mance ressurgem, neste livro fascinante, retratadas
como aut��nticas mulheres de carne e osso pelo
poeta e romancista Santos Moraes, ele pr��prio cria-
dor de um personagem famoso de romance, o Me-
nino Jo��o. Ao nos apresentar Iracema, a virgem dos
labios de mel. Cec��lia, o eterno amor de Peri, C a p i -
tu, a de olhos de ressaca, Inoc��ncia, a doce serta-
neja, Moreninha, a fascinante adolescente, e mais
a escrava Isaura, Helena, Diva, Luc��ola, Sofia,
Virg��nia, Dona Carmo, Mana Bonita, entre outras
que enriquecem esta galena extraordin��ria de per-
sonagens imortais, o autor revela-se, a um tempo,
cr��tico e leitor, amante-dedicado da nossa literatura.
Revivendo as cria����es de Alencar, Machado
de Assis, Taunay Raul Pompeia e outros, o autor
realizou um belo trabalho de s��ntese e de interpre-
ta����o, ao mesmo tempo que nos faz evocar as
hist��rias de amor, de ci��me, os dramas e trag��dias,
assim como as emo����es e as l��grimas com que os
mestres do passado constru��ram a grandeza e a
perenidade do nosso romance. Este �� um livro que
n��o apenas ensina e evoca, mas emociona e comove
Os que o lerem sentir��o na alma a doce presen��a
dos fantasmas do passado.
Pelo seu aspecto paradid��tico, rico como ��
de informa����es sobre a obra e a vida dos autores
estudados, este Hero��nas do Romance Brasileiro
muito ajudar�� os estudantes de literatura dos cursos
m��dio e superior nos seus trabalhos de interpreta-
����o e an��lise liter��ria. Mas �� tamb��m dedicado a
todos os que liter��ria ou sentimentalmente quei-
ram saber por que s��o idolatradas algumas das
principais figuras do nosso romance
EDITORA EXPRESS��O E CULTURA
RIO DE JANEIRO, 1971
HERO��NAS
DO ROMANCE
BRASILEIRO
OBRAS DO A U T O R :
A N U V E M DE FOGO, poesia, Edi����es Literatura, 1948.
TEMPO E ESPUMA, poesia, Livraria S��o Jos��, 1956.
M E N I N O JO��O, romance, Livraria S��o Jos��, 1959, Pr��mio de Ro-
mance do Instituto Nacional do L i v r o em 1960.
O CA��ADOR DE BORBOLETAS, contos, Editora Pongetti, 1961, Pr��mio
Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras em 1963.
Os FILHOS DO ASFALTO, romance, Jos�� ��lvaro Editor, 1964.
R E I Z U M B I E A TERRA SANGRA, teatro, Editora Leitura, 1965 ��� Pr��-
mio Cl��udio de Sousa, da Academia Brasileira de Letras, em 1961,
para a pe��a "A Terra Sangra".
Dois CIENTISTAS ( Rocha Lima e Gaspar Viana), cole����o Os Bra-
sileiros, Edi����es Tempo Brasileiro, 1968.
POEMAS DO H��SPEDE, poesia, Editora Luan, 1969.
HERO��NAS DO ROMANCE BRASILEIRO, Editora Express��o e Cultura,
1971.
HEROINAS
DO ROMANCE
BRASILEIRO
SANTOS MORAES
EDITORA EXPRESS��O E CULTURA
em conv��nio com o
INSTITUTO NACIONAL DO LIVRO
Rio de Janeiro ��� 1971
C O P Y R I G H T , 1 9 7 1 , E D I T O R A E X P R E S S �� O E C U L T U R A R E S E R V A D O S T O D O S O S D I R E I T O S D E P U B L I C A �� �� O
P R I M E I R A E D I �� �� O : J A N E I R O D E 1 9 7 1
C A P A D E V E R A D U A R T E
R E V I S �� O D E A R N A L D O J O S �� S T A M A T O
D I A G R A M A �� A O D E O R E S T E S D E O L I V E I R A F I L H O
C O M P O S I �� �� O ( R E G A L 1 0 / R ) , I M P R E S S �� O ( T I P O G R A F I A ) A G G S I N D �� S T R I A S G R �� F I C A S S . A .
��NDICE
9 C E C �� L I A
O Guarani, de Jos�� de Alencar
17 I R A C E M A
Iracema, de Jos�� de Alencar
23 L �� C I A
Luc��ola, de Jos�� de Alencar
31 D I V A
Diva, de Jos�� de Alencar
37 A U R �� L I A
Senhora, de Jos�� de Alencar
45 H E L E N A
Helena, de Machado de Assis
53 Y A Y �� G A R C I A E E S T E L A
Yay�� Garcia, de Machado de Assis
61 V I R G �� L I A
Mem��rias P��stumas de Br��s Cubas, de Machado
de Assis
69 S O F I A
Quincas Borba, de Machado de Assis
77 C A P I T U
Dom Casmurro, de Machado de Assis
85 D O N A C A R M O
Memorial de Aires, de Machado de Assis
93 I N O C �� N C I A
Inoc��ncia, de Visconde de Taunay
101 C A R O L I N A
A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo
109 I S A U R A
A Escrava Isaura, de Bernardo Guimar��es
117 M A G D ��
O Homem, de Aluizio Azevedo
125 L E N I T A
A Carne, de J��lio Ribeiro
133 M A R I A DO C A R M O
A Normalista, de Adolfo Caminha
141 E M A
O Ateneu, de Raul Pompeia
149 L U Z I A
Luzia-Homem, de Domingos Ol��mpio
157 M A R I A
Cana��, de Gra��a Aranha
165 V I O L A N T E
Turbilh��o, de Coelho Neto
173 J A N A
Jana e Joel, de Xavier Marques
181 M A R I A B O N I T A
Maria Bonita, de Afr��nio Peixoto
189 M A R I A DUS��
Maria Dus��, de Lindolfo Rocha
Cec��lia
(O Guarani, de Jos�� de Alencar)
D AS HERO��NAS do romance brasileiro, talvez a que
mais inspirou, atrav��s dos tempos, m��sicos, pintores e
artistas, foi a meiga Cec��lia, que Jos�� de Alencar criou no
seu livro O Guarani. Autor que vem atravessando as
d��cadas com seu prest��gio popular intocado, Alencar, no
entanto, sempre foi um escritor em torno de quem ju��zos
contradit��rios se cruzaram. Admirado ou negado, seu g��-
nio se imp��s desde que publicou em folhetins an��nimos no
Di��rio do Rio, em 1857, a epop��ia brasileira de O Guara-
ni, criando os tipos imortais de Ceci e Peri, a linda e
rom��ntica adolescente, filha de um fidalgo portugu��s, e o
��ndio, tamb��m nobre na sua linhagem das selvas e filho
do grande Arar��, cacique de sua tribo.
Cec��lia, a quem Peri chamava docilmente de Ceci, pala-
vra que na sua l��ngua significava "doer, magoar", apa-
rece no cap��tulo 5.�� do romance, e eis como a apresenta
Alencar, no seu estilo po��tico:
" N o pequeno jardim da casa do Paquequer, uma linda
mo��a se balan��ava indolentemente numa rede de palha
presa aos ramos de uma ac��cia silvestre, que estreme-
11
cendo deixava cair algumas de suas fl��res mi��das e per-
fumadas.
Os grandes olhos azuis, meio cerrados, ��s vezes se
abriam languidamente como para se embeberem de luz, e
abaixavam de novo as p��lpebras rosadas. Os l��bios verme-
lhos e ��midos pareciam uma flor de gard��nia dos nossos
campos, orvalhada pelo sereno da noite; o h��lito doce e li-
geiro exalava-se formando um sorriso. Sua tez, alva e pura
como um froco de algod��o, tingia-se nas faces de uns
longes c��r-de-rosa, que iam, desmaiando, morrer no colo
em linhas suaves e d e l i c a d a s .
Assim entra Cec��lia no romance para domin��-lo at�� o
fim. �� em torno de sua figura encantadora de menina-
-mo��a, seus caprichos, sua garridice, que se desenrolam
as tramas do livro, e se prostram os cora����es: o do pai,
nobre e austero fidalgo de " c o t a d'armas"; de D.
��lvaro, apaixonado pelos seus encantos; do aventureiro
Loredano, ex-frade que l�� chegara para descobrir as mi-
nas de Rob��rio Dias e planejava matar todos e carregar
Cec��lia com ele; e de Peri, g��nio benfazejo e protetor, que a
salvaria da morte v��rias vezes e a protegeria de todos os
perigos at�� o fim.
Assim fez Alencar de sua hero��na a inspiradora de tr��s
tipos de amor: o amor tranquilo e honesto de D.
��lvaro, que almejava a uni��o pelo casamento; o amor
sensual do aventureiro Loredano, que queria a viol��ncia,
o rapto, a posse; por fim, o amor submisso, desinteressa-
do e ing��nuo, mas ao mesmo tempo obsessivo, de Peri,
que o levava a abandonar a sua tribo para viver aos p��s
da amada, e chegava a extremos de exclamar: "Peri ��
filho do Sol; e renegava o Sol se ��le queimasse a pele alva
de Ceci. Peri ama o vento; e odiava o vento se ��le arran-
casse um cabelo de ouro de Ceci. Peri gosta de ver o
c��u; e n��o levantava a vista, se ��le fosse mais azul do que
os olhos de C e c i " .
12
Cec��lia era filha de D. Ant��nio Mariz e irm�� de D. Diogo
Mariz, personagens hist��ricos aproveitados por Alencar
no seu livro. Pai e filho existiram realmente, e deles nos
d�� not��cia Baltazar da Silva Lisboa nos Anais do Rio de
Janeiro. O primeiro era um fidalgo portugu��s de " c o t a
d'armas", um dos fundadores do Rio de Janeiro, com-
panheiro de Mem de S�� nas lutas de 1567. Fez parte em
1578 da expedi����o de Ant��nio Salema contra os franceses
em Cabo Frio, tendo sido Provedor da Real Fazenda e
depois da Alf��ndega do Rio de Janeiro, tendo neste ��ltimo
cargo sido substitu��do por seu filho D. Diogo.
Alencar situou a hist��ria na vasta sesmaria fluminense
doada a D. Ant��nio Mariz por Mem de S��, onde ele se
instalara com a fam��lia e o ter��o de aventureiros a seu
servi��o, e constru��ra um rico solar para perpetuar o seu
bras��o nas terras brasileiras.
Ali ent��o, ��s margens do Paquequer, hoje quase inexis-
tente, mas que na ��poca, segundo o autor afirma em
nota evocando Baltazar da Silva Lisboa, era um rio
caudaloso, se desenrola em lances romanescos a hist��ria
de amor entre a linda e loira fidalga e o r��stico e va-
lente ind��gena brasileiro, ao mesmo tempo que outras tra-
mas se desenvolvem, tais como a revolta dos aventurei-
ros chefiados por Loredano, e o terr��vel ataque dos ��ndios,
em vingan��a �� morte de uma ��ndia indefesa, v��tima da
imprud��ncia de D. Diogo.
A casa dos Mariz sofre simultaneamente dois ataques, o
dos aventureiros revoltados e o dos ��ndios vingadores.
Ao fim de dias de incessante luta, tudo desaparece sob o
fogo, ante a explos��o de p��lvora que D. Ant��nio promove
quando os ��ndios j�� lhe invadiam o solar. O filho, D.
Diogo, escapa e foge por ordem de D. Ant��nio que, nos
��ltimos instantes, ante o oferecimento de Peri para que
ele pr��prio se salvasse, recusa e lhe diz que salve Cec��lia,
e a leve para o Rio, a fim de entreg��-la a uma tia, sua
irm��. Para que isso fosse poss��vel, Peri estava obrigado a
13
tornar-se crist��o e renegar a religi��o dos antepassados.
Ele aceita, e D. Ant��nio o faz crist��o. Ele foge com Cec��-
lia, enquanto os ��ndios invadem o solar. Vagam os dois
alguns dias numa canoa, a�� ent��o Cec��lia come��a a am��-
lo realmente. J�� n��o pode viver sem ele. Pede-lhe que fique
no Rio quando l�� chegarem e nunca mais volte ��s sel-
vas. Ele recusa a princ��pio, mas afinal concorda ante a
tristeza com que ela recebe a negativa. Diz:
��� Queres que Peri fique contigo? Ele ficar��. Todos
ser��o seus inimigos; todos o tratar��o mal; desejar�� de-
fender-te e n��o poder��; querer�� servir-te e n��o o deixa-
r��o; mas Peri ficar��.
Ela sente a grandeza daquele sacrif��cio e lhe diz que
n��o a leve mais, pois deseja ela mesma ficar ao seu lado
nas florestas. Peri se alegra, mas lembra a promessa
que fizera a D. Ant��nio, e em sil��ncio se prop��e a
cumpri-la.
De repente os c��us escurecem e desaba a tempestade
que j�� se anunciava desde a v��spera. O rio cresce, as
��guas se avolumam. Alencar assim o descreve: " T u d o
era ��gua e c��u. A inunda����o tinha coberto as margens
do rio at�� onde a vista podia alcan��ar. As grandes mas-
sas d'��gua, que o temporal durante a noite inteira verte-
ra sobre as cabeceiras dos confluentes do Para��ba, desce-
ram das serranias, de torrente em torrente, haviam for-
mado essa tromba gigantesca que se abatera sobre a v��r-
z e a " .
Cec��lia tem medo. Peri leva-a para o cimo de uma pal-
meira, enquanto a ��gua subia e cobria tudo. Ela teme a
morte, mas Peri diz-lhe que ele vencer�� tudo, as ��guas e a
tempestade, para salv��-la. Conta-lhe a lenda ind��gena de
Tamandar�� que, num dil��vio em que todos morreram,
ouvira a voz de Deus e subira com a sua mulher numa
palmeira, e dos seus frutos se alimentaram, e a ��gua
cavou a terra e levou a palmeira para o alto. As ��guas
subiram at�� o c��u, tr��s s��is e tr��s noites. Depois que
14
baixaram, Tamandar�� desceu com a companheira e po-
voou a terra.
Mas a ��gua subia mais e mais, j�� molhava a roupa de
Cec��lia, e quando ia trag��-los, ante um grito de pavor da
mo��a, Peri, num esfor��o gigantesco, arranca do solo a
palmeira ap��s minutos de luta s��bre-humana. A ��rvore
sobe com as ��guas, e Peri, tomando Ceci nos bra��os,
exclama triunfante: "Tu viver��s!". Ent��o beijam-se pela
primeira vez. E Alencar arremata a hist��ria com a vis��o
da palmeira fugindo, arrastada pela torrente, at�� sumir-
se no horizonte.
Cec��lia vive at�� hoje, e, n��o h�� d��vida, viver�� sempre.
O Guarani j�� alcan��ou edi����es sem conta, talvez cente-
nas. Foi lido por milh��es na nossa e em outras l��nguas,
foi numerosas vezes musicado, transposto para o teatro,
cantado e exaltado em prosa e em verso, desde o seu
aparecimento em 1857. Muitas l��grimas j�� fez derramar a
v��rias gera����es, e o amor puro de Ceci e Peri, a fidalga e
o ��ndio, filhos de duas ra��as que se mesclaram no in��cio
dos nossos dias, transformou-se num s��mbolo da amizade
extrema e da dedica����o sem limites. �� talvez o mais
brasileiro dos nossos romances, e Cec��lia a mais querida
das nossas hero��nas de fic����o.
15
Iracema
(Iracema, de Jos�� de Alencar)
OEMA em prosa, romance, lenda, qualquer deno-
mina����o que se queira dar a Iracema, de Jos�� de Alencar,
vem apenas mostrar que a obra de arte prescinde de
classifica����o ou de g��nero para se impor atrav��s dos tem-
pos. Quando do seu aparecimento, entre os aplausos da
cr��tica, destacou-se o de Machado de Assis que, em dois
s��lidos rodap��s, saudou o novo livro de Alencar e concluiu
com essas palavras prof��ticas: "Poema lhe chamamos a
este, sem cuidar de saber se �� antes uma lenda, se um
romance: o futuro chamar-lhe-�� obra-prima".
Jos�� de Alencar criou uma das hero��nas famosas do
romance brasileiro, a ��ndia Iracema, cuja hist��ria de
amor, com o toque da infelicidade e do abandono, vem
comovendo e embalando a imagina����o de muitas gera-
����es. Lenda do Cear��, foi como a denominou o autor, e
nela p��s todo o seu amor, o seu carinho, e a sua saudade
pela terra natal que h�� tantos anos n��o via, mas que
ficara gravada na sua alma desde a inf��ncia. Em 1965,
comemorou-se o primeiro centen��rio de sua publica����o,
quando muitas homenagens foram prestadas �� mem��ria
19
do romancista, inclusive uma bela edi����o comemorativa
de Iracema.
Iracema era uma virgem tabajara, filha de Araqu��m,
paj�� da tribo que dominava o interior do Cear��, especial-
mente a Serra de Ibiapaba. Seu nome significava em
guarani "l��bios de m e l " . Sua fun����o, como filha do pa-
j��, era guardar o segredo da Jurema, como "virgem de
T u p �� " , fun����o sagrada. E por isso n��o poderia amar um
homem. Aquele que a possu��sse morreria.
A descri����o que o autor f��z da linda ind��gena �� a mais
bela em l��ngua portuguesa, pois nenhuma mulher jamais
mereceu tantos elogios e tropos po��ticos de exalta����o,
espalhados por todo o livro. Ela era "a virgem dos l��bios
de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da
gra��na e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo
da jati n��o era doce como seu sorriso; nem a baunilha
recendia no bosque como seu h��lito perfumado".
Sua apari����o se faz quando, no banho, ela repousava
em um claro da floresta e despreocupadamente enxuga-
va ao sol seu corpo perfumado, enquanto p��ssaros can-
tavam nas ��rvores e com ela entoavam alegremente tri-
nados festivos. Neste ambiente maravilhoso, em plena
mata cearense, quando l�� ainda dominavam os ��ndios
em fortes na����es, desenvolve-se a lenda que Alencar trans-
p��s para a literatura.
A hist��ria de Iracema �� muito triste, e essa tristeza s��
�� amenizada, e n��o se torna melodram��tica, pelo seu
estilo po��tico que atinge o maravilhoso. Nela surge o
guerreiro branco Martim, que, tendo sa��do �� ca��a com o
seu amigo Poti, da na����o dos pitiguaras, perdera-se nas
florestas, indo dar ao campo dos tabajaras, onde Irace-
ma o encontra e leva �� cabana de seu pai, Araqu��m, paj��
da tribo. A hospitalidade �� franca, gozando Martim de
todas as regalias, e fica �� espera de Caubi, irm��o de Irace-
ma, que o levar�� de volta ��s terras pitiguaras. Iracema
apaixona-se por ele, enquanto Irapu��, grande guerreiro ta-
20
bajara, enciumado, quer mat��-lo e mais de uma vez o
tenta. Mas Iracema evita os embates, salvando o seu
amado. N��o podendo, pelas leis da tribo, amar um ho-
mem, pois era "a virgem de T u p �� " , ela se entrega ao
guerreiro branco e com ele foge, abandonando seu povo.
Leva-o at�� a regi��o dos pitiguaras onde encontram Poti, o
amigo e irm��o de Martim. Desde ent��o as desgra��as se
abatem sobre ela. Seus irm��os empreendem uma guerra
de vingan��a, tendo �� frente Irapu��, e saem perseguindo os
fugitivos. Por causa dela travou-se um combate entre as
duas na����es, os tabajaras e os pitiguaras, no qual o seu
povo foi vencido, e fugiu, deixando o campo cheio de
cad��veres. Ela se sentiu muito triste, com remorso por
ter sido a causa daquela desgra��a, e teve saudade de sua
terra, de seu pai, de seu povo, sem no entanto arrefecer
o amor por Martim, que compensava todos os sacrif��-
cios. Nasceu-lhes um filho a que chamaram de Moacir, o
"filho da d o r " .
Mas o guerreiro branco tamb��m sentia saudade de sua
p��tria distante, e passava longas temporadas longe de-
la, ca��ando, e em demoradas jornadas pelas selvas. Ira-
cema definhava de tristeza, saudade e abandono. O leite
materno lhe murchou nos seios e j�� nem dava para ali-
mentar o filho. Num de seus regressos, Martim a en-
controu quase desfalecida �� porta da cabana, e viu ent��o
" c o m o a dor tinha consumido o seu belo corpo, mas a
formosura ainda morava nela, como o perfume na flor
ca��da do manac��". Disse-lhe ela: "Recebe o filho do teu
sangue. Era tempo: meus seios ingratos j�� n��o tinham
alimento para dar-lhe!".
E logo depois pediu-lhe: "Enterra o corpo de tua esposa
ao p�� do coqueiro que tu amavas. Quando o vento do
mar soprar nas folhas, Iracema pensar�� que �� tua voz que
fala entre os seus cabelos".
Martim assim o fez e levou o filho para longe do Cear��.
Anos depois voltou trazendo sacerdotes e a cruz de Cristo
21
para implantar ali a religi��o. Seu amigo Poti foi batiza-
do com o nome de Ant��nio Felipe Camar��o. Voltando ao
s��tio onde viveu com Iracema, reviu emocionado " a s ver-
des folhas a cuja sombra dormia a formosa tabajara".
Passou dias sentado na areia a recordar o seu amor,
ouvindo de novo cantar a jandaia no olho do coqueiro; mas
j�� n��o repetia ela o doce nome de Iracema, a primeira
hero��na do romance brasileiro que morreu de amor.
Iracema tem nas suas personagens correspondentes
hist��ricos. O pr��prio livro foi inspirado na hist��ria dos
primeiros colonizadores portugueses que aportaram �� re-
gi��o. Martim, o guerreiro branco, era Martim Soares
Moreno, chefe da primeira expedi����o vinda do Rio Grande
do Norte e considerado o verdadeiro fundador do Cear��.
Chegou a Mestre-de-Campo e se notabilizou na luta
contra os holandeses no Nordeste. O ��ndio Poti, seu ami-
go, era o famoso Ant��nio Felipe Camar��o, guerreiro ind��-
gena amigo dos portugueses, que tamb��m se celebrizou
na luta contra a invas��o holandesa. Irapu��, o guerreiro
tabajara, que lutou contra os pitiguaras e saiu em perse-
gui����o a Martim e Iracema, era o famoso chefe ��ndio Mel
Rosado. E o pr��prio enredo do livro faz parte das lendas
e tradi����es do Cear��. Escreveu Alencar:
"Quando em 1848 revi a terra natal, tive id��ia de
aproveitar suas lendas e tradi����es em alguma obra lite-
r��ria. J�� em S��o Paulo tinha come��ado uma biografia de
Camar��o. Sua mocidade, a her��ica amizade que o ligava
a Soares Moreno, a bravura e a lealdade de Jaca��na,
aliado dos portugueses, e suas guerras contra o c��lebre
Mel Rosado; a�� estava o tema. Faltava-lhe o perfume
que derrama sobre as paix��es dos homens a alma da
mulher.''
22
L��cia
(Luc��ola, de Jos�� de Alencar)
UC��OLA �� o quinto romance de Jos�� de Alencar e o
primeiro da trilogia que ele denominou de "Perfis de Mu-
lher". Integra o conjunto da fic����o urbana do grande
romancista, aquela em que ele fixou o Rio de Janeiro da
��poca, com a sua fisionomia burguesa e tradicional, com
uma sociedade endinheirada que frequentava o L��rico,
passeava �� tarde na Rua do Ouvidor e �� noite no Passeio
P��blico, morava no Flamengo, Botafogo ou Santa
Teresa, e era protagonista de dramas de amor que iam
do simples namoro contrariado �� paix��o desvairada.
Luc��ola foi um romance ousado para a ��poca, seu te-
ma escandalizou os leitores e a sociedade de ent��o, pois
contava a hist��ria ainda n��o colocada ��� at�� ent��o ��� em
termos de literatura entre n��s ��� o da prostitui����o. Apesar
das roupagens rom��nticas, pois a personagem era boa de
cora����o, demonstrando isso na abnega����o e no estoicis-
mo com que se sacrificou por sua fam��lia, n��o seria t��o
f��cil a aceita����o de um livro como esse, que desvendava,
em cenas ��ntimas e descri����es bem marcantes, a vida de
alcova de uma famosa mundana. E ainda mais, fazia
25
dessa " p e c a d o r a " uma v��tima da sociedade e a redimia de tudo mostrando a face nobre do seu car��ter.
N��o se chama Luc��ola a hero��na, como seria de espe-
rar, mas apenas L��cia. "Luc��ola ��� explica o pref��cio ���
�� o lampiro noturno que brilha de uma luz t��o viva no
meio da relva e �� beira dos charcos. N��o ser�� a imagem
verdadeira da mulher que no abismo da perdi����o conser-
va a pureza da a l m a ? ' ' .
Mas como era essa mulher famosa que Alencar foi
buscar na vida noturna para transformar na hero��na do
seu romance? Sua primeira apari����o se faz na festa tra-
dicional do Outeiro da Gl��ria, onde Paulo, jovem provin-
ciano rec��m-chegado ao Rio, vai encontr��-la, e assim a
descreve: "A lua vinha assomando pelo cimo das mon-
tanhas fronteiras; descobri nessa ocasi��o a alguns pas-
sos de mim uma linda mo��a, que parara um instante
para contemplar no horizonte as nuvens brancas esgar-
��adas sobre o c��u azul e estrelado. Admirei-lhe do primeiro
olhar um talhe esbelto e de suprema eleg��ncia. O vestido
que o moldava era cinzento com orlas de veludo cas-
tanho e dava esquisito realce a um desses rostos suaves,
puros e di��fanos que parecem v��o desfazer-se ao menor
sopro como os t��nues vapores da alvorada".
"Lembrou-se depois Paulo que j�� a tinha visto antes, no
dia mesmo de sua chegada ao Rio, em um carro elegante
levado por dois fogosos cavalos, e exclamara ent��o para
um companheiro ao lado: " Q u e linda menina! Como de-
ve ser pura a alma que mora naquele rosto!''.
L��cia era, assim, uma mundana de rara beleza e suave
aspecto, que a faziam parecer uma jovem inocente. Pelo
menos essa foi a impress��o de Paulo, e que o levou a
apaixonar-se, mesmo depois de saber quem era ela.
Tal como a pintou o romancista e se depreende de toda
a hist��ria, ela era de natureza complexa nas alternativas
de sua vida e do seu temperamento. Boa nas inten����es,
mas devassa na pr��tica da vida que levava; interesseira e
2 6
avara na conquista do dinheiro f��cil e, ao mesmo tem-
po, generosa ao dar esmolas e no ajudar parentes; com
um passado de luxo e dissipa����o, se apaixona da manei-
ra mais rom��ntica pelo jovem que nela descobrira bonda-
de e ternura. Enfim, era bem feminina ao parecer tantas
numa s��. Paulo, no entanto, no entusiasmo da paix��o,
definiu-a: " T u ��s um anjo, minha L��cia! ".
Tendo Paulo visto L��cia naquela festa da Gl��ria, a ela
foi apresentado pelo seu companheiro, que a conhecia e
fora seu amante. Mesmo assim, ele continuou a idealiz��-
la, at�� nas visitas que lhe fez a seguir, francamente ino-
centes e cordiais. S�� algum tempo depois �� que se torna-
ram amantes. Cada vez mais, no entanto, prendia-se a
ela por um amor apaixonado que ultrapassava a simples
satisfa����o do sexo. N��o a queria como uma mundana,
l��brica e sensual, famosa pelos requintes no amor, e
sentia que ela tamb��m, na maneira de trat��-lo, no seus
sil��ncios, nos seus beijos e car��cias, o amava realmente.
A prova maior disso foi o seu afastamento de tudo para
dedicar-se a ele. Mas logo brigaram, e ela voltou �� vida
antiga. Nessas alternativas de brigas e reconcilia����es, de
ciumadas e de arrependimentos, chegaram �� confiss��o de
suas vidas e �� aceita����o do amor com que se queriam.
E L��cia contou-lhe a sua hist��ria, declarando para
sempre morta a mulher que fora at�� ent��o: sua fam��-
lia viera morar na Corte e viviam dignamente at�� que a
epidemia de febre amarela de 1850 atacou todos os seus,
pai, m��e, irm��os, tios.
Somente ela foi poupada, vendo-se obrigada a cuidar dos
seus. Assim foi que, por necessidade, entregou o seu
corpo a um rica��o de nome Couto, para conseguir ajuda
e apoio. Morreram-lhe a m��e, a tia, dois irm��os, e o pai,
ao descobrir que ela recebera dinheiro de um homem em
paga de sua honra, expulsou-a de casa. Depois disso, o
caminho estava aberto �� prostitui����o. Na sua nova vida,
ent��o, mudou de nome, pois se chamava realmente Ma-
27
ria da Gl��ria, em devo����o �� sua madrinha Nossa
Senhora da Gl��ria.
Depois de uma longa viagem que fizera �� Europa em
companhia de um amante, de volta ao Rio, s�� encontrou
de sua fam��lia uma irm��zinha de nome Ana, a quem
tomou sob sua prote����o e a p��s num col��gio.
Ap��s tal confiss��o, de que resultou um perfeito enten-
dimento entre os dois, L��cia foi morar numa casinha de
Santa Teresa, que alugara, em companhia da irm��.
Afastou-se da vida mundana para receber apenas a visita
de Paulo. No ambiente buc��lico daquele bairro, viveram
os dois um id��lio simples. Passeavam nos arredores de
m��os dadas como dois namorados, e nessa busca da ino-
c��ncia perdida ela at�� se recusava, p��dicamente, a ser de
novo sua amante. �� que ela, agora ja adotando outra vez
seu nome de batismo, Maria da Gl��ria, estava esperan-
do um filho de Paulo.
