o rosto. Precisava esfriar a cabeça. As pessoas eram maldosas, incapazes de compreender
um gesto de bondade. Pagavam o
bem com o mal.
Suspirou tentando resignar-se. Reconhecia que sempre fora rodeado de pessoas ingratas. Justamente aquelas pelas quais mais
se sacrificara eram as que o tratavam
com desprezo, indiferença e até certa agressividade. Em casa ele sempre ficava por último em tudo. A necessidade dos outros
vinha primeiro. O importante era que
os outros ficassem felizes.
Nos feriados, o plantão da empresa precisava ser atendido e havia um rodízio. Mas, fosse quem fosse designado, quem acabava
ficando era sempre Marcelo. Seja no Natal,
no último dia do ano, até no seu aniversário. É que, se alguém lhe pedia para o substituir, ele se colocava no lugar do
companheiro e resolvia sacrificar-se. Era
pessoa de sentimentos!
Acreditava que precisava fazer o bem sem esperar recompensa. Esse era seu valor, seu alimento. Dentro do sacrifício, sentia-se
bem.
10
Admirava-se de sua bondade. Sentia-se valorizado, cumprindo com seu dever.
Mas aquele dia tinha sido a gota d'água: havia visto sua namorada saindo do cinema de braço dado com outro rapaz. À tarde
ela lhe telefonara avisando que tinha apanhado
um resfriado e que não poderia sair com ele naquela noite. Ele acreditara.
Porém Gérson, amigo e companheiro de trabalho, fora procurá-lo em casa para contar-lhe que estava sendo enganado. Sem querer
acreditar, Marcelo acompanhou o amigo
até o cinema e a viu sair trocando carinhos com Valdo.
Sentiu vontade de aparecer ná frente deles, gritar sua raiva e esmurrá-los. Mas ficou parado, enquanto o amigo irritado
o incitava a reagir:
- E então? Não vai dar uns tapas nesses dois? Ele sabe que ela é sua namorada! Estão rindo de você! Vai deixar isso barato?
Vamos lá, que eu ajudo.
Mas Marcelo parecia chumbado ao chão. Ficou olhando quando eles passaram. Mirtes olhou para ele e fingiu que não o conhecia.
Foi-se embora, pendurada no braço do rapaz,
conversando animadamente.
Quando o casal entrou no carro estacionado perto e se foi, Gérson não se conteve-
- Você é muito frouxo! Como pode deixar passar uma coisa dessas?Todo mundo fala mesmo que você é um bunda-mole! Não tem
vergonha nessa cara? Amanhã eles vão espalhar
que você é um trouxa! E eu vou confirmar!
Marcelo saiu correndo e foi para casa. Queria bater naqueles dois E também em Gérson e em quem aparecesse em sua frente.
Mas conteve-se.
Respirou fundo e tentou esquecer aquela cena horrível. Mas não conseguiu. Deitou-se e não pôde dormir. As palavras do amigo
voltavam à sua mente e ele se remexia
ná cama inquieto.
ná manhã seguinte, quase perdeu a hora do trabalho. Levantou-se, lavou-se e vestiu-se rapidamente. Quando se sentou à mesa
do café, Iolanda disse assustada:
- O que foi, meu filho? O que você comeu ontem? Seu rosto está todo pipocado, vermelho.
Marcelo sentiu ligeira tontura. Passou a mão no rosto.
- Está coçando. Quase não dormi esta noite.
- Parece intoxicação. É melhor ir ao médico.
11

- É. Eu vou. Não estou me sentindo bem mesmo.
- O que você comeu ontem? Eu vivo avisando. Vocês comem essas porcarias nas lanchonetes e nem sabem como foram feitas. Só
pode dar nisso.
Marcelo levantou-se e foi olhar-se no espelho. Seu rosto estava ligeiramente inchado e cheio de pintinhas vermelhas. Concluiu
que ir ao médico seria mesmo uma boa
solução. Àquela hora Gérson já deveria ter contado aos colegas o que acontecera ná véspera.
Telefonou ao médico e marcou a consulta. No final das contas aquele adoecimento viera a calhar. Se tivesse sorte, poderia
ficar alguns dias em casa e quando voltasse
ao trabalho seus colegas já teriam esquecido o desagradável incidente da noite anterior.
Nem pensou em ligar para a namorada. Para quê? Sentia-se envergonhado pela cena que presenciara. Nunca mais iria vê-la.
Isso bastaria para que ela entendesse que
ele não aceitava traição.
Gostava de Mirtes. Estavam namorando havia mais de seis meses, e Marcelo pensara até em ir falar com o pai dela e namorar
em casa.
Uma sensação de fracasso o acometeu. Por que para ele nada dava certo? Ele fazia o melhor que podia, mas tudo saía errado.
Foi ao médico e, conforme desejava, conseguiu uma semana de licença.
Em casa, comendo a comida insossa da dieta que o médico recomendara, assistindo à televisão, sentia-se desanimado e infeliz.
Entretanto, ninguém podia saber que ele se sentia derrotado. Quando alguns amigos ligavam, dizia que estava melhorando e
aproveitando para descansar.
Recebeu alta do médico e deveria voltar ao trabalho no dia seguinte. À noite, estava em casa e o telefone tocou. Ele atendeu
e ouviu:
- Marcelo? É Mirtes. Como vai? Já sarou?
O coração dele disparou. Respondeu com voz insegura:
- Já, obrigado. Amanhã volto ao trabalho.
- Você está bem?
- Estou.
- Pois eu não. Sinto-me infeliz, estou sofrendo muito. Preciso falar com você, explicar...
- Tudo está claro. Não há nada a explicar.
- Mas eu quero. Desde aquela noite não tenho dormido. Não sei como fiz aquilo! Por favor, precisamos conversar.
12
- Para quê? Acho que não há mais nada entre nós. Está claro que você prefere Valdo. Aliás, as garotas ficam logo caidinhas
por ele. Aconteceu com você.
- Não é isso, não - respondeu ela chorando. - Não faça isso comigo. É de você que eu gosto. Quero conversar. Não me negue
esse favor. Venha, estou esperando.
Ele hesitou, depois resolveu:
- Está bem, eu vou.
- Estarei esperando no lugar de sempre.
Quando desligou o telefone, arrependeu-sse de haver prometido. A raiva ainda não havia passado. Mas ela estava chorando, arrependida,
sofrendo, e ele não poderia ignorar
o sofrimento dela.
Aprontou-se e foi ao encontro. Vendo-a, notou logo que estava abatida, havia chorado muito. Ficou sensibilizado.
- Desculpe o que fiz - disse ela. - Desejo pedir-lhe perdão. Agi sem pensar. Valdo me convidou e eu tive vontade de ir.
Mas, assim que VÍ você ná saída, me arrependi.
- Sua atitude ná hora não mostrava isso.
- As pessoas estavam olhando. Gérson estava com você. Acho até que foi ele quem lhe contou.
- Ele é meu amigo.
- Ele gosta de ver o circo pegar fogo, isso sim. Mas agora não importa. Na hora fiquei tão chocada que não tive coragem
para reagir. Fomos embora, mas, assim que
chegamos em casa, disse a ele que era de você que eu gostava e que nunca mais desejava vê-lo.
O semblante de Marcelo distendeu-se:
- Você fez isso mesmo? Disse a ele que gostava de mim?
- Disse. Ele insistiu, ficou nervoso, mas eu não cedi.
- Por que não me procurou para dizer isso? Esperou todos estes dias?
- Queria procurá-lo logo no dia seguinte, mas tive vergonha. Soube que estava doente e fiquei muito preocupada. Hoje não
agüentei e resolvi ligar.
Mirtes abraçou-o e continuou:
- Não suportava mais a saudade de você! Diga que me perdoa e que vamos continuar nosso namoro!
Ele sentia o calor do corpo dela junto ao seu e o perfume gostoso de seus cabelos. Não resistiu e beijou-a nos lábios demoradamente.
Aquele beijo tinha para ele
um misto de prazer e de dor que não sabia descrever. Foi mais saboroso do que todos os outros. Decidiu:
13
- Vamos esquecer o que passou. Só espero que você nunca mais faça aquilo.
- Amanhã gostaria que fôssemos à festa de aniversário de Nicinha. Quero que todos vejam que, apesar de tentarem nos separar,
nosso amor é mais forte.
- Quer mesmo ir? E se Valdo estiver lá? Ele é amigo dela.
- Ele terá certeza de que não quero nada com ele.
Marcelo concordou. Seria bom mostrar àquele conquistador barato que era dele que Mirtes gostava de verdade, que só porque
Valdo era boa-pinta, tinha carro do ano,
dinheiro e fama de irresistível, todas as garotas suspiravam por ele. Mas Mirtes resistira. Mirtes preferira-o a ele e dissera-o
com firmeza. Sentiu-se um herói.
Ele levara a melhor, ficara com a menina.
- Está bem. Iremos.
Despediram-se no portão da casa dela. Depois que ele se foi, Mirtes entrou e encontrou a irmã à sua espera.
- Pelo jeito, você conseguiu! Nunca pensei que ele fosse tão bobo. Ela deu de ombros:
- Ele é fácil de manejar. Aquele sem-vergonha do Valdo vai ver só. vou passar ná frente dele aos beijos com Marcelo.
Alzira começou a rir:
- E você acha que ele vai ligar?
- Valdo verá que não preciso dele. Tenho quem me queira.
- Se ele estiver com aquela loira com quem estava ontem, nem vai enxergar você.
- Chega de falar nela. Só em pensar, o sangue me sobe.
- Você é boba de se iludir com Valdo. Ele é volúvel e nunca se interessou a sério por ninguém. Dizem até que ele anda com
aquela mulher casada que sempre aparece
ná revista. Como é mesmo o nome dela?
- Não acredito em nada disso. É intriga. Inveja dos rapazes, por ele ser tão bonito e rico. Se soubesse como ele beija...
- É assim que ele faz. Assanha as meninas e depois as larga. Se eu fosse você, tirava esse cara do pensamento. Ele não serve
para nada. É fútil e mulherengo. Deixou-a
tão apaixonada que você está metendo os pés pelas mãos. Seria mais decente se deixasse Marcelo em paz. Ele é pessoa de boa-fé,
não merece ser enganado dessa forma.
Mirtes deu de ombros:
- Quem manda ser bobo? O mundo é dos espertos. Ele que aprenda a se defender. Estou fazendo o que acho bom para mim.
14
Valdo me desprezou, e não vou deixar isso passar tão facilmente. Ele ainda vai voltar, você vai ver.
- Não creio. Ele não serve para você. Insistir só vai lhe causar aborrecimento.
- Vire essa boca para lá. Você nunca concorda com o que faço.
- Só faz coisas erradas e sempre acaba se machucando. Quando vai aprender?
- Quem é você para saber o que é bom para mim? É mais nova do que eu e acha que sabe mais.
- Tudo bem. Não está mais aqui quem falou. Faça como quiser. A vida é sua. Se preferir um abacaxi, terá de descascá-lo.
Mirtes virou as costas e foi para o quarto. Precisava pensar no vestido que usaria ná festa de Nicinha. Tinha de ficar linda!
No dia seguinte, Marcelo voltou ao trabalho. Gérson, em companhia de outros colegas, estava conversando ná porta de entrada.
Vendo Marcelo aproximar-se, perguntou
com ar de deboche:
- Então, já curou a dor-de-cotovelo?
Marcelo parou, sorriu com ar de superioridade e respondeu:
- Que dor-de-cotovelo?
- A que o deixou de cama todos estes dias. Ou foi a vergonha? Enquanto os demais sorriam maliciosos, Marcelo tornou:
- Para seu governo, o que eu tive foi uma intoxicação.
- É, engolir a raiva intoxica mesmo. Marcelo ficou sério:
- Olhe aqui. Não gosto dessas insinuações. É bom que saibam a verdade. Valdo convidou Mirtes para ir ao cinema, ela ficou
tentada e foi. Mas foi até bom, porque
ela percebeu que ele não é nada do que as garotas dizem por aí. Reconheceu que é de mim que ela gosta. Deu o fora nele e
veio correndo me pedir perdão.
- Ha ha! E você, claro, perdoou. Essa, contando ninguém acredita! Só você mesmo!
- Você diz isso porque está decepcionado. Correu a me chamar para ver os dois saindo do cinema. Está claro que deseja nos
ver separados. Por quê? Está interessado
nela?
- Essa eu não quero nem coberta de ouro. É mentirosa, interesseira. Como pode ser tão confiante? Sabe o que mais? Logo no
dia seguinte em que eles foram ao cinema,
Valdo conheceu uma loira fenomenal e se agarrou nela. Desde esse dia não a largou mais. Foi isso. Mirtes não deu o fora
nele. Foi ele que a largou, como faz com
15


todas. O que ela não quer é ficar ná mão. Como não deu certo, voltou para você correndo. Afinal, mais vale um pássaro ná
mão do que dois voando...
Não adianta falar com você. Depois, ninguém tem nada com minha vida. Sei o que estou fazendo. E sabe o que mais? Está

ná hora de trabalhar. vou entrar.
Marcelo afastou-se, mas ainda ouviu alguns comentários que eles fizeram entre si e sentiu-se humilhado. Seria verdade mesmo?

Mirtes teria mentido?
Sentiu vontade de ligar para ela e desfazer o compromisso da noite. O que eles falavam podia ser verdade. Valdo era assim
mesmo. Um sentimento insuportável de fracasso
o acometeu. Mirtes só o procurara porque fora desprezada.
De certa forma, sentia-se vingado. Ela preferira o outro e fora abandonada. Bem feito! Teve vontade de acabar com o namoro

e mostrar para os colegas que ele não
se deixara enganar pelas lágrimas dela.
Mas e se ela estivesse arrependida mesmo? E se ela, ao compará-lo com Valdo, houvesse percebido sua sinceridade, sua bondade,

e o estivesse valorizando? Ele era
um moço honesto, amoroso, sincero, enquanto Valdo era farrista, volúvel. Certamente Mirtes voltara a procurá-lo porque reconhecera

suas qualidades.
Resolveu deixar tudo como estava. Iria ao aniversário de Nicinha com ela.
A festa estava animada, e, assim que entrou, Marcelo notou que os colegas presentes comentavam entre si. Mirtes estava linda.

Nunca a vira tão bela e elegante. Diante
de sua admiração, ela dissera:
Esta é uma noite especial. Temos de comemorar. Desejo que todos saibam quanto nos amamos e que estamos mais unidos do
que nunca!
Ele se sentia orgulhoso e comovido. Ela se embelezara toda para ele! Fora ao cabeleireiro, vestira-se com apuro. Era a
moça mais bonita da festa. Ela tinha razão:
todos precisavam saber que era dele que ela gostava.
Satisfeito, Marcelo cobria-a de atenções e ela correspondia mostrando-se amorosa como nunca.
Quando Valdo entrou, Marcelo notou o murmúrio entre as mulheres. Estava acompanhado por uma loira muito elegante e bonita.

Apesar de sentir uma ponta de ciúme, Marcelo
foi forçado a reconhecer que era uma mulher maravilhosa. Ouviu alguém dizer:
16
É aquela modelo alemã que está estreando como atriz. Veio filmar no Brasil algumas cenas do filme que está fazendo. Como
é mesmo o nome dela?
Ninguém sabia ao certo. Mirtes fez o possível para encobrir o despeito. A entrada triunfal deles deixou-a de mau humor.

Agarrou-se a Marcelo dizendo:
Vamos dançar, venha.
O conjunto tocava uma música romântica e Mirtes agarrou-se a Marcelo, encostando o rosto em seu peito. Ele sentia o corpo
dela colado ao seu e só tinha olhos para
ela. Nem sequer notou que Mirtes de vez em quando olhava furtivamente para os lados, procurando saber onde Valdo estava.
De mãos dadas com a loira, Valdo conversava animadamente com os pais da aniversariante. Seu sucesso não era só com as
mocinhas, mas também com os mais velhos.
Onde quer que aparecesse, era sempre bem recebido. As pessoas apressavam-se em cumprimentá-lo, dar-lhe atenção. Os garçons

serviam-no melhor e em primeiro lugar.
Pararam de dançar e Marcelo notou que os olhos de Mirtes acompanhavam Valdo, detendo-se nele. Sentiu um aperto no peito.

Não se conteve:
Você não tira os olhos de Valdo.
Estava olhando para ela. Ouvi alguns comentários no toalete.
É linda! E ele parece muito interessado nela.
É, mas logo ela volta para a Europa e ele vai ficar ná mão.
Bobagem. Ele trabalha ná empresa da família, tem dinheiro. Se quiser, pode ir atrás dela. Pelo jeito, é o que vai acontecer...
Ela se irritou:
Não sei o que vocês vêem nessa loira aguada! Só porque ela é artista, todo mundo fica logo de queixo caído. Pois para
mim isso não vale nada. É uma mulher comum,
como qualquer outra.
Você não tem por que sentir ciúme dela, afinal é muito bonita também. Para mim, você é até mais bonita do que ela!
Conheço você! Diz isso só para me agradar. Pois não precisa, ouviu? Seu fingido! Não gosto de mentiras. Não pode deixar

de ser bonzinho pelo menos uma vez ná vida?
Por que está brigando comigo? O que foi que eu fiz? Ela fez um gesto de contrariedade e respondeu:
Nada. Você nunca faz nada. É perfeito. Esta festa está uma porcaria. Vamos embora. Não agüento mais isto.
Espere aí. Até agora a festa estava maravilhosa. O que mudou?
17
Nada mudou. Eu quero ir embora.
Saíram. Durante o trajeto, Mirtes ia calada e pensativa. Valdo não pareceu sequer tê-la notado. Era irritante a maneira
como ele olhava para a loira e o sucesso
que ele fazia em todos os lugares.
O que mais irritava Mirtes era que ele parecia não fazer nada e, no entanto, as pessoas circulavam à sua volta como abelhas
no mel. Era muita sorte! Ela nunca vira
uma pessoa tão privilegiada!
Marcelo tentou conversar:
Não entendo você. Estava tão animada, cheia de amor, de carinho. De repente mudou: achou tudo ruim, ficou mal-humorada.

Aconteceu alguma coisa que não VÍ?
Aconteceu, sim. Aconteceu que de repente aquela festa ficou sem graça. Esperava tanto desta noite... Estou decepcionada.

Não tenho vontade de conversar.
Não é possível. As pessoas não mudam assim de uma hora para outra. Deve haver uma razão. Gostaria que contasse.
Estou com sono. Quero chegar logo em casa.
Ele acelerou o carro e em poucos minutos chegaram. com um beijinho ligeiro ná face e um boa-noite, Mirtes desceu do carro,

abriu o portão do jardim e entrou sem
olhar para trás.
Marcelo ficou aborrecido. O que estaria acontecendo com ela? Por que aquela mudança com relação a ele? Teria ficado com
ciúme de Valdo?
Sentiu um aperto no peito. Não. Ele se recusava a acreditar naquilo. Mirtes demonstrara que era dele, Marcelo, que ela gostava.

Fora carinhosa como nunca. Ele preferia
acreditar que ela realmente se sentira cansada e se entediara ná festa.
Ele mesmo sentira-se incomodado com as atenções que todos davam a Valdo. Não era justo. Só porque ele era rico e tinha
boa aparência, todos o cumulavam de gentilezas.
Nem os donos da casa sabiam o que fazer para agradá-lo. Desde que apareceu, ele havia sido o centro das atenções. De uma
forma ou de outra, todos se interessaram
pelo que ele falava, fazia, com quem ele estava, como estava vestido.
Era o cúmulo. Pensando bem, lá estavam rapazes bem vestidos e tão bonitos quanto ele. Por que as pessoas o endeusavam?
Sentiu uma ponta de inveja. O que ele tinha que os outros não tinham? Ele não era rico como Valdo, mas sua família era de
classe média. Seu pai era um executivo
que trabalhava para uma grande empresa, com alto salário.
18
Ele mesmo havia se formado administrador de empresas, trabalhava havia três anos em uma conceituada firma, com bom salário

e acentuadas possibilidades de progresso.
Havia começado lá quando cursava o último ano da faculdade, já pensando ná possibilidade de fazer uma carreira em sua área.
Tinha consciência de que era um bom partido para qualquer moça. Formara-se aos vinte e quatro anos, estava bem empregado,

era generoso, correto, delicado, honesto,
gentil. Por que ninguém reconhecia isso e tinha sempre de levar a pior? Por que Valdo, que era leviano e não levava nada
a sério, era sempre bem-visto?
E, ao contrário de Marcelo, Valdo nem precisou conquistar um emprego, uma vez que trabalhava nas empresas do pai, o que
eqüivale a dizer que não tinha de se esforçar.
Aliás, já ouvira comentários de que ele nem precisava cumprir horário. Podia dormir tarde, que no dia seguinte só comparecia
ao trabalho depois do almoço.
Marcelo chegou em casa desanimado e triste. A vida era injusta. Fora visível a mudança de Mirtes depois que Valdo chegou
à festa com a loira.
Um pensamento incomodou-o: teria ela se embelezado toda por causa de Valdo? Estaria, como tantas, interessada nele?
Nesse caso, seria melhor acabar com o namoro. Não se sentia disposto a conviver com essa desconfiança. Seus amigos tinham
razão. Ela o usara e ficara mal-humorada
porque as coisas não saíram como ela gostaria.
Deitado em sua cama sem poder dormir, Marcelo percebeu tudo com clareza. Ela era falsa e interesseira. Gérson estava certo.

Ele fora um fraco.
Remexeu-se ná cama e o sangue subiu em seu rosto. Por que não reagira quando os viu saindo do cinema? Ele não era covarde.

Por que ficara parado e engolira a afronta?
Ele precisava reagir. Estava cansado de ser desvalorizado, passado para trás, deixado de lado. Dali para a frente seria
durão. Não deixaria passar nada. Se alguém
o ofendesse, responderia à altura. Precisava mostrar a todos que não era o covarde que parecia ser.
Mirtes iria ver que ele não era o bobo que ela imaginava. Confortado por esse pensamento, finalmente conseguiu adormecer.
19



Valdo remexeu-se ná cama, consultou o relógio ná mesa de cabeceira e tentou reagir. Precisava se levantar. Havia dormido
muito tarde ná noite anterior, mas mesmo
assim não podia perder a hora.
Fez um esforço, levantou-se, tomou um banho rápido, engoliu o café sem muita vontade, mais para ajudar a acordar, pegou
o carro e saiu. Passava das nove, e ele costumava
chegar ao escritório da fábrica no máximo às nove e meia.
Antes desse horário, ele já estava em seu escritório, pronto para tomar conhecimento dos assuntos do dia.
Seu pai o colocara ná empresa desde menino, orientando-o sobre os negócios, fazendo-o conscientizar-se de que tudo aquilo
lhe pertencia por direito.
Desde cedo o garoto demonstrou interesse pelo trabalho, facilidade para aprender, vontade de assumir os negócios no futuro.
21
Tornou-se assim motivo de admiração e orgulho do pai, Dr. Péricles, que com a morte de seu pai recebera uma herança que
daria para ele e a família viverem pelo
resto da vida sem precisarem trabalhar.
Mas Péricles era jovem e cheio de ideais. No ano de 1945 a guerra havia terminado e o mundo estava passando por grande transformação.

Por toda parte havia grande
euforia, e tanto o comércio quanto a indústria cresciam vertiginosamente. As descobertas científicas ocorridas durante os
anos de guerra apareciam nos projetos empresariais,
tornando o progresso acessível a todos.
Péricles, depois de uma viagem aos Estados Unidos, ficou fascinado com o que viu por lá, onde, além dos aparelhos de rádio,

despontava a televisão.
Ele ficava empolgado ao passar pelas lojas em Nova Iorque, vendo o povo parado em êxtase diante de uma vitrine onde havia
um aparelho de televisão ligado. Era caro,
mas ele sabia que em pouco tempo as pessoas fariam tudo para ter um em casa.
Quando voltou ao Brasil, resolveu montar uma fábrica de aparelhos de rádio. Adquiriu um grande terreno e construiu um prédio
pequeno onde começou a fabricar material
elétrico.
Engenheiro civil por formação, ele sabia que o elemento técnico era importante para sua empresa. Contratou gente jovem,

tão interessada quanto ele em pesquisas e
novas abordagens.
O crescimento de seus negócios foi vertiginoso. Quando se casou com Almerinda, já era conhecido nos meios empresariais
como um profissional honesto, capaz e respeitado.
Os aparelhos de rádio e eletrodomésticos que montava, fabricava e vendia eram muito apreciados. Todos os anos lançava novos
modelos mais aperfeiçoados que faziam
estrondoso sucesso.
Nesse ambiente de progresso e otimismo nasceu Valdo. Era nátural que o entusiasmo de seu pai o contagiasse. Desde cedo aprendeu
os segredos da eletrônica, e, embora
conhecesse muito, não parou ali. Formou-se administrador de empresas com a aprovação dos pais, que pretendiam que ele gerenciasse
a companhia.
Rapaz bonito, inteligente, alegre e agradável, conquistava admiração e amizade onde quer que fosse. Havia nele certo carisma

que o tornava muito atraente.
Apesar de bajulado e incensado pela maioria das pessoas, Valdo não se impressionava. Para ele, a admiração delas era natural.

Reconhecia que tinha boa aparência,
dinheiro, inteligência e pais maravilhosos.
22
Tratava todos com respeito, sem fazer diferença entre uma pessoa humilde e uma de posição. As mulheres apaixonavam-se
por ele com facilidade, o que fazia Almerinda
recomendar:
Tenha cuidado, meu filho. Não alimente as ilusões delas. Você andou saindo com a filha do Dr. Isidoro, e, quando parou
de vê-la, ela ficou mal. Falou até em suicídio.
Dona Margarida me contou.
Saí com Dorinha duas vezes apenas. Notei que ela havia colado em mim, e por isso resolvi não a ver mais.
Ela não se conforma.
O que posso fazer? Ela era bonita, e desejei conhecê-la melhor. Mas assim não dá! Ela ficou toda derretida e melosa. Não
é isso que quero de uma mulher. Não sei
o que essas moças têm. Saio uma vez ou duas e elas logo falam em namorar firme, vir aqui em casa. Dão a impressão de que
querem agarrar um marido a qualquer preço.
Eu escapo, é claro.
Isso é verdade. As moças deveriam ser mais esclarecidas, conhecerem melhor um rapaz antes de pensar em namoro sério.
É por isso que eu às vezes procuro mulheres mais adultas e mais livres para me relacionar. Faço jogo aberto e não engano
ninguém.
Eu sei, filho. Mas isso também me preocupa. Um dia você vai se casar, formar uma família. Precisa conhecer uma moça boa
e digna.
Tenho tempo, mãe. Ainda não penso nisso. Quero dedicar-me aos negócios, viajar, buscar tecnologia de ponta para nossos
produtos.
Essa era a melhor forma de convencer Almerinda a não se envolver com os assuntos sentimentais do filho. Depois, ela se
sentia envaidecida com o sucesso que o filho
fazia em todos os lugares.
Valdo sentou-se à escrivaninha disposto a examinar um contrato vultoso que estava negociando com uma empresa americana.

O telefone tocou e ele atendeu:
Alô.
Uma voz de mulher falou em inglês com sotaque alemão:
Como vai, Valdo? Estou de partida hoje à noite. Gostaria de vê-lo antes de ir. Pode passar aqui no hotel?
A que horas é o vôo?
Às onze.
Terá de estar no aeroporto às nove. Está bem, passarei em seu hotel às cinco e meia.
Não pode ser antes? Pensei em uma despedida especial...
23
Lamento, Helen, mas tenho uma reunião importante logo mais e não sei a hora que vai terminar. Espero poder estar aí às
cinco e meia.
Ela suspirou e respondeu:
Está bem. Espero você.
Depois que desligou o telefone, Valdo ficou pensativo. Helen era bonita, agradável e modelo famosa. Desfilar com ela trouxera-lhe
mais popularidade. Por outro lado,
por estar com ele, ela fora introduzida ná alta sociedade paulistana, figurara nas revistas da moda. Fora lucrativo para
ambos. Mas seu interesse nela não ia além
disso.
Ele gostava de estar em evidência nos lugares da moda. Pensava que era uma maneira de tornar os produtos de sua marca sempre
lembrados. Aparecer em uma revista importante,
ainda que fosse em uma festa, tornava sua empresa lembrada, e a publicidade era gratuita.
Já ouvira comentários entre as pessoas:
Olhe o dono da Mercury. Por sinal, minha irmã tem um liqüidificador fabricado por eles.
Ficava satisfeito com isso, mas nunca forçava nada. Sua amabilidade para com as pessoas era natural. Sentia-se de bem
com a vida.
Já sua irmã Laura era muito diferente. Dois anos mais nova do que ele, era retraída, tinha dificuldade para relacionar-se.
Embora andasse sempre ná moda, freqüentasse os melhores lugares, convivesse com pessoas da classe A, ela se sentia pouco
à vontade. Nunca estava satisfeita com
sua aparência e por isso evitava tomar iniciativas ou aproximar-se mais das pessoas. ná solidão de seu quarto, sonhava em
vir a ser uma atriz, sexy, irresistível,
por quem os homens se apaixonassem.
Seu conceito de beleza era bem diferente do que ela via olhando-se no espelho. Não gostava de seu nariz. Achava sua boca
grande demais, o que a inibia de sorrir
para não chamar a atenção para ela. Além de tudo, seus cabelos castanhos e naturalmente ondulados eram rebeldes. Por mais
que os alisasse, acabavam voltando e estragando
o penteado.
Evitava maquiagem, acreditando que aquilo ressaltaria seus traços imperfeitos.
Almerinda tentava de todas as formas fazê-la entender que estava exagerando. Achava a filha bonita e não entendia por que
ela procurava parecer mais feia, evitando
tudo que pudesse torná-la atraente.
Várias vezes a levara a cabeleireiros famosos que haviam tentado mudar o corte de seus cabelos, esteticistas que aconselharam
o uso de maquiagem. A mãe comprava
os produtos, mas, chegando em casa, Laura recusava-se a usá-los, alegando que não se sentia bem com eles, voltando a ser
como era antes.
Preocupada, Almerinda conversava com o marido, que a aconselhava a esperar:
São coisas da adolescência. Isso vai passar.
Mas não passou. Ela havia completado vinte e dois anos e continuava igual. De vez em quando cismava que precisava fazer
uma plástica e ia consultar um cirurgião
famoso.
Contudo eles se recusavam a operá-la, alegando que seus traços estavam adequados a seu rosto e que não havia necessidade
de cirurgia. Alguns tentavam convencê-la
de que possuía um rosto bonito e agradável, que seria um crime tocá-lo.
Os pais concordavam; ela, porém, não. Uma amiga de Almerinda aconselhara-a a levar a filha a um psicólogo. Ela, porém, relutava.

Quando sugeriu uma consulta, Laura
ressentiu-se:
Sei que sou feia, mas louca não. Um psicólogo não vai poder mudar minha aparência.
Laura gostaria de ser como Valdo. Achava-o bonito, atraente, brilhante. Admirava-o. Tinha-o como seu ídolo. Costumava comentar
com os pais:
Não entendo como, tendo os mesmos pais, somos tão diferentes. Ele tem tudo, e eu nada. Não deixa de ser injustiça.
Minha filha, não diga isso. Você é muito bonita também. Se procurasse mostrar-se mais comunicativa, mais alegre, faria
tanto sucesso quanto ele. Mas você se retrai,
evita as pessoas, não se interessa. Como quer que elas a procurem?
Não me sinto à vontade. Sei o meu lugar.
Valdo gostava da irmã e procurara fazê-la perceber que estava errada. Mas, como ela mantivera sua atitude, mostrando-se
triste com a insistência dele, acabou por
não tentar mais nada.
Quando sua mãe comentava o assunto, ele dizia:
Mãe, não adianta. É assim que ela se vê.
Mas ela cultiva a infelicidade. É uma moça bonita, rica, instruída, tem tudo ná vida. E passa o tempo se escondendo, criticando-se,

julgando-se menos, alimentando
a infelicidade. É até pecado.
Paciência, mãe. Um psicólogo poderia ajudá-la, mas ela não aceita. Temos de respeitar.
25
Dói vê-la tão distanciada da realidade, perdendo os melhores anos de sua vida. A juventude passa logo e não volta mais.
Tem razão. Mas o que podemos fazer se ela não quer? Quando algum rapaz se interessava por Laura, esta o evitava
por considerar que tal aproximação era motivada pelo dinheiro de sua família. Ela não se acreditava capaz de despertar uma
paixão. Esse, no entanto, era seu maior
sonho.
Em suas fantasias, imaginava-se tão atraente e irresistível que os homens se apaixonavam perdidamente por ela, fazendo loucuras
para conquistá-la. Como essas fantasias
eram-lhe mais prazerosas do que a realidade, Laura consumia todo o seu tempo livre mergulhada nelas, ignorando o mundo à
sua volta.
Cursava faculdade de filosofia, ná qual tirava sempre as melhores notas. Estudava com afinco, acreditando que sua única
forma de sobressair era ser a primeira de
sua turma. Ficava muito irritada quando não conseguia a nota máxima.
Vestia-se de maneira sóbria, não mostrando interesse pelas novidades da moda que faziam o mundo mágico de suas colegas sempre
interessadas em tudo que as tornasse
mais belas.
Nunca tivera um namorado, e os que haviam se interessado por ela, não tendo encontrado reciprocidade, procuraram outras
garotas. Laura também não tinha amigas. Dava-se
bem com as colegas, mas nenhuma delas privava de sua intimidade.
O telefone tocou e Valdo atendeu:
Alô.
A telefonista respondeu:
Há um moço aqui ná recepção dizendo que é seu primo. O nome dele é Émerson de Menezes.
Émerson! Mande-o entrar!
Valdo levantou-se alegremente surpreendido.
A porta abriu-se e um moço alto, moreno, elegante, apareceu ná soleira. Aparentava uns trinta anos. Seus lábios entreabriram-se

em um largo sorriso.
Abraçaram-se com prazer.
Que bom vê-lo! Quando chegou?
Faz uma hora. Deixei as malas no hotel e vim. Estava ansioso por encontrá-los.
Sente-se e conte: por onde tem andado todos estes anos?
Não receberam meus cartões?
26
Vários. Cada um de um lugar.
Pois foi por onde andei.
Sempre me perguntei o que fez você sair assim pelo mundo, deixando aqui os parentes, os amigos, até Mildred, que sempre
pergunta de você.
Ela ainda não se casou?
Não. Tem muitos admiradores, mas quando nos encontramos dá a entender que ainda espera por você.
Os olhos castanhos de Émerson brilharam, mas ele mudou de assunto:
E vocês, como vão?
Em casa tudo ná mesma. Nestes oito anos que você esteve fora nada mudou. Sempre me intrigou essa sua vontade de sair pelo
mundo em busca de aventuras. Encontrou
o que procurava?
Aprendi muito, e isso foi o mais importante.
Nos últimos dois anos você não mandou nenhum cartão. Mamãe várias vezes mencionou esse fato, preocupada.
Lamento. Mas é que fiquei três anos no mesmo lugar.
Onde?
Em uma pequena cidade da índia.
Fazendo o quê?
Estudando em um mosteiro. Foi maravilhoso. Esse período mudou completamente minha visão da vida, das pessoas e do mundo.
Então resolveu voltar. Vai ficar por aqui?
Sim. Os monges me mandaram embora alegando que eu precisava experimentar o que aprendi lá. Achei melhor voltar para casa.
Ótimo. O que pensa fazer?
Primeiro, ver como andam os negócios.
Meu pai tem cuidado de tudo muito bem. Acho que duplicou seus bens. Sempre se preocupou com sua falta de notícias. Desejava
mandar-lhe dinheiro e prestar contas,
mas você nunca quis.
Tinha certeza de que tudo estava em boas mãos.
Nós não entendemos como pôde viver tanto tempo sem pedir dinheiro.
Trabalhei e aprendi a viver só com o necessário, o que foi ótimo. Quando saí daqui, pretendia enriquecer meu espírito.

A experiência foi muito boa.
Você veio para ficar. Quais são seus planos?
Primeiro preciso me instalar. Depois veremos.
27
Você não vai ficar em um hotel. Vamos agora mesmo buscar suas malas. Você ficará em nossa casa.
Não quero incomodar.
Nem fale nisso. Mamãe ficará ofendida. vou dar um telefonema e depois iremos ao hotel. Deve estar cansado da viagem, mas
assim que descansar vai contar-me detalhes
de como passou todos estes anos. Estou curioso.
Émerson sorriu e respondeu:
Não há muitas coisas. Embora os costumes sejam diferentes de país para país, as pessoas são muito parecidas. Os desafios,
as emoções, os conflitos e os sonhos
são os mesmos em toda parte. Foi por isso que decidi voltar. Minha vontade de andar pelo mundo acabou quando descobri isso.
Vai encontrar nossa cidade um pouco diferente. Mais movimentada, mais moderna.
Notei algumas mudanças. É natural. Mas, creia, as aparências mudaram, porém a essência permanece a mesma.
Valdo olhou-o admirado.
Você está diferente. Não sei bem o que é, mas você mudou. Émerson riu bem-humorado.
É só ná aparência. Fiquei mais velho. No fundo, continuo o mesmo.
Valdo ligou para casa contando a novidade. Depois saiu com Émerson para buscar sua bagagem no hotel.
Embora se tratassem por primos, não havia parentesco de sangue entre eles. A mãe de Émerson, tendo ficado órfã, fora criada
pela mãe de Almerinda e as duas haviam
se tornado inseparáveis mesmo depois que ambas se casaram. Os dois maridos também se tornaram muito amigos, e Émerson crescera
em convivência estreita com Laura
e Valdo.
Quando os pais de Émerson morreram em um acidente de avião, ele estava com dezesseis anos. Era filho único, e, como não
tinha outros parentes, Péricles assumiu
sua tutela e foi nomeado administrador de seus bens pelo juiz. Émerson, chocado pela morte repentina dos pais, traumatizado,
concordou em residir ná casa de seu
tutor, onde recebeu carinho e apoio.
Quando Émerson completou a maioridade, Péricles sugeriu-lhe que assumisse o controle de seus haveres, mas o rapaz pediu-lhe
que continuasse a administrá-los, dizendo-se
inexperiente.
Inteligente, arguto, questionador, não se conformava com a
28
dramática morte dos pais. Aconselhado por Péricles a cursar a universidade, interessou-se por filosofia, mas, depois de três
anos de curso, um dia chegou em casa dizendo
que a faculdade não estava sendo satisfatória.
Almerinda e Péricles tentaram impedi-lo de interromper o curso, mas foi inútil. Alegando que nele não havia encontrado as
respostas que procurava, decidiu que iria
viajar, partir em busca do conhecimento que lhe faltava.
Péricles fechou-se com ele no escritório, pedindo-lhe que desistisse da idéia.
Termine o curso, Émerson. Depois, se desejar viajar, vá. Mas é uma pena interrompê-lo quando faltam apenas dois anos para
completá-lo.
Pensei muito, tio. Noto que a vida não é como nos ensinam. As religiões, os intelectuais, os filósofos, cada povo têm
suas próprias crenças. Onde encontrar a verdade?
Onde buscar explicações para tantas injustiças que acontecem todos os dias no mundo?
A vida tem seus mistérios - considerou Péricles. Se os grandes pensadores divergem entre si, se os intelectuais não
descobriram quem tem razão, você acredita
que conseguirá resolver esse enigma? Não será melhor aceitar os limites que todos temos para entender certas coisas e tentar
viver o melhor que for possível?
Émerson meneou a cabeça negativamente.
Eu não me conformo, tio. Preciso saber mais. Em meio a tantas questões, opiniões e crenças, sinto que preciso desenvolver
meu discernimento. E a única maneira
que há para isso é experimentar.
Experimentar? Como?
Estudando a vida. Prestando atenção em como ela funciona, como age.
Nunca ouvi uma coisa dessas! Você fala como se fosse possível entender a vida! Não será muita pretensão?
Não, tio. Não sou materialista. Embora não seja religioso, reconheço a perfeição da natureza, o equilíbrio do universo.
Sinto que em tudo há uma força de comando
que age, alimentando tudo e todos.
Você fala de Deus.
Falo da fonte da vida. Do criador de tudo. Pode chamar de Deus, se quiser. Essa força comanda tudo, dirige o universo.
Deve ter um propósito. A vida ná Terra não
pode ser apenas isso que vemos todos os dias. Deve haver algo mais que justifique tantas lutas e
29

sofrimentos. Um universo tão belo e perfeito não pode existir apenas para que nossos olhos o contemplem e paguem por isso o
preço da dor. Deve haver algo mais, fatos
que ainda não conseguimos ver mas que existem e podem nos dar a chave de tudo.
Acho difícil isso. Depois, de que adianta saber, se tudo no mundo continua do mesmo jeito?
Esse é o ponto mais importante. Será que se descobrirmos essa chave não encontraremos uma forma melhor de viver? Não poderemos
criar um mundo melhor, mais harmonioso
e feliz?
Péricles sacudiu a cabeça negativamente.
Não entendo você. Por causa de um questionamento filosófico quer abandonar sua carreira, sair por aí sem rumo, em busca
de uma ilusão.
Ao contrário. O que eu quero é sair da ilusão, ir procurar a verdade, onde ela estiver.
Não sei como chegou a essa conclusão. Um rapaz como você, amante dos livros, que tem estudado os grandes pensadores...
Foram eles que me mostraram a que enganos a lógica humana pode nos conduzir. Por meio da lógica podemos chegar às maiores
loucuras.
Dessa vez você exagerou. Quer invalidar o trabalho de grandes homens?
Não. O que quero é conhecer a vida por mim mesmo. Preciso fazer isso, e o momento é agora.
Vejo que está determinado.
Estou.
Nesse caso, desisto.
Émerson deixou a universidade, comprou passagem para a Europa, deixou Péricles cuidando de seus bens, apanhou uma boa quantia
em dinheiro e partiu.
Sua família adotiva esperava que ele logo se cansasse e voltasse. Mas isso não ocorreu. Durante sua ausência e a falta de
notícias, muitas vezes perguntavam-se onde
ele estaria. De vez em quando um cartão carinhoso contava por onde ele andava.
Agora, após oito anos, ele estava de volta para ficar. Era com ansiedade e certa curiosidade que a família toda o esperava
chegar.
Quando ele e Valdo chegaram em casa, Almerinda esperava-os ná entrada, ansiosa. Abraçou Émerson comovida, dizendo alegre:
Que bom que está de volta! Senti muita saudade, meu filho! Como pôde ficar tanto tempo fora de casa?
30
Eu precisava conhecer outras coisas.
Espero que tenha voltado para ficar.
Sim. Não pretendo viajar tão cedo.
Ainda bem. É uma boa notícia.
Vamos conversar ná sala. Quero saber tudo que têm feito durante estes anos todos.
Valdo interveio:
Mãe, ele chegou hoje de viagem. Deve estar cansado.
Desculpe, meu filho. Que distração a minha. Talvez queira descansar primeiro.
Não, tia. Estou bem.
Dirigiram-se para a sala enquanto Almerinda dizia:
Laura ainda não sabe. Saiu logo cedo, mas virá para o almoço. Vai ter uma surpresa e tanto. Já avisei Péricles, que deve
estar chegando.
Sentaram-se ná sala e Émerson indagou:
Como estão todos?
Bem. Apesar do tempo decorrido, não vai encontrar muita diferença. As pessoas continuam as mesmas. O que pensa fazer agora?
Vai voltar à faculdade?
Não. Por enquanto vou assumir meus negócios. Chega de dar trabalho ao tio.
Apesar de não me dar trabalho fazer isso, reconheço que você precisa cuidar do que é seu.
Émerson levantou-se alegre:
Tio! Que bom vê-lo!
Péricles abraçou o rapaz com carinho. Gostava dele como se fosse seu filho. Assim que soube de sua chegada, largou tudo
para ir abraçá-lo.
Depois de algumas palavras de boas-vindas, Péricles perguntou:
O que pensa fazer? Quando cheguei, você dizia que não pretende voltar à faculdade.
Não mesmo. No momento desejo conhecer minha situação financeira, meus recursos, enfim, saber como estão as coisas e com
que posso contar. Depois, decidirei o
que fazer.
Bem pensado. Estou pronto para informá-lo de tudo, bem como ajudá-lo a gerenciar seus recursos.
Agradeço, tio. vou precisar mesmo.
A conversa fluiu alegre e fácil. Émerson falou dos lugares que havia conhecido, cujos costumes eram muito exóticos, e eles

31
ouviram com interesse. Falava com vivacidade, e seus olhos brilhavam vibrantes, envolvendo os presentes com a magia de sua
voz agradável, sua figura bonita, seu
entusiasmo.
Laura chegou sem que ninguém notasse, e ficou parada ná porta da sala sem coragem de interromper a narrativa, como que magnetizada.
Foi Émerson quem notou sua presença. Interrompeu o que estava dizendo, levantou-se e foi abraçá-la, dizendo:
Laura! Como vai?
Bem - respondeu ela enquanto se esforçava para controlar a emoção.
Você ficou muda! comentou Valdo.
Foi a surpresa - balbuciou ela, ainda confusa. Depois, não quis interromper a narrativa. Parecia tão interessante!
Émerson continuava abraçado a ela e conduziu-a para o seu lado no sofá.
Venha. Eu falo demais. Agora quero ouvir você. Ela deu de ombros:
Não há nada para contar. Em minha vida tudo continua igual. Nada mudou. Aliás, faz tempo que não acontece nada. As mesmas
pessoas em volta, as mesmas coisas. Não
há o que contar.
A criada avisou que o almoço estava servido, e eles se dirigiram à copa. Laura respirou aliviada. Não gostava de ser o centro
da conversa. Disfarçadamente, observava
Émerson. Voltara ainda mais bonito. Ele havia sido seu primeiro amor, nunca revelado a ninguém. Ela contava nove anos quando
ele fora morar em sua casa e desde os
doze se sentia atraída por ele.
Émerson tratava-a com carinho e amizade. Ela se sentia gratificada por isso. Logo notou como ele atraía a atenção das garotas
onde quer que fosse e muitas vezes
chorou de ciúme às escondidas.
Quando ele começou o namoro com Mildred, ela tentou conformar-se. Afinal, Mildred era bonita, alegre, disputada pelos rapazes,
enquanto ela era criança ainda, sem
graça e sem atrativos.
Às vezes imaginava-se mais velha, mais bonita, mais sensual, e via Émerson deixar Mildred e vir para ela, abraçando-a, beijando-a.
Depois, olhava-se no espelho e caía novamente em depressão. Ela nunca seria como a rival, e Émerson nunca viria a amá-la.
Quando ele resolveu viajar, ela sabia que iria sentir saudade, mas gostou de saber que ele havia terminado o namoro com
Mildred antes de partir.
O tempo passou e aquela atração da adolescência esmaeceu. Laura acreditou que houvesse sido apenas uma fantasia de menina.
Mas a emoção que sentiu vendo-o sentado
ná sala deixara-a surpreendida e sem palavras. Suas pernas tremeram, seu coração descompassou.
Ele voltara mais maduro, mais bonito. Ganhara em expressão. Em seus olhos havia um brilho diferente que ela logo notou e
que fez seu coração bater mais forte.
Estava difícil prestar atenção ao que diziam. A única coisa em que ela pensava era que ele havia voltado e, desta vez, para
ficar.
Depois do almoço, quando ele subiu para o quarto para desfazer as malas, Valdo ia segui-lo, mas Laura o deteve, perguntando
baixinho:
Mildred sabe que ele voltou?
Acho que não.
Émerson subiu e ela ficou ná sala, pensativa. Se ele não avisou Mildred de sua chegada, talvez não pretendesse reatar o
namoro. Ela nunca o esquecera. Tivera alguns
namorados, nada sério. Sempre que Mildred encontrava Laura, desabafava perguntando se tinham recebido notícias de Émerson,
se sabiam quando ele voltaria.
Ele nunca escreveu para ela. Aliás, não escreveu para ninguém. Para a família, mandava os cartões e só. Mas Mildred não
o esquecia. Dizia que não havia perdido as
esperanças, que iria esperar sua volta e que, quando ele voltasse, se casariam e viveriam felizes.
A esse pensamento, Laura estremecia. E se ele resolvesse reatar o namoro? E se houvesse voltado pensando em casar-se, ter
uma família?


Mildred continuava bonita e requestada. Era atraente e sensual. Por onde passava, sua beleza chamava a atenção. Por que não
se apaixonara por outro?
Se Laura ao menos fosse atraente como Mildred! Mas seu tipo era comum, sem graça, nunca poderia competir com ela!
Ah, se ela fosse bonita como gostaria de ser! Se seu corpo fosse escultural, seus cabelos maravilhosos, seus olhos grandes
e brilhantes... Se ela fosse charmosa
o bastante para chamar a atenção aonde fosse e os homens a perseguissem encantados... Daria tudo para ser bonita e poder
conquistar o amor de Émerson.
Ele a procuraria, diria que a amava. Ela, rodeada de rapazes, largaria todos para ficar com ele. E eles se casariam e seriam
felizes para sempre!
33
Suspirou triste. Infelizmente aquele sonho nunca se realizaria. De que adiantava sonhar se a realidade era bem outra?
No quarto, Émerson desfazia as malas enquanto Valdo falava das mudanças ocorridas quando ele esteve fora. Depois que falou
sobre todos os conhecidos, a política,
os amigos, as garotas, Valdo finalizou:
Não só Mildred mas também todas as outras vão adorar sua volta. Já estou até vendo o burburinho! Vão crivar-me de perguntas,
telefonar, convidar-nos para todas
as festas e inventar programas para nós. Vai ser uma loucura!
Émerson fixou-o e respondeu:
Espero que isso não aconteça. Pretendo levar minha vida de outra forma.
O que quer dizer? Você sempre gostou da vida social.
O tempo passa e as coisas mudam.
Não vai me dizer que pretende isolar-se.
Não disse isso.
E então?
Estive fora muito tempo. Desejo renovar amizades seguindo meus próprios critérios. Há muito deixei de ser convencional.
Você me surpreende. O que direi quando nos convidarem?
Diga que você não responde por mim. Aceite os convites, se quiser, mas deixe-me fora.
Valdo deu de ombros, dizendo:
Bem, se é assim que você quer...
Obrigado por entender.
É. Percebo que você está mudado mesmo.
Vendo que Émerson tirava alguns livros da mala e colocava-os ná estante, apanhou um deles dizendo curioso:
Você leu todos estes livros em inglês? - Li.
Você mal pronunciava algumas palavras em inglês quando saiu daqui.
É verdade. Tive de aprender. Quem viaja pelos países em que andei precisa pelo menos falar esse idioma. ná China, se não
fala chinês, pelo menos precisa do inglês.
Esteve ná China?
Estive. Esse pequeno livro é chinês.
Você lê chinês?
34
O suficiente para entender. Não falo corretamente. Prefiro o indiano. É mais fácil para mim.
Puxa. Quantos idiomas você fala? Émerson sorriu:
- Alguns. Agora preciso voltar ao português. Espero não ter misturado tudo.
Pensou no que vai fazer, já que não pretende voltar à faculdade?
Tenho alguns projetos e pretendo trabalhar neles.
Projetos? De quê?
Por enquanto são apenas idéias. Direi no momento oportuno.
Os dois continuaram conversando e Valdo, curioso, fazia o possível para que ele falasse sobre o futuro. No entanto, não
conseguiu saber mais nada.
35
Marcelo deu uma última olhada no espelho e constatou que estava mesmo muito elegante. Era sábado e ele havia combinado
de passar ná casa de Mirtes para irem ao
cinema.
Já não pensava mais em acabar com o namoro. Estivera decidido, mas Mirtes tratara-o com atenção naquela semana e ele mudara
de idéia.
Olhou o relógio e saiu apressado. Uma vez ná casa dela, tocou a campainha, esperando. Foi Alzira quem abriu a porta.
Oi, Marcelo. Como vai?
Bem, Alzira. E você?
Bem. Veio procurar Mirtes?
É. Combinamos ir ao cinema hoje. Ela hesitou, depois disse
Sinto muito, Marcelo, mas ela mandou dizer que não poderá ir.
Aconteceu alguma coisa?
Ela está com uma tremenda dor de cabeça. Foi se deitar. Pediu que a desculpasse. Amanhã ela lhe telefona.
37
Marcelo sentiu raiva, mas controlou-se. Seu rosto cobriu-se de rubor. Alzira apressou-se em dizer:
Sinto muito, Marcelo.
Ela poderia pelo menos ter me ligado, assim me pouparia de vir até aqui.
Tem razão. Mas sabe como Mirtes é: decide ná última hora.
Decide o quê? Ficar doente?
Não é isso que eu quis dizer. Ela ficou mal de repente. Não dava para telefonar. Você já devia ter saído...
Está bem. Diga-lhe que desejo melhoras. Boa noite.
Boa noite.
Alzira fechou a porta e subiu. Mirtes, diante do espelho, retocava a maquiagem.
Nunca mais me peça para fazer esse papel com Marcelo. Se não gosta dele, por que não acaba esse namoro de uma vez? Você
o faz de bobo. Ele não merece.
Você deu agora para defender os mocinhos desamparados? Fique sabendo que não tenho pena de homem nenhum. Eles, quando podem,
passam por cima de nossos sentimentos
com facilidade.
Marcelo é um rapaz bom
Parece. Garanto que qualquer dia vai mostrar as garras. Eu é que não vou nessa. Onde já se viu?
O que você está fazendo não está certo. Por que combinou com ele se não pretendia ir?
Eu pretendia. Mas depois apareceu aquele moreno fantástico e eu não ia perdê-lo por causa de Marcelo.
Lembra-se de Valdo? Pode acontecer o mesmo. Você se ilude com rapazes finos, de classe. Eles não se interessam por moças
de bairro, como nós.
Bobagem. Um homem, quando se apaixona, casa-se com qualquer uma. Eu pretendo um casamento rico. Não quero acabar como
mamãe, frustrada e pobre.
Que exagero. Não nos falta nada.
Para você, que se contenta com pouco. Não eu.
Já pensou se Marcelo desconfia e fica vigiando a casa? Ele não ficou nada satisfeito com seu recado.
Mirtes deu de ombros.
Se ele nos surpreender, não me importo. Ele é incapaz de reagir mesmo. Passei perto dele de braço dado com Valdo e ele
não fez nada. E ainda me perdoou.
38
Alzira meneou a cabeça negativamente:
Você não tem jeito mesmo.
Mirtes deu um retoque ná maquiagem, uma última olhada no espelho e sorriu satisfeita.
Hoje vai ser uma beleza. Estou muito bem. Garanto que o moreno não vai resistir.
Ela saiu e Alzira ficou observando-a pensativa, vendo-a entrar no luxuoso carro que a estava esperando ná esquina.
Não entendia como Mirtes, agindo de forma tão leviana, fazia mais sucesso do que ela, que era sincera e bem intencionada
com os rapazes. As pessoas costumavam dizer
que ela era tão bonita quanto a irmã mas não tinha tanta sorte quanto ela. Mirtes era muito requestada, nunca ficava um
fim de semana sozinha. Sempre havia alguém
lhe telefonando, convidando para sair.
Alzira foi para o quarto e olhou-se no espelho. Sabia que era bonita, elegante, cuidava da aparência, então por que estava
sempre só? Saía com as amigas, coisa
que sua irmã nunca fazia. com Alzira, Mirtes só ia às compras ou aos lugares de necessidade, nunca saía a passeio. Costumava
dizer que o lazer era para ser vivido
a dois, com um parceiro bonito, alegre. A família e as amigas ela via em outra hora.
"O que será que Mirtes tem que eu não tenho?", questionava Alzira.

ná segunda-feira de manhã, assim que Marcelo chegou ao escritório, Gérson já o esperava ná porta.
Pela sua cara, vejo que aconteceu alguma coisa. O que foi? O amigo pegou-o pelo braço e puxou-o dizendo:
Venha aqui, para que ninguém nos ouça.
Você me assusta. Está com aquela cara de suspense que já conheço. Qual é a bomba?
Mirtes. Você não foi ao cinema com ela no sábado?
Não. Como é que você sabe?
Por que ela estava em uma boate com outro.
As pernas de Marcelo tremeram e ele sentiu uma pancada no estômago.
Lá vem você de novo. Quem inventou essa história?
Ninguém. Eu VÍ. No sábado fui com Marcos à festa de
39
aniversário de uma colega da irmã dele, lá pelas bandas da Vila Madalena. Saímos de lá passava das duas. Quando passamos pela
porta de uma boate, Mirtes estava saindo
de lá com um sujeito alto, bem vestido. Fiz Marcos parar o carro e ficamos olhando enquanto o manobrista trazia o automóvel
deles. VÍ muito bem. Era ela mesma.
Estava toda derretida com o sujeito. Queria que você visse.
Marcelo ficou vermelho de raiva. Estava fazendo papel de bobo diante dos amigos. Aquela hora todos os colegas já deveriam
estar sabendo.
Mas há algo que não lhe contei, Gérson - mentiu. Nós acabamos o namoro. Ela agora é livre. Pode sair com quem quiser.
Não tenho mais nada com ela.
Gérson abanou a cabeça incrédulo:
A quem pensa que vai enganar? Quando saiu daqui ná sexta-feira, você disse que estava com pressa, queria cortar o cabelo
porque ia ao cinema com ela no sábado.
Eu ia mas não fui. Nós brigamos e não fomos. Espero que você esclareça esta história com Marcos. A esta hora ele já deve
ter contado para todo mundo.
Ele não faria isso. Nem eu. Mas sou seu amigo. Que diabo... Dói ver essa menina fazendo você de bobo.
Não tenho mais nada com ela. Está tudo acabado. Esqueça Mirtes. É o que pretendo fazer.
Gérson deu de ombros:
Bem, se é assim...
É assim. Entre nós não há mais nada.
Espero que isso o tenha curado de vez.
Marcelo entrou no escritório, foi direto para sua mesa e fingiu que começava a trabalhar. Mas sentia-se atordoado, seu estômago
enjoado, como se de repente não pudesse
digerir o que havia comido antes de sair de casa.
Gérson, que o observava disfarçadamente, aproximou-se:
Você está pálido. Está se sentindo mal?
É. Acho que comi alguma coisa que não caiu bem. vou até a copa ver se tomo um sal de frutas.
Ele saiu e Gérson meneou a cabeça inconformado. Marcelo era um rapaz trabalhador, honesto, sincero, bem-apessoado. Tinha
as melhores qualidades. Por que será que
era tão sem sorte?
"As mulheres não sabem valorizar rapazes de bem", pensou ele. Gostavam mesmo era dos ousados, dos inconstantes, dos donos
de
40
carros de luxo. Mirtes era dessas, interesseira, falsa. Por isso ele, Gérson, não confiava em mulher nenhuma.
Marcelo tomou o sal de frutas e voltou ao trabalho. Sabia que Gérson não havia mentido. Fora enganado mais uma vez. Mas
depois disso ele ia acabar definitivamente
com aquele namoro.
Porém continuava apaixonado por ela. Chegara até a pensar em casamento. Só não fizera o pedido porque suas condições financeiras
ainda não lhe permitiam oferecer
uma posição melhor. Sabia que Mirtes tinha grandes pretensões. Ela já lhe dissera que só se casaria quando pudesse ter uma
bela casa, com conforto, um carro para
uso pessoal. Além disso, sua festa de casamento teria de ser inesquecível.
Ele ganhava bem, mas, para oferecer o que ela desejava, precisava esperar mais um pouco.
Quero me casar com um homem de verdade. É ele quem deverá me sustentar, trabalhar para dar-me tudo que eu quero.
E ele sabia que ela queria carro, jóias, viagens. Por que se iludira apaixonando-se por ela? Sua família era de classe média,
desfrutavam de uma vida boa, mas não
eram ricos. Se resolvesse casar, seus pais o ajudariam, mas ele não gostaria que gastassem suas economias prejudicando seu
patrimônio. Não era justo. Haviam trabalhado
para sustentá-lo a vida inteira, pagando seus estudos, ajudando-o de todas as formas.
Ele queria ser independente, abrir seu próprio caminho ná vida.
Reconhecia que Mirtes não era moça para ele. Precisava acabar com aquela tortura e tentar esquecê-la. O rosto dela apareceu
em sua mente e ele estremeceu. Seria
difícil. Sentia-se muito atraído por ela. Seus beijos o entonteciam e ele perdia toda a resistência. Apesar disso, firmou
o propósito de afastá-la de seu caminho.
O dia custou a passar e ele não via a hora de sair, ir para casa. Às seis, finalmente deixou o escritório. Gérson esperava-o.
Vamos sair hoje à noite?
Em plena segunda-feira?
bom, pensei que quisesse se distrair. Poderíamos ouvir música ná casa de Marcos ou dar uma volta.
Obrigado, Gérson, mas estou cansado. Prefiro ir para casa. Fica para outro dia.
Você é quem manda. Até amanhã.
Marcelo saiu, apanhou o carro, mas não foi para casa. Precisava-
41
pensar, planejar o que fazer. Já estava escurecendo e as luzes da cidade estavam acesas. Deu algumas voltas e, ao passar
por uma praça quase deserta, parou.
Desceu do carro e andou procurando um lugar tranqüilo. Encontrou um banco em um canto onde não havia ninguém e sentou-se.
Ao redor havia canteiros floridos, e agradável perfume pairava no ar, mas Marcelo, perdido em seus pensamentos, nem sequer
notou. Só sua dor importava. O que fazer
para libertar-se dela?
Tentou determinar o que lhe doía mais: se a traição, a mentira ou a necessidade de renunciar àquele amor sentindo-o ainda
vibrando dentro de si.
Compreendia que Mirtes era diferente dele. Ela valorizava coisas que para ele não tinham muita importância. Reconhecia que
desejava progredir, ter conforto, enriquecer
se pudesse, tanto quanto ela. Mas a diferença estava nas prioridades. Enquanto Mirtes colocava o dinheiro como ponto principal
e para conquistá-lo passava por cima
de todos os outros valores, ele não se sentia capaz disso.
Em seu coração, o amor, a honestidade, a bondade, o respeito aos outros vinham em primeiro lugar. Um casamento assim nunca
daria certo. Jamais poderia confiar nela.
O que aconteceria se ele adoecesse, ficasse sem dinheiro? Ela não hesitaria em trocá-lo por outro.
Quanto mais pensava, mais sentia que precisava esquecer Mirtes. Então lembrava-se de seu rosto, de sua figura bonita, elegante,
seu sorriso, o brilho de seus olhos,
e seu coração disparava, ele não se sentia com coragem de deixá-la.
Ficou ali muito tempo, atormentando-se com aqueles pensamentos sem conseguir chegar a uma decisão. Sabia que se ela o procurasse,
se se arrependesse, ele a perdoaria
de novo. Passou a mão pelos cabelos desesperado. O que fazer para acabar com aquele tormento? Onde encontrar solução para
aquela louca paixão que o deixava destruído,
sem vontade, completamente infeliz?
Seu estômago doeu e ele consultou o relógio. Passava das dez. Não havia comido nada desde o almoço. Precisava ir para casa.
Sua mãe devia estar preocupada com sua
demora.
Levantou-se rapidamente e foi embora. Uma vez em casa, arrumou uma desculpa, comeu um lanche e foi se deitar. Seu corpo
doía, sentia-se muito cansado. O melhor era
tentar dormir. Talvez Mirtes não o procurasse mais, o que facilitaria separar-se dela.
Deitou-se, remexeu-se ná cama algum tempo, mas finalmente conseguiu adormecer.
42
Foi no dia seguinte, quando estava pronto para ir trabalhar, que Marcelo deu por falta de sua agenda e sua carteira. Procurou
no carro e não encontrou. Recordou-se
de havê-la apanhado e levado consigo quando foi sentar-se ná praça. Gostava de fazer anotações sobre seus problemas. Era
uma forma de estudá-los. Depois, a agenda
continha informações importantes que ele colecionara durante muito tempo e que o ajudavam em seu trabalho. Precisava encontrá-la.
Resolveu passar pelo local e procurar. Era muito provável que a houvesse esquecido sobre o banco. Mas foi em vão. Não estava
lá. Marcelo deu uma volta pelo local,
indagou de algumas pessoas que circulavam por ali e não obteve resultado.
Desanimado, foi para o escritório. Gérson, vendo-o, foi logo dizendo:
Não melhorou? Você está com uma cara...
Estou preocupado.
com Mirtes, claro Depois de ontem...
Por que você é tão maldoso? Não é nada disso. Perdi minha agenda.
Aquela que tem o diário de sua vida?
Não caçoe. Ela tem material de trabalho. Vai me fazer muita falta. Acho que a perdi.
Não se preocupe. Ela aparece. Se perdeu, alguém achou. Há o número de seu telefone nela. Logo vai encontrar. Ela só tem
utilidade para você.
É que minha carteira estava junto. Eu a coloquei ná contracapa da agenda.
Nesse caso, não vai ser fácil. Tinha dinheiro?
Não muito. Só documentos.
Puxa, que amolação. Por que não põe um anúncio no jornal?
Para quê? Se a pessoa que achou quiser entregar, tem o número do telefone.
É mesmo. O anúncio não vai adiantar muito.
Marcelo mergulhou no trabalho tentando esquecer os desagradáveis acontecimentos da véspera.
Passava das onze quando seu telefone tocou:
Quero falar com Marcelo Rodrigues de Sousa.
Sou eu. Pode falar.
Ontem passando pela praça Buenos Aires encontrei uma agenda sobre um banco. Acho que lhe pertence.
Marcelo deu um pulo:
43
Encontrou? Puxa, não sabe como está me fazendo falta...
Foi o que pensei. Por isso estou ligando. No momento não tenho um portador para mandar entregar. Eu mesmo terei um dia
muito ocupado. Há alguém que possa vir apanhá-la?
Irei agora mesmo. Qual é o endereço? Ele anotou, depois disse:
Gostaria de agradecer-lhe pessoalmente.
Ficarei aqui ainda durante meia hora.
Não estou muito distante. Chegarei antes disso. Obrigado mais uma vez.
Falou com a secretária e saiu apressado. Vinte minutos depois estava no endereço anotado. Surpreendido, reconheceu que
estava diante da casa de Valdo.
Tocou a campainha e foi conduzido a uma sala. Instantes depois, Émerson apareceu diante dele com sua agenda ná mão.
É esta?
Isso mesmo. Não sabe como lhe sou grato.
Há também uma carteira com documentos. Veja se está tudo em ordem.
Deve estar.
É bom verificar. Ontem quando fui dar uma volta ná praça, ao sentar no banco a encontrei. Como não havia ninguém por
perto, resolvi trazê-la e procurar o dono.
Mas não sei quanto tempo ela ficou naquele banco. Alguém pode ter tirado alguma coisa.
Marcelo verificou e disse satisfeito:
Está tudo aqui. Não sei como lhe agradecer. Esta é a casa de Valdo, não é?
É. Meu nome é Émerson. Sou irmão de criação dele.
Não me lembro de você.
Estive fora durante oito anos. Voltei há poucos dias. Estou morando aqui provisoriamente, até reorganizar minha vida.
Sente-se, Marcelo, vamos pelo menos tomar
um café.
Obrigado, mas não quero incomodar. Sei que deve sair dentro de alguns minutos.
Combinei ver uma casa que desejo comprar. O corretor vai passar aqui. Temos tempo até ele aparecer. Sei que no Brasil
as pessoas não primam pela pontualidade.
Marcelo sorriu, olhando-o curioso. Era muito diferente de Valdo: mais calmo, havia alguma coisa em seus olhos que o impressionou.
44
A criada apareceu e Émerson pediu-lhe que servisse um café. Depois voltou-se para Marcelo:
Costuma sentar-se naquele banco da praça?
Não. Para dizer a verdade, nunca havia ido até lá. Mas ontem foi um dia danado e eu precisava colocar os pensamentos em
ordem.
Pois eu gosto daquele lugar. Tenho ido algumas vezes e escolho sempre aquele banco. É um lugar muito bonito e tem uma
vibração muito boa.
Pode ser, mas para mim não adiantou muito. Só consegui perder a agenda e me preocupar ainda mais.
Émerson fitou-o com seriedade e permaneceu alguns instantes calado. Depois disse:
Preocupação não é solução. Só gera confusão. As boas idéias só aparecem nos momentos em que estamos calmos, harmonizados.
Eu gostaria de ter serenidade, de enfrentar meus problemas com coragem. Mas não consigo. Quando estou sob pressão, só
quero desaparecer, fugir, ignorar. Depois
fico arrasado.
Fica se culpando, sentindo-se covarde, fraco.
Isso mesmo. Parece até que você me conhece.
O medo é um sentimento doloroso. Por trás dele há sempre uma maneira inadequada de ver as coisas.
Como assim?
Há o medo real, quando nos defrontamos com uma situação que coloca em risco nossa segurança física, e há os imaginários.
Estes são em maior número, mas muito
mais fáceis de serem vencidos.
Não é o que eu penso. Gosto de tudo direito, não faço mal a ninguém, mas consigo ser sempre prejudicado. Tudo sai errado.
Surpreendido por um fato desagradável,
fico paralisado, não reajo ná hora, só muito tempo depois, e então perco a coragem para me posicionar. Acho que não vale
a pena.
Nessa hora sente-se fraco, irritado consigo mesmo. Marcelo sorriu e concordou. A criada trouxe o café e ele apanhou a
xícara que lhe estava sendo oferecida.
Obrigado. Você acabou de descrever o que acontece comigo. Ontem foi um dia horrível. Como sempre, fugi do problema mas
não consegui esquecê-lo. Senti-me sufocar,
então parei ná praça, sentei-me naquele banco. Queria fazer alguma coisa para me sentir melhor. Por fim, cansei e fui para
casa sem haver resolvido nada. Estava
tão mal que só hoje de manhã quando procurei a agenda foi que dei pela falta. Para você ver como eu estava.
45
Você se julga fraco mas não é. Esse pensamento é apenas uma forma de defesa para não ter de reagir e tomar uma decisão.
Defesa? De quê?
Se você crê que certas coisas representam um perigo, que podem causar-lhe sofrimento, sua mente cria automaticamente um
processo de defesa para protegê-lo. Entretanto,
suas crenças podem ser ilusórias, aprendidas por meio da educação, e nesse caso sua defesa, ao invés de ajudar, cria maiores
obstáculos.
Você é médico?
Não. Sou terapeuta. Por isso estive fora vários anos, estudando a vida em todos os seus aspectos.
Você fala com segurança. Gostaria de saber mais. Disse que minha fraqueza é uma forma de defesa. Nesse caso eu não deveria
ficar tão mal.
Se suas crenças fossem verdadeiras, se sua forma de ver a vida fosse real, sua defesa seria eficiente. Mas, como ela procede
de suas ilusões, não cria bons resultados.
Ao invés de eliminar, alimenta seus sofrimentos.
Poderia explicar melhor?
Você criou ná mente a idéia de que confrontar situações ou pessoas é terrível. Acreditando-se um fraco, não vai precisar
fazer isso.
bom isso é verdade. Eu odeio brigar, contrariar os outros, ter de negar alguma coisa. Prefiro me prejudicar a ferir os
outros.
Essa é uma grande ilusão. O fato de dizer "não", de se impor quando algo o desagrada não significa brigar ou apelar para
a violência. É apenas uma postura natural
que vai estabelecer para os outros o limite até onde podem chegar com você. As pessoas precisam desse referencial para
se relacionarem umas com as outras. Quando
você não faz isso, elas vão avançando e acabam abusando.
Isso sempre me acontece.
É porque você não toma conta de seu espaço. A criada apareceu ná porta.
O que foi, Lina?
O corretor chegou.
Marcelo levantou-se imediatamente:
Que pena!
Émerson sorriu levemente.
Preciso ir, mas podemos continuar nossa conversa outro dia.
Gostaria imensamente. Sou muito grato por sua gentileza. Aceitaria jantar comigo? Pode marcar o dia.
46
Claro. Pode ser ná quinta-feira?
Está marcado. Virei buscá-lo às oito.
Combinado.
Marcelo deixou a casa satisfeito. Não só encontrara a agenda e a carteira com tudo em ordem mas também ganhara um amigo.
Simpatizara com ele à primeira vista. Havia qualquer coisa em Émerson que inspirava confiança. Ele olhava nos olhos enquanto
conversava, dizia coisas que o faziam
pensar. Era prazeroso conversar com ele. Ainda bem que aceitara o jantar.

Naquela tarde, Marcelo, apesar do propósito de não procurar Mirtes, ficou pensando nela o tempo todo.
E se ela ligasse, o que lhe diria? O melhor era fingir que não sabia de nada, agir com naturalidade.
Ao pensar nisso sentia um aperto no estômago. Não, ele não podia fazer isso. Tinha de tomar coragem e acabar com o namoro.
Não podia continuar fazendo papel de
bobo.
Mas o tempo passou e Mirtes não ligou. Quando ela não telefonava por um ou dois dias, Marcelo costumava ligar para conversar
e marcar encontro. Cada vez que o telefone
tocava, ele estremecia. Não conseguiu prestar atenção ao trabalho, que rendeu muito pouco. Sua cabeça doía, e ele foi procurar
um comprimido.
Ao sair do escritório, Gérson aproximou-se:
Você está preocupado. Vai me dizer que é por causa de Mirtes?.
Não quero mais nada com ela.
Mas ainda está apaixonado, e isso é o diabo. Está triste, dá para notar.
Marcelo suspirou e não respondeu. Gérson continuou:
Olhe, Marcelo, é duro no começo, mas você vai esquecer. Lembra-se de meu caso com Marina? Eu estava louco por ela, mas,
quando percebi que ela não gostava de
mim e que estava me usando, caí fora. Hoje quando a vejo não sinto nada. Até me admiro de ter sido apaixonado por ela um
dia. Você precisa se distrair, arranjar
outra. Isso ajuda. Vamos sair hoje?
Estou cansado. Para dizer a verdade, quase não dormi a noite passada. vou para casa.
Meu medo é que Mirtes o procure chorando e você comece de novo.
Desta vez é definitivo. Estou decidido. Não dá certo mesmo.
47
Assim é que se fala! Apesar disso, seria mais seguro se fôssemos dar uma volta. Sabe como é: pode aparecer alguém interessante,
e aí você esquece a tristeza.
Para isso precisaria estar de bom humor. Ninguém vai gostar de sair comigo nesta disposição em que estou. Iremos outra
noite.
Marcelo chegou em casa, tomou um banho, jantou e foi para o quarto. Apanhou um livro e deitou-se disposto a ler. Contudo,
seu pensamento estava voltado para o telefone.
Mas ele não tocou. Mirtes teria marcado de sair novamente com o rapaz do sábado?
Precisava saber. Levantou-se, arrumou-se e saiu. Largou o carro em outra rua e foi até o bar que ficava ná esquina da casa
de Mirtes. Sentou-se em uma mesa de onde
podia observar a casa dela, pediu um refrigerante e esperou.
Olhou para o relógio. Oito horas. Eram oito e dez quando a porta se abriu e Mirtes saiu toda arrumada. Marcelo apertou os
lábios com raiva. Levantou-se e foi até
a porta. Ela caminhou até a esquiná, onde havia um carro de luxo à espera. Um rapaz alto saiu e dirigiu-se a ela. Cumprimentaram-se,
ele abriu a porta do carro,
ela entrou e foram embora.
Marcelo, cego de raiva, pagou o refrigerante e saiu rápido. Não podia duvidar mais. Era mesmo verdade. Ela o trocara por
outro. Teve vontade de esmurrá-los, de gritar
sua revolta, de bater em alguém. Diante da própria impotência, não conseguiu segurar as lágrimas que desceram por seu rosto.
Ao virar a esquina, bateu de frente com uma moça que caminhava em sentido contrário. Ela perdeu o equilíbrio e caiu. Imediatamente
ele a segurou pelo braço e ajudou-a
a se levantar.
Marcelo! É você?
Olhos molhados, rosto contraído, mãos trêmulas, ele reconheceu Alzira, irmã de Mirtes.
Desculpe... Não a VÍ. Machucou-se?
Não. Estou bem. O que está fazendo aqui? Você está transtornado. Por acaso...
Sim, eu a VÍ sair. Fiquei sabendo o que aconteceu sábado. Vim verificar e VÍ. Estava andando depressa para pegar meu carro
e ir atrás deles.
Alzira assustou-se:
Para quê?
Para desabafar, brigar, pelo menos fazer alguma coisa. Agora eles se foram. Sabe para onde?
48
Não, e mesmo que soubesse não lhe diria. Quer ir até minha casa, tomar alguma coisa? Você está muito nervoso.
Obrigado. É melhor não. Não quero ver ninguém.
Você não pode ir embora assim. Vamos até seu carro conversar um pouco.
Alzira pegou o braço dele e foram caminhando até o carro. Ele abriu a porta e entraram.
Você quer me confortar, mas estava encobrindo-a. Devem ter dado boas risadas à minha custa.
Não diga isso. Não gosto do que ela está fazendo. Várias vezes já lhe disse que, se ela quisesse sair com outros, deveria
acabar com o namoro de vocês. Seria
mais digno. Mas você sabe como ela é: só faz o que tem vontade. Não ouve ninguém. Minha mãe já cansou de dar-lhe conselhos.
Preciso esquecê-la. Ela não me ama, não é para mim.
Isso mesmo. Mirtes tem a cabeça cheia de ilusões, mania de grandeza. Quer se casar com um homem rico, não está à procura
de amor.
O diabo é que gosto dela. Está difícil aceitar a separação. Alzira suspirou inconformada. Não podia entender como um
rapaz bonito e bom como ele se humilhava daquela forma. Disse com voz firme:
Melhor aceitar o rompimento agora do que prosseguir nessa relação e vir a sofrer muito mais. Sabe de uma coisa? Mirtes
não está preparada para um namoro sério.
Não sabe o que quer. É incapaz de ser fiel.
Você deve saber o que está dizendo. - Sei.
Notando o abatimento dele, ela continuou:
Por que não dá um tempo? Quem sabe mais tarde ela tome juízo.
Está dizendo isso para consolar-me.
Não, sério. Mirtes tem sede de viver, é cheia de ilusões. Minha mãe costuma dizer que é da idade, que ela vai amadurecer.
Você é mais nova e não procede como ela. Acho que é temperamento mesmo.
Alzira não respondeu. Ela sabia que ele estava certo, mas não queria falar mal da irmã.
Olhe, vá para casa e pense no que eu lhe disse.
vou pensar. Aliás, não consigo pensar em outra coisa. Não
49
vou procurá-la outra vez. Para mim acabou. Só tenho medo de que ela venha pedir-me perdão, dizer que está arrependida.
É isso mesmo que ela vai fazer. Enquanto estiver interessada nesse com quem saiu hoje, ela nem se lembrará de você. Porém,
se ele a deixar ou se ela perder o
interesse, certamente irá procurá-lo.
O problema está aí. Não sei dizer "não" a ela. Alzira irritou-se.
Ela faz o que faz porque conta com isso. Vive dizendo que você não tem coragem de romper o namoro. Quer saber de uma
coisa? Se você fosse mais durão, ela pensaria
duas vezes antes de fazer o que faz.
Quer dizer que a culpa é minha? respondeu nervoso.
Ela é volúvel e você não tem pulso. Por isso ela não o respeita. O que ela está fazendo é falta de respeito.
Marcelo baixou a cabeça envergonhado.
Tem razão - disse vagarosamente. Preciso reagir. Mas não gosto de brigar. É horrível. Faço tudo para viver em paz.
bom, se você pensa assim, deve procurar uma moça que seja calma, sincera, bem-comportada, nunca alguém como Mirtes.
Seria melhor. Por que será que fui me apaixonar logo por ela?
Porque você gosta de mulher provocante. Nem repara nas outras.
Marcelo sorriu. Era verdade. Para ele uma mulher tinha de ser vistosa, cheia de vida, chamar a atenção aonde fosse.
Pelo jeito você me conhece mais do que eu. É a primeira vez que conversamos.
Sou observadora. Quanto mais Mirtes faz das suas, mais você a deseja. Começo a pensar que, no fundo, o que você gostaria
mesmo é de ser igual a ela, de ter coragem
para seduzir, de ser audacioso, requestado, desejado por todas as mulheres.
Isso não é verdade. Sou pacato, discreto, não gosto de chamar a atenção.
Não creio. O que você sente por minha irmã não é amor, é paixão. E a paixão aparece exatamente quando você vê no outro
um comportamento que gostaria de ter mas
que não tem coragem de adotar.
Você está fantasiando.
Pense e verá que tenho razão. Você gostaria de ter a coragem dela, de fazer o que ela faz, por isso você a perdoa quando
ela volta. Porque no fundo, apesar de
ver-se preterido, justifica-a e admira-a.
50
Marcelo não encontrou resposta. As palavras dela o incomodavam, e ele decidiu encerrar o assunto.
Obrigado por me ouvir. Foi bom termos conversado. Alzira abriu a porta do carro dizendo:
Sinto-me aliviada. Não gosto de situações dúbias. Foi ótimo conversar com você. Até outro dia.
Ela se foi, e Marcelo, durante o trajeto de volta, ficou pensando no que ela dissera. Não, ele não queria ser igual a Mirtes.
Lembrou-se de Valdo. Ele, sim, era
igual a ela. Bonito, elegante, charmoso, volúvel, chamava a atenção onde aparecia. Gostava de estar em evidência. E, além
de tudo, era rico.
Marcelo abanou a cabeça negativamente. Nunca poderia ser como ele. Não gostava de aparecer, de chamar a atenção. Era discreto,
sério, honesto, educado. Alzira estava
errada.
51


Émerson contemplou a sala com satisfação. O ambiente era simples e aconchegante, exatamente como queria. Sentou-se ná poltrona,
apanhou uma pasta e, abrindo-a, iniciou
a leitura atenta de seu conteúdo.
Não podia esquecer nenhum detalhe. Desenvolvera aquele projeto quando ainda estava no mosteiro, depois que seu professor
e mestre o chamara e dissera:
Hoje você terminou sua iniciação. Até agora a vida lhe deu tudo que foi possível para que você conquistasse seu progresso
espiritual. Você recebeu esclarecimentos,
luz, aprendeu alguns dos mistérios que só os iniciados podem penetrar. É hora de experimentar, de conferir, de descobrir
quanto você captou do que lhe foi passado.
E isso só será possível vivendo.
Mas quero ficar um pouco mais. Conheci outros povos, outros conceitos, experimentei situações, mas foi aqui que
53
encontrei a sabedoria, a paz, que minha sensibilidade se abriu e pude contemplar outras dimensões do universo. Sou muito
grato pelo carinho com que me acolheram.
Gostaria de poder permanecer aqui para sempre.
Nós o amamos muito, meu filho. Nosso coração pede a Deus por sua felicidade. Mas sua missão é lá entre seu povo, que precisa
de conhecimento. Você veio para ser
o intermediário entre a sabedoria divina e seu grupo de evolução. Ficar aqui seria impedir seu crescimento e a multiplicação
do bem. Você sabe que a separação não
existe quando estamos unidos pelo amor divino.Você tem mais um mês para estar conosco. Portanto, deve programar como deseja
iniciar seu trabalho em benefício dos
seus.
Émerson baixou a cabeça pensativo. Voltar seria encontrar novamente as injustiças sociais, a perturbação de uma sociedade
descrente mergulhada nas próprias ilusões.
Teria forças para manter o próprio equilíbrio conquistado durante aqueles anos?
O mestre colocou a mão sobre seu ombro, dizendo com voz
suave:
Se você não conseguir manter a serenidade em qualquer circunstância, então de nada lhe valeu o tempo que passou aqui.
Émerson entendeu. Era preciso enfrentar a turbulência do mundo para saber se havia aprendido. Abraçou seu mestre, curvou-se
e saiu.
A partir daquele dia, começou a programar que rumo daria à sua vida quando voltasse. Depois de muito meditar e de pedir
a ajuda espiritual dos grandes mestres do
universo, Émerson começou a esboçar seu projeto.
Acreditava ná perfeição da vida, em sua bondade e sabedoria. Descobrira que a infelicidade do homem era causada por sua
incapacidade de orientar-se, deixando-se
conduzir pelas ilusões, pagando por isso o preço da dor.
A inversão de valores criara regras sociais que deturpavam a verdade, dificultando que as pessoas pudessem escolher melhor
seus caminhos.
A maneira de enxergar a vida é fundamental porque influi nas atitudes e escolhas, programando os resultados que terão no
futuro. Portanto o sofrimento humano é um
problema de educação espiritual.
Se os homens descobrissem a finalidade da vida, se pudessem conhecer os verdadeiros valores do espírito eterno, certamente
mudariam suas atitudes e evitariam muitos
sofrimentos.
54
A evolução do espírito é lei universal. A vida cria desafios todos os dias para que a alma conquiste maturidade. As dores
do crescimento são inevitáveis. Entretanto,
elas são insignificantes diante do volume de sofrimentos que o homem cria por ignorar como a vida funciona.
Pensando assim, Émerson resolveu que criaria um instituto do conhecimento espiritual, onde desenvolveria um trabalho de
iniciação ensinando tudo que aprendera no
mosteiro. Esse conhecimento fizera-lhe imenso bem.
Saíra do Brasil cheio de dúvidas, motivadas pela perda de seus pais de forma tão violenta. Vivia inquieto, inseguro. O medo
do desconhecido perturbava-o. Para ele,
seus pais representavam segurança, mas o acidente provou que no mundo nada é seguro. Isso o tornava depressivo e infeliz.
ná China, aprendera conceitos novos de saúde e medicina, contemplara a serenidade dos sábios, começara a desenvolver sua
sensibilidade e a perceber que a vida era
mais do que o mundo material.
Mas foi ná índia, naquele mosteiro, que realmente encontrou a explicação para os problemas que o angustiavam, aprendeu os
segredos da conquista da serenidade interior,
desenvolveu mais sua sensibilidade.
O amor, o respeito e o carinho dos mestres encantaram-no. náquele ambiente sua sensibilidade se abriu a ponto de Émerson
sair do corpo conservando a lucidez e entrar
em contato com seres de outras dimensões, de onde regressava trazendo dentro do peito uma felicidade intraduzível.
Quando falou com seus mestres sobre suas idéias, eles concordaram com entusiasmo, aconselhando-o a planejar tudo nos mínimos
detalhes.
O primeiro ano seria de formação. Para levar esse projeto para a frente, Émerson precisaria formar pessoal habilitado, para
depois se aventurar a ensinar publicamente.
Enquanto relia o que estava descrito em seu projeto, Émerson recordava-se das orientações de seus superiores. Ele comprara
uma casa confortável para morar. A fortuna
que herdara dos pais fora bem administrada e aumentara consideravelmente. Péricles informara-o de tudo, colocando-se à disposição
para auxiliá-lo no que precisasse.
Ele resolvera comprar um terreno em local aprazível e sossegado, longe do bulício da cidade, e projetar o prédio do instituto.
Colocado a par dos planos, Péricles preocupou-se. Preferia que
55
Émerson continuasse trabalhando no mesmo ramo em que ele aplicara seu dinheiro com sucesso. Porém, diante do entusiasmo
e determinação de seu protegido, acabou
concordando e até o orientou ná aquisição do terreno e ná elaboração do projeto.
ná casa que Émerson comprara havia um grande salão de festas que ele decorou para iniciar seu trabalho. Acarpetou o piso,
construiu uma fonte no pequeno jardim ligado
à porta dos fundos, pintou as paredes de creme, instalou luz indireta e regulável. A um canto, uma estante com livros e
aparelho de som. Algumas poltronas, uma
mesa onde colocou alguns objetos místicos que recolhera em suas viagens. Vasos com plantas, flores no vaso sobre um aparador.
Grossas cortinas forraram as grandes
janelas e as portas de vidro, isolando os ruídos externos. Émerson gostou do ambiente impregnado de incenso, onde se sentia
ligado ao mosteiro em suas meditações.
A notícia de sua volta correu rápida por seus antigos amigos. Valdo encarregou-se de dar detalhes, avisando que Émerson
voltara diferente, místico, cheio de idéias
humanistas, tendo se tornado terapeuta em um mosteiro ná índia.
A curiosidade foi grande, principalmente de Mildred, que esperava ansiosamente sua volta. Preparou-se para aquele encontro
com esmero, cuidando de sua aparência
mais do que nunca.
Valdo convidara o amigo para diversas festas, mas Émerson recusara todas.
Antes você gostava de festas. Pretende isolar-se?
Não. Ao contrário, pretendo me relacionar melhor com as pessoas.
Então, por que não quer ir?
Tenho andado muito ocupado. Gosto de meu projeto, e o prazer que sinto em trabalhar nele vale mais do que uma festa. Logo
terei concluído a parte inicial, então
haverá tempo para acompanhá-lo.
Valdo abanou a cabeça negativamente:
Você está diferente. Gostado silêncio, da meditação... Não vai se sentir bem com o barulho. A música alta, as pessoas
gritando todas ao mesmo tempo querendo conversar...
Não me parece que você vai agüentar. Eu mesmo converso um pouco, arranjo companhia e procuro um lugar mais sossegado.
Não pretendo fugir ao convívio social. Eu posso me manter imune ao ruído. Sei como me isolar do que não me agrada.
Em sociedade isso é o ideal. Ás vezes somos forçados a escutar coisas desagradáveis e sorrir.
56
Émerson olhou-o sério.
Não vou isolar-me, mas pretendo estar nos lugares que me dão prazer. Escutar banalidades, fingir que me interessam, é
perda de tempo e não está em minhas cogitações.
Nesse caso, ficará sozinho. A sociedade é puro interesse e conveniência.
Não se iluda com as aparências. As pessoas entram no convencional, vivem papéis, e isso não satisfaz. Por dentro estão
desejando o melhor, o mais verdadeiro para
serem felizes. É preciso descobrir o que se esconde atrás do que parece, selecionar aqueles com os quais você tem afinidades
ou com quem pode aprender alguma coisa,
e em pouco tempo sua vida ganha em alegria, motivação, prazer.
Você pensa diferente de todo mundo. Se todos estão se escondendo, como é que vamos ver o que está atrás? Quem pode saber
o que se oculta atrás de um sorriso de
mulher ou de um almoço de negócios?
Émerson sorriu mostrando os dentes alvos e bem distribuídos, depois respondeu:
Não é difícil, porque o corpo fala. A boca diz uma coisa, mas a postura, os gestos, os olhos são reveladores e podem nos
contar a verdade. Basta observar.
Gostaria muito de aprender como.
Pretendo desenvolver estudos sobre esse assunto. Por enquanto vou trabalhar com as pessoas em terapia. Mais tarde, em
meu instituto quero formar terapeutas e
multiplicar o processo. É incrível como as pessoas se prendem, se limitam, se machucam, se iludem.
Pretende curá-las?
Quero que descubram sua maneira de obter felicidade. A vida só vale a pena quando sabemos vivê-la. Encontrei a serenidade
e a paz. Desejo passar esses conhecimentos
para aqueles que se interessarem em aprender como viver melhor.
Não sei se eu daria para isso. Apesar de tudo, gosto de estar em sociedade, conversar, dançar, saber as novidades. Você
sabe: eu não consigo ficar parado durante
muito tempo. Essa coisa de meditação, silêncio, solidão, não é comigo.
Émerson sorriu de novo e respondeu:
Também gosto das coisas que você gosta. Entretanto, aprendi que há momentos em que o bulício do mundo nos perturba e precisamos
fazer silêncio para ouvir o que
nossa alma quer e recuperar a serenidade. O segredo está em como você faz as coisas, e isso
57
depende sempre de como você as vê. Quando você está sereno, lúcido, a vida trabalha a seu favor, oferecendo-lhe momentos
de prazer e bem-estar.
Isso porque você gosta de estudar esses assuntos. Comigo acho que não daria certo.
Como é que sabe, se nunca experimentou? O equilíbrio espiritual é um estado de felicidade interior que só o conhece quem
já o sentiu. A vida é fonte de alegria,
prazer, bem-estar. Todos podem conquistar esse estado, desde que aprendam como. Conhecerse é o primeiro passo. Saber como
a vida funciona é fascinante. Agora mesmo
você está ná defensiva, pensando que para estudar a espiritualidade terá de deixar tudo e tornar-se um monge. Essa idéia
tem sido divulgada pelas religiões, que
se apóiam em modelos de santidade.
Você tem se afastado das festas e da sociedade.
Desejo executar meu projeto e estou entusiasmado. Mas aprecio as boas coisas da vida e não desejo abrir mão delas. Porém
desde já esclareço que não farei nada
que me desagrade. Esse é um princípio fundamental para manter meu equilíbrio.
Valdo balançou a cabeça negativamente e ajuntou:
Você não existe! Como pode acreditar que em um mundo como o nosso alguém só fará o que gosta?
Se precisar fazer alguma coisa desagradável, tentarei encontrar uma maneira melhor de encará-la. Já lhe disse que ná vida
tudo depende de como você olha para as
coisas.

Os dias passaram e finalmente Émerson disse a Valdo que estava pronto para voltar ao meio social, rever os amigos.
A notícia despertou interesse de seus antigos conhecidos. Sua volta depois de oito anos de ausência e principalmente o mistério
que havia em torno dele, que Valdo
contribuíra para alimentar, fez com que os convites chovessem. Entretanto, Émerson decidiu freqüentar apenas os lugares
da moda e o tradicional clube do qual ele
e a família de Valdo eram sócios.
Onde quer que aparecesse, despertava logo a atenção dos presentes, e os comentários multiplicavam-se. Émerson percebia,
mas não se incomodava, pois estava habituado
com a popularidade de Valdo, sempre rodeado de pessoas onde quer que fosse.
Viu aquela roda dos magnatas de petróleo? perguntou-lhe Valdo. As mulheres estão disputando a primazia de sua presença
em sua mesa. Lila perguntou-me se você aceitaria jantar ná casa dela ná próxima quinta.
Talvez.
Ela pretende formalizar o convite.
Você quer me atirar às feras, e não estou disposto a enfrentá-las. Não é isso que quero.
Não entendo você. Disse que estava disposto a freqüentar a sociedade, mas continua arredio. Julguei que quisesse se relacionar
com pessoas classe A e valorizar
seu instituto. Lila, se você esqueceu, é de uma família muito poderosa, com gente colaborando no governo. Além do mais,
tem muito dinheiro. É a pessoa certa para
quem deseja obter sucesso. Sua amizade será de grande utilidade para você.
Émerson lançou um olhar para a mulher elegante, bonita, rodeada de algumas pessoas que procuravam captar sua atenção, e
disse:
Ela não é o que parece ser. Seu rosto é uma máscara com a qual se defende daquilo que ela pensa que é. Não tem condições
de ajudar ninguém. Ao contrário: é a
mais necessitada.
Valdo abanou a cabeça admirado.
De onde tirou essa idéia? É a mulher mais invejada do clube.
Pode ser. As pessoas só vêem o que parece. Eu desejo contatar pessoas que venham somar comigo, capazes de entender meu
projeto. Pessoas que acreditem ná espiritualidade,
dispostas a conquistar o equilíbrio interior.
Neste mundo louco é quase impossível o que você quer.
- Engana-se, Valdo. O desenvolvimento do espírito, a conquista do progresso são anseios de todos. Só que ninguém ensina
como alcançá-los. Essa escola é a que quero
fundar.
Quer dizer que você já sabe como conquistar tudo isso?
Tenho estudado como a vida funciona. O universo é regido por leis cósmicas que mal conhecemos. Aprendê-las é encontrar
uma forma de viver melhor, de ser mais feliz.
Isso que você diz é muito vago. Desde que o mundo é mundo, vários filósofos tentaram definir o caminho da felicidade.
Inutilmente, pois eles mesmos não foram felizes.
Não estou interessado em filosofias, embora tenham alguns fundamentos. Quero descobrir como as coisas acontecem. Por que
uma pessoa que acreditamos bondosa é atingida
pela maldade, sofre doenças penosas ou tragédias sem-fim, enquanto outras que julgamos menos boas levam uma vida normal,
com saúde, dinheiro e até fama.
59
Valdo não se conteve:
O que pretende com isso? A vida é assim, e não há como mudar.
Engana-se, Valdo. Cada pessoa cria o próprio destino. Aquilo em que você acredita, sua maneira de ver o mundo, suas ilusões,
suas atitudes formam o ciclo de experiências
que você vai atrair no dia-a-dia. Quando você muda suas crenças e reformula seu mundo interior, toda a sua vida muda.
Isso não é possível. Como eu posso mudar os outros só mudando meus pensamentos?
Quando você muda suas crenças, você modifica suas energias, e são elas que movem todos os acontecimentos à sua volta.
Pode crer. Você, por exemplo, acredita que
é inteligente, bonito, privilegiado. Vive de bem com a vida e por isso é aceito por todos com prazer. Aonde quer que vá,
espalha energias positivas, alegres, e
as pessoas sentem isso e recebem-no com satisfação. Já uma pessoa insatisfeita, que se sente inadequada, mal-amada, emana
energias desagradáveis, e as pessoas não
a tratam com a mesma atenção com que tratam você. Já reparou isso?
Já. Eu mesmo fujo de pessoas que estão sempre reclamando. Gosto da vida e não quero perder o bom humor.
Essa é a chave de seu sucesso.
Valdo ficou pensativo por alguns instantes, depois disse:
É interessante. E tem certa lógica. Émerson sorriu e ajuntou:
É preciso valorizar o que você sente, ficar atento para os recados de sua intuição. Se você fizer isso, nunca será enganado
ou surpreendido com as atitudes das
pessoas. Elas podem mentir, e o fazem com relativa facilidade, porém as energias que exalam transmitem o que elas pensam
de verdade. Sempre que sentir rejeição
por alguma pessoa, preste atenção e tente perceber o que está atrás do que parece ser.
Eu já senti isso. E, todas as vezes que não dei atenção, me arrependi.
Isso mesmo.


Foi em um jantar ná casa de Almerinda que Émerson se encontrou com Mildred face a face. Cumprimentou-a com naturalidade.
Olhando-o nos olhos seriamente, ela comentou:
Faz tanto tempo que não nos vemos! Você não mudou nada.
60
Nem você. Continua bonita como sempre.
Ela sorriu satisfeita. Fora àquele jantar disposta a aproveitar a oportunidade de ficar perto de Émerson. Já não era mais
a jovem ingênua de outros tempos. Mais
experiente, desta vez tinha certeza de que iria conquistá-lo em definitivo.
Eles haviam se amado, e, assim como ela não conseguira esquecê-lo, ele por certo ainda guardaria no coração as lembranças
do passado. Reviver aquele amor era o que
ela mais desejava ná vida.
Valdo me disse que você voltou para ficar.
É verdade. Estou reorganizando minha vida.
As coisas mudaram muito por aqui.
Aparentemente. No fundo tudo continua igual.
Não concordo. Os costumes, as pessoas, tudo está diferente de oito anos atrás.
A procura da felicidade continua. Mildred sorriu:
Essa é a grande ilusão.
Não acredita em felicidade?
Claro. ná que é possível obter neste mundo. Saúde, uma boa conta bancária, boas amizades. Usufruir de uma vida agradável
enquanto der.
Você citou algumas coisas boas, mas quem as possui está sempre querendo mais. As conquistas materiais são insuficientes.
Eu falo de um estado de realização interior
que independe das coisas de fora. É quando você se sente alegre, não deseja nada, está em paz.
Foi isso que você foi procurar pelo mundo afora?
Foi.
E encontrou?
Sim.
Mildred não se deu por achada e comentou:
Pelo que tenho ouvido a seu respeito, você não se tornou um guru pobre. Ao contrário, comprou uma belíssima casa e não
parece disposto a renunciar o conforto nem
o dinheiro.
Não mesmo. Cada coisa tem seu valor pelo bem que nos pode proporcionar. Jogar fora o que a vida nos deu é desvalorizar
a oportunidade de viver melhor. Eu nunca
disse que o dinheiro é um mal. Como qualquer outro recurso neste mundo, depende do uso que cada um faz dele.
Digamos que você é um guru diferente.
Não sou um guru. Sou apenas uma pessoa interessada em
61
aprender a viver bem. Tive grandes mestres com os quais descobri muitas coisas, principalmente o que é importante para
mim agora. Foi tão enriquecedor que pretendo
continuar estudando.
Valdo me disse que está abrindo um instituto. Do que é?
Por enquanto é apenas um grupo de pessoas interessadas em estudar a espiritualidade. Mas falemos de você. O que tem feito
este tempo todo?
O mesmo de sempre. No fundo você tem razão. Apesar das mudanças, tudo continua o mesmo.
Émerson sorriu e concordou. Almerinda havia colocado Mildred ao lado de Émerson ná mesa do jantar. Ela tinha esperanças
de que eles acabassem reatando o namoro.
Mildred era a mulher ideal para Émerson. Ele estava retomando a vida social e ninguém melhor do que ela para colocá-lo em
evidência.
Émerson percebeu as intenções de Almerinda, mas não se importou. Não tinha nenhum interesse em reatar com Mildred. Agora,
depois de tantos anos, chegara à conclusão
de que ele e ela tinham temperamentos incompatíveis e que nunca seriam felizes juntos. Apesar de muito bonita, ela não era
a mulher que Émerson desejava. Não sentia
mais nada por ela. O antigo entusiasmo havia desaparecido.
Durante o jantar, procurou manter uma conversação trivial, enquanto ela, notando sua indiferença, procurava provocá-lo,
recordando o passado, falando de como sentia
saudade daqueles tempos.
Depois que todos se foram, Valdo comentou com Émerson:
Então, que achou de Mildred? Continua bonita como sempre.
É verdade.
Só isso? A presença dela não mexeu com suas lembranças? Ela falou nisso o tempo todo. Continua a fim de você.
Talvez esteja mesmo.
Você não parece nem um pouco interessado.
E não estou mesmo.
Houve tempo em que você pensou em casar-se com ela.
Ainda bem que não nos casamos. Nunca daria certo. Somos muito diferentes de temperamento.
O quê? Sempre achei que ela era a mulher certa para você.
Engana-se. E gostaria que vocês não ficassem querendo nos aproximar. Não tenho nenhuma intenção de namorá-la novamente.
Digo isso para que vocês não insistam.
Minha mãe é que gostaria de vê-los reatar. Ela acompanhou
62

todo o sofrimento de Mildred, que aguardava seu retorno cheia de esperanças.
Que eu nunca alimentei. Antes de partir, terminamos tudo. Nunca lhe escrevi. Se ela resolveu esperar por mim, fez mal.
É melhor que ela perceba quanto antes que
o passado acabou e não há nenhuma chance de voltar.
Você fala com uma certeza...
Aquele ciclo de minha vida se fechou. Agora, em meus planos, não há lugar para ela. Quanto antes ela perceber isto, melhor.
Não pretendo enganar ninguém.
Se é assim, faz bem. Não há nada pior do que uma mulher apaixonada esperando alguma coisa que nunca iremos dar. Eu tenho
horror a essas mulheres nos envolvendo
com olhos suplicantes, sempre querendo alguma coisa.
Émerson riu.
Elas devem estar à sua volta em todos os lugares. Tenho notado.
Pois faço de conta que não vejo.
Esse é o preço da popularidade. Elas apreciam seu sucesso.
Grudam e eu não agüento. Eu gosto mesmo é de conquistálas, isso sim. Apesar de tudo, não gosto de ficar sozinho. Já você
parece que gosta de viver só.
Não é isso. Não corro atrás das mulheres, se é o que quer dizer. Acredito que, quando você está bem, as coisas acontecem
naturalmente. A mulher que vou amar vai
aparecer em minha vida e eu a reconhecerei logo.
Valdo abanou a cabeça negativamente.
Qual, só você mesmo para ter uma idéia dessas!
É preciso estar bem para atrair a companhia de uma pessoa que traga bem-estar e felicidade. É isso que pretendo encontrar.
Que nada, você é um sonhador. Cuidado! Essa forma de pensar pode lhe trazer muita desilusão.
Émerson sorriu e não respondeu. Sabia o que estava dizendo e Valdo não tinha como entender.
63
Mildred chegou em casa arrasada. Arrumara-se tanto para aquele encontro, idealizara como seria, mas nada que esperava havia
acontecido. Émerson tratara-a cordialmente,
mas ela era suficientemente inteligente para perceber que ele havia mudado. Em seus olhos não havia mais aquele brilho quando
a fixava, e em nenhum momento ele demonstrara
alguma atenção especial.
De que lhe valera esperar tantos anos? Ele a tratara de forma banal, e notava-se que não estava nem um pouco interessado
em voltar ao passado.
Mildred atirou a bolsa sobre a cama, tirou os sapatos e deitou-se mesmo vestida, pensando numa maneira de reverter a situação.
Não pretendia aceitar a indiferença dele. Era uma mulher atraente. Ele a havia amado. Não podia deixar-se abater. Oito anos
era muito tempo. Ele a havia esquecido,
mas sob aquela indiferença
65
deveria haver ainda um pouco daquela chama que ela se encarregaria de fazer reviver.
Não estava habituada a perder. Não podia desanimar logo no primeiro encontro. Pensando bem, a resistência dele tornaria
mais interessante a conquista.
A família de Valdo mostrara claramente a intenção de promover o namoro deles. Isso mostrou-se contraproducente. Sabia como
eles pensavam, e devem ter comentado sobre
quanto ela o amava e esperara sua volta. Pois ela faria justamente o contrário. Fingiria haver esquecido o passado e talvez
até desse um pouco de corda a seus admiradores
para provocar o ciúme de Émerson.
Resolveu que ná primeira oportunidade falaria claramente com ele. Diria que do passado restou apenas a amizade, que ela
gostaria de reatar. Ouvira-o falar com
entusiasmo sobre o instituto que pretendia fundar. Mostraria interesse e tentaria participar ativamente. Era apenas questão
de tempo. Haveria de tê-lo novamente
a seu lado, apaixonado e submisso.
Animada, levantou-se e preparou-se para dormir. Deitou-se mas demorou a pegar no sono, pensando em como realizar seus planos.
No dia seguinte à tarde ligou para Laura:
Estou precisando fazer umas compras. Quer me fazer companhia? Depois poderemos ir a uma confeitaria tomar sorvete.
Eu não pretendia sair hoje.
Eu gostaria muito de conversar com você. Posso apanhá-la dentro de meia hora?
Laura hesitou um pouco, depois concordou. Quando desligou o telefone, Valdo, que ouvira a conversa, perguntou:
O que foi? Você está com uma cara...
Era Mildred. Ela me convidou para sair. Estou surpresa.
Eu sei. Vocês nunca se afinaram muito. Você sempre se esquivou dela.
Não gosto dela. É antipática, falsa, faz tipo de mulher fatal. Valdo desatou a rir.
Não está exagerando? -Não.
Então por que concordou?
Fiquei curiosa. Ela quer falar comigo.
Hmm... Vai ver, quer sua ajuda para reconquistar Émerson.
Se for isso, não vai conseguir nada. Não tenho vocação para me meter ná vida dos outros.
66
É bom mesmo. Seria pura perda de tempo. Émerson foi claro ontem comigo: não quer mais nada com ela. Não gostou da atitude
de mamãe tentando aproximá-los.
Mamãe esperava que ele voltasse interessado em reatar com Mildred.
Ele disse que nunca lhe deu esperanças. Antes de viajar, terminou tudo definitivamente.
Ela faria melhor se cuidasse de encontrar outro.
Notei um brilho de alegria em seus olhos, Laura. Gostou da atitude dele, não é?
Claro. Não gostaria que ele se casasse com Mildred. Ele merece coisa melhor.
Pensando bem, também acho.
Laura suspirou resignada e foi arrumar-se para esperar Mildred. Sentia-se aliviada. ná noite anterior, vendo Mildred tão
elegante, chamando a atenção com sua beleza,
teve medo de que Émerson se interessasse de novo por ela. Embora ele não tenha demonstrado nenhum interesse especial por
ela, Laura precisou fazer muito esforço
para que ninguém notasse quanto estava preocupada e com ciúme. Se Mildred pensava em usá-la para chegar a ele, escolhera
errado. Ela faria tudo para impedir o namoro.
Uma hora depois, sentada em frente a Mildred ná confeitaria, Laura foi direto ao assunto:
Você disse que queria falar comigo. Do que se trata? Mildred remexeu-se ná cadeira, hesitante, depois disse:
Trata-se de um assunto íntimo, confidencial mesmo. Inicialmente pensei em conversar com Dona Almerinda, mas fiquei com
vergonha. Ela poderia me interpretar mal.
Então pensei em falar com você.
Minha mãe tem por você uma grande amizade. Poderia falar com ela sobre qualquer assunto.
Sim, eu sei. Mas é sobre Émerson... Nem sei como começar...
- Fale.
Bem, você sabe... Nós fomos namorados e todos pensavam que um dia nos casaríamos. Mas isso acabou. Ele foi embora e ficamos
todos estes anos sem nos vermos.
Ela se calou pensativa.
Continue - pediu Laura.
Durante o tempo que ele esteve fora, todos em sua casa falavam que, quando ele voltasse, mais amadurecido, nós nos
67
casaríamos. Mas o tempo passou, e confesso a você que meu amor por ele acabou.
Como assim? fez Laura surpreendida.
É verdade. Eu sabia que não o amava mais. Mas como não apareceu nenhum outro que me interessasse, deixei o tempo passar
e, quando os amigos tocavam no assunto,
eu não desmentia. Contudo, ontem, ao encontrá-lo novamente em sua casa, percebi claramente que não o amo mais. Apesar de
tudo, eu ainda conservava um pouco do passado,
como um sonho romântico. Mas, vendo-o, tive certeza de que nada mais é possível entre nós.
Laura procurou disfarçar a alegria e disse com naturalidade:
Tem certeza?
Tenho. Ele mudou, eu mudei. Gosto dele como amigo. Aprecio sua inteligência e não desejo perder sua amizade. Por isso
pensei que talvez você possa me ajudar.
De que forma?
Conversando com sua família. Pedindo para que não tentem nos aproximar. Sei que eles têm boa intenção, mas sinto-me constrangida.
Não desejo que Émerson pense
que ainda estou interessada nele. Pode fazer isso por mim?
Claro. Tem certeza de que não vai se arrepender, isto é, de que não vai apaixonar-se por ele de novo?
Tenho. Para ser bem sincera, estou começando a interessarme por outra pessoa...
É mesmo? Eu conheço?
Conhece. Mas no momento prefiro manter segredo. Laura sentiu-se bem-disposta e até começou a pensar que
Mildred não era tão antipática, como sempre pensara.
Voltou para casa contente. Vendo-a, Valdo comentou:
Para quem saiu contrariada, você está melhor do que eu esperava.
Estou alegre mesmo. Não era nada do que esperávamos.
Não vai me contar?
Claro. Ela confessou que não quer mais nada com Émerson. Não o ama mais. Quer que eu peça a todos, principalmente a mamãe,
que não façam mais nada para aproximá-los.
Não diga! Será verdade? Até há bem pouco tempo, quando ela me via, mostrava-se ansiosa por notícias dele. Tem certeza
de que entendeu bem?
Tenho. Ela me explicou que guardava dele uma lembrança
68
de outros tempos e que, vendo-o, descobriu que não o amava mais. Parecia sincera. Chegou a afirmar que está interessada
em outro.
Quem diria! As mulheres são mesmo surpreendentes...
Oito anos é muito tempo.
Émerson vai ficar satisfeito.
Naquela noite mesmo, Laura conversou com os pais sobre Mildred. Péricles comentou com a esposa:
Não lhe disse? Eles notaram seu interesse em aproximá-los. É melhor não nos envolvermos mais. É problema deles.
Tem razão - respondeu Almerinda um pouco decepcionada. Pensei estar ajudando Mildred. Ela vivia perguntando por ele
com olhos brilhantes, emocionada. Quem poderá
entender?
As mulheres são imprevisíveis. Não vamos nos meter ná vida de ninguém.
Quando mais tarde Valdo contou a Émerson o que acontecera, este se sentiu aliviado.
Melhor assim. Poderemos nos encontrar sem constrangimento. Pretendo manter boas relações com as pessoas, interessá-las
em meu projeto.
Como vai indo?
Muito bem. Os primeiros interessados começam a aparecer.
Todo mundo pergunta o que você pretende, e eu não sei bem. O que devo dizer?
Nada. Dentro de alguns dias saberão.
Que mistério!
Não há nenhum mistério. Acontece que ainda estou me organizando.
Valdo abanou a cabeça e disse sorrindo:
Já sei de um punhado de moças que irão procurá-lo, seja o que for que você fizer.
Pretendo fazer um trabalho sério. E o farei apenas com quem estiver disposto a isso. O tempo é precioso. Não vou atender
quem não estiver realmente interessado
em cuidar melhor da própria vida.
Valdo deu de ombros.
Você é quem sabe. Só quero ver como elas vão reagir quando descobrirem que não adiantou jogar charme.
Émerson sorriu e não respondeu. Sabia o que queria e como fazer.
69
Marcelo entrou em casa cansado. Não via a hora de tomar um banho e relaxar. Gérson convidara-o para ir ao cinema, e ele
recusara.
Você precisa reagir. Largar Mirtes foi o melhor que lhe aconteceu. Não deve ficar em casa pensando nela.
Mirtes é um caso encerrado. Não sinto mais nada por ela. Não quero sair porque estou cansado. Iremos outro dia - respondera.
A verdade, no entanto, é que ele perdera o prazer de divertirse, de sair com os amigos. Mirtes não lhe saía do pensamento.
Não era amor, mas apenas orgulho ferido.
Ela o passara para trás sem nenhuma explicação. Várias vezes sentira vontade de ir conversar com ela, para dizer-lhe que
não a queria mais.
Apesar disso, quando o telefone tocava, imaginava que era ela. Se ela voltasse a procurá-lo, como das outras vezes, o que
lhe diria? Imaginava um diálogo em que
ela implorava e ele não voltava atrás. E mais: desprezava-a, provando assim que não a amava mais.
Porém um mês passara sem que ela o procurasse. Aos poucos ele foi se convencendo de que a perdera de fato. Tentava convencer-se
de que tinha sido melhor assim, que
ela era falsa, volúvel e que ele tivera sorte de livrar-se dela. Mas era inútil. Cenas do namoro vinham-lhe à mente e ele
sentia que apesar de tudo desejava estar
com ela. A atração que Mirtes exercia sobre ele não desaparecera. Chegou à triste conclusão de que não conseguia controlar
seus sentimentos e que não adiantava
querer negar: ele a amava e não desejava perdêla, ainda que para isso precisasse humilhar-se, sofrer, perdoar as traições
que ela lhe fizera.
Vivia insatisfeito, desejando que ela voltasse, mas ao mesmo tempo, pressentindo que iria sucumbir às suas rogativas como
sempre fizera, não queria que ela o procurasse.
Era contraditório, contudo, fosse qual fosse o pensamento que lhe ocorresse sobre ela, sentia-se derrotado, fraco. Sem ela,
sentia-se infeliz; com ela, incapaz.
Aquela sensação desagradável de fracasso não podia continuar. Tinha de libertar-se dela. Se tentasse namorar outra moça,
talvez conseguisse vencer aquele estado
de espírito.
Quando se preparava para tomar banho, sua mãe apareceu ná porta de seu quarto entregando-lhe um envelope e dizendo:
Esta carta é para você. Chegou semana passada. Lina apanhou a correspondência e esta caiu atrás do sofá. Ela nem percebeu.
Foi só hoje que achamos. Abra para ver
se é alguma coisa importante.
Marcelo apanhou o envelope bonito que Iolanda lhe estendia e comentou:
70
Não acho que seja importante. Ninguém me escreve.
Pode ser alguma conta. Melhor abrir. Marcelo abriu e leu:
"Convidamos você para a inauguração do Instituto de Desenvolvimento Espiritual. Contamos com sua presença." Seguia-se a
data e o endereço. Estava assinado por Émerson
de Menezes.
É hoje à noite - comentou Iolanda. Que instituto é esse? Nunca ouvi falar.
É um lugar de estudos. Quem está convidando é aquele moço que encontrou minha agenda. Lembra?
Sei. Você vai?
Acho que não. Estou cansado.
Ultimamente não tem saído. Precisa distrair-se. Desde que brigou com Mirtes, fechou-se em casa e não vai a lugar nenhum.
Vai ver, está esperando que ela apareça
para perdoá-la, como sempre.
Não é nada disso. Desta vez não tem volta. Acabou mesmo, Iolanda sacudiu a cabeça e saiu. Marcelo apanhou o convite,
novamente indeciso. Não sentia vontade de sair com os amigos, encontrar os conhecidos que não faziam outra coisa senão
falar sobre sua paixão por Mirtes. Sua mãe
tinha razão: precisava sair, distrairse. Mas queria ir a um lugar diferente, conhecer outras pessoas.
Consultou o relógio e decidiu ir. Guardara uma excelente impressão de Émerson, que fora muito atencioso. Haviam jantado
juntos e conversado sobre assuntos interessantes.
Marcelo chegou ao local dez minutos antes da hora marcada e admirou-se com o movimento. Foi difícil encontrar um lugar
para estacionar. ná porta, foi recebido por
um rapaz simpático que recolheu seu convite, convidando-o a entrar.
Do hall ele divisou o salão e foi até lá. Émerson conversava com duas moças e, vendo-o, imediatamente foi recebê-lo.
Que bom vê-lo! Seja bem-vindo.
Marcelo apertou a mão que ele lhe estendia com prazer.
Fique à vontade.
Obrigado.
Valdo aproximou-se e Émerson chamou-o, dizendo:
Você conhece Valdo. Ele veio gentilmente cooperar comigo esta noite.
Como vai? cumprimentou Marcelo. Apesar de conhecê-lo, nunca havíamos conversado.
71

- Bem... Você está sozinho? Venha, vou apresentá-lo a algumas pessoas.
Marcelo acompanhou-o sentindo-se alvo das atenções, pois Valdo apresentou-o a várias pessoas e ficou com ele até vê-lo
conversando com duas moças. Mostrou-se atencioso
e educado com ele, tratando-o com cortesia, e Marcelo, que sempre antipatizara com ele, começou a pensar que talvez estivesse
errado.
Conversando com as moças, Marcelo descobriu que ninguém sabia bem do que se tratava o instituto que Émerson estava inaugurando.
O salão estava em penumbra e havia
um ar de mistério nos objetos místicos que ele trouxera do Oriente e com os quais decorara o lugar. No ar havia uma música
diferente, que emprestava ao ambiente
um encanto especial. Além das flores, nos dois aparadores havia cadeiras formando a platéia onde as muitas pessoas já haviam
se acomodado. Ao fundo, pequena plataforma
com um microfone.
Às oito em ponto, Émerson dirigiu-se para lá, o que fez as duas moças que estavam com Marcelo convidarem-no a sentar-se.
Émerson apanhou o microfone e saudou as
pessoas presentes, dando-lhes as boas-vindas. Depois explicou:
- Hoje é um dia muito feliz para mim, porque estou começando um trabalho com o qual venho sonhando há algum tempo. Muitos
de vocês me conhecem e sabem que há oito
anos saí pelo mundo em busca de novos conhecimentos. Estava inquieto, procurando respostas para as muitas indagações a respeito
da vida, sem encontrar nenhuma resposta
satisfatória nos conhecimentos de nossa sociedade ou nos livros que li.
Émerson fez ligeira pausa e, constatando que o ouviam com interesse, continuou:
- Observando a perfeição da natureza, o equilíbrio do universo, a magia da vida, eu não podia entendera causa de tantas
injustiças, tantos sofrimentos, tantas guerras
existentes no mundo. Acreditando na perfeição de Deus, tanta infelicidade parecia-me inexplicável e injusta. Parti e, durante
oito anos, visitei mosteiros, procurei
sábios, mestres, e com cada um fui aprendendo a ter uma visão diferente e percebendo como contribuímos para agravar os fatos
que nos afligem no dia-a-dia. Foi num
mosteiro de uma pequena cidade da Índia no qual estive por mais de três anos que meu aprendizado se tornou mais profundo.
Para ser sincero, eu gostaria de ter ficado
lá para sempre. Havia tanta serenidade, tanta sabedoria, tanta luz, tanto amor entre as pessoas que considero um privilégio
ter estado lá.
72
- Porém um dia me comunicaram que estava na hora de voltar para minha cidade e começar a tarefa para a qual a vida me havia
preparado antes do nascimento e que eu
aceitara realizar. Foi-me revelado que eu deveria voltar, fundar um instituto para continuar meus estudos sobre a vida e
ao mesmo tempo ensinar tudo quanto havia
aprendido com os mestres.
- Aqui estou, dispondo-me a isso. Uma das coisas que aprendi foi que os homens, manipulados por uma educação colocada a
serviço dos interesses escusos de grupos
ambiciosos que buscam poder e domínio, foram invertendo os valores verdadeiros do espírito. Encontram-se perdidos no cipoal
duvidoso das indagações de uma filosofia
materialista, com o espírito incapacitado para enfrentar os desafios do amadurecimento que se fazem necessários para a conquista
da lucidez que todos viemos buscar.
Perderam a fé no próprio poder, não acreditam que são responsáveis por tudo quanto lhes acontece. E fazem mais: preferem
colocar-se na posição de vítimas de um destino
cruel, entregando-se à depressão ou à revolta. Torna-se preciso acordar a consciência de cada um para sua missão neste mundo,
conhecer de onde viemos, saber o que
estamos fazendo aqui, trabalhar para construir uma vida melhor.
- Neste instituto serão realizados cursos e conferências, terapias e estudos, com prática experimental, que vão procurar
a verdade onde quer que esteja, facilitar
que cada pessoa compreenda qual o melhor caminho para si e resolva trabalhar para melhorar seu padrão de vida. A felicidade
é conquista que tem diferentes portas,
e só a encontra quem descobre sua porta e a própria chave para abri-la.
- Aqui não vamos dar receitas, fórmulas, caminhos. Apesar de estarmos juntos no mesmo objetivo, vamos individualmente procurar
o que é melhor para nós agora.
- Estou muito feliz por estarmos juntos esta noite. Na secretaria os interessados poderão buscar as informações dos trabalhos
deste instituto, que começarão na próxima
semana. Agradeço a Deus a oportunidade que está nos oferecendo e de minha parte farei tudo para desempenhá-la com amor e
alegria. Obrigado.
Uma salva de palmas ecoou no ar, e Marcelo, na platéia, de repente sentiu como se ele já tivesse visto aquela cena. Teria
sonha
do? Quando ele já teria presenciado aquilo? Aquela lembrança apareceu forte em sua mente e ele se emocionou. Enquanto as
pessoas eram encaminhadas para a sala ao
lado,
73
onde seria servido o coquetel, Marcelo aproximou-se de Émerson, que
estava sendo muito cumprimentado, e abraçou-o dizendo baixinho: - Quando estiver livre, preciso falar com você. Agora há
pou
co me aconteceu uma coisa muito esquisita.
Émerson sorriu e respondeu:
- Você já tinha visto esta cena. Marcelo assustou-se: - Como é que você sabe? - Eu sei. Você é dos nossos.
Em outro canto da sala de conferência, Mildred dizia para a
amiga que a acompanhava:
- Vamos à secretaria pegar os folhetos. - Você vai freqüentar aqui?
- Claro que vou. Adorei a conferência.
A outra dirigiu-lhe um olhar malicioso e não fez comentários.
Depois de conseguir as informações, Mildred foi à sala do coquetel.
Embora estivesse interessada em tudo quanto Émerson fazia, não
queria demonstrar isso. Seu plano tinha de dar certo.
Olhou em volta. Precisava encontrar alguém para fingir que
estava interessada. Viu quando Marcelo abraçou Émerson e pensou: "Que homem bonito, elegante... Esse serve." Durante o coquetel,
aproximou-se de Valdo e pediu:
- Queria que me apresentasse àquele moço bonito. Você o
apresentou às outras e me deixou de lado.
- Marcelo? Venha. Vamos lá.
Depois dos cumprimentos, Mildred perguntou a Marcelo:
- Não me lembro de tê-lo visto antes. Faz tempo que conhece
Émerson?
- Não. Nosso encontro foi casual, mas ele teve a gentileza de me mandar um convite.
- Somos amigos de infância. Pretende freqüentar o instituto?
- Sim. Há algumas respostas que quero encontrar. Émerson me impressionou muito desde nosso primeiro encontro. É um mestre.
Ficarei feliz se ele me aceitar como aluno.
- Ele é fascinante, apesar de imprevisível. Nunca pensei que fosse dedicar-se ao misticismo e à religião.
- De fato, ele não parece um religioso.
- Claro que não. Gosta da vida em sociedade, é galante com as moças, apaixonado quando se interessa. Vamos ver quanto tempo
dura esse modismo dele.
74
- Não acredita que ele esteja falando sério? Ele me pareceu muito convicto e sincero.
- É. Vamos ver. Um moço rico como ele pode dar-se a certos caprichos.
Marcelo fitou-a pensativo. Os olhos dela tinham um brilho duro que o fez lembrar Mirrtes. Não eram parecidas fisicamente,
mas o olhar era semelhante.
Aquilo o incomodou. Estaria tão apaixonado que tudo lembrava sua ex-namorada? Essa impressão desapareceu quando Mildred
segurou seu braço dizendo com um sorriso
amável:
- Vamos dar uma volta, estou com sede...
Eles foram, e Mildred não o largou mais. Laura, que estava ao lado de Valdo, comentou:
- Acho que Mildred disse a verdade. Não está mais interessada em Émerson. Nunca a vi assim. Ela, sempre distante, a deusa,
a inconquistável, pendurou-se nesse rapaz
desde que chegou.
- A mim também parece estranho.
- Pode ser amor à primeira vista. O rapaz é muito bonito.
- Mas pobre para as ambições dela. As aparências enganam.
As mulheres adoram os truques e as armadilhas. - Como você é maldoso.
- Você agora deu para gostar dela. Por que será? Laura enrubesceu e respondeu:
- Minha opinião sobre Mildred continua a mesma. Não gosto dela. Também não gosto de ser maldosa. Ela é livre para se interessar
por quem quiser.
- Tem razão. Você não vai apanhar os folhetos? Sempre gostou de misticismo. Vive estudando esses temas.
- Já apanhei e acho que você deveria fazer o mesmo. Aliás, está na hora de começar a estudar a vida.
- Para quê? Tudo está correndo bem para mim. Émerson já me disse que estou bem como estou.
Laura sorriu. De fato, Valdo estava muito bem. Ela, sim, precisava compreender melhor por que não conseguia esquecer aquele
amor impossível.
Gostaria de encontrar outros interesses que dessem novo colorido à sua vida. Ia freqüentar o instituto não por causa de
Émerson mas para procurar um jeito de viver
melhor.
Seu amor por ele era sem esperanças. Ele nunca a amaria. Por isso havia tentado esquecê-lo de todas as formas. Entretanto,
olhando
75
para ele enquanto falava expondo seus projetos naquela noite, esse amor veio à tona com mais força do que nunca.
Estremeceu quando ouviu a voz de Émerson a seu lado:
- Então, Laura, o que achou?
Tentando controlar as emoções, ela respondeu:
- Sua idéia é genial. Sempre acreditei que temos muito a aprender com outros povos, outras culturas. Até aí nada de novo.
Há muitas escolas filosóficas ou religiosas
voltadas ao aprimoramento do ser. O que me agradou em sua exposição foi sua postura aberta, colocando a individualidade
como fundamento, sem imposição de idéias
ou regras, apenas com intuito de facilitar o conhecimento. Tenho certeza de que somos o produto do que acreditamos, que
nossas atitudes refletem nossas idéias e
os resultados que colhermos dimensionará a conquista de nossa felicidade. Você propõe uma escola que nos ensine a viver,
que estude práticas que vão nos levar a
sermos mais alegres e felizes. Eu desejo participar.
Émerson fitou-a com olhos brilhantes e considerou:
- Você entendeu o que eu quis dizer. Gostaria de poder contar com sua ajuda na organização do instituto.
- Eu?! Não sei se estou pronta.
- Está. Sinto que sua presença será de grande valia para nosso projeto. Convidei algumas pessoas para uma reunião domingo
à tarde, aqui. Você pode comparecer?
- Sim. Conte comigo.
Valdo, que ouvia calado, tornou:
- Fez boa escolha, Émerson. Laura tem muito conhecimento. Só que não gosta de mostrar, fala pouco, coloca-se em segundo
plano.
Émerson sorriu e respondeu:
- Com o tempo ela vai descobrir e assumir suas reais aptidões. Então se livrará dos preconceitos sociais e se mostrará como
é.
- Não sou preconceituosa - defendeu-se ela.
- Claro que é. Vive se comparando com os outros, pensando que sabem mais do que você. Julga-se menos e teme que os outros
notem isso. Por isso prefere se calar.
Às vezes sente prazer ao constatar as falhas dos outros, principalmente dos que se colocam em evidência.
Laura olhou-o surpreendida.
Por que ele a via de maneira diferente do que ela se julgava ser?
Sempre acreditara não ter preconceitos.
Vendo que ela não respondia, Valdo retrucou:
76
- Você está enganado, Émerson. Laura não tem preconceitos. Não faz diferença entre as pessoas.
- Não falo da aceitação das minorias raciais ou culturais. Falo de como ela se vê, de suas idéias sobre a própria capacidade.
Ela tem conceitos preconcebidos sobre
si mesma que são falsos. São eles que a impedem de progredir, de se mostrar como é, de posicionar-se com clareza, de participar
do banquete da vida. Vive se atormentando
com pequenas coisas aprendidas às quais se condicionou a ponto de acreditar que não merece ser verdadeiramente feliz.
Laura baixou a cabeça para esconder o brilho de uma lágrima que ameaçava cair. Émerson continuou:
- Não estou criticando você. Quero que tome consciência do que vai em seu coração. Reconhecer o que sente é o primeiro passo.
Você está madura para grandes vôos.
Estou dando uma amostra de como vamos trabalhar neste instituto.
- Ela ficou mais muda do que antes. Desse jeito não voltará mais aqui. Não acha que está sendo duro demais? - indagou Valdo,
que se sentia incomodado com a reação
da irmã.
Laura levantou o rosto emocionada e respondeu:
- Nunca ninguém me disse tanto em tão poucas palavras. Você está enganado, Valdo. Não perderei a reunião de domingo por
nada.
Émerson abraçou-a com carinho:
- Assim é que se fala. Eu sabia que podia contar com você.
Valdo fitou-os surpreendido. Ele admirava a inteligência da irmã, notava que ela se apagava diante dos outros, e várias
vezes insistira para que ela mudasse. Porém
sempre que tocava no assunto ela não queria ouvir, ficava nervosa, não aceitava o que ele dizia.
- É, meu caro, você leva jeito. Começo a pensar que vai conseguir tudo que quer.
- Vou mesmo. As pessoas estão querendo o melhor. Eu descobri algumas chaves para que elas consigam. O resto é conseqüência.
Tudo vai dar certo. Vocês verão.
Os outros dois se calaram, mas não duvidaram que ele tivesse razão. Nunca as pessoas precisaram tanto aprender a lidar com
as próprias emoções. Aquele instituto
ia ser um sucesso.
77
Mildred desligou o telefone com raiva. Marcelo havia lhe perguntado se ela estaria presente na reunião do domingo à tarde.
Respondera que sim e imediatamente foi
falar com a administração do instituto para inscrever-se. Mas para sua surpresa ficou sabendo que aquele era um encontro
do qual participariam somente alguns convidados
de Émerson.
Imediatamente procurou-o, dizendo que queria ir àquela reunião.
- Nessa você não poderá ir - respondeu ele. - Mas posso recomendar alguns cursos cujas inscrições estão abertas e que seriam
mais adequados a você.
Mildred dissimulou a contrariedade e preferiu não insistir. Pelo tom firme de Émerson, percebeu que ele não mudaria de idéia.
Decidiu agir por conta própria. Telefonou para Laura no dia seguinte. Depois dos cumprimentos, perguntou se ela iria ao
instituto no domingo.
79
- Irei.
- Você viu aquele moço moreno, lindo? - Quem?
- Marcelo. Ele se interessou por mim e eu gostei dele. Combinamos nos encontrar lá. Por isso irei com você.
- Desculpe perguntar, mas Émerson a convidou?
- Não... Mas nós somos amigos. Se eu for, ele vai gostar.
Laura hesitou um pouco, depois disse:
- Olhe, Mildred, ele me disse que não vai permitir a presença de ninguém além dos que escolheu. Trata-se de uma reunião
de trabalho. Nem Valdo ele convidou. Disse
claramente que não queria que ele fosse. Por isso, se deseja mesmo estarlá, fale com ele. Não tenho autorização para levar
ninguém.
- O que é isso, Laura? Estou estranhando você. Sempre foi muito educada.
- Desculpe. Não posso tomar essa liberdade com Émerson. Ele está levando muito a sério seu trabalho. Depois, nem sei do
que vamos tratar nessa reunião. Se você gostaria
de ir, fale com ele.
Mildred sentou-se no sofá tentando engolir a raiva. A sonsa da Laura ainda iria lhe pagar por aquela desfeita. Onde já se
viu? Ela, que sempre fora invejada e disputada
onde quer que fosse, não podia aceitar aquela humilhação.
Sabia que à tarde Laura não estaria em casa e resolveu aproveitar para visitar Almerinda. Ela gostava de tomar chá à tarde
com algumas amigas.
Encontrou-a sozinha e disse sorrindo:
- Senti saudade de tomar um chá com a senhora. Faz tempo que
não tenho esse prazer.
- Fez bem, minha filha. Sente-se, por favor.
- Obrigada. Ontem estivemos na inauguração do instituto de
Émerson. Não a vi lá.
- Não pudemos ir. Mas já estive naquele lugar e gostei muito.
Laura voltou entusiasmada. Adorou. - E Valdo?
- Bem, ele gostou, mas, para ser sincera, a meditação, o estudo, não é bem seu forte. Ele gosta mais do ruído, do movimento,
da agitação. Apesar disso, admira muito
o trabalho de Émerson.
- Na verdade, Émerson mudou muito. Não e mais a mesma pessoa. Eu o preferia como era antes. Mas isso passou. Hoje eu o vejo
de outra forma.
80
- Seu amor por ele acabou?
- Nem sei se foi amor. Acho que foi ilusão da juventude, nada mais. Quando o vi depois de tantos anos, senti que tudo estava
acabado.
- Ainda bem. Vocês são muito diferentes. Não sei se seriam felizes juntos.
- Eu gosto muito dele. Nossa amizade continua. Desejo que tenha êxito. Mas não sei se está começando bem... - Por quê?
- Ele ontem falou muito bonito. Disse que as pessoas precisam descobrir o próprio valor, mas, pelo que percebi, na hora
de agir ele não faz o que prega.
- Não?
- Não. Diz que o instituto é para todos, mas começa fazendo diferença entre as pessoas, privilegiando algumas em detrimento
de outras.
- Explique melhor. Émerson não me parece capaz disso.
- Mas é. Convidou algumas pessoas para uma reunião especial. Quando mostrei interesse em ir, ele não deixou. Convidou Laura,
até um moço desconhecido que estava
lá, e deixou-me de lado. Eu desejo aprender, estudar, quero ir a essa reunião.
- Se quer mesmo, fale com ele. Talvez tenha se esquecido. Nos últimos dias tem estado muito atarefado.
- O pior é que eu pedi e ele disse que não. Eu desejo tanto ir! A senhora poderia pedir para ele me convidar? Não precisa
dizer que estive aqui.
Almerinda remexeu-se no sofá. Era desagradável um pedido daqueles. Não costumava intrometer-se nas atividades de ninguém.
Percebeu por que Mildred fora à sua procura.
Apesar do desconforto, Almerinda disse com voz firme:
- Não posso fazer isso. Não costumo me envolver no que fazem meus filhos, muito menos Émerson. Ele sabe bem o que quer e
como fazer. Nunca me pediu opinião, é dono
de si, e eu não vou me intrometer. Aliás, ele sempre se saiu muito bem em tudo que fez. Se ele disse "não", deve saber o
que está fazendo. Se está ressentida com
a atitude dele, seria bom dizer-lhe francamente.
Mildred sentiu uma onda de rancor, mas esforçou-se para dissimular. Por que será que as pessoas sempre faziam o que Émerson
queria? Ninguém tinha coragem para enfrentá-lo.
Ele sempre fizera tudo de seu jeito e seus tutores nunca usaram nenhuma autoridade para
81
com ele. Ficara oito anos fora, como um andarilho perambulando pelo mundo, sem eira nem beira, ao invés de terminar a universidade,
como seria de bom-tom.
Tentando dissimular o rancor que estava sentindo, ela baixou os olhos pensativa, hesitou um pouco e depois respondeu:
- Farei isso. Afinal, nossa amizade nos permite essa franqueza. Ele perdeu os pais em uma idade difícil. Por causa disso
vocês o mimaram muito. Ele sempre fez o
que quis. Foi uma pena ter deixado a universidade.
Almerinda olhou-a nos olhos e respondeu com voz firme:
- Cada pessoa deve seguir a própria vocação. Suas palavras me fazem crer que não aprova seus projetos. Nesse caso, por que
deseja freqüentar o instituto?
Mildred mordeu os lábios e disse com voz que esforçou por parecer natural mas na qual Almerinda notou um fundo de irritação:
- A idéia é boa: melhorar a qualidade de vida. Ele acredita que podemos fazer isso. Quero descobrir se ele tem razão. Afinal,
quem não deseja ser feliz?
- Concordo. O chá está servido. Vamos?
Mildred notou que Almerinda estava decidida a encerrar o assunto e não voltou a ele. Conversou sobre outras coisas e despediu-se
dissimulando sua contrariedade.
Laura chegou e Almerinda contou-lhe sobre a visita de Mildred, finalizando:
- Veio aqui para me usar. Pretendia que eu insistisse com Emer
son para deixá-la ir com você à reunião de domingo.
- Por que ela não pede a ele?
- Já pediu e ele disse "não". Ela está inconformada. - Naturalmente você recusou. - Sim.
- Isso a deixa furiosa. Mildred odeia ouvir um "não".
- Ela foi desagradável. Fiquei constrangida. Questionou até a edu
cação de Émerson, insinuando que lhe demos excessiva liberdade. - Ela vai continuar tentando. Telefonou-me ontem e disse
que
iria comigo, como minha convidada. Ela vai cercar todo mundo. - Vai acabar dando um jeito.

Mildred chegou em casa e ligou para Marcelo. Uma voz de mulher respondeu que ele só voltaria depois das sete. Mildred deixou
o nome e o número e pediu que ele ligasse
quando chegasse.
82
Marcelo recebeu o recado admirado. Apesar de Mildred haver se mostrado atenciosa, não esperava que ligasse. Era moça muito
bonita, de classe, freqüentava a alta
sociedade. Chamava a atenção por onde passava. Teria se interessado por ele?
Não se sentira atraído por ela, porém ficou envaidecido. Havia sido passado para trás por Mirtes, e o interesse de Mildred
levantou seu moral.
Gérson tinha razão. Vivia repetindo que ele poderia conquistar qualquer mulher e que deveria esquecer Mirtes de uma vez.
Ao pensar nela, sentiu um aperto no peito. Apesar de tudo, ainda doía. Mas, para esquecer um amor, nada melhor do que outro.
Tomou banho, jantou, foi para o quarto, apanhou o telefone e ligou. Mildred atendeu, dizendo amável:
- Que bom que ligou! Já estava pensando que não lhe haviam passado meu recado.
- Foi minha mãe quem atendeu. Ela nunca esqueceria de me avisar. Como vai?
- Foi bom ouvir sua voz. Estava me sentindo tão para baixo... - Você? Custo a crer.
- É verdade. Estou triste mesmo. Liguei para avisar que não irei à reunião de domingo no instituto. Eu havia combinado com
você... - Não? Aconteceu alguma coisa?
- Émerson me proibiu de ir.
Marcelo ficou surpreso e não soube o que dizer. Vendo que ele não respondia, ela prosseguiu:
- Pode imaginar uma coisa dessas? Eu estava tão entusiasmada, com tanta vontade de aprender...
- Deve ter havido algum engano. Falou com ele?
- Sim. Mas ele disse que essa reunião não é para mim. Sentime inferior aos demais.
- Não deve sentir-se assim. Certamente ele não teve essa intenção. Disse que ia separar as pessoas por grupos. Você deve
estar destinada a outro grupo.
- Disse para eu me inscrever em um dos cursos na secretaria, como qualquer pessoa comum, enquanto selecionou vocês para
algo especial.
- Talvez nos destine para algo mais fácil. Digo isso porque é a primeira vez que freqüento um lugar como esse. Gostei das
idéias de Émerson, mas confesso que sou
leigo no assunto. É provável que você esteja destinada a um grupo mais adiantado.
- Está dizendo isso para me confortar. Mas penso que quando
um projeto começa errado nunca dá certo.
- Por que diz isso?
- Ele pregou a harmonia, a fraternidade, e fez diferença entre
as pessoas. Vocês podem, eu não. Isso é discriminação.
- Você está muito zangada com ele.
- Estou magoada. Somos amigos de infância. Vou passar o do
mingo triste, sozinha, sem ter com quem conversar.
Marcelo ficou calado por alguns instantes. Depois respondeu: - Você deve ter muitos amigos. Arranjará companhia com
facilidade.
- Eu não quero qualquer um. Ainda se fosse você...
- Infelizmente, prometi ir a essa reunião. Se concordar, irei vê-la assim que terminar.
- Eu não devia lhe pedir isso. Afinal nos conhecemos tão pouco! Nem sei por que estou me abrindo com você. Não é meu costume.
Esqueça.
Marcelo inquietou-se, pensou um pouco e resolveu:
- Você precisa ir a essa reunião, já que deseja tanto. Falarei
com Émerson e você irá comigo.
- Fará mesmo isso por mim?
- Farei. Amanhã irei procurá-lo. Depois telefonarei para com
binarmos. Está bem assim?
- Puxa, como você é gentil! Não se arrependerá de me haver
ajudado.
Marcelo desligou o telefone bem-disposto. Entre todos os amigos, Mildred escolhera-o para desabafar, pedir ajuda. Sentiu-se
importante. Tinha certeza de que, se
explicasse, Émerson concordaria com a presença dela.
Na tarde seguinte, quando deixou o escritório, Marcelo passou pelo instituto à procura de Émerson. Uma atendente avisou-o
que ele estava em meditação e que não podia
ser interrompido.
- Ele vai demorar?
- Não sei. Faz quase duas horas que está lá.
- Vou aguardar. Com certeza não vai demorar.
Sentou-se na sala de espera, apanhou uma revista e começou a folheá-la. Pesquisa sobre Reencarnação. Interessou-se. Um
cientista hindu relatava alguns casos comprovados
de lembranças reencarnatórias.
Marcelo nunca se interessara por aquele assunto, que julgava
84
fruto da crendice de pessoas ignorantes. Entretanto, o pesquisador era um cientista credenciado, com formação acadêmica e um
currículo invejável.
Impressionado, leu o artigo com muito interesse e nem notou o tempo passar. Surpreendeu-se quando ouviu a voz de Émerson
dizendo:
- Como vai, Marcelo?
- Bem. O assunto estava tão interessante que nem percebi sua presença.
Émerson sorriu e respondeu:
- As pesquisas sobre reencarnação são muito interessantes. - Para dizer a verdade, estou admirado. Não pensei que cientistas
se dedicassem a um assunto desses.
- Por que não? Conhecer os fenômenos da vida é muito importante. Todos nascemos e morremos. Saber de onde viemos e para
onde vamos é fundamental.
- Você acredita em reencarnação?
- Sim. É a única forma de entendermos as desigualdades sociais. Esse assunto é matéria de nossos cursos.
- Gostaria de saber mais.
- Para isso fundamos o instituto. Vamos tomar um café na copa.
Marcelo acompanhou-o. Émerson apanhou duas canecas, serviu café e convidou-o a sentar-se. Depois sentou-se a seu lado, tomou
um gole de café e disse olhando-o nos
olhos:
- Você me procurou para tratar de um assunto de outra pessoa, não é?
Marcelo meneou a cabeça afirmativamente, mas sentiu-se acanhado de repente. Émerson continuou:
- Você possui grande potencial de realização. Nesta encarnação poderá conseguir grande progresso espiritual e dar um passo
à frente na conquista de sua felicidade.
Porém deixa-se levar pelas aparências, engana-se com facilidade. Sua ingenuidade e o medo de errar têmlhe criado situações
desagradáveis, principalmente na parte
afetiva.
- De fato, não sou feliz em meus relacionamentos. Apaixoneime por alguém que não me valoriza e me deixa de lado sempre que
aparece outro mais rico ou mais bonito.
Não tenho sorte com as mulheres que amo.
- Não se trata de sorte. É você com sua maneira de agir que atrai esse tipo de pessoa em seu caminho. Você acabou um namoro
recentemente, não é?
85
- Sim. Ela me trocou por outro.
- Se arranjar outra, vai acontecer a mesma coisa.
- Nesse caso devo ficar sozinho. Não quero passar por isso de novo. É um sofrimento.
- Você é responsável pelo que está acontecendo. Precisa descobrir quais as suas atitudes que estão atraindo esse tipo de
mulher.
- Você está dizendo que sou o culpado por ela ter me traído?
- Não se trata de culpa, mas de pensar de forma inadequada. A vida responde de acordo com o que você acredita.
- Mas eu acreditei que Mirtes me amava. Ela parecia tão interessada! Estávamos quase noivos. De repente, ela estava me enganando,
dizendo que estava doente quando
na verdade saía com outro.
- Não me refiro à sua boa-fé nem à sua ingenuidade, mas às crenças que você tem, à sua maneira de olhar a vida. Você se
julga menos do que os outros e procura dissimular
isso sendo passivo, aceitando tudo que eles querem sem reagir. Pensa que sendo "bonzinho" conquistará a admiração e o
respeito. Mas não é assim que funciona. Você
entra nesse papel e esconde seus verdadeiros sentimentos. Quantas vezes diz "sim" quando seu coração está gritando que não?
Marcelo baixou a cabeça pensativo. Émerson prosseguiu:
- Você tem medo de posicionar-se. Pensa que, se disser "não", se contrariar as pessoas, será julgado mau. Isso não é verdade.
Não é assim que os outros o vêem. Eles
pensam que você é um fraco, sem vontade própria e que não merece consideração. Não é isso que sempre fazem com você?
- Pior que é. Você descreveu a minha vida.
- Por isso está na hora de mudar.
- Acha possível?
- Claro. Quando se conscientizar da verdadeira causa de seus problemas e agir de maneira mais adequada a seu temperamento,
tudo mudará para melhor.
Marcelo ficou pensativo por alguns instantes, depois disse:
- Acho que eu não devia ter vindo interceder por Mildred. Foi isso que vim fazer. Se você disse "não" a ela, deve saber
o que está fazendo.
- Isso mesmo. Mildred usou você para conseguir o que ela queria. Eu sei o que estou fazendo. Ela não tem condições de estar
na reunião de domingo. É bom que perceba
a verdade. Pessoas mimadas não suportam um "não". Isso é vaidade. No instituto estou interessado em ensinar as pessoas a
serem verdadeiras, a jogarem fora os
86
papéis sociais de conveniência que tanto as tem infelicitado. Por isso, meu amigo, não aceito interferência de ninguém.
Cada um precisa cuidar de si. Cada um responde
apenas por si.
Marcelo levantou-se e estendeu a mão:
- Desculpe ter vindo incomodá-lo. Isso não voltará a acontecer.
- Venha sempre que quiser algum esclarecimento. Estou à disposição.
- Obrigado.
Marcelo saiu pensativo. Mildred tentara usá-lo e ele caíra feito um bobo. Precisava ficar mais atento. Émerson fora preciso
e claro.
Uma coisa o intrigava: ele não chegara a dizer o motivo de sua visita. Como Émerson sabia? Alguém teria lhe contado? Mas
quem? Mildred, certamente, não.
Voltou para casa preocupado. Logo mais ela iria ligar. O que lhe diria? Pensou em arranjar uma desculpa, dizer que estivera
ocupado e não pôde ir ao instituto. Dizer-lhe
que sua visita fora inútil e que dera razão a Émerson era-lhe penoso. Sentiu uma desagradável sensação de fracasso. Talvez
fosse melhor não voltar para casa, ir
dar uma volta, ver os amigos, ir ao cinema. Assim não teria de enfrentá-la.
As palavras de Émerson vieram-lhe à mente:
- Mildred usou você. Pessoas mimadas não suportam um "não". Isso é vaidade.
De repente compreendeu. Mildred era mimada, julgava-se melhor do que os outros, por isso queria que sempre lhe fizessem
a vontade. Émerson tinha razão, mimo é vaidade
pura.
Marcelo lembrou-se de seu primo Olavo. Os pais dele o mimavam fazendo-lhe todas as vontades, e a cada dia ele ficava mais
enjoado e exigente. Toda a família, inclusive
Marcelo, antipatizava com o menino. Várias vezes ouvira sua mãe dizer que Olavo não tinha culpa. Estava sendo estragado
pelos pais, que lhe faziam todas as vontades.
Eles, sim, eram os responsáveis.
Mirtes fazia o mesmo. Era mimada, julgava-se mais bonita, mais desejada, mais sexy do que qualquer outra. Era atraente,
agradável quando queria, mas de vez em quando
tornava-se insuportável.
Fazer todas as vontades de uma pessoa, ser passivo, deixar-se usar por ela pensando em ser amado, reconhecido, valorizado,
é um erro. É fazer com que a pessoa fique
cada vez mais mimada e insuportável.
Várias vezes comentara com Gérson que as mulheres preferiam os homens "durões". Agora entendia por quê. Quanto mais seus
tios mimavam Olavo, mais rebelde e desobediente
ele se tornava.
87
Émerson dera-lhe a chave para entender esse comportamento. Não encontrando resistência a suas imposições, Olavo julgara-os fracos
e perdera o respeito. Dominava-os com
facilidade e a cada dia tornava-se mais irônico e implicante.
- É a adolescência! - justificava a tia.
- Um dia esse menino vai crescer - completava o pai.
Marcelo sentiu que precisava dizer a verdade a Mildred. Não podia mimá-la ainda mais.
Por que era-lhe tão difícil dizer um "não"? O que havia de errado nele, que detestava contrariar as pessoas ainda quando
sentia que essa seria a atitude mais adequada?
Até então acreditara que fazia aquilo por respeito aos outros, por bondade. Seus tios também pensavam assim e no entanto
estavam fazendo muito mal ao filho. Quantas
coisas ele fazia acreditando ser um bem e não eram? Émerson dissera em sua palestra que o bem sempre dá bons resultados.
Se alguém está infeliz, se tudo está dando
errado, é porque a pessoa está na ilusão do bem, não no bem verdadeiro.
Querer agradar aos outros a todo custo a pretexto de ser bom seria uma ilusão? Ele fizera isso a vida inteira e os resultados
não haviam sido positivos. Fora preterido,
desvalorizado. As pessoas o julgavam um fraco, ele dava essa impressão. Mas isso não era verdade. Se evitava brigas, desentendimentos,
não era por medo, mas por
não gostar de violência nem de ser visto como mal-educado.
Sua mãe sempre lhe dizia que só parte para a força bruta quem não tem inteligência para argumentar. Sempre se julgara inteligente
e pensava que tudo na vida poderia
ser resolvido através do diálogo. Estaria errado? Isso não estava muito claro em sua cabeça. Talvez Émerson pudesse esclarecer
melhor. Em todo caso, resolveu enfrentar
Mildred. Iria para casa e não mentiria.
Assim que chegou, ligou para ela. Apesar de haver decidido dizer-lhe a verdade, estava tenso, sentindo uma desagradável
sensação de fracasso. Por que se sentia assim
se não fora ele quem decidira dizer "não" a ela?
Pensou em desligar, mas ouviu a voz dela:
- Como vai, Marcelo? Não podia mais recuar.
- Vou bem. E você, está mais animada?
- Esperando sua resposta. Então, falou com ele?
- Sim... - Hesitou um pouco e completou: - Falei que você
queria ir.
88
- E então?
- Olhe, Mildred, ele disse que está agrupando as pessoas de acordo com os projetos que tem. Você, ele quer que vá para outro
grupo. - Quer dizer que ele disse "não"?
Embora ela tentasse dissimular, ele notou irritação em sua voz. - Isso.
- Talvez você não tenha sido convincente. O que lhe disse?
Marcelo percebeu claramente que ela estava insinuando que ele não havia se esforçado para obter sucesso. De repente, alguma
coisa se rebelou dentro dele, que respondeu:
- Olhe aqui, Mildred, você me pediu para ir falar com ele, insistir em uma coisa que ele já havia dito que não. Para lhe
fazer um favor, fui, mas me arrependi. Fiquei
constrangido.
- Por quê? Ele foi grosseiro com você?
- Absolutamente. Foi muito atencioso e deu-me todas as
explicações. Eu percebi que não deveria ter me intrometido. - Como assim? O que foi que ele disse? - É melhor ficarmos por
aqui.
- Não. Falaram sobre mim e quero saber.
- Está certo. Você pediu. Ele me explicou que, para o trabalho ter sucesso e as pessoas aproveitarem mais os cursos, ele
as agrupou conforme alguns critérios. Você
não iria se dar bem em nosso grupo. Por isso ele lhe pediu que se inscrevesse em outro.
- Ele disse isso, mas eu sei que o grupo de domingo é especial. Foi o único para o qual ele selecionou pessoas. Quanto aos
demais grupos, mandou as pessoas escolherem
e se inscreverem no que achassem melhor. Já se vê que ele me colocou de lado.
- Não foi isso que eu notei. Ele a tratou com muito respeito.
- Mas não quer que eu vá. Isso me põe para baixo. Estou me sentindo rejeitada. Até a sonsa da Laura foi convidada. Por que
você não insistiu?
- É melhor se conformar. Ele sabe o que está fazendo e não vai voltar atrás.
- Pois não me conformo. Nunca fui passada para trás deste jeito.
- Ele disse também que você está insistindo não porque faz questão de aprender mas porque é mimada e não consegue ouvir
um "não". Por sua reação, noto que ele tem
razão.
- Agora você me ofende! Como pode dizer uma coisa dessas? Você mal me conhece. Onde está seu cavalheirismo, sua educação?
89
- Eu é que sou mal-educado? Mesmo não me conhecendo bem, você me usou para que as coisas fossem do jeito que quer. Como
Émerson foi firme, sabe o que está fazendo
e disse não, você se vira contra mim, que me dei ao trabalho de fazer-lhe um favor. Para mim foi o bastante. Não me peça
mais nada nesse sentido porque não vou fazer.
Entendeu?
Mildred ficou silenciosa. Marcelo parecera-lhe fácil de manipular. Teria se enganado? Logo agora que ela contava em fazer
ciúme para Émerson desfilando com ele pelos
lugares da moda. Tentou contemporizar:
- Desculpe. Tudo bem. Vamos esquecer esse desagradável incidente. Apesar de nos conhecermos pouco, simpatizei com você e
não quero que fique sentido comigo por uma
bobagem dessas. Não irei no domingo, mas teremos outros momentos no instituto. Estou muito interessada em aprender lá.
- É melhor assim. Nós nos veremos outro dia. Agora preciso desligar. Minha mãe está me esperando para jantar.
- Está zangado comigo?
- Absolutamente.
- Continuamos amigos?
- Claro.
Quando desligou o telefone, Marcelo sentiu-se como se houvesse ganhado uma batalha. Sentiu-se forte, seguro de si. Notara
claramente quanto ela era manipuladora.
Mas dali para a frente estaria mais atento. Émerson estava certo. Pela primeira vez falara firme assim com uma mulher, e,
ao invés de ela brigar, tornara-se cordata,
delicada. Talvez se tivesse se comportado assim com Mirrtes, tudo teria sido diferente.
Mas valeria a pena continuar com aquele namoro? Mirtes se revelara mentirosa, interesseira, mimada. Ele, porém, gostava
muito dela. Era muito atraente. Quando saíam,
Mirtes chamava a atenção por onde passavam. A seu lado, ele se sentia um vencedor. Ao mesmo tempo, reconheceu que ficava
inseguro, enciumado, angustiado. No fundo,
havia sempre o medo de perdê-la. Parecia-lhe que ela era demais para ele e que a qualquer momento o deixaria.
Por que o amor fazia sofrer tanto? O melhor seria mesmo esquecer. Ela não era para ele. Nunca daria certo aquele relacionamento.
Ao pensar nisso, sentiu-se triste, deprimido. Sua amizade com Émerson aconteceu na hora certa. Ao lado dele teve certeza
de que encontraria esclarecimento e forças
para deixar aquele namoro de lado.
90
Mirtes levantou-se de sua cama e atirou a revista de lado. Estava aborrecida. A tarde já ia findando e nada de interessante
havia para fazer. Entediada, ela se olhou
no espelho. Precisava arrumar-se, sair, ver se arranjava um namorado novo.
Nos últimos tempos não havia tido muita sorte. Nada dava certo. Como sair daquela apatia? Pensou em Marcelo. Fazia dois
meses que não o via. O que estaria fazendo?
Nunca ficara tanto tempo sem a procurar. Teria arranjado outra? Ele era bonito e fácil de manejar. Se fosse rico, não hesitaria
em casar-se com ele. Ele ganhava
bem, mas ela desejava mais. Queria ter muito dinheiro, comprar jóias, viajar pelo mundo, desfrutar de luxo e conforto, gastar
à vontade.
Olhou-se no espelho e deu uma volta, observando seu corpo bem-feito. Seus olhos brilharam de satisfação. Era bonita! Podia
desejar tudo. Atraía a atenção
91
onde passava, gostava de aventuras, mas nada que pudesse ferir sua reputação.
Pretendia um marido rico. Se ao menos tivesse dinheiro para freqüentar altas rodas! Seu pai era contador de uma empresa
de porte médio. Ganhava o suficiente para
manter a família com conforto mas sem luxo. Havia comprado o sobradinho em que moravam e sentia-se satisfeito com a vida
modesta que levavam.
Várias vezes Mirtes tentara induzi-lo a procurar um emprego melhor, sem resultado. Por fim ela entendeu que, se quisesse
ser rica, deveria agir por conta própria.
Gostava de Marcelo. Era bonito e fazia boa figura. Era boa companhia também. Notava os olhares de inveja das garotas quando
saíam. Mas para casar ele não lhe servia.
"Se ele aparecesse hoje, eu até sairia", pensou.
Abriu a bolsa e procurou a carteira. Estava vazia. Sentou-se na cama irritada.
Alzira entrou no quarto e ela aproveitou para dizer:
- Preciso de dinheiro. Quanto você tem?
- Nada - respondeu a irmã.
Ela sabia que Mirtes gastava tudo e nunca devolvia. Alzira estava economizando para um curso que pretendia fazer.
- Não acredito. Você não costuma gastar nada. Guarda até os centavos. Estou precisando.
- Lamento, mas não tenho nada. Mamãe disse para você tomar banho logo porque papai está para chegar e não gosta de esperar
pelo jantar.
- Ele tem mania de andar com o relógio na mão. Nunca vi
ninguém tão metódico.
- Cada um é do jeito que é.
- Não sei como mamãe agüenta. Se fosse comigo...
Alzira não respondeu. Sentiu vontade de dizer que ela, sim,
andava insuportável, mas preferiu calar-se. Não gostava de discutir. Mirtes foi tomar banho e demorou o mais que pôde. Precisava
cuidar de sua beleza.
Quando desceu, uma hora depois, recendendo a perfume e mui
to bem maquiada, foi à sala de jantar esperando as reclamações cos
tumeiras. Não encontrou ninguém.
Ouviu vozes na sala de estar, mas as portas estavam fechadas. Al
zira apareceu na porta da cozinha e Mirtes indagou:
- Aconteceu alguma coisa? Eles estão fechados na sala.
92
- Não sei. Papai chegou, chamou mamãe e fecharam-se lá. Faz meia hora que estão conversando.
- E você não quis saber o que aconteceu? - Seja o que for, logo saberemos.
- Vou ver o que é. Não sou como você.
Foi até a porta e bateu. Houve silêncio por alguns instantes, depois Estela abriu a porta:
- O que você quer?
- Quero dizer que estamos prontas para jantar. - Pois jantem vocês. Nós não vamos agora. - O que aconteceu?
- Faça o que estou dizendo. Depois conversaremos. Comam vocês.
Estela fechou a porta e Alzira puxou a irmã dizendo:
- Venha, vamos comer. Mamãe nos contará depois.
- Não sei como você pode ser tão mosca morta. Alguma
coisa muito séria aconteceu. Desde que me lembro de existir, papai
nunca deixou de jantar na hora de costume. Mesmo quando ele e
mamãe tinham assuntos urgentes, eles se reuniam depois do jantar. Alzira deu de ombros.
- Eu vou jantar. Estou com fome.
Mirtes foi atrás dela resmungando.
Haviam terminado de comer quando Estela apareceu na sala de jantar e foi direto à cozinha.
Olhando o rosto pálido da mãe, Mirtes foi atrás dela.
- Mãe, alguma coisa de muito séria está acontecendo. O que é?
- Seu pai perdeu o emprego. Foi demitido.
- Só isso? Acho que foi bom. Lá não dava futuro mesmo. Agora ele vai ter de procurar um lugar melhor. Vou falar com ele.
- Não vai, não. Ele não está com disposição para conversar. Vou fazer um chá para ver se ele fica mais calmo. Quanto a você,
se já jantou, trate de ir para seu quarto.
Alzira observava calada. Aproximou-se e disse: - Pode ir, mãe. Eu arrumo a cozinha.
- Obrigada, minha filha.
- Vou levar o chá. E você, Mirtes, trate de ajudar sua irmã. Depois que ela se foi, Mirtes disse irritada:
- Vou para meu quarto. O clima aqui em casa hoje está horrí
vel. Talvez consiga alguém para sair. Preciso respirar um pouco.
93
- Não vai me ajudar?
- E estragar minhas unhas? Passei a tarde inteira caprichando nelas. Depois, você sabe fazer isso muito melhor do que eu.
Alzira olhou para a irmã e não respondeu. Depois que ela subiu, Alzira sentiu-se triste. Sabia que seu pai adorava aquele
emprego. Depois, ele passara dos cinqüenta
anos. Não seria fácil encontrar outro trabalho.
Mirtes foi para o quarto e olhou para o relógio. Eram sete e meia. Apanhou o telefone e ligou para Marcelo. Ele atendeu
e ela disse:
- Como vai? Sim, sou eu. Bateu a saudade. Estou muito triste. Aconteceu uma desgraça. Preciso desabafar, e você é a única
pessoa em quem confio.
Marcelo preocupou-se: - O que foi?
- O ambiente aqui em casa está muito triste. Gostaria de falar pessoalmente. Você pode vir se encontrar comigo? Ele hesitou:
- Estou ocupado.
- Agora? Sei que está sentido comigo, mas, por favor, não me deixe neste desespero. Nesta hora só consigo pensar em você.
Preciso desabafar, conversar... Se não
gosta mais de mim, saberei compreender. Quero que venha como amigo. Sua presença me confortará.
- Está bem. Irei.
- Estarei na porta esperando.
Marcelo desligou o telefone sentindo uma desagradável sensação de fracasso. Havia estabelecido o propósito de nunca mais
sair com ela. Mas Mirtes parecia muito aflita.
O que teria acontecido? Recorrera à sua amizade. Não podia deixá-la sozinha naquela hora.
Apanhou a chave do carro e saiu. Mirtes esperava-o na porta. Assim que ele parou, ela se aproximou e entrou. Marcelo fitou-a
um tanto desconfiado. Ela estava bem
arrumada, perfumada, não parecia preocupada.
Depois dos cumprimentos, ele considerou:
- Você não parece triste. Se for uma nova desculpa, irei embora agora.
Ela baixou a cabeça e respondeu com voz triste:
- Estou desesperada, mas sei conservar as aparências. - O que aconteceu?
- Vamos dar uma volta. Preciso respirar um pouco.
94
Marcelo deu partida e foi andando devagar. Escolheu uma rua tranqüila, parou e disse:
- Pode falar.
- Meu pai perdeu o emprego. Chegou em casa hoje muito abatido. - Parou alguns instantes e continuou: - Preciso fazer algo
para ajudá-lo. Ele adorava aquele emprego.
Não vai se conformar.
- De fato, é um momento difícil. Mas ele é um bom profissional. Logo conseguirá outro. Quem é bom nunca fica muito tempo
desempregado.
- Não sei... Ele está muito triste. Chegou a chorar! Nunca vi meu pai assim. Minha mãe, então, parecia doente de tão pálida.
Mirtes segurou o braço dele com força e encostando-se em seu ombro continuou com voz chorosa:
- Estou arrasada, Marcelo! Por favor, ajude-me!
Sua proximidade, seu perfume, o calor de seu corpo fizeram-no
estremecer. Tentou resistir. Ela notou sua emoção e aproximou seu
rosto do dele, dizendo baixinho:
- Marcelo! Que saudade! Neste momento triste, pensei em você, em seus beijos, seu carinho. Por favor, não me deixe!
Ele não resistiu mais. Abraçou-a e beijou-a várias vezes. Ela correspondeu com ardor. Emocionado, Marcelo sentiu que ainda
amava aquela mulher. Agora ela estava
ali, em seus braços, e ele não iria perder a oportunidade. O que acontecesse depois pouco importava. Apertou-a em seus braços
cobrindo-a de beijos como nunca fizera
antes. Mirtes deixou-se envolver pelo momento e eles se esqueceram de tudo.
Ele abriu a porta do carro e puxou-a levando-a para o banco de trás. Uma vez lá, continuou beijando-a, apertando-a em seus
braços, murmurando palavras de amor em
seus ouvidos.
Naquele instante ele pensou que precisava viver aquele momento com toda a intensidade. Era possível que logo ela se afastasse
novamente e tudo terminasse.
- Você é minha! - disse. - Pelo menos esta noite. Vou ensinar você a amar.
Mirtes perdeu o controle. Entregou-se completamente, sem pensar em mais nada.
Quando se acalmaram, ela, ainda atordoada, empurrou-o dizendo aflita:
- Marcelo! Por que fez isso? Jamais esperei que abusasse assim de minha confiança.
95
- Mirtes! Quando vim a seu encontro, não pensei em fazer nada. Mas eu a amo. Não resisti à sua proximidade. Depois, você
também quis. Não me repeliu.
Ela o fitou com raiva:
- Eu não queria nada disso.
- Não fique assim. Eu a amo. Não se preocupe. Amanhã mesmo falarei com seu pai. Vamos nos casar e tudo ficará bem.
Ela disse irritada:
- Casar com você? Nunca! Eu não quero. Tenho outros planos, e você complicou tudo. Quero ir embora. Leve-me para casa.
Ele tentou acalmá-la:
- Não fique assim! Não fizemos nada de mau. Garanto que tudo vai ficar bem. Eu assumo a responsabilidade pelo que fizemos.
- Você assume?
- Quero me casar com você!
- Casar? Você? Mas eu não quero. Não estou disposta a me tornar uma dona de casa submissa, pobre, arrastando filhos sem
futuro.
- Não entendo o que está dizendo. Ganho bem, posso oferecer uma vida confortável. Depois, eu a amo. O amor é o mais importante.
- Para mim, não. Tenho outros planos. Quero posição, sucesso, alta sociedade. Pretendo brilhar, não ser uma dona de casa
insignificante. O que aconteceu hoje não
se repetirá. Esqueça. Você não me deve nada.
Ele ainda tentou argumentar, mas ela disse com voz firme:
- Casamento está fora de cogitação. Agora leve-me para casa, senão vou embora sozinha.
Marcelo não respondeu. Acomodaram-se na frente e ele deu partida no carro em silêncio. Estava chocado. Não falaram durante
o trajeto. Quando ele parou o carro diante
da casa, Mirtes disse com voz fria:
- Não desejo mais vê-lo, Marcelo. Faça de conta que nunca nos conhecemos.
Ela entrou em casa e ele ficou alguns instantes parado sem saber o que fazer. Mirtes não era igual às outras que conhecia.
Enquanto a maioria procurava levar ao
casamento, ela o repudiara. Sentiu um aperto no peito. Angustiado, reconheceu que Mirtes nunca o amara. Por que então o
procurara? Por que se entregara daquela forma?
Era difícil entender. As emoções que havia experimentado ainda estavam presentes e ele se sentia mexido, emocionado, inseguro.

96
Talvez Mirtes houvesse reagido daquela forma por descontrole emocional. Ele havia sido o primeiro a entrar em sua intimidade.
Era possível que ela refletisse e voltasse
atrás. A esse pensamento, seu coração batia descompassado e as cenas de paixão que tinham desfrutado voltavam à sua mente
com toda a força.
Não. Não era possível que ela mantivesse aquela atitude.
Foi para casa. No dia seguinte, com certeza Mirtes lhe telefonaria arrependida. Das outras vezes ela sempre voltava a lhe
telefonar. Agora tinha um motivo maior.
Pensando assim, Marcelo deixou-se embalar nas asas do sonho. Tudo iria se resolver. Eles se casariam. Sabia que Mirtes tinha
gênio forte, mas com o tempo ela haveria
de modificar-se.

Mirtes entrou em casa irritada. Não se conformava de haver fraquejado daquela forma. Gostava de provocar, mas nunca se envolvera
a ponto de perder o controle. Por
que havia acontecido aquilo? Não estava apaixonada por Marcelo, embora gostasse de seus beijos e de sua proximidade.
A casa estava silenciosa, e ela tirou os sapatos. Não queria que sua mãe a visse chegar descomposta como estava. Cautelosamente,
foi para o quarto, trocou-se e foi
tomar um banho.
Deitou-se tentando não dar importância ao que havia acontecido. Mas as cenas de paixão que vivera com Marcelo voltaram à
sua mente e ela reconheceu que ele era muito
atraente. Se fosse rico, seria o marido ideal: manipulável, bonito, apaixonado. Precisava tomar cuidado. Nunca havia sentido
um envolvimento como aquele. Recordando-se
daqueles momentos, sentia o coração descompassarse, e uma onda de calor a acometia.
Aquele era um relacionamento perigoso. Ela não podia perder

o controle. Tinha seus objetivos de vida e não podia se deixar domi
nar. Mas a lembrança voltava e ela estremecia. Nunca imaginara

que Marcelo fosse capaz de tanto fogo. Quanto mais reconhecia isso,
mais firmava o propósito de resistir e de nunca mais tornar a vê-lo.

Ela era uma mulher moderna, que sabia o que queria da vida. Não
ia desistir de seus projetos. Nunca seria como sua mãe, resignada,
cuidando dos serviços da casa, sendo manipulada pela família inteira,
sempre passiva, como uma criada, zelando pelo conforto de todos. Ela
desejava ser servida, amada, freqüentar festas, ser valorizada, brilhar,
ter luxo, conforto. Ser feliz. Essa era a felicidade que Mirtes queria.
Por isso, apesar de ter dormido mal, por causa das emoções daquele
97
encontro com Marcelo, Mirtes não o procurou no dia seguinte como ele esperava.
Em casa, o clima era de tristeza. O pai havia comprado o jornal e tentava conseguir um emprego. A mãe fazia contas e mais
contas na mesa da cozinha enquanto Alzira
cuidava dos arranjos da casa.
- Ainda bem que levantou - disse Estela assim que ela apareceu na cozinha. - Tome café e depois vá ajudar sua irmã.
Mirtes sentou-se no canto da mesa que estava posta para o café e calmamente comeu. Depois levou a xícara para a pia e ia
se afastando quando Estela tornou:
- Não saia, não. Trate de lavar a louça do café.
- Alzira me disse que vai lavar.
Estela franziu o cenho, levantou os olhos e fixou-a dizendo com voz irritada:
- Estou mandando você fazer isso. Tem de acabar com essa mania de empurrar tudo para sua irmã. Nesta casa, todos devem colaborar
com o trabalho. Não é justo que
fique tudo por conta de um.
- A senhora sempre fez tudo. Nunca me deixou fazer nada. Sabe que não tenho jeito para certos serviços.
- Não tem vontade de aprender, isso sim. Hoje estou ocupada com outras coisas. Trate de lavar logo essa louça.
Apesar de contrariada, Mirtes resolveu obedecer. Sua mãe estava mal-humorada, e ela não estava com vontade de discutir.
Depois, o pai estava em casa. Se Estela
se irritasse, ele, como sempre, ficaria a favor dela.
Cerrou os lábios contrariada. Se antes sua mãe já reclamava por ela não gostar de fazer os serviços de casa, agora, que
o pai estava desempregado, seria pior.
Suspirou inquieta. Precisava fazer alguma coisa, cuidar de seu futuro. Não podia esperar mais. Lembrou-se de Valdo. Ele
seria o marido ideal. Era uma conquista
difícil. Depois daquele cinema, passava por ela como se nunca houvessem saído.
O que fazer para chamar sua atenção? Não freqüentava sua roda de amigos. Se pudesse ir aos lugares que ele freqüentava,
tinha certeza de chamar sua atenção. Era
bonita, elegante, os homens a desejavam.
Acabou de lavar a louça e foi para o quarto. Estendeu-se na cama, pensativa. Precisava encontrar um jeito de vê-lo com freqüência.
Mas como?
Pensou em procurar fazer amizade com alguma moça da sociedade.
98
Esse seria o caminho. De repente lembrou-se de Laura. Se conquistasse sua amizade, poderia freqüentar sua casa, ver
Valdo na intimidade da família.
Alzira entrou no quarto com um jornal na mão.
- Por que está deitada a esta hora? Já passa das dez. - Não é da sua conta.
- Arrumei as camas e você está amassando tudo. Sabe que mamãe não gosta de ver nada desfeito.
Mirtes não respondeu. Vendo Alzira arrumar-se, indagou: - Vai sair?
- Sim. Vou ver um emprego. Aliás, você também deveria fazer isso.
- Eu?! Deus me livre!
- Papai está desempregado. Já pensou no que acontecerá quando acabar o dinheiro que temos?
- Não sei por que vocês se afligem. Ele logo arranja outro emprego e tudo será como antes.
- Não vai ser fácil. Ele já passou dos cinqüenta anos. Mirtes deu de ombros.
- Ele é quem deve trabalhar. Como pai, tem obrigação de sus
tentar a família. Aliás, sempre teve dificuldade para fazer isso.
- Você é ingrata mesmo. Nunca nos faltou o essencial. Mirtes lançou-lhe um olhar de comiseração e considerou:
- Você é como eles: conforma-se com a miséria. Mas eu, não.
Você vai ver. Ainda serei muito rica.
Alzira olhou para ela com seriedade. Ia retrucar, mas desistiu. Ela nunca entenderia.
Apanhou a bolsa, avisou a mãe e saiu. Lendo o recorte que havia separado, achou o nome da empresa familiar, mas não descobriu
por quê.
Depois de conversar com a recepcionista, foi selecionada para
fazer um teste. Estava esperando em uma sala com mais duas candi
datas quando viu Marcelo passar no corredor. Imediatamente foi atrás dele e chamou: - Marcelo!
Ele se voltou surpreendido:
- Alzira! O que faz aqui?
- Vim por causa da vaga de auxiliar de escritório.
- Você não vai mais fazer aquele curso?
- Não. Meu pai perdeu o emprego e não posso esperar mais.
99
Preciso trabalhar. Estou esperando para fazer um teste. Acha que
conseguirei a vaga?
- Quem sabe? Vou ver o que posso fazer. - Vai ser muito difícil? - Não. Fique calma. - Preciso muito do emprego.
- Vou recomendá-la. - Hesitou um pouco, depois perguntou:
- Como vai Mirtes?
- Como sempre. Você me avisa se souber de alguma coisa? - Aviso. Boa sorte.
Marcelo despediu-se dela. Mirtes não havia ligado, e com cer
teza não contara nada à irmã do que havia acontecido.
No fim da tarde, Marcelo procurou o departamento pessoal para
ver o teste de Alzira. Ela se saíra bem. Mas não tinha prática. Eles
preferiam outra candidata. Marcelo interveio:
- Vocês devem dar uma oportunidade a Alzira. Trata-se de uma
moça muito séria e inteligente. Tenho certeza de que em pouco tempo
aprenderá tudo.
- A praxe é admitir pessoas experientes...
Marcelo olhou para sua interlocutora e sorriu. Sabia que ela
sentia por ele um interesse especial. Colocou a mão em seu braço
e disse:
- Escolha Alzira. Será um favor que fará para mim.
- Por que tanto interesse nessa moça?
- Sou amigo da família. O pai ficou desempregado, ela precisa
muito trabalhar.
- Está bem. Vou ver o que posso fazer.
- Obrigado. Serei sempre muito grato a você. Depois que ele se foi ela pensou:
"Não vou facilitar para essa moça vir. Ela é bonita e ele deve
estar interessado nela."
No fim do dia, quando saiu do escritório, Marcelo decidiu passar
na casa de Alzira. Era um bom pretexto para saber de Mirtes. Tocou a campainha. Mirtes abriu a porta, surpreendida.
- Como vai?
- O que quer aqui? Eu pedi que não viesse me procurar. - Vim falar com Alzira. Ela está? - Alzira? Isso é desculpa para
me ver. Antônio apareceu no hall, indagando:
- Quem está aí, Mirtes?
100
Vendo o pai, ela não respondeu de pronto. Marcelo interveio. - Vim falar com Alzira. Ela está?
- Está lá em cima. Vá chamá-la, Mirtes. Entre, por favor. - Obrigado.
Marcelo entrou enquanto Mirtes furiosa subiu à procura da irmã.
- Marcelo está lá embaixo e arranjou uma desculpa esfarrapada para me ver. Disse a papai que quer falar com você.
Alzira deu um pulo e desceu as escadas correndo. Entrou na sala ansiosa.
- Marcelo! Tem uma resposta?
- Ainda não. Mas eu a recomendei e é quase certo que a vaga será sua.
Entusiasmada, ela o abraçou contente:
- Tomara! As duas candidatas eram mais experientes do que eu. Em todo caso, obrigada por ter me recomendado.
- Obrigado, Marcelo - disse Antônio, comovido. - Não queria que Alzira trabalhasse por enquanto. Depois que a firma em que
ela trabalhava faliu e ela ficou desempregada,
eu queria que ela voltasse a estudar, mas infelizmente não deu certo. No momento estamos vivendo uma situação inesperada.
Alzira abraçou o pai, dizendo:
- Adoro trabalhar. Estou contente, papai, torcendo para esse emprego dar certo.
- Peça à sua mãe para fazer um cafezinho para nós.
Alzira saiu e Marcelo ficou conversando com Antônio. Mirtes tinha decidido não descer, mas a curiosidade foi maior. O que
estariam conversando na sala?
Ficou no alto da escada e viu quando Alzira foi à cozinha e pediu para a mãe servir café. Por que tanta deferência com Marcelo?
O que ele tinha dito?
Desceu no momento em que Estela levava a bandeja até a sala e servia o café. Admirada, ouviu que seu pai conversava com
Marcelo sobre trabalho. A mãe saiu da sala
e, vendo Mirtes parada no hall, disse:
- Vá lá. Marcelo está arranjando emprego para Alzira.
Então era aquilo. Ela fora pedir emprego a ele. Ficou irritada. Alzira estava se aproveitando do amor que ele sentia por
ela. Não queria ficar devendo favores a
ele.
Foi para o quarto. Meia hora depois, Alzira entrou e Mirtes não se conteve:
101
- Você não vai aceitar esse emprego...
- Se sair, eu aceito.
- Marcelo está fazendo isso por minha causa. Terminamos tudo. Não quero ficar devendo favores a ele.
- Engana-se. Ele nem sabia que eu queria trabalhar. Vi o anúncio no jornal e me candidatei. Fui fazer o teste e o encontrei
no corredor. Conversamos e ele se prontificou
a verificar como me saí.
- Claro que ele vai dar um jeitinho de colocar você na empresa. Só quero ver o que vai acontecer quando descobrirem que
não tem competência. Vai ser despedida.
- Tenho muita vontade de trabalhar. Isso conta. Na situação em que estamos, você deveria fazer o mesmo.
Mirtes olhou admirada para a irmã:
- Eu? Nunca! Tenho tutano. Não vou sujeitar-me a um empreguinho qualquer. Tenho outros planos. Ainda vou ser muito rica.
Alzira olhou para ela e não respondeu. As palavras de Mirtes não conseguiram empanar a alegria que sentia pela possibilidade
de conseguir a vaga. Não se importava
com o que a irmã dizia. Desde pequena descobriu que pensava muito diferente dela. Suas palavras ferinas, sua arrogância,
sua mania de grandeza e sua preguiça não
a incomodavam nem um pouco. Se assumia de boa vontade o serviço que a mãe mandava Mirtes fazer e que esta simplesmente ignorava,
era porque se sentia bem ajudando
a mãe nos afazeres domésticos. Sentia-se útil. Achava justo cooperar, uma vez que usufruía da proteção da família, que a
sustentara desde seu nascimento.
Na verdade, ela via as atitudes de Mirtes com naturalidade. Embora pensasse diferentemente, respeitava sua maneira de ser.
Não se impressionava com ela e agia do
seu jeito. Dessa forma, convivia com a irmã sem problemas.
Por ela estar sempre bem-humorada, calma, não revidando suas malcriações, Mirtes considerava-a fraca, inexpressiva.
Embora os pais amassem as duas filhas, não dispensavam igual tratamento a ambas. Por seu temperamento, Alzira era respeitada,
tratada com carinho, e muitas vezes
eles repreendiam Mirtes pela sua agressividade. Essa situação irritava-a.
Ela se julgava mais bonita, mais inteligente, e não entendia como Alzira, tão sonsa, era mais acariciada e protegida.
Agora então, com Alzira trabalhando para ajudar, seria o máximo. Certamente a elegeriam a santa da família.
Vendo a expectativa dela em conseguir o emprego, pensou:
102
"Eles não perdem por esperar. Quando eu arranjar um marido rico, irei embora para sempre. Então eles vão correr atrás de
mim. E eu farei de conta que não os conheço,
claro. Eles não têm classe para viver em sociedade."
Mirtes continuou pensando, pensando. Não agüentava mais a vida em casa. Agora, então, com o pai sem emprego, seria ainda
pior. Precisava agir. Retomou a idéia de
fazer amizade com alguma moça da sociedade. Mas como? Não tinha dinheiro para freqüentar os lugares da moda.
Resolveu que na tarde seguinte se arrumaria muito bem e iria circular pelas melhores lojas da cidade fingindo estar fazendo
compras. Não precisaria de dinheiro para
isso. A sorte haveria de favorecê-la. Animada, finalmente adormeceu.
103
Marcelo entrou na elegante perfumaria à procura de um presente para Laura. Quando começou a freqüentar os cursos de Émerson,
dois meses antes, iniciara amizade com
Laura, e na véspera ela o convidara para sua festa de aniversário. Ela era moça fina, e ele pensara em um perfume francês.
Enquanto a balconista o atendia e ele
tentava escolher, foi surpreendido por uma voz amável:
- Marcelo, como vai?
- Mildred, que surpresa!
- Já sei! Laura o convidou também.
- É verdade. Estou tentando escolher um perfume para ela.
- Que bom que você vai! Por causa da teimosia de Émerson em nos separar, não temos nos visto muito. Como vai o misterioso
curso do qual fui banida?
- Vai bem. Sei que você continua freqüentando o instituto.
- É. Continuo. Não me deixo vencer com facilidade.

(corrigir - falta a página 104)

105
- De fato. Vencemos.
- Se fizemos isso uma vez, poderemos fazer outras tantas que forem necessárias para encontrar a felicidade.
- Você acha mesmo?
- Tenho certeza. Hoje ficou claro para mim que a cada dia que passa Mirtes vai ficando mais apagada em minha vida. Chegará o dia em que não representará mais nada.
- Gostaria de dizer o mesmo quanto a Rômulo.
- Acredite nessa possibilidade. Não se deprecie. Estou vivendo esse processo. Sei que vamos vencer.
Chegaram e saíram do carro. Émerson e Laura, que vinham logo atrás, pararam e desceram.
- Obrigada por tudo. Não sei como agradecer o que fizeram por mim. - Renata abraçou Laura e continuou: - Que Deus lhe dê toda a felicidade do mundo e muitos aniversários
cheios de alegria como este.
Beijou-a carinhosamente na face. Depois Émerson abraçou-a, dizendo:
- Gostei muito de revê-la. Não se esqueça de me procurar no
instituto. Penso que teremos muito assunto para conversar.
- Irei com Marcelo.
Os dois despediram-se de Marcelo e foram saindo. Marcelo se
gurou a mão de Renata, dizendo:
- Obrigado por ter me apoiado e ficado comigo. Você entrou
em meu coração. Foi um prazer conhecê-la.
Beijou-a delicadamente na face. Renata sorriu:
- Esta noite foi mágica. Parece que a vida quis me mostrar que
tudo pode melhorar. Jamais esquecerei esta festa. Também tive mui
to prazer em conhecê-lo.
Ela entrou em casa e ele foi para o carro. No trajeto de volta,
Marcelo sentiu-se livre, forte, como nunca havia se sentido. Ele po
dia esquecer aquela paixão desastrada por uma mulher interesseira
e egoísta. Tinha quase certeza de que naquela noite Mirtes saíra de
finitivamente de sua vida.
No carro de Émerson, Laura comentou:
- Foi a festa mais bonita de minha vida. Estou muito feliz. - Sua vida poderá ser sempre assim.
- Gostei de ver Renata. Deu a volta por cima. Minha mãe con
tou que ela estava até doente por causa de Rômulo.
- Um dia ela descobrirá quanto foi bom ele a ter deixado. Esse
136
casamento nunca daria certo. Renata tem o temperamento oposto ao dele.
- É verdade. Ela sempre foi retraída. Apesar de nossas famílias se freqüentarem, nunca nos permitimos uma proximidade maior.
- Você é tão retraída quanto ela. Estou feliz por perceber que você não mais se esconde e assumiu seu real temperamento. É alegre, inteligente, brilhante e capaz.
Ela corou e respondeu:
- Você diz isso porque é meu amigo.
- Não, Laura. Eu digo porque é verdade. Esta noite, as pessoas circulavam ao seu redor disputando sua companhia. - Ele parou o carro, olhou nos olhos dela e concluiu:
- Você é linda!
Laura baixou os olhos para que ele não visse o brilho de uma lágrima que ameaçava cair. Como ela continuou calada, ele continuou:
- Eu tinha de você uma lembrança muito distante da realidade. Depois que voltei, aos poucos fui percebendo quanto estivera enganado. Você despertou em mim um sentimento
verdadeiro e profundo.
Ela levantou os olhos dos quais lágrimas incontidas haviam rolado para suas faces. Seus lábios tremiam quando ela disse:
- Eu sempre o admirei. E a cada dia o estimo mais.
Émerson abraçou-a e seus lábios se encontraram. Laura sentia o coração descompassado e todo o seu corpo estremecia sem que ela pudesse controlar. Émerson beijou-a
repetidas vezes, apertando-a em seus braços.
- Há tempos venho desejando fazer isso. Eu a amo, muito. - Eu também o amo. Sempre o amei.
Ele a beijou novamente com ardor.
- Eu pressentia, porém não tinha certeza. Nunca senti por mulher nenhuma o que estou sentindo por você. Nunca mais nos separaremos.
- Parece um sonho. Eu sentia que esta seria uma noite mágica. Não desejo que ela termine. Tenho medo de acordar e descobrir que foi apenas um sonho.
Émerson apertou-a mais de encontro ao peito, beijou-lhe levemente os cabelos e respondeu:
- É a mais absoluta verdade. Vamos nos casar e nunca mais nos separaremos. Nossa felicidade será para sempre. Eles ficaram conversando esquecidos do resto do mundo,
fazendo
137


planos para o futuro. O dia clareou e o sol despontou com toda a sua luz.
- Meu Deus! É tarde. Em casa devem estar preocupados.
- A festa acabou tarde. Seus pais devem estar dormindo. Vamos embora.
De volta à casa de Laura, desceram do carro.
- Está tudo quieto - comentou ela. - Devem estar dormindo mesmo. Venha, vamos tomar um café.
- Você está me tentando. Sabe que não sinto vontade de ir embora.
Laura abriu a porta da casa e segurou a mão dele, puxando-o para dentro.
- Venha, vamos ver o que temos para comer.
O salão continuava igual, embora os empregados já houvessem
retirado a louça usada e coberto as sobras.
Os olhos de Laura brilhavam e seu rosto estava corado de
prazer.
- Venha, vamos até a copa. Vou preparar um café.
- Tem certeza de que sabe fazer isso?
- Não me subestime. Tenho um curso completo de culinária que vai do trivial simples aos pratos mais sofisticados.
Ele a beijou levemente na face.
- Sempre fui um homem de sorte.
Enquanto ela na cozinha fazia o café, Émerson arrumou a mesa na copa, colocando várias iguarias e um dos arranjos de flores. Estavam felizes como duas crianças
em férias.
Uma hora mais tarde, quando ele se despediu, Laura foi para o quarto, preparou-se para dormir, deitou-se, mas não conseguiu pegar no sono.
Na penumbra do quarto rememorou em todos os detalhes os acontecimentos daquela noite. Ela havia notado nos olhos de Émerson um carinho especial quando a fitava,
um brilho que nunca havia notado antes. Mas ela temia estar se iludindo, deixando-se levar pelo desejo ardente de conquistá-lo.
Mas naquela noite, durante a festa, onde quer que estivesse, Laura sentira os olhos dele seguindo todos os seus passos. Ele dançou apenas com ela. Embora as outras
o disputassem, ele sorria, conversava com elas, mas depois a procurava para dançar.
Quando ele a convidou para acompanhar Renata e Marcelo, seu coração bateu mais forte. Os dois poderiam ter ido sozinhos, mas
138
Émerson usou esse pretexto para levá-la a um lugar discreto e se declarar. As palavras, os beijos trocados, ela se recordava dos mínimos detalhes.
Depois disso, cansada mas feliz, adormeceu conservando o sorriso nos lábios.
Conforme havia combinado, na terça-feira à noite Marcelo foi
buscar Renata para irem ao instituto. Convidado a entrar, foi
recebido por Marcelina. Depois dos cumprimentos, ela sugeriu:
- Sente-se, por favor. Renata já está pronta.
Ele agradeceu e sentou-se. Ela se acomodou no sofá ao lado. - Você conhece Laura há muito tempo? - Sim. Mas nos tornamos amigos no instituto de Émerson.
- Tenho ouvido falar muito nesse instituto. Émerson sempre foi
diferente dos outros rapazes.
- Eu o admiro muito. Ser seu amigo é um privilégio.
- Minha filha mostrou interesse em freqüentar esse lugar. Confesso que estou um pouco temerosa. Alguns conhecidos me disseram que ele prega idéias diferentes das
nossas. Não sei se notou, mas Renata é uma moça retraída, inexperiente, com tendências depressivas. Temo que se deixe influenciar e fique pior.
- Não há o que temer. Os ensinamentos de Émerson fazem bem e nos ensinam a viver melhor. Depois, apesar de Renata estar um pouco fragilizada, é moça inteligente
e capaz de discernir o que lhe convém - respondeu Marcelo com voz firme.
Marcelina tentou contemporizar:
- Tem razão. Émerson é um bom rapaz e teve muito boa educação. Almerinda o considera muito.
- Fique tranqüila, Dona Marcelina. Renata vai apenas
conhecer o instituto e conversar um pouco com Émerson. Renata apareceu na sala e Marcelo levantou-se. - Desculpe o atraso. Podemos ir.
Despediram-se e saíram. Marcelina procurou o marido, que lia em outra sala, e comentou:
- Não estou gostando nada desta história. Ele levantou os olhos do livro.
- Que história?
- De Renata ir com esse Marcelo ao instituto de Émerson. A filha de Adelaide está indo e mudou muito desde que começou a freqüentar esse lugar.
139
- Mudou como?
- Antes era caseira, obedecia a tudo que os pais mandavam. Agora não aceita mais as ordens. Vive discutindo. Diz que tem o direito de escolher o que fazer de sua
vida.
Os olhos de Eduardo brilharam divertidos e ele considerou:
- Adelaide é mandona mesmo. Não sei como José a tolera. Todos naquela casa só fazem o que ela quer. Quer saber? Estou do lado da menina.
Marcelina meneou a cabeça negativamente.
- Você pensou no que está dizendo? Uma menina de vinte e
dois anos não sabe o que quer da vida. Os pais devem decidir. Eduardo olhou para ela com seriedade.
- Diz isso porque você também gostaria que Renata continuasse
cordata, obedecendo a tudo que você quer. - Claro.
- Você aceitou aquele noivado com Rômulo. Eu cansei de dizer que ele não servia para Renata.
- Apesar de tudo, tenho minhas dúvidas. Afinal, ele é do nosso meio. Fino, elegante e educado. Às vezes penso que ele poderia tornar-se um bom marido. Renata é que
não conseguiu mantê-lo interessado. Também, sonsa do jeito que é...
Dessa vez foi Eduardo quem balançou a cabeça negativamente.
- Você está depreciando nossa filha. Ela é muito bonita, inteligente, tem tudo para conquistar um homem. O que eu acho é que Rômulo é falso e interesseiro. O que
ele procura é um casamento rico.
- Não seja maledicente. A família dele também é rica.
- Não creio. Eles moram longe. Sabemos só o que ele conta. Mas isso não interessa agora. Felizmente ele procurou outra vítima.
- Que horror, Eduardo! Não se pode mesmo falar com você.
Ela se foi e ele deu de ombros, reabriu o livro e mergulhou novamente na leitura.

Passava das dez da manhã na quinta-feira quando Alzira entrou no quarto e, vendo Mirtes dormindo, chamou-a:
- Mirtes, Mirtes, acorde. Levante-se. Tenho de arrumar o quarto.
A irmã se remexeu no leito e continuou dormindo.
- Vamos, acorde. Além de não ajudar em nada, ainda atrapa
lha. Mamãe está doente e não agüenta fazer todo o trabalho. Mirtes irritou-se:
140
- Deixe-me em paz. Quero dormir.
Alzira não se deu por achada. Aproximou-se da cama, tirou as cobertas e sacudiu-a dizendo:
- Deixe de ser preguiçosa. Trate de levantar. Há um cesto cheio de roupas para passar. Se não quer arrumar a casa, terá de passar roupas.
Alzira abriu as janelas e Mirtes irritada sentou-se na cama. - Como você é grossa! Não respeita ninguém. - Não gosto de gente preguiçosa.
- Quando eu for rica, irei embora, deixarei esta miséria. Vocês nunca mais me verão.
Alzira fez uma reverência, dizendo irônica:
- A princesa não precisa esperar para ir embora. A porta da rua é serventia da casa. Quanto antes, melhor.
Mirtes não respondeu. Foi ao banheiro, arrumou-se e desceu para o café. Estela preparava o almoço. Vendo-a, disse: - O café com leite está na térmica.
- Você sabe que não gosto que misture o café com o leite. - Não sei por quê. Você sempre mistura os dois na xícara. - É diferente. E este pão está murcho.
- Seu pai comprou muito cedo. Saiu para procurar emprego.
Ela tomou uma xícara de café com leite, depois foi para a sala telefonar para Mildred. Precisava fazer alguma coisa. Sua vida estava cada vez pior. Não agüentava
mais aquela pobreza. Com o pai desempregado, sua mãe tornara-se mais econômica, esticando o mais possível o dinheiro, com medo do que aconteceria se a poupança
acabasse antes de ele conseguir um emprego. Não havia dinheiro para nada. Logo agora que ela começara a freqüentar a alta sociedade e precisava vestir-se melhor.
- Alô. Como vai, Mildred?
- De mau a pior. Ainda bem que você ligou. Estou desesperada. - Aconteceu alguma coisa?
- O pior que poderia acontecer. Émerson está namorando a sonsa da Laura.
- Não diga! Bem que desconfiei. Na festa ele só dançou com Laura. E olhava para ela de um jeito...
- É comigo que Émerson vai se casar! Esse namoro não pode continuar. Hoje mesmo vou dar um jeito nisso. - O que vai fazer?
- Procurar a pessoa que vai me ajudar.
141
- Aquele pai-de-santo?
- Isso mesmo.
- Acha que ele é bom mesmo?
- Tenho certeza. Quer ir comigo?
Mirtes concordou logo. Mildred combinou de ir buscá-la às duas
da tarde. Ela mal podia esperar. Não se importou com os comentários
de Alzira, as queixas da mãe e o desânimo do pai, que voltou sem
haver conseguido emprego.
Em sua fantasia, via-se casada com Valdo, desfrutando do luxo
e da consideração da alta sociedade.
Quando Mildred chegou, Mirtes entrou no carro e depois dos
cumprimentos perguntou:
- Você acha que vai dar certo?
- Acho que sim. Tenho de tentar. Não posso cruzar os braços
vendo Laura me roubar Émerson. Eu o esperei todos estes anos na
certeza de que quando voltasse nos casaríamos. Não me conformo
em perdê-lo, ainda mais para Laura. Ele nunca se interessou por ela. - Eu também gostaria de fazer uma consulta. Esse pai-de-san
to cobra muito caro?
- Duzentos reais.
Mirtes suspirou desanimada. - O que foi?
- É muito caro. Infelizmente não tenho esse dinheiro. Meu pai
está desempregado e eu não trabalho.
- A consulta ainda é barata. Caro é o serviço que ele vai fazer.
Mas estou disposta a pagar. Afinal, é para minha felicidade.
Mirtes baixou a cabeça e esforçou-se para dominar a revolta que
sentia. Nem para isso ela tinha dinheiro. Mildred considerou:
- Você está interessada em alguém?
- Estou. Mas terei de esperar. No momento não disponho desse
dinheiro.
- Você não me disse nada! Eu confiei em você e contei tudo. Você não confia em mim.
- Não se trata disso. Foi hoje que descobri que estou apaixonada. Por isso pensei...
- Apaixonada? Por quem?
- Por Valdo. Ele sempre me interessou. Mas, como ele não me procurou mais, fiz o possível para esquecer. Contudo, vendo-o na festa, senti que ele ainda me interessa
muito. Pensei que talvez esse pai-de-santo pudesse me ajudar a conquistá-lo.
142
Mildred começou a rir.
- Até hoje ele tem sido muito arisco. Nunca se apaixonou de verdade. Eu gostaria muito que ele perdesse aquela pose e caísse a seus pés, fazendo tudo que você pedisse.
- Eu passeia manhã toda sonhando com isso. Seria a glória. Mas terei de esperar.
- Nada disso. Vou lhe emprestar o dinheiro que for preciso. Quando você puder, me paga.
Mirtes deu um grito de alegria, abraçando a amiga.
- Puxa, Mildred! Você é demais! Nunca esquecerei o que está fazendo por mim.
- Cuidado que estou dirigindo. Calma. Vou fazer isso não apenas para ajudar você mas também para ver Valdo apaixonado.
O endereço ficava na periferia e foi difícil de encontrar. Finalmente chegaram. A rua não era calçada e o número era de um galpão que parecia abandonado.
- Tem certeza de que é aqui?- indagou Mirtes olhando em volta, preocupada.
- Pelo menos foi esse endereço que me deram.
- O lugar não parece habitado. Não estou gostando nada disso. É melhor irmos embora.
- Não. Vamos ver.
Decidida, Mildred apertou a campainha. Pouco depois um rapaz moreno abriu o portão. Vendo-as, disse sério: - Entrem. Pai Tomé as espera.
As duas entraram e acompanharam o rapaz até os fundos do galpão e pararam diante de uma porta.
Mirtes estava assustada. Por ela, teria ido embora. O cheiro de incenso, fumaça e ervas a tonteava. Mildred, porém, segurou seu braço, dizendo firme:
- Vamos.
- Queiram esperar um pouco. Vou avisar que chegaram.
Ele entrou na sala e Mirtes aproveitou para dizer baixinho:
- Vamos embora, Mildred. Este lugar é perigoso. Podem nos
assaltar.
- Que nada, Mirtes. Deixe de ser medrosa. Você quis vir, agora agüente.
O rapaz abriu a porta.
- Podem entrar.
As duas obedeceram.
143
Na penumbra, sentado a uma mesa redonda em um canto da sala, ele esperava. Ao lado dele, um altar cheio de imagens, velas e ervas. -
- Quem vai consultar?
- Eu. Meu nome é Mildred.
- Sente-se. A outra deve sair.
- Ela também deseja consultar.
- Atendo uma de cada vez. O assunto é confidencial.
Mirtes sentia a cabeça atordoada, as pernas bambas. Sem dizer nada, saiu da sala e fechou a porta. Aquele ambiente a sufocava. Sentia medo, tinha vontade de sair
dali. Atravessou o galpão quase correndo e procurou a porta de saída. O rapaz surgiu em sua frente dizendo:
- Não precisa sair. Pode esperar aqui.
- Obrigada, mas prefiro esperar lá fora.
Sem esperar resposta, ela abriu a porta e saiu. Uma vez na rua, respirou fundo. Sentia como se fosse desmaiar. Olhou em volta para ver se achava algum bar ou lanchonete
para tomar um copo de água. Mas não havia nada além de algumas casas pobres e maltratadas.
Sua cabeça rodava e ela suava frio. Se ao menos tivesse a chave do carro, poderia sentar-se. Mas na pressa esquecera-se disso. Começou a andar de um lado para o
outro inquieta.
Mildred estava demorando e ela não melhorava. A custo, Mirtes conseguiu esperar. A todo momento imaginava que ia perder os sentidos.
Quando ela finalmente apareceu, Mirtes respirou aliviada. - Puxa, como você demorou!
Agora é sua vez. Pai Tomé a está esperando. - Eu não vou. Não estou me sentindo bem. - Você está pálida! Aconteceu alguma coisa?
Nada. Estou me sentindo mal e quero ir embora. - E a consulta?
- Não quero mais.
Vai se arrepender. Ele é demais. Falou tudo sobre minha vida. - Vamos embora antes que eu caia aqui mesmo.
Mildred abriu o carro e Mirtes sentou-se abrindo a janela e res
pirando fundo. Durante o trajeto de volta, Mildred começou a falar
da consulta, mas Mirtes pediu:
- Por favor. Agora não. Cada vez que você fala nisso eu fico pior. - Está bem. Pensei que você estivesse interessada em saber.
144
Voltaram em silêncio. Mildred deixou a amiga em casa, despediu-se e partiu. Mirtes entrou e foi à cozinha tomar um copo de água.
Sua mãe, vendo-a, perguntou admirada:
- Aconteceu alguma coisa? Você está pálida!
- Não aconteceu nada. Fui dar uma volta com Mildred e me senti mal. Vou me deitar.
- Vai ver, você comeu alguma coisa na rua. É melhor tomar um remédio para o fígado.
- Não comi nada. Isso vai passar.
Foi para o quarto, deitou-se, mas o mal-estar não passava. De vez em quando lhe parecia estar naquele galpão escuro, e um medo incontrolável a acometia. Levantava-se
e andava de um lado para o outro do quarto. Quando se acalmava um pouco, deitava-se, mas de repente começava tudo de novo.
Alzira entrou no quarto dizendo:
- Mamãe está chamando para jantar.
- Não quero.
Alzira acendeu a luz e Mirtes gritou:
- Apague isso.
A outra apagou, dizendo:
- O que você tem?
- Estou me sentindo muito mal.
- Nesse caso é melhor chamar mamãe.
Estela subiu rapidamente a escada.
- Ainda não melhorou?
- Estou muito mal. Parece que vou morrer. - Não diga bobagem, minha filha.
Acendeu a luz, olhou para ela e disse:
- Levante-se. Vamos ao pronto-socorro.
Ela se sentou na cama mas não conseguiu levantar. - Estou muito tonta. Não consigo.
Estela ficou nervosa. Mirtes estava desfigurada. Queria chamar um médico, mas não tinham dinheiro. Fora difícil conseguir comida para o jantar.
Desesperada, Estela sentou-se na cama. Lágrimas rolavam pelas suas faces, e ela não sabia o que fazer.
Alzira entendeu logo que não seria possível chamar um médico. - Mamãe, vou chamar Dona Isaltina. Ela vai nos ajudar.
- Nada disso. Nós somos católicas. Ela lida com espíritos. Não
vai adiantar nada.
145
- Mas eu vou assim mesmo. Outro dia ela curou Miguelzinho, lembra-se? Ele caiu da bicicleta e ficou desmaiado. Ela rezou e ele voltou a si. Vou até lá. Ela vai nos
dizer o que fazer.
Alzira saiu rápida enquanto Mirtes gemia na cama e Estela deixava as lágrimas correrem livremente. Aquela situação fora a gota d'água. Desde que o marido perdera
o emprego, ela dissimulava a preocupação tentando dar coragem a toda a família, mas estava cansada de lutar. O emprego de Alzira não saíra e ela ainda não conseguira
outro.
Mirtes agitou-se de repente. Sentou-se na cama, dizendo nervosa para a mãe:
- Não quero que ela venha. Não deixe essa mulher entrar aqui. Se ela vier, você vai ver o que eu faço.
Estela sentiu o peito oprimido. Desceu as escadas, e o marido indagou:
- O que tem Mirtes?
- Não está se sentindo bem.
- Não deve ser nada. Ela sempre teve saúde. - Mas está mal.
Estela foi à porta ver se conseguia impedir Alzira de buscar
Isaltina. Mas elas já estavam chegando. Uma vez na sala, Isaltina
perguntou:
- Onde está Mirtes?
- No quarto. Mas a senhora não precisava se incomodar.
Ela não respondeu e foi subindo as escadas. As duas a acompa
nharam. Antônio continuou na copa lendo o jornal. Sentia-se tão
deprimido que nada o interessava.
Assim que entraram no quarto, Mirtes levantou-se e começou
a andar de um lado para o outro dizendo com voz um tanto rouca: - O que você veio fazer aqui?
- Vim conversar com você - respondeu a senhora com voz
calma.
- Não temos nada para conversar.
- Temos, sim. Você vai deixar Mirtes em paz. Onde já se viu
ficar perturbando a moça?
- Quem a mandou me procurar? Eu estava quieto lá no meu can
to, esperando uma pessoa para me servir. Quando ela entrou, eu logo
vi que era ideal para mim.
- Para isso ela precisa querer ficar com você.
Vai ter de ficar.
146
- Não vai, não. - Voltando-se para Alzira e Estela, que a olhavam assustadas, ela pediu: - Vamos rezar.
As duas obedeceram, enquanto Isaltina fazia o mesmo. Depois, pegou Mirtes pela mão e conduziu-a para a cama, fazendo-a sentar-se.
- Nós vamos ajudá-lo, mas você vai prometer que a deixará em paz.
- O que eu ganho com isso?
- Ajuda espiritual. Bem-estar.
- E se eu não quiser?
- Voltará para onde veio e continuará a sofrer como até aqui. Depois de alguns segundos de silêncio, ela disse: - Está bem. Eu vou.
Mirtes estremeceu e estendeu-se na cama. Estela e Alzira, assustadas, quiseram intervir, mas Isaltina fez-lhe sinal que não.
- Continuem rezando - pediu, e depois começou a passar as mãos sobre o corpo de Mirtes.
Estela e Alzira mexiam os lábios murmurando a oração, mas a atenção estava em Mirtes.
- Dona Estela, um copo de água, por favor.
- Eu vou - resolveu Alzira para poupar a mãe.
Quando Alzira voltou com a água, Mirtes estava sentada na
cama olhando-as admirada. Isaltina pegou o copo deu-o a ela, dizen
do com voz firme:
- Beba.
Ela segurou o copo com mãos trêmulas e bebeu a água. De vez
em quando estremecia. Aos poucos a cor foi voltando a seu rosto. - Sente-se melhor? - indagou Isaltina. - Sim. Mas ainda estou com medo.
Estela perguntou preocupada:
- O que ela tem?
- Perturbação espiritual. - Vendo que elas não entenderam, esclareceu: - É o que o povo chama de encosto.
- Deus nos livre! Só nos faltava essa! - queixou-se Estela, nervosa.
- Calma, Dona Estela. Ele já foi embora. Mirtes está bem. Estela abraçou a filha, dizendo:
- Verdade, filha? Você está bem?
Estou, mãe. Já passou.
- Isso nunca aconteceu em minha família. Estou assustada. E se ele voltar, que faremos?
147
Isaltina fitou-a séria e respondeu:
- Não creio que ele volte. Foi auxiliado por amigos espirituais. Mas é bom que saibam: o mundo onde vivem os espíritos é coexistente com o nosso. Estamos separados
deles por uma cortina de energia. Em determinadas circunstâncias eles conseguem nos envolver.
- Como assim? - indagou Alzira com interesse.
- É preciso compreender que eles são pessoas que já viveram em nosso mundo. Depois da morte, por vários motivos, recusam-se a sair da crosta terrestre. São muito
envolvidos com as coisas do mundo e desejam ficar por aqui. Muitos deles são tão apegados que sentem fome, sede, vontade de fazer sexo, etc. Perambulam na atmosfera
da Terra em busca de alguém que possa ceder-lhes temporariamente o corpo para que satisfaçam essas necessidades.
Estela deixou-se cair na cama assustada:
- É difícil acreditar! Como Deus permite uma coisa dessas?
- Melhor seria indagar como as pessoas atraem em sua aura esses espíritos.
Mirtes ouvia calada. Ela sabia que havia ido a um lugar em que não devia, e não desejava que a mãe soubesse disso.
- Minha filha nunca teve nada dessas coisas! - justificou Estela. - Por que aconteceu isso a ela?
- Seria melhor que ela mesma lhe dissesse. O importante agora é tomar cuidado para que não volte a acontecer.
- Não vai acontecer de novo - prometeu a jovem, assustada.
- Não sei, Mirtes - disse Isaltina. - Sua sensibilidade aflorou. Assim sendo, seria recomendável que você procurasse informar-se sobre o assunto. Em nosso centro
há grupos de estudos que você poderia freqüentar.
- A senhora desculpe - interveio Estela -, mas no momento não temos dinheiro para nada.
Isaltina sorriu:
- Em nosso centro o atendimento é gratuito. - Ela se calou por alguns segundos, colocou a mão sobre a testa de Estela e continuou: - A senhora também precisa de
ajuda. Está no limite de suas forças. Se continuar assim, vai adoecer.
- Mas eu sou católica. Nunca fui a um centro espírita.
- Sempre haverá uma primeira vez. Aliás, há quanto tempo não vai à sua igreja? Tem tentado resolver seus problemas e os de sua família, brigando com a vida, esquecendo
que toda força, toda
148
assistência vem de Deus. Sozinhos nós não realizamos nada. Pense nisso. Amanhã à noite, às sete e meia, estarei esperando por vocês. E você, Mirtes, acompanhe sua
mãe.
Dê um recado à sua amiga: seria melhor que ela não voltasse mais àquele lugar. Ela está se metendo em confusão. Agora tenho de ir.
- Obrigada, Dona Isaltina - disse Estela. - Não sei como agradecer.
- Seu marido está muito deprimido. Se ele fosse com vocês, seria bom.
- Ele não liga para religião. Acho que nunca reza.
- Está mais do que na hora de começar. Convide-o.
Depois que ela se foi, Estela foi falar com o marido, que conti
nuava alheio a tudo, folheando o jornal na sala. - Você viu o que aconteceu?
Ele levantou a cabeça e respondeu:
- Não. O que foi?
- Mirtes passou mal e Dona Isaltina disse que era encosto. Ele meneou a cabeça negativamente:
- E você acreditou?
- Só sei que Mirtes estava muito mal. Dona Isaltina rezou e tudo passou. Ela agora está bem.
- Que bobagem! Mirtes sempre foi preguiçosa. Finge de doente para não fazer nenhum serviço.
- Não era fingimento, eu garanto. Estava até com febre.
- Você se deixa enganar por ela com facilidade. Essa de encosto é boa. - Ele começou a rir. - O medo cura qualquer manha. Antes de fazer cena, Mirtes vai pensar
duas vezes.
- Dona Isaltina recomendou irmos ao centro fazer tratamento. Todos nós, inclusive você.
- Eu sabia que ela ia querer nos levar na conversa.
- Não seja maldoso. Dona Isaltina é boa pessoa. Todos os nossos vizinhos falam bem dela. Veio assim que Alzira chamou e não cobrou nada. Afinal não tem obrigação.
- Você tem cabeça fraca. Meia dúzia de palavras e você logo se deixa levar. Eu é que não caio nessa!
- Pois eu vou lá. Nossa vida vai de mau a pior. Você também deveria ir. Ela disse que está precisando muito.
- É muita pretensão achar que ela possa nos ajudar. Se ela tivesse esse poder, estaria rica, morando em palacete e tudo. Como você é boba. Acredita em tudo!
149
- Pois eu vou tentar. Não agüento mais ver você em casa len
do esse jornal, sem dinheiro nem para comer.
- Sou um profissional competente de larga experiência. Não
consigo emprego por causa da idade. Neste país, depois dos quaren
ta e cinco anos ninguém arranja mais emprego.
Estela não respondeu. O conformismo dele irritava-a. O que
fariam se alguém adoecesse? Subiu e foi ao quarto de Mirtes, onde
Alzira tentava convencê-la a contar aonde havia ido naquele dia.
- Eu ouvi muito bem. O espírito disse que foi você quem o
procurou. É perigoso envolver-se com essas coisas sem conhecimento. - Chega de falar nisso. Você fala, mas não sabe nada. Não
quero saber mais desse negócio de espíritos.
- Você deve ir ao centro para tratamento.
- De jeito nenhum! Nunca. Já disse que não quero saber disso. Estela havia ouvido a discussão e interveio: - Nós vamos, sim. Já pensou se acontecer de novo? - Não
vai mais acontecer - garantiu Mirtes.
- Pois eu vou - disse Alzira. - Apesar do susto, me senti mui
to bem com a reza de Dona Isaltina. Parecia que eu estava flutuando. - Irei com você - disse Estela. Tudo quanto Isaltina dissera era verdade. Estela estava no limi
te de suas forças. Precisava de ajuda. Não ia perder aquela chance.
150
Estela entrou no centro espírita com o coração batendo forte. Apesar do medo que sentia, estava disposta a permanecer lá. Segurou no braço de Alzira com força.
- Calma, mãe! Não precisa ter medo. - Essa coisa de falar com os mortos
me deixa nervosa.
- Pois eu quando entrei aqui senti
uma grande alegria.
- Por quê? Não aconteceu nada.
- Não sei, mas estou me sentindo
igual a quando Dona Isaltina rezou lá em
casa.
Uma senhora atendeu-as e Alzira explicou:
- Dona Isaltina nos pediu para vir. Foram encaminhadas a uma sala onde
havia algumas pessoas.
- Sentem-se e esperem. Logo serão
chamadas pelo número.
A mulher entregou-lhes um cartão
numerado e saiu.
151
Estela olhou com curiosidade para as pessoas que estavam à sua volta. Pareciam pessoas de bem.
Uma senhora de meia-idade que estava a seu lado sorriu e perguntou:
- É a primeira vez que vocês vêm aqui?
- É - respondeu Estela.
- Pois eu, faz mais de um ano. - Tanto tempo assim?
- Meu caso era muito grave. Eu estava a ponto de enlouquecer.
Bendita a hora que meu filho me trouxe. No começo eu não queria
vir, mas ele me trazia à força. Depois fui melhorando e agora ve
nho sozinha. Estou muito melhor, mas ainda estou em tratamento.
Nunca mais precisei ser internada. O médico já me liberou, mas eu
quero continuar vindo aqui.
A porta abriu-se e uma moça chamou um número. Era o daquela
senhora. Sorrindo contente, ela atendeu prontamente. A porta
fechou-se novamente e Estela comentou baixinho:
- Ela não disse qual sua doença. - Acho que sofria dos nervos. - Ela me pareceu bem calma.
- Agora. Não a conhecemos antes.
Quando chegou a vez delas, entraram na sala. Uma moça aten
deu-as, fazendo-as sentar em frente à sua mesa.
- Meu nome é Anita. Sejam bem-vindas.
Preencheu uma ficha com nome e endereço de ambas, depois
perguntou o motivo da visita.
Alzira relatou o que havia acontecido. Anita ouviu com aten
ção. Quando terminou, ficou alguns instantes pensativa. Depois co
meçou a falar:
- Vocês estão atravessando um período difícil. Vão precisar de firmeza e otimismo. As queixas contribuem para piorar uma situação que está conturbada.
Estela remexeu-se na cadeira e não se conteve:
- Você diz isso porque não está em meu lugar. Como posso ser otimista se meu marido está desempregado, o dinheiro está acabando? Nem sei se amanhã teremos como comprar
o que comer.
As lágrimas desciam pelo seu rosto e ela, embora tentasse, não conseguia controlar-se.
- Chorar é um direito seu. Ponha para fora toda a sua angústia. Desabafe. Você vem engolindo a raiva há anos. Sua insatisfação
152
é antiga. O fato de seu marido estar desempregado foi a gota d'água. Você nunca se sentiu feliz.
Estela soluçava convulsivamente. Anita apanhou a caixa de lenços de papel e colocou-a em sua frente. Ela apanhou um, assoou o nariz e enxugou os olhos, mas as lágrimas
teimavam em cair.
Anita ficou em silêncio e Alzira olhava penalizada para a mãe. Aos poucos Estela foi serenando e por fim enxugou novamente os olhos. Disse, envergonhada:
- Desculpe. Não sei o que me deu. Isso nunca me aconteceu. - Você estava precisando desabafar. Sente-se aliviada? - Sim. Parece que saiu um peso do meu peito. -
Você se oprime, e isso a machuca muito.
Anita levantou-se, apanhou um copo de água e entregou a ela,
que tomou alguns goles.
- Agora, vamos conversar - disse Anita com voz firme.
- Vamos. Você disse que eu nunca me senti feliz. É verdade. - Mas você se casou por amor.
- Foi. Mas logo no começo percebi que ele não era como eu sonhava.
- Seu marido é um homem grosseiro?
Estela assustou-se:
- Não, ao contrário. É um homem educado, formado. Sempre me tratou bem.
- É mulherengo, preguiçoso, irresponsável?
- Não. Nada disso. Eu nunca soube que ele tivesse me traído. Sempre foi trabalhador, até demais. Está desempregado e sofrendo muito por isso. É muito responsável,
nunca deixou faltar nada para a família. Não posso dizer isso dele.
- Você tem um marido excelente.
Estela suspirou envergonhada:
- É... Acho que sim.
- Você tem duas filhas. Elas são doentes?
- Não. Sempre tiveram saúde. Mirtes tem gênio forte, mas não é ruim.
- Você tem uma bela família. Seu marido está desempregado, mas isso é uma situação temporária. Se ele é trabalhador, responsável e tem experiência profissional,
por que não consegue trabalho? As empresas estão sempre necessitando de bons funcionários. O que está errado com ele?
- Ele diz que é por causa da idade. Fez cinqüenta e cinco anos.
- Eu sei de pessoas mais velhas que são muito disputadas no mercado.
Questão de sorte. Nós nunca tivemos sorte em nada. Tudo para nós é conseguido com muito esforço e sacrifício.
- Quando você acredita que progredir é questão de sorte e que ela passa longe de vocês, está se colocando na incerteza e na dificuldade. É isso que terá.
- Como pensar de outra forma? Somos pessoas honestas, de bem, não fazemos mal a ninguém. No entanto, para nós tudo dá errado, enquanto outras pessoas que não se
esforçam tanto, não fizeram nada para merecer, têm tudo. Às vezes me pergunto se vale a pena trabalhar, ser honesta.
- Você está dizendo que Deus é injusto e irresponsável.
- Não foi isso que eu disse. Apesar de tudo, respeito a religião.
- Você diz isso mas faz o contrário. Não crê que Deus esteja no comando e tudo quanto a vida faz é justo.
- Para dizer a verdade, não creio mesmo em justiça. Basta olhar em volta, o que vai pelo mundo, para perceber isso.
- Você olha o mundo com os olhos do materialismo. É hora de aprender a enxergar a vida com os olhos da alma. Só assim poderá perceber o que vai além das aparências,
enxergar a verdade.
- Como assim? Não estou entendendo.
- Você olha em volta e, por não entender como a vida age, julga Deus injusto. Você parte do mal e quer ver o bem. Isso é impossível. É preciso partir do bem para
entender as causas do mal.
Estela meneou a cabeça e respondeu:
- Não sei como fazer isso. O mal é o mal e está em todo lugar.
- Você fala como uma materialista. Não crê em Deus.
- Não! Apesar de tudo, eu creio!
- Então você pensa que Ele não é perfeito e comete muitos erros.
- Não. Eu nunca diria isso. Deus é o criador.

- Você me disse que ele é injusto, julga mal as pessoas, dá prêmio a quem age errado e ignora as pessoas de bem. Foi isso que eu entendi.
- Entendeu mal. Deus é perfeito e não erra - respondeu ela, hesitante. - Apesar de todo o sofrimento, eu nunca falaria mal de Deus.
- Quem não entende sou eu. Se ele não erra, como explicar os problemas da sociedade e das pessoas?
154

- Isso eu não sei. Talvez os homens sejam maus. Acho que é isso. Anita sorriu enquanto Alzira observava atenta.
- Vou encaminhá-las para um atendimento espiritual que vai
ajudar a equilibrar suas energias. Vão se sentir melhor.
Entregou a cada uma um papel com as indicações do tratamen
to e um outro, dizendo:
- Aqui há uma frase para vocês pensarem durante esta semana. Leiam várias vezes ao dia. Quanto mais, melhor.
Elas agradeceram e saíram. A assistente encaminhou-as para outra sala na penumbra, onde, ao som de uma música suave, elas se sentaram. Lá havia várias pessoas. Alguém
pediu que fechassem os olhos e pensassem em luz azul, e todos obedeceram. Sentiram alguns arrepios. Estela bocejou várias vezes, abriu os olhos e viu que uma moça
à sua frente estendia as mãos sobre sua testa.
Quando saíram da sala, Estela sentiu-se bem. Comentou baixinho com a filha:
- Não pensei que fosse assim. Você está bem?
- Muito. Senti um calor no peito e uma brisa muito leve à minha volta.
Uma vez na rua, as duas leram a frase que Anita lhes dera:
"Deus não erra. Se um fato me parece errado, é porque não estou conseguindo ver a verdade. Peço a Ele que abra meu entendimento."
- Não sabia que você era tão descrente, mãe.
- Não sou descrente. Rezei muito e nunca consegui o que pedi. Cansei.
- Quem tem fé não cansa.
- Você é muito jovem, não sabe nada da vida.
- Mas também sinto que a queixa não ajuda em nada. - Vamos ver se Mirtes melhora.
- Se ela não for ao centro, não vai melhorar. Dona Isaltina disse que ela precisa estudar mediunidade.
- Ela disse, mas ainda não sei se é verdade.
- Claro que é. Se não fosse, Mirtes não teria melhorado quando ela rezou.
Estela calou-se. Sabia que era verdade. Pensou no marido. Apesar de tudo, ele era um homem bom. Lembrou-se dos tempos de namoro, de como eram apaixonados um pelo
outro. Isso foi no começo. Depois eles foram mudando e agora pareciam dois estranhos dentro de casa. Ele, calado; ela, resmungando.
Chegaram em casa e ele continuava na sala lendo. Vendo-as

155
entrar, levantou os olhos como que perguntando alguma coisa. Esperou que falassem. Estela não disse nada. Ele não quis ir, que ficasse com a curiosidade.
- Vou fazer um chá, você quer?
- Quero.
Alzira foi para o banho e Estela para a cozinha colocar a cha
leira no fogo. Estava pegando as xícaras quando Antônio entrou. - Você parece bem-disposta.
- De fato. Estou mais calma. Vou fazer um chá de erva-doce com
cravo, como nos velhos tempos.
- Pena que não temos aquele bolo de milho que você fazia. - Era muito bom. Lembra? Você comia metade ainda quente. Ele suspirou triste.
- A que ponto chegamos. Não temos dinheiro nem para um bolo
de milho.
Estela colocou água nas xícaras, aproximou-se dele e abraçou-o dizendo:
- Logo teremos isso e muito mais.
Enquanto ele a olhava admirado, olhos brilhando emocionados, ela continuou:
- Estive pensando. Não podemos desanimar. Essa situação é passageira. Você é um homem honesto, trabalhador, bom profissional. Logo vai aparecer alguém que saiba
valorizar suas qualidades.
Antônio abraçou-a e em seus olhos havia o brilho de uma lágrima:
- Não tenho sido um bom marido para você. Gostaria de darlhe mais conforto.
- Não diga isso. Você é o melhor marido do mundo. Trabalhador, sincero e responsável. Temos duas filhas lindas e cheias de saúde. Não temos do que reclamar. Vamos
agradecer a Deus nossa felicidade. Amanhã será outro dia.
Ele pousou os lábios na testa dela com carinho.
- Você é uma grande mulher. De fato, sou um homem feliz.
- Não vamos nos queixar mais. Deus vai nos ajudar, eu sinto isso.
Os dois tomaram o chá conversando sobre os primeiros tempos de casamento. Depois, abraçados, foram para o quarto. A situação ainda estava difícil, mas aquela foi
para eles uma noite de paz.
No quarto das meninas, Alzira entrou, acendeu a luz do abajur e Mirtes reclamou:
156
- Apague isso! Você me acordou.
Alzira não apagou e respondeu:
- Você devia ter ido ao centro conosco. Foi muito bom!
- Eu? Para mim bastou uma vez. Nunca mais quero ouvir falar em espíritos.
- Pois eu e mamãe gostamos muito. Nós nos sentimos muito bem! Deu uma calma, um bem-estar como havia muito eu não sentia. Mamãe voltou com uma cara... Parece outra
pessoa.
- Vocês são mesmo crédulas! Tudo impressiona. Eu não sou boba. Desses lugares quero distância. Veja se não fala mais no assunto. Só de ouvir você, fiquei toda arrepiada.
Cruz credo! Apague essa luz que eu quero dormir.
- Vou pegar a camisola e apagar.
Mirtes cobriu a cabeça resmungando. Pouco depois, Alzira deitou-se, apagou a luz e preparou-se para dormir. Acomodou-se pensando na sensação leve e de bem-estar
que sentira na hora do passe, e logo adormeceu.
Sonhou que estava caminhando em um lugar sombrio, cheio de neblina, segurando uma lanterna para iluminar o caminho. Apesar da energia pesada do local, Alzira sentia-se
muito bem, calma, lúcida e segura, sabendo muito bem o que fazer.
Caminhava a seu lado uma mulher jovem carregando uma bolsa grande cheia de pacotes.
- Tem certeza de que é por aqui? - indagou a mulher.
- Devemos estar perto. Sinto que estamos chegando - respondeu Alzira.
Caminharam mais um pouco e chegaram a uma pequena clareira onde um vulto de mulher chorava compungidamente.
- Estou cansada! Não agüento mais tanta dor. Estou arrependida de tudo que fiz. Quero me aproximar da luz, seguir o caminho do bem.
Alzira parou diante dela e logo uma luz tênue a circundou. A mulher chorosa tapou o rosto com ambas as mãos, dizendo triste:
- Quem é você? Por acaso veio responder às minhas preces? Por favor! Não olhe para mim. Estou horrível. Sinto vergonha.
- Estou vendo sua alma e noto que está sendo sincera.
- Tenha piedade! Ajude-me! Sinto fome, sede, angústia, dor. Não sei há quanto tempo estou aqui neste buraco me escondendo das sombras escuras que querem me agredir.
- Sua prece foi ouvida. Viemos buscá-la.
157
A um gesto de Alzira, aproximaram-se alguns homens carregando uma maca que colocaram ao lado da mulher. Alzira estendeu a mão, dizendo:
- Venha. Vamos levá-la a um local de tratamento. Logo estará melhor.
Com esforço, a mulher levantou-se e, amparada por Alzira, deitou-se na maca. Foi então que ela viu seu rosto. Estava desfigurado, traços acentuados pela idade avançada,
mas não havia dúvida: era Mirtes.
Assustada, Alzira deu um grito e acordou. O sonho foi tão real que ela ainda sentia o contato da mão da mulher. Aquilo só podia ter sido um pesadelo.
Levantou-se, foi à cozinha e tomou um copo de água. Todos dormiam, a casa estava silenciosa. Voltou para o quarto e deitou-se novamente. Mas a lembrança do sonho
não a deixava. Imaginava que sua preocupação com a indiferença de Mirtes a impressionara e por isso tivera aquele pesadelo. Mas reconhecia que se sentira muito bem,
sua mente parecia ter ficado clara, as idéias lúcidas. Não recordava ter se sentido tão segura de si e tão equilibrada antes. Aquilo não poderia ser um pesadelo.
Quem eram aquelas pessoas que estavam a seu lado obedecendo a suas ordens?
Tentando encontrar respostas a suas indagações, Alzira só conseguiu adormecer quando o dia já estava clareando.
Uma hora depois, Mirtes levantou-se, mais cedo do que o habitual. Sentiu o cheiro do café e teve fome. Na véspera não havia jantado. Foi à cozinha e encontrou os
pais sentados tomando a primeira refeição. Vendo-a, Estela apanhou uma xícara e colocou-a na mesa, dizendo:
- Sente-se, filha.
Depois foi ao fogão e apanhou a leiteira, colocando leite na xícara de Mirtes. A filha serviu-se de café, adoçando-o enquanto Estela voltava a sentar-se. Mirtes
apanhou um pãozinho, passou margarina e começou a comer lembrando-se do desjejum que vira na casa de Mildred. Estava cansada daquela vida de pobre. Um dia ainda
teria tudo do bom e do melhor. Ela nem notou que os pais estavam tomando café preto e que haviam guardado o leite para ela e a irmã.
Antônio levantou-se e Estela acompanhou-o. De onde estava, Mirtes podia ver o hall de entrada e saída da casa.
Depois de vestir o paletó, Antônio foi até a porta com Estela. Ela lhe disse alguma coisa. Ele sorriu e beijou-a com carinho na face.
158
Mirtes franziu a testa. Eles não haviam discutido, e ele até a
beijara. O que estava acontecendo?
Antônio saiu e Estela voltou à cozinha. Mirtes indagou: - Papai arranjou emprego?
- Ainda não.
- Pensei que sim. Vocês estavam amáveis, houve até beijinho. - Seu pai está se esforçando e precisa ser incentivado pela fa
mília. Há quanto tempo não conversa com ele?
- Eu? Ele anda mal-humorado desde que ficou desempregado. - Seria muito bom que você o tratasse com mais atenção.
- Ih! Já vi que hoje você está a fim de implicar comigo. Acho
que vou sair.
- Já que acordou cedo, o que é raro, poderia aproveitar o tempo e ir procurar um emprego.
- Eu sabia que ia sobrar para mim. Não vou me sujeitar a um empreguinho qualquer, trabalhar muito e receber quase nada no fim do mês. Eu quero muito mais.
- Para conseguir um bom emprego é preciso estudar, esforçar-se. - Para o que eu quero não preciso de nada disso. Pode crer,
mãe, vou arranjar um emprego definitivo, para toda a vida. Não vou
trabalhar e ainda terei tudo do bom e do melhor. - Isso não existe.
- Existe, sim. Logo você verá que eu consegui. Por isso, não se preocupe comigo. Sei o que fazer de minha vida. Não quero ser igual a você, depender de salário,
ficar velha e feia, contando os tostões, sem nunca ter nada meu.
- Você está falando em arranjar marido rico. É bom esquecer. Homem rico procura moça do seu nível. Desse jeito, você vai acabar mesmo é sozinha.
- Credo, mãe! Vire essa boca para lá! Pensando assim, você só podia mesmo se casar com um homem como papai. Estela fitou-a desafiadora:
- O que é que tem seu pai? É um marido excelente, e nós nos casamos por amor.
- Pode parecer bom para você, mas é pobre. Não serviria para mim.
- Cuidado com o que diz, que Deus castiga e faz você se apaixonar por um homem bem pobre.
- Isso nunca vai acontecer. Tenho a cabeça no lugar.
Ela saiu da cozinha enquanto Estela abanava a cabeça
159
negativamente. Mirtes foi para o quarto para se arrumar. Queria ir à casa de Mildred.
Alzira estava limpando o cômodo. Havia posto os travesseiros na janela para tomarem sol, tirado as roupas de cama e colocado a banqueta da penteadeira emborcada
na cama.
- Não podia esperar eu sair para fazer essa bagunça no quarto? - reclamou Mirtes.
Alzira olhou séria para ela. Havia colocado um lenço na cabeça por causa da poeira. Pensava em sair à tarde e não queria lavar novamente os cabelos.
- É dia da faxina. Você podia pelo menos arrumar sua cama.
Mirtes nem respondeu. Apanhou suas coisas e foi aprontar-se no banheiro. Vestiu-se e não gostou da roupa. Foi remexer o guarda-roupas mas não encontrou nada do seu
gosto. Tinha alguma peça para sair à noite, mas para o dia, não. Mildred acordava elegante. Ela não podia ir à sua casa como uma mendiga. Tinha uma saia de boa qualidade.
Se ao menos pudesse comprar uma blusa bonita... Seu dinheiro mal dava para pagar o ônibus. Remexeu o armário de Alzira, mas não encontrou nada que a agradasse.
Desconsolada, sentou-se na cama. Alzira, que estava limpando os vidros da janela, perguntou:
- O que foi? Desistiu de sair?
- Desgraça de vida. Preciso cuidar de meu futuro e não tenho uma roupa decente. Não posso apresentar-me com estes trapos.
- Não exagere. Você tem muito mais roupa na moda do que eu. Vai procurar emprego?
- Vou. Preciso comprar uma blusa. Você tem dinheiro para me emprestar?
Não.
Você tinha algumas economias.
Dei para mamãe.
Vida miserável. Não dá mais para agüentar viver deste jeito. Você vai mesmo procurar emprego? Vou. Por quê?
Nesse caso posso emprestar a blusa nova que Dona Olívia me
deu no aniversário. Eu ainda nem usei.
- Como você não me mostrou?
- Porque você pega sem pedir e se gosta não devolve mais.
Alzira foi ao armário e apanhou uma caixa que estava escondi
da atrás de algumas roupas. Abriu-a e entregou a blusa à irmã.
160

- Empresto só hoje.
Tratava-se de uma blusa de seda azul-clara. Era simples mas de boa qualidade, corte elegante. Não era bem o que Mirtes gostaria de usar, mas naquele momento era
o que tinha.
Vestiu-se e, sem responder às recomendações de Alzira nem às perguntas da mãe, telefonou para Mildred. Sabia que não era de bom tom aparecer sem avisar, principalmente
de manhã.
Passava das onze quando chegou à casa da amiga. Foi conduzida a seu quarto. Mildred ainda estava na cama, recostada nos travesseiros tendo à sua frente uma bandeja
com um lauto desjejum. Mirtes lembrou-se do café da manhã em sua casa. A diferença deixoua novamente irritada. Depois dos cumprimentos, Mildred ofereceu:
- Você quer comer alguma coisa?
- Não, obrigada. Já tomei café.
- Pelo menos uma fatia de bolo. Está uma delícia.
- Está bem. Aceito. Acordei muito cedo. Tomei café às sete. - Da manhã? Que horror! Por quê?
- Ontem passei o dia na cama. Hoje não tinha sono.
- Não posso entender por que passou tão mal. - Foi aquele lugar. Nunca mais ponho os pés lá.
- Bobagem. Não foi isso, não. Eu não senti nada. Aliás, estou
muito bem e confiante nos resultados.
Mirtes contou-lhe o que havia acontecido, inclusive o recado de Dona Isaltina.
- Não sabia que você era tão impressionável! Desse jeito não vai conseguir o que quer. Precisa criar coragem e ir lá. Sua consulta está paga.
- Ele não lhe devolveu o dinheiro?
- Não. Disse que você voltaria. Está esperando.
- Vai esperar sentado. Farei qualquer coisa para ter o que quero,
menos mexer com espíritos. Isso pode acabar mal.
- Você está exagerando. Quero ver sua cara quando eu estiver
casando com Émerson e você continuar sem ninguém. - Você parece ter tanta certeza...
- Tenho. Ele ainda vai ser meu! Só que Valdo não será seu! Mirtes ficou pensativa. Admirava a coragem de Mildred, mas não se sentia com forças de voltar àquele lugar.
- Pois eu vou conseguir sem precisar dele. Tenho meus próprios métodos.
- Duvido. Usei tudo que sabia com Émerson e não consegui.
161
Mirtes sentia-se angustiada, deprimida. Baixou a cabeça para ocultar as lágrimas que estavam prestes a cair. Mildred notou e perguntou:
- O que foi? Você parece preocupada.
- Estou muito triste. Quero me mostrar confiante mas não consigo.
Lágrimas rolaram pelo seu rosto e ela não conseguiu contê-las. Mildred deu-lhe um lenço, esperou que ela serenasse e depois disse:
- O que está acontecendo?
- Estou cansada. Nada que eu quero dá certo.
- Você sempre me pareceu tão confiante, tão alegre...
- Eu sou assim, mas é que estou passando por uma situação muito difícil. É muito triste ser pobre. Meu pai perdeu tudo, não encontra emprego, estamos passando momentos
penosos. Minha única opção é arranjar um marido rico. Mas para isso preciso investir em mim, freqüentar lugares de luxo, vestir-me bem, cuidar da aparência. Como
fazer isso sem dinheiro?
Mildred olhou para ela e não se comoveu. Era provável que Mirtes desejasse pedir-lhe dinheiro. Começou a achar que se precipitara pagando-lhe a consulta com pai
Tomé.
Sorriu maliciosa e respondeu:
- Mirtes, você é muito bonita. Chama a atenção dos homens por onde passa.
- Eu sei. Mas não é fácil encontrar alguém que queira casar-se. - Eu sei de meia dúzia de milionários que estariam a seus pés e
que lhe dariam tudo se você fosse gentil.
- Como assim?
- Não tem nenhum motivo para queixar-se da vida. Poderia ter
tudo, basta querer. Depois, os fins justificam os meios.
- Não estou entendendo. Explique melhor.
- Conheço alguns homens de meia-idade que gastam fortunas
com quem lhes der um pouco de ilusão. Estão cansados da rotina com
a família e adoram alguém jovem, cheia de vida, como você. Mirtes entendeu e seu rosto cobriu-se de rubor. - Eu não saberia fazer isso. - Então conforme-se em ser
pobre pelo resto da vida. - Eu quero ter família, ser admirada em sociedade.
- Conseguirá tudo isso, se agir com discrição. Encontros secretos
com pessoas importantes. Eu garanto que eles têm muito a perder
e terão mais interesse do que você em manter segredo.
162
- Não sei...
- É a única maneira que tem de subir na vida. Depois, não estará prejudicando ninguém, só usando o que é seu. Pense nisso. Sou sua amiga. Desejo que você progrida.
Eu mesma posso indicar-lhe alguns prováveis candidatos. Tenho certeza de que não se arrependerá.
- Vou pensar.
- Se eu estivesse em sua situação, não hesitaria. Nunca me conformaria em viver na pobreza.
No fim da tarde, sentada no ônibus de volta para casa, Mirtes analisava os conselhos que Mildred lhe dera. Talvez aquele fosse o caminho mais curto para alcançar
seus objetivos. Quando pensava nisso, sentia um aperto no peito e pensava em desistir da idéia. Depois lembrava-se dos problemas em sua casa, da blusa emprestada,
da falta de dinheiro, do rosto sofrido do pai, da mãe, até da irmã com lenço amarrado na cabeça limpando a casa.
Perdida em seus pensamentos íntimos, quase passou do ponto para descer. Quando chegou em casa, já estava escurecendo. Ao entrar, ouviu ruídos na cozinha. Com certeza
sua mãe fazia milagres para preparar o jantar.
Olhou em volta. A casa em penumbra pareceu-lhe feia e sem graça. Os móveis velhos, o tapete puído do hall a fizeram, por oposição, lembrar-se da casa de Mildred.
Era lá que ela queria morar. Irritada, subiu para o quarto, fechou a porta e atirou-se na cama soluçando. Revoltada, não conseguia conter o pranto, pensando:
- Por que alguns têm tudo e outros nada? O que Mildred tem melhor do que eu? Por que há tantas injustiças no mundo?
Cerrando os punhos, considerou que Mildred tinha razão. Ela não tinha capital para se vestir e freqüentar lugares de luxo. Para
(corrigir - pág 163)
conseguir o que só oáeca co~~at co~s~~o me ma_ P a ~t
um jogo de 'interesses no qual vence o mais iotte.~la tina de 5vforte. Não podia ter escrúpulos com uma sociedade que rejeita os fracos. Não importava qual o caminho,
o importante era conseguir.
Depois, vivendo no luxo, aparentando ser rica, seria aceita sem reservas, ainda mais convivendo com Mildred.
No dia seguinte começaria a traçar novos planos para sua vida.
Émerson acordou sobressaltado. Havia tido um pesadelo. Sentou-se na cama tentando acalmar-se, depois foi
até a janela. Abriu-a e respirou a brisa
fresca da manhã.
O dia estava clareando e ele contemplou os primeiros raios de sol prenunciando um dia claro e sem nuvens.
Sentia a cabeça pesada, uma dorzinha desagradável na fronte e o estômago enjoado. Passou a mão pela testa várias vezes tentando
afastar a energia pesada que o atordoava.
- Preciso descobrir de onde vêm essas energias pesadas.
Lembrou-se do sonho e sentiu um arrepio pelas costas. Estava bem quando adormeceu. Logo depois se viu em um lugar luxuoso,
mas decorado com cores berrantes que lhe
provocaram sensação desagradável. Quis sair de lá, mas ouviu uma música envolvente, sensual, e apareceu uma mulher muito
bonita, que sorriu para ele e
165
começou a dançar à sua volta fazendo arabescos com as mãos, passando-as em volta dele.
Émerson sentiu-se excitado e desejou aquela mulher. Quanto mais ela dançava à sua volta, mais ele ia se sentindo atraído.
Ela encostou o corpo no dele, provocando-o.
Ele estava fascinado. Ela aproximou os lábios carnudos para beijá-lo, então ele abriu os olhos e viu o rosto dela transformar-se
em uma horrível carantonha, cujos
dentes lembravam os de um vampiro. Imediatamente ele a empurrou e acordou suando frio, sentindo ainda as emoções daquele
encontro.
Foi à sala onde costumava meditar, acendeu um incenso, sentou-se no chão, como de costume, e iniciou a meditação.
Estava difícil concentrar-se. Seus pensamentos estavam tumultuados, ele respirava fundo, fazia relaxamento, mas não conseguia
a habitual harmonia. O rosto bonito
da mulher se oferecendo aparecia e ele se sentia inquieto, precisando fazer grande esforço para mandá-la embora.
Gastou mais de duas horas naquele esforço até que conseguiu harmonizar-se. Então evocou seu mestre espiritual. Precisava
de orientação. Sabia que havia alguém querendo
dominá-lo, para vampirizá-lo. Firmou o pensamento e perguntou:
- Quem?
Imediatamente o rosto de Mildred apareceu à sua frente. Atrás dela um homem cujos olhos magnéticos o impressionaram.
No mesmo instante mentalizou Mildred como se ela estivesse na sua frente e disse-lhe com voz firme:
- Você não vai conseguir me dominar. O que é seu volta para você. Comigo só fica o que é meu. Sou livre e tomo posse do
meu espaço.
Sentiu-se aliviado. Elevou seu pensamento e viu-se fora do corpo. À sua frente estava seu mestre espiritual. Curvou-se à
moda oriental e pediu-lhe a bênção.
Foi esse espírito que o protegeu quando de sua iniciação e peregrinação pela India. Magro, moreno, peito nu, alvo turbante
na cabeça, ele ergueu a mão sobre a cabeça
de Émerson por alguns instantes. Depois levantou-o e abraçou-o.
Émerson sentiu-se aliviado olhando seus olhos brilhantes e vivos.
- Mestre, sinto que há alguém querendo me envolver. Havia muito que não experimentava energias tão desagradáveis. Tenho
me esforçado para manter-me limpo de pensamentos
e atitudes, tenho
166
procurado viver no bem maior. Pensei que nunca mais seria afetado por essas energias.
- Agora você sabe que, apesar de seu progresso, o mundo continua sendo muito perigoso. A Terra ainda abriga espíritos muito
primitivos e suas energias pesadas circulam
na sua atmosfera. Enquanto estiver encarnado, estará sujeito a esses ataques. Você vive no bem e irradia pensamentos elevados,
por isso foi bem preparado para o
trabalho que deseja realizar. Distribuir o bem requer equilíbrio e harmonia. Cada um só pode dar o que tem. Essa é uma
encarnação que lhe está sendo muito proveitosa.
- Mas eu senti que há pessoas querendo me controlar para coisas que não quero fazer. O que aconteceu não foi só por causa
das energias negativas das pessoas. Havia
uma intenção de domínio.
- É verdade.
- Mestre, eu vi quem está querendo me envolver.
- Eu sei. Mas tenho certeza de que saberá como lidar com ela. - Sinto-me confortado com sua presença. Sou feliz por ter
sua
amizade.
Ele o fitou com tal doçura que Émerson não conteve as lágrimas. Voltou emocionado para o corpo, deixando que as lágrimas
lhe lavassem o rosto. Estava novamente bem.
Momentos antes, Mildred dormia e sonhava que estava nos braços de Émerson. Ele a abraçava e ela podia ver o desejo em seus
olhos. A sensação era tão real que ela
sentia enorme prazer no corpo. Aproximou seus lábios dos dele querendo entregar-se às sensações, mas naquele momento ele
a empurrou atirando-a longe.
Atordoada, ela o ouviu dizer:
- Você não vai conseguir me dominar. O que é seu volta para você. Comigo só fica o que é meu. Sou livre e tomo posse do
meu espaço.
Ela sentiu uma desagradável sensação e acordou assustada. Olhou em volta tentando localizar-se. Respirou aliviada e pensou:
- Foi um pesadelo!
Entretanto a sensação desagradável continuava. Sentia-se inquieta, angustiada. Levantou-se, foi à copa e tomou um copo
de água.
As cenas do sonho não lhe saíam do pensamento.
"A culpa é de Mirtes. Disse tantas besteiras que acabei sonhando. Não sei por que a levei comigo. Acho que a amizade dela
está me atrapalhando. Afinal, não preciso
dela para nada. Ela, sim, aproximou-se de mim para introduzir-se em nossa roda. Soube que a
167
família dela estava indo a um centro espírita. Talvez isso esteja atrapalhando o trabalho de pai Tomé."
No dia seguinte iria falar com ele. Afinal dera-lhe bom dinheiro havia mais de duas semanas e, até agora, nada.
O dia já havia amanhecido mas ela se deitou novamente para tentar dormir. Odiava levantar-se cedo. Contudo, não conseguiu
mais pegar no sono. Ficou se remexendo
na cama e, irritada, acabou se levantando.
Mirtes passara a semana toda pensando no que Mildred lhe
dissera e havia resolvido seguir seus conselhos. Logo depois do almoço
telefonou para a amiga.
- Ela saiu - informou a empregada. - Sabe a que horas volta? - Ela não disse.
- Diga a ela que Mirtes ligou. Peça-lhe para me ligar quando
chegar.
A criada desligou e Mildred, que estava a seu lado, comentou: - Quando ela ligar, diga sempre que não estou. Arrumou-se
e saiu rumo à casa de pai Tomé. Uma vez lá,
diante dele, Mildred disse:
- Vim para dizer-lhe que precisa fazer alguma coisa mais forte.
Até agora nada mudou. Émerson continua aquele namoro idiota
com Laura e nem olha para mim. Estou começando a pensar que
você não tem tanto poder quanto me disseram.
Ele a olhou firme nos olhos, dizendo:
- As coisas não são como você pensa. Se quer vencer, precisa
ter paciência. Comecei o trabalho. Ele não vai resistir. Você vai do
miná-lo completamente.
Mildred contou-lhe o sonho que tivera e ele meneou a cabeça,
dizendo:
- Ele reagiu. Soube livrar-se. Você não me contou que ele en
tendia de magia. Nesse caso, vou ter de fazer algo mais forte.
- Se ele entende de magia eu não sei. Mas ele tem mania de
meditação e gosta de ensinar as pessoas.
- Isso vai custar mais caro. Vou ter de sacrificar animais e com
prar muito material, sem falar das pessoas que vou ter de contratar
para irem à mata comigo.
- Quanto mais?
- Dez mil reais, para começar.
168
- Isso é demais! Está exagerando.
- Ao contrário: isso é só para começar. Vou ter de trabalhar muito.
- Tem certeza de que vai dar certo?
Ele sorriu com superioridade:
- Claro que vai! Você está lidando com quem sabe das coisas. - Nesse caso, pode fazer.
- Pagamento adiantado.
- Amanhã mesmo trago o cheque.
- Cheque não. Prefiro dinheiro.
- Está bem.
- Arrume uma peça de roupa dele, vai facilitar.
Mildred saiu de lá satisfeita. Dessa vez não podia falhar. Pensou num jeito de conseguir a roupa. Aquela noite mesmo iria
ao instituto a pretexto de inscrever-se
em algum curso. Émerson morava lá. Ela tinha certeza de conseguir o que precisava.

