do
Antigo Egito
J. W. R O C H E S T E R
WERA K R I J A N O W S K I
O Chanceler de Ferro
do
Antigo Egito
(ROMANCE MEDI��NICO)
DO
Conde J. W. Rochester (Esp��rito)
Obtido pelo m��dium-mec��nico
W E R A KRIJANOWSKI
FEDERA����O ESP��RITA BRASILEIRA
D E P A R T A M E N T O E D I T O R I A L
Rua Souza Valente, 17
20941-040 - Rio-RJ - Brasil
1 4 a edi����o
Do 126�� ao 140�� milheiro
Capa de CECCONI
Tradu����o de M. CURVELLO DE MENDON��A
NRBN
5,781-AA; 000.51-O; 5/1995
Copyright 1940 by
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PRESITA EN BRAZILO
��NDICE
PRIMEIRA PARTE
Da obscuridade ao poder
I ��� O Patriarca e seus filhos 11
ll ��� Jos�� vendido por seus irm��os 25
III ��� A for��a m��gica 46
IV ��� A mulher de Putifar 62
V ��� O que a Hist��ria n��o conta 82
VI ��� Jos�� na pris��o 98
VII ��� O copeiro e o padeiro 110
VIII ��� O sonho do Fara�� 122
IX ��� O Fara�� e seu chanceler 133
X ��� Em Tebas 143
XI ��� O Adon em Heli��polis 152
XII ��� O Fara�� e o sacerdote 166
XIII ��� O Adon e sua nova parentela 187
xlv ��� A noite nupcial 207
SEGUNDA PARTE
Poder real e poder sacerdotal
I ��� O Adon e sua mulher 225
ll ��� Israel no Egito e a fome 238
III ��� Comendo, abre-se o apetite 251
IV ��� A ��gua caindo gota a gota desgasta a mais
dura pedra 262
V ��� O Adon e o Caldeu 278
VI ��� O ambicioso n��o conhece obst��culos 294
VII ��� Primeiros fragores da tempestade 309
Vlll ��� Ra manifesta sua vontade 325
IX ��� Quem semeia ventos colhe tempestades . . . 337
X ��� A noiva do Nilo 351
XI ��� O povo sublevado precisa odiar algu��m . . . 366
XII ��� A aurora da XVIII dinastia 373
Ep��logo 387
NO MUNDO DE CHICO XAVIER
ELIAS BARBOSA
NESTE LIVRO, VAMOS CONHECER
ATRAV��S DE ENTREVISTAS ��VIDA DE
CHICO XAVIER.
PRIMEIRA PARTE
DA OBSCURIDADE AO PODER
I
O PATRIARCA E SEUS FILHOS
E s t a s s��o a s gera����es d e Jac��.
Sendo Jos�� de dezessete anos, a p a s -
c e n t a v a as ovelhas com s e u s irm��os,
e e s t a v a este mancebo c o m os filhos
de B a l a e de Zilpah, mulheres de seu
pai; e Jos�� trazia a seu pai g r a v e s
a c u s a �� �� e s contra eles.
Vendo pois seus irm��os que seu
pai o a m a v a m a i s do que a todos os
outros irm��os, aborreciam-no e n �� o
lhe podiam falar com do��ura. ���
G��nese, cap. X X X V I I , w . 2 , 4 .
O Sol declinava, inundando com seus raios ainda
inflamados o vasto e f��rtil vale ao qual bordavam, no
horizonte, colinas cobertas de mato. Sombreada por bos-
quete de ��rvores copadas, elevava-se uma casa tosca,
feita de pedras e troncos de ��rvores, mas bastante espa-
��osa para abrigar numerosa fam��lia. Choupanas entre-
meadas de tendas espalhavam-se em torno da principal
habita����o, e, um pouco mais longe, viam-se vastos cerca-
dos destinados aos rebanhos.
Nesse acampamento tudo era anima����o e atividade;
mulheres de t��nicas de l�� ou de linho ocupavam-se apres-
12
J. W. ROCHESTER
sadamente em preparar a refei����o da tarde, e o aroma
saboroso dos quartos de carne assada e dos p��es cozidos
na cinza saturava o ambiente. Do po��o rodeado por s��lido
muro de pedra, encaminhava-se, conversando e rindo, um
grupo de mo��as levando �� cabe��a ou no ombro, com essa
f��cil e inimit��vel gra��a das mulheres do Oriente, pesadas
bilhas de gr��s cheias de ��gua, enquanto bandos de crian��as
brincavam ruidosamente na relva coberta de variegadas
flores.
S��, desatento ao que se passava em torno, um homem
de aspecto imponente estava sentado num banco perto
da porta da casa; grande chap��u de palha tran��ada e
nodoso bast��o descansavam a seu lado, em cima do es-
cabelo e junto do c��ntaro de vinho.
Essa personagem era Jac��, o venerado chefe da tribo,
o legend��rio patriarca cujo nome foi conservado pela
Hist��ria; a basta cabeleira e a comprida barba que ca��a
sobre a t��nica de l�� escura, iam j�� encanecendo; rugas
sulcavam-lhe o rosto de tra��os pronunciados e en��rgicos;
os grandes olhos pretos, sob espessas sobrancelhas, bri-
lhavam com o fogo dos verdes anos e o corpo robusto
parecia querer afrontar, por muito tempo ainda, os acha-
ques da velhice. Com um olhar sonhador, fitava a massa
azulada que escurecia o horizonte, ouvindo os mugidos,
cada vez mais pr��ximos, dos rebanhos que voltavam da
pastagem; s��bito, por��m, ergueu-se, abrigou os olhos com
a m��o crestada e musculosa, inclinou o olhar com enlevo
e orgulho para a estatura alta e esbelta de um rapaz que
vinha de apontar atr��s do cap��o de ��rvores e para ele se
dirigia apressado.
O atraente exterior do jovem, dos seus dezoito anos
de idade, justificava plenamente o orgulho paterno: rosto
p��lido, alongado e cet��neo como de mo��a; pequena boca
de recurvos cantos dava-lhe aos tra��os, de regularidade
cl��ssica, uma express��o altiva e desdenhosa; sedosos e
espessos an��is tostados sombreavam-lhe a fronte larga e
forte; o que, por��m, imprimia um cunho particular a essa
not��vel fisionomia, eram os olhos grandes, verde-escuro
e l��mpidos mas insond��veis, que pareciam penetrar aque-
O CHANCELER DE FERRO
13
les em quem se fixavam, ao passo que se furtavam ��
observa����o, sob as pestanas compridas e densas, que, sem-
pre muito a prop��sito, vendavam o olhar do mo��o hebreu,
quando julgava ��til dissimular aos importunos o que lhe
ia nalma.
��� Salve, bom pai, Eloim (1) proteja todos os teus
passos ��� disse com voz sonora e melodiosa, saudando res-
peitosamente o velho.
Este passou a m��o carinhosa pelos cabelos sedosos do
filho predileto e, atraindo-o ao banco, perguntou com um
sorriso:
��� Que fizeste durante o dia? Foste ��s pastagens ou,
conforme teu h��bito, estiveste com Schebna? E que mis-
t��rios te ensinou ele?
��� Oh! sua ci��ncia �� grande e eu quero estudar sem
descanso, para tornar-me s��bio tamb��m. Tenho neces-
sidade de assim fazer, porque os astros me anunciam um
grande destino ��� disse Jos�� com os olhos cintilantes.
Jac�� abanou a cabe��a:
��� N��o duvido da ci��ncia de Schebna; entretanto,
receio que se engane na linguagem dos astros e te esteja
embalando com enganosos sonhos.
��� A Ci��ncia, pai, nunca se engana, somente �� pre-
ciso saber compreend��-la ��� respondeu impacientemente
(1) Os israelitas t��m alguns nomes para designar a Divin-
dade; mas dois sobretudo s��o usados: Eloim e Jeov�� (ou talvez
lav��). Esses dois nomes, todavia, n��o t��m o mesmo sentido. Israel
s�� conhece Deus sob o nome de Jeov��; quando um pag��o fala
de Deus �� preciso que diga Eloim; e um israelita apenas rara-
mente falar�� de Deus a um pag��o sem empregar tal nome. Em
compensa����o, quando o Deus de Israel �� oposto aos deuses dos
gentios, deve ele pronunciar o nome de Jeov��. Finalmente, temos
um testemunho formal do Pentateuco, que a isso nos obriga.
O livro do ��xodo cont��m, a tal respeito, um texto cl��ssico que
�� preciso inserir aqui:
"Falou mais Deus (Eloim) a Mois��s e disse: Eu sou Jeov��.
Eu apareci a Abra��o, a Israel e a Jac��, como Deus, Todo-Pode-
roso; mas pelo meu nome, Jeov��, n��o lhes fui perfeitamente co-
nhecido." (��xodo, VI, vv. 2-3.) ��� A. Kuenen. L'Histoire Critique
des Livres de 1'Ancien Testament.
14
J. W. ROCHESTER
o rapaz. ��� Mas, queria dizer-te outra coisa: estive nas
pastagens e obtive a prova de que Jud�� e Dan te iludem:
venderam o gado que julgaram imprest��vel, bem como l��
e outros objetos. Entre as mulheres, h�� contendas a pro-
p��sito de um cinto que Jud�� comprou ocultamente aos
israelitas e deu �� m��e daquela que tu me destinas para
mulher ��� Tamar, a quem ele deseja, com a inveja que
tem de tudo que a tua bondade me concede.
��� N��o posso crer que teu irm��o tenha para contigo
t��o maus sentimentos; mas terei em vista as malversa-
����es que me assinalas e vigiarei, tamb��m, para que reine
paz entre as mulheres.
��� Eu n��o disputo Tamar, embora seja muito gentil;
apenas creio que a sorte me reserva esposa mais ilustre.
Digo que todos me invejam e n��o podem ver, sem despei-
to, a bela t��nica de pano de Tiro, que me deste.
A aproxima����o dos rebanhos, cujos mugidos, entre-
cortados de gritos dos pastores enchiam o ambiente, fez
cessar a conversa. A aten����o do velho chefe voltou-se
toda para os filhos, que, ajudados por numerosos pasto-
res, reconduziam ao acampamento as longas filas de gado.
Eram, na maior parte, belos homens robustos, verda-
deiros filhos do deserto, de cor tostada e olhos ardentes;
aspecto selvagem, vestidos de curtas t��nicas de l�� ou de
peles de cabra. Fatigados e esfaimados, avan��avam, pro-
curando com os olhos a comida j�� preparada e olhando
para Jos�� com um olhar indiferente ou hostil.
Tendo saudado Jac�� e respondido ��s suas perguntas
sobre o estado dos rebanhos, os filhos se agruparam em
torno dele e logo se lhes juntou uma parte dos pastores.
O velho chefe levantou-se, ent��o, apoiado em Jos��, e,
atingindo o centro da roda formada pelos assistentes,
voltou-se para o Oriente, prostrou-se tr��s vezes, e erguen-
do os bra��os para o c��u entoou um c��ntico religioso.
Terminada a ora����o, os homens se apressaram �� re-
fei����o, na qual n��o tomavam parte as mulheres.
Jac�� e seus filhos sentaram-se em outra mesa posta
ao ar livre, na extremidade da qual tomou lugar uma
parte dos servos. O resto dos convivas ficou assentado
na relva, fazendo honra �� ceia frugal.
O CHANCELER DE FERRO
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S�� Jos��, sentado junto do pai, comia pouco e fitava
o v��cuo com o seu olhar sonhador.
��� Em que pensas, filho, a ponto de abandonares o
repasto? ��� perguntou Jac�� em tom de reprova����o.
��� Pensa na futura grandeza predita por Schebna, ou
talvez nalgum sonho prof��tico, t��o lisonjeiro como aquele
em que viu onze molhos de varas saudando-o ��� obtem-
perou um dos irm��os, com riso estridente e olhar zom-
beteiro.
Jos�� fitou-o altivo e desdenhoso:
��� Fazes mal em rir do que n��o compreendes, Rubem.
Al��m disso, justamente adivinhaste, porque tive um sonho
estranho: vi o Sol, a Lua e onze estrelas que me sauda-
vam, imploravam-me favores, e . . .
Um verdadeiro cach��o de risos o impediu de conti-
nuar, enquanto Jac�� franzia o sobrolho.
��� Tua presun����o come��a a ultrapassar os limites ���
disse ele severo quando o alarido serenou um pouco ���;
queres anunciar com teu sonho tolo que eu, tua m��e e
todos os teus irm��os nos prostraremos diante de tua
grandeza?
��� Nada disso ��� respondeu o rapaz com enfado. ���
Pensais, sempre, que fora de v��s nada existe sobre a Terra
e que o mundo acaba no prado onde pasteja o nosso gado.
Para mim, o sonho tem maior alcance: o sol significa o
rei de um grande pa��s, a lua �� o seu reino, e as estrelas
onze anos ao fim dos quais um grande povo e seu sobe-
rano vir��o render homenagem aos meus m��ritos e outor-
gar-me o poder.
��� Cala-te e sai da minha frente, filho estulto e or-
gulhoso ��� exclamou Jac�� encolerizado. ��� Vai e ora a
Eloim que te perdoe a tolice e te n��o castigue por tuas
v��s palavras. Todos os teus irm��os s��o pastores humildes
e trabalhadores; tu tamb��m o ser��s, e pro��bo, para sem-
pre, que recomeces tuas vanglorias.
Ardente rubor assomou ��s faces de Jos��, que, mudo,
levantou-se e deixou a mesa.
��� O feiticeiro caldeu, a quem permitiste viver entre
n��s, transtornou de todo a cabe��a de nosso irm��o ��� obser-
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J. W. ROCHESTER
vou Dan ��� abusando da tua paternal bondade. Jos�� fica
em casa dele dias inteiros e acabar�� feiticeiro tamb��m.
��� Ora! Exageras, Dan ��� retrucou Rubem com bon-
dade ���, e se nosso pai nos confiar o menino, quando
formos ��s montanhas de Gilboa, Jos�� h�� de trabalhar e
esquecer depressa todas as tolices que lhe insinua Schebna.
L��bios tr��mulos, cenho carregado, Jos�� dirigira-se
para casa, a cuja porta o foi encontrar uma mulher idosa,
que estava ocupada ao p�� dum braseiro aceso ao ar livre
e que, de longe, observava a alterca����o havida �� mesa do
patriarca. Detendo o rapaz, bateu-lhe no ombro, acari-
nhou-lhe a face.
��� N��o te aflijas com as palavras de teu pai, cuja
c��lera ter�� passado dentro de uma hora ��� disse afetuo-
samente. ��� Mas, nada comeste; queres que te traga algu-
ma coisa?
��� N��o, Rispa, n��o tenho fome; mas se queres encher
uma cesta com toda esp��cie de boas coisas para o meu
velho amigo Schebna, dar-me-��s grande prazer ��� res-
pondeu Jos��, sorrindo para a velha criada que o tinha
tratado desde bem pequeno e o adorava cegamente.
��� Sim, caro filho, vou trazer o que me pedes, em-
bora n��o possa compreender o prazer que um rapaz da
tua idade pode achar na companhia de um velho feiti-
ceiro como esse caldeu.
Um quarto de hora mais tarde, Jos��, sobra��ando uma
cesta de provis��es, deixava a casa por uma porta oposta,
seguia desembara��adamente por entre as ��rvores e, to-
mando um caminho pouco freq��entado, encaminhava-se
r��pido para uma das colinas mais pr��ximas do acampa-
mento.
A noite fechara, mas o mo��o nenhum receio parecia
experimentar, e, a passo firme, continuava a caminhar.
��s vezes erguia a cabe��a e contemplava a sombria ab��ba-
da celeste que se matizava de mir��ades de estrelas. Quan-
do chegou ao sop�� da montanha, a Lua inundou a Terra
da sua doce luz. Jos�� parou, e, levantando os bra��os, mur-
murou com entusi��stico entono: "Astro misterioso, rainha
da Noite, ensina-me teus segredos, envolve-me nos teus
efl��vios, origem das for��as invis��veis!"
O CHANCELER DE FERRO
17
O olhar inebriado pregou-se no disco arg��nteo, por��m
ele r��pido estremeceu e deu um passo atr��s, porque, con-
tornando um rochedo, acabava de aparecer a figura de
um homem alto, vestido de branco, e que, �� luz brilhante
da Lua, parecia imergir num alvacento vapor. A emo����o
durou apenas um segundo, e, avan��ando r��pido para o
rec��m-chegado, exclamou:
��� ��s tu, mestre? se soubesses como tua presen��a me
assustou... Nessa m��gica claridade, com essa roupa bran-
ca e a barba prateada, tinhas o ar de um enviado de
Eloim.
��� Era ent��o, assim terr��vel, o meu aspecto? ��� res-
pondeu com ligeiro sorriso o caldeu, velho de alto porte,
fisionomia veneranda e olhos penetrantes. ��� Vim sim-
plesmente respirar o ar fresco, admirar a calma da noite
e os esplendores do c��u estrelado.
��� E eu, mestre, vim trazer-te alguns doces e ver se
comes um pouco, porque, absorvido nos trabalhos do es-
p��rito, esqueces a alimenta����o do corpo ��� disse o rapaz,
prazenteiro.
��� Vamos, pois, ao meu tug��rio, l�� depositar��s teus
presentes e conversaremos, pois tenho diversas coisas a
dizer-te. Os efl��vios dos astros falaram-me de ti.
Sem interromper o di��logo, continuaram a caminhar
e atingiram uma concavidade entre os rochedos, no fundo
da qual, encoberta pelas sar��as, ficava a entrada de es-
pa��osa gruta, iluminada por uma tocha presa ao muro.
A mob��lia da rupestre morada era das mais simples: um
banco de pedra, sobre o qual se amontoavam algumas
peles de animais, servia de leito; mesa e escabelos de
madeira, toscamente trabalhada, estavam no meio da
gruta. Sobre a mesa, assim como em uma grande caixa
aberta, viam-se rolos de papiro, canhenhos de argila co-
bertos de caracteres e pacotes de ervas secas. Ao fundo,
uma esp��cie de pequeno santu��rio: sobre tr��s degraus
erguia-se uma pedra c��nica, escura e polida como se
esmaltada; uma l��mpada de bronze, pendente da ab��ba-
da, iluminava essa esp��cie de altar e mostrava sinais e
caracteres misteriosos gravados na pedra escura.
18
J. W. ROCHESTER
Jos�� tratou logo de depositar em uma prateleira presa
ao muro, perto do leito, o mel, os past��is, os frutos e a
pequena ��nfora de vinho que trazia; depois, voltando ao
s��bio, que ficara parado junto �� pedra negra e tinha a
m��o posta no v��rtice do cone, disse, comovido:
��� Sou todo ouvidos, mestre, e estou pronto a escutar
os decretos do destino.
��� Sim, aquele que sabe decifrar os sinais tra��ados
nesta pedra sagrada, pode ler o futuro como um rolo
aberto ��� disse solenemente o velho caldeu. ��� Teu desti-
no, meu filho, �� estranho e embara��ado: esperam-te duras
provas e triunfos inauditos, o que, de resto, est�� na ordem
das coisas: quem quer que deseje vencer e subir, deve lutar
contra os elementos desencadeados, que lhe afrontam o
caminho, a fim de poder domin��-los. Nada se adquire na
Terra, sem esfor��o.
Bem cedo come��ar��o as tuas vicissitudes: a humi-
lha����o abater�� teu orgulho; de livre que ��s, passar��s a
escravo; mil perigos te cercar��o; dever��s, mesmo, vendar
e dissimular o teu saber. Se, por��m, permaneceres firme,
granjear��s fortuna, mandar��s onde tiveres obedecido,
reinar��s sobre aqueles que te houverem humilhado. Con-
tudo, no extremo do teu roteiro paira uma nuvem que
me n��o foi ainda poss��vel penetrar. N��o importa! Quero
recompensar-te o amor ao estudo, o labor tenaz, arman-
do-te para a luta contra o destino; quero dar-te o talism��
do futuro poder, que, quando estiveres privado de tudo,
tornar-te-�� rico, porque ser��s lesto como a serpente, agra-
d��vel aos homens dos quais te aproximares e aos quais
dominar��s, tal como o olhar da serpente fascina a ave
cobi��ada. Mas, jejuaste e preencheste os ritos que te
prescrevi?
��� Sim ��� respondeu o mo��o hebreu com voz tr��mula
e comovida.
O caldeu tomou ent��o, na caixa aberta, uma pequena
flauta de cana e um vidro cheio de escuro l��quido, e, a
um sinal, convidou Jos�� a segui-lo. No fundo da gruta
havia uma abertura estreita; os dois homens por ela
entraram, atravessando um amontoado de rochas que
O CHANCELER DE FERRO
19
formavam estreito corredor, desembocaram em pequena
plataforma semelhante ao fundo de um funil, cercada
por uma trincheira de pedras e rochas de formas extra-
vagantes que a Lua banhava, dando-lhe aspecto mais
fant��stico ainda.
��� Antes de come��ar a prova que te dar�� o talism��,
devo prevenir-te, meu filho, que o que vais ver gelar-te-��
de horror o sangue e qualquer fraqueza te custaria a
vida ��� disse gravemente o caldeu. ��� Hoje �� o dia em
que as serpentes destas montanhas se h��o de reunir aqui,
ao luar; eu as farei dan��ar e, ent��o, atra��da por mim,
vir�� tamb��m uma serpente, a que chamamos rainha.
Trar�� na goela uma pedra misteriosa, que confere ao seu
possuidor o dom da fascina����o, da adivinha����o e o do-
m��nio das for��as ocultas. A um sinal que te darei, deves
agarrar esse animal pela garganta, estrangul��-lo e ar-
rancar-lhe a pedra. Todos os poderes misteriosos que
nela se encontram passar��o para ti. Se fraqueares, ela
matar-te-��. Agora: queres tentar a prova?
��� Sim ��� respondeu Jos��, com voz cava, mas de olhar
chamejante.
Ent��o, Schebna aspergiu o solo e os rochedos com o
conte��do do vidro, impregnando a atmosfera dum aroma
suave e atordoante; depois aproximou a flauta dos l��bios
e come��ou a tocar estranha ��ria, voluptuosa e doce, mas
com modula����es agudas e vibrantes que faziam estreme-
cer os nervos do adolescente. Seu olhar errante e ansioso
percebeu logo pontos de um brilho fosforescente, a sur-
girem aqui e ali, entre as pedras e os espinhos; depois,
alguns corpos cobertos de escamas cambiantes se levan-
taram na areia e, sacudindo as cabe��as informes, puse-
ram-se a girar sobre si mesmos, com vis��vel contenta-
mento e como embalados pelo ritmo da melodia.
S��bito, aumentou o n��mero dos estranhos dan��ari-
nos; de cada fenda, de cada cova pareciam surgir, grandes
e pequenos, torcendo os an��is flex��veis e luzentes com
sinistro ru��do. A m��sica tinha tamb��m mudado de car��-
ter: mais r��pida, mais estridente, mais impetuosa, parecia
arrastar os hediondos seres em sarabanda infernal. Como
20
J. W. ROCHESTER
que tomadas de vertigem, as serpentes giravam assobian-
do e estalando as mand��bulas, enquanto os olhos esver-
dinhados e faiscantes pareciam sair-lhes das ��rbitas.
Nesse instante surgiu, dominando a formigante multid��o,
uma enorme serpente levantada sobre a cauda, trazendo
na goela um objeto cintilante, azulado.
Apesar da intr��pida calma que o tinha sustentado
at�� ent��o, Jos�� sentiu um suor frio correr-lhe pela fronte.
Os sons da flauta de Schebna se tinham de novo
transformado: ouvia-se agora uma ��ria selvagem e in-
coerente, que lembrava o sibilar da tempestade e os gritos
lamentosos dos chacais. Atingindo o c��mulo da eferves-
c��ncia, as serpentes se torciam e pulavam, babando, e,
nesse instante, o caldeu levantou a m��o e fez um sinal
para Jos��. Como se tivesse compreendido o sinal, a rainha
das serpes parou subitamente, enristou-se na potente
cauda e a enorme cabe��a nivelou-se ao rosto do mancebo.
Aqueles olhos terr��veis, vermelhos de sangue, pareciam
penetr��-lo e uma baba escumante corria-lhe da goela
meio aberta. Todo o corpo ��gil balan��ava, como tentando
o bote para enla����-lo. Jos�� lembrara-se das palavras do
caldeu: r��pido como o rel��mpago, lan��ou-se ao terr��vel
animal, e, com as m��os finas e nervosas, por��m s��lidas
como pin��as de ferro, agarrou a serpente pela garganta
e apertou-a, procurando sufoc��-la. Empenhou-se a luta
desesperada, entre o homem e o animal que se estorcia,
silvando, buscando enroscar o advers��rio. A superexcita-
����o, por��m, decuplicava as for��as do rapaz. Ofegante,
vergando qual cani��o �� constri����o dos maci��os an��is do
monstro, n��o largava a presa, continuando a estrangu-
l��-la. S��bito, a serpente, fraquejando, prostrou-se, arras-
tando Jos�� na sua queda; mas, num ��ltimo esfor��o, o
rapaz segurou a pedra brilhante, arrancou-a da goela
viscosa e ainda amea��adora, e rolou inanimado.
Quando abriu de novo os olhos, estava estendido no
leito.
��� Venci? ��� perguntou ansiosamente ao caldeu que
se inclinava para ele.
��� Abre a m��o e convencer-te-��s da tua vit��ria. E
agora, bebe! ��� acrescentou, enquanto Jos�� fitava, ner-
O C H A N C E L E R DE F E R R O
21
voso, uma pedra oblonga, transparente e azulada, que
tinha segura na m��o crispada.
Quando acabou de beber, o caldeu o cobriu de novo
e disse:
��� Dorme, eu te despertarei pela madrugada a fim
de voltares para casa; dentro por��m de tr��s dias, volta e
dar-te-ei as instru����es necess��rias, em rela����o ao talism��
que acabas de conquistar.
A terr��vel como����o sofrida pelo rapaz tinha-o esgo-
tado moral e fisicamente, chegara a casa doente e desfi-
gurado. Inquieto pelo estado do seu predileto, Jac�� o
dispensara de todo trabalho, mandando-o repousar. Com
prazer Jos�� se conformou com essa ordem; desejava pen-
sar em sil��ncio e na solid��o, naquela cena extraordin��ria
a que tinha assistido e em que tomara parte.
Todavia, na tarde do terceiro dia, logo que terminou
a refei����o, deixou a casa ��s escondidas e dirigiu-se para
a gruta do caldeu.
Encontrou Schebna entregue �� leitura, �� fraca luz
de uma l��mpada de ��leo, mas, logo que o viu, abandonou
a leitura e estendeu-lhe a m��o, sorridente:
��� Senta-te, filho; ainda est��s p��lido e um tanto
fraco, mas essa fraqueza do corpo �� pouca coisa; vi que
tua alma �� forte e de t��mpera capaz de suportar a luta.
Eis o talism�� ��� acrescentou, afastando um pano esten-
dido na mesa e descobrindo um objeto enrolado, no fundo
do qual fulgurava a pedra misteriosa, projetando uma luz
doce como a da Lua.
Isto �� a pele da serpente, que lhe arranquei do corpo
e que trar��s feito um cinto em torno dos quadris, sobre
a pele nua, bem entendido; as escamas, v��s, s��o viradas
para dentro; a pedra serve de fivela ao cintur��o e, quan-
do tiveres trazido esses dois objetos durante nove luas
consecutivas, o poder e as for��as do ser misterioso, ao
qual pertenceram, estar��o completamente identificados
contigo. E quando contemplares a pedra, desejando que ela
te descubra o oculto, mesmo o pensamento humano, ela to
desvendar�� na ��gua l��mpida com que a cobrires. P��e o
cinto j��.
22
J. W. R O C H E S T E R
Jos�� obedeceu e, ao contacto g��lido da pele da ser-
pente, um arrepio percorreu-lhe a epiderme. Dominou
por��m essa fraqueza e, fechando o cinto de maneira a
dissimular a pedra, perguntou:
��� E meu pr��prio futuro, n��o o mostrar�� o talism��?
��� �� sobre o que lhe diz respeito que o homem tem
sempre a maior dificuldade para compreender os finais
dos deuses ��� respondeu o s��bio. ��� Quero por��m tentar,
hoje mesmo, um ensaio para decifrar mais claramente o
que te reserva o destino. Ajuda-me a desembara��ar a
mesa dos objetos que a entulham.
Quando tudo foi retirado, o caldeu trouxe um pe-
queno disco de metal polido e brilhante, uma caixa cheia
de areia fina e um pequeno vaso de l��quido avermelhado.
��� Toma um punhado desta areia, semeia sobre o
disco, depois derrama em cima o conte��do deste vaso.
Jos�� obedeceu e observou, curioso, como o l��quido
escorreu, formando pequenas veias cor-de-rosa na super-
f��cie do disco. Tinha aprendido j�� bastante da ci��ncia
de Schebna, para compreender que aquelas linhas capri-
chosas, aqueles mont��culos, aqueles esguichos d��gua re-
presentavam os acidentes, as quedas e os triunfos do seu
futuro, misteriosos hier��glifos tra��ados por for��as invi-
s��veis. Estava j�� experimentado na adivinha����o, mas,
desta vez, examinou em v��o o disco, nada compreendeu.
Em compensa����o, o caldeu parecia absorto na contem-
pla����o de um quadro vivo; seu olhar cintilante seguia os
meandros tra��ados pelo l��quido e, sobrancelhas franzidas,
veias da fronte inchadas, parecia ler um long��nquo futuro.
Por fim, levantou-se e o olhar resvalou no mo��o com
indefin��vel express��o:
��� Teu futuro �� estranho, soberbo; entretanto, mis-
turado de sombra ��� disse �� meia voz.
��� E n��o me dir��s nada desse futuro, desse destino
a que chamas estranho e soberbo? ��� perguntou Jos�� todo
agitado.
��� Sim, filho, dir-te-ei o permitido: j�� te preveni que,
cedo, come��arias uma dura prova; pobre e privado de
liberdade, chegar��s a um pa��s long��nquo e rico; o mesmo
O C H A N C E L E R DE F E R R O
23
onde exercereis um dia o poder, se algo n��o vier mudar
teu destino. Nesse pa��s, a Natureza produzir�� uma cala-
midade rara em tais paragens: a anos de prosperidade
suceder��o anos de seca e esterilidade. Por singular acaso,
essa desgra��a p��blica influir�� no teu destino e far�� tua
felicidade.
Um servi��o que prestar��s ao rei do pa��s, em rela����o
com esse acontecimento, ser�� a origem da tua eleva����o.
N��o esque��as ent��o que o homem, em qualquer ocasi��o,
pode usar mas n��o deve abusar dos favores do Destino,
e que esse abuso se pode tornar o escolho do teu destino.
Ia-me esquecendo dizer: o talism�� que conquistaste por��
ao teu dispor for��as poderosas, mas deu-te tamb��m um
inimigo: �� o esp��rito da serpente, que, invis��vel, seguir-
-te-��, e, no anivers��rio da luta, retomar�� forma e subs-
t��ncia para tentar arrancar-te a pedra misteriosa. Se
ainda uma vez fores vencedor, o r��ptil se tornar�� teu
servo, porque, ent��o, t��-lo-��s dominado na mat��ria e na
ess��ncia.
Jos�� tudo ouvia, p��lido, agitado, olhar em fogo.
��� Dize, mestre, al��m desse inimigo invis��vel, que
derrubarei ��� eu o quero ���, terei algum outro? Pois tu
mencionaste sombras no meu futuro...
��� Sim! prevejo-te um inimigo e esse ter�� mil l��n-
guas, mil olhos, mil garras, far-te-�� em peda��os se abu-
sares do teu poder ��� respondeu gravemente Schebna.
Jos�� levantou-se e, com um gesto en��rgico, sacudiu
os an��is escuros da farta cabeleira:
��� N��o importa! N��o h�� luz sem sombras e quem quer
subir deve correr perigos. Sem medo, irei para a frente,
mestre, sem me deixar abater, quaisquer que sejam as
vicissitudes que me assaltarem. Minha f�� inquebrant��vel
nas tuas palavras servir-me-�� de sustent��culo; um fu-
turo de grandeza ser�� meu fim luminoso. E agora, deixa
agradecer-te, nesta hora solene, todo o bem que me fi-
zeste pelas s��bias li����es, pelo saber misterioso que me
prodigalizaste. Meu reconhecimento por teus benef��cios s��
acabar�� com a vida.
24
J. W. ROCHESTER
Ajoelhou-se e apertou de encontro aos l��bios a m��o
enrugada do velho. Misterioso sorriso passou pelos l��bios
do caldeu:
��� Breve a sorte nos separar��, mas dentro de vinte
anos, filho, aparecer-te-ei e serei eu, ent��o, a prostrar-
-me diante de ti. Ningu��m, exceto eu e tu, a Lua e os
g��nios invis��veis, conhecer�� o la��o secreto que nos liga;
e ent��o tu me recompensar��s consoante a grandeza do
teu reconhecimento. Agora, volta para casa, tenho ainda
que trabalhar esta noite.
Agitado por tumultuosos pensamentos, o mo��o hebreu
retomou o caminho de casa. Os quadros do futuro perpas-
savam-lhe na retina espiritual, mas, somente os quadros
de grandeza e de poder. Quanto ��s desgra��as preditas,
�� humilha����o e aos sofrimentos, a mente resvalava sem
parar e pareciam-lhe insignificantes, comparados com o
fim a atingir. Levantando a fronte para o c��u estrelado,
murmurou com selvagem entusiasmo: "Em breve, pois,
direi adeus a esta vida de pastor, obscura, mesquinha,
odiosa. Oh! vinde, provas e sofrimentos, eu vos desafio,
j�� que sois o limiar, os degraus de minha eleva����o. Temi-
do e poderoso, eu quero ser e s��-lo-ei."
II
JOS�� VENDIDO POR SEUS IRM��OS
E Jac�� lhe disse: Ora, vai-te,
v�� como est��o teus irm��os, e como
est�� o rebanho, e traze-me resposta.
Assim o enviou do vale do Hebron
e veio a Siqu��m.
E viram-no de longe, e, antes
que chegasse a eles, conspiraram
contra este para o matarem.
Passando pois os mercadores
midianitas, tiraram, e al��aram a Jos��
da cova e o venderam por vinte moe-
das de prata aos ismaelitas, os quais
levaram Jos�� ao Egito. ��� G��nese,
cap. XXXVII, w. 14, 18, 28.
Os dias que seguiram trouxeram agita����o e aumento
de trabalho no acampamento. Alguns filhos de Jac�� e
uma parte dos rebanhos se separavam do grosso da tribo
para ir perto de Siqu��m, e o velho chefe se propunha jun-
tar-lhes a companhia de Jos��, que era um atento obser-
vador e, desde muito, havia despertado a desconfian��a do
pai, contando-lhe as pequenas falcatruas dos irm��os e
at�� suas conversas. Mas apesar do seu gosto pelo papel
de vigilante o rapaz achou, desta vez, meio de se dispen-
sar da viagem. Por coisa alguma do mundo quereria ele,
nessa ocasi��o, deixar Schebna, a quem visitava assidua-
mente e que lhe ensinava a empregar a pedra misteriosa,
confundindo-o pelos resultados verdadeiramente mara-
vilhosos que obtinham. Al��m disso, o caldeu assegurava
26
J. W. R O C H E S T E R
que, decorridas as nove luas, durante as quais devia trazer
o cinto de pele da serpente, o poder do talism�� aumen-
taria.
Com grande pesar do mo��o hebreu, o s��bio lhe de-
clarou, uma tarde, que aquela entrevista seria a ��ltima,
visto como devia ausentar-se por algumas semanas. Quan-
do, apesar desse aviso, voltou no dia seguinte, achou a
gruta vazia e apagados todos os tra��os da cabana de
Schebna. Durante alguns dias ficou triste e deslocado,
mas, dentro em pouco, seu esp��rito inquieto despertou,
lembrou-se da aus��ncia de alguns irm��os e desejou verifi-
car o que faziam longe das vistas paternas. Nesse intuito,
provocou uma conversa, na qual lembrou insidiosamente a
Jac�� as faltas dos filhos e este, nada suspeitando do pen-
samento oculto do rapaz, lhe prop��s fosse ele pr��prio
encontr��-los para indagar de sua sa��de, do estado dos
rebanhos, fazendo uma pequena devassa das transa����es
realizadas.
Jos�� prontificou-se a partir e, vestindo a bela t��nica
de listras brilhantes que lhe valera j�� tantos olhares in-
vejosos, p��s-se a caminho. Em v��o percorreu os campos
circunvizinhos, todos os s��tios onde os filhos de Jac�� te-
riam podido acampar: n��o os encontrou e cuidava j��
de regressar �� casa paterna, quando um viajante de pas-
sagem lhe disse que um acampamento igual, ao que pro-
curava, estava parado em Dot��. Jos�� foi todo ouvidos:
semelhante lugar era uma pequena plan��cie ao p�� dum
desfiladeiro das montanhas de Gilboa e tirava o nome de
opulenta cisterna que ali havia, junto da qual paravam
habitualmente as caravanas que de Babil��nia, da S��ria
ou da Fen��cia demandavam o Egito ou de l�� voltavam.
Essa parada dos irm��os, junto da grande estrada
comercial que ligava a Palestina ao Egito, n��o deixou a
Jos�� qualquer d��vida quanto �� inten����o de trocar algu-
mas cabe��as de gado, a l�� dos carneiros, etc, por missan-
gas de Tiro ou quaisquer desses tecidos de cores vivas
que tanto cobi��avam, como bons orientais.
O Sol declinava quando chegou ao acampamento e
logo se convenceu de que n��o se enganara em suas sus-
O CHANCELER DE FERRO
27
peitas. Numerosa caravana ali repousava das fadigas da
jornada, camelos descarregados estavam deitados n��o
longe da cisterna. Ao redor de grande fogueira agrupa-
vam-se os filhos de Jac�� e alguns mercadores ismaelitas.
Conversavam vigiando o preparo de um cabrito novo, cujo
apetitoso aroma se espalhava no ambiente.
Reconhecendo Jos��, um murm��rio de enfado percor-
reu a fileira dos irm��os. Olhares hostis e ardentes nele
se cravaram.
��� Eis de novo o espi��o que o pai envia a fiscalizar-
-nos ��� murmurou Jud�� no ouvido de Levi.
��� E n��o podia chegar mais fora de prop��sito, a menos
que n��o lhe reservemos acolhida com a qual n��o conta
o nosso futuro senhor ��� respondeu o outro cerrando rai-
vosamente os punhos.
Sem dar-se por achado do acolhimento inamistoso
dos irm��os, Jos�� saudou a companhia e sentou-se perto
do fogo. Depois, como os rudes filhos de Jac�� ficassem
amuados e silenciosos, p��s-se a conversar com um dos
mercadores que, com olhar argucioso e crescente interes-
se, examinava o belo adolescente. Terminada a refei����o,
os ismaelitas retiraram-se para junto dos seus camelos e
Jos�� dirigiu-se para uma das tendas, pretextando neces-
sitar dormir. Na verdade, estava fatigado, mas n��o p��de
resistir ao desejo de fazer antes um r��pido exame na
tenda. O encontro de pequena ��nfora de ��leo perfumado
e alguns pequenos adornos, confirmou-lhe a convic����o de
que haviam feito compras clandestinas. Prometendo a si
mesmo descobrir algo mais no dia seguinte, estendeu-se
na esteira e adormeceu profundamente.
Nesse comenos, violenta discuss��o empenhava-se en-
tre os filhos de Jac��, que permaneciam agrupados ao
redor do fogo. Os selvagens e ferozes pastores odiavam
de h�� muito o irm��o preferido, que temiam lhes fosse
imposto como chefe, pelo pai. As pequenas espionagens
e tagarelices de Jos��, que contava a Jac�� suas velha-
carias, e ��s suas esposas quando eles se divertiam com
mulheres estranhas; assim como o orgulho e as vanglo-
rias do rapaz, tinham-no tornado positivamente odioso
28
J. W. ROCHESTER
e todos esses maus sentimentos de inveja e ��dio trans-
bordaram nessa tarde, ati��ados pelas palavras veementes
de Jud��, que, primeiro, prop��s o matassem a fim de se
desembara��arem dele para sempre. S�� Rubem, o mais
velho, que era bom e indulgente por natureza, protestou
contra o abomin��vel atentado, mas vendo a raiva dos
demais, quis empregar a ast��cia e prop��s lan��ar Jos��
numa cisterna vazia e a�� abandon��-lo, pensando em reti-
r��-lo do fosso logo que os outros se dispersassem.
Essa proposta acabou prevalecendo e, inflamados
pela c��lera e pela discuss��o, alguns se precipitaram para
a tenda em que Jos�� acabava de despertar, e, surpreso,
dispunha-se a fugir. N��o lho permitiram por��m, e, num
��pice, foi agarrado, amarrado, arrastado para o outro
lado do acampamento e precipitado num fosso t��o pro-
fundo, que, ao cair, bateu com a cabe��a e perdeu os
sentidos.
Passada a primeira raiva, os homens se dispersaram,
exceto Jud�� e Asser, que deviam velar e entreter o fogo
at�� que clareasse o dia.
Tinha passado talvez uma hora e os dois homens
discutiam a melhor explica����o que dariam a Jac�� sobre a
desapari����o do filho predileto, quando, muito espantados,
viram um dos mercadores ismaelitas, que supunham pro-
fundamente adormecido, aproximar-se do braseiro. Aco-
corou-se perto deles e, tendo declarado sem pre��mbulos
que tinha ouvido a conversa, prop��s aos dois homens a
compra do rapaz, de quem se queriam libertar.
��� Lev��-lo-ei ao Egito ��� disse ��� e vend��-lo-ei como
escravo. Ele �� bem parecido, inteligente; tom��-lo-��o fa-
cilmente como criado de casa rica e assim ficareis livres
dele sem manchar de sangue as vossas m��os.
Jud�� e Asser trocaram um olhar de satisfa����o: a
cobi��a pr��pria dos semitas neles despertou imediatamen-
te; fazer da vingan��a um bom neg��cio pareceu-lhes coisa
muito simples. Sem hesitar, Jud�� perguntou:
��� Quanto dar��s pelo rapaz se to vendermos?
O negociante enumerou alguns objetos muito tenta-
dores e, por ��ltimo, uma pele de tigre.
O CHANCELER DE FERRO
29
��� Podereis dizer que a fera devorou vosso irm��o e
que a matastes ��� acrescentou o ismaelita, com malicioso
sorriso.
��� �� neg��cio fechado ��� declararam os dois homens
ferventes de cobi��a.
Correram a despertar tr��s outros irm��os para lhes
participar o feito, mas tiveram o cuidado de nada dizer
a Rubem, que era o desmancha-prazeres. Sem perda de
tempo, todo o grupo se transportou �� cisterna, retirou
Jos�� ainda desmaiado e o entregou ao ismaelita, que, em
troca, lhes pagou o combinado. Verificado que o rapaz
estava apenas desacordado, o negociante f��-lo transpor-
tar �� sua tenda, esfregou-lhe as fontes com uma ess��ncia
que lhe deu tamb��m a respirar, pois n��o queria que o
mo��o despertasse antes do tempo, e, com gritos, atra��sse
o ��nico irm��o que se opusera ao assass��nio e talvez n��o
sancionasse o neg��cio. Sem ru��do, a caravana levantou
acampamento, os camelos foram carregados. Sobre um
deles foi posto Jos��, oculto num manto. A aurora mal
come��ava a dourar o horizonte quando o ��ltimo camelo
da caravana se sumiu ao longe, levando para ignoto des-
tino o futuro chanceler do antigo Egito.
Rubem ficou fora de si ao saber da verdade e cen-
surou amargamente aos irm��os o ato p��rfido e covarde.
Mas, feito o mal irrepar��vel, acabou por calar e n��o fez
observa����o alguma quando os outros romperam e molha-
ram de sangue a famosa t��nica que Jos�� despira para
dormir e que ficara na tenda. Depois, resolveram despa-
char dois para anunciarem a Jac�� a triste nova.
Seria dif��cil descrever o desespero do velho patriarca
ao saber da morte do filho predileto e ao ver aquela roupa
ensang��entada. Com gritos e lamenta����es, rolou no solo,
arrancando a barba e sujando os cabelos de poeira. Todo
o acampamento vibrou de exclama����es dolorosas das mu-
lheres; durante alguns dias a tribo esteve em desordem,
receando-se que o velho patriarca perdesse a raz��o. Pou-
co a pouco, entretanto, voltou-lhe a calma e apenas pro-
funda tristeza e l��grimas inesgot��veis, sempre que alguma
coisa lhe lembrava o filho t��o tragicamente desaparecido,
30
J. W. ROCHESTER
provavam que o desgosto subsistia a todas as persuas��es
dos filhos, embora nada suspeitasse da perf��dia deles.
S�� no dia seguinte despertou Jos�� da longa vertigem.
Sentia-se alquebrado e t��o fraco que n��o podia coorde-
nar as id��ias. Dif��cil saber por que estava deitado sobre
um camelo e que significavam o ru��do e os gritos de uma
caravana, da qual, evidentemente, era parte. Exausto,
cabe��a oca, de novo adormeceu e s�� reabriu os olhos
quando a caravana fez alto para o pouso noturno. Desta
vez, estava mais senhor de si e tinha as id��ias mais claras:
vendo-se entre estranhos, numa caravana que marchava
com destino desconhecido e certamente j�� bem longe de
todos os parentes, um misto de espanto e agonia apode-
rou-se do pobre rapaz. Procurou aprumar-se, mas foi im-
pedido pela corda com que o amarraram atravessado no
animal, e caiu deitado, dando um grito surdo.
Nesse instante, o camelo parou, ajoelhando-se a um
sinal do condutor, que desatou a corda e desceu Jos��.
Tinha os membros entorpecidos e as pernas negavam-lhe
apoio; ensaiando alguns passos vacilantes, caiu e, deses-
perado, furioso, p��s-se a chorar e a lamentar ruidosa-
mente.
O velho negociante, chefe da caravana, ouvindo os
gritos, aproximou-se e, em poucas palavras, declarou que
seus irm��os o tinham vendido; que era agora seu escravo
e que, se quisesse evitar maus tratos, deveria resignar-se
e suportar a nova condi����o com humildade e paci��ncia.
Jos�� ouviu-o, p��lido e como estuporado, mas s��bito
apoiou o rosto nas m��os e, arrancando os cabelos, tom-
bou pesadamente como um animal apunhalado. Depois,
vendo perto uma corda, tentou estrangular-se. Algumas
pauladas e um c��ntaro d��gua, sobre o corpo, frustraram
a sinistra tentativa. Chorando, mas, j�� moderado na raiva
desesperada, perfilou-se.
��� Eis os frutos do teu procedimento. Se queres evi-
tar as pauladas, repito, s�� humilde e paciente ��� adver-
tiu-lhe o chefe. ��� V��o dar-te de comer; depois, deita-te
e dorme, mas, sobretudo, evita o barulho, porque teus
fatigados companheiros necessitam repousar.
O CHANCELER DE FERRO
31
Baixou a cabe��a, e, ocultando corajosamente a tem-
pestade que lhe ia nalma, arrastou-se mudo para um
fogo que acabavam de acender, e ao p�� do qual eram
distribu��dos os v��veres. Tendo comido um peda��o de p��o
e algumas t��maras molhadas em ��gua fresca, tomou a
manta de l�� de camelo, que lhe deu um dos ismaelitas,
enrolou-se e estendeu-se junto de uma ��rvore, a pouca
dist��ncia do braseiro.
Como ningu��m mais lhe prestasse aten����o, p��de en-
fim entregar-se livremente �� pr��pria dor. A humilha����o,
uma pungente amargura, um sentimento de abandono e
isolamento acabrunhavam-no; escondendo a cabe��a nas
dobras do manto, chorou longamente, mas, dissimulando
os solu��os, porque a dor que lhe causava qualquer movi-
mento lembrava com terr��vel evid��ncia que j�� n��o era
mais o livre filho do deserto, e sim um escravo cujas
esp��duas o chicote podia zebrar conforme a fantasia do
senhor.
A vida de pastor, considerada at�� ent��o miser��vel e
mon��tona, pareceu-lhe, nesse instante, um regalo para
sempre perdido.
Por fim, as l��grimas estancaram. Assaz sobreexcita-
do para dormir, continuou a conjeturar. Lembrou-se de
Schebna e estremeceu; n��o lhe havia o s��bio predito a
escravid��o e duras provas que breve come��ariam? O que
se estava passando, n��o seria a realiza����o literal da pre-
di����o, o pr��logo obrigat��rio da sua futura grandeza? Essa
caravana, a que estava preso pelo destino, o conduziria,
talvez, ao rico pa��s cujo rei o levaria ao fast��gio das
honras. Mas, para onde se dirigiam seus novos senhores?
Babil��nia? Egito? N��o lhe era ainda poss��vel orientar-se.
Longo suspiro intumesceu-lhe o peito, e logo sorriu com
um ar de desafio... Que importava a rota! O futuro per-
tencia-lhe. N��o possu��a a pedra misteriosa que lhe daria
o poder de fascinar os homens?...
Mas, n��o lhe teriam roubado o talism�� enquanto de-
sacordado? Num gesto febril, procurou-o debaixo da rou-
pa e cobrou ��nimo: o cinto m��stico cingia-lhe os rins,
os dedos tocavam a pedra que o fivelava.
32
J. W. ROCHESTER
Enquanto assim refletia, o ru��do e o movimento se
haviam extinguido em redor; os animais de carga e seus
condutores dormiam; somente a voz lamentosa dum
chacal, ao longe, perturbava ��s vezes o profundo sil��ncio
da noite. Jos�� levantou-se cauto e circunvagou o olhar:
a noite estava soberba, milhares de estrelas formavam
urdidura brilhante no azul-escuro do c��u; a Lua destaca-
va-se vigorosamente em recurso crescente e sua luz t��nue
inundava de arg��ntea claridade os bosques de palmeiras,
projetando-se como lentejoulas de neve sobre a pequena
tenda do chefe, ocultando em misteriosa penumbra o
grupo pitoresco da caravana adormecida.
Todavia, Jos�� n��o prestou aten����o alguma ao admi-
r��vel espet��culo da Natureza. Queria apenas assegurar-se
de que ningu��m o observava. Tendo-se certificado, abai-
xou-se, desatou a pele da serpente, e, tomando a pedra
na palma da m��o, fitou-a, murmurando as palavras
cabal��sticas que Schebna lhe ensinara.
Profunda palidez invadiu-lhe de repente as fei����es,
os olhos dilataram-se e o olhar pareceu pregado na pedra,
que, semelhante a colossal safira, iluminava a palma da
m��o com raios azulados e tr��mulos, cobrindo pouco a
pouco todo o acampamento de uma neblina espessa, acin-
zentada. Depois, esse fundo nebuloso pareceu clarear e
da cerra����o surgiu uma cidade com edif��cios soberbos,
estranhos, atravessada por um rio sulcado por centenas
de embarca����es em todos os sentidos. Rodando e trans-
formando-se pouco a pouco, o quadro representou a sala
de um pal��cio. Em assento elevado, um homem ricamente
vestido, cercado de numeroso s��quito e cujo belo rosto
n��o lhe parecia desconhecido. Diante daquele funcion��rio
ou daquele rei, prostravam-se, humildes e t��midos, alguns
homens barbados e crestados, nos quais logo reconheceu
seus irm��os, os traidores que o tinham vendido!
Num estremecimento que lhe agitou o corpo todo,
surda exclama����o se lhe escapou dos l��bios; mas, como
se essa emo����o e movimento tivessem rompido o encan-
tamento, a vis��o se extinguiu bruscamente e tudo reto-
mou o aspecto habitual, na calma profunda das noites
orientais.
O CHANCELER DE FERRO
33
��� Era eu o poderoso senhor a quem eles adoravam
com a face em terra! Jud��, Asser, Levi e os demais p��rfi-
dos que acreditaram perder-me. Paci��ncia! A desforra
vir�� e, em lugar de lamenta����es e revoltas, devo observar
e aprender ��� murmurou, apertando o cinto e envolven-
do-se no manto, tentando adormecer.
Desde esse dia, nenhuma contrariedade demonstrou
para com os seus senhores. Parecia resignado com a sorte,
conformava-se docilmente com as ordens que lhe davam,
procurava com afinco contentar a todo o mundo. T��o
boa conduta lhe granjeou logo a benevol��ncia do chefe e
dos outros membros da caravana. Sua rara beleza ense-
java estima����o e esta mais avultou quando mereceu es-
pecial gratid��o do chefe, curando-lhe a ferida de uma
perna, com uma pomada cuja receita lhe dera o caldeu.
Trataram-no melhor, pouparam-lhe trabalhos fatigantes
e, durante as paradas, os ismaelitas condescenderam em
ouvir as melodias selvagens e melanc��licas que ele lhes
cantava, acompanhando-se na pequena lira tricorde.
