sábado, 12 de outubro de 2019 By: Fred

{clube-do-e-livro} LANÇAMENTO :HEROÍNAS DO ROMANCE BRASILEIRO - SANTOS MORAES - FORMATOS : PDF, EPUB E TXT

As grandes figuras femininas de nosso ro-

mance ressurgem, neste livro fascinante, retratadas

como aut��nticas mulheres de carne e osso pelo

poeta e romancista Santos Moraes, ele pr��prio cria-

dor de um personagem famoso de romance, o Me-

nino Jo��o. Ao nos apresentar Iracema, a virgem dos

labios de mel. Cec��lia, o eterno amor de Peri, C a p i -

tu, a de olhos de ressaca, Inoc��ncia, a doce serta-

neja, Moreninha, a fascinante adolescente, e mais

a escrava Isaura, Helena, Diva, Luc��ola, Sofia,

Virg��nia, Dona Carmo, Mana Bonita, entre outras

que enriquecem esta galena extraordin��ria de per-

sonagens imortais, o autor revela-se, a um tempo,

cr��tico e leitor, amante-dedicado da nossa literatura.

Revivendo as cria����es de Alencar, Machado

de Assis, Taunay Raul Pompeia e outros, o autor

realizou um belo trabalho de s��ntese e de interpre-

ta����o, ao mesmo tempo que nos faz evocar as

hist��rias de amor, de ci��me, os dramas e trag��dias,

assim como as emo����es e as l��grimas com que os

mestres do passado constru��ram a grandeza e a

perenidade do nosso romance. Este �� um livro que

n��o apenas ensina e evoca, mas emociona e comove

Os que o lerem sentir��o na alma a doce presen��a

dos fantasmas do passado.

Pelo seu aspecto paradid��tico, rico como ��

de informa����es sobre a obra e a vida dos autores

estudados, este Hero��nas do Romance Brasileiro

muito ajudar�� os estudantes de literatura dos cursos

m��dio e superior nos seus trabalhos de interpreta-

����o e an��lise liter��ria. Mas �� tamb��m dedicado a

todos os que liter��ria ou sentimentalmente quei-

ram saber por que s��o idolatradas algumas das

principais figuras do nosso romance

EDITORA EXPRESS��O E CULTURA

RIO DE JANEIRO, 1971

HERO��NAS

DO ROMANCE





BRASILEIRO


OBRAS DO A U T O R :

A N U V E M DE FOGO, poesia, Edi����es Literatura, 1948.

TEMPO E ESPUMA, poesia, Livraria S��o Jos��, 1956.

M E N I N O JO��O, romance, Livraria S��o Jos��, 1959, Pr��mio de Ro-

mance do Instituto Nacional do L i v r o em 1960.

O CA��ADOR DE BORBOLETAS, contos, Editora Pongetti, 1961, Pr��mio

Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras em 1963.

Os FILHOS DO ASFALTO, romance, Jos�� ��lvaro Editor, 1964.

R E I Z U M B I E A TERRA SANGRA, teatro, Editora Leitura, 1965 ��� Pr��-

mio Cl��udio de Sousa, da Academia Brasileira de Letras, em 1961,

para a pe��a "A Terra Sangra".

Dois CIENTISTAS ( Rocha Lima e Gaspar Viana), cole����o Os Bra-

sileiros, Edi����es Tempo Brasileiro, 1968.

POEMAS DO H��SPEDE, poesia, Editora Luan, 1969.

HERO��NAS DO ROMANCE BRASILEIRO, Editora Express��o e Cultura,

1971.





HEROINAS

DO ROMANCE





BRASILEIRO


SANTOS MORAES


EDITORA EXPRESS��O E CULTURA

em conv��nio com o

INSTITUTO NACIONAL DO LIVRO

Rio de Janeiro ��� 1971



C O P Y R I G H T , 1 9 7 1 , E D I T O R A E X P R E S S �� O E C U L T U R A R E S E R V A D O S T O D O S O S D I R E I T O S D E P U B L I C A �� �� O

P R I M E I R A E D I �� �� O : J A N E I R O D E 1 9 7 1

C A P A D E V E R A D U A R T E

R E V I S �� O D E A R N A L D O J O S �� S T A M A T O

D I A G R A M A �� A O D E O R E S T E S D E O L I V E I R A F I L H O

C O M P O S I �� �� O ( R E G A L 1 0 / R ) , I M P R E S S �� O ( T I P O G R A F I A ) A G G S I N D �� S T R I A S G R �� F I C A S S . A .

��NDICE

9 C E C �� L I A

O Guarani, de Jos�� de Alencar

17 I R A C E M A

Iracema, de Jos�� de Alencar

23 L �� C I A

Luc��ola, de Jos�� de Alencar

31 D I V A

Diva, de Jos�� de Alencar

37 A U R �� L I A

Senhora, de Jos�� de Alencar

45 H E L E N A

Helena, de Machado de Assis

53 Y A Y �� G A R C I A E E S T E L A

Yay�� Garcia, de Machado de Assis

61 V I R G �� L I A

Mem��rias P��stumas de Br��s Cubas, de Machado

de Assis

69 S O F I A

Quincas Borba, de Machado de Assis

77 C A P I T U

Dom Casmurro, de Machado de Assis

85 D O N A C A R M O

Memorial de Aires, de Machado de Assis

93 I N O C �� N C I A

Inoc��ncia, de Visconde de Taunay

101 C A R O L I N A

A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo

109 I S A U R A

A Escrava Isaura, de Bernardo Guimar��es

117 M A G D ��

O Homem, de Aluizio Azevedo

125 L E N I T A

A Carne, de J��lio Ribeiro

133 M A R I A DO C A R M O

A Normalista, de Adolfo Caminha

141 E M A

O Ateneu, de Raul Pompeia

149 L U Z I A

Luzia-Homem, de Domingos Ol��mpio

157 M A R I A

Cana��, de Gra��a Aranha

165 V I O L A N T E

Turbilh��o, de Coelho Neto

173 J A N A

Jana e Joel, de Xavier Marques

181 M A R I A B O N I T A

Maria Bonita, de Afr��nio Peixoto

189 M A R I A DUS��

Maria Dus��, de Lindolfo Rocha

Cec��lia

(O Guarani, de Jos�� de Alencar)

D AS HERO��NAS do romance brasileiro, talvez a que

mais inspirou, atrav��s dos tempos, m��sicos, pintores e

artistas, foi a meiga Cec��lia, que Jos�� de Alencar criou no

seu livro O Guarani. Autor que vem atravessando as

d��cadas com seu prest��gio popular intocado, Alencar, no

entanto, sempre foi um escritor em torno de quem ju��zos

contradit��rios se cruzaram. Admirado ou negado, seu g��-

nio se imp��s desde que publicou em folhetins an��nimos no

Di��rio do Rio, em 1857, a epop��ia brasileira de O Guara-

ni, criando os tipos imortais de Ceci e Peri, a linda e

rom��ntica adolescente, filha de um fidalgo portugu��s, e o

��ndio, tamb��m nobre na sua linhagem das selvas e filho

do grande Arar��, cacique de sua tribo.

Cec��lia, a quem Peri chamava docilmente de Ceci, pala-

vra que na sua l��ngua significava "doer, magoar", apa-

rece no cap��tulo 5.�� do romance, e eis como a apresenta

Alencar, no seu estilo po��tico:

" N o pequeno jardim da casa do Paquequer, uma linda

mo��a se balan��ava indolentemente numa rede de palha

presa aos ramos de uma ac��cia silvestre, que estreme-

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cendo deixava cair algumas de suas fl��res mi��das e per-

fumadas.

Os grandes olhos azuis, meio cerrados, ��s vezes se

abriam languidamente como para se embeberem de luz, e

abaixavam de novo as p��lpebras rosadas. Os l��bios verme-

lhos e ��midos pareciam uma flor de gard��nia dos nossos

campos, orvalhada pelo sereno da noite; o h��lito doce e li-

geiro exalava-se formando um sorriso. Sua tez, alva e pura

como um froco de algod��o, tingia-se nas faces de uns

longes c��r-de-rosa, que iam, desmaiando, morrer no colo

em linhas suaves e d e l i c a d a s .

Assim entra Cec��lia no romance para domin��-lo at�� o

fim. �� em torno de sua figura encantadora de menina-

-mo��a, seus caprichos, sua garridice, que se desenrolam

as tramas do livro, e se prostram os cora����es: o do pai,

nobre e austero fidalgo de " c o t a d'armas"; de D.

��lvaro, apaixonado pelos seus encantos; do aventureiro

Loredano, ex-frade que l�� chegara para descobrir as mi-

nas de Rob��rio Dias e planejava matar todos e carregar

Cec��lia com ele; e de Peri, g��nio benfazejo e protetor, que a

salvaria da morte v��rias vezes e a protegeria de todos os

perigos at�� o fim.

Assim fez Alencar de sua hero��na a inspiradora de tr��s

tipos de amor: o amor tranquilo e honesto de D.

��lvaro, que almejava a uni��o pelo casamento; o amor

sensual do aventureiro Loredano, que queria a viol��ncia,

o rapto, a posse; por fim, o amor submisso, desinteressa-

do e ing��nuo, mas ao mesmo tempo obsessivo, de Peri,

que o levava a abandonar a sua tribo para viver aos p��s

da amada, e chegava a extremos de exclamar: "Peri ��

filho do Sol; e renegava o Sol se ��le queimasse a pele alva

de Ceci. Peri ama o vento; e odiava o vento se ��le arran-

casse um cabelo de ouro de Ceci. Peri gosta de ver o

c��u; e n��o levantava a vista, se ��le fosse mais azul do que

os olhos de C e c i " .

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Cec��lia era filha de D. Ant��nio Mariz e irm�� de D. Diogo

Mariz, personagens hist��ricos aproveitados por Alencar

no seu livro. Pai e filho existiram realmente, e deles nos

d�� not��cia Baltazar da Silva Lisboa nos Anais do Rio de

Janeiro. O primeiro era um fidalgo portugu��s de " c o t a

d'armas", um dos fundadores do Rio de Janeiro, com-

panheiro de Mem de S�� nas lutas de 1567. Fez parte em

1578 da expedi����o de Ant��nio Salema contra os franceses

em Cabo Frio, tendo sido Provedor da Real Fazenda e

depois da Alf��ndega do Rio de Janeiro, tendo neste ��ltimo

cargo sido substitu��do por seu filho D. Diogo.

Alencar situou a hist��ria na vasta sesmaria fluminense

doada a D. Ant��nio Mariz por Mem de S��, onde ele se

instalara com a fam��lia e o ter��o de aventureiros a seu

servi��o, e constru��ra um rico solar para perpetuar o seu

bras��o nas terras brasileiras.

Ali ent��o, ��s margens do Paquequer, hoje quase inexis-

tente, mas que na ��poca, segundo o autor afirma em

nota evocando Baltazar da Silva Lisboa, era um rio

caudaloso, se desenrola em lances romanescos a hist��ria

de amor entre a linda e loira fidalga e o r��stico e va-

lente ind��gena brasileiro, ao mesmo tempo que outras tra-

mas se desenvolvem, tais como a revolta dos aventurei-

ros chefiados por Loredano, e o terr��vel ataque dos ��ndios,

em vingan��a �� morte de uma ��ndia indefesa, v��tima da

imprud��ncia de D. Diogo.

A casa dos Mariz sofre simultaneamente dois ataques, o

dos aventureiros revoltados e o dos ��ndios vingadores.

Ao fim de dias de incessante luta, tudo desaparece sob o

fogo, ante a explos��o de p��lvora que D. Ant��nio promove

quando os ��ndios j�� lhe invadiam o solar. O filho, D.

Diogo, escapa e foge por ordem de D. Ant��nio que, nos

��ltimos instantes, ante o oferecimento de Peri para que

ele pr��prio se salvasse, recusa e lhe diz que salve Cec��lia,

e a leve para o Rio, a fim de entreg��-la a uma tia, sua

irm��. Para que isso fosse poss��vel, Peri estava obrigado a

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tornar-se crist��o e renegar a religi��o dos antepassados.

Ele aceita, e D. Ant��nio o faz crist��o. Ele foge com Cec��-

lia, enquanto os ��ndios invadem o solar. Vagam os dois

alguns dias numa canoa, a�� ent��o Cec��lia come��a a am��-

lo realmente. J�� n��o pode viver sem ele. Pede-lhe que fique

no Rio quando l�� chegarem e nunca mais volte ��s sel-

vas. Ele recusa a princ��pio, mas afinal concorda ante a

tristeza com que ela recebe a negativa. Diz:

��� Queres que Peri fique contigo? Ele ficar��. Todos

ser��o seus inimigos; todos o tratar��o mal; desejar�� de-

fender-te e n��o poder��; querer�� servir-te e n��o o deixa-

r��o; mas Peri ficar��.

Ela sente a grandeza daquele sacrif��cio e lhe diz que

n��o a leve mais, pois deseja ela mesma ficar ao seu lado

nas florestas. Peri se alegra, mas lembra a promessa

que fizera a D. Ant��nio, e em sil��ncio se prop��e a

cumpri-la.

De repente os c��us escurecem e desaba a tempestade

que j�� se anunciava desde a v��spera. O rio cresce, as

��guas se avolumam. Alencar assim o descreve: " T u d o

era ��gua e c��u. A inunda����o tinha coberto as margens

do rio at�� onde a vista podia alcan��ar. As grandes mas-

sas d'��gua, que o temporal durante a noite inteira verte-

ra sobre as cabeceiras dos confluentes do Para��ba, desce-

ram das serranias, de torrente em torrente, haviam for-

mado essa tromba gigantesca que se abatera sobre a v��r-

z e a " .

Cec��lia tem medo. Peri leva-a para o cimo de uma pal-

meira, enquanto a ��gua subia e cobria tudo. Ela teme a

morte, mas Peri diz-lhe que ele vencer�� tudo, as ��guas e a

tempestade, para salv��-la. Conta-lhe a lenda ind��gena de

Tamandar�� que, num dil��vio em que todos morreram,

ouvira a voz de Deus e subira com a sua mulher numa

palmeira, e dos seus frutos se alimentaram, e a ��gua

cavou a terra e levou a palmeira para o alto. As ��guas

subiram at�� o c��u, tr��s s��is e tr��s noites. Depois que

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baixaram, Tamandar�� desceu com a companheira e po-

voou a terra.

Mas a ��gua subia mais e mais, j�� molhava a roupa de

Cec��lia, e quando ia trag��-los, ante um grito de pavor da

mo��a, Peri, num esfor��o gigantesco, arranca do solo a

palmeira ap��s minutos de luta s��bre-humana. A ��rvore

sobe com as ��guas, e Peri, tomando Ceci nos bra��os,

exclama triunfante: "Tu viver��s!". Ent��o beijam-se pela

primeira vez. E Alencar arremata a hist��ria com a vis��o

da palmeira fugindo, arrastada pela torrente, at�� sumir-

se no horizonte.

Cec��lia vive at�� hoje, e, n��o h�� d��vida, viver�� sempre.

O Guarani j�� alcan��ou edi����es sem conta, talvez cente-

nas. Foi lido por milh��es na nossa e em outras l��nguas,

foi numerosas vezes musicado, transposto para o teatro,

cantado e exaltado em prosa e em verso, desde o seu

aparecimento em 1857. Muitas l��grimas j�� fez derramar a

v��rias gera����es, e o amor puro de Ceci e Peri, a fidalga e

o ��ndio, filhos de duas ra��as que se mesclaram no in��cio

dos nossos dias, transformou-se num s��mbolo da amizade

extrema e da dedica����o sem limites. �� talvez o mais

brasileiro dos nossos romances, e Cec��lia a mais querida

das nossas hero��nas de fic����o.





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Iracema

(Iracema, de Jos�� de Alencar)





OEMA em prosa, romance, lenda, qualquer deno-

mina����o que se queira dar a Iracema, de Jos�� de Alencar,

vem apenas mostrar que a obra de arte prescinde de

classifica����o ou de g��nero para se impor atrav��s dos tem-

pos. Quando do seu aparecimento, entre os aplausos da

cr��tica, destacou-se o de Machado de Assis que, em dois

s��lidos rodap��s, saudou o novo livro de Alencar e concluiu

com essas palavras prof��ticas: "Poema lhe chamamos a

este, sem cuidar de saber se �� antes uma lenda, se um

romance: o futuro chamar-lhe-�� obra-prima".

Jos�� de Alencar criou uma das hero��nas famosas do

romance brasileiro, a ��ndia Iracema, cuja hist��ria de

amor, com o toque da infelicidade e do abandono, vem

comovendo e embalando a imagina����o de muitas gera-

����es. Lenda do Cear��, foi como a denominou o autor, e

nela p��s todo o seu amor, o seu carinho, e a sua saudade

pela terra natal que h�� tantos anos n��o via, mas que

ficara gravada na sua alma desde a inf��ncia. Em 1965,

comemorou-se o primeiro centen��rio de sua publica����o,

quando muitas homenagens foram prestadas �� mem��ria

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do romancista, inclusive uma bela edi����o comemorativa

de Iracema.

Iracema era uma virgem tabajara, filha de Araqu��m,

paj�� da tribo que dominava o interior do Cear��, especial-

mente a Serra de Ibiapaba. Seu nome significava em

guarani "l��bios de m e l " . Sua fun����o, como filha do pa-

j��, era guardar o segredo da Jurema, como "virgem de

T u p �� " , fun����o sagrada. E por isso n��o poderia amar um

homem. Aquele que a possu��sse morreria.

A descri����o que o autor f��z da linda ind��gena �� a mais

bela em l��ngua portuguesa, pois nenhuma mulher jamais

mereceu tantos elogios e tropos po��ticos de exalta����o,

espalhados por todo o livro. Ela era "a virgem dos l��bios

de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da

gra��na e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo

da jati n��o era doce como seu sorriso; nem a baunilha

recendia no bosque como seu h��lito perfumado".

Sua apari����o se faz quando, no banho, ela repousava

em um claro da floresta e despreocupadamente enxuga-

va ao sol seu corpo perfumado, enquanto p��ssaros can-

tavam nas ��rvores e com ela entoavam alegremente tri-

nados festivos. Neste ambiente maravilhoso, em plena

mata cearense, quando l�� ainda dominavam os ��ndios

em fortes na����es, desenvolve-se a lenda que Alencar trans-

p��s para a literatura.

A hist��ria de Iracema �� muito triste, e essa tristeza s��

�� amenizada, e n��o se torna melodram��tica, pelo seu

estilo po��tico que atinge o maravilhoso. Nela surge o

guerreiro branco Martim, que, tendo sa��do �� ca��a com o

seu amigo Poti, da na����o dos pitiguaras, perdera-se nas

florestas, indo dar ao campo dos tabajaras, onde Irace-

ma o encontra e leva �� cabana de seu pai, Araqu��m, paj��

da tribo. A hospitalidade �� franca, gozando Martim de

todas as regalias, e fica �� espera de Caubi, irm��o de Irace-

ma, que o levar�� de volta ��s terras pitiguaras. Iracema

apaixona-se por ele, enquanto Irapu��, grande guerreiro ta-

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bajara, enciumado, quer mat��-lo e mais de uma vez o

tenta. Mas Iracema evita os embates, salvando o seu

amado. N��o podendo, pelas leis da tribo, amar um ho-

mem, pois era "a virgem de T u p �� " , ela se entrega ao

guerreiro branco e com ele foge, abandonando seu povo.

Leva-o at�� a regi��o dos pitiguaras onde encontram Poti, o

amigo e irm��o de Martim. Desde ent��o as desgra��as se

abatem sobre ela. Seus irm��os empreendem uma guerra

de vingan��a, tendo �� frente Irapu��, e saem perseguindo os

fugitivos. Por causa dela travou-se um combate entre as

duas na����es, os tabajaras e os pitiguaras, no qual o seu

povo foi vencido, e fugiu, deixando o campo cheio de

cad��veres. Ela se sentiu muito triste, com remorso por

ter sido a causa daquela desgra��a, e teve saudade de sua

terra, de seu pai, de seu povo, sem no entanto arrefecer

o amor por Martim, que compensava todos os sacrif��-

cios. Nasceu-lhes um filho a que chamaram de Moacir, o

"filho da d o r " .

Mas o guerreiro branco tamb��m sentia saudade de sua

p��tria distante, e passava longas temporadas longe de-

la, ca��ando, e em demoradas jornadas pelas selvas. Ira-

cema definhava de tristeza, saudade e abandono. O leite

materno lhe murchou nos seios e j�� nem dava para ali-

mentar o filho. Num de seus regressos, Martim a en-

controu quase desfalecida �� porta da cabana, e viu ent��o

" c o m o a dor tinha consumido o seu belo corpo, mas a

formosura ainda morava nela, como o perfume na flor

ca��da do manac��". Disse-lhe ela: "Recebe o filho do teu

sangue. Era tempo: meus seios ingratos j�� n��o tinham

alimento para dar-lhe!".

E logo depois pediu-lhe: "Enterra o corpo de tua esposa

ao p�� do coqueiro que tu amavas. Quando o vento do

mar soprar nas folhas, Iracema pensar�� que �� tua voz que

fala entre os seus cabelos".

Martim assim o fez e levou o filho para longe do Cear��.

Anos depois voltou trazendo sacerdotes e a cruz de Cristo

21

para implantar ali a religi��o. Seu amigo Poti foi batiza-

do com o nome de Ant��nio Felipe Camar��o. Voltando ao

s��tio onde viveu com Iracema, reviu emocionado " a s ver-

des folhas a cuja sombra dormia a formosa tabajara".

Passou dias sentado na areia a recordar o seu amor,

ouvindo de novo cantar a jandaia no olho do coqueiro; mas

j�� n��o repetia ela o doce nome de Iracema, a primeira

hero��na do romance brasileiro que morreu de amor.

Iracema tem nas suas personagens correspondentes

hist��ricos. O pr��prio livro foi inspirado na hist��ria dos

primeiros colonizadores portugueses que aportaram �� re-

gi��o. Martim, o guerreiro branco, era Martim Soares

Moreno, chefe da primeira expedi����o vinda do Rio Grande

do Norte e considerado o verdadeiro fundador do Cear��.

Chegou a Mestre-de-Campo e se notabilizou na luta

contra os holandeses no Nordeste. O ��ndio Poti, seu ami-

go, era o famoso Ant��nio Felipe Camar��o, guerreiro ind��-

gena amigo dos portugueses, que tamb��m se celebrizou

na luta contra a invas��o holandesa. Irapu��, o guerreiro

tabajara, que lutou contra os pitiguaras e saiu em perse-

gui����o a Martim e Iracema, era o famoso chefe ��ndio Mel

Rosado. E o pr��prio enredo do livro faz parte das lendas

e tradi����es do Cear��. Escreveu Alencar:

"Quando em 1848 revi a terra natal, tive id��ia de

aproveitar suas lendas e tradi����es em alguma obra lite-

r��ria. J�� em S��o Paulo tinha come��ado uma biografia de

Camar��o. Sua mocidade, a her��ica amizade que o ligava

a Soares Moreno, a bravura e a lealdade de Jaca��na,

aliado dos portugueses, e suas guerras contra o c��lebre

Mel Rosado; a�� estava o tema. Faltava-lhe o perfume

que derrama sobre as paix��es dos homens a alma da

mulher.''

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L��cia

(Luc��ola, de Jos�� de Alencar)



UC��OLA �� o quinto romance de Jos�� de Alencar e o

primeiro da trilogia que ele denominou de "Perfis de Mu-

lher". Integra o conjunto da fic����o urbana do grande

romancista, aquela em que ele fixou o Rio de Janeiro da

��poca, com a sua fisionomia burguesa e tradicional, com

uma sociedade endinheirada que frequentava o L��rico,

passeava �� tarde na Rua do Ouvidor e �� noite no Passeio

P��blico, morava no Flamengo, Botafogo ou Santa

Teresa, e era protagonista de dramas de amor que iam

do simples namoro contrariado �� paix��o desvairada.

Luc��ola foi um romance ousado para a ��poca, seu te-

ma escandalizou os leitores e a sociedade de ent��o, pois

contava a hist��ria ainda n��o colocada ��� at�� ent��o ��� em

termos de literatura entre n��s ��� o da prostitui����o. Apesar

das roupagens rom��nticas, pois a personagem era boa de

cora����o, demonstrando isso na abnega����o e no estoicis-

mo com que se sacrificou por sua fam��lia, n��o seria t��o

f��cil a aceita����o de um livro como esse, que desvendava,

em cenas ��ntimas e descri����es bem marcantes, a vida de

alcova de uma famosa mundana. E ainda mais, fazia

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dessa " p e c a d o r a " uma v��tima da sociedade e a redimia de tudo mostrando a face nobre do seu car��ter.

N��o se chama Luc��ola a hero��na, como seria de espe-

rar, mas apenas L��cia. "Luc��ola ��� explica o pref��cio ���

�� o lampiro noturno que brilha de uma luz t��o viva no

meio da relva e �� beira dos charcos. N��o ser�� a imagem

verdadeira da mulher que no abismo da perdi����o conser-

va a pureza da a l m a ? ' ' .

Mas como era essa mulher famosa que Alencar foi

buscar na vida noturna para transformar na hero��na do

seu romance? Sua primeira apari����o se faz na festa tra-

dicional do Outeiro da Gl��ria, onde Paulo, jovem provin-

ciano rec��m-chegado ao Rio, vai encontr��-la, e assim a

descreve: "A lua vinha assomando pelo cimo das mon-

tanhas fronteiras; descobri nessa ocasi��o a alguns pas-

sos de mim uma linda mo��a, que parara um instante

para contemplar no horizonte as nuvens brancas esgar-

��adas sobre o c��u azul e estrelado. Admirei-lhe do primeiro

olhar um talhe esbelto e de suprema eleg��ncia. O vestido

que o moldava era cinzento com orlas de veludo cas-

tanho e dava esquisito realce a um desses rostos suaves,

puros e di��fanos que parecem v��o desfazer-se ao menor

sopro como os t��nues vapores da alvorada".

"Lembrou-se depois Paulo que j�� a tinha visto antes, no

dia mesmo de sua chegada ao Rio, em um carro elegante

levado por dois fogosos cavalos, e exclamara ent��o para

um companheiro ao lado: " Q u e linda menina! Como de-

ve ser pura a alma que mora naquele rosto!''.

L��cia era, assim, uma mundana de rara beleza e suave

aspecto, que a faziam parecer uma jovem inocente. Pelo

menos essa foi a impress��o de Paulo, e que o levou a

apaixonar-se, mesmo depois de saber quem era ela.

Tal como a pintou o romancista e se depreende de toda

a hist��ria, ela era de natureza complexa nas alternativas

de sua vida e do seu temperamento. Boa nas inten����es,

mas devassa na pr��tica da vida que levava; interesseira e

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avara na conquista do dinheiro f��cil e, ao mesmo tem-

po, generosa ao dar esmolas e no ajudar parentes; com

um passado de luxo e dissipa����o, se apaixona da manei-

ra mais rom��ntica pelo jovem que nela descobrira bonda-

de e ternura. Enfim, era bem feminina ao parecer tantas

numa s��. Paulo, no entanto, no entusiasmo da paix��o,

definiu-a: " T u ��s um anjo, minha L��cia! ".

Tendo Paulo visto L��cia naquela festa da Gl��ria, a ela

foi apresentado pelo seu companheiro, que a conhecia e

fora seu amante. Mesmo assim, ele continuou a idealiz��-

la, at�� nas visitas que lhe fez a seguir, francamente ino-

centes e cordiais. S�� algum tempo depois �� que se torna-

ram amantes. Cada vez mais, no entanto, prendia-se a

ela por um amor apaixonado que ultrapassava a simples

satisfa����o do sexo. N��o a queria como uma mundana,

l��brica e sensual, famosa pelos requintes no amor, e

sentia que ela tamb��m, na maneira de trat��-lo, no seus

sil��ncios, nos seus beijos e car��cias, o amava realmente.

A prova maior disso foi o seu afastamento de tudo para

dedicar-se a ele. Mas logo brigaram, e ela voltou �� vida

antiga. Nessas alternativas de brigas e reconcilia����es, de

ciumadas e de arrependimentos, chegaram �� confiss��o de

suas vidas e �� aceita����o do amor com que se queriam.

E L��cia contou-lhe a sua hist��ria, declarando para

sempre morta a mulher que fora at�� ent��o: sua fam��-

lia viera morar na Corte e viviam dignamente at�� que a

epidemia de febre amarela de 1850 atacou todos os seus,

pai, m��e, irm��os, tios.

Somente ela foi poupada, vendo-se obrigada a cuidar dos

seus. Assim foi que, por necessidade, entregou o seu

corpo a um rica��o de nome Couto, para conseguir ajuda

e apoio. Morreram-lhe a m��e, a tia, dois irm��os, e o pai,

ao descobrir que ela recebera dinheiro de um homem em

paga de sua honra, expulsou-a de casa. Depois disso, o

caminho estava aberto �� prostitui����o. Na sua nova vida,

ent��o, mudou de nome, pois se chamava realmente Ma-

27

ria da Gl��ria, em devo����o �� sua madrinha Nossa

Senhora da Gl��ria.

Depois de uma longa viagem que fizera �� Europa em

companhia de um amante, de volta ao Rio, s�� encontrou

de sua fam��lia uma irm��zinha de nome Ana, a quem

tomou sob sua prote����o e a p��s num col��gio.

Ap��s tal confiss��o, de que resultou um perfeito enten-

dimento entre os dois, L��cia foi morar numa casinha de

Santa Teresa, que alugara, em companhia da irm��.