Mirtes desligou o telefone irritada. Onde Mildred teria ido? Por que não a convidara para ir junto?
Alzira havia terminado de arrumar a casa. Estava tomando banho e cantando. Mirtes fechou a porta do quarto com raiva. Como
sua irmã podia cantar, ser alegre, quando
tudo em casa estava ruim?
Estendeu-se na cama, desanimada. Estava sem dinheiro, sem namorado, e a melhor amiga estava se distanciando.
Alzira entrou cantarolando, cabeça enrolada na toalha. Mirtes virou-se para o lado e fingiu que estava dormindo. Alzira
vestiu-se e ligou o secador de cabelos. Mirtes
sentou-se na cama nervosa.
- Desligue essa porcaria! Não vê que estou dormindo? Você não tem respeito por ninguém!
Alzira deu de ombros e respondeu:
- Pare com isso. Você não estava dormindo. Fica estirada nessa cama sem fazer nada em pleno dia, enquanto todos estão trabalhando.
- Isso não é da sua conta. Um dia ainda vou embora e vocês nunca mais vão me ver.
Alzira terminou de secar os cabelos, arrumou-se e sentou-se na cama ao lado da dela, dizendo calma:
- Mirtes, não quero brigar com você. Sinto que está deprimida por causa de nossa situação. Vou inscrever-me em uma agência
de empregos. Você poderia ir comigo. Se
nós duas estivéssemos
169
trabalhando, tudo aqui seria mais fácil. Depois, o trabalho faz bem. Eu não gosto de ficar sem nada para fazer.
- Pois eu não nasci para ser escrava dos outros. Sei cuidar de mim. Ainda vou ter muito dinheiro, você vai ver. Quer dizer
que na empresa de Marcelo você não conseguiu
nada? Eu sabia! Você não tem nível para trabalhar lá!
- Você se engana. Fui muito bem recebida naquele lugar. Fiz teste, passei, ficaram de me chamar na primeira vaga. Só que
está demorando muito. Vou tentar outro lugar
e pegar o que sair primeiro.
- Você não vai conseguir nada.
Alzira meneou a cabeça e saiu. A agência ficava no centro da cidade. Ela tomou um ônibus, desceu na praça da Sé e foi andando
até a rua Barão de Itapetininga.
Apesar dos problemas financeiros da família, Alzira sentia-se particularmente alegre naquela tarde. Fez a entrevista na
agência. Havia trabalhado desde os catorze
anos em uma fábrica de aparelhos elétricos, onde fizera de tudo e acabara no escritório. Foi seu primeiro e único emprego.
Trabalhou lá durante seis anos. Infelizmente
a fábrica faliu. Fazia um ano que ela estava desempregada.
- Aceito qualquer tipo de trabalho - disse ela à entrevistadora. - Estou precisando muito trabalhar. Tenho bastante vontade
de aprender.
- Espere um pouco. Acho que tenho alguma coisa que pode lhe interessar.
Ela se levantou e voltou com uma ficha nas mãos.
- Você trabalhou durante seis anos em uma empresa de aparelhos elétricos. A Mercury está precisando de moças. Acho que você
poderá experimentar. Vou preparar a documentação
para que se apresente lá.
- Posso ir hoje mesmo.
A entrevistadora olhou o relógio e considerou:
- Não sei se vai dar tempo. São quase quatro horas. O
expediente vai até as seis. Não fica muito perto...
- Sei onde é. Se eu sair daqui dentro de meia hora, chegarei lá
a tempo.
Foi com o coração batendo forte que Alzira entrou na fábrica,
entregou a carta de apresentação da agência e ficou na portaria aguar
dando. Um funcionário de Recursos Humanos procurou-a dizendo: - Sinto muito, mas acabamos de contratar a última pessoa.
Notando a decepção dela, continuou:
170
- Nosso quadro na fábrica está completo. A única vaga que temos é no escritório.
- Eu posso trabalhar no escritório.
- Tem experiência?
- Tenho. No meu emprego, comecei na fábrica mas nos últimos meses trabalhei no escritório.
- Sabe datilografia?
- Sei.
- Nesse caso, vamos entrar para conversar.
Alzira acompanhou-o, coração batendo forte. O escritório era bem arrumado e o ambiente agradável. O funcionário conduziu-a
a uma pequena sala, deu-lhe uma folha
de papel escrito e disse:
- Vamos fazer um teste. Sente-se e copie esse texto.
Alzira estava nervosa. Apanhou o papel e sentou-se em frente à máquina. Precisava ficar calma. Lembrou-se de pedir ajuda
espiritual. Imaginou que estava na sala
do centro, onde se sentia tão bem.
Começou a fazer o teste. Rapidamente e sem erros, copiou o texto, depois o funcionário pediu-lhe para redigir uma carta,
o que ela fez muito bem. Quando terminou,
ele a levou para outra sala, designou uma cadeira em frente à mesa e sentou-se. Alzira esperou.
- Meu nome é Antunes. Você foi bem no teste. Preciso de seus dados.
Ela forneceu as informações.
- Você foi aprovada para a vaga. Vamos contratá-la. Volte amanhã para as formalidades.
Alzira sorriu feliz. O salário era modesto, mas, nas circunstâncias em que sua família estava, pareceu-lhe muito satisfatório.
Voltou para casa contente, ansiosa por dar a notícia à mãe. Encontrou-a na cozinha lavando louça.
- Mãe, consegui emprego!
Estela fechou a torneira da pia e exclamou contente:
- Finalmente uma boa notícia! Eu sabia que as coisas iam começar a melhorar! Onde?
- No escritório da Mercury.
- Puxa! Uma empresa grande!
Estela quis saber todos os detalhes, e Alzira contou de bom grado. Mirtes, que aparecera na porta da cozinha, ouviu a narrativa
e comentou:
- Essas empresas são exploradoras. Eu que não me sujeitaria a trabalhar o dia inteiro para ganhar tão pouco.
171
- Pois eu acho que está muito bom - disse Estela fuzilando-a com os olhos. - Se você também ganhasse o mesmo que ela vai
ganhar, nós teríamos pelo menos o que comer
enquanto seu pai não volta a trabalhar.
Mirtes levantou a cabeça com altivez e respondeu:
- Vocês ainda vão me ver com muito dinheiro.
- Como? Pretende assaltar um banco? - ironizou Alzira rindo.
- Com essas idéias você vai se dar mal - tornou Estela. - Você diz isso mas não faz nada para conseguir o que deseja. Não
quer estudar, trabalhar, se preparar. Assim
não conseguirá nem sobreviver.
- Sei o que estou fazendo. Podem caçoar à vontade. Um dia ainda vão me dar razão. Você vai ser empregadinha de escritório
na fábrica de Valdo. Eu talvez seja dona
daquilo tudo!
- Ele foi ao cinema com você uma vez e nunca mais a procurou - rebateu Alzira. - Para conseguir isso é preciso que ele queira
se casar com você.
- Não adianta falar com vocês - disse Mirtes irritada saindo da cozinha.
Estela suspirou triste:
- Essas idéias de Mirtes me preocupam. - Ela pensa em fazer um casamento rico.
- Está iludida. Moço rico casa com moça de sociedade, educa
da. Ela é bonita, está recusando os pretendentes por serem pobres.
Receio que acabe sozinha e sem ninguém.
- Ou faça um casamento sem amor, o que para mim é ainda pior. Mirtes foi para o quarto telefonar para Mildred. Não a en
controu e sentou-se na cama pensativa. Mildred andava se afastan
do. Isso não podia acontecer. Tinha de dar um jeito. Sua amizade era
preciosa.
Ocorreu-lhe que talvez tivesse feito mal de ter falado sobre sua situação financeira. Além de não ajudá-la em nada, isso
pode ter feito com que Mildred a menosprezasse.
Foi depois de haver se queixado dos problemas da família que ela se afastou.
Resolveu reagir. Abriu o armário e procurou sua melhor roupa. Vestiu-se, maquiou-se, olhou-se no espelho e sorriu satisfeita.
Vendo-a, ninguém imaginaria que fosse
tão pobre. Apanhou a bolsa e saiu.
Estava sem dinheiro. Lembrou-se dos duzentos reais que Mildred pagara a pai Tomé pela sua consulta. Se tivesse coragem,
iria pedir de volta. Afinal, a consulta não
se realizara. Mas lembrou-se do malestar que passara e desistiu. Olhou o relógio: eram sete horas.
172
Entrou no bar da esquina e pediu para telefonar. Marcelo atendeu surpreendido. Depois dos cumprimentos, Mirtes tornou com
voz triste:
- Marcelo, desculpe incomodá-lo, mas estou desesperada. Não
tenho a quem recorrer. Você sempre foi meu amigo. Reconheço que
não tenho sido boa com você, mas sei que vai me perdoar.
- Não tenho nada a perdoar, Mirtes. O que está havendo?
- Preciso de ajuda. Mas não vou falar por telefone. Estou em
um bar. Posso passar em sua casa agora? Quero conversar com você. - Claro. Estarei esperando.
- Chegarei em dez minutos. Fique na porta.
Marcelo desligou o telefone, intrigado. Mirtes parecia aflita.
Deveria acreditar? Estaria preparando alguma?
Estava esperando quando ela chegou. Depois dos cumprimen
tos, Mirtes pediu:
- Vamos a um lugar sossegado, para conversar.
- Vou tirar o carro para darmos uma volta.
Ela esperou que ele manobrasse e sentou-se a seu lado. - Vamos procurar um lugar calmo.
Ele deu algumas voltas e por fim parou em uma rua arborizada e tranqüila.
- Então, Mirtes, o que está acontecendo?
Ela começou a soluçar, o que o surpreendeu. Nunca a vira
chorar. Deu-lhe um lenço e esperou que ela se acalmasse.
- Estou desesperada. Meu pai continua desempregado, o di
nheiro acabou... Não temos nem o que comer! - Sinto muito.
- Meu pai sai cedinho, anda o dia inteiro e nada.
- Ele tem capacidade e é um homem de bem.
- Mas você sabe como é: a idade. As empresas não aceitam. Eu e Alzira temos procurado emprego, mas está difícil. Ela vai
amanhã na Mercury ver se arranja alguma
coisa. Já trabalhou, tem alguma experiência, mas eu me sinto inútil. Nunca trabalhei, e por isso ninguém quer me dar emprego.
- De fato, Mirtes, hoje em dia para conseguir emprego é preciso ter experiência. Mas vocês não podem se desesperar. Vou
ver o que posso fazer. Se souber de alguma
vaga, eu aviso.
Ela baixou os olhos para que ele não visse o brilho de raiva e ajuntou com voz chorosa:
- Obrigado. Eu sabia que podia contar com sua ajuda. Mas o
173
que faremos enquanto estivermos desempregados? Minha mãe não agüenta mais, falou até em suicídio.
- Olhe, Mirtes, não se atormente. Vou arranjar-lhe algum dinheiro.
Ela cobriu o rosto com as mãos, dizendo:
- Que vergonha, meu Deus! A que ponto chegamos!
- Não é vergonha nenhuma. Será um empréstimo. Você paga
quando puder, está bem?
Ela o abraçou beijando-lhe a face:
- Obrigada. Pagarei assim que estiver trabalhando. Eu sabia
que você iria me ajudar.
- Vamos até minha casa pegar o dinheiro. - Não quero ir, tenho vergonha. - Você fica no carro.
Eles foram e Mirtes sorriu satisfeita. Pouco depois, ele voltou e
entregou-lhe um envelope, dizendo:
- Aqui está. Tem quinhentos reais. É tudo que posso dispor no
momento.
- Obrigada, Marcelo. Você é mesmo meu amigo. Não sei como agradecer.
- Não precisa. Quer que a leve para casa?
Ele a deixou na porta e partiu, prometendo ajudá-los a encontrar emprego. Assim que o carro desapareceu na curva da rua,
Mirtes caminhou depressa e tomou um táxi.
Lembrou-se de que era quarta-feira, dia de corridas no jóquei-clube. Mildred prometera levá-la. Ela não queria esperar e
pediu ao motorista que a levasse até lá.
Durante o trajeto, retocou a maquiagem e sorriu satisfeita. Mildred tinha razão. Ela não precisaria esperar, poderia conseguir
o dinheiro que quisesse.
Entrou fingindo estar muito à vontade. Notou que alguns homens voltavam-se quando passava e sorriu confiante. Lá era o lugar
onde os milionários iam deixar seu dinheiro.
Sentou-se olhando para os lugares reservados aos associados, como se estivesse esperando alguém. Sentia-se bem no meio
das pessoas elegantes que circulavam à sua
volta. Aquele era o lugar em que ela queria estar.
Seus olhos brilhavam cheios de entusiasmo, o que a tornava mais bonita. Começou o primeiro páreo e ela acompanhou maravilhada.
A noite estava linda e o ambiente
requintado, muito agradável.
174
Um homem moreno e muito elegante sentou-se a seu lado, olhando-a com admiração. Mirtes fingiu que não notou. Pouco depois,
ele disse:
- É a primeira vez que a vejo por aqui. Onde você se escondia? - Desculpe, mas não falo com estranhos. - Eu me apresento.
Meu nome é Humberto de Morais. - Prazer.
Meu nome é Mirtes da Silva Santos. - O prazer é todo meu! Não vi seus acompanhantes. - Ainda não chegaram. Combinamos de
nos encontrar aqui.
Eles são sócios do clube.
- Talvez eu os conheça. Como se chamam?
Ela deu o nome de Mildred e ele considerou:
- O cavalo que chegou em segundo lugar no grande prêmio
era deles. Por sinal um belo animal.
Mirtes sorriu satisfeita. Ele aparentava mais de cinqüenta anos, mas era distinto e agradável.
Continuaram conversando e Mirtes de vez em quando olhava à sua volta, como se estivesse procurando alguém, e voltava a se
sentar. A certa altura comentou:
- Penso que meus amigos não virão. Deve ter acontecido alguma coisa. Acho que vou embora.
-- Por favor, não faça isso. Vamos nos sentar nas poltronas dos sócios. Poderá esperar seus amigos lá. É mais confortável.
Ela hesitou um pouco, depois sorriu e respondeu:
- Está bem, eu vou. Mas confesso que estou constrangida. Eles não podiam ter feito isso comigo.
- De fato, é deselegante deixar uma dama esperando, principalmente se estiver sozinha.
Eles mudaram de lugar e Mirtes comentou:
- Ainda bem que encontrei uma pessoa educada como o senhor. Confesso que é a primeira vez que venho aqui e jamais teria
vindo sozinha se soubesse como é.
- Não se preocupe. Também estou só, podemos fazer companhia um ao outro.
Mirtes sorriu. Humberto estava fascinado e disposto a não a perder de vista. Apostou em todos os páreos, explicando como
funcionavam as apostas e dando algumas pules
a ela para concorrer.
Mirtes adorou. Nunca havia se divertido tanto. Ganhou em um dos páreos e ficou radiante. Aquilo, sim, era vida.
Quando terminaram as corridas, Humberto convidou:
175
- Estou com fome. Quer jantar comigo? Ela hesitou:
- Não sei se devo... Afinal nos conhecemos hoje. Não sei nada sobre você.
- Vamos jantar e eu lhe contarei tudo a meu respeito.
Ela aceitou e ele a levou à boate de um hotel de luxo. O ambiente sofisticado, a música ao vivo e a beleza do lugar encantaram
Mirtes.
Fizeram o pedido, depois ele perguntou: - Você gosta de dançar? - Adoro.
- Confesso que não sou um bom dançarino, mas se quiser arriscar...
O conjunto tocava um blues, e uma cantora de voz agradável enriquecia a música. Mirtes deixou-se conduzir por ele com prazer.
Humberto não era jovem como ela, mas, além de ser elegante, dançava bem. Vinha dele um delicado perfume masculino que a
agradou.
O jantar foi servido, e Mirtes lembrou:
- Você ficou de me falar de sua vida.
- Não há muito o que dizer. Sou um empresário. Estava me
sentindo muito só esta noite. Aí você apareceu e tudo se trans
formou.
- Eu também me sentia só.
- Uma moça como você deve ter muitos admiradores. Mirtes assumiu um ar triste:
- Os moços de hoje são fúteis. Não encontrei ainda o homem
de minha vida.
- Deve ser muito exigente.
- Quero apenas alguém que me ame e eu possa corresponder.
Ainda acredito no amor.
Humberto segurou a mão dela e respondeu:
- Eu também. É o amor que impulsiona o mundo. Sou um
homem desiludido, Mirtes. Tenho sido muito infeliz no amor.
- Não posso acreditar. Um empresário elegante, fino e agradá
vel como você...
- Dediquei-me muito ao trabalho. Mas acabei descobrindo que dinheiro não traz felicidade. Agora estou em busca do amor.
Mirtes olhou-o nos olhos e suspirou. Ele apertou delicadamente a mão dela que detinha entre as suas e continuou:
176
- Você está me fazendo acreditar que nem tudo está perdido para mim. Que um dia ainda encontrarei alguém que me ame e com
quem eu possa ser feliz.
Passava das duas da manhã quando eles saíram da boate. Entraram no carro de luxo e ele disse:
- Onde você mora? Vou levá-la em casa. Ela hesitou e respondeu séria:
- Até agora você falou de sua vida, e eu não disse nada da minha. Acho que terei de dizer-lhe a verdade.
Ele, que havia dado partida no carro, desligou a chave e olhou para Mirtes.
- Você ficou séria de repente. O que tem para me dizer?
- Você me parece um homem sincero, não posso ocultarlhe nada.
- O que há? Fale. Você é casada?
- Não. Você vai me levar em casa. Não sou uma moça rica. Minha família é pobre, meu pai está desempregado. Eu odeio esta
vida de pobre. Meus amigos são ricos, freqüento
lugares de luxo, mas na verdade não tenho nada.
- O que mais tem para me dizer?
- Nada. Esta é a história da minha vida. Nesta noite você me fez muito feliz.
- Nesse caso posso esperar que você goste um pouco de mim.
Mirtes olhou-o com ternura e não respondeu. Ele a abraçou e beijou-a nos lábios. Ela correspondeu e ele a beijou várias
vezes, e cada beijo mostrava-se mais ardente.
A certa altura ela o afastou, dizendo:
- Pare, por favor. Não estou acostumada com esta emoção. - Você me atrai muito. Vamos para um lugar onde possamos ficar
sozinhos e à vontade.
- Não. Não posso fazer isso. É contra meus princípios. Por favor, leve-me para casa.
A custo Humberto concordou. Uma vez na porta da casa dela, ele disse:
- Quero vê-la de novo. Quero seu telefone.
- Não temos telefone em casa - mentiu ela. Não queria que ele ligasse para lá.
- Fique com meu cartão. Vou esperar com impaciência. Ligue-me amanhã.
Ela concordou. Trocaram alguns beijos e ela a custo desprendeu-se dos braços dele. Entrou em casa procurando não fazer ruído.
Sentia-se feliz.
Ao contrário do que imaginara, não fora difícil trocar beijos com Humberto. Era um homem fino e gentil. Sentira prazer em
estar a seu lado.
Deitou-se fazendo planos para o futuro. Seu sonho se tornaria realidade. Naquela noite dera um passo à frente para tornar-se
muito rica.
178
Alzira segurou o envelope com satisfação. Acabava de receber seu primeiro salário. Sentia-se feliz em poder contribuir no
pagamento das despesas da casa.
Seu pai continuava desempregado, mas havia conseguido prestar serviços extras a algumas pequenas empresas, ganhando algum
dinheiro. Assim, as coisas começavam a
melhorar e sua mãe não se preocupava tanto.
Só Mirtes não tinha jeito. Levava vida ociosa, saindo muito, passando os fins de semana fora de casa. Ela dizia que estava
com Mildred, viajando ou hospedando-se
em sua casa. Mas Alzira desconfiava que era mentira. Ela nunca mais as vira juntas, e, depois, Mirtes comprava muita roupa,
perfumes, adereços, sempre dizendo que
eram presentes da amiga.
Alzira fingia que acreditava para não preocupar mais os pais, que se incomodavam muito com a vida que Mirtes levava.
179
Sabia que não adiantava nada aconselhá-la, e muitas vezes, colocava o nome dela no livro de orações do centro espírita,
pedindo a Deus por ela.
Saiu pensativa de sua sala na Mercury. Caminhava pelo corredor, cabeça baixa imersa em seus pensamentos, quando esbarrou
de frente com uma pessoa que vinha em sentido
contrário. O envelope com dinheiro do salário foi atirado longe, e ela ia cair ao chão quando um braço forte a segurou.
- Meu Deus, o dinheiro!
- Calma. Ele não vai fugir.
Então ela viu que esbarrara em Valdo, o dono da empresa. Empalideceu e disse trêmula:
- Desculpe. Foi sem querer.
- Não fique assim. Não foi nada. Venha, sente-se aqui.
Fê-la entrar em uma sala e sentar-se. Ela tremia, sem saber o que dizer. Conseguiu balbuciar:
- Meu dinheiro!
Ele havia apanhado um copo de água e deu-o a ela dizendo:
- Beba.
Ela obedeceu e logo um rapaz entrou, entregando a Valdo o envelope dela e dizendo:
- Alzira deixou cair isto.
Valdo entregou o envelope a ela, que o apanhou com rapidez. Ele não conteve o sorriso e comentou:
- Pelo jeito, esse envelope deve ser muito importante para você!
- É meu primeiro salário aqui. Desculpe o transtorno. Foi mi
nha culpa. Eu estava distraída. Preciso voltar ao trabalho.
- Espere um pouco. Você está pálida. Aceita um café? Alzira aceitou, e suas mãos tremiam ao segurar a xícara.
- Você está muito nervosa. Vamos conversar um pouco. Acho
que conheço você.
- Faz um mês que estou trabalhando neste escritório.
- Não, não é daqui que a conheço. Você não tem uma irmã chamada Mirtes?
- Tenho.
- Já as vi juntas. Sabia que a conhecia. Em que seção está trabalhando?
- Sou datilógrafa.
Valdo estava intrigado. Pela atitude de Alzira, dava para
180
perceber que aquele dinheiro era importante para ela. Sinal de que estava precisando muito. Nesse caso, como Mirtes conseguia
freqüentar lugares da moda, vestindo-se
tão bem? Afinal, ela não trabalhava.
Procurou saber.
- Você poderia ter se machucado, mas só se preocupou com o dinheiro. Posso saber o que vai fazer com ele?
- Dar à minha mãe. Meu pai é contador e trabalhou muitos anos em uma empresa, mas foi despedido por causa da idade. Tem
cinqüenta e cinco anos. Está desempregado
há mais de um ano. Nossas reservas acabaram. Este dinheiro vai nos ajudar muito.
- Seu pai deve ter boa experiência profissional.
- Tem. Ficou meio revoltado, porque, depois de ter trabalhado tantos anos com dedicação, foi despedido por ser considerado
velho. Agora ninguém lhe dá uma oportunidade.
Tem prestado alguns serviços a pequenas empresas, mas ganha muito pouco.
- Ele procura emprego só como contador?
- A princípio sim, mas agora está disposto a aceitar qualquer coisa, desde que saiba fazer e que o permita sustentar a
família.
- Sente-se mais calma?
Alzira levantou-se.
- Sim. Desculpe meu nervosismo. Esbarrei logo no dono da empresa. Tive medo de que me despedisse.
- Não era para tanto. Mas daqui para a frente é melhor olhar por onde anda para que não lhe aconteça coisa pior. Depois
que ela saiu, ele pensou:
"Duas irmãs... Como podiam ser tão diferentes?"
Chamou o chefe do escritório e perguntou:
- Essa moça, Alzira, é boa funcionária?
- Estou muito satisfeito com ela. Não falta, não chega atrasada, não fica pelos cantos conversando, está sempre procurando
o que fazer. Acho que foi ótima contratação.
Está em experiência, mas, se continuar assim, vamos efetivá-la.
Valdo perguntou o salário dela e o endereço de sua casa. Ele valorizava uma boa equipe de trabalho. Pensava que só assim
conseguiria fazer a empresa crescer e tornar-se
qualificada. Esse pensamento sempre dera certo.
Na semana seguinte, Valdo mandou chamar Alzira em sua sala. Ela atendeu prontamente.
- Como vai, Alzira?
- Muito bem, obrigada.
181
- Mandei chamá-la porque gostaria que me desse algumas in
formações sobre seu pai. Ele já arrumou emprego?
Alzira corou de prazer. Estaria Valdo pensando em empregá-lo?
Apressou-se em responder:
- Ainda não. O que deseja saber?
- O nome da empresa em que ele trabalhou e por quanto tem
po ele ficou lá.
Alzira esclareceu e ele continuou:
- Estive pensando em oferecer a ele uma vaga na área de contabilidade. Não como contador, porque já temos um. Acha que ele
aceitaria?
- Seria maravilhoso! Claro que aceitaria.
- Então, peça-lhe para vir falar comigo amanhã às dez. Alzira não se conteve e exclamou:
- O senhor é maravilhoso! Nunca me esquecerei do que está
fazendo!
- Não estou prometendo nada. Vamos apenas conversar. Se combinarmos, ele poderá trabalhar aqui.
- Desculpe meu entusiasmo. Compreendo. É que pensei na alegria dele em encontrar trabalho. Logo em uma empresa como esta!
- Então está combinado. Amanhã eu o espero às dez.
Quando ela se foi, Valdo sorriu contente. O rosto daquela moça era um livro aberto. Dava para ler seus pensamentos. Era
difícil encontrar alguém tão transparente.
E como ficava bonita quando ruborizava!
De repente ele se sentiu de bem com a vida. Era muito gostoso poder dar a um homem a oportunidade de trabalhar para sustentar
sua família.

Naquela tarde, Estela, sentada na cozinha, servia um lanche ao marido. Enquanto colocava o café na xícara, dizia convicta:
- Você não pode desanimar. No centro, ontem, Dona Isaltina me chamou e disse que logo você ia ter uma boa oportunidade.
- Você é muito crédula. Depois de tantas tentativas, não creio em mais nada.
- Pois eu creio. Depois que fui ao centro nossa vida começou a melhorar. Alzira está trabalhando, gosta do emprego. E você
logo vai encontrar trabalho. Quer saber?
Sua descrença está atrapalhando. Por que não vai comigo ao centro?
182
- Você insiste nisso, não é? Pois bem, vamos combinar: se o emprego sair logo, como você diz, eu prometo que vou lá. Estela
sorriu contente:
- Você está prometendo! Eu vou cobrar. - Pode cobrar.
Uma hora depois, Alzira chegou apressada. Estava contente. O pai lia o jornal na sala e ela foi logo dizendo:
- Pai! Tenho uma boa notícia para o senhor! Acho que seu emprego pode sair.
O jornal caiu das mãos dele. Estela, que ouvira da cozinha, apareceu na sala. Os dois ouviram emocionados Alzira contar
a conversa que tivera com Valdo e finalizar:
- Bom, pai, o emprego vai depender da conversa de vocês. Mas o Sr. Valdo parece muito interessado em contratá-lo. Eu disse
que você aceitaria qualquer serviço.
- E aceito mesmo. Eu quero trabalhar.
- Sabe de uma coisa? Você disse que, se o emprego saísse, iria comigo ao centro. Mas eu acho que deveríamos ir esta noite
mesmo para pedir ajuda.
- Está bem. Eu irei com vocês.
As duas se abraçaram contentes. Era lá, naquela simples casa de orações, que elas se sentiam bem e que havia muito queriam
que Antônio usufruísse daquele bem-estar.
Na hora certa, os três estavam na sala de espera. Isaltina viu-os e foi cumprimentá-los. Depois de abraçá-los, disse:
- Estou muito feliz em vê-lo aqui, Sr. Antônio. Não precisa fazer uma consulta. Vou dar-lhe o papel para freqüentar.
Minutos depois, quando Antônio entrou na sala em penumbra e sentou-se na cadeira que lhe indicaram, ele se sentiu emocionado.
As lágrimas ameaçavam cair e ele olhou
em volta envergonhado, tentando contê-las. Sentia-se cansado, amargurado, impotente. As lágrimas desceram pelo seu rosto
e ele pensou que a penumbra era providencial,
assim ninguém o veria chorando.
Pareceu-lhe ouvir as palavras do pai:
- Homem que é homem não chora! Engula o choro!
Mesmo assim, não conseguiu parar de chorar. A música suave, as pessoas silenciosas lembravam que ele fora lá para rezar.
Havia quanto tempo não fazia uma oração?
Tentou recordar-se das que sua mãe lhe ensinara na infância, mas não conseguiu coordenar os pensamentos. Murmurou algumas

183
palavras pedindo ajuda, dizendo que sempre fora honesto, bom profissional e muito trabalhador.
Saíram da sala e Estela esclareceu:
- Agora vamos ao salão. Vai começar a palestra.
O pequeno salão estava lotado, mas os três ainda arranjaram lugar mais atrás. Isaltina apanhou o microfone, postou-se na
frente de todos e começou a falar.
O tema era a valorização do bem. Comentou que a maioria das pessoas tem o hábito de comentar o que está ruim com elas, em
ressaltar o errado, sem perceber as coisas
boas que já possuem. Esse hábito negativo lhes atrai o mal.
Depois de falar por quinze minutos, ela encerrou com a frase:
- Quem valoriza a falta só consegue obter falta. Para você melhorar sua vida é imprescindível valorizar todo bem que você
já possui. Assim, a vida vai mandar-lhe
mais. É assim que tudo funciona. Pensem nisso.
Antônio sentia-se comovido. Achava que Isaltina havia falado exclusivamente para ele. Nos últimos tempos ele só se lamentava
e se preocupava com o que não tinha.
Sentiu que, apesar do que estava lhe acontecendo, ele era um homem feliz. Tinha uma esposa companheira e dedicada, que não
media esforços para levantar seu ânimo.
Duas filhas lindas e saudáveis, uma casa para morar.
Ele possuía mais do que muita gente. O emprego era uma circunstância momentânea que de uma hora para outra poderia ser solucionada.
Mais importantes para ele eram
o amor e o respeito da família.
Pensando assim, sentiu-se bem, como havia muito não sentia. Quando saíram do centro, Estela perguntou:
- Então, Antônio, como se sente?
- Bem. Dona Isaltina estava falando para mim. Tudo quanto ela disse estava acontecendo comigo. Sabe de uma coisa? Estou
pensando...
- O quê?
- Está certo que preciso do emprego, mas eu sei que a qualquer hora ele vai sair. O importante é ter vocês ao meu lado,
me apoiando. Sem vocês eu não saberia fazer
mais nada. O melhor emprego do mundo seria inútil.
As duas abraçaram Antônio emocionadas. Era a primeira vez que ele confessava quanto gostava da família. Com carinho, Alzira
disse:
184
- Pai, estou contente por você se sentir melhor. Tenho certeza de que logo tudo vai dar certo.
- De fato, minha filha. Eu também acho.
Na manhã seguinte, Antônio estava na fábrica na hora marcada. Foi imediatamente conduzido ao escritório, e Valdo atendeu-o
pessoalmente. Ele queria conhecer melhor
o pai de Alzira para avaliar se valia a pena colocá-lo na empresa. Seria muito desagradável se, uma vez contratado, ele
não viesse a corresponder às expectativas.
Valdo gostava de dar oportunidade a quem tivesse boa vontade, porque sabia quanto era importante uma boa parceria com seus
funcionários. Pagava bem, mas exigia comprometimento
e responsabilidade.
Depois dos cumprimentos, Valdo designou a cadeira em frente à sua mesa e pediu:
- Sente-se, por favor. Vamos conversar. Antônio obedeceu. Valdo continuou:
- Alzira me disse que o senhor é contador e possui bastante experiência.
Antônio colocou um envelope sobre a mesa e respondeu:
- É verdade. Trouxe meu currículo para o senhor verificar.
- Depois verei isso. Fale-me a respeito da empresa onde o se
nhor trabalhou.
Antônio começou a descrever suas atividades no emprego em que permaneceu durante tantos anos. Apesar da tristeza de ter
sido despedido por causa da idade depois
de tantos anos de dedicação, não disse uma palavra de queixa. Ao contrário, disse que gostou de trabalhar lá porque era
uma firma idônea, pagava em dia seus funcionários
e tratava-o bem.
Valdo fitou-o sério e comentou:
- Alzira me disse que o senhor foi despedido por causa da idade. Certamente eles contrataram um contador mais jovem por
um salário menor.
- De fato, meus antigos colegas informaram que isso aconteceu mesmo. Mas, apesar disso, reconheço que foi lá que aprendi
muito. O senhor sabe: mesmo com diploma,
nossa experiência só vem com o tempo. Eles me contrataram quando eu ainda estava estudando, deram-me um cargo de confiança
quando me formei e não tinha nenhuma experiência.
- Há quanto tempo está desempregado?
- Para mais de um ano. Infelizmente, muitas empresas pensam
185

que depois dos cinqüenta as pessoas não têm condições de trabalhar. Mas eu ainda sinto que estou muito capaz. Eles estão
enganados.
Valdo gostou do que ouviu. Sabia que Antônio estava passando dificuldades mas mesmo assim teve a dignidade de não culpar
os antigos patrões. Era um homem de bons
sentimentos.
- Eu penso o contrário. O que importa para mim é o conhecimento, a postura profissional e a boa vontade. A idade é só uma
circunstância. Meu pai é mais velho do
que o senhor e ainda trabalha e dirige nossa empresa. Tenho aprendido muito com ele.
Antônio, que entrara lá acanhado, endireitou-se na cadeira. Ele possuía as qualidades citadas. Valdo continuou:
- Conforme disse à sua filha, não temos vaga de contador. Mas posso oferecer-lhe um trabalho nessa área.
- Ficaria muito honrado em vir trabalhar aqui. Estou disposto a aceitar qualquer trabalho. Sendo na área da contabilidade,
poderei prestar melhores serviços.
Valdo conversou sobre o salário e, uma vez combinado, chamou o encarregado e pediu-lhe que cuidasse de tudo.
Antônio estava radiante. Finalmente conseguira trabalho. O salário oferecido era metade do que recebia no antigo emprego,
mas ele achou que estava ótimo. Daria muito
bem para manter a família, como sempre fizera.
Chegou em casa alegre. Estela esperava-o com impaciência. Assim que entrou, ele foi logo dizendo:
- Estou empregado! Consegui!
- Venha, vamos à cozinha. Vou fazer um café e você vai me contar tudo.
Enquanto a água esquentava, os dois sentaram-se e ele disse com entusiasmo:
- Imagine: quem me entrevistou foi o filho do dono da empresa. Um moço fino, educado, que me recebeu muito bem. Você sabe
que ele nem olhou meu currículo? Disse
que valorizava mais as qualidades, a boa vontade. Acho que encontrei a empresa certa. Reparei que todos pareciam trabalhar
com alegria. Um ambiente bom.
- Você vai trabalhar no quê?
- Eles já têm contador, mas vou trabalhar na contabilidade. Terei de passar por um período de experiência, mas eu sei que
eles vão gostar de meu trabalho. Estou
disposto a me esforçar como nunca.
- Eu sei que você é capaz.
- Bem, o salário é menor do que o anterior. É natural, já que
186
não é o mesmo cargo. Mas vai dar muito bem para pagar as despesas. Assim o dinheiro de Alzira pode ficar para ela. Não vai
precisar dar nada em casa.
- Uma moça gosta de se arrumar. Ela vai ficar contente. Mas, antes disso, vamos pagar todas as nossas dívidas. O crédito
é muito importante.
- Está bem.
No dia seguinte, no horário de almoço, Alzira bateu na porta da sala de Valdo.
- Entre.
- Com licença, doutor. Vim agradecer a ajuda que o senhor
nos deu. Meu pai está feliz. Pode ter certeza de que ele vai se esfor
çar ao máximo para retribuir. O senhor não vai se arrepender.
- Seu pai é um homem inteligente. Espero que se dê bem aqui. - Tenho certeza! Ainda mais com um patrão como o senhor.
Ele sorriu e ela corou notando que seu tom
fora entusiasmado
demais. Tentou consertar:
- É que o senhor atendeu meu pai pessoalmente. Ele saiu daqui valorizado. Fazia muito tempo ele não se sentia assim. Minha
mãe mandou agradecer. Deus o abençoe.
Ela deu meia-volta e saiu quase correndo. Ele meneou a cabeça sorrindo e pensou:
"Que menina agradável. Seu rosto parece mesmo um livro aberto. Que diferença da irmã!"
Ainda na noite anterior ele vira Mirtes em companhia de um homem mais velho, jantando em um restaurante de luxo. Estava
claro que ela havia encontrado um jeito de
arranjar dinheiro. Não trabalhava. De onde tiraria o luxo que ostentava? Certamente a família não sabia de nada. Antônio
parecera-lhe um homem correto. Que subterfúgios
ela usava para enganá-los?
Dois dias depois, Estela fez o almoço e adiantou o jantar. Nem Alzira nem Antônio almoçariam em casa. Ele havia começado
a trabalhar e a empresa tinha restaurante
próprio. Isso era bom, porque assim o dinheiro que Alzira ganhara lhes daria tempo de esperar até que Antônio recebesse
o primeiro salário.
O relógio deu meio-dia e Estela subiu ao quarto de Mirtes, que ainda dormia. Abriu as janelas e chamou:
- Acorde, Mirtes. Levante-se.
Ela se revirou na cama resmungando:
187
- Deixe-me dormir.
- Não. Você está levando uma vida muito ruim. Está trocando o dia pela noite. Isso não está certo. Trate de levantar. O
almoço está pronto. Você toma um banho, almoça
e vai procurar um emprego. Não pode continuar levando essa vida sem responsabilidade.
Mirtes sentou-se na cama irritada.
- Já disse que sei cuidar de mim. Não vou me sujeitar a um emprego como o de Alzira, ganhar essa ninharia que não dá para
nada e ficar escrava o dia inteiro, fechada
dentro de um lugar horroroso, com várias pessoas para mandar em mim.
- Que idéia, Mirtes! Um emprego traz dignidade.
- Só se for para gente incapaz, como Alzira.
- Sua irmã é muito considerada no emprego. Arranjou trabalho para seu pai. Ele começou hoje. Foi o próprio filho do dono
da empresa que o contratou.
Mirtes acordou de vez. Abriu os olhos e perguntou:
- Ouvi bem? Papai foi trabalhar na empresa de Valdo?
- Foi. Alzira conversou com ele, contou que seu pai estava desempregado e ele o chamou para uma entrevista e o empregou.
- Fique sabendo que ele não fez isso por causa de Alzira. Ele está interessado em mim. É amigo de Mildred, freqüenta a casa
dela. Vocês não acreditam em mim, mas
eu ainda vou me casar com ele e ser dona daquela empresa.
Estela emudeceu de surpresa. Mirtes continuou:
- Por isso não vou me sujeitar a um empreguinho pobre, como papai e Alzira.
- Vocêestá enchendo sua cabeça de ilusões. Faço votos de que não venha a arrepender-se dessa atitude.
- Agora vou tomar um banho, me arrumar e sair. Preciso ver Mildred e contar a novidade. Ela vai gostar de saber. Torce por
mim.

No final da tarde, enquanto Antônio lia o jornal na sala, Alzira
ajudava a mãe na cozinha. Estela, lembrando-se da conversa com
Mirtes, aproveitou para perguntar:
- É verdade que o Dr. Valdo está interessado em Mirtes? Alzira olhou admirada para a mãe: - Ela disse isso?
- Disse que seu pai conseguiu o emprego por causa dela. Que
o Dr. Valdo freqüenta a casa de Mildred e está gostando dela.
- Bem, pelo que sei, há muito tempo ela foi ao cinema com
188
Valdo. Mas depois disso ele nunca mais a procurou. Tanto que ela havia desprezado Marcelo e acabou correndo atrás dele de
novo. O Dr. Valdo ofereceu o emprego porque
eu pedi.
Alzira subiu para o quarto logo depois do jantar. Sentou-se na cama pensativa e triste. De fato, Valdo lhe perguntara se
ela era irmã de Mirtes. Teria sido por isso
que fora tão gentil com ela e com o pai? Estaria mesmo interessado em sua irmã?
Mirtes era bonita, elegante, todos os homens olhavam em sua direção quando passava, enquanto ela, Alzira, não se achava
atraente. Devia logo ter percebido que a
gentileza dele tinha motivo.
Quanto mais pensava nisso, mais acreditava na possibilidade de Valdo realmente estar gostando de Mirtes. Esse pensamento
a irritava.
A atitude dele não tinha sido de bondade mas de puro interesse. Nesse caso, a opinião que havia formado dele era errada.
Valdo era igual aos outros, sempre pensando
em uma conquista fácil.
Esse pensamento causava-lhe tristeza. Ele era tão bonito! Era uma pena que fosse tão leviano a ponto de valer-se de sua
situação de moço rico e dono de uma empresa
para conquistar o amor de uma mulher.
Dali para a frente, evitaria contato com ele. Não queria servir de trampolim para Mirtes.

Mirtes saiu de casa disposta a conversar com Mildred. Nos últimos tempos, ela andava arredia e não a convidava mais para
sair. Encontravam-se ao acaso, mas, como
Mirtes sempre estava acompanhada, apenas se cumprimentavam.
Sabia que era dia de Mildred ir ao cabeleireiro e foi até lá a pretexto de fazer manicure. O salão estava lotado e ela gostou,
porque assim poderia esperar a amiga
chegar.
Apanhou uma revista e fingiu estar lendo. Viu quando ela entrou. Sabia que ela marcava hora e não ia demorar-se na espera.
Por isso, levantou-se e foi ter com ela.
- Mildred, que coincidência! Como vai? - Bem, e você?
- Eu estou ótima. Tenho de ir a um jantar esta noite e vim fazer as unhas. Puxa, estava com saudade de você. Minha vida
tem estado tão ocupada que não tenho tido
tempo para ligar.
Mildred lançou sobre ela um olhar perscrutador e notou logo que ela estava bem vestida, aparência cuidada. Teria aceitado
seu conselho?
189

- Eu também tenho estado ocupada. Mas você me parece muito bem!
Uma funcionária aproximou-se sorrindo e disse:
- Houve uma doença na família e Carlos está um pouco atrasado.
Pede desculpas, mas vai apressar-se e atendê-la em seguida.
Quer um café, uma água, um refrigerante?
- Não, obrigada. Eu espero, desde que não seja muito. Mirtes sorriu contente. Ambas sentaram-se para esperar.
- Ainda bem que encontrei você, Mirtes, assim o tempo
passará depressa. Não gosto de esperar.
- Desejo contar-lhe as novidades.
- Estou curiosa. Noto seu progresso. Parece que melhorou de
vida. Seu pai arranjou emprego?
- Sim. Tanto meu pai quanto Alzira estão trabalhando. Sabe
onde? Na Mercury.
- Na empresa de Valdo?
- Sim. Isso é muito bom. Acho que finalmente ele mostrou interesse por mim. Empregou meu pai, mesmo com a idade que ele
tem. Você sabe, nenhuma empresa o queria.
Claro que devem ter razão. Mas Valdo fez isso por mim, para me agradar.
Mildred fitou-a admirada. Seria verdade? Sugeriu:
- Nesse caso, você precisa procurá-lo para agradecer.
- Pensei nisso. Foi bom vê-la. Talvez você possa ajudar-me a encontrá-lo. Não posso procurá-lo na empresa. Meu pai saberia,
seria um desastre.
- Pensarei sobre isso. Mas conte-me: eu a vi jantando na semana passada com o Dr. Humberto.
- Você o conhece?
- Ele é dono de um cavalo que corre no jóquei. Está sempre lá.
- De fato. Nós nos conhecemos no jóquei. Ele está apaixonado por mim. Faz tudo para me agradar.
- Eu disse que daria certo. Ele é viúvo e muito rico. Você poderá vir a casar-se com ele.
- Isso não. Ele é muito agradável, fino, educado, mas eu não pretendo passar minha vida toda ao lado dele.
- Não seria ruim. Você sempre disse que só se casaria com um homem rico. Acho que encontrou o que procurava. Casando, você
terá segurança e tudo que desejar. Isso
não a impedirá de ter suas aventuras amorosas.
- Talvez. Humberto é cordato e fácil de manejar.
190
- Só há um problema. - Mildred baixou a voz e aproximou-se mais da amiga: - Ele tem um caso com uma espanhola ciumenta
que é o diabo. Ela faria tudo para impedi-lo
de se casar novamente. Certa vez ele andou saindo com uma artista famosa que vive no Rio de janeiro. Ia lá todos os fins
de semana. Até na imprensa saiu que eles
iam se casar. Mas deu em nada. Ele acabou com tudo. Depois fiquei sabendo que foi a espanhola que deu fim no romance.
- O que será que ela fez?
- Isso eu não sei. Mas de repente ele acabou o namoro, e passava
todas as noites no apartamento que montou para ela. Desde
então, que eu saiba, nunca mais teve um relacionamento firme.
- Você acha que ele ainda sai com ela?
- Tenho certeza. Por isso, se decidir casar com ele, precisa to
mar cuidado. Eu acho que ela foi em algum lugar, fez alguma coisa
para ele desistir da artista e voltar a ficar com ela.
- Você acha que isso funciona? Para você está dando certo? - Ainda não. Mas pai Tomé garante que vai conseguir.
- Eu tenho visto Émerson com Laura nos jornais e revistas.
Continuam noivos.
- Por enquanto. Émerson conhece muitas coisas sobre esses trabalhos. Por isso fica mais difícil. Entretanto, pai Tomé garantiu
que vou conseguir.
- Espero que essa espanhola não faça nada contra mim. Tenho medo dessas coisas. Não quero lidar com nada disso.
Mildred sorriu com ar de superioridade.
- Que bobagem! Eu fiz e estou muito bem. Não me aconteceu nada. Nem vai acontecer.
- Mesmo assim, eu não quero.
- Se ela fizer alguma coisa contra você, vai precisar se defender. - Nesse caso, arranjo outro namorado. Para mim tanto
faz que
seja Humberto ou outro, contanto que possa me dar o que eu quero. - Isso mesmo. Estou avisando para tomar cuidado. Mulher
ciu
menta é o diabo.
As duas riram e continuaram conversando. Apesar de haverem se distanciado durante algum tempo, possuíam muitos pontos em
comum.
191
Marcelo chegou em casa cansado, disposto a tomar um banho, comer e descansar.
Depois do jantar, os pais foram para a sala assistir a televisão, mas ele preferiu ir para o quarto. Apanhou um livro, estendeu-se
na cama e começou a ler.
O telefone tocou. Era Renata. Pelo tom de sua voz, Marcelo notou que ela estava chorando.
- Marcelo, quero conversar com você. Por favor, venha até minha casa.
- Você está chorando! Aconteceu alguma coisa?
- Venha, por favor.
- Está bem. Dentro em pouco estarei aí. Fique calma.
Vestiu-se rapidamente e desceu. Iolanda, vendo-o passar, estranhou:
- Você não disse que estava cansado e que não ia sair? Aconteceu alguma coisa?
- Nada, mãe. Vou, mas volto logo.
193
Ele se foi e a mãe comentou com o marido:
- Essas meninas vivem atrás dele. Elas ligam e ele vai.
- Isso é normal na idade dele. Não sei por que você está se
incomodando.
Ela se calou e acomodou-se no sofá. O marido sempre defendia o filho. Estava habituada.
Quando Marcelo chegou à casa de Renata, ela o esperava no portão. Ele desceu do carro e depois dos cumprimentos perguntou:
- Você quer dar uma volta? Assim poderemos conversar melhor.
Ela aceitou. Entrou no carro e ele deu partida. Andaram alguns quarteirões, até pararem em uma rua tranqüila.
Renata estava pálida, as mãos trêmulas.
- Então, Renata, o que houve?
Ela suspirou, ficou calada por alguns instantes, depois decidiu:
- Tive uma recaída.
- Como assim? Você estava tão bem!
- Estava. Mas hoje descobri que não mudei nada. Sinto-me tão fraca, sem dignidade... Um lixo!
- Fale como aconteceu.
- Bom... Ontem a noite fiquei sabendo por minha prima que Rômulo e Nora haviam brigado e terminado o noivado. Fiquei alegre
e muito descontrolada. Uma louca esperança
brotou em mim e tive vontade de vê-lo. Então, hoje fui ao clube. De fato, pouco depois que cheguei ele apareceu sozinho.
Eu estava com minha prima em uma mesa tomando
guaraná. Fingi que não o vi. Rute estava de frente para Rômulo e disse que ele estava vindo em direção à nossa mesa. Quando
ele chegou, senti as pernas bambas. Ele
nos cumprimentou e disse: "Posso me sentar com vocês?" Você pode imaginar como me senti. Achei que ele estava diferente
dos últimos tempos. Havia perdido aquele
olhar esnobe que me irritava tanto. A banda estava tocando uma música, e ele convidou Rute para dançar. Os dois foram para
a pista e eu fiquei ali, torcendo para
ele dançar comigo. A música acabou, eles voltaram e sentaram-se novamente. Eu estava certa de que ele iria me chamar para
dançar. Imaginei que dançara com Rute apenas
para não mostrar logo seu interesse em reatar comigo. Foi quando Nora entrou no salão ao lado de um rapaz alto, elegante,
bonito, que eu nunca tinha visto. Notei
que Rômulo empalideceu, pensei que fosse desmaiar. Levantou-se e foi ter com eles. Ele começou a brigar com Nora, falando
alto, coisa que eu nunca vi.
194
Logo ele, sempre tão controlado! O rapaz que estava com ela se colocou entre eles e então aconteceu uma briga. Os dois trocaram
socos, e algumas pessoas logo foram
apartar. Nora deu meia-volta e saiu sozinha. Rômulo foi atrás dela. Fiquei arrasada. Foi a primeira vez que o vi perder
o controle. Rute notou meu abatimento e tentou
convencer-me de que precisava esquecer aquele amor, etc., etc., ou seja, tudo aquilo que eu sempre disse a mim mesma. Ficamos
lá algum tempo, até eu me acalmar.
Quando saímos, foi pior. Vimos os dois no jardim trocando beijos apaixonados. Nem nos viram passar. Não sei como cheguei
em casa. Eu realmente não tenho vergonha
na cara. Depois de tudo que ele me fez... Se ele me tivesse feito um menor gesto de carinho, eu o teria perdoado e aceitado
de volta e ainda me daria por feliz.
Por que não posso aceitar que ele ama outra mulher?
As lágrimas desciam pelo seu rosto, e Marcelo, sem saber o que
dizer, abraçou-a, fazendo-a descansar a cabeça em seu peito.
- Chore, Renata. Deixe sair a mágoa que a está atormentando. Quando ela parou de soluçar, Marcelo segurou a mão dela e
levou-a aos lábios dizendo:
- Sei como está se sentindo. Eu já passei por isso várias vezes. Mas hoje posso dizer que estou curado. Creia: essa paixão
que parece não ter fim, esse sentimento
que nos rebaixa e faz sofrer o tempo todo, um dia acaba. Pode ter certeza. Sabe por quê? Por que isso não é amor. Pode
dar o nome que quiser, menos amor. Um dia,
quando menos esperar, saberá que ele desapareceu. Então, essa pessoa que lhe parecia algo inatingível estará reduzida ao
lugar-comum, notará nela defeitos corriqueiros,
não significará mais nada.
- Ah! Se eu pudesse acreditar nisso!
- Aconteceu comigo, acontecerá com você. É fatal. Não se culpe pela recaída. Também é natural. A paixão é um estado de exaltação
provocado pelas atitudes que observamos
naquela pessoa que reprimimos em nós e gostaríamos de expressar.
- Não é possível que seja apenas isso.
- Mas é. Notei, por exemplo, que você gostaria de ser controlada,
certinha, nunca perder a calma, como ele faz. O ciúme o
descontrolou e você se chocou ao perceber que ele é uma pessoa comum. - É. De fato ele parecia outra pessoa.
- A vida colocou você lá para que observando aquela cena compreendesse que ele é uma pessoa que reprime seus sentimentos.
Uma vez provocado, é tão descontrolado
quanto qualquer outro.
195

- Comigo ele nunca fez uma cena daquelas. Reconheço que nunca me amou. Deve estar muito apaixonado por ela.
- É difícil saber. O ciúme não é manifestação de amor. Nesses casos o orgulho ferido fala mais alto. Rômulo, por sua postura,
demonstra ser muito vaidoso. Ser preterido,
para ele, foi insuportável.
- Você está certo.
- Você é uma pessoa dócil, amorosa, sincera, espontânea ao expressar seus sentimentos. Não faz joguinhos tão comuns a certas
mulheres para provocar um interesse
maior. Já Nora é diferente. Esperta, agressiva, dissimulada, calculista, nunca revela seus verdadeiros sentimentos.
Renata olhou-o admirada.
- É verdade. Como é que sem conviver com eles sabe tanto a respeito de suas personalidades?
- Tenho aprendido muito com Émerson. Comecei a freqüentar seus cursos só para conseguir vencer meus pontos fracos. Estava
destruído emocionalmente por causa de Mirtes.
Com o tempo, observando o comportamento das pessoas, fui aprendendo a analisá-las com mais clareza. No trato com os outros,
ficamos apenas no que parece, e isso
favorece a ilusão. E toda ilusão atrai a desilusão.
- É o que está acontecendo comigo. Eu imaginava Rômulo muito diferente do que ele se revelou.
- Contudo, ele sempre foi o mesmo. Você é que criou um modelo do homem ideal e projetou-o sobre ele, sem pensar que ele
poderia ser muito diferente.
- Do jeito que você fala, a culpa é toda minha.
- Não se trata de culpa, mas de ingenuidade, da educação errada que recebemos. A mulher é educada para ser sustentada pelo
homem. Esse estado de dependência a torna
depressiva, porque não foi com essa finalidade que seu espírito foi criado.
- A situação da mulher tem melhorado muito nos últimos tempos. Apesar disso, continuamos nos iludindo.
- Com o passar dos anos vai melhorar muito mais. Criada na dependência, a mulher julga-se fraca, submete-se a situações
desagradáveis, com medo de ficar só. Tenho
observado que muitas mulheres que têm se mostrado corajosas, fortes, firmes em muitas circunstâncias, ao unir-se a um homem
tornam-se indecisas, ansiosas, incapazes
de tomar uma decisão.
- De fato. Minha mãe foi uma delas. Pelo que me contam as tias, ela era decidida, líder no colégio. Hoje é uma mulher pacata,
196
não consegue decidir nada sozinha. Tudo pergunta a meu pai ou a mim, nunca sabe se faz isto ou aquilo. É difícil crer que
ela tenha sido como me disseram.
- Claro que, sendo educada por uma mãe assim, você aprendeu que para ser feliz precisa ter um marido autoritário que decida
tudo. Pensou ter encontrado essas qualidades
em Rômulo. Por isso suportou esse namoro desagradável tanto tempo e sofre porque o perdeu. Você não chora porque ele a deixou
mas porque não realizou seu sonho.
- Custa-me crer no que me diz, mas não posso negar que em alguns pontos tem razão.
- Pense nisso, Renata. Tenho certeza de que encontrará outros pontos verdadeiros no que eu disse.
- Acho que vou freqüentar os cursos do instituto com mais in
teresse e assiduidade. Até então eu não estava muito motivada, mas
depois de hoje sinto que preciso cuidar mais de mim.
- Sábia decisão. Olhar para dentro de você, conhecer-se
melhor vai ajudá-la a vencer essa etapa com rapidez. Estou com sede,
vamos a uma lanchonete tomar alguma coisa?
- Eu gostaria, mas devo estar horrível.
- Está mais linda do que nunca - brincou ele, rindo.
Ele acendeu a lâmpada interna do carro. Ela abriu a bolsa, tirou
o espelho, retocou a maquiagem e perguntou: - Acha que dá para disfarçar?
- Você está tão bem! Eu acho que essa crise já acabou. Vamos embora.

Naquela mesma hora, Mirtes estava no carro de Humberto conversando. As palavras de Mildred deixaram-na intrigada. A idéia
de casar-se com ele não era de todo ruim,
uma vez que ele era fácil de manejar.
Afinal, reconhecia que na vida era difícil ter tudo. Amor e dinheiro nem sempre andam juntos. Não passara por sua cabeça
que ele estivesse tendo um caso com outra.
Humberto estava sempre disponível, levava-a a lugares públicos. Era ela quem fazia tudo para não ser vista ao lado dele.
- Você disse que tinha um assunto urgente para falar comigo, Mirtes. Do que se trata?
- Meu pai. Alguém nos viu juntos e comentou com ele, tecendo comentários desagradáveis a nosso respeito. Claro que eu neguei.
197
Mas ele ficou muito zangado. Disse que era para eu acabar com esses encontros, que eu estava falada, que um homem rico e
mais velho não podia ter boas intenções
comigo. Sem falar de minha mãe, que chorava como se tivesse acontecido uma desgraça.
Humberto abraçou-a dizendo:
- Não fique assim. Você sabe que isso não é verdade. Eu gosto muito de você. Fazia muito tempo que eu não sentia tanta atração
por uma mulher. Você me devolveu a
alegria de viver. Desde que enviuvei, só tive problemas, meus dois filhos não correspondem ao que eu planejara. A seu lado
esqueço tudo isso, sinto-me muito feliz.
- Eu também gosto muito de você. Em casa não me compreendem. Eles me criticam, porque gosto de freqüentar lugares da moda.
Sou jovem, cheia de vida. Recuso-me a
viver como eles.
Humberto acariciou os cabelos dela com carinho:
- Você está certa, meu bem. A mocidade passa depressa. É preciso aproveitar, viver com conforto, com prazer.
- Você me entende! Eu não suportaria ter de deixá-lo.
- Você não vai fazer isso!
- Meu pai disse que se eu continuar com você vai expulsar-me de casa.
- Que horror! Isso não se usa mais!
- Meus pais são antiquados. Sou moça de família, pobre mas
honrada. Aliás, meu pai vive dizendo que a honra é tudo que nós
temos.
- Se ele fizer isso, eu a protegerei. Eu a levarei para um apartamento e poderemos ficar juntos o tempo todo.
Mirtes começou a chorar. Ele beijou-lhe os cabelos com carinho.
- Não chore, meu bem. Eu já disse que cuidarei de você.
- Não posso fazer isso, desonrar minha família dessa forma. Por esse motivo, penso que vim para nos despedirmos. Este é
nosso último encontro.
Ele a apertou de encontro ao peito, beijando seus lábios com paixão.
- Não posso aceitar isso. Você é minha. Não a deixarei.
- Eu também não quero deixá-lo, mas não tenho outro jeito. - Vamos para meu apartamento, lá conversaremos melhor. Mirtes
procurou encobrir a satisfação. Era isso
mesmo que ela
queria. Pretendia usar toda a sua sedução para forçá-lo ao casamen
to. A tal espanhola precisava ser derrotada.
Uma vez no apartamento, Mirtes fingia tristeza e Humberto
198
procurava agradá-la. Mostrou-se apaixonada como ele nunca vira, embriagando-o de prazer. Ele ficou fascinado.
Ela queria ir embora e ele pedia-lhe que ficasse. Por fim, ele acabou levando-a para casa.
Ao despedirem-se, ela disse:
- Lembrarei para sempre esta noite maravilhosa. Espero que nunca me esqueça.
- Você fala como se estivesse se despedindo.
- E estou. Apesar de tudo, amo minha família. Não posso dar este desgosto a meu pai. Não vou tornar a vê-lo, Humberto.
Antes que ele reagisse, Mirtes apanhou a chave e entrou em casa. Estava contente. Se tudo saísse como previra, chegaria
ao casamento.
O primeiro impulso de Humberto foi tocar a campainha, mas conteve-se. Era madrugada. Não podia fazer aquilo e complicar
ainda mais a situação.
Voltou para o carro e foi embora. Entrou em casa nervoso, irritado. Passou pelo quarto dos filhos e constatou que, como
sempre, não haviam chegado. Um estava com
vinte e oito anos; o outro, com trinta. Gostaria que eles se casassem, formassem família. Mas eles iam de aventura em aventura
e nem pensavam nisso.
Foi para o quarto. Estendido na cama, Humberto pensava em Mirtes. Os momentos vividos naquela noite faziam-no estremecer
de prazer. Como seria bom poder esquecer
todos os problemas e viver com ela!
Estava cansado de Mercedes. O ciúme dela sufocava-o. Depois, estava sempre mal-humorada, reclamava de tudo. Queria que ele
chegasse ao casamento, mas isso não estava
em suas cogitações.
Nunca lhe prometera nada. Dava-lhe uma vida muito confortável, satisfazia-lhe alguns caprichos. Ela vivia rodeada de belas
roupas, de jóias que ele lhe dava nas
datas importantes. O apartamento estava em nome dela. Mas ela desejava muito mais. Considerava-se uma segunda esposa e
sonhava viver na mansão da família, ocupando
o lugar da falecida.
Ele não a apresentava aos amigos nem a levava aos lugares que freqüentava. Às vezes viajavam, mas quando estavam em São
Paulo nunca saíam juntos. Nos últimos tempos
ele havia espaçado as visitas. Isso a deixava furiosa, inconformada.
Humberto remexeu-se na cama inquieto. Precisava dar um jeito em Mercedes. Depois de seu relacionamento com Mirtes, não
199
suportava mais estar com ela. Para ver-se livre dela, teria de lhe oferecer alguma coisa valiosa.
Já com Mirtes ele sentia prazer de estar diante dos amigos. Ela era retraída, mas ele notava o ar de admiração dos outros
quando passava com ela. Sentia-se valorizado.
Ela pensava em deixá-lo. Não podia permitir isso. Compreendia o problema que Mirtes estava enfrentando com a família. Era
moça direita. Apesar de ser pobre, freqüentava
a casa de gente importante.
De repente ele sentou-se na cama. Mirtes era moça para casamento. Eles poderiam se casar e ficar juntos para sempre. Não
queria morar com os filhos. Compraria uma
bela casa só para os dois, e viveriam felizes.
Humberto postou-se diante do espelho e considerou:
"Apesar dos meus cinqüenta e cinco anos, estou bem conservado. Além do mais, estou cansado desta vida de solidão."
Para ele, Mercedes nunca preencheu o vazio que ficou com a viuvez. Já Mirtes era diferente. Era jovem, divertida, alegre,

não cobrava nada. Seria a companheira ideal.
Se a pedisse em casamento, ela aceitaria? Falaria com ela no dia seguinte.
Preparou-se para dormir. Deitou-se, porém o sono não vinha. Ora ficava imaginando como seria sua vida com Mirtes, o que
fariam, onde e como viveriam; ora pensava
em como se livrar de Mercedes, o que não seria nada fácil. Uma coisa era certa: não poderia começar uma vida nova ao lado
da esposa mantendo aquele relacionamento.
Na tarde seguinte, telefonou para Mirtes dizendo que precisava vê-la à noite. Ela recusou o convite, mas ele insistiu dizendo
que havia encontrado a solução para
eles.
Mirtes ficou radiante. Finalmente iria conseguir o que queria. Preparou-se cuidadosamente e saiu dizendo à mãe que Mildred
a convidara para um aniversario.
Foi com tristeza que Estela a viu sair. Ela era muito diferente de Alzira. Não parava em casa, e ninguém sabia por onde
andava. Antônio muitas vezes observara isso
e conversava com ela, que sempre tinha uma desculpa pronta.
Uma vez no carro com Humberto, Mirtes ouviu-o dizer ansioso:
- Preciso ter uma conversa muito séria com você. Vamos ao meu apartamento, onde poderemos conversar à vontade.
Mirtes concordou. Era lá que haviam estado na noite anterior. Sentaram-se lado a lado no sofá e ele começou:
- Esta noite não pude dormir pensando no que você me disse.
200
- Eu também não dormi nada - mentiu ela.
- Eu a trouxe aqui porque o assunto é importante. Toda a nossa
vida depende do que combinarmos agora. - Você me assusta!
- Responda com sinceridade, você me ama mesmo? Não está
se iludindo porque posso lhe dar tudo que deseja?
Mirtes olhou-o nos olhos e respondeu:
- Você acha que, se eu não o amasse, estaria saindo com você,
contrariando minha família?
Ele a abraçou emocionado.
- Eu também a amo. Você entrou em meu pensamento e não consigo sequer pensar na possibilidade de perdê-la. Sou muito mais
velho do que você, tenho idade para ser
seu pai. Mas aceitaria se casar comigo?
- Casar?! Você está me pedindo em casamento?
- Estou, Mirtes. Desde ontem que não penso em outra coisa. Você quer?
- Quero.
Ele a beijou nos lábios com paixão. Depois disse sério:
- Antes preciso fazer uma confissão. Espero que compreenda. - Fale.
- Eu amava muito minha esposa. Quando ela morreu, fiquei perdido. Ela deixou um vazio que nunca mais consegui preencher.

A solidão me atormentava. Então conheci
uma mulher com a qual tenho me relacionado. Sabe como é, um homem não vive só.
Mirtes retirou a mão que ele segurava, dizendo:
- Então existe outra!
- Não existe ninguém. Ela tem me ajudado a suportar meu vazio. Ontem tive certeza de que você conseguiu fazer-me esquecer
meu amor da juventude. Quero ficar com
você.
- Eu o amo e jamais concordarei em dividir seu amor com outra.
- Isso nunca acontecerá. Estou sendo sincero. Não precisava contar-lhe nada. Mas prometo que amanhã mesmo vou procurar essa
mulher e acabar nosso relacionamento
definitivamente. Aliás, desde que conheci você não tenho ido vê-la.
- Ela vai aceitar?
- Nunca lhe prometi nada. Dei-lhe um apartamento, jóias, carro. Pretendo dar-lhe uma boa importância para que possa viver
com conforto pelo resto da vida.
201
- Só nos casaremos quando esse caso estiver resolvido.
- Claro. Gostaria de formalizar o pedido com seu pai. Assim poderemos preparar tudo para o casamento.
- E seus filhos, vão concordar?
- Terão de aceitar. Pretendo comprar uma bela casa só para nós dois. Eles continuarão morando na mansão da família. Não
quero levá-la para morar naquela casa que
guarda tantas lembranças de minha primeira esposa. Desejo fazer tudo para que sejamos muito felizes.
- Tenho certeza de que seremos.
- Amanhã mesmo falarei com seu pai e marcaremos a data.
Casaremos o mais breve possível.
Mirtes hesitou e baixou a cabeça pensativa. - O que foi? Está arrependida?
- Não. Casar com você é meu maior sonho. Mas acontece
que... Você sabe... Somos pobres... Um casamento traz despesas. - Não se preocupe com isso. Tudo correrá por minha conta.

Se
você quiser, seu pai não precisará mais trabalhar.
- Nada disso. Ele nunca aceitaria. Como eu disse, é um
homem de honra.
- Fale com ele. Avise-o que amanhã à noite irei fazer o pedido. - Amanhã não. Dê-me um pouco mais de tempo. - Depois de
amanhã, então.
- Está bem, depois de amanhã.
Ele a abraçou com paixão, beijando-a muitas vezes, depois a
levou para o quarto. Humberto sentia-se o mais feliz dos homens. Mirtes voltou para casa radiante. Finalmente conseguira o
que desejava. Deixaria aquela vida de miséria e seria feliz.
Antegozava o prazer de contar à família. O que Mildred
diria? Ela insinuara que só se prostituindo conseguiria ter dinheiro.
Pois com o casamento estava provando que não só era capaz de tor
nar-se rica como de freqüentar a melhor sociedade e ser respeitada.
Era tudo que queria.
No dia seguinte, acordou na hora do almoço e foi à cozinha. Ven
do-a, Estela considerou:
- Não vai tomar café agora. Já vou servir o almoço. - O pai só voltará no fim da tarde, não é? - É. Por quê?
- Preciso falar com ele. Assunto sério.
Estela parou de colocar a comida na mesa e olhou-a desconfiada.
202
- Se você estiver com algum problema, fale comigo. Não quero que perturbe seu pai.
- Não vou perturbar ninguém. Tenho ótimas notícias. Vou me casar!
Estela quase deixou cair o prato que segurava. - Casar?! Como? Com quem?
- Vocês não o conhecem. É um homem fino, rico e muito respeitado.
Estela deixou-se cair em uma cadeira.
- Explique melhor essa história...
- Bem, o nome dele é Humberto. Nós nos conhecemos no jóquei-clube. Ele tem um cavalo de corrida. A família dele é muito
respeitada em sociedade. Mildred o conhece
bem.
- Mirtes, tenho certeza de que não ama esse moço, que vai casar-se por interesse. Não faça isso, minha filha.
Mirtes sorriu e comentou:
- Eu sabia que ia dizer isso! Não diria que Humberto é o amor da minha vida. Aliás, não acredito nessa história de amor.

Humberto é um homem fino, de classe, educado
e me ama muito. Não sabe o que fazer para me agradar. Eu o aprecio e sinto-me feliz ao lado dele. Estou decidida a casar
com ele. Ninguém me fará mudar de idéia.
Estela suspirou resignada.
- Está certo. Nesse caso, desejo que seja feliz. Ele sabe da nossa situação financeira?
- Claro. Queria até que papai largasse o emprego, e ele susten
taria toda a família. Mas eu recusei. Sei que papai não aceitaria.
- Claro que não. Nem lhe fale uma coisa dessas.
- Humberto virá aqui amanhã à noite para pedir minha mão
e marcar a data. Vamos nos casar o mais breve possível. Ele vai pa
gar todas as despesas. Papai não precisa preocupar-se com nada.
- Ele não vai gostar. Vai querer que você espere até que ele
possa fazer a parte que cabe ao pai da noiva.
- Teríamos de aguardar muito tempo. Humberto não quer
esperar. Está muito apaixonado.
No fim da tarde, quando Antônio e Alzira chegaram do trabalho, Mirtes não estava. Havia ido a casa de Mildred contar a novidade.

Estela colocou-os a par do assunto,
e Antônio não se conteve:
- Desde quando ela namora esse moço? Por que nunca nos disse nada?
203
- Não sei. Ela veio com essa novidade na hora do almoço. Estava alegre. Disse que ele é muito rico e respeitado, que ela
vai freqüentar a alta sociedade.
- Isso é tudo que Mirtes sempre desejou. Espero que ela seja feliz - disse Alzira.
- Ela saía e nunca dizia aonde ia. Vai ver que já estava namorando. Eu deveria tê-la apertado para contar o que estava fazendo.
- Pelo jeito, nada de mau - considerou Estela. - Eles vão se casar.
- Ainda bem. O futuro de Mirtes sempre me preocupou. Amanhã vamos conhecer nosso futuro genro.
- Conhecer e aprovar. Esse pedido vai ser formal, porque ela está decidida a casar-se com ele com ou sem nossa aprovação.

Disse que o namorado está muito apaixonado
e quer se casar o mais rápido possível.
- Esta história não está me cheirando bem...
- Qual nada, pai! Ela vai casar-se, ter dinheiro, como sempre quis.
- E, tem razão. Minha responsabilidade vai até o casamento. - E casamento, meu velho, é como loteria: ninguém sabe o que
vai dar. Agora vocês dois vão se lavar, que vou servir o jantar.
Eles riram e pouco depois se sentaram à mesa para comer. Mas
o assunto, como não podia deixar de ser, foi o casamento de Mirtes.
204
umberto entrou no apartamento de Mercedes e encontrou-a na sala folheando uma revista. Vendo-o, ela se levantou dizendo:
- Até que enfim lembrou-se de que estou viva!
- Como vai, Mercedes?
- Como uma mulher solitária. Por que não me avisou que viria? Não providenciei nada para jantar.
- Não quero jantar. Vim aqui para conversar.
Ela o olhou desconfiada.
- Conversar?
- Sim. Sente-se.
Ele a puxou para sentar-se a seu lado no sofá e continuou:
- Gostaria que soubesse quanto tenho apreciado sua dedicação nestes anos em que me tem feito companhia. Você me ajudou a
vencer os anos mais difíceis de minha vida
e a superar a ausência de Emília. Sou muito grato por isso.
205
- Grato? Pensei que me amasse como eu o amo!
- Eu gosto muito de você. Aprecio suas qualidades, sua
honestidade e seu desprendimento. Você tem sido uma boa companheira. - Aonde deseja chegar? Por que está me dizendo tudo isso?

- Sempre fui muito sincero com você. Nunca
lhe prometi nada,
mas, apesar disso, você sabe que eu nunca a deixaria em uma situa
ção difícil.
Mercedes empalideceu, seu rosto crispou-se dolorosamente. - O que está acontecendo? Fale logo.
- Daqui para a frente, desejo que sejamos apenas bons amigos.
Nosso relacionamento amoroso acabou.
Ela cobriu o rosto com as mãos e rompeu em soluços:
- Você quer dizer que não me ama mais? Vai ver que se apai
xonou por outra. Bem que desconfiei. Ultimamente você esfriou
comigo, não tem me procurado. Sabe há quanto tempo não
fazemos amor?
- Por isso mesmo estou aqui. Não sinto mais vontade de fazer amor com você. Mas quero manter nossa amizade.
Ela soluçou por algum tempo. Quando se acalmou, ele a abraçou dizendo:
- Você é uma mulher bonita, cheia de qualidades. Vou dar-lhe uma quantia para que nada lhe falte pelo resto da vida.
- O que vou fazer sem seu amor? Todos estes anos tenho vivido para você. Diga-me: quem é a outra?
- Não se trata disso. Acontece que não desejo enganá-la. O que sinto por você transformou-se apenas em uma boa amizade.

Não quero que se iluda pensando em um futuro
a meu lado que nunca virá. Você, como eu disse, é uma mulher bonita, moça, e pode encontrar alguém que a ame como merece.
Eu não sou esse alguém.
Mercedes tentou dissimular o desespero. Sabia que Humberto detestava cenas. Era preciso acalmar-se, estudar a situação,

depois decidir o que fazer.
Respirou fundo e olhou-o nos olhos, dizendo triste:
- Pensei que fosse para toda a vida. Mas, se você quer assim, tenho de aceitar. Espero que me dê um tempo para me acostumar
com a idéia.
- Você não entendeu. A partir de hoje, não precisa esperar-me mais. Amanhã mesmo colocarei em sua conta dinheiro suficiente
para que continue mantendo o mesmo padrão
de vida a que está acostumada. Não quero que nada lhe falte.
206
- Quer dizer que é definitivo?
- É. Tomei esta decisão depois de pensar muito, analisar meus sentimentos, e sei que desta vez acabou.
Mercedes abraçou-o e aproximou seu rosto do dele tentando beijá-lo. Humberto afastou-a delicadamente e ela reclamou:
- Vai acabar assim, sem um beijo de despedida?
- Vai. Não quero que você alimente nenhuma ilusão a nosso respeito.
Ela se recostou no sofá e fechou os olhos, tentando controlar a raiva.
- Seria interessante você fazer uma viagem, Mercedes. Há muitas excursões interessantes e divertidas. Como uma viagem de
navio, por exemplo, onde todos os dias há
uma festa.
Ela olhou-o tentando engolir a revolta. Controlando o tom de voz, respondeu:
- É. Talvez faça isso. Talvez apareça alguém, um novo amor. Não custa tentar.
Ele sorriu satisfeito. Ela parecia estar aceitando a situação com facilidade. Tirou o molho de chaves do bolso e colocou-o
sobre a mesinha.
- Já? Isso quer dizer que não pretende nem voltar aqui. Pensei que viesse outro dia para arrumar suas coisas.
- Não se preocupe com isso. São apenas algumas peças de roupas e alguns objetos de uso pessoal. Se não quiser ficar com
eles, dê para alguém que precise.
- Há alguns objetos de arte que você comprou em leilões.
- Tudo que há aqui é seu. Não quero nada. Só desejo que seja muito feliz.
Mercedes contraiu o rosto. Sentiu que as lágrimas estavam para cair. Tentou controlar-se, mas ainda assim elas desceram
pelo seu rosto.
Ele a abraçou com carinho.
- Você vai me esquecer, Mercedes. Quando tudo passar, refletirá e verá que foi melhor assim. Em um relacionamento, o amor
precisa ser recíproco. Do contrário, não
vale a pena e causa sofrimento. Agora, preciso ir. Adeus, cuide-se, seja muito feliz. Se precisar de alguma coisa, telefone.

Sabe que pode contar comigo.
Beijou-a levemente na face e saiu. Mercedes deixou-se cair no sofá em crise. Bem que desconfiara. Por que não pusera um
detetive atrás dele? Ela não era um objeto
que depois de usado é jogado
207
fora. Humberto detestava ficar só; com certeza havia arranjado outra.
Levantou-se e começou a andar de um lado para outro na sala. Tanta ingratidão era demais! Se ele pensou que ia livrar-se
dela com facilidade, estava muito enganado.
Mas, antes de tudo, precisava acalmar-se, dar um tempo para aclarar as idéias. Nervosa como estava, não conseguiria raciocinar
com clareza. Lembrou-se da ocasião
em que ele pretendia casar-se com outra. Ela conseguira reverter a situação. Agora precisava fazer o mesmo. Mas, para obter
sucesso, teria de se informar bem.
Decidiu tomar um banho de imersão para relaxar e pensar melhor no assunto.

Humberto deixou o apartamento aliviado. Ainda bem que Mercedes não fizera nenhuma cena e parecera aceitar a separação. Pensou
em Mirtes, e seu coração bateu mais
forte. Estava apaixonado. Com ela, sim, seria uma união para toda a vida.
Ele havia cumprido todas as suas obrigações familiares. Fora bom marido. Na viuvez, cuidara dos filhos com dedicação. Sua
vida fora sempre voltada à felicidade dos
outros. Trabalho e família. Estava na hora de cuidar de si.
Mirtes era jovem e cheia de vida. Notou como seus olhos brilhavam quando estavam em lugares requintados. Ele também gostava
disso e podia proporcionar-lhe tudo que
desejasse.
Depois do casamento, trabalharia menos e se dedicaria ao lazer. Queria que Mirtes se sentisse feliz.
Na noite seguinte, conforme havia combinado, tocou a campainha da casa de Mirtes. Durante o dia havia mandado flores para
a noiva e também para a futura sogra.
Mirtes abriu a porta e conduziu-o à sala onde a família reunida esperava. Depois das apresentações, enquanto Estela e as
filhas deixaram a sala a pretexto de fazer
um café, Humberto fez o pedido. Falou de sua viuvez, de sua situação financeira e do amor que sentia por Mirtes. E ficou
esperando a resposta.
Antônio observava-o pensativo. Mirtes não lhe dissera que o noivo tinha idade para ser pai dela. Contudo, pareceu-lhe pessoa
de bem. Falava de forma respeitosa,
expressava-se bem. Via-se que era um homem experiente e sociável.
- Seu pedido surpreendeu-me. Acha que se conhecem o suficiente para chegar ao casamento?
208
- Sim. Eu e Mirtes conversamos muito sobre o assunto. Eu precisava ter certeza de que ela gosta de mim o suficiente para
viver a meu lado pelo resto da vida. Senti
que ela me quer bem. Farei tudo para torná-la feliz.
- Nesse caso, tenho prazer de aceitar seu pedido. Seja bemvindo à nossa família.
O pai chamou a esposa e as filhas e anunciou o noivado. Depois dos abraços, Humberto colocou o anel de brilhantes no dedo
da noiva. Estela foi à cozinha e trouxe
uma bandeja com champanha. Mirtes havia comprado tudo e fazia questão daquele brinde. Exibia orgulhosamente o caro anel,
cujo brilho a fascinava. Estava feliz, realizada.
Dali para a frente sua vida seria maravilhosa! Finalmente teria tudo com que sempre sonhara.
Depois do brinde, a pedido de Humberto, marcaram a data do matrimônio para dali a dois meses. Ele queria menos tempo, mas

Mirtes disse que havia muitos preparativos.
Ela desejava uma festa maravilhosa. Embora ele preferisse algo mais discreto, concordou. Era a primeira vez que Mirtes se
casava, e ela deveria ter tudo a que tinha
direito.
Ela o acompanhou até o carro, onde combinaram algumas providências que tomariam no dia seguinte para começar os preparativos.
Quando ela entrou novamente em casa, o pai chamou-a para uma conversa. Sentaram-se no sofá enquanto Alzira e Estela discretamente
foram para a cozinha.
- Há quanto tempo vocês se conhecem? - Há alguns meses, papai.
- Casamento é coisa séria. Não acha que deveriam esperar mais algum tempo para se conhecerem melhor?
- Não. Humberto é um homem de bem, respeitado na alta sociedade. Você precisa ver! Quando entramos em algum lugar, todos
apressam-se em cumprimenta-lo. Freqüenta
os melhores lugares, e todos fazem tudo para agradá-lo.
- Deu para perceber que é um homem de bem. Mas tem a minha idade, poderia ser seu pai.
- O que tem isso? Ele me ama muito e seremos felizes.
- Mas e você? Gosta dele? Não estará seduzida pela posição social que ele ocupa?
- Eu gosto dele. Depois, eu sempre disse que só me casaria com um homem rico.
- Precisa considerar que ao passo que você é jovem e está na
209
plenitude de seus sonhos e desejos, ele, ao contrário, já teve família, tem filhos adultos e talvez prefira levar uma vida

mais pacata. Conheço você e sua disposição
para festas e divertimentos. Acha que ele agüentará?
Mirtes riu bem-humorada. Era com isso que ela contava depois do casamento para poder divertir-se longe da presença dele.
- Os tempos mudaram, pai. Humberto é um homem moderno. Freqüenta festas, diverte-se, tem muitos amigos. É bom que ele tenha
filhos, assim não irá me incomodar querendo
que eu os tenha. Não tenho vocação para cuidar de crianças. Seremos muito felizes, você vai ver.
- Faço votos de que isso aconteça.
Mais tarde, a sós com Estela no quarto, Antônio confidenciou: - Ela está mesmo determinada. Lamento que não deseje ter fi
lhos. Eu gostaria muito de ter netos.
- Eu também. Mas talvez ela tenha razão quanto a isso. Mirtes
nunca teve paciência com crianças.
- É uma pena. Apesar de Humberto me parecer uma boa
pessoa, esse casamento não é o que eu gostaria para ela.
- Mas é o que ela escolheu. Só nos resta aceitar e desejar que
sejam felizes.
Uma vez no quarto, enquanto Alzira ia e vinha preparando-se
para dormir, Mirtes deitou-se na cama ainda vestida e a cada pouco
estendia a mão direita contemplando o anel embevecida.
Alzira deitou-se e pediu:
- Apague a luz, Mirtes. Amanhã preciso acordar cedo para
trabalhar.
- Pois eu posso dormir até a hora que quiser. Se bem que amanhã vou sair com Humberto para ver uma mansão que ele quer comprar
para nós. Terei de escolher tudo.
Ele só vai fazer o que eu quiser.
- Espero que saiba o que está fazendo.
- Eu não disse que conseguiria? Você que é boba, sujeitando
se a um empreguinho pobre e sem futuro.
- Eu nunca me sujeitaria a um casamento por interesse. - Diz isso porque está com inveja de mim. - Apague essa luz. Vamos

dormir. Mirtes levantou-se, olhou em volta
e disse contente:
- Dentro de dois meses estarei livre desta pobreza. Você ficará
sozinha neste quarto. Faça bom proveito.
210
Rindo, ela apagou a luz e foi lavar-se no banheiro. Quando voltou, Alzira já estava dormindo. Deitou-se mas o sono não veio
logo. Não se cansava de pensar no que
iria fazer com tanto dinheiro, que coisas compraria, como seria sua vida dali para a frente.
A partir daquele dia Mirtes viu-se envolvida em um turbilhão de atividades. Humberto comprou uma mansão, e, enquanto ele
se empenhava com o decorador para terminar
de mobiliá-la dentro do prazo, Mirtes comprava um belíssimo enxoval.
Mildred, que nos últimos tempos afastara-se dela, tornou-se sua amiga íntima. Mirtes pedira-lhe que a ajudasse a organizar
tudo. Queria que Humberto se orgulhasse
dela. Não lhe bastava ser respeitada; queria ser admirada, ter classe, ser citada pelas revistas de moda como uma mulher
elegante. Mildred tinha berço e traquejo
social. Conhecia todo mundo.

No dia seguinte ao anúncio do noivado, Humberto reunira os dois filhos e comunicara-lhes seu iminente casamento. A notícia
caiu sobre eles como uma bomba. O alívio
que sentiram quando souberam que não era com Mercedes desapareceu ao saber que seria com uma jovem de vinte e cinco anos.
Mas Humberto não lhes deu chance de opinar. Relatou como um fato consumado, ao que o mais velho, Renato, considerou:
- Espero que tenha o bom senso de casar-se com separação de bens.
Os olhos de Humberto mostravam um brilho indefinível quando disse:
- Não se preocupem. Vocês não serão prejudicados. Depois de casado irei embora com minha esposa. Vocês continuarão nesta
casa. No sábado ela virá jantar aqui para
conhecê-los. Saibam que estou me casando por amor. Quero que a tratem com respeito e atenção. Até agora tenho me dedicado
à família e aos negócios. Chegou a hora
de pensar em mim. Desejo ser feliz os anos que me restam.
- Nem precisa dizer isso. Somos pessoas bem-educadas - respondeu Mauro.
- Você tem todo o direito de fazer de sua vida o que quiser. Só espero que tenha escolhido a pessoa certa - disse Renato.
- Escolhi, sim. É uma mulher linda, cheia de vida, alegre, bem-humorada. Sei que me fará muito feliz.
- Se ela for tudo isso mesmo, então terá nosso respeito. Mas, se não for...
211


Humberto olhou-o sério:
- Não vou admitir que vocês se metam em nossa vida. Por isso quero morar sozinho com ela.

Um mês depois, Marcelo passou na casa de Renata para buscá-la. Haviam combinado irem juntos a um novo curso no instituto.

Assim que entrou no carro, ela o olhou
séria e hesitou. Ele notou e perguntou:
- O que foi? Aconteceu alguma coisa?
- Tenho uma notícia de Mirtes, mas não sei como você vai receber.
- Sobre o namoro dela com o Dr. Humberto de Morais? Já os vi juntos algumas vezes e não senti nada.
- É que eles vão se casar no mês que vem. Recebemos o convite hoje.
Marcelo estremeceu e Renata continuou:
- Eu sabia que você não ia gostar.
- Você está enganada. Eu me surpreendi porque não esperava
que chegassem ao casamento.
- Vai ser uma grande festa. - Do jeito que ela queria. - Não está triste?
- Não. De certa forma sinto-me aliviado. Com esse casamen
to, ela tira um peso do meu coração. - Por quê?
- Quando namorávamos, eu não consegui controlar-me e fizemos amor. Como fui o primeiro, senti-me culpado, cheguei a pedi-la
em casamento. Mas ela recusou dizendo
que só se casaria com um homem rico que pudesse dar-lhe jóias e luxo. Ela é ambiciosa. Vendo-a com o Dr. Humberto, temia
que se tornasse sua amante e descambasse.
Mas ela soube agir e levou-o ao casamento. Fico contente. Tirou-me um grande peso.
- Se é assim, a notícia foi boa.
- Ótima. Mas o Dr. Humberto me parece ser uma boa pessoa. Ele não merecia isso.
Renata sorriu contente. Ao receber o convite de casamento, havia sentido o peito apertado. Não desejava que Marcelo sofresse.

Ele dizia ter esquecido Mirtes, mas
seria verdade? Não estaria se iludindo para não sofrer?
- O que foi, Renata? Você ficou pensativa...
212
- Você recebeu bem a notícia. Não sei se eu encararia dessa forma o convite de casamento de Rômulo.
- O quê? Você ainda pensa nele? Precisamos dar um jeito nisso. Tenho notado que tem estado mais alegre, caprichado na maquiagem,

comprado roupas novas. Está cada
dia mais bonita, cheia de vida. São sintomas de cura da paixão.
- Estou me sentindo muito melhor. Chego a esquecer que ele existe. Mas tenho medo da recaída.
- Ainda não esqueceu o que aconteceu no clube. Mas saiba que aquele acontecimento foi o começo da cura. - Pode ser.
Chegaram ao instituto meia hora antes de começar a aula. Estavam no saguão conversando com Émerson e Laura quando Mildred
se aproximou com um sorriso:
- Que bom vê-los! Foi ótimo encontrá-lo, Émerson. Quero justificar minhas faltas no curso.
- Pensei que tivesse desistido. Não veio nas três últimas aulas.
- Não desisti, não. É que tenho andado muito ocupada com os preparativos do casamento de Mirtes. Sabem como é: ela se tornou
muito minha amiga. Vai casar-se com
o Dr. Humberto de Morais. Vocês já devem ter recebido os convites.
- Eu já recebi - disse Laura.
Mildred deu uma olhada intencional para Marcelo e continuou: - Ela me pediu que a ajudasse com os preparativos do enxoval
e da festa. Vocês não ignoram que a família dela não é do nosso meio
e o Dr. Humberto é um homem muito importante.
- Mirtes escolheu a pessoa certa para ajudá-la nos preparativos
- considerou Laura sorrindo. - Ninguém conhece os costumes so
ciais como você. Tenho certeza de que será uma festa linda! - Espero que compareçam! - disse ela satisfeita. - Iremos com
certeza - disse Émerson. Mildred olhou
para Marcelo e perguntou: - E você, irá?
- Por enquanto não recebi nenhum convite.
Renata segurou o braço de Marcelo e disse com carinho:
- Nossa família foi convidada, você irá comigo. Só irei se
você for.
Marcelo abraçou-a e beijou-a levemente no rosto. - Estar com você é tudo que quero.
Mildred mordeu os lábios e tentou esconder a irritação.
213
- Mirtes fez questão de convidar você. Se ainda não recebeu o convite, deve estar para chegar. Vocês foram muito próximos.

Ela preza muito sua amizade.
- Quanto ao curso - interrompeu Émerson -, talvez seja melhor você não continuá-lo. Já perdeu três aulas e estará ocupada
até o casamento. Se desejar mesmo fazê-lo,
posso transferi-la, sem nenhuma despesa, para outro que começará dentro de um mês.
- Eu gostaria de continuar neste.
- Eu prefiro que não. Você seria prejudicada. Essas aulas são essenciais para acompanhar as que faltam. Por isso, vou riscar
seu nome da lista e posteriormente lhe
direi a data do próximo.
- Mas hoje eu tenho tempo e vou ficar.
- Não será aconselhável.
- Está me mandando embora?
- Não. Estou lhe dizendo que você não terá elementos para acompanhar nossa exposição porque perdeu exercícios e considerações
muito importantes para o aproveitamento
da matéria. Por isso, é melhor ir embora e reiniciar o curso quando dispuser de tempo para não faltar.
Émerson falou sério e em um tom firme. Mildred, apesar de irritada, resolveu acatar. Afinal, ela estaria mesmo muito ocupada
até o casamento. Ela fora lá apenas
para dar a notícia a Marcelo e ver como ele reagiria.
- Está bem - respondeu. - Farei como diz.
Ela circulou mais um pouco, cumprimentou algumas pessoas e depois foi embora. Émerson respirou aliviado. Nos últimos tempos

a presença de Mildred o incomodava.
Avesso a pensamentos negativos, ele procurara reagir tentando vê-la com bons olhos, mas quando ela se aproximava ele chegava
a sentir aversão.
- Vou entrar, Laura. Quero me preparar para a aula.
Ele foi para a sala e Marcelo considerou:
- Gostei de como você reagiu à atitude de Mildred.
- Nem podia ser diferente. Saltava aos olhos que ela queria fa
lar do casamento e ver como você reagia.
- É bem próprio dela - considerou Laura sorrindo. - Vocês con
tinuaram com aquela brincadeira de fingir um namoro ou estão namorando
mesmo?
- Está vendo, Marcelo? Você representou tão bem que até Laura acreditou.
214
- Eu não precisei representar, gosto mesmo de você. Ao que Renata respondeu:
- Você é meu melhor amigo!
Laura afastou-se para cumprimentar uma amiga, e Marcelo olhou para Renata com seriedade.
- Eu a admiro. Sua sensibilidade e delicadeza de sentimentos me emocionam. Nunca encontrei ninguém como você.
Havia tanta sinceridade no tom de sua voz que Renata se emocionou:
- Eu também nunca encontrei um homem sensível e carinhoso como você.
A campainha soou avisando que a aula ia começar, e eles foram para o salão.
Sentaram-se lado a lado, e, embora prestando atenção às palavras de Émerson, ambos sentiam que havia uma cumplicidade agradável
entre eles. Sentiam grande prazer
de estarem juntos.

Mildred deixou o instituto irritada. Marcelo continuava namorando Renata, o que contrariava seus planos de conquistá-lo

para provocar ciúme em Émerson.
Irritava-a também notar o carinho que havia entre Émerson e Laura. O noivado continuava. Tinha pago o serviço de pai Tomé
havia muito tempo e nada de resultado.
Precisava procurá-lo. Se ele não conseguisse o que lhe prometera, iria pagar caro: ela o denunciaria à polícia. Ele não
podia enganá-la daquele jeito e ficar impune.
Claro que não apareceria diretamente. Faria uma denúncia anônima. Mas, com as informações que daria, estava certa de que
ele seria punido.
Esperaria até depois do casamento de Mirtes, que, sem a ajuda dele e sem nenhuma despesa, havia conseguido o que tanto queria.
A alegria de Mirtes impressionava-a. Em seus olhos havia um brilho de felicidade que a tornava mais bela. Humberto estava
mais apaixonado a cada dia. Gastava sem
reservas, atendendo a todos os caprichos da noiva, que escolhia tudo do melhor.
Os pais de Mirtes, vendo-a tão feliz, sentiram-se aliviados. Antônio não queria, mas Estela o convenceu a aceitar que Mirtes
comprasse roupas para que todos da família
comparecessem ao casamento devidamente vestidos.
Mirtes fez questão de que a mãe e a irmã no dia do casamento
215
fossem atendidas no mesmo salão de beleza em que ela iria. Queria que toda a sua família aparecesse elegante.
No jantar a que Mirtes havia ido na casa de Humberto, notou a surpresa dos filhos dele ao verem-na. Olharam-na com altivez,

como se dissessem que sabiam que ela
estava se casando por interesse.
Sentiu que os dois rapazes não viam com bons olhos o casamento do pai, muito menos com uma jovem pobre. Receou que eles
tentassem causar empecilhos. Por isso, apesar
de contrariada com a atitude formal e educada porém antagônica deles, adotou uma postura delicada, atenciosa e reservada.
Após o jantar, quando a levou para casa, Humberto tentou justificar a postura dos filhos.
- Espero que não leve a sério a atitude deles.
- Tive a impressão de que eles não desejam que você se case de novo.
- É verdade. Eles eram bem agarrados à mãe. Mudaram muito depois que ela morreu. Às vezes penso que eles teriam preferido
que fosse eu que morresse. Não me perdoam
porque ela se foi e eu fiquei.
- Não diga isso. Eles estavam preocupados com sua felicidade. Afinal não me conhecem. Mas tenho certeza de que me aceitarão
com o tempo. Farei tudo para que sejamos
uma família feliz.
Humberto beijou a mão dela com carinho.
- Não sei o que seria de mim sem você. Não vejo a hora de tê-la para sempre a meu lado.
- Eu também não vejo a hora de tê-lo comigo. Vou fazer você muito feliz.
Mais tarde, sozinha em casa, Mirtes pensava que precisava tomar cuidado até o casamento. Sentia que os dois rapazes eram
espertos. O mais velho, principalmente,
pareceu-lhe muito observador. Precisava mostrar-se ardente, ingênua e confiante. Era esse o tipo de mulher que encantava
Humberto.
Agora que experimentava o luxo e as facilidades que o dinheiro proporciona, estava disposta a tudo para levar seu plano
adiante. Era preciso apenas um pouco mais
de paciência. Faltavam só três semanas para o casamento.
A maravilhosa casa que haviam comprado estava sendo decorada. A lua-de-mel seria na Europa, onde permaneceriam durante um
mês, tempo suficiente para que a casa estivesse
pronta quando voltassem.
O telefone tocou, interrompendo seus devaneios. Era Mildred.
216
- Aonde você foi esta noite, que não apareceu? - indagou Mirtes.
- Fui ao instituto. Eu queria dar a notícia de seu casamento a Marcelo.
- E? E o que foi que ele disse?
- Bem, ele estava com Renata. Você sabia que eles continuam namorando?
- Isso não me importa em nada. Se um dia eu quiser que ele volte para mim, é só estalar os dedos.
- Eu não teria tanta certeza, minha querida. Ele nem ligou quando mencionei seu casamento.
- Pois eu tenho certeza, sim. Mas agora não posso pensar em nada. Tenho de ter cuidado. Os filhos de Humberto podem dar
problemas.
- Qual nada! Humberto está louco por você. Mas fiquei irritada com Émerson. Ele continua com Laura.
- Bem que eu disse que aquele pai-de-santo não era de nada. - Ele garantiu, e vou dar mais um tempo a ele. Se não der certo,
ele vai se arrepender de ter me enganado. - O que vai fazer?
- Na hora você verá. Mas amanhã precisamos sair antes do meio-dia. Temos muitas coisas para ver.
- Está bem. Passarei em sua casa.
Depois de desligar, Mirtes acomodou-se para dormir. Estava cansada porém contente. Finalmente as coisas estavam dando certo
em sua vida.
217

Mercedes atirou a revista sobre o sofá com raiva. Então era isso! Humberto ia casar-se novamente. Há quanto tempo a estaria
traindo?
Nervosa, apanhou a revista outra vez e olhou a foto na qual Humberto aparecia ao lado de uma jovem linda e muito bem vestida.

Na legenda, a notícia do futuro casamento,
da recepção e da viagem que fariam à Europa em lua-de-mel.
- Esse casamento não pode se consumar! Não vou permitir. Eles me pagam!
Sentiu a cabeça tonta e sentou-se no sofá. Precisava fazer alguma coisa, agir rápido, mas o quê? Faltavam quinze dias para
o casamento. Era um tempo curto.
Da outra vez ela pedira ajuda a um paide-santo. O trabalho foi caro, mas valeu a pena. Um mês depois Humberto rompia o noivado
porque surpreendera a noiva com outro.
Ele nunca soube que o outro era um ator de teatro contratado para conquistar a noiva e em seguida deixá-la.
219
Humberto voltou para os braços de Mercedes mais apaixonado do que antes.
Embora tenham usado o ator, Mercedes acreditava que o trabalho do pai-de-santo não só contribuíra para que a noiva se apaixonasse
pelo amante mas também fizera Humberto
sentir-se atraído por ela como nos primeiros tempos.
Dias atrás, assim que Humberto decidiu abandoná-la, Mercedes foi novamente procurar pai Joaquim e pedir-lhe ajuda.
Ele lhe dissera que Humberto rompera com ela porque estava noivo de outra, que só ia casar com ele por interesse.
- Faça com que ele perceba isso e acabe com esse noivado.
Joaquim pensou um pouco e respondeu:
- Está difícil. Ele está muito apaixonado. Não vê nada. Só pensa em casar e ficar ao lado dela para sempre.
Mercedes sentiu sua raiva aumentar.
- Faça alguma coisa! Afinal, você é ou não um pai-de-santo?
- Eu sou, mas nem tudo dá para fazer. Em todo caso, vou tentar. Mas preciso de tempo.
Vendo a notícia na revista, Mercedes pensou em voltar a procurar pai Joaquim, mas desistiu. Além de não saber se daria certo,

ia demorar muito para surtir efeito.
Ela precisava de alguma coisa mais forte, talvez um detetive profissional. Porém não conhecia nenhum e não queria arriscar-se
perguntando aos conhecidos.
Decidiu comprar o jornal e procurar na seção de anúncios. Certa vez havia lido alguns. Imediatamente saiu e comprou o jornal.

Voltou para casa e iniciou a pesquisa.
Encontrou três que ofereciam informações sigilosas principalmente no campo afetivo. Satisfeita, ligou marcando hora. Queria
ser atendida imediatamente, mas só conseguiu
para a tarde seguinte.
Marcou com os três em diferentes horários. Queria escolher o melhor.
Os dois primeiros prontificaram-se a ajudá-la levantando informações sobre o casal, seguindo seus passos. Mas, quando ela
disse que queria que eles fizessem alguma
coisa para impedir o casamento, ambos se recusaram, alegando que não faziam esse tipo de trabalho.
Mercedes procurou o terceiro e disse logo:
- Vim procurá-lo porque preciso de seus serviços. Estou sendo traída pelo meu companheiro de tantos anos, que me deixou
para casar-se com uma moça que tem idade
para ser sua filha. Preciso de alguém que me ajude a impedir esse casamento.
220
- Nesse caso veio ao lugar certo! Tenho muita experiência nisso
e tenho certeza de que a madame vai ficar satisfeita.
Mercedes sorriu e sentou-se. Contou-lhe tudo e finalizou:
- Temos pouco tempo. O casamento é em menos de duas
semanas. O que você sugere?
- A madame sabe que um trabalho desses não é barato. Não trabalho sozinho. Tenho dois auxiliares.
- Estou disposta a pagar.
Combinaram um valor preliminar, porque ele alegava que precisava tomar conhecimento do caso mais de perto. Só depois de
conhecer os hábitos do casal e os horários
é que poderia sugerir as providências.
- Mas isso vai demorar. Não há tempo.
- Madame, para um trabalho bem-feito e sigiloso, temos de ter
as preliminares. Não se preocupe com o tempo. - Mas não quero que se casem.
- Não se preocupe. Faremos tudo a seu tempo. Fique tranqüila.
Mercedes deu as informações que ele lhe pediu e saiu de lá satisfeita. O detetive Sobral parecera-lhe muito eficiente. Agora,
era esperar para ver o que ele faria.
Uma vez em casa, olhando o retrato de Humberto sobre a mesinha, disse convicta:
- Você quer se livrar de mim, mas não vai ser fácil como pensa. Desta vez vai me pagar caro.
Uma semana depois, Mercedes foi procurada em sua casa pelo detetive Sobral.
- Até que enfim você apareceu! - reclamou ela. - Cansei de ligar para seu escritório e nada, ninguém atendia. Cheguei a
pensar que tinha sumido.
- A madame pensou mal. Sou um profissional honesto. Estive todos estes dias trabalhando para a senhora.
- E então?
- Bem, eu e meus assistentes ficamos de campana todo este tempo, dois com ele e um com ela. Eis o relatório de todos os
passos que eles deram. A senhora pode ler.
Mercedes pegou as folhas de papel, passou os olhos e sentiu sua raiva aumentar:
- Não me interessa saber aonde foram nem o que fizeram, se passaram a noite juntos ou não. O que quero é saber o que vai
fazer para impedir esse casamento.
221

1
- Bem, pensamos em armar uma cilada para a noiva. Na hora do casamento, aparecer na igreja um rapaz com um filho pequeno
e dizer que foi um caso dela.
- Isso não vai pegar. Toda a família dela vai estar lá, e sabem que é mentira.
- Bem, podemos então seqüestrar a noiva. Levá-la para bem longe.
- Isso é loucura. Humberto porá toda apolícia atrás de vocês e vamos todos parar na cadeia. Depois, ele ficará com ela do
mesmo jeito.
Sobral coçou o queixo e tornou:
- Do jeito que ele está enrabichado com essa moça, só vai se
separar se alguém der cabo dela.
Mercedes estremeceu. Pensou um pouco e respondeu:
- Não seria má idéia. Assim, ele nunca mais poderia voltar
para ela.
- Mas nós não fazemos esse tipo de trabalho. Somos registrados e a polícia está sempre de olho no que fazemos. Mas eu sei
de alguém que poderia fazer isso...
- É? Quem?
- Um conhecido meu. Ele mora no Mato Grosso. Vem, faz o trabalho e volta. Nunca ninguém conseguiu pegá-lo. Mas é caro.
- Dinheiro não importa. Eu pago. Mas é preciso que seja seguro. Não posso me envolver.
- Dinho é muito bom. A madame vai ficar satisfeita. Mas eu preciso de tempo. Onde ele mora não há telefone. Vou ter de viajar
até lá.
- Mas o casamento é na semana que vem.
- Que diferença faz? Não vai dar tempo antes, mas ele faz depois.
- Eles vão viajar para a Europa em lua-de-mel e ficar lá um mês.
- ótimo, assim Dinho terá tempo de planejar bem, conhecer o lugar e fazer tudo. O que a madame quer é tirar essa moça do
caminho. Isso ele faz, eu garanto.
- Então está bem. Vamos ver quanto dinheiro precisa para ir até lá. Quero também saber quanto ele vai cobrar.
- Assim que eu conversar com ele, ligo para cá. Pode ficar sossegada que tudo sairá como deseja.
Depois que ele se foi, Mercedes sentou-se pensativa. Não estaria indo longe demais? Queria Humberto de volta, mas não havia
222
pensado em chegar ao crime. Sentiu medo. Passou a mão pela testa e pensou:
- Talvez fosse melhor ligar para o detetive e voltar atrás.
Mas ela não viu que uma sombra escura se aproximou dela, dizendo ao seu ouvido:
- Eles não pensaram em você quando traíram. Eles estão felizes, enquanto você está sozinha, desprezada, jogada fora como
um objeto que não serve mais.
Uma onda de rancor a acometeu:
- Eles não pensaram em mim, em meu sofrimento. Eu, que sempre fui sincera e o amei muito... Agora, que se cansou, me joga
fora como se eu fosse um lixo. Não. Ele
precisa sofrer a dor que estou sofrendo, perder o amor dela assim como perdi o meu. Aconteça o que acontecer, não vou voltar
atrás. Eles vão pagar!
Sentia o peito oprimido, uma sensação desagradável. Concluiu que estava sofrendo e a culpa era só de Humberto.

No dia marcado, o casamento se realizou com toda a pompa que Mirtes havia planejado. A igreja estava cheia de pessoas da
alta sociedade paulistana. Ela, lindíssima
em seu vestido de seda pura; o noivo, elegante e carinhoso.
Depois realizou-se maravilhosa recepção na mansão de família de Humberto, no salão de festas luxuosamente decorado, tendo
ao fundo os músicos que durante o jantar
tocaram música suave.
Tudo estava muito bonito: a iluminação agradável, as flores, as mesas ao redor deixando no centro espaço para dançar.
Na mesa principal, os noivos sentaram-se ao centro; a família da noiva ficou ao lado do noivo, e os filhos dele ao lado
da noiva. Mirtes olhava ao redor satisfeita.
Tudo estava sendo maravilhoso.
Marcelo havia recebido convite e compareceu com a família de Renata, sentando-se com eles. O baile começou animado e Marcelo
convidou Renata para dançar.
Volteando pelo salão, ela perguntou:
- E então, como se sente?
Ele riu satisfeito.
- Muito bem com você em meus braços.
- Não brinque, Marcelo, estou falando sério. Estamos sós e você não precisa fingir.
- Não estou fingindo. É verdade. O casamento de Mirtes não me incomodou nem um pouco. Continuo me sentindo aliviado por
223
não ter de me preocupar mais com ela. E você? Como se sentiu encontrando Rômulo com Nora?
- A princípio constrangida. Depois passou. Acho que finalmente estou sarando.
- Claro que está. Vai chegar a hora que você vai questionar se um dia realmente o amou.
- Talvez.
Ele a enlaçou mais forte e entregaram-se ao prazer da dança com entusiasmo.
Antônio e Estela, sentados ao lado do noivo, sentiam-se pouco à vontade. Embora Humberto os tratasse com elegância e atenção,
eles estavam constrangidos. Aquele
não era o meio que estavam habituados a freqüentar.
- Assim que terminar este jantar, vamos embora - disse Antônio baixinho a Estela.
- Precisamos ter paciência. Não fica bem sairmos logo. Teremos de ficar pelo menos enquanto os noivos estiverem aqui.
- Não conhecemos ninguém. Não estou à vontade.
- Eu também não. Mas precisamos esperar.
Alzira, sentada ao lado dos pais, olhava tudo admirada. Mirtes finalmente conseguira o que desejava. Apesar de apreciar
a beleza do ambiente e a elegância das pessoas,
não sentia inveja da irmã.
Ao contrário dos pais, sentia-se à vontade em seu vestido azulnoite, cujo corte elegante realçava seu corpo bem-feito. Estava
portando belas jóias - que Mirtes fizera
questão de ressaltar que as estava apenas emprestando - e tinha consciência de que a maquiagem havia realçado a beleza de
seus olhos amendoados e escuros.
Havia notado que por onde passava os rapazes voltavam-se para vê-la. Alzira sentia-se viva e seus olhos brilhavam de prazer.
A orquestra começou a tocar uma canção americana em voga.
- Vamos dançar?
Ela levantou os olhos e deu com Valdo, muito elegante, à sua frente.
- Vamos - respondeu ela, recuperando-se da surpresa.
Foram para o meio do salão. Depois de alguns instantes, ele considerou:
- Você dança muito bem. É leve como uma pluma.
- Faz tempo que não danço. Mas confesso que adoro dançar.
Você também dança gostoso. Ele riu bem-humorado:
224
- Como é isso de dançar gostoso?
- Fácil, agradável, prazeroso.
- Você está sendo uma surpresa muito agradável. - Por quê?
- Nessas festas de casamento há toda uma espécie de cerimonial obrigatório, cansativo, difícil de agüentar.
- Veio dançar comigo para cumprir o cerimonial?
- Nada disso. Geralmente eu escapo. Com você estou dançando por prazer. Desde que a vi na igreja, desejei conversar com
você. Preciso saber umas coisas.
Alzira estremeceu. Muitas vezes, depois que Mirtes marcou casamento, ela havia se perguntado como Valdo estaria se sentindo,
caso estivesse interessado nela. Se
a chamou à dança para falar de Mirtes, ela o deixaria sozinho no meio do salão.
Franziu o cenho e tornou:
- Se quer saber de Mirtes, pergunte a ela. Eu não tenho nada a dizer.
- Espere aí. Não estou entendendo... Você ficou zangada, e eu ainda não disse nada...
- É que não gosto quando os rapazes vêm falar comigo para especular sobre a vida de Mirtes.
- Mas não é sobre Mirtes que eu quero falar. Alzira enrubesceu e perdeu o jeito.
- Desculpe. Eu pensei... Acho que não devia ter dito aquilo. Ele a puxou mais para perto, dizendo-lhe ao ouvido: - Você
fica linda quando ruboriza.
Alzira respirou fundo, tentando controlar a emoção. Mirtes sempre dizia que Valdo era um conquistador contumaz. Não podia
iludir-se com suas palavras. Depois de
alguns instantes ela perguntou:
- Sobre o que que você quer falar?
- Vamos dar uma volta no jardim para conversar.
Valdo segurou a mão dela e conduziu-a para fora. Andaram um
pouco por entre os canteiros e sentaram-se em um banco. - Agora você vai me dizer por que tem me evitado. - Eu?
- Você mudou comigo. Quando nos conhecemos era espontânea, transparente, natural. Depois passou a me evitar. Quando eu passo,
finge que não me vê. Nunca mais me
procurou nem sorriu para mim.
- É engano seu. Continuo a mesma.
225

- Não minta. Deve ter acontecido alguma coisa que a fez mudar. O que foi?
Ela pensou um pouco, depois decidiu: - Preciso perguntar uma coisa. - Fale.
- Você deu emprego a meu pai e a mim a pedido de Mirtes?
- Não. Eu gostei de você e a empreguei porque senti que estava com vontade de trabalhar. Com seu pai foi a mesma coisa.
Não costumo empregar pessoas porque os outros
me pedem. Há de convir que não posso gerenciar uma empresa tornando-a cabide de empregos dos amigos. Depois, nunca fui amigo
de sua irmã. Nós nos conhecemos, temos
nos visto porque ela é amiga de Mildred e freqüenta os mesmos lugares que eu. É só.
- Eu não devia ter acreditado nela!
O rosto de Valdo estava sério quando disse:
- Sou muito exigente com o padrão de funcionários de nossa empresa. Depois, não iludo ninguém. Se eu achasse que vocês não
tinham capacidade, teria sido sincero
e os aconselharia a procurar outra coisa.
- Essa idéia me atormentou muito. Fiquei pensando que estava
lá de favor. Não é um pensamento agradável.
- E por causa disso me ignorou. Agora vou me vingar de você. - Vai me despedir?
- Não. Vou dançar a noite inteira com você. Não permitirei que
dance com ninguém. Esse será seu castigo.
- Você tem o dom de me fazer ruborizar. Odeio quando isso acon
tece, mas não posso evitar - respondeu ela colocando ambas as mãos
no rosto.
Ele puxou os braços dela pelos pulsos e num ímpeto beijou-a nos lábios. O coração de Alzira disparou. Sentiu que ele a abraçava
e a beijava longamente outra vez.
- Estava com vontade de fazer isso desde que a vi na igreja - disse ele.
- Não devia ter feito isso.
- Eu senti que você também gostou.
- Sim, gostei. Mas isso não me faz esquecer a distância que nos
separa.
- Pois eu não vejo assim e quero que esqueça esse preconceito. Você me atrai, desperta em mim um sentimento novo, que eu
nunca havia sentido antes.
226
Alzira sentiu um brando calor envolver seu corpo. Era provável que ele estivesse mentindo, que dissesse aquilo a todas as
mulheres, mas era tão prazeroso ouvi-lo,
estar ali com ele trocando beijos, que ela resolveu entregar-se ao prazer daquele momento. No dia seguinte pensaria no assunto,
mas aquela noite era mágica, tudo
convidava ao amor e à alegria de viver. Ela queria aproveitar.
Deixou-se ficar ali, aninhada nos braços dele, saboreando aquele instante de felicidade.
Em outro ponto do salão, Mirtes estava exultante. Humberto sorria vendo sua felicidade e atendia a todos os seus caprichos.
Dançaram bastante. Ela havia bebido um
pouco e sentiu calor.
- Vamos dar uma volta lá fora. Estou com calor.
- Está corada mesmo. Vamos tomar ar.
Os dois saíram andando pelos amplos jardins que rodeavam a mansão.
- Vamos nos sentar aqui, descansar um pouco. Está tão agradável! - pediu Humberto.
Sentaram-se e ele a abraçou contente olhando o céu estrelado.
- Amanhã estaremos em Paris. Quero mostrar-lhe todos os encantos da Cidade- Luz. Nossa vida será sempre assim, cheia de beleza
e alegria.
- Você tem sido muito bom comigo. Estou me sentindo como uma rainha.
- Você é minha rainha.
Conversaram durante alguns minutos, depois Mirtes levantou-se: - Vamos voltar ao salão. Não quero perder nada desta festa
maravilhosa.
- Vamos. Precisamos continuar agradecendo à presença dos convidados.
De braço dado, foram dando a volta pelo jardim rumo ao salão. Foi então que Mirtes viu Alzira nos braços de Valdo. Seu rosto
endureceu, ela estremeceu de raiva.
Valdo era seu sonho de mulher, era o homem que ela queria que estivesse com ela ali, no lugar de Humberto. Como a insignificante
Alzira o tinha nos braços?
- O que foi? Você mudou de repente. Aconteceu alguma coisa?
- Minha irmã. Está ali abraçada com Valdo. - Notando a estranheza dele, tentou dissimular a raiva: - É que ele é um conquistador.
Namora todas e não valoriza nenhuma.
Minha irmã me preocupa, é inexperiente, ingênua. Temo que se iluda.
227

- Você fala como uma irmã mais velha. Mas Alzira pareceu-me uma moça bastante sensata e equilibrada. Depois, Valdo pode
ser namorador, mas é um excelente rapaz,
um empresário de nome. Não vejo motivo para sua preocupação.
Mirtes sorriu, tentando controlar o que sentia.
- Tem razão. Não há nenhum motivo para preocupar-me. Vamos voltar à festa, dançar e aproveitar tudo a que temos direito.
Humberto sorriu contente:
- Isso mesmo. Quero ver você sempre sorrindo, feliz como agora.
Alzira viu quando Mirtes passou de braço com o marido e tentou afastar-se de Valdo. Ele a puxou novamente para perto dizendo:
- Não fuja de mim. Faz parte de seu castigo ficar em meus braços.
- É que Mirtes passou por aqui e não gostou. Conheço seu olhar.
- Você tem medo dela?
- Não. Mas sei que não gostou. Pode ir contar a meu pai. - E o que tem isso?
- Ele não vai gostar. Você é o dono da empresa onde trabalha
mos. Vai dizer que não posso misturar as coisas, que preciso saber o
meu lugar, etc., etc.
- Pois eu vou dizer a ele que os tempos mudaram. As pessoas
valem pelas atitudes, pela maneira como olham a vida, não pelo que
possuem. Os bens materiais são transitórios. O que realmente tem
valor é a competência que cada um possui para conduzir sua vida e
ser feliz.
- Conquistar a felicidade é difícil. Há quem diga que não é coisa deste mundo.
- Depende de como você vê a vida e onde coloca seus objetivos. Geralmente as pessoas sonham, criam ilusões fora da realidade,
colocam seu destino nas mãos dos outros
e acabam desiludidas e infelizes.
- Explique melhor.
- Sua irmã, por exemplo, coloca os bens materiais acima dos valores do sentimento. Acredita que sendo rica, invejada, será
feliz. Por isso está fazendo um casamento
conveniente.
- Você fala como se ela fosse ser infeliz. Humberto é uma excelente pessoa. Conheço-o há pouco tempo, mas trata-se de um
homem de valor, respeitado, que a ama muito.
228
- Concordo. Se ela souber valorizar as qualidades dele e seu amor, procurar agradá-lo com sinceridade, tem chance de ter
uma vida boa, mas, pelo que tenho observado
em Mirtes, ela está longe de satisfazer-se com uma vida tranqüila. Ao contrário.
É de temperamento ardente, ousado. Não
sei se vai conformar-se com o que ele pode
lhe dar.
- Sei que você uma vez foi ao cinema com ela. Deu para perceber tudo isso tendo saído apenas uma vez? Ou será que se encontraram
mais vezes?
- Desculpe, não devia ter usado sua irmã como exemplo. Mudemos de assunto.
- Não. Agora que começou, vá até o fim.
- Uma vez convidei-a para sair porque ela me fixava quando nos encontrávamos ao acaso e tive vontade de conhecê-la.
Fomos
ao cinema e depois decidimos jantar. Comentamos
o filme, conversamos, e deu para notar quanto ela era ambiciosa.
- De fato, desde pequena sempre dizia que só se casaria com um homem rico. Depois desse cinema, vocês voltaram a sair juntos?
- Não. Sua irmã é muito bonita, chama a atenção, principalmente pelo brilho vivo do olhar, mas eu prefiro mulheres mais
suaves, de sentimentos delicados, mais femininas.
Meu temperamento nunca combinaria com o de uma mulher igual a ela. Depois, quando nos encontrávamos casualmente, em sociedade,

eu observava seu empenho em detectar
os possíveis candidatos ricos. Desculpe, não deveria falar assim com você. Aliás, nem deveria ter tocado neste assunto.

Vamos esquecer.
- O pior é que eu penso como você. Não acho que Mirtes será feliz com esse casamento. Algum dia ela poderá vir a amar de
verdade e então nem sei o que poderá acontecer.
Tentei conversar com ela, pedir que não aceitasse, mas não consegui nada. Ela riu de mim. Disse que eu estava com inveja.

Embora ela seja mais bonita e mais cortejada
do que eu, nunca senti inveja dela. Sempre desejei que Mirtes fosse muito feliz.
- Você pensa muito diferente dela. Tenho certeza de que saberá conduzir melhor sua vida. Quem a fez crer que Mirtes é mais
bonita do que você?
- Desde criança habituei-me a ouvir isso. Mas eu me sinto bem em ser como sou. Não trocaria minha vida com ninguém. Adoro
meus pais. São pessoas boas, honestas,
trabalhadoras. Educaram-nos com carinho, deram sempre o melhor que puderam. Meu maior
229
desejo é torná-los felizes. Eles se amam, se respeitam. Em nossa casa o ambiente é de paz. Como você sabe, meu pai ficou
muito tempo desempregado. Eu também não conseguia
trabalho. Passamos algumas necessidades, mas isso não é nada, porque nos ajudamos e nos apoiamos. Esse ambiente de companheirismo,
de compreensão e de amizade, vendo
minha mãe procurando economizar, sorrindo, brincando com as dificuldades, foi um exemplo que nunca esquecerei. Isso para
mim é mais importante do que tudo.
- Você está certa. Em minha casa estamos bem, nada nos falta. Podemos ter tudo que o dinheiro pode comprar. Mas nada nos
agrada mais do que nos reunirmos em família
e trocar idéias sobre nossas vidas, nossos desafios. Meus pais também se respeitam e vivem muito bem. Meu pai sempre foi
um homem muito assediado pelas mulheres.
É muito elegante, charmoso, elas dizem que ele é bonito, mas ele sempre resistiu ao assédio delas. Costuma dizer que quem
tem a mulher que ama não precisa de mais
nada. Entendo o que você quer dizer. Também acho que, quando temos a felicidade de viver em uma família que se entende
e se quer bem, tudo na vida se torna mais
fácil.
- Sempre pensei que o dinheiro favorecesse às tentações, tanto no campo afetivo quanto no profissional. Há pessoas que passam
por cima de qualquer coisa para conseguir
o que querem.
- Ilusão. Só ilusão. Gostaria que conhecesse Émerson. É como um irmão para mim. Ele tem um instituto onde ministra cursos
maravilhosos, que ensinam a trabalhar com
o emocional e o espiritual. Tenho aprendido muito com ele. Suas idéias sempre vêm ao encontro das minhas. Ele está na festa.
Vou apresentá-lo a você.
- Gostaria de conhecê-lo. Você falou em trabalhar com o espiritual. Certa vez houve um problema com Mirtes, que chegou em
casa passando muito mal. Foi no tempo em
que estávamos desempregados. Nosso dinheiro havia acabado e não podíamos chamar o médico. Então lembrei-me de uma vizinha,

Dona Isaltina. Ela costuma atender às
pessoas. Reza e elas melhoram. É uma senhora muito boa. Não cobra nada.
- Interessante. Continue.
- Ela veio até nossa casa, rezou e nos mandou orar também. Passou as mãos sobre o corpo de Mirtes e em pouco tempo ela
(corrigir - 230)
coelho} l rou. Estava com enjôo, dor de
cabeça, mal-estar, inquietação, e tudo'' cessou como que por encanto. Depois ela disse que precisávamos ir ao centro espírita

onde ela trabalhava.
- Mirtes foi?
230
- Não. Dona Isaltina disse que meu pai precisava ir porque estava com as energias muito ruins. Mas ele não quis. Fomos

eu e mamãe. Uma moça que nos entrevistou
conversou com minha mãe de um jeito tão profundo que ela desabafou, chorou, depois se sentiu muito bem. Fomos então para
o salão de passes e eu me senti como se
estivesse flutuando. Nunca havia sentido uma sensação tão boa. Foi maravilhoso. Depois disso tive vontade de ir a uma agência
procurar trabalho e me indicaram sua
empresa.
- No instituto, Émerson também ensina a trabalhar com as energias. Funciona mesmo.
- Dona Isaltina disse que meu pai logo encontraria trabalho. De fato, aconteceu. Agora vamos ao centro uma vez por semana.

Tem nos ajudado muito. Acho que, se Mirtes
tivesse ido, não teria entrado nesse casamento.
- Cada um escolhe o próprio caminho. Ela preferiu esse. - Vou torcer para que seja feliz.
Conversaram ainda algum tempo e resolveram dançar mais um pouco. Logo na entrada do salão encontraram Émerson em companhia
de Laura, Renata e Marcelo. Valdo parou
e apresentou Alzira. Depois dos cumprimentos, ele contou que Alzira e os pais freqüentavam um centro espírita, ao que Émerson
tornou:
- É bom aprender a lidar com as energias que nos rodeiam e a saber que a vida continua depois da morte do corpo.
- Desde a primeira vez que fui lá me senti muito bem. Pareço flutuar. Saio leve, vejo luzes, sinto muita alegria e paz.
Émerson olhou-a sério e respondeu:
- Você conhece muitas coisas, seu espírito é muito lúcido. Eu
me sentiria muito honrado se fosse nos visitar no instituto.
- Irei com prazer. É só me dar o endereço.
- Posso levá-la - ofereceu Valdo. - Será um prazer. Agora
que já combinamos tudo, vamos dançar.
Depois que eles saíram, Marcelo disse contente:
- Gosto muito de Alzira. Ela sempre me consolava quando Mirtes me traía e eu me sentia arrasado. Ela conseguia me colocar
para cima.
- Essa moça é um espírito muito evoluído. Feliz de quem puder viver ao lado dela.
- Não se parece em nada com a irmã - disse Renata.
- Realmente é muito agradável. Tem uma energia boa - ajuntou Laura.
231
- Você captou muito bem. Aonde ela vai, melhora o ambiente. Tem sentimentos puros. Foi por isso que a vida colocou Mirtes
ao lado dela, para dar-lhe oportunidade
de melhorar, de escolher melhor seu caminho. Vamos esperar que tenha aproveitado.
- Não sei - comentou Marcelo. - Mirtes sempre desfez da irmã, sempre a menosprezou. Dizia que ela era boba porque se contentava
em viver na pobreza. As vezes eu
sentia pena dela, por ter uma irmã tão maldosa. Apesar disso, estou certo de que Mirtes não conseguiu deixa-la triste nem
mal-humorada. Alzira é lúcida e não se
deixa impressionar pelas palavras dos outros com facilidade. Ela sabe o que quer e como quer. Apesar de ser disciplinada,

cordata, ter boa índole, só faz o que quer,
o que acha certo. O resto, ela joga fora.
- Gostaria de ser como ela - disse Renata, pensativa.
- Você é. Basta não se impressionar pelo que os outros dizem - sugeriu Marcelo.
Todos riram e Laura considerou:
- Estou tentando fazer isso há meses. Será que um dia conseguirei?
Olhando Valdo e Alzira, que volteavam pelo salão em um samba animado, Émerson sorriu e concluiu:
- Acho que desta vez Valdo encontrou a mulher que vai colocá-lo no rumo que tem de ir. Agora vamos dançar, a festa está
quase acabando e nós só iremos embora depois
do fim.
Eles foram para o meio do salão e dançaram com entusiasmo, aproveitando o momento feliz que estavam vivendo.
232
Alzira terminou o expediente. Apanhou a bolsa e foi à sala onde o pai estava trabalhando, como de costume. Vendo-a, ele disse:
- Não precisa me esperar. Hoje vou ficar um pouco mais. Preciso acabar este relatório. Avise sua mãe.
- Vai demorar? Posso ficar e ajudar, se quiser.
- Não é preciso. Não sei quanto tem
po gastarei. Talvez uma hora ou duas.
- Está bem. Eu aviso.
Alzira ganhou a rua e foi andando de
vagar, observando o pôr-do-sol que coloria
o céu formando desenhos caprichosos. - Alzira, espere.
Ela se voltou e viu Valdo, que a se
guia dentro do carro.
- O que quer?
- Falar com você. Espere. Ele desceu e aproximou-se:
- Quero conversar com você. Vamos,
vou levá-la até em casa.
233

- Obrigada. Não é preciso. O que deseja?
- Não seja mal-educada. Sou seu chefe. Deve obedecer. O rubor coloriu as faces dela.
- É meu chefe para mandar em mim no que diz respeito ao ser
viço, dentro da empresa. Fora, sou livre.
- E se eu pedir por favor? Vai me ouvir? Ela hesitou:
- Está bem.
Eles entraram no carro. Ele deu partida e saiu em silêncio.
- E então? - indagou ela. - O que deseja?
- Já vai saber.
Andou mais um pouco e parou em uma rua discreta.
- Faz quinze dias que estivemos juntos no casamento de sua irmã. Naquela noite pensei que estivéssemos nos entendendo. Nós
nos beijamos, você ficou em meus braços,
dançamos. Achei que estivesse gostando de minha companhia. Mas, depois, mudou completamente comigo. Não atende ao telefone,

na empresa me evita, finge que não me
vê. Havíamos combinado ir ao instituto. Émerson perguntou por você. Eu mesmo não sei o que pensar.
Alzira suspirou e respondeu:
- O que aconteceu naquela noite foi especial. Acabou. Sou uma moça simples, não pertenço ao seu meio social. Sei o meu lugar.
- Isso é preconceito.
- Não. É realidade. Não tenho condições de freqüentar um meio social muito acima de minhas posses, embora seus amigos sejam
muito agradáveis e tenho certeza de que
não se prenderiam a isso. Mas eu não estaria à vontade.
Valdo sentiu-se constrangido.
- Desculpe, não pensei que se sentisse assim. Se não deseja ir ao instituto, é um direito seu. Mas não precisa me evitar
por causa disso. Você não gosta de mim?
Alzira olhou-o firme nos olhos e disse séria:
- Não se trata de você. Estou apenas me protegendo. É minha maneira de ser. Você sabe que tem carisma, que as garotas disputam
sua atenção. Você pode escolher entre
as mulheres mais bonitas e famosas. Por que faz isso comigo?
- Porque eu nunca conheci nenhuma como você. Você me atrai. A seu lado me sinto alegre, bem-disposto, de bem com a vida.

Fazia tempo que não me sentia tão feliz
como naquela festa de
234
casamento. Você diz bem: há muitas garotas me rodeando, esperando atenção. Mas elas não me dizem nada. Estou cansado do convencional,

das mentiras de salão, das coisas
de aparência.
- Isso passa. Logo estará como sempre foi.
- Por que está tão resistente? Do que tem medo?
- De me machucar, de me iludir. Você está curioso porque sou diferente. Só isso.
Ele a abraçou e beijou-a nos lábios. Ela retribuiu sentindo o coração disparar e o corpo tremer.
- Você também me quer! - disse Valdo triunfante. - Eu sinto que você estremece quando a toco.
Alzira não conseguiu responder logo. Sentiu vontade de abraçá-lo e entregar-se ao sentimento que a envolvia, mas procurou
controlar-se.
- Você me pareceu corajosa, forte. Uma pessoa que sabe o que quer.
- E eu sou. Por isso tenho evitado você.
- Não. Coragem é entregar-se ao que sente sem medo. Nós sentimos uma atração forte um pelo outro. É cedo para saber se é
amor, mass se não experimentarmos nunca
saberemos. Confesso que nunca senti por uma mulher o que estou sentindo por você. É algo muito bom, forte, não quero perder
isso de jeito nenhum.
- Não sei o que dizer. Estou confusa.
- Não se sente feliz em meus braços?
- Muito. E gostaria de permanecer neles para sempre.
Valdo, emocionado, beijou-a longamente, várias vezes. Depois, acariciou-lhe os cabelos com carinho, aconchegando-a de encontro
ao peito.
- Quero ficar assim, com você, sentindo essa emoção que não me recordo de haver sentido antes.
Alzira não resistiu mais: deixou-se ficar prazerosamente usufruindo daquele momento de felicidade.
Meia hora depois, Alzira lembrou-se:
- Preciso ir embora. Minha mãe deve estar preocupada. Sempre chegamos em casa no mesmo horário.
- Estaremos lá dentro de poucos minutos. Mas prometa que não vai mais fugir de mim.
- Prometo.
Ele a deixou na porta de casa e despediu-se com um beijo carinhoso. Alzira entrou e Estela perguntou:
235

- Escutei um barulho de carro. Aconteceu alguma coisa? Seu pai não veio com você?
- Não. Ele precisou fazer hora extra.
- E você, por que demorou?
- Fiquei conversando e me esqueci da hora.
Estela olhou-a e não disse nada. Era evidente que alguma coisa havia acontecido. O rosto de Alzira estava corado, perturbado,

havia um brilho diferente em seus olhos.
Quando a filha estivesse pronta para contar, Estela estaria ouvindo, como sempre fazia. Não gostava de pressionar as filhas.

Mesmo com Mirtes, cujo comportamento
a preocupava, ela era discreta.
Quando Antônio questionava esse comportamento, Estela respondia:
- O que adianta pressionar? Elas só vão dizer o que quiserem. Prefiro que contem quando sentirem vontade, assim evito as
mentiras.
Alzira, após o banho, estendeu-se na cama, pensativa. Recordando-se do que acontecera, sentia reviverem as emoções daqueles
momentos. Valdo tinha um jeito especial
de olhá-la que a encantava. Parecia um menino descobrindo a vida, cheio de alegria e vontade de viver.
Ao mesmo tempo, ela refletia que precisava ser mais realista. Ele não era esse menino ingênuo, mas um empresário que dirigia

com capacidade uma grande empresa,
um moço rico, instruído e habituado ao convívio na alta sociedade.
Era difícil acreditar que ele estivesse mesmo interessado nela, uma moça simples que ocupava em sua empresa uma posição
humilde.
Mas ela notou como ele se emocionava quando a beijava. Percebeu o carinho com que a tratava, muito diferente dos rapazes
que havia conhecido. Desde a adolescência,
ela havia se sentido atraída por alguns jovens, iniciado namoro que invariavelmente terminava do mesmo jeito: eles desejavam
mais intimidade do que ela permitia,
aborreciam-se e terminavam.
Nos braços de Valdo ela se sentia bem, havia uma delicadeza de sentimentos que a encantava. Ela sabia que não ia conseguir
resistir.
Estela bateu na porta do quarto.
- Você quer jantar agora ou vai esperar seu pai? Alzira levantou-se, abriu a porta e respondeu: - Estou sem fome. Acho que
não vou jantar.
236
- Escutei barulho na porta. Seu pai deve estar chegando. Vou pôr a mesa. Venha pelo menos nos fazer companhia e comer um
pouco.
Ela concordou e desceu. Não queria que a mãe notasse sua emoção. Era cedo para contar-lhe o que estava acontecendo.

Naquela mesma tarde, Mildred, sentada em confortável poltrona na sala de estar de sua casa, folheava uma revista. Na mesinha
ao lado, pousavam alguns cartões que
recebera de Mirtes, encantada com a viagem.
O fato de Mirtes conseguir o que queria havia feito com que Mildred passasse a admirá-la. Na revista deparou com uma reportagem
sobre a viagem do casal e sorriu
contente. Mirtes agora pertencia à mais fina sociedade.
Virou a página e empalideceu. Lá estava uma foto de Émerson com Laura, abraçados e sorridentes. A legenda dizia que haviam
marcado o casamento para breve.
Isso não poderia acontecer. Ela não iria permitir. Atirou a revista longe, apanhou a bolsa e saiu. Tomou um táxi e foi até
o terreiro de pai Tomé. Estava furiosa.
Quando ele a recebeu, ela foi logo dizendo:
- Você me enganou. Tomou meu dinheiro e não fez nada. Emer
son vai se casar em breve. Onde está seu poder?
Ele sorriu sem demonstrar preocupação.
- Calma. Estou trabalhando. É preciso esperar.
- Estou cansada de esperar. No casamento de Mirtes eles estavam
aos beijos e abraços e eu tive de suportar isso. Não agüento
mais. Você precisa ser mais eficiente. Paguei o que me pediu pelo ser
viço. Tem de cumprir sua parte.
Ele sorriu e respondeu:
- Tenho tudo preparado. Eles vão se separar. Você vai ver uma coisa.
- Quando?
- No máximo dentro de uma semana. - Tem certeza?
- Tenho. Sei o que estou fazendo. Você vai ver. - Quero ver mesmo.
- Precisa ter fé.
- Vou esperar até a semana que vem.
Uma semana passaria depressa. Mildred saiu de lá com dor de cabeça e pensou:
237
- É a tensão. Fiquei com muita raiva.
Ela não viu que dois vultos escuros a seguiram, colando-se a seu corpo.
Vendo-se a sós, pai Tomé chamou seu ajudante e disse:
- Essa moça não é flor que se cheire. Ela pode nos causar problemas.
- Mas o pai Tomé dá jeito nela...
- É. Vamos ver. Vou fazer aquele trabalho. Desta vez tem de dar certo.

Dois dias depois, Laura acordou e ao levantar-se sentiu forte tontura que a obrigou a segurar-se na cabeceira da cama. Assustada,
sentou-se e esperou para ver se
passava. Aos poucos a tontura diminuiu mas sentiu-se enjoada e inquieta. Um aperto desagradável no peito dava-lhe a sensação
de que iria acontecer alguma desgraça.
Aos poucos seu estado foi melhorando, mas ela não conseguia afastar o medo e a preocupação. A empregada entrou no quarto
e ela sentiu vontade de mandá-la embora.
Controlou-se. Celina era uma moça boa e prestativa.
Ela se aproximou e perguntou:
- Está se sentindo bem? Está tão pálida!
Laura estremeceu e respondeu irritada:
- Deixe-me sozinha! Não se intrometa em minha vida!
Celina olhou-a assustada. Laura parecia outra pessoa. Saiu em silêncio.
Laura havia marcado um encontro com Émerson para a compra de alguns móveis que deveriam colocar na casa que haviam comprado

e onde deveriam morar depois do casamento.
Pensou em ligar para ele e suspender o encontro. Estava cansada, sentia o corpo pesado. Iriam outro dia. Telefonou para
ele.
- Estou ligando para avisar que não iremos ver os móveis hoje. Acordei indisposta. Ultimamente temos saído muito. Pretendo
passar o dia em casa descansando.
- Ontem você estava tão entusiasmada, cheia de idéias para essas compras.
- Mas hoje não estou.
- Vou passar aí para vê-la e conversaremos.
- Não. Hoje quero ficar sozinha. Preciso de paz. - Está bem.
Émerson, pensativo, desligou o telefone. Ao atender a ligação,
238
sentiu que uma onda de energia escura o envolveu e a cabeça começou a rodar. Reagiu com firmeza, procurando impedir que
ela o envolvesse mais. Imediatamente foi
ao salão de meditação, colocou-se em posição e começou a trabalhar mentalmente para libertar-se daquela energia. Nesse esforço

permaneceu por mais de uma hora.
Quando conseguiu afastá-la, permaneceu em observação para identificá-la. Percebeu que ele e Laura estavam sendo alvos de
um ataque espiritual. Queria saber como
e por quê.
A imagem de Mildred apareceu novamente à sua frente, rodeada por alguns vultos escuros. Ele sabia que ela faria tudo para
impedir seu casamento com Laura, mas que
não tinha conhecimento para mandar aquele tipo de energia. Certamente havia procurado outra pessoa. Ele queria descobrir
quem. Mas nesse momento seu guia espiritual
surgiu à sua frente e ele se curvou reverente, saudando-o.
- O trabalho é pesado. Precisaremos de preparação e apoio para desfazê-lo. Suspenda o curso desta noite. Vou fornecer as
instruções.
Émerson ouviu tudo atentamente. O guia finalizou:
- Todos deverão estar aqui às seis em ponto. Laura não vai querer vir. Terá de persuadi-la, porque está muito atingida.
- Farei tudo como diz.
- Muito bem. Conserve seu coração em paz. Confiemos em Deus. A força do mal nada é diante da luz. Vamos precisar de energias
limpas e puras para podermos trabalhar.
Eu gostaria muito, se fosse possível, que convidasse a namorada de Valdo. A energia dela seria muito importante.
Émerson agradeceu, levantou-se e ligou para a secretária do curso da noite pedindo-lhe para avisar os alunos que a aula
havia sido suspensa e seria reposta na semana
seguinte. Depois, tratou de convocar as pessoas indicadas, entre elas Marcelo e Renata.
Ligou para Valdo, que também havia sido indicado:
- Sua irmã sofreu um assédio espiritual e não está bem. Teremos de fazer uma reunião para ajudá-la, e meu guia pediu sua
presença.
- Pode contar comigo.
- Também pediu uma coisa que não sei se será possível. - O quê? - indagou Valdo, curioso.
- Disse para trazer sua namorada. A energia dela vai ajudar muito. Você está namorando?
- Estou apaixonado, se é o que quer saber. Seu guia está muito bem informado a meu respeito.
239
Émerson riu e respondeu:
- Eu não sabia, mas ele nunca se engana. Por isso dei o recado. - Vou ver o que posso fazer.
Émerson ultimou todos os preparativos para a reunião e ligou para
Laura. A empregada disse que ela estava deitada e dissera que não
queria ser incomodada.
- Diga-lhe que sou eu. - Vou tentar.
Émerson esperou alguns minutos.
- Bati na porta e disse que o senhor estava ao telefone. Ela gri
tou que não queria falar com ninguém, nem mesmo com o senhor. Ele desligou. Precisava arrancá-la da cama e levá-la para
a reu
nião na hora certa. De nada adiantaria ir até lá naquele momento.
Preferiu recolher-se em sua sala de meditação.
Sentou-se no chão e começou a mentalizar Laura, tentando li
bertá-la daquelas energias.
De repente sentiu uma rajada forte de vento e viu um homem
escuro, fisionomia endurecida, olhos metálicos, vestido com uma
manta escura, parado à sua frente, olhando-o desafiadoramente. Émerson esforçou-se para manter o equilíbrio e indagou em
pensamento:
- O que você quer aqui?
- Vim avisar que não vai adiantar você ficar aí tentando nos
mandar embora. Quanto mais interferir, mais iremos judiar dela.
Tenho como mandá-la para o hospício. Por isso, pare de intervir.
- Você não vai fazer isso. Ela não merece. É protegida da luz. - Se fosse, não a teríamos dominado. Agora pare com isso

se
não quiser que eu mande nossos homens aqui para acabar com você. - Por que está com tanta raiva? Nunca fizemos nada con
tra você.
- O aviso está dado. Se ela piorar, a culpa será toda sua.
Ele mandou em direção a Émerson uma onda escura de energia e desapareceu. Émerson sentiu a cabeça rodar e precisou fazer
grande esforço para reagir. Depois que conseguiu
desvencilhar-se daquela energia, mentalizou forças positivas e sentiu-se melhor.
Como faria para levar Laura à reunião? Tinha certeza de que aqueles espíritos fariam tudo para que ela não comparecesse.

Naquele instante, Émerson sentiu a presença
de seu guia e ouviu:
- Procure manter o pensamento positivo. Quando chegar a hora, eu avisarei e você irá buscá-la. Vamos confiar.
240
Valdo desligou o telefone e mandou chamar Alzira em sua sala. Falou-lhe sobre o convite de Émerson.
- Você sabe do que se trata?
- Só sei que o encontro será às seis horas. Deve ser importante, porque Émerson suspendeu a aula desta noite para realizar
essa reunião.
- Tem certeza de que ele se referiu a mim?
- Tenho. A única namorada que tenho é você. Aliás, Émerson não sabia que estamos namorando.
- Nem eu. Você não me pediu em namoro.
- Mas o guia espiritual dele sabia e falou em você.
- É curioso. Dona Isaltina costuma dizer que minha presença
ajuda os trabalhos do centro. Mas eu não faço nada. Só me sinto mui
to bem, como se estivesse flutuando.
- Você vai comigo?
- Preciso avisar meu pai.
- Eu a levarei para casa depois. Ele pode ficar sossegado.
- Não sei se essa idéia irá tranquilizá-lo.
- Tenho trabalhado com ele, sei que confia em mim. Aliás, o
trabalho que ele está fazendo é excelente. Meu pai me deu os para
béns por tê-lo contratado. Você fala com ele ou quer que eu fale? - Pode deixar que eu falo. Ele tem ido ao centro e entenderá.

Meia hora antes das seis, Alzira já estava no carro de Valdo rumo ao instituto. Assim que chegaram, Marcelo recebeu-os,
pedindo:
- Entrem naquela sala que está preparada. Fiquem em prece. Émerson precisa de suporte. Foi buscar uma pessoa.
Eles entraram na sala em penumbra, sentaram-se e permaneceram orando em silêncio.

Émerson chegou à casa de Laura. Seguindo instruções de seu guia espiritual, pediu à mãe dela que abrisse a porta do quarto,
que estava trancado por dentro. A chave
não encaixava e foi preciso introduzir uma espátula na fechadura e derrubar a chave que estava nela.
Émerson entrou e o quarto estava escuro. Laura estava deitada, dormindo profundamente.
- Laura, acorde. Sou eu.
Ela não acordou e ele a chamou novamente, elevando a voz. Nada. A mãe dela, impressionada, disse:
241

- O que está havendo? Esse sono não é natural. Será que ela
ingeriu algum calmante?
- Vamos ajudá-la - respondeu Émerson segurando as duas
mãos de Laura, tentando levantá-la.
Ela abriu os olhos, dizendo com voz pastosa: - Quero dormir. Deixem-me em paz.
- Não. Reaja. Esse sono não é natural. Você tem de vir comigo. Ela não respondeu e Émerson disse: - Preciso levá-la ao instituto.

É importante. - Vou ajudá-lo -
disse Almerinda, preocupada.
Émerson carregou a namorada até o carro e Almerinda acom
panhou-os. Ele a colocou no banco de trás e pediu que a mãe dela
a amparasse.
Chegaram ao instituto e imediatamente Émerson a levou até a sala de reuniões, onde o grupo esperava. Como ela não conseguisse
permanecer sentada, Émerson apanhou
um colchonete e deitou-a nele. Valdo levantou-se assustado, mas um gesto de Émerson o conteve.
- Vamos orar, meus amigos, confiantes na bondade divina que nos colocou aqui para este trabalho.
O silêncio se fez e durante alguns minutos eles permaneceram orando. Até que uma moça do grupo foi sacudida por estremecimentos

e gritou colérica:
- Quem ousa intrometer-se em meus negócios? O que vocês pensam que são? Vão se arrepender desta intromissão.
- Continuemos orando -pediu Émerson.
- Não vai adiantar nada. É melhor desistirem.
- Quem vai pensar melhor é você. Obedecendo aos que lhe mandam, está complicando sua vida. Vocês nunca vão vencer o bem.

No fim, terão de voltar atrás e refazer
tudo que estão destruindo. Pense no sofrimento pelo qual terá de passar quando for chamado a responder por suas atitudes.
- Você está querendo me atemorizar. Somos fortes, ninguém vai nos vencer.
- Você é forte mas está usando sua força contra a vida, e ela é soberana. Todos os que ficaram contra ela se arrependeram
e choraram o tempo perdido. Pense bem.
Neste momento está tendo a oportunidade de libertar-se do mal e trilhar um novo caminho de aprendizagem e progresso.
- Isso é mentira. Não confio em ninguém. A vida é um jogo de interesses em que vence o mais forte.
242
- Quem é mais forte? Você, que não sabe para onde vai nem de onde veio, ou a fonte de energia, que criou e administra o
equilíbrio de tudo? Já pensou em como você
está vulnerável ficando contra esse poder superior que pode fazer o que quiser com você?
- Senti fome e frio, e eles me socorreram. Trabalhar para eles é obrigação. Depois, eles me protegem. Sofri muita perseguição
quando cheguei aqui.
- Porque criou inimigos durante sua passagem terrestre. Quando eles lhe pediram contas, ao invés de reconhecer seus pontos
fracos você desejou brigar ainda mais.
Por isso foi usado pelos mercenários do astral, que oferecem proteção a troco de uma obediência servil e aviltante.
- Eles são meus amigos. Vão me apoiar sempre.
- E onde eles estão agora? Por que o deixaram sozinho neste
momento em que está sendo chamado à responsabilidade de suas
atitudes?
Ele manteve alguns segundos de silêncio, depois respondeu: - Não sei. Eles sumiram.
- Eles o deixaram para assumir sozinho a responsabilidade do que fez.
- Não é possível. Onde estão? Vou me vingar, eles vão ver.
- Não incorra no mesmo erro. O momento é de auxílio. Se deseja melhorar de vida, terá de mudar sua atitude. O mal cobra
um preço muito alto de quem se ilude mergulhando
em suas malhas. Saia enquanto é tempo. Estamos recebendo a visita de amigos do plano superior que vieram para ajudá-lo.
- Estou me sentindo angustiado. Eu não creio nisso porque não mereço. Tenho andado errado. Eles não vão me aceitar.
- Eles vão dar-lhe uma oportunidade se você mudar sua atitude e escolher ficar no bem. Vamos orar juntos.
Émerson pediu à luz divina que iluminasse aquele espírito. Quando terminou , a entidade rompeu em soluços. Quando se acalmou,

disse:
- Obrigado pela ajuda. Estou me sentindo melhor. Antes de ir estão me pedindo para buscar o responsável por tudo. Cuidado
com ele.
- Continuemos em prece - solicitou Émerson.
Depois de alguns instantes, um rapaz estremeceu violentamente. Sua cadeira, como que tocada por uma força invisível, foi
ao chão. As pessoas assustaram-se e Émerson
disse enérgico:
- Ninguém se mexa. Está tudo sob controle. Continuem em prece. Precisamos ajudar.
O rapaz estremecia no chão como se estivesse levando choques e gritou:
- Quem ousou invadir meu espaço? Que força é esta que tem esse poder?
- A força da luz divina - respondeu Émerson com voz serena.
- Onde estou? O que querem fazer comigo?
- Está sendo chamado a responder pelas suas atitudes. Chegou a hora de parar com suas bruxarias.
- Quem é você que me fala com autoridade? Não o conheço e não acredito em nada que está dizendo.
- É bom acreditar. O momento é muito importante. Você pensa que pode agir como se fosse Deus! Intromete-se na vida alheia,
obrigando as pessoas a fazer o que você
quer. Usa as forças da natureza, criadas para manter a vida, a serviço de seus interesses pessoais, vendendo ilusões, prometendo
tudo sem o mínimo escrúpulo. Isto
agora acabou. Chegou a hora de escolher.
- O que é isto, um julgamento?
- Um aviso. A maldade tem limites e a sua já atingiu o máximo. A vida está dando um basta, e daqui para a frente você não
poderá mais prejudicar ninguém.
- Eu não prejudico. Ajudo as pessoas a conseguir o que desejam para serem felizes.
- Mentira. Você está apenas interessado em ganhar dinheiro. Explora os pontos fracos das pessoas em proveito próprio.
- Não tenho culpa se o que elas desejam não é bom. O que é isto? Quem são estas pessoas que me rodeiam com olhos de luz
e fazem com que eu me sinta sem forças? O
que querem?
- Terá de escolher. Ou se arrepende, desfaz todas essas bruxarias que mantém em seu terreiro, ou não voltará mais para seu
corpo.
- Vão me matar? Eu não quero. Que horror! Eu não consigo voltar para o corpo. É mentira. Eu não morri! Quero voltar para
o corpo agora. Esse corpo caído não é meu.
Digam que não estou morto.
- Ainda não está, mas isso depende só de você.
- O que preciso fazer para retomar o corpo?
- Primeiro libertar Laura e eu, retirando todas as energias
negativas.
244
- Está bem. Mas preciso voltar ao corpo para fazer isso. - Deixe de mentiras. Você não precisa voltar ao corpo.

Quem pensa que vai enganar? Vamos, faça
a limpeza.
O rapaz sentou-se no chão, tossiu, esfregou as mãos e começou a resmungar em uma língua estranha. Depois de alguns minutos
ele disse:
- Pronto. Os dois já estão livres. Agora quero retomar meu corpo.
- Antes temos de conversar.
A voz de Émerson estava modificada, mais forte e com ligeiro sotaque estrangeiro. Ele continuou:
- Há muitos anos que você desenvolveu sua sensibilidade e
descobriu algumas forças da natureza. Porém, ao invés de utilizá-las a favor do bem, enveredou pelo mal, desencarnando
em péssimas condições. Durante anos no astral,
antes de reencarnar, você recebeu esclarecimentos e prometeu que nesta encarnação usaria sua sensibilidade para ajudar o
progresso da consciência. Porém, uma vez
encarnado, cedeu às tentações ambiciosas e acabou enveredando novamente pelo caminho do mal. Assim, chegou ao limite do
permitido. Só voltará ao corpo se prometer
deixar o mal e comprometer-se com os que ainda se demoram no erro.
- Eu prometo. Nunca mais farei nada disso.
- Devo esclarecer que estaremos vigilantes. Ao primeiro deslize,
deixará o corpo sem condições de regresso. Agora vá.
O rapaz estremeceu. Passou a mão pela testa, levantou-se um tan
to desconcertado e sentou-se novamente. Émerson aproximou-se de
Laura, que dormia, e colocou a mão direita sobre sua testa, dizendo: - Volte, Laura. O perigo passou. Está tudo bem.
Ela abriu os olhos e, vendo o noivo ajoelhado a seu lado, abra
çou-o assustada.
- Onde estou? Tive um pesadelo horrível. - Calma. Acabou. Está tudo em paz.
Ele a ajudou a levantar-se. Ofereceu-lhe uma cadeira para que se sentasse. Depois murmurou comovida prece de agradecimento
pela ajuda recebida e encerrou a reunião.
As luzes foram acesas e havia no rosto de cada pessoa uma indagação. Émerson explicou:
- Vocês nunca haviam participado de um trabalho deste nível. Isso mereceria uma aula especial, o que não é possível agora.
Está todo mundo bem?
245
Eles acenaram que sim e ele prosseguiu:
- Esta noite vocês viram a incorporação de uma pessoa viva.
- Se ele não aceitasse a proposta, seria mesmo tirado do corpo? - indagou Marcelo.
- Não sei. É provável que sim. A morte é uma escolha. De um jeito ou de outro cada um escolhe o momento de ir. Embora não
seja uma escolha consciente, o livre-arbítrio
é sempre respeitado.
- Será que ele vai cumprir o prometido? - indagou Renata.
- Os espíritos que estavam aqui são de alta hierarquia e cumprem o que dizem. Vão acompanhá-lo e, se ele recomeçar com o
mal, encontrarão meios de persuadi-lo.
- Eu não acreditava em bruxaria - considerou Valdo -, mas, depois do que vimos, não dá mais para duvidar. Laura chegou inconsciente,

o que me assustou muito. Eles
podem matar com uma magia dessas?
- Esse é um questionamento difícil de responder. Acredito que todos que vivem no bem sempre serão auxiliados e libertados.

O problema pode ser com alguém que opta
pela maldade e acaba tornando-se presa fácil desses espíritos. Eu confio na justiça divina e sei que não cai uma folha
da árvore sem a vontade de Deus.
- Sempre pensei que as pessoas boas, que vivem no bem, jamais fossem envolvidas por essas magias. Pelo que entendi, a bruxaria
era contra você e Laura. Vocês vivem
só no bem, ensinandonos a pensar positivo e fazer sempre o melhor que podemos. Por que foram atingidos?
- Para que aprendêssemos a lidar com essas energias. Todos nós estamos encarnados em um mundo onde há espíritos de vários
níveis de conhecimento. Além disso, há
aqueles que desencarnam e, presos aos interesses mundanos, não querem deixar a Terra, permanecendo no astral, circulando
por este mundo, influenciando as pessoas.
Para aprender a conhecer o teor das energias que nos cercam e desenvolver resistência às mais negativas, precisamos senti-las.
Como são desagradáveis, desequilibrando
o sistema nervoso, provocando vários sintomas físicos, reagimos procurando ficar bem. Assim, vamos nos tornando mais resistentes
a essas energias. A sabedoria e
o conhecimento tem o preço da experiência que cada um terá de pagar. Agora vamos embora. Outro dia falaremos mais sobre
este tema.
Enquanto as pessoas saíam, Émerson aproximou-se de Alzira.
- Obrigado por ter vindo.
- Não sei por que me convidou. Estou envergonhada. Assim
246
que me sentei na cadeira, adormeci e só acordei quando as luzes se acenderam. Não vi nada do que aconteceu. Acho que nunca
mais vai me convidar.
Émerson sorriu e seus olhos brilharam quando disse:
- Você saiu do corpo e trabalhou muito. Gostaria de poder contar com você aqui no instituto.
- Mas eu não fiz nada. Tem certeza de que fui eu?
- Tenho. Você esquece tudo assim que volta ao corpo. Gostaria de ensinar-lhe alguns exercícios para que aos poucos se torne
mais consciente.
- Quer dizer que eu me lembraria de tudo que você diz que eu fiz?
- É. Se quiser, posso ensinar. Você precisa fazer uma iniciação espiritual. Os espíritos que a acompanham são muito iluminados.
- É por isso - tornou Valdo - que eu me sinto tão feliz ao lado dela.
- Vocês serão muito felizes juntos.
Eles saíram de mãos dadas, e seus olhos brilhavam de felicidade. Depois que todos se foram, Émerson abraçou Laura, dizendo:

- Felizmente acabou tudo bem.
- Por que fizeram isso comigo?
- Queriam nos separar, mas ninguém vai conseguir. Você é a companheira que escolhi para viver pelo resto da vida. Almerinda
aproximou-se, dizendo:
- Laura precisa alimentar-se. Não comeu nada hoje. Deve estar se sentindo fraca.
- Não estou, não, mãe. Mas meu estômago está avisando que quer comer.
Eles riram. Émerson apagou as luzes e saíram abraçados. Estavam alegres e em paz.
247


Uma semana depois, Mildred levantou-se decidida a procurar alguns amigos e tentar descobrir se havia alguma novidade com
relação a Émerson e Laura.
Tomou café e foi ao clube.
Encontrou duas conhecidas estendidas ao lado da piscina. Aproximou-se e puxou conversa. A certa altura, uma delas, olhando
maliciosa para Mildred, disse:
- Você já recebeu o convite de casamento de Émerson?
Mildred empalideceu e procurou controlar-se:
- Convite? Li na revista que marcaram a data.
- Ontem à tarde recebemos o convite. Será dentro de três semanas.
- Não, ainda não recebi.
- Ontem à noite estive na casa de Laura e estavam felicíssimos. Compraram uma casa maravilhosa! Vocês precisam ver a decoração!
Mildred esforçou-se para controlar-se.
249

Pelo jeito, pai Tomé não havia conseguido nada. Fora ingênua dando-lhe dinheiro, acreditando que tivesse algum poder.

Aquilo não podia ficar assim. Ele teria
de devolver seu dinheiro ou ela o denunciaria. Sabia como fazer isso sem aparecer.
Logo protestou um compromisso e saiu. As duas moças trocaram olhares maliciosos:
- Viu como ficou descontrolada? Eu não disse que ela ainda gosta dele?
- Vi. Saiu furiosa. Pobre de quem cruzar com ela hoje.
- Do que Émerson se livrou! Laura é tão diferente! - É mesmo. Com ela ele será muito feliz.
Mildred deixou o clube e dirigiu-se imediatamente ao terreiro
de pai Tomé. Uma vez lá, tocou a campainha, mas ninguém aten
deu. Bateu palmas e nada. Tentou olhar pelo buraco que havia no
portão de madeira e não viu ninguém.
Resolveu aguardar um pouco. Foi para o carro e ficou meia hora
esperando, mas ninguém apareceu. Desceu e foi tocar novamente a
campainha. Um rapazinho que passava aproximou-se:
- Moça, está procurando pai Tomé? Ele foi embora. - Como foi embora? Para onde?
- Ninguém sabe, não, senhora. Ele fez a mudança à noite. Foi
embora sem se despedir de ninguém.
- Aconteceu alguma coisa?
- Não sei. O fato é que ele estava apressado. Disse que não ia
atender mais ninguém.
- E os companheiros dele, também foram?
- O que sei é que todos sumiram. Não vai adiantar esperar. Mildred voltou para o carro nervosa. Fora enganada. Nem se
quer tinha como desabafar a raiva. Sentia a cabeça doendo, o estô
mago enjoado e um gosto amargo na boca.
Precisava fazer alguma coisa para impedir aquele casamento.
Mas o quê? Durante o trajeto de volta, tentou pensar em algo viá
vel, mas não conseguiu.
Uma vez em casa, decidiu aproximar-se do casal para ver se con
seguia ter alguma idéia. Naquela noite, iria ao instituto a pretexto
de informar-se sobre os cursos.
Chegou lá pouco antes das oito e dirigiu-se à secretaria, olhan
do em volta para ver se via um dos dois que lhe interessavam. Naquele momento, Émerson estava em sua sala, analisando alguns
documentos. De repente sentiu uma onda de energia desagradável.
250
O rosto de Mildred surgiu em sua mente. Imediatamente ligou para a secretaria, dizendo:
- Está aí com você uma moça chamada Mildred? - Está.
- Preciso falar com ela. Encaminhe-a até minha sala.
A secretária desligou e voltou-se para Mildred:
- Émerson deseja falar com você. Pediu-me para acompanhá-la
à sala dele.
Mildred sentiu-se agradavelmente surpreendida. Seria uma boa oportunidade para descobrir o que desejava. Acompanhou-a de
bom grado.
A moça bateu levemente na porta, abriu-a e Mildred entrou. - Como vai, Émerson? Que prazer vê-lo! - Entre, Mildred. Quero
conversar com você. Sente-se.
Ele apontou uma cadeira em frente à sua mesa. Esperou que ela
se acomodasse e continuou:
- Posso saber o que veio fazer aqui?
- Informar-me. Pretendo inscrever-me em algum curso.
- Várias vezes você esteve no instituto. Assistiu a palestras, cursos, mas não aprendeu nada. Acho que agora não temos mais
nada para oferecer-lhe.
- Como assim?
- Não vou aceitar você em nenhum de nossos cursos. Ela se levantou irritada:
- Por quê? Eu posso pagar como qualquer pessoa.
- Sente-se e escute. Vou dizer-lhe por que tomei esta decisão. Você vem aqui, mas não está interessada em aprender. Anos
atrás, antes de minha viagem para o exterior,
fui muito franco com você. Expliquei-lhe por que estava terminando nosso namoro. Eu senti que não desejava me casar com
você. Não lhe dei nenhuma esperança de reatar
algum dia. Apesar disso, quando voltei notei que você ainda alimentava essa ilusão.
- Eu sempre o amei!
- Só que eu nunca alimentei esse seu sentimento. Descobri que amo Laura. É com ela que desejo viver pelo resto dos meus
dias. Mas você não se conforma com isso.
Quer a todo custo nos separar, acreditando que ainda tem alguma chance comigo. Mas não há nenhuma possibilidade.
- Como pode dizer uma coisa dessas? Não posso evitar de sentir esse amor.
- Nós somos muito diferentes, Mildred. Nunca seríamos felizes juntos.
- Está sendo injusto comigo. Eu quero aprender o que você ensina. Por que não me deixa freqüentar o instituto?
- Porque se você houvesse aproveitado o que aprendeu aqui não teria ido à procura de um pai-de-santo para nos prejudicar.

Saiba que os favores desses espíritos desequilibrados
e interesseiros têm um preço muito alto que um dia terá de pagar.
-- Quem lhe contou? Acho que foi a boba da Mirtes. Ela passou mal, ficou com medo e veio atrás de você. Só pode ser isso!
- Então Mirtes sabia! Mas não foi ela quem me contou. Saiba que tenho amigos espirituais que me protegem. Foram eles que
me contaram tudo. Devo esclarecer que aquele
pai-de-santo não vai mais atrapalhar a vida de ninguém. Deixou definitivamente de fazer suas bruxarias.
Mildred empalideceu e sentiu as pernas bambas. O ar faltoulhe e ela pensou que ia desmaiar.
Émerson apanhou um copo de água e ofereceu-o a ela, dizendo:
- Beba. Estou lhe contando a verdade para ajudá-la. Não lhe desejo mal. Quero que pense bem no que estava fazendo e nos
riscos que corre envolvendo-se com forças
negativas que não conhece. Isso poderá custar-lhe muito caro. Por outro lado, analise sua vida, perceba quantotempo perdeu
alimentando uma ilusão que só lhe trará
tristeza. Você é jovem, bonita, tem classe. Não perca seu tempo, sua juventude, esperando alguma coisa que nunca acontecerá.
A atitude inesperada de Émerson deixou Mildred chocada a tal ponto que lágrimas começaram a descer pelas faces pálidas.

Émerson continuava:
- Pense, Mildred. Cuide de você, de sua vida. Não espere nada dos outros. Aceite o possível e procure dentro de você, de

seu coração, coisas que lhe dêem prazer.
Você é um espírito eterno. A vida a criou para a felicidade, mas essa é uma conquista que depende de você. Só de você. Procure
me esquecer, pois nunca voltarei para
você. Agora pode ir. Desejo que seja muito feliz.
Mildred apanhou a bolsa, pegou o lenço, enxugou as lágrimas, depois olhou-se no espelho, retocou a maquiagem, guardou tudo

e levantou-se.
- Você está me mandando embora. Nunca pensei que fosse capaz disso.
- Para nós, neste momento, é melhor ficarmos separados. Se
252
um dia a vida nos reunir novamente, espero que estejamos melhor e que nossa convivência seja mais agradável.
Ela não respondeu nada. Virou-se e saiu. Vendo-a, ninguém diria que havia chorado nem que fora desmascarada. Contudo, por
dentro, ela estava chocada. Olhar de frente
para a própria maldade é doloroso e difícil. Encarar as conseqüências do erro colocadas claramente pode ser desagradável,

mas sempre será proveitoso.
No trajeto de volta, ela não conseguia esquecer as palavras de Émerson. Como ele havia descoberto tudo? Só poderia ter sido
Mirtes. Como ela pôde ter sido tão traiçoeira?
Dizia-se sua melhor amiga e a traíra pelas costas.
Lamentou que ela estivesse ausente. Porém não lhe perdoaria aquela atitude. Por mais que negasse, só ela poderia ter contado.

Não acreditava naquela história de
que um espírito houvesse dito.
Émerson usara tal desculpa para proteger Mirtes. Poderia até ser que algum conhecido a tivesse visto indo ao terreiro. Mas,

ainda assim, como ele poderia saber por
que ela fora lá?
Émerson afirmara que pai Tomé nunca mais atenderia ninguém. Era possível que a polícia estivesse sabendo do caso.
Mildred continuava questionando sem ter certeza de nada. Quando Mirtes voltasse, teria de contar-lhe o que sabia.
Sua cabeça doía e as indagações misturavam-se a tal ponto que, ao chegar em casa, ela procurou um comprimido e foi deitarse.

Em um ponto Émerson estava certo: ela
havia perdido os melhores anos de sua juventude esperando por ele, acreditando que um dia ele voltaria.
O que fazer de sua vida agora, depois que ele afirmou de maneira tão categórica que nunca mais voltaria? Como retomar as
ilusões dos tempos de juventude e procurar
um outro amor?
Diante do espelho, no quarto, examinou-se friamente. Estava um tanto pálida, abatida, mas era bonita, elegante, tinha classe,

dinheiro. Por que se prendera tanto
a um amor que ele nunca sentira por ela?
A dor da rejeição machucava, e Mildred sentou-se na cama, chorando copiosamente. Não se lembrava de haver chorado tanto
antes. Quando as lágrimas secaram, sentiu-se
cansada. Encheu a banheira, colocou sais perfumados na água, despiu-se e sentou-se dentro dela.
Era agradável ficar assim, e ela se lembrou de que quando era criança sua mãe costumava deixá-la tomar um banho desses em
sua
253
banheira cheia de sais perfumados. Ela considerava aquilo um presente. Era como se ela fosse a mãe, a dona daqueles aposentos,

os mais luxuosos da casa.
De repente, uma dúvida acometeu-a. Se houvesse casado com Émerson, seriam felizes juntos? Ela não gostava das idéias dele

nem do tipo de vida que ele levava. Não
tinha paciência para ouvi-lo falar de seus estudos nem de seu instituto.
Reconheceu que odiava aquele instituto. Aos poucos foi percebendo que eles eram mesmo muito diferentes. Ela amava o jovem
adolescente que conhecera anos atrás, não
o homem que ele havia se tornado.
Ele não era como ela gostaria que fosse. Reconhecia isso. Essa ilusão havia infelicitado toda a sua vida. Por causa dele,
nunca olhara para os rapazes que a procuravam,
nem aceitara a corte de ninguém. Havia se fechado prisioneira de uma ilusão, de um sonho infantil que nunca se tornaria
realidade.
Naquele momento percebeu a verdade que havia nas palavras que Émerson lhe dissera. Agora precisava dar novo rumo à sua vida.
Talvez uma viagem lhe fizesse bem. No
dia seguinte iria a uma agência de turismo. Passar uma temporada em Nova Iorque seria interessante. Ela gostava de diversão,

movimento. Talvez Los Angeles ou Las
Vegas.
Permaneceu na banheira fazendo planos de viagem até sentir sono. Depois enxugou-se, colocou o pijama e deitou-se. Estava
tranqüila, a dor de cabeça havia passado.
Ajeitou-se e dormiu logo. Sonhou com dois homens de fisionomia desagradável que conversavam com ela.
- Você não pode desistir assim - disse um deles.
- Não é justo - emendou o outro. - Depois de tudo que você passou estes anos todos, agora vai deixar que ele se case e seja
feliz com a outra?
- Você precisa lutar pelo seu amor.
Mildred olhou-os séria e respondeu:
- Deixem-me em paz. Agora quero cuidar de minha vida. Chega
de perder tempo. Vou cuidar de minha felicidade.
- Sua felicidade está com ele - respondeu um. - Isso mesmo. Nós podemos ajudar você. Ela deu de ombros e respondeu:
- Não adianta. Não dá mais. Ele não serve para mim. Eu
estava iludida.
254
- Somos amigos de pai Tomé. Ele desistiu, mas nós não. Continuamos trabalhando para você.
Mildred olhou-os, sacudiu a cabeça e deu uma gargalhada.
- Não acredito em espíritos. Isto é um sonho. Vocês vão sumir e nunca mais me apareçam, porque não acredito. Nunca mais
vou procurar um pai-de-santo. Chega! Eu não
estou aqui para ser enganada.
- Você pediu, nós ajudamos. E agora você tem de retribuir. Não vai se ver livre de nós assim.
Mildred olhou-os com raiva e gritou:
- Vou. Vocês vão embora. De hoje em diante não vou alimentar nenhuma ilusão. Espíritos não existem. Sonho é ilusão. Deixem-me
em paz. Eu não devo nada a ninguém.
Pai Tomé não fez nada, não tem nenhum poder. Eu não lhes devo nada. Agora vão embora!
Mildred disse isso com tanta força que os dois foram arremessados longe. Enquanto ela se afastava, um disse ao outro:
- É melhor irmos embora de vez. Essa é páreo duro. Não vai nos obedecer.
- É. Vamos procurar outra. Ela deu nó até em pai Tomé. É melhor irmos embora mesmo.
Os dois se afastaram e Mildred continuou dormindo tranqüila. No dia seguinte, acordou descansada. Fazia tempo que não se
sentia tão bem.
Levantou-se disposta a programar sua viagem. Abriu as janelas do quarto aspirando com satisfação o perfume das flores que
vinha do jardim.
A lembrança do que acontecera na véspera apareceu de repente em sua mente, provocando certa tristeza.
- É natural - pensou -, mas a partir de hoje tudo será diferente. Não quero me sujeitar a um casamento e às obrigações de
criar uma família. Vou aproveitar a mocidade,
divertir-me, participar das coisas com interesse, descobrir novamente o prazer de viver.

Na tarde anterior, depois que Mildred saiu de sua sala, Émerson ligou para Laura combinando ir buscá-la dali a uma hora.

Os preparativos para o casamento iam adiantados
e eles precisavam ver como andava a decoração da casa. Com alegria, eles examinaram tudo na mansão em que iriam viver depois
do casamento.
Estava escurecendo quando saíram de lá e Émerson convidou
255
a para um lanche em uma confeitaria. Enquanto comiam, Laura tocou no assunto que a incomodava:
- Não me conformo com o que me aconteceu. Sempre fui uma pessoa equilibrada. Não podia ter me deixado dominar daquele jeito.
- Há coisas que ainda temos dificuldade para explicar. Esqueça isso, já passou. Você me parece bastante bem.
- Fisicamente, sinto-me bem. Porém estou fragilizada. Não sabia que era tão vulnerável.
- A magia foi feita para mim, e não foi a primeira vez.
- Você não me disse nada.
- Nesses assuntos, o melhor é não dar importância e buscar proteção. Como eu reagi, busquei ajuda espiritual e consegui
anular, eles foram atrás de você, que não
estava treinada como eu na identificação dessas energias.
- Eles pretendiam me matar?
- Eles queriam nos separar. Um amigo espiritual que nos protege avisou-me e ensinou como anular essas energias.
- Fiquei sem forças. Não conseguia pensar, só queria dormir. Mas era um sono desagradável, pesado.
- Era um transe hipnótico.
- Você disse que aquilo foi feito por um pai-de-santo encarnado. Como é que ele teve tanta força?
- A força deles é aparente. O mal vive de ilusões, explorando os pontos fracos e as crenças das pessoas.
- Depois de haver estudado tanto as energias, não consegui resistir.
- Quando estamos estudando o mundo das energias e suas influências, a vida nos permite vivenciar essas experiências para
aprendermos como funcionam e como nos tornarmos
imunes a elas.
- Quando eu ignorava o assunto, não sentia suas influências.
- Ninguém é imune a elas. Claro que, desenvolvendo a sensibilidade, você as percebe mais. Quem desconhece o assunto, ao
sentir essas influências, pensa que está
doente fisicamente. Recorre aos médicos, toma remédios.
- É por isso que em muitos casos os médicos não encontram nada e receitam calmantes, terapias.
- Os calmantes só ajudam quando o problema é emocional, ou físico. Nos casos de obsessão, de influências de espíritos, eles
fazem mal.
256
- Por quê?
- Porque, anulando a resistência, os espíritos dominam a pessoa com mais facilidade. É por isso que quando sinto algum problema
de saúde repentino, como dor de cabeça,
primeiro recorro à prece, peço ajuda espiritual. Como sou pessoa saudável, ela passa e nunca preciso de remédio.
- Já tive diversos males que com meditação e oração sumiram sem que eu tomasse nada.
- Os males provocados por energias negativas atingem nosso corpo astral e provocam sintomas que se refletem no físico: dores

que circulam ora de um lado ora de outro,
atordoamento, náuseas, arrepios, desânimo, fraqueza, etc. Se nos assustarmos, tivermos medo, elas se tornam mais fortes.

Se mantivermos a calma, não dermos importância
a elas e nos ligarmos com o bem, com a espiritualidade maior, elas vão embora. As vezes é preciso treino e tempo para conseguirmos
isso. Mas é compensador. Quando
nos livramos delas, recuperando o equilíbrio, tomamos consciência do próprio poder e da proteção divina, que nunca nos desampara.
- Depois do que passei, ficarei alerta.
- Após a conversa que tive com Mildred, acho que ela nunca mais tentará nada.
- Eu sabia que havia sido ela. Nunca aceitou nosso noivado. Muitas vezes eu sentia o olhar dela cheio de ódio sobre nós,

embora fizesse tudo para dissimular.
- É preciso compreender. Eu mudei, cresci, aprendi. Tive mestres maravilhosos que me ensinaram a enxergar a vida sob a óptica
da espiritualidade. Ela permaneceu
igual, com a mente parada na adolescência, alimentando as ilusões, distanciada da realidade. Enquanto eu evoluía, ela alimentava
o impossível. Nós somos muito diferentes.
Quando namoramos, eu era um jovem preocupado com as aparências. Sentia-me feliz por namorar uma garota que todos cobiçavam.

Quando perdi meus pais, fui sacudido
pela força espiritual, surgiram os questionamentos. Foi quando percebi que Mildred não tinha condições de me compreender,

que meus valores haviam se tornado muito
diversos dos dela. Tentei conversar, mas ela não entendeu. Antes de viajar sem data para voltar, acabei com nosso namoro,

falei de minhas razões, fiz minha parte.
Por isso, não me culpo pelo fato de Mildred ter continuado esperando.
- Ela preferiu segurar o sonho ao invés de enfrentar a verdade. - Isso mesmo. Mas, depois da conversa que tivemos, sei que
ela
257
finalmente compreendeu quanto somos diferentes. Nunca seríamos felizes juntos.
- Tem certeza de que ela não voltará a nos prejudicar?
- Tenho. Mostrei-lhe quanto se prejudicou alimentando um sonho impossível. Senti que compreendeu. Por isso, hoje estou particularmente
feliz.
- Eu também. Faço votos de que ela encontre a felicidade. Houve um tempo em que senti muito ciúme dela. Mas isso também
foi uma ilusão de nossa adolescência.
- Naquele tempo você escondia seu brilho. Só consegui vê-lo quando regressei.
- Eu admirava as garotas que se sobressaíam, tinham admiradores. Como eu não tinha jeito para agir como elas, me menosprezava.

Durante muitos anos vivi retraída,
com medo de me expor. Foi você quem me ensinou a enxergar minhas qualidades, a reconhecer meus valores, a ter paciência
com meus pontos fracos.
- Apesar das diferenças, ninguém é menos. Cada pessoa tem dentro de si a essência divina. Fomos ensinados a olhar para fora,

valorizar mais os outros. É elegante
diminuir-se para que os outros brilhem. Muitos pagam um preço caro por essa ilusão.
- Vivem à margem da vida, insatisfeitos, procurando conformar-se com o pouco que tem.
- Quem acredita que é menos merece pouco. A vida nos deu um potencial imenso para desenvolver. Ela nos estimula de várias
formas, mas a conquista do progresso é
trabalho nosso. Ninguém pode fazê-lo por nós. Quando você se omite, está falhando em sua mais importante missão, que é a
de cuidar de si.
- Dizem que é egoísmo.
- Egoísmo é julgar-se superior aos outros. Se ninguém é menos, também ninguém é mais. Alguns estão mais desenvolvidos espiritualmente
que outros, mas todos têm o
mesmo potencial. Essa é a justiça divina. Mesmo Ele tendo criado a diversidade, não existem duas pessoas iguais. Mas todas
têm potenciais que, se desenvolvidos,
as tornariam felizes e realizadas. Mas essa é uma conquista individual.
- O fato de eu cuidar de mim, do meu progresso, reconhecendo minhas qualidades, meus pontos fracos, não significa que eu
precise menosprezar os outros. Para mim,
eu estou em primeiro lugar. Tenho de trabalhar para suprir minhas necessidades e tornar-me uma pessoa melhor. Mas o respeito
aos outros é necessário.
258
- Respeitar significa aceitar os outros como são, sem a pretensão de querer mudá-los.
- Resta-nos o cuidado de escolher bem os amigos. Quanto às pessoas em geral, deve-se ter o bom senso de evitar as que nos
incomodam.
Émerson sorriu.
- Vejo que aprendeu depressa.
- Desejo que Mildred nos esqueça. Não sinto nenhuma mágoa pelo que nos fez, mas não quero conviver com ela.
- Todos temos o direito de preservar o próprio equilíbrio evitando energias que nos perturbam.
Continuaram conversando, esquecidos do tempo, imersos na afinidade de pensamentos que tornava seu relacionamento agradável.

Juntos sentiam-se bem. Ambos interessavam-se
em aprender a viver melhor.

No fim da tarde Marcelo deixou o escritório, passou em uma banca de jornais, comprou uma revista e foi para casa. Como
sempre fazia antes do jantar, tomou um banho.
Enquanto esperava a refeição, sentou-se na sala para ler a revista.
De repente estremeceu. Havia uma foto de Rômulo e Nora abraçados, e a legenda dizia que, como o casamento se realizaria
em quinze dias, eles estavam atarefados com
os preparativos da festa.
Marcelo pensou em Renata. Teria ela visto a reportagem? Pensou em ligar, mas hesitou. Se ela não a viu, não seria ele a
dar-lhe a notícia.
A mãe chamou-o para o jantar, e ele sentou-se à mesa calado. Iolanda olhou-o séria e indagou:
- Aconteceu alguma coisa? Você parece preocupado.
- Não houve nada. Estava pensando em uma matéria que li na revista.
Após o jantar ele subiu para o quarto. Sentia-se inquieto, preo
cupado. Renata não saía de seu pensamento. Resolveu telefonar para
saber como ela estava. Decidiu que não tocaria no assunto.
Ligou e depois dos cumprimentos ele procurou conversar sobre
outros assuntos. Renata estava comunicativa e alegre como sempre,
e ele concluiu que ela não havia visto a revista.
- O que você está fazendo agora? - indagou ela. - Nada. Não tenho nenhum programa para hoje. - Nesse caso, venha tomar
um café comigo.
259
- Está bem, irei. Dentro de quinze minutos estarei aí.
Satisfeito, ele se arrumou e saiu. Seria bom estar por perto, caso alguém contasse a ela que em duas semanas Rômulo estaria
casado.
Durante o trajeto foi pensando em Renata. Sentia um carinho muito grande por ela. Tinha vontade de protegê-la para que ninguém
a fizesse sofrer.
Parou em uma floricultura e comprou algumas rosas. Quando tocou a campainha, o criado abriu a porta. Renata estava logo
atrás dele sorrindo.
Marcelo entrou e entregou-lhe as flores. Ele notou que os olhos
dela brilharam de satisfação.
- Que lindas, Marcelo! Venha, vamos colocá-las num vaso. Ele a acompanhou até a sala de estar e a observava enquanto ela
arrumava as flores. Seu rosto estava tranqüilo e corado, a expressão
de seu rosto era alegre.
- Pedi para você vir porque estou me sentindo muito feliz e
queria dividir esta alegria com você.
- Gosto de vê-la assim.
Sentaram-se no sofá e Renata contou que os pais haviam saído.
Marcelo convidou:
- A noite está muito bonita. Vamos dar uma volta, tomar um
sorvete?
- Vamos. Vou apanhar a bolsa.
Enquanto ele esperava, aproximou-se do porta-revistas e estremeceu. Em cima de todas as publicações estava um exemplar da
que ele havia comprado. Talvez Renata não
a tivesse visto ainda. Sentiu vontade de escondê-la. Mas nesse instante ela estava de volta.
- Vamos?
Saíram, e Marcelo estava indeciso. Não sabia se deveria tocar
no assunto, preveni-la, porque fatalmente ela leria a notícia. - Você mudou, ficou calado. O que foi? - Nada.
- Você tem alguma coisa. Por que não me conta?
- Não há nada. Gosto de vê-la alegre, e não desejo que nada
venha perturbar essa sua alegria.
- Você é meu melhor amigo. Vou contar-lhe o motivo da mi
nha felicidade.
- Eu sabia que havia algum.
Ele parou o carro, virou-se para ela e esperou.
- Hoje eu estou livre, completamente livre do passado.
260
- Explique melhor.
- Minha mãe trouxe uma revista esta manhã e encontrei nela notícias do casamento de Rômulo em breve. Não senti absolutamente
nada. Olhando os dois, pareceu-me estranho
que eu tivesse sofrido por ele. Foi como se tivesse caído uma venda de meus olhos. Então recordei-me de todas as implicâncias
dele, dos momentos desagradáveis do
nosso namoro, de como ele agia comigo, e cheguei à conclusão de que nunca o amei de verdade. Era por vaidade que eu me sentia
no ápice quando desfilávamos juntos
em sociedade. Descobri que esse namoro foi a forma que encontrei de me projetar como uma moça de classe, de sucesso. Foi
por vaidade ferida que sofri tanto com nosso
rompimento. Eu o usei como uma bengala para aparecer, porque me achava menos, sem condições de agradar por mim mesma. Foi
você primeiro e depois Émerson que me fizeram
enxergar a vida de outra forma. Aprendi com vocês a me ver como sou, a sentir que não preciso me apoiar nos outros para
ser feliz. Pedi para você vir porque queria
que soubesse como me sinto.
Os olhos de Renata brilhavam emotivos. Marcelo sentiu-se tocado e num gesto carinhoso abraçou-a apertando-a de encontro
ao peito. Depois beijou-a nos lábios com
amor. A emoção irrompeu forte e eles se beijaram longamente várias vezes.
- Eu a amo - disse ele emocionado. - Nunca senti por ninguém o que estou sentindo agora. Gostaria que este momento fosse
eterno.
- Eu ainda não sei o que é esta emoção que me invadiu quando me beijou. Também não havia sentido nada assim antes. Não sei
se é amor, mas este momento é mágico e
eu quero que me beije mais.
Eles se beijaram novamente, depois ela descansou a cabeça no peito dele e permaneceram assim longamente, sentindo as emoções
do momento, o prazer da descoberta e
a alegria de um amor correspondido.
261

Sentada na primeira classe do avião, Mirtes sentia-se impaciente para chegar a São Paulo. A viagem ao lado de Humberto tinha
sido maravilhosa. Ele, muito apaixonado,
disposto a agradar, cercava-a de atenções. Habituado àquelas viagens, levava-a para conhecer o que havia de mais interessante,

hospedava-a nos melhores hotéis e,
o que a deixava mais contente, dera-lhe um cartão de crédito sem limites para gastar.
Além de comprar roupas de grifes famosas, jóias e tudo que sua fantasia inventava, freqüentava os melhores salões de beleza.

Mirtes tinha bom gosto e com todo trato
havia se tornado ainda mais bonita. Por onde passava despertava interesse, e Humberto não escondia o ciúme, não a deixando
sozinha em momento algum.
De volta ao Brasil depois de um mês e meio de lua-de-mel - eles haviam esticado a viagem -, Mirtes não via a hora de chegar

para poder desfilar pela alta sociedade
263
usando as coisas lindas que comprara. Sentia prazer em provocar inveja nas mulheres e cobiça nos homens.
Finalmente o avião aterrissou em São Paulo. No saguão do aeroporto, o motorista de Humberto os aguardava. Os filhos dele
não foram esperá-los, cada um pretextando
uma desculpa. Mirtes não se importou. Sentia que os dois rapazes não haviam aceitado o casamento, mas essa atitude não a
incomodava. Pior para eles.
Uma vez em casa, enquanto os criados cuidavam da bagagem, que era volumosa, Mirtes percorreu a luxuosa propriedade, olhando
cada canto com olhos brilhantes de orgulho.
Tudo aquilo era seu! Finalmente era mulher da alta sociedade. Imaginou as festas que daria no magnífico salão, as pessoas
que convidaria. Certamente Valdo com a
família. A lembrança da cena de Alzira nos braços dele enchia-a de raiva. Mas, por outro lado, não levava aquilo muito a
sério.
Valdo era namorador. Alzira deve ter dado em cima e ele aproveitou. Era provável que nunca mais houvessem se encontrado

e tudo não tenha passado de um flerte de
festa.
Reconhecia que Alzira havia ficado bonita vestindo aquelas roupas, usando jóias e tendo sido cuidada por gente capacitada.

Mas Valdo estava familiarizado com mulheres
de classe, e Alzira seria uma entre tantas.
Com o tempo, ele ainda haveria de se interessar por ela. Agora que ele não precisaria assumir nenhum compromisso, tudo seria
mais fácil.
Mirtes estava disposta a conquistá-lo de qualquer jeito. Ele sempre se mostrou arredio, e isso o tornava mais interessante.

Era o que faltava para que a felicidade
dela fosse completa.
Humberto aproximou-se solícito:
- Não está cansada?
- Não. Estou ansiosa para ver nossos amigos.
- Entendo que sinta saudade de sua família. Foi a primeira vez que saiu de casa durante tanto tempo. Mas viajamos a noite
toda.
Saudade da família foi o que ela não sentiu em nenhum momento. Mas não negou. Para Humberto ela precisava continuar fazendo
o papel da boa moça. Por isso respondeu:
- Eu gostaria de ir lá agora mesmo. Mas tem razão: precisamos descansar. Vou mandar a criada preparar um bom banho com aqueles
sais que comprei em Paris. Preciso
ficar cheirosa e descansada para meu marido.
264
Ele a beijou delicadamente nos lábios e Mirtes esboçou ligeiro protesto, alegando:
- Estou transpirando. Não quero que se aproxime. Fico constrangida.
- Não fique. Você está sempre cheirosa. - Vou subir e me preparar para você.
Ele sorriu contente. Enquanto circulava pela casa com o mordomo, verificando tudo, ele se sentiu o mais feliz dos homens.

A indiferença dos filhos, que nem foram
ao aeroporto dar-lhes as boasvindas, não o incomodava. Ao contrário, justificava-se pensando que casar havia sido providencial,

porquanto filhos não se importam
com a solidão dos pais. Cuidam de suas vidas, seguem seu caminho e pronto. Agora, ele nunca mais ficaria sozinho. Havia
encontrado uma companheira que o amava e
o fazia feliz.
Estendida na tepidez da banheira cheia de espuma, Mirtes apanhou o telefone e discou para Mildred. A criada atendeu e informou:
- Dona Mildred não está.
- Quando ela chegar, diga que Mirtes voltou. Peça-lhe para me telefonar.
- Ela viajou ontem para a Itália sem data para voltar. Mirtes sentou-se na banheira, surpreendida. - Viajou para a Itália?

Com quem?
- Ela foi sozinha. Dona Augusta não queria que ela fosse. Mas a senhora conhece Dona Mildred. Quando ela quer uma coisa,

não desiste.
- Ela não deixou nenhum recado para mim? - Não, senhora.
- Peça a Dona Augusta o telefone e o endereço do hotel onde ela vai ficar. Preciso falar com ela. Acabei de chegar de viagem.

Mais tarde telefono para saber.
Mirtes desligou intrigada. O que teria feito Mildred modificar seus planos? Estava curiosa. Mildred ajudara-a muito com
os preparativos e o cerimonial do casamento,
mas agora não precisava dela para nada.
Sentia-se segura em sua nova posição. Apreciava a companhia de Mildred porque com ela não precisava fingir. Ela era sua
única amiga. Desejava mostrar-lhe as compras
que fizera, falar dos lugares que visitara.
Demorou-se na banheira, imaginando como seria sua vida dali para a frente. Humberto era o marido ideal. Manejava-o com facilidade.
265
Seus projetos amorosos, que incluíam Valdo, não iam além da aventura que o mistério tornaria mais interessante.

Mas de forma alguma desejava perder o apoio
do marido, porque era importante conservar o respeito e as aparências.
Mirtes pretendia brilhar em todos os aspectos, inclusive no papel de esposa virtuosa. Gostava de representar papéis convenientes,
conforme o momento. Sentia-se esperta,
inteligente, capaz.

Naquela tarde Valdo conversava com o pai no escritório sobre os negócios da empresa. Tudo ia muito bem: as vendas aumentando,

os clientes satisfeitos com o desempenho
dos novos produtos, que se multiplicavam rapidamente.
- Estou pensando em viajar um pouco com sua mãe - disse Péricles.
- Quando pensa ir?
- Laura se casa na semana que vem. Pensamos em partir alguns dias depois do casamento, o tempo suficiente para sua mãe se
preparar. Sabe como ela é.
- Sei. É uma boa idéia. Quanto tempo pensa ficar fora?
- Não sei ainda. Vai depender de Almerinda. Estou disposto a ficar quanto tempo ela desejar. Antigamente nossas viagens
eram curtas por causa dos negócios, mas agora,
com você na direção, podemos nos demorar.
- Aproveitem bem, porque, quando voltarem, será minha vez. Tenho viajado muito a trabalho, mas desta vez pretendo sair a
passeio.
- Sozinho não tem graça. Aliás, sua mãe ontem estava falando sobre você.
- Falando o quê?
- O casamento de Laura com Émerson deu-nos dupla satisfação. Ele sempre foi como um filho para nós. Tenho certeza de que
serão muito felizes e logo nos darão os
netos que desejamos. Mas você é mais velho do que ela e nem pensa em formar uma família.
- Não devem se preocupar com isso.
- Não é uma preocupação, mas uma interrogação. Você circula, as moças ficam em volta, é amável com elas, namora aqui e ali,
mas que eu saiba nunca se apaixonou para
valer.
- Não sou volúvel, pai. Estava apenas procurando encontrar a mulher com a qual valeria a pena casar.
- Estava? Quer dizer que já a encontrou?
- Sim.
266
Péricles sorriu e perguntou:
- Quem é ela? Nós conhecemos?
- Ela não é de nossa roda de amigos, mas vocês a conhecem. Estamos namorando. Se ela me quiser, acho que chegarei ao casamento.
- É mesmo sério! Gostaria de conhecê-la.
- É cedo. É uma moça de boa família, linda, lúcida, bonita por dentro e por fora!
- Você está apaixonado mesmo.
- Estou. Por mim, casaria amanhã. Mas preciso ir com calma. Ela também me ama, mas reluta, porque vive do próprio trabalho
e não pertence ao nosso meio social.
- Isso é bobagem. Quando conheci Almerinda, ela também trabalhava para se sustentar.
- Mas você também não era rico. Para mim o que conta são os valores espirituais, as qualidades pessoais. Conheci muitas
mulheres bonitas, mas nenhuma delas provocou
em mim esse sentimento de euforia, de alegria, de paz que sinto quando estou com ela.
- Nesse caso, decida de uma vez. Peça-a em casamento e pronto. Você não precisa casar com moça rica. O que você possui
é mais do que suficiente para manter uma
família. Se ela é tudo isso que você diz, não perca tempo. Não lhe dê chance de pensar muito.
Valdo sorriu. Talvez o pai estivesse certo. Depois que Péricles se foi, Valdo ficou pensando e tomou uma decisão. Mandou
chamar Antônio em sua sala.
O pai de Alzira bateu levemente na porta.
- Entre, Sr. Antônio. Sente-se, por favor. Precisamos conversar.
Antônio sentou-se em frente à escrivaninha, dizendo:
- O senhor precisa de algum relatório? Não me disseram nada. - Não. Não vamos conversar sobre trabalho. Nosso assunto é
particular.
- Aconteceu alguma coisa?
- Aconteceu, Sr. Antônio. E preciso de sua ajuda. - Estou à disposição.
- Quero que dê seu consentimento para eu me casar com sua filha Alzira.
Antônio abriu a boca e fechou-a de novo sem encontrar de pronto uma resposta. Alzira não dissera nada, e ele ignorava que
estivessem namorando.
267
- Gostei de Alzira desde o primeiro dia em que a vi. Mas foi no casamento de Mirtes que nos entendemos. Estamos namorando.

Eu a amo e tenho certeza de que ela corresponde.
Apesar disso, hesita em me aceitar por causa de minha condição financeira. Não acho válido esse argumento. Por isso, recorro
ao senhor.
- Não sei o que dizer. Alzira não me disse nada.
- O senhor me conhece apenas profissionalmente. Sou um homem de bem, amo minha família, pretendo ser um bom marido para
sua filha.
- Não tenho dúvidas sobre isso. Mas é que preciso conversar com Alzira, saber o que ela quer. Também tenho de falar com
minha mulher. Não posso decidir nada sem
conversar com elas.
- Compreendo. Eu deveria ir à sua casa, fazer esse pedido de maneira formal. Desculpe. É que ainda há pouco conversei com
meu pai, que me sugeriu formalizar logo
o pedido.
- Dr. Péricles concorda com esse casamento?
- Claro. Minha família deseja minha felicidade. Aprova a moça que eu escolher. Espero que o senhor também aprove. Garanto
que farei Alzira muito feliz.
- Bem, de minha parte fico muito honrado com seu pedido. Se Alzira concordar, terei muito gosto em recebê-lo como genro.
- Isto merece uma comemoração.
Valdo levantou-se, foi à sala contígua e voltou com bandeja, garrafa e dois copos. Serviu o vinho, ofereceu um copo a Antônio

e tomou o outro, dizendo:
- Um brinde à felicidade de nossas famílias.
Tocaram os copos e Antônio tomou alguns goles. Sentia-se emocionado. Nunca imaginara que Alzira pudesse casar-se com o dono
da empresa. Ela, que sempre fora uma
moça simples, discreta, ia casar-se com um moço bonito e tornar-se muito rica.
- Gostaria que me recebesse em sua casa hoje à noite para tratarmos do assunto.
- Será um prazer. Estaremos à sua espera.
Antônio saiu da sala procurando refazer-se da surpresa. Passou por Alzira e disse:
- Venha à minha sala. Temos de conversar.
Pela fisionomia do pai, percebeu que alguma coisa havia acon
tecido. Imediatamente o acompanhou. Uma vez na sala, ele disse: - Valdo acabou de me pedir sua mão em casamento. Alzira

sentou-se e murmurou:
268
- Ele não me disse nada. Como foi isso?
- Você também não me disse que estavam namorando. - Eu achava que você não ia gostar.
- Não ia mesmo. Ia pensar que ele estava querendo se aproveitar de você. Mas agora vejo que é sério. Ele quer casar. Você
gosta mesmo dele?
Os olhos dela brilharam quando respondeu: - Gosto muito!
- Hmm... Basta olhar para você para saber. - O que foi que você respondeu?
- Que ia falar com você e Estela. Ele vai em casa hoje à noite para saber a resposta. Mas tinha certeza de que você o aceitaria.

Abriu uma garrafa de vinho e fizemos
o brinde para comemorar.
- E a família dele, o que dirá quando souber?
- O pai já sabe. Foi o Dr. Péricles que o aconselhou a fazer logo o pedido.
- Puxa. Nesse caso, ele falava sério mesmo.
- Muito sério. Gostei do jeito como ele me pediu. Quis até
convencer-me de que será um bom marido para você.
Alzira levantou-se e beijou o pai na face, dizendo contente: - Pai, sou a mulher mais feliz do mundo!
- Sua mãe vai gostar, mas ao mesmo tempo vai ficar triste. Va
mos ficar sem você em casa.
- Estarei sempre com vocês.
- Nem sei o que dizer. Nossa vida melhorou mesmo. No ano passado eu estava desempregado, desesperado, sem dinheiro. Hoje
estou trabalhando em uma empresa séria,
sendo valorizado pelos patrões. Tenho uma filha rica e outra que vai se tornar a dona desta empresa.
- Se Deus nos deu tudo isso, foi porque merecemos. Nos momentos ruins não perdemos a coragem nem a fé. É hora de agradecer.
- É o que farei todos os dias. Depois que nos ligamos à espiritualidade, tudo começou a melhorar. Senti-me mais calmo e
alegre. Em casa há harmonia.
- Agora preciso voltar ao trabalho. Nem sei se conseguirei prestar atenção ao serviço.
Antônio sorriu contente. Ele também se sentia eufórico. Queria que o tempo passasse depressa para chegar em casa e contar
a novidade à esposa.
269
Quando Alzira ia saindo da sala de Antônio, Valdo estava à sua procura.
- Meu pai já me contou. Por que não me disse o que pretendia fazer?
- Eu queria fazer o pedido, mas não sabia como nem quando. Meu pai agora à tarde sugeriu que eu não perdesse mais tempo.

Então resolvi falar com seu pai, assim você
não teria mais argumentos para recusar.
Alzira alteou a cabeça levemente para trás, sorriu e respondeu: - Quem lhe disse que eu recusaria? Ele a abraçou e ela enrubesceu,

dizendo: - Estamos no corredor!
Alguém pode ver! - E daí? Vamos nos casar.
- Aqui sou uma funcionária. Não quero abusar. Vou terminar
meu serviço. A noite conversaremos.
Antes que ele respondesse, Alzira apressou-se a ir para sua mesa.
Precisava terminar algumas cartas. Era namorada do dono, mas não
queria abusar.
Quando chegaram em casa, Estela ao saber do pedido não conteve as lágrimas.
- O que é isso, mãe?
- São lágrimas de felicidade. Você não me contou nada. A ocasião merece comemoração. A que horas ele ficou de vir?
- Às oito - respondeu Alzira.
- Temos duas horas. Enquanto você vai se arrumar, Antônio vai comprar duas garrafas de champanha e alguns salgadinhos.
À noite, quando Valdo chegou à casa de Alzira, ela o esperava emocionada. Ele levou um ramo de flores para Estela, que agradeceu
com voz trêmula. Antônio convidou-o
a sentar-se na sala e Alzira sentou-se ao lado dele no sofá.
Os pais de Alzira sentiam-se inibidos diante do rapaz. Afinal ele era um moço fino, de classe. Porém Valdo, notando a timidez
dos futuros sogros, logo colocou-se
à vontade, conversando com naturalidade e respeito.
Falou do amor que sentia por Alzira, da felicidade por haver sido aceito como membro daquela família. Suas palavras sinceras
tocaram o coração deles, que logo perderam
a timidez inicial.
O carisma de Valdo tornava-o querido por todos onde quer que fosse. Quando ele se despediu, Alzira acompanhou-o ao portão.
Estela comentou com o marido:
270
- Que moço encantador! Chorei pensando que íamos perder nossa filha, mas agora acho que acabamos de ganhar um filho.
- Também gosto dele. Você precisa ver no escritório, como ele age. É firme, direto, exigente no serviço, mas ao mesmo tempo
justo e compreensivo. É um verdadeiro
líder. Por isso Dr. Péricles o colocou na direção da empresa.
Alzira voltou à sala. Estendeu a mão na qual luzia um anel de brilhantes, dizendo:
- Estamos noivos! Ele quer marcar a data do casamento.
- Puxa, por falar nisso, Mirtes já deve ter voltado da lua-de-mel. Nem nos telefonou.
- Ela deve estar muito ocupada - tornou Alzira.
- Por que não telefona para ela? - sugeriu Antônio.
- Não - disse Estela. - A vida dela agora mudou. Não quero
incomodar. Ela sabe onde estamos. Virá quando quiser.
Alzira lembrou-se das palavras que a irmã costumava dizer:
- Um dia vou sair desta casa, ser muito rica, e vocês não vão
me ver mais.
Porém não disse nada. Sua mãe tinha razão. Quando sentisse vontade, ela os visitaria.
Foi para o quarto olhando encantada para o anel que brilhava em seu dedo. Era lindo! Mas seu significado era ainda maior.

Era um laço de amor entre ela e Valdo.
Naquela noite Alzira custou a adormecer, sonhando com o futuro.

No dia seguinte, Mirtes acordou tarde. Tornou o café na cama. Humberto havia saído e ela aproveitou para abrir os pacotes
e rever tudo que comprara durante a viagem.
Em meio a tantas coisas bonitas, nem notou o tempo passar. Humberto chegou para almoçar e foi encontra-la ainda no quarto.

- Veja que lindo este colar de jade.
- Você é mais linda do que tudo isso.
Ela sorriu contente.
- Já avisou sua família que chegamos? Mirtes fingiu surpresa:
- Fiquei tão entretida que esqueci.
- Seria bom irmos até lá esta noite para levar os presentes. Cer
tamente você comprou muitas coisas para eles.
Mirtes mordeu os lábios. Ela não havia comprado nada. - Eu prefiro telefonar. Melhor não irmos lá esta noite.
271
- Pensei que estivesse com saudade deles.
- Estou. Mas preciso confessar uma coisa. Espero que com
preenda. Eu discuti com meus pais antes de nosso casamento. - Por quê?
Ela hesitou um pouco, depois disse:
- É que eles fizeram de tudo para eu desistir. Diziam que você era muito velho para mim, que eu ia me arrepender. De nada
valeu eu dizer que o amava. Eles insistiram
tanto... Como eu não quis obedecer, nos desentendemos.
- Mas eles vieram ao casamento, trataram-me bem. Não percebi nada.
- É que, quando viram que eu fiquei firme, conformaram-se. Mas até o último momento tentaram fazer com que eu mudasse de
idéia. Por isso, não acho bom irmos lá juntos.
- Eles temiam que eu não a fizesse feliz. Mas agora, vendo que nos damos bem, verão que estavam enganados.
- Vamos deixar o tempo passar. Eu telefono, aviso que voltamos, levo os presentes amanhã ou depois, e pronto.
- Faça como quiser.
Mirtes sorriu contente. Humberto não lhe daria trabalho para manejar.
Só no fim da tarde Mirtes resolveu ligar para a mãe e avisar da chegada. Depois de conversar com Estela, falar de sua felicidade
e das coisas que havia comprado,
Mirtes concluiu:
- Diga a Alzira para deixar as jóias que lhe emprestei com você. Amanhã passarei para buscá-las. Tenho muitos compromissos
e não sei a hora que irei.
- Estão guardadas comigo desde o dia de seu casamento. Passe a hora que quiser.
Estela desligou o telefone pensativa. Por que suas filhas eram tão diferentes uma da outra?
Quando Alzira e Antônio voltaram do trabalho, Estela contou-lhes que Mirtes havia ligado, mas omitiu o recado das jóias.

Estavam felizes, e ela não desejava de forma
alguma entristecê-los. Havia aprendido que, para conservar a harmonia no lar, era preciso evitar pensamentos ruins. A mesquinhez
de Mirtes era inoportuna e desagradável.
Estela resolveu não dar nenhuma importância a suas palavras.
272
Mirtes apareceu na casa dos pais às quatro da tarde, ostentando seu luxo, satisfeita por notar a vizinha olhando-a atrás
de uma das janelas.
Estela recebeu-a com alegria:
- Como você está bonita!
- Estou muito bem. Fiz uma viagem maravilhosa. Minha casa, então, acabaram de decorar. Ficou deslumbrante! - Que bom. Quer
um café, um suco?
- Não. Tenho um chá logo mais com alguns amigos. Passei aqui para saber de vocês e buscar minhas jóias.
Estela subiu, apanhou os estojos e entregou-os a ela, que esperava na sala. Mirtes abriu e conferiu tudo.
- Está em ordem. Alzira continua trabalhando naquele emprego pobre?
- Continua. Mas será por pouco tempo. Ela ficou noiva ontem à noite.
Mirtes franziu o cenho admirada:
- Noiva? De quem?
- Do chefe dela. Valdo.
Mirtes levantou-se de um salto e exclamou:
- De Valdo! Não pode ser! Ele só pode estar se aproveitando da ingenuidade dela. Bem que os vi juntos no jardim no dia de
meu casamento. Mas não tive tempo de avisar.
- Você está enganada. Ele falou com seu pai e pareceu-nos muito sério. Quer marcar a data do casamento.
- Ele não vai se casar com ela. Sempre foi um namorador, não leva nenhuma moça a sério.
- Não é o que nos pareceu. Tem certeza do que está falando?
- Claro que tenho. Eu o conheço há tempos. Uma vez me convidou para ir ao cinema. Eu fui, mas depois eu não quis mais sair
com ele. Vi logo que era um aproveitador.
Estela ficou preocupada. Teriam se enganado tanto?
Mirtes sentiu-se sufocar de raiva. Apanhou a bolsa, dizendo:
- Agora preciso ir. Mas fale com papai para não deixar esse namoro ir adiante. Ele é quem poderá tomar providências. Com
Alzira não vai adiantar falar, ela não vai
me ouvir.
Depois que ela se foi, Estela sentiu-se atordoada. Foi à cozinha, tomou um copo de água e respirou fundo. Aos poucos foi
se acalmando. Mirtes podia estar errada.
Antônio trabalhava todos os dias com
273
Valdo. Se ele não fosse um bom moço, teria sabido. Em um ambiente de trabalho essas coisas nunca ficam ocultas.
Mirtes saiu de lá tentando conter a raiva. Como a insignificante Alzira havia conseguido conquistar Valdo? Como ela se atrevia
a roubar seu sonho de amor? Isso não
iria ficar assim. Aquele casamento não poderia consumar-se. Faria tudo para impedir. Valdo era seu e não o deixaria para
mais ninguém.
Pensou em Mildred. Se ela estivesse por perto, poderia ajudá-la a dar um jeito naquilo. Precisava falar com ela.

Na véspera tinha con
seguido o endereço onde ela estava. Ligara para o hotel, mas ela ha
via saído. Tentaria novamente.
Pensando nisso, decidiu voltar para casa. Trancou-se no quarto
e ligou para o hotel. Desta vez foi mais feliz: Mildred havia acabado
de chegar.
Depois dos cumprimentos, Mirtes tornou:
- Cheguei ansiosa para ver você e fui surpreendida com sua viagem. O que aconteceu? Você não me contou que pretendia viajar.
- Aconteceu que resolvi mudar minha vida. O tempo passa e não vou perder mais tempo esperando por alguém que não me quer.

Agora vou cuidar de mim. Encontrei aqui
na Itália algumas pessoas com as quais tenho saído. Estou me divertindo muito.
- Quer dizer que desistiu de Émerson?
- Sim. Ele não serve para mim. Não faria minha felicidade. Vou levar a vida do jeito que eu gosto. Ele vai casar-se com
Laura. Que faça bom proveito.
- Então aquele pai-de-santo não fez nada. Bem que eu avisei. Essas besteiras nunca funcionam.
Mirtes falou da viagem, das coisas que havia comprado, de como a casa ficara bonita. Depois disse:
- Preciso de sua ajuda. Você é minha única amiga. Quando é que você volta?
- Não sei. Enquanto estiver bom aqui, vou ficando.
- Não posso esperar muito. Valdo resolveu casar com minha
irmã. Preciso fazer alguma coisa para impedir esse casamento. Queria
que estivesse aqui para me ajudar.
- Você ainda está apaixonada por ele?
- Não. Mas quero que ele se apaixone por mim. Ele não serve
para a boba da Alzira. Então, você vem?
274
- Não. Quando eu disse que ia pensar em mim, falei sério. É o que estou fazendo. Para dizer a verdade, seu problema não
me interessa. Ou melhor, seria bom que você
deixasse sua irmã e Valdo em paz. Posso dizer por experiência própria que isso não vai dar certo. Ele não ama você. Insistir

não vai adiantar.
- Quer dizer que se recusa a me ajudar?
- Sim. Já ajudei você até demais. Agora chega.
- Nunca esperei isso de você. Ainda vai precisar de mim.
- Não preciso de ninguém. Posso cuidar da minha vida muito
bem.
Mirtes bateu o telefone irritada. Mildred havia mudado. O que teria acontecido com ela?
Estendeu-se na cama tentando chegar a alguma idéia para separar Alzira de Valdo. Ela não notou que alguns vultos escuros
se aproximaram dela, segredando-lhe frases
aos ouvidos.
Continuou ali sem perceber que as idéias que lhe ocorriam vinham dos vultos negros que a circundavam.
275
I

Todas as tardes Mercedes lia as colunas sociais à procura de notícias de Humberto e a esposa. Por isso, pôde vêlos nas revistas
em vários lugares da Europa. A beleza
e a juventude de Mirtes exacerbavam seu ciúme, e ela passava noites em claro imaginando um nos braços do outro na intimidade,
sentindo seu ódio aumentar a cada dia.
A solidão e a saudade dos bons momentos que desfrutara ao lado dele aumentavam seu sofrimento, sua sensação de perda, sua
insatisfação. Era com impaciência que esperava
que o tempo passasse e eles voltassem ao Brasil
Diante de alguns amigos que conheciam seu drama e que tentavam confortála, ao mesmo tempo que a aconselhavam a tentar esquecer
Humberto, Mercedes dissimulava o ódio
que sentia. Lamentava-se, revelava sua tristeza, dizia-se vítima da ingratidão de Humberto, chorava. Mas, apesar disso, dizia

que o perdoava porque
277
ainda o amava e desejava de coração que ele fosse feliz com a nova companheira.
Foi um amigo comum quem lhe telefonou informando que o casal havia regressado. Imediatamente ligou para o detetive Sobral,

porém ninguém atendeu. Ligou várias vezes,
mas só no fim da tarde conseguiu encontrá-lo.
- Você precisa agir. Eles já voltaram.
- Está bem, madame. Temos de conversar. Onde podemos nos encontrar?
- Não quero que venha à minha casa. Ninguém pode saber
que está trabalhando para mim.
- Pode confiar. Nosso trabalho é sigiloso.
Ela combinou um encontro em um lugar discreto e pouco
freqüentado. Queria que fosse naquele mesmo dia, mas, como ele não
podia, ficou para a manhã seguinte.
Foi com impaciência que Mercedes esperou pelo encontro.
Compareceu pontualmente no local combinado, onde ele já a estava
esperando. Ela parou o carro, e ele abriu a porta e sentou-se a seu lado. - Vamos dar uma volta - pediu ele. Pararam em uma
rua deserta e Mercedes indagou impaciente:
- E então? Já planejou o que vai fazer? - Estive pensando... Talvez possamos resolver isso de uma for
ma mais leve e com menos risco. - Como?
- Armando uma cilada para ela. O que o marido faria se a sur
preendesse nos braços de outro?
- Ficaria furioso. Humberto é cheio de princípios. Perderia a
cabeça, com certeza.
- Talvez ele mesmo acabasse com ela, o que nos deixaria livres
de qualquer suspeita.
Mercedes pensou um pouco, depois respondeu:
- Ele iria preso, e de que me serviria? Estaríamos separados do
mesmo jeito. Eu quero que ele volte para mim.
- Ele tem nome e dinheiro. Iria se livrar da justiça com facili
dade. Um homem que mata a mulher por traição tem a simpatia do
júri. Os homens são solidários entre si.
- Mesmo assim, acho arriscado. Ele está apaixonado por ela. Em
vez de matá-la, pode até se suicidar.
Sobral coçou a cabeça, dizendo:
- Nesse caso, só resta fazer a encomenda.
278
- Quanto tempo vai demorar?
- Terei de ir ao Mato Grosso falar com Dinho e acertar os detalhes. O plano tem de ser bem-feito.
Ela concordou. Combinaram que ela daria a Sobral uma quantia em dinheiro para as despesas. Quando ele voltasse, informaria
o preço estipulado por Dinho.
Tudo acertado, deixou o detetive no lugar em que o apanhara e voltou para casa.
Quando pensava que dentro de pouco tempo Mirtes estaria fora de seu caminho, sentia um aperto no peito, um certo medo,
mas visualizava novamente as cenas de amor
que havia imaginado, pensava nos anos de amor e dedicação que dera a Humberto, e o rancor reaparecia com toda a força.
Aquela moça não podia amar Humberto. Era pobre e com certeza casara por causa do dinheiro dele. Iria fazê-lo infeliz, não
merecia ficar ao lado dele. Ela, Mercedes,
sim, amava-o com sinceridade e cuidaria bem dele até o fim de seus dias
Nesses momentos, imaginava como se amariam quando ele voltasse, sofrido, triste, em busca de aconchego e conforto. Ela então
o perdoaria e o receberia de braços
abertos.

Mirtes chegou em casa satisfeita. Passara a tarde no cabeleireiro. À noite iria com o marido a um jantar na casa de um ministro.

Queria apresentar-se impecável e
mostrar a todas aquelas damas cheias de pose que ela tinha classe o suficiente para freqüentar suas casas.
Depois, Humberto sentia-se orgulhoso quando a levava pelo braço, porque todos a fitavam com admiração e as revistas importantes
disputavam um bom ângulo para fotografa-la.
Era disso que Mirtes gostava.
Entrou em casa pensando em tomar um banho e descansar até o momento de vestir-se para o jantar. Humberto não havia chegado
e ela subiu disposta a fazer o que pretendia.
Ao passar pela porta do escritório, que estava aberta, viu um envelope bonito na salva de prata sobre a mesa. Entrou, apanhou-o

e, como estava aberto, abriu-o.
Era o convite de casamento de Émerson e Laura, que se realizaria dentro de quinze dias. Junto, um cartão de Émerson, dizendo
que havia ido pessoalmente entregar
o convite, mas, como não encontrara ninguém em casa, deixara-o com um dos serviçais. Pedia desculpas por não ter podido
esperar.
279

Mirtes sentou-se com o convite na mão. Então era verdade mesmo. Eles iam casar e era por isso que Mildred havia partido

e estava tão mudada.
Deu de ombros. Devolveu o envelope à salva de prata e subiu para o quarto. Afinal, não tinha nada com aquilo. Era mais uma
festa para ir.
Enquanto se deliciava dentro da banheira, ficou imaginando as roupas que compraria para ir àquele casamento e o sucesso
que faria, porquanto lá estariam todos os
seus conhecidos, inclusive Marcelo.
Seria divertido tentar tirá-lo de Renata. Ele nunca resistira aos seus encantos. Seria fácil e excitante.

Valdo chamou Alzira em sua sala. Assim que ela entrou e fechou a porta, ele abraçou-a e beijou-a nos lábios com amor. Ela
retribuiu e beijaram-se várias vezes. Por
fim ela disse:
- Você mandou me chamar. Precisa de alguma coisa?
- Sim. Estava louco para beijá-la.
- Não deveria fazer isso. Os funcionários sabem que estamos noivos, e não quero abusar.
- Eu preferia que você concordasse em deixar o emprego, em marcarmos o casamento para daqui a um mês e começarmos a cuidar
dos preparativos.
- Você sabe que não posso. Se não trabalhar, não poderei comprar o que desejo para o enxoval.
- Eu acharia melhor que, em vez de preocupar-se com essas coisas, se preocupasse comigo, que estou impaciente para tê-la
em meus braços e nunca mais nos separarmos.
Alzira suspirou:
- Meu pai não quer que você pague todas as despesas. Diz que como pai tem a responsabilidade de contribuir com o que puder.
- Vocês disseram que estão aprendendo sobre a espiritualidade, mas eu duvido.
- Por quê?
- Porque dão mais valor às coisas materiais do que às espirituais. - Isso não é verdade.
- É, sim. Ou então você ainda tem dúvidas de que me ama o
suficiente para casar.
- Como pode pensar isso de mim? Sabe que eu sou louca por
você.
280
- Nesse caso, o orgulho é mais forte do que seu amor. Que importa quem paga nossas despesas? A vida deu-me condições de
fazer isso. O que tenho é mais do que suficiente.
Alzira olhou-o séria e protestou:
- Você está enganado. Nós temos dignidade. Meu pai quer ter o prazer de casar a filha pagando parte das despesas.
- Orgulho. O que importa o dinheiro? Ele é apenas um meio que nos permite usufruir de coisas boas. Seu pai é um homem digno,

independentemente de suas posses. Não
é o dinheiro que lhe dá dignidade. A modéstia é uma qualidade que enobrece o homem. Por que temos de adiar nossa felicidade
tendo de esperar para nos casarmos, quando
nós dois ansiamos por viver juntos?
Alzira olhava-o hesitante. Ele insistiu:
- Vamos marcar a data logo e preparar tudo.
- Eu gostaria. Mas penso em meus pais. Minha mãe tem chorado às escondidas porque logo deixarei a casa.
- É natural. Minha mãe também anda assim por causa de Laura. Olhe, Alzira, depois do casamento de minha irmã, meus pais
vão tirar férias, viajar, ficar um mês fora.
Vamos marcar nosso casamento para daqui a dois meses. Assim teremos tempo de concluir os preparativos. Até lá meu pai terá
regressado e retomado o comando da empresa,
e nós poderemos viajar em lua-de-mel.
Valdo começou a discorrer sobre os lugares que conheceriam, o que fariam na viagem, e os olhos de Alzira brilhavam de prazer.

Por fim, ela disse:
- Está certo. Vamos marcar. Hoje à noite falaremos com meus pais. Quero ver se você terá coragem de dizer a eles o que me
disse agora há pouco.
- O que foi que eu disse?
- Que somos materialistas, orgulhosos e não aprendemos nada sobre espiritualidade.
- Se for preciso, direi, sim. Não vê que eu a amo e que estou
lutando para tê-la em meus braços para sempre? Ela sorriu e beijou-o delicadamente nos lábios. - Foi isso que me comoveu.
- Seja sincera: você também está louca para casar comigo.
- Não seja pretensioso. O pior é que não dá para negar. Beijaram-se novamente, depois ela saiu apressada.
O noivado deles havia provocado comentários na empresa. Val
do era muito cobiçado pelas mulheres que disputavam cada gesto seu.
281
Naquela noite mesmo, Valdo conversou com os sogros. Estela foi contra a antecipação. Um casamento apressado poderia dar
margem a comentários desagradáveis, com
o que Antônio concordou. Valdo, porém, argumentou de várias formas e finalmente conseguiu o que desejava. Marcaram o casamento
para dali a dois meses.
Quando Alzira acompanhou o noivo até a porta, Estela comentou com o marido:
- Logo perderemos nossa filha. Sinto o coração apertado.
- A casa vai ficar vazia sem ela. Mas eles se amam. Viu como estavam felizes?
- É o que me conforta. Mas ao mesmo tempo não sei se fizemos bem em concordar. Depois do que Mirtes falou...
- Não acredito em uma só palavra do que ela disse. Ela nunca foi boa irmã. Sempre fez tudo para diminuir Alzira, que é uma
boa filha. Tão boa filha que eu gostaria
de dar um dote a ela, mesmo pequeno.
- Eles sabem que ainda estamos pagando nossas dívidas. Não querem esperar.
- Viu com que empenho ele insistiu em marcar a data? Estão apaixonados.
- Eu preferia que esperassem mais para se casar. Assim teríamos tempo para conhecê-lo melhor.
- Pois eu não preciso disso. Se você visse como ele é querido e respeitado pelos funcionários, não diria isso. Depois,

Mirtes não tem de dar nenhuma opinião. Ela
trouxe em casa um desconhecido com idade para ser seu pai e casou-se rapidinho.
- Você concordou com o casamento.
- Apesar da idade, gostei dele. Pareceu-me um homem de bem. Só não sei se ela gosta dele ou do dinheiro e da posição que
ele tem.
- Infelizmente, penso como você. Rezo todos os dias para que eles sejam felizes.
Os noivos, dentro do carro, combinavam as primeiras providências para o casamento. Valdo dizia:
- Meus pais mandaram convidá-la para jantar em nossa casa no próximo sábado. Será uma ocasião excelente para tratarmos do
assunto com eles.
- Acha que vão concordar?
- Por certo. Estavam ansiosos para me verem casado. Tenho cer
teza de que vão adorar você.
- Estou nervosa só de pensar nisso.
282
Ele riu.
- Não há por quê. Eles são adoráveis.
- Você tem certeza de que não se sentiram contrariados por você ter escolhido uma moça simples como eu?
- Quando se casaram, eles viviam do salário dele, que naquele tempo não era maior do que o de seu pai. Apesar de haverem
progredido financeiramente, ganhado respeito
da comunidade, continuam sendo as mesmas pessoas.
- Eles estavam no casamento de Mirtes, mas é claro que não se recordam de mim.
- Ao contrário. Mamãe, quando soube, lembrou-se da cor de seu vestido, até de quantas vezes dançamos. Ela notou logo meu
interesse por você.
Quando Alzira entrou em casa, sentia-se feliz e com a cabeça cheia de planos.

A tarde do casamento de Émerson e Laura decorreu rápida em meio aos preparativos. O casamento civil seria realizado no salão
de festas da casa da noiva, especialmente
decorado para aquele fim. Para a bênção espiritual, o casal havia convidado um mestre budista amigo de Émerson, pertencente
à órdem que ele freqüentara.
Depois, haveria o jantar e o baile. Os pais dela a princípio estranharam o fato de os dois não se casarem na igreja católica,
como era hábito na família. Mas acabaram
respeitando a vontade dos noivos.
A cerimônia estava marcada para as sete da noite. Os convidados começaram a chegar pouco antes, recebidos e acomodados pelo
chefe do cerimonial.
Mirtes entrou no salão pelo braço do marido, cabeça erguida, olhos brilhando de satisfação, sentindo-se a mulher mais bela
do mundo. E, de fato, muito bem vestida,
ostentando belíssimas jóias, chamava a atenção por onde passava pelo seu bom gosto, beleza e classe.
Vendo-a desfilar como uma princesa, ninguém cogitaria sua origem pobre. Humberto sentia-se orgulhoso por ter uma esposa
tão bela.
As pessoas amigas de Humberto aproximavam-se para cumprimentá-los, e Mirtes sorria contente, notando a admiração dos homens
e o brilho invejoso das mulheres. O triunfo
conquistado colocava um brilho especial em seus olhos, e o prazer refletia-se em seu sorriso.
283
Quando Valdo aproximou-se com Alzira, Mirtes estremeceu.
Ele cumprimentou Humberto e sorriu para Mirtes, perguntando: - Como vai?
- Bem - respondeu ela examinando a irmã de alto a baixo. -
Que surpresa, Alzira! Não pensei que viesse ao casamento.
Alzira, que acabara de cumprimentar Humberto, respondeu: - Eu não poderia faltar. Gosto muito de Émerson e Laura. Ela estava
muito elegante em seu vestido cor de
malva que real
çava a cor de sua pele clara e acetinada. Mirtes notou logo o anel de
brilhantes que ela ostentava.
- Mesmo porque Alzira agora faz parte da família - completou
Valdo.
Humberto cumprimentou o casal pelo noivado e concluiu:
- Espero que sejam tão felizes quanto nós.
Mirtes procurou sorrir e dissimular a raiva. Havia notado o brilho apaixonado dos olhos de Valdo quando fixava Alzira. Aquilo
não podia ser verdade. Sua insignificante
irmã havia conseguido o que ela, com toda a sua inteligência e beleza, não conseguira.
- Agora vocês vão nos dar licença - disse Valdo. - Precisamos ir. Temos uma participação na cerimônia.
Eles se foram e Mirtes a custo conseguiu dominar a contrariedade. As pessoas foram encaminhadas para a sala ao lado. A cerimônia
ia começar.
As cadeiras estavam dispostas em fileiras. No centro, a passadeira vermelha; no fundo, uma mesa ao redor da qual Émerson,
o juiz de paz e seu auxiliar esperavam.
Havia flores em profusão e muito bom gosto na decoração.
A música começou e os presentes levantaram-se. Laura, de braço com o pai, entrou caminhando lentamente até a mesa. Atrás
deles o cortejo dos familiares e padrinhos,
que se postaram ao lado dos noivos.
O juiz realizou o casamento e cumprimentou os noivos. Depois, o monge budista amigo de Émerson, que estava ao lado, colocou-se
de frente aos noivos e falou sobre
a vida a dois, salientando os valores que levam à conquista da felicidade: amor, compreensão, respeito, dedicação e
bom humor.
Depois circulou em volta do casal, rezando em idioma desconhecido dos presentes, e seu auxiliar balançava de vez em quando
o pequeno sino que trazia. Enquanto rezava,
colocava as mãos sobre os noivos. No final da cerimônia, cantou e, por fim, deu aos
284
noivos alguns objetos sagrados, desejando-lhes vida longa, muitos filhos e fartura.
A cerimônia tocante comoveu os presentes. Mirtes, porém, não prestou atenção. Só tinha olhos para Alzira e Valdo. Ela viu
Almerinda abraçar Alzira com carinho e
Péricles beijá-la delicadamente na face. Isso a irritou ainda mais. Ela não se conteve:
- Não sei por que resolveram fazer esta cerimônia horrível. Por que não se casaram na igreja, como todo mundo?
Humberto olhou-a surpreendido. Ele havia se emocionado com as palavras do monge.
- Você não gostou? - perguntou baixinho.
Diante do olhar surpreso do marido, Mirtes percebeu que havia exagerado.
- Não é isso. Eu acho lindo um casamento na igreja. De fato,
é mais solene. Depois, estou com um pouco de dor de cabeça.
- Você estava tão bem... Quer que vá buscar um comprimido? - Não, obrigada. Isto vai passar.
Depois dos cumprimentos, o jantar foi servido e Alzira sentou-se ao lado de Valdo na mesa dos noivos.
Mirtes estava descontrolada e esforçava-se para dissimular. Sorria, conversava, mas seus olhos furtivamente acompanhavam
cada passo da irmã.
O baile começou, e ela viu Alzira circular nos braços de Valdo, corada e feliz. Notou a inveja das moças que costumavam
circular esperançosas à volta dele e a amabilidade
dos pais de Valdo, com Péricles chegando a dançar com Alzira enquanto Valdo dançava com a mãe.
Mirtes foi ao toalete. Enquanto esperava, sentou-se em uma poltrona perto do biombo que separava as duas salas. Atrás do
biombo, duas senhoras conversavam enquanto
uma delas esperava a filha.
- Que linda a noiva de Valdo!
- É mesmo. Ele demorou para decidir-se, mas agora acertou. Ela é uma doçura. Conversamos e adorei-a. Almerinda está muito
feliz. Disse que a moça é inteligente,
alegre e cativante.
- Por isso Valdo está pelo beicinho. Só tem olhos para ela.
Quando as duas senhoras se foram, Mirtes levantou-se nervosa. Alzira estava fazendo mais sucesso do que ela. Não conseguia
entender. Precisava acalmar-se. Não podia
deixar ninguém perceber o que estava sentindo. Teria de encontrar um jeito de acabar com aquele noivado.
285
Voltou para o salão e apanhou uma taça de champanha, que ingeriu rapidamente. Precisava relaxar. Aos poucos sentiu-se mais
calma. Apanhou outra taça. Ela era uma
vencedora. Não podia deixarse dominar pelo pessimismo. Haveria de tirar Alzira de seu caminho. Não ia suportar ver a irmã
freqüentando os mesmos lugares que ela
e sendo mais valorizada.
A festa decorria animada, e passava das duas da manhã quando as pessoas começaram a ir embora. Mirtes sentia-se atordoada.

