sábado, 12 de outubro de 2019 By: Fred

{clube-do-e-livro} LANÇAMENTO: PERTO DA MEIA NOITE - JOSUÉ MONTELLO - FORMATOS : PDF, TXT E EPUB

Perto da meia-noite

Na adolesc��ncia, quando

despontou no autor a voca����o de

contador de hist��rias, foi este o

primeiro romance que imaginou,

com inspira����o direta na vida real.

Tem ele na lembran��a o grosso

caderno em que poria no papel o

drama de sua personagem central,

colega no Liceu Maranhense.

Entretanto, nessa primeira hora da

inclina����o liter��ria, muitos s��o os

projetos e poucas as realiza����es.

Essa a raz��o por que, delineado

na juventude, somente agora, meio

s��culo depois, deu o romancista a

esta pequena e dram��tica hist��ria

de prov��ncia o relevo narrativo

adequado, na urdidura de Perto da

meia-noite.

De in��cio fez do tema deste livro

um breve conto. Mais tarde,

ampliou-o em novela, divulgando-o

na colet��nea Duas vezes perdida,

lan��ada pela Editora Martins, de

S��o Paulo, e rapidamente esgotada.

Agora, ao coligir os romances e

novelas de sua autoria, para os tr��s

volumes, em papel-b��blia, da

Editora Nova Aguilar, n��o se

limitou a rever, e por vezes

reescrever totalmente, os textos ali

codificados. Decidiu retomar o

tema de seu primeiro romance,

dando-lhe a dimens��o da narrativa

da maturidade ��� sem preju��zo do

tom pr��prio, que parece conservar



Josu�� Montello

Perto da

Meia-Noite

ROMANCE

EDITORA

NOVA

FRONTEIRA



�� 1985, by J o s u �� M o n t e l l o

Direitos de edi����o da o b r a em l��ngua p o r t u g u e s a a d q u i r i d o s pela E D I T O R A NOVA F R O N T E I R A S.A.

Rua M a r i a Ang��lica, 168 ��� L a g o a ��� C E P 22.461 ��� Tel.: 286-7822

E n d e r e �� o telegr��fico: N E O F R O N T ��� Telex: 34695 E N F S BR

Rio de J a n e i r o , RJ

Revis��o tipogr��fica:

H E N R I Q U E T A R N A P O L S K Y

E D I L S O N C H A V E S C A N T A L I C E

U R A N G A





I


C I P - B r a s i l . C a t a l o g a �� �� o - n a - f o n t e

Sindicato N a c i o n a l d o s Editores de Livros, RJ

M o n t e l l o , J o s u �� , 1917-

M781p P e r t o da meia-noite / J o s u �� M o n t e l l o . ��� Rio de J a n e i r o : N o v a F r o n -

teira.

( R o m a n c e brasileiro)

1. R o m a n c e brasileiro I. T��tulo I I . S��rie

C D D ��� 869.935

85-0271

C D U ��� 869.0(81)-31

SUM��RIO

PRIMEIRA PARTE, 11

SEGUNDA PARTE, 49

TERCEIRA PARTE, 77

QUARTA PARTE, 99

QUINTA PARTE, 123

SEXTA PARTE, 755

S��TIMA PARTE, 203

OITAVA PARTE, 223

NONA PARTE, 249

A Glorinha deste romance, t��o estranha, t��o pat��ti-

ca e t��o bela na intensidade de seu drama, est�� associada

de tal modo ao meu esp��rito, desde o tempo do Liceu, em

S��o Lu��s, que por vezes confundo, no meu mundo de

lembran��as, a personagem real e a personagem ima-

gin��ria. Tinha de ser assim. �� ela, cronologicamente, a

minha mais antiga cria����o romanesca. A princ��pio, sob a

forma de conto, na gorda pasta juvenil dos textos in��di-

tos; depois, sob a forma de novela, em dois textos im-

pressos, que divulguei no come��o da maturidade.

Entretanto, assim como h�� pessoas de nosso

conv��vio, h�� tamb��m personagens que participam de

nosso mundo, com algo de familiar na sua freq����ncia e

na sua intimidade.

O Daniel, que contracena com a Glorinha ao longo

da mesma narrativa, tamb��m existiu. Ou estarei equivo-

cado? O que posso afirmar, sem receio de erro, �� que o

reencontro tamb��m nas minhas mais distantes reminis-

c��ncias. Com ele conversei, v��rias vezes, em S��o Lu��s, so-

bre a Glorinha. Dele recebi, para leitura sigilosa, em duas

pastas bem-cuidadas, a correspond��ncia que ambos tro-

caram, e que Daniel conservou em seu poder, intacta,

mesmo depois que o destino interveio a seu modo nesta

comovente hist��ria do cora����o humano.

Assim que a li, juntei o subs��dio epistolar com as re-

corda����es pessoais, e da�� surgiu, ainda imperfeito, o con-

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to que o drama de Glorinha me inspirou. Mais adiante,

com outras fontes de informa����o, e o conhecimento dire-

to do cen��rio em que o drama aconteceu, dei-lhe a forma

de novela. Mas isso n��o me bastou.

Muitas e muitas vezes, nas horas em que Glorinha

voltou a materializar-se na minha consci��ncia, viva, ge-

nu��na e enigm��tica, senti que seu caso pedia moldura

mais larga, com seu retrato em tela maior. Retrato de

corpo inteiro, e n��o apenas parado, na imobilidade da

parede. Vivo, em movimento, como imagens sucessivas

que repentinamente se animam na proje����o luminosa da

pel��cula cinematogr��fica.

Ei-la agora aqui, na amplitude de um romance, a mi-

nha Glorinha do Liceu Maranhense. Estranha, calada,

grandes olhos negros. Para recomp��-la, sem nada omitir

ou esquecer, n��o me limitei �� flu��ncia da cria����o natural.

Misturei a primeira e a terceira pessoas no processo nar-

rativo. Desloquei o ponto de vista do narrador. Associei

lembran��as de amigos e companheiros ��s minhas

pr��prias lembran��as.

Por volta de 1955 (ou 56), numa de minhas idas a

S��o Lu��s, ao sair da Rua Formosa para entrar na Rua de

Santana, vi Glorinha perto de mim, caminhando em

minha dire����o, cheia de corpo, �� espera de um filho, e

com esta singularidade: ela, mo��a, morena, aparentando

menos de vinte anos, e eu, perto dos quarenta, j�� de cabe-

los grisalhos �� altura das t��mporas.

Ela parou defronte de mim, na cal��ada estreita:

��� N��o est�� me reconhecendo? N��o sabe quem sou

eu?

E ante a perplexidade de meu sil��ncio:

��� Sou a Maria Em��lia. A filha da Glorinha, que foi

sua colega, e do Daniel, que foi seu professor.

Depois desse encontro, como deixar de escrever este

romance?

J.M.

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O amor se parece mais ao ��dio do que ��

amizade, se o julgamos pela maioria de

seus efeitos.

LA ROCHEFOUCAULD

PRIMEIRA PARTE

O pecado aumenta a experi��ncia humana.

O S C A R W I L D E

CAP��TULO I

A l t a , vistosa e calada, negros cabelos crespos des-

cendo para os ombros, Glorinha sempre se sentava na

primeira fila da sala de aula, dando-nos a impress��o de

n��o perder uma ��nica palavra do professor Daniel ���

mas a verdade �� que nunca o seu nome aparecera entre os

primeiros da classe.

Chamada ao quadro-negro, nos dias de argui����o

oral, deixava serenamente a carteira, elegante na simpli-

cidade do uniforme, bem-feita de corpo, o perfil moreno

destacado na claridade da janela. Segurava com desem-

bara��o o giz e a esponja, como se soubesse o ponto, e n��o

fazia boa figura.

Daniel, por seu lado, nada lhe dizia ao ouvir-lhe as

respostas hesitantes ou evasivas. Limitava-se a erguer a

sobrancelha esquerda, por vezes entrela��ava as m��os so-

bre a mesa, estalando os dedos, e esbo��ava um sorriso,

como de condescend��ncia e carinho. Depois, finda a ar-

gui����o, curvava-se para o livro de chamada, dava a Glo-

rinha a nota justa, e passava a arg��ir a mim, que vinha

logo a seguir, na lista dos alunos. Comigo, j�� famoso em

todo o Liceu por meus poemas e discursos, o mestre se

distraia �� vontade, como a descontrair-se da tens��o ante-

rior, sobretudo se coincidia ter aparecido no O Imparcial

ou na Folha do Povo o novo soneto que Glorinha me

inspirara. Verdadeira divers��o de gato e rato, em que o

gato era ele, com as suas unhas bem-tratadas, a sobrance-

lha erguida, e um jeito de rir que puxava o riso da classe.





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Mas sempre me dava a nota alta, que eu realmente mere-

cia, ao me m a n d a r de volta ao meu lugar:

��� Muito bem, poeta.

Nas provas escritas, enquanto o professor ia e vinha,

no estreito espa��o entre as carteiras, Glorinha passava o

mais do tempo a morder a madeira do l��pis, os negros

olhos pestanudos esquecidos no ar, sem pedir ajuda a

ningu��m. Dir-se-ia que estava ali para ser vista, assim dis-

tante e bela.

C o m o sempre fora aplicada, com a fama de boa alu-

na no Col��gio Rosa Castro, isso intrigava.

E de repente, logo depois das f��rias de j u n h o , o

mist��rio de Glorinha se esclareceu, deixando-nos at��ni-

tos, q u a n d o viemos a saber, no p��tio de formatura, antes

do toque da sineta para o come��o das aulas, que a aluna

ia casar com o professor.

A Elcine esticou a figurinha magra na ponta dos p��s,

os olhos esgateados �� tona do rosto salpicado de sardas, e

protestou, quase n u m grito:

��� N �� o �� possivel!

E logo a Maria Jos��, a Heloisa, a Enedi, a S��nia, a

Vanda, a Regina e a Neide ��� a Neide de olhos rasgados e

sonhadores, que me inspirou t��o magoados versos ��� ex-

primiram o mesmo espanto agastado, como se o noivado

da colega as houvesse espoliado e traido, arrebatando-

Ules de surpresa um bem que a todas deveria pertencer.

Somente a Carla, que levara a m�� noticia, e era alta e

feia, continuou a limpar as unhas com as pr��prias unhas,

querendo rir gostosamente, com a cabe��a inclinada, a

olhar as outras pelo canto dos olhos, como se a vit��ria de

Glorinha a desforrasse de seu estrabismo e de seu busto

achatado:

��� Mais vale quem Deus ajuda ��� comentou.

As outras lhe deram as costas, caminharam para

perto do velho po��o de ��guas profundas, a um canto do

p��tio, e foi a Enedi que reabriu a queixa de todas, suspi-

r a n d o com raiva:





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��� Que sonsa, a Glorinha! Ningu��m percebeu coisa

alguma. Com aquele ar distante. Sem querer se misturar

conosco, como se fosse diferente de n��s. E nos passou

para tr��s. A t o d a s .

A Heloisa foi mais rispida:

��� U m a criatura assim n��o pode ser amiga de nin-

gu��m. Eu n��o dizia n a d a , porque n��o me meto com a vi-

da dos outros, mas bem que desconfiava dela, e n��o era

de hoje.

A verdade �� que Glorinha, ao aparecer no Liceu,

no come��o do a n o , para cursar a ��ltima s��rie, tentara

aproximar-se das colegas. Chegara a convid��-las para

u m a festa de anivers��rio, a que s�� a Maria Jos�� compare-

ceu, assim mesmo para entrar e sair, como quem se deso-

briga de um recado. E foi ela que, na m a n h �� seguinte, ce-

d o , antes do in��cio das aulas, contou ��s outras, com ar de

riso:

��� Com toda aquela pose, sabem voc��s onde ela m o -

ra? Na Rua do Passeio, perto do Cemit��rio. U m a casa

baixa, de muito mau gosto, repleta de trastes velhos. Eu,

se morasse naquele b u r a c o , nunca ningu��m me via na ja-

nela.

Glorinha, refugiando-se na sua altivez e na sua bele-

za, isolou-se das colegas. E como o porte e os seios altos

davam-lhe mais idade, na harmonia de seu garbo natural,

ningu��m estranhou que ela se retra��sse na extremidade di-

reita da classe, na carteira ao p�� da janela sobre a rua. A

luz, que era ali mais intensa, dava-lhe realce. E todos n��s

reconhecemos que n��o devia ser outro o seu lugar.

No intervalo das aulas, enquanto toda a t u r m a des-

cia para o p��tio, Glorinha permanecia na sala. E, como

gostava de ler, trazia sempre uma revista, um romance ou

um livro de contos, com que ficava no seu canto esperan-

do o tempo passar.

N u m a dessas ocasi��es, n��o sei se por acaso ou de

prop��sito (creio que por acaso), entrei na sala q u a n d o

Glorinha estava lendo. Parei no batente da porta, sem





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que ela houvesse dado por mim. E pude contempl��-la por

alguns minutos, como que imobilizada na claridade viva,

meio de lado, o dorso apoiado na costa da cadeira. C o m o

era alta, j u n t a r a os joelhos, inclinara as pernas, com os

p��s tamb��m unidos, e toda ela parecia tocada por u m a

luz pr��pria, nos olhos, na boca, na pele morena, na curva

dos seios, com a m �� o esquerda segurando o livro, a direi-

ta descansando o queixo. Jamais imaginei que fosse t��o

bela, com aqueles olhos pestanudos, aquelas m��os, aque-

la combina����o de forma e de cor. E favorecida por u m a

sensualidade sens��vel, extremamente feminina, sem nada

de premeditado ou provocante.

Foi ela, erguendo o olhar surpreendido, quem me ti-

rou do meu enlevo:

��� Voc�� chegou agora?

Confirmei com a cabe��a, e n��o sa�� do batente da

p o r t a , ainda p a r a d o , a olh��-la. E ali talvez ficasse, esque-

cido de mim mesmo, como hipnotizado pela beleza suave

da Glorinha, se n��o ouvisse por tr��s de mim o ru��do dos

passos dos companheiros, galgando apressadamente os

degraus da escada, no retorno �� sala de aula. Um deles

me empurrou, outro sussurrou-me u m a obscenidade, e

cada um de n��s, a um novo bater da sineta, ocupou o seu

lugar.

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CAP��TULO II

N e s s e s dias distantes, o Liceu ainda era o Liceu.

T �� o importante, em S��o Luis, quanto o Col��gio Pedro

II, no Rio de Janeiro. C o m um primoroso elenco de pro-

fessores, recrutados em concursos renhidos que t o d a a ci-

dade acompanhava.

Perto de minha casa, na R u a dos Rem��dios, morava

Dr. Ara��jo Costa, que eu via passar defronte de minha

janela, t o d o de b r a n c o , chap��u de palhinha, bengala de

cast��o de o u r o , calad��o, distante. Era professor de fran-

c��s no Liceu. O desembargador Bona, que sabia alem��o e

grego, tamb��m pertencia ao Liceu. E assim o Dr. A n t �� -

nio Lopes, o professor Nascimento Morais, o Rubem Al-

meida, o M a t a R o m a , o Lu��s Viana, o poeta Correa de

Ara��jo, o desembargador Alfredo de Assis. Todos mes-

tres. Grandes mestres. Express��es superiores da cultura

maranhense. Com livros publicados. Na rua, ao passa-

rem, eram apontados com respeito:

��� �� professor do Liceu.

A Sala da Congrega����o, no Liceu Maranhense, era

adornada de retratos a ��leo em molduras douradas, com

a imensa mesa das reuni��es coberta de veludo vermelho,

severos cadeir��es de couro tauxiado, a floreira de prata

ao centro. Tinha a gravidade de um consist��rio.

A meio caminho entre o Desterro e a Praia Grande,

o Liceu ocupava a metade de um quarteir��o da Rua Di-

reita, entre a Rua da Estrela e a Rua do Giz. Beiral salien-





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te, janelas de sacadas de ferro, portal de pedra, a escada

tamb��m de pedra, dois p��tios internos, a sala da secreta-

ria, a sala do diretor, e a vasta varanda circular abrindo

para um dos p��tios.

L�� dentro, a algazarra dos alunos. U m a sineta batia,

e todo esse ruido confuso subitamente cessava, enquanto

soavam os passos dos alunos nas escadas internas ou nas

lajes do corredor. Nas tr��s ruas, sob as sacadas, o preg��o

dos vendedores ambulantes, o rolar de u m a carro��a, o ti-

nir da ferradura dos cavalos, e o ��spero ranger das rodas

do bonde, na curva da Rua da Estrela para a Rua Direita,

a poucos passos do sobradinho da Ulem onde o bravo

Mendon��a matou o americano Kennedy, para ser unani-

memente absolvido.

No futebol, no v��lei, nos jogos atl��ticos, o Liceu era

tamb��m famoso, e a prova l�� estava, debaixo de chave,

nas ta��as e trof��us que enchiam um arm��rio envidra��ado,

na Sala da Congrega����o.

No dia em que vesti pela primeira vez o d��lm�� caqui

e a cal��a comprida da farda do Liceu, senti que deixara

de ser menino ��� o menino de cal��a curta da Escola Mo-

delo. Diante do espelho, j�� pronto para sair, lamentei

n��o ter ainda a penugem do bu��o sobre o l��bio superior,

para completar o rapazinho que ali estava, de cara redon-

da e brilhantina nos cabelos, muito compenetrado de sua

nova condi����o. N �� o era um homem completo, n��o ���

mas j�� estava perto. Simples quest��o de mais uns meses,

talvez um a n o , tudo dependendo apenas do dinheiro para

a aventura num dos bord��is de S��o Luis.

A vira����o da m a n h �� , ajudando-me na subida das la-

deiras e acompanhando-me nas suas descidas, poderia

contar a transforma����o que se operou no meu ser, entre a

casa de meus pais, na Rua dos Rem��dios, e o casar��o do

Liceu, ao fim da Praia Grande. A farda me ca��a bem. Eu

pr��prio lustrara os sapatos, dando-lhes um polimento

mais vivo nas biqueiras. O casquete de p a n o , da mesma

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cor da farda, ia um pouco de lado, na cabe��a erguida, pa-

ra dar um toque a mais em minha eleg��ncia estudantil.

Minha voz, que passara a ter dois tons, ora fina, ora

grossa, acabou por se firmar no tom viril, e n q u a n t o os

bem-te-vis do caminho se esgoelavam a gritar que bem

me viam, equilibrados no beiral das casas ou nos fios da

ilumina����o p��blica. T a m b �� m as pessoas que se debru��a-

vam das janelas, ao longo de meu trajeto para o Liceu,

estavam ali para me ver passar. Algumas me sorriam.

Duas me acenaram. E at�� a D. Anica Falc��o, que nunca

me havia convidado para ver o seu c��lebre pres��pio, ao

tempo das festas do Natal, na porta-e-janela da Rua da

Passagem, se saiu com este cumprimento expansivo, que

me fez olh��-la com outros olhos:

��� J�� no Liceu? Ora viva! Estou gostando de ver.

Parab��ns.

Andei fardado por toda a cidade, e toda a cidade

certamente me admirou. Entretanto, tardei um pouco em

me sentir o homem completo que eu gostaria de ser nos

primeiros tempos do Liceu. E por minha culpa, reco-

nhe��o. Cedo, com o que ganhei nas aulas aos meus

pr��prios colegas, juntei o dinheiro necess��rio �� primeira

aventura. Muitas e muitas vezes, decidido a realiz��-la,

desci a ladeira que levava ao sobrado da Rua da Estrela,

cen��rio natural de minha inicia����o, mas as pernas me fal-

taram para lhe transpor resolutamente a porta entreaber-

ta. C o m o seria l�� dentro? As mulheres andariam nuas pe-

la casa? Ou s�� com o vestido em cima do corpo? E como

me receberiam? Ririam de mim? Perguntariam o que eu

fora fazer l��? A dona do sobrado n��o ralharia comigo?

Cheguei a admitir que uma das mulheres nuas me le-

varia para seu q u a r t o , contente de se entregar a um aluno

do Liceu. E eu, nesse m o m e n t o , como me comportaria?

Meu cora����o disparou, o suor frio correu-me pelas t��m-

poras. E o temor de um fiasco repentino, que talvez me

aniquilasse para o resto da vida, cresceu na minha imagi-





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n a �� �� o , a t o r d o a n d o - m e . E esse m e d o , esse p �� n i c o ,

to r tu r an d o- m e, intimidando-me, me fez adiar por muitos

meses ��� ou melhor: por dois anos e tr��s meses ��� o suspi-

r a d o encontro com a minha virilidade.

Naqueles dias, o concurso do Daniel agitava o Li-

ceu. Andava ele pelos 32 anos, e era uma figura magra,

de p��mulos salientes, ombros altos, curtido de sol do ser-

t �� o , os cabelos tocados por um leve tom afogueado, sem-

pre com o cigarrinho entre o dedo indicador e o m��dio da

m �� o canhota. Disputava tamb��m a cadeira o professor

Quirino Benjamin, j�� velhusco, a calva imensa, o palet��

ca��do para os lados.

Quirino pertencia ao Liceu, como professor de outra

disciplina; Daniel, n �� o : vinha do Ateneu Teixeira Men-

des, e logo, por ser m o �� o , e competente, nos entusias-

m o u . Os partidos se formaram no correr da primeira pro-

va: n��s, os mo��os, em favor do Daniel; alguns professo-

res, sobretudo os mais velhos, em favor do Quirino.

E n q u a n t o um p��blico escasso acompanhava as pro-

vas p��blicas do Quirino, o u t r o , mais numeroso e aguerri-

d o , constitu��do de alunos, transbordava para o corredor

e a sala cont��gua, aplaudindo o Daniel, escrevendo-lhe o

nome no quadro-negro de todas as salas de aula, pregan-

do cartazes manuscritos nas paredes, d a n d o vivas ao nos-

so candidato com peda��os de carv��o nos muros pr��ximos

ao Liceu, e a c o m p a n h a n d o o professor em passeata, para

os discursos exaltados na escadaria da igreja do C a r m o ,

ao fim de cada argui����o.

A ��ltima prova ��� decisiva, com a confronta����o dos

candidatos no correr de uma aula ��� prometia p��r o Li-

ceu em p�� de guerra, caso a congrega����o se decidisse em

favor do Quirino. Eu estava entre os mais exaltados. De-

cidimos faltar a todas as aulas para assistir �� prova, mar-

cada para o meio da tarde.

Por volta de u m a hora, sa�� de casa. Entre a Rua dos

Rem��dios e a Rua Direita, gastava habitualmente meia

h o r a , quarenta minutos, sempre a p��, com largos mo-

20

mentos de conversa fiada �� sombra das figueiras do Lar-

go do C a r m o , depois de percorrer t o d a a Rua do Sol.

Dessa vez, entretanto, desci a Rua do Alecrim, atra��do

pela nesga de sombra do lado esquerdo da cal��ada estrei-

ta, rente ��s fachadas.

Rua longa e deserta, como que adormecida na pre-

gui��a da sesta. As janelas fechadas contra o m o r m a �� o da

hora. E um tinido met��lico de cincerros, mais adiante,

depois da Rua P e s p o n t �� o , no vasto terreno de u m a vaca-

ria.

Fui a n d a n d o devagar. E era t�� o grande o sil��ncio ��

minha volta que se ouvia com nitidez o ru��do de meus

passos na cantaria do ch��o. P a r a aliviar-me do calor, eu

tinha aberto o colarinho da farda, e ia com o casquete na

m �� o , protegido pela nesga de sombra.

Pela altura da Rua do P e s p o n t �� o , vi um rosto more-

n o , de olhos m o r t o s , na r��tula entreaberta de u m a porta-

e-janela. E logo ouvi esta pergunta, em tom suplicante:

��� P o d e me fazer um favor?

E abrindo-me a porta:

��� Entre.

Fechou depressa a porta, com a dupla volta da cha-

ve, e eu me vi n u m a saleta quase escura, enquanto u m a

mulher morena, cheia de corpo, me segurava as m��os

frias:

��� Tu sabes que eu trabalhei na tua casa e que te vi

menino? Depois me casei, n �� o deu certo, e aqui estou.

Sou a Dulce. N��o te lembras de mim? Eu te carreguei nos

meus bra��os.

E ado��ando mais a fala cantada:

��� Deixa eu te dar um abra��o bem apertado?

Senti-lhe os seios soltos, de mamilos duros, por bai-

xo do vestido caseiro, enquanto seu corpo se unia ao

meu, d e m o r a d a m e n t e , sensualmente. C o m rapidez, ela

abriu o colarinho, desabotoou-me o d��lm��, ao mesmo

tempo em que me ia levando para o aposento cont��guo,

mais escuro que a saleta.

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N �� o tardei a ajustar meus olhos �� claridade escassa,

e pude ver a cama tosca, a rede, a c��moda, um S��o Bene-

dito na peanha da parede, a esteira no ch��o. Rapidamen-

te, apenas com o erguer dos bra��os acima da cabe��a, se-

gurando a barra do vestido, a nudez total de Dulce estava

agora �� minha frente, com os seios volumosos, as coxas

grossas, os quadris largos exibindo o sexo ostensivo, e j��

seus dedos acabavam por me despir, descendo-me a cal��a

da farda. Em sil��ncio, sentou-me na cama, tirou-me os

sapatos e as meias, e alongou-se ao comprido do colch��o,

puxando-me para si, tudo depressa, como no temor de

que eu lhe escapasse.

Devia andar pelos trinta e cinco, quarenta anos, e

trazia em si um cheiro b o m de b a n h o recente, debru��ada

sobre meus olhos, a me oferecer maternalmente um dos

seios:

��� T o m a , t o m a . Meu filhinho.

E toda ela se juntava a mim, tateando-me o sexo,

apertando-me o rosto, ajudando-me a possui-la:

��� Assim, a m o r . Assim.

Sai dali com a tarde querendo esmorecer. E m b o r a as

pernas me tremessem, o m u n d o agora era o u t r o , na luz

espl��ndida que vinha ao meu encontro e me banhava de

ouro e calor. Fui a n d a n d o para o Largo do C a r m o ,

a c o m p a n h a d o pelo grito dos bem-te-vis. L�� adiante, do-

brei a Rua do Ribeir��o. Contornei a velha fonte que Ne-

t u n o vigiava. Que me importavam as carrancas de pedra,

a ��gua a escorrer para os regos laterais, a vira����o da tar-

de? Eu pisava firme, sentindo que o ch��o era meu.

J�� no Largo do C a r m o , olhando na dire����o da Rua

Formosa, avistei os companheiros do Liceu, com o pro-

fessor Daniel �� frente. Eu devia correr para eles e juntar-

me �� passeata. N �� o . N �� o foi o que fiz. O bonde do Anil

vinha completando a curva para descer a Rua G r a n d e .

Saltei-lhe para o bala��stre, instalei-me num banco vazio,

deixei que o bonde me levasse.

22

E s�� as cigarras do J o �� o Paulo e da J o r d o a , nas ��rvo-

res que marginavam o Caminho Grande, descobriram o

meu segredo. Porque nunca eu as ouvi cantarem tanto

quanto naquele fim de tarde, nas duas vezes em que por

ali passei.

23

CAP��TULO III

G l o r i n h a entrou para a nossa classe no quinto ano

do gin��sio. Cursara o Liceu do Cear��, em Fortaleza, on-

de passara alguns anos, depois de u m a temporada na ser-

ra de Baturit��.

No primeiro dia de aula, deu-nos a impress��o de j��

ter feito 20 anos. Na verdade, tinha ainda 16, como quase

todos n��s. N u m relance, ofuscou as beldades da sala, in-

cluindo a Heloisa, a Enedi e a Cleide, que passaram ime-

diatamente a segundo plano.

Eu, que voltara a repetir minhas aventuras ,com a

Dulce, a ponto de celebr��-la nos 14 alexandrinos de uma

" O r g i a p a g �� " , na primeira p��gina da Folha do Povo,

olhei Glorinha com olhos de entendido em mulher, de-

pois olhei o Bandeira de Melo, o Barros da Silva, o Se-

basti��o Correia, o Juca Fernandes, o Tarcisio Gomes,

que esperavam pelo meu veredicto, e espichei o l��bio in-

ferior, e aumentei o brilho das pupilas, e balancei a ca-

be��a, para lhes dizer em sil��ncio que aquela, sim, era

realmente uma deusa.

E ao descermos para o p��tio, no intervalo das aulas:

��� A Glorinha precisa de u m a guarda de honra: para

traz��-la de casa e para lev��-la de volta.

A composi����o dessa guarda quase nos levou aos so-

papos no pr��prio p��tio do Liceu. Eu queria que fosse fi-

xa; os outros pendiam para que fosse vari��vel, de m o d o

que tocasse a vez, pelo rodizio, a cada um de n��s. C o m o

ningu��m abria m �� o de sua proposta, acabamos por tirar

24

da cabe��a a id��ia da guarda, limitando-nos a esperar a

Glorinha, na parada do bonde, quando vinha de casa, ou

lev��-la �� parada do bonde, q u a n d o voltava.

Entretanto, q u a n d o demos por n��s, j�� ningu��m ia

esper��-la ou lev��-la, acompanhando-a no pequeno es-

pa��o da travessia da rua para o poste de p a r a d a . A Glori-

n h a , discreta, em sil��ncio, imp��s-nos dist��ncia, e os gru-

pos se dissolveram, quase sem dar por isso.

Na sala de aula, a carteira por ela escolhida, na pri-

meira fila, n��o tinha ocupante fixo porque dava sol. Glo-

rinha n��o tardou a proteger-se com a folha da p o r t a d a ,

de m o d o que, no seu canto, b a n h a d a pela luz viva da tar-

de, era tamb��m favorecida pela vira����o que entrava pela

Rua da P a l m a , suave, constante, e merecida.

Sentando-se na frente, Glorinha estava sempre vol-

t a d a para o professor, a janela sobre a Rua Direita e o

quadro-negro, no correr das aulas. Seu cabelo negro,

ca��do para os o m b r o s , n��o nos deixava olhar-lhe a nuca e

a curva do pesco��o, mas permitia que lhe admir��ssemos

as esp��duas, a curva dos bra��os. E como segurava habi-

tualmente um l��pis, com o cotovelo apoiado na b o r d a da

carteira, acabei reproduzindo de mem��ria a sua m �� o es-

guia ��� as mais lindas m��os de que tenho lembran��a. Vez

por outra, obrigada a voltar-se para acompanhar a ar-

gui����o de um colega, oferecia-se de relance �� nossa con-

templa����o, n��o t a r d a n d o a virar-se para a mesa do pro-

fessor.

Foi por essa ��poca que S��o Lu��s m a n d o u , como miss

M a r a n h �� o , para o Rio de Janeiro, a Maria de Lourdes

Pantoja, aluna da Escola Normal, tamb��m ali no Liceu.

Houve quem se lembrasse de incluir no concurso a Glori-

nha; esta recusou com veem��ncia. N �� o , n��o queria ficar

na vitrina, como um manequim. Por favor. Preferia dei-

xar o Liceu, passando-se para o Ateneu Teixeira Mendes.

Ficamos assustados. Sair do Liceu? Deixar nossa

turma? Jamais. P o r outro lado, ir��amos exp��-la, no con-

curso de beleza, a u m a luz excessiva, t o r n a n d o p��blica a

25

beleza quase privativa de Glorinha. Isso n �� o . De m o d o

algum. A Maria de Lourdes P a n t o j a havia sido bem esco-

lhida. Morena, alta, os l��bios finos de quem sabia guar-

dar segredo, talvez suplantasse a Glorinha no busto, no

t o m da pele, mas n��o teria a mesma cintura, a mesma on-

dula����o escultural dos quadris para as coxas. Torcemos

por ela. C o m aplauso de Glorinha.

A Glorinha, por n��o ser de ningu��m, era de todos,

ali na classe. Freq��entemente, para admir��-la melhor, eu

me precipitava escada abaixo, ao fim das aulas, e ia

esper��-la na cal��ada da rua. Logo descobri que o Bandei-

ra, o Ulisses, o Ribamar, o Costa, o Tupinamb�� tamb��m

ali acorriam, pelo mesmo motivo, sem que um dissesse ao

outro a raz��o por que estava voltado para as alunas que

vinham descendo os degraus de pedra.

Conquanto parecesse ignorar-nos, Glorinha descia

devagar, no centro da escada, sem se misturar ��s levas de

alunas que se precipitavam para a sa��da ao bater da sineta.

Retardava-se um pouco, a pretexto de compor defronte

do espelhinho o leve toque de ruge que lhe avivava o rosto

ovalado. Fazia isso de prop��sito, para sentir-se admirada?

Ou evitava misturar-se ��s outras, com a consci��ncia de sua

singularidade? De uma forma ou de outra, j�� a escada es-

tava desafogada de saias e blusas quando a saia e a blusa

da Glorinha se destacavam na luz que entrava pelo portal

de pedra e ia ao seu encontro na volta dos degraus. De

tanto esper��-la, disfar��adamente, dissimuladamente, aca-

bei por v��-la em sonho, mais de uma vez.

U m a tarde, no p��tio do recreio, entre o latim do c��-

nego Chaves e o franc��s do professor Araujo Costa, o

Bandeira de Melo atirou �� nossa roda, que se reunira jun-

to do po��o, estas palavras inquietantes:

��� A Glorinha n��o pode deixar de ter um n a m o r a d o .

Tem de ter. E quem ser�� esse afortunado?

N��s nos entreolhamos, preocupados. Realmente,

nenhum de n��s admitira at�� ent��o essa hip��tese f��cil, que

subitamente nos desnorteava. O Bandeira tinha raz��o.

26

Um rancor vago, sem objetivo n��tido, cresceu em nossa

imagina����o, enquanto nos disp��nhamos a dar cabo desse

rival desconhecido, que a todos n��s amea��ava. Sim,

quem seria ele? E como far��amos para afast��-lo da Glori-

nha?

Em primeiro lugar, t��nhamos de identific��-lo. Co-

mo? Falar �� pr��pria Glorinha, para ver se nos confiava o

seu mist��rio? Imposs��vel. Ningu��m teria coragem de tra-

tar com ela semelhante assunto. Por outro lado, t��nha-

mos medo da verdade, se o n a m o r a d o realmente existis-

se. Existiria, certamente. Mais forte que o receio era a

nossa curiosidade. Noites seguidas, subi e desci a Rua do

Passeio, at�� a pra��a do Cemit��rio, passando pela meia-

m o r a d a da Glorinha, e dali s�� me veio, pela fresta das

r��tulas, nas janelas fechadas, o som de um piano, na exe-

cu����o de u m a das valsas do Ernesto Nazareth.

Na tarde seguinte, fui �� janela da sala do Liceu, no

intervalo das aulas. Na volta, perguntei �� Glorinha:

��� Na sua casa, quem �� que toca piano?

��� E u .

Os pianos de S��o Lu��s... A h , a saudade boa que te-

nho deles. De noite, entre as oito e as 11 horas, por vezes

entrando pela m a d r u g a d a , esses pianos se faziam ouvir

por toda a cidade, mesmo nos velhos sobrados da Praia

Grande e do Desterro. O sil��ncio das ruas como que abria

espa��o p a r a a sonoridade de seus teclados. Ouvia-se um

aqui, outro ali, outro mais adiante, e eram polcas, seres-

tas, marchas carnavalescas, e tamb��m a grande m��sica, a

m��sica eterna. F o r a m eles que me revelaram Chopin,

Mozart, Liszt.

J�� tarde, ao voltar para casa, eu parava de vez em

quando na esquina da Rua dos Craveiros com a Rua da

P a z, para ouvir o piano de Sinhazinha Carvalho tocando

as valsas da Chiquinha Gonzaga. E q u a n d o retomava mi-

nha caminhada a p��, l�� iam elas comigo, como se valsas-

sem por tr��s de meus passos.

27

Certa noite, ia eu pela Rua das H o r t a s , em compa-

nhia do Sebasti��o Correia, que sobra��ava o seu violino.

De repente o Sebasti��o p a r o u , com a m �� o direita �� altura

da orelha:

��� Est��s ouvindo?

E levando-me pelo bra��o, rua abaixo, enquanto ia

crescendo �� nossa frente a sonoridade m��gica de u m a so-

nata:

��� �� de Beethoven, na casa do Maestro In��cio Cu-

n h a .

L�� adiante, em frente �� m o r a d a inteira do maestro,

ficamos a ouvir a magistral execu����o da sonata. O mun-

d o , �� nossa volta, era quase irreal na sua beleza p u r a . Sob

o c��u estrelado, as casas adormecidas, raros transeuntes,

e um c��o felpudo e negro a nos olhar, de cabe��a meio in-

clinada, nas lajes da cal��ada fronteira.

Foi na companhia do Sebasti��o Correia que voltei ��

Rua do Passeio, n ou t r a noite de estio. Perto da casa da

Glorinha, travei-lhe do bra��o, ouvindo o piano tocar.

Eu parei, ele parou, de orelha atenta. E tirando o

violino do estojo:

��� Permites?

N��o esperou por minha concord��ncia. Ajustou o

violino ao queixo, tocou duas notas, ajustou as cordas ��

cravelha, e p��s-se a acompanhar o chorinho do piano,

b a n h a d o pela luz do lampi��o.

Logo a seguir o piano se calou. A janela da direita

entreabriu u m a frestazinha da r��tula, depois voltou a

fechar-se. Tive a impress��o de ver nesse relance u m a r��s-

tia do rosto da Glorinha, que de pronto se recolheu.

E Sebasti��o, g u a r d a n d o o violino no estojo:

��� Conheces a morena que m o r a ai? Linda. J�� to-

quei para ela a Serenata de Schubert, aqui mesmo. N �� o

me deu confian��a. O pai dela, que anda agora muito

doente, jogou-me u m a lata de ��gua. Sa�� daqui feliz e mo-

lhado, e fui tocar na porta do Cemit��rio, para o poeta

Quintanilha, que se tinha m u d a d o para aquele sil��ncio,

28

fazia u m a semana. Sabes quem estava comigo? O Daniel,

teu professor. Ele mesmo. P o r fora, um secarr��o, com as

suas matem��ticas na p o n t a da l��ngua. Por dentro, um

sentimental, como tu, como eu, e gostando tamb��m do

belo verso e da bela m��sica.

29

CAP��TULO IV

A n t e s da surpresa de seu noivado com o Daniel, a

Glorinha nos fez outra, quando apareceu na sala de aula,

toda de preto, no rigor do luto fechado.

Os jornais n��o tinham dado noticia de ��bito que

pud��ssemos associar �� sua fam��lia. T a m b �� m nada se co-

mentou no intervalo das aulas e nas conversas do p��tio,

entre dois toques de sineta.

Da�� o espanto com que vimos a Glorinha surgir �� en-

trada da sala, para a prova de portugu��s do semestre, tra-

j a n d o vestido preto, meias pretas, sapatos pretos, sem

pintura nem toque leve de p��-de-arroz, e os olhos pisa-

dos, com uma leve mancha quase roxa por cima dos p��-

mulos.

O professor M a t a Roma, que j�� havia come��ado a

chamada, ficou com a pena apontando o papel, no livro

aberto, enquanto esperava que a Glorinha ocupasse o seu

lugar.

E assim que ela sentou:

��� De luto por quem, Glorinha?

��� Meu pai.

N��o escondo aqui minha estranha rea����o imediata:

veio-me a vontade de excluir colegas, sala de aula, pro-

fessor, para que restassem ali a Glorinha e eu ��� ambos

deitados na cama da Dulce, na Rua do Alecrim, com a

cabe��a da Glorinha sobre o meu o m b r o . O amor e a mor-

te, t ��o associados na poesia rom��ntica, reuniam-se na

minha imagina����o e na minha sensibilidade, e eu tive de

30

lutar comigo, m o r d e n d o a madeira do l��pis, para que mi-

nha m �� o impaciente n��o continuasse a desabotoar o ves-

tido da Glorinha, tendo como inspira����o aqueles olhos

sofridos.

Despi-a, realmente, a despeito dessa luta obstinada,

assim que afrouxei a imagina����o, agora entregue a si

mesma. Meu primeiro romance, esbo��ado por esse tem-

p o , e nunca terminado, nasceu da��. E teve o m��rito de su-

perar a crise sentimental em que ent��o me debati, e de

que me ficaram seq��elas nas notas m��s das novas provas,

na semana seguinte.

De cabe��a, raptei Glorinha, levei-a para longe de

S��o Lu��s, fui seu amor e seu amante. Na verdade, nas

tardes seguintes, l�� estava ela no seu lugar, toda de preto,

com os olhos quebrantados, silenciosa, retra��da, mais fe-

chada em si mesma com o sentimento da perda do pai.

Volvidas duas semanas, t o r n o u Glorinha ao uniforme,

com uma fita preta no bra��o da blusa.

E nt r e ta nto , a Glorinha do vestido preto, que t ��o

bem lhe ca��a, perduraria em n��s, entrando na sala, atra-

vessando o corredor, descendo a escada, cruzando a

rua para tomar o seu b o n d e . Ainda hoje, cerro os olhos e

a vejo, com as pontas dos p��s separadas como no passo

das bailarinas, a pastazinha de couro com seus livros e

cadernos, os cabelos negros apanhados para tr��s. Benedi-

to Barros celebrou-a assim n u m a trova. Bandeira de Me-

lo comp��s sobre ela um poema em redondilha maior,

dando-lhe o nome de Miriam. Barros da Silva, que toca-

va viol��o, comp��s a Dama de preto, linda valsa que o

Ant��nio Pires apresentou num dos recitais das Horas de

Inverno, no Gr��mio L��tero Portugu��s.

Com a volta �� blusa e �� saia do uniforme, desfez-se

em mim a exalta����o sensual pela Glorinha. E o curioso ��

que, nas duas semanas em que a vi de preto, com os olhos

pisados, mais silenciosa e esquiva, n��o ousei aproximar-

me dela, nem mesmo p a r a lhe dar os p��sames.





3 1


A Cleide notou minha mudan��a:

��� Que �� que voc�� tem, que anda a��reo? A gente lhe

fala, voc�� n��o ouve. E, se ouve, n��o responde.

E eu, ap��s um sil��ncio:

��� A n d o pensando em sair de S��o Lu��s.

Cleide aumentou os olhos verdes, depois contraiu as

p��lpebras, com u m a express��o de revolta. E afastando-

se, contrariada:

��� J�� vai tarde.

E l�� adiante:

��� P o n h a tamb��m luto, como a Glorinha. Voc�� e

seus amigos.

32

CAP��TULO V

A not��cia do noivado da Glorinha, estourando no

p��tio do recreio logo depois das f��rias, fez que nos en-

treolh��ssemos, at��nitos, para depois reagirmos, exalta-

dos:

��� Noiva daquele velho?

Os trinta e dois anos do Daniel, a essa altura da vida,

pareciam-nos a pr��pria ancianidade. Podia ser pai da

Glorinha e n��o seu m a r i d o . Lev��-la p a r a casa? Deitar-se

com ela? Dar-lhe um filho? T u d o isso nos parecia t��o ab-

surdo q u a n t o transferir o Largo do C a r m o para o Largo

do Quartel.

Sem ser de nenhum de n��s, a Glorinha era de todos.

Ou melhor: de nossa t u r m a . P o r um acordo t��cito, nin-

gu��m se animara a cortej��-la. Eu pr��prio, nas vezes em

que passei �� noite pela cal��ada de sua casa, n��o fui al��m

dos momentos em que parei defronte de sua janela para

ouvir o Sebasti��o Correia acompanhar-lhe o piano.

No dia seguinte, na sala de aula, a Glorinha n a d a me

disse nem eu a ela, e o caso se desfez com o passar do

tempo.

A Glorinha fazia parte de nossa vida, de nossos

h��bitos, de nossa classe. Nem sequer admit��amos que um

dia a t u r m a teria de dissolver-se, para que cada um de n��s

seguisse o seu caminho. N �� o . De m o d o algum. Ser��amos

perenes naquele espa��o, com os mesmos mestres, os mes-

mos companheiros. C o m o imaginar o m u n d o sem Glori-

nha?





3 3


De um momento para o u t r o , exatamente quando o

fim das f��rias de j u n h o nos restitu��a ao conv��vio di��rio ���

aquela m�� not��cia absurda! Noiva, a Glorinha? E do pro-

fessor Daniel?

Q u a n d o entramos na sala de aula, j�� a Glorinha es-

tava no seu lugar, recortada na mansa luz da tarde, j u n t o

�� janela. E enquanto a Helo��sa, a Maria Jos��, a Enedi, a

Cleide, a N o r m a , a Sueli, reinstaladas nas respectivas

carteiras, fingiam n��o ter dado por ela, n��s, os rapazes,

era para a Glorinha que olh��vamos, com o nosso desa-

p o n t a m e n t o e a nossa revolta.

Falei baixo ao Tarc��sio, meu vizinho de fila:

��� Ela est�� contente.

Estava. C o n q u a n t o continuasse com a fita preta na

manga da blusa, parecia esquecida da morte do pai. Duas

vezes, a pretexto de compor os cabelos acima da orelha,

levou at�� eles a m �� o morena que trazia a alian��a do noi-

v a d o . Exibia-a com evidente e natural orgulho, sem repa-

rar que nos dilacerava e feria, traindo a todos n��s. E a luz

viva ajudava-a a nos torturar. Senti a garganta apertada e

os olhos ��midos.

Mas a rea����o maior foi a do Cl��udio Serra, quando

o Daniel, sobra��ando o livro de chamada, apareceu ��

p o r t a da sala: levantou-se de repel��o, fez cair com estron-

do a t a m p a da carteira, e deixou a classe ��s pressas. Ao

sair, quase deu um esbarr��o no professor, que j�� tinha

d a d o dois passos dentro da sala. Daniel parou, olhou-o

com ar de riso:

��� N �� o v�� errar de banheiro ��� observou-lhe.

Noutra oportunidade, todos n��s ter��amos rido. Na-

quela, n �� o : permanecemos calados, com as m��os sobre a

mesa, olhando para as duas janelas da Rua Direita.

Ao subir ao estrado, abrindo o livro de chamada,

Daniel nos cumprimentou. S�� a Glorinha respondeu.

Ele, com a cabe��a inclinada para o livro, olhou-nos por

cima dos ��culos, como se fosse sorrir. Depois, baixando

novamente o olhar, deu come��o �� chamada, deixando ver





34


a alian��a na m �� o severa que segurava a caneta. Nunca

houve tanto sil��ncio na sala quanto nessa aula. E assim

que a sineta bateu para o intervalo, somente a Glorinha

ali permaneceu, enquanto o resto da classe descia ao

p��tio, deixando ressoar seus passos nos degraus da esca-

da.

L�� embaixo, demos expans��o ao nosso rancor:

��� E u , se pudesse, ia embora daqui ��� rosnou o Ara-

g��o, cerrando os p u n h o s .

E eu:

��� Ai est�� em que deu o nosso entusiasmo pelo Da-

niel, durante o concurso dele. Mil vezes o velho Quirino.

Bandeira de Melo reagiu como poeta:

��� Voc��s v��o ver a s��tira que hei de escrever contra o

Daniel. A velhice do Padre Eterno, do Guerra Junqueiro,

vai virar ��gua de rosa diante da A velhice do professor

Daniel. Em alexandrinos. Dos meus. P o n d o - o no rid��cu-

lo. Para sempre. U m a surra de criar bicho.

E o Correia da Silva, com ar pachola, arredondando

os bei��os, saiu de seu sil��ncio profundo, para nos dizer

esta vulgaridade:

��� De onde n��o se espera, da�� �� que vem.

No p��tio, em vez da algazarra de todos os dias,

est��vamos calados, remoendo as nossas iras. A indig-

na����o tirara-nos a fala. Que t��nhamos a dizer? Este pe-

gou seu livro, aquele se p��s a escrever na terra do ch��o

com um graveto comprido, outro se p��s a olhar os recor-

tes de nuvens por cima dos telhados da Praia Grande.

E o Bandeira de Melo, nesse m o m e n t o , aproxi-

mando-se do banco em que eu me refugiara com um vo-

lume de contos de Machado de Assis:

��� J�� viste? Olha ali para cima, ao lado da escada.

Glorinha, sempre calada, havia descansado os ante-

bra��os no poial de u m a das janelas sobre o p��tio, e ali

conversava com o professor Daniel. Por vezes, riam. E

logo retomavam a conversa, os dois quase unidos.

35

Debalde tentei reatar a leitura interrompida. Fechei

o livro, preferi faltar �� outra aula, e sa�� �� rua, para cami-

nhar pela Praia Grande, sem saber ao certo o que faria de

minha ira.

Felizmente, naquela mesma tarde, entrei pela Rua

do Alecrim, e a boa Dulce me consolou.

36

CAP��TULO VI

As paix��es da adolesc��ncia t��m isto de b o m , quan-

do n��o levam ao desatino: n��o demoram a passar, desde

que encontrem a sua forma de expans��o como derivati-

vo.

No meu caso, a revolta assumiu u m a fei����o elegiaca,

na m a n h �� seguinte, q u a n d o escrevi o famoso soneto que

terminava assim:

Hoje, na curva dos dezesseis anos,

Olhando para tr��s, vejo mudadas

As mortas ilus��es em desenganos.

Nem ao menos me resta uma quimera:

Sou ��rvore de folhas estioladas,

No mais alto esplendor da primavera!

O Durval Para��so, a quem li o soneto no Caf�� Excel -

sior, por entre o tinido das x��caras e a indiferen��a dos

gar��ons, arrebatou-me a folha de papel:

��� Vai sair na Folha do Povo, hoje mesmo.

E saiu dali para o jornal, enquanto meus versos iam

comigo, cantando-me na mem��ria a sua t o a d a l��rica.

Ao entardecer, deixei-me ficar no Largo do C a r m o ,

entre a Rua do Sol e a Rua Grande, �� sombra das altas fi-

gueiras, �� espera de que os primeiros jornaleiros apre-

goassem a Folha do Povo.

Depois, no banco de ferro defronte do Convento do

C a r m o , �� altura do rel��gio p��blico, voltei a emocionar-

37

me com os meus versos, ao v��-los no alto da p��gina, em

destaque, com u m a bela cercadura. E essa emo����o su-

plantou facilmente o desapontamento do noivado da Glo-

rinha ��� que talvez s�� houvesse ocorrido (pensava eu ago-

ra, relendo-me) para que aquele soneto aflorasse �� minha

inspira����o juvenil. Momentos mais tarde, comecei a rece-

ber os primeiros cumprimentos, ali mesmo, no final da

tarde, q u a n d o se acenderam na pra��a os primeiros lam-

pi��es.

E quem veio a mim, nessa hora, saindo da Rua For-

mosa para atravessar o Largo do C a r m o , foi o pr��prio

Daniel. Trazia na m �� o direita o jornal. E inclinando a ca-

be��a, com ar de riso:

��� Esse soneto �� mesmo teu, poeta? Teu, sem a cola-

bora����o de ningu��m? Mata R o m a n��o passou a lima por

alto? Nem o Arimat��ia? N �� o mesmo? E n t �� o venha de l��

um abra��o. Vou levando o jornal para a Glorinha ler.

Parab��ns.

Abra��ou-me j u n t o ao peito. Depois, afastando-se,

p��s a m �� o no meu o m b r o , a olhar-me de frente:

��� S�� tens dezesseis anos?

Confirmei.

E ele:

��� Parab��ns ��� repetiu. ��� Est��s no b o m caminho.

Segue em frente. Sempre em frente.

E correu para apanhar o seu bonde na volta da rua,

enquanto eu concluia, de mim para mim, vendo-o saltar

para o bala��stre, que o aplauso alheio tem o dom de dis-

solver nossas revoltas ��ntimas. Simp��tico e competente o

professor Daniel. Um grande professor. C o m o o A n t �� -

nio Lopes. Como o M a t a R o m a .

Na tarde seguinte, ao chegar ao Liceu, outros aplau-

sos estavam �� minha espera. Cleide apertou-me as m��os

com tanta for��a e carinho que por pouco eu me curvava

sobre a sua boca para repetir o beijo escondido que ela

me tinha dado no dia de meus anos. Mestre Ant��nio Lo-

38

pes j�� me havia procurado na sala de aula. E ao dar comi-

go no alto da escada, na descida para o p��tio:

��� P o r que n �� o me deste o soneto de ontem para O

Imparcial?. Fiquei com ci��mes. O pr��ximo n��o ir�� mais

para a Folha do Povo. Se for, estamos rompidos. Um

grande soneto. Parab��ns.

Outros aplausos me vieram ao longo da vida. Uns,

formais; outros, sinceros e efusivos. Mas poucos tiveram

o sabor daquele, sobretudo q u a n d o vi a Glorinha vir ao

meu encontro:

��� Gostei muito de teus versos. Muito. Foi o Daniel

que os leu para mim, ontem �� noite. Lindos.

Olhei em redor, em meio �� aula do professor Gilber-

to Costa. Onde estava o Cl��udio Serra? S�� ele n��o me

abra��ara. Perguntei por ele ao Tarcisio e ao Bandeira de

Melo. E ambos me disseram:

��� Saiu daqui zangado, decidido a n��o voltar. �� ca-

paz de transferir-se para o Ateneu ou para o col��gio do

Arimat��ia.

E o Correia da Silva, ao fim da aula:

��� Ontem, fui �� casa do Cl��udio, ao fim da Rua de

Santiago, para saber se estava doente. Foi a m��e dele que

me recebeu. Me disse que o filho, fechado no q u a r t o , n��o

quer ver ningu��m. Nem ela. Sempre que se aborrece, fica

assim. Tr��s ou quatro dias depois, reabre a porta, como

se nada houvesse acontecido. N �� o adianta pedir-lhe que

saia. Irrita-se. Amea��a sair de casa. O melhor �� deix��-lo

em paz, curtindo a raiva, e esperar que o tempo a des-

manche. Depois de a m a n h �� , estar�� de volta.

Enganava-se.

No dia seguinte, q u a n d o cheguei ao Liceu, tonteei

com o que me disse o Correia da Silva, no batente da en-

trada, �� minha espera:

��� O Cl��udio Serra se m a t o u . Estou vindo da casa

dele. Enforcou-se na esc��pula da rede. Antes de matar-

se, entreabriu a porta. A m��e deu com ele p e n d u r a d o , as-

sim que amanheceu.

39

CAP��TULO VII

L o g o associamos o suic��dio do Cl��udio ao noivado

da Glorinha. Mas tamb��m reconhecemos, na mesma ho-

ra, que ela estava isenta de culpa, no desespero do colega.

N �� o fora sua n a m o r a d a . Nem ao menos tinha havido en-

tre eles qualquer aproxima����o, mesmo fortuita, que au-

torizasse o Cl��udio a se considerar prejudicado ou prete-

rido.

E ela me disse q u a n d o lhe contei que ele se havia ma-

t a d o :

��� Sabe que o Cl��udio nunca falou comigo? Nunca.

Sempre passou por mim baixando os olhos, esquivando-

se de me falar.