Sabia, agora, que era para M��nfis, no Egito, que a
caravana se dirigia. Estava impaciente por ver a rica
terra de Kemi, que considerava a sede da sua futura
grandeza.
Uma tarde chegaram, finalmente, �� antiga capital,
que a caravana atravessou obliquamente, encaminhando-
-se para um quarteir��o remoto, destinado aos estrangei-
ros. Bem que s�� tivessem atravessado ruas afastadas do
centro e habitadas pelas classes pobres, Jos�� considerava,
curioso e deslumbrado, a anima����o da grande cidade que
via pela primeira vez, mas que lhe parecia a mesma en-
trevista no seu ��xtase. De cima do camelo em que se
encarapitava, distinguia ao longe as maci��as estruturas
dos templos, o delicado perfil dos obeliscos, cujos doura-
dos cimos cintilavam aos raios do sol-poente.
De quando em quando, cruzavam com alguma elegan-
te liteira ocupada por mulheres enfeitadas, ou com carros
tirados por fogosos corc��is, guiados pela m��o firme de
oficiais ricamente armados, ou de padres vestidos de
linho. Cora����o aos pulos, olhos cintilantes, Jos�� fitava
34
J. W. R O C H E S T E R
esses expoentes de vida luxuosa e elegante, dele desco-
nhecida. Por fim, murmurou em tom de inveja e desafio:
"Quem sabe, soberba cidade, se um dia n��o saudar��s de
bem baixo o pobre escravo que, hoje, penetra em teu re-
cinto, ignorando que amanh�� se tornar�� teu senhor, e
n��o sabendo em qual dos teus pal��cios sofrer�� a pesada
prova de trabalho e humilha����o!"
Como o quarteir��o que atravessavam parecesse cada
vez mais pobre e fossem desaparecendo os transeuntes
elegantes, o mo��o entregou-se aos seus pensamentos e s��
voltou �� realidade quando o camelo parou junto de uma
casa bastante espa��osa, evidentemente uma hospedaria,
porque outros viajantes j�� ali estavam reunidos. O dono
do albergue, um homem gordo, de rosto ossudo e l��bios
grossos, recebeu o chefe da caravana com grandes de-
monstra����es de alegria: eram parentes, pelo que logo
chamou mulher e filhos a saudarem o desejado h��spede.
Depois, f��-lo entrar, enquanto um servo guiava os came-
los para um vasto compartimento, onde descarregaram
os fardos, arrumando-os no alpendre. Em seguida, o
mesmo homem acompanhou os condutores de camelos a
uma sala, servindo-lhes o repasto. Jos�� foi mandado para
junto do chefe, que tinha ordens a dar-lhe.
A mulher do estalajadeiro e uma sobrinha, linda
rapariga de semblante astuto, examinaram curiosamente
o belo adolescente, que, modesto e de olhos baixos, estava
diante delas.
��� De quem obtiveste este rapaz, Mohar? N��o o vi
quando da tua ��ltima viagem... ��� perguntou a estala-
jadeira.
��� Comprei-o em caminho, de n��mades hebreus e
penso vend��-lo aqui, mas isto �� neg��cio que tratarei mais
tarde. Enquanto espero ocasi��o de coloc��-lo, pode ele aqui
ficar e auxiliar-vos nos trabalhos da casa. Se j�� tens um
lugar onde o possas acomodar, que Sitkha o conduza.
Ali��s, ele tem necessidade de descanso.
Tendo trocado algumas palavras com a tia, a mo��a
ergueu-se, fez sinal a Jos�� que a seguisse e o conduziu
a pequeno quarto, que continha um tosco leito, uma mesa
de pau grosseiro e um escabelo.
O CHANCELER DE FERRO
35
��� Acomoda-te aqui e descansa; amanh�� come��ar��s
a trabalhar e ajudar-nos-��s a- servir os h��spedes que aqui
moram e os que v��m apenas reconfortar-se com um copo
de cerveja ��� observou a mo��a sorridente. ��� Mas, dize-
-me, acrescentou curiosa, n��o tens um parente que te
estime, pois que te venderam como escravo? N��o tens o
aspecto de um pastor selvagem e n��made e falas o fenicio
correntemente como se o tivesses aprendido.
��� Aprendi-o com um velho caldeu que vivia em
nossa tribo. Tenho um pai que me ama e seria feliz se
pudesse resgatar-me, sabendo que vivo na escravid��o
��� respondeu tristemente Jos�� ��� mas, ele ignora que
meus irm��os me venderam e talvez me chore, acredi-
tando-me morto. ��� Disse-o, enxugando uma l��grima
furtiva.
Durante algumas semanas, Jos�� voltou-se com zelo
ao novo servi��o que lhe designaram e soube captar as
boas gra��as do estalajadeiro e da fam��lia. Sitkha, sobre-
tudo, estava satisfeita com ele, e, enquanto ambos lava-
vam as rumas de pratos ou arrumavam os quartos, os
mo��os conversavam e Jos��, que imediatamente come��ara
a aprender o eg��pcio, gra��as a essas conversa����es, fez
r��pidos progressos nessa l��ngua. Pouco avistava o verda-
deiro senhor, Mohar, desde que chegaram a M��nfis. Absor-
vido inteiramente pelos neg��cios, o ismaelita sa��a muito
ou recebia no quarto os fregueses mais importantes, que
iam pessoalmente examinar as mercadorias. As palavras
com que seus parentes elogiavam o escravo e o evidente de-
sejo de o adquirirem, foram favoravelmente acolhidos por
Mohar e, provavelmente, o neg��cio teria sido conclu��do
entre eles, se o acaso n��o tivesse vindo tudo transformar.
Um dia, Mohar chegou acompanhado por um velho
obeso, de rosto jovial e expansivo, ao qual o negociante
dispensava especial defer��ncia. Sitkha segredou a Jos�� que
aquela personagem era Ptah, o intendente da casa do
nobre Putifar, "a orelha de Fara��", ou chefe de pol��cia
e superintendente das pris��es, se nos exprim��ssemos em
linguagem mais moderna.
��� Ele compra sempre grande quantidade de incenso,
b��lsamo e subst��ncias odorantes bem como panos e tape-
36
J. W. R O C H E S T E R
tes de Tiro e de Babil��nia, quando o tio chega, porque o
nobre Putifar �� imensamente rico ��� disse Sitkha em tom
confidencial.
Pouco depois, o mo��o foi chamado para servir refres-
cos aos dois homens, e enquanto enchia de vinho o copo
de Ptah, e lhe apresentava uma cesta de frutas, o inten-
dente examinou-o com aten����o e, logo que o rapaz saiu,
perguntou quem era e se Mohar n��o estaria disposto a
vend��-lo. "Temos necessidade de um escravo desse g��nero,
para o servi��o do chefe" ��� acrescentou.
Tanto bastou para agu��ar a avidez do ismaelita. Na
perspectiva de bom neg��cio, esqueceu os parentes e fixou
vultosa quantia para a transa����o. Ptah aceitou, sem re-
gatear, e o neg��cio ficou decidido. Combinaram que no
dia seguinte Mohar levaria o rapaz e receberia o pre��o
da venda.
O estalajadeiro e, sobretudo, a esposa e Sitkha fica-
ram desolados com a partida de Jos��; mas este s�� apa-
rentemente se mostrava contrariado. Desejava entrar em
casa rica e foi com o cora����o cheio de aspira����es e de
curiosidade que acompanhou o senhor �� casa do velho
Ptah.
Os primeiros dias passados na casa de Putifar foram
muito interessantes para ele. Ainda n��o tinha visto o
novo senhor, ausente em virtude dos afazeres, mas ia
aprendendo a tarefa que lhe incumbiram no asseio dos
quartos reservados, particularmente, a Putifar.
Para Jos��, tudo era novo e interessante nessa rica
morada. Sua vida simples e pobre, na tribo, bem como
a estada em uma estalagem de sub��rbio, n��o lhe dariam
id��ia alguma do refinado luxo a que se entregavam os
eg��pcios das altas classes; e, tomado de infantil curiosi-
dade, n��o se cansava de admirar as pinturas e tapetes
que ornavam as paredes, os m��veis embutidos, os vasos
preciosos, apalpando os panos bordados dos reposteiros,
as almofadas macias dos assentos, as esculturas doura-
das do leito, que representavam um le��o deitado de costas.
Um dia, finalmente, o barulho retumbante de um
carro nas pedras do p��tio vizinho, e a vida, o movimento
O CHANCELER DE FERRO
37
que se espalhavam por toda a casa, anunciaram-lhe a
chegada do senhor. N��o o viu nessa tarde, nem no dia
seguinte pela manh��, porque Putifar se tinha transpor-
tado para o pal��cio.
S�� na hora da refei����o, por ordem do vigilante, ele
se vestiu cuidadosamente com uma t��nica fresca, untou
de ��leo os belos cabelos escuros e, com uma ��nfora na
m��o, postou-se atr��s da poltrona do senhor, enquanto
outros escravos se perfilavam ao p�� dos lugares reserva-
dos aos convivas.
A sala de refei����o ainda estava vazia; apenas Ptah
e o feitor dos escravos a atravessavam de mansinho, dei-
tando olhares fulminantes aos novos criados e dando-lhes
as ��ltimas instru����es do servi��o. No quarto cont��guo ou-
viam-se vozes animadas, e, minutos depois, quatro ho-
mens entravam na sala. A aten����o de Jos�� concentrou-se
naquele que, com am��vel satisfa����o, convidava os outros
a tomarem lugar e que era, evidentemente, o anfitri��o.
Putifar era um homem dos seus trinta e dois anos, puro
tipo eg��pcio: alto, delgado, ��gil, rosto bronzeado, usava
cabelos curtos, e as sobrancelhas espessas, muito pr��xi-
mas do nariz, davam-lhe um aspecto sombrio e severo,
apenas atenuado pelo sorriso franco e bom de uma boca
de l��bios rubros, descobrindo, ao falar, dentes de admir��-
vel alvura. O fulgor vivo e penetrante dos olhos negros
denunciava o homem habituado a mandar e a perscrutar
as almas que o cercavam.
Ao sentar-se, esse olhar demorou um instante sobre
o novo escravo, mas n��o lhe disse coisa alguma e retomou,
com os comensais, a conversa����o interrompida. S�� ��
tarde, quando Jos�� lhe apresentou a ��gua para lavar as
m��os e o despiu, auxiliado por An��bis, o segundo escravo,
Putifar a ele se dirigiu, interrogando-o sobre a sua ori-
gem, idade, etc. Visivelmente satisfeito com as respostas
do rapaz, elogiou Ptah, que viera desejar-lhe uma boa
noite, por ter feito essa aquisi����o, e ordenando-lhe ins-
talasse o rapaz e o empregasse especialmente no seu
servi��o particular.
Desde esse dia, Jos�� ficou incumbido de vestir e despir
o senhor, servir-lhe o copo de vinho �� noite e montar
38
J. W. ROCHESTER
guarda �� porta, para acudir ao primeiro chamado. Mas,
como o chefe de pol��cia de M��nfis era, por for��a mesmo
desse cargo, um homem atarefado que ��s vezes, por dias
inteiros, n��o voltava ao aposento; e como, al��m disso,
a casa formigava de criados, o mo��o hebreu n��o tinha
grande coisa a fazer. Tratou ent��o de aproveitar as horas
de descanso, aprendendo a ler e escrever o eg��pcio.
A fim de conseguir esse resultado ardentemente co-
bi��ado, Jos�� procurou por todos os meios tornar-se ��til e
agrad��vel a um jovem escriba que vivia na casa, como
secret��rio de Putifar.
Chnoum era um rapaz simp��tico, bonach��o, alegre
e um tanto amigo dos prazeres. As aten����es de Jos��, o
cuidado em acord��-lo cedo, em servi-lo, tal como ao
senhor, de um copo de vinho ao deitar-se, ou em espe-
r��-lo e deit��-lo no leito, quando se recolhia um pouco
bebido; todos esses pequenos servi��os granjearam-lhe
benevol��ncia e quando o mo��o hebreu pediu, um dia, que
lhe ensinasse a ler e escrever a l��ngua eg��pcia, Chnoum
acolheu de boa mente o pedido e ocupou as horas vagas
em lhe dar li����es, cujo ��xito maravilhou, positivamente,
o professor. Jos�� estudava com ardor, os progressos ��ram
espantosos e, ao cabo de alguns meses, os caracteres que
tra��ava com tinta vermelha ou preta nas folhas de papi-
ro eram t��o corretos e elegantes que Chnoum come��ou a
confiar-lhe c��pias e outros pequenos trabalhos.
Decorreu um ano. No meio da sua intensa atividade,
Jos�� notou apenas que o tempo passara bem depressa,
arrastando em nuvem j�� remota os acontecimentos ainda
t��o recentes da sua expatria����o.
Uma tarde, ocupado a recopiar para Ptah a conta
de um transporte de mercadorias, sentiu-se acometido de
s��bita indisposi����o, a cabe��a lhe ardia, os membros eram
pesados de chumbo e tremores frios percorriam-lhe a
epiderme.
Depois de ter em v��o lutado contra o mal-estar, aca-
bou dirigindo-se a Ptah, a fim de obter licen��a para
deitar-se, visto achar-se doente. O intendente fitou-lhe
um instante o rosto p��lido e desfigurado.
O CHANCELER DE FERRO
39
��� Vai descansar; vejo que est��s indisposto, mas,
como teus companheiros te podem incomodar, vai para
o quarto das esteiras, onde poder��s dormir tranq��ilamen-
te. Penso que amanh�� estar��s refeito.
Agradecendo, Jos�� foi para o quarto designado, uma
vasta pe��a sem janela, mas amplamente iluminada por
grande porta que abria para um p��tio interno, murado,
e em cujo centro estadeava frondejante palmeira.
Jos�� levou para junto dessa porta um dos amarrados
de esteiras empilhadas nas paredes, desenrolou-o e esten-
deu-se a fio. O mal-estar aumentava, o sono n��o vinha e,
pela primeira vez depois de tanto tempo, o rapaz pensou
no passado, no pai, em Schebna.
Lembrou-se tamb��m da cena estranha e terr��vel da
evoca����o das serpentes e do combate desesperado que
tinha sustentado para conquistar a pedra misteriosa.
Como ent��o, a Lua era cheia; seus raios inundavam o
pequeno p��tio e os leques de palmeira projetavam, nas
pedras, sombras alongadas e vacilantes, que evocavam os
movimentos cadenciados dos r��pteis.
Um estremecimento de medo supersticioso agitou o
corpo do jovem e os dentes lhe rangeram como em febre.
"Dir-se-ia que algum esp��rito impuro e nefasto adeja em
torno de mim" ��� murmurou. Depois, tomando a pedra
m��gica que sempre trazia, acrescentou: "Vou apertar o
talism�� de encontro ao rosto; talvez contenha for��as que
n��o conhe��o ainda, e me cure!"
Examinou um instante a pedra cintilante, cujo fulgor
azulado parecia jorrar do seu ��mago, e depois apertou-a
contra o peito, murmurando piedosamente: "D��-me a
chave das for��as misteriosas que possuis, pedra maravi-
lhosa! Conquistei-te, arriscando a vida, ��s minha; mas,
n��o conhe��o a extens��o do teu poder."
Nesse instante foi assaltado por uma vertigem; suor
glacial inundava-lhe o corpo, enquanto uma corda ar-
dente parecia enla��ar-lhe o peito, apertando-o como
para abaf��-lo; faltava-lhe a respira����o e, presa de mortal
agonia, levantou-se e arrancou as vestes, mas enfraqueceu
e caiu.
40
J. W. ROCHESTER
Teria ficado muito tempo nesse estado de prostra����o?
N��o poderia diz��-lo. Ligeiro ru��do ao lado f��-lo voltar a
cabe��a e, como que alentado subitamente, pulou e p��s-se
em p��. Ali, erguida sobre a cauda potente, dardejando-lhe
as pupilas esverdinhadas e sanguinosas, estava a serpente
que subjugara um ano antes! Um tremor incoerc��vel agi-
tava-lhe os flex��veis an��is e um silvo agudo escapava-lhe
da goela entreaberta.
Fascinado, paralisado, banhado em suor, Jos�� fitava
o animal-espectro; os olhos pareciam-lhe pregados um
no outro e, como um rel��mpago, surgiu no c��rebro ado-
lescente a lembran��a das palavras do caldeu: "Ela reto-
mar�� forma e mat��ria, buscar�� reaver a pedra e qual-
quer fraqueza ser�� a tua perda." Fazendo um supremo
esfor��o, levantou o bra��o e, brandindo o talism�� acima
da cabe��a da serpente, disse com voz soturna:
��� Quem ��s tu, monstro do Amenti, e que queres de
mim?
Logo uma voz humana, surda, rouca, por��m distinta,
respondeu:
��� Sou o teu destino e venho combater-te: Se me
venceres, obedecerei, servir-te-ei; se sucumbires, me en-
roscarei em ti, abafar-te-ei, porque, ai dos vencidos do
destino! Ele os enla��a qual serpente e o fraco se torna
seu escravo. O forte domina-o e lhe fala como senhor.
��� Ah! ��s o meu destino? Ent��o vencer-te-ei ��� ex-
clamou pondo a pedra entre os dentes e lan��ando-se ao
monstro, agarrando-o com as duas m��os.
Silenciosa e tremenda, renovou-se a luta do ano an-
terior. Jos�� sentia os an��is viscosos e gelados apertarem,
machucarem-lhe os membros; o h��lito f��tido do terr��vel
animal batia-lhe no rosto e o silvo agudo causava-lhe
vertigem; mas as m��os, como tenazes de a��o, apertavam
o pesco��o do monstro, enquanto um s�� pensamento lhe
trabalhava o c��rebro:
"Para vencer-te, destino p��rfido e atrevido, devo
apertar-te contra o peito e esmagar-te em meus bra��os!"
Passou-se um r��pido momento (uma eternidade para
Jos��), a serpente, vencida pela segunda vez, afrouxou os
O CHANCELER DE FERRO
41
an��is e caiu pesadamente no ch��o. Tr��mulo, exausto, o
rapaz encostou-se �� parede, o olhar ainda pregado no
inimigo destru��do. De repente, viu com espanto o corpo
da serpente que se agitava, inchava e derretia-se em
massa escura, que, por sua vez, tamb��m sofreu estranha
metamorfose. A cabe��a do r��ptil levantou-se, arredondou-
-se, e na massa informe modelou-se uma cabe��a de mu-
lher, de serena e altiva beleza. Os olhos insond��veis e
inflex��veis pareciam penetrar aqueles que os fitavam, en-
quanto misterioso sorriso brincava-lhe nos l��bios fecha-
dos. Um v��u radiante envolvia aquela cabe��a em suas
dobras, e acima da fronte cintilava uma estrela resplen-
dente. Depois, surgiu um dorso feminino, nu at�� �� cintu-
ra, saindo do corpo acurvado de um touro com patas de
le��o, com duas asas imensas, com reflexos verdes, par-
tindo-lhe das costas.
��� Quem ��s tu? E por que me apareces, ser estranho
e horr��vel? ��� murmurou Jos�� ansioso.
��� Sou o segredo de todas as coisas, a fortuna do
s��bio, a chave dos mist��rios ��� respondeu uma voz sonora
e harmoniosa.
Subjugado pelo medo e pelo respeito, o rapaz se pros-
trou com a face em terra.
��� Levanta-te e escolhe uma parte de mim mesma,
que eu consinto em te conceder ��� disse a mesma voz. ���
Queres meus flancos de touro? Dotar-te-��o eles com uma
vontade infatig��vel e uma paci��ncia a toda prova. Queres
minhas garras de le��o? Elas te ensinar��o a ousar onde
n��o baste o querer, e a conservar pela for��a o que a inte-
lig��ncia conquistou. Queres minhas asas? Levar-te-��o ao
Infinito, onde brilha a estrela espl��ndida do saber abso-
luto, suprema recompensa da intelig��ncia humana, que
minha face representa.
��� Que escolha terr��vel me imp��es, a mim, miser��vel
verme! ��� murmurou Jos��, enquanto o seu olhar vagava
sobre o ser enigm��tico.
R��pido, esse olhar parou sobre o peito nu:
��� Deixa-me sugar-te o seio, beberei a ess��ncia mes-
ma do teu ser ��� balbuciou.
42
J. W. ROCHESTER
Estranho e misterioso sorriso deslizou nos l��bios da
esfinge.
��� Bebe ��� disse ela ���; escolheste habilmente, filho
de Israel, o dom mais precioso e a tarefa mais f��cil, a
riqueza sem trabalho; bebe pois, mas bebe com mode-
ra����o.
E o g��nio simb��lico do Egito estendeu as asas pode-
rosas para abrigar o estrangeiro, enquanto ele avidamen-
te lhe sugava o seio. Verdadeiro prot��tipo desse povo que,
no transcurso dos s��culos, deveria pendurar-se �� teta de
todos os povos, roubando-lhes a seiva fecunda, a riqueza,
at�� secar essa fonte nutritiva.
E Jos�� bebia, bebia at�� �� embriaguez... S��bito, re-
bentou um trov��o, um rel��mpago fulgurante jorrou da
estrela, a esfinge desapareceu e Jos�� caiu como fulmina-
do, acreditando ter rolado em um abismo sem fundo.
Quando reabriu os olhos, era dia alto e os raios do
Sol dardejavam nas pedras do p��tio. Sentia-se fraco,
alquebrado, mas as id��ias eram l��cidas e lembrava-se
perfeitamente da apari����o da serpente e da esfinge.
"Seria um sonho, ou uma vis��o?" ��� murmurou, pas-
sando a m��o pelo rosto. Depois verificou que a pedra m��-
gica estava intacta em sua m��o, mas a pele de serpente,
que usava como cinto, tinha desaparecido.
Ptah, tendo-o autorizado a descansar ainda esse dia,
ficou deitado na esteira, pensando no estranho aconteci-
mento da noite e n��o podendo explicar se estivera em
presen��a de uma realidade ou de uma vis��o fant��stica.
Na noite seguinte, viu em sonho Schebna: o caldeu estava
de p�� �� sua cabeceira e dizia-lhe com voz grave e pro-
funda:
"Agora, o talism�� adquiriu todo o seu poder; al��m da
adivinha����o pela ��gua, que te ensinei, podes empreg��-lo
para curar feridas, esfregando com a pedra um pano de
linho, que aplicar��s �� chaga, que se fechar�� prontamente.
A ��gua em que molhares o talism�� �� um poderoso ant��do-
to ao v��rus dos r��pteis e das plantas venenosas; aplican-
do-o na fronte, curar��s as perturba����es do esp��rito, se
n��o forem causadas por les��es do c��rebro. Finalmente,
colocando-o no peito de algu��m, impor��s tua vontade."
O CHANCELER DE FERRO
43
Tanto quanto a vis��o, esse sonho produziu no rapaz
profunda impress��o, que o levou a ensaiar as virtudes da
pedra que o sonho prof��tico assinalara.
Semanas depois da vis��o noturna, aproveitou-se ha-
bilmente de um triste acidente que sobreveio �� fam��lia
de Ptah, para experimentar a for��a do talism�� e criar
no velho intendente um amigo e protetor.
Foi o caso que o pequeno Rui, neto ��nico de Ptah,
tinha sido picado por uma v��bora. O veneno agiu t��o
r��pido que n��o havia d��vida sobre a morte do menino,
antes mesmo que houvesse tempo de chamar um padre-
-m��dico, ou lev��-lo ao templo. Jos�� pediu, ent��o, a Ptah
que o ouvisse sem testemunhas e lhe disse:
��� Sabes que �� proibido a um escravo possuir as
ci��ncias ocultas; mas o reconhecimento, a afei����o que te
dedico e aos teus, levam-me a tudo afrontar. Confesso que,
nascido livre e filho de um patriarca, possuo um rem��dio
secreto que Eloim, nosso Deus, ensinou a meus pais. Se
queres deixar-me s�� com o menino, espero salv��-lo.
O velho intendente, desesperado, a tudo anuiu e in-
troduziu o escravo no quarto onde agonizava o menino,
estendido no leito, l��vido e j�� com os l��bios cianosados.
Logo que ficou s��, o hebreu mergulhou a pedra m��gica
num vaso d��gua, e, com frases cabal��sticas, que conju-
ravam os efeitos do t��xico, viu o l��quido tomar uma cor
azulada e borbulhar como se estivesse efervescendo. De-
pois, derramou uma colherada dessa ��gua na boca da
crian��a e, molhando um pano no vaso, lavou tamb��m a
chaga, aplicando em seguida a pedra. Um instante ap��s,
a superf��cie brilhante do talism�� manchou-se, pareceu
encher-se interiormente de uma fuma��a escura, enquanto
os raios da pedra m��gica se fundiam em vapor de um
vermelho nitente, que, pouco a pouco, se fez azul, depois
amarelo, verde, e, por ��ltimo, retomou a transpar��ncia
azulada, habitual.
O menino continuava inerte, de olhos fechados, mas
quando Jos�� sobre ele se inclinou, verificou que dormia
profundamente, ao mesmo tempo que abundante suor
porejava-lhe de todo o corpo. A ferida tinha perdido a
44
J. W. ROCHESTER
cor escura, algumas got��culas de sangue rubro perolavam-
-lhe a superf��cie e, certo, deveria cicatrizar rapidamente.
Rui estava salvo. O reconhecimento de Ptah e da fam��lia
foi mudo mas profundo. Desde esse dia, o mo��o escravo
teve no senhor um amigo, que, pouco a pouco, o retirou
da faina dos f��mulos e lhe deu servi��o mais nobre junto
de Putifar, a quem o intendente narrou essa e outras
curas n��o menos maravilhosas, operadas pelo jovem es-
cravo, em homens e animais.
Um segundo incidente, que aproximou Jos�� do pr��-
prio Putifar e lhe granjeou a confian��a, foi provocado
por Chnoum. Deixou-se o escriba arrastar por seu mau
h��bito de beber e teria sido indiscreto pelo efeito dos
vapores da embriaguez, ou ter-se-ia deixado tentar por
um ganho il��cito? O certo �� que todos os neg��cios secre-
tos e ��ntimos de Putifar chegaram ao conhecimento de
um dignit��rio seu inimigo, que aspirava a substitu��-lo.
Jos��, que tinha olhos e ouvidos por toda parte e vigiava
Chnoum, cujo cargo de secret��rio ambicionava, surpreen-
deu a verdade e apressou-se em prevenir o senhor. Fu-
rioso pelas dela����es e bisbilhotices do escriba, Putifar
quis, a princ��pio, puni-lo rigorosamente, mas, bom e
indulgente por natureza, compadeceu-se logo que se eva-
porou a primeira raiva e contentou-se em envi��-lo como
tesoureiro de uma propriedade long��nqua. Assim, o cargo
de secret��rio caiu nas m��os de Jos��.
Foi nessa qualidade que ele acompanhou o senhor
durante uma licen��a de seis meses que este foi passar
perto de Sais, onde possu��a uma herdade e onde vivia
um velho padre, seu parente e ex-tutor. O hebreu pro-
curou conquistar esse velho s��bio, por todos os meios
humanos e ocultos, rendendo-lhe homenagens e prestan-
do-lhe os mais valiosos servi��os. Impondo-lhe secretamen-
te o jugo da sua vontade, levou-o a interessar-se por ele,
depois de lhe ensinar muitas coisas s�� confiadas aos mem-
bros das classes elevadas. Apesar do seu rigor aristocr��-
tico, Putifar deixava-o agir, porque tinha em particular
estima a intelig��ncia invulgar e a impec��vel integridade
do seu novo secret��rio.
O CHANCELER DE FERRO
45
Insensivelmente, Jos�� se tornou tamb��m o auxiliar de
Ptah, aliviando-o nos trabalhos do seu cargo; e, quando,
ao cabo de quatro anos, o velho morreu, Putifar com-
preendeu que n��o podia substitui-lo mais dignamente do
que nomeando Jos�� seu intendente. Com pulso de ferro,
o rapaz assumiu o governo da casa e mais dom��nios do
chefe, e tais eram o seu zelo, atividade, conhecimento de
todos os requisitos administrativos dessa grande fortuna,
que, dentro de um ano, tudo tomou novo aspecto e os
rendimentos aumentaram. Porque toda malversa����o, toda
neglig��ncia, m��nima que fosse, eram imediatamente des-
cobertas pelo infatig��vel intendente, que parecia tudo
ver, tudo sondar, e porque o temiam mil vezes mais que
ao bom velho Ptah. Sem se mostrar injusto, Jos�� era alti-
vo, severo e, quando preciso, punia cruelmente. Tamb��m
os escravos tremiam quando neles se fixavam os grandes
olhos esverdeados, dardejando um olhar penetrante, por
assim dizer ��� of��dico.
Em compensa����o, Putifar estava deslumbrado: tudo
marchava nos eixos; os mil pequenos embara��os dom��s-
ticos, as questi��nculas e puni����es que Ptah levava ao seu
conhecimento pareciam n��o mais existir; sua fortuna
aumentava regularmente, as contas eram de uma clareza
e precis��o ideais e tudo isso ele o devia a Jos��. O rapaz
tamb��m granjeou ilimitada confian��a, honrado com aten-
����es especiais e ricos presentes.
III
A FOR��A M��GICA
A ta��a que furtaste �� a mesma
em que bebe meu senhor, da qual se
serve para suas adivinha����es; fizeste
uma p��ssima a����o.
Jos�� lhes disse: por que obraste
assim para comigo? Porventura igno-
ras que n��o h�� semelhante a mim na
ci��ncia de adivinhar as coisas ocul-
tas? ��� G��nese, cap. XLIV, w. 5, 15.
Em um dos mais ricos e elegantes quarteir��es de
M��nfis, destacava-se luxuosa habita����o, cujos grandes
mastros plantados na entrada demonstravam ser a mo-
rada de poderoso senhor. Efetivamente, essa casa pintada
de cores brilhantes, cercada por um jardim bem arbori-
zado e tratado pertencia a um padre de elevada hierar-
quia ��� o ilustre Pot��fera (1), o qual s�� raramente ali
vinha, quando neg��cios o chamavam �� capital, pois resi-
dia em Heli��polis, onde ocupava o alto cargo de sacerdote
do templo do Sol.
Uma tarde, na hora em que ao t��rrido calor do dia
come��a a suceder uma atmosfera mais respir��vel, duas
mulheres estavam sentadas na varanda daquela casa,
(1) O nome de Putifar, o senhor de Jos��, segundo Ebers,
significa em eg��pcio: consagrado a Ra (Sol). Potifera significa:
Dom do Sol (Ra).
Os dois nomes, embora semelhantes, t��m, pois, ortografia e
significa����o diversas.
O CHANCELER DE FERRO
47
conversando e vigiando encantadora crian��a de oito anos,
que brincava ao p�� da escada com um belo gato. O ani-
mal, paciente, deixava-se cobrir com toda esp��cie de
farrapos, representando a t��nica e outros afeites do tem-
plo. Essa crian��a era Asnath, a filha ��nica do sacerdote e,
por sua rara beleza, justificava a adora����o dos pais, que
se n��o cansavam de admirar-lhe os cabelos de um casta-
nho-claro, dourado, e os grandes olhos de um azul-safira,
que constitu��am verdadeira exce����o entre as eg��pcias.
Se Pot��fera dirigia com pulso firme a educa����o do
filho Armais, de dez anos, era, ao inv��s, com a filha de
uma indulg��ncia que raiava pela fraqueza.
Uma das mulheres ali sentadas era Maia, esposa do
sacerdote, bela mulher de aspecto senhoril e vestida com
a mais refinada eleg��ncia. A outra era sua irm�� Ranofrit,
linda mo��a de dezessete anos, esbelta, morena de grandes
olhos fogosos e bastas tran��as de ��bano. Garridamente
envolta em transparente t��nica bordada de vermelho,
abanava-se com um grande leque de penas e parecia agi-
tada, nervosa.
��� Tua obstina����o em despedir Putifar inspira-me
toda sorte de conjeturas: s�� franca, Ranofrit, e confessa
que, para abandonar o amor e a m��o de um homem
t��o nobre, rico e bem colocado, �� preciso ter em vista
algu��m que mais te agrada ��� advertiu Maia, envolvendo
num suspicaz olhar o rosto subitamente esfogueado da
cunhada.
��� J�� que �� imposs��vel ocultar-te qualquer coisa,
Maia, devo confessar que adivinhaste ��� respondeu Ra-
nofrit, cobrindo com o leque as faces coradas e a pertur-
ba����o em que estava. ��� Sim, existe um homem, menos
rico e menos bem colocado que Putifar, por��m, mil vezes
mais caro ao meu cora����o.
��� Foi aqui, em M��nfis, que o conheceste?
��� Sim, naqueles meses que passei com a tia Nefert.
Al��m disso, espero que o vejas hoje e ent��o dir��s se mi-
nha prefer��ncia �� leg��tima.
Um escravo anunciando que o nobre Hor pedia a
honra de saudar a mulher de Pot��fera e a cunhada, inter-
48
J. W. ROCHESTER
rompeu o di��logo; e Maia s�� teve necessidade de olhar
para convencer-se que o anunciado visitante era o eleito
de Ranofrit.
As duas mulheres apenas tiveram tempo de recompor
as vestes e trocar a posi����o negligente em que estavam,
por uma atitude cerimoniosa, quando, colhido o repos-
teiro, um jovem oficial penetrou na varanda e foi saudar
as damas com o natural desembara��o de perfeito corte-
s��o. Hor tinha vinte anos, era filho de alto funcion��rio
e, havia dois anos, servia no s��quito de Fara��. Muito
estimado na sociedade por seu car��ter leal e af��vel, as
mulheres dele se enamoravam por causa da sua rara e
original beleza. Efetivamente Hor, cuja m��e era de ori-
gem estrangeira, tinha uma tez de mate e cabelos louro-
-dourados; os tra��os fision��micos lembravam o tipo grego
puro, e as delicadas formas esbeltas, embora nervosas,
poderiam servir de modelo estatu��rio.
Maia examinou o rapaz com benevol��ncia e declarou
amavelmente que j�� o conhecia, tendo ouvido dizer a seu
respeito coisas muito lisonjeiras por uma irm�� de seu pai,
casada com Hapou, sacerdote em Heli��polis.
��� Vem, pois, proximamente ver tua tia e tamb��m
nos visitar, nobre Hor; meu marido estimar�� ver-te.
��� Agrade��o-te, nobre Maia, essa amistosa autoriza-
����o e estimarei saudar-te em Heli��polis, assim como a
bela Ranofrit e teu ilustre marido, com quem tive a honra
de travar rela����es por ocasi��o da sua ��ltima estada
aqui ��� respondeu Hor, inclinando-se, visivelmente sa-
tisfeito.
E avistando nesse instante Asnath, que se aproxi-
mara e fitava-o curiosa, disse:
��� �� sem d��vida tua filha, nobre Maia? Minha tia
falou-me de uma formosa menina, mas a realidade vai
muito al��m da descri����o. Que soberbos olhos! Prevejo que
um dia conquistar��o muitos cora����es e despertar��o pai-
x��es perigosas!
��� N��o v��s pedir-me a filha: v�� como te escuta os
elogios e a satisfa����o que experimenta! Se se tornar v��
e orgulhosa, ser��s o respons��vel e lamento, realmente, j��
O CHANCELER DE FERRO
49
estejas em idade de casar. Asnath, t��o nova, n��o me dar��
ensejo de ver a seus p��s um homem sedutor, qual tu.
��� Oh! certamente! ��� disse Hor sorrindo ��� mas
estou propenso a ficar livre, at�� que a pequena Asnath
tenha crescido para aceitar as humildes homenagens de
um pobre guerreiro como eu.
��� Neste caso, arma-te de paci��ncia; precisas esperar
oito anos, pois antes dos dezesseis completos n��o casarei
minha filha ��� respondeu Maia, rindo tanto quanto Ra-
nofrit.
��� Ora! que s��o oito anos por um tal pre��o? Mas que
dizes ��� acrescentou abra��ando carinhosamente Asnath ���
aceitar��s minhas homenagens?
A menina ergueu para o mo��o oficial os belos olhos
transl��cidos e fitou-o com um olhar perscrutador.
��� De bom grado; ��s belo e agradam-me os teus ca-
belos de ouro. Mas, esperar��s que eu cres��a? Isso levar��
tanto tempo! ��� terminou com um suspiro.
��� Fica tranq��ila, esperarei e ver��s como o tempo
passa... E n��o me dar��s um beijo por conta dos futuros
direitos? ��� disse Hor com fingida gravidade.
Asnath fechou os olhos e refletiu um momento.
��� Sem d��vida, abra��a-me ��� declarou resoluta, es-
tendendo-lhe a boquinha vermelha. ��� Todo o mundo me
abra��a, por que n��o tu, que me agradas?
Abra��aram-se francamente. Asnath puxou um ban-
quinho, sentou-se gravemente perto de Hor e pousou na
dele a sua m��ozinha. Maia divertia-se bastante com a
cena, mas Ranofrit, que ria como louca, exclamou:
��� Asnath, Asnath! tu d��s beijos muito facilmente.
Quando cresceres, ouve bem, Hor n��o mais te agradar��,
estar�� velho e talvez pai de fam��lia.
A menina levantou a cabe��a com ar de desafio e
abriu a boca para revidar, quando o negro que anunciara
o oficial reapareceu, declarando que um enviado do nobre
Putifar pedia o favor de ser admitido �� presen��a da
nobre Ranofrit, desejando depor-lhe aos p��s as flores
enviadas por seu senhor.
50
J. W. ROCHESTER
��� Que venha! ��� respondeu a mo��a, corando extraor-
dinariamente. ��� N��o posso ofender a Putifar, deixando
de receber o seu mensageiro. Quem sabe? Talvez se vin-
gasse do meu desd��m no mano Rameri, que �� seu subor-
dinado ��� disse com um gesto de escusa, ao ver uma ruga
desenhar-se no rosto de Hor.
N��o teve tempo de mais dizer, porque j�� o et��ope
suspendia o franjado reposteiro, dando passagem a dois
pequenos rapazes ricamente vestidos, portando grande
cesta artisticamente tran��ada, adornada de fitas e refer-
ta de espl��ndidas flores. Atr��s dos dois rapazes insinua-
va-se um homem alto, que, chegando junto das duas
mulheres, prostrou-se respeitoso. Depois, erguendo-se a
um sinal de Maia, disse com voz sonora:
��� Em nome de meu senhor, o poderoso e ilustre
Putifar, deponho estas flores a teus p��s; digna-te receber
com benevol��ncia o seu enviado, nobre Ranofrit, e possam
os deuses aben��oar-te os passos, dando-te felicidade, sa��-
de e muitos dias de vida!
Todos os olhares se voltaram para o enviado de Pu-
tifar, cujo porte desembara��ado e elegante, embora mo-
desto, t��-lo-ia feito tomar antes como senhor que como
escravo. Ele, no entanto, s�� parecia ver Ranofrit. Seus
grandes olhos verdes pareciam encravados na mo��a e esse
olhar agudo como um dardo, pesado de chumbo, infiltra-
va-se at�� ao fundo do seu ser. Fascinada, subjugada,
esquecendo tudo o que a rodeava, Ranofrit fitava o ho-
mem cujos olhos a requeimavam e faziam que lhe pul-
sasse o cora����o como jamais pulsara por qualquer homem
da sua classe.
Parecia-lhe que, sob a influ��ncia desse olhar estranho
e poderoso, alguma coisa nela se dobrava e contra��a, a
respira����o lhe faltava, amea��ada de um colapso.
Reagindo com dificuldade ao s��bito torpor, murmu-
rou em voz baixa e tr��mula:
��� Agradece por mim ao teu senhor o belo presente
que me envia e assegura-lhe a minha gratid��o.
Fez um sinal de despedida ao enviado de Putifar e
este, depois de se prostrar de novo, desapareceu com os
dois condutores da cesta.
O CHANCELER DE FERRO
51
Ranofrit suspirou, aliviada, passando a m��o nas faces
p��lidas. Liberta da estranha fascina����o do olhar daquele
homem, sentiu-se repentinamente tomada de surda aver-
s��o por ele. Exprimindo de alguma forma o pensamento
da tia, Asnath exclamou:
��� Que homem horr��vel! Tem exatamente os olhos da
enorme serpente que vi uma vez... e �� justamente ele
que Putifar envia com um presente!
Disse-o com ar de reprova����o que fez rir a todos e
desfez a desagrad��vel sensa����o a todos causada.
��� Este homem �� o primeiro intendente de Putifar
��� advertiu Hor ���; dizem que goza de grande ascendente
na casa, bem como da confian��a absoluta do senhor, em-
bora tenha sido um simples escravo comprado h�� poucos
anos. Sua presen��a me causa sempre uma impress��o de-
sagrad��vel e Asnath tem raz��o: ele tem um olhar de
serpe.
A conversa mudou de rumo, o rapaz esflorou not��cias
da Corte e da cidade. Observando, por��m, que Ranofrit
permanecia silenciosa e pensativa, despediu-se e saiu.
Queixando-se de dor de cabe��a, a mo��a deixou a varanda
e foi para o quarto Despediu as criadas, proibindo que
a chamassem e estendeu-se no macio div�� junto da ja-
nela aberta.
Estranho estado aquele em que se achava Ranofrit:
cabe��a pesada, os pensamentos tumultuavam, tinha es-
quecido Hor, a quem, todavia, amava; e a imagem de
Putifar surgia-lhe na mente cercada de fulgor inc��modo,
ao mesmo tempo que lhe murmurava uma voz no ouvido:
"Deves despos��-lo; �� bom, ama-te, far-te-�� feliz."
Fatigada, quase inconsciente, arrastou-se para o leito
e adormeceu de cansa��o; mas, em sonho, o mesmo pe-
sadelo a perseguia. Apenas, agora n��o via mais Putifar
e sim o seu enviado: a cabe��a caracter��stica do intendente
inclinava-se sobre ela, o olhar dos olhos verdes exprimia
uma ordem inexor��vel, enquanto a boca murmurava como
um sopro: "Casar��s com Putifar, ouves? assim o quero!"
Na v��spera do dia em que a cesta de flores foi envia-
da a Ranofrit, uma conversa bem singular tivera lugar
52
J. W. ROCHESTER
entre Jos�� e o senhor. O hebreu conhecia perfeitamente
Putifar, para desperceber a mudan��a que fizera havia
dois meses, e logo compreendeu que se tratava de uma
paix��o, sem d��vida pela encantadora irm�� do sacerdote
de Heli��polis, que viera passar algum tempo em M��nfis,
na companhia de uma velha parenta. A perspectiva de
uma senhora jovem, na casa onde ele fazia e desfazia,
desagradou a principio a Jos��. Acreditava, n��o sem raz��o,
que a mulher capaz de subjugar um celibat��rio obstinado,
como Putifar, que na idade de trinta anos tinha rejeitado
brilhantes partidos, exerceria sobre o marido imenso
poder; e se esse poder se declarasse contra ele, s��rios
inconvenientes poderiam resultar para a sua posi����o.
Seu primeiro desejo foi impedir o casamento, mas
logo mudou de opini��o, acalmou-se e esperou os aconte-
cimentos.
Conv��m acrescentar que o jovem hebreu tinha por
certo que um homem rico e bem colocado, como Putifar,
seria aceito de bra��os abertos por qualquer mulher a quem
honrasse com a sua escolha e que, at�� ent��o, nunca atri-
bu��ra a tristeza e o mau humor de seu senhor a insucessos
de amor.
Mas na v��spera, �� tarde, Putifar chegara t��o triste
e irritadi��o, despedira t��o rudemente toda a gente, que
at�� lhe causara espanto.
Por isso, em vez de retirar-se como os outros escravos,
escondeu-se atr��s do reposteiro e observou o senhor, que,
julgando-se sozinho, murmurou, cobrindo os olhos com a
m��o: "Maldito Hor! Vejo que �� a ele que Ranofrit ama
e, por causa desse patife, n��o me quer para esposo!"
Desde muito que suspeitava a prefer��ncia da mo��a
pelo belo oficial, mas nesse dia, num sarau, havia sur-
preendido entre eles olhares amorosos e mal disfar��ados.
Exacerbou-se-lhe ent��o o ci��me e chegou a casa ro��do
de raiva e tristeza, porque a afei����o de Putifar era ho-
nesta e s��ria, como a sua pr��pria ��ndole.
Estava assim absorto em seus pensamentos pouco
agrad��veis, quando um ligeiro contacto f��-lo estremecer.
O CHANCELER DE FERRO
53
��� Que me queres? ��� perguntou bruscamente, reco-
nhecendo Jos��, que se tinha aproximado de mansinho.
��� Meu bom senhor ��� murmurou o mancebo, incli-
nando-se ���, queres desposar a bela e nobre Ranofrit?
Nesse caso, f��-lo-��s e antes de tr��s dias ser��s noivo!
Putifar encarou-o com espanto e indiferen��a.
��� Est��s doido? Que disparate �� esse? Porventura
��s feiticeiro para declarar t��o arrogantemente que me
basta querer para noivar? E se acaso ela preferir outro?
O mo��o hebreu sorriu enigm��tico:
��� N��o sou feiticeiro, mas sabes, mestre, que tenho
algumas no����es sobre a a����o dos efl��vios astrais, que se
podem tornar favor��veis quando sabemos manej��-los.
Mas, antes de tudo, orarei a Eloim, o deus do meu povo;
ele ouve a voz do seu servo e nele reside a minha for��a.
Putifar levantou-se, deu alguns passos agitados e,
passando-lhe rente, p��s-lhe a m��o no ombro, dizendo:
��� Faze como puderes, na certeza de que se Ranofrit
se tornar minha mulher, recompensar-te-ei principesca-
mente. Mas, n��o te posso ajudar?
��� N��o, senhor, d��-me somente tr��s dias para orar
e atrair sobre ti os efl��vios prop��cios; al��m disso, con-
sente v�� amanh��, em teu nome, levar flores �� nobre dama.
E quando te avisar, confia-me o pedido escrito de casa-
mento, que eu mesmo levarei.
Voltando no dia seguinte ao da embaixada junto de
Ranofrit, Jos�� encerrou-se no quarto, proibindo a quem
quer que fosse perturb��-lo, at�� o dia seguinte de manh��.
O jovem intendente ocupava agora uma grande pe��a que
dava para um pequeno p��tio interior, transformado em
jardim. Esse quarto era mobilado com requintes de luxo
que teriam espantado o pr��prio Putifar, se l�� pusesse
os p��s.
As cortinas preciosas que cobriam portas e janelas,
os vasos de flores, a mesa de cedro sobrecarregada de
tabuinhas escritas e papiros, n��o ficariam mal no gabi-
nete do pr��prio chefe; o leito, ricamente ornado, era
coberto com uma pele de pantera e esteiras policromas
forravam o soalho. Apesar disso, o hebreu n��o recearia
54
J. W. ROCHESTER
a c��lera de Putifar, ainda quando visse ele o luxo ex-
cessivo de que se rodeava o intendente. Sabia que ele
era-lhe indispens��vel e tinha dado muitas provas de
integridade e zelo, para que encarasse os seus gostos
ultra-elegantes como ind��cio de malversa����es.
Pensativo, de cenho carregado, o hebreu cruzava o
quarto de um lado para outro; pensava na visita a Ra-
nofrit e nas conseq����ncias da s��bita resolu����o de auxiliar
Putifar a desbancar um rival, e como empregaria a ci��n-
cia secreta por granjear a seu favor o cora����o da mulher
amada. "Sim, disse: fiz bem; Putifar deve estar conven-
cido do meu poder, sendo-me devedor da sua felicidade.
Quanto �� mo��a, �� mais sens��vel ao meu olhar do que o
esperava; ser�� escrava da minha vontade, minha aliada
e me elevar�� em vez de abater, como eu presumia. Terei
necessidade de fazer-me resgatar e . . . se por acaso Puti-
far morresse, poderia casar-me com ela, vi��va, se me
amasse. Senhor de t��o bela e ilustre mulher e dessa
imensa fortuna, teria atingido a gloriosa posi����o pro-
metida por Schebna. Seria necess��rio ter o amor de Ra-
nofrit, mas isso n��o seria t��o dif��cil."
Um sorriso brincava-lhe nos l��bios e, tomando ��
mesa o espelho met��lico de cabo cinzelado, mirou-se um
momento.
Na verdade, era belo com aquela c��tis p��lida e ma-
cia, cabelos fartos e sedosos, grandes olhos fulgurantes
e o sorriso fascinador da boca bem talhada em l��bios
de rom��.
Quando a noite caiu, a cidade imensa envolveu-se em
sil��ncio e sombra, e na casa de Putifar todo o mundo
pediu repouso ao sono. Jos�� retirou do pesco��o o pequeno
breve que trazia sempre consigo, retirou-lhe a pedra
m��gica e, apertando-a nas m��os, prostrou-se em terra
com palavras cabal��sticas.
Pouco a pouco a voz tornou-se-lhe mais fraca, at��
extinguir-se completamente. O olhar tinha tomado estra-
nha fixidez; as veias do pesco��o e da fronte inchavam
como cordas e, no rosto im��vel, desenhava-se uma con-
centra����o extremada at�� ao sacrif��cio.
O CHANCELER DE FERRO
55
Ao cabo de meia hora, mais ou menos, estremeceu e os
olhos retomaram o brilho natural. Levantou-se bocejando
e, pondo a pedra m��gica no seu lugar, bebeu um copo
de vinho, deitou-se visivelmente esgotado, e caiu logo em
sono profundo.
Enquanto isso se passava em casa de Putifar, Rano-
frit dormia no seu quarto, iluminado por uma lamparina.
A doce e ondeante luz projetava-se em reflexos averme-
lhados nas estatuetas dos deuses de pau e de cobre, pos-
tos num altar, assim como nas brancas vestes noturnas
da mo��a, estendida no leito. Durante a tarde toda, a
escolhida de Putifar sofrera violenta enxaqueca e, con-
forme o conselho de Maia, deitara-se muito cedo; �� me-
dida, por��m, que a noite avan��ava, o sono se lhe tornava
mais inquieto; ela agitava-se na cama e suspiros, lamen-
tos abafados, escapavam-se-lhe dos l��bios.
Sonho fatigante, estranho e insistente, perseguia a
mo��a eg��pcia: parecia-lhe que ao lado do leito surgia,
condensava-se e dilatava-se uma nuvem cinzenta, que
logo tomou a forma de um homem cujo rosto n��o podia
distinguir, mas cujos olhos fixos e fulgurantes penetra-
vam-lhe o c��rebro, causando-lhe uma dor aguda.
��� Ouves-me, Ranofrit? ��� perguntava ao mesmo
tempo uma voz surda e disfar��ada.
��� Sim ��� murmurou ela com dificuldade.
��� Pois bem! se me ouves, ordeno... compreendes?
ordeno que, quando, daqui a tr��s dias, eu vier apresentar
o pedido de casamento de Putifar, n��o o recuses.
��� Hor! Mas �� a Hor que eu amo ��� disse Ranofrit
debatendo-se na cama, como a lutar contra alguma coisa
que a abafava, premendo-lhe a cabe��a como um anel de
ferro. Pareceu-lhe que a sombra pardacenta inclinava-se,
apoiava um dedo ardente na sua fronte, entre as sobran-
celhas, e gritava-lhe com voz retumbante:
��� Esquecer��s Hor, Putifar ser�� teu marido e a
mim, teu senhor, obedecer��s, porque tamb��m haver��s
de amar-me.
Cada uma dessas palavras percutia o ouvido da mo��a
qual martelo batendo num disco de bronze; e as vibra-
56
J. W. ROCHESTER
����es do metal timbravam dolorosamente nas fibras do
seu corpo.
��� Dentro de tr��s dias dar��s o sim e ser��s noiva de
Putifar ��� repetiu a voz.
Depois a sombra se diluiu num vapor transparente,
desapareceu... mas Ranofrit estortegou-se na cama, pro-
jetando-se de um para outro lado com tal viol��ncia que
quase caiu ao ch��o. Profunda prostra����o sucedeu a essa
crise e ela ficou p��lida e im��vel.
Pela manh��, despertou t��o alquebrada, t��o fraca que
ficou deitada o dia inteiro. Pesava-lhe a cabe��a, dolorosa
press��o apertava-lhe as fontes e mostrou-se irritada, ner-
vosa como nunca. ��s perguntas inquietas de Maia, nada
p��de responder; nada lhe havia sucedido ��� dizia. Al��m
da dor de cabe��a, s�� tinha a fraqueza. No segundo dia
sentiu-se mais forte e levantou-se. Entretanto, a inquie-
ta����o s�� aumentava. Hora a hora, esperava alguma coisa:
qu��? ��� n��o saberia diz��-lo.
Triste, apreensiva, n��o sabendo como haver-se, va-
gava pelos quartos e pelo jardim e, contudo, quando Hor
chegou, negou-se a receb��-lo, pretextando que a sua in-
disposi����o lhe tornava inc��moda qualquer visita.