Havia bebido além da conta, e Humberto,
solícito, queria levá-la para casa.
- Não quero. Vamos ficar mais um pouco. Agora que a festa está boa...
Ele concordou. Ela quis dançar, mas ficou tonta e ele a conduziu para um sofá em outra sala. Passava das três quando finalmente
conseguiu convencê-la a ir embora.
Ao chegarem em casa, o motorista abriu o portão e o carro entrou nos amplos jardins, parando em frente à porta principal.

Humberto desceu amparando Mirtes atordoada
e colocou a chave na fechadura.
- Vamos voltar para a festa - disse ela rindo. - Não quero ir para casa.
- Você precisa descansar, deixe-me abrir a porta.
O motorista levou o carro. Humberto girou a chave, abriu a
porta e, quando se voltou para Mirtes, viu um vulto escuro sair por
trás da coluna da varanda. Quis gritar mas não teve tempo. Ouviu
um disparo, depois outro, e Mirtes tombou em uma poça de sangue. Desesperado, Humberto abraçou-a enquanto gritava por socorro.
Correria. As luzes da casa acenderam-se e ele gritava:
- Chamem uma ambulância! Mirtes foi ferida!
Ele se debruçou sobre ela, que havia desmaiado, e gritou:
- Tragam um lençol, depressa! Precisamos estancar o sangue! Com o lençol nas mãos, Humberto rasgou-o e envolveu a cin
tura de Mirtes, onde o sangue escorria. Em seu desespero, não sabia
o que fazer.
A ambulância demorou quinze minutos que, para Humberto, ao lado de Mirtes pálida e sem sentidos, pareceram horas. Quando
finalmente chegou, procederam-se os primeiros
socorros e Mirtes foi levada para o hospital. Humberto foi junto na ambulância.
A polícia foi chamada e interrogou os criados da casa. Eles não haviam notado nada de especial. O motorista também não.

Ele
286
estava colocando o carro na garagem quando ouviu os tiros. Não havia visto nada.
A polícia foi ao hospital e tentou conversar com Humberto, mas ele estava em choque e não ajudou muito. Foi o mordomo quem
avisou os filhos de Humberto e a família
de Mirtes.
Alzira estava no portão de sua casa despedindo-se de Valdo quando o telefone tocou com insistência.
- É melhor eu atender - disse ela soltando-se dos braços dele. - Alô. O quê? Como? Onde? Meu Deus!
Alzira empalideceu e quase desmaiou. Valdo apanhou o telefone
e soube o que havia acontecido. Amparou Alzira e pediu: - Procure se acalmar. Pode não ter sido grave. Alzira chorava

desconsolada:
- Temos de avisar meus pais. Meu Deus!
Valdo correu à copa, apanhou um copo de água e deu-o a ela. Nesse instante, Antônio descia as escadas.
- Escutei o telefone e parece que você gritou. O que houve? Alzira correu para o pai dizendo aflita:
- A casa de Humberto foi assaltada e Mirtes está ferida. Foi levada para o hospital.
- Vou acordar sua mãe. Iremos imediatamente.
Valdo ligou para a casa de Humberto, informando-se sobre o hospital. Meia hora depois chegaram e foram conduzidos à sala
de espera, onde Humberto, sentado em uma
poltrona, com a cabeça entre as mãos, não escondia seu desespero.
Eles se aproximaram e ele levantou o rosto pálido, dizendo com voz angustiada:
- Ela estava tão alegre! De repente, aquele vulto escuro apareceu e atirou. Não consegui fazer nada!
- Onde está ela? - indagou Estela aflita.
- O que dizem os médicos? - quis saber Antônio. - Levaram-na para a sala de cirurgia.
- É grave? - perguntou Antônio.
Enquanto eles conversavam, Valdo procurou o médico de plantão para informar-se.
- Nada posso dizer por enquanto. Eu a atendi. Estava quase sem pulso, pois deve ter perdido muito sangue. Mandei fazer uma
transfusão e chamei o cirurgião. Uma
bala estava alojada nos intestinos e ela foi levada para a cirurgia.
- É grave?
287
- Ela é jovem e saudável. Vamos esperar que reaja. Vamos
precisar de mais sangue.
- Se o meu servir, estou à disposição.
Valdo voltou à sala onde os outros estavam e todos olharam em
sua direção. Estela perguntou:
- Como ela está? Soube de alguma coisa?
- Eles estão cuidando dela. Temos de esperar. Estão extraindo
a bala.
Estela não disse mais nada. Sentou-se, baixou a cabeça e começou a rezar. Sentia o coração apertado. Alzira sentou-se a
seu lado, segurando sua mão.
- Vamos rezar juntas, mãe. É o que podemos fazer por ela agora.
Enquanto rezava pedindo pela recuperação da irmã, Alzira recordou-se do sonho que tivera com Mirtes e sentiu um aperto no
peito. Lágrimas rolaram pelo seu rosto,
mas ela não disse nada. Precisava ser forte, confiar em Deus e apoiar a família naquele momento difícil.
As horas passavam e Mirtes continuava no centro cirúrgico. Valdo cuidou das formalidades da internação.
Passava das dez horas quando finalmente o médico procurou pela família. Todos voltaram-se para ele ansiosos, crivando-o
de perguntas.
- Ela resistiu à cirurgia e foi levada para a unidade de terapia intensiva.
- Ela vai ficar boa? - indagou Estela.
- É cedo para dizer. Ela está muito fraca. Vamos esperar que reaja.
- Quer dizer que ela ainda corre risco de vida? - perguntou Antônio.
- Infelizmente sim. Mas ela é jovem e saudável. Vamos pensar no melhor.
Alzira estava pálida, e Valdo abraçou-a dizendo:
- Vamos respirar um pouco lá fora. Você está precisando de ar fresco.
Alzira deixou-se conduzir em silêncio. Ele tentou confortá-la. - Coragem! Mirtes vai ficar boa. - Sinto que ela não vai

resistir. - Não seja pessimista. Vamos pensar
no melhor.
Alzira tentou reagir. Aquele sonho não tinha nada a ver com
288
aquela situação. Nele Mirtes aparentava idade avançada. Sorriu dizendo:
- Tem razão. Ela vai ficar boa.
- Vamos tomar um café. Você não comeu nada até agora.
- Não estou com fome. Sinto um nó no estômago.
- Vamos levar café para nosso pessoal. Seria bom pedirmos um
dormitório. Assim ficaremos mais à vontade. Vocês poderão relaxar
um pouco.
- Obrigada, Valdo. Ainda bem que você está aqui.
Ele a beijou levemente no rosto e respondeu em tom jocoso:
- Eu sei que você não pode mais viver sem mim.
Valdo sabia que o caso era grave e tentava dissimular a preocupação. Mirtes estava no limiar entre um estado e outro. Tanto
poderia morrer quanto se recuperar. O
futuro dela, só o tempo poderia revelar. Quanto a eles, precisavam esperar para saber o que lhes reservava o destino.
Começou para eles o tempo da espera. As horas passavam e Mirtes continuava na mesma. Veio a noite e ela continuava inconsciente.
Estela e Antônio insistiram para que Humberto fosse para casa descansar um pouco, mas ele se recusou. Estava inconformado.

Parecia estar vivendo um pesadelo.
Ninguém queria ir para casa. Antônio decidiu dizendo:
- Não podemos ficar todos aqui. Não sabemos por quanto tempo ela ficará no hospital. Teremos de nos revezar para fazer-lhe
companhia. Alzira, vá para casa, tome
um banho e tente dormir um pouco.
- Eu quero ficar aqui.
(corrigir - 289)
como ela está e para pedir algumas coisas
de que vamos precisar. - E, voltando-se para o marido: - Seria bom
que você fosse também. Eu e Humberto permaneceremos aqui. Não é preciso tanta gente. Quando ela melhorar, vai precisar
de todos nós.
- De jeito nenhum - contestou Antônio. - Eu fico. Ela pode acordar, e eu quero estar junto. Depois, Humberto está tão deprimido

que, se ela precisar de alguma coisa,
ele não terá condições de atender.
Valdo levou Alzira para casa. No trajeto, insistiu para que ela
se alimentasse. Pararam em um restaurante e a custo conseguiu que
ela engolisse um pouco de sopa.
Quando estavam quase chegando em casa, Alzira pediu: - Vamos passar na casa de Dona Isaltina e pedir ajuda. Isaltina atendeu-os
com carinho e foi logo dizendo:
- Entrem, vamos conversar. Eu soube o que aconteceu. Sinto
muito.
- Viemos pedir ajuda espiritual - disse Alzira depois de apresentar o noivo. - Ela foi operada esta manhã mas até agora
não voltou a si. Sinto-me angustiada.
- Compreendo como se sente. Mas você é pessoa de fé, tem conhecimento espiritual. Este é o momento de confiar em Deus. Você
sabe que ele faz tudo certo e não cai
uma folha da árvore sem que ele permita.
- A senhora acha que ela vai ficar boa? - indagou Alzira.
- Claro que vai. Tudo quanto nos acontece é passageiro.
Ainda bem. Ela vai demorar muito para se recuperar?
- Isso depende de como o espírito dela enfrentará a situação. Sua irmã é pessoa muito apegada ao mundo material.
- A senhora quer dizer que ela não tem conhecimento espiritual? - desta vez foi Valdo quem perguntou.
- Todos os desafios que a pessoa enfrenta no mundo acontecem para ensinar-lhe determinada lição. Uma vez aprendida, tudo
se resolve. Mirtes valoriza mais a matéria
do que o espírito. Essa é uma inversão de valores que sempre atrai sofrimento. Sua recuperação vai depender de como ela
reagir a essas experiências. Nossas preces
em favor dela devem ser no sentido a que ela consiga aprender o que a vida está querendo ensinar-lhe.
- O médico diz que ela está correndo risco de vida. Desde que eu soube do caso, sinto um terrível pressentimento. Será que
ela vai morrer?
- A vida e a morte pertencem a Deus. É natural que sinta angústia. Uma violência como a de que Mirtes foi vítima nos faz

sentir
292

quanto somos vulneráveis. Você ainda está em choque. Vamos orar juntos para que Deus nos ajude, esclareça e conforte.
Não esqueça que a vida sempre faz o melhor.
Isaltina levantou-se, colocou as mãos sobre a cabeça de Alzira, fez uma prece e começou a ministrar energias durante alguns
minutos. Depois fez o mesmo com Valdo.
Por fim, agradeceu aos amigos espirituais a ajuda que receberam.
- Sente-se melhor? - indagou ela.
- Sim - tornou Alzira. - A angústia desapareceu. - Vamos confiar, minha filha.
Quando saíram, Valdo comentou:
- Que energia boa! Eu estava tenso, com dor de cabeça. Agora estou aliviado.
- Eu também. Parece que saiu um peso de cima do meu peito. Os dois foram para a casa dela. Ao entrarem, Valdo disse: - Não
vou deixar você sozinha.
- Eu estou mais calma. Ficarei bem.
- Acho que vou dormir aqui.
- De jeito nenhum. Papai não iria gostar. Depois, você também não dormiu, não descansou nada. Melhor ir para casa, tomar
um banho, refazer-se. Eu ficarei bem.
Ele só partiu depois que ela prometeu ligar se precisasse de algo. Alzira tomou um banho. Assim que se deitou, o telefone
tocou. Era Valdo.
- Como você está? - perguntou ele.
- Bem. Acho que conseguirei dormir.
- Minha mãe não contou nada a Laura e Émerson. Eles viajaram logo cedo.
- Fez bem. Se eles soubessem, não teriam ido, o que seria uma
pena. Estragar a lua-de-mel deles não iria beneficiar Mirtes em nada. - Mamãe pediu que eu ligasse e explicasse isso a você.

- Sua mãe é muito atenciosa. Diga-lhe
que agradeço e concor
do com ela.
Conversaram um pouco mais, depois despediram-se. Alzira pensou na irmã na UTI do hospital. Sentiu tristeza mas reagiu. Não
podia deixar-se abater. Evocou a luz divina
e pediu a Deus que ajudasse Mirtes a aprender a lição que a vida queria lhe ensinar para que pudesse curar-se.
Sentiu um brando calor no peito e, vencida pelo cansaço, adormeceu.
293

Mercedes acordou e recebeu um telefonema do detetive Sobral. Na véspera ela havia pago a quantia que Dinho pedira adiantado.
Sobral garantira que ele era de confiança
e que só trabalhava daquela forma. Dinho planejava tudo para estar longe do local do crime quando a polícia começasse a
investigar. Graças a essa cautela, nunca
fora apanhado.
- E então? - indagou, agitada.
- Missão cumprida. - Tem certeza?
- Sim. Tenho amigos na delegacia onde o caso foi registrado.
Há mais algumas despesas que a senhora precisa reembolsar.
- Você não disse que eu teria de pagar mais alguma coisa.
- São despesas de viagem. O dinheiro que levei não foi suficien
te. Depois, eu também tenho um preço.
- Pensei que já tivesse pago tudo. Não tenho muito dinheiro. - O serviço foi bem-feito, e isso custa caro.
- Está bem. Diga o valor e vamos nos encontrar no lugar de sem
pre. Vou levar o dinheiro.
Depois de desligar o telefone, Mercedes procurou os jornais da
manhã mas não viu nenhuma notícia a respeito do assunto. Teria sido
enganada?
A criada, que chegou cedo, foi logo dizendo:
- A senhora viu o que aconteceu com o Dr. Humberto? Mercedes estremeceu:
- Não. O que foi?
- A casa dele foi assaltada e a esposa dele levou dois tiros. Está
entre a vida e a morte no hospital.
- Quem lhe contou?
- Meu namorado. A senhora lembra que foi o Dr. Humberto
quem deu emprego a ele? - Sim.
- Foi uma tragédia. Parece que ela não escapa. Não acha que foi castigo por ele ter largado a senhora e casado com uma moça
que poderia ser filha dele?
- Não acho nada. Humberto me deixou e estou conformada. A vida dele não me interessa. Não quero falar mais nesse assunto.
A criada se foi e Mercedes sentou-se apreensiva. O serviço não fora feito como devia. Mirtes ainda estava viva e poderia
escapar.
Foi para o quarto, fechou a porta e ligou para Sobral. Assim que ele atendeu, foi dizendo:
294
- Vocês me enganaram. Ela não morreu. - Não? Acalme-se. Ele nunca falha.
- Ela está na UTI. Foi inútil.
- Vamos esperar. Fique calma. Como soube? Nos jornais não há nada.
- Minha criada me contou. O namorado dela trabalha na casa de Humberto.
- Ela pode estar enganada. Vou informar-me e volto a ligar. - Cuidado ao telefonar para cá. Desligue se não for eu que atender.
No hospital, o estado de Mirtes continuava igual. Nenhum sinal de melhora. À tarde, o médico passou para vê-la. Quando saiu
da UTI, Antônio abordou-o preocupado.
- Doutor, ela não acorda. Por quê?
- Infelizmente o estado dela se agravou. Ela entrou em coma. Antônio empalideceu:
- Por favor, doutor, salve minha filha!
- Estamos nos empenhando, mas ela perdeu muito sangue. Além disso, a bala perfurou os intestinos e misturou elementos contaminados
à corrente sangüínea. Apesar da
assepsia e dos cuidados, não conseguimos evitar que a infecção aparecesse e se generalizasse.
Quando Antônio voltou ao quarto onde Humberto, Estela, Al
zira e Valdo esperavam, todos o olharam preocupados.
- E então? - perguntou Estela. - Falou com o médico? - Sim. Ela não melhorou.
- Ela está demorando muito para acordar - tornou Humberto. - Não é um bom sinal.
- De fato. O médico disse que ela está com infecção.
- Eu solicitei uma junta com especialistas. Temos de fazer alguma coisa - disse Humberto.
Enquanto Valdo e Humberto cuidavam de tudo, Alzira insistia para que a mãe descansasse um pouco. Estela estendeu-se na cama,

mas estava tensa. Ao menor ruído, estremecia.
Apesar de haver passado a noite em claro, não conseguia dormir.
As oito da noite os especialistas compareceram, estudaram o caso, examinaram a paciente e confirmaram o diagnóstico do cirurgião
que cuidava do caso. Estavam fazendo
tudo que era possível, mas ela não reagia.
295
Passava das onze quando o médico procurou a família para dizer que o coma havia se aprofundado e que ela estava dando sinais
de não conseguir resistir.
Diante do desespero de todos, Alzira chamou Valdo e pediu:
- Vá à casa de Dona Isaltina, conte-lhe tudo e peça-lhe que venha nos ajudar.
Valdo partiu imediatamente.
A médium, assim que o viu, tornou:
- Eu sei, meu filho. Ela piorou.
- É. A família está aflita e perguntou se a senhora pode ir até lá para fazer uma prece.
- Está bem. Vou apanhar a bolsa.
Assim que eles apareceram no quarto do hospital, Estela levantou-se e abraçou Isaltina, chorando.
- Por favor, peça para Mirtes melhorar.
- Vamos confiar na bondade divina, que faz sempre o melhor. Quando a dor nos visita, muitas vezes não entendemos o que ela
quer nos ensinar. Mas acreditem: ela só
aparece depois de haver esgotado todos os outros meios. Neste momento, Mirtes precisa de nosso apoio na forma de energias
puras que a sustentem e auxiliem a passar
por essa situação. Vamos nos esforçar para melhorar nossas energias, pensando na fé que temos no amparo divino, que nunca
nos abandona. Vamos lembrar de Mirtes cheia
de alegria e saúde, abraçá-la com amor, desejando que ela se restabeleça.
Todos acompanhavam as palavras de Isaltina, tentando reagir ao estado de angústia que os dominava. Ela continuava falando,
e aos poucos todos foram se sentindo melhor.
Estela, que estava sentada na cama, recostou-se nos travesseiros e adormeceu. Isaltina continuou falando, pedindo ajuda
espiritual.
- Senhor, derrame sobre nós a bênção da paz. Desconhecemos as causas que envolvem este triste acontecimento. Fortaleça-nos
para que, ainda assim, tenhamos força
para aceitar a vontade divina, que nunca erra. Permita, Senhor, que o entendimento de Mirtes se abra e que ela possa aprender
o que a vida está pretendendo ensinar-lhe.
Naquele momento, Isaltina viu o espírito de Mirtes, amparado por duas enfermeiras, aparecer no quarto, olhos abertos, parecendo
alheia ao que estava acontecendo.
Isaltina, emocionada, continuou:
296
- Mirtes, que Deus a abençoe. Vá em paz e perdoe os que a feriram. Eles não sabem o que fazem.
Isaltina viu que duas lágrimas rolaram dos olhos de Mirtes. Em seguida as enfermeiras a levaram.
Valdo olhou preocupado para Alzira. Ele sentiu que Mirtes estava partindo. As lágrimas desciam pelo rosto de sua noiva e

ele segurou sua mão. Ela também havia entendido.
Estela dormia, vencida pelo cansaço. Antônio segurou Humberto pelo braço, levando-o para fora. Valdo, Alzira e Isaltina

também saíram.
- Vamos à UTI - pediu Humberto.
Assim que chegaram ao corredor, viram um movimento incomum na sala em que Mirtes estava.
Assustado, Humberto gemeu:
- Meu Deus! Ela piorou! Vamos lá.
Isaltina abraçou Alzira, dizendo:
- Ela já partiu. Vamos orar para que siga em paz.
Alzira não chorou mais. Ela sabia que a morte era apenas uma viagem e que Mirtes estava seguindo seu destino. Olhou para
o pai, que, abatido, tentava conter Humberto,
que mal podia suster-se nas pernas.
- Humberto precisa de socorro médico - disse Valdo. - Vamos
colocá-lo na poltrona. Fiquem com ele que vou buscar um médico. Isaltina segurou a mão dele, dizendo baixinho: - Coragem.

Não se entregue assim. Tudo vai passar.
Valdo voltou com um médico, que o examinou e disse:
- Ele precisa de repouso. Está com a pressão muito alta e alteração
dos batimentos cardíacos. Vou aplicar-lhe um calmante. Humberto não queria afastar-se dali, mas o médico mandou dois
enfermeiros colocarem-no no carrinho e levarem-no para o quarto. Estela acordou assustada, sem perceber o que estava acontecen
do. Viu quando os enfermeiros aplicaram a injeção em Humberto,
que em seguida adormeceu.
"Meu Deus!", pensou ela. "Ele está mal. Será que Mirtes..." Levantou-se e foi até o corredor da UTI. Isaltina abraçou-a,
dizendo-lhe ao ouvido:
- Você precisa ser forte. Sua filha partiu.
Estela sentiu as pernas fraquejarem. Isaltina sentou-a na poltrona. Imediatamente, Alzira e Antônio abraçaram-na enquanto
Isaltina e Valdo oravam por eles.
297
Os dias que se seguiram foram de tristeza e dor.
Valdo tomou todas as providências para o sepultamento. Humberto, contrariando o médico, fez questão de acompanhar tudo.

Seus filhos, tocados pelo sofrimento dele,
cercaram-no de atenções. Queriam levá-lo para a mansão da família, mas Humberto não quis. Queria ficar lá, na casa onde
fora feliz ao lado da esposa.
Apesar da dor que os entristecia, Estela, Antônio e Alzira sentiam-se fortalecidos pela fé e pela certeza de que a vida
continua após a morte do corpo, diferentemente
do que pensava Humberto. Embora chocados pela brutalidade do acontecimento, procuravam confortá-lo, o que estava sendo difícil.

Inconformado, ele mergulhou na depressão,
perdeu o gosto de viver.
O médico conversou com os filhos para que tentassem ajudá-lo. Assustados com o abatimento dele, nos primeiros dias os dois
rapazes procuraram levantar-lhe o ânimo.
Não obtendo resultado, aos poucos foram desistindo.
Em menos de um mês após a morte de Mirtes, apenas a família dela o visitava, tentando fazê-lo levantar-se. Humberto, porém,
não reagia de forma alguma. Passava os
dias na cama, apático, entregue ao desânimo.
A pedido de Estela, Isaltina fora visitá-lo algumas vezes. No entanto, embora Humberto a recebesse educadamente, ele não
melhorava.
- Ele perdeu o gosto de viver. Se continuar assim, não viverá
muito tempo - considerou Isaltina à família de Mirtes.
- É uma pena. É um homem bom e gostava muito de minha
filha - lamentou Estela.
- Ele estava no auge da paixão. Não se conforma com a tragé
dia - comentou Valdo.
- Não é fácil para um homem como ele passar por uma
experiência dessas - tornou Antônio.
- Eu penso de outra forma - disse Alzira. - A bondade não
impede ninguém de passar pelos desafios na vida.
Todos a olharam admirados.
- A bondade atrai o bem - comentou Estela.
- Mas não impede que as pessoas passem por experiências
dolorosas.
- Não acha que você está sendo injusta? - perguntou Antônio ligeiramente escandalizado com as palavras da filha.
- Não, papai. Uma pessoa pode ser muito boa mas ingênua. E
298
a vida quer que aprendamos a viver com sabedoria. Por isso a evolução do espírito nunca pára. E esse processo ocorre através
do atrito. Ninguém gosta de mudanças.
As pessoas se acomodam. De repente, tudo muda e elas são obrigadas a aceitar o novo, a seguir em frente.
- Tem razão, Alzira - concordou Isaltina. - Foi a sabedoria divina que falou pela sua boca. Estamos vendo todos os dias
pessoas que consideramos bondosas sofrerem
toda sorte de problemas. Observamos, depois de algum tempo, quanto elas amadureceram com eles.
Valdo abraçou Alzira, dizendo:
- Você acabou de responder às minhas indagações. Acho injusto uma pessoa boa sofrer. Onde está seu merecimento?
- Na ajuda espiritual que sempre têm - respondeu Isaltina. - Os amigos que fazemos pelo caminho, seja no astral ou no mundo
terreno, são energias positivas que nos
apóiam nos momentos difíceis. Com elas encontramos forças para enfrentar as situações com menos dor e mais lucidez, o que
favorece nossa vitória. Mas, já que você
falou em mérito, nós só conquistamos algum quando vencemos nossos pontos fracos. Ajudar os outros é bom, dá prazer, faz
bem à alma, mas não nos dá merecimento. Em
nosso progresso espiritual, o que conta mesmo é a modificação de nossas atitudes para melhor.
Essas conversas faziam muito bem a todos eles, criando à sua volta um ambiente de paz. Isaltina, embora se ocupasse em muitas
atividades, sempre encontrava um tempo
para um café com os amigos e a troca de idéias sobre espiritualidade. Entre eles havia nascido uma amizade sincera e proveitosa.
Por causa da morte de Mirtes, Alzira resolveu adiar a data do casamento. Valdo, embora contrariado, acabou aceitando. Ela

queria ficar mais um pouco morando com
os pais, confortando-os. Marcaram uma nova data para seis meses depois.

Foi com satisfação que Mercedes ficou sabendo da morte de Mirtes. Sobral havia ido investigar no hospital e confirmou que
ela morrera. Imediatamente foi dar a notícia.
Mercedes continuou pagando Sobral para acompanhar a vida de Humberto. Ela queria saber tudo que estava acontecendo.
A criada às vezes comentava quanto ele estava abatido, fechado na mansão, sozinho com os criados, sem vontade de viver.
"Isso passa", pensava ela. "O tempo cura todas as feridas. Logo ele estará aqui à minha procura."
299
Mas o tempo passava e ele não aparecia. As notícias não eram animadoras. Sobral dizia que ele estava doente. O detetive
acompanhava também as investigações da polícia
sobre o crime. Assim soube do interesse de Humberto em oferecer recompensa a quem desse alguma pista do assassino.
Mas, apesar do esforço, a polícia não tinha nenhuma pista. Ninguém havia visto nada. Mesmo Humberto só enxergara um vulto.

O delegado várias vezes o interrogara
sem resultado. Certa vez comentou com Humberto:
- Para mim não foi assalto. Foi encomenda.
- Como assim? - indagou Humberto.
- Matador profissional. O tipo de arma, o calibre da bala revelam que a pessoa entende do assunto e atirou para matar. Sua
mulher tinha inimigos?
- Não. Mirtes era amada por todos. Isso não pode ser, doutor.
- Se fosse algum inimigo seu, o senhor estaria morto agora. Infelizmente, esses tipos sabem o que estão fazendo e nunca
erram. Não deixam pista.
Depois que o delegado se foi, Humberto ficou pensando em suas palavras. Mas não chegou a nenhuma conclusão. Ele estava errado.

Só podia mesmo ter sido um assalto.
Não havia outra explicação.
Mas, fosse o que fosse, ele não iria desistir. Sua vida estava destruída e dali para a frente viveria para a vingança. Precisava
fortalecer-se, ficar bem para poder
investigar por conta própria.
A partir daquele dia esforçou-se em alimentar-se melhor, obedecer às indicações médicas e recuperar a saúde.

Dois meses depois, Mercedes telefonou para Humberto. Com voz triste, disse que lamentava o acontecimento e estava preocupada
com ele. Ouviu dizer que estava doente.
Humberto comoveu-se com as palavras dela. Mercedes amava-o de fato. Havia se afastado completamente para não prejudicar seu
casamento e agora procurava-o preocupada
com seu bem-estar. Agradeceu seu interesse.
Ela finalizou:
- Avalio como deve estar se sentindo sozinho. Eu sei como é isso. Se desejar conversar, venha tomar um chá comigo. Você
sabe que sempre será bem-vindo à minha
casa.
A princípio ele pensou em não ir, mas, decorridos alguns dias, começou a achar insuportável sua solidão. A presença de Mirtes
com sua risada alegre, sua exuberância, enchia sua casa, que, agora vazia e silenciosa, o deprimia.
Uma tarde, triste e abatido, foi à casa de Mercedes, que o recebeu com carinho. Humberto sentiu-se apoiado. Não teve vergonha
de falar de seus sentimentos.
Mercedes controlou a raiva e ouviu-o pacientemente falar do amor que sentia por Mirtes, de como fora feliz a seu lado e
de como sofria com a separação. Ela a custo
conseguiu controlar a revolta ouvindo-o discorrer sobre a rival. Porém o pensamento de que ela vencera e que ele em breve
estaria de volta e esqueceria aquela aventura
dava-lhe forças.
O tempo todo Mercedes mostrou-se como uma amiga leal e dedicada.
- Chorei muito quando soube. Sua felicidade é tudo quanto desejo na vida. O amor que sinto por você é puro e verdadeiro.
Embalado em falar de si, Humberto nem pensou que ela podia estar mentindo, que sua atitude não era natural em uma mulher
de meia-idade que havia sido trocada por
outra muito mais jovem e bonita.
A partir daquele dia, Humberto passou a visitar Mercedes com freqüência. Agora, seu assunto predileto era a vingança. Contoulhe
que havia contratado um detetive
para procurar o assassino. Ele não descansaria enquanto não o colocasse atrás das grades.
Mercedes imediatamente comunicou-se com Sobral, que procurou descobrir quem era a pessoa que estava trabalhando para Humberto.
Sobral era bem relacionado no meio policial, mas não conseguiu identificar ninguém. Sabia que eles eram discretos, porque
os clientes queriam sigilo. Passou na delegacia
e conversou com policiais amigos, tentando obter uma pista, mas foi inútil.
- A senhora tem certeza de que Humberto contratou mesmo um detetive?
- Tenho - respondeu Mercedes. - Disse até que tem recebido alguns relatórios. Ele está levantando a vida da família dela

porque o delegado suspeita de que foi um
profissional.
- Ele disse isso?
- Disse. Mas Humberto acha que o delegado está enganado. Não acredita nessa hipótese.
- Ainda bem. Eles não vão descobrir nada.
- É o que eu acho. Humberto me conta tudo. Vou ver o que posso descobrir. Qualquer novidade, eu ligo.

Estela e Antônio de vez em quando visitavam o genro, preocupados com seu abatimento. Espaçaram as visitas depois que ele
se recuperou.
Agora era Humberto que, quando a saudade batia forte, ia à casa dos sogros conversar. Falava das providências que estava
tomando para descobrir o assassino de Mirtes.
Depois que ele saía, Estela comentava com o marido:
- Não gosto da maneira como Humberto fala.
- Mas eu concordo com ele. Gostaria de ver esse assassino na cadeia.
- Eu também. Mas tenho procurado não cultivar a vingança. Não quero ter ódio no coração.
- Quando penso em nossa filha agredida daquele jeito, sinto muita raiva.
- Não é fácil. Há momentos em que a dor fica insuportável. Mas então me recordo das palavras de Dona Isaltina e procuro
trabalhar isso de outra forma.
- Não há palavras que possam ajudar nesta hora.
- Há, sim. São palavras de sabedoria. Às vezes questiono por que Deus permitiu que esse crime se consumasse. Somos pessoas
de bem... Por que ele não impediu que
esse assassino a atingisse?
- São perguntas que eu fiz mil vezes, sem encontrar resposta.
- Isaltina me explicou. Nós somos responsáveis por tudo que nos acontece na vida. Nossas atitudes criam nosso destino.

Não existe injustiça. Deus está no leme de
tudo. Se fomos atingidos por essa tragédia, foi porque precisávamos aprender alguma coisa.
- O que se pode aprender com uma coisa dessas? Eu senti raiva, impotência, desânimo.
- Onde está sua fé? Esqueceu como fomos ajudados quando estávamos sem dinheiro e sem emprego?
- Eu não esqueci. Mas por que Mirtes teve de passar por isso?
- Eu não sei. Mas, como Deus é misericordioso, justo, deve haver uma boa razão. Eu prefiro perdoar, procurar aceitar o
que aconteceu, deixar o castigo do criminoso
nas mãos de Deus. Tenho certeza de que um dia, seja onde for, ele terá a lição de que precisa para respeitar o sagrado direito
à vida.
Antônio abraçou a esposa, dizendo comovido:
- Você é muito melhor do que eu. Por favor, ensine-me a suportar esta mágoa e perdoar.
Ela o beijou na face com carinho:
- A vingança não trará Mirtes de volta. Ao contrário, só vai perturbá-la no astral. Precisamos mandar-lhe pensamentos de
luz, de amor e de paz. Não sabemos como
ela está aceitando o que lhe aconteceu.
- Você acha que ela está sofrendo?
- Mirtes tinha gênio forte, era um pouco rebelde. Isaltina disse que, se ela aceitar a ajuda dos espíritos socorristas e
lhes obedecer, ficará bem. Mas, se se rebelar,
poderá sofrer muito mais.
- Nesse caso, vamos nos esforçar para manter a calma e mandar-lhe pensamentos bons.
- Isso mesmo. Deus nos dará forças para superarmos nossos sofrimentos.
Eles não viram que um vulto escuro em um canto da sala chorava copiosamente, em franco desespero. Trazia um longo vestido
roto e uma ferida aberta na barriga, sobre
a qual colocava uma das mãos como a impedir que sangrasse.

Mirtes abriu os olhos assustada. Sua barriga queimava. Além disso, sentia tonturas e tinha dificuldade de raciocinar.
Lembrou-se de que havia bebido um pouco a mais, e talvez a bebida lhe tivesse feito mal. Olhou em volta. A sala branca estava
silenciosa. Não havia ninguém. Que
lugar era aquele?
A um canto, algumas macas e dois corpos cobertos por um lençol. O lugar era frio e provocou-lhe desagradável sensação. Estaria
sonhando?
Passou a mão pela cabeça tentando mandar embora aquele atordoamento. Sentiu medo e desejou sair dali, mas a curiosidade
foi mais forte.
Que corpos eram aqueles cobertos? Claro que estavam mortos. Só se cobre a cabeça de uma pessoa quando está morta.
Aproximou-se de um deles e tentou levantar o lençol, mas não conseguiu. Sua mão passava por ele sem tocá-lo. Sem
saber o que fazer, fixou o olhar sobre o corpo e imediatamente viu que era o de um homem jovem.
Aproximou-se do outro e naquele momento dois rapazes de branco entraram na sala. Um deles levantou o lençol e Mirtes estremeceu:


era ela que estava estendida naquela
maca, nua e gelada.
O que significava aquilo? Que pesadelo era aquele? Apavorada, saiu correndo e nem sequer notou que passou através das portas

fechadas. Viu-se na rua. Mas era estranho,
as pessoas falavam, os carros andavam e ela não ouvia nenhum ruído. Era como se estivesse morta.
Claro que só podia ser um pesadelo. Em breve ela acordaria e tudo voltaria ao normal. Aquele corpo costurado e frio não

era o dela. Era uma ilusão, um sonho. Ela
estava viva. Podia se apalpar, sentir, pensar.
Mirtes não sabia por quanto tempo perambulou pelas ruas tentando voltar para casa. Cansada, sentou-se em uma praça. Um jovem

sentou-se a seu lado, olhou para ela
e sorriu.
Ela notou que ele a estava vendo, o que não acontecia com as pessoas com quem havia tentado conversar. Aproveitou o momento:
- Você está me vendo?
- E ouvindo muito bem.
- Quero ir para casa, sair deste pesadelo horrível. - Não é um pesadelo.
- O que é, então?
- Uma mudança de estado. Você está em outra dimensão. Sua
casa agora é outra.
- Não acredito. Como pode dizer uma coisa dessas?
- É verdade. Você não pertence mais ao mundo dos encarnados.
- Não pode ser. Quem fez isso comigo? Como me tiraram de lá, assim, de uma hora para outra, sem meu consentimento, justo

agora que eu estava no auge de minha vida?
- Há momentos em que a vida assume a direção e é preciso aceitar.
- Eu quero voltar para minha casa. Você não está dizendo a verdade.
- É melhor aceitar o inevitável. Você não pode mais voltar para lá. Vim buscá-la. Vou levá-la para um lugar onde ficará

amparada e receberá todos os esclarecimentos
que quiser.
306
- Não quero ir. Não o conheço e não acredito em nada do que está dizendo. Quero ir para minha casa. Fique sabendo que tenho

dinheiro. Agora sou muito rica. Se me
levar para lá, posso recompensá-lo muito bem.
Ele sorriu e respondeu:
- Eu não preciso de nada. Vim para ajudá-la. Venha comigo. - Já disse que não quero. Deixe-me em paz. Está confundindo minha

cabeça.
- Você está chegando agora e desconhece os perigos a que está sujeita. Venha comigo. Se não gostar do lugar, poderá sair.
- Não. Você está querendo me seqüestrar. Vou procurar a polícia e dar queixa.
- Está bem. Não posso forçá-la.
Ele desapareceu e Mirtes olhou em volta assustada. Ninguém podia desaparecer daquele jeito. Que loucura era aquela? A lembrança

do corpo costurado a atormentava.
Aquilo só podia ser um pesadelo. Ela estava viva, bem viva.
Sentou-se novamente e começou a pensar em sua casa, em como gostaria de estar lá. Era tudo tão lindo, tão agradável...
De repente, sem saber como, ela se viu em seu quarto, em casa. Humberto estava deitado, abatido, pálido. Estaria doente?
Radiante, Mirtes aproximou-se dele, dizendo:
- Finalmente eu o encontro! Como é bom estar em casa! O pesadelo acabou.
Humberto, porém, não se mexeu. Continuou cabisbaixo, triste. Mirtes insistiu:
- Humberto, sou eu. Voltei para casa! Ajude-me! Não sei o que aconteceu, mas meu vestido está roto, sujo de sangue, estou

machucada, preciso de um médico.
Ele continuava sem nenhuma reação. Talvez estivesse doente mesmo. Mirtes saiu à procura de algum criado que pudesse explicar-lhe

o que estava acontecendo.
Foi em vão que tentou atrair a atenção deles. Ninguém a ouvia ou via, e ela foi ficando desesperada. Aquilo não podia continuar.


Tinha de haver uma explicação.
Mas ninguém a socorria. Precisava prestar atenção à conversa deles, talvez assim pudesse saber o que tinha acontecido.
A princípio não foi fácil. Ela via as pessoas conversando, mas não conseguia ouvir o que diziam. Redobrou a atenção e aos

poucos foi conseguindo ouvir.
307
Falavam de um assalto, de um crime, estavam procurando um assassino. Ela viu Humberto contratar um detetive para investigar

o crime. Até que, um dia, quando o detetive
estava com ele, finalmente ela ouviu o marido dizer:
- Continue investigando. Não descansarei enquanto não pegar o assassino de minha querida Mirtes.
"O assassino de minha querida Mirtes..."
Aquelas palavras caíram sobre ela como uma bomba e continuaram martelando em seus ouvidos. Ela gritou e perdeu os sentidos.
Quando acordou, continuava no quarto do casal. Aquelas palavras voltaram e ela ficou apavorada. Crime? Então era verdade


mesmo? Ela estava morta? Aquele corpo frio,
costurado, era o seu? Como podia ser isso se ela estava mais viva do que nunca? Lembrou-se das palavras de Isaltina e estremeceu.


Estava ela falando a verdade?
Desesperada, Mirtes chorou copiosamente. Por que aquilo havia acontecido? Agora que ela tinha conseguido o que queria, jovem,

admirada, rica, prestigiada na sociedade,
alguém havia destruído tudo? Cerrou os punhos com raiva. Quem teria feito aquilo?
Quando se sentiu mais calma, decidiu ficar ao lado do marido e acompanhar as investigações. A pessoa que fez aquilo haveria

de pagar caro pela maldade.
Mirtes ficou junto a Humberto e presenciou seu sofrimento. Triste e comovida com a atitude dele, quando o via triste, olhando
seu retrato, dizia-lhe ao ouvido:
- Você é meu único amigo. Estou a seu lado. Juntos vamos descobrir esse assassino e nos vingar. Ele não pode ficar impune.
Naqueles momentos, Humberto sentia aumentar sua raiva e o desejo de vingança. Era em vão que os familiares de Mirtes tentavam

demovê-lo. Ela ficava irritada vendo-os
insistir para que ele deixasse a polícia cuidar do caso.
Foi com curiosidade que ela acompanhou Humberto à casa de Mercedes. Mais lúcida e habituada a seu novo estado, Mirtes conseguia
perceber os pensamentos das pessoas.
Notou logo que Mercedes fingia-se compungida mas estava feliz com sua morte. Isso despertou nela uma suspeita.
Certa tarde, quando Humberto se despediu, ela continuou na casa de Mercedes. Pôde perceber o ciúme que ela sentia e o esforço

que fazia para controlá-lo. Mirtes
resolveu ficar ao lado dela para vigiá-la. Assim, ouviu uma conversa dela com Sobral ao telefone. Suas suspeitas tinham

fundamento.
308
Quando Mercedes marcou um encontro com Sobral para pagarlhe os serviços no acompanhamento de Humberto e do caso, Mirtes

foi atrás.
Sobral entrou no carro e Mercedes indagou como estava a investigação, ao que ele informou:
- Não descobriram nada. Nem podiam. Dinho está muito longe e não deixou pista.
- Humberto não desiste. Está com uma idéia fixa.
- A senhora pode ficar sossegada. Ninguém descobrirá nada. Tenho visto Humberto ir à sua casa muitas vezes. Desse jeito,

a senhora logo conseguirá o que deseja.
- Você descobriu quem está trabalhando para ele?
- Ainda não. Mas, seja quem for, vai quebrar a cara. Foi tudo muito bem-feito.
- Espero que seja assim. Ninguém pode saber que fui a mandante. Paguei um preço caro. Espero que Dinho me esqueça e nunca

volte para me chantagear.
- O que é isso, madame? Sou um profissional de confiança. Não teria contratado Dinho se ele não fosse um homem sério, cumpridor

da palavra.
- Está bem. Se continuarem assim, não vão se arrepender. Sei reconhecer quem me é fiel.
Mirtes, sentada no banco traseiro do carro, ouvia estarrecida. Suas suspeitas estavam certas. Aquela mulher abandonada havia

realizado sua vingança. Ao invés de
acabar com o traidor, voltara-se contra ela. Se tivessem matado Humberto, teria sido até um bem, porque Mirtes estaria rica,

jovem e viúva, pronta para usufruir
da vida como gostaria. Mas não. Ela lhe tirara a vida. E agora teria de pagar por isso.
Irritada, Mirtes atirou-se sobre Mercedes dando-lhe socos e empurrões, dizendo revoltada:
- Sua traidora infame! Pensa que acabou comigo, mas estou aqui. Agora você vai pagar por tudo que me fez. Você e esse réptil


que por dinheiro não hesita em chegar
ao crime.
Mercedes sentiu uma tontura violenta e empalideceu. Sobral olhou-a assustado.
- O que foi? A senhora está se sentindo mal?
- Foi de repente... Fiquei tonta, minha cabeça pesa, estou com enjôo. Acho que vou desmaiar.
Sobral abriu as janelas do carro.
309
- Por favor, não faça isso. Não posso chamar ninguém. É perigoso que nos vejam juntos.
Mirtes afastou-se um pouco, procurando acalmar-se. Ela precisava saber quem havia atirado. Todos os culpados iriam pagar

pelo crime. Ela não os deixaria em paz.
Mercedes respirou fundo e disse:
- Já passou. Tudo isso me deixou nervosa. Não gosto de tratar deste assunto.
- Nem eu. Mas precisamos ir até o fim.
Mirtes observava atentamente e decidiu acompanhar Sobral. Mercedes havia sido a mandante; restava saber quem consumou o

crime.
Desde aquele dia, Mirtes passou a seguir Sobral. Descobriu que ele ganhava a vida enganando as pessoas para explorá-las.
Na tarde do dia seguinte foi que ela viu
o detetive ligar para Dinho. Exultou. Ele era quem procurava. Lembrava-se perfeitamente do nome.
Ouviu que Sobral dizia:
- Estou ligando para dizer que está limpo. Nosso negócio deu certo. Fique tranqüilo que o caminho está livre.
- Entendi. Mas não telefone mais. Só se tiver novidades. Por aqui está coberto, tudo como sempre, na mais perfeita ordem.
Despediram-se e Mirtes colou-se em Sobral. Ela queria conhecer Dinho.
Mas não conseguiu nada. Como saber onde ele estava? Apesar de não saber como fazer, continuou colada ao detetive. Seguia

todos os seus passos.
Dois dias depois viu um rapaz entrar no escritório. Trazia a rou
pa rasgada e uma cicatriz feia no pescoço. Vendo-a, perguntou:
- Quem é você? O que faz aqui? - Eu é que pergunto. O que quer?
- Tenho umas contas a ajustar com esse sujeito. Mirtes riu satisfeita:
- Eu também. Estou aqui para me vingar.
O rapaz abriu um sorriso largo e estendeu a mão, dizendo: - Nesse caso, estou com você. Meu nome é Jairo. - O meu é Mirtes.
Em um canto da sala eles conversaram e desabafaram.
Jairo contou que estava apaixonado por uma mulher casada. O
marido contratou Sobral para seguir a esposa. Ele fotografou tudo,
mas o marido não quis fazer o flagrante. Disse que não queria
310
escândalo. Preferia que alguém desse cabo do rival. Quanto à esposa, ele mesmo daria jeito.
- Sobral, esse bandido, contratou um matador que me tirou a vida à queima-roupa.
- Já sei: Dinho.
- Esse mesmo. Como você sabe?
Mirtes contou tudo e finalizou:
- Preciso descobrir onde ele está. Por isso estou aqui. Todos os que me mataram vão pagar.
- Você não pode fazer nada. Faz um ano que o estou seguindo. Sei onde esse canalha está, mas não consegui fazer nada contra

ele. Voltei para tentar alguma coisa
contra Sobral.
Mirtes entusiasmou-se:
- Você vai me levar aonde esse assassino está.
- Não adianta. Ele é muito perigoso. Tentei de todas as formas me vingar dele, mas ele tem alguns asseclas que o protegem.


Quase acabaram comigo.
- Como assim?
- Pessoas como nós, sem corpo de carne. Eles nem me deixaram chegar perto dele.
Mirtes ficou pensativa, depois disse:
- Nesse caso é preciso usar inteligência, fazer tudo sem que eles saibam.
- Como pensa agir?
Antes que Mirtes pudesse responder, entrou na sala uma mulher com roupas sujas de sangue, cabelos desalinhados, olhos aflitos.


Aproximou-se de Jairo, dizendo:
- Procurei você por toda parte. Por que me abandonou?
- Eu não a abandonei. Estou procurando resolver nossos pro
problemas. - Voltando-se para Mirtes, que os observava curiosa, continuou:
- Esta é Eli. Foi por ela que me apaixonei.
- Quer dizer que ela também foi assassinada?
- Sim. Pelo próprio marido. Ele fez umas alterações no carro
dela. Na estrada ela ficou sem breque e despencou no barranco. Assim
ela veio. Todos pensaram que foi acidente.
- Quer dizer que o marido dela continua livre? - Livre e já está saindo com outra.
- Aquele cachorro não perde por esperar - interveio Eli com raiva.
- Todos temos contas a ajustar. Juntos poderemos conseguir
311
o que pretendemos. Eu ajudo vocês e em troca vocês me ajudam. Que tal?
Os dois concordaram e ali mesmo selaram o pacto de vingança. Jairo e Eli tinham morrido havia mais de cinco anos. Nesse
período haviam se juntado a outros que como
eles desejavam ajustar contas com pessoas na Terra que os tinham prejudicado.
Graças a alguns serviços que prestavam ao grupo, haviam conseguido lugar para morar e convidaram Mirtes para ir com eles.

Assim, poderiam planejar os próximos passos.
Ela concordou.
O lugar era um sobradão abandonado onde viviam outros desencarnados. Mirtes não gostou do lugar, mas precisava ter paciência.


Depois cuidaria de seu futuro. Naquele
momento queria vingarse. Com a ajuda deles, tudo seria mais fácil. Conformou-se em ficar ali por algum tempo.
A primeira providência foi conhecer Dinho. Jairo e Eli a levaram até ele. Residia em um pequeno sítio onde plantava alguns

alimentos e vivia com simplicidade. Vendo
sua casa simples, sua vida modesta, ninguém imaginaria que ele tivesse dinheiro no banco, muito bem aplicado, e algumas

propriedades em São Paulo.
Era tido pela vizinhança como pessoa de bem, embora vivesse retraído. Morava em companhia de uma mulata que lhe servia de

criada e de amante.
Mirtes duvidou, mas Jairo mostrou-lhe no porão as armas muito bem cuidadas, munição e as roupas que usava quando saía para

fazer seu trabalho. Vendo-o, Mirtes não
se conteve. Atirou-se sobre ele gritando com raiva:
- Assassino! Você me tirou a vida, precisa pagar. Você vai ver!
Jairo tentou segurá-la, dizendo:
- Não faça isso. Eles vão nos pegar.
Nesse instante dois homens apareceram e agarraram Mirtes, que se debatia tentando soltar-se sem conseguir.
- Este terreno é proibido. Como você entrou aqui?- gritou um deles.
Jairo, que se escondera fora da sala, apareceu dizendo:
- Ela não sabia. Está alucinada. Vou levá-la embora. Isso não
vai mais acontecer.
- Eu conheço você - disse o outro. - Eu já disse que não era
mais para voltar aqui.
- Vim atrás dela para impedir que entrasse na casa. Ela não
está em seu juízo perfeito.
312
Mirtes estava muito assustada, mas aproveitou a deixa, fingindo-se de louca, rindo e não falando coisa com coisa.
Os dois olharam-na desconfiados. Depois um deles segurou-a pelos braços e sacudiu-a, gritando:
- Vou deixá-la ir. Mas nunca mais apareça por aqui. Da próxima vez coloco você no calabouço. Lá aprenderá a respeitar nossas

ordens.
Ela continuou resmungando. Jairo segurou-a e levou-a embora rapidamente. Eli, que os esperava, foi dizendo:
- Você já não a tinha avisado que não podia fazer isso? Acho que não devemos ajudá-la. Ela vai nos meter em confusão.
- Não - apressou-se a dizer Mirtes. - Pode confiar. Nunca mais farei isso.
Lágrimas corriam pela sua face. Ela estava assustada.
- É melhor assim - disse Jairo. - Vamos planejar tudo com inteligência. Não foi isso que você disse? Eles são mais fortes

do que nós. Não podemos fazer nada.
- Mas, quando me atirei sobre a mulher que mandou me matar, ela passou mal.
- Ela está encamada. Não pode ver você. Além do mais, os encarnados pensam que nós estamos mortos. Não sabem que continuamos

vivos.
- Nesse caso, você tem razão. Vamos deixar esse matador para o final, já que ele é protegido por desencarnados. Trataremos

primeiro dos outros: o detetive, Mercedes
e o marido de Eli. Afinal, foram eles que pagaram o matador que Sobral intermediou.
Os dois concordaram com entusiasmo. Combinaram vigiar todos os passos dos três. Enquanto Mirtes cuidaria de Mercedes, Eli


cuidaria do marido e todos vigiariam Sobral.

Depois daquele dia que Mercedes passou mal no carro, ela começou a não dormir bem. Tinha pesadelos, via-se perseguida por

vultos escuros. Por causa disso, tinha
medo de dormir. Quando estava pegando no sono, estremecia e acordava sem ar, suando muito, coração disparado.
Foi ao médico, que receitou um calmante. Vencida pelo cansaço, Mercedes comprou o remédio. Tomou um comprimido antes de

dormir e logo pegou no sono. Viu-se saindo
do quarto e no corredor encontrou-se com Mirtes, que a esperava, olhos brilhantes de ódio, vestido roto sujo de sangue,


cabelos em desalinho. Apavorada,
313
Mercedes quis voltar ao corpo, mas Mirtes segurou-a pelo braço gritando:
- Assassina! Assassina! Acha que seu crime ficará impune? Você vai pagar!
Ela ria sinistramente, e Mercedes, apavorada, esforçava-se para soltar-se dela. A custo conseguiu desvencilhar-se e correu
para o corpo adormecido, mergulhando nele.
Mirtes acompanhou-a dizendo:
- Não adianta fugir. Você vai me pagar. Mulher malvada, traidora. Humberto vai saber de tudo e vai ajudar minha vingança.
Mercedes conseguiu finalmente mergulhar no corpo. Queria levantar-se, mas o calmante havia deixado seu corpo mole. Apavorada,

entre o sono e a lucidez ela viu Mirtes
à sua frente brigando, ora irônica, ora enraivecida. Assim a noite passou, sem que ela pudesse descansar.
Na manhã seguinte, assim que acordou, jogou fora o calmante. Sentira-se pior com ele.
Humberto, que havia voltado a freqüentar sua casa por sentirse muito só, notou seu abatimento.
- Você precisa voltar ao médico. Está abatida.
Ao que ela respondia:
- É que fico triste vendo sua infelicidade. Se eu pudesse, faria qualquer coisa para devolver-lhe a alegria de viver.
- Minha alegria se foi com Mirtes. Nunca mais serei feliz. Você é muito boa. Fico comovido vendo sua preocupação. Não quero

que nada de mau lhe aconteça. Precisa
se cuidar.
Mirtes assistia àquelas conversas e sentia a raiva aumentar. A falsidade de Mercedes incentivava sua raiva. Se ao menos
Humberto não fosse tão bobo! Mas ele se deixava
conduzir, sem disposição para fazer nada. Seus filhos afastavam-se dele a cada dia, e Mercedes o conduzia como queria.
Mirtes via o apartamento luxuoso, as jóias que Mercedes possuía, e tudo aquilo era motivo de raiva. À noite, quando Mercedes

se recolhia, ela reiniciava sua agressão.
Mercedes ia ficando mais abatida, vivia sonada, cochilando durante o dia, apavorando-se quando a noite ia chegando. A instâncias

de Humberto, ia ao médico, que diagnosticava
crise nervosa, uma vez que os exames de laboratório nada acusavam. Receitava calmantes que ela não comprava com medo de

tomá-los e sentir-se pior.
314
Uma tarde, Humberto estava na casa de Mercedes, quando ela se aproximou dele chorosa e triste. Observando seu rosto pálido,

Humberto foi tocado de compaixão:
- Você não está bem. Receio que minha presença tenha contribuído para isso. Não sou boa companhia para ninguém. Talvez seja

melhor eu espaçar minhas visitas.
Mercedes sentou-se ao lado dele no sofá, segurou sua mão e levou-a aos lábios dizendo:
- Se você me deixar, morrerei mais depressa. Eu o amo muito.
Aproximou seu rosto do dele e começou a beijá-lo nas faces, na testa, nos lábios. Surpreendido, Humberto não teve forças

de repeli-la. Ele voltara a freqüentar sua
casa apenas como amigo e não haviam retomado o antigo relacionamento.
Quando ela o beijou nos lábios, ele retribuiu sem coragem de resistir. Mirtes, que se encontrava em um canto da sala, ficou

indignada. Era aquilo que Mercedes queria.
Para tê-lo de volta foi que mandou assassiná-la.
Agora estava conseguindo, enquanto ela, Mirtes, havia perdido tudo, transformando-se naquela sombra triste, mal vestida


e infeliz.
Cheia de raiva, atirou-se sobre Mercedes, gritando furiosa:
- Assassina! Você não vai tê-lo de volta. Estou aqui para impedir. Assassina! Assassina miserável!
Mercedes estremeceu e separou-se de Humberto. Olhos arregalados, gritou aflita:
- Você está morta! Os mortos não voltam! Deixe-me em paz. Mirtes, percebendo que havia sido vista, respondeu:
- Eu estou viva! Você matou meu corpo, mas eu estou viva! A
morte não me destruiu. Agora você vai pagar, sua assassina. Nunca
vai ser feliz. Voltei para me vingar.
- O que foi, Mercedes? O que há com você? Responda!
Ela continuava olhando fixamente para o vazio, olhos esbuga
lhados, rosto mais pálido ainda, trêmula, sem poder falar. Assustado, Humberto segurou-a pelos braços e sacudiu-a,
dizendo:
- Mercedes! O que você tem? Olhe para mim.
Ela estremeceu e perdeu os sentidos. Humberto, aflito, chamou a criada e estenderam-na no sofá. Ele pediu:
- Ligue para o médico. Peça-lhe que venha imediatamente. Enquanto a criada corria ao telefone, Humberto tentava reanimar
315
Mercedes, friccionando seus pulsos, abrindo sua blusa, dando
lhe palmadinhas nas faces e chamando:
- Mercedes... Mercedes... Volte! Acorde!
Aos poucos ela foi voltando. A criada trouxe um copo de água.
Humberto levantou-lhe a cabeça e colocou o copo em seus lábios. - Beba, Mercedes.
Ela começou a tremer e não conseguiu beber a água. - Acalme-se. O médico logo estará aqui.
Ele continuou segurando as mãos dela murmurando palavras de
carinho, tentando acalmá-la. Quando ela conseguiu falar, disse: - Onde está ela? Você a expulsou? - Quem?
- Ela me odeia, me persegue, não me deixa dormir. Eu sei que é ela.
- Não estou entendendo. Ela quem?
- Sua mulher, ela me persegue. Está com ciúme de mim. Humberto olhou para a criada preocupado. Mercedes estava
variando.
- Não pode ser. Mirtes está morta.
- Eu a vi. Estava com vestido sujo de sangue, cabelos arrepia
dos, cheia de ódio. Quer me matar.
- Foi alucinação, Mercedes. Quem morre não volta. Você
precisa refletir. De onde tirou essa idéia?
- Eu vi. Não a deixe me pegar. Tenho medo!
Humberto foi conversando, procurando acalmá-la. O médico
chegou e examinou-a. Prescreveu a receita e pediu que fossem comprar
o medicamento imediatamente porque ele mesmo queria aplicá-lo. A criada saiu apressada e voltou poucos minutos depois com


o remédio. O médico aplicou uma injeção e Mercedes adormeceu em
seguida. Preocupado, Humberto conversou com ele para saber o que
pensava.
- Dona Mercedes está com o sistema nervoso abalado. Fizemos todos os exames clínicos. Ela não tem nenhuma doença.
- Mas ela teve alucinações, crise nervosa. Nunca a vi assim. Mercedes sempre foi pessoa equilibrada.
- Aconselho-o a levá-la a um psiquiatra. Sou clínico geral, e o caso dela requer tratamento especializado. Com a injeção,


ela vai dormir algumas horas e acordar
melhor.
- Vou seguir seu conselho.
Humberto sentia-se angustiado, triste. Imaginava que sua
316
presença estava perturbando Mercedes, que o amava e acreditava estar traindo Mirtes. Por isso ela estava em crise. Era melhor
ele ir embora. Antes de ir, prometeu à
criada uma boa gratificação para que ela cuidasse bem de Mercedes.
Quando o médico aplicou a injeção, Mirtes ficou ao lado do leito esperando que Mercedes deixasse o corpo para continuar
sua perseguição. Mas, para sua surpresa,
viu que o duplo dela dormindo elevou-se apenas uns cinqüenta centímetros sobre o corpo adormecido e ficou ali, sem dar acordo
de nada.
Mirtes nunca havia visto aquilo e chamou Jairo, perguntando o que estava acontecendo. Ele riu e respondeu:
- Há medicamentos fortes que fazem esse efeito. Não me pergunte por quê, que eu não sei. Mas é caso comum. Vamos embora,
porque agora você não vai poder fazer nada.
Tem de esperar esse efeito passar. Vamos ajudar Eli, que está precisando de nós.
Os dois saíram rapidamente, enquanto Mercedes finalmente havia conseguido adormecer sem sonhar.
317
Quando Mercedes acordou, chamou diversas vezes por Humberto. A criada ligou com urgência para ele, que dirigiu-se para lá


acompanhado de um médico psiquiatra. Chegando
ao apartamento, o médico pediu para ficar a sós com ela.
Humberto esperou na sala ansioso. Desejava deixar Mercedes nas mãos de um especialista capacitado e afastar-se. Ele havia

se convencido de que sua presença a estava
prejudicando.
Uma hora depois, quando o médico entrou na sala, Humberto levantou-se e indagou:
- E então, doutor, o que achou?
- Ela está mesmo com o sistema nervoso muito abalado. Ao deixar o quarto, conversei com a criada, que me informou que Dona
Mercedes não gosta de tomar calmantes.
Imagina que eles lhe fazem mal.
- É um absurdo.
- Se ela tivesse tomado os medicamentos
319
que lhe foram receitados, não teria chegado a este estado. Está com idéia fixa, julga-se culpada
pelo afeto que tem pelo senhor e imagina
que sua esposa morta deseja vingar-se.
- Ela me disse isso. Infelizmente minha esposa morreu assassinada por um assaltante e até agora a polícia não conseguiu
descobrir nada. Mercedes é muito dedicada
a mim. Depois que enviuvei de minha primeira esposa, ela se tornou minha companheira. Sempre foi muito boa. Quando me apaixonei
por Mirtes, aceitou nossa separação,
mas, segundo diz, nunca deixou de me amar. É uma pessoa boa, que só deseja minha felicidade.
O médico olhou-o admirado.
- Penso que o senhor está enganado. Dona Mercedes odeia sua esposa.
- Ela lhe disse isso?
- Não. Mas percebi claramente seu ódio quando a mencionava. Ela não quer ver essa realidade.
- Nunca me pareceu isso.
- Pois para mim ficou claro. Ela aceitou a separação aparentemente. No fundo odiou ser trocada por uma mulher mais jovem.


Essa é uma reação natural em um caso desses.
Ela foi rejeitada, abandonada, odiou a rival que lhe roubou o homem amado. Fez mais: em seu inconsciente desejou que ela
desaparecesse, que morresse. Quando soube
que sua mulher havia sido assassinada, sentiu-se culpada. A culpa faz a pessoa sentir-se má. Ninguém quer ser mau. Passou
a ter pesadelos, insônia, medo de dormir,
e alucinou.
Humberto passou a mão pelos cabelos, pensativo. O que o médico dizia tinha lógica.
- Pode ser isso, doutor. Hoje, quando cheguei aqui, ela se sentou a meu lado no sofá dizendo quanto me amava e sofria vendo
meu sofrimento. Depois que terminamos
nosso caso, tornamo-nos apenas amigos e nunca mais tivemos intimidade. Mas, nesta tarde, além de declarar seu amor, ela me
beijou com tal calor que não tive coragem
de repelir. Foi nessa hora que ela teve a alucinação.
- Aí está. Tal como eu disse! Ela está sob o efeito da culpa.
- Decidi afastar-me dela. Pretendo acompanhar o tratamento, mas não quero vê-la. Sinto que minha presença a prejudica.
- Ela vai ter de aprender a lidar melhor com isso. Mas no início do tratamento será melhor mesmo que fique afastado dela.
O senhor também está muito abalado. Por
que não faz uma viagem, tenta distrair-se um pouco?
320
- Não tenho vontade. Minha vida acabou depois da morte de Mirtes.
- O tempo cicatriza as feridas. Hoje há medicamentos que ajudam a vencer a depressão.
- Não há remédio que cure a dor que sinto. Mas obrigado pelo interesse. O que sugere para o caso de Mercedes?
- Ela precisa de um tratamento firme, contínuo. Como não toma remédio, seria indicado ela ficar algum tempo em minha clínica.


Lá tomará os medicamentos na hora certa,
e na terapia vamos procurar torná-la consciente de sua ilusão. Quando ela aceitar a realidade, estará curada.
- Ela não vai querer ir.
- Procure convencê-la. Nossa clínica é moderna, agradável. Tenho certeza de que se sentirá bem lá. Se ela continuar como
está, vai piorar.
- A injeção fez bem a ela. Apesar da inquietação que tem, seu rosto está mais corado.
- No início poderemos fazer uma semana de sonoterapia. Antes preciso fazer-lhe alguns exames clínicos.
- Farei o possível para convencê-la. Amanhã mesmo a levarei até lá.
- Seria bom. Quanto antes iniciarmos o tratamento, melhor será. Depois que o médico se foi, Humberto foi ter com Mercedes.


- Sua aparência melhorou.
- Dormi e o sono fez-me bem.
- O médico disse que preciso cuidar de minha depressão. Aconselhou-me a fazer uma viagem. Hoje mesmo vou procurar a agência
de turismo. Quero ir o mais cedo possível.
- Posso ir com você?
- Não. Você também precisa tratar-se. Ele quer que você fique alguns dias hospedada em sua clínica para tratamento. - Quer
me internar?
- Não. Ele apenas deseja que tome os remédios na hora certa e faça terapia. Acha que você precisa trabalhar suas emoções.


Se fizer isso, dentro de pouco tempo estará
curada.
- Ele disse isso?
- Garantiu. Então eu pensei: enquanto você fica se tratando com ele, eu faço uma viagem. Quando voltar, estaremos bem e
falaremos sobre nossas vidas.
- Você promete que pensará em mim?
321
Ele segurou as mãos dela com carinho:
- Amor eu não posso lhe dar. Estou incapacitado de amar. Mas
gosto muito de você, desejo que fique bem, que seja feliz. Quando
eu voltar da viagem, estaremos melhor, tudo terá passado. Os olhos dela brilharam esperançosos. - Sim. Eu confio em você.


- Vai fazer o tratamento? - Vou.
- Amanhã mesmo eu a levarei até lá. Dentro de pouco tempo estará curada.
No dia seguinte pela manhã, Humberto levou Mercedes à clínica. Era um lugar agradável, mais parecido com um hotel do que
com um hospital. Mercedes estava nervosa,
chorou ao despedir-se, e Humberto não via a hora de deixar aquele lugar.
Chegou em casa mais deprimido do que nunca. Sentou-se na sala pensativo, sem coragem de fazer nada. Pouco depois, o criado
avisou-o que Alzira e os pais haviam chegado.
Humberto levantou-se para recebê-los. Os recém-chegados logo notaram que ele estava mais magro e mais triste. Depois dos
cumprimentos, tentaram animá-lo um pouco,
falando dos preparativos para o casamento de Alzira, marcado para dali a dois meses.
Alzira aproximou-se de Humberto e tomou-lhe a mão, dizendo:
- Pensei que iria encontrá-lo melhor. Sinto que aconteceu alguma coisa que o abalou muito. O que foi?
Talvez por estar fragilizado por haver sofrido tantos problemas e pelo fato de a voz de Alzira lembrar a de Mirtes, Humberto
não conseguiu controlar-se e chorou
convulsivamente.
Estela e Antônio levantaram-se emocionados, e Alzira fez-lhes sinal para que se permanecessem sentados. Em silêncio, esperaram
que ele se acalmasse. Por fim, Alzira
disse:
- As lágrimas lavam a alma.
- Desculpem. Melhor seria eu ter morrido com ela. Aonde vou só levo tristeza e dor.
- Não diga isso. Nós compartilhamos sua dor. Mas temos de aceitar a vontade de Deus. A morte é irreversível.
- Eu sei. É isso o que me dilacera.
- Juntos encontraremos forças para superar este momento difícil. Às vezes, desabafar é bom. O que aconteceu que o abalou
tanto?
- Preciso desabafar mesmo. Não sou de ferro... Vocês não ignoram que, antes de conhecer Mirtes, tive um caso com uma
322
mulher chamada Mercedes. Ela me fazia companhia e ajudava a preencher o vazio deixado pela morte de minha primeira esposa.
Ele fez uma pausa e, notando que os três o ouviam com respeito e atenção, continuou:
- Quando me apaixonei por Mirtes e fui correspondido, senti que havia encontrado o amor de minha vida. Quando ela aceitou
meu pedido, terminei o caso com Mercedes.
Ela foi compreensiva. Deixei-a bem financeiramente e nos separamos.
Humberto continuou falando de sua tristeza e de como encontrava em Mercedes a ouvinte atenta, a amiga carinhosa. Finalmente


falou dos últimos acontecimentos, omitindo
apenas o detalhe do beijo. Finalizou:
- Hoje acompanhei Mercedes à clínica e deixei-a internada e chorando.
Alzira olhou-o firme e disse:
- Está na hora de você saber que a morte é apenas uma viagem. Mirtes continua viva em outra dimensão.
- O que está me dizendo? Isso não é verdade. Ela está morta, e os mortos não voltam.
- Está enganado. O corpo de carne de Mirtes morreu, mas seu espírito continua vivo no outro mundo.
Humberto olhou para os sogros como que pedindo esclarecimentos.
- É verdade - confirmou Antônio comovido.
- É essa certeza que nos tem confortado depois da tragédia - completou Estela.
- Não... Não posso crer. Isso é ilusão.
- Ilusão é pensar que a vida seja tão pequena que termine com a morte. O espírito é eterno. No universo nada se perde, tudo
se transforma. A morte é uma transformação.
Mas o espírito continua do mesmo jeito, consciente de tudo, com os mesmos amores e desejos que sempre teve - esclareceu
Alzira.
- Nunca ninguém provou nada disso - tornou Humberto.
- Ao contrário: para os pesquisadores sérios, há inúmeras provas da sobrevivência do espírito após a morte. Creio que Mirtes
apareceu mesmo para Mercedes. Ela era
muito ciumenta. Pode ter se irritado com o afeto de vocês.
Humberto baixou a cabeça envergonhado. Lembrou-se do beijo que trocara com Mercedes. Se Mirtes estivesse ali em espírito,
teria ficado muito irritada. Mas isso era
difícil de acreditar.
- Seria muito bom se fosse verdade, mas não podemos cultivar uma ilusão.
- Você está precisando de ajuda espiritual - disse Alzira com voz firme. - Vamos levá-lo ao centro espírita de dona Isaltina.


Tenho certeza de que essa ajuda se
estenderá sobre Mercedes.
- Eu nunca fui a um lugar desses...
- Há sempre uma primeira vez. Hoje à noite, eu e Valdo viremos buscá-lo. Depois da morte de Mirtes senti vontade de levá-lo
lá, mas não quis passar por cima de suas
crenças. Agora sinto que é necessário. Não dá para esperar mais.
- Por quê, filha? - indagou Antônio. - Humberto não está inclinado a ir. Temos de respeitar sua vontade.
A voz de Alzira tornou-se mais firme e segura quando respondeu:
- Trata-se de necessidade urgente. Mirtes não está bem. Se queremos ajudá-la, devemos fazer o que nossos mentores pedem.
Humberto precisa atender à parte espiritual
com urgência.
- Nesse caso, eu vou - concordou ele, impressionado com o tom com que Alzira dissera aquelas palavras.
- Viremos buscá-lo às sete.
Quando deixaram a casa de Humberto, tanto Estela quanto Antônio estavam admirados com a atitude da filha, muito diferente
do habitual.
- O que aconteceu com você? - indagou Antônio assim que se viram a sós.
- Senti uma força muito forte e, quando vi, estava falando todas aquelas coisas com Humberto.
- Acho que é mediunidade - considerou Estela.
- Está se sentindo bem? - indagou Antônio.
- Muito bem. Durante nossa conversa com ele, parecia que eu estava flutuando. Uma sensação muito agradável.
- Nesse caso, só podemos agradecer pela ajuda - tornou Estela.
Na hora combinada, Valdo e Alzira foram buscar Humberto. Durante o trajeto, notando que ele estava tenso, procuraram conversar
sobre outros assuntos.
Quando chegaram ao centro, Isaltina abraçou Humberto com carinho e levou-o a uma sala onde ficaram a sós. Vendo-o acomodado,


disse:
324
- Finalmente você veio. Fazia tempo que o esperávamos.
- Devo dizer que não creio em vida após a morte. Alzira insistiu dizendo que aqui eu teria provas de que Mirtes continua
viva em outro mundo.
- O mais importante agora é ajudá-lo a equilibrar-se. Chegou a hora de pensar em você, em sua responsabilidade diante da
vida que lhe deu tudo.
- O que importa o resto, se perdi o que mais amava? Pensar em mim para quê, se não sinto mais vontade de viver?
- Precisa entender que cada um tem seu próprio processo de evolução. Todos caminham amparados pelas leis perfeitas da vida.


De acordo com as escolhas pessoais, essas
leis determinam as experiências que conduzirão ao desenvolvimento da consciência. Nesse processo une e separa, conforme
a necessidade.
- Não entendo por que Mirtes foi assassinada na flor da idade, quando estávamos tão felizes.
- É difícil trabalhar a perda. Quando amamos, temos a ilusão de achar que a pessoa nos pertence. Acreditamos que ficará
ao nosso lado para sempre. Mas qualquer união
no mundo sempre será temporária. Assim como, quando existe amor, nenhuma separação será para sempre.
- A senhora fala como se algum dia eu e Mirtes fôssemos nos reencontrar...
- Estou certa disso. Só não posso dizer quando. - Esse seria o dia mais feliz de minha vida. Isaltina sorriu e considerou:
- É melhor que pense assim. Mas vamos cuidar de você. Vou indicar-lhe um tratamento espiritual que o ajudará a recuperar
as forças. Mas precisamos de sua cooperação.
A depressão, a tristeza e a angústia não trarão Mirtes de volta. Você tem dois filhos que, embora sejam adultos, precisam
muito de sua proteção. Há quanto tempo
não os vê? Por acaso sabe o que está acontecendo com eles?
Humberto sobressaltou-se:
- Eles não ligam para mim, não me procuram nem se interessam pelos meus problemas.
- Você acha que foi bom pai apenas porque lhes deu luxo e dinheiro à vontade. Mas carinho, companheirismo, isso faltou.


Primeiro por causa dos negócios, ultimamente
por causa de seu segundo casamento. Ser pai envolve um compromisso sério com a vida, e você responderá por isso. Enquanto
está pensando só em seu sofrimento,
325
em uma situação que não volta mais, seria mais útil que se aproximasse de seus filhos. Faça isso, e garanto que terá uma
surpresa.
Humberto remexeu-se na cadeira. Ele fora até lá sentindo-se vítima da maior injustiça e de repente começou a sentir-se culpado.
Recordou-se de como se dedicara ao trabalho, deixando os filhos primeiro só aos cuidados da esposa e, depois de sua morte,


com criados que escolhia com cuidado e
pagava regiamente.
Naqueles tempos, o máximo que fazia era chamá-los à ordem quando praticavam travessuras, ou uma ou duas vezes por semana


exigir que jantassem formalmente com ele.
Essas recordações inesperadas o incomodaram.
Tentou justificar-se:
- Sempre fui um homem muito ocupado, mas me preocupei com o bem-estar deles. Nunca deixei faltar nada. Tiveram a melhor
educação, desfrutaram do bom e do melhor.
Não têm nenhum motivo para reclamar de mim. Eu, sim, posso dizer que nunca me demonstraram afeto. São frios, e Mirtes chamava-os
de ingratos.
Isaltina sorriu levemente e respondeu:
- Não se iluda com as aparências. As coisas podem ser muito diferentes do que imagina. Se quer reconquistar seu equilíbrio
emocional, comece por aproximar-se de
seus filhos. Mostre interesse por sua maneira de pensar, de ser. Eles têm muito para lhe oferecer. Vamos começar o tratamento
espiritual. Prometa que fará o que
estou lhe pedindo.
- Está bem. Reconheço que tenho me omitido um pouco. Vou fazer o que me pede.
Isaltina levou Humberto a uma sala em penumbra, iluminada por uma luz azul. Uma música suave enchia o ar e algumas pessoas
aguardavam em oração.
Foi conduzido a uma cadeira e algumas pessoas o rodearam enquanto uma moça à sua frente ergueu as mãos para o alto por alguns
segundos, depois começou a passá-las
sobre ele, sem tocá-lo.
Humberto sentiu que uma brisa fresca e agradável o envolvia. Olhou em volta para ver de onde ela vinha, mas não viu nada.
- Pense em Deus - pediu a moça à sua frente.
Humberto foi dominado por forte emoção. As lágrimas desceram pelo seu rosto e ele sentiu que, conforme elas corriam, sua
tensão ia desaparecendo. A moça tocou seu
ombro e ofereceu-lhe um copinho com água, que ele bebeu.
Ao deixar a sala, a angústia e a tristeza haviam desaparecido,em
326
seu lugar ficando apenas sono e cansaço, como se ele estivesse há muito tempo sem dormir.
Quando Humberto deixou a sala, no corredor encontrou-se com Alzira e Valdo.
- Sente-se melhor? - indagou Valdo.
- Sim. De certa forma fez-me bem ter vindo. Estou me sentindo aliviado.
- Se continuar o tratamento direitinho, tenho certeza de que vai sentir-se muito melhor - tornou Alzira.
Valdo convidou-os para tomar alguma coisa e Humberto aceitou. Pela primeira vez depois da tragédia ele se deu conta de que
estava com fome. Levaram-no a uma lanchonete
agradável, e a conversa fluiu com naturalidade.
Tomaram refresco, comeram alguns salgadinhos. Alzira tomou sorvete.
- Vocês conhecem Dona Isaltina há muito tempo? - indagou Humberto.
Alzira contou como ela socorrera Mirtes e ajudara toda a família.
- Mirtes nunca me falou nela.
- É que tinha muito medo desse assunto. Hoje sei que ela era médium. Quem tem a sensibilidade desenvolvida precisa ter cuidado
com os lugares em que entra.
- Mirtes era muito especial - disse Humberto, com o rosto sombreando-se de tristeza.
- Vamos deixar Mirtes livre para seguir seu caminho - tornou Alzira. - Ela precisa de nossa ajuda e compreensão.
- Por quê? Acha que, se ela de fato estiver viva no outro mundo, pode estar sofrendo?
- Receio que Mirtes não seja pessoa fácil de se conformar. Sempre foi muito determinada com o que queria. Ser tirada da
vida ná Terra em plena juventude, justamente
quando havia conquistado o que mais queria, certamente a terá desesperado. Por isso, temos de nos esforçar para deixar a
tristeza de lado e mandar-lhe pensamentos
bons, cheios de luz, que possam ajudá-la a entender sua nova situação.
- Você acha que ela pode sentir minha tristeza?
- Sua tristeza vai somar-se à dela, que ficará duplicada. Isso vai deixá-la mais revoltada. Conheço bem minha irmã. Tenho
certeza de que ela está precisando de energias
de equilíbrio e de paz, que a ajudem a recuperar-se.
327
- Se isso for verdade, posso estar atrapalhando seu sossego. O que eu mais queria era vê-la feliz. Faria qualquer coisa
para isso. Agora não posso fazer mais nada.
- Pode, sim. Ao pensar nela, tente vê-la bem, como quando estava a seu lado, alegre, feliz. Tenho certeza de que assim a
estará ajudando.
- Mesmo querendo, não sei se conseguirei. Penso que você está dizendo isso para que eu fique melhor. Ela morreu, não pode
mais nos ver.
- É difícil aceitar a idéia de que a vida continua após a morte - disse Valdo, sério. - Eu mesmo, que acho isso viável,
tenho dúvidas de vez em quando. Mas pense:
se o que ela diz for verdade, e tem grande possibilidade de ser, como Mirtes ficaria ao vê-lo desesperado, aflito? Claro
que seria mais infeliz e teria maior dificuldade
de aceitar o que lhe aconteceu e seguir em paz seu novo caminho.
Humberto ficou pensativo alguns segundos, depois disse:
- Você pode ter razão. Eu não sei nada sobre esse assunto. E se eu estiver errado? E se ela estiver mesmo viva em outro
mundo?
- Sua tristeza contribuirá para torná-la mais revoltada, mais infeliz.
Humberto levantou os olhos para Alzira, fixando-a, e respondeu com voz firme:
- Prometo que vou fazer este tratamento direitinho e esforçarme para enviar bons pensamentos a Mirtes.
Alzira sorriu:
- Faça isso. Todos desejamos ajudá-la, e o caminho é esse.
Uma vez em casa, Humberto preparou-se para dormir. Sentou-se ná cama e, lembrando-se das palavras de Alzira, procurou recordar-se
de Mirtes alegre e feliz. Depois
deitou-se e logo adormeceu.
Sonhou que estava em casa descendo as escadas e, ao entrar ná sala, deparou com Mirtes, que o olhava com raiva. Ela estava
com o vestido roto, manchado de sangue,
olhos arregalados e rosto conturbado.
Assustado, ele se aproximou dela tentando abraçá-la. Ela o empurrou, gritando colérica:
Não preciso de seus bons pensamentos! Você foi culpado da minha morte! Se gostasse mesmo de mim, estaria procurando os
assassinos em vez de ficar choramingando
indo naquele centro espírita. Eu preciso ser vingada! Você precisa castigar aquela assassina. Se
328
não fizer isso, virei atormentá-lo pelo resto da vida. Mexa-se. Faça alguma coisa. Eu estarei vigiando.
Humberto ainda tentou segurá-la, dizer alguma coisa, mas ela o empurrou violentamente e ele acordou assustado, sentindo
falta de ar, molhado de suor.
- Foi um sonho! - murmurou aliviado. - Fiquei tão preocupado com aquelas histórias de espíritos que criei este pesadelo.
Acho melhor não voltar mais àquele lugar.
com mãos trêmulas, apanhou um copo de água e bebeu, mas não conseguiu dormir de novo. Quando o dia amanheceu, levantou-se
e foi caminhar pelo jardim. A imagem de
Mirtes no sonho não lhe saía do pensamento. Ela vestia a mesma roupa que usara no casamento de Émerson.
Depois de caminhar um pouco, entrou em casa. Precisava ocupar-se, fazer alguma coisa para ver se conseguia apagar aquele
sonho do pensamento.
Decidiu ir ao escritório. Desde que conhecera Mirtes, havia deixado a administração da empresa com os filhos. Apesar de
não serem muito ligados a ele afetivamente,
os dois estavam preparados e a par de tudo.
Humberto chegou ao escritório passava das dez, e foi diretamente à presidência. Bateu levemente ná porta. Como não obtivesse
resposta, abriu-a.
Renato estava sentado atrás da escrivaninha, com a cabeça entre as mãos, fisionomia triste.
- Renato, aconteceu alguma coisa?
O filho estremeceu e imediatamente mudou a postura.
- Pai! Não aconteceu nada. Por quê?
- Quando entrei, você me pareceu triste, desanimado.
- Impressão sua. E você, que milagre foi esse?
- Preciso me ocupar, fazer alguma coisa. Não posso ficar parado só pensando no que nos aconteceu.
- Trabalhar ajuda. Se não fosse isso, talvez eu não estivesse em pé.
Humberto recordou-se das palavras de Isaltina: "Seus filhos precisam muito de sua proteção". Aproximou-se de Renato, colocou
a mão no braço dele e disse emocionado:
- Sinto que tenho me omitido com você. Depois da desgraça que me feriu, comecei a pensar que talvez não tenha sido um bom
pai. Achava que, dando dinheiro, estudo,
estava fazendo minha parte.
329
Tentei cumprir o papel de pai conforme fui educado. Ao homem cabia sustentar a família, prover suas necessidades; e
à mulher, os cuidados com os filhos e com
o lar. Confesso que me enganei. Tenho me sentido muito só. Quando reclamei que vocês me abandonaram, uma pessoa fez-me ver
que fui eu quem não lhes deu o afeto,
o apoio que esperavam. Envolvido nos negócios, nunca fui companheiro de vocês. Agora não posso exigir de vocês o afeto que
nunca lhes dei.
Humberto tinha os olhos marejados. Renato em um impulso abraçou-o apertando-o de encontro ao peito e não conseguia dizer
nada. O pai sentiu que o filho tremia de
emoção e retribuiu o abraço sentindo um carinho que não se lembrava de haver sentido antes.
- Pai, sinto muito o que lhe aconteceu. Apesar de acharmos que você não seria feliz naquele casamento, tanto eu quanto Mauro
ficamos chocados com a tragédia.
- Eu sei, meu filho. Sente-se aqui a meu lado. Vamos conversar como nunca fizemos. Estou sendo sincero. Quero deixar claro
que, mesmo me omitindo, sempre amei vocês
dois e me preocupei com seu futuro. Sinto não ter feito isso do jeito certo.
Renato sentou-se ao lado dele no sofá. Sentia que o pai estava sendo sincero. E decidiu pela primeira vez abrir seu coração
para o pai, contando-lhe os problemas
que o angustiavam: um caso de amor frustrado, uma separação.
Humberto ouviu com interesse, aconselhando-o a esperar com calma.
- Acredito que vocês se amam e tudo vai se resolver.
- Também acho. Só de desabafar já me sinto melhor.
Falaram dos negócios e, quando Mauro chegou, ná hora do almoço, admirou-se de encontrá-los tão próximos. Sentiu-se bem ao
lado deles e, quando Humberto lhe pediu
opinião sobre alguns assuntos, vendo o interesse com que o pai perguntava, ficou alegre em poder dar seu parecer.
Humberto convidou-os a almoçar em um bom restaurante, e lá a conversa fluiu animada. Pela primeira vez depois da morte
de Mirtes ele esqueceu a tragédia. Ficou
impressionado com a lucidez das idéias de Mauro e orgulhoso da postura de Renato.
Quando os levou de volta ao escritório, ao despedir-se, ainda dentro do carro, Mauro segurou sua mão, abraçou-o e pediu:
- Pai, nossa casa está muito vazia sem você. Quero pedir que volte a morar conosco.
330
- Isso mesmo - completou Renato. - Nós também temos nos sentido muito sozinhos. Aquela casa não é a mesma sem você. Volte.
- Ainda não sei. Vamos ver...
Humberto não quis dizer que preferia ficar onde estava porque pensava estar mais perto de Mirtes.
- Nosso encontro hoje foi tão agradável! Gostaríamos de poder estar mais tempo juntos - disse Mauro.
- Também gostaria muito de ficar com vocês.
- Somos só nós três. Foi o"que sobrou da família". Temos de aproveitar para ficar juntos, usufruir da companhia uns dos outros,
antes que nos separemos.
No trajeto de volta, Humberto não esquecia as palavras de Renato: "Temos de aproveitar para ficar juntos, usufruir da companhia
uns dos outros, antes que nos separemos".
Ele sabia que um dia teriam de se separar. A morte pode vir quando menos se espera. Seria bom mesmo aproveitar o tempo
que lhes restava.
Assim que entrou em casa, Humberto lembrou-se do sonho e estremeceu. Sentou-se ná sala pensativo. Havia decidido não fazer
o tratamento espiritual no centro, mas
uma coisa era certa: Isaltina havia lhe dito a verdade. Procurar os filhos fora um bom conselho.
Decidiu que iria lá pelo menos mais uma vez para contar-lhe seu encontro com eles. Tirando aquelas conversas de espíritos,
ele se sentira muito bem com aquele
tratamento.
Mirtes apareceu ná sala, aproximou-se e ouviu seus pensamentos. Estremeceu de raiva. Ele pretendia voltar àquele centro.
Ela não deixaria. Aproximou-se dele dizendo-lhe
aos ouvidos:
- Você não deve voltar lá. Eu estou aqui, fique comigo. Se você for, terei de ir embora. Não me abandone, fique comigo.
Humberto não ouviu as palavras, mas de repente sentiu uma onda de medo e tristeza. Os filhos haviam pedido para ele voltar
a morar ná casa da família. Mas ele não
iria. Não podia deixar o lugar onde fora tão feliz com Mirtes. Seria o mesmo que abandoná-la.
Naquele instante, Mirtes viu uma luz clara. Em seguida, uma mulher ainda moça entrou ná sala e aproximou-se dela, dizendo:
- Afaste-se dele. Você não vai mais prejudicar minha família. Estou aqui para defendê-los. Vá embora e deixe-nos em paz.
- Quem é você? Por que está se intrometendo em nossa vida?
- Você já abusou demais. Agora terá de deixá-lo.
Dois rapazes entraram e Mirtes encolheu-se em um canto
331
assustada. Eles eram jovens, belos, e à sua volta havia uma luz muito branca.
- Vamos, Mirtes. Chegou sua hora.
- Não quero ir. Para onde vão me levar?
- Somos trabalhadores do bem. Você terá de vir conosco - disse um.
- Não tenha medo. Irá para um lugar onde terá tempo de pensar e avaliar o que fez de sua vida. Agora vamos.
- Não vou. Preciso me vingar. Se vocês fossem do bem, teriam impedido Mercedes de me matar.
- Seu tempo acabou. Não poderá mais ficar em volta das pessoas.
Antes que Mirtes pudesse dizer alguma coisa eles a rodearam, passaram o braço em sua cintura e ela não teve como resistir.
Em poucos instantes eles desapareceram.
A mulher aproximou-se de Humberto, beijou-o delicadamente ná fronte e disse ao seu ouvido:
- Meu querido, estou feliz por ter procurado nossos filhos. Há muito venho pedindo a Deus que isso aconteça. Vá morar com
eles. Venda sem remorsos esta casa e tente
recuperar a felicidade ao lado das pessoas que o amam de verdade.
Ela se foi e Humberto olhou em volta admirado. Parecia que estava vendo aquela casa pela primeira vez.
Talvez fosse melhor mesmo ir morar com os filhos. Enquanto estivesse vivendo ali, não conseguiria esquecer aquela tragédia.
Ele se sentia cansado e desejava um
pouco de paz.
com esse pensamento, decidiu repousar um pouco. Não havia dormido bem. Foi para o quarto, deitou-se e logo adormeceu. Mas
desta vez foi um sono tranqüilo e reparador.
332
Jairo procurou Eli preocupado. - Você sabe onde está Mirtes?
- Não estava com você?
- Não. Ela disse que ia ficar alguns dias perto do marido para evitar que ele voltasse àquele centro espírita. Como tenho
novidades, fui procurá-la. Mas, assim que
entrei ná casa, encontrei uma mulher que me mandou sair.
- E você obedeceu?
- Não tive outro jeito. Ela trabalha para a luz. Não quero nada com eles. Têm poder para acabar com nossa liberdade.
- Vai ver que Mirtes fez como você.
- Não sei, não. Ela é novata e briguenta. Pode bem ter discutido com eles.
- Nesse caso...
- Eles a levaram. Sei como é isso.
- E agora, como ficamos? Ela estava nos ajudando.
- Vamos esperar. Posso estar enganado. Mas tenho novidades: meu trabalho com Sobral está dando certo.
333
- Que bom!
- Conforme combinamos, trabalhei duro e consegui afastar todos os clientes dele. Ele ficou desesperado.
- Ele ganhou muito dinheiro.
- Mas gastou tudo. Claro que eu o ajudei - disse ele rindo.
- E então?
- Está sem nada, devendo, sendo cobrado. Se não pagar o aluguel, será despejado.
- Então você o inspirou a chantagear meu marido. Ele está muito nervoso com essa história. Quando ele dorme, sai do corpo
e eu estou por perto para cobrar o que
me deve.
- Isso mesmo. Sobral ameaça dizendo que é Dinho que está pedindo esse dinheiro. É mentira, claro.
- Você vai voltar para o lado dele, vigiá-lo e me contar tudo que acontecer. Nossa vingança está chegando. Eles vão pagar.
Eli concordou e voltou para a casa do marido.
Naquela mesma noite Sobral foi procurar Alberto. Este o conduziu ao escritório, fechando a porta em seguida.
- Você está facilitando. Não deveria me procurar em casa.
- É urgente. Dinho não quer esperar mais. Diz que precisa sumir do país. Tenho medo do que ele possa fazer.
Alberto pensou um pouco, depois disse:
- Como eu lhe disse, minha situação financeira não é boa. Para ser mais exato, estou arruinado.
- Nesse caso, não vou poder fazer nada por você. Ele já fala que vai apagar quem se recusar a ajudá-lo.
- Eu tenho uma solução. Se vocês toparem, tudo dará certo.
- Fale.
- Bem, talvez você não saiba, mas o dinheiro que tenho era de minha mulher. Ela era muito rica. Mas o irmão dela entrou
ná justiça alegando que nos casamos com
separação parcial de bens e que eu não tenho direito a nada, uma vez que ela já possuía esses bens antes de nosso casamento.
Eu ignorava essa lei, mas, desde que
o processo foi aberto, tudo foi bloqueado. Não posso vender nada e ainda estou arriscado a perder tudo que tenho.
- E seu advogado, o que diz?
- Que vou perder. Mas esse meu cunhado é o único parente vivo de Eli. Se ele for vítima de um assalto ou sofrer um acidente,
tudo se resolverá.
334
- É muito perigoso. A polícia vai desconfiar de você. Será preso com certeza.
- Sei como fazer. Não corro esse risco. Se Dinho acabar com ele, logo terei muito dinheiro e os recompensarei regiamente.
Sobral pensou um pouco e perguntou:
- Tem certeza de que não desconfiarão de você?
- Absoluta. Eu não iria fazer isso se houvesse risco. Fique tranqüilo.
- Nesse caso, vou falar com ele. Preciso pelo menos de dinheiro para a viagem.
- Isso posso arrumar.
Tudo combinado, Sobral foi embora.
Eli imediatamente procurou Jairo e contou-lhe tudo. Ele ouviu com interesse e, quando ela terminou, perguntou:
- O que Alberto disse é verdade?
- Qual nada! Eu tenho mesmo um irmão, mas ele nunca entrou ná justiça contra Alberto. É golpe dele. Está armando uma para
se livrar dos dois.
- Ele vai trabalhar para nós sem querer. Vamos acompanhar tudo e agiremos ná hora certa.
- Soube alguma coisa de Mirtes?
- Sim. Ela sumiu de circulação. Foi mesmo levada pelos seres da luz.
- Nesse caso, não podemos mais contar com ela.
- É melhor voltar para lá e continuar vigiando Alberto. Não podemos perder nenhum detalhe.
Ela obedeceu imediatamente. Quando chegou ao lado do marido, esforçou-se para ligar-se com o pensamento dele.
- Aqueles safados não perdem por esperar. vou me livrar deles de uma vez! Quando for a hora, a polícia vai entrar em ação.
Três dias depois, Sobral voltou à casa de Alberto. Uma vez no escritório, informou:
- Dinho topou. Mas desta vez quer quinhentos mil.
- Se ele conseguir, terei mais do que isso.
- Eu também quero mais. Estou precisando.
- Duzentos mil. É mais do que você espera. Os olhos de Sobral brilharam satisfeitos.
- Está bem.
- Para quando será?
- Ele virá amanhã. Como sempre, ficará de campana algum
335
tempo para estudar os passos do homem. Quando achar que é o momento, fará o serviço. Você sabe como ele trabalha.
- Está bem. Espero que ele faça tudo certo.
- Trabalho garantido.
Depois que Sobral foi embora, Alberto pegou o telefone. Eli observava atento.
- Alô, quero falar com o detetive Roque.
- Roque falando.
- Aqui é Alberto Camargo Lira. O senhor não me conhece pessoalmente, mas talvez já tenha ouvido falar de mim. Preciso muito
conversar com o senhor.
- Pode vir até aqui?
- O assunto é urgente, sigiloso e muito perigoso. Gostaria de encontrá-lo em um lugar discreto.
- Onde, então?
Alberto deu-lhe o endereço de sua casa. Pediu que ele tomasse cuidado para não ser seguido e entrasse pela porta dos fundos.
- Irei imediatamente.
Quinze minutos depois, Alberto estava à espera no portão dos fundos. O carro parou e desceram dois homens, um de meia-idade
e outro mais jovem. Alberto fê-los entrar
imediatamente. Levou-os a seu escritório e fechou a porta. Depois dos cumprimentos, Roque, o mais velho, perguntou:
- E então? Do que se trata?
- De chantagem. Estou sendo ameaçado de morte e não sei a quem recorrer. Lembrei-me do senhor porque já ouvi dos meus amigos
referências elogiosas a seu respeito.
Estou apavorado.
- Conte-me tudo. Quem o está chantageando?
- Um detetive particular chamado Sobral.
Os dois policiais entreolharam-se curiosos. Havia muito tempo suspeitavam que Sobral estivesse envolvido em coisas ilícitas.
- Continue - pediu Roque.
- Bem, minha adorada esposa morreu em um acidente de carro. Depois que fiquei viúvo, tive um caso com uma senhora casada.
O marido desconfiou e contratou Sobral
para nos seguir. Ele logo descobriu nosso caso, mas, ao invés de revelar tudo ao marido que o contratou, procurou-me dizendo
que, se eu estivesse mesmo apaixonado
por ela, ele poderia livrar-me dele. Sobral tinha um amigo que morava no estado do Mato Grosso e que por bom dinheiro poderia
"apagar" meu rival, e assim nosso
caminho estaria livre. Se eu recusasse
336
essa proposta, ele iria ao marido e contaria tudo. Fiquei apavorado. ná ocasião eu deveria ter procurado a polícia,
mas tive medo.
- Sei. E por que nos procurou agora?
- Bem, eu procurei ganhar tempo. Paguei o que ele me pediu para manter silêncio sobre o caso e fiquei de dar uma resposta
quanto ao restante. Claro que eu não ia
aceitar. Sou um homem de sociedade, muito conhecido. Tive medo do escândalo e também da ameaça de morte. Mas há um segredo
que preciso contar-lhes.
- Fale.
- É que a mulher com a qual eu mantinha relações era minha cunhada. O marido é o irmão da minha falecida esposa.
O policial coçou a cabeça e comentou:
- O senhor conseguiu se enrolar.
- Sabe como é: eu estava muito triste depois da morte de minha mulher, muito sozinho, ela tentou me consolar e aconteceu.
Hoje à tarde Sobral veio aqui e deu-me
um ultimato. Disse que amanhã Dinho, o tal assassino, chegará a São Paulo. Quer o dinheiro de qualquer maneira. Se eu der,
ele acaba com meu cunhado; se recusar,
acaba comigo. Preciso de ajuda. Por isso liguei para o senhor.
Roque pensou um pouco, depois disse:
- O senhor fará o seguinte: ligue para Sobral e diga que dará o dinheiro para ele acabar com seu cunhado. Nós tomaremos
conta do caso. Deixarei dois homens aqui
para protegê-lo. Preciso do endereço de seu cunhado.
- Ele não pode saber. É muito ciumento. Será uma tragédia. Depois, apesar de tudo, eu o estimo e não desejo que nada de
mau lhe aconteça. Estou muito arrependido
do que fiz. Eu e ela decidimos nunca mais nos encontrar. O caso acabou.
- Não se preocupe. Diremos a ele que recebemos uma denúncia anônima. Vamos prender esse matador. Aja normalmente e fique
atento. Avise-nos se souber de qualquer
coisa.
- O senhor nunca viu esse matador? - indagou o outro policial.
- Não. Sobral disse-me que ele não se mostra para ninguém. É contratado, vem, faz o serviço e volta sem ser visto.
- Como Sobral faz o contato? - indagou Roque.
- Ele vai até o Mato Grosso, onde ele mora. É só o que sei.
- Eu vou embora e Lopes ficará aqui enquanto providencio sua segurança. O senhor teve a atitude mais acertada. Se todos
agissem assim, esses bandidos não lesariam
tanta gente.
337
Roque voltou à sede da polícia, reuniu dois colegas e juntos traçaram um plano de ação.
- Vamos trabalhar ná surdina. Ninguém pode saber nossos planos. Cuidado com os jornalistas.
- Pode deixar. Sei como driblá-los - disse um deles.
- Vamos vigiar Sobral. Ele poderá nos levar ao homem - sugeriu o outro.
Roque pensou um pouco e respondeu:
- Eles combinaram tudo e certamente o matador já tem todas as informações de que necessita. Vai agir e ir embora. Eles não
vão se encontrar. Não iriam se expor assim.
Tenho uma idéia melhor. Esta noite vamos visitar o escritório de Sobral. Algo me diz que será revelador.
O espírito de Jairo, que os ouvia e fazia sugestões aos ouvidos de Roque, sorriu satisfeito. Era isso que ele queria.
- Isso não irá alertá-lo? Os pássaros poderão voar.
- Se encontrarmos o que espero, ele não terá tempo para mais nada.
Passava da meia-noite quando Roque e mais dois companheiros chegaram ao escritório de Sobral. O prédio, no centro da cidade,
estava às escuras. Nenhuma luz.
com facilidade abriram a porta principal do edifício, entraram e fecharam-na novamente. com as lanternas procuraram a
sala de Sobral e entraram. Como não havia
janela para a rua, acenderam a lâmpada e começaram as buscas.
Mexeram no arquivo, mas não encontraram nada suspeito. Inspirado por Jairo, Roque teve a idéia de procurar ná pequena saleta
que intermediava o banheiro. Havia um
armário de parede, um balcão com fogareiro, uma pequena mesa e duas cadeiras.
Roque abriu o armário, olhou tudo e não encontrou nada. Foi então que uma lata de biscoitos que estava no alto, sobre o
armário, caiu.
Roque olhou admirado. Ele não havia tocado nela. Apanhoua, sacudiu-a e notou um barulho diferente. Abriu-a e encontrou um
caderno de anotações. Era ali que Sobral
anotava os casos ilícitos.
- Encontrei - disse Roque, satisfeito.
Os outros dois se aproximaram e ele lhes mostrou o caderno, dizendo sério:
- Isto é muito interessante. Esse Alberto que nos chamou
338
utilizou os serviços excusos de Sobral. Aqui estão anotadas as quantias que ele pagou, inclusive a Dinho. Esse é o nome do
tal matador. Ele está querendo livrar-se
dos comparsas e nos usar, mas vai descobrir que com a polícia não se brinca.
Voltaram à delegacia, com Roque carregando o caderno de Sobral.
- Não seria melhor prendê-lo já? - indagou um deles.
- Não. Vamos vigiá-lo para que não fuja. Temos dois, falta-nos o principal. Quero pegar esse matador.
O espírito de Jairo acompanhava todos os procedimentos com satisfação, esforçando-se por inspirá-los. Em breve estariam
vingados. Procurou Eli para dar a notícia.
- Do jeito que fizemos, Mirtes também estará vingada. Sua assassina será desmascarada. Gostaria que Mirtes soubesse.
Mirtes, porém, estava muito longe dali. Quando os dois rapazes a retiraram da casa de Humberto, ela os acompanhou a contragosto.
Um de cada lado, abraçaram-na pela
cintura e ela sentiu que não poderia resistir. Eles tinham uma força que a obrigava a seguilos. Sentia-se sonolenta enquanto
deslizava com eles por lugares desconhecidos.
Quis perguntar para onde a estavam levando, mas não teve forças.
Depois de algum tempo, pararam em frente a um grande portão que parecia ser de ferro trabalhado. O portão abriu-se e entraram
por um parque. Por fim, pararam diante
da porta de um enorme prédio.
Entraram e Mirtes sentia-se cansada, sonolenta, não conseguindo pensar nem reagir. Colocaram-na em uma maca e conduziram-ná
a uma sala. Uma senhora de branco aproximou-se
e passou a mão em seus cabelos, dizendo:
- Seja bem-vinda, minha filha. Vamos ajudá-la. Logo ficará bem.
Mirtes ouviu, mas não conseguiu responder. A mulher apanhou uma esponja, mergulhou em um líquido azul e começou a passá-la
em seu corpo. Mirtes sentiu agradável
sensação de frescura. A ferida em sua cintura, que às vezes queimava e sangrava, deixou de incomodar.
Depois a senhora disse:
- vou colocar-lhe uma roupa e levá-la ao tratamento. Logo se sentirá melhor.
Ela havia tirado seu vestido roto, vestindo-a com uma camisola
339
leve, e Mirtes suspirou aliviada. Depois foi conduzida para uma porta que se abriu e duas moças levaram-na para dentro.
Mirtes olhou em volta admirada. A atmosfera
daquela sala era verde.
Ela sentiu muito sono e logo adormeceu. Quando acordou, sentia-se muito melhor. Olhou em volta tentando concatenar os pensamentos.
O quarto era claro, o sol entrava
pela janela aberta fazendoa vislumbrar um pedaço de céu azul e sem nuvens. Onde estava? Aos poucos foi se recordando de
tudo. Colocou a mão ná cintura sobre a ferida,
mas para sua surpresa ela havia fechado. Ficara apenas o sinal.
Levantou-se devagar. Sentia-se um pouco fraca. Segurando-se nos móveis, foi até a janela e olhou para fora. Estava no segundo
andar de um enorme edifício cheio de
janelas. No exterior, um jardim muito bonito a fazia respirar gostosamente o ar perfumado. Nos últimos tempos ela havia
circulado por lugares escuros, abafados,
malcheirosos.
Era gratificante poder estar ali. Que lugar seria aquele? Quem eram os dois rapazes que a transportaram e por que a estavam
auxiliando? Sentia que estava sendo ajudada.
Sua cabeça estava mais lúcida, o raciocínio mais fácil, como havia muito não sentia.
- Como se sente, Mirtes?
Ela se voltou e viu uma mulher de meia-idade, rosto agradável, sorrindo para ela. De onde a conhecia?
- Estou melhor. Não conheço este lugar. Por que me trouxeram? O que estou fazendo aqui? É um hospital?
- Você está em uma casa de socorro. É um lugar de auxílio e de recuperação.
- Como se chama? Onde fica?
- Próximo à crosta terrestre. Chama-se Casa Transitória.
- Por que transitória?
- Porque as pessoas ficam por algum tempo e depois tomam
seu rumo.
- O lugar é muito bonito. Fazia tempo que não via algo tão lindo.
A mulher sorriu.
- Concordo. Meu nome é Emília. Desejo ajudá-la em sua recuperação.
- Eu estou muito bem. Tanto que gostaria de voltar à Terra, ver minha família.
- Ainda é cedo. As energias lá são conturbadas. Você ainda não está preparada para enfrentá-las.
340
- Mas eu preciso ir. Quero saber como estão as coisas por lá.
- Irá quando for oportuno. Por enquanto é melhor fazer seu tratamento. Não quer ficar bem?
- Quero. Nos últimos tempos tenho me sentido muito mal. Desde que...
Mirtes lembrou-se dos tiros que a atingiram. Sentiu a cabeça rodar e teria caído se Emília não a houvesse amparado, acomodandoa
ná cama. Alisou sua cabeça com carinho,
dizendo:
- Esqueça aquele momento. Já passou. Você agora está bem. Pense que está com saúde, em um lugar alegre, bonito, cheio de
luz.
Ela obedeceu e aos poucos foi melhorando.
- Tem razão - disse. - Ainda não estou bem para ver minha família.
- Aqui vai melhorar. Confie em Deus e não tenha medo.
Nos dias que se seguiram, Mirtes foi melhorando. Cada vez que a colocavam ná sala verde, sentia que ficava mais lúcida e
mais forte. Começou a circular pelos jardins,
conheceu pessoas, notou que nem todas estavam tão bem quanto ela. Pareciam distantes, alheias, e com elas não adiantava
puxar conversa.
À medida que melhorava, Mirtes sentia cada vez mais vontade de procurar Jairo e Eli para saber como estavam as coisas. Conversou
com Emília sobre o assunto:
- Eles são meus amigos. Ajudaram-me quando eu estava perdida, sem ter para onde ir. Gostaria que soubessem onde estou.
- Por enquanto não é possível.
- Sei que vocês estão me ajudando. Melhorei com esse tratamento, mas não entendo o que está acontecendo comigo. Por que
foram me buscar? Meus companheiros estão
deste lado há mais tempo do que eu e vocês não os trouxeram para cá.
- É que eles ainda não estão prontos.
- Eu também não queria vir. Havia algumas coisas que eu precisava fazer por lá antes de cuidar de minha nova vida.
- É que intercederam por você.
- Quem? Não conheço ninguém aqui.
- Uma pessoa que está encarnada ná Terra e gosta muito de você. Ela é uma das fundadoras deste lugar, tem muita experiência.
A pedido dela fomos buscá-la.
Mirtes ficou pensativa. Deveria ser alguém muito importante. Ela estava sendo tratada com muita consideração e amizade.
341
- Agradeço o interesse dela por mim, mas assim que ficar boa de tudo pretendo voltar à Terra. Tenho um trabalho importante
para terminar.
Emília olhou-a séria e respondeu:
- Nada é mais importante do que cuidar de seu bem-estar. Mirtes inquietou-se:
- Já estou bem. Quero ir embora. Só preciso saber como fazer para ir aonde quero.
- Você não pode sair daqui sozinha e sem proteção. Fora de nossos muros há muitos perigos.
- Sei cuidar de mim. Só preciso saber o caminho.
- Poderá ir quando o médico lhe der alta.
- Não estou doente. Meu ferimento sarou. Sinto-me perfeitamente bem. Por que querem me prender aqui?
- Ninguém quer prendê-la. Acontece que seu tratamento ainda não terminou.
Mas à medida que o tempo passava Mirtes ia ficando mais nervosa e exigente. Começou a ficar deprimida, irritada, implicando
com tudo e com todos.
Preocupada, Emília procurou seu superior:
- Olavo, temos de fazer alguma coisa. Mirtes está ficando muito desequilibrada. Quer ir embora.
- Ela ainda não desistiu de vingar-se. Esse pensamento a atormenta.
- Falarei com ela.
Pouco depois, Mirtes foi conduzida à sala de Olavo.
- Ainda bem que me recebeu - disse ela assim que se viu sentada à frente dele. - Agradeço o tratamento. Melhorei mesmo,
mas tenho de ir embora. Não posso ficar aqui
por mais tempo.
- O que você tem para fazer, de tão urgente?
- Cuidar de meus interesses. Como você sabe, deixei o corpo contra minha vontade. Fui covardemente agredida. Estava no auge
de minha juventude, havia conseguido
tudo que mais desejava ná vida. Sentia-me muito feliz, realizada. Então fui barbaramente assassinada, arrancada do corpo.
Sofri muito. Até agora, quando penso nisso,
sinto-me mal. É difícil esquecer uma agressão dessas. Depois, eu não merecia. É verdade que me casei com Humberto por interesse,
mas eu o tratava bem, ele se sentia
feliz. Eu pensava poder retribuir a ele um pouco do prazer que ele me dava realizando todas as minhas vontades, tratando-me
com tanto carinho. Ele está sofrendo
342

muito com o que aconteceu. Pensou até em deixar a vida. Enquanto isso, ela, a causadora de nossa desgraça, continuava
feliz, pensando em tê-lo pelo resto da
vida. O que me conforta é que ela nunca vai conseguir.
Vendo que Olavo a ouvia com atenção, Mirtes finalizou triunfante:
- Eu exijo justiça. Fui uma vítima da maldade da amante de meu
marido. Quero que a verdade apareça. Todos precisam saber quem foram os culpados pela minha morte! Até agora eles circulam
impunes e vitoriosos. Quero que a verdade
apareça. Olavo olhou-a sério e disse com voz firme:
- Tem certeza de que é isso o que quer? A verdade?
- Sim. Os culpados não podem ficar impunes, precisam pagar pelos seus crimes.
- Nesse caso posso ajudá-la. Venha comigo.
Satisfeita, Mirtes acompanhou-o pelos corredores e entraram em uma sala onde havia algumas poltronas e uma tela. Olavo designou
uma cadeira e Mirtes sentou-se.
Olavo sentou-se ao lado de uma mesa com muitos botões luminosos e coloridos. Ele acionou um botão e a tela iluminou-se.
Apareceu uma moça muito bonita, muito bem
vestida, com roupas do século dezenove.
Mirtes estremeceu. Aquela mulher era-lhe muito familiar. Andava apressada, rosto contraído pela raiva. Podia-se ouvir seus
pensamentos como se ela estivesse falando:
- Não posso perder tudo! Não depois dos sacrifícios que fiz para conseguir. Essa criança não pode nascer.
Ela chegou a uma casa luxuosa e tocou a sineta. O criado abriu a porta e ela entrou. ná sala, um casal abraçado conversava
animadamente. Vendo-a, foram cumprimentá-la.
Depois ela disse:
- Seu pai me pediu que viesse. Ele queria vir, mas ultimamente não tem andado bem.
- Tenho notado isso - disse o rapaz. - Tive vontade de leválo à capital para ver um especialista.
- Ele não quer. Confia apenas no Dr. Valdemar.
- Nós pedimos que ele viesse porque temos boas notícias e queríamos que ele compartilhasse nossa alegria. Aline está esperando
um filho! Finalmente um herdeiro!
- Parabéns! Não sabe como me sinto feliz.
343
A cena foi interrompida. Mirtes remexeu-se ná cadeira. Sentiu vontade de sair dali, não ver mais nada. Mas apareceu outra
cena e ela a fixou curiosa.
Um quarto de luxo, um homem deitado muito abatido, Ester disfarçadamente ministrando algumas gotas escuras em um vidro de
remédio.
- Isso vai acabar com tudo. É preciso agir antes que ele mude
o testamento.
Surge então a imagem de Ester oferecendo o remédio a ele, que bebeu tudo. Algumas cenas rápidas mostrando-o no velório,
depois uma sala solene, um homem abrindo
o testamento. Ele havia deixado quase toda a fortuna para o filho. Para ela, sua segunda esposa, deixara apenas a casa e
uma pensão.
Ester abandonou a sala tentando engolir a raiva que sentia e mostrar-se satisfeita. Ela havia se casado com o viúvo ná
esperança de ficar de posse de tudo. Tinha
esperado por aquele momento ansiosamente, sonhando ser livre e poder ter a vida com a qual sempre sonhou.
Nicolau amava-a muito, mas era um homem de vida metódica, não gostava de gastar. Por isso, Ester, mesmo morando em casa
luxuosa onde nada lhe faltava, levou uma
vida recatada e simples. Ela sonhava com muito mais.
O marido tinha um filho do primeiro casamento, moço sem juízo que, ao contrário do pai, gostava de gastar e levar vida desregrada.
ná última briga que tiveram, Nicolau
deserdou-o e fez um testamento no qual determinou Ester como sua única herdeira. Ela fingia gostar do rapaz e prometera-lhe
que, se seu pai morresse, ela cuidaria
do dinheiro, providenciando para que nada lhe faltasse.
Porém ele se apaixonou perdidamente por Aline, e sob inspiração dela mudou completamente de comportamento. Tornou-se maduro
e responsável, a ponto de ser perdoado
pelo pai. Quando soube que esperava um filho, cuidou rapidamente do casamento.
Diante da felicidade do casal, Nicolau disse que iria alterar o testamento. Ester resolveu agir antes que ele tivesse tempo
para isso. Mas descobriu que era tarde.
Depois da abertura do testamento, ela no quarto andava de um lado para o outro pensando no que fazer para recuperar a fortuna
que pensava ser sua.
A tela mudou novamente de cena: Ester conversando com dois homens de fisionomia sinistra e dando-lhes um saco de jóias.
- Quando terminarem, darei o restante.
344
Eles se foram, enquanto ela sorria pensando"Agora, tudo será meu e poderei finalmente obter o que quero."
Mirtes sentia-se inquieta, o peito oprimido. Tentou ir embora, mas a tela iluminou-se novamente e ela sentou-se outra vez.
Uma carruagem ná estrada. Dentro, o jovem casal. Cavaleiros se aproximam atirando. O cocheiro grita, os cavalos disparam,
a carruagem tomba. Dentro dela, o casal
estendido em meio ao sangue. Mirtes viu que dois tiros haviam atingido a moça ná altura da cintura, no mesmo lugar onde
ela, Mirtes, havia sido ferida. Deu um grito
e perdeu os sentidos. Quando acordou, estava no quarto e Emília estava a seu lado. Ela estremeceu e sentou-se ná cama, dizendo:
- Diga que foi um pesadelo. Que nada daquilo aconteceu.
- A verdade fere, mas acaba com as ilusões. Você pediu e a obteve.
- Aquela moça, Ester. Eu a conheço.
- É verdade.
- Sou eu! - gritou ela chorando. - Eu!
- Lamento que precisasse saber dessa forma. Mas você não
queria nos ouvir.
- Você acha mesmo que eu fiz tudo aquilo?
- Eu não acho nada. Você é quem deve saber.
- Eu fiz. Eu queria viver a vida, ter luxo, ser feliz. Nunca consegui.
- A felicidade não está onde você imagina. Você criou uma ilusão e por ela fez o que fez.
Mirtes soluçava desconsolada Pela sua mente desfilavam os acontecimentos que se seguiram após aquele trágico acontecimento.
Ela herdou tudo, tentou levar a vida
com a qual sempre sonhara. Mas nunca teve paz. Quando dormia, sonhava com o marido cobrando-lhe contas. Durante o dia,
ouvia-o chamá-la de assassina, dizendo que
pagaria caro por seus crimes.
Assustada, perdeu o gosto pela vida. Querendo fugir de seus fantasmas, acabou fechando-se em sua casa luxuosa, tornando-se
desequilibrada e infeliz.
Viveu muitos anos ainda naquele tormento, e acabou morrendo sozinha, abandonada pelos criados assustados. Acordou no astral,
perseguida pelo espírito do marido inconformado.
Por anos viveu em um lugar escuro e triste. Sentia fome, sede, pensou enlouquecer. Durante muito tempo o marido assassinado
perseguiu-a, acusando-a, agredindo-a,
tentando vingar-se.
345
Até que um dia ele desapareceu e ela respirou aliviada. De vez em quando, uma caravana de seres iluminados passava pelo
local, levando alguns com eles. Mirtes
sentia vontade de sair dali.
Certa vez em que chorava desconsolada em meio à escuridão, viu uma luminosidade aproximar-se e gritou:
- Piedade! Por favor. Ajudem-me! Estou arrependida. Uma moça aproximou-se e disse-lhe:
- Ainda não podemos levá-la.
- Estou cansada de sofrer. Por favor. Ajudem-me!
- Peça a ajuda de Deus. Reflita sobre tudo que lhe aconteceu. Seja sincera. Pense no bem. Se fizer isso, logo será auxiliada.
Ester obedeceu. Repassou toda a sua vida e chegou à conclusão de que havia errado muito. Rezou e pediu nova oportunidade.
Pouco tempo depois, quando os seres da luz passaram por lá novamente, uma moça pegou-a pela mão, dizendo:
- Viemos buscá-la.
Revendo aquela cena, Mirtes estremeceu. A moça que a retirara daquele pântano escuro era Alzira! Assustada, ela disse:
- Não pode ser Alzira!
Emília, que estava a seu lado, respondeu:
- Sim, era ela!
Soluçando, Mirtes recordou-se de tudo. Durante o período que estivera em tratamento, Alzira procurava-a, ajudando-a, doando-lhe
energias curativas quando as crises
de desespero a acometiam.
- Meu Deus! Eu não sabia!
- Alzira sempre trabalhou pelo seu bem-estar.
Durante alguns dias Mirtes inquietou-se recordando detalhes de sua vida passada. Aos poucos foi reconhecendo seus enganos.
Recebeu tratamento energético e a assistência
de Olavo, com quem conversava muito.
Descobriu que estava em um lugar de recuperação e que Alzira era um espírito muito evoluído. Antes de reencarnar, ela residia
em uma colônia mais adiantada.
Mirtes lembrou quanto havia sofrido por causa da ambição, como havia sido difícil conseguir uma nova encarnação. Naquela
ocasião havia prometido a si mesma nunca
mais deixar-se levar pela vaidade. Ficara contente ao saber que iria reencarnar em um lar feliz e que Alzira estaria a seu
lado como irmã.
Depois de reconhecer que fizera tudo errado outra vez, ela entrou em depressão, culpando-se sem piedade.
Emília tentava fazê-la entender que aquele não era o melhor caminho.
- Você teve uma recaída, o que até certo ponto é natural. Dentro da energia terrestre, deixou-se levar pela ambição, prejudicou
a si mesma. Isso revela que ainda
não havia aprendido o suficiente. Recebeu dura lição, que pode ter sido o bastante. Reflita sobre tudo isso. Aproveite o
momento de reflexão para que nunca mais
precise passar por tantos sofrimentos. Depende só de você.
- Mas eu tinha raiva de Alzira. Achava-a boba. A boba era eu! Eu, que me achava a rainha da esperteza.
- Você estava iludida. Agora sabe que estava enganada.
- Eu acreditava que possuir coisas caras, bonitas, exibir-me para os outros era felicidade.
- Não é errado gostar de viver com conforto, ter coisas boas. É bom viver em um lugar agradável. Nós fomos criados para
termos tudo. A vida dá isso e muito mais
a quem cultiva o bem e respeita os verdadeiros valores espirituais.
- Eu fiz tudo errado!
- Lamentar-se não vai mudar nada. Agora, é renovar suas crenças, caminhar para a frente, descobrir o que a fará realmente
feliz.
Mais tarde, conversando com Olavo, ela disse triste:
- Depois do que fiz, nunca mais encontrarei a felicidade. A vida me castigou. VÍ que Aline morreu do mesmo jeito que eu!
As balas foram no mesmo local! Eu tive de
pagar pelo meu crime.
- Você está enganada. A vida não castiga ninguém. Foi você quem criou essa alternativa. Quando decidiu acabar com a vida
de seu marido e do jovem casal, acreditava
que o crime e a violência eram a melhor forma de conseguir o que desejava. Foi esse padrão de pensamento ao qual você deu
força que atraiu esse tipo de morte que
a vitimou.
- Quer dizer que eu mesma me castiguei?
- Não se trata de castigo, mas de conseqüência. Você quis manipular os fatos do seu jeito, deu largas à ambição, ficou longo
tempo alimentando pensamentos colocando
a violência como solução. Essa crença criou seu destino.
- Quer dizer que nesta última encarnação eu fatalmente teria de passar por isso?
- Não. Antes dela você recebeu esclarecimentos, aprendeu responsabilidade, teve ajuda reencarnando em uma família boa. Tinha
conhecimento, e a vida esperava que
se utilizasse dele.
347
- Onde foi que eu errei?
- Você reencarnou para aprender, entre outras, a lição do desapego. Seu erro foi manter o mesmo padrão de pensamentos que
atraiu o crime. Se tivesse entendido que
a violência não resolve nenhum problema, que os valores eternos da alma que cultivou quando ainda estava aqui eram mais
importantes do que os bens materiais, tudo
teria sido diferente.
- Quer dizer que eu poderia ainda estar viva, usufruindo da vida que levava?
- Você casou por interesse com um homem bom, sincero. Se tivesse sido uma boa esposa, voltada ao bem-estar dele, a vida
teria desviado aquele matador de seu caminho.
Mas você tinha outros pensamentos.
Mirtes baixou a cabeça envergonhada.
- Estou arrependida.
- Você já sabe como foi que criou essa situação. O importante agora é perceber que você tem o poder de mudar essas crenças
que a infelicitaram. Quando as substituir
por algo melhor, sua vida se transformará de acordo com os novos padrões que incorporar.
- Estou cansada de sofrer! Eu quero mudar para melhor! Mas como?
- Esse é um trabalho interior que só você pode fazer. Terá de prestar atenção aos pensamentos que surgem e só dar importância
aos que forem positivos. vou indicar-lhe
também um curso onde aprenderá a diferenciar o bem verdadeiro do falso.
- O bem pode ser falso?
- O bem é o bem. Mas a respeito dele os homens criaram muitos conceitos falsos. Identificá-los é melhorar o discernimento
e a lucidez.
Mirtes ficou pensativa alguns segundos, então disse triste:
- Depois que lembrei o passado, senti muita culpa. Gostaria de saber o que aconteceu a Nicolau, Roberto e Aline e pedir-lhes
perdão.
- Aline se recuperou logo. Como ex-suicida, sabia que teria pouco tempo de vida. Roberto passou largo tempo procurando por
Aline e nem pensou em vingança. Nicolau
foi quem mais sofreu, porque se entregou ao ódio. Senhor de escravos, habituado a mandar, acreditando no poder da força
bruta, custou a equilibrar-se. Foi Aline
quem o auxiliou. Ela havia sido sua filha em outra vida e ele a adorava. Esforçou-se para perdoar, esquecer. Está reencarnado,
casou-se
348
novamente com a que havia sido sua primeira esposa, recebeu Aline como filha, tem Roberto como genro. Como ele é um espírito
fraco, Nicolau, por amor a Aline,
faz tudo para ajudá-lo.
- Eles estão bem, mas ainda assim eu gostaria de ajudá-los de alguma forma.
- Agora você precisa se ajudar. Desta vez vai demorar para reencarnar. Mas eu prometo que, quando estiver em condições,
poderá ajudá-los.
- Também sou grata a Humberto. Ele estava sofrendo com minha morte. Gostaria de dizer-lhe que continuo viva.
- vou ver o que posso fazer.
Mirtes sorriu. Sentiu-se mais tranqüila. Não adiantava mais queixar-se nem culpar os outros pelo seu sofrimento. Se tudo
dependia dela, estava disposta a esforçar-se
ao máximo para melhorar.
349
Roque, reunido com quatro policiais, disse satisfeito:
- Faremos tudo como o planejado. Vocês vão continuar vigiando o Dr. Martins, revezando-se conforme o costume. Qualquer coisa
diferente, avisem imediatamente. Lembrem-se
de que esse matador é esperto e perigoso. Não sabemos como é nem como estará vestido. Cuidado com entregadores, vendedores
ou prestadores de serviço doméstico.
Se aparecer algum, tomem providências. Ninguém pode desconfiar de vocês.
- Não se preocupe. Temos tudo sob controle - respondeu Lopes.
- Ele ia chegar hoje, fazer campana, vigiar a vítima. Se desconfiar de alguma coisa, irá embora. Temos de apanhá-lo.
Depois que eles saíram, Roque continuou examinando o caderno com as anotações de Sobral. Mandou fazer algumas pesquisas.
Descobriu que o assassinato da jovem esposa
de Humberto de Morais, que
351
havia chocado a sociedade, tinha sido cometido por Dinho a mando de uma mulher chamada Mercedes. Não havia sobrenome, mas
seria fácil descobrir.
Havia vários crimes não solucionados, feitos com o mesmo tipo de arma que matara a jovem e que possivelmente haviam sido
cometidos pela mesma pessoa.
Roque sentiu que estava prestes a conseguir pegar aquele assassino e resolveu dedicar-se totalmente à solução daqueles casos.
Começou para eles a espera. Os homens revezavam-se disfarçados de prestadores de serviços variados, observando tudo.
Dois dias depois, Roque recebeu o aviso. Passava das dez quando um motoqueiro vestido de negro apareceu de repente. Eles
nem ouviram o ruído da moto. O motoqueiro
escondeu-a cuidadosamente atrás das frondosas árvores em frente da casa.
- Iremos imediatamente. Fiquem atentos. Se for preciso, prendam-no.
Os dois policiais cautelosamente observavam e viram quando ele apanhou uma arma. Antes que ele tivesse tempo de empunhá-la,
os dois caíram sobre ele. Apanhado de
surpresa, ele ainda tentou reagir, mas um dos policiais torceu-lhe o braço obrigando-o a soltar a arma com um grito de
dor.
Imediatamente deitaram-no de bruços no chão e algemaram-no.
- Você está preso.
Os olhos dele brilhavam rancorosos e o policial arrancou seu capacete.
- Eu queria ver sua cara.
Dinho não disse nada. Pouco depois, Roque chegou com as viaturas.
- bom trabalho, rapazes - disse satisfeito. Colocou a lanterna no rosto de Dinho e disse:
- Eu conheço você!
Levaram-no à delegacia. Pouco depois Sobral chegou escoltado por dois policiais. Vendo Roque, disse indignado:
- Isto é uma arbitrariedade. Vocês me conhecem. Estou do lado da lei. Tenho ajudado a polícia.
- Você está preso, Sobral.
- Sob que acusação?
- Chantagem, extorsão e assassinato. Sobral empalideceu.
- Ninguém pode provar nada contra mim.
352
Roque levou-o à sala onde Dinho estava sendo fotografado. Vendo-o, Sobral sentiu-se mal. Gritou assustado:
- Esse homem é um mentiroso. Não acreditem em nada do que ele lhes disse. É um matador. Há mais de vinte anos, foi preso
por assassinato e conseguiu fugir. Vocês
não vão acreditar mais nele do que em mim.
Roque interveio:
- Bem me pareceu que ele era conhecido. Fique sabendo que ele ainda não foi interrogado. Não disse nada.
Sobral estremeceu. Dinho, que ouvira as acusações, olhou-o cheio de ódio.
Roque mandou Sobral para outra sala, onde iria fazer o interrogatório. Pouco depois chegou Alberto. Ele fora conduzido à
delegacia pensando que seu plano de prender
os outros dois tinha dado certo.
Entrou ná sala de Roque sorridente:
- Soube que o senhor conseguiu prender aqueles assassinos. Sabia que podia confiar ná polícia.
- O que você não sabia é que a polícia não se deixa usar por malfeitores.
- O que quer dizer?
- Você está preso por assassinato. Não adianta negar. Sabemos de tudo. Você usou esse matador para liquidar o amante de
sua mulher. Aliás, descobri que pouco tempo
depois ela morreu em um acidente de carro. Isso despertou minhas suspeitas. Vamos reabrir esse caso.
Alberto ouvia aterrorizado e não encontrou palavras para responder.
- Quero falar com meu advogado.
- Depois. Primeiro temos muito que conversar.
Roque fez um trabalho completo. Reabriu vários casos não resolvidos, inclusive o acidente que vitimou Eli, a morte de Jairo,
de Mirtes.
Roque conversou com o delegado que havia aberto inquérito sobre o assassinato de Mirtes e logo descobriu quem era Mercedes.
Ela ainda se encontrava internada ná clínica. Vendo-se desmascarada, não fazia outra coisa senão chorar.
O psiquiatra recebeu a visita da polícia e assustado descobriu que a culpa de Mercedes era real. Não fez nenhuma objeção
a que a levassem.
O delegado Marques, que cuidara das investigações sobre o caso de Mirtes, foi pessoalmente conversar com Humberto.
353
Encontrou-o no escritório da empresa. Ele havia se mudado para a mansão da família e voltara para a firma tentando ocupar-se.
Os filhos, depois que ele os procurara mostrando quanto os amava, haviam se unido mais a ele.
Apesar da tristeza e da saudade que ainda o incomodavam, Humberto estava mais disposto. A companhia e o amor dos filhos
faziam-lhe muito bem.
Ele continuara freqüentando o centro de Isaltina. Muitas vezes ainda sentia dúvidas sobre a continuidade da vida após a
morte, mas aquele ambiente de oração e de
paz fazia-lhe imenso bem.
- Sente-se, Dr. Marques - disse Humberto depois dos cumprimentos, designando uma poltrona e sentando-se ná outra ao lado.
- Tenho novidades, Dr. Humberto.
- Tentei falar consigo ontem mas não consegui. O senhor estava muito ocupado. Li nos jornais que a polícia havia prendido
um suspeito da morte de Mirtes.
- Sim. Prendemos o assassino de sua esposa. Conforme suspeitávamos, e eu lhe disse isso ná ocasião, trata-se de um perigoso
matador profissional. Ele cometeu um
crime há mais de vinte anos, foi julgado, condenado, fugiu da prisão e nunca mais conseguimos encontrá-lo.
- Então era mesmo! Um matador profissional!
- Sim. Ele arranjou documentos falsos, foi para o Mato Grosso, comprou um pequeno sítio e vivia lá sem que ninguém desconfiasse.
Era até estimado. Mas tinha um cúmplice
aqui em São Paulo que de vez em quando lhe arranjava trabalho. Ele vinha, discretamente fazia o serviço e voltava sem que
ninguém o visse. Cobrava bom dinheiro.
- Custo a crer. Sou um homem de paz. Nunca tive inimigos. Minha esposa era uma moça alegre, de bem com a vida. Não entendo.
- Quando o senhor decidiu acabar seu caso com Mercedes para casar-se com Mirtes, arranjou uma terrível inimiga.
Humberto levantou-se de um salto.
- Mercedes! Não pode ser!
- Pois foi. Ela contratou Sobral, o contato de Dinho aqui em São Paulo, e planejaram a morte de Mirtes. Pagou muito dinheiro
a eles!
Humberto deixou-se cair ná poltrona emudecido pela surpresa. Então ela não estava sofrendo por amor a ele... Era remorso,
era culpa.
- Sei que é difícil para o senhor aceitar, mas foi o que aconteceu.
354
Ela, Sobral e Dinho, o matador, estão presos e vão pagar pelos seus crimes. Os dois cometeram outros crimes. Serão
julgados e condenados. Passarão o resto
da vida ná cadeia.
- Eu nunca suspeitei dela. Que horror! Pobre Mirtes, que morreu por minha culpa.
- O senhor não teve culpa de nada.
- Meus filhos nunca aceitaram meu relacionamento com Mercedes. Não gostavam dela. Arrependo-me de não os ter escutado,
acabado tudo e procurado outra pessoa.
- O senhor ainda pode encontrar uma pessoa boa e refazer sua vida.
- Eu amava Mirtes. Nunca mais quero outra mulher. Estou resolvido a dedicar todos os meus dias à felicidade dos meus filhos
e aos cuidados desta empresa. Apesar
de tudo, estou contente. A polícia está de parabéns.
- O senhor terá de nos ajudar, prestar depoimentos.
- Pode contar comigo. Farei tudo para que esses assassinos sejam condenados.
Depois que Marques se foi, Humberto não conseguiu retomar o trabalho. Renato chegou uma hora depois e encontrou-o sentado
no mesmo lugar, pensativo.
- Pai, sente-se bem? Humberto suspirou e respondeu:
- Estou assustado.
- Pelo visto já sabe a verdade. Prenderam o assassino de Mirtes. Eu li nos jornais hoje cedo.
- Vamos comprar os jornais da tarde. O delegado esteve aqui. Fiquei pasmo. Foi um assassino profissional quem matou Mirtes.
E a mandante foi Mercedes.
Renato deixou-se cair ná poltrona ao lado do pai.
- Bem que eu desconfiei. Aquela mulher nunca me enganou.
- Eu não desconfiava. Ela parecia tão solidária com minha tristeza... Nunca imaginei.
Renato levantou-se e abraçou o pai, dizendo:
- Você é muito bom, muito honesto, incapaz de imaginar uma maldade dessas.
As lágrimas corriam pelo rosto de Humberto.
- Eu nunca iria imaginar. Sou culpado pela morte de Mirtes.
- Você não tem culpa da maldade de Mercedes. Não se deixe envolver por esse pensamento. Ninguém poderia imaginar o que
355
aconteceu - finalizou e, ansioso por mudar de assunto, declarou: - Pai, hoje Antônia me procurou e nos entendemos. Vamos
nos casar. Humberto olhou-o e sorriu.
- É uma boa moça. Tenho certeza de que serão felizes.
- Você vai se admirar, mas a vida às vezes nos prepara uma surpresa. Ela freqüenta aquele centro espírita em que você vai.
- Nunca a VÍ por lá.
- Ela já o viu, mas não quis abordá-lo para não incomodar. Ela me convidou para ir lá esta noite. Quero que nos acompanhe.
- Hoje não é meu dia de ir.
- Depois do que soube, será bom comparecer. Sempre que vai lá, volta calmo, bem-disposto.
- Está bem. Irei.
No horário combinado, eles foram ao centro. Isaltina recebeu-os com o carinho de sempre. Abraçou Renato, dizendo contente:
- Há tempos esperava que viesse. Agora só falta Mauro.
- Ele virá - garantiu Humberto. - De tanto nos ouvir falar desta casa abençoada, tem demonstrado vontade de vir.
Eles entraram. Após ouvirem a palestra, tomaram passe e foram despedir-se de Isaltina. Ela segurou entre as suas a mão de
Humberto.
- O senhor está cada dia melhor. Seu filho encontrou a companheira que o fará muito feliz. Logo mais haverá netos alegrando
seu coração e sua casa.
- De fato, meus filhos têm me ajudado muito. Não imaginava que isso fosse possível. Mas, embora eles me cerquem de cuidados
e atenções e os amigos me visitem, a
morte de minha querida Mirtes ainda dói. Tenho me esforçado para não pensar nela com tristeza, mas nem sempre consigo.
Antônia e Renato estavam conversando com alguns conhecidos de Isaltina. Esta, vendo-os afastar-se, confidenciou:
- Tenho boas notícias a respeito de Mirtes.
Humberto estremeceu e seus olhos brilharam emotivos. Isaltina continuou:
- Nos primeiros tempos ela estava revoltada, inconformada, com raiva. Só pensava em descobrir seus assassinos e vingar-se.
Mas felizmente nossos amigos espirituais
intercederam por ela e conseguiram que fosse recolhida em um posto de socorro. Recebeu tratamento, recordou-se de outras
vidas, descobriu por que precisou passar
por aquela tragédia. Agora está muito melhor.
356
- A senhora fala como se Mirtes tivesse feito uma viagem. Mas ela morreu. Mesmo que esteja viva em outro lugar, é apenas
espírito. Não entendo como pode haver posto
de socorro, tratamentos... É difícil acreditar.
- O senhor precisa ler a respeito. Nas outras dimensões, embora os elementos naturais sejam diferentes e nossa faixa visual
não consiga vê-los, para quem está lá
o lugar é tão sólido como a Terra para nós. Aqui, precisamos do corpo de carne para atuar ná matéria. Quando o deixamos,
ficamos com nosso corpo astral, que é perfeitamente
adaptado aos elementos onde passará a viver.
- É extraordinário. Gostaria de ter certeza disso.
- vou emprestar-lhe alguns livros científicos sobre o assunto.
- Ter certeza de que Mirtes está bem ajudaria muito.
Renato e Antônia aproximaram-se e, juntamente com Humberto, despediram-se de Isaltina. Depois foram tomar um lanche, e
a conversa fluiu agradável. Humberto comentou
o que Isaltina dissera sobre Mirtes. Renato ouviu pensativo. Quando o pai terminou, disse:
- Você tem dúvidas; eu, não. Mamãe, depois que morreu, sempre nos visita.
Humberto surpreendeu-se:
- Visita? Por que nunca disse nada?
- Mauro também a viu. Sempre quando temos algum problema ela aparece.
- Aparece, como?
- Algumas vezes em sonho, só que não me parece um sonho como os outros. A emoção é mais forte. Conversamos, e ao acordar
nem sempre recordo o que falamos, mas sinto-me
mais calmo e confiante. Outras vezes ela passa de relance. Sinto seu perfume, recordo-me de alguma coisa que ela disse.
Nessa hora sei que ela está comigo.
- Renato tem mediunidade, Dr. Humberto - interveio Antônia. - Por isso o convidei para vir esta noite. Agora sei que nossos
desentendimentos foram causados por nossa
invigilância. Nós nos deixamos envolver por pensamentos negativos, e alguns espíritos perturbadores nos envolveram. Dona
Isaltina nos explicou como é isso.
- Essa mulher não é apenas bondosa, mas também sábia. Antônia complementou:
- É pessoa simples, sincera e dedicada ao bem. Eu lhe sou muito grata.
- Depois do que soube esta noite - considerou Humberto -, acho que vou me dedicar ao estudo da espiritualidade.
357
- Eu também - concordou Renato.
Depois daquela noite, o jovem casal convidava Humberto para irem juntos uma vez por semana ouvir as palestras de Isaltina.
Quando saíam do centro, iam tomar lanche
e trocavam idéias sobre o tema abordado.
Humberto estava lendo com interesse os livros que Isaltina lhe emprestara e, sempre que estava com os filhos e a futura
nora, discorria sobre suas descobertas
a respeito dos fenômenos mediúnicos, e os jovens relatavam suas experiências pessoais.
Essas conversas criaram entre eles um elo de amizade prazeroso e sincero. Antônia passou a freqüentar a casa do noivo com
mais assiduidade. Mauro, cuja sensibilidade
era acentuada, interessou-se muito por aquelas conversas.

O casamento de Alzira e Valdo estava marcado para dali a duas semanas e eles estavam entregando pessoalmente os convites
aos amigos.
A casa que ele comprara fora decorada por Alzira, auxiliada pela futura sogra. As duas descobriram que possuíam os mesmos
gostos, e com satisfação Almerinda segredava-lhe
as preferências do filho.
Valdo, ocupado com a empresa cujo crescimento e progresso tomavam boa parte do tempo dele e do pai, havia deixado os preparativos
aos cuidados das duas. Ele notara
o bom relacionamento que havia entre elas e o prazer com que cuidavam de tudo. Valdo queria deixar o trabalho organizado
para facilitar as tarefas durante o mês
que estaria viajando em lua-de-mel.
Laura e Émerson, que iam ser os padrinhos do casamento, compraram uma bela casa próxima ao instituto. Eles decidiram que
morar perto do local de trabalho seria
ideal.
O instituto progredia sempre. As pessoas que Émerson havia escolhido e preparado ajudavam-no nas preliminares dos '
atendimentos. Laura era uma delas. A alegria
do casal era verificar como as pessoas mudavam e conseguiam melhorar seu padrão de vida.
Embora o instituto funcionasse de forma aberta, atendendo a todos que o procurassem, era notório observar que enquanto aqueles
que estavam maduros para aprender
se maravilhavam, descobriam seus potenciais, experimentavam novas atitudes e mudavam suas VÍdas para melhor, outros iniciavam
os cursos mas não conseguiam continuar.
Laura não entendia por quê. Eles estavam ensinando coisas boas
358
e importantes. Dava para perceber que aquelas pessoas precisavam delas. Por que, então, se afastavam?
Levou suas dúvidas a Émerson, que esclareceu:
- Essas pessoas ainda não estão prontas para mudar. Precisam de mais tempo. Vêm movidas pela curiosidade, querem viver melhor,
mas, quando descobrem que precisam
trabalhar interiormente, afastam-se. Não se preocupe com os que se vão. A vida cuidará deles no tempo certo. Nós vamos
trabalhar com quem está maduro para dar
outros passos. Depois, nosso trabalho é apenas semear, esclarecer como as coisas funcionam. Fazer bem o que nos compete
é responsabilidade nossa. Já o que eles vão
fazer com nossos ensinamentos é exclusivamente da responsabilidade deles.
Dois dias após as prisões dos envolvidos no assassinato de Mirtes, Alzira e o noivo foram visitar Laura e Émerson. O casal
estava em casa, pois naquela noite não
havia curso. Receberam os dois VÍsitantes com carinho. ná sala, depois de animada conversa sobre os preparativos do casamento,
Alzira disse:
- Ontem o Dr. Humberto veio nos visitar. O delegado procurou-o para contar detalhes sobre a morte de Mirtes.
- Eu li a notícia no jornal de hoje - informou Laura. - Fiquei impressionada.
- Quando ele pediu Mirtes em casamento, contou-lhe que tivera um caso com essa mulher, mas que tudo estava resolvido. Ele
a deixara bem de vida e ela aceitara a
separação - disse Alzira.
- Certa vez eu os VÍ juntos, por acaso. Ele não a levava aos lugares que freqüentamos - comentou Valdo. - Ela me pareceu
pessoa altiva, vaidosa. Olhava todos de cima.
- Agora está presa. Terá tempo suficiente para meditar sobre as conseqüências de suas atitudes - tornou Émerson.
- Ela negou tudo, mas os dois cúmplices confessaram. O matador vai responder por outros crimes e ficará muitos anos preso.
Quanto ao outro, não sei. A justiça vai
seguir seu curso. Você diz sempre que tudo tem uma causa. Por que será que Mirtes atraiu isso? Foi por causa de sua ambição?
Será tão ruim gostar de viver bem, ter
dinheiro, levar vida boa? - perguntou Valdo.
- Não. Ao contrário. A vida é farta. Basta olhar a natureza para perceber isso. Mas para obter todas essas coisas é necessário
VÍver bem. A vida tem leis próprias
que funcionam independentemente de nossa vontade. Ela dá tudo ou tira tudo, sempre para nos ensinar a sabedoria, o equilíbrio.
De quem não valoriza o bem que
359
possui, ela os tira para que se descubra sua falta. Há pessoas que só valorizam alguma coisa quando a perdem.
- Mirtes vivia se queixando. Não via que em nossa casa, apesar de não sermos ricos, todos gozavam de boa saúde, nós nos
estimávamos mutuamente, não nos faltava o
que comer, vivíamos em paz. Ela não cooperava com nada. Dizia que um dia iria embora, seria muito rica e nunca mais nos
procuraria.
- Sua obstinação deu-lhe o que ela ambicionava, mas, como ela menosprezava os bens que possuía, a vida tirou-lhe tudo, inclusive
a vida, seu maior bem. Espero que
com o que lhe aconteceu tenha descoberto os valores eternos da alma, que ela não via - esclareceu Émerson.
- Dona Isaltina tem tido notícias dela. Está em tratamento no astral - lembrou Alzira.
- Agora você está muito ocupada com o casamento. Mas, quando voltar da lua-de-mel, gostaria que fosse trabalhar conosco
no instituto. Você está pronta. Traz uma
boa experiência de outras vidas.
- Não me lembro de nada. Sinto-me muito bem tanto no instituto quanto no centro espírita. Mas custo a crer que possa ajudar
alguém.
Émerson sorriu e considerou:
- Você vai saber em breve. Então conversaremos - E, voltando-se para Laura: - Conte a eles.
Laura sorriu:
- Vocês serão os primeiros a saber. Hoje descobri que estou grávida.
Imediatamente os dois a abraçaram.
- Que alegria! Mamãe já sabe? Laura meneou a cabeça.
- Ainda não tivemos tempo. Émerson trouxe o resultado do exame agora.
Valdo beijou-a ná testa com carinho e Alzira tornou:
- É uma felicidade. Parabéns!
- Isso merece comemoração. Por que não vamos até em casa dar a notícia? Papai vive sonhando com os netos.
Todos concordaram e foram imediatamente. Almerinda e Péricles ficaram radiantes. Abriram um vinho especial em comemoração.
O assunto da noite foi a chegada do bebê. Sugeriram nomes, falaram do possível sexo. Almerinda disse que, após o casamento
de Valdo e Alzira, ela cuidaria do enxoval.
360
Laura sorriu:
- Mãe, eu vou cuidar do enxoval do meu filho.
- Eu queria tanto! Você está muito ocupada no instituto.
- Não tanto. Tenho tempo de cuidar bem disso. Mas você pode me ajudar com sua experiência.
Almerinda sorriu satisfeita. Enquanto os homens conversavam, as três trocavam idéias sobre o enxoval e o quarto do bebê.
ná véspera do casamento, Alzira chegou em casa cansada mas feliz. Havia ido com Valdo até a casa em que iriam morar. Valdo
queria que ela visse alguns objetos de
arte que comprara e ela queria verificar se as peças do enxoval estavam arrumadas conforme desejava.
Depois que ele se despediu, Alzira foi ter com a mãe, que a abraçou emocionada:
- Você vai nos deixar! Vamos ficar sozinhos.
- Não vou deixar ninguém. Você fica com o pai. Tenho observado que ele nos últimos tempos tem andado tão amoroso!
- De fato. Nunca nos entendemos tão bem quanto agora. Ele está muito feliz. Vive agradecendo a Deus por você se casar com
um moço tão bom. Ele admira muito Valdo.
Fala nele com olhos brilhantes.
- Já notei. Os dois têm alguns pontos em comum, principalmente no que se refere ao trabalho.
- Por isso ele o admira.
Alzira abraçou a mãe com carinho:
- Não fique triste, mãe. E estou muito feliz. Amo Valdo.
- Eu sei, filha. Estou emocionada, só isso. Casar uma filha, principalmente uma filha como você, é emocionante.
- Compreendo. Mas nunca esquecerei o que você e papai fizeram por mim a vida toda, os exemplos de honestidade, de paciência,
de dedicação. Aprendi muito com vocês.
Estela beijou-a com amor.
- Você sabe quanto nós a amamos. Desejo-lhe toda a felicidade do mundo. Agora vá se deitar. Precisa descansar para ficar
linda amanhã. É seu dia!
Alzira beijou a face da mãe e foi para o quarto. Preparou-se para dormir. Estendida ná cama, agradecia a Deus pela sua felicidade.
Pensou em Mirtes e comoveu-se. Por que ela havia escolhido aquele caminho?
Seus olhos se fecharam e ela imaginou que a irmã estava ali, à sua frente, e abraçou-a com muito carinho.
361
Depois, sem sentir, adormeceu. Viu-se deslizando por sobre a cidade, vendo as luzes lá embaixo e pensou:
"Isto não é um sonho!"
Sentia uma sensação de prazer vibrando dentro do peito e uma alegria imensa. Notou que uma mulher a abraçava pela cintura,
e pareceu-lhe que a conhecia muito.
Chegaram diante de um imenso portão de ferro. A um toque da mulher, ele se abriu. Elas foram deslizando pelos jardins e
pararam diante de um prédio enorme.
- Eu conheço este lugar! Que saudade! - disse Alzira emocionada.
- Nós também sentimos muita saudade de você. Entraram e caminharam pelos corredores. Alzira olhava tudo com
interesse e pensava:
- Quando voltar, quero me lembrar disto tudo!
Pararam diante de uma porta. Alzira estremeceu de emoção. Ela sabia quem estava dentro daquele quarto. A porta abriu-se
e Mirtes estava lá, olhando-a com os olhos
cheios de lágrimas.
Alzira abraçou-a com amor, dizendo emocionada:
- Minha irmã, que saudade!
Mirtes apertou-a em seus braços e a emoção não a deixava falar. Por fim, disse:
- Como eu estava enganada! Como me arrependo de não ter ouvido você e aproveitado aqueles momentos felizes. Agora é tarde!
Só me resta chorar e procurar aproveitar
a dura lição.
- Tenho certeza de que você agora sabe do que precisa para ser feliz!
- Eu daria tudo para voltar ao tempo em que éramos adolescentes. Ah, se eu pudesse! Como eu ajudaria nossos pais, apreciaria
sua companhia! Eu tinha tudo: beleza,
mocidade, saúde e uma imensa vontade de viver! Mas me iludi e caminhei para a morte!
- Não - retrucou Alzira. - Você caminhou para a vida! Tornou-se consciente dos verdadeiros valores. Escolheu um caminho
mais longo e mais sofrido, e a vida deu-lhe
a realidade.
- Ela foi muito dura!
- Foi do tamanho de suas ilusões. Alegre-se, Mirtes. Agradeça a Deus a bênção do conhecimento que lhe deu mais capacidade
para construir sua felicidade. O tempo
passa rápido. Logo você receberá a bênção da reencarnação e poderá escolher melhor.
362
- Fui informada de que vou demorar para reencarnar. Terei de esperar muito tempo ainda.
- Vai depender de seu progresso, de como você vai trabalhar interiormente as experiências vividas. A vida não joga para
perder. Ela só vai permitir sua volta à Terra
quando você tiver todas as possibilidades de enfrentar os desafios com mais firmeza e coragem.
- Venha, Alzira, sente-se a meu lado. Emília, agradeço ter ido buscá-la para mim. Ver os meus é o que eu mais queria.
- Emília! Eu me recordo de você! Fomos amigas quando eu trabalhava aqui!
- Sim. Você foi uma das fundadoras deste lugar. Quando eu reencarnei, você me ajudou muito. Fui muito feliz com Humberto.
Mas eu não podia ficar mais e tive de
voltar. É muito difícil deixar no mundo as pessoas que amamos. O pior foi afastar-me de meus dois filhos.
Mirtes olhou-a assustada:
- Você foi a primeira esposa de Humberto! Agora eu me lembro que foi você quem me tirou de lá. Não entendo... Você sabia
que eu não o amava, que havia casado por
interesse, que pretendia traílo com outros homens. Deveria odiar-me por isso...
Emília abraçou-a sorrindo:
- Há muito tempo descobri como as ilusões nos envolvem, por isso nunca mais me atrevi a julgar ninguém. A vida faz tudo
certo. Se Humberto ligou-se a Mercedes e
atraiu você, que pretendia usálo, deve haver uma razão para isso. Nunca lhe disse, mas, quando Alzira a retirou daquele
pântano, eu a ajudei. Acompanhei sua recuperação.
Quando você reencarnou, depois de havermos decidido que Alzira iria pouco depois viver a seu lado, prometi ajudá-la.
Mirtes olhou-a comovida:
- Eu não sabia! Desde que cheguei aqui, você tem me assistido como uma mãe. Sinto-me envergonhada.
Emília sorriu:
- Não sinta. A vergonha revela que a vaidade ainda não foi vencida. Prefiro que me diga: "vou me esforçar para não julgar
ninguém". Ou então: "Esta situação revela
que, quando há entendimento, a mágoa desaparece e não há necessidade de perdão".
Mirtes lembrou-se de Mercedes, e seu rosto contraiu-se.
- Não é fácil esquecer.
- Talvez não. Mas, se já sabe que suas atitudes atraíram os acontecimentos
363
que a vitimaram, não acredita que o mesmo acontecerá com os seus assassinos?
Mirtes estremeceu. Ainda era difícil para ela pensar neles sem rancor.
- A lei é igual para todos - continuou Emília. - A vida responde conforme as atitudes de cada um.
- É verdade, Mirtes - ajuntou Alzira. - O assassino não deixou pista. Mas os fatos foram se sucedendo e todos eles foram
presos.
Os olhos de Mirtes brilharam emotivos:
- Tenho certeza de que Jairo e Eli contribuíram para isso. Alzira olhou surpreendida para Mirtes, que lhe contou como
conhecera os dois e finalizou:
- Apesar de tudo, eles me apoiaram em uma hora que eu estava enlouquecida. Gostaria muito de saber como estão. Se pudesse
conversar com eles, pediria que aceitassem
ser recolhidos aqui. Eles têm medo.
Desta vez foi Emília quem respondeu:
- Temos tentado ajudá-los. Eles vão precisar de mais tempo para terem condições de ser trazidos para cá. Agora está ná hora:
Alzira precisa voltar.
Mirtes abraçou-a inquieta.
- Sei que precisa, mas gostaria que ficasse mais um pouco.
- Hoje é o dia de meu casamento com Valdo. Sei que quem queria casar-se com ele era você. Mas aconteceu. Nós nos amamos
muito.
Mirtes olhou-a com olhos enevoados pelas lágrimas:
- Eu o achava atraente, mas nunca o amei. Queria usá-lo da mesma forma que usei Humberto. Tive ciúme quando notei que estavam
namorando, mas foi pura vaidade. Quero
que sejam muito felizes.
Alzira abraçou-a com carinho e permaneceram alguns segundos abraçadas.
- Vamos, Alzira. Precisamos voltar.
- Deus a abençoe, minha irmã querida. Beije nossos pais por mim. Diga-lhes que estou bem e que os amo muito.
Alzira, abraçada a Emília, deixou o prédio e deslizou por sobre as luzes acesas da cidade adormecida. Era madrugada. Em
pouco tempo estava de volta ao lar.
364

Alzira abriu os olhos ainda sentindo o peito dilatado de prazer. As últimas palavras de Mirtes ainda soavam em seus ouvidos:
- Deus a abençoe, minha irmã querida. Beije nossos pais por mim. Diga-lhes que estou bem e que os amo muito.
"Meu Deus!", pensou Alzira. "É verdade! Mirtes continua viva! Eu me lembro de tudo! Conheço aquele lugar! Emília, minha
amiga! Que maravilha!"
Emocionada, Alzira ajoelhou-se ao lado da cama:
- Meu Deus! Eu não mereço tantas bênçãos! Mas de hoje em diante vou procurar merecer esta dádiva! vou estudar a espiritualidade
e trabalhar pela divulgação das leis
divinas.
Lembrou-se de Isaltina. Seria com ela no centro espírita ou seria com Émerson, que insistia para que fosse ajudá-lo no
instituto? Como não sabia o que decidir,
pediu a Deus que lhe indicasse o caminho.
365
Ela queria acordar os pais, contar tudo. Abriu a porta do quarto, mas o silêncio indicava que eles ainda dormiam. Resolveu
esperar.
Deitou-se outra vez pensando em tudo. Desejava gravar aquela experiência, não esquecer nenhum detalhe. Sentiu que aqueles
momentos ficariam em sua lembrança para
sempre.
O dia estava clareando quando finalmente adormeceu um sono tranqüilo e repousante. Acordou ouvindo batidas ná porta do quarto.
Olhou o relógio: passava das nove.
Levantou-se apressada. Lavou-se e desceu para o café. Era sábado e seus pais ainda estavam conversando à mesa. Alzira sentou-se,
dizendo alegre:
- Esta noite visitei Mirtes e trago um recado para vocês. Estela quase deixou cair a jarra de leite que segurava. Colocou-a
sobre a mesa e sentou-se emocionada.
- Como, recado? - indagou Antônio, admirado.
Alzira contou-lhes detalhadamente sua experiência, feliz por não haver se esquecido de nenhum detalhe. Quando terminou,
Estela ficou silenciosa por alguns instantes,
depois disse:
- Como eu gostaria de ter ido com você!
- Foi maravilhoso. Não dá para descrever o que senti. A leveza, o bem-estar, a alegria...
- Deve ser mesmo muito bom! Eu também gostaria de ter ido - tornou Antônio.
- Se eu fui, vocês também poderão ir. vou pedir a Emília que consiga essa concessão.
- Foi um belo presente de casamento - tornou Estela. - Quem é Emília, que tem tanto poder?
- Éramos amigas no astral, antes de nosso nascimento. Ela nasceu antes, casou-se com Humberto.
- Foi a primeira esposa dele? - admirou-se Antônio.
- Foi, pai. Além de proteger a família, tentou também ajudar Mirtes, mesmo sabendo que ela havia se casado com Humberto
por interesse. É um espírito bom. Agora
cuida dela com carinho de mãe.
- É difícil acreditar, principalmente quando sabemos o que fez Mercedes, que também amava Humberto - comentou Antônio.
- As pessoas são diferentes, pai. Mercedes estava iludida e já está respondendo por isso. Emília acredita que a compreensão,
o bem são mais importantes do que qualquer
castigo.
366
- Dá para perceber como ela é boa - disse Estela, comovida. - Fico mais calma sabendo que Mirtes reconheceu seus erros
e se prepara para uma vida melhor.
- Sinto-me protegido. Aqui temos Dona Isaltina, e no astral, essa sua amiga. Só podemos agradecer a Deus tanta bondade.
Alzira abraçou-os com carinho.
- Sinto-me feliz. Hoje vou me mudar, mas podem ter certeza de que nunca esquecerei o carinho, o amor que vocês sempre me
deram.
Eles a beijaram comovidos e Estela procurou dissimular a emoção, dizendo:
- Você vai tomar seu café, depois vamos acabar de arrumar suas malas para a viagem. Não podemos nos atrasar para o cabeleireiro.
Quando estava quase ná hora de ir para a igreja, Péricles procurou Almerinda e foi encontrá-la pronta, sentada ná biblioteca,
pensativa. Aproximou-se dela, que ergueu
para ele os olhos cheios de lágrimas.
- Você está chorando outra vez! Desse jeito vai estragar toda a maquiagem.
Ela sorriu:
- Estava recordando nosso casamento. O tempo passou rápido. Laura espera o primeiro filho, Valdo hoje está se casando!
-É a vida, minha querida.
- Temos sido felizes, Péricles. Você tem sido bom marido, temos dois filhos maravilhosos. Laura casada com Émerson, que
amamos como filho; Valdo trará Alzira para
a família, uma moça linda por dentro e por fora.
- Sou um homem privilegiado. Deus me deu uma família especial. Precisamos agradecer tantas bênçãos. Não quero vê-la chorando.
Sairemos dentro de cinco minutos. Valdo
já está pronto.
- São lágrimas de felicidade, meu caro. Vamos embora.
Quando Valdo e os pais chegaram à igreja, já a encontraram repleta de amigos, entre eles Marcelo e Renata, que seriam os
padrinhos da noiva, e Émerson e Laura.
Vendo Valdo entrar e dirigir-se à sacristia, Émerson disse baixinho a Marcelo:
- Vamos junto para você ver como é.
- Isso mesmo - concordou Laura. - Afinal, vocês estarão casando dentro de três meses.
Marcelo apertou a mão de Renata que retinha entre as suas e beijou-a delicadamente ná face.
- Gostaria que fosse hoje!
- Eu também.
- Calma - disse Émerson. - O tempo passa depressa.
Em um canto da igreja, Mildred observava-os pensativa. Lembrava-se de Mirtes. O que diria ela se estivesse viva? com certeza
estaria se remoendo de raiva.
Ainda se encontrava ná Itália quando sua mãe ligou para falar do crime. Ficou chocada. Mas estava disposta a divertir-se,
estar alegre, esquecer os problemas que
havia deixado.
Arranjara um namorado italiano e encontrava-se freqüentemente com uma turma de amigos. Gostava da vida que estava levando.
Foi ficando.
Retornara ao Brasil havia poucos dias.
Gino estava muito apaixonado, mas era ciumento e exigente. Mildred, apesar de gostar dele, resolveu regressar. Ela não queria
prender-se a ninguém.
Teve curiosidade de ir àquele casamento rever os amigos.
Admirava-se de Valdo ter escolhido Alzira, uma moça pobre, ele que poderia escolher entre as jovens mais finas e ricas da
melhor sociedade.
Sabia que ia encontrar-se com Émerson e Laura, mas isso não a incomodava mais. Ainda assim, surpreendeu-se com a mudança
de Laura. Ela havia como que desabrochado.
Olhos brilhantes, lindos cabelos, pele de veludo, até o corpo havia se tornado mais bem torneado. Ganhara busto, afinara
cintura.
Apesar de estar preparada para encontrá-los, sentiu uma ponta de inveja vendo-a tão linda. Não entendia como uma moça insignificante
como ela podia ter-se transformado
daquele jeito.
- Laura mudou muito mesmo - comentou Augusta, mãe de Mildred, que estava a seu lado.
- O que será que ela fez?
- Não sei. Dizem que foram os cursos de Émerson naquele instituto. Mas eu acho que foi o amor.
- É. O amor pode mudar uma pessoa.
368
A música começou anunciando a entrada da noiva. Todos se levantaram.
Alzira, caminhando lentamente, entrou de braço dado com o pai. No altar, além dos padrinhos, a família dos noivos.
Valdo, olhos brilhantes de emoção, recebeu Alzira, e teve início a cerimônia. Eles estavam felizes. Havia alegria, amor
e felicidade.
Humberto, Renato, Antônia e Mauro assistiam comovidos. Humberto não conteve as lágrimas, recordando-se de Mirtes. Apesar
do tempo decorrido, ele não a havia esquecido.
Por sua mente passavam todas as cenas de seu casamento com ela, sua felicidade, seu amor, sua alegria.
Em um canto da igreja, Mirtes, abraçada a Emília e a um amigo, não perdia nenhum detalhe da cerimônia. A emoção e a saudade
eram fortes, mas ela se controlou.
Emília havia conseguido permissão para que Mirtes assistisse ao casamento se prometesse controlar-se. Mirtes sabia que,
ao menor sinal de desequilíbrio, eles a levariam
de volta.
Notando a emoção dela, Emília tornou:
- Pense nas coisas boas, ná alegria de rever os seus em um momento tão especial.
- Sinto que tanto mamãe e papai quanto Alzira não me esqueceram.
- Há mais alguém que pensa em você com amor e saudade.
- Humberto! Se ele soubesse que eu não era nada daquilo que ele pensava, talvez me odiasse.
- Você não era, mas pode tornar-se. Depende só de você.
- É verdade. Eu posso. Eu vou tornar-me uma pessoa de bem. Vocês vão ver.
A cerimônia terminou e os noivos, acompanhados pelos familiares e padrinhos, caminhavam para a saída.
Apesar da emoção do momento, Alzira viu Mirtes e Emília de relance. Foi muito rápido, mas tinha certeza de que eram elas.
Em seguida teve a sensação de ser abraçada,
e sentiu o perfume predileto de Mirtes.
- Vocês vieram! Que felicidade!
- O que disse? -indagou Valdo.
-Nada. Depois eu conto.
Enquanto Alzira se afastava com o marido, Mirtes e Emília
369

aproximaram-se de Humberto, que estava ao lado de Antônia e dos filhos.
- E sua família -disse Mirtes.
- É nossa família.
De repente, Mirtes fixou Antônia e emocionou-se:
- Quem é ela? Acho que a conheço de algum lugar.
- É uma das nossas. Em breve vai se casar com meu filho Renato. Serão muito felizes.
- Ela deve ser muito boa. Nunca senti tanto bem-estar perto de uma pessoa.
Emília sorriu mas não respondeu. Depois de alguns instantes, disse:
- Agora precisamos ir. Vamos nos despedir.
Mirtes aproximou-se de Humberto e abraçou-o, dizendo-lhe ao ouvido:
- Obrigado por me amar mais do que mereço. Desejo que seja feliz.
Abraçou os rapazes e, quando abraçou Antônia, emocionou-se.
-Não sei o que é - confidenciou para Emília. - Mas quando a abracei senti carinho, apoio, segurança.
- Eu queria muito trazê-la aqui hoje, não só para que visse sua família mas para que estivesse com Antônia.
- Porquê?
- Eu lhe havia dito que iria demorar para reencarnar. Mas, diante de seu progresso, sua vontade de aprender, posso adiantar
que, se continuar assim, talvez possa
voltar à Terra pelos braços de Antônia.
- Quer dizer que poderei reencarnar em breve?
-É apenas uma hipótese. Conhecendo detalhes de seu passado e do dela, seria providencial. Mas é apenas uma possibilidade
entre outras, que vai depender de você,
deles, da vida.
- Eu gostaria muito! Assim teria Humberto como avô e poderia cercá-lo de carinho. Seria uma forma de acabar com a culpa
que sinto quando o vejo chorar por mim.
Emília abraçou-a com carinho.
- Se você ficar firme e escolher o bem, pode ser que a vida lhe conceda essa bênção. Agora vamos embora.
A noite havia descido completamente sobre a Terra e os três abraçados volitaram por sobre as luzes da cidade, que iam ficando
cada vez mais distantes.
370
Mirtes tinha os olhos marejados, uma vontade muito grande de agradecer por poder ter nova oportunidade de refazer seu caminho.
Olhando a lua que brilhava em meio
às estrelas, ela prometeu a si mesma que dali para a frente trabalharia muito para conquistar a própria felicidade.
Naquele momento, uma estrela cadente correu pelo céu e ela teve certeza de que dessa vez conseguiria.
Poucos instantes depois, os três desapareceram rumo ao infinito.
Fim
371
Sucessos de ZIBIA GASPARETTO
Crônicas e romances mediúnicos. Mais de cinco milhões de exemplares vendidos. Há mais de dez anos Zibia Gasparetto vem se
mantendo ná lista dos mais vendidos, sendo
reconhecida como uma das autoras nácionais que mais vende livros.
• Crónicas: Silveira Sampaio PARE DE SOFRER
O MUNDO EM QUE EU VIVO BATE- PAPO com O ALÉM
• Crônicas: Zibia Gasparetto CONVERSANDO CONTIGO!
• Autores diversos PEDAÇOS DO COTIDIANO VOLTAS QUE A VIDA DÁ
• Romances: Lucius O AMOR VENCEU
O AMOR VENCEU (em edição ilustrada)
O MORRO DAS ILUSÕES
ENTRE O AMOR E A GUERRA
O MATUTO
O FIO DO DESTINO
LAÇOS ETERNOS
ESPINHOS DO TEMPO
ESMERALDA
QUANDO A VIDA ESCOLHE
SOMOS TODOS INOCENTES
PELAS PORTAS DO CORAÇÃO
A VERDADE DE CADA UM
SEM MEDO DE VIVER
O ADVOGADO DE DEUS
QUANDO CHEGA A HORA
NINGUÉM É DE NINGUÉM
QUANDO É PRECISO VOLTAR
TUDO TEM SEU PREÇO

















Sem medo
de viver





























Capa:
Kátia Cabello



Revisão c Editoração Eletrônica:
João Carlos de Pinho


Eoto 4ª capa:
Renato Cirone






2ª edição
28ª impressão
Maio ? 2004
10.000 exemplares





Publicação, Distribuição
Impressão e Acabamento
CENTRO DE ESTUDOS
VIDA & CONSCIÊNCIA EDITORA LTDA.


Rua Agostinho Gomes, 2312
Ipiranga • CEP 04206-001
São Paulo • SP • Brasil
Fone / Fax: (11) 6161-2739 / 6161-2670
E-mail: grafica@vidaeconsciencia.com.br
Site: www.vidaeconsciencia.com.br





Zibia Gasparetto
ditado por Lucius










Sem medo
de viver


Prólogo





S
érgio chegou em casa muito nervoso. Esperara tanto tempo por aquela promoção e agora, quando tudo indicava que ela aconteceria, outro tomara-lhe o lugar.
Fechou a porta do pequeno apartamento onde morava e deixou-se cair em uma poltrona da modesta sala, desanimado. De que lhe adiantara mourejar no trabalho
com tanto empenho? De que lhe valera colocar os negócios da empresa em primeiro lugar, se na hora em que deveria colher a recompensa merecida passavam-no para trás?
Um sentimento de rancor o acometeu. Tanta dedicação e esforço haviam sido inúteis. Por que, para ele, as coisas saíam sempre erradas?
Passou a mão pelos cabelos num gesto impaciente. Tinha consciência de ter agido sempre com honestidade. Era uma pessoa decente e esforçada. Por que nada
dava certo? Parecia que a vida se comprazia em destruir todos os seus sonhos desde a adolescência.
Havia desejado estudar, graduar-se em medicina, mas nunca conseguira condições financeiras para isso. Vinha de uma família muito pobre do interior de São
Paulo. Seus pais nunca puderam financiar-lhe os estudos. Fez até o ginásio com muito esforço e aos quinze anos deixou a pequena cidade onde nascera e veio para a
capital na esperança de conseguir o que pretendia.
Tinha uma boa aparência e muita vontade de trabalhar. Depois de alguns dias conseguiu emprego em uma loja do centro da cidade como mensageiro. O salário
era pequeno, mas para ele representava um bom começo. Arranjou vaga em uma pensão de um bairro afastado e todos os dias, antes das sete, já se pendurava no estribo
do bonde para entrar na loja pontualmente às oito.
Durante o dia inteiro, até as dezoito e trinta, envergando a fardinha com o emblema da loja, ele ia e vinha, fazendo entregas, comprando pequenas coisas,
indo ao banco, ao correio, com diligência e boa vontade. No princípio havia sido duro, porque ele não conhecia a cidade. Mas comprou um guia e dentro de poucas semanas
já circulava por todos os lugares muito bem.
Logo descobriu que o salário que lhe parecera uma fortuna mal dava para cobrir-lhe as despesas indispensáveis. O sonho de poder estudar ficava mais distante
a cada dia. Decidiu procurar outro emprego, mas era muito jovem e teve de sujeitar-se a trabalhar naquele serviço durante três anos, até que completasse dezoito
anos.
Conseguiu fazer um curso noturno de datilografia e passou a procurar outro emprego. Descobriu que para passar nos testes a que era submetido teria de praticar
melhor a datilografia e estudar um pouco mais de matemática. Arranjou um estudante, colega de pensão, para dar-lhe algumas aulas e conseguiu treinar a datilografia
em casa da vizinha, que possuía uma máquina e o deixava usá-la à noite.
Sérgio suspirou recordando-se de sua alegria quando conseguiu ir trabalhar no escritório de uma fábrica de biscoitos. Além de ganhar mais, seria um escriturário.
Sentiu-se feliz. Ele estava ficando importante! Logo conseguiria recursos para continuar os estudos. Naqueles tempos, imaginava cursar a faculdade, graduar-se e
ser doutor! Ter o nome escrito em uma placa do lado de fora do seu consultório e ganhar dinheiro para poder ajudar a família.
Vicente, seu pai, era lavrador; Rita, sua mãe, mulher simples e trabalhadeira, bem como Dirce e Diva, suas irmãs mais novas. Havia ainda o irmão mais velho,
Rubens, que, ao contrário dele, aceitara a vida simples da sua cidade e trabalhava na lavoura como o pai.
Imaginava sua volta à terra natal, formado, rico, levando presentes para todos, podendo oferecer-lhes uma vida melhor.
Contudo, os anos haviam passado e, por mais que perseguisse esse sonho, nunca conseguiu realizá-lo. Esforçara-se muito, progredira, tinha aprendido muitas
coisas durante os quinze anos que viveu na cidade, e nos últimos anos, trabalhando em uma grande empresa onde tantos colegas haviam conseguido progredir, acreditou
que finalmente conseguiria o que desejava.
Claro que não pensava mais em estudar medicina. Renunciara a esse sonho da juventude, mas ainda guardava a esperança de poder subir na vida e ajudar a
família e, principalmente, mostrar-lhes que ele não se havia enganado. Que valera a pena ter saído de casa tão cedo, ter se esforçado. Queria ser vencedor.
Quando tudo parecia favorecê-lo, e pela ordem das coisas o cargo já era seu, a direção nomeou outra pessoa para ocupá-lo. A ele, nem uma palavra, nenhuma
explicação, nada. Além da decepção, o descaso feriu-o fundo. Afinal, ele se dedicava muito ao trabalho.
O telefone tocou e ele fez um gesto de contrariedade. Não sentia vontade de falar com ninguém. Contudo, depois do terceiro toque levantou-se da poltrona
e atendeu.
- Pronto.
- Sérgio? O que aconteceu? Estou esperando há mais de meia hora. Esqueceu que combinamos ir ao cinema? Já perdemos a sessão das oito.
- Desculpe, Flora. Tive um contratempo e me atrasei. Hoje não estou me sentindo bem.
- Está doente?
- Não. Apenas indisposto. Sinto muito tê-la feito esperar.
- Está mesmo indisposto ou está me evitando?
- Por que faria isso?
- Não sei. Mas se não lhe agrada sair comigo, posso compreender. Não precisa desculpar-se.
- Não é nada disso. Você está enganada.
- Não gosto de me sentir assim.
- Assim como?
- Você não apareceu, nem telefonou para avisar. Acho até que se esqueceu do nosso encontro. Por isso, é melhor ficarmos por aqui. Não me procure mais.
Não gosto de ser colocada em segundo plano, e não telefonaria para procurá-lo se não fosse para dizer-lhe isto. Portanto, adeus.
Ela desligou. Desapontado, Sérgio colocou o telefone no gancho.
- E essa, agora? - pensou. Além de perder o cargo ainda perdia a namorada! Isso não ia ficar assim.
Ele reagiu. Apanhou o telefone e ligou para ela. O telefone tocou, tocou, mas ninguém atendeu. Irritado, insistiu várias vezes até que uma voz masculina
atendeu.
- A Flora? Ela saiu. Quem está falando?
- Um amigo dela. Boa noite e obrigado.
Deixou-se cair novamente na poltrona. Além da decepção, agora estava com raiva. Gostava de Flora, mas não estava apaixonado. O namoro já se estendia por
seis meses. Ela era bonita, inteligente, agradável, porém demasiado exigente. Ambiciosa, inteirava-se de suas atividades profissionais, dizendo claramente que esperava
vê-lo prosperar na empresa.
Ele achava bom o interesse dela. Contava-lhe todos os problemas relacionados ao seu trabalho e acatava suas opiniões. Sentia que ela o apoiava para subir
na vida e fazer carreira. Ela cursava a faculdade de direito e Sérgio a admirava por isso. Os pais de Flora estavam bem de vida e ela nunca precisou trabalhar. Terminaria
o curso universitário naquele ano e o pai já estava providenciando um escritório para ela, junto a um famoso advogado.
Para ele, que sempre lutara com dificuldade, a situação de Flora já era ótima. Entretanto, ela desejava muito mais. Não queria ser apenas uma advogada
de fama, mas uma milionária. Seu objetivo era enriquecer. Sonhava com muito luxo, em freqüentar a alta sociedade. Amava as jóias caras, os lugares da moda, estar
em evidência.
Sérgio percebeu isso e até certo ponto achava positivo. Era um estímulo para que ele progredisse. Tinha certeza de que jamais seria milionário. Uma fortuna
não se faz de um dia para o outro. Ele nunca teve sorte.
Flora teria percebido isso? Ela sempre acreditou que ele havia de ser muito rico um dia, que chegaria a ser não só diretor-presidente da empresa como seu
maior acionista. Claro que ela delirava. Mas ele se sentia envaidecido, mesmo sabendo que o sonho dela nunca aconteceria.
De repente, ele percebeu tudo: Flora descobriu que a esperada promoção não acontecera. Por isso, deu-lhe o fora. Não quis esperar mais. Compreendeu a verdade.
Um simples atraso de meia hora não era motivo bastante forte. Já aconteceu antes e ela tinha reagido de outra forma
Apesar de sua desilusão e desconforto, Sérgio começou a rir. A ambição de Flora tornou-a interesseira e vulgar. Pensando bem, ela era vulgar mesmo. Estava
sempre representando, utilizando regras, fazendo jogos de interesse para se beneficiar, tornar-se evidente, admirada, aplaudida, valorizada.
Usou-o enquanto achava que ele poderia oferecer-lhe o que ela pretendia. Percebendo seu engano, não hesitou em colocá-lo de lado, e certamente sairia à
procura de outro que pudesse dar-lhe o que desejava.
Mesmo sem estar apaixonado por ela, essa conclusão irritou-o mais ainda. Além disso, a lembrança de quem o havia substituído na escolha para a diretoria
só piorou seu estado de ânimo.
Levantou-se e começou a andar de um lado a outro da pequena sala pensando:
- Eu sou capaz! Tenho a certeza de que eu desempenharia aquelas funções melhor do que ele, que foi nomeado para o cargo apenas por ser sobrinho do dono.
Estudara, trabalhara, tinha competência. Estava cansado de ser preterido, de ficar em segundo plano, de esperar que os outros reconhecessem sua capacidade.
Tinha de fazer alguma coisa. Não podia continuar mais assim. Estava com trinta e dois anos. O tempo passava rapidamente e nada acontecia.
- Nenhuma mulher pretensiosa e interesseira vai desligar o telefone na minha cara, nem nenhum patrão protecionista vai passar seus apadrinhados por cima
dos meus direitos. Não vou aceitar isso. De hoje em diante, as coisas vão mudar. Eles vão ver do que sou capaz! Até agora, obedeci às regras do esforço, do jogo
aberto, da honestidade. Não deu certo. De agora em diante, cuidarei dos meus interesses. Eles ainda vão voltar atrás, e eu é que direi não! Isso vai acontecer, eu
juro!
Foi até a cozinha, fez um sanduíche, abriu uma garrafa de vinho, encheu o copo e, levantando-o, disse:
- Ao meu sucesso!
Depois de comer, foi até o quarto, apanhou sua agenda e, sentado na cama, à luz fraca do abajur, começou a escrever. Acabava de ter algumas idéias e desejava
pô-las em prática no dia seguinte. Haveria de conquistar seu lugar, aquilo a que tinha direito, e ninguém o impediria de chegar aonde queria.
Estava determinado. O mundo era um jogo de interesses. O mais astuto levava vantagem sempre. Se esse era o caminho para o sucesso, ele o percorreria. As
pessoas, no mundo dos negócios, eram insensíveis a quaisquer sentimentos de solidariedade ou de fraternidade. O lucro era mais importante do que tudo. Tudo era competição,
e em uma competição era preciso ganhar. Estava cansado de perder, e para ganhar tinha que aprender as regras do jogo. Para entrar nessa disputa tinha que usar as
mesmas armas; para vencer, era preciso endurecer os sentimentos e enxergar só o próprio objetivo: o sucesso, o dinheiro.
Tomou um banho e foi deitar-se. Pretendia levantar-se cedo no dia seguinte. Tudo iria mudar e ele precisava estar bem-disposto para começar.

Capítulo 1





A
o chegar pontualmente na manhã seguinte, Sérgio sentiu logo o clima de expectativa entre seus funcionários. Percebeu que o olhavam disfarçadamente, tentando descobrir
como ele reagiria. Eles, tanto quanto Sérgio, tinham como certa a promoção dele.
Sérgio procurou aparentar indiferença e agir da maneira habitual. Se pensavam que ele estava arrasado, enganavam-se. Sentiu a raiva aumentar, mas controlou-se.
Tinha vontade de pedir demissão, de dizer como se sentia injustiçado, de quanto se esforçara para progredir na empresa, e de sua certeza de estar perfeitamente preparado
para exercer o novo cargo.
Não disse nada, porém. Para quê? Serviria apenas para revelar aos colegas o quadro da sua insatisfação e do seu fracasso.
Quando o chamaram para apresentar-lhe o novo chefe, ele precisou de todo o controle para dissimular sua contrariedade. Olhou para o moço bem-posto e sorridente,
vestido na moda e muito seguro de si, e foi tomado por um sentimento desagradável de inveja.
Cumprimentou-o sério, porém com amabilidade, entreabrindo os lábios em um sorriso de boas-vindas que procurava encobrir o mal-estar.
- Este é o Dr. Flávio, nosso novo diretor administrativo - disse o presidente da empresa. - É com ele que você deverá tratar daqui por diante.
- Sim, senhor - respondeu Sérgio.
Ele era doutor! Bonito, elegante, rico. Sobrinho do presidente da empresa. Certamente um "filhinho de papai" que lhe daria muito trabalho para introduzir
nos assuntos administrativos. Doutor! De quê?
Esse pensamento aumentou sua raiva. Era injusto que alguém que não merecia lhe roubasse o que lhe pertencia por direito. Ele trabalhara duro, dedicara-se
tenazmente e era quem tinha o direito de crescer com a empresa.
A vida era injusta e cega com as pessoas. A desigualdade, o protecionismo acentuavam sua revolta. Todavia, nada deixou transparecer.
Flávio fixou-o com certa indiferença dizendo:
- Meu tio falou muito bem de você. Hoje desejo percorrer todos os departamentos, mas amanhã começaremos a trabalhar.
Sérgio curvou-se levemente.
- Estarei à disposição.
Saiu da sala tentando disfarçar, sentindo o olhar curioso dos colegas. Em sua sala, sentou-se atrás da escrivaninha e fingiu que começava a trabalhar.
A disposição da véspera tinha esmaecido. Sentia-se muito desanimado, mas o orgulho falou mais alto. Ninguém haveria de perceber. Alguns colegas tentaram
mostrar solidariedade, procurando tocar no assunto, mas Sérgio sorriu e respondeu:
- Não estou nem um pouco preocupado com o novo diretor! Tenho outros planos em vista!
Eles o olharam com incredulidade. Sabiam como Sérgio gostava da firma e quanto se dedicava. Com certeza ele dissimulava. Fingia para não demonstrar toda
a sua decepção.
Vendo-os sair calados e pensativos, Sérgio compreendeu que não conseguira enganá-los. Irritado, pegou sua agenda e procurou alguns telefones. Fechou a
porta da sala e, sozinho, começou a ligar. Eram pessoas que tinham negócios com a empresa e que o cumulavam de gentilezas, algumas oferecendo vantagens e dinheiro
a troco de favores.
Marcou vários almoços e fez apontamentos. Sabia que precisava ser cauteloso. Dali para a frente, só importaria seu sucesso, seu bem-estar, seus interesses.
Depois disso, sentiu-se mais calmo. Estava dando o troco.
Ele não desejava lesar a empresa. Mas iria aproveitar as vantagens que seu cargo lhe oferecia e prestaria favores a outras firmas para obter lucro e fazer
seu próprio capital. Pensava que ainda poderia ter seu próprio negócio. Prática de mercado não lhe faltava. Só precisava de dinheiro para começar. Isso ele havia
de conseguir em pouco tempo.
Satisfeito, saiu para almoçar e quando encontrou os colegas, principalmente seus amigos, sentia-se muito bem. Tão bem que eles começaram a pensar que haviam
se enganado, que Sérgio realmente não se incomodara com a preterição.
Nos dias que se seguiram, Sérgio sentiu-se muito melhor. Na verdade, prestar esclarecimentos e assessoria ao novo diretor não lhe custava nada, uma vez
que, por outro lado, começara a realizar alguns negócios com os quais ganhara bom dinheiro ao dar preferência a algumas firmas para fornecimento de determinados
materiais.
Um dos seus almoços fora com o dono de uma agência de publicidade que lhe pagou gorda comissão para conseguir a conta da empresa. Sérgio aceitou, e notando
crescer sua conta bancária, sentiu-se satisfeito.
O novo diretor era muito diferente do que Sérgio havia imaginado. Nunca parecia estar trabalhando. Dava impressão de um visitante, sempre impecavelmente
vestido e com a mesa sempre arrumada e limpa.
- Um almofadinha! Não quer nada com o trabalho - pensou Sérgio com certo prazer.
Claro que ele torcia para que Flávio fizesse muitas asneiras. Tinha a certeza de que esse grã-fino nunca saberia levar o trabalho a sério. Fizera-lhe apenas
algumas perguntas e nada mais.
As secretárias viviam suspirando por ele. Certamente um bom partido. Trinta anos, solteiro, rico.
- As mulheres sempre são interesseiras - pensou ele. Isso aumentava sua raiva. Sabia que o estava invejando, e tal sentimento incomodava-o, mas não conseguia
evitá-lo. Se ao menos ele se mostrasse mais humano, cometesse algum erro, falhasse de alguma forma, seria mais fácil suportá-lo. Contudo, Flávio guardava distância,
era discreto, e não trocava qualquer tipo de comentário com ele. Falava pouco e Sérgio nunca sabia se ele concordava ou não.
Se a presença de Flávio o incomodava, sua personalidade começou a intrigá-lo, e ele prestava atenção a tudo quanto o novo diretor dizia ou fazia. Sabia
quantos ternos ele trocava por semana, como combinava as cores das camisas e das gravatas, quantos cafés ele tomava, a que horas chegava, a que horas saía.
Depois de um mês, começou a perguntar-se o que ele fazia fora da empresa. Como gastava seu tempo, os lugares que freqüentava... Quando o via sair em seu
carro sempre limpo e bem cuidado, imaginava onde ele iria, o que faria, como seria sua vida.
Quando ele fosse rico, saberia aproveitar bem o tempo. Todas as mulheres haveriam de querer sua companhia. Teria roupas e carro de luxo.
Sérgio sonhava com o futuro, imaginando-se a desfrutar de posição e vida social.
A campainha do interfone soou e ele atendeu.
- Sim?
- Venha à minha sala, precisamos conversar.
Sérgio levantou-se imediatamente e dirigiu-se à sala de Flávio. Bateu levemente na porta e entrou.
- Sente-se, por favor - pediu ele. Vendo-o acomodado, continuou. - Tenho algumas perguntas a fazer-lhe.
- Estou à sua disposição.
- Primeiro, nós mudamos de agência publicitária. Certamente você teve uma boa razão.
Sérgio admirou-se. Não esperava que ele se ocupasse desses detalhes. Apressou-se a responder.
- É verdade. Durante muito tempo permanecemos com a mesma empresa, porém, estudando bem, notei que os resultados eram insignificantes e resolvi mudar.
A nova agência apresentou-me um programa melhor e acredito que venhamos a obter maiores resultados.
- Desejo cumprimentá-lo por isso. Na verdade, nossa publicidade estava muito antiquada e nada agressiva. A nova campanha está muito melhor. Talvez possamos
melhorar ainda mais. Confesso que você me surpreendeu.
Sérgio olhou-o curioso.
- Por quê?
Flávio sorriu levemente.
- Não pensei que tivesse essa atitude. Não é sua postura habitual. - Olhou-o firme nos olhos e continuou. - Alguma coisa está mudando em você. Para melhor.
Sérgio sorriu enquanto dizia:
- Talvez. Sinto vontade de fazer coisas novas. Flávio balançou a cabeça aprovando.
- Isso mesmo. Você me parecia muito conservador. Sérgio surpreendeu-se. Não era essa a idéia que fazia de si mesmo.
- Eu? Conservador? Tem uma opinião errada a meu respeito. Toda minha vida sempre fui diferente dos meus. Deixei-os lá no interior e vim para a cidade.
Na minha família, só eu tive essa coragem.
Flávio olhou-o sério, como se medindo bem o que ia dizer.
- É verdade. Saiu de lá, mas nunca os deixou realmente. Tudo quanto fez aqui tem sido no sentido de provar-lhes que você estava certo. Que era melhor do
que eles.
Sérgio não ocultou a surpresa. Flávio mal o olhava, como podia saber tanto a seu respeito? Fez um gesto evasivo.
- Por que diz isso? Eu nunca pretendi ser melhor do que eles. Sempre fui um bom filho e amo minha família.
- Não duvido disso. Falo da sua postura interior. Do que está oculto em suas atitudes. Essa postura deve tê-lo limitado muito. Aposto que tudo para você
tem sido muito difícil, e com muita luta.
Sérgio não escondeu um travo de amargura.
- E verdade. Mas a vida não é nada fácil para um pobre menino como eu que veio do interior, sem cultura, e não conseguiu sequer ir para uma universidade.
- Se cultiva essa espécie de pensamento, posso compreender por que não conseguiu o que pretendia.
- Aprendi que a honestidade, a vontade de trabalhar e o esforço eram o caminho para o sucesso. Mas tudo o que conquistei tem sido com muito esforço e muita
luta. Não acredito que na vida as coisas possam ser diferentes.
- Se isso fosse verdade, os desonestos e ociosos nunca teriam sucesso. Eu posso apontar-lhe alguns nomes de homens conhecidos e até famosos, ocupando altos
cargos na política, que fraudaram todas as leis dos homens e até de Deus.
Sérgio não concordou.
- É verdade, mas não é justo. Onde ficam os valores sagrados da religião e da vida? Acreditar nisso é perder todos os referenciais do que é bom ou mau.
- Você fala das regras da sociedade. Hum... Elas nem sempre são verdadeiras.Todavia, pense nisto. O sucesso não depende dos valores morais de cada um.
Ele pode ocorrer mesmo quando a pessoa é despudorada e desonesta.
Sérgio sacudiu a cabeça negativamente.
- Sei que é verdade, mas não me conformo. Está tudo errado. Como a vida pode premiar o mal? Nesse caso, onde está Deus?
Flávio sorriu e, pela primeira vez, Sérgio viu seus dentes alvos e bem distribuídos.
- Está enganado. A vida nunca erra. Tudo está certo como está. Pense nisso. Agora fiquemos por aqui.
Sérgio saiu da sala intrigado. Flávio o elogiara logo quando ele não tinha agido de acordo com seus manuais de honestidade! Ele estava enganado, com certeza.
Que idéias malucas lhe passariam pela cabeça?
Ele, querendo ser melhor do que todos na família! Era verdade que sempre desejara progredir para ajudá-los. Traze-los para a cidade, dar-lhes presentes
e fazê-los subir na vida. Isso não poderia ser um mal. Ao contrário. Ele era um bom filho.
O resto do dia Sérgio não conseguiu esquecer sua conversa com Flávio. Reconhecia que ele estava muito bem informado. Parecia seguro e nunca demonstrara
qualquer dúvida. Chegara a examiná-lo, a observar suas atitudes.
Sérgio sentiu-se envaidecido. Flávio prestara atenção nele. Estar-se-ia perguntando por que não o haviam promovido? Perceberia que lhe roubara o lugar
na hora em que ele, Sérgio, mais esperava por isso?
Se isso fosse verdade, haveria de mostrar-lhe que era melhor do que ele mesmo. As palavras de Flávio não lhe saíam da cabeça. "Saiu de lá, mas nunca os
deixou realmente." Estaria a chamá-lo de provinciano? Foi até o banheiro e olhou-se no espelho. Talvez o corte de cabelo pudesse melhorar. O colarinho era um tanto
acanhado. Também, ele nunca dispusera de dinheiro para comprar boas roupas.
Na manhã seguinte, um sábado, Sérgio decidiu fazer compras. Afinal, agora ele dispunha de mais dinheiro e ninguém haveria de chamá-lo de provinciano. Morava
na cidade há bastante tempo e se considerava um homem elegante. Lembrou-se dos ternos bem talhados de Flávio, suas camisas finas e gravatas sempre combinando e decidiu-se.
Estava disposto a gastar e a vestir-se melhor.
Parado em frente à vitrine de uma luxuosa loja, ele olhava com atenção cada roupa exposta. Ficou encantado com um blazer azul-marinho, vestido em elegante
manequim, a camisa de seda cor de palha e a gravata estampada, com delicado toque cor de vinho. Olhou, olhou e finalmente resolveu entrar.
Sentia-se envergonhado. Nunca conseguira entrar em uma loja luxuosa como aquela. Sempre pensara que essas coisas não eram para ele e que nunca poderia
comprá-las. Timidamente pediu para ver a roupa, e no provador, vendo-se vestido com ela, sentiu-se outra pessoa. Num assomo de entusiasmo, comprou tudo, não só o
blazer, a camisa e a gravata, mas a calça combinando com a camisa, os sapatos de cromo alemão e até as meias de seda.
Gastou quase todo o dinheiro que tinha, mas não se importou. Sentia-se eufórico, feliz. Ele nunca pensara em si mesmo; agora, estava na hora de, pelo menos,
viver melhor.
À noite, tomou um banho caprichado, vestiu-se com a roupa nova e, diante do espelho, sentiu-se entusiasmado. Parecia outro homem, mais alto e muito elegante.
Virando-se e olhando-se, pensou:
- Hoje não vou pensar em tristeza, nem em minha vida pobre. Sou rico, estou preparado para o sucesso!
Uma vez na rua, conjeturou: aonde iria? Não sentia vontade de ir a um simples cinema ou aos lugares costumeiros. Decidiu ir à cinelândia, dar uma olhada.
Andando pela avenida São João, sentia-se o dono do mundo. As mulheres olhavam-no interessadas e ele pensava com satisfação:
- Elas imaginam que tenho dinheiro!
Ele procurava andar com naturalidade. Os ricos são descontraídos e naturais. Iria a um teatro. Talvez fosse melhor. Depois veria o que fazer. O que será
que Flávio fazia nas noites de sábado? Ele tinha carro e isso mudava muito as coisas.
Depois do teatro, sentiu fome e resolveu cear em um bom restaurante. Aquela noite teria que ser completa. Ele não estava à vontade em um lugar de luxo,
porém, naquela noite, sentiu-se muito bem, observando a atenção do maître, a gentileza dos garçons, a beleza do lugar.
Pediu um aperitivo, encomendou o jantar, provou o vinho. Estava deliciando-se com a comida e com o piano que tocava suavemente, quando o garçom aproximou-se
respeitoso.
- Senhor, aquele cavalheiro convida-o a jantar com eles.
Admirado, Sérgio voltou-se e não conteve um gesto de surpresa. Sentado alguns metros atrás, estava Flávio, em companhia de duas moças. Uma delas era Flora.
O que significaria aquilo? Pensou em recusar, mas sentiu-se envaidecido. Era uma oportunidade para mostrara Flora e a Flávio, ao mesmo tempo, que ele não era o provinciano
fracassado que eles julgavam.
Sorriu cortesmente. O garçom continuou:
- Ele disse que lhe daria muito prazer.
- Foi ele quem convidou?
- Sim, senhor.
- Muito bem. Aceito.
Sérgio levantou-se e dirigiu-se à mesa deles, cumprimentando-os.
- Que prazer vê-lo aqui! Venha fazer-nos companhia! - disse Flávio com um sorriso. - Esta é Flora, e esta é Arlete, minha prima.
Sérgio curvou-se, estendendo a mão para Flora.
- Como vai, Flora?
- Bem... - respondeu ela.
Sérgio percebeu que ela estava contrariada. Sentiu-se alegre com isso. Estendeu a mão para Arlete, dizendo com um sorriso:
- É um prazer conhecê-la.
O garçom já mudara o jantar de Sérgio e este sentou-se calmamente entre as duas moças. Olhando Flora com naturalidade, disse:
- Está tudo bem com você?
- Tudo ótimo.
- Vocês já se conheciam? - indagou Flávio, admirado.
- Já.
- Velhos amigos... - disse Flávio.
- É, eu diria velhos conhecidos - respondeu ela tentando dissimular o desagrado.
- Não sabia que você conhecia o Dr. Flávio. Ele é o novo diretor da nossa empresa.
- Nada de doutor, por favor - disse ele. - Não há necessidade de formalidades. Na verdade, estamos a nos conhecer hoje. Ela é colega de faculdade de Arlete.
- Ah! Você estuda advocacia também?
- Não. Eu estudo letras. Estou no último ano.
Ela sorriu. Era muito diferente de Flora. Seu rosto moreno e delicado, levemente corado, a pele muito bonita, olhos grandes e castanhos, seus cabelos escuros
e levemente ondulados, davam-lhe um ar de menina.
- Não é muito cedo para estar no fim do curso? Com que idade começou a estudar? - indagou Sérgio.
Ela meneou a cabeça negativamente e sorriu. Tinha delicadas covinhas quando sorria e um brilho malicioso nos olhos ao responder:
- Quantos anos pensa que eu tenho?
- Não sei... talvez uns dezessete.
- Tenho vinte e três.
- Arlete não aparenta a idade que tem. Aliás, é uma característica da nossa família. O pai dela parece mais irmão dos filhos do que pai - esclareceu Flávio.
A conversa prosseguiu agradavelmente. Flávio era delicado e falava pouco, Flora estudava um jeito de agradá-lo e Sérgio pensou:
- Ela preparou tudo, pretende dar o golpe do baú. Está furiosa porque eu apareci. Vai dar com os burros n´água. Flávio não vai interessar-se por ela.
Ele estava adorando o jantar. Arlete era bonita e graciosa. Amável e delicada. Não parecia ser de família tão importante. Para provocar Flora, Sérgio resolveu
redobrar as amabilidades com Arlete. O que ela, Flora, estaria pensando, vendo-o tão bem vestido e freqüentando restaurante de luxo? Estaria arrependida de haver
terminado o namoro? Haveria de arrepender-se muito mais, a interesseira.
Terminado o jantar, Flávio não permitiu de forma alguma que ele pagasse.
- Absolutamente. Está tudo pago. Eu tenho conta neste restaurante.
Sérgio agradeceu. Aquele era seu dia de sorte. Uma noite mágica que ele não queria ver terminar. Por isso, quando Flávio sugeriu irem a outro lugar, ele
concordou deliciado.
- Está uma noite muito agradável - disse ele. - Poderíamos ir a uma boate.
- Está bem - disse Sérgio.
- Eu adoraria! - disse Arlete.
- Eu sei. Por isso estou convidando.
- Com você, papai deixa - continuou ela, sorrindo. Uma vez na boate, Sérgio sentia-se deslumbrado. Tantas coisas bonitas, muitas flores, gente bem vestida,
música agradável, e ele, pela primeira vez em sua vida, sentia-se à vontade num lugar fino como esse. Havia bebido um pouco de vinho, sentia-se bem-disposto e alegre.
Naquela noite, tudo lhe parecia natural e ele tinha vontade de cantar.
Convidou Arlete para dançar e logo estavam circulando pelo salão. Arlete era leve e dançava deliciosamente bem. Abraçando seu corpo delicado e bem torneado,
Sérgio sentia-se como se fosse o astro de um filme americano. Um musical onde ele fosse o primeiro dançarino. Não é que ele gostava de dançar? Nunca imaginara isso
antes.
Os dois continuaram dançando animadamente. Não paravam. Era rumba, bolero, samba, foxtrote, tudo. Até tango Sérgio animou-se a dançar. Flávio era mais
comedido. Dançara algumas vezes com Flora, e Sérgio de vez em quando percebia o olhar dela fuzilando sobre ele. Quanto mais percebia que ela estava com raiva, mais
feliz ele ficava. Estava saboreando a vingança.
Quando eles se sentaram à mesa, corados e alegres, Flávio considerou:
- Parece que Arlete encontrou um parceiro ideal. Eu não consigo acompanhá-la. Ela nunca se cansa.
- É tão raro eu poder vir a uma boate e, principalmente, que encontre alguém capaz de dançar divinamente como Sérgio, que quero aproveitar. Para dizer
a verdade, estou muito feliz e gostaria que esta noite nunca acabasse.
Sérgio olhou-a com olhos brilhantes e respondeu:
- Pois eu também. Esta noite quero esquecer que sou um simples mortal e que o dia vai amanhecer.
- Nunca pensei que você apreciasse a dança - disse Flora admirada. - Nunca o vi dançar. Pensei que não soubesse dar um passo.
Havia ressentimento na voz dela e Sérgio respondeu:
- Depende da companhia e do lugar. Esta noite, encontrei uma parceira ideal. Ela dança divinamente. Parece uma pluma.
- Isso é verdade. Arlete, desde pequenina, sempre dançou muito bem e tem muito senso musical. Toca piano maravilhosamente, canta bem e se tio Antônio houvesse
permitido ela teria se dedicado à vida artística.
Flora lutava para encobrir o desapontamento. Ela é que queria brilhar, ser a primeira em tudo, ter as atenções. Aquela menininha rica e sem graça, filhinha
de papai, estava roubando-lhe o lugar. Os dois pareciam derreter-se diante dela.
- Está ficando tarde - disse. - Está na hora de irmos embora.
Arlete olhou para Flávio com ar suplicante.
- Não ainda, por favor. Está tão bom aqui!
- De fato, já é tarde - considerou ele consultando ligeiramente o relógio. - Fiquemos mais meia hora.
- Venha, Sérgio - disse Arlete levantando-se e puxando-o pela mão. - Não podemos perder tempo.
Logo os dois estavam circulando animadamente pela pista de danças.
- Não pensei que Arlete fosse tão animada! - tornou Flora.
- Na faculdade ela é sempre discreta.
- Ela é sempre discreta em tudo. Mas quando se trata de música, dança, ela muda. Parece que com o Sérgio acontece o mesmo. Nunca pensei que ele fosse tão
extrovertido. No escritório é sempre muito discreto. Você o conhece há muito tempo?
- Quase um ano. Para dizer a verdade, se quer saber, ele foi apaixonado por mim. Chegamos a um namorinho sem importância. Eu não quis continuar.
Flávio olhava-a imperturbável. Ela continuou:
- Na verdade, ele sempre me pareceu, como direi... um tanto antiquado, é de família pobre, veio do interior, seus pais são lavradores. Pretendia fazer
carreira, estudar, mas nunca conseguiu. Não sei se por falta de sorte ou de capacidade.
- Ele é um dos melhores funcionários da nossa empresa - disse Flávio com naturalidade.
Flora mordeu os lábios. Não esperava essa resposta.
- Claro. Trabalha lá há vários anos. Certamente.
- E você, o que espera fazer quando se formar? Os olhos dela brilharam de satisfação.
- Termino este ano e estou montando meu próprio escritório. Naturalmente, junto com um advogado famoso para que eu possa começar uma carreira bem assessorada.
Sabe como é, eu tenho a certeza de que serei uma excelente profissional; contudo, uma mulher, e ainda mais recém-formada, não vai inspirar confiança aos clientes.
Eles preferem entregar suas causas aos advogados experientes.
Eles continuaram conversando. Flora contando seus projetos, ele ouvindo calmamente.
Quando finalmente saíram da boate, Flávio ia levar as moças para casa e Sérgio não permitiu que ele o levasse. Não gostaria que eles vissem o lugar modesto
onde residia.
- Absolutamente. Vou tomar um táxi. Você já fez demais por mim esta noite. Além de não me deixar pagar a conta.
Despediram-se, e quando chegou em casa Sérgio olhou em volta e o contraste de seu apartamento pobre e modesto o incomodou. Mas ele fechou os olhos. Não
queria pensar. Não queria que aquela noite maravilhosa acabasse. Sentia-se feliz e realizado.
O dia estava amanhecendo quando ele se deitou e finalmente adormeceu.

Capítulo 2





N
a segunda-feira, Sérgio levantou-se alegre e bem-disposto. Porém, olhando-se no espelho não gostou do que viu. Sua camisa era malfeita e seu terno sem elegância.
Suspirou preocupado. Aquelas roupas não lhe caíam bem. Abriu o armário e procurou algo melhor. Não encontrou. Que falta de gosto! Sua roupas eram horríveis.
Como não percebera isso antes? Sentiu vontade de desfazer-se de todas elas.
Talvez por isso ele não conseguira a promoção. Um diretor de empresa precisava estar impecavelmente vestido. Como não tinha pensado nisso? Flávio andava
sempre muito bem arrumado.
Diante do espelho, olhou-se procurando analisar sua aparência. Embora houvesse mudado o penteado, os cabelos ainda continuavam mal cortados. Pensando bem,
ele não era feio. Ao contrário. Alto, moreno, cabelos castanho-escuros, dentes alvos e bem distribuídos, sabia ser agradável quando queria. Faltava-lhe apenas verniz
para tornar-se tão elegante quanto qualquer homem da alta sociedade.
Ele estava disposto a ter sucesso. Para isso, pretendia investir o que pudesse. Nesse jogo, pensava ele, as aparências eram fundamentais. Como não havia
remédio, vestiu-se e foi para o escritório.
Uma vez lá, fez um inventário de suas despesas e de sua conta bancária e chegou à conclusão de que o salário que ganhava não era suficiente para conseguir
viver como desejava. Na verdade, ele nunca reivindicara nada. Pensava que fazendo tudo quanto podia e dedicando-se ao trabalho, seus superiores lhe dariam a justa
compensação financeira. Pensava até que economizando e não se mostrando ambicioso, seria mais apreciado.
Isso não acontecera. Ele mudara de cargo, assumira mais responsabilidade, mas o dinheiro pouco tinha aumentado. Insatisfeito, Sérgio começou a achar, pela
primeira vez, que estava sendo usado.
Sua dedicação fora aproveitada sem que houvessem feito por ele o que esperava. A injustiça de que fora vítima deixava isso muito claro, pensava ele.
A experiência que tivera no fim-de-semana fazia-o desejar ardentemente ingressar nesse mundo bonito e alegre que então havia conhecido. Era isso que ele
buscava quando saíra de sua pequena cidade. Não queria mais viver naquele pequeno apartamento pobre e feio, vestir-se mal, contar os trocados, nunca comprar aquilo
de que gostava e sim o mais barato.
Esses pensamentos o agitavam, mas ele não conseguia esquecer o assunto. Sentia-se triste e desanimado.
Alguns dias depois, Flávio chamou-o à sua sala. Vendo-o sentado à sua frente fez-lhe algumas perguntas sobre o andamento de vários assuntos e depois, olhando-o
com firmeza, disse:
- Noto que você não tem estado bem. Algum assunto da empresa o está preocupando?
Sérgio tentou dissimular.
- Não. Está tudo bem.
- Percebo que você anda desligado do trabalho, sem entusiasmo. Está acontecendo alguma coisa?
- Não. Nada.
- Gostaria que soubesse que a falta de interesse de alguém na equipe pode prejudicar todos os nossos negócios. Você sempre foi considerado um ótimo funcionário.
Ontem, pela sua falta de atenção, quase perdemos um cliente importante.
Sérgio enrubesceu. Orgulhava-se de nunca haver sido advertido. Trincou os dentes de raiva e fechou a boca com força. Flávio, imperturbável, continuou.
- Espero que esteja consciente disso. Mas como tem sido um dos nossos melhores funcionários, pensei que poderia estar com algum problema.
Sérgio sentiu uma onda de indignação. Ele estava sendo usado, explorado, e Flávio ainda se achava no direito de chamar-lhe a atenção. Não se conteve.
- Realmente, Flávio. Sinto-me insatisfeito. Tenho me dedicado à empresa, trabalhado com dedicação e seriedade, julgando que saberiam reconhecer meu valor,
mas isso não aconteceu.
- Você tem progredido. Passou por diversos cargos e agora dirige uma boa parte da empresa, tem o respeito e a admiração de todos.
Sérgio respirou fundo e tomou coragem para dizer:
- Você pode pensar que sim. Gosto da empresa, do trabalho, do ambiente, de tudo. Mas tenho um problema financeiro. Meu salário não é suficiente para as
minhas despesas. Por isso, andei até pensando em procurar outro emprego. Isso para mim seria doloroso, porque eu aprendi a amar esta casa, mas realmente não posso
continuar mais a viver dessa forma. Eu mereço uma vida melhor. Sei que sou competente e realizo um bom trabalho, e sinto que não venho sendo valorizado como mereço.
No início, a voz de Sérgio estava um pouco trêmula, mas depois ele foi se firmando e no final falou de maneira decidida, segura. Sentia-se muito bem falando
assim. Um brando calor aqueceu-lhe o peito e seus olhos brilharam expressivos.
Flávio olhou-o admirado e disse:
- Você sempre me surpreende. Realmente está amadurecendo. Posicionar-se como fez revela dignidade e valor. Pelo que sei a seu respeito, foi a primeira
vez em todos estes anos.
- Obrigado. Você perguntou a causa dos meus problemas e eu lhe disse.
- Muito bem. Espero que continue assim. Gostaria que fosse sempre objetivo como hoje. Fica muito mais fácil resolver os problemas quando as pessoas se
posicionam corretamente. Quanto você acha que seria justo receber pelo trabalho que faz?
- O mesmo que outras empresas do porte da nossa pagam aos que ocupam o meu cargo.
Flávio fixou-o pensativo por alguns minutos. Depois disse:
- É justo. Vou estudar a questão e voltaremos a falar assim que eu tiver as informações. Mudando de assunto, gostaria que fosse jantar em minha casa neste
sábado. Estarão lá alguns amigos.
Sérgio sorriu com satisfação.
- Obrigado pelo convite. Eu irei.
- Arlete vai gostar.
- Eu também. Ela é encantadora.
- Muito bem, às nove.
- Está bem.
Sérgio saiu da sala com vontade de cantar de alegria. Aquela sensação de tristeza e de desvalorização desaparecera. Sentia-se leve e feliz. Havia conseguido
dizer o que sentia e fora compreendido. Sentia-se respeitado e bem-disposto.
Animado, começou a pensar no jantar de sábado. Claro que ele precisaria de roupas novas. Não podia ir com a mesma roupa que usara na outra noite. Consultou
seu saldo no banco e viu que não era muito, mas talvez ele pudesse comprar a prestações. Não podia perder aquele jantar, de forma alguma. Irá casa de Flávio, ver
como ele vivia, vinha ao encontro de seus desejos.
Pensou em comprar outro blazer e uma camisa, que ele usaria com o restante das roupas que já havia adquirido. Não seria tão caro assim. Estava disposto
a não olhar o preço. Ele merecia e haveria de ter boas roupas.
Na sexta-feira, Flávio chamou-o novamente dizendo-lhe haver estudado seu caso e que ele tinha razão. Seu salário não estava à altura do cargo que ocupava.
Ofereceu-lhe não só o dobro do que ganhava como uma pequena participação nos lucros da empresa.
Sérgio ficou radiante. Finalmente estava sendo valorizado. Mas e as roupas? Precisava comprá-las. Seu novo salário só viria no fim do mês.
Sábado saiu logo cedo, percorrendo as lojas de luxo em busca do que precisava. Seu dinheiro não dava para comprá-las. Vendo sua preocupação, um vendedor
perguntou:
- Não gostou dessa?
- Gostei, mas no momento estou desprevenido. Gastei demais e só vou receber no fim do mês. Poderia dividir o pagamento?
- Infelizmente nossa loja não vende a prestações.
- É que eu tenho um jantar importante hoje à noite e queria uma roupa nova. Sabe como é, é a casa do meu chefe.
O vendedor sorriu e disse:
- Olha, se você não se incomodar, eu tenho aqui um terno muito elegante, camisa e gravata, um traje completo, por um preço muito barato. É de excelente
qualidade. Corte impecável. Mas não é novo. Um cliente comprou e não pagou. A loja o obrigou a devolver tudo, mas ele já havia usado. Quando é assim, nosso gerente
vende as peças aos empregados. Porém, não serviram em ninguém. Acho que a roupa vai cair como uma luva em você.
Sérgio aceitou e experimentou. Realmente, a roupa era muito elegante e lhe assentava muito bem. O preço foi exatamente o que ele tinha no banco. Ia ficar
sem nada, mas pretendia fazer um vale e re-mediar.
Comprou tudo com satisfação.
- Hoje é meu dia de sorte - pensou feliz.
Faltava ainda dar um jeito nos cabelos. Mas o dinheiro não era suficiente. Chegando em casa, dirigiu-se à dona do apartamento dizendo bem-humorado:
- Dona Antônia, hoje é meu dia de sorte! Recebi um bom aumento!
Ela sorriu satisfeita. Para ela, todos os seus inquilinos eram como filhos. Viúva e sem filhos, ela interessava-se pela vida de todos eles, consolando-os
quando tinham problemas e comemorando quando estavam alegres.
- Precisamos comemorar, Sérgio!
- É, mas eu tenho um problema. O dinheiro só vem no fim do mês e meu chefe me convidou para um jantar hoje à noite em sua casa. Tive que comprar uma roupa
nova e fiquei sem dinheiro. Preciso cortar o cabelos e pagar o táxi.
- Isso é mau. O que pensa fazer?
- A senhora não poderia emprestar-me algum até o fim do mês? Pagarei com juros.
- Logo vi que você queria alguma coisa. Quando me olha desse jeito!
Ela emprestou-lhe o dinheiro e Sérgio imediatamente foi a um salão famoso cortar os cabelos, fazer manicure.
À noite, quando se olhou no espelho, sorriu com satisfação. Estava perfeito. Faltava o perfume. Com prazer, lembrou-se do perfume francês que ganhara
no aniversário. Com algumas gotas, completou a tarefa.
Às nove horas em ponto, Sérgio foi introduzido pelo mordomo no hall do belíssimo palacete do Jardim América, onde Flávio residia. Com os olhos brilhantes,
ele observava tudo em detalhes, desde o lindo jardim iluminado que rodeava a casa até os lustres de cristal, as cortinas e as obras de arte que já conseguia vislumbrar.
Conduzido a uma sala de estar, onde já se encontravam algumas pessoas, Flávio levantou-se para cumprimentá-lo.
- Você é pontual - disse após os primeiros cumprimentos. - É uma qualidade rara no Brasil. Venha, quero apresentá-lo a alguns amigos. Arlete, você já
conhece.
- Como vai? - disse ela olhando-o com olhos brilhantes. Estava ainda mais bonita num vestido justo de seda vermelho, que a fazia parecer mais alta, e
com os cabelos presos em coque na nuca por um belíssimo arranjo de pérolas.
- Bem. É um prazer reencontrá-la.
Flávio apresentou-o aos outros amigos, dois casais de meia-idade, três rapazes, que haviam sido colegas de universidade, e duas moças. Todos muito agradáveis
e elegantes. Sérgio sentiu-se logo à vontade. Aceitou um aperitivo que a criada lhe ofereceu e a conversa fluiu fácil e agradável.
Foi quando Flora chegou. Arlete apressou-se a abraçá-la e apresentá-la aos outros convidados. Ela não os conhecia. Ao cumprimentar Sérgio lançou-lhe um
olhar onde havia certa irritação e surpresa.
- Ela não gosta de me ver por perto - pensou ele. - Ela sabe que eu a conheço bem.
Vendo-a, ele não ficou contrariado, pelo contrário. Percebendo o quanto ele progredira, ela por certo estaria arrependida de tê-lo desprezado. Ele se
sentia vingado.
Aproximou-se de Arlete e sentou-se ao seu lado no sofá.
- Que bom vê-la de novo.
Ela sorriu e seus olhos brilharam.
- Eu digo o mesmo.
- Nunca me diverti tanto quanto naquela noite. Foi maravilhoso!
- É verdade. Você dança muito bem.
- Você também. Aliás, fazia anos que eu não dançava.
- Não acredito. Você estava em ótima forma. Parece que nunca fez outra coisa na vida.
- Vindo de você, é um grande elogio. Mas é verdade. Há anos que eu não dançava. Quando eu era menino, dizia que queria ser dançarino, aprender a sapatear,
como Fred Astaire. Quando vim para São Paulo, mergulhei no trabalho e esqueci tudo o mais. A vida na cidade grande é absorvente. A luta do dia-a-dia não nos deixa
tempo para o lazer.
Ela abanou a cabeça negativamente.
- Não é verdade. Quando você se organiza, há tempo para tudo. Esse é o encanto de viver. Cada coisa em sua hora e em seu momento.
- Você diz isso porque nasceu em uma família abastada. Nunca precisou preocupar-se com o pão de cada dia.
- Algum dia a preocupação lhe rendeu algum dinheiro?
- O que disse? - estranhou ele.
- Ganhou dinheiro com suas preocupações? Sérgio sorriu.
- Você está brincando comigo. Eu estava falando a sério.
- Eu também. Até hoje eu nunca vi ninguém ter lucro ou ganhar alguma coisa com a preocupação. Para mim, ela só faz mal à saúde e diminui nossa capacidade
de perceber as coisas.
- Quer dizer que nunca se preocupa com nada?
- Pelo menos eu tento fazer isso.
- Nesse caso, a vida seria um caos. Uma desorganização. É preciso tomar conta das coisas, fazer tudo direito.
Arlete sorriu suavemente e em seus olhos havia um brilho malicioso quando considerou:
- Fazer as coisas com capricho e atenção não tem nada a ver com preocupação. Ocupar-se com as coisas antes da hora, temer que elas saiam erradas, pensar
em coisas ruins que ainda não aconteceram desvia nossa atenção do que precisamos fazer no momento e diminui nossa capacidade de ação. Quando eu estou confiante,
serena e calma, consigo fazer tudo muito melhor.
Sérgio olhava-a com admiração. Arlete era diferente das outras moças que conhecera.
Flávio aproximou-se dizendo:
- Pela sua cara, Arlete já deu voltas à sua cabeça. Ela adora fazer isso!
Ela levantou-se enfiando o braço no braço do primo e disse alegremente:
- Olha quem fala! Isso é mal de família. Não ligue para ele. A maior parte das minhas idéias me vem dele. Sabia que o Flávio é o maior pensador que eu
conheço?
- Ele é muito observador - disse Sérgio.
- Não é só isso. Ele é um estudioso da vida, do homem, do comportamento. É um sábio.
Arlete falou suavemente e havia muita ternura em seus olhos. Sérgio sentiu uma ponta de ciúme. Arlete estaria apaixonada pelo primo? Flávio era muito
requisitado pelas mulheres. Seria Arlete mais uma das suas admiradoras?
Flávio sorriu suavemente quando respondeu:
- Nem tanto. É que nós nos compreendemos, temos as mesmas idéias, logo... quando ela me admira é porque está se vendo e se admirando através de mim. Sou
apenas seu espelho. Essa é a forma como me vê.
- Viu? Eu não disse? Ele conseguiu esconder-se e colocar-me em evidência. Ele sempre faz isso. Coloca-se como observador.
- É só o que eu sou. Um observador.
- Você nunca participa? - indagou Sérgio admirado.
- Alguma vez você me achou ausente?
- Não. Ao contrário. Parece sempre muito bem informado. Mas ao mesmo tempo... - parou indeciso. Flávio era seu chefe e, apesar de estar em sua casa como
um convidado, não sabia até onde poderia ir.
- Continue - pediu ele.
- Ao mesmo tempo me parece sempre olhando de fora, sem tomar parte. Fala pouco e não se entusiasma muito com as coisas.
- O que não quer dizer que não as sinta. Flávio é muito sensível.
Sérgio não concordava com isso, mas não se atreveu a contestar Arlete. Disse apenas:
- Se sente, controla-se muito bem. Está sempre calmo, aconteça o que acontecer.
- Alegra-me saber que pensa assim. Há longo tempo venho me esforçando para ser apenas um bom observador, e só intervir se eu puder, na hora certa, do
modo mais adequado.
- O que não quer dizer que ele seja indiferente. Controlar-se é sinal de força, de domínio interior.
- Controlar as emoções não é tão simples assim. Eu mesmo tenho tentado fazer isso e nem sempre consigo.
- Uma das técnicas que nós usamos com muito bom resultado é a de observar do lado de fora, como se o problema não fosse nosso - disse Arlete.
- Eu não saberia fazer isso - tornou Sérgio. - As emoções brotam e ficam de tal forma que, quando aparecem, tomam conta de mim. Como poderia manter-me
de fora? Se eu pudesse fazer isso, por certo não teria mais problemas com elas.
- É só fechar os olhos e imaginar que você dá um passo para trás, e observa sua figura à frente. É como se você fosse outra pessoa. Experimente. Nessa
hora, você está neutro. Não tem que decidir nada, nem enfrentar nada. É mero observador.
- Se eu fizer isso, o que vai acontecer?
- No mínimo descobrirá que tem um refúgio para ir quando as coisas ficarem muito perturbadoras. Nesse estado, sentirá serenidade e paz. Quase sempre,
novas idéias, novos ângulos em que você não havia ainda pensado aparecerão. O silêncio e a meditação são sempre um grande remédio para os problemas da alma.
- Interessante! - disse Sérgio. - Nunca fiz nada disso.
- Vale a pena tentar. Arlete sabe o que diz - tornou Flávio.
O jantar foi servido e a conversa fluiu alegre e agradável. As pessoas que estavam ali eram todas muito educadas e simpáticas. Uma coisa era certa: Flávio
sabia viver e reunir em torno de si pessoas interessantes.
Sérgio sentou-se ao lado de Arlete e do outro lado estava uma senhora muito viva e bem-humorada que o fez sentir-se muito à vontade.Todo o tempo, Sérgio
observou Flora disfarçadamente. Percebia que ela estava tentando introduzir-se naquele meio, aproveitando-se do seu conhecimento com Arlete.
Esforçava-se para ser encantadora, agradável, delicada. Sérgio sabia que ela não era nada disso. Sua personalidade era áspera e dura, chegando por vezes
à arrogância. Contudo, ali, ela mostrava-se dócil e bem-humorada. Com certo prazer e ironia, observava suas investidas sobre Flávio, que, imperturbável, não demonstrava
perceber nada.
Prazer porque sabia que, com Flávio, ela não iria conseguir nada. Ele era muito inteligente para se deixar envolver por uma interesseira como Flora.
Havia momentos em que surpreendia o olhar dela sobre ele, estudando-o. Por certo, estaria arrependida de haver acabado o namoro. Com certeza, estaria
tentando descobrir o que acontecera, uma vez que sabia que ele não fora promovido. Ele se divertia com a curiosidade dela. O que estaria pensando? Que ele estava
tendo mais dinheiro? Se ela soubesse que ele continuava como sempre...
Não. Ele não continuava como sempre. Ele mudara. Ele agora provava o prazer das coisas boas. Ele queria mais. Com isso conseguiu maior salário. Era justo.
Ele merecia. Sempre trabalhou muito. Esforçara-se, dedicara-se. Agora, não estava mais disposto a continuar naquela vidinha pobre e sem perspectivas. Dali para a
frente, sua vida iria mudar. Nunca mais sentiria o gosto do fracasso!
Lembrou-se da família, dos seus projetos de trazê-los para a cidade grande e sentiu um certo remorso. Estaria sendo egoísta pensando só em si mesmo, em
sua satisfação e prazer, deixando a família continuar naquela vida pobre e sem futuro em que viviam?
Ele não queria pensar. Quando ganhasse bem, por certo realizaria seus projetos com relação a eles. De que lhe adiantaria ir buscá-los agora para fazê-los
morar num pequeno apartamento sem conforto?
Após o jantar, Sérgio sentou-se em um sofá, enquanto Flávio colocava alguns discos na vitrola. Os outros convidados espalharam-se prazerosamente pela
imensa sala e Sérgio viu surpreendido Flora sentar-se a seu lado.
- Como vai?- indagou.
- Muito bem. E você?
- Bem. Pelo que estou vendo você agora resolveu mudar de vida. O que aconteceu? Ganhou na loteria?
Ela falou em tom de brincadeira, mas Sérgio percebeu que ela não conseguia mais controlar a curiosidade.
- Por que diz isso? - replicou ele não desejando dizer a verdade.
- Porque você está diferente. Nós nos encontramos naquele restaurante de luxo outra noite e agora, aqui, em casa de pessoas da mais alta sociedade.
- Uma das quais por acaso é meu chefe. Para falar a verdade, estar aqui para mim é natural. Eu é que nunca pensei encontrá-la nesta casa. Nunca me disse
que conhecia os Bastos.
Ela meneou a cabeça negativamente.
- Há muita coisa que você não sabe sobre mim. Eu sempre freqüentei a mais fina sociedade. Arlete é minha colega de faculdade, e lá eu sempre tive muitas
amizades. Costumo receber em casa também.
- Não sabia. Também, você nunca me convidou!
- Pensei que não gostasse de lugares mais requintados. Quando nós saíamos, sempre íamos a lugares modestos. Você estava sempre sem dinheiro.
Ele sorriu.
- As coisas mudam - disse.
Os olhos dela brilharam quando retrucou:
- O que mudou com você? Conseguiu aquela promoção?
- Que promoção?
- Aquela pela qual suspirava há tanto tempo.
- Não, não consegui. Continuo no mesmo posto.
Pelos olhos dela passou um lampejo de reflexão. Depois de alguns segundos ela disse:
- Então não entendo. Como conseguiu dinheiro para comprar roupas caras e freqüentar lugares de luxo? Vai ver que guardava o dinheiro e não queria gastar
quando saía comigo.
Pelos olhos de Sérgio passou um brilho de malícia.
- Pode ser - disse.
Ela irritou-se um pouco, mas estava disposta a controlar-se, por isso sorriu e respondeu fitando-o provocadoramente:
- Acha que eu não mereço?
- Você é quem está dizendo. Pense o que quiser.
Ela empalideceu e levantou-se imediatamente. Se ele pensava que ia esnobá-la estava enganado. Ela era e sempre fora melhor do que ele em tudo. Não seria
um pobre-diabo metido a elegante, sem ter onde cair morto, que iria divertir-se às suas custas.
Ele por certo estava escondendo alguma coisa. Talvez algo ilícito que ela ainda descobriria, e quando soubesse o que era, acabaria com o sucesso dele.
Haveria de vingar-se. Achegara-se a ele, tentando reatar a amizade, talvez até o namoro. Por que não? Agora ele já oferecia uma boa perspectiva de futuro. Com a
orientação dela, poderia ir longe.
Mas ele tripudiara sobre sua boa vontade. Por certo ainda estava ofendido pelo fora que lhe dera. Pior para ele.
Sorriu pensando que ele não perdia por esperar. Quando se casasse com Flávio, haveria de calcá-lo sob os pés.
Afinal, Flávio era muito melhor partido do que Sérgio. Bonito, jovem, rico, inteligente, de boa família. Era nele que colocaria seu objetivo dali para
a frente. Ele mostrara-se educado, porém indiferente. Mas ela sabia como agir e haveria de conquistá-lo. Precisava fazer um plano.
Algumas pessoas se despediram. Sérgio fez menção de despedir-se. Não queria abusar. Arlete o impediu.
- Que nada. Ainda é cedo. Vamos para outra sala. Lá poderemos dançar um pouco.
Sérgio atendeu com prazer. Flávio conversava com um amigo e Flora com outro que, lisonjeado pela atenção dela, dizia-lhe galanteios.
- A noite está tão agradável - disse ela. - O jardim é tão lindo e tão cheio de flores! Gostaria de dar uma volta.
Mário concordou prontamente:
- Vamos - disse oferecendo o braço com galanteria. - Desejo mostrar-lhe um lugar maravilhoso.
Saíram para o jardim, passeando pelas alamedas. A certa altura, Flora foi andando na frente para ver uma linda roseira quando tropeçou e só não foi ao
chão porque Mário correu e a segurou a tempo.
- Meu Deus - gemeu ela -, torci o tornozelo! Ai, que dor!
Quase não estou suportando. Acho que vou desmaiar! O rapaz, assustado, pediu:
- Por favor, não faça isso agora. Calma. Deixe-me ver. - Abaixou-se ao lado de Flora, que estava sobre uma perna só, sustendo-se sobre a outra e gemendo.
- Está um pouco inchado. Acho que se deslocou.
- Pela dor que estou sentindo, acho que quebrou. Não agüento mais.
- Vou carregá-la para dentro.
Tomou-a nos braços e levou-a para a sala deitando-a num sofá. Imediatamente Flávio e os demais convidados se aproximaram. Um dos presentes era médico
e logo tomou a dianteira.
- Deixe-me ver. O que foi?
- Ela tropeçou e torceu o tornozelo.
O médico examinou-a cuidadosamente.
- Não foi nada. Apenas uma torção.
- Está doendo muito - reclamou ela.
- Isso dói mesmo. Você não vai poder pôr o pé no chão por um ou dois dias. Vou dar-lhe um comprimido para a dor. Mas depois de tomá-lo você precisa dormir.
É calmante.
- Meu Deus! E agora? Como vou voltar para casa?
- Acho melhor ficar aqui por esta noite - disse o médico. Flávio, que ouvia atentamente, disse:
- Certamente. Ela ficará no quarto de hóspedes até se recuperar.
Flora esforçou-se para ocultar a satisfação. Era isso mesmo que ela queria. Por isso provocara o acidente. Procurou dissimular.
- Preciso ir para casa - disse. - Minha família ficará muito preocupada se eu não voltar. Não estou habituada a dormir fora. Meu pai é muito rigoroso.
Arlete aproximou-se dizendo:
- Não se preocupe. Eu vou ligar para sua casa e falarei com sua mãe, explicarei tudo.
- Ela vai ficar muito assustada.
- Você fala com ela e conta que está muito bem, já foi atendida pelo médico e é só questão de tempo.
Flora sorriu com doçura.
-Obrigada, Arlete. Não sei como agradecer. Sinto-me constrangida. Não quero dar trabalho, nem abusar da hospitalidade. Logo na minha primeira visita a
esta casa!
- Fique à vontade - disse Flávio com naturalidade. - Já mandei preparar o quarto e vamos levá-la para lá.
- Ela não pode forçar o tornozelo - disse o médico.
- Eu a levo - decidiu Flávio.
Tomou-a nos braços e carregou-a para o andar superior, colocando-a delicadamente sobre a cama. O médico que os acompanhou disse dirigindo-se a Arlete:
- Fique comigo. Vamos ajudá-la a ficar mais confortável. Flávio saiu e os dois ajudaram-na a tirar o vestido, as meias e a vestir uma camisola de Arlete
que esta lá deixava porque era muito comum dormir na casa do primo quando havia festa e ficava até muito tarde.
Assim que saíram, Flora sentiu-se profundamente feliz e satisfeita. A dor passara e ela, deitada na belíssima cama de casal, macia e confortável, olhando
o luxo e o bom gosto do quarto, as obras de arte, as flores, pensava que essa vida era tudo quanto sonhara para si.
Depois, quando Flávio a tomou nos braços, ela sentiu uma deliciosa sensação de prazer. Tendo seu rosto próximo ao dele, sentindo sua respiração, seu perfume,
pensou como seria bom se ele a beijasse. Seria maravilhoso poder juntar o útil ao agradável. Casar com um homem rico e tão atraente cuja proximidade fazia seu coração
bater mais forte e seu corpo estremecer de prazer.
Satisfeita, embalada pelos seus sonhos de felicidade, Flora entregou-se prazerosamente ao torpor que sentia e adormeceu.
Sérgio tinha observado tudo e desconfiara do acidente de Flora. Estava sendo muito conveniente para ela dormir ali, na mesma casa de Flávio, e poder assim
estreitar uma amizade que ela desejava transformar em amor.
A princípio, Sérgio duvidou que Flora conseguisse impressionar Flávio, porém, vendo-o carregá-la nos braços até o quarto, começou a sentir um pouco de
receio. Ela era ousada e muito esperta. Até que ponto Flávio resistiria? Ela era uma mulher bonita e atraente. Sabia provocar um homem.
Não chegara a amá-la e pouco lhe importava se ela se casasse com este ou aquele. Mas não gostaria que ela envolvesse Flávio nessa aventura. Afinal, ele
merecia coisa melhor.
Quando Sérgio se despediu, Arlete prometeu telefonar-lhe para irem ao vernissage de um famoso pintor seu amigo, e ele ficou radiante. Ela pretendia passar
a noite ali, em casa do primo, e fazer companhia a Flora.
Sérgio gostou da idéia. Certamente Flora teria preferido ficar só e a presença de Arlete a atrapalharia. Ele gostava de tudo que pudesse dificultar os
planos de Flora. Tinha a certeza de que ela tramara aquela situação. Ela era mulher sempre às voltas com planos disso e daquilo, não se defendo diante de nada para
conseguir seus objetivos.
Já Arlete era tão diferente! Tão simples e agradável! Ela, uma moça rica, de família importante, era natural e espontânea. Embora não pertencendo à alta
sociedade, Flora era toda cheia de regras e preconceitos.
Junto com Arlete, ele se sentia à vontade e bem-disposto. Com ela, tudo acontecia normalmente, sem problemas ou dificuldades. Parecia-lhe que a vida,
para ela, deslizava suavemente, sem os tropeços de todo mundo. Como ela conseguia isso? A seu lado, ele se esquecia de suas dúvidas, de seus problemas, suas dificuldades
e seus projetos.
- Engraçado - pensou ele. - Enquanto Flora é estressante, Arlete é repousante. Deliciosamente fresca e relaxante. Nunca me senti assim perto de uma mulher.
Em casa, estendido no leito, Sérgio começou a contar os dias que faltavam para ele receber seu salário e pensou nas coisas que compraria para ir ao vernissage
com Arlete.
- Preciso comprar um carro. Juntar dinheiro. Mas como? Ainda não dá para isso. Um dia ele ainda teria um carro. Agora já não duvidava mais de que havia
de conseguir. Era só questão de tempo.
Embalado em seus projetos para o futuro, Sérgio finalmente adormeceu.