Afastou-se da vida mundana para receber apenas a visita

de Paulo. No ambiente buc��lico daquele bairro, viveram

os dois um id��lio simples. Passeavam nos arredores de

m��os dadas como dois namorados, e nessa busca da ino-

c��ncia perdida ela at�� se recusava, p��dicamente, a ser de

novo sua amante. �� que ela, agora ja adotando outra vez

seu nome de batismo, Maria da Gl��ria, estava esperan-

do um filho de Paulo.

Mas o id��lio em que viviam pouco durou. L��cia sofreu

um aborto e, ante a recusa de tomar rem��dio para expelir

o feto sem vida, faleceu da infec����o, confessando a Pau-

lo que o amava perdidamente desde o primeiro encontro.

Pediu-lhe que cuidasse de sua irm��zinha Ana, a quem

deixara em testamento a sua fortuna, cerca de cinquen-

ta contos de r��is, como se fosse sua pr��pria filha. A princ��-

pio queria que ele casasse com Ana, mas, ante sua recu-

sa, pediu-lhe que a protegesse e morreu dizendo-se sua

noiva eterna, sua noiva no c��u.

Luc��ola foi publicado em 1862 pelo pr��prio autor, que

custeou os gastos da edi����o. N��o teve a mesma reper-

cuss��o de seus livros anteriores, nem ganharia a fama

dos que ainda viria a escrever.

Hist��ria no mais puro estilo rom��ntico, fantasiosa, ba-

seada numa idealiza����o de natureza humana, versava o

tema t��o caro ao romantismo, o da mocinha pura e ino-

cente arrastada �� prostitui����o por um homem mau, que

vendia seu corpo para ajudar a fam��lia, e afinal, quando

28

encontrou um verdadeiro amor personificado em um ho-

mem que a compreendesse e aceitasse, redimiu-se. Ex-

plorando esse fil��o sentimental, Luc��ola ��, como roman-

ce, um dos mais bem feitos de Alencar, e Luc��ola, L��cia

ou Maria da Gl��ria uma das hero��nas mais queridas de

sua obra, no seu processo de purifica����o atrav��s do pe-

cado e de reden����o pelo amor.

Luc��ola �� ainda uma esp��cie de r��plica da A Dama

das Cam��lias, hist��ria das mais representativas do roman-

tismo franc��s, aproveitada por Dumas Filho no seu tea-

tro e que era, na ��poca, lida e relida entre n��s. A pr��-

pria L��cia, em uma cena do livro, aparece lendo A Da-

ma das Cam��lias, cuja influ��ncia �� bem n��tida nesse

livro de Alencar.

29

Diva

(Diva, de Jos�� de Alencar)



S TR��S PERFIS de mulher que Jos�� de Alencar

criou, entre os seus romances urbanos que retratavam a

sociedade e a vida carioca dos meados do s��culo X I X , se

n��o constituem o principal de sua obra, d��o no entanto

um retrato fidedigno da ��poca e da fam��lia burguesa

que ent��o se constitu��a na Corte, com os seus dramas de

amor, suas rela����es sociais, seu pequeno mundo de festas

e de apar��ncias e seus tipos mais caracter��sticos. Diva ��

o segundo dessa s��rie, e dos tr��s �� possivelmente o mais

fraco. Seu enredo gira em torno de uma estranha e volun-

tariosa menina-m����a que aspirava ao amor ideal e sonha-

va entregar seu cora����o somente ��quele que ultrapassasse

os limites do amor banal e a quisesse com fren��tica pai-

x��o. Em��lia era o seu nome, e a hist��ria come��a quando

ela contava quatorze anos e era, como descreve o autor,

" u m a menina muito feia, mas da fealdade n��bil que

promete �� donzela esplendores de beleza".

H�� meninas ��� diz o personagem contando o seu dra-

ma a um amigo confidente ��� que se fazem mulheres

como as rosas, passam de bot��o a flor; desabrocham.

Outras saem das faixas como os colibris da gema; en-





3 3


quanto n��o emplumam s��o monstrinhos; depois tomam-

se maravilhas ou primores. Era Em��lia um colibri im-

plume; por conseguinte, um monstrinho.

Pois essa menina feia, pouco depois, quando vai reen-

contr��-la o her��i da hist��ria, era j�� uma linda mo��a,

como a descreveu o romancista: "Era alta e esbelta.

Tinha um desses talhes flex��veis e lan��ados, que s��o has-

tes de l��rio para o rosto gentil; por��m na mesma delica-

deza do porte esculpiam-se os contornos mais graciosos

com firme nitidez das linhas e uma deliciosa suavidade

nos relevos. N��o era alva, tamb��m n��o era morena.

Tinha na tez a cor das p��talas da magn��lia, quando v��o

desfalecendo ao beijo do sol. Mimosa cor de mulher, se a

aveluda a pubescencia infantil, e a luz coa pelo fino teci-

do, e um sangue puro a escumilha de r��seo matiz. A

dela era assim".

Como se dera a transforma����o? Mist��rios da natureza

que t��o bem descreveu o autor carregando nas tintas

romanescas com que procurou colorir o encanto e a se-

du����o de Em��lia, a diva ideal dos sonhos de um jovem

m��dico que a salvou de uma mortal enfermidade para

depois render-se seduzido pela sua contradit��ria e tir��nica

personalidade.

A hist��ria �� contada em tom de confid��ncia do m��dico

Dr. Amaral ao seu amigo Paulo, confessando o estranho

caso de amor em que se viu envolvido at�� a paix��o.

Conhecera Em��lia ainda menina feia e desgraciosa. Sendo

amigo de sua fam��lia, foi um dia chamado a medic��-la,

rec��m-formado, pois estava ela acometida de pneumonia

dupla. Ao tentar examin��-la, levantou-se a mo��a indigna-

da e explosiva, por nada permitindo que ele a auscultasse,

como uma gata selvagem. Reagia a qualquer aproxima-

����o. Desvelou-se ele, no entanto, e com muitos sacrif��cios

e abnega����o completa salvou-a da morte.

Viajou em seguida para a Europa, com uma bolsa de

estudos, e ao voltar encontrou-a j�� transformada numa

34

bela mo��a, mas continuando a demonstrar por ele um

misto de repulsa e ��dio. Amigo da fam��lia, era sempre

convidado ao conv��vio de Em��lia e de seus pais, crescendo

pouco a pouco em seu cora����o um grande amor por ela,

na mesma propor����o em que ela o repelia, tiranizava e

o lan��ava no mais completo desprezo. Sua vida foi trans-

formada num verdadeiro inferno por aquela mulher que

se divertia em faz��-lo sofrer, em humilh��-lo at�� o deses-

pero. Outras vezes dava-lhe pequena esperan��a, animava-

o at�� certo ponto, s�� para traze-lo subjugado aos seus ca-

prichos, aos seus dem��nios interiores, e depois lan��ar-lhe

na face o insulto, a c��lera e o desabafo de uma natureza

perversa e m��. "Eu n��o o amo! Eu o desprezo!". E o po-

bre Amaral, entre alternativas de venera����o e ��dio, tinha

tamb��m vontade de insult��-la, de amesquinh��-la, at�� de

agredi-la, e mais de uma vez quase chegou a tal extremo.

Afinal, quando o drama atingiu o cl��max, ele, desespera-

do, lan��ou-lhe na face tamb��m o seu desprezo. Em��lia es-

bofeteou-lhe o rosto e ele agarrou fortemente os seus pul-

sos e a jogou por terra, desvairado. Deu-se ent��o a s��bita

transforma����o, rompendo-se as barreiras do ��dio que

escondia, no fundo, o amor. Em��lia arrastou-se a seus p��s

e confessou-lhe afinal que o amava loucamente, que

sempre o amara, que ele era o ��nico motivo de sua vida. O

rapaz, apavorado, fugiu dela como de uma vis��o si-

nistra.

No dia seguinte, Amaral recebeu de Em��lia uma carta

extravasando um amor delirante e obsessivo que o tinha

por alvo. Ele, ent��o, implorou a Deus que o livrasse

daquela mulher, mas foi em v��o. Logo correu ao seu

encontro e pouco depois se tornaram marido e mulher.

Diva ��, primordialmente, um estudo do car��ter de um

tipo de mulher obsessiva, tir��nica, neur��tica, na sua

complexidade psicol��gica. Ela desejava e sonhava um ho-

mem que lhe desse o amor verdadeiro e total, e ao mes-

35

mo tempo desprezava e humilhava aquele que lhe rendia

o cora����o. No fundo, amava Amaral desde menina,

quando ele penetrara na sua intimidade como m��dico, e

auscultara o seu peito, o que lhe causara naquele mo-

mento uma repulsa indignada que muito tinha de atra-

����o. Mas o longo e doloroso processo de reconhecimento

desse amor foi uma exposi����o de sua morbidez, de seus

instintos s��dicos e de sua crueldade feminina. Uma his-

t��ria como essa, a ser contada nos tempos de hoje, teria

a maior complexidade e seria escrita �� luz da psican��lise,

com a revela����o de terr��veis complexos, terminando por

certo no suic��dio ou no manic��mio. No tempo de Alencar,

no entanto, os dramas desse tipo eram mais simplistas, e

se resolviam mesmo, como no romance, com a submis-

s��o da mo��a e o casamento final.

Diva foi publicado em 1864, quando Alencar tinha 35

anos de idade. Este foi um ano particularmente feliz para

��le, pois assinalou o seu casamento com Georgina Au-

gusta Cochrane. Tamb��m em 1864 ele escreveu os ��lti-

mos cap��tulos do seu romance hist��rico As Minas

de Prata. Eram passados j�� sete anos da publica����o de

O Guarani, que consagrara o seu nome como o mestre do

romance brasileiro. Mas, mesmo considerando-se a gran-

deza que o romancista j�� atingira com O Guarani e viria

depois a conquistar com Iracema, Sonhos de Ouro, O

Tronco do Ip��, Ubirajara e outros livros, este "perfil de

mulher" que ��le pintou em Diva na figura ex��tica e

contradit��ria de Em��lia �� uma das ricas cria����es de sua

imagina����o prodigiosa e do seu g��nio liter��rio, que ainda

hoje perdura na mem��ria e na admira����o dos leitores.





3 6


Aur��lia

(Senhora, de Jos�� de Alencar)



ENHORA, romance que Jos�� de Alencar publicou

dois anos antes de morrer, �� o terceiro da s��rie "Per-

fis de Mulher" (os outros s��o Diva e Luc��ola) e tem

como personagem principal uma figura estranha e fas-

cinante, a orgulhosa e vingativa Aur��lia Camargo,

rainha dos sal��es cariocas na ��poca do II Reinado, rica

e imprevista herdeira de grande fortuna, e que passou

do anonimato e da mediocridade de uma exist��ncia po-

bre para o esplendor social.

O romance foi publicado em 1875 em dois volumes

pela editora Garnier, e trazia, �� guisa de assinatura,

as iniciais G. M., que tamb��m assinaram os dois outros

"perfis de mulher". Foi esta a ��nica edi����o em vida

do autor.

Por essa ��poca, j�� Jos�� de Alencar vivia amargurado

e desiludido, enfermo de corpo e de alma, e este livro

reflete a sua condena����o a uma sociedade enganosa e

falsa, sua indigna����o contra certos aspectos da vida

mundana, em que o casamento de conveni��ncia era

uma das formas mais comuns de um mo��o conseguir

a fortuna e vencer na vida.





3 9


A hero��na do romance �� uma jovem de dezoito anos,

de rara beleza e forte personalidade. Eis como o autor

a descreve: " H �� anos raiou nos c��us fluminenses uma

nova estrela. Desde o momento de sua ascens��o nin-

gu��m lhe disputou o cetro, foi proclamada a rainha

dos sal��es. Tornou-se a deusa dos bailes, a musa dos

poetas e o ��dolo dos noivos em disponibilidade. Era rica

e formosa. Duas opul��ncias que se real��am como a

flor em vaso de alabastro; dois esplendores que se re-

fletem, como o raio de sol no prisma do diamante".

Ap��s tal apresenta����o, fica no esp��rito do leitor a

id��ia de que vai ler um epis��dio de futilidades e de

brilho, com tal personagem a comandar as festas. Nada

mais falso. Na verdade aquela rainha dos sal��es, alegre

e aparentemente feliz, trazia no ��ntimo um drama de

amor muito forte, movido por amarga decep����o, e vai

ser protagonista de uma hist��ria dram��tica e, sob certos

aspectos, terr��vel na humilha����o que inflige ao ho-

mem que a desprezara, e na cr��tica que lan��a �� so-

ciedade de ent��o. Mo��a pobre, filha de um casamento

secreto, viveu at�� a adolesc��ncia com a m��e vi��va e

de repente o av�� aparece e a faz herdeira de seus

bens. Morre-lhe a m��e quase ao mesmo tempo que o

av�� rico, e ela, senhora absoluta de seu destino e de

sua fortuna, imp��s-se nos sal��es do Rio como a figura

m��xima, para em seguida planejar e executar a vin-

gan��a cruel contra o ex-noivo que a abandonara por

um dote de trinta contos de r��is, quando ela n��o dis-

punha sen��o de sua beleza e de seu corpo.

Aur��lia nascera do casamento secreto do estudante

Pedro Camargo, filho ileg��timo de um rico comerciante

do interior de Minas. O pai jamais aprovara esse amor

do filho e o afastou do Rio. Quando Aur��lia completou

quinze anos, a m��e tratou de convenc��-la a arranjar

um noivo e casar-se logo, pobres que eram. De sua

40

janela ela namorava v��rios rapazes, passando a ser a

atra����o dos mo��os dispon��veis. Um deles, Eduardo Abreu,

rico herdeiro, apaixonou-se por ela, mas ela se apaixo-

nou mesmo foi por Fernando Seixas, rapaz bonito e

brilhante, jornalista, pobre de bens. Ficaram noivos,

mas Fernando, que s�� queria subir na escala social,

abandonou a noiva pobre para assumir compromisso

com Adelaide Amaral, que era rica e tinha um dote

de trinta contos. Antes de se casarem, ele viajou para

Pernambuco, onde se demoraria um ano.

Nesse ��nterim, a vida de Aur��lia se transformou com-

pletamente. O av�� afinal descobriu e reconheceu o ca-

samento do filho, que j�� havia morrido, e veio conhe-

cer a neta, fazendo-a sua herdeira universal. De volta

ao interior, j�� com 70 anos, morreu. A m��e dela, doen-

te h�� tempos, faleceu tamb��m. Sozinha no mundo, e

ainda menor de idade, Aur��lia recebeu a heran��a, ava-

liada em mil contos de r��is, tendo como tutor um tio,

de nome Lemos, um velhote s��rdido que certa vez qui-

sera conquist��-la.

Guardando ainda no cora����o a paix��o por Fernando,

assim como a humilha����o que ele lhe fizera sofrer,

Aur��lia combinou com seu tutor um ardil para vin-

gar-se. F��-lo procurar o ex-noivo e oferecer cem contos

de r��is para ele casar-se com uma mo��a rica e bonita,

sem no entanto declinar a identidade dela, afirmando

mesmo que a dita mo��a nada sabia da proposta.

Fernando, que voltara de Recife para casar-se com Ade-

laide Amaral, repeliu a oferta, mas depois, necessitando

de dinheiro, aceitou-a com a condi����o de receber, adian-

tados, vinte contos de r��is. Foi para ele uma agrad��-

vel surpresa quando soube que a noiva era Aur��lia Ca-

margo. Afinal casaram-se. Na noite de n��pcias, quando

ele esperava ter o amor apaixonado da esposa, foi re-

cebido com desprezo. Aur��lia humilhou-o denunciando

a vergonha do seu procedimento. Mostrou-lhe face a

41

face o recibo de sua compra, e, da maneira mais im-

piedosa e cruel, deu-lhe o cheque de oitenta contos

com que completava a sua venda. Envergonhado, ele

pensou em mat��-la e suicidar-se, mas afinal calou, e

passaram a viver simulando uma felicidade que n��o ti-

nham. Na intimidade, cada um procurava ferir mais

fundamente o outro. At�� que, quase um ano depois,

��le conseguiu, de um neg��cio que fizera ainda solteiro,

os vinte contos de que precisava para conquistar a li-

berdade e os devolveu �� esposa, juntamente com o che-

que de oitenta contos ainda intato. Mal contendo a

emo����o e a paix��o que a dominava, Aur��lia aceitou o

distrato, e quando Fernando despedia-se para retirar-se

de sua vida ela o chamou e se lan��ou aos seus p��s,

dizendo-lhe que sempre o amara, e agora mais do que

nunca, pois que ele, com o seu gesto, redimira-se da

inf��mia e da venalidade. Fernando respondeu que tam-

b��m a amava muito, mas que sua fortuna era uma

barreira entre os dois. Ela ent��o tirou do cofre o tes-

tamento que fizera na ocasi��o do casamento, no-

meando-o seu herdeiro universal. E com isso provou

que tudo fizera movida pelo amor, e como esperava

morrer se ��le a abandonasse, deixaria sua fortuna para

ele. Reconciliaram-se e j�� agora, movidos t��o-somente

pelo amor comum, passaram verdadeiramente a primeira

noite de casados.

Senhora �� o melhor romance da s��rie "Perfis de Mu-

lher", com que Jos�� de Alencar procurou retratar a

sociedade carioca da ��poca, e um dos melhores do ro-

mantismo brasileiro. Nesses romances, que refletiam os

h��bitos, os v��cios, os defeitos e o esplendor de uma socie-

dade sob forte influ��ncia europ��ia e alicer��ada economi-

camente na escravid��o, que por sua vez sustentava

a monarquia, o que sobressai �� a den��ncia e a con-

dena����o da fatuidade, da ostenta����o e da falsa

42

moralidade. Fernando Seixas era um exemplo t��pico

do rapaz influenciado por esse ambiente, um perfeito

ca��a-dote, que n��o vacilara em vender-se por cem

contos de r��is, enquanto Aur��lia Camargo, a princ��pio

v��tima dessa sociedade, passa �� condi����o de acusadora

e vingadora, para vergastar os corruptos e venais. No

fim, com a recupera����o de Fernando, prova o autor que

o meio �� que o corrompia.

Romancista nacional por excel��ncia, a ambi����o de

Jos�� de Alencar era deixar uma obra que refletisse o

Brasil. Assim o fez com os seus romances indianistas,

retratando o Brasil em forma����o: assim tamb��m o f��z

nas obras em que pintou o sert��o, e o fez ainda nos

livros que nos mostram a vida carioca do meio-s��culo

imperial, tal como este Senhora, que vem atravessando

os anos e continua a interessar os leitores de todo o

Pa��s, quase cem anos depois de escrito.

Dois anos ap��s a sua publica����o, morria o grande

romancista, ��s dez horas da manh�� de 12 de dezembro

de 1877, aos 48 anos de idade.

43

Helena

(Helena, de Machado de Assis)



NTES DE ESCREVER os tr��s romances maiores

de sua obra ��� Mem��rias P��stumas de Br��s Cubas,

Quincas Borba e Dom Casmurro ��� nos quais todos os

cr��ticos assinalam um extraordin��rio salto em qualidade

e em grandeza, Machado de Assis j�� era um roman-

cista de sucesso e tinha percorrido uma longa carreira

de escritor. Poeta, cr��tico liter��rio, teatr��logo, cronista,

contista, o ex-menino pobre do morro do Livramento

j�� era uma express��o nacional. Foi nessa primeira fase

que publicou o seu terceiro romance, Helena, no ano de

1876.

Por essa ��poca, al��m do prest��gio liter��rio de que

gozava, Machado de Assis ascendera socialmente, e tinha

sido, nesse mesmo ano, promovido pela Princesa Impe-

rial a chefe de se����o na Secretaria da Agricultura, pas-

sando ent��o a morar na Rua das Laranjeiras, a dois

passos do Largo do Machado, para onde se mudara de

sua anterior resid��ncia �� Rua da Lapa.

Helena vinha enriquecer a galeria, na ��poca ainda

pobre, das hero��nas do romance brasileiro, criando uma

figura extremamente simp��tica de mulher, muito dife-

47

rente daquela que seria mais tarde a mais c��lebre per-

sonagem feminina da sua obra, a misteriosa Capitu

dos olhos de ressaca.

Embora com uma hist��ria complicada e triste, Helena

era o tipo da mo��a aparentemente tranquila e serena,

bela e de fina educa����o. Eis como a descreve o autor

na sua primeira apari����o no livro:

"Era uma mo��a de dezesseis a dezessete anos, del-

gada sem magreza, estatura um pouco acima da me-

diana, talhe elegante e atitudes modestas. A face, de

um moreno-p��ssego, tinha a mesma impercept��vel pe-

nugem da fruta de que tirava a cor; naquela ocasi��o

tingiam-na uns longes cor-de-rosa, a princ��pio mais ru-

bros, natural efeito do abalo. As linhas puras e severas

do rosto, parecia que as tra��ara a arte religiosa. Se

os cabelos castanhos como os olhos, em vez de dis-

postos em duas grossas tran��as, lhe ca��ssem espalha-

damente sobre os ombros, e se os pr��prios olhos al-

��assem as pupilas ao c��u, diss��reis um daqueles anjos

adolescentes que traziam a Israel as mensagens do Se-

nhor. N��o exigira a arte maior corre����o e harmonia

de fei����es, e a sociedade bem poderia contentar-se com

a polidez de maneiras e a gravidade do aspecto. Uma

s�� cousa pareceu menos apraz��vel ao irm��o: eram os

olhos, ou antes o olhar, cuja express��o de curiosidade

sonsa e suspeitosa reserva foi o ��nico sen��o que lhe

achou, e n��o era pequeno.''

Como se v��, estamos longe ainda do apurado estilo,

cheio de elipses e mist��rios, de ironia e pessimismo,

do humour ��s vezes c��ptico, ��s vezes negro, do ver-

dadeiro Machado. A sua prosa �� l��mpida, direta, nos

moldes das costumeiras descri����es lineares de um enredo

romanesco, sem as complica����es e as sutilezas que o

seu g��nio iria depois engendrar nas suas obras maiores.

48

Helena atravessa todo o romance com a dignidade de

uma mo��a honesta, de s��os princ��pios, bondosa, amorosa,

procurando viver em paz com todos, escondendo o seu

verdadeiro e aflitivo drama, e aceitando uma situa����o

excepcional, embora falsa, que o destino lhe oferecera

atrav��s do legado e do reconhecimento do amante de

sua m��e que, por disposi����o de ��ltima vontade, elevara-a

�� condi����o de filha. Reconhecida ao seu benfeitor, �� a

pr��pria imagem da cordura, da dedica����o e do amor

�� nova fam��lia. Acontece, por��m, o drama que havia

de destruir essa felicidade a que procurava acostumar-se

com muito empenho. Mas a�� j�� �� a pr��pria hist��ria do

livro que passamos a resumir.

Depois de fazer a sesta, o Conselheiro Vale, vi��vo

rico que morava com o filho Est��cio e com a irm��

��rsula, morre de apoplexia. Aberto o testamento, veri-

ficou-se que este trazia a revela����o de um segredo per-

turbador: o Conselheiro tinha uma filha e determinava

que ela fosse retirada do col��gio onde estudava para

morar com a sua fam��lia e participar em igualdade de

condi����es da heran��a paterna. Assim se fez, embora

sob protesto de D. ��rsula e do advogado da fam��lia,

Dr. Camargo. Helena veio, pois, morar na bela ch��cara

do Andara��. Cercaram-na de in��cio a indisposi����o da tia,

a desconfian��a do irm��o e a perplexidade das pessoas

amigas da casa. Mas Helena logo conquistou a boa von-

tade e a simpatia gerais. D. ��rsula, que relutava em

reconhec��-la sua sobrinha, passou a admir��-la e a que-

r��-la como a um parente. Est��cio logo se deixou pren-

der pelos encantos e a delicadeza da irm��, e se tor-

naram de tal modo amigos que, pouco a pouco, esses

la��os fraternais e esses contatos fizeram nascer, im-

perceptivelmente, sem que eles desejassem, um senti-

mento mais forte.





4 9


Estabelecido o conflito, ele se acentuou, e teve in��cio

a destrui����o da felicidade perfeita que quase chegou a

reinar naquela casa. Est��cio, sem o saber, apaixonou-se

por Helena, e esta n��o fugiu �� atra����o que o presu-

mido irm��o lhe despertava. Passeavam todos os dias a

cavalo pelos arredores, consultavam-se em tudo e se

compreendiam muito bem.

Um casamento foi concertado em fam��lia para Est��cio,

com a filha do advogado Camargo. Outro enlace foi

combinado para Helena, com Mendon��a, amigo de Es-

t��cio. Este n��o se conformou com o noivado da irm��

e a ele se op��s tenazmente, alegando que ela n��o ama-

va Mendon��a, e, segundo lhe tinha confessado certa

vez, amava muito a outro homem. Come��ou, para os

dois presumidos irm��os, o cl��max do enredo amoroso

em que mergulharam. O Padre Melchior, amigo da fa-

m��lia, adivinhou o terr��vel segredo, e um dia o exp��s

cruamente a Est��cio, que ficou muito perturbado. O pa-

dre o incitou a extirpar de si aquele pecado medonho,

o amor incestuoso. Ent��o descobriu Est��cio que Helena,

nos seus passeios a cavalo com um pajem, visitava uma

casa velha das proximidades e l�� se encontrava com

um homem de meia-idade, de aspecto pobre, um fra-

cassado da vida. Ro��do de ci��mes, Est��cio reuniu a fa-

m��lia para comunicar o crime de Helena. Perplexos, in-

dagam todos que segredos teria ela com aquele homem,

o que levava a com ��le encontrar-se ��s escondidas.

Desesperada, a mo��a confessou que aquele homem da

casa velha, pobre, fracassado, infeliz, era o seu ver-

dadeiro pai. Sua m��e o deixara pelo Conselheiro Vale,

que lhe dera tranquilidade e uma vida de conforto, em-

bora clandestina. E de tal modo o Conselheiro afei��oa-

ra-se �� m��e e �� filha que resolvera, como disposi����o

de ��ltima vontade, reconhecer Helena como filha e in-

tegr��-la na sua fam��lia e na sua heran��a.





5 0


Helena e Est��cio, pois, n��o eram irm��os e se po-

diam amar livremente como pediam seus cora����es.

M a s . . . e o esc��ndalo que se seguiria? E os falat��rios,

os mexericos, a repercuss��o social de tal situa����o? An-

gustiada por este terr��vel dilema, Helena adoeceu gra-

vemente. Passou v��rios dias em estado desesperador e

afinal morreu. Est��cio, esmagado, gemeu para o padre

Melchior:

��� Perdi tudo, padre-mestre.

Um dos temas mais explorados pela literatura rom��n-

tica foi o do amor incestuoso entre irm��os que n��o

se conheciam. Machado de Assis n��o conseguiu fugir

a este lugar-comum do enredo romanesco. F��-lo, po-

r��m, de modo diferente, uma vez que Est��cio apaixo-

nou-se por Helena julgando-a sua irm��, e de maneira

inconsciente, enquanto ela sabia de antem��o a sua ori-

gem, e o amava naturalmente. N��o querendo, por��m,

desfazer a situa����o favor��vel que lhe criara o testa-

mento do Conselheiro, ela silenciou e procurou esque-

cer tal amor, mesclando-o de afei����o fraternal.

Evidentemente, Helena �� um romance secund��rio na

obra de Machado de Assis. Ainda na fase rom��ntica,

o escritor usou os mesmos expedientes e truques da-

quela escola, procurando interessar os leitores e comover

atrav��s do pat��tico, como afirmou M��rio Matos em es-

tudo a respeito. Mas, segundo Barreto Filho, " j �� em

Helena adquire o escritor desenvoltura e flu��ncia, e v��o

repontando, aqui e ali, as solu����es estil��sticas, o modo

pr��prio de dizer que o distingue de t o d o s " .

Helena ��, no entanto, um romance que se l�� com

interesse, e por muito tempo ainda gozar�� do favor

p��blico. O leitor m��dio, que forma a maioria, e faz

esgotar e multiplicar as edi����es, achar�� sempre nes-

te livro motivos de encantamento e de emo����o. E

a sua principal personagem, a jovem e bela morena

que Machado de Assis criou com tantas qualidades,





51


veio ocupar entre as hero��nas rom��nticas de nossa fic-

����o um lugar de destaque. E nem o esp��rito mordaz,

c��ptico e pessimista do "bruxo do Cosme Velho" p��de

desfigurar a sua imagem simp��tica, a sua ternura e

bondade, o seu amor e dedica����o pelo verdadeiro pai

infeliz, e o seu reconhecimento e gratid��o ��queles que

a acolheram e lhe deram um lar feliz, embora passa-

geiro. Est��o a�� concentrados todos os ingredientes para

um romance de sucesso ao gosto de cem anos atr��s,

mas que ainda perduram para uma grande camada de

leitores.





52


Yay�� Garcia





e Estela


(Yay�� Garcia, de Machado de Assis)



MUITO RICA a galeria de hero��nas de Machado de

Assis. N��o ha quem n��o se recorde, por exemplo, da

Concei����o de A Missa do Galo e da Severina de Uns Bra-

��os, apenas esbo��adas nesses dois famosos contos, isto

sem nos referirmos ��s grandes figuras femininas de seus

romances. Nenhum outro escritor fixou t��o variadamen-

te a mulher brasileira, e mais uma vez vamos buscar

duas personagens criadas pelo g��nio de Machado de Assis

para aumentar o registro liter��rio dessas figuras ama-

das pelo p��blico que, atrav��s do tempo, l�� romances, e se

comove com o destino triste ou se alegra com a boa sorte

que o autor lhes d��.

Yay�� Garcia, que empresta o nome ao quarto romance

de Machado de Assis, forma com Estela o duo feminino

do livro que marca o limite da primeira fase da obra do

romancista e praticamente a encerra, partindo ele ent��o

para v��os muito mais altos.