��� Est��s doente, algum terr��vel mau-olhado caiu sobre
ti ��� declarou Maia na manh�� do terceiro dia. ��� Olha,
tuas m��os escaldam e continuas perturbada. Provavel-
mente, algu��m que te envia o amor de Putifar, ou de Hor,
deitou-te feiti��o e n��o �� em v��o que essa bruxa de Tachot
devora-te com os olhos quando conversas com o chefe das
pris��es. Tamb��m n��o �� segredo para ningu��m que Ta��
est�� apaixonada por Hor. Importa ir ao templo para que
te purifiquem e d��em algum amuleto sagrado. Vou j��
vestir-me e mandar preparar a liteira; prepara-te tam-
b��m, iremos juntas ao templo.
��� Tens raz��o, creio mesmo que sou v��tima de algu-
ma influ��ncia perniciosa e que, na noite de anteontem,
empregaram a feiti��aria contra mim, porque despertei
alquebrada e, desde ent��o, atormenta-me uma agonia
constante.
O C H A N C E L E R DE F E R R O
57
Ranofrit terminava o vestu��rio quando a criada anun-
ciou que um enviado de Putifar pedia licen��a para entre-
gar-lhe pessoalmente uma mensagem do seu senhor.
Nervos��ssima, ordenou conduzissem o mensageiro a uma
galeria cont��gua ao aposento. Percebendo a estatura
avantajada de Jos��, a quem logo reconheceu, o cora����o
lhe bateu t��o violento que a mo��a encostou-se a uma
coluna, ordenando com um gesto que o intendente se
aproximasse.
Este se prostrou, declarando respeitosamente que,
sendo a mensagem da mais alta import��ncia e destinada
somente aos seus ouvidos, solicitava o favor de entreg��-la
sem testemunhas. A um sinal, as duas criadas que a acom-
panhavam retiraram-se para a sala cont��gua, enquanto
Ranofrit, cujas pernas tremiam nervosamente, descansou
num tamborete pr��ximo e perguntou com voz t��o firme
quanto poss��vel:
��� Que me quer Putifar? Fala, estamos s��s.
Jos�� ajoelhou-se, beijou-lhe a f��mbria da t��nica e
apresentou-lhe a mensagem, enquanto num r��pido olhar
de fogo envolvia a mo��a, que, cada vez mais perturbada,
leu o seguinte:
"Putifar, o escriba real, chefe das pris��es e dos ar-
cheiros de M��nfis, �� nobre Ranofrit.
"Imploro a Hator, tua divina irm��, para que gozes
boa e constante sa��de e teu cora����o me seja favor��vel
quando leres este escrito, porque n��o posso mais calar o
grande amor que me inspiras. Sinto-me triste e infeliz
em minha opulenta morada. Embora, pelo favor dos
deuses, esteja ela cheia de todos os bens da Terra, est��
deserta para mim, porque me falta uma companheira.
Essa tristeza, por��m, se transformar�� em alegria se acei-
tares o cora����o fiel que ponho aos teus p��s; se consentires
em ser o sol de minha vida, a alma de minha casa vazia;
se me aceitares como esposo!"
Respirando dificilmente, a mo��a encostou-se �� pare-
de e seu olhar vagou, distraidamente, da mensagem que
descansava em seus joelhos ao hebreu, de p��, alguns
passos adiante, em atitude respeitosa, mas cujo olhar pe-
58
J. W. R O C H E S T E R
sado e estranho continuava a atuar nela. Involuntaria-
mente, fitou Jos��, que baixou logo os olhos, mas, �� medi-
da que ela encarava o rapaz, despertava-se-lhe o desejo
de o rever, ouvir-lhe a voz, guard��-lo junto dela. Em uma
palavra: ser servida por ele e ver ainda este servo de
Putifar ajoelhar-se e dirigir-lhe as pupilas verdes, cuja
luz fascinava e embriagava.
��� Dar-me-��s uma resposta que possa transmitir a
meu senhor, nobre dama? ��� perguntou, enfim, rompendo
um sil��ncio que come��ava a ser inc��modo.
��� Sim, dize a Putifar que sua mensagem me foi grata
e que serei feliz se ele pr��prio vier buscar uma resposta
mais expl��cita e de acordo com os votos do seu cora-
����o ��� respondeu com uma calma resoluta, que contras-
tava estranhamente com a febril agita����o de pouco
antes.
Jos�� curvou-se profundamente e Ranofrit n��o viu o
rel��mpago de estranho j��bilo que se esbo��ou fugitiva-
mente de sob as suas sobrancelhas espessas.
Na tarde desse mesmo dia, Putifar chegou a casa ��brio
de ventura; acabava de estar com Ranofrit, que lhe dis-
pensara o melhor acolhimento e, embora um tanto p��li-
da, repetira resolutamente que o aceitava como esposo e
n��o fizera oposi����o alguma quando ele selara os esponsais
com um ardente beijo em seus l��bios r��seos.
Tendo mandado chamar Jos�� e despedido todo o
mundo, o chefe dos archeiros disse alegremente:
��� Cumpriste a palavra, servo fiel, e eu n��o esque-
cerei que contribu��ste para a minha felicidade; mas,
dize-me: que fizeste para ganhar t��o prontamente o co-
ra����o da mo��a, desviando-se desse fedelho de Hor?
��� N��o mo perguntes, senhor, n��o poderia explicar-te
o que eu mesmo n��o compreendo; sei, apenas, que na
tribo de meu pai, entre os pastores, conhecem a for��a
misteriosa dos astros e a maneira de torn��-los favor��veis.
"Se conseguem atrair para si ou para outrem qual-
quer corrente ben��fica, o ��xito �� completo, homens e
coisas se tornam prop��cios ao fim colimado."
O C H A N C E L E R DE F E R R O
59
��� N��o interrogarei sobre teu segredo, fiel servo, mas
j�� que conseguiste atrair sobre mim uma corrente t��o
favor��vel, recebe isto como prova da minha gratid��o e,
de sobra, toma para ti uma medida de an��is de prata.
Putifar entregou-lhe um anel que tirou do dedo e
um alamar de manto de ouro cinzelado. Jos�� agradeceu
calorosamente, beijou-lhe a m��o e retirou-se.
A not��cia do cons��rcio a ningu��m admirou, mas des-
pertou um pouco de ci��me entre as mulheres. Hor entris-
teceu-se com o fracasso das suas esperan��as, mas n��o se
admirou muito de que a mo��a, talvez persuadida pelos
parentes, o tivesse abandonado por um homem imensa-
mente rico, bem colocado e bastante mo��o e belo para
impor-se.
Os preparativos nupciais se fizeram rapidamente.
Esperava-se apenas a chegada de Pot��fera, o irm��o da
noiva, que devia vir de Heli��polis logo que lhe permi-
tissem as m��ltiplas ocupa����es do alto cargo.
Por causa do alegre evento em perspectiva, toda a
casa estava em dobadoura: as aias de Maia e da cunhada
trabalhavam dia e noite por terminar a tempo as indu-
ment��rias festivas da senhora e o enxoval de Ranofrit.
S�� a noiva estava pensativa e silenciosa. Um misto de
alegria e constrangimento apertava-lhe o cora����o e ela
pensava muito mais no intendente do futuro marido que
no pr��prio marido. Mas, disso ningu��m se apercebia e
todo o mundo, inclusive Putifar, atribu��a aquela melan-
colia ao desencontro de sensa����es que experimenta uma
donzela no mais grave momento da sua vida.
Em compensa����o, a pequena Asnath exultava, plena-
mente feliz e na melhor harmonia com Putifar. Este fazia-
-lhe todas as vontades, cumulando-a de presentes, e era
t��o grande a amizade entre os dois que Ranofrit, brincan-
do, se declarou enciumada.
Dois dias antes do casamento, chegou Pot��fera. Era
um homem de quarenta anos, alto, grave e respeit��vel em
todos os seus atos. O rosto altivo e regular exprimia ener-
gia e vontade inflex��veis, mas nos grandes olhos negros,
debaixo da serenidade criada pelo h��bito, escondiam-se
60
J. W. ROCHESTER
uma alma apaixonada e sentimentos de orgulho e ambi-
����o. Seu olhar penetrante lia na alma alheia, sem desven-
dar os segredos de suas pr��prias emo����es. Qualquer que
fosse, entretanto, o fundo do seu ser, o sacerdote de
Heli��polis era muit��ssimo estimado pela amenidade e
igualdade do car��ter; sua ci��ncia e sabedoria impunham
respeito e a indulgente bondade que prodigalizava aos
amigos tornava-o adorado por eles. Era o melhor dos
maridos e dos pais, e tinha por sua irm�� Ranofrit uma
afei����o inteiramente paternal, porque nascida de segun-
das n��pcias paternas. Ela ficara em seu poder depois que
uma cat��strofe a orfanara, quando os pais se afogaram
no Nilo.
O sacerdote era bastante perspicaz para n��o ter logo
descoberto que a irm�� n��o compartilhava o amor apai-
xonado de Putifar e perguntou a si mesmo, surpreso, que
raz��o poderia levar uma criatura jovem, bela, cercada de
homenagens, a desposar um homem que lhe era indife-
rente.
Observou atentamente e verificou que ela estava
pensativa, triste ��s vezes, e atormentada por uma surda
inquieta����o. Veio-lhe, ent��o, a id��ia de que procurava
abafar no casamento o malogro do seu ideal e resolveu
interrog��-la.
Na v��spera do casamento, aproveitou uma hora de
solid��o para conversar com a irm�� e, com as mais afe-
tuosas express��es, pediu-lhe que lhe abrisse o cora����o.
Acrescentou que, sendo seu irm��o e amigo, saberia asse-
gurar-lhe a felicidade de outro modo que n��o fosse a
liga����o a um homem a quem n��o amasse. Ranofrit lan��ou-
-se-lhe nos bra��os, chorou, mas declarou que se unia a
Putifar voluntariamente, sem nenhum pensamento oculto.
Pot��fera n��o insistiu, mas continuou a observar. As
n��pcias, apesar do grande n��mero de convidados, n��o
lhe adiantaram coisa alguma. Mas no dia seguinte, em
uma festa oferecida pelos rec��m-casados, notou subita-
mente Jos�� que, com todo o desembara��o, dirigia os es-
cravos e cujo ��nico olhar era bastante para estabelecer
a ordem na chusma de criados. Os olhos percucientes do
O CHANCELER DE FERRO
61
sacerdote pregaram-se na estatura esbelta do mo��o he-
breu, no seu rosto t��o delicado, t��o inteligente, que des-
pertava aten����o, mesmo na roda aristocr��tica que enchia
a sala.
Quanto mais fitava Jos��, tanto mais experimentava
um sentimento de avers��o que n��o podia explicar. Como
se tivesse sentido que o fitavam, o hebreu voltou-se e
seus grandes olhos verdes mergulharam qual chama viva
no olhar de Pot��fera. Mas logo baixou as p��lpebras e
desviou a cabe��a.
"N��o �� um homem ordin��rio, um escravo r��stico, mas,
qual a raz��o desse ��dio que me inspira?" ��� murmurou
o padre. "Ser�� um pressentimento a prognosticar algum
futuro acontecimento? Este homem, que sente o meu
pensamento, possuir�� efl��vios desastrosos que venham a
ser fatais para Ranofrit!" Veio-lhe ent��o de relance a
suspeita de que o intendente de Putifar poderia ser o ��m��
misterioso que atra��a a irm�� ��quela casa, visto como a
inferioridade social nunca foi obst��culo ao amor. "Devo
saber quem �� este homem e qual o seu papel aqui" ��� res-
mungou Pot��fera, a quem o pensamento de que a irm��
pudesse esquecer o que devia a si mesma e ao marido,
tinha feito subir o sangue �� cabe��a. Sem perda de tempo,
procurou o cunhado, chamou-o para um lugar solit��rio
e interrogou-o. Putifar, de boa mente, contou o que sabia
de Jos��, elogiou o zelo e atividade desse criado inigual��-
vel, assim como o seu saber muito superior ao de um
homem da sua condi����o.
��� Muito saber em um escravo �� perigoso, eu n��o me
fiaria nisso e receio, Putifar, que estejas alimentando
uma serpente debaixo do teu teto. Este homem inspira-
-me avers��o e o orgulho que transparece de todos os seus
tra��os nada de bom pressagia. Vende-o, desfaze-te dele...
O chefe dos archeiros retrucou com um riso intem-
pestivo e declarou que por nada deste mundo se privaria
de um servo que lhe adivinhava os desejos e nunca pode-
ria ser substitu��do.
IV
A MULHER DE PUTIFAR
Ora, Jos�� era muito belo de ros-
to e muito agrad��vel. P a s s a d o muito
tempo, lan��ou sua a m a os olhos so-
bre ele.
Quando, pois, o marido voltou
para sua casa, ela por prova da
sua fidelidade lhe mostrou a capa,
com que tinha ficado. ��� G��nese,
cap. XXXIX, w. 6, 7, 16.
Durante os primeiros meses de casamento, Putifar
ficou t��o embriagado de ventura que nem mesmo perce-
beu que Ranofrit continuava pensativa e distra��da, e que
o seu amor era muito menos ardente que o dele. Al��m
disso, o chefe dos archeiros era obrigado a ausentar-se
constantemente e a mo��a tinha muitas horas de insula-
mento, durante as quais era assaltada por pensamentos
cada vez mais perturbadores e perigosos. Nada lhe per-
turbava mais os sonhos doentios, porque o sacerdote tinha
partido com a familia, as visitas e recep����es tomavam
apenas um tempo relativamente curto, ao passo que via
Jos�� todos os dias, deixando-se cada vez mais apaixonar
pelo belo intendente, que s�� lhe testemunhava respeitosa
humildade, n��o reparando jamais nos olhares ardentes
que ela lhe deitava.
O mo��o hebreu se impusera uma linha de conduta
da qual n��o se arredava; parecendo respeitar humilde-
mente a autoridade da senhora, nada fazia sem lhe rece-
O CHANCELER DE FERRO
63
ber as ordens. A prop��sito de qualquer neg��cio, embora
m��nimo, solicitava a sua decis��o, jamais saindo da reserva
discreta e comedida, de servi��al consciencioso.
Na realidade, via perfeitamente a paix��o que inspi-
rava e come��ava a ultrapassar os limites que se tinha
proposto tra��ar-lhe. N��o queria ter nela mais que uma
aliada, um d��cil instrumento que n��o entravasse a liber-
dade e privil��gios que desfrutava na casa de Putifar.
Enfim, uma presa valiosa, caso se tornasse vi��va. Este
��ltimo plano, sub-repticiamente gerado em seu c��rebro,
no dia em que utilizara a for��a oculta que os s��bios mo-
dernos batizaram com o nome de hipnotismo, havia amor-
tecido de longa data.
O chefe dos archeiros era de t��mpera prop��cia a longa
vida e Jos�� n��o pensava, absolutamente, em abreviar-lhe
os dias. E enquanto Putifar vivesse, o muito amor de Ra-
nofrit constitu��a perigo para si. Mas esta ��ltima n��o
deixava de ser uma filha do ardente Egito. Agasalhado
nalma, o primeiro impulso desenvolvia-se rapidamente,
enchendo-a de sensa����es desconhecidas. Assim que, sentia
de longe a aproxima����o do rapaz; qualquer proposta que
ele apresentava para o governo da casa parecia-lhe partir
dela pr��pria; e quando o tinha diante de si, modesto,
reservado, olhos baixos, ficava imersa num misto de c��lera
e de impaci��ncia.
O bom Putifar nem sequer suspeitava dessas tempes-
tades secretas no cora����o da mulher, e Ranofrit as dissi-
mulava com a ast��cia pr��pria do sexo. Tamb��m, quando
um dia o marido surpreendeu-a agitada e com os olhos
��midos, indagando pressurosamente o que tinha, ela de-
clarou resolutamente que vivia para morrer de t��dio, por-
que ele a deixava s��, dias inteiros. Putifar riu com abun-
d��ncia de cora����o, explicou as necessidades do servi��o que
o retinham, contra a vontade, fora do lar, e, por fim,
acrescentou:
��� Creio que gostas do canto e da harpa: pois bem,
o intendente Jos�� �� um m��sico mais perfeito que os can-
tores do templo e, se quiseres, dar-lhe-ei ordem para
distrair-te nas horas de enfado, com os c��nticos do seu
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J. W. R O C H E S T E R
pa��s, que eu pr��prio gosto de ouvir porque s��o esquisitos
e penetrantes.
Ranofrit abra��ou o marido e agradeceu a lembran��a,
um tanto perturbada. Ele satisfeit��ssimo por ter achado
aquele meio de distra����o, mandou chamar o intendente
e ordenou-lhe que cantasse e tocasse para distrair a se-
nhora nos dias em que, depois do jantar, houvesse de
ausentar-se. O hebreu agradeceu humildemente a honra
concedida, mas Putifar n��o reparou na express��o de con-
trariedade e zombaria que lhe transpareceu no rosto, en-
quanto se inclinava at�� o ch��o.
Dias depois, Putifar tinha sa��do e Ranofrit, no andar
t��rreo, respirava o ar fresco da tarde, ouvindo distrai-
damente uma escrava que cantava mon��tona endeixa,
acompanhando-se na c��tara. Imediatamente surgiu Jos��,
seguido de um escravo com uma harpa e, com a habitual
discri����o, perguntou se o autorizava a distra��-la com o
seu canto.
��� Sim, certamente, canta-me qualquer melodia do
teu pa��s. Meu marido disse-me gostar de ouvi-las e que
lhe agradam pela originalidade ��� respondeu Ranofrit,
recostando-se comodamente nas almofadas do leito de
repouso e fitando o mancebo. Este levou a harpa mais
para perto dela e tocou um prel��dio com perfei����o con-
sumada. Depois, os brilhantes arpejos se dilu��ram em
ondas de bizarra melancolia, um delicioso murm��rio do
canto hebreu. Jos�� tinha uma voz soberba, sonora, fle-
x��vel, aveludada, que fazia vibrar e palpitar as fibras do
cora����o de Ranofrit. Como que fascinada, ela n��o podia
despregar os olhos do rosto p��lido do mo��o escravo, dos
seus grandes olhos sonhadores, que fitavam o v��cuo como
se n��o vissem coisa alguma do que os cercava.
Verdadeiramente, nesse instante, ele havia esquecido
a exist��ncia mesma de Ranofrit, seu pensamento volta-
ra-se sobre si mesmo e, sob a impress��o do pr��prio canto,
regredira no tempo. O passado, j�� long��nquo e muitas
vezes esquecido, empolgara-o; revia as vastas plan��cies
verdejantes, os numerosos rebanhos sob a guarda dos
irm��os, as virgens da tribo dan��ando, �� tarde, ao som
O CHANCELER DE FERRO
65
da sua lira, finalmente o pai, que, sem d��vida, chorava
a sua morte. As cenas da vida simples, r��stica, pobre,
por��m livre, desenrolavam-se uma a uma diante do seu
esp��rito, despertando sentimentos longamente recalcados.
O filho do deserto suspirou logo pelo ar puro dos campos,
pelos vastos horizontes da sua terra; o luxo, o refina-
mento da vida atual pareceram-lhe apenas o inv��lucro
dourado da sua condi����o de escravo, e pungitiva amar-
gura atravessou-lhe o cora����o.
Quase inconsciente de o fazer, a sua voz met��lica
modulava todas essas impress��es dalma. Por fim, calou-se
enquanto os dedos deslizavam ainda pelas cordas, arran-
cando-lhe os ��ltimos arpejos. O sonho desse passado, ao
qual n��o mais pertencia, extinguiu-se bruscamente: vinha
de encontrar o olhar flamejante da senhora e recaiu na
realidade. Mas, sob a impress��o dos pensamentos e das
lembran��as que acabavam de agit��-lo, apenas sentiu uma
fria indiferen��a pela eg��pcia. Repugnou-lhe o pr��prio
sentimento que lhe tinha inspirado, e seu olhar desde-
nhoso caiu sobre o rosto inflamado da mo��a. "Desejaria
ainda alguma coisa de ti?" dizia claramente esse olhar;
mas Ranofrit n��o o compreendeu. Levantara-se e, to-
mando um copo de vinho, estendeu-o a Jos�� fazendo-lhe
sinal que se aproximasse.
��� Bebe e refresca-te; depois, vai descansar. Agra-
de��o o prazer que me deste; na verdade, tens uma voz
admir��vel e desejaria aprender a cantar essas melodias
estranhas e comovedoras. Talvez resolva aproveitar as
tuas li����es.
Ele, bra��os cruzados, inclinando-se:
��� Ordena e o escravo ser�� feliz ensinando-te o pouco
que sabe.
Ficando s��, Ranofrit encolheu-se na poltrona, fechou
os olhos e refletiu: acabava de compreender que uma
paix��o fatal lhe empolgara todo o ser, e essa descoberta
intimidava-lhe o cora����o. N��o lhe viera ainda o pensa-
mento de uma liga����o criminosa, mas, era assaz impul-
siva, apaixonada e imprudente para procurar um ant��doto
eficaz �� mol��stia da sua alma. Assim, cuidou somente de
66
J. W. ROCHESTER
gozar o mais poss��vel, com a vista, o objeto do seu amor,
deleitar-se com o som daquela voz poderosa e fascinadora,
que a inebriava inteiramente de sensa����es novas.
Putifar concordou de bom grado com as li����es de
canto e mesmo de harpa. A ternura que lhe prodigalizava
a jovem esposa, tornava-o completamente feliz e nunca
lhe passou pela mente que ela pudesse deitar olhos amo-
rosos a um servo.
As li����es come��aram, portanto, e tiveram como pri-
meiro resultado que Ranofrit deslumbrasse o marido,
cantando-lhe muito sofrivelmente uma das pequenas can-
����es r��sticas e originais. O segundo resultado foi perder
o dom��nio de si mesma, mal dissimulando a violenta pai-
x��o que a escaldava. Jos�� tudo percebia e experimentava
certa inquieta����o, tendo mesmo procurado, por sugest��o,
diminuir o transbordamento da chama que ele pr��prio
ateara. Mas o ensaio falhou e n��o quis arriscar-se a
destruir completamente um sentimento que poderia trans-
formar-se em ��dio. Conv��m acrescentar que s�� incomple-
tamente sabia manejar a for��a oculta de que se servia,
pois Schebna s�� lhe ensinara parte da sua ci��ncia e,
embora ele tivesse aprendido muitas coisas no Egito, a
condi����o de escravo lhe vedara a porta da inicia����o.
Essas lacunas do saber levaram-no a cometer desacertos
prejudiciais aos seus interesses.
Um dia em que Putifar acompanhava o Fara�� na ca��a
e s�� voltaria muito tarde, Jos�� achava-se novamente junto
da jovem disc��pula.
A li����o terminara e, sentado num escabelo baixo, can-
tava, por ordem dela, uma das melodias prediletas. Apoia-
da no encosto da cadeira, Ranofrit devorava-o com os
olhos, impacientando-se com o humilde recato em que
ele se blindava... Nesse instante, quanto n��o daria para
que aqueles grandes olhos perdidos no v��cuo, cheios
de melanc��lico sonhar, mergulhassem nos seus um olhar
de amor, um desses fulgurantes rel��mpagos que, ��s vezes,
fugitivamente, neles fuzilavam!
Assomada da pr��pria loucura, tudo esquecendo, p��s
subitamente a m��o no ombro do rapaz e inclinou tanto
O CHANCELER DE FERRO
67
a linda cabe��a que os negros cabelos anelados ro��aram a
face do cantor, e murmurou com profunda emo����o:
��� Amo-te!
O mo��o interrompeu o canto, estremecendo; depois,
sem levantar os olhos, respondeu com a voz velada (um
olhar foi bastante para verificar que a sala estava vazia
e as criadas afastadas):
��� Minha nobre dama, sei que tua bondade pelo es-
cravo �� sem limites e que amas os modestos talentos que
os deuses lhe deram para distrair-te.
Os l��bios de Ranofrit tremeram. Ela desejava-o mais
ousado naquele momento e, inclinando-se mais, repetiu:
��� �� a ti que eu amo!
No rosto do hebreu desenhou-se uma ruga, seu olhar
agudo e frio mergulhou um instante nos olhos ardentes
da mo��a; depois, retirando a m��o que pousava ainda em
seu ombro, levantou-se, recuou alguns passos:
��� Grande e precioso �� o galard��o que me concedes,
nobre esposa do poderoso Putifar; t��o precioso mesmo,
que n��o posso aceit��-lo, pois esqueces que o homem pelo
qual sentes criminosa paix��o, �� escravo do teu marido.
Amo a vida, nobre Ranofrit, e conhe��o os castigos com
que a lei eg��pcia pune o adult��rio; mas, ainda que essas
leis n��o existissem, teu esposo cumula-me de tantos be-
nef��cios, tendo sido sempre para mim n��o um senhor mas
um pai, que eu preferiria a morte a um atentado contra
a sua honra. Lembra-te de tudo isso, poderosa senhora,
e de futuro n��o tentes mais com tua beleza e com pala-
vras meigas o pobre escravo que te serviu sempre com
fidelidade.
L��vida e tr��mula, Ranofrit ouvira a dura resposta do
homem que supunha enlouqueceria de ventura, rojando-
-se-lhe aos p��s em arroubos de adora����o.
E ele, insolente, a convocava ao dever, nada queria
dela. Teve a sensa����o de uma bofetada em pleno rosto
e titubeou, em vertigem, sob o olhar gelado das pupilas
verdes que a fitavam impass��veis.
N��o se moveu, n��o fez um gesto para sustent��-la;
mas a eg��pcia j�� se aprumava e, com as m��os encolhidas,
68
J. W. R O C H E S T E R
dava um passo para ele. Ao desmaio sucedera uma raiva
louca.
��� Patife, c��o impuro e abjeto ��� exclamou com voz
sibilante ���, que ousadia �� essa? Se tu, agora mesmo men-
digasses, a meus p��s, um olhar de amor, eu te repeliria
como a um animal asqueroso! Sim! ��s meu escravo, posso
fazer de ti o que quiser e saberei recompensar-te. Agora,
sai ��� acrescentou, batendo-lhe no rosto. Fora de si, vol-
tou-lhe as costas.
Jos�� fizera-se t��o branco como o pano dobrado que
lhe cingia os rins; faces ardentes, a c��lera sufocava-o,
mas, dominando-se corajosamente, deixou r��pido o andar
t��rreo, enquanto Ranofrit se deixava pender na cadeira
e rebentava em solu��os.
Abafando de raiva e de apreens��o, Jos�� correra di-
reto ao quarto e nele se trancara. "Vil e impudica cria-
tura ��� resmungou enrijando os punhos ���, como me
vingarei da tua afronta por te haver chamado ao cum-
primento dos teus deveres?"
Qual le��o enjaulado, cruzou no quarto, ruminando
planos de vingan��a mais ou menos temer��rios e esque-
cendo que fora ele pr��prio o instigador do sentimento que
lhe valera uma bofetada.
Pouco a pouco asserenou-se e, �� medida que medi-
tava mais friamente a situa����o, deixou-se empolgar pelo
receio de que Ranofrit procurasse vingar a afronta rece-
bida. Esse receio era bem fundado e, certamente, a mo��a
tinha melhores meios de o inutilizar do que ele de vingar-
-se dela. Sombrio e preocupado, encostou-se �� janela e
refletiu. S��bito, audacioso pensamento lhe brotou na
mente: Se vingasse o plano temer��rio e perigoso, muda-
ria de chofre o seu destino, levando-o ao pin��culo da
fortuna. Se Putifar desaparecesse agora, libertando Ra-
nofrit, seria f��cil reconciliar-se com a louca apaixonada
que faria tudo o que ele quisesse. E uma vez esposando
Ranofrit, teria atingido a meta que desejava, de uma
vida rica e independente.
Esse pensamento, nascido de s��bito, absorveu-o logo
completamente; e quanto mais ruminava o plano, tanto
O CHANCELER DE FERRO
69
mais f��cil lhe parecia execut��-lo; e menos perigoso at��
do que o rancor da mulher apaixonada e caprichosa a
quem havia ofendido. Precisava, por��m, agir com pres-
teza. Sabia que o chefe dos archeiros costumava beber,
ao deitar-se, um copo de vinho que lhe deixavam �� ca-
beceira. N��o faltaria a esse h��bito naquele dia, quando
voltasse tarde, fatigado da excurs��o e da festa que devia
prolongar-se no pal��cio do Fara��. Se chegasse a lan��ar
no copo algumas gotas do veneno vegetal que Schebna o
ensinara a preparar?
Dois anos antes, fabricara um frasco desse t��xico t��o
sutil que n��o deixava tra��o algum, mas nunca o havia
empregado; agora, poderia utiliz��-lo sem que jamais a
menor suspeita o atingisse, porque, desde o casamento de
Putifar, n��o mais penetrara no dormit��rio dos amos.
Enquanto assim pensava, elaborando o plano t��o
inopinadamente nascido, a noite ca��ra e, todavia, esperou
ainda. Depois, quando julgou que Ranofrit estava deitada
e adormecida, apanhou o frasco e insinuou-se pelo jar-
dim. Caminhando sem ru��do, qual fantasma, chegou perto
das janelas do quarto de Putifar e da esposa. Num gabine-
te cont��guo, ficava sempre uma escrava para atender a
qualquer necessidade da senhora. Habitualmente era Ac��,
jovem muito simp��tica e afei��oada ao intendente, quem
ocupava esse gabinete. Aproximando-se distinguiu-a logo,
�� claridade de fraca lamparina.
��� Ac�� ��� murmurou baixinho.
A serva voltou-se espantada, mas, reconhecendo logo
o rapaz pela estatura, correu �� janela. Era uma formosa
rapariga, esbelta, morena, com grandes olhos de gazela.
Amava-o e como ele lhe testemunhasse menos orgu-
lho e severidade do que ��s outras, acreditava-se tamb��m
amada, afagando a esperan��a de que chegasse a pedi-la
em casamento.
��� Queria falar-te um instante, Ac��, sem ser incomo-
dado pelos importunos ��� disse em voz baixa ��� por��m,
vai antes ver se a senhora est�� dormindo e depois corre
ao caramanch��o, na extremidade do jardim (donde se v��
toda a rua) e repara se vem o carro de Putifar.
70
J. W. R O C H E S T E R
A mo��a corou, pensando que ele queria, enfim, con-
fidenciar o seu amor e, fazendo com a cabe��a um sinal
afirmativo, desapareceu qual sombra no quarto de Ra-
nofrit. Logo depois, voltou:
��� Sim, est�� dormindo... vou ao caramanch��o ���
murmurou galgando a janela.
Ele enla��ou-a e, levantando-a como uma crian��a,
largou-a no ch��o; mas, tanto que ela desapareceu na
sombra das ��rvores, saltou a janela e, na ponta dos p��s,
dirigiu-se para o quarto.
Uma l��mpada de ��leo perfumado iluminava fraca-
mente o quarto, o vasto leito dourado envolvido de teci-
dos fen��cios e a pequena mesa lavrada, na qual cintilava
o copo dourado de Putifar.
Deitada nas almofadas, olhos cerrados, Ranofrit n��o
dormia, como acreditara Ac��. Apenas absorta nos seus
pensamentos, n��o se tinha movido ao entrar a criada,
supondo que esta se julgasse chamada. Havia passado a
tarde inteira agitada por uma tempestade de emo����es.
Sacudida entre o amor e o ��dio, buscava coordenar o caos
dos seus sentimentos. A lembran��a da ofensa recebida,
do amor desdenhado, despertava-lhe um novo acesso de
raiva. Um ligeiro ru��do foi perturb��-la de novo, no ritmo
das suas cogita����es. Supondo fosse Ac��, abriu os olhos
resolvida a passar-lhe uma boa reprimenda pela impor-
tuna����o, mas eis que a voz se lhe extinguiu na garganta.
Acabava de ver Jos�� a encaminhar-se para o leito.
Um mundo de sentimentos contradit��rios agitou-lhe
o c��rebro diante do homem em quem se concentravam
todos os seus pensamentos. Ele vinha, portanto, lamentar
a sua conduta. O amor triunfava da prud��ncia e o leva-
va a implorar perd��o. Que fim o levaria at�� ali, sen��o o de
uma reconcilia����o? Assim concluindo, esqueceu a inj��ria
sofrida e todos os planos de vingan��a; n��o viu outra coisa
al��m do porte elegante do mo��o hebreu, o seu perfil regu-
lar, que se inclinava para a mesa.
Segurando o frasco, Jos�� aproximara-se do leito e
levantava a m��o para derramar as gotas letais no copo,
quando, s��bito, uma sombra branca se levanta a seu lado
O CHANCELER DE FERRO
71
e dois meigos bra��os enla��aram-lhe o pesco��o, enquanto
uma voz vibrante murmurava: "Amas-me e vens... oh!
eu o sabia!"
Como em vertigem, o rapaz ficou um instante petri-
ficado. Supunha ver um abismo abrir-se-lhe sob os p��s.
Se Ac�� ou o senhor o surpreendessem ali, se vissem o
frasquinho que apertava na m��o, estaria perdido.
Glacial suor inundava-lhe o corpo e, sob o imp��rio da
prostra����o, deixou-se enla��ar sem resist��ncia. Foi s��
quando sentiu nos l��bios um beijo ardente, que saiu do
seu torpor e procurou desprender-se, exclamando com voz
rouca: "Deixa-me!" Quanto mais queria desligar-se das
cadeias vivas que o prendiam, tanto mais Ranofrit, no
seu louco desvario nele se enroscava. Empenhou-se um
mudo combate; prestes, por��m, o fino e superexcitado
ouvido do hebreu percebeu um barulho de rodas que pe-
netravam no primeiro p��tio. Sem d��vida era Putifar que
voltava. Louco terror apoderou-se dele. Recuou, arrastando
fora do leito a mo��a sempre agarrada ao seu pesco��o, mas
j�� n��o havia tempo de contemporizar e, empregando a
superioridade da for��a, empurrou-a com tal viol��ncia que
ela caiu na esteira e ele tratou de fugir.
Ao ver-se novamente no jardim, respirou aliviado.
N��o tinha, por��m, reparado que, no auge da luta, a mo��a
havia agarrado a t��nica e, ao cair, arrancara-lhe um
peda��o, junto ao pesco��o. Evitando Ac��, que vinha do
outro lado, correu qual veado em apuros, at�� ao quarto,
despiu-se no escuro e estendeu-se no leito. "Talvez, pen-
sou suspirando, talvez esteja salvo!"
Ranofrit levantou-se l��vida e agitada. Ao cair, tinha
esbarrado de encontro ao leito e podia-se-lhe ver na testa
um tra��o azul do tamanho de uma avel��; pesco��o, bra��os,
m��os estavam arranhados e a fina t��nica de linho ficara
rota de alto a baixo.
Respirando dificilmente, sentou-se �� beira do leito.
S�� a sede de vingan��a agitava-lhe desta vez a alma; pro-
curava um meio de agir, quando ouviu os passos do mari-
do no quarto vizinho. Um plano verdadeiramente feminino
assomou-lhe ent��o ao c��rebro: "Miser��vel c��o ingrato
72
J. W. ROCHESTER
��� rosnou ���, n��o quiseste meu amor, ent��o saboreia o
meu ��dio!"
Nesse instante, com um facho na m��o, uma velha
negra levantou o reposteiro e deixou entrar Putifar que,
vendo-a meio ca��da no leito e vestida de modo que bem
claramente denunciava uma luta, parou estupefato.
��� Ranofrit, minha amada, que te aconteceu? Est��s
p��lida de morte ��� exclamou, lan��ando-se para ela e
tomando-lhe as m��os tr��mulas.
A princ��pio nada respondeu ��s reiteradas perguntas
do marido; rangia os dentes e deixou pender a cabe��a
no peito de Putifar. Mas logo se aprumou e disse com
voz sofreada:
��� U m a . . . uma afronta sem nome, na tua aus��ncia;
ele veio, o miser��vel, e . . .
Os solu��os impediram-na de continuar. Uma onda de
sangue afluiu ao rosto do chefe dos archeiros, mas, pro-
curou dominar-se; deitou-a, deu-lhe a beber alguns goles
de vinho do seu copo, que felizmente ficou intacto, e s��
ent��o perguntou:
��� Quem ousou aqui penetrar e insultar-te? Di-lo e
fica certa de que o culpado pagar�� caro esta aud��cia.
Ranofrit levantou-se, olhos cintilantes:
��� Jos��, o miser��vel hebreu a quem cumulaste de be-
nef��cios, arrastou-se at�� aqui e tentou ultrajar-me com
o seu amor impuro. Olha os sinais da sua brutalidade!
(Mostrou-lhe os bra��os arranhados.) Fugiu com o ru��do
de teus passos, mas aqui tenho na m��o um peda��o da
sua t��nica, arrancado na luta.
Abriu a m��o e entregou ao marido um peda��o de pano
amarelo com listras azuis.
��� Jos��, o infame, o ingrato, em paga de meus bene-
f��cios ousa erguer os olhos para minha mulher? Ei-lo
ultrapassando os limites. D��-mo ��� disse arrancando o
fragmento de pano da m��o da mulher ���, vou mand��-lo
prender e, amanh��, ser�� julgado.
Voltou apressadamente para o gabinete de trabalho,
chamou dois criados e, acompanhado por eles, dirigiu-se
ao aposento de Jos��.
O CHANCELER DE PERRO
73
Este fingia dormir, prestando, entretanto, aten����o ao
movimento exterior. Imediatamente estremeceu e o cora-
����o parou de bater: passos de homens ressoavam no cor-
redor, depois a porta se abriu bruscamente. O clar��o das
tochas iluminou o quarto e a voz de Putifar troou ir��nica:
��� Olhem como este c��o est�� bem acomodado! Ah!
est�� dormindo? Apanha-lhe a t��nica, Bebi, quero v��-la.
Como de prever, verificou-se que o retalho adaptava-
-se exatamente ao rasg��o e, convencido por este exame,
Putifar deu um soco no ombro de Jos��, que, virado para
o lado da parede, n��o sabia da prova terr��vel que estava
nas m��os do senhor. Fingir o sono por mais tempo era
imposs��vel; levantou-se como que em sobressalto e seu
primeiro olhar caiu em Bebi, que lhe segurava a t��nica
e o peda��o delator. Tomado de vertigem, caiu sem senti-
dos no leito.
��� Eis uma confiss��o bem clara ��� rosnou Putifar e,
voltando-se para os escravos, acrescentou: ��� amarrem-
-no e vigiem-no at�� amanh��!
Voltando para junto de Ranofrit, abra��ou-a, aconse-
lhando-lhe que se acalmasse e contou-lhe o que acabava
de ocorrer.
A mo��a, ouvindo-o com curiosidade, perguntou que
esp��cie de castigo esperava o culpado. Mas quando soube
da terr��vel puni����o que a lei eg��pcia infligia aos delitos
desse g��nero, estremeceu e s��bito remorso mordeu-lhe o
cora����o, de vez que Jos�� n��o era t��o criminoso quanto
insinuara ao marido.
Ambos dormiram mal a noite, porque Putifar, de
��ndole boa e generosa, sempre indulgente com os escravos,
incomodava-se antecipadamente com o cruel castigo que
ia impor ao homem que, de tanto tempo, o servia com
fidelidade, e se lhe tinha tornado indispens��vel. N��o
podia esquecer que Jos�� o auxiliara a conquistar essa
mesma Ranofrit, a quem julgava ofender mostrando-se
muito indulgente. Deplorava a sorte do insensato, a quem
uma louca paix��o acarretara a perda e repugnava-lhe o
pensamento de mutilar esse jovem, tornando-o desgra��a-
do por toda a vida.
74
J. W. ROCHESTER
Ranofrit, por sua vez, tinha o esp��rito torturado em
busca de um pretexto para aliviar a sorte de Jos��. Ouvin-
do o marido suspirar e remexer-se na cama, desconfiou
que tamb��m ele lamentava o favorito e, naquele suspiro,
descobriu o ensejo que procurava.
Vinha rompendo o dia quando Putifar levantou-se e
foi sentar-se junto da janela. Absorto em sombrias cogi-
ta����es, sentiu que um bra��o enla��ou-lhe o pesco��o, uma
face aveludada ro��ava pela sua e uma voz macia lhe
sussurrava:
��� Meu senhor e meu esposo bem-amado, vejo que
sofres com a obriga����o de promulgar uma cruel senten��a
contra um bom servo que, at�� ontem, nunca mereceu a
tua c��lera.
Pois bem! Eu tamb��m n��o quereria que este mo��o
insensato perecesse por minha causa. Tentou ultrajar-me,
�� verdade, mas os deuses me protegeram e devemos con-
siderar que agiu enceguecido por uma paix��o impura.
Se meu pedido agradar ao teu cora����o, s�� indulgente
para com o insensato e, em vez de o mutilar, manda-o
castigar em tua presen��a e envia-o para uma propriedade
remota. T��o duro exemplo o levar�� a reconsiderar o seu
ato e dentro de alguns anos poder��s indult��-lo e dar-lhe
outro cargo, sen��o o mesmo que ocupava.
Putifar abra��ou-a efusivamente, parecia-lhe que ti-
rava um peso do cora����o.
��� Obrigado por tuas boas palavras, minha querida,
por tua generosidade que me dispensa de uma cruel sen-
ten��a, in��qua talvez.
Compreendo que ningu��m te possa ver sem apaixo-
nar-se, e ser�� essa talvez a ��nica atenuante do miser��vel.
Farei como dizes e, na presen��a de todos os nossos servos,
dar-lhe-ei corretivo exemplar. Depois, mand��-lo-ei para
uma herdade, perto de Tanis. Julgar-te-��s assim desa-
frontada?
��� Sim, sim ��� murmurou Ranofrit, apoiando-se pesa-
damente no ombro do marido.
Jos�� tinha passado horas infernais: de p��s e m��os
amarrados, atirado como um feixe de lenha ao canto do
O CHANCELER DE FERRO
75
quarto, cuja entrada era guardada por dois vigorosos
negros, compreendia bem, pela maneira por que o tinham
amarrado, que n��o era mais o poderoso intendente das
terras e bens de Putifar, esperando dentro de algumas
horas um supl��cio espantoso e infamante. Torcia-se ran-
gendo os dentes, nuvens de sangue escureciam-lhe os
olhos quando pensava em Ranofrit, a miser��vel mentirosa
que o tinha perdido. Sabia a senten��a que lhe competia
e, com certeza, o esposo ultrajado n��o o pouparia.
Tal o coroamento dos seus sonhos de grandeza! A
gl��ria, o poder que o caldeu lhe havia prometido... Men-
tira! mentira! E toda essa desgra��a, toda essa vergonha,
devia-o �� mulher abomin��vel a quem por tal modo odiava
nessa hora, que seria capaz de estrangul��-la com vol��pia.
Mas, mat��-la era pouco; tortur��-la, sim, aniquil��-la como
o fazia a ele pr��prio. Foi uma felicidade para Jos�� que
os dois guardas negros nada compreendessem das frases
hebr��ias que lhe escapavam na raiva, sem o que t��-lo-iam
espostejado por tais ultrajes aos amos.
Terminou, finalmente, a noite que lhe pareceu uma
eternidade; o dia clareou e por fim Pin��ias, o segundo
intendente, apareceu com malicioso sorriso, anunciando-
-lhe que o ia conduzir �� presen��a de Putifar, a fim de
ser a��oitado e depois desterrado para uma propriedade
remota, "n��o para govern��-la, bem entendido", terminou
com maliciosa satisfa����o o bravo Pin��ias, que, na quali-
dade de verdadeiro eg��pcio, sempre detestara Jos��, estran-
geiro e escravo t��o altamente elevado por uma fantasia
do senhor.
A primeira sensa����o foi a de imenso al��vio: uma pu-
ni����o corporal nada era comparada �� mutila����o; mas, de
s��bito, o selvagem orgulho irrompeu violento. Alguma
coisa nele se revoltou ao pensamento de ser surrado, ver-
gastado diante dos f��mulos, aos quais tinha dirigido e
mais de uma vez mostrado a sua severidade. Tonteou-lhe
a cabe��a e, fechando os olhos, bamboleou nas pernas.
Alguns vigorosos pontap��s e a manopla brutal que
o segurava pela gola sacudindo-o, deram-lhe a no����o da
realidade e foi sob uma saraivada de murros e dichotes
76
J. W. ROCHESTER
alusivos �� sua s��ncope, coragem em arriscar a cabe��a e
fraqueza diante de um risco muito menor, que o arrasta-
ram at�� o p��tio interior, onde j�� se comprimiam todos
os escravos. Momentos depois, apareceu Putifar.
Liam-se o espanto e a descren��a na fisionomia dos
grandes e pequenos criados, que se apinhavam em todas
as entradas. N��o podiam compreender como o seu inten-
dente, o homem de confian��a do senhor, sofresse t��o ver-
gonhosa puni����o.
��� Miser��vel ingrato que pagas meus benef��cios com
um inaudito insulto ��� disse Putifar, fitando com severo
olhar o rosto l��vido e enrugado de Jos�� ���, sabes qual a
pena da lei; mas, por piedade e em considera����o aos teus
servi��os, contento-me em castigar-te e banir-te da minha
presen��a.
��� Meu bom e poderoso senhor, estou inocente; nunca
ousaria tocar em tua esposa ��� respondeu Jos��, e sua voz
met��lica, vibrante, repercutiu em todo o pavimento. ��� Foi
ela quem me perseguiu e ordenou fosse ao seu quarto, a
pretexto de me dar ordens; depois, em ali chegando, fa-
lou-me uma linguagem vergonhosa, rogando-me que te
tra��sse em tua aus��ncia. Quando quis fugir, agarrou-se
a mim e . . .
��� N��o te calar��s, l��ngua de v��bora, infame debocha-
do que juntas a cal��nia ao insulto! ��� gritou o chefe dos
archeiros, p��lido de c��lera. ��� Como ousas acusar tua
senhora? Minha mulher jamais pensaria em manchar-se
ao contacto de um abjeto escravo. Merecias te arrancas-
sem a mentirosa l��ngua, para atir��-la aos c��es. Tomai-o,
v��s outros, e castigai-o do melhor modo.
Fulo de raiva e orgulho, o servo estoicamente pro-
curou suportar em sil��ncio os golpes que no corpo lhe
choviam; mas, vencido pela dor atroz, estorcia-se e sol-
tava aulidos de animal selvagem.
Ranofrit conservava-se no jardim. P��lida, tr��mula,
m��os no peito, prestava aten����o aos gritos aflitivos, mis-
turados de rugidos, os quais, amortecidos pela dist��ncia,
atingiam-lhe o ouvido. Sabia que esses gritos eram dados
naquele momento por seu castigo. Tapou os ouvidos, fugiu
O CHANCELER DE FERRO
77
para o outro lado do jardim e, respirando dificilmente,
encostou-se numa ��rvore. Mal sabia ela qu��o duramente
deveria pagar aquela hora.
Quando terminou o flag��cio, o rapaz estava desmaia-
do e Putifar, cujo bom cora����o mitigava sempre a severi-
dade, ordenou que o levassem para um quarto comum,
curassem-lhe as feridas, dessem-lhe algum alimento e s��
o fizessem partir quando suficientemente restabelecido.
Mas, que o guardassem �� vista, para impedir que fugisse.
Ao recobrar os sentidos, o hebreu torceu-se de dor
e raiva impotente. Estava deitado na palha, as costas em
chaga viva. Qualquer movimento causava-lhe dores cru-
ciantes, mas estava s�� e n��o amarrado. Uma grande bilha
d��gua, ao lado, permitia-lhe estancar a sede voraz. Ru��dos
e passos na porta do reduto fizeram-no compreender que
estava vigiado, mas isso pouco lhe importou. N��o cuidava
de fugir, cuidava de se vingar, de fazer pagar bem caro
a Putifar e �� mulher a humilha����o e o sofrimento que
acabava de sofrer.
��� Espera ��� murmurou fechando os punhos ���, o c��o
imundo saber�� vingar as suas torturas, nobre Ranofrit.
Cobrir-te-�� de tal vergonha que nenhuma ��gua perfu-
mada poder�� apag��-la. Sabeis ambos v��s de que for��a
invis��vel disponho?
Inteiramente absorto neste pensamento, chegou a es-
quecer momentaneamente os sofrimentos e o primeiro re-
sultado de suas reflex��es foi que devia readquirir algumas
for��as antes de tentar qualquer coisa. Fingiu, pois, uma
prostra����o extrema e, como Putifar ordenara que s�� o
despachassem depois de melhorado, deixaram-no tran-
q��ilo.
Na terceira noite sentiu-se mais forte e, temendo
tardar muito, resolveu tentar vingar-se nessa mesma noi-
te. Quando o p��lido luar, entrando pela abertura do teto,
encheu a pris��o de uma luz ba��a, retirou do pequeno
breve, que sempre trazia no pesco��o, a pedra m��gica, e,
apertando-a nas m��os, concentrou-se profundamente. Seu
rosto descorado e magro tomou uma cor l��vida, os olhos
selvagens chamejaram, uma escuma esbranqui��ada pero-
78
J. W. ROCHESTER
lou nos cantos da boca entreaberta e o delgado corpo do-
brou-se como o da pantera que tocasse a presa. Depois
ergueu a m��o que segurava a pedra e, em voz baixa, mas
distinta, pronunciou estas palavras: "Ranofrit, vem aqui,
adormecida, ordeno-te."
Repetindo tr��s vezes o apelo, levantou a outra m��o
com um gesto imperativo e ficou im��vel. Tudo era sil��n-
cio, o escravo que vigiava a entrada adormecia e apenas
sua respira����o cadenciada e estrepitosa perturbava a
calma da noite. Acocorado na penumbra, fitava a porta,
manejando sempre a pedra m��gica, cujos raios azulados
iluminavam-lhe os dedos retra��dos.
S��bito repercutiu um ru��do, levantou-se a grosseira
esteira que servia de porta, Ranofrit apareceu na entrada
e, passo incerto e autom��tico, avan��ou para o hebreu. Os
longos cabelos negros estavam soltos, os olhos fechados
e a cabe��a pendida para tr��s; apenas vestida com uma
t��nica branca e transparente, aproximava-se, como que
atra��da por um ��m��, para a enxerga do inimigo, que logo
lhe agarrou a m��o, atraindo-a para si.
O rosto do hebreu tomou uma express��o indefin��vel
de cruel triunfo e de infernal maldade. A hora da vin-
gan��a tinha, pois, chegado. Podia, agora, perder para
sempre a bela Ranofrit, por quem tanto havia sofrido,
envolvendo-a, assim como a Putifar, em indel��vel ver-
gonha.
Gritos agudos, dados pelos criados, alarmaram rapi-
damente toda a casa. As escravas saltavam da cama su-
pondo um inc��ndio, o alarme propagou-se logo aos apo-
sentos dos amos. Putifar despertou sobressaltado e, n��o
vendo Ranofrit, atirou-se do leito e precipitou-se na
dire����o dos gritos que ainda continuavam. Nesse mesmo
instante, Jos�� inclinara-se para a mo��a e soprava-lhe
numa voz imperativa:
��� Desperta!
Ela estremeceu e abriu os olhos, mas, vendo-se inopi-
nadamente em um lugar meio escuro e desconhecido,
Junto de um homem a quem, a princ��pio, n��o reconheceu,
O CHANCELER DE FERRO
79
recuou espantada e quis fugir. Um pulso de ferro a deteve
e uma voz vibrante de cruel ironia ordenou:
��� Fica, fica, bela concubina; vejam Putifar e todos
mais que eu sou inocente.
Interrompeu-se com um riso seco, depois come��ou a
gritar.
O guarda, j�� acordado, precipitara-se no interior e,
vendo uma mulher que se debatia procurando sair das
m��os do prisioneiro, quis auxili��-la, mas reconhecendo
nessa mulher a jovem ama, recuara espantado.
Minutos depois, ouviram-se passos tumultuosos que se
aproximavam de todos os lados; alguns homens com ar-
chotes penetraram no ambiente e o vulto alto de Putifar
assomou �� porta.
Ao ver Ranofrit sempre segura por Jos��, parou petri-
ficado, enquanto o outro exclamava estendendo-lhe as
m��os:
��� Veja, senhor, at�� aqui veio provocar-me esta
impudica mulher, oferecendo-me seu criminoso amor.
Cr��s agora que estou inocente? V��s, com os teus servos,
que foi ela quem veio tentar ainda um infeliz prisioneiro,
maltratado e degradado?
Muda de horror, olhos dilatados, Ranofrit escutava as
acusa����es, sem compreender por que fatalidade ali estava
naquele local desconhecido, onde nunca tinha posto os
p��s. O rosto contra��do de Jos��, seus gritos agudos, o con-
tacto da sua m��o fria e ��mida, que lhe segurava o bra��o,
inspirava-lhe indiz��vel terror, mas a atitude dos criados
espantados, o rosto transtornado de Putifar, encheu-a de
vergonha e desespero. Compreendeu que estava perdida
e, dando um grito rouco, tombou desmaiada.