Capítulo 3





N
o dia seguinte Flora acordou bem-disposta e alegre. O sol brilhava lá fora e, apesar de as cortinas estarem corridas, a claridade se espalhava pelo quarto em caprichosos
desenhos de luz e sombra.
- Deve ser tarde - pensou ela.
Dormira profundamente a noite inteira. Afastou as cobertas e examinou o tornozelo luxado. Ainda estava um pouco inchado. Tentou levantar-se, buscando
apoio no outro pé. Foi ao banheiro e lavou-se, vestiu o robe que Arlete delicadamente colocara sobre uma cadeira. Alguém bateu na porta.
- Entre - disse Flora.
A criada entrou com uma bandeja de prata onde estavam dispostas várias iguarias.
- Trouxe o seu café. A senhora deseja comer na cama ou na mesa?
- Na cama. Infelizmente meu pé está doendo muito e não posso apoiá-lo no chão.
Flora deitou-se e a criada colocou um porta-mesa sobre o leito e a bandeja em cima.
- Está satisfatório ou a senhora deseja mais alguma coisa?
Flora passou uma vista de olhos pela rica bandeja, pelo delicado vaso onde havia uma rosa, pelos bules, pela louça, pelas iguarias e sorriu:
- Está tudo muito bem, obrigada.
A criada saiu e ela, deliciada, serviu-se de café e leite. Apanhando um pãozinho delicado, passou a manteiga e suspirou satisfeita.
Essa era a vida que ela queria para si. Beleza, luxo, conforto, e ser servida. Além do mais, havia Flávio. Ele começava a aparecer em seu pensamento como
o prêmio maior. Quanto mais pensava nessa possibilidade, mais se animava.
Estava terminando o café quando Arlete apareceu.
- Bom dia - foi dizendo logo. - Está melhor? Flora sorriu.
- Um pouco. Que vexame! Logo no primeiro dia! Estraguei o jantar de seu primo. Espero que ele não tenha se aborrecido comigo.
- Ele não se aborreceu. Foi um acidente.
- Preciso ir embora. Não desejo abusar. Tentei levantar, mas ainda dói terrivelmente.
- Não se preocupe. Fique o tempo que precisar. Descanse.
- Não quero incomodar Flávio. Arlete deu de ombros.
- Ele não se incomoda. Sei o que estou dizendo. Ele saiu um pouco e encarregou-me de dizer-lhe que se cuide e descanse bastante. Aliás, Walter ficou de
voltar após o almoço, para examinar o seu tornozelo e ver se você já pode levantar-se.
- O Dr. Walter foi muito gentil ontem à noite.
- Ele é muito nosso amigo e, além do mais, excelente profissional. Pode ficar tranqüila. Ele fará o melhor.
- Ele inspira muita confiança. Você também não foi para casa. Teria sido por minha causa?
- Eu costumo dormir aqui quando fico até tarde.
- Sua mãe não fica preocupada?
- Por quê?
- Flávio mora só, é tão moço, bonito. Arlete riu com gosto.
- É verdade. Ele é encantador. Mas nosso caso é só de amizade. Somos como irmãos.
Flora suspirou e Arlete sorriu bem-humorada:
- Você não está nem um pouco preocupada com o que minha mãe pensa. Está é interessada pelo Flávio. Esse suspiro...
Flora fingiu-se envergonhada.
- De fato, ele é um homem muito interessante. Capaz de interessar a qualquer mulher de bom gosto. Muito diferente do Sérgio.
- Você conhece o Sérgio há muito tempo?
- Conheço. Para dizer a verdade, ele estava apaixonado por mim. Saímos algumas vezes. Mas eu não quis mais. Terminei o namoro. Ele é muito provinciano.
Sabe como é, eu não me afino com certas coisas.
- Você não o amou.
- Claro que não.
- Você já amou alguma vez?
- Eu? Nunca. Aliás, eu tenho a cabeça no lugar. Não me permito amar qualquer pessoa. Não quero sofrer. Só amarei alguém que preencha todas as qualidades
que eu aprecio num homem.
Arlete ficou silenciosa por alguns instantes. Depois disse:
- Juntar amor com regras e programas parece-me impossível.
- Não para mim.
Havia uma expressão indefinível nos olhos de Arlete quando ela disse:
- Quero ver isso. Pelo jeito Flávio preenche todas as suas condições.
- Até certo ponto, sim. Conheço-o tão pouco! - respondeu Flora, tentando não mostrar muito interesse. - Ele já se apaixonou alguma vez?
- As mulheres o disputam o tempo todo. Mas amar mesmo eu acho que nunca aconteceu. Às vezes ele me parece interessado em alguém, mas logo passa e nada
acontece.
- Isso torna ainda mais interessante a conquista.
- Pelo jeito você vai tentar. Flora sorriu.
- Ainda não sei. Pode ser. Esse jogo pode tornar-se muito agradável.
- Cuidado. Não brinque com fogo. Flávio tem um encanto especial. Você pode apaixonar-se.
- Estou precavida. Só me apaixono se eu quiser.
- Quero ver o dia em que sua barreira cair.
- Esse dia nunca chegará. Arlete sorriu divertida.
- O amor costuma pregar peças. Aparece quando menos se espera.
Flora sacudiu a cabeça negativamente.
- Não comigo. Sou uma pessoa equilibrada. Posso me controlar muito bem. Você não?
- Normalmente sim. Contudo, em se tratando dos sentimentos, ainda não sei.
- Convivendo com seu primo, nunca se apaixonou por ele?
- Não. Já disse que somos como irmãos.
- É, você disse. Está interessada pelo Sérgio?
Os olhos de Arlete brilhavam de forma singular ao responder:
- É muito cedo para dizer. Damo-nos bem. Aprecio sua companhia. Gosta de dançar tanto quanto eu e nos divertimos muito juntos. Não há nada além disso.
Flora fez um gesto de enfado.
- Nunca soube que ele gostasse de dançar. Estou estranhando esse prazer repentino. Talvez ele pretenda conquistá-la. Afinal você é um bom partido para
ele, que sempre foi pobre e lutou muito para subir na vida.
Arlete levantou-se dizendo:
- Ele não me parece interesseiro. Você está indo depressa demais. Só nos vimos duas vezes e você já fala como se estivéssemos namorando. Não lhe parece
muita imaginação?
- Bem... eu pensei... Afinal, sempre que ele está por perto vocês ficam juntos.
- Ele é um excelente funcionário na empresa de meu pai. Em minha família, só tenho ouvido elogios a ele. Flávio o aprecia e eu confesso que gosto da sua
companhia. Está com ciúmes?
- Eu?!! Que idéia! Se eu gostasse dele, teria continuado a namorá-lo. Fui eu quem lhe deu o fora.
- Quer dizer que se um dia eu me apaixonasse por ele, você não se aborreceria.
Flora sacudiu a cabeça energicamente.
- Claro que não! Só que...
- Sim?
- Ele me parece tão insignificante e, sinceramente, penso que você merece coisa melhor. Um homem da sua classe, rico e culto.
Arlete sorriu alegre.
- Não sabia que você era casamenteira.
- Sou sua amiga. Não gostaria de vê-la envolvida com pessoas sem expressão.
- Não se preocupe comigo. Sei cuidar de mim.
Havia qualquer coisa no tom de Arlete que levou Flora a enrubescer.
- Desculpe - disse ela. - Não tenho nada com sua vida. Mas você tem sido tão amiga convidando-me para sair, que eu me excedi. Sinto-me feliz em privar
da sua amizade. Ainda agora, depois do que me aconteceu, vocês foram tão gentis que nem sei como agradecer.
- Não precisa. Agora vou deixá-la descansar.
- Dormi bastante. Gostaria de levantar um pouco.
- Em seu caso o repouso é o melhor remédio. Descanse.
- Não gosto muito de ficar só.
- Logo mais voltarei para fazer-lhe companhia. Vou buscar um livro. Flávio adora ler e tem uma boa biblioteca. Que gênero de leitura prefere?
- Ótimo. Talvez um romance...
Ela não apreciava a leitura, mas se Flávio gostava, ela precisava fingir.
- Ele tem vários. Eu li um maravilhoso, vou buscá-lo. Arlete saiu e voltou em seguida colocando o livro na mesa de cabeceira de Flora.
- Esse é ótimo. Você vai adorar. Eu e Flávio gostamos muito.
- Obrigada. Vou começar agora mesmo.
Arlete saiu, e Flora, tomando o livro entre as mãos, avaliando que ele era volumoso, suspirou resignada e, abrindo-o decidida, começou a ler.
Só no final da tarde foi que Flávio apareceu.
- Como vai, Flora?
Ela largou o livro e sorriu com prazer.
- Melhor, felizmente. Penso até que poderei levantar-me. Já dei trabalho demais a vocês.
Ele meneou a cabeça negativamente.
- Isso não é verdade. Lamento não ter podido estar aqui, mas tenho certeza de que Arlete a tratou muito bem.
Flora corou levemente.
- Certamente. Cuidou de mim com carinho.
- Walter disse que passaria aqui para vê-la logo mais. Antes disso, é melhor não se levantar. Esses casos podem tornar-se crônicos. É bom não facilitar.
Falando no diabo, eis que ele aparece... - brincou ele, levantando-se para abraçar o amigo.
Depois dos cumprimentos, Flávio saiu discretamente e Arlete entrou. Após examiná-la, Walter fez Flora levantar-se e caminhar um pouco pelo quarto.
- Já está bom. Mas é melhor não forçar muito por hoje. Ainda está ligeiramente inflamado. Se quiser, pode ir para casa, mas lá continue repousando. Amanhã
estará tudo bem. Se doer um pouco, friccione com esta pomada.
- Obrigada, Dr. Walter. Não sei como agradecer.
- Então não diga nada - brincou ele. E voltando-se para Arlete: - Espere que ela se vista e ajude-a a descer a escada com cuidado.
Arlete concordou. Flora vestiu-se e Arlete julgou prudente que ela não calçasse os sapatos por causa dos saltos muito altos.
- Fique com os meus chinelos.
- Está bem. Eu os devolvo na faculdade a semana que vem. Amparada por Arlete, Flora desceu lentamente as escadas e sentou-se em um sofá da sala. Walter
colocou uma banqueta para que ela descansasse a perna.
- Vou telefonar para chamar um táxi - disse ela.
- Fique e jante conosco - sugeriu Arlete. Flora olhou para Flávio, que se apressou a dizer:
- Certamente. Você nos dará muito prazer.
- Nesse caso, eu aceito. Vocês são muito amáveis. Adoro estar em sua companhia. Em casa vivo muito só. Sou filha única.
Arlete sorriu bem-humorada. Ela percebia que Flora corava perto de Flávio e seus olhos brilhavam mais quando o fitava.
Na verdade, ela não tinha muita amizade com Flora. Mas esta, de repente, se achegara, procurando companhia. Arlete também era única filha, tendo mais
dois irmãos que, sempre às voltas com seus próprios interesses, nunca estavam com ela.
Apesar disso, Arlete não se sentia só, tinha muitos amigos, inclusive o primo, a quem admirava e com o qual realmente tinha afinidade. Mas podia compreender
que alguém como Flora se sentisse só. Ela mostrava-se agradável e atenciosa e Arlete aceitara sua companhia com naturalidade, convidando-a a participar da sua roda
de amigos, na intenção de que tia não se sentisse tão só quanto dizia estar.
Contudo, Arlete não lhe franqueara sua intimidade. Ela não se transformara em amiga. Havia qualquer coisa em Flora que deixava Arlete em guarda e não
lhe permitia ir além dos limites da boa educação.
Walter também ficou para o jantar e a conversa fluiu agradável e fácil. Flora sentia-se maravilhada. Esse ambiente a fascinava. O relógio do hall deu
as dez badaladas e Flora levantou-se assustada.
- Meu Deus! Já? Preciso ir embora.
- Meu motorista a levará para casa - disse Flávio. - Tem certeza de que deseja mesmo ir?
- Por mim eu ficaria aqui pelo resto da vida. A conversa está tão agradável! Mas preciso ir. Obrigada por tudo.
Eles a instalaram confortável mente no automóvel e despediram-se atenciosamente. No caminho de casa, Flora, recostada nas macias almofadas do carro, sentia-se
muito bem. Passou uma vista de olhos pelo interior do automóvel e decidiu-se.
- É isso mesmo. Um dia tudo isso será meu e eu viajarei aqui todos os dias. Irei para os lugares de luxo e viverei como uma rainha. Flávio vai ser meu.
Eu juro.
Enquanto Flora dava asas à sua fantasia, Sérgio se perguntava o que estaria acontecendo em casa de Flávio. Sabia que Flora estava tentando seduzir seu
chefe e não sabia até que ponto ela o conseguiria.
Tinha certeza de que Flora se aproximara de Arlete, interessada em usá-la para subir na vida. Arlete era rica e freqüentava a melhor sociedade. Flora
não tinha amigas. Sempre dizia que mulher nunca é amiga, mas sim rival.
Ele poderia prevenir Arlete, mas não era do seu feitio. Não gostava de maledicência. Entretanto, ficaria vigilante. Apreciava Arlete. Era uma moça boa
e confiante. Ele não gostaria que Flora a envolvesse em seus projetos escusos.
Na segunda-feira, assim que Flávio chegou ao escritório, Sérgio o procurou para informar-se.
- Está tudo bem com ela. Walter deu-lhe alta e ela foi para casa ontem à noite.
- Ótimo.
- Ela é sua amiga?
- Não. Nós tivemos um namoro sem importância, só isso.
- Ela é interessante, eu diria bonita. Você não se apaixonou?
- Não. Ela é mesmo bonita, mas, para mim, é só. Não chegou a mexer com meus sentimentos.
Flávio sorriu.
- Quando, mexe com os sentimentos é o diabo.
- E você? Ela está mexendo com seus sentimentos? Ele riu com gosto.
- O que o fez pensar isso? Estará com ciúmes?
- Não. É que eu sei que o que ela quer mesmo é um bom partido. Eu não corro perigo algum, quanto a você...
- Também não. Até agora tenho escapado incólume.
- Cuidado com ela. Você pode estar sendo um alvo sem perceber.
- Essas baterias estão por toda parte. Pode imaginar quantas mulheres sonham com o casamento?
- Principalmente com o cifrão.
- Você é amargo com as mulheres. Quero crer que nem todas sejam tão interesseiras.
- Pois eu sei que é assim. Se você não estiver bem vestido, se não tiver um belo carro, nem posição social, tudo fica mais difícil.
- Não é o que eu tenho percebido.
- Pudera, você tem tudo que elas querem e ainda uma boa aparência! Elas enxameiam ao seu redor como moscas. Eu já percebi.
- Será apenas pelo meu dinheiro? Não sou tão rico assim.
- Não diria só pelo seu dinheiro. Mas que isso conta, principalmente para as que não têm nada, isso conta.
- Eis aí um bom tema para estudo. Vou pensar sobre isso. Em todo caso, quer dizer que você, mesmo tendo boa aparência, não tem sucesso com as mulheres?
Não foi isso o que me pareceu...
- É?
- É. Elas bem que se movimentam quando você aparece. Sérgio sorriu satisfeito. Ele também observara esse fato, que tinha ficado mais evidente depois de
ele vestir-se melhor e mudar o corte de cabelo.
- Mas foi depois que melhorei minhas roupas e meu corte de cabelo que isso se acentuou - reconheceu ele. - Elas pensam que tenho dinheiro.
- Não. Elas têm bom gosto e preferem um homem elegante. Além do que, quando você se sente mais elegante, torna-se menos tímido e comporta-se de maneira
diferente. Já notou isso? Quer coisa pior do que se sentir inadequado em algum lugar? Quem se veste mal ou sem capricho está sempre destoando e quem se sente assim
procura passar despercebido, esconder-se. Não mostra o seu brilho. Não será essa a verdadeira causa do interesse? Sei de casos de mulheres muito finas, ricas, da
mais alta sociedade, que se apaixonaram por homens pobres e até feios, dentro do conceito de beleza social. Largaram tudo por eles. Sabe por quê? Porque essas pessoas
possuíam um brilho especial, alguma coisa além da roupa, do dinheiro ou até da beleza física. Um brilho interior, um carisma, que as atraiu. Não acredita nisso?
Sérgio sacudiu a cabeça.
- Não sei. Para ser franco, nunca amei ninguém de verdade.
- Pense nisso. Observe. Verá que nem todas as mulheres são interesseiras. Eu conheço várias que provam o contrário.
- É. Talvez eu esteja generalizando. Deve haver alguma exceção em algum lugar. Tenho certeza de que Arlete é uma delas.
- Isso mesmo.
- Em todo caso, se eu fosse você tomava muito cuidado para não cair em nenhuma armadilha.
Ele riu com gosto.
- Pode deixar. Sei o que faço.
- Nem sei por que estou dizendo isso. Talvez porque eu tenha tido uma experiência um pouco desagradável. Mas, como você disse, nem todas as mulheres são
iguais.
Sérgio sentiu-se mais tranqüilo. Flávio não era ingênuo nem precisava que ele lhe desse conselhos. Flora não iria conseguir nada com ele. Sentia prazer
em vê-la fracassar. Seus planos não iriam dar certo.
De volta à sua sala, encontrou uma carta do seu irmão Rubens. Ao abri-la sentiu-se um pouco culpado. Fazia mais de um mês que não escrevia para casa.
Era um convite de casamento. Emocionou-se. Rubens iria casar-se! O nome da moça era-lhe desconhecido.
Segurando o convite entre os dedos, sentou-se pensativo. Gente pobre como seu irmão não deveria pensar em ter família. Viver ali, naquela vida simples
e sem conforto, longe das conquistas do progresso e da cidade, não era agradável.
Junto havia uma carta. Abriu-a e leu.
"Querido Sérgio. Como você sabe, há algum tempo comecei uma criação de galinhas e juntei algum dinheiro. Não muito, mas o bastante para manter uma família.
Vou me casar. Conheci a Antônia e gosto muito dela. Ela mudou-se para cá há pouco tempo, mas nós nos gostamos desde o primeiro dia. Contamos com sua presença no
grande dia. Abraços do Rubens."
Sérgio sacudiu a cabeça inconformado. Uma criação de galinhas! Quanta ingenuidade. Sentiu aumentar sua sensação de culpa. Se ao menos ele tivesse conseguido
trazer a família para a cidade!
Suspirou desanimado. Para casar-se, Rubens precisaria de uma porção de coisas. Um lugar para morar, móveis, etc. Embora eles não fossem nada exigentes,
onde teriam dinheiro para tanto? Se ao menos ele tivesse algumas economias... Havia gasto todo seu dinheiro em roupas! Não teria sido leviandade? Sentiu uma ponta
de remorso. Não estaria sendo egoísta?
Decidiu, então. Iria receber seu salário dentro de alguns dias e o guardaria para as despesas do casamento. Chegaria lá e teria dinheiro para ajudar o
irmão. Roupa para a cerimônia, ele já tinha. Compraria um belo presente. Escreveria para que Rubens lhe dissesse do que precisava. O dormitório, um fogão, uma geladeira,
compraria o que ele pedisse.
Depois disso, sentiu-se menos culpado.
- O que aconteceu, alguma má notícia?
Flávio estava parado diante dele. Sérgio levantou-se imediatamente.
- Não. Isto é...
- Estava tão preocupado que nem me ouviu entrar.
- Desculpe. Recebi uma carta de meu irmão. Ele vai casar-se dentro de vinte dias.
- É contra o casamento?
- Não é que eu seja contra, mas não sei se ele tem condições financeiras para manter uma família.
- Se ele decidiu, com certeza já pensou nisso. Sérgio deu de ombros.
- É, ele disse que tem.
- Por que não acredita? Não confia nele?
- Ele tem suas próprias idéias, nem sempre combinam com as minhas.
- Isso é normal acontecer. Cada um é um. Eu vim buscá-lo para irmos conversar com um diretor de empresa. Ele quer negociar conosco e eu preciso de alguns
detalhes técnicos. Gostaria que fosse comigo. Vamos almoçar juntos.
- Certamente.
Sérgio apanhou o paletó e saíram. Uma vez no carro, Flávio voltou ao assunto:
- Você nunca falou sobre sua família.
- É verdade. São pessoas simples que moram no interior. São lavradores. Meu pai ganhou do patrão um pedacinho de terra, fez uma casa modesta onde vive
com minha mãe, minhas duas irmãs e meu irmão Rubens, que é o mais velho.
- Ele é quem vai se casar agora.
- É. Quando eu vim para cá, ele não quis vir comigo. Disse que ama a terra e não gosta da cidade. Se ele tivesse vindo, nós dois juntos, talvez pudéssemos
ter trazido a família. Esse foi sempre o meu maior sonho, mas eu nunca consegui. Por isso fiquei triste com a notícia. É mais uma família que vai viver na pobreza
e na falta de conforto.
- A vida rural pode ser muito boa, principalmente se as pessoas gostam da terra e sabem trabalhar com ela.
Sérgio não concordou.
- Qual nada. É uma vida onde tudo falta. Eu não agüento ficar lá mais do que uma semana ou duas.
- Isso é porque você prefere a cidade. É uma questão de gosto.
- Pois eu não me conformo. Gostaria que eles estivessem aqui, estudando, aprendendo coisas novas, vivendo melhor. Infelizmente, não consegui ganhar o
suficiente para isso.
- Ultimamente você tem melhorado de vida. Mudou suas idéias. E quando as idéias mudam, tudo muda.
- Tenho pensado mais em mim, parecia-me justo. Mas agora, estou questionando: não terá sido egoísmo? Ao invés de guardar o dinheiro para a família, gastei
tudo em roupas, lugares elegantes. Pensei só em mim.
- Cuidado. Você deu um passo que não tem volta. Começou a acreditar em seu próprio valor e as coisas melhoraram para você. Seu salário aumentou, sentiu
que merece uma vida melhor. Se alimentar idéias de pobreza novamente, se valorizar a carência, sentir que deve pensar nos outros antes de pensar em si mesmo, se
pretender economizar com medo do amanhã, provavelmente as portas do sucesso financeiro e da prosperidade se fecharão novamente e seu dinheiro começará a minguar.
Sérgio admirou-se.
- Por que diz isso? Deixar de lado minha família, cuidar só do meu progresso, não é ser egoísta?
- É preciso ver a realidade. Durante todos esses anos, desde que você veio para a cidade, teve sucesso financeiro? Ganhou muito dinheiro?
- Claro que não.Tudo para mim tem sido extremamente difícil. Tenho trabalhado durante anos com dedicação e honestidade, mas o que ganhei deu apenas para
me manter modestamente. Nunca pude realizar esse sonho.
- Durante esses anos todos você ficou do lado da sua família. Tentou economizar dinheiro para melhorar a vida deles.
- É verdade.
- Mas nunca conseguiu. Você pensou neles e esqueceu-se de si mesmo. Não acreditou em sua capacidade, não se julgou capaz do sucesso, não pensou que merecia
viver bem, no luxo, no conforto. Na verdade, você deu as costas à prosperidade. O sucesso tem suas leis e, para obtê-lo, é preciso aprendê-las. A primeira delas
é valorizar o que tem. Você é jovem, inteligente, honesto, trabalhador, dedicado. Tornou-se um bom profissional. Não acha que merece viver bem? Sérgio aprumou-se
com dignidade.
- Eu acho. Contudo, os meus estão lá, na pobreza.
- Você não tem condições de tirá-los de lá agora, tem?
- Não.
- Então é preciso investir em você. Reconhecer seu potencial. A valorização das nossas qualidades é um bom começo. Você sabe o que pode fazer bem-feito.
Isso é valorização. Mas ainda há mais.
- O quê?
- Suas crenças a respeito da vida. Suas atitudes. Que mensagens você está lhe passando. Quando pretende privar-se de coisas que merece ter para economizar,
está mostrando que não confia no futuro. Que a vida é falha e não prove as suas necessidades.
Sérgio abriu a boca e tornou a fechá-la. Nunca ouvira semelhante frase. O assunto era novo e muito interessante. Flávio continuou.
- Criticando a vida, julgando-a falha, você está criticando o Criador. Acredita que Deus não vai cuidar das suas necessidades, você é quem precisa fazer
isso. Está, portanto, duvidando de Deus e da sua proteção.
- Eu sou pessoa de fé! Eu acredito em Deus. Sempre que posso, vou à igreja.
- Não falo de religião. Você pensa que tem fé, mas sua atitude demonstra o contrário. A vida não é intelectual, ela é energia, ação. Ela recebe sua mensagem
energética, não o que você pensa que é. Mas o que você faz. E, como vê, você pensa uma coisa e faz outra.
- Isso é incrível!
- Mas é a verdade. Pensar em si mesmo, cuidar de seus próprios valores, viver melhor, é contribuir para a melhoria da sociedade e do mundo. O egoísmo
é muito diferente disso. O egoísmo é justamente o contrário. É usar os outros para cuidar de você. Claro, se você não cuidar de si mesmo é porque espera que os outros
o façam. É anular-se, não cumprindo com seu papel como ser humano, é pendurar-se nos outros. Isso realmente é ser egoísta. Não fazer nada por si mesmo. Claro que
se você progredir, cuidar do seu sucesso, vai ter o que dar às pessoas de sua família. É melhor fazer o que se pode do que ficar iludindo-se a vida inteira sem conseguir
nada.
- Quando eu estou em um lugar de luxo, sinto remorsos por causa deles. Parece-me que os estou traindo.
- Não acha que está sendo pretensioso e prepotente?
- Eu?!!
- É preciso conhecer os próprios limites. Você não tem condições de modificar a vida de ninguém. Só a sua. A situação deles é a que eles escolheram, a
que eles se colocaram, e a vida, só a vida pode decidir a hora da mudança. Você não pode fazer nada quanto a isso. Por que se rebela?
- Eu?!!
- Sim. Parece uma criança mimada dizendo que, se não for da forma que você quer, não aceita mais nada. "Se eles estão lá na pobreza, eu preciso ficar
como eles." Pensando desse jeito, dá para entender por que você não conseguiu nada.
Sérgio passou a mão pelos cabelos pensativo, ficou silencioso por alguns momentos, depois disse:
- Eu nunca olhei a vida desse modo. Onde aprendeu essas idéias?
- Estudando a vida, a maneira de pensar de pessoas de sucesso.
- E isso dá certo mesmo?
- Claro. As pessoas que conseguiram realizar grandes coisas, que construíram grandes fortunas e que tiveram uma vida cheia de boas realizações certamente
descobriram a forma de conquistar tudo isso. A vida é composta de leis que sustentam a harmonia do universo. Tudo tem sua razão e seu caminho. Você pode conseguir
o que quiser, desde que descubra a fórmula adequada. É como um quebra-cabeças.
Sérgio meneou a cabeça admirado.
- Que idéia! Acredita mesmo nisso?
- Certamente.
- Nesse caso qualquer pessoa poderia ser milionária, ter tudo que quisesse neste mundo.
- Isso mesmo. Se encontrasse o caminho adequado, por que não?
- Isso é contra o senso moral. Nesse caso, os valores, a honestidade, o esforço de cada um, o trabalho, perderiam a razão de ser.
- Esses valores são importantes, mas sozinhos não vão trazer o resultado que você pretende. Não é isso o que você tem feito toda sua vida?
- É.
- E não conseguiu nada.
- Não mesmo.
- Para ganhar dinheiro, eles são até desnecessários. Há muita gente inescrupulosa que consegue enriquecer. Amontoam dinheiro, mas carregam problemas graves
na alma, doenças no corpo, infelicidade. Para mim, isso não é sucesso. Claro que o dinheiro é um bem, mas é preciso muito mais do que isso para fazer a nossa felicidade.
É preciso saúde, gosto pela vida, prazer, entusiasmo, bem-estar, alegria e paz.
- Ah! Mas isso é impossível! Você conhece alguém assim?
- Conheço. É a esses que me refiro. Sucesso abrange tudo isso. Riqueza interior, felicidade.
- Não acredito que isso seja possível neste mundo. É só olhar em volta para perceber a dor e a infelicidade.
- É verdade. Mas eu sou dos que acreditam que nós podemos ser felizes e que isso só depende de nós. Se alguns conseguiram, por que nós não? Eu poderia
citar vários nomes. Homens que conseguiram levar vida harmoniosa e proveitosa. Colocaram o dinheiro a serviço da humanidade. Aliás a circulação do dinheiro é uma
condição importante para que a prosperidade apareça. Quem economiza como você fez, guardando para o amanhã, está alimentando a idéia da falta que ele vai fazer.
Quem usa o dinheiro fazendo-o circular sabe que a vida vai trazer-lhe mais.
- Não posso acreditar. Aprendi durante toda vida que a economia é a base do futuro. É preciso poupar para ter. Se o que diz fosse verdade, o perdulário,
o preguiçoso, o que desperdiça o dinheiro e não trabalha seria valorizado. Ficaria de braços cruzados e esperaria a vida trazer-lhe tudo.
- Não é assim que funciona. É o prazer da realização interior que atrai o sucesso. Tanto quem não trabalha, mas até quem trabalha só pelo dinheiro e não
sente esse prazer vai empobrecer cada vez mais. A vida é movimento, ação, participação. Fazer o dinheiro circular é produzir, é movimentar recursos, é participar.
As pessoas confundem muito o que é riqueza. Ela não é só o dinheiro. Seria bom que você tentasse descobrir quais seus verdadeiros sentimentos em relação a esse assunto.
Os preconceitos contra o dinheiro estão fundo em nossa cultura. Há até quem pense que ter dinheiro seja um pecado. Esse não sairá da pobreza tão cedo.
Eles haviam chegado ao destino e Flávio direcionou o assunto para o negócio que iam tratar. Mas não só durante o almoço como depois, quando voltaram ao
escritório, Sérgio não podia esquecer o que haviam conversado.
Seria por essa razão que Flávio lhe parecia tão bem? Sempre tinha imaginado que ele era feliz por ter nascido em berço de ouro, sem necessidade de lutar
para abrir caminho na vida. Claro. Para ele, que sempre contara com recursos, falar desse modo podia ser fácil. Se ele tivesse nascido lá no mato, como ele próprio,
no meio daquela gente ignorante e analfabeta, sem ambições nem conforto, talvez pensasse de outra forma.
Apesar disso, Sérgio não conseguia esquecer o que Flávio lhe dissera. No final da tarde, quando Arlete telefonou, ele imediatamente esqueceu as preocupações.
Ela o avisava de que seu amigo pintor inauguraria a exposição na noite seguinte. Aceitou prazerosamente o convite para acompanhá-la.
Nunca freqüentara esses lugares, mas estava disposto a aprender. Arlete era tão natural que ele não se sentia acanhado. Com Flora era diferente. Ele não
gostava de ir a lugares desconhecidos porque ela fazia tantas recomendações, estabelecia tantas regras que ele se sentia tolhido e desajeitado. Que diferença!
Esquecido dos propósitos de horas antes, ele planejou:
- Amanhã preciso pelo menos comprar uma camisa!
Naquele instante os problemas de sua família estavam muito distantes e o rosto expressivo de Arlete tomou-lhes o lugar.

Capítulo 4





S
entado no trem que o levaria a Barretos, Sérgio pensava na família. O rosto queimado de sol do pai, o jeito doce de sua mãe, o carinho das irmãs, a simplicidade
de Rubens. Apesar de a distância não ser tão grande, ele ficara dois anos sem visitar os seus. O tempo havia passado tão depressa que ele nem se deu conta. Levava
presentes para todos e pretendia comprar um para o irmão quando chegasse. Queria saber de que ele precisava mais.
Conseguiu quinze dias de férias, e faltavam três dias para o casamento. Teria tempo para ajudar Rubens. Estava disposto a fazer o que pudesse. Além do
salário, ele recebeu uma participação no negócio que Flávio realizou com aquele almoço. Ao entregar-lhe o cheque, ele lhe disse:
- Este é seu. Nada mais justo. A empresa fez excelente negócio. Você realmente foi convincente e ajudou bastante. Estamos gratos.
Sérgio sentia-se feliz. O dinheiro chegara em boa hora. Olhando a paisagem que ia ficando para trás, ele pensava:
- Agora, tudo vai mudar. Logo estarei em condições de levar a família para São Paulo.
Ele não sabia se Rubens aceitaria ir. Casado, tudo ficava mais complicado. Depois, ele fez só os quatro anos do primário e certamente teria dificuldade
para encontrar um emprego. Sabia por experiência própria. Havia muita concorrência e os que haviam sido criados na cidade certamente levavam vantagem. Eram mais
desembaraçados, mas eficientes.
Quanto a Rubens, ele não ia insistir. Primeiro, queria aconselhá-lo a fazer alguns cursos em Barretos. Havia lá boas escolas. Datilografia, a rotina de
um escritório, um pouco de contabilidade. Quando ele estivesse mais preparado, haveria de levá-lo também.
Já com as irmãs, tudo seria diferente. Elas eram jovens e aprenderiam com mais facilidade. Dirce estaria com 22 anos e Diva com 24. Ainda bem que não
estavam pensando em se casar. Ali, no sítio, que futuro poderiam ter? Formariam uma família pobre e viveriam em uma casa sem conforto. As mulheres se adaptam com
mais facilidade. Uma vez na cidade, elas logo aprenderiam a comportar-se como as moças que ele conhecia. Acabariam por perder aquele sotaque do interior. Se fosse
preciso, ele contrataria um professor para ensiná-las a falar corretamente.
Enquanto o trem vencia a distância, Sérgio, envolvido pelos seus pensamentos, nem sequer prestava atenção às paisagens que se sucediam. Havia mandado
um telegrama avisando a família da sua chegada. Teriam recebido? Eles moravam distantes da cidade. As cartas que escrevia de vez em quando eram remetidas para a
fazenda do coronel Manuel Carlos, que era o patrão de seu pai. Na fazenda havia telefone. Com certeza o moço do telégrafo teria avisado.
Rubens costumava ir esperá-lo com a velha charrete e ele já pensava na poeira que teria que engolir pelo caminho. Mas mesmo assim, sentia-se emocionado
e feliz. Abraçar os seus, comer o arroz com feijão de sua mãe, tomar leite fresquinho, matar a saudade, era muito bom.
Passava um pouco das dezessete horas quando Sérgio desembarcou. Colocando a mala no chão, logo viu Rubens, que se aproximou para abraçá-lo efusivamente.
- Que bom que você veio! A mãe estava com medo de que você desistisse na última hora.
- Eu disse que vinha! Sempre cumpro o que prometo. Como estão todos em casa?
- Estão bem. Todo mundo alvoroçado com o casamento. Até parece que nunca viram alguém se casar!
- É natural. Você é o primeiro da família que se casa.
- E você, não pensou ainda nisso? Sérgio sorriu ao responder:
- Essa é a mania de todos os que se casam. Logo querem arrastar os outros. Primeiro vou esperar para ver o resultado do seu.
Rubens suspirou.
- O meu vai ser muito feliz! A Antônia é a luz que apareceu em meu caminho. Onde ela passa, tudo fica lindo.
- Hum! Pelo jeito você está apaixonado mesmo. Vamos ver daqui há alguns anos o que você vai dizer.
- A mesma coisa, tenho a certeza.
- Você está diferente. Está muito melhor.
- Estou feliz. O coração alegre faz milagres.
- É. Começo a pensar que essa Antônia é mesmo milagrosa.
- Espere até conhecer ela. Vamos indo. O pessoal está ansioso esperando. Se eu demorar, eles me matam.
Rubens não quis carregador. Ele mesmo fez questão de carregar a mala do irmão. Uma vez na rua, Sérgio não viu a charrete costumeira.
- E a charrete?
- Vendi ela.
- Vendeu? E agora, como é que vocês vão se locomover?
- Com meu carro.
- Carro?!
- É. Eu comprei um carro. Uma perua rural. Sabe como é, é só o que agüenta nessas estradas.
Sérgio emudeceu de surpresa. A perua de Rubens estava parada em frente à estação. Não era nova, mas estava conservada. Uma vez instalados, puseram-se
a caminho de casa.
- Veja só, você tem um carro!
- É. Eu precisei comprar para transportar as galinhas. Eu tiro o banco traseiro e coloco os engradados. Duas ou três vezes por semana venho a Barretos
entregar as encomendas e comprar algumas coisas.
- E o pai? Ele usava muito a charrete. Como está se arranjando?
- Eu dei uma nova pra ele. Aquela não agüentava mais conserto. Vendi ela e comprei outra.
Sérgio continuava surpreso.
- Eu pensei que tivesse vendido a charrete para arranjar dinheiro e comprar o carro.
- Não. Eu vendi ela porque estava muito ruim. Tive medo de que ela despencasse e alguém se machucasse. O pai teimava. Mas eu convenci ele. Eu vivia preocupado,
agora estou mais sossegado.
- E você, vai morar em casa depois do casamento?
- Não. Quem casa quer casa. Eu tenho a minha. É modesta, mas é minha.
- Quero lhe dar um presente de casamento. O que você ainda não tem?
- A arrumação é coisa da Antônia. Você vai ver a casa, fala com ela e resolve depois. Ela é muito caprichosa. Tem muito gosto. Eu acho bonito tudo quanto
ela faz.
- Você gosta muito dela!
- Muito. Quero que ela se sinta feliz. Faço tudo do jeito dela. Quero ter o prazer de chegar no fim do dia e ver o brilho em seus olhos, o sorriso em
sua boca, e a alegria no coração.
- O que faz o amor! Você virou até poeta! Quem diria! Rubens sorriu.
- Poeta eu não sou. Mas cantador, isso eu faço muito bem.
- É mesmo. Você sempre gostou de cantar.
- Cantar faz bem. Quem canta não pensa em prejudicar os outros.
A conversa seguiu animada, e quando chegaram ele buzinou ruidosamente. Os cachorros aproximaram-se latindo alegremente e toda a família correu a abraçar
Sérgio, que, emocionado, não conseguia articular palavra.
Passada a euforia inicial, Rita contemplou o filho com enlevo.
- Você está bonito! Até parece um doutor! Mas está muito magro. Acho que não anda comendo direito.
- Estou muito bem. Engordar não é saúde.
- Hum! Vamos ver. Vou fazer aquele bolo de fubá de que você gosta. O milho faz muito bem à saúde.
- Estou com saudades do seu feijão com arroz! Ela sorriu orgulhosa.
- Lá na cidade garanto que você não come um igual ao meu.
- Não mesmo. O seu é o melhor do mundo! Abraçados e contentes eles entraram em casa.
- Vejo que tudo está mais bonito - disse Sérgio com satisfação. - Pintaram a casa, tem toalha nova na mesa.
- Fizemos roupa nova para o casamento! - declarou Dirce contente.
- Grandes preparativos para o grande dia! E a festa? Vai haver festa?
- Vai. O pai da noiva já contratou dois cantadores e vamos fazer um almoço para os convidados - esclareceu Diva.
- A D. Jandira vai fazer os doces. Começou há mais de uma semana - tornou Dirce com entusiasmo.
- Pelo jeito vai ser uma grande festa! - disse Sérgio.
- Vai mesmo. O pai da Antônia está muito feliz com o casamento. Vai até ter baile! - comentou Diva.
- Agora chega - disse Rita. - Sérgio precisa se acomodar.
- Deixe, mãe. Não estou cansado. Quero mais é saber tudo. Antes eu quero dar meus presentes. Tem para todo mundo!
Abriu a mala e foi tirando os pacotes, distribuindo-os com alegria diante das exclamações entusiastas dos presentes. O jantar decorreu festivamente. Como
já havia escurecido, combinaram que, no dia seguinte, Sérgio iria conhecer Antônia e ver a casa que haviam preparado para o jovem casal.
Terminado o jantar, Sérgio sentou-se na velha cadeira de balanço de sua mãe e as três mulheres sentaram-se ao redor querendo saber tudo a respeito da
sua vida, da cidade, dos seus namoros. Vicente foi dormir, Rubens apanhou o violão e foi cantarolar do lado de fora.
Sérgio foi respondendo, contando que fora aumentado e ainda sonhava levá-los a morar na cidade. Rita balançou a cabeça dizendo:
- Qual o quê, meu filho! Nós não vamos nos acostumar na confusão da cidade. Fomos criados aqui no mato, não vamos saber andar por aquelas bandas.
Ele riu bem-humorado.
- A senhora pensa assim porque nunca foi lá. O conforto é bom e logo nos acostumamos a ele.
- Eu gostaria de ir - disse Diva com os olhos brilhantes.
- Pois eu não sei, não - tornou Dirce pensativa.
- Não sabe porque anda de namoro com o João das Conchas - respondeu Diva.
Dirce corou.
- Isso não é verdade. E o nome dele é João das Neves.
- Ela fica brava quando eu o chamo de João das Conchas. Mas esse é o apelido dele. Todo mundo chama ele assim - justificou-se Diva.
- Por quê? - indagou Sérgio curioso.
- Não sei, não - esclareceu Diva. - Parece que ele veio do Rio de Janeiro e tem um cavalo cheio de conchinhas na montaria.
- O povo tem inveja dele - disse Dirce - porque é moço bonito, se veste bem. O cavalo dele é o mais bonito e ninguém por aqui tem uma montaria tão bonita
quanto essa.
Sérgio olhou a irmã um pouco preocupado. Não gostaria que ela se casasse com um roceiro qualquer. Tinha outros planos para ela. Perguntou à mãe:
- Quem é esse João?
- É o capataz da fazenda do Dr. Bastos.
- Aquele advogado que mora no Rio de Janeiro?
- Esse mesmo. Quando ele veio e trouxe o João, pensei que ele não fosse ficar muito tempo. Mas parece que já está lá há seis meses - concluiu Rita.
- Por que pensou isso? Ele não é bom?
- Não é isso. Ele é moço da cidade. Pensei que ele não fosse acostumar com o serviço da fazenda.
Sérgio franziu o cenho.
- Ele é da cidade... por que será que veio para cá?
- Não sei, não. Ninguém sabe. O Dr. Bastos trouxe ele, apresentou aos empregados da fazenda, mas não contou nada. E parece que ele é muito quieto e não
fala nada - esclareceu Rita.
- Aí tem coisa. Ninguém da cidade viria enterrar-se aqui nessa fazenda sem motivo sério - deduziu Sérgio.
- Não é nada disso - protestou Dirce. - Se ele não fosse bom, o Dr. Bastos não deixava ele ficar tomando conta de tudo. Ele quase nem vem mais na fazenda!
- Isso é verdade - concordou Rita. - O Neco da Mariinha trabalha lá e disse que a fazenda tá uma beleza! O Dr. Bastos, depois da morte de D. Aninha, quase
não tem vindo na fazenda. Pudera! Era ela quem gostava de tudo lá.
- Não sabia que o Dr. Bastos estava viúvo. Ela era nova ainda - comentou Sérgio.
- Tinha quase cinqüenta anos. - Dizem que ele ficou desesperado. Mas com a morte ninguém pode. Quando chega a hora, a pessoa pode ter o dinheiro que tiver,
que não vale de nada - disse Rita.
- Você está namorando esse moço? - perguntou Sérgio a Dirce.
A moça corou e respondeu:
- Não estou namorando ninguém.
- Mas gosta dele! - disse Diva.
- Eu não gosto de ninguém e você não tem nada com isso - retrucou Dirce, irritada.
- Não vão brigar agora por causa disso - interveio Rita com calma.
- Isso mesmo - aduziu Sérgio. - Se ela gosta, ninguém tem nada com isso. Ele está interessado em você? - perguntou ele dirigindo-se a Dirce.
- Não sei. Se está, ele nunca demonstrou - respondeu ela.
- Mas quando nós vamos à cidade no domingo e ele passa, ela fica corada e começa a tremer - disse Diva.
Vendo que Dirce ia retrucar indignada, Sérgio interveio.
- Vamos deixar isso de lado. A Dirce tem todo o direito de gostar ou não de quem quiser. Acho que você está se metendo muito na vida dela.
- Porque ela é mais velha do que eu, acha que pode mandar em mim. Vive me vigiando - reclamou Dirce.
- Não é isso, não. É que ela é muito boba. Ele é moço estudado, da cidade. Tenho medo que não dê certo - explicou Diva.
- Ele tem dado em cima dela? - perguntou Sérgio preocupado.
- Não. Isso não. Mas se ele souber que ela gosta dele pode se aproveitar - concluiu Diva.
- Vocês estão todos enganados. Eu não sou boba nem nada. Sei cuidar de mim muito bem. E ele nem olha pra mim - disse Dirce.
- Nesse caso, vocês estão fazendo tempestade em um copo d'água. Mudemos de assunto que é melhor - sugeriu Sérgio.
- É que ela não quer mais ir para a cidade com você quando chegar a hora. Pretende ficar por aqui, por causa dele - esclareceu Diva.
- Não é por isso, não - disse Dirce. - Não sei se quero ir, a mãe e o pai não vão e eu não sei se me acostumo lá sem eles, no meio daquela gente estranha.
Sérgio pegou a mão da irmã dizendo com carinho:
- Não diga isso. Quando chegar a hora, e agora eu penso que não vai demorar, vocês irão comigo. A mãe e o pai também. Quero toda a família reunida. Lá
vamos ser muito felizes.
Sérgio foi falando da vida na cidade, contando coisas, que elas ouviam fascinadas. Passava das dez quando finalmente se recolheram para dormir. Rubens
já se havia recolhido e Sérgio procurou deitar-se sem fazer barulho para não acordá-lo. Deitado na velha cama de sua infância, Sérgio se recordava de seus sonhos.
Ainda não pudera realizá-los, mas, agora, sentia que tudo estava diferente. Ele mudara e sua vida também. Revendo aquele ambiente pobre e simples, mais se animava
a melhorar de vida e poder oferecer à sua família o merecido conforto. Embalado por novos sonhos, finalmente adormeceu.
Quando acordou no dia seguinte, o sol já ia alto e o dia estava quente. Levantou-se, lavou-se e respirando gostosamente o cheiro que vinha da cozinha,
procurou a mãe, abraçando-a com carinho.
- Que cheiro gostoso! O que está cozinhando?
- Um franguinho especial. Sente pra tomar seu café. Rubens vai vir pra almoçar às onze horas e levar você pra conhecer a Antônia e ver a casa dele.
- Já são quase nove. Se eu comer agora, não vou almoçar às onze.
- Come só umas broas e bebe um pouco de café com leite. O Rubens tirou leite fresquinho pra você.
- Está bem. Eu não resisto mesmo às suas broas.
Ela o serviu de café com leite e ele gostosamente comeu algumas broinhas de milho que ela fazia tão bem Depois de tanto tempo sozinho, esse carinho da
família, essas atenções faziam-lhe muito bem.
Quando terminou, foi à janela e olhando o jardim que circundava a casa disse satisfeito:
- Tudo agora está mais bem cuidado! E a charrete do pai? Rita sorriu satisfeita.
- É linda! Ninguém aqui tem uma igual! Sérgio não conteve a curiosidade.
- Deve ter custado caro! Como foi que o pai comprou? Está devendo muito dinheiro?
- Custou mesmo. Mas nós pagamos tudinho. Rubens foi quem deu o dinheiro.
Sérgio não conseguia acreditar.
- Mãe, como foi que ele conseguiu tanto dinheiro? Ele não tinha nada quando vim aqui da outra vez.
- Com a criação de galinhas, ora essa! Tá uma beleza! Você precisa ver. Ele pediu pró pai deixar ele ocupar um pedaço de terra, aquele pedaço que não
dava nada, nem capim. O pai deixou. Então, ele começou a trabalhar com os comerciantes na cidade, nos fins de semana. Aí, com o dinheiro, ele fez um cercado, à moda
das granjas, foi o que ele me disse. E começou a criação.
- Uma criação dessas precisa de conhecimento. Alguém o ajudou nisso?
- Não. Foi ele mesmo. Comprou um livro que ensinava tudo. Mandou vir mais da cidade e estudou como devia fazer. Os ovos vingavam todos e não morreu nenhum
pintinho. Sabe que ele vacina todos eles? A Antônia ajuda ele quando precisa fazer isso. Eles vivem lendo nos livros como melhorar a criação. Os bichinhos cresciam
bonitos e ele vendia na cidade. Agora, quase não dá conta dos pedidos. Ele tá ganhando muito dinheiro! Fez uma casa e mobiliou tudinho. Comprou o carro, a charrete
do pai e ainda muitas coisas pra nós todos. Tá vendo essa louça? Foi ele quem me deu. Sérgio estava admirado.
- Uma criação de galinhas dá para tudo isso?
- Pois deu. Ele ainda tem dinheiro guardado no banco. Tem até cheque!
Sérgio riu com gosto. Rubens com talão de cheques, ele não podia imaginar. Ele não era ignorante. Ao contrário, estudara até o quarto ano com facilidade,
sem repetir. Mas para ele, o irmão não passava de um roceiro, sem nenhum conhecimento das coisas da cidade. Ele sempre havia morado na roça!
- Ele tem muitas galinhas? - perguntou curioso.
- Bastante. Acho que mais de duas mil. Não sei bem, mas é uma galinhada que faz gosto. Logo cedo fazem um barulhão! Ele gasta muito milho, mas nós plantamos
lá nas bandas do córrego. Mesmo assim, não vence a fome delas. Ele precisa comprar mais. O tal do farelo, não sei mais o quê. Ele tem até dois empregados.
- É? Agora virou patrão?
- Virou. Não dava conta do serviço sozinho. Sabe como é, ele precisa ir vender, entregar a mercadoria, comprar coisas e aqui precisava de gente. Tem de
limpar o lugar muito bem pra não dar doenças. É tudo muito bem cuidado.
Sérgio meneou a cabeça com satisfação:
- Quem diria! O Rubens um homem de negócios! Por essa eu não esperava.
- Ele merece. É muito trabalhador. Gosta de ter tudo bonito e arrumado. Depois que conheceu a Antônia, então, ficou muito mais exigente. Tudo tem que
ficar brilhando.
- Eu notei que agora aqui em casa tudo está mais bonito.
- Está mesmo. Nós estamos muito felizes. Agradeço a Deus todos os dias. Pena que você não esteja morando aqui com a gente. Fica lá na cidade, comendo
aquelas bobagens. A comida lá é toda falsificada.
- Eu estou muito bem, mamãe, e a comida lá não é ruim. Claro que a sua é muito melhor, mas eu sei cuidar de mim e estou muito bem alimentado.
- Antes você era mais corado e mais gordinho.
- Eu era criança nesse tempo e a gordura não é saúde. Rubens chegou e Sérgio aproveitou para perguntar-lhe sobre sua criação de galinhas. Os olhos de
Rubens brilharam de prazer.
- Depois do almoço levo você lá - respondeu animado. Quando terminaram de almoçar, foram ver a criação e Sérgio admirou-se uma vez mais. Tudo estava muito
bem organizado e enquanto eles percorriam o local pelo lado de fora, Rubens ia explicando o sistema que usava, o acasalamento, a chocadeira, tudo. Mas as surpresas
de Sérgio não pararam aí. Foram visitar a casa em que ele iria morar depois do casamento. Era uma modesta construção, com dois quartos, uma sala, cozinha e banheiro.
Mas mesmo sendo simples, estava muito graciosa e arrumada, com cortinas nas janelas e flores nas jardineiras.
- Que alegre sua casa! - exclamou ele. - Muito bom gosto.
- A Antônia que fez tudo - declarou ele com orgulho.
- Você é um homem de sorte! Ela tem muito capricho e bom gosto!
- Tem mesmo. Não existe mulher igual a ela!
- Bem se vê que está apaixonado! Fala nela com tanta devoção!
- Estou mesmo. Se não fosse assim, não casava.
Foi nessa hora que Antônia entrou na casa, e Rubens a abraçou com alegria. Depois apresentou-a ao irmão. Ela não era muito alta, corpo delicado e bem-feito,
cabelos e olhos castanhos. Bonito era seu sorriso. Quando sorria, seu rosto se iluminava em vivacidade e alegria. Sérgio logo gostou dela. Abraçou-a com carinho.
Conversaram alegremente sobre o casamento próximo e Sérgio admirou-se por ver que ela se expressava muito bem e corretamente. Não se conteve e perguntou:
- Você sempre morou na roça?
- Não. Eu morava em Barretes. Lá estudei. Meu pai era comerciante. Mas depois adoeceu. Vivia atribulado com os problemas do armazém e decidimos vender
tudo, vir para cá. Ele comprou um sítio e viemos. Foi a melhor coisa que fez. Recuperou a saúde.
- Você não estranhou vir para cá?
- A princípio fiquei com medo de não me acostumar. Mas depois, a vida aqui é melhor do que na cidade. Agora, eu não voltaria para lá por nada deste mundo!
Rubens abraçou-a com carinho.
- Agora, vai ter que ficar aqui pra sempre!
- É isso o que eu mais quero! Sérgio não se conformou:
- Vocês dizem isso agora, porque estão noivos e vão se casar. Mas com o tempo isso aqui fica monótono. Os dias são sempre iguais e as noites, então...
O que vão fazer?
Antônia meneou a cabeça negativamente.
- Você está enganado. Aqui é muito mais divertido do que na cidade. Lá eu quase não saía. Aqui há muitas coisas para fazer durante o dia, e à noite é
sempre uma festa. Conhecemos os vizinhos, nos reunimos, os violeiros tocam e cantam, às vezes até dançamos. Sem falar dos casos. Aqui há grandes contadores de casos.
Seu Vicente tem sempre um caso novo de assombração, meu pai já gosta de contar das pescarias e quando vem Seu Altino, então, só conta casos de caçadas e do saci-pererê.
Sérgio riu gostosamente.
- O pai ainda conta casos de assombração?
- Conta - respondeu Rubens.
- O que me admira é que ele sabe inventar tão bem! Nunca repete um.
- Você gosta realmente de viver aqui.
- Gosto - disse Antônia, convicta.
- Eu disse pra ela quando ficamos noivos: gosto daqui e não pretendo mudar de forma nenhuma. Pra casar comigo, era preciso que ela pensasse assim também,
senão não ia dar certo - explicou Rubens. - Eu até disse pra ela que pensasse muito bem nesse caso. Porque ela é professora, poderia ir pra cidade, casar com um
moço instruído. Eu, se quisesse, até poderia ir morar na cidade, comprar casa lá. Prefiro viver aqui. É mais gostoso. Mas isso é gosto meu. Ela poderia pensar diferente.
- Mas não penso. Adoro viver aqui. Quero que nossos filhos sejam bem-criados, respirando esse ar puro, convivendo com as pessoas de bem.
- É - disse Sérgio satisfeito - vocês foram feitos um para o outro. Quer dizer que se eu os convidasse para morar em São Paulo, não iriam.
- Não - disse Rubens -, eu não saberia viver lá. Tem muito barulho, gente nervosa, sem tempo pra viver.
Sérgio não soube o que responder. Se eles pensavam assim, eram felizes, ele não podia fazer nada.
- Eu queria dar um presente de casamento, alguma coisa que vocês ainda não compraram. O que está faltando?
Eles se entreolharam, mas não disseram nada. Sérgio continuou.
- Pelo que estou vendo, a casa já está bem montada, mas deve ter alguma coisa que vocês ainda não têm.
- Uma vitrola! - disse Antônia decidida.
- Muito bem. Eu vou a Barretes e compro. E os discos, precisamos comprar alguns.
- Eu já tenho alguns em casa - disse Antônia.
- Façam uma lista dos que gostariam de ter e os comprarei. Pronto. Esse será meu presente.
Ela abraçou-o com olhos brilhantes e beijou-o delicadamente no rosto.
- Obrigada - disse. - Sempre que tocarmos nossos discos nos lembraremos de você.
Sérgio se comoveu e esforçou-se para disfarçar. Quando voltou para casa, no fim da tarde, estava feliz e bem-disposto. Seu irmão soube escolher e seria
muito feliz. À noite, deitado no escuro do quarto, ele pensou em Flora. Que diferença! Essa nunca aceitaria morar ali, naquela modesta casa. Tinha sonhos de grandeza,
pretendia conquistar palácios. E nessa hora, um pensamento lhe ocorreu: teria ela num palácio a mesma felicidade que vira nos olhos de Rubens e Antônia? Ele duvidava.
Um casamento de interesse, sem amor, jamais poderia oferecer a mesma alegria. Lembrou-se de Arlete. Esta não era tão ambiciosa quanto Flora. Se amasse um homem como
Rubens, ela se casaria com ele e iria morar lá?
Essa pergunta ficou sem resposta, mas ele adoraria descobrir quando voltasse.

Capítulo 5





S
entado à sua escrivaninha, Sérgio segurava uma carta entre os dedos sem entender. Havia feito tudo certo, e quando o negócio parecia fechado, o cliente havia desistido.
O que teria acontecido?
Ficou contrariado. Desde seu primeiro trabalho com Flávio, ele o chamara para ajudá-lo nessa área. Sérgio sempre havia trabalhado internamente e agora,
pela primeira vez, começava a participar diretamente dos negócios da empresa. Essa mudança lhe trazia mais responsabilidade. Porém, a cada negócio realizado, recebia
uma participação que vinha a aumentar muito seus proventos.
Fazia seis meses que voltara de Barretes e durante esse tempo tinha conseguido juntar bom dinheiro. Desejava ardentemente comprar um carro. Sua amizade
com Flávio e Arlete se estreitara. Costumavam sair juntos nos fins de semana e Sérgio constantemente era convidado a freqüentar a casa do chefe.
Ele havia se mudado para um apartamento melhor, em um bairro de classe média, e agora sentia falta de um carro. Apesar de sua posição subalterna, Sérgio
não se sentia diminuído com essa amizade. Eles eram tão finos e agradáveis, tratavam-no com tanta delicadeza que a diferença de classes desaparecia. Ele sentia-se
valorizado e a cada dia mais e mais desejava progredir na vida.
Fechar aquele negócio era realizar seu desejo, ou seja, completar o montante para a compra do carro. Tentara de todas as formas falar com o cliente mas,
inexplicavelmente, este, que antes se mostrara muito amável, agora recusava-se a recebê-lo.
Apanhou o telefone e ligou para a secretária dele. Notara o interesse dela todas as vezes que lá estivera. Resolveu aproveitar.
- Como vai, Susana? - disse logo que ela atendeu.
- Oi, Sérgio! - respondeu ela com prazer. - Quer falar com o Dr. Resende? Ele não está.
- Quero falar com você. Ontem, quando estive aí, você parecia tão atarefada que eu não quis incomodar.
- Poderia ter falado. Sempre terei tempo para você.
- Que ótimo. Penso que teremos muito que conversar. Gostaria de jantar comigo uma noite dessas?
- Claro. Quando?
- Quanto antes, melhor. Seu rosto não sai do meu pensamento. Que tal hoje à noite?
- Está bem. Pode me apanhar às oito.
Depois de anotar o endereço, Sérgio desligou satisfeito. Queria descobrir o que havia acontecido. O negócio era de vulto e Flávio estava aborrecido com
o cancelamento. Se conseguisse resolver esse caso, não só agradaria a seu chefe como receberia o dinheiro que esperava.
O encontro com Susana foi produtivo, mas também o deixou muito surpreendido. Ela lhe contou que o Dr. Resende tinha recebido a visita de uma mulher e
que, depois de conversarem, desistira do negócio. O Dr. Resende parecia muito zangado e deu ordens terminantes para que Sérgio não fosse mais recebido na empresa.
Era evidente a intervenção da mulher. Por quê?
Intrigado, ele pediu a Susana para descobrir quem era essa mulher. O que teria ela dito para ocasionar a desistência? Que interesse ela teria em prejudicá-lo?
- Ela não seria de uma empresa concorrente? - indagou ele.
- Não. Ela não trabalha, segundo me parece. Vou informar-me.Tem a Glorinha, minha colega, que a conhece bem. Ligue amanhã.
Meia hora depois de haver chegado ao escritório, Sérgio telefonou a Susana.
- O nome dela é Flora de Alvarenga.
- Flora?!
- É. Conhece?
- Conheço. É uma moça alta, morena, bonita?
- Essa mesmo. Bonita mas antipática.
- É ela mesmo.
- Acho que ela fez de propósito. Chegou, pediu para falar com o Dr. Resende, e quando saiu, ele cancelou tudo. Aí tem coisa! Eu pensei logo isso. Ela
tem alguma coisa contra você?
- Nada. Nós nos conhecemos, tivemos um pequeno namoro, nada importante. Só isso.
- Hum!. Vai ver que anda despeitada. Foi você quem lhe deu o fora?
- Isso não vem ao caso. Tente descobrir mais alguma coisa com a Glorinha, já que são tão amigas. Estou surpreso. Garanto que o negócio é excelente para
a sua firma. Nossa empresa é muito conceituada e séria. Nada justificaria esse cancelamento. Principalmente por causa de uma interferência dessas! Não é justo. Posso
contar com sua ajuda?
- Claro. Verei o que posso conseguir. Adoraria atrapalhar aquela antipática!
- Estarei aguardando. Telefone assim que tiver alguma coisa.
Depois de desligar, Sérgio ficou pensativo. Ele não podia acreditar que Flora houvesse feito uma coisa dessas. Não que ela não fosse capaz disso, ou até
de coisa pior, mas logo com eles, quando ela estava tão interessada em Flávio!
Ela continuava freqüentando a casa de Flávio e tentando envolvê-lo em sua teia. Várias vezes acreditara que ele estivesse entrando. Os dois haviam saído
juntos algumas vezes e o relacionamento parecia muito bom. Ela mostrava-se amável e solícita; ele, atencioso e gentil.
Seria mesmo verdade que ela tentara prejudicá-los? Por quê? Não conseguia entender. Queria investigar melhor, só depois contaria a Flávio. Não confiava
nela. Sentia que ela desejava que ele se afastasse de Arlete e de Flávio, embora ela fingisse muito bem e o tratasse com gentileza. Entretanto, nunca pensou que
ela pudesse tentar algo assim contra ele.
Contudo, Sérgio nada mais conseguiu saber. Glorinha disse apenas que conhecia Flora e que ela lhe dissera ter ido lá para uma pesquisa de um trabalho
de sua faculdade. Susana chegou a dizer que certamente fora apenas coincidência. Ela associou a decisão do chefe com a presença de Flora, mas, pensando melhor, ela
poderia não ter nada com isso.
Entretanto, Sérgio ficou desconfiado. Era coincidência demais. Flora era capaz de tudo. Mas ele não possuía nenhuma prova de que ela tivesse provocado
a desistência daquele cliente.
Ele decidiu que ficaria atento a tudo quanto ela fizesse. Tomaria cuidado e não falaria mais sobre qualquer negócio diante dela. Não era costume seu nem
de Flávio falarem dos assuntos da empresa fora do expediente. Não se lembrava de haver mencionado nada diante dela, mas não estava certo. Dali em diante, em sua
presença, mediria todas as palavras.
Sentiu raiva. Bem que Arlete poderia cortar aquela amizade. Gostaria de vê-la longe do seu grupo de amigos. Mas não podia forçar a situação. E se Flávio
estivesse interessado nela? Só de pensar nisso, irritou-se. Se ela conseguisse o que pretendia, com certeza tudo faria para vê-lo fora da empresa. Ela não aceitara
sua recusa em reatar o namoro. Era vingativa e nunca esquecia uma ofensa. O que teria inventado para que o Dr. Resende não só cancelasse o negócio como até o proibisse
de entrar na sua empresa? Sempre teve uma vida honesta e não havia nada que o desmerecesse. Foi procurá-lo diversas vezes, tentou falar com ele, mas não conseguiu.
Resolveu falar com Flávio. Foi procurá-lo.
- Achei muito estranho o Dr. Resende haver cancelado o pedido. Ele parecia tão satisfeito e tenho a certeza de que lhe oferecemos um excelente negócio!
- A mim também pareceu. Mas essas coisas podem acontecer de vez em quando.
- Tentei conversar com ele, saber a razão, mas soube que ele proibiu minha presença na empresa.
- Verdade? Como descobriu?
- Susana, a secretária. Convidei-a ontem à noite para jantar na tentativa de descobrir algo mais.
- E conseguiu?
- O que consegui intrigou-me ainda mais. Ele recebeu a visita de uma mulher, e depois que ela saiu foi que cancelou o pedido. Pedi a Susana que procurasse
descobrir o nome dessa mulher. Ela disse que era Flora de Alvarenga.
- Flora?! O nome dela é esse, não é?
- É. Ela tem uma amiga que trabalha lá e Susana descobriu que ela foi ver o Dr. Resende por causa de um trabalho da faculdade.
- Pode ter sido só uma coincidência. Que interesse ela teria em nos prejudicar? Temos sido amigos.
- A vocês, não, mas quanto a mim, tenho minhas dúvidas. Ela não gosta de mim.
- Não acha que está sendo muito severo com ela?
- Pode ser. Mas conheço-a bem. Sei que quando quer uma coisa, é capaz de tudo.
- Suponhamos que esteja certo. Que ela tenha querido prejudicá-lo. Para isso precisaria ter um bom motivo. O Dr. Resende não iria tomar uma atitude dessas
sem mais nem menos.
- Isso é o que mais me intriga. O que ela teria feito? O negócio era bom... nossa empresa, conceituada. O que teria acontecido?
- Talvez você esteja exagerando e tudo não passe de uma coincidência mesmo. Em todo caso, reconheço que a mudança de atitude dele foi radical. Deve ter
tido um motivo.
- Sim. Mas qual?
- Pode ter sido particular. Algo que não tenha nada a ver conosco, mas com ele mesmo. Essa é a mais lógica explicação, uma vez que, de nossa parte, fizemos
o nosso melhor.
- Espero que esteja certo. Você se lembra se fizemos algum comentário desse negócio diante de Flora?
- Conversamos sobre isso em minha casa, mas Flora não estava na sala, havia saído.
- Bem poderia ter ficado ouvindo atrás da porta! Flávio riu gostosamente.
- Pelo jeito você cismou com ela mesmo.
- Tomara que eu esteja errado. Mas ainda vou descobrir.
- Se encontrar alguma coisa, avise-me.
Sérgio saiu pensativo. Não gostava de falar de Flora com Flávio, era desagradável, poderia parecer despeito, intriga, uma vez que eles haviam sido namorados.
Não tocaria mais no assunto, a não ser que aparecesse algo muito concludente.
De repente, sentiu-se aborrecido, oprimido, como se algo ruim estivesse por acontecer. Tentou espantar esses pensamentos.
- Estou deprimido pelo que aconteceu - pensou.
Tratou de reagir. Se aquele negócio falhara, outros apareceriam com certeza. Não ia mais preocupar-se com isso. Lembrou-se de Arlete. Ela tinha o dom
de colocá-lo de bem com a vida. Apanhou o telefone e discou.
- Que prazer ouvi-lo! Como vai? - disse ela com alegria.
- Estou me sentindo muito sozinho. Tive vontade de falar com você.
- Aconteceu alguma coisa?
- Pequenas coisas, nada de mais. Estava um pouco aborrecido e você tem o dom de devolver-me a alegria.
Ela riu com prazer.
- Ainda bem!
- Não teve aula hoje?
- Já estou de férias. Sou uma formanda, sabia?
- É mesmo! Parabéns!
- Só isso? Você vai ser meu par no baile de formatura no começo do ano. Esqueceu que prometeu?
- Não. Faço questão. Você tem compromisso para hoje à noite? Gostaria de passar em sua casa para conversarmos.
- Venha logo que sair do escritório, assim teremos mais tempo. Jantará conosco.
- Não. Seria abusar. Irei depois do jantar.
- Faremos melhor. Passarei aí para apanhá-lo às seis. Resolveremos o que fazer.
- Ótimo. Estarei esperando.
Quando desligou o telefone, Sérgio já se sentia melhor. No fim da tarde, preparou-se cuidadosamente. Sempre deixava uma camisa no cabide para trocar em
caso de necessidade e havia perfume na gaveta.
Quando saiu, Arlete já o esperava. Entrou no carro e beijou-a delicadamente no rosto.
-Todo mundo está me invejando! - disse ele bem-humorado. - Você, aqui, me esperando!
- É uma honra mesmo. Não costumo fazer isso. É só de vez em quando.
- Que pena! O que é bom dura pouco.
- Aonde vamos?
- Não sei. Está com fome? Quer comer alguma coisa?
- Não acha que é muito cedo? Deixe comigo. Vamos passear um pouco. Relaxar. Conheço um lugar excelente. Jantaremos mais tarde.
- Você é quem manda.
Arlete ligou o carro e saíram. A tarde estava quente, mas agradável. Janelas abertas deixavam entrar uma brisa gostosa, enquanto o rádio tocava música
suave. Olhando o rosto delicado de Arlete, lábios entreabertos, olhos atentos, mãos na direção do carro, sentiu imenso carinho por ela! Teve vontade de beijá-la.
Isso já acontecera várias vezes, contudo ele refreava esse desejo. Não desejava misturar as coisas. Prezava muito essa amizade para arriscar-se a perdê-la. Por isso,
ficou calado, sentindo grande prazer por estar ali, vivendo aquele momento.
Chegando a um parque ela parou o carro.
- Chegamos. Gosto de vir aqui quando quero pensar. É o meu bosque encantado.
- Sempre pensei que você fosse uma fada, mas não sabia que tinha um bosque.
- Esse é o meu segredo. Nunca trouxe ninguém aqui. Estacionou o carro em uma graciosa praça e desceram. Ela tomou-o pela mão dizendo:
- Venha. Vou levá-lo a um lugar mágico. Caminharam por alamedas onde as copas das árvores se juntavam sobre suas cabeças e havia um cheiro acentuado de
flores. Sérgio a seguia deliciado. O lugar era maravilhoso. Por fim chegaram a uma clareira onde havia um lago cuja tranqüilidade era quebrada pelo ruído dos patos
que nadavam alegremente. Sob uma árvore, um tronco caído estava cercado por samambaias e flores.
- É aqui - disse ela sentando-se e puxando-o também. Sérgio respirou prazerosamente e disse:
- Que delícia! Bem que eu estava precisando de um lugar assim! Como descobriu?
Ela deu de ombros.
- Pelo tom de sua voz. Quando estou triste, venho aqui e converso com Deus. Sei que Ele está em toda parte, mas em um lugar como este eu tenho mais condições
de me ligar a Ele. A beleza da natureza é divina! Ela fala comigo e eu sinto Deus através dela. Olhe este lugar. Não é majestoso?
- É lindo. Você me surpreende. Sempre pensei que gostasse mais da cidade, da vida noturna.
- Também gosto da cidade, gosto da noite, mas isso não me impede de amar um lugar como este. A vida é bela em todos seus aspectos. Por que olhar só um
lado?
- Tem razão. Muitas vezes nós olhamos as coisas de um lado só. Eu mesmo estava triste, porque as coisas não saíram como eu tinha planejado.
- Todos fazemos planos, mas a vida tem seus próprios caminhos. A sabedoria nos ensina que ela sempre faz o melhor. Aceitar isso é vencer a frustração.
Sérgio sentiu-se muito bem ali, ao lado de Arlete. Achou natural segurar-lhe a mão entre as suas e abrir o coração. Contou-lhe tudo. Sua infância inconformada
no interior, a vontade de progredir, de ajudar a família, o quanto esperara a promoção e a decepção quando Flávio foi nomeado em seu lugar.
- Agora eu sei que o lugar sempre foi dele. Conhecendo-lhe a capacidade e as qualidades, compreendi que ele era o mais indicado para assumir a gerência
de tudo. Sei quanto ele vale e sinto orgulho de contar com sua amizade.
Arlete ouvia em silêncio, apertando sua mão de vez em quando para dar-lhe coragem de continuar. Ele prosseguiu falando de Flora, de seu namoro, o fora
que ela lhe dera e a raiva que sentira, a vontade de subir na vida. Não deixou nada, até o caso do Dr. Resende. E finalizou:
- Eu sei que ela fez algo. Sinto isso. Mas não posso provar. É como um pressentimento, uma intuição. Mas isso não vale nada. Depois, mesmo que seja verdade,
que argumentos ela teria usado? Não existe nada em minha vida, nem na da empresa, de que ela pudesse ter lançado mão para provocar o que aconteceu. Isso está me
atormentando. É algo vago, mas me causa uma sensação de insegurança como se fosse acontecer alguma coisa terrível, que não posso evitar. Como se um perigo me ameaçasse,
um perigo que não sei de onde ou quando virá. Acha que estou exagerando?
- Não. Se você se sente assim, há alguma coisa.
- Isso não tem lógica. Não tenho uma prova ou motivo palpável que me induza a acreditar nisso. No entanto, eu sinto um aperto no peito, medo de algo que
não sei o que é.
- A intuição é mais verdadeira do que a lógica. O raciocínio se confunde, ilude-se, engana-se; a intuição sabe, sente. Não há como explicá-la.
- Não gosto de sentir essas coisas. Sinto-as e fico inseguro. Prefiro a lógica, o raciocínio claro. Gosto de andar com os pés no chão.
- Nada mais verdadeiro do que a intuição. Quando aprender a utilizá-la, ganhará lucidez e melhorará sua atuação em tudo o que fizer. Os grandes homens
de negócios sabem disso. Cercam-se de dados, de pessoas competentes, mas, na hora da decisão, usam-na e acabam por surpreender com atitudes geniais.
- Não sei, não. Prefiro usar a lógica e me sentir seguro. Arlete riu sonoramente.
- Pois eu acho o contrário. Para um raciocínio ser verdadeiro, você teria que partir de premissas também verdadeiras, abranger todas as facetas da questão,
sem falar das probabilidades e dos pensamentos dos outros, que podem intervir no processo, modificando-o. Quem tem condições de fazer isso? Ao passo que a intuição
é a capacidade da alma de sentir as energias em questão. Uma situação é o que é. Tem energias próprias. Quem pode percebê-las, dificilmente se engana.
- No meu caso, você acha que é verdade? Que Flora realmente tentou algo contra mim?
- Não sei se ela realmente fez isso. Mas se ela cultiva pensamentos desagradáveis a seu respeito, você pode estar registrando.
- Só o fato de ela não me apreciar, ou pensar mal de mim, poderia fazer-me sentir tudo isso?
- Poderia. Quando pensamos, emanamos energias correspondentes aos nossos sentimentos. Se ela não o aprecia, você pode sentir.
- Eu sei que ela tem raiva de mim. Noto até em seu olhar, embora ela disfarce muito bem. Ela sabe que a conheço o suficiente e não gostaria que Flávio
caísse em sua armadilha.
- Não estará sendo severo demais com ela? Ou estará com ciúmes?
Sérgio abanou a cabeça negativamente.
- Nunca amei Flora. Quando ela me deu o fora, fiquei humilhado e com raiva. Mas, ao mesmo tempo, aliviado por me sentir livre.
- Não estará com o orgulho ferido?
- A princípio, fiquei. Mas agora, a cada dia que passa, mais eu noto que, de uma pessoa como ela, só podia esperar o que aconteceu. Ela é interesseira
e pobre de sentimentos. Só pensa em enriquecer e desfrutar de vida social.
- Reconheço que há momentos em que Flora mostra-se calculista e fria. Eu também não gostaria que Flávio se apaixonasse por ela. Há alguma coisa nela que
destoa em sua maneira de ser. Tenho a impressão de que ela esconde seu verdadeiro modo de pensar.
- Isso mesmo. Ela é cheia de joguinhos, artifícios, ciladas, tudo em função de seus planos para conseguir o que deseja. Quando ela fala, há sempre uma
segunda intenção. Nunca acreditei naquela queda em casa de Flávio. Foi proposital, tenho certeza. Ela queria ficar a sós com ele.
Arlete riu com gosto.
- Se ela queria isso, não deu muito certo porque eu estava lá e Flávio quase nem ficou em casa. Você acha mesmo que ela teria feito isso?
- Acho. Sabendo disso é que desconfio que ela tenha prejudicado nosso negócio com o Dr. Resende. O que ela teria ido fazer lá, exatamente naquele dia,
e por que ele, em seguida, teria cancelado o negócio? Conhecendo-a como conheço, não posso pensar em coincidência.
- Mas que motivos ela teria para prejudicar nossa empresa?
Se ela quer conquistar Flávio, nunca faria isso. Se fez e ficar comprovado, ele cortará relações com ela de vez.
- É isso que não entendo. Talvez tenha querido prejudicar-me. Ela sabe que sou contra seu namoro com Flávio. Depois, eu melhorei de vida e me recusei
a namorá-la novamente. Pode estar tentando vingar-se. Isso é bem dela. Ficou ofendida e nunca deixa uma ofensa sem resposta. Quer que Flávio me julgue incompetente.
Sinto que ela quer me empurrar para fora.
- Ela não vai conseguir. Esqueça-se disso, se quer melhorar. Você também emite pensamentos de raiva contra ela. Enquanto fizer isso, vai estar ligado,
energeticamente, com ela.
- Eu?!
- Sim. Vocês estão duelando energeticamente. Ela sente sua animosidade também. Isso alimenta a desavença e anula qualquer possibilidade de um entendimento.
- Com ela não há entendimento. O que eu quero mesmo é que ela saia do meu caminho.
- Nesse caso, o melhor mesmo é esquecer. Quando pensar em Flora, não a deprecie. Procure alguma coisa boa nela e fique nisso.
- É difícil achar alguma coisa boa.
- Não seja tão radical. Todas as pessoas têm alguma coisa boa. É só procurar.
Sérgio riu bem-humorado.
- Só você poderia ter essa idéia. Se todos fossem como você, este mundo seria maravilhoso!
- Estou falando sério. Os pensamentos de ódio ligam tanto como os de amor. Em ambos há uma troca de energias que alimentam esses sentimentos.
- Com você só sinto amor!
Olhando os olhos de Arlete, Sérgio deixou escapar a frase sem pensar. Pelos olhos dela passou um brilho de emoção.
- É a primeira vez que me diz isso!
De repente, Sérgio não se conteve. Ali, na penumbra da noite que se derramara sobre eles, a mão dela entre as suas, o murmúrio do lago, o farfalhar dos
galhos nas árvores, o perfume das flores, o momento de intimidade, os olhos dela brilhantes e emotivos, tomou-a nos braços e beijou-a demoradamente nos lábios, repetidas
vezes.
Foi um encantamento. O coração a bater descompassado, Arlete em seus braços muito emocionada, Sérgio perdeu a noção do tempo e entregou-se ao sentimento
forte que lhe fazia vibrar a alma.
Quando se acalmou um pouco, disse baixinho:
- Fiz o que pude para me conter. Eu amo você. Nunca amei ninguém assim.
- Eu também o amo. Há muito descobri isso. Suspeitei que gostava de mim, mas você nunca disse nada.
- Tinha receio de perder sua amizade. O que seria de mim se me repelisse? Pelo menos queria conviver com você, ficar a seu lado, usufruir de sua companhia.
Arlete colocou os braços ao redor do seu pescoço e o beijou delicadamente nos lábios. Depois disse:
- Conhecer você foi a melhor coisa que me aconteceu. Sérgio apertou-a nos braços, beijando-a repetidas vezes.
Depois ficaram ali, abraçados, trocando confidencias durante algum tempo. Uma hora depois, foram jantar em um gracioso restaurante. Durante o jantar Sérgio
considerou:
- O que eu disse é sério, Arlete. Se me aceitar, pretendo casar-me com você. Entretanto, será preciso esperar. Quero oferecer-lhe o mesmo padrão de vida
que sempre teve. Se concordar em esperar, tudo farei para isso.
- Tenho dinheiro para nós dois. Isso não me preocupa.
- Seu dinheiro é seu. Pretendo casar-me com separação de bens, é bom que saiba. E ganharei para sustentar a nossa casa, com toda certeza.
Arlete olhava-o surpreendida.
- Você é orgulhoso! Para que serve o dinheiro senão para nos tornar felizes?
- Gostaria que me aceitasse como sou. Esse foi um dos motivos pelo qual demorei tanto a revelar meus sentimentos. Nossa diferença social é enorme. Não
pude cursar uma universidade, e você sabe como é minha família.
- Isso não me incomoda nem um pouco. Sei apreciar você, do jeito que você é. Eu o amo. Sinto-me feliz em seus braços, gosto de conviver com você. Eu o
compreendo e sinto que me compreende. Os obstáculos sociais, ou materiais, não são importantes.
Sérgio levou a mão de Arlete aos lábios com carinho.
- Estar com você é um privilégio. Ninguém é mais feliz do que eu neste momento. Tudo farei para torná-la feliz.
- Tenho certeza disso.
Olhos nos olhos, alegria e amor no coração, eles se entregaram a esse sentimento inteiramente, nem perceberam o tempo passar.
Sérgio não permitiu que Arlete o levasse para casa. Fez questão de ir com ela até sua casa, e só depois de tê-la deixado lá em segurança tomou um táxi
e voltou para casa.

Capítulo 6





S
érgio chegou em casa extremamente feliz. Não planejara o que tinha acontecido. Nem mesmo se conscientizará do seu amor por Arlete. Ela parecia-lhe tão distante,
tão acima, que ele nem se atrevera a sonhar com essa possibilidade. Parecia um sonho! Ela o amava! Sentia vontade de cantar, de gritar sua felicidade.
Deitou-se, mas não conseguiu dormir e pôs-se a fazer planos para o futuro. Agora, mais do que nunca, precisava progredir, subir na vida.Talvez fosse melhor
procurar um curso, algo que pudesse capacitá-lo, melhorar seus conhecimentos.
Apesar de haver dormido muito tarde, acordou cedo no dia seguinte. Havia decidido conversar com Flávio. Ele o apreciava, eram amigos. Acostumara-se a
admirar a capacidade que o outro tinha de ver claro, de colocar as coisas de maneira lúcida e fácil.
Assim que Flávio chegou ao escritório, foi procurá-lo.
- Pode dar-me um minuto de atenção?
- Claro. Sente-se.
- É assunto meu, particular. Talvez prefira conversar depois do expediente.
- Não. Pode falar. Do que se trata? Sérgio acanhou-se.
- Não sei como começar... Ontem descobri que estou apaixonado por Arlete.
Flávio olhava-o seriamente. Sérgio prosseguiu.
- Não planejei nada. Aconteceu. E o incrível é que sou correspondido!... Não está zangado?
- Por que deveria?
- Ela é sua prima, é rica e eu sou pobre. Sinto-me constrangido.
- É sério mesmo?
- É. Estamos pensando em nos casar. Contudo, só o farei com separação de bens e quando ganhar o suficiente para dar-lhe o mesmo conforto que ela tem.
Flávio continuava a olhá-lo sério. Depois disse:
- O dinheiro é um problema sério para você, não?
- Claro que é. Você sabe, sou de origem humilde. Meus pais são lavradores; minha família, pobre. Além do mais, não consegui estudar. Não sei o que os
pais de Arlete vão pensar de mim. Tenho receio de que não concordem com o nosso casamento. Por isso vim procurá-lo. Preciso ganhar dinheiro, subir na vida, quero
que me oriente. Talvez deva fazer algum curso. Você tem uma visão clara das coisas. Amo Arlete, e agora, descobrindo que sou correspondido, não desejo perdê-la.
Preciso ser digno dela. Arlete é a coisa mais importante para mim. Para dizer a verdade, preferia que ela fosse pobre como eu, assim nada poderia separar-nos.
Flávio sacudiu a cabeça.
- Bobagem. O amor é a maior força. Se vocês se amam mesmo, nada, nem ninguém, conseguirá separá-los.
- Você acha que tenho chance?
- O mais importante é que Arlete o ama. Agora, com essa sua cabeça, não sei não.
- Por quê?
- Notou quantos obstáculos está colocando na questão? Você nem conhece bem os pais de Arlete, nem sabe o que eles vão dizer e já está colocando dificuldades.
Para conseguir alguma coisa, é preciso acreditar na vitória. Além do mais, você se desvaloriza muito. Julga-se menos do que certas pessoas.
- Mas eu não sou um bom partido para Arlete.
- É dessa forma que pretende conquistar o que deseja? Pensando desse jeito, será melhor que esse casamento não se realize.
- Você também está contra?
- Eu? Não. Mas se não mudar sua maneira de pensar, vai casar e continuar sentindo-se inferiorizado. Os pequenos problemas do dia-a-dia vão parecer-lhe
maiores.Tudo que acontecer de diferente, você vai levar para esse lado. Logo se tornará azedo, infeliz, culpado e nenhum relacionamento pode resistir a isso.
- Como posso mudar os fatos? Ela está muito acima, que posso fazer? Foi a vida quem nos colocou dessa forma.
- Engana-se. E você quem se está colocando abaixo dela.
- Não posso entender isso.
- Pense bem. Arlete é mais rica, teve oportunidade de estudar. Mas, com tudo isso, pode ser infeliz se seus sentimentos não forem respeitados. Isso fatalmente
acontecerá se ela se casar com um homem de posição social, rico, culto, mas que não tenha os mesmos valores espirituais e morais que ela possui. A felicidade não
é feita só dos bens materiais. Eles são valorizados principalmente quando não os possuímos. O que realmente importa para ela, tenho a certeza, é ter um companheiro
digno, amoroso, leal, que a ame e com o qual possa dividir sua vida. Aliás, dinheiro ela tem para os dois.
- Foi o que ela disse. Mas eu não posso aceitar. A própria sociedade vai me ver como um ambicioso dando o golpe do baú.
- É isso o que o atormenta? Nesse caso, sua vaidade é mais forte do que seu amor.
- Vaidade?
- Vaidade. O que importa o que os outros possam pensar? Você sabe a verdade. Você não é isso. Não está se casando pelo dinheiro. Por que se preocupa?
Para você a opinião alheia é mais importante do que a sua? Não lhe basta o que sente? Não está seguro a esse respeito? Tem receio que esteja a se casar por ambição?
- Isso não. Sou ambicioso sim, mas para conquistar meu progresso com meu trabalho. Nunca me casaria por dinheiro. Tenho certeza disso. Amo Arlete, como
nunca amei ninguém, e meu maior desejo é vê-la feliz.
- Nesse caso, não há o que temer. O seu maior inimigo é você mesmo. Julgando-se menos, valorizando os preconceitos sociais em detrimento dos verdadeiros
valores do coração, está indo contra sua felicidade.
- Acha que posso mudar isso?
- Só você pode.
- De que forma?
- Percebendo seus verdadeiros sentimentos. Valorizando seu lado melhor e mais puro. Usando sua força em seu próprio favor, não contra.
- Como fazer isso?
- Conhecendo-se. Prestando atenção em tudo que possui de bom, de melhor. Cultivando isso em todos os momentos, sem se preocupar com o resto. Deixar de
lado o negativismo. Ser positivo. Acreditar-se capaz de realizar grandes coisas. Todos podem. Basta querer.
- Quando você fala parece fácil.
- E fácil. E como logo você vai notar os resultados, ficará ainda mais fácil. Pense nisso.
- Vou pensar. Quanto ao assunto profissional, o que acha?
- Acho que está subordinado a essa sua forma de ver as coisas. Só vai prosperar, realmente, no momento em que mudar sua cabeça.
- Mudar minha cabeça não vai resolver minha situação financeira ou profissional. Eu preciso fazer alguma coisa mais.
- Pois eu lhe digo que não. Basta isso, se quer saber. A conquista do sucesso tem um caminho que é preciso aprender a percorrer. Uma cabeça bloqueada
e limitada tranca todas as portas. Só vai perceber quando experimentar.
- Vou tentar. - Havia um pouco de decepção na voz de Sérgio. Não era bem isso o que ele esperava ouvir.
Flávio sorriu bem-humorado.
- Pense bem no que eu disse. Esteja atento, observe-se. Voltaremos ao assunto.
- Obrigado. Pelo menos você não está contra nosso namoro.
- Não. Se vocês se amam, desejo que sejam felizes. Arlete é uma boa menina e merece.
- Farei tudo para isso.
Sérgio saiu da sala pensativo. Flávio não se mostrou contra, mas ao mesmo tempo não pareceu interessado em favorecê-lo. Teve que admitir que não era bem
isso o que esperava. Ele era seu amigo, sempre lhe deu importantes e sábios conselhos. Por que justamente agora, tratando-se de sua prima, ele não se preocupou em
ajudá-lo a decidir sobre o futuro?
Talvez, no fundo, ele não concordasse com esse casamento. Entre mostrar-se amigo de um funcionário e querer que ele fizesse parte da família ia grande
distância. Teria Flávio sentido isso? Ao pensar nesse casamento, não estaria sonhando muito alto?
- Engana-se. Você é quem se coloca abaixo dela.
Seria verdade? Era ela quem estava a se desvalorizar a ponto de sofrer um problema inexistente? Como mudar? A realidade estava ali, palpável. Ele pertencia
a uma classe socialmente inferior. Era pobre. Por mais que se julgasse em igualdade de condições com Arlete, isso não era verdade. Não podia fechar os olhos, iludir-se.
Sentiu-se deprimido. Arlete era tudo quanto queria ter na vida. Desejou ardentemente que ela fosse tão pobre quanto ele. À tarde, quando saiu do escritório,
não teve vontade de encontrá-la. Estava triste, oprimido. Foi ela quem ligou.
- Pensei que passasse em casa hoje. Senti saudade! - foi dizendo logo.
- Eu pretendia..., mas depois resolvi vir para casa.
- Está arrependido do que me disse? Mudou de idéia? -- Claro que não.
- Aconteceu alguma coisa? Sinto que está triste.
- É que eu gosto muito de você. Pensando nas diferenças sociais que nos separam, fiquei temeroso de que se arrependa. Fui sincero, não consegui conter
meu amor, mas agora, pensando melhor, não sei se fiz bem. Talvez eu não seja o marido ideal para você e não possa fazê-la feliz como gostaria.
- Por que se atormenta dessa forma? Gosto de você, do jeito que você é. Não precisa mudar nada. Basta continuar a me amar como até agora e seremos muito
felizes. Não quer dar uma passadinha aqui para conversarmos?
- Está bem. Dentro de meia hora estarei aí. Despediram-se, Sérgio tomou um banho rápido, arrumou-se e foi ter com ela. Saíram para dar uma volta, sentaram-se
em um banco da praça. Sem poder conter-se, Sérgio contou-lhe a conversa com Flávio e as conclusões que tirara dela.
- Acho que ele não deseja me ajudar nisso. Eu esperava que ele me orientasse. Tem mais experiência do que eu, é mais lúcido. Eu queria que ele me desse
algumas idéias profissionais. Fiquei com vontade de estudar, mas o quê? Entretanto, ele simplesmente me disse que eu tinha que mudar minha cabeça. Que esse era o
único problema. Não posso entender. O fato de eu simular que as coisas são diferentes não vai modificar nada. Será que está contra nosso casamento?
- Flávio? Não. Quem está enganado é você. Concordo quando disse que ele é mais lúcido. É verdade. Ele sempre vai além do que parece ser. Vai ao que é.
- Não neste caso. Temos uma situação real.
- Qual?
- Você é culta, rica. Eu sou menos culto e pobre. Isso é concreto.
- Isso é uma ilusão. Obedece às regras convencionadas pela sociedade, calcadas sobre valores distorcidos. Veja bem, você não é a pobreza, assim como eu
não sou o dinheiro. Ambos temos temporariamente, mais ou menos, alguns bens materiais, mas eles não representam o que realmente somos. O que conta são os valores
eternos e verdadeiros da alma. A bondade, o senso de beleza, a compreensão, o respeito, a capacidade de fazer com capricho, a alegria de viver, a sinceridade, a
responsabilidade, o entusiasmo, o amor. Esses sentimentos são a riqueza verdadeira. Eu vejo em você essa grandeza de alma. É por isso que eu o amo! O que podem representar
alguns anos de instrução escolar, ou um amontoado de dinheiro no cofre, comparados a esses valores? Foi bom termos falado nisso. Nesse ponto o Flávio está certo.
Se você não enxergar sua própria riqueza e continuar a julgar-se menos, nunca será feliz.
- Você vê todas essas qualidades em mim, porque é bondosa e me ama, mas acreditar nisso não seria muita pretensão de minha parte?
- Claro que não. Pretensão seria você desejar ser muito mais do que é.
- Esse é o ponto. Eu não me sinto tão bom como você disse.
- Então está na hora de prestar atenção. De meditar, de ir bem fundo dentro de si mesmo e tentar descobrir quais são seus verdadeiros sentimentos. Meus
conceitos sobre você foram formados pela nossa convivência, observando suas idéias, suas reações, a manifestação dos seus sentimentos. Tenho certeza de que não me
enganei. Sei também que, quando você conseguir livrar-se dessa crença de que é inferior, perceberá claramente as conquistas espirituais que já possui e se dará o
valor real.
- Teria sido isso o que Flávio quis dizer?
- Claro. Ele não lhe deu nenhuma sugestão quanto ao seu futuro profissional porque confia na sua capacidade de decidir sobre sua própria vida. Não desejou
que você se pendurasse nele. Isso não o ajudaria em nada. Ao contrário. Só o tornaria dependente dele e incapaz de resolver seus próprios assuntos. Ao contrário
do que pensa, ele não disse o que você deveria fazer, porque o respeita e não quer manipular sua vida.
Sérgio sentiu-se aliviado e reconheceu:
- Acho que tem razão. Essa seria uma atitude muito própria dele.
- Eu o conheço bem. Fazendo isso, quis que você pensasse melhor e acabasse por descobrir o quanto é capaz de cuidar de si mesmo.
Sérgio abraçou-a com carinho e a beijou ternamente. Depois disse comovido:
- Bendito o dia em que nos conhecemos. Vocês me têm feito enxergar a vida de uma forma diferente, maravilhosa. Um mundo onde há lugar para todas as pessoas
e ninguém é excluído.
- É importante descobrir que nós somos os criadores do nosso destino. Assumir a responsabilidade por nossa própria vida torna-nos fortes e desenvolve
nosso potencial. Ninguém pode progredir se não for dessa forma.
- Quisera ter a sua certeza. Você é forte. De onde vem essa sua força?
- Da confiança que tenho na vida.
- A vida é incerta, nós não sabemos nada sobre o que vai acontecer daqui a um minuto. Como confiar nela?
- O fato de desconhecermos o futuro não quer dizer que ele não seja bom. O que conta é o equilíbrio da natureza. Já notou como o universo é perfeito?
Nunca pensou na inteligência que criou e mantém tudo isso?
- Você fala de Deus?
- De Deus, da vida, da natureza, da divindade, seja o nome que você queira dar. O importante é perceber a sabedoria e o equilíbrio, a inteligência que
há em tudo. Desde as mais pequeninas coisas às grandes, tudo é inteligente e perfeito. Já pensou como o nosso corpo é maravilhoso? Muitas das suas funções independem
do nosso controle. Nosso coração bate, sem que a nossa vontade interfira; nossos pulmões filtram o ar, sem que tomemos conhecimento. Enfim, existe um poder maior
tomando conta não só dessas funções mas das transformações. Nós não temos poder sobre a vida ou a morte. Diante de tanta sabedoria, tanta beleza, tanto amor, não
é seguro confiar? Eu confio profundamente na vida. Procuro sempre agir em união com ela. Daí vem toda a minha força.
- Um dia aprenderei a ser como você.
- Cada um tem seu próprio caminho. Mesmo juntos, não pretendo convencê-lo das minhas idéias.
- Sua maneira de ser facilita, dá alívio, paz.
- Isso é. Sinto-me de bem com a vida. Compreender como as coisas são, jogar fora as ilusões, traz mesmo alívio e paz.
- Sinto-me bem agora. Acho que tem razão. Vou tentar conhecer-me melhor.
- Tente descobrir seu lado bom. As qualidades que já possui. Seja sincero. Se nessa hora surgir um pensamento contrário, lembrar-se de uma atitude sua
menos digna, não se impressione. Ignore-a, e continue olhando seu lado bom. É comum, quando tentamos limpar nosso interior, que os pensamentos antigos, desagradáveis,
guardados lá, reapareçam, para que nós nos livremos deles. Ignorá-los é jogá-los fora.
Eles continuaram conversando animadamente. Passava das onze quando Sérgio levou Arlete para casa e despediu-se. Sentia-se melhor e mais calmo. A conversa
fizera-lhe muito bem. Entusiasmado, recordava as palavras de Arlete com prazer. Ela era realmente extraordinária! Tinha o dom de devolver-lhe o bom humor e a alegria.
Apesar de tudo, ele continuaria lutando para progredir na vida. Embora ela não se importasse com a situação financeira dele, não se sujeitaria a ficar
marcando passo a vida inteira. Tinha de pensar, descobrir alguma coisa que o fizesse ganhar dinheiro. Assim, teria mais a oferecer e a família de Arlete o olharia
com mais respeito. Era questão de honra. Queria provar sua capacidade. Haveria de encontrar alguma coisa que lhe desse o que ambicionava.

Capítulo 7





F
lora desligou o telefone irritada. Era muita petulância de Sérgio. Quem era ele para casar-se com a rica herdeira, filha do dono de sua empresa? Por isso ele não
quis voltar a namorar com ela. Estava olhando para mais alto. Claro que ela, socialmente, estava muito acima dele. Sua família era de classe média, enquanto ele
era filho de um casal de caipiras do interior. Além de tudo, nunca conseguiu progredir, e se não fosse a bondade de Flávio, com certeza ainda continuaria a viver
naquele mísero apartamento em que morava quando o conhecera.
Claro que ela não estava mais interessada nele. Também olhava para cima. Pretendia conquistar Flávio. Ia devagar, mas haveria de conseguir. O que não
podia tolerar era que Sérgio conseguisse êxito antes dela. Achava que ele deveria dar graças a Deus por ela haver desejado namorá-lo, e o fato de tê-la recusado
a humilhava e enraivecia. Ter de suportar a vitória dele, pavoneando-se ao lado de Arlete, tornando-se primo de Flávio, rico e bem na vida, era-lhe insuportável.
Tinha que afastá-lo do convívio daquela família. Precisava fazer alguma coisa. Já havia tentado, mas desta vez teria que ser algo definitivo que o afastasse
para sempre. Mas o quê? Tinha que se manter longe de qualquer suspeita. Ninguém podia saber suas intenções. Era fundamental para seus planos futuros.
Uma amiga lhe contou que vira Sérgio aos beijos com Arlete. Telefonou para irritá-la e conseguiu. Mas era melhor saber e poder tomar providências. Podia
acontecer que os pais de Arlete não permitissem aquele namoro. Claro. Sérgio bem podia ser levado à conta de um caça-dotes e ser posto para fora. De qualquer modo,
aquela família era muito liberal. Caso contrário, não teria permitido que Sérgio saísse com Arlete e lhe freqüentasse a casa. Precisava sondar a reação deles. Talvez
estivesse a se precipitar. As coisas poderiam arranjar-se sem que ela precisasse fazer nada. Apesar disso, iria preparar-se. Casar-se com Arlete, ele não se casaria.
Como fazer? Queria aproximar-se mais de Arlete, mas esta, apesar de tratá-la bem, não lhe permitia intimidades. Tinha que ser algo definitivo. Mas o quê?
Sérgio era tão tolo e insignificante que em sua vida não havia nada que pudesse inspirá-la. Além do mais, depois da formatura ela não teve mais contato com Arlete.
E isso era uma coisa que ela não desejava. Rapidamente tomou uma resolução. Apanhou o telefone e ligou para Flávio.
Ele a atendeu gentilmente e, depois dos cumprimentos, ela pediu:
- Eu preciso muito conversar com você. Trata-se de um assunto profissional. Gostaria de passar aí em seu escritório. Você teria um tempo para me atender
hoje à tarde?
- Depois das dezessete horas pode vir.
- Fico-lhe muito grata. Serei pontual.
- Terei prazer em recebê-la.
Cinco minutos antes das dezessete horas, Flora já estava sentada na ante-sala de Flávio. Vestira-se com apuro e sobriedade, como convinha a quem ia tratar
de assuntos profissionais. Estava muito elegante. A secretária pediu-lhe para entrar e Flávio a recebeu à porta com um sorriso de boas-vindas.
Acomodada em uma confortável poltrona em frente à escrivaninha de Flávio, Flora passou os olhos pela sala elegante e discreta, cheia de objetos de arte,
e disse com um sorriso:
- É exatamente como imaginei. Muito bonito, o seu escritório. Sempre tive vontade de conhecer esta empresa.
- Poderia ter-me dito e eu a teria convidado para uma visita. Você falou em assunto profissional. Em que posso ser útil?
Flora hesitou.
- Pensei que seria fácil. Agora que estou aqui, sinto-me acanhada. Quero que saiba que não pretendo abusar da nossa amizade. É que, como você sabe, acabo
de me bacharelar. Meu tio tem um escritório de advocacia, convidou-me para trabalhar com ele, mas eu não gosto da área dele. Sempre sonhei trabalhar no departamento
jurídico de uma grande empresa, como esta. Pretendo continuar meus estudos e especializar-me em direito internacional. Vim pedir-lhe que me dê um emprego.
- Tem experiência, já trabalhou antes?
- Não. Fiz o estágio no escritório de meu tio. Vi o suficiente para saber que não é o que eu quero.
- Não sei se terei alguma coisa para você. Nosso departamento jurídico é ágil e formado por profissionais experientes. Você não se sentiria bem entre
eles. Por que não começa em um lugar simples? Quando tiver mais prática poderemos examinar o assunto.
Flora colocou a mão sobre o braço de Flávio dizendo com suavidade:
- Por favor, não me negue essa oportunidade! Posso começar em qualquer lugar. Estou disposta a progredir. Garanto que aprenderei depressa! Se me der essa
chance, não vai arrepender-se.
- Estaria disposta a ser simples auxiliar de escritório? Ela esforçou-se por dissimular a contrariedade e respondeu:
- Para começar, farei qualquer coisa. Sei que sou capaz e tenho a certeza de que dentro de pouco tempo farei carreira. Pode esperar.
- Bem, se é assim, verei o que posso fazer.
Apanhou um memorando e escreveu algumas linhas, assinou e entregou-o a Flora dizendo:
- Vá ao terceiro andar e procure pelo Rogério. Entregue-lhe isto. É o encarregado do departamento de pessoal. Tem certeza de que quer isso mesmo?
- Tenho - respondeu ela com firmeza. - Fico-lhe muito grata pela oportunidade.
- Não agradeça. Nós sempre estamos precisando de bons funcionários.
Flora despediu-se e saiu à procura da pessoa indicada. Preencheu fichas, fez testes, e só saiu de lá uma hora mais tarde. De regresso a casa, ia traçando
seus planos. Flávio a subestimara. Haveria de mostrar-lhe o quanto ela era competente. Podia não ter muita experiência, mas tinha garra e astúcia. Dentro de pouco
tempo, estaria galgando o lugar que merecia.
Por outro lado, teria oportunidade de vê-lo diariamente e não perder o contato com ele. Encontraria Sérgio também. Sabia que ele não gostaria de vê-la
trabalhando ali, mas o que poderia fazer senão aceitar? Flávio era seu chefe. Era bom ir se familiarizando com os negócios da empresa. Assim, ficaria mais fácil
entender-se com Flávio. Quando ela se casasse com ele, haveria de transformá-lo no maior acionista. Daria um golpe em Sérgio. Enquanto ele pensava em desposar Arlete
para ficar com a parte maior, uma vez que os pais dela eram os sócios majoritários, ela o poria para fora e ficaria com tudo.
Seria necessário ter muita paciência para captar a confiança de todos e realizar seu plano. Mas sabia reconhecer uma ótima oportunidade. Flávio iria dar-lhe
tudo isso. Era saber jogar e ter paciência de esperar.
Quando Sérgio se encontrou com Arlete naquela noite, entre um assunto e outro, ela perguntou:
- Você sabe que Flora foi hoje à tarde no escritório falar com Flávio?
- Flora? Para quê?
- Foi pedir-lhe um emprego.
- Que ele recusou, certamente. Ela nunca trabalhou.
- Não foi isso que ele me disse. Ela mostrou-se disposta a aceitar qualquer lugar para começar.
Sérgio franziu o cenho.
- Acha que ele vai colocá-la na empresa?
- Não sei. Ela soube posicionar-se. Talvez ele lhe dê uma oportunidade.
- Espero que não. Não gostaria de vê-la circulando por lá.
- Pode ser que ela se arrependa. Afinal, gosta de ser sempre a primeira. Quanto tempo agüentará ocupando um cargo subalterno, sem expressão, cuja remuneração
é baixa?
Sérgio meneou a cabeça enquanto dizia:
- Não estou gostando nada disso. Ela está fingindo e deve ter outro objetivo em mente.
- Será? Não estará sendo muito severo com ela? Afinal, não é fácil começar uma carreira hoje em dia, principalmente na advocacia e sendo mulher. Trabalhar
em uma empresa conceituada como a nossa pode ser um bom início, mesmo começando de baixo. Se ela tiver capacidade, poderá crescer em pouco tempo.
- Gostaria de acreditar nisso. Mas não posso. Conhecendo-a como a conheço, sei que deve haver algo mais. Preferia vê-la longe dos nossos negócios.
- Não estará com ciúmes de Flávio?
- Nunca mais diga isso! - protestou ele. - Nunca gostei verdadeiramente dela. Você me ofende com essa suposição.
- Desculpe. Não tive intenção.
- Eu amo você. Como pode dizer uma coisa dessas?
- É que ela é muito bonita. É do tipo que os homens gostam.
- Você é quem está com ciúmes!
- Estou mesmo.
Sérgio abraçou-a, beijando-a nos lábios com carinho.
- Nunca mais diga isso. Você é a primeira mulher a quem eu amo de verdade.
De volta para casa, Sérgio não podia esquecer o assunto.
- Estou dando importância demais a isso - concluiu tentando pensar em outra coisa. Sentia um aperto no peito e uma opressão que não podia explicar.
Não havia nenhum motivo para isso. Se Flora fosse trabalhar mesmo na empresa, seria desagradável ter que encontrá-la amiúde, mas era só. O que ela poderia
fazer? Nada. Sua vida era limpa. Apesar disso, o sentimento de opressão persistia.
Nos dias que se seguiram, Sérgio finalmente conseguiu esquecer o assunto, para recordá-lo duas semanas depois. Ao entrar no departamento jurídico encontrou
Flora sentada a uma escrivaninha, estudando alguns papéis. Ela conseguira. Ele esforçou-se para disfarçar a contrariedade.
Vendo-o entrar, ela levantou-se.
- Como vai, Sérgio?
- Bem - disse ele. - Há quanto tempo está aqui?
- Três dias apenas. Estou como auxiliar da secretária do Dr. Martinez.
- Por quê? Você é bacharela e pode conseguir coisa melhor. Desistiu de montar seu próprio escritório? - disse ele, recordando-se dos grandiosos planos
que ela fazia antes de formar-se.
- Preciso de experiência. Ninguém daria uma causa a uma advogada inexperiente.
- Quer dizer que vai ficar só até conseguir o que pretende... Você tinha tantos planos!
- É. Ficarei até conseguir o que pretendo. Os planos ainda estão de pé. Não vai dar-me as boas-vindas e desejar-me felicidades no novo emprego?
- Não espere nada de mim. Aqui somos apenas dois profissionais. Não há nada de pessoal, mas prefiro que seja assim.
Ela mordeu os lábios, esforçando-se para encobrir a raiva. Fixou-o desafiadora dizendo:
- Não se coloque muito acima, porque pode cair. Hoje você é meu superior, porém a vida dá muitas voltas. Tudo pode mudar.
- Você parece muito segura da sua capacidade. Vamos ver o que consegue. Entregue estes papéis ao Dr. Martinez. Ele os espera com urgência.
- Está bem - disse ela fingindo não perceber o tom autoritário que ele usara.
Sérgio saiu pensativo. O tom de fingida humildade de Flora não o enganara. Aquele emprego não era bem o que ela pretendia. Começar por baixo e fazer uma
carreira, passo a passo, também não estava em suas cogitações. Ela sempre o criticara por fazer isso, dizendo que era perda de tempo. Havia outros meios de conseguir
chegar ao topo. Ele nunca lhe dera ouvidos, achando-a pretensiosa e fora da realidade. O que teria mudado? Teria ela percebido que com o término do curso na faculdade
a amizade com Flávio e Arlete poderia acabar? Teria feito isso para tentar aproximar-se mais de Flávio? Era bem possível que essa fosse a razão para ela estar ali
tão submissa.
De uma coisa ele não tinha dúvida. Ela estava representando o papel da boa moça, inteligente e esforçada, que tudo faria para subir na vida por seus próprios
méritos!
Sérgio abanou a cabeça negativamente. Isso não ia dar certo. Até quando ela agüentaria? Conhecia-lhe o gênio irascível e impaciente. O Dr. Martinez era
exigente e severo. Ela teria que trabalhar duro e bem, caso contrário ele a demitiria.
Não havia dúvida de que Flávio desejara testá-la, colocando-a ali. Ele era muito perspicaz e certamente não cairia em suas armadilhas. Talvez estivesse
a se preocupar demais com algo sem importância. Quando ela percebesse que seus planos eram inúteis, desistiria. Deixaria o emprego e tudo estaria solucionado. Resolveu
não pensar mais nisso. Não era de sua conta.
Tinha um negócio importante para resolver que, se desse certo, poderia finalmente permitir-lhe comprar seu automóvel. Foi para a sua sala e mergulhou
no trabalho, esquecendo-se de Flora.
Uma semana depois estava de posse de um carro novo. Conseguira um financiamento em condições boas, que pagaria com facilidade. Aprendera a dirigir o carro
de alguns amigos e, quando saía com Arlete, quase sempre era ele quem conduzia o automóvel. Agora, tinha seu próprio carro. Sentia-se feliz e orgulhoso por tê-lo
conseguido.
Ele saiu com Arlete para comemorarem e juntos fizeram muitos planos para o futuro. Ela desejava casar-se logo. Seus pais tinham muitas propriedades e
sempre diziam que quando ela se casasse poderia escolher qualquer uma, como presente de núpcias. Mas Arlete já tinha uma casa e era lá que tencionava viver ao se
casar. Era uma casa antiga, muito bonita, rodeada de árvores frondosas e belos jardins. Pertencera à sua tia Amélia, a quem ela amava muito. Quando ela adoeceu,
Arlete visitou-a constantemente, fazendo-lhe companhia. O marido da tia desaparecera dois anos depois do casamento, deixando apenas uma carta em que pedia perdão
por ir embora, e nunca mais voltaram a saber dele.
Amélia não mais quis freqüentar a sociedade, nem refazer sua vida. Apesar de mostrar-se alegre e de nunca se queixar, Arlete sabia que ela jamais deixou
de amar o marido. Quando estavam a sós, várias vezes falou nele com saudade, lembrando-se do tempo em que estiveram juntos, mas nunca mencionava a carta, nem tentava
justificar seu desaparecimento. Era como se ele tivesse viajado e fosse voltar brevemente.
Arlete sabia que, quando a tia perdeu a esperança de o marido voltar, ela perdeu também a vontade de viver. Fez de tudo para que a tia reagisse, mas não
conseguiu. Amélia foi definhando, definhando, sem que Arlete nada pudesse fazer.
Já nos últimos dias, ela lhe disse com suavidade:
- Arlete, tenho pouco tempo de vida.
- Não diga isso, tia. Você vai reagir, levantar-se e ficar boa. Ela sorriu tranqüila, meneando ligeiramente a cabeça.
- Não se preocupe. Estou muito bem. Queria pedir-lhe um favor.
- Fale, tia! - respondeu Arlete tentando conter as lágrimas.
- Cuide desta casa. Aqui eu passei os momentos mais felizes de minha vida! Quando encontrar um moço e se casar, venha morar aqui. Esta casa é sua. Fiz
de você minha herdeira. Sei que será feliz aqui.
- Não diga isso. Você vai viver ainda muito tempo!
- Não é verdade. Não me lamente. É melhor assim. Diga que aceita minha proposta.
- Claro, tia. Adoro esta casa!
- Obrigada.
- Posso fazer uma pergunta?
- Pode.
- Nunca mais teve notícias do tio Mário? Não sabe onde ele está?
- Nunca. Foi como se a terra o tivesse tragado.
- Você deveria ter posto um detetive, tentar descobrir. Eu não agüentaria ficar sem saber por que ele se foi.
- Eu fiz tudo que era possível para encontrá-lo. Inclusive contratar vários detetives. Nestes quinze anos, ninguém encontrou a mínima pista.
- Antes de ele desaparecer, vocês estavam bem? Isto é, você não percebeu nenhuma mudança nele?
- Nos últimos tempos, às vezes parecia triste. Ficava sentado no jardim, pensativo, durante muito tempo. Quando eu me aproximava e perguntava, ele sorria
dizendo que eu estava enganada. Tudo estava muito bem.
- Só isso? Sua atitude com você não se modificou?
- Nunca. Foi amoroso e delicado até o último instante. Nunca pensei que fosse fazer o que fez. Nada em sua atitude me faria prever o que aconteceu.
- Puxa, tia, deve ter sido duro!
- Foi, minha querida. Fiquei muito abalada, ele não me explicou por que me abandonou. Vá até a cômoda e pegue uma pequena caixa de madeira pintada na
segunda gaveta.
Arlete obedeceu.
- Abra, por favor.
Com mãos trêmulas, Arlete abriu e apanhou um envelope amarelecido pelo tempo.
- Essa é a carta. Nunca a mostrei a ninguém. Gostaria que você a lesse.
Emocionada, Arlete abriu o envelope e leu:
"Querida Amélia, Sei que a dor que lhe vou causar será tão grande quanto a que estou sentindo neste momento. Preciso partir para sempre. Perdoe-me. Saiba
que a amo mais do que tudo no mundo, mas não posso usufruir dessa felicidade. Tente esquecer-me e refazer sua vida. Você merece ser muito feliz. Adeus. Mário."
- Tia, eu não entendo! Se ele a amava, por que partiu?
- Esse é o grande mistério que espero desvendar um dia. Não aqui neste mundo, onde a vida colocou barreiras entre nós dois. Mas, no outro mundo, depois
que eu me for, certamente terei a chave.
- Tia, reaja. A vida é bela. Tente esquecer o passado e recomeçar. Não pode jogar sua vida fora porque seu marido fez o que fez.
- Talvez eu não tenha vindo por muito tempo. Sinto-me contente por saber que você cuidará desta casa com amor. Claro que irá reformá-la a seu gosto.
Arlete beijou-a suavemente sem poder articular palavra. Sabia que seria inútil.
Duas semanas depois, Amélia faleceu, deixando-lhe, entre outras coisas, a casa de presente. Fazia dois anos que ela se fora e Arlete conservava tudo como
sempre fora. A criada e o jardineiro cuidavam de todas as coisas com carinho e dedicação. Os pais de Arlete achavam uma extravagância que ela sustentasse uma casa
vazia. Sugeriam que a alugasse, mas ela se recusava.
A casa de tia Amélia era um lugar sagrado, onde cada espaço tinha uma lembrança, e ela não gostaria de ver pessoas estranhas circulando por lá.
Falou com Sérgio a respeito. Contou-lhe tudo e disse-lhe que pretendia residir lá quando se casassem. Levou-o a conhecê-la.
- É uma bela casa - comentou Sérgio andando pelos jardins floridos.
- É antiga, mas não a troco por nenhuma outra. Quando marcarmos a data do casamento, você me ajudará a decorá-la.
- Não entendo nada disso. Nunca morei em uma casa desse tamanho. Talvez fosse melhor uma casa menor. Um apartamento.
- Não gostou da casa?
- É linda.
- Nesse caso, por que não? Sérgio deu de ombros.
- Não sei. É muito grande. Arlete sorriu.
- Sempre morei em casa grande. Estou acostumada. Sei como cuidar dela. Depois, venho fazendo isso há dois anos. Se formos para outro lugar, terei duas
casas para cuidar. Olhe para essas árvores, não são lindas? E essa varanda, não é acolhedora? Esse jasmim perfuma a casa inteira quando está florido.
Sérgio sorriu bem-humorado.
- Está bem. Convenceu-me. Se você gosta tanto, viremos morar aqui - abraçou-a, beijando-lhe os lábios calorosamente. - Gostaria que fosse hoje - disse
emocionado.
- Depende de você.
Pelo rosto dele passou uma sombra de tristeza.
- Preciso melhorar de vida. Não posso casar-me ainda. Arlete abraçou-o com carinho, beijando-o com amor.
- Você é muito materialista e preconceituoso. Dá muito valor ao dinheiro. O que tenho é mais do que suficiente para nós dois.
- O que você tem é seu. Pretendo sustentá-la quando nos casarmos.
- Por causa do seu orgulho, estamos perdendo um tempo enorme. Já poderíamos estar casados agora, sem termos que esperar mais nada.
Sérgio apertou-a fortemente de encontro ao peito. Estavam sozinhos ali, amavam-se e a vida era maravilhosa. Não pensou em mais nada que não fosse a presença
deliciosa de Arlete, o corpo dela quente em seus braços, seus lábios apaixonados junto aos dele. Beijaram-se muitas vezes, até que ele a conduziu ao quarto. Fechando
a porta, abraçaram-se, entregando-se ao amor que os unia.
Horas mais tarde, ao deixarem a casa, Arlete disse com doçura:
- Para mim, nosso casamento aconteceu hoje.
- Não vai arrepender-se?
- Nunca. Eu amo você!
Sérgio apertou a mão dela, que detinha entre as suas, levando-a aos lábios.
- Para mim também. Você me fez muito feliz.
- Pense no que eu disse. Já temos casa, nos amamos e nos pertencemos. Não falta nada. Poderíamos ficar juntos para sempre.
- É o que mais quero neste mundo. Mas o que diria sua família? Pensariam que estou me aproveitando de você. Não sou do mesmo nível social, não tenho posição
nem dinheiro.
- Você tem o mais importante: consegue fazer-me feliz. É isso o que minha família quer. Pense nisso. Não quero pressioná-lo. Mas seu argumento não é válido
para mim.
- Porque sempre teve dinheiro e nunca percebeu o que é sentir rejeição. A sociedade não perdoa.
- Minha felicidade é mais importante para mim do que contentar a sociedade. Do que tem medo? De não ser aceito? Você tem convivido no mesmo meio social
que eu e nunca foi rejeitado, pelo que sei.
- Porque vocês me apoiaram. Sozinho não consegui.
- Você se subestima. Enquanto pensar assim, não vai conseguir o que pretende na vida. Ainda não percebeu que se você não se valorizar, não se julgar capaz,
os outros não o farão? É você quem determina como as pessoas irão tratá-lo. Você tem qualidades para ser amado e aceito em qualquer lugar. Isso importa mais do que
o quanto você tem no banco.
Sérgio baixou a cabeça pensativo.
- Você pensa assim porque me ama. Por você serei capaz de grandes coisas. Tenho a certeza de que em breve estarei em condições de marcar nosso casamento.
Quando for falar com seu pai, quero ter o que oferecer.
- Você fala como se o casamento fosse um negócio, não um caso de amor.
- Seu pai não me ama como você e vai querer saber que espécie de vida eu poderei oferecer-lhe. Você está acostumada ao luxo.
- Tenho o bastante para cuidar do meu "luxo" sem pedir dinheiro a ninguém. Há muito tempo que papai não me sustenta mais. Tenho meu próprio dinheiro.
Não dependo da família. O que você tem é medo de papai.
- Medo, não. Mas não posso esquecer que ele é o dono da empresa para a qual trabalho e não sei como ele vai receber meu pedido de casamento.
Arlete sorriu bem-humorada.
- Eu sabia que tudo isso era medo de papai. O "chefão" da empresa. Você já esteve com ele e viu que não morde. Ele o tratou muito bem, por sinal.
- Uma coisa é receber um bom empregado, outra é querê-lo como genro.
- É melhor ir se acostumando com a idéia. Já pensou se ele disser "não" e tivermos que fugir juntos?
Sérgio empalideceu.
- Será? Acha que ele vai recusar? Arlete riu gostosamente.
- Já sei por que está adiando nosso casamento. Tem medo de papai. Não se preocupe com isso. Eu mesma falarei com ele. Quando for fazer o pedido oficial,
tudo estará resolvido.
- Que susto! Você estava se divertindo às minhas custas.
- Isso não. Eu estava testando você.
- Como assim?
- Se seria capaz de fazer qualquer sacrifício por amor. Fugir comigo, deixar o emprego, abandonar tudo por minha causa. Fiquei em dúvida.
- Bobinha! Por você eu faria qualquer coisa!
- Não sei, não... Faria tudo menos esquecer meu dinheiro.
- Faço isso por você. Quero ter o prazer de poder dar-lhe o melhor.
- O melhor é você. Enquanto me amar, estarei feliz. Abraçados e alegres, conversaram durante largo tempo, tecendo planos para o futuro.

Capítulo 8





S
érgio ouviu a notícia admirado. A secretária do Dr. Martinez trabalhava com ele há mais de dez anos, pedira demissão em caráter irrevogável. O que teria acontecido?
Ele certamente estaria inconsolável. Não fazia nada sem ela. Foi procurá-lo e encontrou-o como se nada houvesse acontecido.
- A seção de pessoal informou-me que D. Dorotéia se demitiu. Aconteceu alguma coisa?
- Acho que estava cansada de trabalhar - respondeu ele calmo. - Ultimamente já não era a mesma. Errava nas petições, esquecia compromissos importantes.
- D. Dorotéia? Sempre foi uma das nossas melhores funcionárias!
- Disse bem: foi, não era mais.
- Teria algum problema pessoal?
- Pode ser. Mas a empresa não pode ser prejudicada por isso.
- Estou surpreso! Já lhe mandaram uma substituta?
- D. Flora já estava substituindo-a maravilhosamente bem. Do que vou precisar é de uma auxiliar para ela.
- Providenciarei para você.
- Obrigado.
- Quer dizer que está satisfeito com D. Flora?
- Muito. É rápida, esperta, ativa e toma excelentes decisões. Depois, é bacharela. Isso facilita muito as coisas.
Sérgio saiu pensativo. Flora, naqueles quatro meses de trabalho, soube conquistar as boas graças do Dr. Martinez, o que não era nada fácil. Ele era muito
exigente e minucioso. Ela, apesar do gênio irascível, conseguiu muito mais do que ele poderia esperar. Sabia ser competente quando queria.
Com certeza pretendia impressionar Flávio, subir depressa. Teria ela alguma coisa a ver com a demissão de Dorotéia? Ela era tão dedicada ao Dr. Martinez!
Sentiu vontade de procurá-la para investigar, depois desistiu. Não ia ficar bem ele ir até a casa dela interferir em uma decisão pessoal. Depois, o Dr. Martinez
parecia ter até gostado da troca. Era surpreendente!
À noite, desabafou com Arlete.
- D. Dorotéia era muito dedicada ao Dr. Martinez. Admirava-o. Tolerava pacientemente suas manias dizendo que ele era um grande homem. Agora, pediu demissão
sem mais aquela. Não é normal. Deve haver alguma coisa por trás disso. Eu estava admirado por Flora estar agüentando uma atividade subalterna durante tanto tempo.
Ela pode ter provocado a demissão de D. Dorotéia.
- Não está sendo muito severo com Flora?
- Eu a conheço muito bem. Ela sempre me criticava porque eu queria subir na vida passo a passo. Afirmava que, para isso, tudo era válido.
- Ela pode não ter tido nada com o caso. D. Dorotéia pediu demissão. Talvez tenha um motivo pessoal muito forte.
- Pode ser, mas alguma coisa me diz que Flora provocou isso.
- Você mesmo disse que o Dr. Martinez a elogiou, o que partindo dele é quase um milagre. Ela deve ser muito eficiente.
- Certamente é. Perseverante também. Para mim é como uma serpente esperando para dar o bote. Desta vez foi D. Dorotéia, quem será a próxima vítima? O
próprio Dr. Martinez?
- Que exagero!
- Espero estar enganado. Falemos de nós. Falou com seus pais?
- Falei. Eles não se surpreenderam. Parece até que esperavam a notícia.
- O que foi que lhes disse?
- Que nos amamos e queremos casar-nos. Dentro de alguns dias você formalizaria o pedido.
- Não pediu permissão?
- Participei apenas. Eles sabiam que estávamos namorando. De certa forma esperavam o pedido, uma vez que a cada dia estamos mais juntos e apaixonados.
- O que disseram? Acharam ruim? Arlete sorriu.
- Isso é o que você adoraria ouvir para poder alimentar seu complexo de inferioridade. Sinto decepcioná-lo. Eles acharam bom.
Sérgio suspirou aliviado. Naqueles meses esforçara-se bastante e conseguira bons negócios para empresa, gerando altos lucros e sua situação financeira
melhorara. Economizara, e agora sentia que podia oficializar o noivado.
Naquela mesma noite, Sérgio formalizou o pedido. Mesmo sabendo que seria aceito, ficou nervoso. Depois de um jantar em família, sentados na sala de estar,
Sérgio iniciou o assunto com o Dr. Anselmo, que ouviu em silêncio e não o interrompeu nem uma vez, apesar de uma certa dificuldade do rapaz para encontrar as palavras.
Aos poucos, ele foi conseguindo dizer o que sentia. Não omitiu nada. Quando terminou, o pai de Arlete olhou-o calmo e respondeu:
- Tenho acompanhado o relacionamento de vocês e acredito que têm chance de encontrar a felicidade. Arlete sempre fez o que quis. É independente, o que
poderia ser um problema com certo tipo de marido. Você a compreende e ela se sente feliz. Isso é o bastante para mim e para Nora. Por outro lado, nós o conhecemos
há muitos anos, apreciamos sua dedicação ao trabalho e aos nossos negócios. Flávio tem a mesma opinião e aprecia sua amizade. Portanto, se desejam casar-se, podem
marcar a data.
Chamou Nora e Arlete, que, discretas, conversavam do outro lado da sala, e participou o pedido de Sérgio. Abraçaram-se com alegria, marcaram o casamento
para dentro de três meses. Apesar de Arlete preferir comemorar em família, Nora não concordou.
- Isso não. Faremos uma festa. Temos muitos amigos e parentes. Você é nossa única filha. Tratarei disso pessoalmente. Ainda pretende mesmo ir morar naquela
velha casa? Vocês poderiam escolher uma outra.
- Não, mãe. Eu adoro aquela casa e Sérgio concordou em morar lá.
O Dr. Anselmo abriu uma garrafa de vinho especial para o brinde e Nora sugeriu:
- Poderíamos fazer um grande jantar na próxima semana para anunciar o noivado.
- Não, mãe. Faremos a participação por escrito e avisamos sobre a data do casamento - disse Arlete.
- Todo mundo faz assim - reagiu Nora inconformada.
- Eu sou diferente. Faço o que gosto. Nosso noivado é uma comemoração íntima que não interessa aos outros.
- Você concorda, Sérgio? - indagou Nora.
- Plenamente.
- Nesse caso, está resolvido. E eu, que tinha esperança de que seu marido a fizesse mudar...
- Enganou-se, mamãe. Sérgio gosta de mim do jeito que eu sou.
Nesse clima leve e agradável, a conversa prosseguiu e Sérgio sentiu-se à vontade. Quando se retirou, duas horas depois, não escondia a felicidade. Seu
sonho ia tornar-se realidade. Uma mulher maravilhosa, a quem amava de todo o coração, e uma vida nova, com dinheiro, posição, amigos. Finalmente ele conseguira.
Era alguém. Sua presença contava para outras pessoas. Sentia-se aceito pela sociedade. Pretendia corresponder a essa posição. Trabalharia mais ainda do que até ali,
para que a empresa progredisse. Faria tudo pela felicidade de Arlete, cujo amor era o prêmio maior que ele havia conquistado.
Ébrio de felicidade, Sérgio teve dificuldade para conciliar o sono. Mil pensamentos e projetos tumultuavam em sua cabeça, e ele não podia parar de pensar.
Uma semana depois, Flora recebeu em sua casa um belíssimo envelope bege. Abriu-o e tirou um elegante cartão. Lendo-o, seu rosto cobriu-se de vivo rubor.
Era a participação oficial do noivado de Sérgio e Arlete, cujo enlace ocorreria brevemente.
Trincou os dentes com raiva. Sérgio conseguira! Precisava fazer alguma coisa. Aquele estúpido Dr. Martinez a fizera perder muito tempo com rodeios e preparações.
Se não precisasse mais dele, também o tiraria do caminho. Mas ainda não estava pronta. Ele era muito capaz e não poderia prescindir de seus conhecimentos. Usaria
outros meios. Sabia como agir.
Foi até a cômoda do seu quarto, abriu uma gaveta e apanhou uma foto de Sérgio olhando-a com ar de desafio.
- Você vai ver só - pensou rancorosa.
Enfiou o retrato na bolsa e telefonou ao escritório, dizendo que estava com uma tremenda dor de dente e precisava ir ao dentista. Apanhou a bolsa e saiu.
Chamou um táxi e deu o endereço, acomodando-se. Ia à procura de Mãe Joana, mulher que entendia de magia e que conhecera há algum tempo. Além de ter previsto várias
coisas que aconteceram, ela fazia trabalhos ajudando as pessoas a conseguir o que queriam. Flora já se servira de Joana várias vezes e obtivera bons resultados.
Lembrou-se de Dorotéia. Fora um sucesso total. A mulher era uma secretária perfeita, e não lhe dava nenhuma chance de aproximar-se do Dr. Martinez. Depois
que encomendara o trabalho a Joana, Dorotéia começou a ter náuseas, tonturas, a esquecer as coisas, a fazer tudo errado. Foi só ajudar um pouquinho e ela mesma pediu
demissão. Contava agora com Joana para acabar com o noivado de Sérgio.
Sentada diante de Joana, uma mulata forte e maneirosa, Flora deu vazão ao seu rancor:
- Ele não pode casar com ela. Quero que eles se separem, e que ele perca o emprego.
- Não vai ser nada fácil - disse Joana olhando-a com certa malícia. - Eles se amam e isso pode atrapalhar.
- Não a você. Nunca vi ninguém que tivesse tanta força. Vai deixar que ele passe você para trás?
Os olhos de Joana brilharam.
- Eu não disse que era impossível. Só disse que é difícil. Vai ser preciso comprar muitas coisas. Vai custar caro. Depende de quanto quer gastar. Esse
trabalho tem que ser caprichado.
- Darei o que precisar, contanto que consiga o que quero. Não é só o fim desse noivado que eu quero. Esse moço está no meu caminho impedindo que eu conquiste
o meu lugar. Quando eu conseguir, vou ser muito rica e nunca me esquecerei de você. Quando eu estiver no topo, você ficará bem. Sou reconhecida, dar-lhe-ei muito
dinheiro. Juntas conquistaremos tudo que eu quero.
- Ao que parece você não se conforma com pouco.
- É verdade. Quando eu for rica, você não vai morar neste fim de mundo, nesta casa pobre. Comprarei outra para você em um lugar decente. Se trabalhar
para mim, terá tudo na vida. Eu juro.
- Pode deixar, Flora. Desta vez, além do trabalho espiritual, você vai me ajudar. Tenho um plano e, com sua ajuda, tiraremos esse moço do seu caminho.
Aí, então, o lugar que deseja será só seu.
Baixou a voz e à medida que falava o rosto de Flora se enchia de alegria. Elas não viram que alguns vultos escuros as envolveram, abraçando-as prazerosamente.
Apenas tinham olhos para o projeto que pretendiam executar.
Quando saiu, uma hora depois, Flora estava satisfeita. Joana lhe pedira vultosa quantia, mas ela daria um jeito. Tinha algumas economias, venderia algumas
jóias. Tratava-se de um investimento no seu futuro. Quando fosse rica, compraria outras mais caras e mais lindas.
A tarde ia em meio quando chegou ao escritório. Ia entrar em sua sala quando encontrou Sérgio. Ele estava bem-disposto e cumprimentou-a com indiferença.
Enquanto ele se afastava, ela o observava pensando:
- Aproveite a sua alegria, porque vai durar pouco! Você não perde por esperar.
Na mesma hora, Sérgio voltou-se olhando-a admirado. Ela entrou logo, tentando dissimular o que sentia. Teria deixado transparecer?
Sérgio passou por Flora distraidamente e cumprimentou-a, pensamento ligado ao trabalho do momento. Mas quando se afastava, sentiu um peso nas costas e
uma dor na nuca que o fez voltar-se instintivamente, como se querendo ver o que estava acontecendo. Ela entrou rapidamente e ele não viu nada.
- Pensei ter ouvido alguma coisa. Não havia ninguém - conjeturou - É estranho. De repente, esse peso. Acho que não devia ter tomado aquele copo de vinho
no almoço. Mas o cliente insistiu. Não gosto de beber durante o dia.
Pensando assim, foi à sua sala e procurou tomar alguma coisa para o fígado. Precisava estar bem à noite para encontrar-se com Arlete. Pensando nela, sentiu-se
melhor. Ela tinha o dom de fazê-lo ficar bem-humorado.
Encantava-se com a alegria dela cuidando dos preparativos para o casamento, decorando com capricho e bom gosto a casa que seria seu futuro lar. A princípio,
Sérgio sentira-se constrangido por não poder custear todas as despesas, mas Arlete o convencera que essa questão era secundária. Se ela tinha dinheiro, não dependia
dos pais, era natural que o gastasse para seu próprio conforto e bem-estar. Havia tanto entusiasmo nos olhos dela quando lhe pedia opinião para certos detalhes da
decoração que ele se contagiava, feliz.
Sérgio gostava do conforto e da beleza, mas estava habituado a viver com menos. O que ele realmente valorizava era o amor, a alegria e a felicidade de
Arlete. Não queria que, por causa dele, ou desse casamento, ela tivesse que abdicar do lugar que sempre ocupara na sociedade ou de baixar seu padrão de vida. Ao
contrário. Sonhava fazer muito mais. Trabalhar duro, conseguir subir na vida para poder oferecer-lhe ainda mais.
Passou a dedicar-se ainda mais ao trabalho. Era o primeiro a chegar e o último a sair. Não queria que ninguém pensasse que ele estava abusando ou tendo
privilégios, só porque ia-se casar com a filha do patrão. Agora mais do que nunca, precisava cuidar dos interesses da família que o recebera tão bem.
Vendo-o tão interessado nos negócios, Flávio às vezes comentava bem-humorado:
- Se eu soubesse que você ia tornar-se tão eficiente depois desse noivado, ter-lhe-ia apresentado Arlete há mais tempo!
- Isso é só o começo! - retrucava Sérgio com alegria. - Arlete merece muito mais e eu vou chegar lá!
- Não duvido. Se continuar assim, até eu serei passado para trás.
- Não me iludo a tal ponto. Você é o meu mestre. Por mais que eu faça, sempre será o melhor. Eu só comecei a mudar minha cabeça e minha vida depois que
você veio para cá. Sou-lhe muito grato por isso, e tenho orgulho de ser seu amigo.
- Não me agradeça nem se subestime. Você também me tem ajudado. Juntos, faremos grandes coisas, tenho a certeza.
Sérgio sorria confiante. Flávio o respeitava e compreendia. Dali para a frente, tudo seria felicidade. Participara seu noivado à família, agora enriquecida
com o nascimento do primeiro filho de Rubens. Lá também tudo estava indo muito bem. Seu irmão seguia ampliando seus negócios e melhorando a situação financeira de
toda a família. Estavam felizes e Sérgio não pensava mais em trazê-los para São Paulo. Eles preferiam a vida simples do interior. Viriam para o casamento e Sérgio
pretendia comprar roupas para toda a família. Não queria que gastassem dinheiro, e depois, na capital, teriam mais opções de escolha.
Eram pessoas humildes, mas de bem. Sérgio nunca ocultara de ninguém sua origem e sentia-se feliz com a presença deles.
O tempo foi passando, e quanto mais se aproximava a data do casamento mais aumentavam os compromissos de Sérgio. Levantava-se cedo e ia dormir tarde.
Mas não sentia cansaço. Estava feliz. Dentro de três semanas estaria casado. Viajariam para a Europa. A viagem fora presente dos pais de Arlete. Ficariam fora durante
um mês e Sérgio precisava deixar tudo organizado na empresa.
Uma tarde, Flávio o chamou à sua sala. Quando entrou, viu logo que ele estava preocupado.
- Precisamos conversar - disse.
- Aconteceu alguma coisa?
- Aconteceu. Vazaram algumas informações confidenciais. Isso não podia acontecer.
- Que informações?
- Códigos de nossas contas bancárias no exterior.
- Como aconteceu isso? Somos apenas três a ter essa informação.
- Como aconteceu, eu não sei. Descobri que nos últimos dias foram efetuados vultosos saques. Alguém descobriu esses códigos e está desviando dinheiro
da empresa.
- Isso é muito sério. Chamou a polícia?
- Já acionei o serviço secreto e estamos investigando.
- É melhor sustar qualquer saque nessas contas.
- Foi o que fiz.
Flávio o olhava indeciso.
- O que vai fazer mais?
- Não sei. É uma situação delicada. Alguém facilitou. Eu não fui.
- Eu tampouco. E o Dr. Martinez é cuidadoso até demais.
- Estamos diante de um impasse.
- Vai falar com o pessoal?
- Não. Vou esperar a ação da polícia. Eles pediram sigilo.
- Em todo caso, vou ficar de olhos abertos. Nesses casos, todo cuidado é pouco. É a primeira vez que acontece aqui.
- É muito desagradável.
- Principalmente para nós que conhecíamos esses códigos. Poderão pensar que facilitamos.
- Espero que a verdade apareça logo. Será um alívio.
Sérgio saiu pensativo. Sentado à sua mesa, procurou recordar-se detalhadamente de tudo quanto fizera naqueles dias. Não encontrou nenhuma pista. Não.
Ele não facilitara mesmo. Não havia nenhuma anotação sobre isso. Eles guardavam esses números de cor. Nesse caso, quem teria tido acesso?
Ficou angustiado. Esse assunto precisava ser esclarecido com urgência. Estava em uma posição incômoda de suspeita que só seria eliminada quando descobrissem
a verdade.
Quando encontrou Arlete, ela notou logo sua preocupação.
- Você está passado. Aconteceu alguma coisa?
- Problemas na empresa. Vazamento de informações e roubo.
- Alguém conhecido?
- Não sabemos. Espero que a polícia descubra a verdade o quanto antes.
- Você está abatido. Suspeita de alguém?
- Não. Mas de certa forma estou envolvido. Apenas Flávio, eu e o Dr. Martinez sabíamos desses códigos.
- Bobagem. Vocês são pessoas acima de qualquer suspeita.
- Concordo. Mas enquanto não descobrirmos como aconteceu e quem foi, estamos todos sob suspeita. Já procurei recordar tudo o que fiz nesses últimos dias,
para ver se havia facilitado de alguma forma, mas não encontrei nada.
Arlete abraçou-o com carinho.
- Não se preocupe. A verdade vai aparecer. Esqueça esse assunto desagradável. Tudo vai se resolver da melhor forma. Não gosto de ver você aborrecido.
Vamos pensar no melhor.
Beijou-o delicadamente nos lábios e Sérgio abraçou-a com força. De repente sentiu um medo terrível de perdê-la. Beijou-a demoradamente. Depois, disse
emocionado:
- Se eu um dia perder você, não sobreviverei. Ela admirou-se:
- Por que diz isso? Breve estaremos casados. Nunca nos separaremos.
- Não sei. De repente senti medo de perdê-la.
- Isso nunca acontecerá. Eu amo você.
- Eu também a amo. A vida para mim só tem sentido perto de você.
Beijaram-se com carinho. Continuaram fazendo planos para o futuro, mas apesar das juras e das promessas de felicidade, Sérgio continuou com o peito oprimido,
e não conseguiu expulsar o medo do coração.

Capítulo 9





N
a tarde do dia seguinte, Sérgio foi chamado à sala de Flávio. Lá estavam também o Dr. Anselmo e mais dois homens. Pelas suas fisionomias conturbadas, Sérgio percebeu
logo que algo de muito grave havia acontecido.
Foi o Dr. Anselmo quem falou primeiro: - Sérgio, estes são os policiais encarregados da investigação dos desfalques na empresa. Descobriram tudo. É melhor
que você explique logo por que fez isso.
Ele estava pálido e nervoso, e Sérgio olhou-o sem entender.
- Como assim? Explicar o quê?
- Por que fez tudo isso. Não precisava. Nós confiávamos plenamente em você a ponto de lhe entregarmos nosso tesouro mais caro. Se estava precisando de
dinheiro, por que não foi honesto e falou francamente?
Sérgio sentiu a cabeça rodar. Estava sendo acusado de roubo! A custo pôde balbuciar:
- Não sei do que está falando, Dr. Anselmo. Não fiz nada. Juro pelo que há de mais sagrado, nunca toquei em nenhum dinheiro da empresa! O senhor me conhece
há tantos anos! Como pode pensar isso?
- Daria tudo para que não fosse verdade. Infelizmente as provas são todas contra você. Suas contas bancárias foram examinadas e os altos valores desviados
deram entrada lá, no mesmo dia. Como pode ter sido tão ingênuo? Imaginou que ninguém iria descobrir?
- Não pode ser verdade! Estão todos enganados! Verifiquem melhor! Eu juro que estou inocente!
- Não adianta - disse um dos policiais. - Sabemos que foi você. Você está preso e tão cedo não sairá.
Sérgio, pálido, olhava sem ainda acreditar no que estava ouvindo. Estava sendo vítima de tremenda injustiça. Não era possível! Eles teriam que reconsiderar.
Não havia cometido crime algum. Estavam todos enganados.
Trêmulo, encontrou forças para balbuciar:
- Estão todos enganados! Sou inocente! Estão cometendo uma tremenda injustiça!
- Todos dizem a mesma coisa - tornou o policial friamente. - Vamos para a delegacia.
Sérgio sentia as pernas bambas, olhava para todos esperando que alguém lhe dissesse que não era verdade.
- Vamos embora - disse o policial. - Você tem direito a chamar seu advogado.
- Depois do que fez, seu noivado com Arlete está desfeito. Nunca mais a verá - disso o Dr. Anselmo com desprezo.
Acompanhado pelos dois, Sérgio saiu e mal se sustinha nas pernas. Sua vida desmoronara. Seus sonhos de felicidade em um segundo haviam sido destruídos.
Sua vida estava acabada. Julgavam-no capaz de tamanha desfaçatez. Acusavam-no de roubo! Não era possível. Aquilo só podia ser um engano que logo seria desfeito.
Claro. A verdade apareceria e todos veriam que ele era inocente.
Ergueu a cabeça e tentou acalmar-se. Falaria com o banco, esclareceria tudo. Não havia tanto dinheiro em sua conta bancária. Talvez alguém com nome parecido,
ou coisa assim. O melhor era guardar serenidade. Não havia cometido crime algum. Logo tudo seria esclarecido e voltaria a ser como antes. Por mais que tentasse,
não conseguia pensar com clareza. Sentia o coração oprimido, a cabeça pesada.
Na delegacia, o delegado o interrogou e, como ele negasse a autoria do desfalque, foram exibidos extratos de sua conta bancária com os vultosos depósitos,
quase no montante do que fora desviado da empresa. Sérgio não conseguia entender. De repente verificou que essa não era a conta que conhecia.
- Essa conta não é minha. Nunca tive conta nesse banco!
- Você abriu essa conta recentemente, pensando que com isso despistaria qualquer suspeita. Não depositou na conta habitual. Mas veja, Sérgio Nunes Costa.
Não é esse o seu nome?
- É. Mas eu nunca abri essa conta. Alguém fez isso para me incriminar.
O delegado sorriu malicioso.
- Vamos começar novamente. Vai confessar ou não?
Sérgio negou. Nada havia para confessar. Depois de exaustivo interrogatório, foi recolhido a uma cela comum. Pálido, inconformado, Sérgio não sabia a quem
recorrer. E Arlete, também acreditaria que ele cometera aquele crime? Estaria também pensando que ele fora capaz de tal baixeza?
Amargurado, triste, cabeça pesada, estômago enjoado, não tinha a quem recorrer. Disseram-lhe para chamar um advogado. Não conhecia ninguém. Sempre utilizara
os serviços do Dr. Martinez quando precisava. Isso agora seria impossível. Ele não admitia que iria precisar de um. Acreditava que logo descobririam a verdade e
ele seria libertado.
Mas isso não aconteceu. Todos se mostravam contra ele. Tentou falar com Flávio, com Arlete, com o Dr. Anselmo. Não conseguiu. Da esperança das primeiras
horas, passou à depressão. Arlete não viera defendê-lo. Teria acreditado nessa infâmia? Sentiu-se arrasado. Mil pensamentos torturantes passavam pela sua cabeça.
Insone, perdeu a noção do tempo. Negava-se a comer e no dia seguinte depois do interrogatório, sempre negando tudo, foi acometido de febre e teve que baixar à enfermaria.
Ele sentia-se muito mal. Não dormia, não se alimentava e só falava em Arlete. Queria vê-la a todo custo. Parecia-lhe estar vivendo um pesadelo. Nos momentos
de lucidez, pensava que aquilo não podia estar acontecendo, que logo acordaria e tudo voltaria a ser como antes. Logo depois, recaía em profunda depressão, onde
não dava acordo de nada.
Um dia, ao acordar, viu seu irmão Rubens sentado a seu lado. Abraçou-o chorando, descontrolado.
- Vou cuidar de você - disse ele. - Vamos voltar para casa.
- Não me deixe - pediu Sérgio aterrorizado. - Eles querem prender-me. Não deixe! Eu não fiz nada. Sou inocente!
- Eu sei - garantiu Rubens calmo. - Você precisa descansar. Eu estou aqui.
Quando naquele dia, ao reunir-se com os policiais, Flávio tomou conhecimento das provas contra Sérgio, ficou profundamente surpreendido. Confiava nele
e sentiu-se muito triste com essa descoberta. Sem saber o que fazer, chamou o Dr. Anselmo e juntos, profundamente abalados, foram forçados a reconhecer que, pelas
evidências, fora mesmo Sérgio quem havia desviado o dinheiro.
Movido pelo desejo de impressionar a noiva e fazer frente às despesas do casamento, ele cometera aquele crime. Embora eles pudessem até entender uma tentação
dessas, era o bastante para impedir o casamento. Daí em diante, não mais poderiam confiar nele.
Mesmo sabendo da dor que Arlete sentiria com o rompimento, decidiram afastá-lo. Ela era jovem e com o tempo acabaria por esquecer. Era melhor sofrer agora
do que casar-se com um desclassificado.
Depois que Sérgio deixou a empresa conduzido pelos dois policiais, Flávio, pálido e triste, perguntou:
- E agora, tio, como contar a Arlete?
- Esse é o pior pedaço - suspirou, preocupado. - Daria tudo para não ter que lhe dar essa notícia!
- Podemos abafar esse caso e dizer-lhe que ele se foi para sempre.
- Assim, sem mais aquela? Ela não acreditaria.
- Se lhe disser a verdade, conheço Arlete, ela não vai acreditar que foi ele. Ainda mais que ele jura inocência. Se ela souber o que aconteceu, vai correr
para junto dele e tentar libertá-lo. Se o acusarmos, ela com certeza ficará contra nós.
Anselmo passou a mão pelos cabelos como que para afastar pensamentos desagradáveis, depois disse:
- Aquela maluca é bem capaz de nos dar trabalho. Sabe como ela é. Nunca ouve o que dizemos. Só faz o que quer.
- É por isso, tio, que eu acho melhor abafar o caso. Afinal, o dinheiro foi recuperado e o infeliz punido.
- Mas se o caso for aos jornais, ela descobrirá tudo.
- Vamos retirar a queixa. Afinal, Sérgio foi durante muitos anos um funcionário exemplar.
- Se o soltarmos, ele irá procurá-la.
- Ele tem família no interior. Vamos chamar seu irmão mais velho e dizer-lhe que retiraremos a queixa, com a condição de o levar daqui para sempre.
- Pode ser uma boa idéia. Senão corremos o risco de Arlete fugir com ele e nos dar muito trabalho. Quando ela cisma com uma coisa, ninguém a faz mudar
de idéia!
- Para dizer a verdade, apesar de tudo eu não gostaria de ver Sérgio preso. Ele era meu amigo. Pela primeira vez enganei-me com uma pessoa. Nunca pensei
que ele fosse capaz de fazer o que fez. Vamos abafar o caso, terminar esse infeliz assunto e tentar esquecer. Arlete vai sofrer, julgar-se abandonada, mas com o
tempo esquecerá. Será melhor.
Entraram em contato com Rubens e lhe pediram que viesse com urgência. No dia seguinte cedo ele chegou e foi direto ao escritório de Flávio. Inteirado do
que acontecera, levantou-se pálido.
- Isso é uma calúnia. Sérgio sempre foi homem honrado.
- Temos provas de que foi ele.
- Não acredito. Conheço meu irmão. Ele nunca seria capaz de fazer isso. Um dia, vocês ainda vão descobrir que cometeram uma tremenda injustiça.
- Em atenção aos anos de bons serviços que ele prestou à nossa empresa, resolvemos abafar o caso e retirar a queixa. Mas há uma condição.
- Qual?
- Que você o leve daqui para sempre. Queremos que ele se afaste de Arlete e nunca mais volte a procurá-la.
- Foi ela quem decidiu isso?
- Não. Foi meu tio, pai dela. Diante do que houve, ele não quer mais que ela se case com ele.
- Compreendo. Quanto a isso, pode contar comigo. Falarei com ele e o levarei de volta para casa. Lá, ele é respeitado e querido.
- Nós também o queríamos muito. Era meu amigo pessoal. Ninguém mais do que eu lamenta o que ele fez. Arlete o ama e vai sofrer muito. Ele atirou fora sua
chance de felicidade. É uma pena, mas foi ele quem escolheu. Nada podemos fazer.
- Um dia, tudo se esclarecerá e vocês vão se arrepender de não haver acreditado nele. Vou vê-lo, gostaria que me desse o endereço.
Flávio concordou.
- Soube que ele estava febril e foi mandado à enfermaria. Hoje mesmo iremos falar ao delegado e você poderá levá-lo quando quiser.
- Está certo. Ele irá comigo.
Mas o estado de Sérgio não era bom e ele estava sendo mantido sob calmantes. Por isso, mesmo com a retirada da queixa pelo Dr. Anselmo e com a permissão
para deixar a cidade, o médico não lhe deu alta.
Rubens ficou a seu lado e não arredou pé. Sérgio estava abatido e falava de modo incoerente. Rubens passou o resto do dia e a noite inteira sentado na
cadeira a seu lado esperando que ele acordasse.
De vez em quando, colocava a mão sobre a testa do irmão e rezava baixinho. Sentia que precisava levá-lo dali o quanto antes.
Apesar de Sérgio haver acordado, só recebeu alta dois dias depois. Ele estava ainda sonolento devido à dose alta de calmantes que ingerira. Rubens acomodou-o
no banco traseiro do carro e partiu imediatamente. Parou apenas para abastecer e comprar provisões para a viagem. Estava com fome e com Sérgio naquele estado não
poderiam comer em um restaurante. Não pretendia deixá-lo sozinho um instante sequer. Aproveitou também para jogar no lixo o volumoso pacote de medicamentos que o
médico da enfermaria prescrevera e que fora forçado a pagar.
Ele sabia que Sérgio não estava doente, mas fora de si. Não acreditava que ele houvesse roubado o dinheiro. Ele fora vítima de algum engano, ou de algo
pior, e era natural que estivesse arrasado. Uma vez em casa, junto aos que o amavam e confiavam nele, iria recuperar-se.
Viajaram durante algumas horas e Sérgio continuava sonolento. Quando Rubens parou para abastecer o carro, tentou acordá-lo.
- Sérgio. Acorde. Vamos. Você precisa comer.
Ele abriu os olhos fixando-o como se tentasse perceber o que estava acontecendo.
- O que foi?
- Acorde. Precisa levantar-se, respirar um pouco de ar fresco, comer alguma coisa.
- Rubens! Você está aqui, graças a Deus! Eles estão me acusando de roubo ou eu tive um pesadelo? Estou tonto e não consigo lembrar-me.
- Você está comigo, viajando. Estamos indo para casa. Lá você vai se recuperar. Esteve adoentado, mas passou.
- Espere aí, eles me acusaram e prenderam. Isso aconteceu mesmo, não é verdade?
- É. Mas acabou. Você está livre.
- Eu sabia! Tinha a certeza de que eles logo descobririam a verdade e tudo seria esclarecido. Nesse caso, se tudo está bem, por que estamos voltando para
casa?
- Posso explicar tudo, mas, agora, veja se consegue levantar-se, sair do carro.
- Ainda estou tonto.
- Faça um esforço. Apóie-se em mim. Não comeu nada o dia inteiro. Na enfermaria davam-lhe soro. O que você precisa é de um prato de arroz com feijão e
um bom bife mal-passado.
- Não estou com fome. Sinto náuseas.
- Deram-lhe muitos calmantes. Isso vai passar. Apoiado em Rubens, Sérgio conseguiu ir ao banheiro lavar o rosto. Sentiu-se um pouco melhor, mas ainda assim
era com esforço que ficava de pé.
- Vamos voltar para o carro. Só que agora você vai sentar-se na frente comigo.
Depois de instalar Sérgio no carro, Rubens rapidamente entrou no restaurante. Apesar de o serviço de jantar haver terminado, ele conseguiu uma sopa quente
e levou-a a Sérgio, forçando-o a ingerir um pouco. Enquanto comia seu lanche reforçado, Rubens foi conversando com ele, procurando animá-lo, contando coisas alegres.
Sérgio ouvia, fazendo esforço para entender, mas cochilando de vez em quando, recostado no banco. Acordou com um solavanco do carro e perguntou admirado:
- Onde estamos?
- Chegando em casa. O dia está amanhecendo. Veja que beleza!
Sérgio fez um esforço para sair do torpor que ainda o envolvia, tentando prestar atenção.
- Não avisei da nossa chegada, mas a luz já está acesa - continuou Rubens.
Ouvindo o ruído do carro, Vicente abriu a porta e disse admirado para Rita, que vinha atrás:
- É o Rubens, e acho que trouxe o Sérgio com ele. Saíram rapidamente e, quando o carro parou diante da porta, eles estavam à espera. Sérgio desceu com
alguma dificuldade, pois, apesar de haver recuperado a lucidez, sentia-se tonto e indisposto. A cabeça pesava e o corpo doía-lhe como se tivesse levado uma surra.
Rita não se conteve.
- Meu filho! O que lhe fizeram? Está doente? Foi Rubens quem respondeu:
- Esteve adoentado, mas já está bom. Aqui logo estará com saúde novamente.
Rita não se conformou.
- Sérgio, o que aconteceu? O que está sentindo?
- Só um pouco tonto. O médico me deu calmantes. Já estou melhor, vai passar.
O pai ia retrucar, mas Rubens fez-lhe um sinal para que se calasse. Rita percebeu e tentou esconder a preocupação.
- Vou tratar de você. Garanto que logo estará bom. Você vai tomar um bom café. Vamos entrar.
Uma vez no quarto, Rubens disse:
- Passei em seu apartamento e coloquei suas coisas na mala. Peguei o que achei que ia precisar. Quando você estiver bom, resolverá o que fazer.
- Obrigado. Não me recordo de tudo que aconteceu, mas sei que se não fosse por você, ainda estaria lá, naquela tortura.
Vicente apareceu na porta.
- Sua mãe está chamando vocês para tomarem café.
- Já vamos, pai - respondeu Rubens. - Vamos só lavar o rosto.
Depois de lavar-se e trocar a camisa, ao sentar-se à mesa para o café Sérgio sentiu-se melhor. O carinho dos pais, a alegria de Rubens, o aconchego familiar
fizeram-lhe bem.
Depois do café, quando foi forçado a tomar leite, comer pão com manteiga e queijo feito em casa, Sérgio mais refeito não se conteve:
- Rubens, precisamos conversar. Você ainda não me contou o que aconteceu, como me tirou da prisão.
Vendo o ar admirado dos pais, Sérgio relatou o que lhe acontecera, finalizando indignado:
- Imaginem, eu, ladrão! Sabem que havia uma conta num banco em que eu nunca entrei, com aquele dinheiro todo que foi desviado da empresa?
- Nesse caso, alguém fez isso de propósito! - disse Vicente.
- É o que eu desconfio, pai. Mas quem poderia ter feito isso? Quem me odiaria tanto para tentar me destruir?
- Uma coisa é certa - considerou Rita, pensativa. - Se o dinheiro roubado foi colocado em seu nome, a pessoa queria mesmo era sua desgraça. Desviou o dinheiro
só para poder jogar a culpa em você. Senão, teria ficado com ele.
- Eu fiquei tão louco que queimei de febre. Nunca havia sido preso. Estava arrasado. Arlete não apareceu e comecei a pensar que ela acreditou nessa história.
Tomei tantos calmantes que não me lembro do que aconteceu depois. Rubens é quem vai contar. Afinal, eles descobriram que sou inocente? Prenderam o culpado?
Rubens suspirou, hesitou um pouco, depois decidiu:
- É melhor você saber logo o que aconteceu. Fui chamado na empresa e seu chefe disse que ele e o pai de Arlete estavam muito sentidos por você haver cometido
esse deslize e que seu casamento com ela era impossível. Eles não poderiam mais confiar em você. Como você sempre fora um funcionário exemplar, que durante tantos
anos prestara serviços na empresa, eles retirariam a queixa com a condição de eu trazer você para cá e nunca mais voltar para São Paulo e nem ver Arlete.
- Quer dizer que ainda pensam que fui eu? E Arlete, ela sabe de tudo? Foi ela quem decidiu romper comigo?
- Não. Eu perguntei se a decisão tinha sido dela, e ele disse que foi o pai dela quem resolveu assim. Se quer saber, eu acho que eles esconderam tudo dela.
- O que você respondeu? Aceitou suas condições?
- Aceitei. Não podia deixar você lá, preso. Garanti que eles estavam enganados, que você era incapaz de roubar o que quer que fosse e que um dia eles ainda
iriam arrepender-se de haverem acreditado nessa história. Achei melhor trazer você para cá. Aqui todos lhe querem bem e sabem que você é inocente. Aquele povo não
é digno de sua amizade.
Sérgio cobriu o rosto com as mãos e baixou a cabeça pensativo. Sentia-se arrasado. Sua vida fora destruída. De que lhe valeram tantos anos de esforço e
luta no trabalho honesto? Bastaram alguns minutos para jogar tudo fora. Que mundo era esse que deixava a maldade triunfar? Quem teria tramado contra sua felicidade?
O rosto de Flora apareceu-lhe na mente, mas ele relutou em acreditar. Ela era ambiciosa, perversa, mas o odiaria a tal ponto? Fora ela quem lhe dera o
fora, ele nunca a prejudicara. Ela estava na empresa e ele aceitara bem sua presença e nunca fizera nada para perturbá-la. Teria sido capaz de tanta maldade? Por
outro lado, não tinha inimigos. Sempre se dera muito bem com os colegas e não sabia de ninguém que o quisesse prejudicar.
Rita colocou a mão na cabeça de Sérgio, dizendo com voz que procurava tornar firme:
- Coragem, meu filho! Não se deixe abater. A maldade tem pernas curtas. Um dia você vai descobrir tudo e limpar seu nome, tenho certeza. Essas pessoas
que o julgaram mal vão se arrepender.
Sérgio não respondeu. De que adiantaria? Arlete não o procurara. Certamente acreditara na sua culpa. As evidências estavam contra ele e nunca teria como
descobrir a verdade. Sua vida estava acabada. Nunca mais voltaria à cidade. Rubens estava certo. Lá só havia gente maldosa e falsa. Ele estava muito cansado, e perdera
a vontade de lutar. Deixar-se-ia ficar ali para sempre. Estava acabado e nunca mais seria feliz.
Baixou a cabeça procurando esconder o desespero que lhe ia na alma. Vendo seu abatimento, Rubens tentou animá-lo.
- Isso é o que eu penso. Não fique triste. Nós sabemos que é inocente e estamos do seu lado. Aqui é seu lugar, junto dos que lhe querem bem. Toda essa
história mexeu com sua saúde e você está cansado. Precisa se recuperar. Dê um tempo, descanse. Tenho a certeza de que logo vai ficar bem e reconstruir sua vida.
Sérgio meneou a cabeça desalentado.
- Você quer me animar, mas a vida para mim acabou. Nunca mais serei feliz. Arlete era tudo quanto eu queria na vida. Meu trabalho, realizado com dedicação
e honestidade, era meu orgulho. Como viver depois de haver perdido tudo? Como aceitar que Arlete, Flávio e o Dr. Anselmo, que me conheciam há tantos anos, foram
capazes de acreditar que eu os houvesse roubado?
Rubens colocou a mão no ombro do irmão tentando confortá-lo enquanto dizia:
- Eles relutaram, estavam tristes, pude perceber. Mas como poderiam duvidar diante daquelas provas?
- Vocês não acreditaram! Por que eles não fizeram o mesmo? Não me deram uma chance de descobrir a verdade. Isso me dói muito. Arlete, em quem eu confiava
tanto, sequer me procurou para ouvir o que eu tinha a dizer. A decepção me arrasa tanto ou mais do que a prisão. E você acha que eu vou conseguir esquecer? Vou recomeçar
a vida como se nada fosse? Do que acha que sou feito?
- Ainda penso que Arlete não sabe de nada. Eles não lhe contaram. Percebi que estavam com pressa de abafar o caso e de ver você bem longe dali.
- Não poderiam esconder. Vendo que eu desapareci sem dizer nada, ela com certeza teria ficado aflita e descoberto tudo. Não creio que ela ignore. O que
está claro é que ela aceitou minha culpa e resolveu não me procurar.
- Se fosse eu - disse Vicente, pensativo -, esfriava a cabeça, descansava bastante e depois lhe escrevia uma carta contando tudo. Afinal vocês iam se
casar no fim do mês.
- O pai tem razão - tornou Rubens. - Antes de desistir, você precisa conversar com ela, esclarecer os fatos e saber o que ela pensa. Não pode aceitar
uma situação só porque os parentes dela querem. O caso é entre você e ela, mais ninguém.
Sérgio ficou pensativo por alguns instantes, depois disse:
- Vocês querem animar-me. Estão do meu lado, acreditam em mim. Eu penso que ela ficou do lado dos pais. É uma moça de princípios. Nunca se casaria com
um ladrão.
- Mas você é inocente - aduziu Rita - e essa menina precisa saber disso.
- Não vou escrever nada. Chega de me machucar. Se ela não houvesse acreditado neles teria ido procurar-me. Ela nunca apareceu.
- Talvez não tenha sabido de nada.
- Seja como for, acabou. Nunca mais irei para São Paulo. Rita aproximou-se e passou o braço pelo seu ombro, beijando-o no rosto com carinho.
- Seja como for, meu filho, vamos deixar o tempo passar. Amanhã é outro dia e tudo pode ser melhor. Vou cuidar de você.
Sérgio abraçou-a e não mais conteve o pranto, deixando-o correr livremente, dando vazão à tristeza imensa que lhe ia na alma, onde se mesclavam o desânimo
e a desilusão. Para ele a vida havia acabado e não sentia mais vontade de lutar.

Capítulo 10





D
epois que Rubens saiu do escritório, o Dr. Anselmo deixou-se cair em uma poltrona, dizendo abatido:
- Agora é a pior parte. Precisamos dizer alguma coisa a Arlete. Faria tudo para não ter que lhe dar esse desgosto.
- Eu também, tio. Mas temos que ser práticos. Não há outro remédio.
- Se ela descobrir que ele está preso, de nada vai adiantar.
- Você não lhe disse que ele viajou por alguns dias a serviço da empresa?
- Disse. Ela estranhou que ele não houvesse telefonado para se despedir nem nada. Sabe como é, eles ultimamente não se largavam. Queria o nome do hotel.
- Ela não desconfiou?
- Não. Eu disse que ele teve que viajar para o Rio Grande do Sul às pressas, porque o assunto era urgente e que assim que chegasse lá telefonaria dando
o nome do hotel.
- E ela?
- Nesses três dias nem saiu de casa, de olho no telefone. Dava pena ver.
- É lamentável.
- O tempo está passando e temos que arranjar uma solução definitiva. Mesmo assim, não tenho coragem de dar-lhe essa notícia. Você poderia fazer-me esse
favor.
- Eu?!!
- Sim. Afinal ela sempre foi muito sua amiga e o admira muito. Depois você saberá confortá-la nessa hora.
- Eu não gosto dessa situação dúbia. Por mim, contaria toda a verdade. Seria melhor. Não me sinto à vontade mentindo, e muito menos a ela.
- Isso não. Peço-lhe encarecidamente que não faça isso. Ela iria correndo atrás dele e seria uma tragédia maior. Você quer que ela se infelicite pelo
resto da vida?
- Então, tio, não me peça para dar-lhe essa notícia. É você quem deseja fazer as coisas dessa forma. Por isso, a responsabilidade é sua.
- Você mesmo disse que era melhor retirar a queixa, libertá-lo e não contar a verdade a ela.
- Disse para libertá-lo porque, apesar do que ele fez, repugna-me vê-lo preso. Ele era meu amigo. Concordei com você em poupar Arlete evitando um casamento
errado, mas agora, pensando bem, não sei se estamos agindo acertadamente. Estou constrangido. Não temos o direito de interferir na vida dos dois. O correto seria
contar-lhe toda a verdade e deixá-la decidir o que deseja fazer.
- Claro que ela irá correndo atrás dele! É muito nobre e não vai aceitar que ele seja um ladrão. Se você não quer dar-lhe a notícia, terei que dá-la eu
mesmo. Mas quero sua palavra de que não vai contar-lhe nada.
- Tenho certeza de que ela vai perguntar.
- E você não vai dizer nada. Flávio suspirou pensativo.
- Pense bem, tio. Conte-lhe a verdade. Deixe-a decidir. Afinal a vida é dela.
- Não. Ela nunca saberá. O tempo é santo remédio. Arlete logo esquecerá e um dia encontrará um homem bom e honesto, casar-se-á e será muito feliz. Como
pai, tenho o dever de protegê-la.
- Espero que saiba o que está fazendo.
- Assumo toda a responsabilidade por esse ato. Agora vou conversar com ela. Quero libertar-me logo desse peso.
Flávio não respondeu. Ele também desejava esquecer. Gostara de Sérgio desde o primeiro instante. Seu jeito de menino, seu sorriso franco e confiante,
seus sonhos e aspirações, seu deslumbramento ao conquistar pouco a pouco seu espaço como profissional. Flávio o tinha como se fosse seu irmão mais moço. Nunca o
imaginara capaz de um ato de desonestidade. Diante do acontecido, sentia-se desiludido e triste. Mas não podia fazer nada. Sérgio escolhera seu próprio destino.
Quando Anselmo chegou em casa, mandou chamar Arlete em seu gabinete. Vendo-a sentada diante dele, respirou fundo e decidiu:
- Precisamos conversar. O assunto é muito importante.
- Do que se trata? - De Sérgio.
Ela sobressaltou-se:
- Aconteceu alguma coisa a ele? Desde que ele viajou tive dois pesadelos onde ele me apareceu pálido, pedindo ajuda, desesperado. Sinto que há alguma
coisa muito ruim acontecendo. O que é?
Anselmo pigarreou.
- Bem... Realmente, aconteceu algo inusitado. Não sei o que pensar...
Arlete levantou-se.
- Fale logo. Não me atormente. O que aconteceu? Algum acidente?
- Não. Que eu saiba não houve nada disso. Mas o fato é que ele desapareceu.
- Desapareceu? Como?!!
- Sumiu. Saiu para ir a Porto Alegre, mas nunca chegou lá.
- Não pode ser. O que teria acontecido?
- Como ele demorasse a nos contatar, ligamos para a firma que ele deveria visitar e disseram que ele nunca apareceu lá.
- Não é possível! Sérgio nunca nos deixaria sem notícias. Alguma coisa séria deve ter-lhe acontecido. Ele levava dinheiro? Teria sido assaltado?
- Não. Nós fomos investigar e descobrimos que antes de viajar ele entregou o apartamento, pagou todas as contas, levou todos os seus pertences. Sinto
dizer-lhe, mas ele planejou a fuga.
- Fuga? O que está dizendo? Sérgio nunca faria isso! Não posso acreditar.
- Pois ele fez. Está bem claro que quando ele partiu não pretendia mais voltar.
Arlete deixou-se cair em uma cadeira balbuciando:
- Não posso acreditar! Sérgio nunca faria isso. Ele me amava! Esperava ansiosamente pelo nosso casamento.
- Se isso fosse verdade, ele não teria usado o pretexto da viagem para desaparecer. Ele planejou tudo. Liquidou as contas, entregou o apartamento, levou
todas as suas coisas. Certamente ele não pensava em voltar.
Arlete meneava a cabeça sem conseguir entender. Levantou-se, fixou o pai com determinação dizendo:
- Você está pressupondo isso. Ele vai voltar e vai explicar tudo. Tenho a certeza de que ele não me abandonou. Ele me ama e vai voltar. Sei o que estou
dizendo. Sérgio vai voltar.
- Penso que ele nunca mais vai aparecer. Vamos suspender os preparativos para o casamento.
- Não farei isso.
- Quer nos levar ao ridículo? Vamos suspender a cerimônia. Felizmente os convites ainda não foram enviados.
- Tenho a certeza de que ele vai aparecer. Vamos continuar como se nada houvesse.
- Nada disso. Vamos suspender tudo até ele dar notícias. Se ele aparecer então recomeçaremos. Vamos adiar enquanto ele não se comunicar conosco.
- Está bem. Adiaremos as formalidades. Mas vou continuar com os preparativos da nossa casa. Ela tem que ficar pronta de qualquer jeito.
Anselmo concordou. Conhecia Arlete e sabia que adiar os preparativos da cerimônia fora uma grande vitória. Seria até bom que ela se ocupasse com a casa.
Com o tempo, vendo que Sérgio não voltava, teria de conformar-se.
Arlete deixou o gabinete do pai angustiada. O que teria acontecido? Sentia que algo de muito grave estava ameaçando sua felicidade e a de Sérgio. A lembrança
do rosto pálido e aflito, pedindo ajuda, que vira em sonhos a preocupava. Respirou fundo e tentou acalmar-se. A tempestade ia passar. Ele logo se comunicaria e explicaria
tudo. Não podia deixar-se abater. Com carinho e alegria continuaria preparando a casa onde eles deveriam morar.
Nem por um momento acreditou que ele houvesse desaparecido para fugir ao compromisso. Como seu pai, conhecendo-o há tantos anos, podia imaginar uma coisa
dessas? Por que será que ele teria entregue o apartamento e levado todas as coisas? Teria pensado em se demorar e voltar só para o casamento? Não. Isso não. Ele
lhe disse que pretendia hospedar a família, que deveria chegar uma semana antes da cerimônia. Nesse caso, por que teria se desfeito do apartamento?
As perguntas sucediam-se sem resposta. Tinha que convir que esse comportamento era muito estranho. Algo estava acontecendo. Mas, fosse o que fosse, tinha
a certeza de que ele a procuraria e contaria tudo. Ela era otimista. Preferia sempre pensar no melhor. Não se deixaria abater. Continuaria como se nada houvesse
acontecido.
Mas os dias foram passando e Sérgio não dava notícias. Aos poucos o otimismo inicial de Arlete foi sendo substituído pela tristeza e pela angústia. Aflita,
desabafava com Flávio:
- Não me conformo! Precisamos fazer alguma coisa. Algo muito sério deve ter acontecido com Sérgio. Você, que era tão seu amigo, não tem idéia do que possa
ser? Que negócio urgente era esse em Porto Alegre?
- Seu desaparecimento não teve nada a ver com Porto Alegre. Ele nunca chegou lá.
- Você e papai estão muito conformados. Ninguém pensa em fazer nada. Vocês sabem de alguma coisa e não querem me contar... É isso?
- Não...
- Você não faria isso comigo. Estou muito angustiada. Está me dizendo a verdade?
Flávio olhou-a com tristeza.
- Gostaria muito que nada houvesse acontecido. Faria qualquer coisa para evitar esse sofrimento. Infelizmente não há nada que eu possa fazer.
- Ele entregou mesmo o apartamento e levou todas suas coisas?
- É verdade.
Arlete sacudiu a cabeça negativamente.
- Não consigo entender.
- O melhor que tem a fazer é aceitar o que aconteceu.
- Não posso aceitar isso. Ele deixou o emprego sem dizer nada? Acha que alguém faria isso depois de haver trabalhado durante tantos anos? Ele não tinha
nada a receber?
- Não. Ele pediu um adiantamento, pensamos que fosse para as despesas com o casamento.
- Você também pensa como papai, que ele foi embora para fugir ao compromisso comigo? Acha que ele não vai voltar mais?
- É difícil dizer por que ele fez isso. Diante dos fatos, penso que ele nunca mais vai aparecer.
- Pois eu não. Sérgio me ama. Algo de muito ruim deve ter acontecido. Ele não me abandonou.Tenho certeza disso. Vou continuar esperando. Um dia ele ainda
voltará para mim e então saberemos o que realmente aconteceu.
Flávio acariciou os cabelos dela com carinho.
- Nós muitas vezes desejamos alguma coisa, mas a vida nos dá outra. Você sabe que ela sempre age pelo melhor. Aceitar o que não tem remédio é sábio e
evita sofrimento. Reaja. Não deixe que nada nem ninguém destrua sua alegria e seu prazer de viver. Você sempre foi corajosa e forte.
- É difícil ser alegre quando se tem o peso da angústia no coração. Não saber o que aconteceu aflige e não me permite estar em paz. Mil pensamentos tumultuados
passam pela minha mente, sem falar dos pesadelos que tive, logo nos primeiros dias que ele desapareceu. Não posso esquecer seu rosto angustiado e pálido, suplicando
ajuda. Sinto que ele está muito infeliz e atormentado e isso me confunde ainda mais. Gostaria de ajudá-lo, mas não sei o que fazer nem a quem recorrer.
Flávio olhou-a penalizado. Sentia ímpetos de contar-lhe toda a verdade, mas havia prometido ao tio ficar calado. Falaria com ele novamente. Arlete precisava
saber de tudo. Aquela situação era cruel demais.
Flávio conversou com o tio, mas este mostrou-se irredutível. Em face da situação, era certo que, ao saber de tudo, Arlete correria em busca de Sérgio.
Ele não podia permitir uma loucura dessas. Proibiu o sobrinho de dizer qualquer coisa.
Quando a casa ficou pronta, Arlete se decidiu. Arrumou as malas e mudou-se para lá. Nora e Anselmo tentaram de todas as maneiras convencê-la a voltar
para casa. Foi inútil.
- Não adianta. Vou morar aqui. Esta é minha casa.
- Você não pode ficar aí sozinha.
- Há os criados. Não estou só.
- Não é bom ficar aí remoendo o passado - disse Anselmo. - E depois, você é moça solteira, não fica bem.
Arlete deu de ombros.
- Não me importo com a opinião de ninguém. Esta é minha casa. Quando Sérgio voltar, vai encontrar-me aqui, em meu lugar.
- Filha - tornou Nora preocupada -, ele nunca mais vai voltar. Você não pode desperdiçar sua vida dessa forma. É jovem, pode encontrar outra pessoa, casar,
ser feliz.
- Ninguém pode avaliar o que sinto senão eu. Peço que respeitem os meus sentimentos. Amo Sérgio. Tenho vontade de ficar aqui, entre as coisas que escolhemos
juntos. É minha maneira de estar com ele. Por favor, entendam isso.
- Vamos embora, Nora - resolveu Anselmo com tristeza. E voltando-se para Arlete: - Pense bem, filha, e volte para casa. Ficaremos muito tristes sem você
lá.
Arlete beijou-os delicadamente.
- Não se preocupem comigo. Estou bem. Eles saíram e no carro Nora disse:
- Parte o coração a tristeza dela. Tem certeza de que não podemos fazer nada, Anselmo?
- Infelizmente não.
- Flávio acha que seria melhor contar a verdade.
- Ela iria correndo atrás dele. Precisamos evitar isso.
- Pode ser que não. Ela o ama e pensa que lhe aconteceu algum acidente. Se souber que ele roubou a empresa certamente passará a desprezá-lo. Ela é lúcida
e, apesar de amá-lo, não vai aprovar o que ele fez. Vai saber separar as coisas.
- Não quero correr o risco.
- E deixá-la nessa angústia?
- Isso vai passar. Ela é jovem e esquecerá.
- Espero que você esteja certo. Não agüento mais ver Arlete nesse sofrimento.
Depois que os pais saíram, Arlete dirigiu-se para o quarto para continuar a arrumação. Enquanto colocava as roupas nas gavetas não conteve as lágrimas.
Eles haviam planejado tanta coisa! Naquela casa, cada canto a fazia recordar os encontros que haviam tido. Era lá que eles costumavam ir para se amarem apaixonadamente.
Era desses momentos de amor que lhe vinha a certeza de que ele a amava. Para ela, seu casamento se consumara no momento em que se entregara a ele.
Ao abrir uma gaveta, deparou com a caixa da tia Amélia, apanhou-a e abriu. Encontrou a carta do tio desaparecido. Vendo-a, apanhou-a, abriu-a e a leu
novamente. Sentou-se na cama, pensativa, revirando a carta entre os dedos. Era estranho, mas a história se repetia. O que já acontecera com a tia estava acontecendo
com ela. Sérgio desaparecera sem que ela soubesse o motivo, com a agravante de não haver deixado nem uma carta sequer.
Estranho destino as submetera à mesma prova. Tia Amélia aceitara e passara a vida inteira esperando que algo acontecesse. Ela era diferente. Embora disposta
a esperar por Sérgio, sentia que podia fazer alguma coisa. E ela se perguntava: o que a vida queria ensinar-lhes com aquela separação? Acreditava que tudo acontece
para o melhor e, embora sofrendo, os fatos guardavam uma lição que eles deveriam aprender para conquistar a felicidade sonhada. Quanto mais depressa descobrisse
o que era, mais rapidamente o teria de volta.
Ainda segurando a carta entre os dedos, fechou os olhos e pensou:
- Tia Amélia, você agora já deve saber o que aconteceu com o tio. Talvez possa me ajudar. Você pode avaliar como me sinto. Ajude-me. Eu quero saber o
que aconteceu com Sérgio. Quero que ele volte!
Um arrepio percorreu-lhe o corpo e um pensamento ocorreu-lhe:
- Procure ajuda espiritual. Urgente.
Ajuda espiritual? O que isso queria dizer? Parecera-lhe que alguém lhe sussurrava essas palavras. Não seria fruto do seu próprio pensamento? Ela não sabia
bem o que seria uma ajuda espiritual. Deveria procurar um padre, ir à igreja?
- Não.
Dessa vez percebeu que era uma voz de mulher que respondia. Seria ilusão? Se não devia ir a uma igreja, onde procurar essa ajuda espiritual?
- Reze. Vou tentar ajudá-la.
Arlete sentiu forte emoção. Por um instante pareceu-lhe ver a figura de tia Amélia alisando seus cabelos com carinho; sentiu seu perfume e agradável sensação
de bem-estar. Abriu os olhos, fechou-os novamente, não percebeu mais nada. Apenas um pouco do perfume ainda estava no ar, como a dizer que aquilo acontecera realmente.
Comovida, Arlete abraçou a pequena caixa e a beijou com carinho.
- Obrigada, tia. Sei que esteve aqui e vai me ajudar. Deus a abençoe.
Durante todo o dia, Arlete não conseguiu esquecer a emoção que sentira. Sempre acreditara na continuidade da vida após a morte. Agora, no entanto, essa
certeza ficara devidamente comprovada. Tia Amélia ouvira seu apelo e viera para ajudá-la.
Sua palavras ainda soavam nos ouvidos de Arlete e ela tentava entender o que significavam. Era urgente procurar ajuda espiritual. Onde? Como? Tia Amélia
lhe pedira para rezar. Esse era o caminho para descobrir o que desejava.
No dia seguinte, Flávio telefonou para saber como ela estava.
- Você não tem aparecido - disse. - Estou com saudades. Que tal jantarmos juntos esta noite em algum lugar agradável?
- Tenho estado ocupada a arrumar as coisas. Ainda não consegui colocar tudo em ordem.
- Deixe isso para outro dia. Estou me sentindo muito solitário. Então, vamos sair esta noite?
- Está bem. Pode vir às oito.
Flávio chegou pontualmente e Arlete já estava pronta. Fazia muito tempo que ele não ia à casa que fora de tia Amélia, mas evitou comentar a respeito.
Não queria que Arlete se entristecesse.
Ela preferiu um lugar sossegado. Sentados no restaurante Flávio indagou:
- Não está se sentindo só naquela casa? É a primeira vez que se afasta da família.
- Não. Estou com minhas lembranças e por enquanto é só o que quero.
- Seus pais estão preocupados. Não se conformam com sua decisão de sair de casa.
- De qualquer forma eu ia sair mesmo. Preciso assumir minha vida definitivamente. Você sabe que mantenho aquela casa desde que tia Amélia se foi. Nada
mais justo que vá viver lá.
Flávio sacudiu a cabeça pensativo, depois disse:
- Não é um tanto mórbido cultivar essas lembranças? Ainda mais agora, depois do que aconteceu com você?
- Não penso assim. A vida continua em outras dimensões e você sabe que tia Amélia está tão viva quanto nós. Não costuma dizer que a morte não existe?
- Tenho lido a respeito. Essa teoria parece-me viável. Gostaria de pesquisar melhor. Às vezes sinto vontade de ir a um bom Centro Espírita.
- Centro Espírita? Não tem medo de se envolver com essas coisas?
- Não. Existem pesquisadores sérios, médiuns dedicados que se submetem a essas experiências, e com elas ajudam as pessoas.
Arlete deu um pulo na cadeira exclamando admirada:
- Então é isso! É o que tia Amélia queria dizer-me.
- O quê?
Entusiasmada, Arlete contou-lhe a experiência que tivera e finalizou:
- Ela se foi, mas seu perfume ficou no ar durante algum tempo. Reconheci-o imediatamente. E suas palavras ainda soam em meus ouvidos: "Procure ajuda espiritual
urgente". Não entendi o que queria dizer e ela pediu que eu rezasse. A resposta veio através de você!
Flávio olhava-a admirado.
- Acha que foi isso mesmo?
- Só pode ser. Por que é que você mencionou esse assunto?
- Sei lá. Senti vontade, uma coisa puxa a outra. Na semana passada, Walter convidou-me para ir a um lugar desses.
- Você foi?
- Não. Walter está muito entusiasmado. Só fala nisso. Parece que anda vendo os espíritos e freqüentando essas reuniões. Pensei que ele estivesse exagerando.
Mudou radicalmente.
Arlete colocou a mão sobre a dele dizendo:
- Eu quero ir lá.
- Não se entusiasme muito. Ele pode estar enganado.
- Estou certa que não. Não percebe que tudo nos está conduzindo para isso?
- É. A vida tem seus próprios meios e quando quer tece seus pauzinhos. Também estou curioso. O que aconteceu a você pode ser fruto da sua emoção, da atmosfera
da casa de tia Amélia, e até do seu estado emocional. No entanto, por que eu teria entrado nisso e mencionado os espíritos? Você está certa. Se houver algo mais,
vamos descobrir. Está na hora de começarmos a estudar esse assunto.
No dia seguinte, Flávio telefonou ao amigo.
- Seu convite ainda está de pé? Eu e Arlete resolvemos ir às reuniões espíritas com você.
- Finalmente! Sempre achei que vocês iriam gostar. O grupo é formado por pessoas inteligentes e preparadas. Estou aprendendo muito.
- Por enquanto queremos apenas conhecer.
- Também comecei assim. Mas aconteceram coisas que me fizeram mudar. Combine com Arlete e amanhã passarei em sua casa para apanhá-los às dezenove e trinta.
Serei pontual. Se chegarmos depois de fechadas as portas, não poderemos mais entrar.
- Pontualidade sempre foi meu forte. Pode deixar. Estaremos prontos.
Na noite seguinte eles estavam prontos antes do horário previsto. Como Walter chegou cedo, ainda houve tempo para um cafezinho. Walter considerou:
- Sinto-me feliz por terem decidido ir comigo. Tenho vivenciado experiências extraordinárias. Depois disso, a vida passou a ter novo sentido para mim.
Vocês sabem, em minha profissão posso ver coisas muito tristes que sempre me pareceram injustas, inexplicáveis. Na batalha contra a morte, muitas vezes perdemos.
Saber que a vida continua, que tudo tem uma causa justa, alivia, conforta.
- Eu também gostaria de encontrar esse conforto. Estou precisando.
Arlete com naturalidade contou tudo quanto lhe acontecera e finalizou:
- Tenho certeza de que tia Amélia me visitou e deu essa sugestão.
Walter entusiasmou-se:
- Eu não disse? Essas coisas funcionam mesmo. Aí deve ter alguma coisa errada. Sérgio sempre me pareceu um bom moço. Por que iria desaparecer desse jeito?
Que ele amava você, não duvido. Todas as vezes que conversávamos e ele mencionava seu nome, seus olhos brilhavam. Podem ter feito algum "trabalho" contra ele.
- O que é isso? - interessou-se Arlete.
- Macumba. Já ouviu falar?
- Já. Você acredita nisso?
- Acredito. Não sei por que às vezes "pega", às vezes não. Mas quando "pega", é um caso sério.
Flávio tentou desviar o assunto.
- Você está exagerando. Feitiçaria é crendice. Logo você, um médico, fazer uma afirmativa dessas!
- Se tivesse visto o que eu vi, não diria isso. Nos sanatórios há casos em que se nota a interferência dos espíritos perturbadores enlouquecendo as pessoas.
- Com que fim? - admirou-se Arlete.
- Vingança, domínio, jogo de poder para afastar alguém do caminho. Sob a ação desses espíritos, as pessoas sofrem ausências, dizem coisas disparatadas,
ficam agressivas ou apáticas. Tomam remédios fortes e ficam pior.
- Como é que você sabe que elas estão assim por influência de espíritos? - indagou Flávio.
- Vi alguns casos no Centro. Quando eles convencem esses espíritos a deixarem a pessoa, ela melhora imediatamente.
- É incrível! - tornou Arlete admirada. - Isso bem pode ter acontecido com Sérgio. Ele pode estar perdido, desmemoriado por aí.
- Espere aí - interveio Flávio -, não creio que isso tenha acontecido com Sérgio. Você está exagerando.
- Por quê? - rebateu Arlete. - Você sabe alguma coisa mais sobre o assunto? Sempre me pareceu que você não tinha dito tudo...
- Só não quero que se iluda. Nós ainda nem fomos à sessão e você já está impressionada desse jeito. Não sei se faremos bem indo lá. Pensei que fosse mais
sensata.
- Você sabe que não me iludo com facilidade. Contudo essa hipótese do Walter poderia explicar o mistério do desaparecimento do Sérgio e o conselho de
tia Amélia. Por que nos pediria para ir buscar ajuda espiritual? Porque Sérgio está precisando dela.
- Arlete tem razão. Mas não adianta ficarmos discutindo. Vamos embora que está na hora. Veremos o que vai acontecer.
Durante o trajeto Arlete sentia-se ansiosa e emocionada. Iria ter notícias de Sérgio? Diante de uma antiga e bela casa eles pararam.
- É aqui - esclareceu Walter.
Desceram. Entraram e Walter os conduziu à sala das reuniões onde havia cerca de vinte pessoas, e as apresentou uma a uma aos dois amigos. Flávio surpreendeu-se
ao encontrar ali um antigo professor da universidade, escritor respeitado a quem muito admirava. Abraçou-o, comovido:
- Professor Celso, que prazer!
- Como vai, meu filho?
Apresentou Arlete com satisfação. Se ele comparecera à reunião com alguma reserva, a presença do Dr. Celso modificou completamente sua disposição. Tratava-se
de um homem íntegro, sério, e que não se prestaria a nenhuma fantasia. Teve que reconhecer que o ambiente era excelente e as demais pessoas muito agradáveis.
Algumas sentaram-se ao redor da mesa onde havia rica bandeja de prata com uma jarra de água, alguns copos e vários livros. O velho professor sentou-se
à cabeceira, enquanto os outros acomodavam-se nas cadeiras espalhadas pela sala. Apagaram-se as luzes, ficando acesa apenas uma pequena lâmpada azul; o professor
pediu que se concentrassem e proferiu ligeira prece. As luzes acenderam-se e ele falou.
- Vamos ao caso de hoje. Quem quer colocar? Um dos presentes tomou a palavra:
- Trago notícias do Mário. Depois do último trabalho quando conseguimos convencer a Laura a deixá-lo, ele melhorou bastante. Quis tomar banho sozinho,
alimentou-se, penteou-se e até reclamou que sua camisa não era do seu gosto. Como ele me pareceu mais lúcido, diminuí a dosagem de calmantes. Se continuar assim,
vai se recuperar mais depressa do que prevíamos.
- Parece-me que está na hora de começar o trabalho terapêutico. Você acha que ele teria condições de responder a isso? - indagou outro.
- Talvez possamos tentar - respondeu o primeiro.
- Concordo - disse o Dr. Celso.
Uma moça aproximou-se entregando-lhe uma ficha.
- Eis a ficha dele, Dr. Celso.
- Obrigado. Ele estava tomando uma dose alta de medicamento. Reduziu para quanto?
Flávio e Arlete não perdiam nada da conversa. Tratava-se de um paciente daquele médico cujo tratamento vinha sendo ministrado com a ajuda dos espíritos,
segundo Walter lhes esclareceu baixinho. Combinaram os próximos passos e tudo foi devidamente anotado na ficha. Depois vieram outros casos, todos interessantes,
discutidos e anotados nas respectivas fichas.
Por fim, apagaram as luzes e o Dr. Celso passou a palavra aos espíritos. O silêncio se fez. O coração de Arlete batia descompassado e ela rezava pedindo
a ajuda de Deus. Uma senhora ao redor da mesa começou a falar sobre as alegrias da fé, do conforto de saber que, apesar das dores no mundo, as bênçãos do amor divino
continuam a banhar a Terra, amparando e esclarecendo. Um moço, também ao redor da mesa, apanhara papel e lápis e escrevia velozmente sem interrupção. Até que deixou
cair o lápis e parou. Dr. Celso fez uma rápida prece de agradecimento e encerrou a reunião. As luzes se acenderam e Arlete sentia-se um pouco decepcionada por não
haver acontecido nada do que esperava.
O rapaz que escrevera apanhou os papéis, ordenou-os melhor e depois começou a chamar algumas pessoas, entregando-lhes as mensagens.
- Arlete.
Ela levantou-se trêmula e apanhou o papel que lhe era destinado, coração batendo, e leu:
"Querida Arlete. Fico feliz em poder abraçá-la de novo e dizer que avalio seu sofrimento. Não se deixe abater. Estamos tentando ajudá-la. Confie e espere.
É importante que continue freqüentando esta casa. Um dia saberá como tudo aconteceu. Continue rezando. Obrigada por cuidar das minhas coisas com tanto amor. Um beijo
carinhoso da tia Amélia."
Arlete, emocionada, não conseguiu articular palavra. Entregou o papel a Flávio, que o leu e guardou silêncio. Não tinha mais dúvidas. Aquela carta era
mesmo de tia Amélia. A riqueza de detalhes, as coisas que ninguém, nem mesmo Walter, podia saber, estavam ali, demonstrando claramente que fora ela mesma quem escrevera.
Quando a emoção serenou, Arlete agradeceu ao médium que recebera aquela carta e cumprimentou o Dr. Celso, perguntando-lhe se poderia freqüentar as reuniões.
Obteve permissão e no carro comentaram entusiasmados os detalhes da reunião.
- Entenderam por que tenho falado tanto nisso?
- Entendi - disse Flávio. - Eu também me sinto motivado a continuar. Esse assunto é fascinante. Conhecer o que acontece depois da morte, saber que eles
se comunicam conosco e interferem em nossas vidas, é incrível. Adorei encontrar o Dr. Celso. Ele é um homem extraordinário. Não sabia que era espírita. Na faculdade
nunca mencionou nada disso.
- Sempre foi. Ele fundou o centro e a casa é dele. As pessoas o amam e admiram. Há lá vários médicos, psiquiatras, psicólogos e terapeutas que trazem
casos para pesquisa e tratamento. É um trabalho sério e muito proveitoso. A reunião desta noite foi só de estudos, mas há outras para doutrinação dos espíritos sofredores.
São eles que perturbam as pessoas.
- Gostaria de assistir a uma delas - considerou Flávio.
- Elas são privativas.
- Você já participou?
- Já. Eu participo sempre.
- Como posso conseguir isso?
- Precisa obter permissão dos mentores espirituais.
- Eu também gostaria - interveio Arlete.
- Levarei seus nomes à próxima sessão e perguntarei.
- Faça isso - pediu Flávio interessado.
- Eu gostaria de pedir ajuda para Sérgio - disse Arlete. - Sinto que alguma coisa muito séria aconteceu com ele. Como vamos saber se não está sob a influência
de espíritos perturbadores?
- Escreva o nome dele e o endereço que eu pedirei ajuda para ele na próxima reunião.
- Não tenho o endereço. Esqueceu-se de que ele sumiu? - tornou Arlete preocupada.
- É verdade - respondeu Walter. - Não importa. Eu peço e na hora vou pensar nele.
- Gostaria de estar com você!
- Não posso levá-la sem pedir permissão. Algo me diz que você logo poderá ir.
Quando Walter se foi, Flávio conversou com Arlete.
- Você está esperando muito dessas reuniões. Precisa ser mais cautelosa.
- Por quê? Você também gostou e pretende continuar freqüentando.
- É verdade. É um grupo sério, fazendo um trabalho interessante, ajudando as pessoas.
- Depois da mensagem de tia Amélia, não tenho dúvidas de que os espíritos podem comunicar-se conosco.
- Tudo indica que sim. Mas você espera que eles resolvam o caso de Sérgio. E se ele não estiver sob ação dos espíritos perturbadores e tudo continuar
como está? Não desejo que se iluda esperando que ele volte. Que sofra nova desilusão.
- Por que está tão cético? Você sempre foi otimista. Por que com o Sérgio é tão categórico? Só tem uma explicação: você sabe mais do que me diz.
- Tudo o que eu devia dizer, já disse. Não precisa ficar pressupondo coisas. Você está muito impressionada com essa história. Só não quero que venha a
sofrer.
Ele não acreditava que Sérgio houvesse dado o desfalque sob a ação de um espírito perturbador. Ele nunca demonstrara qualquer perturbação mental que fizesse
supor estar sendo vítima de um espírito. Até o último instante fora de uma calma assustadora para quem havia cometido um erro que poderia ser descoberto. Não. Sérgio
não havia sido vítima de nenhuma macumba. Aliás, ele não aceitava que elas funcionassem. Gostaria de contar a verdade a Arlete, pensava que assim ela acabaria de
vez com toda a ilusão. Falaria novamente com o tio para convencê-lo a fazer isso.

Capítulo 11





R
ubens entrou em casa um tanto aborrecido. Antônia logo percebeu que ele estava preocupado. Esperou que ele se lavasse e sentasse à mesa para jantar. Serviu a comida
e enquanto comiam procurou interessá-lo em assuntos leves, agradáveis, na tentativa de modificar seu estado de espírito. Apesar de atencioso, ele não desanuviou
a fisionomia. Depois do café, Antônia levou-o para a sala e, sentando-se a seu lado no sofá, disse com carinho:
- Você está preocupado. O que é?
- É Sérgio. Não consigo compreender o que acontece com ele. Passei em casa de mamãe e ele continua lá, sem coragem para nada, se alimenta mal, não cuida
do asseio, nem se barbeia. Mamãe precisa quase obrigá-lo a tomar banho e mudar de roupa. Isso não é natural. Ele sempre foi luxento e gostou de andar na moda. Ele
deve estar muito doente.
- O que fizeram com ele não foi brincadeira. Ainda não se refez do golpe. Ele amava muito a noiva.
- Também pensei assim no princípio. Mas faz quase um ano que ele está assim e parece cada dia pior. Mamãe não sabe mais o que fazer com ele. Tentei interessá-lo
no trabalho. Sei que ele não gosta de trabalhar na terra e propus que me ajudasse com as contas, coisa que ele sabe melhor do que eu. Ele disse que sim, mas não
faz nada, vive alheio, quase não fala. Não sai da depressão. Não se interessa por nada e parece não ter mais prazer de viver. Sei que uma desilusão de amor dói muito,
mas o tempo ajuda a esquecer. Quem na vida nunca sofreu uma desilusão amorosa? Mas a mocidade sempre é mais forte do que tudo, e um dia aparecem novas oportunidades,
outro amor, e pronto. Mas ele não. Parece um morto-vivo.
- Que horror! Não diga isso.
- Foi a impressão que me deu. Pálido, abatido, parado, cruz-credo, até parece mal feito,
- Taí, Rubens, uma coisa em que nós não pensamos. Quem sabe ele tem mesmo um mal feito. Tem muita gente ruim neste mundo. Pegaram ele de jeito, e pronto.
- Falei por falar, mas quando você disse isso fiquei todo arrepiado. Por que será?
- Hum!. Aí tem coisa. Nós podíamos levar o Sérgio em um curador. O filho da D. Eulália estava doente e ninguém dava jeito, nem descobria o que ele tinha.
Estava definhando. Ela levou o menino lá e ele sarou. Hoje está muito bem. Ela vive contando isso a todo mundo.
- Pede o endereço e nós vamos até lá conversar com ele.
- Amanhã mesmo. Agora, vamos rezar. Sei que nesses casos é preciso muita oração. Vamos pedir a Deus para que nos mostre como ajudá-lo. Tenho muita fé.
Por outro lado, não é bom se deixar abater nem desanimar. Os bons pensamentos fazem milagres. Não gosto de ver você assim, com esse ar triste. Tudo vai ficar bem.
Rubens abraçou-a com carinho, dizendo:
- Não sei o que seria de mim sem você! Ela beijou-o delicadamente e retrucou:
- Nem eu.
No dia seguinte, ela pediu o endereço do curador e à tarde foi com Rubens à procura dele. Seu Ramiro morava com a mulher em um pequeno sítio, nas proximidades
da cidade. Seus dois filhos haviam-se casado e mudado. Era muito conhecido nos arredores pela ajuda às pessoas, curando e receitando remédios de ervas para todos
os males. Bondoso, discreto, era respeitado até pelo vigário, que, embora não acreditando nas coisas que ele dizia com relação aos espíritos, tomava seus remédios
de vez em quando.
Rubens o conhecia de vista, mas nunca havia ido lá. Bateram palmas no portão e um cachorro latindo e abanando o rabo apareceu. Logo atrás, uma mulher
de meia-idade, fisionomia marcada por rugas prematuras, pele queimada de sol, abriu o portão dizendo:
- Desejam alguma coisa?
- Precisamos falar com Seu Ramiro.
- Podem entrar.
Eles a acompanharam atravessando o jardim bem cuidado, e chegaram à varanda da casa, simples, mas agradável. Ela abriu a porta da casa, convidou-os a
entrar e depois dirigiu-se ao quarto dizendo:
- Ramiro, tem gente aqui à sua procura.
Ramiro apareceu em seguida, cumprimentou-os e indicou as cadeiras para que se sentassem. Era um homem forte, estatura média, rosto redondo e pardo, queimado
de sol, lábios grossos e dentes amarelados pelo cigarro de palha que tinha entre os dedos. Foi Antônia quem falou primeiro.
- Estamos precisando de ajuda, Seu Ramiro. É para o irmão do Rubens.
- Qual é o caso dele?
Rubens contou tudo quanto estava acontecendo e Ramiro ouviu em silêncio, fumando de quando em quando seu cigarrinho de palha. Quando Rubens acabou, ele
disse:
- Vamos pra outra sala. Vou consultar meus guias. Passaram para outra sala onde havia uma mesa pequena, alguns objetos indígenas, algumas imagens de Jesus
e de Maria, uma estátua de preto velho. Uma prateleira tosca com muitas garrafas cheias de líquido e ervas, algumas cadeiras.
Mandando-os sentar, ele apanhou um pote de barro e colocou um pouco de incenso e acendeu. Depois acendeu uma vela e colocou-a frente à imagem de Jesus.
- Rezem um pai-nosso em voz alta - pediu ele.
Os dois rezaram, e quando terminaram, Ramiro, olhos fechados, parecia dormir. Ficou alguns minutos assim, depois abriu os olhos dizendo:
- Seu irmão tá macumbado. Fizeram um trabalho contra ele para acabar com o casamento e tirar ele do emprego. Uma mulher morena, que foi desprezada e não
se conformou. Quem fez foi uma mulata, na cidade de São Paulo.
- O que podemos fazer para tirar essa macumba?
- Foi um trabalho muito bem-feito. Preciso de dois dias para verificar. Dá pra trazer ele aqui?
- Dá. Quando?
- No sábado. Até lá espero ter tudo claro.
- Ele vai ficar bom? - indagou Antônia preocupada.
- Com a graça de Deus, minha filha, tudo se consegue. Ele é um moço bom, mas inocente. Não conhece nada das coisas espirituais. Está na hora de começar
a conhecer. Seu guia está me dizendo que você também precisa aprender a usar o poder que tem para curar as pessoas.
- Eu?!! - estranhou Antônia admirada.
- Você, sim. Tem uma luz muito boa e por onde passa irradia paz, alegria e bem-estar. Feliz de quem pode viver a seu lado. Com tudo isso, vai poder ajudar
muita gente. Nunca percebeu seu poder de cura? Toda vez que visita um doente ele melhora. Não é verdade?
- É. Já percebi que quando chego, eles se acalmam. Minha tia costumava me chamar sempre que alguém adoecia na família. Ela achava que minha companhia
fazia bem. Sempre pensei que fosse porque eu sou alegre e acredito no bem.
Ramiro sorriu satisfeito, tragando seu cigarro com prazer.
- É isso, minha filha. Deus abençoe você e seu lar. Voltem com o moço no sábado. Vamos ver o que se pode fazer.
- Quanto é a consulta, Seu Ramiro? - indagou Rubens levantando-se.
- Não é nada, não. Tive muito gosto em falar com vocês.
- Deus lhe pague - disse Antônia.
- Amém - respondeu ele com tranqüilidade.
- Obrigado. Não sabe como nos ajudou. Deus o abençoe - disse Rubens.
- Vão com Deus, meus filhos. Eles saíram animados.
- Eu sabia que você tinha essa luz - disse Rubens emocionado.
- Bobo. Está dizendo isso só porque Seu Ramiro falou. Não vê que ele é bom demais? Vê luz em todo mundo.
- É nada. Não tem ninguém como você. Eu sei disso. Disse que o Sérgio tem macumba. Quem será essa mulher que ele descreveu?
- Com certeza alguma apaixonada do Sérgio. Vamos perguntar a ele. Temos que lhe contar a verdade. Acha que ele concordará em ir lá no sábado?
- Se não concordar, eu o levarei à força. Ouvi dizer que quem tem feitiço nunca quer ir ao lugar onde vão curá-lo.
- Acho que os espíritos que estão amarrando ele não querem. Agora que Seu Ramiro falou, podemos entender melhor. O caso dele é muito estranho. Só podia
ser macumba mesmo. Por que não descobrimos isso antes?
- É mesmo. Nós não temos malícia. Acho que é por isso. Não fazemos mal a ninguém. Nem conhecemos essas coisas. Vamos passar em casa, falar com a mãe.
Ela vai gostar de saber.
Encontraram Rita ocupada com o jantar. Depois dos cumprimentos, Rubens perguntou:
- E Sérgio?
- Está no quarto. Hoje quase não saiu de lá. O maior calor, e ele lá. Só dorme.
Rubens contou a consulta que haviam feito. E finalizou:
- O que ele tem é feitiço. Seu Ramiro afirmou que fizeram uma macumba pra ele. Temos que ir lá com ele no sábado. Ele disse que o Sérgio vai ficar bom.
- Graças a Deus, meu filho. Não agüento mais olhar pra ele, ver seu sofrimento. Seu pai, então, vive suspirando pelos cantos, na maior tristeza. O Seu
Vigário disse que não se deve acreditar nessas coisas, mas eu sei que elas existem. O caso do Sérgio é estranho. Nunca vi nada igual.
- Vou falar com ele.
Rubens foi até o quarto e entrou. Sérgio estava estirado na cama, vestido, olhos fechados parecendo dormir.
- Sérgio - chamou ele. - Sérgio!
Ele abriu os olhos, e vendo-o respondeu:
- O que é?
- Acorde. Precisamos conversar.
- Agora?
- Já. Vamos. Levante-se. O assunto é sério.
- Estou com sono.
- Depois você dorme. Agora levante-se. Vamos lavar o rosto. Temos um assunto sério a tratar.
A instâncias de Rubens, Sérgio levantou-se e, quase empurrado por ele, foi lavar o rosto. Depois de vê-lo penteado e de olhos abertos, Rubens sentou-o
na sala, dizendo:
- Hoje fomos ver um curador e fizemos uma consulta sobre sua saúde.
- Para quê? Não estou doente.
- Não está mesmo. O que você tem é outra coisa. Alguém está tentando destruir você. Tirá-lo do caminho.
- Como assim?
- Uma mulher morena de cabelos castanhos curtos. Bonita, mas perigosa. Gostou de você, mas foi posta de lado e não se conformou. Quem é?
- A Flora. Ela sempre quis se vingar de mim. O que acha que ela fez?
- Macumba.
- Não creio. Essas coisas não existem. Ela não sabe nada disso. Você está enganado. Ela pode ter-me aprontado com a história do dinheiro, mas macumba,
não. Ela não conhece isso.
- Seja como for, sábado nós vamos em casa do Seu Ramiro. Ele vai curar você.
- Bobagem. Ninguém pode me ajudar. O que eu preciso é de alguém que possa descobrir quem fez aquele desfalque e provar minha inocência. Não é um homem
ignorante do meio do mato que vai poder fazer isso.
- Você vai comigo e pronto. Eu prometi levar você lá.
- Fez mal. Como pode ser tão ingênuo? Acreditar que essa superstição possa resolver meu caso é uma ilusão. Não posso entender como vocês perderam tempo
com isso.
Rubens irritou-se:
- Estamos cansados de olhar para sua cara de morto-vivo, nessa apatia sem fazer nada por si. Chega. Você vai lá nem que seja à força. Está decidido.
Sérgio olhou-o assustado. Não sentia vontade de discutir. Para se livrar, respondeu:
- Está bem. Se faz tanta questão, vamos ver. Quando saíram da casa, Rubens confidenciou a Antônia:
- O Sérgio não quer ir. Fui duro com ele. Concordou, mas não se convenceu. É capaz de aprontar alguma.
- Seria melhor não ter contado nada e ir buscá-lo no sábado.
- Agora já foi. Mas ele vai de qualquer jeito. Você vai ver. Se ele se esconder irei buscá-lo onde estiver. Dessa ele não vai escapar.
- Você está pondo fé em Seu Ramiro.
- Estou. O homem acertou mesmo. O Sérgio até disse o nome da mulher. É uma tal de Flora, que foi namorada dele.
- Não diga! Ele sabia quem era!
- Sabia, mas não acreditou. Disse que ela não conhece nada de macumba.
- Vai nessa! As aparências enganam. Ela fez e ele nem percebeu.
- Está enfeitiçado. O feitiço não deixa a pessoa perceber nada. Ela fica abobada. O Sérgio está assim, abobado.
- Vamos continuar rezando com fé. Ele há de melhorar.
- Deus a ouça!
Arlete preparava-se para sair quando o telefone tocou.
- Arlete? Aqui é Walter. Precisamos conversar. Fiz a consulta sobre o Sérgio. Que tal irmos jantar hoje à noite? Falarei com Flávio.
- Ótimo. Vamos encontrar-nos em casa de Flávio, como sempre.
- Está bem. Estarei lá às oito.
- Combinado.
Arlete chegou em casa de Flávio muito antes das oito. Estava ansiosa. Iria saber alguma coisa sobre Sérgio?
- Walter fez a consulta sobre o caso de Sérgio e já tem uma resposta. Estou ansiosa.
Flávio olhou-a um tanto apreensivo. O que Walter iria dizer? Ele não sabia a verdade. O assunto fora guardado em sigilo.
- Ele não disse qual foi?
- Não. Quer conversar. O que terá para dizer?
- Espero que não seja nada que possa preocupá-la ainda mais.
- Claro que não. Walter é sensato e não faria nada que me pudesse perturbar. O que você sabe que eu não sei? Às vezes sinto que está me ocultando alguma
coisa. Por que pensa que ele poderia dizer algo que me preocupasse mais?
- Você não entendeu. Estamos lidando com coisas que não entendemos. Esses assuntos são misteriosos, tenho receio do que ele possa dizer.
- Pois eu não. Tia Amélia está me ajudando. Confio nela. Walter chegou pouco antes das oito. Quando entrou na sala onde Arlete e Flávio esperavam, foi
recebido com carinho.
- Arlete o esperava com impaciência - disse Flávio. - Vê lá o que você vai dizer-lhe.
- Vou dizer o que aconteceu. Só isso - respondeu ele.
- Estou ansiosa, Walter. O que descobriu?
- Quando o guia espiritual veio, fiz a consulta. Dei o nome de Sérgio e disse que estava desaparecido. Ele pediu-me que esperasse, que ia verificar o
que havia acontecido e voltaria para dar a resposta. Estávamos quase no fim da reunião quando ele voltou e me chamou para falar sobre o caso. A mensagem foi a seguinte:
Encontrei o moço. Está magro, mal vestido, deitado em uma cama pobre, em um pequeno quarto. Muito mal. Perdeu a alegria de viver. Não se interessa mais por nada.
Sofre muito. Está dominado por uma entidade mandada que suga todas as suas energias e não permite que ele reaja. Ele foi vítima de uma injustiça e perdeu toda a
fé. O trabalho foi encomendado por uma mulher morena que o odeia. Vamos tentar ajudar. Deixe o nome dele no caderno de orações.
Arlete bebia cada palavra que ouvia e Flávio, ouvindo falar em injustiça, empalideceu. O caso dele teria sido mesmo uma injustiça? Remexeu-se na cadeira,
inquieto.
- É verdade - comentou Arlete. - Sinto que ele está sofrendo. Tenho sonhado com ele, angustiado, chamando e pedindo minha ajuda. Meu Deus, o que terá
acontecido?
- Uma coisa é certa, alguém quis tirá-lo do caminho e conseguiu.
- Essa mulher morena?
- É. Essa entidade mandada significa que alguém fez alguma coisa contra ele. Um trabalho, uma macumba, como vulgarmente se chama.
Flávio desta vez não se atreveu a dizer nada. Arlete considerou:
- Ele sempre comentava sentir que Flora estava tentando alguma coisa contra ele. Disse isso várias vezes.
- Espere aí - disse Flávio. - Você não pode dizer isso. Está incriminando alguém das nossas relações por mera suposição.
- Ele reclamava dela. Sentia que ela o odiava, mas não podia provar nada. Ela dissimulava muito bem. Nunca o levei a sério. Ele havia tido um caso com
ela que provocara o rompimento. Quando ela quis voltar, ele não aceitou e ela ficou com raiva. Agora é muita coincidência. Logo uma mulher morena, como ela.
- Flora não seria capaz de uma baixeza dessas - declarou Flávio.- É uma mulher muito eficiente. Agora, depois que o Dr. Martinez teve aquele problema
de amnésia, ela assumiu o nosso departamento jurídico com competência. Não creio que ela fosse capaz de uma atitude dessas.
Arlete olhou-o um pouco triste.
- Sinto discordar de você. Sei que ultimamente vocês têm saído muito juntos. Parece até que está interessado nela. Aliás, é o que ela desejava desde o
começo.
- Mais uma razão para não acreditar que ela fosse capaz de prejudicar Sérgio. Se estava interessada em mim, não havia razão para fazer nada contra ele
e seu casamento.
- Sérgio dizia e eu não acreditava muito. Ele afirmava que a conhecia muito bem. Que ela era vingativa e cruel. Que não titubeava em pisar nas pessoas
para afastá-las do seu caminho. Agora, começo a pensar que ele sabia o que estava dizendo. Se ela fez isso ao Sérgio, vou descobrir. Então é comigo que deverá ajustar
contas.
- Está vendo o que você fez? - disse Flávio a Walter. - Conseguiu criar uma inimizade entre duas pessoas.
- Espere aí. Vocês estão pressupondo demais. Eu só disse o que o guia espiritual falou. Não podemos precipitar-nos. Vamos acompanhar o caso e ver como
os fatos aparecem.
- Eu não irei mais ao Centro - disse Flávio. - Não gosto de confusão.
- Está apaixonado por ela? - indagou Arlete.
- Não é nada disso - retrucou ele, irritado. - Trata-se de uma pessoa de nossas relações, que nunca me deu motivos para desconfiança. Temos que ser coerentes.
Você está obcecada por essa história. Sou de opinião que deveria procurar esquecer. Esmiuçar esse caso pode não dar bom resultado.
- Para quem? Para Flora ou para nós? - indagou Arlete. - Nunca entendi o que aconteceu com Sérgio e não vou descansar enquanto não puser tudo em pratos
limpos.
- Calma - disse Walter. - Os dois estão exagerando. Não é para tanto. Vou preveni-los de uma coisa: sempre que há algum caso de obsessão, é comum as pessoas
se desentenderem, para que as coisas continuem como estão. É do interesse dos espíritos perturbadores. Portanto, vocês, que sempre se entenderam muito bem, não vão
agora fazer o jogo deles. Consegui permissão para irem à próxima reunião privativa. Estão preparados para isso, mas devem conservar a serenidade. Só assim chegaremos
a uma conclusão boa.
- Está certo - disse Arlete. - Farei o possível.
- Mesmo suspeitando de alguém, não pode imaginar coisas antes de saber a verdade. Os espíritos têm meios de mostrar o que precisamos saber, quando chegar
a hora apropriada. Por isso, não alimente pensamentos negativos contra quem for.
- Farei o possível. Por um momento essa idéia me pareceu muito clara. Mas você tem razão, posso estar enganada.
- Ainda bem que reconhece. É melhor assim - disse Flávio.
- Nesse caso, vamos jantar que estou com fome - disse Walter.
Apesar de haver protestado, Flávio ficou impressionado. Nunca duvidara da culpa de Sérgio. As provas eram tão fortes que ele nunca as pusera em dúvida.
Agora, essa frase o deixara intrigado. "Ele foi vítima de uma injustiça e perdeu toda a fé." Teria mesmo sido uma injustiça? De que forma? Quem teria conhecimento
suficiente para saber os códigos da conta e poder sacar o dinheiro? Só ele e o Dr. Martinez conheciam esses números. Não. Walter estava enganado. Não podia ter sido
injustiça.
O jantar decorreu agradável, mas apesar de falarem sobre outros assuntos, Flávio não conseguia esquecer aquela frase. Por isso, resolveu mudar de idéia
e comparecer às reuniões do Centro, mesmo porque Arlete iria de qualquer forma e ele precisaria estar presente para ver o que ia acontecer.

Capítulo 12





F
lora saiu mais cedo do escritório. Precisava conversar com Joana e foi procurá-la. Ela agora morava em uma bela casa em bairro residencial. Flora cumprira o prometido.
Quando Sérgio desapareceu, deu-lhe boa soma em dinheiro. Como continuava a se utilizar dos seus serviços, dava-lhe mensalmente uma quantia que lhe permitia viver
melhor. Morando em ambiente luxuoso, Joana agora dispunha de uma clientela mais fina e que lhe pagava mais. Naquele local ela só fazia consultas. Era na antiga casa
da periferia que ela fazia seus "trabalhos" espirituais, ajudada por alguns adeptos.
Flora tocou a campainha e Joana atendeu, fazendo-a entrar. Sentada na pequena sala onde Joana dava suas consultas, Flora disse a que vinha.
- Vim para que você reforce o trabalho. Ele tem que se resolver. Está demorando demais.
- Não é por culpa minha. Acontece que ele é difícil mesmo. Tem o pensamento muito forte.
- Não vá me dizer que você não pode com ele. Está ficando fraca? Seus guias a estão abandonando?
Joana fez uma careta contrariada.
- Não pode dizer isso. Tudo o que me pediu eu consegui.
- Menos o que me interessa mais, que é o Flávio.
- Ele vai chegar aonde queremos. Não está chegando?
- Está. Temos saído muito ultimamente. Eu diria que ele tem saído só comigo.
- Você tem que seduzi-lo, fazer com que fique louco por você. Ter relações com ele, e eu arranjo o resto.
- Não sei, não. Se eu fizer isso ele pode pensar que sou leviana.
- Mas é uma boa maneira de fazê-lo chegar ao casamento.
Não é isso o que quer?
- Não estou entendendo.
- Uma gravidez, verdadeira ou não, poderá induzi-lo. Ele é dos que levam a sério esses compromissos.
- Ah!... Estou entendendo. É... pode ser. Vou pensar nisso. Mas é você quem precisa fazê-lo resolver-se. Se eu precisar fazer tudo, de que me adianta
sua ajuda?
- Não pode dizer isso depois do que eu já consegui.
- Por isso mesmo. Eu sei que você pode mais do que ele. Vou lhe dar mais uma chance. Quando eu me casar com ele, serei muito mais rica e você terá um
bom dinheiro. Sabe que quando prometo, cumpro.
- Está bem. Veja se me traz alguma peça de roupa dele usada. Vou reforçar o trabalho.
Flora sorriu satisfeita. Joana conseguia tudo quanto queria. Era uma questão de tempo, pensava.
Arlete, sentada em seu quarto, tendo nas mãos um retrato de Sérgio, rezava comovida, pedindo a Deus que lhe revelasse a verdade. Depois, agradeceu à tia
Amélia a ajuda e pediu-lhe que continuasse a orientá-la. Naquela noite iriam ao Centro Espírita e ela esperava ansiosa poder receber mais alguma informação sobre
o paradeiro de Sérgio. Para Deus nada era impossível, pensava confortada. Se ela não tinha como ajudá-lo, outros o fariam.
Esperançosa, foi para a casa de Flávio, conforme o combinado. Felizmente ele resolvera acompanhá-los. Ultimamente, Flávio lhe parecia mudado. Não saía
mais com os amigos, nem os reunia em sua casa como habitualmente fazia. Só saía com Flora. Sua irritação quando ela mencionara a possibilidade de Flora ter culpa
quanto ao desaparecimento de Sérgio deixara-a pensativa. Ele sempre fora ponderado. Mesmo não gostando de pressupor nada sem provas, nunca deixava de lado uma hipótese,
ainda que não a achasse viável.
A suspeita de que Flora tivesse algo a ver com o desaparecimento de Sérgio não a deixava. Para não se indispor com Flávio, ela recuara, mas essa hipótese
não lhe saía da cabeça. Se ela houvesse enfeitiçado Sérgio, afastando-o, poderia estar fazendo o mesmo com Flávio para atraí-lo ao casamento. Por que de repente
ele teria mudado seus hábitos? Por que agora ele só saía com Flora, deixando de lado todos os amigos dos quais tanto gostava? Esse comportamento não lhe parecia
natural.
Em parte, sentia-se culpada. Ficara tão envolvida com seus próprios problemas que se esquecera dele. Dali para a frente, faria tudo para que ele voltasse
a ser como sempre fora.
Walter chegou pontualmente, e quando se dirigiam para o Centro, durante o trajeto, Flávio perguntou:
- Pelo cuidado com que eles escolhem as pessoas para essa sessão pode-se deduzir que se trata de algo diferente daquela a que assistimos outro dia. Estou
certo?
- Está. Aquela do outro dia era uma sessão de estudos. A de hoje é uma de tratamento - esclareceu Walter.
- Como assim?
- Das fichas daqueles pacientes que você viu naquela noite, alguns estarão presentes: para outros, o atendimento será feito a distância. Cada caso é submetido
à ação dos instrutores espirituais, que tomam as providências.
- De que forma?
- De várias formas. Quando possível, libertam-nos das influências nocivas. Se houver a presença de espíritos desencarnados, eles os atraem para os médiuns
na sessão para conversar.
- Não poderiam conversar com eles diretamente? - indagou Arlete.
- Em alguns casos, sim. Mas há aqueles que estão tão integrados na vibração terrena, tão mergulhados em seus próprios problemas que isso não é possível.
Quando eles são atraídos para um médium, sob nova influência, tornam-se momentaneamente mais lúcidos, o que facilita seu esclarecimento.
- Quando eles se esclarecem, concordam em deixar o paciente em paz e tudo fica resolvido. Esse paciente é curado - tornou Arlete.
- Ele vai obter uma melhora, mas pode não ser definitiva. As leis das influências vão além do que você pode imaginar. De alguma forma, ele atraiu aquele
espírito. Por isso, é comum acontecer que, se ele não modificar seu comportamento, poderá atrair outros espíritos do mesmo nível. A cura só se dará quando ele houver
aprendido aquela lição e der um passo à frente. Dessa forma eles não poderão mais envolvê-lo. É por isso que o Dr. Celso dá destaque aos estudos e procura orientar
todos os pacientes para que a melhora seja definitiva.
- É um trabalho complexo - admitiu Flávio, pensativo.
- Isso mesmo. Tão complexo que é preciso observar e estudar muito. Há muitas variáveis interferindo no processo. Mas, por outro lado, você pode imaginar
a dificuldade de um médico que não conhece essas variáveis. Esse era o meu caso. Mas agora, depois que estou estudando esses assuntos, tenho tido muito mais facilidade
para fazer diagnósticos e tratar meus pacientes.
- Você diz aos seus pacientes que é espírita?
- Não. Contudo há os que me procuram justamente porque conhecem essa minha posição. Com esses, posso ser sincero e além do medicamento, se for necessário,
recomendar tratamento espiritual. Aos que não sabem, não digo nada. Caso estejam precisando de ajuda espiritual, levo seus nomes ao Centro e peço por eles. Sempre
são ajudados.
- Por isso sua fama tem crescido ultimamente - disse Arlete.-Tenho ouvido muitos comentários a seu respeito.Tem feito curas notáveis.
- Tenho cooperado, entretanto a cura não depende de mim, mas da própria pessoa. Em todo caso, a ajuda dos espíritos é preciosa. Eu diria que há casos
em que parece um milagre.
Quando entraram na sala de reuniões, o ambiente estava em penumbra, iluminado por tênue luz azul, com música suave. Havia quatro círculos de cadeiras
espalhadas pela sala e pessoas sentadas nelas. Nas cadeiras laterais, algumas ocupadas, outras vazias. Quando eles entraram, foram conduzidos às cadeiras laterais.
No horário combinado, o dirigente fechou a porta, iniciou a reunião proferindo emocionada prece. Depois, determinou a algumas pessoas que se colocassem
atrás dos médiuns sentados nos círculos, colocando as mãos espalmadas sobre as costas deles.
Em seguida, abriu a porta e trouxe quatro pessoas que colocou sentadas, cada uma no meio de cada círculo, pedindo aos médiuns que fizessem uma corrente
dando as mãos. Ficaram ali durante alguns minutos, e quando alguns médiuns começaram a remexer-se inquietos, os pacientes foram retirados da sala. Quando a porta
se fechou, os médiuns começaram a falar. Uns choravam, outros riam desafiadores, outros ainda se lamentavam, todos ao mesmo tempo, formando um alarido onde as vozes
se misturavam. As pessoas atrás de cada um deles procuravam conversar em voz baixa tentando acalmá-los e esclarecê-los.
Arlete observava e uma senhora ao seu lado perguntou baixinho:
- É a primeira vez que você vem, conhece esse trabalho?
- Não - respondeu Arlete interessada. - O que está acontecendo?
- É um trabalho de captação energética. Os médiuns absorvem momentaneamente as energias do paciente que está sentado no centro do grupo, recebendo os
espíritos que os envolvem e os doutrinadores tentam orientá-los para que se esclareçam e deixem a pessoa em paz. Quando conseguem, eles melhoram muito.
Depois de alguns minutos, o vozerio cessou como por encanto e o ambiente tornou-se suave. Continuaram orando em silêncio por mais alguns minutos. Depois,
mais quatro pessoas foram trazidas e receberam o mesmo tratamento. Quando acabaram esse atendimento, um dos médiuns, circulando pela sala e falando com voz firme
e agradável, deu algumas explicações sobre alguns casos atendidos naquela noite e ao final aproximou-se de Arlete, dizendo:
- Venha você. Vamos atender seu caso.
Ela levantou-se e foi conduzida ao meio de um grupo onde se sentou. Emocionada, coração batendo forte, ela pensou em Sérgio. Feita a corrente, de repente
vários médiuns começaram a rir e a conversar entre si dizendo-se donos da situação.
- Ele vai ficar lá - disse um. - Nunca mais vai ser nada na vida. Está bem amarrado. Não adianta vocês mexerem nisso. Não vai funcionar.
- Estamos só avisando - disse outro - para que não se metam nesse caso. Já está resolvido e pronto. Quero ver quem é que vai ousar mexer.
- Foi aquele negro intrometido que pediu ajuda a vocês. Ele vai me pagar. Vocês vão ver - ameaçou outro.
Os doutrinadores começaram a conversar com eles, tentando convencê-los a abandonarem seus propósitos e deixarem sua vítima em paz.
Arlete não perdia uma palavra, ela sabia que eles estavam falando de Sérgio. Eles não estavam concordando, julgando-se donos da situação, até que um deles
deu um grito angustiado:
- Vocês não podem fazer isso comigo! Não podem me amarrar dessa forma. Tirem esse peso de cima de mim! Ai, não agüento mais. Tirem isso de mim.
- Ele vai ser ajudado, e se você não retirar todas as energias que colocou nele, ele será liberado de qualquer forma e elas vão ficar com você.
- Não! Por favor, me ajudem. Eu não quero ficar com isso.
- Então, vá até lá e desligue todas aquelas formas, pensamentos e tudo aquilo que amarrou com ele e se sentirá melhor. É a única maneira de ver-se livre.
- Está bem. Já vi que não terei outro remédio. Mas o que vou dizer para o meu chefe? Ele vai me castigar.
- Não voltará mais para lá. Se nos garantir que não vai mais fazer nada disso, poderemos levá-lo para um lugar muito melhor, onde se sentirá muito bem.
- Aceito. Não tenho outra opção. Eu vou.
O médium pendeu a cabeça e pareceu dormir por alguns segundos. Depois, seu corpo foi sacudido por um tremor e ele disse:
- A minha parte já fiz.
- Como está se sentindo?
- Aliviado.
- Nesse caso, pode seguir com a pessoa que está a seu lado.
Um suspiro, e o silêncio se fez. Arlete continuava orando. O médium que a colocara lá aproximou-se dizendo:
- Pode sair agora. Terá que voltar na próxima semana, para continuar.
- Obrigada - murmurou ela indo sentar-se em seu lugar. Ela desejava fazer algumas perguntas, mas sentiu que o momento não era oportuno. Depois de algumas
palavras de estímulo e agradecimento, a sessão foi encerrada. Quando saíram, Arlete perguntou a Walter:
- Estou ansiosa. Quero saber o que está acontecendo! Ficou claro que eles se referiam a Sérgio.
- É verdade. Estou com sede. Vamos tomar um refresco? Eles concordaram e se dirigiram ao lugar a que haviam ido em noite anterior. Acomodados, enquanto
esperavam o que pediram, Walter disse:
- Agora, pode perguntar.
- Uma senhora me explicou que eles fazem captação das energias das pessoas. É verdade?
- É. Há pessoas que têm um tipo de mediunidade especializada para esse fim. Nós os chamamos de médiuns de desobsessão.
- Alguns ficaram mal, não é perigoso fazer isso?- perguntou Flávio.
Walter sorriu e respondeu:
- Ao contrário. O processo é simples. Eles atraem o espírito e o seguram. Sentem as energias dele, mas ao mesmo tempo fornecem as suas energias para que
ele possa perceber melhor a própria situação e seja motivado a mudar. O mal-estar é momentâneo. Lembre-se de que a situação foi provocada com a assistência dos espíritos
mentores, que sabem o que estão fazendo. Por isso, quando termina, esses médiuns sentem-se revigorados e muito melhor do que antes. É que, durante o processo, eles
eliminam também as energias pesadas que atraíram durante o dia.
- É curioso. Como sabe que tudo isso é verdade? Que não estão sendo vítimas de um embuste?
- Pelas provas e pelos resultados. Os médiuns não conhecem os pacientes. Como poderiam saber o que se passa com cada um deles? Ninguém sabia que Arlete
havia ido lá em busca de ajuda para Sérgio. Entretanto, todos se referiam a ele.
- É muito vago - disse Flávio. - Ele poderia ser qualquer pessoa.
- Mas eu sei que eles falavam de Sérgio - interveio Arlete.
- Não é só isso. Durante o tempo em que tenho freqüentado essas reuniões já obtive tantas provas que não dá para negar.
- Você entendeu o que aconteceu com Sérgio?- inquiriu Arlete.
- Não resta dúvida que ele sofreu um assédio de espíritos maldosos, que o manietaram e arrasaram.
- Deu para notar - disse Arlete preocupada. - Mas como aconteceu isso? Por quê?
- Isso não dá ainda para saber. A primeira informação foi que uma mulher quis vingar-se dele.
Flávio remexeu-se inquieto na cadeira.
- Isso é o que me incomoda. Que alguém possa querer fazer isso, até dá para acreditar. Mas que consiga, isso eu duvido.
- Não tire conclusões apressadas. Você pode descobrir o contrário. Nós sabemos ainda muito pouco sobre as leis das influências e o mundo das energias.
Garanto que tenho visto coisas que me fizeram ser mais cauteloso em negar essa possibilidade.
- Acredita que esse tenha sido o caso de Sérgio? - perguntou Arlete.
- Vamos prosseguir e descobriremos a verdade. Tudo nos leva a crer que sim.
- Pois eu continuo não acreditando nessa hipótese. Isso não seria justo. Qualquer pessoa estaria à mercê de um malfeitor que lhe desejasse fazer mal.
Todos estaríamos ameaçados. Eu me recuso a crer que Deus permitisse uma coisa dessas.
- Tem razão quanto à justiça de Deus. Ela é infalível. Mas os fatos estão aí para serem analisados. Se quisermos fazê-lo de forma imparcial, teremos que
deixar todos os preconceitos de lado e abrir a mente, procurando experimentar e perceber a verdade onde estiver. E ela tem me demonstrado que há casos em que a macumba,
como é vulgarmente chamada, "pega" e pode arrasar uma pessoa e até uma família inteira. Como isso acontece e por quê, não sabemos. O curioso é que ela pode "pegar",
ou não. Há pessoas que por mais que sejam odiadas e se tente derrubá-las por esses meios, nada lhes acontece. Quais as variáveis que atuam nesses casos? Quais as
leis que determinam esse fator? Ainda não sei.
- Não seria por merecimento? - indagou Arlete interessada. Walter meneou a cabeça negativamente.
- Hum... não. Não é por isso. Como eu disse, há pessoas ruins que estão imunes e pessoas boas sendo vitimadas. Não. Esse fator deve obedecer a outros
elementos. Estamos estudando e acabaremos por descobrir. A pesquisa séria e bem orientada é um caminho.
- Então Sérgio foi vítima de uma macumba? - volveu Arlete.
- Pode ser.
- Nesse caso, o que faremos para ajudá-lo?
- Já estamos fazendo. Atraindo os espíritos envolvidos, convencendo-os a desistir dos seus propósitos, tudo voltará a ser como antes.
Arlete sentiu o coração bater mais forte.
- Sérgio poderá aparecer?
- Acredito que sim.
Flávio olhou e não disse nada. Depois que deixaram Arlete em casa, ele voltou ao assunto.
- Queria pedir-lhe que não alimentasse a ilusão de Arlete. Sérgio nunca mais voltará. No pé em que as coisas estão, preciso contar-lhe um segredo. Sabemos
o que aconteceu com Sérgio. Nós não dissemos a verdade a ela. Eu queria contar, mas meu tio fez-me prometer guardar segredo. Ele acha que, se soubesse a verdade,
Arlete iria correndo atrás dele, o que ele pretende evitar.
Flávio relatou tudo quanto ocorrera e finalizou:
- Estou contando porque confio em sua discrição. Depois do que Sérgio fez, nunca mais poderá voltar aqui.
- Tem certeza de que foi mesmo ele?
- Só ele, o Dr. Martinez e eu conhecíamos o número daquela conta.
- Esse Dr. Martinez é de confiança?
- Claro. Trabalhava com meu tio desde que ele iniciou a empresa. Depois, o dinheiro estava depositado em nome de Sérgio. Não há como duvidar.
Walter ficou pensativo durante alguns instantes, depois disse:
- Não sei, não. Para mim as coisas não estão claras. Sérgio amava Arlete, ia casar-se com ela, por que haveria de pôr tudo a perder dessa forma? Se ele
era ambicioso e queria dinheiro, casando-se com ela receberia muito mais. Ele era um moço inteligente, algo me diz que não cometeria essa burrice.
- Tenho pensado muito no assunto sem chegar a nenhuma conclusão. Eu gostava muito de Sérgio. Nunca me engano com uma pessoa. Ele foi o primeiro.
- Agora que me contou tudo, vou me empenhar ainda mais para descobrir a verdade. Os espíritos disseram que ele foi vítima de uma injustiça. Lembra-se?
Isso confirma a hipótese de ele ser inocente.
Flávio suspirou.
- Eu gostaria que isso fosse verdade. Já me tiraram um peso do coração. Mas receio iludir-me. Temo por Arlete. Ela está muito abalada, você sabe. Prometa
que será cuidadoso e não dirá coisas que possam alimentar esperanças infundadas.
- Está bem. Serei discreto. Pode confiar.
No sábado à tarde, Rubens foi com Antônia à procura de Sérgio para levá-lo à casa de Ramiro conforme prometera. Não o encontrou.
- Não sei o que deu no Sérgio hoje. Levantou cedinho e disse que ia fazer umas compras na cidade e não voltou até agora - explicou Rita. - A Dirce queria
ir junto, mas ele não permitiu. Disse que estava se sentindo muito bem. Sentia-se melhor e tinha que cuidar da vida.
- Eu não disse? - tornou Rubens olhando para Antônia. - Ele saiu só para não ir ver o Seu Ramiro.
- Pode não ser isso. Fazia tempo que eu não via ele tão bem. Estava interessado em procurar um emprego na cidade - disse Rita.
- Como ele foi, na charrete? - quis saber Rubens.
- Sim.
- Faz tempo?
- Saiu cedo.
- Já deveria ter voltado. Vamos, Antônia, precisamos encontrá-lo.
Entraram no carro e foram até a cidade, mas não o encontraram. Ninguém o havia visto por lá. No caminho de volta, Rubens considerou:
- Ele pode estar metido em algum atalho. Vamos bem devagar, olhando tudo.
Chegando a uma bifurcação, Rubens saiu da estrada seguindo um dos atalhos. O caminho era estreito e cheio de buracos, mas ele foi em frente.
- Pare - disse Antônia. - Não é a charrete que está ali no meio do mato?
Rubens parou imediatamente e verificou:
- É, sim. Vamos até lá.
Entraram no mato e viram a charrete amarrada a um galho pelo arreio. Sérgio não estava. Continuaram procurando, e em meio a pequena clareira encontraram-no
estirado sob uma árvore. Estava dormindo.
- Sérgio! Sérgio! Acorde. Vamos. Levante-se! - Chamou Rubens sacudindo-o.
Ele custou a reagir. Abriu os olhos com dificuldade e, vendo-os, fechou-os de novo.
- Vamos. Acorde. Reaja. Fugir não adiantou nada. Você vai comigo de qualquer jeito.
- Deixe-me em paz - resmungou ele. - Você não manda em mim. Não tem nada com minha vida. Vá embora.
- Vou levá-lo de qualquer jeito. É melhor se levantar. Rubens agarrou-o pelos braços e tentou levantá-lo. Como ele não reagisse, não teve dúvidas, pegou-o
no colo e levou-o até o carro, colocando-o deitado no assento traseiro.
- E a charrete? - indagou Antônia.
- Depois viremos buscá-la. Agora vamos ver Seu Ramiro. Até chagarem lá, Sérgio não deu acordo de si. Rubens pediu:
- Vai lá e avisa ele que estamos aqui. Ela foi e voltou em seguida.
- Ele pediu pra você levar ele até lá.
Rubens tentou acordá-lo, mas não conseguiu. Carregou-o para dentro, colocando-o na sala de consultas, onde Ramiro os esperava em companhia de sua mulher.
As velas em frente à imagem de Cristo estavam acesas e ele queimava incenso em um pote de barro, proferindo algumas palavras que Rubens não entendeu.
- Coloque ele deitado aí - pediu a mulher indicando um pano estendido no chão.
Rubens obedeceu, ficando depois de pé ao lado de Antônia, em um canto da sala. Ramiro aproximou-se deles dizendo com voz pausada e forte:
- Ocês vão reza comigo. Vão falando o pai-nosso e a ave-maria em voz alta. Nosso Sinhô Jesus Cristo vai desfazê toda essa maldade.
Enquanto os três rezavam em voz alta, Ramiro estendeu as mãos sobre Sérgio e, olhos fechados, murmurava palavras estranhas, passando as mãos pelo seu
corpo. Sérgio estremeceu. Agitou-se, seu corpo cobriu-se de suor. Sua respiração estava entrecortada. Depois voltou ao normal e pareceu dormir. Ramiro voltou-se
para Rubens dizendo:
- Fui verificar e falar com a danada que fez o trabalho lá em São Paulo. Ela não quis me ouvir. Está determinada a continuar. Por isso precisamos dar-lhe
uma lição. Preciso que vocês agora fiquem com pensamento muito firme. Vocês têm fé?
- Tenho - disse Rubens com firmeza.
- Tenho - confirmou Antônia.
- Muito bem. Vamos tentar. Maria, senta aqui na cadeira. Se concentra.
A mulher obedeceu prontamente. Ele colocou a mão direita sobre a nuca dela e a esquerda sobre a testa, fechou os olhos e disse:
- Pensamento firme em nome de Deus!
Dali a alguns segundos, o corpo de Maria estremeceu violentamente e ela gritou:
- O que está acontecendo? Quem me chama? O que quer de mim? Quem se atreve a me desafiar?
- Num to desafiando - disse Ramiro. - Pedi, ocê num quis. Expliquei, ocê num ouviu. Tá na hora de entende.
- Onde estou? Que casa é esta? O que estou fazendo aqui?
- Fui vê ocê em sua casa, num adianto. Agora eu trouxe ocê aqui na minha casa pra vê se ocê entende.
- Agora estou vendo você! Não quero ficar aqui. Vou embora. Onde estão meus guardiães? Cadê meu povo?
- Deixaram ocê. Foram embora. De agora em diante, acabo. Num poderá fazê mais nada. Tá na hora da justiça. De responde pelo que fez.
Maria debateu-se na cadeira.
- Não! Isso não é verdade - gritou.- Eu tenho poder. Onde estão meus amigos? Por que me seguram aqui? Quero ir embora agora!
- Num pode. Num vai saí.
- Estou com medo! - lamentou-se ela. - Quero voltar ao meu corpo. Não quero morrer! Por favor, deixe-me ir!
- Só se liberta o Sérgio. Desfazê tudo o que fez contra ele.
- Não posso! Fui bem paga, gastei o dinheiro, não tenho como fazer isso!
- Se quisé saí daqui, volta pró seu corpo, terá que resolve isso. To dando uma chance de se livra desse peso. Eu podia livra ele, mas ocê sabe, conhece
como é. Se eu fizesse isso, tudo o que ocê fez ia volta contra ocê. Agora, se limpa o moço, desfizé tudo, vai fica livre. Pode volta a seu corpo.
Maria remexeu-se na cadeira durante alguns segundos, depois disse:
- Se eu o livrar ele você me deixa voltar para meu corpo?
- Deixo.
- E se eu não quiser?
- Num volta mais. Fica fora do corpo, carregando todo o peso do que fez. E ele vai fica livre do mesmo jeito.
- Você não pode fazer isso. Não tem esse poder. Não é dono da vida. Se eu não voltar para meu corpo, vou morrer.
- Ocê escolhe. Se num fizé o que é preciso, vai fica aqui, eu prendo ocê. Se vai morre, num sei. Mas seu corpo vai fica desmaiado lá em sua casa, conforme
tá agora. Veja, óia pra ele e veja.
- Não. Não quero morrer! Eu vou voltar para meu corpo. Maria remexeu-se na cadeira durante alguns instantes, depois disse:
- Não posso. Você me amarrou.
- Se quê se livra, comece a trabaiá. Desfaça tudo.
- A culpa é dela. Ela queria arrasar com ele.
- Num precisa conta nada. Faz o que é preciso e saiba que num adianta me engana. To de oio nocê.
- Está bem - resolveu ela.
Maria levantou-se e aproximou-se de Sérgio, que continuava estendido no chão adormecido e começou a gesticular sobre o corpo dele, depois foi para um
canto da sala, sentando-se no chão e movimentando as mãos.
Rubens e Antônia continuavam rezando em voz baixa. Depois de alguns instantes, Maria falou:
- Pronto. Ele está livre. Agora, deixe-me sair.
- Vô deixa ocê voltar pró seu corpo, mas quando acordar vai se lembra do que aconteceu. Os espírito de luz mandam dizê que de agora em diante ocê tome
muito cuidado. Desista dessa vida de maldade e trate de ajuda as pessoa. Se continua prejudicando os outro, vai lhe acontece coisa pior.
- Preciso ganhar a vida. Do que vou viver?
- Arranje um emprego. Vá trabaiá. Tome tento. Ocê tá na mira deles faz tempo. Abuso demais. Agora chega. To lhe avisando. Entendeu bem?
- Entendi. Entendi.
- Se num fizé, eles pode busca ocê de novo, e aí num vai té volta. Tá claro?
Maria tremia atemorizada:
- Está. Vou mudar. Eu prometo. Vou deixar essa vida.
- Faça isso e ainda poderá vive bem um tempo. Agora pode ir. Deus nosso sinhô abençoe ocê.
- Amém - respondeu Maria num suspiro. Seu corpo estremeceu ligeiramente e ela abriu os olhos passando a mão pelos cabelos e respirando profundamente.
Ramiro aproximou-se dela, passando as mãos sobre sua cabeça. Depois dirigiu-se a Sérgio e pegando-o pela mão disse com voz firme:
- Sérgio, acorde. Levante-se. Sérgio abriu os olhos assustado.
- Onde estou? - perguntou sentando-se e fitando os presentes admirado.
- Em minha casa - respondeu Ramiro. Dirigindo-se à prateleira, escolheu uma das garrafas com ervas. Voltou, abriu-a, colocou um pouco do seu conteúdo
em um copo e estendeu-o a Sérgio, dizendo: - Beba.
Sem entender bem o que estava acontecendo, ele obedeceu. Ramiro aproximou-se, tomou-lhe a mão e conduziu-o para a cadeira fazendo-o sentar-se. Depois,
dirigindo-se a Rubens e Antônia, disse:
- Sentem-se também. Maria vai fazer um café. Enquanto ela se dirigia à cozinha, Sérgio olhava procurando entender. Ramiro olhou-o divertido, dizendo alegre:
- Pode perguntar. Estou aqui para responder.
- Nem sei o que dizer - começou Sérgio. - Não sei como vim parar aqui. Não me lembro de haver saído de casa.
- Nós o trouxemos - disse Rubens.
- Como se sente? - perguntou Ramiro com interesse.
- Bem. Sinto-me aliviado. E como se eu tivesse acordado de um pesadelo terrível. Estou mais leve.
- Vou lhe dar uma garrafa de remédio que você vai tomar direitinho até o fim. Garanto que quando acabar, vai ficar muito bem.
- Eu não tenho nenhuma doença - disse ele. - Meu problema não tem solução.
- Não diga isso, meu filho! Onde está sua fé? Vai me prometer que vai rezar todas as noites e acreditar que os culpados vão aparecer e seu nome vai ficar
limpo como sempre esteve. Se não der forças para sua inocência, para sua razão, acreditando na justiça de Deus, como quer que as coisas caminhem para o lugar certo?
A descrença anula sua força interior, afasta o bem. Dá chance ao mal.
- Depois da injustiça da qual fui vítima, é difícil confiar. Nunca fiz mal a ninguém. Por que fizeram isso comigo?
Ramiro apanhou a palha, escolheu uma, alisou-a tranqüilamente com o canivete; picou o fumo, enrolou-o na mão e colocou na palha, enrolando o cigarro caprichosamente
antes de responder. Colocou-o na boca, acendeu-o, tirou algumas baforadas, depois disse:
- A maldade dos outros só nos alcança no momento que precisamos dela. Vem para abrir o caminho.
- Não entendo. Quando tudo estava bem, quando eu ia realizar o maior sonho de minha vida, fui arrasado sem ter feito nada para isso. É uma injustiça.
Ramiro tirou algumas baforadas do cigarro, depois explicou:
- Estava na hora de você conhecer a espiritualidade. De pensar na sua alma, de saber coisas sobre isso. Tudo lhe aconteceu como um chamamento. Deus quer
que vocês todos aprendam coisas da vida espiritual. Era a hora de vocês. Não só dos que estão aqui, mas dos que estão longe, lá na cidade grande.
- Está se referindo à minha noiva e à sua família?
- Isso mesmo. Quando tudo ficar resolvido, vocês terão amadurecido. Aprendido coisas sobre a vida espiritual. Isso só se aprende experimentando. Por isso,
meu filho, quanto antes se dedicar a estudar essas coisas, mais depressa vai se livrar dos seus problemas.
- Não tenho muitas esperanças de que as coisas possam resolver-se. Não tenho meios de conseguir as provas de que preciso para demonstrar minha inocência.
Fui acusado de um roubo que não cometi. As coisas foram feitas de forma tal que as evidências foram todas contra mim. Agora, depois que o tempo passou, ficou ainda
mais difícil conseguir as provas de que preciso. Nem sei onde procurar. Só me resta aceitar a situação.
- Nada disso, meu filho. Você não pode nem sabe como, mas Deus pode. Ele sabe quem foi, como foi, onde estão as provas dê que você precisa. Quando ele
achar que é hora, pode fazer tudo isso aparecer. Então, tudo ficará claro. O que você precisa é desenvolver sua fé. Acreditar no poder divino. Sozinhos nós não temos
nenhuma força, mas com Deus podemos tudo.
- Eu sempre tive muita fé, Seu Ramiro - interveio Antônia -, mas depois do que vi hoje, terei muito mais. Entendi o que quis dizer sobre nosso chamamento.
Aquela alma que veio e desmanchou o feitiço do Sérgio era a mulher que tem raiva dele?
- Não. Eu disse que ia verificar o que estava acontecendo e fui. Cheguei na casa da mulher que fez essa amarração e pedi a ela que desfizesse tudo. Ela
nem quis ouvir. Tentei várias vezes e não consegui. Ela continuava fazendo coisas, não só para ele como para outras pessoas. Então, meu guia tirou o espírito dela
do corpo e trouxe aqui para conversar. Foi o que aconteceu.
- Ela estava apavorada - disse Rubens.
- Se não a deixasse voltar, ela ia morrer? Ramiro sorriu levemente.
- Não. Ela ia ficar mais tempo fora do corpo. Para quem está encarnado, essa é uma situação muito especial. Abre mais a consciência e dá à pessoa uma
idéia do alcance do mal que ela está fazendo.
- Pelo visto aconteceram muitas coisas de que eu não estou sabendo - disse Sérgio.
- É, meu filho. Aconteceram. Mas já passou. Não vamos falar nesse assunto agora. Vamos tomar nosso café. A Maria faz esse bolo de fubá como ninguém. Para
falar a verdade, estou com fome.
Tomaram o café, comeram bolo e conversaram mais com Ramiro sobre a utilização das ervas e a forma como ele cuidava delas, preparando-as. Quando se despediram,
Rubens indagou:
- Quanto é o remédio, Seu Ramiro?
- Nada não, meu filho.
- O senhor não cobra nada e ainda dá remédio. Como faz para viver? - tornou Rubens, admirado.
- Tiro da terra. Vivo muito bem, não preciso de nada. Tenho prazer em fazer esses remédios e dar. Já recebi tanto de Deus que o que eu faço é nada.
- Deus lhe pague - disse Antônia comovida.
Os dois agradeceram também. Uma vez no carro, Sérgio comentou:
- Esse é um homem bom. Eu senti o carinho dele. Não sei o que tem lá, mas dá vontade de ir ficando, ficando, de não sair mais. Até a D. Maria, tão simples
e tão quieta, nos olha de uma forma tão boa que ela nem precisa falar, nós sentimos vontade de ficar perto.
- Sem falar de como você melhorou. Chegou aqui carregado, sem dar acordo de si e agora parece que acordou de vez. Está falante como era antes.
- Estou-me sentindo aliviado. Parece que saiu um enorme peso de cima de mim. Minha cabeça também ficou mais leve, mais clara. Não me sinto tão amargurado.
- Foi um verdadeiro milagre! - comentou Antônia, feliz. - Em casa todos vão ficar alegres vendo você voltar melhor.
- Vamos pegar a charrete - disse Rubens.
Enquanto voltavam ao local para apanhá-la, eles foram contando a Sérgio o que havia acontecido e como o haviam encontrado. Ele não se conformava.
- É incrível. Sei que estão dizendo a verdade, mas é difícil acreditar. Começo a pensar que estava mesmo sob o poder de alguma coisa ruim.
- Nós não temos nenhuma dúvida. Seu Ramiro quer que voltemos lá no sábado que vem. Quer acompanhar seu caso de perto. Garantiu que tudo ainda voltará
a ser como antes. A verdade vai aparecer e seu nome será reabilitado.
Uma sombra de tristeza passou pelo rosto de Sérgio:
- Se isso acontecer, eu me dedicarei seriamente ao estudo das coisas espirituais. Nunca me interessei, mas agora sinto que preciso, não só para conhecer
como para evitar que me aconteça outra vez.
Os dois concordaram com satisfação. Sérgio estava certo. Se aquelas coisas existiam e podiam envolver as pessoas, modificar fatos, causar problemas, era
preciso tomar conhecimento delas, aprender como defender-se. Todos eles esperavam ansiosamente chegar o próximo sábado para voltarem à casa de Seu Ramiro e ver o
que ia acontecer.