Se a sua inten����o, no entanto, foi fazer de Yay�� Garcia

a figura central do romance, Estela, a madrasta, cres-

ceu a tal ponto que dividiu com ela as honras da prima-





55


zia no livro. As duas se completam, ambas amando o

mesmo homem, em ��pocas diferentes, uma orgulhosa e

altiva na sua ren��ncia, a outra infantil e caprichosa na

conquista.

Yay�� Garcia aparece no livro aos onze anos, vinda do

col��gio �� Rua dos Arcos, trazida pelo escravo Raimundo

para a casa de Santa Teresa, onde morava com o pai, o

funcion��rio Lu��s Garcia. Descreve o autor: "Era alta, del-

gada, travessa; possu��a os movimentos s��bitos e incoe-

rentes de uma andorinha. A boca desabrochava facilmente

em riso, um riso que ainda n��o toldavam as dissimula-

����es da vida, nem ensurdeciam as ironias de outra idade".

Era a alegria e o encantamento do pai, que, enviuvando

cedo, a ela consagrou toda a afei����o e o amor de que

era capaz.

J�� Estela, filha do escrevente Antunes, diferia comple-

tamente de Yay�� Garcia. Diz o romancista que ela era

"p��lida, mas sem nenhum tom de melancolia asc��tica.

Tinha os olhos grandes, escuros, com uma express��o de

virilidade moral que dava �� sua beleza o principal caracte-

r��stico. Uma por uma, as suas fei����es eram graciosas e

delicadas, mas a impress��o que deixava o todo estava

longe da meiguice natural do s e x o " .

Como se juntaram Yay�� Garcia e Estela no romance,

com suas vidas entrela��adas e sempre em torno de um

homem, primeiro o pai de uma e marido da outra, depois

o noivo de uma e ex-apaixonado da outra?

Val��ria Gomes, vi��va de um desembargador honor��-

rio, decidiu casar seu filho com uma prima, Eul��lia, mas

ele se apaixonou por Estela, filha do Sr. Antunes, antigo

escrevente e protegido de seu defunto marido. Val��ria

procurou ent��o afastar o filho dessa mo��a, embora a pro-

tegesse e a quisesse como amiga, mas n��o como poss��vel

nora. Para isso ofereceu ao filho v��rias compensa����es

sempre recusadas, at�� mesmo uma viagem �� Europa. En-





5 6


fim, imaginou afast��-lo apelando para o patriotismo e

convencendo-o a ir lutar no Paraguai, de onde voltaria

coronel e possivelmente her��i. Jorge, por��m, n��o se inte-

ressou pela guerra nem pelos gal��es entressonhados, mas

a insist��ncia da m��e, ajudada nesse empenho pelo ami-

go Lu��s Garcia, e pela pr��pria recusa de Estela ao amor

de Jorge, fizeram-no ceder ao "patriotismo" da m��e.

A total recusa de Estela se deu ap��s uma desastrada in-

vestida dele, que a queria beijar �� for��a, quando visitavam

os tr��s ��� ele, Estela e Val��ria ��� uma casa vazia na Tiju-

ca, de propriedade da vi��va, que pretendia mudar-se para

l��. Orgulhosa e altiva, Estela repeliu, a partir de ent��o,

todas as propostas de Jorge, entre outros motivos por ser

ela pobre e ele rico, embora n��o lhe fosse indiferente o

seu amor. Desesperado e sem esperan��as de conquist��-la,

ele aceitou ir para a guerra, esperando voltar her��i e assim

comover o cora����o da amada.

No intervalo de um combate, escreveu ao amigo Lu��s

Garcia e lhe falou de sua violenta paix��o, sem revelar o

nome da mo��a. Garcia, em resposta, comunicou que de-

ra fim �� sua viuvez e casara-se com Estela. Jorge sofreu

uma tremenda desilus��o, mas guardou o segredo do no-

me da amada que o fizera t��o infeliz.

O casamento de Lu��s Garcia e Estela fora obra, em par-

te, de D. Val��ria, que os aproximou, e de Yay�� Garcia,

que muito se afei��oara �� mo��a e a queria como madrasta

e companheira. Quando Jorge voltou da guerra, efetiva-

mente coronel, reatou a velha amizade com Luis Gar-

cia, mas permaneceu solteiro. A conduta de Estela, orgu-

lhosa, ��lgida, inating��vel, foi ent��o irrepreens��vel. Man-

teve-se inalter��vel e digna, embora Jorge passasse a fre-

quentar assiduamente a sua casa. Guardaram os dois

muito bem o segredo, mas Yay�� Garcia, menina-m����a tra-

vessa e sonhadora, apaixonou-se por Jorge, sem este sus-

peitar ao menos. Surgiu um outro personagem na hist��-





57


ria, que queria casar com Yay�� Garcia, mas esta se ria

dele e dissimuladamente fazia um jogo duplo, namoran-

do-o ao mesmo tempo que queria conquistar Jorge. Um

dia, ela descobriu, ao achar por acaso e ler aquela carta

que seu pai recebera de Jorge, o segredo do amor do ra-

paz, e ficou a imaginar quem seria a mo��a, at�� que o

instinto feminino levou-a �� conclus��o de que n��o poderia

deixar de ser Estela, a sua madrasta. Usando os eternos

expedientes do amor, afinal conseguiu conquistar Jorge

e j�� estavam de casamento marcado quando Lu��s Gar-

cia, doente do cora����o, morreu. Yay�� Garcia, julgando

que sua madrasta, agora vi��va, estaria livre para casar-

se com Jorge, rompeu o noivado. Estela, ao saber do ges-

to de ren��ncia da enteada, repeliu energicamente a id��ia e

obrigou-a a reatar o noivado. Estela em seguida retirou-se

do cen��rio, indo dirigir um col��gio que uma sua amiga

fundara no norte de S��o Paulo.

Estela e Yay�� Garcia formam duas personalidades di-

ferentes, mas de car��ter forte e decidido. A primeira,

austera e orgulhosa, inflex��vel no seu amor-pr��prio, sem

sonhos e sem devaneios. Yay�� Garcia, com toda a gra��a e

coqueteria de menina-m����a, infantil, brincalhona, mi-

mada e zombeteira, mas que sabia o que queria, decidida

a conquistar a felicidade. O que afinal conseguiu, ca-

sando-se com Jorge, que j�� se destinara, ap��s a primeira

desilus��o amorosa com Estela, ao celibato irrevog��vel.

Yay�� Garcia, publicado em 1878, �� o quarto romance

de Machado de Assis, e encerrou a sua fase rom��ntica.

Nesse mesmo ano, em dezembro, o escritor caiu grave-

mente enfermo e foi para Friburgo recuperar-se, onde

passou cerca de tr��s meses. H�� quem assinale essa enfer-

midade e o seu recolhimento como fatos que desencadea-

ram o grande salto de sua obra para atingir, com os tr��s

romances que se seguiram, todo o esplendor de sua

cria����o.

58

Yay�� Garcia �� um romance tranquilo e reflete o

ambiente da grande fam��lia fluminense no II Reinado,

sua vida calma, suas rela����es sociais, seus costumes tra-

dicionais, que nem a Guerra do Paraguai conseguiu alte-

rar.

Pode-se afirmar que Machado de Assis deixou assinala-

dos na sua obra todos os acontecimentos sociais e pol��ti-

cos da ��poca, todos os fatos importantes que chamaram

a aten����o geral. Foi, sob esse aspecto, o mais participante

de nossos escritores. A Guerra do Paraguai, por exem-

plo, est�� presente em v��rios de seus contos, cr��nicas, poe-

sias e principalmente neste Yay�� Garcia.

Embora n��o possa equiparar-se aos tr��s romances que

Machado de Assis escreveria depois, Yay�� Garcia �� o que

mais pr��ximo est�� daquelas suas grandes cria����es. E �� o

romance mais representativo de sua fase rom��ntica,

quando, ao inv��s do tr��gico-ir��nico de suas ��ltimas obras,

era apenas o cronista de uma ��poca, que sabia t��o bem

contar uma hist��ria e retratar uma sociedade tranquila,

solidamente instalada no tempo. Ainda era o Macha-

dinho de seus primeiros sucessos. Cedo se transformaria

no mestre incompar��vel da fic����o e da literatura brasi-

leira.





5 9


Virg��lia

(Mem��rias P��stumas de Br��s Cubas, de Ma-

chado de Assis)



IRG��LIA �� OUTRA hero��na de Machado de Assis ���

e ainda n��o est�� completa nesta s��rie a not��vel galeria

de personagens femininas com que o mestre povoou o

mundo de sua fic����o. Virg��lia �� a figura central de

Mem��rias P��stumas de Br��s Cubas, primeiro romance

que ele escreveu ap��s a enfermidade que o afastou do

trabalho e de sua cidade para refugiar-se em Friburgo.

Nesse recolhimento compuls��rio �� que Machado de As-

sis sofreu uma esp��cie de "revuls��o interior", face a face

com a precariedade da vida e da sa��de e a fatalidade da

morte. Sob o acicate de sua terr��vel enfermidade ��� a

epilepsia ���, que por essa ��poca come��ou mais frequen-

temente a atorment��-lo, modificou completamente o seu

comportamento e o seu estilo, o seu humour, a sua com-

preens��o das coisas e dos homens. S�� ent��o deixou de

ser o Machadinho, poeta, cronista, cr��tico de teatro, ro-

mancista rom��ntico, figura central do mundo l��tero-mun-

dano, para transformar-se no maior escritor brasileiro de

todos os tempos.

Mem��rias P��stumas de Br��s Cubas, al��m de Virg��lia,

apresenta ainda dois tipos singulares de mulher: Marce-

63

la, a espanhola que amou Br��s Cubas "durante quinze

meses e onze contos de r��is", e D. Pl��cida, a humilde e

honrada alcoviteira dos seus amores com a bela Virg��lia,

a esposa de um pol��tico, o Lobo Neves, al��m de outras

figuras secund��rias.

Virg��lia surge no inicio do romance, entre as brumas

da morte de Br��s Cubas, mas sua imagem verdadeira s��

aparece atrav��s da informa����o do pai do nosso her��i,

que a queria como nora: "um anjo, meu pateta ��� diz-lhe

o pai ���, um anjo sem asas. Imagina uma mo��a assim,

desta altura, viva como um azougue, e uns o l h o s . . . fi-

lha do D u t r a . . . "

N��o foi menos lisonjeira a impress��o de Br��s Cubas ao

v��-la pela primeira vez, e assim a descreve: "Era bonita,

fresca, sa��a das m��os da natureza cheia daquele feiti��o

prec��rio e eterno, que o indiv��duo passa a outro indiv��duo,

para os fins secretos da cria����o. Era isso Virg��lia, e era

clara, muito clara, faceira, ignorante, pueril, cheia de

uns ��mpetos misteriosos; muita pregui��a e alguma devo-

����o ��� devo����o, ou talvez medo; creio que m e d o " .

Quanto a Marcela, era uma espanhola interesseira e

vol��vel que fez Br��s Cubas apaixonar-se na juventude e

gastar uma pequena fortuna surripiada aos cofres pater-

nos. E D. Pl��cida, alcoviteira, era uma pobre mulher

nascida do amor de um sacrist��o da S�� com uma devo-

ta, e que, segundo o memorialista, se ao nascer pudesse

falar, diria aos pais: "Aqui estou. Para que me chamas-

t e s ? " . E eles responderiam: "Chamamos-te para queimar

os dedos nos tachos; os olhos na costura, comer mal ou

n��o comer, andar de um lado para outro, na faina,

adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e

sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanh��

resignada, mas sempre com as m��os no tacho, at�� aca-

bar um dia na lama ou no hospital; foi para isto que te

chamamos, num momento de simpatia".

64

�� singular a hist��ria de Br��s Cubas, que nos �� con-

tada por ele pr��prio, depois de morto, e tem in��cio com o

seu ��bito, ��s duas horas da tarde de uma sexta-feira de

agosto de 1869, na bela ch��cara de Catumbi. Junto ao

seu leito estava Virg��lia com um filho rapaz, ela j�� uma

ru��na da bela mulher que fora. A figura da amante fez-lhe

recordar os anos juvenis e os amores clandestinos. Depois

veio o del��rio, que est�� em todas as antologias, e no qual

ele se viu transformado na " S u m a Teol��gica" de Santo

Tom��s, e, carregado por um hipop��tamo, foi at�� as ori-

gens dos s��culos. Depois morreu, e agora, livre dos com-

promissos com os vivos, passou a escrever suas mem��-

rias. Primeiro a juventude de um menino rico, depois os

amores com Marcela, e afinal a interven����o do pai que,

para livr��-lo das garras da voraz espanhola, mandou-o

estudar leis em Coimbra. De volta com o diploma debaixo

do bra��o, o pai resolveu cas��-lo e introduzi-lo na pol��tica,

como deputado. Preparara j�� o casamento e a deputa-

����o. O casamento era com Virg��lia e a deputa����o com o

pai de Virg��lia, o Sr. Dutra, que se encarregaria dos vo-

tos. Br��s Cubas n��o queria nem uma coisa nem outra,

mas afinal, cedeu �� vontade do pai, e foi conhecer a sua

futura mulher. Estava escrito, por��m, que ele n��o seria

deputado nem se casaria, pois surgiu na hist��ria o Lobo

Neves, que lhe roubou a noiva e a cadeira na C��mara.

Tempos depois, Br��s Cubas encontrou-se com Virg��lia, j��

casada, num baile, e, em meio a uma contradan��a,

voltaram aos amores. O id��lio cresceu e tornou-se paix��o.

Sendo ��le amigo do Lobo Neves, os amantes dissimularam

e afinal resolveram, para esconder o amor proibido, alu-

gar uma casinha na Gamboa e deix��-la aos cuidados de

Dona Pl��cida, onde se encontravam frequentemente. O

romance tem alternativas de medo, de ansiedade, de ci��-

mes intermitentes, de desconfian��as do marido e de qua-

se trag��dia. At�� que Lobo Neves aceitou a presid��ncia de

uma prov��ncia, que lhe havia sido oferecida e ele recusa-





6 5


ra, e desta vez viajaram para longe, ele e Virg��lia, deixan-

do Br��s Cubas no auge do desespero.

Anos depois, Virg��lia ficou vi��va (sempre a obsess��o de

Machado de Assis pelas vi��vas); Marcela morreu ro��da

de bexigas num hospital; e Dona Pl��cida, a honrada al-

coviteira, ��le a foi encontrar a pedido de Virg��lia, um

deplor��vel feixe de ossos, em uma casinha no Beco das

Escadinhas, conseguindo-lhe uma vaga na Santa Casa da

Miseric��rdia, onde morreu uma semana depois.

Resumindo, assim, em poucas linhas, �� quase im-

poss��vel dar uma id��ia exata da grandeza das Mem��rias

P��stumas de Br��s Cubas, romance que marca a gloriosa

ascens��o de Machado de Assis ao cume das letras nacio-

nais; como tamb��m fixar a riqueza psicol��gica das per-

sonagens que apresentamos. Virg��lia, figura curiosa de

mulher, amante ardente ao mesmo tempo que dissimu-

lada e terna esposa, d�� motivo ��s reflex��es mais originais

do memorialista defunto. Mulher bonita e altamente dota-

da dos recursos femininos mais sutis, conseguiu atra-

vessar intang��vel todo esse mundo de pecado e adult��rio,

permanecendo como respeit��vel matrona da alta socie-

dade fluminense. Seu maior segredo, esse amor proibido,

morreu com Br��s Cubas e D. Pl��cida, ��nicas teste-

munhas do erro.

Mas a grandeza deste livro ainda n��o est�� na sua hist��-

ria, nem nessas personagens, mas na sua filosofia, na

sua amarga e pessimista concep����o da vida, na sua iro-

nia e mordacidade. Marcou este romance o grande salto

de Machado de Assis para a cria����o do seu estilo e do seu

pr��prio mundo, um mundo sutil de amargo desengano e

de um cruel realismo interior.

O pr��prio Machado de Assis, no pr��logo �� quarta edi-

����o, diz: " H �� na alma deste livro, por mais risonho que

pare��a, um sentimento amargo e ��spero, que est�� longe

de vir dos seus modelos". E, desencarnado em Br��s

Cubas, afirma na nota ao leitor: "Obra de finado. Es-





66


crevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia,

e n��o �� dif��cil antever o que poder�� sair deste con��bio".

A sua dedicat��ria �� original��ssima, e j�� revela o humor

negro do autor: " A o verme que primeiro roer as frias

carnes do meu cad��ver dedico como saudosa lembran��a

estas Mem��rias P��stumas." E, ao encerrar o romance,

no cap��tulo final das negativas, Machado de Assis d��

ainda uma nota do mais atroz pessimismo, quando con-

clui: " . . .porque ao chegar a este outro lado do mist��rio

achei-me com um pequeno saldo, que �� a derradeira ne-

gativa deste cap��tulo das negativas: " N �� o tive filhos,

n��o transmiti a ningu��m o legado da nossa mis��ria".

Mem��rias P��stumas de Br��s Cubas foi publicado por

partes em 1880, na Revista Brasileira. No ano seguinte,

apareceu em volume editado pela Imprensa Nacional.

Pouco antes de sua elabora����o, a epilepsia de Machado

de Assis se manifestara francamente, segundo Alfredo

Pujol, e se instalara no seu corpo. E mais, devido a uma

doen��a dos olhos, que o impossibilitava de escrever dire-

tamente, o romance foi ditado a Carolina. Tais circuns-

t��ncias, por certo, tornaram ainda mais amargo este li-

vro, mas o sofrimento foi que possibilitou, sem d��vida,

ao g��nio, a cria����o desta obra imortal.

67

Sofia

(Quincas Borba, de Machado de Assis)



MA DAS MULHERES mais singulares do romance

machadiano �� Sofia, do Quincas Borba, uma das que a

pena do seu genial criador melhor delineou. Sofia era uma

bela senhora casada, que se deixou amar at�� �� loucura

pelo pobre Rubi��o, sem nunca lhe dar a oportunidade de

um compromisso maior que o de simples olhares convi-

dativos, de sugest��es de amor que n��o passavam de ges-

tos indecisos e de imprecisas e vagas manifesta����es de

amizade. Tudo isso em correla����o com os interesses seus

e do marido, que descobriram no ing��nuo e rico mineiro

um fil��o de benef��cios, de empr��stimos e de presentes, a

explorar indefinidamente.

Como figura feminina, Sofia sobressai-se no romance e

em torno dela se forma a trama amorosa do livro, que,

de resto, �� uma hist��ria um tanto banal, valorizada pela

observa����o psicol��gica, pelo estilo e pela dramaticida-

de, que vai at�� o tr��gico, impressa pelo autor na figura

de Rubi��o e no seu amor desesperado e sem sa��da, que o

leva �� ins��nia. Sofia, mulher de grande complexidade, im-

penetr��vel nos seus verdadeiros des��gnios, enganadora e

71

coquete, n��o cede ��s investidas do amigo apaixonado, e

dele escarnece em conversas com o marido.

Quincas Borba �� o sexto romance de Machado de As-

sis, e o segundo de sua segunda fase. Nele vamos en-

contrar bem atenuado o negro de Br��s Cubas, um tanto

dilu��da a filosofia pessimista e amarga do autor. Em

compensa����o temos uma mais larga concep����o roma-

nesca, assim como uma maior riqueza de vida e subst��n-

cia humana, e um ritmo mais amplo de cria����o

art��stica.

Mas vamos �� figura de Sofia que nos interessa mais de

perto, e se alinha entre as melhores cria����es do romance

brasileiro.

O encontro de Sofia com Rubi��o deu-se num trem de

Vassouras, quando ele vinha para o Rio receber a heran��a

do seu finado amigo Quincas Borba. Sofia e o marido, o

espertalh��o Cristiano Palha, sentaram-se no banco jun-

to ao nosso her��i e travaram animada conversa. Ela pou-

co interveio na palestra, s�� "afrouxou a r��dea aos olhos

que se deixaram ir ao sabor de si m e s m o " . Esse en-

contro os fez amigos, e as primeiras visitas de Rubi��o na

Corte foram ao casal, deslumbrado que ele estava com a

beleza da mulher. J�� na primeira visita, achou-a mais

bonita em casa que no trem ao observar que ela "tinha

nesse dia os mais belos olhos do m u n d o " . E refletiu:

"Parece que ela os compra em alguma f��brica misteri-

osa, nunca os vi como h o j e " .

Na sua beleza magn��fica, Sofia deixa-se apenas admirar

por Rubi��o que, pasmo, observava nela "o busto bem

talhado, estreito embaixo, largo em cima, emergindo das

cadeiras amplas, como uma grande bra��ada de flores sai

de dentro de um v a s o " . Sabia-se bela, e mantinha-se fria

e inacess��vel ao amor dos outros homens que n��o o seu

marido. Este, c��nico e interesseiro, deixava-a enfeiti��ar

Rubi��o para melhor arrancar-lhe os favores.

72

Numa cena definidora do seu narcisismo, descreve-a o

autor: "Tratou de vestir-se, mas ao passar diante do es-

pelho, deixou-se estar alguns instantes. Comprazia-se na

contempla����o de si mesma, das suas ricas formas, dos

bra��os nus de cima a baixo, dos pr��prios olhos contem-

pladores. Fazia vinte e nove anos, achava que era a mes-

ma dos vinte e cinco, e n��o se enganava. Cingido e aper-

tado o colete, diante do espelho, acomodou os seios com

amor e deixou espraiar-se o colo magn��fico. Lembrou-se

ent��o de ver como lhe ficava o brilhante: tirou o colar e

p��-lo ao pesco��o. Perfeito. Voltou-se da esquerda para a

direita e vice-versa, aproximou-se, afetou-se, aumentou a

luz do camarim; perfeito. Fechou a j��ia e guardou-a.

��� "Aquele homem adora-me'' ��� refletiu.

Quincas Borba ��, para alguns cr��ticos, o romance mais

bem constru��do da segunda fase de Machado de Assis.

Sua hist��ria �� dram��tica e mesmo pungente no que diz

respeito ao destino de Rubi��o, principal personagem

masculino. Ex-professor prim��rio em Barbacena, era ele o

maior amigo de Quincas Borba, o fil��sofo da "Humani-

t a s " , de quem herdou todos os bens, com a ��nica obri-

ga����o de zelar pelo cachorro do amigo, batizado, em me-

m��ria dele, com o nome de Quincas Borba. Morrera o

fil��sofo na Corte, e Rubi��o partiu para o Rio, a fim de

receber a heran��a. Conheceu o casal Sofia-Cristiano Pa-

lha no trem, na altura de Vassouras, onde eles embarca-

ram. Tornaram-se amigos. O marido, refinado malandro,

logo percebeu naquele mineiro simpl��rio e rico uma fon-

te a explorar. Rubi��o apaixonou-se pela mulher do Palha,

e, chegados ao Rio, continuou a frequent��-los. Sofia,

enquanto o atra��a com os olhos, repelia-o quando ele, ti-

midamente, procurava conquist��-la. Rejeitava-o, mas n��o

a ponto de desengan��-lo por completo. Deixava sempre

uma vaga esperan��a no cora����o ing��nuo de Rubi��o. O

73

Palha ia tirando benef��cios da situa����o, ora tomando

empr��stimos, ora atraindo o mineiro para sociedades e

neg��cios. Terminou praticamente como gerente da fortu-

na de Rubi��o, que continuava dando presentes a Sofia

na esperan��a de conquist��-la. O final �� f��cil de saber.

Sofia e o marido ficaram ricos, e o pobre Rubi��o, sem

nunca ter conseguido um encontro amoroso com ela, ar-

ruinado, enlouqueceu julgando-se um Bonaparte.

Vagava agora pelas ruas, falando sozinho, a��ulado pe-

los moleques. Numa dessas assoadas, o autor colocou

entre os apupadores um menino que Rubi��o, nos ��ureos

tempos da fortuna, havia salvo da morte jogando-se ��

frente de uma carruagem para livr��-lo de ser esmagado.

Cristiano Palha, instado por Sofia, internou Rubi��o nu-

ma casa de sa��de para tratamento. Antes de completar-

se a cura ele fugiu e voltou para Barbacena com o seu

��nico amigo, o c��o Quincas Borba.

" A o vencedor, as batatas", repetia Rubi��o no seu del��-

rio, julgando-se Bonaparte. "Talvez n��o saibam que eu

cheguei", pensava ao verificar que ningu��m o viera re-

ceber. Vagaram os dois pela cidade, subindo e descendo

ladeiras at�� que um violento temporal encharcou-os. Noi-

te adentro, debaixo da chuva, abrigaram-se na porta da

igreja, onde amanheceram o dia e os encontrou uma

antiga comadre de Rubi��o, que os levou para sua casa.

Com febre alta, ele morreu poucos dias depois, repetindo:

" A o vencedor, as batatas". Tr��s dias depois o seu c��o

Quincas Borba aparecia morto nas ruas de Barbacena.

Enquanto isso, Sofia e Cristiano Palha recebiam a so-

ciedade carioca no seu luxuoso palacete de Botafogo re-

c��m-constru��do com todos os requintes de um n��vo-rico.

Para contrabalan��ar a crueldade e a frieza ego��sta de

Sofia, o autor p��s no romance uma figura espl��ndida de

mulher, bondosa, caridosa, que se comoveu com o dra-

74

ma de Rubi��o e procurou ajud��-lo no seu del��rio. Seu

nome era Fernanda, esposa do pol��tico Te��filo.

Dez anos decorreram da publica����o de Mem��rias P��s-

tumas de Br��s Cubas para a de Quincas Borba, sinal de

que Machado de Assis lentamente trabalhara este ro-

mance. Somente em 1891 saiu em livro, embora desde

1886 ele tivesse iniciado a sua publica����o em fasc��culos,

em A Esta����o, v��rias vezes interrompida.

Estava Machado de Assis, por essa ��poca, no apogeu do

prest��gio liter��rio. Era a principal figura e o grande no-

me das letras nacionais. Morto Jos�� de Alencar, era em

torno de seu nome e de sua gl��ria que se agrupavam

velhos e mo��os, desde o grupo de A Semana, depois o

da Revista Brasileira, de onde sairia mais tarde, em

1897, a Academia Brasileira de Letras. Quincas Borba

veio consolidar o prest��gio e o nome liter��rio do nosso

maior escritor.

75

Capitu

(Dom Casmurro, de Machado de Assis)



MAIS DISCUTIDA personagem feminina da fic����o

brasileira, e que at�� hoje suscita ensaios, interpreta����es,

exegeses e at�� mesmo livros, como o de Eug��nio Gomes,

al��m de um filme, �� inegavelmente Capitu, que para mui-

tos ainda se afigura uma esfinge, pela sua complicada

psicologia, e pelo segredo, que o autor deixou em suspen-

so e sem decifra����o, o do poss��vel adult��rio, apenas en-

trevisto nas desconfian��as do marido Bentinho e nas se-

melhan��as do filho com o prov��vel amante.

Obra-prima de Machado de Assis, Dom Casmurro foi

publicado em 1899 pelo livreiro-editor Garnier, e �� ainda

hoje o seu mais lido romance, e um dos maiores da lite-

ratura brasileira. Escrito na primeira pessoa, em tom

confidencial, serviu para que, livremente, pudesse Ma-

chado de Assis deixar nele muito de si, do seu tempera-

mento, de sua vis��o pessimista e ao mesmo tempo ir��nica

do mundo. �� possivelmente um dos livros mais amar-

gos da literatura em qualquer pa��s, mas o g��nio do autor

impregnou-o de tal sabedoria, de tal ironia e disfar��ada

mal��cia, que o transformou numa das grandes cria����es

liter��rias do Brasil em todos os tempos. Capitulina ou,

79

carinhosamente, Capitu, �� a figura central dessa hist��ria

que se passa no Rio de Janeiro de meados do s��culo

X I X , em pleno II Reinado, e na qual se fixam os costu-

mes, o ambiente, a vida familiar, o meio social daquela

��poca, como pano de fundo para um drama que lenta-

mente se desenvolve na penumbra, numa apar��ncia de

felicidade, para explodir enfim na revela����o final que ��

a pr��pria nega����o de tudo, da beleza, da do��ura e do

carinho que alimentavam o id��lio central do livro.

Mestre da l��ngua, romancista que deu nova dimens��o

ao g��nero, o maior contista brasileiro de todos os tempos,

Machado de Assis foi um criador de enigmas. Penetran-

do fundo, como nenhum outro, nos abismos da alma

humana, de l�� trazia para os seus livros os mist��rios da

personalidade e com fria an��lise e aguda observa����o os

dissecava como um cirurgi��o.

Afirmar como era Capitu seria uma temeridade, a n��o

ser que o fiz��ssemos por etapas. Ela aparece no romance,

que �� uma narrativa retrospectiva, ainda crian��a. Ale-

gre, despreocupada, de olhos sonhadores, era de tal mo-

do cativante que conseguiu arrebatar Bentinho �� voca����o

sacerdotal a que o destinara, por promessa, sua vir-

tuosa m��e. Morava na Rua Matacavalos, vizinha do me-

nino rico deslumbrado com a sua beleza e gra��a. Namo-

ravam os dois ��s escondidas e trocavam beijinhos e confi-

d��ncias por sobre o muro que separava os quintais de

suas casas.

Na opini��o de Jos�� Dias, agregado e amigo da casa de

Bentinho, ela era uma desmiolada, e vivia doida por fis-

gar algum peralta para marido. Tinha uns olhos que o

diabo lhe deu de "cigana obl��qua e dissimulada". Mas

para Bentinho, na sua obstinada paix��o, ela era o sonho

e o ideal de sua juventude amorosa, e tinha uns " o l h o s

de ressaca", que possu��am um "fluido misterioso e en��r-

gico, uma for��a que arrastava para dentro, como a vaga





8 0


que se retirava da praia, nos dias de ressaca". Para a

m��e de Bentinho, ela era uma menina c��ndida e inocente.