Mas o id��lio em que viviam pouco durou. L��cia sofreu
um aborto e, ante a recusa de tomar rem��dio para expelir
o feto sem vida, faleceu da infec����o, confessando a Pau-
lo que o amava perdidamente desde o primeiro encontro.
Pediu-lhe que cuidasse de sua irm��zinha Ana, a quem
deixara em testamento a sua fortuna, cerca de cinquen-
ta contos de r��is, como se fosse sua pr��pria filha. A princ��-
pio queria que ele casasse com Ana, mas, ante sua recu-
sa, pediu-lhe que a protegesse e morreu dizendo-se sua
noiva eterna, sua noiva no c��u.
Luc��ola foi publicado em 1862 pelo pr��prio autor, que
custeou os gastos da edi����o. N��o teve a mesma reper-
cuss��o de seus livros anteriores, nem ganharia a fama
dos que ainda viria a escrever.
Hist��ria no mais puro estilo rom��ntico, fantasiosa, ba-
seada numa idealiza����o de natureza humana, versava o
tema t��o caro ao romantismo, o da mocinha pura e ino-
cente arrastada �� prostitui����o por um homem mau, que
vendia seu corpo para ajudar a fam��lia, e afinal, quando
28
encontrou um verdadeiro amor personificado em um ho-
mem que a compreendesse e aceitasse, redimiu-se. Ex-
plorando esse fil��o sentimental, Luc��ola ��, como roman-
ce, um dos mais bem feitos de Alencar, e Luc��ola, L��cia
ou Maria da Gl��ria uma das hero��nas mais queridas de
sua obra, no seu processo de purifica����o atrav��s do pe-
cado e de reden����o pelo amor.
Luc��ola �� ainda uma esp��cie de r��plica da A Dama
das Cam��lias, hist��ria das mais representativas do roman-
tismo franc��s, aproveitada por Dumas Filho no seu tea-
tro e que era, na ��poca, lida e relida entre n��s. A pr��-
pria L��cia, em uma cena do livro, aparece lendo A Da-
ma das Cam��lias, cuja influ��ncia �� bem n��tida nesse
livro de Alencar.
29
Diva
(Diva, de Jos�� de Alencar)
S TR��S PERFIS de mulher que Jos�� de Alencar
criou, entre os seus romances urbanos que retratavam a
sociedade e a vida carioca dos meados do s��culo X I X , se
n��o constituem o principal de sua obra, d��o no entanto
um retrato fidedigno da ��poca e da fam��lia burguesa
que ent��o se constitu��a na Corte, com os seus dramas de
amor, suas rela����es sociais, seu pequeno mundo de festas
e de apar��ncias e seus tipos mais caracter��sticos. Diva ��
o segundo dessa s��rie, e dos tr��s �� possivelmente o mais
fraco. Seu enredo gira em torno de uma estranha e volun-
tariosa menina-m����a que aspirava ao amor ideal e sonha-
va entregar seu cora����o somente ��quele que ultrapassasse
os limites do amor banal e a quisesse com fren��tica pai-
x��o. Em��lia era o seu nome, e a hist��ria come��a quando
ela contava quatorze anos e era, como descreve o autor,
" u m a menina muito feia, mas da fealdade n��bil que
promete �� donzela esplendores de beleza".
H�� meninas ��� diz o personagem contando o seu dra-
ma a um amigo confidente ��� que se fazem mulheres
como as rosas, passam de bot��o a flor; desabrocham.
Outras saem das faixas como os colibris da gema; en-
3 3
quanto n��o emplumam s��o monstrinhos; depois tomam-
se maravilhas ou primores. Era Em��lia um colibri im-
plume; por conseguinte, um monstrinho.
Pois essa menina feia, pouco depois, quando vai reen-
contr��-la o her��i da hist��ria, era j�� uma linda mo��a,
como a descreveu o romancista: "Era alta e esbelta.
Tinha um desses talhes flex��veis e lan��ados, que s��o has-
tes de l��rio para o rosto gentil; por��m na mesma delica-
deza do porte esculpiam-se os contornos mais graciosos
com firme nitidez das linhas e uma deliciosa suavidade
nos relevos. N��o era alva, tamb��m n��o era morena.
Tinha na tez a cor das p��talas da magn��lia, quando v��o
desfalecendo ao beijo do sol. Mimosa cor de mulher, se a
aveluda a pubescencia infantil, e a luz coa pelo fino teci-
do, e um sangue puro a escumilha de r��seo matiz. A
dela era assim".
Como se dera a transforma����o? Mist��rios da natureza
que t��o bem descreveu o autor carregando nas tintas
romanescas com que procurou colorir o encanto e a se-
du����o de Em��lia, a diva ideal dos sonhos de um jovem
m��dico que a salvou de uma mortal enfermidade para
depois render-se seduzido pela sua contradit��ria e tir��nica
personalidade.
A hist��ria �� contada em tom de confid��ncia do m��dico
Dr. Amaral ao seu amigo Paulo, confessando o estranho
caso de amor em que se viu envolvido at�� a paix��o.
Conhecera Em��lia ainda menina feia e desgraciosa. Sendo
amigo de sua fam��lia, foi um dia chamado a medic��-la,
rec��m-formado, pois estava ela acometida de pneumonia
dupla. Ao tentar examin��-la, levantou-se a mo��a indigna-
da e explosiva, por nada permitindo que ele a auscultasse,
como uma gata selvagem. Reagia a qualquer aproxima-
����o. Desvelou-se ele, no entanto, e com muitos sacrif��cios
e abnega����o completa salvou-a da morte.
Viajou em seguida para a Europa, com uma bolsa de
estudos, e ao voltar encontrou-a j�� transformada numa
34
bela mo��a, mas continuando a demonstrar por ele um
misto de repulsa e ��dio. Amigo da fam��lia, era sempre
convidado ao conv��vio de Em��lia e de seus pais, crescendo
pouco a pouco em seu cora����o um grande amor por ela,
na mesma propor����o em que ela o repelia, tiranizava e
o lan��ava no mais completo desprezo. Sua vida foi trans-
formada num verdadeiro inferno por aquela mulher que
se divertia em faz��-lo sofrer, em humilh��-lo at�� o deses-
pero. Outras vezes dava-lhe pequena esperan��a, animava-
o at�� certo ponto, s�� para traze-lo subjugado aos seus ca-
prichos, aos seus dem��nios interiores, e depois lan��ar-lhe
na face o insulto, a c��lera e o desabafo de uma natureza
perversa e m��. "Eu n��o o amo! Eu o desprezo!". E o po-
bre Amaral, entre alternativas de venera����o e ��dio, tinha
tamb��m vontade de insult��-la, de amesquinh��-la, at�� de
agredi-la, e mais de uma vez quase chegou a tal extremo.
Afinal, quando o drama atingiu o cl��max, ele, desespera-
do, lan��ou-lhe na face tamb��m o seu desprezo. Em��lia es-
bofeteou-lhe o rosto e ele agarrou fortemente os seus pul-
sos e a jogou por terra, desvairado. Deu-se ent��o a s��bita
transforma����o, rompendo-se as barreiras do ��dio que
escondia, no fundo, o amor. Em��lia arrastou-se a seus p��s
e confessou-lhe afinal que o amava loucamente, que
sempre o amara, que ele era o ��nico motivo de sua vida. O
rapaz, apavorado, fugiu dela como de uma vis��o si-
nistra.
No dia seguinte, Amaral recebeu de Em��lia uma carta
extravasando um amor delirante e obsessivo que o tinha
por alvo. Ele, ent��o, implorou a Deus que o livrasse
daquela mulher, mas foi em v��o. Logo correu ao seu
encontro e pouco depois se tornaram marido e mulher.
Diva ��, primordialmente, um estudo do car��ter de um
tipo de mulher obsessiva, tir��nica, neur��tica, na sua
complexidade psicol��gica. Ela desejava e sonhava um ho-
mem que lhe desse o amor verdadeiro e total, e ao mes-
35
mo tempo desprezava e humilhava aquele que lhe rendia
o cora����o. No fundo, amava Amaral desde menina,
quando ele penetrara na sua intimidade como m��dico, e
auscultara o seu peito, o que lhe causara naquele mo-
mento uma repulsa indignada que muito tinha de atra-
����o. Mas o longo e doloroso processo de reconhecimento
desse amor foi uma exposi����o de sua morbidez, de seus
instintos s��dicos e de sua crueldade feminina. Uma his-
t��ria como essa, a ser contada nos tempos de hoje, teria
a maior complexidade e seria escrita �� luz da psican��lise,
com a revela����o de terr��veis complexos, terminando por
certo no suic��dio ou no manic��mio. No tempo de Alencar,
no entanto, os dramas desse tipo eram mais simplistas, e
se resolviam mesmo, como no romance, com a submis-
s��o da mo��a e o casamento final.
Diva foi publicado em 1864, quando Alencar tinha 35
anos de idade. Este foi um ano particularmente feliz para
��le, pois assinalou o seu casamento com Georgina Au-
gusta Cochrane. Tamb��m em 1864 ele escreveu os ��lti-
mos cap��tulos do seu romance hist��rico As Minas
de Prata. Eram passados j�� sete anos da publica����o de
O Guarani, que consagrara o seu nome como o mestre do
romance brasileiro. Mas, mesmo considerando-se a gran-
deza que o romancista j�� atingira com O Guarani e viria
depois a conquistar com Iracema, Sonhos de Ouro, O
Tronco do Ip��, Ubirajara e outros livros, este "perfil de
mulher" que ��le pintou em Diva na figura ex��tica e
contradit��ria de Em��lia �� uma das ricas cria����es de sua
imagina����o prodigiosa e do seu g��nio liter��rio, que ainda
hoje perdura na mem��ria e na admira����o dos leitores.
3 6
Aur��lia
(Senhora, de Jos�� de Alencar)
ENHORA, romance que Jos�� de Alencar publicou
dois anos antes de morrer, �� o terceiro da s��rie "Per-
fis de Mulher" (os outros s��o Diva e Luc��ola) e tem
como personagem principal uma figura estranha e fas-
cinante, a orgulhosa e vingativa Aur��lia Camargo,
rainha dos sal��es cariocas na ��poca do II Reinado, rica
e imprevista herdeira de grande fortuna, e que passou
do anonimato e da mediocridade de uma exist��ncia po-
bre para o esplendor social.
O romance foi publicado em 1875 em dois volumes
pela editora Garnier, e trazia, �� guisa de assinatura,
as iniciais G. M., que tamb��m assinaram os dois outros
"perfis de mulher". Foi esta a ��nica edi����o em vida
do autor.
Por essa ��poca, j�� Jos�� de Alencar vivia amargurado
e desiludido, enfermo de corpo e de alma, e este livro
reflete a sua condena����o a uma sociedade enganosa e
falsa, sua indigna����o contra certos aspectos da vida
mundana, em que o casamento de conveni��ncia era
uma das formas mais comuns de um mo��o conseguir
a fortuna e vencer na vida.
3 9
A hero��na do romance �� uma jovem de dezoito anos,
de rara beleza e forte personalidade. Eis como o autor
a descreve: " H �� anos raiou nos c��us fluminenses uma
nova estrela. Desde o momento de sua ascens��o nin-
gu��m lhe disputou o cetro, foi proclamada a rainha
dos sal��es. Tornou-se a deusa dos bailes, a musa dos
poetas e o ��dolo dos noivos em disponibilidade. Era rica
e formosa. Duas opul��ncias que se real��am como a
flor em vaso de alabastro; dois esplendores que se re-
fletem, como o raio de sol no prisma do diamante".
Ap��s tal apresenta����o, fica no esp��rito do leitor a
id��ia de que vai ler um epis��dio de futilidades e de
brilho, com tal personagem a comandar as festas. Nada
mais falso. Na verdade aquela rainha dos sal��es, alegre
e aparentemente feliz, trazia no ��ntimo um drama de
amor muito forte, movido por amarga decep����o, e vai
ser protagonista de uma hist��ria dram��tica e, sob certos
aspectos, terr��vel na humilha����o que inflige ao ho-
mem que a desprezara, e na cr��tica que lan��a �� so-
ciedade de ent��o. Mo��a pobre, filha de um casamento
secreto, viveu at�� a adolesc��ncia com a m��e vi��va e
de repente o av�� aparece e a faz herdeira de seus
bens. Morre-lhe a m��e quase ao mesmo tempo que o
av�� rico, e ela, senhora absoluta de seu destino e de
sua fortuna, imp��s-se nos sal��es do Rio como a figura
m��xima, para em seguida planejar e executar a vin-
gan��a cruel contra o ex-noivo que a abandonara por
um dote de trinta contos de r��is, quando ela n��o dis-
punha sen��o de sua beleza e de seu corpo.
Aur��lia nascera do casamento secreto do estudante
Pedro Camargo, filho ileg��timo de um rico comerciante
do interior de Minas. O pai jamais aprovara esse amor
do filho e o afastou do Rio. Quando Aur��lia completou
quinze anos, a m��e tratou de convenc��-la a arranjar
um noivo e casar-se logo, pobres que eram. De sua
40
janela ela namorava v��rios rapazes, passando a ser a
atra����o dos mo��os dispon��veis. Um deles, Eduardo Abreu,
rico herdeiro, apaixonou-se por ela, mas ela se apaixo-
nou mesmo foi por Fernando Seixas, rapaz bonito e
brilhante, jornalista, pobre de bens. Ficaram noivos,
mas Fernando, que s�� queria subir na escala social,
abandonou a noiva pobre para assumir compromisso
com Adelaide Amaral, que era rica e tinha um dote
de trinta contos. Antes de se casarem, ele viajou para
Pernambuco, onde se demoraria um ano.
Nesse ��nterim, a vida de Aur��lia se transformou com-
pletamente. O av�� afinal descobriu e reconheceu o ca-
samento do filho, que j�� havia morrido, e veio conhe-
cer a neta, fazendo-a sua herdeira universal. De volta
ao interior, j�� com 70 anos, morreu. A m��e dela, doen-
te h�� tempos, faleceu tamb��m. Sozinha no mundo, e
ainda menor de idade, Aur��lia recebeu a heran��a, ava-
liada em mil contos de r��is, tendo como tutor um tio,
de nome Lemos, um velhote s��rdido que certa vez qui-
sera conquist��-la.
Guardando ainda no cora����o a paix��o por Fernando,
assim como a humilha����o que ele lhe fizera sofrer,
Aur��lia combinou com seu tutor um ardil para vin-
gar-se. F��-lo procurar o ex-noivo e oferecer cem contos
de r��is para ele casar-se com uma mo��a rica e bonita,
sem no entanto declinar a identidade dela, afirmando
mesmo que a dita mo��a nada sabia da proposta.
Fernando, que voltara de Recife para casar-se com Ade-
laide Amaral, repeliu a oferta, mas depois, necessitando
de dinheiro, aceitou-a com a condi����o de receber, adian-
tados, vinte contos de r��is. Foi para ele uma agrad��-
vel surpresa quando soube que a noiva era Aur��lia Ca-
margo. Afinal casaram-se. Na noite de n��pcias, quando
ele esperava ter o amor apaixonado da esposa, foi re-
cebido com desprezo. Aur��lia humilhou-o denunciando
a vergonha do seu procedimento. Mostrou-lhe face a
41
face o recibo de sua compra, e, da maneira mais im-
piedosa e cruel, deu-lhe o cheque de oitenta contos
com que completava a sua venda. Envergonhado, ele
pensou em mat��-la e suicidar-se, mas afinal calou, e
passaram a viver simulando uma felicidade que n��o ti-
nham. Na intimidade, cada um procurava ferir mais
fundamente o outro. At�� que, quase um ano depois,
��le conseguiu, de um neg��cio que fizera ainda solteiro,
os vinte contos de que precisava para conquistar a li-
berdade e os devolveu �� esposa, juntamente com o che-
que de oitenta contos ainda intato. Mal contendo a
emo����o e a paix��o que a dominava, Aur��lia aceitou o
distrato, e quando Fernando despedia-se para retirar-se
de sua vida ela o chamou e se lan��ou aos seus p��s,
dizendo-lhe que sempre o amara, e agora mais do que
nunca, pois que ele, com o seu gesto, redimira-se da
inf��mia e da venalidade. Fernando respondeu que tam-
b��m a amava muito, mas que sua fortuna era uma
barreira entre os dois. Ela ent��o tirou do cofre o tes-
tamento que fizera na ocasi��o do casamento, no-
meando-o seu herdeiro universal. E com isso provou
que tudo fizera movida pelo amor, e como esperava
morrer se ��le a abandonasse, deixaria sua fortuna para
ele. Reconciliaram-se e j�� agora, movidos t��o-somente
pelo amor comum, passaram verdadeiramente a primeira
noite de casados.
Senhora �� o melhor romance da s��rie "Perfis de Mu-
lher", com que Jos�� de Alencar procurou retratar a
sociedade carioca da ��poca, e um dos melhores do ro-
mantismo brasileiro. Nesses romances, que refletiam os
h��bitos, os v��cios, os defeitos e o esplendor de uma socie-
dade sob forte influ��ncia europ��ia e alicer��ada economi-
camente na escravid��o, que por sua vez sustentava
a monarquia, o que sobressai �� a den��ncia e a con-
dena����o da fatuidade, da ostenta����o e da falsa
42
moralidade. Fernando Seixas era um exemplo t��pico
do rapaz influenciado por esse ambiente, um perfeito
ca��a-dote, que n��o vacilara em vender-se por cem
contos de r��is, enquanto Aur��lia Camargo, a princ��pio
v��tima dessa sociedade, passa �� condi����o de acusadora
e vingadora, para vergastar os corruptos e venais. No
fim, com a recupera����o de Fernando, prova o autor que
o meio �� que o corrompia.
Romancista nacional por excel��ncia, a ambi����o de
Jos�� de Alencar era deixar uma obra que refletisse o
Brasil. Assim o fez com os seus romances indianistas,
retratando o Brasil em forma����o: assim tamb��m o f��z
nas obras em que pintou o sert��o, e o fez ainda nos
livros que nos mostram a vida carioca do meio-s��culo
imperial, tal como este Senhora, que vem atravessando
os anos e continua a interessar os leitores de todo o
Pa��s, quase cem anos depois de escrito.
Dois anos ap��s a sua publica����o, morria o grande
romancista, ��s dez horas da manh�� de 12 de dezembro
de 1877, aos 48 anos de idade.
43
Helena
(Helena, de Machado de Assis)
NTES DE ESCREVER os tr��s romances maiores
de sua obra ��� Mem��rias P��stumas de Br��s Cubas,
Quincas Borba e Dom Casmurro ��� nos quais todos os
cr��ticos assinalam um extraordin��rio salto em qualidade
e em grandeza, Machado de Assis j�� era um roman-
cista de sucesso e tinha percorrido uma longa carreira
de escritor. Poeta, cr��tico liter��rio, teatr��logo, cronista,
contista, o ex-menino pobre do morro do Livramento
j�� era uma express��o nacional. Foi nessa primeira fase
que publicou o seu terceiro romance, Helena, no ano de
1876.
Por essa ��poca, al��m do prest��gio liter��rio de que
gozava, Machado de Assis ascendera socialmente, e tinha
sido, nesse mesmo ano, promovido pela Princesa Impe-
rial a chefe de se����o na Secretaria da Agricultura, pas-
sando ent��o a morar na Rua das Laranjeiras, a dois
passos do Largo do Machado, para onde se mudara de
sua anterior resid��ncia �� Rua da Lapa.
Helena vinha enriquecer a galeria, na ��poca ainda
pobre, das hero��nas do romance brasileiro, criando uma
figura extremamente simp��tica de mulher, muito dife-
47
rente daquela que seria mais tarde a mais c��lebre per-
sonagem feminina da sua obra, a misteriosa Capitu
dos olhos de ressaca.
Embora com uma hist��ria complicada e triste, Helena
era o tipo da mo��a aparentemente tranquila e serena,
bela e de fina educa����o. Eis como a descreve o autor
na sua primeira apari����o no livro:
"Era uma mo��a de dezesseis a dezessete anos, del-
gada sem magreza, estatura um pouco acima da me-
diana, talhe elegante e atitudes modestas. A face, de
um moreno-p��ssego, tinha a mesma impercept��vel pe-
nugem da fruta de que tirava a cor; naquela ocasi��o
tingiam-na uns longes cor-de-rosa, a princ��pio mais ru-
bros, natural efeito do abalo. As linhas puras e severas
do rosto, parecia que as tra��ara a arte religiosa. Se
os cabelos castanhos como os olhos, em vez de dis-
postos em duas grossas tran��as, lhe ca��ssem espalha-
damente sobre os ombros, e se os pr��prios olhos al-
��assem as pupilas ao c��u, diss��reis um daqueles anjos
adolescentes que traziam a Israel as mensagens do Se-
nhor. N��o exigira a arte maior corre����o e harmonia
de fei����es, e a sociedade bem poderia contentar-se com
a polidez de maneiras e a gravidade do aspecto. Uma
s�� cousa pareceu menos apraz��vel ao irm��o: eram os
olhos, ou antes o olhar, cuja express��o de curiosidade
sonsa e suspeitosa reserva foi o ��nico sen��o que lhe
achou, e n��o era pequeno.''
Como se v��, estamos longe ainda do apurado estilo,
cheio de elipses e mist��rios, de ironia e pessimismo,
do humour ��s vezes c��ptico, ��s vezes negro, do ver-
dadeiro Machado. A sua prosa �� l��mpida, direta, nos
moldes das costumeiras descri����es lineares de um enredo
romanesco, sem as complica����es e as sutilezas que o
seu g��nio iria depois engendrar nas suas obras maiores.
48
Helena atravessa todo o romance com a dignidade de
uma mo��a honesta, de s��os princ��pios, bondosa, amorosa,
procurando viver em paz com todos, escondendo o seu
verdadeiro e aflitivo drama, e aceitando uma situa����o
excepcional, embora falsa, que o destino lhe oferecera
atrav��s do legado e do reconhecimento do amante de
sua m��e que, por disposi����o de ��ltima vontade, elevara-a
�� condi����o de filha. Reconhecida ao seu benfeitor, �� a
pr��pria imagem da cordura, da dedica����o e do amor
�� nova fam��lia. Acontece, por��m, o drama que havia
de destruir essa felicidade a que procurava acostumar-se
com muito empenho. Mas a�� j�� �� a pr��pria hist��ria do
livro que passamos a resumir.
Depois de fazer a sesta, o Conselheiro Vale, vi��vo
rico que morava com o filho Est��cio e com a irm��
��rsula, morre de apoplexia. Aberto o testamento, veri-
ficou-se que este trazia a revela����o de um segredo per-
turbador: o Conselheiro tinha uma filha e determinava
que ela fosse retirada do col��gio onde estudava para
morar com a sua fam��lia e participar em igualdade de
condi����es da heran��a paterna. Assim se fez, embora
sob protesto de D. ��rsula e do advogado da fam��lia,
Dr. Camargo. Helena veio, pois, morar na bela ch��cara
do Andara��. Cercaram-na de in��cio a indisposi����o da tia,
a desconfian��a do irm��o e a perplexidade das pessoas
amigas da casa. Mas Helena logo conquistou a boa von-
tade e a simpatia gerais. D. ��rsula, que relutava em
reconhec��-la sua sobrinha, passou a admir��-la e a que-
r��-la como a um parente. Est��cio logo se deixou pren-
der pelos encantos e a delicadeza da irm��, e se tor-
naram de tal modo amigos que, pouco a pouco, esses
la��os fraternais e esses contatos fizeram nascer, im-
perceptivelmente, sem que eles desejassem, um senti-
mento mais forte.
4 9
Estabelecido o conflito, ele se acentuou, e teve in��cio
a destrui����o da felicidade perfeita que quase chegou a
reinar naquela casa. Est��cio, sem o saber, apaixonou-se
por Helena, e esta n��o fugiu �� atra����o que o presu-
mido irm��o lhe despertava. Passeavam todos os dias a
cavalo pelos arredores, consultavam-se em tudo e se
compreendiam muito bem.
Um casamento foi concertado em fam��lia para Est��cio,
com a filha do advogado Camargo. Outro enlace foi
combinado para Helena, com Mendon��a, amigo de Es-
t��cio. Este n��o se conformou com o noivado da irm��
e a ele se op��s tenazmente, alegando que ela n��o ama-
va Mendon��a, e, segundo lhe tinha confessado certa
vez, amava muito a outro homem. Come��ou, para os
dois presumidos irm��os, o cl��max do enredo amoroso
em que mergulharam. O Padre Melchior, amigo da fa-
m��lia, adivinhou o terr��vel segredo, e um dia o exp��s
cruamente a Est��cio, que ficou muito perturbado. O pa-
dre o incitou a extirpar de si aquele pecado medonho,
o amor incestuoso. Ent��o descobriu Est��cio que Helena,
nos seus passeios a cavalo com um pajem, visitava uma
casa velha das proximidades e l�� se encontrava com
um homem de meia-idade, de aspecto pobre, um fra-
cassado da vida. Ro��do de ci��mes, Est��cio reuniu a fa-
m��lia para comunicar o crime de Helena. Perplexos, in-
dagam todos que segredos teria ela com aquele homem,
o que levava a com ��le encontrar-se ��s escondidas.
Desesperada, a mo��a confessou que aquele homem da
casa velha, pobre, fracassado, infeliz, era o seu ver-
dadeiro pai. Sua m��e o deixara pelo Conselheiro Vale,
que lhe dera tranquilidade e uma vida de conforto, em-
bora clandestina. E de tal modo o Conselheiro afei��oa-
ra-se �� m��e e �� filha que resolvera, como disposi����o
de ��ltima vontade, reconhecer Helena como filha e in-
tegr��-la na sua fam��lia e na sua heran��a.
5 0
Helena e Est��cio, pois, n��o eram irm��os e se po-
diam amar livremente como pediam seus cora����es.
M a s . . . e o esc��ndalo que se seguiria? E os falat��rios,
os mexericos, a repercuss��o social de tal situa����o? An-
gustiada por este terr��vel dilema, Helena adoeceu gra-
vemente. Passou v��rios dias em estado desesperador e
afinal morreu. Est��cio, esmagado, gemeu para o padre
Melchior:
��� Perdi tudo, padre-mestre.
Um dos temas mais explorados pela literatura rom��n-
tica foi o do amor incestuoso entre irm��os que n��o
se conheciam. Machado de Assis n��o conseguiu fugir
a este lugar-comum do enredo romanesco. F��-lo, po-
r��m, de modo diferente, uma vez que Est��cio apaixo-
nou-se por Helena julgando-a sua irm��, e de maneira
inconsciente, enquanto ela sabia de antem��o a sua ori-
gem, e o amava naturalmente. N��o querendo, por��m,
desfazer a situa����o favor��vel que lhe criara o testa-
mento do Conselheiro, ela silenciou e procurou esque-
cer tal amor, mesclando-o de afei����o fraternal.
Evidentemente, Helena �� um romance secund��rio na
obra de Machado de Assis. Ainda na fase rom��ntica,
o escritor usou os mesmos expedientes e truques da-
quela escola, procurando interessar os leitores e comover
atrav��s do pat��tico, como afirmou M��rio Matos em es-
tudo a respeito. Mas, segundo Barreto Filho, " j �� em
Helena adquire o escritor desenvoltura e flu��ncia, e v��o
repontando, aqui e ali, as solu����es estil��sticas, o modo
pr��prio de dizer que o distingue de t o d o s " .
Helena ��, no entanto, um romance que se l�� com
interesse, e por muito tempo ainda gozar�� do favor
p��blico. O leitor m��dio, que forma a maioria, e faz
esgotar e multiplicar as edi����es, achar�� sempre nes-
te livro motivos de encantamento e de emo����o. E
a sua principal personagem, a jovem e bela morena
que Machado de Assis criou com tantas qualidades,
51
veio ocupar entre as hero��nas rom��nticas de nossa fic-
����o um lugar de destaque. E nem o esp��rito mordaz,
c��ptico e pessimista do "bruxo do Cosme Velho" p��de
desfigurar a sua imagem simp��tica, a sua ternura e
bondade, o seu amor e dedica����o pelo verdadeiro pai
infeliz, e o seu reconhecimento e gratid��o ��queles que
a acolheram e lhe deram um lar feliz, embora passa-
geiro. Est��o a�� concentrados todos os ingredientes para
um romance de sucesso ao gosto de cem anos atr��s,
mas que ainda perduram para uma grande camada de
leitores.
52
Yay�� Garcia
e Estela
(Yay�� Garcia, de Machado de Assis)
MUITO RICA a galeria de hero��nas de Machado de
Assis. N��o ha quem n��o se recorde, por exemplo, da
Concei����o de A Missa do Galo e da Severina de Uns Bra-
��os, apenas esbo��adas nesses dois famosos contos, isto
sem nos referirmos ��s grandes figuras femininas de seus
romances. Nenhum outro escritor fixou t��o variadamen-
te a mulher brasileira, e mais uma vez vamos buscar
duas personagens criadas pelo g��nio de Machado de Assis
para aumentar o registro liter��rio dessas figuras ama-
das pelo p��blico que, atrav��s do tempo, l�� romances, e se
comove com o destino triste ou se alegra com a boa sorte
que o autor lhes d��.
Yay�� Garcia, que empresta o nome ao quarto romance
de Machado de Assis, forma com Estela o duo feminino
do livro que marca o limite da primeira fase da obra do
romancista e praticamente a encerra, partindo ele ent��o
para v��os muito mais altos.
Se a sua inten����o, no entanto, foi fazer de Yay�� Garcia
a figura central do romance, Estela, a madrasta, cres-
ceu a tal ponto que dividiu com ela as honras da prima-
55
zia no livro. As duas se completam, ambas amando o
mesmo homem, em ��pocas diferentes, uma orgulhosa e
altiva na sua ren��ncia, a outra infantil e caprichosa na
conquista.