Capítulo 13





F
lora deu uma olhada no espelho e sorriu satisfeita. Estava linda.
Havia decidido que aquela noite de sábado seria decisiva. Iam jantar em uma boate e estava disposta a não perder a oportunidade. Perfumou-se delicadamente,
apanhou a bolsa e sentou-se a esperar Flávio costumava ser pontual.
Com prazer, passou os olhos pelo aposento. Há meses havia deixado a casa da família e alugara esse apartamento. Saindo com Flávio, ela não queria que
ele fosse buscá-la na modesta casa de seus pais. Estava ganhando bem, principalmente depois que assumira o lugar do Dr. Martinez, mas tinha gasto todo o seu dinheiro
na decoração da nova casa e na compra de roupas elegantes. Era um investimento no seu futuro.
Naquela noite havia caprichado na arrumação. Havia flores frescas nos vasos e comprara uma camisola de seda que tinha usado algumas noites para que ele
não desconfiasse de nada. Pretendia, na volta, convidar Flávio a entrar e sabia que ele era muito esperto. O ambiente estava todo preparado, não podia falhar.
Quando o porteiro do prédio ligou avisando que Flávio estava à espera, ela apanhou a bolsa, deu uma última olhada no espelho e desceu. Cumprimentou-o
carinhosamente e seus olhos brilharam quando ele disse:
- Você está muito bonita!
Ela baixou os olhos ao responder:
- Você está sempre impecável e tem muito bom gosto. Preciso estar à altura.
Ao tomarem assento no carro, Flávio sentiu certo desconforto notando que ela se sentara bem próxima dele. Gostava da companhia da jovem, mas naquela noite
pareceu-lhe que ela estava diferente. Não sabia o que era, mas a proximidade dela causou-lhe desagradável sensação. Arguto, perguntava a si mesmo se a suspeita de
Arlete com relação a Flora poderia tê-lo impressionado. Não tinha nenhum motivo para suspeitar dela e não queria de forma alguma ser injusto. Por isso, esforçou-se
para vencer o que sentia procurando ser mais gentil do que de costume.
Flora exultou. Estava dando certo! Depois de tanta convivência, ele estava interessado nela. Era arisco, mas haveria de entrar no seu jogo. Ela estava
apaixonada por ele. Juntara o interesse à atração que sentia e sonhava com a noite em que ele a tomaria nos braços. Casar-se com Flávio era tudo quanto ela desejava
na vida. Quando se aproximava dele, era como estar ao lado de um vulcão em erupção. Joana tinha razão. Ela precisava entregar-se a ele. Tinha a certeza de que, depois
disso, ele a pediria em casamento. Era muito honesto para esquivar-se.
Ela sentia-se dona do mundo. Jovem, bonita, admirada, bem situada na vida, garantia seu futuro com um homem maravilhoso e rico. Quando entraram na boate,
seus olhos brilhavam de satisfação, mas, ao chegarem à mesa que lhes estava reservada, teve uma decepção. Havia várias pessoas, inclusive Arlete e o Dr. Walter.
Vendo-os, fez um esforço enorme para não demonstrar seu desagrado.
Cumprimentou-os delicadamente e quando se sentaram perguntou a Flávio:
- Tanta gente, pensei que estaríamos sozinhos! Estamos comemorando alguma coisa?
- Nada de especial. Sempre saio com meus amigos. De que se admira?
Ela mordeu os lábios. Que estaria havendo? Flávio conversava animadamente com todos e ela procurou não demonstrar o que sentia. Observando-a disfarçadamente,
Arlete notou que ela ficara contrariada com a presença deles.
Flávio disse a Arlete:
- Vamos dançar. Quero ver se você ainda está em forma. Enquanto eles se levantavam para dançar, Walter convidou Flora e ela aceitou prontamente. Não estava
habituada a ficar em segundo plano. Se Flávio pretendia dar mais atenção aos amigos do que a ela, iria arrepender-se.
- Estou contente vendo-a aqui novamente - disse Flávio. - Só por isso, quero crer que o Centro já fez um milagre.
- Sinto-me mais calma. Tenho fé. Acredito que Sérgio ainda vai voltar e tudo ficará esclarecido.
Flávio não a contradisse. Embora não acreditasse que tal podia ocorrer, o fato de ver Arlete mais calma era um bom sinal. O tempo era um santo remédio.
Ela acabaria por esquecer e tudo estaria resolvido. Decidiu que aquela noite a prima deveria deixar todos os problemas de lado e aproveitar o momento.
- Precisamos comemorar sua volta - disse ele alegre.- Vamos divertir-nos como nos velhos tempos. Aproveitar o presente Amanhã será outro dia.
- Tem razão. Preocupar-me não vai melhorar as coisas.
Flávio sorriu satisfeito. Arlete estava sendo sincera. Sua tristeza não podia estragar a noite dos amigos. Além disso, o prazer de dançar fazia-a esquecer
um pouco sua mágoa. Mas Arlete só aceitara o convite de Flávio por causa de Flora. Quanto mais pensava, mais desconfiava dela. Sérgio tivera a intuição de que ela
estava tentando algo contra ele. Sentira isso. Ela era a única pessoa que poderia ter raiva dele. Pelo seu temperamento agradável e alegre, ele sempre fora muito
querido pelos colegas. Quem mais poderia querer prejudicá-lo? Por outro lado, algo lhe dizia que ela estava dando em cima de Flávio, e a atitude dele nos últimos
tempos, afastando-se dos amigos e saindo só com ela, fazia-a desconfiar que Flora poderia estar tramando também alguma coisa contra ele.
Flávio podia estar sendo envolvido por ela. Sabia que ele era esperto, mas era ingênuo quanto às coisas espirituais. E se Flora estivesse mesmo fazendo
algum "trabalho" para se casar com ele?
Quando ele os convidou, Arlete desabafou com Walter.
- Vamos, sim. Quero que me ajude a observá-la. Apesar do que Flávio disse, não consigo afastar a desconfiança do meu coração. Para mim, Flora é a mulher
de que os espíritos falaram. Ela deve estar armando o bote para Flávio e nós precisamos evitar isso.
- Não se preocupe. Nossos amigos espirituais estão tratando do caso.
- Eu sei. Por isso estou mais calma. Mas quero observá-la e pedir-lhe que me ajude nesse particular. Flávio não precisa saber. Se estiver enganada, tenho
que descobrir. Não posso ficar com essa dúvida no coração. Preciso esclarecer para ficar em paz, entende?
- Entendo. Observar não faz mal nenhum.
Dançando com Flora, Walter não perdeu tempo e indagou:
- Flávio tem saído muito com você. Estão namorando?
- Somos apenas bons amigos.
- Vocês formam um lindo par.
Ela suspirou e seus olhos brilharam de satisfação.
- Também acho.
- Você está linda esta noite! Se não fosse o receio de estar me intrometendo e de desagradar a Flávio, diria que qualquer mortal se sentiria feliz em
namorá-la.
Flora resolveu entrar no jogo.
- Você se arriscaria?
- Sei que poderia me queimar, mas penso que valeria a pena. Walter apertou-a um pouco mais, encostando seu rosto no dela. Flora não o afastou. Em meio
às voltas da dança, procurou o rosto de Flávio tentando perceber se ele estava com ciúmes. Era isso que ela pretendia. Já que ele preferira dar atenção a Arlete
e a deixara só, iria mostrar-lhe o quanto ela era atraente e o que ele estava perdendo. Arlete, que os observava, disse a Flávio:
- Flora está dançando de rosto colado. Não sente ciúmes?
- Eu?!! Por que sentiria?
- Sei lá. Ultimamente vocês têm saído tanto juntos que eu pensei que estivesse atraído por ela. É uma mulher muito bonita.
- É verdade. É bonita mesmo. Quanto a sair com ela, acho que foi porque você me abandonou. Não tinha mais prazer em reunir os amigos sem você. Sua diabinha!
Senti muito sua falta! Sua alegria me faz bem.
- Quer dizer que se eu retomar meu posto, você voltará a ser como antes?
- Com certeza. Hoje notei que ela me olhava de maneira diferente.
- Ela pode estar apaixonada por você.
- Seria embaraçoso.
- Pelo fato de estarem saindo sozinhos, ela pode estar pensando que você está interessado.
- Tem razão. Não havia pensado nisso. Não é justo com ela. Aconteceu sem que eu percebesse. Como não pensei nisso antes? Você sabe como eu sou. Não gosto
de iludir ninguém.
- Ela me disse desde o primeiro dia que faria tudo para se casar com você. Nunca ocultou essa pretensão.
Flávio sorriu.
- As mulheres fantasiam demais. O dia em que eu encontrar uma que seja mais realista, eu me casarei.
- Boa desculpa para continuar solteiro!
Eles continuavam dançando e Walter prosseguiu cortejando
Flora. Ela mal conseguia controlar a raiva. Sentia vontade de fulminar Arlete. Ela não perdia por esperar. Era a culpada pela mudança de Flávio. Por causa
dela, ele reunira novamente os amigos e parecia ignorá-la. Só dava atenção a Arlete. Ela seria a próxima a ter que sair do seu caminho para sempre.
Era madrugada quando Flávio a levou de volta a casa. Enraivecida, Flora não teve coragem de sentar-se junto a ele, mas fez o possível para dissimular.
- Você divertiu-se muito esta noite! - disse Flávio, bem-humorado - Walter ficou fascinado! Ele se declarou?
- Digamos que ele estava romântico. Talvez tenha bebido demais.
- Que eu saiba, ele não bebe. Estava embriagado pelos seus encantos.
Ela fez um gesto de contrariedade.
- Está se divertindo à minha custa?
- Eu? Claro que não.
- Você não me deu atenção, não olhou para mim a noite inteira. Por que agora fala dos meus encantos?
Ele olhou-a admirado. Percebeu que ela estava fazendo enorme esforço para conter a raiva.
- Não entendo o que quer dizer. Fui atencioso com você como sou com todos os meus amigos.
Flora não se conteve mais.
- Eu não quero ser como todos os seus amigos! Pensei que eu fosse diferente para você.
- Você é. Admiro sua inteligência, sua beleza, gosto da sua companhia.
- Eu queria mais. Desculpe - disse ela descendo do carro que estava parado em frente ao prédio onde residia.
Flávio olhava-a consternado. Parecia-lhe estar a vê-la pela primeira vez. Aquele rosto contraído, duro, o ódio que via em seus olhos não a faziam parecer
em nada com a Flora que ele se habituara a ver. Era outra pessoa. Ele não gostou do que viu.
Desceu também para acompanhá-la até a porta e disse com voz fria:
- Sinto muito. Não pensei que estivesse ferindo seus sentimentos. Nesse caso, não voltaremos a sair juntos.
Ela perdeu completamente o controle.
- O que pensa que eu sou? Depois de tudo quanto eu fiz, dos sonhos que construí, do meu amor por você, agora me diz um simples adeus, sem mais nada? Por
que me despreza deste jeito? Eu pensei que me amasse!
As lágrimas desciam-lhe pelas faces e Flávio tentava encontrar um modo de acabar com aquela cena desagradável.
- Eu gosto de você - respondeu ele tentando acalmá-la. - Lamento que tenha pensado assim. Nunca demonstrei qualquer interesse amoroso, nem prometi nada.
Pensei que fôssemos bons amigos, só isso.
- Agora vem com essa conversa de bonzinho. Claro que me usou! Desfilou comigo por toda parte. E agora? Como fica minha reputação? Na empresa houve até
quem dissesse que éramos amantes!
- Eu não sabia. Por que não me contou?
- Pensei que fosse se declarar. Agora, depois de tudo, você simplesmente me põe de lado como um objeto que usou e que pode jogar fora quando não serve
mais.
- Você está exagerando. Acalme-se. É muito desagradável essa cena aqui, na calçada. É melhor entrar, tomar um calmante, esfriar a cabeça. Amanhã pensará
melhor e reconhecerá que exagerou.
- Vamos entrar, conversar um pouco. Estou desesperada.
- Não. Se sua reputação está ruim por minha causa, ela ficará ainda pior se eu entrar. Vou embora e conversaremos outro dia, quando estiver mais calma.
Vendo que ela relutava, ele apanhou a bolsa dela, tirou a chave e abriu a porta dizendo:
- Vamos, entre. Vá descansar. Amanhã será outro dia.
Fazendo-a entrar com um gesto firme, embora delicado, fechou a porta com um suspiro de alívio e dirigiu-se rapidamente para o carro. Queria sair dali
o mais rápido possível. Detestava envolver-se em situações desagradáveis. Flora não era a pessoa que ele imaginara. Arrependia-se de tê-la incluído entre seus amigos.
Flora entrou em casa louca de raiva. Aquela noite que preparara com tanto empenho fora a mais horrível de sua vida. Apanhou o vaso com flores pelo qual
havia pago uma fortuna e teve vontade de atirá-lo contra a parede, mas, lembrando-se do preço, recolocou-o no lugar. Nunca fora tão humilhada! Flávio não perdia
por esperar. Haveria de reduzi-lo a nada. Ele ainda iria implorar-lhe seu amor. Nesse dia, ela o obrigaria a arrastar-se a seus pés.
Tomou um banho, engoliu um comprimido para dormir, mas mesmo assim custou muito a adormecer. No dia seguinte levantou-se cedo e decidiu ir à procura de
Joana. Ela teria que dar um jeito na situação.
Tocou a campainha da casa várias vezes. Joana teria saído? Olhando pela grade do portão, viu seu carro na garagem, portanto ela estava em casa. Insistiu
na campainha e depois de algum tempo a criada apareceu.
- Sou eu, Rosa. Preciso falar com Joana. Abra o portão.
- Sinto muito, D. Flora, mas D. Joana não quer ver ninguém.
- Preciso falar com ela. É urgente! Diga-lhe para me atender.
- Ela está doente. Não está atendendo ninguém.
- Deixe-me entrar. Tenho que falar com ela. Ela entrou de novo e depois voltou dizendo:
- Tudo bem. Ela vai falar com a senhora.
Flora entrou, sentou-se na sala e esperou. Quando Joana entrou, ela olhou-a admirada. Joana estava abatida, com olheiras, parecia fraca.
- Você parece doente mesmo - comentou.
- Só atendi porque é você. Devo-lhe uma satisfação.
- Vim porque as coisas estão indo de mal a pior. Quando eu pensei que tudo ia dar certo e preparei o encontro definitivo com Flávio, saiu tudo errado.
Você vai ter que dar um jeito nisso.
- Sinto muito, Flora. Nada posso fazer.
- Como? Diz isso assim, na minha cara? E o dinheiro que lhe dei? Foi uma verdadeira fortuna.
- Sinto-me fraca. Não tenho mais poder de nada. Cada vez que penso em retomar algum trabalho, começo a passar mal, a suar frio. Tenho que parar. Não posso
mais continuar a trabalhar. Se eu fizer isso, sei que vou morrer e eu não quero morrer.
- E essa, agora? Vai me deixar na mão depois de tudo que eu fiz por você?
- Não é porque eu quero. Estou muito doente.
- Está se tratando? O que dizem os médicos?
- Eles me deram só calmantes. Dizem que é nervoso. Mas eu sei que não.
- O que é, então?
- O caso é espiritual. Se eu fizer mais um trabalho que seja, eles levam meu espírito embora.
- Você está sendo enganada por espíritos mentirosos. Está se deixando enfraquecer. Vai ter que me atender. Vou dar-lhe alguns dias para você se recuperar
e voltarei em uma semana. Verá que tenho razão.
- Pode ser. Dê-me uma semana e volte aqui. Vamos ver, então.
Flora despediu-se e saiu. Assim que fechou a porta, Joana chamou Rosa e disse:
- Arrume todas as nossas coisas. Amanhã vamos alugar aquela casa que Seu Antônio ofereceu no interior e começar uma vida nova. Podemos abrir aquela pensão
que você sempre quis. Quero sarar e não quero mais nada com espíritos. Para mim, chega.
- Isso mesmo, D. Joana. Eu sempre disse que essa coisa era perigosa. Ainda bem que resolveu. Esse povo não gosta da senhora, só quer explorar seus guias.
- O que eu quero mesmo agora é pedir perdão a Deus e rezar. Não vou meter-me mais na vida de ninguém. Eles que se arranjem. Fazem seus rolos e eu que
tenho que desenrolar. Também, quem mandou eu querer ser tão poderosa? Não quero mais nenhum poder. Chega!
Rosa concordou satisfeita. Na semana seguinte, quando Flora chegou, a casa de Joana estava vazia. De nada adiantou perguntar aos vizinhos; ninguém sabia
para onde ela havia se mudado. Inconformada, Flora voltou para casa pensando em encontrar outra pessoa que pudesse fazer o que pretendia. Ela não ia desistir. Durante
aquela semana na empresa, Flávio a evitara, não passando do cumprimento formal. No sábado não recebeu nenhum convite para sair. Sozinha no apartamento, deu vazão
à sua raiva. Eles a estavam pondo de lado, mas ela os levaria a se arrependerem dessa atitude.
Na semana seguinte, Arlete foi ao Centro acompanhada de Flávio e Walter, conforme lhe fora pedido. Era a terceira vez que se submetia ao tratamento espiritual
e sentia-se muito bem nesse ambiente calmo de oração. A cada vez que ia, voltava com mais coragem e disposição. Enquanto Walter participava ativamente dos trabalhos,
ela e Flávio, sentados nas cadeiras laterais, esperavam o momento de Arlete ser chamada para sentar-se no meio de uma roda de pessoas, como das outras vezes. Ela
era sempre atendida por último. Os pacientes saíam antes que os médiuns começassem a receber os espíritos, mas Arlete e Flávio assistiam a todas as manifestações.
Ambos haviam sido convidados pelo Dr. Celso para estudarem os fenômenos, e isso fazia parte da aprendizagem.
Enquanto observava, Arlete procurava cooperar mantendo-se atenta ao que acontecia e mandando energias positivas para os espíritos sofredores que se manifestavam.
A porta abriu-se e mais quatro pacientes entraram, e ela, admirada, reconheceu Dorotéia, a secretária do Dr. Martinez. Apesar da obscuridade, Arlete a
reconheceu logo, embora Dorotéia estivesse mais magra e envelhecida. Fez um sinal a Flávio, que a olhou admirado. Sem vê-los, ela dirigiu-se para o meio de um grupo
e sentou-se. Permaneceu ali alguns minutos e saiu quando a chamaram. Arlete perguntou ao dirigente se poderia sair por um momento e ele permitiu. Imediatamente ela
foi atrás de Dorotéia e alcançou-a no corredor.
- Dorotéia! - chamou.
Ela voltou-se e deparou, surpresa, com Arlete.
- Você aqui?!
- Eu e Flávio temos vindo com o Dr. Walter. Ele trabalha aqui há muito tempo. Como tem passado?
- Agora estou melhorando, mas estive muito mal. Pensei que fosse morrer. Nenhum médico conseguia encontrar o que eu tinha, mas minha cabeça doía sem parar,
meu estômago vivia enjoado, fiquei confusa, perdi a alegria.
- Você sempre foi tão alegre e disposta! Teve algum desgosto?
- Bem, você sabe... Eu adorava meu trabalho. Depois que meu marido morreu e meu filho mudou-se para longe, minha vida era o meu emprego. Sentir-me útil,
capaz, ganhar meu dinheiro, comprar minhas coisas, viajar nas férias, sair com os amigos, era tudo que eu queria da vida. Mas, de repente, não sei como, comecei
a me sentir mal, a ter indisposições, a cometer erros no trabalho. Procurei vários médicos, mas nenhum conseguiu me curar. Eu, cada vez pior. Até que acabei por
me demitir. Não podia mais causar danos à empresa por causa da minha doença. Então, tudo ficou ainda pior. Acabei sem dinheiro, sem amigos e tão deprimida que não
saía mais de casa. Aí, uma amiga que freqüenta o Centro insistiu e me trouxe para uma consulta.
- O que eles disseram?
- Que meu caso era só de obsessão. Sofri um ataque espiritual, e como não estava preparada, não conhecia nada sobre o assunto, fui ficando cada vez mais
envolvida. Faz mais de um mês que tenho vindo receber tratamento.
- Como se sente agora?
- Na primeira noite foi terrível. Passei muito mal e quase não conseguia ficar aqui para esperar o início dos trabalhos. Se minha amiga não me tivesse
impedido, eu teria ido embora. Lá dentro da sala, minha cabeça rodava e parecia que eu ia desmaiar. Depois, chorei muito. Deixei as lágrimas correrem pelo meu rosto
livremente. Isso me aliviou. Naquela noite, consegui dormir melhor. Agora, estou quase boa. A não ser por alguns momentos de desânimo de vez em quando, eu diria
que estou voltando a ser como era antes.
- Por que não nos procurou? A senhora sempre foi muito querida de minha família.
- Vocês já fizeram muito por mim, não queria incomodar.
- Está trabalhando?
- Não. Estou com quase cinqüenta anos e não é fácil encontrar emprego.
- Vamos ver isso. A senhora logo estará boa.Tive muito prazer em encontrá-la. Nós nos veremos na semana que vem.
- Obrigada. Sua presença me emocionou. Talvez você e o Dr. Flávio pudessem ajudar o Dr. Martinez. Ele está que faz dó.
- O Dr. Martinez também?
- Agora que eu estou melhorando, fico pensando se ele não tem a mesma coisa que eu. Ele sempre foi um homem capaz, tinha uma memória excelente. Nunca
se esquecia de nada. Agora, anda desmemoriado, sofre de amnésia. Mas os médicos não estão dando jeito.
- A senhora foi visitá-lo?
- Fui. Tentei convencê-lo a vir aqui fazer uma consulta. Mas ele não quis. Diz que tem medo dessas coisas. Talvez se vocês fossem visitá-lo, ele compreendesse.
Eu agradeço a Deus a hora em que comecei a vir aqui. Estou me sentindo outra.
- Eu também. Ainda não consegui o que queria, mas estou mais confortada.
- O caso de Sérgio também me pareceu esquisito. Ninguém sabe o que aconteceu com ele. Logo ele, um moço que vale ouro! Não sei, não, menina, mas nesse
caso há alguma coisa estranha. Vamos rezar e pedir, porque estou começando a pensar que estamos todos enfeitiçados. Cruz-credo!
- Vamos manter a fé em Deus. Se mantivermos a confiança, todas as coisas voltarão aos devidos lugares. Preciso entrar, foi um prazer vê-la.
- Obrigada. Para mim também.
Arlete voltou à sala da reunião. As palavras de Dorotéia não lhe saíam do pensamento. Estariam todos eles sendo atacados pelos espíritos perturbadores?
Quando saíram da reunião, enquanto tomavam café no lugar de costume, Walter perguntou:
- Você saiu durante os trabalhos. Não estava bem?
- Não é isso. É que por coincidência, uma das pessoas que estavam fazendo tratamento era a Dorotéia, lembra-se dela? A secretária do Dr. Martinez, do
nosso departamento jurídico.
- Bem me pareceu reconhecê-la, mas não sabia de onde.
- Durante anos foi uma das nossas melhores funcionárias - esclareceu Flávio. - Ficou adoentada e demitiu-se do emprego.
- Ela não tinha nenhuma doença. Estava sendo envolvida por espíritos que lhe mandavam energias negativas, fazendo-a sentir-se mal, confundindo sua cabeça.
Pude observar os lugares onde ela tinha acúmulo de energias pesadas. Agora já está quase boa.
- O que me diz é estranho, principalmente porque você é um médico. Tem certeza do que afirma? - quis saber Flávio.
- Claro. Eu vejo as energias e, às vezes, até alguns espíritos. Sei que você é cético, mas o que posso fazer? Eu os vejo e essa é a minha realidade. Pena
que você não tenha essa capacidade. Além disso, os espíritos que estavam com ela se manifestaram através dos médiuns e eles confessaram que pretendiam deixá-la atormentada,
desmemoriada e incapaz. Não é isso exatamente o que ela sentia? Não foi por isso que ela se demitiu do emprego? Os médiuns não a conheciam e nada sabiam sobre seus
sintomas.
- Reconheço que há coincidências demais. Começo a crer que há algo mais.
Walter riu bem-humorado.
- Daqui a algum tempo, você vai perceber muito mais. Você foi vê-la? - perguntou a Arlete.
- Quando a vi, senti vontade de lhe falar. Saí para isso. Conversamos e suas palavras me fizeram pensar.
- Como assim? - indagou Flávio.
- Ela sente-se muito melhor agora e acredita sinceramente que foi vítima de uma obsessão espiritual. Está preocupada com o Dr. Martinez e acha que ele
está sofrendo do mesmo problema.
- O Dr. Martinez?
- É. Tem ido visitá-lo e ele continua tendo lapsos de memória. Os médicos não conseguem encontrar nenhuma doença. Ela acha que ele deveria vir ao Centro
para uma consulta, mas ele se recusa.
- Ele era o chefe dela não é? - indagou Walter, pensativo.
- Era - respondeu Flávio.
- Curioso que ambos ficassem doentes e perturbados da cabeça. Ela bem pode ter razão. Ele pode ter sido envolvido da mesma forma. Começo a pensar que
os dois podem ter sido atingidos pelos mesmos espíritos.
- É curioso ela aparecer logo no mesmo Centro onde estamos. O caso deles terá alguma coisa a ver com Sérgio?
Flávio remexeu-se na cadeira. A fisionomia encolerizada de Flora apareceu-lhe na mente e ele procurou não dar importância. Mas um pensamento começou a
incomodá-lo. Ela teria alguma coisa a ver com o que acontecera com Dorotéia e o Dr. Martinez? Nervoso, ele passou a mão pelos cabelos como para afastar essa idéia.
Estava ficando impressionado. Não havia nenhuma prova de que ela tinha feito isso, nem de que teria esse poder.
- É... pode ser... - disse Walter, pensativo. - É cedo para dizer. Uma coisa é certa: se tiver, vai ficar claro. Confio plenamente nos espíritos. A verdade
vai aparecer.
- Ela sugeriu que fôssemos visitar o Dr. Martinez. Acha que se o convidássemos para uma consulta no Centro ele viria.
- Boa idéia. Podem contar comigo. Irei com vocês - disse Walter.
- É. Eu também concordo. Estou decidido a ir até o fim. Se houver alguma coisa estranha nisso, quero descobrir o que é.
Arlete colocou a mão sobre o braço de Flávio.
- Ainda bem que concordou. Dorotéia sente-se muito infeliz por haver deixado o emprego. Ela adorava nossa empresa. Além disso, precisa trabalhar, e está
tendo dificuldade para encontrar um lugar à altura. Gostaria de poder ajudá-la. É uma pessoa eficiente e capaz.
- Vamos dar um tempo e ver se de fato ela está bem. Além disso, agora é Flora quem toma conta do departamento jurídico. Não seria bom para ela ter como
chefe uma pessoa que era sua auxiliar.
- Sei o que quer dizer. Talvez possamos recomendá-la para outro lugar. Em todo caso, não lhe parece estranho que isso tenho acontecido logo com as duas
pessoas que estavam acima de Flora na empresa?
Flávio remexeu-se novamente na cadeira.
- Sabia que você ia dizer isso. Não acha prematuro pensar assim?
- Confesse que você já havia pensado nisso... - disse ela sorrindo de modo intencional.
- Bom... claro... é uma terrível coincidência. Mas não temos provas. Não podemos precipitar-nos.
Arlete sorriu mais animada.
- Não estou afirmando que ela fez alguma coisa. Estou só estranhando essas coincidências.
- Vamos com calma - disse Walter.-Seja qual for a verdade, tenho a certeza de que vai aparecer. Vamos continuar comparecendo ao Centro pontualmente, rezando
e pedindo a Deus para nos ajudar. Por agora, é tudo o que podemos realmente fazer
Ao voltar para casa, Arlete sentia-se mais encorajada Confiava que um dia tudo seria esclarecido e que Sérgio voltaria para ocupar o lugar que lhe competia,
não só na empresa como em sua casa e em seu coração.

Capítulo 14





S
entado à mesa do restaurante para almoçar, Flávio esperava saboreando tranqüilamente seu suco de laranja gelado. Estava um dia quente e ele deixava-se ficar gostosamente
no ambiente agradável e refrigerado, observando distraidamente as pessoas à sua volta.
- Flávio, como vai?
Ele olhou para o rapaz de fisionomia agradável, de pé à sua frente, e seu rosto distendeu-se num sorriso.
-Paulo! Há quanto tempo! Que prazer vê-lo! Vai almoçar?
- Sim.
- Nesse caso, almoçaremos juntos. Sente-se por favor.
O rapaz sorriu satisfeito e acomodou-se pedindo ao garçom um refrigerante.
Paulo havia sido colega de Flávio na adolescência. Cursaram juntos o colegial e haviam sido muito amigos. Com o tempo, tinham deixado de se ver.
- Várias vezes tive vontade de lhe telefonar, recordar os bons momentos que passamos juntos.
- Por que não o fez? Teria sido um prazer.
- Você agora é empresário importante, ocupado, não sei se teria tempo para perder com coisas passadas.
- Eu me ocupo, mas sempre tenho tempo para os amigos. Se não o procurei foi porque ignorava seu endereço. Você se mudou, foi para outro estado e nunca
mais deu notícias.
- Tem razão. Faz tempo que voltei.
- O que tem feito todos esses anos?
- Trabalhado, tentado viver da melhor maneira possível.
- Está trabalhando em quê?
- Sou gerente de banco. De certa forma tenho acompanhado as atividades da sua empresa.
- A empresa não é minha, mas de minha família. Você sabe disso.
Continuaram conversando animadamente enquanto almoçavam, recordando coisas de sua adolescência. A certa altura, Paulo perguntou:
- E aquele caso de roubo na sua empresa, o moço ainda está preso? Não ouvimos falar mais nada.
Flávio admirou-se.
- Como sabe disso? O assunto foi abafado.
- Já lhe conto. Então ele não foi preso?
- Não. Tratava-se de um dos homens de confiança da empresa, excelente funcionário. Além disso ia casar-se com minha prima Arlete no mês seguinte. Meu
tio achou melhor abafar o caso, chamar a família dele e mandá-lo embora. Minha prima até hoje ignora o que aconteceu.
- Sinto muito. Esses casos de família são mesmo dolorosos. Certamente vocês tinham provas de que foi ele mesmo quem deu o desfalque.
- A polícia concluiu que sim. As somas eram vultosas e estavam depositadas em nome dele em bancos onde nossa empresa não tinha contas. Como o dinheiro
foi em grande parte recuperado, o caso foi abafado.
- Vai ver que o que faltava ele deu à moça que foi fazer o depósito em seu nome.
Flávio surpreendeu-se.
- O caso foi sigiloso e abafado. O que está dizendo? De que está falando? Quem lhe contou sobre o assunto?
- Sei porque sou o gerente do banco onde o dinheiro foi depositado. Casualmente vi a moça que fez o depósito na conta dele. Sabe como é, uma mulher bonita
sempre me interessa! Eu ia entrando no banco e a vi no guichê. Claro que me interessei. Aproximei-me e vi quando ela fez o depósito. Fiquei por ali, mas ela não
me deu atenção. Saiu e eu esqueci o fato. Só fui me recordar dele quando meus funcionários contaram que a polícia havia estado lá e que o dinheiro havia sido roubado
da sua empresa.
Flávio perguntou admirado:
- Por que você não procurou a polícia para contar o que sabia?
- Pensei que tudo já estivesse esclarecido. Como ninguém mais falou no assunto e o dinheiro foi devidamente devolvido, não achei que fosse necessário.
Será que ela foi cúmplice no desfalque, ou foi apenas cumprir uma ordem sem saber do que se tratava?
- Você se lembra de como ela era? Seria capaz de reconhecê-la se a visse de novo? Poderia descrevê-la para mim?
- Certamente. Uma bela mulher não dá para esquecer. Alta, esbelta, morena de cabelos curtos, penteados na moda. Usava óculos escuros, mas tinha boca carnuda
e bem desenhada.
Flávio não teve mais dúvidas. Ele estava descrevendo Flora. Sérgio seria mesmo inocente? Ela teria feito tudo aquilo deliberadamente para prejudicá-lo?
- Escute, Paulo. O que você está me dizendo pode mudar completamente o caso. Pena que não nos houvéssemos encontrado antes.
- Como assim? O caso já não estava totalmente esclarecido?
- Parecia estar. Mas o que você está dizendo confirma a versão de Sérgio, o rapaz envolvido, de que foi uma cilada armada para destruir sua reputação
e prejudicá-lo. Ele jurou inocência até o fim.
- Nesse caso...
- Ele poderia estar dizendo a verdade. Ter sido vítima de uma armadilha.
- Se eu soubesse teria procurado você antes. Ela não poderia ter sido apenas sua cúmplice? A culpa seria dos dois.
- Não creio. Recordando como ele reagiu quando soube, faz crer que ele não sabia de nada mesmo. Dizia que era um equívoco e esperava que logo a verdade
aparecesse. Passou mal, teve febre, ficou quase inconsciente. Em todo caso, diante do que me contou, não descansarei enquanto não descobrir a verdade.
- O que eu disse modificou sua opinião.
- Sim. Nós não sabíamos que havia possibilidade de identificarmos a pessoa que fez o depósito. Imaginamos que houvesse sido ele.
- Não. Ele não foi. Tenho a certeza de que foi ela.
- Nesse caso ele pode ser mesmo inocente.
- Quem teria dado o desfalque então? Você conhece a moça que descrevi?
- Conheço. É uma funcionária do departamento jurídico da nossa empresa. Somente três pessoas conheciam a senha de acesso à nossa conta maior. Um era eu,
outro o Sérgio e outro o Dr. Martinez, justamente o chefe dela no departamento jurídico. Se ela foi ardilosa o bastante para tramar tudo isso, pode ter dado um jeito
de descobrir a senha e ter feito o saque do dinheiro. Nesse caso, Sérgio é inocente e foi punido injustamente.
- Puxa! Que horror! Se eu pudesse adivinhar, teria corrido à polícia. Mas pensei que ele houvesse confessado e as coisas estivessem devidamente esclarecidas.
Não ouvi falar mais nada. Só pediram a transferência do dinheiro e nada mais.
Flávio considerou.
- Eu devia ter investigado mais! Sérgio sempre foi de confiança, honesto e excelente funcionário. Trabalhava há muitos anos na empresa. Estou mortificado.
Se isso for verdade mesmo, cometemos uma cruel e terrível injustiça!
- Que pode ser reparada.
- Antes vou precisar da sua ajuda. Você vai ver a moça e verificar se a reconhece. Você se recorda quem era o caixa na ocasião? Ele ainda está no banco?
- Era o Joel, ele ainda trabalha lá.
- Será que ele também se lembra dela?
- Pode ser que sim. Na ocasião ele percebeu meu interesse e se divertiu muito, principalmente porque ela não me deu bola.
- Preciso fazer tudo sigilosamente por enquanto. Arlete tem sofrido muito por causa de Sérgio e eu preciso estar bem certo antes de lhe contar. Ela não
sabe por que ele desapareceu.
- Trata-se de um verdadeiro drama. Quem diria!
- Eles se amavam muito e estavam felizes. Faltava um mês para o casamento, conforme eu disse. Tudo já estava pronto. Arlete não se conformou com o desaparecimento
dele. Saiu de casa e foi viver sozinha na casa em que eles iam morar. Vive esperando que ele volte.
- Essa moça da qual você suspeita, ela tinha razões para atrapalhar a vida de Sérgio?
- Tinha. Ela disfarçava muito bem, mas havia sido sua namorada em outros tempos. Ela o deixara, e quando se arrependeu e quis voltar, ele não aceitou.
- Tão bonita e tão maldosa! Quem diria!
- Mulher ciumenta e ambiciosa é sempre um perigo.
- Tem razão. Quando é que posso fazer o reconhecimento?
- Ela foi colega de Arlete na faculdade e, por isso, acabamos por nos relacionar, mesmo antes de ela trabalhar em nossa empresa. Ela passou a fazer parte
do nosso grupo de amigos. Amanhã à noite tenho um compromisso, mas no sábado poderemos jantar todos juntos. Vou combinar e lhe telefono.
- Está bem. Terei prazer em cooperar. Detesto injustiças. Principalmente envolvendo problemas financeiros. No banco tenho visto cada uma!
- Combinado. Sábado vamos saber se foi ela mesmo. Quando saiu do restaurante, Flávio sentia-se angustiado. Flora teria sido capaz daquela perversidade?
Sérgio seria mesmo inocente? Teria perdido o emprego, o amor, a reputação, teria sido destruído pela maldade dela? Recordando-se da expressão de ódio do seu rosto,
ele estava quase certo de que ela fora mesmo a causadora de tudo.
Precisava encontrar um meio de saber a verdade. De agora em diante não descansaria enquanto não descobrisse tudo.
Lembrou-se das palavras de Walter:
- Confio plenamente nos espíritos. A verdade vai aparecer.
Eles teriam alguma coisa a ver com seu encontro com Paulo? Teria sido mais uma "coincidência"? Começava a acreditar seriamente que eles, de alguma forma,
estavam contribuindo para o esclarecimento dos fatos.
À noite, encontrou-se com Walter e Arlete. Haviam combinado visitar o Dr. Martinez. A secretária de Flávio tinha ligado para ele e o advogado se sentira
emocionado ante a oportunidade de receber os amigos.
Logo ao entrar eles notaram o quanto ele estava deprimido e pálido. Havia envelhecido e, apesar da apatia, seus olhos estavam inquietos, demonstrando
como ele estava nervoso e perturbado.
Abraçaram-no com carinho e Flávio foi logo dizendo:
- Lembra-se do Dr. Walter? É meu médico de confiança e amigo. Tomei a liberdade de traze-lo porque gostaria que ele formasse uma opinião sobre seu caso.
Soube que os médicos não conseguem descobrir o que você tem.
- Prazer em recebê-lo, Dr. Walter. Sinto-me confortado com o interesse de vocês. Tenho amargado minha solidão. Sinto-me deprimido e cansado, sem coragem
de lutar mais.
- O que é isso, Martinez? - disse Flávio. - Não se deixe abater. Você vai ficar bom.
- Estou perdendo a esperança! - replicou ele. - Minha vida transformou-se num inferno. Nem dormir consigo mais.
- Vamos ver isso - disse Walter aproximando-se dele. - Permite que o examine?
- Certamente.
Walter procedeu a um minucioso exame, e por fim disse satisfeito:
- Você não tem doença alguma. Sua pressão está ótima, seu coração, pulmões, tudo normal.
- Nesse caso por que me sinto tão mal? Há momentos em que me parece perder a consciência, fico tonto, enjoado, a cabeça formiga, tenho medo de dormir
e não acordar mais. Quando estou pegando no sono, sinto um choque e não consigo mais dormir. Além disso, parece que estou sempre dopado. Minha cabeça pesa e meu
raciocínio é confuso. Tenho medo de perder a razão. Por favor, ajudem-me, estou com medo!
- Acalme-se, Martinez - disse Walter. - Você não vai enlouquecer. Se fizer o que eu disser, vai ficar bom.
- Diga, doutor. Farei o que for preciso!
- Você é um homem capaz, inteligente. Está na hora de aprender um pouco mais sobre a vida e as leis do universo. Até agora você tem se ligado às coisas
da aparência, às regras da sociedade, ao mundo que o rodeia. A vida é muito mais. Ela é energia, é luz, é eternidade. Estamos rodeados de elementos invisíveis que
interferem em nossas vidas sem que os possamos ver. Você absorveu energias negativas e não sabe como livrar-se delas. Não conhece seu mecanismo, nem as leis que
regem esses fenômenos.
- Acredita isso possível?
- Por que não? Não acredita em micróbios?
- Claro.
- Eles são invisíveis também. Para vê-los, você precisará de um microscópio.
- É verdade. Nunca pensei nisso.
- Mas eles existem e podem causar doenças quando encontram condições favoráveis. Por enquanto, só posso dizer isso.
- Quer dizer que contraí algum micróbio? Walter sorriu bem-humorado.
- Quase isso. Mas a cura para esse tipo de energia só poderá realizar-se em determinadas condições. Nós temos um grupo de estudiosos que fazem esse trabalho.
Gostaria que comparecesse lá para tratamento.
- Irei com prazer. Mas, poderia dizer-me o preço? Infelizmente estou desprevenido no momento...
- Não lhe custará nada. Eles tratam as pessoas de graça.
- Que gente boa! Nesse caso, estou ansioso para ir. Quando será?
- Amanhã à noite passaremos aqui às sete para apanhá-lo.
- disse Flávio. - Nós também vamos. Estamos interessados nesses estudos.
- Mal posso esperar! - disse Martinez comovido. - Nunca poderei pagar a bondade de vocês.
Quando saíram, Flávio não se conteve:
- E então, Walter, o que acha?
- Martinez nunca esteve realmente doente. Está sob a ação de espíritos perturbadores.
- D. Dorotéia sofreu a mesma coisa. Acha que isso teria a ver com nossa empresa? - indagou Arlete com interesse.
Walter meneou a cabeça pensativo.
- Não sei. Não costumo interpretar nada.
- Os dois trabalhavam juntos, não acha isso provável? - perguntou Flávio, lembrando-se de que Flora estava interessada em ocupar seus lugares e que se
suas suspeitas se confirmassem, ela seria capaz de tudo.
- Só sei que os dois estavam precisando de ajuda espiritual e que os espíritos nos direcionaram para eles. O mais sensato será aguardar que tudo se torne
mais claro. Tenho certeza de que é apenas uma questão de tempo. Amanhã o levaremos até lá e veremos.
- Há momentos em que você parece mais cético do que eu!
- comentou Flávio.
Arlete olhou-o admirada. Flávio parecia-lhe mais ansioso e menos incrédulo do que o habitual.
- Nesses assuntos precisamos bom senso e cautela. Não podemos deixar-nos levar por fantasias. O que tiver que ser será.
- Tem razão - concordou Flávio.
- Você parece mais preocupado do que antes com esse caso. Aconteceu alguma coisa que o fez mudar? - indagou Arlete.
- Não aconteceu nada. Estou começando a pensar que as "coincidências" estão se multiplicando. Estou curioso para descobrir o que há de verdade nisso.
Deixaram Arlete em casa, e quando se viu a sós com Walter, Flávio não se conteve e contou-lhe seu encontro com Paulo e o que havia descoberto e finalizou:
- Estou mortificado. Sérgio pode ser inocente! Se isso for verdade, precisamos reparar nosso engano!
- Tudo está começando a se encaixar. Os espíritos disseram que Sérgio era inocente. Descreveram uma mulher idêntica à que Paulo mencionou. Só nos resta
descobrir se essa mulher é Flora. Estou quase certo de que foi ela quem tramou tudo isto!
- É inacreditável! Ela se dizia interessada em mim. Por que teria destruído Sérgio?
- Maldade, vingança. Quanto a você, apesar de sua bela figura, ela queria mais, queria dinheiro. Não foi por isso que rompeu com Sérgio? Arlete me contou
que quando você assumiu o cargo de chefia em lugar dele, ela terminou o namoro.
- Em todo caso, preciso de mais provas. Se Paulo a reconhecer no sábado, então, sim, traçaremos um plano para desmascará-la.
- Vai contar a Arlete?
- Só quando tiver certeza absoluta. Ela vai brigar comigo por haver ocultado a verdade.
- Confiando em você como confia, acho que tem razão.
- Fiquei entre a cruz e a espada. O tio fez-me prometer que não lhe diria nada. Eu deveria ter investigado mais. Como você sabe, nunca me engano com as
pessoas. Confiava plenamente em Sérgio. Ele era meu homem de confiança. Fiquei atônito com o roubo!
- Felizmente agora, graças a Deus, os fatos começam a se esclarecer. Seja como for, se foi a Flora, ela não agiu sozinha.
- Acha que teria cúmplices?
- Pelo menos alguém que a apoiou energeticamente.
- Como assim?
- Alguma macumbeira.
- Você acredita nisso?
- Acredito. Da mesma forma como nos juntamos aos espíritos superiores em busca do bem, há os que se unem aos espíritos perturbadores a serviço de seus
interesses.
- Custo a crer!
- Por que duvida? Não é isso o que acontece em nossa sociedade? As pessoas se unem pela afinidade, tanto para o bem quanto para o mal.
- É difícil entender como pessoas ignorantes, através de práticas primitivas, têm esse poder. A macumba usa objetos, rituais, e isso para mim é superstição,
crendice, não tem efeito algum.
- Se estudasse o mundo da energia não diria isso. Um bom magnetizador consegue imantar um objeto e transformá-lo num retransmissor das energias que ele
colocou ali. Enquanto não for desmagnetizado, ou retirado do local, esse objeto as espalhará à sua volta. Quando querem atingir uma pessoa os espíritos usam esse
recurso para sugar as energias da sua vítima a fim de melhor dominá-las.
- Isso é assustador, pois nos coloca à mercê de pessoas inescrupulosas!
- Estamos apenas começando nossos estudos com relação a isso. Entretanto, sabemos que nem tudo quanto eles fazem atingem as pessoas. É interessante observar
que nem sempre funciona. Isso nos tem intrigado e feito pensar. Em que condições uma macumba "pega"? Por que algumas pessoas nunca são atingidas, enquanto outras
quase vão à loucura?
- Deve ser por merecimento.
- Foi o que pensei a princípio. Mas isso não é verdade. Conheço pessoas honestas, bondosas e cheias de qualidades que passaram maus bocados com espíritos
perturbadores. Enquanto outras, maldosas e problemáticas, parecem imunes a esses ataques.
- É intrigante mesmo! Tanto Martinez quanto Dorotéia são pessoas honestas, educadas e inteligentes. E, ao que parece, foram vitimadas por eles!
- Para você ver. Nesses assuntos, estamos todos engatinhando. Com exceção de alguns corajosos cientistas que, no passado, se dedicaram a pesquisar, nada
tem sido feito. Hoje em dia, raros vão fundo nessa questão. Só conheço o nosso grupo, ainda assim muito modesto diante da importância que isso representa para todos
nós. Trata-se de conhecer o ar que respiramos, as forças que nos sustentam, enfim, o que é a própria vida. Esse tema deveria ter prioridade em nossa sociedade, uma
vez que interessa profundamente à nossa própria sobrevivência! Estou convencido de que conhecer o mundo das energias será encontrar a chave para resolver os grandes
problemas que afligem a humanidade.
- Por que diz isso?
- Porque tudo começa com a movimentação delas. O sopro da vida, a formação de um corpo, sua manutenção, sua saúde, a doença, a morte. A natureza, a atmosfera,
enfim tudo depende da circulação energética. Conhecendo como elas atuam, as leis a que estão sujeitas, fácil nos será encontrar respostas melhores para nossos problemas.
- É um mundo novo e fascinante!
- Que está à nossa volta, atuando de todas as formas em nossas vidas, sem nos darmos conta.
- Mas o Centro do Dr. Celso está pesquisando.
- Sim. Lá todos estamos muito interessados, mas diante da complexidade do assunto, nossos recursos ainda são insignificantes. Contudo, eu estou disposto
a fazer o que puder para prosseguir.
- Pode contar comigo. Sempre gostei de entender como as coisas acontecem. Começo a perceber que ainda sou preconceituoso e que posso estar enganado em
muitas coisas.
Walter sorriu.
- Descobrir isso é um bom começo. A cultura acadêmica colocou tantas regras em minha cabeça que até agora, depois de verificar que muitas não são verdadeiras,
ainda me surpreendo agindo como se elas funcionassem. Aliás, em pesquisa, se você pretende encontrar algo verdadeiro precisa despir-se de quaisquer regras ou conceitos
estabelecidos. Por isso eu não quero interpretar. Quando você interpreta um fato, já o adulterou de acordo com suas crenças e essas crenças nem sempre são verdadeiras.
Um acontecimento é só aquilo que aconteceu, e pronto. O resto corre por conta da fantasia.
Haviam chegado em casa, e Flávio, ao despedir-se do amigo, combinou o jantar para a noite do sábado. Lá iriam descobrir se fora mesmo Flora quem tinha
feito o depósito na conta de Sérgio. Se as suspeitas se confirmassem, eles colocariam Arlete a par do acontecido e estudariam um plano para colocar tudo nos devidos
lugares.

Capítulo 15





F
lora chegou em casa cansada e irritada. Flávio a convidara para jantar e ela saíra para comprar um vestido novo. Sentia que estava perdendo terreno e que Flávio
esfriara na forma de tratá-la. Não era isso o que esperava. Talvez se houvesse precipitado tentando forçar uma situação. Arrependera-se de haver discutido com ele
e precisava desfazer a má impressão.
Precisava da ajuda de Joana e fora procurá-la, mas não tinha encontrado ninguém. Perguntando a uma vizinha, descobriu que ela havia se mudado sem deixar
o novo endereço.
Mal conseguia conter a raiva. Aquela traidora! Levara seu dinheiro e agora que as coisas iam mal ela a abandonara! Flora precisava mais do que nunca de
ajuda! Saiu de lá preocupada. Nas lojas em que esteve não encontrou o que lhe agradasse, e nada comprou. Além disso, estava com dor de cabeça.
Resolveu reagir. Não podia deixar-se dominar pelo desânimo. Deitou-se um pouco para descansar. Tinha bastante tempo até a noite e pretendia estar mais
bonita do que nunca. Flávio havia de notar. Não podia demonstrar sua irritação.
Deitou-se, mas não conseguia esquecer Joana. Um dia ainda ajustaria contas com ela, mas no momento precisava encontrar outra pessoa que a ajudasse no
que pretendia. Tinha de ser alguém melhor e mais poderosa do que Joana. As coisas não continuaram indo bem porque ela fraquejara. Não tinha sido forte o bastante.
Pensando bem, talvez fosse melhor mesmo que ela houvesse desaparecido. Teria que descobrir alguém melhor. Mas como?
Não podia perguntar a ninguém. Teria que fazer isso sozinha. Fechou os olhos e tentou relaxar para ver se a dor de cabeça passava, e nisso gastou o resto
da tarde, sem conseguir melhorar. Levantou-se e tomou outro comprimido. Estava na hora de preparar-se. Iria a esse jantar de qualquer forma e estaria mais bonita
do que nunca.
Flávio a convidara e não dera detalhes, mas ela suspeitava de que não estariam a sós. Ultimamente ele voltara a reunir os amigos e não saíam mais sozinhos.
Mesmo assim, era uma boa chance que não queria perder. Escolheu um lindo vestido, fez tudo quanto sabia para melhorar a aparência e, quando faltavam alguns minutos
para Flávio apanhá-la, já estava pronta.
Olhou-se no espelho satisfeita. Conseguira dissimular a palidez e, vendo-a, ninguém diria que não estava feliz e disposta.
Flávio chegou pontualmente com Walter e Arlete. Vendo-os, Flora dissimulou a contrariedade e cumprimentou-os, fingindo alegria e disposição. Sentada no
banco traseiro com Walter, Flora tentou mostrar-se bem-humorada, conversando com ele sobre assuntos do momento.
No restaurante esperava-os um casal que Flávio apresentou aos demais.
- Este é Paulo, meu amigo de muitos anos.
Depois de cumprimentar a todos, Paulo lhes apresentou sua namorada, Joice, e sentaram-se à mesa que lhes estava reservada.
- Eu me recordo, você e Flávio não se largavam! Depois desapareceu. Por onde tem andado? - disse Arlete.
- Trabalhando e cuidando da vida. Foi um prazer reencontrar Flávio e recordar nossos bons tempos.
- É verdade.
A conversa continuou agradável e Flora, apesar de não se interessar nem um pouco pelas pessoas que estavam ali, tentava ser atenciosa e delicada. Conseguira
sentar-se ao lado de Flávio e não perdia ocasião de mostrar-se espirituosa e inteligente. Sabia que era desse tipo de mulher que ele gostava.
Quando as moças foram ao toalete, Flávio não se conteve:
- E então, Paulo? Foi ela?
- Foi. Embora estivesse com óculos escuros, tenho a certeza de que era ela.
- Então não há mais dúvidas! - disse Walter.
Flávio ficou pensativo durante alguns segundos, depois disse:
- Diante das evidências, não podemos duvidar. Teremos que encontrar uma forma de desmascará-la. No momento, é melhor fingir que não sabemos nada.
- O que pretende fazer? - indagou Paulo.
- Ainda não sei. Falarei com Arlete e com meu tio e veremos como tirar isso a limpo. Seu funcionário se lembraria dela também?
- No dia seguinte ao de nossa conversa, falei com ele sobre isso. Lembrou-se imediatamente dela.
- Acha que a identificaria se o chamássemos?- tornou Flávio.
- Expliquei a situação e ele está disposto a colaborar.
- Nesse caso, teremos como pressioná-la e fazê-la confessar. Falarei com Arlete ainda hoje e veremos como fazer isso.
Elas estavam voltando e eles mudaram de assunto. Passava da uma quando deixaram o restaurante e levaram Flora para casa. Uma vez sozinhos no carro, Flávio
resolveu.
- Vamos para minha casa. Temos um assunto urgente a tratar.
Sentados na sala de estar, ele foi direto ao assunto dirigindo-se a Arlete.
- Preciso fazer-lhe uma confissão. O assunto é grave e se não falei antes foi porque estava impedido.
- Trata-se de Sérgio? - indagou ela ansiosa.
- Sim. Antes de mais nada quero que saiba que queria contar-lhe tudo desde o começo, mas tio Anselmo fez-me prometer que não o faria. Agora, diante dos
fatos novos, acho que não posso mais omitir-me.
- Por favor, fale logo! Sempre desconfiei que me escondia alguma coisa! O que sabe?
- Sérgio não desapareceu, ele foi forçado a ir embora. Flávio descreveu tudo quanto havia acontecido até a vinda do irmão de Sérgio para buscá-lo.
Arlete, pálida, bebia-lhe as palavras enquanto lágrimas rolavam por suas faces. Quando ele fez uma pausa, ela disse com tristeza:
- E vocês acreditaram? Como puderam fazer isso com ele? Depois de tantos anos de trabalho honesto e dedicado, deixaram-se envolver por uma história mal
contada e o destruíram dessa forma? Não lhe deram nenhuma chance de provar que estava inocente! Como puderam ser tão cruéis?
- Tem razão em nos culpar. Entretanto, a polícia tinha todas as provas e garantia que ele era culpado. Ficamos em uma situação muito delicada. Chegamos
a pensar que ele tinha feito tudo na tentativa de conseguir o dinheiro para fazer frente às despesas de um casamento com você.
- Sérgio nunca faria isso! Ele era ambicioso, sim, mas pretendia subir na vida com trabalho e honestidade. Nunca faria uma coisa dessas! Meu Deus! O que
estará pensando de mim? Que o abandonei? Que acreditei nessa história toda e o deixei? Vocês não tinham o direito de fazer isso comigo! Não podiam decidir por mim
a minha vida! Logo você, que sempre foi meu amigo e em quem eu confiava mais do que em mim mesma!
Arlete chorava desconsolada e Walter abraçou-a com carinho dizendo:
- É preciso ter calma, Arlete. Em tal situação não é fácil saber como agir. Seus pais sabiam que você não ia acreditar na culpa de Sérgio. Temiam que
o procurasse e se casasse com ele assim mesmo.
- Claro que eu faria isso! Tenho certeza de que ele é inocente!
- Pense um pouco. E se ele fosse culpado? Seus pais não tinham a sua certeza. Eles queriam preservar sua felicidade. E se Sérgio fosse um mau caráter?
- Ele não é. Eles sabiam disso. Conheciam-no há anos.
- Diante de um fato como aquele, tinham todo direito de duvidar.
- Lamento, Arlete. Várias vezes tentei convencer tio Anselmo de que devíamos contar-lhe a verdade. Mas ele ficava furioso e me proibia terminantemente.
- Nesse caso, por que está me contando tudo isso agora? Ele permitiu?
- Não. Mas aconteceram fatos novos e eu não posso mais calar-me. Confesso que custei a crer que Sérgio houvesse cometido aquele desfalque. Você sabe que
dificilmente me engano com as pessoas. Sempre confiei nele e, quando tudo aconteceu, fiquei perplexo. Mas como eu disse, a polícia, as provas, tudo estava contra
ele. Acabei por acreditar. Embora no Centro houvessem dito que ele fora vítima de uma calúnia, que havia uma mulher interessada em destruí-lo, eu duvidei porque
as provas eram todas contra ele. Entretanto, talvez por ajuda de Deus, encontrei Paulo e ele casualmente me perguntou sobre o desfalque.
- Como ele sabia?
- Fiz-lhe a mesma pergunta. Ele é gerente do banco onde foi encontrada uma conta em nome de Sérgio com vultosa quantia.
Flávio relatou minuciosamente tudo quanto Paulo lhe contara, finalizando:
- Em vista disso, combinei com ele o jantar desta noite para saber a verdade. Ele confirmou tudo. Foi Flora quem abriu a conta em nome de Sérgio e depositou
aquele dinheiro.
Arlete levantou-se nervosa.
- Eu sabia! Desde o começo, quando os espíritos descreveram aquela mulher, deduzi que havia sido ela!
- Diante desse fato, acredito que Sérgio pode mesmo ser inocente - concluiu Flávio.
- Ainda tem alguma dúvida? Essa mulher precisa ser desmascarada! Já fez estragos demais em nossas vidas!
- Calma - ponderou Walter. - Trata-se de uma mulher sem escrúpulos e muito inteligente. Além disso, tenho a certeza de que ela se valeu de espíritos perturbadores
para conseguir seus fins. Acredito que, desde o primeiro dia em que você pediu ajuda para o Sérgio, os espíritos estão trabalhando a favor dele. Por isso, as coisas
estão sendo esclarecidas.
- Como pede calma enquanto Sérgio continua responsável por um crime que não praticou? Como pensa que ele está se sentindo, abandonado e só? Não quero
que ele pense nem mais um dia que eu o desprezei, ou que acreditei que ele fosse capaz de roubar. Não compreendem isso?
- Compreendo. Por isso estamos reunidos aqui. Para encontrar uma forma de desmascarar essa mulher o quanto antes e reabilitarmos Sérgio. Mas teremos que
fazer isso de forma que nenhuma dúvida paire sobre o assunto - ponderou Flávio.
- Eu não tenho nenhuma dúvida!
- Você não, mas seus pais precisam dessas provas.
- Você também ainda duvida!
- Não, Arlete. Tenho a certeza de que Sérgio é inocente. Mas desejo que isso fique claro para todos. Será importante para ele também.
- Flávio tem razão - aduziu Walter. - Vamos até o fim para esclarecer o caso completamente. Será melhor.
- Quero ir ver Sérgio o quanto antes! Ele está com a família?
- Creio que sim. Pelo menos Rubens nos disse que o levaria para casa. Se ainda está lá, não posso afirmar.
- Irei amanhã cedo!
- Sei que você está ansiosa - ponderou Walter -, mas gostaria que esperasse mais alguns dias.
Arlete abanou a cabeça.
- Não posso. Agora que sei o que aconteceu, preciso ir o quanto antes desfazer toda essa trama. Nós já sofremos demais.
- Precisamos fazer um plano para desmascarar Flora e quero contar com a sua ajuda! - argumentou Flávio.
- É difícil para mim fazer o que pede. Não vê que estou aflita? Se pudesse iria agora mesmo!
- Calma, Arlete. Amanhã vamos procurar saber se Sérgio ainda se encontra com a família. Temos o endereço deles no escritório. Não adianta você ir lá se
ele não estiver - disse Flávio.
- Está bem. Terei que esperar até saber onde ele está. Mas deixarei a mala pronta e, assim que souber, irei ao encontro dele.
- Está bem. Agora vamos pensar em uma forma de resolver o caso.
- Você pode chamar o caixa do banco no escritório e colocá-lo frente a frente com Flora, acusando-a formalmente - sugeriu Walter.
- Ela vai negar, com certeza. Será a palavra dele contra a dela! - ponderou Flávio. - Preciso forçá-la a confessar.
- Ela nunca confessará - disse Arlete. - É esperta e não se deixará apanhar com facilidade.
- Por isso preciso conseguir mais provas. Ninguém comete um ato desses sem deixar vestígios. O dinheiro roubado foi depositado em três bancos diferentes.
Vou investigar. Pode ser que os outros caixas também se lembrem dela - considerou Flávio.
- Depois de tanto tempo decorrido, é provável que eles não se recordem. Mas ainda que consigam, ela pode negar e sempre haverá dúvidas. Não sei se a polícia
vai aceitar esses depoimentos - ponderou Walter.
- É por isso que precisamos de um plano. Criar uma situação em que ela acabe confessando - respondeu Flávio.
- Talvez o Dr. Martinez e D. Dorotéia possam ajudar-nos. Se ela foi capaz de fazer o que fez com Sérgio, certamente também foi responsável pelo afastamento
deles do trabalho - concluiu Arlete.
- Hum!. Não sei. Você está indo longe demais - disse Flávio. - Para isso seria preciso que ela tivesse imenso poder.
- Arlete está certa. É fora de dúvida que havia uma trama dos espíritos perturbadores criada para ajudar Flora a alcançar seus fins. Para isso ela não
precisava de tanto poder assim. Valeu-se de uma médium sem escrúpulos que, acumpliciada com espíritos primitivos, prestou-se a fazer esse trabalho. Ela só conseguiu
porque os envolvidos facilitaram.
- Como assim? - indagou Flávio.
- Os espíritos perturbadores se valem das nossas fraquezas. Eles envolveram Martinez e Dorotéia com energias negativas. Como eles temiam perder a lucidez
com a idade e acreditavam que a velhice os tornaria senis, foi fácil impressioná-los, induzindo-os a pensar que não tinham mais condições de trabalhar. Bastaram
alguns enganos e dificuldades para que eles próprios pensassem que estavam acabados.
- Parece simples do jeito que você explica - tornou Flávio.
- A crença de que a velhice traz a limitação da capacidade é responsável pela infelicidade dos que chegam à idade avançada. Tenho observado que quem se
aposenta e assume esse papel estabelece o próprio limite, negando-se a participar ativamente da vida social, do mundo dos negócios. Fechando-se ao progresso, a pessoa
acaba por acelerar o processo da morte por absoluta falta da vontade de viver. Tanto Martinez como Dorotéia, quando sentiram algumas dificuldades de raciocínio,
pensaram logo que estavam deficientes. Ela pediu demissão, ele adoeceu e precisou ser afastado.
- Se eles não acreditassem que a idade limita, teriam sido atingidos? - indagou Flávio.
- Seria mais difícil. Sentiriam o problema, porém se conhecessem os assuntos espirituais, perceberiam logo que estavam sendo envolvidos por energias negativas,
não teriam dado importância aos sintomas e procurariam manter pensamentos positivos. Caso não conseguissem resolver o assunto por si mesmos, teriam procurado a ajuda
adequada em um Centro Espírita. Dessa forma, seriam libertados dessa influência e nada de ruim ter-lhes-ia acontecido. O grau de influência dessas energias sobre
as pessoas é determinado pelo grau de sua fé no próprio equilíbrio. Quanto mais impressionáveis e inseguras, mais absorvem as energias negativas - esclareceu Walter.
- Quer dizer que quanto mais impressionável, mais frágil? - indagou Arlete.
- Com certeza. A pessoa impressionável é voltada para o negativo. Em qualquer circunstância, ela sempre pensa primeiro no pior. Acha que está sendo prudente,
mas está alimentando justamente aquilo que teme e acabará atraindo esse fato para si. Tais pessoas são muito vulneráveis aos espíritos perturbadores. Basta que eles
sussurrem em seus ouvidos algumas idéias que elas temem, e lancem ao mesmo tempo um pouco de energias negativas, para que elas logo comecem a passar mal e entrem
por si mesmas pelos caminhos da depressão e do temor.
- É incrível! Quer dizer que eles apenas empurram e esperam. Nesse caso os atingidos são vitimados por si mesmos - concluiu Flávio, admirado.
- A própria pessoa facilita. Entretanto, isso não tira a responsabilidade deles. Quem procura atingir os outros, seja como for, é o primeiro a envolver-se
com as energias que emite - disse Walter.
- Tem certeza disso? Flora não parece estar mal. Ao contrário. Está linda, bem-disposta e usufruindo da posição que ocupa na nossa empresa, enquanto Sérgio,
Dorotéia e Martinez estão sofrendo.
Walter abanou a cabeça negativamente.
- Não se iluda com as aparências. Tenho a certeza de que ela não está tão bem quanto deseja aparentar. Nesta noite mesmo pude perceber a raiva e a insatisfação
que sentia, embora dissimulasse muito bem.
- Por que estaria com raiva se conseguiu o que queria? - disse Arlete.
- Ela queria mais. Tenho a certeza de que pretendia um casamento vantajoso com Flávio. Houve tempo em que pensei que ela fosse conseguir.
Flávio levantou-se assustado.
- Você está enganado! Tal coisa nunca me passou pela cabeça. Confesso que ela é atraente e deu em cima de mim, mas consegui controlar-me o suficiente
para não me envolver.
- Eu também pensei o mesmo. Houve tempo em que você deixou a companhia dos amigos e saía só com ela! - tornou Arlete.
- Nem sei por que fiz isso. Talvez porque ela sempre me convidava para teatros, concertos, coisas assim, mandava comprar os ingressos, reservava mesas
para o jantar depois dos espetáculos e eu concordava. Ela era companhia bonita e agradável. Provocava admiração e cobiça por onde passávamos. Confesso que me deixei
levar, talvez até pela vaidade de acompanhar uma bela mulher. Mas quanto a casamento, nunca pensei.
- Você estava encantado com ela, sentia prazer em sua companhia, achava natural acompanhá-la por toda parte. De repente, esse encantamento acabou, e você
começou a notar algumas particularidades que o desagradaram - tornou Walter.
- Foi isso mesmo. Como sabe?
- Desde o começo ficou claro para mim que Flora foi auxiliada por alguma macumbeira sem escrúpulos. Assim, apoiada por alguns espíritos perturbadores
com os quais fez um pacto, pôs seus planos em prática. Eles trabalham no sentido de que as pessoas interessadas não percebam o que está acontecendo. Você, seus tios,
e até Arlete, foram envolvidos por eles.
- Isso, não - protestou Flávio. - Não me deixo impressionar nem influenciar pelas pessoas. Desde que os fatos começaram a acontecer, sempre tive a cabeça
muito clara e o raciocínio lúcido. A mim eles não conseguiram perturbar!
Walter sorriu levemente ao dizer:
-Tem certeza disso? Então por que acreditou em tudo quanto a polícia disse, mesmo sendo contrário ao que pensava de Sérgio? Bastou que eles o julgassem
culpado para você aceitar o fato como verdadeiro, sem questionar nem investigar nada. Sequer o procurou depois para ouvi-lo. Vocês eram tão amigos! Fez mais, concordou
em ocultar tudo de Arlete, atitude contrária à conduta que sempre teve para com ela.
Flávio ouviu pensativo. Começou a desconfiar que, de alguma forma, ele se havia omitido quanto à apuração dos fatos. Walter prosseguiu:
- Há espíritos desencarnados muito hábeis na forma de envolver as pessoas. Interferem no raciocínio de cada um, sugerindo frases, levantando suspeitas,
torcendo os fatos de acordo com seus interesses, fazendo com que pareçam exatamente como eles desejam. Infelizmente ainda há muita ignorância sobre as leis de influências.
É preciso muita atenção para perceber quando um pensamento é seu, ou quando ele está sendo sugerido por terceiros. Os estudiosos do assunto conhecem bem como eles
funcionam e os médiuns equilibrados percebem essas interferências.
- O que me diz é revelador. Ainda assim, custo a crer - disse Flávio. - Tudo em minha vida está bem e em nenhum momento senti qualquer influência negativa.
Você sabe que sou muito positivo e esse é meu natural.
- Eles não estavam interessados em atingi-lo energeticamente. Pretendiam apenas que não percebesse o que estava acontecendo com Sérgio e Flora. Quando
nós pedimos ajuda no Centro, os espíritos amigos nos informaram de que Sérgio estava sendo vítima de uma injustiça e que havia espíritos perturbadores interessados
em destruí-lo. Começaram a trabalhar para ajudá-lo, e aos poucos, como eu havia dito no início, os fatos foram sendo esclarecidos. Por essa razão é que eu não gosto
de me adiantar, de supor qualquer coisa. Em um processo como este, os espíritos perturbadores reagem e procuram envolver-nos, enganar-nos, e podemos acabar fazendo
exatamente o jogo deles. É mais seguro que nos atenhamos somente aos fatos, deixando as providências essenciais nas mãos de Deus e dos espíritos superiores.
- Você acredita mesmo que eles me envolveram? - insistiu Flávio com ar preocupado.
- Acredito. Se analisar suas atitudes com sinceridade, perceberá que em muitos momentos agiu de maneira diferente do seu natural. Os espíritos prometeram
ajudar. Tenho certeza de que foi a partir daí que você começou a enxergar certas particularidades desagradáveis em Flora que antes não notava.
- É verdade! - disse Arlete. - Eu me lembro. Na semana seguinte você nos convidou a todos para jantar, lembra-se? Fazia meses que não se reunia com os
amigos!
- Do jeito que vocês falam, até parece verdade!
- Não seja resistente, homem! - disse Walter. - Admita. Sei que é difícil para você aceitar que foi enganado. Isso acontece a qualquer um!
- Ainda não estou convencido. Em todo caso, é uma hipótese a observar. Prometo estudar o assunto. Agora, quanto à Flora, o que vamos fazer?
- Estou mais interessada em procurar Sérgio! Ele precisa conhecer a verdade! Já pensaram o quanto deve ter sofrido esse tempo todo, humilhado, ferido,
abandonado? Quanto a ela, você sabe que não sou vingativa. Ficarei satisfeita se você a demitir da empresa e a riscar do grupo de nossos amigos.
Flávio meneou a cabeça dizendo:
- Não pode ser assim. O que ela fez foi muito grave. Não se trata de vingança, também não sou vingativo. Mas precisamos esclarecer definitivamente este
assunto para reabilitar Sérgio. Traze-lo de volta, devolver-lhe tudo que tinha não será suficiente para apagar a humilhação que ele sofreu. Diante da polícia ele
continuará sendo um ladrão e é preciso que a verdade apareça.
- Flávio está certo, Arlete. Nós sabemos que ele é inocente, mas para a polícia ele continua culpado. Não podemos deixar a criminosa impune enquanto ele
aparece como responsável. Ela cometeu um crime e terá de responder por ele na Justiça.
- Nós sabemos disso. Mas como provar?
- Só há um jeito: fazê-la confessar - disse Flávio.
- Flora nunca fará isso! - tornou Arlete. - Mesmo pressionada pelos funcionários do banco, vai negar até o fim.
- Eu também acho - concordou Walter.
- Por isso penso que devemos elaborar um plano que a faça trair-se.
Arlete pensou alguns instantes, depois disse:
- Não vamos decidir nada antes de falar com Sérgio. Ele tem direito a opinar. Amanhã mesmo viajarei para Barretes. Se ele não estiver lá, sua família
deve saber onde ele está. Preciso encontrá-lo, desfazer todo este mal-entendido, contar-lhe como tudo aconteceu. Pretendo traze-lo de volta. Juntos resolveremos
o que fazer.
- Eu preferia ir ter com ele quando tudo estivesse provado - disse Flávio.
- Você ainda tem alguma dúvida? - inquiriu Arlete.
- Não. Mas penso que é nosso dever reabilitá-lo.
- Concordo. Mas desejo que ele saiba que nunca acreditei nesta história. Se eu for procurá-lo depois de tudo esclarecido, ele vai pensar que o procurei
só quando tive a certeza de que não havia sido ele. É importante que ele acredite que eu nunca duvidei de sua honestidade.
- Arlete tem razão - declarou Walter. - Do modo como os fatos aconteceram, ele deve estar pensando que Arlete o julgou culpado.
- Está certo. Nesse caso vou com você - disse Flávio.
- Não é preciso. Eu resolvo tudo e telefono.
- Eu vou. Também quero que ele saiba que estou arrependido por haver acreditado em sua culpa. Logo cedo passarei para apanhá-la.
Arlete aproximou-se de Flávio beijando-o na face.
- Eu sabia que podia contar com você! Mal posso esperar! Só em pensar que irei abraçá-lo, sinto meu coração disparar...
- O que é o amor! - disse Walter com um sorriso.

Capítulo 16





S
entado sob uma árvore, Sérgio pensava. Precisava dar um rumo à sua vida, não podia ficar mais encostado na família, tinha de encontrar trabalho. Porém, não sentia
nenhum entusiasmo. Deixava-se ficar recordando os momentos bons que vivera com Arlete. Ele não sabia o que mais o magoava, se sua ausência ou o fato de ela haver
acreditado que ele fora capaz de roubar. Não tinha dúvidas quanto a isso. Ela não viera porque o julgava culpado.
Nas últimas semanas voltara várias vezes à casa de Seu Ramiro, de quem se fizera muito amigo. Sempre recebido com carinho, Sérgio sentia-se bem lá, permanecendo
largo tempo sentado na sala simples, conversando com Maria ou com o próprio Ramiro, que lhe falava das coisas espirituais, ensinando-o a defender-se das energias
negativas.
- Você precisa deixar as mágoas de lado. Pra ficar bom mesmo, tem de perdoar. Quem faz o mal é pessoa que não tem senso. Cedo ou tarde vai pagar por isso.
A vida devolve tudinho. Por isso, meu filho, limpe seu coração e trate de pensar que tudo vai melhorar, que vai ser melhor do que antes!
Sérgio suspirava. Era-lhe difícil esquecer. A bondade de Ramiro o comovia, mas ele ainda se sentia muito humilhado, ferido. A injustiça doía fundo e a
tristeza era constante. Mas, apesar disso, sentia-se mais forte. Não podia deixar-se abater. Haveria de reconstruir sua vida. Não pensava em ir mais para a cidade.
Procuraria um emprego em Barretes, um apartamento pequeno para morar e tentaria tocar a vida. Pensava, mas não decidia.
Rubens convidara-o a trabalhar com ele na granja, mas Sérgio não sentia vontade. Preferia outro tipo de atividade. Não tinha jeito para cuidar da criação.
A tarde ia acabando e Sérgio levantou-se caminhando devagar. Os pássaros cantavam alegres, mas ele nem os ouvia, imerso que estava em seus íntimos pensamentos.
Ao chegar em casa, os cachorros aproximaram-se abanando a cauda e ele se deteve para alisar-lhes a cabeça distraidamente. Entrou, sentiu o cheiro gostoso que chegava
da cozinha e pensou na mãe com ternura. Ela se desdobrava para agradar-lhe, fazendo guloseimas de que ele gostava, conversando com alegria, tentando interessá-lo
na vida da vila. Se dependesse dela, ele seria o homem mais feliz do mundo! Procurou disfarçar a tristeza para que ela não se aborrecesse. Todos em sua família faziam
o possível para alegrá-lo. Ele queria retribuir de alguma forma, tentando aparentar boa disposição.
O nascimento da primeira filha de Rubens trouxera momentos de alegria para todos. Com a menina nos braços, Sérgio pensava em seus sonhos desfeitos. Ele
nunca seria pai. Jamais se casaria. Arlete fora a única e em seu coração não havia lugar para ninguém mais.
Os cães começaram a latir e Sérgio voltou sobre seus passos. Ouvira o ruído de um carro. Quando saiu, empalideceu. Reconheceu o carro de Flávio. Estaria
vendo bem? Sua vista turvou-se e ele apoiou-se à parede da casa, coração batendo descompassado.
A porta do carro abriu-se e Flávio desceu. Foi então que ele viu Arlete. Ela descera pelo outro lado e seguiu à sua frente, braços estendidos, dizendo
com voz que a emoção enrouquecia:
- Sérgio! É você. Finalmente!
Ele queria correr, tomá-la nos braços, gritar sua alegria, mas não teve forças. Ficou parado, pernas trêmulas, pálido, fazendo enorme esforço para manter-se
de pé. Foi ela quem se aproximou e, abraçando-o, disse emocionada:
- Sérgio! Graças a Deus que o encontro! Você não sabe o quanto sofri sem saber onde estava, nem por que desapareceu.
Sérgio abraçou-a com força, suas lágrimas se misturaram enquanto ambos se beijavam efusivamente. Flávio os observava emocionado. Quando se acalmaram,
Arlete disse:
- Eu não sabia de nada! Você desapareceu e ninguém me contou o que havia acontecido.
Sérgio olhou-a nos olhos dizendo com voz que procurou tornar firme:
- Não fui eu quem deu aquele desfalque. Juro que estou inocente!
- Eu sei disso. Se houvessem me contado tudo, de há muito teria vindo à sua procura.
Flávio aproximou-se dizendo:
- Eu me deixei envolver pelas evidências. Espero que me perdoe.
- Não o culpo. Afinal as provas eram contra mim.
- Sei que não foi você. Estou empenhado em provar sua inocência.
- Encontrou o culpado? - indagou Sérgio ansioso.
- Sabemos quem foi, mas não temos provas.
Os pais e as irmãs de Sérgio haviam se aproximado.
- Vamos entrar - disse Rita. - Lá dentro conversaremos melhor.
Entraram e na sala, depois das apresentações, enquanto Rita servia um gostoso café com bolo, Arlete contou tudo quanto acontecera desde o desaparecimento
dele. Sérgio, conservando a mão de Arlete entre as suas, ouvia atentamente.
- Achei que você me julgava culpado e não queria me ver. Seu pai me proibiu de procurá-la e eu nem tentei. Não tinha como provar minha inocência.
Arlete sacudiu a cabeça negativamente.
- Sei que você não seria capaz de um ato desses.
- Eu quis contar tudo a ela, mas tio Anselmo fez-me prometer que não o faria. Ele temia que ela viesse à sua procura. Ele pensa que foi você.
- É isso o que me incomoda. Preciso provar minha inocência. Mas como? Os depoimentos dos funcionários do banco serão suficientes para inocentar-me?
- Diante da polícia, não. Eles podem pensar que ela era sua cúmplice. Nós precisamos de algo mais. Temos que obrigá-la a confessar!
- Ela nunca fará isso! - disse Sérgio convicto. - Eu a conheço o suficiente para saber.
- Foi o que eu disse! - afirmou Arlete.
- Temos que pensar, encontrar uma forma, fazer um plano para desmascará-la. Eu queria tentar alguma coisa antes de vir aqui, mas Arlete estava muito ansiosa
para vê-lo e saber sua opinião. Não descansarei enquanto não esclarecer definitivamente esse caso - disse Flávio com firmeza.
- Obrigado - respondeu Sérgio comovido. - O apoio de vocês me faz bem.
- Eu sabia que alguma coisa ia acontecer! - disse Rita com olhos brilhantes de emoção. - Não agüentava mais ver a tristeza de Sérgio e rezava todos os
dias pedindo a ajuda de Deus.
- Vocês foram ao Centro Espírita, mas nós aqui quando precisamos de ajuda vamos a Seu Ramiro. Ele é um curador de primeira. Homem santo e bondoso como
ele só. Tem nos ajudado muito - esclareceu Vicente com seriedade. - Sérgio melhorou muito depois que foi lá. Vocês precisavam ver como ele chegou aqui! Estava abobado.
Não entendia direito o que nós dizíamos. Ficava horas estirado na cama, quase não comia, parecia um bicho. Dava pena ver.
- É mesmo - disse Diva. - Eu tentava falar com ele, contar coisas para ver se ele se animava, mas que nada, parecia nem ouvir. Pálido, triste, calado.
- Logo ele, sempre tão alegre e brincalhão! - ajuntou Dirce.
- Vocês estão exagerando - disse Sérgio.
- Exagerando? Até para tomar banho a mãe precisava brigar! Você que sempre foi como um pato, tomando banho até duas vezes por dia! E a comida, então?
A mãe caprichava fazendo tudo quanto você gostava, mas era inútil. Você nem olhava para o prato. Era preciso insistir e brigar para você comer um pouco!
- Isso já passou - disse Sérgio envergonhado. - Já estou melhor.
- Depois que foi no Seu Ramiro, sabem o que ele fez? - continuou Diva. Vendo que os dois sacudiram a cabeça negativamente ela prosseguiu: - Ele não queria
ir ver Seu Ramiro de jeito nenhum. Disse que ia, mas enganou o Rubens. Quando ele chegou com a Antônia para buscá-lo, ele havia saído com a charrete e se escondido
no meio do mato. Estava lá, estirado no chão, parecendo desmaiado. Rubens carregou-o assim mesmo até a casa do Seu Ramiro, que fez as rezas e quando ele acordou,
já estava melhor.
Sérgio estava acanhado. Apesar de eles haverem contado que estavam freqüentando um Centro Espírita, pelo jeito era um lugar de gente instruída. Não sabia
o que pensariam de um curador simples da roça. Mas para sua surpresa, Flávio observou:
- Ele deve ser um médium muito bom. Rita esclareceu:
- É o melhor curador que nós já vimos. Tem ajudado muita gente. Atende a todos com bondade e alegria. Em sua casa há sempre um prato de comida para quem
tem fome e um alívio para quem está desesperado.
- Gostaria de conhecê-lo - tornou Flávio interessado.
- É um santo homem. Posso levar vocês lá. Ficamos amigos. Quando eu me sentia aflito e triste, ia até lá conversar um pouco. Sua mulher, D. Maria, também
é muito boa. Quando vocês chegaram, eu tinha acabado de vir de lá. Passei boa parte da tarde com eles - esclareceu Sérgio com prazer.
- Precisamos resolver o que vamos fazer - disse Flávio.
- Sérgio irá conosco para São Paulo - disse Arlete.
- Infelizmente não tenho condições de ir agora. Estou desempregado. Arranjarei um emprego em Barretes e irei assim que puder.
- De forma alguma! - disse Arlete. - Você irá conosco, sim. Ficará em nossa casa.
- Seus pais não iriam gostar. Eles ainda pensam que fui eu!
- Não estou mais morando com eles. Quando a nossa casa ficou pronta, mesmo sem o casamento, eu me mudei para lá. Eu sentia que era lá, na casa que preparamos
com tanto amor, que eu deveria esperá-lo. Todas as noites eu pensava em você e pedia a Deus para tê-lo de volta!
Sérgio emocionou-se e abraçou Arlete, beijando-a delicadamente na face.
- Você fez isso! E eu não sabia! Perdoe-me por haver duvidado do seu amor!
- Você não sabe como essa menina nos deu trabalho! - disse Flávio tentando esconder a emoção que envolvia a todos os presentes. - Tia Nora chorou, pediu,
tio Anselmo ordenou, implorou, ofereceu várias coisas para ela desistir, mas não houve jeito; quando chegou o dia, ela saiu de casa mesmo e mudou-se para lá.
- É que lá, em meio às coisas que compramos juntos, eu me sentia mais perto de você. Por isso, você vai comigo. Lá é sua casa também.
- Eu adoraria ir, você sabe. Nada me faria mais feliz. Entretanto, não desejo causar-lhe problemas. Iria comprometer sua reputação e seus pais me odiariam.
Não quero que seja dessa forma. Eu a amo e quero que tudo entre nós seja feito às claras, do jeito que tem de ser. Quero me reabilitar, poder oferecer-lhe um nome
limpo de qualquer suspeita. Encontrar um trabalho, ter uma vida decente novamente; só então nos casaremos e irei para nossa casa.
Arlete ia protestar, mas Flávio interveio:
- Sérgio está certo. É dessa forma que as coisas deverão ser feitas. Mas você pode voltar conosco. Ficará em minha casa. Será meu hóspede. Quanto à questão
financeira, não precisa preocupar-se.
Assim que resolvermos tudo, você voltará para a empresa, da qual nunca deveria ter saído.
- O Dr. Anselmo não vai querer - retrucou Sérgio preocupado.
- Meu tio é homem correto e o apreciava muito. Sofreu dura perda com o que aconteceu. Tenho a certeza de que quando for informado da verdade será o primeiro
a querer readmiti-lo. Bem que eu queria contar-lhe, mas Arlete não me deu tempo. Ontem à noite, quando descobriu tudo, quis vir imediatamente para cá.
- Eu não suportaria esperar nem mais um dia!
Sérgio abraçou-a novamente, beijando seu rosto com amor.
- E que você sabia que eu estava sofrendo muito - disse ele.
- Eu não via a hora de abraçá-lo. De dizer-lhe que o amo e que sempre o amei!
- Desse jeito ele ficou até corado! Já se recuperou de tudo! - disse Diva com alegria.
- Não há nada como o amor para curar as pessoas! - ajuntou Dirce, bem-humorada.
- Enquanto vocês conversam e combinam tudo, vou cuidar do jantar - disse Rita.
- Não se preocupe conosco - pediu Flávio. - Depois comeremos em algum lugar.
- De forma alguma Dr. Flávio. Vir à minha casa e não experimentar meu feijão é um desperdício! Vai se arrepender com certeza! Sérgio não lhe contou que
eu faço o melhor arroz com feijão do mundo? Vê lá que eu ia deixar vocês comerem em qualquer lugar! Podem esperar que não vai demorar nada!
Flávio sorriu bem-disposto. Sentia-se bem naquela casa simples. Gostou da maneira franca e honesta com que haviam sido recebidos. Havia muita dignidade
na postura dos pais de Sérgio e muita simpatia das moças. Afinal, eles poderiam estar indignados com o que ele e o tio haviam feito. Sabiam que o filho era inocente.
Essa era uma das razões pelas quais acompanhara Arlete. Temia que ela fosse maltratada pela família quando ali chegasse. Entretanto, eles os ouviram atenciosos e
os receberam de braços abertos.
O jantar decorreu alegre e Flávio reconheceu que a comida de Rita era deliciosa. Não só o feijão com arroz, mas o lombo de porco, a verdura refogada,
o doce de leite feito em casa e o queijo branco eram deliciosos.
Estavam terminando o jantar quando Rubens e Antônia chegaram, com a pequena Andréia nos braços. Alguns vizinhos lhe haviam contado terem visto um carro
de São Paulo na casa dos seus pais. Eles queriam saber do que se tratava. Vendo Flávio, Rubens sentiu-se um pouco preocupado, mas seu rosto logo se desanuviou notando
o ambiente de franca alegria.
- Chegaram a tempo de comer - disse Rita.
- Obrigada, D. Rita, nós já jantamos - respondeu Antônia, olhando curiosa para os visitantes.
- Nesse caso, vou trazer o café.
Posto a par do que acontecera, Rubens não se conteve:
- Aí teve o dedo de Deus e do Seu Ramiro! Bem que ele falou que tudo iria se resolver!
- Esse curador deve ser muito bom mesmo - disse Flávio com interesse. - Pena que não posso me demorar por aqui.Teria muito gosto em conhecê-lo.
- Eu poderia lhe contar muitos casos que ele resolveu, mas o do Sérgio foi impressionante.
- Soube que ele não queria ir até lá.
- É verdade. Ele me disse que ia, mas quando eu e Antônia viemos buscá-lo, ele havia saído. Não me conformei e fui atrás dele. Foi Antônia quem viu a
charrete abandonada na estrada. Paramos e entramos no mato. Encontramos ele dormindo estendido embaixo de uma árvore. Sacudi ele para ver se acordava, mas qual o
quê. Era um sono esquisito, diferente, e nós logo deduzimos que era alguma coisa especial. Levamos ele assim mesmo, e quando chegamos em casa do Seu Ramiro, entramos
e colocamos ele estendido no chão na sala dos trabalhos. Ele tem uma sala onde faz as rezas, tem velas, ervas de remédio, garrafadas que ele mesmo prepara e dá para
as pessoas.
Rubens fez ligeira pausa, e vendo que todos o ouviam com atenção, continuou:
- Ele rezou, depois disse que Sérgio estava com um feitiço e que ele ia tentar ajudar. Fez a D. Maria sentar e disse para ela se preparar para receber.
Então aconteceu uma coisa que nunca mais vou esquecer: ela estremeceu e depois recebeu o espírito da pessoa que fez a macumba para o Sérgio.
- Da mulher que fez a macumba? - indagou Flávio admirado. - Do espírito que ajudou a macumbeira a fazer?
- Não. Aí é que está. Ele trouxe o espírito da macumbeira mesmo. Ela é uma pessoa como nós. Ele tirou o espírito dela e trouxe na D. Maria para conversar.
Vocês precisavam ver. Ela estava apavorada. Pensou que fosse morrer, que não poderia mais voltar para o corpo. Aí, ele conversou com ela e disse que se ela não largasse
de fazer esses trabalhos para perturbar a vida das pessoas ela iria sofrer muito e até morrer. Ela implorou para ir embora, mas ele só deixou depois que ela desfez
toda a macumba que havia feito para Sérgio e prometeu que ia se retirar daquela vida e nunca mais iria prejudicar ninguém.
- O que nos conta é espantoso! - disse Flávio admirado. - Tenho um amigo médium, o Walter, que adoraria ter visto isso!
- Se ele quiser, pode vir e nós o levaremos até lá. Seu Ramiro é muito bom e recebe todo mundo.
- Mas e depois, o que aconteceu?
- Bem, o Sérgio acordou e estava muito melhor. Nunca mais ficou jogado na cama daquele jeito. Estava triste, deprimido, é verdade. Mas é claro, estava
magoado, com saudade da Arlete, machucado. Ele afirmou que tudo ia voltar a ser como antes. Sérgio não acreditou que isso fosse possível. Mas eu sabia que ele ia
conseguir. Agora, vocês estão aqui. Isso já é um milagre, depois do que eu vi em São Paulo.
- Está fora de dúvida que tivemos muita ajuda espiritual - considerou Arlete. - Quando tia Amélia me mandou procurar um Centro, foi que as coisas começaram
a mudar.
- Tem razão - concordou Flávio. - Nós lá e vocês aqui, tudo ao mesmo tempo.
- Uma coisa completa a outra - disse Rubens, convicto. - Tenho muita fé e sei que Deus trabalha em todo lugar. Do jeito que Sérgio estava, só um santo
homem como Seu Ramiro poderia dar jeito.
- Agora está na hora de irmos embora. Vamos procurar um hotel em Barretes. Acho que é perto - disse Flávio levantando-se.
- Dez minutos de carro - esclareceu Diva.
- De jeito nenhum - disse Rita. - Minha casa é de pobre, mas sempre tem lugar para mais um. Arlete pode dormir aqui com a meninas e o Dr. Flávio fica
na casa de Rubens. Ele tem um bom quarto lá.
- É muita bondade sua, mas não queremos dar trabalho. Ficaremos no hotel mesmo e amanhã cedo voltaremos para buscar Sérgio - replicou Flávio.
- Deixe a moça ficar aqui - pediu Vicente.-Tomamos conta dela direítinho.
- Fique, Arlete! - pediu Dirce abraçando-a.
- Depois de tudo que aconteceu, não devemos separá-los nem por algumas horas. Tenho certeza de que ela prefere ficar! Nós temos muito que conversar!
Flávio olhava para Arlete, que, corada, não sentia vontade de ir embora.
- Seja. Arlete fica, mas eu vou.
- Gostaria muito que aceitasse nossa hospitalidade - disse Antônia. - Teremos imenso prazer em hospedá-lo.
- Está certo. Aceito. - Voltarei amanhã cedo para buscá-los.
Quando eles saíram e enquanto as duas moças ajudavam a mãe a pôr a cozinha em ordem, Arlete e Sérgio sentaram-se, abraçados, no banco da varanda para
conversar. Ela quis saber o que tinha acontecido desde o dia em que fora levado à delegacia.
Ele fez o possível para contar tudo, mas momentos houve em que ele não se lembrava do que havia acontecido. Comovida com o sofrimento dele, Arlete segurava
sua mão, apertando-a carinhosamente de vez em quando. Sentindo o carinho dela, Sérgio abriu o coração confidenciando toda a sua tristeza, sua vergonha, e a consciência
de que nada podia fazer para provar que era inocente. Esse era o ponto mais dolorido.
- Só Deus mesmo para me ajudar! Eu fui envolvido, sem saber de onde nem de quem partira o golpe que me derrubou. Como me defender? Como provar que era
inocente? Onde encontrar a chave desse mistério?
- Você não pensou em Flora?
- Pensei. Mas não tinha certeza de nada. Suspeitar não era o bastante. Precisava ter provas. Antônia achava que eu deveria ter ido à sua procura. Mas
Rubens afirmava haver prometido à sua família que não faríamos isso.
- Deveriam ter ido assim mesmo. Eles não tinham o direito de decidir por mim. Você sabia que eu o amava. Por que não confiou?
- Pensei que você tivesse acreditado na minha culpa. Senti vergonha.Temia que me desprezasse. Não suportaria isso. Mas durante muito tempo esperei que
viesse. Achava que se não me julgasse culpado, você me procuraria. Como você não veio, deduzi que não me queria mais.
- Como pôde pensar isso? Não lhe ocorreu que eles pudessem ter-me ocultado a verdade?
- Diva e Antônia sempre me diziam isso. Mas eu sentia medo.
Depois, naqueles dias me sentia muito mal. Vivia sem forças, sem ânimo para levantar-me da cama, sem alegria ou entusiasmo para nada. Suava frio a qualquer
esforço, a comida dava-me náuseas, a cabeça rodava.
- Felizmente tudo passou. Amanhã voltaremos a São Paulo, faremos um plano para que Flora confesse. Assim, tudo irá para os devidos lugares.
- Ela não vai confessar. É hábil, esperta. Se quisermos pegá-la, vamos precisar ser mais astutos do que ela.
- Você esquece que o mal tem pernas curtas? Depois, contamos com a ajuda espiritual. Os espíritos superiores saberão encaminhar os fatos de maneira satisfatória.
- Você está muito confiante.
- Estou. Depois do que nos aconteceu, descobri que a vida é mais do que o presente. Nós já vivemos outras vidas, e depois de morrermos, continuaremos
a viver em outras dimensões.
- Você conhece a reencarnação? Seu Ramiro me falou sobre isso. Pediu que eu perdoasse Flora e me explicou que, embora ela tenha tramado tudo quanto me
aconteceu, se eu não tivesse necessidade de passar por essa experiência, ela não teria conseguido atingir-me.
- Walter já me falou sobre isso. Afirma que tudo quanto nos acontece é para desenvolver nosso espírito e nos tornar mais lúcidos. Que quando estamos maduros
para aprender, a vida manda a lição.
- Seu Ramiro disse que estava na hora de todos nós conhecermos as coisas espirituais. Que se eu já tivesse algum conhecimento desse assunto, teria notado
o assédio dos espíritos perturbadores, teria procurado ajuda e não teria sido tão atingido. Para viver na Terra, onde estamos rodeados por pessoas cheias de ilusões
e de malícia, temos que conhecer o mundo das energias. Além das pessoas, ainda há os espíritos sofredores que nos rodeiam e que pretendem influenciar-nos.
- Pelo jeito, Seu Ramiro conhece mesmo! Ele disse a mesma coisa que o Dr. Celso tem dito em nossas sessões!
- Ele é um sábio. Tem-me ajudado muito. Com sua simplicidade, sua bondade e seu conhecimento, vai explicando as coisas de um jeito que fica tudo fácil
e claro na minha cabeça!
- Gostaria muito de ir até lá antes de irmos embora! Abraçá-lo e agradecer o que fez por nós. Tenho certeza de que se estamos aqui juntos foi porque ele
nos ajudou.
- Se Flávio quiser, poderemos passar por lá antes de ir. Ele se levanta muito cedo. Eu gostaria de contar-lhe o que aconteceu e pedir que nos ajude a
encontrar as provas de que precisamos.
- Iremos, sim. Flávio também está ansioso para conhecê-lo.
- Agora fale-me da nossa casa!
Arlete sorriu alegre. Com olhos brilhantes contou-lhe o que havia feito na casa, descreveu como o jardim estava bonito e cheio de flores, como sonhara
com ele e pedira a Deus que o trouxesse de volta.
Diva apareceu na varanda dizendo:
- Venha, Arlete. Sei que vocês ficariam conversando a noite toda, mas é tarde. O Dr. Flávio disse que viria bem cedo porque tem compromissos em São Paulo.
Vocês precisam descansar para estarem muito bem amanhã.
- Tem razão. Já é tarde - disse Arlete levantando-se.
- Vou arrumar a cama - disse Diva retirando-se. Vendo Diva afastar-se, Sérgio abraçou Arlete e a beijou demoradamente. Seu coração batia forte e naquele
instante esqueceu todos os sofrimentos por que passara. Tendo-a nos braços, sentindo que ela ainda o amava, todos os medos e dúvidas desapareceram.
E quando finalmente ela entrou para dormir, ele ficou um pouco mais. Olhando o céu cheio de estrelas, sentiu forte emoção, e sem poder conter a alegria
que lhe inundava o coração, pensou em Deus e mentalmente começou a rezar!

Capítulo 17





P
assava das dez quando Rubens e Flávio chegaram em casa de Sérgio na manhã seguinte. Apesar de terem se deitado tarde, Arlete e Sérgio haviam acordado às sete. A
emoção e a excitação não os deixaram dormir mais. Vicente já havia saído para cuidar dos seus afazeres e as duas moças ajudavam a mãe nas atividades da casa.
A mesa posta para o café estava convidativa e todos sentaram-se conversando animadamente.
- Adoro ver a família reunida em volta da mesa! - disse Rita com satisfação.
- O que você gosta mais é de ver a cara do Sérgio! Nunca vi ele tão alegre! - aduziu Dirce.
- Também, com Arlete perto! - brincou Diva.
- Podem falar à vontade - retrucou ele. - Quero ver quando vocês encontrarem um namorado. Aí é que vamos conversar!
- A Dirce está apaixonada pelo Zé das Conchas! - atalhou Diva. - Ele já está quase fisgado. Na festa do Seu Onofre só dançou com ela!
- O nome dele é Zé das Neves!
- Não vão começar essa discussão de novo - atalhou Sérgio.- Ele falou em namoro?
- Não - respondeu Dirce corada. - Somos amigos.
- Mas você está apaixonada por ele! - insistiu Diva.
- Se eu estou você não tem nada com isso! - respondeu Dirce.
- O amor é uma coisa boa - disse Arlete. - Se ele é um moço bom e você gosta dele, não perca tempo. Conquiste-o.
Dirce interessou-se.
- Bem que eu gostaria. Mas não sei como!
- É melhor não entusiasmá-la. Não conhecemos o moço - alegou Sérgio.
- Você não conhece porque nunca saía de casa. Mas o pai e o Rubens gostam dele. O Dr. Bastos confia nele. Ele faz e desfaz na fazenda. Se ele me quisesse,
eu seria muito feliz!
- Pelo ardor com que o defende dá para notar que está amando mesmo! - tornou Arlete. - Nesse caso, faça o que seu coração pede. Não escute ninguém.
- Ela agora vai ficar impossível! - concluiu Sérgio.
- Sua irmã é uma moça ajuizada e sabe decidir o que é melhor para ela. Tem todo o direito de procurar a felicidade.
- Eu gostei de você logo que a vi - declarou Dirce com satisfação.- Sabia que nos entenderíamos bem.
- Depois do café, vamos conversar no quarto. Só nós duas. Tenho a certeza de que você vai gostar - prometeu Arlete sorrindo. - E você, Diva, também está
apaixonada?
- Não. Eu quero ir para a cidade quando Sérgio puder me levar. Sonho em estudar, aprender como se vive na cidade.
- De todos aqui, Diva é a única que realmente deseja ir para São Paulo. Quando eu estiver em condições, virei buscá-la.
- Ela conta os dias para nos deixar! - disse Rita.
- Não diga isso, mamãe. Eu adoro vocês. Mas tenho sede de conhecer outras coisas, saber como é a vida em outros lugares. Eu vou, mas sempre que puder
virei aqui ver vocês.
- Deixe comigo - disse Arlete com ar misterioso. - Quando menos esperar estará lá.
Os olhos de Diva brilharam de alegria.
- Eu contava os dias que faltavam para o seu casamento. Era minha chance de conhecer São Paulo. Vocês vão casar logo?
- Por mim, casava amanhã mesmo - disse Arlete. - Mas Sérgio prefere esclarecer tudo primeiro.
- Não posso me casar com você nessa situação.
- Para mim não seria necessário esperar. Mas ele insiste e Flávio o apóia.
- Ele tem razão - disse Rita. - Ele se sentirá melhor em casar quando as coisas estiverem resolvidas.
Enquanto Sérgio arrumava sua mala, preocupando-se com o estado de suas roupas que a mãe conservara o melhor que podia, Arlete e Dirce fecharam-se no quarto
para conversar.
Arlete a fizera contar como estava seu relacionamento com o Zé, o que eles haviam conversado.
- Quando nós estávamos dançando, ele me segurava de um jeito! Meu coração disparava e eu sentia que ele estava com a respiração agitada.
- É um bom sinal. Ele não disse nada, não a convidou para sair?
- Não. É estranho. Não sei o que acontece com ele. Quando ele me olha, percebo um brilho de interesse em seus olhos. Sinto que ele sente alguma coisa
por mim. Mas ele não fala nada. Por que será?
- Você sabe se ele tem outras namoradas ou sai com mulheres?
- Não. Nunca ninguém viu ele com mulher. Não namora nem demonstra interesse por mulher alguma. Anda uma história na vila que ele tem um mistério na vida.
Mas ninguém sabe do que se trata.
- Hum! Seria bom você saber se ele tem alguma complicação. Sabe se ele tem família em algum lugar?
- Não. Pelo que sei ele não tem ninguém.
- O dono da fazenda mora no Rio de Janeiro?
- Não. Mora em São Paulo. Ele é que morava no Rio e veio para cá.
- Vamos fazer o seguinte. Escreva o nome do patrão dele. Sabe onde ele mora?
- Não. Só sei que é em São Paulo.
- Bom. Eu descubro. Dê-me o nome dele e verei o que posso saber.
- Vai fazer isso por mim?
- Claro. Precisamos saber com quem estamos lidando. Se vale a pena você envolver-se mais com ele.
- É assim que se faz na cidade?
- É assim que eu faço. Você gosta dele, deseja conquistá-lo. Eu aconselhei a ir em frente. Preciso saber se vale a pena. Se ele é digno do seu amor.
- Puxa, Arlete! Nunca ninguém fez isso por mim! O que posso fazer para retribuir o que você está fazendo?
Arlete beijou-a na face delicadamente.
- Você é irmã de Sérgio e é como se fosse minha irmã. Farei tudo que puder para vê-la feliz.
Quando as duas saíram do quarto, vendo o brilho dos olhos de Dirce, Sérgio comentou:
- Arlete é como a luz! Por onde passa deixa brilho!
- Você é que tem sorte por se casar com ela! - disse Dirce.
- Não tem mais jeito. Você já conquistou toda a família! - disse ele com um brilho emocionado no olhar.
Quando Flávio e Rubens chegaram, eles já estavam prontos. Arlete comentou:
- Pensei que viesse mais cedo. Podemos ir quando quiser.
- Iremos no fim da tarde. Telefonei para o escritório e avisei que só estarei lá amanhã cedo. A Antônia nos convidou para almoçar e não pude recusar.
Ela gostaria muito que você conhecesse sua casa.
- É muita gentileza. Irei com prazer.
- Tenho a certeza de que vai gostar. Depois, estou curioso para conhecer Seu Ramiro.
- Nós íamos pedir-lhe isso - tornou Arlete com satisfação.
- Eu não gostaria de ir embora sem falar com ele, contar-lhe a novidade e pedir-lhe que nos abençoe. Tenho a certeza de que, com isso, tudo se tornará
mais fácil - disse Sérgio.
- Ótimo. Podemos ir agora. Depois, almoçaremos em casa de Antônia e iremos embora.
- A Antônia mandou convidar todos para o almoço. Ela quer te- a alegria de ver nossa família reunida lá em casa - disse Rubens com satisfação.
- É muito trabalho para ela! - disse Rita.
- Ela tem prazer. Vocês vão direto que nós vamos ver Seu Ramiro - decidiu ele.
Rita concordou alegre. Enquanto eles saíam, ela mandou Dirce avisar o marido para ir almoçar na casa do filho e foi com Diva para a casa da nora a fim
de ajudá-la.
Chegando em casa de Ramiro, foram recebidos por Maria, que os convidou a entrar. Ramiro encontrava-se ocupado em sua sala de orações, atendendo uma pessoa.
Enquanto esperavam sentados na sala, Sérgio contou-lho que estava de partida para São Paulo, finalizando:
- Vou sentir saudades das nossas conversas e das suas broas de milho!
- Nós também, meu filho, sentiremos sua falta. Suas visitas alegraram nosso coração. Sabemos que seu destino é viver lá. Mas nossa casa estará sempre
aberta para você. Quando vier ver sua família, não se esqueça de nós.
- Nunca esquecerei o que fizeram por mim! - respondeu ele.
Ramiro abriu a porta da sala e um homem de meia-idade saiu carregando uma garrafa cheia de ervas num líquido amarelado.
- Deus lhe pague, Seu Ramiro - foi dizendo enquanto saía. Cumprimentou os presentes e Maria o acompanhou até a porta.
Ramiro abraçou Rubens e depois Sérgio, que lhe apresentou Arlete e Flávio. Os olhos dele fixaram-se em Arlete por alguns segundos e depois sorriu com
satisfação:
- Seja bem-vinda, minha filha. Há muito eu a esperava - disse ele apertando a mão que ela lhe estendia. Depois fixou Flávio nos olhos e continuou: - É
uma honra receber vocês em minha casa.
- Sérgio contou-me como você o ajudou. Fiquei muito interessado em conhecê-lo. Ultimamente venho estudando os fenômenos espirituais.
- Faz bem. A alma precisa de alimento tanto quanto o corpo. Acomodados na sala, Sérgio colocou-os a par do que estava acontecendo. Explicou que estava
voltando para São Paulo e que não queria partir sem conversar com ele e pedir-lhe que o abençoasse.
- O senhor me ajudou muito. Sem suas orações eu estaria ainda naquele sofrimento.
- Agradeça a Deus, meu filho! Foi ele quem fez tudo. Eu sou só um telefone. Não faço nada a não ser servir de ligação.
- Um telefone inteligente e bondoso - comentou Flávio.
- Estou muito contente com a sua felicidade - comentou Ramiro. - Agradeço terem vindo dividir essa felicidade comigo. Vamos celebrar esse acontecimento.
É preciso dar graças pelo bem que recebemos. Gostaria que passassem para a minha sala de orações.
Eles o acompanharam e Flávio sentiu que o ar naquele compartimento era mais leve e agradável. Ficou emocionado. Pensou em Walter e tratou de observar
todos os detalhes para contar-lhe. Arlete sentia-se leve e serena.
Fazendo-os sentarem-se em círculo, ele sentou-se, por sua vez, proferindo singela oração para agradecer a Deus e aos bons espíritos a ajuda recebida.
Quando acabou, o silêncio se fez por alguns instantes. Depois Maria suspirou levemente e disse com voz suave e um pouco modificada:
- Finalmente, minha querida, podemos conversar de novo! Tenho acompanhado seu sofrimento e por tudo quanto passei posso compreender o que sofreu. Obrigada
por haver cuidado tão bem das minhas coisas!
Arlete estremeceu. Aquela maneira doce de falar e aquelas palavras a fizeram dizer emocionada:
- Tia Amélia!
- Sim, minha querida. Sou eu. Vim porque está na hora de vocês conhecerem a verdade. A morte é uma viagem. A vida continua e é tão rica que não tenho
palavras para descrever o mundo espiritual. Flávio, você tem compromisso com o trabalho do Dr. Celso, precisa interessar-se mais, tirar todas as dúvidas. Ele, dentro
de mais alguns anos, estará de volta ao nosso lado, e você e Walter terão que continuar sua obra. O momento é de crescimento no planeta e é preciso esclarecer as
pessoas para que se liguem com a espiritualidade. Só quem ouve os valores eternos da alma vai poder vencer essa etapa de transição que a Terra vive.
Arlete chorava emocionada e Flávio, pálido, sentia que cada palavra dela tocava em sua alma, fazendo-a vibrar. Era como se ele estivesse vivendo um momento
muito esperado, pelo qual ansiara toda a sua vida, sem saber quando e como aconteceria.
Maria continuou:
- Arlete e Sérgio também precisam integrar-se nesse trabalho. Antes de reencarnar, vocês programaram com nossos superiores fazer isso. Cooperar com a
obra divina é uma aspiração ardente da alma de vocês. Realizando-a, sentirão grande bem-estar e terão muito progresso. Lembrem-se de que a fé é uma conquista a ser
desenvolvida passo a passo, buscando observar e ir muito além das aparências.
Fez ligeira pausa e continuou:
- A maldade não tem consistência. Não devem preocupar-se com ela. Pensando no bem e procurando a harmonia interior, todas as coisas irão para os devidos
lugares. Não precisam temer. A ajuda só foi possível porque vocês não entraram na faixa do ódio. Continuem assim e tudo ficará bem.
- Obrigada, tia, por me haver ajudado. Gostaria que estivesse tão feliz como eu estou agora!
- Hoje minha vida está muito diferente. Um dia voltarei para contar-lhes toda a verdade. Agora preciso ir. Vão em paz.
Maria suspirou e de repente abriu os olhos sobressaltada, olhando ao redor como para tomar consciência de onde se encontrava.
Ramiro colocou a mão sobre a cabeça dela dizendo com voz calma:
- Volta, Maria. Já passou - disse ele e, vendo que ela se tranqüilizara, fez ligeira prece. Quando terminou, levantou-se e escolheu uma das garrafas da
prateleira e deu-a a Sérgio dizendo:
- Tome um cálice de manhã em jejum e outro antes de dormir. Quando acabar, avise que mando outra. Vai precisar de mais uma mas tem que ser depois desta
e terei que preparar quando chegar a hora. É para acabar com o veneno que ficou no seu corpo. Vai ficar tudo bem.
Flávio não sabia o que dizer. Quando incorporada pelo espírito de Amélia, Maria modificara seu modo de falar, perdera o forte sotaque interiorano que
ele notara ao chegar.
Ramiro olhou-o e esclareceu:
- Maria é inconsciente. Quando recebe um espírito, muda completamente. Agora não se lembra de nada. É muito engraçado. No começo ela brigava comigo dizendo
que eu estava mentindo. Mas quando as pessoas começaram a contar o que ela falava, acabou acreditando.
- É uma mediunidade maravilhosa! - observou Flávio.
- Logo reconheci tia Amélia. Ela falava daquele jeito mesmo. Até a posição em que ela ficou na cadeira, era igualzinha. Nunca esquecerei esse encontro
- comentou Arlete com entusiasmo.
- Agora tenho a certeza de que conseguiremos esclarecer meu caso - afirmou Sérgio. - Com tanta proteção, vai dar certo. Meus amigos falavam, mas eu não
levava a sério. Nunca havia pensado na vida espiritual. Agora, depois de tudo que passei, percebo que estava enganado. Se não tivesse sido tão cego, talvez nada
disso houvesse acontecido.
- Você fez o que pensava ser melhor. Mas agora já sabe. Pode se prevenir para não acontecer de novo - disse Ramiro.
- Quer dizer que nosso comportamento influi nos acontecimentos? - indagou Flávio querendo conhecer-lhe a opinião.
- Decerto. Se ele conhecesse os fenômenos, as energias, teria percebido que estava sob o assédio de espíritos perturbadores. Teria procurado ajuda. A
macumba podia até não ter "pegado" se Sérgio estivesse harmonizado e ligado com os espíritos de luz.
- Walter também diz isso. Que, quando "pega", é porque nós demos uma brecha, de alguma forma.
- Isso mesmo. Se não fosse assim, não haveria defesa nem justiça. Desse modo dá para entender que tudo está certo. No caso de Sérgio, foi a forma de fazê-lo
conhecer essas coisas. Vocês têm compromisso com a espiritualidade, feito antes de nascer. Estava na hora de começar e vocês não sabiam. Foi preciso acontecer o
que aconteceu para que despertassem.
- Nesse caso, Flora não é culpada. Não foi um instrumento dos espíritos para nosso bem? - indagou Arlete.
- Não, minha filha. Deus não precisa da maldade das pessoas para ensinar suas leis. Porém, quando alguém age mal, ele aproveita os acontecimentos para
torná-los proveitosos a todos. Essa moça também vai perceber que suas atitudes não deram os resultados que esperava e acabará por mudar, por agir diferente. Assim
todos lucram.
- É isso que me entusiasma - disse Flávio. - Vistos dessa forma, os sofrimentos humanos perdem o lado trágico. O conceito de Deus cresce infinitamente
e nos dá forte sensação de segurança. Seja o que for que nos aconteça, Deus nos levará para o melhor.
- É isso, Flávio. Você entendeu. Sua missão é a de esclarecer as pessoas, fazê-las despertar pela inteligência. Já percebeu que quando isso acontece o
sofrimento perde a finalidade? Essa é a ciência do futuro. Quando o homem aprender isso, a dor será banida, tudo se transformará no planeta!
A voz de Ramiro estava ligeiramente modificada e sua linguagem mais correta do que o habitual. Eles perceberam que ele não falava por si e não ousaram
interromper. Ele continuou:
- Daqui para diante, vai aumentar a procura de conhecimento espiritual. A humanidade já está madura para dar um passo à frente e acabar com a dor. Para
tanto, só precisa acreditar que isso é possível. Há também que jogar fora velhas crenças que podem ter sido úteis antigamente, mas que agora não servem mais. É um
trabalho interior que cada um precisa fazer. Será necessário certo tempo para que as antigas crenças sejam definitivamente abandonadas. Há que perseverar, insistir.
Quem fizer isso vai perceber que tudo em sua vida estará mudando para melhor. Dessa forma, sua força interior vai aumentar apressando o progresso. Vocês, naquela
sociedade, vão ser o canal de ligação espiritual, esclarecendo e fortalecendo as pessoas que estão nesse caminho, facilitando-lhes a tarefa. Através desse canal,
os espíritos superiores vão inspirar vocês, orientando-os, fortalecendo-os, ajudando-os. Fiquem firmes e não temam. Estão muito bem amparados. Abracem o Celso por
mim e digam que é do Gualberto.
Ramiro calou-se. Emocionados, os presentes permaneceram silenciosos. Depois de alguns segundos, ele sorriu e disse:
- Maria, tá na hora do café.
- Não se incomode, D. Maria. Antônia está nos esperando para o almoço - interveio Rubens.
- Que nada, Seu Rubens! Um cafezinho e umas broas não vão tirar o apetite. Vocês não vão me fazer a desfeita de recusar.
Resolveram esperar. Tomaram o café, experimentaram as broas e se despediram. Ramiro os acompanhou até o portão de entrada.
- Vão com Deus. Estou muito feliz em conhecer vocês. Depois de vários acenos, já no carro, Flávio comentou:
- Que gente boa! Que mediunidade! Walter vai querer vir conhecê-los, tenho a certeza.
- Não podemos esquecer de dar o recado para o Dr. Celso - lembrou Arlete. - Quem será esse Gualberto?
- Não sei. Nunca ouvi falar nele - respondeu Flávio.
- Ele não nos disse o que fazer com relação a Flora - disse Sérgio. - Esperava que nos aconselhasse.
- Depois do que ouvimos, não precisamos preocupar-nos - respondeu Arlete.
- Não sei o que faremos para obter as provas de que precisamos. Chegando a São Paulo, teremos de pensar em alguma coisa - disse Sérgio.
- Quando tudo estava ruim, eu sem saber de nada e você desorientado, os bons espíritos vieram em nosso socorro, tomaram as providências necessárias. Se
hoje estamos aqui juntos, devemos à ajuda deles. Por que agora não confiar? Tia Amélia nos disse isso. Eles por certo planejaram tudo para que as coisas se esclareçam.
Vai acontecer naturalmente. Não vamos precisar fazer nada. Só teremos que agir dentro do que acontecer.
Flávio olhou-a admirado:
- Você tem fé!
- Você não? Depois de tudo o que aconteceu?
- Tem razão. Não dá mais para duvidar- reconheceu Flávio.
- Daqui para a frente, pretendo estudar mais e dedicar-me ao trabalho com o Dr. Celso. Se me aceitarem, desejo começar o quanto antes.
- Eu também - disse Sérgio. - Quero conhecer a espiritualidade. Sei que me fará muito bem. Quando penso nisso, sinto grande bem-estar.
- Você foi muito feliz por encontrar alguém como Ramiro. Ele tem muita sabedoria - considerou Flávio.
- A vida faz tudo certo. Colocou um homem como ele junto às pessoas que não dispõem de maiores recursos. Além do mais, ele conforta, levanta e ajuda -
tornou Arlete.
- A fama dele corre de boca em boca. Mesmo as pessoas da cidade têm vindo tratar-se com ele. É muito procurado.
- Ele é instrumento dos espíritos superiores - esclareceu Flávio. - Seu poder vai além do das pessoas comuns.
- Antes eu não pensava nessas coisas. Minha mãe me ensinou que deveria respeitar todas as crenças e ter aquela com que eu me sentisse melhor. Essa coisa
de espíritos me parecia um pouco fantasiosa, mas nunca abusei. Quando éramos crianças, meu pai nos contava casos de assombração. Minhas irmãs morriam de medo, mas
eu achava natural. No interior, quando o povo se reúne, cada um tem uma história dessas para contar. Uns acreditam, outros não levam a sério, mas todos ouvem com
muito interesse. Agora, penso que muitas delas aconteceram mesmo. Se eu contasse para um descrente o que aconteceu comigo, ele também não acreditaria.
- É verdade - concordou Arlete. - No começo, você, Flávio, custou a acreditar.
- Não queria iludir-me. É preciso ter bom senso. Depois, quando uma coisa é verdadeira, ela se repete e aparece mais a cada dia. Foi o que aconteceu.
Diante de tantos fatos, não podia mais duvidar.
- Já eu, sempre acreditei - disse Rubens.
- É mesmo. Eu me lembro que você, quando era pequeno, dizia que tinha gente no quarto à noite. Era verdade mesmo? - perguntou Sérgio.
- Era. Eu via mesmo. Quando eu era bem pequeno. Depois, a mãe me levou no Seu Ramiro. Ele rezava na minha cabeça, mas a D. Maria me benzia e melhorou.
Mas, de tempos em tempos, eu tinha que ir lá para ela benzer. Ficava mal, com febre, o estômago embrulhado, triste. A mãe dizia que era quebranto. Seu Ramiro rezava
e a D. Maria colocava água em um prato fundo, pingava óleo. Se ele misturasse com a água, era quebranto mesmo. O meu sempre era. O óleo desmanchava tudinho. Ela
benzia e eu sarava. Chegava em casa sem febre e com fome.
- Os mistérios da natureza! Walter comentou comigo que benzimento cura mesmo. Ele viu casos de erisipela sararem com benzimento. Ele, como médico, não
os conseguiu curar - opinou Flávio admirado.
- Aqui o povo usa muito. Benze erisipela, espinhela, bucho virado, cobreiro, bicheira nos animais. Eu já vi um benzedor benzer uma vaca cheia de berne.
No dia seguinte, os bichos estavam mortos e caindo todos de uma vez. É impressionante! Por tudo isso, eu nunca duvidei - disse Rubens.
- Você ainda vê os espíritos? - perguntou Flávio.
- Não tanto como naquele tempo. Quando Sérgio estava mal, muitas vezes vi vultos em volta dele. Quando tentava ver mais claro, eles desapareciam.
- Você tem mediunidade! - disse Arlete.
- Seu Ramiro já me disse. Mas não sou curador, como ele. Quando pego o violão, faço música na hora, sinto que tem mais alguém comigo.
- Você nunca me contou! - reclamou Sérgio.
- Você nunca perguntou. Pensei que não se interessasse por essas coisas.
- Não me interessava, mas agora quero saber mais.
O almoço em casa de Rubens decorreu com alegria. Arlete sentia-se à vontade com os familiares de Sérgio. O amor e o respeito com que se tratavam criava
um ambiente descontraído, muito agradável e acolhedor.
Depois das despedidas, já na viagem de volta, Arlete não se conteve:
- Você tem uma família privilegiada. Não me espanta o Rubens desejar ficar ao lado deles.
Sérgio sorriu:
- Quer dizer que eu deveria ter ficado aqui?
- Isso não. Se tivesse feito isso, como é que iríamos nos encontrar?
- Por isso eu estava ansioso em ir para lá. Sabia que você estava me esperando!
- Não seja mentiroso! Você demorou para resolver!
- Arlete tem razão - ajuntou Flávio. - Tem uma família maravilhosa.
- Sei disso. Infelizmente não pude dar-lhes o conforto que gostaria. Saí de casa sonhando em levá-los para a cidade, mas não consegui.
- Eles são muito felizes. Penso até que seria um crime tirá-los de onde estão. Têm tudo de que precisam, gostam do que fazem, têm amigos, são conhecidos,
respeitados. Na cidade, teriam a mesma felicidade? - argumentou Flávio.
- É... pode ser. Hoje vejo as coisas de forma diferente.
- A vida sempre faz o melhor. Você não conseguiu porque, para eles, o melhor era ficar onde estão.
- Pode ser. Eles não queriam mesmo ir. Só Diva. Ela sonha em estudar, ver coisas novas, mudar. Era a única que sempre me escrevia interessada em saber
quando pretendia vir buscá-la.
- Se ela deseja isso, por que não a levamos logo? Ela poderia ficar em nossa casa desde agora. Eu teria muito prazer em tê-la conosco.
- Ela adoraria. Mas eu não sei... Do jeito que as coisas estão, não seria oportuno. Estou desempregado, minha situação ainda não está esclarecida... Depois,
quando tudo estiver bem, veremos.
- Não precisa preocupar-se - atalhou Flávio. - Você ficará em minha casa até o casamento. Arlete está lá sozinha e Diva lhe faria companhia.
- Ajudaria nos preparativos do casamento! - disse Arlete entusiamada. Poderia ter vindo conosco!
- Poderia - concordou Flávio. - Mas nada nos impede de, amanhã ou depois, mandar a passagem e irmos esperá-la na estação. Se Sérgio concordar e seus pais
também, faremos isso.
Arlete sorriu, respondendo com olhos brilhantes de alegria:
- Está resolvido. Flávio é o chefe. Quando ele decide, não adianta argumentar.
Sérgio abanou a cabeça e não encontrou palavras para responder. O sofrimento recente tornara-o sensível e ele se emocionava com facilidade. Apertou a
mão de Arlete com força e beijou-a delicadamente na face. Apesar de ainda não saber como conseguiria esclarecer o engano de que fora vítima, sentiu que agora, contando
novamente com o amor de Arlete, nada no mundo teria força suficiente para afastá-lo dela outra vez.

Capítulo 18





F
lora estugou o passo consultando, de quando em vez, o pequeno papel que segurava, procurando o número. Finalmente o achou. Estava numa rua da periferia, diante de
uma casa antiga e mal conservada. O lugar não era dos mais agradáveis, mas ela estava decidida a encontrar o que queria.
Fazia alguns meses que procurava alguém que pudesse ajudá-la a conquistar Flávio. Desde que Joana sumira, ela havia buscado outra pessoa, inutilmente.
Fora a vários terreiros de umbanda e de candomblé, mas eles se recusaram a atendê-la, respondendo que só faziam trabalhos de cura e de limpeza. Mesmo assim, ela
continuou procurando.
Tocou a campainha e esperou. Vários cachorros surgiram latindo e ela encolheu-se receosa. Uma mulher de meia-idade apareceu ordenando aos cães que se
calassem e aproximou-se olhando-a com curiosidade.
- Aqui é a casa do Sr. José?
- É.
- Ele está? Preciso falar-lhe com urgência.
- Sobre o quê?
- Disseram-me que ele dá consultas espirituais e ajuda as pessoas.
- Quem mandou a senhora?
- Ninguém. Vi o anúncio no jornal. A mulher sorriu.
- Está bem. Vou prender os cachorros. Espere um momento.
Saiu, e os cães a acompanharam. Momentos depois voltou e abriu o portão, dizendo:
- Pode entrar.
Flora obedeceu e a acompanhou sustendo a respiração. A casa cheirava mal, era úmida e mal arrumada. Flora teve ímpetos de sair imediatamente, mas agüentou
firme. O que lhe importava a casa e as pessoas desde que conseguisse o que pretendia? Prendeu a respiração e sentou-se na ponta do sofá esperando com impaciência
que o Sr. José aparecesse.
A mulher voltou e abriu uma porta da sala, dizendo:
- Pode entrar, moça. Ele está esperando.
Flora obedeceu. Diante de uma mesa onde havia uma cruz e algumas velas estava sentado um homem de meia-idade, moreno e forte, cujos olhos a fixaram com
curiosidade. Apesar da penumbra da sala, Flora percebeu que eles refletiam força e determinação. Era uma sala simples, e a um canto viu um altar com várias imagens
de santos, algumas velas e objetos que Flora não sabia o que significavam.
- Seu José?
- Sim. Sente-se.
Flora sentou-se diante dele. Quando a viu acomodada, perguntou:
- O que deseja de mim?
- Preciso saber se o senhor é bom mesmo. Pago bem e desejo uma pessoa competente. Afirmo que não estou disposta a ser enganada.
Ele sorriu mostrando uma fieira de dentes amarelados e desiguais.
- Trabalho meu é garantido. Não engano ninguém. Vamos ver o seu caso.
Segurou a mão dela e fechou os olhos respirando forte por alguns segundos. Depois disse:
- Veio aqui por um caso de amor. Quer se casar com um homem rico e bonito.
Flora interessou-se vivamente. Ele não a conhecia. Como sabia o que ela queria? Ele continuou:
- Ele não está interessado em você. É um caso difícil. É melhor desistir.
Flora irritou-se:
- Isso não! Você não tem poderes? Pode fazê-lo gostar de mim.
- Posso fazer ele pensar que gosta, é diferente. Flora deu de ombros.
- Isso não me importa. O que eu quero mesmo é casar com ele. Não é amor que eu procuro. Ele sorriu maneiroso:
- É dinheiro, posição, segurança.
- E. Se me ajudar não vai arrepender-se. Sei recompensar os que me servem.
Ele balançou a cabeça pensativo durante alguns segundos. Depois disse:
- Vai ser difícil. Vai custar muito caro.
- Não importa quanto. Agora não posso dar muito, mas assim que conseguir o que quero, darei o que pedir.
- Para começar, eu preciso de um bom dinheiro. Não dá para convencer os guias com poucas oferendas. Tenho que comprar muitas coisas, fazer um trabalho
grande.
- Quanto seria?
Ele a olhou, levantou-se, foi até o altar, ficou lá alguns minutos, depois voltou dizendo cinqüenta mil cruzeiros.
- Tudo isso?
- Para começar...
- É muito dinheiro.
- O caso é difícil e, para conseguir, preciso fazer tudo.
- E o resultado?
- É garantido. Dentro de pouco tempo ele estará caidinho. Além do dinheiro, vou precisar de algumas peças de roupas dele.
- Vou conseguir. O que mais você vê?
Ele segurou novamente a mão dela fechando os olhos durante alguns minutos. Depois disse:
- Vejo um perigo grande. Você está correndo perigo. Precisa de proteção.
- Que espécie de perigo?
- Alguém que você pensa que destruiu se prepara para vingar-se.
Ela estremeceu.
- Afaste isso do meu caminho!
- Vou tentar. Preciso de material.
- Quanto?
- Uns cinco mil.
- Só tenho comigo quinhentos.
- Tudo bem. Serve para começar.
Flora tirou o dinheiro e o colocou sobre a mesa. Ele o apanhou e guardou no bolso. Depois disse:
Escreva seu nome e endereço neste papel. Vai levar esta vela e acender esta noite, chamando pelos meus guias. Vou escrever os nomes para se lembrar.
Quando Flora saiu estava muito impressionada. Ele parecia dos bons. Adivinhara tudo sem que ela precisasse falar muito. Era melhor do que Mãe Joana. Que
perigo ela estaria correndo? Tudo parecia em paz.
De repente, um pensamento a assaltou: teria ele dito isso apenas para arrancar-lhe mais dinheiro? Se fosse isso, iria arrepender-se. Ela não era nenhuma
tola. Estava disposta a pagar o que ele pedira, mas depois de ver pelo menos algumas mudanças na situação. Flávio estava difícil, desinteressado mesmo, isso era
verdade, mas também Seu José podia ter inventado para obter mais dinheiro. Ele tinha poderes, provara isso, mas ela não confiava nem um pouco nele.
Foi para casa e durante aquele dia não pôde esquecer o encontro. Era sábado e esperou em vão que um dos amigos ligasse para os encontros da noite. Vendo
que ninguém ligava, apanhou o telefone e ligou para casa de Flávio. A criada lhe disse que ele havia viajado. Onde teria ido? Ligou para a casa de Arlete e obteve
a mesma informação. Haviam viajado juntos, mas para onde? Ligou para Walter e ele a atendeu:
- Estou me sentindo solitária - disse ela fingindo-se triste -, ninguém me ligou. - Calou-se esperando que ele dissesse o que desejava saber, porém ele
respondeu:
- Eu também. Infelizmente tenho um caso urgente no hospital e preciso ir para lá daqui a pouco.
- É pena. Poderíamos dividir nossa solidão jantando juntos.
- Eu gostaria muito. O caso que vou atender é grave, devo demorar-me por lá. Em todo caso, se tiver chance de sair, ligarei para você.
Flora desligou o telefone com raiva. Ela detestava ficar em casa. Resolveu ir até a casa dos pais. Fazia muito tempo que não aparecia por lá. Enquanto
se arrumava para sair, não conseguia disfarçar o mau humor.
Essa situação não podia continuar. Ela daria um jeito para arranjar o dinheiro o mais breve possível. Tinha um plano que, se desse certo, teria mais do
que isso nas mãos. Ninguém na empresa descobriria. Por que não pensara nisso antes? Não seria difícil arranjá-lo. Sabia de alguém que lhe daria o que pedisse para
que o favorecesse, incluindo algumas pequenas mudanças em alguns contratos. Ela sabia muito bem como fazer isso sem que ninguém descobrisse.
Precisava arranjar algumas peças de roupas de Flávio. Não confiava em ninguém. Se ao menos ele a convidasse para ir à sua casa, ela poderia dar um jeito.
Mas teria que esperar e isso a irritava. Estava cansada da indiferença dele e da sua postura auto-suficiente. Teria prazer em acabar com isso e dominá-lo.
Teve uma idéia e resolveu agir imediatamente. Iria à casa de Flávio e tentaria conseguir o que desejava. Foi até lá e no portão principal um empregado
aproximou-se do seu carro cumprimentando-a.
- Estava passando e resolvi visitar o Dr. Flávio.
- Sinto muito, D. Flora, mas ele está viajando. Ela fez um gesto de contrariedade:
- Para onde foi?
- Não sei. Mas a senhora telefona que ele deverá estar de volta na segunda-feira.
- Que pena. A Maria está?
- Sim, senhora.
- Eu gostaria de lhe falar. Posso entrar?
- Vou abrir o portão.
Ele abriu e ela entrou com o carro até a porta principal. A criada abriu e ela disse com ar confidencial:
- Estava passando por aqui e senti necessidade de ir ao toalete. Por aqui não há outro lugar onde possa ir. Infelizmente o Dr. Flávio não está. Você me
permitiria usar o toalete?
- Certamente, D. Flora. Entre, faça o favor.
Ela entrou e foi ao lavabo, onde permaneceu por alguns minutos. Quando saiu, Maria a esperava na sala e ela pediu:
- Você me arranjaria um copo com água? Não estou me sentindo bem.
Enquanto a criada saiu ela correu o olhar pela casa. Onde encontrar o que procurava? Maria voltou e ela apanhou o copo com água e tomou alguns goles.
Depois, passou a mão pela testa dizendo:
- Não estou me sentindo bem!
Sentou-se no sofá, passando a mão pela testa.
- O que a senhora está sentindo? Quer que chame o Dr. Walter?
- Não é preciso. Vai passar logo. Todos os meses tenho isso. Já tomei remédio, mas sabe como é, não tem jeito mesmo.
- Se a senhora quiser posso fazer um chá de louro! É tiro e queda!
- Vai dar trabalho!
- De forma alguma! Farei num instante!
Ela foi para a cozinha e Flora não perdeu tempo. Subiu as escadas rapidamente, foi ao quarto de Flávio e apanhou uma camisa de seda, dobrou-a e guardou
na bolsa. Depois desceu e sentou-se novamente no sofá.
Maria trouxe o chá e ela tomou alguns goles. Levantou-se em seguida:
- Estou me sentindo melhor. Obrigada. Desculpe pelo trabalho.
Ela saiu procurando disfarçar a satisfação. Na manhã do dia seguinte levaria a camisa para José. Resolveu voltar para casa. Queria acender as velas e
fazer os pedidos conforme ele indicara. Desta vez teria que dar certo! Flávio seria seu!
Na segunda-feira, ao chegar ao escritório, soube que Flávio continuava viajando. Onde teria ido? Walter não aparecera nem no domingo e ela passara o fim
de semana sozinha e mal-humorada. Confortava-a a idéia de alcançar seus objetivos. No fim da tarde, procurou novamente a casa de José para entregar-lhe a camisa
de Flávio.
- Tem alguma notícia para mim? - indagou logo ao chegar.
- Já lhe disse que o caso é difícil. Preciso de mais dinheiro. Você trouxe?
- Já lhe dei o bastante. Só vou dar mais quando vir algum resultado. Por enquanto nada aconteceu.
José abanou a cabeça:
- Desse jeito não dá para fazer o trabalho. Se não me der mais dinheiro, como comprar o que preciso? Sou pobre e não posso financiar a vida dos outros.
Ou me dá mais dinheiro ou nada feito.
Flora suspirou resignada:
- Vou ver o que posso fazer. Quanto mais?
- Pelo menos a metade do que lhe pedi.
- Vinte e cinco mil? Isso é impossível!
- Nesse caso, leve a camisa e fica o dito pelo não dito.
- Eu trago daqui a alguns dias. Enquanto isso, não poderia começar?
- Não. Como vou comprar o material?
- Eu tenho pressa!
- Traga o dinheiro e eu farei tudo. Vou ficar esperando. Flora saiu irritada. Ele era mais difícil do que ela esperava.
Tinha que arranjar o dinheiro! Tratava-se do seu futuro!
Já era noite quando Flávio parou o carro em frente à casa de Arlete.
- Vamos entrar - disse ela. - Gostaria que Sérgio visse como a casa ficou!
- É melhor não, Arlete - replicou Flávio. - Ainda não fizemos nossos planos e por enquanto é melhor que ninguém saiba que Sérgio voltou.
- Os criados são de confiança.
- Mesmo assim. Vamos decidir o que fazer e então ele virá ver tudo.
- Que pena! Eu gostaria tanto!
- Flávio está certo - disse Sérgio. - Temos de agir com cautela. Surpreender Flora.
- Amanhã mesmo falarei com meu tio e contarei tudo. Juntos haveremos de encontrar solução.
Arlete suspirou.
- Está bem. Mas que seja breve. Não quero ficar separada de Sérgio por muito tempo.
Ele beijou com delicadeza a mão dela que detinha entre as suas.
- Eu também não vejo a hora de esclarecer tudo!
Despediram-se. Quando chegaram em casa de Flávio, passava da meia-noite e os criados dormiam. Flávio instalou Sérgio no quarto de hóspedes.
- Fique à vontade. Vou tomar um banho e descer para fazer um lanche. Espero você para comermos juntos.
- Está bem.
Quando Flávio saiu, Sérgio olhou-se no espelho. Estava magro e feio. Apesar do apoio de Arlete e de Flávio, sentia-se nervoso ao pensar que no dia seguinte
teria que conversar com o pai de Arlete. O que lhe diria? E se ele não acreditasse em sua inocência? Sentia-se inseguro e preocupado. Como desmascarar Flora? O testemunho
do caixa do banco teria validade depois de tanto tempo?
Sentou-se na cama e pensou em Seu Ramiro. Precisava confiar em Deus. Lembrou-se de suas palavras e resolveu reagir. Ele era inocente e não devia temer
a maldade. Quando pensava que tudo estava perdido, Deus o ajudara a reencontrar a felicidade e a esperança. Agora, certamente o ajudaria a provar sua inocência.
Tomou um banho e sentiu-se mais disposto, apesar do cansaço da viagem. Desceu. Flávio já se encontrava na cozinha e dispuserá na mesa da copa algumas
guloseimas e refrigerantes. Comeram com apetite. Vendo que Sérgio estava pensativo, Flávio disse:
- Você está preocupado.
- Estou. Não sei o que o Dr. Anselmo vai dizer...
- Vai-nos ajudar a encontrar uma solução satisfatória. Tenho a certeza de que ele, tanto quanto eu, não vai querer conservar dentro da nossa empresa uma
pessoa tão perigosa e sem caráter como Flora. Pode ter feito mais do que sabemos. Ela não é confiável.
- Quanto a isso tem razão. Flora sempre dizia que o fim justifica os meios. Não tinha nenhum escrúpulo em usar meios desonestos para conseguir o que queria.
- Percebi esse lado dela claramente. Tentou pressionar-me para assumir um compromisso com ela por havermos saído juntos algumas vezes.
- Desde que o conheceu ela sonha casar-se com você.
- Isso nunca me passou pela cabeça. Meu tipo de mulher é o oposto dela. Nem sei por que andei saindo a sós com ela.
- Ela é manipuladora. Fez tudo para envolvê-lo e você nem notou. Quando percebeu, já estava quase se comprometendo.
- Para você ver. Eu não estava maliciando nada. Ela é provocante, mas não só comigo. Já a vi fazer charme para Walter também. Pensei que fosse o jeito
dela. É vaidosa, gosta de ser notada, admirada.
- Como faremos para fazê-la confessar?
- Vamos armar uma cilada.Tem que ser muito bem-feita para não lhe deixar nenhuma chance.
- Não vejo a hora de esclarecer tudo.
- Temos que contar com a polícia. Seu nome está lá ainda, apesar de havermos retirado a queixa. Para eles, você cometeu esse crime. Faço questão de esclarecer
bem isso para que nenhuma dúvida paire sobre você.
- Nunca poderei pagar o que está fazendo por mim!
-Você é inocente. Sofreu demais. Foi humilhado injustamente e eu não fiz nada. Quero que retome seu emprego e seja indenizado pelo que aconteceu.
- Você é mesmo meu amigo!
- Além disso, a felicidade de Arlete é muito importante para mim.
- Para mim também. Nunca se arrependerá de me haver ajudado. Farei tudo para que Arlete seja muito feliz. Ela merece!
Na manhã seguinte, Flávio foi para o escritório no horário habitual. Sérgio ficou em casa aguardando. Ele telefonou para o tio, combinando ir almoçar
em sua casa para falar-lhe.
Anselmo e Nora o receberam com o carinho de sempre. Depois do almoço, Flávio pediu-lhes para conversarem em algum lugar discreto. Conduzido ao escritório
do tio, Flávio os colocou a par de todos os acontecimentos que culminaram com a descoberta da inocência de Sérgio.
Nora não se conteve:
- Bem me pareceu estranho que ele houvesse cometido esse erro. Ele ia se casar com Arlete. Não teria nenhuma vantagem em dar esse desfalque. Não tinha
nenhuma lógica!
- A mim impressionou muito, porque ele sempre foi um ótimo funcionário. Durante anos foi íntegro. Isso demonstra honestidade, caráter. Ninguém muda de
uma hora para outra. O que está me assustando é essa história de espíritos. Logo você, metido nisso com Arlete. Não é perigoso?- perguntou Anselmo.
- Não, meu tio. Walter é pessoa equilibrada e o grupo que estamos freqüentando é dirigido pelo professor Celso. Eles não se prestariam a brincar com um
assunto tão sério!
- Isso é verdade. Walter é médico respeitado e o Dr. Celso é um homem culto e de bem. Ele é muito querido por gente muito famosa e importante. É um benemérito.
- Reconheça que se não fosse pela ajuda que tivemos deles dificilmente descobriríamos a verdade. Desde a primeira consulta que Walter fez, os espíritos
disseram que Sérgio estava sendo vítima de uma calúnia armada por uma mulher. Chegaram a descrever o tipo dela. Arlete imediatamente reconheceu Flora, mas eu não
aceitei e até a repreendi. Os fatos provaram que ela estava certa.
- É inacreditável! Nunca pensei que essa história de espíritos funcionasse! - comentou Nora.
- Veja, tia, como eles sabem fazer as coisas. Enquanto nós recebíamos ajuda aqui, Sérgio era conduzido a um curador. Homem simples, bondoso, que tem o
dom da mediunidade e ajuda as pessoas. Não cobra nada de ninguém e ainda lhes dá remédios de ervas que ele mesmo prepara. É muito querido em Barretos. Pude conhecê-lo.
Não tem nenhuma instrução escolar, mas é profundamente sábio. Em sua casa há uma atmosfera agradável que nos dá vontade de ir ficando. Sua conversa é alegre e sua
esposa recebe as pessoas com invejável simpatia.
- Pelo jeito, eles conquistaram você! - tornou Anselmo sorrindo.
- Gente boa, tio, que sabe das coisas. Um dia ainda quero levar o Walter. Tenho certeza de que ele vai encontrar informações importantes para as suas
pesquisas. Foi com a ajuda dele que Sérgio conseguiu levantar-se da cama e, apesar da depressão que ainda sente, encontrar coragem para reagir.
- Se ele é mesmo inocente, sofreu um golpe duro! - considerou Anselmo.
- Ele é inocente! Tenho a certeza. Paulo reconheceu Flora. Outra coisa importante é que ela usou de magia não só contra o Sérgio como contra D. Dorotéia
e o Dr. Martinez. Eles estavam sofrendo de obsessão e se tratam no Centro do Dr. Celso.
- Será mesmo? Acha que ela teria tanto poder? - perguntou Anselmo, admirado.
- Ainda não sei o bastante para dizer como ela conseguiu, mas de que, em alguns casos, essas coisas "pegam", não tenho mais dúvidas. Como explicar o que
aconteceu com eles? D. Dorotéia foi durante anos uma excelente secretária e o Dr. Martinez, um homem lúcido, equilibrado.
- Eles envelheceram, tornaram-se cansados com a idade - disse Nora.
- Os médicos não encontraram nenhuma causa física que justificasse o que eles sentiam. Eles se demitiram e se D. Dorotéia não tivesse ido ao Centro, onde
nos encontrou, nunca saberíamos a verdade.
- É muita coincidência! Ir ao mesmo lugar, no mesmo dia, na mesma hora que vocês! - disse Nora.
- Para você ver, tia. Ela pediu demissão porque se sentia mal, cabeça confusa. Julgou-se doente e, como não queria prejudicar a empresa, decidiu sair.
- Como está ela agora? - perguntou Anselmo.
- Muito bem. Tanto que pretende voltar ao trabalho, se lhe dermos oportunidade.
- E o Martinez, o que houve com ele? - perguntou Anselmo.
- Quase a mesma coisa. D. Dorotéia nos contou que ele estava mal e os médicos não encontravam nada que justificasse seu estado. Fomos visitá-lo e ele
estava mesmo muito mal. Walter examinou-o meticulosamente e não encontrou nenhuma doença. Está recebendo ajuda espiritual no Centro e melhorando. Dizem que vai ficar
completamente bom.
Anselmo passou a mão pelos cabelos, pensativo. Depois disse:
- O que me conta é de espantar. Sinceramente, se não fosse você a nos contar, dificilmente eu acreditaria.
- O assunto é sério, mas as pessoas criam tantas fantasias em torno dele que a desconfiança é natural. Por isso, para estudar esses fenômenos e nos aprofundar,
precisamos rodear-nos de pessoas sinceras e sem preconceitos.
- Você parece muito interessado.
- Estou mesmo. Encontrar soluções para os problemas humanos, explicações para a desigualdade no mundo, saber o que acontece com quem morre, descobrir
os segredos do universo, são temas que me fascinam. Acredito haver encontrado a porta que, uma vez aberta, poderá dar-me muitas respostas.
- Você e Arlete sempre gostaram de sociologia - disse Nora.
- O espiritual é mais do que isso, tia. É a chave que nos leva a um conhecimento superior e nos mostra que a vida é muito mais do que imaginamos. É saber
que, acima das nossas limitações, uma força maior determina com sabedoria e acerto as experiências humanas, ensinando-nos a viver.
- Você acredita mesmo nisso? - indagou Nora com interesse. - Acha que é possível conhecermos o que acontece depois da morte? Que os que morreram podem
voltar e conversar conosco9
- Acredito. Quando fomos ao Centro a primei rã vez, só Walter nos conhecia e sabia de tia Amélia. Até o Dr. Celso ignorava esse detalhe. Entretanto, um
dos médiuns presentes recebeu uma mensagem endereçada a Arlete e assinada por ela. Além disso, suas palavras não deixaram dúvida quanto à sua identidade. Foi ela
quem se aproximou de Arlete e a inspirou a procurar ajuda espiritual. Como duvidar?
- Tia Amélia aproximou-se dela? De que forma? Ela sonhou? - indagou Nora.
- Não. Ela estava em casa muito triste. Rezou, chorou e pediu ajuda para solucionar o problema do desaparecimento de Sérgio. Então ouviu distintamente
uma voz dizer-lhe que deveria procurar ajuda espiritual. A princípio ela não entendeu. Mais tarde, conversando comigo, quando mencionei que Walter me convidara para
ir a um Centro Espírita, ela juntou as duas coisas.
- Como ela sabe que foi Amélia? - disse Nora.
- Ela sentiu seu perfume, ouviu distintamente sua voz.
Anselmo ficou pensativo durante alguns instantes, depois disse:
- Arlete deve estar feliz.
- Muito. Queria que Sérgio já fosse para casa com ela, o que ele recusou. Deseja primeiro resolver seu caso antes de se casar.
- Ainda bem que ele tem mais juízo do que ela! Essa menina não tem jeito mesmo! - disse Anselmo nervoso.
- Sérgio ainda está muito traumatizado. Quer fazer tudo direito. Foi bom eu ter ido com Arlete. Conheci a família dele e gostei. Gente simples, boa, honesta.
Eu tinha receio de que eles estivessem revoltados conosco. Afinal, Sérgio foi injustiçado.
- Nós não podíamos saber! - justificou-se Anselmo.
- É verdade. Mas a família poderia estar com raiva. Entretanto, eles mostraram-se compreensivos, atenciosos. Receberam-nos com carinho. D. Rita não nos
deixou ir para um hotel. Eu fiquei em casa de Rubens, que tem uma esposa bonita, educada e gentil. Arlete ficou com as irmãs de Sérgio, com as quais deu-se muito
bem.
- Quer dizer que você tem mesmo certeza do que afirma. Sérgio é inocente e nós vamos tentar provar - disse Anselmo. - Como pensa fazer isso?
- Ainda não sei, tio. Sérgio está em minha casa. Por enquanto não contamos a ninguém que ele voltou. Vim aqui para traçarmos um plano a fim de desmascarar
Flora, fazê-la confessar.
- Acho difícil - disse Nora. - Uma mulher astuciosa como ela, que foi capaz de engendrar todo esse drama, que deu o desfalque sem ser descoberta e se
valeu até de macumba, não vai abrir-se com facilidade.
- Contamos com a surpresa. Ela não pode saber que descobrimos a verdade.
- Devemos reabrir o caso. Procurar um advogado e levar o rapaz do banco para depor. Depois, ela será intimada.
- Isso não basta, tio. Com certeza ela vai negar. Temos que obter provas mais concretas.
- Teremos que correr o risco. A polícia terá que decidir.
- Isso é muito vago. O inquérito foi encerrado e a polícia pode não estar disposta a reabri-lo. Precisamos ir à polícia com a confissão.
- Isso seria ideal. Mas como conseguir? Ela não vai querer confessar - disse Anselmo.
- Vamos fazer uma reunião em casa hoje à noite. Estaremos nós, Arlete, Sérgio. Juntos tentaremos encontrar um meio.
- A que horas? - perguntou Nora.
- Às vinte.
- Estaremos lá - prometeu Anselmo.
Flávio despediu-se e foi para o escritório. De lá ligou para sua casa. Arlete já estava lá e ele colocou-a a par da conversa que tivera com seus pais.
Quando desligou o telefone, Arlete voltou-se para Sérgio, que ansioso esperava.
- E então? - indagou ele.
- Tudo combinado. Faremos uma reunião hoje à noite com meus pais e o Walter.
- Flávio não disse mais nada? Não falou como seus pais receberam a notícia da minha volta?
- Receberam muito bem. Ficaram surpreendidos, mas desejam cooperar. Virão para ajudar.
Sérgio suspirou aliviado.
- Ainda bem. Estava com receio de que não acreditassem. Arlete abraçou-o, beijando-o delicadamente no rosto.
- Não se torture mais com essa história. Está provado que não foi você. Seu drama acabou. Daqui para a frente tudo vai mudar. Flora será responsabilizada
e nós retomaremos nossa vida. Não vejo a hora em que poderemos ficar juntos em nossa casa. Tudo lá está tão lindo, tão aconchegante! Só falta você!
Sérgio apertou-a nos braços e a beijou nos lábios demoradamente. Depois disse:
- Deus sabe quanto sonhei com esse dia. Mas quero que ele seja completo, sem nada que possa empanar o brilho da nossa felicidade.
- Eu queria que você já estivesse lá. O resto não me importa.
- Para mim, sim. Não posso iniciar nossa vida, começar uma família, com essa suspeita entre nós. Sei que você acredita em mim, sabe que sou inocente.
Não tenho posição nem fortuna para lhe oferecer mas me orgulho muito do nome honrado de minha família. Não posso abrir mão do único bem que eu possuo para lhe dar.
Faço questão absoluta disso.
- Respeito seus sentimentos. Sei como se sente. Vamos encontrar um jeito, você vai ver.
- Tenho pedido a ajuda de Deus. Assim como ele me tirou do abismo, levantou-me e trouxe você de novo aos meus braços, vai-nos mostrar a solução.
- Tem razão. Vejo que você se tornou um homem de fé.
- Depois do que passei, como não confiar? Quando pensei que a minha vida estava acabada, houve a mudança e eu renasci. Todas as vezes em que penso em
tudo, sinto dentro de mim a certeza de que sem a ajuda espiritual eu ainda estaria lá, como um morto-vivo, desesperado, sem forças para reagir.
- E verdade, Sérgio. Estamos cercados por espíritos amigos que velam por nós. Ligando-nos com eles, estaremos a nos proteger contra a maldade daqueles
que ainda se iludem acreditando que o mal pode dar-lhes o que desejam. Você está certo. Hoje à noite encontraremos o melhor caminho para nós!

Capítulo 19





F
lora chegou em casa cansada, mas satisfeita. Tudo estava correndo bem. Fizera tudo como José tinha ensinado. Acendera a vela e tratara de arranjar mais dinheiro,
uma vez que ele insistia que sem isso nada poderia fazer.
Obter o dinheiro havia sido mais fácil do que imaginara. Um jantar com o presidente de uma empresa, uma proposta de modificação de um item do contrato
a ser assinado no dia seguinte, e pronto. Ela o redigiu novamente conforme o combinado e Flávio assinou sem perceber a diferença. Naquele mesmo dia, o dinheiro foi
depositado em sua conta bancária.
Claro que ela pedira mais. Não ia querer apenas a quantia de José. No dia seguinte, entregara-lhe o dinheiro com satisfação. Agora, era só esperar. Se
tudo desse certo, Flávio iria procurá-la.
Enquanto esperava, deveria cuidar de sua aparência. Desta vez ele não ia resistir. Estava preparando o banho com sais perfumados quando o telefone tocou.
- Alô, Flávio! Como vai?
- Bem. Você tem compromisso para hoje à noite?
- Não.
- Queria convidá-la para jantar. Passarei para apanhá-la às oito.
- Estarei pronta.
Desligou o telefone excitada. O trabalho do José começava a dar resultado. Flávio nunca a convidara para sair no meio da semana.
Preparou-se com esmero. Sentia-se irresistível. Ficou ainda mais alegre ao perceber que Flávio estava só e no restaurante ninguém os esperava. Estavam
voltando aos bons tempos.
Radiante, Flora era toda sorrisos para ele. Em meio ao jantar, Flávio foi chamado ao telefone. Pediu licença, foi atender. Alguns instantes depois que
ele saiu, um rapaz aproximou-se de Flora sentando-se a seu lado.
Ela fixou-o, surpreendida.
- O que significa isso? - perguntou irritada. Era muito atrevimento dele. Flávio poderia interpretar mal.
- Serei breve - disse ele em voz baixa, mas firme. - Sei de tudo o que você fez. Sei que não foi Sérgio quem deu aquele desfalque, foi você!
Flora empalideceu fixando-o apavorada.
- O que está dizendo? Não sei nada disso.
- Tenho provas suficientes para mandá-la para a cadeia. Contudo, estou disposto a cooperar. Amanhã vou telefonar para seu escritório.
- Não. Não faça isso. Dê-me seu endereço. Irei procurá-lo.
- Nada disso. Aguarde meu telefonema. Tenho a certeza de que Arlete me daria bom dinheiro para conseguir essas provas. Se não quiser, falarei com ela.
- Não, por favor. Não se precipite. Vamos conversar. Saberei recompensar sua lealdade. Não vai arrepender-se.
- Preciso ir. Aguarde meu telefonema.
Levantou-se e saiu. Flora, trêmula, pálida, apanhou a bolsa e dirigiu-se ao toalete. Precisava recompor-se. Enquanto procurava disfarçar a palidez com
maquiagem, tentava acalmar-se. Nunca imaginara que alguém pudesse ter alguma prova contra ela. Como as obtivera?
Fora imprudente indo pessoalmente fazer aqueles depósitos. Mas em quem confiar para uma empreitada dessas? Lembrou-se de que José a prevenira sobre o
perigo que estava correndo. Certamente referia-se a esse homem. O fato de procurá-la antes de dirigir-se a Arlete ou a Flávio era um trunfo a seu favor. Dar-lhe-ia
o dinheiro e pronto. Tudo estaria resolvido.
Não lhe agradava ser chantageada, mas no momento não tinha escolha. Mais tarde, pensaria em uma maneira de livrar-se daquele malandro.
Ao voltar para a mesa, já encontrou Flávio.
- Alguma coisa importante? - indagou com naturalidade.
- Não. Aliás não sei como me descobriram aqui. Não tinha dito a ninguém onde estaria. A pessoa contou uma história complicada que não entendi bem. Acho
que foi um trote.
Flora respirou fundo tentando encobrir o mal-estar. O moço que a abordara tinha algum cúmplice. Fora ele quem chamara Flávio ao telefone para que ela
pudesse ser abordada. Eles os haviam seguido. Como não notara isso?
Discretamente passou os olhos pelo saguão mas o rapaz que a abordara não estava ali. Teria ido embora?
- Você não parece muito bem - disse Flávio fixando-a. Ela sorriu tentando aparentar tranqüilidade.
- Engano seu. Estou ótima. Adoro sair com você sem ter que dividi-lo com os demais.
- Gosto de estar com meus amigos. Não pensei que isso a aborrecesse.
- Não aborrece. Também gosto de estar com eles, mas é com você que me sinto melhor.
Flávio sorriu e não respondeu. Sentia que ela estava tentando envolvê-lo e procurou dar à conversa um tom impessoal. Depois do jantar, levou-a para casa,
despedindo-se.
- Não quer entrar um pouco? - convidou ela. - Tomar um licor, conversar mais um pouco. É cedo ainda e está tão agradável!
- Obrigado, Flora. Fica para outro dia. Amanhã preciso acordar muito cedo.
- É pena. Fiquei muito feliz com seu convite. Ultimamente venho me sentindo muito só.
- Por que não volta a viver com sua família?
- Não me acostumaria mais. Sabe como é, depois de ter.ver experimentado a independência, fica difícil. Aprecio minha liberdade, mas uma companhia como
a sua só a valoriza. Quisera poder contar com ela em todos os instantes.
- Obrigado, Flora. É muito gentil. Boa noite.
- Boa noite. Quando desejar sair, conte comigo.
Flávio saiu e Flora entrou satisfeita. Flávio estava arredio, sentira isso. Era natural em quem receava assumir qualquer compromisso. Sabia que casamento
não estava nos planos dele por enquanto. Porém o fato de a haver procurado significava que sentira necessidade da sua companhia. Com a ajuda de José ou não, o fato
era que ele estava caindo na rede.
Logo estaria dando ordens naquela mansão, rodeada de criados, com chofer e muito dinheiro. Claro que, como esposa dele, ela não deveria mais trabalhar.
Não ia ficar bem. Teria tempo para viajar, comprar jóias, freqüentar os clubes da moda.
De repente lembrou-se do rapaz que a abordara. Teve medo. Ele poderia estragar tudo. Se lhe tivesse dado o telefone, iria procurá-lo naquela noite mesmo.
Mas ele preferira ficar incógnito. Como tomara conhecimento do que ela havia feito? Não se lembrava de tê-lo visto antes. Teria Joana dado com a língua nos dentes?
Claro. Por que não pensara nisso antes? Ela era a única pessoa que conhecia todo o plano. Aliás, havia sido cúmplice. Agora pretendia tirar vantagens.
Aquela conversa de doença, de não poder mais fazer aqueles trabalhos havia sido só para ver-se livre dela.
À medida que pensava no assunto, mais Flora acreditava nessa hipótese. Se ao menos soubesse onde encontrá-la! Irritava-a ter que esperar. O assunto era
perigoso demais para perder tempo. Sentia-se insegura. Queria resolvê-lo o quanto antes.
Flávio deixou Flora e foi para casa. Arlete e Sérgio o esperavam ansiosos.
- E então? - perguntou Sérgio logo que ele entrou.
- Tudo aconteceu como planejamos. Marcos fez tudo direitinho. Ela não desconfiou de nada. Ficou muito perturbada. Quando voltei para a mesa, ela tinha
ido ao toalete.
- Com certeza para refazer-se - comentou Arlete.
-Também acho. Voltou com a maquiagem refeita, mas percebi que estava inquieta. Quando sugeri que ela não estava bem, tentou dissimular.
- Ela é boa nisso - tornou Sérgio.
- É, mas pude notar que ela estava muito nervosa. Ainda assim, tentou envolver-me com uma conversa de que se sente só, etc.
- Continuou com o jogo. Ela pretende casar-se com você! - disse Arlete.
- Vamos ver o que ela vai pensar de mim quando for desmascarada - rebateu Flávio.
- Pelo que conheço dela, vai querer matá-lo. Quando se enfurece chega a ser perigosa.
- Nessas alturas estará presa e deverá ocupar-se em prestar contas à Justiça. Marcos está chegando. Vamos ver o que ele diz.
O rapaz que abordara Flora entrou e os três voltaram-se para ele esperando.
- Não vim antes porque dei um tempo para o Dr. Flávio chegar.
- E então, como foi? Queremos saber os detalhes - disse Flávio.
- A fera mordeu a isca. Vocês precisavam ver. Quando falei que sabia de tudo sobre o desfalque, ela quase desmaiou. Ficou branca e tremendo. Quando mencionei
que Arlete pagaria bom dinheiro pelas provas, pensei que ela fosse desabar. Disse logo que eu não procurasse ninguém porque ela faria qualquer negócio que eu quisesse.
Fiquei de telefonar. Tudo saiu conforme planejamos.
- Você foi ótimo. Ela acreditou mesmo - disse Flávio.
- Pois é, Dr. Flávio. Já trabalhei em teatro em meus tempos de faculdade. Gostei de fazer esse papel. Vou gostar ainda mais quando conseguirmos as provas
de que precisamos para inocentar Sérgio.
- O primeiro passo foi dado. Agora precisamos cuidar do resto.
- O segundo passo será assustá-la durante alguns dias. Sei como fazer isso. Telefono, faço ameaças, mas não marco o encontro.
- Esse será o terceiro passo - disse Flávio.
- É. Quando ela estiver muito ansiosa e assustada, preparamos a armadilha. Vai dar certo, pode crer.
- Seu pai nos ajudou muito, Marcos.
- Advogando temos conhecido muitos malandros. Aprendemos a lidar com eles. Vocês são nossos clientes há muitos anos. É um prazer prestar-lhes esse serviço.
Fazer justiça é nossa função.
- Seja como for - disse Arlete -, somos muito gratos.
- É verdade - concordou Sérgio. - Para mim principalmente, desfazer esse engano é fundamental.
Marcos aproximou-se de Sérgio e colocou a mão em seu braço dizendo:
- Quando papai voltou da delegacia onde foi retirar a queixa do Dr. Anselmo para poder libertá-lo e me relatou os fatos, lembro-me de haver-lhe dito:
- Não acredito que Sérgio tenha feito isso!
- As provas são contra ele - rebateu papai.
- Provas muito evidentes que subestimam a inteligência de Sérgio. Se ele houvesse cometido esse desfalque, certamente não teria deixado pistas tão claras.
Para mim, deveriam investigar melhor. Um moço de comportamento exemplar não ia fazer uma coisa dessas. - Lembro-me de que papai concordou comigo.
Sérgio olhou-o comovido.
- Vocês acreditaram na minha inocência! - disse confortado.
- Estivemos próximos da verdade. Agora sabemos disso. Se naquela ocasião não pudemos fazer nada, agora nos sentimos felizes em cooperar.
Depois que Marcos se despediu, Arlete disse com satisfação:
- Diva chega amanhã. Iremos buscá-la. Sérgio olhou-a admirado e objetou:
- Não seria melhor ela esperar? Não estou em condições de cuidar dela.
- Não precisa. Eu a convidei. Vai ficar comigo. Pode ter a certeza de que estará bem.
- Ainda assim preferia que viesse depois de resolvermos meu caso.
- Diva desejava tanto vir! Ficou muito feliz com meu convite.
- A que horas iremos buscá-la? Flávio interveio:
- Não acho prudente você ser visto por enquanto. Se Flora souber que está aqui conosco, vai desconfiar.
- Ele não pode ficar preso em casa - tornou Arlete.
- Por enquanto precisa. Só mais alguns dias. Nosso plano está bem-feito e não podemos agora correr o risco de um fracasso.
- Sei que tem razão - concordou Sérgio. - Entretanto sinto-me mal por ter de ficar escondido aqui, sem poder fazer nada.
- Avalio como se sente, mas não temos outra alternativa. Ela precisa acreditar que não sabemos de nada.
- Nesse caso, vou sozinha esperar Diva e levá-la para casa. Mais tarde viremos aqui para vê-lo.
- Você acha mesmo bom que ela venha? Foi Flávio quem respondeu:
- Eu acho ótimo. Arlete precisa de companhia. Ocupando-se com Diva, ficará menos ansiosa com relação a você. Assim manterá a calma suficiente para esperar.
- Espero que não seja por muito tempo - disse ela. - Por mim, Sérgio já estaria em casa e pronto.
Sérgio abraçou-a com carinho.
- Espero esse dia ansiosamente. Mas quero ir de cabeça erguida e pela porta da frente. Entendeu?
- Entendi. Até parece que você conversou com papai. Fala como ele!
Flávio sorriu.
- O tempo vai passar depressa. Não convém que Sérgio saia mas amanhã convidarei Walter para jantar aqui. Ainda não nos encontramos e temos muito que conversar.
Você e Diva virão e teremos uma reunião agradável.
- Isso mesmo - concordou Arlete, alegre.
- Você dorme aqui esta noite. É tarde para ir sozinha - resolveu Flávio.
- Está bem. Mas amanhã quero ir para casa cedo. Preciso preparar algumas coisas. Desejo que Diva se sinta muito bem.
- Você vai mimá-la, e isso não é bom - disse Sérgio procurando ocultar a emoção. - Vai estragá-la.
- Qual nada. Ela me parece ser bem sensata. Sempre desejei ter uma irmã. Alegra-me poder mostrar-lhe a cidade, ajudá-la a descobrir o que deseja ser no
futuro. Vê-la desabrochar. Sua família é feliz, a vida lá é muito boa, mas Diva tem muita energia e precisa de mais espaço. Não pertence àquele mundo e não se sente
satisfeita com ele. Ela quer mais.
- Em tão pouco tempo você conseguiu perceber isso. Em minha família é a única que deseja progredir, crescer. Os outros estão bem e não sentem vontade
de mudar.
- As pessoas são diferentes umas das outras - disse Flávio, pensativo. - Arlete está certa. Dar oportunidade a quem tem vocação é maravilhoso. Ela vai
se sair bem aqui.
- Certamente. Tenho a certeza de que em pouco tempo estará integrada na vida da cidade. Vocês vão ver! - disse Arlete com entusiasmo.
- Com sua ajuda, eu acredito. Você tem o dom de transformar as pessoas G torná-las felizes - disse Sérgio, olhando-a com enlevo.
Flávio levantou-se.
- Depois disso, sinto que minha presença é dispensável. Vou dormir. Até amanhã.
Depois que ele se foi, Arlete e Sérgio, abraçados no sofá, conversaram durante muito tempo. Trocaram beijos e juras de amor, sentindo-se felizes a traçar
planos para o futuro. Só muito tarde foi que se recolheram.
Na manhã seguinte, Arlete acordou assustada. O sol estava alto e ela levantou-se rapidamente consultando o relógio. Passava das dez. Aprontou-se e desceu.
Sérgio já havia acordado e esperava-a na sala. Depois do café ela despediu-se. Diva chegaria à tarde, mas ela desejava ultimar algumas compras antes de ir buscá-la.
Saiu apressadamente.
Diva chegou emocionada e bem-disposta. Os olhos brilhantes de alegria mostravam seu entusiasmo realizando um sonho tantas vezes imaginado. Arlete levou-a
à sua casa, colocando-a à vontade no quarto lindamente decorado que ela arrumara carinhosamente para hospedá-la.
- Depois que você se instalar, iremos dar uma volta pela cidade. Mais tarde iremos à casa de Flávio. Sérgio a espera com ansiedade.
- Tem certeza? Mamãe disse que ele não ia gostar da minha vinda agora, antes de resolver seu caso. Mas quando você me convidou, não resisti.
- Ele sente-se ainda muito inseguro. Mas eu sei que tudo está praticamente resolvido. Para mim, ele não precisava provar nada.
- Eu o entendo. A honestidade é um princípio muito importante em nossa família. Meus pais fazem questão disso e todos nós aprendemos assim.
- Posso imaginar o que tem sido essa calúnia na vida de vocês.
- Tem sido horrível. Principalmente porque sabíamos que ele era inocente.
- Às vezes fico pensando por que Sérgio foi envolvido.
- Porque cruzou com uma pessoa de mau caráter como a Flora.
- Isso está claro. Mas por que ele, e não outro? Por que Flora conseguiu atingi-lo?
- Foi o acaso. Ela cismou com ele e pronto.
- Não, Diva. Não é assim que a vida funciona. De alguma forma ele atraiu isso para ele e, já que estamos juntos, eu também.
- Não entendo aonde quer chegar.
- A vida é perfeita e responde a todos os nossos atos. Tudo o que nos acontece é o resultado das nossas atitudes.
- Eu não acho. Se fosse assim, nada de mal aconteceria aos bons.
- Nosso conceito de bondade é ainda muito relativo. Quantas vezes acreditamos estar fazendo o bem e as coisas dão errado? Depois, na vida não é apenas
a bondade que conta. Há muito mais. Precisamos desenvolver nosso senso de realidade.
- Aprender a encarar o sofrimento?
- Aí é que está. Em seu conceito, ser realista é sofrer?
- Bom... basta olhar em volta para perceber que neste mundo há mais sofrimento do que felicidade.
- É verdade. Mas por que isso acontece? Porque as pessoas se iludem, criam problemas, escolhem mal seus caminhos. Há os que vivem felizes e para os quais
a vida corre melhor.
- É verdade. Esses têm mais sorte.
- Sorte? Você acredita mesmo nisso?
- Não há outra explicação.
- Acreditar em sorte equivale a dizer que Deus é parcial. Não, Diva. Desde que fomos atingidos, tenho-me perguntado: o que a vida nos pretende ensinar
com isso? Tenho a certeza de que se não precisássemos passar por esses problemas, Flora não teria conseguido nada.
- Isso diminui a culpa dela?
- Não. Ela não responde pelas nossas necessidades. Diante da vida, cada um responde apenas por si. Flora fez tudo para nos prejudicar. Uniu-se ao mal,
atraiu energias negativas. Fatalmente está envolvida com isso. Não desejo tornar-me igual a ela. Entreguei o caso nas mãos de Deus e pronto.
- Não ficou com raiva?
- No começo fiquei. Depois pensei melhor e reconheci que ela deu o que tem. Não podemos exigir de alguém o que ainda não pode dar. Estou interessada em
descobrir por que nós fomos atingidos, isso sim. Sei que quando isso acontece é porque nós precisamos dessa experiência. O que me assusta é que enquanto não aprendemos,
os fatos se repetem.
- Não diga isso nem por brincadeira!
- Sinto que estamos menos ingênuos e mais maduros. Eu estou mais confiante, enquanto Sérgio ainda se deixa dominar pelo receio. Isso pode dificultar a
resolução do caso. Gostaria que ele fosse mais positivo.
- O golpe que ele sofreu foi muito duro.
- Mas a ajuda espiritual que ele recebeu foi muito grande. Ele precisa confiar mais na vida.
- Ele já melhorou muito. Seu Ramiro disse que tudo aconteceu porque vocês precisavam conhecer os fatos espirituais. Sérgio mudou muito. Agora ele reza,
acredita no Seu Ramiro, pensa em Deus. Antes ele não ligava para nada disso.
- Eu também mudei. Sempre acreditei na vida e nas forças superiores que comandam o universo. Mas nunca me detinha a pensar no que acontece depois da morte.
Eu sentia que os espíritos dos que morreram deveriam estar em algum lugar. Mas ignorava como. Com o que nos aconteceu, descobri que estamos rodeados por energias
e pelos espíritos dos que já viveram aqui. É maravilhoso saber que a vida continua e que o corpo material é apenas uma roupa que abandonamos quando não nos serve
mais. Você tem razão. Nós precisávamos ter contato com a espiritualidade e Flora nos ajudou.
- Daqui a pouco você vai dizer que está agradecida a ela! Não está exagerando?
- Não. Estou agradecida à vida, não a ela. Nós tínhamos essa necessidade, Deus usou a maldade dela em nosso favor. Se não fosse ela, teria sido outra
pessoa igual. Da mesma forma que aprendemos, um dia ela também vai aprender.
- Você pensa tão diferente! Nunca vi coisa igual.
- Gosto de observar como as coisas acontecem. Eu e Flávio costumamos conversar muito sobre isso.
- Flávio também pensa assim?
- Pensa. Nós temos muita afinidade.
- Gostaria de aprender. Parece que para você as coisas são claras. Sempre sabe o que fazer. Isso me fascina. Em casa, as pessoas são muito diferentes
de mim. Adoro todos eles, mas as conversas por lá são só sobre plantação, chuva, boi, galinhas. Eu costumava ficar horas pensando, sozinha, embaixo de uma árvore
no pomar, imaginando coisas, querendo descobrir como seriam.
Arlete sorriu alegre:
- Eu sabia que você era diferente. Eles estão bem, gostam da vida que levam, mas você tem sede de coisas novas.
- Tenho mesmo. Sérgio me entende, mas ele estava sempre longe. Quando voltou arrasado, não conversava. Você me compreendeu logo. Sou-lhe muito grata por
esta viagem. Nunca vou esquecer o que está fazendo por mim.
- Estou feliz por ter você aqui comigo. Estava muito só. Se não estiver cansada podemos sair um pouco, dar uma volta pela cidade. Depois iremos ver Sérgio
e jantar na casa de Flávio. Walter também estará lá.
- Estou ansiosa para ver a cidade. - Ficou pensativa alguns instantes e continuou: - Jantar em casa de Flávio! Vamos ver minhas roupas. Não sei o que
se usa na cidade. Tenho medo de não ter um vestido apropriado.
- Veremos isso.
- Rubens me deu dinheiro para comprar o que eu quisesse. Ele agora ganha bem e tem ajudado muito em casa. Você me ajuda a escolher um vestido bonito para
hoje à noite?
- Claro. Vamos cuidar de tudo. Não se preocupe.
Diva sorriu alegre e seus olhos brilharam de satisfação. Arlete continuou:
- Não podemos perder tempo. Não deseja mesmo descansar?
- Não conseguiria. Estou ansiosa.
- Está bem. Então, vá tomar um banho e arrumar-se. Iremos à cidade e de lá direto à casa de Flávio.
Enquanto esperava por ela, Arlete telefonou para Sérgio contando-lhe que Diva chegara bem.
- Gostaria de ter ido buscá-la na estação. Esperei tanto por esse momento e quando acontece estou feito um prisioneiro, sem poder sair.
- Não se queixe, Sérgio. Você está muito bem. Eu fui e fiz tudo direitinho. Hoje à noite estaremos aí e poderá vê-la. Ela está radiante.
- Posso imaginar. Era seu maior sonho!
- Estou feliz por poder dar-lhe essa alegria. Continuaram conversando e quando Diva apareceu ela despediu-se dele.
- E então? Como estou? Não quero envergonhar você. Acha que minha roupa é muito fora de moda? - indagou ela ansiosa.
Arlete olhou-a com atenção. Ela usava um vestido estampado, saia franzida, presa na cintura com uma faixa e um laço atrás. Sem mangas, decote redondo
com um laço sobre o peito.
- É um vestido de menina. Vamos melhorá-lo. Vamos ao meu quarto.
Lá tirou a faixa, escolheu um cinto de couro combinando e colocou-o na cintura dela. Depois arrancou o laço do peito, escolheu um colar e um par de brincos.
- Ponha isso. Acho que ficou melhor, mais próprio para uma moça.
Diva obedeceu, olhando-se no espelho.
- Ficou muito melhor.
- Você é muito bonita. Precisa aprender a valorizar sua beleza. Amanhã vamos a um salão para fazer uma pequena mudança em você.
Os olhos dela brilharam.
- Que bom! Acha que posso ficar como as moças das revistas?
Arlete riu bem-humorada.
- Não quero transformá-la num manequim. Vai aprender a fazer sobressair o que tem de bonito. E para isso não deve deixar de ser como você é. Tem uma espontaneidade
encantadora e um sorriso iluminado que a tornam linda.
- Você acha mesmo?
- Acho. Agora vamos embora. Temos muito que fazer.
As duas saíram conversando com entusiasmo, fazendo planos para os próximos dias, dispostas a aproveitar tudo que pudessem.

Capítulo 20





S
érgio esperava ansiosamente as duas moças. Maria mandará seu terno ao tintureiro, lavara e passara sua melhor camisa, roupas de quando estava na cidade e nunca mais
usara. Fez o que pôde para melhorar sua aparência.
Quando Arlete chegou, abraçou-o carinhosamente, dizendo:
- Estava com saudades!
Ele beijou-a com carinho. Depois deu as boas-vindas a Diva. Ela estava radiante. Ficara deslumbrada com as lojas da cidade e o movimento das ruas. Seu
rosto estava corado e em seus olhos havia um brilho de prazer que, apesar do seu acanhamento por estar ali pela primeira vez, não conseguia esconder.
Flávio, depois de cumprimentá-la, observou:
- O que aconteceu com as duas? Estão radiosas!
- Estamos felizes. A felicidade faz maravilhas! - respondeu Arlete.
- Estou vendo! - tornou Flávio.
- Onde Arlete aparece, tudo se transforma. Ela tem esse poder - aduziu Sérgio, olhando-a com amor.
Flávio sorriu malicioso.
- Desse jeito ela vai ficar mimada e impossível. Diva olhou-o séria quando disse:
- Ele tem razão. Arlete leva a alegria e o entusiasmo aonde vai. Nossa casa estava triste e quando ela chegou tudo se modificou. Até eu, estou aqui, vivendo
este conto de fadas!
Nos olhos de Flávio havia um brilho indefinível quando disse:
- Espero que continue assim.
Walter entrou e depois dos cumprimentos quis saber os detalhes de tudo quanto havia acontecido. À medida que Flávio, Arlete e Sérgio iam, cada um por
sua vez, relatando os acontecimentos, Walter não continha as exclamações de entusiasmo. Ao final comentou:
- Se eu soubesse teria ido com vocês! Gostaria muito de conhecer Seu Ramiro. Deve ser um médium excepcional.
- É autêntico. Sua naturalidade no trato com os fenômenos espirituais encanta e convence.
- Gostaria imensamente de conhecê-lo!
- Poderemos ir visitá-lo! Tenho a certeza de que ele também gostaria. Tenho sentido falta dele. Sempre que eu ficava inseguro, preocupado, ia lá, conversava
com ele, e voltava melhor - tornou Sérgio emocionado.
- O que prova que ninguém está só. Mesmo longe daqui, Deus colocou a seu lado um dos seus mensageiros para aliviar sua dor.
- Seu Ramiro disse que tudo nos aconteceu porque estava na hora de tomarmos conhecimento da vida espiritual. Um espírito se comunicou através dele, mandou
um abraço ao Dr. Celso e nos convocou para trabalharmos na divulgação dos trabalhos dos espíritos, no esclarecimento e no conforto das pessoas. Foi à despedida -
lembrou Flávio.
- Interessante! Deu o nome?
- Disse chamar-se Gualberto.
- Falaremos com Celso, vamos ver se ele o conhece.
O jantar decorreu agradável. Colocado a par do plano deles para induzir Flora a confessar, Walter afirmou:
- Foi uma ótima idéia. Seria bom que vocês fossem ao Centro amanhã à noite. Nunca é demais pedir proteção.
- É verdade - concordou Flávio. - Depois, eu quero conversar com o Dr. Celso, contar-lhe o que aconteceu, dar-lhe o abraço do Gualberto.
- Você acha que eu devo ir também? - indagou Sérgio.
- Seria bom - disse Walter.
- Tenho receio de que Flora descubra que Sérgio está aqui e escape da armadilha - esclareceu Flávio.
- Saber que ele voltou pode ser uma forma de deixá-la mais apavorada - sugeriu Walter.
- Preferia que ela ignorasse - opinou Flávio. - Enquanto ela pensar que Sérgio continua como culpado, terá todo o interesse em esconder a verdade. Se
suspeitar que descobrimos, ela pode escapar-nos, resolver fugir, viajar e então perderemos sua confissão.
- Você pode estar certo. Nesse caso, é melhor que Sérgio não saia de casa. Nós pediremos ajuda assim mesmo. Arlete poderá ir.
- Eu também gostaria de ir - disse Diva. - Sempre fui fascinada pelos mistérios da vida e da morte.
- Iremos todos - decidiu Flávio.
- Menos eu! - lamentou-se Sérgio.
- Por enquanto. Depois da ajuda espiritual que você recebeu, tenho a certeza de que será um assíduo freqüentador.
- Por que diz isso, Dr. Walter? - perguntou Sérgio.
- Primeiro porque, agora que descobriu esse lado da vida, vai querer saber mais. Depois, porque vocês tiveram um chamamento espiritual. Vocês estavam
maduros e então atraíram esses fatos em suas vidas.
- Poderia ser por carma. Nesse caso nós estaríamos colhendo os resultados de coisas que fizemos em outras vidas - disse Arlete.
- Se fosse carma, os espíritos não teriam mostrado a verdade. Vocês estariam ainda separados, sofrendo essas conseqüências. Mas eles interferiram e só
o fazem quando têm permissão dos espíritos superiores - esclareceu Walter.
Arlete ficou calada por alguns instantes, depois disse:
- O caso de tia Amélia seria um carma? Seu marido foi embora e ela morreu sem saber por quê.
- Creio que sim. Quando as pessoas envolvidas têm necessidade de passar pela experiência, os espíritos não têm permissão de intervir, a não ser para dar
forças, ajudar a suportar.
- Pobre tia Amélia. Sofreu muito! - considerou Arlete.
- Já passou. Ela deve estar muito bem agora - tornou Walter.
- Será que ela já sabe o que aconteceu?
- Quero crer que sim.
- Por que ele, que dizia amá-la tanto, fez aquilo? Gostaria que ela um dia viesse para contar. Acha possível? - indagou Arlete.
- Claro. Se ela quiser e achar que pode, certamente o fará.
- Arlete sempre teve muita afinidade com tia Amélia - interveio Flávio.
- Isso pode facilitar o contato. Aliás, foi ela quem ajudou no caso de Sérgio, lembra-se, Arlete?
- Lembro-me, Walter. Espero que ela continue a nos ajudar até o fim. Sérgio só vai casar comigo quando resolver esse caso. Quanto tempo teremos ainda
que esperar?
O jantar decorreu alegre. Eles faziam perguntas sobre os fenômenos de mediunidade e Walter esclarecia, contando as pesquisas de famosos cientistas de
outras partes do mundo.
No dia seguinte pela manhã, a pretexto de uma consulta ao dentista, Flora não compareceu ao escritório. Foi à procura de José. Estava inquieta. O rapaz
do restaurante não havia voltado a procurá-la.Teria pensado em falar com Arlete? Se isso acontecesse, ela estaria perdida. Não podia permitir que ele fizesse isso.
Estava disposta a pagar fosse quanto fosse. Naqueles cinco dias ela havia esperado ansiosamente que ele se comunicasse. Cada vez que o telefone tocava, no escritório
ou em sua casa, o coração disparava e ela a custo controlava seu nervosismo. Não agüentava mais essa incerteza.
Diante de José contou o que lhe acontecera e ele cocou a cabeça pensativo.
- Isso é o diabo! Eu avisei que você estava correndo perigo.
- Eu sei. Por isso vim aqui hoje. Você precisa fazer alguma coisa. Ele não pode deixar de me procurar.
- Vou ver o que posso fazer. Sua situação está mesmo negra.
- Está? - disse ela empalidecendo. - Você está vendo alguma coisa? Sabe o que está acontecendo com aquele moço?
- Meu guia está me dizendo que você está em perigo, que ele pode mesmo fazer o que disse.
- Mas eu prometi o dinheiro! Ele não seria tão burro de perder essa oportunidade.
- Ele vai telefonar.
- Tem certeza?
- Tenho. Cuidado com o que diz a ele. Sinto que esse moço não é de confiança.
- Acha que ele pode pegar meu dinheiro e não cumprir a parte dele?
- Acho.
- É um risco que terei de correr. Se eu recusar, ele vai oferecer ao outro lado e isso seria minha ruína. Você precisa ajudar-me. Fazer alguma coisa.
Não posso ficar à mercê dele.
- Fica difícil. Sabe o nome dele?
- Não.
- Está-me pedindo um trabalho forte. Vou precisar de dinheiro.
- Se der resultado, estou disposta a pagar. Mas preciso ter a certeza de que vai funcionar.
José sorriu com ar de superioridade, mostrando os dentes amarelados de fumo.
- Trabalho meu é garantido. Nunca falha.
- Você podia dar um jeito nele. Se lhe acontecesse algum acidente, alguma doença grave, talvez ele esquecesse esse golpe que me quer dar. Só que eu preciso
saber como localizá-lo para acompanhar o que vai lhe acontecer.
José olhou-a sério, fechou os olhos durante alguns segundos, depois disse:
- Ele vai aparecer. Posso tirar ele do seu caminho. Mas para isso você precisa ir comigo na mata à meia-noite. Tem coragem?
Flora empalideceu, mordeu os lábios nervosamente. Por fim decidiu:
- Tenho. Quando se trata de resolver meus problemas, vou até o fim.
- Está bom. Vamos combinar tudo.
José marcou a próxima sexta-feira. Ela teria que trazer o dinheiro um dia antes. Ele convocaria algumas pessoas que costumavam ajudá-lo, prepararia tudo.
Ao despedir-se, Flora ainda perguntou:
- Tem certeza de que eu preciso ir? Não poderia fazer sozinho?
- Não. Quero fechar seu corpo e para isso você precisa ir. Também não tenho o nome dele. Preciso que você pense nele para que possamos localizá-lo.
Ao deixar a casa de José, Flora tentava acalmar-se, pensando que tudo iria acabar bem. Ele demonstrara seu poder. Era questão de tempo.
Apesar dessa disposição, continuava nervosa e inquieta. Passou em uma farmácia e comprou um vidro de pílulas calmantes. Não queria que na empresa os outros
notassem seu nervosismo.
Teria também que arranjar mais dinheiro. Tinha um pouco, mas agora, além de José, teria que estar prevenida. Não sabia quanto o chantagista iria pedir.
Poderia pechinchar, mas temia que ele fosse à procura de Arlete. Ela daria qualquer soma para inocentar Sérgio. O melhor seria pagar o que ele pedisse.
Foi ao escritório e consultou os arquivos para ver onde poderia mexer para conseguir o dinheiro. Anotou alguns telefones. No fim do expediente, quando
se preparava para sair, o telefone tocou. Ela atendeu imediatamente.
- Alô.
- Como é, pensou no que conversamos no restaurante?
- Pensei. Precisamos conversar pessoalmente. Vamos marcar um encontro.
Silêncio. Nervosa, Flora prosseguiu:
- Não gosto que ligue aqui para o escritório. Preferia que ligasse para minha casa. Tem o telefone?
- Tenho todas as informações sobre você.
- Vamos marcar um encontro.
- Está providenciando o dinheiro?
- Você não disse quanto.
- Estou pensando ainda sobre isso.
- Dê-me seu telefone ou endereço. Assim que eu arranjar dinheiro, entro em contato com você.
Ele riu:
- Espertinha, hein? Vou procurá-la na hora que achar conveniente. Pode esperar.
- Não gosto de esperar. Isso me deixa nervosa. Quero resolver isso logo. Nem sei se você tem mesmo as provas que diz.
- Está duvidando? Nesse caso posso procurar outra pessoa...
- Não. Por favor. Não faça isso! Vamos marcar um encontro e resolver logo. Você não quer dinheiro? Pois eu vou dar-lhe. Não há nada para esperar. É só
marcar e pronto.
- Vou pensar.
Disse isso e desligou. Flora ficou chamando, mas foi inútil. A ligação fora cortada. Ela deixou-se cair em uma poltrona. Felizmente seus auxiliares já
haviam saído. Estava sozinha. Aquele maluco poderia arruinar tudo se alguém ouvisse na extensão. Ela sabia que não era apreciada pelos funcionários de seu departamento.
Era exigente e não gostava de misturar-se. Sabia que a odiavam. Iriam gostar se descobrissem algo que pudesse prejudicá-la. Principalmente os mais antigos. Estavam
sempre suspirando de saudades de Dorotéia, do Dr. Martinez, dizendo que no tempo deles as coisas eram diferentes.
Mas ela não ligava. O que importava era que o serviço estava sendo bem-feito. Seu orgulho não deixava por menos. Depois, queria mostrar capacidade para
Flávio. Quando se casasse com ele e fosse presidente daquela empresa, teria tudo que desejava. Poderia até deixar que Flávio trabalhasse enquanto ela levaria a vida
de luxo e ociosidade com que sempre sonhara.
O importante era casar com ele. Depois, aos poucos iria conseguindo realizar todos os seus planos. José iria ajudá-la com certeza. Quando chegasse aonde
pretendia, ela lhe daria dinheiro suficiente para que ele ficasse só trabalhando para ela. Então, seria poderosa, ninguém ousaria enfrentá-la.
Quando pensava nisso, sentia-se orgulhosa da própria inteligência. Entretanto, naquela tarde, por mais que se esforçasse, não conseguia acalmar-se. O
que aquele idiota pretendia? Tentava irritá-la para arrancar mais dinheiro. Ela estava nas mãos dele. Por que não marcava logo esse encontro para acabar de vez com
aquilo?
Flora trincou os dentes com raiva. Ele não perdia por esperar. Haveria de pagar por todos os minutos de angústia que ela estava sofrendo.
Naquela noite, enquanto se preparava para ir ao Centro Espírita, Flávio atendeu o telefone:
- Marcos? Como vai?
- Bem. Hoje à tarde telefonei para Flora. Ela ficou mais nervosa.
- O que você lhe disse?
Marcos contou sua conversa com ela e finalizou:
- Ela queria a todo custo marcar já o encontro. Quero que ela fique mais no ponto. Vamos dar-lhe mais alguns dias. Uma semana, talvez.
- Sérgio está inquieto. Gostaria de resolver logo. Não agüenta mais ficar preso em casa. Acha mesmo que precisamos esperar tudo isso ainda?
- Vamos ver. Talvez um pouco menos. Preciso conversar com meu amigo delegado para prepararmos o flagrante. Ela é esperta. Precisamos fazer bem-feito para
não pormos tudo a perder. Diga a Sérgio que tenha paciência. Está por pouco.
- Direi.
Quando ele desligou, Flávio procurou Sérgio e contou-lhe a novidade.
- Sei que está ansioso - disse -, mas logo tudo estará resolvido.
- Assim espero.
Conforme combinado, Walter chegou e Flávio saiu com ele para apanhar Arlete e Diva. Quando elas apareceram, os dois não esconderam uma exclamação de surpresa.
Aquela não era a moça que haviam visto na véspera. Diva estava completamente diferente. Mudara o penteado, sua forma de vestir, seus olhos pareciam maiores e mais
brilhantes, seu corpo mais esguio e elegante, sua maquiagem discreta realçava a beleza de sua tez delicada.
- O que aconteceu com você? - exclamou Flávio, admirado.
- Arlete ajudou a melhorar minha aparência. Estou bem?
- Eu diria que você floresceu! - disse Walter.
- Ela não é uma beleza? - tornou Arlete, entusiasmada. Flávio olhou-a como se estivesse vendo-a pela primeira vez.
- Menina, você está linda!
- Hum... desse jeito não vai ficar muito tempo sozinha - tornou Walter.
Diva corou de prazer. Aquela transformação a fizera sentir-se diferente. Mais segura, mais mulher. Havia firmeza em sua voz quando disse:
- Não quero me prender a ninguém. Pretendo estudar, fazer alguma coisa boa que me dê prazer. Quero me profissionalizar, tornar-me independente. Para isso
preciso ganhar dinheiro.
- Um casamento rico é um emprego para o resto da vida - disse Walter.
- Sou uma pessoa livre. Estou a passeio, mas quero procurar um emprego; se puder ficar aqui, ficarei.
- Você pode ficar morando comigo para sempre - disse Arlete.
- Sei disso. Mas vocês vão se casar. Precisam viver sozinhos, ter garantida sua privacidade. Até lá, vou arranjar uma maneira de trabalhar.
- Você não pensa em se casar? - indagou Flávio.
- Não. Tenho outros interesses. Nunca tive oportunidade de fazer aquilo de que gosto. Agora que estou tendo, pretendo aproveitar. Quero viver, conhecer
coisas, aprender, desfrutar da minha liberdade.
- Você é diferente das moças que conheço - disse Walter. - Elas só pensam em casamento. É uma tristeza. Você sai duas vezes com uma delas e pronto, lá
vem ela querendo pendurar-se, arranjar compromisso. Às vezes é difícil escapar desse cerco.
Flávio riu bem-humorado.
- Até agora você tem se saído muito bem.
- Porque não encontrou ainda a mulher que vai amarrá-lo - brincou Arlete. - Do amor ninguém escapa. Um dia a casa cai.
Nesse tom de brincadeira, eles foram conversando alegremente até o Centro. Uma vez lá, Flávio foi cumprimentar o Dr. Celso. Abraçou-o, dizendo:
- Este abraço foi mandado pelo Gualberto. Celso emocionou-se:
- Você disse Gualberto?
- Sim. Foi esse o nome que o espírito deu. Você o conhece?
- Foi meu companheiro de universidade. É um dos responsáveis pela fundação desta casa.
Foi a vez de Flávio se emocionar. Celso prosseguiu:
- Fomos muito amigos. Ele morreu cedo e eu fiquei muito chocado com sua doença. Anos mais tarde, foi ele quem me despertou para a mediunidade. É um espírito
muito evoluído, que nos tem ajudado muito aqui. Trabalha com cura. Quando pode, cura o corpo, mas sempre vai além, tentando curar a alma. Costuma dizer que, quando
o corpo adoece, é a alma que está doente. Só curando a alma é que o paciente pode recuperar a saúde.
Walter interveio:
- Essa cura é a mais difícil!
- É porque as pessoas não gostam de mudar. Sentem-se seguras agarrando-se às coisas materiais. Ignoram as necessidades da alma. Até que um dia a vida
os empurra, modificando tudo, e elas, a contragosto, vêem-se forçadas a andar.
- Nesse jogo, o sofrimento sempre aparece - tornou Walter. - No hospital tenho visto coisas terríveis.
- Do ponto de vista humano, sim. Mas olhando além do mundo material, representam o remédio que as levará à cura da alma. Nenhuma dor, por maior que seja,
é inútil. Ela derruba as barreiras da resistência, arranca ilusões, mostra a verdade. Quando a tempestade passa, a pessoa junta os pedaços do que sobrou, renova
as idéias e segue em frente em melhores condições espirituais. Neste trabalho de socorro às almas de espíritos que viveram no mundo e desencarnaram em condições
de sofrimento, o quadro é sempre o mesmo. A surpresa da sobrevivência para os que duvidavam, a visão mais realista da própria situação, a libertação das formas de
pensamentos que criaram durante a vida terrena e, por fim, com a ajuda dos atendentes do astral, a abertura da visão maravilhosa da espiritualidade.
- Nesse caso, a morte é uma abertura para uma vida melhor - afirmou Flávio.
- É verdade. Todas as histórias tristes que acompanhamos nos leitos dos hospitais têm um desfecho feliz. Ninguém fica desamparado. É verdade que alguns
teimam, apesar de tudo, precisam de mais tempo. Mas aqueles que compreendem passam a viver muito melhor do que quando estavam na Terra.
- A vida no astral deve ser maravilhosa! - exclamou Walter com entusiasmo.
- Depende. Para quem coopera, sim. Mas para quem prefere as trevas, o sofrimento continua. Afinal, a escolha é de cada um. - Depois de uma rápida consulta
ao relógio, ele pediu: - Vamo-nos acomodar que está na hora.
Celso pediu a Flávio que se sentasse ao redor da mesa. Walter levou Arlete à sala de tratamentos para continuar o atendimento ao caso de Sérgio. Quando
chegou a vez dela, foi colocada no meio de um grupo de médiuns e Walter pediu ajuda para Sérgio, dando o endereço de onde ele se encontrava.
O dirigente do trabalho aproximou-se dizendo:
- Foi bom terem vindo. Está havendo uma interferência para impedir que o caso dele se esclareça. Vocês precisam manter a fé. Não podem vacilar agora.
- É a mesma mulher que você descreveu da outra vez?
- É. Ela está se comprometendo com espíritos ignorantes, pedindo-lhes favores. Está com medo, julga estar se defendendo. Está criando vínculos com esses
espíritos, não sabe as conseqüências que isso lhe trará, nem as dificuldades que terá de enfrentar quando pretender livrar-se deles.
- Já vi alguns casos assim - respondeu Walter. - Eles prestam alguns favores e se julgam no direito de dominar a vida da pessoa, sugando suas energias,
usando-a sem nenhum respeito, invadindo sua privacidade.
- É isso mesmo, meu filho. Estou falando no assunto porque é preciso que vocês não entrem na energia deles. Você sabe come é isso, mas seus amigos, não.
Precisa explicar-lhes.
- Eu sei. Apesar do que ela está fazendo, não nos impressionarmos. Confiar em Deus e ligar-nos com o bem.
- Isso mesmo. Nesses casos é preciso cuidado com o julgamento, com a própria opinião. Quando você julga o outro, embora tenha razão e ele esteja ligado
ao mal, está dando espaço para a raiva, a revolta, a crítica, mesmo que mascare essa atitude dizendo que está só "analisando". Cuidado com seu lado justiceiro. Só
Deus pode ser justo, porque ele tem a visão completa de tudo. Qualquer atitude negativa abre as portas para que o mal penetre. Para que ele não tenha nenhuma ação
sobre você é preciso conservar seu estado de bondade, de ligação com o bem, com a luz, com Deus. Fazendo isso, nada de mal o atingirá.
- Eu entendo isso - disse Arlete emocionada. - Contudo, peço que ajude Sérgio. Tenho receio de que ele não consiga fazer isso.
O dirigente ficou calado por alguns segundos, depois disse:
- Ajude-o a compreender. Converse com ele. Quando você fala, ele ouve. Há uma outra pessoa que também precisa ser alertada. Quem é?
- Flávio? - perguntou Arlete.
- Não. Esse está muito bem. É um moço que está ajudando no caso. Ele precisa vir aqui também.
- Marcos! - disse Walter.
- Esse. Vamos ficar ao lado dele. Diga-lhe que venha.
- Darei o recado.
- Agora vamos mentalizar luz, harmonia, paz e agradecer a Deus pelo dom da vida e pela oportunidade de aprender.
Ele murmurou sentida prece e Arlete notou que uma brisa suave, delicada, a envolvia. Sentiu grande bem-estar e o leve perfume de tia Amélia. Ela estava
por perto. Emocionada, mandou-lhe pensamentos de amor e saudade, desejando que estivesse feliz.
Quando saíram, esperaram por Flávio, que apareceu meia hora depois, entusiasmado, conversando com Diva, que ficara na mesma sala que ele, sentada entre
as pessoas da platéia.
Assim que os viu, Flávio não se conteve:
- Eu não esperava, mas o Dr. Celso me colocou ao redor da mesa, deu-me o texto de um livro para ler e depois convidou-me para falar.
- Vocês precisavam ver como ele falou bem! Foi lindo! Depois, só disse verdades, coisas que eu nunca tinha pensado, mas que são assim mesmo!- ajuntou
Diva.
- Seu Ramiro disse que você ia trabalhar com o Dr. Celso, esclarecer pessoas, lembra-se? - perguntou Arlete.
- É mesmo! Mas eu não contei isso ao Dr. Celso!
- Nem precisava - tornou Walter. - Isso estava programado com os espíritos. Quando é assim, dá tudo certo. Você nem precisa procurar que as coisas acontecem
naturalmente.
Arlete por sua vez contou-lhes o que acontecera na sala de tratamento e as recomendações que foram feitas.
- Marcos precisa vir. Temos que conversar com ele - disse Walter.
- Não sei se ele concordará - respondeu Flávio. - Não sei o que ele pensa do assunto.
- Mendes, que dirige o tratamento, trabalha com um mentor muito eficiente e discreto. Pelo que tenho visto, quando ele fala, é melhor atender. Se eu fosse
você, amanhã mesmo falava com ele.
- Vou fazer isso.
Eles saíram conversando animadamente e foram a um restaurante onde continuaram o assunto com entusiasmo. Ao sair, Arlete comprou um saco de bombons, escreveu
um bilhete carinhoso e pediu:
- Antes de ir para casa quero ver Sérgio.
- Ele pode estar dormindo! - disse Flávio.
- Tenho certeza de que não está.
- Vamos lá - interveio Walter com um sorriso. - Tenho que ir até lá para apanhar meu carro, e as levarei em casa.
Arlete sorriu contente. No caminho de volta, continuaram comentando o que haviam presenciado naquela noite. Flávio discorreu com entusiasmo sobre o tema
que abordara, ouvindo atentamente as opiniões dos demais.
Em casa de Flávio, Arlete conversou com Sérgio, contando tudo e fazendo-lhe as recomendações que foram pedidas. Passava de uma hora quando se despediram
e Walter as levou para casa.

Capítulo 21





N
a manhã seguinte, Flávio combinou de encontrar-se com Marcos em um restaurante discreto para almoçar. Pretendia conversar sobre os assuntos da véspera.
Sentados em lugar tranqüilo, em meio ao almoço Flávio começou:
- Tenho um recado para você, mas antes devo dar-lhe algumas explicações.
Marcos olhou-o curioso:
- Do que se trata? Tem a ver com o caso de Flora?
- Tem. Antes preciso saber se você acredita em espíritos.
- Espíritos? Como assim? Almas do outro mundo?
- É. Pessoas que morreram e continuam vivendo em outros mundos.
- Não sei. Nunca dei muita atenção a essas coisas... Se quer saber, acho que quem morre não volta mais. Acaba.
- Eu também nunca havia pensado seriamente nessa possibilidade. Mas depois do que nos aconteceu, passei a acreditar.
Marcos olhou-o admirado.
- Você?! Um homem de negócios, moderno, arejado. É surpreendente!
- Nunca falamos sobre este assunto, mas eu sempre gostei de estudar a vida, de descobrir como ela funciona, tenho minhas dúvidas e minhas idéias sobre
o universo. Tenho motivos para pensar que quem morre continua vivendo em outro lugar.
- Não sei, não. É difícil acreditar.
- Muitos cientistas famosos estudaram certos fenômenos e afirmaram que a vida continua depois da morte.
- Nunca ouvi falar nisso. Ao contrário, têm aparecido muitos charlatães que exploram a credulidade pública em proveito próprio.
Alguns deles estão na cadeia.
- Não nego que existam os aproveitadores. Aliás, não é só nessa área que eles estão. Você os encontra em qualquer lugar. Mas isso não impede que exista
o outro lado. As pessoas sérias, os fenômenos verdadeiros e principalmente os fatos que os têm demonstrado.
- Pode ser. Mas esse terreno é perigoso. Essa história de fantasmas soa como algo duvidoso. Mexer com essas coisas pode acabar mal.
Flávio olhou-o pensativo. Marcos estava sendo preconceituoso. Mas ainda assim continuou:
- Vou contar-lhe o que nos aconteceu.
Em poucas palavras colocou-o a par de tudo quanto lhes acontecera no Centro e também como Sérgio fora socorrido pelo seu Ramiro. Concluiu:
- Bem, estou-lhe contando isso porque ontem eles falaram a seu respeito e pediram-lhe para ir até lá. Desejam protegê-lo.
- A mim?
- Dizem que Flora está se envolvendo com espíritos perturbadores. Acham que seria melhor ir e ficar protegido.
Marcos riu bem-disposto.
- Obrigado pelo aviso, mas estou muito bem. Já trabalhei em casos piores, mandei prender macumbeiros, assassinos, fui ameaçado de todas as formas e nunca
me aconteceu nada.
Flávio tentou contornar, voltar ao assunto, mas Marcos estava resistente e disposto a não ir ao Centro. No fim da tarde, Flávio telefonou a Walter contando-lhe
o que acontecera.
- Ele não acredita e não quer ir. Contei tudo o que nos aconteceu, mas ele não aceitou mesmo. Diante disso, calei. Seria desagradável insistir mais.
- Vamos pedir ajuda a distância. É só o que podemos fazer.
- Ele parecia tão seguro! Pode ser que nada lhe aconteça mesmo.
- É. Pensamento positivo ajuda.
- Se não tiver compromisso à noite, venha jantar conosco em casa.
- Se puder, irei.
À noite, após o jantar, Marcos ligou para Flávio.
- Podemos conversar agora? Não tem ninguém aí que possa ouvir?
- Não. Pode falar.
- Os advogados de sua empresa costumam jantar com seus clientes?
- Não. Por que pergunta?
- Como eu lhe disse, coloquei dois vigias seguindo Flora. Hoje eles trouxeram o relatório e há coisas muito interessantes. Ela tem jantado com alguns
dos clientes de sua empresa.
- Flora é mulher bonita e interessada em arranjar um marido rico. Pode ser que ela esteja namorando.
- Não é isso, não. Dois deles são velhos, têm família, e pela atitude deles estavam tratando de negócios.
- De negócios? Hum! Isso é suspeito. Nossos advogados atendem aos clientes na empresa. Salvo algumas exceções, quando vão à empresa deles. Por que iriam
jantar para tratar de negócios? A não ser que...
- Que se trate de negócios particulares, por baixo do pano.
- Estou intrigado.
- Precisa ser cauteloso. Não assine nada sem ler muito bem. Essa mulher é perigosa.
- O caixa da empresa está em ordem. Se ela está tramando, ainda não deu o golpe.
- Pode estar recebendo propinas, fazendo chantagem. Tenho visto coisas de arrepiar.
- Precisamos dar um jeito nela logo. Só ficaremos sossegados quando ela estiver fora da empresa e tudo esclarecido.
- Ah! ia-me esquecendo. Ela tem parentes na periferia?
- Como assim?
- Gente miserável, que mora em um lugar muito perigoso.
- Não sei. Os pais dela moram em um bairro de classe média, têm boa casa. Por quê?
- Porque no começo da semana, pela manhã, ela foi até lá e ficou mais de duas horas.
Depois de conhecer os nomes dos clientes e de dizer que iria adotar algumas precauções, Flávio desligou o telefone e ficou pensativo. Foi para sala onde
Walter, Diva, Arlete e Sérgio conversavam animadamente.
- Tenho novidades! - foi dizendo logo. Vendo que todos se voltaram para ele esperando, prosseguiu: - Flora está sendo seguida por um detetive que trabalha
para Marcos e ela tem saído com alguns clientes nossos para jantar. Ele disse que não era namoro, que estavam tratando de negócios.
- Negócios? Fora da empresa? - estranhou Arlete.
- Sim. Marcos me deu os nomes. Foram quatro ao todo. Isso em uma semana.
- Se eu fosse você, amanhã checava tudo o que se refere a eles dentro da empresa - tornou Sérgio. - Conheço todos eles e sei que têm vários contratos
que se renovam periodicamente.
- É o que pretendo fazer amanhã mesmo.Tem mais. Ela tem ido a uma casa na periferia. Um lugar de aspecto suspeito e miserável. Marcos queria saber se
ela teria parentes lá.
- Não creio. Pelo que sei dela, se tivesse parentes pobres em tal lugar, nunca os procuraria. Flora detesta pobreza! - esclareceu Sérgio.
Walter, que ouvira calado, levantou-se dizendo:
- Já sei! Vai ver que é a casa da tal macumbeira que ela freqüenta. Apesar de viverem explorando as pessoas, vivem em locais miseráveis e raramente sobem
na vida. Ele lhe deu o endereço?
- Não, mas posso pedir. Talvez você esteja certo.
- O detetive, ou mesmo algum de nós, poderá ir lá como quem deseja fazer uma consulta e ver se é verdade. De qualquer forma, darei esse endereço ao Centro
depois de amanhã, quando eu for lá.
- Marcos não disse quando pretenda armar a cilada para Flora? - indagou Sérgio.
- Garantiu que não vai demorar. Pedi-lhe que se apressasse. Fiquei preocupado. Ela pode estar fazendo negócios escusos em nome da empresa.
- Quando se trata de atingir seus objetivos, ela não tem limites. Fará qualquer coisa - tornou Sérgio.
Assim que chegou ao escritório na manhã seguinte, Flávio dirigiu-se ao departamento jurídico. Flora vendo-o levantou-se imediatamente, sorrindo com satisfação.
- Que prazer vê-lo logo cedo! Você nunca vem aqui. Algum motivo especial?
Ele tentou despistar.
- Estou pensando em reformar as instalações. Vim dar uma olhada antes de o encarregado chegar.
- Ah! Posso ajudar em alguma coisa?
- Por ora não. Pretendo ampliar este setor. Colocar mais um ou dois funcionários.
- Acha preciso? Nosso serviço está rigorosamente em dia.
- Não se trata disso. Desejo ampliar algumas atividades. O trabalho deste setor vai aumentar.
- A empresa está progredindo. Também, com sua direção!
Ele ignorou a lisonja, andou pelas salas olhando tudo, parando de quando em quando. Depois saiu. Voltaria quando ela não estivesse. Teria que fazer tudo
pessoalmente. Não podia correr o risco de ela desconfiar.
No fim da tarde Flávio saiu no horário costumeiro e voltou uma hora depois. Dirigiu-se ao departamento jurídico e procurou no arquivo as pastas dos clientes
cujos nomes anotara. Levou-as à sua sala e fechou a porta à chave. Não queria que os vigias ou as faxineiras vissem o que ele estava fazendo. Sentou-se, apanhou
uma pasta e começou a folheá-la, lendo tudo. Não encontrou nada suspeito. Mesmo assim, leu as outras três. Tudo parecia estar em ordem.
Lembrou-se de Renato, seu assessor. Era ele quem negociava os contratos e os trazia para que Flávio aprovasse. Só depois é que os dados iam para o departamento
jurídico a fim de que a minuta fosse elaborada. Renato era muito organizado e extremamente meticuloso. Costumava guardar cópia de todos os dados dos negócios que
fazia. Muitas vezes Flávio tentara convencê-lo a deixar de fazer isso, mas ele alegava:
- Prefiro ter meu controle em mãos.
- Você pode pedir os contratos e examiná-los sempre que precisar.
- Não. Eu prefiro fazer do meu jeito. Não sei trabalhar de outra forma.
Flávio levantou-se e foi até a sala ao lado e procurou o armário onde Renato tinha seu arquivo. Estava trancado. Ele não queria esperar pelo dia seguinte
para que ele o abrisse. Precisava colocar as pastas de volta.
Voltou à sua sala e apanhou algumas chaves de arquivos que ele guardara. Lembrava-se de que Renato lhe entregara algumas chaves para o caso de Flávio
precisar. Experimentou uma a uma e finalmente conseguiu abrir.
Começou a pesquisar. Renato conservava tudo na mais perfeita ordem e foi-lhe fácil localizar o que queria. Ao examinar os documentos e compará-los, logo
encontrou algumas diferenças. Os números que estavam no contrato eram diferentes dos que haviam sido combinados. Refazendo os cálculos, o cliente levava enorme vantagem
em prejuízo da empresa. Ele nunca teria aprovado uma porcentagem como aquela!
Então era isso! O contrato havia sido adulterado depois de assinado! Era isso que Flora estava fazendo. Mas como ela fazia isso se não havia nenhuma rasura?
Ter-se-ia enganado? Aquele contrato teria sido feito errado mesmo?
Continuou examinando e descobriu que em todos os contratos dos clientes cujos nomes estavam em sua lista acontecia a mesma coisa. Talvez ela rebatesse
os contratos e ele os houvesse assinado junto com outros documentos. Como Renato sempre conferia tudo, Flávio, que já havia lido a minuta, assinava sem ler.
Só podia ser isso. Flora os rebatia depois de assinados e sem passá-los por Renato colocava-os junto com outros documentos de rotina para serem assinados.
Flávio passou a mão pelos cabelos, pensativo. Se não houvesse sido alertado talvez nunca viesse a descobrir a fraude. Do jeito que ela dispusera tudo,
ficava impossível provar alguma coisa. O contrato estava sem rasuras e sua assinatura e a do cliente, com firmas reconhecidas, estavam nos devidos lugares. Mesmo
tendo em mãos os dados de Renato, seria difícil provar alguma coisa contra ela.
Foi forçado a reconhecer que ela era mesmo muito hábil e perigosa. Eles estavam tratando com uma vigarista da pior espécie. Ele não hesitaria em entregá-la
à polícia. Mais do que nunca precisava da confissão dela quanto ao desfalque.
Passava da meia-noite quando Flávio, tendo anotado alguns dados e colocado as pastas nos devidos lugares, deixou o escritório. Chegando em casa procurou
por Sérgio colocando-o a par do que descobrira.
- Ela adultera os contrato depois de assinado. Eu assino de novo e ela os leva aos clientes, que lêem, assinam e a gratificam.
- Bem que Marcos avisou para que não assinasse nada sem ler e conferir.
- Ele estava certo. Mas mesmo que eu lesse, seria difícil lembrar-me dos detalhes da transação.
- Ela contou com isso. Sabe que depois de haver discutido condições, às vezes exaustivamente, haver lido a minuta, nenhum executivo vai ler tudo de novo
antes de assinar. Geralmente confia em seus assessores e assina sem ler.
- E nessa eu estava dando prejuízo à empresa!
- É verdade. Você não podia saber.
- Amanhã mesmo falarei com Marcos. Ele precisa cuidar disso o quanto antes. Só vimos esses quatro nomes. Sabe Deus desde quando ela vem fazendo isso.
Pretendo fazer uma auditoria no departamento jurídico e conferir tudo. Meu tio vai ficar desolado.
- Vocês terão que resolver o que fazer com esses contratos. Eles estão regularmente assinados e vigentes. Se os cancelar terão que pagar as multas contratuais,
que são vultosas.
- É verdade. Mas não podemos continuar arcando com os prejuízos. Eles também são grandes.
- O pior é que mesmo sabendo o que ela está fazendo, teremos que esperar as providências de Marcos. Será difícil provar na Justiça que foi ela quem adulterou
esses contratos e o fez de má-fé.
- Renato pode testemunhar.
- É, mas eu assinei! Isso vai pesar.
- O que vai fazer então?
- Bom, amanhã cedo falarei com tio Anselmo. Saber sua opinião. Estou desolado. A responsabilidade é minha! Eu assinei.
- Você foi enganado.
- Seja como for, eu estou à testa dos negócios e isso nunca poderia ter acontecido.
- Mas aconteceu. Graças à perspicácia de Marcos, você descobriu. Já pensou se ela continuasse por mais tempo?
- Nem quero pensar. Não descansarei enquanto não desmascarar essa mulher. Ela é muito perigosa. Marcos tem que conseguir as provas de que precisamos.
Ela tem que ser responsabilizada pelo que tem feito.
- Ele vai conseguir. Deus vai nos ajudar.
- Tem razão. Precisamos mais do que nunca da ajuda espiritual.
Na manhã seguinte, ao acordar, Flávio ligou para Marcos colocando-o a par do que havia descoberto.
- Isso não me surpreende - comentou ele. - Eu sabia que ela deveria estar aprontando. Agora só nos resta fechar o cerco para que ela não tenha nenhuma
possibilidade de escapar.
- Minha esperança é que você consiga uma confissão. Não tenho nenhuma prova que possa incriminá-la na Justiça. Isso tem me preocupado.
- Está na hora de aumentar a pressão. Quero que ela fique desesperada.
- Como vai fazer isso?
- Vou telefonar, mostrar que estou a par de tudo quanto ela anda fazendo. Quando ela estiver pronta, faremos a cilada.
- Gostaria que fosse o mais rápido possível. Não me sinto seguro com essa mulher agindo dentro da nossa empresa.
- Posso entender. Mas não podemos facilitar.Temos que ser mais espertos do que ela. Penso que dentro de mais dois ou três dias resolveremos tudo.
- Faço votos. Hoje mesmo vou conversar com tio Anselmo. Ele precisa saber o que está acontecendo.
- Faça isso, mas não o deixe tomar nenhuma medida. Ele pode estragar nosso plano.
- Fique tranqüilo. Tenho a certeza de que ele também vai querer dar uma lição nessa mulher.
- Um agente meu hoje vai ao endereço da periferia. Vamos ver o que ele descobre.
- Assim que souber o resultado, avise-me.
Flávio saiu diretamente para a casa do tio, colocando-o a par de tudo. O primeiro impulso de Anselmo foi despedir Flora imediatamente. Flávio convenceu-o
a esperar.
- Estou desolado, tio. A responsabilidade é minha! Estou disposto a assumir o prejuízo. Vamos fazer a auditoria, descobrir o montante e eu pagarei. Não
posso permitir que a empresa seja prejudicada.
Anselmo colocou a mão no ombro do sobrinho dizendo-lhe com voz firme:
- Você não teve culpa. Ela nos enganou, abusou da nossa boa-fé. É ela quem precisa ser responsabilizada, não você. E isso nós faremos.
- Marcos garante que será por poucos dias. Vai combinar tudo com o delegado para armarem a cilada.
- Vamos esperar. Felizmente temos funcionários honestos e bons. Isso nos conforta.
- Tem razão.
Flávio foi para o escritório e aguardou durante o dia inteiro que Marcos ligasse. Contudo só à noite, quando já estava em casa, foi que ele telefonou:
- Esperei seu telefonema durante o dia inteiro - disse Flávio.
- Infelizmente houve um contratempo e não pude ligar.
- O que foi?
- Sofri um acidente de carro. Escapei por um triz. Meu carro ficou imprestável. Acho que vai dar perda total. Flávio assustou-se:
- E você, se machucou?
- Nem um arranhão. A polícia diz que foi um verdadeiro milagre. Que eu vivi de novo.
- Sinto muito. Posso fazer alguma coisa?
- Obrigado, mas não há nada a fazer. Felizmente o carro tinha seguro. Mas isso me atrapalhou, porque só consegui me liberar agora à noite. Meu pai ficou
muito assustado, não acreditou que eu estivesse bem, só me deu paz depois de ter me levado ao hospital e fazer-me passar por vários exames.
- Fez bem.
- Só agora, ao chegar em casa, meu pai concordou em me dar o relatório do nosso agente. Você acertou. Aquele endereço é a casa de um macumbeiro da pior
espécie. Vou mandar a polícia dar um susto nele. Garanto que ele vai ficar um bom tempo sem fazer suas bruxarias.
Flávio hesitou um pouco, depois disse:
- Nós fomos avisados pelos espíritos que você estava correndo perigo. Eles disseram que iam tentar protegê-lo mesmo a distancia. Você pode não acreditar,
mas eu penso que foi graças a essa proteção que nada lhe aconteceu.
Marcos ficou silencioso por alguns segundos. Depois disse:
- Não sei se foi isso, mas pode estar certo que cada vez que me recordo daquele caminhão perdendo a direção e vindo em cima de mim, sinto um frio de medo!...
Nunca mais esquecerei aquele momento. Pensei haver chegado meu último instante. Foi horrível. Seja quem for o anjo bom que me salvou, sou-lhe muito grato.
- Nesse caso não se esqueça hoje, ao deitar, de fazer uma prece de agradecimento. É o mínimo que pode fazer!
- Pode ter certeza de que farei de coração. Por causa do que aconteceu não pude falar com a Flora. Mas amanhã sem falta tratarei do assunto. Diga a seu
tio que pode deixar comigo. Já tenho tudo esquematizado na cabeça. Ela não vai escapar.
Quando Flávio desligou o telefone, ficou pensativo. Sérgio, vendo-o, perguntou:
- Você ficou preocupado. Aconteceu alguma coisa? Flávio contou-lhe o que havia acontecido, ao que Sérgio comentou:
- Não tenho nenhuma dúvida de que esse acidente foi provocado por algum espírito maldoso.
- Vou ligar para Walter.
Walter atendeu o telefone, ouviu o que Flávio contou e comentou:
- Fomos avisados.
- Ele não acreditou. Acha que se ele houvesse dado crédito e ido ao Centro não teria acontecido?
- Não sei. A incredulidade muitas vezes fecha a porta, evita que a pessoa seja vulnerável. Se ele houvesse ficado impressionado poderia ter sido pior.
Ele foi protegido de alguma forma, porque seu espírito não tinha necessidade de passar pela experiência de ser ferido, ou morrer nesse acidente. Não era o destino
dele. Por isso pôde ser salvo.
- Mas e o carro? Se o protegeram, não poderiam ter evitado o acidente?
- Se pudessem, tê-lo-iam feito. Você se esquece de que, para atingir Marcos, esses espíritos e seus médiuns encarnados juntaram energias, programando-as
para chegarem a seus objetivos. Embora não possamos vê-las, elas são como uma bomba astral que vai explodir de qualquer forma. Eles preferiram que explodisse no
carro, e não no Marcos. Foi isso. Há momentos em que a única forma de evitar que as energias atinjam pessoas é desviá-las para seres menores, ou objetos em volta.
- Seres menores? - estranhou Flávio.
- Animais domésticos. Já vi casos em que eles são fulminados por energias endereçadas aos seus donos.
- É incrível!
- É da natureza. O mundo energético é mais atuante até do que o mundo material. Tem mais penetração. Com o pensamento e a vontade você manipula energias
e as direciona. Estamos fazendo isso constantemente sem nos darmos conta. É por isso que quem vive queixando-se e só olha o lado ruim das coisas acaba atraindo para
sua vida somente coisas ruins. É que ele está manipulando energias negativas o tempo todo, e elas ficam a seu lado envolvendo tudo quanto ele fizer.
- É fascinante.
- É, mas mostra que ninguém é vítima a não ser de si mesmo. Que cada um vive no mundo que criou.
- Vou pensar nisso. Gostaria de saber mais. Como poderei fazer isso?
- Vivendo, experimentando, observando. Não há outro jeito. Eu venho fazendo isso há algum tempo e posso afirmar que encontrei a chave para muitas dúvidas.
- É estranho que só agora eu tenha começado a tomar conhecimento desses fatos. Você nunca abordava esse assunto comigo.
- Eu respeito a maneira de pensar de cada um. Não adianta falar com quem ainda não está maduro para compreender.
- Sempre gostei de entender como a vida funciona.
- Mas não sabia nada sobre a vida espiritual. Eu tinha observado que você não levava a mediunidade a sério.
- Estava mal informado. Nunca havia tido nenhuma experiência verdadeira. Você vai concordar que há muitos aventureiros neste mundo aproveitando-se da
credulidade pública.
- Seja como for, quando está na hora, a vida se encarrega de mostrar o que a pessoa precisa saber. Nunca tive a pretensão de querer convencer ninguém.
A verdade é bastante forte por si mesma.
- Está certo. Em todo caso, amanhã quando formos ao Centro vamos agradecer a ajuda dada ao Marcos e pedir-lhes que continuem a nos ajudar. O caso ainda
não está resolvido.
Continuaram conversando por mais alguns minutos, combinando o encontro para a noite seguinte.