Afinal, para o mesmo Bentinho, no fim do livro e de

suas vidas em comum, j�� ro��do de ci��mes e desconfian-

��as atrozes, ela deixa de ser aquela figura ideal para

revelar-se uma falsa e fingida mulher que o enganara toda

a vida.

A hist��ria de Capitu �� contada pelo romancista na

primeira pessoa atrav��s do relato do pr��prio Bentinho,

apelido familiar de Bento Santiago. A ��poca �� os meados

do s��culo X I X . Moravam vizinhos na Rua Matacavalos

(hoje Riachuelo). Bentinho era filho de D. Gl��ria, vi��va

abastada com escravos alugados e uma d��zia de pr��dios.

Ela o destinara ao sacerd��cio e para tanto fizera uma

promessa quando ele nascera. Ele se acostumara a essa

id��ia religiosa, que era incentivada por todos os que vi-

viam em torno de sua fam��lia, tios, tias., o agregado

Jos�� Dias, o Padre etc. Mas um dia surgiu Capitu na

vizinhan��a, e l�� se foram os projetos e prop��sitos de D.

Gl��ria. Bentinho apaixonou-se pela menina e viveram os

dois, nesses primeiros anos, um belo e inocente id��lio.

Encontros furtivos, enlevos de crian��as, beijinhos, abra-

��os, tudo isso foi pouco a pouco se transformando no

amor que os fez jurar, um dia, n��o se casarem jamais a

n��o ser um com o outro. Um machadiano ilustre, Barre-

to Filho, disse num ensaio que "nunca nas letras brasi-

leiras foi poss��vel igualar as cenas id��licas entre Ben-

tinho e Capitu", quando eles escreviam os nomes no mu-

ro do quintal ou quando ele lhe penteava os cabelos por

brincadeira, chegando sem saber �� surpresa do primeiro

beijo.

Os amores de Bentinho e Capitu eram, por��m, secre-

tos, pois eles concertaram um plano para iludir, sem

brigas nem zangas, o prop��sito e a promessa de D. Gl��ria.

Bentinho chegou a frequentar o semin��rio, mas afinal

8 1

venceram os artif��cios dos dois namorados que, com a

b��n����o e a total aquiesc��ncia de D. Gl��ria, se casaram e

foram morar numa casa da Gl��ria. Escobar, amigo de

Bentinho que ele conhecera nos tempos do semin��rio, tor-

nou-se amigo da fam��lia, casando-se com uma amiga de

Capitu. Os dois casais estreitaram rela����es e assim segui-

ram atrav��s dos anos. Escobar ganhou uma filha e Ca-

pitu deu um filho a Bentinho. A vida n��o se modificou

por muito tempo, a amizade dos casais era cada vez

maior, at�� que um dia Bentinho notou que o seu filho se

parecia muito com Escobar. Este morre afogado na Praia

do Flamengo, e o profundo sentimento de Capitu no en-

terro despertou ainda maiores ci��mes em Bentinho. Da��

ent��o ��le passou a observar a semelhan��a crescente do

filho com o amigo morto, �� propor����o que o menino fi-

cava rapaz. Os ci��mes se acentuaram, e vieram as des-

confian��as, as brigas, a indiferen��a, a separa����o. Ben-

tinho decide suicidar-se e, num momento de loucura,

pensa mesmo em matar o filho, mas desiste de um e

outro intento. Separados, Capitu foi para a Europa com

o filho e l�� morreu. O filho voltou ao Brasil e aqui mor-

reu de febre. E Bentinho, vi��vo, destruiu a casa de Ma-

tacavalos e fez construir no Engenho Novo uma outra

em tudo c��pia fiel daquela em que vivera o seu id��lio de

inf��ncia, e l�� passou os seus ��ltimos anos, solit��rio,

escrevendo a sua pr��pria hist��ria, e depois uma Hist��ria

dos Sub��rbios, obra em que pretendia consumir os seus

��ltimos dias.

Dom Casmurro �� o maior romance de Machado de

Assis, aquele em que ele mais apurou o seu estilo e o seu

g��nio em desvendar a alma humana e ir ao fundo dos

sentimentos, das a����es dissimuladas, em busca da verda-

deira face interior de cada personagem.

Afirmam os cr��ticos que neste livro Machado de Assis

se retratou em muitos aspectos, e o romance tem algo de

autobiogr��fico. Bentinho, naturalmente abstraindo o

82

drama criado pela imagina����o do autor, era o pr��prio

Machado de Assis com o seu cepticismo, o seu desencan-

to, o pessimismo m��rbido e a crueldade para com os

homens, tudo isso misturado com uma certa piedade e

uma aceita����o atrav��s do sorriso superior e da ironia

complacente.

Quando escreveu Dom Casmurro, Machado de Assis

estava no ��pice da gl��ria liter��ria, aclamado e reconhe-

cido por todos como o maior escritor brasileiro vivo.

Havia fundado h�� dois anos a Academia Brasileira de

Letras, de que era presidente. Tinha 60 anos de idade.

Alto funcion��rio do Minist��rio da Via����o, gozava da con-

sidera����o geral. Estava na plenitude do seu g��nio criador.

Mas ao lado de toda essa gl��ria e esse prest��gio, a epilep-

sia minava cada vez mais o seu corpo fr��gil e acentua-

va os tons pessimistas do seu temperamento.

Nascido a 21 de junho de 1839, mulato pobre, filho de

Francisco de Assis, pintor e dourador, e da lavadeira por-

tuguesa Maria Leopoldina, Machado de Assis foi um dos

grandes exemplos brasileiros da vit��ria do g��nio contra

todas as adversidades. A longa escalada do menino do

morro at�� o escritor glorioso deixou fundas marcas no

seu temperamento e na sua alma. E por mais que o ame-

mos e lhe devotemos a maior admira����o, temos de re-

conhecer que a amargura da pobreza e a humilha����o dos

primeiros anos marcaram muito os seus romances,

principalmente este Dom Casmurro, cujo final �� como

que um desmoronamento total de sonhos e ilus��es.

Mas, afinal, quem foi Capitu? Teria sido apenas a tra-

vessa e linda menina de Matacavalos, e depois a boa e

carinhosa esposa de Bentinho, fiel a um eterno amor da

inf��ncia? Ou teria sido a "cigana obl��qua e dissimulada''

que conquistou o menino rico com artimanhas e dissi-

mula����es, e com ele casou-se para tra��-lo depois com o seu

melhor amigo? At�� livros j�� se escreveram para respon-

der a essa pergunta.

83

Para Bentinho, o marido, que �� quem conta a hist��ria

pela pena do romancista, a verdade est�� com a segunda

hip��tese, e ele afirma que, se o leitor tem d��vida em saber

se a Capitu da Praia da Gl��ria j�� estava dentro da de

Matacavalos, " o u se esta foi mudada por efeito de algum

caso incidente", deve recordar-se da Capitu menina e

reconhecer�� que uma estava dentro da outra, a da Praia

da Gl��ria na menina de Matacavalos, como "a fruta

dentro da c a s c a " .

Para os leitores, por��m, a acusa����o de Bentinho ja-

mais prevaleceu, pois o que ficou da Capitu, a sua ima-

gem verdadeira, e que tem sido sempre lembrada e per-

manentemente repetida, �� a dos "olhos de ressaca", a

dos amores juvenis, a dos id��lios simples que encheram de

poesia a inf��ncia e a juventude de Bentinho.

84

Dona Carmo

(Memorial de Aires, de Machado de Assis)



CONTRASTE COM as personagens femininas de

seus romances anteriores, que s��o, em geral, complica-

das, misteriosas, ad��lteras, no livro com que encerrou a

sua obra, Memorial de Aires, Machado de Assis criou uma

mulher admir��vel de do��ura e bondade, uma figura quase

irreal, a espargir suavidade e ternura em torno de si, po-

voando a solid��o de sua velhice, ao lado do marido Aguiar,

com os sonhos do presente e a saudade do passado. Cha-

mou-se D. Carmo essa velhinha acolhedora, e a sua fi-

gura se confunde com a do marido, formando ambos

uma s�� pessoa na imagem com que o autor os des-

creve, de "a gente Aguiar'' ou "o casal Aguiar".

Eram bons, e ao cri��-los, nesse livro que marca a ple-

nitude de sua obra e revela uma completa serenidade

diante da vida, Machado de Assis se distancia muito em

esp��rito de seus romances anteriores, onde o pessimismo,

o amargor, a ironia e o sarcasmo d��o a t��nica de uma

filosofia negativista. Dona Carmo �� o oposto absoluto de

Capitu, de Sofia e mesmo de Virg��lia, como a sua hist��-

ria e a pr��pria filosofia do livro s��o a nega����o da filoso-

fia dos seus livros anteriores.

87

O cr��tico Barreto Filho disse de Memorial de Aires: "O

livro j�� n��o tem mais enredo, �� uma pura m��sica interior

fluindo velada de sua saudade e do seu esp��rito, e dei-

xando que a bondade e a simpatia humana se desenvol-

vam francamente''.

Essa m��sica interior de que nos fala o cr��tico vem de

Dona Carmo e do marido, o casal de velhinhos que cons-

tituem as figuras centrais do romance, mas na realidade

ela vem do pr��prio autor, o j�� tamb��m velhinho Ma-

chado de Assis, �� ��poca ��rf��o do amor de Carolina que j��

se fora, deixando-o na mais triste solid��o, acalentando o

cora����o com a saudade dela, de que nos fala naquele

soneto imortal.

D. Carmo envelheceu ao lado de Aguiar, e chegaram a

esse fim de vida sem ter filhos. Casaram jovens, ele um

modesto guarda-livros que no fim da carreira chegara a

gerente de banco, e ela uma pacata mocinha de Nova

Friburgo. Viveram " s e m brilho nem matinada", aman-

do-se e amparando-se um no outro das agruras e amar-

guras da vida, sem nunca se consolarem da desola����o

de n��o terem, ao menos, um filho.

No c��rculo de suas rela����es, que abrangiam os bairros

do Flamengo, Catete e Botafogo, D. Carmo era querida e

amada por todos. "A Santa Aguiar" chamava-a Fid��lia,

e todos concordavam em que a bondade de D. Carmo

fazia dela uma santa pessoa. Descreve o romancista que,

ainda mocinha, ela conquistava pela sua ��ndole afetuo-

sa que lhe dava o poder de atrair e aconchegar, e que

agradava igualmente a velhas e novas. O casal vivia, des-

de o casamento, em permanente id��lio. Gostavam de ver-

sos e os copiavam dos livros, um para o outro. O marido

a adorava, e com isso era feliz, e para sossegar-se das

inquieta����es e do t��dio da vida " n �� o achava melhor res-

piro que a conversa����o da esposa, nem mais doce li����o

que a de seus o l h o s ' ' .

88

A historia do romance �� t��nue, disfar��ada, e o seu ver-

dadeiro enredo �� a m��sica interior de que nos fala o cr��ti-

co. Ela nos �� contada pelo Conselheiro Aires, amigo do

casal. Era ele um diplomata aposentado, vi��vo, que h��

dois anos voltara ao Brasil, aborrecido e entediado do

mundo em que vivera, para reaprender a amar a sua

terra. Assim vai ele anotando no seu memorial o dia-a-dia

comum daquele pequeno grupo de amigos que quase se

constitu��a numa ��nica fam��lia pelo cora����o e a amizade.

E sentimos no seu di��rio o lento fluir das horas e dos

dias daquele agitado 1888, ano da Aboli����o da Escravatu-

ra e de acontecimentos igualmente importantes que pra-

ticamente transformaram a face e a estrutura pol��tica e

econ��mica do Pa��s, e que, no entanto, para aquele peque-

no mundo de velhos aposentados e saudosistas, s�� de

longe repercutiam em suas vidas em penumbra.

O fio da hist��ria �� a frustra����o do casal Aguiar por n��o

ter tido filhos e a compensa����o que buscava no amor a

dois filhos posti��os. Diz o autor:

" A m b o s queriam um filho, um s�� que fosse, ela ainda

mais do que ele. D. Carmo possu��a todas as esp��cies de

ternura, a conjugal, a filial, a maternal". Que dist��ncia

vai disso para o final tr��gico-ir��nico de Br��s Cubas, em

que o personagem-defunto, fazendo o invent��rio de seus

fracassos, diz que encontrou um ��nico saldo favor��vel, o

de n��o ter tido filhos, de n��o ter transmitido a ningu��m

o legado de sua mis��ria!

D. Carmo transferiu para o seu afilhado Trist��o e a

vi��va Fid��lia todo o amor que n��o p��de dar a um filho do

seu amor. Ajudou a criar o primeiro, foi a sua segunda

m��e, at�� que ele e os pais foram para Portugal. Depois se

fixou em Fid��lia, mo��a que eles ajudaram a casar por

amor, contra a vontade dos pais dela e os do noivo, oriun-

dos que eram de duas fam��lias inimigas pol��ticas no inte-

rior fluminense. Uma repeti����o do drama dos Montec-





8 9


chio e Capuleto na antiga Verona de Romeu e Julieta.

Casaram-se e o marido logo morreu.

Voltando Trist��o de Portugal, depois de formado, para

visitar D. Carmo, aqui permaneceu v��rios meses, nas-

cendo entre ele e Fid��lia o amor que os levaria ao casa-

mento, final feliz para os dois jovens, mas muito triste

para o casal de velhinhos, uma vez que, casados, eles se

foram para Lisboa, onde Trist��o acabara de ser eleito

deputado, e por certo nunca mais voltariam. Aguiar e D.

Carmo, enganados, julgavam que eles iam apenas a pas-

seio e voltariam breve. Mal adivinhavam que haviam

perdido de uma s�� vez, com aquele casamento, os dois

filhos adotivos.

Depois da partida dos noivos, o Conselheiro Aires foi

visitar o casal e recuou da porta em respeito ao que via.

Ao fundo do jardim, os dois velhos, sentados, olhavam

um para o outro e surpreendeu-lhes nos rostos uma ex-

press��o indefinida: "Queriam ser risonhos e mal se po-

diam consolar. Consolava-os a saudade de si m e s m o s " .

Com esta nota um tanto melanc��lica mas de suave ter-

nura, terminou Machado de Assis o seu ��ltimo romance.

Memorial de Aires foi publicado em 1908, ano em que,

a 28 de setembro, morria o seu autor. Quatro anos an-

tes, em outubro de 1904, morrera a sua companheira

Carolina, deixando-o numa tristeza sem rem��dio. Este

seu ��ltimo romance �� apontado como uma reconstitui����o

da vida ��ntima do casal Machado de Assis, retratado

pelo Conselheiro Aires no casal Aguiar. At�� nos nomes h��

uma coincid��ncia nas iniciais: Carmo ��� Carolina, e

Aguiar ��� Assis.

O certo �� que o livro �� um hino ao amor tranquilo e

sereno, �� vida familiar vivida a dois, um amparando o

outro e o consolando nas frustra����es e nas amarguras da

vida, principalmente essa "orfandade ��s avessas" de n��o





9 0


ter filhos, e pelo efeito dessa m��tua compreens��o, trans-

formando os espinhos em rosas e as tristezas em suaves

alegrias.

Conta Trist��o de Athayde, evocando a Casa Azul de

sua inf��ncia no Cosme Velho, que ele e seus irm��os viam

sempre passar o casal de velhinhos que morava numa

casa acima da sua, e de como sempre paravam os dois a

brincar com eles, que por sua vez brincavam de motornei-

ro no gradil de sua casa. Eram Machado e Carolina que

passavam, unidos, e sempre o romancista dava-lhes ver-

sinhos humor��sticos para a irm�� mais velha recitar.

Esta cena do casal Machado de Assis bem poderia ter

figurado no Memorial de Aires, como tendo sido vivida

pelo casal Aguiar. S��o realmente os mesmos, um foi o

modelo do outro, D. Carmo �� Carolina, Aguiar �� Assis, e o

romance foi um preito de saudade que o romancista

prestou �� sua companheira.





91


Inoc��ncia

(Inoc��ncia, de Visconde de Taunay)



QUASE CEM anos, em 1872, aparecia em edi����o

da Tipografia Nacional um romance com o t��tulo de

Inoc��ncia, assinado por S��lvio Dinarte. Num estilo sim-

ples, direto, com um forte sabor regional, contava a his-

t��ria de amor de uma adolescente sertaneja sacrificada ��

brutalidade dos preconceitos. O cen��rio era o sert��o de

Mato Grosso, e os personagens, al��m da mo��a, eram o

pai ferrabr��s, o noivo ciumento, um "m��dico de ervas" e

um entomologista alem��o �� procura de borboletas raras

para o Museu de Magdeburgo. O livro fez sucesso, sua

hist��ria comovente emocionou os leitores, e a linda ser-

taneja passou a figurar na galeria dos personagens

imortais de nossa literatura. Como era Inoc��ncia? Quem

era o seu criador, escondido sob o pseud��nimo de S��lvio

Dinarte?

Como a descreve o autor, Inoc��ncia n��o era um tipo de

mo��a do sert��o do g��nero que nos habituamos a conhecer

atrav��s de tantos relatos, forte, valente, que pega na

enxada e lavra a terra, ordenha vacas e pastoreia ca-

bras e ovelhas. Era, pelo contr��rio, doentia, rom��ntica, e

a sua apari����o no livro se faz gra��as a umas sez��es de





9 5


que estava acometida, o que leva seu pai, o Sr. Pereira,

a contratar os servi��os de um " d o u t o r " itinerante que

encontrou em viagem.

Eis como o autor a descreve, no quarto de enferma,

onde a viu pela primeira vez o " d o u t o r " Cirino: "Ca��a

ent��o luz de chapa sobre ela, iluminando-lhe o rosto, parte

do colo e da cabe��a, coberta por um len��o vermelho

atado por tr��s da nuca. Apesar de bastante descorada e

um tanto magra, era Inoc��ncia de beleza deslumbrante.

Do seu rosto irradiava singela express��o de encantadora

ingenuidade, real��ada pela meiguice do olhar sereno

que, a custo, parecia coar por entre os c��lios sedosos a

franjar-lhe as p��lpebras, e compridos a ponto de projeta-

rem sombras nas mimosas faces. Era o nariz fino, um

bocadinho arqueado, e o queixo admiravelmente tornea-

do. Ao erguer a cabe��a para tirar o bra��o de sob o len��ol,

descera um nada a camisinha de crivo que vestia, dei-

xando nu um colo de fascinadora alvura, em que ressal-

tava um ou outro sinal de nascen��a".

A hist��ria �� simples. Inoc��ncia era noiva de Manec��o,

j�� de casamento marcado. Cercando-a de imensos cuida-

dos e recatos, o pai leva o " d o u t o r " Cirino a trat��-la

das sez��es, e os dois se apaixonam. Na mesma oportuni-

dade �� h��spede da casa o alem��o Meyer, entomologista

que anda �� procura de borboletas raras. Expansivo, ale-

gre, brincalh��o, Meyer fala a toda hora da beleza de Ino-

c��ncia, despertando desconfian��a no pai zeloso do recato

da filha, que chega a pensar em mandar embora de sua

casa o " a l e m �� o " conquistador. Enquanto isso, Cirino

namorava Inoc��ncia, e o equ��voco do pai, e mais as gra-

��as e as "liberdades" de Meyer, d��o o tom de humor

nesta hist��ria triste.

Os encontros noturnos dos dois namorados, vigiados

pelo an��o Tico, constituem o cl��max amoroso do id��lio

que n��o chega sequer ao cl��ssico beijo. Ali��s, o primeiro





9 6


encontro �� uma transposi����o, para o ambiente r��stico do

sert��o, da c��lebre cena do balc��o de Romeu e Julieta.

Tais encontros selaram o destino dos dois, dispostos a

enfrentar tudo, at�� a morte, para se unirem. Concertam

um plano desesperado, a ida de Cirino �� fazenda do pa-

drinho de Inoc��ncia em busca de apoio. Ele parte. Tam-

b��m parte o alem��o ap��s descobrir um lindo esp��cime

desconhecido de borboleta que batizou de "Papilio Inno-

centia", em homenagem �� bela sertaneja. Nesse interva-

lo, volta o noivo Manec��o. Inoc��ncia nega-se a v��-lo, re-

pudia-o, disposta a tudo, menos a casar-se com ele. O

pai amea��a mat��-la, em defesa da palavra empenhada.

O noivo quer matar o culpado, que ambos julgam ser

o alem��o Meyer. Mas o an��o Tico descobre tudo e aponta

o " d o u t o r " Cirino.

Manec��o sai para a vingan��a e mata Cirino, enquanto

este esperava o padrinho de Inoc��ncia, que j�� se dispunha

a interceder por eles. Inoc��ncia morre em seguida, n��o

explica o autor se das sez��es ou mesmo do mal do amor

contrariado, e dois anos depois, na cidade alem�� de

Magdeburgo, seu nome era lembrado por Meyer, por

ocasi��o da homenagem a ��le prestada na Sociedade Ento-

mol��gica, pela cole����o de borboletas que levara do Brasil,

destacando-se pela rara beleza a "Papilio Innocentia".

Essa hist��ria ing��nua e um tanto melodram��tica con-

quistou o Brasil de Norte a Sul. Tornou-se logo, dentro

dos limites da ��poca, o que hoje chamamos de bestsel-

ler. Edi����es se sucederam anualmente, algumas n��o per-

mitidas e que suscitaram, uma aqui e outra na It��lia,

quest��es judiciais com os herdeiros. Tradu����es se fizeram

para numerosas l��nguas, entre elas o franc��s, italiano,

ingl��s, alem��o, espanhol, croata, sueco, dinamarqu��s,

polon��s, flamengo, japon��s etc. Foi adaptada ao teatro

italiano por Silio Bocanera, e ao teatro espanhol por Jos��

Clementino Soto. Foi adaptada ao teatro no Brasil por

Carlos G��is, Roberto Gomes e Rodrigues Barbosa. Saiu





97


em folhetins em jornais do Brasil, da Fran��a, e da It��lia.

Serviu de tema a uma ��pera de Leo Kessler, intitulada

Inoc��ncia, com libreto de Emiliano Perneta. Foi ainda o

primeiro romance brasileiro a ser aproveitado pelo cine-

ma, o que se deu em 1915, com o ator italiano Capellani.

Finalmente, em 1945, novo filme foi tirado de sua hist��ria

pela Brasil Vita Filme, do Rio de Janeiro.

Toda essa fortuna cr��tica deu a Inoc��ncia o selo da pos-

teridade. A adolescente sertaneja, dos confins de Mato

Grosso, correu mundo, famosa e c��lebre na sua ingenui-

dade e extrema timidez. Com a sua cria����o abriu-se o

ciclo do regionalismo brasileiro, que daria mais tarde as

obras de Afonso Arinos, Sim��es Lopes Neto, Hugo de

Carvalho Ramos, entre outros, e, finalmente, Guimar��es

Rosa. Confirmou-se plenamente o progn��stico de Fran-

cisco Otaviano, que afirmou: "Este livro ter�� longa

vida, do mesmo modo que se pode, ainda hoje, viajar ��

Esc��cia com as novelas de Walter Scott por guias". E

de modo algum prevaleceu a mod��stia do autor que, na

dedicat��ria, chama-o de " u m a narrativa campestre e

despretensiosa'' e de " u m livro singelo e sem futuro".

Mas, afinal, quem era S��lvio Dinarte, de quem a hist��-

ria n��o guardou lembran��a, mas que assinava o livro

famoso? Tratava-se do pseud��nimo de Alfredo D'Escrag-

nolle Taunay, oficial superior do Ex��rcito, her��i da Guer-

ra do Paraguai. De ascend��ncia nobre em todos os graus,

�� realmente extraordin��rio que ele tivesse compreendido

t��o bem a alma da gente r��stica do sert��o e afinal escre-

vesse um livro como Inoc��ncia, cuja autenticidade ao

fixar costumes e sentimentos do nosso povo do interior,

na ��poca, ainda n��o foi superada.

Taunay era filho do Bar��o de Taunay, diretor da Esco-

la de Belas-Artes e preceptor de D. Pedro II. Sua m��e,

tamb��m nobre, era Gabriela Herm��nia de Robert d'Es-

cragnolle, Baronesa de Taunay. Seu av�� paterno foi o fa-





9 8


moso pintor da Escola Francesa, Nicolau Antonio Tau-

nay, membro do Instituto de Fran��a e integrante da fa-

mosa Miss��o Francesa que D. Jo��o VI trouxe ao Brasil

para aqui fundar uma Academia de Belas-Artes. Seu av��

materno foi o Conde d'Escragnolle, de uma das mais

velhas casas fidalgas de Proven��a e Fran��a, e sua av��

materna era Adelaide de Beaurepaire, ambos expulsos, o

Conde d'Escragnolle e o Conde de Beaurepaire, de sua

p��tria pela Revolu����o Francesa. Alfredo d'Escragnolle

Taunay que ganharia o t��tulo de visconde no pr��prio

ano da Proclama����o da Rep��blica, a 6 de setembro de

1889, tamb��m se casaria na nobreza brasileira, ao despo-

sar D. Cristina Teixeira Leite, filha do Bar��o de Vassou-

ras, da mais opulenta aristocracia cafeeira fluminense.

Pois Alfredo d'Escragnolle Taunay, com toda essa linha-

gem de nobres europeus, escreveu Inoc��ncia, fruto dos

seus conhecimentos e observa����es nos sert��es do Brasil,

que percorreu durante a Guerra do Paraguai, integran-

do, jovem oficial de engenharia, a Coluna Expedicion��ria

de S��o Paulo que quase toda se perdeu nos pantanais de

Mato Grosso, assolada pelas doen��as e epidemias, e afi-

nal se imortalizou na famosa Retirada da Laguna. Vol-

tou outra vez Taunay ao teatro de opera����es, desta vez

como Secret��rio do Estado-Maior do Conde D'Eu, Genera-

l��ssimo e Comandante-Chefe das For��as Brasileiras.

Escritor fecundo, um dos fundadores da Academia Bra-

sileira de Letras, Taunay escreveu mais de 50 livros, nos

v��rios g��neros, dentre os quais o mais famoso, depois

de Inoc��ncia, �� A Retirada da Laguna. Morreu aos 56

anos, em 1899, ap��s uma vida gloriosa, mas o que perpe-

tuou mesmo o seu nome foi o ter escrito, com amor e

sentimento, a hist��ria de Inoc��ncia.





99


Carolina

(A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo)



DIF��CIL ENCONTRAR entre os leitores quem n��o

conhe��a um romance simples, ing��nuo, publicado pela

primeira vez no Rio, em 1844, h�� 127 anos, e que at��

hoje continua leitura obrigat��ria n��o s�� de estudiosos e

cr��ticos ou de estudantes de letras, mas tamb��m da ju-

ventude em geral, principalmente do interior. Seu nome,

A Moreninha; autor, Joaquim Manuel de Macedo.

Narrativa de costumes, A Moreninha iniciou a fic����o

rom��ntica entre n��s e foi o primeiro romance carioca de

sucesso, precedendo de oito anos Mem��rias de um Sar-

gento de Mil��cias, de Manuel Ant��nio de Almeida. Seu cli-

ma �� o da despreocupa����o alegre da juventude que, em

meio �� garridice dos passeios e dos namoricos, vai vivendo

as horas e os dias fugazes "que n��o voltam m a i s " .

Tendo como cen��rio a Guanabara e uma de suas ilhas,

criou Macedo um dos tipos mais queridos do romance

brasileiro, a personagem feminina mais cativante da nos-

sa literatura. Por apelido Moreninha, de nome Carolina,

ela h�� muito se tornou s��mbolo dos amores juvenis.

A Moreninha era o tipo perfeito da adolescente do s��-

culo passado, entre 14 e 15 anos. Pertencia �� pequena





103


burguesia fluminense em pleno florescimento. Alegre,

saltitante, brejeira e traquinas, nada levava definitiva-

mente a s��rio, brincava com as pessoas e os sentimen-

tos, enquanto esperava o seu eleito. Ela aparece no ro-

mance em meio a outras mocinhas e senhoras, numa

festa "na ilha d e . . . " (o autor n��o diz qual �� a ilha), e ��

descrita como um beija-flor no sal��o, sentando-se e levan-

tando-se a cada momento, ora desfolhando um lindo pen-

d��o de rosas, ora derramando ��gua-de-col��nia no chap��u

de um convidado, ora beliscando o seu irm��o Filipe ou

fazendo caretas para um amigo deste.

A princ��pio o estudante Augusto, que viria a ser o seu

amado, acha-a estouvada, caprichosa e at�� feia. Na opi-

ni��o de uma senhora, ela era "travessa como um beija-

flor, inocente como uma boneca, faceira como o pav��o,

e curiosa... como uma mulher". Era assim a More-

ninha, tal como a descreve Macedo, e assim ela ficou

c��lebre e ganhou vida e tradi����o.

O Romance ��, sobretudo, uma hist��ria de estudantes,

de alegre patuscada, de bom-humor, de juventude. Nele

n��o h�� a mais leve turba����o dessa alegria, a n��o ser no

relato de epis��dio vivido na meninice de Augusto.

Um grupo de estudantes de medicina conversava e

brincava efusivamente ap��s " u m a carraspana". Filipe

os convida para passarem o dia de Santa Ana e o fim-

-de-semana em casa de sua av��, na ilha. O programa foi

aceito por todos, em meio a grandes planos de namoros e

festejos. Augusto, que se pavoneava de nunca se ter

deixado prender pelos encantos de uma mulher por mais

de quinze dias, aposta com Filipe, que o desafiava a

ficar insens��vel ��s suas duas primas que iriam encontrar

na ilha. Quem perdesse a aposta escreveria um romance

sobre a hist��ria.