Ant��nio Oliveira, por ser o mais velho da turma, e

ter por isso mesmo mais experi��ncia, deu ao caso esta ex-

plica����o sum��ria:

��� A Glorinha ��� tomem nota do que vou dizer ��� ��

um caso t��pico de mulher fatal. De mulher por quem os

homens se m a t a m . H�� um romance portugu��s sobre isso.

De Camilo Castelo Branco.

E mais grave, num vatic��nio:

��� O Daniel que se cuide. Aquele noivado, se virar

mesmo casamento, vai ser a desgra��a dele.

O diretor do Liceu m a n d o u suspender as aulas de

nossa t u r m a para que f��ssemos ao enterro do Cl��udio,

naquela mesma tarde. Sa��mos dali a p��, em pequenos

grupos, e acabamos por nos encontrar �� p o r t a da meia-

m o r a d a de janelas baixas, na Rua da Cruz, perto do Lar-

40

go de Santo A n t �� n i o , em cuja sala estava exposto o cor-

p o , metido na farda caqui, com o casquete do lado.

A m��e do Cl��udio, toda de preto, conservava a m �� o

direita na testa do filho como a querer proteg��-lo. Na ou-

tra m �� o amarfanhava um len��o, e era essa m �� o que lhe

exprimia o sofrimento e o desespero na freq����ncia com

que a contraia, enquanto os olhos negros, muito vivos, se

fixavam no rosto l��vido que a morte imobilizara.

P a r a muitos de n��s, todos adolescentes, era aquele o

primeiro encontro com a morte, e isto se notava no sil��n-

cio e no espanto com que a Helo��sa, o Tarc��sio, o Bandei-

ra, a Enedi, a Maria Jos��, a um canto da sala, permane-

ciam olhando o Cl��udio.

Foi o Oliveira quem me alertou:

��� Olha quem est�� chegando. Ela n��o devia ter vin-

d o .

Glorinha, �� entrada da sala, pareceu intimidar-se

com os olhos que se tinham voltado em sua dire����o. Afi-

nal, resoluta, avan��ou alguns passos, acercando-se do

ata��de.

E a m��e do Cl��udio, ao v��-la aproximar-se:

��� Voc�� n��o �� a Glorinha?

��� Sim, sou eu.

E ia apertar-lhe a m �� o , no impulso da condol��ncia,

q u a n d o a senhora a abra��ou, apertando-a contra o peito:

��� Meu filho falava muito em voc��, minha filha.

Muito. Me disse como voc�� era. O seu lugar na sala de

aula. A cor de seus cabelos. O sinal que voc�� tem no quei-

xo. O seu m o d o de segurar o giz q u a n d o vai �� lousa. Bas-

tou eu olhar voc�� para saber que era a Glorinha. E sou

capaz de j u r a r que o Cl��udio nunca lhe falou. Nunca? Eu

sabia. Um t��mido este meu filho. Esquisito. Impulsivo.

Mas bom filho. Deus j�� o perdoou, com certeza. N �� o sei

como foi fazer esta loucura. C o m tanta vida pela frente.

Assim, de um m o m e n t o para o u t r o , sem pensar no meu

sofrimento.

E ao reparar nos olhos molhados que a fitavam:





4 1


��� Todos os colegas gostavam dele, mesmo com o

g��nio que tinha. Voc�� tamb��m gostava, Glorinha.

E p a r a o Cl��udio, que conservava na morte as p��l-

pebras descidas com que passava pela colega na sala de

aula e no corredor do Liceu:

��� Ela tamb��m gostava de voc��, meu filho.

E voltou a pousar a m �� o emocionada na testa do

Cl��udio, enquanto eu, que assistira a t o d a a cena, do ou-

t r o lado do ata��de, tratava de enxugar os olhos turvos,

sem conseguir reprimir a emo����o.

Afastei-me para um v��o de janela, com a garganta

apertada, e ali fiquei, apoiando os cotovelos no parapeito

de madeira, ao mesmo tempo em que a Glorinha se aco-

modava n u m a cadeira ao fundo da sala, j�� com o ter��o

nas m �� o s .

42

CAP��TULO VIII

Por esse tempo S��o Lu��s era u m a cidade tranq��ila,

com raros autom��veis, poucas moradias novas, e um ar

aconchegado de prov��ncia que hoje j�� n��o tem. Ainda

se viam, num ou noutro bairro, as cadeiras na cal��ada,

quando havia luar, e se faziam serestas nas horas mortas,

ao p�� das janelas dos sobrados.

Os graves senhores, que n��o tinham aderido ao brim

branco, muito bem engomado, pr��prio para o clima lo-

cal, suavam nas pesadas roupas de casemira, por vezes

apertados no colete e no colarinho duro. Bengala de cas-

t��o de ouro ou prata e chap��u de feltro. Ao desabotoa-

rem o palet��, via-se o corrent��o de ouro do rel��gio ao

meio do colete. P a r a consultarem as horas, calcavam um

fecho no alto do mostrador, e a tampa deste se abria, exi-

bindo os ponteiros de ouro ou prata, que jamais adianta-

vam ou atrasavam.

As mulheres, com os p��s apertados nas ��ltimas boti-

nas, j�� come��avam a reagir �� m o d a do primeiro quartel

do s��culo: trocando as botinas de pelica pelos sapatos de

salto alto, ao mesmo tempo em que erguiam aos poucos a

barra dos vestidos. U m a ou outra, para adelga��ar a cin-

tura, ainda recorria ao espartilho, que lhe levantava os

seios e aumentava os quadris. Os cabelos compridos, que

desciam para as costas, cobrindo as esp��duas, j�� iam sen-

do cortados, deixando ver o come��o da nuca, primeiro

nas mo��as, depois nas senhoras mais avan��adas, por en-

tre o protesto dos padres, nos serm��es dominicais, e dos





4 3


pastores protestantes, nos cultos da seita respectiva. Sa-

tan��s andaria solto, fomentando tais desatinos.

Ai das mo��as faladas. A m u r m u r a �� �� o local n��o se

contentava com os cochichos do Largo do C a r m o nem

com os mexericos no adro da S��, antes da missa das 10

horas: de noite, circulavam os jornais de esc��ndalo, de

pouco mais de um palmo, contando maldosamente os fu-

xicos locais. N �� o era de bom-tom escrever por inteiro o

nome das mo��as: recorria-se ao expediente das iniciais,

que tornavam mais estimulante a leitura de tais pasquins,

�� porta dos bares, nos bancos das pra��as, nas viagens de

b o n d e .

A 3 de novembro, todos os anos, ia-se em romaria,

ao Largo dos Rem��dios, para festejar Gon��alves Dias em

redor de seu m o n u m e n t o . �� noite, ��s quintas-feiras, ha-

via retreta na Pra��a Benedito Leite, defronte da S��, en-

quanto se acendiam as luzes no bordel da Chico, ali mes-

m o , no soberbo sobrad��o da Rua de Nazar��, esquina

com a Rua do Giz. Senhores graves, de muito bom con-

ceito na pra��a, esgueiravam-se para l��, fugindo aos com-

bustores da ilumina����o p��blica, e lhe transpunham a por-

ta entrefechada com a rapidez de ratos atravessando a via

p��blica.

C�� fora, nos intervalos da retreta, ouvia-se o piano

do famoso Chamin��, pianista do bordel.

De fevereiro a j u n h o , ou seja: entre o carnaval e as

festas de S��o J o �� o , o famoso Ant��nio Pires, funcion��rio

da Ulem e declamador muito aplaudido, promovia as suas

Horas de Inverno, com recitativos, palestras e n��meros de

canto ao viol��o, aos domingos, no Cassino Maranhense.

Essa paz de prov��ncia, entretanto, era quebrada de

vez em q u a n d o por um acontecimento imprevisto, como

o enterro do professor Cavaco, promovido pelos alunos

do Liceu, q u a n d o se soube que o mestre barulhento tinha

levado uma de suas alunas, em noite de luar, para a praia

do Olho d ' �� g u a . Do alto de um mirante, no Largo do

C a r m o , o professor p��de assistir ao pr��prio enterro ��� e

44

teve de fugir debaixo de um chap��u de abas imensas,

q u a n d o a estudantada quis tir��-lo dali para que se enter-

rasse a si mesmo.

Lembram-se do capitalista Matias? Sempre de bran-

co, e de colete, polainas, chap��u-do-chile, bengala de cas-

t��o de o u r o , j�� fazia onze anos que n��o falava com a mu-

lher, m o r a n d o os dois na mesma casa da Rua Grande, ca-

da um a ocupar a sua alcova e a sua sala de visitas, amua-

dos e m u d o s . E amuados e mudos iam �� missa da S��, to-

dos os domingos, de bra��o dado, com a filha ao lado da

m��e, solid��ria com a digna senhora.

Tenho saudades do Mister. Sobra��ava sempre u m a

velha Biblia, sabia umas tantas palavras em ingl��s, e

anunciava de vez em q u a n d o o fim do m u n d o , na escada-

ria do Convento do C a r m o . Vociferava, descrevia a

cat��strofe, depois caia na gargalhada:

��� Vai ser um pagode, minha gente. C o m o nunca se

viu.

Era no tempo das prociss��es de S��o Benedito e de

Santa Filomena. Das novenas no Largo de Santo Ant��-

nio. Das festas do Largo dos Rem��dios. Do velho Ory,

cabeleireiro e professor de desenho, escondendo a calva

envergonhada na peruca vinda de Paris.

Na praia do Caju, ali mesmo na cidade, adiante da

esta����o ferrovi��ria, empilhavam-se melancias, quase da

altura de uma casa, e eram comidas ali mesmo, enquanto

os velhos barcos fatigados, vindos de Alc��ntara, de Cu-

rurupu, de Guimar��es, de Turia��u, gemiam alto, balou-

��ados pelas vagas que se quebravam no pared��o do cais.

De m a n h �� , quando o sol se abria sobre a ba��a de S��o

Marcos, viam-se navios no p o r t o , entre velas coloridas,

pequenas como barquinhos de papel, na imensid��o azul

da barra. Na avenida do Cais da Sagra����o, erguia-se u m a

orla de sobradinhos de azulejos e de casas de beiral sa-

liente, que se estendiam at�� o baluarte do Pal��cio dos

Le��es, resistindo ��s r��spidas ventanias que sibilam por ci-

ma das ��guas nos dias de temporal.

45

E este Largo do C a r m o , t��o feio hoje com seus me-

donhos quiosques? N �� o , n��o era assim. Na pra��a rodea-

da de sobrados, com o casar��o do convento ali em frente,

a igreja ao lado, tinha mais espa��o e mais luz, com a

est��tua de J o �� o Lisboa mais adiante, bancos de ferro ��

sombra das ��rvores, uma fonte de bronze a transbordar

sob a chuvinha constante do repuxo.

Por que n��o confessar que esta pra��a me d�� sauda-

des? D��. No pr��dio de esquina, �� direita da entrada da

Rua do Egito, era o Caf�� Excelsior, de paredes internas

cobertas por grandes espelhos, sempre repleto de fregue-

ses ociosos, que se distribu��am pelas dezenas de mesas,

para tomar um chope, um caf��, um refresco, e ali fica-

vam horas e horas, conversando, rindo, comentando os

mexericos pol��ticos e a vida alheia.

A mesa da entrada, perto da porta, era a nossa ���

minha e de meus colegas do Liceu: Bandeira, Franklin,

Viegas, Correia da Silva, Benedito Barros. Ali, por entre

o ru��do do sal��o transbordante, l��amos a nossa prosa e o

nosso verso, isolados do m u n d o �� nossa volta, a que re-

pentinamente volv��amos q u a n d o come��avam a passar na

Rua do Egito as alunas do Col��gio Santa Teresa. A se-

n h o r a gorda, de bu��o forte, que vai atravessando o largo,

levando um menino pela m �� o ��� acreditem no que vou

dizer ���, foi linda. Linda mesmo. N��o posso compreender

como se transformou na matrona bochechuda de hoje,

b u n d u d a , barriguda, os bra��os afastados do corpo e que

ainda quer sorrir para mim, rom��ntica, amortecendo os

olhos papudos, como se tivesse 15 anos. Ah t e m p o ! Ah

vida!

De repente, como se fosse trazido pelo vento que

varria o largo, entrava no caf�� o mestre Ant��nio Lopes,

p a r a sentar-se �� nossa mesa, sempre indagando, ao fim

de sua conversa erudita:

��� N �� o �� verdade isso?

Foi dali que vi passar a Glorinha, levada pelo noivo,

entrando pela Rua do Sol. O noivado como que a amadu-





4 6


recera ainda mais, dando-lhe um p o r t e de s e n h o r a ,

alteando-lhe a cabe��a, adelga��ando-lhe a cintura, e im-

primindo ao seu andar, com o corpo levemente apoiado

no bra��o do noivo, um ritmo pausado e cheio, que a dis-

tanciava de n��s, seus companheiros de classe.

Amorim Parga, que estava �� nossa mesa, levantou-

se, a pretexto de ir a O Imparcial, precisamente na Rua

do Sol. E no domingo seguinte, na p��gina liter��ria do

jornal, surpreendeu a todos n��s com um belo soneto,

a c o m p a n h a d o por u m a fin��ssima ilustra����o do J. Figuei-

redo, e que come��ava:

Ao teu encontro venho em v��o seguindo,

Preso �� estranha atra����o de teu semblante...

Ainda hoje n��o sei se foi o Amorim que sugeriu ao

Figueiredo a imagem do desenho, ou se foi o pr��prio ilus-

trador que a recolheu nos versos do soneto. Ali estava a

Glorinha, tal como eu a vi, de costas, come��ando a subir

o aclive da Rua do Sol.

47

SEGUNDA PARTE

Que teria eu feito de uma vida que s��

fosse de rosas?

C O L E T T E

CAP��TULO I

O casamento da Glorinha, celebrado por nosso

professor de latim, c��nego J o �� o dos Santos Chaves, pou-

co antes do Natal, levou alunos e mestres do Liceu �� igre-

ja de Santo A n t �� n i o .

C o n q u a n t o j�� estiv��ssemos de f��rias, ajudamos a en-

cher o templo, e muita gente ficou de fora, apertando-se

no a d r o , por falta de lugar nas tr��s naves espa��osas.

No ��ltimo dia de aula, pelo fim da tarde, a Glorinha

pediu licen��a ao professor M a t a Roma para dar um aviso

aos colegas. E q u a n d o esper��vamos que ela se fosse vol-

tar para n��s, acercou-se do quadro-negro e ali escreveu,

segurando o giz com o dedo m��nimo levantado, o convite

para o seu casamento com o professor Daniel, no dia 19

de dezembro.

Ao ficar de frente para a turma, conseguiu dizer, um

pouco vermelha, n u m a voz quase tr��mula:

��� Ficaremos contentes, se todos comparecerem.

E como j�� nos t��nhamos habituado �� id��ia de seu

noivado, vendo-a chegar e sair na companhia do Daniel,

a t u r m a inteira bateu-lhe palmas, inclusive as colegas.

Mata Roma perguntou por n��s, assim que a Glori-

nha voltou �� sua carteira:

��� E vai estudar ano que vem, para continuar o cur-

so?

Ela tardou a resposta, enquanto se fazia sil��ncio em

seu redor. E por fim, emocionada:

��� N �� o , professor.

51

Um oh geral de desapontamento e espanto cresceu

na sala, n u m a rea����o imediata, a que tamb��m se associou

o M a t a R o m a . E este, falando por todos n��s:

��� Voc�� vai fazer falta, Glorinha. Vou sentir sua au-

s��ncia nesse lugar. E seus colegas t a m b �� m .

Sem misturar-se aos companheiros, sempre na sua

carteira, envolta pela claridade da janela, Glorinha esta-

va associada �� classe como o quadro-negro, o m a p a do

Brasil, os preg��es que subiam da rua, os professores ��

nossa frente, alteados pelo estrado ��� com algo de orna-

mental na sua figura quieta.

A certeza de que ela n��o voltaria a recortar o seu

perfil moreno na luz da janela sobre a Rua Direita, a um

canto da sala, e de que n��o iria mais ao quadro-negro,

nos dias de argui����o oral, alta, vistosa e tranq��ila, como

que nos retirava algo que estaria associado �� pr��pria clas-

se, e isso nos entristecia e desolava.

E ela, sem voltar de todo a cabe��a:

��� Eu virei aqui, sempre que puder.

A promessa vaga atenuou em parte a nossa m��goa

moment��nea. Entretanto, pensando bem, que viria fazer

ali a Glorinha, depois de casada? N �� o havia raz��o para

isso.

Na tarde do casamento, desci a Rua do Alecrim, ca-

minho natural para o Largo de Santo A n t �� n i o , saindo de

minha casa, na Rua dos Rem��dios. E como ainda era ce-

do para a cerim��nia, entrei na casa da Dulce, para espe-

rar ali que o sol declinasse. Resultado: j�� n��o pude entrar

na igreja, q u a n d o cheguei. Fiquei do lado de fora, na

derradeira luz da tarde, e pude ver de perto, �� borda da

cal��ada, defronte da porta sobre a nave central, q u a n d o a

Glorinha desceu do carro, a uns dez metros, na extremi-

dade da passadeira vermelha, trazida pelo padrinho, que

amparava o corpo alto na bengala.

A pr��pria Glorinha, ao descer, segurava a cauda do

vestido, mas n��o tardou a solt��-la, assim que deu o bra��o

ao p a d r i n h o . T o d a de branco, no contraste da passadeira

52

escarlate, com as luzes dos fot��grafos convergindo sobre

a figura esguia, parecia irreal, na sua beleza serena. A

multid��o se comprimiu para v��-la de perto. Com esfor��o,

ela e o padrinho abriram caminho para a p o r t a da igreja,

enquanto desciam do coro os primeiros acordes de Jesus,

alegria dos homens, executados pelo ��rg��o.

E logo se ouviram em redor as exclama����es de sur-

presa:

��� Ela �� linda. Muito mais do que eu tinha imagina-

d o .

��� Benza-te Deus, assim t��o bonita.

E u m a velha alta, que me afastou com o bra��o es-

q u e r d o , quase a me fazer cair da cal��ada:

��� Mais bonita que a miss M a r a n h �� o . Nem se com-

p a r a . Essa, sim, �� que devia ter ido para o Rio.

Nesse m o m e n t o , ao dar o passo para subir o batente

de pedra da porta da igreja, a Glorinha oscilou, c om o pu-

xada para tr��s, e a cauda de seu vestido de seda p u r a , to-

da b o r d a d a de mi��angas pequeninas, pareceu romper-se,

repentinamente presa ao ch��o por um p�� mau ou dis-

tra��do.

E u m a voz jubilosa, por entre risos:

��� A cauda rasgou.

E a Glorinha, contendo o p a d r i n h o , j�� de m �� o le-

vantada, vermelho, ao mesmo tempo em que tratava de

recolher por tr��s de seus p��s a cauda lacerada:

��� N �� o foi n a d a , n��o foi n a d a . Vamos embora.

E com a cauda do vestido no mesmo bra��o que er-

guia o b u q u �� , caminhou para a nave, calma, sorridente,

c o m o se nada houvesse acontecido. Ia caminhando e sor-

rindo, caminhando e sorrindo, enquanto o Daniel, no al-

tar, descia um degrau, orgulhoso e impaciente, j�� com a

m �� o sol��cita �� sua espera.

53

CAP��TULO II

E m b o r a houvesse marcado encontro com o Ant��-

nio Oliveira no come��o da noite, no Caf�� Excelsior, para

dele receber um romance p��stumo de E��a de Queiroz,

voltei para casa, depois do casamento da Glorinha, mo-

lhado como um pinto.

A chuva come��ou a cair assim que a Glorinha entrou

na igreja. De repente, com o c��u ainda claro, soprou uma

pancada de vento, que revolveu as ��rvores do Largo de

Santo A n t �� n i o , e o temporal desabou, sustando o vento,

ao mesmo tempo em que come��avam a escorrer os fios de

��gua dos beirais vizinhos.

Seguindo o exemplo das andorinhas e bem-te-vis,

que se haviam refugiado no v��o dos telhados e no abrigo

dos campan��rios, consegui meter-me no interior da igre-

ja, espremido, amassado, apertado, e fui dar comigo jun-

to �� pia do batist��rio, sem saber ao certo como tinha con-

seguido vencer aos empurr��es a dist��ncia que me separa-

va da cal��ada do a d r o .

Agora me lembro: foi a Maria Jos�� que me atraiu

para aquele canto vazio, e ali ficamos os dois, no meio de

gente estranha, que eu apenas conhecia de vista e de jane-

la.

No m o m e n t o da Marcha nupcial, q u a n d o a Glori-

nha e o Daniel, de costas para o altar, deviam percorrer

de volta a passadeira vermelha, que se estirava entre as

duas orlas de bancos, na nave principal, precisamente

nesse instante, um trov��o estalou por cima da igreja, de-

54

pois que um clar��o se abriu nas sombras do Largo de

Santo A n t �� n i o , e a luz el��trica se apagou de repente, tan-

to na rua q u a n t o no templo. E isso fez que a cerim��nia

adquirisse de improviso u m a fei����o estranha, com a ilu-

mina����o da igreja reduzida ao clar��o dos c��rios do altar.

E a Maria Jos��, cingindo-me o bra��o contra o seio,

no meio dos apert��es gerais:

��� A Glorinha est�� tendo um casamento diferente.

Ela e o noivo, de bra��os, ainda no degrau do altar,

eram apenas duas silhuetas, enquanto o ��rg��o, no alto do

coro, insistia em tocar a Marcha nupcial, sem conseguir

abafar o barulho das vozes, dentro da igreja, e o ru��do

��spero da chuva, l�� fora, na amplid��o da pra��a.

Afinal, parou o ��rg��o, e ali mesmo no altar os noi-

vos come��aram a receber os cumprimentos, j�� com ou-

tras velas acesas nos altares e nichos circundantes. Co-

me��ou ent��o um movimento novo da multid��o compacta

no sentido do altar-mor, e foi preciso o c��nego Chaves

aparecer novamente no altar, j�� sem paramentos, para

erguer a voz en��rgica:

��� P o r favor, fiquem o n d e e s t �� o . N �� o a d i a n t a

empurrarem-se uns aos outros. H�� hora para t u d o .

E levou os noivos, quase a correr, para o abrigo da

sacristia, e ele pr��prio fechou a porta, ainda com ar alar-

m a d o :

��� Estava vendo a hora em que nem Santo Ant��nio

se salvava.

C o n q u a n t o ainda chovesse forte, a multid��o deu as

costas ao altar, voltando-se no sentido da porta sobre o

adro, que foi aberta de par em par. E por ali come��aram

a sair os mais destemidos, a despeito das cordas da chuva

que o vento sacudia para dentro da igreja.

E eu, para a Maria Jos��, sentindo �� minha volta o ar

abafado:

��� Eu vou dar o fora.

E consegui alcan��ar o adro. no instante em que a chu-

va parecia ter a m a i n a d o . Atravessei o largo, consegui al-

55

can��ar a Rua do Alecrim, mas n��o tomei a direita, no

sentido do Largo do C a r m o , para o encontro com o Oli-

veira ��� segui em sentido contr��rio, na dire����o da Rua

dos Rem��dios, fustigado agora por nova carga de chuva,

que os rel��mpagos e trov��es pareciam soltar por cima dos

telhados escuros.

Na rua escura, ainda com os lampi��es apagados, os

rel��mpagos eram bem-vindos: gra��as a eles, fui seguindo

o meu caminho, vencendo o fragor das enxurradas, e al-

cancei por fim minha casa, mais encharcado do que se me

tivessem atirado ao m a r .

56

CAP��TULO III

Tr��s dias de gripe, depois da chuvarada do fim de

semana, se n��o me tiraram do pensamento a imagem da

Glorinha vestida de noiva, pelo menos ajudaram meu

espirito a distanci��-la de mim, �� maneira da mocinha da es-

ta����o, deixada para tr��s na curva do caminho. O trem se-

guia seu r u m o , rolando sobre as paralelas dos trilhos, e

me levava consigo para outros c��us, outros m u n d o s .

Acabei por ficar em casa, na pregui��a da convalescen-

��a, pelo resto da semana, distraindo-me com revistas ve-

lhas e tomos esparsos da Biblioteca internacional de

obras c��lebres, que o Tarc��sio Gomes, meu colega e meu

vizinho, generosamente me emprestou.

E foi n u m desses tomos e n u m a daquelas revistas

que reencontrei a Cleide ��� a Cleide de olhos verdes, es-

quiva e loura, que me inspirou t��o magoados versos.

A Cleide da revista, embora n��o fosse propriamente

a Cleide do Liceu, tinha o mesmo corpo e os olhos pareci-

dos, vestida de cigana, no corso do ��ltimo carnaval, no

Rio de Janeiro. N �� o seriam parentes nem sequer se co-

nheceriam, mas a verdade �� que a Cleide de S��o Lu��s

tamb��m se havia vestido de cigana, no baile de ter��a-feira

gorda, no Cassino Maranhense, e foi comigo que dan��ou

o mais do t e m p o , atordoando-me os sentidos nos mo-

mentos em que eu lhe sentia os seios contra meu peito, no

sal��o repleto.

Duas vezes, durante a convalescen��a vagarosa, tra-

tada a gotas de homeopatia pela medicina emp��rica de

57

meu pai, sonhei com a colega do Liceu: ��amos por um

caminho longo, de m��os dadas, rindo e correndo, como

somente se ri e corre na adolesc��ncia que est�� para termi-

nar. Nunca eu havia sonhado o mesmo sonho nem tenho

not��cia de que outra pessoa o tenha feito. Entretanto, is-

so ocorreu comigo, com um dia de intervalo, talvez por

sugest��o da cigana da Noite Ilustrada, que eu havia revis-

t o , meio sonolento, pouco antes de apagar a luz do quar-

t o , j�� noite alta.

Despertei pela madrugada, ainda sentindo na m��o

��mida a m �� o da Cleide ��� pequena, leve, macia, a m��o

que tantas vezes apertei, nas conversas ao p�� de sua jane-

la, na Rua de S��o J o �� o . Fiquei a rir comigo, no embalo

b o m da rede, ouvindo cantar o galo no fundo de meu

quintal. E como perdera o sono para o resto da madruga-

da, fiz o que havia de fazer por toda a vida: aproveitei o

fim da noite para distrair-me na leitura. Ao abrir o tomo

da Biblioteca internacional de obras c��lebres, que o

Tarc��sio deixara comigo na visita da ��ltima tarde, dei

com este pensamento, que minha mem��ria guardou para

sempre: " Q u a n d o n��o se tem o que se ama, �� preciso

a m a r o que se t e m . "

Tratava-se de um conselho misterioso, como os mui-

tos que meu pai recolhia freq��entemente na sua B��blia

protestante, aberta por acaso, sempre que pretendia en-

contrar na palavra de Deus a sugest��o adequada �� reso-

lu����o que iria tomar? O certo �� que, com o dedo interpos-

to no gordo livro, fiquei a reconhecer que, se n��o tinha

mais a Glorinha, tinha ainda a Cleide, com seus l��bios

dadivosos.

E decidi-me:

��� �� preciso voltar �� Cleide.

Passado o Natal, fui ao Liceu, para receber meu cer-

tificado de aprova����o. E quem foi que encontrei, ao

transpor a porta de vaiv��m do gabinete do velho Cunha?

A Cleide. Sim. Ela mesma, e alteando as sobrancelhas fe-

lizes, assim que deu por mim ao seu lado:





5 8


��� At�� parece que marcamos este encontro. Eu esta-

va querendo ver voc��. P a r a lhe contar u m a novidade.

E consertando as sobrancelhas, com a cabe��a meio

inclinada, repetindo a posi����o da cigana da revista:

��� Sabe que estou saindo do Liceu? Estou. Vou para

o col��gio do professor Arimat��ia. Fica perto de minha

casa, na Rua de S��o J o �� o , e com o pr��prio Arimat��ia en-

sinando portugu��s, latim, franc��s e matem��tica.

E quando me deu a m �� o :

��� V�� tamb��m para l��.

A p a n h a d o pela surpresa da proposta, fiquei a olh��-

la, sem nada lhe dizer. Ao sair, transp��s a porta de lado,

para continuar olhando em minha dire����o. Dali, j�� com a

m �� o direita abrindo a porta, confessou-me:

��� V��. Ser�� o meu presente de festas, que voc�� ainda

n��o me deu.

59

CAP��TULO IV

J�� o Cl��udio Serra estava definitivamente esqueci-

d o . U m a ou outra vez, q u a n d o de relance o record��va-

m o s , n��o nos concentr��vamos em sil��ncio, tocados pela

b r u t a l i d a d e d e s u a m o r t e . R i a m o - n o s d e l e , a r r e -

med��vamos o seu ar a m u a d o , mas sem que essa lembran-

��a epis��dica trouxesse em si qualquer consterna����o.

A vida em S��o Luis voltara �� sua monotonia pre-

gui��osa, com um ou outro artigo pol��tico a alvoro��ar a ci-

dade nos dois jornais da Oposi����o, a Folha do Povo e o

Combate.

De m a n h �� , nas ruas tranq��ilas, os mesmos preg��es

do jornaleiro, do peixeiro, do sorveteiro, do fruteiro,

sem faltar a batida de duas r��guas de madeira com que o

mascate antecedia o seu aviso de todos os dias, na mesma

voz cantada:

��� R o u p a velha, traste velho, o u r o , prata, cobre,

j��ias velhas, compro t u d o , pago na hora.

Mesmo o Carnaval, com seus bailes de improviso e

suas fantasias de luxo nas festas do Cassino Maranhense,

n �� o tinha alterado a sensa����o de rotina da cidade. �� ho-

ras certas, �� sombra das ��rvores do Largo do C a r m o ,

reuniam-se os mesmos amigos, para a conversa e os me-

xericos de todos os dias. Podia-se acertar o rel��gio pela

passagem do desembargador Barros e Vasconcelos a ca-

minho do Tribunal.

Entretanto, como era tempo das f��rias escolares,

n��o se viam as alunas do Col��gio Santa Teresa e os alu-

60

nos do Liceu, com seus inconfund��veis uniformes. Mas o

professor Rubem Almeida, de palet�� azul e calca de flane-

la, charuto, um livro j u n t o ao peito, sacudindo a perna

direita, continuava a postar-se �� entrada da Rua de Na-

zar��, defronte da Casa Krause, como �� espera de algu��m

que n��o aparecia. Passava o coronel Luzo Torres, �� pai-

sana, para a sua partida de bilhar no Gr��mio 1�� de Janei-

r o , no sobrado da esquina. Passava o professor Nasci-

m e n t o Morais, gordo, negro, alto, com um chap��u de fel-

tro surrado no t o p o da cabe��a. Passava o padre Serra, de

batina lustrosa, a cabeleira negra debaixo do chap��u, b o -

ca rasgada, sempre bem barbeado, mais a servi��o deste

m u n d o que do o u t r o , a caminho da Rua da P a l m a , sede

de seu jornal.

Foi por esse tempo que o poeta Assis Garrido ��� de

testa pulada rebelde ao chap��u de feltro, meio curvo,

malvestido ��� levou-me at�� o fundo do Caf�� Excelsior, e

ali me pediu, um t a n t o desajeitado com a dentadura no-

va:

��� Me conta meus dentes. Estou desconfiado de que

o Juv��ncio C u n h a p��s dente demais na minha boca.

Contei.

��� Trinta e dois, Garrido.

E ele, ajustando novamente os l��bios ao aparelho

duplo:

��� Trinta e dois? E n t �� o esta dentadura n��o �� minha

��� deve ser do padre Serra, que tem a boca maior. Parece

que me puseram aqui dentro um piano, com o teclado a

querer sair pelos bei��os. Voc�� contou bem? Trinta e dois?

Afastou as m �� o s , deixou cair os bra��os, tentando

conformar-se. Depois, segurando-me pelo d��lm��:

��� Quem �� essa aluna do Liceu, que apareceu de re-

pente na pens��o da Chico, e �� agora a mais disputada

borboleta do bordel?

Aluna do Liceu? No bordel da Chico? N �� o , n �� o po-

dia ser. Repassei de mem��ria as colegas, com t o d o o meu

ser a repelir a estranha associa����o de u m a aluna do Liceu

61

e do prost��bulo da Rua de Nazar��, e n��o achei u m a s��

que se ajustasse �� condi����o de rapariga. N �� o , n��o podia

ser. Aluna do Liceu? Que id��ia!

E o Garrido, perempt��rio:

��� Aluna do Liceu. Posso-lhe garantir. T a m b �� m du-

videi. E fui l��. Vi com estes olhos. Um moren��o vistoso,

de bonitas pernas, com o corpo de papel. Car��ssima. N �� o

�� para qualquer u m . �� a menina dos olhos da Chico. A

velha defende a novata como u m a leoa. S�� se aproxima

quem ela quer. N �� o adianta insistir. Primeiro tem de

mostrar a carteira, repleta de notas altas.

Fingi acreditar. Mudei de assunto. Garrido havia

posto a m �� o sobre a boca, gemendo. E despedindo-se:

��� Vou voltar ao C u n h a . Esta dentadura n��o �� mi-

n h a . N��o pode ser. O C u n h a se enganou.

Atravessou o Largo do C a r m o , sumiu-se pela Rua

da Paz, �� altura do pared��o do Convento, enquanto eu

buscava com os olhos o Bandeira de Melo ou o Correia

da Silva, para tirar a limpo a novidade da pens��o da

Chico.

N �� o encontrei nem um nem o u t r o . Os dias passados

em casa a debater-me com a minha gripe tinham-me de-

satualizado da vida na cidade. Fui at�� o Beco do Quebra-

Costa, voltei, entrei na Livraria Moderna, estive uns mo-

mentos p a r a d o no batente da porta, depois de olhar os li-

vros da vitrina, e nisto vejo descer do bonde o Benedito

Barros, alto, escuro, esguio, que veio para mim precedi-

do por esta pergunta:

��� E esse caso da P a n d o r a ? Que �� que voc�� me diz?

P a n d o r a ? Era ent��o a P a n d o r a ? T��nhamos sentado

na mesma carteira, lado a lado, no terceiro a n o , e ela fi-

cara para tr��s, duas vezes reprovada em ingl��s e m��sica,

a despeito de toda a b o a vontade do professor Lafayette

de Mendon��a e do professor Cordeiro. Nas provas orais,

limitara-se a olh��-los, sem n a d a responder, torcendo na

p o n t a dos dedos o papelucho do p o n t o sorteado. Depois,

muito calma, e rindo, t a n t o a um quanto a o u t r o :

62

��� N �� o adianta perguntar, professor. Eu n��o sei na-

da. N��o gosto de estudar.

N��o era bonita, mas simp��tica de fei����es, natural-

mente prejudicada por um leve estrabismo, e tinha um

belo corpo, talvez um pouco excessivo nos quadris p a r a

os seus 15 a n o s .

E eu disse ao Benedito Barros, ainda com ar de as-

sombro:

��� Mas a P a n d o r a tem 16 anos, n��o pode ficar n u m

bordel, sem o nosso protesto. Temos de falar ao Juiz de

Menores.

Benedito Barros p��s-se a rir:

��� Menor? Voc�� n �� o sabe da missa a metade. Vinte

e u m . E foi p a r a l�� no dia em que os completou. A Chico,

primeiro, quis ver-lhe a certid��o de idade. Depois, man-

dou abrir c h a m p a n h e .

63

CAP��TULO V

O gin��sio do professor Arimat��ia Cisne, n �� o obs-

tante o nome l��rico de Col��gio Cisne, deixou no meu olfa-

to a lembran��a do cheiro forte da bosta de boi de seu

est��bulo, ao fundo do quintal, na m o r a d a inteira asso-

b r a d a d a da Rua da Saavedra.

Havia ali duas vacas holandesas, com os respectivos

bezerros, e tanto as vacas quanto os bezerros pareciam

ensinados para responder com seus mugidos tristes ao to-

que da sineta, no come��o e no fim das aulas.

E o mestre, ouvindo esses mugidos:

��� Meus bois est��o lembrando aos alunos em atraso

que devem pagar o col��gio do professor Arimat��ia.

O outro pr��dio do Col��gio Cisne, na Rua de S��o

J o �� o , logo adiante, era um sobradinho ao p�� da ladeira,

a duas quadras do Cais da Sagra����o, nos arredores da ca-

sa mal-assombrada em que o desembargador Pontes Vis-

queiros m a t o u a sua am a n te , enterrando-a ali mesmo,

com a ajuda de um funileiro.

E m b o r a eu j�� houvesse estudado com o professor

Arimat��ia, na casa da Rua da Saavedra, ao t e m p o em

que urgia u m a base mais s��lida para o meu franc��s e o

meu latim, estranhei os primeiros dias das novas aulas,

com as saudades do Liceu dentro de mim.

A Cleide, com a sua arg��cia de mulher, deu pelo

meu ar ausente, logo no in��cio da primeira aula:

��� Desligue-se do Liceu. Fa��a como estou fazendo.

64

N �� o era f��cil. Eu olhava �� minha volta, instintiva-

mente procurando os antigos companheiros. Onde o

Bandeira de Melo? A Enedi? A Maria Jos��? A Helo��sa?

O Barros da Silva? O Tarc��sio? Buscava entretanto a

Glorinha, olhando na dire����o da janela sobre a rua, e a

luz da t a r d e , c o n q u a n t o viva e alta, se recusava a

restituir-me o seu perfil harmonioso, como a ensinar-me,

�� custa de sofrimento ��ntimo, que a vida �� u m a sucess��o

de ren��ncias, a que eu ainda n��o estava acostumado.

Tive de ir ao Liceu algumas vezes com preju��zo de

umas tantas aulas do Col��gio Cisne, s�� para entrar na mi-

nha velha sala. Precisava daquele ar, daquelas paredes,

daquelas carteiras. A vira����o da tarde, entrando pelas

duas janelas sobre a Rua Direita, veio ao meu encontro,

antes que o Tarc��sio desse por mim, ainda no batente da

porta.

Sobre o estrado, com o livro de chamada aberto ��

sua frente, o professor Nascimento Morais, forte, om-

bros largos, ia d a n d o presen��a a toda a t u r m a , sem er-

guer a vista nem chamar por ningu��m. E foi ele que, aler-

tado pelo Tarc��sio, me permitiu volver ao meu antigo lu-

gar, como que �� minha espera.

E m o c i o n a d o , pestanejei d u r a n t e uns m o m e n t o s ,

quase a fazer m�� figura, mas n��o tardei a dar por falta do

Correia da Silva, do Franklin, do Arag��o, do Viegas, que

tamb��m n �� o voltariam. Ali estava o lugar do Cl��udio

Serra. Do outro lado, b a n h a d a pelo sol da tarde, sem

prote����o da p o r t a entrefechada, a carteira da Glorinha,

tamb��m vazia. Eu pr��prio, abismado em minhas sauda-

des, j�� n �� o era o mesmo adolescente: trazia agora a som-

b r a do bu��o no l��bio superior, preferia �� farda de gina-

siano o palet�� e a gravata, deixara crescer o cabelo, que

escorregava para cima das orelhas, sob a aba do chap��u.

E o professor Nascimento Morais, que j�� me conhe-

cia:

��� N �� o vi seu nome no livro de chamada. �� tamb��m

desta turma?

65

E a Helo��sa, antes que eu respondesse:

��� N �� o �� n �� o , professor. Foi embora daqui, aban-

d o n a n d o os colegas. Trocou o Liceu pelo Col��gio Cisne.

Senti o sangue me subir ao rosto, entrelacei os dedos

sobre a t a m p a da carteira, e gaguejei esta desculpa:

��� Quem estudou no Liceu, sempre ser�� do Liceu. A

prova �� que estou aqui, para rever os companheiros.

Ao fim da aula, sa�� da sala com a turma, t o m a n d o a

dire����o do corredor, mas n �� o fui ao p��tio, nos dez minu-

tos de intervalo: tratei de alcan��ar a rua, descendo de-

pressa a escada de pedra que levava �� portaria, e j�� ia

p o n d o o p�� na cal��ada q u a n d o um bra��o forte me segu-

rou:

��� Que pressa �� essa? Fale com os amigos.

As m��os fortes do professor Daniel me fizeram vol-

tar, como no impulso de um rodopio, e eu dei com o ma-

rido feliz, queimado pelo sol da praia, u m a luz mais viva

nos olhos castanhos.

N��o esperou que eu lhe perguntasse pela mulher:

��� A Glorinha, por seu gosto, tinha voltado ao Li-

ceu para acabar o curso aqui. Mas j�� se ajustou �� nova vi-

d a , t o m a n d o conta da casa e do marido. O que n��o a im-

pede de suspirar de vez em q u a n d o , com saudades dos co-

legas. Antes que eu leia o que voc�� publica, j�� ela leu, e

faz que eu leia.

N �� o era o Daniel da sala de aula, reflexivo, um tanto

fechado, ocasionalmente expansivo e jovial, que eu tinha

diante de mim, com as m��os nos meus ombros, e sim o

Daniel realizado, a quem a vida conjugal completara e re-

juvenescera ��� com a b a r b a bem-feita, o cabelo cortado,

a gravata combinando com a roupa, u m a p��rola na gra-

vata, o vinco das cal��as descendo harmoniosamente so-

bre a biqueira dos sapatos engraxados.

N��o me contive:

��� O senhor est�� bem, professor. �� t i m o . Nunca o vi

t �� o bem-disposto. D�� parab��ns �� Glorinha.

66

Na R u a F o r m o s a , tomei o b o n d e circular que me

restituiria ao Col��gio Cisne. E iria de cora����o a p e r t a d o ,

sem me perdoar o a b a n d o n o do Liceu, se n��o insistisse

em pensar nos olhos verdes da Cleide, que estariam certa-

mente inquietos, sem atinar com a raz��o por que eu havia

faltado, naquela tarde, ��s aulas de latim e portugu��s do

professor Arimat��ia.

67



CAP��TULO VI

j u n h o , de um dia para o u t r o , aparentemente

sem raz��o nem prop��sito, a Cleide me restituiu meu re-

t r a t o , minhas cartas, os recortes de meus poemas, e o li-

vro de Guilherme de Almeida que eu lhe tinha oferecido

no dia de seu anivers��rio.

E de vista baixa, como no temor de fraquejar com os

olhos nos meus olhos:

��� �� melhor que essas coisas fiquem com voc��. O es-

pa��o de que disponho, no arm��rio do internato, �� muito

pequeno.

Compreendi o que a devolu����o significava, mas n��o

lhe dei o troco, no dia seguinte, com a devolu����o de seu

retrato. E q u a n d o ela me cobrou:

��� Na minha mesa h�� sempre espa��o para voc�� ���

respondi.

Cleide permaneceu de vista baixa, escrevendo no ca-

derno de franc��s. Depois de uns m o m e n t o s , perguntou-

me:

��� C o m o sua amiga?

��� C o m o minha amiga ��� concordei.

Na verdade, eu me precipitara em deixar o Liceu.

P o r vezes, na m o n o t o n i a do Col��gio Cisne, confrontava

o t��dio da sala de aula, impregnada pelo cheiro forte da

bosta de boi do est��bulo, com o bulicio do Liceu, �� mes-

ma hora, e me fechava na minha saudade, recordando o

que ali havia deixado, inclusive a mim pr��prio, entre as

emo����es mais intensas da adolesc��ncia.

68

Ao abandonar minha velha farda, transformada

agora em r o u p a caseira, com a qual n��o podia mais sair,

meus olhos se emudeceram. Na briga recente do Liceu

com o Col��gio Viveiros, n��o pudera tomar partido. Co-

mo defender o Liceu, se eu n��o era mais de l��? Vinha

agora a formatura do 7 de setembro, e eu n��o marcharia

com os antigos companheiros, levando comigo, no pelo-

t��o da frente, a bandeira nacional. Teria de marchar com

o Col��gio Cisne? Seria ridiculo vir �� cauda da p a r a d a

com t��o poucos alunos, ao som da corneta e do t a m b o r .

Dar-me-ia por doente para n��o desfilar.

No jornalzinho do Liceu, publicado pelo Augusto de

Almeida Filho e o Durval Para��so, tinha aparecido o meu

primeiro conto, no destaque da primeira p��gina. Dias an-

tes, ao encontrar-me com o Para��so no Largo do C a r m o ,

este me dera a boa nova de que a Folha do Liceu ia reapa-

recer, e logo acrescentara:

��� Eu ia te pedir um poema quando me lembrei que

tu, agora, est��s no Col��gio Cisne. Que pena.

Os olhos verdes da Cleide, que haviam sido o pretex-

to p a r a deixar o Liceu, j�� n��o me fitavam com a desejada

ternura. Culpa minha? Culpa da Cleide? Nenhum de n��s

era culpado. Na origem de tudo estaria mesmo a Glori-

n h a , que jamais voltaria ao seu lugar.

Pensei em voltar ao Liceu, aproveitando o intervalo

das f��rias do meio de a n o . N��o era f��cil. Precisava contar

com a boa vontade do Liceu e a concord��ncia do Col��gio

Cisne. Se a primeira me parecia poss��vel, a segunda tinha

seus trope��os. Mestre Arimat��ia, sujeito a crises de aze-

dume, vermelho, o cigarrinho no meio da boca, tinha

rompantes ��speros que nos desnorteavam:

��� Voc��s n��o lascam. Eu ensino em portugu��s, e ��

como se ensinasse em grego. A li����o entra por um ouvido

e sai pelo o u t r o . No fim das contas, perco meu tempo e

meu latim. Latim de Virg��lio, meus b o b o s . Latim da

Eneida, que eu aprendi no Semin��rio da Praia, em Forta-

leza.

69

Noutras ocasi��es, sabia rir a seu m o d o , por vezes so-

zinho, debru��ado na janela, como a olhar para o est��bu-

lo, enquanto sacudia no ar a cinza do cigarro.

Dei com ele assim, q u a n d o lhe fui falar sobre minha

volta ao Liceu. Antes que eu lhe falasse, olhou-me de

frente, ainda rindo:

��� Estou me lembrando da ��ltima do Salim, aqui no

Col��gio, esta m a n h �� . Conhece o Salim? Aquele carcama-

no g o r d �� o , pai do Davi? Veio aqui se queixar do profes-

sor Daniel. Imagine aquele gordalh��o, nessa cadeirinha

de palha, aqui �� mesa, n u m a voz de choro, a me dizer que

o Daniel tinha r o u b a d o a nota do filho dele, do Davi, pa-

ra dar para outro aluno do Liceu. Roubar nota. S�� na ca-

be��a do Jorge. E eu disse ao Salim que n �� o , que o Daniel,

meu afilhado, n��o era capaz de roubar a nota do menino.

Ele teimou: " J u r a pra Deus, professor Arimat��ia. U m a

n o t a pequenininha, que dava pra passar de a n o , e deu pra

o u t r o . " E chorou mesmo. Aqui. Aquele homenzarr��o. E

eu prometi ao Salim que ia falar ao Daniel. Chamar o

Daniel �� ordem. P a r a devolver a nota do Jorge. Do nosso

Jorge, que escreve quati com 1.

E recolhendo o riso, com a m �� o afetuosa no meu

bra��o:

��� Quero-lhe fazer um convite. Estou precisando de

algu��m para me ajudar, aqui no col��gio, como professor

de portugu��s no primeiro a n o . E pensei em voc��.

A p a n h a d o pela surpresa da proposta, fiquei a olhar

o mestre durante alguns momentos, sem nada lhe dizer.

C o m o falar-lhe de minha volta ao Liceu, depois de seu

convite? E como recusar o pequeno emprego que alivia-

ria as despesas de meu pai?

E o professor Arimat��ia, j�� instalado �� cabeceira da

mesa, no centro da varanda espa��osa, a abrir a mortalha

de papel para fazer novo cigarro:

��� N �� o tenha receio. Sei que dar�� conta do recado.

Eu, na sua idade, j�� ensinava latim aos colegas de se-

min��rio.

70

Professor do Col��gio Cisne? E a convite do profes-

sor Arimat��ia? H�� mudan��as na vida que s�� dependem

das palavras. O convite do mestre, se de in��cio me ator-

d o o u , logo me trouxe u m a nova consci��ncia de mim mes-

m o . Eu n��o era mais aluno, passara �� condi����o de pro-

fessor, e isso me transformava.

A sensa����o de m u d a n �� a repentina, que se operara

em mim ao sair pela primeira vez da casa da Dulce, agora

se repetia. Ergui mais a cabe��a, pisei mais firme. E ao

sair dali, ao fim da conversa com o Arimat��ia, n��o fui

para casa, apesar da noite come��ar a fechar-se, com os

primeiros lampi��es acesos.

No Largo do C a r m o , �� altura da Farm��cia Sa-

nit��ria, dei com o Sebasti��o Correia, j�� um pouco alto,

sobra��ando o seu violino. E prop��s-me:

��� Queres ir comigo �� pens��o da Chico? O Chamin��

tem umas valsas novas que lhe m a n d a r a m do Rio e eu fi-

quei de aparecer por l�� para acompanh��-lo ao piano.

Subi as escadas do sobrado, n��o mais como estudan-

te, e sim como professor. A P a n d o r a ainda estaria ali? E

qual seria a sua rea����o q u a n d o me visse?

Na varanda ampla, que servia de bar e p o n t o de en-

contro, j�� o Chamin��, sentado ao piano, ensaiava os

compassos das novas valsas, agil��ssimo. Ningu��m mais.

Pareceu n��o dar por n��s, q u a n d o assomamos ao patamar

da escada. O Correia, ali mesmo, sem ru��do, tirou do es-

tojo o violino. Esteve uns momentos �� escuta, com o ins-

trumento apoiado ao queixo. Depois, senhor dos acor-

des, caminhou na dire����o do piano ��� t o c a n d o .

N �� o tardariam a aparecer as primeiras raparigas,

pintadas para o trabalho da noite. Em seguida veio a

Chico. N �� o vi q u a n d o a P a n d o r a chegou. Ao dar com

ela, j�� estava sentada ao fundo da varanda, com o coto-

velo sobre o m �� r m o r e da mesa, a m �� o no queixo, a olhar

em minha dire����o. E toda ela se alvoro��ou q u a n d o fui ao

seu encontro:

71

��� At�� que enfim voc�� deu o ar de sua gra��a p a r a es-

tes lados.

A despeito do estrabismo, pareceu-me bonita e mais

mulher, sobretudo q u a n d o me fez sentar ao seu l a d o .

Perguntei-lhe se estava contente ali. Ondulou no ar a

m �� o esguia, que um anel de brilhantes enfeitava. E logo

rebateu:

��� Sinto muito, aqui, a falta do Liceu.

E olhando-me com ternura:

��� Voc�� tamb��m saiu de l�� para o Col��gio Cisne.

��� Sa�� ��� confirmei. ��� Mas sou t a m b �� m professor.

Sua m �� o segurou a minha para me dar parab��ns.

Depois, sem nada mais me dizer, puxou-me pelo b r a �� o ,

levou-me p a r a seu q u a r t o .

72

CAP��TULO VII

A primeira vista, a dist��ncia entre a primeira fila,

onde me havia sentado, e a mesa do professor, um pouco

mais �� frente, correspondia a tr��s passos, ou dois. Pode-

ria ser percorrida no impulso inicial do corpo. Entretan-

t o , para mim, que tinha de percorr��-la, p a r a assumir a re-

g��ncia da t u r m a , no meu primeiro dia de aula, aquele pe-

queno espa��o fazia suar, e eu tinha as m��os ��midas, o co-

ra����o acelerado, enquanto aguardava que o professor

Arimat��ia viesse apresentar-me aos meus alunos.

Mestre Arimat��ia n �� o tardou a aparecer, apertando

contra o peito o livro de chamada, e logo me chamou pa-

ra perto de si, p o n d o sobre meu o m b r o a sua m �� o prote-

t o r a :

��� Este mo��o �� t a m b �� m aluno do Col��gio Cisne,

mas j�� est�� no fim do curso e sabe mais que voc��s. Sem-

pre foi um aluno brilhante. J�� escreve nas folhas. Vai

longe. �� ele que vai me substituir como professor. N �� o

pensem que, por ser tamb��m aluno, vai passar a m �� o pela

cabe��a de voc��s. N �� o , n �� o vai. P o r t a n t o , tratem de ouvir

as li����es do novo professor e estudar.

Vi onde o mestre havia ficado, na ��ltima li����o, e

continuei daquele p o n t o minha aula sobre os verbos de-

fectivos. E r a m , ao t o d o , 18 pares de olhos voltados p a r a

m i m . De inicio, p e r t u r b a r a m - m e com um brilho de

d��vida e desafio nas pupilas atentas. Depois, ao se con-

vencerem de que eu sabia a mat��ria, descontrairam-se, e

a comunica����o entre o professor e os alunos se estabele-

73

ceu no mesmo instante, sobretudo depois que u m a boli-

nha de papel atravessou a sala em diagonal, saindo pela

janela.

E eu, j�� senhor de mim:

��� T a m b �� m sou a favor da bolinha de papel, mas no

intervalo das aulas. Durante as aulas, n �� o . Digo isto co-

mo um aviso, para n��o ter que pedir �� aluna que se retire

da sala.

A culpada juntou as m �� o s sobre a t a m p a da carteira,

com o a dizer-me que n��o repetiria o gracejo; em seguida,

baixou os olhos q u a n d o a fitei.

A sala de aula, aberta sobre o corredor, �� entrada da

m o r a d a inteira da Rua da Saavedra, permitia ver quem

chegava ou saia, e foi quase ao fim da minha primeira

li����o que me pareceu ter visto a Glorinha, gorda, desfigu-

r a d a pela gravidez, caminhando no sentido da varanda,

como se fosse ao encontro do professor Arimat��ia. Na

passagem, estendeu o olhar p a r a dentro da sala. Depois,

como em d��vida, voltou sobre seus passos, e toda a sua

figura alta e cheia, com os olhos levemente empapu��a-

dos, cresceu no v��o da porta, ao mesmo tempo em que a

sua m �� o gorducha acenava para mim.

Acenou, e retraiu-se, para tornar a desaparecer, en-

q u a n t o a voz do mestre Arimat��ia se alteava, em tom ju-

biloso, gritando para o fundo da casa:

��� Iai��, minha mulher, olha quem est�� chegando

aqui. �� a Glorinha, nossa afilhada. Bonitona, esperando

nen��m. Vem depressa, Iai��, para eu n��o ter esta alegria

sozinho. Vem me ajudar, Iai��.

Acabei a li����o no m o m e n t o em que a sineta batia,

a c o m p a n h a d a pelos mugidos das vacas e dos bezerros. A

classe me bateu palmas.

E foi a Glorinha que veio ter comigo, assim que apa-

reci �� entrada da varanda. Ao v��-la caminhar para mim,

caminhei tamb��m p a r a ela, de m o d o que nos encontra-

mos j u n t o �� mesa do professor Arimat��ia. E este, a espa-

lhar o fumo na mortalha do cigarro:

74

��� Seu colega do Liceu ��, hoje, meu colega e colega

do Daniel. Acaba de dar a sua primeira aula, com aplau-

sos dos alunos, o que n��o �� c o m u m .