Yay�� Garcia aparece no livro aos onze anos, vinda do
col��gio �� Rua dos Arcos, trazida pelo escravo Raimundo
para a casa de Santa Teresa, onde morava com o pai, o
funcion��rio Lu��s Garcia. Descreve o autor: "Era alta, del-
gada, travessa; possu��a os movimentos s��bitos e incoe-
rentes de uma andorinha. A boca desabrochava facilmente
em riso, um riso que ainda n��o toldavam as dissimula-
����es da vida, nem ensurdeciam as ironias de outra idade".
Era a alegria e o encantamento do pai, que, enviuvando
cedo, a ela consagrou toda a afei����o e o amor de que
era capaz.
J�� Estela, filha do escrevente Antunes, diferia comple-
tamente de Yay�� Garcia. Diz o romancista que ela era
"p��lida, mas sem nenhum tom de melancolia asc��tica.
Tinha os olhos grandes, escuros, com uma express��o de
virilidade moral que dava �� sua beleza o principal caracte-
r��stico. Uma por uma, as suas fei����es eram graciosas e
delicadas, mas a impress��o que deixava o todo estava
longe da meiguice natural do s e x o " .
Como se juntaram Yay�� Garcia e Estela no romance,
com suas vidas entrela��adas e sempre em torno de um
homem, primeiro o pai de uma e marido da outra, depois
o noivo de uma e ex-apaixonado da outra?
Val��ria Gomes, vi��va de um desembargador honor��-
rio, decidiu casar seu filho com uma prima, Eul��lia, mas
ele se apaixonou por Estela, filha do Sr. Antunes, antigo
escrevente e protegido de seu defunto marido. Val��ria
procurou ent��o afastar o filho dessa mo��a, embora a pro-
tegesse e a quisesse como amiga, mas n��o como poss��vel
nora. Para isso ofereceu ao filho v��rias compensa����es
sempre recusadas, at�� mesmo uma viagem �� Europa. En-
5 6
fim, imaginou afast��-lo apelando para o patriotismo e
convencendo-o a ir lutar no Paraguai, de onde voltaria
coronel e possivelmente her��i. Jorge, por��m, n��o se inte-
ressou pela guerra nem pelos gal��es entressonhados, mas
a insist��ncia da m��e, ajudada nesse empenho pelo ami-
go Lu��s Garcia, e pela pr��pria recusa de Estela ao amor
de Jorge, fizeram-no ceder ao "patriotismo" da m��e.
A total recusa de Estela se deu ap��s uma desastrada in-
vestida dele, que a queria beijar �� for��a, quando visitavam
os tr��s ��� ele, Estela e Val��ria ��� uma casa vazia na Tiju-
ca, de propriedade da vi��va, que pretendia mudar-se para
l��. Orgulhosa e altiva, Estela repeliu, a partir de ent��o,
todas as propostas de Jorge, entre outros motivos por ser
ela pobre e ele rico, embora n��o lhe fosse indiferente o
seu amor. Desesperado e sem esperan��as de conquist��-la,
ele aceitou ir para a guerra, esperando voltar her��i e assim
comover o cora����o da amada.
No intervalo de um combate, escreveu ao amigo Lu��s
Garcia e lhe falou de sua violenta paix��o, sem revelar o
nome da mo��a. Garcia, em resposta, comunicou que de-
ra fim �� sua viuvez e casara-se com Estela. Jorge sofreu
uma tremenda desilus��o, mas guardou o segredo do no-
me da amada que o fizera t��o infeliz.
O casamento de Lu��s Garcia e Estela fora obra, em par-
te, de D. Val��ria, que os aproximou, e de Yay�� Garcia,
que muito se afei��oara �� mo��a e a queria como madrasta
e companheira. Quando Jorge voltou da guerra, efetiva-
mente coronel, reatou a velha amizade com Luis Gar-
cia, mas permaneceu solteiro. A conduta de Estela, orgu-
lhosa, ��lgida, inating��vel, foi ent��o irrepreens��vel. Man-
teve-se inalter��vel e digna, embora Jorge passasse a fre-
quentar assiduamente a sua casa. Guardaram os dois
muito bem o segredo, mas Yay�� Garcia, menina-m����a tra-
vessa e sonhadora, apaixonou-se por Jorge, sem este sus-
peitar ao menos. Surgiu um outro personagem na hist��-
57
ria, que queria casar com Yay�� Garcia, mas esta se ria
dele e dissimuladamente fazia um jogo duplo, namoran-
do-o ao mesmo tempo que queria conquistar Jorge. Um
dia, ela descobriu, ao achar por acaso e ler aquela carta
que seu pai recebera de Jorge, o segredo do amor do ra-
paz, e ficou a imaginar quem seria a mo��a, at�� que o
instinto feminino levou-a �� conclus��o de que n��o poderia
deixar de ser Estela, a sua madrasta. Usando os eternos
expedientes do amor, afinal conseguiu conquistar Jorge
e j�� estavam de casamento marcado quando Lu��s Gar-
cia, doente do cora����o, morreu. Yay�� Garcia, julgando
que sua madrasta, agora vi��va, estaria livre para casar-
se com Jorge, rompeu o noivado. Estela, ao saber do ges-
to de ren��ncia da enteada, repeliu energicamente a id��ia e
obrigou-a a reatar o noivado. Estela em seguida retirou-se
do cen��rio, indo dirigir um col��gio que uma sua amiga
fundara no norte de S��o Paulo.
Estela e Yay�� Garcia formam duas personalidades di-
ferentes, mas de car��ter forte e decidido. A primeira,
austera e orgulhosa, inflex��vel no seu amor-pr��prio, sem
sonhos e sem devaneios. Yay�� Garcia, com toda a gra��a e
coqueteria de menina-m����a, infantil, brincalhona, mi-
mada e zombeteira, mas que sabia o que queria, decidida
a conquistar a felicidade. O que afinal conseguiu, ca-
sando-se com Jorge, que j�� se destinara, ap��s a primeira
desilus��o amorosa com Estela, ao celibato irrevog��vel.
Yay�� Garcia, publicado em 1878, �� o quarto romance
de Machado de Assis, e encerrou a sua fase rom��ntica.
Nesse mesmo ano, em dezembro, o escritor caiu grave-
mente enfermo e foi para Friburgo recuperar-se, onde
passou cerca de tr��s meses. H�� quem assinale essa enfer-
midade e o seu recolhimento como fatos que desencadea-
ram o grande salto de sua obra para atingir, com os tr��s
romances que se seguiram, todo o esplendor de sua
cria����o.
58
Yay�� Garcia �� um romance tranquilo e reflete o
ambiente da grande fam��lia fluminense no II Reinado,
sua vida calma, suas rela����es sociais, seus costumes tra-
dicionais, que nem a Guerra do Paraguai conseguiu alte-
rar.
Pode-se afirmar que Machado de Assis deixou assinala-
dos na sua obra todos os acontecimentos sociais e pol��ti-
cos da ��poca, todos os fatos importantes que chamaram
a aten����o geral. Foi, sob esse aspecto, o mais participante
de nossos escritores. A Guerra do Paraguai, por exem-
plo, est�� presente em v��rios de seus contos, cr��nicas, poe-
sias e principalmente neste Yay�� Garcia.
Embora n��o possa equiparar-se aos tr��s romances que
Machado de Assis escreveria depois, Yay�� Garcia �� o que
mais pr��ximo est�� daquelas suas grandes cria����es. E �� o
romance mais representativo de sua fase rom��ntica,
quando, ao inv��s do tr��gico-ir��nico de suas ��ltimas obras,
era apenas o cronista de uma ��poca, que sabia t��o bem
contar uma hist��ria e retratar uma sociedade tranquila,
solidamente instalada no tempo. Ainda era o Macha-
dinho de seus primeiros sucessos. Cedo se transformaria
no mestre incompar��vel da fic����o e da literatura brasi-
leira.
5 9
Virg��lia
(Mem��rias P��stumas de Br��s Cubas, de Ma-
chado de Assis)
IRG��LIA �� OUTRA hero��na de Machado de Assis ���
e ainda n��o est�� completa nesta s��rie a not��vel galeria
de personagens femininas com que o mestre povoou o
mundo de sua fic����o. Virg��lia �� a figura central de
Mem��rias P��stumas de Br��s Cubas, primeiro romance
que ele escreveu ap��s a enfermidade que o afastou do
trabalho e de sua cidade para refugiar-se em Friburgo.
Nesse recolhimento compuls��rio �� que Machado de As-
sis sofreu uma esp��cie de "revuls��o interior", face a face
com a precariedade da vida e da sa��de e a fatalidade da
morte. Sob o acicate de sua terr��vel enfermidade ��� a
epilepsia ���, que por essa ��poca come��ou mais frequen-
temente a atorment��-lo, modificou completamente o seu
comportamento e o seu estilo, o seu humour, a sua com-
preens��o das coisas e dos homens. S�� ent��o deixou de
ser o Machadinho, poeta, cronista, cr��tico de teatro, ro-
mancista rom��ntico, figura central do mundo l��tero-mun-
dano, para transformar-se no maior escritor brasileiro de
todos os tempos.
Mem��rias P��stumas de Br��s Cubas, al��m de Virg��lia,
apresenta ainda dois tipos singulares de mulher: Marce-
63
la, a espanhola que amou Br��s Cubas "durante quinze
meses e onze contos de r��is", e D. Pl��cida, a humilde e
honrada alcoviteira dos seus amores com a bela Virg��lia,
a esposa de um pol��tico, o Lobo Neves, al��m de outras
figuras secund��rias.
Virg��lia surge no inicio do romance, entre as brumas
da morte de Br��s Cubas, mas sua imagem verdadeira s��
aparece atrav��s da informa����o do pai do nosso her��i,
que a queria como nora: "um anjo, meu pateta ��� diz-lhe
o pai ���, um anjo sem asas. Imagina uma mo��a assim,
desta altura, viva como um azougue, e uns o l h o s . . . fi-
lha do D u t r a . . . "
N��o foi menos lisonjeira a impress��o de Br��s Cubas ao
v��-la pela primeira vez, e assim a descreve: "Era bonita,
fresca, sa��a das m��os da natureza cheia daquele feiti��o
prec��rio e eterno, que o indiv��duo passa a outro indiv��duo,
para os fins secretos da cria����o. Era isso Virg��lia, e era
clara, muito clara, faceira, ignorante, pueril, cheia de
uns ��mpetos misteriosos; muita pregui��a e alguma devo-
����o ��� devo����o, ou talvez medo; creio que m e d o " .
Quanto a Marcela, era uma espanhola interesseira e
vol��vel que fez Br��s Cubas apaixonar-se na juventude e
gastar uma pequena fortuna surripiada aos cofres pater-
nos. E D. Pl��cida, alcoviteira, era uma pobre mulher
nascida do amor de um sacrist��o da S�� com uma devo-
ta, e que, segundo o memorialista, se ao nascer pudesse
falar, diria aos pais: "Aqui estou. Para que me chamas-
t e s ? " . E eles responderiam: "Chamamos-te para queimar
os dedos nos tachos; os olhos na costura, comer mal ou
n��o comer, andar de um lado para outro, na faina,
adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e
sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanh��
resignada, mas sempre com as m��os no tacho, at�� aca-
bar um dia na lama ou no hospital; foi para isto que te
chamamos, num momento de simpatia".
64
�� singular a hist��ria de Br��s Cubas, que nos �� con-
tada por ele pr��prio, depois de morto, e tem in��cio com o
seu ��bito, ��s duas horas da tarde de uma sexta-feira de
agosto de 1869, na bela ch��cara de Catumbi. Junto ao
seu leito estava Virg��lia com um filho rapaz, ela j�� uma
ru��na da bela mulher que fora. A figura da amante fez-lhe
recordar os anos juvenis e os amores clandestinos. Depois
veio o del��rio, que est�� em todas as antologias, e no qual
ele se viu transformado na " S u m a Teol��gica" de Santo
Tom��s, e, carregado por um hipop��tamo, foi at�� as ori-
gens dos s��culos. Depois morreu, e agora, livre dos com-
promissos com os vivos, passou a escrever suas mem��-
rias. Primeiro a juventude de um menino rico, depois os
amores com Marcela, e afinal a interven����o do pai que,
para livr��-lo das garras da voraz espanhola, mandou-o
estudar leis em Coimbra. De volta com o diploma debaixo
do bra��o, o pai resolveu cas��-lo e introduzi-lo na pol��tica,
como deputado. Preparara j�� o casamento e a deputa-
����o. O casamento era com Virg��lia e a deputa����o com o
pai de Virg��lia, o Sr. Dutra, que se encarregaria dos vo-
tos. Br��s Cubas n��o queria nem uma coisa nem outra,
mas afinal, cedeu �� vontade do pai, e foi conhecer a sua
futura mulher. Estava escrito, por��m, que ele n��o seria
deputado nem se casaria, pois surgiu na hist��ria o Lobo
Neves, que lhe roubou a noiva e a cadeira na C��mara.
Tempos depois, Br��s Cubas encontrou-se com Virg��lia, j��
casada, num baile, e, em meio a uma contradan��a,
voltaram aos amores. O id��lio cresceu e tornou-se paix��o.
Sendo ��le amigo do Lobo Neves, os amantes dissimularam
e afinal resolveram, para esconder o amor proibido, alu-
gar uma casinha na Gamboa e deix��-la aos cuidados de
Dona Pl��cida, onde se encontravam frequentemente. O
romance tem alternativas de medo, de ansiedade, de ci��-
mes intermitentes, de desconfian��as do marido e de qua-
se trag��dia. At�� que Lobo Neves aceitou a presid��ncia de
uma prov��ncia, que lhe havia sido oferecida e ele recusa-
6 5
ra, e desta vez viajaram para longe, ele e Virg��lia, deixan-
do Br��s Cubas no auge do desespero.
Anos depois, Virg��lia ficou vi��va (sempre a obsess��o de
Machado de Assis pelas vi��vas); Marcela morreu ro��da
de bexigas num hospital; e Dona Pl��cida, a honrada al-
coviteira, ��le a foi encontrar a pedido de Virg��lia, um
deplor��vel feixe de ossos, em uma casinha no Beco das
Escadinhas, conseguindo-lhe uma vaga na Santa Casa da
Miseric��rdia, onde morreu uma semana depois.
Resumindo, assim, em poucas linhas, �� quase im-
poss��vel dar uma id��ia exata da grandeza das Mem��rias
P��stumas de Br��s Cubas, romance que marca a gloriosa
ascens��o de Machado de Assis ao cume das letras nacio-
nais; como tamb��m fixar a riqueza psicol��gica das per-
sonagens que apresentamos. Virg��lia, figura curiosa de
mulher, amante ardente ao mesmo tempo que dissimu-
lada e terna esposa, d�� motivo ��s reflex��es mais originais
do memorialista defunto. Mulher bonita e altamente dota-
da dos recursos femininos mais sutis, conseguiu atra-
vessar intang��vel todo esse mundo de pecado e adult��rio,
permanecendo como respeit��vel matrona da alta socie-
dade fluminense. Seu maior segredo, esse amor proibido,
morreu com Br��s Cubas e D. Pl��cida, ��nicas teste-
munhas do erro.
Mas a grandeza deste livro ainda n��o est�� na sua hist��-
ria, nem nessas personagens, mas na sua filosofia, na
sua amarga e pessimista concep����o da vida, na sua iro-
nia e mordacidade. Marcou este romance o grande salto
de Machado de Assis para a cria����o do seu estilo e do seu
pr��prio mundo, um mundo sutil de amargo desengano e
de um cruel realismo interior.
O pr��prio Machado de Assis, no pr��logo �� quarta edi-
����o, diz: " H �� na alma deste livro, por mais risonho que
pare��a, um sentimento amargo e ��spero, que est�� longe
de vir dos seus modelos". E, desencarnado em Br��s
Cubas, afirma na nota ao leitor: "Obra de finado. Es-
66
crevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia,
e n��o �� dif��cil antever o que poder�� sair deste con��bio".
A sua dedicat��ria �� original��ssima, e j�� revela o humor
negro do autor: " A o verme que primeiro roer as frias
carnes do meu cad��ver dedico como saudosa lembran��a
estas Mem��rias P��stumas." E, ao encerrar o romance,
no cap��tulo final das negativas, Machado de Assis d��
ainda uma nota do mais atroz pessimismo, quando con-
clui: " . . .porque ao chegar a este outro lado do mist��rio
achei-me com um pequeno saldo, que �� a derradeira ne-
gativa deste cap��tulo das negativas: " N �� o tive filhos,
n��o transmiti a ningu��m o legado da nossa mis��ria".
Mem��rias P��stumas de Br��s Cubas foi publicado por
partes em 1880, na Revista Brasileira. No ano seguinte,
apareceu em volume editado pela Imprensa Nacional.
Pouco antes de sua elabora����o, a epilepsia de Machado
de Assis se manifestara francamente, segundo Alfredo
Pujol, e se instalara no seu corpo. E mais, devido a uma
doen��a dos olhos, que o impossibilitava de escrever dire-
tamente, o romance foi ditado a Carolina. Tais circuns-
t��ncias, por certo, tornaram ainda mais amargo este li-
vro, mas o sofrimento foi que possibilitou, sem d��vida,
ao g��nio, a cria����o desta obra imortal.
67
Sofia
(Quincas Borba, de Machado de Assis)
MA DAS MULHERES mais singulares do romance
machadiano �� Sofia, do Quincas Borba, uma das que a
pena do seu genial criador melhor delineou. Sofia era uma
bela senhora casada, que se deixou amar at�� �� loucura
pelo pobre Rubi��o, sem nunca lhe dar a oportunidade de
um compromisso maior que o de simples olhares convi-
dativos, de sugest��es de amor que n��o passavam de ges-
tos indecisos e de imprecisas e vagas manifesta����es de
amizade. Tudo isso em correla����o com os interesses seus
e do marido, que descobriram no ing��nuo e rico mineiro
um fil��o de benef��cios, de empr��stimos e de presentes, a
explorar indefinidamente.
Como figura feminina, Sofia sobressai-se no romance e
em torno dela se forma a trama amorosa do livro, que,
de resto, �� uma hist��ria um tanto banal, valorizada pela
observa����o psicol��gica, pelo estilo e pela dramaticida-
de, que vai at�� o tr��gico, impressa pelo autor na figura
de Rubi��o e no seu amor desesperado e sem sa��da, que o
leva �� ins��nia. Sofia, mulher de grande complexidade, im-
penetr��vel nos seus verdadeiros des��gnios, enganadora e
71
coquete, n��o cede ��s investidas do amigo apaixonado, e
dele escarnece em conversas com o marido.
Quincas Borba �� o sexto romance de Machado de As-
sis, e o segundo de sua segunda fase. Nele vamos en-
contrar bem atenuado o negro de Br��s Cubas, um tanto
dilu��da a filosofia pessimista e amarga do autor. Em
compensa����o temos uma mais larga concep����o roma-
nesca, assim como uma maior riqueza de vida e subst��n-
cia humana, e um ritmo mais amplo de cria����o
art��stica.
Mas vamos �� figura de Sofia que nos interessa mais de
perto, e se alinha entre as melhores cria����es do romance
brasileiro.
O encontro de Sofia com Rubi��o deu-se num trem de
Vassouras, quando ele vinha para o Rio receber a heran��a
do seu finado amigo Quincas Borba. Sofia e o marido, o
espertalh��o Cristiano Palha, sentaram-se no banco jun-
to ao nosso her��i e travaram animada conversa. Ela pou-
co interveio na palestra, s�� "afrouxou a r��dea aos olhos
que se deixaram ir ao sabor de si m e s m o " . Esse en-
contro os fez amigos, e as primeiras visitas de Rubi��o na
Corte foram ao casal, deslumbrado que ele estava com a
beleza da mulher. J�� na primeira visita, achou-a mais
bonita em casa que no trem ao observar que ela "tinha
nesse dia os mais belos olhos do m u n d o " . E refletiu:
"Parece que ela os compra em alguma f��brica misteri-
osa, nunca os vi como h o j e " .
Na sua beleza magn��fica, Sofia deixa-se apenas admirar
por Rubi��o que, pasmo, observava nela "o busto bem
talhado, estreito embaixo, largo em cima, emergindo das
cadeiras amplas, como uma grande bra��ada de flores sai
de dentro de um v a s o " . Sabia-se bela, e mantinha-se fria
e inacess��vel ao amor dos outros homens que n��o o seu
marido. Este, c��nico e interesseiro, deixava-a enfeiti��ar
Rubi��o para melhor arrancar-lhe os favores.
72
Numa cena definidora do seu narcisismo, descreve-a o
autor: "Tratou de vestir-se, mas ao passar diante do es-
pelho, deixou-se estar alguns instantes. Comprazia-se na
contempla����o de si mesma, das suas ricas formas, dos
bra��os nus de cima a baixo, dos pr��prios olhos contem-
pladores. Fazia vinte e nove anos, achava que era a mes-
ma dos vinte e cinco, e n��o se enganava. Cingido e aper-
tado o colete, diante do espelho, acomodou os seios com
amor e deixou espraiar-se o colo magn��fico. Lembrou-se
ent��o de ver como lhe ficava o brilhante: tirou o colar e
p��-lo ao pesco��o. Perfeito. Voltou-se da esquerda para a
direita e vice-versa, aproximou-se, afetou-se, aumentou a
luz do camarim; perfeito. Fechou a j��ia e guardou-a.
��� "Aquele homem adora-me'' ��� refletiu.
Quincas Borba ��, para alguns cr��ticos, o romance mais
bem constru��do da segunda fase de Machado de Assis.
Sua hist��ria �� dram��tica e mesmo pungente no que diz
respeito ao destino de Rubi��o, principal personagem
masculino. Ex-professor prim��rio em Barbacena, era ele o
maior amigo de Quincas Borba, o fil��sofo da "Humani-
t a s " , de quem herdou todos os bens, com a ��nica obri-
ga����o de zelar pelo cachorro do amigo, batizado, em me-
m��ria dele, com o nome de Quincas Borba. Morrera o
fil��sofo na Corte, e Rubi��o partiu para o Rio, a fim de
receber a heran��a. Conheceu o casal Sofia-Cristiano Pa-
lha no trem, na altura de Vassouras, onde eles embarca-
ram. Tornaram-se amigos. O marido, refinado malandro,
logo percebeu naquele mineiro simpl��rio e rico uma fon-
te a explorar. Rubi��o apaixonou-se pela mulher do Palha,
e, chegados ao Rio, continuou a frequent��-los. Sofia,
enquanto o atra��a com os olhos, repelia-o quando ele, ti-
midamente, procurava conquist��-la. Rejeitava-o, mas n��o
a ponto de desengan��-lo por completo. Deixava sempre
uma vaga esperan��a no cora����o ing��nuo de Rubi��o. O
73
Palha ia tirando benef��cios da situa����o, ora tomando
empr��stimos, ora atraindo o mineiro para sociedades e
neg��cios. Terminou praticamente como gerente da fortu-
na de Rubi��o, que continuava dando presentes a Sofia
na esperan��a de conquist��-la. O final �� f��cil de saber.
Sofia e o marido ficaram ricos, e o pobre Rubi��o, sem
nunca ter conseguido um encontro amoroso com ela, ar-
ruinado, enlouqueceu julgando-se um Bonaparte.
Vagava agora pelas ruas, falando sozinho, a��ulado pe-
los moleques. Numa dessas assoadas, o autor colocou
entre os apupadores um menino que Rubi��o, nos ��ureos
tempos da fortuna, havia salvo da morte jogando-se ��
frente de uma carruagem para livr��-lo de ser esmagado.
Cristiano Palha, instado por Sofia, internou Rubi��o nu-
ma casa de sa��de para tratamento. Antes de completar-
se a cura ele fugiu e voltou para Barbacena com o seu
��nico amigo, o c��o Quincas Borba.
" A o vencedor, as batatas", repetia Rubi��o no seu del��-
rio, julgando-se Bonaparte. "Talvez n��o saibam que eu
cheguei", pensava ao verificar que ningu��m o viera re-
ceber. Vagaram os dois pela cidade, subindo e descendo
ladeiras at�� que um violento temporal encharcou-os. Noi-
te adentro, debaixo da chuva, abrigaram-se na porta da
igreja, onde amanheceram o dia e os encontrou uma
antiga comadre de Rubi��o, que os levou para sua casa.
Com febre alta, ele morreu poucos dias depois, repetindo:
" A o vencedor, as batatas". Tr��s dias depois o seu c��o
Quincas Borba aparecia morto nas ruas de Barbacena.
Enquanto isso, Sofia e Cristiano Palha recebiam a so-
ciedade carioca no seu luxuoso palacete de Botafogo re-
c��m-constru��do com todos os requintes de um n��vo-rico.
Para contrabalan��ar a crueldade e a frieza ego��sta de
Sofia, o autor p��s no romance uma figura espl��ndida de
mulher, bondosa, caridosa, que se comoveu com o dra-
74
ma de Rubi��o e procurou ajud��-lo no seu del��rio. Seu
nome era Fernanda, esposa do pol��tico Te��filo.
Dez anos decorreram da publica����o de Mem��rias P��s-
tumas de Br��s Cubas para a de Quincas Borba, sinal de
que Machado de Assis lentamente trabalhara este ro-
mance. Somente em 1891 saiu em livro, embora desde
1886 ele tivesse iniciado a sua publica����o em fasc��culos,
em A Esta����o, v��rias vezes interrompida.
Estava Machado de Assis, por essa ��poca, no apogeu do
prest��gio liter��rio. Era a principal figura e o grande no-
me das letras nacionais. Morto Jos�� de Alencar, era em
torno de seu nome e de sua gl��ria que se agrupavam
velhos e mo��os, desde o grupo de A Semana, depois o
da Revista Brasileira, de onde sairia mais tarde, em
1897, a Academia Brasileira de Letras. Quincas Borba
veio consolidar o prest��gio e o nome liter��rio do nosso
maior escritor.
75
Capitu
(Dom Casmurro, de Machado de Assis)
MAIS DISCUTIDA personagem feminina da fic����o
brasileira, e que at�� hoje suscita ensaios, interpreta����es,
exegeses e at�� mesmo livros, como o de Eug��nio Gomes,
al��m de um filme, �� inegavelmente Capitu, que para mui-
tos ainda se afigura uma esfinge, pela sua complicada
psicologia, e pelo segredo, que o autor deixou em suspen-
so e sem decifra����o, o do poss��vel adult��rio, apenas en-
trevisto nas desconfian��as do marido Bentinho e nas se-
melhan��as do filho com o prov��vel amante.
Obra-prima de Machado de Assis, Dom Casmurro foi
publicado em 1899 pelo livreiro-editor Garnier, e �� ainda
hoje o seu mais lido romance, e um dos maiores da lite-
ratura brasileira. Escrito na primeira pessoa, em tom
confidencial, serviu para que, livremente, pudesse Ma-
chado de Assis deixar nele muito de si, do seu tempera-
mento, de sua vis��o pessimista e ao mesmo tempo ir��nica
do mundo. �� possivelmente um dos livros mais amar-
gos da literatura em qualquer pa��s, mas o g��nio do autor
impregnou-o de tal sabedoria, de tal ironia e disfar��ada
mal��cia, que o transformou numa das grandes cria����es
liter��rias do Brasil em todos os tempos. Capitulina ou,
79
carinhosamente, Capitu, �� a figura central dessa hist��ria
que se passa no Rio de Janeiro de meados do s��culo
X I X , em pleno II Reinado, e na qual se fixam os costu-
mes, o ambiente, a vida familiar, o meio social daquela
��poca, como pano de fundo para um drama que lenta-
mente se desenvolve na penumbra, numa apar��ncia de
felicidade, para explodir enfim na revela����o final que ��
a pr��pria nega����o de tudo, da beleza, da do��ura e do
carinho que alimentavam o id��lio central do livro.
Mestre da l��ngua, romancista que deu nova dimens��o
ao g��nero, o maior contista brasileiro de todos os tempos,
Machado de Assis foi um criador de enigmas. Penetran-
do fundo, como nenhum outro, nos abismos da alma
humana, de l�� trazia para os seus livros os mist��rios da
personalidade e com fria an��lise e aguda observa����o os
dissecava como um cirurgi��o.
Afirmar como era Capitu seria uma temeridade, a n��o
ser que o fiz��ssemos por etapas. Ela aparece no romance,
que �� uma narrativa retrospectiva, ainda crian��a. Ale-
gre, despreocupada, de olhos sonhadores, era de tal mo-
do cativante que conseguiu arrebatar Bentinho �� voca����o
sacerdotal a que o destinara, por promessa, sua vir-
tuosa m��e. Morava na Rua Matacavalos, vizinha do me-
nino rico deslumbrado com a sua beleza e gra��a. Namo-
ravam os dois ��s escondidas e trocavam beijinhos e confi-
d��ncias por sobre o muro que separava os quintais de
suas casas.
Na opini��o de Jos�� Dias, agregado e amigo da casa de
Bentinho, ela era uma desmiolada, e vivia doida por fis-
gar algum peralta para marido. Tinha uns olhos que o
diabo lhe deu de "cigana obl��qua e dissimulada". Mas
para Bentinho, na sua obstinada paix��o, ela era o sonho
e o ideal de sua juventude amorosa, e tinha uns " o l h o s
de ressaca", que possu��am um "fluido misterioso e en��r-
gico, uma for��a que arrastava para dentro, como a vaga
8 0
que se retirava da praia, nos dias de ressaca". Para a
m��e de Bentinho, ela era uma menina c��ndida e inocente.
Afinal, para o mesmo Bentinho, no fim do livro e de
suas vidas em comum, j�� ro��do de ci��mes e desconfian-
��as atrozes, ela deixa de ser aquela figura ideal para
revelar-se uma falsa e fingida mulher que o enganara toda
a vida.