Capítulo 22





F
lora atendeu o telefone e empalideceu:
- Eu lhe disse para não ligar aqui! - tornou irritada.
Ele pareceu não ouvir e respondeu:
- Sua hora está chegando! Dei um tempo para você juntar o dinheiro.
- Eu vivo do meu trabalho. Não tenho dinheiro.
- Não minta para mim. Estou sabendo de tudo. Você tem passado a mão no dinheiro do seu patrão.
- Não posso falar agora. Ligue para minha casa à noite e conversaremos.
- Quem dá as ordens sou eu e você vai obedecer. Telefono quando e onde quiser. Tenho certeza de que Arlete vai me dar mais atenção.
- Aqui é muito perigoso, você não entende? Quer pôr tudo a perder? Se quer dinheiro tem que respeitar meu trabalho. Se ligar para minha casa à noite,
conversaremos melhor.
- Farei isso. Pode esperar.
Flora desligou o telefone. Felizmente estava sozinha na sala. Se aquele idiota abrisse a boca para algum funcionário, ela estaria perdida. Eles eram invejosos
e estavam sempre querendo derrubá-la.
Quando caiu para almoçar foi direto à casa de José. Fizera tudo quanto ele pedira. Dera-lhe o dinheiro, fora à noite com ele e mais alguns dos seus ajudantes
à periferia, haviam entrado no mato, levado oferendas, velas, vários objetos, cumprira todo o ritual que ele lhe mandara fazer. Ele lhe prometera que aquele homem
não mais a incomodaria. Fora enganada.
Quando se viu sentada na frente dele afirmou:
- Aquele seu trabalho não valeu nada. O homenzinho tornou a me telefonar. Ligou para o escritório. Você prometeu que ele não ia mais incomodar-me.
José olhou-a sério e respondeu:
- O trabalho foi bem-feito. Só se ele tem parte com o diabo. Meu guia garantiu que faria a entrega e ele não mente. Fez com toda certeza.
- Então como é que ele me ligou?
- Garanto que alguma coisa aconteceu a ele. Ele escapou, teve proteção, mas tenho certeza de que alguma coisa aconteceu.
- Não posso confiar em você. Deveria pedir meu dinheiro de volta!
Nos olhos de José havia um brilho rancoroso quando respondeu:
- Se não está contente pode ir embora. Está ofendendo meus guias e eles podem se voltar contra você. Se provocar a ira deles, não poderei fazer nada.
Flora engoliu a raiva. Depois do que vira naquela noite, não se atrevia a desafiá-los. Tentou contemporizar:
- Não quero ofender ninguém. Estou muito assustada. Se descobrirem tudo, estou acabada. Por favor, não me deixe sem ajuda.
- Você não entende nada. Acha que podemos tudo. Temos poderes, meus guias são de força, mas há outros elementos que podem intervir. As coisas não acontecem
como queremos. Mas você me chamou de desonesto e isso eu não sou. Peguei seu dinheiro, gastei com o material, e fiz todo o trabalho. Acho justo cobrar pela minha
parte. Não tenho obrigação de resolver todos seus problemas. Você arrumou encrenca, me pagou e eu estou tentando ajudar. Se as coisas não saírem como você quer,
não é minha culpa.
- Não se zangue. Não disse por mal. Vim aqui porque quero saber se ele vai me deixar em paz.
José ficou alguns segundos pensativo, depois disse:
- Se tem dinheiro é melhor pagar. Mas cuidado, vejo perigo. Tem alguém no seu escritório que está desconfiado de você?
- Acho que não. Lá ninguém sabe de nada.
- Vejo alguém remexendo em alguns papéis, procurando alguma coisa. Tem a ver com o que você faz. Quem poderia ser?
Flora olhou-o surpreendida:
- Não sei.
- Estes dias não notou nada diferente?
- Não. Tudo continua como sempre.
- Preste atenção. Se acontecer alguma coisa diferente, me avise.
- Está bem. Mas o que farei se ele me ligar de novo?
- Converse, ganhe tempo, negocie.
- Se ao menos você me garantisse que ele vai desaparecer. José sorriu pondo à mostra seus dentes amarelos e disse:
- Não dá para garantir nada. Se quer mesmo se livrar dele, por que não contrata alguém que dê cabo dele de uma vez?
Flora não pestanejou:
- Se eu soubesse quem é e onde mora, eu mesma faria o serviço.
Quando saiu de lá, Flora sentia-se angustiada. As palavras de José não haviam sido animadoras. Voltou ao escritório e gastou o resto da tarde verificando
se haviam mexido em alguma coisa. Não encontrou nada.
Foi para casa pensando como resolver a situação. Se ao menos o homem marcasse um encontro onde ela pudesse vê-lo! Mas ele parecia uma sombra. Sabia de
coisas que ela nunca contara a ninguém. Como descobrira? Teria alguns dos clientes dado com a língua nos dentes? Não. Isso não. Eles não haveriam de querer incriminar-se.
Por mais que tentasse, não conseguia entender.
Em casa, ficou aguardando o telefonema, mas ele não ligou. Por que não resolvia tudo de uma vez? Deitou-se e custou a dormir. O dia estava amanhecendo
quando finalmente pegou no sono.
Acordou com a campainha do telefone.
- Alô! - atendeu meio dormindo.
- Bom dia, Flora! Não pude ligar ontem à noite. Só cheguei em casa agora.
- O que quer? - indagou ela já bem acordada.
- Perguntar se você já tem o dinheiro.
- Quanto você quer?
- Cem mil dólares.
Ela deu um grito de susto.
- Ficou louco? Eu não tenho tanto dinheiro, muito menos em dólares.
- Então nada feito. Arlete me dará com certeza.
- Vamos negociar, posso dar um quarto disso em cruzeiros.
- Quero tudo e em dólares. Reservei uma passagem e pretendo viajar assim que receber o dinheiro. Você vai ficar livre de mim.
- Não tenho tanto dinheiro. Vou ver o que posso arranjar.
- Você tem, sim. Tirou da empresa.
- Não tanto dinheiro.
- Pretendo viver bem lá fora. Se não puder arranjar, tentarei do outro lado.
- Não faça isso. Estou interessada. Dê-me algum tempo! Tentarei arranjar.
- Não posso esperar. Tem até depois de amanhã. Quando ele desligou, Flora deixou-se cair em uma poltrona assustada. Tanto trabalho para conseguir dinheiro
e agora tinha de dá-lo todo a esse chantagista. Não sabia se teria toda essa quantia. Teria que verificar. Não tinha outra alternativa. Por outro lado, ele parecia
interessado em sair do país, o que era muito bom.
Apesar de quase não ter dormido, ela não se deitou de novo. Sabia que seria inútil, com tal preocupação não conseguiria descansar. Tomou um banho e bebeu
um café. Afinal, se tudo desse certo, ela se livraria daquele traste e poderia arranjar mais dinheiro. Sentiu-se mais animada. Ela ainda não estava derrotada.
Arlete aproximou-se de Diva, que lia o jornal com atenção.
- Vamos sair um pouco? A tarde está quente. Podemos pegar uma matinê e tomar sorvete na confeitaria.
- Vamos - respondeu ela sem desviar os olhos do jornal.
- Você está lendo anúncios? O que está procurando?
- Um emprego.
- Emprego? Não precisa procurar. Eu estou precisando de uma dama de companhia. Está contratada.
Diva sorriu:
- Você não vale, é da família. Nestes dias em que estou aqui tenho pensado muito. Adoro minha família, minha casa no interior, mas a cidade me fascina.
Tantas coisas para aprender, uma visão mais larga do mundo, da vida, das coisas. Não desejo ver a vida passar sem fazer nada. Quero viver! Participar.
- Está falando sério?
- Estou. Se conseguir um emprego, alugo quarto, vou para um pensionato de moças, mas fico em São Paulo de uma vez.
- Se quer trabalhar, é um direito seu, mas não me ofenda procurando outro lugar para morar. Esta casa é grande e dá para todos nós.
- Já lhe disse. Vocês vão se casar, precisam de privacidade. Por outro lado, quero ficar no meu canto, sem pensar que os estou incomodando.
- Compreendo como se sente. Mas há o apartamento de fora, completamente independente. Você pode ocupá-lo.
- Não sei se Sérgio concordaria.
- Claro que vai concordar. Ficará feliz em tê-la por perto.
- Vamos ver. Primeiro tenho que encontrar um emprego. Só ficarei se puder custear minhas despesas.
- Que tipo de emprego está procurando?
- Não sei ainda. Só fiz o curso primário. Sei que no começo será difícil e terei que me sujeitar ao que encontrar. Mas vou estudar à noite e melhorar.
Sem experiência ou formação profissional seria difícil arranjar um emprego que lhe permitisse ganhar o suficiente para sustentar-se. Arlete não quis desanimá-la.
Tentaria com os amigos encontrar alguma coisa para ela. Gostava da sua companhia, queria que ela ficasse morando em São Paulo. Depois, sabia que Sérgio sempre desejara
isso.
De repente, Diva deu um pulo.
- Achei alguma coisa que pode servir.
- O que é?
- Uma oficina de costura.
- Sabe costurar?
- Sei. Aprendi com a comadre de minha mãe. Tiro medidas, faço moldes e tudo.
- Você gosta?
- Adoro! Em casa costuro as roupas da família. Arlete entusiasmou-se:
- Saberia fazer um vestido como este meu? Diva olhou e sorriu:
- É fácil. Copio qualquer modelo. Comprei aquele vestido porque queria ver como eles fazem na cidade. Sabe de uma coisa? Está mal acabado. O corte é elegante,
mas os arremates estão péssimos. Eu faria melhor.
- Tem certeza?
- Tenho.
Arlete sorriu com satisfação e seus olhos brilharam.
- Vamos sair, comprar alguns tecidos. Você poderia costurar alguns vestidos para nós duas?
- Claro. Você tem máquina de costura?
- Não se preocupe. Terá todo material de que precisa. Não estou estragando suas férias? Você gosta mesmo de costurar?
- Adoro. Sinto-me feliz por fazer alguma coisa para você. Veja, acha que devo ver esse emprego?
- Acho que deve pensar melhor. Primeiro deve fazer algumas peças como mostruário. Se nunca trabalhou, como pode mostrar o que sabe fazer?
- É mesmo! Não havia pensado nisso!
- Então. Vai confeccionar algumas peças e mostrar o que sabe. Depois será fácil.
Diva beijou Arlete no rosto com satisfação.
- Você pensa em tudo! Tenho algum dinheiro e vou comprar o que é preciso.
- Vai fazer para mim, portanto eu compro tudo.
- Faço qualquer modelo, mas não sou boa para escolher os figurinos. Não sei bem o que está na moda.
- Eu sei. Sou boa nisso. Vou desenhar os modelos e você faz.
Diva aprovou com alegria e imediatamente foi se arrumar. As duas saíram e na cidade Arlete comprou alguns figurinos.
- É só para começar. Os meus eu vou desenhar.
Compraram todo material e voltaram para casa entusiasmadas. Arlete foi ao apartamento de fora. Era lá que ela colocara os objetos de tia Amélia, entre
os quais havia uma máquina de costura e um manequim. Sua tia tinha uma costureira que vinha costurar para ela em casa.
- Está sem uso há muito tempo. Não sei se funciona.
- Funciona, sim, D. Arlete - disse a empregada.- Tenho cuidado bem dela e costurado as coisas da casa. Sabe como é, sempre há alguma coisa para consertar.
- Ainda bem, Rita. Que bom. Como não sei costurar, não sei mexer nela.
- Eu sei - garantiu Diva. - Deixe comigo. Abriu a máquina, examinando-a:
- Tem até motor! - disse com satisfação. - A minha é de mão. Vou arrumar tudo e depois tirar as suas medidas. Se desenhar logo os modelos, começo hoje
mesmo.
- Isso não. Já são cinco horas. Quero ir mais cedo para a casa de Flávio ficar um pouco com Sérgio. Hoje temos que ir ao Centro.
- A que horas quer sair?
- Às seis.
- Está bem. Estarei pronta.
Em poucos minutos, Diva arrumou o material, quis saber onde havia um ferro de passar, testou a máquina. Arlete a observava admirada. Ela fazia tudo com
precisão.
- Dê uma olhada nos figurinos - pediu. - São lindos. Pode ser que escolha algum modelo, e assim tiro as medidas. Amanhã cedo, começarei a trabalhar.
Arlete apanhou um figurino e começou a folhear. Comprara um tecido de seda estampada e pretendia escolher um modelo simples. Não sabia o que Diva podia
fazer. Encontrou um.
- Sabe fazer este? Ela olhou e respondeu:
- Sei esse, e todos os outros. Já disse, faço qualquer modelo. Não se preocupe. Escolha o que gostar.
Arlete procurou um outro mais clássico.
- Este para a seda estampada.
- Que lindo! Vamos tirar as medidas. Levante-se.
Arlete obedeceu. Ela amarrou um cordão em sua cintura dizendo:
- É para marcar bem.
Em poucos minutos tirou as medidas, anotando-as em um caderno. Depois, apanhou o tecido passando os dedos sobre ele, estudando-o.
- Este não vai encolher. Não precisaremos molhá-lo. Arlete olhava Diva admirada. Costura para ela era algo complicado. Mas Diva parecia muito à vontade.
Em casa de Flávio, depois dos cumprimentos, Sérgio perguntou:
- O que fizeram nesta tarde? Telefonei e vocês haviam saído.
- Sua irmã anda com vontade de trabalhar. Arranjei um jeito de dar-lhe serviço.
- Como assim?
- Ela gosta de costurar. Vai fazer alguns vestidos para nós duas.
- Isso ela sabe fazer bem. Garanto que não vai arrepender-se - respondeu Sérgio.
- Pelo jeito dela lidando com a máquina de costura, tirando minhas medidas, escolhendo o material e os tecidos, acho que entende mesmo.
Sérgio sorriu contente.
- Agora, sim, ela não vai mesmo querer voltar para o interior. Ela adora tudo que se refere a moda.
- Eu também, só que não tenho jeito para fazer nada.
- Ela escolhe os modelos com facilidade. Escolheu um modelo lindo! Já eu, nunca sei o que fazer.
Flávio observava calado. A alegria das moças fazia-o desviar o pensamento das preocupações dos últimos dias.
Quando Walter chegou, comentou discretamente com Flávio:
- O que vocês fizeram com a irmã do Sérgio? Parece que desabrochou! Nunca vi ninguém mudar tanto em tão pouco tempo.
- Atenção e carinho. Arlete gosta muito dela.
- Ela está linda! Desse jeito logo vai aparecer alguém na vida dela. É tão cheia de vida!
- Espero que não. Seria um crime apagar essa alegria!
- Lá vem você com suas idéias. Por que é tão contra o casamento?
- Não sou contra o casamento. É que as mulheres quando se casam logo perdem o viço, apagam a alegria. Já reparou nisso?
Walter sorriu:
- É verdade. Mas com toda essa vivacidade no rosto e esse brilho nos olhos, não vai passar despercebida. Você vai ver.
O criado avisou que Marcos estava chegando e logo depois ele entrou na sala. Todos o cercaram curiosos.
- Alguma novidade? - indagou Flávio.
- Sim. Falei com o Dr. Amadeu e combinamos tudo. Se Flora confirmar que tem o dinheiro, será depois de amanhã. Vou marcar um encontro com ela em um quarto
de hotel. O local vai ser preparado pela polícia com microfones escondidos e toda nossa conversa será gravada. O próprio delegado vai ficar no quarto ao lado com
mais dois policiais e um fotógrafo. Quando ela for dar o dinheiro, no momento certo, darei a senha combinada e eles entrarão para o flagrante. Dessa forma ela será
presa e não haverá como negar. Então tudo estará resolvido.
Sérgio suspirou um pouco angustiado.
- Não vejo a hora de que esse caso acabe, mas ao mesmo tempo incomoda-me ter que participar de tudo isso.
- Posso entender - concordou Marcos. - Mas do jeito em que as coisas estão, esse será o único meio de provar sua inocência.
Arlete apertou a mão de Sérgio com força dizendo:
- Estou sentindo a mesma coisa. Mas precisamos convir que Flora não pode continuar prejudicando as pessoas como tem feito. Ela precisa ser detida.
- Ainda bem que dentro de dois dias tudo estará resolvido - disse Flávio. - Eu também não vejo a hora de acabar com esse caso desagradável.
Marcos foi embora e eles se despediram de Sérgio para irem à reunião do Centro.
- Você poderia ficar comigo! - reclamou ele dirigindo-se à Arlete.
- Tenha paciência. Logo você poderá ir conosco. Teremos todo o tempo do mundo. Não nos separaremos nunca mais.
Quando eles saíram, Sérgio sentou-se no sofá, pensativo. Por que fora envolvido nesse caso tão desagradável? Para destruí-lo, Flora havia recorrido à
macumba. Mas Seu Ramiro dissera que nem sempre a macumba "pega". Por que com ele havia "pegado"? Flávio costumava dizer que são as atitudes da pessoa que determinam
os fatos de sua vida. Que atitudes ele tivera para atrair toda essa confusão?
Reconheceu que desde que tinha terminado seu namoro com Flora não tivera para ela pensamentos bons. Mas como negar que ela era interesseira e maldosa?
Como pensar bem de uma pessoa tão falsa e perigosa?
Seu Ramiro lhe sugerira que pensasse em tudo quanto lhe havia acontecido para descobrir onde estava a causa verdadeira. Isto é, que tipo de crença baixava
seu padrão mental a ponto de torná-lo alvo da maldade dos outros. Afirmara que enquanto ele não modificasse a atitude que o estava deixando vulnerável, outras coisas
ruins poderiam voltar a acontecer.
Por mais que tentasse, Sérgio não conseguia descobrir qual era essa causa. Isso fazia-o sentir-se inseguro quanto ao desenrolar dos fatos. Nesses momentos
sentia-se deprimido. Ele era um moço pobre, ambicioso, que sonhara enriquecer, mas que não tinha capacidade para isso. Amava Arlete sinceramente. Seria justo casar-se
com ela mesmo não tendo nada a oferecer? Não estaria sendo egoísta pensando só em sua felicidade, esquecendo a distância social que os separava? Não seria esse o
motivo pelo qual a vida o castigara? Se ele continuasse com ela, não poderiam acontecer coisas piores?
Angustiado, Sérgio andava de um lado a outro. Não queria que Arlete sofresse. Ela merecia ser feliz. Quando tudo se esclarecesse, talvez fosse melhor
ele ir embora. Ela merecia alguém melhor.
Deixou-se cair no sofá novamente, e enfiando a cabeça entre as mãos não conseguiu conter o pranto. Não viu que duas sombras escuras o abraçavam sussurrando
palavras em seus ouvidos. Se pudesse ver, saberia que aqueles pensamentos estavam sendo sugeridos e não os teria agasalhado. Pensando que eram seus, ele deu força
a que eles se instalassem dentro dele.
No Centro, sentada na sala onde faziam orações, Arlete e Diva, em meio a outras pessoas, ouviam com atenção as palavras do mentor espiritual. Em certo
momento o médium aproximou-se de Arlete dizendo:
- O rapaz em casa está sendo envolvido por entidades perturbadoras e não percebe porque elas estão explorando as fraquezas que ele tem.
- Ele quer vir aqui - explicou Arlete. - Mas ainda não pode sair de casa. Assim que for possível, ele virá.
- Vamos tentar ajudá-lo. Diga-lhe que são os pensamentos negativos que ele cultiva que atraem as coisas ruins na vida dele. Se quer ser feliz, precisa
dar importância ao bem e esquecer o mal. Acreditar no mal é tornar-se vulnerável aos ataques das trevas.
- Ele é um moço bom, não pensa no mal - disse Arlete admirada.
- Dê-lhe meu recado e se puder use as mesmas palavras. Ele vai entender.
- Está bem.
Quando saíram, Arlete comentou com Walter e Flávio as palavras do mentor espiritual.
- Ele disse que Sérgio está sendo assediado por espíritos perturbadores - esclareceu Diva, preocupada.
- Prometeram ajudar - continuou Arlete.
- Com certeza já foram atendê-lo - disse Walter.
- Não entendi o recado. Sérgio é bom e nunca o vi falando mal de ninguém.
- O mal não se limita a atingir os outros. Vai além. Todas as vezes que você nega o bem, quando se deprime, julga-se incapaz, sente medo, dramatiza tragédias,
está dando forças ao mal.
- Nesse caso, poucas pessoas estão vivendo no bem - considerou Arlete, pensativa.
- É por isso que há tanto sofrimento no mundo - comentou Flávio.- Suas palavras me deram a chave que procurava há tanto tempo. Claro. Cultivando pensamentos
ruins você alimenta o mal. Um estado negativo, depressivo, ainda que não atinja os outros, que fique apenas dentro de você, é o bastante para atrair o mal em sua
vida. A nossa sociedade, nossos costumes são extremamente negativos. A pretexto de prevenir, em nome da modéstia e da humildade eles disseminam e alimentam a falta
de confiança em si mesmos que acaba atraindo a incapacidade. Está tudo errado!
- Infelizmente os valores verdadeiros foram invertidos no mundo. A autovalorização é proibida e tida como exibicionismo, enquanto alardear incompetência
é modéstia - concordou Walter.
- Não é de admirar que haja tantas pessoas que se anulam sem coragem de tentarem progredir na vida. É que elas acreditam não merecerem o sucesso, que
não têm capacidade quando nem sequer tentaram.
Vendo que Arlete estava pensativa, Flávio continuou:
- Sérgio tem-se mostrado deprimido. Claro que sua situação ainda é desagradável, mas ele sabe que está por pouco. Que logo poderá reassumir sua vida normal.
Entretanto, às vezes ele me parece excessivamente preocupado com sua situação financeira.
- Até certo ponto dá para entender - disse Walter. - Ele está desempregado há tempos e sem recursos próprios. Isso é desagradável para um homem acostumado
a ser independente e a ganhar seu dinheiro.
- Eu sei. Mas ele por vezes deixa transparecer que a diferença de posição social entre nós o incomoda - disse Arlete.
- Por perceber isso foi que concordei com essa espera para se casarem - esclareceu Flávio. - Ele se sentirá melhor se puder pagar as despesas e contribuir
para os arranjos da casa.
- Bem pensado - interveio Diva, que ouvira tudo atentamente. - Sérgio gosta de dar, sente prazer em cooperar. Sempre foi assim com nossa família. Vocês
precisavam ver sua alegria, o brilho de seus olhos quando podia presentear-nos. Com os outros pagando tudo, ele deve estar se sentindo muito mal.
- Talvez ele esteja sendo testado na humildade - disse Walter sorrindo. - O que ele não pode é fazer disso um drama e se infelicitar. Ele sabe que é temporário.
- Vou até lá dar-lhe o recado - disse Arlete.
Ao entrarem, Flávio convidou os amigos para um lanche na copa, enquanto Arlete, informada de que Sérgio estava na sala, foi à sua procura.
Vendo-a entrar, ele levantou-se do sofá alegremente surpreendido:
- Você voltou! - disse abraçando-a.
Ela notou que ele estava abatido, olhos vermelhos. Fazendo-o sentar-se no sofá, sentou-se a seu lado segurando-lhe a mão.
- Voltei porque tenho um recado do guia espiritual. Ele surpreendeu-se.
- Qual é?
- Que são seus pensamentos negativos que atraem as coisas ruins em sua vida. Que se você quer ser feliz precisa dar importância ao bem e esquecer todo
o mal. Acreditar no mal é tornar-se vulnerável ao ataque das trevas.
Sérgio não encontrou palavras para responder. Abraçou-a comovido.
- Ele disse que você ia entender o que ele queria dizer.
- Entendi, sim, Arlete. Ele respondeu às minhas indagações. Depois que vocês saíram fiquei atormentado pensando em tudo quanto me aconteceu.
- Pelo jeito, pensando em coisas tristes.
- Sim. Não nego que fiquei descontrolado. Eu queria dar tudo a você. Mas não posso fazer nada. Fiquei questionando se você merece alguém melhor do que
eu.
Arlete olhou-o nos olhos dizendo com voz firme:
- Não sei por que se desvaloriza tanto. Estou começando a pensar que sua vaidade é maior do que seu amor por mim.
Ele olhou-a admirado. Não esperava essa resposta. Ela continuou:
- Amo você, acredito que temos todas as possibilidades de viver bem e de construirmos juntos uma vida feliz. Admiro o Sérgio correto, trabalhador, alegre,
amável, carinhoso e capaz e me recuso a pensar que você seja um homem com medo de assumir a felicidade e o lugar que a vida lhe está oferecendo na sociedade.
- Por que diz isso?
- Porque tudo está indo bem em nossas vidas, porque logo estaremos livres para realizar nossos sonhos e você, em vez de dar graças pela felicidade que
está ao nosso alcance, prefere ser infeliz, colocando obstáculos e dificuldades que só existem em sua cabeça. Não acha que está sendo por demais ingrato jogando
fora as oportunidades que a vida lhe oferece? Por que se nega a perceber que, por suas qualidades, você tem tudo para me fazer feliz? Está colocando seu orgulho
acima da nossa felicidade? Será que seu amor não é bastante forte?
Sérgio baixou os olhos embaraçado.
- Você ficou magoada! - disse depois de alguns segundos.
- Não, Sérgio. Mas sei que se não deixar de lado o negativismo, se continuar ignorando sua capacidade, não terá o que quer. Você deseja dar o melhor,
a mim e aos seus, almeja ser rico, progredir, mas, pensando assim, nunca o conseguirá. O sucesso, só o alcança quem acredita na própria força, quem não tem medo
do dinheiro dos outros, quem acha que o merece. Só vence na vida e é feliz quem acredita na vitória. Você quer melhorar, reabilitar seu nome, mas continua alimentando
a derrota. Nós sabemos que você é capaz, estamos todos esforçando-nos para desfazer a injustiça da qual foi vítima. Por que não faz o mesmo?
Sérgio abraçou-a envergonhado.
- Desculpe, Arlete. Sei que tem razão. Vocês acreditam em mim. Isso é o mais importante. Tive um momento de fraqueza, mas passou. Nunca mais duvide do
meu amor. Você é tudo que eu mais quero na vida.
- Então prove reagindo e fazendo o melhor que pode! Sérgio beijou-a com carinho repetidas vezes.
- Não sei o que seria de mim sem você - disse comovido. Quando ela se despediu meia hora depois, ele se sentia mais calmo e feliz. A tempestade havia
passado. Ao se recolher, pensando nos últimos acontecimentos, Sérgio sentiu vontade de rezar e agradecer a Deus pelo amor de Arlete e pela confiança dos amigos.

Capítulo 23





N
a noite seguinte Marcos ligou para Flora. - Então, já tem o dinheiro?
- Só tenho vinte e cinco mil dólares. É tudo quanto possuo!
- É pouco.
- É muito dinheiro! É mais do que suficiente para você ir para o exterior e viver muito bem!
- Não posso aceitar isso! Preciso de mais!
- Não posso. Não tenho! Seja compreensivo!
O outro hesitou por alguns instantes. Flora tentou convencê-lo de todas as maneiras. Depois de muito discutir, finalmente ele concordou.
- Está bem. Esteja pronta amanhã no fim da tarde. Lá pelas seis e meia. Vou ligar para dizer o local. Você deve ir sozinha. Lembre-se de que vigio todos
os seus passos. Estarei atento. Deve obedecer às minhas ordens.
- Está bem - concordou ela. Também não queria que ninguém soubesse daquela transação.
No dia seguinte, Flora alegou que estava indisposta e saiu mais cedo do escritório. Passou pelo banco e tirou o dinheiro que tinha no cofre e o guardou
num envelope dentro da bolsa. Suspirou aborrecida. Na caixa restaram apenas dois mil dólares.
Todo o dinheiro que conseguia, ela o trocava por dólares. Precisava estar preparada para qualquer eventualidade. No cofre havia um passaporte, caso ela
viesse a precisar. Não queria ser apanhada de surpresa.
Foi para casa e ficou esperando. Havia comprado uma arma e a guardara carregada dentro da bolsa. Não sabia que tipo de homem iria encontrar. Boa coisa
não deveria ser. José a avisara de que corria perigo e precisava proteger-se.
Antes de dar-lhe o dinheiro, trataria de saber como ele descobrira tudo. Precisava também ter a certeza de que ele não continuaria a chantageá-la. De
repente, se o lugar fosse ermo e não houvesse ninguém, talvez ela pudesse fazê-lo arrepender-se de haver-se envolvido na aventura.
Flora não tinha medo de nada. Sabia como manejar uma arma. Se o acaso a favorecesse, talvez aquele dinheiro pudesse voltar para seu cofre no banco. Ao
pensar nisso, ela sorria antegozando o prazer de acabar com aquele patife que a atormentara tanto durante aqueles dias.
O tempo custava a passar e Flora se impacientava. Olhou o relógio. Estava quase na hora. Passava um pouco das seis e meia quando ele ligou:
- Está pronta? Tem o dinheiro?
- Tenho.
Ele deu as instruções. Ela teria que ir a um hotel onde encontraria uma reserva de quarto em seu nome. Pegaria a chave, iria para o quarto e esperaria
por ele.
Flora não gostou da idéia.
- Um hotel é um lugar muito movimentado. Não quero ser vista. Por que não nos encontramos em alguma estrada deserta? Seria melhor.
- Faça o que estou dizendo. Quem dá as ordens sou eu!
Ela suspirou resignada.
- Está bem. Irei. Mas não se demore a chegar. Não tenho muito tempo.
Ele desligou. Ela apanhou a bolsa e saiu. Dirigiu-se ao hotel localizado perto da Estação da Luz. Era um lugar modesto; Flora entrou, deu seu nome, e
o empregado que a atendeu entregou-lhe uma chave dizendo:
- Pode subir. É no primeiro andar do lado esquerdo. Flora obedeceu, olhando contrariada para as paredes velhas cheirando a umidade e ouvindo seus passos
que faziam ranger os degraus da escada de madeira. Encontrou o quarto e entrou.
- Espero que ele não demore! - pensou. Estava ansiosa para ver-se livre daquela incumbência desagradável e sair daquele lugar.
Olhou os móveis simples, a cama, uma poltrona, um armário e uma pequena mesa. Na janela, uma cortina de cor indefinível. Não se sentou. Ficou andando
impaciente de um lado a outro. Dez minutos depois bateram na porta. Com o coração descompassado, ela disse:
- Entre.
Marcos entrou e ela não se conteve:
- Finalmente! Você demorou!
- Quis me certificar de que tudo estava em ordem.
- Este lugar é horrível! Podia ter escolhido algo melhor!
- Imaginei que você não ia querer ser vista comigo. Aqui ninguém a conhece, é mais seguro.
Flora suspirou resignada.
- Vamos ao nosso negócio. - Trouxe o dinheiro?
- Sim. Mas antes quero ver as provas. Você disse que as tinha.
- Estão aqui. - respondeu ele mostrando lhe um grande envelope pardo. - Você foi muito esperta. Em pouco tempo conseguiu tirar a Dorotéia e o Dr. Martinez
do seu caminho. Alterar os contratos da empresa e arrancar dinheiro dos clientes. Seu único descuido foi ter ido em pessoa ao banco depositar o dinheiro na conta
do Sérgio.
- Você me intriga! - exclamou ela com raiva. - Não me lembro de ter visto você na empresa. Como descobriu tudo isso?
- Vi quando depositou aquela soma na conta do Sérgio. Por acaso eu estava do seu lado. Conhecia o Sérgio dos tempos do interior e sabia que ele não tinha
tanto dinheiro. Por outro lado, sua beleza chamou minha atenção.
- Eu conhecia os amigos de Sérgio e nunca o vi.
- Eu nunca fui amigo dele.
Flora resolvera conversar o mais possível para ver se encontrava uma maneira de não entregar o dinheiro. Por isso continuou:
- Quer dizer que também não gosta dele?
- Ele ia casar-se com uma grã-fina, gostava de aparecer. Só freqüentava a alta sociedade. Esqueceu o povo do interior - mentiu Marcos.
- Ele é assim mesmo. Vai ver que desprezou você.
- É. Precisei de emprego e ele nem me recebeu. Logo eu, que jogava bola com ele quando era menino.
Flora sentiu-se à vontade.
- Quer dizer que gostou do que aconteceu com ele.
- Pra dizer a verdade, gostei mesmo. Por isso preferi procurar você em vez daquela antipática da Arlete.
- Mas você ameaçou ir falar com ela!
- Sabe como é. Estou precisando de dinheiro. Se você não me desse, eu iria mesmo. Afinal, dinheiro é dinheiro.
- Em vez de pedir tanto dinheiro, você podia trabalhar para mim. Garanto que juntos iremos longe. Farei de você um homem rico!
- A proposta é tentadora! Você tem trabalhado sozinha. Para que precisaria de mim?
- Você mesmo disse que eu facilitei indo pessoalmente depositar aquele dinheiro na conta do Sérgio. Se fôssemos sócios, você teria ido em meu lugar. Teria
recebido uma parte e ninguém descobriria.
- Você quer que eu me arrisque. Mas o caso do Sérgio acabou. Quais são seus planos para o futuro?
- Terá que confiar em mim.
- Isso é que não. Você vai me enganar assim que eu virar as costas. Precisa dizer-me o que pretende fazer.
- Não aparecer conversando com os clientes. Você iria em meu lugar.
- Quer dizer que pretende continuar a desviar dinheiro da empresa como até agora.
Flora irritou-se.
- Vamos acabar logo com isso. Quero ver o que há no envelope.
- Um relatório de atividades. Registrei cada passo seu, cada encontro seu com os seus "clientes". Há informações até do seu macumbeiro.
Ele entregou-lhe o envelope, ela abriu e deu uma rápida olhada. Sabia que de nada adiantaria destruir aquilo, que só poderia ser utilizado contra ela
se ele resolvesse delatá-la.
- Passe o dinheiro - pediu ele.
Flora estendeu-lhe o pacote com o dinheiro. Nesse instante, a porta do quarto se abriu e dois homens entraram, dizendo:
- Polícia! Sabemos de tudo! Você está presa! Flora arregalou os olhos e gritou:
- Traidor! Você me paga!
Os dois aproximaram-se dela, que dera um salto para trás, enlouquecida. Rápida, abriu a bolsa apanhou o revólver e apontando-o para os três, estupefatos,
disse colérica:
- Saiam da frente, senão eu atiro. Presa eu não vou! Eles não haviam sacado a arma e não esperavam essa reação. Ficaram parados. Ela rapidamente apanhou
a chave, saiu e trancou a porta por fora. Descendo as escadas a correr, deixou o prédio. Uma vez na rua, tendo guardado o revólver na bolsa, apanhou um táxi que
passava, dizendo ao motorista:
- Preciso ir para o aeroporto. É caso de vida ou morte. Vamos depressa! Minha mãe está mal.
O motorista obedeceu. Dentro do carro, Flora respirou aliviada. Caíra em uma cilada, mas ela não se deixaria prender. Estava com dinheiro e poderia ir
para longe antes que eles a procurassem. Precisava do passaporte. Deu o endereço do banco ao motorista. Uma vez lá, disse:
- Espere aqui. Não me demoro.
Foi ao cofre, apanhou o passaporte e o resto do dinheiro. Dez minutos depois estava a caminho do aeroporto.
No quarto do hotel, os três arrombaram a porta enquanto o delegado dizia a seus homens:
- Terminem tudo. Eu e o Dr. Marcos vamos atrás dela. Eles desceram em seguida, perguntaram a diversas pessoas se a haviam visto, mas ninguém informou
nada.
- O que faremos agora? - indagou Marcos.
- Vamos recolher as provas e ir para a delegacia. Essa mulher é perigosa!
- Não imaginei que ela fosse reagir e que estivesse armada!
- Eu também não. A ficha dela é limpa. Nunca teve nenhuma passagem pela delegacia. Geralmente a surpresa deixa a pessoa sem ação.
- Pois com ela foi diferente. Parecia uma fera.
- Pelo menos você conseguiu o que queria. Se a fita não for suficiente em juízo para reabilitar seu cliente, podemos depor. Eu e o Lopes ouvimos tudo.
- Não vai atrás dela?
- Claro. Vou abrir inquérito e começar a busca. Vamos voltar ao hotel e recolher nosso material.
Enquanto isso, Flora comprara uma passagem e embarcava para Porto Alegre. Uma vez lá pretendia ir ao Paraguai e de lá seguir para outro país. Não queria
deixar pistas para a polícia.
Dentro do avião, recostada na poltrona, ela recapitulava os últimos acontecimentos. Bem que o José avisara que ela corria perigo. Pena que agora não poderia
ir consultá-lo. Ele era dos bons.
Pretendia morar em outro país até ver como as coisas ficavam. Não ia comunicar-se com os pais, seria perigoso. Se um dia quisesse voltar para o Brasil,
mudaria de nome, arranjaria outra identidade, tingiria os cabelos. Sabia como fazer isso. As coisas haviam saído errado, mas ela não se deixaria abater. O mundo
era grande, e ela muito inteligente. Ninguém haveria de derrotá-la.
Já havia escurecido quando Marcos foi à casa de Flávio, onde toda a família estava reunida esperando com ansiedade. Vendo-o, Flávio levantou-se dizendo:
- Puxa! Você demorou!
Todos se aproximaram de Marcos, que respondeu:
- Sei que estavam ansiosos, mas houve um imprevisto!
- Ela não confessou? - indagou Arlete.
- Confessou, sim. Foi uma beleza! Deu o serviço todo. Trouxe uma cópia da fita para vocês ouvirem.
- Nesse caso, tudo está resolvido? - indagou Anselmo.
- Quanto ao caso de Sérgio, sim. Temos todas as provas para que ele possa se reabilitar perante a Justiça!
Sérgio ficou comovido e não conseguiu dizer nada! Arlete abraçou-o com carinho:
- Finalmente! Tudo está resolvido! Graças a Deus! Sérgio apertou Arlete nos braços, emocionado.
- Flora está presa? - indagou Flávio.
- Infelizmente, não. Quando se viu desmascarada, sacou de um revólver e nos ameaçou. Depois, aproveitando-se da nossa surpresa, saiu e nos trancou dentro
do quarto. Quando arrombamos a porta e fomos à rua, ela havia desaparecido.
- Foi imprudência da polícia! - tornou Anselmo. - Não deveriam tê-la deixado escapar.
- O delegado não esperava essa reação. Ela não tinha ficha na polícia, não havia nada lá contra ela a não ser o que eu estava afirmando.
- Nunca pensei que ela fosse tão perigosa! - comentou Nora assustada. - E dizer que essa mulher andou em nossa casa, convivendo com Arlete e Flávio!
- Essas coisas acontecem, D. Nora - respondeu Marcos.
- Mas agora a polícia abriu inquérito e vamos apurar todas as falcatruas que ela cometeu dentro de sua empresa. Ela será procurada e presa.
- Já é um alívio ela não estar mais lá! - considerou Flávio.
- Eu pressentia que era preciso afastá-la o quanto antes.
Anselmo aproximou-se de Sérgio, que, abraçado a Arlete, ouvia em silêncio. Estendendo-lhe a mão, disse:
- Parabéns. Estou contente por ver este pesadelo acabar. Gostaria que você nos perdoasse e aceitasse trabalhar novamente conosco, como assessor de Flávio.
Você receberá todos os salários atrasados e uma indenização por tudo quanto sofreu. Estou pensando em viajar com Nora e deixar a empresa nas mãos de vocês dois.
Sérgio apertou a mão de Anselmo comovido.
- Nada tenho a perdoar, Dr. Anselmo. O que vocês têm feito por mim nunca poderei pagar. Se Arlete e Flávio não tivessem ido à minha procura, eu continuaria
lá, desesperado e infeliz. Se alguém deve alguma coisa sou eu.
- Faça minha filha feliz! É tudo o que eu quero! - disse Anselmo, com os olhos brilhantes de emoção.
Na manhã do dia seguinte dois policiais foram à casa de José. Vendo-os, sua mulher desconfiou:
- Querem falar com o José? Ele viajou - disse ela assim que perguntaram por ele.
Um deles exibiu a carteira dizendo:
- Somos da polícia. Prenda esses cachorros.
Ela obedeceu imediatamente. Eles entraram e ela tentou justificar-se:
- É que ele está doente hoje e não queria receber ninguém. Eles encontraram José na sala onde costumava atender às pessoas. Olhos fechados, ele fingia
rezar.
- Levante-se, José. Você está encrencado. Terá que nos acompanhar à delegacia.
Ele abriu os olhos imediatamente:
- Eu? O que têm contra mim? Sou um homem que se dedica a ajudar os outros levando o conforto da religião.
- Vamos embora. Vai explicar tudo para o delegado! Uma vez na delegacia, o delegado o colocou em uma sala e junto com Lopes começou o interrogatório:
- Você conhece uma mulher chamada Flora Alvarenga? Ele se remexeu na cadeira pensativo. O delegado continuou:
- Vai falando. Sabemos que você era cúmplice dela.
- Eu não, doutor! É mentira!
- Sabemos de tudo. Ela foi desmascarada e disse que você a ajudou no desvio do dinheiro.
- É mentira dela! Eu juro!
- Ela ia sempre à sua casa, dava-lhe dinheiro.
- Eu não sabia que ela desviava dinheiro. Juro por Deus! Sou um homem de bem. Um religioso dedicado a aliviar o sofrimento das pessoas. Jamais faria isso.
Ela me procurou para resolver um caso de amor e eu tentei ajudá-la. Foi só. Não tive nada com o que ela andou fazendo.
- Ela diz o contrário. Você está em maus lençóis. Meus homens a seguiram várias vezes até sua casa. Vocês planejaram o roubo juntos.
José remexia-se na cadeira nervoso. Ele não queria nada com a polícia. Se fossem investigar seu passado, poderiam descobrir coisas que ele fazia tudo
para esquecer.
- Ela mente. Sou um homem honesto.
- Seja como for, até poder provar isso, ficará detido para averiguações. Depois de alguns dias aqui talvez resolva contar a verdade. Lopes, pode levá-lo.
Ignorando o desespero de José, o delegado saiu e foi para a sala onde Marcos o esperava.
- E então? - indagou assim que ele entrou.
- Dei um aperto nele e tenho a certeza de que logo ele vai cantar para salvar a pele. Acho que ele não sabe onde ela está. Depois do que houve ela não
se arriscaria a procurá-lo.
- É provável que ela já tenha saído da cidade. Estava com dinheiro!
- Pode ser. Tenho uma autorização de busca. Vamos checar o apartamento dela. Depois visitaremos a família. Temos o endereço.
- É uma boa idéia.
Enquanto a polícia investigava Flora, Sérgio acompanhou Flávio de volta à empresa. Seu coração batia forte ao entrar nos escritórios e ver os amigos.
Apesar do sigilo que Flávio tivera o cuidado de manter, todos sabiam por que Sérgio tinha deixado a firma. Flora encarregara-se de falar com algumas funcionárias
a respeito, pedindo-lhes que fossem discretas. Isso era o mesmo que lhes pedir para espalhar as notícias.
Flávio notou a admiração e os cochichos discretos dos funcionários ao verem Sérgio e mandou reuni-los a todos no salão onde faziam treinamento de pessoal.
- Venha, Sérgio - disse ele. - Vamos esclarecer definitivamente este assunto.
Quando viu todos reunidos no salão, Flávio começou:
- Hoje, para nossa alegria, temos novamente Sérgio conosco.
Ele foi vítima de uma tremenda injustiça, uma trama bem urdida por uma das nossas funcionárias, mulher ambiciosa e sem escrúpulos. Pela reação de vocês,
acredito que já saibam do desfalque que houve na empresa. Tentamos guardar sigilo, mas parece que a pessoa que desviou o dinheiro tinha interesse em destruir a reputação
de Sérgio, e cuidou de espalhar a notícia. Como não contamos a ninguém, ela, que era a autora do desfalque, é que deve ter dado com a língua nos dentes. Para que
ninguém tire conclusões erradas, vou contar-lhes como tudo se passou e depois vamos pôr uma pedra sobre este desagradável assunto.
Em poucas palavras, Flávio contou tudo quanto havia acontecido, inclusive a "doença" de D. Dorotéia e do Dr. Martinez, a ajuda espiritual, a atuação de
Marcos, da polícia e a fuga de Flora. E finalizou:
- Sérgio sempre foi um funcionário exemplar e honesto. Meu tio, presidente da empresa, pretende afastar-se dos negócios. Eu serei o novo presidente e
Sérgio voltou para ocupar o cargo de vice-presidente. Juntos vamos levantar esta empresa, crescer ainda mais e contamos com a ajuda de todos vocês. Era o que eu
tinha a dizer. Obrigado.
Sentindo-se valorizados pela atitude de Flávio ao contar-lhes a verdade, os funcionários aplaudiram com entusiasmo.
Quando pararam, Sérgio levantou-se e, muito emocionado, tomou a palavra:
- Este momento compensa todo o sofrimento por que passei. A alegria de estar novamente com vocês, de saber que todos acreditam em minha inocência, o prazer
de voltar ao trabalho, o amor de Arlete, nosso casamento que em breve será realizado, tudo isso só me permite agradecer a Deus. Reconheço que, sem ajuda espiritual,
eu talvez ainda estivesse atirado sobre uma cama, remoendo minha dor sem poder fazer nada. Quero que vocês saibam que me tornei um homem de fé. Em minha vida, daqui
por diante, nada farei sem evocar a ajuda e a presença de Deus. Acredito que Ele pode tudo, e mesmo quando perdemos a esperança, Ele está trabalhando pela nossa
felicidade. É muito bom estar aqui de novo com vocês.
Eles aplaudiram e muitos se levantaram para abraçar Sérgio com carinho. Sua história e seu posicionamento sincero comoveram a todos.
De volta à sala de Flávio, Sérgio perguntou:
- E então? O que vou fazer? Sinto-me ansioso para começar a trabalhar.
- Bom, eu estive conversando com tio Anselmo. Ele pensa mesmo em deixar os negócios. Nesta mesma tarde, ele virá aqui tomar as providências para que nós
dois passemos à direção da empresa. Nesse caso, eu irei para a sala da Presidência e você ficará com a minha sala.
Os olhos de Sérgio brilharam de alegria.
- Então é verdade mesmo! Puxa, o Dr. Anselmo está sendo muito generoso comigo.
- De que se admira? Se ele lhe deu sua maior fortuna, que é Arlete, isto aqui é natural.
- Sinto-me grato por essa prova de confiança. Vocês não vão arrepender-se. Vou trabalhar muito e tenho a certeza de que vai dar tudo certo.
Flávio sorriu alegre, dizendo:
- Pela sua cara, eu acredito! Finalmente perdeu aquele ar de tristeza e voltou a ser aquele amigo cujo entusiasmo pelo trabalho sempre admirei.
- Tudo que eu fizer será pouco para retribuir a felicidade e o bem que me estão fazendo.
- Enquanto tio Anselmo não chegar, você ficará aqui comigo. Precisamos cuidar do departamento jurídico. Vamos precisar de uma auditoria. Vou telefonar
para um amigo meu que tem uma empresa e contratá-lo. O que você acha de telefonarmos para o Dr. Martinez e saber se quer retomar o antigo cargo? Ele pode acompanhar
os auditores e depois reassumir.
- Acho a idéia excelente. D. Dorotéia também pode ser readmitida.
- Isso mesmo. Essa será sua primeira função. Pode falar com a secretária e pedir-lhe para providenciar.
Enquanto Sérgio saía, Flávio começou a arrumar os objetos de uso pessoal que deveria levar para a nova sala. Sentia-se feliz e confiante. Finalmente tudo
estava voltando para o devido lugar.

Capítulo 24





O
s dias que se seguiram foram de muita atividade e alegria para Sérgio e Arlete. Ele marcou a data do casamento para dois meses depois porque desejava preparar tudo
com carinho. Comprar seu carro, pagar as despesas da família, que compareceria ao casamento, oferecer a Arlete, além das alianças, uma jóia que ele escolheu com
amor.
Além disso, dedicou-se com todo o empenho ao trabalho, querendo recuperar o tempo perdido. Combinou com Arlete que a lua-de-mel seria curta, deixando
para mais tarde a viagem que haviam programado no passado. Ele não queria ausentar-se logo após sua indicação para o novo cargo. Sentia-se motivado e cheio de boas
idéias. Arlete concordou, uma vez que todas as noites eles se encontravam planejando o futuro e vivenciando a alegria de estarem juntos. Durante o dia ela se ocupava
a ajudar Diva. Ela tinha feito algumas peças de roupa e Arlete as mostrara a alguns conhecidos do ramo que, muito interessados, fizeram várias encomendas que ela
se esforçava para produzir trabalhando até altas horas da noite.
Arlete percebeu que Diva realmente era muito boa no que fazia. Os compradores estavam muito interessados e as peças eram realmente bem-feitas.
Ela se mudara para a casa de fora alegando que logo o casamento se realizaria e Arlete precisava de todo o espaço.
Uma noite, depois que Sérgio saiu, ela viu as luzes da casa de Diva ainda acesas e foi procurá-la.
- Já passa da meia-noite. Ainda trabalhando? Diva sorriu:
- Preciso entregar uma encomenda amanhã cedo.
- Tenho observado que anda trabalhando demais.
- Gosto do que faço. Depois, esse é o caminho de quem quer progredir.
- Tem razão. Pensando nisso vim fazer-lhe uma proposta. Diva levantou os olhos da máquina de costura, atenta.
- O que é?
- Desejo propor-lhe sociedade. Eu e você. Que tal?
- Não estou entendendo. Sociedade como?
- Eu também gostaria de trabalhar um pouco. Venho pensando muito nisso ultimamente.
- Você não precisa! Por que trabalharia?
- Para me sentir útil, fazer alguma coisa que movimente os recursos que a vida me deu.
- Você tem sido muito boa e ajudado a muitas pessoas. Foi o que observei. Eu mesma lhe devo muito.
- Não estou falando disso. Passo os dias inteiros sozinha, sem muita coisa para fazer. Tenho observado o entusiasmo de vocês com o trabalho e fico a pensar
se não estou me privando de fazer alguma coisa útil. Eu nunca saberia fazer o que você faz com um simples pedaço de pano. Você cria, sente-se feliz fazendo isso.
Gostaria de aprender alguma coisa.
- Não está pensando em aprender a costurar! - retrucou Diva sorrindo.
- Nem pense nisso. Não teria jeito. Mas há coisas que sei fazer muito bem. Por isso, acho que nós duas formaremos uma boa sociedade.
- De que modo?
- Você entra com a parte técnica; eu, com a empresarial.
- Como assim?
- Vou alugar uma boa casa, um salão talvez, comprar algumas máquinas de costura, fazer um ateliê de moda. Contrataremos algumas costureiras. Você tira
as medidas, corta, elas costuram. Eu cuido da parte financeira, visito as lojas, vendo nossas confecções, recebo o dinheiro, faço os pagamentos, e dividimos os lucros.
Os olhos de Diva brilhavam quando respondeu:
- Puxa! Seria maravilhoso! Mas eu não tenho dinheiro. Para fazer uma sociedade, eu teria que entrar com a metade da despesa.
- Engano seu. Eu tenho dinheiro, mas não tenho talento para fazer o que você faz. É justo que eu entre com o dinheiro e você com o conhecimento. É uma
boa sociedade. Juntas poderemos fazer muita coisa. Depois, também vou trabalhar. É isso que eu quero. Diga que aceita e amanhã mesmo começo a procurar um local.
- Melhor depois do casamento. Você está muito ocupada agora.
- Que nada. Ainda falta um mês e dá muito bem para montarmos tudo. Depois do casamento, ficaremos apenas uma semana fora. Assim que eu voltar, enquanto
Sérgio estiver na empresa, ficarei com o tempo livre para trabalhar. Vai ser ótimo.
- Tem certeza de que é isso mesmo o que quer? Não está fazendo isso só para me ajudar?
Arlete olhou-a firme quando respondeu:
- Não se desvalorize. Tenho a certeza de que além de me ocupar vou ganhar muito dinheiro. Você tem muito talento. Eu é que estou me beneficiando com essa
sociedade. Nós vamos criar empregos, contribuir para que outras pessoas possam trabalhar, sustentar suas famílias. Tudo isso, fazendo o que gostamos de fazer. Você
com a moda e eu com as pessoas, tornando-me uma mulher de negócios. Vai ser maravilhoso!
Diva sorria contagiada pelo entusiasmo de Arlete. Naquele mesmo instante, Arlete apanhou um papel e começou a fazer o planejamento de tudo.
Apesar das providências para o casamento, Arlete conseguiu montar o ateliê, começando por alugar uma casa a algumas quadras da sua. Era antiga, mas possuía
um salão de festas onde ela montou a oficina, depois de pintar a casa.
Como a data do casamento se aproximava, resolveram deixar o restante para quando ela voltasse da viagem de núpcias.
O dia do casamento amanheceu lindo e cheio de sol. Arlete não escondia sua felicidade. A família de Sérgio tinha chegado um dia antes. Sérgio os hospedara
em um hotel de luxo, feliz por estar em condições de proporcionar-lhes aquele conforto. Ele quis comprar-lhes roupas, mas Rubens não havia permitido.
- Não, senhor. Eu é que quero fazer isso! Pode ficar sossegado que a Antônia entende dessas coisas da cidade e nós não vamos envergonhar você.
E, de fato, eles se apresentaram com discrição e simplicidade, mas elegantes. Até Vicente, metido em um terno bem cortado, parecia outra pessoa.
Diva e Arlete não permitiram que Dirce ficasse no hotel e a levaram para casa. À noite, antes de dormir, as três conversavam animadamente, e Diva declarou:
- Gostaria que você viesse morar aqui comigo, se Arlete permitir. Poderia ajudar-nos na nova sociedade. Dirce sorriu e respondeu:
- Sei que vocês me querem bem e eu gosto muito de estar aqui, mas sabe como é, eu sou do interior, gosto do sossego de lá, não saberia viver na cidade.
Não seria feliz aqui. Sinto que lá é meu lugar.
Arlete fez um ar misterioso quando disse:
- Não esqueci a promessa que lhe fiz. Ainda está interessada no José das Conchas?
Ela corou ao dizer:
- Descobriu alguma coisa dele?
- Descobri. Ia escrever-lhe contando, mas achei melhor falar pessoalmente. Essas coisas precisam ser conversadas.
- O que foi que soube?
- O nome dele é José Antônio das Neves?
- É esse mesmo - concordou Dirce.
- Então é ele. Ele é advogado, teve um grande desgosto e por causa disso resolveu abandonar a cidade.
- Advogado? - estranhou Diva. - Bem me pareceu homem fino, educado.
- Encontrei o endereço do Dr. Bastos. Meu amigo Walter o conhecia e eu lhe pedi que investigasse o caso.
- O que descobriu?
- Ele se casou e foi muito infeliz. Soube que ele queria filhos, mas ela nunca concordou. Era fútil e gostava de beber. Ele descobriu que era traído e
separou-se. Mas ela bebia muito e fazia escândalo onde o encontrasse. Um dia foi encontrada morta no quarto, assassinada. A polícia o prendeu culpando-o pelo crime,
mas depois descobriu-se o verdadeiro assassino, e ele foi solto. Abatido, envergonhado, ele não quis continuar vivendo no Rio de Janeiro. Então, o Dr. Bastos, que
era amigo da família, ofereceu-lhe o emprego de capataz da fazenda. Ele gostava muito do José e achou que, trabalhando lá durante algum tempo, o rapaz esqueceria
o drama e voltaria para a cidade refeito. Mas ele gostou do trabalho e diz que não deseja mais voltar. É o que eu sei.
Dirce suspirou dizendo:
- Então ele me contou a verdade! Ele me disse isso mesmo. As duas não contiveram o entusiasmo.
- Ele contou?
- Ele conversou com você?
- Na festa do Seu Marcondes ele me pediu em namoro. Pai mais mãe e até o Rubens concordaram, me chamaram e disseram que ele parecia um bom moço, mas que
ele tinha alguma coisa diferente e eu precisava descobrir o que era. Ontem, eu fui encontrar ele no lugar de sempre e disse que vinha para a cidade no casamento.
Então ele me disse que gostava muito de mim, que achava que eu era doce e sincera, muito diferente das mulheres da cidade e que não queria me perder. Queria se casar
comigo.
- Ele a pediu em casamento? - disse Diva entusiasmada.
- Pediu. Então segurou minha mão e contou tudo. Falou de sua vida, do amor que sentiu pela mulher, de como se desiludiu e sofreu com os escândalos e a
traição. Que ele tinha jurado nunca mais gostar de mulher alguma. Mas que eu era diferente de todas e que agora, com meu amor, ele tinha esperança de refazer a sua
vida e ser feliz. Eu chorei vendo o sofrimento dele. Mas não tive coragem de contar tudo para a mãe. Estava em dúvida se ele havia falado a verdade mesmo. Sempre
ouvi dizer que os homens mentem e fiquei com medo de me iludir. O povo da roça fala muitas coisas dele, só porque ele não se mistura e vive sempre sozinho.
Arlete, olhos brlhantes de emoção, segurou o braço de Dirce dizendo:
- Você gosta mesmo dele?
- Gosto. Se não casar com ele, não quero mais ninguém. Ele me beijou e eu pensei que fosse morrer. Não dá para explicar o que senti.
- Nesse caso, aceite o casamento. Ele é um homem de bem e foi muito sincero contando-lhe tudo. Não quis que casasse ignorando a verdade. Se você quiser,
eu mesma falo com seus pais e conto o que sei a respeito dele.
Os olhos de Dirce encheram-se de lágrimas e ela abraçou Arlete com força.
- Obrigada, Arlete. Eu sabia que você ia me ajudar. Não via a hora de lhe contar tudo.
Ficaram conversando durante muito tempo, fazendo projetos para o futuro.
O casamento de Arlete e Sérgio realizou-se na casa dos pais de Arlete ao anoitecer. Se Arlete conseguiu convencer os pais de que não desejavam casar-se
na Igreja, não houve como fazê-los desistir da suntuosa recepção. No elegante salão de festas, depois do casamento civil, assistido por todos os presentes, e dos
cumprimentos, teve início o jantar de gala, servido à francesa. Ao fundo, uma orquestra executava músicas suaves. Depois do licor, teve início o baile.
Arlete, olhos brilhando de felicidade, estava linda em seu vestido muito elegante de renda francesa e cetim, tendo nos cabelos um arranjo de flores delicado,
do qual saía um véu curto e gracioso. Sérgio olhava-a embevecido, o que provocou comentários jocosos dos seus familiares, emocionados com a alegria de ambos. Rita
e Vicente sentiam-se felizes.
A festa decorreu animada até o amanhecer, mesmo depois de os noivos se haverem retirado.
A notícia do casamento foi divulgada na coluna social dos jornais mais importantes e uma revista famosa fez uma reportagem com fotos dos noivos e da festa.
Dias depois, em Portugal, Flora irritada leu a reportagem na revista.
Ela se refugiara em Assunción, no Paraguai, e depois de tingir os cabelos de loiro, arranjar uma carteira de identidade falsa com o nome de Isabel Martins,
viajara para Paris. De lá, tinha seguido de trem para a Espanha, e depois para Lisboa. Lá pretendia ficar por algum tempo e dedicar-se a algum negócio rendoso. Tinha
um capital e desejava empregá-lo bem.
Folheando a revista brasileira, trincou os dentes com raiva ao ver o rosto radioso de Arlete e a alegria de Sérgio. Eles haviam vencido! Ela saíra perdendo
nessa história toda. Ele era agora o vice-presidente da empresa!
Ela não pretendia regressar logo ao Brasil. Sentia que precisava dar um tempo para que tudo fosse esquecido. Mesmo usando disfarce, temia ser identificada
e presa.
Planejava ganhar muito dinheiro, e só depois, quando desfrutasse de uma posição de destaque, voltaria para o Brasil. Acreditava que o dinheiro lhe abriria
todas as portas. Depois, o tempo os faria esquecer o seu rosto e sob um bom disfarce não seria descoberta.
Vivia sonhando em voltar para poder vingar-se dos que a haviam derrotado. Ela os imaginava vencidos, no chão, e antegozava o prazer de dizer-lhes o quanto
era mais inteligente e melhor do que eles. Flávio, Sérgio e também aquele que a atormentara tanto com chantagem e armara a terrível cilada - todos haviam de se arrepender
do que lhe tinham feito. Ela não era pessoa de esquecer ofensas. Eles haveriam de pagar. Ela perdera apenas o primeiro round, mas isso não aconteceria de novo.
Fechando a revista com raiva, Flora deixou-se cair em uma cadeira, pensativa. Ela não tinha tempo a perder. Se quisesse ganhar dinheiro, precisava começar
a agir.
Seria muito bom se conseguisse um casamento com alguém importante, talvez um nobre, um milionário. Esse era o caminho mais fácil. Ela não gostava de trabalhar.
Um bom casamento seria ideal. Depois, voltar para o Brasil legalmente casada e usando um nome respeitável afastaria qualquer suspeita.
Para isso precisava produzir-se. Deixara um belo guarda-roupa em seu apartamento no Brasil, mas não podia nem pensar em reavê-lo. Tinha de comprar tudo
outra vez, da melhor qualidade, para apresentar-se muito elegante.
Só com isso gastaria boa soma, mas não via outra saída. No dia seguinte, pôs em prática seu plano. Comprou uma revista especializada sobre gente da mais
alta sociedade e tomou conhecimento de alguns nomes que estavam em evidência.
Conversou com pessoas, foi a museus históricos, a lugares da moda, sempre procurando informar-se sobre os possíveis candidatos. Havia um clube do qual
todos eram sócios, mas era difícil freqüentá-lo. Com perseverança e habilidade, Flora, portando o nome de Isabel, relacionou-se com uma moça que pertencia a uma
das mais finas famílias da sociedade. Aos poucos, foi-se insinuando, até conseguir comparecer a algumas festas do clube, na qualidade de convidada.
Ela conseguia agradar, quando queria. Sabia ser fina, delicada e gentil. A todos dizia que deixara o Brasil para esquecer um grande amor. O homem que
ela amava mais do que tudo no mundo deixara-a por outra. Ela, para evitar o espetáculo da felicidade deles, fugira para a Europa, em busca de esquecimento. Conhecendo
o romantismo e a generosidade dos portugueses, "Isabel" era a jovem apaixonada e infeliz, que colocava o amor acima de todos os interesses.
Nesse papel, ela foi apresentada aos amigos da sua nova amiga, Maria Antônia, rodeada de uma auréola de sofrimento amoroso, o que de imediato despertou
nas pessoas - principalmente nos homens, já que estava em cena uma linda mulher - um interesse especial.
Isabel tornou-se, desde logo, alvo das atenções dos amigos de Maria Antônia e tratou de aproveitar essa vantagem. Não disse que era advogada. Declarou-se
formada em letras, amante das artes, da poesia e de música erudita. Percebera que, na Europa, as pessoas valorizavam muito as artes e a boa música. Ninguém podia
dizer-se culto sem esses conhecimentos.
Apesar de não apreciar muito nem uma coisa nem outra, Flora procurou consultar revistas especializadas sobre o assunto, conhecer museus e aprender o mais
que podia. Ouvindo-a abordar esses temas, ninguém podia suspeitar que ela não tinha realmente profundos conhecimentos deles.
Logo alguns rapazes começaram a cortejá-la com assiduidade, e Flora buscava informações com a amiga sobre eles. Viriato Correia Fernandes, trinta anos,
herdeiro de grande fortuna, foi quem mais a interessou. Homem fino, discreto, bonito, pareceu-lhe ingênuo e fácil de levar. Era o marido ideal para ela. O pai havia
falecido há pouco mais de um ano, deixando uma indústria de vinhos de marca famosa, que rendia muito dinheiro. Sua viúva, que sempre auxiliara o marido na direção
dos negócios, assumiu todo o trabalho. O filho a ajudava, mas era ela quem decidia e tomava conta de tudo.
Para Isabel, isso era bom, porque se ela se casasse com Viriato pretendia viajar muito e não se deixar prender em um negócio sem graça, por mais lucrativo
que fosse. Um homem que deixava a mãe decidir sobre seus negócios não seria difícil de dominar. Quando se casasse, ele haveria de fazer tudo como ela queria.
Do cortejo ao namoro foi um passo. Logo Flora estava freqüentando todos os lugares da moda em companhia de Viriato, que, vaidoso por sentir-se preferido,
tudo fazia para agradá-la.
Isabel sentia-se valorizada e feliz. Agora ela haveria de conseguir o marido que sempre desejara. Seria rica, freqüentaria os melhores lugares, teria
tudo que quisesse.
Apesar disso, não se esquecia dos que haviam ficado no Brasil. Quando fosse oportuno, voltaria para vingar-se. Então, eles iriam arrepender-se de tentar
destruí-la.

Capítulo 25





T
rês meses depois, Viriato pediu Isabel em casamento. Estava perdidamente apaixonado por ela. Quando ele disse o que pretendia, sua mãe não escondeu a preocupação.
Era uma mulher de muita classe, esperta e habituada a conduzir seus negócios com mãos de ferro. Havia visto Isabel algumas vezes e não tivera boa impressão. Era
contra o casamento. Entretanto, percebendo que o filho estava muito apaixonado, não quis opor-se. Pediu-lhe que a convidasse para um jantar em sua casa, mostrando-se
interessada em conhecê-la melhor.
Flora exultou. Informara-se e sabia que D. Isaura era muito astuta e difícil de lidar. Considerou o convite muito positivo. Pelo menos, não se mostrara
contra. Ele era filho único e Flora temia que a mãe fosse muito apegada a ele. Era a sua grande oportunidade, e tudo faria para conquistar a estima da futura sogra.
Esmerou-se no traje, de muita classe e elegante, porém discreto. Quando Viriato foi buscá-la, não poupou elogios. Ela estava divina.
Sentindo-se dona da situação, Flora entrou em casa de Viriato com postura de rainha. Sabia que não podia cometer nenhuma gafe. A sociedade lisboeta era
muito refinada.
Para o jantar, apenas alguns poucos amigos, os mais chegados. Flora mostrou-se muito educada e delicada, principalmente com Viriato. Sentia que Isaura
a observava dissimuladamente. Queria que ela pensasse que o amava e que seria a esposa ideal.
Isaura recebeu-a com finura e delicadeza. Foi gentil, atenciosa. Depois do licor, enquanto conversavam na sala de estar, Isaura sentou-se no sofá ao lado
de Isabel e disse ao filho:
- Vá conversar um pouco com o Dr. Marques.
Ele levantou-se imediatamente e Isaura disse a Flora sorrindo:
- É a primeira vez que vem à minha casa e eu desejo conhecê-la melhor. Viriato não me deu chance.
Flora sorriu respondendo com delicadeza:
- Viriato é muito atencioso.
Ela olhou Flora nos olhos e foi direto ao assunto: - Ele está muito interessado em você.
- Ele é encantador.
- Disse-me que a pediu em casamento. Você, o que respondeu?
Flora fingiu-se um pouco tímida, baixou a cabeça dizendo:
- Fiquei muito feliz. Eu também estou apaixonada por ele.
- Verdade? Que beleza! Um caso de amor!
- É. Pensei que isso nunca mais me aconteceria. Mas o que fazer? Ninguém manda nos sentimentos. As coisas acontecem e pronto.
- É. Aconteceu. Parece que você veio a Lisboa para esquecer um amor que não deu certo.
- Isso mesmo. Sofri muito. Acreditei que era amada mas, pouco tempo antes do nosso casamento, ele deixou-me por outra. Foi horrível!
Flora baixou os olhos e ficou calada durante alguns segundos. Depois continuou:
- Felizmente passou. Já esqueci. Graças a Viriato. Foi ele quem me devolveu a alegria de viver! Devo tudo a ele!
Isaura olhou-a pensativa. A jovem parecia estar dizendo a verdade, contudo algo lhe dizia que se tratava de uma vigarista. Habituada a lidar com muitas
pessoas, aprendera a confiar em sua intuição e esta lhe dizia que aquela mulher não era nada daquilo que queria fazer crer. Isaura nunca se enganara com as pessoas.
Sabia reconhecer uma vigarista por mais que ela dissimulasse.
Seu filho, além de um homem culto e bonito, era o herdeiro de todo seu patrimônio. Não estava disposta a entregá-lo nas mãos da primeira aventureira que
surgisse. Ele era um homem bom, confiante e fácil de ser enganado.
Com habilidade, Isaura não deixou transparecer o que estava pensando e considerou com naturalidade:
- Pelo jeito, vocês pensam mesmo em chegar ao casamento.
- Se a senhora aprovar, ficarei muito feliz em me casar com Viriato.
Isaura sorriu e respondeu:
- Para mim, a felicidade do meu filho está acima de tudo. Creia que não pouparei esforços para que ele seja feliz.
- Sempre achei a senhora uma grande mãe.
- Amo meu filho. Ele é minha maior fortuna.
A um pequeno gesto seu, Viriato, que as observava discretamente, aproximou-se sorridente.
- Sente-se aqui, meu filho. Precisamos marcar uma tarde, só eu, você e Isabel, para conversarmos sobre o futuro.
- Obrigado, mãe.
- Quando pensam casar-se? Foi Viriato quem respondeu:
- O mais breve possível.
- A impaciência dos apaixonados. Isso não pode ser assim. Há as exigências legais e sociais. Certamente a família de Isabel desejará comparecer. Tem muitos
parentes no Brasil?
- Não. Apenas meus pais. Sou filha única. Eu adoraria que eles viessem, contudo meu pai é muito doente. Sofre do coração. Não pode fazer esforço. Não
creio que possa viajar.
- Nesse caso, sua mãe, seus parentes, amigos. Um casamento é sempre motivo de comemoração.
Flora suspirou triste.
- Eu adoraria que eles viessem. Porém minha mãe nunca deixa meu pai sozinho. Desde que elo teve o primeiro enfarte, ela nunca se ausenta. É muito dedicada.
Eles se amam muito. Ela tem medo de que algo possa acontecer-lhe durante sua ausência. Ainda mais tão longe! Ela não virá mesmo.
- Nesse caso, poderemos visitá-los no Brasil depois do casamento! - sugeriu Viriato.
- Eu adoraria! - respondeu Flora.
- Acha que seus amigos também não viriam?- tornou Isaura. Flora ficou pensativa por alguns instantes, depois disse:
- Eu vim para esquecer o que aconteceu. No momento mais feliz de minha vida não quero recordar coisas tristes. Todos os meus amigos também são amigos
do homem que me fez sofrer tanto. Prefiro que não venham.
Viriato pegou a mão de Flora, apertando-a com carinho:
- Isso mesmo, minha querida. Eu também desejo que esqueça tudo o que aconteceu. Vamos começar uma vida nova, cheia de felicidade e de amor! Podemos casar-nos
imediatamente.
- Calma, meu filho. Vamos fazer tudo como se deve. Temos compromissos sociais que não devem ser ignorados. Parentes, amigos, clientes. Não podemos passar
por cima das regras.
Flora desejava casar-se o quanto antes. Ela gastara quase todo o dinheiro, contudo achou melhor não discordar de Isaura.
- Sua mãe está certa. Vamos fazer tudo direito. Precisamos respeitar as regras.
- Ainda bem que você tem senso. Fica combinado. Tenho a tarde de sexta-feira livre. Espero vocês no escritório para combinarmos tudo.
Flora exultou. Seus sonhos estavam prestes a se tornarem realidade. Em breve, ela seria rica, famosa e feliz. Ninguém se atreveria a levantar nenhuma
suspeita contra ela.
No dia seguinte pela manhã, Isaura telefonou para Antônio Fontes, um detetive particular. Era seu homem de confiança. Quando tinha qualquer dúvida sobre
alguma pessoa ou negócio, encarregava-o de investigar. Ele era absolutamente fiel. Isaura o ajudara em um momento difícil de sua vida e ganhara-lhe a estima para
sempre. Ele faria qualquer coisa que ela lhe pedisse sem lhe cobrar nada mas, apesar disso, Isaura o recompensava regiamente.
- A Senhora Dona Isaura não precisa me pagar - protestava ele. - Depois do bem que me fez, mesmo que eu trabalhasse para a senhora o resto da vida, ainda
não lhe poderia pagar.
Ela sorria, colocava o dinheiro em suas mãos dizendo:
- É justo que eu lhe pague pelos seus serviços. Você tem família a sustentar e seu trabalho é valioso. Saber que posso confiar em você já me satisfaz.
- Quanto a isso eu garanto. Seu desejo é lei. Faço qualquer coisa pela senhora.
Meia hora depois, Isaura tinha Antônio sentado à sua frente no escritório. Ela começou:
- Preciso que faça uma investigação sobre a namorada de Viriato. Ele pensa em se casar com ela. É brasileira, está aqui há algum tempo, mas algo me diz
que ela não é confiável. Vou-lhe dar o nome, o endereço e um retrato dela. É só o que sei. Está tudo dentro deste envelope.
Antônio apanhou o envelope, abriu-o, olhou a foto, as anotações, e respondeu:
- Vou ver o que consigo descobrir.
- Cuidado. Viriato não pode desconfiar de nada. Ele está muito apaixonado por ela. Se eu estiver enganada e ele descobrir o que estamos fazendo, nunca
me perdoará.
- Pode ficar tranqüila, D. Isaura. Sei como fazer.
- Ele o conhece. Por isso não posso ajudar em nada, nem convidá-lo para minha casa.
- Compreendo. Eu me arranjo.
- Ela se tornou muito amiga da Maria Antônia Matos Correia. Sabe quem é?
- Sei. Uma moça muito bonita e fina.
- Talvez possa aproximar-se dela. Acho que não o conhece.
- Está bem. Começarei agora mesmo. Acho que tem urgência.
- Viriato quer casar-se dentro de um mês!
-Todos os dias apresentarei o relatório, como sempre. Como farei para lhe falar?
- Não pode ser visto aqui. Corre o risco de encontrar-se com Viriato. Sei o seu número e todas as noites, às onze horas, telefonar-lhe-ei.
- Se não me encontrar, pode tornar a ligar mais tarde.
- Como das outras vezes. Combinado.
Quando ele saiu, Isaura sentiu-se mais aliviada. Se estivesse enganada, o casamento se realizaria e ninguém ficaria sabendo. E ela poderia ficar feliz
com a felicidade do filho. Entretanto, se sua desconfiança se justificasse, não teria outro recurso senão contar tudo a Viriato. Apesar do sofrimento que poderia
causar-lhes, ela sabia que ele era inteligente o bastante para não se envolver em um casamento errado, embora estivesse muito apaixonado.
Flora, entretanto, vivia seu momento de glória, imaginando como seria sua vida quando se casasse com uma das maiores fortunas da Europa e estivesse usando
um nome respeitado. Seus documentos eram muito bem-feitos e ninguém se atreveria a duvidar da sua identidade. Depois do casamento, tiraria outros com o nome do marido
e pronto. Se quisesse voltar para o Brasil, poderia fazê-lo sem que ninguém desconfiasse.
O dinheiro que possuía era pouco, mas ela sabia como conseguir crédito para pagar depois do casamento. Quando anunciassem a data e começassem os preparativos,
todas as portas se abririam. Além disso, tinha um plano para conseguir dinheiro de Viriato.
Naquela noite, quando ele foi buscá-la para jantar, ela não estava pronta. Vendo-a, ele se admirou:
- Você não está pronta. Aconteceu alguma coisa? Está abatida.
Ela balançou a cabeça, esforçando-se para sorrir.
- Não é nada. Não se preocupe.
- Como não me preocupar? Você está triste, alguma coisa deve ter acontecido. O que é?
Ela abanou a cabeça negativamente:
- Nada. A vida é assim mesmo. As coisas acontecem. Mudemos de assunto.
Ele tomou as mãos dela beijando-as delicadamente e puxando-a para o sofá.
- Sente-se aqui, a meu lado. Eu a amo. Não gosto de vê-la triste. Se aconteceu alguma coisa, quero saber. Vamos casar-nos, não pode haver segredos entre
nós.
- Pensando bem, Viriato, talvez seja melhor desistirmos desse casamento.
Ele remexeu-se no sofá inquieto.
- Por que diz isso? Por acaso não me ama? É isso? Não deseja casar comigo?
Flora levantou para ele os olhos tristes onde havia o brilho de uma lágrima.
- Eu o amo. Este casamento é o que eu mais desejo no mundo. Entretanto, não seria justo para você, depois do que aconteceu...
- O que foi que aconteceu? Agora tem que me contar.
- Uma desgraça. Tenho vergonha.
- Fala, Isabel. Está me deixando aflito. O que houve?
- Telefonei para minha mãe e fiquei sabendo a verdade.- Ela fez uma pausa e ele apertou suas mãos para dar-lhe coragem. Ela prosseguiu: - Pensando em
comprar tudo o que vou precisar para o casamento, liguei para ela a fim de pedir-lhe que me mandasse mais dinheiro. Entretanto, ela começou a chorar e me contou
que estamos arruinados. Meu pai, por causa da doença, foi forçado a se afastar dos negócios e nossas empresas faliram. Minha mãe está arrasada, o estado de saúde
de papai piorou muito e ela teme o pior. Eu pensei em ir embora. Deixar você e voltar para o Brasil.
Viriato abraçou-a com força, beijando-lhe os cabelos com ardor.
- Não vou permitir. De forma alguma. Dinheiro não é problema. Sou rico e não preciso do seu dinheiro. O que tenho basta para nós dois. Não vou renunciar
ao amor por causa disso.
- Mas quando sua mãe souber de tudo não vai consentir em nosso casamento. Prefiro afastar-me a suportar tal humilhação. Todos os nossos amigos vão saber
que eu sou uma moça pobre, sem dinheiro, sem nome, já que meu pai faliu. Não posso casar-me com você!
- Se isso a aborrece, ninguém precisa saber o que aconteceu. Será um segredo nosso. Se um dia minha mãe souber, já estaremos casados. Ela terá que aceitar.
Flora baixou os olhos para que ele não visse sua alegria.
- Não sei... - balbuciou - não seria justo com ela.
- Minha mãe deseja minha felicidade acima de tudo. Mais tarde, vendo-me feliz a seu lado, se descobrir, compreenderá. Agora, enxugue esses olhos, arrume-se
e vamos jantar em um lindo lugar. Amanhã mesmo abrirei uma conta no banco para você e poderá comprar tudo que quiser.
Flora sorriu e beijou-o com ardor. Depois disse:
- Você é o homem certo para me fazer feliz. Eu estava arrasada, e você me levantou. Sabe como tratar uma mulher.
Ele sorriu satisfeito. No dia seguinte tomaria todas as providências para o casamento. Tentaria convencer a mãe a apressar a data. Eles não eram mais
adolescentes para terem de esperar. Sentia-se impaciente para tê-la definitivamente em seus braços.
Porém Isaura mostrou-se irredutível. Antes de dois meses seria impossível. Eles precisavam anunciar oficialmente o noivado e marcar a data do casamento.
Não era de bom-tom fazer tudo correndo.
- O que você quer fazer vai deixar a reputação de Isabel abalada. Todos irão pensar que ela "precisa" casar logo.
- A opinião dos outros não me interessa.
- Somos pessoas de destaque em nossa sociedade. Precisamos manter limpo o nome da nossa família. Não vejo a necessidade de apressar as coisas. Dei meu
consentimento. Você não pode negar-me o direito de fazer do casamento do meu único filho um acontecimento social.
Viriato suspirou. Sabia que sua mãe tinha razão. Não queria que ela se indispusesse com Isabel por causa da impaciência dele. Resolveu contemporizar.
- Está bem, mãe. Vamos fazer tudo do seu jeito. Isaura sorriu satisfeita.
- Não vai arrepender-se, meu filho. Tudo acontecerá da melhor forma. Você verá.
Flora sentia-se realizada. Finalmente tinha o mundo a seus pés. Boa soma no banco, podendo gastar à vontade, um marido bonito e rico que faria morrer
de inveja todas as mulheres de Portugal.
Gostaria que Sérgio, Arlete e Flávio pudessem vê-la agora! Pensando em acabar com ela, haviam-lhe dado a maior oportunidade de sua vida. Ela vencera.
Ela estava por cima. Um dia eles ainda haveriam de saber disso!
Quando Isaura ligou para Antônio naquela noite, ficou sabendo que o filho abrira uma conta no banco em nome de Isabel e depositara uma grande soma. Isso
a deixou mais desconfiada. Haviam-lhe dito que ela era de uma família rica e que gastava sem economia. Observara que suas roupas eram de boa qualidade. Estava sempre
muito bem vestida. Por que Viriato teria aberto essa conta?
Esperou que lhe contasse alguma coisa, mas ele nada disse. Era evidente que não desejava que ela soubesse. Entretanto, Antônio lhe dissera que a vida
de Isabel em Lisboa era impecável. Nada havia que pudesse despertar suspeitas. Quando não ia às compras ou aos salões de beleza, ela só saía com Viriato. Até com
Maria Antônia havia espaçado as visitas.
Certa tarde, uma semana depois, Antônio lhe telefonou:
- Dona Isaura, não pude esperar seu telefonema à noite. Precisamos ver-nos com urgência. Tenho novidades.
- Está certo. Vou procurá-lo. Estarei no lugar de costume às cinco.
Ela saiu do escritório imediatamente. Pediu ao motorista para levá-la a uma loja de departamentos no centro da cidade. Uma vez lá, saiu pelos fundos e
entrou em um prédio vizinho dirigindo-se a uma sala no primeiro andar. Era o escritório de Antônio. Poucas pessoas conheciam o lugar. Era onde ele guardava os detalhes
dos casos que estava investigando e se preparava para as suas atividades.
Vendo-a ele sorriu e a fez sentar-se à sua frente.
- E então? - indagou ela, inquieta.
- Suas suspeitas se confirmaram. Trata-se de uma aventureira muito perigosa.
Isaura empalideceu. Preferia que isso não se confirmasse. Viriato estava tão apaixonado!
- Conte-me tudo!
- Como sabe, nada descobri aqui em Lisboa. Conversando com meu amigo Carlos, que é agente internacional, pedi-lhe para investigar essa mulher no Brasil.
Dei-lhe o nome e o retrato dela. Hoje de manhã ele me procurou e trouxe esta foto aqui. Gostaria que observasse.
Isaura apanhou o papel que ele lhe estendeu e olhou:
- É ela! Está um pouco diferente, mas é ela.
- Foi o que pensei. Essa mulher cometeu um desfalque em São Paulo, no Brasil; no momento de ser presa, enfrentou a polícia à bala e fugiu. Até agora eles
não a encontraram. Quis subornar um advogado e ele armou o flagrante. Ao fugir, ela estava com vinte mil dólares.
Isaura abriu a boca e fechou-a de novo. Estava assustada. Ao lado dela Viriato estaria correndo perigo? De uma pessoa que enfrentara até a polícia à mão
armada tudo se poderia esperar.
- Não sei o que dizer - tornou ela.
- Sei que está preocupada com Viriato. Posso compreender. Eu e Carlos combinamos: vamos tomar todas as providências e a senhora vai ficar fora disso.
Ele tem condições de acionar a Interpol e prendê-la. Vamos apanhá-la de surpresa.
- Pobre Viriato. Eu preferia que ela fosse inocente.
- Seria mais fácil para a senhora e para ele. Contudo, foi melhor haver descoberto a verdade. Ele vai sofrer, vai ficar desiludido, mas com o tempo tudo
passará. É melhor do que se casar com essa aventureira.
- Bem me pareceu que ela tinha algo diferente. Antônio sorriu ao responder:
- Quando a senhora fala eu sempre escuto. Até hoje nunca a vi enganar-se com uma pessoa.
- Há momentos em que gostaria de não ser assim.
- E deixar que seu filho consumasse esse casamento?
- Deus me livre! Tem razão. O que vou fazer ao sair daqui é ir à igreja rezar. Agradecer a Deus este dom que livrou a mim e a meu filho de muito sofrimento.
- Faça isso, Senhora Dona Isaura, e deixe o resto por nossa conta.
- Eles marcaram o casamento para daqui a três semanas.
- Não vamos precisar de tanto tempo. Muito antes disso ela estará em nossas mãos.
Isaura saiu do escritório de Antônio, tornou a entrar na loja de departamentos, comprou algumas coisas e foi para o carro.
- Antes de ir para casa vou passar na igreja.
A igreja estava vazia. Isaura dirigiu-se a um altar, ajoelhou-se e rezou com fervor. Agradeceu a proteção de Deus e rogou proteção para Viriato. Com os
olhos molhados de emoção, pediu para que ele suportasse a verdade com coragem.
A oração fez-lhe bem e ela saiu aliviada. Colocara tudo nas mãos de Deus e tinha a certeza de que Ele saberia fazer o melhor.
Alguns dias depois, ao chegar em seu apartamento no fim da tarde carregando pacotes de compras, Flora sentia-se cansada porém feliz. Estava fazendo um
enxoval digno de uma rainha. Jogos de cama e mesa do mais fino linho, bordados à mão, lingerie italiana, vestidos, adereços, calçados e bolsas, tudo do mais fino
que podia encontrar. Mostrava algumas peças a Viriato, que, feliz com a alegria dela, não se importava com o dinheiro que ela consumia. Ela comprava jóias e ele
nem se dava conta. Só pensava no casamento.
Flora atirou os pacotes sobre uma poltrona, tirou os sapatos e foi à cozinha. Estava calor e sentia sede. Tomou um refresco e quando pretendia tomar um
banho a campainha tocou.
Quando abriu a porta deparou com dois desconhecidos que logo foram entrando e fechando a porta atrás de si.
- O que é isto? - disse ela assustada. Um deles exibindo uma carteira disse sério:
- Agentes da Interpol. Flora Alvarenga você está presa. Ela sentiu como se um raio houvesse desabado sobre sua cabeça, mas ainda teve a presença de espírito
para dizer com voz que procurou tornar firme:
- Vocês estão enganados. Meu nome é Isabel Martins!
- Não adianta querer nos enganar. Sabemos de tudo. Trago uma ordem de prisão e vamos levá-la de volta para o Brasil, onde vai responder pelos crimes que
praticou.
Antes que ela pudesse esboçar uma reação um deles sacou a arma enquanto o outro imediatamente a algemou.
Flora sentiu-se apavorada. Isso não podia ser verdade! Agora que ela estava prestes a conseguir o que pretendia! Diante da própria impotência, uma raiva
surda tomou conta do seu ser. Lágrimas rolavam-lhe pelas faces.
- Vocês estão cometendo uma injustiça! - dizia tentando conter o medo e o rancor. - Sou noiva do Dr. Viriato Correia Fernandes. Pertenço à mais fina sociedade,
dentro de duas semanas estarei casada com ele!
Vendo que eles pareciam não ouvi-la, Flora gritou desesperada:
- Deixem-me ao menos telefonar para ele! Tenho a certeza de que quando ele chegar vocês vão se arrepender dessa arbitrariedade!
- Cale-se - disse um deles. - Onde guarda seus documentos?
- Não os tenho comigo agora. Estão com meu noivo para os papéis de casamento - mentiu ela.
Tinha receio de que eles revistassem a casa e encontrassem os vários documentos falsificados que possuía.
- Seria melhor confessar tudo. Temos provas mais do que suficientes para prendê-la. Onde estão seus documentos?
Como ela não respondeu, enquanto um lhe apontava a arma, o outro começou a busca. Flora apavorada tentava desesperadamente encontrar uma saída. Finalmente
o policial encontrou o que procurava e voltou à sala com o envelope pardo nas mãos, onde ela sabia que havia mais provas contra ela.
Eles abriram e rapidamente olharam as fotos, os carimbos, os documentos. Vendo-se perdida, Flora não se conteve:
- Escutem, vocês não precisam levar esse caso adiante. Tenho muito dinheiro e posso recompensá-los regiamente.
Um deles olhou para ela com ar irônico e perguntou:
- O que teríamos de fazer?
- Dizer aos seus superiores que a pista era falsa. Que sou inocente.
- Quanto nos daria? - perguntou o outro.
- Dez mil dólares.
- Sua liberdade vale só isso?
- Por agora. Assim que eu me casar, poderei dar muito mais. Viriato é muito rico e está muito apaixonado por mim!
- Ao desfalque, resistência à prisão à mão armada, fuga, falsificação de documentos, tudo ludibriando a boa-fé das pessoas, vamos juntar tentativa de
suborno. Vai pegar pelo menos vinte anos de prisão. Isso se seu noivo não exigir de volta o dinheiro que arrancou dele.
- Agora chega de conversa fiada. Vamos embora.
De nada adiantou Flora chorar, pedir, praguejar e resistir. Eles a obrigaram a acompanhá-los. Levaram-na diretamente à sede da Interpol, onde ela ficou
detida enquanto eles procediam ao exame de identificação, comparando as digitais e os dados que possuíam.
Flora sabia que estava perdida. Apesar disso, guardava a esperança de que Viriato a ajudasse. Ele estava muito apaixonado. Por isso insistia em telefonar
para ele, em pedir um advogado. Contudo, estava incomunicável. Não podia ver ninguém.
-Terá advogado quando chegar ao Brasil - garantiu o agente encarregado do seu caso. - Antes disso, não.
- Não é justo. Isso é uma arbitrariedade!
Por mais que pedisse, exigisse, não conseguiu comovê-los. Vencida pelo desespero e pelo cansaço, Flora deixou-se cair em uma cadeira e se calou. Em seu
coração havia rancor e frustração. Quem a teria delatado? Era possível que aquele maldito que a atraiçoara no Brasil tivesse logrado descobrir onde ela estava? Só
podia ser ele! Com o dinheiro que possuíam, certamente Flávio, Sérgio e até o Dr. Anselmo pretendiam fazê-la pagar pelo desfalque. Mas eles não perdiam por esperar.
A vantagem deles seria por pouco tempo. Ela haveria de encontrar uma forma de reverter a situação, e então saberia vingar-se.
Logo agora que ela ia realizar o maior sonho de sua vida! Por que eles não a deixavam em paz? Haveria de fazer com que se arrependessem e pagassem caro
pelo que lhe estava acontecendo.
Para a polícia foi fácil confirmar a identidade de Flora. O agente brasileiro que chegara a Lisboa especialmente para verificar o caso entrou em contato
com a embaixada brasileira e prepararam tudo para a viagem de volta ao Brasil.
Entretanto, preocupado com o desaparecimento da noiva, Viriato conversou com a mãe, que imediatamente chamou a polícia.
- Ela pode ter sido seqüestrada! - disse ao filho. Não queria que ele soubesse que fora ela a desconfiar de Isabel.
Assustado, ele concordou e deu a queixa. Na tarde do dia seguinte, enquanto Flora e o agente brasileiro seguiam da embaixada para o aeroporto, Viriato
e a mãe foram visitados por um agente especial da Interpol que os colocou a par de tudo quanto havia acontecido.
Viriato ficou arrasado. Custou a acreditar. Porém as provas eram conclusivas e por fim ele teve de render-se às evidências.
Conseguiu disfarçar o desapontamento diante das autoridades, mas quando se viu a sós com a mãe não conteve o pranto.
Sentada em um sofá da sala de estar, enquanto acariciava a cabeça do filho deitada em seu colo, deixou-o desabafar. Apesar da tristeza que sentia com
o sofrimento dele, sabia que um dia ele ainda se sentiria feliz por se haver livrado de um casamento tão desastroso.
Em seu coração, enquanto pedia a Deus que confortasse o filho e o fizesse esquecer, ao mesmo tempo agradecia por terem descoberto a verdade evitando um
mal maior.
Muda, abatida, enraivecida, cabisbaixa e arrasada, Flora deixou-se conduzir pelos policiais para o avião especial que os levaria de volta a São Paulo.
Sentada na cadeira do avião, ela pensava na humilhação de enfrentar seus pais, os conhecidos e principalmente aqueles a quem culpava pela sua prisão. Eles estavam
vitoriosos. Orgulhosos da derrota dela!
A esse pensamento, remexia-se no banco inquieta. Um dia ainda haveria de se vingar!
Estava tão trancada em seus pensamentos íntimos que não notou o ar preocupado da tripulação. Só percebeu que alguma coisa estava acontecendo quando foi
sacudida pelo trepidar da aeronave. Olhou assustada para o agente a seu lado. Ele estava pálido. Então Flora notou que o avião estava baixando assustadoramente.
Sentiu de imediato a presença do perigo. A tripulação estava agitada e a confusão se estabeleceu. Ela ficou paralisada de medo. Iria morrer? Em um segundo, toda
sua vida passou rapidamente diante de seus olhos e antes que ela pudesse gritar, sentiu que lhe faltava o ar, depois veio um estrondo e perdeu a consciência.
Naquela noite os jornais noticiaram a queda do avião brasileiro, com 45 pessoas a bordo. Não houve nenhum sobrevivente.

Capítulo 26





S
érgio parou o que estava fazendo e foi até a janela pensativo. Sentia-se cansado e sem vontade de resolver os problemas da empresa que se avolumavam sobre sua escrivaninha.
O que estaria acontecendo com ele? Tudo em sua vida corria bem. Os negócios prosperavam. Rubens ganhara muito dinheiro com a granja, estava rico e tinha
três filhos maravilhosos. Seus pais trabalhavam com ele e moravam em uma linda e confortável casa que Rubens mandara construir.
Dirce casara-se com José das Neves, morava na fazenda do Dr. Bastos e também tinha uma menina.
Sua vida pessoal decorria normalmente. Após cinco anos de casamento, amava Arlete como no primeiro dia. Ela era maravilhosa! Quem mais havia progredido
nesse tempo todo era Diva. Junto com Arlete, transformara-se em uma empresária de sucesso. O ateliê que começara pequeno agora tinha prédio próprio, grande oficina
sempre cheia de pedidos. Arlete desenhava os modelos e Diva os executava. Não costurava mais. Formara uma equipe eficiente que ela supervisionava, atendia a fornecedores
e clientes. Sua etiqueta já ganhara posição respeitosa no mercado e grandes magazines vendiam seus produtos.
Além disso, Diva estudara, transformando-se em uma mulher elegante e charmosa. Isso lhe permitia estabelecer boas amizades e era muito assediada pelos
rapazes. Quando Sérgio tocava no assunto, ela dizia:
- Não desejo casar-me. Pelo menos por enquanto. Arranjar alguém que vai querer mandar em mim, atrapalhar meu trabalho? Estou bem assim.
Embora tudo estivesse bem, ultimamente ele se sentia indisposto. Logo agora que Arlete finalmente engravidara! Eles haviam desejado tanto esse filho!
Sérgio voltou para a mesa e sentou-se. Porém não recomeçou a trabalhar. Pensamentos tristes tumultuavam em sua cabeça. E se ele estivesse doente mesmo?
E se fosse grave?
Quando seu mal-estar tinha começado, procurara o médico, que, depois de pedir vários exames, diagnosticou:
- Você não tem doença alguma.
- Mas não me sinto bem. Ando cansado, sem disposição para trabalhar. Sem entusiasmo.
- Seu problema é emocional. Fisicamente está tudo bem.
- Mas minha vida está ótima. Não tenho problema algum.
- Deve ser estresse. É o mal dos executivos como você. Só pensam em trabalhar, mas chega uma hora em que os nervos reclamam.
Aconselhou uma viagem, receitou-lhe algumas vitaminas. Mas tudo continuou igual. Ele reconhecia que trabalhava bastante. Muitas vezes ficava até tarde
no escritório examinando relatórios, procurando meios de melhorar os negócios, novas saídas mais lucrativas.
Arlete dizia que ele se preocupava demais com os negócios. Alertava-o de que se envolvia além do necessário e não se desligava completamente das atividades
do dia quando deixava a empresa.
- Ultimamente você não fala em outra coisa - considerava ela -, vive preocupado com os projetos em andamento, não descansa. Isso vai acabar fazendo-lhe
mal.
Será que ela tinha razão? Estaria mesmo estressado e precisando de descanso? Mas ele não podia facilitar. O Dr. Anselmo fora mais do que um pai. Dera-lhe
a filha em casamento e um cargo de confiança.
Às vezes pensava que ele lhe dera esse cargo não por reconhecer sua competência, mas para lhe proporcionar uma renda compatível com o nível financeiro
de sua família.
Ele queria que tanto o Dr. Anselmo quanto Flávio percebessem que, independentemente do casamento, ele era um profissional capacitado. Essa era sua maior
preocupação. Ele não se permitia errar. Tinha que ser o melhor.
A empresa estava crescendo e a cada dia os resultados eram mais positivos. Mas em vez de sentir satisfação, dedicava-se mais, com medo de não conseguir
manter o mesmo nível.
Olhou os papéis sobre a mesa, respirou fundo, serviu-se de uma xícara de café. Depois sacudiu a cabeça como a afastar o atordoamento que sentia e tentou
trabalhar. Ele não podia nem mesmo pensar em se afastar dos negócios com tantas coisas importantes acontecendo, necessitando de sua atenção.
Mas quando fixou a atenção num relatório, tudo começou a girar, sentiu que a respiração se lhe tornava difícil, enquanto seu corpo se cobria de suor.
- Vou desmaiar... - pensou assustado.
Baixou bem a cabeça, respirando fundo. Aos poucos foi se sentindo melhor. Quando conseguiu levantar-se, foi ao banheiro, abriu a torneira e passou água
no rosto. Olhou-se no espelho e assustou-se com sua palidez. Seu coração batia descompassadamente e ele voltou à sala e chamou a secretária.
Ela acudiu prontamente:
- O que foi, Sérgio? Você está pálido!
- Não estou me sentindo bem.
- Vai ver que comeu alguma coisa que lhe fez mal. Quer que ligue para o Dr. Walter?
- Não é preciso. Já está passando.
- Eu ainda acho que devemos falar com o Dr. Walter.
- Estou melhor. Acho que vou para casa descansar.
- Quer que chame um motorista para levá-lo?
- Não. Já estou melhor. Passou. Não vou voltar mais por hoje.
- Está bem.
Dez minutos depois, Sérgio foi para casa. Lá chegando, afrouxou a roupa e deitou-se. Apesar de ter melhorado, sua cabeça pesava, seu estômago estava enjoado.
A copeira preparou um chá.
- Tome, Sr. Sérgio. Vai fazer-lhe bem. É de alecrim.
- Deixe aí para esfriar um pouco. Sabe onde está Arlete?
- Ela saiu logo depois do almoço. Foi à oficina falar com D. Diva. Quer que ligue para ela?
- Não. Não precisa. Vou tentar dormir um pouco.
A empregada saiu, mas resolveu telefonar para Arlete. Se não a avisasse, ela poderia zangar-se.
Sérgio bebeu alguns goles do chá e deitou-se novamente. Fechou os olhos. Um sono pesado tomou conta e ele adormeceu. Viu-se em um lugar nebuloso, cheio
de árvores esquisitas, secas. Sentiu medo. Viu uma mulher aproximando-se. Estava maltrapilha e cheia de equimoses no rosto. Os cabelos em desalinho, as vestes sujas,
só os olhos brilhavam cheios de rancor. De repente, Sérgio a reconheceu:
- Flora! - gritou - É você!
Ela aproximou-se mais, tentando abraçá-lo.
- Sim, sou eu. Estou viva, voltei para ajustarmos nossas contas! Um a um vocês vão me pagar tudo quanto me fizeram.
Ele a empurrava apavorado, enquanto ela tentava abraçá-lo.
- Vá embora - gritava ele. - Você é a única culpada de tudo quanto lhe aconteceu!
- É mentira! Não adianta você negar. Eu estava rica e feliz e vocês me colocaram naquele avião da morte! Vocês me destruíram. Você agora é meu. Nunca
mais o libertarei!
Segurou-o pelo braço e aproximou seu rosto do dele. Sérgio queria fugir e não conseguia, agoniado quis gritar e começou a gemer.
- Acorde, Sérgio, você está sonhando! Acorde!
Arlete o sacudia, e finalmente ele abriu os olhos. Vendo-a, abraçou-a apavorado, dizendo:
- Flora voltou para nos destruir! É ela! Está horrível, mas pude reconhecê-la.
Arlete tentou acalmá-lo.
- Foi apenas um pesadelo. Eu estou aqui. Acalme-se.
Ele apertou-a com força nos braços, beijando-a no rosto com carinho.
- Ainda bem que você me acordou. Ela havia conseguido agarrar-me.
- Maria me disse que você não passou bem. O que aconteceu?
- Tive um mal-estar no escritório.
- O que sentiu?
- Uma ameaça de desmaio, enjôo.
- Devia ter ligado para o Walter.
- Passou logo. Não quis tirá-lo do consultório.
- Vou ligar para ele agora.
- Não precisa. Já passou. Perto de você curo-me de qualquer coisa.
- Vou falar com ele.
- Não adianta. Ele já viu todos os meus exames e disse que não tenho nada.
- Você foi ao médico da fábrica. Não entendo por que não foi ao consultório de Walter. Ele é o melhor médico da cidade.
- Você só confia nele, mas há outros médicos que são bons.
- Eu sei. Mas é ele que eu quero. Tenho notado que você anda fugindo dele. Por quê? Aconteceu alguma coisa? Não confia mais nele?
- Não aconteceu nada. Mas eu tenho o direito de escolher o médico com o qual quero me tratar.
Arlete olhou-o admirada. Ele pareceu-lhe irritado.Tentou contornar:
- Você tem o direito de fazer o que quiser. Mas sua saúde é muito importante para mim. Ainda mais agora, que nosso bebê está a caminho. Gostaria muito
que me atendesse. Ficaria mais tranqüila se Walter o examinasse.
Ele não respondeu. Ela mudou de assunto, tentando distraí-lo, mas estava firmemente decidida a falar com Walter.
Só mais tarde, quando Sérgio adormeceu, Arlete pôde ligar para Walter contando o que havia acontecido.
- Sérgio está muito esquisito. Ultimamente não quer mais ir às nossas reuniões com o Dr. Celso, anda triste, nervoso. Sinto que estamos precisando de
ajuda espiritual. Ele sempre o apreciou, mas agora anda arredio. Não deseja que eu o chame para examiná-lo. Não é estranho? E depois, esse pesadelo com a Flora!
- Tem razão. Vamos pedir ajuda espiritual.
Arlete desligou, mas em seguida o telefone tocou. Era Flávio.
- O que aconteceu com Sérgio? A secretária me disse que ele se sentiu mal e foi para casa.
- É verdade. Ele não está nada bem.
Ela contou tudo quanto acontecera. Ao final, Flávio observou:
- Não diga que eu liguei. Logo mais à noite eu e Walter daremos um pulo aí. Vamos ver o que podemos fazer.
Quando desligou o telefone, Arlete sentiu-se mais aliviada. Desde que Sérgio tinha voltado à empresa, Flávio se entregara a pesquisas dos fenômenos espirituais,
tornando-se ativo colaborador do Dr. Celso. Filiados a outros centros de pesquisas internacionais, trocavam experiências, e quando o Dr. Celso viajava a outros países
a fim de tomar parte em seminários - dos quais voltava sempre mais entusiasmado com o trabalho - encarregava Flávio de dirigir a organização e de fazer as palestras
públicas.
Ele se tornara um orador brilhante, respeitado até por aqueles que não aceitavam a comunicação dos espíritos. Se antes ele já se interessava em conhecer
a verdade da vida, como ela funciona, agora, observando os fatos sob a ótica da espiritualidade, ia mais fundo nos problemas humanos. Sua lucidez aumentara e sua
palavra era mais clara e convincente. Por vezes, no meio de uma palestra, sua voz se modificava dizendo coisas verdadeiras e profundas que tocavam a alma dos ouvintes.
Arlete identificava-se muito com tudo quanto ele dizia e fazia. Sempre que possível, ia às reuniões para ouvi-lo e desfrutar da agradável energia que
emanava do local. Sérgio, a princípio interessado e participando ativamente das reuniões, nos últimos meses tinha espaçado suas idas ao Centro a pretexto de ficar
trabalhando até mais tarde no escritório.
Indo com Arlete, Diva todas as semanas assistia à palestra de Flávio. Ela gostava do assunto e aprendera rapidamente. Tendo lido muitos livros, discorria
tranqüilamente com Walter e Flávio sobre os temas da noite, a ponto de Flávio dizer:
- Qualquer noite destas vou escalar você para fazer a palestra. Tem pontos de vista interessantes e os apresenta com clareza.
Walter concordou:
- Isso mesmo. Suas idéias precisam ser passadas para outras pessoas.
Ela ria e respondia:
- Não sei. Pode ser. Quando estou ouvindo os oradores, ocorrem-me muitas idéias sobre o tema. Sinto vontade de falar. Tenho até que me conter.
- O dia em que os espíritos acharem que é hora, você não vai conseguir evitar. Vai falar de qualquer jeito! - comentou Walter.
Diva se acostumara a sair com os dois mesmo quando Arlete e Sérgio não estavam. Eles apreciavam a companhia dela, sempre bonita, alegre, elegante, discutindo
com propriedade os assuntos de que gostavam. Era com prazer que se encontravam. Diva deixava qualquer coisa pela alegria de estar com eles.
Foi com impaciência que Arlete esperou a chegada dos dois. Sérgio sentia-se melhor, levantara-se, mas a cabeça lhe pesava. Mal tocou no jantar, estava
sem apetite e um pouco enjoado. Ele recusou sobremesa e café e em seguida foram ambos sentar-se na sala para conversar.
Quando Flávio e Walter chegaram, ele olhou desconfiado para Arlete. Mas Flávio foi logo dizendo:
- Vim saber o que aconteceu. Sua secretária me disse que não se sentiu bem.
- Não foi nada. Já passou. Apenas um pouco de cansaço.
- Pode ser. Você tem trabalhado demais ultimamente. Não tem tido tempo para se divertir. Há quanto tempo não vão dançar? - perguntou Walter.
- Há meses - informou Arlete.
- O estresse pode causar muito mal-estar - continuou Walter. O rosto de Sérgio distendeu-se:
- É. Vai ver que estou mesmo estressado. O Dr. Jamil disse isso mesmo.
- O que foi que sentiu? - perguntou Walter com interesse. Sérgio relatou tudo quanto sentira, mas omitiu o sonho que tivera com Flora.
- Você teve um pesadelo! - disse Arlete.
- Sem importância - disse Sérgio.
- Ele sonhou com Flora. Disse que ela gritava por vingança. Tentava agarrá-lo. Ele gemia dormindo e eu o acordei. Estava apavorado.
- É que sonho parece verdade - explicou ele.
- Pode ter sido mesmo - replicou Flávio.
- Depois de tanto tempo? Ela morreu há cinco anos! Por que só agora teria decidido vingar-se? - respondeu Sérgio.
- Por que só agora descobriu como - esclareceu Flávio.
- Ela não tem nenhum motivo para querer vingar-se. Afinal, ela é que era culpada e nos causou muitos problemas. Roubou dinheiro da empresa. Não tivemos
culpa de nada. Não sabíamos onde ela estava, nem que havia sido presa. Muito menos que seu avião ia cair. Portanto, essa de dizer que ela deseja vingar-se é fantasia.
Não acredito.
- Ela pode não ter a sua lógica, ver as coisas a seu modo. As pessoas costumam ter uma ótica própria - continuou Flávio.- Ela pode mesmo estar com raiva
de nós.
- Mesmo que isso seja verdade, somos inocentes. Nesse caso não temos nenhuma proteção? Estaremos à mercê do arbítrio de espíritos maldosos de forma tão
injusta? Não me sinto culpado de nada que aconteceu com ela. Por isso não creio que ela possa me fazer mal.
- Nesse caso, não deveria ter tido medo dela - interveio Walter.
Sérgio olhou-o surpreendido. Depois disse:
- Foi um pesadelo. Sabe como são essas coisas. Um lugar sombrio, ela, horrível, quem não se assustaria? Mas já passou. Agora, pensando bem, acho que foi
porque eu estava mesmo indisposto.
Walter olhou-o nos olhos dizendo com voz firme:
- Sérgio, de que está com medo? Por que nega essa possibilidade?
- Por que não tem nenhuma lógica. É injusto. Não pode ser verdade!
- Saiba que não existe nenhuma injustiça em tudo que nos acontece. Você está sofrendo a ação das energias dela. Essa é a verdadeira causa do seu mal-estar.
Flora está mesmo querendo vingar-se não só de você mas de todos nós. Culpa-nos por tudo quanto lhe aconteceu.
- Mas isso não é justo. Eu sou inocente! Tudo que fiz foi apenas me defender e isto é um direito meu.
- As leis do universo não funcionam pela lógica humana. Elas têm sua própria lógica. E uma dessas leis é não haver paternalismo. Quando você já tem capacidade
para fazer alguma coisa, ela nunca a faz por você. Quer que você faça. Use os potenciais que já tem. Você tem muito conhecimento da vida espiritual. Se o estivesse
usando, as energias perturbadas de Flora nunca o teriam atingido. Talvez tenha sido por isso que só agora, depois de tanto tempo, Flora teve condições de afligi-lo.
Se ela conseguiu isso, você com toda certeza não está usando os poderes que tem, de alguma forma reduziu o nível de suas energias espirituais, dando-lhe abertura
para que o atingisse. O bem sempre é mais forte do que o mal. Isso também é lei.
Sérgio baixou a cabeça pensativo.
- Você sabe que eu gosto de ir ao Centro. Que nunca deixei de acreditar no bem. É que ultimamente não tenho tido tempo. Os negócios cresceram, as responsabilidades
também.
- Não precisa justificar-se. Ninguém o está criticando nem impondo nada. Estamos apenas conversando. Estou dizendo que não há injustiça no universo. Se
você está passando mal porque absorveu as energias perturbadas de Flora, de alguma forma permitiu essa abertura. Se estivesse bem, ela nunca teria tido essa possibilidade.
Atente para a realidade do nosso mundo no dia-a-dia. Aqui, neste momento, como em qualquer lugar, há todos os tipos de energias, das mais desagradáveis e pesadas,
às mais sutis e superiores. Estão todas no ar, circulando à nossa volta. O problema é só de sintonia. Nunca viu alguém sentir-se mal sob efeito de energias pesadas
em meio a outras pessoas que estão se sentindo muito bem? Como acontece isso? Sintonia, meu caro. Apenas sintonia.
- Mas eu sempre penso no bem. Não me sintonizo com o mal. Não sinto ódio nem desejo de me vingar, nem mesmo quando soube o que Flora me havia feito. Por
isso não acho justo.
- Mas para baixar seu padrão de energias você não precisa ser igual a ela, nem pensar o que ela pensa. Basta sair da alegria, do entusiasmo, entrar no
negativo, na dúvida ou na descrença. Há muitas formas de deprimir-se, de cultivar insatisfação, e isso baixa o nível energético sempre. Por isso, cultivar o pensamento
positivo, mesmo que para alguns pareça ilusório, realmente imuniza contra o mal e mantém a ligação com as fontes superiores da vida. O que é Deus senão o bem maior?
Só quem cultiva esse bem em todos os momentos de sua vida pode estar com Ele e usufruir de todas as bênçãos que Ele nos dá.
- Não adianta rezar nem ajudar os outros se em seu coração você estiver temeroso, cheio de dúvidas, impressionado com o mal. Tenho observado isso - interveio
Arlete. - Tenho visto pessoas que se dedicam a vida inteira a ajudar os outros, sem ajudarem a si mesmas. Conservam a tristeza, têm medo da vida, não confiam no
futuro. Dizem ter fé, mas a negam dentro de si. No fim, percebendo que apenas fazer pelos outros não lhes deu a felicidade que desejavam, revoltam-se passando a
reclamar contra tudo e todos.
- É verdade - concordou Flávio. - Está na hora de cada um perceber que só encontrará a felicidade assumindo a responsabilidade por si mesmo, melhorando
suas crenças, desenvolvendo a lucidez, abrindo a consciência, sendo verdadeiro. Tenho notado que é mais fácil pretender ajudar os outros, tentar mudá-los, do que
olhar para dentro de si mesmo e enfrentar as próprias dúvidas, medos e pontos fracos. No entanto, só quem já disciplinou sua mente e harmonizou seu mundo interior
tem condições de fazer alguma coisa pelos outros. O resto é só ilusão.
Sérgio ficou alguns instantes pensativo, depois perguntou:
- Vocês acham mesmo que meu mal-estar dos últimos tempos tem a ver com Flora?
- É bem possível - respondeu Flávio.
- É. Eu também penso que sim. O melhor é irmos a uma sessão no Centro. Lá poderemos tirar todas as dúvidas - disse Walter.
- Está certo. Amanhã é dia, iremos - concordou Sérgio. Arlete sorriu aliviada. Finalmente ele havia entendido. Estavam tomando café com biscoitos, quando
Diva chegou.
- Entrei para saber de Sérgio. Pelo que vejo ele está bem. - Apesar de dizer isso lançou um olhar preocupado a Walter.
Ele entendeu e esclareceu:
- Fomos jantar juntos e resolvemos passar por aqui. Flávio queria saber de Sérgio. Está tudo bem.
Ela sorriu.
- Hoje não foi possível sair mais cedo. Um cliente ficou até mais tarde e não houve jeito de resolver logo. Há gente que custa a decidir-se.
Ficaram conversando e apesar do ambiente descontraído e alegre, Sérgio não se sentia à vontade. Seu coração estava oprimido, angustiado, a cabeça continuava
pesada e ele esforçava-se para sorrir e acompanhar a conversa. Não queria que os outros percebessem o que sentia e se preocupassem com ele.
Sentiu-se aliviado quando eles saíram. Ao deitar-se, entretanto, não conseguia dormir. E se tivesse outro pesadelo? Era ridículo pensar nisso. Ele não
podia ter medo, mas a sensação desagradável voltava e ele não conseguia pegar no sono. Ficou lá, no escuro, segurando a mão de Arlete, olhando o teto do quarto enquanto
ela dormia, tentando pensar em outra coisa, esquecer o que estava acontecendo, voltar a sentir-se bem. Mas só quando o dia estava clareando foi que, vencido pelo
cansaço, adormeceu.
Na tarde do dia seguinte, Walter procurou Diva na hora do almoço. Vendo-o, ela assustou-se:
- Aconteceu alguma coisa com Sérgio?
- Não. Está tudo bem. Sérgio não está doente.
- Arlete me contou tudo. Eu sabia que alguma coisa ia acontecer. Ultimamente ele não estava como sempre foi.
- Você sentiu.
- Senti.
- Vim buscá-la para almoçar. Preciso falar com você.
- Está certo. Vou apanhar a bolsa.
Walter levou-a a um restaurante muito agradável. Fizeram o pedido. Enquanto comiam conversaram sobre o caso de Sérgio. Quando estavam à sobremesa, Walter
disse:
- O assunto sobre o qual desejo conversar com você é muito importante para mim. Há tempos queria falar, mas não tive coragem. Agora, cheguei a um ponto
que não dá mais para esperar. Tenho que saber a verdade.
Diva olhou-o admirada.
- Verdade? Sobre o quê?
- Sobre você. Sempre se manifestou contra o casamento. Mas uma mulher tão cheia de vida como você certamente não vai viver a vida inteira sem amor.
- Eu nunca disse que era contra o amor ou o casamento. Apenas disse que não pensava nisso ainda.
- É, eu sei. Agente diz coisas, mas depois muda. Eu mesmo nunca pensei em me casar. Sempre tive lindas mulheres, nunca senti falta de carinho. Pensei
mesmo que nunca sentisse vontade de casar. Entretanto, eu mudei.
Diva olhou-o surpreendida. Walter segurou a mão dela, apertando-a com força, e continuou:
- Estou apaixonado por você, Diva. A princípio pensei que fosse apenas admiração pela sua beleza, pelo brilho da sua inteligência, pela sua maneira de
ser. Mas depois compreendi que é amor. Amo-a e desejo saber se sente alguma coisa por mim.
Diva olhou-o com os olhos brilhantes de emoção e respondeu:
- Eu gosto muito de você. Sinto-me comovida e orgulhosa por me estar dizendo isso. Aprecio suas qualidades de espírito, seu coração bondoso, seu caráter
sincero e franco. Gostaria de amá-lo, mas não posso enganá-lo. Há muito que amo outra pessoa. Se não fosse por isso, talvez até viesse a amá-lo um dia.
Pelos olhos de Walter passou um brilho emotivo. Largou a mão que segurava e ficou silencioso por alguns instantes. Depois disse:
- Você ama Flávio.
Ela baixou os olhos e não respondeu. Ele prosseguiu:
- Eu sabia que você já estava amando. Seus olhos brilhavam quando saíamos os três, seu rosto se iluminava quando sorria. Só o amor coloca tanto brilho,
tanta luz em uma mulher. Como você não fazia diferença entre nós, cheguei a pensar que poderia ser eu. A dúvida estava me consumindo. Eu precisava saber.
- Espero que não fique triste comigo. Adoro você e não quero perder sua amizade por nada deste mundo.
Ele segurou a mão dela novamente, apertando-a com carinho.
- O amor brota no coração independentemente da nossa vontade. Não a culpo por isso. Também não quero perder sua amizade. Apesar de tudo, sinto-me aliviado
por saber a verdade. Flávio é um excelente amigo, merece seu amor.
- Ele nunca demonstrou maior interesse por mim. É um bom amigo. Você descobriu a verdade. Peço-lhe que guarde segredo. Por favor. Ninguém deve saber o
que vai em meu coração. Não quero que ele saiba. Pode ficar constrangido. Seria muito desagradável para mim.
- Pode ficar tranqüila. Nada direi. Entretanto quero que saiba que desejo sua felicidade acima de tudo. Se não me ama, desejo de todo coração que seja
feliz com Flávio. Penso que formariam um casal perfeito.
Ela sorriu emocionada.
- Obrigada. Você é muito nobre. Eu também desejo que encontre uma mulher melhor do que eu, que o ame de verdade e possa fazê-lo feliz como merece.
Os dois saíram de braços dados do restaurante, rostos emocionados e não viram o carro de Flávio passando pelo local. Vendo-os, ele parou a observá-los.
Depois ligou o motor e foi embora.
Sentiu-se um pouco irritado e surpreendido. Não sabia que Diva estava saindo sozinha com Walter. Eles estavam tão emocionados que nem sequer o viram.
Estariam namorando? Como não lhe disseram nada?
Ficou com raiva. Sempre julgara Walter seu melhor amigo. Por que o atraiçoava pelas costas? Por que nunca lhe contara que se encontrava às escondidas
com Diva?
De repente foi como se o mundo desabasse em sua cabeça. Com certeza eles se amavam! Há quanto tempo isso estaria acontecendo? Por que o enganaram daquela
forma? Por que estariam escondendo-se?
Sentiu-se inquieto, revoltado. Chegou ao escritório, tentou trabalhar, mas a cena de momentos antes não lhe saía da mente.
- Está muito ocupado?
O rosto de Arlete apareceu pela porta entreaberta.
- Não. Entre - disse ele. Ela entrou dizendo:
- Resolvi passar por aqui para ver Sérgio. Ele não estava muito bem quando saiu. Você também não me parece bem. Está com uma cara! Aconteceu alguma coisa?
- Aconteceu. Sempre pensei que Walter fosse meu amigo. Não esperava isso dele.
- Walter? Claro que ele é amigo. O que está havendo?
- Ele me traiu. Nunca me falou nada. Anda a se encontrar secretamente com Diva e nunca me contou. Nem ele, nem ela.
Arlete olhou-o admirada:
- Os dois estão se encontrando secretamente! Tem certeza? Ela nunca me disse nada!
- Para ver como eles são. Enganaram você também.
- Como sabe disso? Por que está tão zangado?
- Eu voltava do almoço quando os vi saindo de um restaurante, de braços dados, rostos emocionados. Estão namorando e nem contaram nada.
- Bom, se estão namorando, só pode ser coisa nova. Diva é transparente e sincera. Não me esconde nada. Tenho a certeza de que vai me contar tudo logo
mais. Aliás sempre desconfiei que Walter estivesse apaixonado por ela. Mas você não me respondeu por que está tão zangado. Afinal eles são livres e têm o direito
de namorar, até de se casar.
Flávio mordeu os lábios e não respondeu. Arlete aproximou-se, colocando a mão sobre seu braço.
- A não ser que você também esteja apaixonado por ela! É verdade? Você também a ama?
Flávio não respondeu logo. Permaneceu pensativo durante alguns minutos. Depois disse com voz triste:
- Acabei de descobrir essa triste verdade. Aos poucos, Diva foi-se chegando, com sua alegria, sua alma nobre, sua sinceridade, e foi enchendo minha vida
de prazer, de vontade de viver, de felicidade. Eu sabia que estava gostando dela, mas não queria admitir. Às vezes, quando dançávamos, sentia vontade de beijá-la,
mas me continha. Ela nunca demonstrou interesse por mim e eu não podia estragar tudo tomando uma atitude mais íntima.
- Talvez você esteja enganado. Diva nunca me disse que gostava de Walter.
- Eu os vi juntos, sozinhos. Claro que ela gosta dele. Arlete olhou-o séria e depois sorriu dizendo com ar de malícia:
- Eu, se fosse você, não desistia dela. A mim sempre pareceu que ela era apaixonada por você.
- Se isso fosse verdade ela não estaria saindo com ele.
- As aparências enganam. Por que não espera para saber a verdade? Apesar de tudo, ainda penso que ela ama você. Ao falarmos em você, os olhos dela brilham
e eu noto uma emoção que ela se esforça para disfarçar. Vai ver que ela se cansou de esperar que você se declarasse e resolveu aceitar Walter. Pelo menos ele deve
ter tido a coragem de falar sobre o assunto.
- Ele nunca me disse nada. Afinal somos amigos.
- Você também nunca disse nada a ele.
- É. Eu mesmo não tinha certeza. A atração podia ser passageira.
- Como sabe que não é?
- A idéia de perdê-la está me machucando. Gosto de sua postura independente, de como se posiciona a respeito das coisas, da maneira como olha a vida,
de sua lucidez e simplicidade. Nunca encontrei tantas qualidades juntas em uma mulher. Além disso, ela me atrai muito. Diante do seu sorriso e dos seus olhos luminosos
eu me renovo e esqueço todos os problemas.
Arlete sorriu deliciada:
- Finalmente você está amando! Eu sabia que este dia chegaria.
- Por que demorei tanto a descobrir o quanto ela é importante para mim? Se eu tivesse me declarado, talvez Walter não conseguisse ficar com ela.
- Por enquanto é só uma suposição. O fato de terem se encontrado a sós pode não ter o sentido que você imagina. Eles poderiam estar tratando de outros
assuntos. Afinal, são muito amigos.
- Não. Senti que havia algo no ar. Pela maneira como se comportavam.
- Diva sempre me conta tudo. Vai falar desse encontro, estou certa disso. Depois, se estivesse interessada em Walter, ela teria me contado. Não havia
por que esconder. Por que não se abre com ela? A amizade entre vocês permite uma conversa franca, na qual todas as dúvidas sejam esclarecidas.
- Não sei se será correto com Walter.
- Esclarecer um assunto desses não é traição. É um direito seu saber a verdade. Se ela lhe disser que gosta dele, paciência.
Ele ficou pensativo por alguns instantes, depois disse:
- Tem razão. Qualquer coisa é preferível a esta dúvida que está me corroendo. Falarei com ela.
- Faça isso.
Despediram-se combinando que se encontrariam no Centro do Dr. Celso. Depois que Arlete se foi, Flávio não conseguiu concentrar sua atenção no trabalho.
A cena de momentos antes não lhe saía do pensamento. Ao mesmo tempo, fazendo um retrospecto dos momentos felizes que haviam desfrutado saindo juntos, ele sentia
com clareza o quanto se deixara fascinar pela personalidade forte e esclarecida de Diva. E quanto mais pensava nisso, mais crescia o desejo de conquistá-la. Não
queria perdê-la de forma alguma.
Olhou no relógio. Faltavam alguns minutos para as quatro. Apanhou o telefone e ligou. Quando Diva atendeu, ele disse:
- Preciso falar com você.
- Hoje à noite nos encontraremos no Centro de Estudos.
- Não posso esperar até lá. Está muito ocupada?
- Agora? Por quê, aconteceu alguma coisa com Sérgio?
- Não. Ele está bem. Mas não dá para esperar. Vou passar aí agora.
Ela hesitou um pouco, depois respondeu:
- Está bem. Estarei esperando.
Ele saiu imediatamente, e quando parou o carro em frente ao ateliê de Diva, esta imediatamente saiu. Estava preocupada.
Ele desceu do carro e depois dos cumprimentos pediu:
- Vamos dar uma volta e conversar.
Ela entrou no carro e ele deu a partida. Ele dirigia em silêncio e ela, entre preocupada e curiosa, olhava-o de vez em quando. Poucos quarteirões adiante,
ele estacionou em uma rua tranqüila. Olhou para ela como se quisesse penetrar fundo em seus pensamentos mais íntimos.
- Você está me assustando! Tem a ver com Sérgio?
- Não. Hoje quando eu voltava do almoço, passei por você e Walter quando saíam do restaurante.
- Ele apareceu de surpresa no ateliê. Queria conversar.
- Vocês nem me viram. Algum assunto importante? Ela olhou-o ligeiramente embaraçada.
- Um assunto particular.
- Desculpe. Não quero ser indiscreto. Vocês estão namorando?
- Não. Por que pergunta isso?
- Porque me pareceu que estavam muito íntimos e emocionados.
Ela não respondeu. Ele continuou:
- Que ele está apaixonado por você eu sei, mas o que quero perguntar é se você está apaixonada por ele.
Ela olhou-o séria e respondeu com suavidade:
- Não. Walter para mim é um grande amigo, adoro-o, mas é só amizade.
O rosto de Flávio descontraiu-se e ele segurou a mão dela, gelada e trêmula.
- Sinto-me aliviado. Vendo-os juntos pensei que tivesse perdido você.
Diva sentiu o coração batendo forte e não conseguiu responder. Ele abraçou-a com carinho beijando-lhe o rosto delicado, e depois procurou seus lábios
com sofreguidão, apertando-a de encontro ao peito. Beijaram-se longamente. Por fim ele disse com voz que a emoção enrouquecia:
- Diva, eu a amo! Sinto agora que sempre a amei, desde o dia em que nos vimos pela primeira vez. Diga que também me quer.
Ela levantou os olhos e o amor que Flávio viu neles o emocionou mesmo antes que ela respondesse baixinho:
- Há muito descobri que o amo.
Beijaram-se muitas vezes com ardor. Assustado com a onda de emoções que sentia, Flávio procurou controlar-se e afastou-se um pouco, respirando forte.
Mas Diva achegou-se a ele, dizendo com carinho:
- Vamos para algum lugar onde possamos amar-nos de verdade.
Flávio concordou. Foram para a casa dele. Uma vez lá, atiraram-se nos braços um do outro, dando vazão ao amor que sentiam.
Depois, mais calmo, vendo-a estendida a seu lado na cama, ele declarou:
- Vamos casar-nos o quanto antes. Depois de hoje, não vou mais suportar viver separado de você.
Ela olhou-o com doçura e respondeu:
- Ainda bem. Porque eu também não.
Conversaram animadamente, fazendo planos para o futuro. Por fim ela se lembrou do compromisso que tinham à noite. Flávio levou-a para casa. Vendo-os chegar
juntos, Arlete logo percebeu pelo brilho dos olhos deles que se haviam entendido.
Enquanto esperava Diva preparar-se, Flávio ficou conversando com Arlete. Falou de seus planos para o futuro, dividindo com ela sua alegria. Sérgio, entretanto,
demorava-se no quarto, e depois que Diva chegou, Arlete foi à procura do marido, encontrando-o na cama.
- Sérgio, está na hora. Não está pronto?
- Senti-me atordoado, de repente. Tive de me deitar!
- Essa energia não é sua! Não se deixe manipular por ela. Levante-se e vamos. Se você facilitar, ela vai dominar.
- Tem razão. Hoje eu vou de qualquer jeito. Estou determinado a acabar com isso de uma vez por todas.
- Isso mesmo. É assim que se fala. Você precisa usar sua própria força e reagir. Essa é a melhor forma de se libertar das influências ruins dos outros.
Embora estivesse atordoado e com o estômago enjoado, Sérgio levantou-se, lavou o rosto e penteou-se, dizendo a Arlete:
- Vamos embora. Deus vai me ajudar!

Capítulo 27





N
a penumbra da sala, sentado em meio a um grupo de pessoas que oravam em silêncio, Sérgio sentia-se angustiado. O mal-estar se acentuara e ele sentia raiva, desespero.
Temia não poder controlar-se. Suas mãos frias e cobertas de suor o incomodavam, um tremor incontrolável percorria-o de quando em quando, como se estivesse com febre.
Desesperado, ele começou a rezar de coração. Não queria mais sentir essas emoções desagradáveis. Tinha ouvido várias vezes o Dr. Celso dizer que cada
pessoa é responsável por tudo quanto lhe acontece na vida. Que, quando alguém sofre, é porque com suas atitudes tornou-se vulnerável atraindo o assédio de espíritos
desequilibrados e perversos. Quando a pessoa faz o melhor que pode, ela está protegida e nada a atinge.
Nesse caso, o que ele estaria fazendo para passar por tudo aquilo? Se o espírito de Flora desejava vingar-se, que atitude dele estava anulando sua proteção
e permitindo que a vingança dela o atingisse?
Não encontrava resposta para essas indagações, por isso silenciosamente pediu a Deus que o orientasse. Ele queria aprender e melhorar.
Naquele momento, uma das pessoas presentes começou a gritar em desespero:
- Não quero morrer! Não é justo! Logo agora que tudo estava dando certo! Não quero!
- Calma - pediu o dirigente da sessão. - Já passou. Não adianta revoltar-se. Agora é aceitar a realidade.
- Não quero! Aqueles miseráveis vão me pagar! Vou me vingar! Nenhum deles escapará!
- Não faça isso. Está se prejudicando. Você precisa tratar-se, recuperar-se do acidente!
- Não adianta. O que eu quero é me vingar! Eles vão pagar.
- Você é a única responsável por tudo quanto lhe aconteceu. Se não tivesse feito o que fez, tudo teria sido diferente! Você foi vítima de si mesma. O
mal atrai o mal. Está na hora de entender isso e procurar melhorar.
- Para mim tudo acabou. Nada há que eu possa fazer. Minha vida foi destruída na flor da idade. Por que tenho de me conformar?
- Porque a revolta não vai mudar a sua realidade. Pare de se machucar e de culpar os outros pelas suas ilusões. Não tenha medo de ver a verdade. Você
pode aprender a fazer melhor e recomeçar.
- Eu ia casar-me com um homem rico, o mundo estava a meus pés. Eles me tiraram tudo.
- Se não tivesse feito o que fez, não teria sido presa nem seu casamento desfeito.
- Estou mal e ninguém me açode. Eu preciso de um médico. Estou sangrando, veja. Pensei que estivesse melhor, mas estou me esvaindo em sangue. Terei que
suportar essa agonia de novo?
- Não. Veja, o médico está chegando. Vai tratar de você. Entretanto, se deseja sarar, ficar bem, tem que esquecer o passado. Mostrar desejo sincero de
reformular sua vida, aprender coisas novas. O mundo não é da maneira que você acredita. Há uma programação Divina trabalhando e determinando tudo em nosso favor.
Você não pode querer manipular as pessoas conforme seus interesses. Isso agora acabou.
- Estou enfraquecida... Acho que vou morrer de novo!
- Não. Seu espírito é eterno. Você vai dormir, descansar. Irá para um hospital de tratamento onde receberá ajuda e orientação. Sua atitude ao acordar
vai determinar o tempo da sua recuperação. Lembre-se: Deus está no leme de tudo. Entregue-se ao Amor Divino que tudo prevê e conduz para melhor.
Fundo suspiro escapou do peito do médium e o espírito não disse mais nada. O dirigente pediu que todos fizessem uma prece em favor daquele espírito sofredor.
Sérgio orava comovido. Apesar de tudo, ele não sentia rancor contra Flora. Julgava que ela já era bastante infeliz por pensar daquela forma. Tentara prejudicá-los,
mas conseguira apenas machucar a si mesma, tendo jogado fora uma vida que podei ia ter sido produtiva e feliz e se transformado naquele fantasma sofrido, triste.
Depois disso, sentiu-se aliviado e sereno. Havia uma brisa suave ao seu redor provocando agradável sensação.
Então um dos presentes começou a falar com voz suave:
- Há tempos esperava por esta oportunidade de vir conversar com meus queridos sobrinhos. Acompanho com interesse os problemas que vocês têm enfrentado
e estou feliz por poder dizer que no momento tudo está bem. A ajuda chegou e Flora foi recolhida a um lugar de recuperação de onde não poderá sair por algum tempo.
Pelo menos até que reflita e perceba as coisas com mais clareza. Você, Sérgio, vai ficar bem. Você pediu orientação afirmando que não deseja mais deixar-se envolver
por energias perturbadoras. Para isso é preciso que aprenda como vem se tornando vulnerável a essas energias.
Gostaria que notasse que atrás de um envolvimento ruim, dos assédios maldosos de espíritos desencarnados ou de pessoas encarnadas, sempre está um sentimento
de auto-desvalorização. Uma idéia de que você não é bom o suficiente para desempenhar com êxito as tarefas que a vida lhe confiou.
E você duvida da própria capacidade, faz tudo para provar aos outros o quanto é bom, porém quanto mais se empenha, mais está afirmando o quanto teme seu
desempenho. Não confia no poder que tem.
Você se esquece de que se a vida o colocou em determinada situação é porque você é capaz de desempenhá-la bem. A vida não joga para perder. Só propõe
um desafio quando a pessoa já possui condições de enfrentá-lo e vencer. Durante muito tempo você pediu o sucesso, a prosperidade. Aceitou as regras do jogo, dedicou-se
ao trabalho com honestidade e coragem, esforçou-se. Desenvolveu seus talentos. Como tinha credenciais, a vida lhe deu isso e muito mais. E então você começou a duvidar
da própria capacidade. A vaidade interveio e você quis impressionar os outros. Quis mostrar-se mais capaz do que qualquer outra pessoa. Colocou esse objetivo acima
de qualquer coisa. Afundou no trabalho sem método, deixando de lado o lazer, as atividades que alimentam o espírito, rompeu a ligação com o espiritual.
Então tornou-se vulnerável ao assédio das energias de Flora. Desde que desencarnou, ela estava tentando atingi-los, mas levou tempo. Devo dizer que ela
procurou induzi-lo a duvidar da própria capacidade no trabalho, mas foi você quem, com sua atitude, deu-lhe forças.
Você perguntou, eu respondi. Espero que medite sobre tudo isso para que se liberte de futuras recaídas.
Arlete, estou muito feliz com o nascimento de sua menina. Trata-se de um espírito muito amigo que levará muita alegria a vocês. Quanto à sua pergunta,
posso esclarecer que descobri o que aconteceu com Mário. Confesso que ao chegar aqui, o que eu mais queria era conhecer a verdade. Você foi testemunha da minha dor
com o desaparecimento dele. Perdi o prazer de viver e infelizmente, minha querida, fazendo isso, assinei minha sentença de morte. É a alegria que sustenta nossa
motivação na Terra, renovando as células, mantendo a vida. Quem perde a alegria entra em depressão, abre as portas à doença e à morte. Sinto-me responsável por ter
morrido tão cedo, quando ainda poderia ter reagido e prolongado minha permanência na Terra.
A reencarnação é uma dádiva maravilhosa, uma oportunidade de progresso e de experiências enriquecedoras. Eu a trunquei porque a vida me tirou Mário. Você
se lembra, minha querida, de quanto lamentei a ausência dele, como sofri imaginando que ele tivesse uma doença incurável, um segredo terrível que não queria compartilhar.
Eu o endeusava e o considerei uma vítima, vitimando-me também.
Hoje, lamento essa atitude. Cada pessoa tem sua própria vida. É bom conviver com os que amamos, mas quando isso não é mais possível, o melhor sempre será
tentar ser feliz de outra forma.
Ninguém está com alguém para sempre e o tempo todo. Cada um tem as próprias experiências dentro do seu processo de evolução. Assim, as pessoas se encontram
por algum tempo, fazem-se companhia, mas sempre chega o momento da separação, até o dia em que a vida as reúna de novo. O espírito é eterno e o tempo não conta.
O que vale é desenvolver a consciência, crescer, aprender a se fazer feliz.
Hoje eu sei o que fiz e me arrependo. Cheguei aqui ansiosa, aflita para descobrir a verdade. Durante algum tempo não pude saber de nada. Ciente de que
encurtara minha estada na Terra, desejei recuperar o tempo perdido participando de um grupo de socorro. Pretendia, assim, diminuir um pouco da minha culpa por haver
desvalorizado a vida e jogado fora aquela oportunidade.
Certo dia, em que voltara ao Rio de Janeiro acompanhando um grupo de socorro para aprender a arte de ajudar, senti-me atraída para uma casa da periferia.
Meu coração batia descompassado e eu não sabia por que estava sentindo tanta emoção.
Quando entrei na casa, uma mulher na cozinha praguejava irritada. Uma força interior conduziu-me à sala, onde havia um homem estendido no sofá. Ao lado,
uma garrafa de bebida quase vazia. O homem parecia alheio ao que o rodeava.
Coração batendo forte, reconheci Mário. Estava envelhecido, magro, mas era ele! Continuava vivo na Terra!
A mulher saiu da cozinha e aproximando-se dele gritou colérica:
- Vai ficar aí estendido o tempo todo? Deixe de ser vagabundo, vê se arranja algum dinheiro.
Ele reagiu irritado:
- Não me amole. Me deixe em paz.
- Se soubesse que você era tão incapaz, deixava você ficar com sua mulher. Quando estava com ela, sempre tinha dinheiro para me dar!
Ele se remexeu no sofá e resmungou:
- Não sei onde estava com a cabeça quando abandonei tudo por você.
- Por que não volta pra ela? Vê lá se ela ia querer esse lixo que você é.
- Ela gostava de mim.
- Porque não sabia o que você era. Nunca percebeu que você era um viciado, vagabundo.
- Cala a boca, senão eu te acabo.
Minha cabeça dava voltas e eu estava enojada. A surpresa, a dor, a desilusão foram imensas. Por causa dele eu havia jogado fora os melhores anos de minha
vida. Por causa dele, acabara com minha vida na Terra. Desesperada, fui recolhida pelos amigos que me levaram de volta ao nosso lar no astral.
Quando me senti melhor, envergonhada pelas minhas atitudes, procurei nosso assistente espiritual, que me explicou tudo.
Mário era um jovem ambicioso. Misturou-se a pessoas de boa situação financeira, quis ter posição. Viu no casamento uma maneira de enriquecer. O que eu
não sabia era que meu pai, que a princípio havia tentado ajudar-nos, descobriu que Mário tinha ligações com traficantes de drogas. Que era na qualidade de traficante
que ele ganhava dinheiro para manter-se freqüentando a sociedade. Soube também que ele tinha uma amante com a qual continuava mantendo relações mesmo depois do nosso
casamento. Meu pai chamou-o e o ameaçou de entregá-lo à polícia caso ele me prejudicasse. Dava-lhe dinheiro na tentativa de impedir que ele continuasse traficando,
inclusive pondo em risco nossas vidas. Não sei como nunca percebi nada. Estava cega. Às vezes, ele desaparecia por vários dias, mas me dizia que estava viajando
a negócios, e eu acreditava. Quando ele começou a receber ameaças de outros traficantes, meu pai ficou com medo que eu fosse atingida. Por isso, deu-lhe muito dinheiro
e pediu-lhe que se afastasse de mim. Ele se foi, deixou aquela carta que você conhece. Durante os anos que vivi depois de sua partida, meu pai continuou a dar-lhe
dinheiro. Mas depois de minha morte, ele suspendeu tudo. Por isso Mário estava na miséria.
Estou contando tudo isso porque quero penitenciar-me das minhas atitudes. Pensei que estivesse sendo fiel ao meu amor, acreditei que Mário se havia sacrificado
pelo nosso bem. Entretanto, eu me mostrava apenas revoltada. Ávida, para me proteger, havia-me livrado da convivência com um homem cruel, mentiroso, que tripudiava
sobre meus sentimentos. Ela me concedeu uma chance de mudar e de ser verdadeiramente feliz. Mas eu não aceitei. Queria que tudo fosse do meu jeito. Se não me dessem
Mário, não queria mais viver! Pode haver prepotência maior?
Estou me penitenciando. Errei. Hoje eu sei. Quando a vida realiza alguma mudança, mesmo que não possamos entender por quê, sempre é para melhor. Ainda
que nos traga dor, sempre haverá outras compensações, outros caminhos de renovação, com maiores chances de felicidade.
Lágrimas rolavam pelos olhos de Arlete, penalizada com o drama de Amélia. Esta, porém, continuou:
- Não me lamente, minha querida. Tudo foi para o bem. Hoje eu sei e agradeço as bênçãos que a vida me deu. Eu não soube avaliar naquele momento. Contudo,
agora, estou me renovando. Sei que Mário um dia também vai acordar para uma vida melhor. Tudo está certo do jeito que está. Quanto a mim, aprendi minha lição. Nunca
mais vou me pendurar nos outros. Devo dizer que me sinto feliz agora. Tenho aprendido muito. Principalmente a valorizar a vida. Por isso, minha querida, aproveite
o mais que puder. Viva suas experiências com coragem, esteja acordada para as lições do dia-a-dia. Elas são a nossa riqueza porque nos ensinam a viver melhor.
Vocês agora poderão desfrutar de certo tempo de paz e harmonia. Aproveitem e valorizem a felicidade que lhes veio às mãos. Agradeço a boa vontade e o
tempo que me concederam para esta conversa. Que Deus os abençoe!
As luzes acenderam e Sérgio levantou-se procurando Arlete, abraçando-a com amor. A comoção do momento não os deixou falar. Saíram abraçados, sentindo
o coração leve e alegre. Uma vez fora, no jardim, Sérgio beijou-lhe o rosto enternecido.
- Eu amo você - disse comovido.
- Eu também o amo!
Depois de alguns instantes, Sérgio comentou:
- Você vai ter uma menina! Não foi o que ela disse? Arlete sorriu:
- É verdade. Você ficou decepcionado?
- De forma alguma. Sempre quis uma menina!
Foi então que ele viu Diva sair abraçada com Flávio. Olhou atônito para ambos e Arlete desatou a rir. Sérgio não se conteve:
- Eles estão namorando! Você sabia? Sou sempre o último a saber! Por que ninguém me disse nada?
- Por que eu me declarei hoje. Vamos casar-nos dentro de duas semanas - esclareceu Flávio.
- No mínimo um mês. E os papéis? - lembrou Sérgio.
- Não quero esperar. Vamos casar-nos o quanto antes - respondeu Flávio.
- Nada disso - tornou Arlete, bem-humorada. - Quando eu tive pressa, vocês me fizeram esperar um tempão. Havia mil coisas a resolver. Agora vocês também
terão que fazer tudo como manda o figurino, com a vinda da família do interior, a festa e tudo o mais.
Diva aproximou-se de Flávio dizendo:
- Arlete tem razão. Temos que planejar tudo. Mas enquanto estivermos esperando, ficarei do seu lado o mais que puder!
Ele sorriu alegre, abraçando-a feliz. Walter, que se aproximava, vendo-os, hesitou um pouco, depois aproximou-se dizendo:
- Afinal resolveram assumir. Ainda bem. Eu não agüentava mais me perguntar com qual dos dois ela desejava ficar. Venha de lá um abraço, meu amigo. Desejo
a vocês muitas felicidades. Não fique me olhando com essa cara de dúvida. Eu gosto dela, mas ela preferiu você e eu vou superar isso.
Flávio sorriu e abraçou o amigo com carinho.
- Estou com fome - reclamou Arlete. - Vamos comer em algum lugar?
- Vamos - concordou Sérgio, contente. - Hoje temos muitas coisas para comemorar. É uma noite de alegria. Estamos juntos e tudo está em paz.
Enquanto eles se dirigiam ao carro, sentiram a brisa leve que passava, delicada, envolvendo-os em agradável sensação de bem-estar, como a confirmar que
naquele instante tudo era harmonia, tudo estava mesmo em paz.
Fim.




2Índice
PRÓLOGO ................................................................................................................... 5
CAPÍTULO 01 ............................................................................................................. 7
CAPÍTULO 02 ........................................................................................................... 14
CAPÍTULO 03 ........................................................................................................... 20
CAPÍTULO 4 ............................................................................................................. 26
CAPÍTULO 5 ............................................................................................................. 32
CAPÍTULO 6 ............................................................................................................. 39
CAPÍTULO 7 ............................................................................................................. 45
CAPÍTULO 8 ............................................................................................................. 51
CAPÍTULO 9 ............................................................................................................. 57
CAPÍTULO 10 ........................................................................................................... 63
CAPÍTULO 11 ........................................................................................................... 70
CAPÍTULO 12 ........................................................................................................... 76
CAPÍTULO 13 ........................................................................................................... 82
CAPÍTULO 14 ........................................................................................................... 88
CAPÍTULO 15 ........................................................................................................... 94
CAPÍTULO 16 ......................................................................................................... 100
CAPÍTULO 18 ......................................................................................................... 112
CAPÍTULO 19 ......................................................................................................... 119
CAPÍTULO 20 ......................................................................................................... 125
CAPÍTULO 22 ......................................................................................................... 138
CAPÍTULO 23 ......................................................................................................... 144
CAPÍTULO 24 ......................................................................................................... 150
CAPÍTULO 25 ......................................................................................................... 156
CAPÍTULO 26 ......................................................................................................... 162
CAPÍTULO 27 ......................................................................................................... 168
CAPÍTULO 28 ......................................................................................................... 174
CAPÍTULO 30 ......................................................................................................... 187




2
Onde está Tereza?


Pelo espírito Lucius
Zibia Gasparetto

1ª Edição
Dezembro-2007

Centro de estudos Vida& Consciência Editora Ltda.
São Paulo-SP.



Aprendi a ler aos quatro anos de idade e, aos oito, muitas vezes passava horas
sentadas, escrevendo histórias. Com a chegada da adolescência, deixei esse
comportamento de lado e só o retornei na forma de psicografia quando, anos
depois, meu marido e eu, uma vez por semana, estudávamos os livros de Allan
Kardec. Meu braço doía e a mão mexia contra minha vontade. Colocados papéis e
lápis na minha frente, comecei a escrever rapidamente.
Nós freqüentávamos as sessões da Federação Espírita e eu participava como
médium de incorporação, psicografava e, algumas vezes, utilizava o dom da
xenoglossia (faculdade de falar ou escrever línguas estranhas). Nessa época,
recebia contos, mensagens de orientação, histórias e, assim, os romances
começaram a fluir.
A sensibilidade se abre e vemos muitas coisas que não entendemos. Venho
estudando há muitos anos e ainda não tenho todas as respostas. Mas sei que é
melhor disciplinarmos o emocional, enfrentar os medos e tomar posse de nós
mesmos para que as energias dos outros não nos envolvam.
Se conseguirmos isso e nos ligarmos aos espíritos evoluídos, a mediunidade é uma
fonte de conhecimento, saúde e lucidez.
Estudar a vida espiritual abre as portas do futuro, derrotando a morte e nos
mostrando que somos seres imortais.

ZIBIA GASPARETTO




3
LUCIUS

ESSE AMIGO ESPIRITUAL, QUE VEM ME INSPIRANDO EM TODOS OS
ROMANCES, TRABALHOU SEM REVELAR SEU NOME QUANDO EU
COMECEI A PSICOGRAFAR. EU SENTIA SUA PRESENÇA, CHEGUEI A VÊ-
LO ALGUMAS VEZES, MAS NUNCA PERGUNTEI NADA. PREFIRO AS
MANIFESTAÇÕES ESPONTÂNEAS. SÓ QUANDO TERMINEI O LIVRO O
AMOR VENCEU, NA ÚLTIMA PÁGINA, ELE ASSINOU LUCIUS.
A RESPEITO DE SUA TRAJETÓRIA SÓ SEI QUE ELE REVELOU NO LIVRO
O FIO DO DESTINO, EM QUE RELATA DUAS ENCARNAÇÕES NA TERRA:
A MAIS ANTIGA COMO MEMBRO DO PARLAMENTO INGLÊS E A OUTRA
COMO ESCRITOR E JUIZ NA FRANÇA. PARA MIM ELE TEM SIDO UM
MESTRE. SUAS ENERGIAS SÃO PRAZEROSAS E QUANDO ELE SE
APROXIMA, MEU PENSAMENTO TORNA-SE CLARO, LÚCIDO. SINTO-ME
MUITO BEM.
NOS PRIMEIROS TEMPOS EM QUE TRABALHAMOS JUNTOS, ELE
COSTUMAVA ANDAR COMIGO E, CONFORME O LUGAR, AS CENAS QUE
EU PRESENCIAVA ME ORIENTAVAM, FAZENDO-ME IR MAIS FUNDO
NAS OBSERVAÇÕES. DEPOIS DE ALGUM TEMPO, ELE PASSOU A VIR
APENAS NOS MOMENTOS DE TRABALHO.
APRENDI MUITO, TANTO COM SEUS CONSELHOS QUANTO COM AS
HISTÓRIAS QUE ELE ME PASSOU.
ALGUMAS PESSOAS ME PERGUNTAM "POR QUE VOCÊ".
NÃO SEI POR QUE ELE ME ESCOLHEU, MAS SINTO QUE OS LAÇOS QUE
NOS UNEM SÃO ANTIGOS E CONTINUARÃO EXISTINDO PELA
ETERNIDADE.

ZIBIA GASPARETTO.




4
PRÓLOGO

Caminhando depressa pela rua solitária, Marília pensava nos últimos acontecimentos. A
cena trágica de momentos antes não lhe saía da cabeça.
A noite estava escura e algumas pessoas caminhavam apressadas, ouvindo o ruído de
alguns trovões com receio da tempestade que se alinhava. Marília, porém, estava mais
voltada ao seu drama interior do que à chuva que ameaçava cair.
A cena de momentos antes a fizera rever seus dez anos de casada. Dez anos tentando
levar adiante um relacionamento que desde o início havia sido difícil, não pelas
exigências de Otávio como pelo temperamento maldoso, vendo em tudo e em todos más
intenções.
Desde o nascimento de Altair, há cinco anos, ele havia se tornado pior, mais exigente,
mais implicante. Apesar disso, Marília tentara levar casamento adiante. Alimentava a
esperança de que ele mudasse, entendesse melhor sua responsabilidade de família.
Durante a tarde, alguém colocara uma carta debaixo da porta de sua casa. Marília a
apanhara e no envelope não havia remetente, apenas seu nome. Abriu e procurou a
assinatura: Um amigo!
Começou a ler:
Você é uma boa pessoa e não precisa aceitar a companhia de um marido perverso, que
não valoriza a família, entregando-se a toda sorte de vícios e envolvido no crime.
Afaste-se dele antes que seja tarde. Se não acredita, vá hoje à noite, às dez horas, até o
endereço abaixo e terá a confirmação do que estou afirmando. "Um amigo".
Marília sentiu um aperto no peito. Há muito tempo desconfiava das atividades de
Otávio. Ele nunca comentava sobre seu trabalho, dizia apenas que era representante
comercial, mas ela nunca o via anotando pedidos, saindo para visitar clientes; ainda
assim, de vez em quando ele aparecia com dinheiro, pagava o aluguel sempre com
atraso, comprava alguns alimentos, e quando ela lhe pedia algum dinheiro para as
despesas, dizia que não tinha.
Ela sabia que o que ele dizia não era verdade. Otávio vestia-se muito bem, saía quase
todas as noites, voltava tarde, e se a via acordada ficava nervoso, brigava.
Por esse motivo, mesmo que não estivesse dormindo, Marília fingia a fim de evitar
discussões.
Ao ler a carta ela sentira necessidade de descobrir aonde ele ia quando saía à noite e
acabar com o mistério. Com o coração aos saltos, cinco minutos antes das dez ela
chegou ao endereço indicado.
A noite estava escura e ameaçadora, mas toda a atenção dela estava focada na casa
térrea que tinha diante de si.
Nenhuma luz acesa, certamente não havia ninguém. Fora bobagem acreditar em uma
carta anônima. Ela fora enganada. Em um gesto natural, empurrou a porta e para seu
espanto, ela se abriu.
Ficou alguns instantes indecisa, mas a curiosidade foi maior. Entrou e foi caminhando
cautelosa, tateando as paredes em busca do interruptor.
Sob uma luz fraca e amarelada apareceu uma sala de estar; os móveis estavam
revolvidos, as gavetas abertas, como se alguém chovesse estado lá, procurando alguma
coisa. Assustada, Marília recuou, ia sair, quando teve sua atenção despertada para outra
sala de onde saía uma luz pálida. A curiosidade foi mais forte e ela caminhou até lá.
O que viu a fez parar estarrecida. Sob a luz fraca de um abajur, havia uma cama de casal
e sobre ela um homem e uma mulher, ambos seminus, os lençóis manchados de sangue
e revirados.


5
Marília quis gritar, mas a voz morreu na garganta. Aterrorizada, sem sabre o que fazer,
procurou o interruptor e acendeu a luz. Nessa hora reconheceu Otávio, a mulher, não
muito jovem, mas bonita, era desconhecida.
Marília sentiu que ia desmaiar e reagiu, não podia perder os sentidos, precisava pedir
socorro. Aproximou-se mais e percebeu que ambos estavam mortos.
Horrorizada, ela respirou fundo e saiu correndo daquele lugar.
Seu marido estava morto! Provavelmente ao lado da amante. Talvez um marido
ofendido houvesse feito aquilo. O que fazer? Pedir socorro não adiantaria. Eles estavam
mortos. Teve medo. Poderiam pensar que ela estivesse envolvida no crime. Decidiu ir
embora.
A chuva começou cair, confundindo-se com as lágrimas que rolavam de seus olhos
aflitos. De repente, um pensamento de medo a acometeu. E se alguém a tivesse visto
sair daquela casa? Nesse caso poderiam culpá-la.
Quem escrevera a carta talvez fosse o próprio assassino, preparando uma cilada para
que ela parecesse culpada. Marília tremia sem saber se era medo ou de frio, sentindo o
corpo gelado, os pés encharcados e a água escorrendo.
A tempestade desabara violenta e não havia mais ninguém na rua. Marília, porém, não
queria parar, com receio de ser vista próxima àquele lugar.
Parou no ponto do ônibus onde havia uma pequena cobertura. Pouco depois ele chegou,
ela subiu e notou que estava quase vazio.
O cobrador olhou-a penalizado e murmurou qualquer comentário que ela sequer ouviu.
Não via à hora de chegar em casa. Quando ia descer ouviu o motorista aconselhá-la:
- Tome um chá bem quente para não ficar doente!
Marília desceu e andou até sua casa, entrou e imediatamente foi tomar banho quente.
Vestiu o roupão, enrolou a toalha nos cabelos e foi devagar até o quarto de Altair com o
coração aos saltos.
Abriu a porta lentamente e respirou aliviada. Ele dormia e Dorita, também. Ela não a
vira sair, o que era bom. Voltou ao quarto, secou os cabelos, vestiu a camisola, mas não
parava de tremer.
A cena que presenciara ficara gravada em sua mente e ela não sabia o que fazer. Pensou
em ligar para a polícia, mas teve medo. Para os pais de Otávio, nem pensar. Como lhes
dizer que estivera na cena do crime e não chamara a polícia?
Decidiu que o melhor seria esperar pelos acontecimentos. Ela não havia feito nada de
mau. Ao contrário, estava arrasada pela traição e pela morte do marido. Era uma vítima,
não uma criminosa.
Mas o fato de não falar a ninguém o que tinha visto a deixava aflita. O que dizer quando
a polícia viesse para dar-lhe a triste notícia? Suspeitaria dela? Afinal, uma mulher
ciumenta é sempre perigosa.
Mas apesar de haver sido traída, Marília estava triste pela morte de Otávio. Era um
aperto no peito, uma sensação de perda e piedade pela morte terrível que ele tivera.
Deitou-se, mas não consegui dormir. Ficou se revirando na cama, lutando com os
pensamentos tumultuados e desejando esquecer, sem conseguir.




6
CAPÍTULO 01

Marília abriu os olhos assustada e olhou em volta. Por um instante pensou que nada
havia acontecido e seu marido estivesse dormindo ao seu lado. Mas não havia ninguém.
Sentia a cabeça pesada e o aperto no peito continuava. Havia pegado no sono quando o
dia já estava amanhecendo. Olhou no relógio: sete horas.
Altair já deveria estar se vestindo para ir à escola. Levantou-se, lavou-se, vestiu um robe
e foi ai quarto do filho. O menino não queria levantar e Dorita tentava fazê-lo vestir
com dificuldade.
Marília aproximou-se:
- Deixe comigo. Vá aprontar o café.
Dorita saiu aliviada, e Marília, alisando a cabeça do menino, disse:
- Vamos filho. Está na hora. Não era hoje que você ia começar a jogar no time da
escola?
Essas palavras soaram como uma mágica. Altair abriu os olhos e pulou da cama.
- Que horas são? Estou atrasado?
- Ainda não. Mas está em cima da hora. Vamos ao banheiro. Eu o ajudarei.
Em poucos minutos Altair estava pronto para tomar café. Eles desceram e foram à copa.
O cheiro de café gostoso fez Marília recordar-se que desde que recebera a carta não
havia comido nada. Sentia o estômago vazio e certa fraqueza.
Sentou-se ao lado do filho, serviu-o, e enquanto ele comia, ela serviu-se de café com
leite, apanhou um pão, passou manteiga e começou a comer.
Agora mais do que nunca precisava sentir-se forte para enfrentar o que viria logo mais.
Dorita foi levar Altair à escola, que ficava a alguns quarteirões dali, e ela voltou ao
quarto para se vestir. Ao abrir o guarda-roupa viu os ternos de Otávio, alinhados com
cuidado e teve um sobressalto. Sabia que ele nunca mais voltaria para casa.
Lágrimas voltaram a seus olhos, mas ela enxugou-as com raiva. Não podia fraquejar.
Quando a polícia aparecesse, precisava fingir que não sabia de nada. Não podia contar
que estivera na cena do crime e não quisera dar queixa.
Caprichou na maquiagem, tentando dissimular seu abatimento. Talvez não tenha
conseguido completamente, pois quando Dorita voltou da escola disse logo:
- A senhora está abatida. Não dormiu bem à noite?
- É. Perdi o sono, fiquei esperando Otávio chegar e como ele não chegou ainda fiquei
preocupada.
- Não deveria. Ele já fez isso várias vezes. Daqui a pouco ele chega.
- É verdade. Bobagem minha.
Dorita suspirou, ia dizer alguma coisa, mas desistiu. De que adiantaria? Por essas e
outras é que ela não ia na conversa de homens. Nunca aceitaria um marido como aquele.
Certamente, deveria estar com outra.
Ele foi cuidar do serviço e Marília foi arrumar as gavetas de Altair, que sempre remexia
tudo e deixava bagunçado.
As horas foram passando e nenhuma notícia. Na hora do almoço, Dorita havia ido
buscar Altair e de volta com o menino perguntou:
- Dona Marília, o seu Otávio ainda não chegou?


7
- Não, Dorita. Estou muito preocupada
- Vai ver que ele teve algum negócio urgente e precisou viajar. Já fez isso uma vez sem
avisar.
- É, poder ser.
O tempo foi passando, já estava escurecendo quando a campainha tocou. Marília
estremeceu. Dorita foi atender e pouco depois voltou, olhando com ar assustado.
- Dona Marília, é a polícia.
Marília empalideceu e levantou-se imediatamente. Foi até a sala onde dois policiais a
esperavam.
- Dona Marília Marques de Oliveira?
- Sim.
- Precisamos conversar com a senhora em particular
Altair estado ao lado mãe, olhando-os com curiosidade.
- Dorita, leve Altair para o quarto, veja se ele já acabou a tarefa da escola.
O menino não queria ir, mas um olhar imperioso da mãe o fez obedecer. Quando
ficaram a sós, ele continuou:
- Podem falar.
- Seu marido se chama Otávio de Oliveira?
- Sim.
- Ele está em casa?
- Não senhor. Ele saiu ontem à noite e não voltou.
- E a senhora não ficou preocupada?
- Um pouco, mas ele costuma fazer isso e às vezes até viaja sem avisar.
Os dois policiais trocaram um olhar de cumplicidade, e depois um deles disse:
- Infelizmente, as notícias que trazemos não são boas. Seu marido está morto.
Marília sentiu uma tontura forte e teria caído se um deles não a houvesse amparado.
Apesar de saber a verdade, de ter visto a cena terrível, ao ouvir a notícia dita cruamente
pelo policial tornou-se mais consciente da verdade.
Um deles correu à cozinha, apanhou um copo de água e deu-o a ela:
- Acalme-se. Beba.
Ela apanhou o copo com as mãos trêmulas e bebeu alguns goles. Depois perguntou com
a voz fraca:
- Como foi?
- Ele foi assassinado.
As lágrimas corriam pelas faces de Marília e ela não estava fingindo. Eram verdadeiras.
A lembrança da cena que presenciara não lhe saía do pensamento.
- A senhora sabe se seu marido tinha brigado com alguém ou tinha inimigos?
- Não. Meu marido não trazia seus amigos em casa e nunca me contava o que fazia
quando saía.
- A senhora não perguntava?
- Sempre, porém ele ficava irritado e não respondia.
- Ele foi encontrado na cama com outra mulher, ambos mortos. A senhora conhecia essa
mulher?
- Não. Quando ele passava as noites fora, eu desconfiava. Perguntava a ele brigava.
Dizia que ficava bebendo com os amigos e cuidando de negócios. Com o passar do
tempo não perguntei mais.
- A senhora vai precisar vir conosco para reconhecer o corpo.
- Agora?
- Sim.
- Preciso avisar os pais dele.


8
- Pode nos dar o nome e endereço, nós faremos isso.
Marília tremia e eles a observavam calados. Ela foi até a mesinha do telefone, apanhou
um bloco e escreveu o nome, o endereço e o número do telefone dos pais de Otávio,
destacou a folha e entregou aos policias.
- Vou subir para me trocar, não vou demorar.
Eles concordaram e Marília subiu a escada, sentindo as pernas trêmulas, as mãos frias, o
coração apertado. Assim que entrou no quarto, Altair correu para ela indagando:
- É verdade que o papai está morto?
Antes que Marília respondesse, Dorita entrou aflita:
- Não consegui segurá-lo. Infelizmente os policiais falavam alto e ouvimos o que
disseram. Eu disse ao Altair que não era verdade.
Marília abraçou o menino, dizendo com voz que procurou tornar firme:
- É verdade, sim. Seu pai morreu. Mas eu estou aqui, com você.
Altair tremia e perguntou:
- Você não vai morrer, vai?
- Não. Vamos continuar juntos: eu, você e Dorita. Não tenha medo.
- Com você eu não tenho medo de nada.
- Isso meu filho.
- Agora eu preciso sair com os policiais. Mas assim que puder estarei de volta.
- Posso ir com você? Tenho medo de ficar sozinho.
- É melhor ficar com a Dorita. Não há perigo de nada. Saia um pouco, meu filho,
preciso me trocar.
Dorita puxou-o pela mão e eles saíram. Marília arrumou-se o mais rápido que pôde,
apanhou a bolsa, mas quando abriu a porta do quarto, Altair a estava esperando.
Seus olhos aflitos procuraram os dela:
- Eu quero ir com você, tenho medo de ficar aqui.
Eles desceram e Marília disse aos policiais:
- Meu filho está muito assustado. Não quer ficar sozinho com Dorita.
- Pode levá-lo com a moça.
Dorita rapidamente fechou as janelas e saíram. Alguns vizinhos estavam olhando
curiosos e Marília entrou rapidamente no carro da polícia, puxando Altair pela mão.
Dorita acomodou-se em seguida e os policiais ligaram o veículo e saíram.
Uma vez no carro, um deles esclareceu:
- Passaremos antes no local onde está o corpo para fazer o reconhecimento e depois
teremos de ir à delegacia.
Marília arrepiou-se ao lembrar-se da cena que presenciará na noite anterior, mas sentiu-
se aliviada ao perceber que não estava sendo levada para lá.
Passava das nove da noite quando entraram em um prédio onde algumas pessoas
entravam e saíam. Os policiais acomodaram os três em uma sala e se foram. Pouco
depois voltaram e um deles disse:
- A senhora vem conosco, os dois esperam aqui.
Marília sentou as pernas tremerem. Altair segurou o braço da mãe e ela, procurando
aparentar calma, disse:
- Não tenha medo. Vou à sala ao lado e volto logo. Fique calmo. Não vai acontecer
nada.
Os policiais a levaram por um corredor mal iluminado até uma porta onde um homem
vestindo jaleco cinzento, fé-los entrar. Havia algumas mesas vazias e duas onde estavam
corpos cobertos com lençol.




9
O homem encaminhou-os para uma delas, pediu a Marília que se aproximasse, depois
levantou a ponta do lençol. Ela olhou o corpo procurando controlar a emoção.
- É ele!- afirmou sem conter as lágrimas. - É meu marido Otávio.
- Tem certeza?- indagou um dos policiais.
- Sim. É ele.
O homem cobriu o rosto do morto imediatamente, e levou-a até a outra mesa, pedindo
que se aproximasse.
Ela percebeu que o outro corpo que estava ali era da mulher e sentiu uma tontura forte,
suas pernas bambearam.
Um dos policias segurou seu braço com força dizendo:
- Coragem. É preciso que olhe para ela e veja se a identifica. Não sabemos quem é. Seu
marido estava com os documentos, mas não achamos nada dela. A senhora precisa nos
ajudar.
Marília respirou fundo e depois respondeu:
- Está bem.
O homem levantou a ponta do lençol e ela olhou. A mulher era mais velha do que notara
naquela noite. Em seu pescoço havia uma enorme gaze que cobria um ferimento.
- Pode nos dizer quem é ela?
- Não. Não a conheço.
- Está certa disso?
- Estou.
- Está bem. Vamos embora.
Os policiais conduziram Marília para fora da sala. Ela soluçava e um deles entregou-lhe
um lenço de papel que ela pegou, enxugou o rosto, assuou o nariz. Ao chegarem à porta
da sala onde Altair estava ela parou.
- Preciso-me controlar-disse - Meu filho está muito assustado. Não quero que fique pior.
- Ele não se envolvia muito com o trabalho da casa. Era D. Marília que me dizia o que
fazer.
- Sei. Que dizer que ele não conversava com você?
- Só às vezes, para perguntar pela D. Marília, quando não a via por perto. Ele quase não
parava em casa.
Monteiro fez uma ligeira pausa, depois continuou:
- Ele tinha muitos amigos?
- Só se tivesse na rua, porque em casa nunca apareceu nenhum.
- Pelo jeito ele não era apegado à família.
- Não mesmo. Ele mal olhava para o filho e brigava quando o menino falava mais alto
ou corria pela casa.
- Pelo seu tom percebo que não gostava muito dele.
- Não é porque ele está morto que eu não vou dizer a verdade. Eu não gostava mesmo
dele.
- Por quê? Alguma vez ele a maltratou?
- Não. Ele mal me dirigia a palavra. É porque eu via como ele tratava a D. Marília. Ela
sim, é uma mulher bondosa, boa esposa e boa mãe.
- Ele tinha motivos para não tratá-la bem?
- De forma alguma. Como eu disse, ela sempre foi uma mulher muito correta e vivia
para a família, enquanto ele...
- O que tem ele?
- Saía quase todas as noites, muitas vezes nem voltava para casa.
- Por esse motivo ela brigava com ele?



10
- Não, pelo contrário. Se ela lhe perguntasse aonde ia ou aonde tinha estado, ele brigava.
Virava o bicho. Tanto que com o tempo ela não perguntou mais.
- Seu patrão trabalhava em quê?
- Não sei. Ele nunca falava sobre o seu trabalho.
- Há alguma coisa diferente ou estranha que você tenha notado nos últimos dias?
- Não.
- Nem na noite do crime?
- Não senhor. Seu Otávio costumava passar algumas noites fora e até voltava no fim da
tarde do outro dia. Teve uma ocasião em que ele foi viajar e não avisou nada. Ficou
quase três dias sem aparecer.
- O que você pensava disso?
- Bom senhor delegado, para mim quando um homem casado dorme fora, tem mulher
no pedaço. Pelo que sei, ele não estava sozinho quando foi morto.
- Você nunca desconfiou de nada?
- Não senhor.
- Está bem. Pode ir. Se lembrar de mais alguma coisa, ainda que lhe pareça
insignificante, entre em contato comigo. Tudo pode nos ajudar a descobrir que cometeu
este crime.
Dorita deixou a sala mais tranqüila. O delegado mostrara-se cordial e ela se sentira
valorizada por poder desabafar e contar que sabia.
- E então, como foi?- indagou Marília quando a viu.
- Bem. Eu estava com medo, mas o delegado soube conversar. Eu contei o que sabia.
Disse a verdade.
- Fez bem.
- O que vai acontecer agora? É tarde e Altair está morto de sono.
- Perguntei quando eles cão liberar o corpo de Otávio, estou esperando uma resposta.
Nesse momento, um casal entrou na sala, ela em lágrimas, ele com o olhar assustado.
Vendo-os, Marília levantou-se:
- Dona Emilia, viu que tragédia?
A mulher procurou conter-se dizendo com a voz abafada:
- Eu ainda não estou acreditando! Isso não aconteceu com meu Otavinho!
- Infelizmente, é verdade. Eu queria que não houvesse acontecido - respondeu Marília,
tentando abraça - lá.
Ele fingiu que não viu, voltou-se para o marido, abraçando e soluçando. Marilia deixou
cair os braços desanimados. Ela sabia que a sogra nunca aceitara seu casamento com
Otávio. Sempre que podia procurava deixar claro o que sentia com relação a ela,
comentando com amigos e parentes que Marília não era boa o suficiente para seu filho,
um rapaz bonito, cheio de qualidades e com futuro brilhante.
Marília não sabia como ela chegara a essa conclusão, uma vez que Otávio não era como
ela dizia. Era alto, forte, mas intolerante, fechado e maldoso. Embora ficasse revoltada
com o comportamento da sogra, que chagava a dizer ao filho o que pensava dela,
tentando separa-los, ela procurava não levá-la a sério.
Nos primeiros dias de casada, Marília perguntava ao marido porque a sogra a tratava
daquela forma. Mas ele dera de ombros e lhe dissera que não se importava com o que a
mãe dizia e que ela deveria fazer o mesmo. Proibiu-a de voltar ao assunto.
Já Herculano, seu sogro, era menos implicante e ficava em volta da esposa fazendo-lhes
todas as vontades elogiando-há o tempo todo, indiferente ao seu mau humor contumaz.
Ele sempre conservava um sorriso nos lábios fosse qual fosse à situação. Mas Marília
não confiava muito nessa postura do sogro.
Emília era desagradável, esnobe, exigia do marido coisas difíceis de suportar.


11
Certamente, ele fingia aceitar para acalmá-la. Contudo, esse procedimento contribuía
muito para que ela ficasse mais insatisfeita a cada dia e se colocasse na postura de
vítima da ignorância dos outros.
Emilia continuava chorando abraçada ao marido, que abatido, tentava acamá-la.
Um policial apareceu e Herculano identificou-se e pediu informações sobre a morte do
filho, solicitando autorização para ver o corpo.
- O delegado vai conversar com os senhores.
- Eu quero ver o corpo!- pediu Emilia com voz chorosa. ­ Ainda não acredito que ele
esteja morto. Pode ser um engano.
- Infelizmente, não há nenhum engano. O corpo foi reconhecido pela esposa.
Emília lançou um olhar duvidoso sobre Marília que havia s sentando novamente:
- Ela pode ter se enganado. Eu quero ver esse corpo.
- A senhora diga isso ao delegado. Agora, sentem-se vou avisá-lo que estão aqui.
O policial afastou-se. Emilia lançou um olhar de repulsa para as pessoas que esperavam
ali. Ela não desejava sentar-se ao lado delas.
Mas Herculano viu que havia dois lugares em um banco logo depois do lugar onde
Marília se sentara e conduziu a esposa para lá. Contrariada, ela sentou-se empertigada.
Vinte minutos depois, o policial voltou e convidou-os a falar com o delegado, que os
recebeu atencioso, convidando os a sentarem-se a sua frente.
- Meu nome é Monteiro- disse- Lamento o que aconteceu ao filho de vocês.
- Não acredito que esteja morto. Quero ver o corpo.
- O corpo já foi identificado pela esposa, além do que, no local do crime, havia uma
carteira com os documentos dele.
Emilia teve uma crise de choro:
- Não pode ser! Meu filho, não!
- Como foi isso? - indagou Herculano triste.
- Em uma casa que não era a dele, foram encontrados dois cadáveres, o de seu filho e o
de uma mulher que ainda não foi identificada.
- Uma mulher? Quem poderia ser? ­ indagou Emilia admirada.
- Ainda não sabemos. Na sala da casa os móveis estavam revirados e no quarto, os
corpos do casal morto na cama. Estamos fazendo as primeiras investigações e quero
fazer-lhes algumas perguntas. Saber mais sobre a vida de Otávio para tentar descobrir
alguma pista do assassino.
- Estamos dispostas a colaborar. - tornou Herculano-, mas penso que não podemos fazer
muito.
- Neste momento todas as informações são importantes. Quero que falem tudo o que se
lembrar a respeito dele. Seus hábitos, seus amigos etc.
- Fale você- pediu Emília.
- Otávio sempre foi uma pessoa discreta. Não tinha o hábito de falar sobre sua vida.
- Qual seu grau de escolaridade?
- Otávio não gostava de estudar. Com muito custo conseguimos que chegasse ao ensino
médio.
- Ele tinha irmãos?
Desta vez foi Emília que respondeu:
- Era filho único. O que será de mim agora sem ele?
- Otávio era muito apegado á senhora?
- Ele não era apegado a ninguém - interveio Herculano. - Ela é que era muito apegada a
ele, era Deus no Céu e Otavinho na terra.
- Otavinho sempre foi um bom filho. Era calado, mas de vez em quando ia nos ver e
dava-nos dinheiro.


12
- Ele trabalhava em quê?
- Era representante comercial. Tinha um escritório e até um funcionário.
- Quero o endereço desse escritório.
Os dois entreolharam-se e não responderam logo. Depois Herculano disse:
- Não sei onde fica. Ele nunca me deu o endereço.
- O senhor nunca foi lá?
- Não. Como eu disse, meu filho era discreto, não gostava de falar muito e quando eu
perguntava, ele se irritava, ficava nervoso. Então Emilia ficava zangada comigo.
O delgado olhou-os sério, depois decidiu:
- Está bem. Esta foi uma conversa informal. Vamos tomar algumas providências e
voltaremos a conversar oportunamente.
- Eu quero ver meu filho! - Pediu Emilia.
- Vou pedir que os levem até ele.
- Quando vamos poder fazer o enterro?- indagou Herculano.
- Não posse ser preciso. Depois da autópsia e de algumas investigações o corpo será
liberado.
- Meu Deus!- gemeu Emilia nervosa. - Eles vão cortar o corpo do Otavinho!
- Acalme-se, Emilia- pediu Herculano - É de praxe.
Os dois deixaram a sala e Herculano olhou em volta, procurando a nora e o neto. Não os
viu e comentou:
- Eu queria falar com Marília e consolar Altair.
- Eu quero ver Otavinho logo e ir embora desde lugar horrível o quanto antes.
Um atendente os chamou para leva-los ver os corpos com a intenção de saber se
conheciam a mulher. Os policiais não tinham descoberto a identidade por que ela fora
ferida nas mãos e não puderam colher as impressões digitais, o que impedira sua
identificação.
A hipótese de que eles teriam sido mortos por um marido traído era viável, mas havia
um complicador: a desordem da sala sugeria que estivessem procurando alguma coisa e
que teria sido mais de um. O casal foi morto na cama, o que afastava a probabilidade de
luta.
- O senhor viu onde minha nora foi?- indagou Herculano ao atendente.
- Ela estava esperando para saber quando o corpo seria liberado. Mas como ainda não
sabemos, ele foi embora.
Levados ao necrotério, diante do corpo do filho, os dois choraram muito e Emilia
começou a passar mal.
- É ele mesmo! Até agora eu achava que podia não ser nosso filho!
Herculano abraçou-a, tentando acalmá-la, mas sentia o coração oprimido e decidiu:
- Agora vamos sair daqui. Precisamos tomar um pouco de ar.
Ele a puxou pelo braço e, apesar de ela querer ficar, acabou cedendo.
- Antes de ir precisam ver a mulher que estava com ele e dizer se a conheciam.
Emilia não queria, mas Herculano forçou-a a olhar o rosto dela. Eles disseram que
nunca tinham visto.
Uma vez fora da sala o atendente disse:
- Podem ir embora. Quando o corpo estiver liberado nós os avisaremos.
Eles saíram cabisbaixos, pernas trêmulas, peito oprimido. O rosto do filho e daquela
mulher não lhes saía do pensamento.




13
CAPÍTULO 02

Marília estava sentada na copa, tendo um bloco de anotações a sua frente, calculando o
montante de sua despesa mensal. Mesmo fazendo muita economia ela não sabia como
iria manter a casa.
Precisava procurar um emprego. Havia se formado em letras, porém nunca tinha
trabalhado e, além disso, estava bastante desatualizada.
Encontrara algum dinheiro na gaveta que Otávio costuma deixar sempre fechada e que
ela fora forçada a arrombar, mas o montante mal dera para as despesas do enterro. Seus
sogros não ajudaram em nada, pelo contrário, ela fora forçada a ouvir reclamações da
sogra que pretendia para o filho um enterro mais luxuoso.
Marília suspirou triste. Ainda não se refizera do golpe e a cena trágica que presenciara
naquela noite fatídica não lhe saía da lembrança.
Conversar com Altair sobre o assassinato do pai fora-lhe doloroso. Apesar de
insatisfeita com as atitudes do marido, ela o poupava diante do filho. Preferia que ele
não soubesse dos pontos fracos do pai e que guardasse dele uma lembrança melhor. Mas
o menino, muito inteligente, percebera os fatos e ela não pôde evitar que ele chegasse
perto da verdade.
Seus pais, que moravam no interior de São Paulo, na cidade de Rio Preto, haviam
comparecido ao enterro tinham ido embora ao dia anterior. Apesar de não serem ricos,
haviam lhe deixado algum dinheiro que ela desejava economizar pelo menos até que
começasse a trabalhar.
Conversara com Dorita sobre a dificuldade que teria para lhe pagar o salário, mas ela
lhe dissera que ficaria trabalhando mesmo que Marília não lhe pagasse.
- Obrigada pela confiança, mas por enquanto não sei o que fazer nem quando terei
dinheiro para lhe pagar. Se desejar trabalhar em outro lugar, compreenderei.
Continuaremos amigas do mesmo jeito.
- De jeito nenhum. Estou aqui antes de Altair nascer e esse menino é como se fosse meu
filho. Além disso, adoro trabalhar para senhora, que vai precisar que eu tome conta do
menino quando encontrar serviço. Vou ficar. Estou certa de que juntas encontraremos
uma forma de resolver esse problema. Eu seu que vai dar tudo certo.
Marília a abraçou comovida:
- Você é minha amiga e eu quero que me trate por você. Otávio era quem exigia que me
tratasse de "senhora" e eu nunca concordei.
- Não sei se vou me acostumar...
- Vai sim. Eu me sentirei melhor dessa forma.
- Está bem.
Marília voltou às contas. O pior era o aluguel. Seria preciso mudar-se para uma casa
menor e mais barata. Mas havia o contrato. Teria de procurar o senhorio e conversar
com ele.
O telefone tocou, Dorita atendeu e chamou-a:
- Marília, o Dr. Monteiro deseja falar com você.
Ela atendeu prontamente. Depois dos comprimentos ele disse:
- Preciso que venha à delegacia hoje. Quero falar com a senhora.
- A que horas?
- Dentro de uma hora. Estarei esperando.
- Aconteceu alguma coisa? Encontrou o assassino do meu marido?
- Ainda não, mas encontramos uma pista.


14
Uma hora depois, Marília chegou à delegacia. Estava curiosa. O que iria descobrir sobre
a vida do marido?
Dez minutos depois foi introduzida na sala do Dr. Monteiro que a olhou sério e mandou
que se sentasse na frente a sua mesa.
- E então doutor, o que descobriu?
Ele perguntou com voz firme:
- A senhora conhecia a casa onde ocorreu o crime?
- Não senhor.
- Nunca esteve lá?
Marília estremeceu e hesitou um pouco respondeu:
- Não...
- Suas impressões digitas foram encontradas em dois cômodos da casa. Como explica
isso?
Marília empalideceu. O que temia tinha acontecido. Só lhe restava contar a verdade.
- A senhora mentiu e a aconselho a não esconder nada porque a partir de hoje passa a
ser suspeita de haver assassinado aqueles dois.
Marília desesperou-se:
- Não doutor. Não fui eu. Tenho horror a sangue, nunca seria capaz de cometer esse
crime.
- Otávio não era bom marido. Não a tratava bem, passava muitas noites fora, certamente
com a amante. A senhora tinha sérios motivos para cometer esse crime.
- Mas não fui eu... Juro... Só fui lá por causa da carta anônima que recebi naquela tarde.
- Que carta é essa?
- Está na minha casa, não sei quem a enviou, estava assinada "uma amiga", dizia que se
eu desejasse descobrir onde meu marido passava as noites, fosse naquela noite às dez
horas no endereço escrito embaixo. Não contive a curiosidade. Há muito eu me
perguntava isso. Também perguntava a Otávio, mas em vez de me responder, ele
brigava comigo.
Lágrimas desciam pelas faces de Marília que torcia as mãos aflitas.
- Quando cheguei lá, a casa estava às escuras, pensei que não houvesse ninguém. Mas
quando empurrei levemente a porta, ela abriu. Procurei o interruptor e acendi a luz. A
sala estava revirada, as gavetas abertas, tiveram medo e ia me retirar quando vi que no
cômodo da frente havia uma luz fraca. Fui até lá, o quarto estava iluminado por um
pequeno abajur e eu vi os dois corpos sobre a cama.
Ela fez ligeira pausa, a lembrança da trágica cena ainda estava viva em sua memória.
Estava difícil continuar.
Notando o quanto ela estava nervosa, o delegado apanhou um copo de água e deu-o a
ela:
- Beba. Acalme-se.
Marília apanhou o copo com as mãos trêmulas e tomou alguns goles.
- Continue...
Ela respirou fundo e prosseguiu:
- Suspeitei que fosse Otávio. Eu estava muito assustada, mas precisava saber a verdade.
Então, acendi a luz aproximei-me da cama. O que vi foi horrível, jamais esquecerei. Os
dois corpos em meio aos lençóis cheios de sangue, quase desmaiei, foi preciso segurar-
me na mesinha ao lado da cama para não cair. Percebi que estavam mortos. O medo foi
tamanho que saí correndo. Chovia muito e fiquei ensopada. Tomei um ônibus e fui para
casa.
- Porque não chamou a polícia? Eles poderiam ainda estar vivos e terem sido salvos.



15
- Não, doutor. O rosto deles estava petrificado, tenho certeza de que estavam mortos.
Pensei em chamar a polícia, mas tive medo. Se estivesse vivos eu teria feito isso, mas
do jeito que estavam, de nada adiantaria. A porta estava aberta e logo alguém perceberia
e avisaria a polícia.
- Teve medo do quê?
- Eu imaginei que a carta poderia ter sido uma armadilha do próprio assassino para
incriminar-me. E, infelizmente.
Monteiro passou as mãos pelo queixo várias vezes, um gesto que fazia sempre que
estava pensando e não respondeu logo. Marília tomou mais alguns goles de água, tirou
um lenço da bolsa e enxugou as lágrimas que ainda teimavam em aflorar.
- Se está dizendo a verdade, a senhora pode ter razão. Guardou a carta?
- Sim. Está na minha casa.
- Nesse caso, vou mandar alguém buscá-la. Ela pode ser uma boa pista.
- O senhor estava se referindo às minhas impressões digitais quando disse ao telefone
que tinha uma pista?
- Também. Mas encontramos outras: a de Otávio estava por toda parte, porém não
sabemos se as outras eram da mulher.
- O senhor já sabe quem é ela?
- Estamos investigando. Em breve saberemos. A senhora não sabe mesmo em que seu
marido trabalhava?
- Ele se dizia representante comercial, mas suspeito que minta.
- Vamos investigar suas conta bancárias.
- Ele não tinha contas em banco. Costumava pagar as despesas com dinheiro.
- A senhora está enganada. Ele tinha duas contas bancárias e suspeitamos até que
mandava dinheiro para o exterior.
Marília admirou-se:
- O senhor tem certeza? Eu nunca vi nenhum talão de cheques.
- Deve haver muitas coisas que a senhora não sabe. Ele guardava os talões e outros
documentos na casa onde foi assassinado. Tudo faz crer que seus negócios eram
suspeitos e operava lá.
- Estou surpresa. Nunca imaginei nada disso. Ele pagava o aluguel com atraso e dizia
que estava com pouco dinheiro. O senhor já sabe quanto ele tinha no banco?
- Ainda não.
- Eu gostaria de saber. Estou sem dinheiro. Tenho apenas um pouco que meus pais me
deram depois do enterro. Mas não vai dar para manter a casa mais do quê um mês, com
muita economia.
- É melhor não contar com esse dinheiro por enquanto. Há fortes suspeitas de que seu
marido se envolvia em negócios ilícitos e enquanto não for provado o contrário esse
dinheiro não será liberado.
Marília suspirou resignada, depois disse:
- Estou procurado trabalho, mas como nunca trabalhei não está sendo fácil. Aceito
qualquer coisa.
Monteiro a olhava pensativo. Apesar da suspeita que pesava sobre ela, ele sentia que
Marília falava a verdade.
- A senhora pode ir agora, mas não se ausente da cidade. Tem de ficar a disposição da
polícia.
- Está bem, doutor. Se precisar de mim, sabe onde me encontrar.
Marília deixou a delegacia pensativa. Vivera dez anos com um homem que lhe era
desconhecido. Não sabia em que trabalhava, não conhecia seus amigos nem os lugares
que costumava freqüentar. Como pudera aceitar uma coisa dessas? Porque continuara


16
vivendo ao lado de um homem que a maltratava, que não era bom nem para o próprio
filho?
Quantas vezes chorava desiludida, aturando as grosserias de Otávio, a sua indiferença
com Altair? Há muito compreendera que seu amor por ele foi ilusão. Ele, que durante o
namoro mostrara-se educado e solícito, assim que se casaram foi demonstrando seu lado
verdadeiro. Mas foi depois que Altair nasceu que ela teve a certeza de que o que sentira
não foi amor. O homem que ela imaginava que ele fosse é que despertara seu interesse e
a pensar que o amava.
Apesar dessa certeza, Marília não teve coragem de separar-se dele. As poucas vezes que
mencionara isso, provocava reações tão violentas que teve medo de tentar. Otávio
ameaçava sumir para sempre, levando Altair, o que a deixava desesperada. Ela sabia
que ele seria capaz de cumprir a ameaça.
Agora estava livre, mas por outro lado precisaria trabalhar para manter as despesas. O
dinheiro era pouco, não podia perder tempo.
Marília chamou Dorita e pediu-lhe que fosse comprar o jornal. O que ela fez em
seguida. Enquanto esperava ficou se perguntando que tipo de serviço deveria procurar.
Ela não tinha nenhuma prática, a não ser nos serviços caseiros.
Quando Dorita voltou, alguns minutos depois, ela á havia decidido procurar o que
encontrasse dentro de suas possibilidades. Quanto poderia ganhar em um emprego
desses? Esse era o ponto mais difícil. O aluguel era caro. Enquanto morasse naquela
casa, teria de pagá-lo.
Apanhou o jornal, abriu-o sobre a mesa, procurando a seção de empregos, e começou a
ler. Os que encontraram exigiam experiência comprovada, o que ela não possuía e o
salário inicial não cobririam o montante de suas despesas.
Depois de ler tudo, fechou o jornal, desanimada. O que fazer? Mais do que nunca se
arrependeu de não ter pensado nisso antes. Perdera dez anos de sua vida naquele
casamento infeliz, com medo de separar-se, agüentar as conseqüências e não ter como
sustentar o filho.
A vida a colocara exatamente na situação que temera e era preciso enfrentá-la.
- Se ao menos eu soubesse como! Estou disposta a me esforçar, a fazer qualquer coisa,
mas o quê?
Dorita, vendo-a desanimada, aproximou-se.
- Não desanime-disse, tentando motivá-la. - Nós vamos encontrar um jeito.
Marília olhou-a triste:
- Eu preciso encontrar trabalho, mas nunca trabalhei fora, assim fica difícil. Não tenho
formação profissional. Não sei como encontrar um emprego.
- Deus não vai nos desamparar.
- Você sabe do pior. O delegado me chamou para dizer que sou suspeita de ter matado
Otávio e aquela mulher.
Dorita exclamou assustada:
- Que absurdo! De onde ele tirou essa idéia?
Marília foi até a gaveta da cômoda, apanhou a carta anônima e mostrou-a Dorita:
- Por causa disto. Vou contar-lhe tudo.
Em poucas palavras Marília contou por que fora àquela casa na noite do crime e o que
vira lá. E finalizou:
- Fui ingênua. Talvez o próprio assassino seja o autor da carta e tenha desejado me
envolver para livrar-se da culpa.
- Há muita gente maldosa neste mundo. Mas esse delegado, com a experiência que tem,
deve ter percebido que você jamais seria capaz de cometer um crime bárbaro como
aquele.


17
- Eu contei ao delegado toda a verdade, mas não sei se ele acreditou em mim. Hoje
mesmo vai mandar um policial buscar a carta. Disse que eu não posso sair da cidade.
Como vou arranjar um em pego sendo suspeita de um crime?
- As pessoas são desconfiadas. Não vai ser fácil. Teremos de trabalhar por conta
própria.
- Por conta própria? Em quê? Com que capital? O delegado disse que Otávio tinha
dinheiro no exterior. Ele acha que é um dinheiro ganho de maneira desonesta e por esse
motivo não vou poder recebê-lo.
- Teremos de começar com pouco dinheiro, devagar. Mas para quem tem vontade de
trabalhar, logo ele vai se multiplicar.
- O dinheiro que ainda nos resta dá apenas para comer até o fim desse mês. Você não
entende que não temos nada para começar? O que poderemos fazer?
Dorita pensou um pouco, depois respondeu:
- As pessoas gostam de comer. Vamos fazer coisas gostosas e vender. Um pouco só de
dinheiro que temos, dará para começar.
- Você pensa em fazer comida para vender?
- Por que não? Coisas gostosas, petiscos. Sei fazer coisas deliciosas com pouco
dinheiro.
- Ninguém vai querer comprar. As pessoas fazem na própria casa.
- Qual nada. Muitas adoram comprar tudo pronto. Se for bem gostoso, vai vender e
muito. Você tem receitas muito gostosa de salgadinhos, doces que D. Eugênia ensinou.
Até que eu aprendi! Nós fazemos alguns pratos e eu saio para vender.
- Tenho receio de gastar dinheiro e não dar certo.
- Podemos experimentar com um primeiro prato. Aqueles pães de queijo de D. Eugênia
são deliciosos. Sei fazer direitinho.
- Os seus ficaram iguais aos da vovó, melhores do que os meus.
- Então, em vez de ficar esperando um emprego, vamos começar hoje mesmo. Ainda
temos o queijo que sua mãe trouxe do interior.
- Tudo bem, vamos experimentar. Você faz?
Apesar de não acreditar que a sugestão de Dorita desse certo, o entusiasmo dela fê-la
sentir-se mais animada.
- Enquanto você pensará em uma forma de embalar.
Marília foi para seu quarto, na gaveta da cômoda havia uma caixa onde ela guardava
algumas coisas. Abriu-a e dentre outros objetos havia uma peça de fita estreita de cetim
vermelho. Sorriu satisfeita. Ela compraria alguns saquinhos de papel, colocaria os pães
de queijo e amarraria com a fita.
Foi à cozinha, onde Dorita já começara a trabalhar, e disse-lhe:
- Vou até a papelaria comprar alguns saquinhos de papel. Quantos você acha que serão
necessários e de que tamanho?
Dorita pensou um pouco, depois disse:
- Estou fazendo duas receitas de pão de queijo do tamanho que D. Eugênia faz. Você é
boa nas contas.
- Está bem.
Marília saiu e voltou meia hora depois, trazendo o que precisava. No fim da tarde, os
pães de queijo estavam prontos empacotados. Dorita sorriu satisfeita:
- Estão lindos!
Marília calculou todas as despesas e fez o preço. Depois perguntou:
- O que vamos fazer agora para vendê-los?
- Deixe comigo. Amanhã eu vou sair depois do almoço e tentar vendê-los.



18
Apesar de Marília não acreditar que esse tipo de negócio desse resultado, sentia-se
satisfeita por ter se ocupado e esquecido pelo menos por algumas horas a insegurança
daquele momento.
No fim da tarde do dia seguinte Dorita voltou e colocou nas mãos de Marília várias
notas e algumas moedas.
- Vendi tudo!- disse triunfante-Se tivesse mais teria vendido. Fui a um salão de beleza,
perto da casa da D. Rute, estava lotado e vendi tudo. As pessoas gostaram e algumas
encomendaram para próxima semana.
- Que bom! Não pensei que conseguisse tão rápido.
- A Cleide, dona do salão, disse que eu poderia passar lá todas as tardes para levar
salgadinhos.
- Estou começando a acreditar que pode dar certo!
- Claro que pode. Vou experimentar outras receitas e vamos ter variedades.
- Eu sei fazer algumas coisas deliciosas que aprendi com a minha vó.
- Eu pensei em fazer para amanhã empadinhas de palmito. O que acha?
- Faça isso. Eu vou ver meu livro de receitas e escolher algo para fazer também. Se o
dinheiro que ganharmos não der para todas as despesas, pode ser suficiente para nossa
alimentação.
- Do jeito que vi hoje, se trabalharmos bem, pode ser suficiente para muito mais.
As duas continuaram conversando, fazendo planos para o futuro. Marília sentia-se
encorajada e disposta a esforçar-se ao máximo para que essa primeira experiência desse
certo.




19
CAPÍTULO 03

Dias depois, Marília estava atarefada, ajudando Dorita a fazer pão de queijo. Haviam
recebido uma encomenda grande de uma freguesa do salão de beleza, para a festa de
aniversário de seu filho que completaria dez anos e adorava pão de queijo.
O telefone tocou e Marília atendeu:
- É o delegado Monteiro. Preciso que você venha hoje à delegacia.
- O senhor descobriu o assassino do meu marido?
- Estamos investigando. A senhora dever estar aqui às duas horas.
Marília pensou um pouco, depois respondeu:
- Está bem.
Depois que desligou o telefone ficou pensativa. O que o delegado queria com ela?
Se não encontrou o assassino, talvez tivesse descoberto alguma pista.
Olhou o relógio, eram onze horas. Teria tempo para ajudar Dorita mais um pouco.
Voltou à cozinha.
- Dorita, o delegado quer que eu vá à delegacia hoje, às duas horas.
- Logo hoje que temos esta encomenda ... Não dá para transferir para amanhã?
- Não. Ele estava com uma voz firme, notei que tem pressa. Ainda temos tempo. Só vou
sair à uma e meia. Vou explicar-lhe nossa situação e pedir-lhe que me libere logo.
Às duas horas da tarde, Marília entrou na delegacia e foi imediatamente conduzida à
sala do Dr. Monteiro. Depois dos cumprimentos, ele fê-la sentar em frente a sua mesa.
- O que deseja de mim? - indagou ela.
Monteiro fixou-a sério, estudando as reações do rosto dela, disse:
- Descobrimos que é a mulher que estava com seu marido. Trata-se de Teresa Borges de
Azevedo, esposa de um empresário muito rico. Ela morava com a família no Rio de
Janeiro. A senhora a conhecia?
Marília meneou a cabeça negativamente.
- Nunca ouvi falar nela.
- Tem certeza?
- Tenho. Como já lhe disse meu marido nunca falava de suas amizades.
- Procure lembrar-se. Ela tinha sessenta anos, mais de trinta de casamento, dois filhos
moços.
- É estranho que essa senhora tenha deixado a família para morrer aqui, ao lado do meu
marido. Não entendo. Apesar de tê-los visto juntos na cama, custo a crer que ele
estivesse procurando uma mulher tão mais velha para relacionar-se.
- Esse fato é estranho mesmo, além do que o marido acreditava que ela estivesse
descansando na Europa. Ficou chocado. Veio imediatamente para São Paulo,
reconheceu o corpo hoje pela manhã. Eu tinha esperança de que a senhora pudesse me
dizer alguma coisa a mais.
- Doutor, eu já lhe disse tudo o que sabia. Meu marido era um homem cheio de
mistérios.
- Vou interrogar novamente os pais dele. Talvez conheçam a mulher.
- Não creio. Otávio não se abria com os pais. Eles não se relacionavam muito bem.
- Mesmo assim, vou tentar.
- O que mais o senhor deseja de mim? Como sabe. Fiquei sem dinheiro, então, eu e
Dorita estamos fazendo quitutes para vender. É como pensamos sobreviver, uma vez
que nunca trabalhei e não tenho experiência para conseguir emprego. Hoje estamos com
uma encomenda grande e eu gostaria de voltar logo para casa.


20
- Não posso liberá-la ainda. O marido de Teresa vai chegar dentro de meia hora, desejo
conversar com vocês dois, juntos.
- Não sei como isso poderá ajudá-lo nas investigações. Eu se quer o conheço!
- Precisa colaborar com as investigações. Lembre-se de que enquanto não encontrarmos
o assassino, a senhora continua sendo suspeita de haver cometido esse crime.
Marília suspirou triste e respondeu:
- Está bem, doutor. Tenho todo o interesse me colaborar.
Alguns minutos depois um policial entrou e disse que o marido de Teresa havia
chegado.
- Mande-o entrar-ordenou o delegado.
Um homem alto, forte, cabelos castanhos, um pouco grisalhos, bem vestido entrou.
Tinha o rosto moreno e olhos penetrantes que se fixaram curiosos em Marília.
Depois de cumprimentá-lo, Monteiro disse:
- Está é D. Marília, viúva de Otávio de Oliveira, morto com sua esposa.
Ele estendeu a mão que Marília apertou e disse:
- Alberto de Azevedo.
- Marilia Marques de Oliveira.
- Sente-se, Sr. Azevedo e diga-me: conhecia Otávio de Oliveira?
- Não senhor.
- Nem sua esposa?
Ele meneou a cabeça negativamente, parecia emocionado e nervoso.
- Não. Não consigo entender o que está acontecendo. Custo a crer que Teresa tenha tido
uma relação intima com aquele senhor. Estávamos casados há mais de trinta anos e
minha mulher sempre foi muito correta.
- Mas é verdade. Ela foi encontrada na cama com Otávio, seminua. Não dá para negar
este fato.
- Mesmo assim, custo a crer. Nós temos dois filhos moços. Osmar de trinta e dois anos e
Vitório de vinte e nove. Ela sempre foi muito dedicada à família. Eu vim para cá sem
acreditar que o corpo da mulher assassinada fosse dela. Liguei para a Itália onde ela
deveria estar, mas me disseram que Teresa nunca estivera lá. Isso me assustou. Mas
mesmo assim, duvidei. Tanto que até agora não contei nada aos meus filhos. Nem sei
como dar-lhes essa notícia.
- Ela viajou para a Europa sozinha?
- Com uma amiga. Nos últimos tempos, Teresa andava deprimida, os médicos
aconselharam que ela saísse da rotina, fizesse uma viagem, fosse fazer compras, as
mulheres gostam dessas coisas... Eu não pude acompanhá-la. Tenho negócios
importantes em andamento e naquele momento não dava para viajar.
Então ela encontrou uma amiga dos tempos de faculdade que estava viúva e concordou
em ir com ela.
- O senhor conhecia bem essa amiga?
- Não. Teresa me apresentou pouco antes de viajarem. Chama-se Elvira.
- È só isso que sabe sobre ela?
- Sim. Como eu lhe disse elas foram colegas de faculdade. Teresa fazia filosofia e
Elvira, letras.
- Precisamos encontrar essa mulher. Ela deve saber o que pode ter acontecido. É
provável que essa viagem nunca tenha se realizado.
- O que me diz é um absurdo. Teresa não ia me enganar desse jeito.
- Nós temos fatos, não suposições. Se quisermos descobrir o assassino, precisamos
investigar todas as hipóteses.



21
Alberto tirou um lenço do bolso e enxugou o suor do rosto. Estava visivelmente nervoso
e abatido.
Marília, que esperava ser esclarecida por ele, não se conteve:
- Não consigo entender. Essa senhora era muito mais velha do que Otávio. Se não
tivesse visto os dois juntos naquela cama, seria difícil acreditar.
Alberto fitou-a sério e indagou:
- A senhora conhecia minha esposa?
- Não. Nunca a vi antes. Não sabia sequer seu nome.
Alberto virou-se para o delegado:
- Está vendo doutor? Este caso está muito estranho. Eu poderia jurar que minha esposa
nunca foi amante desse homem.
O delegado passou a mão pela testa. De fato, apesar das aparências, era mais misterioso
do que parecera à primeira vista.
Marilia remexeu-se na cadeira inquieta:
- O senhor conseguiu alguma pista sobre a carta anônima?
- Por enquanto apenas suas impressões digitais, o que deixa apenas duas hipóteses: ou a
senhora forjou aquela carta ou a pessoa teria usado luvas.
- Eu não forjei nada. Como poderia se não conhecia aquele endereço? Está claro que a
pessoa usou luvas.
- Como eu lhe disse, há duas hipóteses e a senhora continua como suspeita.
Marília levantou-se indignada:
- O senhor acha que eu, uma mulher franzina, poderia ter lutado à faca com os dois e tê-
los vencido? Sempre agüentei a violência de Otávio porque ele era mais forte e eu não
tinha nenhuma chance.
- Por favor, sente-se D. Marília. Ainda não tenho provas definitivas.
- Para mim, quem matou os dois foi à pessoa que escreveu aquela carta e desejou
incriminar-me.
Ela sentou-se novamente e Monteiro perguntou para Alberto:
- O senhor sabe pelo menos o endereço da amiga de sua mulher?
- Não. Teresa me disse que ela morava no Flamengo. Não me deu o endereço.
- Não desconfiou de nada? Sua esposa vai viajar com uma desconhecida e o senhor não
anotou sequer seu endereço? E se fosse uma pessoa suspeita?
- Minha esposa nunca se relacionou com pessoas suspeitas. Eu não tinha porque
desconfiar de Elvira. Teresa era muito cuidadosa ao escolher suas amizades.
Monteiro suspirou desanimado. Apesar de eles continuarem investigando
meticulosamente, ainda não tinham encontrado nenhuma pista. Na tentativa de
encontrar alguma coisa a mais ele determinou:
- Quero os dados de seus filhos.
- Para quê? Eles não sabem de nada.
- Vou intimá-los. Preciso do depoimento deles.
- Eu ainda não tive coragem de contar-lhes nada.
- Faça isso o quanto antes. Os jornais de amanhã certamente vão noticiar o nome e a
foto de sua mulher e eles saberão de qualquer jeito. Não dá para ignorar um crime!
Alberto passou a mão pelos cabelos, aflito. Depois disse nervoso:
- É...não vou poder evitar.
- O senhor deseja mais alguma coisa de mim? - perguntou Marília.
- Por que pergunta?
- Tenho muito trabalho ainda para fazer hoje.
- Pode ir, mas não saia da cidade. Posso precisar da sua presença.



22
Marília levantou-se apressada. O ambiente da delegacia a deprimia, a presença do viúvo
de Teresa também.
Durante o trajeto de volta para casa, Marília não conseguia esquecer as palavras de
Alberto. Que Teresa havia sido amante de Otávio era evidente, mas desde quando isso
acontecia? Alberto dissera a verdade? Se ele fosse o assassino e autor da carta anônima
iria negar que suspeitava de sua mulher. Deveria sentir-se muito confortável ouvindo o
delegado dizer claramente que ela, Marília, era suspeita. A carta tivera essa finalidade.
Esse pensamento deixava-a nervosa. Teria sido melhor que ela tivesse ignorado a carta,
porém a curiosidade foi mais forte.
Ao chegar a casa, Marília encontrou Dorita atarefada com a encomenda, lavou as mãos
e tratou de ajudá-la. Quando ela perguntou o que o delegado queria, Marília disse
apenas:
- Depois que terminarmos contarei tudo detalhadamente. Agora quero esquecer esse
assunto.
As duas entregaram-se ao trabalho com vontade.
Depois de dar ao delegado o nome completo e o endereço de seus filhos, Alberto deixou
a delegacia. Sua cabeça doía, estava nervoso e aflito. Parou em uma farmácia, comprou
alguns comprimidos, tomou logo dois. Se ao menos a dor de cabeça melhorasse, talvez
ele encontrasse as palavras que pudessem atenuar um pouco a realidade para dar a
notícia aos filhos.
Mas era inútil. A verdade era trágica e ele não conseguia raciocinar claramente. Parecia
estar vivendo um pesadelo e dali a pouco iria acordar e verificar que nada havia
acontecido.
Chegou ao hotel e o atordoamento continuava. Sentou-se no quarto, tentando tomar
coragem. Para qual dos dois ligaria? Pensou em falar primeiro com Osmar. Ele era mais
equilibrado do que Vitório.
Respirou fundo, tomou coragem, ligou para sua empresa e pediu para chamar o filho.
Seu coração batia descompassado e sua voz estava um tanto apagada quando ele
atendeu:
- Pai? O que aconteceu? Você está doente? Sua voz está diferente.
- As notícias não são boas e estou me esforçando para contar a você.
- O que você foi fazer em São Paulo? Porque saiu sem nos avisar?
- Fui intimado pela polícia para vir reconhecer o corpo de uma mulher que foi
assassinada em circunstâncias misteriosas. Eles suspeitavam que fosse de sua mãe.
- Que loucura é essa? Mamãe não está de férias na Europa?
- É o que todos nós pensávamos. Mas quando cheguei aqui, tive a maior surpresa...
A voz dele morreu na garganta e Osmar falou assustado:
- Pai, fale logo, estou assustado. Você a reconheceu?
- Infelizmente. O corpo era de sua mãe.
Osmar ficou silencioso por alguns segundos. Depois disse:
- Você deve ter se confundido. Talvez seja apenas parecida.
- Não, meu filho. É ela. Eu reconheci o corpo.
- Custo a crer!
- Mas é verdade. A polícia pretende intimar você e seu irmão. Prepare-se para vir a São
Paulo.
- Mas pai, a empresa não pode ficar abandonada. Você sabe que ninguém tem
competência para ficar em meu lugar.
- Não tem como evitar. E você terá de dar a notícia a Vitório, eu não tenho coragem.
Sabe como ele era agarrado a ela.
- Ele vai dar trabalho. Não tenho paciência. É melhor você mesmo falar com ele.


23
- Nada disso. Faça-me esse favor. Fale com ele e trate de recomendar ao Inácio que
cuide de tudo na empresa durante sua ausência. Vocês fazem o depoimento e vão
embora.
- Em vez de procurar o assassino, esse delegado está perdendo tempo querendo nos
interrogar. Nós não sabemos de nada.
- Foi o que eu disse a ele. Mas não consegui nada. Vocês terão de vir. Mas penso que
poderão ir logo embora. Quanto a mim, terei de ficar pelo menos até que liberem o
corpo. Então, o levarei ao Rio para sepultá-lo.
- Isso não parece verdade.
- Mas é. Infelizmente. Estou com muita dor de cabeça, tomei comprimido e desejo me
deitar para ver se passa. Não se esqueça de falar com Vitório.
Osmar suspirou resignado. Ele não suportava o modo de ser do irmão. Muitas vezes
recriminara a mãe, responsabilizando-a pelo excesso de sensibilidade de Vitório.
Desde pequeno ela fazia diferença entre os dois. Com ele era mais dura, direta,
exigente; com Vitório tolerava suas crises nervosas, dizendo que ele era muito sensível
e precisava apoiá-lo.
Osmar muitas vezes reclamara para o pai, dizendo que o irmão precisava de mais
disciplina. Acreditava que ele estava fingindo e que se lhe dessem uma boa surra sua
sensibilidade acabaria.
Mas como a mãe era irredutível e seu pai fazia-lhe todas as vontades, ele não conseguia
o que desejava. Há muito tempo os dois não mantinham um bom relacionamento. Eles
conversavam apenas o indispensável.
Teresa sentia-se triste. Gostaria que tudo fosse diferente, mas se conformara,
percebendo que ambos eram muito diferentes e que o fato de não estreitarem a amizade
evitava que os desentendimentos se repetissem como quando eram adolescentes.
Osmar desligou o telefone e resolveu ir embora. Estava escurecendo quando chegou a
casa. Deixou o carro na entrada para que o caseiro o guardasse.
Era uma casa imensa, rodeada de árvores e um jardim muito bem cuidado que a cercava
por todos os lados.
Indiferente à beleza do lugar, Osmar entrou e rapidamente subiu até o quarto do irmão.
Ao chegar diante da porta, leu o aviso pendurado na maçaneta: "Estou ocupado. Não
bata, não entre". Irritado, ele arrancou o aviso e girou a maçaneta. A porta estava
trancada por dentro. Bateu várias vezes, com força, o que fez com que a governanta
aparecesse e dissesse:
- Você não leu o aviso?
Osmar fulminou-a com o olhar e não respondeu.
- O que deu em você? - continuou ela, aproximando-se. - Seu irmão está fazendo
meditação e não pode ser interrompido.
Apesar de irritado, Osmar não se atrevia a reagir. Ela fora criada de sua mãe desde o
tempo de solteira, ajudara a criá-los com bondade e firmeza, mas com Vitório, ela
também era tolerante, protegendo-o sempre quando ele queria brigar com o irmão.
- Aconteceu uma tragédia horrível. Não posso esperar o Vitório querer me atender.
- O que foi? - a indagou, olhando-o preocupada.
- Papai ligou contando uma história que custo a acreditar. Você sabia o que ele foi fazer
em São Paulo?
- Sabia.
- Ele disse que o corpo da mulher assassinada era o de minha mãe.
Dinda segurou-se na maçaneta da porta para não cair. Seu rosto estava pálido quando
ela disse:
- Era ela mesma?


24
- Era. Papai não quis nem falar com Vitório. Estava chocado e passando mal. O
delegado vai nos intimar e preciso falar com ele já.
A maçaneta rolou e Dinda apoiou-se na parede. Suas pernas tremiam. Vitório apareceu
na fresta da porta.
- Por que você se fecha desse jeito? Aconteceu uma desgraça e nós vamos ter de ir a São
Paulo.
Vitório estava pálido. Olhou o rosto de Dinda e abraçou-a com força.
- Dinda, diga que é mentira o que estou pensando!
Ela chorava em seus braços e não conseguia falar. Osmar olhou-os com raiva e atirou as
palavras sobre eles:
- Mamãe está morta. Foi assassinada em São Paulo. O delegado vai nos intimar. É bom
parar com isso. Chorar não vai trazer mamãe de volta. Seja homem ao menos uma vez
na vida.
Ele afastou-se irritado, enquanto Dinda e Vitório, abraçados, continuavam soluçando.
Depois, entraram no quarto e fecharam à porta. Quando conseguiu falar, Vitório disse:
- Então era isso! Eu implorei para que ela não fizesse aquela viagem. Eu sabia que se ela
fosse alguma coisa terrível aconteceria. Mas ela estava determinada. Desta vez não quis
me ouvir!
- Estava marcado para acontecer. Você sentiu.
- Não me conformo. Por que ela não me ouviu?
Dinda abraçou-o, tentando controlar-se. Precisava dar força a ele. Ficaram assim,
abraçados, sentindo uma imensa dor no coração".




25
CAPÍTULO 4

Eram dez horas da manhã seguinte quando Osmar e Vitório chegaram ao hotel onde o
pai estava hospedado. Bateram à porta do quarto e Alberto abriu. Estava abatido e
nervoso. Os dois rapazes o abraçaram e Osmar disse:
- E então, como estão as coisas?
Alberto suspirou triste e respondeu:
- Do mesmo jeito. A polícia ainda não liberou o corpo. Vocês já receberam a intimação?
- Não. Achei melhor não esperar que ela chegasse. Depois, desejei ver tudo de perto.
Ainda não acredito que esse corpo seja de mamãe.
Vitório, que se conservara calado, interveio:
- É ela. Eu tive um pressentimento de que ela não deveria fazer essa viagem, implorei
para que não fosse. Ela, porém, estava determinada e não quis ouvir-me.
- Lá vem você com suas loucuras. O assunto é sério. Não é hora para você fazer seu
show.
- Vitório está certo. Aquele corpo é o dela. Não há como duvidar.
Alberto hesitou um pouco, depois continuou:
- Vou ligar para o delegado e perguntar quando vocês devem se apresentar na delegacia.
- É bom pai, porque preciso voltar à empresa o mais breve possível. Tenciono falar com
ele o quanto antes e voltar ainda hoje para o Rio de Janeiro.
Alberto ligou para a delegacia, conversou com Monteiro que marcou para eles estarem
lá dali uma hora.
- Antes de ir, preciso contar-lhes o que se sabe sobre o crime. Apesar das aparências,
não creio em nada do que a polícia diz, mas certos fatos inexplicáveis ferem a honra de
sua mãe e de todos nós.
Vitório não se conteve:
- Mamãe sempre foi uma mulher maravilhosa, de sentimentos nobres.
- É o que eu penso, meu filho. Mas o fato existe e precisamos enfrentá-lo. Ao lado do
corpo de sua mãe, foi encontrado morto um homem, e a polícia acredita que ele era seu
amante.
- Isso não pode ser! Ela não se atreveria a fazer uma coisa dessas! - disse Osmar pálido.
- É mentira! - gritou Vitório indignado.
Alberto suspirou triste.
- Ninguém mais do que eu lamenta o que aconteceu. Mas como explicar o fato de
estarem ambos, lado a lado, na cama, mortos?
- Ela estava deitada na cama com outro homem? - perguntou Osmar indignado.
- Sim - balbuciou Alberto com um fio de voz.
- Ninguém pode saber disso! - tornou Osmar, bastante assustado.
- Infelizmente não pude evitar. Deve estar tudo relatado nos jornais de hoje. Não tive
coragem de comprar nenhum.
- Como não? Você precisava ter impedido isso de qualquer jeito.
- Como?
- Oferecendo dinheiro.
- Impossível. Os jornalistas estavam no necrotério e na delegacia como ratos, farejando
as notícias. Fotografaram tudo. Não havia como impedi-los. Nossa imprensa é livre.
Osmar não se conformava:
- É uma vergonha, pai. Como vamos enfrentar nossos amigos e clientes? Tenho vontade
de não voltar mais para casa.
- Mamãe é inocente, tenho certeza - disse Vitório.


26
- Vou ficar aqui, investigar esses fatos e descobrir a verdade. Não posso permitir que o
nome de mamãe seja jogado na lama.
Osmar olhou para o irmão com desprezo:
- Eles foram encontrados juntos na cama. Não dá para duvidar. Nunca imaginei que
mamãe fosse tão leviana.
- Não fale assim, meu filho. Essa história está mal contada. Vitório está certo. Com o
tempo, a polícia vai descobrir o assassino e inocentar Teresa.
- Eu estou indignado. Gostaria que o chão me engolisse. Vou precisar de muita coragem
para voltar ao Rio. Vou pensar em um jeito de vencer essa desgraça.
Alberto olhou para Osmar angustiado. Apesar de confiar em Teresa, havia momentos
em que ele também fraquejava e suspeitava de que ela de fato tivera um amante.
Alberto passou a mão nos cabelos como que querendo espantar os maus pensamentos,
respirou fundo em busca de força para continuar e disse:
- É melhor vocês irem para a delegacia.
- Quanto antes eu me livrar dessa formalidade, melhor - considerou Osmar.
Eles chegaram na delegacia meia hora antes da hora combinada, tiveram de esperar que
Monteiro voltasse do almoço.
- Eu quero ver o corpo da mamãe.
- Pois eu prefiro não ver. Para quê? Ela já morreu mesmo - disse Osmar.
- Eu preciso ver - pediu Vitório a um policial que estava ao lado deles.
- Só o delegado pode autorizar - respondeu ele.
Pouco depois, Monteiro chegou, eles se apresentaram e depois de cumprimentá-los o
delegado tornou:
- Aguardem um momento. Já vou chamá-los.
Eles sentaram-se novamente um tanto impacientes. Dez minutos depois, um policial
pediu a Osmar que entrasse na sala.
Vitório insistia, queria pedir ao delegado para ver o corpo da mãe, ao que o policial
respondeu:
- O Dr. Monteiro pediu para entrar um de cada vez. Espere um pouco mais.
Monteiro pediu que Osmar se sentasse, esperou que ele confirmasse os dados pessoais e
depois começou a interrogá-lo:
- O senhor sabia que sua mãe estava em São Paulo?
- Não. Ela saiu de casa dizendo que iria para a Europa com uma amiga. Pensei que ela
estivesse lá.
- Você conhecia Elvira?
- Quem é essa mulher?
- Amiga de Teresa em cuja companhia ela saiu de casa para essa viagem.
- Nunca ouvi falar dela.
- Sua mãe costumava ter amigas sem que a família soubesse?
- Até então eu acreditava que não. Mas não conheço essa Elvira.
- Sua mãe foi encontrada morta, ao lado de um homem, ambos na cama, em trajes
menores. Foram mortos a golpes de faca.
Osmar remexeu-se na cadeira e parecia controlado. O delegado sentiu que seria difícil
extrair alguma coisa dele e tentou provocá-lo, falando com certa malícia.
Mas ele não se alterou.
- O senhor parece estar falando de outra pessoa. Minha mãe nunca faria uma coisa
dessas.
- Que outra explicação teria para esses fatos?
Osmar respondeu:
- Não sei.


27
Monteiro olhou fixamente nos olhos dele querendo penetrar-lhe os pensamentos. Mas
Osmar não parecia tenso, o que era inesperado. Afinal, sua mãe fora brutalmente
assassinada e estava sendo considerada adultera.
- O que pensa que pode ter acontecido? Suspeita de alguém? Algum antigo empregado
ou conhecido da família?
- Minha mãe sempre foi uma mulher disciplinada. Costumava selecionar muito bem
suas amizades. Esse acontecimento nos surpreendeu muito.
Ela saiu para umas férias na Europa, estava um pouco cansada, só isso. Ainda estou
tentando aceitar o que nos disseram. Não tenho nenhuma opinião sobre o fato. Aliás, eu
vim esperando que o senhor me dissesse alguma coisa que pudesse nos dar pelo menos
uma pista sobre o crime. Esse é um assunto que compete a policia resolver.
- Por enquanto não temos nenhuma pista. Estamos colhendo informações, buscando os
motivos do crime e os possíveis suspeitos. O senhor não respondeu ao que lhe
perguntei. Não suspeita de alguém, algum empregado que foi despedido ou algum
parente insatisfeito?
- Não. Sempre fomos educados e tivemos bom relacionamento com as pessoas que
trabalham ou trabalharam conosco. Temos poucos parentes, que residem longe e com os
quais apenas mantemos relações ocasionais.
Monteiro suspirou. Seria inútil continuar o interrogatório com ele.
Osmar tornou:
- Eu já lhe disse tudo o que sabia. Se o senhor já terminou preciso ir embora. Pretendo
voltar a minha cidade o quanto antes. Não posso ficar tanto tempo fora da empresa.
- Não vai assistir ao enterro de sua mãe?
- Claro que vou. Assim que o corpo for liberado, papai o levará para o Rio de Janeiro,
ela será enterrada no túmulo da família. Ele vai ficar aqui para tomar as providências
necessárias.
- Eu ainda posso precisar do senhor. Novos fatos poderão ocorrer.
- Nesse caso, virei novamente.
- Como era o relacionamento de seus pais?
Pela primeira vez Osmar demonstrou alguma contrariedade. Aquele delegado estava
sendo impertinente. Procurou controlar-se:
- O que isso tem a ver com o crime?
- Pode ter muito. E então?
- Eles tinham um bom relacionamento. Meu pai sempre foi um marido atencioso e
presente.
- Eles nunca discutiam?
- Não. Eles conversavam. Sempre foram educados e discretos.
- Não se esqueça de que sua mãe estava em trajes menores ao lado de um homem mais
novo do que seu pai. Ele pode ter descoberto tudo e praticado o crime.
Osmar levantou-se indignado:
- Apesar de tudo, meu pai não acredita que mamãe tenha sido amante daquele homem.
Ela sempre foi uma mulher honesta. O senhor não pode falar assim dela.
- Sente-se Sr. Osmar. Não conheci sua mãe nem sua família para poder acreditar no que
está dizendo. O que tenho de verdade são os fatos e estes falam por si.
Osmar estava pálido, esforçava-se para controlar a raiva. O delegado sentia que estava
conseguindo chegar onde queria. Continuou:
- Até prova em contrário, Teresa era amante daquele homem e qualquer um de sua
família está sob suspeita.
- Isso é um absurdo. Meu pai nunca faria isso.



28
- Um marido traído tem motivo suficiente para perder a cabeça. Um filho moralista ou
querendo evitar que o pai descubra também pode cometer um crime.
- O senhor está supondo errado. Quando aconteceu o crime estávamos longe daqui.
Minha mãe era uma mulher rica, gostava de jóias. Pode ter sido um assalto.
- Não creio. Segundo os peritos eles foram surpreendidos na cama pelo assassino ou os
assassinos e mortos ali mesmo.
- Pode ter sido mais de um?
- Não estou certo. Mas é provável. Tudo deve ter acontecido muito rápido.
Naturalmente, eles não esperavam ser surpreendidos.
Aquilo tudo parecia um pesadelo e Osmar não via a hora de sair dali, respirar um ar
mais leve. O delegado continuou:
- Por enquanto estou satisfeito. Depois de reconhecer o corpo pode ir. Se eu precisar, o
intimarei novamente.
Osmar levantou-se e saiu. Na ante-sala viu o irmão, olhos vermelhos, rosto pálido.
Aproximou-se dele:
- Veja lá o que vai dizer ao delegado. Quanto menos falar melhor.
Vitório não teve tempo de responder. Um policial aproximou-se e disse:
- Pode vir comigo.
Vitório acompanhou o policial. Em seguida, Osmar foi abordado por outro que o
acompanhou até o necrotério, que ficava próximo a delegacia e onde estava o corpo.
Uma vez lá, disse logo:
- É minha mãe.
Estava com pressa de sair daquele lugar horrível. Mas foi forçado a olhar o rosto da
mulher e dizer que a conhecia.
O policial o dispensou depois de anotar o que ele dissera e Osmar voltou ao hotel.
Vitório entrou na sala do delegado ansioso:
- Doutor, antes de qualquer coisa eu quero ver o corpo de minha mãe!
- Sente-se rapaz. Antes, vamos conversar um pouco. Você está nervoso. Quer um copo
d água?
- Obrigado, não é preciso. Não me conformo com a morte de minha mãe. Dói saber que
alguém a matou de um modo tão cruel.
Vitório a custo tentava reter as lágrimas.
- Compreendo. Você sentiu muito a morte dela.
- Mamãe era tudo para mim. Custo a crer que ela esteja morta. Por esse motivo, preciso
ver o corpo. Meu pai pode ter se confundido... Ser alguém muito parecida.
- Infelizmente, o corpo é dela. Não há engano.
- Nesse caso eu quero olhar para ter certeza.
- Quando sair daqui poderá vê-lo. Antes, quero que me responda algumas perguntas.
Depois de pedir que ele desse seus dados completos ao escrevente, o delegado
continuou:
- Como era o relacionamento de sua mãe em casa?
- Ela era uma dona de casa perfeita. Com ela tudo andava sempre bem.
- Tinha um bom relacionamento com seu pai?
- Mamãe sempre foi muito discreta. Não gostava de falar de seus sentimentos íntimos.
Com papai era atenciosa, cortês, assim como com meu irmão. Apenas comigo ela se
permitia demonstrar seu afeto.
- Por que ela fazia essa diferença?
- Sempre tivemos muita afinidade. Eu também sempre fui muito ligado a ela. Como sou
muito sensível e tenho a saúde mais delicada, talvez, por esse motivo, ela tenha se
aproximado mais de mim.


29
Monteiro olhou fixamente nos olhos de Vitório como a querer penetrar em seus mais
íntimos pensamentos. Suspeitava que talvez ele soubesse mais sobre Teresa do que os
outros.
- E com seu pai, como é o seu relacionamento?
- Apenas educado. Nunca tivemos nenhuma afinidade. Sempre fui muito sensível e ele
não aceita isso. Diz sempre que um homem deve ser forte. Culpava mamãe por eu ser
tão emotivo, ela, porém, entendia-me. Percebia meus sentimentos e procurava apoiar-
me.
- Ele achava que você era mimado?
- Talvez. Mas isso não é verdade. Sempre que eu cometia um erro, ela não deixava
passar. Conversava comigo, chamando-me à responsabilidade.
- Seu pai relacionava-se bem com Osmar?
- Muito. Ele sempre foi o preferido. Os dois saíam juntos, conversavam muito e Osmar
fazia-lhe todas as vontades. Tanto que até hoje trabalham juntos.
- Seu irmão parece que é muito controlado. Apesar do que aconteceu, mostrou-se calmo.
- Ele não se emociona com facilidade. Não sei como pode controlar-se tanto.
- Seu pai também é assim?
- Ele teve uma educação muito rígida. Minha avó o criou sem agrados e foi muito
exigente em matéria de comportamento. Ele considera as emoções como fraqueza e
empenha-se em dominá-las. Não quer parecer um fraco. Por esse motivo irrita-se tanto
quando expresso minhas emoções.
- Seu pai disse que nos últimos tempos sua mãe estava com depressão. Foi por essa
razão que ela decidiu viajar para a Europa com uma amiga?
- Eu implorei a ela que desistisse dessa viagem...
- Não. Eu sentia que ela precisava de outras coisas.
- Que coisas?
Ele notou que tinha falado demais e tentou dissimular;
- Um lugar calmo, no campo talvez, onde pudesse retomar a simplicidade e serenar a
alma...
- Teria sido esse o motivo de ela haver preferido vir São Paulo a ir para a Itália,
conforme havia combinado?
- Não sei o que teria feito mudar de idéia. Quando lhe pedi que não fizesse essa viagem
ela disse que não podia de forma alguma deixar de ir.
- O que você temia?
- Eu estava com um triste pressentimento. De vez em quando eu tenho isso e quase
sempre o que eu temo acontece. Eu sentia uma angústia muito grande quando pensava
que ela faria essa viagem, mas como não posso dizer por quê.
- Esse seu pressentimento, infelizmente, realizou-se.
Ela viajou em companhia de Elvira, uma amiga dos tempos de faculdade. Você a
conhece?
- Não. Ela nunca foi a nossa casa.
- Não achou estranho sua mãe de repente, aparecer com uma amiga e irem viajar juntas
para a Europa?
- Eu estava muito angustiado e achei essa viagem precipitada e estranha.
- Por que precipitada?
- Porque ela só me falou nela dois dias antes de ir. Não era esse seu costume. Quando
viajávamos, ela costumava programar com antecedência, checar todos os detalhes,
principalmente quando era para sair do país.
- Dessa vez então foi diferente?
- Foi e isso só aumentou meu receio de que iria acontecer alguma coisa ruim.


30
- Você suspeita de alguém que possa ter cometido o crime? Um empregado despedido,
alguém insatisfeito, alguma pessoa que tenha se desentendido com ela?
Vitório pensou um pouco, depois respondeu:
- Não. Mamãe sempre tratou bem nossos empregados, as pessoas em geral. Nunca
soube de alguém que nos odiasse a ponto de cometer esse crime.
- Por hoje chega. Estamos procurando pistas e por mais insignificante que possa lhe
parecer algum acontecimento, é melhor nos contar. Pode ser o fio da meada para
descobrirmos tudo.
- Não me lembro de nada.
- Se você se lembrar de alguma coisa, pode nos ligar a qualquer hora.
O delegado chamou um policial e pediu que encaminhasse Vitório até o necrotério onde
estava o corpo.
Depois, o delegado foi se encontrar como legista para conhecer mais detalhes sobre a
autópsia dos corpos.
Vitório estava trêmulo quando entrou no necrotério. Indiferente ao que se passava com
ele, o policial levou-o até onde o corpo estava, abriu a gaveta e Vitório olhou para o
rosto da mulher que estava lá. Depois, sua voz saiu com dificuldade, mas ele quase
gritou:
- Eu estava enganado! Não disse? Essa não é minha mãe!
O policial olhou-o atônito, perdeu o ar de indiferença que mantinha e retrucou:
- Vamos ver o nome: está escrito aqui, no cartão da gaveta: Teresa Borges de Azevedo.
- Você está enganado. Essa não é minha mãe!




31
CAPÍTULO 5

O policial olhou para Vitório incrédulo:
- Não pode ser! Olhe bem. Duas pessoas já reconheceram esse corpo.
- Não é ela! É bem parecida, mas não é ela!
- Tem certeza?
- Tenho.
Ele fechou a gaveta.
- Vamos falar com o Dr. Monteiro - decidiu o policial.
Assim que entraram na sala do delegado, o policial tornou:
- Ele não reconheceu o corpo.
Monteiro olhou-o admirado:
- Como não? Seu pai e seu irmão disseram que é ela.
- Eles se enganaram. É parecida, o mesmo formato do rosto, mas a cor dos cabelos não é
bem essa e as mãos são muito diferentes. Estou aliviado. Esse corpo não é o de minha
mãe. Isso significa que ela está viva!
-É a sua palavra contra a dos outros dois. Você olhou bem? Os documentos que a
perícia encontrou embaixo da cama, identificaram-na como Teresa Borges de Azevedo.
- Afirmo que aquele corpo não é de minha mãe.
-Vamos juntos até lá, você vai olhar melhor.
O delegado o acompanhou, abriu a gaveta e pediu que Vitório olhasse novamente o
corpo, insistiu para que ele o fixasse bem, mas ele continuou afirmando que não era
Teresa quem estava ali.
Doutor Monteiro coçou a cabeça pensativo, depois voltaram à delegacia, e ele mandou
que Vitório ficasse na sala de espera:
-Sente-se, logo voltarei a chama-lo.
Uma vez em sua sala, Monteiro pediu à telefonista que ligasse para o pai de Vitório no
hotel.
Alberto havia se deitado, tentando descansar na esperança de que a terrível dor de
cabeça melhorasse. Apesar de ter ingerido um comprimido ela continuava o
incomodando.
O telefone tocou e Osmar atendeu prontamente.
- Aqui é o delegado Monteiro. Quero falar com o Sr. Alberto.
- Aqui é Osmar. Papai tomou um remédio para dor de cabeça e está descansando. Pode
falar comigo.
- Seu irmão disse que o corpo da mulher assassinada não é de sua mãe.
- Como não? Eu o reconheci perfeitamente e papai também.
- Mas ele afirma que não é ela. Nesse caso, vocês dois precisam voltar aqui. Vamos ter
de desfazer essa dúvida para poder liberar o corpo.
Osmar sentiu vontade de desligar o telefone. Por que fora atender? Procurou esconder a
irritação e respondeu:
- Isso é um absurdo. É bom o senhor saber que o que meu irmão diz não é confiável. Ele
é um desequilibrado. Ilude-se com facilidade. Não quer aceitar a morte de mamãe e
imaginou que o corpo não é dela. Meu pai disse que a polícia identificou o corpo pelas
impressões digitais.
- Isso não é verdade. Seu pai, com certeza, entendeu mal. Os peritos encontraram os
documentos de sua mãe embaixo da cama.
- Isso prova que Vitório está confuso, mentindo. Se ela tivesse ido para a Itália
conforme dissera, deveria ainda estar lá, mas papai descobriu que ela nunca viajou para


32
a Europa. Não há mais dúvida, doutor. Aquele corpo é mesmo de minha mãe.
- Pode ser. Mas espero vocês dois aqui dentro de uma hora para resolvermos essa
pendência.
- Meu pai vai. Eu preciso voltar ao Rio de Janeiro ainda hoje. Tenho um vôo marcado
para dentro de uma hora.
- Desmarque seu vôo. Se não vier mandarei um policial buscá-lo. Só poderá deixar a
cidade quando eu autorizar.
Osmar segurou a vontade de dizer alguns desaforos ao delegado, mas não fez para não
piorar as coisas.
- Está bem, doutor. Vou avisar papai e estaremos aí daqui uma hora.
Osmar desligou o telefone com ódio do irmão. Ele tinha o dom de complicar as coisas.
Por que não era igual a todo mundo.
Foi ter com o pai, contou-lhe a novidade e finalizou:
- Aquele idiota tinha que complicar tudo.
Alberto sobressaltou-se:
- E se ele tiver razão? E se aquele corpo não for mesmo de Teresa?
- Você não o reconheceu?
- Sim.
- Eu também. Vitório é um visionário, está metido com almas de outro mundo, vive
iludido. Essa é mais uma ilusão dele.
- Por que faria isso?
- Para fugir da realidade. Não quer aceitar que mamãe está morta.
Alberto passou a mão nos cabelos pensativa. Bem que ele gostaria que tudo aquilo não
tivesse acontecido.
- Você pode ter razão. Afinal, o corpo foi identificado pelas impressões digitais.
- Você está enganado. O delegado disse que os peritos encontraram os documentos dela
embaixo da cama.
- Nesse caso está na hora de fazer a verificação e comprovar se é ela mesma.
- O delegado poderia fazer isso sem nos incomodar. Ele me proibiu de viajar e quer nos
ver dentro de uma hora.
- Parece que esse pesadelo não termina nunca.
- Graças ao Vitório que inventou moda como sempre.
- Seja como for, temos que ir. Não vejo a hora que esse pesadelo acabe. Depois de tudo
ainda teremos que transportar o corpo para o Rio de Janeiro para enterrá-lo.
- Você quer mesmo enterrá-la lá, em nosso túmulo de família, ao lado dos seus pais?
- Claro, ela é minha esposa, tem esse direito.
- Não sei se tem. Afinal, ela traiu nossa confiança, mentiu, estava com aquele homem.
Para mim ela não merece ficar ao lado dos meus avós, pessoas de bem.
- Sua mãe sempre foi uma mulher de bem. Não admito que fale assim dela.
- Nossos amigos devem ter lido nos jornais o que aconteceu e certamente vão nos
criticar por levarmos o corpo dela para lá.
Alberto apertou os olhos como fazia sempre que estava com raiva e respondeu:
- Quem decide isso, sou eu. Vou enterrá-la lá e pronto. Ninguém tem nada com isso.
Não dou ouvidos para fofoca. Não acredito que Teresa tenha sido amante daquele
homem. Ela era uma mulher honesta.
Osmar ia retrucar, mas mudou de idéia:
- Vamos logo. Quero resolver tudo o mais rápido possível e ver se o delegado me libera
para que eu possa viajar.




33
Uma hora depois davam entrada na delegacia e foram logo conduzidos à presença do
delegado. Depois dos cumprimentos ele mandou que Vitório entrasse. Assim que o viu
Osmar disse nervoso:
- Que idéia foi essa de não reconhecer o corpo de mamãe?
Osmar ia retrucar, mas Monteiro interveio:
- Não quero discussões aqui. Quem faz as perguntas sou eu! Sentem-se. Vamos
conversar.
Voltando-se para Alberto e olhando-o fixamente nos olhos perguntou:
- O senhor tem certeza de que aquele corpo é o de Teresa?
- Bem... parece ser ela, mas posso ter me enganado. Eu estava muito nervoso. Depois,
disseram-me que a polícia já o havia reconhecido pelas impressões digitais.
- Quem lhe disse isso? Não nos foi possível fazer isso porque na tentativa de defender-
se ela aparou os golpes com as mãos. Os dois polegares foram cortados o que tornou
impossível o reconhecimento pelas digitais.
Alberto empalideceu. A situação era por demais penosa. Imaginar Teresa tivesse
passado por tamanha agressão deixou-o sem palavras. Lágrimas desciam pelas faces de
Vitório. Osmar estremeceu, porém conseguiu controlar a emoção
O delegado tentou amenizar a situação:
- Não contei esses detalhes antes para não deixá-los impressionados. Da maneira como
os corpos estavam, dá para saber que o assassino estava com muita raiva. Se o senhor
não olhou direito, vamos até lá novamente.
E dirigindo-se a Osmar continuou:
- E o senhor, olhou bem aquele corpo?
- Claro. É ela, estou certo. Meu pai ficou perturbado com as palavras de Vitório. O
senhor acha que eu não reconheceria minha própria mãe? Claro que é ela.
- Vamos até lá para que vocês olhem melhor. Trata-se de um fator importante.
Precisamos ter certeza da identidade dela.
Osmar ia retrucar, mas pensou melhor e decidiu que só iria prorrogar o impasse. Com o
delegado e um policial eles foram ao necrotério.
Uma vez diante da gaveta aberta fixaram novamente o corpo. Era chocante, porquanto o
corpo, além dos cortes de faca costurados, tinha os da autópsia que fora feita.
- Vamos, olhem bem todos os detalhes.
Osmar foi o primeiro a dizer:
- É ela. Não tenho nenhuma dúvida.
- Não é - disse Vitório. - Pai, olhe as mãos dela. Mamãe tinha os dedos mais delicados,
os punhos mais finos.
- De fato-concordou Alberto. - O rosto é igual ao dela, mas as mãos são diferentes. Será
por causa da agressão que sofreu?
- Nem tanto-afirmou o delegado. - Quando o corpo morre, geralmente volta a ficar com
seus traços normais.
- Estamos perdendo tempo-disse Osmar. - Se é o rosto dela não sei por que a dúvida.
Ela foi ferida nas mãos. Isso justifica essa pequena diferença, que, aliás, seus nem noto.
Vitório aproximou-se mais e, apontando para o dedo anular da mão esquerda, tornou:
- Mamãe tinha nesse dedo a marca da aliança de casamento que ela nunca tirava. Uma
vez, mostrando-me essa marca, brincou dizendo que esse dedo era mais fino por causa
disso. Essa mão não tem nenhuma marca de anel, portanto essa mulher é muito parecida
com mamãe, mas não é ela.
O delegado olhou e, de fato, naquele dedo não havia sinal de anel. Vitório poderia ter
razão. Voltando-se para Alberto perguntou:
- Teresa tinha alguma irmã ou prima parecida com ela?


34
- Que eu saiba não-respondeu Alberto.
- Está vendo, doutor?-interveio Osmar-É ela. Não temos como duvidar. O rosto é igual
ao dela. Como pode ser isso? Vamos acabar com essa dúvida de uma vez por todas e
encerrar o assunto.
O delegado pensou um pouco, depois disse:
- Bem que eu gostaria de fazer isso. Mas acho prudente investigar mais um pouco.
Vocês podem estar enganados e eu não posso permitir que enterrem o corpo para mais
tarde exumá-lo. Minha obrigação é descobrir a verdade.
- Se o senhor permitir, gostaria de trazer Dinda para ver o corpo.
- Quem é Dinda?
- A governanta de nossa casa. Ela trabalhava com mamãe desde que eram mocinhas.
Quando ela se casou, Dinda veio junta. Foi ela quem nos criou.
- Isso é um absurdo. O que pode valer a opinião de uma criada ignorante? Cale a boca
Vitório, chega de criar caso.
- Pois eu gosto da idéia-disse o delegado. - Tragam-na hoje mesmo. Enquanto isso,
vocês devem ficar na cidade.
- Hoje é impossível, não dá tempo. Depois ela é uma pessoa simples-disse Alberto. -
Não sei se conseguirá vir até aqui sozinha.
Vitório interveio:
- Ela é simples, mas muito inteligente. Estou certo de que virá sem dificuldade. Vamos
mandá-la vir de avião.
-Muito bem. Mande vir o quanto antes. Eu mais do que os senhores tenho pressa em
resolver esse caso.
Assim que eles deixaram à delegacia, Osmar não conteve o mau humor:
-Você é um idiota mesmo. Por que tinha que inventar mais uma? Não vê que está
atrapalhando? Acho melhor não aparecer mais para dar palpite na delegacia. Aquele
delegado me parece tão burro quanto você.
Vitório não respondeu o que o irritou ainda mais. Ia continuar quando Alberto disse
nervoso:
-Chega, Osmar. A empresa pode sobreviver alguns dias sem você. Nós não podemos
enterrar aquele corpo sem ter certeza de que é da sua mãe.
-Até parece que você esta acreditando nas bobagens do Vitório.
-Se aquele corpo não for de Tereza, vou tirar um grande peso do coração.
-Agora entendo por que você está do lado de Vitório. Mas no fim terá de render-se à
verdade. Não entenderam que estão iludidos?
-Tereza tinha mesmo a marca da aliança no anular. Na mão daquela mulher não há
nenhum sinal.
-Ele pode ter desaparecido por causa da agressão.
-Eu estou com o delegado. É preciso ter certeza.
Apesar das reclamações de Osmar, Vitório ligou para Dinda, contou-lhe tudo e pediu-
lhe para que se arrumasse e viesse o mais rápido possível.
Alberto mandou Osmar pedir a um funcionário da empresa que comprasse a passagem
para Dinda e a acompanhasse ao aeroporto, orientando-a. Vitório encarregou-se de
buscá-la quando chegasse.
Depois de tudo resolvido, Osmar foi para o quarto por que precisava fazer algumas
ligações de negócios. Estava tão nervoso que não suportava olhar para o irmão.
Vitório, no entanto, estava sereno, confiante de que sua mãe poderia estar viva. Onde
ela poderia estar? Se não fora viajar para a Europa, por que não se comunicava com a
família? Essas perguntas sem respostas o incomodavam. Sentia que havia um mistério
em tudo isso e ele pretendia desvenda-lo.