Glorinha deu mais vida ao rosto opaco:

��� Eu o vi d a n d o aula, assim que entrei. N �� o sabia

que era a primeira.

E apertando-me a m �� o :

��� Parab��ns. Vou dar a b o a not��cia ao Daniel. Ele

vai ficar contente.

Olhando-a de frente, ainda com a m �� o fria e ��mida

na minha m �� o , senti-lhe o rosto inchado, as m��os incha-

das. N��o parecia preparada para o p a r t o , que talvez fosse

a sua perdi����o. E ao notar-lhe a respira����o mi��da e repe-

tida:

��� Sente-se, Glorinha. Descanse um p o u c o . A cami-

n h a d a a fatigou. Evite as ladeiras.

Sentou-se �� mesa, �� direita do professor Arimat��ia:

��� O m��dico me recomendou que caminhasse. An-

dar me faz bem. Hoje, dia de sua primeira aula, ��

tamb��m o dia de minha primeira caminhada longa.

N��o obstante o rosto cheio e p��lido, com as boche-

chas querendo apertar os olhos, ainda estava bonita. J�� a

gravidez lhe real��ava a beleza com as emo����es da mater-

nidade. Em vez de deixar as m��os sobre a borda da mesa,

acomodou-as por cima do ventre alto, naturalmente para

sentir os movimentos da crian��a. E a cada fisgada do

nen��m, seus olhos brilhavam com uma nova intensidade,

acompanhados pelo sorriso feliz.

Suspirou:

��� Todas os dias, na hora das aulas, tenho saudade

do nosso Liceu. Chego a chorar. Mas enxugo os olhos e

vou tratar de completar o enxoval de minha filha. Filha,

sim senhor. Vai ser mulher. Quero uma menina.

Mestre Arimat��ia, j�� de cigarrinho no meio da boca,

entrefechava o olho direito, protegendo-o da fuma��a,

sem deixar de observar Glorinha. Novamente gritou para

a mulher:

75

��� Iai��, minha mulher. A Glorinha est�� aqui espe-

rando voc��. Venha depressa. Nossa afilhada est�� mais

linda, com seu ar de m a m �� e . Venha.

E para a Glorinha:

��� N �� o fique no primeiro filho. Encha a casa de me-

ninos. A melhor m��sica do m u n d o �� um chorinho de

crian��a pedindo para m a m a r . Gosto de ver menino novo

em casa.

Glorinha p��s-se a dobrar com a u n h a bem-tratada a

p o n t a da toalha de linho, com a cabe��a baixa. E sem er-

guer o olhar:

��� Bem que eu queria ter muitos filhos. Mas o Dr.

Guterres n��o concorda. Devo ficar neste. Eu tenho sa��de

por fora. Por dentro, n �� o . Conv��m ter cuidado.

E o tom de sua voz, suave, compassado, trouxera

consigo um toque de tristeza t��o sens��vel que eu fiquei ca-

lado, a olh��-la, e vi que o professor Arimat��ia tamb��m a

olhava com o mesmo sil��ncio, segurando o cigarrinho na

p o n t a dos dedos.

Felizmente o rel��gio da parede se p��s a bater. E logo

a D. Iai�� entrou na varanda, de bra��os abertos, recla-

m a n d o o abra��o e o beijo da afilhada.

76

TERCEIRA PARTE

Os seres que nos rodeiam est��o t��o mal

pintados!

S A L V A D O R D A L I

CAPITULO I

No come��o de setembro, li n u m jornal da tarde,

creio que a Folha do Povo, que havia nascido a filha do

Daniel.

Detive o olhar nas tr��s linhas do Registro Social, pa-

rado na esquina do sobrado do Cassino Maranhense, e

n �� o vi apenas ali o ponto de partida de u m a crian��a nova,

na sua caminhada por este m u n d o , e sim algo a mais, que

dizia respeito �� minha gera����o ��� �� gera����o que se havia

reunido no mesmo dia no p��tio do Liceu, entrando j u n t a

na sala de aula.

C o n q u a n t o a Glorinha houvesse entrado depois, j��

no pen��ltimo ano do curso, rapidamente se associou a to-

dos n��s,' �� revelia de seu sil��ncio e de seu ar distante, co-

mo se houvesse recebido o trote destinado aos calouros,

tr��s anos antes.

O susto dos dias de prova escrita e de argui����o oral,

a c o m u n h �� o das carteiras, o conv��vio di��rio, a identidade

de sentimentos e rea����es, tudo isso havia amalgamado

em nossa personalidade u m a concord��ncia misteriosa,

que nos irmanava p a r a o resto da vida.

De repente, antes mesmo da conclus��o do curso, co-

me��ara a dispers��o imprevista ��� com a morte do Cl��u-

dio Serra, as transfer��ncias para o Col��gio Cisne e o Ate-

neu Teixeira Mendes, o noivado e o casamento da Glori-

n h a , a m u d a n �� a do Viegas para S��o P a u l o . O pobre do

Correia da Silva, sem recursos para estudar, repetia o co-

me��o de vida de Artur Azevedo ��� a trabalhar na Praia

79

Grande, n u m a casa de com��rcio, enquanto o Amorim

Parga, levado pelo Ant��nio Lopes, figurava entre os re-

datores de O Imparcial, sem tempo para o Liceu.

Agora, com o nascimento da filha da Glorinha, era

uma gera����o nova que despontava, origin��ria da nossa, e

que, com o rolar do t e m p o , nos passaria para tr��s, como

seres superados. E m b o r a mo��os, buscando os nossos ru-

mos na vida, j�� est��vamos a nos inserir no contexto so-

cial, cedendo aos impulsos de nossas voca����es. Em bre-

ve, deixado para tr��s o gin��sio, seriamos m��dicos, advo-

gados, comerciantes, professores, industriais. N �� o fazia

u m a semana que um de meus colegas de t u r m a , Olivar

Leite, me consultara sobre minhas id��ias pol��ticas. S��rio,

grave, havia sentado �� minha mesa, no Caf�� Excelsior, e

perguntara-me:

��� Voc�� n��o acha que somos n��s que temos de con-

sertar o Brasil? Que o que est�� ocorrendo agora, com o

Get��lio no governo, �� u m a calamidade pior que a do tem-

po do Washington Lu��s?

Amorim Parga, n ou t r a tarde, q u a n d o lhe fui levar

um novo poema p a r a a p��gina liter��ria, na reda����o do O

Imparcial, abriu a gaveta central de sua mesa, para me

abastecer de livros comunistas:

��� Voc�� precisa ler isto com a maior urg��ncia.

O Olivar queria levar-me para o campo oposto:

��� Veja a It��lia, veja a Alemanha. J�� est��o fazendo

o m u n d o tremer com suas mil��cias. Hitler veio do nada,

era um pintor de paredes: hoje, quando ergue a voz em

Berlim, estremece o m u n d o . Voc�� precisa ouvir um dis-

curso de Mussolini. Aquilo, sim. Nosso Pl��nio Salgado

vai pelo mesmo caminho. �� a nossa esperan��a. Voc�� pre-

cisa vir para o integralismo, com a maior urg��ncia.

Eu tinha visto, no Largo do C a r m o , n u m domingo,

a prepara����o dos integralistas para a sua primeira mar-

cha em S��o Lu��s, de camisas verdes, sigmas no bra��o, o

ratapl�� dos tambores.

E o Olivar:

80

��� Podemos contar com voc��?

E eu, com firmeza:

��� Sou individualista demais, no meu apego �� liber-

dade, para me filiar a um partido que restringe essa li-

berdade.

S e g u r o u - m e p e l o p a l e t �� , q u a s e a e x a l t a r - s e ,

olhando;me de frente, com os olhos crescidos:

��� �� pena. �� assim que, sem querer, se vira comu-

nista. P o r q u e , hoje, fique voc�� sabendo, s�� h�� comunis-

tas e integralistas. Os neutros n��o t��m espa��o para ocu-

par. Pense bem no que estou lhe dizendo. E eu s�� lhe digo

isto para seu bem.

Amorim Parga, ali mesmo no Caf�� Excelsior, quis

saber, dias depois, se eu tinha lido os livros que me em-

prestara. Sim, sim, havia lido. Gostara do romance p r o -

let��rio, mas n �� o a p o n t o de entusiasmar-me. Q u a n t o ao

Manifesto comunista, tinha minhas restri����es.

Ainda hoje ou��o a risada do Amorim:

��� Voc�� tem restri����es a Marx e Engels?

��� Tenho ��� confirmei, com ar de riso.

E ele, arrependido de ter gasto cera com m a u defun-

t o :

��� C o m o anedota, a resposta �� b o a .

Depois, s��rio:

��� Voc�� n��o passa de um pequeno-burgu��s. Vai aca-

bar na mil��cia integralista, levantando o bra��o p a r a gritar

anau��. Hoje, quem n��o for comunista �� fascista. Fascis-

ta como Plinio Salgado. C o m o Gustavo Barroso. De ca-

misa verde, marchante, sob as ordens de Hitler e Musso-

lini.

Nesse diss��dio radicalizante, eu s�� pensava em defen-

der a mim mesmo, sem voca����o p a r a entrar n u m reba-

n h o . P��ssaro solit��rio, voava ao sabor de meu gosto p a r a

onde queria. A amplid��o era minha. Meu horizonte n �� o

tinha limite.

O nascimento da filha da Glorinha, transformado

em not��cia de jornal, como que me chamava �� ordem,

81

advertindo-me de que o tempo da vida gratuita estava

terminando. A P a n d o r a , por u m a via errada, tinha feito

a sua op����o. Cada um de n��s, nos pr��ximos anos, seria

obrigado a definir-se. No plano pol��tico, eu n��o queria

ser comunista nem integralista. Queria ser eu mesmo.

Fiel ��s minhas verdades. P r o c u r a n d o honrar minha pena

de escritor.

Benedito Barros, com quem o A m o r i m Parga tinha

conversado a meu respeito, depois do encontro no Caf��

Excelsior, n��o teve d��vida em vaticinar:

��� Voc�� vai acabar no hosp��cio. Metido na camisa-

de-for��a.

82

CAP��TULO II

A i n d a estavam em m o d a , na cidade pequena e cal-

ma, os recitais de poesia. Uns, de iniciativa local, obra de

Ant��nio Pires, famoso criador das Horas de Inverno, no

sal��o principal do Cassino Maranhense; outros, vindos

de fora, com declamadores de renome internacional, ca-

pazes de comover grandes audit��rios recitando poemas

de Olavo Bilac, Alberto de Oliveira, Oleg��rio M a r i a n o .

Foi o Ant��nio Pires quem me preveniu:

��� A Maria Cristina vem ai.

J�� a grande declamadora ��� imensa no f��sico e na

voz ��� tinha estado em S��o Luis algumas vezes. Ali dei-

xara a fama de algumas de suas interpreta����es eloq��en-

tes. A do p o e m a onomatopaico sobre o bailado do vento,

em que, recitando e soprando, era o pr��prio vendaval em

rodopio, nunca deixava de ser bisada com calor, at�� que

a artista, enxugando o suor da testa e do pesco��o, anuia

em repris��-la, por entre aclama����es fren��ticas.

Assim que ela chegou, e antes mesmo que os jornais

lhe noticiassem a presen��a na cidade, para dois ou tr��s

programas no Teatro Artur Azevedo, o Ant��nio Pires

veio avisar-me, com u m a boa not��cia na ponta da l��ngua

saltitante:

��� Ela me assegurou que vai recitar um poema teu.

Fazia parte da boa t��tica, com repercuss��o simp��tica

imediata, o expediente de incluir no programa do recital,

em cada cidade, os poemas de dois ou tr��s poetas locais.

83

Eu entraria no programa por obra e gra��a do velho expe-

diente.

Um companheiro de gera����o, Argeu Ramos, tinha

acabado de publicar, na p��gina liter��ria de O Imparcial,

um poema moderno sobre seios, com esta novidade: alu-

dia ele, quase ao fim do poema, aos seios clarinantes de

sua a m a d a . Seios clarinantes? A associa����o do substanti-

vo e do adjetivo era nova. C o m o seriam os seios clarinan-

tes da musa do Argeu?

J�� eu conhecia, por esse t e m p o , u m a boa variedade

de seios, mas n��o me lembrava de qualquer deles que pu-

desse associar a um clarim. E n��o fui eu apenas que estra-

nhei. O Bandeira de Melo estranhou. Estranhou o Frank-

lin, estranhou o Correia da Silva. E at�� o Benedito Bar-

ros, sempre aberto ��s imagens arrojadas, desta vez aper-

tou a ponta do queixo, pensativo, sem atinar tamb��m

com os tais seios em forma de clarim. Seios clarinantes?

C o m o seriam?

Afinal, um dia vem sobre outro dia, e o tempo dilui

tamb��m nossos espantos, como dilui nossas alegrias e

amarguras. Entretanto, no caso dos seios clarinantes, a

mem��ria de cada um de n��s se fez tenaz, lembrando-os

sempre, com prop��sito ou sem prop��sito, e o certo �� que

o Argeu acabou conhecido como o poeta dos seios clari-

nantes, assim como Bilac ficara famoso por ouvir estrelas

e Raimundo Correia por tirar a m��scara da face.

Antes que o pano de boca do teatro levantasse, com

a casa repleta, incluindo as torrinhas reservadas a tr��s ou

q u a t r o col��gios municipais, vi meu nome no programa

do recital da noite ��� na abertura do recital da Maria

Cristina. C o m o j�� havia tr��s anos que ela n��o fazia as

pra��as do Norte, eu s�� a conhecia de nome e ae fotogra-

fia. Dos meus companheiros de literatura, s�� o Benedito

a conhecia, por ter assistido ao seu ��ltimo recital.

��� �� impressionante ��� dizia-nos ele, para fazer am-

biente, no fundo da frisa em que o Ant��nio Pires nos ti-

84

n h a alojado, por u m a cortesia especial da pr��pria decla-

m a d o r a .

E descrevia:

��� Muito alta, lindas m��os, e u m a voz de trov��o ou

de violino, de acordo com a poesia que est�� recitando.

Soberba. H�� quem diga: divina.

Nesse m o m e n t o , ouviram-se as tr��s pancadas firmes

que precediam a subida do p a n o de boca. Redobramos de

aten����o. Sil��ncio. O cen��rio, sob a forma de a b �� b a d a ce-

leste em t o m azul-claro pontilhado de estrelas, resplande-

cia sob as gambiarras, e eis que do ch��o se eleva, devaga-

r i n h o , ao som de um N o t u r n o de Chopin executado pelo

violino de Pedro Comwell e o piano de Chamin��, a figura

majestosa da Maria Cristina, tamb��m de azul, imensa,

alteada ainda mais pelo penteado. Primeiro apareceu-lhe

o penteado, depois a testa, o resto do rosto, o mulher��o foi

crescendo, como se Aladim houvesse esfregado a l��mpa-

da e logo surgisse �� sua frente um g��nio de colossal esta-

tura.

E o que de p r o n t o me chamou a aten����o, al��m do ta-

m a n h o colossal da figura, grande como u m a est��tua, fo-

r a m os seios pontudos e altos, avan��ando para a frente

do vestido. Parecia que, sob a seda cintilante, dois

chap��us de clown comporiam o corpinho que seguravam

as vastas m a m a s .

Q u a n d o dei por mim, j�� estava a sussurrar p a r a os

companheiros de frisa, com os olhos arregalados:

��� Afinal, achamos. S��o esses os seios clarinantes.

E por mais que a Maria Cristina se esmerasse em dar

vida ao meu poema, exibindo sob a luz propicia as m��os

femininas que eu havia celebrado, n��o se desfez em n��s o

frouxo de riso. E q u a n t o mais o riso se nos derramasse

pela boca ��mida, nos impulsos da galhofa irreprimivel,

mais quer��amos rir, com o len��o contra a boca, j�� de p��,

no corredor que perlongava a plat��ia. Nem mesmo o bai-

lado do vento, que veio logo a seguir, teve o d o m de nos

conter. Pelo contr��rio, quanto mais os bra��os gesticula-

85

vam e os l��bios sopravam, no esfor��o da declama����o

exaltada, mais os seios clarinantes clarinavam, com o no

verso do Argeu.

O Benedito Barros nos prop��s:

��� �� melhor sairmos.

C�� fora, na paz do Largo do C a r m o , continuamos a

rir, sob o sil��ncio do c��u estrelado, caminhando na di-

re����o da Rua Grande. �� altura da igreja do C a r m o , es-

t r a n h a m o s que esta estivesse aberta, ��quela hora da noi-

te. E logo o Oliveira, entendido em igreja, nos esclareceu:

��� �� a novena. Come��ou ontem. Vai at�� a semana

que vem.

E ainda olh��vamos para a porta iluminada, ouvindo

a cantilena das ora����es, q u a n d o vimos sair dali o profes-

sor Daniel. De cabe��a baixa, desceu os degraus da esca-

daria, movendo as m �� o s , como se falasse sozinho, en-

quanto recolh��amos o resto de riso que nos aflorava �� bo-

ca, impressionados com a figura devastada que se desta-

cava na claridade do lampi��o.

��� �� ele, sim, �� o Daniel ��� concluiu o Oliveira.

E ele passou perto de n��s, sempre de cabe��a baixa,

sem reparar no nosso espanto, para contornar adiante o

pared��o do Convento do C a r m o , seguindo pela Rua da

P a z .

A n d a m o s atr��s, m a n t e n d o dist��ncia, como se f��sse-

mos acompanh��-lo, at�� que ele desapareceu na volta da

Travessa do Teatro, sempre de cabe��a baixa, gesticulan-

d o .

E o Benedito Barros, assim que nos detivemos �� al-

t u r a do pr��dio da Biblioteca P��blica:

��� Alguma coisa grave deve estar acontecendo na vi-

da do Daniel. Ontem, quase de madrugada, q u a n d o pas-

sei pela casa dele, as luzes ainda estavam acesas, com o

carro do Dr. Neto Guterres p a r a d o j u n t o �� cal��ada em

frente �� porta.

86

CAP��TULO III

No dia seguinte, pelo meio da tarde, descendo a p��

a Rua de S��o J o �� o , a caminho do Col��gio Cisne, para

u m a prova de latim, a imagem do Daniel cabisbaixo, de

m��os aflitas, persistia na minha lembran��a, de mistura

com os textos de Virgilio, Ovidio e Hor��cio que tivera de

repassar pela madrugada.

Est��vamos em setembro, q u a n d o S��o Luis nos exibe

os seus mais belos dias. Dias de amplo c��u sem nuvens e

vira����o cont��nua, pontilhado de papagaios de papel nas

horas suaves do entardecer. A luz vespertina mostra u m a

infinidade de matizes que nunca se repetem, refletindo-se

nos azulejos das fachadas e dos mirantes, enquanto a am-

plid��o associa tons r��seos e azuis, arqueada sobre os te-

lhados escuros, como a esmerar-se em sucessivos cart��es-

postais.

Terminada a prova, que fiz com relativa rapidez,

n��o deixei a sala de aula. De uma janela sobre o quintal,

descortinava-se o cair da tarde por cima do m a r , alcan��an-

do um trecho da barra, a P o n t a da Areia e a P o n t a do

Bonfim, com o recorte das palmeiras fechando o hori-

zonte. Em contraste com o brilho prateado da luz na cris-

ta das ondas, o c��u sangrava sobre o leque das palmeiras,

com o sol em chamas resvalando para a linha do poente.

Perguntei ao professor Cardoso se podia ficar ali, a

olhar o esplendor da tarde. E ele, afastando as m �� o s ,

n u m gesto afetuoso:

87

��� N �� o se esque��a de que tamb��m somos colegas,

professor. Fique �� vontade. Terminada a prova, n��o h��

mais o aluno.

H�� momentos na vida em que, supondo obedecer ��

nossa vontade, n a d a mais fazemos do que ceder a impul-

sou inexplic��veis que repentinamente nos orientam acima

de nossa vontade consciente. Foi o que se deu comigo ao

acercar-me da janela. Em vez de alongar a vista por cima

dos telhados, para admirar a luz que se desfazia sobre o

m a r , olhei para um dos aposentos da parte residencial do

col��gio, e dei com o Daniel, curvado, com as m��os no ros-

t o , sentado n u m a cadeira, de pernas afastadas, voltado

p a r a o espaldar de madeira em que apoiava os cotovelos.

Diante dele, com u m a das m��os no seu o m b r o e a outra

gesticulando, a figura gorda de D. Iai��.

Esqueci o poente, a luz sobre as ��guas, a cintila����o

dos leques das palmeiras, as velas dos pescadores recorta-

das contra a claridade viva, e concentrei minha aten����o

nas duas figuras, ap��s retrair o corpo para dentro da sa-

la, como a esquivar-me do sol que me doeria nos olhos.

Queria olhar sem ser visto. Da dist��ncia em que me acha-

va, debalde apurei o ouvido: dali n��o podia escutar o que

a mulher do Arimat��ia estava a dizer ao Daniel. Percebi

que lhe falava com energia, enquanto ele, sempre com as

m��os no rosto e curvado para a frente, se limitava a ouvi-

la.

Terminei por debru��ar-me na janela, com a cabe��a

para fora do caixilho, empurrado pela curiosidade. D.

Iai�� falava por tr��s do vidro, sem que viesse at�� mim o

som de sua voz. Mas houve um m o m e n t o em que tive a

percep����o mais viva do d r a m a que estava ocorrendo ���

q u a n d o Daniel, descobrindo o rosto, mostrou o semblan-

te devastado, com as l��grimas a lhe descerem para os can-

tos da boca. Apertou as t��mporas, de cabe��a curvada, e

t o d o ele estremeceu na convuls��o dos solu��os.

Sem me voltar, chamei pelo professor Alves C a r d o -

so:

88

��� Venha c��, professor.

Mas o Alves Cardoso j�� tinha ido embora, s�� eu fi-

cara na sala. Retra��-me para dentro, n��o querendo que o

Daniel me visse. E enquanto apanhava meu floril��gio la-

tino e o caderno de notas e estudos, conclu�� que todo o

desespero dele estaria ligado ao nascimento da filha. N��o

seria normal a menina? O parto teria comprometido a

Glorinha?

Sentindo-me tamb��m destro��ado, com uma profun-

da pena do Daniel, segui pelo corredor, na dire����o da va-

randa, sem saber o que pensar. Deveria falar-lhe? Ou fa-

laria ao professor Arimat��ia? Optei por falar ao Ari-

mat��ia.

L�� estava o mestre, �� cabeceira da mesa, fumando e

escrevendo. De perfil, reproduzia o E��a de Queiroz em

relevo, nas capas da edi����o da Livraria Chardron, de

Portugal. Talvez um pouco mais cheio de rosto. No mais,

repetia com exatid��o o romancista portugu��s, na testa,

no queixo, na curva do nariz, na boca, no cabelo ralo e li-

so, com uma risca do lado.

Escrevia em compridas tiras de papel alma��o, com

uma letra correntia que ia enchendo o espa��o entre as

pautas, enquanto a m��o esquerda segurava o cigarro ace-

so, entre o indicador e o m��dio. Fumava e escrevia, fu-

mava e escrevia, como se houvesse uma rela����o de movi-

mento entre o cigarro e a pena, na flu��ncia da escrita.

De p�� �� entrada da varanda, esperei alguns minutos,

com a esperan��a de que o mestre, dando por mim, me fi-

zesse sentar ao seu lado, para abrir-se comigo.

Mas n��o foi isso que aconteceu. O mestre n��o

olhou para mim, concentrado no seu trabalho, a despeito

da tosse repetida com que o adverti de minha presen��a.

Por fim, dei alguns passos na varanda, aproximando-me

da mesa, no momento em que o rel��gio da parede, por ci-

ma de uma estante envidra��ada, batia pelas cinco horas.

O professor Arimat��ia ainda n��o dera por mim.

89

Defronte da estante, fiquei a ler a lombada dos li-

vros, como interessado nas edi����es Garnier que ali se per-

filavam, encadernadas em percalina verde, com as obras

de Jos�� de Alencar.

E o mestre, nesse m o m e n t o , em tom agastado:

��� Est�� pretendendo interromper-me para algum as-

sunto urgente, professor? Se n��o tem esse prop��sito nem

�� urgente o seu assunto, venha falar comigo n out ra hora.

Preferi n��o responder. Na ponta dos p��s, voltei pelo

corredor, com os olhos na claridade da rua, L�� adiante,

fechei a cancela de ferro. Devagarinho, para que n��o ba-

tesse.

90

CAP��TULO IV

Vim a saber, ainda no mesmo dia, que j�� fazia u m a

semana que o Daniel, sempre t��o assiduo em sua classe,

n �� o aparecia no Liceu. O pr��prio diretor tomara a inicia-

tiva de substitui-lo, para n��o interromper o programa, j��

na fase das primeiras provas do segundo semestre. E pre-

venira os alunos:

��� O professor Daniel poder�� voltar de um momen-

to para o u t r o , mas n��o posso dizer q u a n d o .

Noutra tarde, no Largo do C a r m o , estava eu em

companhia do Ant��nio Oliveira, discutindo sobre o Me-

nino de engenho, de Jos�� Lins do Rego, que ambos

t��nhamos lido por aqueles dias, quando apareceu diante

de n��s, com ar de novidade, o Correia da Silva, que logo

exclamou, aborrecido:

��� J�� rodei este Largo do Carmo inteiro, �� procura

de voc��s. Afinal, no bar do Chico, encontrei u m a alma

caridosa que me informou onde voc��s estavam. Estou

com u m a novidade na ponta da l��ngua. Sobre o Daniel. O

caso �� grave.

Aquele recanto da pra��a, com tr��s bancos de ferro

em redor do chafariz, ouvindo o ru��do cantante do repu-

xo, era o nosso melhor ref��gio, nas horas altas da tarde,

sempre que o dinheiro escasseava para t o m a r m o s um re-

fresco ou um caf�� no Excelsior.

Interpus o dedo no meio do romance, para retomar

a discuss��o mais adiante, e tanto eu quanto o Oliveira er-

guemos para o Correia da Silva nosso olhar curioso.

91

E ele:

��� A Glorinha, logo depois do p a r t o , teve duas he-

moptises s��rias. A primeira, tarde da noite. O Dr. Guter-

res, chamado ��s pressas, veio acudi-la de chinelos. A ou-

tra foi semana passada, �� tarde. Ambas violentas, como

se o sangue n��o fosse passar. O Dr. Guterres chamou o

Dr. M u r t a para u m a confer��ncia m��dica, e os dois acha-

ram que o caso dela �� muito grave. Foram francos com o

Daniel, e ele, coitado, n��o sabe agora o que fa��a. Tem de

atender �� filha, que est�� no ber��o, e �� mulher, que est�� de

cama, em repouso absoluto, com ordem de n��o se levan-

tar.

Eu sabia o que aquilo significava. Na minha familia,

tinha perdido um tio e u m a tia, vitimados pelo mesmo

mal. Depois, u m a irm��, precisamente a mais velha e a

mais brilhante. E fazia um ano que o Dr. M u r t a me obri-

gara a sair da cidade largando aula, largando amigos, pa-

ra ficar de repouso, no s��tio de meu pai, tr��s meses a fio,

�� espera do milagre de uma rea����o org��nica. E esta, feliz-

m e n t e , a i n d a veio a t e m p o , e s p a �� a n d o a f e b r e ,

diminuindo-me os acessos de tosse, aumentando-me o

peso, sem que eu tivesse de perder o ano no curso do Li-

ceu.

Por isso mesmo fui otimista:

��� A Glorinha �� mo��a, vai reagir depressa. C o m o

eu reagi.

E o Correia, irredut��vel:

��� N �� o �� essa a opini��o dos m��dicos. Tanto o M u r t a

quanto o Guterres t��m progn��sticos sombrios. Acham

que ela deve tentar a cura n u m sanat��rio, talvez fora do

Brasil.

E eu, lembrado de que a hip��tese da viagem tinha si-

do alvitrada para o caso de minha irm��, ainda no come��o

da doen��a:

��� E o Daniel tem recursos para isso? Acho que n �� o .

A viagem para a Su����a custa os olhos da cara. E o trata-

mento t a m b �� m . Em clima de m o n t a n h a , com rem��dios

92

car��ssimos. A Glorinha vai ter de ficar por aqui, como fi-

caram meus tios, como ficou minha irm��. Como eu

pr��prio fiquei. Coitada da Glorinha.

O Oliveira, que at�� ent��o se mantivera calado, a con-

trair os maxilares, suspirou tamb��m, com um semblante

desolado:

��� Coitado do Daniel. �� ele que vai ter de se virar

para dar solu����o ao tratamento da mulher. N��o h�� di-

nheiro que chegue. Vai ter a sensa����o do jogador caipo-

ra, que joga e perde, joga e perde, perseguido pela m��

sorte.

N��s que, um ano antes, o t��nhamos invejado, ao v��-

lo de bra��o com a Glorinha, descendo a Rua Grande,

agora nos compadec��amos dos dois, sem saber ao certo

qual deles seria o mais desnorteado, com a morte e o in-

fort��nio a lhes rondarem a casa.

93

CAP��TULO V

Pela altura da Rua do Sol, na esquina com a Rua de

S��o Jo��o, j�� no trecho em que a ladeira nos acelera o pas-

so na dire����o do Largo do Carmo, a chuva recrudesceu.

A boa chuva maranhense, que cai verticalmente sobre as

cal��adas e os paralelep��pedos, forte, escachoante, for-

mando enxurradas nas sarjetas, impedindo o recurso ao

guarda-chuva, uma chuva sem ru��do de vento ��� o vento

esfuziante que inclina as cordas-de-��gua para fustigar as

vidra��as, fazendo estremecer as r��tulas nos caixilhos de

madeira.

Meti-me num portal, adiante do pr��dio da Ma��ona-

ria, e ali esperei que amainasse, restituindo �� cidade o c��u

aberto e lavado e o canto estridente dos bem-te-vis.

Come��ara a chover pela manh��, voltara a chover

por volta do meio-dia, e agora, j�� com a luz do entarde-

cer querendo quebrar, volvia a desabar novo toro.

Aproveitando o intervalo das estiadas moment��-

neas, segui meu caminho at�� quase a altura do Largo do

Carmo, quando dei com o Ant��nio Oliveira, �� minha di-

reita, no Sebo do Polari. Logo ali entrei, acossado por

nova pancada de chuva.

Oliveira, que sempre andava no topo da escada, vas-

culhando raridades nas prateleiras mais altas, desta vez

estava no ch��o, com o joelho direito em terra, o esquerdo

levantado, o dorso inclinado para os livros que jaziam

enfileirados nos ladrilhos do piso, com a lombada para

cima.

94

E o Polari, chamando-me:

��� E n t r e , entre. H o j e , temos coisas m u i t �� s s i m o

b o a s . Algumas que nunca apareceram aqui na loja.

Este Polari era um senhor magro e narigudo, bem-

servido de pernas, ombros altos, sempre em mangas de

camisa, menos parecido com seus retratos do que com

suas caricaturas, u m a das quais pendia de u m a das pare-

des da loja, convenientemente emoldurada. O exagero do

tra��o (obra do Tel��sforo Rego, que depois se fez excelen-

te fot��grafo) condizia perfeitamente com a figura f��sica

do livreiro. T a n t o no desenho quanto na vida real, podia

ele ser visto, de m a n h �� �� noite, com um l��pis atr��s da ore-

lha direita, em meio �� sua babel disciplinada de papel im-

presso.

De p��, por entre as fileiras de livros, pude reconhe-

cer, a um relance do olhar, que tudo ali era rigorosamen-

te escolhido, quer no plano das letras, quer no campo das

ci��ncias sociais, quer no m u n d o fechado das ci��ncias pu-

ras. Uns dez mil volumes de obras preciosas, muitas das

quais eu apenas conhecia de n o m e .

E o Oliveira, mais atarantado do que menino em lo-

ja de brinquedo, nas aproxima����es do Natal:

��� Foi a melhor biblioteca particular que j�� apare-

ceu aqui. T u d o �� ��timo. E muito bem conservado.

C o n q u a n t o soubesse que o Polari, por n o r m a de

of��cio, sempre se negava a dizer a proced��ncia dos livros

que lhe iam ter �� loja, aventurei u m a suspeita:

��� �� a biblioteca do Ant��nio Bona?

Polari n��o hesitou na resposta:

��� N �� o . Nem tamb��m do Rubem Almeida ou de An-

t��nio Lopes. �� do Daniel. Do professor Daniel.

Oliveira endireitou a cabe��a, eu me voltei para o P o -

lari, com u m a express��o de curiosidade mais viva:

��� Est�� aqui t o d a a biblioteca dele?

��� T o d a . S�� n��o vendeu os livros de sua disciplina

no Liceu. O mais est�� aqui. T u d o de primeira ordem.

E chamando-nos mais para perto, com um aceno:

95

��� A mulher dele foi desenganada pelo M u r t a e pelo

Neto Guterres. P u l m �� o . E bem adiantada a mol��stia. Os

dois pulm��es. O M u r t a admitiu que, se ela for para o Sul,

talvez consiga salvar-se em clima de m o n t a n h a . Lembrou

Friburgo. E �� para Friburgo que ela vai. P a r a ir, precisa

de dinheiro. O Daniel n��o teve d��vidas: chamou o Jac��

e vendeu-lhe as j��ias, inclusive a alian��a de casamento;

chamou o Garibaldi e vendeu-lhe os velhos m��veis de que

tanto se orgulhavam, alguns do tempo da Col��nia. A

mim vendeu os livros. Fiz um pre��o alto. O maior que

podia. Assim mesmo foi b a r a t o . Sei que o Daniel fez

empr��stimos em b a n c o , que hipotecou a casa. Est�� deci-

dido a salvar a mulher. Ela, coitada, recusava-se a deixar

o marido e a filha. Mas ontem, depois da intercess��o dos

dois m��dicos, concordou em se tratar. Vai para o Rio, na

semana que vem. De l�� segue para Friburgo. Neto Guter-

res tem as suas d��vidas q u a n t o �� cura. O Murta, n �� o . O

Daniel me assegurou que, se fosse preciso mand��-la para

a Su����a, ele m a n d a v a , nem que tivesse de vender a si mes-

m o . Depois de uns dias de desespero, em que pensou

mesmo em matar-se, acabou reagindo. N a d a de suic��dio.

Vai salvar a mulher. Obstinadamente. Porfiadamente.

Cada livro daqueles era bem mais que um livro ���

era um conjunto de momentos memor��veis na vida do

Daniel. Desde o instante de sua aquisi����o. Depois a esco-

lha do lugar na biblioteca. A primeira leitura. O cuidado

da encaderna����o. P a r a cada volume. E com u m a sensibi-

lidade espec��fica p a r a toc��-los, tir��-los da prateleira,

manuse��-los, at�� restitu��-los ao lugar na estante, perfila-

dos como sentinelas. Agora era a dispers��o de todos eles,

como na precipita����o de u m a di��spora, ao sabor da cu-

riosidade ou do interesse dos compradores. Dentro de um

a n o , dois, quase nada restaria do conjunto harmonioso.

Talvez um volume solto aqui, outro mais adiante, en-

q u a n t o , na casa do Daniel, as estantes vazias teriam um

ar atarantado de a b a n d o n o e rep��dio, como se n �� o sou-

bessem o que fazer de si mesmas.

96

Oliveira voltou a erguer a cabe��a, e sussurrou-me:

��� Sabe o que �� isto? A primeira edi����o do S��, de

Ant��nio Nobre. S�� foram tirados duzentos exemplares.

Este �� o n��mero 15.

Segurei o livro, tateei-o, abri-o ao acaso, tornei a

fech��-lo, e fiquei a imaginar q u �� o forte era a paix��o do

Daniel pela Glorinha, a p o n t o de desprender-se de todos

aqueles companheiros.

E o Oliveira, recebendo o livro:

��� Estamos assistindo ao romance do Daniel. Ro-

mance em estado p u r o . Sangrento como a pr��pria vida.

Qual ser�� o seu desfecho? Vencer�� a Glorinha, voltando

boa a S��o Lu��s? Ou vencer�� a doen��a, recolhendo ao si-

l��ncio o corpo da mulher do Daniel? De u m a forma ou de

outra, este �� um dos lances capitais do d r a m a . D r a m a es-

crito por Deus. Diante dos nossos olhos.

E vindo mais p a r a perto, com a m �� o no meu o m b r o :

��� E por que n��o o aproveitas?

97

QUARTA PARTE

Somos de tal natureza que nada nos leva

t��o longe e t��o alto quanto os nossos er-

ros.

M A E T E R L I N C K

CAP��TULO I

F u i eu que apressei o passo, ao fim do Largo do

Quartel, quase a entrar na Rua da Paz, e o segurei pelo

bra��o:

��� Professor.

O Daniel p a r o u , olhou-me de frente, com u m a ex-

press��o de alegria no rosto pensativo:

��� Ol��! ��� exclamou.

E foi ele que enfiou o seu bra��o no meu, no come��o

da Rua da Paz. Andava pelos trinta e poucos anos, e de

repente parecia ter mais, muito mais, com a face sulcada,

o cabelo mais ralo, o dorso levemente curvo, os om-

bros levantados. Emagrecera sensivelmente. Seu rosto

chupado acentuava os p��mulos altos, enquanto os olhos

castanhos, como que escondidos ao fundo das ��rbitas,

pareciam temer a luz intensa que cintilava no azulejo das

fachadas.

E eu, para entreter a conversa:

��� Noticias da Glorinha.

��� Saiu daqui anteontem. N��o deixei que ela se des-

pedisse de ningu��m, para evitar a emo����o da partida.

Uns amigos diriam aos outros, muitos iriam ao Cais do

P o r t o para v��-la embarcar, e isso n��o era bom para ela.

Segui fielmente a orienta����o do Dr. Guterres. Ningu��m

da fam��lia dela foi. P a r a n��o dar na vista. J�� o navio ia

recolher a escada do portal�� quando a lancha da Capita-

nia dos P o r t o s , com a Glorinha, o Dr. Guterres e eu,

al��m de dois tripulantes, encostou ao p�� da escada. Subi-

mos os tr��s, ainda com a mar�� mansa, sem atropelo para

101

saltar da lancha no degrau. J�� eu tinha estado com o co-

mandante e o imediato, ali mesmo a b o r d o , q u a n d o fui

levar a bagagem da Glorinha. Eu pr��prio arrumei-lhe o

camarote, e fiz-lhe esta surpresa, de que ela deve ter gos-

t a d o : na mesinha-de-cabeceira, deixei o retrato de nossa

filha, ainda no colo da av��, e uma imagem de S��o Jos�� de

Ribamar. O Dr. Guterres entendeu-se com o m��dico, j��

seu conhecido. O camarote n��o podia ser melhor. Perto

do Servi��o M��dico, para qualquer emerg��ncia.

E consultando o mostrador do rel��gio de pulso:

��� A esta hora, j�� o navio saiu de Fortaleza.

E enchendo devagar o peito, sem erguer de t o d o a

cabe��a:

��� Estes tr��s meses foram os mais terr��veis de t o d a a

minha vida. N �� o os desejo para ningu��m. Ningu��m. Dias

antes do parto da Glorinha o Dr. Guterres me alertou pa-

ra a eventualidade de um contratempo. A Glorinha n��o

lhe parecia bem. Queixava-se de muito cansa��o, quase

n��o se alimentava. Seu estado se agravou com duas gri-

pes seguidas. U m a noite, depois de um breve acesso de

tosse, sobreveio-lhe a primeira hemoptise. Fiquei t o n t o .

Eu tinha sido, at�� conhecer Glorinha, um homem de pe-

quenos amores passageiros. Estava certo de que, por isso

mesmo, nunca me casaria. Em parte, sem querer, sou res-

pons��vel pela loucura da P a n d o r a , que fez o que fez

q u a n d o viu que n��o se casaria comigo. Que �� que eu ia

fazer, se a Glorinha me aparecera na sala de aula, pouco

depois do meu concurso? Fiquei desnorteado. Tinha de

me casar com ela. Tinha. E compreendo perfeitamente o

gesto do Cl��udio Serra. Que se matou por ela. Eu sei, e

compreendo. Sem ela, a vida n��o me servia. �� o que es-

tou lhe dizendo. Casei-me. A Glorinha n��o podia ser

mais perfeita, como amiga, como companheira, como

mulher.

P a r o u ao meio da cal��ada, ainda a segurar-me o

bra��o:

��� Tomas um caf�� comigo?

102

S�� ent��o reparei que est��vamos na Rua de Santana,

adiante da esquina com a Rua da Mangueira, �� p o r t a da

meia-morada de janelas altas em que morava o Daniel.

E ele, abrindo o port��o de ferro para que eu passas-

se:

��� Entra. N��o repares a desordem.

Na sala ampla, as estantes vazias, subindo at�� quase

o forro, tinham um ar at��nito, com as prateleiras escan-

caradas, apenas exibindo u m a dezena de volumes c�� em-

baixo, na altura da sali��ncia dos bibel��s. Os dois consolos

t a m b �� m vazios. Na parede, a marca dos quadros recente-

mente retirados, s�� restando a pequena marinha pintada

em Roma pelo irm��o do Daniel, j�� falecido.

Fiquei uns momentos s��, de costas para a escrivani-

nha atulhada de pap��is, enquanto o Daniel desaparecia,

tragado por um v��o de porta sobre a alcova. Dali vinha

um cheiro forte de rem��dio e de alfazema, de mistura

com ��gua-de-col��nia, que a vira����o da rua, entrando pe-

lo alto das janelas e pelas frestas das r��tulas, n��o conse-

guia desfazer ou atenuar.

E o Daniel, da�� a pouco, com uma x��cara de caf�� em

cada m �� o :

��� N �� o repare a falta da bandeja. At�� a bandeja teve

de ser vendida. Foram-se os an��is, ficaram os dedos. An-

tes assim.

E antes contente que pesaroso, abrangendo a sala

vazia no gesto circular do bra��o livre:

��� T u d o isso pela sa��de de Glorinha. E daria mais, e

darei a mim mesmo, se for preciso. A vida da Glorinha,

p a r a mim, �� t u d o . Um ano ou dois de sacrif��cio di��rio,

com a aus��ncia dela, e irei de joelhos �� Igreja de S��o

Jos��, para agradecer a sua sa��de e o seu regresso. A nada

mais aspiro.

E enquanto ia sorvendo o caf��, eu quis dizer ao Da-

niel que, tendo comprado alguns de seus livros, no Sebo

do Polari, me considerava apenas como d o n o transit��rio

desses volumes, que lhe seriam restitu��dos por ocasi��o da

103

volta da Glorinha. Entretanto, nada lhe disse. Era me-

lhor fazer-lhe a surpresa.

E o Daniel, com o mesmo ar convicto:

��� Glorinha �� mo��a, vai reagir muito bem ao clima

de m o n t a n h a , seguindo �� risca a disciplina do sanat��rio.

Hoje, estou seguro, segur��ssimo, de que ela ficar�� com-

pletamente b o a . No come��o me desorientei. Pensei mes-

mo em me matar, no auge da crise. Mas me lembrei da

Maria Em��lia, a tempo de sustar meu gesto de desespero.

Tenho de cri��-la e educ��-la. Deus me entregara essa nova

miss��o. Atordoei-me ainda mais. C o m o viver para a fi-

lha, sem a Glorinha ao meu lado? Em meio de minha afli-

����o, o Dr. Guterres teve de me sacudir pelos o m b r o s ,

chegando a gritar comigo. Conversei depois com o Dr.

M u r t a . Com o Dr. Matos Carvalho. Com o Dr. Clarindo

Santiago. Com o Dr. An��bal. E todos me disseram a mes-

ma coisa: que a Glorinha se salvaria. T o d o s . O Dr. Mur-

ta foi categ��rico: rasgaria o seu diploma se a Glorinha

n �� o voltasse curada. Sabe voc�� como sa�� do consult��rio

dele, na tarde em que l�� voltei, para lhe dar a opini��o dos

outros m��dicos? Rindo �� toa. Sim senhor: rindo. Rindo

para as ��rvores, as casas, as pessoas desconhecidas. Co-

mo o pobre sem dinheiro para dar de comer aos filhos, e

que, de repente, acerta na milhar do jogo do bicho. Foi

nesse dia que decidi m a n d a r Glorinha para Friburgo.

Vendendo t u d o . Desfazendo-me de t u d o .

E exibindo a m �� o comprida:

��� Nem a alian��a ficou. Foi tudo para a m��o do

J a c �� . Lembra-se do meu rel��gio de algibeira, com u m a li-

b r a esterlina na corrente de ouro? Vendi-o tamb��m. Co-

mo vendi o alfinete de gravata. T u d o . At�� aquela escriva-

ninha. A m a n h �� o novo d o n o vem busc��-la. Nunca pensei

que eu pudesse me desprender das coisas que me cerca-

vam. Algumas vinham de meus av��s. Dos pais dos meus

av��s. C o m o a mesa e as cadeiras da sala de j a n t a r . Hoje,

s�� tenho um pensamento: nada faltar�� �� Glorinha. N a d a .

104

Posso lhe garantir. E ela vai passar de novo por aquela

porta, curada. De bra��o comigo.

Q u a n d o lhe devolvi a xicara, olhou-me de frente:

��� Sei que ias p a r a a Biblioteca P��blica. Vai. Agora,

que n��o tenho mais meus livros, seremos companheiros,

na mesa grande de leitura. Hoje n �� o . Tenho de ir ver a

Maria Emilia na casa da av��. Nos outros dias.

E na porta, q u a n d o lhe apertei a m �� o :

��� A Glorinha ficou de me escrever todas as sema-

nas u m a longa carta. Talvez um di��rio. E como sei que te

interessas por ela, deixarei que as leias. Tenho confian��a

em ti. Absoluta.

105

CAP��TULO II

C �� u e m a r . C��u e m a r . Longe, �� sua direita, a linha

de litoral, com a nesga das praias, a ondula����o dos mor-

ros e das dunas, o verde espesso da vegeta����o cont��nua, e

aquele bater cavo e constante das ondas no costado do

navio.

A longa viagem por mar, sem sair do camarote, ape-

nas olhando a costa pela janela redonda da vigia, deu ��

Glorinha, durante dias e dias sucessivos, a sensa����o

opressiva de que se achava terrivelmente s��. A imagem de

S��o Jos��, que a acompanhava, na mesinha-de-cabeceira

j u n t o ao beliche, era seu ��nico a m p a r o . Por vezes, nas

horas mais aflitas, q u a n d o lhe parecia que n��o alcan��aria

com vida o fim do caminho, ela trazia a imagem para

perto de si, e ficava torcendo as contas do ter��o, alonga-

da na cama dura e estreita, entregue �� prote����o de S��o

Jos��.

O m��dico de b o r d o vinha v��-la todas as manh��s e to-

das as tardes, ��s mesmas horas, a alisar o bigode branco,

cheirando a hospital: tomava-lhe a temperatura, conver-

sava um pouco sobre a viagem, e repetia-lhe a recomen-

d a �� �� o :

��� Repouso. Quietinha no seu canto. Se precisar de

mim, mesmo de noite, n��o se constranja: aperte a cam-

painha, a�� ao seu lado, e eu estarei aqui, logo depois.

Felizmente, at�� aquele m o m e n t o , n��o tivera necessi-

dade de chamar o m��dico. Mesmo q u a n d o , u m a tarde, ��

altura de Fortaleza, tivera a sensa����o de que as hemopti-

106

ses iam voltar. Conseguira dominar-se, a m p a r a d a por

S��o Jos��, e o certo �� que, ao umedecer a p o n t a do len��ol

na saliva, n �� o encontrara vestigio de sangue.

E n tr et an to , prisioneira do camarote, u m a ou o u t r a

vez acontecia-lhe rebelar-se, querendo sair ao conv��s,

com a sensa����o de que o ar ali lhe faltava, a despeito da

vigia escancarada. Mas vinha a camareira, para ajud��-la

a banhar-se, e vinha a seguir o camareiro, trazendo-lhe as

refei����es, e a solid��o se atenuava, quebrada pela rotina

de b o r d o . Nas ocasi��es mais opressivas, sentava-se no be-

liche, olhava pela vigia a linha do litoral, que por vezes

parecia a mesma, repetindo-se ao longo da viagem. Tor-

nava a deitar-se, e voltava ao bloco de papel em que es-

crevia ao Daniel, quase sufocada pela saudade do marido

e da filha. Voltaria a S��o Luis, para criar Maria Em��lia,

ou ficaria por l��, no cemit��rio do sanat��rio?

Reunia todas as suas for��as para dizer, a m e d r o n t a d a

e convicta, pedindo sempre a ajuda de S��o Jos��:

��� Eu volto. Hei de voltar para criar minha filha.

A enfermeira de b o r d o vinha quase sempre pelo fim

da tarde. Dava-lhe a inje����o de todos os dias, p u n h a na

mesinha-de-cabeceira o comprimido para a hora de dor-

mir, e ia embora, depois de lhe ter olhado a temperatura

no term��metro, a repetir o mesmo fecho tranq��ilizador:

��� Assim, vamos bem.

Era gorda, espa��osa, escura, metida num vestido

branco folgado, que ainda mais a engordava. E sempre a

animava:

��� N �� o dou um ano para a senhora estar de volta.

Nessa sua doen��a, o principal rem��dio �� a paci��ncia. N �� o

adianta ficar nervosa e perder a calma. Desligue-se do

m u n d o .

Ao mesmo t e m p o , dava-lhe not��cias da vida de bor-

d o . Os bailes no sal��o de dan��as. O concerto da pianista

que embarcara em Fortaleza. A fam��lia animad��ssima

que vinha do P a r �� e era agora como se fosse dona do na-

vio.

107

Mas nada disso alterava o pensamento obstinado de

Glorinha: o de encurtar o t e m p o , para voltar mais de-

pressa a S��o Lu��s. Havia de voltar. E por que n��o?

��� Maria Em��lia precisa de mim. E Daniel t a m b �� m .

Em cada p o r t o , o marido vinha ao seu encontro, nos

telegramas que lhe passava para b o r d o . Sempre o mesmo

amigo. Sempre o mesmo companheiro confiante. E a ver-

dade �� que essas mensagens lhe chegavam na h o r a

pr��pria ��� q u a n d o a consci��ncia da dist��ncia crescente

come��ava a desorient��-la.

��� T u d o vai dar certo ��� dizia, repetindo os telegra-

m a s .

A n��o ser nos dois primeiros dias de viagem, �� altura

do litoral cearense, q u a n d o se a t o r d o a r a com os enj��os,

continuava passando razoavelmente bem, apenas com

uma leve dor de cabe��a, que por vezes lhe tirava o gosto

p a r a alimentar-se. Ela pr��pria reagia. C o n q u a n t o a sali-

va lhe crescesse na boca, conseguia mastigar o peda��o de

carne, misturada �� colher de arroz, e acabava por chegar

�� metade do prato que lhe serviam.

Jamais esqueceria a dedica����o do Dr. Neto Guter-

res, ao vir traz��-la a b o r d o , em companhia do Daniel, pa-

ra recomend��-la de m o d o especial ao m��dico de b o r d o .

Ao despedir-se dela, ap��s v��-la acomodada no ca-

m a r o t e , tinha-lhe repetido:

��� V�� sem receio. No Rio, o Dr. Augusto Pires, meu

colega de t u r m a e meu grande amigo, estar�� no Cais do

P o r t o �� sua espera. Da�� em diante ele t o m a r �� conta de vo-

c��. C o m o um amigo. C o m o um pai.

Durante o dia, consultava o rel��gio, atenta ��s horas

da mamadeira da Maria Em��lia. �� noite, alongava por

vezes o bra��o, como a querer tatear o ber��o da filha. Ja-

mais esqueceria a tarde em que o Dr. Guterres, c h a m a d o

��s pressas durante a sua ��ltima hemoptise, lhe tinha dito,

com os olhos molhados, que iria separ��-la da Maria

Em��lia. E o Daniel, tamb��m com os olhos ��midos:

108

��� �� preciso, Glorinha.

Todas as vezes que se voltava para si mesma, no es-

for��o v��o para entender a crueldade de seu sofrimento,

volvia �� mesma indaga����o desesperada, que reacendia a

sua revolta:

��� P o r que isto comigo, meu Deus?

E era debalde que buscava no seu passado u m a falta,

um erro, um pecado grave, que justificasse a puni����o

brutal, longe de sua terra, de sua filha, de seu marido.

Dia e noite, aquele bater cavo das ondas no costado

do navio, n��o raro t�� o altas que banhavam o vidro da vi-

gia, acima do beliche. Felizmente a viagem fluia sem tro-

pe��os, com a linha do litoral a c o m p a n h a n d o a passagem

do Almirante Jaceguay. De repente, entretanto, em meio

�� m a d r u g a d a , j�� perto do Rio de Janeiro, na altura do

C a b o Frio, os ventos se soltaram por cima do conv��s, en-

q u a n t o o t e m p o r a l d e s a b a v a , s i b i l a n d o , s i l v a n d o ,

amea��ando, por entre o clar��o dos rel��mpagos e o es-

t r o n d o dos trov��es.

Assustada, Glorinha acendeu as luzes do camarote,

sentou-se no beliche, envolta no cobertor de l�� contra o

frio que se esgueirava por baixo da porta e pela frincha

da vigia. Pareceu-lhe, nesse instante, com o navio a subir

e a descer, fustigado pelas cordas da chuva grossa, que se

abria um cavado �� altura de seu est��mago, ao mesmo

tempo em que, em redor, tudo oscilava e escorregava, co-

me��ando pela imagem de S��o Jos��. A pesada mala de

couro tauxiada, que o camaroteiro acomodara por baixo

do beliche, tinha resvalado para o v��o entre as camas, e

subia e descia, sempre escorregando, �� medida que o na-

vio empinava a proa, para deix��-la cair logo depois na

goela das vagas repetidas.

Em breve, no espa��o ex��guo, havia ali uma confus��o

instant��nea de objetos fora do lugar, jogados para a

frente e para tr��s, p a r a um lado e para o o u t r o , desde os

chinelos ��s pe��as de r o u p a ��ntima, de mistura com fras-

cos e vidros de rem��dio, o retratinho da Maria Em��lia na

109

moldurinha de prata, a bolsa de m �� o , um volume solto

dos Sonhos de ouro, de Jos�� de Alencar, ao mesmo tem-

po em que Glorinha tratava de agarrar-se ao beliche, sen-

tindo que seria atirada para a porta ou para o banheiro,

se n��o se segurasse com for��a nas traves de ferro.

Pensou em deixar o camarote, correr para o conv��s

superior, mas a certeza de que seu corpo fr��gil, esva��do

pela doen��a, n��o teria condi����es de suportar a noite gela-

da e as tribula����es do temporal, f��-la manter-se ali, com

um ter��o na m �� o , vendo a luz empalidecer e avivar-se,

sempre agarrada ao beliche. C o m esfor��o, quase a bater

com a cabe��a na parede de ferro, conseguira trazer para

si a imagem de S��o Jos��, que apertava agora contra o pei-

t o , repetindo atropeladamente as ora����es.