A hist��ria de Capitu �� contada pelo romancista na
primeira pessoa atrav��s do relato do pr��prio Bentinho,
apelido familiar de Bento Santiago. A ��poca �� os meados
do s��culo X I X . Moravam vizinhos na Rua Matacavalos
(hoje Riachuelo). Bentinho era filho de D. Gl��ria, vi��va
abastada com escravos alugados e uma d��zia de pr��dios.
Ela o destinara ao sacerd��cio e para tanto fizera uma
promessa quando ele nascera. Ele se acostumara a essa
id��ia religiosa, que era incentivada por todos os que vi-
viam em torno de sua fam��lia, tios, tias., o agregado
Jos�� Dias, o Padre etc. Mas um dia surgiu Capitu na
vizinhan��a, e l�� se foram os projetos e prop��sitos de D.
Gl��ria. Bentinho apaixonou-se pela menina e viveram os
dois, nesses primeiros anos, um belo e inocente id��lio.
Encontros furtivos, enlevos de crian��as, beijinhos, abra-
��os, tudo isso foi pouco a pouco se transformando no
amor que os fez jurar, um dia, n��o se casarem jamais a
n��o ser um com o outro. Um machadiano ilustre, Barre-
to Filho, disse num ensaio que "nunca nas letras brasi-
leiras foi poss��vel igualar as cenas id��licas entre Ben-
tinho e Capitu", quando eles escreviam os nomes no mu-
ro do quintal ou quando ele lhe penteava os cabelos por
brincadeira, chegando sem saber �� surpresa do primeiro
beijo.
Os amores de Bentinho e Capitu eram, por��m, secre-
tos, pois eles concertaram um plano para iludir, sem
brigas nem zangas, o prop��sito e a promessa de D. Gl��ria.
Bentinho chegou a frequentar o semin��rio, mas afinal
8 1
venceram os artif��cios dos dois namorados que, com a
b��n����o e a total aquiesc��ncia de D. Gl��ria, se casaram e
foram morar numa casa da Gl��ria. Escobar, amigo de
Bentinho que ele conhecera nos tempos do semin��rio, tor-
nou-se amigo da fam��lia, casando-se com uma amiga de
Capitu. Os dois casais estreitaram rela����es e assim segui-
ram atrav��s dos anos. Escobar ganhou uma filha e Ca-
pitu deu um filho a Bentinho. A vida n��o se modificou
por muito tempo, a amizade dos casais era cada vez
maior, at�� que um dia Bentinho notou que o seu filho se
parecia muito com Escobar. Este morre afogado na Praia
do Flamengo, e o profundo sentimento de Capitu no en-
terro despertou ainda maiores ci��mes em Bentinho. Da��
ent��o ��le passou a observar a semelhan��a crescente do
filho com o amigo morto, �� propor����o que o menino fi-
cava rapaz. Os ci��mes se acentuaram, e vieram as des-
confian��as, as brigas, a indiferen��a, a separa����o. Ben-
tinho decide suicidar-se e, num momento de loucura,
pensa mesmo em matar o filho, mas desiste de um e
outro intento. Separados, Capitu foi para a Europa com
o filho e l�� morreu. O filho voltou ao Brasil e aqui mor-
reu de febre. E Bentinho, vi��vo, destruiu a casa de Ma-
tacavalos e fez construir no Engenho Novo uma outra
em tudo c��pia fiel daquela em que vivera o seu id��lio de
inf��ncia, e l�� passou os seus ��ltimos anos, solit��rio,
escrevendo a sua pr��pria hist��ria, e depois uma Hist��ria
dos Sub��rbios, obra em que pretendia consumir os seus
��ltimos dias.
Dom Casmurro �� o maior romance de Machado de
Assis, aquele em que ele mais apurou o seu estilo e o seu
g��nio em desvendar a alma humana e ir ao fundo dos
sentimentos, das a����es dissimuladas, em busca da verda-
deira face interior de cada personagem.
Afirmam os cr��ticos que neste livro Machado de Assis
se retratou em muitos aspectos, e o romance tem algo de
autobiogr��fico. Bentinho, naturalmente abstraindo o
82
drama criado pela imagina����o do autor, era o pr��prio
Machado de Assis com o seu cepticismo, o seu desencan-
to, o pessimismo m��rbido e a crueldade para com os
homens, tudo isso misturado com uma certa piedade e
uma aceita����o atrav��s do sorriso superior e da ironia
complacente.
Quando escreveu Dom Casmurro, Machado de Assis
estava no ��pice da gl��ria liter��ria, aclamado e reconhe-
cido por todos como o maior escritor brasileiro vivo.
Havia fundado h�� dois anos a Academia Brasileira de
Letras, de que era presidente. Tinha 60 anos de idade.
Alto funcion��rio do Minist��rio da Via����o, gozava da con-
sidera����o geral. Estava na plenitude do seu g��nio criador.
Mas ao lado de toda essa gl��ria e esse prest��gio, a epilep-
sia minava cada vez mais o seu corpo fr��gil e acentua-
va os tons pessimistas do seu temperamento.
Nascido a 21 de junho de 1839, mulato pobre, filho de
Francisco de Assis, pintor e dourador, e da lavadeira por-
tuguesa Maria Leopoldina, Machado de Assis foi um dos
grandes exemplos brasileiros da vit��ria do g��nio contra
todas as adversidades. A longa escalada do menino do
morro at�� o escritor glorioso deixou fundas marcas no
seu temperamento e na sua alma. E por mais que o ame-
mos e lhe devotemos a maior admira����o, temos de re-
conhecer que a amargura da pobreza e a humilha����o dos
primeiros anos marcaram muito os seus romances,
principalmente este Dom Casmurro, cujo final �� como
que um desmoronamento total de sonhos e ilus��es.
Mas, afinal, quem foi Capitu? Teria sido apenas a tra-
vessa e linda menina de Matacavalos, e depois a boa e
carinhosa esposa de Bentinho, fiel a um eterno amor da
inf��ncia? Ou teria sido a "cigana obl��qua e dissimulada''
que conquistou o menino rico com artimanhas e dissi-
mula����es, e com ele casou-se para tra��-lo depois com o seu
melhor amigo? At�� livros j�� se escreveram para respon-
der a essa pergunta.
83
Para Bentinho, o marido, que �� quem conta a hist��ria
pela pena do romancista, a verdade est�� com a segunda
hip��tese, e ele afirma que, se o leitor tem d��vida em saber
se a Capitu da Praia da Gl��ria j�� estava dentro da de
Matacavalos, " o u se esta foi mudada por efeito de algum
caso incidente", deve recordar-se da Capitu menina e
reconhecer�� que uma estava dentro da outra, a da Praia
da Gl��ria na menina de Matacavalos, como "a fruta
dentro da c a s c a " .
Para os leitores, por��m, a acusa����o de Bentinho ja-
mais prevaleceu, pois o que ficou da Capitu, a sua ima-
gem verdadeira, e que tem sido sempre lembrada e per-
manentemente repetida, �� a dos "olhos de ressaca", a
dos amores juvenis, a dos id��lios simples que encheram de
poesia a inf��ncia e a juventude de Bentinho.
84
Dona Carmo
(Memorial de Aires, de Machado de Assis)
CONTRASTE COM as personagens femininas de
seus romances anteriores, que s��o, em geral, complica-
das, misteriosas, ad��lteras, no livro com que encerrou a
sua obra, Memorial de Aires, Machado de Assis criou uma
mulher admir��vel de do��ura e bondade, uma figura quase
irreal, a espargir suavidade e ternura em torno de si, po-
voando a solid��o de sua velhice, ao lado do marido Aguiar,
com os sonhos do presente e a saudade do passado. Cha-
mou-se D. Carmo essa velhinha acolhedora, e a sua fi-
gura se confunde com a do marido, formando ambos
uma s�� pessoa na imagem com que o autor os des-
creve, de "a gente Aguiar'' ou "o casal Aguiar".
Eram bons, e ao cri��-los, nesse livro que marca a ple-
nitude de sua obra e revela uma completa serenidade
diante da vida, Machado de Assis se distancia muito em
esp��rito de seus romances anteriores, onde o pessimismo,
o amargor, a ironia e o sarcasmo d��o a t��nica de uma
filosofia negativista. Dona Carmo �� o oposto absoluto de
Capitu, de Sofia e mesmo de Virg��lia, como a sua hist��-
ria e a pr��pria filosofia do livro s��o a nega����o da filoso-
fia dos seus livros anteriores.
87
O cr��tico Barreto Filho disse de Memorial de Aires: "O
livro j�� n��o tem mais enredo, �� uma pura m��sica interior
fluindo velada de sua saudade e do seu esp��rito, e dei-
xando que a bondade e a simpatia humana se desenvol-
vam francamente''.
Essa m��sica interior de que nos fala o cr��tico vem de
Dona Carmo e do marido, o casal de velhinhos que cons-
tituem as figuras centrais do romance, mas na realidade
ela vem do pr��prio autor, o j�� tamb��m velhinho Ma-
chado de Assis, �� ��poca ��rf��o do amor de Carolina que j��
se fora, deixando-o na mais triste solid��o, acalentando o
cora����o com a saudade dela, de que nos fala naquele
soneto imortal.
D. Carmo envelheceu ao lado de Aguiar, e chegaram a
esse fim de vida sem ter filhos. Casaram jovens, ele um
modesto guarda-livros que no fim da carreira chegara a
gerente de banco, e ela uma pacata mocinha de Nova
Friburgo. Viveram " s e m brilho nem matinada", aman-
do-se e amparando-se um no outro das agruras e amar-
guras da vida, sem nunca se consolarem da desola����o
de n��o terem, ao menos, um filho.
No c��rculo de suas rela����es, que abrangiam os bairros
do Flamengo, Catete e Botafogo, D. Carmo era querida e
amada por todos. "A Santa Aguiar" chamava-a Fid��lia,
e todos concordavam em que a bondade de D. Carmo
fazia dela uma santa pessoa. Descreve o romancista que,
ainda mocinha, ela conquistava pela sua ��ndole afetuo-
sa que lhe dava o poder de atrair e aconchegar, e que
agradava igualmente a velhas e novas. O casal vivia, des-
de o casamento, em permanente id��lio. Gostavam de ver-
sos e os copiavam dos livros, um para o outro. O marido
a adorava, e com isso era feliz, e para sossegar-se das
inquieta����es e do t��dio da vida " n �� o achava melhor res-
piro que a conversa����o da esposa, nem mais doce li����o
que a de seus o l h o s ' ' .
88
A historia do romance �� t��nue, disfar��ada, e o seu ver-
dadeiro enredo �� a m��sica interior de que nos fala o cr��ti-
co. Ela nos �� contada pelo Conselheiro Aires, amigo do
casal. Era ele um diplomata aposentado, vi��vo, que h��
dois anos voltara ao Brasil, aborrecido e entediado do
mundo em que vivera, para reaprender a amar a sua
terra. Assim vai ele anotando no seu memorial o dia-a-dia
comum daquele pequeno grupo de amigos que quase se
constitu��a numa ��nica fam��lia pelo cora����o e a amizade.
E sentimos no seu di��rio o lento fluir das horas e dos
dias daquele agitado 1888, ano da Aboli����o da Escravatu-
ra e de acontecimentos igualmente importantes que pra-
ticamente transformaram a face e a estrutura pol��tica e
econ��mica do Pa��s, e que, no entanto, para aquele peque-
no mundo de velhos aposentados e saudosistas, s�� de
longe repercutiam em suas vidas em penumbra.
O fio da hist��ria �� a frustra����o do casal Aguiar por n��o
ter tido filhos e a compensa����o que buscava no amor a
dois filhos posti��os. Diz o autor:
" A m b o s queriam um filho, um s�� que fosse, ela ainda
mais do que ele. D. Carmo possu��a todas as esp��cies de
ternura, a conjugal, a filial, a maternal". Que dist��ncia
vai disso para o final tr��gico-ir��nico de Br��s Cubas, em
que o personagem-defunto, fazendo o invent��rio de seus
fracassos, diz que encontrou um ��nico saldo favor��vel, o
de n��o ter tido filhos, de n��o ter transmitido a ningu��m
o legado de sua mis��ria!
D. Carmo transferiu para o seu afilhado Trist��o e a
vi��va Fid��lia todo o amor que n��o p��de dar a um filho do
seu amor. Ajudou a criar o primeiro, foi a sua segunda
m��e, at�� que ele e os pais foram para Portugal. Depois se
fixou em Fid��lia, mo��a que eles ajudaram a casar por
amor, contra a vontade dos pais dela e os do noivo, oriun-
dos que eram de duas fam��lias inimigas pol��ticas no inte-
rior fluminense. Uma repeti����o do drama dos Montec-
8 9
chio e Capuleto na antiga Verona de Romeu e Julieta.
Casaram-se e o marido logo morreu.
Voltando Trist��o de Portugal, depois de formado, para
visitar D. Carmo, aqui permaneceu v��rios meses, nas-
cendo entre ele e Fid��lia o amor que os levaria ao casa-
mento, final feliz para os dois jovens, mas muito triste
para o casal de velhinhos, uma vez que, casados, eles se
foram para Lisboa, onde Trist��o acabara de ser eleito
deputado, e por certo nunca mais voltariam. Aguiar e D.
Carmo, enganados, julgavam que eles iam apenas a pas-
seio e voltariam breve. Mal adivinhavam que haviam
perdido de uma s�� vez, com aquele casamento, os dois
filhos adotivos.
Depois da partida dos noivos, o Conselheiro Aires foi
visitar o casal e recuou da porta em respeito ao que via.
Ao fundo do jardim, os dois velhos, sentados, olhavam
um para o outro e surpreendeu-lhes nos rostos uma ex-
press��o indefinida: "Queriam ser risonhos e mal se po-
diam consolar. Consolava-os a saudade de si m e s m o s " .
Com esta nota um tanto melanc��lica mas de suave ter-
nura, terminou Machado de Assis o seu ��ltimo romance.
Memorial de Aires foi publicado em 1908, ano em que,
a 28 de setembro, morria o seu autor. Quatro anos an-
tes, em outubro de 1904, morrera a sua companheira
Carolina, deixando-o numa tristeza sem rem��dio. Este
seu ��ltimo romance �� apontado como uma reconstitui����o
da vida ��ntima do casal Machado de Assis, retratado
pelo Conselheiro Aires no casal Aguiar. At�� nos nomes h��
uma coincid��ncia nas iniciais: Carmo ��� Carolina, e
Aguiar ��� Assis.
O certo �� que o livro �� um hino ao amor tranquilo e
sereno, �� vida familiar vivida a dois, um amparando o
outro e o consolando nas frustra����es e nas amarguras da
vida, principalmente essa "orfandade ��s avessas" de n��o
9 0
ter filhos, e pelo efeito dessa m��tua compreens��o, trans-
formando os espinhos em rosas e as tristezas em suaves
alegrias.
Conta Trist��o de Athayde, evocando a Casa Azul de
sua inf��ncia no Cosme Velho, que ele e seus irm��os viam
sempre passar o casal de velhinhos que morava numa
casa acima da sua, e de como sempre paravam os dois a
brincar com eles, que por sua vez brincavam de motornei-
ro no gradil de sua casa. Eram Machado e Carolina que
passavam, unidos, e sempre o romancista dava-lhes ver-
sinhos humor��sticos para a irm�� mais velha recitar.
Esta cena do casal Machado de Assis bem poderia ter
figurado no Memorial de Aires, como tendo sido vivida
pelo casal Aguiar. S��o realmente os mesmos, um foi o
modelo do outro, D. Carmo �� Carolina, Aguiar �� Assis, e o
romance foi um preito de saudade que o romancista
prestou �� sua companheira.
91
Inoc��ncia
(Inoc��ncia, de Visconde de Taunay)
QUASE CEM anos, em 1872, aparecia em edi����o
da Tipografia Nacional um romance com o t��tulo de
Inoc��ncia, assinado por S��lvio Dinarte. Num estilo sim-
ples, direto, com um forte sabor regional, contava a his-
t��ria de amor de uma adolescente sertaneja sacrificada ��
brutalidade dos preconceitos. O cen��rio era o sert��o de
Mato Grosso, e os personagens, al��m da mo��a, eram o
pai ferrabr��s, o noivo ciumento, um "m��dico de ervas" e
um entomologista alem��o �� procura de borboletas raras
para o Museu de Magdeburgo. O livro fez sucesso, sua
hist��ria comovente emocionou os leitores, e a linda ser-
taneja passou a figurar na galeria dos personagens
imortais de nossa literatura. Como era Inoc��ncia? Quem
era o seu criador, escondido sob o pseud��nimo de S��lvio
Dinarte?
Como a descreve o autor, Inoc��ncia n��o era um tipo de
mo��a do sert��o do g��nero que nos habituamos a conhecer
atrav��s de tantos relatos, forte, valente, que pega na
enxada e lavra a terra, ordenha vacas e pastoreia ca-
bras e ovelhas. Era, pelo contr��rio, doentia, rom��ntica, e
a sua apari����o no livro se faz gra��as a umas sez��es de
9 5
que estava acometida, o que leva seu pai, o Sr. Pereira,
a contratar os servi��os de um " d o u t o r " itinerante que
encontrou em viagem.
Eis como o autor a descreve, no quarto de enferma,
onde a viu pela primeira vez o " d o u t o r " Cirino: "Ca��a
ent��o luz de chapa sobre ela, iluminando-lhe o rosto, parte
do colo e da cabe��a, coberta por um len��o vermelho
atado por tr��s da nuca. Apesar de bastante descorada e
um tanto magra, era Inoc��ncia de beleza deslumbrante.
Do seu rosto irradiava singela express��o de encantadora
ingenuidade, real��ada pela meiguice do olhar sereno
que, a custo, parecia coar por entre os c��lios sedosos a
franjar-lhe as p��lpebras, e compridos a ponto de projeta-
rem sombras nas mimosas faces. Era o nariz fino, um
bocadinho arqueado, e o queixo admiravelmente tornea-
do. Ao erguer a cabe��a para tirar o bra��o de sob o len��ol,
descera um nada a camisinha de crivo que vestia, dei-
xando nu um colo de fascinadora alvura, em que ressal-
tava um ou outro sinal de nascen��a".
A hist��ria �� simples. Inoc��ncia era noiva de Manec��o,
j�� de casamento marcado. Cercando-a de imensos cuida-
dos e recatos, o pai leva o " d o u t o r " Cirino a trat��-la
das sez��es, e os dois se apaixonam. Na mesma oportuni-
dade �� h��spede da casa o alem��o Meyer, entomologista
que anda �� procura de borboletas raras. Expansivo, ale-
gre, brincalh��o, Meyer fala a toda hora da beleza de Ino-
c��ncia, despertando desconfian��a no pai zeloso do recato
da filha, que chega a pensar em mandar embora de sua
casa o " a l e m �� o " conquistador. Enquanto isso, Cirino
namorava Inoc��ncia, e o equ��voco do pai, e mais as gra-
��as e as "liberdades" de Meyer, d��o o tom de humor
nesta hist��ria triste.
Os encontros noturnos dos dois namorados, vigiados
pelo an��o Tico, constituem o cl��max amoroso do id��lio
que n��o chega sequer ao cl��ssico beijo. Ali��s, o primeiro
9 6
encontro �� uma transposi����o, para o ambiente r��stico do
sert��o, da c��lebre cena do balc��o de Romeu e Julieta.
Tais encontros selaram o destino dos dois, dispostos a
enfrentar tudo, at�� a morte, para se unirem. Concertam
um plano desesperado, a ida de Cirino �� fazenda do pa-
drinho de Inoc��ncia em busca de apoio. Ele parte. Tam-
b��m parte o alem��o ap��s descobrir um lindo esp��cime
desconhecido de borboleta que batizou de "Papilio Inno-
centia", em homenagem �� bela sertaneja. Nesse interva-
lo, volta o noivo Manec��o. Inoc��ncia nega-se a v��-lo, re-
pudia-o, disposta a tudo, menos a casar-se com ele. O
pai amea��a mat��-la, em defesa da palavra empenhada.
O noivo quer matar o culpado, que ambos julgam ser
o alem��o Meyer. Mas o an��o Tico descobre tudo e aponta
o " d o u t o r " Cirino.
Manec��o sai para a vingan��a e mata Cirino, enquanto
este esperava o padrinho de Inoc��ncia, que j�� se dispunha
a interceder por eles. Inoc��ncia morre em seguida, n��o
explica o autor se das sez��es ou mesmo do mal do amor
contrariado, e dois anos depois, na cidade alem�� de
Magdeburgo, seu nome era lembrado por Meyer, por
ocasi��o da homenagem a ��le prestada na Sociedade Ento-
mol��gica, pela cole����o de borboletas que levara do Brasil,
destacando-se pela rara beleza a "Papilio Innocentia".
Essa hist��ria ing��nua e um tanto melodram��tica con-
quistou o Brasil de Norte a Sul. Tornou-se logo, dentro
dos limites da ��poca, o que hoje chamamos de bestsel-
ler. Edi����es se sucederam anualmente, algumas n��o per-
mitidas e que suscitaram, uma aqui e outra na It��lia,
quest��es judiciais com os herdeiros. Tradu����es se fizeram
para numerosas l��nguas, entre elas o franc��s, italiano,
ingl��s, alem��o, espanhol, croata, sueco, dinamarqu��s,
polon��s, flamengo, japon��s etc. Foi adaptada ao teatro
italiano por Silio Bocanera, e ao teatro espanhol por Jos��
Clementino Soto. Foi adaptada ao teatro no Brasil por
Carlos G��is, Roberto Gomes e Rodrigues Barbosa. Saiu
97
em folhetins em jornais do Brasil, da Fran��a, e da It��lia.
Serviu de tema a uma ��pera de Leo Kessler, intitulada
Inoc��ncia, com libreto de Emiliano Perneta. Foi ainda o
primeiro romance brasileiro a ser aproveitado pelo cine-
ma, o que se deu em 1915, com o ator italiano Capellani.
Finalmente, em 1945, novo filme foi tirado de sua hist��ria
pela Brasil Vita Filme, do Rio de Janeiro.
Toda essa fortuna cr��tica deu a Inoc��ncia o selo da pos-
teridade. A adolescente sertaneja, dos confins de Mato
Grosso, correu mundo, famosa e c��lebre na sua ingenui-
dade e extrema timidez. Com a sua cria����o abriu-se o
ciclo do regionalismo brasileiro, que daria mais tarde as
obras de Afonso Arinos, Sim��es Lopes Neto, Hugo de
Carvalho Ramos, entre outros, e, finalmente, Guimar��es
Rosa. Confirmou-se plenamente o progn��stico de Fran-
cisco Otaviano, que afirmou: "Este livro ter�� longa
vida, do mesmo modo que se pode, ainda hoje, viajar ��
Esc��cia com as novelas de Walter Scott por guias". E
de modo algum prevaleceu a mod��stia do autor que, na
dedicat��ria, chama-o de " u m a narrativa campestre e
despretensiosa'' e de " u m livro singelo e sem futuro".
Mas, afinal, quem era S��lvio Dinarte, de quem a hist��-
ria n��o guardou lembran��a, mas que assinava o livro
famoso? Tratava-se do pseud��nimo de Alfredo D'Escrag-
nolle Taunay, oficial superior do Ex��rcito, her��i da Guer-
ra do Paraguai. De ascend��ncia nobre em todos os graus,
�� realmente extraordin��rio que ele tivesse compreendido
t��o bem a alma da gente r��stica do sert��o e afinal escre-
vesse um livro como Inoc��ncia, cuja autenticidade ao
fixar costumes e sentimentos do nosso povo do interior,
na ��poca, ainda n��o foi superada.
Taunay era filho do Bar��o de Taunay, diretor da Esco-
la de Belas-Artes e preceptor de D. Pedro II. Sua m��e,
tamb��m nobre, era Gabriela Herm��nia de Robert d'Es-
cragnolle, Baronesa de Taunay. Seu av�� paterno foi o fa-
9 8
moso pintor da Escola Francesa, Nicolau Antonio Tau-
nay, membro do Instituto de Fran��a e integrante da fa-
mosa Miss��o Francesa que D. Jo��o VI trouxe ao Brasil
para aqui fundar uma Academia de Belas-Artes. Seu av��
materno foi o Conde d'Escragnolle, de uma das mais
velhas casas fidalgas de Proven��a e Fran��a, e sua av��
materna era Adelaide de Beaurepaire, ambos expulsos, o
Conde d'Escragnolle e o Conde de Beaurepaire, de sua
p��tria pela Revolu����o Francesa. Alfredo d'Escragnolle
Taunay que ganharia o t��tulo de visconde no pr��prio
ano da Proclama����o da Rep��blica, a 6 de setembro de
1889, tamb��m se casaria na nobreza brasileira, ao despo-
sar D. Cristina Teixeira Leite, filha do Bar��o de Vassou-
ras, da mais opulenta aristocracia cafeeira fluminense.
Pois Alfredo d'Escragnolle Taunay, com toda essa linha-
gem de nobres europeus, escreveu Inoc��ncia, fruto dos
seus conhecimentos e observa����es nos sert��es do Brasil,
que percorreu durante a Guerra do Paraguai, integran-
do, jovem oficial de engenharia, a Coluna Expedicion��ria
de S��o Paulo que quase toda se perdeu nos pantanais de
Mato Grosso, assolada pelas doen��as e epidemias, e afi-
nal se imortalizou na famosa Retirada da Laguna. Vol-
tou outra vez Taunay ao teatro de opera����es, desta vez
como Secret��rio do Estado-Maior do Conde D'Eu, Genera-
l��ssimo e Comandante-Chefe das For��as Brasileiras.
Escritor fecundo, um dos fundadores da Academia Bra-
sileira de Letras, Taunay escreveu mais de 50 livros, nos
v��rios g��neros, dentre os quais o mais famoso, depois
de Inoc��ncia, �� A Retirada da Laguna. Morreu aos 56
anos, em 1899, ap��s uma vida gloriosa, mas o que perpe-
tuou mesmo o seu nome foi o ter escrito, com amor e
sentimento, a hist��ria de Inoc��ncia.
99
Carolina
(A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo)
DIF��CIL ENCONTRAR entre os leitores quem n��o
conhe��a um romance simples, ing��nuo, publicado pela
primeira vez no Rio, em 1844, h�� 127 anos, e que at��
hoje continua leitura obrigat��ria n��o s�� de estudiosos e
cr��ticos ou de estudantes de letras, mas tamb��m da ju-
ventude em geral, principalmente do interior. Seu nome,
A Moreninha; autor, Joaquim Manuel de Macedo.
Narrativa de costumes, A Moreninha iniciou a fic����o
rom��ntica entre n��s e foi o primeiro romance carioca de
sucesso, precedendo de oito anos Mem��rias de um Sar-
gento de Mil��cias, de Manuel Ant��nio de Almeida. Seu cli-
ma �� o da despreocupa����o alegre da juventude que, em
meio �� garridice dos passeios e dos namoricos, vai vivendo
as horas e os dias fugazes "que n��o voltam m a i s " .
Tendo como cen��rio a Guanabara e uma de suas ilhas,
criou Macedo um dos tipos mais queridos do romance
brasileiro, a personagem feminina mais cativante da nos-
sa literatura. Por apelido Moreninha, de nome Carolina,
ela h�� muito se tornou s��mbolo dos amores juvenis.
A Moreninha era o tipo perfeito da adolescente do s��-
culo passado, entre 14 e 15 anos. Pertencia �� pequena
103
burguesia fluminense em pleno florescimento. Alegre,
saltitante, brejeira e traquinas, nada levava definitiva-
mente a s��rio, brincava com as pessoas e os sentimen-
tos, enquanto esperava o seu eleito. Ela aparece no ro-
mance em meio a outras mocinhas e senhoras, numa
festa "na ilha d e . . . " (o autor n��o diz qual �� a ilha), e ��
descrita como um beija-flor no sal��o, sentando-se e levan-
tando-se a cada momento, ora desfolhando um lindo pen-
d��o de rosas, ora derramando ��gua-de-col��nia no chap��u
de um convidado, ora beliscando o seu irm��o Filipe ou
fazendo caretas para um amigo deste.
A princ��pio o estudante Augusto, que viria a ser o seu
amado, acha-a estouvada, caprichosa e at�� feia. Na opi-
ni��o de uma senhora, ela era "travessa como um beija-
flor, inocente como uma boneca, faceira como o pav��o,
e curiosa... como uma mulher". Era assim a More-
ninha, tal como a descreve Macedo, e assim ela ficou
c��lebre e ganhou vida e tradi����o.
O Romance ��, sobretudo, uma hist��ria de estudantes,
de alegre patuscada, de bom-humor, de juventude. Nele
n��o h�� a mais leve turba����o dessa alegria, a n��o ser no
relato de epis��dio vivido na meninice de Augusto.
Um grupo de estudantes de medicina conversava e
brincava efusivamente ap��s " u m a carraspana". Filipe
os convida para passarem o dia de Santa Ana e o fim-
-de-semana em casa de sua av��, na ilha. O programa foi
aceito por todos, em meio a grandes planos de namoros e
festejos. Augusto, que se pavoneava de nunca se ter
deixado prender pelos encantos de uma mulher por mais
de quinze dias, aposta com Filipe, que o desafiava a
ficar insens��vel ��s suas duas primas que iriam encontrar
na ilha. Quem perdesse a aposta escreveria um romance
sobre a hist��ria.
104
V��o todos para a ilha, e l�� est��o, al��m das primas de
Filipe, a sua pr��pria irm��, a Moreninha, que, afinal, vem
a ser a conquistadora do cora����o de Augusto, fazendo-o
perder a aposta.