O semblante bronzeado do chefe dos archeiros cobri-
ra-se de uma palidez esverdeada e seu olhar ficara crava-
do em Jos��, que, acocorado na palha, ao lado de Rano-
frit im��vel, dardejava sobre ele um olhar de ��dio e de
triunfo. Estava horr��vel, nesse instante, com as faces ma-
cilentas, os cabelos em desordem e os sanguinolentos
sulcos que lhe zebravam o torso.
80
J. W. ROCHESTER
Uma tal c��lera, misturada de vergonha e dor, apode-
rou-se de Putifar, que sua m��o procurou instintivamente
o punhal que sempre trazia na cintura. N��o o encontran-
do, por��m, e t��o habituado a dominar-se, ocultou a tem-
pestade ��ntima, ao pensar que os gritos de Jos�� foram
dados para agitar a casa toda e vingar-se dele e de Ra-
nofrit ��� a indigna criatura cuja baixeza o feria em pleno
cora����o.
Perfilando-se com voz rouca, disse:
��� Que este c��o impuro n��o passe mais uma hora
nesta casa: levem-no incontinenti �� pris��o da casa bran-
ca (a casa branca era a cidadela de M��nfis, contendo os
c��rceres dos prisioneiros do Estado e dos mais terr��veis
criminosos); amanh�� darei minhas ordens a Hormahou.
Abaixou-se e, com uma brutalidade que jamais de-
monstrara ao ��ltimo dos escravos, tomou Ranofrit pelos
longos cabelos e ensaiou, com gesto violento, p��-la de
p��; mas, como estava ela sem sentidos e reca��sse inerte,
arrastou-a para fora do quarto e ao longo do corredor,
sempre pelos cabelos. A�� seu velho criado de confian��a, e
Nefrou, sua ama, a quem muito amava, embargaram-lhe
a passagem e, caindo de joelhos, gritaram, chorando e
levantando-lhe as m��os s��plices.
��� Senhor, senhor, tem piedade de tua esposa, n��o
laves teu cora����o na primeira c��lera, pois talvez viesse
a lamentar-te. (1)
Olha, ela est�� como morta e foi sempre boa e pura;
o mau-olhado do hebreu maldito caiu sobre ela e atirou-a
�� desgra��a. Oh! permite-nos lev��-la para longe deste
lugar nefasto.
Putifar parou, tr��mulo, passou a m��o pelo rosto: sim,
se algu��m fosse dotado de mau-olhado, seria sem d��vida
esse homem cujo olhar era de serpente. Sem responder,
largou os cabelos de Ranofrit e precipitou-se no gabinete.
(1) Lavar seu cora����o significa em eg��pcio vingar-se: �� ex-
press��o tiplea e usual, que �� preciso conservar.
O CHANCELER DE FERRO
81
Enquanto os dois velhos rodeavam Ranofrit, alguns
escravos arrastavam Jos�� da pris��o e um deles exclamou
raivoso:
��� Feiticeiro maldito, os dem��nios, teus irm��os, sa-
bem sem d��vida com que sortil��gio desfechaste esta des-
gra��a; entretanto, dou minha cabe��a a cortar em como
isto �� bruxaria, uma cal��nia inventada por tua detest��vel
l��ngua.
E, cheio de c��lera, bateu-lhe no rosto com tanta vio-
l��ncia que o sangue jorrou do nariz e da boca.
Minutos depois, Jos��, titubeante, ensang��entado, dei-
xava a casa de Putifar.
V
O QUE A HIST��RIA N��O CONTA
O senhor de Jos��, muito cr��dulo
n a s acusa����es de s u a mulher, ao ou-
vir e s t a s palavras, encheu-se de fu-
ror, e fez meter Jos�� na pris��o onde
se guardavam aqueles que o rei m a n -
dava prender. ��� G��nese, cap��tulo
XXXIX, w . 19, 20.
Portanto, se supomos Putifar um
ministro da pol��cia, ou chefe dos ar-
cheiros (soldados, n��o da guarda do
r e i ) , lhe atribu��mos u m a dignidade
conforme aquela supramencionada.
Como chefe dos archeiros, �� por
sua dignidade um cortes��o de F a r a �� ;
no desempenho do seu cargo, as pri-
s��es, as puni����es corporais e as
execu����es capitais s��o da compet��n-
cia de sua jurisdi����o, pode-se pois
consider��-lo c o m o chefe dos carras-
cos. G. Ebers, L' Egypte et les livres
de Moise.
Auxiliada pelo velho Tot, a velha aia levou Ranofrit
para o quarto e, despedindo duramente Ac��, a quem tinha
como am��sia do hebreu detestado, dedicou seus cuidados
�� mo��a, procurando faz��-la voltar a si. Longo tempo fric-
cionou com ess��ncia arom��tica o rosto e o peito da doen-
te, friccionou-lhe os p��s e as m��os, derramou-lhe vinho
na boca, apelando para todos os deuses de M��nfis e mis-
O CHANCELER DE FERRO
83
turando essas evoca����es com invectivas contra Jos��, a
quem odiava, como todos os criados de Putifar.
Por fim, Ranofrit abriu os olhos e, �� lembran��a de
tudo o que ocorrera, deu um grito desesperado e rolou na
cama como louca.
��� Ah! senhora querida, que fizeste e como podias
expor-te assim �� vergonha? ��� gemeu a velha, desfeita
em l��grimas.
��� Nefrou, estou inocente ��� exclamou, atirando-se
nos bra��os da velha escrava. ��� Este feiticeiro hebreu en-
volveu-me num sortil��gio. Que me condenem todos os
ju��zes do Amenti se eu sei como fui parar na enxovia
desse animal abjeto. Juro-te, nunca tinha visto aquele
lugar e n��o me levantei para procur��-lo.
��� �� com certeza um m��gico dos mais perigosos. N��o
enfeiti��ou o senhor, que tudo lhe confiava, e preferia este
estrangeiro, este assecla de Tifon, aos seus mais fi��is ser-
vidores? Com essas mesmas for��as tif��nicas, atraiu-te
para l��, por vingar-se da sova que apanhou.
��� Oh! o maldito! Mas como provar minha inoc��ncia
e que diz Putifar? ��� perguntou ansiosa e ofegante.
Nefrou p��s-se a gemer e a bater nos peitos:
��� Senhora querida, sua c��lera �� tanta que se me enre-
gela o cora����o quando penso nisso. Tremo por ti e n��o
ouso pensar na sua vingan��a. Que poder��s tu alegar em
tua defesa?
Vendo-a recair l��vida e tr��mula no leito, a boa Nefrou
abra��ou-a, chorou com ela, buscando consol��-la com pa-
lavras ternas e carinhosas, qual se o fizesse a uma crian-
��a; seu cora����o, por��m, estava cheio de amargura e o de
Ranofrit petrificava-se na agonia.
Enquanto isso, Putifar permanecia no seu gabinete.
As horas que a�� passou foram as mais terr��veis de sua
vida.
A princ��pio abandonara-se a uma raiva louca, sapa-
teando, arrancando as vestes, proferindo blasf��mias sur-
das. A essa superexcita����o sucedera um morno desespero:
a honra estava manchada, o amor destru��do, a mulher
que adorava, perdida para sempre; tinha-o preterido, por
84
J. W. ROCHESTER
um escravo impuro. Jos�� estaria, pois, verdadeiramente
inocente; punira-o injustamente, mas, tamb��m, como se
vingara ele despertando com seus gritos toda a casa e
tornando os escravos testemunhas do seu opr��brio! A tal
lembran��a, o sangue lhe recome��ou a ferver, sua c��lera
e seus pensamentos se concentraram em Ranofrit; devia
repudi��-la e queria puni-la com toda a severidade pres-
crita na lei; far-lhe-ia cortar o nariz pela m��o do carras-
co, depois a expulsaria.
Mas, ao pensamento de desfigurar aquele rosto en-
cantador, cujo radiante sorriso e cujos tra��os t��o delica-
dos n��o se cansava de admirar, o cora����o lhe fraqueou,
deu um gemido e l��grimas amargas correram-lhe dos
olhos. Entretanto, devia puni-la e n��o podia conserv��-la.
Por fim, parou, decidindo que mandaria expulsar Rano-
frit a vergastadas, da casa que ela conspurcara e isso
em presen��a de todos os f��mulos. Ele pr��prio lhe comu-
nicaria a senten��a a executar no mesmo dia.
Defrontando o marido e �� vista do seu rosto l��vido
e sombrio, Ranofrit, tr��mula qual folha solta, caiu de
joelhos, levantou para ele as m��os juntas e exclamou so-
lu��ante:
��� Perd��o! perd��o! estou inocente, o maldito hebreu
enfeiti��ou-me, tirou-me a raz��o.
Putifar cruzou os bra��os e, fitando-a com olhar ar-
dente, respondeu com um riso seco:
��� A desculpa �� boa, mas pouco convincente: cr��s,
na verdade, mulher indigna, n��doa da minha honra, que
te perdoarei a cena atroz com que me entregaste �� zom-
baria de todos os meus escravos? N��o: tua presen��a ��-me
odiosa; renego-te como esposa e, hoje mesmo, mandar-
-te-ei expulsar a vergastadas; os escravos te lan��ar��o na
rua, a fim de que a multid��o possa contemplar e vaiar a
vil criatura que cobi��ou o amor de um escravo, de um
impuro.
Ranofrit deu um grito e segurou a cabe��a com as
m��os; depois, precipitou-se como louca para o marido,
abra��ando-lhe os joelhos, agarrando-lhe as vestes, supli-
cando-lhe com gritos e l��grimas lhe perdoasse ou permi-
O CHANCELER DE FERRO
85
tisse deix��-lo sem esc��ndalo. Que n��o a entregasse a uma
tal vergonha, por defer��ncia a seu irm��o, �� sua fam��lia,
enfim, por piedade para consigo mesma.
O desespero e as l��grimas da mulher a quem, apesar
de tudo, amava ainda, transtornaram-no; seu cora����o
apertou-se dolorosamente e, temendo fraquear, ceder a
um sentimento que lhe parecia desairoso, perfilou-se, ex-
clamando: "Deixa-me!" Repeliu-a com viol��ncia e fugiu.
O choque fora t��o brusco que a mo��a caiu de costas,
mas n��o desmaiou; e quando Nefrou, em l��grimas, levan-
tou-a, deixou-se sentar em uma cadeira e, de m��os cruza-
das, convulsivamente, olhos secos e brilhantes, abismou-se
em sombrias reflex��es.
Por fim, ergueu-se e passando a m��o pelas faces da
fiel criada ajoelhada a seus p��s, disse com ar fatigado:
��� Vai e deixa-me s��, boa Nefrou; quero orar aos
deuses para que me aliviem e amparem na desgra��a; mais
tarde te chamarei, ou me prevenir��s se alguma coisa de
horr��vel se preparar.
Logo que a velha escrava saiu, Ranofrit saltou da
cadeira, torceu os bra��os e, com gemidos abafados, andou
pelo quarto; procurava coordenar as id��ias, lembrar
alguns pormenores da terr��vel aventura, mas a mem��ria
n��o ajudava. Deitara-se como de costume: por qual in-
compreens��vel acaso, ao despertar, achava-se na enxovia
do hebreu? Era sempre um mist��rio!
Com um estremecimento de horror e m��goa, lembrou-
-se da m��scara macilenta do escravo, corpo maltratado,
olhos respirando vingan��a e infernal satisfa����o, a m��o
��mida e gelada que a retinha ao seu lado qual uma pin-
��a de ferro. Ah! estava irremediavelmente perdida! E
como viver desonrada, desprezada de todos? Que diria
o irm��o, o altivo Pot��fera, a hip��crita Maia e mesmo o
folgaz Rameri! Eles tamb��m a repeliriam com horror.
Oh! quanto era infeliz! N��o, mil vezes a morte e isso de-
pressa, porque Putifar n��o acreditava nos seus protestos
e, a qualquer momento, os escravos poderiam entrar, se-
gur��-la e, com inj��rias e pancadas, atir��-la na rua. Es-
condeu a cabe��a nas m��os e uma torrente de l��grimas
86
J. W. ROCHESTER
jorrou-lhe dos olhos. Nesse instante, pareceu-lhe ouvir
passos no quarto cont��guo: arregalou os olhos espantados,
depois lan��ou-se para um tamborete ao p�� do leito e no
qual estavam ainda a clava e o pequeno estilete que Puti-
far ali tinha posto na v��spera; presa de excita����o febril,
tomou este ��ltimo e, com o pulso mal seguro, enterrou-o
no flanco.
Um instante ficou ainda de p��, rosto em fogo, olhos
desmesuradamente abertos; de repente empalideceu, os-
cilou, uma nuvem escureceu-lhe a vista ���, uma torrente
de sangue a inundava ��� e, num grito rouco, caiu no
soalho.
Num estado dalma indescrit��vel, misto de amor, c��le-
ra e desespero, Putifar andava de um lado para outro e
apesar da imut��vel resolu����o de vingar cruelmente a
inj��ria infligida �� sua honra, custava-lhe pronunciar a
ordem de expuls��o. J�� por vezes levantara a m��o, para
tocar o t��mpano de bronze e recuara indeciso. Sob o im-
p��rio dessa exalta����o, n��o notou, a princ��pio, o rumor,
o tumulto que atroava pela casa; mas logo os clamores
misturados de solu��os se tornaram t��o estrepitosos, che-
gando �� porta do seu quarto, que, possu��do de sinistro
pressentimento, abriu bruscamente a porta e percebeu o
velho Tot a correr como louco, arrancando os cabelos, ba-
tendo a cabe��a de encontro ��s paredes e repetindo: "��
dia de desgra��a! dia nefasto!"
��� Que h��? que significam teus gritos? ��� perguntou
Putifar em tom imperioso, agarrando o escravo pelo bra��o.
��� Oh! oh! a senhora matou-se! ��� uivou o servo.
O chefe dos archeiros recuou como apunhalado; num
instante tudo lhe desapareceu dos olhos; mas, dominando
a emo����o, precipitou-se para o quarto de Ranofrit. Em
todos os compartimentos cont��guos viam-se escravos de
ambos os sexos a correrem tresloucados, gritando e ges-
ticulando; a maioria, por��m, apinhava-se �� entrada do
quarto de dormir, de onde partiam gritos pungent��ssimos.
�� vista do amo, todos se arredaram para lhe dar pas-
sagem e ent��o ele divisou Ranofrit estendida numa po��a
de sangue. Rodeavam-na Nefrou e algumas servas, sol-
O CHANCELER DE FERRO
87
tando l��gubres gemidos que a dor arranca, ainda hoje,
��s mulheres do Oriente.
Respirando com dificuldade, sacudido por estremeci-
mentos nervosos, Putifar ajoelhou-se junto da mo��a, que
realmente parecia morta; depois, auscultou-lhe o peito:
julgou sentir um t��nue arfar do cora����o e ergueu-se reso-
luto. Tendo ordenado aos criados corressem ao templo em
busca dos m��dicos e a todos os mais que voltassem ��s suas
ocupa����es, levantou Ranofrit e, auxiliado por Nefrou,
levou-a para o leito; em seguida, retirou o estilete da
ferida, lavou a chaga e pensou-a provisoriamente, para
impedir a efus��o do sangue.
Sinceramente condo��do, aproximou-se do rosto impas-
s��vel da mo��a. Muito deveria ter sofrido para vencer o
medo da destrui����o, inato na criatura humana, antes de
procurar a salva����o na morte.
Desesperado e raivoso cerrou os punhos: se ela ti-
vesse dito a verdade? se um sortil��gio do hebreu, sequioso
de vingan��a, a tivesse atra��do?
Sabia que ele dispunha de for��as secretas... N��o
tinha for��ado essa mesma mulher a aceit��-lo como
esposo?
��� Se voltares �� vida, tudo, tudo perdoarei ��� mur-
murou tomado de s��bita resolu����o. ��� Ra, senhor do C��u,
tomo-te por testemunha do meu juramento!
Como se o deus dispensador da luz e da vida tivesse
ouvido o voto e querido provar que o aceitava, Ranofrit,
nesse instante, fez um movimento, gemeu fracamente,
depois abriu os olhos. Reconhecendo o marido que, p��lido
e desfigurado, inclinava-se para ela, uma express��o de
indiz��vel espanto se lhe esbo��ou no semblante.
��� Tua honra est�� vingada apenas, deixa-me morrer
aqui, porque a verdade �� que n��o fui ao quarto dele esta
noite ��� proferiu com voz entrecortada.
O cora����o de Putifar apertou-se dolorosamente:
��� Vive, pobre mulher; perdoarei tudo ��� respondeu
comovido e afagando o rosto de Ranofrit.
Um sorriso de alegria e de inef��vel gratid��o iluminou
o belo rosto da paciente, quis levantar-se, mas, ao mover-
88
J. W. ROCHESTER
-se, a ferida causou-lhe dor t��o aguda que recaiu soltando
um grito. Empanaram-se-lhe os olhos e ciciou: "Adeus!
teu perd��o vem muito tarde!" Perdeu de novo os sentidos.
M��os tr��mulas, o chefe dos archeiros procurava fa-
z��-la voltar a si quando a cortina da porta foi levantada
e um padre do templo de Ptah, acompanhado por um
auxiliar, conduzindo um estojo, penetrou no quarto.
Com um suspiro de alivio, Putifar foi-lhe ao encon-
tro. Se a salva����o fosse poss��vel, o homem de ci��ncia a
traria.
Minuciosamente, o velho padre examinou e sondou a
chaga; depois aplicou um b��lsamo, ligou-a e indicou as
prescri����es necess��rias.
��� O ferimento �� grave mas n��o mortal; se os deuses
forem clementes, tua esposa viver�� ��� declarou, despe-
dindo-se.
Horas mais tarde, um mensageiro partia para Heli��-
polis, para anunciar ao sacerdote que a irm�� estava gra-
vemente enferma e pedir-lhe que viesse, ou, ao menos,
autorizasse a cunhada a vir trat��-la.
Cora����o ansioso, Putifar passava todas as horas dis-
pon��veis a cabeceira da esposa, que delirava em febre
ardente e, no del��rio, chamava-o, jurando que, por sua
vontade, nunca penetraria no quarto do hebreu, e maldi-
zendo o m��gico que a tinha perdido. Toda a casa parecia
mergulhada em opress��o: Ranofrit era assaz estimada
por sua bondade e indulg��ncia; os escravos unanimemen-
te lamentavam-na e recusavam acreditar na sua culpa.
O m��gico maldito, o intrigante, teria usado de qualquer
artif��cio para perd��-la, era um axioma indiscut��vel nas
cozinhas e quartos comuns. Com dedica����o respeitosa,
toda essa pobre gente buscava servir e aliviar a jovem
ama. Todas as discuss��es a seu respeito terminavam com
palavras de tristeza e olhos ��midos.
A not��cia de grave mol��stia da irm��, sem outro de-
talhe explicativo, abalou vivamente o sacerdote; e como
lhe era imposs��vel deixar no momento Heli��polis, foi Maia
quem, a toda pressa, p��s-se a caminho com Asnath. Che-
gando a M��nfis, ficou apavorada com a grande transfor-
O CHANCELER DE FERRO
89
ma����o que se operara no cunhado: n��o s�� havia emagre-
cido como profunda tristeza, algo de grave e misterioso,
pairava em todo o seu ser. A figura de Ranofrit impres-
sionou-a ainda mais, pois era apenas a sombra do que
fora. Ao del��rio sucedera uma completa prostra����o.
Diante da tia estirada como morta, a pequena Asnath
p��s-se a chorar ruidosamente e Putifar, lendo um pedido
de explica����o no olhar inquieto da cunhada, quis contar-
-lhe o que se passara. Maia, por��m, viu t��o claramente
que a confid��ncia causar-lhe-ia cruciante dor, logo sus-
peitou de algum drama ��ntimo e, apertando fraternal-
mente a m��o de Putifar, disse-lhe:
��� Deixa as explica����es, meu irm��o; mais tarde me
dir��s tudo; agora, leva a menina cujo pranto pode per-
turbar a doente.
Tr��s semanas decorreram. Os m��dicos declararam
Ranofrit fora de perigo e, lentamente, ela voltava �� sa��-
de: morna, por��m, silenciosa, nada tinha confiado ��
cunhada sobre as causas da sua mol��stia e Maia nada
sabia ainda do estranho drama que se consumara. Putifar
visitava raramente a esposa desde que ela entrou em con-
valescen��a, e, algumas coisas no seu tom e maneiras, bem
como no olhar triste e severo, provavam �� esposa do
sacerdote que um grave acontecimento nublara o c��u
conjugal dos jovens esposos. Tamb��m, apesar da sua
curiosidade, Maia absteve-se de interrogar a Ranofrit,
porque a julgava muito debilitada, e a Putifar porque este
evitava, visivelmente, tocar no assunto.
A esse tempo, chegou Pot��fera, a quem os correios
tinham posto regularmente a par do estado da irm��.
Tamb��m ele notou imediatamente a mudan��a nas rela-
����es conjugais, mas n��o fez advert��ncia alguma e, so-
mente �� tarde, quando a s��s com a mulher, perguntou-
-lhe se sabia o que houvera.
��� Nada sei, mas suponho que alguma coisa de muito
grave houve entre eles ��� respondeu Maia. ��� Em primei-
ro lugar, devo dizer-te que a mol��stia de Ranofrit prov��m
de um ferimento perigoso, que tinha no flanco. Nada te
escrevi, porque ficarias ainda mais inquieto e um estra-
90
J. W. R O C H E S T E R
nho enigma pesa sobre toda essa hist��ria. Todos se calam
e a pr��pria velha Nefrou, a quem procurei sondar, tem,
evidentemente, medo de falar: sem d��vida lho proibiram.
N��o sei mesmo o que pensar. Talvez Putifar a tenha fe-
rido: m a s . . . por qu��? Teria Ranofrit esquecido seus de-
veres de esposa?
��� Que dizes? ��� interrompeu Pot��fera, de cenho car-
regado ��� minha irm�� faltar ao pudor e �� honra? Im-
poss��vel! Hor seria o ��nico que poderia induzi-la em
tenta����o; sei que lhe agradava, mas �� muito honesto para
estender a m��o �� mulher de outrem.
��� Talvez eu esteja enganada e as raz��es sejam ou-
tras: certo, Putifar dir-te-�� a verdade. No dia da minha
chegada ele desejou ��� creio ��� confiar-me o que se pas-
sara, mas eu n��o consenti que aumentasse as pr��prias
tribula����es.
Dois dias passaram. Putifar parecia imerso em cont��-
nua inquieta����o, ��s vezes bocejava como se quisesse dizer
alguma coisa, mas logo reca��a em abismal medita����o.
O sacerdote nada lhe perguntou, mas observou aten-
tamente e, em primeiro lugar, notou a aus��ncia do inten-
dente hebreu, do qual o cunhado era t��o zeloso e a quem
ele por sua vez detestava como s�� se detesta a um igual.
Surgiu-lhe bruscamente a suspeita de que podia existir
um nexo entre esse belo mancebo e a mol��stia de sua
irm��, mas, todo o orgulho de Pot��fera se revoltou ao sim-
ples pensamento de que Ranofrit tivesse podido lan��ar os
olhos para um impuro.
Depois da refei����o da tarde, que os dois homens to-
maram em sil��ncio, Pot��fera perguntou, fitando o cunha-
do com olhar percuciente:
��� Dize-me por que n��o vejo o hebreu, teu intendente,
com quem estavas t��o satisfeito, est�� doente?
Um rel��mpago de ��dio e c��lera chispou dos olhos de
Putifar:
��� Est�� na pris��o, onde apodrecer�� at�� que estou-
re ��� respondeu com voz breve e rouca.
O sacerdote inclinou-se, p��s a m��o na do cunhado e
disse afetuoso:
O C H A N C E L E R DE F E R R O
91
��� Alivia teu cora����o e dize-me o que se passou, meu
irm��o. Vejo que sofreste muito e n��o duvido que o hebreu
esteja envolvido em tudo isso. um pressentimento, que
n��o engana jamais, tornou-me este homem odioso desde
a primeira vez que o vi, e um sonho prof��tico, que tive
ultimamente, faz-me recear seja este maldito a causa de
muitas desgra��as.
��� O que te vou dizer �� j�� o bastante para justificar
tua avers��o ��� disse Putifar, passando a m��o pela fronte
��mida de suor.
Depois, descansando os bra��os na mesa, relatou em
voz baixa e reticenciosa tudo o que se havia passado.
��� Compreendes que a hip��tese de ver um rival no
escravo n��o me tinha passado pela mente, e ainda agora
meu esp��rito recusa a admiti-la. Entretanto, ele esteve no
quarto de Ranofrit: que ia l�� fazer? Ela afirma que ele
atentou contra a sua honra, ele diz que foi ela quem o
chamou e tentou. Ela apresentava contus��es e um peda��o
das vestes do biltre ficara-lhe em m��o, e contudo jurou-
-me, em momento solene, quando supunha estar morren-
do, que o maldito lhe armara um sortil��gio. Mas, se ele
a tinha enfeiti��ado, que ia fazer nesse quarto em minha
aus��ncia? Perco-me nestas conjeturas e o que sofri ao
v��-la, �� noite, na masmorra do miser��vel, s�� os deuses
sabem. Fiquei louco de vergonha e desespero, e de fato
Ranofrit merecia a puni����o que desejava infligir-lhe, se
se tivesse deixado levar por uma paix��o t��o abjeta; to-
davia, surpreendi nos olhos do hebreu uma satisfa����o t��o
cruel que, ��s vezes, creio na realidade de um sortil��gio.
Dize-me, Pot��fera, tu, homem de ci��ncia, que pensas de
tudo isto? Em todo caso, as apar��ncias s��o contra ela e
um abismo se cavou entre n��s.
O sacerdote nada respondeu: descansando o rosto na
m��o, meditava profundamente. Ap��s minutos que pare-
ceram a Putifar uma eternidade, aprumou-se e disse
gravemente:
��� Longe de mim o pensamento de querer desculpar
Ranofrit: as apar��ncias s��o contra ela e tua c��lera ��
justa; quero, somente, tratar de aprofundar e verificar
92
J. W. ROCHESTER
todos os ind��cios que possu��mos, e, se poss��vel, extrair
deles a verdade ou, pelo menos, a probabilidade.
"Em primeiro lugar o hebreu �� belo, inteligente, muito
mais instru��do do que pode e deve ser um escravo comum;
enfim, �� ambicioso e astuto, pois que da ��ltima classe dos
criados soube elevar-se �� posi����o de teu primeiro inten-
dente e homem da tua confian��a. Disseste-me que ele ��
origin��rio de uma dessas tribos n��mades que erram entre
os pa��ses de Kewa (Fen��cia) e de Naharana (Caldeia) e
que operou em tua casa muitas curas maravilhosas. Isso
me confirma na suspeita de que p��de, antes de cair na
escravid��o, estar em contacto com algum outro feiticeiro
caldeu, que lhe ensinasse a manejar for��as secretas, uma
sobretudo: a de fascina����o, que o homem possui, tanto
quanto a serpente. A serpente fascina o p��ssaro que co-
bi��a e que, invencivelmente atra��do, vem lan��ar-se em
sua goela; o homem imp��e sua vontade a outro homem e
pode lev��-lo a praticar atos que sua consci��ncia e sua
raz��o repugnam.
"Acabo de dizer-te mais do que conv��m a um n��o
iniciado, mas o caso que nos ocupa �� excepcional e co-
nhe��o a tua discri����o. Admitido este ponto, Jos��, en��rgi-
co e ambicioso como ��, e armado do espantoso poder
oculto de que falo, poderia visar a um plano mais vasto
do que seduzir uma linda mulher e querer fazer de Ra-
nofrit um instrumento para subir mais alto ainda. Depois
de haver despertado, pela for��a do encantamento, um
criminoso amor no seu cora����o, sonhou elevar-se por seu
interm��dio e foi, talvez, para se desfazer de ti, matar-te,
envenenar-te, que se insinuou no quarto de dormir. Ra-
nofrit que n��o dormia, ou que despertara, quis talvez
prend��-lo, e ele, receando ser apanhado, fugiu. Foi nessa
luta que o fragmento da t��nica foi arrancado. ��, pois,
claro que se o hebreu nada quis dela, sabendo-se amado,
�� porque tinha em vista um plano mais profundo e cer-
tamente mais criminoso. Quanto �� presen��a de Ranofrit
na pris��o, �� poss��vel que l�� fosse levada pela vontade do
hebreu ��vido de vingan��a."
Putifar ouvira, p��lido e ansioso; depois, levantando-se
bruscamente, deu alguns passos em redor do quarto. Uma
O CHANCELER DE FERRO
93
s��bita luz acabava de brilhar em sua mente. Lembrava-se
da proposta de Jos�� para conseguir o consentimento dessa
mesma Ranofrit. Ele tinha cumprido a palavra, obtido o
"sim" da mo��a, que, nada obstante, parecia preferir Hor.
Se ent��o ele tinha, por um processo misterioso, for��ado
a vontade de Ranofrit, poderia t��-lo feito uma segunda
vez. Ela seria, pois, na verdade, uma v��tima do perigoso
m��gico. Outrora, ele s�� tinha visto a felicidade de possuir
a mulher amada, sem cuidar no meio empregado; agora,
era v��tima, por sua vez, do mesmo criminoso poder.
Com um profundo suspiro parou diante de Pot��fera:
��� Tuas palavras me esclareceram muitas coisas e
tuas li����es s��o para mim realidades; deixemos, pois, este
triste assunto. Perdoei a Ranofrit e esse maldito n��o ul-
trapassar�� mais, nunca, os umbrais desta casa. �� preciso
tratar de esquecer a nuvem que empanou a minha feli-
cidade.
Quinze dias mais tarde, o sacerdote e sua fam��lia
voltaram para Heli��polis; o estado de Ranofrit n��o mais
apresentava perigo, e, visivelmente, sua robusta natureza
recobrava vitalidade.
Na v��spera da partida, Maia teve com a cunhada uma
conversa de cora����o aberto e a mo��a lhe jurou, banhada
em l��grimas, que era inocente e naquela noite fatal n��o
transpusera, conscientemente, o umbral do seu quarto.
Depois da partida dos parentes, uma vida triste e
mon��tona come��ou para Ranofrit. N��o sa��a, fugia dos
homens, at�� a presen��a dos escravos lhe era odiosa e du-
rante dias inteiros meditava, s��, no terra��o, ou no andar
t��rreo, ruminando sombrios pensamentos, pensando na
vergonha que se abatera sobre ela e lhe havia destru��do
a honra e a ventura.
Todos os dias Putifar vinha passar alguns instantes
com a mulher; n��o lhe manifestava nenhum ressentimen-
to, mas, no seu olhar triste e grave, ela adivinhava que
ele n��o lhe tributava a afei����o de outrora.
Tamb��m n��o ousava queixar-se, sentia que o marido
tinha-lhe dispensado a maior indulg��ncia, perdoando-lhe
o inaudito esc��ndalo. Mas a frieza nascida desse evento,
94
J. W. ROCHESTER
o insulamento a que se condenava, causavam-lhe amargo
pesar e dolorosa tristeza.
A lembran��a de Jos��, agora, s�� lhe inspirava repug-
n��ncia; em compensa����o, Putifar cada vez mais lhe con-
quistava o cora����o: interessava-lhe, ocupava-lhe todos os
pensamentos; achava-o belo e bom; sua voz clara e im-
periosa, quando o ouvia dando ordens, fazia pulsar-lhe
o cora����o e uma horr��vel sensa����o de abandono a invadia
quando se recordava do amor e dos cuidados com que
Putifar a distinguia outrora; dos presentes que lhe dava;
da orgulhosa satisfa����o com que a exibia em p��blico, e
de como era feliz em lhe consagrar qualquer hora de folga
que lhe deixava o cargo.
A confidente ��nica dos seus pesares e das suas l��-
grimas era a velha Nefrou, que desde ent��o n��o a deixava
e se tinha tornado para ela mais amiga do que serva.
Gra��as a ela, estava sempre ao corrente do que fazia Pu-
tifar; sabia que ele sa��a ami��de, voltava tarde e traba-
lhava, ��s vezes, metade da noite. Conjeturou que seria
para abafar o seu desgosto que ele assim se esgotava.
Mais de dois meses passaram sem alterar a situa����o,
mas, �� medida que Ranofrit readquiria a sua beleza, vigor
e vivacidade de esp��rito, mais lhe pesava o humilhante
abandono. Depois de muito refletir, resolveu tentar uma
reconcilia����o definitiva. Putifar era generoso e lhe havia
votado verdadeira paix��o. Seria insens��vel ao seu arre-
pendimento, se ela se lhe rojasse aos p��s, implorando
perd��o?
Confiou esse projeto a Nefrou, que lhe beijou os p��s
e as m��os com l��grimas de alegria, aconselhando-a a per-
severar nessa boa resolu����o e, logo no dia seguinte, anun-
ciou-lhe que o momento de tentar a prova era dos mais
favor��veis, porque Putifar tendo voltado do pal��cio, onde
jantara, estava s�� no gabinete e tudo indicava que velaria
at�� tarde.
A boa velha vestiu-a com particular cuidado. Depois
de perfum��-la com as mais preciosas ess��ncias, penteou
e ungiu os longos cabelos negros, prendendo-os com um
delgado grampo de ouro, que lhe rodeava a fronte; ves-
O C H A N C E L E R DE F E R R O
95
tiu-a com uma t��nica de linho finamente crespa e cin-
giu-lhe a cintura de uma fita bordada. O que, por��m,
tomou mais tempo, foi a escolha dos amuletos que Ra-
nofrit levou ao pesco��o e que deviam tornar as divindades
favor��veis �� sua empresa. Por ��ltimo, Nefrou lhe p��s na
sand��lia direita uma folha da ��rvore da felicidade, e,
na esquerda, um peda��o de branda cera, pronunciando
um exorcismo cujo segredo possu��a, e que, ao seu ver, de-
veria infalivelmente abrandar o cora����o do marido e
restituir a felicidade ao casal.
Assim armada de encantos vis��veis e ocultos, a mo��a
demandou o gabinete do marido. A porta, vigiava, aga-
chada e com os bra��os cruzados, Tot, a fiel serva. Com
um gesto imperioso, Ranofrit ordenou-lhe que se retirasse;
depois levantou a cortina de l�� e lan��ou para o interior
um olhar ansioso.
Uma l��mpada de bronze, cheia de ��leo e pendente
de pequenas correntes, iluminava brandamente o gabine-
te e o rosto do chefe dos archeiros, que, curvado para
um longo rolo de papiros, escrevia com ardor. Uma segun-
da l��mpada, elevada num p�� de cobre, derramava p��lida
claridade no rosto regular e en��rgico de Putifar, na m��o
que empunhava a caneta, no grande tinteiro e no acervo
de pranchas e rolos que enchiam a mesa.
Um momento, cora����o palpitante, fitou o marido,
t��o absorto no trabalho que n��o ouvia nem via coisa al-
guma; mas pareceu-lhe t��o austero, que ficou receosa.
Se aqueles olhos baixos fossem dardejar nela um olhar
de suspei����o e desprezo? Se aquela boca fechada, em
lugar do perd��o esperado, pronunciasse uma senten��a
cruel, embora justificada?...
Respirando dificilmente, encostou-se um instante na
porta, mas, dominando a fraqueza, aproximou-se de man-
so e, caindo de joelhos, tomou a m��o do marido e aper-
tou-a nos l��bios.
Putifar estremeceu e, reconhecendo-a, uma onda de
sangue inundou-lhe o rosto.
��� Que significa tua vinda aqui, Ranofrit, e que me
queres? ��� perguntou de cenho carregado.
96
J. W. ROCHESTER
��� Quero que me perdoes, que me restituas o teu
amor; n��o posso mais suportar esta vida de isolamento,
regada de desprezo ��� balbuciou com a voz abafada pelos
solu��os. ��� Oh! por que n��o morri, se devia arrastar, longe
de ti, t��o miser��vel exist��ncia!
Ele n��o retirou a m��o que se conservava entre as
suas; seu cora����o tamb��m batia penosamente, o amor
apaixonado que ela lhe tinha inspirado latejava sempre
sob as cinzas amontoadas pelo ultraje, e a s��plica arden-
te das pupilas de veludo erguidas para ele n��o perdia o
seu efeito. O orgulho e a dignidade masculina lutavam
ainda contra essa fraqueza.
��� Levanta-te, Ranofrit, d��i-me ver-te assim diante
de mim ��� disse com profunda tristeza. ��� Perdoei-te,
continuas dona da minha casa, mas o que me pedes ��
imposs��vel; meu cora����o sangra, porque muito te amei.
Como restituir-te a minha afei����o depois de tudo que se
passou e cuja origem ainda ignoro?
��� Deixa-me a teus p��s, �� este o meu lugar. Vou
dizer-te tudo, como se estivesse j�� diante de Os��ris e dos
ju��zes do Amenti; depois aceitarei tua senten��a ��� mur-
murou toda tr��mula.
Com voz soturna e entrecortada, relatou a estranha
impress��o que lhe causara Jos�� desde a sua primeira en-
trevista, todas as perip��cias do louco arrastamento, em
consci��ncia reprovado, at�� o momento em que o escravo,
com duras palavras, lhe recordara os seus deveres.
Quando, horas depois, se insinuou em meu quarto,
acreditei, na minha loucura, que vinha para mim ��� con-
fessou desfeita em l��grimas e rubra de vergonha ���, mas
ele tinha outro fim qualquer, inclinou-se para a mesa,
porque me repeliu quando lhe segurei o bra��o; lutamos
ent��o e ele fugiu, deixando-me na m��o o retalho da
t��nica.
Depois, n��o tornei a v��-lo, at�� o instante em que o
deparei pendido para mim num lugar escuro e desconhe-
cido, e n��o compreendo como l�� fui ter. Ainda hoje, mi-
nha presen��a ali �� um mist��rio para mim; lembro-me,
somente, do indiz��vel horror que me causaram a face
O CHANCELER DE FERRO
97
macilenta do miser��vel, seus olhos cintilantes de malda-
de e os dedos ��midos e gelados que se enterravam na
minha carne. Quis fugir, empurr��-lo, mas n��o pude, e
como ele me escarnecia com palavras insultuosas, perdi
os sentidos. Agora sabes tudo: s�� misericordioso para
comigo.
Putifar a escutara, ofegante; cada palavra era uma
confirma����o das engenhosas suposi����es de Pot��fera. E
n��o podia vingar-se conduzindo �� morte o miser��vel m��-
gico, que quisera envenen��-lo para possuir a mulher que
t��o habilmente fingira conquistar a seu favor! Intentar
um processo escandaloso seria mais grave para si e sua
mulher, do que para um m��sero escravo. Assim ponde-
rando, enrijaram-se-lhe os punhos.
Ranofrit, que o observava ansiosa, estremeceu, vendo
semelhante gesto, e perguntou s��plice:
��� Esqueceste-me? ou tua c��lera aumenta em vez de
acalmar-se?
Bruscamente arrancado ��s suas reflex��es, voltou-se
para ela e estreitou-a em seus bra��os:
��� Agrade��o-te essa corajosa e franca confiss��o e
perd��o-te de l��bios e de cora����o. Esque��amos o nefasto
passado e, a partir desta hora, comecemos vida nova.
Promete-me que uma confian��a absoluta reinar�� sempre
entre n��s; ent��o, seremos fortes contra qualquer influ��n-
cia mal��fica.
��� Dedicarei todo o resto da vida a provar-te meu
reconhecimento e a tornar-te feliz ��� balbuciou Ranofrit,
enla��ando o pesco��o do marido.
Mas os nervos superexcitados se afrouxaram brusca-
mente, e foi assaltada por um tal acesso de gritos e solu-
��os, que Putifar teve de transport��-la para o quarto. S��
um profundo sono, produzido pelo esgotamento, restituiu-
-lhe finalmente a calma.
VI
JOS�� NA PRIS��O
M a s o Senhor esteve com Jos��,
compadeceu-se dele, e fez com que
achasse g r a �� a diante do governador
do c��rcere, que o encarregou do
cuidado de todos os presos que ali
e s t a v a m encarcerados. ��� G��nese,
cap. XXXIX, w. 21, 22.
Dominando parte da cidade com suas largas mura-
lhas denteadas, elevava-se na cidade de M��nfis o castelo
branco, como o chamavam pela altura das paredes re-
vestidas de cal. O vasto recinto da fortaleza encerrava
templos, arsenais, as pris��es do Estado, quart��is da guar-
ni����o, imensos dep��sitos de forragens e, finalmente, os
alojamentos de todo o pequeno ex��rcito de oficiais e fun-
cion��rios dessa administra����o complicada. Soldados re-
crutados em grande parte na popula����o sem��tica, que,
nesse tempo, dominava o Egito e comandados exclusiva-
mente por oficiais de sua ra��a, ocupavam a cidadela,
mantendo em respeito a popula����o ind��gena, turbulenta
e surdamente rancorosa contra os opressores estrangeiros.
Haveria 400 anos, os Hyksos, ou pastores, ocupavam
o delta do Nilo e uma grande parte do Egito, e, no curso
desses longos s��culos, os vencidos tinham civilizado os
vencedores, que pouco a pouco lhes adotaram a l��ngua, os
costumes e a religi��o.
As camadas populares continuavam a adorar Soutech,
a sombria e sang��in��ria divindade s��ria, que era a de seus
O CHANCELER DE FERRO
99
pais; mas um dos antepassados do rei, chamado Apopi,
como ele, tinha substitu��do os deuses b��rbaros do seu povo
por um deus eg��pcio, cujo culto oficial era celebrado com
pompa por um clero especial, e ao qual elevara magn��fi-
cos templos em Tanis, sua resid��ncia habitual, e em Ava-
ris, inexpugn��vel fortaleza e ponto de mira dos Hyksos.
Dif��cil dizer se essa inova����o foi inspirada pelo desejo
de assimilar mais as duas na����es, ou por alguma simpatia
pessoal do rei. O certo �� que a escolha do deus Set, em
todo o pante��o eg��pcio, n��o s�� demonstra um conheci-
mento profundo da religi��o, como tamb��m uma medida
pol��tica bem determinada.
Com efeito, Set-Tifon, o assassino de Os��ris, o rival
de Horus, o pastor do rebanho de Kemi, �� tamb��m o
s��mbolo da preponder��ncia do Norte sobre o Sul, do ter-
rit��rio do rei Hykso sobre as prov��ncias do Sul, onde
vegetavam miseravelmente, como simples nomarcas, pa-
gando tributo, os descendentes dos antigos fara��s, os
��nicos verdadeiros reis do Egito aos olhos dos padres e
de todos os patriotas.
Ao tempo das inova����es religiosas do rei pastor, o
representante da leg��tima dinastia residia em Tebas e se
chamava Ta�� I, com o seu sobrenome real: Sekenen-Ra
(o sol belicoso), e seus vassalos apelidaram-no ��� o Gran-
de. Embora este pr��ncipe s�� tivesse o simples t��tulo de
Hak, ou nomarca, e pagasse um tributo ao rei pastor, que
o tratava como vassalo, gozava de incontest��vel superio-
ridade sobre os outros chefes de noma das prov��ncias do
Sul, e em torno dele centralizavam-se todas as esperan��as
e surdas conspira����es de todos os partid��rios da indepen-
d��ncia nacional, os quais farejavam o momento azado
para sacudir o jugo odioso do estrangeiro. Porque foi em
v��o que os reis pastores tomaram o t��tulo de fara��s, apoia-
ram-se num col��gio hierogram��tico, modelaram a Corte
pela dos antigos soberanos, adotaram l��ngua e costumes,
cercaram-se de funcion��rios escolhidos no meio da no-
breza eg��pcia: na alma do povo e sobretudo das altas
castas sacerdotais e militares, eram considerados intrusos
e usurpadores ��� Hak chason ��� como os chamavam
desdenhosamente �� socapa.
100
J. W. ROCHESTER
O papiro Salier, conservado no Museu Brit��nico, re-
lata curioso epis��dio das inova����es religiosas do rei Apopi
e das confer��ncias que a prop��sito houve entre ele e o rei
Sekenen-Ra Ta�� I, chefe do pa��s do Sul. A pretens��o do
rei pastor, de Amon-Ra, para substitu��-los pelo culto de
Set-Tifon, foi a gota que fez transbordar a paci��ncia e a
submiss��o secular do povo eg��pcio.
Ent��o, como em nossos dias, as quest��es religiosas
envenenavam mais que quaisquer outras paix��es pol��ti-
cas: deu-se uma insurrei����o, um levantamento geral,
todo o Sul se reuniu em torno de Ta�� I, que desfraldou o
estandarte da revolta e foi o primeiro que ousou atacar
abertamente os poderosos opressores.
Mais de cem anos haviam decorrido e, contudo, os
pastores n��o estavam ainda expulsos do pa��s; a guerra
da independ��ncia tinha continuado com altern��ncias de
fortuna pelos sucessores de Ta�� I, mas sem resultados
positivos.
Por ��ltimo, foram os Hyksos que venceram. De novo
ocuparam M��nfis e pareciam mais poderosos que nunca;
mas esse poder tinha perdido a solidez, o fermento da
revolta infiltrara-se nas massas, a lembran��a dos ��xitos
alcan��ados entretinha o entusiasmo, a esperan��a, e tor-
nava duplamente pesado o jugo estrangeiro, que, por sua
vez, cerrava fileiras, observando com desconfian��a as
surdas maquina����es dos vencidos.
Sem d��vida, n��o faltavam covardes e aduladores na
Corte dos reis pastores, indiferentes no seio do povo, que
a nobreza e o medo for��am ao sil��ncio; nem avultado
n��mero de nobres eg��pcios, que, ante o fato consumado e ��
for��a, serviam no ex��rcito e na administra����o; mas todos
eram surdos descontentes, que sentiam duplamente qual-
quer injusti��a e, no fundo do cora����o, odiavam o soberano,
apesar das zumbaias que abertamente lhe faziam.
Na ��poca aqui fixada, era de novo um Apopi que
ocupava o trono. Homem de meia-idade, enfermi��o, ca-
prichoso e vers��til, sujeito a ataques de epilepsia, a dores
de cabe��a e a cru��is ins��nias, diziam que na inf��ncia fora
v��tima de mau-olhado. Outros, mais instru��dos, cochicha-
O CHANCELER DE FERRO
101
vam que o Fara�� era dominado por um terr��vel sortil��gio,
porque nenhum rem��dio lograra cur��-lo. Sobre o autor
do sortil��gio, as opini��es se dividiam: os Hyksos acusavam
os padres eg��pcios como respons��veis e outros o atribu��am
a uma mulher do har��m do defunto rei, excitada pelo
��dio e pelo ci��me contra o herdeiro do trono, em detri-
mento do seu pr��prio filho.
Uma parte destes coment��rios tinha chegado ao pr��-
prio Apopi, enchendo-o de surdo ��dio contra a casta sacer-
dotal e, ao mesmo tempo, inspirando-lhe uma predile����o
m��rbida pelas ci��ncias secretas, que cultivava com ardor.
Seus trabalhos de ocultismo alternavam com o gosto
apaixonado pelas festas, pelas mulheres, pelas ca��adas
perigosas e emocionantes. Ora se cercava de uma multid��o
ruidosa, ora se confinava na solid��o e procurava acalmar,
por meio de c��nticos, ao som da harpa, a misantropia e os
sofrimentos f��sicos que o atormentavam. O luxo de que se
rodeava era excessivo e inspirava aos seus conselheiros
vivos alarmas, porque, para satisfazer os caprichos dispen-
diosos do Fara��, era necess��rio aumentar os impostos, j��
muito pesados de si mesmos. Sombrio e desconfiado, Apopi
acreditava-se sempre amea��ado pelas conspira����es, e im-
pedindo-lhe a prud��ncia de ser cruel, como desejava, tinha
enchido todas as classes da sociedade de espi��es, que se
introduziam at�� no seio das fam��lias, envenenando qual-
quer palavra que lhes parecesse suspeita. Semelhante si-
tua����o criava poucos amigos ao caprichoso monarca. Ele
o sentia, ali��s, e mudava muitas vezes de favoritos, inutili-
zando bruscamente quantos, na v��spera, tinha cumulado de
honras. Tamb��m suas boas gra��as despertavam mais medo
que alegria no cora����o dos eleitos, os quais logo sentiam a
cabe��a insegura nos ombros.
OBSERVA����O N" 1 ��� O Autor entendeu que
devia colocar aqui alguns extratos da obra especial de
Chabas: Les Pasteurs en Egypte e da de Brugsch:
Histoire de 1'Egypte sous les Pharaons, de vez que
esses extratos confirmam a base hist��rica em que ��
decalcada esta narrativa. Eis, em primeiro lugar, o
que diz Chabas:
102
J. W. ROCHESTER
"Depois de ter relatado o fato referido pelo papiro
Salier e mencionado a inscri����o funer��ria de Ahm��s,
filho de Baba, o qual, nascido sob o reinado de Sekenen-
-Ra, toma parte sob o de A h m �� s I na captura de
A v a r i s e na expuls��o definitiva dos Hyksos, o s��bio
egipt��logo diz: "O rei Apopi do papiro era contempo-
r��neo de Sekenen-Ra, um dos chefes do Sul que tra-
balharam pela liberta����o do pa��s; s e m d��vida reinou
no ��ltimo s��culo do dom��nio dos pastores. E s t e Apopi
�� o ��nico pastor registrado historicamente; nada se
sabe do nome n e m dos atos de seus predecessores e
dos sucessores, os quais evidentemente se enfraquece-
r a m cada vez mais, at�� �� expuls��o final.
O Sekenen-Ra contempor��neo de Apopi (do papi-
ro) e o Sekenen-Ra de Baba, pai de A h m �� s , s��o duas
personagens diversas, duas pessoas da m e s m a ra��a.
��� Que o rei eg��pcio teve sucessores, est�� provado
por seu sobrenome real: "O sol belicoso", m a s se per-
s i s t i s s e m em confundi-lo com o Sekenen-Ra Ta��-Kene,
o predecessor do vencedor de Avaris, seria preciso dei-
xar de colocar em seu t e m p o o come��o da guerra da
independ��ncia, porque n��o se encontraria tempo para
a longa dura����o que Maneton d�� a e s s a guerra.
��� Entretanto, toda a dificuldade cessa quando se
sabe que duas outras personagens com o nome de
Sekenen-Ra T a �� existiram, as quais distinguiremos
a s s i m :
1�� ��� Sekenen-Ra, Ta��, o Grande.
2�� ��� S. R. Ta��, o Muito-Grande.
3�� ��� S. R. Ta��-Kene, o Muito-Vitorioso.
Podemos pois, agora, considerar Ta��, o Grande,
como o primeiro chefe do Sul que se levanta contra
os pastores; Ta��, o Muito-Grande, continua a obra e,
enfim, Ta��, o Muito-Vitorioso, obt��m contra os b��r-
baros os ��xitos brilhantes que permitiram a A h m �� s I
expuls��-los definitivamente.
E sob o seu reinado que nasce Ahm��s, filho de
Baba, o chefe dos marinheiros que relata a tomada
de Avaris. Sekenen-Ra Ta��-Kene III, ��nico designado
como predecessor da XVIII dinastia, prova que os
��xitos dos dois primeiros foram apenas parciais."
Brugsch, em s u a obra acima mencionada, diz "que
uma tradi����o crist�� muito antiga, conservada pelo padre
O C H A N C E L E R DE F E R R O
103
Syrcell, relata que Jos�� governou o E g i t o sob um rei
pastor chamado Apopi, cujo reinado precedeu apenas
de a l g u n s anos o come��o da XVIII dinastia; e, m a i s
adiante, que se achou ultimamente u m a interessante
confirma����o dos sete anos de fome, no tempo de Jos��,
e isto na inscri����o funer��ria de um eg��pcio chamado
Baba, que viveu em El-Kab e, indubitavelmente, foi
contempor��neo do patriarca Jac��, do seu filho Jos��,
a s s i m como do rei Sekenen-Ra".
Na inscri����o funer��ria desse Baba, em El-Kab,
fala-se de uma fome que durou longos anos; os termos
do t e x t o funer��rio n��o deixam d��vida a l g u m a sobre
a realidade do f a t o hist��rico, ao qual f a z e m alus��o.
Visto que u m a fome prolongada durante alguns anos
s�� �� mencionada uma vez na hist��ria do antigo Egito,
no t e m p o de Jos��, e que Baba, que traz o nome de
A h m �� s , o marinheiro, vivia como ele em El-Kab, no
t e m p o de Sekenen-Ra T a �� III, pode-se por a�� tirar a
conclus��o de que a fome mencionada por B a b a e a que
t e v e lugar ao tempo de Jos��, s��o um m e s m o e ��nico
acontecimento.