35
Algum fato muito grave teria acontecido. Sua mãe não era mulher de mistérios. Sua
vida sempre havia sido um livro aberto.
Alberto foi descansar e Vitório refugiou-se no quarto. Precisava pensar tentar encontrar
um caminho. Esperava Dinda com ansiedade. Ela era uma mulher prática, talvez
pudesse ajudá-lo a descobrir a verdade.
Tirou o sapato, estirou-se na cama recapitulando os acontecimentos que começara com
a inexplicável depressão de Teresa.
Lembrou-se de tudo nos mínimos detalhes, até que cansado, adormeceu. Sonhou que
estava em um lugar escuro, cheio de galhos secos. Vultos escuros o cercavam enquanto
lhe diziam:
-Não adianta procura-la. Você não vai encontrá-la nunca mais!
Vitório sentiu que eles falavam de Teresa e reagiu:
-Vou encontrá-la. Não tenho medo de vocês. O bem é mais forte do que tudo.
-Desista. Não vai conseguir nada!
-Isso mesmo. Nós não vamos deixar! Estamos com todo o poder. Somos poderosos!
-Mais pode a luz divina! Ela está ao nosso lado! - gritava Vitório angustiado.
Eles tentaram agarra-lo e Vitório correu para o corpo adormecido e acordou. Sentou-se
na cama pensativo:
"Então era isso! Havia uma perseguição espiritual contra Teresa e sua família".
Mentalizando luz ao seu redor, Vitório pediu ajuda aos amigos espirituais que sempre o
visitavam. Aos poucos foi se acalmando. A situação estava difícil, porém ele estava
amparado.
Sentia em seu coração uma forte ligação com o espírito amigo que sempre o confortava
em seus momentos difíceis. Desde a mais tenra idade, ele via os espíritos com tal nitidez
que os confundia com pessoas encarnadas, só percebendo a diferença quando eles
desapareciam diante de seus olhos admirados.
A principio contara para a mãe o que estava acontecendo, porém ela, temerosa de que
ele estivesse doente, sofrendo alucinações, o levara ao médico que o olhou com
naturalidade, dizendo para Teresa que ele sofria dos nervos e precisava cuidar disso o
quanto antes. Assim, ele tomava vários remédios que lhe traziam mal-estar, mas as
visões continuavam. Teresa, certa de que o filho tinha saúde delicada, cercava-o de
cuidados especiais, o que sempre provocava a raiva de Osmar, com quem ela era mais
firme, não lhe permitindo fazer o mesmo que Vitório.
Ele passava mal por causa dos remédios e ela acreditava que ele fosse doente. Por esse
motivo, era mais condescendente com ele, sem perceber que ele apenas tinha maior
sensibilidade.
Quando ele cresceu e entendeu o que se passava, parou de falar sobre o assunto e seus
pais pensavam que ele havia melhorado com o tratamento. Assim ele livrou-se dos
medicamentos que o incomodavam. Não falando o que sentia, vivia mais fechado em
seu mundo interior e foi se acostumando com as presenças de seres de outras
dimensões; procurava evitar os que tinham as energias conturbadas e aconchegar-se
àqueles que tinham uma energia melhor.
Foi assim que certa noite ele viu o espírito de uma mulher, aparentando cerca de
quarenta anos, fisionomia serena, olhos brilhantes e vivos, que se aproximou, fixando-o
séria e disse:
-Meu nome é Analú. Vim aqui para dizer-lhe que nos conhecemos de outras vidas e que
conforme o prometido ficarei ao seu lado daqui para frente, inspirando-lhe pensamentos
bons. Chegou à hora de começar a trabalhar com a espiritualidade.
O olhar dela penetrou nele, provocando uma agradável sensação de bem-estar e alegria.
O que o fez indagar:


36
Quem você é realmente para mim? Sinto uma sensação boa e uma alegria muito grande.
-Um dia você saberá. O que importa é que estamos juntos e continuamos amigos como
sempre fomos.
-O que é trabalhar para a espiritualidade?
-É viver para o espírito de acordo com as leis cósmicas, ensinando as pessoas a
enxergarem a realidade.
-Eu não conheço essas leis nem tenho como ensinar ninguém.
-Seu espírito conhece tudo isso e, aos poucos, você se lembrará do que precisa para
fazer o que é necessário.
-Mas eu não recordo de nada. Como saber o que é certo ou errado?
-Esse é um conceito mundano. Ao reencarnar, você esqueceu momentaneamente o
passado, porém ele continua em seu inconsciente e quando chegar o momento, de
acordo com o que você escolher, voltará à tona.
-Eu gostaria de saber muitas coisas: "Por que eu sou diferente das outras pessoas? Por
que posso ver e falar com pessoas que já morreram? Por que posso perceber o
pensamento das pessoas?". Isso tudo me confunde e assusta.
-De hoje em diante estarei ao seu lado para ajudá-lo, mas devo esclarecer que não tenho
nenhum poder sobre você. Só posso mandar-lhe energias de sustentação e inspirar-lhe
bons pensamentos. Mas as escolhas, as decisões continuam sendo suas. Por esse motivo
eu disse que tudo dependerá delas.
-Você não respondeu minhas perguntas.
- No mundo, não existem duas pessoas iguais. Cada um é um, com suas capacidades e
experiências. Você é agora o resultado de suas escolhas anteriores e no futuro, será
apenas o que escolher hoje. Você é um sensitivo. Por esse motivo pode ser além dos
cinco sentidos. Isso aconteceu porque você desenvolveu sua sensibilidade em outras
vidas e hoje possui o sexto sentido mais desenvolvido.
- Tudo isso me assusta. Eu preferia não sentir nada disso e ser como todos.
- Não diga isso. A percepção de como as coisas é, traz lucidez e força. Estou certa de
que você já tem conhecimento para fazer com uso dessas suas faculdade. Só precisava
observar um pouco mais o processo, cuidar bem dos seus pensamentos para ficar apenas
com o bem e não se ligar às idéias negativas.
- Eu gostaria de ser mais lúcido e sentir - me mais forte. Por vezes as idéias confundem-
se em minha cabeça e eu me sinto deprimido, sem forças.
- O que confunde sua cabeça são as crenças erradas que você aprendeu desde a infância
e que destoam do conhecimento que seu espírito possui. Isso está criando um conflito
entre a ilusão aprendida e a verdade conquistada.
- Eu desejo sair desse estado e encontrar a paz.
- Nesse caso, precisa estudar suas crenças e descobrir até que ponto é verdadeira. Eu
preciso ir, mas estarei por perto. Pense em tudo isso e decida se desejar fazer o que eu
lhe disse. Fique com a luz.
Ela desapareceu antes que Vitório tivesse tempo para responder. A partir desse dia ele
começou a questionar suas crenças e descobriu que algumas eram baseadas apenas em
opiniões de outros pensadores e não podiam ser aprovadas nem desaprovadas.
De vez em quando Analú o procurava e conversavam trocando idéias. Ele, aos poucos,
foi reformulando seus conceitos de realidade e descobrindo que para ser forte, precisava
acreditar em sua própria força, usando-a sempre para encorajá-lo e preservar em seus
propósitos de aprender e conquistar o próprio equilíbrio.
Pensado no sonho que tivera, lembrou-se de Analú. Precisava conversar com ela e saber
o que estava acontecendo com sua mãe. Ela era sua amiga e sempre conversava com ele
sobre todos os assuntos. Por que desde que sua mãe desaparecera ela não viera para


37
confortá-lo. Estava certo de que o corpo que vira no necrotério não era dela, mas como
entender o desaparecimento, a semelhança que ela tinha com a mulher morta? Teresa
estava viva, como ele imaginava, por que não aparecera ainda, mesmo depois da notícia
de sua morte estar em todos os jornais?
Essas perguntas ficavam se resposta e agora havia aquele encontro no astral onde
descobriu que havia uma conspiração de seres maldosos agindo contra sua família.
Naquele momento evocou o espírito de Analú, com todas as forças do seu espírito.
Então, ouviu sua voz:
- No momento não posso ir . Ore e confie.
Vitório suspirou angustiado. Precisava ser forte e continuar confiando no bem e na
amizade dos amigos espirituais. Mas, apesar disso, as perguntas sem resposta
continuavam em sua cabeça.




38
CAPÍTULO 6
Eram onze horas da manhã seguinte quando Vitório foi ao aeroporto esperar Dinda. Ela
chegou fisionomia preocupada; assim que o viu, aproximou-se, abraçando-o com força.
- Estou agoniada, meu filho. Como você está ?
- Angustiado com os acontecimentos. Vamos embora, vou levá-la direto para o hotel e
logo iremos a delegacia. No caminho lhe contarei tudo.
No táxi, durante o trajeto, Vitório contou tudo a ela e finalizou:
- Sugeri ao delegado que você viesse porque estou certo de que aquele corpo não é o de
mamãe. Você a conhece mais do que todos nós. Não vai se enganar.
- Se o corpo não for dela, onde ela está? Por que não se comunica conosco? Ela nunca
fez isso antes. Pelo menos comigo, sempre me dizia onde estava.
- Mas desta vez ela mentiu. Não foi a Europa como disse. E para você, ela falou aonde
deveria estar?
Dinda hesitou um pouco, depois disse:
- Não, Desta vez não disse.
Vitório olhou-a sério e respondeu:
Se você sabe de alguma coisa, é hora de contar. Ela pode estar em perigo e temos que
descobrir o que aconteceu.
- Eu não sei. Mas se aquele corpo não é dela, ela pode estar viva e logo estará de volta.
- E se tiver lhe acontecido alguma coisa ruim? Seus documentos foram encontrados
debaixo da cama, na cena do crime. Ela esta envolvida nesta tragédia de qualquer
forma.
Dinda sobressaltou-se, mas não respondeu. Ela também esta muito assustada com os
últimos acontecimentos. Ela sabia que Teresa não estava na Europa como dissera para
toda a família. Mas não podia dizer nada, pois lhe prometera sigilo. Se ela falasse,
quando Teresa voltasse, iria repreendê-la por ter traído sua confiança. O assunto era
muito sério e ela jurara guardar segredo.
Chegaram ao hotel e foram para o quarto de Alberto que os recebeu, abraçando-a com
carinho:
- Sinto ter de incomodar você, fazendo-a viajar de avião e depor na delegacia.
- Não tenho medo de avião. Se não fosse pela preocupação com Teresa eu até teria
gostado. Como o senhor está?
Alberto suspirou triste:
- Como posso? Esta tragédia não acaba nunca. Estou cansado, preocupado, sofrido.
Espero que você consiga nos tirar dessa dúvida. Você quer descansar um pouco antes de
ir à delegacia?
- Não. Estou muito ansiosa para ver se é a minha ama que está lá.
- Irei com você-disse Vitório.
- Eu também irei. Acho que Osmar não vai querer ir novamente.
Ele apareceu no quarto dizendo:
- Claro que vou. E você, Dinda, faça o favor de acabar de uma vez com essa palhaçada.
Eu preciso voltar logo para casa. Tenho muitas coisas para fazer e não posso ficar aqui
parado mais tempo. Diga logo que o corpo é de mamãe e acabaremos com isso.
- Só vou dizer que é, se for verdade-respondeu ela.
- É ela. Não seja boba. Acha que eu ia me enganar? Que não conheço minha mãe?
- Ele quis fazer sua cabeça. Mas é claro que está enganado. É ela, infelizmente. Vitório
deseja tanto que ela esteja viva que está se iludindo e tentando envolver papai.
- Vamos embora-disse Alberto irritado. É melhor você ficar. Já foi já deu sua opinião.



39
- Se Vitório vai, também vou. Ele também vai. Ele também não precisa ir. Quer apenas
induzir vocês a dizer o que não é ela.
Irritado, Alberto saiu do quarto e os outros três o seguiram em silêncio.
Uma vez na delegacia, o delegado os esperava e pediu que Dinda entrasse em sua sala.
Os outros ficaram do lado de fora.
Depois dos cumprimentos, Monteiro convidou-a a sentar-se, e disse:
- Gostaria que me dissesse quando conheceu Teresa e desde quando trabalha para ela.
- Nós éramos crianças quando minha mãe me levou na casa dela. Meu pai tinha morrido
há poucos meses e nós precisávamos trabalhar para viver. Teresa tinha treze anos, como
eu, e logo nos tornamos amigas. Ela era muito bonita e fiquei encantada desde o
começo. Ela era muito bonita e fiquei encantada desde o começo. Fazia tudo para
agradá-la e ficamos íntimas.
- Tanto que quando ela casou-se com o Sr. Alberto, você foi morar na casa deles.
- Foi. Ajudei-a criar os meninos e continuei a fazer tudo para que minha menina fosse
feliz.
Algumas lágrimas brilharam nos olhos de Dinda e o delegado comentou:
- Você tornou-se o anjo da guarda de Teresa.
- Eu faria tudo para que ela fosse feliz.
- Fale-me um pouco do casamento dela. Como era a vida do casal, eles se davam bem?
- O Sr. Alberto sempre foi muito bom e tratava a família com respeito.
- E os rapazes? Como era o relacionamento de Teresa com os filhos?
- Teresa sempre foi uma ótima mãe. Dedicada, estava sempre cuidando da felicidade
deles.
- Os dois irmãos parecem que não combinam.
- Sabe como é doutor, coisas de família. Osmar sempre teve muito ciúme do irmão
porque como ele é mais sensível Teresa está sempre atenta com sua saúde. Mas não há
nada de mais.
- A senhora sabe se Teresa tinha algum inimigo, ou parente que não gostasse dela?
- Não. Os parentes dela vivem distantes, e ela se relacionava pouco com eles.
- Mas você deve conhecer a Elvira, a colega de faculdade com quem Teresa disse á
família que iria viajar para a Europa.
- Só a vi uma vez quando elas eram estudantes.
- Pode descrever como ela era?
- Não me lembro bem. Faz muitos anos. Era uma moça igual a muitas estudantes e que
eu vi com ela.
- Isso não esclarece muita coisa. Tente lembrar-se. É importante.
- É inútil, doutor. Não me lembro mesmo.
- Pensei que pudesse me ajudar a descobrir quem cometeu este crime.
- Não tenho nenhuma idéia. O que aconteceu me assustou muito.
Monteiro levantou-se:
- Vamos ver o corpo.
Eles saíram e do lado de fora os outros três que os esperavam os acompanharam até o
necrotério.
Dinda estava emocionada, o coração apertado se perguntava se Teresa estava ou não
morta. Logo iria saber.
Uma vez no necrotério, Monteiro puxou a gaveta, o rosto da mulher apareceu e ele
levantou o lençol que cobria o corpo, olhando fixamente para o rosto de Dinda.
Ela colocou os óculos, abaixou-se, olhando fixamente para o corpo. Depois pediu:
- Alguém pode levantar um pouco o corpo? Quero ver as costas.
- Para quê? -indagou o delegado. - É Teresa ou não?


40
- Teresa tinha uma pequena mancha de nascença na curva da cintura.
- O corpo está rígido e congelado. Não a reconhece pela fisionomia? - tornou o
delegado.
- O rosto é parecido com ela, porém as mãos são diferentes. Eu preciso ver a marca para
ter certeza.
Osmar interveio irritado:
- Claro que é ela! Por que você também duvida?
Sem dar-lhe atenção, Monteiro chamou dois auxiliares e pediu-lhes que virasse o corpo
de bruços. Devidamente protegidos pelas roupas adequadas, eles obedeceram.
- E então? - indagou o delegado ansioso.
Dinda apontou um lugar na cintura e foi categórica:
- Não é ela. Este corpo não tem a marca que Teresa tinha.
- Eu sei que não é ela! - exclamou Vitório satisfeito.
Osmar não se deu por vencido e interveio:
- Como não? Isso não tem sentido. Como vocês explicam o desaparecimento dela?
Nunca existiu outra pessoa tão parecida a ponto de nos confundir. Depois, como o
documento de identidade dela apareceu junto ao corpo?
-Isso é que eu preciso descobrir-respondeu Monteiro. Voltando-se para Dinda
continuou: - A senhora pode responder a essas perguntas?
-Não posso. Só sei que esta não é ela. Disso estou certa.
Monteiro coçou a cabeça e perguntou a Alberto:
-O senhor deveria ter visto no corpo de sua esposa a marca a que a Dinda se refere.
-Nunca notei. Teresa era uma mulher discreta. Não gostava de tirar a roupa na minha
frente.
-Vamos para a outra sala conversarmos um pouco.
Acomodados na sala ao lado, Osmar estava inconformado. Não acreditava que estivesse
enganado. Era impossível não ser o corpo de Teresa.
-Dinda sempre protegeu Vitório. O que ela quer é fazer com que ele continue na ilusão
de que mamãe está viva. Uma marca no corpo que só ela sabia me parece uma desculpa
arranjada para consolar Vitório.
-Eu nunca brincaria com um caso desses - protestou ela. - Estou dizendo o que percebi.
Aquela mulher não é Teresa.
Monteiro olhou para os quatro sentados diante dele sem saber o que dizer. Ocaso era
complicado. Por um lado, Osmar poderia ter razão. Vitório era muito apegado à mãe,
poderia estar enganado. Por outro lado, Dinda era pessoa confiável. Dava para perceber
isso pela maneira que se posicionava. Ele não acreditava que ela se prestasse a mentir
apenas para consolar Vitório. Mas isso tornava o caso muito mais difícil.
Ele não poderia liberar aquele corpo como sendo o de Teresa, que poderia estar viva e
aparecer de uma hora para outra. Isso lhe daria, além do trabalho de requerer uma
exumação, o fato de ter de admitir publicamente que estava enganado.
Era um delegado muito conceituado, ambicionava fazer carreira e um fato desses
certamente o deixaria desacreditado. Nesse momento desejou nunca ter sido designado
para aquele caso.
Mas não havia nada que ele pudesse fazer a não ser tentar encontrar a verdade. Pensou
um pouco enquanto os demais esperavam ansiosos pela sua decisão.
- E então, doutor? Vai liberar o corpo para o enterro?
- Não. Diante das divergências, será melhor esperar e investigar um pouco mais.
Osmar fez um gesto de desagrado e tornou:
- Doutor, entenda, não posso ficar aqui indefinidamente. Tenho muitas
responsabilidades. Preciso voltar para o Rio o quanto antes.


41
- Compreendo. Vou liberá-lo para voltar. Mas se eu precisar de seu depoimento, terá de
vir novamente.
- Virei quando precisar. O senhor sabe onde moro. É só ligar. Agora, eu gostaria que só
o fizesse quando realmente descobrisse alguma coisa.
- Eu vou descobrir a verdade, custe o que custar. É um ponto de honra. Estou certo de
que logo terá notícias minhas.
- Dinda pode voltar comigo? Ela faz muita falta em casa - justificou-se Osmar.
- Todos podem ir para casa, desde que prometam vir quando eu chamar.
- Eu quero ficar - disse Vitório. - Quero descobrir o paradeiro de mamãe. Se os
documentos dela estavam aqui, pode ser que ela também esteja.
- Por que está pensando isso? - perguntou Monteiro.
- Se ela estivesse viva e em São Paulo, teria visto os jornais e certamente nos procurado.
- E se ela tiver sido seqüestrada e não puder se comunicar?
- Você está levando sua fantasia longe demais - disse Osmar. -Eu não disse que ele vive
fora da realidade?
- Pois eu penso que esta é uma hipótese que poderia explicar a ausência dela, no caso de
estar viva. O contrário também pode ter acontecido.
- Nesse caso, aquele corpo seria o dela - apressou-se a dizer Osmar.
- Eu não afasto nenhuma hipótese. Agora podem ir. Se alguém ficar em São Paulo,
deixe o endereço.
Assim que saíram, Osmar tornou:
- Vou reservar passagens para todos nós. Regressaremos hoje à noite.
- Para mim, não. Pretendo ficar aqui - disse Vitório.
- Pra que? Quer complicar ainda mais este caso? - reclamou Osmar.
- Eu também vou ficar - tornou Alberto.
- Isso é uma loucura. Vocês não sabem quanto tempo esse delegado pode demorar a
enxergar que o corpo é de mamãe.
- Eu não gosto de ficar em hotéis - decidiu Alberto. - Vitório quer ficar. Estou pensando
em alugar um apartamento para ficarmos mais à vontade.
- Eu posso ficar com vocês - disse Dinda. - Nora pode cuidar de tudo lá em casa. Ela é
muito dedicada.
- Está certo. Você fica para nos ajudar. Só voltaremos quando desvendarmos a verdade.
Osmar meneou a cabeça negativamente. Não se conformava com a decisão. Para ele a
questão era simples e não precisava tanta confusão. Era só enterrar o corpo de sua mãe e
terminar com esse caso tão desagradável.
Ele não acreditava que ela pudesse estar viva. Mas por outro lado, a idéia de que aquele
corpo não fosse de Teresa começava a agradá-lo. Nesse caso, sua mãe não seria adultera
e ele não precisaria envergonhar-se diante dos conhecidos.
- Hoje mesmo vou procurar um apartamento para alugar - decidiu Vitório.
- Faça isso meu filho. Vamos precisar de três quartos.
Uma vez no hotel, Alberto foi descansar. Sentia-se triste, deprimido. Aquela situação
era desgastante. Se o corpo fosse de Teresa, ela seria considerada adultera. Mas ele a
enterraria e estaria tudo resolvido. Se não fosse, onde ela estaria? Morta, sem que eles
pudessem encontrá-la? Acreditava que se ela estivesse viva e pudesse, teria se
comunicado.
De todas as formas, ela estava envolvida em uma tragédia e não saber a verdade tornava
as coisas piores.
Dinda foi descansar, enquanto Osmar se preparava para ir ao aeroporto. Vitório foi para
o quarto, sentou-se em uma poltrona. Apesar de acreditar que Teresa estivesse viva, o
fato de ela não se comunicar com a família, levava-o a crer que estivesse


42
impossibilitada.
Sua própria impotência o atormentava. Se ao menos Analú aparecesse e lhe desse
alguma orientação!
Ela deveria saber o que tinha acontecido. Por que não o procurava para lhe contar?
Talvez desejasse poupá-lo de uma notícia ruim, porém nada seria pior do que não saber.
Fosse o que fosse conhecer a verdade era preferível. Suspirou triste. Desejava encontrá-
la, mas por onde começar? A polícia não tinha pistas, estava perdida em indagações sem
resposta.
Lembrou do homem que morrera com aquela mulher. Talvez devesse começar por
conhecer sua família. Sabia que ele era casado e deixara um filho pequeno.
Imediatamente foi ao telefone, ligou para a delegacia e pediu para falar com Monteiro.
Assim que ele atendeu, Vitório falou do seu desejo de conhecer a viúva do morto.
- Para quê? - indagou o delegado. - Você não vai encontrar nenhuma pista lá.
- Desejo conversar com ela mesmo assim.
- Será inútil, mas é um direito seu. Anote o nome e endereço.
Vitório anotou tudo e saiu. Apanhou um táxi, deu o endereço. O carro parou em frente à
casa e ele desceu, olhando curioso para o lugar. Era uma rua calma, a casa, um sobrado
com garagem, com pequeno jardim na frente.
Decidido, tocou a campainha. Dorita foi abrir:
- O que deseja?
- É aqui que mora D. Marília Marques de Oliveira?
- É.
- Meu nome é Vitório Borges de Azevedo. Gostaria de falar com ela.
- Ela está ocupada. Não sei se poderá lhe atender agora.
- Por favor. Diga-lhe que o assunto é muito importante.
- Espere um momento.
Ela entrou e pouco depois voltou dizendo:
- Entre, por favor.
Ele obedeceu e ela conduziu-o para a sala de estar:
- Sente-se e fique à vontade. Ela já vem.
Pouco depois, Marília entrou, olhando-o com curiosidade. Ele levantou-se:
- Desculpe a intromissão. Sei que a senhora estava ocupada.
- De fato. Estava trabalhando. Meu marido morreu e ficamos sem recursos. Você é um
dos filhos da mulher... de Teresa?
- Sou Vitório. O filho mais novo. Vim conversar com a senhora sobre o que aconteceu.
- Foi uma tragédia horrível que me surpreendeu muito e deixou-me sem chão.
- Posso avaliar. A senhora tem um filho pequeno?
- Não me chame de senhora, por favor. Meu filho tem cinco anos.
Marília sentou-se no sofá ao lado dele, indagando:
-Por que você veio me procurar? Tudo o que eu poderia dizer sobre o caso, contei ao
delegado.
-É que estou muito angustiado. Meu pai, meu irmão Osmar, eu e até nossa governanta,
Dinda, viemos reconhecer o corpo da mulher assassinada ao lado de seu marido. Mas o
fato é que o caso se complicou, porquanto, meu pai, meu irmão reconheceram o corpo
como sendo de minha mãe, porém eu percebi que aquela mulher, apesar da grande
semelhança física, não é minha mãe.
Marília levantou-se assustada:
-Como pode ser? Seu pai disse ao delegado que era ela!
-Por esse motivo mandamos vir à governanta. Ela está com mamãe desde que ambas
eram adolescentes. Ela também disse que não é mamãe.


43
Marília sentou-se novamente:
-Não sei o que lhe dizer. Como seu pai pôde ter se enganado?
-Pela extrema semelhança que essa mulher tem com mamãe. Mas eu notei que ela tinha
as mãos diferentes, sem a marca da aliança que havia no dedo anular. Depois, Dinda
revelou que minha mãe tinha uma marca de nascença na parte de trás da cintura.
Quando virou o corpo da morta, essa marca não existia.
Marília estava confusa. Isso fazia com que a identidade da morta permanecesse
ignorada. Então fez as perguntas naturais da situação e Vitório explicou-lhe que sua mãe
não tinha nenhuma pessoa parecida com ela na família, e continuava desaparecida.
-Minha mãe é uma mulher discreta, honesta e nunca se prestaria a estar em uma situação
como aquela.
-Mas e os documentos?
-Isso é que está me angustiando. De alguma forma ela está relacionada com o crime.
Receio que esteja presa em algum lugar, seqüestrada, talvez, e não possa se comunicar
conosco.
-Nesse caso, ela estaria em perigo! Mas se fosse um seqüestro, alguém teria se
comunicado pedindo dinheiro ou algo assim.
-Essa falta de noticias está me angustiando. Posso imaginar o sofrimento dela em uma
situação dessas.
Ele estava visivelmente nervoso e Marília sentiu-se penalizada.
-Acalme-se. Vai ver ela está bem, mas distante, em algum lugar que não dá para se
comunicar. A qualquer momento pode mandar notícias.
-Bem que eu gostaria de poder acreditar nisso. Mas sinto que algo de ruim está
acontecendo.
-Você está nervoso, imaginando o pior. Vou fazer um chá. Depois voltaremos a
conversar.
Ela foi para a cozinha, enquanto Vitório recostou-se no sofá, de olhos fechados,
esforçando-se para ficar calma.




44
CAPÍTULO 7

Dorita trouxe a bandeja com o bule de chá, duas xícaras, um pratinho com alguns pães
de queijo e colocou-a sobre a mesa de centro.
Marília serviu o chá, entregou a xícara a Vitório e ofereceu os pães de queijo dizendo:
- Experimente. Estão quentes.
- Desculpe, mas estou sem fome.
- Essa é a nossa especialidade. Estamos começando e precisamos de opiniões a respeito.
Apesar de não estar com fome, Vitório não quis ser indelicado e apanhou um. Marília
sentou-se na poltrona ao lado, serviu-se, tomou um gole de chá e fixou o rapaz,
esperando que ele experimentasse o pão de queijo.
Ele começou a comer, estava delicioso. Só então se lembrou de que havia dois dias que
não comia nada, só tomava água e café.
- Está ótimo.
- É uma receita de minha avó.
Marília foi conversando, contando sua infância no interior, em companhia dos pais e da
avó materno.
Ouvindo-a falar, Vitório foi tomando o chá, comendo mais alguns pães de queijo e
sentindo-se mais calmo. Marília tinha uma voz doce e um jeito alegre de contar as
coisas.
Apesar da tragédia que se abatera sobre sua vida e das dificuldades financeiras, ela se
sentia livre, útil, tendo se libertado da preocupação que Otávio lhe dava.
Apesar de ganhar pouco vendendo os quitutes, sentia-se orgulhosa por poder se
sustentar com o próprio trabalho.
Depois que Vitório colocou a xícara sobre a bandeja, Marília tornou:
- O que pensa fazer para descobrir o que aconteceu de verdade?
- Ainda não sei. O delegado Monteiro não me parece capaz de fazer isso.
- Tenho a mesma opinião.
- Fale-me um pouco sobre seu marido. Como ele era em casa, no trabalho.
Marília suspirou pensativa, hesitou um pouco, depois disse:
- Eu também gostaria de saber a verdade. Vou contar-lhe o que sei. Conversando, talvez
encontremos algo mais.
Marília contou tudo. Sua vida conjugal, a falta de carinho de Otávio com ela e Altair. A
carta anônima e a descoberta do crime. Finalizou:
- Aquela cena ainda está dentro de mim. Ao falar sobre isso, sinto como se estivesse lá,
apavorada, vendo os dois naquele quarto. Nem sei como consegui chegar a casa.
-Você não chamou a policia, não pediu socorro?
- O delegado também fez a mesma pergunta. Mas eu vi que ambos estavam mortos, tive
medo que suspeitassem de mim e fugi. Mas como eu disse, o Dr. Monteiro encontrou
minhas digitais e fui forçada a contar-lhe tudo. Ele disse que eu era suspeita, mas penso
que ele disse isso para intimidar-me.
Eu possuo o corpo frágil, não teria condições físicas de brigar com duas pessoas e
vencer. Ele não acreditava de verdade que tenha sido eu.
- A família de Otávio não sabia onde ele trabalhava?
- Não. Assim como ela não falava comigo sobre seus negócios, fazia o mesmo com eles.
Otávio não dava dinheiro senão para o estritamente necessário e reclamava muito por
fazer isso. Mas o delegado descobriu que ele tinha duas contas bancárias com dinheiro
que ficou retido enquanto eles investigam sua origem. Por tudo isso, não recebi nada e
precisei arranjar uma forma de ganhar alguma coisa.


45
- Você é uma mulher de coragem. Já tinha trabalhado para fora alguma vez?
- Não. Meus pais são de classe média, pude estudar sem precisar trabalhar. Sou formada
em Letras, mas me casei cedo e Otávio não deixou que eu exercesse minha profissão.
Ele não gostava que eu saísse sozinha. Ficava muito irritado se eu não obedecesse.
Deixou-me apenas me formar.
- Compreendo.
Dorita entrou para recolher a bandeja.
- Desejo apresentar-lhe Dorita. Ela está comigo há muito tempo. É uma amiga que tem
me ajudado muito neste momento incerto. Foi idéia dela fazermos os pães de queijo.
- Estão deliciosos.
Dorita sorriu feliz.
- Está mais calmo? O senhor estava muito abatido e nervoso quando chegou.
- Sim, Dorita. Seu chá fez milagre e o apoio que estou recebendo aqui, está me ajudando
muito. Peço-lhe, que não me chame de senhor.
- Está bem. Posso me intrometer um pouco e fazer uma sugestão?
- Faça - respondeu Vitório.
- Vocês querem descobrir a verdade. Nós no momento não temos dinheiro para fazer
isso, mas você pode procurar um bom detetive e pagar-lhe para investigar o caso.
Vitório olhou-a surpreendido:
- É verdade! Como não pensei nisso antes?
- Você estava nervoso e as boas idéias aparecem só quando estamos calmos.
- É uma grande idéia. Vou fazer isso mesmo. Mas não conheço ninguém nesta cidade.
Eu quero o melhor detetive. Vocês conhecem alguém?
As duas sacudiram a cabeça negativamente.
- Não importa, eu vou achar. Mas seria bom se vocês também procurassem. Vamos nos
juntar para descobrir a verdade.
- Não seria justo. Não temos dinheiro para pagar as despesas. Isso deve custar muito
caro - objetou Marília.
- Não precisam pagar nada. As despesas correm por minha conta. O que eu quero é que
vocês me ajudem. Tenho estado muito perturbado. Sozinho será mais difícil. Vocês
precisam trabalhar e eu vou embora. Assim que contratar alguém, voltarei para
conversarmos e traçarmos nossos planos.
Vitório despediu-se e saiu. Marília e Dorita retomaram o trabalho, comentando sobre
aquela visita. Ambas gostaram muito dele.
- Nota-se que é um rapaz bom. Ele me parece ter algo especial - comentou Dorita.
- Seu amor pela mãe é comovente. Desejo que ela esteja viva e que volte para casa sã e
salva.
- Não é só o fato de ele ser ligado à mãe. Ele me parece diferente. Mais sensível, sinto
que podemos confiar nele.
- É. Afinal, sou a viúva do homem que foi morto com aquela mulher. Ele poderia ter se
mostrado desconfiado, mas não foi o que me pareceu.
- Ele está certo de que não é a mãe dele quem foi morta com Otávio.
- Será que ele não se enganou? O pai e o irmão reconheceram o corpo.
- Vai ver que é alguém da família que eles não conheciam. Às vezes as pessoas se
distanciam e perdem o contato. Para mim foi isso.
- Não sei. Por mais que eu pense não consigo entender. Por que Otávio iria se
relacionar-se com uma mulher tão mais velha?
- Um bom detetive vai descobrir. Vamos trabalhar, já perdemos muito tempo.
- Isso mesmo.
As duas decidiram-se com prazer ao trabalho.


46
Vitório parou um táxi e sentou-se na frente, ao lado do motorista. Deu o endereço do
hotel, depois entabulou conversa com ele.
- Eu vim recentemente para São Paulo e não conheço bem a cidade.
- Eu nasci no interior, mas moro aqui há mais de vinte anos. Quinze dentro de um táxi.
- Você deve conhecer muita gente.
- É verdade.
- Meu nome é Vitório e o seu?
-Ronaldo.
- É um prazer conhecê-lo. Talvez possa me ajudar.
- Em quê?
- Estou precisando contratar um bom detetive. E quero o melhor.
Ronaldo balançou a cabeça, pensativo e perguntou:
-É coisa de mulher?
- Como assim?
- De traição, de adultério. Porque se for, eu não vou me meter. Certa vez entrei nessa e
acabou sobrando para mim. Jurei que nunca mais faria isso.
- Não é nada disso. Minha mãe desapareceu e preciso descobrir onde ela está. Se você
me indicar alguém, não mencionarei seu nome, fique sossegado.
- Bem, eu até conheço um muito bom. Mas não sei se devo indicá-lo. Ele é namorado de
minha irmã e eu não gosto de envolver minha família nisso.
- Ele é bom mesmo?
- Não há caso que ele não desenrole. É formado em Direito, mas sempre foi fascinado
pela investigação.
- Nesse caso, vou procurá-lo.
- Hum... Não sei...
- Será um grande favor que você estará me fazendo. Além do que lhe darei uma boa
gratificação.
- Isso eu não posso aceitar. Mas se me prometer que me deixará fora disso, talvez...
- Claro. Vou procurá-lo e não direi que foi você quem o indicou. Aconteça o que
acontecer, não envolverei sua família.
Ronaldo estava hesitante e Vitório tentava convencê-lo. Quando o carro parou diante do
hotel, finalmente ele concordou:
- Está bem. Vou dar-lhe o número do telefone dele.
- Muito obrigado. Disponha de mim se precisar de alguma coisa.
Vitório apanhou um cartão seu e deu-o a Ronaldo que por sua vez escreveu um nome e
alguns números em um pedaço de papel e entregou-o a ele. Vitório pagou a corrida e
despediu-se, agradecendo mais uma vez.
Entrou no hotel, abriu o papel e leu o nome: Paulo. Decidiu ligar imediatamente. Subiu
para o quarto e ligou para o número indicado.
Uma voz de mulher atendeu:
- Escritório de advocacia.
- Quero falar com o Dr. Paulo.
- O nome completo, por favor.
- Não sei. Um amigo me indicou e não me deu o sobrenome.
- Temos dois com esse nome do escritório.
- Estou precisando dos serviços dele, mas ainda não o conheço pessoalmente. Só sei que
ele é especializado em investigações.
- Então deve ser o Dr. Paulo Rodrigues Maciel. Vou passar a ligação.
Pouco depois uma voz de homem atendeu e Vitório disse:



47
- Estou precisando de seus serviços profissionais. Gostaria de ir até seu escritório para
conversarmos.
- Estou muito ocupado. Nesta semana não será possível atende-lo.
- Eu não posso esperar. O caso é muito sério. Gostaria pelo menos de falar com você e
saber se pode me ajudar. Caso contrário terei de procurar outra pessoa. Tenho urgência.
- Meu nome é Vitório Borges de Azevedo.
Paulo fez silêncio por alguns instantes, após perguntou:
- Você quer falar comigo sobre o assassinato de Teresa Borges de Azevedo? Ela é sua
parenta?
- É. Mas não posso falar por telefone.
- Neste caso pode vir ao escritório. Vou ver o que posso fazer.
Vitório pediu o endereço, desligou e tornou a sair. Meia hora depois estava entrando no
prédio e notou que lá havia muitos escritórios, a maioria de advogados.
Encontrou o que procurava, entrou, deu o nome à recepcionista e foi conduzido a uma
sala onde Paulo imediatamente levantou-se para recebê-lo. Era um homem alto, forte,
moreno, cabelos revoltosos, que ele tentava em vão manter penteados, testa larga, olhos
castanhos, nariz reto, boca bem delineada e barba que apesar de bem-feita deixava em
seu rosto uma sombra levemente escura. Aparentava cerca de trinta e cinco anos.
Vitório olhou-o nos olhos querendo sentir as energias do advogado e depois sorriu
levemente dizendo:
- Eu liguei meia hora atrás.
- Estava a sua espera. Eu não tinha tempo hoje, mas quando ouvi seu nome, senti que
não podia deixar de atendê-lo. Seu caso estava em todos os jornais dias atrás e a policia
não tem pistas. Sente-se, por favor. Vamos conversar.
Paulo indicou um sofá e sentou-se ao lado dele. Mostrou interesse e, apesar de Vitório o
estar fixando firmemente, não desviou o olhar nem uma vez. Vitório sentiu que podia
confiar nele. Contou tudo minuciosamente e, à medida que falava, Paulo fazia
anotações. Até que ele finalizou:
- Foi isso. O corpo daquela mulher não é de minha mãe, é só isso que eu sei. O resto é
sem resposta. Sequer sei por onde começar. Mas como minha mãe desapareceu e seus
documentos estavam no local do crime, estou aflito, imaginando onde estará e como.
- Tem certeza de que não estão enganados? Afinal, outras pessoas de sua família
reconheceram o corpo.
- Mas Dinda também não o reconheceu. Alias, naquele corpo não havia o sinal de
nascença que minha mãe tinha nas costas.
- É. Isso faz crer que vocês estão certos.
- Agora que lhe contei tudo, quero saber você pode me ajudar a descobrir onde está
minha mãe? Não sei por onde começar, mas estou disposto a insistir até saber toda a
verdade.
Paulo ficou pensativo por alguns instantes, depois disse:
- Este caso me atraiu desde o começo. Você está mesmo decidido a ficar em São Paulo
enquanto durar as investigações?
- Estou. Meu pai e Dinda vão ficar comigo.
- Neste caso é bom saber que a investigação
Pode demorar. De minha parte vou fazer tudo para que consiga encontra-la o mais
rápido possível, porém isso não depende apenas de mim. Tenho algumas pessoas que
trabalham comigo e vão nos ajudar, mas o aconselho a tentar se acalmar, porquanto a
ansiedade atrapalha muito. Nós vamos precisar que todos vocês se recordem dos
acontecimentos dos últimos tempos. Você disse que sua mãe estava deprimida e decidiu
viajar para Europa. Sabe a causa da depressão?


48
- Não. Ela dizia apenas que estava cansada, sem vontade de viver. Eu era além de
Dinda, a única pessoa com a qual ela se abria, contava coisas da sua juventude etc.
Quanto a essa depressão, cansei de indagá-la sobre o motivo pelo qual ela sentia-se tão
infeliz e desanimada, porém ela desviava o assunto.
- É evidente que tinha algum motivo. Você disse que ela se relacionava bem com seu
pai e era mais firme com seu irmão. Ela não se dava bem com ele?
- Isso aconteceu porque desde muito pequeno eu ficava muito agitado, via coisas, ouvia
vozes e ela achava que eu estava doente e precisava de mais aconchego.
- Você tem mediunidade?
- Sou hipersensível.
- Pode falar abertamente sobre o assunto. Sou um estudioso do espiritualismo.
- Sinto-me aliviado. Minha mãe me levava ao psiquiatra, eu tomava remédios fortes que
me deixavam mal, nunca mais contei a ninguém o que acontecia comigo.
- Infelizmente, ainda a pessoas que se recusam a perceber essa realidade. Você pode
utilizar essa capacidade para evocar os espíritos do bem, para que o ajudem a ficar mais
calmo. Assim, talvez, possa lembrar-se de algum fato que nos ajude a encontrar o fio da
meada.
- Estou feliz de encontrar alguém que conhece essa realidade. Eu tenho uma amiga
espiritual, chama-se Analú. Ela tem me ajudado sempre. Entretanto, neste caso, ela
apenas me diz para confiar e esperar.
- Certamente ela não pode dizer o que você quer saber. Nem sempre os espíritos têm
permissão para intervir em nossa vida. Só o fazem aqueles que ainda não tem
Eles ficaram conversando durante mais de uma hora até que Vitório levantou-se:
- Desculpe ter tomado tanto o seu tempo. Você é ocupado e eu estou abusando.
- Não se preocupe. Meu pessoal está fazendo o que é preciso. Mas quero que você volte
aqui amanhã cedo para começarmos a trabalhar no caso. Esta noite farei um roteiro para
iniciarmos as investigações.
Satisfeito, Vitório despediu-se querendo já pagar pela consulta, o que Paulo não aceitou.
- Não precisa pagar nada. Vamos precisar de algum dinheiro para as primeiras despesas,
mas só saberei quanto, depois de programar tudo.
Vitório deixou o escritório satisfeito. Além de um detetive que lhe passava segurança e
firmeza tinha encontrado um amigo.
Estava muito bom para um primeiro dia. Foi para o hotel. Sentiu que estava com fome,
mas queria tomar um banho primeiro.
Foi para o quarto, tomou um banho rápido, enxugou-se e estendeu-se na cama relaxar
um pouco.
De repente, sentiu um arrepio desagradável pelo corpo e uma leve tontura. Percebeu
alguém no quarto. Apagou a luz e sentou-se, procurando livrar-se daquela energia ruim
que o envolvia.
Concentrou-se e pediu ajuda espiritual. Foi quando viu em um canto do quarto dois
vultos escuros. Fechou os olhos e fixou-os melhor. Divisou um casal. Ele, olhos
esbugalhados; ela, olhos raivosos que expeliam chispas de energias escuras em direção
de sua testa. Vitório notou que ela trazia as mãos e o pescoço sangrando, enquanto ele, o
peito cheio de cortes, sangue e um corte na face. Ele percebeu que tinha diante de si o
casal assassinado. Procurou reagir ao mal-estar que o incomodava e esforçou-se para
fazer as perguntas que castigavam se cérebro.
Foi quando ela, olhando-o com raiva, disse com voz rouca e entrecortada:
- Vocês vão me pagar por tudo. Caí na armadilha. Mas vou me vingar.
- Vocês não perdem por esperar! - ameaçou ele.
Fazendo um esforço enorme, Vitório perguntou para a mulher:


49
- Quem são vocês? Onde está minha mãe? Onde arranjaram os documentos dela?
Eles não responderam e antes que Vitório pudesse dizer mais alguma, desapareceram,
deixando uma nuvem de poeira escura no lugar onde estavam.
Vitório conseguiu reagir e vencer o torpor desagradável que envolvia sua cabeça,
ficando apenas com um ligeiro enjôo.
Novas perguntas continuavam martelando seu cérebro. Por que eles estavam com raiva
da família? Que ligações teriam com sua mãe? Por que juraram vingança? Ele precisava
descobrir.
Foi ao banheiro, lavou o rosto, os pulsos, enxugou-se e sentiu certa fraqueza. Resolveu
vestir-se e descer para jantar. Precisava comer o quanto antes para repor as energias.
Foi ao quarto do pai e soube que ele pedira um lanche no quarto. Então, convidou Dinda
para jantar com ele.
Ambos desceram para o restaurante do hotel. Assim que se sentaram à mesa, ela
comentou:
- Você está com uma cara de quem viu fantasmas! Pálido, onde andou o dia inteiro?
- Eu vi fantasmas mesmo. Pra você posso contar. Em poucas palavras ele contou tudo,
inclusive à presença dos dois espíritos em seu quarto desejando vingar-se.
Dinda ouviu com interesse. Depois comentou:
- Você precisa rezar muito, meu filho. Essas almas estão revoltadas.
- Estão com ódio de nossa família. Você sabe me dizer por quê?
- Eu não! Por que deveria saber?
- Porque mamãe lhe contava seus segredos. Deve ter acontecido alguma coisa para que
eles nos odeiem tanto.
- Não sei de nada. Você precisa descansar. Está imaginando demais. Tem de se
alimentar bem e ir descansar. Amanhã é outro dia.
- É, amanhã é outro dia.
Ele não disse mais nada. Tratou de comer e depois subiu para o quarto. Mas em sua
cabeça continuavam os questionamentos em torno dos acontecimentos.




50
CAPÍTULO 8

Três dias depois, Vitório, acompanhado de Paulo, tocou a campainha da casa de
Marília. Assim que Dorita abriu a porta ele disse:
- Espero não ter vindo atrapalhar de novo.
- Seria bom que fosse verdade, mas hoje estamos com uma pequena encomenda que já
foi entregue. Entrem, vou chamar Marília.
Levou-os para sala e Marília apareceu em seguida, acompanhada de Altair. Vitório fez
as apresentações:
- Marília, Paulo advogado que está disposto a nos ajudar. Você, penso que seja Altair.
- Muito prazer Dr. Paulo. Altair! Cumprimente o Vitório e o Dr.Paulo.
O menino estendeu a mão e cumprimentou os dois. Era um menino bonito, parecido
com a mãe, porém estava um pouco abatido. Marília tornou:
- Altair não foi à escola hoje. Está resfriado. Mas sentem-se, por favor. Já conhecem
minha amiga Dorita...
Ela acenou com a cabeça e retirou-se discretamente, levando Altair pelas mãos.
- Você pretendia arranjar um detetive particular. Mudou de idéia?
- Não, o Dr. Paulo é um advogado que se especializou em investigações. Naquele dia
em que estive aqui, pedi a uma pessoa que me indicasse um detetive, e ela me indicou o
Dr. Paulo. Ele atendeu-me no mesmo dia e concordou em nos ajudar. Na manhã
seguinte, apresentou-me um plano para começar seu trabalho. Eu queria naquele mesmo
dia vir até aqui, porém apareceu um apartamento mobiliado para alugar e meu pai quis
mudar logo. Estava cansado de viver em um quarto de hotel. Ele está muito abatido, não
se conforma com o que aconteceu. Não se alimenta direito. Fez uma lista de nossas
coisas que ele queria que nos mandassem e o caminhão da nossa empresa trouxe. Eu
precisei auxiliar na arrumação e só hoje pude vir.
- Você conseguiu tudo para Paulo continuou: - Já iniciaram as investigação?
- Sim. Primeiro fui à delegacia conversar com Monteiro, que conheço há anos.
Informei-me sobre os laudos e as impressões dele sobre o caso.
- Ele me parece um tanto devagar ­ comentou Marília -, até agora não conseguiu
descobrir nada.
- A senhora está enganada. Monteiro é um homem sagaz, inteligente. Mas as pistas são
poucas.
- Não me chame de senhora. Faz me sentir velha. O que foi que o delegado lhe disse?
- Ele ficou contente por eu ter entrado no caso. Já trabalhamos juntos outras vezes. Eu
pude ver as fotos do crime, os laudos da perícia, as declarações contraditórias dos
familiares.
- Qual a sua conclusão?
- É cedo para isso. Vim conhecê-la.
- Vai interrogar-me e dizer que sou suspeita de haver cometido o crime?
A voz de Marília tinha um leve tom irônico que não passou despercebido a Paulo, que
respondeu:
- Não. Você nunca teria como cometer o crime, mas poderia ter sido a mandante.
Marília não gostou e retrucou irritada:
- Poderia se eu amasse meu marido.
Paulo baixou o olhar para que ela não percebesse o brilho satisfeito que apareceu em
seus olhos. Baixou o tom de voz e tornou:
- Você não se casou por amor?


51
Ela arrependeu-se de suas palavras e tentou corrigir-se:
- Eu tinha dezoito anos quando me casei. Depois de dez anos de vida em comum a
rotina acaba com todas as ilusões.
- Pois eu não vejo assim. As ilusões é que nos levam à dor. A verdade é sempre melhor.
Você tem uma crença equivocada. Acredita que a vida seja responsável pelos
sofrimentos. Isso é mentira.
Marília tentou controlar a indignação ao responder com certa ironia:
- Você acha que quando uma jovem se casa ela sabe o que está fazendo? Conhece como
vai ser sua vida conjugal e seu relacionamento com o marido? O casamento é sempre
uma aventura onde algumas têm sorte, outras não.
- Você acha que não teve muita sorte, não é?
Talvez pelas emoções dos últimos dias, pela insegurança do futuro, a falta de dinheiro,
ela não conteve as emoções:
- Você acha que é bom uma jovem ingênua casar-se com um homem frio, calculista,
que faz de seu trabalho um mistério contínuo, que nunca conversa sobre o que pensa!
Que dá pouco dinheiro para a mulher, não a deixa sair de casa nem a leva a nenhum
lugar? Que olha o filho como se fosse um desconhecido, não brinca com ele nem lhe dá
carinho? Que quando ela quer se colocar, conversar sobre o relacionamento ele torna-se
violento e a espanca?
Vitório, a olhava admirado. Vira em Marília uma doce e delicada mulher, não
imaginava o que ela guardava no coração.
As lágrimas corriam pelas suas faces e ela continuou com voz entrecortada:
- Pode imaginar o que eu senti ao receber a carta anônima e acreditar que finalmente iria
descobrir onde meu marido passava as noites? Quando a porta daquela casa que estava
às escuras se abriu a um leve toque e a curiosidade fez-me entrar, e, mesmo tendo visto
os objetos revirados, a luz acesa do abajur no quarto me fez caminhar até lá e ver aquela
cena horripilante que quando eu fecho os olhos continuo vendo como da primeira vez?
Pode imaginar o medo que senti? A vontade de fugir quando acendi a luz do quarto e
reconheci meu marido com o rosto pálido, cheio de sangue, deitado naquela cama? Sai
correndo, os trovões reboavam sobre minha cabeça tanto quanto meu coração
aterrorizado, fazendo meu corpo tremer, enquanto a tempestade molhava-me e um frio
imenso me invadia. Eu queria chegar à casa de qualquer jeito. Nem sei como consegui.
Marília se levantara, tremia e soluçava convulsivamente. Paulo aproximou-se dela e
abraçou-a com carinho:
- Ponha para fora toda mágoa, sua mágoa, sua revolta, sua dor. Chore, você tem
motivos.
Descansando a cabeça no peito dele, Marília soluçou por alguns minutos, depois, aos
poucos, foi se acalmando e parou de chorar.
Paulo tirou um lenço e colocou-o na mão dela que enxugou o rosto, separando-se dele e
dizendo envergonhada:
- Desculpe. Eu não queria fazer isso.
- Você precisava desabafar. Deve estar se sentindo aliviada ­ disse Paulo sério.
Marília suspirou e respondeu:
- Estou aliviada, mas envergonhada também. Não costumo fazer cenas como esta.
- Eu a provoquei um pouco ­ disse Paulo. - Quem lhe pede desculpas sou eu. Mas eu
precisava, conhecê-la melhor.
Vitório estava admirado e desejou ser solidário com ela:
- Não se preocupe, Marília. Eu sou assim. Outro dia chorei aqui diante de você e Dorita.
Não me envergonho mais. Sou muito sensível e às vezes não dá para controlar.
Marília entendeu a intenção dele e procurou sorrir.


52
- Vocês vão me dar licença. Vou lavar o rosto. Não quero que Altair me veja assim. Vou
subir e já volto.
Pouco depois, Dorita entrou com uma bandeja onde havia café e um prato com
salgadinhos.
- Marília os deixou sozinhos?
- Ela subiu, mas vai voltar logo ­ respondeu Paulo.
Dorita serviu o café, colocou o pratinho sobre a mesinha e Paulo perguntou:
- Há quanto tempo você está com Marília?
- Mais ou menos nove anos.
- Deve ter acompanhado o relacionamento do casal.
Dorita olhou-o séria. Ela não iria falar nada do que se passara naquela casa. Paulo
continuou:
- Marília nos contou suas desilusões tendo se casado tão jovem com um homem
violento e ignorante que nem ligava para o filho.
- Ela contou?
- Toda a verdade. Emocionou-se, chorou muito e subiu, para lavar o rosto. Não quer que
o menino a veja de olhos vermelhos.
- É de admirar. Ela não gosta de falar nisso. Nunca contou a ninguém. Mas eu sei o
quanto ela sofreu com esse marido. Para dizer a verdade, ninguém merece morrer
daquele jeito, mas eu fiquei contente por ele não estar mais aqui.
- Você não gostava dele?
- Nem um pouco. Um homem que fez o que ele fez com uma mulher sincera, boa,
carinhosa como Marília, merece ser castigado.
- Eles brigavam muito?
- No começo, sim. Ela não se conformava com a maneira dele não falar aonde ia, o que
fazia e perguntava. Então, era a hora que ele ficava violento e até a agredia. Uma vez ela
ficou com o braço roxo por muitos dias porque ele bateu nela com um cinto de couro.
Aí, ela deixou de questioná-lo. Mal se falavam. Só as coisas de casa.
- Eles dormiam no mesmo quarto? Relacionavam-se intimamente?
- Isso eu não sei. Quando ele estava em casa dormiam juntos na cama. O que eu sei é
que ela tinha horror de dormir com ele. Muitas vezes dizia que Altair estava doente e ia
dormir na cama dele.
Marília desceu as escadas. Havia se esforçado para disfarçar, mas seus olhos ainda
estavam um pouco avermelhados.
- Eu estava fazendo companhia às visitas ­ explicou Dorita, sorrindo, fazendo menção
de retirar-se.
Marília disse:
- Fique, Dorita. Para você não tenho segredos. Onde está Altair?
- Na copa, fazendo a lição.
- Então ele melhorou.
- Melhorou sim. Comeu um bom lanche.
- Que bom. Estou aliviada.
Os dois tomaram café, comeram os salgadinhos, depois Paulo levantou-se:
- Agora temos de ir. O café estava delicioso e os salgados fizeram-me lembrar de vovó.
Ela faz umas empadas tão boas quanto as suas.
- Coisas de avó têm sabor diferente ­ disse Dorita. Quando tiverem vontade, venha,
experimentar nossos quitutes.
- Viremos ­ respondeu Vitório.
- Vou acompanhá-los até a porta ­ disse Marília.
- Voltaremos quando tivermos alguma notícia sobre o caso ­ prometeu Paulo.


53
- Não precisam esperar, venham quando quiserem. Você disse que estou enganada
quanto à dureza da vida. Gostaria que me explicasse por quê.
Os olhos de Paulo brilham alegres, e ele respondeu:
- Você não se esqueceu... Qualquer dia eu voltarei para lhe explicar melhor.
- Desculpe por eu ter ensopado seu lenço. Quando voltar eu lhe devolverei devidamente
lavado e passado. Obrigada por vocês terem suportado meu desabafo.
Eles despediram-se com beijinhos na face. Depois daquele encontro com Marília sentia
que havia encontrado verdadeiros amigos.
Uma vez no carro, Vitório tornou:
- Outro dia quando estive aqui pensei que Marília tivesse superado o assassinato do
marido. Mas hoje...
- Quando chegamos, notei logo que ela é uma pessoa bastante fechada e que não gosta
de falar sobre seus sentimentos.
- No começo me pareceu que você estava sendo muito duro com ela.
- Eu a estava provocando para que se abrisse.
- Não sei como uma mulher tão delicada como ela pôde suportar tantos anos de
convivência com aquele marido.
- O fato é que ela não se separou e se ele ainda estivesse vivo, continuariam juntos. Isso
me intriga. Mas ainda saberemos por quê.
- Agora vãos falar com papai. Ele está um pouco melhor e concordou em conversar com
você.
- Ontem, quando fui ao apartamento, já que seu pai preferiu deixar para falar comigo
hoje, quis conversar com Dinda. Mas ela esquivou-se, dizendo que precisava cuidar do
Sr.Alberto. Talvez saiba mais do que contou ao delegado.
- Não creio. Se soubesse de algo mais teria me dito. Ela é assim mesmo, muito
dedicada. Está preocupada com ele porque desde que veio para cá tem estado calado,
triste, inconformado e sentindo-se fraco, casado. O médico veio examinou, ele e disse
que ele está com depressão. Receitou um medicamento e estimulou-o a reagir, pediu-lhe
que fosse andar pela manhã e procurasse alimentar-se bem.
Uma vez no apartamento com Vitório, Dinda disse que Alberto continuava no mesmo.
Não fora andar pela manhã conforme a recomendação do médico, alimentara-se mal e
continuava deitado, muito abatido.
Vitório foi falar com ele. Bateu levemente na porta e entrou. Alberto estava deitado,
abriu os olhos e, vendo-o, fechou os novamente.
- Pai, Dinda disse que você não fez o que o médico pediu.
- Estou muito cansado. Não consegui levantar.
- Você precisa reagir. Não pode entregar-se ao desânimo. Desse jeito vai acabar doente
de verdade.
Alberto não respondeu. Vitório sentou-se na poltrona que estava na cabeceira da cama e
disse:
- Pai, o Dr.Paulo veio comigo e está esperando para conversar com você!
- Resolva isso. Não tenho vontade de conversar com ninguém. O que eu sabia já falei
para o delegado!
- Nós precisamos descobrir onde mamãe está. Não podemos perder tempo.
- Às vezes penso que você está enganado e que aquele corpo é dela. É impossível existir
alguém tão parecida e ainda estar com os documentos dela.
- Eu não penso assim e contratei o Dr.Paulo para investigar. Não vou descansar
enquanto não descobrir o que realmente aconteceu.
- Fale com ele. Toda vez eu falo sobre o assunto me sinto mal. É muito difícil para mim.



54
- Faça um esforço, pai. É preciso. Não vai demorar. Não precisa se levantar. Sente-se e
eu vou colocar alguns travesseiros nas suas costas. Estou lhe pedindo!
Alberto suspirou desanimado, mas concordou:
-Está bem.
Depois de ajudá-lo a sentar-se e acomodá-lo, Vitório chamou Paulo, que entrou em
seguida.
Após os cumprimentos, Vitório pediu que Paulo se sentasse na poltrona ao lado da cama
e disse:
- Vou deixá-los à vontade.
- Eu prefiro que você fique ­ pediu Alberto.
Mas Paulo interveio:
- É melhor ele sair.
Quando se viu sozinho com Alberto, Paulo disse:
- O senhor também tem certeza de que aquele corpo não é de sua esposa?
- Tenho minhas dúvidas. Há momentos em que penso que seja dela. São muito
parecidas. Seria difícil existir duas pessoas tão iguais.
- Se o senhor está tão deprimido é porque, apesar do que afirmam Vitório e Dinda, no
fundo está certo de que sua esposa está morta.
- Se ela estivesse viva, já teria nos procurado, a não ser...
- A não ser...
- Nada. Desde que isso tudo começou não tenho tido um momento de paz. Muitas idéias
surgem em minha cabeça e não sei no que acreditar.
Paulo olhou firme nos olhos de Alberto e perguntou:
- Sua mulher tinha algum motivo para não querer voltar para casa?
Alberto hesitou um pouco, depois respondeu:
- Nos últimos tempos, Teresa andava deprimida. Não tinha motivação para nada. E, de
vez em quando, dizia que sentia vontade de desaparecer, sumir.
- Teresa não era feliz?
Alberto estremeceu:
- Não acredito nisso. Eu sempre fiz tudo por ela. Cerquei-a de luxo, carinho, bem-estar.
Ela não tinha motivo nenhum para ser infeliz.
- A que o senhor atribui à depressão dela?
- Não sei. O médico disse que poderia ser da idade.
- Como se conheceram?
- Faz muito tempo e isso não deve interessar ao caso.
- Interessa muito. Eu desejo conhecer a personalidade de Teresa, compreender por que
ela se sentia infeliz.
Alberto remexeu-se na cama um pouco irritado:
- Eu já disse: ela não se sentia infeliz.
- Mesmo assim, quero saber como se conheceram.
- Em uma festa, na casa de amigos. Foi amor à primeira vista. Ela era alegre, bonita,
cheia de vida. Passei a cortejá-la e ela, a princípio, não queria nada, mas depois acabou
se interessando por mim e nos casamos.
- Quando foi que ela começou a mudar?
- Bem, desde que nos casamos ela foi mudando um pouco. É natural, antes era solteira e
não tinha uma família para cuidar. Eu sempre procurei fazer de tudo para que ela não
tivesse de se preocupar com nada, cerquei-a de empregados e Dinda sempre fez tudo
para que ela fosse feliz.
- Mas mesmo assim, ela sentiu-se deprimida, angustiada nos últimos tempos. Ela não
lhe contou os motivos?


55
- Não. Mas penso que não havia nada. Ela adoeceu. Eu queria viajar com ela, mas
Teresa não quis. Ela me disse que queria ficar longe de tudo, que só assim iria se
refazer. Embora triste, eu respeitei sua vontade. Como não queria que ela fosse sozinha,
Teresa apresentou-me Elvira. Elas viajaram juntas.
- O senhor as acompanhou ao embarque?
- Sim. Levei-as ao aeroporto e deixei-as no salão de embarque.
-Quem mais as acompanhou ao embarque?
- Ninguém. Elvira disse que era do interior e sua família não veio com ela para o Rio de
Janeiro.
- Como era Elvira?
- Uma mulher muito fina, elegante, bem vestida, com várias malas.
- Como era fisicamente?
- Alta, loura, esguia, olhos castanhos, não aparentava ter a mesma idade de Teresa. Era
mais conservada.
- É importante que se recorde dela. Essa mulher pode ter todas as respostas do que
aconteceu.
- Eu me arrependo de haver confiado nela, sem querer saber seu endereço, conhecer sua
família. É que ela pareceu-me tão fina, tão educada que não tive coragem de perguntar
nada. Nunca poderia imaginar que fosse acontecer alguma coisa ruim. Depois, Teresa
conversava com ela com alegria e eu até pensei que sua companhia poderia ajudá-la a se
recuperar.
Paulo colocou a mão no braço de Alberto e disse, olhando firme em seus olhos:
- Eu prometo que vou descobrir toda a verdade. Quero que me ajude. Para isso precisa
reagir, sair dessa cama, porque só quando estiver melhor é que poderá se recordar de
mais algum detalhe. Tenha em mente que qualquer coisa que se lembre, por mais
insignificante que lhe pareça, pode ser o fio da meada que procuramos.
- E você, o que pensa de tudo isso? Acredita que Teresa esteja morta?
- Ainda não tenho uma opinião definida. Estou começando a investigar. O que sei é que
o homem que foi morto naquela cama, além de violento, levava vida suspeita.
- Isso me atormenta. Como Teresa poderia envolver-se com um homem daqueles?
- Não se atormente. Ainda não temos certeza de nada. Pode ser que Teresa nunca o
tenha conhecido.
- Mas e os documentos?
- Podem ter sido furtados. O que mais me intriga é a semelhança. Mas se não for Teresa,
vamos descobrir quem é essa mulher. Não se deixe abater antes da hora. Levante-se e
cuide da sua saúde. O senhor deve confiar que dias melhores virão.
- Obrigado pelo conforto. Vou levantar-me, tomar um banho para ver se me sinto
melhor.
- Enquanto isso vou conversar com Dinda, mas ficarei esperando para tomarmos um
café juntos.
Paulo saiu do quarto e Vitório o estava esperando do lado de fora:
- E então?
- Ele vai se levantar, tomar um banho e depois tomaremos um café juntos. Agora quero
falar com Dinda.
Ela estava na sala, ouviu a conversa e respondeu:
- Agora eu não posso. Vou preparar um bom lanche para o Sr.Alberto e um café
reforçado.
Paulo sorriu e respondeu:
- Conversaremos depois do café.
Dinda apressou-se a ir para a cozinha.


56
CAPÍTULO 9

Osmar chegou ao escritório da empresa nervoso. Refugiou-se em sua sala, sentou-se
diante da mesa e manuseou a correspondências que chegara durante os dias em que
estivera ausente.
Nenhuma notícia importante. O que ele temia não tinha se concretizado.
Talvez seus adversários tivessem se dado por satisfeito com o que fizeram e dali para
frente não o incomodassem mais.
Apesar do golpe sofrido, ele podia dar-se por feliz com o resultado alcançado. Pagara
uma quantia favorável. Podia tocar a vida para frente, sem que ninguém desconfiasse.
Seu pai estava adoentado, deprimido, não se interessava mais em controlar a empresa.
Ele poderia fazer tudo o que sempre sonhara. Quando entrasse mais dinheiro, ele
poderia pagar o que devia e assim, limpar o caminho para continuar seus negócios.
Quando vendesse aquela mercadoria estaria rico. Muito rico.
Não haveria limites para ele. Em pouco tempo triplicaria o capital. Com a mãe morta, o
pai ausente, e um irmão que não tinha tino comercial nem se interessava pelos negócios
da família, ele teria controle de tudo. Se Vitório o incomodasse, o internaria em uma
casa de saúde de onde não o deixaria mais sair.
Ele não notou que alguns vultos escuros o abraçaram, dizendo-lhe:
- Você merece! É o mais inteligente, o mais lúcido o único que sabe mandar.
- Família só serve para atrapalhar. Você não precisa dela...
Embora Osmar não ouvisse as palavras, pensava:
"Não preciso de ninguém. Vou ser muito rico e então terei o mundo a meus pés. Quero
ver se Aurélia continuará indiferente depois que eu me tornar rico e poderoso! É ela
quem virá arrastar-se a meus pés, implorar pelo meu amor".
Nessa divagação, Osmar a imaginava em seus braços, louca de amor, desejando seus
beijos, submetendo-se à sua vontade. A esse pensamento sorria enlevado. Para obter
isso, faria qualquer coisa. Tiraria do seu caminho qualquer um que dificultasse seus
planos.
Ele era um vencedor. Nenhuma mulher poderia rejeitá-lo como Aurélia fizera. Há dois
anos, quando ele se declarara e a pedira em casamento, ela rira da sua emoção,
tripudiara sobre os seus sentimentos.
Rejeitado e vingativo, ele jurara conquista-la de qualquer forma. Era questão de honra.
Essa mulher tão requestada, admirada em sociedade, ainda se atiraria em seus braços.
Desde essa época, planejara que o primeiro passo seria conseguir o que pretendia.
Ele não queria esperar. Tinha pressa, muita pressa. Então, resolveu entrar na
marginalidade. Depois de pesquisar, decidiu entrar no comércio de drogas.
Às escondidas, relacionou-se com viciados, fingindo-se ser um deles e conheceu alguns
traficantes. Procurou os maiores. Assim que se sentiu bem informado, começou a
desviar dinheiro da empresa para negociar drogas.
Foi devagar. Fazia pequenos negócios. O pai era muito ativo, vigilante, assinava os
cheques, participava de tudo e ele não tinha como fazer o que planejara rapidamente.
Mas com o tempo, tendo conseguido aumentar os negócios da empresa de maneira
regular, captou a confiança de Alberto, que dividia com ele tarefas mais importantes.
Osmar sempre fora o filho preferido dele, que sonhara deixar a empresa para os dois
filhos. Vitório não se interessava e, além disso, por ser hipersensível, acreditava que o



57
filho fosse doente. O interesse do pai pelo trabalho irritava Osmar, desejoso de levar os
planos adiante.
Cada vez que ele via Aurélia assediada por outros homens, alguns dos quais mais
importantes financeiramente do que ele sofria crises de ciúmes. Como não podia
manifestar o que sentia, recolhia-se em casa e repassava seus planos como forma de
enfrentar sua raiva.
Aurélia, linda, indiferente ao assédio masculino, moça culta e rica, só pensava em
divertir-se, aproveitar sua mocidade. Não desejava amarrar-se em um casamento que
tiraria sua liberdade. O casamento dos pais e a convivência com a vida formal, ausente
de amor que eles levavam e que ela odiava , fizeram-na fugir desse tipo de
compromisso.
Gostava de ir às praias, cantar, dançar, freqüentar festas e lugares da moda, viajar. Filha
única de pais condescendentes fazia sempre o que queria, sem se preocupar com nada
que não fosse seu prazer de viver.
Mesmo assim, pela sua beleza, sua alegria e espontaneidade, eram amadas por todos e
sempre bem recebida onde aparecia; sua reputação era muito boa.
Osmar sonhava em te só para si. Em ser exclusivo na vida dela. Era possessivo e não se
conformava com a vida que ela levava. Imaginava que quando se casassem, (ele não
divisava que conseguiria isso) ela teria de fazer tudo com ele queria.
O telefone tocou e ele atendeu:
- É você? Por que está ligando para cá? Eu lhe disse para nunca fazer isso.
- É que precisamos conversar. Surgiu um problema.
- Eu lhe pago para evitar problemas. Aqui não quero tratar do assunto.
- Tenho urgência em conversar com você.
- Está bem. Hoje mesmo vou ter com você.
- O quanto antes. Estarei esperando.
- Não ligue mais para cá.
Osmar desligou o telefone irritado. Um problema agora seria perigoso.
Alguém bateu e ele lembrou-se de que não havia destravado a porta. Foi abrir.
- O senhor desculpe, mas está aqui o Dr. Nunes para tratar do caso do Anselmo.
Era uma causa trabalhista e Nunes era advogado da empresa.
- Eu tenho um compromisso importante e preciso sair,
- O Dr. Nunes disse que tem urgência. A audiência é amanha e o risco de a empresa
perder é grande.
- Ele pode entrar, mas que seja breve.
O advogado entrou e embora Osmar desejasse sair logo, o caso era complicado e ele
precisou ficar mais tempo do que pretendia. Só conseguiu deixar a empresa uma hora e
meio mais tarde. Apanhou o carro, deixando-o no posto para lavagem. Disse ao
atendente:
- Capriche. Tenho um compromisso, volto daqui à uma hora.
- Sim, senhor.
Osmar parou um táxi, deu o endereço e foi rumo ao subúrbio. Quando o carro parou
diante da casa modesta, ele desceu dizendo:
- Pode esperar. Não vou demorar.
Osmar deu três batidas, a porta abriu e ele entrou. Um rapaz moreno, franzino, cabelos
revoltosos, gestos nervosos disse logo:
- Puxa como você demorou!
- Não estou a sua disposição, sou um homem ocupado. O que é tão urgente que me fez
largar tudo e correr até aqui¿ Sabe que não gosto que nos vejam juntos.



58
- Hoje era dia de visitas e eu fui até o sanatório. Mas os médicos me chamaram e
disseram que ela não pode mais ficar lá. Está dando muito trabalho e eles querem que
ela vá para outro lugar.
- Isso é um absurdo. Eles que coloquem uma camisa de força.
- É melhor ir falar com o Dr. Ernesto. Eles se negam a fazer isso. Estou precisando de
dinheiro. O que você deu acabou o Jair está reclamando.
Osmar pegou a carteira e deu algumas notas dizendo:
- Agora só tenho isso. Amanha mesmo deposito mais naquela conta.
- Está bem.
Osmar saiu, entrou no táxi, foi pegar o carro no posto de gasolina e voltou para a
empresa.
Assim que chegou, ligou para o pai. Precisava saber como estava à investigação sobre o
crime. Dinda atendeu:
- Quero falar com papai.
- É melhor ligar mais tarde. Ele está conversando com o advogado e não pode ser
interrompido.
- Advogado? Para que? Nós já temos um.
Vitório apanhou o telefone:
- Sou eu, Osmar. Papai está ocupado.
- Que história é essa de advogado? Nós já temos um.
- Ele é o investigador que contratei para descobrir onde mamãe esta.
- Você continua com essa maluquice? Mande-o embora. Não há nada para investigar.
Quero falar com papai agora mesmo.
-O assunto é importante e não vou interromper. Papai não está bem de saúde e não vou
deixar que você perturbe ainda mais a cabeça dele. Se quiser falar com ele ligue daqui à
uma hora.
Vitório desligou o telefone e Osmar fixou com muita raiva. Ele precisava ter controle de
tudo e não podia permitir que Vitório continuasse investigando.
Respirou fundo e procurou controlar a irritação. Precisava de serenidade para decidir os
próximos passos.
A secretária entrou e entregou-lhe alguns recados anotados durante sua ausência.
Ele passou os olhos rapidamente e deteve-se em um que dizia: "Aniversário de
casamento do coronel Vilela às vinte horas".
- Preciso me preparar. Não posso perder essa festa. Aurélia com certeza estará lá.
Chamou a secretária e indagou se o presente do casal Vilela havia sido enviado. Havia
escolhido uma dúzia de rosas em um lindo arranjo e colocara dentro uma caixa de
veludo com uma jóia para a esposa do coronel.
Sabia que agradando a esposa, teria atenções do coronel. Ele não escondia a paixão que
sentia por ela. Recebera a informação de que tudo fora feito conforme pedira. Osmar
tratou de fazer o que era urgente e depois foi para casa. Queria descansar e preparar-se
com esmero para ir à festa.
Faltavam alguns minutos para as vinte e um horas quando Osmar parou o carro diante
dos portões da casa do coronel Vilela e, entrou na alameda principal que conduzia à
entrada da casa.
Assim que parou diante da porta aberta que dava para o saguão, um rapaz elegante,
vestindo um terno preto, abriu a porta do carro dizendo:
-Boa noite, doutor. Pode entrar, eu cuido do carro.
-Obrigado.
Osmar entrou no saguão finamente mobiliado; havia muitas flores e podia se ouvir a
musica que vinha do salão de festas.


59
O coronel Vilela e Ester, sua esposa, estavam no saguão e apressaram-se a dar-lhe as
boas-vindas. Ele era alto; forte; moreno; olhos, cabelos e bigodes castanhos; aparentava
cinqüenta anos e vestia-se com sua farda de gala. No peito algumas medalhas. Ela era
alta, magra, elegante e loura, demonstrava uma postura altiva dentro de um vestido azul-
noite. Portava algumas jóias de brilhantes que ressaltavam mais a beleza do seu vestido.
Osmar cumprimentou, desejando felicidades pelos vinte e cinco anos de casamento.
Trocaram algumas palavras rápidas, pois vários convidados estavam chegando e
desejavam cumprimentar o casal.
Osmar entrou no salão olhando em volta e sorriu satisfeito. Estava diante da melhor
sociedade do Rio de Janeiro. Alguns políticos, mas Aurélia não estava.
Ele sabia que ela costumava chegar sempre depois das onze, quando a festa estava no
auge da animação. Osmar cumprimentou alguns casais amigos e depois se deteve ao
lado de Merca, a filha mais velha do casal Vilela:
- Você está linda como sempre. Fica-lhe muito bem esse vestido cor de prata.
- Obrigada. Você sabe se Vitório virá?
Ela sabia que os dois irmãos não saíam juntos.
- Não. Ele viajou com papai.
Mércia ficou silenciosa pro alguns segundos. Havia lido os jornais, mas por delicadeza
evitou comentar o assunto.
- Eu não esperava que Você viesse... Isto é... Eu pensei que você estivesse fora do Rio.
Osmar assumiu um olhar triste. Baixou a cabeça e respondeu:
- Eu vim porque não poderia deixar de cumprimentar seus pais neste dia tão importante
para eles, e também para tentar esfriar um pouco a cabeça e sair da angustia que tem me
consumido. De nada adiantaria eu ficar em casa sofrendo, sem poder nada para
solucionar o problema.
- O momento não é próprio e não quero ser indelicada, mas tanto eu como minha
família, sentimos muito o que lhes aconteceu. Eu li que a policia não tem certeza da
identidade da mulher que foi morta.
- De fato, esse é um problema difícil e a causa da nossa angustia. Mas mudemos de
assunto, não quero entristecê-la em uma noite que deve ser de alegria e prazer.
Alguns não disfarçavam a curiosidade, olhando-o de forma diferente.
Se não fosse pela vontade de ver Aurélia e a esperança de que o notasse um pouco mais,
ele não teria ido.
Pensando melhor, decidiu adotar o ar de vitima, fingindo estar abalado com os
acontecimentos. Em vez de fingir que nada acontecera, o melhor seria falar no assunto,
mas de forma que as pessoas sofressem com sua desgraça e o vissem como um filho
vivendo a perda não apenas da mãe, mas também da honra.
Os artigos dos jornais exibindo os corpos mortos, meio desnudos sobre a cama, não
deixavam dúvida quanto ao relacionamento dos dois. Osmar era inteligente o bastante
para entender que ele nada valeria negar o fato. Mas se ele assumisse o choque, a dor
terrível daquele acontecimento, iria se tornar uma vitima, as pessoas iriam aconchegá-
lo, tentando minimizar seu sofrimento.
Tendo decidido isso, Osmar adotou um ar melancólico, isolou-se e percebeu que alguns
que antes o olhavam com curiosidade, passaram por ele, dando-lhe palmadinhas nas
costas, sem dizer nada, mas querendo demonstrar que entendiam sua dor e estavam
solidários.
Osmar observava a tudo, rindo por dentro, pensando em como as pessoas se iludem
facilmente.
Aurélia chegou dentro de um vestido cor de mel. Seus olhos verdes contrastavam com o



60
dourado de seus cabelos e combinavam com o colar e os brincos de esmeraldas que ela
usava com distinção.
Ela entrou no salão ignorando o burburinho que se fez com sua chegada. Olhando em
volta, dirigiu-se a Mércia e abraçou-a com carinho:
- Você está linda.
- Não tanto como você.
As duas se conheceram na infância. Suas famílias se visitavam e desde aqueles tempos
elas tornaram-se amigas.
Osmar aproximou-se, olhando Aurélia com admiração
- Como vai Aurélia?- indagou ele, com voz triste.
- Bem. Não pensei vê-lo aqui esta noite.
Osmar suspirou triste e respondeu:
- Há momentos na vida em que é preciso superar a dor e reagir.
Aurélia não se comoveu com o tom dele:
- Quando a pessoa não está bem, é melhor ficar em casa para não incomodar a alegria
dos outros.
- Pois eu vim buscar um pouco mais da sua alegria para tentar sobreviver.
- Não conte comigo para isso. Eu me sinto muito alegre nesta noite e não divido esse
estado com ninguém. Com licença, vou cumprimentar alguns amigos.
Ela afastou-se e Osmar mordeu os lábios com raiva. Era intolerável a maneira como
Aurélia o tratava. Mércia tentou suavizar:
- Aurélia gosta de brincar. Não leve a sério o que ela disse. Eu estou muito contente por
você ter vindo.
- Obrigado pelo carinho.
- Estes dias tenho pensado muito em Vitório. Quisera poder fazer alguma coisa para
consolá-lo.
- Ele faz muito drama e sofre mais por esse motivo.
- O que aconteceu não foi um drama para você?
Osmar retomou o ar triste que esquecera por alguns instantes:
- Foi um drama para toa nossa família. Mas enquanto eu reajo, tento disfarçar a dor que
estou sentindo, ele exagera porque foi sempre muito mimado.
- Cada um tem uma forma de encarar os fatos.
Algumas pessoas chegaram para cumprimentar Mércia e Osmar afastou-se. Sua atenção
estava sobre Aurélia. Quem era aquele desconhecido com o qual ela conversava
animadamente? Um rapaz alto, louro, corpo atlético, elegantemente vestido, cujos olhos
azuis a olhavam com admiração? Ele precisava descobrir. Aurélia não costumava dar
tanta atenção a um rapaz.
Pouco depois, antes que ele pudesse satisfazer sua curiosidade, viu o casal dançando,
um olhando nos olhos do outro, e a custa controlou o ciúme. Teve vontade de ir lá e
arrancar Aurélia dos braços dele.
Aproximou-se da dona da casa, dizendo:
- Parabéns pela linda festa!
- Obrigada. Sinto muito ao que aconteceu com sua família. Fico-lhe muito grata por ter
vindo nos cumprimentar, apesar dos momentos difíceis que estão passando.
Osmar baixou o olhar, fingindo tristeza.
- Eu não poderia deixar de vir cumprimentá-los em nome de nossa família. Meu pai e
meu irmão estão em São Paulo esperando a solução do caso. Depois, aqui todos são
nossos amigos e eu me sinto mais aconchegado junto a vocês. Só não conheço aquele
rapaz que está dançando com Aurélia.
Ela olhou o casal dançando e respondeu:


61
- Aquele é o doutor Augusto Mendonça, médico. O pai dele é muito amigo de meu
marido.
- Eu nunca o tinha visto.
- Nem poderia. Ele morava nos Estados Unidos até semana passada. Voltou ao Brasil
para dedicar-se a pesquisas científicas patrocinadas por uma universidade americana.
- Nota-se que é um moço fino e bem-nascido.
- De fato. Além de lindo ele é tudo isso e muito mais.
Osmar tentou ocultar a raiva, baixando os olhos. A partir daquele momento, ele não teve
mais paz.
O casal continuava dançando e conversando. Aurélia parecia estar muito bem ao lado
dele, tratava-o muito diferente do que costumava tratar seus admiradores.
Quanto mais Osmar os via juntos, mais pensava que precisava ultimar seus projetos
para que não viessem a fracassar.
No dia seguinte tomaria novas providências a fim de conseguir o que desejava. Não
seria por causa de um intruso que ele iria perder Aurélia. Seria muito bom que esse
doutorzinho não se metesse no seu caminho, porque ele estava disposto a afastar todos
os obstáculos.




62
CAPÍTULO 10

Depois do café, Dinda não saia da cozinha e Vitório foi buscá-la:
- O Dr.Paulo está esperando.
- Tenho que lavar esta louça. Agora não posso.
Ele puxou-a pelo braço:
- Pode sim. A louça pode esperar.
Dinda lançou-lhe um olhar irritado, mas não teve como resistir, pois, ele continuava
segurando seu braço e olhando-a sério.
- Vai indo que eu já vou.
- Não. Só saio daqui com você.
- Está bem. Eu vou.
Ela lavou as mãos, enxugou-as, tirou o avental e acompanhou Vitório até a sala.
- Vou deixá-los a sós para que possam conversar à vontade.
- Sente-se, Dinda.
Ela obedeceu de cara fechada.
Paulo acendeu um cigarro com calma, deu algumas baforadas, depois disse com voz
suave:
- Você me parece nervosa. Não tenha receio. Estou aqui como amigo. Não sou policial.
- Não tenho medo da polícia.
- Notei que estava fugindo de mim.
- Não estava fugindo. É que sou muito ocupada. Estou sozinha para dar conta de todo o
serviço e ainda cuidar do Sr.Alberto. Não posso perder tempo com conversa.
- Não vou demorar. Só quero fazer-lhe algumas perguntas.
- Tudo o que eu podia dizer, já disse ao delegado. Eu acho que Vitório está exagerando.
É a polícia que tem de investigar quem matou aqueles dois.
- Também acha que o corpo da mulher assassinada não é de Teresa?
- Tenho certeza.
- E como explica o desaparecimento dela?
- Eu penso que qualquer dia desses, ela vai telefonar ou escrever dizendo onde está.
- Não acredita que ela possa estar em perigo?
- Não. Quando ela saiu para viajar estava cansada e deprimida. Disse-me que queria
muito ficar só, sem ver ou falar com ninguém. É isso que deve estar acontecendo e o
povo fazendo tanto barulho.
- Você a conhecia bem, sabe por que ela estava tão triste e desanimada?
- Isso não sei. Não costumo me envolver na vida íntima dos meus patrões.
- Vitório disse que você era íntima dela e que Teresa lhe fazia confidências.
- Só sobre os problemas dos meninos ou da casa.
- Ele disse também que vocês se davam muito bem.
- Eu gosto muito de D.Teresa e esta família é como se fosse a minha.
- Onde está sua família?
- Meu pai morreu quando eu era menina e minha mãe me deu para os pais dela. Eu tinha
treze anos, a mesma idade de D. Teresa.
- Vocês foram criadas juntas. Duas adolescentes são natural que entre vocês tenha se
desenvolvido uma grande amizade. Você faria qualquer sacrifício para que sua amiga
fosse feliz?
- Isso é verdade. Eu gostei dela desde o primeiro dia. Ela sempre me tratou bem,
deixava-me brincar com seus brinquedos, dividia comigo tudo o que comia, dava-me


63
vestidos novos, sapatos e me ensinava a falar direito. Foi ela quem insistiu para que eu
freqüentasse a mesma escola que ela.
- Então você tinha mesmo que gostar de Teresa.
- Eu gosto muito dela e aprendi a gostar dos meninos que ajudei a criar.
Paulo ficou calado por alguns instantes, tirando baforadas do cigarro, depois disse com
a voz calma:
- É natural que você guarde os segredos que ela lhe contou e não queira contar nada a
ninguém.
Dinda fez um gesto e ia retrucar, mas Paulo não lhe deu tempo e continuou:
- Mas eu gostaria que você soubesse que eu, pelas informações que colhi na polícia, e
por tudo que conversei com a família de Teresa, acredito seriamente que ela esteja
correndo perigo. Acredito também, que você sabe mais do que quer contar e
compreendo que pense estar sendo fiel a sua amiga e protegendo-a, guardando seu
segredo. Mas eu temo que, fazendo isso, você a esteja prejudicando. Se ela estiver
precisando de ajuda, e você não nos contar o que sabe, pode acontecer algo muito grave
a ela e você será responsável.
As palavras de Paulo a assustaram, ela não conseguia encobrir a inquietação e torcia as
mãos nervosamente.
- Deus me livre, doutor. Não posso imaginar uma coisa dessas.
- Não desejo assustá-la, mas é bom se lembrar de que estamos lidando com um
assassino cruel que matou aquele casal de maneira feroz e, embora você não reconheça
o corpo como sendo de Teresa, os documentos dela estavam lá. Como pode ter
acontecido isso?
- Não sei... ­ balbuciou ela, continuando a torcer as mãos.
- Há uma ligação direta de Teresa com esse crime. Você não pode ignorar esse detalhe.
Além do que o homem assassinado era ligado a traficantes perigosos. Essa gente mata
por qualquer motivo.
A essa altura, Dinda já estava chorando aflita:
- O senhor acha mesmo que D. Teresa pode estar em perigo?
- Pode. Não há como negar. Por esse motivo é que Vitório me contratou porque eu,
embora não seja da polícia, sou advogado e gosto de investigar casos complicados.
- Acha que vai conseguir descobrir onde D. Tereza está e saber se ela está bem?
- As pistas são poucas e a situação é difícil. Por esse motivo é que estou pedindo. Se
você sabe de alguma coisa, é hora de contar pelo menos para mim, que serei discreto e
se possível guardarei o segredo, desde que não atrapalhe a solução do caso.
- Se o senhor descobrir onde ela está e ela estiver bem, sem correr nenhum perigo,
promete que não vai contar para a família?
- Você acha justo isso? O Sr.Alberto doente, Vitório aflito, Osmar nervoso. Eles amam
Teresa.
- Nem todos. O Sr. Alberto deve estar doente de remorso e Osmar nervoso porque ainda
não pôde por a mão na herança da mãe.
- Os olhos de Paulo brilharam satisfeitos. Aos poucos ele estava fazendo Dinda falar.
Fingiu aceitar suas palavras com naturalidade.
- Os problemas de família são sempre os mesmos.
- Eu não devia ter falado isso. Mas em casa, eu e Vitório somos os únicos que
compreendemos e amamos Teresa.
- Eu admiro você porque apesar de saber tudo isso, tem se dedicado a tratar do
Sr.Alberto com carinho.
- Quero dormir em paz. Não sou capaz de maltratar nem um gatinho.
- É por esse motivo que Vitório gosta tanto de você.


64
- E eu dele.
- Ainda não conheci Osmar, Vitório me disse que ele tem gênio difícil.
- Quando quer uma coisa, não descansa enquanto não consegue e para isso não se
importa de machucar os outros.
- Você gosta mais de Vitório, não é?
- É verdade, eu deveria gostar dos dois igualmente, pois ajudei a criá-los desde que
nasceram. Mas como Vitório, é amoroso e cordato, bom de lidar, tanto eu como Teresa
o tratamos melhor. Osmar é muito ciumento e odeia o irmão, diz que nós duas
estragamos o Vitório. Mas não para sermos bons com Osmar, ele é mentiroso, maldoso,
irritado, mal-humorado, teimoso. Não podemos tratá-lo do mesmo modo.
- Eu concordo. Gostaria que você soubesse que eu estou aqui para ajudá-los não a penas
a encontrar Teresa e trazê-la de volta sã e salva, mas também para que a família possa se
entender melhor. Certamente, depois do susto que todos passaram, se ela voltar para
casa, eles vão ser diferentes. O Sr.Alberto terá chance de consertar o que fez de errado e
Osmar de tratar melhor o irmão e a família.
- Ah! Isso é o que eu mais desejo. Pobre da minha Teresa! Ela não suportava mais a
vida aqui em casa! Eram tantos os desentendimentos...
Paulo notou que Dinda não se referia mais a Teresa chamando-a de senhora, revelando
o tanto de intimidade que usufruía ao lado dela. Fingiu que não percebeu e continuou:
- Mas para fazer o que eu desejo, tenho que encontrar o assassino e ter a certeza de que
ninguém mais desta casa corre perigo.
- Como assim? O senhor acredita que todos nós estamos correndo perigos?
- Não posso descartar essa hipótese por causa da ligação com o criminoso. A mulher
morta é muito parecida com Teresa e o assassino pode ter confundido as duas.
- Teresa não tinha inimigos. Já o Sr. Alberto...
- Tinha algum desafeto?
- Eu não quis dizer isso.
- Já que começou, acabe. Você sugeriu que ele não se dava muito bem com as pessoas.
- Coisas de negócios. Não entendo disso. Mas algumas vezes um homem ligava
ameaçando ele.
- Ameaçando de quê?
- Não sei! Mas o Sr.Alberto ficava muito irritado. Uma vez, logo depois de um
telefonema desses, eu o vi limpando a arma que estava guardada no armário do quarto.
- Ele costumava andar armado?
- Não. Isso não. Por esse motivo eu estranhei quando naquele dia ele passou a tarde
limpando e lustrando aquele revólver.
- O revólver continua guardado no mesmo lugar?
- Um dia eu vi que ele estava guardado lá, do mesmo jeito.
- Como era o gênio do Sr.Alberto? Como se relacionava com a família?
- Sempre gostou mais do Osmar porque ele se interessou pela empresa. Vitório é
diferente.
- Em quê?
- É mais amoroso e gosta de estudar as coisas da vida. Não quis seguir os negócios do
pai. Formou-se em letras. Dá aulas na faculdade.
- Ele me disse que está de licença e só volta a trabalhar depois que tudo estiver
esclarecido.
- É, ele não se conforma com o que aconteceu. Quando vi que aquele corpo não era de
Teresa, fiquei calma, mas agora, depois do que o senhor disse, estou angustiada.
- Teresa dava-se bem com o marido?



65
- Ela não se casou por amor. Depois que o pai dela morreu e deixou muitas dívidas, a
mãe dela, D.Mary, ficou em uma situação difícil. Por esse motivo fez de tudo para que
ela aceitasse o pedido de casamento do Sr.Alberto, rapaz rico e bem posicionado. Teresa
não queria se casar, mas a mãe adoeceu e elas não tinham dinheiro para fazer o
tratamento. Ele fez tudo para que D.Mary ficasse boa, colocou à disposição os melhores
especialistas, pagou todas as despesas, até que ela se curou.
Dinda fez ligeira pausa, olhos perdidos no passado, e continuou:
- Muitas coisas aconteceram naqueles dias. Teresa estava apaixonada por um jovem
estudante de medicina, mas um dia, desiludida do seu amor, acabou aceitando casar-se
com o Sr.Alberto para alegria de sua mãe. Quando voltaram da viagem de lua-de-mel,
eles foram morar em uma linda casa e fui com eles.
- Por que ela de desiludiu do estudante de medicina?
- Eles se encontravam as escondidas porque D.Mary não queria o namoro. Dizia que ele
era pobre e demoraria anos para se formar. Que ela precisava se casar com um homem
rico que pudesse dar-lhes uma vida boa. Ela saía escondido! E eu encobria porque ela
ficava muito feliz quando o encontrava. Eles trocavam juras de amor e juravam unir-se
para sempre. Mas uma noite ela voltou chorando muito e disse que ele não era sincero,
pois o surpreendeu namorando outra.
- Por esse motivo ela desistiu dele?
- Sim. Ele tentou de todas as formas reatar, disse que podia explicar tudo, mas ela não o
ouviu. Cheia de mágoa, marcou o casamento, casou-se e mudou de cidade. Nem sei por
que estou lhe contando tudo isso. Esse passado está morto e enterrado.
- Alberto sabia que ela se casou estando apaixonada por outro?
- Sabia. Teresa sempre foi sincera. Contou tudo a ele que não se importou e casou-se
assim mesmo.
Dinda levantou-se
- Estamos aqui conversando sobre coisas que nada tem a ver com o seu assunto. Eu
tenho de ver se o Sr. Alberto está precisando de alguma coisa.
- Responda-me apenas mais uma pergunta. Como era o relacionamento dela com o
marido?
Dinda sentou-se novamente:
- Apesar de casar sem amor, ela tornou-se uma ótima esposa, dedicada, atenciosa, mãe
extremosa.
- Mas você disse que ele deveria estar doente de remorso. Por quê?
- Eu falei demais.
- Apesar de amar muito Teresa, Alberto não foi feliz com ela. Uma pessoa feliz não
comete atos dos quais venha a se arrepender.
- Ela sempre foi muito boa, tolerava as implicâncias dele com Vitório e suas escapadas
com outras mulheres.
- Ele tinha outras mulheres?
Dinda levantou-se de novo:
- Eu fui longe demais. Não vou dizer mais nada Não estou aqui para falar mal dos meus
patrões. Não costumo fazer isso. Espero que se esqueça de tudo o que eu lhe disse. Sou
uma pessoa ignorante, mas de boa fé. Não deve confiar em minhas palavras.
Paulo levantou-se, sorriu,segurou a mão de Dinda e beijou-a com respeito:
- Você é uma mulher maravilhosa. Gostaria de levá-la para minha casa. Pena que não
posso! Vou à cozinha tomar mais um café.
- Eu trago para o senhor.
- Nada disso. O gostoso é ir tomar na cozinha! Você ainda tem um pedaço daquele bolo
de milho?


66
Os lábios de Dinda abriram-se em alegre sorriso:
- Tenho sim.
Ele acompanhou-se até a cozinha e Vitório apareceu na hora em que ele saboreava o
café e uma generosa fatia de bolo.
- Já vi que Dinda conquistou Você.
- Completamente.

- O doutor é um homem sedutor. Com esse ar de bom menino consegue tudo o que quer.
Eles riram. Ela ficou séria. As palavras de Paulo sobre os riscos que não só Teresa e
toda a família poderiam estar correndo a deixaram angustiada. Quando Teresa planejava
viajar para a Europa com a amiga, ela sabia que antes iriam para outro lugar e depois é
que viajariam para a Itália. Mas aquele crime, a mulher tão parecida com Teresa
complicara tudo.
Paulo agradeceu o café e despediu-se dela. Vitório pediu-lhe que o acompanhasse até
seu quarto. Estava ansioso para saber se ele conseguira alguma informação nova.
Assim que se viram no quarto, Vitório fechou a porta e indagou:
- E então? Conseguiu alguma coisa?
- Nada de novo. Notei que ela sabe de alguma coisa mais, contudo não quer contar para
não trair a confiança de sua mãe. Por esse motivo, não a apertei muito, prefiro primeiro
ganhar sua confiança. Conseguido isso, estou certo de que ela me contará tudo o que
sabe.
- Você é esperto. Dinda é assim mesmo. Fiel, e adora mamãe.
- Ela me falou das diferenças entre você e seu irmão.
- Ele não gosta de mim.
- Ela mencionou apenas que vocês pensam de maneira diferente.
- É verdade. Enquanto ele é materialista, eu prefiro ser humanista. Mas somos pessoas
educadas, convivemos normalmente, procurando evitar problemas.
Paulo notou que a voz de Vitório tremia um pouco ao falar do irmão. Olhando com
naturalidade perguntou:
- Como seu pai vê essa diferença entre vocês dois?
- Ele fica ao lado do Osmar. Tem orgulho dele por ser o filho mais velho e por assumir
a direção da empresa quando ele precisa ausentar-se, como agora.
- Seu pai está muito deprimido. Ele não tem certeza de que aquele corpo não seja de
Teresa.
- Ele sabe que não é. Mas mesmo antes de acontecer tudo isso, ele já andava meio
deprimido. Havia perdido o gosto de sair com os amigos como antigamente.
- Como estão os negócios da empresa?
- Que eu saiba, estão bem. Naquele tempo, talvez papai já estivesse começando a ficar
doente e os problemas que estamos enfrentando o fizeram piorar.
- Em depoimento ao delegado, seu pai disse que seu relacionamento com Teresa sempre
foi muito bom. Mas se isso fosse verdade eles não teriam entrado em depressão. Se
estivesse bem, teriam viajado juntos.
- Isso também me espanta. Mas o que sei é que sempre se deram bem. Nunca os vi
brigar.
Paulo ficou pensativo por alguns segundos, após disse:
- Eram duas pessoas educadas, não demonstravam o que sentiam.
- De fato, meus pais condenavam qualquer manifestação de contrariedade, afirmando
que era preciso não deixar transparecer nossos sentimentos. Diziam que os outros não
precisam carregar nossos infortúnios. Confesso que eu nunca souber fazer isso. Sou



67
emotivo, não consigo esconder minhas mágoas ou alegrias. Isso foi causa de muitos
castigos durante a infância.
- Alguns pais acreditam que educar os filhos seja conter suas expansões emocionais. É
um grande erro, porque o indivíduo acaba colocando uma máscara diante dos outros,
mas por dentro existe um vulcão que pode estourar a qualquer minuto.
- O pior é que eu sempre estouro. Osmar se controla muito bem. Será por isso que ele
tornou-se tão vingativo e maldoso?
- Talvez. Controlar o que se sente para manter a aparência pode fazer muito mal. De
alguma forma, as energias, tanto da alegria quanto da dor, precisam expressar-se. Em
vez de contê-las, é melhor tentar compreender e expressa-las de maneira que não nos
machuquem.
- Não acredito que algum desentendimento grave tenha ocorrido entre meus pais. Eles
eram casados há muitos anos e a rotina pode ter desgastado o relacionamento,
conduzindo-os à depressão.
- É, pode ser. Mas o desgaste natural de um relacionamento de tantos anos não deixa
ninguém doente. Seu pai me parece estar angustiado, inquieto e isso sempre decorre de
algum motivo em que o medo aparece.
- Isso eu também notei. Ele não tem dormido bem, está inquieto, sempre com dores de
cabeça, e os remédios não têm dado nenhum resultado. Mas o medo dele pode ser pelo
desaparecimento de mamãe. Eu mesmo tenho tido pesadelos, pensando no que poderia
estar acontecendo com ela.
- Que tipo de pesadelos?
- Eu sonhei que estava em um lugar escuro e triste e lá havia duas pessoas, parecidas
com os dois que foram assassinados. A mulher gritava que ia se vingar de tudo quanto
fizemos a eles.
- Lembra-se das palavras deles?
- Ela gritou: "Vocês vão me pagar por tudo. Caí na armadilha. Mas vou me vingar". E
ele reforçou: "Vocês não perdem por esperar". Então, eu perguntei: "Quem são vocês?
Onde está minha mãe? Onde arranjaram os documentos dela?". Eles não responderam e
desapareceram.
- Você acha que esteve com os espíritos dos assassinados?
- Sim. Mas não entendi o que disseram. Que armadilha teria sido essa? Quem teria
armado?
- Termos de procurar as respostas. Mas é bom que você fique alerta.
- Eu pedi ajuda de Analú. A única coisa que ouvi foi "Ore e confie". Ela afirmou que
estaria sempre ao meu lado. Por que será que ela não vem para me contar o que
aconteceu?
- Se ela não vem é porque não pode falar sobre o assunto. Os espíritos evoluídos não
interferem diretamente nos assuntos das pessoas, a não ser que tenham permissão.
- Por que não? Tudo seria mais simples se eles pudessem nos contar o que desejamos
saber.
- A vida tem seus próprios meios para resolver os problemas humanos, sempre visando
à aprendizagem. Todos os desafios aparecem para ensinar alguma coisa que os
envolvidos precisam aprender. Vir e contar tudo! Seria, impedir a aprendizagem, e
atropelar os acontecimentos. As pessoas têm livre-arbítrio e precisam utilizá-lo.
Vitório suspirou dizendo:
- Entendo. Nesse caso, ela poderia pelo menos inspirar-me boas idéias.
Paulo sorriu e seus olhos brilhavam alegres:




68
- Sua esperteza não convencerá Analú a fazer isso. Somos nós que precisamos! Pensar,
investigar, descobrir a verdade. Estou certo de que quando chegar à hora, tudo será
esclarecido.




69
CAPÍTULO 11

Na manhã seguinte à festa de casa dos Vilela, Osmar chegou ao escritório indisposto. O
fato de ver Aurélia toda amável com o "tal" doutor o irritara muito. Fora difícil
controlar o desejo de arrancá-la do lado dele. Agüentou a insatisfação e só foi embora
depois que Aurélia saiu acompanhada pelo médico.
Chegou à casa cansado, deitou-se, mas não conseguiu dormir logo. Revirou-se na cama,
remoendo os momentos desagradáveis da festa. Quando adormeceu, sonhou que Aurélia
e o médico estavam trocando beijos apaixonados.
Apesar de haver dormido tarde, depois daquele pesadelo acordou cedo e não conseguiu
mais dormir.
Para tentar esquecer a noite desagradável, apanhou o jornal e percorreu os olhos pelas
manchetes. Ao abrir uma das páginas, na coluna social, viu uma foto do casal Vilela e
outra de Aurélia ao lado do médico. Embaixo, leu: "A bela Aurélia abrilhantou a festa
acompanhada pelo Dr. Augusto Mendonça, famoso médico recém-chegado dos Estados
Unidos".
Ambos sorriam e Osmar amassou o jornal nervoso. Isso não podia ficar assim.
Precisava tomar algumas providências. Enquanto ela não se interessava por ninguém,
ele sentia-se calmo, imaginando que teria tempo de conquistá-la.
Mas agora aparecera esse rival famoso e dava para notar que Aurélia se sentira atraída
por ele.
Apanhou a lista telefônica, procurou um número e ligou, assim que atenderam disse:
- Quero falar com Norberto. - Esperou alguns instantes depois continuou: - Aqui é o
Osmar, como vai? Estou precisando dos seus serviços.
- Quer que eu vá encontrá-lo?
- Não. Passarei aí para falar como você logo mais, no fim da tarde.
- Hoje tenho um compromisso. Pode ser amanhã?
- Tem que ser hoje. É urgente.
- Nesse caso darei um jeito. Pode vir. Vou esperá-lo.
Osmar desligou. Ele gostaria de ir imediatamente, mas havia uma reunião importante na
empresa, a qual ele não poderia faltar.
A secretária entrou:
- Está tudo pronto para a reunião. Todos já chegaram e estão esperando pelo senhor.
Com um suspiro resignado, Osmar levantou-se:
- Está bem.
A partir desse momento, Osmar mergulhou no trabalho, o que o fez esquecer um pouco
o aborrecimento. Ele gostava de chefiar as pessoas no lugar do pai. Sentia-se à vontade,
gostava de mandar e decidir sobre o futuro da empresa.
Seu pai doente e desanimado, depois dos últimos acontecimentos, com certeza não
voltaria mais a ocupar a chefia. Ele se sentia dono absoluto da empresa, julgava-se mais
inteligente e espero do que o pai e estava certo de que sob sua orientação eles iriam se
tornar mais ricos.
Passava das cinco horas quando Osmar parou o carro... Diante de um prédio em um
bairro popular da cidade. Desceu e entrou no hall do prédio, esperou o elevador e se
dirigiu ao sexto andar.
Era um prédio antigo, cheio de pequenos escritórios. Ele saiu do elevador e parou diante
de uma porta onde se lia: "Norberto Simões - detetive particular".
Ele bateu levemente e entrou. Um homem baixo, negro, meio-calvo, aparentando cerca


70
de quarenta anos, levantou-se da poltrona atrás da escrivaninha, caminhou até a porta
sorrindo, de mão estendida, e disse:
- Como vai, Osmar? Que honra recebê-lo em meu humilde teto.
- Bem, e você?
Norberto fez ligeira mesura e respondeu:
- Melhor depois que você chegou. Sente-se.
Ele indicou uma cadeira em frente à escrivaninha e voltou a sentar-se em sua poltrona.
- Em que posso servi-lo?
- Preciso de informações sobre um sujeito.
- Trouxe os dados dele?
- Só tenho alguns. Ele estava morando fora do Brasil, chegou há pouco tempo.
- Passe-me o que você tem e eu descobrirei o resto. O que quer saber?
- Tudo que puder. Tenho pressa. Como sempre pagarei bem. Você sabe.
- Claro.
Osmar contou o que sabia sobre o médico, descreveu como ele era fisicamente e
mostrou a foto que cortara do jornal. Estava amassada, mas dava para ter uma idéia.
- Começarei hoje mesmo.
Osmar pegou a carteira, escolheu algumas notas e colocou-as sobre a mesa:
- Estas são para as primeiras despesas. Assim que descobrir alguma coisa, ligue-me.
- Deixe comigo.
Osmar despediu-se e saiu. Estava mais calmo. Norberto era muito bom não só para
investigar pessoas como para tirá-las do caminho quando era preciso.
Em casa, Osmar sentiu-se cansado. Tomou um banho e mandou Nora servir o jantar.
O telefone tocou e a criada o procurou:
- Tem na linha um advogado chamado Paulo, disse que é da parte do Vitório.
- O que ele quer de mim?
- Ele disse que deseja conversar com o senhor.
- Peça para ele ligar outro dia. Estou cansado e com fome. Não vou atendê-lo agora.
Nora se foi, depois voltou dizendo:
- Agora é o Vitório. Ele quer falar com o senhor.
- Não disse a ele que estou jantando?
- Disse que o senhor ia sentar-se para começar a jantar. Vitório disse para atendê-lo que
não vai se demorar.
Resmungando, Osmar apanhou o telefone de má vontade e disse:
- O que é tão importante para que você atrapalhe o meu jantar? Trabalhei o dia inteiro,
estou cansado e com fome. Não sou folgado como você que fica o dia inteiro sem fazer
nada.
- Você não ligou mais para nós. Não deseja saber como papai está?
- Sei que ele também está descansando como você. Foi para dizer isso que me
incomodou?
- Não. Você não atendeu o Dr. Paulo, nosso advogado que está investigando o paradeiro
de mamãe. Ele ia conversar com você por telefone, mas como você não o atendeu,
pensei melhor e ele vai até aí procurá-lo.
- O que ele quer de mim? Sou um homem ocupado, não tenho tempo a perder. Estou
sozinho administrando uma empresa. Acha que tenho tempo para conversar?
- Ele vai procurá-lo e papai está dizendo que quer que você o atenda e lhe preste todas
as informações.
- Não posso passar informações sobre os nossos negócios a um desconhecido. Não farei
isso.



71
- Se não fizer terá de se entender com papai. Aliás, ele está dizendo que se você não
fizer o que ele está pedindo, vai até aí com o Dr. Paulo.
- Pelo jeito ele não está tão mal como vocês dizem.
- Ele deseja resolver este caso o mais rápido possível e saber onde mamãe está.
- Por que insistem nessa história? Mamãe está morta e o caso deveria ser encerrado.
Compete à polícia descobrir o assassino.
- Você vai ou não fazer o que papai está mandando?
- Está bem. Pode mandar esse advogado metido a investigador. Mas diga-lhe que seja
breve. Não tenho tempo a perder.
Osmar desligou o telefone irritado. Além de todos os problemas que tinha ainda teria de
aturar um metido que pretendia investigar a vida da família.
No apartamento de Vitório, assim que ele desligou o telefone, Paulo perguntou:
- Seu irmão é sempre assim intratável?
- Diante dos outros ele é mais manso. Comigo ele é sempre assim. Mas com papai ele
não pode.
- Estou curioso para conhecê-lo, visitar a casa onde Teresa vivia tentar descobrir mais
sobre ela.
- Entendo sua curiosidade, mas, para ser sincero, não creio que isso possa ajudá-lo a
descobrir o que nos interessa. O passado nós já sabemos, queremos saber onde ela está.
- Infelizmente, não temos nenhuma pista nesse sentido. Estou tentando descobrir
alguma coisa que possa nos dar essa pista. Vocês dizem uma coisa, mas os fatos
revelam que a verdade pode ser bem diferente.
- Como assim?
- Vocês afirmam que seus pais se relacionavam bem, porém por que ambos estavam tão
depressivos nos últimos tempos?
- Você acredita que essa depressão pode ser fruto de alguma coisa ruim que teria
acontecido entre eles?
- É uma hipótese. Eles tinham diante da família uma atitude discreta e não falavam
sobre seus sentimentos. Se acontecer alguma coisa séria entre eles, faria tudo para
escondê-la de vocês.
- Mas mesmo que isso tivesse acontecido, em que poderia esclarecer esse crime e suas
implicações com minha mãe?
Paulo ficou pensativo durante alguns segundos. Depois disse sério:
- Eu tenho visto muitas coisas neste mundo e sei o quanto certas paixões podem
transformar uma pessoa. A violência extrema com que esse crime foi praticado,
demonstra que o criminoso estava com muita raiva e isso ocorre quando as paixões
obscurecem qualquer raciocínio.
- Eu já me perguntei isso inúmeras vezes. Mas estou certo de que ninguém de minha
família seria capaz de tanto. Do jeito que você fala dá impressão de que está
questionando se meu pai teria sido o autor do crime. Eu não acredito nisso. Ele nunca
foi um homem violento ou vingativo.
- Não estou sugerindo nada disso. O que desejo é conhecer como eram os sentimentos
dos envolvidos nesta situação.
- Você está achando muito difícil descobrir o paradeiro de minha mãe?
- Não se trata disso. Em investigação, não se pode desprezar nenhum detalhe. O fio da
meada pode estar onde menos se espera e surgir de repente, conduzindo-nos aos fatos.
Não se preocupe se estou investigando os sentimentos de sua família. Sou discreto, isso
ficará entre nós, aconteça o que acontecer.




72
Eles continuaram conversando e, aos poucos, Vitório foi se acalmando. Quando
pensava na mãe sentia o peito oprimido como se ela estivesse em perigo, sofrendo,
querendo comunicar-se com ele sem conseguir.
Ficou combinado que na manhã seguinte Paulo viajaria para o Rio de Janeiro e
procuraria por Osmar.
No dia seguinte, faltando poucos minutos para as onze horas, Paulo foi introduzido na
sala de Osmar.
- Seja breve, por favor. Não disponho de muito tempo.
- Seu pai me contratou para descobrir o paradeiro de sua mãe.
- De novo essa história. Eles gostam de sofrer. Minha mãe está morta e eles não querem
se conformar.
- Você acredita mesmo que aquele corpo seja dela?
- Claro. De quem mais poderia ser? É a cópia perfeita de minha mãe e que eu saiba não
havia ninguém tão parecida com ela. Não bastasse isso, há os documentos. Que maior
prova poderia haver?
- Você pode até estar certo, mas para a Justiça o corpo não foi reconhecido por toda a
família. Isso fez com que ela continue investigando e não libere o corpo.
Osmar impacientou-se:
- E isso faz com que todos nós estejamos sofrendo uma situação angustiante,
continuando a procurar por uma pessoa que não pode aparecer porque já está morta e
que precisa ser enterrada o quanto antes para dar sossego a toda a família.
- Você está muito seguro do que afirma.
- Estou. Você está fazendo seu trabalho e com certeza deseja valorizar sua atividade,
mas neste caso ela é inútil, porque jamais vai conseguir desvendar qualquer coisa.
Vitório não aceita a perda de mamãe e fica criando uma série de problemas. Dinda a
vida inteira o apoiou. Só faz o que ele quer e mais uma vez ficou do lado dele.
- Mas e seu pai? Ele tem muitas dúvidas.
- Meu pai está na hora de aposentar-se. Tem andado doente, e acredito que sua cabeça já
não esteja funcionando bem.
- Seu pai ainda não tem sessenta anos. Está deprimido, doente, mas continua lúcido.
- Não estamos aqui para conversar sobre os problemas de meu pai. Vitório garante que
você é bom como investigador, embora não seja essa sua profissão. Mas por melhor que
você seja, duvido que consiga descobrir alguma coisa mais do que a polícia.
Paulo sorriu levemente e respondeu:
- Não subestime que você não conhece nem se apresse a dizer que esse caso está
resolvido. - Fez ligeira pausa e perguntou: - Qual é a especialidade desta empresa?
- Construção Civil. Estamos no mercado há mais de vinte e cinco anos. Já construímos
muitos prédios nesta cidade e prestamos serviços ao governo federal.
- Seu pai aprecia seu interesse em ajudá-lo nos negócios da família. Confia em sua
capacidade.
Osmar ergueu ligeiramente a cabeça, satisfeito. Nada o agradava mais do que ser
reconhecido como um homem inteligente e capaz.
- Se eu não me esforçasse para cuidar desta empresa, nosso patrimônio se perderia.
Como eu disse, meu pai está doente e depois da morte de minha mãe certamente não vai
ter mais ânimo para cuidar de mais nada.
- E Vitório?
Os olhos de Osmar brilharam maliciosos quando respondeu:
- Está fora de cogitação. Não se interessa pelos negócios, o que é uma sorte porque não
tem capacidade.
- Por que não? Ele me parece um rapaz inteligente.


73
- Mas não é. Está sempre fora da realidade, pensando em coisas ilusórias e sem
finalidade.
- Você acredita mesmo que seu pai vai se afastar e permitir que você assuma a
responsabilidade pela empresa?
- Ele não tem outro remédio. Conheço esta empresa desde criança e sei como fazer com
que ela progrida cada vez mais. Quanto a ele, do jeito que está, vai acabar incapaz para
qualquer coisa.
Paulo fixou-o nos olhos e disse sério:
- Ainda bem que você está seguro e preparado.
Paulo estava tocando no ponto em que Osmar mais gostava e por esse motivo ele
começou a responder com prazer. Havia esquecido completamente a animosidade com
que recebera sua visita.
- Estou certo de que em pouco tempo aumentaremos nosso capital e ampliaremos
nossos negócios.
- Sua mãe decidiu viajar porque estava deprimida. Você saber por quê?
Osmar deu de ombros:
- Nada importante. Ela não tinha motivos para estar deprimida. Era uma mulher rica,
freqüentava a mais alta sociedade do Rio de Janeiro, tinha uma família respeitada e um
marido atencioso que lhe fazia todas as vontades. Esse deve ter sido um pretexto para
viajar sem a companhia de meu pai.
- Por que ela faria isso se os dois tinham um bom relacionamento?
Os olhos de Osmar brilharam rancorosos quando respondeu:
- Talvez ela tenha se metido em uma aventura perigosa e acabado morta naquela cama.
- Você acredita que sua mãe tenha sido amante daquele homem?
Osmar olhou-o com raiva e respondeu, com voz um tanto rouca pela emoção:
- O que mais se poderia pensar vendo-os juntos, desnudos, naquela cama?
- Se aquele corpo é dela, não há o que duvidar.
Osmar levantou-se nervoso:
- Este assunto está me fazendo mal. Não sei por que aceitei conversar com você. Acho
que nós não temos mais nada para falar.
Paulo continuou sentado e respondeu calmamente:
- Sei como você deve estar se sentindo. O orgulho ferido dói muito. Como era sua mãe
em casa, no dia-a-dia?
- Preferia encerrar aqui nossa conversa. Não há motivo para esticarmos este penoso
assunto. Depois, tenho muito trabalho, não posso perder tempo.
- Por favor. Responda o que perguntei. - Olhou-o firme nos olhos e continuou: - Você é
a única pessoa da família que está lúcido o bastante para dar-me uma resposta confiável.
Tenho de fazer meu trabalho e peço-lhe que não me negue este favor.
Osmar endireitou-se altivo e sentou-se novamente:
- Você está certo. Eu sou a única pessoa lúcida nesta família. Embora acredite que você
não vai descobrir nada porque não há nenhum mistério a ser descoberto, para que não
diga que estou de má vontade, vou responder.
- Muito obrigado.
Osmar pensou um pouco depois disse:
- Minha mãe era uma mulher educada, desde cedo nos ensinou a nos comportarmos bem
diante dos outros. Exigente nas regras de etiqueta e cumpridora dos seus deveres de mãe
de família e de dama de sociedade.
- Como era sua maneira de ver a vida? Do que ela gostava? Costumava falar dos seus
sentimentos?
Osmar olhou-o surpreendido:


74
- Não. Ela era perfeita. Nunca demonstrava insatisfação, controlava-se perfeitamente,
como convém a uma senhora de sociedade. Não costumava falar os seus sentimentos.
- O delegado me disse que ela era mais apegada a Vitório. É verdade?
- Ela o estragou é o que quer dizer. Por causa das atitudes chorosas dele, fazia-lhe todas
as vontades.
- Não fazia o mesmo com você?
- Não. Eu nunca precisei disso. Sempre fui equilibrado e firme. Ela era mais dura
comigo, mas hoje sei que ela fazia isso porque sabia que eu era capaz e não precisava
me pendurar nela.
- Nesse caso você não guarda ressentimento por ela ter se chegado mais a ele.
O brilho de raiva reapareceu nos olhos dele. Mas respondeu com voz calma:
- Não. Por outro lado, meu pai sempre me apoiou mais do que a Vitório. Ele desejava
que ambos ficássemos trabalhando na empresa. Mas meu irmão nunca quis o que foi
muito bom porque ele só me causaria problemas.
Paulo levantou-se sorrindo:
- Obrigado, Dr. Osmar, por haver dividido seu precioso tempo comigo e me ajudado a
entender melhor os fatos.
- Espero que tenha esclarecido o que eu podia. Por que não desiste do caso? Não
percebe que está perdendo seu tempo e que não obterá sucesso? Não se preocupa com
seu desempenho? Ouvi dizer que é famoso pelo sucesso que tem obtido em suas
investigações. Não tem medo de que um fracasso possa ter uma mancha em sua folha de
serviços prestados?
- Talvez tenha razão. Vou pensar no que me disse.
Osmar sorriu satisfeito. Afastar daquele investigador inconveniente seria um alívio,
principalmente naquele momento em que se emprenhava em grandes negócios que
precisava ocultar.
Paulo deixou o escritório de Osmar satisfeito. Havia conseguido mais do que esperava.
Assim que o viu notou o quanto ele era vaidoso e percebeu como poderia conseguir
alguma coisa dele.
Não lhe passou despercebido à raiva com que ele se referia à mãe e ao fato de ela ter
tido um amante. Era o único na família que aceitara isso sem questionar. Todos os
outros, inclusive Dinda, haviam frisado que essa atitude não se coadunava com o perfil
de Teresa.
Osmar pareceu-lhe um homem vaidoso, prepotente, disposto a conseguir o que queria.
Não duvidava também que ele faria qualquer negócio para isso.
Havia qualquer coisa em Osmar que o fez decidir colocar dois homens seus para segui-
lo durante alguns dias e verificar como ele levava a vida.
Seu instinto lhe dizia que deveria começar por ali. Pensando nisso, tratou logo de
planejar os próximos passos.




75
CAPÍTULO 12

Marília acordou cedo e animada. Apesar da tragédia que presenciara, esforçava-se para
não pensar mais em Otávio.
Sentia-se livre, bem-disposta, alegre. Pela primeira vez, depois de muitos anos, sentia-se
dona de si, confiante no futuro. O fato de perceber que poderia ganhar o suficiente para
manter a casa com os quitutes que ela e Dorita faziam, deram-lhe a certeza de que dali
para frente tudo em sua vida correria bem.
De fato, a freguesia tinha aumentado e elas estavam até pensando em contratar uma
auxiliar para cuidar dos afazeres domésticos, porquanto ambas ficava o dia inteiro
trabalhando na cozinha, sem tempo para mais nada.
Pensando nisso ela foi ao quarto de Altair acordá-lo para o colégio.
Aproximou-se dele:
- Acorde, meu filho. Está quase na hora de ir para a escola.
O menino remexeu-se na cama resmungando:
- Não quero ir. Estou cansado.
Marília colocou a mão na testa dele e notou que estava com febre. Preocupada tornou:
- Você está doente. O que está sentindo?
- A garganta está doendo e estou com frio.
- Não precisa se levantar. Vou buscar um remédio para baixar sua febre e ligar para o
Dr. Davi.
- Não quero tomar injeção!
- Ninguém ainda falou em injeção. Só vai tomar se for preciso.
Ela deixou o quarto e voltou pouco depois com um cálice e o remédio.
- Sente-se, Altair, tome o remédio.
- Não gosto de remédio. Vai doer minha garganta.
- Você precisa agüentar. Ele pode evitar uma injeção. Beba que eu trouxe um 'tira-
gosto'.
Resmungando, o menino sentou-se, segurou o cálice em uma mão e o gomo de laranja
na outra. Engoliu o remédio, fez uma careta e chupou o 'tira-gosto'.
- Agora se deite e descanse. Daqui a pouco volto para saber como se sente. Quer tomar
seu café com leite?
- Daqui a pouco eu tomo o café com leite.
- Assim está melhor. Estou certa de que logo vai mandar embora essa dor de garganta.
Você é um menino valente e muito forte.
Os olhos de Altair brilharam quando respondeu:
- Sou mesmo, mãe. Vou ficar bom. Eu quero sarar logo porque está doendo e estou com
frio. Mas gostaria de continuar doente só um pouquinho para não ir à escola amanhã
também.
Marília sentou-se na beira da cama, segurou a mão do menino e disse:
- Por que isso? Você sempre gostou de ir à escola. Aconteceu alguma coisa que você
prefere não ir?
- Não, mãe. Eu gosto de escola. Mas eu queria ficar mais tempo em casa com você.
Marília alisou a cabeça do filho com carinho, deu-lhe um beijo na testa e respondeu:
- Eu também gostaria de ficar o dia inteiro com você. Mas agora estamos sós nós três e
se eu não trabalhar não vamos ter dinheiro para manter a casa.
- Antes, quando eu chegava da escola você ficava comigo, contava histórias, brincava.
Agora está sempre ocupada.
Marília pensou um pouco, depois disse:


76
- Eu tenho uma forma de resolver isso. Seu pai não está mais aqui e você é o homem da
casa, portanto, pode ficar sócio da nossa empresa e trabalhar quando chegar da escola.
Vai ser muito divertido e, além disso, vai começar a ganhar dinheiro porque, é claro,
quem trabalha merece ser recompensado.
O menino que havia se deitado, sentou-se de novo:
- Puxa, mãe, vai ser demais! Nenhum amigo meu trabalha e ganha seu dinheiro. Posso
começar agora?
- Sua garganta está doendo e você está cansado.
- Só dói um pouquinho quando eu engulo.
- Vamos fazer assim: depois que sua febre passar você começa. Está bem?
- Está. Não vejo a hora que essa febre passe.
Marília sorriu e respondeu:
- Vejo que você vai ser um menino trabalhador. Mas para isso terá de estar bem e não
deixar de fazer as lições de casa. Nós estamos abrindo uma empresa e você será nosso
sócio. Um empresário tem de ser instruído, saber fazer contas, ler e escrever muito bem.
- Eu ainda não sei fazer muitas contas, mas ler e escrever eu já sei.
- Você tem de ir à escola para aprender tudo o que precisa para ser um bom trabalhador.
- Eu vou estudar muito e logo saberei até conta de dividir. Meu amigo que está no
terceiro ano já sabe fazer essas contas.
- Não tenha pressa. Você é mais novo do que ele, mas estou certa de que quando chegar
ao terceiro ano, vai fazer tudo o que ele faz. Agora se deite e descanse. Se precisar de
alguma coisa, chame. Daqui a pouco trarei seu café.
Marília desceu e foi à cozinha. Dorita já havia preparado o café e disposto tudo quanto
deveria fazer naquele dia.
Elas estavam contentes porque, além do pão de queijo, as empadinhas eram muito
procuradas. O que as animara foi que duas lanchonetes muito boas, onde Dorita levara
algumas amostras, haviam feito encomendas grandes e a cada dia a procura estava
sendo maior.
Por tudo isso planejavam abrir uma empresa e juntar algum dinheiro para um dia
poderem expandir o próprio negócio.
Marília conversou com Dorita sobre Altair e finalizou:
- Ele está sentindo falta da nossa companhia. Nós não temos tido tempo de brincar com
ele.
- Gostei da idéia de trazê-lo para 'trabalhar' conosco. É bom que ele se interesse logo
cedo e entenda sua responsabilidade diante da vida. Vamos fazer isso de uma forma tão
prazerosa que ele vai amar 'trabalhar' aqui.
Elas riram e ficaram trocando idéias de como torná-lo um auxiliar na cozinha.
Quando Marília foi levar o café, Altair sentou-se na cama dizendo:
- Mãe, estou sem febre. Já posso descer e trabalhar?
- Vou medir sua temperatura. Depois veremos. Tome o café com leite e vamos ver
como está sua garganta.
Altair segurou a caneca e tomou um gole.
- Já melhorou - disse contente.
Marília mediu a temperatura e, enquanto ela conferia, ele indagou inquieto:
- E então?
- A febre baixou, mas você ainda está febril. E sua garganta ainda deve estar doendo um
pouco, não é?
- É, só um pouquinho. Mas vai passar logo.
- Meu filho, hoje é melhor você ficar na cama descansando e se preparando para
começar amanhã.


77
- E a escola?
- Amanhã você também ficará em casa. Depois voltará à escola.
- Oba! Então eu posso trabalhar amanhã.
- Pode. Estamos precisando muito de ajuda. Temos muitos pedidos. Vai ser ótimo
contar com você.
- Eu sou muito forte e disposto a ajudar mesmo.
- Isso mesmo. Coma o pão com manteiga e deite-se novamente. Hoje você precisa
descansar.
Marília desceu as escadas sorrindo. Faria tudo para ensinar Altair a trabalhar com
dignidade e honradez. Eles teriam de viver do próprio trabalho e isso o ajudaria a
enfrentar os desafios da vida.
Havia o dinheiro no exterior que Otávio deixara, mas não contava com ele. A origem
desse dinheiro era duvidosa e ela estava certa de que ele seria confiscado. Imaginava
que seu marido havia se envolvido com criminosos e, por esse motivo, acabara morto.
Com satisfação ela entregou-se ao trabalho. No fim da tarde as encomendas estavam
prontas. Felizmente, o empregado da lanchonete viria buscá-las, facilitando as coisas.
Eles tinham uma perua e enquanto elas acomodavam as caixas com o material no
veículo, Marília imaginava como seria bom que pudessem ter um veículo para fazer
entregas.
Assim que eles se foram, Dorita disse contente:
- Foi bom terem vindo buscar. Em uma viagem eu não conseguiria levar tudo.
Marília enfiou o braço no de Dorita dizendo:
- No futuro nós também teremos um carro para fazer nossas entregas.
Dorita olho-a admirada:
- Um carro, mesmo usado, custa muito caro.
- Teremos um carro novo e muito bom. Estou certa de que vamos conseguir.
- Como?
- Pense bem, nós trabalhamos bem, fazemos coisas de qualidade com muita higiene e
alegria. O dinheiro que ganhamos é honesto e merecido. Por tudo isso ele vai se
multiplicar, nosso negócio vai continuar crescendo e logo teremos tudo o que
precisamos.
- Antes eu era mais otimista, mas agora você está passando na minha frente. Eu nunca
pensei em chegar a tanto.
- Por que não? Nós fazemos um produto bom. As pessoas saboreiam com prazer,
elogiam, a cada dia compram mais... Se os pedidos aumentarem não vamos dar conta.
Vou começar a procurar uma pessoa para nos ajudar.
- Acha que teremos como pagar o salário dela? O que estamos ganhando dá apenas para
nossas despesas, isso porque estamos economizando.
- Com uma pessoa que nos ajude, estou certa de que poderemos produzir muito mais e
não só pagaremos o salário dela como aumentaremos nossos lucros.
De volta à cozinha, Dorita disse contente:
- Você tem razão. Podemos tentar. Hoje à noite vou falar com D. Ana. Ela tem uma
filha que gostaria de trabalhar. Falou comigo ontem, perguntou se eu sabia de algum
lugar que estivesse precisando. Respondi que não, mas pensando bem, talvez ela fosse
boa para nós.
- Quantos anos tem?
- Não sei, mas é bem-disposta, alegre. Poderemos experimentar.
- Está bem. Vá conversar com D. Ana.
Elas começaram a dar uma ordem na cozinha.



78
- Vou fazer uma boa sopa de feijão com macarrão para ver se Altair come. Ele não
almoçou muito bem. Ele adora essa sopa.
Disposta, Marília colocou a panela no fogo e ia começar a preparar a sopa quando Altair
desceu as escadas dizendo:
- Mãe, mãe, eu achei um esconderijo!
- Esconderijo? Do que está falando?
Altair entrou na cozinha e parou diante dela:
- Eu levantei um pouco, estava cansado de ficar na cama, fui ao quartinho onde você
guarda coisas para procurar meu carrinho amarelo. Eu tropecei, escorreguei e bati as
costas na parede. Caí sentado no chão. Então ela virou e abriu uma porta. É um lugar
apertadinho, mas está cheio de coisas.
Marília olhou para Dorita admirada:
- Você sabia que existia esse lugar aqui em casa?
Ela meneou a cabeça negativamente:
- Não. Altair, você não está inventando essa história?
- Não. Acho que descobri o tesouro.
- Vamos lá ver isso - disse Marília.
As duas acompanharam Altair escada acima até o local e entraram no quartinho que por
ser um tanto apertado, Otávio determinou que ele serviria apenas de despejo.
Lá havia coisas que eles não utilizavam, mas não queriam se desfazer. Marília
raramente entrava lá, e Dorita de vez em quando abria para deixar entrar um ar e fazer
ligeira limpeza.
Surpreendidas, elas viram que Altair dissera a verdade. Havia uma abertura na parede
suficiente para passar uma pessoa. Aproximaram-se e viram que dentro havia uma
pequena prateleira com algumas caixas.
O lugar cheirava a mofo, mas Marília susteve a respiração, entrou e apanhou uma das
caixas. Estava pesada, porém ela esforçou-se para tirá-la de lá.
- Será que foi Otávio quem colocou isso aí? - questionou Marília.
- Se não foi ele pode ser sido alguém antes de vocês virem para cá.
- É. Está pesada. Vamos ver o que contém.
Colocaram a caixa sobre uma mesa e abriram a tampa. Dentro havia algumas pastas e
documentos.
- Vamos ver as outras - sugeriu Dorita.
Elas tiraram as seis caixas de papelão que havia e uma menor de madeira que elas
abriram primeiro. Dentro, encontraram um caderno e algumas chaves.
Marília apanhou o caderno e abriu:
- São coisas de Otávio. Veja, a letra é dele.
Folheando esse caderno, Marília continuou:
- São anotações de nomes de pessoas, endereços e até telefones.
- Por que será que ele os escondia aqui?
- Certamente eram negócios fora da lei que não podiam aparecer.
Elas abriram as caixas e nelas havia anotações, algumas em inglês, outras em espanhol.
- Aqui pode estar registrado que tipo de negócio Otávio tinha. Para a polícia pode ser a
chave do crime - considerou Marília, pensativa.
- Você vai avisar o delegado?
- Ainda não sei. Acho melhor falar antes com o Dr. Paulo ou com Vitório. Eles podem
examinar tudo isso e nos ajudar a decidir o que fazer. Pode ser também que não seja
nada importante.
- É pode, mas os dois saberão nos aconselhar.
- Mãe, pensei que fosse um tesouro. Não tem dinheiro dentro das caixas?


79
- Não, filho. Mas papéis podem ser mais importantes do que dinheiro. Vamos
investigar.
Eles desceram, Marília procurou o número do telefone de Paulo e ligou:
- Doutor Paulo? Estou ligando porque aconteceu uma coisa que pode ser importante.
- O que foi?
- Altair por acaso encontrou um compartimento secreto em que Otávio guardava caixas
com documentos. Eu e Dorita não sabíamos que havia esse lugar aqui. Gostaria de
mostrá-los a você e Vitório. Alguns deles são em inglês e espanhol.
- Irei imediatamente.
Ela agradeceu e desligou.
- Ainda bem que temos em quem confiar para nos ajudar - comentou com Dorita.
- Tanto ele quanto Vitório parecem gente boa.
- É verdade. Volte para o quarto, Altair.
- Eu já melhorei.
- Mas se não descansar poderá piorar. Talvez seja melhor voltar para a cama.
- Ah! Mãe!... Eu não quero ficar na cama. Já estou bom. Eu quero ver o que eles vão
falar do meu achado. Ainda penso que pode haver um tesouro lá.
- Não se preocupe Altair - ajuntou Dorita -, se tiver alguma coisa de valor, daremos a
você. Afinal, foi você quem descobriu o lugar.
Ele obedeceu. Meia hora depois, Paulo chegou com Vitório. Depois dos cumprimentos,
acompanharam as duas até o local. Altair, vendo-os subir, os acompanhou, olhos
brilhantes de curiosidade e prazer.
Assim que apanhou o caderno, Paulo sorriu satisfeito:
- Isto parece uma anotação que os traficantes costumam fazer dos clientes aos quais
fornecem drogas. Deve haver um outro com anotações dos fornecedores. Temos que
verificar.
- Quer dizer que Otávio era traficante de drogas?
- Tudo indica que sim.
- Apesar de desconfiar que havia alguma coisa errada, não pensei que se tratasse de
drogas.
Num gesto instintivo de proteção, ela abraçou o filho. Estava chocada. Tinha verdadeiro
horror desse tipo de profissão.
- Vamos levar essas caixas para um lugar onde possamos verificar tudo - disse Paulo.
- Eu ajudo - concordou Vitório. - Pode ser que aqui esteja o fio da meada que
procurávamos.
Marília sugeriu que eles levassem tudo para a mesa da sala de jantar para procederem a
verificação.
Depois de transportarem todas as caixas e de verificar se não havia mais nada no local
em que elas estavam escondidas, abriram a primeira e depois de examinar alguns
documentos, Paulo considerou:
- Isso vai levar tempo e requer peritagem.
- Acha que deveremos conversar com o delegado? - indagou Marília.
- Com certeza. A polícia terá condições de periciar todos esses documentos melhor do
que nós. Mas antes eu gostaria de analisá-los em primeira mão para recolher algumas
pistas e continuar nossa investigação.
- Você acredita que poderemos encontrar alguma pista sobre o desaparecimento de
minha mãe? É difícil para eu acreditar que ela pudesse estar ligada a essa gente.
- Não sei o que vamos encontrar, mas de qualquer forma o nome de sua mãe está ligado
a esse crime e a Otávio, seja ele traficante como parece ser ou não.
- Esse mistério continua me atormentando. Não consigo entender.


80
- Seria melhor que você procurasse não se atormentar criando hipóteses em sua cabeça e
sofrendo com elas. Assim, poderia ligar-se aos amigos espirituais que o auxiliam e
talvez obtiver um resultado melhor - aconselhou Paulo.
Vitório suspirou e respondeu:
- Você tem razão. Preciso encontrar a serenidade. Eu sei que só quando estamos serenos
e confiantes é que conseguimos ouvir o que nossos mentores espirituais dizem. O
desespero só atrapalha.
- Sei que não é fácil conseguir isso neste momento, porém você é uma pessoa de fé, já
teve provas de que a ajuda espiritual está presente em nossa vida. Pense um pouco. A
descoberta desses documentos foi à maneira que eles encontraram de nos ajudar. Altair
escorregou e a parede se abriu. Não acha que os amigos espirituais nos deram esse
empurrãozinho?
- Paulo, sinto-me envergonhado. Eu que pensava ser um espiritualista convicto, estou
falhando diante dos desafios a que estou sendo submetido pela vida. Vou reagir. Pode
estar certo. De agora em diante vou pensar no melhor e manter a serenidade. Depois do
que aconteceu hoje, só me resta confiar e acreditar que tudo será resolvido.
- Isso mesmo. Agora se sente e vamos analisar o que temos aqui - disse Paulo. Depois,
voltando-se para Marília, continuou:
- Vai demandar tempo.
- Eu sei. Gostaria de poder ajudá-los - respondeu ela.
- Já ajudou muito nos chamando aqui. Vamos ao trabalho. Vocês duas continuem seus
afazeres. Não quero atrapalhá-las.
- Já terminamos por hoje - respondeu Marília. - Se tiver alguma coisa que eu possa
fazer, é só falar. Vamos Altair, para a cozinha.
- Eu queria ver se eles vão encontrar o tesouro.
- Se encontrarmos alguma coisa diferente, avisaremos você - disse Paulo.
As duas e o menino foram para a cozinha e os dois mergulharam nos papéis, procurando
a ponta do mistério que envolvia aquelas famílias.




81
CAPÍTULO 13

O despertador tocou e Osmar acordou sobressaltado. A noite fora difícil demorara em
pegar no sono e quando conseguiu sonhou com pessoas maltrapilhas e feias, cobrando-
lhe contas de seus atos, ameaçando agredi-lo. Ele tentara fugir, mas elas o seguiram por
toda a parte e quando estavam para apanhá-lo, ele acordou suando frio, angustiado e
aflito.
"Foi apenas um pesadelo", pensou, tentando minimizar o fato. Mas depois disso não
conseguiu mais dormir com medo de rever as pessoas.
Sentia o peito angustiado, oprimido, como se alguma coisa terrível fosse acontecer.
Levantou-se, apanhou o telefone e ligou para Nelsinho. Quando ele atendeu, disse
irritado:
- Onde você estava que demorou tanto para atender ao telefone?
- Estava dormindo. Assim que ouvi, vim atender.
- Tem alguma novidade?
- Tudo continua na mesma. O carregamento chegou bem e eles estão conferindo a
mercadoria.
- Diga a eles que ainda não depositaram o dinheiro. Tenho pressa.
- Eles disseram que fariam isso hoje. É melhor esperar. O chefe deles não goste que
duvidem de sua palavra.
- Preciso falar com você sobre outro assunto. Não saia que dentro de meia hora estarei
aí.
Osmar desligou e foi se arrumar para sair. Em seu peito a angústia continuava e ele
apressou-se. Precisava ter certeza de que tudo continuava bem.
Desceu, engoliu uma xícara de café puro e saiu. Apanhou o carro e rumou para o
subúrbio. Parou diante da casa de Nelsinho, desceu e bateu várias vezes na porta.
Pouco depois, Nelsinho abriu, disfarçando a cara de sono e o desconforto por ter de
levantar tão cedo. Ele estivera ocupado até quase a madrugada e adorava dormir até
tarde.
Depois do bom-dia resmungado de parte a parte, Nelsinho tornou:
- O que o trouxe aqui tão cedo?
- Estou preocupado com a mulher no sanatório. Você tem ido lá saber como ela está?
- Fui naquele dia que liguei para o seu escritório.
- Como ela estava?
- Do jeito que você pediu. Eles continuam fazendo tudo direitinho.
- Mas você disse que ela estava dando trabalho.
- Estava porque o remédio não fazia mais tanto efeito. Mas eles disseram que iam
aumentar a dose e acho que fizeram porque não se queixaram mais.
Osmar pensou um pouco, depois disse:
- Vamos até lá. Quero ver isso de perto. Não podemos facilitar. Já chega aquela
cochilada que está nos custando caro.
- Eu não tive culpa. Eles desconfiaram de nós e não cumpriram o prometido.
- E agora ficamos nas mãos deles. Já pensou o que pode acontecer se ela falar o que
sabe?
- Do jeito que ela está não conseguirá lembrar-se de nada, que dirá falar.
Conversando, foram para o carro, entraram e Osmar deu a partida.
Passava das dez horas quando pararam diante de um prédio em que se lia a inscrição:
'Sanatório da Paz'.
Desceram do carro e entraram. No saguão, Nelsinho procurou a atendente:


82
- Preciso falar com o Dr. Ernesto.
- Um momento. Vou ver se ele pode atender.
Pegou o telefone, conversou, depois disse:
- Podem entrar. Primeira porta à esquerda.
Os dois caminharam pelo corredor até encontrar a porta; bateram levemente.
- Como vai, Dr. Osmar?
- Preocupado, Ernesto.
- Sentem-se. Não há motivo para preocupação. Tudo está sob controle.
- Não sei. Sinto que alguma coisa está para acontecer. Como está ela?
- Dormindo. Como sabe, fomos forçados a aumentar a dose da medicação; depois disso,
ela não nos incomodou mais.
- Leve-me até lá. Quero vê-la.
- Não confia em minha palavra?
- Não se trata disso, Ernesto. Vendo-a, saberei que tudo está bem.
- Antes, desejo fazer-lhe uma pergunta: Até quando pretende mantê-la aqui?.
- Até quando meus problemas estiverem solucionados.
- Concordei em atendê-lo, mas não posso ficar com ela indefinidamente. Isso pode me
causar problemas.
- Pensei que a quantia de dinheiro que lhe paguei e a que envio de vez em quando
cobrisse todos os seus medos.
- Você tem sido muito generoso. Se não fosse aquele crime, ela poderia ficar aqui o
quanto quisesse.
- Já lhe disse que não tive nada a ver com aquele crime. Jamais teria feito negócios com
aquela gente se soubesse que iriam chegar a tanto. Você sabe que sou homem de
palavra. Eles duvidaram disso.
Ernesto coçou a cabeça, indeciso. Aquele dinheiro fora muito bem-vindo, mas a morte
de duas pessoas o assustava demais. Embora Osmar afirmasse que não tivera nada a ver,
ele não conseguia acreditar.
Sabia que Osmar mantinha negócios com o homem que foi assassinado, só não entendia
como a mãe de Osmar fora morta com ele.
- Você acha que fui culpado daquele crime? Acha que eu seria capaz de mandar matar
minha mãe?
- Você está certo de que o corpo encontrado é o mesmo o dela?
- Claro que estou. Eu mesmo fui reconhecê-lo.
- É que as demais pessoas de sua família disseram o contrário.
- Estão iludidos. De tanto desejar que não fosse verdade, viram coisas que não existem.
- Seja como for, essa mulher chegou aqui num dia próximo àquele crime. Ela deve ter
alguma coisa a ver com esse fato.
- Você está enganado. Ela é uma mulher que sabe demais sobre meus negócios e eu a
trouxe aqui para ver se ela esquece o que sabe. Só isso.
- Quando passar o efeito dos remédios, ela poderá dar com a língua nos dentes. É isso
que me preocupa. Não desejo ver o nome do hospital metido nisso.
- Ela se esquecer de tudo depende de você. Deve haver drogas que a façam não se
lembrar mais do passado.
Pelos olhos do médico passou um brilho diferente, mas ele disse apenas:
- Eu sei que tem. Mas não posso aplicar nela. Seria contra a medicina.
- Lembre-se de que posso fazer valer a pena. Dentro em breve vou receber uma boa
quantia e certamente saberei reconhecer seus serviços.
- Vou pensar.
- Agora desejo vê-la.


83
Doutor Ernesto levantou-se:
- Venham comigo.
Os três caminharam pelos corredores, subiram um lance de escada até que o médico
parou diante de uma das portas. Abriu e convidou:
- Vamos entrar.
O quarto era pequeno e a veneziana da janela estava fechada. Havia uma cama
hospitalar, uma mesa de cabeceira e um suporte de soro.
Deitada de costas havia uma mulher magra, de cabelos castanho-claros sobre os ombros,
branca, pele delicada, um tanto pálida, olhos fechados, os braços estendidos para fora da
coberta. Aparentava mais de cinqüenta anos.
- Está vendo? - disse Ernesto. - Ela dorme tranqüila.
- Espero que ela continue assim - respondeu Osmar.
- Vai continuar. Vamos sair.
Eles saíram e poucos minutos depois deixaram o hospital. Osmar estava satisfeito.
Aquela mulher nunca poderia contar como descobrira tudo. Depois de deixar Nelsinho
em casa, Osmar foi para a empresa. Sentou-se diante de sua mesa, mas não estava em
condições de trabalhar. A angústia continuava e ele fechou os olhos inquieto.
As lembranças o incomodavam e o medo roubava toda sua calma.
Havia conhecido Otávio desde que se interessara em negociar drogas. Ele queria
enriquecer logo, não desejava esperar o progresso lento da empresa do pai. Tinha pressa
em conquistar poder e em seu entender o dinheiro farto lhe proporcionaria tudo,
inclusive o amor de Aurélia.
Conhecia Nelsinho desde a adolescência. Ele vendia drogas aos alunos do colégio em
que estudava. Nunca desejara experimentar nenhuma delas. Mas cedo percebera o
quanto poderia lucrar nesse negócio.
Já adulto e formado, quando decidiu entrar no negócio, procurou Nelsinho e por meio
dele fez os primeiros contatos com alguns traficantes. Inteligente e determinado, aos
poucos conseguiram seu lugar entre eles, mostrando capacidade, respeitando suas regras
e negociando com cada um o espaço de atuação.
Há dois anos conhecera Otávio, um intermediário de dois grandes exportadores. Era o
que ele queria. Seu capital não era grande, mas, nesse ramo, ele estava se multiplicando
rapidamente. Tudo corria bem.
Certa tarde recebeu o recado de que Otávio iria ao Rio de Janeiro e o estaria esperando
na casa de Nelsinho.
Nesse encontro, Otávio lhe dissera que tinha em mãos um negócio espetacular.
- Ninguém sabe. Trouxe para você em primeira mão.
- Do que se trata?
- É um negócio grande, rendoso, é pegar ou largar. Mas é preciso resolver rápido. Hoje
de manhã fui procurado pelo companheiro do Argola. Ele foi preso esta madrugada.
Não vai sair tão cedo.
- E daí?
- Bem, o Arlindo procurou-me e disse que o Argola comprou uma mercadoria barata e
de boa qualidade. Arlindo recebeu tudo, guardou em sua casa, e o Argola ia buscar esta
noite, mas como ele foi preso; o Arlindo está com medo. Quer livrar-se da mercadoria o
quanto antes. Faz por qualquer preço. Eu não tenho como retirar tudo. Sei que você tem.
- Tem certeza de que é de boa qualidade?
- Tenho. Ele me deu uma amostra.
- Tem certeza de que a polícia não sabe nada sobre ela?
- Tenho. A polícia está mais preocupada com um carregamento que apreenderam há um
mês. Sobre essa, eles não sabem de nada.


84
- Nesse caso, vou mandar retirá-la e levar para nosso depósito.
- Mas antes quero cinqüenta por cento do lucro.
- Só se você pagar a metade.
- Não tenho capital. Afinal, essa informação vale muito. Eu poderia ter procurado
outros.
Eles discutiram os detalhes e finalmente acertaram o negócio. Osmar mandou buscar a
mercadoria e ficou de mandar o dinheiro depois de conferir a remessa.
Otávio foi embora e Osmar fez o que haviam combinado. Naquela noite, ao chegar a
casa, encontrou a mãe atarefada, fazendo as malas. Ficou sabendo que ela partiria no dia
seguinte para a Europa em companhia de uma amiga.
Estranhou. Procurou o pai.
- É verdade que mamãe vai para a Europa sem você?
- É. Ela está precisando descansar. Tem andado deprimida, cansada. Acho que é a idade.
- Mas por que você não a acompanha como sempre?
- Não quero deixar os negócios.
- Eu posso tomar conta de tudo. Aproveite, vá com ela.
- Não. Ela quer ir com uma amiga dos tempos de faculdade. Concordei. Afinal, não
tenho vontade de viajar neste momento.
Ele tentou convencer o pai que ele deveria ir também. Para ele convinha muito que o pai
se afastasse durante algum tempo. Assim ele estaria mais livre para fazer o que
desejava.
Na manhã seguinte, ele foi ter com a mãe:
- Quando você vai?
- Amanhã à noite.
- Desejo-lhe uma boa viagem, mas ainda acho que deveria levar o papai. Ele tem
andado desanimado, penso que uma viagem lhe faria bem.
- Se ele desejar viajar, que vá sozinho. Eu, nesta viagem, desejo me recuperar. Ficar só
comigo mesma.
- Mas você vai com uma amiga...
- Vou. Faz muitos anos que nós não nos encontrávamos. Vai ser bom revivermos nossos
tempos de juventude. Eu preciso de alegria. Elvira vai me ajudar a reencontrar o prazer
de viver.
Foi quando Vitório apareceu e, vendo-a na arrumação, disse triste:
- Mãe... Eu preferia que não fizesse essa viagem.
Teresa sorriu levemente:
- Eu preciso ir. Você vai ficar bem.
Vitório segurou a mão dela e respondeu:
- Estou com um mau pressentimento. Algo me diz que você não deve viajar agora.
- Lá vem você com suas idiotices - interveio Osmar. - Não dê ouvidos a ele.
- Eu sinto que você não deve ir. Por favor, desista dessa viagem. Fique perto de nós.
Ao rever essa cena, Osmar pensou:
"Dessa vez Vitório estava certo. Teria sido melhor mesmo que ela não tivesse ido".
Mas Teresa estava irredutível. Na hora combinada, Alberto acompanhou-a até o
embarque e o Vitório, angustiado, recolheu-se ao quarto.
Para Osmar teria sido mesmo melhor que o pai tivesse ido viajar. Talvez assim tivesse
podido evitar o que aconteceu.
Mais tarde, Osmar encontrou-se com Nelsinho e foram até o depósito conferir a
qualidade da mercadoria. Ficou satisfeito. A compra fora mesmo muito boa.
Ele contava poder tirar dinheiro da empresa para juntar ao que já possuía e pagar a
dívida. Mas quando chegou à empresa, no dia seguinte, soube que o pai tinha comprado


85
uma quantidade enorme de material e havia pagado metade à vista.
Inconformado, foi conversar com ele:
- Pai, você não podia ter feito esse negócio. Ficamos sem nenhuma reserva.
- Sei o que estou fazendo. Era um ótimo negócio, preço muito bom e eu não podia
perder. Dentro de pouco tempo teremos recebido o dobro ou mais.
- Mas nós temos compromissos, contas a pagar. O que faremos sem dinheiro em caixa?
- Você está reclamando sem razão. Antes de fechar eu verifiquei tudo o que temos de
pagar neste mês. Vai dar e sobrar.
Osmar ficou nervoso. Ele contava com esse dinheiro para acertar o negócio que fizera.
Sabia que como de praxe, eles só faziam negócios à vista. Era receber, ver a qualidade e
pagar.
Pela primeira vez desde que se metera nesse negócio sentiu medo. Sabia que eles não
eram de brincadeira. Por muito menos eram capazes de matar.
Sua cabeça doía, e ele tentava encontrar uma saída. Naquele mesmo dia recebeu um
recado marcando um encontro para pagar o dinheiro.
Desesperado saiu da empresa, procurou um telefone público e ligou para Otávio.
- Preciso conversar com você.
- Recebeu meu recado?
- Recebi, mas estou com um problema. Não tenho toda a quantia.
- Como você fez um negócio desses sem ter o dinheiro? Sabe o que isso significa?
- Sei. Por esse motivo estou ligando para você. Quero que diga ao Arlindo que hoje vou
mandar uma parte e que logo mandarei o restante.
- Não posso dizer isso a ele! Vai pensar que o estou enganando.
- Mas é verdade!
- Você está dizendo, mas eu não sei se é mesmo. Pode ser que você esteja me passando
à perna.
- Eu nunca faria isso. Sou de palavra. Só preciso de mais alguns dias.
- Faça um empréstimo, faça qualquer coisa, mas não me diga que não vai pagar.
- Ele quer receber ainda hoje, porém não tenho todo o dinheiro.
- Você me colocou em uma grande enrascada. Isso não vai prestar. Se eu soubesse que
não teria confiado em você.
- Você não pode me emprestar o que falta? Eu devolverei logo.
- O quê? Meu dinheiro está todo aplicado. Não posso tirar de uma hora para outra. Você
vai ter de dar um jeito.
Osmar remexeu-se na cadeira inquieto. Recordar esses momentos aumentava sua
angústia.
Naquele dia ele procurara solução sem conseguir. O jeito era dar o que tinha e pedir
tempo para pagar o restante. Não havia saída.
Resignado, procurou Arlindo levando o dinheiro que possuía. Ele o esperava ansioso e
assim que o viu disse:
- Eu vou me mandar, só estava esperando você chegar. Preciso sair daqui o quanto
antes. Soube que o Argola está sendo pressionado e pode dar com a língua nos dentes.
Manda logo a bolada que eu tiro minha parte e entrego o restante ao fornecedor.
Osmar entregou o envelope com o dinheiro. Arlindo abriu, contou depois disse:
- E o restante?
- Eu tinha todo o dinheiro na empresa, mas meu pai fez uma compra grande e o retirou.
Arlindo fechou a fisionomia e Osmar continuou sem dar-lhe tempo para dizer nada:
- Não se preocupe. Tenho dinheiro para receber, dentro de um ou dois dias pagarei o
restante.
- O que você pensa que eu sou? Algum idiota? Não quero pôr em risco minha pele. Se


86
eu aparecer lá sem todo o dinheiro eles vão pensar que eu estou mentindo. Além do
mais preciso viajar urgente, conto com minha parte. Não. De forma alguma, não posso
aceitar isso. Você precisa dar um jeito.
- Não tenho como. Quando Otávio me procurou, eu fechei o negócio porque contava em
tirar a diferença da empresa. Não esperava que meu pai fosse fazer o que fez.
- Isso é problema seu. Eu não tenho tempo para esperar. Vou embora ainda hoje. Se não
puder dar o que falta terá de entender-se com eles.
- Você precisa me ajudar. É por pouco tempo.
- Não posso. Dei minha palavra de que o negócio era quente, sempre fui confiável.
Osmar empalideceu. Sabia que os fornecedores daquela mercadoria eram grandes
traficantes, cujas regras eram duras e era muito perigoso desrespeitá-las.
- Nesse caso, é melhor eu devolver a mercadoria.
- O quê? Você que me complicar com a polícia? De forma alguma posso aceitar recebê-
la de volta. Depois, nós somos pessoas honestas, não crianças que podem ser enganadas
com facilidade. Você não sabe com quem está metido.
- O pior é que eu sei. Estou sendo o mais honesto possível. Se vocês não podem esperar
mais alguns dias para receber o restante, é melhor levarem a mercadoria de volta.
- Vamos fazer o seguinte: espero até amanhã. É só o que consigo fazer. Se você não
trouxer o restante do dinheiro, terei de contar a verdade aos fornecedores.
- É muito pouco tempo! Não vai dar para arrumar todo o dinheiro.
- Eu vou sair daqui agora, ficar na casa de um amigo. Mas amanhã, nesta mesma hora,
virei aqui esperar pelo dinheiro. Se não trouxer, terei de contar a verdade.
Osmar deixou a casa de Arlindo muito assustado. Em tão pouco tempo como poderia
conseguir tanto dinheiro?
Voltou para casa tentando encontrar uma solução sem conseguir.
Naquela noite não conseguiu dormir. Revirou-se na cama angustiado, mas quando
pegou no sono viu-se perseguido por vultos negros que o queriam agredir.
Enquanto recordava esses fatos, Osmar tentava descobrir de onde vinha essa sensação
de medo e de mau pressentimento.




87
CAPÍTULO 14

Pressionado pelas lembranças, Osmar continuava tentando colocar as idéias em ordem
para poder programar os próximos passos. Depois daquele encontro com Arlindo, os
acontecimentos se precipitaram. Ele foi preso naquela mesma noite e Osmar sentiu-se
acuado. Certamente, Otávio informaria os fornecedores que ele não cumprira o
prometido, o que era falta grave.
Ele havia recebido o dinheiro da última partida de mercadoria que negociara, mas seu
montante não era suficiente para pagar tudo o que devia. Tentou falar com Otávio, mas
ele atendia ao telefone. Foi quando começou a receber telefonemas anônimos com
ameaças, chamando-o de traidor, de desonesto, de sem palavra. Assustado, ele sabia de
onde vinham esses telefonemas, mas ainda não tinha conseguido todo dinheiro e, para
seu desespero, Otavio não atendia seus chamados. Mesmo sem ter o restante, na noite
seguinte Osmar foi ao encontro de Nelsinho. Ele precisava fazer alguma coisa.
Contou-lhe o que estava acontecendo e finalizou:
- Estamos encrencados. Temos de encontrar uma saída com urgência.
- Foi você quem fez negócio. Eu não tenho nada com isso. Só ajudo na distribuição.
- Você acha que eles vão querer só a mim? Como é ingênuo! Está metido nisso tanto
quanto eu.
- Nesse caso, vou me mandar. Não vou esperar a bomba estourar.
- Você não vai me deixar sozinho nisso. Depois, não adianta fugir. Eles têm esquema
perfeito e a essa altura já devem saber de tudo a nosso respeito.
- Isso pode estar na mão do Nivaldo. Ele morre de inveja de nós porque não consegue
nos vencer.
- Ele é café pequeno. Esqueça isso. Temos coisa mais importante para pensar.
Juntos, tentaram encontrar uma saída, porém a única que resolveria seria arranjar o
dinheiro imediatamente, o que não era possível.
- Vou procurar me esconder durante alguns dias - disse Nelsinho.
- Eu não tenho como.
O telefone tocou e os dois se sobressaltaram. Nelsinho atendeu:
- Alô. Sim, sou eu.
- Quero falar com o vagabundo que está com você.
- Quem?
- Eu sei que ele está aí. Passa logo o fone para ele.
Nelsinho estendeu o aparelho para Osmar:
- É para você.
Osmar sentiu o coração bater mais forte. Nervoso, atendeu:
- Alô. Quem está falando?
- Não interessa. Você está marcado. Ninguém pode brincar com o Gil.
Gil Duarte era o nome do chefe dos traficantes, dono da mercadoria que ele comprara.
Osmar respirou fundo e respondeu:
- Não estou brincando. Sou homem sério. Se for por causa do dinheiro daquela
mercadoria, não precisa se preocupar. Dentro de um ou dois dias levarei para vocês.
- Você não está falando sério. Não podemos correr o risco de esperar esse tempo.
Depois, você sabia as condições do negócio. Fechou-se, tem de pagar do jeito
combinado.
- Eu vou pagar. Só que preciso de mais alguns dias.
- O máximo que podemos esperar é até amanhã ao meio-dia. Vou ligar para lhe dizer
onde deve levar o dinheiro.


88
Osmar desligou suando frio. Ele sabia que não conseguiria ter o dinheiro até o horário
previsto.
Deixou Nelsinho e foi para casa. Sua cabeça doía e ele não conseguia encontrar uma
solução. Passava da meia-noite quando o telefone do seu quarto tocou.
- Alô. Sou eu.
- Nós temos aqui duas pessoas que você conhece muito. Teresa e Elvira. Se não arranjar
o dinheiro, vamos acabar com elas.
Osmar deu um pulo assustado.
- É mentira. Minha mãe está na Europa. Você está querendo me pressionar.
- Eu posso provar.
- Como?
- Vá até o endereço que vou lhe dar e encontrará as provas de que precisa.
- Diga para eu anotar.
O homem passou o endereço, depois desligou. Osmar passou as mãos nos cabelos,
tentando se acalmar. Iss não podia ser verdade. Sua mãe em poder daqueles bandidos o
deixava aterrorizado.
Procurar a polícia seria como denunciar sua ligação com os traficantes. Precisava saber
se eles realmente tinham Teresa em seu poder.
Isso poderia ser apenas uma maneira de atrai-lo para uma cilada. Mas e se Teresa
estivesse mesmo com eles, não ir, seria deixá-la à mercê deles e, o que o incomodava
mais, tornaria clara sua participação nos negócios com os traficantes.
Vencendo o medo, Osmar decidiu verificar. Foi. O endereço ficava na periferia de um
subúrbio. O lugar estava deserto àquela hora da noite. Ele parou o carro diante da casa
modesta, olhando em volta receoso.
A casa estava às escuras e não havia sinal de vida. Osmar não desceu do carro, estava
pronto para fugir se fosse preciso. Esperou alguns minutos, mas vendo que não aparecia
ninguém, ligou o carro disposto a ir embora.
Então, a porta da casa se abriu e uma mulher saiu quase correndo. A porta fechou-se
novamente. Osmar não a conhecia, mas ela aproximou-se dizendo agitada:
- Por favor! Ajude-me!
Vendo que ela não carregava bolsa nem arma, Osmar abriu o vidro do carro e
perguntou:
- Quem é a senhora?
- Sou Elvira. A amiga da Teresa.
Osmar abriu a porta e disse nervoso:
- Elvira? Entre, conte-me o que está acontecendo? Onde está minha mãe?
Ela entrou no carro dizendo aflita:
- Vamos embora. Vou contar-lhe tudo.
- Minha mãe não está com você?
- Não. Eles me trouxeram aqui sozinha. Ela ficou em outro lugar.
Osmar ligou o carro e saíram. Depois de alguns minutos ele perguntou:
- Quem estava com você naquela casa?
- Dois homens. Eles nos prenderam dias atrás.
- Meu pai as levou para o aeroporto e viu vocês embarcarem. Como pode ser isso?
- Nós não embarcamos. Seu pai se despediu quando entramos na área de embarque, nós
esperamos um pouco e saímos.
- Não estou entendendo. Vocês não iam para a Itália?
- Não. Ela fingiu isso, mas sua idéia era outra.
- Como assim? Por que ela não disse a verdade?
- Esse é um assunto dela e não estou autorizada a lhe contar.


89
- Você vai ter de contar. A vida dela está ameaçada.
- Eu também acho. Nós temos de ir à polícia.
- Nada de polícia. Isso pode colocar a vida dela em risco. Mas fale, por que vocês
desistiram da viagem?
- Nós não desistimos de viajar. Apenas programamos ir para outro lugar.
- Por que tanto segredo? Por que mamãe não disse para onde iriam?
- Esse é um assunto dela. Depois você pergunta a ela. Eu não posso entrar nisso. Ela
tinha programado ir para São Paulo e foi o que fizemos. Lá, quando saímos do
aeroporto com nossas bagagens à procura de um táxi, fomos seguidas por dois homens
que em determinado momento se aproximaram, apontaram-nos suas armas e nos
obrigaram a entrar no carro.
- Você conhecia esses homens?
- Não. Um era mal encarado, o outro tinha uma aparência melhor. Eles nos ameaçaram e
nos levaram para uma casa em um bairro afastado. Lá nos amarraram e havia um outro
que parecia ser o chefe, ele nos disse que ficaríamos presas até que você pagasse o que
lhe devia.
- Eu?
- É. Ele quis nos assustar e disse que você traficava drogas, estava devendo e não queria
pagar. Se você não trouxesse o dinheiro, eles nos matariam. Teresa ficou indignada,
disse que isso não era verdade, mas eles responderam que ela não sabia o que você fazia
na empresa da família.
- Eles estavam mentindo. Ela acreditou?
- Teresa chorou muito, mas ele insistiu tanto, que nós duas acabamos por acreditar.
Teresa não se conformava por você ter entrado nesse caminho. Não parava de chorar.
Ela fez ligeira pausa e depois continuou:
- Esta noite, eles me colocaram no carro e me levaram para aquela casa. No caminho me
disseram que era para lhe contar o que estava acontecendo e que se não arranjasse o
dinheiro até amanhã ao meio-dia, eles matariam sua mãe.
Elvira soluçava aflita e Osmar não sabia o que fazer.
- Apesar de tudo, eu ainda acho que nós deveríamos procurar a polícia e tentar salvar a
vida de Teresa.
- Procurar a polícia seria o mesmo que matá-la. Temos de pensar em outro jeito.
- Você pode pedir o dinheiro a seu pai. Ele não vai se negar a dar.
- Papai não pode saber o que está acontecendo. Temos de arranjar uma solução sem a
polícia.
- O tempo passa depressa. Logo o dia estará amanhecendo e chegará à hora de levar o
dinheiro.
Osmar mal ouvia o que Elvira estava dizendo. Em sua cabeça estava o receio de que ela
viesse a contar o que descobrira sobre suas atividades. Não podia levá-la para sua casa,
nem para um hotel. Temia que ela fosse à polícia pedir ajuda.
Tinha que levá-la para um lugar onde ela ficasse escondida e não pudesse dar com a
língua nos dentes. Lembrou-se do Dr. Ernesto que tinha um sanatório de doentes
mentais. Havia prestado a ele alguns favores e agora chegara o momento de cobrar sua
dívida.
Quando estava chegando ao sanatório, Osmar disse:
- Estou preocupado, você não parece bem, está nervosa, agitada. Você conhece alguém
nesta cidade?
- Não sei nem onde estou.
- No Rio de Janeiro.



90
- Pensei que ainda estivesse em São Paulo. Não conheço ninguém aqui a não ser seu
pai.
- Você vive com sua família?
- Não. Meu marido morreu e não tive filhos. Moro sozinha e não tenho outros parentes.
Encontrei sua mãe e ela convidou-me para ser sua dama de companhia. Aceitei.
- Depois do que passou, você está precisando de cuidados médicos. Por isso eu a trouxe
a este hospital, que é de um amigo meu. Ele vai ajudá-la a se acalmar.
- Eu não quero ficar em um hospital. Estou preocupada com Teresa. Eu não sei onde ela
está. Eles vedaram nossos olhos e eu nem sabia que estava vindo para o Rio de Janeiro.
- Você não vai ficar no hospital. Só fazer um exame, verificar se está tudo bem e
descansar. O dia está amanhecendo e eu preciso ir para ver se consigo o dinheiro. Você
pode ficar aqui e, amanhã, depois que eu resolver tudo, voltarei para buscá-la e veremos
o que fazer.
Osmar parecia mais calmo e Elvira aceitou fazer o que ele queria. O Dr. Ernesto não se
encontrava no local, mas seu assistente atendeu Osmar:
- Aí fora está uma mulher muito desequilibrada, não fala coisa com coisa. Não dá para
entender, diz que foi seqüestrada, perseguida, está com mania de perseguição. Não
dorme à noite, por esse motivo eu a trouxe aqui. Gostaria que você a atendesse e lhe
desse algum remédio para dormir. Pela manhã, falarei com o Dr. Ernesto e pedirei que a
examine. Ela precisa descansar e a família dela também.
- Deixe comigo, Dr. Osmar. Vou tratá-la com carinho. Ela vai dormir como um anjo.
Osmar despediu-se de Elvira e saiu. Dela estava livre, pelo menos por alguns dias. O
que aconteceria se ele não arranjasse o dinheiro?
Nem queria pensar nisso, mas, por outro lado, se conseguisse esse dinheiro, teria dado
um golpe de mestre. Ganharia muito mais e poderia fazer sua independência. O
problema era que isso seria impossível em tão pouco tempo.
O dia havia amanhecido e ele foi para casa. Tomou um banho, vestiu-se e mesmo sem
apetite tomou um reforçado café da manhã e foi para a empresa.
Uma vez lá, mergulhou nos extratos bancários, nas aplicações, consultou o fluxo de
caixa, mas esses documentos lhe mostraram que não havia mais o que extrair da
empresa.
Seu pai tinha raspado o fundo do tacho para fazer aquela desastrada compra que
ocasionara todo o seu drama.
Uma onda de raiva o acometeu e ele teve vontade de brigar com o pai. Tentou acalmar-
se e não demonstrar seu nervosismo.
Alberto mostrava-se radiante com aquele negócio que tinha feito, calculando os ganhos
que teriam, o que proporcionaria à empresa maiores possibilidades de investimentos e
mais folga com relação aos pagamentos futuros.
Osmar não tinha como falar no assunto e precisou engolir sua raiva, seu desespero e sua
insatisfação.
Apesar de seu esforço, Alberto notou que ele não estava bem e perguntou:
- O que você tem? Parece nervoso. Aconteceu alguma coisa?
- Não aconteceu nada. Eu estou muito bem.
- Será por causa da notícia que saiu no jornal de ontem?
- Que notícia?
- Aurélia em boa companhia. Você não viu?
- Não.
Alberto apanhou o jornal, encontrou o que procurava e mostrou a ele dizendo:
- Ela está namorando firme. Falam até em casamento.



91
Osmar apanhou o jornal irritado. A foto mostrava Aurélia e um moço, abraçados e
sorridentes. Ele leu a legenda: "A linda e charmosa Aurélia Saldanha e seu namorado na
festa dos Alves de Mello. O casal não se larga. Tudo indica que esse namoro é para
valer".
- O melhor que você tem a fazer é esquecer de vez essa mulher, uma vez que ela não
corresponde ao que você sente por ela.
Osmar teve vontade de bater no pai, jogar toda sua raiva sobre ele, a custo conteve-se.
Engolindo a raiva respondeu com a voz trêmula:
- É isso que eu vou fazer.
Alberto sorriu satisfeito. Achava o filho um rapaz bonito, bom e de futuro. Não entendia
como uma mulher pudesse rejeitá-lo.
Osmar respirou fundo e tentou colocar a atenção no trabalho, mas não conseguiu. Ele
não pretendia desistir de Aurélia, mas o caso dela precisava esperar.
As horas estavam passando sem que ele encontrasse uma solução para o seu problema.
Eram onze horas quando o telefone tocou e Osmar atendeu:
- Alô, sim, sou eu.
- Você tem apenas mais uma hora para entregar o dinheiro. Anote o lugar e a maneira de
fazer isso.
- Eu ainda não consegui arranjar tudo. Vou levar o que tenho.
- Se não conseguir, ela vai pagar. O problema é seu.
- Minha mãe não sabe dos meus negócios e não pode pagar por mim. Por favor, não
faça nada a ela. Dê-me a indicação de como fazer que vou ver se consigo.
O homem passou os detalhes e Osmar anotou tudo. Suas mãos tremiam e, naquele
momento, ele se arrependeu amargamente de ter entrado nesse negócio. Mas era tarde
demais. Não tinha como recuar.
Apesar de tudo, estava decidido a fazer uma última tentativa. Seu dinheiro não estava
em banco. Ele o guardava em um esconderijo, em casa mesmo. Tinha parte em dólares e
em moeda nacional, mas como era dinheiro ilícito, não podia aparecer oficialmente.
Depois, os negócios eram feitos em dinheiro vivo e ele podia precisar valer-se dele de
uma hora para outra.
Apanhou uma pasta, colocou o dinheiro, tendo conferido o montante e, mais uma vez,
percebeu que ainda faltava uma quarta parte do que precisava. Cinco minutos antes da
hora marcada, ele parou o carro no local combinado. Tratava-se de uma praça e ele
percebeu logo o homem sentado em um dos bancos lendo um jornal.
Reconheceu um dos homens de Otávio. Era a ele que deveria entregar a pasta com o
dinheiro sem dizer nada e ir embora. Depois de conferir, eles libertariam Teresa.
Osmar cumpriu tudo conforme o combinado, mas suas pernas tremiam. Havia escrito
uma carta e colocado junto com o dinheiro, pedindo que esperassem mais alguns dias,
que libertassem sua mãe, jurando pagar tudo.
Depois ele foi para a empresa. Seu estômago estava embrulhado, não conseguiu
almoçar. Tomou um uísque para relaxar e tentou se acalmar.
Sabia que teria uma resposta. Se eles aceitassem esperar um pouco mais, não fariam
nada contra Teresa, porém continuariam mantendo-a presa, caso contrário, talvez até
acabassem com ela.
A esse pensamento Osmar estremecia nervoso. Era possível até que não se dessem por
satisfeitos apenas com isso e atentassem também contra a vida dele.
Se eles a matassem, certamente o caso estaria nas mãos da polícia. O que ele faria para
escapar de uma investigação dessas? Sua participação nos acontecimentos viria à tona.
Isso para ele seria pior até do que a morte.



92
Aquela tarde custou a passar e Osmar não conseguia pensar em outra coisa. Fingiu estar
trabalhando, até tentou, mas sua cabeça estava confusa e perturbada.
A noite chegou e ele não teve nenhuma notícia. Não saber o que estava acontecendo,
deixava-o inquieto, irritado e nervoso. Durante o jantar, resolveu comer alguma coisa.
Seu estômago doía e ele estava se sentindo enfraquecido. Procurou reagir e comeu um
pouco de tudo. Alberto estava alegre e conversador naquela noite e Osmar fez o
possível para não demonstrar seu desespero. Em certo momento, Alberto fixou-o,
dizendo:
- Noto que você está se esforçando para parecer bem. Mas não está.
- Confesso que aquela foto de Aurélia me tirou do sério.
- Eu sei, meu filho. Mesmo reagindo, você não consegue esquecer. Uma desilusão
amorosa é muito penosa, mesmo. Mas tudo passa. Estou certo de que logo esquecerá,
encontrará outra mulher que o valorize e acabará rindo quando se recordar desses
momentos.
- É o que desejo, pai.
Dinda apareceu e Alberto perguntou:
- Vitório não vai mesmo jantar?
- Não, senhor. Ele anda muito triste pela falta de D. Teresa. Quase não tem se
alimentado.
- Esse menino não pode ficar sem comer. Precisa deixar essas manias de meditação e de
ficar fechado naquele quarto falando com as paredes - respondeu Alberto.
- Eu vivo falando isso. Você precisa usar sua autoridade para que ele procure outro
trabalho e deixe essas manias - rebateu Osmar.
- Qualquer dia vou obrigá-lo a ir trabalhar na empresa. Assim ficará sob nossos olhos.
- De modo algum - protestou Osmar, irritado. - Ele só iria nos dar trabalho. Não gosta
de nada. Ficaria lá, fechado na sala, meditando, e nada o faria interessar-se pelo
trabalho.
- Do jeito que vocês falam até parece que Vitório é preguiçoso - interveio Dinda. -
Vitório é muito trabalhador, mas gosta de outras coisas. Cada um é como é as pessoas
não são iguais.
- Você e mamãe gostam de ficar mimando Vitório. Por esse motivo ele é tão folgado.
Osmar precisava jogar sua raiva, sua impotência diante dos fatos sobre alguém e o
irmão sempre foi para ele motivo de rancor.
- Vamos mudar de assunto - disse Alberto. - Vamos jantar em paz.
Osmar concordou, mas, para ele, naquela noite não havia nenhuma possibilidade de
ficar em paz.




93
CAPÍTULO 15
Osmar continuou se recordando. Lembrou-se de que três dias depois, quando entrou na
empresa, apanhou o jornal que a secretária como de costume colocara sobre a mesa e
começou a folheá-lo. Até aquele dia não obtivera nenhuma notícia sobre o dinheiro
pago aos traficantes, o que o enchia de esperança de que os seqüestradores de Teresa
houvessem aceitado esperar pelo restante do dinheiro. Continuando a folhear o jornal
estremeceu assustado. Um crime havia sido cometido em São Paulo. Um casal fora
assassinado na cama em condições misteriosas. O homem morto era Otávio de Oliveira
cuja foto estava estampada na matéria.
Osmar sentiu uma tontura, levantou-se, apanhou um copo de água e tomou, tentando
acalmar-se. Respirou fundo e leu a matéria.
A mulher morta era de identidade desconhecida e tinha a idade de Teresa, o que o fez
pensar que, de fato, ela havia sido assassinada.
A custo conseguiu controlar-se. O terror tomou conta dele. Tentou reagir. A mulher
morta que estava na cama com Otávio certamente seria sua amante e não podia ser
Teresa.
Otávio havia sido o intermediário do seu negócio e fora punido por não ter levado o
dinheiro. Se essa hipótese se confirmasse eles poderiam ter feito o mesmo com sua mãe
e, talvez, há essa hora já estivessem à procura dele.
Como saber a verdade? Otávio tinha vários negócios e poderia ter sido assassinado por
outros motivos. Aflito, Osmar não tinha como encontrar a resposta.
O telefone tocou, ele atendeu, era Nelsinho:
- Já leu os jornais de hoje?
- Já. Eu disse para você não ligar para empresa.
- Se for o que estou pensando, estamos correndo sério risco.
- Depois passarei em sua casa e conversaremos. Pelo telefone, não.
- Estou nervoso. Desligue o telefone e venha até aqui agora.
- Não posso sair agora. Irei ao fim da tarde.
- Pode ser muito tarde.
Osmar sentiu medo, mas controlou-se.
- Irei assim que meu pai chegar na empresa. Estamos esperando uma entrega de
mercadoria e não posso sair pelo menos até ele chegar.
Ele também tinha urgência em conversar com Nelsinho, talvez ele conhecesse alguém
que pudesse colher informações. Pensou em recorrer a Norberto, mas ao mesmo tempo
não queria que ele soubesse detalhes dos seus negócios.
Geralmente o contratava para alguns serviços, mas achava perigoso que ele soubesse
muito sobre sua vida.
Assim que desligou o telefone, chamou a secretária e disse:
- Meu pai já deveria ter chegado. Eu tenho um negócio urgente para resolver, mas não
posso deixar a empresa enquanto ele não chegar. Ligue para casa e pergunte se ele vai
demorar.
- Não será preciso. O Dr. Alberto recebeu um chamado de São Paulo, pediu que eu
reservasse uma passagem e há essa hora já deve ter chegado lá.
- Para São Paulo? O que ele foi fazer lá?
- Ele não disse.
- Sabe quando volta?
- Não. Penso que ele não saiba, porque ficou de ligar assim que tivesse uma posição.
Osmar procurou controlar a contrariedade. Por que seu pai teimava em continuar
dirigindo a empresa? Era hora de ele aposentar-se e deixar tudo em suas mãos.


94
A presença dele estava atrapalhando seus negócios. Quando ele voltasse, trataria de
convencê-lo a afastar-se definitivamente da empresa.
Passava das duas horas da tarde quando ele conseguiu sair e procurar Nelsinho no novo
endereço. Encontrou-o fechando uma mala e perguntou nervoso:
- Aonde você vai?
- Vou me mandar. A qualquer hora eles podem pintar aqui e eu pretendo estar muito
longe.
- De novo? Você está se precipitando. Pode ser que esse crime não tenha nada a ver com
nossos negócios.
- Não quero esperar para descobrir. Minha intuição está me dizendo para sumir.
- Onde você pensa ir? Acha que não irão a seu encontro onde estiver?
- Sei me esconder e não vou ficar esperando eles me encontrarem. Quer saber?
Aconselho você a fazer o mesmo. Com esse povo não dá para brincar. Por muito menos
já vi um deles acabar com o Juvenal. Lembra-se dele?
- Aquele cara que tinha o rosto cheio de marcas?
- Esse mesmo. O apelido dele era Juvenal Bexiguento. Um tiro certeiro na cabeça e ele
já era. Não disse um aí. Eu escapei porque estava escondido, só observando. Ainda quer
esperar?
Osmar passou as mãos nos cabelos e disse aflito:
- O pior é que não temos como nos informar. Eles não me ligaram mais, as ameaças
pararam, cheguei a pensar que tivessem aceitado minha proposta.
- A morte de Otávio é uma boa resposta. Não há o que duvidar. Otávio trabalhava com
eles há algum tempo. Haviam feito vários negócios juntos.
- Essa gente não confia em ninguém. Hoje o estão paparicando porque você está sendo
útil, amanhã o estarão tirando do caminho por achar que você não serve mais.
- Você não deveria ter dado todo aquele dinheiro a eles. Agora ficamos sem recursos
para fugir. Eu tenho algumas economias, mas vou ter de batalhar para conseguir viver.
Talvez você possa me arranjar mais algum.
Osmar meneou a cabeça negativamente.
- Eu dei tudo o que tinha na esperança de que eles aceitassem.
Nelsinho fechou a mala e tornou:
- Vou desaparecer. Você não pode fazer nada, não vou esperar.
Osmar insistiu para que ele não fosse embora, mas foi inútil. Nelsinho estava decidido.
Apanhou a mala, fechou a casa e despediu-se de Osmar.
- Como vou saber de você? Não tenho onde ligar.
- Pode deixar que eu ligo para você. Não sei ainda onde vou ficar.
- Não ligue para a empresa.
- Vou ligar para sua casa, à noite. Adeus.
Ele se foi e Osmar entrou no carro e voltou para a empresa. Por que tudo estava dando
errado para ele?
Aurélia se comprometendo com aquele rapaz, seu pai viajando para São Paulo sem lhe
dizer para quê... Nelsinho o abandonando na hora em que mais precisava de apoio.
Uma onda de angústia o acometeu ao pensar que sua mãe poderia estar morta ou
correndo risco de morte, sem que ele pudesse fazer nada.
Sua cabeça doía e ele tentava acalmar-se em vão. Alguns vultos escuros o envolviam e
Osmar sentia arrepios percorrer-lhe o corpo.
Um deles aproximou-se dizendo em seu ouvido:
- Não tenha medo. Nós o estamos protegendo. Eles não vão lhe fazer mal.
Outro se aproximou e disse:



95
- Enquanto você fizer o que nós queremos, nada de mau vai lhe acontecer. Não se
preocupe, nós tiraremos do seu caminho todos os que desejarem prejudicá-lo.
Osmar não registrou as palavras, mas reagiu pensando:
"Eu sou forte. Ninguém vai me fazer mal. Nunca tive medo de nada. Não sou um
covarde".
Os vultos o abraçaram satisfeitos:
- Isso mesmo. Você é forte e nós estamos juntos.
Aos poucos, Osmar foi se acalmando. Ele estava se fazendo de fraco. Era forte, sempre
havia conseguido tudo o que queria.
Pensou em conversar com Norberto e contratar dois ou três homens que cuidassem de
sua segurança. Afinal, ele tinha como se defender e enfrentar fossem quem fosse.
Não ia se esconder como Nelsinho. Não seria um covarde. Esses pensamentos o
acalmaram e ele voltou à empresa. Finalmente conseguiu trabalhar. No fim da tarde,
porém, recebeu um telefonema de Alberto, contando o que fora fazer em São Paulo e
dando a notícia de que Teresa havia sido assassinada. Ela era a mulher encontrada na
cama, morta ao lado de Otávio. A custo, Osmar conseguiu controlar seu desespero e
fingir que não sabia de nada. Além de ter de ir a São Paulo reconhecer o corpo, ainda
teria de dar a notícia a Vitório. Desligou o telefone e foi para casa.
O que aconteceu depois passou pela sua mente como um filme. Os traficantes não o
procuraram mais, dando-se por satisfeitos com a morte de Otávio e de Teresa.
Norberto investigara a vida do Dr. Augusto Mendonça e o que descobrira deixou Osmar
com mais raiva. O médico era de ótima família, rico e muito estimado por onde passava.
Além de tudo, era um homem simples, alegre e como se isso não bastasse, prestava
serviço como voluntário em um hospital pobre da periferia. Osmar desejava armar uma
cilada para desmoralizá-lo de alguma forma, a fim de que Aurélia o desprezasse e o
abandonasse.
Mas estava difícil. Osmar sabia que precisava programar muito bem o golpe para que
não fracassasse. Teria de ser alguma coisa muito forte, algo que destruísse aquela
auréola de herói que o médico possuía.
Para conseguir o que desejava, contratou Norberto para observá-lo, conhecer seus
hábitos e poder programar como afastá-lo de Aurélia.
Enquanto Osmar mergulhava nas lembranças do passado, naquele momento em São
Paulo, Paulo, em seu escritório esperava a chegada de Wagner, seu auxiliar, a quem
mandara investigar a vida de Osmar.
Na véspera, Wagner tinha lhe telefonado dizendo:
- Estou voltando esta noite. Tenho notícias muito importantes para você.
- Vou esperá-lo amanhã cedo. É melhor conversarmos pessoalmente.
Paulo e Vitório tinham examinado os documentos encontrados na casa de Marília e
chegado à conclusão de que eram reveladores. Por esse motivo, Paulo os entregara ao
delegado, que ficou radiante com a descoberta.
Finalmente uma boa pista. Certamente haveria nomes, ainda que incompletos que
poderiam conduzi-lo ao encontro do assassino.
A opinião dos peritos estava dividida. Havia quem achasse que fora apenas uma pessoa
que cometera o crime, enquanto outros não descartavam a possibilidade de terem sido
duas ou até três.
Para Paulo, o que estava claro pela brutalidade e violência com que fora feito, é que
mesmo que o motivo fosse por questões de dinheiro e poder, uma vez que havia
traficantes de drogas envolvidos, havia muito ódio no assassino. Paulo suspeitava que
fosse um caso de vingança.



96
Ao ouvir algumas batidas na porta, Paulo foi abrir, Wagner entrou e, depois dos
cumprimentos, sentaram-se um diante do outro. Paulo perguntou:
- O que tem para me dizer?
Wagner tirou da pasta alguns papéis e respondeu:
- Aqui estão os relatórios minuciosos dos dias em que o seguimos.
Paulo apanhou os relatórios.
- Vou ler depois. Você disse que tinha notícias importantes. Relate-me o que descobriu.
- No primeiro dia em que o segui, ele foi até o subúrbio conversar com um 'tal' de
Nelsinho. Descobrimos que ele é um traficante conhecido por operar em pequenos
negócios. Mas tem lastro com pessoas importantes desse meio, o que faz crer que nos
últimos tempos ele tenha se relacionado com gente mais importante.
- Continue.
- Nesse dia, os dois saíram juntos e foram até um hospital de doentes mentais. Mandei
Mário entrar e tentar descobrir o que os dois foram fazer lá... Com jeito, ele conseguiu
saber por uma auxiliar de enfermagem que Osmar tem uma paciente internada lá.
- Descobriu quem é?
- Não. O importante é que essa paciente está sob a orientação direta do dono do hospital
e que apenas uma enfermeira pode cuidar dela. Mandei o Mário ver se descobria mais
alguma coisa sobre essa mulher. Você sabe que ele é sempre muito bem-visto pelas
mulheres e tem um jeito especial para lidar com elas. Conseguiu um encontro com a
assistente fora do hospital, mas nem assim pôde saber mais alguma coisa.
- Temos de investigar esse hospital. Tenho a sensação de que é para ir por aí.
- Foi o que pensei. Tanto que deixei o Mário lá para ficar de olho. O nome do hospital,
do médico, ao qual ele pertence consta no relatório.
- Bom, porque vou pedir para o Dr. Monteiro investigar. Qual a sua impressão sobre o
Dr. Osmar?
- Você acertou na mosca quando pensou em investigar a vida dele. É um empresário,
goza de uma boa posição social e financeira, seu pai, o Dr. Alberto, é muito respeitado
no mercado onde atua. Mas Osmar, embora seja um homem de gosto requintado,
freqüente a alta sociedade do Rio de Janeiro, tem um lado marginal, uma vez que é
ligado a pessoas suspeitas.
- Como Nelsinho?
- Sim. Ele foi procurar um detetive particular chamado Norberto e segundo
descobrimos, trata-se de pessoa que aceita negócios duvidosos e não merece confiança.
Isso mostra que Osmar anda metido em assuntos pouco convencionais para sua posição
social.
- Vamos continuar investigando.
Paulo apanhou os relatórios e leu-os, enquanto Wagner esperava calado. Quando
terminou, comentou:
- Bom trabalho.
- Vai precisar de mim por hoje? Tem uma pessoa que eu gostaria de visitar.
Paulo sorriu:
- Não. Descanse hoje. Vou pensar nos próximos passos. Assim que eu tiver decidido
algo, falo com você.
Wagner saiu e Paulo ficou pensativo. Seria melhor não contar nada para Vitório. Ele era
muito sensível e talvez não conseguisse esconder essa história do pai.
Por enquanto, preferia manter sigilo para não atrapalhar as investigações.
O telefone tocou e ele atendeu:
- Paulo, é Monteiro.
- Como vai?


97
- Bem. Estou ligando para dizer que você estava certo em relação àqueles documentos
encontrados na casa de Otávio. Trata-se mesmo de tráfico de drogas. Otávio era mesmo
traficante.
- Havia alguns nomes nesses papéis?
- Sim. Apesar de não mencionarem os sobrenomes, conseguimos identificar alguns.
Finalmente temos o motivo do crime. Desentendimentos e vingança.
- Sim, tudo isso e algo mais.
- Como assim?
- Suspeito que haja também alguma coisa emocional, vingança sim, mas não apenas
pela questão das drogas.
Monteiro ficou calado durante alguns segundos, depois respondeu:
- Em que se baseia para chegar a essa conclusão?
- É apenas uma suspeita. Vou analisar melhor os fatos e quando tiver algo mais sólido
vou trocar idéias com você.
- Estarei esperando. Enquanto isso, meu pessoal está investigando.
Paulo desligou e leu novamente os relatórios que Wagner trouxera. Quanto mais lia,
mais acreditava que Osmar, de alguma forma, estava envolvido naquele crime.
A secretária avisou que Vitório havia chegado e queria falar com ele.
- Mande-o entrar.
Pouco depois, Vitório entrou e, depois dos cumprimentos, disse:
- Marília me telefonou dizendo que recebeu outra carta anônima e está com medo. Pediu
que fôssemos até lá.
- Claro. Vamos.
Meia hora depois, eles chegaram na casa de Marília e a encontraram muito assustada. A
carta havia sido colocada debaixo da porta como a anterior.
Paulo tirou do bolso uma pequena pinça e explicou:
- Não vamos tocar nela. Pode ter impressões digitais.
- Eu a peguei e abri - confessou Marília, preocupada.
- Eu também a segurei - disse Dorita.
- Se acontecer novamente, não toquem em nada e me avisem.
Ainda segurando a carta com a pinça ele leu:
"Você não devia ter entregado aqueles papéis à polícia. Isso vai lhe custar muito caro".
Não estava assinada.
- Eu fiz mal em entregar aquelas caixas. Estou sendo ameaçada por causa disso -
queixou-se Marília.
- Não tenha medo. Nós saberemos defendê-la. Não vai acontecer nada. - Respondeu
Paulo, continuando: - Eu preciso de um saco plástico para colocar o documento.
Dorita correu até a cozinha e voltou trazendo o que ele pediu. Paulo colocou
cuidadosamente a carta dentro dele, fechou e colocou-o no bolso. Depois, aproximou-se
de Marília, que estava pálida, segurou sua mão e disse:
- Você é uma mulher corajosa e vai superar isso.
- É a mesma pessoa que escreveu a outra carta. Tenho certeza. Se soubesse como me
arrependo de ter ido àquela casa... - Fez ligeira pausa e continuou: - Nós somos duas
mulheres e uma criança nesta casa. Não temos como nos defender. Se eu tivesse
dinheiro me mudaria para longe, onde pudéssemos esquecer tudo isso e ninguém
pudessem nos fazer mal.
Olhos marejados, Marília esforçava-se para conter as lágrimas que, teimosas,
despontavam e começavam a descer pelas suas faces.
Paulo abraçou-a delicadamente:



98
- Tenha calma. Nós a protegeremos. Falarei com Monteiro, colocaremos vigilância vinte
e quatro horas.
- Eu não deixei Altair ir à escola. Tive medo. Ele é minha única riqueza. Temo por ele.
Em sua mente a trágica cena do crime que presenciara estava presente, fazendo-a
estremecer.
Altair entrara na sala e Marília esforçou-se para controlar-se.
- Mãe, o que aconteceu? Está chorando por causa daquela carta?
Marília tentou sorrir.
- Não, meu filho. Não há perigo. Estamos protegidos. O Dr. Paulo e o Dr. Monteiro vão
nos proteger. Nada vai nos acontecer.
- Isso mesmo Altair - interveio Paulo, que tirara os braços que colocara em volta de
Marília. - Não tenha medo.
O ambiente estava tenso e Dorita tentou fazer alguma coisa:
- Vamos todos tomar um lanche? Está na hora. Vou fazer um chá e temos um bolo
delicioso que Marília fez hoje. Uma receita nova está maravilhosa.
- Isso mesmo - tornou Marília. - Vamos tomar um chá com bolo, assim vocês me dirão
se ele está bom mesmo.
Eles foram para a copa, Dorita arrumou a mesa e dentro de alguns minutos eles estavam
sentados tomando chá e experimentando o bolo.
Marília esforçava-se para parecer calma, mas Paulo sentia o quanto ela estava
apavorada. Naquele instante sentiu um calor no peito e uma vontade muito forte de
abraçá-la e protegê-la contra todos os perigos.




99
CAPÍTULO 16

Depois que deixaram à casa de Marília, Vitório foi para a casa e Paulo decidiu passar na
delegacia.
Com o delegado, Paulo examinou melhor a carta. Resolveram entregá-la a um
departamento para exame pericial. Sentado diante de Monteiro, Paulo indagou:
- O que você pensa dessa carta?
- Pode ser uma boa pista, acredito que tenha sido escrita pelo assassino. Mas por outro
lado, duvido que ele tenha deixado algum rastro. Deve ter se prevenido.
- É o que penso. Mas, também, sabemos que o mais precavido dos assassinos pode ter
um deslize.
- Contamos com isso - disse Monteiro sorrindo.
Ele estava satisfeito por ter a ajuda de Paulo. Respeitava-o por sua inteligência e pela
folha de serviços prestados à polícia.
Pouco tempo depois, um policial apareceu com a carta dizendo:
- Não encontramos nada.
- Eu temia isso - respondeu Monteiro.
- Marília ficou assustada. Eu prometi que iríamos protegê-la - disse Paulo.
- Você sabe que não temos homens disponíveis. Há muito trabalho e pouca gente. Eu
também estou preocupado com eles. Duas mulheres e uma criança são alvos fáceis para
um bandido como esse. Se você puder nos ajudar, seria muito bom.
- Vou ver o que posso fazer. Se for preciso, eu mesmo ficarei na casa dela de vigia.
- Faça isso. Se notar qualquer sinal suspeito, avise-me que mandarei meu pessoal
verificar.
Paulo deixou a delegacia pensando o que poderia fazer para proteger Marília. Decidiu
passar na casa de Vitório para trocar idéias.
Vendo-o chegar, Vitório admirou-se:
- Você? Aconteceu mais alguma coisa?
- Não. Nós precisamos conversar. Estive com o delegado e ele não dispõe de recursos
para vigiar a casa de Marília vinte e quatro horas como seria necessário. Talvez você
possa nos ajudar.
- Pode contar comigo. Estou sem fazer nada, esperando notícias, sem saber onde está
minha mãe, se está viva, se corre perigo...
- Os dois que trabalham comigo estão ocupados e no momento não posso dispor deles.
Eu pensei em ficar na casa de Marília para protegê-los, mas precisaria de mais alguém
para ajudar-me.
- Eu gostaria de fazer isso.
- Está bem. Já conversei com o Monteiro que aprovou minha idéia, uma vez que não
têm policiais suficientes em seu departamento para fazer isso. Vai ficar à nossa
disposição para o caso de notarmos alguma coisa suspeita.
- Você me diz o que deverei fazer.
- Vou passar em meu escritório, dar algumas instruções a Dóris, passar em casa e ir para
a casa de Marília, onde pretendo ficar por alguns dias.
- Quer que eu vá com você?
- Não é preciso. Amanhã cedo você vai ao meu encontro na casa de Marília. Juntos,
vamos programar os próximos passos. O que não podemos é deixá-los sozinhos.
- Está bem. Amanhã logo cedo estarei lá.



100
Paulo saiu para tomar as providências e Vitório sentou-se na sala pensativo. Sentia-se
triste pensando no pai deprimido e na mãe desaparecida.
Dinda aproximou-se dizendo:
- Tristeza não vai resolver nossos problemas. Seu pai já está doente e eu não quero que
você também fique. Onde está sua fé? Onde está sua confiança na vida?
Vitório olhou-a sério e respondeu:
- Está difícil. Nunca pensei passar por um problema desses.
- Eu também fiquei triste, mas hoje quando acordei, pensei: a tristeza só vai me fazer
mal e não vai solucionar nossos problemas. Lembrei-me de uma frase que li tempos
atrás: na vida o que você planta, colhe. Se eu plantar tristeza, vou colher tristeza. Então,
decidi reagir. Pensar no bem. Acreditar que Teresa está viva e vai voltar. Que esses
momentos difíceis vão passar e tudo voltará ao normal. Pensando assim eu me senti
muito melhor.
Vitório sorriu e respondeu:
- Como sempre você tem razão. Para atrair coisas boas é preciso acreditar que elas
virão. Vou me esforçar para me lembrar de mamãe bem-disposta, alegre. Mandar para
ela energias boas. Essa é a maneira certa de ajudá-la.
- Isso mesmo. É o que estou fazendo. Seria bom que o Dr. Alberto fizesse o mesmo.
Tentei conversar com ele, animá-lo, mas ele não me deu ouvidos.
- Vou vê-lo e ver o que posso fazer.
Vitório foi ver o pai e encontrou-o estirado no sofá, pensativo e triste. Percebeu o
quanto ele estava abatido. Se continuasse assim seu estado poderia agravar-se.
Aproximou-se, sentou-se ao seu lado e perguntou:
- Está melhor, pai?
Alberto abriu os olhos e respondeu:
- Estou na mesma. O tempo não passa e estou cansado de me culpar por haver
concordado que sua mãe viajasse sem mim.
- Você não tem culpa de nada. Nunca poderia imaginar que ela iria desaparecer dessa
forma.
- Às vezes me pergunto se estamos certos. Se aquele corpo não é mesmo o dela.
- Não é, pai. Tenho certeza.
- A dúvida me atormenta.
- Mamãe nunca iria para a cama com aquele homem. Não lhe basta isso para saber que
não é ela?
- Às vezes nem eu mesmo sei se estou raciocinando ou enlouquecendo. Não me
conformo com o que aconteceu.
- Um dia saberemos a verdade. Por enquanto, temos de aguardar. Paulo continua
investigando. Encontramos os documentos na casa de Marília, a polícia está
pesquisando tudo. Hoje Marília recebeu outra carta anônima.
Alberto abriu os olhos, endireitou-se no sofá e pareceu mais desperto:
- Outra carta anônima? Seria da mesma pessoa que lhe mandou a primeira?
- Tudo indica que sim. A carta a estava ameaçando por ter entregado aqueles
documentos à polícia.
- Talvez tivesse sido melhor que ela não o tivesse feito.
- Não diga isso. Qualquer pista é importante para desvendar esse crime e descobrir o
paradeiro de mamãe.
- O que vocês pensam fazer agora?
- Paulo vai proteger Marília e eu vou ajudá-lo.
- É melhor não se envolver, pode ser perigoso.



101
- Já estamos envolvidos, pai. E, quanto antes descobrirmos o assassino, melhor. A vida
de mamãe pode estar dependendo disso.
Alberto meneou a cabeça negativamente.
- Não sei... Eu gostaria de encerrar esse assunto para poder ficar em paz.
- Só conseguiremos ter paz quando tudo estiver esclarecido. Eu preciso que você nos
ajude.
- Eu?! Velho, doente? Minha vida acabou. Não sou mais capaz de fazer nada. Até a
empresa que sempre me impulsionou para frente, agora perdeu a razão de ser. Não sinto
mais vontade de viver.
- Você está enganado. Sua maneira de pensar está agravando nosso problema.
- Como assim?
- Só pensando no mal, no pior, você está atraindo energias negativas em nossa vida e
dificultando os bons resultados.
Alberto abriu a boca, ia dizer alguma coisa, mas mudou de idéia, permanecendo em
silêncio.
Vitório continuou:
- Quando você dá força a pensamentos tristes, pensando no mal, está atraindo mais mal
para sua vida.
- Do jeito que você fala parece que sou culpado pelo que aconteceu.
- Não foi isso que eu disse. Nós estamos atravessando momentos difíceis e se ficarmos
mergulhados no mal estará dificultando ainda mais nossos problemas. Você acredita
que a sua vida acabou que não há mais saída. Esse pensamento o está enfraquecendo,
deixando-o doente e frágil. Nem parece o homem forte, cheio de vigor que construiu
uma empresa sólida, um nome respeitado.
- Depois do que aconteceu nunca mais nosso nome será respeitado. As pessoas são
maldosas e acreditam que Teresa me traiu com aquele homem.
- Você sabe que isso não é verdade. Não era ela quem estava naquela cama. Mamãe
seria incapaz de fazer uma coisa dessas. Dizendo isso você está dando força aos
maledicentes e atirando sobre mamãe uma culpa que ela não tem.
Alberto suspirou, tentou sorrir e respondeu:
- Desculpe. Mesmo sabendo que ela não me amava, sei que Teresa nunca faria isso. Era
uma mulher honesta. Esta situação está me enlouquecendo.
- É por esse motivo que deve reagir, procurar encontrar a paz interior. Só assim
encontrará forças para superar esta situação. Pense você não sabe o que aconteceu. Não
pode sentir culpa por algo que não está claro.
- É difícil. Não sei como reagir.
- Use a imaginação. Pense que ela não morreu que um dia vai voltar e explicar o que
aconteceu. Então, sim, você vai poder formar uma opinião. Enquanto isso procure se
acalmar e pensar no melhor.
- Você fala isso com uma certeza!
- Tudo passa, meu pai. Dias melhores virão. Agora faça um esforço, vamos andar um
pouco. Dinda já fez o jantar e hoje você vai comer na mesa, comigo. Chega de ficar
fechado no quarto. Vamos.
Alberto ia objetar, mas Vitório o segurou pelo braço, obrigando-o a levantar-se. Foram
caminhando devagar até a sala de jantar, onde a mesa estava posta para um. Vendo-os
chegar, Dinda apressou-se a providenciar mais um lugar.
Depois de acomodar o pai, Vitório sentou-se também e logo a Dinda colocou a sopeira
fumegante sobre a mesa.




102
Vitório serviu o pai e começou a conversar sobre vários assuntos com desenvoltura e
Alberto, sentindo o carinho do filho, olhava-o como se o estivesse vendo pela primeira
vez.
Sempre o relegara a segundo plano, julgando-o menos inteligente do que Osmar, mas
agora que ele estava mostrando um pouco mais sua maneira de ser, Alberto percebeu
satisfeito que Vitório era muito melhor do que julgara. Esse pensamento o alegrou,
fazendo-o sentir-se mais animado.
Vitório sentia-se diferente. Mais sereno disposto e com um carinho muito grande pelo
pai, como jamais sentira. Sempre o julgara um mercenário só pensando em dinheiro,
sem tempo para outros assuntos.
Mas naquela noite havia alguma coisa diferente no ar. De repente, Vitório sentiu que as
coisas poderiam mudar para melhor e percebeu o quanto era inútil e pernicioso
alimentar pensamentos negativos.
O que ele não viu era que havia outros espíritos naquela sala. Quando três espíritos
iluminados entraram na sala, lá estavam dois espíritos de péssima aparência que, ao
verem a luz dos recém-chegados, encolheram-se em um canto assustados.
Enquanto o espírito de Analú aproximava-se de Vitório, transmitindo-lhe pensamentos
elevados de confiança e de fé, os dois de luz dirigiram-se aos outros dois espíritos
temerosos:
- Queremos conversar com vocês. Chega de sofrimento. É hora de perdoar e de procurar
viver em paz.
- Não posso perdoar meu assassino. Não adianta vir com essa conversa. O que vocês
querem é defender aquele infeliz. Por que não vai castigá-lo pelo que fez?
- Não estamos aqui para punir ninguém. Isso compete à Justiça divina. Queremos evitar
maiores sofrimentos para vocês.
- Não acredito nisso - respondeu a mulher. - Caí numa armadilha. Não merecia morrer
daquele jeito.
- Meu nome é Cássio. Não se recorda de mim, Otávio?
O espírito de Otávio o fixou e depois gritou nervoso:
- Você deve ter saído dos infernos para me atormentar. Você fala em perdão, mas veio
se vingar de mim.
- Não é verdade. Há muito eu o perdoei. Vim em missão de paz.
- Eu não quero seu perdão.
- Vocês não podem ficar aqui. Devem seguir o novo caminho. Deixar as coisas da Terra.
- Eu não posso - gritou Otávio. - Eles estão devassando todos os meus papéis. Aquela
louca de Marília os entregou à polícia. Ela não podia me trair dessa forma.
- Sua vida na Terra acabou. Não adianta se revoltar. O melhor é seguir adiante.
- Eu não vou. Daqui eu não saio.
- Vocês não podem mais ficar aqui.
- Vou ficar até conseguir o que quero.
- Teresa me enganou - disse a mulher com os olhos brilhantes de ódio. - Ela já começou
a pagar, mas eu quero mais.
Cássio estendeu as mãos em direção a eles e começou a orar. De suas mãos começaram
a sair raios de luz azul-claros brilhante e o casal encolheu-se ainda mais.
- Vão embora, deixem esta família em paz.
Os dois tremiam como que açoitados por um vento forte e Otávio gritou:
- Nós vamos embora, mas voltaremos.
Os dois desapareceram, enquanto os outros dois uniram-se a Analú, transmitindo
energias positivas a Vitório, Alberto e Dinda.
Ficaram assim por alguns instantes, depois Analú beijou a testa de Vitório dizendo:


103
- Reaja. Você pode. Agora temos de ir. Fiquem com Deus.
Foi nesse momento que Vitório viu o espírito de Analú e seus companheiros e entendeu
o que estava acontecendo. Em pensamento agradeceu a eles pela ajuda.
Terminando o jantar, Alberto comentou:
- Estou me sentindo melhor. Foi bom eu ter me levantado.
Vitório sorriu e respondeu:
- Isso mesmo, pai. De hoje em diante prometa que você vai reagir e se esforçar para
manter o otimismo.
- Não sei se vou conseguir.
- Pelo menos não alimente o pessimismo. Já será o bastante.
Um pouco distante dali, os espíritos de Otávio e de sua companheira esperavam. Eles
pretendiam voltar à casa de Vitório assim que os espíritos que os expulsaram fossem
embora.
- Por que não voltamos à casa de Marília? - indagou a mulher. - Seria menos perigoso.
Aqueles homens são perigosos. Você sabia que eles podem nos prender e nos obrigar a
segui-los?
- Bobagem. Eles não têm tanto poder assim.
- Pois eu acho que têm. Na casa de Marília estaremos seguros. Ninguém vai nos
atrapalhar.
- Não gosto de ficar lá. Faz-me lembrar o que perdi.
- O que você espera ficando na casa de Vitório?
- Meu primeiro ajuste de contas será com Osmar. Aquele safado vai me pagar. Por
causa dele acabamos daquele jeito.
- Mas o assassino não foi ele.
- Eu sei. Mas ele deu chance a que o Gil Duarte nos descobrisse e fizesse o que fez.
- Eu nunca deveria ter ido no lugar de Teresa.
- Ela lhe pagou muito bem.
- De que adiantou? Não vou poder colocar a mão no dinheiro.
- Veja, Renata, eles já foram embora. Vamos voltar.
Os dois aproximaram-se do apartamento de Alberto e tentaram entrar, mas não
conseguiram. Havia algo como uma barreira. Eles tentaram, mas não puderam passar.
- E agora? - indagou Renata.
- Vamos até a minha casa.
- Você não tem mais casa.
- A casa de Marília, você entendeu.
Quando os dois entraram e se aproximaram, Marília e Dorita estavam na cozinha
trabalhando.
Dorita comentou:
- De repente me bateu um cansaço... Estou sentindo um peso...
- O que é isso, Dorita? Ontem trabalhamos muito mais e você não se queixou.
- É mesmo. Mas agora comecei a sentir dores no corpo e uma pressão na cabeça.
- Vou fazer um chá de cidreira. Vai se sentir melhor.
A campainha tocou, Marília foi abrir e perguntou:
- Quem é?
- Pode abrir. Sou eu, Paulo.
Ela abriu imediatamente.
- Paulo! Você voltou, tem alguma novidade?
- Sim. Estive conversando com o Dr. Monteiro e decidimos que eu vou ficar alguns dias
aqui com vocês para protegê-los.
- Ficar aqui?


104
- Sim. Não se preocupe. Eu fico em qualquer lugar.
- Você ficar aqui é uma boa notícia. Nós estávamos com muito medo. Ainda agora tive
receio de abrir a porta.
- Fez bem. Precisamos ter cuidado. Mais tarde vou dar-lhes algumas informações sobre
os cuidados que deveremos tomar.
Paulo entrou, Altair correu para abraçá-lo.
- Você vai ficar aqui? Que bom. Pode ficar no meu quarto.
Paulo sorriu e respondeu:
- Eu vim para vigiar enquanto vocês dormem. Não posso ficar no quarto.
- Mas você não pode ficar sem dormir - tornou Marília.
- Vitório virá amanhã cedo. Ele ficará durante o dia e eu à noite. Resolvi ficar o tempo
todo aqui porque não quero deixar Vitório sozinho. Ele não tem experiência para tomar
providências se notar algo suspeito. Durante o dia se precisar de alguma coisa ele me
chamará e farei o que for preciso.
- Que bom - comentou Dorita que se aproximara.
- Você já jantou? - indagou Marília.
- Não quero dar trabalho. Tomei um lanche reforçado antes de vir.
- Não vai fazer cerimônia, não é? - brincou Dorita.
- Claro que não - respondeu ele.
- Nós ainda não saímos da cozinha e comemos muito bem. Colocar mais um prato ou
dois na mesa não vai fazer diferença - explicou Dorita.
- Isso mesmo. Assim nossa cozinha vai ficar mais animada - disse Marília.
Depois, Marília fez um chá de erva-cidreira e levou uma xícara para Paulo, dizendo:
- Obrigada pelo que está fazendo por nós.
- É minha obrigação.
Marília fixou-se nos olhos de Paulo e respondeu com carinho:
- É muito mais do que obrigação. É uma prova de amizade que eu nunca esquecerei.
Você não sabe o bem que está nos fazendo.
Os olhos dela brilhavam úmidos e Paulo sentiu-se comovido.
- Vocês podem contar comigo sempre. Se continuarem me tratando assim, não vou
querer ir mais embora - brincou, tentando disfarçar a emoção.
O espírito de Otávio, que observava, disse irritado:
- Este infeliz não tinha nada que invadir minha casa e ainda cantar minha mulher.
Renata riu e comentou:
- O que você esperava? Que ela ia lhe ser fiel? Não vê como os olhos dela brilham?
- Cale a boca. Em mulher minha ninguém põe a mão.
- Agora você está morto e morto não pode fazer nada para impedir.
- Se ele continuar assim você vai ver se eu posso ou não.
De repente, Paulo sentiu uma onda desagradável e pensou:
"Tem espírito perturbado por perto. Logo mais vou me ligar com meus amigos
espirituais".
- Cuidado que ele sentiu nossa presença - comentou Renata.
- Eu não tenho medo de nada. Você tem andado muito fraca para o meu gosto.
Renata deu de ombros e foi ficar em um canto pensativa. Já tinha problemas demais
para envolver-se nos de Otávio.
Paulo tomou o chá, depois se sentou na sala e ligou-se aos espíritos amigos que o
acompanhavam. Logo sentiu uma energia suave e agradável no ambiente. Ficou
concentrado durante mais alguns minutos, agradecendo a ajuda dos amigos. Enquanto
isso, Otávio e Renata olhavam admirados para a barreira que se formara entre Paulo e
eles, tornando-o imune às suas energias negativas.


105
CAPÍTULO 17


Teresa acordou um pouco assustada e olhou em volta, querendo se recordar por que não
estava dormindo em sua cama como de costume. Em seguida, lembrou-se e passou as
mãos nos cabelos, angustiada. O que estaria acontecendo com os seus? Como estariam
enfrentando os acontecimentos? Do jeito que as coisas estavam, ela não tinha como
entrar em contato com eles e esclarecer tudo. Se fizesse isso, logo seria descoberta e sua
vida não valeria nada. Bem que Vitório lhe pedira para não viajar. Mas na ocasião ela
não teve como evitar aquela viagem. Coagida como estava, não lhe restava outro
recurso senão enfrentar e tentar resolver. Nunca imaginara que a paixão tivera cinco
anos depois do casamento pudesse transformar sua vida, tantos anos depois de haver
renunciado a ela, em um inferno. Casara-se com Alberto satisfazendo a vontade de sua
mãe que ficara viúva e sem recursos. Seu pai tivera insucesso nos negócios e lhes
deixara dividas que, depois de pagas, consumiram todo o patrimônio delas.
Alberto era jovem, elegante, boa aparência, embora.
Não fosse o tipo de homem que Teresa apreciava, mas apaixonara-se por ela e fizera
todos os esforços para conquistá-la.
Aos poucos , Teresa fora sentindo envaidecida, amada e protegida por um homem rico,
que a colocava acima de tudo e todos, assim acabou concordando com o casamento.
Até então, ele tivera alguns namorados, uma paixão na juventude que a desiludira,
fazendo-a reconhecer em Alberto as qualidades essenciais para uma vida calma e feliz.
Nunca sentira amor por ninguém. Casou-se com Alberto, imaginando que amor fosse à
amizade e o respeito que ele parecia ter por ela. Sua mãe sempre dizia que o verdadeiro
amor não existia, era apenas uma fantasia da adolescência. Que o mais importante era
um bom partido para lhe proporcionar uma vida tranqüila e respeitável.
Depois do casamento, Teresa deu-se conta dos ciúmes de Alberto sentia e antes não
deixava transparecer, mas que se revelou quando ela, bonita e já mais mulher,
despertava admiração nos homens por onde passava.
Teresa nunca lhe dera motivo para ter ciúmes, mas ela não tolerava perceber os olhares
de admiração que ela despertava. Por esse motivo, os desentendimentos com ele
começaram.
Foi em uma festa em casa de amigos que ela conheceu Antero, trinta e dois anos, alto,
elegante, moreno, olhos verdes e penetrantes que fizeram bater seu coração desde que
eles encontraram os seus.
Uma atração irresistível brotou entre os dois. A principio, Teresa tentou resistir, mas,
assediada por ele de forma insistente, acabou sucumbindo. Inteligente e apaixonada,
Teresa usou de vários subterfúgios para encontra-se com Antero sem que ninguém
percebesse. Ela imaginou que com o tempo essa paixão, Como a anterior, iria embora
sem comprometer sua relação familiar.
Disposta a usufruir enquanto durasse, não se sentia culpada por trair o marido. No seu
entender, ela nunca o amara, deixara-se amar por ele sem nunca se entregar de coração.
Por esse motivo, não o estava traindo.
Por mais de três anos relacionou-se com Antero de forma vibrante e apaixonada. Quanto
mais estavam juntos mais desejavam ficar. Ele, solteiro, insistia para que Teresa
deixasse o marido para ficarem juntos, porém ela se recusava a abandonar os filhos,
porque sabia que, vingativo e ciumento, Alberti jamais os deixaria ficar com ela ao lado
de outro homem.



106
Depois, havia a sociedade, o falatório, os nomes de família, e Teresa temia enfrentar as
conseqüências.
Até o dia em que Antero lhe disse que não desejava mas viver assim. Para ele era difícil
despedir-se e pensar que ela iria para os braços do marido a quem pertencia por direito.
As brigas entre os amantes começaram a tumultuar o relacionamento. Antero começou a
afastar-se, até que certo dia contou-lhe que seus pais insistiam para que ele se casasse
com a filha de um amigo da família.
Teresa sabia que Eunice, há muito tempo, era apaixonada por Antero. Estava sempre
nos mesmos lugares que ele e não raro era com ela com que ele dançava ou conversava.
Ele dizia para Teresa que fazia isso a fim de despistar, porquanto seus pais estranhavam
que ele não saísse com nenhuma mulher e ficavam perguntando o porquê.
Num encontro ele comunicou que iria ficar noivo de Eunice e não voltaria mais vê-la.
Eunice era uma boa moça, amava-o e ele estava cansado de viver escondendo seus
sentimentos. Depois, pensava em construir uma família, desejava filhos e não queria
começar a vida conjugal tendo outra.
Foi difícil para Teresa se afastar de Antero, principalmente por que as famílias
freqüentavam os mesmos lugares e a presença dele com Eunice e fazia sofrer muito.
O casamento foi anunciado e Teresa sofreu ainda mais. Quando faltavam três dias para
a data do casamento, Antero comunicou-se com ela pedindo para ir ao seu encontro.
Vendo-se, atiraram-se um nos braços do outro, beijando-se com desespero.
- Não quero que você se case com outra- Reclamou Teresa
- Antes de fazer isso, vim fazer a última tentativa. Eu sinto muito sua falta. Se você
quiser, podemos ir embora juntos, deixar tudo e todos e viver em outro lugar. Podemos
ir para o exterior, deixamos uma carta explicando nossos motivos. Esperamos o tempo
passar e quando a poeira assentar voltamos.
Teresa olhou-o com amor. Ir embora com ele era o que ela mais desejava na vida. Mas
pensou nos meninos quem amava muito, no que eles pensariam dela por tê-los
abandonado e fugido com outro e tremeu angustiada.
Ela sentou que não poderia fazer isso. Foi com tristes que se recusou a fugir com
Antero. Esse foi o último encontro dos dois.
A partir desse dia não se falaram mais. Ele casou-se com Eunice, teve uma filha,
Aurélia, que cresceu e tornou-se uma linda mulher, muito requisitada na sociedade.
Teresa continuou ao lado do marido e cada dia mais se afastava dele. Nos últimos anos
Alberto também foi se afastando dela, que se sentiu aliviada. Sabia que ele saía com
outras mulheres, mas não se importava. Apesar disso, ele continuava ciumento e eles se
desentendiam.
Certo dia recebeu um telefonema de um desconhecimento dizendo que precisava marcar
um encontro para falar de um assunto que era do seu interesse.
Teresa se recusou:
- Não marco encontros com estranhos- respondeu.
- Trata-se de um assunto muito importante. É melhor me atender.
- Fale com meu marido.
- Quando souber do que se trata, certamente não vai querer que eu fale com ele.
- Como assim?
- Quero falar com a senhora sobre Antero.
Teresa estremeceu assustada, tentou dissimular:
- Que Antero? Não sei de ninguém com esse nome.
- Sabe sim. Eu tenho o endereço de um apartamento em Copacabana onde vocês
costumavam se encontrar.
Teresa não consegui responder de pronto. O homem continuou:


107
- Eu tenho alguns bilhetes trocados entre a senhora e ele, bem como algumas fotos
comprometedoras. Ainda quer que eu ligue para seu marido?
- Não... Não. Como é que você tem tudo isso?
- Isso não lhe interessa agora. Eu tenho e estou disposto a lhe entregar, é claro, com uma
recompensa.
- Não acredito que você tem tudo o que diz.
- Vamos marcar o encontro e eu lhe mostrarei.
Teresa hesitou um pouco, depois disse:
- Está bem. Quando?
- Eu moro no Rio. Estou de passagem. Terá de ser hoje ou amanhã.
- Quando você quer para me entregar tudo isso?
- Duzentos mil reais
- É muito dinheiro.
- A mercadoria vale. A senhora traz o dinheiro e eu lhe entregarei tudo.
- Antes quero ver o que você tem.
- Eu não posso esperar. Preciso ir embora logo.
- Vamos marcar hoje à tarde e se o que diz for verdade, vou lhe entregar o dinheiro
amanhã.
Combinaram o local do encontro e a hora. Ele não quis dar o nome nem descrever sua
aparência, afirmando que saberia encontrá-la.
Teresa desligou o telefone muito nervosa. Nunca imaginou que depois de tanto tempo
aquela história pudesse trazer-lhe problemas. Os bilhetes cheios de amor que havia
trocado com Antero, as fotos que ele tirara dos dois que ela vira, mas nunca levara
nenhuma para casa com medo de ser descoberta, eram um material que destruía sua vida
familiar que tanto se sacrificara para manter.
Seus filhos nunca poderiam saber o que ela fizera no passado. Sempre passara para eles
a figura da mulher séria, dedicada ao lar, austera até. O que pensariam quando
soubessem a verdade?
Isso não poderia acontecer. Mas o preço era elevado. Como arranjar tanto dinheiro sem
recorrer a Alberto?
Pensou eu suas jóias.
Durante tantos anos de casamento possuía. Alberto costumava presenteá-la sempre com
lindas jóias. Poderiam vender algumas sem que ele desse falta.
Na mesma tarde, Teresa foi ao encontro marcado, em uma confeitaria. Sentada em uma
mesa, conforme o combinado, ela esperou.
Pouco depois, um homem alto, forte, moreno, boa aparência, aproximou-se e, depois de
cumprimentá-la, sentou-se a seu lado.
Sem dizer uma palavra, ele tirou do bolso uma foto e mostrou-se. Teresa estremeceu.
Ela e Antero, juntos na intimidade. Lembrava-se perfeitamente quando e onde ela fora
tirada. Depois, juntou um dos bilhetes amorosos que ela escrevera. Não havia como
duvidar.
- Está certo. Vou pagar o que me pede. Só preciso de um pouco de tempo.
- Não posso esperar. Preciso ir embora.
- Deve compreender que não tenho como arranjar todo esse dinheiro de um dia para o
outro. Não posso pedir a meu marido. Pretendo vender algumas jóias, mas não sei se
consigo tão depressa.
- Nesse caso, terei de oferecer a seu marido. Estou certo de que ele pagaria tão depressa.
- Talvez. Mas peço-lhe que me de alguns dias. Irei levar o dinheiro onde você quiser.
- Preciso ir embora. Tenho negócios em São Paulo e de lá irei para outro lugar.
- Dê-me uma semana e eu levarei o dinheiro a São Paulo, no endereço que você quiser.


108
Ele pensou um pouco e depois disse:
- Se a senhora pensar em ir a polícia, vai se arrepender. Tenho amigos que estarão alerta
e qualquer passo eu saberei.
Ele passou um numero de telefone para onde ela deveria ligar, marcou o dia e a hora e
depois de tudo combinado, despediu-se.
Naquela noite Teresa não conseguiu conciliar o sono. Sua cabeça atormentada não a
deixava em paz. Ora recordava-se de Antero, dos momentos de amor que ainda fazia
vibrar seu coração, ora temia pelo destino que aquelas fotos e cartas poderiam ter se não
conseguisse pagar o preço.
Se ela não arrumasse o dinheiro, o chantagista certamente procuraria Alberto e ele, com
certeza, não se negaria a pagar o que ele pedisse para ter acesso aquele material.
No dia seguinte acordou cedo e pensou como encontrar um comprador para as jóias.
Não conhecia nenhum agiota e sequer sabia quanto elas poderiam valer.
As horas foram passando e Teresa não sabia o que fazer.
Procurou anúncios nos jornais, na lista telefônica, mas não encontrou nada.
À tarde teve idéia de ir a uma joalheria para fazer uma avaliação e, quem sabe, descobrir
onde poderia vendê-las.
Carregando uma bolsa com as jóias, que imaginava render a quantia desejada, foi a uma
lojas de jóias e descobriu que elas cobriam o montante que ela precisava e, ainda,
sobraria algum dinheiro. Conseguiu o endereço de um lugar que negociava jóias usadas.
Satisfeita, Teresa procurou o endereço . Não era uma loja aberta e ela tocou a
campainha. Uma moça veio abrir e Teresa achou o rosto familiar.
- Entre Senhora. Sente-se. O Sr. Jonathan saiu, mas deve voltar logo. Desejava uma
água ou café?
- Não, obrigada. Eu preciso vender algumas jóias e na joalheria onde fui avaliá-las me
deram este endereço.
- Veio ao lugar certo. Mas quem faz o negócio é meu patrão. Ele não deve demorar.
Desculpe, não quero ser indiscreta, mas por acaso seu nome é Teresa?
-Sim.
A moça sorriu satisfeita e continuou:
- Não se recorda de mim?
- Seu rosto é muito familiar, mas não sei onde.
- Sou Elvira. Nós fomos colegas de faculdade.
Teresa levantou-se , fixando-a bem:
- Elvira! É você mesma! Como não me lembrei?
- Já se passaram mais de trinta anos e eu mudei muito. Já você continua linda como
sempre. Parece que o tempo não passou.
- Mas passou sim. Por onde tem andado que nunca mais nos vimos? Você morava em
São Paulo e veio ao Rio apenas para cursar a faculdade...
- De fato, naquele tempo eu morava em São Paulo, mas depois que me casei fui morar
em Campinas.
- Como vai sua mãe?
- Infelizmente, ela morreu. Meu marido também faleceu em um acidente de carro e eu
fiquei só. Não tive filhos. Voltei para São Paulo, passei um tempo difícil, até que tive a
oportunidade de trabalhar para o Sr. Jonathan. Ele tem outra loja em São Paulo e
quando abriu esta aqui, no Rio, convidou-me para trabalhar para ele. Como não tenho
família, aceitei.
Elas continuaram conversando, recordando os tempos de faculdade até a chegada do Sr.
Jonathan. As jóias de Teresa eram de primeiríssima qualidade e depois de examiná-las
cuidadosamente, ele fez o preço.


109
Como ele desejava receber em dinheiro, ele pediu-lhe que voltasse na tarde no dia
seguinte para buscá-lo.
Na tarde seguinte, quando Teresa chegou para buscar o dinheiro, já era fim de
expediente e Elvira se preparava para sair.
Teresa ofereceu-se para levá-la em casa, o que ela aceitou de bom grado. No trajeto,
convidou-a para tomar um lanche em uma confeitaria. Queria conversar sobre um
assunto muito importante. Elvira aceitou.
É que depois de Tê-la encontrado na tarde anterior, Teresa pensou em recorrer a ela para
traçar seu plano. Elas haviam sido inseparáveis nos tempos de estudante davam-se
muito bem. Teresa sabia que ela era confiável.
Assim que se sentaram na confeitaria, Teresa contou-lhe seu problema e por que estava
vendendo as jóias. Depois, expôs seu plano.
Teresa queria que Elvira fosse trabalhar com ela como dama de companhia. Diria para a
família que estava estressada e tiraria férias. Iriam a Europa.
Mas, em vez disso, viajaram a São Paulo primeiro, entregariam o dinheiro, ela
queimaria as provas do seu deslize e depois as duas iriam para a Itália, tranqüilas,
usufruir uma viagem maravilhosa.
Elvira aceitou,encantada. Ela não conhecia a Europa.
Rapidamente eles as levaram ao estacionamento e as obrigaram a entrar em um carro,
onde já havia outro homem na direção.
- Vamos embora, rápido - ordenou um deles.
O carro saiu e as duas, muito assustadas, nem pensaram em reagir. Os quatro foram
sentados no banco detrás. Os bandidos vendaram os olhos delas e um deles disse
ameaçadoramente:
- Se tentarem alguma coisa, eu atiro. Não quero nem um pio.
Quanto tempo durou aquela viagem elas não conseguiram avaliar. Parecia que não
terminava nunca e, ao mesmo tempo, elas não queriam chegar a lugar nenhum, com
medo de que eles as matassem.
Finalmente o carro parou e elas foram obrigadas a descer. Ainda de olhos vendados,
foram levadas a uma casa em que havia mais pessoas, mas elas não conseguiram saber
quantas.
Depois de subirem alguns lances de escada e andarem um pouco, eles tiraram suas
vendas, fizeram-nas entrar em uma sala e saíram, fechando a porta por fora.
As duas entreolharam-se nervosas. Teresa foi a primeira a falar:
- São bandidos. Fomos assaltadas. Estou com a bolsa, mas o dinheiro todo está em uma
das malas. Estou perdida. Não vou poder pagar e Alberto descobrirá tudo.
- Calma. Pode ser que não encontrem o dinheiro. Você colocou-o naquele fundo falso.
Algum tempo depois, elas ouviram passos, a porta se abriu e os dois homens entraram,
carregando as bagagens e deixando tudo em um canto. Em seguida, saíram, fechando
novamente a porta pelo lado de fora.
As duas correram ansiosas para verificar se as malas haviam sido arrombadas, mas as
fechaduras intactas mostravam que eles não haviam tocado em nada.
As duas entreolharam-se intrigadas. Por que eles as haviam raptado se não era para
roubar?
O tempo começou a passar e elas continuavam presas naquele quarto sem que ninguém
aparecesse. Já era noite quando finalmente dois homens apareceram, e elas viram que
não eram os mesmos que as haviam seqüestrado.
Um deles, homem muito bem vestido, de meia-idade, dirigiu-se a elas, com meio
sorriso, dizendo:



110
- Desculpe a forma de trazê-las até aqui. Sou pessoa educada e jamais maltratarei uma
mulher. Se fizerem tudo o que desejo, nada vai lhes acontecer. Ficarão aqui durante
alguns dias e depois vamos devolvê-las sãs e salvas, se tudo sair como esperamos.
Teresa animou-se a perguntar:
- Quem é o senhor? Por que nos trouxe aqui?
- Você não me conhece. O motivo de trazê-las aqui, saberá no devido tempo. Obedeçam
as ordens e tudo acabará bem. Esse é o meu desejo, no entanto, tudo vai depender de
como se comportarem.
A um gesto dele, o seu companheiro colocou sobre a mesa alguns pacotes e garrafas de
água. Depois saíram fechando novamente a porta por fora.
- Isto é muito estranho - disse Elvira. - Eles não estão interessados em nossos pertences.
O que mais pode ser?
- Não tenho a menor idéia. Isto não faz sentido. O que será que eles querem de nós?
Elas foram abrir os pacotes. Havia pão, frios, frutas e biscoitos. Elas estavam sem fome.
Sentaram-se na beira de uma das camas, tentando encontrar uma explicação.
Mas naquela noite, depois de se alimentarem, Teresa, deitada, lembrou-se das palavras
de Vitório:
"Mãe, eu preferia que não fizesse essa viagem. Estou com mau pressentimento. Algo
me diz que você não deve viajar agora".
Antes tivesse atendido seu pedido.




111
CAPÍTULO 18

O dia ainda não tinha amanhecido totalmente quando Teresa levantou-se, aproximou-se
de Elvira, que estava estendida na outra cama, e disse: - Não consigo dormir. Temos de
fugir daqui.
- Se tentarmos isso, eles vão nos matar.
- Não podemos ficar de braços cruzados. Precisamos tentar descobrir onde estamos e
saber se eles vão ficar na casa o tempo todo.
Ela caminhou até a porta e girou a maçaneta. Na mesma hora ouviu um ruído e uma voz
gritou:
- Não adianta. A porta não vai abrir.
- Preciso de ajuda. Estou com uma dor de cabeça horrível e não consigo dormir. Você
poderia arranjar-me um comprimido? Eu pago o que quiser.
Depois de alguns minutos de silêncio, a chave girou e a porta abriu. Um homem que
elas ainda não tinham visto, apareceu, e Teresa colocou a mão na testa, fingindo estar
muito mal.
- É meu turno de vigia. Não posso sair daqui.
- Mas está doendo muito. Eu sofro de enxaqueca e quando fico nervosa ela ataca. Desta
vez parece que vou ficar louca. Por favor, arranje-me um remédio.
Ele olhou-a hesitante, depois disse:
- Não posso sair daqui, mas vou ver se mando alguém arrumar isso.
- Obrigada. Você não se arrependerá.
Meia hora depois ele abriu a porta novamente, entrou e disse:
- Aqui está o que eu consegui arranjar. Espero que a ajude.
Teresa, fingindo mal-estar, apanhou o envelope de comprimidos e disse:
- Espere um pouco.
Apanhou a bolsa, tirou uma nota da carteira e deu-a a ele, que segurou o dinheiro e
respondeu:
- Não precisava.
- Faço questão. Você foi muito bom para mim. Eu nunca esqueço de retribuir as pessoas
que me ajudam.
Ele fechou a porta de novo e Elvira perguntou:
- O que você pensa em conseguir com isso?
- Ganhar a confiança dele e descobrir o que desejamos saber.
Ao meio-dia, um outro homem trouxe uma bandeja com o almoço. Pela embalagem em
papel alumínio elas perceberam que a comida havia sido comprada, mas não havia nada
escrito.
Teresa abriu e convidou:
- Vamos comer, Elvira. Precisamos nos manter fortes. Tenho esperança de podermos
escapar daqui.
Depois que elas almoçaram, o homem que parecia comandar o grupo reapareceu,
segurando uma pasta de couro.
Perguntou se haviam almoçado bem, se a comida estava ao gosto delas e depois sentou,
pedindo que elas também se sentassem em volta da mesa.
Elas sentaram-se e esperaram. Ele começou, dirigindo-se a Teresa:
- Você vai escrever uma carta que eu vou lhe ditar.
- Para quem e para quê? - indagou Teresa.
- Para seu filho Osmar.


112
Teresa sobressaltou-se:
- Por isso você nos seqüestrou? Para pedir dinheiro a meu filho?
Os olhos dele brilharam rancorosos quando respondeu:
- Eu não sou um chantagista. Sou um homem de negócios que seu filho passou para
trás. Ele me deve muito dinheiro e precisa pagar.
Teresa abriu a boca e fechou-a, sem encontrar palavras para responder. Ela tinha o filho
em conta de uma pessoa equilibrada, bem-comportada, sem grandes arroubos. Como ele
poderia dever muito dinheiro a alguém?
Quando se recuperou um pouco do susto ela tornou:
- Se meu filho está lhe devendo, por que não nos procurou de maneira civilizada? Meu
marido é um homem de bem, tenho certeza de que ele não sabe dessa dívida porque se
soubesse não deixaria Osmar passar por uma coisa dessas.
- Há muitas coisas que tanto a senhora como seu marido ignoram sobre seu filho. Os
negócios que nós temos não podem ser declarados oficialmente. São feitos sob palavra.
Nós somos homens de palavra. Quando um não cumpre, temos nossos próprios modos
de fazer a cobrança.
Teresa empalideceu. A descoberta de que Osmar se dedicava a negócios ilícitos feriu
fundo seus princípios de honestidade e de bom comportamento.
De pronto ela não encontrou nada para responder. O homem entregou-lhe uma caneta,
um bloco e disse:
- Escreva o que vou lhe ditar.
Com a mão trêmula, ela segurou a caneta e percebeu que não lhe restava alternativa,
senão obedecer.
- Escreva:
"Osmar,
Fui seqüestrada. Se você não mandar o dinheiro que deve, eles vão me matar com
Elvira. Estou com muito medo.

Teresa".
Ela escreveu, ele apanhou o bilhete e Teresa objetou:
- Ele não vai acreditar. Pensa que eu estou na Europa.
O homem pensou um pouco, depois colocou a carta dentro de um envelope e respondeu:
- É. Pode ser que ele não acredite. Você, Elvira, vai levar o bilhete.
- Eu?!
- Sim. Vou combinar um encontro com ele e um dos meus homens a levará até ele.
Você entregará a carta pessoalmente. Assim, ele vai acreditar.
E, voltando-se para Teresa, continuou:
- Eu quero seus documentos. Assim ele não duvidará.
Teresa entregou sua identidade. Ele saiu e após alguns minutos voltou levando Elvira
pelo braço. Teresa, embora muito assustada, sentou certo alívio em saber que Elvira
falaria com Osmar que, certamente, arranjaria o dinheiro e tudo estaria resolvido.
Mas por outro lado, Teresa não podia esperar muito. Ela havia prometido entregar o
dinheiro para reaver o material que a preocupava e se não o fizesse dentro do prazo
estipulado, certamente o chantagista procuraria Alberto para tentar negociar. Isso não
poderia acontecer de forma alguma. Seria o fim de seu casamento, do respeito dos
filhos, de tudo.
O tempo foi passando e Teresa, inquieta, andava de um lado para o outro. Ela precisava
encontrar uma forma de sair dali, não só porque seu prazo para entregar o dinheiro
estava acabando como também pelo receio de que Osmar não conseguisse arranjar o
dinheiro.