Este enredo simples e at�� certo ponto banal tem no seu
desenvolvimento imprevistos agrad��veis, cenas de hu-
mor e gra��a, de coqueteria, de beijos furtivos, sob a pro-
te����o e o embalo da natureza exuberante da ilha acolhe-
dora. Tudo, naturalmente, girando em torno da More-
ninha, que domina inteiramente o livro. E quando, ap��s
muitas perip��cias, Augusto e ela se confessam apaixona-
dos, algo se esclarece, culminando a hist��ria com um
verdadeiro encontro do destino. �� que Augusto na inf��ncia
encontrara uma menina e com ela fizera r��pida amiza-
de. Circunst��ncias estranhas levaram-nos �� presen��a de
um moribundo que, em gratid��o pela esmola que deles
recebeu, aben��oou-os e disse-lhes que haveriam de ca-
sar-se e ser felizes. Deu, em seguida, um amuleto a
cada um. E eles se separaram sem ao menos saberem os
nomes um do outro ��� e nunca mais se encontraram.
Fant��stica coincid��ncia, a Moreninha era aquela menina
da sua inf��ncia, e a troca dos amuletos selou o futuro
do amor dos dois.
Joaquim Manuel de Macedo foi um dos fundadores do
romance brasileiro, um dos nossos grandes escritores do
s��culo X I X , por certo o mais popular. Nasceu em 1820,
em S��o Jo��o de Itabora��, no interior fluminense, e mor-
reu em 1882.
Formou-se em Medicina em 1844, e nesse mesmo ano
publicou A Moreninha, que logo obteve rumoroso suces-
so. Dedicou-se ainda ao jornalismo e �� pol��tica, tendo sido
deputado estadual e geral, chegando mesmo a recusar o
cargo de ministro. Exerceu tamb��m o magist��rio, tendo
105
sido professor de Historia e Geograf��a no Col��gio Pedro II
e preceptor dos filhos da Princesa Isabel. Sua maior
voca����o, no entanto, foi a literatura, e atrav��s dela, real-
mente, alcan��ou a gl��ria e a posteridade.
Macedo tem uma extensa bibliografia composta de ro-
mances, pe��as teatrais, volumes de poesia, livros de His-
t��ria, cr��nicas, mem��rias, biografias e comp��ndios did��ti-
cos, formando ao todo mais de quarenta livros. Suas
obras mais conhecidas, al��m de A Moreninha, s��o O Mo��o
Louro, As Mulheres de Mantilha, O Primo da Calif��rnia
(teatro) e Mem��rias da Rua do Ouvidor.
Escritor popular, afirmou certa vez que n��o escrevia
para s��bios. Sua obra, no entanto, �� importante, pois
constitui verdadeira cr��nica da sociedade fluminense do
II Reinado.
Em torno da hist��ria da Moreninha h�� v��rias vers��es.
Uma delas d�� como inspiradora do romance e do tipo
feminino a pr��pria namorada de Macedo e sua futura
esposa, prima de ��lvares de Azevedo. Afirma-se que o
romancista, no ��ltimo ano de formatura de m��dico, numa
brincadeira de estudantes, apostou com um colega como
seria capaz de escrever um romance em oito dias. Reco-
lheu-se �� sua cidade natal e l�� escreveu, no prazo esti-
pulado, A Moreninha, ganhando a aposta e descobrindo
a sua grande e verdadeira voca����o.
A Moreninha vive hoje nas sucessivas edi����es que o livro
tem tido atrav��s dos anos e ainda nas numerosas adap-
ta����es, para o cinema, o r��dio e a televis��o, da sua hist��-
ria ing��nua e sentimental de um amor juvenil. �� um dos
poucos romances brasileiros onde n��o h�� nada de triste
ou pungente.
Vive tamb��m na tradi����o da ilha de Paquet��, identifi-
cada como o cen��rio daqueles amores. O curioso �� que,
em nenhuma p��gina do romance, Macedo faz qualquer re-
106
fer��ncia direta a Paquet�� e seu nome n��o �� menciona-
do uma s�� vez. Mas generalizou-se a cren��a de que Pa-
quet�� fora a ilha da Moreninha. L�� existem uma rua e um
grupo escolar com o nome do romancista, e todo um
trecho t��pico da ilha tem o nome da personagem de Ma-
cedo. H�� ainda a praia da Moreninha, e at�� descobriram
um rochedo, muito visitado por turistas, que seria aquele
onde a irrequieta adolescente ficava �� espera da embar-
ca����o que trazia o seu amado.
107
Isaura
(A Escrava Isaura, Bernardo Guimar��es)
EMPRE QUE SE FALA ou se escreve sobre A Es-
crava Isaura, de Bernardo Guimar��es, logo vem o inevi-
t��vel paralelo com A Cabana do Pai Tom��s, romance an-
tiescravagista norte-americano de Harriet Beecher Stowe,
a quem o pr��prio Presidente Lincoln atribuiu uma consi-
der��vel influ��ncia na aboli����o da escravatura nos Estados
Unidos. Foi um dos livros mais famosos do s��culo X I X
pela sua conclusiva a����o social em favor de uma id��ia
universal e humanit��ria como a liberta����o dos negros da
escravid��o. Tamb��m temos a nossa A Cabana do Pai
Tom��s, acentuam cr��ticos e historiadores liter��rios,
pois o livro de Bernardo Guimar��es, bastante lido
e comentado na ��poca, muito influenciou a socie-
dade, principalmente o p��blico feminino, pondo a nu
as monstruosas consequ��ncias da escravid��o entre
n��s, a sua face mais cruel. A verdade �� que Bernardo
Guimar��es talvez tenha sofrido influ��ncia daquele ro-
mance norte-americano, ou apenas dele lhe tenha vindo
a sugest��o de fixar o drama brasileiro, uma vez que A
Cabana do Pai Tom��s �� anterior em cerca de 23 anos
ao livro brasileiro.
1 1 1
A Escrava Isaura apareceu em primeira edi����o em
1875, quatro anos depois da Lei do Ventre Livre, que
estabelecia uma aboli����o gradual da escravatura, deter-
minando que, daquela data em diante, no Brasil os fi-
lhos de m��es escravas nasceriam livres. O romance co-
moveu milhares de criaturas e emocionou os leitores de
Norte a Sul do pa��s, com a hist��ria sentimental de uma
linda escrava torturada e espezinhada por um senhor
cruel e devasso, e que, afinal, �� salva por um rico cava-
lheiro apaixonado pela sua formosura e bondade.
Mas, afinal, como era a personagem que Bernardo
Guimar��es criou no seu romance ainda hoje lido e relido
no Brasil inteiro, n��o obstante a sua idade de quase
cem anos e as novas correntes liter��rias que tanto modi-
ficaram o esp��rito e o estilo da fic����o?
Isaura n��o era uma escrava comum, criada na senza-
la, nem de cor negra. Filha de um feitor portugu��s com
uma bela negra africana, era uma aut��ntica mulata cla-
ra, dessas que hoje em dia ganham concursos femininos
e at�� representam a beleza brasileira em certames in-
ternacionais. O autor a apresenta nas primeiras p��ginas
do livro, e a sua apari����o se faz atrav��s de uma voz
maviosa que canta coplas sentimentais de uma cativa
suspirando pela liberdade. " S e n��o �� sereia, somente um
anjo pode cantar assim" ��� diz o romancista, e leva o
leitor �� sala da fazenda onde ela, sentada ao piano, canta
embevecida. A descri����o �� opulenta de adjetivos e, ao
gosto da ��poca, exagerada. " U m a bela e nobre figura de
m o �� a " , com "bastas madeixas negras", " c o l o donoso e do mais puro lavor", de "encantadora simplicidade, porte esbelto, cintura delicada", e mais, parecia " u m a V��-
nus nascendo da espuma do mar ou um anjo surgindo
dentre brumas vaporosas".
Realmente, a figura de Isaura pouco tinha de uma
cativa. Era de tra��os finos e de pele morena, educada,
cantava bem, tocava piano e fora criada pela senhora da
112
fazenda com todo o carinho. Tais predicados, obviamente,
n��o eram os de uma mo��a nascida nas senzalas do inte-
rior fluminense no s��culo X I X . Talvez que o autor, ao
cri��-la assim, quisesse equipar��-la a qualquer mo��a da so-
ciedade da ��poca, para fazer comover ainda mais os
cora����es com sua hist��ria triste, que come��a com a mor-
te de sua protetora, sem ter formalizada a carta de al-
forria em seu favor, como prometia sempre. Isaura passa
ent��o �� posse do herdeiro, rapaz libertino e devasso. E
a�� come��a a hist��ria.
A hist��ria passa-se numa grande fazenda fluminense
situada em Campos de Goitacases, hoje cidade de Cam-
pos. Isaura, pela sua beleza, desperta nos homens amor ��
primeira vista. Le��ncio, o jovem senhor, devasso, mau,
perdul��rio, quer for����-la a se tornar sua amante. Henri-
que, seu cunhado, tamb��m a quer conquistar, e por ou-
tro lado, o jardineiro, um an��o mostrengo e feio, perso-
nagem que faz lembrar o Corcunda de Notre Dame, de
Victor Hugo, muito em voga na ��poca, sonha casar-se
com ela. Os dois primeiros a disputam, e Henrique revela
�� sua irm�� Malvina estar o seu marido apaixonado pela
escrava. A esposa abandona Le��ncio e este continua o ass��-
dio a Isaura, que o repele. Le��ncio usa de todos os recur-
sos, at�� a amea��a e a viol��ncia, mas ela n��o cede. O por-
tugu��s Miguel, pai de Isaura e ex-feitor da fazenda, prop��e
comprar a liberdade dela por dez contos de r��is. Le��ncio
recusa. Miguel trama ent��o uma fuga e consegue viajar
com a filha para Recife, onde passam a viver afastados
de todos, com nomes falsos para escapar �� persegui����o de
Le��ncio.
A�� entra em cena um novo personagem, o her��i da his-
t��ria, um rico mo��o chamado ��lvaro, que por ela se
apaixona e um dia a convence a ir a um baile na alta
sociedade recifense. No baile aparece um outro vil��o, de
nome Martinho, que reconhece Isaura pela descri����o de
um an��ncio de "escravo fugido" que vira e recortara
113
dos jornais do Rio, interessado t��o-somente nos dez con-
tos de r��is de recompensa pela captura. ��lvaro tenta,
com o seu dinheiro, salvar Isaura, mas n��o consegue,
e, ap��s v��rias perip��cias, Le��ncio chega a Recife e traz
Isaura com ele para a sua fazenda, e ainda Miguel
para cumprir pena pelo rapto e fuga.
Novo ass��dio, novas propostas s��o feitas a Isaura pelo
senhor apaixonado, mas ela ainda n��o cede. Ent��o Le��n-
cio planeja vingar-se de maneira cruel. Manda p��r Isaura
a ferros no tronco da senzala e lhe oferece a alternativa:
continuar presa naquele instrumento de tortura para
sempre ou aceitar a liberdade que ��le lhe oferece com a
condi����o de casar-se com Belchior, o an��o feio e asque-
roso. Desesperada, ela aceita o sacrif��cio para conseguir
a liberdade, mas no dia das bodas, inesperadamente,
surge o her��i ��lvaro para salv��-la. �� que, tendo vindo
ao Rio, soube da situa����o financeira de Le��ncio, total-
mente arruinado e cheio de d��vidas. Resolveu comprar
todas essas d��vidas tornando-se assim dono da fazenda
e de todos os bens de Le��ncio, inclusive de Isaura.
O final, pode-se imaginar. ��lvaro vai ser feliz com a
linda ex-escrava que passa a ser a dona de toda a for-
tuna de Le��ncio, e este, desesperado, mete uma bala
na cabe��a.
Bernardo Joaquim da Silva Guimar��es foi um dos
mais populares romancistas brasileiros do s��culo X I X .
Contempor��neo de Jos�� de Alencar e Machado de Assis,
nasceu a 25 de agosto de 1825, em Ouro Preto, e morreu
na mesma cidade, no ano de 1884.
Temperamento de bo��mio, foi colega na Faculdade de
Direito de S��o Paulo, onde se formou, de ��lvares de
Azevedo e Aureliano Lessa, participando das noitadas
po��ticas, das farras byronianas, com que se envenena-
vam de romantismo os mo��os acad��micos de en-
t��o. Com eles fundou a Sociedade Epicur��ia. Era alegre,
brincalh��o, de humor franco. Foi juiz, por duas vezes, no
114
interior de Goi��s, e �� personagem de rico anedot��rio que
ficou registrado nas cr��nicas de seus contempor��neos.
Seus livros, mais conhecidos, depois de A Escrava Isaura,
s��o O Ermit��o de Muqu��m, O Garimpeiro e O Semina-
rista. �� autor de obra numerosa, inclusive de v��rios volu-
mes de poesia, em que foi rom��ntico, sat��rico e at�� fesce-
nino. Seu longo poema O Elixir do Paj��, de forte licencio-
sidade, em par��dia aos Timbiras, de Gon��alves Dias, teve
numerosas edi����es clandestinas e at�� hoje circula ��s es-
condidas entre os bibli��filos. ��, cronologicamente, o pri-
meiro escritor de uma ilustre fam��lia liter��ria mineira,
pois era tio do grande poeta simbolista Alphonsus de Gui-
maraens e de Archangelus de Guimaraens. A tradi����o
da fam��lia continuou com Alphonsus de Guimaraens
Filho e Jo��o Alphonsus.
Conquanto n��o seja, segundo os cr��ticos, o melhor ro-
mance de Bernardo Guimar��es, A Escrava Isaura ficou
sendo o mais conhecido e o mais difundido no Brasil
inteiro. Seu n��mero de edi����es �� dif��cil de fixar, tal a
quantidade delas que circulou por todo o pa��s. Como ��
f��cil de se deduzir, seu enredo, suas personagens s��o ver-
dadeiras idealiza����es rom��nticas, mas, apesar de tudo, e
talvez por isso mesmo, conquistou o cora����o dos leito-
res. Sua import��ncia hist��rica �� incontest��vel pelo vee-
mente libelo que transmite contra a escravid��o. E quan-
do vemos, ainda hoje, na segunda metade do s��culo vin-
te, em plena era da conquista sideral, novas edi����es de
A Escrava Isaura se imprimirem e se esgotarem, temos
de concordar que h�� algo no cora����o humano que os
tempos n��o mudam, e �� para esse " a l g o " que ainda
vive e viver�� sempre a escrava Isaura, que Bernardo
Guimar��es arrancou da sujeira e do opr��brio das senza-
las para a vida eterna das personagens e dos s��mbolos.
115
Magd��
(O Homem, de Alu��zio Azevedo)
PRINCIPAIS ROMANCES de Alu��zio Azevedo
s��o, segundo os cr��ticos, O Corti��o, Casa de Pens��o, O
Mulato, obras com as quais imp��s �� sua ��poca a escola
naturalista. Nesses, no entanto, n��o h�� uma figura fe-
minina predominante como em O Homem, o s��timo de
seus romances, no qual Magd�� ocupa toda a extens��o do
livro, e �� em torno dela, do seu temperamento m��rbido,
da sua psicologia de hist��rica, que o autor teceu n��o
apenas o enredo, mas a sua tese fenomenalista. N��o es-
tando, pois, no conceito da cr��tica, entre as suas melho-
res obras, O Homem foi aquela que nos ofereceu melhor
material para esse enfoque.
Como era Magd��, essa estranha criatura que, do de-
sengano amoroso, passou �� histeria, desta ao del��rio, e,
num crescendo, �� loucura?
Magd�� era uma mo��a bonita, por��m doentia, nervosa,
irasc��vel, fruto ��nico de um casamento que cedo se des-
fizera pela morte da m��e.
A sua apari����o no romance �� logo na primeira p��gina,
onde o autor a apresenta, rec��m-chegada da Europa,
119
aonde f��ra, em v��o, em busca de sa��de e alegria. Eis
como �� descrita:
"Magdalena ou simplesmente Magd��, como em fam��-
lia tratavam a filha do Conselheiro Pinto Marques, estava,
havia duas horas, estendida no div�� do sal��o de seu pai,
toda vestida de preto, sozinha, muito aborrecida, a cismar
em coisa nenhuma; a cabe��a apoiada em um dos bra��os,
cujo cotovelo fincava numa almofada de cetim bordado a
ouro; e a seus p��s, esquecido sobre um tapete de peles de
urso da Sib��ria, um livro que ela tentara ler e sem d��vi-
da lhe tinha escapado das m��os insensivelmente.''
A�� onde ela estava p��lida e triste, j�� era doente h�� dois
anos de uma estranha mol��stia que se manifestara
ap��s uma revela����o que a fizera desistir do seu sonho de
inf��ncia, que era o de casar-se com Fernando, seu com-
panheiro e namorado, afilhado de seu pai e que desde
pequeno morava em sua casa. A sua vida se alternava
em momentos de profunda depress��o e melancolia ou de
exalta����o e extrema irascibilidade. O m��dico da fam��lia,
que acompanhava apreensivo a evolu����o da enfermida-
de, recomendava ao pai que era preciso cas��-la quanto
antes.
A hist��ria de O Homem �� um tanto convencional e por
muitos acusada de falsa. Em poucas linhas �� a se-
guinte:
Magd�� e Fernando, criados juntos, se amavam e pre-
tendiam casar-se logo que o rapaz se formasse em en-
genharia. ��s v��speras da formatura, o pai de Magd��, que
via com grande ansiedade a evolu����o da amizade juve-
nil para um amor adulto, chamou o afilhado e disse-lhe
que aquele casamento n��o se podia realizar. Fernando
insistiu muito em conhecer o motivo, e o Conselheiro
teve de confessar que ele tamb��m era seu filho, revelando-
Ihe as circunst��ncias em que o trouxera para casa como
afilhado. Esperava jamais ter de dizer-lhe isso, e s�� depois
120
de sua morte o testamento revelaria o segredo. Mas o
projetado casamento agora o obrigava.
Fernando afastou-se de Magd��, e como n��o podia di-
zer-lhe o motivo, isso fez com que ela passasse a odi��-lo.
Como vingan��a quis casar-se imediatamente com um
pretendente que n��o era do agrado do pai, mas este, para
evitar o erro da filha, resolveu confessar-lhe tamb��m o
real motivo de tudo. Magd�� teve ent��o um choque t��o
violento que lhe abalou para sempre os nervos fr��geis.
Pouco depois Fernando viajava para a Europa, a fim de
aperfei��oar seus estudos, e l��, alguns anos depois,
morreu.
Esse abalo e essa desilus��o amorosa foram o in��cio da
derrocada de Magd��. A histeria come��ou a manifestar-se
com viol��ncia. Tinha acessos incr��veis, e o m��dico, preo-
cupado, recomendava a melhor terap��utica no caso: um
marido. O Conselheiro p��s-se em campo e arranjou v��-
rios pretendentes, mas ela sempre recusava, com evasi-
vas e desculpas sem valia. A situa����o foi ficando dram��-
tica e perigosa, e a doen��a cada vez mais se repetia em
crises constantes.
Depois de revelar-se in��cua a viagem �� Europa, o pai
resolveu p��r em pr��tica a terap��utica do campo. Mudou-se
para uma casa que possu��a nos altos da Tijuca, onde se
respirava o ar da floresta. Magd��, no entanto, n��o me-
lhorou. E um certo dia viu da janela o trabalho de uma
pedreira pr��xima. Os cavouqueiros, homens fortes e ru-
des, expunham-se ao sol da tarde naquele trabalho, ape-
nas de cal����o. Ela impressionou-se com aquilo e no dia
seguinte pediu ao pai que a levasse at�� l��. N��o foi poss��-
vel convenc��-la do contr��rio e afinal foi feito o passeio,
mas no alto da pedreira ela desmaiou, e quem a trouxe
abaixo, carregando-a nos bra��os fortes e nus, foi um
cavouqueiro de nome Lu��s.
Caminhando aceleradamente para a loucura, Magd��
apaixonou-se pelo cavouqueiro, e passava horas a v��-lo,
121
ao longe, de sua janela. Na realidade, tinha horror ao
contato carnal, era excessivamente pudica, e passou, no
seu del��rio, a sonhar todas as noites com o rapaz, criando
uma vida dupla. A real, e a imagin��ria, que a sua fanta-
sia er��tica engendrou. Mal fechava os olhos, transporta-
va-se a uma bela "ilha do segredo", onde o cavouqueiro
Lu��s a esperava. Em sonhos com ele se casa, tem um filho
a que deu o nome de Fernando, e vivem os dois num
maravilhoso id��lio. Assim, passou a viver a maior parte
do tempo dormindo, no que era ajudada pelos rem��dios
calmantes que lhe ministrava o m��dico.
Mas o cavouqueiro Lu��s era noivo de Rosinha, irm�� da
empregada de Magd��, e morava perto num corti��o. Es-
tavam prestes a casar-se e, no dia das bodas, Magd�� ouve
e v�� de sua casa, com inveja e ��dio, os aparatos simples
da festa do casamento. No dia seguinte, pediu �� sua em-
pregada que trouxesse os noivos �� sua presen��a, pois que-
ria presente��-los. O casal vem todo feliz e risonho e ela os
recebe com requintes de amabilidade. Diz �� empregada
para trazer uma garrafa do melhor vinho para os noivos.
��s escondidas, derrama, nos copos dos dois, o conte��do
de dois frascos de rem��dio que continha ars��nico, mistu-
ra com o vinho e d��-lhes a beber. Em poucos instantes
se faz sentir o efeito do veneno. Os dois come��am a
contorcer-se em esgares tr��gicos. D��-se o alarma, o esc��n-
dalo. Chama-se o m��dico, vem a pol��cia, e nada foi poss��-
vel fazer. Os noivos morrem envenenados �� frente de to-
dos. O pai, desesperado, v�� Magd�� ser arrastada numa
camisa-de-f��r��a, para o hosp��cio, pedindo que a levem pa-
ra a "ilha do segredo", onde a sua fantasia de louca
realizara o seu sonho de amor com Lu��s.
Essa hist��ria cruel, de um certo mau gosto e eivada de
irrealidade, marcou no naturalismo a faceta do cientifi-
cismo e da an��lise. O romance se propunha a defender
uma tese fenomenalista. Sua influ��ncia se fez presente em
122
alguns livros da ��poca, notadamente em A Carne, de
J��lio Ribeiro. Causou, evidentemente, esc��ndalo quando
de sua publica����o. E o seu objetivo mesmo era provocar
pol��mica, escandalizar o p��blico. No p��rtico, Alu��zio
Azevedo ap��s a seguinte frase que bem define os objeti-
vos de sua obra: " Q u e m n��o amar a verdade na arte e
n��o tiver a respeito do Naturalismo id��ias bem claras e
seguras far��, deixando de ler este livro, um grande obs��-
quio a quem o escreveu". Era um desafio de quem pouco
se importava com o agrado ou desagrado dos que n��o
fossem partid��rios de sua verdade.
O Homem foi lan��ado em 1877. Considerado um dos
fracos romances de Alu��zio Azevedo, quando o escreveu j��
era ele autor de pelo menos dois de seus grandes roman-
ces, Casa de Pens��o e O Mulato. Mesmo assim, em O
Homem est��o presentes a extraordin��ria for��a narrativa
de Alu��zio e a sua prodigiosa imagina����o, que fazem da
hist��ria tr��gica e pungente de Magd�� uma leitura
atraente que nos arrasta, p��gina a p��gina, at�� o desen-
lace.
Alu��zio Azevedo �� para o romance naturalista brasileiro
o que ��mile Zola foi na Fran��a, o "chefe da escola".
Nascido a 14 de abril de 1857, em S��o Lu��s do Maranh��o,
sua primeira inclina����o art��stica foi para o desenho.
Ainda adolescente, veio ao Rio, onde j�� se encontrava o
seu famoso irm��o, Artur Azevedo, e come��ou a fazer
charges para os jornais. Voltando ao Maranh��o por mo-
tivo da morte do pai, logo encontraria a sua voca����o de
escritor. Publicou seu primeiro romance, Uma L��grima
��e Mulher, nos moldes do romantismo piegas de ent��o.
Logo em seguida ganha notoriedade com O Mulato, ro-
mance sobre a vida e os costumes maranhenses. Voltou
ao Rio, j�� famoso, e foi, com uma extraordin��ria fecun-
didade, publicando os seus grandes romances, Casa de
Pens��o, O Coruja, O Corti��o etc.
123
O sucesso e a gl��ria liter��ria, como at�� hoje acontece no
Brasil, n��o deram a Alu��zio Azevedo compensa����o mate-
rial e financeira. Vivia sempre em dificuldades, traba-
lhando como um " f o r �� a d o " nos seus livros e por isso
n��o lhe sobrava tempo para outras atividades rendosas.
Maldizia-se disso e passou a considerar a vida de escritor
como um jugo, do qual conseguiu libertar-se atrav��s de
um concurso para a carreira de c��nsul. Como tal serviu
em Vigo, na Espanha, em N��poles, no Jap��o, afinal em
Buenos Aires, onde morreu a 21 de janeiro de 1913, aos
55 anos de idade.
A obra numerosa de Alu��zio Azevedo foi toda ela escrita
at�� os 36 anos, ��poca em que ingressou na carreira con-
sular. Desde ent��o, passou cerca de 18 anos servindo no
estrangeiro at�� a morte, sem publicar um ��nico roman-
ce. Certa vez, em confiss��o a Rodrigo Ot��vio, disse que
se julgava incapaz, era mesmo imposs��vel escrever longe
de sua terra, do ambiente e do clima brasileiro, dos seus
tipos e paisagens.
124
Lenita
(A Carne, de J��lio Ribeiro)
DOS LIVROS mais discutidos e que maior esc��n-
dalo suscitaram na ��poca de sua publica����o, na d��cada
dos oitenta do s��culo passado, foi o romance naturalista
de J��lio Ribeiro, A Carne, uma obra fortemente influen-
ciada por ��mile Zola, a quem o autor ofereceu o livro
numa carta-dedicat��ria em que era chamado de chefe,
senhor e mestre, al��m de Pr��ncipe do Naturalismo. Nos
tempos atuais, em que a liberdade criativa assume pro-
por����es de absoluta dimens��o no que diz respeito aos as-
suntos do sexo, A Carne n��o suscitaria maiores discus-
s��es nem vexames. Simplesmente alguns aspectos de
mau gosto e vulgaridade seriam referidos, mas no seu
todo seria considerado pouco avan��ado.
Mas a verdade �� que, para a ��poca, constituiu um
desafio tanto no esp��rito da hist��ria como no descritivo
das cenas. E a sua hero��na, a mo��a rica que se lan��ou a
uma aventura sexual com um homem desquitado, pondo
por terra os tabus da r��gida moral burguesa, cometeu
verdadeira afronta �� tranquila sociedade ao fim do II
Reinado, ��s v��speras da proclama����o da Rep��blica.
127
Helena, ou familiarmente Lenita, chamava-se essa he-
ro��na que J��lio Ribeiro criou no seu romance. Mo��a bem
formada e bem criada, ela era uma representante da
mulher que j�� come��ava a se formar no Brasil, a femi-
nista, com todo o exagero e as distor����es da ��poca. Sabi-
chona, poliglota, versada em tudo quanto fosse ci��ncia, em
igualdade de condi����es com os homens cultos. Era sexu-
almente fria e indiferente, at�� que algo lhe despertou a
sexualidade reprimida. Num desses momentos, eis como
a descreve o autor: "Moreno-claro, alta, muito bem lan-
��ada, tinha bra��os e formas roli��as, musculosas, punhos
e tornozelos finos, m��os e p��s aristocraticamente perfei-
tos, terminados por unhas r��seas, muito polidas. Por sob
os seios rijos, protra��dos, afinava-se o corpo na cintura
para alargar-se em quadris amplos ( . . . ) Os cabelos pretos
com reflexos azulados ca��am em franjinhas curtas sobre a
testa indo frisar-se lascivamente na nuca. O pesco��o era
proporcionado, forte, a cabe��a pequena, os olhos negros
vivos, o nariz direito, os l��bios rubros, os dentes alv��ssi-
mos; na face esquerda tinha um sinalzinho de nascen��a,
uma pintinha muito escura, muito redonda".
Era assim a Lenita de A Carne, e acrescente-se a isso o
furor com que ela se lan��ou ao amor de um homem que
tinha o dobro de sua idade, para termos os ingredientes de
tantos romances que ultimamente fazem sucesso e logo
desaparecem para nunca mais ningu��m deles se lembrar.
O que n��o aconteceu com A Carne, que continua lido e
reeditado ��� nem com Lenita, que continua lembrada
como uma das personagens mais fortes da fic����o natu-
ralista entre n��s.
A hist��ria de Lenita come��a quando ela era ainda pe-
quena. Seu pai, o Dr. Lopes Matoso, tendo ficado vi��vo
com tr��s anos de casado, retirou-se para uma ch��cara
perto da cidade, afastando-se de tudo para dedicar-se �� lei-
tura de bons livros e �� educa����o da filha. Homem de
grandes recursos, p��de proporcionar a Lenita todo o con-
128
f��rto poss��vel, al��m de uma instru����o aprimorada, aci-
ma do vulgar, com cursos de ci��ncias, de matem��tica,
v��rias l��nguas, desde o italiano ao grego, todas as mat��-
rias do curso de humanidades, al��m de nata����o, equita-
����o, gin��stica e m��sica. At�� os 22 anos ela viveu essa
vida artificial. Nem pensava em sexo e recusava todos os
numerosos pretendentes �� sua m��o que apareciam perio-
dicamente. Mas um dia morreu o Dr. Lopes Matoso de
um ataque card��aco, e ela sentiu tamanho choque, ta-
manha prostra����o, que resolveu ir passar uns tempos
descansando na fazenda do Coronel Barbosa, que tinha
sido tutor e amigo de seu pai.