Em ��ltimo lugar, citemos S a y c e que, em seu livro
Alte Denkmaler im lichte euur forschung, conta "que
o eg��pcio Baba, inumado em El-Kab, que, na inscri-
����o do seu t��mulo menciona a longa fome que desolou
o Egito, vivia, conforme a opini��o geral, na ��poca que
precedeu de alguns anos a eleva����o da XVIII dinastia,
o que fixa do modo m a i s positivo a ��poca em que Jos��
governou o Egito".
D e p o i s d e s s a d i g r e s s �� o h i s t �� r i c a , i n d i s p e n s �� v e l e m b e n e f �� c i o d a n a r r a t i v a , v a m o s r e t o m a r - l h e o fio, r e t r o g r a -
d a n d o �� �� p o c a em que J o s �� foi c o n d u z i d o �� p r i s �� o .
A i n d a d o e n t e e s o f r e n d o o s e f e i t o s d o cruel c a s t i g o , foi ele l a n �� a d o n u m c �� r c e r e d o edif��cio r e s e r v a d o a o s p r i s i o n e i r o s d o ! E s t a d o e que, p o r isso m e s m o , e r a r i g o r o -
s a m e n t e v i g i a d o e os r e c l u s o s s u b m e t i d o s �� m a i s d u r a d i s c i p l i n a .
O c a r c e r e i r o , a c u j a g u a r d a foi c o n f i a d o , e r a um H y k s o c h a m a d o Q u a p o u r , h o m e m b o n a c h �� o , q u e l o g o n o t o u a h u m i l d a d e do p r e s o e s e n t i u - s e c o m p a d e c i d o do i n t e n d e n t e d e g r a d a d o por m o t i v o s que, d e resto, n i n g u �� m s a b i a .
104
J. W. R O C H E S T E R
Tendo muito trabalhado no exerc��cio do cargo, Qua-
pour fazia-se substituir, ��s vezes, na distribui����o de v��ve-
res aos prisioneiros menos classificados, por um filho de
nove anos. Com a ast��cia e habilidade que lhe eram
pr��prias, soube Jos�� entabular conversas cada vez mais
amistosas com o rapaz e, por fim, prop��s-lhe ensin��-lo
a escrever, visto ser escriba e dispor agora, infelizmente,
de muitas horas ociosas. O pequeno Atou contou ao pai,
que autorizou as li����es com prazer e, encantado com os
progressos do filho, come��ou a interessar-se pelo pro-
fessor.
O primeiro resultado dessa benevol��ncia foi a mu-
dan��a para uma pris��o mais arejada e confort��vel, onde
lhe deram colch��o de palha e um manto; depois, a m��e
de Atou come��ou a mandar-lhe ora um bom prato de
carne, ora um favo de mel e uma pequena ��nfora de vinho
ou de cerveja. Por fim, Quapour foi um dia entreter-se
com ele e, depois de discutirem as belas faculdades de
Atou e o brilhante futuro de escriba real, que elas lhe
garantiam, indubitavelmente, interrogou-o sobre a sua
origem, precedentes e as raz��es da sua desgra��a.
Embora com reservas, Jos�� deu a entender que era
v��tima inocente da impudica paix��o da senhora, que, por
ele chamada ao cumprimento do dever, tinha-o caluniado
e comprometido.
Depois dessa conversa confidencial, o carcereiro ia
prazeroso, todos os dias, conversar um momento com o
preso. Um dia em que chegara com uma bilha de leite,
da parte de sua mulher, Jos�� notou-lhe o aspecto melan-
c��lico, apreensivo, e perguntou-lhe a causa.
��� Ah! ��� respondeu Quapour, suspirando ��� tive esta
noite um sonho que, certamente, pressagia alguma coisa,
e n��o tenho ningu��m para mo explicar; pois um primo,
perito nessas mat��rias, morreu no ano passado e, quanto
aos adivinhos do templo, custam muito caro.
��� Queres contar-me o que viste? Talvez possa expli-
c��-lo. Em nossa tribo havia uma mulher afamada por
sua ci��ncia divinat��ria e que, pelo bem que me queria,
ensinou-me um pouco da sua arte.
O CHANCELER DE FERRO
105
��� De boa-vontade, eu te conto: Vi-me sentado em
meu quarto, perto da janela, e s��bito vi um grande p��s-
saro negro, trazendo no bico uma pomba branca; batendo
ruidosamente as asas, entrou no quarto, deixou cair a
pomba e desapareceu no quarto cont��guo; a�� o ouvi dar
tr��s gritos agudos e sair levando no bico outra pomba,
por��m negra, e morta. N��o �� verdade que esse sonho pres-
sagia alguma desgra��a? Mas, espera... espera... esqueci
de dizer que, antes de entrar, o p��ssaro voltivolou diante da
janela e deu sete gritos l��gubres e prolongados.
��� Na verdade, teu sonho �� funesto ��� respondeu Jos��
depois de ter refletido ��� e ao meu ver, eis o que significa:
dentro de sete meses nascer-te-�� uma filha, que vingar��,
mas, tr��s dias depois, tua mulher morrer��.
Em virtude dessa predi����o, o pobre Quapour desfez-se
em l��grimas e, durante alguns dias, andou cabisbaixo e
acabrunhado, mas pouco a pouco acalmou-se e acabou
por se persuadir que Jos�� n��o era adivinho de profiss��o
e poderia enganar-se. Talvez Soutech o poupasse �� des-
gra��a predita, se lhe oferecesse sacrif��cios adequados.
O futuro n��o justificou tais esperan��as; o ingrato
deus aceitou as ofertas e deixou morrer a mulher de
Quapour tr��s dias depois de dar �� luz uma menina. Este
acontecimento inspirou ao carcereiro um respeitoso medo
do seu prisioneiro e, mais tarde, o desejo de conciliar as
boas gra��as do adivinho, minorando-lhe a sorte. Com tal
inten����o, aproveitou um momento favor��vel para repre-
sentar ao seu superior imediato, inspetor das pris��es, o
nobre Hormahou, que Jos��, homem jovem e s��o, de con-
duta exemplar, poderia ser empregado com proveito em
pequenos servi��os.
Hormahou aprovou a proposta, mas n��o se arriscou
a aceit��-la antes de falar a Putifar, o senhor do escravo.
Este, cuja c��lera havia muito se apaziguara, autorizou o
subordinado a utilizar-se de Jos��, mas s�� intramuros,
sem poder jamais ultrapassar o recinto da cidadela, e
ordenando fosse empregado mais especialmente em servir
aos outros prisioneiros.
O hebreu deixou, portanto, a estreita cela, para cir-
cular livremente no recinto da pris��o, e logo o seu zelo,
106
J. W. ROCHESTER
mod��stia, obedi��ncia, granjearam as boas gra��as superio-
res e a gratid��o dos cativos, aos quais demonstrava bon-
dade e interesse.
*
Em uma ala do pal��cio real de M��nfis, cujas janelas
abriam para os jardins, e onde n��o chegava qualquer
ru��do do exterior, via-se uma sala muito ampla, prepa-
rada com o mais refinado luxo; paredes cobertas de pin-
turas e incrusta����es de cornalina, l��pis-laz��li e esmalte;
quatro maci��as colunas, pintadas a cores claras, susten-
tavam o teto; largas esteiras multicores cobriam o soalho,
e os m��veis de cedro ou de bronze cinzelado e dourado
eram dignos da riqueza arquitet��nica do edif��cio.
No interior da sala, suspenso sobre dois degraus co-
bertos com peles de le��o, estava um leito de repouso, de
ouro maci��o, com almofadas de p��rpura bordadas tam-
b��m de ouro.
Em cima dessa cama amarrotada e em desordem,
achava-se estirado, de olhos fechados, um homem dos
seus trinta e seis anos, delgado e esbelto; rosto ossudo,
ma����s salientes e recurvo nariz, era a imagem viva dessas
cabe��as de m��mia, de estranho penteado e tra��os carac-
ter��sticos, que se h��o descoberto em Tanis e que os egip-
t��logos reconheceram como ef��gies dos reis Hyksos.
Ao p�� do leito mantinham-se im��veis dois padres de
cabe��a raspada, envoltos em longo manto de linho pr��-
prio de sua casta; embaixo, pelos degraus, agrupavam-se
alguns dignit��rios adidos ao servi��o pessoal do Fara�� e,
no fundo da sala, a multid��o de oficiais, funcion��rios e
cortes��os ��� o s��quito obrigat��rio de um rei do Egito,
desde que se levantava at�� que se deitava.
Toda aquela gente estava im��vel, muda, olhos fixos
no monarca, cuja respira����o rouca e sofreada mal pertur-
bava o profundo sil��ncio.
Desde alguns dias, Apopi achava-se em estado de
marasmo, que o levava a fugir dos homens, e n��o tinha
deixado os aposentos; mas, durante a ��ltima noite, tivera
um acesso epil��ptico.
O C H A N C E L E R DE F E R R O
107
Maltratado pelas convuls��es que lhe haviam contor-
cido os membros, assim jazia de cabe��a inclinada, l��vido,
os olhos encovados. Somente as contra����es dolorosas das
m��os e da metade do rosto denotavam que ele sofria uma
dessas intoler��veis dores de cabe��a que seguem, ��s vezes,
os ataques epil��pticos.
Toda a vez que um dorido estremecimento lhe sa-
cudia o corpo, os dois padres se aproximavam; um molha-
va o linho numa bacia sustentada por um rapaz ajoelha-
do �� cabeceira, e com ele enxugava o rosto do enfermo,
enquanto o outro lhe derramava nos l��bios algumas gotas
de um l��quido escuro. Uma express��o de calma e bem-
-estar animava, ent��o, a fisionomia desfigurada de Apopi
e a respira����o tornava-se mais regular. Mas o intervalo
era breve.
Fatigados e enervados com a intermin��vel vig��lia a
que eram obrigados por for��a dos cargos e dos protocolos,
os funcion��rios tinham os olhares fixos no rei, interro-
gando-se quando se produziria qualquer melhora; de re-
pente, Apopi voltou-se e seus grandes olhos ardentes
erraram um momento pela multid��o ansiosa e muda;
depois, chamou com voz cava:
��� Heka!
Do fundo da sala partiu logo um mancebo, sobra��an-
do uma harpa, e foi ajoelhar-se em frente do leito.
��� Toca ��� disse o Fara��, recaindo nos colch��es.
O m��sico timbrou de leve as cordas do instrumento;
uma doce melodia, um tanto mon��tona, se fez ouvir, ora
crescendo vibrante, ora se extinguindo em acordes pro-
longados.
O monarca jazia im��vel, mas pouco a pouco as con-
tra����es nervosas diminu��ram, depois cessaram completa-
mente, a respira����o tornou-se mais calma e, por fim,
mergulhou em sono profundo.
Um murm��rio percorreu as fileiras dos cortes��os, um
suspiro de al��vio levantou os peitos e a multid��o come��ou
a escoar-se sem ru��do. Sabiam que o sono marcava o fim
da crise e se prolongava durante longas horas. Pouco
depois, s�� restavam junto do Fara�� os dois padres, o
108
J. W. R O C H E S T E R
harpista, alguns funcion��rios de servi��o do dia e o oficial
dos guardas, que velava �� porta.
Meia hora mais tarde, dois homens que tinham sa��do
da sala deixavam o pal��cio e, atravessando obliquamente
os imensos jardins que desse lado cercavam a resid��ncia
real, dirigiram-se para a sa��da que dava para o Nilo.
Conversando em voz baixa, atravessaram rapidamente as
alamedas j�� sombreadas, porque a noite ia caindo, e, n��o
atentaram num homem que os seguia desde o pal��cio,
escondendo-se entre as ��rvores e apurando o ouvido a
cada palavra que trocavam.
Um dos interlocutores, homem de 50 anos, era Abton,
o chefe das cozinhas reais, vigilante de tudo que se cozi-
nhava, assava e fabricava no pal��cio; o segundo, rapaz
de boa apar��ncia, era Nectanebo, o copeiro da casa real.
��� Que vida fatigante! N��o h�� descanso, nem de dia
nem de noite. Quando n��o s��o as festas, ca��adas ou orgias
que nos estafam, s��o os acessos de loucura que nos impe-
dem de dormir e descansar ��� observou o copeiro amuado.
��� Que queres, Nectanebo? Poderia ser de outro modo,
quando temos no trono um estrangeiro que ofende os
deuses com a sua presen��a? Vendo que o chasou despreza
seus santu��rios para s�� inclinar-se diante de Set; que
usurpa o trono do pa��s de Kemi em detrimento dos ver-
dadeiros filhos de Ra, os imortais feriram Apopi com a
mol��stia estranha e incur��vel que o r��i ��� obtemperou
Abton, sisudo.
O copeiro fechou os punhos e, voltando-se para o
companheiro, perguntou:
��� H�� not��cias de Tebas?
��� Sim, o escriba Houha trouxe graves informa����es;
mas o lugar aqui n��o �� pr��prio para coment��-las. Ama-
nh��, �� hora da Lua, vai �� casa do past��foro Mena e ouvi-
r��s coisas que te alegrar��o.
Quando chegaram �� porta de sa��da, os dois homens
se calaram e, depois de silencioso aperto de m��o, cada
qual tomou a barca que o esperava, dirigindo-se para
o lar.
O C H A N C E L E R DE F E R R O
109
Quando as duas embarca����es desapareceram na bru-
ma, a personagem que os acompanhava deixou a sombra
das sar��as que a tinha ocultado at�� ali e veio sentar-se
num banco, ao p�� de grande sic��moro, absorvendo-se em
profunda medita����o.
Era um rapaz de baixa estatura, robusto, trajando ��
moda eg��pcia, mas cujos tra��os proeminentes, face larga
e ossuda, denunciavam-lhe a origem. Pet-Baal, assim se
chamava, Hykso e ocupava no pal��cio um cargo secund��-
rio, mas a ast��cia, o esp��rito de intriga e a ambi����o in-
duziam-no a desejar um ensejo para evidenciar-se, sair
da massa an��nima. Com esse prop��sito, espionava ativa-
mente todos os eg��pcios que tinham cargos no pal��cio,
esperando descobrir alguma intriga e provar, assim, seu
devotamente ao Fara��.
"At�� que enfim, tenho uma ponta do fio ��� rosnou
Pet-Baal ��� �� pois, em casa desse miser��vel intrigante do
Mena, que se re��ne a s��cia de traidores e conspiradores!
A coisa vale notada. E essa ousadia de chamar chasou,
ao nosso glorioso soberano (vida, for��a, sa��de!). Miser��-
veis! Querem, talvez, mat��-lo; m a s . . . c�� estaremos n��s
outros. Amanh�� irei ao pr��ncipe Namourod e lhe desven-
darei o que descobri; em recompensa do meu trabalho,
pedirei ao Fara�� o cargo de copeiro e a permiss��o de es-
posar Nefert, a irm�� desse patife de Nectanebo, que ousa
recusar-ma... Dessarte abiscoitarei o cargo, a irm�� e a
linda casa do conspirador. N��o se dir�� que seja um mau
neg��cio." Trauteando uma can����o guerreira, levantou-se
e retomou apressado o caminho do pal��cio.
VII
O COPEIRO E O PADEIRO
O F a r a �� irado contra e s t e s dois
oficiais, dos quais um presidia aos
seus copeiros e outro aos seus pa-
deiros, os mandou meter no c��rcere
do general de suas tropas, onde Jos��
e s t a v a preso.
T i v e r a m ambos um sonho, na
m e s m a noite, o qual, sendo explica-
do, m a r c a v a o que devia suceder a
cada um deles.
O terceiro dia seguinte era o do
nascimento de Fara��, que deu um
grande banquete aos seus criados,
durante o qual se lembrou ele do
copeiro-mor e do padeiro-mor.
E restituiu um ao seu cargo, para
continuar no of��cio de lhe ministrar
o copo; e o outro mandou ele pendu-
rar n u m pat��bulo: o que confirmou
a interpreta����o que Jos�� tinha dado
a o s s e u s sonhos. ��� G��nese, cap. XL,
w . 2, 3, 5, 20, 22.
O pr��ncipe Namourod era primo do Fara�� Apopi e
considerado como herdeiro do trono, embora n��o tivesse
oficialmente esse t��tulo.
O rei tinha perdido muitos filhos, todos mortos em
tenra idade e, na ocasi��o, s�� lhe restavam duas filhas
igualmente novas, ainda. A mais velha, conforme a opi-
ni��o geral, deveria um dia desposar Namourod, transmi-
O CHANCELER DE FERRO
111
tindo-lhe os direitos hier��rquicos, que, segundo o uso
eg��pcio, sobrepujavam os da linha colateral masculina.
Neste ponto, como em todos os outros, os reis Hyksos
respeitavam aparentemente as velhas leis do pa��s. Con-
temporizavam com os padres, cujo poder sobre o povo era
imenso. Apopi, tal como seus predecessores, visitava assi-
duamente os templos, sacrificava aos deuses e prodigali-
zava aos seus servidores honras e defer��ncias; mas no
��ntimo odiava-os, desconfiado da casta altiva, que, im-
penetr��vel e hostil, se levantava em torno dele como um
perigo constante. Seus espi��es vigiavam os padres, bus-
cando apanhar o segredo da conspira����o permanente e
tenebrosa, que por toda parte estendia as impalp��veis
teias, preparando a expuls��o dos estrangeiros e a restau-
ra����o dos leg��timos reis. A descoberta de Pet-Baal tinha,
portanto, seu valor, e ele podia esperar dela um bom
proveito.
O pr��ncipe Namourod habitava um pal��cio cont��guo
ao pa��o real. Descansava no terra��o, para compensar a
noite fatigante passada ao p�� do seu real primo, quando
lhe anunciaram que o escriba Pet-Baal solicitava a honra
de ser admitido �� sua presen��a. Conhecia pessoalmente
o mancebo e, embora admirado do seu pedido, ordenou
que o introduzissem. Sua admira����o aumentou quando o
escriba, depois de se ter prostrado, rogou-lhe que o ouvisse
sem testemunhas.
��� Fala: qual o grande segredo que s�� podes confiar
ao meu ouvido? ��� perguntou, recostando-se nas almofa-
das, depois de haver despedido os escravos.
��� �� uma conspira����o, cuja trama descobri e que me
parece bastante perigosa, porque dois funcion��rios do
pal��cio, Abton e o copeiro Nectanebo, nela est��o envol-
vidos ��� respondeu Pet-Baal em voz baixa, logo que o
��ltimo escravo deixou o terra��o.
Depois, ajoelhando-se, relatou rapidamente tudo o
que tinha farejado na v��spera, da conversa dos dois eg��p-
cios: a reuni��o projetada em casa do past��foro Mena,
a chegada de um emiss��rio de Tebas, sem esquecer o
injurioso ep��teto de chasou, dado ao Fara��.
112
J. W. R O C H E S T E R
Enquanto ia falando, intenso rubor invadia o rosto
do pr��ncipe, cujas sobrancelhas se franziram e cujos
olhos despediam chispas de c��lera. Quando o sicofanta
terminou, refletiu demoradamente, depois disse:
��� Agrade��o-te, Pet-Baal: ��s um servo fiel e vigilan-
te, a quem nosso glorioso Fara�� (os deuses lhe concedam
for��a, vida, sa��de!) recompensar�� largamente. Pelo que
diz respeito ao neg��cio que me denuncias, eis o que de-
cidi: �� in��til fazer grande ru��do prematuramente, mas
logo �� tarde eu mesmo irei �� casa do past��foro e tu me
acompanhar��s; antes, por��m, d��-me pranchas, pois vou
escrever a Putifar a fim de que esteja pronto para nos
acompanhar com um destacamento de archeiros; cerca-
remos a casa e prenderemos toda a matula de traidores,
que sofrer��o castigo exemplar, de fei����o a tirar aos ou-
tros descontentes a vontade de os imitar.
Tendo escrito e selado as pranchas, o pr��ncipe entre-
gou-as ao delator e acrescentou com benevol��ncia:
��� O rei vai melhor e sente-se bastante forte para
dar um passeio de liteira; amanh��, portanto, inform��-
-lo-ei da captura que fizermos esta noite, sem receio de
agitar Sua Majestade. Nessa ocasi��o, certamente, um raio
da sua real gra��a cair�� sobre ti: dize-me, pois, o que
desejas e que recompensa alegrar�� mais teu cora����o.
��� Meu amo e senhor, escuta sem c��lera a confiss��o
que vou fazer-te. Meu cora����o est�� cheio da imagem de
Nefert, a irm�� de Nectanebo; este amor me devora e todo
o meu ser definha; s�� �� custa de muitos esfor��os posso
trabalhar, minhalma saiu do corpo e segue os passos da
rapariga.
��� Por que, ent��o, n��o a desposas e n��o acabas com
teus males? ��� interrompeu o pr��ncipe.
��� Imposs��vel, Nectanebo recusa-me a irm�� e f��-la
noiva de Necho, o filho de Abton, que ocupa o cargo de
vigilante da casa de campo do Fara�� e �� muito mais rico
do que eu. Se, porventura, Sua Majestade (que os deuses
lhe concedam anos infinitos!) quisesse isentar Nefert do
castigo que merece como irm�� e noiva de traidores e con-
ceder-ma para mulher, com o cargo de copeiro, far-me-ia
O C H A N C E L E R DE F E R R O
113
completamente feliz. E, com certeza, ser�� a m��o de um
servo fiel e devotado que encher�� de vinho a ta��a do
nosso glorioso soberano!
��� Espero que o Fara�� atenda �� tua s��plica e que,
se Nefert se tornar a mulher de t��o zeloso servo, poder-
-se-�� exculp��-la do crime dos parentes ��� respondeu o
pr��ncipe, despedindo o escriba.
Nenhum dos conspiradores suspeitava coisa alguma
do perigo mortal que os amea��ava; cada qual tinha de-
sempenhado pacificamente as suas fun����es, e, na hora
do sol-posto, a maioria deles voltava a penates.
Nectanebo por sua vez acabava de deixar o pal��cio
real, quando, n��o longe de casa, encontrou um rapaz de
boa apar��ncia, que o recebeu amistosamente.
��� Ah! ��s tu, Necho! Que acaso te conduz hoje a
M��nfis? Amor? Algum neg��cio? ��� perguntou sorridente
o copeiro.
��� Uma e outra coisa. Sem d��vida estou ansioso por
ver Nefert, mas tinha mais pressa ainda de falar-te. Per-
segue-me um sombrio pressentimento, atormentam-me
sonhos que pressagiam desgra��a e morte, e receio que tais
press��gios se realizem, porque conhe��o meu pai, seu ��dio
pelos estrangeiros e as rela����es perigosas que entret��m
com o Sul. Tamb��m tu ��s muito propenso a essas intrigas.
Pois bem! Quero suplicar a ambos sejam prudentes e
n��o se metam nessas conspira����es dos padres; eles podem
arriscar muitas coisas que vos custariam a cabe��a. Al��m
disso, na minha opini��o, n��o chegou ainda o momento
de tentar qualquer coisa; estamos ainda muito fracos, o
povo n��o est�� preparado.
��� Oh! se todo mundo fosse do teu parecer, o tempo
da liberdade n��o chegaria nunca ��� respondeu Nectanebo
com impaci��ncia. ��� De resto, descansa, n��s n��o cuidamos
de nada e eis a�� Nefert que vem ao teu encontro: esquece
tuas cismas, beijando-lhe a boca rosada.
A presen��a da mo��a que, feliz e risonha, saudava o
noivo, rematou o di��logo dos dois rapazes. Sentaram-se
114
J. W. ROCHESTER
no terra��o e conversaram sobre as n��pcias e a futura
instala����o do casal, Necho despediu-se e Nectanebo, fa-
zendo o mesmo, foi juntar-se a um dos conjurados, a fim
de ir com ele �� projetada reuni��o.
A uma hora de marcha de M��nfis, elevava-se a vila
do past��foro Mena. Vastos jardins cercavam a moradia
elegante e espa��osa, resguardada da curiosidade dos tran-
seuntes por um alto muro.
Em uma sala dessa casa, achavam-se reunidos na-
quele dia doze homens pertencentes ��s altas classes da
sociedade eg��pcia: padres, guerreiros, funcion��rios, entre
os quais notavam-se Abton e Nectanebo. Agrupavam-se
ao redor de um jovem, que discorria com anima����o, ilus-
trando a narrativa com desenhos riscados a carv��o em
uma folha de papiro.
O orador era Houha, o escriba vindo de Tebas para
transmitir aos fi��is eg��pcios de M��nfis as ordens e indi-
ca����es do seu leg��timo Fara�� Ta�� III, o chefe do Sul, que,
tenaz, paciente e en��rgico, preparava novo levante contra
os seculares opressores da p��tria.
Todos o ouviam inflamados. Animada discuss��o em-
penhou-se, depois, sobre os melhores meios de executar
as medidas prescritas pelo Fara��, e Abton pronunciava
justamente um discurso patri��tico, elevando ��s nuvens
a sabedoria de Ta��, o Muito-Grande e divino Fara��, n��o
poupando ao chasou ep��tetos de ��dio e desprezo, quando
um velho escravo, l��vido de espanto, se precipitou na sala,
gritando com voz estent��rica:
��� Senhor! os soldados penetraram no jardim e cer-
cam a casa.
Num instante fez-se mortal sil��ncio: todos se julga-
vam perdidos e, entretanto, era muito tarde para fugir,
porque j�� se ouviam pr��ximo os pesados passos da tropa
e o tinido das armas. O ��nico que n��o perdeu a presen��a
de esp��rito foi Houha: esgueirou-se por tr��s dos compa-
nheiros, galgou um desv��o sombrio e rasgou em pedaci-
nhos o escrito que trouxera de Tebas, bem como o plano
que acabava de desenhar, n��o se descuidando dessa me-
dida de prud��ncia pelo pr��prio ru��do da porta que se
O CHANCELER DE FERRO
115
abria, dando passagem ao pr��ncipe Namourod, seguido de
Putifar e de um destacamento de archeiros.
��� Enfim, c��fila de traidores e rebeldes, sois apanha-
dos em flagrante ��� disse o pr��ncipe deixando cair o olhar
cintilante nas fisionomias consternadas e desfeitas dos
conspiradores. ��� E tu, Abton, ��s o modelo dos servos fi��is;
animal impuro, eu ouvi com os meus ouvidos, ali, junto
da janela, os termos com que ousas falar do teu rei, do
benfeitor que fez de ti o que ��s. Faze o teu of��cio, Putifar,
e vigia para que nenhum possa fugir ��� acrescentou, vol-
tando-se para o chefe dos archeiros, em cujo sombrio
olhar passara fugitivamente um rel��mpago de c��lera e
pesar.
*
Informado, no dia seguinte, da importante captura
feita pelo primo, Apopi fremiu de c��lera. Essa descoberta
confirmava, uma vez mais, que uma conspira����o perma-
nente, que o invenc��vel ��dio dos vencidos minava o solo
debaixo dos seus p��s e, a todo momento, amea��ava-o com
uma dessas terr��veis rebeli��es que seu av�� e antepassados
tiveram tanto trabalho para dominar.
E contudo, apesar da evid��ncia e do perigo que lhe
criava a situa����o, o Fara�� n��o podia proceder com o dese-
jado rigor: os chefes do movimento ficavam intang��veis
e aos padres, que sabia envolvidos na intriga urdida em
Tebas, n��o ousava atacar abertamente, receoso de excitar
a poderosa casta cujo prest��gio na popula��a n��o tinha
limites.
Desta feita deu-se a mesma coisa: a pesquisa na casa
do past��foro n��o deu resultado algum e os fragmentos
do papiro provaram apenas que os conspiradores tinham
conseguido destruir documentos comprometedores.
O inqu��rito prolongou-se e evidenciou as habituais
defer��ncias �� casta sacerdotal. O past��foro Mena, a quem
uma indisposi����o impediu de assistir �� reuni��o, foi de-
clarado inocente; outro padre, apanhado na casa, morreu
dois dias depois de preso e aproveitaram a circunst��ncia
para n��o inquietar a fam��lia e soltar o irm��o. A grande
c��lera real recaiu nos oficiais, sendo que tr��s foram de-
116
J. W. R O C H E S T E R
capitados na mesma noite, e os outros, assim como Abton,
Nectanebo e alguns funcion��rios, encerrados na cidadela.
De acordo com a in��qua lei eg��pcia, todos os paren-
tes dos culpados compartilharam da sua sorte. A irm��
de Nectanebo e o filho de Abton foram presos e, como
r��us de segunda ordem, depressa julgados; o pobre Necho,
condenado a trabalhos for��ados, foi mandado para as
fortifica����es de Avaris, e sorte n��o menos triste espera-
va Nefert, mas salvou-a a intercess��o de Pet-Baal. O
pr��ncipe Namourod n��o esquecera o pedido do jovem
funcion��rio a cuja vigil��ncia deviam a descoberta da
conspira����o. Aproveitando uma boa ocasi��o, apresentou
o requerimento a Apopi, o qual n��o se fez rogado para
indultar a mo��a que, na realidade, nada soubera do que
tramavam os homens. Quanto ao cargo desejado, prome-
teu tratar do assunto quando o processo estivesse defi-
nitivamente terminado. Um dia, pois, Nefert foi tirada
da pris��o e um escriba real lhe declarou que o Fara��,
em sua magnanimidade infinita, lhe concedera gra��a e
ordenava desposasse Pet-Baal. A mo��a, que amava apai-
xonadamente o antigo noivo, quase perdeu a raz��o. Mas,
que poderia fazer? Submeteu-se na apar��ncia, deixou-se
conduzir docilmente �� casa de uma parenta do segundo
noivo e, oito dias depois, coroada de flores, mas com ��dio
e desespero nalma, entrava como esposa na casa de Pet-
-Baal, instalado na mesma vivenda que, para ela, Necho
tinha preparado e com a qual o Fara�� gratificava o
delator.
Mais de quatro meses haviam decorrido depois que
Abton e Nectanebo jaziam na pris��o do Estado e o Fara��
n��o tinha ainda decidido a sorte deles. Taciturnos, deses-
perados, arrastavam a miser��vel exist��ncia no estreito
c��rcere onde ficaram juntos.
Jos��, que continuava sua vida de meia liberdade no
recinto da fortaleza, era encarregado do servi��o dos pri-
sioneiros e essa fun����o o levava cada dia, algumas vezes,
�� c��lula dos degradados chefes dos copeiros e dos padei-
ros. Semita tamb��m, Jos�� sentia infinitamente mais sim-
patia pelos Hyksos do que pelos eg��pcios, os quais lhe
eram odiosos desde o castigo que sofrera de Putifar. Tam-
O CHANCELER DE FERRO
117
b��m em seu ��ntimo, regozijou-se por haver uma tentativa
de revolta fracassado t��o miseravelmente. As raz��es da
desgra��a de Abton e de Nectanebo, soube-as por Qua-
pour, que depositava a maior confian��a no professor do
filho e obtinha essas not��cias do escriba secret��rio de
Hormahou.
Todavia, Jos�� prodigalizava aos pobres prisioneiros
todo interesse e benevol��ncia que lhe permitiam suas
possibilidades, visto haver experimentado por si mesmo
quanto �� duro trocar uma posi����o livre e elevada pela
abje����o do c��rcere; assim, trazia-lhes, quando podia,
palha fresca, munia-os de ��gua sempre pura e conversava
com eles sempre que tinha folgas, arranjando-se, para
satisfazer essa inten����o, de modo a visitar-lhes a c��lula
em ��ltimo lugar.
Os dois prisioneiros, reconhecidos por esses pequenos
servi��os, conversavam alegremente com o mo��o hebreu,
admirando-lhe a instru����o e o acaso que o levara a
preencher t��o mesquinhas fun����es.
Jos�� n��o teve escr��pulo em lhes contar sua hist��ria
e deplorar a injusta clausura que suportava, gra��as ��
impura paix��o e ��s mentiras da mulher de Putifar.
Pela primeira vez, depois de preso, Nectanebo riu a
bom rir: esse esc��ndalo de fam��lia e as vergonhosas ex-
travag��ncias da bela Ranofrit, que todos conceituavam
a mais recatada das esposas, os divertiam extraordinaria-
mente e, durante alguns dias, essa aventura e a derrota
do orgulhoso chefe dos archeiros, constitu��ram o tema
predileto dos dois prisioneiros.
As incertezas da pr��pria sorte e as priva����es do
c��rcere lhes fizeram logo esquecer esse incidente, e a
proximidade do anivers��rio natal��cio do Fara�� lhes absor-
veu todas as cogita����es.
Esse advento era n��o somente festejado com grande
solenidade, ora����es e sacrif��cios nos templos, divers��es
p��blicas e donativos do Fara�� aos parentes e aos servi-
��ais da Corte, mas dava ensejo tamb��m a uma esp��cie
de recursos de gra��a para todos os prisioneiros e acusados
do Reino. Para esse fim, os padres e conselheiros do rei
118
J. W. ROCHESTER
apresentavam-lhe um memorando (se �� permitido em-
pregar esta palavra moderna tratando-se de usos anti-
gos), resumindo todos os fatos sucedidos durante o ano,
assim como a exposi����o de todos os neg��cios judici��rios
indecisos. O rei anistiava os que julgava dignos da sua
munific��ncia e confirmava a condena����o dos outros.
Abton e Nectanebo n��o duvidavam que, estando seus pro-
cessos ainda pendentes, seus nomes constariam do do-
cumento apresentado a Apopi e que esse dia decidiria
da sua sorte.
N��o se estranhar�� que o desejo de conhecer o futuro,
latente no fundo de todo o cora����o humano, tenha agita-
do os dois detentos, para os quais o sombrio futuro ocul-
tava a vida ou a morte. De resto, eram bastante eg��pcios
para n��o suplicarem �� divindade que lhes revelasse, no
sono, o que os aguardava. Os deuses n��o foram surdos ��
ora����o e na noite anterior �� data em que ��� sabiam ��� os
padres e os conselheiros apresentariam o memorial ao rei,
ambos tiveram os sonhos prof��ticos que a B��blia recolheu
e guardou. Mas n��o bastava ter um sonho, era preciso
obter-lhe explica����o e adivinho algum tinha acesso ��
pris��o do Estado, rigorosamente guardada de qualquer
contacto com o exterior.
Quando Jos�� foi pela manh�� levar-lhes a refei����o,
achou Abton e Nectanebo imersos em profunda tristeza
e perguntou-lhes a causa. J�� familiarizados com o mo��o
hebreu, o copeiro-mor n��o vacilou em confessar-lhe que
a impossibilidade de mandar interpretar um sonho not��-
vel que tivera, era a causa da sua desola����o. O chefe dos
padeiros ficou encolhido no seu canto, com a cabe��a
encostada na parede, sem tomar parte na conversa.
��� Conta-me o que viste ��� disse Jos�� ���, a divindade
j�� me auxiliou uma vez a interpretar o sonho de Quapour
e talvez me inspire a significa����o do teu.
��� Eu via uma cepa de vinha, onde havia tr��s varas
que cresciam pouco a pouco; vi, primeiramente, gomos,
depois flores e, por fim, uvas maduras; tendo na m��o a
ta��a do Fara��, tomei os cachos de uvas, espremi-os na
ta��a e dei-lha a beber.
O CHANCELER DE FERRO
119
Jos�� tomou a escudela de gr��s do prisioneiro, en-
cheu-a de ��gua pura e mergulhou a pedra m��gica que tirou
do pequeno breve que trazia ao pesco��o; abaixando-se
depois junto do banco de pedra, fitou a ��gua, olhar im��-
vel, rosto p��lido e, por instantes, pareceu transformado
em est��tua. Por fim, empertigou-se e disse, enxugando
o rosto:
��� Teu sonho �� feliz; as tr��s varas da cepa marcam
tr��s dias, dentro dos quais o Fara�� te indultar�� e recon-
duzir-te-�� ao cargo.
Nectanebo fitou-o, entre alegre e incr��dulo, por ter
achado um adivinho t��o h��bil.
��� Seria poss��vel uma tal felicidade? ��� murmurou.
��� Ver��s. Pe��o-te n��o me esque��as quando estiveres
reintegrado com todas as tuas honras e que me prestes
um bom servi��o, intercedendo por mim junto do Fara��,
a fim de que se digne tirar-me desta masmorra onde
sofro injustamente.
��� Oh! n��o me esquecerei, desde que a predi����o inve-
ross��mil se realize ��� disse o copeiro, suspirando.
Esta conversa tinha tirado Abton do seu torpor ap��-
tico; um raio de esperan��a iluminou-lhe o esqu��lido rosto
quando, ao voltar-se vivamente, disse por sua vez:
��� Escuta, Jos��, eu tamb��m tive um sonho que tem
muita semelhan��a com o de Nectanebo e talvez me aus-
picie Igualmente a liberdade: Vi que levava �� cabe��a tr��s
cestos de farinha e que, no que estava por cima dos outros,
havia de tudo o que se pode fazer em massas para servi��o
de mesa, e que os p��ssaros vinham ali comer.
O hebreu entristeceu-se, deitou um olhar de compai-
x��o �� fisionomia ansiosa do padeiro:
��� Ah! nada de bom prognostica este sonho; mas, em
todo caso, dentro de tr��s dias tua sorte tamb��m ser��
decidida.
��� Dize o que me espera, n��o sou uma crian��a a quem
se deva iludir ��� disse Abton com voz rouca e brusca.
��� J�� que o exiges, dir-te-ei que, dentro de tr��s dias,
morrer��s degolado e, agravando ainda tua condena����o, o
120
J. W. R O C H E S T E R
Fara�� mandar�� pendurar teu corpo, que ser�� devorado
pelos abutres.
O padeiro deu um grito e tombou desmaiado.
Na v��spera do anivers��rio do Apopi, os padres e con-
selheiros foram de manh�� apresentar o relat��rio.
Sombrio e irritado com a conspira����o sempre renas-
cente, que o amea��ava, o rei estava pouco disposto �� cle-
m��ncia; todavia, acedeu �� intercess��o de Namourod a
favor do copeiro; o pr��ncipe, por sua vez, cedia aos pe-
didos de Pet-Baal, que n��o queria ver sua mulher deson-
rada pela condena����o do cunhado. Al��m disso, desejava
ganhar-lhe a amizade com esta prova de bons sentimen-
tos. O Fara�� teve, pois, em considera����o a mocidade de
Nectanebo, a m�� influ��ncia exercida sobre ele pelo pa-
deiro e indultou-o, restituindo-lhe o cargo; feriu por��m
com toda a sua c��lera o velho Abton, cujo petulante dis-
curso Namourod lhe reproduzira, e alguns outros funcio-
n��rios apanhados na reuni��o clandestina. Quanto ao
cargo de padeiro-mor, concedeu-o a Pet-Baal.
A execu����o das reais ordens foi imediata e, antes do
p��r do Sol, Abton e seus c��mplices tinham cessado de
viver, enquanto Nectanebo, louco de alegria, retomava o
caminho de casa, livre e reintegrado no cargo, como pre-
dissera o hebreu.
Desagrad��vel surpresa esperava-o em casa, na pessoa
da irm��, que, p��lida e lacrimosa, atirou-se-lhe ao pesco-
��o e lhe deu parte do casamento com Pet-Baal. Pesar e
c��lera encheram o cora����o do mancebo; todavia, calou-
-se e deu bom acolhimento ao cunhado, porque a pris��o
sofrida, a morte que vira de perto, foram-lhe dura li����o
de prud��ncia.
Ali��s, o terr��vel exemplo do castigo de Abton e de
todos os seus c��mplices tinha intimidado os mais ousa-
dos. Remeteu-se ao sil��ncio e acomodou-se �� situa����o.
Os pr��prios padres se escudaram em discreta atitude,
compreendendo que, no momento, nada podiam tentar e
apenas o receio de provocar toda a casta os tinha preser-
vado de cru��is repres��lias.
O CHANCELER DE FERRO
121
Nectanebo era muito jovem e descuidoso para n��o
esquecer as tribula����es passadas no meio dos prazeres da
liberdade; quanto �� intercess��o em favor de Jos��, o
obscuro escravo do chefe dos archeiros, n��o se atreveu
a apresent��-la nos primeiros tempos e, depois, a lembran-
��a do hebreu se apagou da sua mente. O que, por��m,
nunca mais esqueceu, foi o picante esc��ndalo de Ranofrit,
tanto que n��o deixou de cont��-lo, sob segredo, a todos
os amigos que, por sua vez, o confiaram a outros com a
mesma reserva e de tal modo que a metade de M��nfis
ficou conhecendo a hist��ria que Putifar e sua mulher
supunham esquecida, sepultada para sempre e, logicamen-
te, de todos ignorada.
VIII
O SONHO DO FARA��
P a s s a d o s dois anos, teve Fara��
um sonho.
E n t �� o lhe disse F a r a �� : eu tive
uns sonhos, n��o acho ningu��m que
os decifre e disseram-me que t��nheis
g r a n d e s luzes para os interpretar.
D i s s e m a i s Fara�� a J o s �� : eu vos
constituo hoje governador sobre todo
o E g i t o .
Ao m e s m o tempo, tirando o anel,
que tinha na sua m��o, o p��s na de
Jos��; f��-lo vestir u m a opa de linho
fino, e p��s-lhe ao pesco��o um colar
de ouro. ��� G��nese, cap. XLI, w. 1,
15, 41, 42.
Dois anos tinham passado sem trazer nenhum inci-
dente grave e, na apar��ncia, o Egito inteiro estava mer-
gulhado em profunda paz; os chefes do Sul pagavam
regularmente o tributo ao poderoso suserano de M��nfis,
os padres lhe testemunhavam respeito e submiss��o; mas
Apopi conhecia a casta tenaz e p��rfida que s�� aspirava
a expuls��-lo e aos seus, vendo nele unicamente o estran-
geiro usurpador.
Tamb��m, apesar do favor que ostensivamente lhes
prodigalizava, o Fara�� odiava os padres eg��pcios e esprei-
tava a ocasi��o de os humilhar e molestar.
Os ataques do estranho mal que o minava repetiam-
-se com a mesma viol��ncia. Certa feita, depois de uma
O CHANCELER DE FERRO
123
crise, caiu em torpor profundo, durante o qual teve um
sonho (ou vis��o) que lhe causou fort��ssima impress��o.
Viu-se sentado �� margem do Nilo, num trono elevado,
rodeado de imensa multid��o, enquanto �� sua frente des-
filavam sacerdotes e sacerdotisas cantando os hinos con-
sagrados �� cheia do rio sagrado. Viu sa��rem das ��guas
sete vacas gordas, formosas, apojadas tetas transbordan-
tes, a pastarem nos banhados. Seguiam-se sete outras
vacas magras, ossudas e esfaimadas, que se lan��aram
sobre as primeiras e as devoraram, n��o ficando, contudo,
mais nutridas e, ao inv��s, mais desfiguradas e famintas.
Ent��o, surgiu do Nilo enorme crocodilo com uma estrela
na testa, prostrou-se diante do trono e, com voz humana,
pediu ao Fara�� que o autorizasse a combater as vacas
insaci��veis.
Obtida a permiss��o, o crocodilo se arremessou aos
hediondos animais e com eles lutou! Extraordin��rias a
sua for��a e aud��cia, mas, verdadeira nuvem de serpentes,
sapos e outros animais imundos come��ou a sair dos p��n-
tanos, envolvendo o crocodilo e buscando fulmin��-lo. O
valente s��urio defendia-se a dentadas e com a cauda, mas,
como terminou a luta? Apopi n��o o saberia, porque acor-
dara. Longamente meditou o significado daquela vis��o e,
quando readormeceu, teve o segundo sonho das sete espi-
gas cheias e sete murchas, que a B��blia refere; este, po-
r��m, o impressionou menos e persuadiu-se de que o estado
doentio, em que ainda se encontrava naquela noite, jus-
tificava o fato, sem maiores apreens��es.
Mudou no entanto de opini��o quando, por duas noites
consecutivas, o sonho se repetiu exatamente.
Supersticioso, impressionado como criatura dessa ��po-
ca, n��o havia como sossegar antes que lhe interpretassem
o que julgava um aviso dos deuses.
Seu primeiro pensamento foi chamar os adivinhos do
templo, especialistas na arte de explicar os sonhos; mas
o ��dio e a desconfian��a que lhe inspirava a casta sacer-
dotal, o demoveram. Se esses homens lhe armavam sem-
pre uma trai����o, tamb��m podiam induzi-lo em erro e dar
�� vis��o on��rica interpreta����o falsa e adequada aos seus
124
J. W. R O C H E S T E R
des��gnios. Enquanto matutava consigo mesmo a possibi-
lidade de semelhante fraude, veio-lhe uma id��ia que sa-
tisfazia ao mesmo tempo sua desconfian��a e seu rancor,
e que, se n��o lhe ministrasse os desejados esclarecimentos,
humilharia profundamente os padres perante o povo que
lhes atribu��a saber e poder sobrenaturais.
Desejoso de dar a essa derrota (se ela se realizasse)
a maior publicidade poss��vel, Apopi declarou, pela ma-
nh��, que tivera uma vis��o extraordin��ria, cuja lembran��a
o atormentava, e ordenou a convoca����o dos s��bios e adi-
vinhos de todos os templos de M��nfis, na grande sala do
trono, para onde se transportou acompanhado de toda
a Corte.
Depois das cerim��nias e sauda����es de praxe, um velho
padre e afamado adivinho rogou ao Fara��, em nome dos
companheiros ali reunidos, se dignasse expor o caso.
Apopi limpou a testa, descansou os cotovelos, refletiu
longamente, por fim exclamou:
��� Eis a dificuldade! Os pormenores do que vi apa-
garam-se-me da mem��ria; ficou-me apenas a lembran��a
de que o sonho, enviado pelos deuses, era da mais alta
import��ncia e tinha rela����o direta com o futuro e o des-
tino da terra de Kemi. Venho, pois, pedir aos vener��veis
padres, s��bios e adivinhos, que me refresquem a mem��-
ria. Para v��s, que ledes nas estrelas e para quem o pas-
sado, o presente e o futuro n��o t��m segredos, ser�� f��cil
lembrar-me o que vi e esqueci.
Os padres trocaram olhares ansiosos e espantados;
consultaram-se, interrogaram o Fara�� sobre as vagas
indica����es que ainda pudesse acrescentar, acabando por
pedir prazo at�� ao dia seguinte, o que lhes foi concedido,
mas nada lhes adiantou. Nada puderam esclarecer.
Deslumbrado, no ��ntimo, com a raiva e humilha����o
dos inimigos, Apopi mandou vir de Tanis, de Sais, de
Heli��polis e outras cidades, os mais c��lebres adivinhos,
mas todos os esfor��os e tentativas para reavivar a me-
m��ria do rei resultaram infrut��feros, como os de seus
colegas de M��nfis.
O C H A N C E L E R DE F E R R O
125
O ru��do de t��o extraordin��ria aventura se propagou
rapidamente a todas as classes da sociedade, excitando
por toda parte temor e espanto. Quanto �� massa popu-
lar, supersticiosa e convencida da veracidade dos sonhos,
acreditou-se j�� amea��ada de mil perigos invis��veis, e a
impot��ncia daqueles que se haviam por int��rpretes da
vontade divina enchia a multid��o de ansiedade e c��lera.
Tamb��m por isso, j�� olhares suspeitosos, gestos amea��a-
dores e surdas murmura����es acompanhavam os padres,
todas as vezes que se encaminhavam a pal��cio.
A situa����o tornava-se cada vez mais tensa e amea-
��adora, e quando, finalmente, os s��bios se declararam
incapazes de aclarar o enigma, Apopi exclamou com des-
prezo e sarcasmo:
��� Na verdade, s��bios adivinhos e hierofantes, eu
fazia melhor conceito da vossa arg��cia e poder, mas aca-
bastes de provar que sois t��o cegos quanto a multid��o
que pretendeis guiar. Enfim, j�� que vos recusais, tentarei
um ��ltimo recurso, mandando que todo e qualquer que
saiba e possa explicar o sonho, seja embora o ��ltimo dos
vassalos, seja principescamente recompensado e cumulado
de honras.
Sem conceder um olhar aos padres cabisbaixos e fulos
de raiva, levantou-se e deixou a sala.
Na hora da refei����o, pouco depois, e a qual assistiram
alguns dignit��rios, uma triste apreens��o se desenhava em
todos os semblantes. Nectanebo, ao encher a ta��a real,
pensava no perigo indefinido que amea��ava o pa��s, quan-
do o seu olhar caiu por acaso em Putifar e estremeceu,
porque, repentinamente, lembrara-se de Jos��. Com impa-
ci��ncia febril, esperou sa��sse o chefe dos archeiros e,
quando apenas dois conselheiros ficaram junto do mo-
narca, Nectanebo ajoelhou-se e, obtida a permiss��o,
contou o que lhe sucedera no c��rcere e a interpreta����o
segura dada pelo hebreu ao seu, e ao sonho de Abton.
Apopi o ouviu atento e curioso.
��� Bem, estou contente com o teu zelo, e, se disseste
a verdade e o hebreu adivinhar meu sonho, recompen-
sar-te-ei e ter-te-ei por absolvido definitivamente do
126
J. W. ROCHESTER
crime de haveres prestado aten����o a um traidor, a um
rebelde.
A seguir, determinou a um dos dignit��rios que desse
as necess��rias ordens para que o hebreu comparecesse no
dia seguinte. Acrescentou que a audi��ncia seria p��blica,
em sala aberta que designou, e que se convocariam n��o
s�� os padres, dignit��rios e toda a Corte, mas tamb��m que
se admitisse tanto povo quanto o pal��cio comportasse.
Sempre humilde, zeloso e servi��al, Jos�� continuava a
preencher, a contento dos chefes, as fun����es que lhe atri-
bu��am na pris��o; mas, no seu ��ntimo repousava, por
vezes, sombrio desalento. Depois da liberta����o de Necta-
nebo, contara com a prote����o do copeiro-mor para deixar,
enfim, a cidadela odiosa. Chegara mesmo a consultar a
pedra e enganadora miragem lhe havia mostrado Necta-
nebo acompanhado por um funcion��rio real, a quem co-
nhecia de vista, de p�� �� sua frente e no quarto do carce-
reiro-chefe, evidentemente para lhe anunciar a Uberdade.
O cora����o lhe palpitara de alegria, mas os meses passa-
ram sem que a vis��o se confirmasse, e ele pouco a pouco
perdera as esperan��as.
Foi, pois, com indiferen��a que respondeu ao chamado
para comparecer no gabinete do chefe. Vendo por��m o
copeiro-mor acompanhado pelo funcion��rio que a vid��n-
cia lhe mostrara no copo, o cora����o bateu tumultuoso e,
ao saber-se convocado �� presen��a do Fara��, prostrou-se,
aparentemente para agradecer a Nectanebo a sua lem-
bran��a, mas, na realidade, para ocultar os sentimentos
que lhe transbordavam nalma.
Retirando-se os mensageiros, rogou ao chefe lhe per-
mitisse passar o resto do dia e da noite isolado, a fim de
preparar-se pela medita����o e pela prece, para a grande
prova do dia seguinte. "N��o possuindo a ci��ncia dos adi-
vinhos, s�� posso confiar no socorro dos imortais para
satisfazer ao nosso glorioso Fara��, a quem os deuses con-
servem e cubram de gl��ria!" ��� acrescentou.
Uma vez a s��s, concentrou-se e, tendo cumprido todo
os ritos que lhe indicara o caldeu para aumentar a for��a
da pedra misteriosa, p��s na mesa um copo d��gua, mer-
O CHANCELER DE FERRO 127
gulhou nele o talism�� e, quando o l��quido tomou a cor
azulada e cintilante que costumava adquirir, molhou com
ele a cabe��a, o peito, e, fincado nos cotovelos, fitou a
pedra, que, semelhante a gigantesca safira, coruscava no
fundo do copo.
"Ser misterioso a quem venci na ess��ncia e na mat��-
ria, vem servir-me hoje como prometeste, d��-me a prova
decisiva do teu poder" ��� murmurou. Longo tempo de-
correu: sobrancelhas franzidas, veias intumescidas pelo
esfor��o da vontade, suando em bicas, o hebreu permanecia
im��vel. O rosto cobrira-se de palidez cadav��rica e os
olhos arregalados lan��avam raios fosforescentes. Atrav��s
da luz da lamparina colocada a um canto, via-se acoco-
rada uma forma humana, estranha, horr��vel.