104

V��o todos para a ilha, e l�� est��o, al��m das primas de

Filipe, a sua pr��pria irm��, a Moreninha, que, afinal, vem

a ser a conquistadora do cora����o de Augusto, fazendo-o

perder a aposta.

Este enredo simples e at�� certo ponto banal tem no seu

desenvolvimento imprevistos agrad��veis, cenas de hu-

mor e gra��a, de coqueteria, de beijos furtivos, sob a pro-

te����o e o embalo da natureza exuberante da ilha acolhe-

dora. Tudo, naturalmente, girando em torno da More-

ninha, que domina inteiramente o livro. E quando, ap��s

muitas perip��cias, Augusto e ela se confessam apaixona-

dos, algo se esclarece, culminando a hist��ria com um

verdadeiro encontro do destino. �� que Augusto na inf��ncia

encontrara uma menina e com ela fizera r��pida amiza-

de. Circunst��ncias estranhas levaram-nos �� presen��a de

um moribundo que, em gratid��o pela esmola que deles

recebeu, aben��oou-os e disse-lhes que haveriam de ca-

sar-se e ser felizes. Deu, em seguida, um amuleto a

cada um. E eles se separaram sem ao menos saberem os

nomes um do outro ��� e nunca mais se encontraram.

Fant��stica coincid��ncia, a Moreninha era aquela menina

da sua inf��ncia, e a troca dos amuletos selou o futuro

do amor dos dois.

Joaquim Manuel de Macedo foi um dos fundadores do

romance brasileiro, um dos nossos grandes escritores do

s��culo X I X , por certo o mais popular. Nasceu em 1820,

em S��o Jo��o de Itabora��, no interior fluminense, e mor-

reu em 1882.

Formou-se em Medicina em 1844, e nesse mesmo ano

publicou A Moreninha, que logo obteve rumoroso suces-

so. Dedicou-se ainda ao jornalismo e �� pol��tica, tendo sido

deputado estadual e geral, chegando mesmo a recusar o

cargo de ministro. Exerceu tamb��m o magist��rio, tendo





105


sido professor de Historia e Geograf��a no Col��gio Pedro II

e preceptor dos filhos da Princesa Isabel. Sua maior

voca����o, no entanto, foi a literatura, e atrav��s dela, real-

mente, alcan��ou a gl��ria e a posteridade.

Macedo tem uma extensa bibliografia composta de ro-

mances, pe��as teatrais, volumes de poesia, livros de His-

t��ria, cr��nicas, mem��rias, biografias e comp��ndios did��ti-

cos, formando ao todo mais de quarenta livros. Suas

obras mais conhecidas, al��m de A Moreninha, s��o O Mo��o

Louro, As Mulheres de Mantilha, O Primo da Calif��rnia

(teatro) e Mem��rias da Rua do Ouvidor.

Escritor popular, afirmou certa vez que n��o escrevia

para s��bios. Sua obra, no entanto, �� importante, pois

constitui verdadeira cr��nica da sociedade fluminense do

II Reinado.

Em torno da hist��ria da Moreninha h�� v��rias vers��es.

Uma delas d�� como inspiradora do romance e do tipo

feminino a pr��pria namorada de Macedo e sua futura

esposa, prima de ��lvares de Azevedo. Afirma-se que o

romancista, no ��ltimo ano de formatura de m��dico, numa

brincadeira de estudantes, apostou com um colega como

seria capaz de escrever um romance em oito dias. Reco-

lheu-se �� sua cidade natal e l�� escreveu, no prazo esti-

pulado, A Moreninha, ganhando a aposta e descobrindo

a sua grande e verdadeira voca����o.

A Moreninha vive hoje nas sucessivas edi����es que o livro

tem tido atrav��s dos anos e ainda nas numerosas adap-

ta����es, para o cinema, o r��dio e a televis��o, da sua hist��-

ria ing��nua e sentimental de um amor juvenil. �� um dos

poucos romances brasileiros onde n��o h�� nada de triste

ou pungente.

Vive tamb��m na tradi����o da ilha de Paquet��, identifi-

cada como o cen��rio daqueles amores. O curioso �� que,

em nenhuma p��gina do romance, Macedo faz qualquer re-





106


fer��ncia direta a Paquet�� e seu nome n��o �� menciona-

do uma s�� vez. Mas generalizou-se a cren��a de que Pa-

quet�� fora a ilha da Moreninha. L�� existem uma rua e um

grupo escolar com o nome do romancista, e todo um

trecho t��pico da ilha tem o nome da personagem de Ma-

cedo. H�� ainda a praia da Moreninha, e at�� descobriram

um rochedo, muito visitado por turistas, que seria aquele

onde a irrequieta adolescente ficava �� espera da embar-

ca����o que trazia o seu amado.





107


Isaura

(A Escrava Isaura, Bernardo Guimar��es)



EMPRE QUE SE FALA ou se escreve sobre A Es-

crava Isaura, de Bernardo Guimar��es, logo vem o inevi-

t��vel paralelo com A Cabana do Pai Tom��s, romance an-

tiescravagista norte-americano de Harriet Beecher Stowe,

a quem o pr��prio Presidente Lincoln atribuiu uma consi-

der��vel influ��ncia na aboli����o da escravatura nos Estados

Unidos. Foi um dos livros mais famosos do s��culo X I X

pela sua conclusiva a����o social em favor de uma id��ia

universal e humanit��ria como a liberta����o dos negros da

escravid��o. Tamb��m temos a nossa A Cabana do Pai

Tom��s, acentuam cr��ticos e historiadores liter��rios,

pois o livro de Bernardo Guimar��es, bastante lido

e comentado na ��poca, muito influenciou a socie-

dade, principalmente o p��blico feminino, pondo a nu

as monstruosas consequ��ncias da escravid��o entre

n��s, a sua face mais cruel. A verdade �� que Bernardo

Guimar��es talvez tenha sofrido influ��ncia daquele ro-

mance norte-americano, ou apenas dele lhe tenha vindo

a sugest��o de fixar o drama brasileiro, uma vez que A

Cabana do Pai Tom��s �� anterior em cerca de 23 anos

ao livro brasileiro.





1 1 1


A Escrava Isaura apareceu em primeira edi����o em

1875, quatro anos depois da Lei do Ventre Livre, que

estabelecia uma aboli����o gradual da escravatura, deter-

minando que, daquela data em diante, no Brasil os fi-

lhos de m��es escravas nasceriam livres. O romance co-

moveu milhares de criaturas e emocionou os leitores de

Norte a Sul do pa��s, com a hist��ria sentimental de uma

linda escrava torturada e espezinhada por um senhor

cruel e devasso, e que, afinal, �� salva por um rico cava-

lheiro apaixonado pela sua formosura e bondade.

Mas, afinal, como era a personagem que Bernardo

Guimar��es criou no seu romance ainda hoje lido e relido

no Brasil inteiro, n��o obstante a sua idade de quase

cem anos e as novas correntes liter��rias que tanto modi-

ficaram o esp��rito e o estilo da fic����o?

Isaura n��o era uma escrava comum, criada na senza-

la, nem de cor negra. Filha de um feitor portugu��s com

uma bela negra africana, era uma aut��ntica mulata cla-

ra, dessas que hoje em dia ganham concursos femininos

e at�� representam a beleza brasileira em certames in-

ternacionais. O autor a apresenta nas primeiras p��ginas

do livro, e a sua apari����o se faz atrav��s de uma voz

maviosa que canta coplas sentimentais de uma cativa

suspirando pela liberdade. " S e n��o �� sereia, somente um

anjo pode cantar assim" ��� diz o romancista, e leva o

leitor �� sala da fazenda onde ela, sentada ao piano, canta

embevecida. A descri����o �� opulenta de adjetivos e, ao

gosto da ��poca, exagerada. " U m a bela e nobre figura de

m o �� a " , com "bastas madeixas negras", " c o l o donoso e do mais puro lavor", de "encantadora simplicidade, porte esbelto, cintura delicada", e mais, parecia " u m a V��-

nus nascendo da espuma do mar ou um anjo surgindo

dentre brumas vaporosas".

Realmente, a figura de Isaura pouco tinha de uma

cativa. Era de tra��os finos e de pele morena, educada,

cantava bem, tocava piano e fora criada pela senhora da





112


fazenda com todo o carinho. Tais predicados, obviamente,

n��o eram os de uma mo��a nascida nas senzalas do inte-

rior fluminense no s��culo X I X . Talvez que o autor, ao

cri��-la assim, quisesse equipar��-la a qualquer mo��a da so-

ciedade da ��poca, para fazer comover ainda mais os

cora����es com sua hist��ria triste, que come��a com a mor-

te de sua protetora, sem ter formalizada a carta de al-

forria em seu favor, como prometia sempre. Isaura passa

ent��o �� posse do herdeiro, rapaz libertino e devasso. E

a�� come��a a hist��ria.

A hist��ria passa-se numa grande fazenda fluminense

situada em Campos de Goitacases, hoje cidade de Cam-

pos. Isaura, pela sua beleza, desperta nos homens amor ��

primeira vista. Le��ncio, o jovem senhor, devasso, mau,

perdul��rio, quer for����-la a se tornar sua amante. Henri-

que, seu cunhado, tamb��m a quer conquistar, e por ou-

tro lado, o jardineiro, um an��o mostrengo e feio, perso-

nagem que faz lembrar o Corcunda de Notre Dame, de

Victor Hugo, muito em voga na ��poca, sonha casar-se

com ela. Os dois primeiros a disputam, e Henrique revela

�� sua irm�� Malvina estar o seu marido apaixonado pela

escrava. A esposa abandona Le��ncio e este continua o ass��-

dio a Isaura, que o repele. Le��ncio usa de todos os recur-

sos, at�� a amea��a e a viol��ncia, mas ela n��o cede. O por-

tugu��s Miguel, pai de Isaura e ex-feitor da fazenda, prop��e

comprar a liberdade dela por dez contos de r��is. Le��ncio

recusa. Miguel trama ent��o uma fuga e consegue viajar

com a filha para Recife, onde passam a viver afastados

de todos, com nomes falsos para escapar �� persegui����o de

Le��ncio.

A�� entra em cena um novo personagem, o her��i da his-

t��ria, um rico mo��o chamado ��lvaro, que por ela se

apaixona e um dia a convence a ir a um baile na alta

sociedade recifense. No baile aparece um outro vil��o, de

nome Martinho, que reconhece Isaura pela descri����o de

um an��ncio de "escravo fugido" que vira e recortara

113

dos jornais do Rio, interessado t��o-somente nos dez con-

tos de r��is de recompensa pela captura. ��lvaro tenta,

com o seu dinheiro, salvar Isaura, mas n��o consegue,

e, ap��s v��rias perip��cias, Le��ncio chega a Recife e traz

Isaura com ele para a sua fazenda, e ainda Miguel

para cumprir pena pelo rapto e fuga.

Novo ass��dio, novas propostas s��o feitas a Isaura pelo

senhor apaixonado, mas ela ainda n��o cede. Ent��o Le��n-

cio planeja vingar-se de maneira cruel. Manda p��r Isaura

a ferros no tronco da senzala e lhe oferece a alternativa:

continuar presa naquele instrumento de tortura para

sempre ou aceitar a liberdade que ��le lhe oferece com a

condi����o de casar-se com Belchior, o an��o feio e asque-

roso. Desesperada, ela aceita o sacrif��cio para conseguir

a liberdade, mas no dia das bodas, inesperadamente,

surge o her��i ��lvaro para salv��-la. �� que, tendo vindo

ao Rio, soube da situa����o financeira de Le��ncio, total-

mente arruinado e cheio de d��vidas. Resolveu comprar

todas essas d��vidas tornando-se assim dono da fazenda

e de todos os bens de Le��ncio, inclusive de Isaura.

O final, pode-se imaginar. ��lvaro vai ser feliz com a

linda ex-escrava que passa a ser a dona de toda a for-

tuna de Le��ncio, e este, desesperado, mete uma bala

na cabe��a.

Bernardo Joaquim da Silva Guimar��es foi um dos

mais populares romancistas brasileiros do s��culo X I X .

Contempor��neo de Jos�� de Alencar e Machado de Assis,

nasceu a 25 de agosto de 1825, em Ouro Preto, e morreu

na mesma cidade, no ano de 1884.

Temperamento de bo��mio, foi colega na Faculdade de

Direito de S��o Paulo, onde se formou, de ��lvares de

Azevedo e Aureliano Lessa, participando das noitadas

po��ticas, das farras byronianas, com que se envenena-

vam de romantismo os mo��os acad��micos de en-

t��o. Com eles fundou a Sociedade Epicur��ia. Era alegre,

brincalh��o, de humor franco. Foi juiz, por duas vezes, no





114


interior de Goi��s, e �� personagem de rico anedot��rio que

ficou registrado nas cr��nicas de seus contempor��neos.

Seus livros, mais conhecidos, depois de A Escrava Isaura,

s��o O Ermit��o de Muqu��m, O Garimpeiro e O Semina-

rista. �� autor de obra numerosa, inclusive de v��rios volu-

mes de poesia, em que foi rom��ntico, sat��rico e at�� fesce-

nino. Seu longo poema O Elixir do Paj��, de forte licencio-

sidade, em par��dia aos Timbiras, de Gon��alves Dias, teve

numerosas edi����es clandestinas e at�� hoje circula ��s es-

condidas entre os bibli��filos. ��, cronologicamente, o pri-

meiro escritor de uma ilustre fam��lia liter��ria mineira,

pois era tio do grande poeta simbolista Alphonsus de Gui-

maraens e de Archangelus de Guimaraens. A tradi����o

da fam��lia continuou com Alphonsus de Guimaraens

Filho e Jo��o Alphonsus.

Conquanto n��o seja, segundo os cr��ticos, o melhor ro-

mance de Bernardo Guimar��es, A Escrava Isaura ficou

sendo o mais conhecido e o mais difundido no Brasil

inteiro. Seu n��mero de edi����es �� dif��cil de fixar, tal a

quantidade delas que circulou por todo o pa��s. Como ��

f��cil de se deduzir, seu enredo, suas personagens s��o ver-

dadeiras idealiza����es rom��nticas, mas, apesar de tudo, e

talvez por isso mesmo, conquistou o cora����o dos leito-

res. Sua import��ncia hist��rica �� incontest��vel pelo vee-

mente libelo que transmite contra a escravid��o. E quan-

do vemos, ainda hoje, na segunda metade do s��culo vin-

te, em plena era da conquista sideral, novas edi����es de

A Escrava Isaura se imprimirem e se esgotarem, temos

de concordar que h�� algo no cora����o humano que os

tempos n��o mudam, e �� para esse " a l g o " que ainda

vive e viver�� sempre a escrava Isaura, que Bernardo

Guimar��es arrancou da sujeira e do opr��brio das senza-

las para a vida eterna das personagens e dos s��mbolos.





115


Magd��

(O Homem, de Alu��zio Azevedo)



PRINCIPAIS ROMANCES de Alu��zio Azevedo

s��o, segundo os cr��ticos, O Corti��o, Casa de Pens��o, O

Mulato, obras com as quais imp��s �� sua ��poca a escola

naturalista. Nesses, no entanto, n��o h�� uma figura fe-

minina predominante como em O Homem, o s��timo de

seus romances, no qual Magd�� ocupa toda a extens��o do

livro, e �� em torno dela, do seu temperamento m��rbido,

da sua psicologia de hist��rica, que o autor teceu n��o

apenas o enredo, mas a sua tese fenomenalista. N��o es-

tando, pois, no conceito da cr��tica, entre as suas melho-

res obras, O Homem foi aquela que nos ofereceu melhor

material para esse enfoque.

Como era Magd��, essa estranha criatura que, do de-

sengano amoroso, passou �� histeria, desta ao del��rio, e,

num crescendo, �� loucura?

Magd�� era uma mo��a bonita, por��m doentia, nervosa,

irasc��vel, fruto ��nico de um casamento que cedo se des-

fizera pela morte da m��e.

A sua apari����o no romance �� logo na primeira p��gina,

onde o autor a apresenta, rec��m-chegada da Europa,





119


aonde f��ra, em v��o, em busca de sa��de e alegria. Eis

como �� descrita:

"Magdalena ou simplesmente Magd��, como em fam��-

lia tratavam a filha do Conselheiro Pinto Marques, estava,

havia duas horas, estendida no div�� do sal��o de seu pai,

toda vestida de preto, sozinha, muito aborrecida, a cismar

em coisa nenhuma; a cabe��a apoiada em um dos bra��os,

cujo cotovelo fincava numa almofada de cetim bordado a

ouro; e a seus p��s, esquecido sobre um tapete de peles de

urso da Sib��ria, um livro que ela tentara ler e sem d��vi-

da lhe tinha escapado das m��os insensivelmente.''

A�� onde ela estava p��lida e triste, j�� era doente h�� dois

anos de uma estranha mol��stia que se manifestara

ap��s uma revela����o que a fizera desistir do seu sonho de

inf��ncia, que era o de casar-se com Fernando, seu com-

panheiro e namorado, afilhado de seu pai e que desde

pequeno morava em sua casa. A sua vida se alternava

em momentos de profunda depress��o e melancolia ou de

exalta����o e extrema irascibilidade. O m��dico da fam��lia,

que acompanhava apreensivo a evolu����o da enfermida-

de, recomendava ao pai que era preciso cas��-la quanto

antes.

A hist��ria de O Homem �� um tanto convencional e por

muitos acusada de falsa. Em poucas linhas �� a se-

guinte:

Magd�� e Fernando, criados juntos, se amavam e pre-

tendiam casar-se logo que o rapaz se formasse em en-

genharia. ��s v��speras da formatura, o pai de Magd��, que

via com grande ansiedade a evolu����o da amizade juve-

nil para um amor adulto, chamou o afilhado e disse-lhe

que aquele casamento n��o se podia realizar. Fernando

insistiu muito em conhecer o motivo, e o Conselheiro

teve de confessar que ele tamb��m era seu filho, revelando-

Ihe as circunst��ncias em que o trouxera para casa como

afilhado. Esperava jamais ter de dizer-lhe isso, e s�� depois





120


de sua morte o testamento revelaria o segredo. Mas o

projetado casamento agora o obrigava.

Fernando afastou-se de Magd��, e como n��o podia di-

zer-lhe o motivo, isso fez com que ela passasse a odi��-lo.

Como vingan��a quis casar-se imediatamente com um

pretendente que n��o era do agrado do pai, mas este, para

evitar o erro da filha, resolveu confessar-lhe tamb��m o

real motivo de tudo. Magd�� teve ent��o um choque t��o

violento que lhe abalou para sempre os nervos fr��geis.

Pouco depois Fernando viajava para a Europa, a fim de

aperfei��oar seus estudos, e l��, alguns anos depois,

morreu.

Esse abalo e essa desilus��o amorosa foram o in��cio da

derrocada de Magd��. A histeria come��ou a manifestar-se

com viol��ncia. Tinha acessos incr��veis, e o m��dico, preo-

cupado, recomendava a melhor terap��utica no caso: um

marido. O Conselheiro p��s-se em campo e arranjou v��-

rios pretendentes, mas ela sempre recusava, com evasi-

vas e desculpas sem valia. A situa����o foi ficando dram��-

tica e perigosa, e a doen��a cada vez mais se repetia em

crises constantes.

Depois de revelar-se in��cua a viagem �� Europa, o pai

resolveu p��r em pr��tica a terap��utica do campo. Mudou-se

para uma casa que possu��a nos altos da Tijuca, onde se

respirava o ar da floresta. Magd��, no entanto, n��o me-

lhorou. E um certo dia viu da janela o trabalho de uma

pedreira pr��xima. Os cavouqueiros, homens fortes e ru-

des, expunham-se ao sol da tarde naquele trabalho, ape-

nas de cal����o. Ela impressionou-se com aquilo e no dia

seguinte pediu ao pai que a levasse at�� l��. N��o foi poss��-

vel convenc��-la do contr��rio e afinal foi feito o passeio,

mas no alto da pedreira ela desmaiou, e quem a trouxe

abaixo, carregando-a nos bra��os fortes e nus, foi um

cavouqueiro de nome Lu��s.

Caminhando aceleradamente para a loucura, Magd��

apaixonou-se pelo cavouqueiro, e passava horas a v��-lo,





121


ao longe, de sua janela. Na realidade, tinha horror ao

contato carnal, era excessivamente pudica, e passou, no

seu del��rio, a sonhar todas as noites com o rapaz, criando

uma vida dupla. A real, e a imagin��ria, que a sua fanta-

sia er��tica engendrou. Mal fechava os olhos, transporta-

va-se a uma bela "ilha do segredo", onde o cavouqueiro

Lu��s a esperava. Em sonhos com ele se casa, tem um filho

a que deu o nome de Fernando, e vivem os dois num

maravilhoso id��lio. Assim, passou a viver a maior parte

do tempo dormindo, no que era ajudada pelos rem��dios

calmantes que lhe ministrava o m��dico.

Mas o cavouqueiro Lu��s era noivo de Rosinha, irm�� da

empregada de Magd��, e morava perto num corti��o. Es-

tavam prestes a casar-se e, no dia das bodas, Magd�� ouve

e v�� de sua casa, com inveja e ��dio, os aparatos simples

da festa do casamento. No dia seguinte, pediu �� sua em-

pregada que trouxesse os noivos �� sua presen��a, pois que-

ria presente��-los. O casal vem todo feliz e risonho e ela os

recebe com requintes de amabilidade. Diz �� empregada

para trazer uma garrafa do melhor vinho para os noivos.

��s escondidas, derrama, nos copos dos dois, o conte��do

de dois frascos de rem��dio que continha ars��nico, mistu-

ra com o vinho e d��-lhes a beber. Em poucos instantes

se faz sentir o efeito do veneno. Os dois come��am a

contorcer-se em esgares tr��gicos. D��-se o alarma, o esc��n-

dalo. Chama-se o m��dico, vem a pol��cia, e nada foi poss��-

vel fazer. Os noivos morrem envenenados �� frente de to-

dos. O pai, desesperado, v�� Magd�� ser arrastada numa

camisa-de-f��r��a, para o hosp��cio, pedindo que a levem pa-

ra a "ilha do segredo", onde a sua fantasia de louca

realizara o seu sonho de amor com Lu��s.

Essa hist��ria cruel, de um certo mau gosto e eivada de

irrealidade, marcou no naturalismo a faceta do cientifi-

cismo e da an��lise. O romance se propunha a defender

uma tese fenomenalista. Sua influ��ncia se fez presente em





122


alguns livros da ��poca, notadamente em A Carne, de

J��lio Ribeiro. Causou, evidentemente, esc��ndalo quando

de sua publica����o. E o seu objetivo mesmo era provocar

pol��mica, escandalizar o p��blico. No p��rtico, Alu��zio

Azevedo ap��s a seguinte frase que bem define os objeti-

vos de sua obra: " Q u e m n��o amar a verdade na arte e

n��o tiver a respeito do Naturalismo id��ias bem claras e

seguras far��, deixando de ler este livro, um grande obs��-

quio a quem o escreveu". Era um desafio de quem pouco

se importava com o agrado ou desagrado dos que n��o

fossem partid��rios de sua verdade.

O Homem foi lan��ado em 1877. Considerado um dos

fracos romances de Alu��zio Azevedo, quando o escreveu j��

era ele autor de pelo menos dois de seus grandes roman-

ces, Casa de Pens��o e O Mulato. Mesmo assim, em O

Homem est��o presentes a extraordin��ria for��a narrativa

de Alu��zio e a sua prodigiosa imagina����o, que fazem da

hist��ria tr��gica e pungente de Magd�� uma leitura

atraente que nos arrasta, p��gina a p��gina, at�� o desen-

lace.

Alu��zio Azevedo �� para o romance naturalista brasileiro

o que ��mile Zola foi na Fran��a, o "chefe da escola".

Nascido a 14 de abril de 1857, em S��o Lu��s do Maranh��o,

sua primeira inclina����o art��stica foi para o desenho.

Ainda adolescente, veio ao Rio, onde j�� se encontrava o

seu famoso irm��o, Artur Azevedo, e come��ou a fazer

charges para os jornais. Voltando ao Maranh��o por mo-

tivo da morte do pai, logo encontraria a sua voca����o de

escritor. Publicou seu primeiro romance, Uma L��grima

��e Mulher, nos moldes do romantismo piegas de ent��o.

Logo em seguida ganha notoriedade com O Mulato, ro-

mance sobre a vida e os costumes maranhenses. Voltou

ao Rio, j�� famoso, e foi, com uma extraordin��ria fecun-

didade, publicando os seus grandes romances, Casa de

Pens��o, O Coruja, O Corti��o etc.

123

O sucesso e a gl��ria liter��ria, como at�� hoje acontece no

Brasil, n��o deram a Alu��zio Azevedo compensa����o mate-

rial e financeira. Vivia sempre em dificuldades, traba-

lhando como um " f o r �� a d o " nos seus livros e por isso

n��o lhe sobrava tempo para outras atividades rendosas.

Maldizia-se disso e passou a considerar a vida de escritor

como um jugo, do qual conseguiu libertar-se atrav��s de

um concurso para a carreira de c��nsul. Como tal serviu

em Vigo, na Espanha, em N��poles, no Jap��o, afinal em

Buenos Aires, onde morreu a 21 de janeiro de 1913, aos

55 anos de idade.

A obra numerosa de Alu��zio Azevedo foi toda ela escrita

at�� os 36 anos, ��poca em que ingressou na carreira con-

sular. Desde ent��o, passou cerca de 18 anos servindo no

estrangeiro at�� a morte, sem publicar um ��nico roman-

ce. Certa vez, em confiss��o a Rodrigo Ot��vio, disse que

se julgava incapaz, era mesmo imposs��vel escrever longe

de sua terra, do ambiente e do clima brasileiro, dos seus

tipos e paisagens.

124

Lenita

(A Carne, de J��lio Ribeiro)



DOS LIVROS mais discutidos e que maior esc��n-

dalo suscitaram na ��poca de sua publica����o, na d��cada

dos oitenta do s��culo passado, foi o romance naturalista

de J��lio Ribeiro, A Carne, uma obra fortemente influen-

ciada por ��mile Zola, a quem o autor ofereceu o livro

numa carta-dedicat��ria em que era chamado de chefe,

senhor e mestre, al��m de Pr��ncipe do Naturalismo. Nos

tempos atuais, em que a liberdade criativa assume pro-

por����es de absoluta dimens��o no que diz respeito aos as-

suntos do sexo, A Carne n��o suscitaria maiores discus-

s��es nem vexames. Simplesmente alguns aspectos de

mau gosto e vulgaridade seriam referidos, mas no seu

todo seria considerado pouco avan��ado.

Mas a verdade �� que, para a ��poca, constituiu um

desafio tanto no esp��rito da hist��ria como no descritivo

das cenas. E a sua hero��na, a mo��a rica que se lan��ou a

uma aventura sexual com um homem desquitado, pondo

por terra os tabus da r��gida moral burguesa, cometeu

verdadeira afronta �� tranquila sociedade ao fim do II

Reinado, ��s v��speras da proclama����o da Rep��blica.





127


Helena, ou familiarmente Lenita, chamava-se essa he-

ro��na que J��lio Ribeiro criou no seu romance. Mo��a bem

formada e bem criada, ela era uma representante da

mulher que j�� come��ava a se formar no Brasil, a femi-

nista, com todo o exagero e as distor����es da ��poca. Sabi-

chona, poliglota, versada em tudo quanto fosse ci��ncia, em

igualdade de condi����es com os homens cultos. Era sexu-

almente fria e indiferente, at�� que algo lhe despertou a

sexualidade reprimida. Num desses momentos, eis como

a descreve o autor: "Moreno-claro, alta, muito bem lan-

��ada, tinha bra��os e formas roli��as, musculosas, punhos

e tornozelos finos, m��os e p��s aristocraticamente perfei-

tos, terminados por unhas r��seas, muito polidas. Por sob

os seios rijos, protra��dos, afinava-se o corpo na cintura

para alargar-se em quadris amplos ( . . . ) Os cabelos pretos

com reflexos azulados ca��am em franjinhas curtas sobre a

testa indo frisar-se lascivamente na nuca. O pesco��o era

proporcionado, forte, a cabe��a pequena, os olhos negros

vivos, o nariz direito, os l��bios rubros, os dentes alv��ssi-

mos; na face esquerda tinha um sinalzinho de nascen��a,

uma pintinha muito escura, muito redonda".

Era assim a Lenita de A Carne, e acrescente-se a isso o

furor com que ela se lan��ou ao amor de um homem que

tinha o dobro de sua idade, para termos os ingredientes de

tantos romances que ultimamente fazem sucesso e logo

desaparecem para nunca mais ningu��m deles se lembrar.

O que n��o aconteceu com A Carne, que continua lido e

reeditado ��� nem com Lenita, que continua lembrada

como uma das personagens mais fortes da fic����o natu-

ralista entre n��s.

A hist��ria de Lenita come��a quando ela era ainda pe-

quena. Seu pai, o Dr. Lopes Matoso, tendo ficado vi��vo

com tr��s anos de casado, retirou-se para uma ch��cara

perto da cidade, afastando-se de tudo para dedicar-se �� lei-

tura de bons livros e �� educa����o da filha. Homem de

grandes recursos, p��de proporcionar a Lenita todo o con-





128


f��rto poss��vel, al��m de uma instru����o aprimorada, aci-

ma do vulgar, com cursos de ci��ncias, de matem��tica,

v��rias l��nguas, desde o italiano ao grego, todas as mat��-

rias do curso de humanidades, al��m de nata����o, equita-

����o, gin��stica e m��sica. At�� os 22 anos ela viveu essa

vida artificial. Nem pensava em sexo e recusava todos os

numerosos pretendentes �� sua m��o que apareciam perio-

dicamente. Mas um dia morreu o Dr. Lopes Matoso de

um ataque card��aco, e ela sentiu tamanho choque, ta-

manha prostra����o, que resolveu ir passar uns tempos

descansando na fazenda do Coronel Barbosa, que tinha

sido tutor e amigo de seu pai.