Em contato com a natureza exuberante do interior
paulista, Lenita despertou para os sentidos, e especial-
mente para o sexo, at�� ent��o adormecido, sendo de notar-
se que, nos primeiros dias de fazenda, teve um ataque
hist��rico prontamente medicado. O Coronel Barbosa
tinha um filho esquisit��o, de mais de 40 anos, desquita-
do, que vivia tamb��m na fazenda, um tanto afastado e
c��tico do mundo. Quando Lenita chegou, ele estava em-
brenhado nas matas, ca��ando, e s�� algum tempo depois
voltou a casa. Depois de uma repulsa inicial por parte
dela, os dois tornaram-se amigos e conversavam muito
sobre os mais variados temas cient��ficos, sociais, cultu-
rais, pois ele era tamb��m bastante instru��do, e vivera al-
gum tempo na Europa, onde conhecera a esposa de quem
era divorciado. Da camaradagem franca passaram ao
amor e deste �� paix��o sexual desvairada, tendo a mo��a to-
mado sempre a iniciativa da conquista. Viveram ent��o
um romance de arrebatamento e exaust��o sexual. Leni-
ta transformou-se totalmente, encontrando afinal a sa-
tisfa����o plena dos sentidos. J�� era outra, alegre, feliz,
totalmente curada do traumatismo da morte do pai. Mas
um dia Manuel Barbosa viajou a neg��cios a Santos, e l��
se demorou algum tempo. Em sua aus��ncia, Lenita des-
cobriu que estava gr��vida, e, remexendo os pap��is do
129
amante, encontrou v��rias cartas de amor de diversas
mulheres. Sentiu ci��mes e deu um balan��o em sua vida.
Sendo uma mulher inteligente e pr��tica, tomou uma re-
solu����o definitiva e logo a p��s em pr��tica. Fez as malas e
abandonou a fazenda para sempre. Quando Manuel Bar-
bosa voltou ficou desesperado. Afundou-se em completa
prostra����o, sempre �� espera de uma carta de Lenita com
uma explica����o para a sua fuga, carta que s�� chegou
semanas depois. Nela a amante lhe comunicava fria-
mente que ia ter um filho dele e que resolvera a situa����o
decidindo casar-se com um de seus pretendentes, o qual,
ciente de tudo, inclusive do filho que esperava, concorda-
ra. Manuel Barbosa, desolado, recolheu-se ao seu quarto
e se suicidou com uma inje����o de curare na veia.
A Carne apareceu no ano de 1888, e constituiu, como
j�� assinalamos, um verdadeiro impacto. Se socialmente
foi repudiado, literariamente foi tamb��m muito combati-
do, negando-lhe a cr��tica o valor art��stico, e atribuindo o
sucesso que fazia menos ��s suas qualidades que ��s cenas
er��ticas que descrevia.
O livro naturalmente tem exageros e defeitos como cri-
a����o romanesca, mas de tal modo ligou-se ao advento do
naturalismo entre n��s que ningu��m pode desconhecer a
sua import��ncia, n��o apenas hist��rica, mas tamb��m lite-
r��ria, pois influenciou de certo modo o romance natura-
lista brasileiro. Se teve grandes detratores, teve tamb��m
defensores, e ningu��m pode negar que at�� hoje seja lido
e que tenha conquistado um lugar na fic����o brasileira.
Para mostrar a exalta����o e a virul��ncia dos debates que
A Carne suscitou basta lembrar a famosa pol��mica do
seu autor com o padre portugu��s Senna Freitas, em ter-
mos de extrema descompostura. A pol��mica foi iniciada
pelo padre, publicando uma s��rie de seis artigos contra o
livro, no Di��rio Mercantil, de S��o Paulo, numa cr��tica
impiedosa. A princ��pio indiferente, depois profundamente
130
irritado, J��lio Ribeiro respondeu com outros tantos ar-
tigos de inaudita viol��ncia.
Para dar uma id��ia do teor da pol��mica, vamos trans-
crever um pequeno trecho de cada um dos contendores.
Dizia o Padre Senna Freitas: " D e fato, publicando aquela
Carne, que melhor deveria ser chamada de Carni��a, o
seu autor submeteu-se, ipso facto, ��s frechadas da cr��tica
leal e independente, venham de onde vierem. ( . . . ) Res-
peito, no Sr. J��lio Ribeiro, o homem particular a quem
sou grato, de que tenho profunda compaix��o, mesclada
de vivo interesse, e de cuja testada nem me aproximo.
Dirijo-me apenas, ou melhor, aviso o est��mago p��blico
contra essa venda il��cita de carne p��trida, exibida a
3$000 a posta, nos a��ougues liter��rios de S��o Paulo, e de
que J��lio Ribeiro se constituiu magarefe".
Eis um trecho da resposta de J��lio Ribeiro: "�� o caso
agora, �� o que vou fazer, �� besta que me agrediu ultima-
mente a couces e manota��os, e que, em puni����o, vai ser
agarrada de vez: �� uma besta religiosa, �� o Padre Senna
Freitas". E por a�� vai, nesse diapas��o.
J��lio Ribeiro ficou famoso n��o apenas com o romance
A Carne, mas como fil��logo, autor que era de conhecid��s-
sima Gram��tica Portuguesa. Nasceu a 16 de abril de
1845, em Sabar��, Minas, e morreu a 1 de novembro de
1890, em Santos, S��o Paulo, com 45 anos de idade.
Foi professor de Ret��rica, no Instituto de Educa����o de
S��o Paulo, e de Latim, na Faculdade de Direito do mes-
mo Estado. Jornalista vigoroso e tem��vel panflet��rio, este
seu c��lebre romance, embora em termos de fic����o, consti-
tuiu uma forma de combate aos preconceitos e �� moral da
��poca. Deixou ainda dois outros livros, o romance O
Padre Belchior de Pontes, em dois volumes, e Cartas
Sertanejas.
131
Maria do Carmo
(A Normalista, de Adolfo Caminha)
UGINDO AO ROMANTISMO que j�� estava passan-
do da moda em todo o mundo, os romancistas brasileiros
voltavam-se para o naturalismo, sob a influ��ncia de Zola e
de E��a de Queir��s.
Alu��zio Azevedo, J��lio Ribeiro, Ingl��s de Sousa e outros
que vinham surgindo, entre eles o cearense Adolfo Ca-
minha, davam �� nova escola liter��ria uma fei����o nacio-
nal. O naturalismo no Brasil cresceu como irm��o g��meo
do realismo, e as duas escolas quase se fundiram numa
��nica para, afinal, predominar em qualidade o realismo,
que havia de nos dar obras mais importantes e signifi-
cativas, e influenciar grandemente o romance moderno do
s��culo vinte.
Adolfo Caminha, jovem cearense atribulado por uma
vida de adversidades que culminaram com sua morte
prematura aos 30 anos incompletos, foi um dos mais
talentosos cultores do naturalismo entre n��s, apesar de
sua obra escassa, praticamente uns poucos romances. Um
deles, o que marcou sua estr��ia, foi A Normalista, que
tem como hero��na Maria do Carmo, uma jovem estudan-
te da Escola Normal de Fortaleza, personagem de um
135
drama que haveria de se repetir muitas vezes na fic����o
nordestina, o da mo��a pobre, retirante das secas, que ��
seduzida por um aproveitador da sua fraqueza e ingenui-
dade. No caso de Maria do Carmo, o sedutor foi o seu
pr��prio padrinho, que a criara desde menina, e a quem o
pai a entregara, ao emigrar para a Amaz��nia em busca
de melhor sorte.
Maria do Carmo viera do interior com os pais e um
irm��o, foragidos da terr��vel seca de 1877. Em Fortaleza
morreu-lhe a m��e; o pai, o Capit��o Bernardino de Men-
don��a, que se preparara para ir recome��ar a vida na
Amaz��nia com o filho homem que lhe restava, deixou-a
pequenina aos cuidados do amanuense Jo��o da Mata,
seu compadre. De l�� nunca mais voltaram, e Maria do
Carmo foi criada pelo padrinho que a p��s a estudar num
col��gio de freiras e, mais tarde, na Escola Normal para
formar-se em professora, carreira ent��o preferida pelas
mo��as da classe m��dia. Quando ela aparece no romance,
logo nas primeiras p��ginas, descreve-a o romancista co-
mo " u m a rapariga muito nova, com um belo ar de novi-
��a, morena-clara, olhos c��r de azeitona e carnes rijas".
Sua beleza e gra��a seduziam a todos. "A fama da norma-
lista ��� narra Caminha ��� encheu depressa toda a capital.
N��o se compreendia como uma simples retirante, sa��da
h�� pouco das Irm��s de Caridade, fosse t��o bem feita de
corpo, t��o desenvolta e insinuante. As outras normalis-
tas tinham-lhe inveja e faziam-lhe pirra��as. Nas reuni��es
do Clube Iracema era ela a preferida dos rapazes, todos a
procuravam".
Naturalmente que uma mo��a t��o requestada e sem
prote����o familiar atrai o apetite dos janotas e conquista-
dores da pra��a. Foi o que aconteceu com Zuza, rapaz
rico e estudante de Direito em Recife, que conquistou o
cora����o da bela normalista, mas n��o foi quem se apro-
veitou da beleza e do corpo de Maria do Carmo. Isso
coube a Jo��o da Mata, que o autor assim descreve: "Jo��o
136
da Mata era um sujeito esgrouvinhado, esguio e alto,
car��o magro de t��sico, com uma cor hep��tica denuncian-
do v��cios de sangue, pouco cabelo, ��culos escuros, atra-
v��s dos quais boliam dois olhos mi��dos e vesgos. Usava
p��ra e bigode ralo caindo sobre os bei��os, tesos como fios
de arame; a testa ampla confundia-se com a meia calva
reluzente. Falava depressa, com um sotaque abemolado,
gesticulando bruscamente e, quando ria, punha em evi-
d��ncia a medonha dentu��a posti��a".
Ao desconfiar do namoro de Maria do Carmo com o
estudante, Jo��o da Mata op��s-se furiosamente. E tal oposi-
����o se deu com estranhas manifesta����es de ci��me e acen-
tuadas inclina����es amorosas para com a afilhada. Ela o
repelia, mas pouco a pouco o padrinho foi ganhando po-
si����es para a conquista final. B��bedo inveterado, Jo��o da
Mata n��o mais deixou em paz a normalista, mas ela ia-se
defendendo enquanto prosseguia, ��s escondidas, o seu
namoro com Zuza. Por outro lado, esse namoro transfor-
mou-se no prato predileto da maledic��ncia provinciana.
Jornais humor��sticos, pasquins difamadores estampa-
vam hist��rias comprometedoras e as m��s l��nguas da ter-
ra n��o davam sossego a Maria do Carmo. Os pais de Zuza,
indignados com a hist��ria, procuravam mand��-lo de
volta a Recife, para concluir o curso de Direito. Nesse
clima de press��o social e familiar, ela sofria horrivel-
mente, pois amava Zuza e sonhava tornar-se sua esposa.
Jo��o da Mata aproveitou-se desse clima de tens��o que a
perturbava, e usando a sua autoridade de padrinho insi-
nuava-se para conquist��-la. At�� que uma noite foi sur-
prend��-la na rede onde ela dormia e terminou sedu-
zindo-a. Seguiram-se meses de tristeza e ansiedade
para Maria do Carmo que, tr��s dias depois de seduzida
pelo padrinho, teve not��cia de que Zuza afinal atendera ��
imposi����o do pai e voltara a Recife. Abandonada pelo
namorado, a normalista sentia aproximar-se a gravidez.
Um dia teve um desmaio e Jo��o da Mata, com medo do
137
esc��ndalo, levou-a para descansar na casa de um casal
amigo, num lugar afastado da capital, em Aldeota. A
aus��ncia da normalista despertou coment��rios maledi-
centes, e surgiu a vers��o de que ela esperava um filho do
estudante que a abandonara.
A hist��ria, no entanto, n��o terminou em trag��dia, ��
fei����o rom��ntica, mas no puro estilo naturalista. Maria
do Carmo teve o filho em Aldeota e o menino morreu. Ela
voltou a Fortaleza mais gorda, mais bonita, reingressou
na Escola Normal, continuou seus estudos, e pouco de-
pois ficou noiva do alferes Coutinho, com quem iria ca-
sar-se em breve.
Quando de sua volta a Fortaleza, ningu��m se lembrou
de comentar a sua vida, pois a cidade vivia ent��o estre-
mecida de boatos, com movimentos de tropas pelas ruas
para depor o Presidente da Prov��ncia. �� que havia sido
proclamada a Rep��blica no Rio de Janeiro.
A Normalista foi publicado em 1892 no Rio, onde j��
residia o autor, ap��s os percal��os de sua vida atribulada.
A hist��ria narrada nessa obra, injustamente recebida
com frieza pela cr��tica, foi inspirada num epis��dio es-
candaloso ocorrido em Fortaleza, com ampla repercus-
s��o na sociedade local, mas logo abafado pelas fam��lias
dos protagonistas.
Acontece que Adolfo Caminha tinha profunda m��goa
de sua terra e nesse romance, al��m de relembrar um
epis��dio rumoroso, deu vaz��o �� sua ojeriza ao Cear��. Tan-
to Zuza como Jo��o da Mata, no curso da narrativa, di-
zem horrores da terra, da gente do Cear�� inteiro, extra-
vasando a vingan��a do autor que nada perdoa na sua
amarga cr��tica.
Embora com os defeitos comuns �� escola naturalista, A
Normalista �� um romance excelente, e deu a Adolfo Ca-
minha um lugar proeminente na literatura brasileira
dos fins do s��culo passado. A fixa����o do ambiente, a ca-
138
racteriza����o dos personagens, o amplo panorama social
que ele retrata, demonstram o pulso, o vigor e o talento
do romancista genu��no. Maria do Carmo foi muito bem
criada pelo autor, e nada fica a dever, como figura de
fic����o, a tantas outras que povoam o mundo do romance
brasileiro.
Adolfo Caminha nasceu no sert��o do Cear�� a 25 de
maio de 1867. Ficando ��rf��o durante a seca de 1877, veio
para o Rio, onde foi criado por um tio. Aos 13 anos,
ingressou na Escola Naval e saiu segundo-tenente, indo
servir em Fortaleza. A�� come��aram os seus dissabores,
pois envolveu-se num esc��ndalo amoroso que o levou a
abandonar a carreira naval. Veio em seguida morar no
Rio, com a mulher e filhos. Amargurado, sofrendo difi-
culdades financeiras, pois vivia de colabora����es na im-
prensa e de um emprego p��blico que conseguira ap��s a
baixa da Marinha, o escritor morreu de tuberculose pul-
monar a 1 de janeiro de 1897, antes de completar 30
anos.
Sua obra, al��m de A Normalista, conta com mais um
romance, O Bom Crioulo, talvez o mais bem feito do
naturalismo brasileiro, mas tamb��m prejudicado pelo
escabroso do tema, na ��poca considerado imoral e aten-
tat��rio aos bons costumes. Publicou ainda o romance
Tenta����o, sem a mesma import��ncia dos anteriores, mais
um livro de cr��tica intitulado Cartas Liter��rias, deixan-
do in��ditos contos, poemas, e inacabados dois outros ro-
mances, ngelo e O Emigrado.
139
Ema
(O Ateneu, de Raul Pomp��ia)
OMANCE OU "cr��nica de saudades", como o deno-
minou o autor, O Ateneu e um dos livros mais impor-
tantes da literatura brasileira dos fins do s��culo X I X .
Foi escrito num per��odo de amplo debate, quando j�� es-
tava ultrapassado o romantismo, e o naturalismo, sob a
inspira����o de Zola e E��a de Queir��s, procurava se afir-
mar com estr��pito e mesmo com certo esc��ndalo.
Obra de um esp��rito inquieto, torturado, de um talento
fora do comum, O Ateneu explodiu como um foguete
luminoso e deixou um rastro fulgurante atrav��s dos
anos. Ele, somente, bastou para dar fama e gl��ria a Raul
Pomp��ia.
N��o se pode, rigorosamente, fili��-lo a uma determinada
corrente ou escola liter��ria. Se �� um romance natura-
lista, simbolista, impressionista, os cr��ticos ainda n��o
chegaram a uma conclus��o. Um grande livro �� o que ��, e
vem atravessando os anos e se sobrepondo ��s modas lite-
r��rias, ��s escolas, aos movimentos de transforma����o e de
vanguarda. Uma obra-prima, concordam todos, um livro
singular, vibrante, uma explos��o de sentimentos
contradit��rios, ��dio, amor, frustra����o, revolta, tendo co-
143
mo cen��rio um internato de menores, um col��gio que o
autor apresenta como uma escola da vida, um pequeno
mundo de lutas, disputas, dissens��es, mesquinharias,
que antemostram ao jovem colegial um panorama rea-
lista e mesmo pessimista do que ir�� encontrar atrav��s da
vida.
O Ateneu �� riqu��ssimo de tipos humanos, desde a fi-
gura extraordin��ria e caricata do famoso diretor, aos
professores, ��s centenas de alunos das mais diferentes
personalidades. Somente tr��s mulheres aparecem em to-
do o livro. Uma empregada de nome ngela, coquete, vul-
gar, que provoca, por amor e ci��me, o assassinato de um
servi��al do col��gio e que procura excitar sexualmente os
meninos a dist��ncia; Dona Ema, a esposa do Diretor,
figura delineada com alguma imprecis��o mas que assu-
me import��ncia na hist��ria e pode ser inclu��da na ga-
leria das hero��nas do romance brasileiro; e a sua filha
adolescente.
Como era D. Ema, a doce e amorosa senhora que dei-
xava entrever, em suas rela����es com os alunos do col��gio,
um misto de sentimentos maternais e lascivos, e vivia
se afogando em suspiros e insatisfeitas aspira����es amoro-
sas?
Ema surge somente com algum realce no fim do ro-
mance, mas h�� nas primeiras p��ginas uma sua s��bita
apari����o. �� quando S��rgio �� levado pelo pai ao Ateneu e
Aristarco, o Diretor, zomba dos cabelos longos e cachea-
dos do menino. Diz-lhe que no seu col��gio n��o h�� lugar
para meninos bonitos e de cabelos cacheados. Que fosse
imediatamente ao cabeleireiro! Ent��o aparece Ema, ins��li-
tamente, e diz: " P e �� o licen��a para defender os meninos
bonitos". E S��rgio a viu, em todo o esplendor da beleza
madura e assim a descreve:
"Surpreendendo-nos com esta frase, untuosamente es-
coada por um sorriso, chegou a senhora do Diretor, D.
Ema. Bela mulher em plena prosperidade dos trinta anos
144
de Balzac, formas alongadas por graciosa magreza, eri-
gindo, por��m, o tronco sobre quadris amplos, fortes como
a maternidade; olhos negros, pupilas retintas, de uma
cor s��, que pareciam encher o talho folgado das p��lpe-
bras; de um moreno rosa que algumas formosuras pos-
suem, e que seria tamb��m a cor do jambo, se jambo fosse
rigorosamente o fruto proibido. Adiantava-se por movi-
mentos oscilados, cad��ncia de minueto harmonioso e mo-
le que o corpo alternava. Vestia cetim preto justo sobre as
formas, reluzente como pano molhado; e o cetim vivia
com ousada transpar��ncia a vida oculta da carne.''
Depois desta recep����o, passa S��rgio ao mundo do in-
ternato e quase todo o romance se comp��e de suas rea����es
e viv��ncias naquela comunidade onde tudo acontecia de
frustrante, influenciando-lhe o car��ter, despertando-lhe a
revolta, a indigna����o, o ��dio mesmo. Apenas de refer��ncias
vagas sabe-se que Ema continua, e correm rumores entre
os alunos de suas rela����es ad��lteras com um determina-
do professor. Mas isso desaparece no dia-a-dia das conver-
sas, das futricas, dos dramas mi��dos, das tempestades
que varriam o Ateneu.
O internato, visto pelo autor-personagem que o vai bus-
car nas recorda����es de menino, era uma esp��cie de
submundo de perversidade e corrup����o. Crimes, amiza-
des suspeitas, atitudes e gestos de covardia, hipocrisia,
falsa moral, solenidades pomposas e vazias, homenagens
arranjadas, frustra����es e humilha����es sem conta, sob a
batuta do famoso Diretor, que se julgava, fazia-se crer, e
procedia como um Deus, um J��piter mitol��gico, senhor
de todos os destinos, terr��vel na vingan��a e no castigo,
imperioso nas ordens arbitr��rias, indom��vel, s��bio,
grandioso, baluarte do ensino no Imp��rio, sedento de
gl��ria e ostenta����o, mas que no fundo era mesmo um
grandiss��ssimo canastr��o, queria prest��gio e fama a todo
o custo, e procurava impressionar o Pa��s e os poderosos
145
para atrair ao seu col��gio os meninos ricos e assim ame-
alhar maiores lucros. �� uma caricatura terr��vel, a que
faz Pomp��ia do Diretor Aristarco, a mais talentosa e a
mais impiedosa da literatura brasileira.
Ema aparece em tudo, em meias-tintas, como a figura
suave, bela, amorosa, daquele mundo falacioso e podre.
Era uma esp��cie de Madame Bovary submetida a um
marido terr��vel e glorioso, no fundo uma natureza ar-
dente ansiando pelo amor que Aristarco n��o sabia ou n��o
podia dar. E procurava transferir essa necessidade de ca-
rinho para os meninos bonitos e um certo professor de
quem era amante. No final tr��gico, quando irrompeu o
inc��ndio que destruiu totalmente o col��gio, ela aprovei-
tou a oportunidade para fugir ��quela pris��o e desaparecer
do mundo de Aristarco, abandonando-o na desgra��a,
impiedosamente. At�� no nome a Ema do Ateneu faz lem-
brar a Ema Bovary de Flaubert.
A aproxima����o maior de S��rgio no mundo sentimental
de Ema deu-se primeiro no almo��o de que participou na
casa do Diretor, e depois nas f��rias, quando permaneceu
no internato, pois seu pai viajara para a Europa, e ele
adoeceu de sarampo. D. Ema foi a sua enfermeira amoro-
sa e diligente, sempre a seu lado, carinhosamente, e quan-
do estava longe fazia-se presente nos sons do piano que
tocava. S��rgio, inebriado, bebia-lhe os carinhos e os cuida-
dos com apetite desesperado. Ela beijava-o na testa, enxu-
gava-lhe o suor, envolvia-o em abra��os, punha-o no colo,
contava-lhe, l��bio a l��bio, "mimosas historietas sem tex-
t o " , abria-lhe o cora����o e desabafava a sua tristeza e
solid��o. "Ningu��m por m i m . . . Nesta casa sou de-
mais . . . N��o sabe o que �� um cora����o isolado como o
m e u . . . " , eram confid��ncias que ela lhe fazia em tom
suspeito. O id��lio da longa convalescen��a foi interrompido
pela trag��dia. O inc��ndio do Ateneu, provocado pela vin-
gan��a de um menino, a fuga de Ema, o fim da hist��ria e
146
do poder de Aristarco, que se mantinha hier��tico, solene,
inating��vel �� desgra��a, ao inc��ndio do seu mundo e ��
fuga da esposa, " c o m o um deus caipora, triste sobre o
desastre universal de sua obra".
O Ateneu foi publicado pela primeira vez em folhetim
na "Gazeta de Not��cias", no ano de 1888, e logo chamou
a aten����o do mundo liter��rio. Obra extraordin��ria, tem
sido filiada ao naturalismo, como a sua mais perfeita
express��o no Brasil, opini��o contestada pelos que nele
encontram maior influ��ncia do realismo, sendo por ou-
tros considerada obra simbolista e mesmo impressio-
nista.
Foi inspirado, seguramente, no famoso Col��gio Ab��lio,
do grande educador Ab��lio C��sar Borges, figura m��xima
do ensino no Brasil em sua ��poca, feito Bar��o de Maca��-
bas pelo Imperador Pedro II. O Col��gio existiu no casar��o
ainda hoje conservado �� Rua Ipiranga, 70, nas Laranjei-
ras, e foi onde Raul Pomp��ia estudou na inf��ncia. N��o
parece certo, no entanto, que o romance seja um retrato
fiel daquele col��gio, nem a figura caricata de Aristarco
seja o retrato do Bar��o de Maca��bas. Ambos foram
ultrapassados pela imagina����o do autor, e as cores pessi-
mistas do relato, o pequeno mundo de hipocrisias, de
vinditas de torpezas que ele retrata, tendo como centro a
figura de Aristarco, cresceram �� sombra do temperamento
neur��tico, angustiado e doentio de Pomp��ia e que o le-
vou ao suic��dio sete anos depois de publicar O Ateneu,
escrito aos 25 anos de idade.
Raul de ��vila Pomp��ia nasceu a 12 de abril de 1863
em Angra dos Reis, Estado do Rio, e suicidou-se aos 25
de dezembro de 1895. Sua curta vida foi marcada pelas
manifesta����es de um talento incomum e de um tempera-
mento exacerbado, neur��tico. Exerceu v��rios cargos de re-
levo, tais como Diretor do Di��rio Oficial, professor e se-
cret��rio da Escola Nacional de Belas-Artes e diretor-geral
147
da Biblioteca Nacional, cargo do qual foi demitido pelo
Presidente Prudente de Morais, depois da ora����o f��nebre
que pronunciou no t��mulo do Marechal Floriano, exal-
tando a figura do Consolidador da Rep��blica. Este insu-
cesso desencadeou em Pomp��ia um estado depressivo,
agravado pela neurose, mania de persegui����o, sentimen-
to de honra ofendida, sintomas que haveriam de culmi-
nar com o seu suic��dio, desfechando um tiro no peito
na noite de Natal de 1895, aos 32 anos. Al��m de O Ate-
neu publicou Uma trag��dia no Amazonas, Can����es sem
Metro, poemas em prosa.
148
Luzia
(Luzia-Homem, de Domingos Ol��mpio)
MA GRANDE PERSONAGEM feminina do roman-
ce nordestino, e que, somente ela, deu fama liter��ria ao
seu criador, �� Luzia-Homem, a extraordin��ria mulher
sertaneja descrita por Domingos Ol��mpio no livro que
iniciou, no princ��pio deste s��culo, o " c i c l o da s e c a " na fic����o do Nordeste.
Mulher valente e audaz para enfrentar as adversidades,
tinha a for��a de um gigante nos trabalhos mais r��sticos
a que a pobreza, a mis��ria e a seca a obrigavam, mas
tamb��m possu��a reservas de do��ura, de amor e de
feminilidade e se apaixonou por um homem honrado,
sonhando com o casamento e um lar, s�� o n��o conse-
guindo porque a trag��dia atingiu-a quando tudo parecia
sorrir aos seus desejos.
Luzia-Homem �� como que uma s��ntese da mulher ser-
taneja, plena de hero��smo na luta pela vida a que o
meio a obriga, chegando mesmo a aparentar certa mas-
culinidade, mas ao mesmo tempo capaz da dedica����o que
o amor inspira, da delicadeza de sentimentos e das qua-
lidades femininas de uma donzela pudica e honrada.
151
Luzia aparece no romance, todo ele girando em torno
de sua pessoa, nas primeiras p��ginas, atrav��s do assom-
bro do franc��s Paul que, viajando pelo Cear��, demorara-se
em Sobral colhendo document��rios e tomando notas
nos ranchos de retirantes. Em visita ��s obras da cadeia
local, escrevera ��le em suas notas: "Passou por mim uma
mulher extraordin��ria, carregando uma parede na ca-
b e �� a " . Era Luzia ��� acrescenta o romancista ��� condu-
zindo para a obra, arrumados sobre uma t��bua, cinquen-
ta tijolos". "Viram-na outras vezes ��� continua ��� levar
firme sobre a cabe��a uma enorme jarra d'��gua, que valia
tr��s potes, de peso calculado para a for��a normal de um
homem robusto. De outra feita, removera e assentara no
lugar pr��prio a soleira de granito da porta principal da
pris��o, causando pasmo aos mais valentes oper��rios".
Em outro local descreve o romancista uma cena em que
um boi bravo ia matar um homem quando Luzia irrom-
peu da multid��o e o agarrou pelos chifres subjugando-o
que nem um cabrito.
Tudo isso valeu-lhe o apelido de Luzia-Homem, com que
os moleques a apupavam, e at�� mesmo as pessoas adul-
tas a ela se referiam assim. No entanto, diz o autor,
aquela mulher "encobria os m��sculos de a��o sob as
formosas esbeltas e graciosas das morenas mo��as do ser-
t �� o " . Era altaneira e bela, tinha uns lindos cabelos lon-
gos e sedosos.
O cen��rio do romance �� a cidade cearense de Sobral, na
��poca da terr��vel seca de 1878. Ranchos de retirantes fa-
mintos se formavam nos arredores e a prociss��o da mi-
s��ria desfilava diariamente pelas ruas. A Comiss��o de So-
corros providenciava trabalho para muitos na constru-
����o da cadeia p��blica, e distribu��a mantimentos e roupas
aos mais desesperados. Luzia era uma retirante e vivia
com a m��e doente, entrevada. Mas n��o estendia a m��o ��
caridade e se empregou nas obras da cadeia, onde gran-
jeara admira����o de quantos a viam trabalhar. Criou fa-
152
ma, n��o s�� pela sua coragem e for��a, como pela beleza
que aquela vida abrutalhada n��o podia esconder. Surgiu
ent��o um soldado de pol��cia, femeeiro e atrevido, que
passou a persegui-la com propostas indecorosas. Cha-
mava-se Crapi��na. Por outro lado, afei��oara-se ela ao
funcion��rio da Comiss��o de Socorros, Alexandre, que
era seu amigo e protetor. Mas Crapi��na n��o a deixava
em paz um s�� dia, e Alexandre quis fazer recuar o atre-
vido, amea��ando-o.