Pouco a pouco um vapor arg��nteo evolou-se do copo,
e, quando essa nuvem se dispersou, a boca do copo se tinha
transmudado num disco polido, em cujo fundo transpa-
rente desenrolaram-se, lentamente, mas com perfeita ni-
tidez, todas as cenas do sonho de Apopi. Em seguida,
surgiram outras nuvens, agora espessas, no meio das
quais apareceu, vago e como velado, o rosto barbudo de
Schebna. Uma voz surda e como que amortecida pela
dist��ncia, murmurou: "No pa��s long��nquo onde exercer��s,
de futuro, o poder, produzir-se-�� uma calamidade rara
nessas regi��es: aos anos de abund��ncia suceder��o anos
de fome; um servi��o que prestar��s ao rei desse pa��s, em
conex��o com esse acontecimento, ser�� a causa da tua
eleva����o." A vis��o evaporou-se no ambiente e Jos��, sus-
pirando, encostou-se �� parede e fechou os olhos. Pros-
tra����o curta, porque logo se levantou com o rosto in-
cendido:
"Seria tua sombra, Schebna, que me apareceu para
repetir as palavras prof��ticas de outrora? Sim, sim, tudo
se vem realizando, os anos de servid��o e humilha����o est��o
passados, a hora do triunfo vai soar; a hora das repre-
s��lias tamb��m, em que hei de p��r o p�� no pesco��o dos
que me maltrataram sem piedade."
Cora����o repleto de orgulhosa satisfa����o, deu alguns
passos no pequeno reduto e anotou em uma banda de
128
J. W. ROCHESTER
papiro os pormenores do que tinha visto. Releu-os para
bem fix��-los na mem��ria, e deitou-se.
Pela madrugada, um dos carcereiros subalternos, seu
camarada, veio despert��-lo e levou-o ao aposento do
chefe, onde o vestiram e prepararam para que pudesse
apresentar-se ao soberano. Tomou um banho, foi bar-
beado e tosquiado cuidadosamente e, vestindo uma sim-
ples mas fina t��nica de linho, conduziram-no ao pal��cio
real, onde aguardaria a hora da audi��ncia.
Na vasta sala designada pelo Fara�� j�� come��ava a
aglomerar-se a brilhante assembl��ia, enquanto, no enorme
p��tio e debaixo dos peristilos que o guarneciam, ondea-
vam milhares de cabe��as: o povo convocado para teste-
munha da incapacidade dos seus sacerdotes, cuja igno-
r��ncia for��ava o rei a pedir aux��lio e esclarecimento a
um antigo escravo.
Entre os dignit��rios que se vinham prostrar ao redor
do trono ainda desocupado, achava-se Putifar, que j��
sabia ser Jos�� quem ia comparecer diante do Fara��. Som-
brio pressentimento lhe dizia que o m��gico, cujo poder
tinha experimentado e que dispunha de ci��ncia desco-
nhecida aos eg��pcios, decifraria o enigma insol��vel para
os padres. E, �� id��ia de que ele uma vez livre, honrado
talvez com favores, vingar-se-ia lan��ando o opr��brio sobre
o nome de Ranofrit, sua mulher querida, o rosto bron-
zeado do chefe dos archeiros estava l��vido e os punhos
se lhe fechavam raivosamente.
Enfim, fanfarras anunciaram a aproxima����o do rei.
Apopi tomou lugar no trono e o seu olhar passeou com
odiosa satisfa����o pela coorte dos padres, que, sombrios,
mudos, dificilmente ocultavam a humilha����o e raiva que
lhes fervia nalma.
Chegada era a ocasi��o de rebaixar a poderosa casta
que o trazia perpetuamente amea��ado de sedi����o popular.
No auge da satisfa����o, apenas esquecia que ainda mais
acirrava o ��dio selvagem daqueles homens tenazes contra
o estrangeiro, o usurpador que, por mal��cia talvez, humi-
lhava-os t��o cruelmente.
O C H A N C E L E R DE F E R R O
129
Por sua ordem introduziram Jos��, que, p��lido e como-
vido, mas cheio de modesta dignidade, adiantou-se para
o trono e prostrou-se.
��� Levanta-te e fala sem medo ��� disse Apopi visi-
velmente impressionado pela estranha e insinuante beleza
do mancebo e pela eleg��ncia do seu caminhar... ��� Quem
quer que sejas, se puderes avivar-me a lembran��a do sonho
prof��tico que os deuses me enviaram, extraindo-lhe o
sentido; se, finalmente, tua ci��ncia confundir a de todos
os sacerdotes e s��bios que consultei, cumular-te-ei de
riquezas e honrarias.
Jos�� levantou-se e inclinou-se de bra��os cruzados:
��� Rei poderoso, dispensador de vida e gra��a, teu
escravo n��o possui nenhuma ci��ncia, mas o deus do meu
povo me inspirar�� e eu te poderei dar a resposta que
desejas.
Cobriu os olhos com a m��o e ficou alguns instantes
silencioso; em seguida, com voz clara e met��lica, que
atingia as ��ltimas fileiras da multid��o, p��s-se a contar
o que a vis��o m��gica havia mostrado durante a noite.
Desde as primeiras palavras Apopi exultou e, pendido
para a frente, p��lido, agitado, escutava com os olhos pre-
gados nos l��bios do hebreu. Os padres tinham trocado
olhares de admira����o e de c��lera; o gesto e a emo����o do
rei convencera-os de que o desconhecido escravo tinha
resolvido o enigma.
��� Disseste a verdade, descreveste o sonho como se
o tivesses visto. Oh! grande �� o poder do teu deus! mas
se ele te descobriu o que ficou oculto a todos os s��bios
do Egito, tamb��m te inspirar�� a interpreta����o desses
sonhos prof��ticos.
��� Teus dois sonhos, �� rei! significam a mesma coisa:
as sete vacas gordas e as sete espigas cheias de gr��os
pressagiam sete anos de abund��ncia e fertilidade; as
sete vacas magras e as sete espigas murchas represen-
tam os anos de esterilidade e seca conseq��entes aos pri-
meiros e durante os quais a fome ser�� t��o grande que
devorar��, de qualquer forma, a abund��ncia que a prece-
der. A repeti����o desses sonhos �� sinal de que Deus previne
130
J. W. R O C H E S T E R
o Fara�� da sua vontade, que se cumprir�� infalivelmente
e breve. Mas, tua sabedoria, �� rei, pai do pa��s de Kemi,
prevenir�� a calamidade que deve consumir toda a terra,
escolhendo desde logo um homem a quem distinguir��s
com tua gra��a, como se o assinalasses na fronte com uma
estrela. Esse homem agir�� com prud��ncia e firmeza, a
fim de que, durante os anos de fertilidade, se construam
tulhas e pai��is p��blicos, e oficiais por ele nomeados a��
recolham a quinta parte dos frutos da terra; que todo
o trigo se conserve e guarde nas cidades, �� ordem do
Fara��, assim reservado para os anos de fome que h��o
de castigar o Egito, mas que o povo n��o sofrer��, gra��as
�� sabedoria do maior dos seus reis.
"Quanto aos animais rastejantes, que investir��o pro-
curando morder e destruir o homem escolhido pelo rei
para administrar o Egito, ser��o os invejosos e vingativos
que o ter��o por mau e inimigo, mas ele vencer�� toda essa
turba, porque ser�� sustentado pela vontade poderosa do
Fara��, na m��o do qual repousa o destino dos povos."
Calou-se. Os olhos flamejantes estavam cravados no
p��lido rosto de Apopi, que o escutava mudo, arquejante.
De resto, um sil��ncio de morte reinava na assembl��ia; o
efeito das suas palavras foi fulminante; os pr��prios padres
estavam atordoados porque, nos templos, constava uma
profecia anunciando anos de fome excepcional, com a qual
eles mesmos tinham contado para provocar uma sedi����o
geral contra os Hyksos, persuadindo ao povo que essa
calamidade era um castigo dos deuses, irritados por su-
portarem tanto tempo os estrangeiros na terra de Kemi.
E eis que, inesperadamente, um estrangeiro desvendava
o evento e indicava o meio de prevenir a fome.
Enfim, Apopi levantou-se, e seu olhar fulgurante e
ir��nico errou um instante sobre as falanges ali reunidas,
dos padres especialmente, esses inimigos que o acaso lhe
permitia rebaixar mais do que pudera imaginar.
��� Grande e poderoso �� o deus que te inspira, s��bio
o conselho que ele dita por tua boca, desvendando-me os
perigos que amea��am meu povo. Sim, �� durante os anos
de abund��ncia que precisamos cuidar dos de mis��ria, velar
para que ao povo n��o falte p��o, porque a desgra��a e a
O CHANCELER DE FERRO
131
fome tornam a multid��o cega e propensa a todas as
loucuras.
Fitou de novo os padres, depois continuou:
��� Mas, onde acharei o homem bastante s��bio, h��bil,
en��rgico para velar pela realiza����o de obra t��o impor-
tante e complexa?
"Nos dias de ang��stia que acabam de correr, ningu��m
encontrei para aliviar minhalma dos dissabores que a
oprimiam, avivando-me a mem��ria. S�� a ti o teu deus
desvendou meus pensamentos; quem, pois, mais que tu
estar�� cheio do esp��rito divino? Escolho-te para comandar
em minha casa; desde hoje, elevo-te �� dignidade de Adon
de toda a terra de Kemi; ser��s o primeiro depois de mim
e todos, do mais humilde ao maior, neste pa��s, obedecer-
-te-��o como a mim mesmo, a fim de que veles pela pros-
peridade do povo e o deus que desvenda o futuro te guie
a m��o e os passos. E agora, aproxima-te."
Jos�� adiantou-se e ajoelhou junto do trono. Estava
p��lido de como����o e um arrepio de felicidade e de orgu-
lho percorreu-lhe todo o corpo quando Apopi tirou do
dedo o anel e lho entregou, desfivelando a seguir o pr��-
prio colar e apondo-lhe ao pesco��o.
Um murm��rio, qual trov��o long��nquo, ecoou de fila
em fila; os padres, sobretudo, estavam cheios de espanto
e raiva: aquele desconhecido, escravo obscuro, filho de
uma ra��a estranha e desprezada, elevado por um capri-
cho do chasou acima de todos eles, feito senhor! A inj��ria
era sang��in��ria, refinada a vingan��a. Putifar, principal-
mente, tinha a sensa����o de quem rola num abismo. Que
cruel repres��lia podia exercer contra ele e Ranofrit o
homem p��rfido e mau que ia dispor de ilimitados poderes!
Sem prestar aten����o aos sentimentos que a sua deci-
s��o suscitava aos s��ditos eg��pcios, Apopi retirou-se para
os seus aposentos, depois de ter ordenado fosse Jos�� pro-
visoriamente instalado no pal��cio.
Tumultuosamente agitada, escoou-se a multid��o e a
not��cia do extraordin��rio acontecimento espalhou-se num
abrir e fechar de olhos, em toda a capital; nas ruas e
pra��as formavam-se grupos, discutindo ruidosamente a
pessoa do novo Adon, o antigo escravo de Putifar. E as
132
J. W. ROCHESTER
not��cias, que a todo instante chegavam do pal��cio, au-
mentavam a agita����o e curiosidade p��blicas. Souberam
que o Fara�� doara a Jos�� soberbo pal��cio situado num
dos mais belos quarteir��es de M��nfis, inclusive as rique-
zas que encerrava e numerosa criadagem; que no dia
seguinte o novo Adon seria conduzido triunfalmente �� sua
nova morada, em carro real, precedido de lacaios e cer-
cado pelo s��quito correspondente a t��o alta dignidade.
Apesar dos sentimentos d��spares que a sacudiam, a mul-
tid��o preparava-se para n��o perder o brilhante espe-
t��culo.
Mas, em parte alguma a s��bita eleva����o de Jos�� pro-
duziu t��o profunda revolu����o como na casa do chefe dos
archeiros. Putifar se recolhera ro��do de c��lera e humi-
lha����o, transmitindo �� consorte o que acabava de suceder.
Sabendo que o antigo escravo, que lhe tinha inspirado
criminosa e fugitiva paix��o e a quem agora odiava e
desprezava, se graduara em pr��ncipe regente de todo o
Egito, Ranofrit quase caiu para tr��s e foi com o cora����o
opresso pelos mais terr��veis aug��rios que se recolheu ao
leito. Putifar, que andava no quarto como um le��o na
jaula, queria ficar s�� e coordenar as id��ias.
Durante os anos decorridos, nada viera perturbar a
felicidade da companheira nem a paz do seu lar. Dois
filhos tinham nascido e sua alegria, suas esperan��as,
assim como as do marido, concentravam-se nessas crian-
��as; nesse instante, por��m, a presen��a dos dois rapazes
foi dolorosa para Ranofrit: Que n��o seria capaz de in-
ventar, para destru��-los a todos, o vingativo hebreu que,
por instiga����o sua, tinham publicamente vergastado?...
Chorou de raiva e medo, e, um instante, lamentou amar-
gamente ter outrora intercedido em favor do hebreu. Se
Putifar o tivesse mandado mutilar e apodrecer em qual-
quer s��tio remoto, o miser��vel n��o se teria tornado Adon
do Egito.
A emo����o e a c��lera reagiram t��o fortemente sobre
o chefe dos archeiros que, �� noite, se sentiu indisposto
e, bem que esse mal-estar n��o tivesse gravidade, resolveu
aproveitar-se dele para deixar de assistir �� solenidade
do dia seguinte e �� primeira audi��ncia do novo regente.
IX
O FARA�� E SEU CHANCELER
Da prud��ncia pois do rei �� esco-
lher um h o m e m s��bio e industrioso a
quem d�� o comando sobre todo o
Egito.
P a r a que estabele��a oficiais em
todas as prov��ncias, os quais, en-
quanto durarem os sete anos de fer-
tilidade, que est��o para vir, ajuntem
nos celeiros p��blicos a quinta parte
dos frutos da terra.
Todo o trigo a s s i m guardado e
conservado nas cidades, e s t e j a de-
baixo do poder do rei. ��� G��nese,
cap. XLI, w . 33, 34, 35.
Por ordem de Apopi, o camarista acompanhou Jos�� a
suntuoso quarto do pal��cio e indagou respeitosamente se
desejava lhe servissem a refei����o. O rapaz estava at��nito
e assombrado; a emo����o secara-lhe a garganta e o ape-
tite. Pediu refrescos, serviram-lhos imediatamente em
mesa abundante, e o mesmo camarista lhe comunicou
que, ao p��r do Sol, o Fara�� o chamava aos aposentos reais
para uma entrevista. Ordenou, ent��o, que lhe preparas-
sem uma vestimenta mais adequada ��s suas fun����es e o
deixassem s�� at�� o momento de vestir-se para a audi��ncia.
Quando todos se retiraram, estendeu-se no canap�� e
tratou de coordenar as id��ias. O orgulho satisfeito, a ale-
gria de ver, enfim, realizar-se o futuro estranho e soberbo
que lhe fora profetizado, come��aram por empolg��-lo in-
134
J. W. ROCHESTER
teiramente, mas n��o tardou que a entrevista emprazada
sobrepujasse qualquer outra id��ia. Compreendia que dessa
primeira conversa, dessa primeira impress��o do homem
doentio, caprichoso e exasperado, que era o soberano, de-
pendia o seu futuro.
Para conservar-se na altura vertiginosa que acabava
de atingir, deveria provar a Apopi que n��o era simples-
mente um obscuro adivinho, a quem ele honrava com a
sua confian��a, mas um homem verdadeiramente instru��-
do, um conselheiro en��rgico e h��bil, que a sorte lhe fa-
cultava para combater os mil perigos que fermentavam
em torno dele; para curvar e conter a casta orgulhosa
e rebelde que era para o trono uma constante amea��a.
E, na verdade, mais do que se poderia crer, Jos�� estava
a par da pol��tica e das intrigas que agitavam o Egito.
N��o era em v��o que, de alguns anos, todos os prisionei-
ros do Estado, todos os conspiradores tinham convivido
com ele.
Muitos planos, muitas palavras reveladoras tinham
atingido o ouvido do humilde escravo vigilante, do qual
ningu��m desconfiava. E ele tudo anotara, tudo compreen-
dera e, com a sua intelig��ncia clara e esp��rito observador,
havia combinado um quadro assaz ver��dico da situa����o
geral e das medidas imprescind��veis para conjurar um
novo levante do pa��s contra os opressores.
Tudo isso deveria expor ao rei, fazendo-lhe compreen-
der que estava �� altura da situa����o, por lhe captar desde
logo absoluta confian��a. Febrilmente agitado, levantou-se
e passeou de um lado para outro, pensando e procurando
atinar com o motivo da entrevista e o que lhe diria o
monarca.
Este, estava s�� no seu gabinete de trabalho; debru-
��ado �� mesa carregada de pranchas e papiros. Meditava.
A luz de algumas l��mpadas de ��leo odor��fero e de tochas
presas a casti��ais de bronze iluminava o rosto p��lido e
os olhos encovados do rei, visivelmente enfermo e fatigado.
Em l�� chegando, o monarca fitou com um longo olhar
perscrutador o homem desconhecido a quem tirara da plebe
para convert��-lo em primeiro conselheiro. Depois de ter
O C H A N C E L E R DE F E R R O
135
saudado o rei e beijado o solo, conforme a pragm��tica,
ficara de p�� em atitude modesta, por��m firme, olhar le-
vantado para ele e esperava lhe dirigisse a palavra. Tinha
agora trinta anos e sua beleza, pouco comum, atingia o
auge; a estatura alta e esbelta, sem nada perder em ele-
g��ncia e agilidade, havia adquirido um vigor m��sculo;
seus tra��os regulares se tinham acentuado e denotavam a
energia tenaz que o caracterizava, enquanto nos grandes
olhos verde-escuros brilhava a chama de uma intelig��ncia
superior. O rico traje que ostentava com o desembara��o de
um homem que nunca vestisse outros, fazia ainda mais
sobressair aquelas qualidades exteriores. O olhar sombrio
de Apopi tamb��m se animou, visivelmente, �� medida que
examinava o belo perfil e a fisionomia inteligente do
hebreu.
��� Aproxima-te ��� disse enfim, e, designando-lhe um
tamborete, acrescentou: ��� Senta-te e l��-me este papiro,
se �� que ��s instru��do na arte de escrever.
Tomando ao acaso, sobre a mesa, um dos documen-
tos apresentados �� sua assinatura, estendeu-lho.
Jos�� desenrolou-o e com voz clara e met��lica p��s-se
a ler a peti����o de um templo de Heli��polis, no qual se
alegava ter muito pouca terra para nutrir os rebanhos,
pedindo concedesse em doa����o as pastagens que designava.
��� Que resposta darias aos padres se esta peti����o
passasse por tuas m��os? ��� perguntou o rei, continuando
a fit��-lo com persist��ncia, enquanto um fino sorriso lhe
errava nos l��bios.
��� Meu rei e senhor, depois do que fizeste hoje, ��
preciso, parece-me, aceder ao requerimento deste templo;
mais tarde, por��m, ser�� prudente p��r um freio �� avidez
desta casta insaci��vel, n��o lhe permitindo enriquecer sem
medida; este poder que adquirem, os padres o empregam
para fazer-te mal, meu rei e benfeitor; e agora menos
que nunca te podes fiar neles, porque buscar��o todos os
meios de vingar a afronta sang��in��ria que lhes fizeste,
escolhendo-me, a mim, o pobre escravo, o obscuro adivi-
nho, para Adon do Egito.
136
J. W. R O C H E S T E R
��� Tua resposta �� sensata, demonstra perspic��cia e
pondera����o; mas, dize-me, onde adquiriste a instru����o
de que d��s prova e qual �� a tua origem?
Contou rapidamente a hist��ria da sua vida na tribo,
atribuindo �� sua m��e as primeiras no����es da arte divina-
t��ria, falou da sua vida de escravo na casa de Putifar, da
injusta acusa����o que acarretara sua desgra��a, e final-
mente da longa perman��ncia na pris��o que lhe fora uma
escola de observa����o. Chegando a esse ponto, transportou
a quest��o para o terreno pol��tico e esbo��ou um quadro
sucinto, por��m frisante de justeza, do estado dos esp��ri-
tos, das intrigas que deviam cercar o rei e cuja raiz estava
em Tebas, mas cujas ramifica����es se estendiam a todos
os templos e at�� ao seu pal��cio.
��� Mas o Deus que te protege, �� Fara��! e cujo olhar
vigia o filho semelhante a si pela magnanimidade e gran-
deza, prepara-te, nos acontecimentos que te desvendou
em sonho, uma arma invenc��vel contra todos os traidores
e rebeldes: essa calamidade que seria t��o prop��cia aos
padres e ao aliado deles, Ta��, o haq do Sul, para revolu-
cionar o povo exasperado de fome, sujeitar-te-�� o Egito
inteiro. Severamente velarei para que, nos celeiros a cons-
truir, se guarde todo o sup��rfluo dos sete anos de abun-
d��ncia; mesmo nas prov��ncias n��o submetidas �� minha
jurisdi����o, adquirirei a pre��o vil o que os imprevidentes
entregarem desprecavidos e s�� cuidosos do presente.
Mas, quando soar a hora da fome, todos vir��o abas-
tecer-se nesses celeiros inesgot��veis de que ser��s o se-
nhor, e n��s venderemos a todos, bem entendido, ��queles
que pagarem �� vista; e quando n��o tiverem mais ouro,
nem prata, nem cobre, nos trar��o seus rebanhos e escra-
vos; hipotecar��o as terras e mesmo os corpos, porque com
a fome n��o se discute. E quando de um extremo a outro
da terra de Kemi, todo o povo arruinado e embrutecido
for teu escravo, a vontade das rebeli��es lhe passar�� e Ta��,
o insolente chefe do Sul, que ousa estender, para a tua
coroa, m��o sacr��lega, ser�� destru��do sem disp��ndio de uma
flecha. Ele arrebentar��, impotente, nessas prov��ncias, onde
nem um peda��o de terra lhe h�� de pertencer; e os pr��-
prios padres, seus aliados, n��o poder��o auxili��-lo porque,
O CHANCELER DE FERRO
137
mesmo que devamos isent��-los dos impostos que havere-
mos de exigir de todos; mesmo que seja preciso nutri-los
�� custa do Estado, eu velarei para que nada obtenham
de excesso e fiquem a teus p��s, submissos e d��ceis.
Animara-se discorrendo, seus olhos chamejavam, o
rosto p��lido exprimia tanta energia misturada de sutil
ast��cia, que Apopi ficou eletrizado: o vasto plano desdobra-
do pelo escravo da v��spera, a indiciar um g��nio pol��tico
inato; aud��cia e seguran��a de vista espantosos, provavam-
-lhe que o acaso lhe deparara um instrumento incompa-
r��vel de repress��o, um homem de t��mpera e punho de ferro
para abafar o espectro amea��ador que ensombrava a sua
vida; capaz, enfim, de lhe dar tranq��ilidade, garantindo-
-lhe um reinado pac��fico.
��� ��s o homem de que preciso; dar-te-el os poderes
indispens��veis para levares a bom termo o que projetas
e aprovo ��� disse Apopi com voz surda, pondo a m��o
no ombro do favorito. ��� Lembra-te de que depois do
Fara�� ��s a primeira autoridade do Reino, que s�� de mim
tens que receber ordens; enfim que, a qualquer hora do
dia e da noite, podes comparecer �� minha presen��a.
Tr��mulo, miolos ardentes, Jos�� precipitou-se com a
face em terra, mas Apopi levantou-o com bondade, deu-
-Ihe a m��o a beijar e despediu-o com a maior benevo-
l��ncia.
No dia seguinte, massas compactas de curiosos enche-
ram, muito cedo, todas as ruas que o cortejo devia per-
correr. Por ordem do Fara��, M��nfis se tinha preparado
para festejar o novo Adon: por toda parte ondulavam
bandeirolas multicores, grinaldas de flores enrolavam-se
nos mastros e decoravam as portas das casas; diante do
pal��cio que o Adon ia habitar, a multid��o apinhava-se,
admirando os ricos tapetes da entrada e a coorte de es-
cravos que, sob a dire����o dos intendentes, enfileiravam-se
nas ruas e p��tios, para saudar o senhor. Um destacamento
de soldados, a guarda do Adon, ocupava as sa��das do
pal��cio e turmas de escribas e funcion��rios chegavam
a todo instante para se postar nas salas e esperar as
ordens de Jos��, relativamente ��s audi��ncias do dia se-
guinte.
138
J. W. ROCHESTER
A multid��o examinava, discutia, impacientava-se;
havia pressa de ver aquele que, na v��spera vassalo hu-
m��limo e desconhecido, era agora o primeiro conselheiro
do rei.
Enfim, fanfarras e os gritos: Abrek! Abrek! soltados
pelos lacaios que afastavam os curiosos com longos bast��es
dourados, anunciaram a aproxima����o do cortejo: o povo
caiu de joelhos, explodindo em aclama����es e todos os
olhos se fixavam no carro dourado e incrustado, no qual
estava de p�� o Adon, altivo e impass��vel; seu rosto trans-
pirava altiva satisfa����o, o olhar errava com indiferen��a
pela multid��o que o aclamava e, certamente, era dif��cil
reconhecer naquele belo mancebo, vestido de finas t��nicas
bordadas a ouro, o claft na cabe��a e na m��o o cajado de
ouro ��� ins��gnia do cargo ��� o pobre servi��al das pris��es,
que, cingido de grosseiro avental, corria de cub��culo em
cub��culo, levando aos prisioneiros a magra ra����o di��ria.
Ao descer, foi recebido no limiar do pal��cio pelo pri-
meiro intendente, que, de joelhos, apresentou-lhe, em
sinal de boas-vindas, dois copos de ouro, respectivamente
cheios de mel e vinho. Na grande sala foram-lhe ao en-
contro os escribas e, tendo chamado alguns ao gabinete,
ditou-lhes ordens que prescreviam aos principais digni-
t��rios do Estado apresentarem-se no dia seguinte, a fim
de lhe fornecerem seus relat��rios sobre os neg��cios cor-
rentes. Entre eles, figurava tamb��m Putifar. Preenchido
esse primeiro dever do novo cargo, despediu toda a gente
e s��, em companhia do intendente, visitou minuciosamen-
te o pal��cio e os jardins. Essa agrad��vel inspe����o ocupou-o
at�� tarde, e, depois de copiosa ceia, entregou-se, final-
mente, ao repouso.
No dia seguinte pela manh��, os carros e liteiras dos
primeiros funcion��rios come��aram a afluir ao pal��cio, e,
da�� a pouco, havia muita gente nas salas e antec��maras,
porque os dignit��rios so penetravam um a um no gabinete
de trabalho do novo chefe de Estado, e as audi��ncias
eram longas.
Minuciosamente, informando-se de todos os trabalhos
de cada departamento administrativo, Jos�� se orientava,
O CHANCELER DE FERRO
139
maravilhando os velhos conselheiros pela presteza e segu-
ran��a com que apreendia as engrenagens complexas da
m��quina governamental. Cada um que deixava o gabinete,
levava a convic����o de que uma era nova come��ava; de
que uma f��rrea m��o acabava de tomar as r��deas do Go-
verno e n��o era para brincar que o novo Adon profundava
t��o a s��rio os neg��cios internos e externos do pa��s.
As audi��ncias tocavam ao termo e Jos�� n��o vira apa-
recer o funcion��rio mais interessante para ele ��� o chefe
dos archeiros e das pris��es de M��nfis ��� o chefe de poli-
cia, dir��amos hoje.
��� H�� ainda algu��m que espera ser admitido? ��� per-
guntou ao jovem escriba que anunciava os visitantes.
��� N��o, senhor, exceto o chefe dos escribas de tua
mesa, que aguarda ordens.
��� Manda-o entrar e depois informa-te por que mo-
tivo Putifar n��o se apresentou; verifiquei falhas consi-
der��veis na administra����o das pris��es e devo falar-lhe a
respeito.
Tendo sabido que uma s��ria indisposi����o impedia o
chefe dos archeiros de sair de casa, Jos�� franziu a testa
e mandou-lhe ordem formal para comparecer em pal��cio
logo que se restabelecesse.
Passaram-se dias. Absorto em febril atividade, tinha
momentaneamente esquecido Putifar, quando, certa ma-
nh�� em que trabalhava s��, no gabinete, anunciaram-lhe
que o chefe dos archeiros e das pris��es solicitava ser
admitido �� sua presen��a. O cora����o do hebreu pulsou
violentamente; afastou o papiro que estava lendo, esten-
deu-se na cadeira, entregando-se ��s recorda����es que lhe
sobrevinham. Reviu a sala de jantar em que o intendente
Ptah o postara atr��s da cadeira do seu novo senhor, cuja
entrada esperava ansiosamente; esse senhor que sempre
fora indulgente, generoso e confiante, at�� ao dia nefasto
em que Ranofrit, arrastada pela paix��o que ele pr��prio
lhe havia sugestionado, desencadeara a c��lera do marido
e resultara na sua pr��pria degrada����o.
Ao lembrar-se da hora mais cruel da sua vida, uma
nuvem obscureceu-lhe a fronte, mas quase logo um Iam-
140
J. W. ROCHESTER
pejo de satisfa����o lhe jorrou dos olhos: n��o era Inaudito
o prazer que a sorte lhe havia reservado?
Nesse instante o reposteiro abriu-se e a alta e m��scula
figura de Putifar apareceu no limiar. Vestia uniforme de
gala e trazia na m��o um rolo de papiro: seu relat��rio
sobre o estado das pris��es e do corpo de archeiros. Adian-
tando-se para o Adon, que n��o se movera do assento,
saudou-o profundamente, menos profundamente entre-
tanto do que o tinham feito os outros dignit��rios; depois,
ficou de p��, esperando que lhe dirigissem a palavra. O
chefe dos archeiros estava p��lido, mas seus grandes
olhos sombrios fitavam o antigo servo com desembara��o e
austeridade.
Por instantes um sil��ncio de morte reinou no gabi-
nete: os olhares ardentes dos dois homens pareciam cra-
vados um no outro. Enfim, Jos�� designou com a m��o um
assento baixo do outro lado da mesa e disse, esbo��ando
leve sorriso:
��� Senta-te, Putifar: os tempos mudam, como ves, e
hoje sou eu quem te concede um favor com que me hon-
ravas outrora.
O outro n��o se moveu:
��� A compara����o �� m�� ��� respondeu em voz sur-
da ���; era ao escravo que eu concedia, outrora, o favor
de sentar-se a meu lado; hoje, acho-me diante do homem
elevado por meu rei ao cargo que ocupa, e a quem reve-
rencio como tal; mas enganas-te, Adon, se pensas que
isso te d�� o direito de tratar como escravos todos os livres
eg��pcios.
Aproximando-se da mesa, dep��s o papiro que trazia:
��� Isto �� um relat��rio minucioso do estado atual das
pris��es e do corpo dos archeiros; e isto (tirou da cintura
um segundo rolo) �� o pedido que dirijo, por teu interm��-
dio, ao Fara��, para que me exonere do cargo. A sa��de
alterada n��o me permite mais suportar as fadigas do
cargo e, em recompensa dos meus longos e fi��is servi��os,
pe��o apenas recolher-me �� vida privada. Eis o que vim
dizer ao primeiro funcion��rio do remo, que me convocou
�� sua presen��a.
O C H A N C E L E R DE F E R R O
141
Intenso rubor inundou o rosto de Jos��, urna chama
de mau press��gio acendeu-se-lhe nos olhos e, com m��o
ligeiramente tr��mula, desenrolou o papiro e o percorreu.
��� S�� prudente, Putifar ��� disse com voz velada ���,
pareces dar a entender que esteja abaixo da tua dignidade
o servires sob as ordens de um homem a quem, entre-
tanto, a m��o muito poderosa do Fara�� (gl��ria, for��a, sa��de
lhe concedam os deuses!) investiu no cargo que ocupa.
Toma cuidado! maiores e mais ilustres do que tu dobra-
ram a cerviz ao transpor esta porta. Mas eu quero esque-
cer a tua m��-vontade e, lembrando-me unicamente dos
teus m��ritos e da tua fidelidade ao rei, testemunhar-te
minha benevol��ncia.
Putifar mediu-o com um olhar gelado e intr��pido:
��� Respeito a vontade do Fara�� e vim, como subor-
dinado, prestar contas da minha administra����o e solici-
tar minha dispensa perante aquele a quem lhe prouve
nomear Adon do Egito; mas, j�� que o perguntas, respon-
do-te: sim, n��o posso servir subordinado a um homem
que foi meu escravo; quero ser livre; o direito de resignar
o cargo �� a ��nica recompensa que pe��o para meus longos
servi��os e o rei n��o tem motivos para recusar-ma.
Jos�� amarrotou nervosamente o papiro que tinha em
m��o; seus l��bios tremeram e, evidentemente, contradit��-
rios pensamentos lutavam nele. Por fim, ergueu-se, per-
filou-se.
��� Tens raz��o; com esses melindres n��o podes conti-
nuar como chefe de pol��cia de M��nfis e amanh�� mesmo
dar-te-ei substituto. N��o te retenho mais.
Fez com a m��o um gesto de despedida. Putifar incli-
nou-se:
��� Agrade��o-te, Adon, mas, deixa-me dizer-te uma
��ltima palavra: n��o vergues demasiado a espinha dos
que n��o est��o habituados a isso; o sil��ncio nem sempre
�� submiss��o.
Ficando s��, Jos�� deixou a cadeira e, com o rosto es-
fogueado, olhos cintilantes, deu algumas voltas pelo ga-
binete. De novo o Invadia o desejo de vingar-se de Putifar;
fazer-lhe pagar caro a insol��ncia e o desprezo; ainda
142
J. W. ROCHESTER
uma vez, por��m, a reflex��o dominou e a prud��ncia pre-
valeceu; estava apenas no come��o da carreira, seu poder
sobre o vers��til Fara�� n��o estaria consolidado, era peri-
goso declarar-se contra o chefe dos archeiros, cuja fide-
lidade nunca suspeitada e reconhecida integridade n��o
davam lugar a qualquer acusa����o e lhe tinham granjeado
a estima e benevol��ncia do soberano. Al��m disso, Putifar
era imensamente rico e aliado ��s primeiras fam��lias do
reino. Decididamente, era melhor esperar: o destino, que
j�� lhe havia prodigalizado t��o gloriosa recompensa, con-
ceder-lhe-ia tamb��m a vingan��a. Chegaria a hora em
que todas as considera����es que, no momento, garantiam
Putifar, n��o teriam mais peso.
Passando a m��o pelo rosto como para afastar pensa-
mentos importunos, retomou o lugar �� mesa e absorveu-
-se no estudo de planos e contas que lhe submetia uma
comiss��o nomeada dias antes, para construir com toda a
urg��ncia celeiros p��blicos em diversos pontos do reino,
principalmente nos arredores de Tanis. Tais celeiros eram
destinados a guardar o trigo para os anos de pen��ria.
X
EM TEBAS
O rei Apopi era contempor��neo
de Sekenen-Ra Ta��, um dos chefes
do Sul que trabalharam para a liber-
t a �� �� o do pais.
O rei pastor g o v e r n a v a ent��o o
B a i x o Egito, m a s recebia um tributo
das outras partes do pa��s que seu
povo n��o ocupava. ��� Chabas, Les
pasteurs en Egypte.
Na ��poca que vamos desenhando, a segunda capital
do Egito estava longe de ter atingido o esplendor que a
imortalizou mais tarde. Os Fara��s, conquistadores e edi-
ficadores da XVIII e da XIX dinastias, n��o tinham ainda
elevado os templos colossais, os centenares de obeliscos,
o formid��vel reduto de cem portas, que deviam fazer de
Tebas uma cidade ��nica no mundo. Sem d��vida, os po-
derosos e ricos reis das primeiras dinastias tebanas tinham
enriquecido a sua capital de grandiosas e belas constru-
����es e dotado o templo de seu pai Amon-Ra com tesou-
ros numerosos; mas depois deles tinham surgido as mes-
quinhas disc��rdias, as guerras fratricidas, e enfim a gran-
de invas��o dos pastores, cujas hordas devastadoras tinham
inundado o Egito qual desordenada torrente, matando e
pilhando o que encontravam. Durante s��culos, Tebas ti-
nha deca��do �� categoria de pobre cidade provinciana, re-
sid��ncia de um haq do S u l . . .
Desde a primeira grande subleva����o do Egito, sob
Ta�� I, com seu sobrenome real: Sekenen-Ra, o sol be-
144
J. W. ROCHESTER
licoso, o papel dos reis de Tebas se tinha de novo acen-
tuado, elevando-se gradualmente durante os cem ou mais
anos decorridos depois desse grande acontecimento. Em
poder de Ta�� III agrupavam-se j��, como em torno do seu
chefe natural, todas as prov��ncias do Sul.
Cerca de tr��s semanas depois da eleva����o de Jos��, na
hora em que o Sol descambava para o ocaso, uma barca
muito simples, por��m munida de um camarote, aproxi-
mava-se rapidamente de Tebas. Tripulavam-na quatro
remadores e um piloto e, no camarote, estavam sentados
dois homens que conversavam animadamente, relendo e
anotando um longo papiro desenrolado diante deles. Um,
era velho de setenta e cinco anos, magro e arqueado; o
rosto engelhado devera ter sido outrora de not��vel beleza
e os grandes olhos negros cintilantes e apaixonados, como
os de um mo��o, denotavam alma ardente sobre a qual o
peso dos anos n��o tinha efeito.
Essa personagem era Amenset, padre do templo de
Ptah em M��nfis, especialista afamado na arte da adivi-
nha����o sob todas as formas; as estrelas do c��u, assim
como as entranhas das v��timas, n��o tinham segredos para
ele e sua interpreta����o dos sonhos era infal��vel. A humi-
lha����o experimentada por ele e seus colegas diante de
Apopi e a vit��ria de Jos��, tinham provocado no irasc��-
vel velho uma raiva desesperada. Sentia que, com toda a
sua casta, havia sido esbofeteado pelo insolente chasou,
e o pensamento de obedecer ao obscuro e impuro escravo,
que o usurpador s�� tinha nomeado Adon para humilhar
toda a nobreza eg��pcia, quase o fulminara de apoplexia.
Apenas restabelecido, decidira fugir de M��nfis, a odiosa
cidade onde reinava o usurpador e refugiar-se em Tebas,
junto de Ta�� III, a seus olhos o ��nico rei leg��timo do
Egito.
Disfar��ado e acompanhado de um s�� escriba e dis-
c��pulo, deixara M��nfis, uma noite, e vemo-lo agora feliz-
mente aproximar-se do fim da viagem.
��� Eis-nos em Tebas, posso abandonar meu disfarce;
ajuda-me, Rui, a vestir-me, e toma cuidado com este es-
crito, o qual, penso, ser�� ��til ao rei ��� disse o velho,
O CHANCELER DE PERRO
145
despojando-se do manto escuro e da grosseira t��nica, en-
quanto o escriba tirava de uma trouxa o longo vestido
sacerdotal.
Uma hora depois, os dois se apresentavam na entrada
do templo de Amon-Ra, ou antes, do recinto j�� imenso
que cercava os diversos edif��cios pertencentes �� morada
do grande deus. Um criado os conduziu ao sacerdote. Este
ficou muito surpreso de ali deparar o velho s��bio de
M��nfis, cujo nome era bem conhecido em Tebas. Rece-
beu-o com defer��ncia e, sabendo dos acontecimentos que
levaram o velho profeta a expatriar-se, vibrou de c��lera
e declarou a Amenset que seu desejo de ver Ta�� III se
realizaria quase logo, visto como o rei, acompanhado do
pr��ncipe Kam��s, seu herdeiro, estava para chegar ao
templo, a fim de assistir a uma cerim��nia religiosa.
Apesar da fadiga, Amenset decidiu-se a tomar parte
nela e, apenas terminou as indispens��veis ablu����es, che-
gou o rei acompanhado de Kam��s, mancebo franzino e
visivelmente enfermo. Ta�� III era homem j�� velho, po-
r��m vigoroso, cujo rosto bronzeado ressumava energia,
aud��cia e intelig��ncia superior.
Terminadas as cerim��nias, Ta��, Kam��s, os principais
dignit��rios do templo e Amenset reuniram-se em peque-
na sala unida ao santu��rio e, ali, o velho padre com o
rosto incendido relatou, com voz que se tornou convulsa
de emo����o, a hist��ria do sonho de Apopi e da eleva����o
de Jos��.
��� Toda a nossa casta foi coberta de ignom��nia pela
mal��cia infame do c hasou; os mais altos dignit��rios, todos
os homens nobres do Baixo Egito devem invertebrar-se
e obedecer a esse porco nauseabundo... escravo liberto
que, por esc��rnio, o Fara�� nomeou Adon do Egito. Mas
eu n��o pude conformar-me, sacudi a poeira das sand��-
lias e vim ao teu encontro.
Torrentes de l��grimas interromperam o velho que,
prostrando-se, murmurou entre solu��os:
��� Concede-me hospitalidade, filho de Ra, ��nico e
leg��timo rei para todo cora����o eg��pcio; deixa-me morrer
146
J. W. ROCHESTER
aqui, junto de ti e de meus irm��os, os servos do grande
deus.
Profunda emo����o tinha empolgado a assembl��ia e,
levantando-se rapidamente, Ta�� ergueu o velho, abra-
��ou-o e disse com bondade:
��� ��s bem-vindo, vener��vel Amenset, vive como um
pai amado junto do teu rei e consagra calmamente o resto
de teus dias ao servi��o da divindade. No templo, assim
como em minha casa, ��s bem-vindo.
Quando o sacerdote e os outros dignit��rios testemu-
nharam ao rec��m-chegado que compartilhavam os sen-
timentos do rei, e quando todos se acalmaram um pouco,
Ta�� advertiu:
��� As not��cias trazidas pelo vener��vel Amenset s��o
de tal gravidade que me parece indispens��vel discuti-las
seriamente, bem como consultar os deuses, implorando-
-lhes nos digam se o homem impuro, elevado t��o inopi-
nadamente ao poder, nos ser�� funesto, se as calamidades
preditas acarretar��o nossa perda, ou se tocados, enfim,
por nossas desgra��as, os imortais libertar��o a terra de
Kemi dos opressores e reunir��o em minha fronte as duas
coroas do Egito.
��� Tuas palavras, �� rei, respiram a sabedoria de teu
pai Ra ��� respondeu o sacerdote depois de ter consultado
os colegas ���; vamos imediatamente, como desejas, esco-
lher um dia favor��vel para oferecer ao grande deus um
sacrif��cio e ler sua resposta nas entranhas das v��timas.
Tr��s dias depois, Ta��, seu herdeiro, e um pequeno
s��quito composto de chefes militares e velhos conselhei-
ros, chegaram ao templo e dirigiram-se ao p��tio destinado
aos sacrif��cios. Era ainda noite, mas faziam-se os ��ltimos
aprestos com uma atividade febril, porque, ao primeiro
raio do sol levante, deviam ser degoladas as v��timas e
Amenset ia oficiar em companhia do grande hierofante
do templo. O clar��o das tochas iluminava fantasticamen-
te as roupas brancas dos padres e a est��tua do deus, dian-
te da qual ardiam brasas em cima de uma tr��pode.
Ajudado por Kam��s, que trazia as pranchas nas quais
estavam notadas todas as particularidades do ritual, que
O CHANCELER DE FERRO
147
era indispens��vel seguir �� letra, para que o sacrif��cio nada
perdesse da sua efic��cia, Ta�� come��ou fazendo uma oblata
de vinho e incenso; depois realizou as cerim��nias usuais
sobre as v��timas a imolar, e quando, finalmente, uma luz
purpurina inundou o c��u, anunciando o astro rei, os sa-
crificadores atiraram-se aos animais consagrados, dego-
laram-nos e, quando o primeiro raio do Sol incidiu nas
l��minas cintilantes, descobriram as entranhas palpitantes
sobre as quais Amenset e o grande hierofante se inclina-
ram ansiosos.
Havia um sil��ncio solene, apenas perturbado pela
respira����o surda e ofegante dos assistentes; todos os
olhos estavam cravados nos dois magos que, de cenho
carregado, veias intumescidas pela tens��o da vontade,
estudavam os sinais misteriosos pelos quais a divindade
assinalava suas decis��es.
S��bito Amenset ergueu-se em toda a sua altura e
levantou os dois bra��os para o c��u. Seu rosto l��vido de
emo����o parecia petrificado em uma alegria ext��tica; seu
olhar, ora flamejante, ora vendado, parecia perder-se em
long��nqua e radiosa vis��o.
Pouco depois, ouviram-lhe a voz surda e, contudo, es-
tranhamente vibrante.
��� O v��u que oculta o futuro se levanta e a voz do
deus ressoa ao meu ouvido, qual trov��o, falando-me pelas
entranhas das v��timas.
"Sim, a paci��ncia dos imortais est�� cansada de crimes
dos estrangeiros; os gritos de afli����o da terra de Kemi,
as l��grimas e as ora����es de seus servos tocaram-lhe o
ouvido e o traidor impuro, que mancha o trono escarne-
cendo dos filhos do Egito e dos seus melindres, humilhan-
do-nos sem piedade, cair�� ferido por aquele mesmo a
quem elevou.
"O escravo, tudo ferindo com o seu punho de ferro,
assim dar�� o sinal da subleva����o de todo o Egito e o ini-
migo secular, vencido, abatido, atacado no seu ��ltimo
ref��gio, ser�� repelido para sempre. Das bocas ��s cataratas
do Nilo, a terra de Kemi ser�� livre e, em face dos altares
pejados de sacrif��cios, prostrado diante do leg��timo rei,
148
J. W. R O C H E S T E R
portador da dupla coroa, o povo agradecer�� aos deuses
com gritos de alegria. Mas, at�� que cheguem esses dias
de felicidade, correr��o anos de lutas e sofrimentos atro-
zes; a fome dizimar�� o povo e o opressor chupar�� a me-
dula de seus ossos. Dias vir��o em que os mais valentes
cora����es ficar��o cheios de des��nimo e desespero; mas a
palavra do deus, que neste momento reboa, deve susten-
t��-los e fortific��-los. Ta�� o Grande, o vitorioso, viver��s
eternamente na mem��ria da posteridade; infligir��s ao
usurpador o primeiro golpe mortal, sacrificar��s a Ptah
em seu altar de M��nfis, mas nem a ti nem a teu herdeiro
est�� reservada a vit��ria completa: ser�� Ahm��s, a crian��a
amada do deus, que dorme em teu pal��cio, quem reunir��
nas m��os o papiro e o l��tus, quem cingir�� a dupla coroa."
A voz de Amenset extinguiu-se bruscamente, seus
olhos se vendaram, titubeou e cairia nas pedras do p��tio
se o grande hierofante e outro padre n��o o tivessem sus-
tentado e delicadamente estendido no ch��o. Ta�� e Kam��s
precipitaram-se para ele, fitando com espanto o corpo
inteiri��ado do profeta.
��� Amenset, o vener��vel servo de Ptah, reentrou em
Os��ris; o deus, tendo falado por sua boca, fechou para
sempre os l��bios por ele santificados ��� disse solenemente
o sacerdote. ��� Que mais solene garantia poder��amos ter
da veracidade do que acabamos de ouvir?
Tendo o grande hierofante declarado que suas pr��-
prias observa����es concordavam com as palavras do defunto
e as confirmavam, Ta��, cheio de admira����o e respeito,
ordenou fizessem a Amenset ex��quias reais. Em seguida,
combinou com o sacerdote convocar um conselho secreto,
no qual estudariam a fundo o escrito deixado pelo fugi-
tivo de M��nfis e que continha, n��o s�� a narra����o dos
��ltimos acontecimentos, como tamb��m um relat��rio minu-
dente e precioso do estado e dos ��nimos, a disposi����o dos
corpos de tropas e as fortifica����es constru��das ultima-
mente pelos Hyksos para tornar M��nfis quase inexpug-
n��vel.
Ao chegar ao pal��cio, Ta�� foi recebido por um belo
rapaz de cerca de doze anos, o qual, separando-se do
O C H A N C E L E R DE F E R R O
149
escriba que lhe servia de professor, lan��ou-se-lhe nos
bra��os.
��� Ahm��s! ��� exclamou o velho rei, tomando a crian-
��a nos bra��os robustos e apertando-a de encontro ao peito.
Depois, voltando-se para os chefes e conselheiros que
o seguiam, designou o pequeno rapaz e disse com alegria e
orgulho:
��� Vede, meus fi��is, a crian��a escolhida pelos deuses,
que nos designou o falecido profeta? Est�� predestinada
a imortalizar seu nome e a gl��ria da nossa ra��a; sobre a
sua cabe��a repousar��, um dia, a dupla coroa do pais de
Kemi, depois de ter recha��ado os malditos, os pest��feros
que lhe mancham o solo sagrado.
Como impelido por um s�� impulso, todo o s��quito se
prosternou e, levantando as m��os, esses provados servos
gritaram entusiasmados: "Gl��ria, for��a, sa��de a Ta��, o
muito vitorioso, a Kam��s seu glorioso herdeiro, e a Ahm��s,
o futuro Fara�� do Alto e Baixo Egito!"
No conselho secreto, realizado dias depois, foi deci-
dido fazer todos os preparativos para a guerra da liber-
ta����o, notadamente construir, sem ostenta����o, uma floti-
lha numerosa, que facilitaria o transporte das tropas e
seria indispens��vel para o cerco de Av��ris, a formid��vel
fortaleza mar��tima dos Hyksos, defendida tamb��m do
lado de terra por largos canais. Al��m disso, decidiram
que os templos fariam tamb��m certa provis��o de trigo
para os tempos de pen��ria e tratariam de impedir que
se vendesse a Jos�� o sup��rfluo da colheita. A f�� absoluta
na predi����o de Amenset sustentava todos os cora����es, en-
chendo-os de ardor e de esperan��a.
Enquanto em Tebas se preparavam para desesperado
combate aos odiados opressores ��� os malditos, os lepro-
sos, os dem��nios, como os intitulava ignominiosamente
o rancor popular; enquanto Ta�� e seus aliados sonhavam
j�� em derrib��-lo, Jos�� consolidava cada vez mais a posi-
����o e empolgava completamente o velho Apopi. As medi-
das en��rgicas do novo Adon, a calma e t��mida submiss��o
que sucedera a insol��ncia turbulenta dos ��ltimos anos,
agradava ao monarca doentio, sobre quem as sedi����es
150
J. W. R O C H E S T E R
perp��tuas, a agita����o permanente obravam como verda-
deiro t��xico. Cumulava o favorito de benef��cios sempre
novos, divertindo-se em curvar aos p��s do homem obscuro,
seu "alter-ego", todas as cabe��as insolentes que ousavam
erguer-se contra ele, o descendente leg��timo dos reis que,
desde quinhentos anos, governavam o Egito.
Esse favoritismo, sempre crescente, enchia Jos�� de
satisfa����o orgulhosa e o tornava cada vez mais ousado
e desp��tico: assim, obtivera do Fara�� uma guarda pessoal
e para comandar esse destacamento, bem como para seu
s��quito imediato, escolhera rapazes pertencentes ��s pri-
meiras fam��lias eg��pcias... Por esc��rnio, pensavam os
infelizes oficiais que lhe acompanhavam a liteira ou ve-
lavam em sua antec��mara, e mais de um rangia os dentes
e apertava os punhos; mas a isso se limitava o protesto,
porque, em manifest��-lo de outro modo, havia o risco de
perder a cabe��a. De resto, n��o faltavam, tampouco, almas
vis que se n��o inquietavam que a m��o distribuidora das
gra��as e favores fosse pura ou impura. Rastejavam dian-
te do poder e adulavam o Adon em detrimento de toda a
dignidade humana.
Os festins sucediam-se, tanto em casa de Jos�� como
de todos os nobres de M��nfis; Apopi, mesmo, honrara
com a sua presen��a alguns desses banquetes, exprimindo
a grande satisfa����o que sentia por ver o novo conselheiro
t��o bem acolhido por seus fi��is vassalos.
Al��m disso, por meio de presentes e dota����es, estimu-
lava os pendores de Jos�� para o fausto. Cercado de esplen-
dor real, ele n��o esquecia, nunca, que depois do rei era o
primeiro homem do Egito.
Um s�� dos grandes dignit��rios de M��nfis se eclipsara
e sua casa, outrora t��o hospitaleira, permanecia fechada.
Putifar, a pretexto de sa��de arruinada, afastara-se para
uma herdade que possu��a perto de Tanis e l�� vivia em
retraimento absoluto, a observar de longe, com pesar e
desprezo, a orgia de volunt��rio rebaixamento a que se
entregavam os seus compatriotas; mas, para Jos��, n��o
era agrad��vel ver vazia e silenciosa a casa do antigo chefe
dos archeiros; rancorosa chama se lhe acendia nos olhos
O C H A N C E L E R DE F E R R O
151
e jurava aos seus deuses espreitar incessantemente a hora
de vingar-se de quem t��o ostensivamente ousava teste-
munhar-lhe desprezo.
Entretanto, nem distra����es, nem rancores secretos
impediam o Adon de ocupar-se ativamente com os miste-
res do cargo, e os pr��prios inimigos lhe reconheciam as
qualidades de administrador exemplar.