Por fim, o navio se foi aquietando, enquanto o ven-

to e a chuva amainavam. E logo ali apareceu o m��dico de

b o r d o , despenteado, enrolado n u m a capa de chuva, em

chinelos:

��� N �� o sentiu nada? Passou bem? N �� o quer que eu

lhe d�� um calmante? O pior j�� passou. Agora, o tempo

melhora, at�� o Rio.

E j�� na m a n h �� seguinte, com o sol novo a entrar pela

vigia, Glorinha sentiu que o Almirante Jaceguay dimi-

nu��a a marcha, como se fosse parar. Tratou de vestir-se

depressa; depois, de joelhos no beliche, olhou para fora,

e foi vendo os primeiros arranha-c��us, o bondinho da Ur-

ca, o P �� o de A����car, o Cristo do Corcovado.

110

CAP��TULO III

A m a n h �� cinzenta, com u m a garoa transparente

cobrindo as casas, esbatendo as ��rvores, escondendo o

recorte das m o n t a n h a s , parecia desfazer-se na chuvinha

mi��da que apressava o passo dos transeuntes, pontilhava

de guarda-chuvas a orla do cais e reduzia a claridade do

sol a u m a luz fosca e leitosa, como se as sombras da noite

fossem voltar.

Depois, tudo desapareceu. E Glorinha, ainda ajoe-

lhada no beliche, s�� viu os cascos de outros navios, um

j u n t o ao o u t r o , sucessivamente, a c o m p a n h a n d o a orla do

p o r t o , enquanto o Almirante Jaceguay ia deslizando sem

ru��do, com o rebojo das ondas mansas a acompanh��-lo,

como a lhe mostrar o armaz��m onde iria atracar.

P o n d o os p��s p a r a fora do beliche, Glorinha co-

me��ou a preparar-se para descer. C o m o seria o Dr. Pires,

que viria busc��-la a bordo? J�� estaria ele �� sua espera,

vendo o navio chegar?

��� C o m certeza ��� reconheceu, apressando-se.

Felizmente, ao fim da m a d r u g a d a , tinha posto no

outro beliche, ao alcance da m �� o , o vestido e o chap��u

com que ia desembarcar, e mais as meias, a an��gua, a

combina����o, o suti��, a calcinha de seda com seu m o n o -

g r a m a .

E n q u a n t o se cal��ava, ouviu a orquestra de bordo to-

cando a " C i d a d e m a r a v i l h o s a " , por entre o alarido dos

passageiros, no conv��s superior. Defronte do espelho, j��

de chap��u, retocou com a pluma o ruge desmaiado com

111

que atenuara a sua palidez e as suas olheiras, sentindo

que seu cora����o se acelerava. N �� o quis p��r S��o Jos�� e o

retrato da Maria Em��lia na mala de viagem, preferindo

traz��-los consigo, na sua bolsa de m �� o .

Nesse m o m e n t o , o navio estremecia, ajustando-se ��

muralha do cais, e logo se aquietou, a m a r r a d o aos argo-

l��es de ferro pelos cabos da proa e da popa.

E Glorinha ainda olhava �� sua volta, p a r a ver se na-

da havia esquecido, q u a n d o bateram �� p o r t a do camaro-

t e . Ao descerr��-la, deu com um senhor de branco, prote-

gido pelo colete contra o frio ��mido da m a n h �� , e que lhe

sorria, com u m a rosa na m �� o :

��� D. Glorinha? Sou o Dr. Pires.

Ela tirou a luva da m �� o direita, quase a atrapalhar-

se com o b o t �� o que a fechava �� altura do p u n h o , e conse-

guiu dizer ao m��dico, com o rosto levemente afogueado,

no m o m e n t o em que lhe estendeu o bra��o:

��� O senhor vai me perdoar o trabalho que estou lhe

d a n d o desde agora. N �� o sei como lhe agradecer.

E o Dr. Pires, mais envolvente e afetuoso, ap��s abrir

o sorriso acolhedor, que lhe ampliava o bigode branco:

��� N �� o sabe, mas j�� vai saber. Vai ser u m a doente

d��cil, cumprindo todas as minhas prescri����es, p a r a po-

der voltar, o mais depressa poss��vel, �� companhia de seu

marido e de sua filha.

E ao segurar-lhe a m �� o , reteve-a por um m o m e n t o :

��� Tem tido essa febrinha? �� assim mesmo. Hoje,

ela vai subir um pouco mais, com as emo����es da chega-

d a . Depois, voltar�� a normalizar-se, at�� desaparecer de

todo esta temperatura teimosa. O importante, agora, ��

ter confian��a no t r a t a m e n t o . E no m��dico.

Glorinha respondeu com rapidez:

��� Eu t e n h o .

Foi s�� no carro que ele lhe adiantou:

��� N��o vou lev��-la para o hotel. Vou lev��-la para a

minha cl��nica, em Botafogo. Tenho l�� um apartamento-

zinho de emerg��ncia, p a r a os casos como o seu. N �� o se

112

preocupe. Temos de fazer aqui os seus exames. S�� depois

de completado o diagn��stico �� que ir�� p a r a Friburgo. E

ir�� daqui a c o m p a n h a d a .

E para mudar de conversa, indagou-lhe de repente:

��� Agora, diga-me u m a coisa, para meu governo: to-

das as maranhenses s��o bonitas como a senhora?

Glorinha baixou as p��lpebras, com as m��os sobre o

fecho de metal da bolsa, encabulada:

��� Eu n��o sou bonita, doutor. Mas minhas conterr��-

neas s��o. E muito. Viu a miss M a r a n h �� o , no concurso de

beleza? Tire as outras por aquela. Eu �� que fa��o exce����o.

Felizmente a chuvinha havia passado. Havia mesmo

u m a nesga de azul por cima do P �� o de A����car, no mo-

m e n t o em que o carro seguiu pela Praia do Flamengo.

Mas ainda soprava o vento �� m i d o , que sacudia as ��rvo-

res, entrava pelas frinchas da vidra��a fechada, crispava

no asfalto da rua as sucessivas po��as de ��gua.

E Glorinha, suspendendo para a nuca a gola do

m a n t o , querendo proteger-se do frio que a arrepiava:

��� Tenho de ficar b o a depressa, Dr. Pires. Minha fi-

lha e meu marido precisam muito de mim.

E o Dr. Pires, p o n d o a sua m �� o de veias encordoa-

das sobre a m �� o de Glorinha:

��� O mais dif��cil era a sua vinda at�� aqui. Agora,

deixe o seu caso comigo. Vou examin��-la segunda-feira,

com um de meus assistentes, para orientar seu tratamen-

t o . T u d o vai dar certo. Agora, trate de olhar a vida �� sua

volta. J�� conhecia o Rio? Olhe t u d o por alto. Depois de

curada, h�� de ver t u d o isto com outros olhos. Na minha

idade, o louvor �� apenas o louvor ��� n��o �� mais galan-

teio. N �� o se importa se eu disser que os seus olhos s��o lin-

dos? Fique sabendo que s��o. Uns olhos ��rabes, bem

abertos, e com muita luz, como eu s�� vi no Oriente. Pa-

rab��ns.

E repetiu-lhe, q u a n d o a deixou no apartamentozi-

n h o da cl��nica, depois de apertar-lhe a m �� o j u n t o ao pei-

t o :

113

��� Tudo vai dar certo.

��� Vai ��� concordou Glorinha, com esfor��o, sentin-

do os olhos ��midos e a garganta contra��da.

114

CAP��TULO IV

E m b o r a a m p l o , com u m a janela aberta sobre duas

velhas ��rvores e um peda��o de m u r o , o quarto lhe lem-

brou o camarote do navio, com a sua cama de metal, a

sua mesa-de-cabeceira, o seu arm��rio tamb��m de metal, a

porta que fechava o banheirinho muito limpo, e t u d o al-

v o , de u m a brancura excessiva, somente quebrada pelo

quadro que pendia da parede, �� direita da cama, com

dois meninos rosados, �� b o r d a de um tanque, brincando

com um barquinho de papel.

A enfermeira, que viera traz��-la at�� ali, tinha-lhe

sussurrado, com u m a express��o contente:

��� Dr. Pires recomendou muito a senhora. Que nada

lhe faltasse. At�� um radiozinho a senhora vai ter aqui, na

mesa-de-cabeceira. Mas s�� pode ouvir baixinho. Bem

baixinho. E olhe que o Dr. Pires �� muito severo. Doente,

p a r a ele, �� doente m e s m o . N a d a de concess��es. Com a se-

n h o r a , ele est�� sendo diferente. Parab��ns.

Glorinha esperou que a enfermeira a deixasse s�� pa-

ra trocar de r o u p a . S�� havia tirado o chap��u e as luvas,

que acomodara sobre a colcha do leito. E assim que a ou-

tra lhe mostrou o banheirinho, com o espelho grande so-

bre a pia, a prateleira com a garrafa de ��gua filtrada, os

dois copos, os frascos para a toalete, o boxe p a r a o ba-

n h o , as duas toalhas de felpo, tornou a passar ao q u a r t o ,

e preveniu:

��� Volto mais tarde, para tomar a sua temperatura e

ver se a senhora precisa de mais alguma coisa. Trago

tamb��m o r��dio.

115

Glorinha atalhou:

��� N �� o �� preciso. S�� vou passar aqui dois dias: hoje

e a m a n h �� . Na segunda-feira, depois dos exames, devo ir

p a r a Friburgo. Foi o que me disse o Dr. Pires. Eu gosto

mais de ler do que de ouvir m��sica de r��dio. Obrigada.

N �� o se incomode.

Entre a cama e a porta, a enfermeira parou, tornan-

do a voltar-se para Glorinha:

��� Meu nome �� Cam��lia. Mas s�� me chamam pelo

apelido: Mem��. Se precisar de mim, a qualquer hora do

dia ou da noite, aperte essa campainha, a�� j u n t o da cama,

�� sua direita, duas vezes. Eu venho logo.

E a imagem que Glorinha guardou da Mem��, assim

que esta se foi, se resumia nos seus olhos pulados, nos

seus grossos bra��os nus, e nas suas n��degas soltas por

baixo da saia, grandes, moles, como se houvessem dis-

pensado a calcinha ��ntima. Muito simp��tica na sua sim-

plicidade tosca. E querendo por for��a abrir-lhe a mala, a

pretexto de que a Glorinha, como doente, n��o devia fazer

grandes esfor��os. P a r a isso, ela, Mem��, estava ali. �� ho-

ra em que precisasse de u m a ajuda, era s�� chamar.

Por alguns minutos, Glorinha se deixou ficar senta-

da na cama, com os p��s sobre o tapete, a pensar nas vol-

tas que d�� o m u n d o . Q u a n d o poderia imaginar que viria

sozinha para o Rio? E para ficar num quartinho como

aquele, no meio de gente estranha? Sem querer, deu por

si a chorar. Depois, reagindo, enxugou os olhos com as

m �� o s , p��s a imagem de S��o Jos�� e o retrato da Maria

Em��lia na mesa-de-cabeceira. E s�� ent��o reconheceu que

fora indelicada para com o Daniel.

��� N �� o trouxe o seu retrato. Mas vou pedir que ele

me mande u m , na pr��xima carta. Ele vai ficar contente

por ver que lhe senti falta. Terei mesmo esquecido?

Com esfor��o, curvada sobre a mala de viagem,

ergueu-lhe a tampa, examinou por alto o v��o destinado

aos pequenos objetos, e tratou de tirar fora o bloco de

116

papel a��reo e os envelopes. Logo foi ver se estava na bol-

sa a caneta-tinteiro.

��� Est�� aqui ��� respirou, aliviada.

Assim que acabou de trocar o vestido de sair pelo

vestido caseiro, ouviu baterem na porta. E q u a n d o j�� ia

torcer a ma��aneta, Mem�� entrou, trazendo nas m��os

prestimosas a bandeja com seu almo��o. E recomendou-

lhe, assim que acomodou a bandeja na mesinha de metal,

a um canto do q u a r t o , sob a claridade da janela:

��� Trate de se alimentar bem. Al��m de comer a car-

ne, o arroz e os legumes, tome o copo de leite. N��s, aqui,

sentimos logo q u a n d o o doente quer mesmo ficar b o m :

q u a n d o deixa comida no p r a t o , n��o �� b o m sinal. A se-

n h o r a , pelo jeito, vai comer t u d o . C o m a . Se n �� o tiver

vontade, ajude a colherada com um pouco de leite, pen-

sando na sua filha, pensando no seu m a r i d o . Bom apeti-

te.

E apenas por perguntar, j�� do lado de fora, falando

pela fresta da porta:

��� N �� o quer mesmo que eu lhe traga o r��dio? Pelo

sim, pelo n �� o , vou trazer. �� ordem do Dr. Pires.

Com esfor��o, chegou ao fim do prato, mas ainda so-

brou um pouco da carne e dos legumes. Chegou �� metade

da ma����. Mas t o m o u t o d o o leite, e outra vez se deixou

ficar na b o r d a da cama, a olhar para o galho de ��rvore

que balou��ava defronte do vidro da janela. Em seguida,

levando a costa da m �� o �� testa e ao pesco��o, reconheceu

que a febr��cula de todas as tardes estava voltando, ap��s

um breve acesso de tosse, que por pouco a impelia a cha-

mar pela enfermeira.

Deitou-se ao comprido do leito, de cabe��a baixa. A

febre ia crescer depressa, para baixar aos poucos, deva-

garinho, ao fim de duas ou tr��s horas de repouso. Baixou

as p��lpebras, no come��o da sonol��ncia, ouvindo o ru��do

de carros na rua, mais adiante. A luz fosca, com a garoa

da tarde de inverno, tinha perdido a alegria do sol repen-

117

tino com que atravessara a cidade, entre o Cais do P o r t o

e a ruazinha quieta do fim de Botafogo.

E decidiu-se, em meio ao torpor que a imobilizava:

��� Assim que a febre diminuir, vou escrever para o

Daniel.

As cartas longas, que m a n d a r a p��r no Correio

A��reo, em cada porto da escala, no correr dos nove dias

de viagem infinita, tinham sido o seu melhor ref��gio,

sempre que o desalento a oprimia, com o medo da soli-

d �� o , da morte, da dist��ncia, do sil��ncio em seu redor.

Mas n��o transferia para o papel o seu desespero. Sabia

que era preciso dar ��nimo ao marido. E sempre que a pe-

na lhe recolhia u m a d��vida ou uma queixa, logo encon-

trava, ela pr��pria, a palavra de esperan��a de que necessi-

tava. Registrava epis��dios fortuitos, conversas, tipos, e

isso fazia com que o papel da escrita fosse para ela u m a

forma de vida movimentada e confiante.

Por volta do meio da tarde, despertou com o Dr. Pi-

res ao seu lado, tomando-lhe o pulso:

��� Eu n��o costumo vir aqui aos s��bados. Vim, hoje,

por sua causa. Vejo que j�� est�� instalada. H�� sempre aqui

um m��dico de plant��o. Nos casos mais urgentes, esse

m��dico se comunica comigo. No caso da senhora, dispen-

sei o plant��o do m��dico, que tem um pequeno assunto

pessoal a resolver. Mas a enfermeira continuar�� aqui, pa-

ra me chamar imediatamente, se houver necessidade.

N��o vai haver, estou certo. Mas n��o foi por isso que vol-

tei aqui. Voltei aqui para ter o prazer de rever esses lindos

olhos. J�� os revi. Agora, pode tornar a fech��-los, e conti-

nuar o seu descanso.

Pela fresta das p��lpebras, ela o viu afastar-se sem

ruido e sem ru��do abrir e fechar a porta. Depois, j�� quase

imersa no sono, ouviu-lhe os passos no ladrilho do corre-

dor.

118

CAPITULO V

A dor constante por tr��s do joelho direito, conse-

q��ente ao passo distra��do ao descer o batente de minha

p o r t a , e que me fez andar de bengala, por v��rios dias,

sem melhoras sens��veis, acabou por me levar, na semana

seguinte, ao consult��rio do Dr. Neto Guterres, pelo cair

da tarde.

Ele me tinha dito, q u a n d o lhe telefonei:

��� Vem no fim da consulta.

E ao fim da consulta, q u a n d o me anunciei, foi o Dr.

Neto Guterres que veio ter comigo, na saleta de espera:

��� Aguarda um m o m e n t o , que j�� te atendo. Tens

pressa? �� t i m o . Ao menos descanso um pouco na conver-

sa contigo. Estou acabando de atender o ��ltimo cliente.

Nesse m o m e n t o , o caixeiro da Farm��cia S��o Vicente

de P a u l o , ali ao l a d o , no mesmo edif��cio do consult��rio,

entregou-lhe u m a carta a��rea:

��� Chegou de tarde, no meio da consulta.

E o Dr. Guterres, olhando-a contra a luz:

��� �� do Rio ��� concluiu, dirigindo-se a mim. ��� �� do

m��dico a quem recomendei a mulher do Daniel.

Novamente a p o r t a do consult��rio abriu e fechou, e

eu fiquei n u m a das poltronas da saleta, com u m a revista,

esperando a vez de dar jeito no meu joelho.

E m b o r a houvesse aberto a revista, com a inten����o

de distrair-me na sua leitura, esqueci-me dela, assim

aberta, enquanto lembrava a cena da m a n h �� , na Bibliote-

ca P��blica, q u a n d o o Daniel ali apareceu, �� minha pro-

119

cura. Foi dar comigo ao fundo do sal��o, quase �� cabecei-

ra da mesa, ��s voltas com um livro de Nina Rodrigues.

��� Noticias frescas da Glorinha, chegadas h�� pouco

pelo C o r r e i o A �� r e o . N �� o p o d i a m ser m e l h o r e s ���

sussurrou-me o Daniel, j�� com a carta na m �� o .

De t ��o feliz, parecia resplandecente. E ele pr��prio,

no mesmo tom de sussurro, com a carta aberta em cima

da mesa, foi resumindo o seu conte��do, ao mesmo tempo

em que corria o dedo radiante pelas linhas manuscritas:

��� O m��dico do Rio, depois de examinar a Glorinha

meticulosamente, concluiu que ela, em seis meses, no

m��ximo oito, estar�� curada. S�� precisa ir p a r a o sa-

nat��rio, em Friburgo. Mas n��o a m a n d o u logo p a r a l��.

Preferiu que ela ficasse no Rio mais uns dias, para refa-

zer todos os exames. Simples provid��ncia de rotina. Isso

quer dizer que, muito antes do Natal, a Glorinha estar��

de volta.

E pestanejando, sem conseguir reprimir a e m o �� �� o :

��� Deus est�� sendo b o m para mim. Muito b o m .

Muito b o m m e s m o .

A p o r t a do consult��rio voltou a abrir, e uma senho-

ra gorda, de passo vagaroso, trazendo na m �� o u m a recei-

ta, dali saiu cautelosamente, amparando-se no o m b r o de

u m a menina.

O Dr. Neto Guterres, por tr��s das d u a s , fez-me sinal

p a r a entrar. Assim que entrei, pediu-me que esperasse

um m o m e n t o enquanto passava a vista pela carta do cole-

ga.

Sentado n u m a cadeira de bra��os, defronte de sua me-

sa, acompanhei as transforma����es da fisionomia do

m��dico, a princ��pio com um ar neutro, depois contraindo

as sobrancelhas. Logo a seguir, apoiou ele os antebra��os

no t a m p o da escrivaninha, como em busca de a m p a r o , e

foi correndo os olhos pela letrinha apertada que enchia a

pequena folha de papel de seda.

120

E com um suspiro, a b a n a n d o desoladamente a ca-

be��a consternada, enquanto repunha a carta no envelo-

pe:

��� M��s not��cias. N �� o podiam ser piores. A Glorinha

tem os dois pulm��es afetados. O Pires acha que ela tem

vida para q u a t r o a cinco meses. Coitado do Daniel. P o -

bre Glorinha. Fiquei t�� o desnorteado, que nem pude me

calar. Isto �� segredo. Segredo mesmo. N �� o dir��s nada

disto a ningu��m. Palavra de honra?

��� Palavra de h o n r a .

O contraste entre a carta da Glorinha, dirigida ao

Daniel, e a carta do Dr. Pires, dirigida ao Neto Guterres,

n �� o apenas me fez perplexo ��� umedeceu-me os olhos,

com as ilus��es de u m a e a conclus��o da outra, e o po-

bre do Daniel de permeio, sem que o Dr. Guterres e eu

nos anim��ssemos a dizer-lhe a verdade.

E o Dr. Guterres, passado um sil��ncio:

��� Um m��dico da cl��nica, assistente de Pires, o Dr.

Teixeira, resolveu t o m a r a Glorinha sob seus cuidados.

Esse Dr. Teixeira disse ao Pires que n��o sabe como ela re-

sistiu ��s tribula����es da longa viagem de navio. Ficou t��o

alarmado que faz quest��o de lev��-la pessoalmente a Fri-

burgo, no trem que sai do Rio semana que vem.

Voltou a suspirar, recolhendo a carta �� gaveta lateral

da secret��ria, ainda a b a n a n d o a cabe��a. E levando-me

pelo bra��o �� sala cont��gua, p a r a examinar-me o joelho:

��� Se emo����o matasse, t o d o m��dico, como eu, mor-

ria do cora����o. S�� eu sei o que sofro q u a n d o n �� o posso

dar jeito na doen��a alheia. H�� dias em que perco o sono.

Sei que, hoje, vou custar a dormir, pensando neste caso

da Glorinha. E o pior �� que, a m a n h �� , q u a n d o o Daniel

tornar a me aparecer, para saber se o Pires j�� me escre-

veu, vou lhe dizer que sim. Que as not��cias s��o ��timas.

Mas que n �� o sei, nesta minha vida atrapalhada, onde dei-

xei o diabo da carta com essas boas not��cias.

E n q u a n t o me ajudava a deitar-me na estreita cama

de metal, voltou a contrair as sobrancelhas:

121

��� Eu n��o devia ter dito n a d a do que te disse. Mas h��

momentos em que as emo����es s��o fortes demais para que

fiquem trancadas em n��s, sem que aliviemos as nossas

ang��stias no o m b r o de um amigo como tu. ��s m o �� o , bem

mais mo��o do que eu. Mas tenho confian��a em ti. T e n h o .

E puxando-me a perna, no come��o do exame:

��� D��i? E assim? E assim? Andaste pulando algum

m u r o ?

E �� medida que me examinava, t o d o entregue ao seu

dever de m��dico, descontraiu as sobrancelhas. V��rias ve-

zes flexionou-me a perna, levantou-a, desceu-a, apertou-

me a r��tula. E por fim, puxando-me os p��s para fora da

cama:

��� U m a coisinha �� toa, que j�� passou. Encosta aque-

la bengala. N �� o precisas dela. E vai t r at an d o de exercitar

as pernas, que o Carnaval j�� est�� chegando.

E ao despedir-se de mim, �� porta da farm��cia:

��� Continuo a pensar na Glorinha. De cora����o aper-

t a d o . Pensando naquele rosto lindo, naqueles olhos in-

compar��veis. Pobre Daniel. P o b r e Glorinha.

122

QUINTA PARTE

Todo caminho que trilhamos pela pri-

meira vez �� muito mais longo do que o

mesmo caminho quando j�� o conhece-

mos.

THOMAS MANN,

A montanha m��gica

CAP��TULO I

A q u e l e homenzarr��o de cabelos de fogo, alto, es-

p a d a �� d o , sempre a fumar o seu cachimbo, ali ao seu la-

d o , ora lendo u m a revista, ora ��s voltas com um livro de

medicina, como indiferente �� corrida do trem nos trilhos

m o l h a d o s , na m a n h �� infinita e fosca, c o n t i n u a v a a

intimid��-la com o seu sil��ncio, dando-lhe a impress��o de

que estaria ali por dever de oficio.

At�� aquele m o m e n t o , s�� duas vezes ele lhe havia di-

rigido a palavra: u m a , no come��o da viagem, q u a n d o a

a c o m o d a r a do lado da janela, tendo o cuidado de descer

a vidra��a; outra, passados alguns momentos, q u a n d o le-

vara o cachimbo �� boca, j�� a seu lado, de pernas cruza-

das, com u m a revista sobre o joelho.

Na primeira ocasi��o, limitara-se a perguntar se ela

estava bem; na segunda, se o fumo do cachimbo n��o in-

comodava.

E Glorinha, com rapidez;

��� N �� o , de m o d o algum. Pode fumar �� vontade.

Meu marido tamb��m fuma cachimbo.

E ele, m o r d e n d o o cachimbo a um canto da boca:

��� Obrigado.

E m b o r a o Dr. Teixeira a intimidasse, assim fechado,

assim silencioso, Glorinha experimentava, com ele ao seu

lado, uma sensa����o calma de seguran��a, como se o seu

t a m a n h o e a sua for��a, ao longo de todo um dia de via-

gem, lhe transmitissem a tranq��ilidade de que necessitava

p a r a chegar ao sanat��rio sem qualquer contratempo.

125

Parecia-lhe mesmo que, ap��s os sucessivos exames a

que havia sido submetida no correr da semana, era o Dr.

Teixeira, mais que o Dr. Pires, quem acreditava na sua

cura.

F o r a ele que lhe dissera, ao fim do ��ltimo exame:

��� Vou precisar muito da colabora����o da senhora.

Com a sua colabora����o, tudo vai dar certo. Confie em

mim.

Mais tarde, j�� no apartamentinho da clinica, o Dr.

Pires viera v��-la, menos risonho que nos outros dias:

��� O Dr. Teixeira resolveu tomar conta de seu caso.

Parece um t a n t o brusco, mas �� um grande m��dico e um

grande cora����o. Vou entregar a senhora a ele, para que

fique em boas m �� o s . �� ele que vai lev��-la a Friburgo. Pa-

ra isso, resolveu antecipar de duas semanas a ida dele pa-

ra l��. O Dr. Teixeira �� meu genro, e �� quem dirige o sa-

nat��rio, com a minha filha, que tamb��m �� m��dica.

O tempo cerrado, de chuvinha constante, sem u m a

nesga de sol, bastaria, s�� por si, para deprimir Glorinha;

por��m ela, de luvas, muito bem agasalhada, com as pon-

tas do cachecol a lhe cairem para os seios, sentia-se bem

no seu canto, a despeito do ventinho ��mido que se insi-

nuava pela frincha das janelas, ao longo do carro fecha-

d o . T o d a a sua distra����o, ouvindo o chepe-chepe da loco-

motiva, dois carros adiante, era olhar o penacho de

fa��scas, em cada curva para a direita: o penacho subia,

no impulso da m��quina, e a chuvinha prontamente o des-

manchava, apagando as fa��scas.

Na v��spera, fizera a Mem�� p��r no Correio u m a nova

carta a��rea para o Daniel; agora, ali no comboio, tratava

de guardar na mem��ria os acidentes da viagem, para

cont��-los ao m a r i d o , na primeira carta que lhe mandaria

de Friburgo.

P o r volta das onze horas, j�� cansada de olhar a

n��voa que se esgar��ava na cabe��a e na encosta dos mon-

tes, escondendo casas, ��rvores, caminhos, quase cedia ��

sonol��ncia crescente, que lhe entrefechava as p��lpebras,

126

reduzindo ainda mais o m u n d o opaco que se fechava em

seu redor.

Nesse instante, o Dr. Teixeira voltou a lhe falar:

��� Acho b o m almo��armos agora. Neste m o m e n t o , o

restaurante est�� vazio, almo��a-se sem atropelo.

E Glorinha, concordando:

��� Estou ��s suas ordens.

Ele guardou o cachimbo no bolso da gabardina, re-

colheu a revista �� sua pasta de couro, e levantou-se,

abrindo espa��o para que ela lhe passasse �� frente:

��� Fa��a favor.

N �� o foi f��cil, na sucess��o de curvas do caminho, al-

can��ar o carro restaurante, ao fim do comboio: a cada

nova curva, a composi����o oscilava, atirando os dois para

um lado e para o u t r o , no corredor dos vag��es sucessivos.

Sol��cito, o Dr. Teixeira tratava de amparar a companhei-

ra; mas ele pr��prio, sujeito ��s mesmas oscila����es, tinha

tamb��m de amparar-se, n��o raro correndo o risco de

desequilibrar-se. E ntr e ta nt o, ao fim do terceiro vag��o, o

Dr. Teixeira a segurou pelo bra��o, evitando que ela ba-

tesse contra o vidro da janela, e da�� em diante a foi levan-

d o , at�� que a fez sentar-se �� primeira mesa do restauran-

te, querendo rir.

��� N �� o me diga que no M a r a n h �� o tamb��m �� assim.

E ela, querendo descontrair-se:

��� ��, doutor. Fiz uma viagem na S��o Lu��s���Teresina,

h�� dois anos, e posso-lhe dizer que o sacolejo �� o mesmo.

Ou pior.

Riram os dois, um em frente ao o u t r o , e n q u a n t o o

gar��om acorria, de card��pio em p u n h o , encarecendo o

p r a t o do dia.

Ele almo��ou com apetite, b a r r a n d o o p��o de muita

manteiga, sorvendo devagar o copo de chope, enquanto

ela se limitava ��s garfadas t��midas do talharim, beberi-

cando o guaran�� que ele lhe servira, depois de aquecer a

garrafinha na palma das m �� o s .

E como se o chope lhe destravasse a l��ngua:

127

��� Daqui a pouco vamos come��ar a subir pela cre-

malheira ��� preveniu o Dr. Teixeira, mais corado, a ras-

par o p r a t o com um peda��o de p �� o . ��� Antes que a noite

caia, estamos em Friburgo. N �� o se impressione com o sa-

nat��rio. N a d a mais �� do que u m a pens��o de pessoas que

tossem. Q u a n d o deixam de tossir, v��o embora.

Ela tossiu, protegendo a boca com o len��o, depois

recorreu ao g u a r d a n a p o , e justificou-se, assim que o

acesso lhe passou:

��� O senhor falou em tosse, e eu me lembrei da mi-

nha ��� reconheceu Glorinha, ainda com os olhos cheios

de ��gua. ��� Desculpe.

A subida lenta pela cremalheira, d a n d o por vezes a

impress��o de que a locomotiva ia parar, resfolegando

cansadamente no aclive ��ngreme, teria sido distra��da,

com os galhos da estrada batendo nos vidros das janelas,

a primeira nesga de c��u azul sobre as m o n t a n h a s e a fais-

ca����o do sol dentro do carro, se outro acesso de tosse n��o

houvesse atemorizado Glorinha, longo, quase invenc��vel,

dando-lhe a sensa����o de que n �� o era apenas a garganta

rebelde que a obrigava �� convuls��o repetida, com o len��o

diante da boca, os olhos molhados, a m �� o crispada, mas

u m a imposi����o de t o d o o seu corpo, que se debatia com a

crise irreprim��vel, e n q u a n t o o Dr. Teixeira, com o bra��o

esquerdo sobre as suas esp��duas, tentava dar-lhe o cal-

m a n t e , ap��s revolver a bolsa de rem��dios.

Depois que a crise passou, ele retraiu o bra��o, p��s-se

a enxugar-lhe o suor da testa e das t��mporas, calmo,

dando-lhe confian��a:

��� �� assim m e s m o . C o m o tempo e o t r a t a m e n t o , as

crises tender��o a espa��ar-se, at�� deixarem a senhora em

paz.

E foi no sorriso dele que ela se refugiou, com a ca-

be��a apoiada no recosto da poltrona, para tentar tirar da

lembran��a a sensa����o de pavor com que ficara a esperar

o gosto de sal na boca e a golfada de sangue.

128

Adiante, o sol abriu ainda mais, cintilando nas fo-

lhas molhadas. A m �� q u i n a aumentou a velocidade. E as

primeiras casas de Friburgo, agarradas ao flanco das

m o n t a n h a s , come��aram a aparecer, muito brancas, cer-

cadas pelo verde da m a t a .

129

CAP��TULO II

A g o r a , estava ali, n o pequeno quarto d o ��ltimo

pavimento, no anexo do sanat��rio.

A enfermeira morena, de rosto salpicado de sardas,

que viera inspecionar-lhe a r o u p a de cama, tinha-lhe di-

t o , depois de ver que t u d o estava em ordem:

��� Foi o pr��prio Dr. Teixeira quem determinou este

quarto p a r a a senhora. N �� o quis deix��-la no meio das ou-

tras doentes, n u m quarto a m p l o , de quatro lugares. Pre-

feriu este. N �� o podia ser melhor. A m a n h �� , q u a n d o o dia

come��ar, a senhora vai ver a beleza de paisagem que se

descortina daqui, com as m o n t a n h a s , a m a t a , u m a ca-

choeira, e o sil��ncio em redor.

Mostrou-lhe o banheiro, quase escondido por u m a

cortina, depois o guarda-roupa, a mesinha-de-cabeceira,

a estantezinha de metal, a escrivaninha, as duas campai-

nhas sobre o espelho superior da cama: u m a , p a r a cha-

mar o m��dico; outra, para chamar a enfermeira de plan-

t �� o .

E acentuou:

��� O importante �� a senhora saber que, isolada no

seu q u a r t o , com este sil��ncio p a r a o seu repouso, tem o

m��dico e a enfermeira ao alcance da sua m �� o .

C o m o havia chegado j�� noite entrada, quase que se

limitara a tomar contacto com o m u n d o limitado pelas

paredes de seus aposentos, al��m do caminho que a trou-

xera at�� ali, ao saltar da charrete, j�� dentro do sanat��rio:

a ruazinha de pedras salteadas, entre canteiros floridos,

130

depois o pavilh��o de brique, a escada de q u a t r o lances,

por fim o q u a r t o , ali no alto ��� a que n��o faltava a gravu-

ra na parede, com o alpinista a escalar a m o n t a n h a quase

��ngreme, �� beira de um lago muito azul.

E a enfermeira, j�� perto da sa��da:

��� Aqui, a senhora tem de se desligar do m u n d o l��

de fora. Deixe o m u n d o onde est�� e trate de si ��� leia,

descanse, passeie, tome sol, alimente-se bem.

Glorinha j�� estava impaciente p a r a que a outra fosse

embora. Queria sentar-se na borda da cama, curvando o

rosto sobre as m��os espalmadas, para ceder ao seu repen-

tino impulso de chorar sozinha, sabendo que, se morresse

ali, n��o teria sequer a m �� o segura e carinhosa do Daniel

p a r a ampar��-la.

Cedeu ao p r a n t o , e o choro a aliviou. P o r alguns

momentos, de p�� contra a vidra��a do janel��o, ajustou a

vista ��s trevas circundantes, e p��de distinguir pequenas

luzes espa��adas, aqui, al��m, mais longe; ao mesmo tem-

p o , o u v i a o r u �� d o q u a s e a p a g a d o d a c a c h o e i r a

misturando-se ao sibilo do vento nos renques de eucalip-

tos.

Do pequeno j a n t a r , que lhe tinha sido servido ali

mesmo, somente aceitara a sopa, e assim mesmo para

atenuar o frio que lhe endurecia a ponta dos dedos,

obrigando-a a encolher os ombros e a bater os dentes.

Fora a criada que t o m a r a a iniciativa de deixar sobre a

c �� m o d a , debaixo do g u a r d a n a p o , a ma���� e a p��ra da so-

bremesa, p a r a a eventualidade de sentir fome durante a

noite:

��� �� o que fazem quase todos os doentes.

Ainda no trem, j�� chegando a Friburgo, o Dr. Tei-

xeira a havia alertado p a r a a rea����o natural da emo����o

da viagem:

��� A febre aumenta, aumentam as crises de tosse.

Mas isso tudo �� normal e passa. Simples quest��o de adap-

t a �� �� o . N��o se impressione. �� assim mesmo.

131

Na verdade, o que estava sentindo, juntamente com

a fadiga de todo um dia na mesma cadeira, ouvindo o

chepe-chepe da locomotiva subindo a serra, era aquela

impress��o f��sica de abandono, que lhe advinha do isola-

mento em que se via, sem ningu��m com quem compartis-

se a sua ang��stia e a sua perplexidade.

A imagem de S��o Jos�� de Ribamar, ao centro da

mesinha-de-cabeceira, com o missal e o ter��ozinho de

prata, n��o supria a falta de uma pessoa amiga que lhe da-

ria a m��o nas horas aflitas. Aliviada pelo choro, conti-

nuou a olhar a noite atrav��s da vidra��a, e nisto se p��s a

acompanhar com a vista curiosa o pirilampo que acendia

e apagava a sua luzinha azul, do outro lado do vidro, at��

desaparecer por tr��s da latada de uma trepadeira.

Deitada, come��ou a rezar o seu ter��o, quando lhe

aflorou �� garganta o primeiro acesso de tosse. Com .es-

for��o, conseguiu reprimir a crise, mas ficou alguns minu-

tos arquejante, esperando que a sua respira����o se regula-

rizasse, enquanto dizia a si mesma, com a cabe��a alteada

no travesseiro:

��� N��o vai voltar, n��o vai voltar.

No sil��ncio, seu fino ouvido distinguiu outros aces-

sos, longe, perto, e isso a sobressaltou. Alguns, demora-

dos, pareciam tirar do leito o doente, obrigando-o a sa-

patear no ch��o do quarto, tossindo sempre, como se esti-

vessem a castig��-lo. E foi nesse instante que ela pr��pria

ergueu mais a cabe��a, sacudida por uma nova crise. Deu

por si sentada na beira da cama, com os p��s no tapete, a

m��o crispada diante da boca. Levantou-se, sempre tos-

sindo, meio curva, como a dobrar-se para o ch��o, en-

quanto a golfada de sangue lhe enchia a boca,

atordoando-a. Com a m��o direita, apoderou-se de uma

das campainhas, premiu-lhe o bot��o continuamente, ao

mesmo tempo em que a outra m��o amarfanhava o len��o

sobre a boca, no esfor��o para conter o sangue que salpi-

cava tudo �� sua volta. E aflita, debatendo-se:

132

��� P o r favor, um m��dico! ��� pedia, nos haustos da

convuls��o, sem ter quem lhe acudisse.

Mas j�� algu��m vinha subindo os lan��os da escada, de

dois em dois degraus, e logo a porta se escancarou, a um

repel��o en��rgico, d a n d o passagem ao Dr. Teixeira, em

chinelos, metido n u m r o u p �� o de b a n h o , e que passou o

bra��o sobre seus o m b r o s , como a proteg��-la:

��� Vai passar, vai passar ��� repetia.

Depois, deixando-a por um m o m e n t o , tirou da bolsa

de rem��dios um comprimido, e deu-lho na boca, aprovei-

tando o intervalo da crise, sem se importar com os salpi-

cos de sangue que lhe avermelhavam a m �� o e os punhos

do pijama.

��� Agora, t u d o vai passar. Tenha confian��a em

m i m .

E voltou a envolv��-la pelos o m b r o s , firmemente, do-

cemente, at�� que a tosse espa��ou, afrouxando o supl��cio,

e Glorinha apoiou as coxas na b o r d a do leito, com a m �� o

sobre os seios.

��� D e i t e , d e i t e ��� o r d e n o u ele, a j u d a n d o - a a

estender-se ao comprido do colch��o. ��� E fique quieta,

sem falar.

Puxou u m a cadeira para perto da cama, e prendeu a

m �� o de Glorinha na sua, d a n d o a impress��o de que iria

passar o resto da noite ao seu lado, para que nada mais

lhe acontecesse.

133

CAP��TULO III

Em meio �� m a d r u g a d a , quando Glorinha desper-

tou, o Dr. Teixeira ainda estava ali, na mesma cadeira de

vime. N �� o lhe segurava mais a m �� o nervosa, mas per-

manecia desperto, agora curvado sobre um jornal, com os

cotovelos apoiados nos bra��os da cadeira de vime. Entre-

cerrando rapidamente os olhos, p��de observ��-lo pela

fresta das p��lpebras, e viu que, espa��adamente, ele erguia

a vista em sua dire����o, vigiando-lhe o sono.

Foi s�� nesse instante que Glorinha se deu conta de

que, a despeito do casaquinho de malha com que se pro-

tegia contra o frio, estava praticamente nua, com a cami-

sola leve sobre a calcinha de seda. Na certa, durante a cri-

se, ele teria notado esse seu a b a n d o n o , no m o m e n t o em

que ela sapateava ao meio do q u a r t o , d om i n a da pelas

convuls��es do acesso. Por outro lado, tinha sido ele que a

ajudara a deitar-se ao comprido do colch��o. Ter-lhe-ia

visto os seios, no cavado e na folga da camisola?

E ela, sentindo-se corar:

��� Que vergonha, meu Deus!

E logo tratou de puxar mais para o pesco��o o cober-

tor de l��, ao mesmo tempo em que descia para baixo dos

joelhos a b a r r a da camisola, depois de constatar que esta

havia subido para o meio das coxas, impudicamente.

E alarmada:

��� Meu Deus, que ju��zo ele vai fazer de mim?

Nesse m o m e n t o , o Dr. Teixeira, ainda agasalhado

pelo r o u p �� o , consultava o rel��gio de pulso, depois de um

134

bocejo na costa da m �� o esquerda. De p��, olhou para fora

uns m o m e n t o s , sondando a noite estrelada e fria, quase

sem n��voas, por cima dos pr��dios do sanat��rio. J�� n��o se

viam vaga-lumes. Mas distinguiam-se as estrelas sobre as

m o n t a n h a s , com a nesga de lua tardia refletindo-se no

v��u de espumas da cachoeira.

Ap��s esticar os bra��os, ele se voltou para a cama, ta-

teou o cobertor �� procura do bra��o esquerdo de Glori-

n h a , p��s-se a tomar-lhe o pulso, olhando o ponteirinho

do rel��gio. Ao fim, com ar mais tranq��ilo, consertou o

len��ol, olhou a doente adormecida, apagou a luz da l��m-

pada que descia do teto, s�� deixando acesa a do abajur,

na mesinha-de-cabeceira, e foi saindo na ponta dos p��s,

sempre seguido por Glorinha, que ainda o olhava pela

frincha das p��lpebras, im��vel, pedindo a Deus que n��o a

deixasse tossir naquele instante.

Ao sair, ele se deteve um m o m e n t o no v��o da porta

entreaberta, olhando na dire����o da cama, para ver se

n a d a havia esquecido; por fim, cerrou mansamente a fo-

lha, sem ruido, e bateu de leve o trinco.

Nesse instante, Glorinha come��ou a ouvir-lhe os

passos na descida da escada, at�� que estes se perderam,

na dire����o distante do edificio central. Deixou-se ficar

im��vel, com as m��os cruzadas, tentanto pensar na Maria

Emilia e no Daniel, mas aos poucos voltou a inquietar-se

com a m�� figura que devia ter feito, no a b a n d o n o da ca-

misola de dormir, sozinha, com o Dr. Teixeira ali no

q u a r t o .

E suspirando, quase a rir:

��� N �� o sei como vou ter coragem de olhar para ele.

Ao mesmo t e m p o , crescia na sua consci��ncia o senti-

mento de gratid��o pelo cuidado dele, ali a seu lado, at��

aquele m o m e n t o , no desconforto de uma cadeira de vi-

me, atento �� eventualidade de u m a nova crise, a que

prontamente acudiria com o seu desvelo e a sua compe-

t��ncia. E a certeza de que ficaria realmente b o a , entregue

�� solicitude daquele homem de cabelos de fogo, calad��o,

135

meio brusco, f��-la olhar em volta, �� procura das manchas

de sangue que espalhara em seu redor, na hora do acesso.

Levantou um pouco a cabe��a, n��o querendo acredi-

tar: todos os salpicos vermelhos haviam desaparecido,

mesmo os do len��ol. O Dr. Teixeira teria c h a m a d o al-

gu��m p a r a ajud��-lo? Ou fora ele mesmo que procedera ��

limpeza? N��o tardou a reconhecer que tinha sido ele: l��

estava, na sali��ncia da janela, sobre o peitoril, a toalha

��mida de que se tinha servido. Limpara as manchas do

ch��o, do tapete, da cadeira, do len��ol, do cobertor, certa-

mente umedecendo a toalha, passando-a cautelosamente

em cada m a n c h a , para que ela, Glorinha, ao despertar,

n �� o encontrasse vest��gio da crise em que se debatera. A

toalha embolada, com o balde esquecido ao p�� da janela,

fez que Glorinha se comovesse, sabendo que t u d o aquilo

a ajudava a conhecer melhor o m��dico excepcional a que

havia sido entregue.

E reconheceu, j�� de p��, convicta:

��� Com ele, sei que fico b o a .

Passou ao banheiro, despiu-se, olhou por um mo-

mento a devasta����o da doen��a no seu corpo esguio, com

as clav��culas afundadas, os olhos encovados, os bra��os

mais delgados, e t o d a ela se emocionou, correndo as

m��os sobre os seios e os quadris, ante a carne rija que

ainda lhe restava, com um pouco de seu busto e de sua

cintura.

E sob a ��gua m o r n a do chuveiro:

��� Vou voltar a ter meu corpo. Vou. Daniel vai ficar

contente. E hei de ter for��as p a r a carregar minha filha.

Talvez ainda lhe possa dar o meu leite. Se o Dr. Teixeira

concordar.

Q u a n d o a criada, de touca branca e luvas, lhe trouxe

a bandeja do caf��, muito farta, com o cop��zio de leite

mungido, o pote de mel de abelha, j�� Glorinha tinha pos-

to o seu melhor vestido caseiro, com os cabelos p a r a tr��s,

um leve toque de ruge e b a t o m , os sapatos baixos, as

meias grossas.

136

Com esfor��o, t o m o u o caf�� e o leite, mastigou deva-

gar as torradas, vendo a luz crescer em volta do pavilh��o

do sanat��rio, com um c��u muito azul, a mancha verde

das m o n t a n h a s , e um brilho de metal nos cabelos soltos

da cachoeira. De vez em q u a n d o , o grito de um bem-te-

vi. L�� adiante, o canto de um sabi��-laranjeira. E o b a n d o

de andorinhas em revoada, por cima das ��rvores.

E foi ela que se levantou, para abrir a porta, q u a n d o

sentiu na escada os passos do Dr. Teixeira.

137

CAP��TULO IV

Debalde esperou por ele toda a manh��, ainda na

cama, reclinada sobre tr��s travesseiros superpostos, na

posi����o de repouso que a enfermeira lhe recomendara.

Ao seu lado, um livro e uma revista. E a paisagem da ja-

nela, com a cortina repuxada, para que o sol se alongasse

at�� a cama, alcan��ando-lhe o rosto e o busto.

Ouvia ainda a voz da enfermeira:

��� Se a luz a incomodar um pouco, mude de po-

si����o, mas n��o deixe de receb��-la. Faz parte de seu trata-

mento. Sobretudo nesta fase de adapta����o. Sol �� vida.

Por volta das dez horas, j�� o sol se alteara o bastante

para deixar de alcan��ar-lhe o leito. E como havia l�� fora

um resto de neblina, que se esgar��ava sobre o topo das

montanhas, encobrindo uma das quedas da cachoeira,

essa n��voa atenuava o fulgor da claridade, sem lhe doer

nas retinas.

Antes que a enfermeira sa��sse, perguntou-lhe:

��� O Dr. Teixeira vai voltar aqui, agora de manh��?

��� Penso que n��o. Como ele passou a madrugada

aqui, assistindo a senhora, p��s um aviso na porta do

quarto dele, prevenindo que s�� �� tarde atenderia os doen-

tes, a menos que houvesse algum caso de urg��ncia, como

foi o seu.

E conferindo as anota����es que acabara de tomar:

��� Seu pulso est�� bem, a temperatura j�� desceu, as

crises de tosse se espa��aram, n��o �� necess��ria a vinda

138

dele aqui, esta manh��. Se houver alguma necessidade ur-

gente, chame a mim, n��o a ele.

Novamente s��, Glorinha tentou iniciar ali a sua pri-

meira leitura, voltando ao meio do terceiro capitulo de

Maria Bonita, que come��ara a ler ainda a bordo. Mas,

como das outras vezes, n��o tardou a desviar a aten����o de

seu esp��rito, enquanto seus olhos iam percorrendo dis-

traidamente as linhas sucessivas, sem captar o sentido e a

concatena����o do texto impresso.

Logo que abriu o romance, fixou a aten����o na bor-

boleta azul que pousara do lado de fora da janela, desta-

cando o seu contorno escuro na claridade do vidro, e isso

lhe pareceu, por alguns instantes, um pequeno aviso, um

signo benfazejo. A despeito da crise durante a viagem e

da nova crise da madrugada, voltava a confiar na sua cu-

ra, ali no sanat��rio. Em seis meses, como pensava o Dr.

Pires? Talvez mais. Dez meses. Um ano. Um ano, sim.

Para consolidar a cura.

Com certeza, depois que melhorasse, sairia do quar-

to, andaria pelos arredores do sanat��rio, passearia at�� a

cidade, para desfazer a monotonia da reclus��o naquelas

quatro paredes, com um livro ou uma revista. Embora o

Daniel houvesse insistido com ela, para que trouxesse pe-

lo menos uma meia d��zia de romances, trouxera apenas

um, convencida de que n��o saberia concentrar-se em lei-

turas prolongadas. Bastar-lhe-iam as revistas da semana,

que faria comprar em Friburgo. Agora, dava raz��o ao

marido: devia ter trazido outros romances, para entreter

as longas horas vazias, ali na cama ou na cadeira pre-

gui��osa, olhando as mesmas montanhas, a mesma ca-

choeira, a mesma nesga de caminho, o mesmo renque de

eucaliptos perfilados �� entrada da mata.

Na antemanh��, de surpresa, sonhara com a filha,

como se estivesse a amament��-la. Chegara a sentir-lhe a

press��o dos l��bios no mamilo esquerdo, e despertara sor-

rindo, a tatear o colch��o e o bra��o, �� procura da Maria

Em��lia. Depois, ao ver que a sensa����o lhe viera da renda

139

da camisola ro��ando o bico do seio, passara uns minutos

desapontada, com o sentimento da vida desfeita, sentin-

do a falta da filha e do marido, longe de sua casa, longe

de sua terra.

Esse sentimento ainda mais se avivou, por volta das

dez e meia, q u a n d o um senhor de cabe��a grisalha, o rosto

retangular cortado de rugas, metido num d��lm�� caqui,

a p a r e c e u - l h e n a p o r t a d o q u a r t o , c o m a r t �� m i d o ,

dizendo-lhe:

��� Sou eu que entrego a correspond��ncia e recolho

as cartas para p��r no Correio. Se a senhora tiver algum

outro m a n d a d o , na cidade, n��o fa��a cerim��nia. Meu no-

me �� Augusto. Hoje, trago-lhe esta carta. Veio de longe.

De S��o Lu��s.

Ainda com o Augusto no q u a r t o , como a querer

alongar a conversa, Glorinha rompeu o lado do envelope

a��reo, para tirar fora a carta do Daniel, a c o m p a n h a d a de

pequenos recortes de jornal. E por mais de hora, interva-

lando as emo����es da leitura com o len��o a enxugar os

olhos turvos, leu, releu, voltou a ler, tanto a carta quanto

os recortes, quase a p o n t o de poder repetir, palavra por

palavra, t u d o quanto lhe contava o marido, neste trecho:

"A Maria Em��lia, q u a n d o me v��, j�� bate as pernas e as

m��ozinhas, come��ando a sorrir. E �� linda mesmo, j�� co-

me��ando a mostrar que saiu �� m��e, com a covinha que

tens no queixo e com as outras duas nas bochechas, que s��

aparecem q u a n d o ris. Agora, a novidade maior: a Maria

Em��lia j�� est�� novamente comigo. Arranjei u m a boa

a m a , muito fina, muito jeitosa, e que toma conta da crian-

��a, como se fosse m��e. Melhor n��o podia ser. T u a m��e,

a princ��pio, quis opor-se. Mas, como pouco p��ra em ca-

sa, quase n��o d�� assist��ncia �� neta. Com a Maria Em��lia

aqui, venho a casa de vez em q u a n d o , e posso olhar por

nossa filha."

C o m o seria a a m a da Maria Em��lia? Criaria a meni-

na como se fosse mesmo sua filha, caso ela, Glorinha, a

140

m��e verdadeira, tivesse de continuar por muito t e m p o ali

no sanat��rio?

E q u a n d o a c r i a d a lhe veio t r a z e r o a l m o �� o ,

perguntou-lhe:

��� Voc�� est�� aqui h�� muito tempo?

E com espanto:

��� Vinte e dois anos? Veio para c�� mocinha? Quer

dizer que conhece bem todos os doentes? E s��o muitos?

Cento e doze? E h�� doentes que est��o aqui h�� muito tem-

po?

E a outra, acabando de estender a toalha sobre a me-

sa redonda, ao p�� da janela:

��� Um deles eu j�� encontrei aqui q u a n d o cheguei: o

padre Melo. Mas h�� doentes com quinze anos de sa-

nat��rio. Dez. A maioria tem cinco. Mas h�� muitos que j��

v��m muito mal, e n��o resistem muito t e m p o . Outros se

a d a p t a m , e n��o querem sair. J�� conhece miss Kate? ��

u m a inglesa alta, ossuda. Teve alta, mas n��o quis sair.

Chegou aqui no mesmo ano em que cheguei. H�� tamb��m

os que n��o se a d a p t a m �� disciplina do sanat��rio. Prefe-

rem morrer l�� fora, j u n t o da fam��lia. Ningu��m contraria

a pr��pria natureza. Deus nos fez de um jeito, e �� desse

jeito que a gente tem de ser. N��o adianta querer m u d a r .

Cinco anos? Dez anos? Vinte e dois anos? E Glori-

nha, depois do almo��o, ficou largo tempo a olhar o cami-

n h o no sop�� da m o n t a n h a , vendo correr ali uma charrete,

enquanto dizia a si mesma, decididamente, convirtamen-

te, que n��o ficaria ali mais de um a n o . Um a n o , concor-

dava. Mais que isso, n �� o . Ainda que fosse para morrer

em S��o Lu��s. Diria isso mesmo ao Dr. Teixeira, na pri-

meira oportunidade.

Mas, pelo fim da tarde, q u a n d o ele ali apareceu, so-

bra��ando u m a pilha de romances, que p��s ao lado dela,

na mesinha-de-cabeceira, limitou-se a p e r g u n t a r - l h e ,

querendo rir:

��� E o senhor acha que eu vou ter tempo de ler tudo

isso, Dr. Teixeira?

141

E ele, sem hesitar:

��� Vai. E ainda vai ler os outros, que est��o na minha

estante, no escrit��rio. Leia sem pressa. S��o meus.

Em seguida, foi sentar-se na cadeira de vime, com os

p��s estirados para a frente, o cachimbo a um canto da bo-

ca. Leu u m a revista m��dica, depois um jornal do Rio.

Sem pressa. Meticulosamente. E foi ele que acendeu a

l��mpada de cabeceira, enquanto Glorinha permanecia

quieta, a olh��-lo de perfil, calma, segura de si, a admirar

a noite fria que se enfeitava de estrelas no ret��ngulo da

janela.