Estoura ent��o um esc��ndalo. A porta da Comiss��o de
Socorros amanheceu arrombada, verificando-se o furto
de muitos mantimentos e de dinheiro. Alexandre foi
acusado e preso, embora negasse a culpa. Luzia acredi-
tava na honradez do seu amigo e passou a viver em fun-
����o de provar a sua inoc��ncia. Levava-lhe todos os dias
comida na pris��o e procurava um meio de descobrir o
verdadeiro ladr��o. Foi Teresinha, sua amiga e filha de
retirante que se prostitu��ra, quem muito a ajudou nisso.
Em primeiro lugar encomendou �� feiticeira Rosa Veado
um responso, para encontrar o criminoso, e uma noite
ouviu uma conversa na casa vizinha �� sua, onde Cra-
pi��na e outros jogavam baralho. A�� veio a saber que o
soldado era o autor do roubo e escondera no seu pr��prio
quintal a bolsa com o dinheiro. Enquanto isso, Alexandre
j�� havia passado semanas na cadeia, pesando-lhe mais
a acusa����o de uma mo��a de nome Sabina, que fora indus-
triada por Crapi��na para dizer que ele roubara o dinheiro
para lhe dar presentes.
De posse do segredo, Teresinha denuncia ao delegado o
verdadeiro ladr��o. O soldado Crapi��na foi levado ao local
onde escondera o dinheiro e tudo se esclarece. Alexandre
foi solto e reconduzido ao seu emprego na Comiss��o de
Socorros, mas Luzia esquiva-se de v��-lo, com ci��mes de
Teresinha. Logo em seguida, no entanto, tudo se escla-
153
rece e Alexandre vem ao encontro de Luzia para afinal
acertarem as contas de amor.
N��o obstante isso, o desfecho �� tr��gico. N��o s�� Luzia,
sua m��e doente e Alexandre, como Teresinha e sua fam��-
lia, resolveram sair de Sobral e viajavam na estrada,
quando Crapi��na, que conseguira fugir da cadeia, apare-
ce para vingar-se de Teresinha, e ataca. Luzia, que vem
perto, vai em sua defesa, Crapi��na, ao ver-se agarrado pe-
los punhos fortes de Luzia, sente avivar-se a sua paix��o
pela mo��a, e rasga-lhe o vestido tentando possu��-la. Num
assomo de ��dio Luzia crava-lhe com for��a extrema as
unhas no rosto, e o soldado, urrando de dor, afunda-
lhe o punhal no peito, Luzia cai agonizante e morre em
seguida, tendo nas m��os ensanguentadas um olho de
Crapi��na. Acorrem as outras pessoas do grupo, e o sol-
dado, tonto e cego de dor, vai cambaleando at�� que cai
num precip��cio.
Luzia-Homem foi publicado em 1903. Romance de tons
naturalistas, retratou de maneira admir��vel o Nordeste
sob a seca e foi o primeiro grande livro a apresentar o
drama dos flagelados cearenses de maneira realista, ini-
ciando todo um ciclo ficcional que viria desaguar em A
Bagaceira, de Jos�� Am��rico de Almeida, em O Quinze, de
Rachel de Queiroz, e outros que projetaram o romance
social do Nordeste na d��cada de 30.
Os defeitos que se possam apontar neste romance de
Domingos Ol��mpio desaparecem ante a not��vel descri����o
do ambiente social da regi��o e a for��a que conseguiu im-
primir n��o s�� ao tema como �� figura inconfund��vel de
Luzia-Homem, uma das grandes personagens femininas
de nosso romance.
Ap��s o sucesso inicial, Luzia-Homem foi um tanto es-
quecido pela cr��tica, at�� que L��cia Miguel Pereira, na
d��cada de 50, restaurou o prest��gio deste livro, hoje re-
conhecido como uma das grandes cria����es do romance
154
social nordestino e um cl��ssico da chamada novel��stica
da seca.
Domingos Ol��mpio nasceu em Sobral, Cear��, a 18 de
setembro de 1850 e morreu no Rio de Janeiro a 6 de
outubro de 1906.
Advogado e jornalista, profiss��es que exerceu na ent��o
Capital da Rep��blica, s�� aos 53 anos publicou seu pri-
meiro e praticamente ��nico livro, este romance Luzia-
-Homem, sa��do em 1903 numa edi����o da Companhia Lito-
-Tipogr��fica. Logo no ano seguinte iniciou a publica����o,
na revista Anais, de um outro romance intitulado O Al-
mirante, de costumes fluminenses. Deixou ainda um
romance incompleto, inspirado em temas amaz��nicos,
intitulado O Uirapuru, do qual se conhecem apenas onze
cap��tulos publicados em Anais.
155
Maria
(Cana��, de Gra��a Aranha)
OMANCE QUE FEZ ��poca, Cana��, de Gra��a
Aranha, �� apontado como precursor do modernismo, mo-
vimento a que o autor viria, mais de vinte anos depois,
a aderir com grande alarido. Sendo obra do princ��pio
do s��culo, tinha influ��ncias naturalistas e simbolistas,
que se traduziam nas descri����es e na exalta����o da na-
tureza tropical que serve de cen��rio ao livro. Por outro
lado, refletia o gosto da discuss��o filos��fica que o autor,
disc��pulo de Tobias Barreto, trazia desde os tempos da
famosa Escola do Recife.
Uma personagem feminina adquire destaque neste ro-
mance realmente extraordin��rio, embora n��o seja em
torno dela que gire toda a a����o do livro. Trata-se
da teuto-brasileira Maria, filha de colonos, cujo destino
infeliz emociona os leitores, e cuja figura humilde, re-
signada, ganha contornos de serena grandeza no sofri-
mento e na humilha����o. Ali��s, o livro n��o se caracte-
riza pela a����o ou pela hist��ria, mas pelo debate de
id��ias. Nele predomina o teor filosofante, no entrecho-
que de concep����es opostas da exist��ncia, atrav��s dos
personagens principais, dois imigrantes alem��es que se
159
encontram numa col��nia agr��cola no Esp��rito Santo e
defendem, ante a natureza exuberante que os rodeia,
seus pontos de vista, em di��logos que os entret��m
nas longas horas mortas da quase primitiva regi��o.
A hero��na de Cana�� s�� aparece quando j�� vai adian-
tado o livro. Milkau, o imigrante rec��m-chegado, vai
ao of��cio religioso, e, ao ouvir a m��sica do ��rg��o, evoca
de mem��ria, semi-adormecido, uma vis��o da p��tria dis-
tante e da mulher que ele amara. S��bito desperta e
nota Maria que o fitava demoradamente, e a sua figura
como que se confunde com a imagem retrospectiva.
Dias depois, numa festa campestre, a reencontra e
assim a v��: "havia nela certa beleza, uma distin����o
maior do que era comum nos colonos; o porte era gra-
cioso, o busto erguido, por��m de um contorno farto,
e as m��os brancas, talvez longas demais, sa��am dos
bra��os como cabe��as de galgo. Mas o que tinha de
superior era a fronte aberta, era o cabelo louro, fofo,
vol��til, era a express��o da beca, da sua boca descorada,
mas ��mida e bondosa".
Ali, onde a via Milkau, j�� estava no v��rtice da tra-
g��dia que se abatera sobre ela, mo��a pobre, ��rf��, a
viver de favor na casa de uma fam��lia. Da conviv��ncia
quase de irm��os com o patr��ozinho da casa, nascera
o amor, a paix��o, a entrega. Depois, os preconceitos,
os interesses, o afastamento do amado, a desonra, a
expuls��o da casa e toda uma s��rie de infort��nios que
a levaram at�� a cadeia, de onde a retira Milkau, nu-
ma fuga rom��ntica, e saem os dois em busca da so-
nhada Cana��.
Mas vamos �� hist��ria que se desenvolve paralela ��
adapta����o dos dois imigrantes na col��nia esp��rito-san-
tense, Milkau e Lenk. O livro tem in��cio com a viagem a
cavalo de Milkau, orientado por um guia, em busca do
Porto de Cachoeira, no Esp��rito Santo, aonde vai para
instalar-se numa col��nia agr��cola. As primeiras p��ginas
160
mostram o deslumbramento do estrangeiro ante a beleza
e a grandeza dos cen��rios. L�� se encontra com Lenk,
tamb��m rec��m-chegado, e se fazem amigos insepar��veis.
Juntos v��o ��s terras da col��nia e escolhem o lote em
que ir��o trabalhar. O encontro dos dois, as longas con-
versas, as discuss��es ocupam grande parte do livro.
Milkau era um idealista, acreditava no homem, na so-
lidariedade universal e no amor. Suas concep����es eram
um misto de teorias de Rousseau e do evolucionismo
germ��nico. Lenk, ao contr��rio, acreditava na viol��ncia,
na conquista com sangue, e encarnava o esp��rito ger-
m��nico de domina����o da ra��a superior. Milkau queria
a integra����o de todas as ra��as; Lenk, o predom��nio
da ariana. Ambos, muito inteligentes, dialogavam sobre
tudo, e tudo oferecia motivo para as longas discuss��es.
O encontro de Milkau e Maria, j�� narrado acima,
desvia a a����o do romance para a sua hist��ria triste.
Bastou aquele momento para que ambos se compreen-
dessem e se amassem, mas somente no final do livro
�� que realmente seus destinos se encontram.
Maria nascera na col��nia, era filha de imigrantes.
Seu pai morrera logo ao chegar ao Brasil, e a m��e,
vi��va e quase mendiga, empregara-se na casa do velho
e rico colono Augusto Kraus. Ali cresce Maria na con-
di����o de agregada, e da conviv��ncia com o jovem Moritz
nasce o amor. Afinal, tornam-se amantes, mas a fa-
m��lia queria cas��-lo com uma colona rica e o afastou
para longe. Maria fica gr��vida. Quando a situa����o se
torna conhecida, ela �� expulsa da casa. Vaga misera-
velmente pelas estradas. Pede abrigo na casa do pas-
tor, mas de l�� �� tamb��m expulsa como uma pecadora.
�� aceita numa estalagem apenas por dois dias, dando
como pagamento toda a roupa que levava. A�� a en-
contra Milkau e lhe arranja abrigo na casa de uma
fam��lia amiga onde ela passou a trabalhar.
161
Mas j�� se aproximava a ��poca do parto. E as dores
sobrev��m quando trabalhava a terra, sozinha no campo.
Vive ent��o momentos de ang��stia e dor. Deitada no
ch��o, contorce-se, enquanto os porcos grunhiam muito
pr��ximo. Afinal a crian��a nasce e ela desmaia. Os por-
cos se aproximam, lambem o sangue e come��am a de-
vorar a crian��a. Maria volta a si e ao ver a cena d��
um grito terr��vel. Aproxima-se uma pessoa da casa e
volta correndo para anunciar a trag��dia.
Maria foi depois presa e acusada de ter dado o filho
aos porcos, para livrar-se do fruto do pecado. Toda a
col��nia exige castigo. Ent��o Milkau prepara a fuga e
a tira da pris��o. Fogem os dois e assim termina o
romance. Milkau e Maria correndo para o desconhecido,
ante o cen��rio maravilhoso da natureza brasileira, em
busca de Cana��, a terra entressonhada que ali n��o ha-
viam encontrado. Esperam mais longe encontr��-la, em
qualquer parte da Terra. Em dado momento, ele de-
sespera, acha que nada mais resta sen��o a morte e
tenta jogar-se no precip��cio. Ela o det��m, e lutam
corpo a corpo, entre o desespero e o desejo.
Ela vence e continuam a caminhada, atr��s da miragem
que sempre os leva adiante, em busca de uma nova
terra de amor e de esperan��a, a terra da Promiss��o.
Gra��a Aranha, logo depois de sua formatura em Re-
cife, foi juiz municipal em Porto Cachoeiro, no Esp��-
rito Santo, e l�� idealizou este romance. H�� no livro
n��o s�� largas reflex��es e discuss��es filos��ficas, como
uma cr��tica �� vida social dos colonos alem��es, e ainda
um libelo contra a justi��a local que espolia, humilha
e explora os pobres imigrantes. Ele pr��prio aparece na
pele do juiz municipal Paulo Maciel, que procura de-
fender os colonos e evitar a espolia����o, mas �� vencido
pelos outros, o promotor, o escriv��o, o juiz de direito,
figuras que aviltam a dignidade de tais cargos.
162
H�� ainda no livro cenas impressionantes pelo realismo
das descri����es tais como a do parto de Maria, a disputa
dos porcos focinhando na lama e no sangue, despeda-
��ando o corpo do rec��m-nascido; e o espet��culo da desco-
berta do corpo de um solit��rio ca��ador, morto h�� v��rios
dias no seu s��tio, j�� semidevorado pelos urubus, e guar-
dado zelosamente por uma matilha de c��es ferozes. Os
homens se aproximam para resgatar o corpo e se em-
penham numa luta dram��tica contra os c��es que ten-
tavam proteger o dono e os urubus que n��o largavam a
carni��a. Ao fim da luta, os homens estavam mordidos,
sangrando, com as roupas dilaceradas, e os c��es mortos.
S�� ent��o puderam enterrar o corpo do ca��ador.
Cana�� foi publicado em 1902, pela Garnier, e marcou a
estr��ia de Gra��a Aranha em livro. J�� era nome famoso
pelos trabalhos que publicara em jornais e revistas, con-
tos, confer��ncias, pref��cios e ensaios filos��ficos, e pela sua
atua����o no exterior, em cargos diplom��ticos, secretari-
ando Joaquim Nabuco nas miss��es extraordin��rias de que
fora encarregado o grande abolicionista. J�� pertencia,
tamb��m, �� Academia Brasileira de Letras, desde a sua
funda����o em 1897.
Gra��a Aranha nasceu em S��o Lu��s do Maranh��o, a 21
de junho de 1868, e morreu a 26 de janeiro de 1931 no
Rio de Janeiro, como um ��dolo dos jovens revolucion��rios
da Semana de Arte Moderna. Tendo aderido ao moder-
nismo logo no in��cio do movimento, em 1922, posterior-
mente, em 1924, rompeu com a Academia, em sess��o
p��blica, quando pronunciou a confer��ncia "O Esp��rito
Moderno".
Publicou ainda, entre outros, os livros Malazarte, Est��-
tica da Vida, A Viagem Maravilhosa. Cana��, no entanto,
foi o seu grande sucesso e permanece at�� hoje como um
dos nossos maiores romances. Alguns cr��ticos condenam
nele o exagero das discuss��es e da ret��rica, o predom��nio
163
do social e do filos��fico sobre a mat��ria puramente ficcio-
nal, enfim apontam-lhe defeitos, mas a verdade �� que
tudo isso desaparece, pois que Cana�� �� realmente um
livro excepcional, varrido por um sopro de grandeza e de
beleza que o tornam imorredouro, e atrav��s dos tempos
ser�� lido como uma obra-prima.
164
Violante
(Turbilh��o, de Coelho Neto)
INVENT��RIO DA fic����o brasileira do fim do
s��culo passado ��s primeiras d��cadas deste, um nome n��o
pode ser esquecido, n��o s�� pelo n��mero de obras
que publicou como pela influ��ncia que exerceu em largo
per��odo da vida liter��ria brasileira. Trata-se de Coelho
Neto, figura ��mpar de nossas letras, ultimamente um
tanto esquecido. Autor de cerca de vinte romances, ��
muito variada a sua produ����o e m��ltipla a cria����o dos
tipos que povoam o seu mundo ficcional. N��o poder��a-
mos deixar de incluir nesta s��rie o prodigioso escritor
maranhense, nem de destacar um dos tipos de sua ima-
gina����o. Qual deles, no entanto, melhor se adaptaria a
esta cole����o de hero��nas do nosso romance?
Optamos por Violante, figura central de Turbilh��o, ro-
mance apontado por alguns cr��ticos como dos melhores
sen��o o melhor de sua obra. Era ela uma dessas mo��as
levianas e buli��osas, ��s quais os preconceitos da ��poca
apontavam como doidivanas. Descreve-a assim o ro-
mancista:
"Era bonita e esbelta, de um moreno quente de criou-
la, tez fina e rosada, olhos negros, boca pequena, sensual,
167
de l��bios carnudos e ��midos. Os cabelos, quando os des-
prendia, passavam-lhe das cintas em ondas, negras e re-
luzentes. Tinha uma voz l��nguida, como ressentida de
tristeza; falava em tom dolente de queixa e o seu olhar
quebrantado, sonolento, amortecia-se em ��xtases sob
as longas pestanas curvas".
Suas ocupa����es habituais eram fazer e desfazer os pen-
teados, polir as unhas, passar os dias na cadeira de ba-
lan��o, a ler romances, e �� tarde, encharcada de perfumes,
com muito p��-de-arroz, debru��ar-se �� janela para ver os
trens da Central (morava na Rua Senador Eus��bio), e
receber bilhetinhos que os rapazes metiam entre as fres-
tas da persiana.
Esses tra��os j�� mostram a psicologia de Violante e nos
indicam o rumo que sua vida iria tomar. Fr��vola e ba-
nal, era sua ��nica preocupa����o agradar os homens que a
admiravam e galanteavam. Mas, como �� ��bvio, para
desespero de sua m��e vi��va e seu irm��o jornalista e
estudante, n��o lhe passava pela cabe��a a id��ia de casar-
se e constituir um lar. Seus planos eram outros, e neles
inclu��a uma vida melhor do que a que levava, e se dis-
punha a conquistar tal situa����o usando os predicados
que Deus lhe dera, a beleza do corpo e do rosto.
Figura bem representativa, de uma mo��a de fam��lia
classe m��dia ca��da em processo de empobrecimento e
mis��ria, Violante era um tipo comum a todas as grandes
cidades, e que frequentemente povoa os romances e con-
tos de nossa fic����o urbana. Neste livro de Coelho Neto
ela exerce, sobre sua fam��lia em decad��ncia, o efeito de um
cataclismo, provocando o desmoronamento completo,
moral, social e econ��mico. O autor foi cruel e impiedoso
para com ela e toda a fam��lia que praticamente se acaba
com os epis��dios desta aventura de Violante.
O romance come��a numa reda����o de jornal onde Paulo
Jos��, estudante de Medicina, trabalha como revisor.
168
Terminada a faina noturna, o rapaz volta para casa,
altas horas, e a encontra em polvorosa. A m��e, vi��va
pobre de um oficial do Ex��rcito, cuja pens��o n��o dava
para as despesas, est�� desesperada e em pranto. A velha
negra empregada Fel��cia espera-o na porta para dar-lhe a
not��cia. Violante fugira.
A fuga de Violante transformou por completo a vida da
fam��lia. Paulo, na mesma noite, pediu a ajuda da pol��-
cia, e nos dias seguintes, e nas semanas e meses ap��s,
incansavelmente procurou localizar a irm��, instigado pela
m��e inconsol��vel que n��o suportava a vergonha e a
humilha����o. Por causa disso tiveram que mudar de casa
e foram morar numa das ruas da Lapa. Paulo perdeu o
emprego no jornal por faltar repetidas vezes ao trabalho,
procurando Violante. Tudo em v��o. A irm�� sumira por
completo sem deixar vest��gio. Paulo procurou a ajuda de
um batoteiro e jogador de nome Mamede, amigo da
fam��lia desde quando era sargento e servira com o pai de
Paulo. Mamede tudo fez para ajud��-lo. Vivia num corti��o
com uma mulata nova e sapeca de nome Ritinha, por
quem Paulo ficou ca��do de amores, e terminou seu aman-
te, traindo o amigo na sua pr��pria casa.
E por a�� continua e degrada����o da fam��lia. Paulo, an-
tes t��o s��rio e t��o direito, agora, desempregado, entre-
gou-se ao jogo, de onde conseguia ��s vezes tirar bons lu-
cros para enfrentar a situa����o. A negra Fel��cia levou D.
J��lia a um centro esp��rita para tentar descobrir, com
ajuda do sobrenatural, o paradeiro da filha. A velha, sem-
pre em desespero, teve os seus males agravados com as
constantes dificuldades de vida e os dissabores di��rios.
At�� que uma noite, ap��s uma virada da sorte, Paulo ga-
nha bastante e vai ao Teatro Recreio. L�� encontra a ir-
m�� num camarote de luxo com um amante. E ela lhe ex-
plica, calmamente, sem remorsos e sem drama, que dei-
xara o lar para viver melhor. Passara algum tempo com
169
um homem em Buenos Aires, mas afinal o deixou pois ele
j�� pensava em casamento. Agora estava instalada em
Botafogo e se chamava Mademoiselle Diana. Vivia muito
bem e satisfeita. Ganhava um bom dinheiro.
Paulo aceita com naturalidade a nova situa����o da ir-
m�� e vai visit��-la em Botafogo. Combina ent��o promover
a reconcilia����o atrav��s de uma visita de Violante �� m��e
enferma, para acabar de vez com o drama da fam��lia.
No dia em que a visita se realiza, D. J��lia sofre um t��o
grande traumatismo que o choque lhe provoca um ata-
que card��aco. A negra Fel��cia, a qual, desde que vieram
morar na Lapa, pr��ximo ao mar, piorara do ju��zo lem-
brando-se sempre do filho marinheiro que morrera na
revolta da Armada, endoidece de vez. E Paulo, ainda por
cima, traz para morar com ��le a mulata Ritinha, a pre-
texto de que ela vinha como empregada para cuidar da
m��e doente. Mas esta, desconfiada, espionava-os de noi-
te, e ao descobrir a verdade tem um novo ataque, desta
vez mortal. E a pobre senhora, vi��va de um ilustre oficial
do Ex��rcito, morre cercada da filha prostituta e seu
amante, do filho jogador, hip��crita e libertino, e da mu-
lata Ritinha com quem ��le se deitava nas noites em que
ela agonizava.
Como se v��, Coelho Neto fixou neste romance um dra-
ma da cidade grande, e acentuou nos seus epis��dios a
lenta degrada����o de uma fam��lia da classe m��dia. Dona
J��lia fora esposa de um major de Cavalaria, her��i da Guer-
ra do Paraguai, e criara os dois filhos, Paulo e Violante,
com relativo conforto e muitos carinhos e cuidados. A
morte do major transtornou inteiramente a vida da fa-
m��lia at�� que a fuga de Violante e a consequente prosti-
tui����o a que se entregou, assim como a degrada����o de
Paulo, consumaram a trag��dia.
Turbilh��o �� um romance de transi����o, assim como toda
a obra do extraordin��rio escritor que foi Coelho Neto.
170
Vindo do naturalismo e dos primeiros acordes do realis-
mo, seus livros e notadamente seus romances n��o se
filiavam a nenhuma escola e se caracterizavam pelo ver-
balismo exuberante, pela eloqu��ncia e rigor formal, valo-
res hoje apontados como prejudiciais �� perman��ncia de
seus livros. Mas a verdade �� que na ��poca nenhum escri-
tor gozou de maior prest��gio, nem exerceu maior fasc��-
nio, at�� que os modernistas de 1922 iniciaram demolido-
ra campanha contra ele, que at�� hoje se faz sentir.
Turbilh��o, em meio �� copiosa bibliografia de Coelho Ne-
to, �� um dos seus romances mais pr��ximos do gosto mo-
derno. Ele pr��prio deixou no p��rtico deste livro a expres-
s��o "simples como a verdade", como a mostrar que
tamb��m podia escrever despindo o seu estilo das lante-
joulas e da exuber��ncia barroca dos 20.000 voc��bulos que
manejava com desenvoltura e mestria.
Na ocasi��o do centen��rio do seu nascimento, em
1964, uma das homenagens a ele prestadas foi a reedi����o
deste romance urbano, cuja primeira edi����o apareceu
em 1906, quando o autor contava 42 anos de idade e j��
era um grande nome das letras, membro fundador da
Academia Brasileira e com mais de 40 volumes pu-
blicados.
Escritor glorificado em vida, e ainda em vida negado
pelos jovens, Coelho Neto permanece objeto de pol��mica.
Mas a sua import��ncia �� ineg��vel e o seu lugar na litera-
tura brasileira, conquistado com raro brilho e fecundo
talento, jamais ser�� arrebatado. Nasceu em Caxias, Ma-
ranh��o, a 21 de fevereiro de 1864, e faleceu no Rio a 28
de novembro de 1934. Na d��cada de 20 foi indicado, em
campanha nacional, candidato brasileiro ao Pr��mio No-
bel de Literatura. Sua extensa bibliografia atinge, se-
gundo alguns, 106 t��tulos, mas h�� quem aponte mais de
120 livros e op��sculos de sua autoria.
171
Jana
(Jana e Joel, de Xavier Marques)
UMA VASTA costa mar��tima de alguns milha-
res de quil��metros, o Brasil deveria ter uma riqu��ssima
literatura inspirada no mar. Isto, no entanto, n��o ocor-
re. A nossa fic����o n��o �� assim t��o rica em assuntos ma-
rinheiros. No romantismo, a mais forte imagem liter��ria
que tivemos do mar foi de revolta, pois que era atrav��s
dele que nos chegavam os navios carregados de escra-
vos que o g��nio de Castro Alves apostrofou no imortal O
Navio Negreiro. Mas se n��o tivemos o nosso Joseph Con-
rad ou o nosso Herman Melville, sempre nos restam al-
guns livros que o oceano inspirou ou pelo menos o t��m
como cen��rio. �� este o caso de uma bela novela praieira
de Xavier Marques, escritor e romancista baiano, Jana e
Joel, talvez a sua melhor obra, e que retrata um id��lio
simples entre dois adolescentes de uma col��nia de pesca, e
na qual criou o autor uma doce figura de menina-m����a, a
ador��vel Jana.
Na inspirada cria����o de Xavier Marques, Jana era
uma mocinha de 15 anos que vivia na ilha dos Frades,
na Ponta de Nossa Senhora da Ba��a de Todos os Santos.
Ela era a imagem da candura e da inoc��ncia no seu id��lio
175
simples com o mo��o Joel, ajudante no barco do pai dela, o
pescador Anselmo. Desde a inf��ncia se amavam e eram
como irm��os na ingenuidade dos primeiros anos. Passea-
vam na praia de m��os dadas, se escondiam nos recan-
tos da ilha, e nesse constante conv��vio eram como uma
s�� alma, um s�� sentimento, um s�� cora����o.
Eis como a descreve o seu criador: "Era apenas rapari-
ga. Uma esp��cie de tran��a inteiri��a lhe escorria do colo
abaixo, acusando formas ainda mesquinhas; a cabe��a
era estreita e banal, com o cabelo em an��is, empe��ado,
at�� a nuca; s�� a fisionomia de um tom de aquarela,
dilu��da, brilhava, apesar disso, com a luz glauca de uns
olhos esquisitos, de rara transpar��ncia, desses olhos que
semelham miniaturas do mar, acomodados �� colora����o
das suas ��guas, talvez pelo mesmo segredo que harmoni-
za a plumagem das aves com a cor das ramas onde elas se
aninham.''
Jana era humilde e pobre, e toda a novela se desenvolve
num cen��rio onde a natureza �� bela: uma col��nia de
pescadores perdida numa das pequeninas ilhas dispersas
na Ba��a de Todos os Santos. O encanto das longas
areias, o fasc��nio do mar, as aventuras das pescarias no-
turnas, os perigos das tempestades, oferecem a este pe-
queno e belo livro o ambiente encantador para a hist��ria
do amor juvenil de Jana e Joel.
Jana era filha de Anselmo, dono do barco Trit��o, que
vivia de fazer carretos para a ilha, e das longas pescarias
em mar alto. Era ��rf�� de m��e, e quem lhe tomava conta
era a av�� Th��o, m��e de Anselmo. Joel era um ilh��u
duplamente ��rf��o que morava com um tio e ajudava
Anselmo e seus dois filhos no manejo do barco. Vida
dif��cil, trabalhosa, afrontando as tempestades, que um
dia destru��ram Trit��o, que era como o membro querido
da fam��lia, mas logo substitu��do por um barco menor.
Jana e Joel eram insepar��veis, s�� o mar os trazia dis-
tantes algumas horas. Mas quando ela foi ficando mo-
176
cinha a av�� Th��o come��ou a reclamar daquela amizade e
implicar com o rapaz, que, na sua opini��o, estava bo-
tando a perder a sua neta. Anselmo, embora gostasse de
Joel como de um filho, concordou com a m��e em separar
os dois adolescentes. Uma fam��lia de Salvador estava
passando uma temporada na ilha, e a senhora muito se
afei��oara a Jana, at�� queria batiz��-la, pois ela era ainda
pag��. Combinou-se que o batismo se faria e depois Jana
seguiria com a madrinha para Salvador.
A dor e o desespero assaltaram os dois amorosos adoles-
centes, os quais juraram que um dia se veriam de novo
para nunca mais se separarem.
Os dias que se seguiram a essa decis��o foram de id��lio.
Fugindo �� vigil��ncia da av��, Jana escapulia de casa e pas-
sava longas horas com Joel, andando pela praia, escon-
didos nas voltas da ilha. At�� que chegou o dia da maior
tristeza, que foi o da partida de Jana.
Em Salvador ela foi morar numa bela casa do bairro de
Cal��ada, perto do mar. Tomava conta de uma das fi-
lhas da madrinha, mas nunca mais a alegria lhe voltou
aos olhos. Sonhava de noite com a ilha, com o pai Ansel-
mo, os irm��os Cosme e Dami��o, a av�� Th��o, e sobretudo
com o menino Joel. Este tamb��m nunca mais sorriu, e
vivia na ilha com o cora����o e o pensamento bem longe,
ao lado de Jana. Nas constantes viagens que fazia a Sal-
vador, passava tardes inteiras rondando a casa onde ela
morava e n��o conseguia v��-la. Ela, por outro lado, sempre
que podia, passava horas e horas olhando o mar na es-
peran��a de que o barco de Joel lhe devolvesse a alegria
perdida.