Mais de dois anos transcorreram depois da sua ele-
va����o, quando julgou oportuno um giro pelas prov��ncias,
a fim de inspecionar todos os centros administrativos e
verificar, por si mesmo, se as entregas de trigo aos celeiros
p��blicos se realizavam regularmente, porque as colheitas
eram, na verdade, superabundantes. Apopi, que j�� havia
experimentado a espantosa previs��o e o zelo do favorito,
aprovou o projeto e, por decreto, ordenou ��s autoridades
de todas as cidades, inclusive os col��gios sacerdotais, que
recebessem o Adon com as honras devidas a um pr��ncipe
da sua casa, considerando-o seu representante direto.
XI
O ADON EM HELI��POLIS
O rei disse ainda a Jos��: eu sou
Fara��, sem tua ordem ningu��m mo-
ver�� p�� nem m��o em todo o Egito.
Tinha ele trinta anos quando
apareceu diante do Fara��, e ele cor-
reu em roda todas as prov��ncias do
Egito. ��� G��nese, cap. XLI, w. 44,
46.
Compreendida dentro do imenso circuito que rodeava
o templo do Sol e suas numerosas depend��ncias em He-
li��polis, elevava-se a morada do sacerdote, elegante pa-
l��cio cercado de jardim e em cujo andar t��rreo estava
reunido, ao cair do dia, um grupo de cinco pessoas. De
p�� junto da balaustrada, o dono da casa conversava com
seu filho Armais, belo rapaz de dezoito ou dezenove anos,
parecido com o pai pela altura e pelos tra��os, mas de
olhos grandes e azuis como os de sua irm�� Asnath, agora
encantadora rapariga de catorze anos, delgada e deli-
cada como uma gazela.
Sentada junto da mesa cheia de refrescos, Asnath
brincava com pequeno c��o de p��lo escuro e luzidio, ao
qual mimoseava com um favo de mel, conversando com
sua m��e e um oficial que n��o a desfitava um momento,
visivelmente enamorado da interessante menina. Esta
personagem era o nosso velho conhecido Hor, o antigo
rival de Putifar. Depois do casamento de Ranofrit, con-
seguira transferir-se para Heli��polis e fizera-se amigo e
visitante ass��duo da casa do sacerdote, que o acolhia com
O C H A N C E L E R DE F E R R O
153
benevol��ncia e parecia n��o contrariar a inclina����o que
revelava pela filha.
Hor fora promovido de posto: comandava agora um
destacamento de archeiros e Armais iniciava o servi��o
militar sob suas ordens. Pot��fera desejaria que o filho
abra��asse a s��bia carreira, a fim de substitu��-lo um dia
no cargo de sacerdote, mas o rapaz tinha pouca voca����o
para o estudo e para o ascetismo sacerdotal. O ��rduo tra-
balho exigido para uma inicia����o superior n��o condizia
com o seu temperamento. Embora pesaroso, Pot��fera con-
tentara-se com inici��-lo nos pequenos mist��rios, por fazer
dele um h��bil escriba. Mas, para que o cargo heredit��rio
n��o sa��sse da fam��lia, o sacerdote o destinara ao filho
mais mo��o, Rameri, que ocupava o grau de terceiro pro-
feta do templo e era um arquiteto afamado.
Como outrora, a predile����o da fam��lia Pot��fera, a co-
me��ar por ele pr��prio, concentrava-se em Asnath: todos,
�� porfia, enfeitavam-na, presenteavam-na e adivinha-
vam-lhe os menores pensamentos. A jovem encarecia essa
posi����o privilegiada. Al��m do mais, sabia-se bela, rica e
cobi��ada, o que a tornara at�� certo ponto orgulhosa e vo-
luntariosa, mas a inata bondade e a infantil displic��ncia
mitigavam esses pequenos defeitos. Adorava os pais e o
irm��o, e o amigo da inf��ncia, Hor, agradava-lhe mais
que outro qualquer. A adora����o evidente do belo oficial
divertia-a e lisonjeava o seu orgulho feminino, porque
Hor era um partido desejado e as paix��es excitadas pelos
seus cabelos de ouro, entre as damas de Heli��polis, n��o
eram segredo para ningu��m. Apesar dessas boas disposi-
����es rec��procas, as palavras decisivas ainda n��o tinham
sido pronunciadas.
Olha, pai ��� exclamou nesse momento Armais ���,
Racapou a�� vem.
As duas mulheres levantaram-se ao mesmo tempo e
Asnath, que de um salto galgara a balaustrada, disse:
�� verdade, o carro parou �� porta; mas como Raca-
pou est�� nervoso!
��� Ser�� preciso descer para receb��-lo? ��� perguntou
Maia, que, visivelmente, tinha envelhecido e engordado.
154
J. W. ROCHESTER
��� N��o. Ficamos bem, aqui. Vai tu Armais, receber
o nobre Racapou e acompanha-o at�� aqui ��� respondeu
Pot��fera, aproximando-se da mesa e enchendo de vinho
dourado da S��ria uma ta��a para o velho amigo, coman-
dante de Heli��polis, cujo passo pesado repercutia na
escada.
O velho guerreiro logo entrou na sala: trazia na m��o
um rolo de papiro, e a fisionomia carrancuda, a c��lera
mal disfar��ada, surpreenderam a todos os presentes.
��� Que tens, Racapou? Sucedeu alguma coisa? Tal-
vez desejas falar-me em particular? ��� perguntou Pot��-
fera, fitando, meio admirado, meio inquieto, o rosto con-
gesto do comandante.
��� Que tenho? desejaria que Tifon me quebrasse o
pesco��o antes de saborear a honra com que nos regala
o Fara�� e na qual ter��s tua parte ��� respondeu Racapou
com voz presa de c��lera e deixando-se cair na cadeira
junto de Maia, a quem saudou com a m��o.
��� �� claro que tuas not��cias nada valem, mas, em
todo caso, bebe alguns goles de vinho para te refrescares
antes de me dar parte do que tanto estragou o teu bom
humor ��� disse o sacerdote com ligeiro sorriso e voltando
para a mesa, a fim de apanhar a ta��a.
Asnath, por��m, deixando os bra��os do pai aturdido,
ligeira qual borboleta, foi apresentar o vinho a Racapou,
rogando-lhe, com brejeiro sorriso, que se refrescasse e
n��o a privasse da aterradora not��cia, caso n��o fosse um
segredo de Estado.
O rosto enfarruscado do velho soldado alegrou-se
com a presen��a da sua favorita e, batendo-lhe carinhosa-
mente nas faces, sorveu o n��ctar, declarando que o que
o incomodava n��o era segredo e ia comunic��-lo a toda a
gente.
��� Olha, Hor, este dem��nio de Asnath quer transtor-
nar a cabe��a de Racapou ��� murmurou Armais, rindo no
ouvido do amigo, enquanto o comandante desenrolava o
papiro e lia o decreto de Apopi, ordenando fizessem a
Jos��, em sua passagem por Heli��polis, honras quase reais.
O CHANCELER DE FERRO
155
Depois da leitura, a c��lera e a indigna����o estampa-
ram-se em todos os rostos, mas o de Pot��fera cobriu-se
de intenso rubor.
��� Pois bem! Semelhante inven����o n��o ultrapassa
todos os limites do poss��vel e do permitido? ��� perguntou
Racapou, batendo de tal modo na mesa que fez estreme-
cer os vasos.
Ainda n��o �� tudo: instru����es que acompanham este
decreto mandam-me organizar uma festa popular, uma
s��rie de festins em honra do Adon, que chega na semana
pr��xima; e como sua visita corresponde �� festa de Taf-
nout, ordena-se que na prociss��o sagrada seja reservado
a este... (Racapou escarrou energicamente) o lugar de
Apopi! De resto, receber��s, sem d��vida, instru����es a este
respeito; mas repito que o Fara�� come��a a ultrapassar
todas as medidas, exigindo que os primazes de todo o
Egito rendam homenagens reais a este animal impuro.
��� Que foi escravo na casa de meu cunhado Puti-
far ��� intercalou Pot��fera de l��bios trementes.
��� Ah! ah! ah! ��� exclamou Racapou ��� um favorito
digno do seu patrono. Na verdade! s�� um impuro chasou
poderia elevar este animal imundo �� categoria de Adon.
Enfim, isto n��o adianta: �� preciso acomodar o bruto no
Pal��cio e, em vez de receber o Adon como o merece,
com uma sova, honr��-lo com zumbaias. O mais cruel ��
que ser�� preciso dissimular o ��dio e o desprezo que ele
nos inspira.
��� Tenho, entretanto, curiosidade de o ver. Neftis, a
filha do hierogramatista Rams��s, que esteve em M��nfis o
ano passado, contou-me que o Adon �� belo como Horus
��� observou Asnath, menos sens��vel �� quest��o de origem
do que �� das festas esperadas.
��� A compara����o de um deus com o antigo escravo
de tua tia honra pouco a tua amiga ��� disse Pot��fera,
franzindo as sobrancelhas. ��� Em todo caso, n��o ver��s
esta personagem e n��o assistir��s ��s solenidades que s��o
para n��s um opr��brio.
��� Mas, pai, todo o mundo assistir�� a elas! ��� disse
Asnath, com enfado.
156
J. W. R O C H E S T E R
��� Penso, ao contr��rio, que toda mulher e filha de
qualidade, que puder faz��-lo, ser�� feliz, dispensando-se
desse trabalho; em todo caso, tu e tua m��e n��o honrareis
com vossa presen��a o homem ilustre que limpava as san-
d��lias do teu tio ��� respondeu Pot��fera com severidade
jamais usada com a filha amada.
Vendo-lhe o aspecto triste, acrescentou:
��� Amanh�� ir��o para nossa casa de campo e con-
sinto que mandes construir o viveiro de p��ssaros, que
desejas h�� tanto tempo.
Asnath alegrou-se e, enquanto abra��ava o pai, Maia
perguntou a Racapou se sua mulher e filhas tomariam
parte nos regozijos.
��� Minha mulher, sim; �� preciso que ela presida ao
banquete em minha casa; as filhas n��o, com certeza;
n��o quero imaginar, sequer, que lhe venha a id��ia de
escolher uma delas para esposa. Dizem que ele procura
entre as mais belas e mais nobres.
��� Oh! quem o quereria para genro? Por toda parte
ser�� despedido ��� exclamou, rindo, Armais.
��� Se for poss��vel despedi-lo ��� suspirou Racapou ���;
�� mais prudente evitar a honra de um pedido...
��� Ent��o, deixa irem conosco Nititis e Hatasou; ser��
melhor para mim e para elas ��� disse Asnath.
O pedido foi aprovado por todos e, a fim de evitar
quaisquer suspeitas, decidiu-se que a esposa do sacerdote
partiria logo no dia seguinte com as tr��s mo��as. Em se-
guida, Pot��fera e o governador desceram para discutir
todos os preparativos exigidos para a recep����o do Adon,
que devia dar-se doze dias depois. Armais correu a dar
ordens indispens��veis para a partida no dia seguinte.
Maia foi ocupar-se dos aprestos, e Hor com Asnath foi
ao jardim, onde Armais devia encontr��-los.
Silenciosos e absortos em seus pensamentos, os dois
jovens atravessaram o jardim para galgar a relva onde
jogavam a p��la. Apesar de tudo, uma estada de algumas
semanas no campo agradava pouco a Asnath; para Hor
era insuport��vel a s�� id��ia de uma t��o longa separa����o;
al��m disso, o sil��ncio da mo��a o tornou logo ciumento.
O C H A N C E L E R DE F E R R O
157
"Ela pensa somente nesse imundo estrangeiro e nas festas
em sua honra, n��o cogita do meu pesar em ver-me sepa-
rado dela por tanto tempo" ��� disse em pensamento e
perguntou de s��bito:
��� Que sonhas assim, Asnath?
��� Nada ��� respondeu com vivacidade ���, tu �� que
sonhas somente com a chegada do Adon e eu n��o te queria
perturbar.
Quase sem querer, ele deu uma risada, t��o c��mica lhe
pareceu a semelhan��a de pensamentos; e como, no mo-
mento, passavam perto de um banco meio oculto �� som-
bra de grande sic��moro e das ac��cias em flor, atraiu a
companheira para o banco de pedra e, sentando-se, disse-
-lhe com um sorriso:
��� �� verdade, estou distra��do, mas n��o �� a chegada
do Adon que me preocupa; �� a tua partida, �� o pensa-
mento de n��o ver, durante tanto tempo, esses olhos azuis
que para mim representam o c��u.
Asnath corou vivamente e baixou a cabe��a, indecisa,
mas, levantando-a logo, disse em tom malicioso e com
um olhar cheio de garridice:
��� Quem, porventura, te impede de ir contemplar o
c��u? Sabes quanto ��s bem visto por ele!
Hor tomou-lhe as m��os, apertou-as e beijou-as.
��� Permites, Asnath, interprete as tuas palavras ao
sabor do meu cora����o? Posso amar-te abertamente e pe-
dir-te a teus pais em casamento? Quero ouvir antes, da
tua pr��pria boca, que me amas.
��� E que pensas sobre isso? ��� disse ela num tom
faceiro ���; somos t��o velhos amigos! e prometeste espe-
rar que eu crescesse para desposar-me.
��� Consentes, pois, em recompensar minha fidelida-
de? ��� disse Hor, atraindo-a em seus bra��os e apertando-
-lhe os l��bios com um beijo. ��� Mas, ardilosa, n��o quero
velha amizade, exijo um amor novo e t��o ardente quanto
o meu.
Rosada e alegre, Asnath restituiu-lhe o beijo e com-
binou que, logo que Racapou partisse, dariam parte a
158
J. W. ROCHESTER
Pot��fera e a Maia da sua afei����o rec��proca, pedindo-lhes
a b��n����o.
Foi uma tarde feliz na casa do sacerdote. Ele e a
mulher exultaram de alegria com o pedido de Hor. Co-
nheciam t��o bem o leal e bom rapaz, que, com toda satis-
fa����o, confiavam-lhe o futuro da filha querida. Armais
tamb��m se regozijava com ser o irm��o do seu amigo.
Ficou decidido que, logo que o Adon partisse e ficas-
sem desembara��ados dos atropelos causados pela sua vi-
sita, celebrariam as n��pcias. At�� l��, Hor visitaria a noiva
sempre que lhe permitisse o servi��o.
O dia marcado, para a recep����o do Adon, levantou-se
radiante: toda a cidade tomara tonalidades festivas, toda
a popula����o estava a postos e a massa de curiosos atra-
vancava n��o s�� as ruas e telhados como a estrada por
onde Jos�� devia passar.
Enfim, apareceram os destacamentos de archeiros,
agitando ramos floridos, e os lacaios que precediam o
carro do Adon, cercado de condutores de leques. De todos
os cantos estrugiam aclama����es e gritos de alegria; a
multid��o prostrou-se. Atr��s da equipagem vinham os
carros dos conselheiros, escribas e funcion��rios diversos,
que formavam o s��quito. Novos destacamentos de soldados
e longa fileira de burros e de carro��as, carregados de ba-
gagens, fechavam o cortejo.
�� porta da cidade foi Jos�� recebido por todas as auto-
ridades, com Racapou �� frente. Em respeitosas palavras,
o velho governador exprimiu a alegria de toda Heli��polis,
recebendo e abrigando dentro de seus muros o represen-
tante do rei.
Depois de breve e cordial resposta, Jos�� deixou o
carro para tomar lugar em uma cadeira port��til, marche-
tada e, rodeado de todos os dignit��rios que acabavam de
receb��-lo, dirigiu-se para o templo do Sol, a fim de jun-
tar-se �� prociss��o religiosa em honra da deusa Tafnout,
cuja festa se celebrava nesse dia.
A entrada do sagrado recinto estendiam-se as longas
filas de cantores e cantoras do templo, cada grupo pre-
cedido do seu regente, que, com uma comprida varinha
O C H A N C E L E R DE F E R R O
159
dourada, marcava o compasso, enquanto o mestre-de-ce-
rim��nias seguia atentamente a ordem e os requisitos do
ritual.
Os sons graves do hino sagrado enchiam o ambiente
de vibra����es melodiosas. Aqueles cantos sacros, executados
com extrema perfei����o por vozes soberbas, acompanhadas
e sustentadas ao som das harpas, produziam sempre, no
povo, impress��o profunda e perturbadora; involuntaria-
mente, as cabe��as se curvavam, os joelhos vergavam e uma
ardente aspira����o para a divindade elevava-se de todos
os cora����es. Ap��s os cantores, vinham padres de todos os
graus, precedendo o naos (barca sagrada) da deusa, co-
berto com um tapete ornado de flores e carregado por
oito past��foros; depois, os grandes dignit��rios do templo,
tendo �� frente o reitor dos matem��ticos, precedido dos
s��mbolos da m��sica e dos livros de Tot (Herrmes); a se-
guir o Hierofante, grande mestre das ci��ncias genetl��acas:
o rel��gio e a palma eram os s��mbolos do seu cargo; a
pena, a r��gua e o tinteiro, precediam o Escriba sagrado,
grande mestre da ci��ncia simb��lica sob todas as formas,
e da arte hierogram��tica; depois caminhava o grande
mestre da justi��a, com seus s��mbolos: o c��vado figurando
a igualdade perante a lei e o copo figurando a grande
comunh��o sacerdotal, com a vida espiritual do Universo
pela inicia����o. Por fim, surgia a arca-santa, que continha
os dez livros da inicia����o suprema e, atr��s dela, Pot��fera
revestido das ins��gnias de sacerdote, tiara branca na ca-
be��a, o peitoral formado de pedras simb��licas, cintilando
ao peito, e seus emblemas: os p��es da comunh��o e a jarra
de ouro.
Saudado pelo sacerdote, que lhe ofereceu uma flor de
l��tus e o aspergiu com ��gua purificadora, Jos��, descido
da liteira, juntou-se ao cortejo; depois, terminadas as
cerim��nias religiosas, dirigiu-se ao pal��cio preparado para
receb��-lo, convidando todos os dignit��rios a se lhe apre-
sentarem logo que tivessem repousado um pouco. Como
desejava reuni-los em banquete, induziu-os a vir uma hora
antes da refei����o, para conversarem e travarem mais am-
plo conhecimento.
160
J. W. ROCHESTER
Nessa reuni��o, as opini��es sobre Jos�� se dividiram:
uma parte dos dignit��rios ficou involuntariamente desar-
mada com a afabilidade discreta, nada arrogante, do belo
mancebo, que parecia nascido para reinar e comandar;
que sabia dirigir a cada qual uma palavra am��vel, que
parecia tudo haver estudado, tudo saber. Somente os puros
eg��pcios e os padres ficaram frios: a id��ia do ultraje, pela
superioridade hier��rquica desse intruso alien��gena, jazia-
-lhes odienta e hostil no fundo dalma. As mulheres pos-
taram-se ao lado do Adon, quase un��nimes, e mais de um
olhar apaixonado caiu sobre ele. N��o seria um falso boato,
uma cal��nia, que aquele homem t��o elegante, t��o belo,
que trazia com tanta gra��a e desembara��o o seu rico ves-
tu��rio tivesse, alguma vez, curvado o dorso diante de um
senhor ou de um bast��o? Que aquelas m��os de afilados
dedos e pele acetinada tivessem, algum dia, preenchido os
grosseiros trabalhos de escravo? Jos�� examinava aqueles
olhares, j�� os tinha visto em M��nfis e sabia, h�� muito,
que entre as mais belas e mais nobres, muitas havia que
voluntariamente lhe perdoariam a origem e consideravam
felicidade o serem por ele escolhidas para esposa. Mas,
at�� aquele dia, o cora����o do mo��o hebreu tinha ficado
inerte; a ambi����o e os neg��cios o absorviam inteiramente
e ningu��m suspeitava, entretanto, que abismo de vaidade,
orgulho, cruel rancor e avidez, se abscondiam naquela
fronte branca e polida, na impassibilidade serena das suas
fei����es regulares, dormindo latentes no fundo dos olhos
profundos e impenetr��veis.
Com o af��vel desembara��o que acabamos de assinalar,
Jos�� presidia ao festim. A sua esquerda estava Racapou;
�� direita Pot��fera, visivelmente nervoso e excitado, apesar
da defer��ncia cort��s que dispensava ao Adon, o qual n��o
havia denunciado, por uma palavra sequer, que o conhe-
cia da casa de Putifar.
Tudo fermentava na alma do orgulhoso eg��pcio: a
id��ia de permutar cortesias, de se assentar ali, quase como
um subalterno, ao lado do antigo escravo de seu cunhado
e a quem, j�� ent��o, tinha instintivamente odiado, esse
pensamento lhe apuava o cora����o como um dardo, fazia-
-lhe subir todo o sangue �� cabe��a. Al��m disso, estava
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fatigado da longa cerim��nia da manh�� e ia deixando-se
invadir por um mal-estar cada vez mais pronunciado.
Procurou dominar-se, mas, s��bito, tonteou-lhe a cabe��a,
uma nuvem escura escureceu-lhe os olhos e, sem sentidos,
tombou na cadeira.
Todos os convivas se levantaram tumultuosamente ��
vista do incidente inesperado, mas j�� Racapou e Jos�� se
tinham precipitado para sustent��-lo; estenderam-no em
um leito e um dos padres presentes prestou-lhe socorros,
gra��as aos quais reabriu logo os olhos. Jos�� que, nesse
comenos, demonstrava viva solicitude, inclinou-se para
ele, informando-se do seu estado, e quando o sacerdote
mostrou desejos de voltar para casa, ele pr��prio o acom-
panhou at�� �� liteira.
A imensa multid��o que enchia as imedia����es do pal��-
cio ficou agradavelmente impressionada vendo o Adon em
pessoa amparar os passos titubeantes de Pot��fera e aju-
d��-lo a acomodar-se na liteira. Essa defer��ncia, esse
interesse testemunhado ao vener��vel sacerdote, amado
por toda Heli��polis, da parte do poderoso homem cuja
entrada quase real tinham admirado pela manh��, pro-
duziu o melhor efeito e foi sinceramente que o povo acla-
mou o representante do Fara��. Os cora����es simples dos
oper��rios e camponeses que tinham vindo assistir ��s sole-
nidades n��o compreendiam os sentimentos de ��dio e de
orgulho ferido, das classes superiores.
Durante a noite o estado de Pot��fera piorou, decla-
rou-se febre ardente e Armais, muito inquieto, mandou um
mensageiro prevenir Maia e Asnath da desgra��a sucedida.
Nessa mesma noite as duas mulheres chegaram e posta-
ram-se �� cabeceira do doente. O dia e a noite seguintes
correram sem trazer qualquer melhora; toda a fam��lia
estava desolada e a tristeza espalhara-se por todo o tem-
plo, porque o pont��fice era geralmente amado. Quanto ao
Adon, ocupado fora da cidade com a inspe����o militar,
havia mandado saber not��cias de Pot��fera.
No dia seguinte, pela manh��, mandou novamente in-
dagar do estado do sacerdote, e, sabendo por interm��dio
de Racapou que o enfermo piorara, declarou que desejava
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J. W. R O C H E S T E R
visit��-lo pessoalmente, mas sem ostenta����o alguma, a fim
de evitar qualquer alarme que pudesse incomodar o en-
fermo.
Acompanhado somente de Racapou e de Hor, que
estava ao seu servi��o, Jos�� foi �� resid��ncia do sacerdote
e, silenciosamente, o comandante de Heli��polis o conduziu
ao quarto do doente.
Na sala ao lado havia apenas uma meia-claridade, ar-
riadas as ricas cortinas das janelas, por ordem do m��dico.
No momento em que Hor, precedendo os chefes, ia
levantar o reposteiro que fechava a entrada do quarto de
Pot��fera, foi ele suspenso por m��o impaciente e Asnath
apareceu no limiar. Velava junto ao pai, enquanto Maia
se retirava para descansar um pouco e ia transmitir uma
ordem da parte do velho padre, que n��o deixava a cabe-
ceira do seu chefe. A mo��a vestia singela t��nica de linho,
ajustada ao esbelto busto por um cinto de prata lavrada;
pequena mantilha de franjas cobria-lhe os ombros; seus
belos cabelos negros, repartidos em duas tran��as, ca��am-
-lhe abaixo dos joelhos.
Apesar desse traje negligente e do rosto p��lido e fati-
gado, Asnath estava encantadora. Percebendo o noivo,
atirou-se para ele de bra��os abertos.
��� Hor, eis-te enfim aqui! ��� exclamou estendendo-
-lhe os rubicundos l��bios.
O oficial, em vez de corresponder ao gesto, fez-lhe
com a cabe��a um brusco sinal negativo e, no mesmo ins-
tante, a mo��a deu com os olhos em Racapou, acompanha-
do pelo mancebo desconhecido. Corada e confusa recuou,
fitando o visitante, cuja esquisita e altiva beleza impres-
sionou-a, supondo fosse algum m��dico ou m��gico estran-
geiro, trazido pelo comandante para tratar o pai.
Em face da ador��vel menina cujos olhos l��mpidos e
azul-celeste se levantavam para ele, curiosamente, s��bi-
ta chama se acendeu nas pupilas do Adon.
��� �� a filha ��nica do sacerdote ��� disse Racapou. ��� E
tu, Asnath, continuou, sa��da ao nosso poderoso senhor,
o Adon, agradece-lhe a insigne honra que faz a teu pai
e a toda a fam��lia, transpondo estes umbrais.
O CHANCELER DE FERRO
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A voz do velho guerreiro era surda, parecia exprimir-
-se com dificuldade, t��o lentas e sofreadas lhe sa��am as
palavras da laringe. Um impercept��vel sorriso, misto de
mal��cia e ironia, perpassou pelos l��bios de Jos��: ele sabia
quanto custava ao altivo eg��pcio aquela elocu����o.
Mas, �� palavra "adon", uma express��o de desencanto,
de frieza e desd��m se refletiu na fisionomia inconstante
de Asnath. Todavia, inclinou-se com polida reserva e,
levantando o reposteiro, disse:
��� Entrai, senhor; meu pai acaba de despertar do
seu letargo.
Jos�� notara a impress��o produzida na mo��a pelas
palavras de Racapou; febril rubor assomou-lhe furtiva-
mente ao rosto p��lido e delicado; seu olhar mergulhou
qual raio nos olhos l��mpidos e brilhantes, fixados nele
com uma curiosidade surdamente hostil.
S��bita tristeza apertou o cora����o da mo��a e logo que
Jos�� se sentou �� cabeceira de Pot��fera, enquanto Racapou
ficava de p�� junto ao leito, esquivou-se e correu em busca
de Hor, que n��o teve mais peias em abra����-la e, arras-
tando-a para uma janela, procurou consol��-la da mol��s-
tia do pai, n��o deixando de acrescentar alguns ep��tetos
escolhidos, em rela����o ao Adon, cuja maldita vinda era
indubitavelmente a causa do sucedido a Pot��fera. Esta-
vam por tal modo absortos na conversa, que Hor apenas
teve tempo de retirar os bra��os que enla��avam a noiva,
quando Racapou afastou o reposteiro para dar passagem
ao chefe. Entretanto, o olhar agudo do Adon tinha sur-
preendido o movimento; sombrio fulgor lhe jorrou dos
grandes olhos verdes e profunda ruga lhe vincou a fronte.
Respondendo com silenciosa inclina����o de cabe��a �� sau-
da����o da mo��a visivelmente perturbada e confusa, deixou
o quarto.
Sombrio e abstrato, voltou a pal��cio sem dirigir pa-
lavra ao governador e, no dia seguinte pela manh��, deixou
Heli��polis. Alguns dias depois, Hor e dois outros oficiais
receberam, inopinadamente, ordem de juntar-se ao Adon
para acompanh��-lo em sua excurs��o. Ningu��m compreen-
deu algo dessa s��bita fantasia do intruso, mas, na fam��lia
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J. W. ROCHESTER
de Pot��fera, a partida inesperada do rapaz provocou gran-
de pesar. O sacerdote ia de mal a pior e a separa����o do
noivo, em t��o triste momento, arrancou l��grimas amargas
�� pobre Asnath.
Todavia, a s�� e vigorosa natureza de Pot��fera venceu
o mal e, lentamente, come��ou a restabelecer-se do terr��vel
abalo. Sua fraqueza, por��m, e a aus��ncia de Hor, impos-
sibilitavam a celebra����o do casamento da filha, que mal-
dizia o Adon, causa do seu pesar.
Durante esse tempo, Jos�� continuava o seu giro: por
toda parte inspecionava os edif��cios e corpos de tropa,
verificava a contabilidade e punia com implac��vel seve-
ridade todas as malversa����es. Votava por toda parte es-
pecial aten����o �� armazenagem do trigo; al��m disso, por
ordem sua, agentes foram expedidos para as prov��ncias
do Sul, a fim de comprar tanto trigo quanto pudessem
adquirir, o que n��o era dif��cil, visto a superabund��ncia
da colheita de dois anos. Km ��ltimo lugar, dirigiu-se para
Avaris, cujas fortifica����es estudou com o cuidado e talen-
tos inatos de um engenheiro. Rapidamente, sob a dire����o
de oficiais experimentados, empreenderam-se no interior
e no exterior da fortaleza vastos trabalhos, que deviam
fazer do reduto entrincheirado dos Hyksos um ref��gio
inexpugn��vel, conforme as circunst��ncias. Se, porventura,
um levante geral, uma invas��o dos chefes do Sul ou uma
grande derrota for��asse os Hyksos a recuar, poderiam ali
concentrar-se, preparar novas for��as e arrojar-se de novo
sobre o pa��s.
No dia seguinte �� sua chegada a M��nfis, apresentou
ao Fara�� meticuloso relat��rio dos resultados da viagem
e Apopi, verdadeiramente maravilhado, agradeceu-lhe com
afetuosas palavras os fi��is servi��os, perguntando qual o
favor que lhe poderia conceder em testemunho de satis-
fa����o.
Vivo rubor cobriu o rosto do favorito que, prostran-
do-se, exclamou sensibilizado:
��� Meu soberano e benfeitor, estou j�� t��o cheio dos
raios da tua gra��a; tua bondade e confian��a me elevaram
t��o alto que parece imposs��vel possa desejar ainda alguma
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coisa; mas teu olhar penetrante como o do deus do qual
emanaste, leu no meu cora����o que aspiro a um favor que
s�� tu me podes conceder. Amo uma mulher e desejaria
cham��-la minha, mas sei que mil dificuldades infirmar��o
este meu desejo, se tua vontade poderosa n��o decidir a
meu favor.
��� Somente isso? Ent��o, acalma-te, levanta-te, meu
fiel servo. N��o te tenho dito sempre que escolhas a mais
bela, a mais nobre das filhas de M��nfis e ela ser�� tua
esposa? N��o acredito que entre as mulheres haja alguma
que vacile em submeter-se ��s minhas ordens. Dize-me o
nome ��� acrescentou Apopi, medindo com olhos risonhos
a estatura alta e bela do favorito.
��� Foi em Heli��polis que vi a filha do sacerdote Po-
t��fera: o encanto dessa menina deslumbrou-me os olhos,
comoveu e aqueceu meu cora����o.
��� Bela? ��� perguntou o monarca.
��� Como a deusa que derrama o amor no cora����o dos
mortais; seus olhos s��o azuis e transparentes como o azul
do c��u ��� respondeu Jos�� em voz baixa e vibrante, en-
quanto um raio de paix��o lhe perpassava pelos olhos e
um estremecimento nervoso lhe agitava o corpo.
��� Receias que Pot��fera te recuse a filha?
��� Sim, Fara��, tu sabes quanto sou odiado pelos eg��p-
cios; odiado e desprezado duplamente, como escravo li-
berto a quem tua vontade elevou acima dos mais nobres
dentre eles. Ainda mais que todos, odeia-me e despreza-
-me o sacerdote de Heli��polis, porque foi em casa de sua
irm�� que estive como escravo e, impiedosamente ��� eu o
sei ��� ele me recusar�� Asnath, se tu, meu rei, n��o te
interpuseres.
��� Regozija-te, servo devotado, a filha de Pot��fera ser��
tua esposa; tomarei minhas provid��ncias para isso, por-
que tua escolha corresponde a um plano que eu pr��prio
ruminava. Conhe��o o criminoso orgulho desses padres,
mas, ser-lhes-�� dif��cil desprezar-te, desde o momento em
que, convertido em genro de um deles, estiveres aliado
�� sua casta; teu sangue se misturar�� com o deles e apa-
gar�� todos os estigmas da escravid��o. Vai, pois, em paz,
e prepara o teu pal��cio para receber a sua jovem senhora.
XII
O FARA�� E O SACERDOTE
Depois casou-se com Asnath, fi-
lha de Pot��fera, sacerdote de Heli��-
polis. ��� G��nese, cap. XLI, v. 45.
Foi Jos�� servido �� parte e seus
irm��os �� parte, e os eg��pcios que
comiam com ele foram t a m b �� m ser-
vidos �� parte: porque n��o �� permi-
tido entre os eg��pcios comer com os
hebreus, e cr��em que um f e s t i m des-
ta sorte seria profano. ��� G��nese,
cap. XLIII, v. 32.
E quando Fara�� v o s chamar e
v o s perguntar qual �� v o s s a ocupa-
�� �� o ?
V��s lhe respondereis: v o s s o s ser-
v o s s��o pastores desde a inf��ncia
at�� ao presente, e nossos pais o t �� m
sempre sido como n��s. A s s i m �� que
v��s haveis de dizer para poderdes
morar na terra de Gessen, porque os
eg��pcios detestam todos os pastores
de ovelhas. ��� G��nese, cap. XLVI,
w . 33, 34.
Pot��fera estava inteiramente restabelecido. A calma e
a alegria tinham voltado ao seio da fam��lia, tratava-se
ativamente dos preparativos do casamento de Asnath, a
realizar-se logo depois da volta de Hor. O jovem oficial
n��o podia tardar. Em sua ��ltima carta informava que a
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viagem do Adon estava terminada e marcara para o dia
seguinte o seu regresso a M��nfis.
Mas, em vez do noivo esperado, chegou uma ordem
real a Pot��fera para que se apresentasse a Apopi, sem
demora, dizendo tratar-se de neg��cio urgente.
O Fara�� se apressara em expedir essa ordem logo no
dia seguinte ao da entrevista com Jos��. O plano matri-
monial do favorito lhe agradava, correspondia ao ��dio
secreto que lhe inspiravam os padres, os inimigos infati-
g��veis do seu repouso. Era uma ocasi��o azada para infligir
destemerosa afronta �� casta abomin��vel, que fomentava
todas as sedi����es e s�� via nele um estrangeiro impuro.
For��ar um dos mais poderosos padres a dar a filha ao
escravo liberto, que s�� por capricho seu era o que era,
e dar a esse ultraje apar��ncias de favor, causava-lhe sa-
tisfa����o toda especial.
Embora surpreso, Pot��fera sup��s que o rei lhe quisesse
falar de algum monumento sagrado que desejasse elevar;
e como a ordem prescrevia urg��ncia, preparou-se para
atender. Asnath ficou desolada com esse novo adiamento
e, vendo-a pesarosa, sua m��e prop��s ao marido que as
levasse consigo. Seria n��o s�� uma ocasi��o de rever Hor,
mas tamb��m Ranofrit e o marido, aos quais n��o viam
havia muito, e que tamb��m pretendiam tratar de neg��-
cios em M��nfis.
Pot��fera acedeu sem relut��ncia, com a s�� condi����o
de que n��o o retardassem. Asnath, por��m, ajudou t��o
eficazmente a genitora, que �� hora marcada toda a fa-
m��lia p��de aviar-se.
Ranofrit e o marido receberam os parentes com ale-
gria e combinaram passar juntos o pouco tempo que es-
tivessem reunidos, porque Putifar tinha pressa em voltar
para o seu retiro, logo que conclu��sse os neg��cios na cida-
de. O sacerdote, que contava igualmente partir o mais
depressa poss��vel, se o Fara�� n��o o retivesse, consentiu
de bom grado em instalar-se com os seus na confort��vel
vivenda do antigo chefe dos archeiros. Sua pr��pria casa
era situada do outro lado da cidade, o que trazia incon-
venientes.
168
J. W. R O C H E S T E R
O dia passou-se em conversa����es. Ranofrit e a cunha-
da tinham mil coisas a se dizerem e Asnath reatou, ime-
diatamente, sua grande amizade com Putifar; afagou-o
e prendeu-o, t��o bem, que conseguiu lev��-lo a tomar parte
na p��la que queria jogar com os dois filhos. Os dois rapa-
zes estavam radiantes; Putifar, estafado e coberto de suor,
declarou-se vencido ao cabo de um instante, pronto a
pagar aos tr��s valentes advers��rios um resgate de presen-
tes e doces, se o dispensassem do resto da partida, o que
foi aceito com entusiasmo e grandes gargalhadas... A
tarde, Hor foi v��-los e Asnath passou algumas horas bem
agrad��veis e felizes em companhia do noivo. Com o sa-
cerdote e Putifar, o mo��o falou tamb��m do Adon e da
viagem que com ele fizera; e, embora maldizendo-o pela
inexplic��vel fantasia que retardara a sua felicidade, nar-
rou toda uma s��rie de epis��dios que punham em relevo
a perspic��cia, a energia e ��s vezes, mesmo, o esp��rito vivo
e c��ustico de Jos��.
Essa conversa avivou no esp��rito de Asnath a lembran-
��a do hebreu e, em vez de dormir, pensou no seu fugaz
encontro: com estranha nitidez reviu o rosto p��lido do
Adon, sua estatura alta e esbelta, a m��o branca e delicada
que se apoiava no punhal de cabo de ouro cinzelado, preso
ao cinto.
Sem saber por que, p��s-se a compar��-lo com Hor: cer-
tamente, este era mil vezes mais simp��tico com o seu bom
e descuidoso sorriso; olhos t��o francos e soberbos cabelos
de ouro; mas, incontestavelmente, o Adon era mais belo
com as fei����es regulares, a boca altiva e aquela indefin��vel
express��o de autoridade e de energia que emanava da
sua pessoa... E o olhar, o olhar ardente e fascinador, que
a atravessava como um raio, tomando-lhe a respira����o...
Hor nunca lhe produzira essa emo����o...
S��bito, deu uma gargalhada: "Estou louca, creio, com-
parando o meu leal Hor a esse impuro estrangeiro, m��-
gico que, certamente, tem mau-olhado, porque o seu olhar
me deu palpita����es de cora����o. E que me importa ele?
Que se avenha!" Apertou de encontro ao rosto e nos l��-
bios um amuleto que trazia ao pesco��o, recitou uma invo-
ca����o a ��sis e mergulhou em sono profundo e calmo.
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No dia seguinte, Pot��fera dirigiu-se ao pal��cio para
receber as ordens do Fara��, mas disseram-lhe que Apopi,
ainda fatigado de outra crise, que o tinha surpreendido
dois dias antes, n��o podia receb��-lo imediatamente. De-
terminava-lhe, por��m, que se apresentasse no dia seguin-
te pela manh��.
Assim que, revestido das ins��gnias do cargo, no pes-
co��o o disco solar preso a uma corrente de ouro, o sacer-
dote apresentou-se na hora indicada e foi logo introdu-
zido no gabinete do Fara��. Apopi estava sentado junto ��
mesa de cedro com p��s de cobre lavrado, sobreposta num
estrado pintado de vermelho; o rosto descarnado, olhos
encovados e astutos, exprimiam no momento a mais per-
feita naturalidade.
Afastando os rolos estendidos �� sua frente, saudou
o sacerdote com a m��o e, enquanto este se prostrava, de-
terminou ao camarista, que o guiara, vigiasse atento para
que se cumprisse o que antes havia ordenado.
Depois, voltando-se para Pot��fera, indicou-lhe com um
gesto de benevol��ncia o assento baixo, colocado �� sua
frente.
��� Senta-te, vener��vel servo do grande deus de He-
li��polis; sou feliz, vendo-te diante de mim, completamen-
te restabelecido, porque meu fiel servo, o Adon, informou-
-me que grave enfermidade quase p��s fim aos teus dias.
Depois do agradecimento do sacerdote, o Fara�� re-
plicou:
��� Foi para comunicar-te insigne favor, a ti e �� tua
casta; grande honra e alegria inesperadas para tua fa-
m��lia, que aqui te chamei: �� que o mais belo e mais s��bio
dos eg��pcios, depois de mim, o primeiro do Reino, o Adon,
viu tua filha Asnath e a beleza da menina comoveu-lhe
o cora����o e ele pede-a para esposa. Acedi ao seu pedido
e esta audi��ncia tem por fim fazer-te conhecer minha
real vontade. A partir deste momento tua filha �� noiva
de Jos��.
Pot��fera saltou da cadeira como se o tivessem ferido
em pleno rosto. L��vido, olhos arregalados, duvidando do
testemunho dos sentidos, levou a m��o ao rosto, mas, ten-
tando dominar-se, respondeu em voz baixa e mal contida:
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J. W. R O C H E S T E R
��� Est��s escarnecendo do teu servo, Fara��. Minha
filha, ali��s, j�� n��o est�� livre, �� noiva do nobre Hor, um
guerreiro do teu s��quito e o casamento deve celebrar-se
por estes dias.
Apopi, que notara com ��ntima satisfa����o o efeito das
suas palavras, respondeu calmo e acentuando as s��labas:
��� Isso em nada altera a minha real vontade: anulo
o compromisso de tua filha com Hor, fazendo-a noiva do
Adon.
Por uma rea����o s��bita, todo o sangue subiu �� cabe��a
de Pot��fera, roubando-lhe a serenidade e dom��nio de si
mesmo. Amea��ante, rosto afogueado, olhos congestos,
deu um passo para o rei:
��� �� pois com a viol��ncia e o abuso do poder que
queres agir contra mim; n��o tens esse direito, Fara��
Apopi, porque n��o sou um escravo cujos filhos se ven-
dam; sou um eg��pcio livre, sacerdote do primeiro templo
do Reino, e antes de dar minha filha a este animal impu-
ro, mat��-la-ia com minhas pr��prias m��os.
Diante dessa violenta ap��strofe, o rosto p��lido de
Apopi coloriu-se de sombrio rubor; com os olhos faiscan-
tes, levantou-se e p��s a m��o pesadamente no ombro do
sacerdote, cuja raiva sacudia o corpo robusto, como num
acesso de febre:
��� Acalma-te, velho insensato ��� murmurou com voz
vibrante ���, eu bem sabia que o favor que te concedo
seria incompreendido e que, sob a influ��ncia do teu orgu-
lho desvairado e cego, tom��-lo-ias como ofensa; por isso,
afastei toda a gente dos quartos vizinhos, a fim de que
nenhum ouvido indiscreto ouvisse que faltas com o res-
peito ao teu rei e que tenho a oportunidade de poupar-te
a cabe��a vener��vel. Estamos s��s e, por tua vez, agora,
escuta e transmite minhas palavras a teus irm��os. N��o
sou lud��brio do vosso sil��ncio e fingida humildade; conhe-
��o-vos perfeitamente, implac��veis inimigos da minha ra��a
e do meu povo; sei que atr��s das muralhas espessas dos
vossos templos fomentam-se todas as sedi����es, tramam-
-se todas as conspira����es; que, sempre preocupados em
solapar o trono, alimentais criminosa correspond��ncia
O CHANCELER DE FERRO
171
com Ta��, o miser��vel chefe do Sul a quem tendes como
leg��timo Fara�� do Egito. Somente estais enganados se
julgais que me deixarei esmagar. Se at�� hoje n��o vos ar-
rastei a ju��zo como traidores e conspiradores, �� porque
contemporizo com essa vestimenta de linho que o povo
venera, como venera o representante do seu deus.
Mas eu estou cansado das vossas murmura����es, revol-
tas, surda oposi����o a todas as minhas ordens. Em todos
os tempos, homens de origem obscura, mas distintos por
seus m��ritos, esposaram as pr��prias filhas dos vossos reis;
ningu��m via nisso opr��brio. Filhos do povo s��o criados
com vossos pr��ncipes e atingem o fast��gio das honras;
mas somente porque eu, o estrangeiro aborrecido, elevei
a Jos��, v��s o desprezais, o inundais com a vossa baba
venenosa; porque compreendeis tamb��m que ele tem a
t��mpera necess��ria para vos derrubar. Vosso ��dio d�� a
medida do vosso temor.
Se n��o te coubesse a sorte, outro sacerdote deveria
dar-lhe a filha, porque eu quero, entendes, padre de He-
li��polis, eu quero que aquele que vos h�� de humilhar seja
aliado �� vossa casta; que o seu sangue se misture ao
vosso e apague a ��ltima n��doa do seu passado de escravo.
Reflete bem, Pot��fera; o poder e a for��a est��o ainda nas
minhas m��os; considerarei tua recusa uma revolta aberta
e tomarei, ent��o, contra v��s, as mais severas medidas.
Cabe-te julgar se uma devassa impiedosa, uma busca
imediata nos templos n��o fariam surgir documentos e tes-
temunhos que entregassem ao carrasco a tua cabe��a e a
de muitos dos teus confrades; e se n��o �� prefer��vel dar
o exemplo da submiss��o e receber o futuro esposo de tua
filha com respeito e reconhecimento, como o mandat��rio
de um favor real. Tua obedi��ncia destruir�� os ��ltimos
preju��zos da nobreza e dos padres e ser�� talvez a base
de uma era de tranq��ilidade. Por esse pre��o, quero es-
quecer esta hora e conservar minhas benevolencias para
com os templos e a tua casta. Agora, responde: sim ou
n��o?
Cada palavra de Apopi ecoava em Pot��fera como pan-
cada de martelo. Naquele momento cr��tico as classes se
tinham nivelado: os dois homens que, silenciosos, tr��mu-
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J. W. ROCHESTER
los, se mediam com o olhar, n��o eram mais o Fara�� e o
vassalo, mas dois terr��veis advers��rios: o representante
do poder oficial e o do poder secreto. Cada qual podia
causar no outro feridas profundas: qual o mais forte?
Era o que restava saber.
Pot��fera media a espantosa responsabilidade que,
nesse instante, lhe pesava nos ombros, se por um ego��s-
mo pessoal desencadeasse prematuramente a luta decisiva,
quando as for��as eram ainda muito desiguais e, por isso
mesmo, reduzisse a nada todos os preparativos secretos,
fazendo desmoronar o perigoso edif��cio que elevavam, e
esmagando sob os escombros milhares de cabe��as, os an��is
vivos dessa cadeia pol��tica que devia, pouco a pouco, en-
la��ar qual serpente o trono do usurpador e abafar o es-
trangeiro maldito que se comprazia em lhes infligir os
mais ign��beis ultrajes.
Pot��fera arquejava, seu cora����o se retorcia como ao
contacto de um ferro em brasa, mas a raz��o dizia ao
patriota, ao pol��tico, que, em vez de arriscar todo o futuro
do Egito, devia sacrificar a filha.
Apopi acompanhara com olhar penetrante a agonia
moral que se desenhava nas fei����es j�� l��vidas do vencido
e, inclinando-se para ele, murmurou:
��� Vejo que me compreendeste, e, se n��o tens medo
por ti mesmo, tremes por teus c��mplices; vai, pois, padre
de Heli��polis, anunciar �� tua filha quem lhe est�� desti-
nado para esposo. Um decreto vai tornar conhecido do
pa��s, que o Adon e os padres celebram alian��a. Mandarei
�� tua casa os presentes reais que, nessa ocasi��o, desejo
conceder-te.
Sem responder, independente das sauda����es protoco-
lares, o sacerdote se desviou e, cambaleante, como ��brio,
deixou o gabinete real e arrastou-se at�� �� liteira.
Putifar preparava-se para sair, quando os lacaios do
cunhado penetravam no p��tio. Ao divisar o rosto l��vido,
convulso, acabrunhado do sacerdote, ficou possu��do de
horror e pesar, mas, com a decis��o pronta e calma que o
caracterizava, auxiliou-o a descer da liteira, levou-o para
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173
o quarto e, tendo-o feito sentar-se, obrigou-o a beber
alguns goles de vinho.
��� Agora fala, Potifera, dize-me se ��s acusado de
lesa-majestade ou convencido de rebeli��o ��� disse o an-
tigo chefe dos archeiros, apertando fortemente as m��os
frias do padre, que se aprumou murmurando:
��� Desgra��a tal, ultraje t��o aviltante desaba sobre
nossa familia, que, por evit��-lo, a morte seria uma feli-
cidade.
��� N��o fales por par��bolas, que me queimas a fogo
lento. De quem e de que se trata? ��� perguntou Putifar
empalidecendo.
��� Trata-se de Asnath, a nossa Asnath, para a qual
o Fara��, no excesso do seu favoritismo, escolheu um es-
poso, que ��, por sinal... o liberto a quem tirou da lama
para nos humilhar ��� respondeu o sacerdote com uma
risada estridente.
��� N��o estar��s divagando?... Como conceber seme-
lhante coisa? ��� disse o antigo chefe dos archeiros, re-
cuando, como se tivesse sido mordido por uma vibora.
Procurando acalmar-se, o sacerdote narrou a tr��gica
entrevista que tivera e as raz��es pol��ticas que o for��aram
a dar um t��cito consentimento �� arbitr��ria viol��ncia que
lhe faziam.
��� E amanh�� todo o Egito saber�� que minha filha
est�� infamada! Infeliz Asnath! Como suportar�� a sepa-
ra����o de Hor, o mancebo nobre e leal, para pertencer a
esse c��o imundo que, nesta casa, desempenhou os mais
baixos misteres de escravo?
Num louco acesso de desespero, segurou a cabe��a com
as duas m��os e, dando um grito surdo, atirou-se numa
cadeira.
Fez-se por instante um pesado sil��ncio; finalmente,
o sacerdote levantou-se e, agitando o punho fechado,
murmurou:
��� Chegar�� um dia a hora da vingan��a e, ent��o,
Fara�� Apopi, lembrar-me-ei da gra��a que hoje me conce-
des. Queres, meu irm��o, auxiliar-me a escrever algumas
palavras aos principais padres de M��nfis, pedindo-lhes
174
J. W. ROCHESTER
que venham aqui sem demora? Devo consult��-los (talvez
seja ainda poss��vel uma sa��da) e, em todo caso, preve-
ni-los.
Feitos e expedidos cerca de doze convites, o sacerdote
disse, fatigado:
��� Faze o favor de chamar minha mulher e Ranofrit;
�� preciso preveni-las, a fim de que, falhando o recurso,
preparem Asnath para a desgra��a que a espera.
Seria dif��cil descrever o espanto das duas mulheres
ao saberem do que se passava. Ranofrit desmaiou e Maia,
louca de desespero, foi conduzida ao quarto por Putifar,
que, depois de confiar sua mulher ��s aias, voltou rapida-
mente para junto do cunhado que, debru��ado �� mesa,
olhos chamejantes, ruminava projetos cada qual mais fan-
t��stico.
��� Acalma-te, Pot��fera, e n��o tentes lutar doidamente
contra o inevit��vel. Onde o teu sangue-frio de homem de
Estado, a prud��ncia do sacerdote e do s��bio?
��� Acabo de experimentar que o s��bio e o homem de
Estado se apagam diante do pai e que �� mais f��cil pres-
crever sacrif��cios que realiz��-los ��� respondeu Pot��fera,
enxugando a fronte molhada de suor. ��� E quando penso
no desespero da minha desgra��ada filha; no futuro abo-
min��vel que a espera como esposa desse homem abjeto
e nauseabundo, perco toda a coragem.
Enquanto isso se passava, a pessoa mais interessada
nada sabia ainda da transforma����o operada no seu des-
tino e brincava, alegre e descuidosamente, no jardim, com
os dois filhos de Putifar.
Uma jovem criada correu �� sua procura e, titubeante,
anunciou que a nobre Ranofrit estava desmaiada e a
nobre Maia em estado de exaspera����o: continuava im��vel
no lugar onde o senhor a acomodara, sem ver nem ouvir
coisa alguma. Mortalmente aterrada, a mo��a precipitou-
-se para o quarto da tia, ainda sem sentidos.
��� Que tens? ��� exclamou Asnath, ajoelhando-se aos
p��s de Maia, que, inteiri��ada, olhos dilatados e espanta-
dos, tinha aspecto de louca.
A voz e o contacto da filha restitu��ram subitamente
�� pobre mulher a vida e o movimento; dando um grito
O C H A N C E L E R DE F E R R O
175
aflitivo, apertou-a contra o peito, cobriu-a de beijos e
depois, soltando-se bruscamente, p��s-se a correr pelo
quarto, rasgando as roupas, gadanhando o seio, arran-
cando os cabelos, batendo com a cabe��a nas paredes, aos
gritos e suspiros. Ranofrit, que acabava de reabrir os
olhos, completou o coro, misturando suas l��grimas com
este grito: "Asnath! infeliz! tua sorte me corta o cora-
����o!"
Inteiramente estupefata, l��vida de espanto, a mo��a
exclamou:
��� Dizei logo: que desgra��a sucedeu a papai? Estar��
doente, machucado?
��� N��o ��� respondeu finalmente Maia entre suspi-
ros. ��� Teu pai est�� bem, n��o sofreu qualquer desastre,
mas espantosa desgra��a nos fere a todos, a ti sobretudo,
pobre filha! (E, apaixonadamente, abra��ou-a de novo.)