142

CAP��TULO V

Os tr��s dias que passou reclusa, quase sem falar,

deitada na cama, por expressa determina����o do m��dico,

tinham-lhe sido menos penosos do que a princ��pio imagi-

nara. Calada de natureza, n��o lhe foi dif��cil a mudez pre-

ventiva, com o intervalo dos breves di��logos indis-

pens��veis, �� hora em que lhe apareciam o Dr. Teixeira, a

enfermeira de plant��o, o velhote do Correio, ou a serven-

te gorda e pl��cida que limpava o quarto e lhe servia as re-

fei����es. Tamb��m acabou por se resignar �� imobilidade do

leito, ap��s tantos dias no beliche de b o r d o , sem qualquer

no����o exata da vida nova que aguardava por ela ao fim

da viagem.

Com o passar das horas, integrou-se no seu novo

m u n d o , ora �� espera do m��dico, ora �� espera da tarde ou

da noite, sens��vel ao canto dos p��ssaros, ao sibilo do ven-

t o , ou ao ru��do da tosse dos outros enfermos, e acabou

por comprazer-se na sua reclus��o de enferma, sobretudo

nas ocasi��es em que distinguia os passos firmes do Dr.

Teixeira nos degraus da escada.

No terceiro dia, j�� cansada de ler, apoiou no livro

u m a folha de papel de carta, e p��de escrever ao Daniel.

Carta breve, e conformada, em que lhe dizia: " N �� o te

preocupes comigo. A disciplina do sanat��rio �� como a

disciplina da escola: desde que nos ajustemos a ela, dei-

xamos de senti-la. Estou sendo tratada com muita aten-

����o e desvelo. Por minha parte, fa��o o que posso, obede-

cendo �� risca ao que me prescrevem, tal como te disse que

143

faria. Sinto saudades de ti e de nossa Maria Emilia. Mas

sei que terei mais adiante o resto da vida para estar ao teu

lado, dando-lhe a m �� o . N �� o te aflijas por minha causa.

Depois dos primeiros sustos, perfeitamente naturais na

fase de adapta����o, j�� vou seguindo o ritmo da vida nova,

sob a prote����o de S��o Jos��, aqui ao meu l a d o . "

E o Dr. Teixeira, ao fim da tarde, ao entrar no quar-

t o :

��� Ol��! J�� escrevendo a sua carta para o marido?

Muito bem. N��o vim atrapalhar?

Ela p��s de lado o papel e o l��pis:

��� J�� terminei.

De p�� j u n t o ao leito, ele lhe tateou o pulso, p��s-se a

cont��-lo com a ajuda do rel��gio, s��rio, de sobrancelhas

travadas, e sorrindo, ao dar com os olhos dela fixados no

seu rosto:

��� Normal.

P��s-lhe o term��metro sob a axila, ap��s descer o len-

��ol, at�� o seio direito e ficou a dividir a aten����o entre o

mostrador do rel��gio e a luz que se desfazia em tonalida-

des r��seas por tr��s do cabe��o da m o n t a n h a , sentindo que

ela o observava pela fresta das p��lpebras.

E olhando a coluna de merc��rio na claridade da ja-

nela:

��� Quase normal. A m a n h �� , pela m a n h �� , vamos dar

o seu primeiro passeio no sanat��rio. Isto �� a prova de que

tenho confian��a na sua melhora. Em geral, depois de

u m a crise como a senhora teve, os doentes ficam de re-

pouso por u m a semana. ��s vezes duas. No seu caso, bas-

t a r a m estes tr��s dias.

Voltou a sentar-se na cadeira de vime, p��s fumo no

cachimbo, acendeu-o, e deixou-se ficar a dois passos da

cama, de costas para a janela, como entretido na leitura

de seu jornal.

E de repente, sem m u d a r a dire����o dos olhos:

��� Novas noticias do marido e da filha? P o n h a sem-

pre na cabe��a que os dois v��o bem. N �� o se preocupe com

144

eles. Fa��a de conta que se desprendeu de t u d o . Tem lido?

Tive o cuidado de escolher os livros que lhe fazem bem.

Que a animam. Que a ajudam a viver.

Pela m a n h �� , q u a n d o a criada gorda veio arrumar-

lhe o q u a r t o , j�� encontrou Glorinha preparada para o

passeio, no vestido de l�� a b o t o a d o no pesco��o, mangas

compridas, saia abaixo dos joelhos, sapato raso, meias

de l��, um gorro tamb��m de l��, e o cachecol no pesco��o,

com uma das pontas a cair para o seio direito.

E p a r a n d o ao meio do q u a r t o , antes de ligar o aspi-

rador:

��� Muita gente j�� me perguntou se a senhora �� mes-

mo bonita como est��o dizendo. Eu confirmei. Igual �� se-

n h o r a , aqui no sanat��rio, nunca vi. Miss Kate, a inglesa

do 13, chegou a duvidar: " S �� eu vendo, C o r a . " Ai eu fiz

o Dr. Teixeira confirmar.

Cora era gorda, espa��osa, muito corada, sempre de

branco, a manga do uniforme �� altura dos cotovelos, in-

sens��vel ao frio que obrigava t o d a gente a encolher-se,

uns sapat��es de homem nos p��s espalhados, nariz grosso,

cabelos louros aparados ao p�� da orelha, e dois olhinhos

meigos, como que postos de prop��sito no rosto abruta-

lhado para atenuar-lhe a rudeza dos tra��os.

��� O que eu digo, sinto ��� acentuou.

Na noite da chegada ao sanat��rio, Glorinha tivera-

lhe m e d o , ao v��-la passar �� frente, levando-lhe a mala,

com o toque-toque dos sapat��es na escada. L�� no alto,

depois de torcer a chave na fechadura da porta, abrira-a

com o impulso da n��dega esquerda, j�� com a m �� o prepa-

rada p a r a acender a l��mpada no comutador da parede.

No entanto, ao sair, fixara os olhinhos no rosto de Glori-

n h a , e s b o �� a n d o o s o r r i s o , p a r a ao fim lhe d i z e r ,

animando-a:

��� Vai ficar boa. Eu, q u a n d o olho um doente, assim

que chega, sei quem vai ficar bom e quem n��o vai. Nunca

me engano. O Dr. Teixeira acha gra��a. E acaba d a n d o a

m �� o �� palmat��ria. A mocinha daqui da direita, coitadi-

145

n h a , est�� com os dias contados. Q u a n d o chegou no sa-

nat��rio, ainda estava cheia de corpo. Dei o meu palpite.

N �� o ia durar muito. Hoje �� pele e osso, em cima da ca-

ma, quase sem for��as para tossir. Com a senhora, o caso

m u d a de figura.

Agora, arrumando-lhe o q u a r t o , com o aspirador a

recolher a poeira dos m��veis e do ch��o, soltava a lingua,

como se acompanhasse com as palavras altas o ruido do

aparelho.

��� Isto aqui, pensando bem, �� um hotel de luxo.

N��o sei se j�� lhe disse que sou da ro��a. Sou. Criada perto

da lagoa, ouvindo de noite as r��s cantando. Q u a n d o che-

guei aqui, fiquei assustada. Eu ouvia os doentes tossindo,

no meio da noite, e me lembrava das r��s de minha terra.

Aqui. Ali. Mais adiante. E de repente o doente daqui a

emendar com o doente dali. At�� que eu me divertia. De-

pois, tive pena. Hoje, q u a n d o ou��o algu��m tossir, fico

logo de. cora����o apertado.

E desligando o aspirador:

��� A senhora caiu na m �� o do melhor m��dico daqui.

Melhor do que o sogro dele, o Dr. Pires, que tem fama

at�� na E u r o p a . �� o que estou lhe dizendo. Compe-

tent��ssimo. E modesto. Falou no santo, olhe ele a��.

E p��s-se �� escuta, enquanto os sapatos do Dr. Tei-

xeira galgavam os degraus, de dois em dois, escada aci-

m a .

A Cora foi abrir-lhe a porta:

��� J�� a mo��a est�� p r o n t a .

Glorinha, de p�� ao fundo do q u a r t o , tinha o ar dis-

pon��vel de quem aguarda a companhia. E ele, no batente

da entrada:

��� Podemos ir.

Ajudou-a a descer, com a m �� o leve tocando-lhe o

bra��o, devagar. L�� embaixo, hesitou um m o m e n t o , co-

mo a refletir se deveria dar-lhe o bra��o ou n �� o . Por fim,

decidindo-se, levou as m��os ��s costas, com a cabe��a um

146

pouco inclinada para a frente, e foi a n d a n d o pela alame-

da comprida que ia dar ao p��tio central.

Ela n��o guardaria a lembran��a exata dos doentes no

amplo p��tio ensolarado. Lembrava-se do pr��prio p��tio,

com as cadeiras de lona, uns doentes dormitando, outros

lagarteando ao sol, outros mais com os olhos protegidos

por uma pala verde, e uma pancada de vento repentina,

que arrastou as folhas ca��das e a obrigou a segurar a saia,

�� altura dos joelhos, antes que a rajada maluca a tufasse.

E n q u a n t o atravessava o p��tio em diagonal, sentiu o

sil��ncio �� sua volta, depois o ru��do dos coment��rios co-

chichados, e foi sair na outra alameda, que ia ter no ca-

minho da mata.

E o Dr. Teixeira, mostrando-lhe o banco de ferro

sob a renda de sol, enquanto tirava um livro do bolso da

bata:

��� Sente-se agora um pouco, para descansar o esfor-

��o da caminhada. Se quiser ler, aqui tem um bom livro de

piadas americanas. Serve para passar o t e m p o . Eu mes-

mo virei busc��-la daqui a uma hora.

Debalde Glorinha tentou fixar-se na leitura. De

olhos baixos, ainda via as fisionomias estranhas que dei-

xara no p��tio, umas de olhos encovados, outras reduzi-

das �� pele sobre osso, quase todas protegidas por chap��us

de palha ou de p a n o , as pernas espichadas, as m��os no

rega��o, no esfor��o para reter a vida que certamente lhes

fugia com o passar do t e m p o . N �� o saberia distinguir os

v��rios rostos, na primeira vis��o atabalhoada. Sabia que

alguns doentes lhe tinham acenado, outros lhe tinham

sorrido, outros mais tinham t o m a d o a iniciativa de

saud��-la, saudando tamb��m o Dr. Teixeira. Mas tudo

permanecia confuso na sua mem��ria. Via os rostos enco-

vados e as cadeiras de lona, u m a ao lado da outra, na

imensa faixa de sol.

Tentou interessar-se pelas coisas em seu redor, se-

guindo com a vista a lagartixa nervosa que rabeou sobre

as folhas ca��das do ch��o, �� sua frente, e ficou a bater a

147

cabecinha chata, mais adiante, na raiz nua de u m a amen-

doeira, como se tamb��m a observasse. Logo deixou de

v��-la, sem saber como havia desaparecido, enquanto sen-

tia crescer no seu espirito u m a sensa����o opressiva de me-

d o , que a levou a levantar-se, como �� procura do cami-

n h o de volta.

Nesse m o m e n t o , viu a Cora aproximar-se, cami-

n h a n d o em sua dire����o, com as bochechas aumentadas

pelo esfor��o em defender-se do sol, a m �� o em pala acima

dos olhos.

J�� perto, a outra subiu a voz para lhe dizer:

��� Dr. Teixeira me m a n d o u buscar a senhora.

E a dois passos, d a n d o �� fala um tom pesaroso:

��� Ele foi ver a sua vizinha, que est�� se a c a b a n d o .

A n d a n d o ao lado da Cora, na nesga de sombra da

alameda, Glorinha t o r n o u a dar por si atravessando o

p��tio, agora sem ningu��m, apenas com as cadeiras de lo-

na nos seus lugares. Do outro lado, apressou mais o pas-

so, em breve alcan��ou a outra alameda.

Ao p�� da escada, dispensou a companhia da Cora:

��� Eu subo s��. P o d e deixar.

No q u a r t o , estendeu-se ao comprido da cama, domi-

nada pelo terror, sabendo que, do outro lado da parede,

a morte estava a fazer o seu oficio. Com as m��os sob as

axilas, tentando aquec��-las, apertou os maxilares, antes

que come��assem a bater, e assim permaneceu alguns mi-

nutos, com os olhos aumentados, at�� que ouviu o rangi-

do da ma��aneta da porta. A fresta se alargou devagar, e

por ela passou o Dr. Teixeira, enxugando o suor da testa.

Compreendeu que estava t u d o a c a b a d o . Ap��s um sil��n-

cio, perguntou-lhe:

��� Que idade tinha ela?

��� Dezenove anos.

Glorinha deixou passar outro sil��ncio, enquanto o

Dr. Teixeira, ainda a torturar o len��o, sentou pesada-

mente na cadeira de vime, com o semblante devastado.

E ela, sem conseguir conter-se:

148

��� �� tamb��m a minha idade ��� suspirou.

Ele ergueu a cabe��a, m u d o u de fisionomia:

��� Seu caso �� diferente. Voc�� vai ficar b o a .

E como era a primeira vez que ele a tratava assim,

sem cham��-la de senhora, Glorinha imobilizou o olhar

por alguns instantes, voltada p a r a ele. Depois, conseguiu

dizer-lhe, sem desfit��-lo, como se fosse outro o motivo de

seu reconhecimento:

��� Obrigada, d o u t o r .

149

CAPITULO VI

O Dr. Teixeira lhe havia dito, �� noite, que, no dia

seguinte, pela m a n h �� , iniciaria o seu novo t r a t a m e n t o . E

ela, a principio ansiosa, acabara por tranq��ilizar-se,

q u a n d o ele lhe afirmou, ao despedir-se:

��� N �� o precisa preocupar-se. �� tudo muito simples,

na sala de cirurgia. Se eu n��o vier busc��-la, vir�� a enfer-

meira.

Felizmente, com o sedativo que o pr��prio Dr. Tei-

xeira lhe tinha d a d o , tivera u m a noite de sono profundo,

de que despertara ao fim da m a d r u g a d a com o acesso da

tosse.

Ainda na antemanh��, sem esperar pelo aviso da en-

fermeira da noite, que todos os dias vinha acord��-la, tra-

tou de preparar-se p a r a deixar o q u a r t o , assim que o Dr.

Teixeira ali chegasse.

A Cora, pouco antes das sete horas, ao trazer-lhe o

caf�� da m a n h �� , j�� a encontrou pronta, s�� faltando p��r o

sapato raso, que esperava por ela sobre o tapete, ao p�� da

cama.

E a p r o v a n d o , e n q u a n t o c o m p u n h a a mesa do desje-

j u m :

��� Muito bem. Estou gostando de ver a boa dispo-

si����o. H�� doentes que, para sair da cama, nos dias de

pneumot��rax, �� u m a verdadeira luta. Ficam com medo

da agulha, e retardam o mais que podem a ida p a r a a sala

de cirurgia. C o m a senhora, o caso �� diferente. Muito

bem. Assim �� que deve ser. N��o se assuste. �� apenas u m a

150

picada de agulha, com anestesia local. Mais nada. O res-

to �� com o Dr. Teixeira, que tem m �� o de seda.

Entretanto, ao ver-se s��, com a refei����o m o d e r a d a

sobre a toalha branca, �� sua frente, voltou-lhe de repente

a ansiedade da v��spera. Logo sentiu as m��os frias, como

se a febre da tarde estivesse a antecipar-se. Tratou de rea-

gir. De que adiantava angustiar-se? O novo tratamento

iria acelerar-lhe a cura, e era isso que devia levar em con-

ta, naquele m o m e n t o .

E ao ver aparecer �� porta do quarto a enfermeira rui-

va que viera busc��-la, levantou-se da cadeira de vime com

rapidez, fechando o livro que tentava ler:

��� ��s suas ordens. Podemos ir.

Com um gesto da m �� o direita, que fez reluzir na luz

fosca a esmeralda de seu anel de m��dica, a outra a convi-

dou a sair, mostrando-lhe o v��o da porta, ao mesmo tem-

po em que lhe sorria:

��� Vai ser a primeira.

E Glorinha, antes de come��arem a descer a escada:

��� T a m b �� m �� m��dica?

E como lhe vira tamb��m a alian��a na m �� o esquerda,

no m o m e n t o em que atravessou a porta, pareceu-lhe de

repente que era ela a mulher do Dr. Teixeira. O doutor

n a d a lhe dissera nem t a m p o u c o a Cora, que sempre lhe

transmitia as novidades do sanat��rio. M a s , pelo jeito, de-

via ser. E enquanto desciam, observou-a de soslaio, com-

pletando a imagem que havia recolhido ainda no q u a r t o .

Pareceu-lhe bem-feita de corpo, a despeito dos seios altos

e volumosos, mas sem tra��os especiais de beleza no rosto

pintalgado de manchas pequeninas por baixo dos olhos,

�� altura dos p��mulos.

No come��o da alameda, n��o conseguiu conter-se.

Retardou de repente o passo, olhando na dire����o da com-

panheira:

��� Desculpe a pergunta. �� a Dra. J��lia?

��� Sou a Dra. Neli, assistente do Dr. Teixeira. A

Dra. J��lia est�� na Alemanha, h�� quase um a n o . Eu esta-

151

va de f��rias. Voltei ontem. O Dr. Teixeira me falou da se-

n h o r a . Diz ele que vai cur��-la.

E Glorinha, ouvindo o ruido dos passos na alameda:

��� Vai. Tenho confian��a nele.

Ao ver-se s��, na saleta cont��gua �� Sala de Cirurgia,

Glorinha t o r n o u a sentir as m��os geladas. E m b o r a a Dra.

Neli a convidasse a sentar-se, preferiu permanecer de p��,

voltada para a nesga de caminho que se abria em frente ��

janela fechada. O vidro embaciado pelo orvalho da ma-

drugada ia limpando com a luz do sol. S�� por um mo-

mento Glorinha reparou no ch��o ensaibrado, nas borbo-

letas que sa��am da m a t a , na claridade do m u r o baixo que

subia o m o r r o , delimitando a ��rea do sanat��rio: voltou a

imaginar a agulha comprida que lhe perfuraria as costas

p a r a alcan��ar o p u l m �� o , e contraiu os bra��os, como a

querer defender-se, enquanto ouvia um ru��do de passos

dentro da sala.

E a Dra. Neli, cerrando a porta:

��� A senhora vai p��r esta b a t a para facilitar a inter-

ven����o. P o d e deixar aqui mesmo o seu vestido, a sua

combina����o e o suti��. Quer que a ajude?

��� N �� o , n �� o . Obrigada.

E Glorinha, com rapidez, voltada para a parede,

desfez-se do vestido e das pe��as ��ntimas, p��s a b a t a bran-

ca, aberta nas costas. Depois, de frente p a r a a doutora:

��� P o r mim, ��s ordens.

E q u a n d o se viu ao comprido da cama de ferro, vol-

tada para baixo, com as m��os unidas por baixo da testa,

cerrou as p��lpebras enquanto se lembrava dos olhos do

Dr. Teixeira, entre o gorro que lhe descia para a testa e a

m��scara que lhe protegia o nariz, j�� de luvas, �� sua espe-

ra. Logo a doutora acudiu, alongou-lhe os bra��os ao

comprido do corpo, sentiu-lhe o tremor das m �� o s .

��� Fique calma. U m a dorzinha �� t o a .

O contacto do ��ter na epiderme, ao meio da costa, j��

com o Dr. Teixeira ao seu lado, f��-la cerrar mais os

olhos, concentrando o pensamento na filha e no Daniel.

152

Precisava ficar b o a . E t u d o aquilo era necess��rio para a

sua cura. De m��os crispadas, sentiu a agulha buscar-lhe a

carne, prendeu a respira����o. O suor lhe descia pelo rosto,

tinha as axilas molhadas, e s�� encheu devagar os pul-

m��es q u a n d o o Dr. Teixeira lhe disse, aliviado, j�� en-

xugando a agulha que a perfurara:

��� T u d o bem. Acabou.

De volta ao q u a r t o , assim que se viu s�� ao comprido

da cama, com a claridade do sol vivo espregui��ando-se

no espaldar da cadeira de balan��o, reconheceu que Deus

a havia ajudado. A despeito do que havia sentido, tinha-

se conservado quieta durante toda a interven����o. Fora

mais o susto que a picada. Antes assim.

Em seguida, entregue �� distra����o de seu pensamen-

t o , perguntou a si mesma por que raz��o a Dra. J��lia n��o

estava ao lado do m a r i d o , no lugar da Dra. Neli. A bolsa

de estudos na Alemanha justificaria u m a aus��ncia t ��o

prolongada? E conclu��a:

��� Eu, no lugar dela, j�� tinha voltado.

A Cora, que n a d a lhe escondia, j�� lhe teria falado

sobre a Dra. Neli, caso houvesse alguma coisa entre esta e

o Dr. Teixeira. N �� o , n��o havia. Se houvesse, ela n��o teria

sa��do de f��rias, preferindo permanecer no sanat��rio.

E q u a n d o a C o r a voltou ao q u a r t o , por volta do

meio-dia, trazendo-lhe o almo��o, esperou o m o m e n t o

adequado p a r a lhe perguntar se fazia muito tempo que a

d o u t o r a trabalhava no sanat��rio.

��� N �� o , n��o ��� respondeu a outra, acabando de

compor a mesa j u n t o �� claridade da janela.

E depois que ajudou Glorinha a descer da cama:

��� A Dra. Neli veio para c�� ao tempo do Dr. Pires.

Q u a n d o era o pr��prio Dr. Pires que dirigia o sanat��rio.

Foi colega da Dra. J��lia. Q u a n d o vim para c��, j�� ela esta-

va aqui. No come��o, eu n��o gostava dela. Quase n��o lhe

falava. Achava a Dra. Neli muito antip��tica. P o s u d a . Fa-

zendo tudo para mostrar o anel verde do dedo. Muitas

vezes, ao passar por ela, fingia n��o ter visto. At�� o dia em

153

que me contaram a hist��ria dela. U m a hist��ria muito bo-

nita. Dessas que a gente s�� v�� no cinema ou nos roman-

ces.

Fez u m a pausa, sacudiu no ar o guardanapo para en-

xotar u m a abelha. E defronte da mesa, com a m �� o es-

querda no quadril:

��� Imagine a senhora que a Dra. Neli j�� estava de

mala p r o n t a para ir trabalhar n u m a clinica dos Estados

Unidos, ganhando um dinheir��o, q u a n d o soube que o

seu primeiro n a m o r a d o tinha vindo para este sanat��rio,

s�� pele e osso, desenganado. Largou t u d o e veio para c��.

Aqui, t o m o u conta do doente. E tanto fez que o mo��o foi

melhorando, melhorando, e ficou b o m . C u r a d o , o mo��o

resolveu casar com ela, na capelinha do sanat��rio. Ca-

sou, e foram morar em Friburgo, n u m a bonita casa da-

quela pra��a onde passa o trem. Todas as m a n h �� s , �� ele

quem vem trazer a Dra. Neli, n u m a charrete. De tarde,

vem busc��-la. Parecem dois n a m o r a d o s . Sim, senhora.

Felic��ssimos. �� o que estou lhe dizendo. Dois pombinhos

a r r u l h a n d o .

154

SEXTA PARTE

A vida, em si mesma, �� curta,

mas o infort��nio a prolonga.

P U B L I U S C Y R U S



CAP��TULO I

luz macia de maio, as quaresmeiras pareciam

mais roxas sobre o verde do vale. E como j�� fazia quase

um m��s que n��o chovia, sem preju��zo do orvalho que

sempre molhava as ��rvores e o p��tio, �� primeira hora da

m a n h �� , o frio seco da esta����o, assim que o sol resplande-

cia, convidava ��s longas caminhadas a p��, m a t a adentro,

pelos muitos caminhos que por ela se entrela��avam.

Estendida desde cedo na sua cadeira de lona ao fun-

do do p��tio, Glorinha tinha preferido permanecer no sa-

nat��rio, no calor do sol suave, enquanto um grupo de

companheiros, animados por miss Kate, sa��a na dire����o

da m a t a , t o m a n d o o caminho ensaibrado, seguidos por

u m a charrete de capota armada, puxada por uma parelha

experiente, de guizo ao pesco��o, e que se destinava a re-

colher os excursionistas fatigados, no correr do passeio.

A Cora, sempre inclinada a dar raz��o aos doentes do

sanat��rio, aprovou-lhe a desist��ncia da excurs��o:

��� Eu faria o m e s m o . P a r a que se cansar? Cada coi-

sa tem seu t e m p o . N��o deixo de aprovar um bom passeio.

Pelo contr��rio. M a s , no seu caso, agora que est�� melho-

r a n d o , conv��m n��o desafiar a natureza. Devagar se vai

ao longe.

Na verdade, Glorinha ainda n��o se animava a sair

do ��mbito do sanat��rio. No espa��o compreendido pelo

p o r t �� o de entrada, o m u r o divis��rio do terreno e o co-

me��o da m a t a , na encosta de um dos morros circundan-

tes, sentia-se mais segura. No quarto ou no p��tio, na bi-

157

blioteca ou na sala de refei����es, teria quem de pronto lhe

acudisse, na eventualidade de uma crise.

Passada a excita����o dos primeiros dias, as aplica����es

do pneumot��rax deixavam-na sonolenta, ou por efeito

do calmante que lhe dava a Dra. Neli, ou por conseq����n-

cia da pr��pria interven����o, com o aparato da anestesia

local, na Sala de Cirurgia. A simples vista da agulha que

lhe perfuraria a parede tor��cica, para alcan��ar a cavidade

pleural afetada, tinha o dom de assust��-la. O certo �� que,

de volta ao q u a r t o , ficava entre a vig��lia e o sono, somen-

te aos poucos reapossando-se de si mesma. No dia se-

guinte, ainda sentia um pouco de moleza, que at�� o gosto

da leitura lhe tirava.

Nessas ocasi��es, a cadeira de lona, no p��tio alastra-

do de sol, era o seu ref��gio preferido. Ali sentia a vida do

sanat��rio em seu redor, sem precisar sair de seu canto.

Quando muito, bastava-lhe erguer as p��lpebras e levantar

um pouco a cabe��a, para ver atravessar o port��o a char-

rete que ia todas as manh��s a Friburgo, para recolher a

correspond��ncia no Correio ou trazer alguma encomenda

dos doentes no com��rcio local.

Por vezes, intrigava-se com as cadeiras que de repen-

te ficavam vazias, sem que o respectivo ocupante, enrola-

do no seu cachecol ou protegido por sua boina de l��, vol-

tasse a estender-se ali, com um livro, um jornal, uma re-

vista, um trabalho de agulha. E era a Cora quem lhe es-

clarecia, falando baixo, a olhar para os lados:

��� Deus chamou, D. Glorinha.

Entretanto, desde que ali chegara, nunca vira um

vel��rio na capela nem a sa��da de um enterro. Os mortos

desapareciam sem que ningu��m lhes deitasse os olhos.

Aos poucos, na sucess��o dos dias longos, p��de ver a

variedade de rea����es humanas em face da morte: se uns

criam nela, a ponto de recorrerem diariamente ao cape-

l��o do sanat��rio, para terem atualizado o perd��o de seus

pecados, outros a encaravam com sobranceria, como o

desembargador alto e narigudo, muito p��lido, olhos fun-

158

dos, e que n��o perdia ocasi��o para repetir a sua frase pre-

dileta:

��� Eu, no lugar de Deus, j�� teria condenado a Morte

�� pena m��xima. A mim ela n��o leva. N �� o , n��o leva.

Por isso mesmo recusava sempre os rem��dios para

dormir. E quase n��o dormia ��� passava apenas pelo so-

n o , e erguia a cabe��a assim que voltava a si, para conti-

nuar a vig��lia estranha que lhe assegurava a perman��ncia

neste m u n d o , �� revelia das golfadas de sangue, dos olhos

fundos, da palidez constante, e da magreza progressiva,

que lhe sugava a carne, j�� a mostrar-lhe a caveira espa��o-

sa por baixo das ma����s do rosto.

Parece que se distraiu, u m a m a n h �� , ali no p��tio,

duas cadeiras adiante da cadeira de Glorinha, q u a n d o

mergulhou no sono profundo, deixando cair o livro de

Direito que andava lendo: o vizinho assustado, que apa-

n h o u o livro do ch��o, gritou por socorro, assim que le-

vantou a cabe��a amedrontada e deu com o desembarga-

dor a fit��-lo com os olhos vidrados, a boca entreaberta, o

bra��o mole para fora da cadeira. Acudiu a Dra. Neli e

mais uma enfermeira, que se apressaram em retirar dali o

c o r p o , com a doutora a dizer, por tr��s da maca:

��� N �� o foi nada. Um simples desmaio.

Todos os doentes tinham ficado de p��, dominados

pelo mesmo p��nico. C a d a um deles tinha consigo a vaga

certeza de que, ali no p��tio, estariam preservados. Tanto

que ningu��m, at�� aquele m o m e n t o , havia morrido ali.

Agora, at�� ali a morte chegara, de p��blico, com t a n t o

sol, como se j�� n��o lhe bastasse exercer o seu of��cio na re-

clus��o dos quartos, de portas fechadas.

De noite, a Cora contou �� Glorinha, sem rodeios:

��� Morreu mesmo. Mortinho da silva. Na casa do

seu jeito. E j�� foi enterrado, agora �� noite, depois que os

doentes se recolheram.

P��s-se a rir, com a m �� o na boca:

159

��� Foi enterrado de beca, como ele pr��prio deixou

determinado no dia em que se internou. At�� parecia que

ia sair do caix��o p a r a o Tribunal.

Essa mesma C o r a , ouvindo tinirem os guizos do ca-

v a l i n h o d a c h a r r e t e , antes d o m e i o - d i a , a n u n c i o u ,

t a m b �� m com ar de riso divertido:

��� �� o pessoal do passeio que est�� voltando. Vamos

ver agora quantos ag��entaram a caminhada.

E p��s-se a rir mais a gosto, assim que a charrete des-

p o n t o u , na volta da estradinha ensaibrada, repleta de

doentes, quase sem lugar para o charreteiro, que vinha

sentado no varal, segurando o chicote e as r��deas, a

acompanhar o sacolejo do carro, como se dan��asse ao

som dos guizos.

Alguns minutos depois, s�� tr��s doentes apareceram

na estrada, caminhando devagar: miss Kate, o padre Me-

lo, e a bela Cotinha, que ainda n��o fizera onze anos e j��

era doente como os outros.

160

CAP��TULO II

C o n f i a n t e , ela subiu �� balan��a. Quarenta e nove

quilos, cinq��enta. Chegara quase a cinq��enta quilos e

meio. Parecia outra, mais disposta, b o m apetite, com o

gosto do b a n h o de sol no p��tio e dos pequenos passeios

nos arredores do sanat��rio. E era com ansiedade que es-

perava a m a n h �� do pneumot��rax, sabendo que, �� tarde,

o Dr. Teixeira voltaria ao seu q u a r t o , para sentar-se na

mesma cadeira de vime, sempre com um novo livro e o

mesmo cachimbo.

Ele vinha noutras tardes, todas as vezes que podia.

No dia do pneumot��rax, vinha sempre. Tomava-lhe o

pulso, media-lhe a temperatura, auscultava-a, depois sor-

ria, tamb��m confiante:

��� Vamos no b o m caminho.

��� Vamos ��� concordava Glorinha, d a n d o mais luz

aos olhos reconhecidos, enquanto voltava a compor-se,

sob o len��ol ou o cobertor.

Curioso: sentia-se mais disposta, com um pouco de

calor no rosto, q u a n d o as m��os dele a tocavam. M��os de

h o m e m . Mas leves, macias, quase femininas no t a t o , em

desacordo com a figura alta, um tanto desengon��ada,

que oprimia o vime da cadeira com seu peso, estalando-

lhe os bra��os.

Vez por o u t r a ele lhe perguntava, enquanto folheava

a revista, �� procura de um texto de seu interesse:

��� Noticias da filha? E do marido?

161

Ela lhe mostrava a nova carta, mas n��o lha entrega-

va p a r a ler, um tanto encabulada com o carinho derra-

m a d o do marido. E dizia, quase sempre:

��� T u d o bem. J�� n �� o estou fazendo muita falta.

Noutras ocasi��es, pormenorizava as not��cias da Ma-

ria Em��lia. J�� batia as m��ozinhas cor-de-rosa. Estava

gordinha e corada. Ficava em p�� na caminha, repetindo:

pa-p��, ma-m��. Gostava mais do pai que da av��. E Glori-

n h a acrescentou, uma tarde, j�� quase ao fim da visita:

��� Sabe a ��ltima de meu marido? Diz ele que j�� fez a

filha andar. Colocou-a a um canto, de p��, e foi para o

meio da sala; bateu palmas, chamando por ela, e ela veio,

n u m s�� impulso, risonha, at�� cair nos bra��os dele.

Um sil��ncio. E a seguir, entristecendo a voz:

��� Fiquei com inveja dele. Fiquei. Por que ia escon-

der? Mas n��o pense que estou querendo ir embora daqui.

S�� quero sair curada. Bem curada.

E como ele nada dissesse, voltando devagar a folha

do livro, depois de cruzar e descruzar as pernas:

��� J�� lhe disse que minha filha tem meus olhos?

Tem. E a mesma covinha aqui no meio do queixo. Estou

ansiosa para receber um retrato dela. S�� tenho, at�� hoje,

aquele do batizado, meio escuro, com o b a b a d o da touca

a esconder-lhe o rosto, s�� deixando ver o narizinho. Da-

niel me prometeu m a n d a r um retrato b o m , tirado no me-

lhor fot��grafo de S��o Lu��s.

Ele, passado um sil��ncio:

��� Tem seus olhos? Assim negros?

��� Acho que sim.

Outro sil��ncio, com o r a m o do p�� de ac��cia a ro��ar o

vidro da janela na vira����o da tarde. E o Dr. Teixeira,

levantando-se p a r a ir embora:

��� Minha mulher tamb��m tem olhos negros. Mas

n��o s��o como os seus. N �� o , n��o s��o. Os seus s��o mais

bonitos.

162

E como se esse ju��zo o perturbasse, apressou o cami-

nho entre a cadeira e a porta, desceu com rapidez os de-

graus da escada.

Nos dias subseq��entes, foi debalde que Glorinha o

esperou, sentada na cadeira de vime defronte da janela,

p a r a dar a ele, q u a n d o chegasse, a cadeira de balan��o,

que ela preferia. S�� o via de longe, atravessando o p��tio

p a r a entrar no gabinete m��dico, quase sempre acompa-

n h a d o pela Dra. Neli. E mais de u m a vez, �� noite,

sentindo-lhe a falta, chegou a desejar que as hemoptises

lhe voltassem, para ficar apertando a campainha, at�� que

ele entrasse assustado, galgando de dois em dois degraus

os quatro lances da escada. Por fim, caiu em si. N �� o , n��o

podia fazer isso. E por que pensara semelhante tolice? E

�� noite, sozinha, depois de tomar o copo de leite que a

C o r a lhe trazia, v o l t o u a escrever ao D a n i e l , con-

fessando-lhe a vontade de regressar a S��o Lu��s.

U m a t a r d e , e n t r e t a n t o , m u d o u d e p e n s a m e n t o .

Duas cadeiras de lona, na mesma orla da sua, tinham si-

do retiradas do p��tio, sem que ali voltassem os seus anti-

gos ocupantes: u m a senhora m u d a , que passava o mais

das horas a fazer um tapete, e um senhor alto, de grandes

olheiras, cabelos negros, sempre triste. E logo Glorinha

concluiu que ambos tinham seguido o destino de tantos

outros, de que n��o voltariam a ter not��cias. T a m b �� m pa-

ra ela, Glorinha, a morte seria uma solu����o. Provavel-

mente, n��o ficaria completamente boa. Q u a n d o muito,

um pouquinho melhor, at�� sobrevir o desfecho irre-

corr��vel. Se havia de ser assim, por que n��o morrer ago-

ra?

Mas n��o foi de prop��sito que deixou a janela entrea-

berta, �� noite, q u a n d o se recolheu. De tarde, com o ar

abafado, fizera um pouco de calor no sanat��rio, a ponto

de miss Kate vir p a r a o p��tio n u m vestido sem manga,

muito decotado e curto, trazendo consigo um belo leque

espanhol. E ao despertar, pela m a d r u g a d a , apenas agasa-

lhada sob o len��ol, deu com a janela totalmente aberta,

163

com a chuva e o frio dentro do q u a r t o . Saltou da cama,

fechou a vidra��a, recebendo no rosto e no peito u m a pan-

cada do temporal, al��m de ter pisado no ch��o molhado

ao p�� da janela.

Ao tornar a deitar-se, tiritava t a n t o , batendo os ma-

xilares, sob o cobertor de l��, que teve a impress��o de es-

tar com febre alta. Chamaria o m��dico? Chamaria a en-

fermeira? Pareceu-lhe que deveria esperar que amanhe-

cesse. E, q u a n d o o dia raiou, n��o teve ��nimo para

levantar-se. Com muito esfor��o, foi ao banheiro, b a n h o u

o rosto, ainda a tremer, sentindo agora o h��lito da febre.

E assim que Cora lhe trouxe o caf�� da m a n h �� , pediu-lhe,

ainda a tremer:

��� V�� dizer ao Dr. Teixeira que n��o estou me sentin-

d o bem.

Mas quem lhe apareceu, pouco depois, foi a Dra.

Neli. Entregou-lhe o pulso, arrependida de ter chamado

o doutor. Por que m a n d a r a a doutora em seu lugar? Fora

a ele que chamara! E quis mesmo retrair o corpo, q u a n d o

a Dra. Neli se p��s a baixar a coluna de merc��rio do ter-

m �� m e t r o :

��� J�� estou me sentindo melhor, Dra. Neli. N��o pre-

cisa p��r o term��metro.

��� Seu pulso est�� muito alterado. Preciso ver a tem-

peratura.

Contrafeita, Glorinha ergueu o bra��o. E se a douto-

ra n��o lhe comprimisse a axila, �� altura do o m b r o , t��-la-

ia mantido frouxa, para dificultar o calor do corpo no

t erm ��m et r o .

Um minuto, dois, tr��s, e Glorinha, sob o cobertor,

n��o conseguia conter o tremor que a sacudia, enquanto a

d o u t o r a , de p�� j u n t o �� cama, continuava a comprimir o

br a��o .

E olhando a coluna de merc��rio na luz da janela:

��� Tenho de prevenir o Dr. Teixeira. Ele est�� ocupa-

do com u m a doente, mas vir�� aqui, logo depois. A sua

164

temperatura subiu muito. Agora, vou lhe dar um compri-

m i d o , para baixar a febre.

A sonol��ncia em que mergulhou, ap��s tomar o com-

primido, n��o lhe deixou ver o Dr. Teixeira dentro do

q u a r t o , j�� m a n h �� alta, a tomar-lhe de novo o pulso. Nem

t a m p o u c o despertou q u a n d o ele voltou a p��r-lhe o ter-

m �� m e t r o , apreensivo.

Ao voltar a si, de p��lpebras pesadas, cedeu ao acesso

de tosse, erguendo as p��lpebras com esfor��o, e s�� ent��o

percebeu que o Dr. Teixeira se levantava da cadeira de vi-

m e , ao p�� da janela, p a r a aproximar-se da cama:

��� Melhor? ��� perguntou-lhe.

Ela quis responder que sim, mas a sonol��ncia de no-

vo a venceu, sem que lhe permitisse manter as p��lpebras

levantadas. Quase a cerr��-las de t o d o , sentiu o vulto do

d o u t o r ao seu lado, tateando-lhe o pulso. E q u a n d o p��de

ergu��-las, j�� o m��dico n �� o estava ali. Em seu lugar estava

u m a enfermeira da Sala de Cirurgia, alta, magra, de gor-

ro b r a n c o , olhos azuis, e que lhe sorria, caminhando ao

seu encontro. Custou um m o m e n t o a lembrar-lhe o no-

m e . Afinal, disse consigo, enquanto a olhava:

��� Irm�� Catarina. J�� voltou da viagem ao Rio.

E a irm�� Catarina, com a m �� o sobre a testa da Glori-

n h a :

��� Precisamos baixar esta febre.

Cinco dias d u r o u a nova luta, sempre com a tempe-

ratura alta e o torpor. Q u a n d o voltava a si, dava com o

Dr. Teixeira na cadeira de vime, lendo. Ou ent��o com a

irm�� Catarina, que preferia ficar de p��, a um canto da ja-

nela, olhando a luz esvair-se l�� fora, pelo fim da tarde.

N o s e x t o d i a , s e n t i u o d o u t o r a o seu l a d o ,

segurando-lhe a m �� o fria. E como ergueu as p��lpebras,

para olh��-lo no rosto, viu que ele tamb��m a olhava, con-

fiante, dizendo-lhe:

��� Est�� quase sem febre. Cheguei a me assustar.

E todas as tardes, com seu cachimbo, suas revistas e

seu livro, ela t o r n o u a v��-lo aparecer no v��o da porta, as-

165

sim que a tarde come��ava a declinar. E um j��bilo estra-

nho, e suave, que a ajudava a ganhar alento e for��as,

levava-a a sorrir para ele, mesmo nas ocasi��es em que o

doutor, j�� instalado na cadeira de vime, com o cachimbo

a um canto da boca, se entretinha na leitura do livro ou

da revista, como esquecido dela.

166

CAP��TULO III

Glorinha permaneceu no q u a r t o , em repouso, por

mais de um m��s corrido, sem ordem de descer ao p��tio

p a r a o b a n h o de sol. Tomava-o ali mesmo, ao redor das

nove horas, na cadeira de balan��o, com os p��s apoiados

n u m pufe, os olhos cerrados.

Essa hora quieta e longa, com o sol a lhe descer do

rosto para o busto, levava-a a retrair-se em si mesma, em

meio ��s imagens que lhe afloravam �� consci��ncia, at�� que

a luz crua, retraindo-se para perto da janela, descia de

seu rosto, e ela podia distrair-se com a vista da paisagem,

no recorte da larga vidra��a �� sua frente. E m b o r a t u d o

aquilo j�� lhe fosse familiar, descobrira grada����es novas

no roxo das quaresmeiras, na encosta da m o n t a n h a , na

luz irisada que se decompunha no v��u da cachoeira, na

branca flora����o dos ramos sobre o verde do p�� de laran-

j a . Parecia-lhe mesmo que j�� conhecia as borboletas, os

besouros e os colibris que por ali passavam, e tamb��m a

n��voa que por vezes se esgar��ava �� altura da laranjeira.

Foi durante esse b a n h o de sol matinal que leu a carta

em que o Daniel, na sua letra muito aberta por cima da

pauta, insistia em tranq��iliz��-la: ' ' M i n h a filha, n��o te

aflijas para voltar a S��o Luis. J�� me adaptei �� vida nova,

com minha rotina di��ria. Eu, que mal sabia fazer ��gua

quente, agora j�� sei preparar a mamadeira da Maria

Em��lia. E como a mamadeira j�� n��o lhe basta, estou a

aprender a fazer-lhe a comidinha de carne e legumes, a

come��ar na pr��xima semana. T u a m��e vaticinou que eu

167

s�� faria bem b a n a n a amassada. Enganou-se. E j�� deu a

m �� o �� palmat��ria. P o r t a n t o , n��o te inquietes por teu re-

gresso. Antes a��, te restabelecendo, do que aqui, sujeita a

uma reca��da. Aos s��bados e domingos, q u a n d o tenho mi-

nhas folgas, levo a Maria Em��lia no carrinho para o Lar-

go de Santo A n t �� n i o , e ali, sentado n u m banco, me dis-

traio com as minhas leituras enquanto ela d o r m e . "

A m��e, que nunca lhe escrevia, acabou por lhe man-

dar uma carta carinhosa, que chegou ao sanat��rio no dia

do anivers��rio de Glorinha, juntamente com o telegrama

do Daniel. D. Escol��stica n��o desmentia o genro: " C o m

surpresa para mim, saiu-nos u m a boa m��e. N��o rias n �� o .

�� verdade. Tem mais jeito para cuidar da filha do que eu

ou tu. E a Maria Em��lia �� doida pelo pai. Trata de ti, sem

pensares em precipitar teu regresso."

Na m a n h �� seguinte, outra carta do Daniel, com esta

surpresa: uns versos dele, para festejar-lhe os vinte anos.

Emocionara-se. Seriam mesmo do Daniel aqueles versos

rom��nticos? Sim, com toda certeza. Ele seria incapaz de

copiar versos alheios, dando-os como seus. E �� tarde,

q u a n d o o Dr. Teixeira lhe perguntou se tinha recebido

outras not��cias de S��o Lu��s, disse-lhe que sim, e que tudo

ia bem, mas n��o aludiu aos versos do m a r i d o , com receio

de que o doutor quisesse l��-los.

Ele, sem querer, deu-lhe a oportunidade da confi-

d��ncia:

��� E o professor? ��� perguntou-lhe.

Glorinha respondeu depressa, e passou a outro as-

sunto:

��� D a n d o aulas e cuidando da filha. Agora, me diga

u m a coisa: minha radiografia ficou pronta?

��� Acabo de v��-la. As manchas est��o diminuindo.

Parab��ns. Fiquei muito contente. E c o m o , depois de

a m a n h �� , sou eu que fa��o anos, foi o meu presente anteci-

p a d o . Melhor n��o podia ser.

Depois, vendo que ela o olhava, comovida, susten-

tou o olhar viril por alguns segundos, como se lhe fosse

168

dizer alguma coisa mais. E logo o desviou, muito verme-

lho, enquanto acrescentava, segurando os bra��os da ca-

deira:

��� Tive o u t r a alegria com a Cotinha. Est�� b o a . E a

cura foi r��pida. Q u a n d o chegou aqui, dava pena. Pensei

que n��o escapasse. Em menos de um a n o , desapareceram

as manchas de seus pulm��es. Hoje, q u a n d o lhe olhei a

chapa, pensei que me tinha enganado de radiografia. Era

mesmo a dela. Cheguei a sentir os olhos ��midos, depois

comecei a rir. E a Dra. Neli t a m b �� m . A Cotinha estuda

bal�� desde os seis anos. Aos dez come��ou a sentir as per-

nas inseguras. Magrinha. Os olhos crescidos, tossindo

muito. H�� dois meses que a tosse desapareceu. N �� o t��m a

conta as noites que passei �� sua cabeceira, revezando-me

com a irm�� Catarina. Telefonei para a m��e dela, em S��o

P a u l o , dando-lhe a b o a not��cia. A m a n h �� , j�� estar�� aqui

p a r a levar a filha. Vamos sentir falta dela.

E Glorinha, aproveitando o sil��ncio, enquanto seu

cora����o se acelerava:

��� Eu, q u a n d o tiver de ir embora daqui, vou sair

com muitas saudades ��� confessou, baixando as p��lpe-

bras. ��� Sobretudo do senhor, Dr. Teixeira. Se ficar mes-

mo b o a , sei que lhe devo a vida.

Nisto a p o r t a do q u a r t o abriu de repel��o, dando pas-

sagem �� Cotinha, que saltou para dentro e p a r o u , com o

rosto desfigurado, a respira����o ofegante. P a r a d a , olhou

para Glorinha, em seguida para o doutor, e um brilho de

��dio reluziu no seu olhar, t��o vivo, t��o agressivo, que

ambos se intimidaram.

E para Glorinha, aos gritos, n u m a voz de choro, de

dedo em riste, a p o n t a n d o para o Dr. Teixeira:

��� Foi voc�� que fez ele me m a n d a r embora! Voc��!

Voc�� �� m �� ! Voc��! Ele agora s�� fica no seu q u a r t o ! Ele ia

no meu, agora n��o vai mais! P o r q u e voc�� n��o deixa. Vo-

c�� n��o gosta de mim. E fez que ele me desse alta. P a r a eu

sair daqui. Odeio voc��! Odeio! Voc�� n��o vai ficar boa!

N �� o vai!

169

E o Dr. Teixeira, levantando-se, ao ver que ela se

desfazia em p r a n t o , sempre voltada para Glorinha:

��� Que tolice �� essa, Cotinha? Eu n��o mandei voc��

e m b o r a . Voc�� ficou b o a . Aqui s�� fica quem est�� doente.

Cotinha bateu com o p��, sempre exaltada:

��� Eu quero continuar doente. Eu q u e r o . Mas voc��

me curou para me m a n d a r embora. Foi.

E a p o n t a n d o Glorinha:

��� �� s�� dela que voc�� gosta. S��. De mais ningu��m.

T o d o m u n d o sabe disso, aqui no sanat��rio!

Antes que ele a segurasse, p a r a sacudi-la pelos om-

b r o s , mandando-lhe que se calasse, ela lhe deu as costas,

ainda c h o r a n d o , e bateu por tr��s de si a porta do q u a r t o ,

s�� se ouvindo c�� em cima o ruido de seus p��s descendo

depressa os degraus da escada, como se fosse atravessar a

alameda e o p��tio no mesmo impulso da fuga.

E n q u a n t o ela ainda corria, j�� o Dr. Teixeira tinha

j u n t a d o seu livro e sua revista, meio curvo, e vermelho,

sem olhar para Glorinha, que parecia querer sorrir do

embara��o em que a cena o deixara.

E ele, saindo, ainda sem olhar para ela:

��� Desculpe o que se passou.

E na m a n h �� seguinte m a n d o u dizer �� Glorinha, pela

irm�� Catarina, que ela j�� podia descer ao p��tio, para o

b a n h o de sol, e almo��ar e jantar no refeit��rio.

170

CAP��TULO IV

As quintas-feiras, q u a n d o a noite fechava, havia

retreta em S��o Lu��s, na Pra��a Benedito Leite. O antigo

largo do J o �� o do Vale ficava repleto de gente nova. Dava

gosto ver passar os grupos de mo��as e rapazes, que iam e

vinham pelo passeio, entre altas ��rvores esgalhadas, en-

q u a n t o a b a n d a de m��sica da Pol��cia Militar ou do 24?

Batalh��o de Ca��adores executava as m��sicas em m o d a ,

de mistura com hinos e can����es militares.

Nessas noites, em companhia do A m o r i m Parga ou

do Benedito Barros, ou ent��o s��, eu costumava ocupar

u m a das mesas do bar do Hotel Central, prolongamento

natural da pra��a, e por ali ficava, na fresca da noite, at��

que a b a n d a de m��sica se retirava, p o n d o fim �� retreta.

Se o poeta Sebasti��o Correia n��o aparecia, sobra��ando o

seu violino, j�� inspirado, ia a p�� p a r a casa, seguindo pela

Rua do Sol.

Ia s��, recitando p a r a mim velhos poemas que trazia

na mem��ria. E era t ��o grande a caminhada, vencendo a

l o m b a d a das ladeiras, que cheguei a repetir, n u m a dessas

noites, do princ��pio ao fim, sem pular um ��nico verso, A

morte de D. Jo��o, de Guerra Junqueiro, paix��o sonora

de minha adolesc��ncia.

Na primeira quinta-feira de agosto, estava eu �� mi-

nha mesa, na cal��ada do bar, retra��do para um v��o de

sombra, q u a n d o o Daniel me apareceu, com u m a fisiono-

mia exaltada:

171

��� Estava �� tua procura ��� disse-me ele. ��� Passei

pelo Largo do C a r m o , entrei no Caf�� do Chico, depois

no Excelsior, e ent��o me lembrei que devias estar aqui,

apreciando a retreta.

Eu me tinha cruzado com ele, na v��spera, na esquina

da Rua Formosa com a Rua Direita, perto do Liceu, e

perguntara-lhe pela Glorinha. E Daniel, preocupado:

��� H�� duas semanas que n �� o tenho not��cias dela.

A m a n h �� , se n��o receber u m a carta, vou passar um tele-

g r a m a p a r a o sanat��rio.

Agora, sorrindo, ele me dizia, com a carta na m �� o :

��� Not��cias da Glorinha. Chegadas hoje.

E depois de olhar em volta, �� procura de u m a cadei-

ra:

��� Aqui h�� muito barulho, com a b a n d a de m��sica,

o falat��rio de toda essa gente, e o ru��do dos copos e das

x��caras. N �� o preferes ir para o Excelsior? Quero te ler

uns trechos da carta de hoje. Muito bons. Vais gostar.

E q u a n d o me levantei, ele me perguntou, aproxi-

m a n d o o rosto e travando-me o bra��o:

��� J�� soubeste o que aconteceu com a P a n d o r a ?

Casou-se. A�� mesmo no bordel da Chico.

E, de bei��o inferior espichado, mostrava-me o so-

b r a d �� o da esquina, a cavaleiro da Rua do Giz.

E enquanto atravess��vamos a pra��a, acompanhados

pelo bater dos pratos, nos compassos de um novo dobra-

do militar:

��� Casou-se com um caixeiro viajante de S��o P a u l o .

Um homem fino. A l t o . E que se apaixonou por ela, da

noite para o dia. O melhor voc�� vai saber agora. A pedi-

do da P a n d o r a , a Chico foi �� minha casa convidar-me

p a r a padrinho do casamento. E eu fui. C o m muito gosto.

Fui professor da P a n d o r a . E ela estava linda. T o d a de

b r a n c o . Muito senhora. E o noivo todo de azul-marinho,

com u m a cam��lia na botoeira. Voc�� n��o soube de n a d a ?

Fizeram t u d o debaixo de muito segredo, a pedido do

172

juiz. Q u a n d o cheguei em casa, de volta do casamento,

encontrei esta carta da Glorinha.

T��nhamos chegado ao Largo do C a r m o . J�� o luar de

agosto derramava-se por cima das ��rvores, com a lua so-

bre os sobrados da Rua do Sol. Lembram-se daquele cha-

fariz, no p o n t o em que a pra��a se encontra com a Rua da

P a z , defronte do Convento? Foi ali que nos refugiamos,

protegidos pelas ��rvores que cercavam a fonte e ouvindo

o ru��do do repuxo que se desfazia sobre as ��guas do tan-

que. O lampi��o da esquina, por tr��s do banco de ferro,

dava luz bastante para a leitura da carta da Glorinha.

E o Daniel, j�� sentado, tirando-a do envelope:

��� Ouve este trecho, sobre o estado da Glorinha:

" T u d o vai bem, gra��as a Deus. Mas levamos um susto,

de que n��o quis dar not��cias a voc��, para n��o lhe assus-

tar. Tive uns dias de febre alta, n��o sei se da doen��a, se

de outra coisa, mas j�� me refiz. Ontem, o Dr. Teixeira

veio me dizer que minha ��ltima radiografia est�� ��tima.

As manchas v��o desaparecendo. Voltei a engordar. Es-

tou queimada de sol. Tenho lido muito. �� a minha dis-

tra����o, nas horas em que permane��o de repouso no quar-

t o , e �� noite, sempre que o sono demora vir. Mas isso n��o

quer dizer que v�� ter alta t��o cedo. Mesmo depois de cu-

rada, devo permanecer aqui por mais algum t e m p o , para

consolidar o tratamento, sem risco de u m a r e c a �� d a . "

Daniel ergueu os olhos para mim, deixando cair as

m��os para os joelhos, de sobrancelhas travadas:

��� Sabe voc�� que passei uns diasaflitos, �� noite, sem

poder dormir direito, precisamente na fase dessa febre al-

ta? �� verdade. Tive de recorrer ao Dr. Guterres, para que

me passasse um calmante, porque, mesmo durante o dia,

no correr das horas de aula, continuava a me sentir an-

gustiado. Estou vendo agora que s�� melhorei depois que

a Glorinha melhorou. Nem cheguei a tomar o calmante.