Passaram-se muitos meses e um dia ela teve not��cia de
que a av�� morrera. Chorou em sil��ncio, mas n��o perdeu
a esperan��a de voltar para a ilha. Meses depois o irm��o
veio dizer-lhe que o pai tamb��m morrera, e ela se sentiu
ainda mais s�� no mundo. O dia esperado afinal chegou.
Estava nos fundos da casa e resolveu andar um pouco ao
177
longo da praia. De repente viu um barco de pescador
que se aproximava cada vez mais. Seu cora����o alvoro��ou-
se. Era Joel que a descobrira e vinha busc��-la. Houve um
momento de enlevo naquele inesperado encontro. Depois
ela pediu ao menino de sua madrinha que voltasse cor-
rendo para casa. De novo juntos, Jana n��o quis perder
um minuto sequer. Ordenou a Joel que seguissem r��pido
para a ilha, e voltaram felizes, dispostos a nunca se
separarem. Ela pedia-lhe not��cias, indagando o destino
daquela gente e a saudade dos que se foram. E concerta-
ram os planos da nova vida que come��ava. Viveriam os
dois do trabalho comum. Ela faria vassouras, coseria
baetas e saias, e ajudaria nos trabalhos da pesca, pois
tamb��m sabia manejar um barco. E se casariam na igre-
ja de Madre de Deus.
De repente ela ouviu um som �� flor da ��gua e se deitou
no fundo do barco. Travaram um di��logo simples: ���"Es-
cuta! . . . ��� Que �� ? . . . ��� S��o e l a s . . . ��� Quem? ��� As
corvinas... ��� Qual, Jana! Isto �� o vento. ��� Espera".
E ele se deitou tamb��m no fundo do barco para ouvir
o som das corvinas. "��� Agora, Joel, e s c u t a . . . " E ele
se aproximou mais dela, sentiu-lhe o corpo e perturbou-se
todo. E o barco come��ou a oscilar. E se amaram pela
primeira vez. Chegados �� ilha, ele a levou para a pequena
choupana que lhe deixara o tio Greg��rio, que seria o seu
ninho de amor.
Poema em l��mpida e cristalina prosa, Jana e Joel ��
uma das mais belas hist��rias de amor da literatura bra-
sileira. Inexplicavelmente n��o teve a fortuna de outros
romances e novelas famosos que se multiplicaram em
sucessivas edi����es pelo Brasil a fora. Foi publicado em
1899, na capital baiana, e marcou o ponto alto da carrei-
ra liter��ria de Xavier Marques. V��rias edi����es se sucede-
ram atrav��s dos anos, mas a verdade n��o se pode negar,
em n��mero limitado, e nunca teve a repercuss��o de
outros livros a ele inferiores, de autores mais bafejados
178
pela cr��tica e o favor p��blico. Seu momento de maior
gl��ria foi a edi����o francesa, publicada em Paris em 1928,
pela Libraire Gedalge, em tradu����o de Phil��as Lebesque
e P. M. Gahisto, juntamente com Iracema, de Jos�� de
Alencar, as duas novelas num ��nico volume.
Jana e Joel ainda est�� �� espera, o que acreditamos ha-
ver�� de chegar, de um ressurgimento cr��tico, que a colo-
car�� entre as maiores novelas de amor da l��ngua portu-
guesa.
Xavier Marques nasceu na ilha de Itaparica, Bahia, a
3 de dezembro de 1861 e morreu a 30 de outubro de 1942
em Salvador, aos 81 anos de idade.
Apontado como o fundador do regionalismo baiano,
dedicou seu talento de escritor �� fixa����o do ambiente do
seu Estado natal, desde a zona do rec��ncavo �� Capital,
desde os romances hist��ricos, onde fixa epis��dios da des-
coberta e da coloniza����o do Brasil e as lutas da Indepen-
d��ncia, aos de costumes sociais e regionais, sendo o pri-
meiro a retratar o candombl�� baiano e a influ��ncia do
fetichismo negro. O melhor de sua obra de fic����o s��o as
novelas praieiras, entre as quais se destaca Jana e Joel.
Al��m de jornalista, foi deputado estadual e federal, e
um dos fundadores da Academia Baiana de Letras, em
1917. Elegeu-se para a Academia Brasileira de Letras em
1919, na vaga de Ingl��s de Sousa, na cadeira n.�� 28, onde
teve como sucessor o poeta Menotti dei Picchia.
179
Maria Bonita
(Maria Bonita, de Afr��nio Peixoto)
M DOS ROMANCES de sucesso na segunda d��cada
deste s��culo, na fase pr��-modernista, Maria Bonita, de
Afr��nio Peixoto, integrou na geografia liter��ria de nosso
Pa��s uma vasta regi��o do interior baiano, e deu impulso
not��vel �� corrente sertanista-regionalista de nossa fic����o,
que procurava, seguindo uma tradi����o de cunho nacio-
nalista, mostrar a nossa terra e a nossa gente, valoriz��-
las atrav��s da cria����o art��stica.
Afr��nio Peixoto foi um mestre em v��rios ramos do sa-
ber e da cultura. Tamb��m no romance, n��o obstante a
sabotagem que lhe foi movida desde o surto do movi-
mento modernista, podemos hoje, com isen����o, apont��-
lo como um dos mestres da nossa fic����o. Maria Bonita,
Fruta do Mato e Bugrinha d��o-lhe inegavelmente a situa-
����o de livros que ser��o relidos atrav��s dos tempos. E
quantos, dos que o negam, ter��o o mesmo destino feliz?
Afr��nio Peixoto foi sobretudo um criador de tipos femi-
ninos, e �� justamente no seu segundo romance, Maria
Bonita, que vamos focalizar a hero��na sertaneja, aut��nti-
ca, cuja beleza extraordin��ria tinha algo de tr��gico no
fatalismo com que arrastava os seus adoradores �� desgra-
183
��a. Tipo caracter��stico da mo��a do sert��o, bonita e sim-
ples, a f��ria dos preconceitos sociais afastou-a do seu
amado de inf��ncia, numa trama que d�� ao livro um gran-
de interesse narrativo, al��m da fixa����o perfeita da regi��o,
dos seus costumes, de sua gente.
Maria Bonita era a pr��pria imagem da beleza num
rostinho lindo que chamava a aten����o de todos. Desde a
inf��ncia convivia e brincava com os filhos do Coronel
Joaquim Pedro, patr��o de seu pai, dono da Fazenda
Boa Vista e de muitas terras e planta����es de cacau, no
Munic��pio de Canavieiras, ��s margens do rio Pardo. " Q u e
rosto lindo! Como �� bonita!", diziam todos que a viam.
Mas tal beleza n��o despertava apenas admira����o, provo-
cava tamb��m inveja e "maus olhados" e, se a fazia mui-
tas vezes ver-se com orgulho e sentir-se lisonjeada, por ou-
tro lado deixava-a apreensiva e medrosa. Desde menina
pressentia que seus encantos n��o lhe trariam felicidade.
E de fato isso aconteceu. Sua beleza, que siderava os
homens, despertou paix��es, inveja, ci��mes, provocou cri-
mes, pris��es, disputas e ��dio, sem nenhuma culpa de sua
parte, pois que era uma criatura simples, honrada e pa-
cata, boa filha e boa esposa, serena e tranquila em meio ��s
tempestades que, sem saber e sem querer, desencadeava.
O enredo do livro �� uma hist��ria t��pica do sert��o, e toda
ela gira em torno do destino singular de Maria Bonita.
Criada na intimidade da fam��lia do coronel e patr��o de
seu pai, nasceu desse conv��vio uma amizade pura de inf��n-
cia entre ela e Lu��s, filho do coronel, a quem se reservava
um destacado futuro. Alimentam os dois esse id��lio at�� a
adolesc��ncia e j�� se amavam e faziam planos de vida
futura quando come��aram as adversidades. O promo-
tor de Canavieiras, que �� recepcionado na fazenda do
coronel com vistas a um casamento com a sua filha, d��
maior aten����o a Maria do que �� futura noiva; e nessa
184
mesma festa o filho mais velho do coronel tenta conquis-
t��-la e ela o repele. O rapaz sente-se ofendido com a repul-
sa e planeja uma vingan��a. Vai com outros rapt��-la, mas
�� recebido a bala pelo irm��o e sai ferido.
O esc��ndalo estoura, e a fam��lia do coronel, principal-
mente D. Mariana, implac��vel matrona, cheia de pre-
conceitos e muito orgulho, rompe com os agregados e
tira-lhes a prote����o. O irm��o de Maria foge para n��o ser
preso e desaparece para sempre. Lu��s, o amado de inf��n-
cia, �� mandado para estudar em Salvador, sem ao menos
v��-la pela ��ltima vez ou mandar-lhe um simples adeus.
Sua m��e, pouco depois, morre de desgosto. O pai, vi��vo e
sozinho, entrega-se �� bebida. E ela, abandonada por Lu��s,
cede ao amor submisso de Jo��o, um amigo da fam��lia e
antigo apaixonado, e casa-se com ele.
Passam-se os anos e um dia Lu��s volta bacharel, orgu-
lho da fam��lia e da cidade. Ela morava j�� com o marido,
um filho e o pai in��til, numa casinha afastada da cidade.
Ao reencontro com os s��tios de sua meninice, renasce
em Lu��s o amor por Maria Bonita, e come��a a assediar a
bela sertaneja. Ela o repele mais de uma vez. O marido
pressente o perigo e alerta Maria para a desgra��a que
ronda o seu lar. Planejam mesmo viajar para longe, mas
a conduta dela era irrepreens��vel. Lu��s insiste, e uma
noite teve que esconder-se e fugir, quando rondava a ca-
sa, ante as amea��as do marido que saiu de garrucha em
punho.
Tudo conduzia para a trag��dia. E nessa mesma noite,
na ��ltima novena de Nossa Senhora, na hora do leil��o de
prendas, ocorre o esperado. Um lencinho bordado por
Maria foi posto a pr��mio. Lu��s insiste em arremat��-lo. D��
lances elevados, enquanto o marido disputa com ele. Era
uma luta desigual. De um lado, o filho doutor do rico
Coronel Joaquim Pedro, do outro, o marido pobre e
185
ofendido de Maria Bonita. O mo��o rico vence, mas Jo��o
engole a raiva, o ci��me, a humilha����o, para desabafar
horas depois. E na estrada deserta mata Lu��s com um
tiro, e foge para ser preso no dia seguinte, e conduzido ��
cadeia da cidade. Ao final, sozinha com o filho, lembran-
do-se do marido preso e do rapaz morto, e de todas as ad-
versidades, com as m��os em garra, arranha e fere a
pr��pria face, num assomo de desespero e revolta contra a
beleza fatal que s�� lhe trouxera desgra��as.
A hist��ria �� essa, mas h�� muito mais no romance de
Afr��nio Peixoto. A pintura do cen��rio sertanejo ��s mar-
gens do rio Pardo, a fixa����o dos tipos do interior, varia-
dos e ricos de humanidade, os costumes, as festas, os
h��bitos daquela gente rude mas honrada, a vida de uma
pequena cidade baiana da ��poca, a descri����o do patriar-
calismo feudal dos coron��is do sert��o e o seu estilo rico e
moderno, colorido e vibr��til, d��o a este livro as cores de
um magn��fico painel.
Maria Bonita, por outro lado, inicia todo um ciclo do
romance baiano, o ciclo do cacau, que daria, duas d��ca-
das depois, os grandes romances de Jorge Amado,
Adonias Filho e outros.
Maria Bonita foi publicado em 1914, quando o autor
tinha 35 anos, e j�� era uma celebridade como m��dico,
professor, higienista, escritor, e um dos mais fulguran-
tes talentos de sua ��poca. Membro da Academia Brasilei-
ra de Letras, fora eleito em 1911, �� sua revelia, em viagem
pela Europa, gra��as a uma conspira����o da amizade de
M��rio de Alencar, que falsificara a sua letra nos pedidos
de inscri����o e de votos. Foi esse epis��dio que o levou ��
literatura, pois, para justificar a elei����o, escreveu o ro-
mance A Esfinge, que seria o primeiro de sete que fizeram
ruidoso sucesso, e haveriam de inscrever o seu nome
na galeria dos romancistas brasileiros, num lugar de
186
destaque que o tempo e o esquecimento de velhas rixas e
disputas modernistas haver��o de perpetuar.
Afr��nio Peixoto nasceu a 17 de dezembro de 1876 em
Len����is, nas Lavras Diamantinas, na Bahia, e morreu
no Rio de Janeiro a 12 de janeiro de 1947. Sua obra
liter��ria e cient��fica abrange, na sua variedade, cerca de
50 livros, e um outro tanto de op��sculos, confer��ncias e
publica����es v��rias.
187
ZONA BAIANA dos garimpos, localizada na regi��o
de Andara��, na Chapada Diamantina, tem inspirado v��-
rios ficcionistas, e entre eles podemos apontar Lindolfo
Rocha, Herman Lima e Herberto Sales. A vida aventu-
reira, a busca da fortuna f��cil, dos bamb��rrios, dos dia-
mantes descobertos nos cascalhos das grunas despertam
a imagina����o e estimulam a ambi����o dos homens. E de
tudo isso crescem as lendas, surgem as hist��rias fan-
t��sticas, os dramas, as trag��dias.
Um dos primeiros romances das Lavras Diamantinas
da Bahia foi Maria Dus��, escrito por Lindolfo Rocha.
Neste livro vigoroso, que t��o bem retrata o ambiente,
os costumes e a vida aventurosa da regi��o, uma hero��na
se destaca, amorosa e terna, ao mesmo tempo que deci-
dida e ambiciosa, para dominar a a����o do livro. Sua
figura nos lembra, em certas nuan��as, a personagem
meio-hist��rica-meio-lend��ria de Dona B��ja, do Tijuco
Diamantino. Trata-se de Maria Dus��, que empresta no-
me ao livro, uma bela sertaneja que conquistava o amor
dos homens e se torna famosa mundana, para depois
apaixonar-se por um homem e a ele dedicar-se por in-
191
teiro, abandonando a vida alegre. Quem era e como era
essa aventureira que, depois de enriquecer no com��rcio
do amor, abandona-o e vai explorar os garimpos e au-
mentar a fortuna na cata dos, diamantes ?
Maria Dus�� era a rainha das festas galantes do povoa-
do de Xique-Xique, na regi��o das lavras. Ali chegara
andrajosa, sem fam��lia, e gra��as �� beleza do corpo con-
quistou a fortuna. Por ela se apaixonou o Conde da Pas-
sagem, um holand��s rico que ali chegara deportado de
sua terra por motivos pol��ticos, e cumulou-a de favores,
de j��ias, deu-lhe instru����o, e depois deixou-a para regres-
sar �� sua terra. A mo��a transformou-se na mundana mais
requestada do lugar. Negociantes, garimpeiros, capan-
gueiros, todos aqueles que rapidamente ganhavam fortuna
com os diamantes vinham prostrar-se aos seus p��s. Era
alegre, exuberante, comunicativa e em torno dela vivia-se
em permanente festa. Dus�� era o apelido pelo qual ficara
conhecida, em virtude do seu riso e de um ditado da
regi��o. Quando algu��m queria, em conversa, esconder
um segredo, exclamava: " A �� �� que est�� o A . B . C . " . Mas ela dizia assim, num riso dobrado: " A �� �� que est�� os ah!
ah! ah!". E logo ficou conhecida como a "Maria dos ah!
ah! ah! ", que foi simplificado para Maria Dus��.
A nossa hero��na aparece no romance j�� bem adiantada
a narra����o. O tropeiro Ricardo a v�� entre outras munda-
nas e alguns rapazes, numa alegre patuscada, onde se
cantavam modinhas e se tocava viol��o. " L �� est�� Maria
D u s �� . . . " lhe apontam. "�� aquela morena, de vestido
cor-de-rosa, decotado, que est�� de cabelo solto, brincos e
medalha de brilhantes presa ao pesco��o por um veludinho
c��r-de-rosa".
Antes, nas primeiras p��ginas do romance, sua presen-
��a �� antecipada por uma s��sia e irm��, com a qual Ricar-
do iria confundi-la ao longo do livro. Mas vamos �� hist��ria
que �� muito aventurosa e cheia de perip��cias.
192
Nos anos de 1860, ocasi��o de uma das mais duras secas
de que se tem memoria nos sert��es da Bahia, Ricardo
Brand��o, tropeiro de Minas Gerais, arrancha numa fa-
zenda abandonada do Riach��o Seco. A desola����o era com-
pleta e a fome devastadora. A fam��lia que ali vivia, com-
posta de pai, m��e e duas filhas, estava nas ��ltimas. Pas-
savam eles, semanas e semanas, comendo ra��zes e eram
s�� pele e ossos. Ao despedir-se, no dia seguinte, o tropeiro
ficou espantado com a proposta da m��e. Queria vender-
lhe a filha mais velha por uma saca de sal. Mas ao exp��-la
�� cobi��a do estranho, suspendendo o vestido da menina-
mo��a que era bem bonita embora esquel��tica, s�� desper-
tou compaix��o no tropeiro, que deu o pre��o pedido, mas
se recusou a lev��-la.
A cena ficou gravada na imagina����o do tropeiro de tal
modo que se apaixonou pela mo��a e, com remorso de n��o
t��-la levado, sonhava encontr��-la um dia. Passam-se mui-
tos meses, e, quando ele de novo volta �� regi��o, depara,
no povoado de Xique-Xique, com a famosa mundana
Maria Dus��, e nela reconhece a sertaneja humilde e po-
bre que comprara a troco de sal. Procura falar-lhe, mas
ela o repele. Ele sofre amarga decep����o e guarda a m��goa
daquele desprezo por parte de quem tanto lhe devia ser
grata. Dias depois, encontra de novo a mulher na missa
e n��o lhe d�� aten����o, enquanto ela o reconhece e pro-
cura dele se aproximar. Estabelece-se uma completa con-
fus��o. As duas n��o eram a mesma pessoa. Maria Dus��
n��o era a mo��a que ele comprara por um saco de sal.
A outra da igreja �� que o era, e o amava desde aquele
seu gesto humanit��rio. As duas eram s��sias.
O enredo do romance gira em torno dessa confus��o,
e, no final, ele se casa mesmo com Maria Dus�� que,
ap��s aquele primeiro encontro frustrado, por ele se
apaixona, abandona o meretr��cio e tudo faz para con-
quistar o seu amor. Enquanto isso, a outra, Maria
193
Alves, casa-se com um rapaz da cidade que logo ��
assassinado por um desafeto. Vi��va, ela cai na mis��ria
e vira mundana, repetindo Maria Dus�� at�� no riso franco
e aberto dos "ah! ah! a h ! " , e afinal morre doente no
hospital. No fim, Maria Dus�� descobre que a outra era
sua irm��.
Em meio a esse entrecho rom��ntico, muitas coisas
acontecem. Aventuras, lutas, crimes, mas sobretudo o
autor fixa a vida da regi��o, os costumes, as festas,
os garimpos, o ��mpeto que sacudia aqueles rinc��es ba-
fejados pela aura da fortuna. Maria Dus�� era como
um s��mbolo daquela gente, s��mbolo da r��pida fortuna,
da vida alegre e dissipada de uma popula����o de aven-
tureiros e sonhadores. Ela era sobretudo uma figura
representativa da coragem, do destemor e da conquista.
Levando vida de mundana rica e faustosa, no seu pe-
queno imp��rio de amor, ela o deixa quando sente ne-
cessidade de consagrar-se a um homem por quem se
apaixonara. Mas na conquista desse homem ela preci-
sava lutar, e veio para os neg��cios, para a garimpa-
gem, a fim de n��o somente aumentar a fortuna, mas
aparecer respeit��vel aos olhos do amado.
Maria Dus�� �� uma grande figura feminina que Lin-
dolfo Rocha incorporou �� galeria das hero��nas do ro-
mance brasileiro. Afr��nio Coutinho, na apresenta����o que
fez para uma edi����o do romance, pelo INL, assim se
refere: "Maria Dus�� situa-se entre as mais belas fi-
guras da galeria feminina do romance regional brasi-
leiro, sobre ser extremamente representativa do ambiente
sertanejo".
O livro foi publicado pela primeira vez em 1910, com
o t��tulo de "Maria Dus�� (Garimpeiros), romance de cos-
tumes sertanejos e chapadistas". Sendo Lindolfo Rocha
praticamente desconhecido fora da Bahia, sua obra teve
pequena repercuss��o. Apenas o mestre Jo��o Ribeiro es-
creveu uma nota no Almanaque Garnier, afirmando ser
194
ele " u m dos melhores documentos da vida brasileira
do interior e de cujos costumes, linguagem e tradi����es
nos d�� uma pintura surpreendente de vida e de poesia".
Ap��s longo per��odo de esquecimento, em 1950, a cr��-
tica e historiadora liter��ria L��cia Miguel Pereira, em
seu livro Prosa de Fic����o, ressaltou a sua import��ncia
e praticamente o redescobriu, seguindo-se outros tra-
balhos cr��ticos que deram a Lindolfo Rocha e a seu
romance o merecido destaque na hist��ria do romance
brasileiro no princ��pio deste s��culo.
Lindolfo Rocha, mineiro de Gr��o Mogol, para uns,
baiano de Andara�� para outros, nasceu a 3 de abril
de 1862 e morreu em Salvador, Bahia, a 30 de de-
zembro de 1911. Foi mestre-escola no interior da Bahia,
depois veio para a Capital onde se formou em Direito,
voltando ao interior como juiz em Correntina e em
Jequi��. Foi tamb��m jornalista e afinal fazendeiro e
advogado. Deixou, al��m de Maria Dus��, o livro de poe-
sia Brom��lias, o romance de costumes ��ndios, Iacina,
e O Pequeno Lavrador, em dois volumes, obra de di-
vulga����o.
195
Resenha
biobibliogr��fiea
dos autores:
JOS�� DE A L E N C A R (Jos�� Martiniano de Alencar) nasceu em
Mecejana, CE, a 1.�� de maio de 1829 e morreu no Rio de Janei-
ro a 12 de dezembro de 1877. Romancista. Rom��ntico. Fundador
do indianismo brasileiro.
Obras principais: O Guarani, 1857; Luc��ola, 1862; Diva, 1864; Iracema, 1865; As Minas de Prata, 1865; O Tronco do Ip��, 1871; Sonhos de Ouro, 1872; Ubirajara, 1872; O Sertanejo, 1876; Senhora, 1895.
M A C H A D O DE ASSIS (Joaquim Maria Machado de Assis). Nas-
ceu no R i o de Janeiro a 21 de junho de 1839 e morreu
na mesma cidade a 29 de setembro de 1908. Romancista, poe-
ta, contista e cronista. A maior figura da literatura brasileira.
Obras principais: Cris��lidas, poesia, 1864; Contos Fluminen-
ses, 1870; Hist��rias da Meia-Noite, 1873; Americanas, poesia, 1875; Helena, 1876; Yay�� Garcia, 1878; Mem��rias P��stumas de Br��s Cubas, 1881; Hist��rias sem data, 1884; Quincas Borba, 1891; Dom Casmurro, 1900; Rel��quias da Casa Velha, 1906;
Memorial de Aires, 1908.
VISCONDE DE T A U N A Y (Alfredo d'Escragnolle T a u n a y ) . Nas-
ceu no Rio de Janeiro a 20 de fevereiro de 1843 e morreu na
mesma cidade a 25 de janeiro de 1899. Romancista de transi-
����o do romantismo para o realismo. Tamb��m regionalista.
Obras principais: A Retirada da Laguna, 1871; Inoc��ncia, 1872; O
encilhamento, 1894.
197
JOAQUIM MANUEL DE MACEDO. Nasceu em Itabora��, RJ, a
24 de junho de 1820 e morreu no Rio de Janeiro a 11 de abril
de 1882. Romancista, teatr��logo. Rom��ntico.
Obras principais: A Moreninha, 1845; O mo��o louro, 1845; Os ��ois amores, 1848; As mulheres de mantilha, 1870-71.
BERNARDO G U I M A R �� E S (Bernardo Joaquim da Silva Guima-
r �� e s ) . Nasceu em Ouro Preto, M G , a 15 de agosto de 1825 e
morreu na mesma cidade a 10 de mar��o de 1884. Romancista
e poeta. Rom��ntico. Tamb��m regionalista.
Obras principais: Cantos da Solid��o, poesia, 1852; O ermit��o
de Muqu��m, 1865; Lendas e Romances, 1871; O Garimpeiro, 1872; Hist��rias e Tradi����es, 1872; O Seminarista, 1872; A escrava Isaura, 1875; Folhas de outono, 1883.
A L U �� Z I O AZEVEDO (Alu��zio Tancredo Belo Gon��alves de A z e -
v e d o ) . Nasceu em S��o Lu��s do Maranh��o a 14 de abril de 1857
e morreu em Buenos Aires a 21 de janeiro de 1913. Romancis-
ta. Fundador da escola naturalista entre n��s.
Obras principais: O Mulato, 1881; Casa de pens��o, 1884; O
Homem, 1887; O Coruja, 1890; O Corti��o, 1890.
J��LIO R I B E I R O (J��lio C��sar Ribeiro V a u g h a m ) . Nasceu em Sa-
bar��, M G , a 10 de abril de 1845 e morreu em Santos, SP, a 1
de novembro de 1890. Romancista e gram��tico. Naturalista.
Obras principais: O Padre Belchior de Pontes, 1876-77; A Car-
ne, 1888; Gram��tica Portuguesa.
ADOLFO C A M I N H A (Adolfo Ferreira Caminha). Nasceu em
Aracati, CE, a 29 de maio de 1867 e morreu no Rio de Janeiro
a 1 de janeiro de 1897. Romancista. Naturalista.
Obras: A Normalista, 1892; Bom Crioulo, 1895; A Tenta����o, 1891; Cartas Liter��rias.
R A U L P O M P E I A (Raul d'Avila Pompeia). Nasceu em Jacuecan-
ga, RJ, a 12 de abril de 1863 e morreu no Rio de Janeiro a 25
de dezembro de 1895. Poeta e romancista. Impressionista.
Obras: Uma trag��dia no Amazonas, 1880; Can����es sem metro,
1881; O Ateneu, 1888.
DOMINGOS O L �� M P I O (Domingos Ol��mpio Braga Cavalcanti)
��� Nasceu em Sobral, CE, a 18 de setembro de 1850 e morreu
no Rio de Janeiro a 6 de outubro de 1906. Romancista. Natu-
ralista.
Obra: Luzia-Homem, 1903.
198
G R A �� A A R A N H A (Jos�� Pereira da Gra��a A r a n h a ) . Nasceu em S��o Lu��s do Maranh��o a 21 de junho de 1868 e morreu no
R i o de Janeiro a 26 de janeiro de 1931. Romancista e diplo-
mata. Impressionista, precursor do modernismo.
Obras principais: Cana��, 1902; Malazarte, 1911; Est��tica da Vida, 1920; A viagem maravilhosa, 1930
COELHO N E T O (Henrique Maximiano Coelho N e t o ) . Nasceu em
Caxias, M A , a 21 de fevereiro de 1864 e morreu no Rio de Ja-
neiro a 28 de novembro de 1934. Romancista, contista, teatr��-
logo. Naturalista e impressionista.
Obras principais: A Capital Federal, 1893; Sert��o, 1896; Inver-no em flor, 1897; A Conquista, 1899; Turbilh��o, 1906; A esfinge, 1908; Fogo f��tuo, 1908; Rei Negro, 1914.
X A V I E R MARQUES (Francisco Xavier Ferreira Marques). Nas-
ceu na ilha de Itaparica, B A , a 3 de dezembro de 1861 e mor-
reu em Salvador, B A , a 30 de outubro de 1942. Romancista, en-
sa��sta. Naturalista, tamb��m regionalista.
Obras principais: Jana e Joel, 1899; Praieiros, 1908; O Sargento Pedro, 1910; O feiticeiro, 1922.
A F R N I O P E I X O T O (J��lio Afr��nio P e i x o t o ) . ��� Nasceu em
Len����is, BA, a 17 de dezembro de 1876 e morreu no Rio de Ja-
neiro a 12 de janeiro de 1947. Romancista. Impressionista. R e -
gionalista.
Obras principais: A Esfinge, 1911; Maria Bonita, 1914; Fruta do Mato, 1920; Bugrinha, 1922; As raz��es do cora����o, 1925; Uma mulher como as outras, 1928; Sinh��zinha, 1929.
L I N D O L F O ROCHA. Nasceu a 3 de abril de 1862 em Gr��o M o -
gol, M G , para alguns, ou em Andara��, B A , para outros, e mor-
reu em Salvador, B A , a 30 de dezembro de 1911. Romancista.
Obras: Brom��lias, 1887; O Pequeno Lavrador, 1909; Maria Dus��, 1910.
199
Santos Moraes, Ant��nio dos
Hero��nas do romance brasileiro
[ p o r ] Santos Moraes [Rio de Janeiro]
Express��o e Cultura, I.N.L., 1971.
199 p. 21 cm.
I . T��tulo.
C D D : B869.3
OUTROS LAN��AMENTOS
E S T I L O S D E �� P O C A N A L I T E R A T U R A
de Dom��cio Proen��a Filho
"O Professor Dom��cio Proen��a Filho d�� uma
demonstra����o cabal e positiva do que pode
uma cultura renovada fazer quando aplica-
da ao ensino. Substituindo os cedi��os con-
ceitos da velha did��tica liter��ria, conduz o
aluno ao ��mago do fen��meno liter��rio, pon-
do-o em contato direto com o pr��prio texto,
que �� situado no ��mbito do estilo de ��poca
em que surgiu."
AFRNIO COUTINHO
A FEIRA DAS E S T R U T U R A S
de S��rgio Tapaj��s
Um livro que est�� renovando a fic����o brasi-
leira pela sua estrutura formal e pelo seu
personagem-eixo que "configura o produto,
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EXPED ��� EXPANS��O EDITORIAL
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190-196.
Página 189 extraviada
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