Em contato com a natureza exuberante do interior

paulista, Lenita despertou para os sentidos, e especial-

mente para o sexo, at�� ent��o adormecido, sendo de notar-

se que, nos primeiros dias de fazenda, teve um ataque

hist��rico prontamente medicado. O Coronel Barbosa

tinha um filho esquisit��o, de mais de 40 anos, desquita-

do, que vivia tamb��m na fazenda, um tanto afastado e

c��tico do mundo. Quando Lenita chegou, ele estava em-

brenhado nas matas, ca��ando, e s�� algum tempo depois

voltou a casa. Depois de uma repulsa inicial por parte

dela, os dois tornaram-se amigos e conversavam muito

sobre os mais variados temas cient��ficos, sociais, cultu-

rais, pois ele era tamb��m bastante instru��do, e vivera al-

gum tempo na Europa, onde conhecera a esposa de quem

era divorciado. Da camaradagem franca passaram ao

amor e deste �� paix��o sexual desvairada, tendo a mo��a to-

mado sempre a iniciativa da conquista. Viveram ent��o

um romance de arrebatamento e exaust��o sexual. Leni-

ta transformou-se totalmente, encontrando afinal a sa-

tisfa����o plena dos sentidos. J�� era outra, alegre, feliz,

totalmente curada do traumatismo da morte do pai. Mas

um dia Manuel Barbosa viajou a neg��cios a Santos, e l��

se demorou algum tempo. Em sua aus��ncia, Lenita des-

cobriu que estava gr��vida, e, remexendo os pap��is do





129


amante, encontrou v��rias cartas de amor de diversas

mulheres. Sentiu ci��mes e deu um balan��o em sua vida.

Sendo uma mulher inteligente e pr��tica, tomou uma re-

solu����o definitiva e logo a p��s em pr��tica. Fez as malas e

abandonou a fazenda para sempre. Quando Manuel Bar-

bosa voltou ficou desesperado. Afundou-se em completa

prostra����o, sempre �� espera de uma carta de Lenita com

uma explica����o para a sua fuga, carta que s�� chegou

semanas depois. Nela a amante lhe comunicava fria-

mente que ia ter um filho dele e que resolvera a situa����o

decidindo casar-se com um de seus pretendentes, o qual,

ciente de tudo, inclusive do filho que esperava, concorda-

ra. Manuel Barbosa, desolado, recolheu-se ao seu quarto

e se suicidou com uma inje����o de curare na veia.

A Carne apareceu no ano de 1888, e constituiu, como

j�� assinalamos, um verdadeiro impacto. Se socialmente

foi repudiado, literariamente foi tamb��m muito combati-

do, negando-lhe a cr��tica o valor art��stico, e atribuindo o

sucesso que fazia menos ��s suas qualidades que ��s cenas

er��ticas que descrevia.

O livro naturalmente tem exageros e defeitos como cri-

a����o romanesca, mas de tal modo ligou-se ao advento do

naturalismo entre n��s que ningu��m pode desconhecer a

sua import��ncia, n��o apenas hist��rica, mas tamb��m lite-

r��ria, pois influenciou de certo modo o romance natura-

lista brasileiro. Se teve grandes detratores, teve tamb��m

defensores, e ningu��m pode negar que at�� hoje seja lido

e que tenha conquistado um lugar na fic����o brasileira.

Para mostrar a exalta����o e a virul��ncia dos debates que

A Carne suscitou basta lembrar a famosa pol��mica do

seu autor com o padre portugu��s Senna Freitas, em ter-

mos de extrema descompostura. A pol��mica foi iniciada

pelo padre, publicando uma s��rie de seis artigos contra o

livro, no Di��rio Mercantil, de S��o Paulo, numa cr��tica

impiedosa. A princ��pio indiferente, depois profundamente

130

irritado, J��lio Ribeiro respondeu com outros tantos ar-

tigos de inaudita viol��ncia.

Para dar uma id��ia do teor da pol��mica, vamos trans-

crever um pequeno trecho de cada um dos contendores.

Dizia o Padre Senna Freitas: " D e fato, publicando aquela

Carne, que melhor deveria ser chamada de Carni��a, o

seu autor submeteu-se, ipso facto, ��s frechadas da cr��tica

leal e independente, venham de onde vierem. ( . . . ) Res-

peito, no Sr. J��lio Ribeiro, o homem particular a quem

sou grato, de que tenho profunda compaix��o, mesclada

de vivo interesse, e de cuja testada nem me aproximo.

Dirijo-me apenas, ou melhor, aviso o est��mago p��blico

contra essa venda il��cita de carne p��trida, exibida a

3$000 a posta, nos a��ougues liter��rios de S��o Paulo, e de

que J��lio Ribeiro se constituiu magarefe".

Eis um trecho da resposta de J��lio Ribeiro: "�� o caso

agora, �� o que vou fazer, �� besta que me agrediu ultima-

mente a couces e manota��os, e que, em puni����o, vai ser

agarrada de vez: �� uma besta religiosa, �� o Padre Senna

Freitas". E por a�� vai, nesse diapas��o.

J��lio Ribeiro ficou famoso n��o apenas com o romance

A Carne, mas como fil��logo, autor que era de conhecid��s-

sima Gram��tica Portuguesa. Nasceu a 16 de abril de

1845, em Sabar��, Minas, e morreu a 1 de novembro de

1890, em Santos, S��o Paulo, com 45 anos de idade.

Foi professor de Ret��rica, no Instituto de Educa����o de

S��o Paulo, e de Latim, na Faculdade de Direito do mes-

mo Estado. Jornalista vigoroso e tem��vel panflet��rio, este

seu c��lebre romance, embora em termos de fic����o, consti-

tuiu uma forma de combate aos preconceitos e �� moral da

��poca. Deixou ainda dois outros livros, o romance O

Padre Belchior de Pontes, em dois volumes, e Cartas

Sertanejas.





131


Maria do Carmo

(A Normalista, de Adolfo Caminha)



UGINDO AO ROMANTISMO que j�� estava passan-

do da moda em todo o mundo, os romancistas brasileiros

voltavam-se para o naturalismo, sob a influ��ncia de Zola e

de E��a de Queir��s.

Alu��zio Azevedo, J��lio Ribeiro, Ingl��s de Sousa e outros

que vinham surgindo, entre eles o cearense Adolfo Ca-

minha, davam �� nova escola liter��ria uma fei����o nacio-

nal. O naturalismo no Brasil cresceu como irm��o g��meo

do realismo, e as duas escolas quase se fundiram numa

��nica para, afinal, predominar em qualidade o realismo,

que havia de nos dar obras mais importantes e signifi-

cativas, e influenciar grandemente o romance moderno do

s��culo vinte.

Adolfo Caminha, jovem cearense atribulado por uma

vida de adversidades que culminaram com sua morte

prematura aos 30 anos incompletos, foi um dos mais

talentosos cultores do naturalismo entre n��s, apesar de

sua obra escassa, praticamente uns poucos romances. Um

deles, o que marcou sua estr��ia, foi A Normalista, que

tem como hero��na Maria do Carmo, uma jovem estudan-

te da Escola Normal de Fortaleza, personagem de um





135


drama que haveria de se repetir muitas vezes na fic����o

nordestina, o da mo��a pobre, retirante das secas, que ��

seduzida por um aproveitador da sua fraqueza e ingenui-

dade. No caso de Maria do Carmo, o sedutor foi o seu

pr��prio padrinho, que a criara desde menina, e a quem o

pai a entregara, ao emigrar para a Amaz��nia em busca

de melhor sorte.

Maria do Carmo viera do interior com os pais e um

irm��o, foragidos da terr��vel seca de 1877. Em Fortaleza

morreu-lhe a m��e; o pai, o Capit��o Bernardino de Men-

don��a, que se preparara para ir recome��ar a vida na

Amaz��nia com o filho homem que lhe restava, deixou-a

pequenina aos cuidados do amanuense Jo��o da Mata,

seu compadre. De l�� nunca mais voltaram, e Maria do

Carmo foi criada pelo padrinho que a p��s a estudar num

col��gio de freiras e, mais tarde, na Escola Normal para

formar-se em professora, carreira ent��o preferida pelas

mo��as da classe m��dia. Quando ela aparece no romance,

logo nas primeiras p��ginas, descreve-a o romancista co-

mo " u m a rapariga muito nova, com um belo ar de novi-

��a, morena-clara, olhos c��r de azeitona e carnes rijas".

Sua beleza e gra��a seduziam a todos. "A fama da norma-

lista ��� narra Caminha ��� encheu depressa toda a capital.

N��o se compreendia como uma simples retirante, sa��da

h�� pouco das Irm��s de Caridade, fosse t��o bem feita de

corpo, t��o desenvolta e insinuante. As outras normalis-

tas tinham-lhe inveja e faziam-lhe pirra��as. Nas reuni��es

do Clube Iracema era ela a preferida dos rapazes, todos a

procuravam".

Naturalmente que uma mo��a t��o requestada e sem

prote����o familiar atrai o apetite dos janotas e conquista-

dores da pra��a. Foi o que aconteceu com Zuza, rapaz

rico e estudante de Direito em Recife, que conquistou o

cora����o da bela normalista, mas n��o foi quem se apro-

veitou da beleza e do corpo de Maria do Carmo. Isso

coube a Jo��o da Mata, que o autor assim descreve: "Jo��o





136


da Mata era um sujeito esgrouvinhado, esguio e alto,

car��o magro de t��sico, com uma cor hep��tica denuncian-

do v��cios de sangue, pouco cabelo, ��culos escuros, atra-

v��s dos quais boliam dois olhos mi��dos e vesgos. Usava

p��ra e bigode ralo caindo sobre os bei��os, tesos como fios

de arame; a testa ampla confundia-se com a meia calva

reluzente. Falava depressa, com um sotaque abemolado,

gesticulando bruscamente e, quando ria, punha em evi-

d��ncia a medonha dentu��a posti��a".

Ao desconfiar do namoro de Maria do Carmo com o

estudante, Jo��o da Mata op��s-se furiosamente. E tal oposi-

����o se deu com estranhas manifesta����es de ci��me e acen-

tuadas inclina����es amorosas para com a afilhada. Ela o

repelia, mas pouco a pouco o padrinho foi ganhando po-

si����es para a conquista final. B��bedo inveterado, Jo��o da

Mata n��o mais deixou em paz a normalista, mas ela ia-se

defendendo enquanto prosseguia, ��s escondidas, o seu

namoro com Zuza. Por outro lado, esse namoro transfor-

mou-se no prato predileto da maledic��ncia provinciana.

Jornais humor��sticos, pasquins difamadores estampa-

vam hist��rias comprometedoras e as m��s l��nguas da ter-

ra n��o davam sossego a Maria do Carmo. Os pais de Zuza,

indignados com a hist��ria, procuravam mand��-lo de

volta a Recife, para concluir o curso de Direito. Nesse

clima de press��o social e familiar, ela sofria horrivel-

mente, pois amava Zuza e sonhava tornar-se sua esposa.

Jo��o da Mata aproveitou-se desse clima de tens��o que a

perturbava, e usando a sua autoridade de padrinho insi-

nuava-se para conquist��-la. At�� que uma noite foi sur-

prend��-la na rede onde ela dormia e terminou sedu-

zindo-a. Seguiram-se meses de tristeza e ansiedade

para Maria do Carmo que, tr��s dias depois de seduzida

pelo padrinho, teve not��cia de que Zuza afinal atendera ��

imposi����o do pai e voltara a Recife. Abandonada pelo

namorado, a normalista sentia aproximar-se a gravidez.

Um dia teve um desmaio e Jo��o da Mata, com medo do

137

esc��ndalo, levou-a para descansar na casa de um casal

amigo, num lugar afastado da capital, em Aldeota. A

aus��ncia da normalista despertou coment��rios maledi-

centes, e surgiu a vers��o de que ela esperava um filho do

estudante que a abandonara.

A hist��ria, no entanto, n��o terminou em trag��dia, ��

fei����o rom��ntica, mas no puro estilo naturalista. Maria

do Carmo teve o filho em Aldeota e o menino morreu. Ela

voltou a Fortaleza mais gorda, mais bonita, reingressou

na Escola Normal, continuou seus estudos, e pouco de-

pois ficou noiva do alferes Coutinho, com quem iria ca-

sar-se em breve.

Quando de sua volta a Fortaleza, ningu��m se lembrou

de comentar a sua vida, pois a cidade vivia ent��o estre-

mecida de boatos, com movimentos de tropas pelas ruas

para depor o Presidente da Prov��ncia. �� que havia sido

proclamada a Rep��blica no Rio de Janeiro.

A Normalista foi publicado em 1892 no Rio, onde j��

residia o autor, ap��s os percal��os de sua vida atribulada.

A hist��ria narrada nessa obra, injustamente recebida

com frieza pela cr��tica, foi inspirada num epis��dio es-

candaloso ocorrido em Fortaleza, com ampla repercus-

s��o na sociedade local, mas logo abafado pelas fam��lias

dos protagonistas.

Acontece que Adolfo Caminha tinha profunda m��goa

de sua terra e nesse romance, al��m de relembrar um

epis��dio rumoroso, deu vaz��o �� sua ojeriza ao Cear��. Tan-

to Zuza como Jo��o da Mata, no curso da narrativa, di-

zem horrores da terra, da gente do Cear�� inteiro, extra-

vasando a vingan��a do autor que nada perdoa na sua

amarga cr��tica.

Embora com os defeitos comuns �� escola naturalista, A

Normalista �� um romance excelente, e deu a Adolfo Ca-

minha um lugar proeminente na literatura brasileira

dos fins do s��culo passado. A fixa����o do ambiente, a ca-





138


racteriza����o dos personagens, o amplo panorama social

que ele retrata, demonstram o pulso, o vigor e o talento

do romancista genu��no. Maria do Carmo foi muito bem

criada pelo autor, e nada fica a dever, como figura de

fic����o, a tantas outras que povoam o mundo do romance

brasileiro.

Adolfo Caminha nasceu no sert��o do Cear�� a 25 de

maio de 1867. Ficando ��rf��o durante a seca de 1877, veio

para o Rio, onde foi criado por um tio. Aos 13 anos,

ingressou na Escola Naval e saiu segundo-tenente, indo

servir em Fortaleza. A�� come��aram os seus dissabores,

pois envolveu-se num esc��ndalo amoroso que o levou a

abandonar a carreira naval. Veio em seguida morar no

Rio, com a mulher e filhos. Amargurado, sofrendo difi-

culdades financeiras, pois vivia de colabora����es na im-

prensa e de um emprego p��blico que conseguira ap��s a

baixa da Marinha, o escritor morreu de tuberculose pul-

monar a 1 de janeiro de 1897, antes de completar 30

anos.

Sua obra, al��m de A Normalista, conta com mais um

romance, O Bom Crioulo, talvez o mais bem feito do

naturalismo brasileiro, mas tamb��m prejudicado pelo

escabroso do tema, na ��poca considerado imoral e aten-

tat��rio aos bons costumes. Publicou ainda o romance

Tenta����o, sem a mesma import��ncia dos anteriores, mais

um livro de cr��tica intitulado Cartas Liter��rias, deixan-

do in��ditos contos, poemas, e inacabados dois outros ro-

mances, ngelo e O Emigrado.





139


Ema

(O Ateneu, de Raul Pomp��ia)



OMANCE OU "cr��nica de saudades", como o deno-

minou o autor, O Ateneu e um dos livros mais impor-

tantes da literatura brasileira dos fins do s��culo X I X .

Foi escrito num per��odo de amplo debate, quando j�� es-

tava ultrapassado o romantismo, e o naturalismo, sob a

inspira����o de Zola e E��a de Queir��s, procurava se afir-

mar com estr��pito e mesmo com certo esc��ndalo.

Obra de um esp��rito inquieto, torturado, de um talento

fora do comum, O Ateneu explodiu como um foguete

luminoso e deixou um rastro fulgurante atrav��s dos

anos. Ele, somente, bastou para dar fama e gl��ria a Raul

Pomp��ia.

N��o se pode, rigorosamente, fili��-lo a uma determinada

corrente ou escola liter��ria. Se �� um romance natura-

lista, simbolista, impressionista, os cr��ticos ainda n��o

chegaram a uma conclus��o. Um grande livro �� o que ��, e

vem atravessando os anos e se sobrepondo ��s modas lite-

r��rias, ��s escolas, aos movimentos de transforma����o e de

vanguarda. Uma obra-prima, concordam todos, um livro

singular, vibrante, uma explos��o de sentimentos

contradit��rios, ��dio, amor, frustra����o, revolta, tendo co-





143


mo cen��rio um internato de menores, um col��gio que o

autor apresenta como uma escola da vida, um pequeno

mundo de lutas, disputas, dissens��es, mesquinharias,

que antemostram ao jovem colegial um panorama rea-

lista e mesmo pessimista do que ir�� encontrar atrav��s da

vida.

O Ateneu �� riqu��ssimo de tipos humanos, desde a fi-

gura extraordin��ria e caricata do famoso diretor, aos

professores, ��s centenas de alunos das mais diferentes

personalidades. Somente tr��s mulheres aparecem em to-

do o livro. Uma empregada de nome ngela, coquete, vul-

gar, que provoca, por amor e ci��me, o assassinato de um

servi��al do col��gio e que procura excitar sexualmente os

meninos a dist��ncia; Dona Ema, a esposa do Diretor,

figura delineada com alguma imprecis��o mas que assu-

me import��ncia na hist��ria e pode ser inclu��da na ga-

leria das hero��nas do romance brasileiro; e a sua filha

adolescente.

Como era D. Ema, a doce e amorosa senhora que dei-

xava entrever, em suas rela����es com os alunos do col��gio,

um misto de sentimentos maternais e lascivos, e vivia

se afogando em suspiros e insatisfeitas aspira����es amoro-

sas?

Ema surge somente com algum realce no fim do ro-

mance, mas h�� nas primeiras p��ginas uma sua s��bita

apari����o. �� quando S��rgio �� levado pelo pai ao Ateneu e

Aristarco, o Diretor, zomba dos cabelos longos e cachea-

dos do menino. Diz-lhe que no seu col��gio n��o h�� lugar

para meninos bonitos e de cabelos cacheados. Que fosse

imediatamente ao cabeleireiro! Ent��o aparece Ema, ins��li-

tamente, e diz: " P e �� o licen��a para defender os meninos

bonitos". E S��rgio a viu, em todo o esplendor da beleza

madura e assim a descreve:

"Surpreendendo-nos com esta frase, untuosamente es-

coada por um sorriso, chegou a senhora do Diretor, D.

Ema. Bela mulher em plena prosperidade dos trinta anos





144


de Balzac, formas alongadas por graciosa magreza, eri-

gindo, por��m, o tronco sobre quadris amplos, fortes como

a maternidade; olhos negros, pupilas retintas, de uma

cor s��, que pareciam encher o talho folgado das p��lpe-

bras; de um moreno rosa que algumas formosuras pos-

suem, e que seria tamb��m a cor do jambo, se jambo fosse

rigorosamente o fruto proibido. Adiantava-se por movi-

mentos oscilados, cad��ncia de minueto harmonioso e mo-

le que o corpo alternava. Vestia cetim preto justo sobre as

formas, reluzente como pano molhado; e o cetim vivia

com ousada transpar��ncia a vida oculta da carne.''

Depois desta recep����o, passa S��rgio ao mundo do in-

ternato e quase todo o romance se comp��e de suas rea����es

e viv��ncias naquela comunidade onde tudo acontecia de

frustrante, influenciando-lhe o car��ter, despertando-lhe a

revolta, a indigna����o, o ��dio mesmo. Apenas de refer��ncias

vagas sabe-se que Ema continua, e correm rumores entre

os alunos de suas rela����es ad��lteras com um determina-

do professor. Mas isso desaparece no dia-a-dia das conver-

sas, das futricas, dos dramas mi��dos, das tempestades

que varriam o Ateneu.

O internato, visto pelo autor-personagem que o vai bus-

car nas recorda����es de menino, era uma esp��cie de

submundo de perversidade e corrup����o. Crimes, amiza-

des suspeitas, atitudes e gestos de covardia, hipocrisia,

falsa moral, solenidades pomposas e vazias, homenagens

arranjadas, frustra����es e humilha����es sem conta, sob a

batuta do famoso Diretor, que se julgava, fazia-se crer, e

procedia como um Deus, um J��piter mitol��gico, senhor

de todos os destinos, terr��vel na vingan��a e no castigo,

imperioso nas ordens arbitr��rias, indom��vel, s��bio,

grandioso, baluarte do ensino no Imp��rio, sedento de

gl��ria e ostenta����o, mas que no fundo era mesmo um

grandiss��ssimo canastr��o, queria prest��gio e fama a todo

o custo, e procurava impressionar o Pa��s e os poderosos





145


para atrair ao seu col��gio os meninos ricos e assim ame-

alhar maiores lucros. �� uma caricatura terr��vel, a que

faz Pomp��ia do Diretor Aristarco, a mais talentosa e a

mais impiedosa da literatura brasileira.

Ema aparece em tudo, em meias-tintas, como a figura

suave, bela, amorosa, daquele mundo falacioso e podre.

Era uma esp��cie de Madame Bovary submetida a um

marido terr��vel e glorioso, no fundo uma natureza ar-

dente ansiando pelo amor que Aristarco n��o sabia ou n��o

podia dar. E procurava transferir essa necessidade de ca-

rinho para os meninos bonitos e um certo professor de

quem era amante. No final tr��gico, quando irrompeu o

inc��ndio que destruiu totalmente o col��gio, ela aprovei-

tou a oportunidade para fugir ��quela pris��o e desaparecer

do mundo de Aristarco, abandonando-o na desgra��a,

impiedosamente. At�� no nome a Ema do Ateneu faz lem-

brar a Ema Bovary de Flaubert.

A aproxima����o maior de S��rgio no mundo sentimental

de Ema deu-se primeiro no almo��o de que participou na

casa do Diretor, e depois nas f��rias, quando permaneceu

no internato, pois seu pai viajara para a Europa, e ele

adoeceu de sarampo. D. Ema foi a sua enfermeira amoro-

sa e diligente, sempre a seu lado, carinhosamente, e quan-

do estava longe fazia-se presente nos sons do piano que

tocava. S��rgio, inebriado, bebia-lhe os carinhos e os cuida-

dos com apetite desesperado. Ela beijava-o na testa, enxu-

gava-lhe o suor, envolvia-o em abra��os, punha-o no colo,

contava-lhe, l��bio a l��bio, "mimosas historietas sem tex-

t o " , abria-lhe o cora����o e desabafava a sua tristeza e

solid��o. "Ningu��m por m i m . . . Nesta casa sou de-

mais . . . N��o sabe o que �� um cora����o isolado como o

m e u . . . " , eram confid��ncias que ela lhe fazia em tom

suspeito. O id��lio da longa convalescen��a foi interrompido

pela trag��dia. O inc��ndio do Ateneu, provocado pela vin-

gan��a de um menino, a fuga de Ema, o fim da hist��ria e





146


do poder de Aristarco, que se mantinha hier��tico, solene,

inating��vel �� desgra��a, ao inc��ndio do seu mundo e ��

fuga da esposa, " c o m o um deus caipora, triste sobre o

desastre universal de sua obra".

O Ateneu foi publicado pela primeira vez em folhetim

na "Gazeta de Not��cias", no ano de 1888, e logo chamou

a aten����o do mundo liter��rio. Obra extraordin��ria, tem

sido filiada ao naturalismo, como a sua mais perfeita

express��o no Brasil, opini��o contestada pelos que nele

encontram maior influ��ncia do realismo, sendo por ou-

tros considerada obra simbolista e mesmo impressio-

nista.

Foi inspirado, seguramente, no famoso Col��gio Ab��lio,

do grande educador Ab��lio C��sar Borges, figura m��xima

do ensino no Brasil em sua ��poca, feito Bar��o de Maca��-

bas pelo Imperador Pedro II. O Col��gio existiu no casar��o

ainda hoje conservado �� Rua Ipiranga, 70, nas Laranjei-

ras, e foi onde Raul Pomp��ia estudou na inf��ncia. N��o

parece certo, no entanto, que o romance seja um retrato

fiel daquele col��gio, nem a figura caricata de Aristarco

seja o retrato do Bar��o de Maca��bas. Ambos foram

ultrapassados pela imagina����o do autor, e as cores pessi-

mistas do relato, o pequeno mundo de hipocrisias, de

vinditas de torpezas que ele retrata, tendo como centro a

figura de Aristarco, cresceram �� sombra do temperamento

neur��tico, angustiado e doentio de Pomp��ia e que o le-

vou ao suic��dio sete anos depois de publicar O Ateneu,

escrito aos 25 anos de idade.

Raul de ��vila Pomp��ia nasceu a 12 de abril de 1863

em Angra dos Reis, Estado do Rio, e suicidou-se aos 25

de dezembro de 1895. Sua curta vida foi marcada pelas

manifesta����es de um talento incomum e de um tempera-

mento exacerbado, neur��tico. Exerceu v��rios cargos de re-

levo, tais como Diretor do Di��rio Oficial, professor e se-

cret��rio da Escola Nacional de Belas-Artes e diretor-geral





147


da Biblioteca Nacional, cargo do qual foi demitido pelo

Presidente Prudente de Morais, depois da ora����o f��nebre

que pronunciou no t��mulo do Marechal Floriano, exal-

tando a figura do Consolidador da Rep��blica. Este insu-

cesso desencadeou em Pomp��ia um estado depressivo,

agravado pela neurose, mania de persegui����o, sentimen-

to de honra ofendida, sintomas que haveriam de culmi-

nar com o seu suic��dio, desfechando um tiro no peito

na noite de Natal de 1895, aos 32 anos. Al��m de O Ate-

neu publicou Uma trag��dia no Amazonas, Can����es sem

Metro, poemas em prosa.





148


Luzia

(Luzia-Homem, de Domingos Ol��mpio)



MA GRANDE PERSONAGEM feminina do roman-

ce nordestino, e que, somente ela, deu fama liter��ria ao

seu criador, �� Luzia-Homem, a extraordin��ria mulher

sertaneja descrita por Domingos Ol��mpio no livro que

iniciou, no princ��pio deste s��culo, o " c i c l o da s e c a " na fic����o do Nordeste.

Mulher valente e audaz para enfrentar as adversidades,

tinha a for��a de um gigante nos trabalhos mais r��sticos

a que a pobreza, a mis��ria e a seca a obrigavam, mas

tamb��m possu��a reservas de do��ura, de amor e de

feminilidade e se apaixonou por um homem honrado,

sonhando com o casamento e um lar, s�� o n��o conse-

guindo porque a trag��dia atingiu-a quando tudo parecia

sorrir aos seus desejos.

Luzia-Homem �� como que uma s��ntese da mulher ser-

taneja, plena de hero��smo na luta pela vida a que o

meio a obriga, chegando mesmo a aparentar certa mas-

culinidade, mas ao mesmo tempo capaz da dedica����o que

o amor inspira, da delicadeza de sentimentos e das qua-

lidades femininas de uma donzela pudica e honrada.





151


Luzia aparece no romance, todo ele girando em torno

de sua pessoa, nas primeiras p��ginas, atrav��s do assom-

bro do franc��s Paul que, viajando pelo Cear��, demorara-se

em Sobral colhendo document��rios e tomando notas

nos ranchos de retirantes. Em visita ��s obras da cadeia

local, escrevera ��le em suas notas: "Passou por mim uma

mulher extraordin��ria, carregando uma parede na ca-

b e �� a " . Era Luzia ��� acrescenta o romancista ��� condu-

zindo para a obra, arrumados sobre uma t��bua, cinquen-

ta tijolos". "Viram-na outras vezes ��� continua ��� levar

firme sobre a cabe��a uma enorme jarra d'��gua, que valia

tr��s potes, de peso calculado para a for��a normal de um

homem robusto. De outra feita, removera e assentara no

lugar pr��prio a soleira de granito da porta principal da

pris��o, causando pasmo aos mais valentes oper��rios".

Em outro local descreve o romancista uma cena em que

um boi bravo ia matar um homem quando Luzia irrom-

peu da multid��o e o agarrou pelos chifres subjugando-o

que nem um cabrito.

Tudo isso valeu-lhe o apelido de Luzia-Homem, com que

os moleques a apupavam, e at�� mesmo as pessoas adul-

tas a ela se referiam assim. No entanto, diz o autor,

aquela mulher "encobria os m��sculos de a��o sob as

formosas esbeltas e graciosas das morenas mo��as do ser-

t �� o " . Era altaneira e bela, tinha uns lindos cabelos lon-

gos e sedosos.

O cen��rio do romance �� a cidade cearense de Sobral, na

��poca da terr��vel seca de 1878. Ranchos de retirantes fa-

mintos se formavam nos arredores e a prociss��o da mi-

s��ria desfilava diariamente pelas ruas. A Comiss��o de So-

corros providenciava trabalho para muitos na constru-

����o da cadeia p��blica, e distribu��a mantimentos e roupas

aos mais desesperados. Luzia era uma retirante e vivia

com a m��e doente, entrevada. Mas n��o estendia a m��o ��

caridade e se empregou nas obras da cadeia, onde gran-

jeara admira����o de quantos a viam trabalhar. Criou fa-





152


ma, n��o s�� pela sua coragem e for��a, como pela beleza

que aquela vida abrutalhada n��o podia esconder. Surgiu

ent��o um soldado de pol��cia, femeeiro e atrevido, que

passou a persegui-la com propostas indecorosas. Cha-

mava-se Crapi��na. Por outro lado, afei��oara-se ela ao

funcion��rio da Comiss��o de Socorros, Alexandre, que

era seu amigo e protetor. Mas Crapi��na n��o a deixava

em paz um s�� dia, e Alexandre quis fazer recuar o atre-

vido, amea��ando-o.