E t o r n a n d o a aproximar a carta:

��� A gente pensa que o sanat��rio �� u m a coisa, mas ��

outra, bem diferente. Ou��a l��: " E u , q u a n d o vim para c��,





1 7 3


s�� imaginava que isto aqui fosse uma esp��cie de pris��o,

onde muitos presos morriam aqui mesmo, enquanto ou-

tros conseguiam sair, depois de cumprida a pena. N �� o ,

n��o �� assim. Tem ar de internato para gente doente. Mas

h�� tamb��m gente curada que se acostuma de tal m o d o

com a vida calma e rotineira que termina n��o querendo

sair daqui. H�� u m a inglesa nessas condi����es. E tamb��m

um padre. O padre resolveu seu problema passando a ca-

pel��o do sanat��rio. A inglesa, como �� rica, passa uns

tempos aqui, outros l�� fora. L�� fora, a sua distra����o �� jo-

gar. Joga no Rio, em S��o P a u l o , na Argentina. A n o pas-

sado, foi mesmo �� Europa para jogar em Monte Carlo.

Perde sempre. Q u a n d o volta, traz os olhos fundos e pisa-

dos, e est�� mais magra, s�� pele e osso. Com u m a semana,

volta ao que era: queimada de sol, rosto cheio, e u m a dis-

posi����o p a r a excurs��es e festas c o m o n u n c a vi. Eu

tamb��m pensava que o doente, uma vez curado, sa��sse

daqui feliz. Nem sempre. Ontem vimos um caso que nos

cortou o cora����o. O de u m a menina. Tem onze anos,

quase doze. Muito viva. Veio para c�� em p��ssimo estado.

C o m o se j�� fosse morrer. Mal chegou, come��ou a melho-

rar, apesar de ter cavernas nos dois pulm��es. Esta sema-

na teve alta. Ficou desesperada. Ontem, quando a m��e

veio busc��-la, a menina se escondeu. S�� foi achada pelo

fim da tarde, metida n u m a cisterna, e chorando, a dizer

que n��o queria ir embora. Teve de ir quase �� for��a. Preci-

sou a m��e ralhar com ela. Acabou que todo m u n d o , aqui

no sanat��rio, tamb��m chorou. T o m a r a que comigo n��o

aconte��a a mesma c o i s a . "

E o Daniel, d o b r a n d o a carta, ap��s um sil��ncio:

��� Eu iria busc��-la. Iria. E levando comigo a Maria

Em��lia, para ajudar-me a trazer Glorinha de volta.

174

CAP��TULO V

Acarta lhe foi entregue no p��tio, �� hora do banho

de sol. Antes de abri-la, sentiu na polpa dos dedos a car-

tolina de uma fotografia e teve a intui����o de que era um

retrato da filha. Rasgou depressa o canto do envelope,

quase a confirmar o seu pressentimento, e deu com a Ma-

ria Emilia, na sua primeira fantasia de carnaval ��� com

as duas orelhinhas de gato de cada lado da testa e a cauda

de papel��o virada para cima, engra��adissima.

E emocionada, pestanejando:

��� Linda a minha filha!

Para ler a carta do Daniel, depois de olhar demora-

damente a fotografia, teve de enxugar as p��lpebras com a

costa das m��os, mais de uma vez. E conseguindo firmar a

vista, pareceu-lhe que o marido estava �� sua frente,

falando-lhe devagar, no cursivo regular das linhas do pa-

pel: "A�� tens a nossa Maria Em��lia. Sa�� com ela, no carro

de um colega do Liceu, �� hora do corso, no domingo de

Carnaval, e foi um sucesso. Nunca a vi t��o feliz, encanta-

da com as m��sicas, os confetes e as serpentinas. Batia

palmas, dan��ava, queria cantar. Pensei que ficasse com

medo dos mascarados. N��o, n��o ficou. Pelo contr��rio:

ria, sentada no meu colo, a mostrar-me o foli��o com o

bracinho estendido: ��� Ali, ali. O mascarado. ��� E todo

mundo a achar que nossa filha �� mesmo um amor. ��,

querida. Linda mesmo. Mais bonita em pessoa que em

fotografia. Tua m��e, por via das d��vidas, n��o a deixa

sair sem a figa de ouro que lhe deu no primeiro ani-

175

vers��rio. Tem medo de que lhe p o n h a m quebranto na ne-

ta, sem essa p r o t e �� �� o . "

Ao fim da carta, voltava a repetir-se: " R e z o sempre

por teu regresso, n��o esquecendo de dizer que s�� te quero

aqui q u a n d o o m��dico achar que est��s em condi����es de

voltar p a r a a tua vida normal. A pior fase j�� passou.

Consolida a tua cura. N �� o te preocupes comigo nem com

a Maria E m �� l i a . "

Com os olhos, alongando-os at�� o pavilh��o do Ser-

vi��o M��dico, depois rodando-os em seu redor, para alcan-

��ar t o d o o p��tio, Glorinha procurou mais u m a vez o Dr.

Teixeira. Tinha agora um pretexto para procur��-lo: iria

mostrar-lhe o retrato da filha.

J�� come��ava a impacientar-se com a dificuldade em

lhe falar. De in��cio, tinha sido o caso de frei Tom��sio,

que ali chegara de maca, trazido por u m a ambul��ncia,

com u m a r e c o m e n d a �� �� o especial d o P r e s i d e n t e d a

Rep��blica ao Dr. Pires; agora, a presen��a de um novo

m��dico, o Dr. Guedes, que parecia ter vindo para auxiliar

t a m b �� m o Dr. Teixeira. Este, durante t o d a a semana,

passara ��s voltas com o colega, ora atravessando o p��tio,

o r a visitando os doentes mais graves, ora entrando com

ele na Sala de Cirurgia ou no Gabinete M��dico. Nem se-

quer �� h o r a das refei����es se separavam. Comiam �� mes-

ma mesa, depois sa��am p a r a caminhar um pouco ao lon-

go de u m a das alamedas, por vezes em companhia da

Dra. Neli e da irm�� Catarina. E era um senhor gordo, bo-

chechudo e vermelho, de calva escondida pelos cabelos

das t��mporas, alongados por cima do cr��nio, sempre de

piteira e cigarro.

Dias seguidos, ao ver entrar a Cora com a bandeja

do caf��, por volta das sete e meia, Glorinha tivera vonta-

de de perguntar-lhe o que viera fazer ali um novo m��dico,

se havia decrescido, nos ��ltimos tr��s meses, o n��mero de

doentes, com as q u a t r o ��ltimas altas e mais a retirada de

tr��s cadeiras de lona, deixadas no p��tio por dois dias,

sem os respectivos ocupantes. Mas sofreara a curiosida-

176

de, mantendo a linha de discri����o que impusera a si mes-

ma desde a cena da Cotinha em seu q u a r t o .

Depois do caso, n��o lhe fora f��cil enfrentar o b a n h o

de sol no p��tio e o almo��o e jantar no refeit��rio, com tan-

ta gente em seu redor. Sentia-se vigiada e espionada. E

n �� o t a r d a r a em revoltar-se, ao ver que, pelo fim da tar-

de, o Dr. Teixeira n �� o mais lhe aparecera, com a sua re-

vista e o seu livro.

P a r a falar-lhe, fora v��-lo no Gabinete M��dico, dias

depois, queixando-se de que as costas lhe do��am, �� altura

dos quadris. E antes que lhe perguntasse por que deixara

de visit��-la, ele lhe disse, um t a n t o esquivo e grave, aper-

t a n d o u m a campanhia de chamada:

��� Deve ser coluna. A Dra. Neli vai tirar isso a lim-

p o .

E logo a Dra. Neli a levara para o consult��rio, na sa-

la ao lado, confirmando a suspeita do Dr. Teixeira:

��� �� coluna. Mas bastar�� mudar a sua posi����o na

cama. Mude de posi����o, deitando-se com a barriga para

cima, sem travesseiros, que a dor desaparece. T a m b �� m j��

tive isso.

Voltara desapontada para o q u a r t o . E s�� n��o odiara

a Cotinha, no impulso da rea����o vagarosa, porque tinha

testemunhado, dias antes, o seu desespero, q u a n d o a m��e

viera busc��-la. T a m b �� m chorara, como os outros doen-

tes. E como u m a rolinha cantava no beiral do pavilh��o,

na fresca do cair da tarde, seu canto chorado associara-se

�� tristeza do sanat��rio no m o m e n t o em que a charrete le-

vou a m��e e a filha, ao trote do cavalinho, ao longo da

alameda que ia dar na estrada de Friburgo.

No regresso do Gabinete M��dico, a mesma rolinha

desferia o seu canto triste, de mistura com o grito zombe-

teiro dos bem-te-vis. E foi debalde que Glorinha, de bor-

co na cama, tapou as orelhas, fugindo ao choro teimoso

da rolinha e j�� pensando em ir embora dali, mesmo sem

ter alta. Que ficava fazendo no sanat��rio, isolada, sem

falar com ningu��m? E por que o Dr. Teixeira lhe fugia?

177

S�� porque a estupidez alheia maliciava de suas visitas?

Ou porque uma menina hist��rica disparatara ali no quar-

to?

Levando consigo a fotografia da Maria Emilia, tor-

nou a encaminhar-se para o Gabinete M��dico, decidida a

lhe falar, a pretexto de mostrar-lhe o retrato da filha.

E a irm�� Catarina, abrindo-lhe a porta:

��� O Dr. Teixeira est�� na Sala de Cirurgia, com o

Dr. Guedes, fazendo um pneumot��rax.

Em vez de voltar ao p��tio, para a cadeira de lona,

encaminhou-se para o q u a r t o . E s�� a crise de choro, com

a chave passada na p o r t a , conseguiu dar-lhe algum

al��vio, sem de todo tirar-lhe do esp��rito a certeza de que o

doutor se recusava a receb��-la. E decidiu-se, q u a n d o con-

seguiu reagir:

��� Vou embora daqui. Vou. Mesmo sem ter alta.

E a Cora, por volta de meio-dia, q u a n d o lhe veio

trazer o almo��o, depois de estranhar-lhe a aus��ncia no re-

feit��rio:

��� O Dr. Teixeira lhe m a n d o u um recado. Que ele

vem aqui, no fim da tarde.

Deixou passar um sil��ncio, enquanto dispunha a

toalha na mesa redonda, ao p�� da janela, com o prato e o

talher. E depois, no m o m e n t o de acomodar a bandeja:

��� A senhora j�� sabe que o Dr. Teixeira vai nos dei-

xar? Vai. No lugar dele, fica o doutor gordo, que chegou

semana passada.

178

CAPITULO VI

D ois dias depois, sem que o Dr. Teixeira houvesse

aparecido no quarto da Glorinha pelo fim da tarde, a Co-

ra a preveniu, pouco antes de recolher a bandeja do caf��:

��� Infelizmente a senhora n��o vai gostar da not��cia

que eu vou lhe dar. Eu mesma fiquei chocada. Sem se

despedir de ningu��m, o doutor, hoje, cedinho, t o m o u o

trem para o Rio. Neste m o m e n t o , j�� deve estar longe.

Glorinha, que c o m p u n h a os cabelos defronte do es-

pelho, ficou com o bra��o p a r a d o , segurando o pente, a

olhar p a r a a C o r a , que tamb��m se imobilizara, j�� com a

bandeja nas m �� o s .

E foi ela, ao sair, quem voltou a falar:

��� Todos n��s vamos sentir a falta dele. Principal-

mente a senhora, que era a doente preferida.

Adiante, apoiando a p o r t a aberta com a n��dega, pa-

ra que n��o fechasse sob a press��o da mola, ainda acres-

centou:

��� E o pior �� que a gente n �� o sabe se ele volta. �� o

que estou dizendo. E s�� lhe digo isto porque a senhora,

mais dia, menos dia, ia saber.

Voltou, sempre segurando a bandeja. E defronte de

Glorinha, que mantinha a boca levemente entreaberta,

com os olhos suspensos, a estupefa����o a lhe tomar o ros-

to p��lido:

��� A mulher do Dr. Teixeira, acabado o est��gio nos

Estados Unidos e na E u r o p a , voltou ao Rio h�� dois me-

ses. Ela n �� o �� filha do Dr. Pires. Mas foi criada por ele.

179

Criada como filha. Querid��ssima. A Dra. J��lia, assim

que casou, veio para c��. Mas detesta Friburgo. E n��o

quer vir para c��. Prefere ficar no Rio, �� frente da cl��nica

do pai, que a m a n d o u para os Estados Unidos e a E u r o p a

com esse plano. E n q u a n t o a Dra. J��lia detesta Friburgo,

o Dr. Teixeira adora isto aqui. H�� dois meses que ela o

chama para o Rio, e ele se recusa a ir. Agora, parece que

o velho p��s o genro contra a parede: tem de voltar para

j u n t o da mulher. E ele foi. Foi batendo com as portas.

Furioso. Danado da vida. N �� o disse adeus nem �� irm��

Catarina e ao Dr. Guedes. Esse Dr. Guedes, com a con-

versa de vir para c�� como auxiliar do Dr. Teixeira, veio

mesmo foi para o lugar dele. Tanto que j�� est�� m a n d a n -

do no sanat��rio como se fosse o diretor. O rebuli��o est��

formado. P o r q u e a Dra. Neli, mais antiga, e tamb��m

competente, acha que o lugar tinha de ser dela.

Depois que a Cora saiu, Glorinha tentou acabar de

compor os cabelos, mas terminou por amarr��-los para

tr��s com u m a fita, deixando o pente de lado, como se

houvesse perdido, de repente, o gosto de se arrumar.

Deixou-se ficar uns momentos na borda da cama, pensa-

tiva, com as m��os entrela��adas sobre o joelho cruzado,

tentando encontrar o caminho a seguir na desorienta����o

que a perturbava.

Levantou-se, foi at�� a janela e deixou-se ficar ali,

olhando a m a n h �� de sol, sem reparar na luz ��mida que

b a n h a v a a m o n t a n h a e a m a t a e vinha ao seu encontro,

cobrindo-a dos p��s �� cabe��a. N��o via a laranjeira florida

nem o tom irisado da cachoeira, toda ela abismada no

seu desapontamento e na sua revolta. Que teria custado

ao Dr. Teixeira vir at�� ali para lhe dar u m a palavra? Mes-

mo �� noite, mesmo �� h o r a de sair? Talvez n��o voltasse a

v��-lo, e ele se fora em sil��ncio, como se fugisse dela.

E resoluta, pondo-se a bater com o p u n h o fechado

na palma da outra m �� o :

��� Aqui eu tamb��m n��o fico. N �� o , n��o fico. O sa-

nat��rio, para mim, passou a ser insuport��vel. J�� estou

180

quase b o a . O resto vir�� por si, com os cuidados que devo

ter.

E decidiu-se a passar um telegrama ao Daniel, para

lhe pedir que providenciasse, com urg��ncia, a sua passa-

gem de volta. Assim que o homem do Correio chegasse,

entregar-lhe-ia o telegrama p a r a S��o Luis. Deu as costas

�� janela, e p��s-se a arrumar sobre a cama ainda revolta as

pe��as de roupa que ia tirando do gavet��o do arm��rio,

u m a a u m a metodicamente.

J�� a gaveta estava vazia quando ouviu baterem na

porta. Ao abri-la, deu com o Dr. Guedes, metido na bata

branca que mais o engordava, um bonezinho de pala ver-

de na cabe��a, um sorriso b o m aumentando-lhe as boche-

chas. E ele, ainda no batente da entrada:

��� Permite-me que lhe fa��a u m a visita? Tenho um

recado a lhe dar, da parte do Dr. Teixeira. Ele esteve aqui

�� noite, mas a senhora dormia. Preferiu n��o acord��-la.

Pediu-me que viesse aqui, em nome dele, para lhe dizer

que ficar�� no Rio durante alguns dias, n��o sabendo ainda

se voltar�� a Friburgo. Talvez volte p a r a despedir-se de

amigos como a senhora. O Dr. Pires sente-se cansado, e

quer que ele e a Dra. J��lia assumam a dire����o da cl��nica

de l��, que tem crescido muito nos ��ltimos dois anos.

Um sil��ncio. E inclinando a cabe��a, mais af��vel:

��� O Dr. Teixeira me recomendou a senhora com o

maior empenho. Pediu-me que redobrasse de cuidados.

Que seu caso �� um dos mais belos da carreira dele como

m��dico. Mas que a senhora, embora melhor, ainda tem

de passar aqui pelo menos mais seis meses, ou um a n o .

Estou aqui, p o r t a n t o , n��o s�� p a r a transmitir o recado do

Dr. Teixeira, como p a r a lhe dizer, de minha parte, que

tem em mim um m��dico e um amigo. N a d a lhe vai faltar.

E assim que ele se foi, quase a encher o v��o da porta

com seus quadris espalhados, ela ainda continuou a dis-

por sobre a cama as roupas que ia tirando do gavet��o do

arm��rio, firme no seu prop��sito de voltar a S��o Lu��s na

semana seguinte.

181

CAP��TULO VII

Ao vir cham��-la para o b a n h o de sol, a m a n d o do

Dr. Guedes, a Cora ainda encontrou as roupas sobre a

cama, no m o m e n t o em que Glorinha retirava a mala de

couro de cima do arm��rio.

E atinando com o que se passava:

��� A senhora vai deixar o sanat��rio, logo depois do

Dr. Teixeira, como se fosse atr��s dele? N �� o fa��a isso, D.

Glorinha.

E Glorinha, embara��ada, ao ver que a outra acertara

em cheio:

��� Estou quase boa, Cora. H�� mais de dois anos que

estou aqui. J�� �� tempo de ir embora. Minha filha e meu

marido precisam de mim.

A Cora p��s-se a estalar as articula����es, com os de-

dos entrela��ados, olhando-a de frente:

��� Sei disso. Compreendo perfeitamente. Mas, se j��

passou mais de dois anos, que lhe custa esperar cinco ou

seis meses, para sair daqui com a alta do m��dico? Assim

de atropelo, depois da sa��da do Dr. Teixeira, at�� parece

que a senhora vai se encontrar com ele. Sei que n��o �� is-

so. Mas muita gente pode desconfiar. Desculpe eu me

meter onde n �� o fui chamada. A senhora tem idade de ser

minha filha.

E da�� a m o m e n t o s , enquanto a Glorinha lhe confes-

sava que dormira mal e acordara muito nervosa, p��s-se a

repor-lhe as pe��as de r o u p a no gavet��o do arm��rio, sem

que a outra protestasse.

182

Depois, fechando a gaveta:

��� N �� o quero que pensem mal da senhora. Vamos

descer. Venha comigo. O Dr. Teixeira tratava bem t o d o

m u n d o , aqui no sanat��rio, mas n��o escondia a prefe-

r��ncia pela senhora. Sei que n��o havia maldade na pre-

fer��ncia dele. E se os outros n��o pensarem assim?

No p��tio, ao sol, estirada na cadeira de lona, com os

��culos escuros protegendo-lhe os olhos, nunca as horas

da m a n h �� lhe pareceram t��o lentas quanto nesse dia. De-

balde tentava fixar-se na lembran��a da Maria Em��lia, na

sua fantasia de Carnaval: q u a n d o dava por si, sentia-se

entregue �� revolta pela partida brusca do m��dico. Que lhe

custava ter-lhe d a d o uma palavra? Ao menos para que

lhe agradecesse o desvelo por ela! Mas n �� o : fora embora

na ponta dos p��s, talvez para sempre, certamente para

n��o voltar ao sanat��rio, retido no Rio pela mulher e pelo

sogro.

E como se o interpelasse de repente:

��� E eu n��o significo nada? Se n��o significo, por

que vinha ao meu quarto todas as tardes? Eu n��o o cha-

mava. Vinha porque queria. Sem eu lhe pedir, m a n d o u

vir livros para mim das livrarias do Rio. E me deu uma

esp��tula, e um marcador. Todas as semanas, deixava co-

migo as revistas, antes que as pusesse na biblioteca do sa-

nat��rio, para os outros doentes. Chegou a me trazer uma

rosa, meio sem jeito, de olhos baixos, muito vermelho. E

de repente vai embora, sem me dizer at�� logo, passe bem?

�� direito? N �� o , n��o ��.

Mas a lembran��a de que ele estivera no seu q u a r t o , ��

n o i t e , p a r a d e s p e d i r - s e , e n �� o q u i s e r a a c o r d �� - l a ,

umedeceu-lhe os olhos, quase a sacudi-la n u m a crise de

p r a n t o , e ela reagiu, caindo em si:

��� Ele tem a mulher dele, eu tenho o meu marido,

n��o posso ter destes melindres. Foi embora, acabou: es-

tou aqui para me tratar.

E a consci��ncia de que, no ��ntimo de seu ser, um sen-

timento vivo, que a dominava e aturdia, protestava con-

183

tra a aus��ncia do m��dico, renovando-lhe os olhos ��mi-

dos, levou-a a contrair os maxilares, no esfor��o para ati-

rar de si a lembran��a obsessiva. V��rias vezes encheu o

peito, reprimindo a emo����o. E �� hora do almo��o, quan-

do os demais doentes j�� tinham deixado o p��tio para irem

ao quarto ou ��s enfermarias, obedeceu ao chamado da si-

neta e foi diretamente ao refeit��rio, sem o toque do pente

nos cabelos.

Durante a tarde, sozinha, aproveitando o tempo

b o m , de c��u esplendidamente azul, caminhara at�� a ma-

ta, no esfor��o para distrair-se. Sentara-se num dos ban-

cos do caminho, ouvindo a estralada das cigarras, e aca-

bou reconhecendo que teria de lutar muito, no intimo de

seu ser, para aceitar os dias infinitos que ainda teria dian-

te de si, longe da filha, longe do marido.

Na semana seguinte, ainda sofria. Debalde forcejava

para resignar-se, repetindo a rotina de todos os dias: in-

sistia em fixar a aten����o na leitura do romance que n��o

havia devolvido ao Dr. Teixeira, e ao cabo de alguns mi-

nutos tinha de tornar atr��s, para reler o que havia lido,

sem atinar direito com o fio da narrativa. Muitas e mui-

tas vezes, deixou-se ficar diante da janela, por tr��s da vi-

dra��a, tentando distrair-se com o v��o de u m a borboleta

ou com a n��voa que se desfazia defronte da cachoeira.

Afinal, q u a n d o voltou ao Servi��o M��dico, para que o Dr.

Guedes lhe fizesse os exames de rotina, aproveitou o fim

da consulta para perguntar ao doutor se tinha not��cias do

Dr. Teixeira.

E o m��dico, confrontando-lhe as chapas:

��� T e n h o . Vai bem.

E Glorinha, impaciente:

��� Ele n��o volta mesmo, doutor?

O Dr. Guedes alteou os o m b r o s , num gesto vago,

sem se voltar. E q u a n d o tornou a ficar de frente, trazen-

do as chapas:

��� As manchas continuam diminuindo. Bom sinal.

Sua natureza continua reagindo muito bem. Duas coisas

184

s��o a favor da senhora: a juventude e a disciplina. O res-

to vem por si, com a ajuda do t e m p o .

Ultimamente, nas cartas para o Daniel, insistia em

queixar-se da monotonia do sanat��rio. Dias antes, tinha-

lhe escrito: " N �� o imaginas como isto me entedia. De ma-

nh��, q u a n d o abro os olhos, j�� sei o que me espera, se

chove, se faz sol. Vou suportando tudo por amor de ti e

da Maria Emilia. E tr a ta nd o de consolar-me com os dra-

mas alheios. H�� aqui u m a mo��a alta, magra, quase trans-

parente, nem bonita nem feia, mas simp��tica, de olhos

felizes. Adoeceu um m��s antes de casar. Adiou o casa-

mento e veio para o sanat��rio, com a esperan��a de ficar

b o a dentro de dois ou tr��s meses. Est�� aqui h�� tr��s anos.

Est�� sempre a aumentar seu enxoval. A irm�� Catarina,

muito em segredo, contou-me o que se passa com ela. O

noivo j�� casou com outra, e a coitada n��o sabe. Nos ��l-

timos meses, s�� estranha que o noivo n��o lhe escreva. E

ela pr��pria o justifica: ��� Sempre foi de pouco escrever.

Basta que minha m��e, todas as semanas, me d�� noticias

dele. ��� N��o te esque��as de viver a tua vida. Sabes bem o

que isto quer dizer. Daqui a pouco a Maria Emilia est��

indo para o col��gio, sem saber ao certo como �� a m��e de-

la. A fotografia minha, que tanto me pedes, vou tir��-la

na primeira vez que for a Friburgo. Ainda n��o me animei

a ir por l �� . "

Sobreveio u m a longa semana de muita chuva e mui-

to frio, com o vento a zinir nas alamedas e a torcer os ga-

lhos das ��rvores. A cerra����o cont��nua escondia a monta-

n h a , a serra, a cachoeira, a m a t a , a estrada. Ouvia-se o

guizo do cavalinho da charrete, mas n��o se distinguia a

pr��pria charrete nem o cavalinho. E sempre a chuva e o

vento, com a cantoria dos sapos e das r��s para os lados

da cachoeira.

Nessas horas, j�� deitada, Glorinha ficava sem saber

o que faria de si mesma. Lia, cansava de ler. Alongava o

olhar para a vidra��a da janela, na abertura da cortina, e

assustava-se com os rel��mpagos, vendo a chuva escorrer

185

na luz repentina. Voltava �� revistinha das palavras cruza-

das, tentando decifrar as linhas mais dif��ceis, e logo tos-

sia, como se a tosse estivesse �� espreita do m o m e n t o em

que as p��lpebras lhe pesavam.

A Cora, mais de uma vez, veio fazer-lhe companhia.

Na v��spera, tinha estado ali. Nunca sentava. Q u a n d o

muito apoiava o corpo no caixilho da janela ou no arco

sobre a porta. Ao chegar, prevenia:

��� Hoje, estou de folga. Posso ficar um pouco com

a senhora. Visita de m��dico. S�� por uns minutos.

Era ela, nessas visitas, quem lhe avivava as lembran-

��as do Dr. Teixeira. Na ��ltima vez, abaixara um pouco a

voz, misteriosa:

��� T o d o m u n d o tem sentido a falta dele. O Dr. Gue-

des �� boa pessoa, trata a gente com muita considera����o,

mas n��o chega aos p��s do Dr. Teixeira. N �� o , n��o chega.

E suspirando, a espionar Glorinha, que se protegia

do frio nas dobras do cobertor espesso enquanto rodava

as contas do ter��o com as m��os agasalhadas:

��� Pelo jeito, a Dra. J��lia conseguiu segurar o mari-

d o . T o m a r a que d�� certo. Antes, n��o tinha d a d o . Era um

p a r a um lado, outro para o o u t r o , com o Dr. Pires a que-

rer juntar os dois, como se fosse Santo A n t �� n i o . Sabe

quantos dias j�� faz que o Dr. Teixeira foi para o Rio? Se

a senhora n��o contou, eu contei.

��� Dezenove.

��� Dezenove ��� confirmou a Cora, sorrindo. ��� Eu

pensava que s�� eu tinha contado. �� porque a senhora

gosta dele. Eu tamb��m gosto. Mas deve ser um gosto di-

ferente. Gosto de quem sabe que, com ele aqui, estou se-

gura. Com a senhora �� tamb��m assim? �� assim, e mais al-

guma coisa. N��o conhe��o o marido da senhora, que deve

ser uma ��tima pessoa. Mas a senhora �� que faria um bom

par com o Dr. Teixeira. N��o ria n �� o . Sei o que estou di-

zendo.

E Glorinha, entrecerrando as p��lpebras:

186

��� Fecha bem a cortina e vai te deitar. Meu sono est��

chegando. Obrigada pela visita. Boa noite.

��� Boa noite.

187

CAP��TULO VIII

D u r a n t e todo o tempo que j�� permanecera no sa-

nat��rio, vendo chegarem e sa��rem as esta����es, s�� aos do-

mingos tinha ido �� capela, para assistir �� missa que o pa-

dre Melo fazia quest��o de rezar, meio t o r t o , j�� deforma-

do pelo reumatismo, a m p a r a d o numa bengala.

O marido tinha-lhe dito, n u m a das ��ltimas cartas:

" Q u a n d o sentires abatimento e solid��o, procura a igreji-

n h a do sanat��rio. Nunca est�� s�� quem se volta para

D e u s . "

E era pelo caminho da capela que Glorinha ia agora,

vencendo a rampa ��mida de orvalho, depois de uma lon-

ga noite maldormida, em que repetira consigo, in��meras

vezes, de si para si, estas palavras do Daniel, na carta

chegada pelo meio da tarde: "A Maria Em��lia me assus-

tou. Apareceu com u m a tosse muito forte, com moleza e

febre, na volta do jardim da inf��ncia. Muito sonolenta,

s�� despertava para as crises de tosse. De noite, fui �� pro-

cura do Dr. Guterres. Tinha ido fazer um parto no Anil.

Corri para a casa do Dr. Murta, e o trouxe comigo. Che-

gamos na hora de u m a convuls��o, que foi debelada a

t e m p o . Tive de passar o resto da noite p o n d o compressas

de gelo na cabe��a de nossa filha, e com uma prova para

dar �� t u r m a do Liceu, na primeira hora da m a n h �� . Ao

fim da m a d r u g a d a , a febre estava mais baixa, mas a mo-

leza e a tosse persistiam. Felizmente, no quarto dia, pas-

sou a febre, a moleza diminuiu, s�� ficou mesmo a tosse,

que vou combatendo com as colheradas de xarope. N��o

188

chamei D. Escol��stica, p a r a me ajudar, porque n��o tem

saido de casa, com as suas costumeiras dores na coluna.

Ainda bem que a nova criada, a Juv��ncia, tem b o a vonta-

de para t u d o , e foi ela que me ajudou nas noites em claro.

Neste m o m e n t o , daqui de onde te escrevo, estou vendo a

Maria Emilia sentada na cama a brincar com a boneca

que lhe comprei na loja do Emilio Lisboa. J�� est�� quase

b o a . Se n��o fosse pela tosse, teria ido hoje �� escola."

Maria Emilia com tosse, sem querer parar? E Glori-

nha, com os olhos suspensos, sentiu um aperto no co-

ra����o, as m��os frias, a garganta fechada. Seria apenas

um resfriado forte? Ou coisa pior? E logo se p��s a rezar,

diante da imagem de S��o Jos��, pedindo-lhe que n��o dei-

xasse a filha ter a doen��a da m��e. De m a n h �� , vendo ao

espelho a mancha forte das olheiras no rosto tresnoitado,

lembrou-se de ir �� capela, para pedir a intercess��o de

Nossa Senhora do Perp��tuo Socorro, t��o suave e acolhe-

dora na simplicidade branca de seu altar, ao fundo da na-

ve. Falaria tamb��m ao Dr. Guedes? Ou �� Dra. Neli?

N �� o . E um e outro n��o compreenderiam a sua afli����o de

m��e. A h , a falta que lhe fazia, mais u m a vez, naquele

desterro, o Dr. Teixeira!

Ao fim da r a m p a , torceu a ma��aneta da p o r t a da ca-

pela, mas a porta n��o cedeu. Contornou a igrejinha,

lembrando-se de u m a outra porta, aos fundos, sobre a

sacristia. E logo a outra p o r t a se descerrou, dando-lhe

passagem. Antes de entrar, deu com um esquife de cedro,

entre as duas alas de bancos vazios, e toda ela estreme-

ceu, t o m a d a de m e d o . Quem seria o morto? Ou a morta?

Na certa, tinham posto o corpo ali, pela m a d r u g a d a , �� es-

pera do m o m e n t o em que os doentes estivessem recolhi-

dos aos quartos, na hora do repouso obrigat��rio, para

leva-lo a enterrar, discretamente, dissimuladamente, no

pequeno cemit��rio �� esquerda da m a t a , entre renques de

altos pinheiros. Pensou em retroceder, mas reagiu ��

emo����o, e foi ajoelhar-se no primeiro banco, �� sua direi-

189

ta. Rezou primeiro pelo m o r t o , depois pediu pela filha, e

j�� ao fim, antes de levantar-se:

��� Eu me sinto muito s��, minha Nossa Senhora.

Muito. Me ajude. H�� dois dias, tive vontade de fugir da-

qui, saindo sem me despedir de ningu��m. Me d�� for��as.

T o r n o u a rezar pelo m o r t o , e novamente encostou a

porta estreita, ao fundo da capela, saindo ao sol da ma-

n h �� alta, caminho do p��tio, sempre a perguntar a si mes-

ma quem seria o m o r t o . Ou a morta. Fechada em si, foi

estender-se na sua cadeira de lona, a refletir que, se mor-

resse ali, tamb��m ficaria s�� na capelinha, sem ter quem

rezasse por sua alma. Talvez a Cora. E a irm�� Catarina.

Na certa, ao saber de sua morte, o Dr. Teixeira se emo-

cionaria. Talvez seus olhos se umedecessem. E por que

n��o? E logo sentiu que ia chorar. Cerrou as p��lpebras, no

esfor��o p a r a reprimir o p r a n t o , e ficou a prend��-las por

alguns momentos, com a m �� o sobre os olhos, at�� sentir

que lhe batiam no o m b r o .

E a Cora, curvando-se sobre ela:

��� H�� um grupo que vai �� cidade. M a n d a r a m eu

perguntar se a senhora quer ir.

Glorinha limitou-se a responder com a cabe��a,

esquivando-se ao passeio. E prometeu: de outra vez iria,

com muito gosto; naquele dia, n �� o .

J�� havia ido a Friburgo algumas vezes, e de l�� trou-

xera u m a impress��o de cidade quieta, com a sua bela

Rra��a central por onde passava o trem; os chal��s pontu-

dos, que vinham do s��culo X I X ; as velhas casas aris-

tocr��ticas, assentadas sobre os alicerces de pedra e cal da

s��lida economia cafeeira dos bar��es fluminenses. E so-

n h a r a viver ali, na paz daquele frio seco, n u m a das casas

que alvejavam sobre o verde das encostas. Chegara a es-

crever ao Daniel, na volta de seu primeiro passeio: " A h ,

se pudesses vir para c��, como professor. Eu teria o clima

de que preciso para a minha sa��de e tu, a paz necess��ria

para teus estudos. N��o tenho d��vida de que a Maria

Emilia adoraria viver a q u i . "

190

E assim que ouviu tinirem os guizos dos cavalinhos

das tr��s charretes que iam �� cidade, repletas de doentes

do sanat��rio, em companhia da Dra. Neli, ergueu mais a

cabe��a, sentou-se, e deu por si �� porta do Gabinete M��di-

co, perguntando �� irm�� Catarina:

��� O Dr. Guedes pode me atender?

Teve de esperar, na poltroninha de canto, na saleta

forrada de papel pintado, que o doutor acabasse o seu

quinto pneumot��rax daquela m a n h �� . Ainda n��o sabia o

que iria dizer-lhe q u a n d o fosse atendida. Falar-lhe-ia da

noite agitada? Contar-lhe-ia o caso da filha? E como iria

ligar a noite maldormida ou a tosse da Maria Emilia ��

pergunta sobre o Dr. Teixeira?

O pr��prio Dr. Guedes veio busc��-la:

��� Fa��a favor, fa��a favor. E ent��o? Est�� precisando

de mim? J�� vi que est��. Entre, entre.

Mostrava-se jovial e efusivo, mas parecia abatido,

como se alguma coisa o preocupasse. E q u a n d o lhe per-

guntou o que sentia, ela hesitou um m o m e n t o , depois res-

pondeu com rapidez:

��� Umas dores nas costas, como se fossem ponta-

das. Quase n��o dormi. Angustiada. Deprimida.

Ele auscultou-a, tomou-lhe o pulso e a press��o. E

olhando-a nos olhos, ap��s um sil��ncio:

��� Q u a n t o ��s dores nas costas, n��o vejo n a d a de-

mais. Talvez um problema de coluna, que certamente se

resolver�� com um colch��o mais duro para a sua cama.

Hoje mesmo vou dar essa provid��ncia. Q u a n t o �� noite

maldormida, console-se comigo, que t a m b �� m a passei em

claro: primeiro, com a nossa miss Kate, que teve u m a cri-

se de angina, e n��o resistiu; depois, com a novata da Ba-

hia, que cortou os pulsos, revoltada com a familia, que a

m a n d o u p a r a c��.

Glorinha sombreou o olhar:

��� Miss Kate morreu, Dr. Guedes? E n t �� o foi ela que

eu vi na capela, antes de vir para o b a n h o de sol. Ela?

Miss Kate?

191

E o Dr. Guedes, recolhendo ao estojo o aparelho de

press��o:

��� Preciso de mais algu��m para me ajudar. O Teixei-

ra, forte e m o �� o , dava conta do recado; eu, nesta idade,

tenho de me p o u p a r .

E Glorinha, antes que a oportunidade lhe escapasse:

��� E o Dr. Teixeira n��o vai mesmo voltar?

O Dr. Guedes, afastando as m �� o s , espichou o l��bio

inferior, para dizer que n �� o sabia. E depois:

��� T u d o leva a crer que n �� o . Sobretudo agora,

q u a n d o se desquitou da Dra. J��lia. Ela queria lev��-lo pa-

ra u m a cl��nica de Boston, ele afirmou que n��o sai do Bra-

sil. Cada um foi p a r a o seu lado, com o Dr. Pires entre os

dois. C o m o era natural, terminou t o m a n d o o partido da

filha. Mas sem brigar com o Teixeira, que considera co-

mo se fosse tamb��m um filho. S�� ontem vim a saber de

t u d o isso, e estou aqui na situa����o de quem n��o sabe on-

de v��o parar as m o d a s . P a r a mim, que conhe��o o Teixei-

ra desde estudante, ele n��o volta p a r a c��. Preferir�� en-

contrar, por si mesmo, o seu caminho.

Ao fim da tarde, como o tempo come��asse a m u d a r ,

Glorinha veio postar-se em frente �� janela, olhando as

folhas ca��das e a poeira vermelha que o vento levantava

do ch��o, no come��o do temporal. U m a charrete descia a

r a m p a , com o cocheiro segurando as r��deas e o chap��u,

no caminho do sanat��rio. �� porta do pavilh��o central,

p a r o u . E dali saltou uma figura alta, que se precipitou

p a r a o batente de pedra, fustigada pelas cordas da chuva.

��� �� ele, sim, �� ele! ��� exclamou Glorinha, reconhe-

cendo de relance o Dr. Teixeira.

E p��s-se a rir alto, como n u m a crise convulsiva, sen-

tindo que a alegria repentina era grande demais para a

sua imobilidade e o seu sil��ncio.

192

CAP��TULO IX

Em breve chegou o fim do a n o , ainda com os ip��s

floridos. Depois o o u t o n o voltou a desfraldar na m a t a ,

sobre o verde das folhas estriadas pela n��voa, o roxo vivo

das q u a r e s m e i r a s . O frio, m a i s i n t e n s o , e �� m i d o ,

insinuou-se pelas casas, pelos caminhos, pelos abrigos. E

mesmo o sol, q u a n d o repentinamente se abria, parecia ti-

ritar com o vento da m a n h �� ou do cair da tarde.

A irm�� Catarina disse �� Glorinha, olhando o term��me-

t r o :

��� Antigamente, era esta a hora da febre. Agora, a

temperatura est�� normal. Dentro de mais um m��s ou

dois, voc�� vai nos deixar. Vamos sentir sua falta.

E Glorinha, sob o cobertor, com as m��os nas axilas:

��� Obrigada, irm�� Catarina. Eu, por mim, ficaria

aqui p o r mais um a n o , dois, o resto da vida. No

princ��pio, s�� pensava em voltar. Agora, n��o sei como me

desprenda daqui.

A irm�� Catarina, com a perna encostada na b o r d a

de metal da cama, continuava a segurar o term��metro fo-

ra do estojo, a olhar para Glorinha, como se lhe quisesse

dizer alguma coisa. E por fim, decidindo-se:

��� Ontem, o Dr. Teixeira falou muito a seu respeito.

Voltou a examinar todas as suas chapas. E me confessou

que o seu caso era o caso de que ele mais se orgulhava.

Tem certeza de que tirou voc�� das m��os da morte. S�� ele

acreditava na sua cura.

193

��� E �� verdade, irm�� Catarina. Sei que lhe devo a vi-

d a .

A freira acrescentou:

��� Abaixo de Deus.

��� Abaixo de Deus ��� concordou Glorinha.

E viu a irm�� Catarina afastar-se, cerrar de manso a

porta, em seguida ouviu-lhe os primeiros passos na esca-

da, logo apagados por uma lufada das primeiras vira����es

da noite. O dia, j�� escuro, como que ficou quieto, n u m a

sincope. Mas n��o tardou a chegar at�� ali, pelas frinchas

da janela, o aroma suave da laranjeira florida, de mistura

com o perfume das flores tardias, que s�� abrem nas som-

bras, sob o frio da serra.

De prop��sito, Glorinha se deixou ficar na penum-

bra, de olhos abertos, a pensar no seu novo d r a m a . Co-

mo iria desprender-se daquele q u a r t o , daquela cama, da-

quele resto de luz embaciada no ret��ngulo da janela, de

t u d o quanto ali a cercava, para tomar o navio de volta no

Rio de Janeiro? A carta do Daniel, recebida dois dias an-

tes, ainda estava dentro do novo livro de Jos�� Lins do Re-

go, que o Teixeira lhe emprestara, em cima da mesa em

que ela escrevia ao marido e �� m��e. E dizia-lhe, no mes-

mo cursivo inconfund��vel: " Q u e r o que tudo esteja novo

p a r a teu regresso. Mandei pintar a casa, reformei a

mob��lia, troquei as cortinas, n��o h�� mais prateleiras va-

zias nas estantes. Muitas das pessoas que c o m p r a r a m

meus livros, na loja do Polari, vieram deix��-los aqui,

guiadas pelo carimbo da folha de rosto com meu nome.

O Lu��s Rego, sempre gentil, m a n d o u trazer-me dois ro-

mances de Machado de Assis com estas palavras no seu

cart��o de visita: 'O bom filho �� casa t o r n a . ' Tudo isso me

comove. N��o pensei que houvesse tanta gente boa �� mi-

n h a volta, em nossa terra. E �� com emo����o que vou di-

zendo, q u a n d o me perguntam q u a n d o voltas: ��� J�� est��

a r r u m a n d o as m a l a s . "

N �� o , n��o a r r u m a r a a mala. A sua ��nica mala. E ti-

nha de comprar outra, para levar tudo quanto havia

194

c o m p r a d o e g a n h o , durante t o d o o tempo do sanat��rio.

Iria mesmo dali? E p a r a sempre? Ou faria t u d o para vol-

tar? Parecia mentira: come��ara por ter m e do do q u a r t o ,

do sanat��rio, da morte que rondava a Enfermaria, o Ga-

binete M��dico, as alamedas, a Sala de Cirurgia, o sal��o

do refeit��rio, o p��tio dos banhos de sol, e acabara por

apegar-se a tudo aquilo, sem medo dos doentes que repe-

tiam as crises de tosse, ou surgiam de m a n h �� com os

olhos pisados.

O Dr. Teixeira, pelo meio da tarde, viera rapidamen-

te a seu q u a r t o , s�� para lhe dizer que ia repetir, no dia se-

guinte, todos os seus exames. E ela, assustada:

��� P a r a me dar alta, doutor?

Ele respondera de m o d o vago, sem sair do batente

da porta:

��� Vamos ver, vamos ver.

E se lhe pedisse que a retivesse ali? Ele n �� o concor-

daria. Era s��rio demais para incorrer n u m a fraude. Dar-

lhe-ia a alta, mand��-la-ia de volta ao M a r a n h �� o . E ela te-

ria de suportar a longa viagem de navio, sozinha, isolada

no seu camarote, com saudade do sanat��rio. Parecia

mentira, e era verdade. Saudade profunda, para o resto

da vida. C o m o iria viver sem a assist��ncia do Dr. Teixei-

ra? Sabia que gostava dele. Muito. Mais que do marido?

Era diferente. Ou seria o mesmo amor invenc��vel, de que

participava t o d o o seu ser? O certo �� que a id��ia de

afastar-se dele para sempre a pungia e dilacerava. No en-

t a n t o , ele nunca lhe dissera u m a palavra mais audaz,

mais galante e ousada, mesmo depois que se separara da

Dra. J��lia. Sentava-se na cadeira de vime, com seu ca-

chimbo, sua revista e seu livro, com as mesmas cal��as mal

passadas, os mesmos borzeguins por engraxar, os mes-

mos cabelos caindo p a r a as orelhas, o pul��ver frouxo por

cima da camisa arremangada nos p u n h o s , e sempre a

esquivar-se dos olhos dela, mesmo q u a n d o lhe tomava a

temperatura e lhe contava as pulsa����es. Assim que a

campainha do refeit��rio batia longe, chamando p a r a o

195

jantar, pedia licen��a, e ia na frente, sem esperar por ela,

preferindo atravessar sozinho a alameda no largo passo

das pernas compridas.

E ela, como a participar de seus escr��pulos:

��� V��, v��. Eu vou depois.

Se Glorinha, no correr da visita, insistia em alongar

a conversa, ele recorria quase sempre aos monoss��labos,

q u a n d o n��o se limitava a um resmungo breve, para o sim

e para o n �� o . A p o r t a do quarto permanecia entreaberta,

a pretexto de que, mantendo-a assim, estaria atento a

qualquer chamado de urg��ncia.

A Cora, desde a volta do Teixeira, n��o perdia ensejo

para os reparos insinuativos:

��� Com o doutor aqui, a senhora ficou outra. Rosa-

da, queimadinha de sol, bem-vestida e bem-pintada. As-

sim �� que deve ser. Doente desleixado fica mais doente. E

a senhora, pelo visto, n��o tem mais n a d a .

N o u t r a m a n h �� , firmara os olhos nos olhos de Glori-

nha:

��� Posso-lhe falar u m a coisa? A senhora n��o vai

zangar comigo? N �� o zanga mesmo? Olhe l��. O Dr. Tei-

xeira est�� caidinho pela senhora. Est��. A gente sente. A

senhora n��o percebe? Ent��o repare. Eu pensava que ele

ia sentir muito q u a n d o desmanchou o casamento com a

Dra. J��lia. Qual o qu��. At�� assobiar ele assobia, quando

est�� sozinho. �� o que estou lhe dizendo. Mas o Dr. Gue-

des me disse, muito em segredo, que o Dr. Teixeira vai

voltar para o Rio. Vai. Sim, senhora. Ele n��o lhe falou?

E n t �� o vai falar. Espere.

E nesse mesmo dia, pelo cair da tarde, foi a Glori-

nha quem tocou no assunto. Ele, um t a n t o sem jeito, de-

m o r o u a resposta, refletindo, escolhendo as palavras. E

de vista baixa, ainda com o livro aberto sobre a perna

cruzada:

��� Quero ter a minha pr��pria cl��nica. Feita por mim.

A meu jeito. Aqui, n��o seria correto, mesmo do outro la-

do da m o n t a n h a . Era como se estivesse a fazer concor-

196

r��ncia ao meu ex-sogro, de quem continuo b o m amigo. E

muito reconhecido.

E para desfazer a ansiedade de Glorinha, que imobi-

lizara o olhar, calada, sempre a fit��-lo:

��� Mas est�� tudo no vago. Nada de concreto e posi-

tivo. Sei apenas que pretendo instalar-me no Rio, talvez

em Botafogo, talvez em Jacarepagu��, ou mesmo no Alto

da Tijuca.

Ela deixou passar um sil��ncio longo, t��o denso, t��o

amplo, que deu para ouvir o voltar da folha do livro. E

antes que ele chegasse ao fim da p��gina:

��� Eu tamb��m estou para ir embora. Com muita pe-

na. Mas a vida �� a vida, cada um de n��s tem seu r u m o . S��

estou �� espera da alta de meu m��dico.

E inclinou a cabe��a para a frente, sem deixar de

olh��-lo. Viu-o voltar ao come��o da p��gina, como quem

perdeu o fio da leitura. Depois, ainda perturbado, co-

me��ou a encher de fumo a cabe��a do cachimbo, sempre a

olhar o texto. E q u a n d o riscou o f��sforo, para acender o

cachimbo, ficou com o palito na ponta dos dedos, como

distra��do, at�� que a chama apagou.

197

CAP��TULO X

S e m p r e que se via na saleta de espera da Sala de Ra-

diografia, apenas com a bata sobre o corpo, agasalhada

no penhoar, Glorinha lutava consigo mesma para vencer

o sentimento de pudor que a atordoava, sabendo que, l��

dentro, diante do aparelho, teria que tirar o penhoar, pa-

ra ficar apenas com a bata leve, quase transparente, que

mais a desnudava que vestia.

Ainda bem que, na sala fechada, antes que ela des-

pisse o penhoar, o Dr. Teixeira apagava a luz, s�� deixan-

do no ambiente escuro a discreta claridade de urna lam-

padazinha vermelha, que dava apenas para distinguir na

penumbra o conforto das coisas.

Desta vez, com o frio que repentinamente fizera des-

cer o term��metro a dois graus cent��grados, em meio ��

madrugada, a m a n h �� de sol fosco, riscada por uma chu-

vinha persistente, prolongava, ali na saleta, a noite gela-

da sob os cobertores. O penhoar, a rigor, mal dava para

aquec��-la, e ela apertava as m��os sob as axilas, contrain-

do os maxilares, tiritante, q u a n d o o m��dico a fez entrar

na sala, j�� metido no avental espesso que o protegia con-

tra as irradia����es do aparelho.

E ele, fechada a porta, t ra ta n do de orientar Glori-

nha pela claridade da l��mpada vermelha:

��� Vamos bater as chapas de hoje, como rotina de

trabalho, para eu poder escrever, por fora da pasta onde

guardamos todos os seus exames: completamente curada.

198

Ajudou-a a tirar o penhoar, f��-la sentar-se n u m a ca-

deira. E afastando-se, j�� com as pupilas acomodadas ��

luz escassa:

��� Em dois minutos ajusto as chapas.

E ela, sentindo que a temperatura ambiente a regela-

va:

��� Que frio, Dr. Teixeira!

E como j�� havia a d a p t a d o os olhos �� penumbra cir-

cundante, viu q u a n d o o doutor se acercou do cabide, an-

tes de aproximar-se do aparelho de raios X, e trouxe dali

seu pr��prio palet�� de casemira.

��� N �� o se importa de vestir este palet��? �� por pouco

t e m p o . A irm�� Catarina, nestes dias de f��rias, est�� a me

fazer muita falta. Ela, em dias assim, sempre tem u m a

pe��a de l�� para agasalhar os pacientes. Na falta do agasa-

lho da irm�� Catarina, vai ter de se aquecer no meu pa-

let��.

A primeira impress��o de Glorinha, assim que o pale-

toz��o do doutor lhe agasalhou o busto e os bra��os na ca-

simira grossa, com um leve bafio de suor e perfumes, foi

que o pr��prio Dr. Teixeira a envolvia, aproximando-a de

si. Deixou-se estar quieta, fruindo essa sensa����o nova,

que subitamente a deliciava. Deixou de tiritar e bater os

dentes, enquanto o calor suave a aquecia, subindo-lhe

para o rosto.

J�� agora podia ver o vulto do m��dico por tr��s do

aparelho enorme, ajustando-lhe os controles, examinan-

do a posi����o da chapa, deslocando-se entre o aparelho e a

mesinha ao fundo da sala. S�� ent��o refletiu, um tanto as-

sustada e risonha, que se achava quase n u a , na sala fe-

chada a chave, na companhia de um homem que n��o era

seu marido. Pilheriou consigo mesma, sem falar:

��� E agora, Glorinha?

Foi nesse m o m e n t o que ele veio busc��-la. Despiu-lhe

o palet��, segurou-a pelo bra��o:

��� J�� sabe que n��o demora.

E ela, caminhando:

199

��� Agora, o frio j�� passou. N��o se preocupe.

Subiu com desembara��o experiente o degrau da es-

cadinha, alongou-se na prancha met��lica, que novamente

a regelou, e n��o tardou a ouvir o clique repetido do apa-

relho em opera����o, depois da ordem do m��dico:

��� P a r e de respirar.

Em seguida, mudou de posi����o, ouviu outro clique

do aparelho. Mais o u t r a posi����o, outro clique ap��s a or-

dem. Sucessivas vezes, com intervalos regulares, at�� que

o Dr. Teixeira a preveniu:

��� Espere aqui mesmo enquanto examino as chapas.

Instintivamente, ela p��s as m��os sobre os seios, no

m o m e n t o em que a luz branca incidiu sobre o ret��ngulo

vertical a que as chapas eram sucessivamente ajustadas.

E ele, de costas para ela, sem conter seu entusiasmo:

��� �� t i m o . T u d o limpo. Definitivamente c u r a d a .

Voc�� n��o imagina a alegria e a felicidade com que lhe dou

esta noticia. Pude salvar voc��, Glorinha. Eu disse ao Dr.

Pires que haveria de cur��-la, e curei. Aqui est��o as pro-

vas. S�� eu sei a emo����o com que lhe digo estas palavras.

Em dezoito anos de cl��nica, nunca tive u m a vit��ria igual.

E de p��, aproximando-se, j�� sem o avental met��lico

com que se protegera para bater as chapas:

��� Vou lhe dar alta.

E dando-lhe a m �� o no momento de descer o degrau

da escadinha:

��� Deixe eu aproveitar esta meia luz para lhe dizer

uma coisa muito s��ria. Posso dizer? O sanat��rio, para

mim, vai ficar terrivelmente vazio q u a n d o voc�� for em-

bora. Vai. Das saudades que o destino me tem d a d o , ao

longo da vida, sei que a sua ser�� a mais bonita. E a mais

profunda. Dar�� para me embelezar o resto da vida.

Glorinha estava agora �� sua frente, emocionada,

sem poder falar. Sentia os olhos ��midos. J�� as l��grimas

lhe molhavam os c��lios. E foi ela que, de repente, num

200

impulso, o apertou contra si, erguendo para ele os l��bios

ardentes, esquecida de que s�� a bata de linho branco lhe

protegia a nudez oferecida, pronta a se entregar.

201

S��TIMA PARTE

O cora����o do homem disp��e o seu cami-

nho, mas �� o Senhor quem dirige seus





passos.


Prov��rbios, 17, vers. 3

CAP��TULO I

H o u v e uma noite, no meado de maio, em que o

term��metro, pela m a d r u g a d a , parecia ter descido abaixo

de zero, com o vento a gemer de frio nas ��rvores que cir-

cundavam o sanat��rio. Pelo fim da tarde, n u m a luz fos-

ca, principiara a cair u m a chuva mi��da, que por fim en-

grossara sob o c��u escuro, a c o m p a n h a d a de rel��mpagos.