113
Ele não teria coragem de pedir ao pai porque para isso teria de explicar muito bem o que
andara fazendo. Ela não sabia o montante da dívida, mas presumia que devia ser uma
grande quantia. Se ele não conseguisse esse dinheiro, sua vida estaria correndo riscos.
Depois, aquele homem se apresentara a ela sem disfarce e isso poderia fazer com que
apesar de tudo ele a matasse para impedir que ela o reconhecesse na polícia.
Aos poucos foi elaborando um plano para fugir. Ela apanhou os comprimidos para dor
de cabeça e com o cabo da faca os amassou, colocando-os no copo. O que ela precisava
agora era conseguir alguma bebida forte.
Na hora em que o rapaz entrou trazendo o jantar, ela procurou conversar.
- Aqueles comprimidos que você me trouxe ajudaram, mas ainda não passou
completamente. Estou muito nervosa. Você não teria alguma coisa mais forte do que
esse refrigerante? Tenho certeza de que se passar meu nervosismo, a dor vai ceder.
- A comida está aí. É só o que eu posso fazer.
Teresa colocou a mão sobre o braço dele dizendo:
- Tenha piedade de mim. Eu poderia ser sua mãe! Ajude-me a agüentar esses momentos
tão difíceis.
Ele hesitou e ela continuou:
- Você me parece um rapaz de bom coração. Ela tirou um anel de brilhantes do dedo e
estendeu-o a ele dizendo:
- Se me trouxer uma bebida, eu lhe darei de presente este anel de brilhantes.
Os olhos dele brilharam, mas ele respondeu:
- Nós não podemos aceitar presentes de ninguém.
- Ninguém precisa saber. Vamos, pegue.
Ele hesitou, depois pegou o anel, olhando-o com olhos brilhantes de cobiça.
- Vá, fique com ele e me traga alguma bebida. Eu sei que você deve ter em algum lugar.
Ele guardou o anel no bolso, saiu e alguns minutos depois voltou com uma garrafa de
uísque.
- Não posso deixar a garrafa toda.
Teresa apanhou a garrafa e colocou a bebida em uma caneca, tomou alguns goles,
simulando estar saboreando com prazer, depois segurou a garrafa dizendo:
- Eu não gosto de beber sozinha. Você vai beber uma dose comigo.
Ele, que estava com a boca seca, concordou:
- Está bem. Só uma dose.
Ela colocou a bebida no copo onde estavam os comprimidos e notou que se dissolveram
rapidamente. A obscuridade da sala não deixou o rapaz notar nada.
Teresa fez um brinde:
- Meu filho vai mandar o dinheiro e tudo vai se resolver da melhor maneira. Assim,
depois que eu for embora daqui, não esquecerei a sua boa vontade. Como eu disse,
nunca esqueço quem me presta um favor.
Ela alçou a caneca, tocou o copo dele e ambos tomaram. Depois, ele segurou a garrafa
dizendo:
- Não conte a ninguém que eu lhe trouxe bebida.
- Os outros não viram você pegar a garrafa?
- Não. Eu estou sozinho na casa.
Teresa baixou o olhar para que ele não visse sua satisfação. Depois que ele saiu, ela
abriu os pacotes e tratou de se alimentar. Queria estar bem-disposta para fugir.
Uma hora depois, ela decidiu que estava na hora da segunda etapa do seu plano. Foi até
a porta girou a maçaneta, mas o rapaz não disse nada.
"Está na hora!", pensou ela.



114
Apanhou sua frasqueira, tirou tudo de dentro, colocou o pacote de dinheiro, segurou a
bolsa e colocou tudo perto da porta. Depois começou a forçar a fechadura.
Estava difícil. Pegou um grampo de cabelo e com ele tentou abrir a porta. Afinal,
conseguiu. Entreabriu a porta lentamente e logo deparou com o rapaz dormindo na
cadeira, cabeça apoiada na parede, pernas estendidas.
Apanhou suas coisas e saiu lentamente. Ele dissera a verdade, a casa estava vazia. Em
pouco tempo, ganhou a rua. Olhou em volta, não sabia onde estava à única certeza que
tinha era de que precisava fugir dali o mais rápido possível.
Caminhou quase correndo e, ouvindo barulho de carro, procurou encontrar lugar mais
movimentado. Viu um ônibus escrito Praça João Mendes, fez sinal e subiu.
Passou os olhos sobre os passageiros e sentou-se perto da janela. Precisava respirar.
Abriu o vidro, aspirando o ar com alívio.
Tinha vontade de perguntar ao cobrador onde estava , mas teve medo. Não queria
chamar atenção. Ela conhecia um pouco de São Paulo. Sabia que essa praça ficava no
centro da cidade e resolveu ir até lá.
Durante o trajeto pensava no que fazer. Não podia ligar para o marido, ele imaginava
que ela estivesse fora do país. Pensou em falar com Osmar, mas desistiu. Se ele
continuasse pensando que ela estava em poder dos seqüestradores faria tudo para
arranjar o dinheiro e assim acabaria livre dessa dívida.
Aqueles homens eram perigosos e, se ele não pagasse, ela temia que fizessem coisa
pior. Decidiu aguardar os acontecimentos. Procuraria um hotel modesto para não
chamar a atenção e esperaria até que tudo estivesse resolvido.
Talvez Alberto não precisasse saber nada a respeito dos negócios ilícitos do filho. Ele
teria um grande desgosto e nos últimos tempos sua saúde não estava bem.
Passava das vinte e três horas e ela resolveu caminhar e entrar no primeiro hotel que
encontrasse. Entrou em um próximo à praça e na hora de fazer a ficha lembrou-se de
que não tinha documento.
Apanhou o passaporte, justificando que havia sido roubada e hospedou-se.
Estava exausta, mas aliviada. No dia seguinte tentaria ligar para o endereço do
chantagista. Tomou um banho, deitou-se e logo pegou no sono.
Na manhã seguinte, Teresa acordou cedo, vestiu-se, tomou café e ligou para o número
de contato do chantagista. Ninguém atendeu. Ela saiu para dar umas voltas, comprou
algumas roupas, um guia da cidade e voltou ao hotel.
Quando chegou na portaria, o porteiro olhou-a admirado e disse:
- A senhora saiu de novo? O almoço não estava bom?
- Como assim?
- Faz menos de dois minutos eu abri a porta, a senhora tomou o elevador e disse que ia
almoçar.
- Saí cedo e estou voltando agora.
- Não pode ser. É, estou notando que a roupa está diferente. Mas há uma hóspede que é
igualzinha a senhora. É seu parente?
- Não. Não tenho parentes nesta cidade.
- Desculpe, mas a semelhança é impressionante. A senhora não tem nenhuma irmã
gêmea?
- Não. Você está impressionado. Vou subir e almoçar.
Teresa foi ao refeitório, curiosa. Decidiu almoçar e depois tornar a ligar para Otávio, o
chantagista.
Ao entrar no salão procurou a mulher com o olhar e surpreendeu-se. De fato, havia
grande semelhança entre ela e a mulher descrita pelo porteiro. Os cabelos eram



115
diferentes, o corpo mais roliço, Teresa era magra e há outra um pouco mais cheia. Mas
o rosto era muito parecido.
Ela aproximou-se da mesa dizendo admirada:
- Bom dia. Sou hóspede do hotel, o porteiro me confundiu com a senhora. De fato, nós
somos muito parecidas.
A mulher levantou os olhos, fixou-a e respondeu:
- A senhora é igual minha mãe! Que estranho!
As duas começaram a falar nomes de parentes e nada as fazia pensar que tinham alguma
ligação familiar.
- Se veio almoçar, sente-se, faça-me companhia.
Teresa sentou-se e continuaram conversando. A mulher contou que havia chegado da
Espanha no dia anterior, para onde se mudara por ocasião de seu casamento há mais de
vinte anos. Havia se divorciado por ter surpreendido o marido em adultério e,
desiludida, estava voltando ao Brasil para recomeçar a vida.
- Meu nome é Renata.
- Eu sou Teresa.
- Não conheço ninguém nesta cidade. Alguns amigos que deixei aqui, não sei onde
estão. Preciso trabalhar para viver, porquanto meu marido não era rico e o que consegui
com o divórcio não dá para manter o mesmo padrão de vida a que estou habituada.
Pela cabeça de Teresa passou um pensamento louco.
Ela estava com receio de ir entregar o dinheiro ao chantagista. Ela pretendia esconder-se
em um lugar discreto para esperar que Osmar resolvesse seu caso. Enquanto isso não a
acontecesse estaria correndo sério risco.
Estava certa de que, tendo descoberto sua fuga, eles fariam de tudo para encontrá-la,
além do que estava fragilizada e com medo de procurar o chantagista.
Enquanto amadurecia a idéia que passara pela sua cabeça, Teresa preparou o prato e
voltou à mesa. Durante o almoço conversou com Renata, falando de sua vida familiar,
da empresa do marido e quando chegou à sobremesa ela perguntou:
- Você disse que precisa trabalhar, em quê?
- Antes de casar eu era secretária, mas depois do casamento nunca mais trabalhei. Meu
marido não queria. Estou desatualizada. Por esse motivo aceitarei o que aparecer. Sou
pessoa discreta e sem medo do trabalho.
- Eu gostaria de ajudá-la. Talvez meu marido possa lhe oferecer um emprego em nossa
empresa.
Você se incomodaria de mudar-se para o Rio de Janeiro?
- De forma alguma. Nada me prende a esta cidade. Vim para cá porque foi aqui que me
casei, mas meus pais morreram e não tenho filhos. Quanto aos tios, amigos, conhecidos,
eu perdi contato.
Os olhos de Renata brilhavam alegres. A perspectiva de encontrar um emprego a enchia
de esperança.
Teresa baixou os olhos, demonstrando tristeza.
- O que foi? - indagou Renata. - Você ficou triste de repente.
Teresa olhou para os lados, depois baixou a voz:
- Você é capaz de guardar um segredo?
- Claro. Pode falar sem receio.
- Minha família não sabe que estou em São Paulo. Meu marido e meus dois filhos
acreditam que eu esteja na Itália com uma amiga. Será que posso me abrir com você?
- Sim. Pode confiar.
- Nesse caso, vou falar.



116
Sublinhando as palavras, Teresa contou tudo a respeito de sua paixão por Antero e a
chantagem da qual estava sendo vítima. E finalizou:
- Eu estou arrependida. Era jovem e inexperiente. Se fosse hoje não teria feito nada
disso. Amo meu marido, é um homem bom e não merece ser traído. Meus filhos têm de
mim um conceito ilibado. Como ficariam sabendo dessa nódoa em meu passado?
- Como será que esse chantagista ficou sabendo?
- Não sei. Eles têm fotos e bilhetes que me incriminam. Estou com medo de ir ao
encontro dele entregar o dinheiro. Você poderia fazer isso? Eu lhe pagarei uma boa
quantia.
- Não sei... acha que não tem perigo?
- Acho. Você é muito parecida comigo e ele não desconfiaria. Enquanto isso eu me
livraria desse encargo desagradável. Fico enjoada só em pensar em ter de enfrentar esse
sujeito.
Você me prestaria um grande favor, eu lhe darei dez mil reais. Depois, você vai comigo
para a Europa e voltaremos como se nada houvesse acontecido.
- Você disse que viajou com uma amiga. Como me apresentaria?
- Arranjarei uma desculpa qualquer. Como está seu passaporte?
- Em ordem. Acabei de chegar da Espanha.
- Você aceita minha proposta?
Renata pensou um pouco, depois respondeu:
- Aceito. Se você garante que depois de tudo vai me conseguir um emprego...
- Meu marido gosta de me agradar. Não vai deixar de atender a um pedido meu.
- Então está combinado. Quando preciso levar o dinheiro?
- Amanhã se esgota o prazo. Vou ligar para um telefone que me foi dado para pedir o
endereço do lugar.
Depois que terminaram de comer, Teresa levou Renata a seus aposentos e ligou para o
número indicado.
Uma voz de homem atendeu:
- Alô.
- Sou a pessoa que está esperando. Quero saber o endereço de onde deverei retirar a
mercadoria e pagar.
Ele deu um endereço, ela anotou. Depois, ele recomendou:
- Não fale a ninguém nem apareça acompanhada.
Se fizer isso, estará colocando sua segurança em risco.
- Pode deixar. Irei sozinha.
- Chegue às dezenove horas em ponto.
- Estarei lá.
Teresa desligou, depois disse:
- Vou arrumar o pacote do dinheiro bem como dar algum para suas despesas. Agora são
quinze horas, temos algum tempo. Vamos conversar.
Elas acomodaram- se no sofá e Teresa começou a falar da empresa do marido, do seus
filhos, enquanto Renata relatava sua desilusão no casamento, sua frustração por não ter
filhos, as traições do marido, mulherengo e indisciplinado.
Uma hora antes das dezenove , Teresa entregou a Renata a frasqueira com o pacote de
dinheiro e depois de contar tudo disse:
- Eu a acompanho até o local. Fico esperando do lado de fora. Você entrega, ele confere
você apanha o material e sai. Quanto menos falar, melhor. Depois, vamos embora.
Elas saíram, tomaram o táxi, deram o endereço. Faltavam cinco minutos para as
dezenove horas quando o carro parou em frente à casa que estava às escuras.
- Parece que não há ninguém - comentou Renata.


117
- Vá. Certamente ele está sendo discreto.
Renata segurou a frasqueira com firmeza, embora suas pernas estivessem tremendo um
pouco. Caminhou para a casa e procurou a campainha, não encontrou. Quando bateu na
porta, a mesma abriu e ela olhou assustada para Teresa, que fez um gesto para que ela
entrasse.
Ela entrou e fechou a porta. Alguns segundos depois um carro parou atrás do táxi que
Teresa estava a três homens desceram, dirigindo-se a casa. Apavorada, ela reconheceu
os homens que a tinham seqüestrado.
Na tentativa de passar despercebida, ela havia comprado um xale que quando saía à rua
colocava na cabeça. Imediatamente, colocou o xale e pediu ao motorista:
- Vamos sair daqui e esperar mais adiante.
Ele obedeceu e parou na esquina mais próxima. Teresa viu pelo vidro traseiro que eles
entraram na casa onde minutos antes Renata tinha entrado.
Ela ficou dividida. Assustada, desejava sair dali o quanto antes, mas ao tempo não tinha
coragem de deixar Renata à mercê daqueles bandidos.




118
CAPÍTULO 19

O dia já havia amanhecido quando o chefe dos seqüestradores e dois homens voltaram a
casa onde Teresa estava detida. A porta de entrada entreaberta os fez desconfiar de algo
errado. Imediatamente eles puxaram o revólver.
Com cuidado entraram na casa e tiveram a surpresa de não encontraram ninguém. O
vigia, tendo descoberto a fuga de Teresa, tinha fugido com medo do castigo.
- Eu mato aquele desgraçado - disse o chefe, nervoso esmurrado a mesa que ainda
continha os restos do jantar de Teresa.
- Será que ele fugiu com ela?- indagou um
- Não. Ela era muito velha para ele- Disse outro.
- Calem-se. Vocês todos são uns idiotas. Não servem para nada.
- Vou pegar o carro e dar uma volta. Eles foram a pé, pode ser que estejam por perto.
- Não vai adiantar, há essa hora ela deve estar longe.
Ele pensou um pouco, depois disse:
- Chamem o Otero para vir aqui imediatamente.
Os dois saíram apressados. Meia hora depois voltaram, trazendo um homem atarracado,
de meia-idade, sorriso fácil, olhos inquietos e traiçoeiros. Ele entrou.
- Assim que eu gosto. Você veio rápido.
- Chamado do Gil para mim é sagrado.
- Vocês dois podem sair. Sente-se, Otero.
Ele obedeceu e Gil continuou:
- Há dois dias quando você veio dar conta de sua campana com Otávio, suspeitava que
ele estivesse armando uma grande jogada. Era partida de mercadoria que ele comprou e
não pagou?
- Não era, chefe. Ele está envolvido com uma dama e parece que vai entrar muito
dinheiro.
- Como assim?
- Ele está pressionando uma dama da sociedade uma tal Teresa Borges de Azevedo.
Pelas conversas que ouvi, ele conseguiu provas de que ela traiu o marido e está pedindo
muito dinheiro por essas provas.
- Bem se vê que traste se contenta com migalhas. Ele devia mais é estar na cobrança do
pagamento daquela mercadoria que ele intermediou, dizendo que o cara era de palavra e
ia pagar tudo na entrega. Faz tempo que estou de olho nele.
- Desde que ele botou os olhos em D. Anita.
Gil deu um soco sobre a mesa, irritado.
- Esse cara me tira do sério e qualquer dia desses vai se ver comigo.
Otero tossiu, hesitou, pigarreou e Gil interveio?
- Você está rodeando. Conheço seu jeito. O que quer me dizer?
- É que eu vi quando ele saiu e foi até a loja de D. Anita, falar com ela.
- Ele fez isso?
- Fez mais. Segurou a mão dela e beijou-a, dizendo que ela era muito linda e merecia
coisa melhora do que estar esperando por você.
- Ele vai se ver comigo - ameaçou Gil, tentando conter a raiva.
- Eu ouvi quando ele a convidou para jantar naquela noite.
Os olhos de Gil brilhavam furiosos:
- E ela, o que respondeu?



119
- Ela sorriu, fez um jeito dengoso e ele continuou segurando a mão dela. Depois disse
que não podia aceitar, mas quem sabe um dia, ela iria jantar com ele.
- Desgraçada! Ela que nem tente sair com aquele traste. Farei picadinho dos dois. Você
volta lá e fique de olho. Se eles combinarem algum encontro, avise-me.
- Você sabe que ele tem uma casa onde trata dos negócios. Lá também se encontra com
mulheres. O danado é mulherengo como ele só. Quando ele pediu a D. Anita para ir
jantar com ele, deu o endereço daquela casa. É para lá que ele planeja ir com ela.
- Volte lá agora mesmo e fique observando. Se ouvir qualquer coisa suspeita, avise-me.
Otero saiu satisfeito. Ele sabia que Gil era ciumento e estava muito apaixonado por
Anita. Fazer esse jogo para ele era muito rendoso, porquanto Gil lhe pagava bem.
Depois, o prestígio era grande entre os demais que disputavam a atenção dele no grupo.
Naquela noite mesmo, ele voltou à casa de Otávio e ficou espreitando. Mas ele não saiu.
No dia seguinte, ele deixou a casa depois do almoço e Otero o seguiu até a casa onde
fazia seus negócios ilícitos.
Ele tinha colocado uma escuta no telefone daquela casa e à tarde, quando Teresa ligou
para entregar o dinheiro, ele ouviu os dois marcarem o encontro para às dezenove horas.
Imediatamente, ele ligou para Gil e deu a notícia, finalizando:
- Era voz de mulher e eu não sei quem era porque ela não deu o nome.
- É ela! Eu sei que é. Isso não vai ficar assim...
- Vou ver se consigo descobrir o nome da mulher.
- Eu vou de qualquer jeito. Este cara está me tirando do sério. Primeiro, colocando-me
numa roubada com a mercadoria. Depois, cantando minha mulher. Vou tirar satisfações
de uma vez por todas.
Assim que desligou o telefone, Gil teve a idéia de escrever uma carta anônima e mandar
colocar debaixo da porta da casa de Otávio. Sua mulher precisava saber como ele era
safado.
Escreveu o bilhete, tomando cuidado para não ser identificado, limpando
cuidadosamente para não deixar suas digitais. Depois foi pessoalmente à casa de Otávio
e colocou a carta debaixo da porta.
Se tudo saísse como ele esperava, ela estaria lá e surpreenderia o marido com a outra.
Cinco minutos antes das dezenove horas, Gil chegou na casa onde Otávio costumava ir
e percebeu que a casa estava às escuras.
- O safado preparou tudo para uma noite de amor.
Otero aproximou-se dele dizendo:
- Faz alguns minutos que a mulher entrou.
- Viu se era minha mulher?
- Não vi o rosto. Ela saiu de um táxi e entrou muito rapidamente. Parecia que estava
com medo.
Gil respirou fundo, tentando controlar a raiva. Depois disse: vocês dois fiquem do lado
de fora vigiando. Otero vai comigo. Eu vou entrar. Se precisar de vocês eu dou o toque
de costume.
Gil empurrou a porta e entrou na sala sem fazer ruído. Viu Otávio sentado em frente a
uma mesa tendo um maço de notas a sua frente. A mulher estava em pé, ao lado dele.
"Não é Anita", pensou Gil, aliviado.
Já ia se retirar quando a mulher virou o rosto e ele reconheceu:
- É Teresa! É a mulher que Otávio está chantageando. Ela não vai me escapar.
Ele caminhou até eles dizendo:
- Você vai me explicar que dinheiro é esse?
Otávio levantou-se assustado e vendo Gil disse:
- É um dinheiro meu. Você não tem nada com isso.


120
Gil pegou Otávio pelo colarinho, dizendo irritado:
- Eu prendi essa mulher para garantir o pagamento daquela mercadoria e você deve ter
negociado com ela nas minhas costas.
Renata olhava o homem que estava perto da porta impedindo a passagem. Apavorada,
ela pensava em fugir.
- Você está enganado. Eu nem sabia que ela estava em seu poder.
- Não tente me enganar. Ela é a mãe daquele safado do Osmar. Foi você que a ajudou a
fugir. O que você fez com o homem que estava tomando conta dela?
Gil, furioso, sacudia Otávio que em vão tentava explicar que não fizera nada daquilo.
Renata tentou passar do lado de Otero para fugir. Gil notou, empurrou-a e ela caiu.
Quando tentou levantar-se, Gil deu-lhe forte soco no queixo e ela rolou desacordada.
- Agora vou tratar de você. Esse dinheiro é meu por conta do que vocês me devem.
- Esse dinheiro é meu. Você não vai levá-lo.
Otávio puxou uma faca e enterrou-a no braço de Gil que sentiu uma dor aguda e soltou
a arma. Otávio correu para apanhá-la, mas Gil atirou-se sobre ele, tirou a faca de sua
mão e enterrou-a no peito dele várias vezes, até vê-lo estirado, sem vida.
Depois, examinou a ferida no antebraço; o sangue escorria. Foi até a porta e chamou os
homens, dizendo:
- O desgraçado me feriu. Tragam a maleta.
Um deles foi até o carro e voltou com uma valise. Lá havia material de pronto-socorro.
O homem fez um curativo para estancar o sangue e disse:
- Não foi muito fundo.
Renata, estendida no chão, começou a se mexer.
- Chefe, essa mulher é aquela que fugiu? - perguntou um deles.
- É.
Renata abriu os olhos e sentou-se no chão, olhando-os apavorada. O corpo de Otávio
estava sangrando e ela sentiu-se atordoada.
- O que vamos fazer com ela? - indagou um.
- Apagar. Ela não pode sair daqui para contar o que viu. Depois, desafiou-nos, tem de
pagar.
Renata ouviu e estendeu as mãos, dizendo aflita:
- Deixem-me sair daqui. Eu não sou quem vocês estão pensando. Não fugi de vocês.
Estão enganados.
Gil apanhou a faca, entregou a um deles e disse:
- Faça o serviço sem barulho para não atrair atenção, enquanto isso, eu ajunto o dinheiro
e decido o que vamos fazer com os corpos.
Enquanto Gil friamente recolhia o dinheiro que se espalhara pelo chão, o homem
segurou a faca e avançou em Renata, que estendeu as mãos, tentando impedir que ele se
aproximasse.
Depois Gil olhou os dois corpos estendidos no chão e resolveu:
- Logo mais, a mulher deste safado deve chegar aqui. Vamos arrumar a cena.
Calmamente, Gil mandou tirar a roupa dos dois e colocar os corpos na cama. Depois
tiraram do bolso os documentos de Teresa e jogou-os embaixo da cama.
Enquanto eles faziam tudo isso, ao redor estavam alguns espíritos trevosos, satisfeitos
com os acontecimentos.
- Eles tiveram o que mereciam - disse um.
- Estamos vingados - ajuntou outro.
Sem que eles notassem, a alguma distância, o espírito de Analú e de um rapaz,
observavam tristemente.
Naquele momento, o rapaz disse entre lágrimas:


121
- Eu tentei evitar, mas eles não me ouviram.
Abraçando-o com carinho, Analú respondeu:
- Eles escolheram o próprio caminho. Só podemos aguardar que eles despertem para o
bem. Enquanto escolherem o mal, nada poderemos fazer.
Os quatro homens saíram da casa, deixando a porta encostada.
Teresa mandara o táxi virar a esquina e eles viram quando os homens saíram.
O motorista aconselhou:
- É melhor irmos embora. Isso não está me cheirando bem. Aqueles homens parecem
marginais.
- Não posso deixar minha amiga sozinha. Ela foi só entregar uma encomenda. Vamos
esperar mais um pouco. Mas Renata não voltava.
- Eu vou até a casa ver o que aconteceu. Fique esperando aqui.
Ela desceu, caminhou até a casa, encostou o ouvido na porta, mas não ouviu nada.
Depois, abriu e entrou. Foi caminhando no escuro até o quarto onde o abajur estava
aceso. A cena que viu quase a fez desmaiar. Renata estava morta ao lado daquele
homem.
Mesmo apavorada como estava, Teresa lembrou-se dos documentos que viera buscar.
Precisava encontrá-los. Onde estariam? Voltou à sala, abriu algumas gavetas, mas não
encontrou nada. Olhou em volta e teve medo. Precisava sair dali o quanto antes. Sem
pensar em mais nada saiu correndo, deixando a porta da entrada encostada.
Sentia as pernas trêmulas e o coração descompassado. Esforçou-se para manter a calma.
Respirou fundo, foi até o táxi e disse ao motorista:
- Vamos embora. Minha amiga já foi em companhia de outra pessoa. Podemos ir.
De volta ao hotel, Teresa não podia esquecer a cena terrível que presenciara. Ela sabia
que Renata morrera em seu lugar. Era ela quem deveria estar ali, naquela cama, com
aquele homem.
Ela precisava desaparecer. O que aconteceria se eles soubessem que ela continuava
viva? Certamente a procurariam para matá-la como fizeram com a infeliz Renata, que
pagara um preço muito alto por ser parecida com ela.
Por outro lado, a situação a impossibilitava que voltasse para a casa. Agora mais do que
nunca precisava esconder-se. Felizmente, tinha o dinheiro que reservara para viajar, o
que possibilitaria que ela se escondesse por algum tempo.
Não conseguiu dormir naquela noite. Quando estava pegando no sono, acordava
sobressaltada e a cena do crime reaparecia diante de seus olhos.
Assim que amanheceu, Teresa tomou um banho, esperou a hora do café, desceu, tomou
uma xícara de leite, voltou ao quarto, apanhou uma lista telefônica e procurou alguns
hotéis modestos em um bairro afastado.
Selecionou alguns, ligou para informar-se e anotou tudo. Depois, apanhou a bolsa de
Renata que ficara no táxi quando ela entrou na casa de Otávio carregando a frasqueira.
Abriu e viu que todos os documentos estavam lá, inclusive os passaportes. Olhando as
fotos ela pensou em usar a identidade dela, até que as coisas se esclarecessem, era só
mudar o penteado e daria para passar.
Foi ao quarto de Renata, arrumou todas as coisas dela, pagou a conta e deixou o hotel.
Naquele mesmo dia, instalou-se em um hotel modesto, próximo ao aeroporto.
Deitada no quarto, Teresa pensava nos acontecimentos, angustiada. Quando a polícia
entrasse naquela casa e encontrasse os dois corpos sobre a cama, pensaria que eles
tinham tido um encontro de amor.
Seu nome sairia nos jornais, seria dada como morta e sua memória estaria manchada.
Como sua família reagiria diante da notícia?



122
Gostaria de procurá-los, relatar o que acontecera, dizer que continuava viva e que nunca
se relacionara com aquele homem.
Mas para isso, teria de procurar a polícia, contar a verdade. Diante da família teria de
confessar o erro do passado que fizera tudo para esconder. Não seria pior? Além disso,
confessar tudo não iria prejudicar ainda mais Osmar? Era possível que julgando que a
tivessem matado, eles se dessem por satisfeitos com o castigo que acreditavam ter
impingido a Osmar e o deixassem em paz. Teresa tinha esperança de que o filho,
pensando que ela estivesse morta, vitimada pelos traficantes, sentisse culpa, resolvesse
mudar e desistisse desse triste comércio. E se a polícia encontrasse os documentos que a
comprometiam? Teria sido inútil todo seu esforço em preservar-se. Sua família saberia
de tudo. O que ela tanto quisera evitar acontecera, e a infeliz Renata pagara com a vida
por ter ido em seu lugar. Ela estava sem saída. Se aparecesse, fatalmente agravaria as
coisas tanto para si como para sua família. Mas por outro lado, pensar que nunca mais
poderia voltar para casa, para os filhos e que seria desprezada por eles era-lhe
insuportável.
As últimas emoções a deixaram deprimida e cansada. Estava em um beco sem saída.
Teria de esperar que as coisas mudassem, que a polícia prendesse os assassinos para
poder aparecer e contar a verdade. Isso lhe parecia muito distante. Aqueles homens
eram bandidos experientes.
Ela sabia que Renata nunca se deitaria com aquele homem. Eles armaram aquela cena
para despistar a polícia ou até para ferir ainda mais a honra de Osmar.
Apesar de cansada, Teresa não conseguia dormir. Sentou-se na cama pensando no que
fazer. Chegou à conclusão de que não podia se entregar, precisava reagir cuidar-se para
não adoecer. Mesmo sem fome resolveu descer e comer alguma coisa. Não havia se
alimentado durante o dia inteiro. O hotel não tinha restaurante, apenas uma lanchonete
simples.
Teresa sentou-se em uma das mesas, pediu um refresco e um cachorro quente. A sala
era pequena e havia algumas pessoas comendo. Ela estava pouco à vontade, usava um
vestido de Renata que tinha um gosto diferente do seu, mais alegre e colorido. Precisava
habituar-se, uma vez que pretendia passar-se por ela, além do que, suas roupas haviam
ficado na casa dos traficantes.
Estava comendo seu sanduíche quando sua atenção foi despertada pelo aparelho de TV
que estava no alto em um canto da sala.
Um homem falava sobre um crime misterioso que havia acontecido na noite anterior
dando o endereço da casa e o nome de Otávio de Oliveira. Dizia que a polícia estava
investigando a identidade da mulher. O pão parou na garganta de Teresa, que tomou o
refresco, procurando controlar-se. Eles prometeram voltar com novas notícias sobre o
crime.
A custo Teresa conseguiu comer todo o lanche. Depois, voltou ao quarto pensando no
que vira.
Se os traficantes descobrissem que tinham matado a mulher errada, sua vida estaria em
perigo. Angustiada, ela decidiu que procuraria um salão de beleza para fazer com que
seus cabelos ficassem mais parecidos com os de Renata.
Dias depois, Teresa foi ao salão de beleza, levando a foto de Renata e pediu para que
seus cabelos voltassem a ser como eram naquele tempo.
Quando saiu de lá, estava mais parecida com Renata. Passou por uma banca de jornal e
teve sua atenção despertada pelo seu retrato na primeira página, ao lado de Otávio.
Comprou um exemplar e foi para o hotel. Ao entrar, algumas pessoas a olharam
admiradas e a moça que atendia na lanchonete disse:
- A senhora viu o jornal de hoje?


123
Aparentando naturalidade, Teresa respondeu:
- Comprei, mas ainda não li.
- A mulher que mataram é muito parecida com a senhora. É seu parente?
Teresa abriu o jornal, olhou a foto e respondeu com naturalidade:
- De fato, tem alguma semelhança. Mas não é de minha família, graças a Deus.
Teresa foi para o quarto, nervosa. E se, apesar da semelhança, a polícia descobrisse que
aquele corpo não era o dela?
Decidiu procurar uma casa no subúrbio, o mais barato que pudesse achar para esconder-
se. Dois dias depois, encontrou, pagou dois meses adiantados e instalou-se.
A casa possuía quarto, sala, cozinha e banheiro. Era muito antiga, mas estava mobiliada.
Os móveis eram baratos e estavam velhos, porém Teresa a alugou assim mesmo.
Não estava em condições de exigir nada. No dia seguinte compraria algumas coisas que
a tornassem mais habitável.
Os dias foram passando e Teresa só saía para comprar alimentos e jornais.
Assim ficou sabendo das dúvidas quanto a sua morte e isso a fez ficar mais reclusa do
que estava.
Comprava livros no sebo e procurava passar o tempo. Fazia mais de um mês que o
crime acontecera e a polícia não encontrara o criminoso.
Teresa pensava no motorista do táxi que as levara até a casa onde acontecera o crime.
Não encontrou menção a ele em nenhum jornal. Ele sabia que aquele lugar era perigoso
e chegara a mencionar isso naquela noite. Vendo o noticiário, por que não foi à polícia?
Estaria com medo de se envolver?
Havia dias, acordava e ficava rememorando o que tinha acontecido. Fazia isso
procurando enxergar alguma coisa que ainda não havia visto buscando uma saída para a
situação dolorosa em que se encontrava. A solução demorava, e Teresa pensava no que
faria quando o dinheiro acabasse. Precisava encontrar uma forma de ganhar algum. Mas
como? Não podia procurar um emprego. Além de ser perigoso, em sua idade não
conseguiria.
Lembrou-se de que havia estudado várias artes e era boa pintora. Talvez pudesse pintar
alguma coisa simples e vender. Naquele mesmo dia saiu, comprou algumas telas
pequenas, tinta e pincéis e começou a pintar. Logo, sentiu que essa atividade fez-lhe
muito bem. Enquanto pintava esquecia de tudo, absorta e descontraída.
Vendo-a entretida naquele trabalho, o espírito de Analú, que estava ao seu lado, sorriu
satisfeita.
Teresa estava começando há recuperar um pouco o equilíbrio que perdera desde que
recebera a ameaça de Otávio pela primeira vez.




124
CAPÍTULO 20

O telefone tocou, Paulo atendeu e reconheceu a voz do delegado.
- Como vai Monteiro?
- Como sempre. Tenho novidades. Você pode vir até aqui?
- Posso. Estarei aí dentro de quinze minutos.
Fazia dois dias que Paulo se instalara na casa de Marília e até aquele instante tudo
estava bem. Olhou o relógio, eram dez horas. Foi até a cozinha onde Vitório se deliciava
com um chá e uma generosa fatia de bolo, conversando com Marília e Dorita.
- Monteiro pediu para eu ir até a delegacia. Disse que tem novidades. Não vou demorar.
- Você ainda não dormiu - tornou Marília.
- Estou bem. Dormirei quando voltar.
Desde que se instalara na casa, tanto Marília como Dorita o tratavam com carinho e
atenção.
Ele se preparou para sair e Marília acompanhou-o até a porta.
- Estou curiosa para saber o que ele descobriu.
- Eu também. Logo saberemos.
- Não vejo a hora que ele descubra e prenda os assassinos. Só assim poderemos viver
em paz.
- Aí eu irei embora e não as incomodarei mais.
Marília colocou a mão no braço dele dizendo séria:
- Não diga isso. Eu gostaria que você nunca mais nos deixasse.
Um brilho emotivo passou pelos olhos dele que sorriu e disse:
- Pois eu também gostaria de poder ficar aqui.
- Altair adora conversar com você.
- Vocês me fazem sentir em casa. Voltarei o mais rápido que puder.
Ele saiu, apanhou o carro e dirigiu-se à delegacia. Uma vez lá, entrou e foi direto à sala
de Monteiro.
- E então, o que descobriu?
- Aquela pista que você me deu é quente. Descobrimos que o filho de Alberto está
mesmo metido com traficantes de drogas.
- Então ele tinha ligação com Otávio?
- Sim. Os peritos encontraram o nome dele e o número de telefone naqueles
documentos. Não só isso, eles conversaram diversas vezes nos dias que antecederam o
crime. Parece que estamos achando o fio da meada.
- Esse crime foi cometido por bandidos experientes.
- Mais de um. E como você desconfiava, eles não foram mortos naquela cama. A cena
foi forjada para nos confundir.
- Eu vi os sinais de luta na sala. Foi lá que eles foram mortos.
- Isso mesmo. E tem mais. Osmar e Nelsinho foram naquela clínica visitar uma mulher
que eles tinham internado um dia antes do crime.
Paulo levantou da cadeira:
- Você sabe quem é ela?
- Não. Mas vamos descobrir. Vou fazer uma diligência até aquele hospital no Rio de
Janeiro e chamei-o para nos acompanhar.
- Você acha que pode ser Teresa?
- Não sei. Mas não custa verificar. Também Elvira, a amiga de Teresa desapareceu.
Pode ser uma das duas.


125
Eles se prepararam para sair com mais dois policiais. No carro, durante o trajeto, Paulo
indagou:
- Por que será que Osmar internou essa mulher exatamente um ou dois dias antes do
crime?
- Também estou intrigado. Se ela for Teresa será fácil reconhecer, porém se for Elvira
nós não teremos como.
Uma vez no hospital, eles entraram e Monteiro dirigiu-se à secretária. Identificou-se e
disse:
- Recebemos uma denúncia que vocês mantêm aqui uma paciente que foi internada pelo
Dr. Osmar Borges de Azevedo, contra a vontade dela.
A secretária levantou-se assustada:
- É um absurdo, doutor!
- Quero ver essa paciente - exigiu Monteiro.
- Não sei do que está falando - respondeu a secretária. - Vou chamar o responsável pelo
hospital: o Dr. Ernesto.
Ela fez menção de sair, mas o delegado a impediu:
- Chame-o pelo telefone.
Com as mãos trêmulas ela obedeceu e em alguns minutos o médico apareceu. O
delegado renovou o pedido para ver a mulher e o médico respondeu:
- Não será adequado conduzi-los ao quarto dela neste momento. Trata-se de uma
paciente em estado grave, precisou ser sedada.
- Desejo ver a ficha de internação - disse o delegado.
A um sinal do médico, a secretária apanhou uma ficha no arquivo e apresentou-a.
Monteiro leu: Maria de Souza. Endereço, idade, estado civil, ignorados.
- Essa mulher estava passando mal em frente a empresa do Dr. Osmar que ficou
penalizado.
Ela estava fora de si, apresentando sinais de demência. Ele então a trouxe a este hospital
para tratamento e está procurando encontrar pessoas da família dela. Até agora não
conseguiu nada.
- Leve-nos ao quarto dela. Precisamos vê-la.
- Ela está sedada, como eu disse. Não vale a pena ir até lá.
- Quem decide isso sou eu - rebateu Monteiro. - Leve-nos até lá.
Tentando esconder a preocupação, Ernesto levou-os ao quarto de Elvira. Abriu a porta e
enquanto os dois policiais ficavam do lado de fora, Monteiro e Paulo entraram com o
médico.
Viram logo que não era Teresa. Ela estava debilitada e pálida.
- Ela parece mal - comentou Paulo.
- Não está - respondeu o médico. - A palidez é porque está sedada.
Monteiro chamou um dos homens e disse:
- Tire uma foto dela bem de perto.
- Para quê? - indagou o médico.
- Vou levar para a delegacia e ver se descubro sua identidade. Assim, poderemos avisar
a família.
- Claro - disse o médico. - Mas pode ver que aqui ela está sendo muito bem tratada.
Monteiro não respondeu. Depois de tirar a foto, eles saíram e se despediram.
Na rua, Monteiro deu algum dinheiro a um dos policiais e disse:
- Você, fique aqui vigiando e se observar qualquer movimento suspeito nos avise,
entrarei em contato com a delegacia local para agir. Nós vamos descobrir se essa mulher
é quem eu estou pensando.
- Eu também tenho a mesma suspeita - tornou Paulo. - Vamos embora.


126
Os três saíram, enquanto o policial escondeu-se e ficou observando.
- Vamos voltar para São Paulo, procurar Alberto - decidiu Monteiro.
O carro saiu e quando chegaram a São Paulo, apesar de cansados, foram ao apartamento
de Alberto.
Tocaram a campainha e Dinda surpreendeu-se:
- Doutor delegado, a essa hora! Aconteceu alguma coisa?
- Sim. Precisamos conversar com o Dr. Alberto.
Eles entraram e a essa altura a foto rápida já tinha sido revelada.
Alberto estava sentado na sala, lendo. Quando não conseguia dormir, o que lhe
acontecia com freqüência nos últimos tempos, levantava-se e procurava alguma
atividade que o distraísse.
Vendo-os entrar, levantou-se e cumprimentou-os. Depois disse ansioso:
- Então doutor, tem alguma novidade?
Monteiro segurou a foto e mostrou-a a Alberto, perguntando:
- Reconhece esta mulher?
Alberto fixou-a, dizendo admirado:
- Sim. É Elvira, a amiga que viajou com Teresa. Ela também está morta?
- Não. Está apenas sedada em um hospital.
- Sedada? Como assim, o que aconteceu? Ela sabe o que aconteceu com Teresa?
- Como eu disse, ela está sedada em um hospital. Foi seu filho Osmar quem fez a
internação.
- Osmar?! Não entendo. Ele não a conhecia!
- Tem certeza disso? Ele a internou e está custeando as despesas dela.
Alberto deixou-se cair no sofá, levando a mão na testa, como que querendo clarear o
pensamento.
- Isso não é possível. Ele não faria isso sem nos dizer nada. Ademais, ele não a
conhecia.
- Ainda não sabemos as razões de ele tê-la internado naquele hospital - tornou Monteiro.
- Vou ligar para ele e perguntar.
- Não faça isso. Por enquanto temos de manter sigilo nas investigações.
- Vou falar com ele. É meu filho. Tem que explicar como conheceu essa mulher.
- Prometa que não vai fazer isso - repetiu o delegado. - Pode estragar nossas
investigações. Prometo que assim que souber de tudo lhe contarei.
- Está bem. Vou aguardar com impaciência.
- Fique calmo - interveio Paulo -, estamos muito perto de descobrir o que aconteceu a
sua esposa.
Depois de certificar-se de que Alberto não telefonaria para Osmar, eles deixaram o
apartamento.
- Vou providenciar para tirar aquela mulher de lá o quanto antes. Penso que depois de
amanhã teremos tudo o que precisamos. Levaremos uma ambulância e a transferiremos
para outro hospital aqui em São Paulo, onde ela fará todos os exames e trataremos da
sua volta ao normal. Levaremos autorização judicial e uma viatura. Quero fazer essa
visita pessoalmente.
- E se o médico for cúmplice de Osmar, avisá-lo e ele, nesse meio tempo, tirá-la de lá? -
indagou Paulo.
- Para evitar isso deixei um homem vigiando. Vamos voltar à delegacia e fazer o que é
preciso. Não temos tempo a perder.
Já era tarde e eles estavam cansados. Monteiro encarregou Paulo de fazer o pedido de
um mandato ao juiz na manhã seguinte, enquanto ele providenciaria tudo para voltar ao
hospital e retirar Elvira.


127
Paulo foi para a casa de Marília e contou as novidades. Vitório ficou esperançoso de
descobrir notícias da mãe.
- Arranje alguém para tomar conta delas. Eu quero ir com vocês. Não vou suportar ficar
esperando.
- Vou ver o que posso fazer.
Na manhã seguinte, Paulo acordou cedo e foi para seu escritório fazer a petição para o
juiz. Depois, foi para a delegacia onde Monteiro também já tinha conseguido a
ambulância e estava se preparando para iniciar a diligência.
Paulo falou com Monteiro que Vitório queria ir junto, porém o delegado respondeu:
- Não adianta ele ir agora. Elvira está inconsciente e não poderá nos dizer nada. Quando
ela já estiver recuperada prometo que o chamarei para ouvir o que ela tem a nos dizer.
Quando Paulo ligou para dar a notícia a Vitório, ele entendeu que o delegado estava
certo.
Tudo pronto, eram onze horas quando a diligência deixou a delegacia. A ambulância
com o médico, uma enfermeira e duas viaturas. Em uma delas estavam Paulo e o
delegado.
Passava das dezesseis horas quando o policial que ficara no hospital ligou para
Monteiro dizendo:
- Nelsinho acabou de entrar no hospital. Estava sozinho, mas parecia apressado.
- Fique preparado. Estamos chegando. Dentro de mais uma hora estaremos aí.
Assim que chegaram na frente do hospital eles pararam. O policial que ficara vigiando
aproximou-se. Monteiro perguntou:
- Alguma novidade?
- Não. Nelsinho continua lá dentro. Não vi nenhum movimento suspeito.
O delegado colocou dois homens na entrada de serviço vigiando.
- Não deixem nenhuma ambulância sair e me avisem se isso acontecer.
Dentro do hospital, na sala do Dr. Ernesto, Nelsinho estava sentado, nervoso,
conversando com ele.
- Bem que eu disse ao Osmar para dar um jeito nela.
Ele demorou demais.
- Essa história está cheirando mal. Não posso manchar a reputação do hospital. Osmar
precisa tirar logo essa mulher daqui. Por que ele não veio pessoalmente cuidar disso?
- Ele disse que se aparecer aqui vai complicar mais o caso. Encarregou-me de resolver
tudo.
- Eu posso colocá-la em uma ambulância, mas preciso mandá-la para algum lugar. Nem
isso ele arranjou?
- Nós podemos abandoná-la bem longe daqui, em um lugar deserto.
- Não posso correr esse risco. Ela não está em condições de andar. Pode morrer caso não
tenha cuidados especiais.
- Isso seria um alívio. Bem que eu disse ao Osmar para resolver logo, mas ele ficou
esperando não sei o quê.
- Vou tirá-la daqui e levá-la para sua casa antes que a polícia volte.
- Não faça isso, pode despertar suspeitas. Não quero nada com a polícia.
Ernesto levantou-se irritado:
- Este caso está indo longe demais. Vou mandá-la para sua casa e pronto. Você e Osmar
que resolvam o caso.
Nelsinho levantou-se, ia protestar quando ambos ouviram batidas na porta.
- Entre - disse o médico.
A secretária apareceu, mas não chegou a falar porque o delegado Monteiro passou à
frente, apresentando um papel ao médico e dizendo:


128
- Vim buscar aquela paciente. Tenho autorização judicial.
- A partir de agora ela está sob minha responsabilidade.
Nelsinho quis sair, mas foi impedido pelo policial que estava perto da porta.
- Deixe-me passar - disse Nelsinho -, não tenho nada com isso.
- Quem decide se tem ou não sou eu - tornou Monteiro com voz firme. - Você está
detido para averiguações.
O Dr. Ernesto tentava encobrir o nervosismo. Quis segurar o papel que o delegado lhe
estendia, mas ele não o deixou pegá-lo.
- Leia, doutor. Nós já identificamos a paciente. Trata-se de Elvira, amiga de Teresa
Borges de Azevedo, mãe de Osmar Borges de Azevedo que desapareceu com ela. O
senhor será intimado a prestar declarações para explicar por que a manteve aqui,
dopada. Segundo sabemos essa senhora nunca teve nenhuma doença mental e o senhor e
seu hospital terá muito que explicar.
- Eu posso explicar tudo já. Sou apenas um médico. Não conhecia essa mulher, acreditei
nas informações que nos deram.
- O senhor terá tempo de se lembrar bem dos detalhes e nos contar tudo o que sabe. Mas
agora tenho pressa de retirar a paciente. - Voltando-se para os policiais continuou: -
Chamem os enfermeiros para buscá-la.
Monteiro, antes de entrar, tinha chamado uma das viaturas e deu ordem a um dos
policiais para que levasse Nelsinho.
Depois, o Dr. Ernesto levou-os até Elvira e os enfermeiros a transportaram até a
ambulância que partiu em seguida, sob escolta de uma viatura.
O médico aproximou-se do delegado dizendo:
- Agora que já cumpriu seu mandato, pode conceder-me alguns minutos em particular?
Monteiro fixou-o sério:
Tenho pressa. Não posso esperar.
- Vou ser rápido. Vamos a minha sala.
Monteiro o acompanhou em silêncio. Entraram na sala e Ernesto fechou a porta dizendo
em voz baixa:
- Doutor, peço-lhe que esqueça a nossa participação nesta triste história. Meu hospital
tem boa reputação e não pode ser envolvido.
- O senhor deveria ter pensado melhor antes de se envolver em uma situação tão
nebulosa.
- Tem razão, mas eu fiquei com pena da pobre mulher. Depois, conheço o Dr. Osmar
como um empresário de bem e nunca imaginei que ele pudesse fazer algo errado.
Monteiro sorriu quando respondeu:
- Por favor, doutor, assim o senhor subestima minha inteligência.
- Esqueça o nome do hospital e saberei ser reconhecido. Posso melhorar muito seu
padrão de vida.
O rosto de Monteiro ruborizou-se indignado. Controlou a raiva e respondeu firme:
- Se continuar nesse tom, dar-lhe-ei voz de prisão e terei certeza de que é cúmplice de
Osmar.
- Por favor. Não se ofenda. Eu pensei apenas em livrar meu hospital dessa confusão.
- O senhor e seu hospital já estão em uma grande confusão, a única forma de ter algo a
seu favor é contar a verdade à policia. Pense nisso. Passe bem, doutor.
Monteiro saiu e o médico sentou-se, colocando a mão na testa e procurando encontrar
uma saída.
Entrando na viatura ao lado de Paulo, Monteiro disse satisfeito:
- Tudo está caminhando bem. Só nos resta esperar que Elvira recobre a consciência e
possa nos contar a verdade.


129
Nada mais tendo de fazer ali, eles viajaram imediatamente de volta a São Paulo.
Paulo ficou na companhia deles até a internação de Elvira em outro hospital e ouvir a
opinião do médico que a examinara cuidadosamente.
- Ela está muito enfraquecida. Primeiro, vamos fortalecê-la bem, e depois fazê-la voltar
à consciência devagar.
- O senhor acha que ela vai se recuperar completamente? - indagou Monteiro,
preocupado.
- Penso que pode demorar um pouco, mas não me parece que ela tenha alguma doença
grave. Vamos ver como reage aos medicamentos.
- Ela está sob meus cuidados e terá vigilância durante vinte e quatro horas. Não pode
receber visitar em hipótese alguma. Ela é testemunha importante no crime que lhe falei
e sua vida corre perigo.
- Vou designar duas enfermeiras de minha confiança para cuidar dela e não permitir que
ninguém mais se aproxime.
- Faça isso doutor. Se eu precisar substituir um dos meus homens avisarei com
antecedência.
Eles saíram e Paulo voltou à delegacia para apanhar o carro que ficara lá.
Era madrugada quando Paulo voltou para casa. Estava cansado, mas contente. Quando
Elvira recobrasse a consciência muitas coisas seriam esclarecidas.
A casa estava escura, mas Vitório, que tinha ficado lá ansioso para esperar a volta de
Paulo, abriu a porta. Ele entrou e Vitório não se conteve:
- E então, o que aconteceu?
Paulo ia responder, mas teve a atenção voltada para Marília e Dorita que se
aproximaram.
Vitório estava angustiado, ansioso.
- Conte-nos como foi - pediu.
- Antes vou trazer alguma coisa para Paulo. Ele está abatido, não dormiu e penso que
nem comeu - tornou Dorita.
- De fato, não tive tempo mesmo.
- Vamos para a cozinha - decidiu Marília. - Lá, enquanto tratamos de Paulo, ele nos
contará tudo.
Logo Paulo estava sentado ao redor da mesa tendo na sua frente uma porção de
salgadinhos e um copo de refresco.
Enquanto comia com apetite, ele contou em detalhes o que se passara. E finalizou:
- O médico safado ainda tentou subornar o delegado, mas pela reação dele percebeu
logo que ia se dar mal. Fazer isso logo com Monteiro, policial honesto e sério.
- Estou angustiado - disse Vitório. - Só meu pai conheceu a Elvira, nós dois nunca a
vimos. Como ela pode ter sido levada a esse hospital pelo Osmar? Tem certeza de que
foi ele mesmo quem a internou?
- O médico citou nome e sobrenome. Depois eu sabia da ligação de Osmar com esse tal
de Nelsinho. Eu nunca lhes disse, mas tive intuição e coloquei meu assistente para
seguir Osmar. Senti que era para ir por ali. E assim, descobrimos a ligação dele com
esse sujeito que não pertence ao meio de vocês e cuja fama não é das melhores.
Paulo fez ligeira pausa, olhou em volta e, vendo que todos o olhavam atentos,
continuou:
- É bom que vocês saibam que a polícia encontrou ligação de Osmar com os traficantes
que trabalhavam com Otávio.
Vitório não se conteve:
- Ele sempre foi maldoso, mas eu não esperava uma coisa dessas. Papai vai sofrer muito
quando descobrir.


130
- Vocês precisam ser fortes. A verdade vai aparecer e ela pode ser dura. Por enquanto,
você pode poupar seu pai, esperar um pouco mais para contar-lhe certos detalhes.
- Quando Elvira acordar, saberemos onde está minha mãe. Eu acredito que ela esteja
viva.
- Quanto a isso ainda é cedo para ter certeza.
Osmar envolveu-se com traficantes perigosos e essa gente mata facilmente. Mas penso
que podemos ter esperança.
Vitório pensou um pouco, depois disse:
- Se mamãe tivesse morrido, seu espírito já teria me avisado. Mas não tive nenhuma
notícia, o que pode significar que ela esteja viva e por uma razão que desconhecemos,
não pode aparecer.
- A vida tem seus mistérios e só os revela na hora adequada - disse Paulo -, mas algo me
diz que estamos no caminho certo e logo saberemos de tudo.
Todos concordaram e uma nova esperança aqueceu o coração de Vitório.




131
CAPÍTULO 21


Conversaram durante mais algum tempo. Paulo se alimentou bem, sentiu sono e disse:
- Eu vou dormir um pouco.
- Vá mesmo - concordou Vitório. - Vou avisar papai e passarei o resto da noite aqui.
- Você não precisa passar a noite. Se eu descansar umas duas horas ficarei bem e você
poderá ir.
- Eu posso ficar - considerou Vitório. - Papai está bem e você pode descansar em paz.
Se eu notar qualquer coisa diferente, irei chamá-lo.
Paulo concordou e foi para o quarto de Altair. Deitou-se. Estava muito cansado e
adormeceu em seguida.
Enquanto as duas mulheres trocavam idéias sobre os novos acontecimentos, Vitório
sentou-se em um canto da sala pensativo.
Muitas perguntas sobre os fatos surgiam em sua mente e por mais que tentasse ele não
conseguia entender o que levara o irmão a envolver-se com traficantes.
Ao pensar nisso sentia arrepios e um pressentimento ruim o envolvia. Era provável que
sua mãe estivesse pagando pelas loucuras que Osmar cometera.
A possibilidade de ela ter sido presa por traficantes e até de ter sido morta voltou a
incomodá-lo.
Por que o espírito de Analú não aparecia para ajudá-lo? Sempre que ele ficava
deprimido por causa dos desentendimentos com Osmar ela comparecia para confortá-lo,
estimulando-o a manter a calma.
Agora, diante de um assunto tão sério, por que ela não vinha?
Na penumbra da sala, Vitório pensou nela com carinho, rogando que o ajudasse. Nesse
momento ele notou duas sombras escuras o envolvendo. Fechou os olhos, sentiu a
presença de dois espíritos e percebeu logo que estavam mal. Concentrou-se mais neles e
reconheceu o casal que fora assassinado. Estavam com péssima aparência, mostrando os
ferimentos que lhes tiraram a vida e mantendo na fisionomia horrível expressão.
Na mesma hora Vitório sentiu forte mal-estar. Dores pelo corpo, uma sensação de
fraqueza e o estômago enjoado. Vendo que estavam sendo notados, a mulher
aproximou-se de Vitório gritando com raiva:
- Você está querendo proteger aquela malvada. Mas ela vai pagar por tudo o que me
fez!
Vitório esforçou-se para controlar o mal-estar e respondeu em pensamento:
- De quem você está falando?
- De Teresa. Ela se aproveitou de mim. Mandou-me para a morte. Eu que queria
começar uma nova vida e estava cheia de esperança! Ela armou a cilada e eles me
mataram. Era ela quem deveria estar lá! Ela garantiu que não tinha perigo e eu acreditei.
Ofereceu-me emprego, amizade, mas era mentira. Fez isso para se livrar de tudo.
- Não entendo do que está falando.
- Eu paguei pelo crime que ela cometeu anos atrás. Ela me usou para safar-se.
Vitório continuou não entendendo, mas sentiu que ela sabia o que tinha acontecido com
sua mãe. Precisava aproveitar fazê-la falar mais e descobrir o que pudesse.
Naquele momento, o homem empurrou-a dizendo:
- Deixe disso. Ele não vai fazer nada por nós. Ao contrário, está aqui em minha casa,
não sei fazendo o quê, sem me pedir licença.
Vitório ouviu e percebeu que estava diante do marido de Marília. Antes que tentasse
responder, o espírito de Otávio aproximou-se, dizendo:



132
- Vocês estão se metendo onde não devem. Vá embora e leve aquele intrometido que
está dormindo aqui. Não quero ninguém em minha casa. Diga-lhe que saia logo, antes
que eu mesmo o enxote. Eu vi que ele anda de olho em minha mulher. Se ele continuar,
vai se ver comigo.
Antes que Vitório pudesse responder, Otávio segurou o braço da mulher e
desapareceram.
- O que está acontecendo comigo? - perguntou Vitório. - Como fui me ligar a esses
espíritos sofredores? Por que Analú me abandonou quando eu mais preciso?
Aflito, deixou-se ficar recostado no sofá, deprimido, triste. Alguns minutos depois,
levantou-se e foi telefonar para o pai, avisando que não iria para casa.
Altair tinha ido dormir, Marília e Dorita, depois de colocarem tudo em ordem na
cozinha, foram ter com Vitório e logo notaram o quanto ele estava abatido.
- Você parece triste - arriscou Dorita. - Logo agora que as coisas estão melhorando...
- Isso mesmo - concordou Marília. - Estamos perto de saber o paradeiro de sua mãe.
- Paulo não se mostrou tão confiante.
- Ele está sendo cauteloso. Prefere esperar para ter certeza.
Vitório fixou Marília e disse:
- Posso fazer-lhe uma pergunta?
- Faça.
- Seu marido era um homem violento?
- Sim. Para conversar com ele eu ficava sempre escolhendo as palavras para não irritá-
lo. Por quê?
- Por nada. Eu estava pensando e fiquei curioso.
- Nós vamos nos recolher - tornou Marília. - Você deseja mais alguma coisa? Um chá,
um café?
- Não, obrigado. Estou bem.
Elas despediram-se e foram para o quarto. Vitório sentou-se novamente, revivendo
aquele encontro inusitado, tentando lembrar-se de cada palavra que haviam conversado
na tentativa de entender o que estava oculto.
Passava da três da madrugada quando Paulo entrou na sala e aproximou-se de Vitório.
- Pensei que você fosse dormir até de manhã.
- Não. Acordei e não consegui conciliar o sono. Estou remoendo os fatos em busca de
mais alguma coisa que nos esclareça.
Vitório passou a mão nos cabelos:
- Foi o que fiquei fazendo até agora.
- E qual foi sua conclusão?
- Logo depois que você foi dormir, eu vim para cá e aconteceu uma coisa inesperada
que me deixou ainda mais confusa.
- O que foi?
Vitório contou que vira o casal assassinado, o que eles tinham dito e finalizou:
- A mulher era mesmo muito parecida com minha mãe, estava com raiva dela e falando
em vingança. Disse que caiu em uma cilada e morreu no lugar dela.
- Isso faz sentido, uma vez que o corpo encontrado era parecido com sua mãe, mas não
era o dela.
- Não entendo, minha mãe saiu para viajar pela Europa. Como poderia ter-se envolvido
com essa mulher? Ela nunca falou que conhecia alguma mulher parecida com ela.
- Você pode não ter entendido bem. Ela estava perturbada e você também pode não ter
captado tudo.




133
- Estava muito claro. Eu ouvi muito bem o que eles disseram. Otávio o ameaçou, quer
que vá embora, disse que você está interessado em Marília. Fala nela como se ainda
fossem casados.
Paulo sentou-se ao lado dele no sofá e considerou:
- Nesse ponto ele está certo. Marília é uma mulher especial. Eu seria o homem mais
feliz do mundo se ela se interessasse por mim.
Vitório sorriu:
- Quer dizer que ele não se enganou? Você está mesmo interessado nela?
Paulo ficou sério, pensou um pouco e respondeu:
- Estou. Nunca uma mulher mexeu tanto comigo. Perto dela me sinto motivado, feliz.
- Ele acertou mesmo! Você não tinha uma namorada?
- Tinha, mas desisti. Descobri que não a amava como ela merecia.
- Hum! Você está mesmo apaixonado!
- Talvez. Mas isso não é para você ficar repetindo. Alguém pode ouvir.
- Um dia ela vai ter de saber.
- Ainda não. Antes, preciso descobrir o que ela sente por mim. Às vezes noto que ela
me olha com carinho, mas isso pode ser apenas gratidão, amizade por eu a estar
ajudando. Não quero que ela se ligue a mim apenas para ser grata.
- Está certo. Vou prestar atenção e ver se descubro o que ela sente por você.
Paulo sorriu e respondeu:
- Parece que você está torcendo por nós.
- Estou mesmo. Eu nunca me interessei de verdade por mulher nenhuma, mas se um dia
isso acontecer não a deixarei escapar.
Paulo olhou-o sério:
- Você anda triste. A presença de uma mulher em sua vida traria motivação e alegria.
- Enquanto esse pesadelo não acabar, não terei paz.
- Entendo. Nós estamos nos esforçando para resolver essa charada, mas, acima de tudo,
precisamos confiar na vida. Você é um espiritualista como eu, acredito que a vida tem
seus próprios caminhos e trabalha sempre em nosso favor.
- Nos últimos tempos tenho até duvidado disso. O espírito de Analú me abandonou
justamente no momento em que eu mais preciso de apoio.
- O fato de ela não ter se comunicado nem lhe dito nada sobre o que aconteceu não
significa que ela não o esteja ajudando como sempre fez. Pode ser que ela se cale
porque não tem condições de dizer nada.
- Eu pensei que os espíritos iluminados como ela soubessem de tudo e sempre pudessem
nos esclarecer.
- Nem sempre eles sabem tudo porque muitas coisas dependem do livre-arbítrio das
pessoas envolvidas e de fatores alheios à sua vontade, mas mesmo que ela saiba a
verdade nem sempre tem permissão para intervir.
- Ela podia pelo menos aparecer, confortar-me.
- Em vez de reclamar que ela não aparece, não seria mais sensato tentar entender por
que esses fatos estão acontecendo com você? O que a vida pretende ensinar-lhe com
essa situação?
- Isso não tem sentido. Como eu poderia entender e responder a essa pergunta se está
perdido, sem saber o que fazer?
- Todos os desafios que aparecem em nosso caminho trazem um recado da vida. É assim
que ela conversa conosco. Para encontrar essa resposta você terá de refletir, buscar,
perceber como esses fatos estão mexendo com seus sentimentos.
É notando o que mudou em você que vai encontrar essa resposta.
- De fato, eu não sou mais o mesmo. A angústia de perder minha mãe, que representava


134
até pouco tempo a minha própria segurança, faz-me sentir sozinho, abandonado.
Também, meu relacionamento com meu pai mudou. Antes eu o imaginava uma pessoa
egoísta, indiferente, sempre preocupado com dinheiro, mas hoje percebo que ele é um
homem sensível que nos ama e embora não tenha sido o marido ideal que eu gostaria
para minha mãe, a ama de verdade. Para mim, ele tornou-se mais humano, mais gente.
Sinto mais amor e respeito por ele e mais vontade de ajudá-lo a superar esses momentos
de angústia que vivemos.
Vitório fez uma pausa, olhos marejados, o pensamento voltado aos próprios
sentimentos.
Vendo que ele se calou, Paulo tornou:
- Viu quantas coisas você aprendeu com essa situação? Pense: quantas outras ainda terá
de aprender para que a vida lhe traga momentos melhores?
- Você tem razão. Eu mudei. Não sou mais aquele rapaz voltado apenas aos meus
problemas, sentindo-me sozinho no meio da família. Pela primeira vez senti a força dos
sentimentos que nos une e percebi que não estou sozinho, embora o problema de minha
mãe continue sem solução. Ainda há pouco eu estava preocupado com Osmar, um
irmão com o qual eu nunca me entendi e que sempre fez tudo para me humilhar e botar
para baixo. Eu deixei a revolta de lado e quando penso no envolvimento dele com
marginais sinto-me angustiado. Se eu não tivesse sido tão intolerante, ele poderia ter se
tornado mais meu amigo e talvez eu pudesse evitar que ele escolhesse esse caminho.
- Não se culpe. Ele escolheu o próprio caminho e terá de pagar o preço. Mas você é um
rapaz de bons sentimentos e daqui para frente saberá relacionar-se melhor com os seus.
- Certamente. Quantas coisas eu faria se pudesse ter novamente minha família em paz.
Eu saberia valorizar essa convivência, procuraria ser menos mimado e mais interessado
em criar ao redor de mim um ambiente melhor, onde não houvesse desentendimentos
nem rancor.
Paulo colocou a mão no braço de Vitório num gesto de apoio e respondeu:
- Tudo o que aconteceu o fez amadurecer. Você tornou-se adulto, com mais vontade de
viver melhor. Por esse motivo, sinto que não vai demorar em esclarecermos todos esses
fatos. Eu sei que quando as pessoas aprendem o que ávida deseja, o desafio acaba e tudo
volta ao normal.
- Eu estava angustiado, deprimido, mas conversar com você fez com que eu me sentisse
melhor. Estou aliviado e mais otimista.
- Isso mesmo. Não dê força aos pensamentos negativos que enfraquecem, deprimem e
abrem nossas defesas para que espíritos sofredores nos envolvam, contaminando nossas
energias com suas perturbações.
- Analú falou-me sobre isso, mas eu alimentei o medo, a insegurança, atraí essas
presenças desagradáveis e fiquei pior.
- Claro. É que as energias perturbadas que eles têm somaram-se às suas, agravando seu
mal-estar.
- Foi muito ruim. Eu senti aumentar minha angústia, meu medo.
- Você acreditou que eles pudessem fazer-lhe algum mal. Isso não é verdade, um
espírito desencarnado só poderá prejudicá-lo se você baixar sua energia e tornar-se
vulnerável a eles. Caso contrário, não conseguirão nada.
- É difícil manter sempre o pensamento otimista. Principalmente quando estamos
passando por problemas tão graves.
- Concordo. Quando sentir que atraiu esses espíritos sofredores, reaja,pense que foi você
quem abriu espaço para o assédio deles e sendo assim pode mandá-los embora. Se fizer
isso com firmeza, vai melhorar na hora.



135
- Não é fácil. Quando você diz isso, parece que uma voz me diz que é mentira. Que não
tenho competência para fazer isso. Que sou um fraco.
- Essa voz vem do seu subconsciente, indica que você tem um padrão de pensamento
que o faz crer que é um fraco. Não dê importância a essa voz, pense que não é verdade e
afirme que você é forte e capaz. Assim ela vai se calar.
- Onde você aprendeu todas essas coisas?
- Estudando os fatos da vida, experimentando para saber o que funciona.
- Talvez você tenha razão, mas eu não saberia como começar. Confesso que me
encontro perdido.
- É fácil. Preste atenção nas suas atitudes, depois analise o resultado do seu
comportamento. Se esse resultado for bom, indica que você está no caminho certo. Mas
se for desagradável, saiba que precisa observar melhor e descobrir a crença que
determinou essa atitude. Assim descobrirá a causa do seu insucesso. Basta modificá-la e
obterá um resultado melhor.
- Olhando assim até parece simples.
- As coisas verdadeiras são simples. Nós é que costumamos complicar tudo com nossa
cabeça indisciplinada. Há algum tempo eu descobri isso e adotei esse sistema. Garanto,
minha vida tornou-se muito melhor.
- De fato, nossa cabeça é mesmo muito louca. Às vezes passam por ela pensamentos
que nos espantam.
- O bom é que nós temos condições de controlar isso e mudar a sintonia. Trocar os
pensamentos ilusórios, desequilibrados por outros mais reais e possíveis.
Os dois continuaram conversando animados até o dia clarear e Marília aparecer e
surpreendê-los.
- Bom dia! Em vez de um anjo da guarda, agora temos dois.
Dorita entrou na sala e, vendo-os, disse logo:
- Ainda bem que podemos contar com vocês! Vou já para a cozinha preparar um café
reforçado.
- Era isso que estava faltando! - comentou Paulo.
- É mesmo. A conversa estava boa, mas agora ficou melhor - reforçou Vitório.
- Você não dormiu? - perguntou Marília, dirigindo-se a Paulo.
- Dormi, mas acordei cedo e ficamos conversando. Vitório passou a noite acordado.
Sempre rindo e conversando, eles foram para a cozinha esperar pelo café. Enquanto
Dorita preparava as guloseimas, os dois ajudavam Marília a arrumar a mesa.
A cena era agradável e Marília disse:
- Eu estou feliz por ter vocês dois aqui conosco logo de manhã. Começar o dia assim
traz alegria e bem-estar.
Paulo aproximou-se de Marília e, olhando-a nos olhos, respondeu:
- Contar com o carinho de vocês no começo do dia é bom demais. Vou sentir falta
quando tiver de ir embora.
- Você não precisa ir embora. Pode ficar o tempo que quiser - respondeu Marília.
- Você gostaria que eu ficasse?
Os olhos dela brilharam quando respondeu:
- Gostaria muito. - Um pouco corada continuou: - Vocês trouxeram mais vida a esta
casa.
Vitório sorriu e interveio:
- Agradeço por me colocar nesse contexto, sabe que pode contar comigo sempre, mas
noto que Paulo está muito integrado a vocês, se pudesse mudaria para cá e não iria mais
embora.
Dorita, notando o embaraço de Marília, colocou o bule de café sobre a mesa dizendo:


136
- Sentem-se, vamos tomar café antes que esfrie.
Depois do café, Vitório despediu-se e voltou para casa.
Encontrou o pai lendo os jornais na sala.
- Ainda bem que chegou - disse Alberto. - Estou preocupado com Osmar. Há dois dias
estou ligando e não consigo falar com ele.
Vitório sentiu um aperto no peito, mas não deixou transparecer a preocupação:
- Ele deve estar muito ocupado. Você deve estar fazendo falta na empresa.
- Ainda ontem, quando o médico veio ver-me, perguntei se estava em condições de
voltar ao trabalho. Ele aconselhou-me a esperar mais um pouco.
- Você disse que ficaria aqui até descobrirmos o paradeiro de mamãe.
- Eu disse, mas as investigações estão lentas, não há nenhuma novidade. Estou
pensando que seria melhor voltar para a casa. Sinto-me um pouco melhor e não agüento
ficar aqui, sem fazer nada.
- Tenha mais um pouco de paciência. Paulo me disse que os peritos examinaram os
documentos encontrados na casa de Otávio e está esperançoso.
- Não estou sabendo de nada. Ele descobriu alguma coisa nova?
- Parece que sim, mas não contou o quê, para não atrapalhar as investigações.
- Há pouco liguei para Osmar e ele ainda não tinha chegado na empresa. Liguei para
casa e Nora me disse que ele saiu muito cedo nem tomou café. Onde terá ido? Por que
até essa hora não está na empresa?
- Talvez ele tenha ido visitar algum cliente, ou falar com os engenheiros de alguma
obra.
- Ele não costuma fazer isso. Daqui a pouco vou ligar novamente.
- Procure se acalmar. Pode fazer mal a sua saúde. Logo ele vai ligar e explicar tudo.
- É, pode ser... Osmar sempre foi muito dedicado à empresa. Estou impaciente, cansado
de ficar aqui parado.
- Se continuar reagindo, cuidando melhor da saúde, logo vai estar bem e poderá voltar à
empresa. Eu ficarei aqui acompanhando as investigações e mandando notícias.
- É isso mesmo o que farei. Não posso me entregar ao desânimo. Voltar a trabalhar será
para mim um santo remédio.
Vitório sorriu e assentiu com a cabeça, mas sentia um aperto no peito, imaginando o que
seu pai faria quando soubesse que Osmar havia se ligado a bandidos e se tornado um
traficante de drogas.




137
CAPÍTULO 22
Dois dias depois, às dez horas da manhã, Marilia bateu na porta do quarto em que Paulo
dormia:
- Paulo, acorde. O Dr. Monteiro está no telefone, quer falar com você, disse que é
urgente.
- Já vou - respondeu ele, tentando reagir ao sono.Levantou-se de um salto e atendeu ao
telefone:
- Alô.
- Paulo, o médico avisou que Elvira está em condições de falar. Você quer ir comigo?
- Quero. Dentro de quinze minutos estarei aí.
Lavou-se rapidamente, vestiu-se e foi à cozinha, onde Vitório e as duas mulheres
conversavam.
- Bom dia.
- Sente-se e tome café - convidou Dorita.
- Não vou nem sentar. Preciso de um café para espantar o sono. O Dr. Monteiro está a
minha espera para irmos ver Elvira. Parece que ela está melhor e já pode conversar.
- Eu vou com você - disse Vitório. - Ela pode nos dizer se mamãe está viva ou não.
- Vou pedir ao Wagner para vir ficar aqui.
- Coma pelo menos uma fatia deste bolo. Está quente e gostoso - sugeriu Dorita.
- Está bem. Comerei uma fatia, mesmo porque os bolos que você faz são irrecusáveis.
Enquanto você coloca no prato, vou falar com o Wagner.
Ele foi telefonar, voltou alguns minutos depois:
- Ele estará aqui dentro de dez minutos. Enquanto isso terei tempo para tomar o café.
Liguei para o delegado e em vez de irmos à delegacia, iremos encontrá-los no hospital.
Assim teremos mais alguns minutos.
Wagner chegou e os dois saíram rumo ao hospital. Chegaram antes do delegado e
ficaram esperando por ele no saguão.
Monteiro chegou com dois policiais e depois dos cumprimentos, disse a Vitório:
- Logo imaginei que você também viria.
- Estou ansioso para saber o que ela tem a dizer.
- Nós vamos entrar no quarto, o médico disse que ela está muito nervosa. Tanto que ele
ficará junto durante nossa conversa. Talvez seja melhor eu entrar sozinho.
- Por favor, doutor. Permita que eu entre.
- Nós não sabemos o que ela tem para contar. Não sei se você terá calma suficiente para
conter-se. O médico disse que a situação dela ainda é delicada. Ela vai ter de rever os
fatos e isso será penoso.
- Eu prometo que ficarei calado e aconteça o que acontecer, vou me controlar.
- Está bem. Mas quem faz as perguntas aqui sou eu. A menor interferência sua, o
colocarei para fora do quarto. Entendido?
Vitório concordou e eles foram ao encontro do médico que os acompanhou ao quarto de
Elvira.
Entraram e encontraram-na sentada, recostada nos travesseiros a espera deles. O médico
aproximou-se pela lateral da cama e Monteiro o acompanhou. Os outros dois ficaram
mais atrás.
Os dois policiais ficaram na porta, do lado de fora.
- Este é o Dr. Monteiro, delegado - disse o médico. - Foi ele quem a libertou daquele
sanatório e a trouxe para cá.
Elvira estendeu a mão, dizendo emocionada:


138
- Obrigada, doutor. Não sabe o bem que me fez.
- Não fiz mais do que minha obrigação. Quem descobriu onde a senhora estava foi o Dr.
Paulo - respondeu ele, designando o advogado.
- Fico feliz vendo que se sente melhor - disse Paulo sorrindo.
Elvira fixou Vitório e respondeu:
- Esse moço parece com o filho de Teresa. É ele?
Monteiro interveio:
- É ele, sim. Ele quer saber o paradeiro da mãe.
Elvira suspirou triste:
- Os senhores ainda não sabem onde ela está?
- Contamos com a senhora para descobrir o que aconteceu. Até agora não tivemos
notícias dela.
- Que horror! Eles ainda não a libertaram! Vai ver que o Osmar não pagou o resgate.
Vitório não conseguiu controlar a ansiedade e ia falar, mas calou-se a um sinal de
Monteiro.
- A senhora vai nos contar tudo o que aconteceu. Vou chamar meu auxiliar para tomar
seu depoimento.
A um sinal do delegado, Paulo saiu e pouco depois voltou, acompanhado de um dos
policiais que ligou um pequeno gravador.
Monteiro iniciou o interrogatório:
- Segundo sabemos, a senhora foi convidada por Teresa para acompanhá-la a uma
viagem para a Europa. O Dr. Alberto as acompanhou ao aeroporto e garantiu que vocês
entraram na sala de embarque.
Elvira torcia as mãos, aflita.
Ela não queria contar por que tinham ido a São Paulo e o delegado, notando que ela
hesitava, disse sério:
- A senhora não deve esconder nada porque isso pode significar a vida de Teresa. Ela
não apareceu até agora.
Elvira suspirou, engoliu em seco, depois disse:
- Teresa tem um segredo que eu não devo revelar.
- Um casal foi morto de maneira cruel e os documentos de Teresa foram encontrados no
local do crime. A mulher assassinada era muito parecida com Teresa, tanto que o
Osmar, o filho, reconheceu o corpo como sendo dela, mas Vitório e a governanta
provaram que não era ela.
- Um crime! Tem certeza de que não era ela mesma?
- Parece que não. Eu esperava que a senhora nos contasse quem é essa mulher tão
parecida com ela.
- Não sei. Não conheço nenhuma mulher parecida com ela.
Notando que Elvira estava assustada, o delegado tornou:
- Está bem. Agora conte tudo o que aconteceu depois que o Dr. Alberto as deixou no
aeroporto. Pelo jeito vocês não embarcaram naquele dia.
- Não. Teresa tinha um segredo, mas eu não posso revelar.
- Não precisa dizer o que era, conte apenas os fatos.
- Bem, nós nos encontramos por acaso, depois de muitos anos. Fomos colegas de
faculdade. Conversamos e ela contou que seu segredo guardado há muitos anos tinha
sido descoberto por um homem que queria dinheiro para não contar ao Dr. Alberto. Ela
estava deprimida, nervosa, aflita e, sabendo que eu sou sozinha, convidou-me para ser
sua dama de companhia e viajarmos juntas.
Ela fez ligeira pausa, notando que todos a ouviam atentos, continuou:



139
- Ela tinha conseguido o dinheiro exigido pelo homem e queria entregá-lo em troca de
algumas cartas que a comprometiam.
Assim que o Dr. Alberto nos deixou na sala de embarque do aeroporto, esperamos
algum tempo, depois saímos e fomos ao balcão de passagens, alegamos estar passando
mal e as trocamos para alguns dias depois. Compramos passagens para São Paulo, onde
desembarcamos naquele mesmo dia. Quando saímos do aeroporto, alguns homens
armados nos abordaram e nos obrigaram a entrar em um carro com toda a nossa
bagagem.
- Foi assalto? - indagou Monteiro.
- Foi seqüestro. Percebemos isso quando vimos que eles não tocaram em nossas
bagagens nem em nosso dinheiro. Teresa estava com muito dinheiro. Para a viagem e
para o pagamento do homem.
- Continue - pediu o delegado.
- Colocaram capuz em nossas cabeças. Estávamos apavoradas, levaram-nos para uma
casa e tiraram os capuzes. Mais tarde apareceu um homem bem vestido e vimos logo
que era o chefe. Tratou-nos com respeito, disse que não iria nos fazer mal se fizéssemos
o que ele mandasse. Claro que concordamos.
Ela parou novamente, olhos perdidos nas lembranças. Depois de alguns segundos,
respirou fundo e continuou:
- No dia seguinte, depois de nos terem servido um almoço, ele apareceu e perguntou se
tínhamos almoçado bem, se faltava alguma coisa. Dissemos que não, então ele estendeu
um papel para Teresa, um bloco e caneta, mandando que ela escrevesse uma carta para
Osmar.
- Era pedido de resgate?
- Não, doutor. Ele dizia que Osmar lhe devia muito dinheiro e não conseguira pagar, ele
nos prendera até que ele saldasse essa dívida. Ainda disse que era homem de palavra e
que para ele não precisava de papel, que quando alguém não cumpria o que prometera
ele matava.
Teresa ficou aterrorizada por descobrir que Osmar tinha se metido com aqueles
bandidos, fazendo negócios ilegais. Percebemos que estávamos lidando com pessoas
perigosas. Ela escreveu a carta. Teresa disse que Osmar não ia acreditar porque estava
certo de que nós tínhamos embarcado para a Europa. Então ele decidiu mandar-me com
a carta para provar que ela estava em poder dele. Elvira serviu-se de um copo de água
que tinha na mesa de cabeceira e depois prosseguiu:
- Eles me puseram o capuz novamente. Entramos no carro e viajamos durante horas.
Levaram-me a um lugar onde me obrigaram a descer, tiraram o capuz e fui presa em um
quarto. Algum tempo, que não saberia dizer quanto, chamaram-me, entregaram-me a
carta dizendo que saísse e a entregasse ao homem dentro do carro parado diante da casa.
Nem acreditei quando me vi na rua. Era noite e sem pensar em mais nada corri para o
carro:
- "Por favor, ajude-me" - repeti várias vezes. O rapaz parecia mais assustado do que eu.
Finalmente abriu e eu entrei, pedindo que fôssemos embora dali o quanto antes.
Entreguei a carta, dizendo que era de Teresa e ele guardou no bolso, interessado em sair
dali o quanto antes. Eu queria ir à polícia contar tudo, mas ele disse que isso poderia
custar à vida de Teresa. Eu acreditei. Quando já estávamos bem longe, ele disse que
estava preocupado comigo e que iria me levar a um médico para uma consulta, se tudo
estivesse bem, eu iria embora com ele. Mas assim que entrei no hospital, fui levada para
um quarto e deram-me uma injeção. Eu perdi os sentidos. Não sei o que aconteceu e só
fui acordar aqui em São Paulo, neste hospital que em tão boa hora o senhor me trouxe.
- A senhora não teve mais nenhuma notícia de Teresa?


140
- Não, doutor. Não sei o que aconteceu com ela. Espero que Osmar tenha pagado a
dívida e ela tenha sido libertada.
- Ele não pagou, e ela ainda não apareceu.
- Será que aqueles bandidos a mataram conforme prometeram?
- Não sei.
Elvira torceu as mãos nervosamente
- Meu Deus! O que será que aconteceu? A polícia ainda não sabe nada sobre esses
bandidos?
- Temos algumas pistas, estamos investigando. Estou certo de que em breve chegaremos
a eles. Você teria condições de identificá-los?
- Sim. Farei tudo o que for preciso para ajudar a polícia. Depois do que fizeram
conosco, é o que me parece mais justo.
Elvira lançou um olhar receoso sobre Vitório e disse:
- Osmar me pareceu mais preocupado em escapar dos bandidos do que em salvar a mãe.
Eu teria movido céus e terra para salvá-la se pudesse.
- Nós sabemos disso - respondeu Monteiro - e contamos com sua colaboração. Estou
certo de que haveremos de descobrir esses assassinos e colocá-los atrás das grades.
- É o que eu espero. Tenho medo de que eles descubram onde eu estou e queiram acabar
comigo. Afinal, eu posso identificá-los.
- A senhora está neste hospital sob sigilo absoluto. Desde que a trouxemos do Rio de
Janeiro, sua identidade tem sido preservada. Conseguimos impedir até que a imprensa
mencionasse seu nome e seu envolvimento neste caso.
- Fico aliviada. Confesso que quando me recordo deles sinto um frio na espinha e não
consigo evitar o medo.
- Fique tranqüila, a senhora está sob minha proteção.
Vitório aproximou-se de Elvira e, apesar de frustrado, sentia-se emocionado.
- É bom saber que minha mãe tem uma amiga corajosa e sincera como a senhora. O
médico nos disse que em breve terá alta. Onde pensa ir quando deixar o hospital?
- Ainda não sei. Quando Teresa me deu o emprego, vendi todos os meus pertences e
entreguei a chave de minha casa. Tudo o que eu tinha estava naquela bagagem que ficou
na casa dos bandidos. Sou sozinha no mundo e ainda não sei o que fazer.
Vitório colocou a mão sobre o braço de Elvira dizendo:
- A senhora irá para a minha casa. Estou certo de que papai concordará.
- Vocês moram no Rio de Janeiro, não é?
- Sim. Mas atualmente estamos aqui em São Paulo. Alugamos um apartamento. Apenas
Osmar está no Rio de Janeiro. Papai está comigo. Ficamos para acompanhar as
investigações até encontrarmos minha mãe. Mas aconteça o que acontecer, a senhora
pode contar com minha amizade e proteção.
- Obrigada, meu filho. Você é muito parecido com Teresa. Tem o mesmo olhar, o
mesmo jeito de falar. Sua mãe foi minha melhor amiga, guardo delas as mais belas
recordações dos tempos de juventude. Eu também não vou ter paz enquanto não souber
o que lhe aconteceu e onde ela está.
- Agora vamos deixá-la descansar - disse Monteiro.
Depois de se despedirem, eles deixaram o quarto e o delegado perguntou ao médico:
- Quando ela terá alta?
- Ela está muito bem, notei que seu raciocínio é rápido e em perfeito estado. Desta
forma, penso que dentro de dois ou três dias ela poderá sair. Só não a libero agora
porque está muito debilitada e precisa se fortalecer um pouco mais.
- Doutor - tornou Vitório -, pretendo levá-la para casa e cuidar do seu restabelecimento.
Por culpa dos desacertos de meu irmão ela passou por todo esse sofrimento.


141
Cuidar da sua recuperação é o mínimo que poderemos fazer. Depois, ela é amiga de
mamãe, para mim isso vale muito.
- Sua atitude me deixa feliz. Confesso que estava um pouco preocupado com o futuro
dela. É uma pessoa muito só e encontrar amigos far-lhe-á imenso bem.
- Minha mãe a contratou e eu assino embaixo. Sinto que se mamãe a encontrasse, faria o
mesmo.
Eles saíram do hospital e depois de deixar Paulo na casa de Marília, Vitório foi para
casa. Paulo garantiu que não iria dormir mais e ele estava ansioso para contar ao pai as
novidades.
Alberto estava lendo na sala. Vendo-o, indagou:
- Por que veio tão cedo? Não deveria estar na casa de Marília?
- Houve um imprevisto e Paulo colocou Wagner em meu lugar. O delegado ligou para
Paulo avisando que Elvira recobrou a consciência e convidando-o para ir até ela assistir
ao interrogatório. Eu fui junto.
Alberto levantou-se ansioso:
- Você a viu, falou com ela? Ela contou onde está sua mãe?
- Calma pai. Ela também não sabe o paradeiro de mamãe. Mas soubemos parte do que
lhes aconteceu.
- Conte logo. Por que elas não embarcaram naquele aeroporto quando as levei?
- Vou lhe contar. Quando as deixou lá, elas saíram da sala de embarque, transferiram as
passagens para alguns dias depois e viajaram para São Paulo.
- São Paulo? Por quê?
- Elvira hesitou muito para contar o que foram fazer em São Paulo. Disse que mamãe
tinha um segredo e não queria que nenhum de nós soubesse. Há algum tempo ela estava
sendo chantageada por um homem que exigia muito dinheiro para não entregar a você
alguns documentos que a comprometiam.
- Então era isso! Eu notei que nos últimos tempos ela estava muito nervosa, eu diria
descontrolada mesmo. Por que ela não me contou tudo?
- Ela não teve coragem. Vendeu algumas jóias para arranjar o dinheiro e teve idéia da
viagem. Como tinha reencontrado Elvira depois de muitos anos, convidou-a para ser sua
dama de companhia. Elas tinham planejado ir a São Paulo, entregar o dinheiro, apanhar
os documentos comprometedores e viajar em seguida para a Europa.
- Mas pelo visto isso não ocorreu...
Vitório hesitou um pouco, mas resolveu contar a verdade. Mais cedo ou mais tarde, seu
pai iria saber mesmo.
Devagar, observando a reação de Alberto, Vitório foi contando as descobertas da polícia
e o motivo pelo qual Osmar internara Elvira no sanatório.
Alberto ouvia estarrecido. Parecia-lhe que estavam falando de outra pessoa, não de seu
filho predileto. Mas o fato é que não tinha como duvidar. A polícia tinha provas e estava
claro que ele tinha internado Elvira para evitar que ela contasse o que sabia.
Vitório finalizou:
- Apesar de Elvira não saber onde mamãe se encontra, o delegado acha que está muito
perto de descobrir toda a verdade. Já identificaram alguns traficantes que tinham
negócios com Otávio e Elvira vão cooperar, identificando os seqüestradores.
- Custo a crer que Osmar tenha feito isso tudo. Sempre lhe ensinei a ser honesto, não
posso entender onde foi que errei em sua educação.
- Não se culpe, pai. Osmar sempre foi maldoso. Eu nunca tive ilusões sobre o caráter
dele. Só não pensei que ele chegasse a tanto.
Alberto estava triste e abatido. Vitório sentou-se ao seu lado no sofá, colocou a mão
sobre o braço dele e disse com carinho:


142
- Pai. Sempre é melhor saber do que ignorar. Você confiou nele, deixou a empresa em
suas mãos. Eu também sou um pouco responsável por ter me omitido.
- Quando fechei um negócio excelente, ele ficou furioso, foi além do natural. Agora sei
o porquê: ele estava negociando drogas e pretendia desviar dinheiro da empresa para
fazer o pagamento, como eu limpei as reservas, não pôde fazer o que queria.
- O que você fez foi bom. Evitou que ele lesasse a empresa.
- Mas pode ter sido a causa do seqüestro. Meu Deus! Se eles mataram Teresa, nunca me
perdoarei.
- Pai, pare de se culpar. Tenho certeza de que mamãe está viva, escondida em algum
lugar, com medo dos traficantes. Assim que eles forem presos, ela vai aparecer.
- Gostaria de ter sua confiança!
- Quando nós não podemos fazer alguma coisa, colocamos nas mãos de Deus para que
ele faça.
- Quisera ter sua fé! No estado em que me encontro, não sei se consigo acreditar em dias
melhores.
- Pois eu sim. São nessa hora que precisamos reagir, pensar que não estamos sozinhos,
que ao nosso redor espíritos de luz nos mandam energias de conforto e equilíbrio. Mas
elas só vão nos ajudar se acreditarmos no bem, se deixarmos de lado o medo, os
pensamentos dramáticos e fixarmos nossas mentes naquilo que desejam que aconteça.
Os olhos de Alberto estavam cheios de lágrimas quando ele respondeu:
- Ajude-me a fazer isso, meu filho.
- O que de melhor você desejaria que acontecesse agora?
- Que Teresa voltasse, viva, com saúde e que Osmar reconhecesse seus erros e
procurasse recuperar-se.
- Pois então imagine que tudo isso aconteceu. Veja mamãe chegando, cheia de alegria e
amor.
O rosto de Alberto distendeu-se e ele disse:
- Sim. É isso o que eu quero.
- Então, pense constantemente nisso. Pense em sua alegria no momento em que ela
chegar como vai abraçá-la e sentir-se feliz.
- Seria o dia mais feliz de minha vida.
- Esse dia chegará. Estou certo.
Alberto não conteve o pranto e Vitório abraço-o com carinho:
- Chore, pai, jogue fora toda sua mágoa e encha seu coração de esperança.
Alberto deixou as lágrimas correrem livremente por alguns minutos. Quando elas
cessaram, ele sentiu-se aliviado.
- Tem razão, meu filho. É muito bom esperar o melhor e imaginar que é isso o que vai
acontecer.
Vitório concordou depois eles deixaram-se ficar abraçados, calados, sentindo o
momento de entendimento e de cumplicidade.




143
CAPÍTULO 23

Sentada em um canto do pequeno quarto, olhando através dos vidros da janela a tarde
que caía, Teresa sentia-se triste. Estava difícil suportar a saudade que sentia dos filhos,
do marido, do conforto de sua casa e das pessoas que queria bem.
Sozinha, sem ter com quem desabafar seus receios, aflita por não saber o que estava
acontecendo com os seus, procurava passar o tempo e conter a ansiedade, desenhando e
pintando algumas pequenas telas.
Quase não saía, com medo de que os seqüestradores a descobrissem, e a cada dia ficava
mais difícil suportar essa situação. Em especial naquele fim de tarde, quando o outono
se aproximava e o céu estava cinzento, ela sentia a saudade mais forte. Relembrando os
momentos que desfrutara no aconchego da família, percebia o quanto fora feliz sem se
dar conta. A postura de Alberto, que antes ela pensava fosse de desinteresse, agora era
vista com outros olhos. Pequenos acontecimentos, momentos em que ele perdera o
controle, faziam-na pensar que o amor que Alberto sentira desde que a conhecera, ainda
estava vivo, apesar da falta de interesse que ela demonstrara.
Sua paixão por outro homem depois de casada a fizera ser cruel com o marido,
rejeitando seu amor, imersa na ilusão, acreditando que Alberto era a causa de sua
infelicidade, impedindo-a de viver para sempre ao lado de quem amava.
Odiava-o por ele ter aparecido em sua vida, impedindo-a de ser feliz. Pela primeira vez
percebeu que esse sentimento a impediu de retribuir o afeto que ele lhe dispensava e de
viver uma vida melhor.
Recordando-se de tudo quanto acontecera desde que o conhecera, Teresa percebeu o
quanto ele tinha tentado vencer a barreira que ela colocara entre ambos, fazendo várias
tentativas de aproximar-se dela intimamente, de tornar-se um companheiro de verdade.
Naquele momento, daria tudo para estar em casa, sem que nada tivesse acontecido, com
os filhos e com Alberto. Ah! Se pudesse algum dia voltar para casa, agiria diferente.
Trataria de valorizar a companhia dos filhos, procuraria o afeto do homem que sempre
estivera ao seu lado, mas que ela, mergulhada em suas ilusões, recusara.
Além do nome, Alberto lhe dera o respeito de uma vida digna, dois filhos que ela
amava. Como pudera sentir-se frustrada tendo tudo isso? Ela tinha tudo, fora feliz e não
soubera valorizar.
Seria por esse motivo que a vida lhe havia tirado tudo e ela agora estava à margem,
como uma folha morta levada pelo vento forte, sem comando nem destino?
Lágrimas rolavam pelo seu rosto e Teresa, olhando à tarde que morria frente aos
prenúncios do anoitecer, sentiu vontade de se penitenciar, de rever seus enganos e agir
diferente. Teria tempo ainda?
Lembrou-se de Vitório sempre dizendo que a vida fala com cada um através dos
acontecimentos.
Se isso fosse verdade, o que a vida estaria lhe dizendo por meio dos fatos que lhe
tinham acontecido? Claro que ela errara ao entregar-se àquela paixão sendo casada. Mas
tendo escolhido ficar com a segurança da família, reconhecia que ao continuar nutrindo
a ilusão daquela paixão causara a própria infelicidade. Agora, via as coisas com outros
olhos. Mais experiente, notava que se ela tivesse se esforçado em manter um bom
relacionamento com o marido, talvez houvessem se entendido e vivido melhor.
Naquele momento sentiu vontade de pedir à vida que lhe desse uma nova oportunidade.
Se ela lhe permitisse um dia voltar ao convívio dos seus, faria tudo o que pudesse para
conseguir o afeto do marido e o carinho dos filhos. Vitório era um rapaz sensível e


144
carinhoso. Muitas vezes não fora para ele uma mãe compreensiva. Estava fechada
demais em seu mundo egoísta, julgando-se infeliz, sem notar as coisas boas que
possuía.
Osmar era mais difícil e ela tentara ser dura com ele, mas nunca tentara compreender
seu temperamento e chegar de fato aos seus sentimentos íntimos. Agora se arrependia.
Mas talvez fosse tarde. Por que ele se envolvera com os bandidos? Se ela tivesse se
aproximado mais dele, talvez tivesse conseguido notar alguma coisa e tê-lo impedido de
seguir esse caminho. O que deveria fazer para ter uma nova oportunidade de reparar
seus erros e tentar ser feliz?
Pensou em Deus. Teresa não era muito devota. Dinda sempre lhe dizia que ela precisava
ligar-se mais à espiritualidade, procurar Deus no fundo do coração e conversar com ele
para encontrar respostas para suas dúvidas.
Fechou os olhos e, com toda a força, procurou mergulhar no fundo do coração e sentiu o
quanto desejava sair daquela situação infeliz.
Então, começou a conversar com Deus, falando dos seus sentimentos, de como sentia
falta dos seus, de como gostaria de poder voltar para casa, encontrar o marido, os filhos.
Se Deus lhe concedesse mais uma oportunidade de estar com eles, dar-lhes-ia todo o
amor que agora gritava em seu peito, procurando entendimento e aconchego.
Quando ela terminou e abriu os olhos, a noite já tinha caído e o quarto estava escuro.
Acendeu o pequeno abajur ao lado da poltrona e respirou aliviada.
Aqueles momentos de reflexão lhe fizeram enorme bem. Em seu coração havia um
sentimento de paz. Vitório tinha razão. A meditação e a reflexão interior, a ligação com
a alma, fazia muito bem. Ela sentia-se mais confiante. Algo lhe dizia que não podia se
desesperar. Que tudo passaria e ela voltaria novamente há viver um tempo melhor. Só
precisava ser paciente e esperar. Ela não viu, mas o espírito de Analú estava ao seu lado,
inspirando-lhe pensamentos de calma. De sua testa saíam raios de luz colorida que
penetravam no frontal de Teresa, fazendo-a sentir-se mais forte e com mais coragem.
Inspirada, Teresa apanhou uma tela em branco, dispôs o material e começou a pintar.
Analú sorriu e nesse instante o rosto angustiado de Vitório apareceu em sua mente. Ela
decidiu ir ter com ele.
Encontrou-o sentado em seu quarto, cabeça entre as mãos, pensando em Teresa. Estava
difícil aceitar o desaparecimento dela. O fato de Elvira não poder esclarecer seu
paradeiro o deixara aflito. A dúvida se ela estava viva ou morta reapareceu forte e
desagradável.
A idéia de que os seus seqüestradores poderiam tê-la matado o atormentava. Momentos
antes, tentaram encorajar o pai, aparentando uma calma que não tinha. Osmar era o
culpado de tudo. Por que ele não se abria com a polícia, contando tudo o que fizera e
procurando ajudá-los para que encontrassem e prendessem os traficantes, descobrindo o
paradeiro de sua mãe?
Osmar não parecia importar-se com o desaparecimento dela e isso o deixava nervoso.
Não podia conceber que o irmão fosse tão frio a ponto de deixá-la entregue nas mãos
daqueles bandidos, sem que nada fizesse para tentar salvá-la.
Continuava trabalhando na empresa como se nada houvesse acontecido, na costumeira
pose de auto-suficiente, sem importar-se com mais nada, como se tudo estivesse bem.
Naquela mesma tarde, tinha conversado com Paulo sobre esse assunto, aventando a
hipótese de ir ao Rio conversar com o irmão para chamá-lo a razão, dizendo que a
polícia sabia dos negócios escusos que fizera com traficantes, que ele estava na lista dos
suspeitos e tentar convencê-lo a ir espontaneamente procurar a polícia para contar a
verdade e ajudá-la a encontrar Teresa.



145
Ele acreditava que só quando os bandidos fossem presos eles poderiam saber o que
aconteceu.
Mas Paulo pediu-lhe que não fizesse isso. O delegado Monteiro estava empenhado nas
investigações, havia traçado um plano para a captura dos traficantes e essa sua atitude
poderia pôr a perder todo o trabalho deles. Para que o plano do delegado desse certo,
Osmar precisava acreditar que Elvira não contara nada ainda e que a polícia ignorava
sua ligação com os traficantes.Osmar acreditava que sua mãe não corria perigo porque o
pior tinha acontecido e ela estava morta. A tragédia já tinha acontecido e não havia nada
mais a fazer quanto a isso, o melhor era salvar a própria pele. Como não recebeu mais
nenhuma ameaça de morte dos traficantes, preferiu pensar que eles já julgavam que o
tinham castigado o suficiente tendo matado sua mãe.
Analú entrou no quarto de Vitório, aproximou-se dele, colocando a mão em sua testa
com carinho e dizendo:
- Calma, Vitório. Eu estou aqui. Não tema. A tempestade vai passar e tempos melhores
virão. Confie e espere. Não se deixe levar pelo pessimismo. Se desejar ajudar sua mãe,
mantenha o pensamento positivo.
Vitório estremeceu, fechou os olhos e viu Analú na sua frente, sorrindo. Ouviu suas
palavras.
- Finalmente você veio! Por que me abandonou no momento em que eu mais precisava
de ajuda?
- Eu nunca o abandonei. Mas há momentos em que a vida está agindo, ela tem seus
motivos e nós não podemos intervir.
- Estamos sem rumo. Sem saber se minha mãe está viva ou morta. Você pode me dizer
alguma coisa?
- Só posso lhe dizer que Teresa está viva. Espero que isso o anime e o ajude a não se
envolver no pessimismo. Você já deveria ter aprendido que a queixa, o pensamento
ruim, não ajuda em nenhuma situação, só atrapalha.
- Em uma situação como a que estamos enfrentando, é difícil manter os pensamentos
otimistas.
- Onde está sua fé? Você já sabe que não cai uma folha da árvore sem que Deus saiba.
Na natureza tudo tem uma razão boa de ser. O que vocês precisam é procurar entender o
que ávida deseja ensinar-lhes, quais as atitudes de vocês atraíram todos esses
acontecimentos.
- Nós somos pessoas de bem. Nunca fizemos mal a ninguém.
- A vida deseja que vocês amadureçam. Quando as pessoas presas em suas ilusões
demoram em entender essa realidade, ela coloca em seus caminhos fatos que os levem a
refletir, a rever certos valores e a perceber coisas que antes não viam. Isso é amadurecer.
É tornar-se mais lúcido e mais adulto.
- Entendo. Nesse caso, o que será que ela deseja nos ensinar?
- Essa pergunta cada um terá de fazer a si mesmo, porque a resposta é individual. Cada
um terá de encontrar a sua. A vida trabalha sempre em benefício de todos e dispões os
fatos de maneira a que cada um encontre o que precisa.
- Isso me parece sábio.
- A vida é a inteligência do criador em ação. Há muito mais coisas que eu gostaria de
poder lhe ensinar. Mas isso só poderei fazer quando você estiver pronto para receber.
- Eu gostaria muito de aprender todas essas coisas.
- Nesse caso, terá de resistir ao mal, procurando ver sempre o lado melhor das coisas.
Em todos os fatos, mesmo os que chocam pela tragédia, haverá sempre o lado do
benefício que todos só reconhecerão mais tarde. Portanto, aceitar os fatos com



146
entendimento e tentar aprender o que eles querem nos ensinar é o primeiro passo para a
conquista da sabedoria e da serenidade.
- Você pode me dizer se minha mãe está bem?
- Já lhe disse o mais importante e o que era possível. Tenha paciência. Não levará muito
tempo para que tudo se esclareça.
- Temo pela saúde de meu pai. Ele está um pouco doente e abatido.
- Ele está aprendendo muito com esta situação. Quando tudo se normalizar, terá se
transformado em um novo homem, mais humano, mais afetivo, mais verdadeiro.
- Tenho notado que ele mudou muito.
- Continue oferecendo seu apoio e carinho. Isso fortalecerá os laços de amizade entre
vocês dois, eliminando os desentendimentos de vidas passadas.
- Sempre senti que ele não me aceitava.
- Você também não fazia nada para aproximar-se dele.
- É verdade. Eu sentia certa distância, que desejava continuar mantendo.
- Coisas de um relacionamento difícil no passado. Mas hoje, tocados pelos fatos
recentes, vocês estão se modificando, tornando-se mais sensíveis. O amor e a
compaixão sempre levam ao melhor caminho.
- De fato. Estou tocado de compaixão pelos sofrimentos dele. O relacionamento dele
com a mamãe fizeram-me acreditar que ele era um homem frio, voltado apenas aos
interesses financeiros. Mas hoje posso ver que estava enganado. Ele sente por minha
mãe um amor imenso e verdadeiro que nunca imaginei existir. Descobrir isso provocou
em mim um carinho muito grande por ele.
- O amor verdadeiro comove e eleva. Você está no caminho certo. Confie, seja positivo,
dê chance que esse sentimento o envolva e procure demonstrá-lo. Isso os unirá cada vez
mais.
Vitório estava tocado por um sentimento de alegria e plenitude. Toda sua angústia tinha
desaparecido.
- Obrigado, Analú, por ter-me esclarecido. Sinto-me melhor e mais forte.
- Isso mesmo. Continue cultivando esses pensamentos. Eles o fortalecerão cada vez
mais. Agora preciso ir.
- Venha ver-me de vez em quando. Sua presença me ajuda e levanta.
- Lembre-se de que o fato de eu não me comunicar não significa que esteja ausente.
Estou sempre ligada com você e esteja onde eu estiver, é como se estivesse ao seu lado.
Sei de tudo quanto lhe acontece.
- Gostaria que ficasse mais tempo comigo. Ao seu lado me sinto muito feliz.
- Nossa ligação vem de muito tempo. O laço que nos une é forte e verdadeiro.
- É por esse motivo que sua presença me encanta e emociona.
- Eu também gosto de estar com você. Vou embora, mas prometo que um dia voltarei
para contar-lhe coisas do passado, que antecederam os fatos de hoje, e por que eles
aconteceram.
- Isso tem me preocupado. Esse crime montou um quebra-cabeça difícil de resolver. Por
mais que eu tente não encontro a ligação entre as pessoas envolvidas.
- Um dia você saberá. Adeus.
Analú desapareceu e Vitório suspirou, abriu os olhos pensativos. A presença dela tivera
o dom de encher seu coração de esperança. Ela afirmara que Teresa estava viva e isso
no momento era o mais importante.
Na casa de Marília tudo continuava igual. Paulo permanecia vigilante, mas até aquele
momento não tinham recebido nenhuma ameaça e ele não tinha notado nada suspeito
perto da casa.



147
Entretanto, a amizade dele com a família crescia e era com prazer que depois do jantar
sentava-se na cozinha enquanto Marília e Dorita estavam trabalhando, preparando os
quitutes com os quais estavam conseguindo sustentar as despesas.
A procura de seus produtos crescia dia a dia e elas tinham contratado Estela, uma jovem
que morava perto e estava procurando trabalho. Estela tinha vinte e dois anos, era órfã
de pai, sua mãe trabalhava em uma oficina de costura, mas o que ganhava não era
suficiente para pagar os estudos da filha, que pretendia cursar uma faculdade.
Tanto Dorita como Marília simpatizaram com Estela à primeira vista e a contrataram
como experiência, apenas com uma comissão sobre os produtos vendidos, prometendo
rever a situação conforme pudessem. Cheia de vontade, Estela aceitou, afirmando que
se empenharia no trabalho.
Fazia três dias que Estela estava trabalhando, Marília e Dorita estavam satisfeitas com
seu desempenho.
Chegava cedo, fazia tudo com boa vontade, sem escolher serviço e permanecia até mais
tarde quando tinham muitas encomendas para entregar. Além disso, era uma moça
alegre, bem-humorada, que tornava o ambiente, que já era bom, ainda melhor. Elas
trabalhavam rindo e Altair, que nas horas vagas gostava de cooperar no trabalho,
divertia-se muito com suas histórias. Paulo sentia-se bem naquela casa. Altair, que a
princípio o tratava com certa cerimônia, aos poucos tinha se aproximado mais dele, que
procurava estimulá-lo a estudar, conhecer as coisas, conversando, falando sobre a vida,
suas experiências, suas viagens pelo mundo e suas descobertas.
Altair ouvia-o com olhos brilhantes, cheio de interesse e curiosidade. Paulo estimulava-
o, trazendo-lhe livros, mostrando-lhe gravuras, ensinando-o a olhar as coisas pelo lado
melhor.
Vendo os dois na sala, entretidos nessas conversas, Marília sentia aumentar a cada dia
sua admiração por Paulo. Otávio nunca tivera para com o filho esse carinho. Tratava-o
com autoridade, sem se aproximar nem permitir que o menino se aproximasse.
Ela adorava vê-los juntos, rindo, conversando, como se fossem amigos há muito tempo
e sentia que seu afeto por Paulo crescia a cada dia. Em certos momentos notava que ela
a olhava com carinho, mas não sabia se era amor. Quando Otávio morreu, Marília
sentira alívio. A presença dele era pesada. Quando ele entrava em casa o ambiente
ficava carregado, mesmo que ele não estivesse zangado. Por esse motivo, prometera a si
mesma nunca mais envolver-se com ninguém. Mas tinha de reconhecer que estava
completamente apaixonada por Paulo. Dorita, quando a sós com ela, brincava dizendo
que ela parecia uma adolescente, garantindo que ele também estava apaixonado.
- Prepare-se porque um dia desse ele vai se declarar - costumava dizer.
- Bobagem sua. Ele está apenas querendo ser gentil. É um homem educado.
Dorita ria alegre e meneava a cabeça negativamente:
- Parece que estou vendo vocês dois juntos e agora que conquistou Altair, penso que
não vai demorar.
O rosto de Marília cobria-se de rubor e ela tentava dissimular, fazendo com que Dorita
risse ainda mais.
O telefone tocou, Dorita atendeu e procurou Paulo:
- O Dr. Monteiro quer falar com você.
Paulo atendeu em seguida. Depois dos cumprimentos ele disse:
- Prepare-se, Paulo. Ontem fizemos uma diligência que deu ótimos resultados, Dentro
de poucos dias teremos novidades. Estou fazendo um plano que me parece definitivo.
Não posso dar-lhe detalhes agora. Mas amanhã passe aqui na delegacia no fim da tarde
para conversar. Vou precisar de você.
- Pode esperar, irei. Acha mesmo que estamos para encerrar o caso?


148
- Estou quase certo. Espero você amanhã.
- Estarei aí.
Paulo desligou o telefone pensativo. Marília que ouvira a conversa indagou:
- Você acha mesmo que o delegado está para encerrar o caso? Já encontrou os
assassinos?
- Isso eu não sei. Mas foi o que ele quis dizer. Esse assunto é delicado e não se pode
conversar pelo telefone.
Marília baixou os olhos, triste. Notando, Paulo indagou:
- Parece que ficou triste. Não quer que os assassinos de seu marido sejam presos?
Ela hesitou um pouco, depois o olhou nos olhos e respondeu:
- Claro que eu quero que sejam presos, mas isso fará com que você tenha de ir embora.
Ele aproximou-se dela, segurando seu braço:
- Você gostaria que eu ficasse mais?
Os olhos dela estavam brilhantes, com lágrimas prestes a cair.
- Sim - respondeu baixinho.
Paulo abraçou-a com carinho, levantou seu queixo e beijou seus lábios com amor. Foi
um beijo longo, cheio de ternura e emoção.
O coração batendo forte, Marília correspondeu cheia de carinho e eles beijaram-se
muitas vezes. Depois, ele disse:
- Eu amo você. Nunca senti por ninguém o que estou sentindo agora. Quero que fique
para sempre a meu lado.
- Eu também o amo. Não posso mais conceber minha vida sem você.
Eles beijaram-se de novo, esquecidos de tudo. Nem viram Dorita feliz, observando-os,
escondida atrás da porta da cozinha.




149
CAPÍTULO 24
Osmar chegou à empresa irritado. Na noite anterior fora a uma recepção e encontrara
Aurélia ao lado do rival, não escondendo os sentimentos que nutriam um pelo outro.
Apesar de tudo quanto Norberto tinha feito na tentativa de armar alguma coisa contra
esse doutorzinho que cruzara seu caminho, não tinha conseguido sucesso.
O homem tinha sorte demais. Contra ele nada dava certo. Norberto talvez não tivesse
esse empenhado como deveria. Ele era bom em desviar as pessoas indesejáveis do seu
caminho. Tinha feito isso algumas vezes com sucesso. Por que com o médico tudo dava
errado?
Sentou-se atrás da escrivaninha, abriu o jornal e lá estavam os dois, sorridentes e felizes.
Embaixo uma frase: "O casamento de Aurélia Saldanha com o Dr. Augusto Mendonça
está marcado para daqui a um mês. Depois do casamento, os noivos viajarão para a
Itália em lua-de-mel".
Isso não poderia acontecer. Ele teria apenas um mês para separar os dois e talvez fosse
melhor procurar outra pessoa para o serviço. Em último caso, faria o médico
desaparecer para sempre. O que ele não podia era permitir que ele roubasse a mulher de
sua vida.
Naquele dia não conseguiu trabalhar. Sua cabeça estava naquela foto e no futuro
casamento dos dois. Uma onda de rancor o envolveu. Teve vontade de acabar com o
rival com suas próprias mãos.
Imerso em seu ódio, ele não percebeu que duas sombras escuras estavam ao seu lado,
transmitindo-lhe pensamentos de ódio e vingança.
Apesar de desejar a morte do médico, ele preferia que outro fizesse o serviço sujo. Mas
ao mesmo tempo não queria colocar outra pessoa a par do que planejava, com receio de
mais tarde ser chantageado. Apesar de tudo, Norberto era de sua confiança, já lhe
prestara outros serviços e nunca desejara tirar proveito, além do que recebera como
pagamento.
Uma das sombras colocou a mão na testa de Osmar dizendo:
- Se você não fizer nada, eles logo estarão casados e você nunca a terá. É muito fácil
tirá-lo do caminho... basta querer. Você é forte, espere-o em uma esquina escura e acabe
com esse sofrimento!
Osmar não ouviu aquelas palavras, mas pelo seu pensamento se via esperando o médico
em uma esquina próxima de sua casa, com uma arma, pronto para atirar. Olhava em
volta e não tinha ninguém.
Por que ele mesmo não fazia o serviço? Assim, além de não ter de pagar nada, não
correria o perigo de ser traído.
"Mas e se alguém aparecer e me ver?", pensava.
- Que nada, não vai aparecer ninguém. Eu vou ajudá-lo - continuou falando em seu
ouvido o vulto escuro.
O outro vulto aproximou-se:
- Ele é covarde, nunca vai fazer o que você quer.
- Vai sim, Renata. Fique firme que vamos conseguir.
- Esse desgraçado tem de pagar pelo que nos fez.
- Por causa dele morremos daquela maneira horrível. Olhe para mim, veja meus
ferimentos ainda sangram.
- Pois eu preferia encontrar aquela traidora que me mandou para a morte. Não tenho
nada a ver com ele. Por causa dela estou aqui. Veja minhas mãos, elas ardem sem parar.
Meus ferimentos ardem.


150
- Eu morri inocente. Fui apenas o intermediário da venda e também não fui pago. Osmar
é o culpado. Quero que ele mate o homem e vá preso. Então ficarei ao lado dele me
sentindo vingado, vendo-o sofrer em uma cadeia imunda.
- Pois eu preferia ficar onde Teresa está.
- Nós tentamos, mas não conseguimos entrar. Ela deve ser protegida dos maiorais.
- Eu não me conformo! Depois de tudo quanto ela nos fez!
- Você aceitou fazer o que ela pediu pensando no dinheiro que iria ganhar.
- Claro. Nunca poderia imaginar que aqueles homens iriam aparecer para nos matar.
- Nem Teresa sabia disso. Ela não pensou que você poderia ser morta.
- Pensou sim. Por que não quis ir ela mesma? Porque estava com medo. Pressentia que
tudo aquilo poderia acontecer.
Enquanto os dois conversavam, Osmar sentia a raiva aumentar. Não conseguia
trabalhar. Decidiu sair e procurar Norberto. O que não podia era ficar parado esperando
o pior acontecer.
Saiu e foi à procura dele. Era cedo e o escritório dele ainda estava fechado. Osmar
voltou para a empresa pensando em retornar mais tarde.
À tarde, na casa de Marília, o ambiente estava alegre e descontraído. Assim que Vitório
chegou, encontrou Marília e Paulo conversando de mãos dadas e pela fisionomia deles
compreendeu que tinham se entendido.
Depois dos cumprimentos disse contente:
- Parece que o inevitável aconteceu.
- O quê? - indagou Marília, acanhada.
- Aconteceu, sim - concordou Paulo, sorrindo e apanhando novamente a mão que
Marília retirara quando Vitório entrou. - Nós nos amamos e pretendemos nos casar.
- Parabéns! - tornou Vitório, rindo. - Olhando o rosto radiante de vocês sinto uma ponta
de inveja. Gostaria também de encontrar alguém para alegrar minha solidão.
- Você não tem porque não quer - disse Marília, que tinha ficado mais à vontade.
- Não é bem assim...
- É jovem, tem boa aparência e um grande coração. Estou certa de que logo vai aparecer
alguém para iluminar sua vida.
Estela apareceu na porta e convidou-os para testar um bolo que ela mesma fizera,
receita de sua avó alemã.
- Acabei de tirar do forno. Quero que experimentem e dêem uma opinião. É muito
gostoso, faz vista e não fica caro. Dá para ter um bom lucro.
Paulo olhou para Marília e disse:
- Além de tudo, Estela é uma ótima negociante. Gostei de ver!
- Ela é das nossas! Parece até que sempre estivemos trabalhando juntas.
Conversando alegres foram à cozinha, onde Estela, rosto enrubescido pela emoção,
serviu-lhes uma generosa fatia do bolo, cujo aspecto e odor eram convidativos.
Eles saborearam satisfeitos e Dorita comentou:
- Vamos colocá-lo em nossa lista de produtos. Será o Bolo da Estela.
- Isso mesmo - aduziu Marília -, está muito bom. Leve, gostoso, uma delícia.
Paulo olhou no relógio, depois comentou:
- Está na hora de falar com o Monteiro na delegacia.
Ele preparou-se para sair e Marília acompanhou-o até a porta:
- Volte logo - pediu.
Ele beijou-a levemente nos lábios e respondeu:
- Talvez eu me demore. Vamos fazer uma reunião com Monteiro. Ele vai expor seus
planos para o xeque-mate. Pode levar tempo. Mas voltarei o mais rápido que puder.
- Estou rezando para que ele prenda logo todos esses bandidos.


151
- Eu também.
Enquanto isso, na cozinha, Vitório aproximou-se de Estela e perguntou:
- Nós não nos conhecemos de algum lugar?
- Não. Por quê?
- Desde que a vi tenho a impressão de que já nos encontramos antes.
Ela sorriu, fez um ar malicioso e respondeu:
- Eu também me pergunto de onde o conheço. Estou certa de que não foi aqui. Terá sido
em outras vidas?
Vitório fixou-a admirado. Não esperava essa resposta.
- Você acredita que tenhamos tido outras vidas além desta?
- Eu sinto que já vivi muitas vidas antes desta. Sei de coisas que não aprendi nesta vida,
que já faziam parte de mim quando nasci.
- Eu também sinto isso. Sonho com minhas vidas passadas.
- Eu sei como é isso. Nesses sonhos nos encontramos com pessoas conhecidas daqueles
tempos, mas que não estão aqui.
Vitório estava admirado. Ele evitava falar nesse assunto por saber que muitos têm
preconceito por ignorar essa realidade. Mas Estela falara com naturalidade e ele ficou
encantado.
Quando Marília voltou à cozinha, os dois continuavam conversando e ela admirou-se de
ver Vitório tão falante. Ele sempre se mantinha discreto, só falando o essencial.
Elas voltaram ao trabalho e Vitório continuou saboreando o bolo com prazer. Era-lhe
muito agradável ficar naquela casa com aquelas mulheres. Sentia-se muito à vontade e
bem-disposto. O encontro com Analú proporcionara-lhe imenso bem. Acalmara sua
ansiedade e o fizera notar outros lados da vida que ele esquecera, preocupado com a
ausência de Teresa.
Agora que Analú lhe garantira que ela estava viva e que em breve tudo se resolveria,
sentia-se alegre e com vontade de conversar.
Observando-a notou o quanto Estela era graciosa e semicerrando os olhos ficou
surpreendido com o brilho de sua aura, que refletia pensamentos nobres e bondosos.
Reconheceu que aquelas três mulheres eram muito especiais e decidiu fazer tudo para
continuar mantendo com elas um relacionamento verdadeiro.
Estela surpreendeu os olhos de Vitório fixos nela, e fixou os dela nele também,
momentaneamente, esquecida do que estava fazendo.
Dorita cutucou Marília e deu uma piscada maliciosa, chamando a atenção dela sobre os
dois. Marília notou e sorriu. Ela estava feliz com o amor de Paulo, de bem com a vida e
desejava que todos fossem felizes como ela.
- Está na hora de você também, Dorita, arranjar um amor.
A outra se assustou:
- Eu?!
- Do que se admira? Você é muito moça para ficar sozinha.
Ela riu bem-humorada e respondeu:
- No outro dia o filho do seu Mário, dono da lanchonete que fez aquela encomenda
grande, queria sair comigo. Mas eu não quis.
- Por quê? Não gostou dele?
- Sou uma pessoa ocupada. Não posso perder tempo com namoricos.
Depois, ele era muito novo para mim. Estou escaldada. Minha fé nos homens está
abalada.
Vitório, que ouvira tudo, interveio:
- Quero só ver a hora em que aparecer um homem simpático, bem-intencionado...
- Assim, quem sabe... - brincou ela.


152
O momento era de alegria e descontração e eles continuaram conversando, enquanto
elas continuavam a tarefa.
Paulo chegou na delegacia e foi falar com Monteiro. Assim que entrou, o delegado
recebeu-o bem-disposto. Depois dos cumprimentos Paulo brincou:
- Estamos prontos para o xeque-mate?
- Tudo faz crer que sim. E o peixe que vamos prender é dos maiores.
- Gil Duarte? O empresário de fachada?
- Esse mesmo, e seus comandados. Estamos preparados para acabar com toda a
quadrilha. Mobilizamos policiais de três Estados, mas a rede está pronta. Nenhum vai
escapar.
- E Osmar?
- Está acuado. Apertei o Nelsinho, prometi ajudá-lo se nos dissesse toda a verdade e ele
cooperou. Contou-nos tudo.
- Ele sabe o que aconteceu com Teresa?
- Não. Mas saberemos tudo assim que Gil estiver em nossas mãos. Há anos temos
tentado prendê-lo, mas ele nunca se deixou apanhar. Agora temos provas. Elvira e
Nelsinho estão dispostos a testemunhar. Osmar também será uma testemunha valiosa.
- Terá de convencê-lo a falar. Ele não me parece fácil. É astucioso e esperto. Vai querer
negar tudo.
- Ele pode fazer o que quiser. Nós temos provas. Eu até acho que quando ele perceber
que não lhe resta mais nada, tratará de tentar salvar a própria pele. Abrirá o jogo.
- Por que tem tanta certeza?
- Esta manhã, depois que eu falei com você, tive uma visita inesperada que esclareceu
muita coisa sobre aquele crime. É mais uma testemunha do caso.
- Por esse motivo você está tão alegre? Quem é essa testemunha?
- Um motorista de táxi. Naquela noite ele levou Teresa na casa do crime.
- Não diga! Então aquele corpo é mesmo dela?
Monteiro sorriu, fez um ar de mistério e respondeu:
- Não. Quem morreu foi a outra muito parecida com ela. Vou contar-lhe tudo. Hoje de
manhã, quando cheguei aqui, soube que tinha um motorista de táxi a minha espera. Ele
me disse que tinha uma revelação a fazer sobre o crime que estamos investigando, mas
que só falaria comigo.
Intrigado, mandei-o entrar. Quando ele entrou, notei que estava com muito medo e
procurei conversar com ele para que ficasse mais à vontade. Perguntei seus dados,
quando o vi mais calmo indaguei o que tinha a dizer e ele começou:
- Devo contar-lhe que estou com muito medo. Trabalho com táxi há mais de quinze
anos e nunca me envolveu em nada perigoso. Sou um homem de bem, pai de família,
cumpridor de minhas obrigações de cidadão.
- Sei disso. Continue por favor.
- Desde o momento em que li as notícias daquele crime nos jornais tive vontade de
procurar a polícia, mas tive muito medo de ser envolvido. Afinal, era um crime
misterioso e muito cruel.
- O que o fez vir agora?
- O remorso. Tenho acompanhado o caso pelos jornais, li a entrevista do filho de Teresa
desesperado por não saber o que lhe aconteceu. Minha mulher me convenceu a vir aqui,
dizendo que eu poderia pelo menos dizer que Teresa estava viva depois daquele crime.
- Você esteve com ela naquela noite?
- Vou contar-lhe tudo.
Emocionado, ele contou que naquela noite ele apanhou duas passageiras. Eram tão
parecidas que ele imaginou que fossem irmãs gêmeas. Levou-as ao endereço pedido,


153
lembrava-se da conversa delas. Uma chamava Teresa e a outra, Renata. Teresa dava as
instruções para ela entrar na casa, entregar o dinheiro, que ele presumia estar em uma
frasqueira, e voltar em seguida. Ele notou que as duas estavam com muito medo. Renata
foi, entrou na casa e pouco depois chegou outro carro do qual desceram quatro homens
que também entraram ali. Teresa ficou assustada e pediu que ele saísse dali e dobrasse a
esquina. Ela desceu do carro e ficou espiando o que acontecia na casa. Assim, ele
continuava seu relato:
- Eu notei logo que tinha alguma coisa errada, queria ir embora e aconselhei-a a isso,
mas ela não queria deixar a outra lá. Vendo que os homens saíram e foram embora,
esperamos, mas a Renata não voltou. Então, Teresa foi até a casa procurá-la, mas voltou
logo, dizendo que ela já tinha ido embora e que podíamos ir também. Deixei-a em um
hotel. Quando li o crime no jornal, imaginei que a outra mulher tinha sido morta. Pensei
em vir aqui, mas o medo foi maior. Se aqueles homens soubessem que eu os tinha visto,
minha vida não valeria mais nada.
- De fato. Trata-se de traficantes muito perigosos. Mas nós temos condições de defendê-
lo. Não precisa temer. Peço-lhe que não fale a ninguém que esteve aqui e que sabe quem
são os assassinos.
- Só minha mulher é que sabe do caso. Ninguém mais. Ela também não vai abrir a boca.
O delegado finalizou:
- Esse taxista está à disposição. Deu o endereço do hotel onde deixou Teresa naquela
noite. Mandei investigar e soube que ela esteve lá, mas se mudou para outro lugar.
Não sabemos onde.
- Está se escondendo com medo dos traficantes. Pelo menos sabemos que ela está viva.
Assim que souber que os bandidos estão presos, ela vai aparecer.
- Se não fosse pelo Vitório e pela Dinda, nós teríamos enterrado essa Renata como se
fosse Teresa, o que teria sido um tremendo engano.
- Ainda resta uma pergunta: Quem será essa Renata que morreu no lugar de Teresa, sem
que ninguém da família tenha ainda ouvido falar?
- Isso a própria Teresa poderá esclarecer. O fato é que temos mais uma testemunha
contra Gil Duarte e desta vez ele não poderá se safar.
- Qual será o próximo passo?
- Eu tenho um plano para prendê-lo com todos os seus asseclas e faremos isso. Com
base no inquérito que ontem, vamos conseguir uma ordem de prisão para todos os
envolvidos, inclusive Osmar. Depois, faremos várias diligências ao mesmo tempo.
Quero apanhá-los de surpresa.
- Quando pensa fazer isso?
- Se possível esta noite mesmo. Já enviei os documentos para o delegado do Rio de
Janeiro e ele cumprirá o mandato de prisão contra Osmar e enviará preso para São
Paulo.
- Vai ser um choque para Vitório e o pai.
- A verdade sempre dói. Infelizmente, nada posso fazer. O moço escolheu esse caminho.
- O pai o tinha como seu melhor filho. Era nele que depositara todos os seus anseios
para o futuro.
- Quem se ilude candidata-se à desilusão.
Paulo sorriu e respondeu:
- Você disse uma grande verdade. Ele se iludiu, acreditando que o filho fosse como ele
gostaria, criou expectativas fora da realidade e, no fim, só poderia se desiludir.
- Os pais nunca querem enxergar os pontos fracos dos filhos.
- Isso impede que eles os ajudem a escolher um caminho melhor.



154
- Estou contente porque acredito que resolvemos mais um crime misterioso. Mas como
você sabe, só podemos "cantar vitória" quando todos estiverem presos. Vou reunir meus
homens e planejar toda a ação. Conto com você.
- Claro. Estou à disposição.
Monteiro reuniu os homens em uma sala e começaram a planejar cuidadosamente como
iriam agir.

"ONDE




155
CAPÍTULO 25
Paulo ligou para a casa de Marília e quando ela entendeu disse-lhe que aquela deveria
ser a grande noite. Ele não sabia a que horas poderia voltar para lá.
- Monteiro pediu que eu fosse com eles e eu aceitei. Se tudo sair como esperamos,
dentro de algumas horas teremos chegado à solução do caso.
Marília ficou apreensiva:
- Tome cuidado.
- Fique tranqüila. Não vai nos acontecer nada.
- Ficarei esperando ansiosa. Só sossegarei quando você estiver de volta.
- Não tenha medo de ficar só. Vou pedir para o Wagner ficar no meu lugar.
- Não quero que nada lhe aconteça.
- É bom saber que se preocupa com o meu bem-estar. Mas não há perigo. Sabemos nos
defender.
- Não me deixe sem notícias.
- Ligarei assim que puder. O Vitório ainda está aí?
- Sim. Ele disse que só iria embora depois que você chegasse. Está ansioso para saber
como vocês vão fazer.
- Ele não vai gostar de saber que Osmar vai ser preso. È melhor eu falar com ele e lhe
explicar tudo.
Marília chamou Vitório, que atendeu prontamente. Paulo foi direto ao assunto:
- Monteiro conseguiu um mandato de prisão para todos os envolvidos e Osmar está
entre eles.
Vitório estremeceu:
- Ele vai ser preso?
- Vai. Não podemos evitar. Ficou provado que ele está metido com os assassinos e até
que pode ter sido a causa indireta do crime.
Vitório ficou calado por alguns instantes, depois disse:
- Era isso o que eu temia. Meu pai vai ficar arrasado.
- Vou pedir ao Wagner para ficar aí, em meu lugar, e assim que ele chegar você pode ir
para a casa ficar com seu pai e tentar preparar o espírito dele para o que vai acontecer.
- Não sei como fazer isso. Ele vai sofrer muito.
- Vá para sua casa, ligue-se com os espíritos amigos, peça-lhes inspiração e força para
superar o que virá e estou certo de que vai encontrar a maneira melhor de dar essa
notícia a seu pai.
Vitório suspirou triste:
- É o que vou fazer. Mas estou muito triste, nunca pensei que Osmar fosse acabar assim.
- Ele procurou esse caminho. Pense que talvez essa seja a maneira que a vida encontrou
para fazê-lo refletir sobre seus atos e, quem sabe, mudar o rumo da sua vida. Ele é
moço, depois de resolver seu caso com a justiça, mais amadurecido, terá chance de
recomeçar e seguir um caminho melhor.
- Tem razão. Assim que Wagner chegar irei para a casa. Sei que você vai estar ocupado,
mas, por favor, assim que puder me telefone.
- Pode deixar.
Paulo desligou o telefone e juntou-se à equipe que estava se preparando para entrar em
ação.
Vitório. Chegou, em casa e encontrou o pai na sala, lendo. Vendo-o entrar. Alberto
fechou o livro:



156
- Eu já jantei. Não o esperei porque não posso comer muito tarde. Não me faz bem.
Você já jantou?
- Não, mas estou sem fome. Na casa de Marília estamos sempre comendo uma coisa ou
outra. Tudo o que fazem é uma delícia.
- Você não pode ficar beliscando dessa forma. Tem de alimentar-se melhor.
- Na verdade eu me alimentei muito bem. Não se preocupe. Vou para o quarto, mas
voltarei em seguida. Quero conversar com você.
Alberto fixou-o sério. Desde que soubera das atividades de Osmar ele temia ouvir as
notícias. Sentia que chegaria uma hora em que seu filho teria de ser responsabilizado
pelo que estava fazendo e temia esse momento. Mas como Vitório não disse mais nada
ele guardou silêncio, olhando-o com ar de preocupação!
Vitório foi para o quarto, sentou-se na cama, fechou os olhos, colocou a mão direita na
testa, procurando concentrar-se. Pensou em Analú, pedindo-lhe que o ajudasse nessa
hora.
A idéia de que Osmar seria preso o deixava triste. Naquele momento, sentiu que, apesar
dos desentendimentos que sempre houve entre eles, nunca lhe desejara mal.
A idéia de vê-lo preso, humilhado, sendo tratado como um bandido o fazia sofrer. Não
era só o sofrimento dos pais que o incomodava, mas também o de Osmar. Como ele
enfrentaria a prisão?
Ele sempre fora arrogante, vaidoso, julgava-se superior em inteligência e em tudo o
mais. Como ele reagiria?
Temia que se descontrolasse, não quisesse aceitar a prisão, tentar fugir ou cometesse
alguma besteira.
Vitório tentou reagir. Ele precisava controlar esses pensamentos e tentar o contato com
os espíritos iluminados. Sabia que só conseguiria isso se conseguisse entrar em uma
energia melhor.
Procurou entrar em seu coração, ficar no bem e manter um sentimento amoroso.
Mentalizou Osmar e então brotou uma ternura em seu interior, um sentimento de
amizade por ele como nunca sentira antes e uma vontade muito grande de ajudá-lo, de
fazê-lo compreender que precisava assumir seus erros, enfrentar os resultados de seus
atos para poder se recuperar.
Teve vontade de empenhar-se para conseguir que Osmar entendesse isso. Conseguiria
que ele o ouvisse?Nesse instante, Vitório viu o espírito de Analú na sua frente, olhando-
o com carinho. Não se conteve:
- Analú. Você veio!
- Eu estava aqui mesmo antes de você chegar, mas só agora você melhorou suas
energias e pôde me ver.
- Quero pedir-lhe que me ajude a conversar com meu pai sobre Osmar.
- Você colocou seu amor sobre Osmar. Faça isso com seu pai. Essa é sua maior força.
Com ela você vencerá todos os problemas.
- Eu não sabia que gostava de meu irmão. Nós nunca nos entendemos bem.
- Os laços que os unem são antigos. Antes dos acontecimentos que provocaram seus
desentendimentos vocês se estimavam.
- O afeto que estou sentindo por ele me surpreendeu muito.
- Quantos segredos ainda estão guardados em seu coração? Quantas passagens de outras
vidas continuam influenciando vocês até hoje?
- É verdade. Por que não me conta tudo o que aconteceu naquele tempo?
- Prometo que voltarei para contar-lhe. Mas ainda não é o momento. A tempestade
continua em andamento. Quando ela passar, prometo esclarecer todas as dúvidas.
- Ajude-me a dar a notícia a meu pai. Receio por sua saúde.


157
- Pense nele com carinho e deixe seu coração falar. Estou certa de que saberá fazer isso
muito bem. Vá! E, não tema saiba que estarei ao seu lado.
Ela desapareceu, Vitório respirou fundo e pensou no pai. Uma onda de carinho o
acometeu e ele levantou-se indo à sua procura.
Uma vez na sala, sentou-se no sofá, ao lado dele, dizendo:
- Precisamos conversar.
Alberto olhou-o preocupado:
- É sobre o Osmar?
-É. Como você sabe, ele sempre foi ambicioso, desejou ter muito dinheiro, poder por
causa disso se iludiu. Não teve a sua paciência. Acreditou que poderia conseguir
rapidamente o que desejava e entrou em um caminho perigoso.
Alberto suspirou triste:
- Foi por causa da insensata paixão que ele tem por Aurélia. Ela nunca o amou, mas ele
pensou que se fosse um homem importante, tivesse muito dinheiro e poder, a
conquistaria. Ele mesmo me disse isso.
- Essa ilusão o arrastou para a desgraça.
- Traficar drogas é o que se pode chamar de pior. Ele não pensou na desgraça que estava
espalhando, na dor das famílias que têm um viciado em casa. Passou por cima de tudo,
alimentando sua ambição, esquecendo-se de todos os ensinamentos com os quais foi
educado. Pensando nisso, sinto-me derrotado, fracassado como pai. Eu não fui capaz de
perceber nada nem de inspirar-lhe um comportamento melhor.
- Você não tem culpa de nada. Ele fez isso sozinho.
- Mas dói muito saber que ele vai ter de pagar elevado preço pelo seu erro.
Vitório colocou a mão no braço do pai dizendo com voz suave:
- A vida vai responder a ele de acordo com suas atitudes. Nós que amamos não
desejamos que ele sofra. Mas, pai, de que outra forma ele poderia aprender, senão
respondendo pelo que fez? O remédio pode ser amargo, mas lhe dará chance de curar-
se.
- Pressinto que algo ruim vai acontecer com ele. Você sabe como vão as coisas?
- Há essa hora, Paulo está com o delegado participando de uma diligência para prender
os traficantes envolvidos naquele crime.
- E Osmar está envolvido?
- Está. O nome dele figura com os traficantes e o delegado acredita até que Osmar
involuntariamente tenha sido o causador dessa desgraça!
Alberto levou a mão à cabeça:
- Meu Deus! Será possível?
- Ele colocou Elvira naquele sanatório com medo que ela contasse o que sabia sobre o
envolvimento dele com os assassinos.
- O que vai acontecer agora?
- Bem, o delegado expediu uma ordem de prisão para Osmar e nesta noite mesmo ele
vai ser preso.
Alberto levantou-se nervoso:
- Era isso que eu temia!
Vitório puxou-o pelo braço, forçando-o a sentar-se novamente.
- Não podemos perder o controle. Agora temos mais do que nunca enfrentar essa
situação com coragem.
- Meu filho preso! Que vergonha. Ele que sempre foi o meu orgulho, vai ser humilhado,
escarnecido, olhado como um bandido!
As lágrimas rolavam de seus olhos e ele deixou-as cair, sentindo-se impotente.
Vitório colocou o braço sobre os ombros dele, dizendo:


158
- Reaja, pai. Não se deixe levar pelo desespero. Nós temos de ser firmes, corajosos,
olhar o que aconteceu de maneira realista.
- Nada pode ser mais real do que isso! A desgraça chegou e não podemos fazer nada
contra ela.
- Você está sendo pessimista. Vamos olhar os fatos de outra forma.
- Como não ser pessimista diante de uma situação como essa?
- Eu não vejo assim. Eu não estou contente com o que está acontecendo, mas prefiro
olhar de forma diferente. Quem nos garante que a humilhação da prisão, o sofrimento a
que Osmar deverá passar, enfrentando essa vergonha, não o levará a refletir melhor
sobre seus atos? Vendo revelado um lado seu que ele quis ocultar, descobrirá que não é
tão "esperto" como se julgava e chegará à conclusão de que é muito perigoso enveredar
por esse caminho. Esse poderá ser o começo da sua recuperação.
- Será muito doloroso.
- O que mais ele poderia esperar depois do que fez? Temos que apoiá-lo com carinho,
mas com firmeza, porque é fundamental que ele assuma o que fez. Sinta o alcance de
seus atos e isso não seremos nós que vamos fazer, mas a vida que já está fazendo.
Faremos tudo para ajudá-lo, porém não vamos intervir nos fatos que estão acontecendo,
tentando camufla-los, torcendo-os de forma a que Osmar continue se iludindo. À hora
da verdade chegou e vamos aceita-la com dignidade e vontade de daqui para frente fazer
nosso melhor.
- Eu penso como você. Nunca imaginei que me daria tanto apoio nesta hora difícil. É
que eu não sabia que você era tão lúcido e bondoso. Não sei o que faria neste momento
sem seu apoio.
- Eu estarei sempre ao seu lado. Os traficantes serão presos. Tenho certeza de que
mamãe logo estará de volta.
- Como estará ela? Como reagirá ao saber que Osmar vai ser preso?
- Ela foi a primeira saber sobre ele. Elvira contou. Mas estou certo de que ela também se
juntará a nós para ajudar Osmar e faze-lo entender como retomar o caminho do bem.
- É verdade. Isso! É bem dela. Dedicada, mas digna.
- Nós estamos sentindo muita falta dela e eu imagino que ela também sente saudades de
nós.
- De vocês talvez, mas de mim...
- Por que duvida do amor dela?
- Porque eu, muitas vezes, revoltado com a indiferença dela, envolvi-me com outras
mulheres, mais para provocá-la do que por desejo, e ela sempre soube. Há muito tempo
ela deixou de me amar, se é que algum dia sentiu amor por mim.
Vitório olhou-o sério e respondeu:
- Você pode estar muito enganado. Mas mesmo que seja verdade o que diz, você poderá
tentar reconquistá-la, reacender a chama que lhe parece extinta.
Alberto meneou a cabeça negativamente:
- Não creio...
- Acredite, quando ela voltar, não perca tempo. Jogue seu charme sobre ela, com o amor
que tem no coração. Estou certo de que ela não vai resistir.
Alberto sorriu:
- Em uma hora dessas! Você consegue me fazer sorrir.
- O que estou dizendo é verdade. Sinto que depois de tudo quanto estamos passando,
merecemos um pouco de felicidade.
Alberto suspirou e disse:
- Felicidade! Há quanto tempo não sei o que é isso.



159
- Sinto que depois do que estamos passando, nenhum de nós será o mesmo. Todos nós
estamos aprendendo e refletindo, percebendo emoções e necessidades que antes não
víamos e jogando fora crenças inúteis que colecionamos durante toda a vida e que agora
sabemos que não são verdadeiras.
- Por que diz isso?
- Porque estamos amadurecendo e abrindo a mente, revendo nossos conceitos de
felicidade. Você teme que mamãe não o ame mais, porém eu penso o contrário. Vocês
viveram mais de trinta anos juntos, trocando experiências, vivendo momentos que hoje,
diante da situação atual, revestem-se de outra conotação e são mais valorizados. Eu
testemunhei desde que nasci o respeito que demonstram um pelo outro, a atenção, a
amizade com que se tratam. Para mim, isso é uma forma de amor verdadeiro e sincero.
Alberto cerrou os olhos, pensativo. De fato, se Teresa não tivera para com ele arroubos
apaixonados como ele gostaria, sempre fora atenciosa, cuidando do seu bem-estar,
tratando-o com deferência. Não seria essa uma forma de amor? Mas não era apenas isso
que ele desejava. Queria mais.
Durante aqueles anos sonhara em tê-la em seus braços ardente, apaixonada, oferecendo-
lhe todo o amor de que ele a imaginara capaz. Ele sentia que Teresa era uma mulher
ardente. Por que ele não tinha conseguido despertar nela essa emoção?
- Eu casei com Teresa por amor. Amizade é um belo sentimento, mas não é o que eu
desejava que ela me oferecesse. Nunca notei nela o fogo da paixão.
Vitório colocou a mão no braço do pai e respondeu:
- Uma intimidade de tantos anos deve ter-lhe dado inúmeras oportunidades de acender
nela o fogo da paixão. Alguma vez tentou ir por esse caminho?
Alberto olhou-o surpreendido, pensou em pouco e depois tentou justificar-se:
- Teresa sempre foi uma mulher discreta, nunca conversamos sobre nossos sentimentos
íntimos.
- Será que ela não pensou o mesmo de você? Será que ela não imaginou que você não a
amasse o bastante e guardou seus sentimentos, respeitando sua maneira de ser?
- Você acha mesmo isso?
- No amor é preciso ousar, falar o que vai do coração. Não dá para ficar imaginando
coisas no comportamento do parceiro, sem saber se são verdadeiras, criando barreiras
que distanciam um do outro.
Alberto olhou Vitório surpreendido:
- Como pode saber dessas coisas? Você nunca se apaixonou!
- Para valer mesmo, não. Mas tive algumas paixões que logo passaram, mostrando que
não eram para ser levadas a sério. Mas quando eu de fato amar alguém, ousarei
demonstrar todo o meu amor. O amor é contagiante. Estou certo de que vai atar esse
fogo que você diz.
- Gostaria de ver isso. Osmar não conseguiu nada com Aurélia. Por que pensar que com
você será diferente?
- O que Osmar sente por Aurélia é paixão, não amor. São sentimentos diferentes.
- Como assim?
- Osmar gosta de Aurélia por seu porte altivo, o carisma e a posição social que ela
ocupa. É o que ele deseja ter para si, e como não consegue, projeta seus sentimentos
sobre ela, acreditando que se conquista-la terá tudo isso. Deseja apossar-se dela, isso é
apego. O amor é um sentimento diferente, não faz sofre. Se for correspondido é
maravilhoso, mas se não for, satisfaz-se com a felicidade de ser amado, contentando-se
em cultivar esse amor no coração.
- Acho que eu nunca senti esse tipo de amor.



160
- Será que não? Depois que mamãe desapareceu, você tem sofrido muito e eu notei que
há em seu coração um amor sincero muito verdadeiro e talvez você ainda não tenha se
dado conta disso.
- De fato. Sinto muitas saudades de Teresa. A vida para mim tornou-se sem sentido com
sua ausência.
- O que fará quando ela voltar? Vai continuar escondendo seus sentimentos ou vai
mostrar-lhe o quanto à ama?
- Tenho medo de que ela me despreze. É uma mulher altiva e eu sempre procurei
mostrar-me a sua altura.
- Você está enganado. Mostrar um sentimento sincero jamais vai provocar desprezo. Ao
contrário, vai tocar as fibras mais íntimas do coração dela. E quem sabe o que poderá vir
à tona depois?
Os dois continuaram conversando como nunca tinham feito. Naquele momento não
eram apenas pai e filho, eram dois homens, discutindo sentimentos de igual para igual,
estabelecendo laços de intimidade indestrutíveis de espírito para espírito.




161
CAPÍTULO 26

Osmar chegou a casa, incomodado por um sentimento depressivo e angustiante. Ao
comparecer em um restaurante elegante para almoçar com um cliente importante, tivera
o desprazer de encontrar Aurélia naquele local, acompanhada pelo seu rival.
Ela estava tão entretida com ele, que nem notou sua presença, apesar de Osmar tê-la
olhado com insistência, tentando ser visto.
Ele marcara esse encontro para resolver um negócio importante, mas foi-lhe difícil
concentrar a atenção no assunto, porquanto não conseguia desviar o olhar dos
namorados e quanto mais olhava mais nervoso ficava. Indiferente ao que acontecia, o
jovem casal se entretinha em demonstrações de carinho, sem perceber que Osmar estava
ao lado, sofrendo, tentando conter a raiva, desejando prestar atenção ao que seu parceiro
dizia, sem nenhum interesse. Esqueceu-se de tudo o que tinha planejado para fechar
aquele negócio e, por fim, o cliente despediu-se sem efetivar o projeto.
Osmar foi para a empresa, irritado. Durante toda à tarde.
Continuou sentindo uma desagradável sensação de fracasso que o deixou deprimido e
inquieto.
Ele não estava habituado a perder. Não podia aceitar que Aurélia não lhe desse, atenção.
Precisava fazer alguma coisa para acabar com aquele namoro.
Norberto não tinha conseguido nada contra o médico. Tentara de várias formas,
envolvê-lo, armando ciladas, mas o rapaz era esperto e saia-se bem de todas elas,
conservando-se neutro, não entrando em situações novas.
O Dr.Augusto Mendonça sabia o que queria e agia de maneira firme, clara, não
deixando um ponto fraco que Norberto pudesse explorar.
Osmar não continha a impaciência. Não era possível existir alguém que não tivesse um
ponto fraco, ao que Norberto respondia:
- Pois ele é assim. Escorrega de todas as situações com classe, sem se envolver. Nunca
vi um cara igual a esse.
Essa superioridade do rival deixava Osmar mais nervoso, levando-o a ter vontade de
cometer uma loucura. Imaginava procura-lo pessoalmente na calada da noite e dar-lhe
um tiro. Há custo conseguia conter esse impulso.
Nora, vendo-o entrar em casa, perguntou se podia servir o jantar. Ele não estava com
fome e preferiu servir-se de uma bebida, depois, sentou na sala, pensativo.
Não podia tirar da sua mente as cenas que presenciara no restaurante: Aurélia amável,
acariciando o rosto do rival, segurando sua mão com os olhos brilhantes, e os beijos,
que o médico dava na mão dela, enquanto seus olhos se encontravam com amor.
Osmar levantou-se e começou a andar nervoso pela sala. Pela primeira vez questionou
sua paixão por Aurélia. Por que não podia tirá-la de sua cabeça? Por que se apegara a
ela que nunca lhe dera valor?
Quanto mais se questionava, mais aumentava o medo de perdê-la. Era uma loucura. Por
causa desse amor envolvera-se em coisas perigosas que custara a vida de sua mãe.
Não se sentia culpado pelo desaparecimento ou pela morte dela. Afinal, por que ela fora
fazer aquela malfadada viagem sem o marido?
Estava tão entretido em seus pensamentos que não ouviu a campainha tocar. Pouco
depois, Nora, toda assustada, introduziu na sala dois homens desconhecidos e só então
Osmar se deu conta e perguntou:
- Quem são os senhores, o que querem aqui?
Um deles exibiu as credenciais de policial e perguntou:


162
- O senhor é o Dr. Osmar Borges de Azevedo?
- Sim. O que desejam?
- O senhor está preso e deve nos acompanhar até a delegacia.
Osmar estremeceu:
- Preso?! Eu? Sob que acusação?
- Tráfico de drogas.
- Os senhores estão enganados. Não pode ser. Sou um empresário, um homem de bem.
- Não há nenhum engano ­ respondeu o outro. - Temos aqui a ordem de prisão. O
senhor tem o direito de ficar calado, mas é obrigado a nos acompanhar.
Osmar pensou em resistir, mas depois achou melhor contemporizar:
- Está bem. Eu os acompanho. Estou certo de que logo tudo será esclarecido.
Osmar vestiu o paletó e o policial estendeu as algemas. Ele protestou assustado:
- Não é preciso fazer isso comigo. Não sou um bandido. Vou de boa vontade.
- Sinto muito, mas terei de algemá-lo. É de praxe.
Osmar ainda tentou resistir, mas foi inútil. Diante dos olhos apavorados de Nora, os
policiais algemaram Osmar e o levaram para a viatura.
Assustada, Nora imediatamente ligou para Alberto em São Paulo. Vitório atendeu e ela
contou o que tinha acontecido e finalizou chorando:
- O Dr. Osmar saiu daqui algemado. Estou com medo. Vocês precisam voltar.
- Acalme-se. Vou ligar para nosso advogado tratar do caso. Vou falar com papai e
voltarei a ligar para você.
Vitório desligou o telefone preocupado. Apesar de saber que isso iria acontecer, a
notícia o abalou. Alberto, que estava ao lado, indagou:
- Aconteceu o que temíamos?
- Sim. Osmar foi preso. Nora pediu que fôssemos para lá, ajudá-lo. O que acha?
- Ligue para o Dr. Nunes e lhe conte o que aconteceu. Peça-lhe para ir imediatamente
ver o que pode ser feito. É melhor voltarmos para o rio hoje mesmo.
- Está bem. Enquanto você e Dinda arrumam à bagagem, vou ligar e conversar com
Paulo.
Ele ligou, mas Paulo não estava. Então se lembrou de que ele tinha acompanhado o
delegado para surpreender e prende os traficantes.
Desistiu de falar com ele. Tentou conseguir passagens de avião, mas não conseguiu.
Apesar da vontade de Alberto de viajar o quanto antes, eles foram forçados a esperar
pela manhã seguinte.
Monteiro tinha feito todo um plano para efetuar a prisão de Gil Duarte. Há tempos seus
colegas que trabalhavam na área de drogas conheciam não só a periculosidade dessa
quadrilha como o mal que eles causavam, distribuindo drogas no Brasil inteiro e no
exterior.
Mas não conseguiam provas para prendê-lo. Gil Duarte mantinha uma empresa de
cosméticos, intitulava-se importador e exportador de mercadorias e sua documentação
era legal. Contudo, a polícia sabia que ele era um dos maiores traficantes do país.
Monteiro unira-se aos companheiros dessa área, e analisando as provas que possuíam,
conseguiram o mandato de prisão. Gil freqüentava um clube de futebol famoso onde era
muito popular, e adorava teatro. Era figura constante na vida noturna de São Paulo onde
comparecia ao lado da mulher e de dois seguranças. Ele morava em uma linda casa no
bairro do Morumbi, cercada de muros altos, com uma guarita na frente da entrada, onde
sempre ficava um dos seus homens.A polícia sabia que na casa de Gil todos os seus
empregados eram homens da sua quadrilha e por esse motivo programaram prende-lo
fora dali, quando saísse. Eles armaram o cerco sem despertar suspeitas no homem que
vigiava a casa. Alguns policiais estavam à paisana e colocaram seus carros bem situados


163
de modo a observarem tudo. Ficaram se comunicando pelo rádio. Monteiro, ao lado de
outros policiais, esperava escondido dentro do carro com as luzes apagadas. Paulo
estava com eles.
A polícia queria evitar confronto, porquanto sabia que estavam armados e eram homens
perigosos que não hesitariam em atirar para matar.
Em silêncio eles esperavam. A noite estava escura e a iluminação das ruas era fraca em
razão das árvores que bloqueavam a luz. Passava das vinte horas quando o portão
principal abriu e o carro de Gil saiu. Dois homens sentados na frente e o casal atrás.
Procurando não despertar suspeitas, os carros saíram atrás, fazendo o mesmo trajeto.
Quando chegaram ao local que tinham programado, eles bloquearam o carro de Gil, que
foi forçado a parar.
Monteiro apanhou o megafone e gritou:
- Polícia! Desçam do carro.
Gil abriu o vidro da janela e disse:
- O que está acontecendo?
Monteiro desceu acompanhado de dois policiais de uniforme e aproximou-se de Gil,
enquanto mais dois desceram do carro do outro lado armados, abordando o motorista e
seu acompanhante para que entregassem suas armas. Antes que Gil pudesse reagir,
Monteiro abriu a porta do carro e deu voz de prisão. A operação foi muito rápida,
apanhou o traficante de surpresa e ele não reagiu. A operação fora um sucesso,
principalmente porque Gil não acreditava que pudesse ser preso e contava sair
rapidamente daquela situação.A certeza de sua impunidade o impediu de reagir. O fator
surpresa foi importante para que a operação policial obtivesse êxito.
Em vão, Gil tentou explicar a Monteiro que ele era um cidadão honesto, um empresário
respeitado. Quando percebeu que não conseguiria convence-lo, começou a exigir a
presença dos seus advogados. Monteiro, porém, determinou que só, permitiria chamá-
los no dia seguinte.
Gil queria saber qual era o motivo de sua prisão e Monteiro lhe disse:
- Você está preso por tráfico de drogas e pelo assassinato de Otávio de Oliveira e uma
mulher cujo nome, ainda não pode ser revelado.
Gil empalideceu e a partir daí decidiu não dizer mais nada e só falar depois de conversar
com seus advogados.
Monteiro começou os interrogatórios, mas todos eles se fecharam e recusavam-se a
falar.
Era madrugada quando Paulo, cansado, mas satisfeito, voltou para a casa de Marília.
Wagner abriu a porta, Paulo entrou.
- E então? ­ indagou Wagner. - Como foi?
- Tudo bem. A operação foi um sucesso. Gil Duarte e parte de sua quadrilha está presa.
Os outros, a polícia está procurando para prender.
- Quero saber todos os detalhes. Gostaria de ter ido junto.
- A tensão foi grande, mas não foi preciso dar nenhum tiro.
- Vamos para a cozinha. Dorita deixou algumas coisas para comer.
- Estou com fome, mas contente. Deu tudo certo. Osmar foi preso no Rio e já está a
caminho de São Paulo.
Os dois foram para a cozinha, estavam comendo quando Marilda apareceu:
- Acordamos você! ­ tomou Paulo. - Falamos alto demais.
- Não foi isso. Eu estava nervosa e não consegui dormir.
Paulo sorriu e abraçou-a feliz:
- Ficou pensando em mim?



164
- Sim. Estava com medo que lhe acontecesse alguma coisa. A cena daquele crime ainda
não saiu da minha mente.
- Não se deixe envolver por ela. Não vale a pena.
- Está difícil. Sempre que estou com medo ela reaparece em minha mente.
- Quando acontecer, procure não dar importância e lembrar-se de alguma coisa boa para
que ela vá embora. As impressões foram muito fortes, mas agindo assim você acabará
por apagá-las de sua lembrança.
- Eu gostaria muito. Mas, me conte como foi? Conseguiram prende-los?
Paulo ia falar, mas Dorita apareceu, dizendo contente:
- Eu não consegui dormir. Ouvi que você chegou e desci. Que bom que estão aqui.
Parece que deu tudo certo!
- Deu mesmo. Paulo vai nos contar como foi ­ respondeu Marília.
Paulo contou tudo nos mínimos detalhes. Sentia-se feliz por terem efetuado as prisões
sem maiores problemas. E finalizou:
- Penso que até agora Gil Duarte, o chefe da quadrilha, não acreditou que ficaria preso.
Não esboçou nenhuma reação. Preferiu continuar representando o papel de empresário
honesto, boa gente, personagem com o qual ele tem ludibriado as autoridades até hoje.
- Mas ele tem dinheiro, bons advogados e as leis oferecem muita chance de recursos que
acabam levando à impunidade. Não há o risco de ele livrar-se da prisão? ­ indagou
Marília preocupada.
- Desta vez, não. Antes nós não tínhamos provas concretas contra ele. Agora temos. O
testemunho de Elvira será muito convincente. Depois, espero que Teresa apareça. Se
como eu penso ela está escondida com medo deles, quando souber da prisão vai sentir-
se segura e voltar para casa. Ela também poderá testemunhar contra eles. Há também o
motorista do táxi que as levou até a casa do crime.
- Você acha mesmo que ela está viva? ­ perguntou Dorita. - Será que eles não a
mataram também?
- É uma possibilidade. Eles mataram aquela mulher pensando que fosse Teresa. O mais
provável é que ela esteja escondida com medo deles. Esta noite mesmo Monteiro
começou os interrogatórios, ele vai apertar e alguém vai acabar falando.
- Quem será a mulher que foi morta no lugar de Teresa? ­ desta vez foi Wagner quem
fez a pergunta.
- Ainda não sabemos. Talvez Teresa tenha a resposta. Por enquanto precisamos esperar.
Mas o pior já passou. Eu sinto quando um caso está sendo concluído. Para mim, dentro
de mais alguns dias tudo estará resolvido.
Eles continuaram conversando até o dia clarear. Depois, Paulo ligou para Vitório
conforme tinha prometido.
Ele atendeu ao primeiro toque, o que mostrou que ele também não tinha conseguido
dormir.
- Está tudo bem, Vitório ­ disse Paulo. - Deu tudo certo, estão todos presos.
- Como você nos avisou, eles prenderam Osmar no Rio de Janeiro. Eu e papai queremos
ir para lá e saber o que está acontecendo. Só não fomos ontem porque não consegui as
passagens.
- Vocês não devem ir. Osmar está sendo trazido para São Paulo. É aqui que ele vai ter
que ficar.
- Vou informar o nosso advogado. Você compreende. Apesar do que ele fez, nós não
podemos deixar de ajudá-lo nessa hora.
- Ele vai precisar mesmo de um bom advogado. Eu conheço um ótimo criminalista aqui.
Se desejarem, posso indicá-lo.
Vitório suspirou triste e respondeu:


165
- Obrigado. Falarei com papai. Ele está arrasado. Mas apesar de tudo, nosso dever é
ajudar Osmar e desejar que a dura lição tenha lhe ensinado alguma coisa melhor.
- Faço votos que seja assim. Saiba que pode contar comigo para tudo o que precisar.
- Papai vai querer ir à delegacia e falar com Osmar. Acha que vai ser possível?
- Não sei se eles já chegaram. Monteiro foi para casa de madrugada e deve ter deixado
todos incomunicáveis. Vocês não vão conseguir conversar com Osmar. Vou descansar
um pouco e logo depois do almoço, se quiserem, poderei ir até lá com vocês. Monteiro
já estará na delegacia e tudo será mais fácil.
- Está bem. Explicarei tudo a papai e ficaremos esperando que você ligue para irmos
juntos. O nosso advogado é da área trabalhista e acho melhor chamar esse que você
disse que é bom.
- É o mais sensato. Anote o telefone.
Paulo deu as indicações e desligou, prometendo encontrar-se com eles no começo da
tarde para irem juntos à delegacia. Depois de colocar Marília a par do que pretendia
fazer, Paulo finalmente foi para o quarto de Altair dormir.
Assim que Osmar foi levado à delegacia, no Rio de Janeiro, ficou sabendo que deveria
viajar imediatamente para São Paulo. A fisionomia indiferente dos policiais, os olhares
maliciosos das pessoas presentes na delegacia, à insistência de dois repórteres em
fotografá-lo, embora ele tentasse abaixar a cabeça, irritaram-no muito.
Era humilhante ser tratado dessa forma, estar algemado, ser conduzido por dois policiais
um de cada lado segurando seu braço, indiferentes aos seus sentimentos, como se tudo
aquilo fosse normal. Aquilo não podia estar acontecendo com ele. Alguma coisa estava
errada. Eles não podiam ter feito isso, dessa forma. Ao pensar que no dia seguinte suas
fotos poderiam estar no jornal como um bandido, serem vistas por seus amigos e
conhecidos, inclusive por Aurélia, ficava apavorado. Isso não era justo. Ele não matara
ninguém. Querer ganhar dinheiro, ser rico, não era crime.
O mundo estava cheio de gente que enganava a justiça, enriquecia e vivia muito bem. A
culpa do que estava lhe acontecendo era do pai que tinha feito à loucura de gastar o
dinheiro com o qual ele contava para pagar aquela dívida.
Sentado no banco traseiro, algemado, no meio de dois policiais, que conversavam entre
si alegremente como se ele não estivesse ali, Osmar tentava encontrar uma forma de
reverter à situação.
Tinha esperança de que quando chegasse a São Paulo, o pai já o estivesse esperando
com um bom advogado. Ele não pudera comunicar-se com ele para contar o que estava
acontecendo, mais imaginava que Nora tivesse ligado relatando que ele foi preso!
Certamente, o pai não o deixaria passar por esse vexame e faria tudo para libertá-lo. Ao
mesmo tempo, tentava encontrar uma explicação para fazer o pai acreditar que ele era
inocente. Apesar de saber que Alberto era muito exigente em questões de honestidade,
contava em poder ludibriá-lo com facilidade. Afinal, era seu pai, sempre o apoiara e o
amava. Isso seria suficiente para desejar que ele não ficasse preso.
O maior receio era que Nelsinho, que fora preso no sanatório quando levaram Elvira,
desse com a língua nos dentes. Ele era covarde. Se o apertassem um pouco, não
resistiria. Se ele revelasse alguma coisa que o incriminasse, poderia negar e seria sua
palavra contra a dele. Claro que a sua teria maior credibilidade. Nelsinho sempre vivera
à margem da Lei, enquanto ele era empresário respeitado, conceituado.
Quando a viatura chegou a delegacia de São Paulo, eles desceram e entraram. Osmar
olhou em volta, esperando ver o pai, mas não o encontrou. O dia estava amanhecendo e
só dois policiais, com cara de sono, os receberam.
Eles conversaram e Osmar pediu:
- Tirem as algemas. Preciso telefonar.


166
Um deles olhou-o como se ele estivesse pedindo alguma coisa impossível e respondeu:
- Telefonar só quando o Dr. Monteiro chegar.
- Eu preciso avisar meu pai e falar com o advogado.
- Não posso fazer nada. Fale com o delegado quando ele chegar.
Por mais que Osmar insistisse, não conseguiu ser atendido. Foi levado por um corredor,
passaram por uma porta onde havia dois policiais armados montando guarda e o
levaram para uma cela que estava vazia. Em frente tinha outra onde estavam algumas
pessoas deitadas em colchonetes e duas nas camas.
O cheiro era muito desagradável e Osmar conteve a respiração, tentando evitar senti-lo.
Quando abriram à porta e o empurraram para dentro da cela, Osmar revoltou-se e
gritou:
- vocês não podem fazer isso comigo! Eu sou um empresário. Um homem de bem.
Quero falar com meu advogado. Não quero ficar aqui!
Os dois policiais não responderam. Limitaram-se, a sorrir e a trancar a porta. Depois,
foram embora.
Osmar olhou a cama estreita que estava coberta por um cobertor pequeno e escuro e
tinha um travesseiro, cuja fronha desbotada de cor indefinível inspirou-lhe aversão.
Decidiu permanecer em pé. Ele não se deitaria naquela cama grosseira e mal cheirosa.
Os outros presos o olhavam com curiosidade, e Osmar encolheu-se em um canto,
procurando ignorar aquele lugar horrível. Por mais que tentasse, essa era a sua realidade
naquele momento.
Ele sentia-se impotente naquela hora, mas ainda esperava que o pai aparecesse e tirasse-
o dali.




167
CAPÍTULO 27
Teresa acordou cedo e saiu para comprar pão. Ao passar na banca de jornal deparou
com a manchete:
"Presa quadrilha de traficantes. A polícia suspeita, que dois deles foram responsáveis
pelo assassinato de Otávio de Oliveira, e, da misteriosa, mulher, cuja identidade até
agora não foi comprovada. Parabéns ao delegado Monteiro e seus homens que com
inteligência prenderam essa perigosa quadrilha sem um tiro sequer. Pág. 3".
Imediatamente ele comprou o jornal e até se esqueceu de comprar o pão; voltou para a
casa, sentou-se, e procurou a reportagem.
Numa das fotos ela reconheceu Gil Durante e um ele seus homens; mais abaixo uma
foto de Osmar algemado fez seu coração bater mais forte.
Seu filho estava preso! Logo ele, sempre tão altivo e orgulhoso, ali, de cabeça baixa,
envergonhado, querendo esconder o rosto. Apesar disso, ela o teria reconhecido de
qualquer jeito. Leu que Osmar fora preso no Rio de Janeiro e trazido para São Paulo.
Estava na hora de ela voltar. Procurou um telefone e ligou para sua casa. Nora atendeu e
ela disse logo:
- Nora, sou eu, Teresa.
- Deus seja louvado! Dona Teresa, que bom, a senhora está viva!
- Estou. Quero falar com Alberto.
- Aqui não tem ninguém, o Dr.Alberto e o Vitório estão morando em São Paulo desde
que tudo isso começou. Disseram que só voltariam para casa quando soubessem o que
aconteceu. Todos nós ficamos muito preocupados com o seu desaparecimento e ainda
essa mulher que apareceu, igualzinha a senhora. Foi o Vitório e a Dinda que
descobriram a verdade. Onde a senhora está?
- Em São Paulo. Dê-me o endereço e o telefone de onde Alberto está.
Nora obedeceu, ela agradeceu e desligou. Depois ficou pensando no que fazer. Talvez
fosse melhor preveni-los, ligar antes de ir até o apartamento.
Ligou e Dinda atendeu. Teresa disse logo:
- Dinda, sou eu. Estou bem.
- Teresa! Você nos matou de susto. Ninguém nesta casa tem conseguido dormir depois
daquele crime horrível.
- Eu não podia voltar. Depois eu lhe conto tudo. Agora quero falar com Alberto. Osmar
está preso.
- Foi ontem à noite. Hoje, o Sr.Alberto saiu cedo com Vitório para falar com um
advogado. Depois iria para delegacia ver se conseguiam falar com Osmar.
- Nesse caso, não tenho alternativa, irei agora mesmo a essa delegacia.
- Não tem perigo aparecer lá?
- Não. Eu não fiz nada de errado. Fiquei escondida porque esses assassinos queriam me
pegar. Agora que foram presos, não há perigo.
- Não vejo à hora de tê-la de volta!
- Eu também gostaria de estar em casa e que nada disso tivesse acontecido. Mas ainda
não é hora de ficarmos em paz.
- Você conseguiu, aqueles papéis que desejava?
- Não. Isso também está me preocupando. Mas agora não dá para voltar atrás. Seja o
que Deus quiser.
Teresa desligou o telefone, arrumou-se o melhor que pôde, colocou os documentos de
Renata na bolsa e foi para a delegacia.



168
O táxi deixou-a na porta. Ela desceu e logo dois jornalistas a reconheceram.
Aproximaram-se tirando fotos e fazendo perguntas.
Sem lhes dar atenção. Teresa entrou rapidamente e foi falar com um policial:
- Sou Teresa Borges de Azevedo. Vim falar com o delegado.
Um burburinho correu logo pela delegacia. Há custo os policiais conseguiram afastar os
repórteres, prometendo-lhes conseguir o que eles queriam mais tarde.
Doutor Júlio, o advogado, insistia para falar com Osmar, mas Monteiro preferia que ele
esperasse um pouco, porquanto havia três famosos criminalistas insistindo para ver Gil
Duarte, alegando que ele era inocente; Monteiro queria fazer um bom interrogatório
antes de os advogados conversarem com os presos.
Há custo conseguira tirar os três da sua sala, afirmando que permitiria que eles vissem
os presos depois de tomar as declarações de todos.
Os advogados protestavam. Queriam assistir a esses depoimentos e se recusaram a
esperar. Os três tinham saído para almoçar e voltaram em seguida.
Monteiro concordou em falar com Alberto e seu advogado. Estavam começando a
conversar quando o policial bateu na porta da sala do delegado, que atendeu com má
vontade.
- O que você quer? Não vê que estou ocupado?
- Tem uma mulher lá fora que diz se chamar Teresa Borges de Azevedo. Não é aquela
que está desaparecida?
Antes que o delegado respondesse, Vitório e Alberto saíram correndo à procura de
Teresa. O delegado e o Dr.Júlio foram atrás.
Alberto ia, na frente, e a viu primeiro. Correu para ela dizendo emocionado:
- Teresa, você está viva!
Abraçou-a, e, Vitório, cuja emoção o impediu de falar, juntou-se a eles no mesmo
abraço.
Os três tentaram segurar as lágrimas, contudo não conseguiam. Abraçados, eles não
encontravam palavras para expressar o que sentiam, recordando o que tinham sofrido,
temendo que nunca mais fossem se encontrar.
Aquele era o momento tão desejado. Eles sentiam a força do sentimento que os unia.
Monteiro esperou que eles se acalmassem. Alberto, abraçado a Teresa, indagou
preocupado:
- Como você está?
- Muito feliz por poder voltar para a casa, mas ao mesmo tempo preocupada com o
Osmar e tudo quanto nos aconteceu.
Monteiro aproximou-se:
- Sei que estão muito emocionados, mas eu preciso conversar com a senhora. Há muitos
pontos obscuros que pretendo esclarecer. Sei que só a senhora vai poder fazer isso.
Teresa tentou controlar a emoção. Ela não queria mais ficar guardando coisas do
passado que só lhe trouxeram infelicidade. Tinha refletido muito e chegara à conclusão
de que se ela tivesse sido sincera, contado tudo a Alberto, teria evitado aquele crime e,
pelo menos, Renata não teria morrido daquela maneira cruel.
Sua omissão custava uma vida e isso lhe pesava na consciência, embora nunca tenha
imaginado esse desfecho tão triste.
- Estou a sua disposição, doutor- respondeu - Vou contar-lhe tudo o que sei. Desejo
colaborar para que esses assassinos fiquem presos durante muito tempo. Quero ver
Osmar, espero que o senhor permita.
- Ele juntou-se a perigosos traficantes.
- Eu sei. E desejo que ele arque com as conseqüências, dentro da Lei. Vai doer muito,
mas pretendo convencê-lo a deixar esse triste caminho.


169
Pelos olhos de Monteiro passou um brilho emotivo que ele procurou esconder ao
responder:
- Estou certo de que a senhora terá força bastante para reconduzi-lo à dignidade. Vamos
para a minha sala, tomar o seu depoimento.
Todos acompanharam Monteiro que, na porta de sua sala, disse:
- A senhora pode entrar com o advogado. Os outros ficarão esperando do lado de fora.
Alberto protestou, mas foi forçado a obedecer. Tanto ele quanto Vitório! Desejavam
ouvir o que Teresa tinha para contar. Mas o delegado foi categórico:
- Só ela e o advogado.
Eles entraram e a porta se fechou. Dois policiais ficaram do lado de fora! Vitório foi
telefonar para a casa de Marília para dar a boa notícia. Paulo ficou satisfeito com a
novidade e prometeu que logo mais passaria na delegacia. Não era mais preciso vigiar a
casa. O perigo tinha acabado.
Monteiro pediu a Teresa que se sentasse diante dele, o escrivão estava à direita e o
Dr.Júlio à esquerda. Tudo pronto, Monteiro começou a fazer as perguntas.
Teresa começou a falar, procurando não se esquecer
De nenhum detalhe. Durante aqueles dias de reflexão, ela tinha decidido que se
conseguisse voltar para casa, dali para frente sua vida seria um livro aberto.
Não queria nenhum segredo. Ela tinha agido errado e era justo que arcasse com as
conseqüências. Não teria moral para exigir do filho o mesmo comportamento se
ocultasse seus erros.
Teresa desejava ser verdadeira, sentindo que esse era o caminho para recuperar sua
dignidade. Se sua família a condenasse ela teria de conforma-se e seguir seu caminho. O
mais importante era sentir-se bem diante da própria consciência.
Por esse motivo, começou seu relato contando a paixão que tivera depois do casamento.
Não se poupou, foi o mais verdadeira que pôde, emocionando os presentes com sua
sinceridade.
Depois, contou sobre a chantagem; a venda das jóias; seu encontro com Elvira; a idéia
da viagem, passando antes por São Paulo para entregar o dinheiro a Otávio em troca dos
papéis e das fotos que a comprometia; a surpresa do seqüestro; a descoberta de que
Osmar mantinha negócios com traficantes; a carta que ela foi forçada a escrever para o
filho e por que Elvira foi levada com a carta.
Falou sobre o medo de ser morta por ter visto o rosto deles e poder identificá-los, a
vontade de fugir e como conseguiu escapar.
Monteiro ouvia atentamente, admirando a coragem dela, que falava com voz firme,
expondo os fatos com clareza. Teresa prosseguiu, contando como chegou ao centro da
cidade, hospedou-se em um hotel para pensar no que fazer. Como ficou sabendo que lá
havia uma hóspede muito parecida com ela a ponto de as pessoas, confundirem as duas.
A essa altura, Monteiro não se conteve:
- A senhora nunca tinha visto essa mulher?
- Não, nunca. Para mim era uma desconhecida, mas o fato chamou minha atenção e
quando fui ao refeitório almoçar, eu a vi e me aproximei. Ela ficou surpresa, disse-me
que eu era igualzinha sua mãe. Ficamos trocando informações sobre nossa descendência
e descobrimos que não tínhamos nenhum laço de parentesco. Ela pediu que eu sentasse
em sua mesa para almoçar, ficamos conversando.
- Quem era essa mulher?
- Renata contou que era brasileira e foi morar na Espanha, onde se casou. Viveu lá
durante vinte anos. Divorciou-se e desiludida com o casamento voltou ao Brasil. Havia
chegado no dia anterior, com pouco dinheiro e precisava trabalhar.
Teresa continuou contando que não sabia do paradeiro de Elvira, mas supunha que ela


170
estivesse livre dos traficantes. Por ter fugido dos seqüestradores estava com medo de ir
entregar o dinheiro ao chantagista. Ofereceu dinheiro a Renata para ir em seu lugar,
certa de que não iria desconfiar, uma vez que se pareciam! Isto resolvido, elas iriam
para a Europa e depois que voltassem, ela conseguiria um emprego na empresa do
marido. Renata aceitou.
A voz de Teresa só tremeu quando ela começou a contar que ambas tomaram um táxi,
ela, envolta em um xale que usava sempre quando saía a rua para não ser reconhecida,
Renata, segurando a frasqueira, onde ela colocara o dinheiro.
Quando chegaram ao endereço indicado, Renata entrou na casa e ela ficou esperando no
táxi. Pouco depois ela viu chegar outro carro e os seus seqüestradores desceram e
também entraram na casa. Teresa ficou com muito medo, pediu para o táxi afastar-se e
parar na esquina. O motorista do táxi queria ir embora, porém ela insistiu que não podia
deixar a amiga sozinha. Eles viram quando os homens foram embora. Ela esperou um
pouco e, como Renata não.
Voltava, caminhou até a casa ver o que havia acontecido. Teresa fez uma pausa. Sua
voz morreu na garganta e ela estava muito pálida. O delegado deu-lhe um copo de água,
esperou que ela tomasse alguns goles, e pediu:
- Continue.
- Bem, eu entrei e a sala estava escura. Eu vi uma luz na outra sala e fui até lá. Queria
ver se encontrava Renata, mas o que vi quase me fez desmaiar. Ela estava na cama,
morta, ao lado de um homem. Minhas pernas tremeram e voltei à sala. Apesar de muito
nervosa, lembrei-me dos papéis que me comprometiam. Tentei encontra-los. Abri
algumas gavetas, mas não os achei. Eu estava muito nervosa. É possível que eles
estivessem lá, uma vez que iam ser entregues após o pagamento. Mas eu não estava em
condições de ver nada. Tremia, sentia que estava perdendo as forças. Saí de lá correndo,
deixei a porta encostada. Cheguei no, táxi e disse ao motorista que minha amiga já havia
ido embora. Não sei se ele acreditou.
- Ele nos procurou e já fez seu depoimento. Quando ele leu nos jornais a notícia do
crime, desconfiou da verdade.
- Depois disso, tive mais medo ainda que eles me encontrassem. Eles tinham levado
meus documentos para provar a Osmar que eu estava em poder deles. Eu fiquei sem
documentos. Para o hotel eu tinha usado meu passaporte. Então tive a idéia de usar a
identidade de Renata. Eu estava sem roupa, minha bagagem e a de Elvira tinham ficado
com os traficantes. Eu comprei dois vestidos, mas era pouco. Eu sabia que Renata não
voltaria. Assumi a identidade dela, tentei igualar meus cabelos com os dela e usando
seus documentos, instalei-me primeiro em outro hotel, perto do aeroporto. Naquele
momento eu estava muito aflita sem saber o que estava acontecendo com minha família.
- Porque não os procurou? Eles estavam angustiados. Seu marido adoeceu.
- Eu tinha medo de que se os traficantes soubessem que tinham matado a mulher errada,
eles se voltassem contra Osmar e o matassem. Eu queria que eles pensassem que aquele
corpo era o meu.
Teresa contou como alugara a pequena casa e que quando lera os jornais, relatando a
prisão dos traficantes, entendeu que era hora de voltar. E finalizou:
- Foi um tempo em que não vivi. Todos os minutos eu questionei meu passado, meus
enganos, os problemas que minhas atitudes trouxeram a mim e a minha família. Sinto
culpa pela morte de Renata. Ao pedir-lhe que fosse em meu lugar estava longe de
imaginar que aqueles homens iriam fazer o que fizeram. Já refleti muito sobre isso e
cheguei à conclusão de que foi o destino quem colocou aqueles homens perversos
naquela casa naquela hora. Penso que eles não tinham nada a ver com meu
envolvimento com o chantagista. Nem sabia que se conheciam. Não sei o que se passou


171
lá. O que sei é que Renata não conhecia nenhum deles, nunca foi amante do homem que
morreu a seu lado. Não consigo entender por que aqueles homens apareceram lá
exatamente naquela hora. Se tivessem chegado alguns minutos depois, ela teria
entregado o dinheiro, apanhado os documentos e saído. Nada disso teria acontecido.
Teresa se calou, tomou mais alguns goles de água e Monteiro ficou pensativo, alisando
o queixo, tentando imaginar por que eles teriam praticado aquele crime tão cruel.
Depois de alguns minutos ele disse
- Eles mataram Renata acreditando que fosse a senhora que os desfiou tendo fugido.
Eles não perdoam uma coisa dessas. É demais para o orgulho deles.
- Como eles poderiam saber que eu estaria lá naquela hora?
- Isso eles vão ter de nos dizer. O que sei, é que Otávio, era o homem que a chantageava
era intermediário dos negócios de droga. Ele agenciava compradores para as partidas de
droga de Gil Duarte. Pode ser que ele tenha aparecido naquela hora por outro motivo,
sem saber que a senhora ou sua sósia estariam lá. Mas por alguma razão eles estavam
com muita raiva de Otávio. A forma como o agrediram foi feroz.
O escrevente apresentou o depoimento, o advogado leu e Teresa assinou. Depois, o
delegado disse:
- A senhora pode ir, mas terá de depor como testemunha contra os traficantes.
- Pode contar comigo, doutor. Gostaria de ver meu filho.
- A senhora vai vê-lo, o Dr. Júlio também. Gostaria que lhe dissessem que ele pode
melhorar suas condições diante da Justiça se contar tudo o que sabe. Lamento dizer que
localizamos um depósito de drogas do Dr. Osmar. Seu cúmplice, Nelsinho, levou-nos
até lá. Havia muita cocaína e essa mercadoria foi comprada do Gil Duarte e não está
totalmente paga. Essa foi à causa de eles irem à procura de Otávio e terem seqüestrado a
senhora.
Nos olhos de Teresa apareceu o brilho de algumas lágrimas, mas ela controlou-se e
respondeu com uma voz que procurou tornar firme:
- A Justiça vai cobrar de Osmar o que ele deve. É justo. Mas meu é inteligente. Espero
que ele reflita e perceba todo o mal que fez a si mesmo quando escolheu esse caminho.
Monteiro deu por terminado o interrogatório e Teresa saiu, acompanhada pelo
advogado. Alberto e Vitório a rodearam ansiosos.
- E então?- indagou Alberto
Foi o Dr. Júlio quem respondeu:
- O depoimento de D.Teresa foi claro e contundente.
Ela contou tudo de maneira muito coerente. Eu não teria aconselhado melhor senti que o
delegado ficou bem impressionado com a forma que ela se comportou.
- Eu disse o que sabia. ­ tornou Teresa, com naturalidade, continuando: - Nós vamos
ver Osmar agora?
- É isso o que todos queremos. Ele deve estar nervoso, sem saber que estamos aqui ­
tornou Alberto.
- Ele está preso desde ontem à noite ­ esclareceu Dr. Júlio. - Monteiro não tem como
nos impedir de vê-lo. Já teve tempo de sobra para interrogá-lo sozinho. Vou pedir que
nos levem a ele agora.
O advogado afastou-se e Vitório disse, alisando o braço da mãe:
- Ainda bem que você voltou. Está mais magra, deve ter sofrido muito, mas agora
estamos juntos e vamos vencer os obstáculos.
- O maior obstáculo será enfrentarmos nossos medos ­ disse Teresa, pensativa.
- Quem confia na vida sabe que todos os acontecimentos, mesmo os ruins, são para nos
ensinar a achar um caminho melhor ­ respondeu Vitório.
- Tem razão, meu filho. Eu sofri, mas amadureci. Aprendi muito durante esse tempo.


172
Alberto a olhava com ternura, mas em seus olhos havia certo receio. Percebia que
Teresa estava mudada. Estava mais humana, perdera o ar distante dos últimos tempos.
Em que essa mudança influenciaria suas vidas? Teria ela refletido e chegado à
conclusão de que não valia mais a pena levar adiante um casamento sem amor?
A esse pensamento Alberto sentia um aperto no peito e uma vontade muito grande de
lhe perguntar, mas ao mesmo tempo temia ouvir a resposta.
No momento, eles estavam preocupados com Osmar, esse assunto ficaria para mais
tarde, quando pudessem pensar nos dois, sem o peso da condenação de Osmar que
certamente viria.
Doutor Júlio voltou, acompanhado por um policial, e informou:
- O Dr. Monteiro pediu para irmos a uma sala onde encontraremos o Dr. Osmar.
Com o coração aos saltos, eles acompanharam o policial até a sala indicada.
Teresa, emocionada, não via a hora de abraçar o filho. Alberto procurava conter a
emoção. Ele, que sempre condenara as manifestações emocionais, temia não poder
conter o pranto diante do filho. Vitório era o mais sereno e lúcido. Ele pretendia fazer o
irmão sentir o carinho que nutria por ele, apesar dos desentendimentos que tiveram e
dos erros que ele cometera.




173
CAPÍTULO 28

Eles entraram na sala. Osmar estava em pé, olhando impacientemente para a porta.
Assim que os viu entrar, disse nervoso.
- Ainda bem que vieram. Pensei que tivessem me esquecido. Eu quero sair daqui o
quanto antes.
Teresa aproximou-se dele dizendo:
- Não está surpreso em me ver?
- Não. A pouco quando me disseram que você tinha voltado não acreditei. Estou vendo
que era verdade.
Teresa abraçou-o com carinho:
- Eu fiquei muito preocupada por você desde que soube que tipo de negócios você havia
feito.
Osmar não correspondeu ao abraço. Estava nervoso e impaciente demais:
- Trouxeram um advogado para tirar-me daqui?
- Este é o Dr.Júlio Alcântara. Ele vai cuidar da sua defesa ­ esclareceu Alberto.
- Ainda bem. O Dr.Nunes não fez nada. É um incompetente. ­ Voltando-se para o
Dr.Júlio ele continuou: - O senhor precisa me tirar daqui hoje mesmo. Passei uma noite
horrível, quero voltar para casa.
Teresa deixou os braços cair e olhou para o advogado.
Alberto e Vitório fizeram o mesmo. Eles sabiam que seria impossível tirar Osmar da
cadeia.
Doutor Júlio olhou firmemente nos olhos de Osmar e respondeu:
- Antes de tudo você precisa se acalmar. Sei como se sente. Mas acontece que você
cometeu um crime grave, inafiançável. Não há como conseguir libertá-lo por enquanto.
- Não posso acreditar! Não consigo ficar aqui. O lugar é horrível. O senhor deve poder
me tirar daqui.
- Infelizmente, no momento não posso. Portanto, trate de se acalmar, e aceitar que vai
precisar ficar aqui certo tempo. Enquanto isso! Vou ver o que posso fazer.
- Meu pai vai pagar o que for preciso. Não acredito que vai deixar-me ficar preso no
meio de marginais.
Desta vez foi Alberto quem respondeu:
- Foi você quem se marginalizou, comercializando drogas. Não foi isso que eu lhe
ensinei. Você veio pra cá sozinho, com os próprios pés.
- Você é meu pai! Deve me ajudar a sair daqui.
- Você é meu filho, muito amado. Sabe o quanto eu o estimo. Estou aqui para ajudá-lo.
Contratei um dos melhores advogados do país. Mas somos obrigados a obedecer às leis.
E para você sair daqui terá de prestar contas a elas.
Osmar passou a mão nos cabelos, inconformado:
- Não acredito que não tenha um jeito de me libertar. Aquele delegado incompetente
está exorbitando. Trouxe-me para cá algemado, como um criminoso.
Doutor Júlio olhou-o sério e disse, frisando bem as palavras:
- Você cometeu um crime. Perante a Lei é um criminoso. Renda-se a essa verdade. De
nada vale tentar fugir à responsabilidade.
Osmar olhou-os resignado. Depois, voltou-se para Alberto dizendo com raiva:
- Trate de arranjar outro advogado que tenha interesse em defender-me. Este mais
parece um acusador.



174
- Você é que ainda não entendeu o tamanho do problema em que se meteu. Aconselho-o
a ouvir o que o Dr.Júlio tem a dizer e seguir sua orientação. Ele sabe o que está dizendo
e eu confio nele.
- Osmar, pense bem. - disse Teresa -, todos nós estamos aqui para ajudá-lo. Mas se você
não aceitar que errou vai agravar sua situação.
- Eu errei sim, mas o mundo está cheio de pessoas que fazem o que eu fiz e estão livres,
usufruindo o dinheiro que conquistaram. Eu tive a infelicidade de ter sido descoberto. O
culpado é Vitório que arranjou aquele advogado metido a policial para complicar tudo.
Foi ele quem mandou me seguir e descobriu tudo.
Vitório, que estivera em silêncio até então, disse:
- Quando contratei o Dr. Paulo nunca imaginei que você estivesse metido com os
traficantes. Foi uma triste surpresa, mas não me arrependo. Graças a ele esses
criminosos foram presos e impedimos de cometer outros crimes.
- Você deve estar feliz por eu estar aqui, preso. Sempre me invejou e não se conforma
em saber que eu sou mais inteligente e mais esperto do que você.
Vitório olhou firme nos olhos de Osmar e respondeu:
- Você está enganado. Não estou feliz por você estar preso, gostaria que nunca tivesse
se envolvido com esses bandidos.
- Pare com isso, Osmar. Estamos perdendo um tempo precioso ­ interveio Alberto com
voz firme. - Não vejo em que você é mais inteligente e esperto do que todos nós que
sempre escolhemos o caminho da honestidade. É bom que se conscientize de uma vez
por todas do que fez, assuma sua responsabilidade e se disponha a cooperar com a
polícia para que este caso seja definitivamente esclarecido.
- Seu pai tem razão ­ tornou Dr.Júlio. - Você é réu primário, se cooperar com a polícia,
contar tudo o que sabe, terá pontos a seu favor, o que abrandará sua pena.
- O senhor não entendeu. Eu não quero ficar preso.
- Essa sua atitude pode prejudicá-lo muito. Revoltar-se só vai piorar a situação. Se
continuar assim, eu desistirei do caso. Não posso defender um cidadão culpado que
teima em negar esse fato.
Teresa olhou-os preocupada e sugeriu:
- Penso que Osmar precisa de mais tempo para refletir sobre o que fez. Ainda não
percebeu o tamanho do problema em que se meteu. Todos nós estamos cansados,
nervosos. Vamos embora, descansar, enquanto ele reflete melhor. Amanhã voltaremos
para tentar conversar.
- Não podem fazer isso! Não quero passar nem mais uma noite aqui.
- Teresa tem razão. Vamos para casa e amanhã voltaremos. Espero que você esteja
calmo ­ aduziu Alberto.
Embora Osmar protestasse, eles deixaram à sala e foram conversar com Monteiro.
- Não pensei que Osmar reagisse dessa forma ­ queixou-se Alberto. - Ele não está
arrependido e sequer percebe o tamanho da bobagem que fez.
- Assim fica difícil ajudá-lo ­ disse Teresa, triste.
- A senhora teve uma boa idéia. Até então ele estava escorado na idéia de que quando o
pai chegasse, ele seria libertado ­ declarou Dr.Júlio.
- Nesses casos alguns dias de prisão podem ser um bom remédio ­ disse Monteiro. - Ele
ainda pensa que o dinheiro pode tudo e que vai dar um jeito de ludibriar a Lei. Mas
houve o crime, duas pessoas foram barbaramente assassinadas. Embora ele não seja
diretamente culpado pelo crime, de certa forma envolveu-se, envolvendo também a
família. Além disso, ele mantinha um depósito com drogas que consta do inquérito, com
as devidas provas!



175
- Sei que ele deve ficar preso, mas eu gostaria que ele pudesse ficar em um lugar
melhor. Tem formação universitária o que lhe dá esse direito ­ pediu Alberto.
- Por esse motivo o colocamos em uma cela individual. Infelizmente, nesta delegacia
não temos como fazer diferente. Dentro de alguns dias ele será transferido para um
presídio, enquanto aguarda julgamento, então talvez fique um pouco melhor.
- Não estou pedindo isso para poupá-lo. Reconheço que ele deve responder pelo que fez
­ disse Alberto, triste.
Ao que Monteiro respondeu:
- Compreendo. Ele é um moço fino que sempre viveu com conforto. Mas garanto que
alguns dias em uma cela vão fazê-lo pensar melhor no que perdeu quando escolheu esse
caminho. Também fico penalizado em ver um jovem que tem tudo para ser livre e feliz,
entrar no mercado das drogas. Se posso ajudar de alguma forma, aconselho-os a não
amolecer. Não voltar a vê-lo até que ele mude de idéia e peço que vocês voltem!
Inclusive o advogado.
- Vai ser difícil, mas penso que o senhor está certo. Por mais que estejamos sofrendo, a
melhor forma de ajudá-lo é fazer com que ele finalmente perceba o alcance dos seus
atos ­ disse Teresa.
- Vamos para casa ­ decidiu Alberto. Depois, dirigindo-se ao Dr.Júlio pediu: - Espero
que o senhor não desista de defendê-lo.
O advogado sorriu e respondeu:
- Não penso em fazer isso. Um pouco de teatro às vezes ajuda a chegar onde queremos.
Depois de se despedirem, Teresa Alberto e Vitório deixaram à delegacia. Alberto queria
ir para casa, mas Teresa lembrou-se de que suas coisas estavam em outra casa.
- Você pode fazer isso amanhã ­ disse Alberto.
- Está bem. Nós temos muito que conversar antes de eu ir.
Alberto sentiu um aperto no peito. Teresa teria vontade de separar-se dele? Era isso que
ela estava pensando? Que, segredo, ela guardava que a fizera aceitar a chantagem e
quase perder a vida? Ele sentia que o momento da verdade tinha chegado e temia que
lhe trouxesse a separação.
Assim que entraram no apartamento, Dinda correu para abraçar Teresa e notou logo que
ela estava diferente. Tinha emagrecido, mas, apesar da situação complicada, seus olhos
brilhavam de prazer por estar de volta.
Vitório sentia-se feliz. Teresa estava em casa e para ele era o mais importante.
- Temos de conversar ­ disse Teresa. - Durante os dias em que estive impossibilitada de
voltar para casa, pensei muito a respeito de nossas vidas.
- Não precisa falar nada agora ­ interveio Alberto. - Estamos cansados, preocupados
com Osmar.
Ela não lhe deu atenção e continuou:
- Nos últimos tempos nós não éramos felizes. Você, Alberto, estava nervoso, eu,
depressiva. Vitório fechado no quarto, Osmar entrando pelo caminho do erro sem que
cada um de nós, perdidos em nossas divagações íntimas, percebêssemos. Nossa família
estava dispersiva, sem rumo, cada um dentro do próprio egoísmo. Foi preciso que a vida
nos sacudisse para que pudéssemos perceber isso.
Eles ouviram calados, sentindo que cada palavra dela era verdade. Teresa continuou:
- Vamos nos sentar e conversar agora.
Eles se acomodaram e Dinda fez menção de retirar-se, porém Teresa pediu:
- Fique, Dinda. Você faz parte de nossa família.
Eles se acomodaram. Teresa no sofá tendo de um lado o marido e do outro o filho.
Dinda sentou-se na poltrona ao lado. Teresa começou a falar, os olhos perdidos no
tempo, relembrando seu casamento, como apesar de não amar ardentemente o marido


176
ela acreditava que com o tempo, eles se entenderiam e poderiam ser felizes.
Alberto ouvindo-a, se sentia ansioso. Por um lado estava curioso para saber por que ela
mentira e que segredo era esse tão terrível que a família não podia saber, mas por outro
temia ouvir essa verdade que talvez o separasse. Ele não queria a separação. Aqueles
dias em que ela estivera desaparecida tinham lhe revelado o quanto ele ainda a amava e
desejava estar com ela.
Teresa continuava:
- Refleti muito e percebi que a felicidade é uma conquista renovada a cada dia. Descobri
o quanto eu amava meu marido, meus filhos, nossa casa, nossa vida e o quanto eu havia
contribuído para nossa infelicidade. Eu era inexperiente, cheia de ilusões. São elas que
nos cegam e nos impedem de enxergar o que realmente tem valor nessa vida.
- Não é verdade ­ disse Alberto -, você sempre foi uma boa esposa, uma excelente mãe.
Eu é que fui cego, deixei-me envolver pelo ciúme, pelo orgulho e fiz o que não devia.
Teresa colocou a mão sobre o braço de Alberto e respondeu:
- Não é assim que eu vejo e peço-lhe que me escute sem tentar culpar-se pelos nossos
desentendimentos.
Quando em relacionamento não vai bem, cada um tem sua parcela de responsabilidade.
Vitório remexeu-se no sofá e tornou:
- Vocês estão falando de seus sentimentos íntimos. Talvez seja melhor eu me retirar.
Teresa segurou a mão do filho e respondeu:
- Quero que você fique e escute tudo. Não haverá mais nenhum segredo entre nós.
Quero que vocês me conheçam por dentro, como eu realmente sou. Uma mulher
comum, com muitas qualidades, mas também muitos pontos fracos. Todos estes anos
nós representamos papéis convencionais, sufocando os anseios de nossa alma que, presa
em ilusões superficiais, não soube separar os sentimentos verdadeiros dos falsos. Só
quando acreditei que tinha perdido tudo consegui esse entendimento.
Teresa se calou por alguns instantes, enquanto os outros três, tocados pelo seu tom de
sinceridade, permaneceram silenciosos.
Ela respirou fundo! E continuou:
- Peço-lhes que não me interrompam. O que vou lhes contar não vai ser fácil para mim.
Ouçam e depois que eu terminar, coloquem seus pensamentos.
Teresa relatou como conhecera Antero e como se apaixonara por ele, salientando que
foi algo irresistível e como ela lutou para não se envolver. Alberto e Vitório ouviam de
cabeça baixa e Dinda rezava, com medo do que aquela confissão poderia trazer. Olhava
receosa para Alberto, mas ele estava parado, pálido, sem reagir. Dentro dele havia a
impressão de que sempre desconfiara de algo assim.
Teresa continuava contando:
- Ele era solteiro e queria que eu fosse embora com ele. Apesar de tentada, recusei. Não
podia deixar meus filhos a quem sempre amei e não queria enfrentar a ira de meu
marido nem o desprezo da sociedade. Decidi isso e acabamos nosso relacionamento. Ele
se casou com a moça que sua mãe queria e eu procurei me dedicar à família.
Contudo, pressionada pela paixão, cheguei a pensar que você, Alberto, fosse o culpado
da minha infelicidade.
Alberto levantou os olhos e fixou-a, mas não disse nada. Teresa viu tanta dor em seu
rosto que sua voz sumiu na garganta. Contudo, ela tinha decidido dizer a verdade. Fez
um esforço grande e continuou:
-Só quando pensei que o tivesse perdido, dei-me conta de que eu fui à única culpada. Eu
fiquei dividida, tive coragem para desistir de Antero, mas não tive coragem de jogar
fora aquela ilusão, aquele sonho de amor impossível que só me fez sofrer. E foi isso que
fez com que eu não enxergasse suas qualidades e a distância entre nós permanecesse.


177
Olhando para trás, notei que a vida nos deu tudo para que fôssemos felizes, mas eu não
soube valorizar.
Teresa fez uma pausa, depois como todos permanecessem silenciosos ela contou tudo
quanto tinha acontecido, a chantagem, o encontro com Elvira, o plano da viagem, o
seqüestro, a fuga, o encontro com Renata, e a idéia de fazê-la entregar o dinheiro em seu
lugar.
A voz de Teresa se firmara de novo e havia um tom de tristeza que ela não conseguia
dissimular.
-Eu sabia que eu não tinha sido uma boa esposa para você. Quando soube o que Osmar
fizera, questionei minha postura de mãe.
- Você sempre foi uma boa mãe!- tornou Vitório.
-Uma mãe só e boa quando consegue com os filhos uma ligação de alma, uma
intimidade que fortalece os laços de união. É esse tipo de amor que faz com que os
filhos se preservem, respeitem-se. Para isso eu precisaria me conhecer melhor, expressar
meus verdadeiros sentimentos, o que na época eu não sabia fazer.
Teresa calou-se por alguns instantes. Ninguém teve coragem de dizer nada. Alberto
estava por, demais tocado. Descobriu que fora traído e a dor ainda estava viva dentro
dele, principalmente por saber que Teresa sentira por outro que ele sempre sonhara que
ela sentisse por ele. Sentia-se arrasado, sem coragem de dizer nada.
Teresa pensou um pouco e disse:
- Apesar de tudo, sento-me aliviada. Sei que depois do que fiz não mereço a
consideração de vocês. Eu pensei muito antes de decidir lhe contar. Mas estando longe,
pude avaliar tudo quanto tinha perdido e prometi a mim mesma que se a vida me
permitisse voltar a vê-los eu abriria meu coração para que vocês me vissem como eu
realmente sou. Só assim terei o direito de esperar por uma vida melhor. Antero foi meu
único e terrível pecado e reconheço que paguei muito caro por essa fraqueza.
Teresa levantou-se e disse com voz firme:
- O que eu mais quero na vida é que vocês me perdoem pelo que fiz e me aceitem de
volta. Sou uma mulher que sofreu, mas que ainda acredita que podemos ser felizes
juntos. Reconheço que vocês representam para mim tudo o que vale a pena neste
mundo. Contudo, se não quiserem de volta, se você, Alberto, não puder me perdoar,
esquecer tudo e tentar um recomeço a meu lado, saberei compreender. Mas eu não podia
voltar e continuar mentindo.
Alberto, de cabeça baixa, não conseguia articular palavra. Estava comovido, tocado,
sentia que precisava ficar só, pensar em tudo e não tinha como responder.
- Vou embora. Volto para a minha casa. Lá, vou ficar esperando o que vocês decidirem.
- Eu quero que você fique ­ disse Vitório! -- Para mim você continua sendo a mais
digna das mulheres. É preciso ter muita grandeza de alma para fazer o que você fez. Eu
continuo amando-a, ainda mais tendo podido contemplar a sua beleza interior.
- Agora não, meu filho. Agradeço sua prova de carinho. Mas hoje eu vou para a minha
casa.
- Eu acompanho você.
- Prefiro ir só. Fique com seu pai.
Teresa foi saindo, Dinda e Vitório foram com ela até a porta. Por mais que Vitório
insistisse, Teresa convenceu-o a ficar. Pediu-lhe que chamasse um táxi e foi embora.
Vitório entrou na sala e encontrou Alberto no mesmo lugar. Aproximou-se dele,
abraçou-o e não encontrou nada para dizer.
Permaneceram abraçados durante alguns minutos, depois Alberto disse.
- Estou muito cansado. Vou para o meu quarto.
Ele foi e Vitório olhou para Dinda, que ficara na porta da sala sem saber o que dizer.


178
- Teresa não podia ter feito isso. Ciumento como é o Sr.Alberto nunca vai perdoá-la.
Vitório olhou-a pensativo e disse:
- Uma atitude verdadeira nunca dá errado. Se meu pai não entender isso, será inútil
mamãe tentar reconstruir sua vida ao lado dele.
Dinda ficou tentando entender onde Vitório queria chegar. Ele foi para o quarto. A
tempestade ainda não tinha passado. Além dos pais havia o caso de Osmar. Ele se
recolheu para meditar e pedir ajuda aos seus amigos espirituais.




179
CAPÍTULO 29


Vitório sentou-se na cama, fechou os olhos e agradeceu a Deus a volta de Teresa.
Quanto mais pensava no que ela dissera, mais desejava que o pai a perdoasse. Sentia
que se ele fizesse isso, haveria uma ótima chance para que eles fossem felizes, dali para
frente.
Com sono, ele estendeu-se na cama, pensativo. Pouco depois adormeceu. Sonhou que
caminhava por um jardim florido e Analú estava a seu lado.
- Que bom estar com você neste lugar tão lindo! ­ disse ele, alegre.
- Chegou à hora de cumprir o que prometi! Hoje você vai conhecer parte do passado.
Vitório sentiu uma onda de prazer e perguntou:
- para onde estamos indo?
- Em um lugar que você conheceu há muitos anos.
Eles chegaram a uma praça onde havia um prédio de três andares, rodeado por jardins.
- Este lugar me é muito familiar.
Analú parou diante de um banco e convidou:
- vamos nos sentar.
Eles se acomodaram e Analú continuou:
- Chegou à hora de você saber a verdade.
Vitório emocionou-se. Analú segurou sua mão delicadamente e começou:
- Vou começar falando dobre a bela casa onde moravam Elisa, o marido e suas filhas
gêmeas. As duas irmãs eram tão iguais que eram confundidas pelas pessoas. Apesar da
semelhança, talvez por causa do temperamento alegre, Olga era a preferida de todos.
Vendo que a irmã chamava atenção por onde passava, Flora sentia muita inveja dela.
- Espere, estou vendo essa casa. Eu conheço as irmãs gêmeas.
- Sim, você está se recordado.
- Estou e sei que Olga apaixonou-se, foi correspondida e ficou noiva, mas não se casou
com o rapaz.
- É verdade. Ele morreu antes do casamento, vítima de uma emboscada.
- Agora me recordo de alguém ter falado sobre isso. Nunca descobriram seus
assassinos?
- Nós sabemos que foram dois. A polícia prendeu um deles, que confessou o crime,
dizendo que Flora fora a mandante, mas a polícia não acreditou e concluiu que ele
matou para roubar. Na verdade, Flora pagou uma boa soma ao preso para se retratar e
não delatar o companheiro. Ela tinha um bom motivo para isso.
- Flora apaixonou-se pelo noivo da irmã, assediou-o, porém ele amava Olga e recusou
seu amor. Então, quando faltavam poucos dias para o casamento, ela mandou mata-lo.
Nesse tempo eu ainda não tinha reencarnado, mas conheci toda a história. A família dela
não desconfiou?
- Flora era dissimulada. Ninguém desconfiou, nem Olga. Mas um dos assassinos, aquele
que não foi descoberto pela polícia, era apaixonado por Flora e ela convenceu-o a
praticar o crime. Foram cúmplices. Mais tarde, quando ele descobriu que ela o usara,
ameaçou contar tudo à polícia e, para impedi-lo, ela concordou em casar-se com ele.
-Olga sofreu muito com a perda, mas o tempo passou e ela acabou se casando com
outro.
- Sim. Mas nunca foi feliz, sempre chorando pelo noivo assassinado. O marido a amava
muito, mas não se conformava com a indiferença dela. Foi então que a história se
repetiu:
- Como assim?


180
- Flora teve um filho e Olga, anos depois, também. Os dois primos brincavam juntos
todo o tempo, mas Osvaldo filho de Flora tinha muita inveja de Vinicius, filho de Olga.
- Estou sentindo que vivi essa história, Recordo-me que meu nome era Vinicius.
- Sim. Você foi o filho de Olga. Osvaldo dissimulava o que sentia. Então surgiu Ofélia,
uma moça linda, que se apaixonou por você e foi correspondida. Quando Osvaldo o viu
com ela, apaixonou-se perdidamente e desejou tirar de você.
- Eu notei, mas nem liguei. Subestimei o interesse dele por ela.
- Você não percebeu que o Osvaldo tinha muita inveja de você. A inveja é a admiração
transformada em raiva e a raiva, a manifestação do orgulho. Ele desejava possuir o que
você possuía, por esse motivo fez tudo para atrapalhar o seu namoro. Armou uma cilada
para ela e você acreditou que ela o tivesse traído.
- Eu sei do que você está falando! Eu me recordo de Ofélia, ela era minha namorada e
eu a amava. Sofri muito com o que aconteceu.
- Ela era inocente. Você foi enganado.
- Eu me arrependi de não acreditar no que ela me disse e tentei encontra-la. Ela, porém,
desapareceu. Nunca mais a vi. Só a encontrei novamente depois que retornamos à pátria
espiritual.
- Eu sei. Vocês se encontraram e desfizeram o mal-entendido.
- Lembro-me de tudo. Ela me perdoou e nos unimos aqui. Vivemos juntos até eu ter de
voltar a nascer. Estou entendendo o que nos aconteceu. Olga era Teresa e Flora, Renata.
Ela e Otávio assassinaram o noivo de Olga. Por esse motivo, atraíram os assassinos
naquela casa.
- É verdade. Ontem conseguimos convence-los a aceitar um tratamento espiritual.
Estavam cansados e sofridos. Foram encaminhados a um lugar de refazimento.
- Eles me pareceram muito rebeldes. Acha que conseguirão melhorar?
- Eles precisam aprender que maldade atrai maldade e que, se desejarem viver melhor, é
preciso melhorar sua forma de enxergar a vida.
- E Elvira, por que entrou nesta história?
- Elvira foi Elisa, mãe das gêmeas. Quando ela veio para cá soube de tudo e, avisada do
que poderia acontecer no futuro, quis reencarnar para poder ajudar as filhas.
- Vocês sabiam que esse crime iria acontecer?
- Claro que não. Nós sabíamos que essas pessoas eram maldosas e iam atrair a maldade.
Mas não sabíamos de que forma isso se daria. A vida programa as lições de cada pessoa
de acordo com o que elas precisam aprender. É bom lembrar que seja o que for que
atraiam, elas possuem livre-arbítrio e se mudarem sua maneira de pensar, escolhendo
ficar no melhor, tudo vai se modificar.
- Seria muito bom que as pessoas soubessem disso. Mudar o padrão de pensamento para
melhor é a chave do progresso em todas as áreas de nossa vida. Alberto foi o marido de
Olga e duas vezes meu pai.
-É. Você agora já lembrou do passado.
- Aqui é fácil, mas receio que quando voltar ao corpo esqueça tudo novamente.
Analú sorriu alegre:
- É preciso deixar o passado passar. Sua vida anterior
Não foi do jeito que você desejava. Mas esta será muito melhor.
- Recordo-me que Osvaldo também não foi muito feliz.
- De fato. Ofélia nunca quis nada com ele. Quando vocês se desentenderam ela foi para
longe assim como você, ele nunca mais a viu. Ele apaixonou-se por outra, que o
rejeitou. Então ele desejou ter dinheiro e poder. Ingressou na política, onde conseguiu
algum sucesso. Novamente, ele se deixou arrastar pela vaidade. Sempre quis ser maior
do que era. Não teve paciência para construir a felicidade da maneira adequada. Depois


181
da morte, Osvaldo disse estar arrependido dos seus erros e pediu nova oportunidade.
Teresa e Alberto acreditaram em sua sinceridade. Comovidos, concordaram em recebê-
lo como filho para que vocês dois, convivendo como irmãos, pudessem esquecer os
desentendimentos.
- Isso foi no astral, antes de nascermos. Aqui, quando ele esqueceu o passado, mostrou
que ainda não gostava de mim. Mas eu também não me mostrei amigo. Pelo contrário.
Retomei a aversão que sentia por ele. Só quando ele foi preso e humilhado, notei que
minha aversão tinha ido embora, eu tinha mudado. Os anos de convivência como irmãos
tinham criado um laço positivo entre nós. Descobri que gosto dele e fiquei muito triste
por vê-lo nessa situação.
- Você está certo. Eu confio que com o tempo, a amizade que nasceu em seu coração,
também tocará o dele. Um dia, Osmar descobrirá o quanto você o estima e isso o fará
mudar.
- É o que eu mais desejo nessa vida.
- Nosso tempo acabou. Está na hora de voltar.
- Já? Ah, uma última pergunta que preciso lhe fazer. Ofélia está encarnada?
- Você ainda não tem a resposta?
- Eu desconfio, mas não tenho certeza.
- Você já sabe que sim e onde ela está
Vitório levantou-se entusiasmado:
- É Estela?
- Eu preciso responder? Vamos embora.
Na volta, deslizando de mãos dadas Abalo, olhando a cidade lá embaixo, Vitório sentia
uma sensação de alegria e prazer que ele não conseguiria descrever com palavras.
Chegaram ao quarto dele e, antes que Analú fosse embora, ele indagou:
- E meus pais, ainda têm chance de viverem bem?
- Têm, mas tudo vai depender de como eles vão lidar com o orgulho ferido e conseguir
se perdoar.
Ela se afastou, atirando um beijo com a ponta dos dedos. Vitório acomodou-se no
corpo, mergulhando em um gostoso sono.
Analú não foi embora, porquanto um jovem a chamou dizendo aflito:
- Ajude-nos, Analú. Ele está sofrendo muito.
Ela viu o rosto de Alberto, angustiado, e respondeu:
- Vamos até ele.
Quando Vitório foi descansar, Alberto entrou no quarto e sentou-se na cama pensativo.
Teresa amava outro homem! Esse pensamento o martirizava e ele não conseguia pensar
em outra coisa.
Sua cabeça doía e ele não conseguia refletir com clareza. Ele fora enganado! Como não
percebera que Teresa tivera um amante? A esse pensamento sentia aumentar sua dor.
Em sua imaginação a via nos braços de outro homem, trocando carícias. Essa imagem
era-lhe insuportável.
Ele nunca poderia esquecer esse fato. Ficou ruminando esse pensamento durante muito
tempo. Atormentando-se, criando imagens de como teriam sido os encontros de Teresa
com seu rival.
Em alguns momentos, decidia que jamais a perdoaria.
Em outros, sentia que não podia viver longe dela. Sem ela tudo perderia o sentido. Não
valia a pena viver.
Então, um pensamento louco surgiu em sua mente. O melhor seria acabar com a vida,
deixar esse mundo onde não havia lugar para ele.



182
Nessa hora alguns vultos escuros o assediaram e ele começou a visualizar o revólver
que estava guardado no armário. Seria fácil ir até lá, apanhar a arma e se libertar.
Exatamente naquele instante, Analú, entrou acompanhada pelo jovem que se aproximou
de Alberto e o abraçou. As sombras escuras deixaram o quarto, assustadas.
Analú começou a orar e de seu peito saíram raios de luz azul, que envolveram Alberto,
enquanto o rapaz, abraçado a ele, falava em seu ouvido:
- Alberto, pense melhor. Não se deixe levar pela vaidade. Não dê forças para o seu
orgulho ferido. Eu estou aqui, torcendo por você.
Alberto não ouviu suas palavras, mas, aos poucos, foi se acalmando. O rapaz continuou:
- Teresa é mulher sincera.
Desta vez ele pensou: "Apesar do que fez, ela foi sincera. Arrependeu-se de não ter me
contado".
- Ela fez mais, descobriu que gosta de você e deseja faze-lo feliz. Quer recuperar o
tempo perdido.
- Ela disse que descobriu que gosta de mim, de nossos filhos e deseja viver o resto da
vida ao nosso lado. Mas eu terei condições de ser feliz depois do que ela confessou?
- Você quer jogar fora essa chance de felicidade que a vida está lhe oferecendo? Não
percebe que ela o traiu uma vez, mas você a traiu várias vezes com muitas mulheres?
Por que se julga melhor do que ela? Sua vaidade não o deixa enxergar o quanto está
sendo parcial. Se analisar melhor, verá que ela foi mais sincera do que você, uma vez
que o perdoou e deseja ser feliz ao seu lado. Vai perder essa chance?
Alberto passou a mão nos cabelos, pensativo. Ele reconhecia que nunca fora fiel.
Reconhecer isso naquela hora era arrasador. Mas por outro lado, fazia desaparecer de
sua mente a raiva por ter sido traído. Admitia que, a vida, tinha sido justa. Ele fizera e
recebera de acordo com o que havia feito.
A esse pensamento, Alberto sentiu-se aliviado. O jovem olhou para Analú, que disse:
- Conseguimos. Agora vamos fazê-lo descansar. Ele precisa recuperar as forças.
O rapaz passou as mãos em volta de Alberto, emitindo pensamentos de calma. Ele
começou a bocejar. Um sono invencível tomou conta dele, que se estendeu na cama.
- Estou muito cansado. Preciso dormir.
O jovem repetiu, alisando sua testa:
- Sim. Você precisa descansar. E quando acordar, vai se sentir muito melhor.
Os dois viram quando o duplo de Alberto saiu do corpo e, vendo-os, assustou-se com os
raios de luz que ambos emitiam:
- Vocês são anjos! ­ exclamou meio inconsciente.
- Nós somos amigos. Vamos levá-lo a um lugar onde vai recuperar suas forças.
Os dois postaram-se um de cada lado e o abraçaram. Depois, levaram-no volitando e
quanto mais se distanciavam, mais Alberto se tornava lúcido. Em determinado ponto,
olhou para o jovem e disse emocionado:
- Ronaldo é você?
- Sim.
- Estou sonhando ou eu morri? Você morreu quando eu ainda era adolescente!
- Não, meu irmão. Eu continuo vivo. A morte não existe. É apenas uma viagem para o
outro mundo.
- Você está vivo! Mamãe ficou inconformada quando você morreu!
- Hoje ela já sabe de tudo. Estamos juntos no mesmo plano.
- Há anos eu não me sentia tão bem.
- É hora de esquecer o passado e recomeçar. Vocês ainda têm tempo para desfrutar uma
vida melhor.



183
- Isto só pode ser um sonho! Não pode ser verdade. Eu pensava em morrer e você me
chama para a vida!
- Não existe morte, só existe vida. Só vida, sempre vida! Respire, aproveite estes
momentos para revigorar seu corpo. Olhe as belezas à sua volta e agradeça ao Criador
por ter nos dado esta oportunidade.
Alberto olhou em volta, estavam em um bosque belíssimo. Aspirou o perfume das flores
que coloriam os canteiros e se comoveu. Ele, que há muito tinha se esquecido de rezar,
diante de tanta beleza, orou fervorosamente, abençoando a vida, a natureza.
Vitório acordou, já era início da noite. Levantou-se pensando no pai. Como estaria?
Lavou o rosto, penteou os cabelos e foi procurar o pai. Ele não estava na sala. Dinda,
vendo-o, aproximou-se e, antes que ele falasse, disse:
- Estou preocupada com o Sr. Alberto. Ele nunca dorme de dia. Deitou-se naquela hora
em que você foi para o quarto e está dormindo até agora! São sete horas, o jantar está
pronto. Fui até o quarto chama-lo, mas ele ainda está dormindo. Nem me ouviu entrar.
Ele tem um sono leve, isso não é normal.
- Vou vê-lo.
Vitório entrou no quarto e aproximou-se da cama. Alberto dormia, mas seu rosto estava
calmo e ele respirava normalmente.
Vitório voltou à sala.
- E então? ­ indagou Dinda.
- Ele dorme como um bebê. Mas parece bem. A volta de mamãe sã e salva o fez relaxar.
Vamos deixá-lo descansar, jantaremos mais tarde.
Uma hora depois, quando Alberto acordou e apareceu na sala, Vitório tornou:
- Finalmente você conseguiu adormecer. Entrei em seu quarto e você estava em um
sono tão profundo que nem me ouviu entrar.
Alberto olhou-o, calmo, e respondeu:
- Estou me sentindo melhor. Dormi como há muitos anos não dormia.
- É que a tensão acabou com a volta de mamãe.
- Não foi apenas isso, meu filho. Hoje foi um dia diferente. Fui para o quarto arrasado,
sentindo que precisava pensar em tudo que sua mãe disse. Confesso que estava
inconformado, sem querer aceitar a verdade. A traição dela doía e eu cheguei a pensar
até em acabar com a vida.
Ele fez uma pausa e Vitório levantou-se, abraçando-o:
- Por que não me chamou para conversarmos?
- Nem pensei nisso. Eu precisava me confrontar refletir sofre os fatos, e só eu poderia
fazer isso. Mas enquanto eu pensava em acabar com a vida, parecia que eu ouvia uma
voz que me respondia. Quando eu pensava na traição de Teresa, a voz me dizia que ela
me traiu uma vez, enquanto eu a traí inúmeras vezes, com muitas mulheres. Penso que
era minha própria consciência, repreendendo-me pelo meu orgulho de achar que eu sou
mais digno. No fim, cheguei à conclusão de que sou mais culpado do que ela. Senti que
eu não tenho moral para exigir contas do comportamento de ninguém.
- O orgulho é sempre um mal conselheiro.
- Eu mereci essa lição. Quando cheguei a essa conclusão, senti que toda a minha revolta
tinha ido embora. Minha raiva havia passado. Toda tensão desapareceu. Comecei a
sentir um calor agradável, um sono invencível, deitei-me e adormeci.
Alberto respirou fundo e, vendo que o filho o ouvia atentamente, continuou:
- Então tive o sonho mais maravilhoso da minha vida. Vi-me em um jardim florido com
uma mulher maravilhosa e um rapaz jovem que falou comigo e, para meu espanto,
reconheci o Ronaldo, meu irmão que morreu quando eu ainda era adolescente. Você
acha isso possível?


184
- Claro que é possível. Eu mesmo tenho me encontrado com pessoas que vivem em
outros mundos. Você estava precisando de ajuda e o espírito de Ronaldo veio ajudá-lo.
- Nunca pensei que os mortos pudessem voltar. Ele me disse que a morte não existe e
que só existe a vida. Tudo é vida!
Vitório abraçou o pai comovido:
- Finalmente pai, você conseguiu perceber a verdade. O que mais ele lhe disse?
- Que é hora de esquecer o passado e desfrutar da felicidade. O que você acha?
- Ele sabe o que está dizendo. Nós amadurecemos e já podemos viver melhor.
- É isso o que mais quero. Amanhã vamos ter com Teresa para lhe pedir que volte para a
casa.
Vitório abraçou o pai com carinho:
- Finalmente, pai! Estou certo de que escolheu o melhor caminho. Agora seremos
felizes.
- Mas há o problema do Osmar...
- É verdade. Mas vamos confiar. Uma hora ele vai entender que está errado e mudar.
Vamos pensar que ele se arrependeu e nunca mais vai repetir o erro.
- Na delegacia ele não parecia nem um pouco arrependido.
- Sinto que é uma questão de tempo. Osmar sempre foi inteligente. Uma hora vai
entender que quiser viver bem terá de mudar, e nós vamos todos os dias mandar-lhe
pensamentos de luz e de amor para que ele se recupere logo.
- Você me surpreende, meu filho. Ele nunca o tratou bem. Sempre fez pouco caso de
você.
- Eu também não o tratava como a um irmão. Mas eu mudei. Entendi que quando a vida
nos uniu na mesma família queria que eu aprendesse a amá-lo e esquecesse o passado.
- Estou orgulhoso de você. Começo a acreditar que tudo o que você diz é possível.
- Claro que é.
Os espíritos de Analú e Ronaldo, que estavam lá, sorriram satisfeitos.

***

Teresa chegou à casa triste, mas aliviada! Não sabia como Alberto ia enfrentar a
verdade. Era possível que seu ciúme o impedisse de perdoá-la. Mas ela estava disposta a
aceitar sua decisão com coragem e retomar sua vida assim mesmo. Era o preço que teria
de pagar pelo seu erro. Não se deixaria abater.
A campainha tocou e ela se surpreendeu. Alberto já teria decidido? Com o coração aos
saltos, foi abrir: o delegado Monteiro estava na sua frente.
- O senhor?
- Desculpe vir sem avisar, eu liguei para Vitório e ele informou-me que a senhora estava
aqui.
- Entre, por favor.
Ele entrou e sentaram-se na sala. Em silêncio, o delegado retirou um pacote do bolso e
entregou-o a ela, que imediatamente o abriu. Sua foto e de Antero estava logo em cima.
Ainda não refeita da surpresa, Teresa viu que ali estavam todos os documentos que
tentara obter.
- Este pacote foi encontrado na casa do crime. Guardei-os, deduzindo por que a mulher
morta tinha ido lá. Guardei sigilo para não atrapalhar as investigações.
Ele fez ligeira pausa e, vendo que ela ouvia atentamente, continuou:
- Quando a senhora fez seu depoimento, decidi não colocar essas provas no inquérito.
Admirei sua franqueza e cheguei à conclusão de que deveria devolvê-los.
Teresa ouvia! Olhos brilhantes de emoção. O delegado a aconselhou:


185
- Destrua-os. A senhora e sua família já sofreram muito e merecem ficar em paz.
- Mas há meu depoimento e quando for depor na justiça terei de voltar ao assunto.
- Certo. Mas, apesar disso, esse material não aparecerá nos jornais e pouparemos vocês.
Monteiro levantou-se e Teresa disse:
- Obrigada, doutor. O senhor é um homem de bem.
Os olhos de Monteiro brilhavam emotivos e ele respondeu:
- A senhora é uma grande mulher.
Ele foi embora e Teresa olhou as fotos e os bilhetes que tinha nas mãos. Foi à cozinha,
pegou uma panela colocou-os dento, jogou álcool e pôs fogo.
Ficou olhando as chamas, lambendo as fotos e os bilhetes que, em poucos segundos,
transformaram-se em um punhado de cinzas.
O passado definitivamente estava morto e ela, livre. Naquele momento teve a certeza de
que estava pronta para recomeçar uma nova vida.




186
CAPÍTULO 30
Na manhã seguinte, Alberto acordou cedo. Ele custara a dormir na noite anterior,
fazendo planos para o futuro. Imaginando retomar seu trabalho na empresa ao lado de
Teresa e Vitório.
Levantou-se, arrumou-se e foi tomar café. Pouco depois, Vitório chegou. Ele também
acordou cedo querendo ir logo à procura da mãe.
Depois do café, eles informaram Dinda que iam buscar Teresa. Vendo-os sair
apressados, ela sorriu alegre e elevou seu pensamento a Deus, agradecendo por tudo ter
terminado bem.
Quanto ao caso de Osmar, ela acreditava que quando ele desse-se conta do tamanho do
erro que cometera, do quanto isso o prejudicara, arrancando-o de uma situação
privilegiada e atirando-o em uma cela de prisão, sem saber quando ficaria livre, pensaria
melhor, e quando ganhasse a liberdade novamente, nunca mais teria coragem de voltar a
fazer negócios ilícitos.
Teresa também acordou cedo naquela manhã. Refletindo sobre como seria sua vida dali
para frente. A atitude do delegado a fizera sentir-se valorizada e com a certeza de que
agira corretamente ao enfrentar seus medos. Apesar de temer que Alberto não a
perdoasse, estava disposta a enfrentar os acontecimentos como uma conseqüência de
seus erros. Sentia-se forte, apesar da insegurança do seu futuro.
A campainha tocou e Teresa foi abrir. Emocionada, olhou Alberto e Vitório, que
imediatamente a abraçaram.
- Mãe, viemos buscá-la. Vamos para a casa.
Teresa olhou para Alberto que a abraçou, dizendo:
- Quero que você volte para a nossa casa.
As lágrimas desciam pelo rosto de Teresa, que os abraçou, sem encontrar palavras para
responder.
Eles entraram e ela fechou a porta.
- Vamos arrumar suas coisas agora ­ disse Vitório.
Ela fixou os olhos em Alberto e perguntou:
- Tem certeza de que é isso que você quer?
Ele não desviou o olhar e disse:
- Absoluta. Sinto que nós ainda temos tempo de nos conhecermos melhor e
recomeçarmos nossa vida.
- Vamos nos sentar e conversar sobre nosso futuro ­ tornou Teresa, convidando-os a
entrarem na sala.
Alberto sentiu que ela temia os arroubos de ciúmes que ele sempre tivera e respondeu:
- Ontem, depois que você saiu, recolhi-me para pensar. Sentia dor, revolta, não entendia
direito as emoções que me atormentavam. No início pensei até em acabar com a vida
porque eu não conseguia perdoa-la, mas sabia que não poderia viver sem você. O amor
que sinto está mais vivo do que nunca.
Ele fez ligeira pausa, depois continuou:
- Recordei-me dos meus erros, das traições que cometi me relacionando com outras
mulheres e cheguei à conclusão de que eu não tenho moral para lhe cobrar nada. Você
abriu seu coração e eu quero fazer o mesmo. Desejo que nosso relacionamento daqui
para frente seja limpo, claro e verdadeiro. Devo dizer-lhe que nunca amei outra mulher.
Você me desprezava e eu corria atrás das outras para provar-lhe que era apreciado como
homem. Talvez esse tenha sido o maior dos meus erros. Fazia isso por vaidade, só
alimentando meu orgulho. No fim, ficava mais infeliz do que antes.


187
- Eu sabia de tudo e imaginava que você se comportava assim para humilhar-me por eu
não ser uma mulher carinhosa.
Os dois se calaram e Vitório interveio:
- O orgulho continua sendo nosso maior inimigo. Enquanto lhe dermos força, não
encontraremos a felicidade.
Teresa concordou com a cabeça e Alberto continuou:
- Reconheço que se eu tivesse deixado a vaidade de lado e sido carinhoso, dando provas
do imenso amor que sentia talvez você tivesse correspondido.
- Penso que sim.
- Quero que me perdoe por não ter tido essa sensibilidade. Mas agora será diferente.
Nós mudamos, aprendemos.
Teresa sorriu e levantou-se?
- Ajudem-me a arrumar as coisas. Vamos para a casa.
Contentes, eles arrumaram tudo e colocaram no carro. Ela levou as coisas de Renata e
pretendia manda-las para uma casa de caridade.
Foi com alegria que chegaram ao apartamento, onde Dinda, radiante, esperava-os para o
almoço. Vitório, porém, não quis esperar. Tinha urgência de ver os amigos.
Foi à casa de Marília, tocou a campainha, e Estela abriu a porta. Vendo-o, sorriu alegre:
- Estava pensando em você!
- Eu também.
Ele entrou e eles logo foram cercados por Marília, Altair e Dorita. Depois dos
cumprimentos ele falou da volta de Teresa e da alegria de tê-la em casa.
- Ainda não vi Paulo. Pensei encontra-lo aqui.
- Agora ele só vem a passeio ­ informou Marília.
- Para namorar a dona da casa ­ brincou Dorita.
- Vou ligar e dizer-lhe que você está aqui.
Marília ligou e Paulo disse que iria até lá para vê-lo.
- Que rápido que ele resolveu me ver! ­ brincou Vitório.
- Tem mais alguém que andava chorando pelos cantos ­ disse Altair.
- Cale a boca, menino ­ pediu Estela.
- Por que não diz a verdade? Estela está morrendo de medo que você vá embora para o
Rio de Janeiro e não venha mais aqui.
Vitório olhou-a sério e respondeu:
- Nós nos reencontramos depois de tanto tempo e não quero perder essa oportunidade.
Vendo que Estela estava emocionada, Dorita convidou-os a irem à cozinha, onde ela
havia coado um café fresquinho.
Pouco depois, Paulo chegou, abraçou Vitório, interou-se dos últimos acontecimentos e
disse:
- Finalmente esse drama está tendo um final feliz!
- Estive na delegacia e Monteiro contou-me que depois que vocês foram embora, Osmar
não falou mais com ninguém. Fechou-se num mutismo total, não responde quando
falam com ele e nega-se a dormir na cama da cela. Monteiro contou que esse fato
retarda a transferência dele para um presídio, onde ficaria mais bem instalado. Monteiro
precisa encerrar o inquérito e deseja que ele fale, testemunhe contra o Gil.
- Nós pensamos em ir visitá-lo mais tarde.
- Apesar do comportamento dele, Monteiro pensa que é melhor ele não ver ninguém da
família por perto. Se pensar que está abandonado, talvez resolva se abrir.
Vitório suspirou e respondeu triste:
- vou me concentrar e pedir a Analú que nos ajude.
- É uma boa idéia.


188
Vitório conversou mais um pouco, depois se despediu. Estela acompanhou-o até a porta,
enquanto os outros continuaram na cozinha, tomando café.
Vitório segurou a mão dela, dizendo com carinho:
- Não tenha medo. Agora que nos encontramos de novo, nunca mais nos separaremos.
Nós temos um caminho a percorrer juntos.
Ela sorriu e seus olhos brilhavam alegres.
- Eu preciso ir por causa de meu irmão, mas logo voltarei.
Vitório voltou ao apartamento e encontrou Alberto no telefone, falando com o
advogado.
- E então? ­ perguntou Teresa, quando ele desligou.
- O Dr. Júlio nos aconselhou a não ir hoje ver Osmar.
Disse-nos que será muito bom que ele fique sozinho com seus pensamentos.
- Não sei se ele está certo. Tenho vontade de vê-lo ­ reclamou Teresa.
- O Dr. Júlio tem muita experiência. Pode estar certo.
Vitório interveio:
- Quando não sabemos o que fazer podermos recorrer aos nossos amigos espirituais.
Eles os olharam admirados, e Vitório prosseguiu:
- Vamos nos sentar, elevarmos nosso pensamento e pedirmos aos espíritos de luz que
nos ajudem a encontrar o melhor caminho.
Os dois concordaram, acomodaram-se. Vitório pediu:
- Vamos fechar os olhos e nos concentrar, imaginando que esta sala está cheia de luz
azul.
Eles obedeceram e Vitório continuou:
- Vamos mentalizar Osmar e imaginar que essa luz azul o que está envolvendo,
levando-lhe energias de amor e paz. Vamos sentir todo o amor que temos por ele no
coração e o abraçarmos com carinho.
Nesse instante, Vitório viu o espírito de Analú e do jovem que estava ao lado dela.
Imaginou que fosse Ronaldo que tinha auxiliado Alberto.
Ronaldo envolveu-o e Vitório começou a falar:
- Sou Ronaldo. Acalmem-se e entreguem o caso de Osmar nas mãos de Deus.
Continuem envolvendo-o com amor, mas saibam que esta é uma grande oportunidade
para que ele tenha sucumbido às tentações do orgulho, mas agora já está maduro para
perceber seus erros. Seu espírito já pode construir uma vida melhor. Alegrem-se por
saber que a vida está agindo, mostrando-lhe seus pontos fracos e quando ele os
reconhecer, aceitar que não é tão grande como imagina nem tão pequeno como se sente,
encontrará o equilíbrio do seu nível espiritual e desfrutará de momentos mais felizes.
Alberto sensibilizado, disse:
- Você é o anjo que me ajudou. Sei que está ajudando Osmar.
- Sou um espírito que lhes quer muito bem e deseja que aprendam a valorizar as
conquistas que fizeram. O orgulho excessivo de Osmar o tem infelicitado, mas quem de
nós já terá vencido esse mal? A inveja é fruto do orgulho e da vaidade. E só a
venceremos quando aceitarmos a nossa realidade e a vida como ela é. Portanto, vamos
assumir nossa responsabilidade como pessoa, cuidar bem do nosso progresso e confiar
no futuro. Nenhum de nós pode julgar ninguém. Mas é válido esperar pelo melhor,
porquanto a vida trabalha com segurança para nos conduzir à conquista da felicidade.
- Você acha que Osmar um dia vai entender isso? ­ indagou Teresa, comovida.
- Esqueçam o erro que ele cometeu, mentalizem as qualidades que ele tem e tratem de
trazer para fora seu lado melhor. Se fizerem isso, o que desejam acontecerá mais rápido
do que vocês pensam.
- Você vai continuar nos ajudando?


189
- EU e Analú estaremos sempre tentando inspirar-lhes pensamentos elevados. Saindo
daqui, iremos ter com Osmar, onde procuraremos ajuda-lo para que encontre o melhor
caminho.
Vitório estendeu as mãos sobre os pais e delas saíram jatos de luz que os envolveu,
fazendo-os se sentirem confiantes e fortalecidos.
Depois, Ronaldo afastou-se de Vitório, que, emocionado, continuava vendo-os. Ele
abraçou os pais, sentindo vibrar o amor que tinha no peito. Nesse instante, uma luz
branca e brilhante desceu do alto sobre a cabeça de todos.
Analú e Ronaldo, abraçados, contemplavam a cena radiantes. Depois tudo se apagou e
Analú deu a mão a Ronaldo dizendo:
- Hoje conseguimos mais uma vitória. Sinto que Osmar desta vez vai se recuperar e esta
família poderá viver em paz. Vitório vai se casar com Estela, Marília com Paulo e entre
todos vai existir uma grande amizade.
- E eu, o que acontecerá comigo?
- Você voltará nos braços de Estela e Vitório. Desta vez para uma vida longa e
proveitosa.
A noite já havia descido sobre a terra e as luzes da cidade brilhavam lá embaixo,
enquanto as estrelas faiscavam no céu.
De mãos dadas. Analú e Ronaldo deslizavam no espaço, sentindo o coração inundado
de luz e muita confiança no futuro.

FIM



COLABORAÇÃO DE:
D@Y (MODERADORA DA COMUNIDADE)
DRYKA
FLÁVIA
LUCINDA
GLÓRIA (MODERADORA DA COMUNIDADE)

REVISÃO: MÔNICA (MODERADORA DA COMUNIDADE)

ESTE LIVRO ESTARÁ NA PASTA DA NOSSA QUERIDA AMIGA MÔNICA.

FOI UM PRAZER EM PROPORCIONAR ESSE LIVRO A VCS. AMIGOS DA
COMUNIDADE!!
AGUARDEM!!!!
VEM MAIS POR AÍ!!!

ESSE LIVRO FOI POSTADO SEM NENHUM PROPÓSITO FINANCEIRO, E SIM
LEVAR A LEITURA AS PESSOAS QUE NÃO PODEM COMPRAR.




190

Abraços !

             

Gilson

http://groups.google.com.br/group/bons_amigos?hl=pt-BR

http://videoaulaseprogramas.blogspot.com/

--
Seja bem vindo ao Clube do e-livro
 
Não esqueça de mandar seus links para lista .
Boas Leituras e obrigado por participar do nosso grupo.
==========================================================
Conheça nosso grupo Cotidiano:
http://groups.google.com.br/group/cotidiano
 
Muitos arquivos e filmes.
==========================================================
 
 
Você recebeu esta mensagem porque está inscrito no Grupo "clube do e-livro" em Grupos do Google.
Para postar neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro@googlegroups.com
Para cancelar a sua inscrição neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro-unsubscribe@googlegroups.com
Para ver mais opções, visite este grupo em http://groups.google.com.br/group/clube-do-e-

0 comentários:

Postar um comentário

Vida de bombeiro Recipes Informatica Humor Jokes Mensagens Curiosity Saude Video Games Car Blog Animals Diario das Mensagens Eletronica Rei Jesus News Noticias da TV Artesanato Esportes Noticias Atuais Games Pets Career Religion Recreation Business Education Autos Academics Style Television Programming Motosport Humor News The Games Home Downs World News Internet Car Design Entertaimment Celebrities 1001 Games Doctor Pets Net Downs World Enter Jesus Variedade Mensagensr Android Rub Letras Dialogue cosmetics Genexus Car net Só Humor Curiosity Gifs Medical Female American Health Madeira Designer PPS Divertidas Estate Travel Estate Writing Computer Matilde Ocultos Matilde futebolcomnoticias girassol lettheworldturn topdigitalnet Bem amado enjohnny produceideas foodasticos cronicasdoimaginario downloadsdegraca compactandoletras newcuriosidades blogdoarmario arrozinhoii