Estoura ent��o um esc��ndalo. A porta da Comiss��o de

Socorros amanheceu arrombada, verificando-se o furto

de muitos mantimentos e de dinheiro. Alexandre foi

acusado e preso, embora negasse a culpa. Luzia acredi-

tava na honradez do seu amigo e passou a viver em fun-

����o de provar a sua inoc��ncia. Levava-lhe todos os dias

comida na pris��o e procurava um meio de descobrir o

verdadeiro ladr��o. Foi Teresinha, sua amiga e filha de

retirante que se prostitu��ra, quem muito a ajudou nisso.

Em primeiro lugar encomendou �� feiticeira Rosa Veado

um responso, para encontrar o criminoso, e uma noite

ouviu uma conversa na casa vizinha �� sua, onde Cra-

pi��na e outros jogavam baralho. A�� veio a saber que o

soldado era o autor do roubo e escondera no seu pr��prio

quintal a bolsa com o dinheiro. Enquanto isso, Alexandre

j�� havia passado semanas na cadeia, pesando-lhe mais

a acusa����o de uma mo��a de nome Sabina, que fora indus-

triada por Crapi��na para dizer que ele roubara o dinheiro

para lhe dar presentes.

De posse do segredo, Teresinha denuncia ao delegado o

verdadeiro ladr��o. O soldado Crapi��na foi levado ao local

onde escondera o dinheiro e tudo se esclarece. Alexandre

foi solto e reconduzido ao seu emprego na Comiss��o de

Socorros, mas Luzia esquiva-se de v��-lo, com ci��mes de

Teresinha. Logo em seguida, no entanto, tudo se escla-





153


rece e Alexandre vem ao encontro de Luzia para afinal

acertarem as contas de amor.

N��o obstante isso, o desfecho �� tr��gico. N��o s�� Luzia,

sua m��e doente e Alexandre, como Teresinha e sua fam��-

lia, resolveram sair de Sobral e viajavam na estrada,

quando Crapi��na, que conseguira fugir da cadeia, apare-

ce para vingar-se de Teresinha, e ataca. Luzia, que vem

perto, vai em sua defesa, Crapi��na, ao ver-se agarrado pe-

los punhos fortes de Luzia, sente avivar-se a sua paix��o

pela mo��a, e rasga-lhe o vestido tentando possu��-la. Num

assomo de ��dio Luzia crava-lhe com for��a extrema as

unhas no rosto, e o soldado, urrando de dor, afunda-

lhe o punhal no peito, Luzia cai agonizante e morre em

seguida, tendo nas m��os ensanguentadas um olho de

Crapi��na. Acorrem as outras pessoas do grupo, e o sol-

dado, tonto e cego de dor, vai cambaleando at�� que cai

num precip��cio.

Luzia-Homem foi publicado em 1903. Romance de tons

naturalistas, retratou de maneira admir��vel o Nordeste

sob a seca e foi o primeiro grande livro a apresentar o

drama dos flagelados cearenses de maneira realista, ini-

ciando todo um ciclo ficcional que viria desaguar em A

Bagaceira, de Jos�� Am��rico de Almeida, em O Quinze, de

Rachel de Queiroz, e outros que projetaram o romance

social do Nordeste na d��cada de 30.

Os defeitos que se possam apontar neste romance de

Domingos Ol��mpio desaparecem ante a not��vel descri����o

do ambiente social da regi��o e a for��a que conseguiu im-

primir n��o s�� ao tema como �� figura inconfund��vel de

Luzia-Homem, uma das grandes personagens femininas

de nosso romance.

Ap��s o sucesso inicial, Luzia-Homem foi um tanto es-

quecido pela cr��tica, at�� que L��cia Miguel Pereira, na

d��cada de 50, restaurou o prest��gio deste livro, hoje re-

conhecido como uma das grandes cria����es do romance





154


social nordestino e um cl��ssico da chamada novel��stica

da seca.

Domingos Ol��mpio nasceu em Sobral, Cear��, a 18 de

setembro de 1850 e morreu no Rio de Janeiro a 6 de

outubro de 1906.

Advogado e jornalista, profiss��es que exerceu na ent��o

Capital da Rep��blica, s�� aos 53 anos publicou seu pri-

meiro e praticamente ��nico livro, este romance Luzia-

-Homem, sa��do em 1903 numa edi����o da Companhia Lito-

-Tipogr��fica. Logo no ano seguinte iniciou a publica����o,

na revista Anais, de um outro romance intitulado O Al-

mirante, de costumes fluminenses. Deixou ainda um

romance incompleto, inspirado em temas amaz��nicos,

intitulado O Uirapuru, do qual se conhecem apenas onze

cap��tulos publicados em Anais.





155


Maria

(Cana��, de Gra��a Aranha)



OMANCE QUE FEZ ��poca, Cana��, de Gra��a

Aranha, �� apontado como precursor do modernismo, mo-

vimento a que o autor viria, mais de vinte anos depois,

a aderir com grande alarido. Sendo obra do princ��pio

do s��culo, tinha influ��ncias naturalistas e simbolistas,

que se traduziam nas descri����es e na exalta����o da na-

tureza tropical que serve de cen��rio ao livro. Por outro

lado, refletia o gosto da discuss��o filos��fica que o autor,

disc��pulo de Tobias Barreto, trazia desde os tempos da

famosa Escola do Recife.

Uma personagem feminina adquire destaque neste ro-

mance realmente extraordin��rio, embora n��o seja em

torno dela que gire toda a a����o do livro. Trata-se

da teuto-brasileira Maria, filha de colonos, cujo destino

infeliz emociona os leitores, e cuja figura humilde, re-

signada, ganha contornos de serena grandeza no sofri-

mento e na humilha����o. Ali��s, o livro n��o se caracte-

riza pela a����o ou pela hist��ria, mas pelo debate de

id��ias. Nele predomina o teor filosofante, no entrecho-

que de concep����es opostas da exist��ncia, atrav��s dos

personagens principais, dois imigrantes alem��es que se





159


encontram numa col��nia agr��cola no Esp��rito Santo e

defendem, ante a natureza exuberante que os rodeia,

seus pontos de vista, em di��logos que os entret��m

nas longas horas mortas da quase primitiva regi��o.

A hero��na de Cana�� s�� aparece quando j�� vai adian-

tado o livro. Milkau, o imigrante rec��m-chegado, vai

ao of��cio religioso, e, ao ouvir a m��sica do ��rg��o, evoca

de mem��ria, semi-adormecido, uma vis��o da p��tria dis-

tante e da mulher que ele amara. S��bito desperta e

nota Maria que o fitava demoradamente, e a sua figura

como que se confunde com a imagem retrospectiva.

Dias depois, numa festa campestre, a reencontra e

assim a v��: "havia nela certa beleza, uma distin����o

maior do que era comum nos colonos; o porte era gra-

cioso, o busto erguido, por��m de um contorno farto,

e as m��os brancas, talvez longas demais, sa��am dos

bra��os como cabe��as de galgo. Mas o que tinha de

superior era a fronte aberta, era o cabelo louro, fofo,

vol��til, era a express��o da beca, da sua boca descorada,

mas ��mida e bondosa".

Ali, onde a via Milkau, j�� estava no v��rtice da tra-

g��dia que se abatera sobre ela, mo��a pobre, ��rf��, a

viver de favor na casa de uma fam��lia. Da conviv��ncia

quase de irm��os com o patr��ozinho da casa, nascera

o amor, a paix��o, a entrega. Depois, os preconceitos,

os interesses, o afastamento do amado, a desonra, a

expuls��o da casa e toda uma s��rie de infort��nios que

a levaram at�� a cadeia, de onde a retira Milkau, nu-

ma fuga rom��ntica, e saem os dois em busca da so-

nhada Cana��.

Mas vamos �� hist��ria que se desenvolve paralela ��

adapta����o dos dois imigrantes na col��nia esp��rito-san-

tense, Milkau e Lenk. O livro tem in��cio com a viagem a

cavalo de Milkau, orientado por um guia, em busca do

Porto de Cachoeira, no Esp��rito Santo, aonde vai para

instalar-se numa col��nia agr��cola. As primeiras p��ginas





160


mostram o deslumbramento do estrangeiro ante a beleza

e a grandeza dos cen��rios. L�� se encontra com Lenk,

tamb��m rec��m-chegado, e se fazem amigos insepar��veis.

Juntos v��o ��s terras da col��nia e escolhem o lote em

que ir��o trabalhar. O encontro dos dois, as longas con-

versas, as discuss��es ocupam grande parte do livro.

Milkau era um idealista, acreditava no homem, na so-

lidariedade universal e no amor. Suas concep����es eram

um misto de teorias de Rousseau e do evolucionismo

germ��nico. Lenk, ao contr��rio, acreditava na viol��ncia,

na conquista com sangue, e encarnava o esp��rito ger-

m��nico de domina����o da ra��a superior. Milkau queria

a integra����o de todas as ra��as; Lenk, o predom��nio

da ariana. Ambos, muito inteligentes, dialogavam sobre

tudo, e tudo oferecia motivo para as longas discuss��es.

O encontro de Milkau e Maria, j�� narrado acima,

desvia a a����o do romance para a sua hist��ria triste.

Bastou aquele momento para que ambos se compreen-

dessem e se amassem, mas somente no final do livro

�� que realmente seus destinos se encontram.

Maria nascera na col��nia, era filha de imigrantes.

Seu pai morrera logo ao chegar ao Brasil, e a m��e,

vi��va e quase mendiga, empregara-se na casa do velho

e rico colono Augusto Kraus. Ali cresce Maria na con-

di����o de agregada, e da conviv��ncia com o jovem Moritz

nasce o amor. Afinal, tornam-se amantes, mas a fa-

m��lia queria cas��-lo com uma colona rica e o afastou

para longe. Maria fica gr��vida. Quando a situa����o se

torna conhecida, ela �� expulsa da casa. Vaga misera-

velmente pelas estradas. Pede abrigo na casa do pas-

tor, mas de l�� �� tamb��m expulsa como uma pecadora.

�� aceita numa estalagem apenas por dois dias, dando

como pagamento toda a roupa que levava. A�� a en-

contra Milkau e lhe arranja abrigo na casa de uma

fam��lia amiga onde ela passou a trabalhar.





161


Mas j�� se aproximava a ��poca do parto. E as dores

sobrev��m quando trabalhava a terra, sozinha no campo.

Vive ent��o momentos de ang��stia e dor. Deitada no

ch��o, contorce-se, enquanto os porcos grunhiam muito

pr��ximo. Afinal a crian��a nasce e ela desmaia. Os por-

cos se aproximam, lambem o sangue e come��am a de-

vorar a crian��a. Maria volta a si e ao ver a cena d��

um grito terr��vel. Aproxima-se uma pessoa da casa e

volta correndo para anunciar a trag��dia.

Maria foi depois presa e acusada de ter dado o filho

aos porcos, para livrar-se do fruto do pecado. Toda a

col��nia exige castigo. Ent��o Milkau prepara a fuga e

a tira da pris��o. Fogem os dois e assim termina o

romance. Milkau e Maria correndo para o desconhecido,

ante o cen��rio maravilhoso da natureza brasileira, em

busca de Cana��, a terra entressonhada que ali n��o ha-

viam encontrado. Esperam mais longe encontr��-la, em

qualquer parte da Terra. Em dado momento, ele de-

sespera, acha que nada mais resta sen��o a morte e

tenta jogar-se no precip��cio. Ela o det��m, e lutam

corpo a corpo, entre o desespero e o desejo.

Ela vence e continuam a caminhada, atr��s da miragem

que sempre os leva adiante, em busca de uma nova

terra de amor e de esperan��a, a terra da Promiss��o.

Gra��a Aranha, logo depois de sua formatura em Re-

cife, foi juiz municipal em Porto Cachoeiro, no Esp��-

rito Santo, e l�� idealizou este romance. H�� no livro

n��o s�� largas reflex��es e discuss��es filos��ficas, como

uma cr��tica �� vida social dos colonos alem��es, e ainda

um libelo contra a justi��a local que espolia, humilha

e explora os pobres imigrantes. Ele pr��prio aparece na

pele do juiz municipal Paulo Maciel, que procura de-

fender os colonos e evitar a espolia����o, mas �� vencido

pelos outros, o promotor, o escriv��o, o juiz de direito,

figuras que aviltam a dignidade de tais cargos.





162


H�� ainda no livro cenas impressionantes pelo realismo

das descri����es tais como a do parto de Maria, a disputa

dos porcos focinhando na lama e no sangue, despeda-

��ando o corpo do rec��m-nascido; e o espet��culo da desco-

berta do corpo de um solit��rio ca��ador, morto h�� v��rios

dias no seu s��tio, j�� semidevorado pelos urubus, e guar-

dado zelosamente por uma matilha de c��es ferozes. Os

homens se aproximam para resgatar o corpo e se em-

penham numa luta dram��tica contra os c��es que ten-

tavam proteger o dono e os urubus que n��o largavam a

carni��a. Ao fim da luta, os homens estavam mordidos,

sangrando, com as roupas dilaceradas, e os c��es mortos.

S�� ent��o puderam enterrar o corpo do ca��ador.

Cana�� foi publicado em 1902, pela Garnier, e marcou a

estr��ia de Gra��a Aranha em livro. J�� era nome famoso

pelos trabalhos que publicara em jornais e revistas, con-

tos, confer��ncias, pref��cios e ensaios filos��ficos, e pela sua

atua����o no exterior, em cargos diplom��ticos, secretari-

ando Joaquim Nabuco nas miss��es extraordin��rias de que

fora encarregado o grande abolicionista. J�� pertencia,

tamb��m, �� Academia Brasileira de Letras, desde a sua

funda����o em 1897.

Gra��a Aranha nasceu em S��o Lu��s do Maranh��o, a 21

de junho de 1868, e morreu a 26 de janeiro de 1931 no

Rio de Janeiro, como um ��dolo dos jovens revolucion��rios

da Semana de Arte Moderna. Tendo aderido ao moder-

nismo logo no in��cio do movimento, em 1922, posterior-

mente, em 1924, rompeu com a Academia, em sess��o

p��blica, quando pronunciou a confer��ncia "O Esp��rito

Moderno".

Publicou ainda, entre outros, os livros Malazarte, Est��-

tica da Vida, A Viagem Maravilhosa. Cana��, no entanto,

foi o seu grande sucesso e permanece at�� hoje como um

dos nossos maiores romances. Alguns cr��ticos condenam

nele o exagero das discuss��es e da ret��rica, o predom��nio





163


do social e do filos��fico sobre a mat��ria puramente ficcio-

nal, enfim apontam-lhe defeitos, mas a verdade �� que

tudo isso desaparece, pois que Cana�� �� realmente um

livro excepcional, varrido por um sopro de grandeza e de

beleza que o tornam imorredouro, e atrav��s dos tempos

ser�� lido como uma obra-prima.





164


Violante

(Turbilh��o, de Coelho Neto)



INVENT��RIO DA fic����o brasileira do fim do

s��culo passado ��s primeiras d��cadas deste, um nome n��o

pode ser esquecido, n��o s�� pelo n��mero de obras

que publicou como pela influ��ncia que exerceu em largo

per��odo da vida liter��ria brasileira. Trata-se de Coelho

Neto, figura ��mpar de nossas letras, ultimamente um

tanto esquecido. Autor de cerca de vinte romances, ��

muito variada a sua produ����o e m��ltipla a cria����o dos

tipos que povoam o seu mundo ficcional. N��o poder��a-

mos deixar de incluir nesta s��rie o prodigioso escritor

maranhense, nem de destacar um dos tipos de sua ima-

gina����o. Qual deles, no entanto, melhor se adaptaria a

esta cole����o de hero��nas do nosso romance?

Optamos por Violante, figura central de Turbilh��o, ro-

mance apontado por alguns cr��ticos como dos melhores

sen��o o melhor de sua obra. Era ela uma dessas mo��as

levianas e buli��osas, ��s quais os preconceitos da ��poca

apontavam como doidivanas. Descreve-a assim o ro-

mancista:

"Era bonita e esbelta, de um moreno quente de criou-

la, tez fina e rosada, olhos negros, boca pequena, sensual,





167


de l��bios carnudos e ��midos. Os cabelos, quando os des-

prendia, passavam-lhe das cintas em ondas, negras e re-

luzentes. Tinha uma voz l��nguida, como ressentida de

tristeza; falava em tom dolente de queixa e o seu olhar

quebrantado, sonolento, amortecia-se em ��xtases sob

as longas pestanas curvas".

Suas ocupa����es habituais eram fazer e desfazer os pen-

teados, polir as unhas, passar os dias na cadeira de ba-

lan��o, a ler romances, e �� tarde, encharcada de perfumes,

com muito p��-de-arroz, debru��ar-se �� janela para ver os

trens da Central (morava na Rua Senador Eus��bio), e

receber bilhetinhos que os rapazes metiam entre as fres-

tas da persiana.

Esses tra��os j�� mostram a psicologia de Violante e nos

indicam o rumo que sua vida iria tomar. Fr��vola e ba-

nal, era sua ��nica preocupa����o agradar os homens que a

admiravam e galanteavam. Mas, como �� ��bvio, para

desespero de sua m��e vi��va e seu irm��o jornalista e

estudante, n��o lhe passava pela cabe��a a id��ia de casar-

se e constituir um lar. Seus planos eram outros, e neles

inclu��a uma vida melhor do que a que levava, e se dis-

punha a conquistar tal situa����o usando os predicados

que Deus lhe dera, a beleza do corpo e do rosto.

Figura bem representativa, de uma mo��a de fam��lia

classe m��dia ca��da em processo de empobrecimento e

mis��ria, Violante era um tipo comum a todas as grandes

cidades, e que frequentemente povoa os romances e con-

tos de nossa fic����o urbana. Neste livro de Coelho Neto

ela exerce, sobre sua fam��lia em decad��ncia, o efeito de um

cataclismo, provocando o desmoronamento completo,

moral, social e econ��mico. O autor foi cruel e impiedoso

para com ela e toda a fam��lia que praticamente se acaba

com os epis��dios desta aventura de Violante.

O romance come��a numa reda����o de jornal onde Paulo

Jos��, estudante de Medicina, trabalha como revisor.





168


Terminada a faina noturna, o rapaz volta para casa,

altas horas, e a encontra em polvorosa. A m��e, vi��va

pobre de um oficial do Ex��rcito, cuja pens��o n��o dava

para as despesas, est�� desesperada e em pranto. A velha

negra empregada Fel��cia espera-o na porta para dar-lhe a

not��cia. Violante fugira.

A fuga de Violante transformou por completo a vida da

fam��lia. Paulo, na mesma noite, pediu a ajuda da pol��-

cia, e nos dias seguintes, e nas semanas e meses ap��s,

incansavelmente procurou localizar a irm��, instigado pela

m��e inconsol��vel que n��o suportava a vergonha e a

humilha����o. Por causa disso tiveram que mudar de casa

e foram morar numa das ruas da Lapa. Paulo perdeu o

emprego no jornal por faltar repetidas vezes ao trabalho,

procurando Violante. Tudo em v��o. A irm�� sumira por

completo sem deixar vest��gio. Paulo procurou a ajuda de

um batoteiro e jogador de nome Mamede, amigo da

fam��lia desde quando era sargento e servira com o pai de

Paulo. Mamede tudo fez para ajud��-lo. Vivia num corti��o

com uma mulata nova e sapeca de nome Ritinha, por

quem Paulo ficou ca��do de amores, e terminou seu aman-

te, traindo o amigo na sua pr��pria casa.

E por a�� continua e degrada����o da fam��lia. Paulo, an-

tes t��o s��rio e t��o direito, agora, desempregado, entre-

gou-se ao jogo, de onde conseguia ��s vezes tirar bons lu-

cros para enfrentar a situa����o. A negra Fel��cia levou D.

J��lia a um centro esp��rita para tentar descobrir, com

ajuda do sobrenatural, o paradeiro da filha. A velha, sem-

pre em desespero, teve os seus males agravados com as

constantes dificuldades de vida e os dissabores di��rios.

At�� que uma noite, ap��s uma virada da sorte, Paulo ga-

nha bastante e vai ao Teatro Recreio. L�� encontra a ir-

m�� num camarote de luxo com um amante. E ela lhe ex-

plica, calmamente, sem remorsos e sem drama, que dei-

xara o lar para viver melhor. Passara algum tempo com





169


um homem em Buenos Aires, mas afinal o deixou pois ele

j�� pensava em casamento. Agora estava instalada em

Botafogo e se chamava Mademoiselle Diana. Vivia muito

bem e satisfeita. Ganhava um bom dinheiro.

Paulo aceita com naturalidade a nova situa����o da ir-

m�� e vai visit��-la em Botafogo. Combina ent��o promover

a reconcilia����o atrav��s de uma visita de Violante �� m��e

enferma, para acabar de vez com o drama da fam��lia.

No dia em que a visita se realiza, D. J��lia sofre um t��o

grande traumatismo que o choque lhe provoca um ata-

que card��aco. A negra Fel��cia, a qual, desde que vieram

morar na Lapa, pr��ximo ao mar, piorara do ju��zo lem-

brando-se sempre do filho marinheiro que morrera na

revolta da Armada, endoidece de vez. E Paulo, ainda por

cima, traz para morar com ��le a mulata Ritinha, a pre-

texto de que ela vinha como empregada para cuidar da

m��e doente. Mas esta, desconfiada, espionava-os de noi-

te, e ao descobrir a verdade tem um novo ataque, desta

vez mortal. E a pobre senhora, vi��va de um ilustre oficial

do Ex��rcito, morre cercada da filha prostituta e seu

amante, do filho jogador, hip��crita e libertino, e da mu-

lata Ritinha com quem ��le se deitava nas noites em que

ela agonizava.

Como se v��, Coelho Neto fixou neste romance um dra-

ma da cidade grande, e acentuou nos seus epis��dios a

lenta degrada����o de uma fam��lia da classe m��dia. Dona

J��lia fora esposa de um major de Cavalaria, her��i da Guer-

ra do Paraguai, e criara os dois filhos, Paulo e Violante,

com relativo conforto e muitos carinhos e cuidados. A

morte do major transtornou inteiramente a vida da fa-

m��lia at�� que a fuga de Violante e a consequente prosti-

tui����o a que se entregou, assim como a degrada����o de

Paulo, consumaram a trag��dia.

Turbilh��o �� um romance de transi����o, assim como toda

a obra do extraordin��rio escritor que foi Coelho Neto.





170


Vindo do naturalismo e dos primeiros acordes do realis-

mo, seus livros e notadamente seus romances n��o se

filiavam a nenhuma escola e se caracterizavam pelo ver-

balismo exuberante, pela eloqu��ncia e rigor formal, valo-

res hoje apontados como prejudiciais �� perman��ncia de

seus livros. Mas a verdade �� que na ��poca nenhum escri-

tor gozou de maior prest��gio, nem exerceu maior fasc��-

nio, at�� que os modernistas de 1922 iniciaram demolido-

ra campanha contra ele, que at�� hoje se faz sentir.

Turbilh��o, em meio �� copiosa bibliografia de Coelho Ne-

to, �� um dos seus romances mais pr��ximos do gosto mo-

derno. Ele pr��prio deixou no p��rtico deste livro a expres-

s��o "simples como a verdade", como a mostrar que

tamb��m podia escrever despindo o seu estilo das lante-

joulas e da exuber��ncia barroca dos 20.000 voc��bulos que

manejava com desenvoltura e mestria.

Na ocasi��o do centen��rio do seu nascimento, em

1964, uma das homenagens a ele prestadas foi a reedi����o

deste romance urbano, cuja primeira edi����o apareceu

em 1906, quando o autor contava 42 anos de idade e j��

era um grande nome das letras, membro fundador da

Academia Brasileira e com mais de 40 volumes pu-

blicados.

Escritor glorificado em vida, e ainda em vida negado

pelos jovens, Coelho Neto permanece objeto de pol��mica.

Mas a sua import��ncia �� ineg��vel e o seu lugar na litera-

tura brasileira, conquistado com raro brilho e fecundo

talento, jamais ser�� arrebatado. Nasceu em Caxias, Ma-

ranh��o, a 21 de fevereiro de 1864, e faleceu no Rio a 28

de novembro de 1934. Na d��cada de 20 foi indicado, em

campanha nacional, candidato brasileiro ao Pr��mio No-

bel de Literatura. Sua extensa bibliografia atinge, se-

gundo alguns, 106 t��tulos, mas h�� quem aponte mais de

120 livros e op��sculos de sua autoria.





171


Jana

(Jana e Joel, de Xavier Marques)



UMA VASTA costa mar��tima de alguns milha-

res de quil��metros, o Brasil deveria ter uma riqu��ssima

literatura inspirada no mar. Isto, no entanto, n��o ocor-

re. A nossa fic����o n��o �� assim t��o rica em assuntos ma-

rinheiros. No romantismo, a mais forte imagem liter��ria

que tivemos do mar foi de revolta, pois que era atrav��s

dele que nos chegavam os navios carregados de escra-

vos que o g��nio de Castro Alves apostrofou no imortal O

Navio Negreiro. Mas se n��o tivemos o nosso Joseph Con-

rad ou o nosso Herman Melville, sempre nos restam al-

guns livros que o oceano inspirou ou pelo menos o t��m

como cen��rio. �� este o caso de uma bela novela praieira

de Xavier Marques, escritor e romancista baiano, Jana e

Joel, talvez a sua melhor obra, e que retrata um id��lio

simples entre dois adolescentes de uma col��nia de pesca, e

na qual criou o autor uma doce figura de menina-m����a, a

ador��vel Jana.

Na inspirada cria����o de Xavier Marques, Jana era

uma mocinha de 15 anos que vivia na ilha dos Frades,

na Ponta de Nossa Senhora da Ba��a de Todos os Santos.

Ela era a imagem da candura e da inoc��ncia no seu id��lio





175


simples com o mo��o Joel, ajudante no barco do pai dela, o

pescador Anselmo. Desde a inf��ncia se amavam e eram

como irm��os na ingenuidade dos primeiros anos. Passea-

vam na praia de m��os dadas, se escondiam nos recan-

tos da ilha, e nesse constante conv��vio eram como uma

s�� alma, um s�� sentimento, um s�� cora����o.

Eis como a descreve o seu criador: "Era apenas rapari-

ga. Uma esp��cie de tran��a inteiri��a lhe escorria do colo

abaixo, acusando formas ainda mesquinhas; a cabe��a

era estreita e banal, com o cabelo em an��is, empe��ado,

at�� a nuca; s�� a fisionomia de um tom de aquarela,

dilu��da, brilhava, apesar disso, com a luz glauca de uns

olhos esquisitos, de rara transpar��ncia, desses olhos que

semelham miniaturas do mar, acomodados �� colora����o

das suas ��guas, talvez pelo mesmo segredo que harmoni-

za a plumagem das aves com a cor das ramas onde elas se

aninham.''

Jana era humilde e pobre, e toda a novela se desenvolve

num cen��rio onde a natureza �� bela: uma col��nia de

pescadores perdida numa das pequeninas ilhas dispersas

na Ba��a de Todos os Santos. O encanto das longas

areias, o fasc��nio do mar, as aventuras das pescarias no-

turnas, os perigos das tempestades, oferecem a este pe-

queno e belo livro o ambiente encantador para a hist��ria

do amor juvenil de Jana e Joel.

Jana era filha de Anselmo, dono do barco Trit��o, que

vivia de fazer carretos para a ilha, e das longas pescarias

em mar alto. Era ��rf�� de m��e, e quem lhe tomava conta

era a av�� Th��o, m��e de Anselmo. Joel era um ilh��u

duplamente ��rf��o que morava com um tio e ajudava

Anselmo e seus dois filhos no manejo do barco. Vida

dif��cil, trabalhosa, afrontando as tempestades, que um

dia destru��ram Trit��o, que era como o membro querido

da fam��lia, mas logo substitu��do por um barco menor.

Jana e Joel eram insepar��veis, s�� o mar os trazia dis-

tantes algumas horas. Mas quando ela foi ficando mo-





176


cinha a av�� Th��o come��ou a reclamar daquela amizade e

implicar com o rapaz, que, na sua opini��o, estava bo-

tando a perder a sua neta. Anselmo, embora gostasse de

Joel como de um filho, concordou com a m��e em separar

os dois adolescentes. Uma fam��lia de Salvador estava

passando uma temporada na ilha, e a senhora muito se

afei��oara a Jana, at�� queria batiz��-la, pois ela era ainda

pag��. Combinou-se que o batismo se faria e depois Jana

seguiria com a madrinha para Salvador.

A dor e o desespero assaltaram os dois amorosos adoles-

centes, os quais juraram que um dia se veriam de novo

para nunca mais se separarem.

Os dias que se seguiram a essa decis��o foram de id��lio.

Fugindo �� vigil��ncia da av��, Jana escapulia de casa e pas-

sava longas horas com Joel, andando pela praia, escon-

didos nas voltas da ilha. At�� que chegou o dia da maior

tristeza, que foi o da partida de Jana.