�� medida que as sombras vieram baixando, com a cer-

ra����o escondendo o viso da serra, a m o n t a n h a , a cascata,

e reduzindo as ��rvores pr��ximas a silhuetas esbatidas,

generalizou-se a impress��o de que seria aquela a noite

mais fria dos ��ltimos anos.

Logo foi acesa a lareira do refeit��rio. Em cada quar-

t o , e em alguns pontos da enfermaria, abriu-se a clarida-

de vermelha dos aquecedores el��tricos, ao mesmo tempo

em que cada doente tratava de encolher-se sob os grossos

agasalhos tiritando ou tossindo, a esfregar as m��os entor-

pecidas.

Entretanto, �� primeira luz da m a n h �� seguinte, a Co-

ra veio dizer �� Glorinha, ainda com a neblina embacian-

do o v��o da janela, que o frio n��o havia passado dos qua-

tro graus.

��� E agora est�� a nove, com este sol gelado.

E como Glorinha, ocupada em dispor as suas roupas

nas duas malas de couro, se limitara a mover a cabe��a,

com o l��bio inferior espichado, e ar de surpresa, a Cora

continuou a dispor sobre a mesa de centro, j u n t o �� jane-

la, a bandeja do caf��.

205

Q u a n d o terminou, ficou a olhar para Glorinha. E

logo depois, como quem tem pressa de se informar:

��� Eu vim dizendo comigo, quando vinha para c��,

que o Dr. Teixeira podia ter esperado para viajar com a

senhora.

Glorinha se fez de desentendida:

��� Por que viajar comigo? Ele tem a vida dele, eu a

minha.

E Cora, com vivacidade:

��� A senhora, q u a n d o veio para c��, veio com ele.

Pela mesma raz��o podia voltar, j�� que ele tamb��m ia em-

b o r a .

Glorinha tornou a curvar-se sobre o gavet��o do

arm��rio, tirou dali outras pe��as de roupa. Antes de

curvar-se sobre a mala que ia a r r u m a n d o , deu a resposta

adequada:

��� N��o �� a mesma coisa. Q u a n d o eu vim para c��, es-

tava muito doente, precisava de algu��m que me assistisse

durante a viagem. C o m o de fato precisei. Agora, n �� o .

Agora estou boa, posso fazer companhia a mim mesma.

A Cora, solicita, segurou a cadeira pelo espaldar,

para ajud��-la a acomodar-se defronte da bandeja. Espe-

rou que Glorinha sentasse. Deixou passar outro sil��ncio.

P��s-lhe o caf�� e o leite na xicara alta.

��� A senhora n��o leve a mal o que vou dizer. Deus ��

testemunha de que estou falando com o cora����o na boca.

A senhora e o Dr. Teixeira s��o amigos demais para um ir

na frente e outro atr��s.

E Glorinha, ap��s mover a colherinha para misturar

o a����car:

��� Desde que me deu alta, h�� vinte e dois dias, o Dr.

Teixeira deixou de vir aqui me visitar. Voc�� sabe disso.

��� Sei, sei. Mas tamb��m sei que a senhora, nesses

vinte e dois dias, foi duas vezes ao Gabinete M��dico falar

com ele. E levou l�� mais de hora. N��o fui eu que vi. Foi a

irm�� Catarina que me falou, achando que a senhora de-

via estar sentindo alguma coisa.

206

Glorinha agarrou a justificativa:

��� E estava, realmente. Na primeira vez, u m a dor fi-

na, aqui nas costas, no lugar do ��ltimo pneumot��rax; na

segunda, u m a nova crise de coluna, com a dor a se irra-

diar pela perna direita. Fiquei preocupada. Felizmente

n �� o era nada demais.

No sil��ncio, ouvia-se agora Glorinha mastigar as

torradas devagar, voltada para a m a n h �� que ia abrindo

aos poucos, sob a mesma luz leitosa. O vento continuava

a soprar, sacudindo a r��tula no caixilho de madeira, en-

q u a n t o o aquecedor el��trico, ainda esbraseado, lutava

contra o frio persistente, renovando as ondas de calor.

C o m o esquecida da Cora, que se pusera a olhar em

dire����o da cascata, esperando que esta voltasse a apare-

cer nas aberturas da n��voa, Glorinha reconhecia, de si

para si, que n��o havia sido inteiramente veraz na respos-

ta: s�� na segunda vez procurara o Dr. Teixeira por u m a

raz��o m��dica, com as dores da coluna. Quanto �� primei-

ra, n �� o . Tinha ido procur��-lo quase desesperada, ao ter a

impress��o de que ele lhe fugia, depois que ela se entrega-

ra ali mesmo, no div�� de forro pu��do, ao lado da sala de

raios X.

Jamais esqueceria a sua volta ao quarto, depois des-

sa entrega, j�� com a tarde declinando. Atravessara o

p��tio vazio, depois a alameda alastrada de folhas ca��das,

como alheada do vento cortante que parecia querer do-

brar os eucaliptos esguios. De cabe��a baixa, galgou os

quatro lances da escada. Fechou a porta do q u a r t o ,

deitou-se ao comprido da cama, com as m��os sob a nuca,

e ali ficou olhando o teto, �� ��ltima luz do ocaso, o globo

azul da l��mpada apagada, imersa na consci��ncia de sua

culpa. Agora, como voltaria para o Daniel? N �� o , n��o po-

dia voltar. E que faria de si mesma, depois do que havia

acontecido? E alteando a cabe��a nos travesseiros, com o

cora����o acelerado:

��� N �� o estava mais em mim, meu Deus.

207

Tinha certeza de que n��o estaria curada sem o desve-

lo do Dr. Teixeira. Fora ele que a salvara. Assim como a

D r a . Neli salvara o doente com que casara. Se devia a vi-

da ao Dr. Teixeira, tamb��m lhe pertencia. Do contr��rio,

j�� estaria por tr��s da orla de pinheiros, no seu t��mulo

caiado, como tanta gente.

E levantando-se, a tatear a parede em busca do co-

m u t a d o r da luz, �� sua direita:

��� T a m b �� m tenho de reconhecer que eu n �� o teria

vindo p a r a c�� sem o desvelo e o sacrificio do Daniel, que

se desfez de tudo de valor quanto possuia para que eu me

tratasse.

A luz repentina doeu-lhe nos olhos, e ela ficou a ver

os pirilampos a p o n t a n d o na escurid��o circundante, por

tr��s do vidro da janela fechada. Um pirilampo, dois,

tr��s; dois mais adiante. E de novo a consci��ncia de seu er-

r o , para voltar a dizer, a meia voz:

��� N �� o estava mais em mim.

Que estaria pensando o Dr. Teixeira? Quereria viver

com ela, como marido e mulher? Ou tudo continuaria co-

mo antes de sua entrega? N �� o , n��o podia ser. Ela era ou-

tra Glorinha. Ela pr��pria o ajudara a despi-la. Sem se

render ao frio, aninhando-se nos bra��os dele. No div�� da

saleta, ao entregar-se, n��o se limitara a quer��-lo u m a vez,

para saciar-se. Dera-se outra vez, depois outra, at�� sentir

que ele se derramara dentro dela, apaziguando-lhe a von-

tade. Nunca tivera u m a sensa����o igual. Nunca. Sensa����o

de plenitude. De quem encontrou o sentido de toda a an-

siedade que por vezes a perseguia e dilacerava. E reco-

nhecia, suspirando:

��� Sou dele, meu Deus. N �� o posso ser de mais nin-

gu��m.

Agora, como ia fazer? Largar tudo? Fugir dali? Ou

esperar que ele voltasse? Achou melhor esperar. Ele viria

ao seu encontro. Um e outro n��o eram os mesmos. Ti-

nham m u d a d o . E m u d a d o para sempre. N �� o quisera des-

cer ao refeit��rio, ao ouvir o chamado da sineta. Parecia-

208

lhe que ela pr��pria se denunciaria, com a luz de seus

olhos, com o riso de sua boca, com seus seios altos por

baixo do casaco de l��. A Cora, com certeza, traria o seu

j a n t a r .

E q u a n d o a Cora apareceu com a bandeja:

��� Deixa t u d o a�� enquanto vou ao banheiro.

E trancou-se na privada, com receio dos olhos da

Cora, at�� sentir que esta acabava de compor a mesa. Lo-

go a ouviu dizer-lhe depois de bater na porta:

��� P o n h a a bandeja no batente da entrada, do lado

de fora, q u a n d o acabar. Bom apetite. Boa noite.

Debalde esperara pelo Teixeira durante toda a noite.

Devia ter vindo. P a r a orient��-la. P a r a dizer-lhe o que iam

fazer. Esperou durante t o d o o dia, e mais a noite seguin-

te. E ele esquivo, ora fechado no Gabinete M��dico, o r a

atravessando o p��tio em largas passadas, de cabe��a bai-

xa, para acudir a algum doente. Nem sequer aparecera no

refeit��rio. Estaria a esquivar-se? E por qu��?

No quinto dia, bateu �� porta do Gabinete M��dico. E

a irm�� Catarina, que lhe abriu a porta:

��� O Dr. Teixeira quer lhe falar. Eu j�� ia m a n d a r

cham��-la. Entre. P o r aqui, Glorinha.

Ela, ao entrar na sala, notou o semblante devastado

do Dr. Teixeira, com os tra��os bem vincados nos cantos

da boca, a testa contra��da, u m a leve mancha por baixo

dos olhos fatigados.

E ele, fazendo-a sentar-se �� frente de sua mesa, na

cadeira das consultas:

��� H�� tr��s dias estou para lhe falar. Mas s�� agora te-

nho a not��cia que eu lhe queria dar. Vou chefiar u m a

cl��nica no Rio, e voc�� vai comigo. Passei estes tr��s dias

em debate comigo mesmo. Depois do que houve entre

n��s, n��o posso viver sem voc��. N �� o , n��o posso. Acon-

te��a o que acontecer. Voc�� tamb��m �� minha. Tenho o

meu direito. Sei que voc��, por seu lado, precisa de mim.

Precisa. N �� o como m��dico. C o m o h o m e m . C o m o com-

panheiro. Posso estar errado, mas tenho a ��ntima certeza

209

de que voc�� nasceu para mim e eu para voc��. Sempre pen-

sei assim. Desde q u e a t r o u x e p a r a c��. A q u i n �� o

pod��amos ficar. De m o d o algum. Seria u m a afronta. Sin-

to que t o d a gente me olha, como se soubesse de t u d o . A

come��ar pela irm�� Catarina. A Cora n��o me olha ��� me

espiona. Sinto isso. E ando sem jeito. Foi por essa raz��o

que n��o fui ver voc�� no seu q u a r t o . Nem falei com voc��

no p��tio e no refeit��rio. Falei para o Rio. Abri-me com o

Dr. Pires. S�� lhe pedi que me compreendesse. N �� o me

disse u m a s�� palavra. S�� falou q u a n d o lhe comuniquei

minha determina����o de sair daqui. E n t �� o me disse que

era isso mesmo que eu devia fazer. Consegui a cl��nica em

Botafogo. Vem outro m��dico para c��, ainda m o �� o , mas

competente. Especializou-se na Su����a. Ajudar�� o Dr.

Guedes. S�� espero que ele chegue para enfronh��-lo no

servi��o do sanat��rio, e ir embora. Voc�� ir�� no dia seguin-

te. Ou um dia antes de mim. �� melhor depois.

Por cima da mesa, ela lhe segurou as m �� o s , olhando-

o nos olhos. E ele viu q u a n d o as l��grimas lhe desceram

pelo rosto confiante:

��� N a d a te faltar��, Glorinha. Eu tamb��m preciso de

ti. E muito. Sem ti, n��o sei o que seria de minha vida.

Agora, no quarto friorento, ela torna a p��r mais

u m a pe��a de roupa na mala escancarada sobre a cama,

enquanto a Cora a observa, com um vinco vertical no

meio da testa. E j�� na porta, para descer a escada:

��� E seu marido? E sua filha?

��� Vou voltar para eles, depois de uns dias no Rio ���

mentiu Glorinha, sem se voltar.

E a outra, de costas, parada no batente da porta:

��� N��o se zangue comigo se eu lhe disser que duvi-

d o . Duvido, e muito. Conhe��o a senhora. Conhe��o o Dr.

Teixeira.

210

CAP��TULO II

O convite havia sido da irm�� Catarina, no momen-

to em que Glorinha descia ao p��tio para o ��ltimo banho

de sol:

��� Vou �� cidade. Quer ir comigo?

Na charrete, a caminho de Friburgo, Glorinha pro-

curava interessar-se pela paisagem �� sua volta, vendo

aparecerem casas, ��rvores, um riozinho a pular sobre pe-

dras, um renque de arauc��rias bordejando a curva da es-

trada, e um sol novo e vivo, que repentinamente se abria

sobre os telhados e as ramagens, sem conseguir atenuar o

vento gelado que continuava a descer das montanhas.

E a freira, antes de entrarem na estrada ensaibrada

que levava �� cidade, com a m��o de Glorinha nas suas

m��os:

��� Vai mesmo nos deixar ��� comentou, suspirando.

��� J�� agradeceu a Deus?

��� Muito cedo, estive na capela.

��� E abriu seu cora����o? Para dizer tudo o que est�� no

seu peito e na sua cabe��a? Tudo mesmo? E rezou? Mui-

to? E incluiu nas ora����es o seu marido e a sua filha?

E Glorinha, levantando levemente as sobrancelhas:

��� Claro que inclu��, irm�� Catarina. E por qu��?

��� Porque era preciso. Em cada passo que voc�� der,

n��o se esque��a de pensar neles. E pedir que Deus a ajude

e proteja. Somos fr��geis, como todos os seres humanos.

Uns mais, outros menos. Precisamos do amparo divino.

211

A cada instante. Sobretudo nas horas decisivas, que po-

dem modificar nossa vida.

No sil��ncio que se alongou, ouviu-se o estalar do chi-

cote a n i m a n d o o trote dos cavalinhos, e estes aligeiraram

a corrida, tinindo os guizos que traziam no pesco��o, en-

q u a n t o as casas se j u n t a v a m , dos dois lados da rua longa,

muitas de teto p o n t u d o , dentro de jardins gradeados, ou-

tras rente �� cal��ada, exibindo a caia����o recente sob o bei-

ral de telha corrida.

E a irm�� Catarina, como esquecida de seu assunto:

��� Eu pretendo ficar aqui o resto de meus dias. Me

sinto outra em Friburgo. C o m o se j�� tivesse, aqui na ter-

ra, uma pequena amostra da paz que Deus h�� de me dar

no C��u. Depois da noite de chuva, com a m a n h �� nevoen-

ta, esta luz tem ar de festa.

E com o iam entrando na pra��a longa, de altas ��rvo-

res esgalhadas, riscada pelas paralelas dos velhos trilhos,

e por onde passava o trem ao fim da tarde, a irm�� Catari-

na m a n d o u a charrete parar j u n t o �� cal��ada da igreja, se-

gurou Glorinha pelo bra��o, �� altura do cotovelo, e a foi

levando para a p o r t a central, depois desta pergunta

r��pida:

��� Entramos um pouquinho?

Ajoelharam-se no come��o da nave, defronte do

altar-mor, envoltas pelo cheiro dos c��rios ardendo nos al-

tares laterais. A luz da tarde, batendo nos vitrais, dava

p a r a envolver Glorinha, na extremidade do banco, como

a atenuar-lhe o semblante tenso. Depois, enquanto a ir-

m�� Catarina desaparecia pela porta da sacristia, ao lado

do altar-mor, Glorinha continuou de joelhos, inclinada

p a r a a frente, com as m��os no rosto:

��� Me mostre o melhor caminho ��� suplicou.

Aceitara o passeio querendo ver se espairecia a deso-

rienta����o que a atordoava. Depois do almo��o, no descan-

so da sesta, tinha sonhado de tal m o d o com o marido e a

filha, vendo-os caminharem em sua dire����o, na alameda

do sanat��rio, que abrira de repente os olhos assustados,

212

com a sensa����o de que o Daniel e a Maria Em��lia estavam

realmente ali.

Sentou-se na cama, ainda com o cora����o acelerado,

e mais uma vez se compadeceu do Daniel. O que ia fazer

com ele, ao decidir-se por outro homem, com quem pas-

saria a viver no Rio de Janeiro, era cruel demais. Em bre-

ve, S��o Lu��s inteira saberia de t u d o . E como ficaria ele,

na cidade pequena? Qual seria a sua atitude na sala de

aula? E que diria aos colegas do Liceu? Via-o de cabe��a

baixa, pensativo, com o o m b r o direito mais ca��do que o

o u t r o , sempre com um livro contra o peito, �� altura do

cora����o, e compadecia-se dele, quase decidida a adiar a

viagem, para desencontrar-se do Teixeira. No Rio, trata-

ria de tomar o primeiro navio para S��o Lu��s. E p��s-se a

imaginar a viagem de volta, longa, infinita, nas quatro

paredes do camarote, sabendo que, ao chegar �� sua terra,

n��o seria a mesma para o Daniel. N �� o , n��o seria. Quan-

do tivesse de entregar-se ao marido, mais obsessiva teria

de ser a lembran��a do Teixeira, no ��ntimo de seu ser, sem

que o Daniel lhe proporcionasse, ao possu��-la, a sensa����o

de plenitude do c o r p o a p a z i g u a d o . P o d e r i a m e s m o

repeli-lo, nessas ocasi��es. E justificava-se, na consci��ncia

de sua transforma����o:

��� Eu n��o sou a mesma, meu Deus. N �� o , n��o sou.

E de volta ao sanat��rio, na tarde alta e fria, com a ir-

m�� Catarina novamente ao seu lado, descansava as m��os

sobre o embrulho das pe��as de malha que havia compra-

do para o Daniel e a Maria Em��lia, n u m dep��sito de

f��brica ao lado da igreja, por sugest��o da freira.

J�� perto do sanat��rio, a irm�� Catarina voltou a lhe

falar:

��� Sinto voc�� melhor. Sinal de que Deus a est��

orientando para o b o m caminho. Voc�� n��o imagina co-

mo fiquei emocionada q u a n d o a vi comprar o casaco

para seu marido e o gorro e o vestidinho para a sua filha.

Quase chorei. No princ��pio, voc�� vai sofrer; depois de tu-

do passado, sentir�� um grande al��vio, reconhecendo que

213

Deus nunca nos falta, q u a n d o chamamos por ele na hora

de nossas afli����es.

E q u a n d o lhe deu a m �� o , �� porta do sanat��rio, para

ajud��-la a descer na cal��ada:

��� Adiou mesmo a viagem, Glorinha?

��� Estou pensando, irm�� Catarina.

E ainda com a cerra����o fechando a estrada, na pri-

meira hora da m a n h �� seguinte, a Cora entrou-lhe no

q u a r t o , sem ru��do, cautelosamente, para levar-lhe as ma-

las, depois de dizer-lhe que a charrete j�� estava l�� embai-

x o , �� sua espera-

214

CAP��TULO III

N �� o podia crer que fosse ela. E era. Era, sim. A

pr��pria. Vinha avan��ando pela plataforma da esta����o,

no seu passo esgalgado, como se estivesse por perto, p a r a

s�� aparecer no m o m e n t o em que ia soar o apito da parti-

da do trem.

A primeira rea����o de Glorinha, sentada j u n t o �� ja-

nela, em meio do carro repleto, foi cerrar imediatamente

os olhos, como a esconder-se por tr��s das p��lpebras. Mas

j�� a irm�� Catarina estava �� sua frente, batendo-lhe no

o m b r o :

��� Pensava que eu n �� o vinha, mas vim. Vim lhe dar

meu abra��o e desejar que Deus a acompanhe. Eu sabia,

desde ontem, por seus sil��ncios, que voc�� acabaria vindo.

P o r isso, hoje, cedo, q u a n d o bati no seu q u a r t o , encon-

trei o que esperava: n �� o havia ningu��m. E vim para c��.

Segurou a m �� o de Glorinha no m o m e n t o em que o

apito sibilou, logo seguido pelo silvo da locomotiva. Um

j a t o de fuma��a saiu por entre as rodas, que prontamente

rolaram sobre os trilhos, e t o d o o comboio se p��s em

marcha, chepe-chepe, chepe-chepe, enquanto a irm�� Ca-

tarina, emocionada, caminhava ao longo da plataforma,

ainda com a m �� o de Glorinha na sua m �� o . E q u a n d o o

trem aumentou a marcha, nou tr a arrancada, susteve o

passo, no limite do terra��o de cimento, e ficou a acenar-

lhe, repetindo:

��� V�� com Deus! V�� com Deus!

E Glorinha, correspondendo-lhe ao aceno, com a ca-

be��a para fora da janela:

215

��� Obrigada por t u d o , irm�� Catarina!

E q u a n d o voltou a sentar-se, com o comboio a ran-

ger na curva dos trilhos, levou o len��o aos olhos, force-

j a n d o p a r a reprimir o pranto convulsivo. Afinal, inspi-

rou profundamente, enchendo devagar o peito, e apoiou

o cotovelo na sali��ncia da janela, com a m �� o no queixo,

no esfor��o para aceitar o mist��rio da vida, que de longe a

chamava, com o Dr. Teixeira �� sua espera.

Chegaria ao Rio pelo fim da tarde. Ele estaria na

plataforma da Central do Brasil, agasalhado na velha ga-

bardina americana, com o chap��u de feltro caido para os

olhos, o cachimbo a um canto da boca, sobra��ando a re-

vista e o jornal. E s�� a imagem dele, senhor de si, a

esper��-la, restitu��a-lhe a confian��a plena no passo que es-

tava d a n d o . Seria o que Deus quisesse.

E Glorinha, de si para si:

��� Ia ser pior, se eu n��o tivesse vindo.

Ia. De volta de Friburgo, ao fechar-se no seu q u a r t o ,

sentara-se �� mesa, diante do bloco de papel a��reo, para

escrever ao Daniel. Tinha de abrir-se com ele, contando-

lhe t u d o : as suas noites em claro, o sentimento de grati-

d��o pelo Teixeira, depois o medo de ir para longe dele,

tendo a certeza de que a tosse, a febre e os escarros volta-

riam, por fim a atra����o que sentia por ele, e que n��o era

apenas f��sica, mas sobretudo afetiva e confiante. E houve

um m o m e n t o , ainda com a caneta a p o n t a n d o para o pa-

pel em branco, em que exclamou, num impulso de deses-

pero:

��� J u n t o dele me sinto outra, Daniel!

Ele lhe transmitia, apenas com a Sua presen��a silen-

ciosa, u m a confian��a repentina em si mesma, na vida, no

futuro, na sa��de. C o m ele ao seu lado, nada de m a u lhe

aconteceria. Pelo contr��rio: experimentava u m a viva sen-

sa����o de paz, mesmo nos dias sombrios, com a n��voa a

fechar o vidro da janela. Se estava aflita, bastava-lhe ou-

vir seus passos na escada, para reconhecer que a serenida-

de lhe voltava. Q u a n d o o via no v��o da porta, tinha de

216

conter-se para n �� o saltar ao seu pesco��o como uma

crian��a.

�� ainda olhando o papel:

��� Se n��o estou m o r t a , �� a ele que devo, Daniel! A

ele, a mais ningu��m. Ele me trazia os rem��dios que man-

dava buscar dos Estados Unidos e da Alemanha, e era ele

mesmo que me aplicava as inje����es. Se eu tinha alguma

piora, n��o precisava que ele me dissesse: olhando-o daqui

da janela, via-o atravessar a alameda de cabe��a baixa, co-

mo a falar com as m��os impacientes. N �� o �� que eu tenha

deixado de gostar de voc��, que �� meu marido. N �� o . �� di-

ferente. Nunca senti por ningu��m o que sinto hoje por

ele. E vou-lhe dizer mais: sem ele perto de mim, sei que

t u d o vai voltar. T u d o . Absolutamente t u d o . E vou conti-

nuar por aqui. M o r t a . Por tr��s daqueles pinheiros. Sem

voc��. Sem nossa filha.

Mas foi debalde que tentou achar as palavras para

dizer o que sentia. Escrevia, riscava; escrevia, riscava.

Sabia que ia destruir o marido. C o m o se o esmagasse

com aquela folha de papel a��reo. E terminara por curvar-

se sobre as m��os aflitas, cedendo ao pranto convulsivo. E

como as l��grimas a iam aliviando, concentrou-se nesta

s��plica repetida:

��� P o n h a uma luz diante de mim, meu Deus. Me

mostre o que devo fazer. Estou a t o r d o a d a . N �� o sei o que

fa��a.

Acabou p o r guardar o bloco de papel e a caneta, re-

conhecendo que n��o tinha o direito de ferir o Daniel.

N �� o . De m o d o algum. E veio-lhe ent��o, forte, quase in-

venc��vel, o desejo de morrer. Pela primeira vez encarava

a morte como a solu����o de t u d o . E como ficariam o Da-

niel e o Teixeira, q u a n d o soubessem que ela se tinha ma-

tado? Matar-se, depois de lutar tanto tempo para viver?

Cansada, j�� no limite da exaust��o, acabara por

deitar-se um m o m e n t o na cama, e mergulhou no sono

profundo, como a pedra que afunda no lago, para des-

pertar, assustada, j�� com o dia querendo romper. Nervo-

217

sa, consultara o rel��gio de pulso: j�� passava das cinco ho-

ras. E logo ouvira a Cora bater na porta, com ar estremu-

n h a d o , para lhe recolher as malas:

��� Estamos na hora.

O comboio descia cautelosamente a serra, a m p a r a d o

pelos dentes da cremalheira, deixando ver as ��rvores da

estrada, os c��es que latiam para os carros, as flores que

explodiam nas encostas, e at�� mesmo a borboleta amare-

la que entrou por u m a janela do vag��o e saiu do outro la-

d o , antes que, ali dentro, num impulso contente, um me-

nino gordo a alcan��asse.

Glorinha cerrou os olhos, sem conseguir dispersar a

aten����o nos acidentes do caminho, mesmo quando o

comboio atravessou u m a ponte sobre o abismo. C o m o ia

fazer para dizer tudo ao Daniel? E fechada no seu sil��n-

cio, estalando os dedos entrela��ados:

��� O Teixeira me ajudar�� a escrever para ele.

Logo reagiu. N �� o , s�� ela devia escrever. Para dizer

sinceramente o que sentia. E esse sentimento era seu, de

mais ningu��m. Principalmente considerando que, no seu

gesto, confessando t u d o , estaria em jogo o destino da

Maria Em��lia. Perd��-la-ia para sempre? N �� o , n��o era

poss��vel. Alimentara-a com seu sangue, com a sua vida.

P o r ela, quase morrera. C o m o ia perd��-la?

Por volta do meio-dia, com o frio atenuado pelo sol

aberto, passou pelo sono, com a cabe��a apoiada na sa-

li��ncia da janela. E p��de ver que, nesse hiato da consci��n-

cia, a locomotiva hesitante e vagarosa, que descia caute-

losamente o declive da estrada, pusera-se repentinamente

a correr, livre, desimpedida, a todo vapor, desfraldando

no espa��o ensolarado o seu penacho de fagulhas, como a

querer apressar a chegada ao Rio ��� onde o Teixeira esta-

ria a aguard��-la, calmo, senhor de seu destino.

218

CAP��TULO IV

Q u a n d o o trem diminuiu a marcha para entrar na

esta����o da Central do Brasil, depois de passar por altos

edif��cios de cimento armado e por casas baixas, com bei-

ral saliente e platibanda, que lhe lembraram as de S��o

Luis, a primeira rea����o de Glorinha foi de medo. Estava

chegando ao fim de sua op����o. Para tr��s tinham ficado o

Daniel, a filha, a terra natal. Porque tamb��m sabia que

nunca mais voltaria ao Maranh��o.

E n��o vendo o Dr. Teixeira na plataforma, ao pri-

meiro relance do olhar, sentiu que o sangue lhe fugia.

N��o teria vindo? Ou estaria chegando? E nisto deu com

ele, parado exatamente no lugar em que parou o carro.

��� Boa viagem? ��� ele perguntou, sorrindo-lhe.

E come��ando a receber-lhe a bagagem, que o chefe

do carro ia passando pelo v��o da janela:

��� Cheguei cedo. Pela primeira vez na vida. Porque

sempre chego na hora, ou depois que o trem chegou.

Depois, com o mesmo ar tranq��ilo, foi esper��-la de-

fronte da porta do carro, com os bra��os livres para

apert��-la contra si. E disse-lhe, quando a cingiu contra o

peito, por entre os encontr��es dos passageiros e dos car-

regadores:

��� N��o tenhas receio. Hei de te fazer feliz. Sei o que

teu gesto significa. N��o ��s uma mulher como as outras.

��s diferente. E eu tenho de te dar mais, muito mais do

que daria a outra companheira. Tem confian��a em mim.

219

Ela quis lhe responder que sim, que tinha essa con-

fian��a, mas apenas soube apoiar a cabe��a no seu o m b r o ,

muito aconchegada, com a sensa����o de que tinha ali um

abrigo ��� o seu abrigo. P a r a a vida e para a morte. Ele

lhe deu o bra��o, e vieram os dois perlongando a platafor-

m a , com o carregador a segui-los, trazendo as duas ma-

las, a chapeleira, os embrulhos, a maleta de m �� o .

A tarde ia terminando, com uma luz r��sea por cima

do casar��o do Minist��rio da Guerra. Adiante, outros

edif��cios, mais altos, mais imponentes. E na luz leitosa

que gradativamente se desfazia, acenderam-se de repente

as l��mpadas da ilumina����o p��blica, ao mesmo tempo em

que as sombras se esbateram por tr��s das grades de ferro,

entre as ��rvores ramalhudas do C a m p o de Santana.

E como o t��xi se esgueirava por entre ruas estreitas,

que lembravam a Glorinha as ruelas da Praia Grande, em

S��o Lu��s, ela quis falar, para revelar-lhe essa concord��n-

cia, mas se limitou a apertar-lhe a m �� o , emocionada.

Adiante, j�� mais calma, p��de perguntar-lhe:

��� P a r a onde estamos indo?

E q u a n d o o carro entrou na pequena pra��a, rodeada

de casas baixas, no centro de Laranjeiras, Glorinha teve a

sensa����o ainda mais n��tida de que estava voltando a S��o

Lu��s:

��� Isto est�� parecendo minha terra, Alu��sio! ��� ex-

clamou, ouvindo o ru��do dos pardais que se recolhiam, j��

com o largo iluminado.

E ele, contente com a alegria dela:

��� Deus me ajudou a descobrir esta pra��a. Aqui, nas

noites de luar, as crian��as ainda brincam de roda.

E para o motorista, que diminu��ra a marcha do car-

r o :

��� Aqui, aqui. Pode parar.

A casa, com um jardim na frente, e mais o m u r o e a

gradezinha de ferro, tinha o ar das casas de prov��ncia,

com seu teto alto, sua escadinha de pedra, e uma data na

bandeira da porta: 1890. As duas janelas sobre o jardim,

220

esguias, retangulares, pareciam rir pelas frinchas das

r��tulas, sob o vidro fosco da guarni����o superior. Um

cheiro vivo de rosas molhadas desprendia-se dos cantei-

ros bem-tratados.

Glorinha, j�� na cal��ada, olhava tudo aquilo com o

cora����o apertado, quase a chorar. E chorou, realmente,

sentindo-se confiante e feliz, assim que galgou os degraus

da escadinha e transp��s a porta almofadada que abria so-

bre a sala de visitas. N �� o p��de conter a exclama����o ao

ver �� sua frente o piano (igual ao que o Daniel tivera de

vender em S��o Luis), o grupo de palhinha, o consolo, os

quadros nas paredes, o espelho, as cortinas leves que se

arredondavam na vira����o da noite.

E o Teixeira, ainda levando as malas para a alcova:

��� Eu disse �� criada que s�� viesse a m a n h �� . T o m a

conta da casa, querida. N �� o quero que te falte n a d a . E

que tudo esteja a teu gosto.

Ela entrou na alcova, olhou a cama larga, as mesas-de-

cabeceira sob os abajures iluminados, o guarda-roupa, a

c��moda, a estantezinha de livros; depois passou �� sala de

j a n t a r , ao escrit��rio, �� cozinha, ao quarto de empregada,

ao quarto que servia de sala de estar, com o r��dio, a vi-

trola, a estante dos discos, o jogo de poltronas orelhudas,

os quadros de motivos maranhenses. T u d o disposto na

melhor ordem, com sobriedade e b o m gosto. Ao fundo

da casa, ao centro do quintal pequenino, u m a amendoei-

ra abria as suas largas folhas por cima das bordas de um

po��o.

E Glorinha, radiante:

��� Isto �� um peda��o de S��o Lu��s, Alu��sio!

��� ��. Mas nada foi premeditado. Simples coincid��n-

cia, indicando que at�� o acaso est�� a nosso favor.

De volta �� alcova, esteve ali uns momentos, como in-

timidada e contente, depois tornou �� sala, correu os de-

dos pelas teclas do piano, e t u d o ali lhe restituiu de repen-

te a sua sala, em S��o Lu��s. Mas sacudiu a cabe��a, atiran-

221

do de si o m u n d o perdido, e sorriu para o Teixeira, que se

deixara ficar �� porta da alcova, a observ��-la, comovido.

E ele, como se lhe adivinhasse o pensamento:

��� Hei de fazer voc�� feliz pelo resto da vida, fique

certa disso. Nos primeiros tempos, �� natural que haja em

voc��, muito agudo e tenso, o sentimento de culpa por es-

tar deixando para tr��s o seu marido e a sua filha. H�� mo-

mentos em que a vida reclama de n��s u m a cirurgia. A ci-

rurgia foi feita. Agora, trate de convalescer e ser feliz.

Voc�� �� t u d o para mim, Glorinha. T u d o . Nunca pensei

que eu pudesse gostar de algu��m como gosto de voc��. Pa-

ra o resto da vida. Um ao lado do o u t r o , seguindo o mes-

m o caminho.

Ela concordou com a cabe��a, sem lhe esconder os

olhos molhados. E veio para ele, com as m��os estendi-

d a s , tentando desfazer no sorriso o semblante pensativo.

��� Sei disso, querido. E �� por isso que estou aqui.

E ela mesma apagou a luz da sala, passou �� alcova,

trazendo-o pelo bra��o. J�� tinha no rosto enxuto a sereni-

dade confiante. E mais tarde, depois do b a n h o m o r n o

com que tirou do corpo a poeira da viagem, estendeu-se

na cama de molas rangentes, j�� vestida na camisola leve

que quase a desnudava. Encolheu-se sob o cobertor, sen-

tindo a noite fria, enquanto o Teixeira experimentava as

portas e janelas, no cuidado de fechar a casa.

Na rua, sil��ncio. Ali dentro, o ru��do dos ferrolhos e

das chaves. No quintal, o rumor do vento nas folhas da

amendoeira.

E q u a n d o o Teixeira se deitou a seu lado, apagou a

luz do abajur. A claridade do lampi��o da rua entrava pe-

lo leque das janelas, vinha at�� a alcova, envolvendo os

m��veis escuros na claridade mitigada. E n t �� o Glorinha,

que esperava por aquele m o m e n t o , segurou a m �� o do

companheiro, trazendo-o para j u n t o de si.

222

OITAVA PARTE

Todo objeto amado �� o centro de

um para��so.

N O V A L I S

CAP��TULO I

Na Sala da Congrega����o do Liceu Maranhense, eu

admirava o retrato do professor Ory, antigo cabeleireiro

franc��s que acabou professor de desenho em S��o Luis,

q u a n d o a voz do Daniel encheu o recinto, por tr��s de

mim:

��� N��o adianta pensares que o Ory sou eu, nessa ga-

leria de medalh��es. Eu estou aqui.

Com alvoro��o, voltei-me para ele:

��� Mestre, salve!

Era o Daniel de outrora que eu tinha �� minha frente,

n u m a das altas cadeiras de couro da mesa de reuni��es,

muito bem vestido, os cabelos lisos escorregando para as

t��mporas, o alfinete de p��rola espetando a gravata por

baixo do la��o, as pernas cruzadas, de costas para a clari-

dade da rua, o dedo indicador interposto nas folhas de

um livro.

Eu andava a despedir-me de minha adolesc��ncia, j��

com a passagem no bolso para mudar de terra, a caminho

de Bel��m, num navio do L��ide. Tinha ido ao velho casa-

r��o para dizer adeus ��s salas de aula, aos p��tios e corre-

dores, aos mestres, aos bed��is e inspetores, inesquec��veis

comparsas de minhas pr��ximas saudades.

J�� percorrera quase t o d o o sobrado imenso, e agora

estava ali, avivando a mem��ria de antigos mestres.

E enquanto abra��ava o Daniel, carinhosamente, efu-

sivamente, voltei a lembrar-me da Glorinha ��� a Glorinha

que eu tinha acabado de rever, na nossa sala de aula, re-

225

cortada contra a claridade da janela, alta, vistosa e cala-

da, negros cabelos crespos caindo para os o m b r o s , no

uniforme azul do Liceu, juntamente com o Cl��udio Ser-

ra, o Viegas Neto, o Correia da Silva, a Enedi, a Maria

Jos��, a Helo��sa, a Neide, a Doralice, o Bandeira de Me-

l o , o Tarc��sio T u p i n a m b �� . De mim para mim, olhando a

sala vazia, girara para tr��s a roda do tempo, no rodopio

das recorda����es indel��veis, e eles e elas tinham ocupado

as mesmas carteiras, com o Daniel sobre o estrado, �� me-

sa dos professores, a fazer a chamada dos alunos, com o

mesmo sulco vertical no meio da testa riscada de rugas, o

o m b r o direito um pouco baixo, e aqueles mesmos olhos

castanhos, tocados de mal��cia e bondade, de saber e in-

dulg��ncia, com as mesmas estrias amarelas, e que, agora,

na Sala da Congrega����o, se fixavam nos meus, interpela-

tivos e risonhos:

��� �� mesmo verdade que vais nos deixar? Foi o Ma-

ta Roma quem me deu a not��cia, ontem, no col��gio do

Arimat��ia. E o Viveiros, hoje, aqui no Liceu, me confir-

mou. Que j�� estavas de malas a r r u m a d a s . E que vais num

time de futebol.

Riu alto, em tom de zombaria divertida; depois, veio

mais para perto, inclinando a cabe��a para a frente, sem

deixar a cadeira, esperando minha resposta.

Sim, era verdade ��� confirmei. Na outra semana,

deixaria S��o Lu��s, num time de futebol que ia jogar em

Bel��m. O poeta Ribamar Pinheiro, meu velho amigo,

n �� o p o d e n d o sair d e S��o Lu��s n a q u e l e m o m e n t o ,

lembrara-se de mim, para ir em seu lugar. E eu, que so-

nhava conhecer outras terras, outros c��us, agarrei com as

duas m��os a aportunidade da viagem. Onde fosse preciso

falar, em nome do time, falaria eu. Aos 18 anos, com o

m u n d o diante de mim, como escolher outra tribuna?

E o Daniel, recolhendo o riso:

��� H�� u m a semana que sou outro h o m e m . A Glori-

nha teve alta. Est�� completamente b o a . Gra��as a Deus.

Mas n��o pode vir agora. Tem de passar pelo menos um

226

ano no Rio, p a r a controle peri��dico da cura. Ao fim de

um a n o , pode vir de vez, sem correr o risco de voltar. Um

ano passa depressa, q u a n d o se trabalha, como eu traba-

lho. Ela, para n��o ficar ociosa, aceitou trabalhar na

clinica que se encarregar�� de seus exames, de dois em dois

meses. Agora, n��o preciso mandar-lhe mais a mesada.

C o m o que ela ganha, pode manter-se. Aos poucos, vou

acabando de recompor a casa. Dentro de uns dois ou tr��s

meses, j�� terei na sala o seu piano. Eu, por meu lado,

acabo de assinar o contrato para lecionar Direito Civil na

Faculdade de Direito. Isso quer dizer que o rio voltou a

correr para o mar. Depois de tanta rebordosa, j�� era tem-

po de receber alguma recompensa. Com o favor de Deus.

Abracei-o, comovido. Ele merecia, realmente, aque-

la virada da sorte. Sofrera muito. Cheguei a supor que

em breve seguiria o caminho da Glorinha, recolhendo-se

tamb��m ao sanat��rio. Mas conseguira resistir ao in-

fort��nio prolongado, e agora ali estava, corado pelo sol

da praia, merecidamente feliz.

E o Daniel, enfiando o bra��o no meu bra��o, a cami-

nho da varanda comprida que acompanhava as salas de

aula:

��� Vou sentir tua falta ��� confessou-me, n u m a voz

grave. ��� Mas n��o te aconselho que fiques aqui. Vai. Pre-

cisas ir. Est��s na idade da aventura. O Ant��nio Lemos

saiu daqui para o P a r �� , e reformou Bel��m; o E d u a r d o Ri-

beiro saiu daqui p a r a o Amazonas, e reformou M a n a u s .

N��o digo que fa��as o que fez o Ant��nio Lemos, em

Bel��m. N �� o . N �� o tens voca����o para prefeito ou chefe

politico. Teu horizonte �� o u t r o . Passa uns tempos no

Par��, depois segue para o Rio. Ou para S��o P a u l o . �� de

l�� que quero receber teus livros. Um atr��s do o u t r o . Foi

para isso que nasceste.

Na minha casa, meu pai se opusera �� viagem:

��� O m u n d o , l�� fora, �� uma escola de perdi����o. Bas-

ta ver as revistas do Rio, no tempo do Carnaval, para fi-

car de cabelo em p��. O mais-que-maligno anda solto por

227

l��, desviando as almas do caminho de Deus. Bel��m,

maior que S��o Lu��s, deve ter mais pecados que aqui. Na-

da como cidade pequena, onde t o d o m u n d o se conhece.

J�� que desejas ir p a r a Bel��m, vai. Mas por uns tempos.

De l��, volta para c��. Nada de ir para o Rio.

Minha m��e, mais imaginosa, n��o pensava do mesmo

m o d o :

��� Deus est�� a te mostrar o caminho. At�� a passa-

gem de navio caiu-te do C��u. Vai embora. N �� o fiques por

l��. D�� um jeito de ir para o Rio. No Rio �� que eu te quero

ver. Vencendo. Fazendo figura.

E ali mesmo, com a chave passada na porta, que-

brou o porquinho de barro onde guardava as suas econo-

mias, ganhas na m��quina de costura. As moedas se espa-

lharam sobre o m��rmore da c��moda. Juntou-as de n o v o ,

por ordem de valor e t a m a n h o :

��� S��o tuas. �� tudo q u a n t o eu tenho. N �� o �� muito,

mas sempre d�� para sair de um aperto. J�� arrumei tua

mala de r o u p a . �� separei a outra mala de couro para teus

livros e pap��is. S�� quero que tenhas ju��zo. Nada de te ex-

cederes com as filhas alheias. Na tua idade, toda hora ��

hora para o passo em falso. N��o escorregues. Primeiro,

cuida de ti. Trata de fazer teu nome.

Daniel veio comigo at�� a porta do Liceu. Desceu a

escada com a m �� o no meu o m b r o . Foi ao p��tio em minha

companhia, depois voltou para o batente da porta sobre

a Rua Direita. Ali, travou-me do b r a �� o , noutro impulso

de confid��ncia:

��� J�� te disse que as ��ltimas cartas da Glorinha pare-

cem mais telegramas que cartas? �� verdade. Limita-se a

dizer-me que est�� bem, que eu n��o me preocupe com ela.

Eu j�� esperava por isso. No sanat��rio, com t o d o o dia

dispon��vel, as cartas eram, para ela, u m a forma de ocu-

pa����o. No Rio, ocupada na cl��nica, quase n��o disp��e de

t e m p o p a r a escrever. P a r a mim, o que realmente importa

�� a sa��de dela. T u d o mais �� acess��rio. Em casa, divirto-

me com a Maria Em��lia, que est�� na fase das perguntas.

228

Quer saber t u d o . Q u a n d o saio com ela, fica t o d a vaidosa

q u a n d o lhe dizem que �� o retrato da m �� e . ��. Pare-

cid��ssima. Aqueles olhos negros. Aqueles cabelos ondula-

d o s . Um amor de menina.

229

CAP��TULO II

Ao contentamento dos primeiros dias, com a ima-

gina����o a se debru��ar na a m u r a d a do navio, fora da bar-

ra, senhor exclusivo de meu destino, n �� o tardou a suce-

der em mim o sentimento da nostalgia e do remorso, por

a b a n d o n a r minha cidade, deixando para tr��s minha m��e,

meu pai, meus irm��os, meus amigos, meus colegas, sem

falar nas serestas das noites de plenil��nio, nas conversas

do Largo do C a r m o , no meu n a m o r o recente com a Ma-

ria Teresa. Tive de lutar comigo mesmo, noites seguidas,

ao embalo da rede, para n��o dizer ao Ribamar Pinheiro

que desistira da viagem.

Que outra cidade suplantaria S��o Luis? U m a ternu-

ra nova por tudo q u a n t o me cercava aflorou em minha

consci��ncia, constante, obsessiva. A rede em que me em-

balava parecia gemer comigo, rangendo no ferro dos ar-

madores. A luz do candeeiro de opalina, por cima do

m��rmore da c��moda, no pequeno quarto ao fundo de

minha casa, tinha uns tons vermelhos de pintura flamen-

ga, resvalando sobre a lombada de meus livros, na estan-

tezinha de cedro ao lado da rede ��� os livros que n��o po-

dia levar comigo, e dos quais teria de me lembrar, vezes

sem conta, como quem recorda amigos velhos que talvez

n �� o torne a encontrar.

�� mesa da sala de j a n t a r , com as irm��s de um lado e

os irm��os do o u t r o , e meu pai e minha m��e nas cabecei-

ras respectivas, a ouvir o tinido dos talheres na porcelana

dos pratos, de mistura com a toada certa do rel��gio na

230

parede, eu sentia mais tensos os meus nervos, e isto me le-

vava a precipitar as garfadas, com ��nsias de sair �� rua pa-

ra n��o explodir em p r a n t o , ou mesmo confessar mi-

n h a fraqueza.

Ainda bem que, ao saber de minha pr��xima partida,

sem promessa de voltar, a Amelinha se fez dadivosa co-

mo nunca, e foi pensando nela que fiz o Sebasti��o Cor-

reia tocar no violino a Serenata de Toselli, mais tarde, j��

noite velha, no conhecido sobrad��o bo��mio da Rua de

Nazar��.

Era como se eu fosse para a guerra. Dir-se-ia que,

a n d a n d o pelas ruas tranq��ilas, eu tinia as chilenas de mi-

nhas esporas, j�� na farda com que partiria para o campo

de combate. Era o guerreiro a despedir-se. Tinha direito

�� ternura de amigos e companheiros. Olhos lindos que

me tinham sido indiferentes, anos seguidos, agora me fi-

tavam, afetuosos e prometedores. No Caf�� Excelsior e no

Caf�� do Chico, no Largo do C a r m o , n��o me deixavam

pagar as despesas. E at�� na Pens��o da Chico, aonde fui

com u m a roda de companheiros, houve protestos gerais,

q u a n d o fiz o gesto largo para puxar a carteira.

E o Ant��nio Oliveira, falando por todos, na sua

condi����o de mais velho:

��� Hoje, n �� o .

At�� a noite com a Diva, no mirante do sobrado, na

cama rangente e espa��osa, correu �� conta da cortesia da

Chico, que me abra��ou, comovida, quase a chorar, no

p a t a m a r da escada, com ternuras maternas:

��� Vai, meu filho. Que Deus te proteja.

Despedi-me do Bandeira de Melo, no sobrado da

Rua de S��o J o �� o , e do Ribamar C o s t a , no sobrado

da Rua das Barrocas. Fui ao Anil despedir-me do Olivei-

ra, que me recebeu no port��o do jardim, com a boca re-

pleta de conselhos:

��� Ju��zo, muito ju��zo. Est��s na idade perigosa. Na-

da de bebida. Nem vida bo��mia. Trata de escrever teus li-

vros.

231

E n u m a s��plica, que me comoveu:

��� N �� o deixes de me escrever. Eu, por mim, escreve-

rei sempre, com as noticias e os fuxicos do Largo do Car-

m o .

Deixei para a v��spera da viagem, a noite, como der-

radeira despedida, a visita ao Daniel, nos arredores do

Largo de Santo A n t �� n i o . E tive esta surpresa: tudo ali es-

tava agora como ao tempo do casamento da Glorinha. J��

o piano n o v o , protegido por u m a capa de pano grosso,

ocupava o lugar do o u t r o , sob a mesma marinha inglesa,

de que o Daniel tanto se envaidecia.

Eu, com espanto, a p o n t a n d o para o q u a d r o :

��� C o m o conseguiu reav��-lo?

Daniel p��s-se a rolar na palma da m �� o o cigarro que

terminara de fazer. E erguendo o olhar, sem disfar��ar a

emo����o:

��� No dia de meus anos, deixaram o q u a d r o aqui em

casa, sem um cart��o, sem um bilhete. Fui �� loja do Gari-

baldi, para saber quem o havia c o m p r a d o , na ��poca em

que vendi quase t u d o o que tinha. Ele n��o me quis dizer,

alegando segredo profissional. Eu desconfio que os cole-

gas do Liceu se cotizaram para me fazer uma surpresa.

Q u a n d o abri o embrulho do presente, e dei com o qua-

d r o , chorei como um menino. Deus tem sido bom para

m i m . Deu-me a Glorinha, deu-me a Maria Emilia, deu-

me amigos. Amigos como voc��.

E levantando-se da poltrona:

��� Queres ver a Maria Em��lia? Precisas v��-la. Ela j��

est�� d o r m i n d o . Mas podes v��-la assim mesmo.

Entramos na alcova na p o n t a dos p��s. O Daniel pas-

sou �� frente, puxou o cortinado da caminha ao lado da

cama de casal. E, �� claridade do abajur, vi realmente a

Glorinha em miniatura. Igual �� m��e, no tom da pele, na

sali��ncia dos olhos, nos cabelos negros e crespos, no cor-

te da boca, nas linhas do corpo. Entre filha e m��e, nunca

eu tinha visto uma concord��ncia igual.

E n u m sussurro, segurando o bra��o do Daniel:

232

��� �� mesmo a Glorinha, sem tirar nem p��r.

��� At�� nisso Deus foi b o m para mim ��� reconheceu

Daniel, deixando cair novamente o cortinado. ��� Olho

para a Maria Em��lia como se estivesse a olhar a Glorinha.

E voltando �� sala de visita, que lhe servia tamb��m de

escrit��rio, vi os livros nos seus lugares, perfilados nas

prateleiras sucessivas, reluzindo na luz forte o doirado

das lombadas.

E Daniel, ao sentir minha alegria:

��� Por mais que eu tenha escrito �� Glorinha, para

lhe dizer que a casa j�� �� a mesma, sem ter m u d a d o nada,

eu sei que ela vai ficar espantada, q u a n d o voltar aqui.

Deus me protegeu, mas os amigos me ajudaram. T o d o s .

N �� o tenho de quem me queixar.

Somente na porta da rua, q u a n d o eu ia sair na cal��a-

da, foi que deixou transparecer uma pontinha de queixa:

��� As cartas da Glorinha �� que est��o mais espa��adas

e mais curtas. Sempre que custam a chegar, vou ao Cor-

reio, fa��o examinar as malas postais, e eu pr��prio vascu-

lho t u d o , para ver se a carta da Glorinha, que espero to-

das as semanas, n��o estaria retida, por u m a raz��o qual-

quer. Desta vez, aflito, passei-lhe um telegrama. Glori-

nha me respondeu no mesmo dia, pelo cabo submarino,

com a promessa de que iria mandar-me, dentro de pou-

cos dias, u m a longa carta. A carta que tem prometido

me escrever, desde que chegou ao Rio. Agora, todos os

dias, assim que dou a ��ltima aula, venho voando para ca-

sa, para ver se a carta j�� chegou. Hoje, chegou u m a , re-

gistrada. Lac��nica como as outras. Ou mais.

233

CAP��TULO III

N �� o foram os cinco a zero da derrota que mais me

deprimiram, nos primeiros dias de Bel��m. O time era fra-

co, a partida n��o poderia deixar de ser o que foi, ora sus-

citando risos, ora um esbo��o de vaia. Decorridos tantos

a n o s , tenho ainda na mem��ria o ar de espanto do goleiro

procurando a bola �� sua frente, por entre gargalhadas e

assobios, j�� com a pelota ��s suas costas, nas malhas da

rede.

Sa�� do campo de cabe��a baixa, as m��os nos bolsos

da cal��a, levando comigo aqueles apupos merecidos. Mas

a verdade �� que o meu interesse pelo futebol, nesse tempo

de sonetos e serenatas, descontadas as peladas da juven-

tude, n��o ia aos extremos da paix��o. Perd��ramos o j o g o ,

agora era esperar pela desforra ��� se houvesse desforra

poss��vel, depois de t a m a n h a surra.

O que realmente me apertou o peito, umedecendo-

me os olhos, foi a solid��o do quarto do hotel, depois de

ter a n d a d o horas e horas pelas ruas centrais da cidade,

sem encontrar um amigo, um conhecido, nas levas de

gente que iam e vinham pelas cal��adas.

Pela primeira vez na vida, eu me via fora de casa,

longe de minha fam��lia, de meus amigos, de minha terra,

nas quatro paredes de um quarto estranho, que abria so-

bre u m a rua indiferente, numa cidade que n��o me conhe-

cia. Defronte de minha janela, �� minha esquerda, era o

pr��dio da Biblioteca P��blica, fechado no fim da semana.

No sobrado ao lado, o Estado do Par��, com a algazarra

234

de suas m��quinas ressoando dentro da noite e trazendo

at�� a minha cama de ferro a trepida����o das imensas lino-

tipos.

N �� o desfiz o ba�� de couro, onde minha m��e acomo-

dara minhas roupas cheirando a alfazema, nem abri a

mala de meus livros, onde tamb��m trazia o esbo��o deste

romance e o caderno dos poemas. Sentia-me n u m a cela

de condenado, com aquela l��mpada nua a descer do meio

do teto, aquele len��ol encardido e aquela colcha esfiapa-

da nas p o n t a s . C o m o se o cub��culo me sufocasse, escan-

carei a janela, j u r a n d o a mim mesmo voltar urgente-

mente a S��o Lu��s, de onde jamais sairia. Onde os compa-

nheiros da mesa do Excelsior, no Largo do Carmo? Onde

as namoradas do Liceu? Que outra morena suplantaria

ali os olhos da Maria Teresa? Do��a-me a saudade de mi-

n h a casa, com o meu pai a ler a B��blia na cadeira de balan-

��o, enquanto minha m��e pedalava a m��quina de costura.