Em Salvador ela foi morar numa bela casa do bairro de

Cal��ada, perto do mar. Tomava conta de uma das fi-

lhas da madrinha, mas nunca mais a alegria lhe voltou

aos olhos. Sonhava de noite com a ilha, com o pai Ansel-

mo, os irm��os Cosme e Dami��o, a av�� Th��o, e sobretudo

com o menino Joel. Este tamb��m nunca mais sorriu, e

vivia na ilha com o cora����o e o pensamento bem longe,

ao lado de Jana. Nas constantes viagens que fazia a Sal-

vador, passava tardes inteiras rondando a casa onde ela

morava e n��o conseguia v��-la. Ela, por outro lado, sempre

que podia, passava horas e horas olhando o mar na es-

peran��a de que o barco de Joel lhe devolvesse a alegria

perdida.

Passaram-se muitos meses e um dia ela teve not��cia de

que a av�� morrera. Chorou em sil��ncio, mas n��o perdeu

a esperan��a de voltar para a ilha. Meses depois o irm��o

veio dizer-lhe que o pai tamb��m morrera, e ela se sentiu

ainda mais s�� no mundo. O dia esperado afinal chegou.

Estava nos fundos da casa e resolveu andar um pouco ao





177


longo da praia. De repente viu um barco de pescador

que se aproximava cada vez mais. Seu cora����o alvoro��ou-

se. Era Joel que a descobrira e vinha busc��-la. Houve um

momento de enlevo naquele inesperado encontro. Depois

ela pediu ao menino de sua madrinha que voltasse cor-

rendo para casa. De novo juntos, Jana n��o quis perder

um minuto sequer. Ordenou a Joel que seguissem r��pido

para a ilha, e voltaram felizes, dispostos a nunca se

separarem. Ela pedia-lhe not��cias, indagando o destino

daquela gente e a saudade dos que se foram. E concerta-

ram os planos da nova vida que come��ava. Viveriam os

dois do trabalho comum. Ela faria vassouras, coseria

baetas e saias, e ajudaria nos trabalhos da pesca, pois

tamb��m sabia manejar um barco. E se casariam na igre-

ja de Madre de Deus.

De repente ela ouviu um som �� flor da ��gua e se deitou

no fundo do barco. Travaram um di��logo simples: ���"Es-

cuta! . . . ��� Que �� ? . . . ��� S��o e l a s . . . ��� Quem? ��� As

corvinas... ��� Qual, Jana! Isto �� o vento. ��� Espera".

E ele se deitou tamb��m no fundo do barco para ouvir

o som das corvinas. "��� Agora, Joel, e s c u t a . . . " E ele

se aproximou mais dela, sentiu-lhe o corpo e perturbou-se

todo. E o barco come��ou a oscilar. E se amaram pela

primeira vez. Chegados �� ilha, ele a levou para a pequena

choupana que lhe deixara o tio Greg��rio, que seria o seu

ninho de amor.

Poema em l��mpida e cristalina prosa, Jana e Joel ��

uma das mais belas hist��rias de amor da literatura bra-

sileira. Inexplicavelmente n��o teve a fortuna de outros

romances e novelas famosos que se multiplicaram em

sucessivas edi����es pelo Brasil a fora. Foi publicado em

1899, na capital baiana, e marcou o ponto alto da carrei-

ra liter��ria de Xavier Marques. V��rias edi����es se sucede-

ram atrav��s dos anos, mas a verdade n��o se pode negar,

em n��mero limitado, e nunca teve a repercuss��o de

outros livros a ele inferiores, de autores mais bafejados





178


pela cr��tica e o favor p��blico. Seu momento de maior

gl��ria foi a edi����o francesa, publicada em Paris em 1928,

pela Libraire Gedalge, em tradu����o de Phil��as Lebesque

e P. M. Gahisto, juntamente com Iracema, de Jos�� de

Alencar, as duas novelas num ��nico volume.

Jana e Joel ainda est�� �� espera, o que acreditamos ha-

ver�� de chegar, de um ressurgimento cr��tico, que a colo-

car�� entre as maiores novelas de amor da l��ngua portu-

guesa.

Xavier Marques nasceu na ilha de Itaparica, Bahia, a

3 de dezembro de 1861 e morreu a 30 de outubro de 1942

em Salvador, aos 81 anos de idade.

Apontado como o fundador do regionalismo baiano,

dedicou seu talento de escritor �� fixa����o do ambiente do

seu Estado natal, desde a zona do rec��ncavo �� Capital,

desde os romances hist��ricos, onde fixa epis��dios da des-

coberta e da coloniza����o do Brasil e as lutas da Indepen-

d��ncia, aos de costumes sociais e regionais, sendo o pri-

meiro a retratar o candombl�� baiano e a influ��ncia do

fetichismo negro. O melhor de sua obra de fic����o s��o as

novelas praieiras, entre as quais se destaca Jana e Joel.

Al��m de jornalista, foi deputado estadual e federal, e

um dos fundadores da Academia Baiana de Letras, em

1917. Elegeu-se para a Academia Brasileira de Letras em

1919, na vaga de Ingl��s de Sousa, na cadeira n.�� 28, onde

teve como sucessor o poeta Menotti dei Picchia.





179


Maria Bonita

(Maria Bonita, de Afr��nio Peixoto)



M DOS ROMANCES de sucesso na segunda d��cada

deste s��culo, na fase pr��-modernista, Maria Bonita, de

Afr��nio Peixoto, integrou na geografia liter��ria de nosso

Pa��s uma vasta regi��o do interior baiano, e deu impulso

not��vel �� corrente sertanista-regionalista de nossa fic����o,

que procurava, seguindo uma tradi����o de cunho nacio-

nalista, mostrar a nossa terra e a nossa gente, valoriz��-

las atrav��s da cria����o art��stica.

Afr��nio Peixoto foi um mestre em v��rios ramos do sa-

ber e da cultura. Tamb��m no romance, n��o obstante a

sabotagem que lhe foi movida desde o surto do movi-

mento modernista, podemos hoje, com isen����o, apont��-

lo como um dos mestres da nossa fic����o. Maria Bonita,

Fruta do Mato e Bugrinha d��o-lhe inegavelmente a situa-

����o de livros que ser��o relidos atrav��s dos tempos. E

quantos, dos que o negam, ter��o o mesmo destino feliz?

Afr��nio Peixoto foi sobretudo um criador de tipos femi-

ninos, e �� justamente no seu segundo romance, Maria

Bonita, que vamos focalizar a hero��na sertaneja, aut��nti-

ca, cuja beleza extraordin��ria tinha algo de tr��gico no

fatalismo com que arrastava os seus adoradores �� desgra-





183


��a. Tipo caracter��stico da mo��a do sert��o, bonita e sim-

ples, a f��ria dos preconceitos sociais afastou-a do seu

amado de inf��ncia, numa trama que d�� ao livro um gran-

de interesse narrativo, al��m da fixa����o perfeita da regi��o,

dos seus costumes, de sua gente.

Maria Bonita era a pr��pria imagem da beleza num

rostinho lindo que chamava a aten����o de todos. Desde a

inf��ncia convivia e brincava com os filhos do Coronel

Joaquim Pedro, patr��o de seu pai, dono da Fazenda

Boa Vista e de muitas terras e planta����es de cacau, no

Munic��pio de Canavieiras, ��s margens do rio Pardo. " Q u e

rosto lindo! Como �� bonita!", diziam todos que a viam.

Mas tal beleza n��o despertava apenas admira����o, provo-

cava tamb��m inveja e "maus olhados" e, se a fazia mui-

tas vezes ver-se com orgulho e sentir-se lisonjeada, por ou-

tro lado deixava-a apreensiva e medrosa. Desde menina

pressentia que seus encantos n��o lhe trariam felicidade.

E de fato isso aconteceu. Sua beleza, que siderava os

homens, despertou paix��es, inveja, ci��mes, provocou cri-

mes, pris��es, disputas e ��dio, sem nenhuma culpa de sua

parte, pois que era uma criatura simples, honrada e pa-

cata, boa filha e boa esposa, serena e tranquila em meio ��s

tempestades que, sem saber e sem querer, desencadeava.

O enredo do livro �� uma hist��ria t��pica do sert��o, e toda

ela gira em torno do destino singular de Maria Bonita.

Criada na intimidade da fam��lia do coronel e patr��o de

seu pai, nasceu desse conv��vio uma amizade pura de inf��n-

cia entre ela e Lu��s, filho do coronel, a quem se reservava

um destacado futuro. Alimentam os dois esse id��lio at�� a

adolesc��ncia e j�� se amavam e faziam planos de vida

futura quando come��aram as adversidades. O promo-

tor de Canavieiras, que �� recepcionado na fazenda do

coronel com vistas a um casamento com a sua filha, d��

maior aten����o a Maria do que �� futura noiva; e nessa





184


mesma festa o filho mais velho do coronel tenta conquis-

t��-la e ela o repele. O rapaz sente-se ofendido com a repul-

sa e planeja uma vingan��a. Vai com outros rapt��-la, mas

�� recebido a bala pelo irm��o e sai ferido.

O esc��ndalo estoura, e a fam��lia do coronel, principal-

mente D. Mariana, implac��vel matrona, cheia de pre-

conceitos e muito orgulho, rompe com os agregados e

tira-lhes a prote����o. O irm��o de Maria foge para n��o ser

preso e desaparece para sempre. Lu��s, o amado de inf��n-

cia, �� mandado para estudar em Salvador, sem ao menos

v��-la pela ��ltima vez ou mandar-lhe um simples adeus.

Sua m��e, pouco depois, morre de desgosto. O pai, vi��vo e

sozinho, entrega-se �� bebida. E ela, abandonada por Lu��s,

cede ao amor submisso de Jo��o, um amigo da fam��lia e

antigo apaixonado, e casa-se com ele.

Passam-se os anos e um dia Lu��s volta bacharel, orgu-

lho da fam��lia e da cidade. Ela morava j�� com o marido,

um filho e o pai in��til, numa casinha afastada da cidade.

Ao reencontro com os s��tios de sua meninice, renasce

em Lu��s o amor por Maria Bonita, e come��a a assediar a

bela sertaneja. Ela o repele mais de uma vez. O marido

pressente o perigo e alerta Maria para a desgra��a que

ronda o seu lar. Planejam mesmo viajar para longe, mas

a conduta dela era irrepreens��vel. Lu��s insiste, e uma

noite teve que esconder-se e fugir, quando rondava a ca-

sa, ante as amea��as do marido que saiu de garrucha em

punho.

Tudo conduzia para a trag��dia. E nessa mesma noite,

na ��ltima novena de Nossa Senhora, na hora do leil��o de

prendas, ocorre o esperado. Um lencinho bordado por

Maria foi posto a pr��mio. Lu��s insiste em arremat��-lo. D��

lances elevados, enquanto o marido disputa com ele. Era

uma luta desigual. De um lado, o filho doutor do rico

Coronel Joaquim Pedro, do outro, o marido pobre e





185


ofendido de Maria Bonita. O mo��o rico vence, mas Jo��o

engole a raiva, o ci��me, a humilha����o, para desabafar

horas depois. E na estrada deserta mata Lu��s com um

tiro, e foge para ser preso no dia seguinte, e conduzido ��

cadeia da cidade. Ao final, sozinha com o filho, lembran-

do-se do marido preso e do rapaz morto, e de todas as ad-

versidades, com as m��os em garra, arranha e fere a

pr��pria face, num assomo de desespero e revolta contra a

beleza fatal que s�� lhe trouxera desgra��as.

A hist��ria �� essa, mas h�� muito mais no romance de

Afr��nio Peixoto. A pintura do cen��rio sertanejo ��s mar-

gens do rio Pardo, a fixa����o dos tipos do interior, varia-

dos e ricos de humanidade, os costumes, as festas, os

h��bitos daquela gente rude mas honrada, a vida de uma

pequena cidade baiana da ��poca, a descri����o do patriar-

calismo feudal dos coron��is do sert��o e o seu estilo rico e

moderno, colorido e vibr��til, d��o a este livro as cores de

um magn��fico painel.

Maria Bonita, por outro lado, inicia todo um ciclo do

romance baiano, o ciclo do cacau, que daria, duas d��ca-

das depois, os grandes romances de Jorge Amado,

Adonias Filho e outros.

Maria Bonita foi publicado em 1914, quando o autor

tinha 35 anos, e j�� era uma celebridade como m��dico,

professor, higienista, escritor, e um dos mais fulguran-

tes talentos de sua ��poca. Membro da Academia Brasilei-

ra de Letras, fora eleito em 1911, �� sua revelia, em viagem

pela Europa, gra��as a uma conspira����o da amizade de

M��rio de Alencar, que falsificara a sua letra nos pedidos

de inscri����o e de votos. Foi esse epis��dio que o levou ��

literatura, pois, para justificar a elei����o, escreveu o ro-

mance A Esfinge, que seria o primeiro de sete que fizeram

ruidoso sucesso, e haveriam de inscrever o seu nome

na galeria dos romancistas brasileiros, num lugar de





186


destaque que o tempo e o esquecimento de velhas rixas e

disputas modernistas haver��o de perpetuar.

Afr��nio Peixoto nasceu a 17 de dezembro de 1876 em

Len����is, nas Lavras Diamantinas, na Bahia, e morreu

no Rio de Janeiro a 12 de janeiro de 1947. Sua obra

liter��ria e cient��fica abrange, na sua variedade, cerca de

50 livros, e um outro tanto de op��sculos, confer��ncias e

publica����es v��rias.





187




ZONA BAIANA dos garimpos, localizada na regi��o

de Andara��, na Chapada Diamantina, tem inspirado v��-

rios ficcionistas, e entre eles podemos apontar Lindolfo

Rocha, Herman Lima e Herberto Sales. A vida aventu-

reira, a busca da fortuna f��cil, dos bamb��rrios, dos dia-

mantes descobertos nos cascalhos das grunas despertam

a imagina����o e estimulam a ambi����o dos homens. E de

tudo isso crescem as lendas, surgem as hist��rias fan-

t��sticas, os dramas, as trag��dias.

Um dos primeiros romances das Lavras Diamantinas

da Bahia foi Maria Dus��, escrito por Lindolfo Rocha.

Neste livro vigoroso, que t��o bem retrata o ambiente,

os costumes e a vida aventurosa da regi��o, uma hero��na

se destaca, amorosa e terna, ao mesmo tempo que deci-

dida e ambiciosa, para dominar a a����o do livro. Sua

figura nos lembra, em certas nuan��as, a personagem

meio-hist��rica-meio-lend��ria de Dona B��ja, do Tijuco

Diamantino. Trata-se de Maria Dus��, que empresta no-

me ao livro, uma bela sertaneja que conquistava o amor

dos homens e se torna famosa mundana, para depois

apaixonar-se por um homem e a ele dedicar-se por in-





191


teiro, abandonando a vida alegre. Quem era e como era

essa aventureira que, depois de enriquecer no com��rcio

do amor, abandona-o e vai explorar os garimpos e au-

mentar a fortuna na cata dos, diamantes ?

Maria Dus�� era a rainha das festas galantes do povoa-

do de Xique-Xique, na regi��o das lavras. Ali chegara

andrajosa, sem fam��lia, e gra��as �� beleza do corpo con-

quistou a fortuna. Por ela se apaixonou o Conde da Pas-

sagem, um holand��s rico que ali chegara deportado de

sua terra por motivos pol��ticos, e cumulou-a de favores,

de j��ias, deu-lhe instru����o, e depois deixou-a para regres-

sar �� sua terra. A mo��a transformou-se na mundana mais

requestada do lugar. Negociantes, garimpeiros, capan-

gueiros, todos aqueles que rapidamente ganhavam fortuna

com os diamantes vinham prostrar-se aos seus p��s. Era

alegre, exuberante, comunicativa e em torno dela vivia-se

em permanente festa. Dus�� era o apelido pelo qual ficara

conhecida, em virtude do seu riso e de um ditado da

regi��o. Quando algu��m queria, em conversa, esconder

um segredo, exclamava: " A �� �� que est�� o A . B . C . " . Mas ela dizia assim, num riso dobrado: " A �� �� que est�� os ah!

ah! ah!". E logo ficou conhecida como a "Maria dos ah!

ah! ah! ", que foi simplificado para Maria Dus��.

A nossa hero��na aparece no romance j�� bem adiantada

a narra����o. O tropeiro Ricardo a v�� entre outras munda-

nas e alguns rapazes, numa alegre patuscada, onde se

cantavam modinhas e se tocava viol��o. " L �� est�� Maria

D u s �� . . . " lhe apontam. "�� aquela morena, de vestido

cor-de-rosa, decotado, que est�� de cabelo solto, brincos e

medalha de brilhantes presa ao pesco��o por um veludinho

c��r-de-rosa".

Antes, nas primeiras p��ginas do romance, sua presen-

��a �� antecipada por uma s��sia e irm��, com a qual Ricar-

do iria confundi-la ao longo do livro. Mas vamos �� hist��ria

que �� muito aventurosa e cheia de perip��cias.





192


Nos anos de 1860, ocasi��o de uma das mais duras secas

de que se tem memoria nos sert��es da Bahia, Ricardo

Brand��o, tropeiro de Minas Gerais, arrancha numa fa-

zenda abandonada do Riach��o Seco. A desola����o era com-

pleta e a fome devastadora. A fam��lia que ali vivia, com-

posta de pai, m��e e duas filhas, estava nas ��ltimas. Pas-

savam eles, semanas e semanas, comendo ra��zes e eram

s�� pele e ossos. Ao despedir-se, no dia seguinte, o tropeiro

ficou espantado com a proposta da m��e. Queria vender-

lhe a filha mais velha por uma saca de sal. Mas ao exp��-la

�� cobi��a do estranho, suspendendo o vestido da menina-

mo��a que era bem bonita embora esquel��tica, s�� desper-

tou compaix��o no tropeiro, que deu o pre��o pedido, mas

se recusou a lev��-la.

A cena ficou gravada na imagina����o do tropeiro de tal

modo que se apaixonou pela mo��a e, com remorso de n��o

t��-la levado, sonhava encontr��-la um dia. Passam-se mui-

tos meses, e, quando ele de novo volta �� regi��o, depara,

no povoado de Xique-Xique, com a famosa mundana

Maria Dus��, e nela reconhece a sertaneja humilde e po-

bre que comprara a troco de sal. Procura falar-lhe, mas

ela o repele. Ele sofre amarga decep����o e guarda a m��goa

daquele desprezo por parte de quem tanto lhe devia ser

grata. Dias depois, encontra de novo a mulher na missa

e n��o lhe d�� aten����o, enquanto ela o reconhece e pro-

cura dele se aproximar. Estabelece-se uma completa con-

fus��o. As duas n��o eram a mesma pessoa. Maria Dus��

n��o era a mo��a que ele comprara por um saco de sal.

A outra da igreja �� que o era, e o amava desde aquele

seu gesto humanit��rio. As duas eram s��sias.

O enredo do romance gira em torno dessa confus��o,

e, no final, ele se casa mesmo com Maria Dus�� que,

ap��s aquele primeiro encontro frustrado, por ele se

apaixona, abandona o meretr��cio e tudo faz para con-

quistar o seu amor. Enquanto isso, a outra, Maria





193


Alves, casa-se com um rapaz da cidade que logo ��

assassinado por um desafeto. Vi��va, ela cai na mis��ria

e vira mundana, repetindo Maria Dus�� at�� no riso franco

e aberto dos "ah! ah! a h ! " , e afinal morre doente no

hospital. No fim, Maria Dus�� descobre que a outra era

sua irm��.

Em meio a esse entrecho rom��ntico, muitas coisas

acontecem. Aventuras, lutas, crimes, mas sobretudo o

autor fixa a vida da regi��o, os costumes, as festas,

os garimpos, o ��mpeto que sacudia aqueles rinc��es ba-

fejados pela aura da fortuna. Maria Dus�� era como

um s��mbolo daquela gente, s��mbolo da r��pida fortuna,

da vida alegre e dissipada de uma popula����o de aven-

tureiros e sonhadores. Ela era sobretudo uma figura

representativa da coragem, do destemor e da conquista.

Levando vida de mundana rica e faustosa, no seu pe-

queno imp��rio de amor, ela o deixa quando sente ne-

cessidade de consagrar-se a um homem por quem se

apaixonara. Mas na conquista desse homem ela preci-

sava lutar, e veio para os neg��cios, para a garimpa-

gem, a fim de n��o somente aumentar a fortuna, mas

aparecer respeit��vel aos olhos do amado.

Maria Dus�� �� uma grande figura feminina que Lin-

dolfo Rocha incorporou �� galeria das hero��nas do ro-

mance brasileiro. Afr��nio Coutinho, na apresenta����o que

fez para uma edi����o do romance, pelo INL, assim se

refere: "Maria Dus�� situa-se entre as mais belas fi-

guras da galeria feminina do romance regional brasi-

leiro, sobre ser extremamente representativa do ambiente

sertanejo".

O livro foi publicado pela primeira vez em 1910, com

o t��tulo de "Maria Dus�� (Garimpeiros), romance de cos-

tumes sertanejos e chapadistas". Sendo Lindolfo Rocha

praticamente desconhecido fora da Bahia, sua obra teve

pequena repercuss��o. Apenas o mestre Jo��o Ribeiro es-

creveu uma nota no Almanaque Garnier, afirmando ser





194


ele " u m dos melhores documentos da vida brasileira

do interior e de cujos costumes, linguagem e tradi����es

nos d�� uma pintura surpreendente de vida e de poesia".

Ap��s longo per��odo de esquecimento, em 1950, a cr��-

tica e historiadora liter��ria L��cia Miguel Pereira, em

seu livro Prosa de Fic����o, ressaltou a sua import��ncia

e praticamente o redescobriu, seguindo-se outros tra-

balhos cr��ticos que deram a Lindolfo Rocha e a seu

romance o merecido destaque na hist��ria do romance

brasileiro no princ��pio deste s��culo.

Lindolfo Rocha, mineiro de Gr��o Mogol, para uns,

baiano de Andara�� para outros, nasceu a 3 de abril

de 1862 e morreu em Salvador, Bahia, a 30 de de-

zembro de 1911. Foi mestre-escola no interior da Bahia,

depois veio para a Capital onde se formou em Direito,

voltando ao interior como juiz em Correntina e em

Jequi��. Foi tamb��m jornalista e afinal fazendeiro e

advogado. Deixou, al��m de Maria Dus��, o livro de poe-

sia Brom��lias, o romance de costumes ��ndios, Iacina,

e O Pequeno Lavrador, em dois volumes, obra de di-

vulga����o.





195


Resenha

biobibliogr��fiea

dos autores:

JOS�� DE A L E N C A R (Jos�� Martiniano de Alencar) nasceu em

Mecejana, CE, a 1.�� de maio de 1829 e morreu no Rio de Janei-

ro a 12 de dezembro de 1877. Romancista. Rom��ntico. Fundador

do indianismo brasileiro.

Obras principais: O Guarani, 1857; Luc��ola, 1862; Diva, 1864; Iracema, 1865; As Minas de Prata, 1865; O Tronco do Ip��, 1871; Sonhos de Ouro, 1872; Ubirajara, 1872; O Sertanejo, 1876; Senhora, 1895.

M A C H A D O DE ASSIS (Joaquim Maria Machado de Assis). Nas-

ceu no R i o de Janeiro a 21 de junho de 1839 e morreu

na mesma cidade a 29 de setembro de 1908. Romancista, poe-

ta, contista e cronista. A maior figura da literatura brasileira.

Obras principais: Cris��lidas, poesia, 1864; Contos Fluminen-

ses, 1870; Hist��rias da Meia-Noite, 1873; Americanas, poesia, 1875; Helena, 1876; Yay�� Garcia, 1878; Mem��rias P��stumas de Br��s Cubas, 1881; Hist��rias sem data, 1884; Quincas Borba, 1891; Dom Casmurro, 1900; Rel��quias da Casa Velha, 1906;

Memorial de Aires, 1908.

VISCONDE DE T A U N A Y (Alfredo d'Escragnolle T a u n a y ) . Nas-

ceu no Rio de Janeiro a 20 de fevereiro de 1843 e morreu na

mesma cidade a 25 de janeiro de 1899. Romancista de transi-

����o do romantismo para o realismo. Tamb��m regionalista.

Obras principais: A Retirada da Laguna, 1871; Inoc��ncia, 1872; O

encilhamento, 1894.





197


JOAQUIM MANUEL DE MACEDO. Nasceu em Itabora��, RJ, a

24 de junho de 1820 e morreu no Rio de Janeiro a 11 de abril

de 1882. Romancista, teatr��logo. Rom��ntico.

Obras principais: A Moreninha, 1845; O mo��o louro, 1845; Os ��ois amores, 1848; As mulheres de mantilha, 1870-71.

BERNARDO G U I M A R �� E S (Bernardo Joaquim da Silva Guima-

r �� e s ) . Nasceu em Ouro Preto, M G , a 15 de agosto de 1825 e

morreu na mesma cidade a 10 de mar��o de 1884. Romancista

e poeta. Rom��ntico. Tamb��m regionalista.

Obras principais: Cantos da Solid��o, poesia, 1852; O ermit��o

de Muqu��m, 1865; Lendas e Romances, 1871; O Garimpeiro, 1872; Hist��rias e Tradi����es, 1872; O Seminarista, 1872; A escrava Isaura, 1875; Folhas de outono, 1883.

A L U �� Z I O AZEVEDO (Alu��zio Tancredo Belo Gon��alves de A z e -

v e d o ) . Nasceu em S��o Lu��s do Maranh��o a 14 de abril de 1857

e morreu em Buenos Aires a 21 de janeiro de 1913. Romancis-

ta. Fundador da escola naturalista entre n��s.

Obras principais: O Mulato, 1881; Casa de pens��o, 1884; O

Homem, 1887; O Coruja, 1890; O Corti��o, 1890.

J��LIO R I B E I R O (J��lio C��sar Ribeiro V a u g h a m ) . Nasceu em Sa-

bar��, M G , a 10 de abril de 1845 e morreu em Santos, SP, a 1

de novembro de 1890. Romancista e gram��tico. Naturalista.

Obras principais: O Padre Belchior de Pontes, 1876-77; A Car-

ne, 1888; Gram��tica Portuguesa.

ADOLFO C A M I N H A (Adolfo Ferreira Caminha). Nasceu em

Aracati, CE, a 29 de maio de 1867 e morreu no Rio de Janeiro

a 1 de janeiro de 1897. Romancista. Naturalista.

Obras: A Normalista, 1892; Bom Crioulo, 1895; A Tenta����o, 1891; Cartas Liter��rias.

R A U L P O M P E I A (Raul d'Avila Pompeia). Nasceu em Jacuecan-

ga, RJ, a 12 de abril de 1863 e morreu no Rio de Janeiro a 25

de dezembro de 1895. Poeta e romancista. Impressionista.

Obras: Uma trag��dia no Amazonas, 1880; Can����es sem metro,

1881; O Ateneu, 1888.

DOMINGOS O L �� M P I O (Domingos Ol��mpio Braga Cavalcanti)

��� Nasceu em Sobral, CE, a 18 de setembro de 1850 e morreu

no Rio de Janeiro a 6 de outubro de 1906. Romancista. Natu-

ralista.

Obra: Luzia-Homem, 1903.





198


G R A �� A A R A N H A (Jos�� Pereira da Gra��a A r a n h a ) . Nasceu em S��o Lu��s do Maranh��o a 21 de junho de 1868 e morreu no

R i o de Janeiro a 26 de janeiro de 1931. Romancista e diplo-

mata. Impressionista, precursor do modernismo.

Obras principais: Cana��, 1902; Malazarte, 1911; Est��tica da Vida, 1920; A viagem maravilhosa, 1930

COELHO N E T O (Henrique Maximiano Coelho N e t o ) . Nasceu em

Caxias, M A , a 21 de fevereiro de 1864 e morreu no Rio de Ja-

neiro a 28 de novembro de 1934. Romancista, contista, teatr��-

logo. Naturalista e impressionista.

Obras principais: A Capital Federal, 1893; Sert��o, 1896; Inver-no em flor, 1897; A Conquista, 1899; Turbilh��o, 1906; A esfinge, 1908; Fogo f��tuo, 1908; Rei Negro, 1914.

X A V I E R MARQUES (Francisco Xavier Ferreira Marques). Nas-

ceu na ilha de Itaparica, B A , a 3 de dezembro de 1861 e mor-

reu em Salvador, B A , a 30 de outubro de 1942. Romancista, en-

sa��sta. Naturalista, tamb��m regionalista.

Obras principais: Jana e Joel, 1899; Praieiros, 1908; O Sargento Pedro, 1910; O feiticeiro, 1922.

A F R N I O P E I X O T O (J��lio Afr��nio P e i x o t o ) . ��� Nasceu em

Len����is, BA, a 17 de dezembro de 1876 e morreu no Rio de Ja-

neiro a 12 de janeiro de 1947. Romancista. Impressionista. R e -

gionalista.

Obras principais: A Esfinge, 1911; Maria Bonita, 1914; Fruta do Mato, 1920; Bugrinha, 1922; As raz��es do cora����o, 1925; Uma mulher como as outras, 1928; Sinh��zinha, 1929.

L I N D O L F O ROCHA. Nasceu a 3 de abril de 1862 em Gr��o M o -

gol, M G , para alguns, ou em Andara��, B A , para outros, e mor-

reu em Salvador, B A , a 30 de dezembro de 1911. Romancista.

Obras: Brom��lias, 1887; O Pequeno Lavrador, 1909; Maria Dus��, 1910.





199





Santos Moraes, Ant��nio dos

Hero��nas do romance brasileiro

[ p o r ] Santos Moraes [Rio de Janeiro]

Express��o e Cultura, I.N.L., 1971.

199 p. 21 cm.

I . T��tulo.

C D D : B869.3

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ceitos da velha did��tica liter��ria, conduz o

aluno ao ��mago do fen��meno liter��rio, pon-

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