Lembrei-me da Glorinha, muitas e muitas vezes, sem

parentes ao seu lado, sozinha num sanat��rio, ap��s onze

dias de navio e um de trem, sem saber se refaria o seu ca-

m i n h o , de torna-viagem, ou se ficaria por l��, no pequeno

cemit��rio por tr��s da m o n t a n h a . S�� agora eu podia ajui-

zar de seu sofrimento. E admirei-a tamb��m por isso, ao

mesmo tempo em que me inspirava na sua li����o para

abrir a mala dos livros, em seguida o ba�� das roupas.

J�� na outra semana, a velha cidade indiferente, que

parecia n��o me dar a mais vaga aten����o, envolveu-me

nos meigos olhos castanhos de u m a companheira de bon-

de, e por eles comecei a descobrir as ruas orladas de man-

gueiras, os bancos de jardim sob as p��rgulas verdes, os

barcos fatigados e repletos que arquejam dia e noite no

Cais do Ver-o-peso, o sil��ncio e a paz da Cidade Velha.

U m a reclama����o ao gerente do hotel, no m o m e n t o

de pagar-lhe minha primeira quinzena, proporcionou-me

quarto mais amplo, com papel pintado nas paredes,

t a m b �� m de frente, e pelo mesmo pre��o, dada a circuns-

t��ncia de que eu estava decidido a morar ali, perto do

235

Gin��sio Paes de Carvalho, onde ia iniciar o curso pr��-

juridico.

No dia seguinte ao da mudan��a de q u a r t o , fui sur-

preendido com u m a secret��ria de imbuia e uma estante,

no espa��o entre a cama e a janela, com toda a luz da rua,

e mais um lavat��rio esmaltado e um penico de lou��a in-

glesa, este debaixo da cama, aquele ao fundo do aposen-

t o , ao lado da porta, luxos apenas dispensados aos h��s-

pedes que pagavam em dia as suas contas.

Acomodei no vidro da secret��ria o esbo��o do ro-

mance. J�� ali estava a Glorinha, alta, vistosa e calada,

sem eu saber ainda o destino que lhe daria. Drama?

Trag��dia? Final feliz? Dei-lhe o nome da Maria Teresa,

mais pr��xima de minha saudade amorosa. O mesmo an-

dar da mulher do Daniel. Os mesmos olhos. A mesma

ternura. E o mesmo gosto pela vida, b a n h a d a pela clari-

dade alta que envolvia o casar��o do Liceu Maranhense.

No entanto, antes de puxar novamente o fio do ro-

mance, misturando verdade e fantasia, derramei-me em

cartas sucessivas para S��o Lu��s. A flu��ncia epistolar, nes-

ta letrinha mi��da, pr��pria para confid��ncias, atenuou-

me esplendidamente a solid��o do quarto de hotel, e eu lo-

go reatei as longas conversas com o Oliveira, o Ribamar,

o Bandeira de Melo, o Correia da Silva, o Daniel, sem es-

quecer as boas amigas e as n a m o r a d a s . Ah, folhas de pa-

pel de bloco, companheiras diletas de minhas ins��nias e

de meus sil��ncios! Confiei-vos minhas saudades e meus

amores, meus sonhos e minhas ilus��es, meus desaponta-

mentos e minhas c��leras (?), e estou a lembrar-me das

l��grimas que desciam de meu rosto q u a n d o escrevi estas

palavras, em carta �� minha m��e: " H o j e a senhora faz

a n o s , e eu n��o estou ao seu l a d o . "

Se as respostas n��o tinham a mesma flu��ncia, sem-

pre davam para me p��r em dia quanto ��s novidades e

murmura����es de S��o Lu��s. Quem n��o tardava a escrever-

me era o Daniel, no seu cursivo fino e uniforme, sempre a

me falar da mulher e da filha. Em min��cias, acompanhei

236

o sarampo e a coqueluche da Maria Em��lia. E de repente,

pelo meado de j u l h o , este imprevisto: "A Glorinha, coi-

tada, teve um contratempo, que escondeu de mim: dois

meses de gripe rebelde, com amea��os de pneumonia agu-

d a . Seu m��dico pensou em mand��-la de volta ao sa-

nat��rio, temendo o pior. Da�� seu sil��ncio, nestes dois me-

ses, s�� me d a n d o not��cia pelos dois telegramas em que me

disse que estava bem. Resultado do contratempo: Glori-

nha vai ter de passar mais um ano no Rio. Eu, que a espe-

rava p a r a o Natal, com a casa refeita, tive de adiar minha

alegria, um tanto desapontado. Paci��ncia. Deus �� que sa-

be, aqui na terra, os nossos c a m i n h o s . "

237

CAP��TULO IV

O Ant��nio Oliveira, a quem cham��vamos de pa-

triarca, por ser o mais velho do grupo, dava-me not��cias

dos companheiros: "O Bandeira de Melo me disse que

n �� o te escreve porque s�� tem tempo agora p a r a se dirigir

�� Posteridade: escreve o seu poema, digno de competir

com o Y-Juca-Pirama. Gon��alves Dias que se cuide.

Quem te m a n d a lembran��as, sempre que se encontra co-

migo, �� o M a t a R o m a : assim que entrar em f��rias no Li-

ceu, responder�� tuas cartas. O Ribamar voltou a usar

pincen��: cai melhor com a sua condi����o de ensa��sta, mer-

gulhado na literatura h��ngara. O Nascimento Morais, al-

t o , gordo, com o chapeuzinho de feltro no t o p o da ca-

be��a, continua a dar a impress��o de um barco em alto-

m a r , q u a n d o atravessa o Largo do C a r m o , a caminho do

Liceu: n��o anda ��� veleja. O Correia da Silva, de bra��o

d a d o com o Assis Garrido, presume que os olhamos, nas

noites de retreta, na P r a �� a Benedito Leite, co m o se um

fosse Schiller e o outro Goethe, em S��o Lu��s. Que Deus

os perdoe. Estive com o Daniel, s��bado passado: vinha

saindo da S��, ao fim da missa, em companhia da filha,

que n��o podia ser mais bonita. Tive a impress��o de que

ele anda preocupado, c om o se houvesse um mist��rio

qualquer em t o r n o da G l o r i n h a . "

E r a b e m a l��ngua afiada do L a r g o do C a r m o .

Mist��rio em t o r n o da Glorinha? Que mist��rio? A falta de

not��cia, em vez de dar ensejo ao esquecimento, servia de

pretexto �� m u r m u r a �� �� o um tanto vaga. Na volta do Cor-

238

reio, chamei o Oliveira �� ordem: "A Glorinha teve um

amea��o de recaida, na fronteira da pnemonia; j�� est��

b o a , mas ainda sob vigil��ncia m��dica, por mais algum

t e m p o . D�� um n�� na lingua, q u a n d o n��o estiver bem in-

f o r m a d o . "

Na s e m a n a seguinte, Oliveira d e u - m e o t r o c o :

" Q u a n t o �� Glorinha... Cala-te, b o c a ! "

As cartas de meu pai, sempre apoiadas nos vers��cu-

los da B��blia, seguiam-me os passos, como se os adivi-

nhassem, ou se o velho contasse com outro protestante,

em Bel��m, para me vigiar, servindo-lhe de informante.

Desta vez, acertou em cheio com o meu n a m o r o n o t u r n o ,

na Avenida S��o Jer��nimo, sob a cumplicidade do galho

de mangabeira que neutralizava a luz do lampi��o: " M u -

lher virtuosa, quem a a c h a r �� ? " E dava-me a fonte:

Prov��rbios, cap. 3 1 , vers. 10. L�� adiante, como remate,

outra bobagem de Salom��o, no mesmo livro: "A mulher

formosa e insensata �� como um anel de ouro na t r o m b a

de u m a p o r c a . "

Minha m��e preferia recorrer �� sua pr��pria lingua-

gem: " T e m cuidado com as mo��as da��, meu filho. Est��s

muito mo��o para ca��res no la��o de u m a delas. Quem v��

cara bonita n��o v�� o bote que ela est�� p r e p a r a n d o . T u d o

tem a sua hora. Teu pai, q u a n d o casou, tinha 31 anos;

eu, 25. Teu primo Mois��s, da tua idade, acaba de casar

na Pol��cia, com u m a doidinha do Anil. T u a tia anda com

a cara q u a d r a d a de vergonha. T o d a cautela �� pouca. N �� o

preferias estudar no Rio? L�� o meio �� maior, tens outro

campo p a r a te expandires. Gra��as a Deus, j�� consegui en-

cher outro porquinho de barro com as moedas de minhas

costuras. S��o tuas, q u a n d o quiseres mudar de terra. Te-

n h o orado muito p a r a que Deus te p r o t e j a . "

A Cleide, que ultimamente quase n��o falava comi-

go, depois de me ter levado a trocar o Liceu pelo Col��gio

Cisne, surpreendeu-me com u m a carta em t o m gaiato,

em que percebi a dor-de-cotovelo por baixo da goza����o:

"Tive not��cias tuas pela Tribuna de hoje. Estou gostando

239

de ver o brilhante colega: colaborador do Estado do

Par��, primeiro pr��mio de orat��ria no Centro dos Estu-

dantes, e um livro publicado! Sim senhor! Parab��ns. O

soneto da Tribuna de domingo foi escrito agora? Ou �� da

fase em que os olhos verdes eram os meus? C o m o n��o te-

n h o o monop��lio deles, pude ler a poesia com a necess��-

ria isen����o, aplaudindo-a unicamente como admiradora.

Salve, poeta! Ja te contaram que estou noiva? Quase. E

com o juiz de direito de Pedreiras. �� verdade. Gostou de

mim, e eu dele: em breve estaremos a m a r r a d o s , at�� que a

morte nos separe. Por falar em morte: j�� soube que mor-

reu u m a tia da Glorinha? Morava com a irm��, desde que

a Glorinha casou. E tinha um nome estranho, como a D.

Escol��stica. Chamava-se Firminiana. Meu pai foi n a m o -

rado dela. Era uma pimenta, quando mo��a. Do que eu

escapei. Meu irm��o cadete, que estuda no Rio, viu por l��

a Glorinha, saltando de um bonde no centro da cidade.

N �� o chegou a falar com ela. De longe, cumprimentou-a.

Mas a Glorinha, ou n��o viu o Quincas, ou fingiu que n��o

o viu. O certo �� que, na confus��o da cal��ada, ele a perdeu

de vista, como se ela se houvesse metido em alguma porta

ou algum buraco. Bonita, como no tempo do Liceu.

Aqui constou que ela j�� est�� boa. Se estivesse, j�� tinha

voltado. O Daniel, pelo que se sabe, anda meio de p o n t a

com a sogra. Esta, na aus��ncia da filha, quis ficar com a

neta, mas o genro n��o concordou: ele pr��prio cuida da

menina, assistido por uma criada portuguesa, que faz as

vezes de governante. N �� o �� crian��a. Deve ser mais velha

que a D. Escol��stica, e com um bu��o exagerado. �� o que

salva o Daniel: do contr��rio, j�� estariam a falar mal dele

com a criada, na longa aus��ncia da mulher. Nossa t u r m a

j�� se dispersou. A Enedi casou. A Helo��sa, noiva. A

Maria Jos��, funcion��ria p��blica. Tu, a��. Em resumo: ca-

da um a seguir seu caminho. No Col��gio Cisne, a novida-

de maior �� que o professor Arimat��ia se desfez da vaca e

do bezerro. Aquele cheirinho caracter��stico, que subia

para a sala de aula, trazido pela brisa da tarde, j�� perten-

240

ce ao passado. T u a m��e, com quem me encontrei h�� dias,

disse-me que est��s pensando em ir para o Rio. Se fores,

ter��s de passar por aqui. T o m a r a que seja antes de eu ir

para Pedreiras. A v i s a . "

N �� o dava para entender. Meses antes, na v��spera de

minha vinda para Bel��m, eu tentara despedir-me da Clei-

de, e ela fugira de mim, m u d a n d o de cal��ada, correndo o

risco de ser atropelada por um carro, defronte da Biblio-

teca P��blica. Agora, era novamente a Cleide do tempo

d o L i c e u , b r i n c a l h o n a , a f e t u o s a , c o m u n i c a t i v a ,

restituindo-me a saudade de seus olhos adolescentes, que

eu guardaria para sempre no meu m u n d o de lembran��as,

sem de longe supor que, no m��s seguinte, o Daniel iria

dizer-me, no p��s-escrito de u m a nova carta: "A not��cia

triste �� que morreu a Cleide. De repente, ap��s tomar uma

inje����o. J�� estava de casamento m a r c a d o . U m a pena. Fui

ao seu enterro. T o d a a t u r m a estava l��, menos voc�� e a

G l o r i n h a . "

Apoiei a costa das m��os nos joelhos, sentado na ca-

m a , com a carta diante de mim, aturdido, siderado. Co-

mo era poss��vel aquilo, meu Deus? Levei v��rios dias ator-

d o a d o , com a sensa����o de que a vida, t��o l��gica e precisa

no seu encadeamento natural, subitamente se desorienta-

va, perdendo o controle de si mesma.

No princ��pio de dezembro, de volta de uma viagem a

Soure, a que fora levado pelos mesmos olhos ternos do

b o n d e d a A v e n i d a S��o J e r �� n i m o , e n c o n t r e i o u t r o

vers��culo da B��blia, na letra de meu pai: " N �� o te deixes ir

atr��s dos artif��cios da m u l h e r . "

A lembran��a dos seios morenos da No��mia, banha-

dos pelo manso luar da ba��a de Guajar��, refluiu-me ��

consci��ncia, como se eu os tivesse novamente diante de

mim, rijos e oferecidos. Aos 18 anos, quem �� que pode

ter ju��zo, no vaiv��m de uma rede? Mas o exemplo de meu

primo, obrigado a casar em S��o Lu��s, levou-me a refletir,

insone, boa parte da noite.

241

Por esse t e m p o , j�� eu tinha em N��lio Reis o meu me-

lhor amigo. De parceria, hav��amos publicado o nosso

primeiro livro, cerca de vinte cr��nicas hist��ricas, apenas

com este m��rito: o de servir de pretexto a que emend��s-

semos a m �� o nos livros seguintes. Eu era o seu primeiro

aplauso; ele, o meu.

Pela m a n h �� , bem cedo, fui �� casa do N��lio:

��� M a n o , vou para o Rio no primeiro vapor.

E ele, sem me pedir explica����o da viagem:

��� Pois ent��o vamos juntos ��� respondeu-me.

Ele estava acabando de escrever Sub��rbio, seu pri-

meiro romance. Eu ia em meio do romance de Maria Te-

resa, deixado ainda sobre a mesa, no meu quarto de ho-

tel.

Na semana seguinte, q u a n d o nos recolhemos ao ca-

marote, ouvindo o mar bater nos costados do navio,

N��lio me disse, com ar alvissareiro:

��� Terminei o romance. E o teu, como vai?

Fiz um gesto vago p a r a lhe replicar que estava meio

p a r a d o . E a verdade �� que, naquela mesma viagem, na-

quele mesmo navio, o romance real da Glorinha ia repen-

tinamente caminhar para o seu desfecho.

242

CAP��TULO V

Quando revi S��o Lu��s, envolta pela luz sangu��nea

da primeira claridade do dia, vim para a proa do navio,

ainda fora da barra, para assistir, emocionado, �� sua gra-

dativa apari����o ��� as torres das igrejas, a fachada branca

da ermida dos Rem��dios, os telhados escuros, a muralha

sobre que se alteia o Pal��cio dos Le��es, o penacho verde

das palmeiras, a orla de sobradinhos da Praia Grande,

at�� que ouvi o rolar da ��ncora buscando a areia da ensea-

d a , exatamente no m o m e n t o em que surgia o bondinho

que faz a curva do Cais da Sagra����o, descendo na dire����o

da Rua do Trapiche.

Deixei o N��lio Reis entregue aos parentes maranhen-

ses que o vieram buscar a b o r d o , na lancha do pr��tico da

barra, e tratei de ir ao encontro de mim mesmo, na lan-

chinha nervosa que me deixou no Cais da Sagra����o. T o -

mei um carro de pra��a, ali mesmo, e galguei a ladeira que

me levaria �� Rua dos Rem��dios. Avistei de longe minha

casa. L�� estava ela, com as duas janelas sobre a cal��ada,

a porta alta guarnecida pela cancela de ferro.

Bati palmas no corredor, como se fosse um estra-

n h o , mas n��o tive paci��ncia de esperar que me viessem

atender, ouvindo as vozes da fam��lia reunida em redor da

mesa do caf�� matinal. Transposta a porta do meio, que

abri sem dificuldade, surgi na porta da varanda, e houve

um sil��ncio, depois um grito de j��bilo, enquanto minha

m��e, desconfiada, vinha vindo para mim, apreensiva:

243

��� Que houve com voc��? Alguma coisa que n��o deu

certo?

E q u a n d o a tranq��ilizei, apertou-me contra o peito,

com o rosto no meu rosto, ao mesmo tempo em que mi-

nhas irm��s e meus irm��os me disputavam. S�� meu pai se

conservou na sua cadeira de couro, �� cabeceira da mesa,

a olhar-me. E assim que fiquei perto, buscando-lhe a

m �� o com que me aben��oava, levantou-se tamb��m:

��� Que vieste fazer aqui, sem nos avisar? Devias ter

avisado. Eu teria orado para que Deus te acompanhasse.

Era o velho tom grave de quem se entendia direta-

mente com Deus, sempre que orava. Depois, sorrindo, ao

saber que eu estava seguindo para o Rio de Janeiro,

abra��ou-me tamb��m:

��� Afinal, vais mesmo? Deus h�� de ter te inspirado.

Estes poetas s��o uns eternos poetas.

Passado o alvoro��o dos primeiros momentos, minha

m��e me levou para o fundo da casa, trancou-se comigo

no meu antigo quarto:

��� Juras para mim que n��o houve' nada contigo?

Olha l��.

Por fim, novamente tranq��ilizada, foi buscar o por-

quinho de barro repleto de moedas. E ela pr��pria o

abriu, quebrando-lhe o focinho:

��� Deve ter mais que o o u t r o . Subi o pre��o das cos-

turas, pensando na tua nova viagem.

Separou as moedas, contou-as, e toda ela resplande-

cia no instante em que meteu no meu bolso toda a sua

fortuna:

��� Com o favor de Deus, nada te vai faltar. Se tive-

res algum problema, telegrafa. Eu ainda tenho os cor-

d��es de ouro e os brincos de brilhante que recebi de meu

pai q u a n d o casei. Est��o guardados para u m a hora de di-

ficuldade.

Na minha aus��ncia, alguma coisa havia m u d a d o em

S��o Luis. Morrera o Dr. Neto Guterres, o Dr. Justo se

atirara da janela de seu sobrado, o Polari se m u d a r a para

244

Fortaleza, levando os livros velhos de sua loja, j�� se fala-

va da constru����o de u m a ponte para o S��o Francisco, o

Ant��nio Pires deixara de apresentar os recitais de sua

H o r a de Inverno. T u d o o mais permanecia como eu dei-

xara: o Largo do C a r m o , o tinido da lou��a no caf�� da es-

quina, os mesmos grupos de ociosos ilustres em redor da

est��tua de J o �� o Lisboa, a mesma revoada de saias azuis e

blusas brancas, no m o m e n t o em que saiam da Rua do Egi-

to os grupos de alunas do Col��gio Santa Teresa. L�� esta-

va o desembargador Domingos Am��rico, �� porta da Casa

Dias, escorado no seu bengal��o agressivo. T u d o igual. Vi

logo o Oliveira, o Ribamar, o Bandeira de Melo, o Cor-

reia da Silva, o Ant��nio Lopes, o Mata R o m a , o padre

Chaves, o imenso nariz vermelho do padre Lemercier.

Debalde procurei pelo Sebasti��o Correia.

E o Oliveira, dando-me noticias dele:

��� �� ave noturna, s�� aparece de noite.

Mas de noite eu n��o estaria mais ali. ��s seis horas,

com a ��ltima luz da tarde, o navio zarparia do p o r t o , ras-

gando as ��guas da mar�� cheia, no r u m o da barra.

Vi passarem as raparigas da Pens��o da Chico, des-

cendo a ladeira da Rua de Nazar��, provocantes, vestido

colado ao corpo, flor nos cabelos, e quase as chamei pelo

n o m e :

��� Denise, Eul��lia, Jovina, Maria Clara.

E o Oliveira, em dia com as borboletas novas:

��� Temos agora a Silvina e a Lola, que esi��o fazen-

do furor. O Chamin�� �� ainda o pianista da pens��o. Em

dia com as m��sicas novas.

Recordei-as com saudade e gratid��o, �� porta da Li-

vraria Moderna, ainda sentindo o perfume que tinham

deixado ao passar. F o r a m elas, essas encabuladas rapari-

gas de prov��ncia, vindas do interior para a capital, muitas

sem saberem assinar o nome, que descobriram a muitos

de n��s, mo��os inexperientes, dando-nos a consci��ncia e a

plenitude de nossa virilidade. Ao sairmos do sobrad��o da

Chico, pis��vamos com for��a os degraus da escada,

245

sent��amos o afago do vento na cal��ada da rua, e ��ramos

outros, no desvanecimento de nossa condi����o, ao chegar-

mos ao Largo do C a r m o .

Mestre Ant��nio Lopes, sabendo de minha chegada,

deixara-me recados em todos os bares do largo, e ainda

na Casa Dias e na Livraria do Ramos de Almeida. E

q u a n d o deu comigo, ao p�� da escadaria da S��, pelo meio

da tarde:

��� C a r a m b a ! Que dificuldade para te achar! Estou

vindo de tua casa, na Rua dos Rem��dios! J�� sei de t u d o .

R u m o ao Rio. Muito bem. �� o teu caminho. J�� escrevi

para o Viriato Correia, pelo Correio A��reo, dizendo

quem tu ��s. N �� o deixes de procur��-lo.

E s�� me deixou pelo fim da tarde, �� hora em que to-

mei a lancha na R a m p a do Pal��cio, de volta ao navio. A

despedida da fam��lia, pouco antes, fizera-me chorar. A

consci��ncia da dist��ncia maior, que da�� adiante ia nos se-

p a r a r , aumentou-nos a emo����o. S�� meu pai, s��rio, com

um leve tremor no l��bio inferior, parecia senhor de si, na

confus��o das l��grimas e dos abra��os:

��� J�� me entendi com Deus a teu respeito. T u d o vai

dar certo. Far��s uma ��tima viagem.

Minha m��e, chorando muito, apertou-me contra o

magro peito. E q u a n d o p��de falar:

��� Ju��zo. Muito ju��zo. Olha o que aconteceu com teu

primo. J�� tem um filho. E anda por a�� de nariz comprido,

sem emprego.

Assim que alcancei o portal�� do navio, j�� com o ma-

rinheiro impaciente a puxar os cabos da escada, avistei o

N��lio Reis no tombadilho, carregando u m a crian��a:

��� Sabes quem �� esta menina?

Era a Glorinha em bot��o que ali estava, n��o apenas

no lume do olhar, no moreno da pele, nas linhas do ros-

t o , na ondula����o dos cabelos, mas tamb��m em certo mo-

do de rir e falar.

E eu, para o N��lio:

��� Conheci esses olhos negros antes que ela nascesse.

246

Depois, q u a n d o o navio se fez ao largo, Daniel

postou-se ao meu lado, com a cabe��a bonita da Maria

Em��lia aconchegada ao o m b r o , para ver S��o Lu��s desapa-

recer na volta da P o n t a da Areia. E enquanto as ondas se

alteavam, j�� em plena barra, acercou-se mais de mim, pa-

ra me confiar o seu segredo:

��� Vou fazer uma surpresa �� Glorinha. Ela n��o sabe

desta viagem. Preparei tudo em sil��ncio. N �� o deixei nin-

gu��m saber. Vim mesmo para b o r d o �� ��ltima hora. Pelos

meus c��lculos, vamos chegar ao Rio no derradeiro dia do

a n o . Do navio, sigo para um hotel, no Catete. E �� noite,

q u a n d o o Ano-Novo estiver chegando, levo comigo a

Maria Em��lia, e vou bater na casa onde a Glorinha est��

hospedada. J�� pensaste na alegria que ela vai ter?

Antevendo a cena, sorria feliz, com a luz do tomba-

dilho a escorregar-lhe pelo rosto. E p u n h a o dedo diante

dos l��bios, para que eu n��o contasse o seu segredo a nin-

gu��m.

247

N O N A PARTE

O amor f��sico, e unicamente f��sico, per-

doa toda infidelidade. Mas tu, amor da

alma, amor apaixonado, n��o podes per-





doar.


A L F R E D D E V I G N Y

CAPITULO I

Os contratempos da chegada n��o desanimaram

Daniel. Primeiro, a chuva que molhava a cidade desde a

madrugada; depois, a luta para conseguir um quarto de

hotel, ali no Catete, no endere��o que lhe tinha dado a

b o r d o um caixeiro viajante.

E o gerente, por tr��s do balc��o, co��ando a nuca,

com um l��pis preso �� orelha:

��� No fim do a n o , com a cidade repleta de turistas, ��

muito dificil encontrar alojamento. O senhor devia ter

passado um telegrama, para fazer a reserva, ou ent��o

procurado uma ag��ncia de viagem, que tomaria essa pro-

vid��ncia. Sem reserva, nem compromisso do hotel, u m a

vaga, hoje, a esta hora, n��o �� dif��cil, �� imposs��vel.

E o que Daniel n��o p��de conseguir, com a sua fala

mansa e o seu ar suplicante, p��de a voz da Maria Emilia,

que puxava o pai pelo bra��o, impaciente:

��� Estou cansada, pai. Quero me deitar.

Logo o gerente inflex��vel, que n��o tinha dado por

ela, olhou-a com espanto, curvando-se sobre o balc��o, a

perguntar-lhe:

��� Est��s muito cansada, boneca? E queres u m a ca-

ma para deitar? Muito bem.

E para Daniel, que protegia a filha com as m��os so-

bre seus ombros, atraindo-a para si:

��� Serve-lhe um quarto de fundos, com uma cama

de casal?

251

��� C o m o n �� o , meu caro amigo? E ainda levanto as

m��os p a r a o c��u, reconhecido �� bondade de Deus.

E o gerente, t e n t a n d o segurar a m �� o da Maria

Em��lia:

��� Vem comigo, boneca.

E como a menina se retra��sse, caminhou na dire����o

da escada, seguido pelo Daniel e a filha, enquanto um se-

n h o r de bon��, a b o t o a d o n u m d��lm�� azul, vinha mais

atr��s, carregando as duas malas dos novos h��spedes.

L�� no alto, ao fundo do corredor comprido, o geren-

te voltou a desculpar-se, olhando Daniel, assim que abriu

a porta do q u a r t o :

��� N �� o h�� o u t r o . Dentro de um dia ou dois, arranjo-

lhe coisa melhor.

E r a um quartinho estreito, quase todo ocupado pela

cama de casal, com u m a janela alta abrindo para um

p��tio interno, um peda��o de m u r o e uma nesga de c��u.

��� �� ��timo ��� aprovou Daniel.

Pensou em acrescentar que, no dia seguinte, ou no

o u t r o , n��o estaria mais ali, j�� transferido, juntamente

com a filha, p a r a a mesma casa em que estava hospedada

a m��e da menina; mas susteve a palavra, com receio de

melindrar o senhor sol��cito e rosado, que voltava a

curvar-se para falar �� Maria Em��lia:

��� C o m o te chamas? A h , n �� o tens l��ngua? Ser�� que

deixaste a tua l��ngua no navio? Ou foi no M a r a n h �� o ?

E a menina, com vivacidade:

��� Minha l��ngua est�� aqui, dentro de minha boca.

E o gerente, com ar risonho:

��� Est�� a��, dentro de tua boca? Queres dizer que sa-

bes falar, mas n �� o sabes teu nome? Ou ser�� que, no Ma-

r a n h �� o , as meninas bonitas n��o t��m nome?

Maria Em��lia, embora sonolenta, encostada ao pai,

ergueu com rapidez as p��lpebras semicerradas:

��� T��m n o m e , sim senhor. E o meu �� Maria Em��lia.

��� Lindo n o m e . Muito parecido com a dona.

252

Maria Em��lia desencostou-se do pai e foi estirar-se

na cama, extenuada, friorenta, enquanto o gerente sa��a

ao corredor, depois de dizer ao Daniel que desculpasse:

dentro de um dia ou dois, dar-lhes-ia um quarto de fren-

te, com duas janelas sobre o Pal��cio do Catete.

E Daniel, reconhecido:

��� Obrigado, meu bom amigo. E boas entradas.

Cerrou a porta, passou-lhe a chave, e ficou um mo-

mento indeciso, a olhar para o quartinho ex��guo, com o

guarda-roupa apertado entre a parede e a cama, quase

sem espa��o para lhe abrir a porta. E argumentou, vendo

a filha adormecida:

��� Com esta chuva pegajosa, todo abrigo me servia.

Esfregou as m��os frias, tentando aquecer-se, em se-

guida tratou de fechar mais a janela, sentindo que o ven-

to se insinuava pela fresta das r��tulas.

Felizmente, ao sobrevir a tarde, o tempo melhorou,

com a chuva passada e o sol a se abrir por cima das po��as

de ��gua e do casario molhado. Por volta das quatro ho-

ras, j�� as ruas estavam secas. E a Maria Em��lia, que des-

pertara antes do meio-dia, e andara por todo o hotel, de-

pois do almo��o no refeit��rio, agora lhe pedia, puxando-o

pelo bra��o:

��� Vamos sair, papai. Eu n��o estou mais cansada.

Este quarto me aperta. Parece o camarote do navio. Va-

mos. Vamos sair.

E n��o compreendia por que o pai lhe recusava o pas-

seio, e ainda lhe sorria, com o dedo indicador confirman-

do a recusa, sem sair da cama. Como as for��as lhe faltas-

sem para tir��-lo dali, argumentava com ele, muito s��ria,

quase a chorar. N��o estava mais chovendo. Havia muita

gente nas cal��adas. Era s�� uma voltinha, como ela e ele

faziam em S��o Lu��s, no Largo de Santo Ant��nio. Por

fim, com ar amuado, amea��ou sair sozinha e ir embora

para o Maranh��o:

��� Vou, vou embora. J�� te disse que vou, e vou mes-

mo.

253

Daniel sentou-se na cama, a b o t o a n d o o colarinho da

camisa:

��� Pois ent��o vamos sair. Vamos. Mas s�� para u m a

voltinha. Papai est�� cansado da viagem. E quer estar bem

disposto, �� noite, para ir com voc�� ver m a m �� e . Enxugue

esse rosto. Enxugue. Papai vai fazer sua vontade.

N �� o lhe quis dar a raz��o verdadeira. C o m o entender

que o receio dele era encontrar a Glorinha, numa das

ruas do Catete ou de Laranjeiras, transformando n u m a

banalidade a surpresa da noite, com que tanto havia so-

nhado? J�� sabia que a pra��a onde a Glorinha morava era

ali perto, adiante do Largo do M a c h a d o . E se ela estives-

se na rua, a fazer compras, ou saindo para a clinica? En-

tregava o caso a Deus.

E p a r a a filha, ap��s a b o t o a r o j a q u e t �� o azul,

estendendo-lhe a m��o carinhosa:

��� Vamos embora.

Antes de sa��rem �� cal��ada, olhou para um lado e pa-

ra o o u t r o , estendeu a vista ao longe, afinal decidiu-se

por u m a pequena rua transversal, de pouco movimento,

�� direita do hotel, e foi a n d a n d o devagar, pronto a

esgueirar-se por uma porta ou uma travessa, se visse de

longe algu��m que se parecesse com a Glorinha.

E viu realmente, antes de chegar �� outra esquina, an-

dando na dire����o oposta �� do Pal��cio do Catete, u m a

mo��a morena, de costas, e que lhe lembrou a mulher.

Uma loja de brinquedos, na volta da rua, repentinamente

o salvou:

��� Voc�� n��o quer que eu lhe compre u m a boneca,

minha filha? Pois ent��o vamos entrar nesta loja.

Sa��ram de l�� carregados, de volta ao hotel, com u m a

boneca portuguesa que dizia papai e m a m �� e , uma cami-

n h a de madeira do t a m a n h o da boneca, e mais um fog��o-

zinho, um ursinho de pel��cia e um pianinho, tudo esco-

lhido pela Maria Em��lia.

254

E Daniel, novamente na cal��ada:

��� Agora, vamos para o hotel. Voc�� brinca, papai

descansa, e �� noite vamos visitar m a m �� e .

255

CAP��TULO II

P e l o espelho de tr��s faces da penteadeira, que

abrangia quase toda a alcova, Glorinha viu o Teixeira

terminar de compor o la��o da gravata no espelho do

guarda-roupa, j�� com a cal��a do esm��quingue.

E ele, olhando-a tamb��m pelo espelho:

��� S��o quase onze horas. �� melhor que cheguemos

mais cedo, para evitar a confus��o das mesas.

E m b o r a s�� lhe faltasse p��r as luvas e o colar, Glori-

nha retardava os retoques do rosto com a pluma do ruge,

c o m o se preferisse esperar ali mesmo o Ano-Novo, na

companhia exclusiva do marido, em vez de ir ao reveiom.

Ele, no ret��ngulo da porta, esticando sobre os om-

bros altos o el��stico dos suspens��rios:

��� Vais gostar do reveiom na Urca. N �� o foi f��cil

conseguir a mesa. Tive de me valer de um amigo l�� de

dentro e que foi meu cliente. N �� o havia u m a s�� dis-

pon��vel. Foi preciso que ele mandasse acrescentar mais

u m a , s�� para n��s, bem defronte do palco. O lugar n��o

podia ser melhor para apreciar o show.

E ao ver Glorinha deixar a pluma, voltando a reto-

car os l��bios com a p o n t a do b a t o m , bem perto do espe-

lho:

��� J�� era tempo de irmos juntos a esses lugares. N �� o

podes passar a vida inteira dentro de casa.

Afeita �� reclus��o do sanat��rio, Glorinha se ajustara

facilmente ��quele seu novo espa��o, portas adentro, jane-

las cerradas, no aconchego da pra��a que lhe lembrava as

256

pra��as de S��o Lu��s, com seu sil��ncio, seu chafariz trans-

bordante, suas crian��as brincando de roda nas mansas

noites de luar. Al��m dos livros, do r��dio e da vitrola, ti-

n h a o piano para lhe fazer companhia, nas horas em que

o Teixeira trabalhava na cl��nica, ou sa��a ��s pressas p a r a

atender algum caso de urg��ncia. Nestas ocasi��es, se era

noite, ela o esperava �� mesa da sala de j a n t a r , c o m p o n d o

o seu jogo de paci��ncia, at�� ouvir o ranger do p o r t �� o de

ferro. Logo reconhecia os passos do companheiro nas pe-

dras do jardim. E antes que ele enfiasse a chave na fecha-

dura da porta, girava a ma��aneta, abrindo-lhe o trinco.

O Teixeira, preocupado, tentava dar �� voz um tom

de reprimenda necess��ria, antes de beij��-la:

��� Por que n��o foste deitar?

A resposta dela era a mesma das outras noites:

��� S�� sei dormir contigo ao meu lado.

Em seguida, apagadas as luzes de outras pe��as da ca-

sa, iam os dois para a alcova ampla, ele a envolv��-la pela

cintura do penhoar, ela a sentir-lhe o bra��o como um

ref��gio, tal como apareciam na fotografia que adornava

o p i an o, no realce da moldura de prata, ao lado da foto-

grafia da Maria Em��lia, vestida de cigana, na fantasia do

��ltimo Carnaval.

Agora, vestido o palet��, o Teixeira avan��ou um pas-

so, acercando-se da penteadeira, e perguntou se Glorinha

havia posto no Correio a carta para o Daniel.

E ela, mais perto do espelho:

��� N �� o . Cheguei a entrar no Correio para comprar o

selo, mas mudei de id��ia. S�� devo mand��-la depois deste

per��odo de festas. Seria u m a crueldade d o b r a d a , se a

mandasse agora.

O Teixeira aproximou as sobrancelhas:

��� E o teu medo de encontrar no reveiom algum co-

nhecido de S��o Lu��s?

��� Deus, no dia de hoje, n��o vai p��r nenhum mara-

nhense em nosso caminho. T u d o vai dar certo.

257

Tinha sido a sua luta, desde que vivia com o Teixei-

ra: escrever ao marido para lhe contar t u d o . Sentava-se ��

mesa, com o bloco de papel e o envelope. Escrevia no al-

to da p��gina o lugar e a data. E, excluindo a express��o de

ternura das outras cartas, punha-lhe somente o nome:

Daniel.

Nesse p o n t o , a pena emperrava, a p o n t a n d o a p��gina

em branco sem que as palavras lhe acudissem. Que ia es-

crever, para abrir caminho �� confiss��o dif��cil, que certa-

mente o destro��aria? C o m o dizer-lhe que o tra��ra, depois

de t u d o q u a n t o dele recebera?

Aflita, deixava de lado a caneta, entrela��ava as

m��os:

��� Que �� que fa��o, meu Deus?

E redigia a seguir a carta formal de todas as sema-

nas, tendo o cuidado de atenuar gradativamente as ex-

press��es de carinho, falando mais na filha que nele, ou

somente na filha, sem aludir mais ao regresso a S��o Lu��s,

a preparar-lhe o esp��rito para a carta dolorosa que devia

mandar-lhe.

Perto do Natal, q u a n d o a costureira veio trazer-lhe o

vestido do reveiom, decidiu escrever a carta de qualquer

maneira. E o certo �� que, desta vez, achou-lhe o t o m

apropriado: s��brio, objetivo e direto, com o pedido

pr��vio do perd��o para o que ia revelar-lhe. Em poucos

minutos fez o rascunho, e logo o passou a limpo, sentin-

do que, a despeito de todo o seu cuidado em aliviar o gol-

pe, tinha-o desferido sobre o pobre Daniel.

�� noite, mostrou-a ao companheiro, que pronta-

mente a aprovou:

��� Est�� ��tima. E acabas com a tua reclus��o.

��� Eu me sentiria mal, num lugar p��blico, contigo

ao meu lado, como mulher e marido, sem antes ter escri-

to essa carta. Deus me livre de ser vista por algum conhe-

cido, que faria mau ju��zo de mim, e iria dar com a l��ngua

nos dentes, como se fosses para mim, n��o o companheiro

258

do resto de minha vida, mas u m a simples aventura. N �� o .

De m o d o algum.

E voltou a fraquejar, depois que a costureira lhe

trouxe o vestido, q u a n d o recebeu o cart��o de Natal do

Daniel, muito terno, e em versos, com a assinatura dele e

com os primeiros garranchos da Maria Em��lia. Teve de

trancar-se no banheiro para que a criada n��o a visse cho-

rar. Mesmo assim, n��o alterou a sua determina����o: poria

a carta no Correio assim que terminassem as festas do

A n o - N o v o , e iria mesmo ao reveiom. Antes, foi pedir a

Nossa Senhora, na igreja da Gl��ria, para que tudo desse

certo.

J�� p r on ta para sair, toda de azul, com o vestido lon-

go a real��ar-lhe a beleza tranq��ila, perguntou ao Teixei-

ra:

��� Pediste o t��xi? E n t �� o deixa. Eu pe��o.

E e n q u a n t o o T e i x e i r a a o l h a v a a d i s t �� n c i a ,

admirando-lhe o corpo esguio, ela tirou o fone do gan-

cho, para fazer a chamada, sem precisar consultar o ca-

derninho dos telefones. Depois, passou ao fundo da casa,

para bater no quarto da criada e desejar-lhe um feliz

A n o - N o v o . T o r n a n d o �� alcova, apanhou a bolsa, olhou-

se novamente no espelho da penteadeira, enquanto reco-

mendava ao Teixeira que apagasse o abajur da sala de vi-

sitas.

259

CAP��TULO III

De tarde, sentado na cama, Daniel brincou com a

filha, ajudando-a a preparar a comida para a boneca,

j u n t a n d o os restos de p��o e gel��ia que tinham ficado do

lanche ali no q u a r t o . Depois, contou-lhe a hist��ria do ga-

to de botas, a a c o m p a n h a r as emo����es da filha nos olhos

da Glorinha ��� os olhos negros que afinal ia rever �� noite,

antes que findasse o A n o Velho.

Por volta das sete horas, desceu ao refeit��rio com a

Maria Em��lia; ��s oito e meia, estava de volta. E disse �� fi-

lha:

��� Agora, Maria Em��lia vai dormir um pouco, pa-

ra estar bem acordada na hora de ver m a m �� e .

E enquanto a Maria Em��lia, deitada ao comprido da

cama com a boneca ao seu lado, mergulhava em sono

profundo, ele ficou �� janela, fumando o seu cigarro, a

olhar o c��u estrelado e l��mpido que se arqueava sobre a

cidade.

Parecia-lhe mentira o que estava acontecendo. Sepa-

rado da Glorinha por umas tantas ruas, aguardava agora

o momento de encontrar-se com ela. Por vezes, repetindo

o cigarro, vinha-lhe a ��nsia de antecipar esse m o m e n t o ;

mas sua natureza coibida reprimia esses impulsos, e ele

riscava o f��sforo, chupava a fuma��a, ouvindo o calmo

ressonar da filha na p e n u m b r a do aposento.

C o m o a Glorinha gostava de doces maranhenses, so-

bretudo de caju seco e compota de bacuri, tinha-lhe trazi-

260

do u m a b o a provis��o deles, que levaria consigo, para que

fosse completa a alegria da noite feliz.

Por volta das dez horas, seu rel��gio de pulso deu-lhe

a impress��o de ter p a r a d o . Levou-o �� orelha, assustado.

N �� o , estava t r a b a l h a n d o . E n��o tardou a ouvir a confir-

ma����o das horas no vagaroso bater do rel��gio do hotel.

��� Daqui a pouco acordo a Maria Em��lia.

Deixou a janela, ouvindo o estourar distante de fo-

guetes espa��ados, e ficou sentado na b o r d a da cama, ao

lado da filha, d a n d o tempo ao t e m p o . Afinal, passados

uns quinze minutos, acendeu a l��mpada de cabeceira e

p��s-se a chamar a menina, sacudindo-a pelo bra��o:

��� J�� est�� na hora de ir ver m a m �� e .

Mas n �� o era f��cil despert��-la. Tornava a cham��-la,

tornava a sacudi-la pelo bra��o, e ela continuava adorme-

cida, bra��os moles, olhos fechados, como se lhe faltas-

sem as for��as para tornar a si. Afinal, cansado de chamar

por ela, Daniel decidiu vesti-la assim mesmo. Trocou-lhe

as meias, tirou-lhe o pijama. Depois, conseguindo sent��-

la, p��de descer-lhe o vestido pela cabe��a sonolenta.

Segurando-a pelos o m b r o s , com o bra��o passado por tr��s

de suas esp��duas, abriu mais a risca dos cabelos, apertou

o la��o da fita na ponta das tran��as.

Aos poucos, por entre sacolejos, Maria Em��lia le-

vantou as p��lpebras, ainda com a cabe��a pesada, mas

conseguiu ajudar o pai, no m o m e n t o em que este, com a

pluma do p��-de-arroz, lhe tirou o brilho do rosto. E con-

cluiu, jubiloso:

��� Agora, sim, j�� pode ver m a m �� e .

Maria Em��lia n��o tardou a deixar pender o corpo,

resvalando a cabe��a para o travesseiro, enquanto Daniel

trocava de roupa no banheiro. E q u a n d o ele dali saiu, j��

p r o n t o , no costume novo, na camisa nova, na gravata

nova, cabelos bem-penteados, cheirando a lo����o de bar-

ba, os sapatos bem-engraxados, estava certo de que n �� o

faria m�� figura no reencontro com a Glorinha.

261

Fora, os foguetes se repetiam. De vez em q u a n d o , no

v��o da janela, um clar��o colorido se abria, com o chuvei-

ro luminoso que estourava no espa��o, por cima dos

edif��cios.

E Daniel, sacudindo novamente a Maria Em��lia:

��� Agora, vamos descer.

Mas foi baldado t o d o o seu esfor��o para acord��-la.

Ela abria os olhos, mantinha o busto levantado, e logo as

p��lpebras desciam, enquanto os olhinhos se apagavam,

tontos de sono invenc��vel, e o corpo tombava para o lado

do travesseiro.

Afinal, j�� decidido a lev��-la carregada, conseguiu

equilibr��-la no ch��o, com os p��s sobre o tapete esfiapa-

d o . E com u m a lembran��a nova, que de repente lhe acu-

diu:

��� Primeiro, vamos fazer xixi.

Levou-a ao banheiro, desceu-lhe a calcinha, esperou

que terminasse de urinar, enxugou-a com zelo de m��e, e

afinal saiu do banheiro, segurando-a pela m �� o . �� altura

da cama, ela aproveitou o m o m e n t o em que o pai reco-

lhia os embrulhos que ia levar, e mais u m a vez se deixou

cair sobre a cama, vencida pelo sono.

Daniel suspirou, resignado. N �� o tinha outro jeito a

n��o ser levar a filha carregada. A c o m o d o u os embrulhos

n u m a sacola, ergueu c o m esfor��o a M a r i a Em��lia,

acomodando-lhe a cabe��a sobre seu o m b r o , e desceu de-

vagar a escada, depois de ter conseguido passar a chave

na porta do q u a r t o .

Vez por outra, ensaiava conversar com ela:

��� Voc�� vai ver co m o a m a m �� e �� linda. Igualzinho ��

Maria Em��lia. Com esses mesmos olhos.

Na cal��ada da rua, sentiu melhor a noite festiva,

com a profus��o de luzes, as l��mpadas coloridas nos dois

lados da rua, os fogos a abrirem penachos multicores por

cima dos telhados, e em redor o ru��do das buzinas, dos

r��dios e das batucadas.

262

Sempre carregando a filha, deteve-se na parada do

bonde, �� espera do carro que o levaria �� Pra��a Jos�� de

Alencar. Ali desceria, seguindo o itiner��rio que o gerente

do hotel lhe tinha tra��ado �� tarde, a seu pedido. E como

o bonde n��o tardou, repleto de passageiros, o cobrador

veio ajud��-lo, e ele subiu o bala��stre, enquanto um se-

nhor se levantava para lhe dar o lugar.

��� Obrigado, amigo. Avise-me, por favor, q u a n d o

chegarmos �� Pra��a Jos�� de Alencar. �� l�� que vou descer.

Apesar do ruido em seu redor, dentro e fora do bon-

de, a Maria Em��lia continuava a dormir, molemente, pe-

sadamente. Era em v��o que o Daniel, tocando-lhe nos

l��bios, insistia em dizer-lhe, ao p�� da orelha:

��� Sua dorminhoca, vamos acordar. Est�� perto da

meia-noite. Est�� quase na hora de descer.

Na descida, o condutor voltou a ajudar Daniel. E

q u a n d o o bonde partiu, com a gritaria festiva dos passa-

geiros, ele fez um gesto largo, com a m �� o que segurava a

sacola:

��� Boas entradas para todos.

T o m a n d o pela sua direita, Daniel se viu n u m a rua

tranq��ila, de casas fechadas, e foi a n d a n d o devagar. Do-

brou adiante o u t r a rua, no mesmo passo lento, e teve a

sensa����o de ter voltado a S��o Lu��s, ao dar com a pra��a

arborizada, entre sobrados e casas baixas, com um chafa-

riz ao meio.

��� A pra��a �� esta.

E d a n d o com a casa de duas janelas e u m a porta,

precedida de um jardim, reconheceu, com o cora����o ace-

lerado, que era aquela a casa da Glorinha. L�� estava o

p o r t �� o de ferro. E as grades pontudas. E os canteiros flo-

ridos.

��� �� ali.

Cortou a pra��a em diagonal, d a n d o a volta pelo cha-

fariz, e em pouco descansou a sacola na sali��ncia do mu-

r o , ao p�� das grades, sentindo a pulsa����o das t��mporas,

no duplo esfor��o da emo����o e da caminhada. Sempre a

263

carregar a Maria Em��lia, era-lhe imposs��vel bater palmas.

C o m o ia fazer para anunciar-se? Nisto descobriu u m a

campainha n u m dos umbrais da porta, dentro do j a r d i m .

E se o p o r t �� o de ferro estivesse fechado? Com a m �� o li-

vre, tateou-lhe a fechadura, em busca da ling��eta do trin-

co, e logo o descerrou, reconhecido:

��� Deus est�� me ajudando.

E novamente c h a m a n d o a Maria Em��lia:

��� Acorda, filhinha, para ver m a m �� e . �� agora.

Calcou a campainha, com for��a, prolongadamente,

em seguida retrocedeu um passo, ainda com a cabe��a da

filha descansando no seu o m b r o esquerdo.

Um penacho de luz imenso abriu-se por cima da

pra��a, como se o repuxo do chafariz se houvesse transfor-

m a d o n u m a corola de fogo de artif��cio, e desfez-se sobre

as ��guas, ao mesmo tempo em que novos foguetes estou-

ravam, na dire����o do centro da cidade.

Daniel n��o olhou o penacho imenso, t o d o ele con-

centrado na porta que ia abrir, por cima de tr��s degraus

de pedra. Distinguiu ru��do de passos. Ap��s o estalo de

um interruptor, a luz da sala clareou os vidros das jane-

las, alongando-se para o jardim. Logo u m a chave rodou

na fechadura, e u m a senhora escura, com um velho xale

sobre os o m b r o s , apareceu no ret��ngulo da porta.

E Daniel, antes que ela lhe falasse:

��� D. Glorinha, por favor.

��� D. Glorinha saiu com o marido, h�� uns dez minu-

t o s .

Ele n��o conteve o espanto, quase a deixar cair a fi-

lha, perplexo, estatelado. Mas ainda teve for��as para per-

guntar:

��� Como?

��� Saiu com o marido. F o r a m ao reveiom, na Urca.

Daniel ficou um m o m e n t o de boca aberta, a olhar

para dentro da sala, sempre agarrado �� filha. E viu, pri-

meiro, o retrato da Maria Em��lia; depois, a fotografia da

264

Glorinha e de um senhor, este a envolv��-la pelas costas,

ambos sorrindo.

E a senhora, no batente de pedra, ao centro da por-

ta:

��� D. Glorinha nunca sai de noite. Foi o Dr. Teixei-

ra que insistiu com ela para sair. Venha a m a n h �� de ma-

n h �� . C o m o �� o nome do senhor?

E n c h e n d o o peito o p r e s s o , que a viol��ncia da

emo����o apertava como se lhe fosse tomar o f��lego, Da-

niel voltou-se para o p o r t �� o , sem responder. Em sil��ncio,

ganhou a cal��ada, cortou de novo a pra��a, sem querer

trazer de volta a sacola com os doces, e foi a n d a n d o na

dire����o do hotel, a repetir para si mesmo, j�� com os olhos

molhados:

��� E �� com o m��dico que tratou dela ��� concluiu,

livido, destro��ado, sentindo que o ��dio lhe subia do peito

como uma labareda.

No quarto do hotel, acomodou a Maria Emilia na

cama, sem lhe tirar o vestido de lese, e veio para a janela,

quase sem conseguir acender o cigarro, com �� f��sforo a

lhe tremer na ponta dos dedos. E ali ficou por mais de

h o r a , fumando e c h o r a n d o , fumando e chorando, a

olhar aparvalhadamente a noite de festas, abismado na

crueldade da sorte, sem conseguir entender o sentido e a

implacabilidade do castigo que lhe arruinava a vida para

sempre.

Na m a n h �� seguinte, m u d o u de hotel. Dois dias mais

tarde, voltou a S��o Luis. E l�� se transformou na criatura

calada e esquiva, que raramente saia de casa pelo tempo

das f��rias. Anteontem, aposentou-se, depois de ter casa-

do a Maria Em��lia com um colega do Liceu ��� o mesmo

colega que o saudou, com um belo discurso escrito,

q u a n d o lhe colocaram o retrato a ��leo na Sala da Con-

grega����o.

L A U S D E O

S��o Lu��s, 1934

Rio de Janeiro, 1984

265

Outros romances de JOSU�� MONTELLO lan��ados pe-

la NOVA FRONTEIRA em edi����es sucessivas:

Janelas fechadas

Labirinto de espelhos

A luz da estrela morta

A d��cima noite

Cais da Sagra����o

Os degraus do para��so

Noite sobre Alc��ntara

Largo do Desterro

O sil��ncio da confiss��o

Aleluia

Pedra viva

Um varanda sobre o sil��ncio

A coroa de areia

Os tambores de S��o Lu��s

Perto da meia-noite

Pr��ximo lan��amento:

Uma sombra na parede

A Nova Fronteira est�� publicando tamb��m o di��rio de

Josu�� Montello, de que j�� saiu:

Di��rio da manh��

Pr��ximo lan��amento :

Di��rio da tarde

um pouco do adolescente de ontem.

Antes assim. De todos os seus

romances, poucos ter��o o tom

pat��tico desta hist��ria de prov��ncia.

O romancista deu-lhe a clareza

expositiva, que est�� na ess��ncia de

sua maneira de escrever, e procurou

insuflar-lhe a teatralidade, que est��

na ess��ncia de seu tema.

Muito do autor, na hora de seus

come��os, est�� neste livro, escrito,

em grande parte, com as saudades

da adolesc��ncia. Companheiros de

gera����o, namoradas de juventude,

professores dessa fase rom��ntica e

feliz, aqui est��o guardados, com

seus uniformes e suas interroga����es

diante da vida. De vez em quando

faz bem �� sensibilidade do homem

maduro o regresso ��s fontes que

ficaram para tr��s. A mem��ria,

quando a interpelamos com

ternura, devolve as emo����es de

outrora, com o retoque da saudade

viva, a mesma saudade que levava o

velho Renan a reconhecer que tudo

quanto conseguimos escrever,

inspirados nas recorda����es da

inf��ncia e juventude, �� sempre

poesia. No caso, poesia em prosa,

com a inten����o da obra de arte.

Capa: Victor Burton







---------- Forwarded message ---------
De: Bons Amigos lançamentos 




O Grupo Bons Amigos  tem a satisfação de lançar hoje mais um livro digital para atender aos deficientes visuais.  

Perto da Meia Noite - Josué Montello 

Livro doado por Bezerra e digitalizado por Fernando Santos

Sinopse:
Na adolescência, quando despontou no autor a vocação de contador de histórias , foi este o primeiro romance que imaginou com inspiração direta na vida real.

Grupo Parceiro:

https://groups.google.com/forum/#!forum/solivroscomsinopses  



Lançamento  Grupo Bons Amigos:

https://groups.google.com/forum/#!forum/bons_amigos  



Blog:




Este e-book representa uma contribuição do grupo Bons Amigos  para aqueles que necessitam de obras digitais como é o caso dos deficientes visuais 

e como forma de acesso e divulgação para todos. 
É vedado o uso deste arquivo para auferir direta ou indiretamente benefícios financeiros. 
 Lembre-se de valorizar e reconhecer o trabalho do autor adquirindo suas obras 

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Livros:

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Áudios diversos:

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