��� Hor morreu ou est�� ferido? ��� exclamou Asnath
fora de si.
��� N��o, nada lhe sucedeu e, todavia, arma-te de co-
ragem, uma hora bem triste te espera.
��� Ent��o, dize o que aconteceu; n��o me tortures ainda
mais com a incerteza ��� disse Asnath tremendo dos p��s
�� cabe��a.
��� N��o, n��o ��� gritavam as mulheres a uma voz ���,
teu pr��prio pai que te diga a verdade e talvez que ainda
ele encontre um meio de te salvar. Oremos antes aos imor-
tais para que nos auxiliem e sustentem.
Como ��bria, Asnath ajoelhou-se diante do pequeno
altar onde se viam as estatuetas de Ptah, ��sis e outras
divindades, e procurou orar, mas, que lhe cumpria implo-
rar aos imortais? O perigo invenc��vel e desconhecido que
a amea��ava enchia-a de terror, de tristeza insond��vel.
Im��vel, sem saber o que pensar, fitava as ef��gies dos
deuses. S��bito lhe veio a id��ia de que eles, os imortais,
sabiam tudo e conheciam, portanto, a desgra��a que ia
feri-la, mas possu��am tamb��m o poder de salv��-la. E,
vertendo l��grimas ardentes, p��s-se a implorar a prote����o
dos invis��veis.
176
J. W. ROCHESTER
Enquanto esta cena se desdobrava no quarto das mu-
lheres, os padres convocados por Pot��fera se tinham reu-
nido e, com frases breves, por��m claras, o sacerdote lhes
retra��ou a entrevista da manh�� e a inaudita inj��ria que
feria toda a casta na pessoa da filha.
��� N��o quis assumir a responsabilidade de compro-
meter o futuro do Egito e a nossa vingan��a ��� disse ���,
mas antes de infamar minha filha, entregando-a a esse
c��o impuro, quis consultar-vos, perguntar-vos: temos,
sim ou n��o, a for��a de afrontar abertamente o chasou
maldito, ou se meu sacrif��cio �� indispens��vel?
O rubor da c��lera e indigna����o havia coberto as fisio-
nomias sacerdotais, ao saberem da nova humilha����o que
feria a orgulhosa casta. Carrancudos e tr��mulos, consul-
taram-se, mas a triste verdade era inilud��vel: n��o estavam
ainda suficientemente preparados; os fios da conspira����o
eram ainda pouco s��lidos. Ta�� III, muito afastado e
muito fraco para tentar a luta decisiva. P��lidos, mudos,
baixaram a cabe��a. Por fim, levantando-se, o velho sacer-
dote do templo de Ptah, que, aproximou-se de Pot��fera e
apertou-lhe fortemente a m��o ��mida e gelada, dizendo:
��� Irm��o e amigo, teu amor pela terra de Kemi, tua
fidelidade aos nossos leg��timos Fara��s j�� te indicaram a
��nica solu����o poss��vel: sabes, t��o bem como n��s, que a
hora da liberta����o n��o soou e que uma revolta extempo-
r��nea nos entregaria ao guante do chasou; faria cair
muitas cabe��as, comprometeria toda a causa. Tua pobre
filha deve ser sacrificada ao estrangeiro, pura e inocente
v��tima, em holocausto �� p��tria; os deuses me s��o teste-
munha de que, se quisessem aceitar, em troca, uma de
minhas tr��s filhas, d��-la-ia com prazer para poupar o teu
��nico tesouro. Mas a hora da vingan��a est�� pr��xima.
Surdo gemido escapou-se do peito do sacerdote e,
num momento, escondeu a cabe��a nas m��os; mas, logo
aprumando-se com energia, voltou-se para o cunhado
que, p��lido, dentes cerrados, escutava encostado �� parede:
��� Putifar, pe��o-te que v��s chamar Asnath para que
ou��a da boca de meus vener��veis irm��os a terr��vel ver-
dade e a necessidade do sacrif��cio. Por mim, sinto-me
incapaz de falar.
O C H A N C E L E R DE F E R R O
177
E, levantando-se bruscamente, passou ao quarto con-
t��guo.
Ao aproximar-se do quarto das mulheres, os gritos e
solu��os que l�� continuavam sem interrup����o atingiram
os ouvidos de Putifar e sua fronte ensombrou-se. Apres-
sando o passo, afastou bruscamente a cortina e deitou
um olhar para o interior. A vista da mulher e de Maia
que, desgrenhadas, vestes rasgadas, portavam-se como
loucas, enquanto Asnath, ajoelhada perto do altar pare-
cia petrificada de espanto, o antigo chefe dos archeiros
franziu o sobrolho e falou com austeridade:
��� Pois qu��! Eu vos supunha, a ambas, mais razo��-
veis. Em lugar de sustentar a coragem desta menina, vos
lamentais como em funerais? Por Tifon! n��o �� a morte
que a espera... Que lhe dissestes para estarrec��-la assim?
��� Nada; esper��vamos que ainda a salvassem ���
gemeu Ranofrit, enquanto Putifar, afetuoso, levantava
Asnath.
��� Vem, minha filha, e n��o tremas assim; em tudo
o que os deuses nos imp��em �� preciso procurar o lado
favor��vel.
No quarto cont��go, parou, encheu um copo com ��gua
fresca, aproximou-o dos l��bios tr��mulos da mo��a e disse,
carinhoso:
��� Bebe e s�� corajosa; �� verdade que se vai exigir de
ti um pesado sacrif��cio; mas no fundo n��o ser�� talvez
t��o terr��vel quanto parece e mais de uma eg��pcia invejar��
tua sorte.
��� Meu tio, dize-me o que exigem de mim; que eu
saiba a verdade por tua boca, n��o em presen��a dos padres
estranhos que, sei, est��o reunidos no quarto de meu pai.
Putifar fitou-a com ternura e compaix��o e, mergu-
lhando um olhar perscrutador nos belos olhos ��midos
que lhe suplicavam, perguntou:
��� J�� viste Jos��, o Adon do Egito?
��� Sim, uma vez, quando passou por Heli��polis.
��� Que tal te pareceu?
Ela enrubesceu vivamente.
178
J. W. ROCHESTER
��� Sim, �� belo, mas que Importa? ��� acrescentou
s��frega.
��� A probabilidade de seres sua mulher te espanta-
ria muito?
A mo��a recuou com um grito de espanto, mas Putifar
n��o lhe deu tempo de refletir; tomando-lhe a m��o, arras-
tou-a rapidamente para o quarto do pai.
Diante dos padres de p��, graves e silenciosos, e de
todos os olhos nela cravados, Asnath foi assaltada de
tremor nervoso e em v��o procurou o pai com o olhar.
Foi Ptah-hotep, sacerdote do templo de Ptah, em
M��nfis, quem se aproximou e, paternalmente, lhe p��s a
m��o na cabe��a. Asnath conhecia de menina o vener��vel
anci��o, a quem amava e respeitava; sua presen��a reani-
mou-a um pouco.
��� Foi uma grande e triste necessidade que aqui nos
reuniu ��� disse solenemente Ptah-hotep ��� e n��o �� a uma
crian��a que falo, mas a uma mulher, �� filha do ilustre
Pot��fera, o grande servo do seu deus e da terra de Kemi.
Vou, pois, expor-te toda a verdade. O Fara�� Apopi esco-
lheu-te para esposa de Jos��, o Adon que ele imp��s ao
Egito. Seria para ferir e humilhar nossa casta, ou para
nos levar a uma resist��ncia aberta, que, no momento,
seria desastrosa para n��s? N��o sei, mas �� certo e n��s aca-
bamos de discuti-lo ainda uma vez, que a nossa e a tua
recusa a este casamento provocariam cru��is repres��lias,
que poderiam custar a vida a teu pai e aos melhores ho-
mens do pa��s. Portanto, pobre crian��a, curva-te �� von-
tade real e, como digna filha de quem ��s, sacrifica o
homem que amas e tua felicidade pessoal ao futuro e
tranq��ilidade do Egito.
Vendo-a oscilar, o sacerdote amparou-a.
��� Que dir�� Hor? ��� murmurou aflita.
��� Hor �� eg��pcio que n��o desejar�� corar diante da
grandeza dalma de uma mulher; �� um homem e deve
sacrificar, �� liberta����o futura do seu pa��s e �� vingan��a
que acarreta a hora presente, todo o resto de sua vida.
��� Onde est�� meu pai? �� da sua boca que quero ouvir
minha condena����o; se �� da sua vontade que me sacrifi-
que ��� exclamou solu��ante.
O CHANCELER DE FERRO
179
Quase no mesmo instante, Pot��fera surgiu �� entrada
do quarto. P��lido e desfigurado, mas voz clara e firme,
quando respondeu com incisivo entono:
��� Sim, filha, teu sacrif��cio �� indispens��vel; e desejo
que esposes esse homem; s��, pois, forte e suporta digna-
mente o que te imp��e o destino.
Sem responder, Asnath atirou-se nos bra��os do pai.
Mas a emo����o das ��ltimas horas, a superexcita����o nervo-
sa fora assaz violenta. Perdeu os sentidos. Pot��fera le-
vou-a para o seu quarto, prodigalizou-lhe, auxiliado por
um padre, os primeiros cuidados; depois, tendo severa-
mente proibido �� mulher e �� cunhada qualquer demons-
tra����o de pesar que aumentasse a irrita����o da mo��a,
voltou para junto dos colegas. Retirados estes, discutiu
com Putifar as provid��ncias impostas pelos imprevistos
acontecimentos. Em primeiro lugar, ficou decidido que
Pot��fera e sua fam��lia se instalariam, no dia seguinte, em
sua pr��pria casa, a fim de poupar ao antigo chefe dos ar-
cheiros a ocasi��o de ver e receber Jos��, cuja primeira vi-
sita provavelmente se verificaria dentro de tr��s dias. O
Adon tinha partido, na v��spera, para neg��cio urgente, e
sabiam que s�� apareceria para celebrar oficialmente os
esponsais. Seguramente, ele se enganava quanto �� alegria
provocada com essa alian��a.
Quando Asnath voltou a si, uma prostra����o ap��tica
tinha substitu��do a exalta����o. Incapaz de pensar, acabou
adormecendo num sono pesado e febril; mas, depois de
algumas horas de repouso, despertou mais calma e, no
sil��ncio e na solid��o da noite, pensou no golpe inesperado
que viera cortar o seu destino e dar-lhe nova dire����o.
A imagem de Jos�� se lhe apresentou �� mem��ria com
amargurosa clareza. Ao lembrar-se do olhar de fogo que
a trespassara como um raio, estremeceu. Como a encara-
ria ele, agora, quando a visse como noiva? Apesar disso,
apesar de todo o mal que ouvia dizer a seu respeito, n��o
chegava a sentir por ele o desprezo e repulsa que inspi-
rava aos seus parentes: era belo, poderoso, o primeiro
no Egito; seu exterior e maneiras eram os mesmos dos
homens da sua sociedade.
180
J. W. ROCHESTER
Mas a lembran��a de Hor e o futuro desconhecido que
tinha diante de si negrejaram logo todos os seus pensa-
mentos; em lugar do homem amado, era um desconhe-
cido de origem obscura, a quem ia ligar-se para sempre.
Como se desenrolaria essa vida conjugal, que havia so-
nhado t��o diversa? Que seria, na intimidade do lar, aque-
le homem a quem vira apenas uma vez, que nunca lhe
dissera uma palavra de amor? O medo e a tristeza inva-
diram-na e, sob o efeito desses agentes, a beleza e a alta
posi����o do Adon desapareceram, transformando-o num es-
pectro espantoso, horr��vel, que, com as m��os cru��is, esma-
gava as suas esperan��as. Escondendo o rosto nas m��os,
come��ou a chorar.
De manh��, levantou-se p��lida, triste, mas aparente-
mente calma. O ru��do e aprestos da mudan��a deixavam-
-na Indiferente; s�� tinha um desejo: rever Hor, apertar
pela ��ltima vez a sua m��o leal, chorar com ele a felici-
dade perdida. Mas o oficial estava ausente, levado pelo
Adon em sua excurs��o.
Apenas a fam��lia se instalara, viu chegar do pal��cio
uma fila de escravos e criados trazendo �� noiva do Adon
presentes reais. Apopi mostrara-se generoso e as cestas e
caixinhas continham verdadeiras maravilhas: j��ias e pa-
nos preciosos. Asnath n��o deitou um olhar sequer a esses
tesouros, e a munific��ncia real pareceu-lhe p��ssima ironia.
O dia transcorreu como em sonho. Toda a casa em
movimento, devido aos preparativos, porque Jos�� man-
dara anunciar que no dia imediato iria saudar a noiva
e celebrar os esponsais oficiais. Todos os escravos estavam
ocupados em tran��ar grinaldas floridas, estender tapetes
e armar galhardetes; toda a morada do sacerdote tomava
um ar de festa, mas a jovem hero��na, da solenidade que
se preparava, permanecia indiferente e taciturna. Imersa
em triste cismar, refugiara-se num quarto vizinho ao do
pai, mais afastado do bul��cio, e pensava em Hor, quando
um passo brusco repercutiu no corredor e o jovem oficial,
p��lido, olhos flamejantes, apareceu no limiar.
Ao v��-lo, Asnath deu um grito de alegria e dor e, num
apaixonado impulso, lan��ou-se-lhe nos bra��os; mas o
mo��o repeliu-a asperamente e perguntou:
O CHANCELER DE FERRO
181
��� �� verdade o que se diz em toda a cidade e se con-
firma nos aprestos que enchem esta casa? Tra��ste a pa-
lavra empenhada, para te unires ao Adon, essa n��doa do
Egito?
��� Hor, podes tu acusar-me de infidelidade, quando
os padres e meu pai me for��am a desposar Jos��? ��� ex-
clamou angustiada, ferida no cora����o pela c��lera do
noivo.
Ele pareceu moderar-se com a resposta e, atraindo-a
bruscamente, perguntou, mergulhando no seu um olhar
febril e perscrutador:
��� N��o amas a esse homem?
��� Creio que est��s louco, Hor! ��� respondeu despei-
tada ��� eu, amar esse escravo liberto ao qual s�� vi uma
vez e que me inspira ��dio e aborrecimento?
Intenso rubor cobriu o rosto do mo��o eg��pcio. Apai-
xonadamente apertou Asnath de encontro ao cora����o e
cobriu-a de beijos.
��� N��o o amas ��� disse enfim, respirando com al��-
vio. ��� Ent��o, nada est�� perdido: foge comigo para Tebas;
tenho l�� um parente que nos h�� de receber, saberei pro-
teger-te e, apesar de tudo, seremos felizes.
��� Est��s louco e queres entregar nossas cabe��as ao
carrasco para realizar um sonho de amor irrevogavel-
mente destru��do? ��� interveio nesse instante a voz de
Pot��fera.
Voltaram-se e viram o sacerdote e o cunhado, em
p��, na porta do quarto.
��� E eu n��o quero ced��-la; �� minha fortuna, minha
noiva; tenho o direito de preserv��-la da uni��o odiosa ���
respondeu Hor em tom de desafio e revolta, enquanto
Asnath o abra��ava.
Putifar quis responder, mas o sacerdote afastou-o
com um gesto fatigado e, aproximando-se de Hor, p��s-lhe
a m��o no ombro.
��� Segue-me, filho, devo falar-te em particular; e tu,
Asnath, espera; dentro de um quarto de hora nos junta-
remos em meu quarto.
182
J. W. ROCHESTER
Amparada pelo tio, que fazia todos os esfor��os para
consol��-la, a mo��a sentou-se em uma cadeira e desfez-se
em l��grimas.
Hor, profundamente perturbado, seguira Pot��fera. As
fei����es alquebradas e macilentas do sacerdote, as pro-
fundas rugas que lhe vincavam o rosto provavam o ter-
r��vel abalo que sofrera a sua natureza altiva e robusta.
E, �� noite, a luz vacilante das l��mpadas tornava a ex-
press��o geral mais l��gubre ainda.
��� Filho querido, mais amado e mais pr��ximo que
nunca do meu cora����o, escuta, julga e suporta, como ho-
mem, a inevit��vel desgra��a. Compreendo que experimen-
tas toda a aflitiva dor que sentimos, mas vou desven-
dar-te, sem restri����es, o que nos for��a a proceder assim.
Em palavras breves, mas de clareza luminosa, Po-
t��fera desenrolou toda a situa����o pol��tica, o vasto plano
de liberta����o tra��ado pelos padres, a marcha da conspi-
ra����o e o perigo mortal que amea��ava todo o futuro do
Egito se uma subleva����o prematura, premeditada talvez
pelo miser��vel Fara�� e seu instrumento, o Adon, viesse
comprometer os templos, todos os membros da conspira-
����o e provocar cruel persegui����o da parte do chasou.
A medida que o sacerdote falava, o rapaz baixava a
cabe��a. Acabara de compreender a grandeza da causa a
que se imolava a noiva querida.
��� Agora, meu filho, compreendes que n��o posso pro-
ceder de outro modo. Perco, como tu, um ser amado, por-
que ver Asnath esposa desse animal impuro �� pior que
v��-la morta. E, agora, eis o que decidi a teu respeito: n��o
podes aqui ficar e servir sob as ordens do infame que te
rouba a felicidade; tua pr��pria vida talvez corresse perigo,
porque �� poss��vel que tenha ci��mes de ti.
Portanto, j�� tomei todas as medidas para facilitar-te
a fuga para Tebas: partir��s ainda esta noite, disfar��ado
em escriba; espera-te uma barca tripulada por vigorosos
e h��beis remadores e, de templo em templo, despachar-
-te-��o, ocultando-te se for preciso, at�� ganhares Tebas.
Preparo-te cartas para o sacerdote de Amon-Ra e outros
dignit��rios, e nosso leg��timo e glorioso Fara��, Sekenen-
O C H A N C E L E R DE F E R R O
183
-Ra (os deuses lhe concedam gl��ria, vida, sa��de) te re-
ceber�� honrosamente, como servo devotado; trabalhar��s
para a vingan��a e liberta����o do Egito, talvez para tua
felicidade, porque a derrota do chasou ser�� a morte da
sua criatura e Asnath, livre, ser�� tua leg��tima recompen-
sa. Ainda uma palavra: em Tebas o sacerdote entregar-
-te-��, de minha parte, doze talentos de Babil��nia, a fim
de que possas viver conforme a tua classe.
Vendo Hor abrir a boca para protestar, acrescentou
com autoridade:
��� Nem uma palavra: ��s e ficas sendo meu filho, re-
servo-me o direito de velar pelo teu futuro. Agora, vou
chamar Asnath para que te despe��as dela.
Ao primeiro olhar que a mo��a lan��ou ao rosto l��vido
e desfeito do ex-noivo, compreendeu que tudo estava per-
dido. Apesar do morno e embalsamado ar que entrava
pela janela aberta, Asnath estremeceu e seus pequenos
dedos gelados agarraram-se �� m��o do homem que ia per-
der para sempre.
��� Vejo que me abandonaste ��� murmurou.
L��grimas, que ele pr��prio n��o procurava reter, inun-
daram as faces do infeliz rapaz.
��� Sim, parto, mas sem ti s�� viverei para vingar-me.
E tu, Asnath, n��o me esquecer��s?
Raiva e desespero cintilavam-lhe nos olhos, vibra-
vam-lhe na voz e, subitamente, arrastou a mo��a para a
frente de um nicho, no fundo do qual estava colocada a
imagem de Toum (o deus Sol, de Heli��polis) iluminada
por uma l��mpada; inclinando-se, disse convulsivamente:
��� O mais duro sacrif��cio �� partir sem molhar meu
machado no sangue do covarde que me rouba a felicidade;
jura-me, por��m, ao menos, ante a imagem do deus, que
s�� a mim amas.
��� Amo-te, juro-o, e se isso te pode consolar, mata-
-me ��� murmurou Asnath sucumbida pelos mais desen-
contrados sentimentos.
��� Ent��o, jura-me que nunca amar��s esse homem;
que tua boca nunca lhe dir�� "amo-te!" ��� como acabas
de mo dizer a mim; jura-o por nosso amor, pela salva����o
184
J. W. ROCHESTER
de todos n��s; deixa-me levar para o ex��lio esta suprema
consola����o de que nunca o ouvido do miser��vel ouvir��
essa palavra embriagadora... e de que os deuses te feri-
r��o com toda a sua c��lera se me faltares a esse jura-
mento.
A mo��a, tr��mula, confusa, emudecera, mas o sacer-
dote que seguia com olhar ardente as perip��cias da cena,
interveio e disse com voz lenta, acentuando cada palavra:
��� Como podes recear que Asnath esque��a jamais a
hora nefasta em que te perde, as ang��stias dos parentes,
a humilha����o da sua casta?
Ela sacrifica o corpo, mas fica senhora da alma e se
lembrar�� sempre que �� a filha de Pot��fera; do primeiro
sacerdote do Egito; que vai ligar-se a um escravo, a um
inimigo do seu povo, estrangeiro impuro. Mas, se porven-
tura (a voz de Pot��fera ribombou qual surdo trov��o) ela
esquecesse estas horas de dor para trocar juramento de
amor com o nosso mais cruel inimigo, eu a renegaria e
amaldi��oaria, apontando-a �� maldi����o de toda a nossa
casta.
��� Pois bem! Queres jurar-me fidelidade eterna, ou
receias que esse homem, belo e poderoso, conquiste teu
cora����o, apesar de tudo? ��� perguntou Hor com os olhos
coruscantes.
Asnath quis responder, mas os l��bios tr��mulos lhe
recusaram aux��lio: o instinto incorrupt��vel do seu cora-
����o inocente lhe dizia que esses dois homens, cegos pelo
��dio, pelo ci��me e pela humilha����o, queriam lig��-la por
um juramento contra a Natureza, exigindo-lhe detestar
e zombar de um homem com o qual a obrigariam a ca-
sar-se. A mente lhe assomou, ent��o, o belo e inteligente
semblante de Jos��; reviveu o seu olhar fascinador e, com-
pletamente vencida, murmurou em tom quase impercep-
t��vel:
��� Entretanto, devo pertencer-lhe e, se for bom para
mim, poderei votar-lhe ��dio por toda a vida?
��� Bom contigo? crian��a tresloucada! Podes esperar
gra��a de um chacal esfaimado? ��� interrompeu o sacer-
dote com o rosto incendido. ��� Esqueces que �� a vontade
O C H A N C E L E R DE F E R R O
185
do Fara�� que disp��e de ti como de uma escrava e que
estas n��pcias, mais l��gubres que a morte, nos ferroteiam
com um estigma afrontoso e indel��vel?
��� N��o digas palavras in��teis, meu pai; n��o v��s que
os olhos verdes do estrangeiro cativaram o cora����o de tua
filha? E tu, Asnath, n��o jures o que j�� temes infringir.
A esposa do Adon pode lembrar-se de um miser��vel fu-
gitivo?
Uma tal raiva desesperada vibrava na voz do mo��o
eg��pcio, seu olhar transbordava tanta amargura, que
Asnath tudo esqueceu e, vendo-o desviar-se para sair,
correu para ele e o reteve:
��� Hor, Hor, n��o me deixes assim com o cora����o cheio
de fel e indigna desconfian��a; jamais amarei o Adon,
quanto a ti, e n��o receio jurar-te fidelidade at�� �� morte.
Resoluta, aproximou-se da imagem, fez rapidamente
um sacrif��cio de vinho e de incenso; depois, com voz firme,
pronunciou o juramento exigido, de amar Hor enquanto
vivesse e jamais conceder ao Adon uma palavra de amor.
��brio de alegria, o mancebo apertou-a nos bra��os; em
seguida Pot��fera aben��oou-a, abra��ou-a e depois, ajoe-
lhando-se diante do nicho, pronunciou com un����o:
��� Deus poderoso, agrade��o-te me haveres dado uma
filha t��o her��ica, na hora da desgra��a.
O adeus foi curto; trocaram um ��ltimo beijo, um der-
radeiro abra��o; Hor envolveu-se no manto e deixou a casa.
Esmagada f��sica e moralmente, Asnath se arrastou at�� ao
quarto.
O sacerdote ficou s�� com o cunhado, que, enquanto
durou a entrevista, conservara-se mudo. Fez-se longo
sil��ncio. Enfim Putifar, andando de um lado para outro,
parou diante do sacerdote e disse gravemente:
��� Compreendo e compartilho teus pesares; ��s v��tima
de uma viol��ncia inaudita; entretanto, Pot��fera, o ��dio
torna-te cego e injustamente cruel para com a pobre
Asnath, sobre quem recai a parte mais dura do sacrif��cio.
N��s sofreremos este homem apenas como parente; ela
deve suport��-lo como marido e por toda uma longa exis-
t��ncia; condenas esta inocente v��tima a uma posi����o falsa,
186
J. W. ROCHESTER
retiras-lhe toda a possibilidade de uma vida suport��vel
e a entregas, talvez, �� vingan��a desse homem inflex��vel.
Ergueu-se o sacerdote, um ardor de selvagem fana-
tismo lhe jorrou dos olhos e, segurando o bra��o de Putifar,
murmurou:
��� Prefiro antes v��-la morta que feliz nos bra��os do
impuro.
E n��o compreendes que, desde o momento em que ela
o amasse, tomar-se-ia sua aliada e favor��vel aos nossos
perseguidores? N��o, eu devia cavar um abismo entre ela
e o homem belo e perigoso, porque um cora����o de mulher
�� coisa fr��gil.
XIII
O ADON E SUA NOVA PARENTELA
Seu rosto (de Jos��) �� formoso
e agrad��vel, as m o �� a s correram por
cima do muro para v��-lo.
Mas os que e s t a v a m armados de
dardos o picaram e tiveram rixas
c o m ele, e o invejaram mortalmen-
te. ��� G��nese, c a p . XLIV, w. 22, 23.
Depois da partida de Hor, Asnath voltara ao quarto,
num estado dalma dif��cil de descrever. Despediu a aia e,
vestida como estava, estendeu-se na cama.
Parecia-lhe ter sobre o peito o peso de um rochedo;
o futuro lhe surgia como abismo escuro, sem sa��da, sem
um raio de luz que o iluminasse. Presa de agonia indefi-
n��vel, o pensamento errava do noivo amado, que acabava
de perder para sempre, para o futuro esposo que tinha
jurado odiar. E quanto mais pensava, mais crescia a an-
g��stia moral. Enfim, esgotada de l��grimas, alquebrada
moral e fisicamente, caiu num sono pesado e febril.
Mas todo o seu ser estava assaz sobreexcitado para
achar repouso, e um sonho estranho, l��gubre, veio agit��-la
de novo. Parecia-lhe que Hor e Jos�� esquadrinhavam-lhe
furiosamente o peito, arrancavam-lhe o cora����o e, fulos
de ��dio e raiva, disputavam-se o farrapo sanguinolento,
enquanto ela ca��a, espeda��ada por uma dor atroz, num
golfo escuro, que logo reconheceu como o Amenti, o reino
dos mortos. Penosamente lutava com todos os obst��culos
descritos no livro dos mortos, pelos quais a alma deve
188
J. W. ROCHESTER
passar antes de penetrar no pal��cio de Os��ris. Sem saber
como, viu-se de s��bito diante do juiz supremo e dos seus
quarenta e dois conselheiros, enquanto Tot pesava os
seus atos na balan��a da eterna justi��a. Mas em v��o o
deus procurava seu cora����o, para coloc��-lo na segunda
concha: o cora����o ficara na Terra. Ent��o, Os��ris fitou-a
com um olhar penetrante e perguntou severamente:
��� Por que vens sem cora����o? por que o deixaste di-
lacerar por dois homens? N��o sabias que ele s�� podia
pertencer ��quele que te estivesse destinado pela divinda-
de? Volta, pois, �� Terra, entrega-o ��quele a quem amas
e traze-o com tuas m��os para ser pesado nesta balan��a;
do contr��rio, erra sem descanso, sombra sofredora, men-
tira viva, entre o C��u e o Amenti, procurando sempre o
cora����o perdido!
Tr��mula, coberta de suor, despertou e apertou com a
m��o ansiosa o cora����o palpitante: estava bem ali o pe-
queno ��rg��o que encerra todos os impulsos para o C��u
e todos os sofrimentos do inferno; um universo, no qual
roncam tempestades, levantam-se vagas tumultuosas que,
todavia, se quebram sem for��a de encontro aos fr��geis
muros deste mundo estranho e misterioso. Com efeito, que
mist��rio mais estranho que o cora����o humano, sempre o
mesmo, que nem os s��culos, nem os cataclismos podem
modificar! Os continentes submergem, popula����es surgem
e desaparecem, por sua vez, no golfo insond��vel do pas-
sado ! . . . E o cora����o humano n��o mudou: os mesmos
sentimentos de ��dio e de amor, de alegria e de dor o agi-
tam; fr��gil e entretanto indestrut��vel, debate-se na rocha
da fatalidade, a�� se destr��i momentaneamente para re-
nascer sempre.
Pensativa e alquebrada, deixou a cama e, sentando-se
perto da janela, come��ou a pensar. Essas horas de luta
moral tinham amadurecido e transformado em mulher a
descuidosa e risonha crian��a. Seu pr��prio exterior estava
modificado: as faces tinham perdido a frescura, os olhos
brilhantes se tinham nevoado de melancolia, uma expres-
s��o amarga e acerba lhe contra��a a boca outrora t��o sor-
ridente e graciosa.
O C H A N C E L E R DE F E R R O
189
A mudan��a operada na personalidade da filha inquie-
tou e desolou a mulher do sacerdote, mas nem mesmo lhe
sobrava ensejo para se lamentar, quando todos reclama-
vam a sua presen��a e as ��ltimas ordens. Tamb��m quando
chegou Ranofrit, que pretendia ajud��-la sem aparecer na
festa, Maia pediu-lhe que ficasse junto de Asnath e
cuidasse do seu enxoval. A fisionomia desfeita da mo��a
produziu, igualmente, profunda impress��o na mulher do
antigo chefe dos archeiros, aumentando ainda mais a
c��lera e o rancor que nutria contra Jos��. Asnath deixou-
-se preparar com a mais completa indiferen��a; apenas
recusou, terminantemente, enfeitar-se com qualquer dos
adere��os enviados pelo Fara�� ou pelo noivo, s�� aceitando
as j��ias que lhe ofertaram os parentes. Depois de vestida,
despediu as criadas para engolfar-se em profundo cismar.
Ranofrit, que tinha examinado conscienciosamente o
conte��do das cestas e caixinhas trazidas pela manh��, da
parte do Adon, e que Asnath n��o tinha honrado com um
olhar, deixou-se cair em uma cadeira e exclamou num
misto de c��lera e desprezo:
��� N��o, nunca teria podido acreditar que esse imundo
escravo, que berrava de fazer tremer a casa quando o
castigavam por seus delitos, se tornasse um dia membro
de nossa fam��lia e enviasse presentes de n��pcias quase
r��gios!
Visivelmente espantada, Asnath pediu �� tia uma ex-
plica����o dessas palavras e Ranofrit, levada pelas lembran-
��as, n��o se fez rogar e relatou, por mi��do, a degrada����o
e o castigo vergonhoso sofridos pelo antigo intendente do
marido, antes de ser enviado ao c��rcere.
A lividez da mo��a e o tremor nervoso que a sacudiram,
fizeram logo compreender a Ranofrit que fora mal ins-
pirada em semelhante narrativa, e logo estacou, p��lida
e confusa.
Na verdade, a altiva Asnath sentia-se como que es-
bofeteada: os ign��beis pormenores, contados pela tia, ha-
viam subitamente despojado Jos�� da aur��ola com que,
apesar de tudo, o circundavam a sua beleza e posi����o;
naquele instante ela sentia somente que era o escravo,
190
J. W. ROCHESTER
o miser��vel, conhecido pelos criados de Putifar, os quais
com suas m��os o tinham castigado e que, dentro de uma
hora, lhe daria o beijo dos esponsais; e o peso dessa hu-
milha����o a esmagava, enquanto a imagem de Hor reto-
mava um novo imp��rio.
A entrada da genitora, que vinha por lev��-la para
junto do pai, interrompeu aqueles dolorosos pensamentos.
Melanc��lica, mas resoluta, levantou-se e depois de um
beijo mudo, trocado com Maia, t��o p��lida e desfigurada
quanto sua filha debaixo dos ricos adornos, passaram
para o sal��o onde j�� se encontrava Pot��fera acompanhado
do seu escriba particular e de alguns padres de Heli��po-
lis, que formavam o seu s��quito oficial e o acompanhavam
em todas as surtidas na cidade do Sol.
O rosto do pont��fice, embora envelhecido e p��lido, ti-
nha retomado a express��o de calma e austeridade habi-
tuais. Aproximando-se da filha, apertou-lhe fortemente
a m��o, que reteve na sua para lhe dar coragem; e verda-
deiramente, a presen��a do pai reagiu beneficamente sobre
a alma combalida de Asnath: levantou altiva a linda ca-
be��a coroada de flores; e como long��nquos gritos anuncia-
vam a aproxima����o do Adon, postou-se resolutamente ao
lado de sua m��e, enquanto Pot��fera se dirigia ao encontro
do futuro genro.
Jos��, por sua vez, tinha passado uma noite agitada.
A pol��tica e o cora����o tinham ditado a sua escolha; tinha
necessidade dessa valiosa alian��a para assegurar prest��gio
diante do povo e nivelar o preju��zo que o separava das
altas castas. No Egito, onde a nobreza e os direitos de-
corriam da mulher, o genro de Pot��fera tornava-se igual
ao mais nobre e o neto pertenceria, de direito, �� primeira
casta do Reino. Aliava-se com a fam��lia onde tinha ser-
vido como escravo; era um acaso feliz e uma satisfa����o
ir��nica inchou-lhe a alma ao pensar que entraria, como
senhor e igual, na casa onde tinha sofrido a mais terr��vel
humilha����o da sua vida e que o orgulhoso Putifar, que
tinha desdenhado servir sob suas ordens, deveria abra-
����-lo como parente.
Mas, pouco a pouco, todos os pensamentos se concen-
traram em Asnath: como o receberia ela, cujo cora����o,
O C H A N C E L E R DE F E R R O
191
sem d��vida, teriam enchido de fel e desprezo contra ele?
Depois, a imagem de Hor surgiu-lhe na mente, enchen-
do-o de um ci��me ardente e mordaz. Procurou repelir tal
sentimento: ele tamb��m n��o era belo, mais belo, mais
poderoso do que o mesquinho oficial? Asnath o esqueceria,
era muito jovem e inocente para agasalhar os preju��zos
da fam��lia e acabaria amando-o. Sim, ela o amaria, por-
que ele o queria. Pouco a pouco o afagaram mais risonhas
id��ias; sonhou com a felicidade de chamar sua a ador��-
vel menina, cuja ��nica lembran��a lhe fazia bater como
nunca o cora����o e que o tinha apaixonado com um s��
olhar dos seus olhos azuis.
Depois de vestir-se com todo o luxo adequado ��s cir-
cunst��ncias, tomou a liteira dourada e florida, como de
uso para noivados e, acompanhado de numeroso s��quito,
assim como dos portadores de leques, dirigiu-se �� casa do
sacerdote. O povo que se amontoava �� sua passagem, acla-
mava-o ruidosamente, entusiasmado com a sua bela apa-
r��ncia e a riqueza do cortejo.
Quando a liteira parou, saltou lesto, atirou o manto
branco a um oficial, subindo desembara��ado a escada, em
cujo tope, cercado do seu s��quito, Pot��fera esperava-o
silencioso e altivo.
Parando diante do sacerdote, inclinou-se e disse, es-
tendendo-lhe a m��o:
��� Eu te sa��do, nobre Pot��fera, e bendigo os deuses
que me concedem rever-te em boa sa��de e cuja bondade
te arrancou do perigo que corria tua vida.
O pont��fice p��s as pontas dos dedos na m��o que lhe
estendia e respondeu num tom velado:
��� A vontade dos imortais �� s��bia; o homem �� que,
em sua cegueira, lhe desconhece os des��gnios e mendiga
uma vida que rejeitaria com horror, se previsse o que lhe
reserva o futuro. Mas agora (levantou a voz), deixa-me
desejar-te as boas-vindas sob este teto, Adon do Egito;
traze-lhe honra e felicidade e possam os deuses aben��oar
tua entrada em minha casa no momento em que estendes
a m��o para roubar-lhe sua j��ia, seu mais belo ornamen-
to ��� minha filha Asnath.
192
J. W. ROCHESTER
��� Confia-ma sem medo, ilustre e vener��vel pai; tua
filha ser�� feliz, amada e honrada na casa do esposo; como
Ra, do qual ��s o primeiro servo, ela encher�� com os raios
da sua beleza o meu pal��cio vazio, que espera sua dona.
E agora, permite que te d�� o ��sculo filial.
Pot��fera deixou-se abra��ar com a impassibilidade de
uma esfinge de pedra; depois, tomando a m��o do genro,
o conduziu para junto de sua mulher e de Asnath, que
tinha baixado os olhos, mas cuja palidez e aspecto deso-
lado eram evidentes.
Fugaz rel��mpago chispou dos olhos do Adon. Tomou
a m��o da mo��a e, retirando do dedo um magn��fico anel,
enfiou-o no dela. Contrafeita e muda, assentiu, com os
olhos baixos, pregados no solo. O acolhimento de Maia foi
igualmente frio, mas o sacerdote rematou a situa����o dif��-
cil convidando os assistentes a passarem �� sala vizinha,
onde serviram refrescos e beberam �� sa��de dos noivos.
Depois, travou-se uma conversa geral.
Terminada a merenda, Jos�� combinou logo com o
futuro sogro a data e o cerimonial do casamento, que foi
fixado para quinze dias depois. A seguir, aproximou-se
da noiva, que apenas tinha molhado os l��bios na ta��a
e convidou-a a dar uma volta pelo jardim. Ela se levantou
silenciosa e, sem trocar palavra, desceram os degraus do
terra��o e encaminharam-se por uma umbrosa alameda.
Ao chegarem junto de um banco de pedra, o mancebo
parou, e, encostando-se a um sic��moro, disse com calma
e gravidade:
��� N��o te queres sentar e encarar comigo? Olha que
ainda o n��o fizeste...
Levantou os olhos, mas suas pupilas azuis estavam
sombreadas e o fitaram francamente hostis, enquanto o
olhar de Jos�� as sondava como se quisesse ler no fundo
da sua alma.
��� Quis estar a s��s contigo para nos explicarmos e
entendermos ��� disse, e um ligeiro suspiro arfou-lhe o
peito. ��� Vamos ligar-nos para a vida, mal nos conhecen-
do e, contudo, n��o tenho necessidade de palavras para
ler em teu rosto, em teus olhos, todo o ��dio, todo o des-
O C H A N C E L E R DE F E R R O
193
prezo pelo estrangeiro. Os sentimentos de tua fam��lia e
da tua casta n��o s��o mist��rio para mim, e tu lhes sofres
o jugo: odeias, desdenhas, sem mesmo saber se aquele a
quem votas esses sentimentos os merece.
��� Se os merece? ��� repetiu ela com desd��m ��� per-
guntas se o homem que arranca um noivo �� mulher que
o ama, impondo-se a uma fam��lia que o repudia, abusan-
do da autoridade que lhe deu um capricho da fortuna,
zombando da dor dessa fam��lia e da sua impot��ncia; se
um semelhante ser merece desprezo? Pois bem! eu te direi
(um rubor escarlate inundou o rosto de Asnath e o de-
safio cintilou nas pupilas) que teu procedimento �� vil;
que te odeio, porque a vontade do Fara�� poder�� for��ar-
-me a aceitar-te por esposo, mas n��o e nunca a te amar.
M��ltiplos sentimentos se refletiam nos grandes olhos
escuros do hebreu, obstinadamente pregados no rosto
m��bil e agitado da locutora e, depois de breve sil��ncio,
disse com voz velada:
��� Sei que esta hora te �� penosa; ��s muito jovem
para compreender as m��ltiplas raz��es que, al��m do amor
que me inspiras, levaram-me a desejar a tua m��o, for-
��ando teu pai a conceder-ma; sei que te acirraram contra
mim, mas o tempo te acalmar��. Ent��o, julgar-me-��s mais
imparcialmente e teu pr��prio cora����o, n��o a vontade do
Fara��, te levar�� a amar-me. Por que n��o? N��o sou pior
do que Hor, tu o esquecer��s e o simples oficial n��o te
daria, nunca, tantas honras quantas ter��s em sendo mi-
nha esposa.
Asnath ergueu a cabe��a e um desprezo sarc��stico
timbrou-lhe a palavra:
��� Prefiro ser mulher de um simples soldado, honrado
pela sua origem e parentesco, a unir-me a um Adon que
atingiu o poder por caminhos escusos e que possui cama-
radas escravos, os quais se lembram ainda de o haver
castigado por seus delitos.
Jos�� recuou, branco de m��rmore; depois, aproximan-
do-se bruscamente, segurou o bra��o da mo��a e, mergu-
lhando no seu um olhar chamejante, murmurou com voz
abafada:
194
J. W. ROCHESTER
��� Quem to disse? Quem maculou tua alma com essas
venenosas palavras?
Fascinada, paralisada pelo olhar fulgurante das pu-
pilas verdes, Asnath emudeceu, n��o protestou sequer con-
tra a dolorosa press��o que lhe magoava o bra��o delicado;
acabava de compreender que imprudentemente farpeara,
al��m da medida, o orgulho daquele homem que tinha o
poder de vingar-se.
Quando ele repetiu veemente: "Quem te informou
assim?", ela perguntou, por sua vez: "�� mentira? Dize-me
se o que me contaram n��o �� verdade."
Jos�� soltou-lhe o bra��o e de novo encostou-se ao si-
c��moro, procurando dominar a tempestade infernal que
lhe rugia na alma.
Depois de r��pido, penoso sil��ncio, disse vibrante:
��� �� verdade e foi Ranofrit quem te contou esse epi-
s��dio; mas o que ela n��o te contou, certo, �� que me per-
seguia ent��o com um amor criminoso e, quando repeli
seus ataques clandestinos, acusou-me perante Putifar, de
uma tentativa de estupro. Iludido com essa cal��nia, man-
dou ele castigar-me. Hoje, por��m, n��o lamento que o
bast��o do vigilante se erguesse contra mim, porque isso
n��o me impede, altiva Asnath, de tomar-te para minha
mulher. Evita menoscabar em excesso do homem que, de-
pois de Apopi, �� o primaz do Egito e n��o abusa da tua
fraqueza feminil e do poder da tua beleza. Repeliste uma
boa acomoda����o entre n��s e respondeste com insultos a
proposi����es conciliadoras e afetuosas; algum dia, talvez,
possas lament��-lo e mendigar o amor que hoje desdenhas.
Voltou-lhe as costas e, passos lentos, retomou o cami-
nho do terra��o. Tudo nele fervilhava e trepidava; as pa-
lavras inspiradas a Asnath por sua imprud��ncia e juvenil
rancor, tinham ferido em pleno cora����o o orgulhoso man-
cebo, pondo em evid��ncia o abismo que separava a filha
do ilustre padre de Heli��polis do escravo liberto, arrancado
da sua abje����o por um capricho do Fara��.
Pungente ci��me se misturava tamb��m aos melindres
do amor-pr��prio. Hor n��o tinha a sua posi����o, mas a sua
nobreza era indiscut��vel; era o igual de Asnath e a lem-
O CHANCELER DE FERRO
195
branca do rival preferido lhe tornou ainda mais amargo
o desd��m que acabava de lan��ar-lhe em rosto a mulher a
quem amava, apesar do insulto, mais que antes.
Inconscientemente a c��lera se desviou, concentran-
do-se com toda a sua aspereza nas altas castas inimigas.
Por maiores, por mais nobres que sejais, caminharei pisan-
do-vos como ��nfimos vermes ��� murmurou fechando os
punhos ��� mas, descobrindo no terra��o as vestes brancas
dos padres e oficiais do seu s��quito, dissimulou os senti-
mentos tumultuosos que lhe esfervilhavam no ��ntimo e,
calmo, am��vel, aproximou-se de Pot��fera, que, de olhos
at��nitos, procurava a filha, mas nada disse.
Depois de algumas frases banais, Jos�� perguntou de
inopino:
��� Por que faltam aqui dois parentes pr��ximos da
fam��lia, o nobre Putifar e esposa? Espero n��o creiam que
lhes guardo rancor do passado... H�� muito tempo que
perdoei �� fogosa senhora o haver desejado meu amor e
ter-se vingado da minha frieza. Putifar agiu sob o im-
pulso de um leg��timo ci��me; al��m disso, consolo-me com
o pensamento de que, se fui castigado injustamente, de-
vo-o a uma das mais deslumbrantes mulheres do Egito.
Falava bastante alto para ser ouvido por todas as
pessoas reunidas no terra��o, mas sem se inquietar com
o mutismo constrangido dos assistentes, com a c��lera mal
contida de Pot��fera, nem com Asnath que voltara para
o grupo. Bem-humorado e calmo, prosseguiu:
��� Rogo-te transmitas a teu cunhado que, depois de
amanh��, se lhe convier esse dia, conto ir v��-lo, pois guar-
dei a melhor lembran��a do homem que me foi senhor
indulgente e generoso, e �� agradecendo e bendizendo a
Eloim ��� o poderoso deus do meu povo ��� que transporei
o limiar dessa casa onde vivi como escravo e de onde sa��
para elevar-me �� grandeza atual.
O sacerdote ouvira-o, p��lido e de cenho carregado:
o que Jos�� acabava de dizer era uma injuriosa mancha
atirada �� honra de sua irm�� e n��o podia compreender
que fantasia inspirava aquele homem a fazer garbo da
sua origem obscura e do vergonhoso castigo sofrido ou-
196
J. W. ROCHESTER
trora. Quereria ele, apenas, obrigar Putifar a receb��-lo
com todas as honras devidas a um parente, e ao Adon?...
Nesse momento o olhar do sacerdote incidiu no rosto
rubicundo da filha e veio-lhe a suspeita de que algo se
passara entre os noivos, de molde a provocar aquela es-
p��cie de vingan��a.
��� Teu desejo, Adon, honra meu irm��o ��� respondeu
dominando o ressentimento. ��� Puti��ar e sua mulher
ser��o felizes de receber-te nesse dia.
��� Espero que terei a alegria de l�� rever-te, nobre
Pot��fera, assim como a bela noiva. Agora, devo despedir-
-me. Adiroma! (voltou-se para um dos oficiais do s��qui-
to) manda aproximar a liteira.
Com a maior cordialidade, despediu-se da sua nova
fam��lia, saudou o s��quito do sacerdote e partiu.
Logo que o sacerdote ficou s�� com os seus, chegou
tamb��m Ranofrit, curiosa de saber como correra essa
primeira entrevista; quando, por��m, o irm��o lhe deu parte
da visita que a esperava e das equ��vocas palavras com
que o Adon ilustrara a comunica����o, apoderou-se dela
horr��vel desespero; derramando l��grimas copiosas, arran-
cou os cabelos e clamou:
��� Este monstro, este miser��vel quer suspeitar da mi-
nha fidelidade conjugal, censurar-me diante de todos, de-
sonrar-me para sempre...
Deverei ainda receb��-lo debaixo do meu teto, acolher
como parente esse impudico celerado? Nunca! Antes me
afogarei no Nilo.
��� Acaba com essas lamenta����es que n��o mudam
uma situa����o que terias evitado, se fosses mais prudente
outrora ��� disse Pot��fera impacientado.
Depois, aproximando-se de Asnath, que se n��o en-
volvia na conversa, perguntou-lhe:
��� Que disseste ao Adon? Por que voltaram cada um
por sua vez? N��o houve causa alguma, nessa entrevista,
que provocasse, como repres��lia, sua estranha atitude a
respeito de Ranofrit e do passado?
��� Sim, quando me quis persuadir de que n��o �� infe-
rior a Hor, lembrei-lhe o castigo das suas fa��anhas, coisa
O CHANCELER DE FERRO
197
que nunca sucedeu a Hor ��� respondeu desdenhosamente
Asnath.
��� Lembran��a imprudente e inoportuna, mas eu n��o
sabia que estavas informada desse incidente.
A mo��a nada respondeu, mas seu olhar resvalou para
a tia, prostrada na cadeira.
��� Ranofrit teria sido t��o louca que te contasse tudo?
��� disse o sacerdote, constrangido.
��� Sim, contei-lhe para que pudesse julgar a inso-
l��ncia do miser��vel ��� exclamou a mo��a saltando da ca-
deira e sapateando raivosamente.
Prosseguiu:
��� Oh! tola que fui em interceder ainda por ele! Se
tivesse deixado Putifar agir; se tivesse sido mutilado,
como merecia, n��o estaria agora com a cabe��a t��o apru-
mada e, em vez de casar com Asnath, estaria apodrecen-
do nalgum sitio remoto.
��� N��o intercederias se a consci��ncia n��o te houvesse
movido ��� observou severamente o sacerdote. ��� Agora,
basta de gritar e, se queres ouvir um bom conselho, n��o
contes a teu marido o efeito das tuas tagarelices. Ser��
vantajoso para ambos. Pro��bo-vos (disse voltando-se para
a mulher e a filha) contar a Putifar o que se passou.
A not��cia da visita do Adon provocou em casa de Pu-
tifar uma verdadeira revolu����o. No primeiro momento, o
ex-chefe dos archeiros acolheu a comunica����o com pro-
testos veementes, mas, readquirindo logo a calma habi-
tual, expediu as ordens necess��rias para a recep����o. E
deu a entender a Ranofrit que suas l��grimas e lamentos
s�� serviam para compromet��-los; que o casamento de
Asnath, tornando um encontro com Jos�� inevit��vel, era
muito melhor que ele fosse o primeiro a visit��-los.
Mas, entre os escravos cuja maior parte conhecia o
Adon, desde o dia em que Ptah o tinha comprado, a agi-
ta����o aumentou de hora em hora; n��o se falava noutra
coisa e todos aqueles em cuja consci��ncia pesava alguma
injusti��a contra o Adon atual, experimentavam o mais
profundo mal-estar. Dois cora����es, sobretudo, se aperta-
vam de medo: eram o de Pin��ias, o antigo segundo inten-
198
J. W. ROCHESTER
dente sucessor de Jos�� e o de Bebi, o vigilante dos escra-
vos, os dois que tinham tomado parte ativa na degrada����o
e castigo do intendente. Uma s�� pessoa, entre a criada-
gem, esperava com impaci��ncia e orgulho a chegada do
Adon: era Ac��, a escrava favorecida outrora com as boas
gra��as do mo��o hebreu; era agora aia da segunda filha de
Putifar e, na sua ingenuidade, imaginava que Jos�� n��o
deixaria de reconhec��-la se se postasse �� sua passagem,
e a cumularia de presentes.
Putifar s�� se demorando, agora, em M��nfis, durante
raros intervalos, foi preciso fazer esfor��os excepcionais a
fim de p��r a casa em estado de receber dignamente t��o
ilustre visitante: todos os criados tinham, pois, muito
trabalho; e, contudo, Bebi e Pin��ias se tornavam cada vez
mais lentos, mais distra��dos e mais est��pidos, �� medida
que se aproximava o momento decisivo. No dia aprazado,
logo de manh��, os dois pobres diabos sentiam antecipados
travos de forca: assombrados por uma nuvem de apreen-
s��es, relativamente ao g��nero de supl��cio que o antigo
intendente inventaria para vingar-se, faziam tudo ��s
avessas, sem compreenderem as ordens do senhor; afinal,
tudo esquecendo, reuniram-se perto do pequeno terra��o
que dava para o quarto particular de Putifar e de sua
mulher.
��� Oh! oh! Pin��ias, ele acaba de mandar presentes aos
patr��es e chegar�� daqui a pouco ��� gritou Bebi. ��� Des-
gra��ado de mim que vivi at�� hoje. Mas, tamb��m, quem
poderia adivinhar ent��o, quando eu o levava para o p��tio
e lhe dava pontap��s, que ele se tornaria Adon?
��� E eu! ��� disse Pin��ias, torcendo os bra��os ��� lem-
bras-te, Bebi, que, quando ele quis desculpar-se perante
n��s e acusou a senhora, dei-lhe tal bofetada que os quei-
xos estalaram e o sangue lhe jorrou do nariz? Isso ele
n��o pode ter esquecido e, com certeza, antes de Ra se le-
vantar, amanh��, estarei pendurado.
��� Procuremos deitar-nos de bru��os, rosto no ch��o,
at�� que ele tenha passado: talvez, n��o nos veja ��� aventou
Bebi.
Mas, no mesmo instante, gritou uma voz sonora e
irritada:
O CHANCELER DE FERRO
199
��� Estais doidos, miser��veis pregui��osos? Embalde vos
procuram, nada est�� pronto e estais aqui onde nada h��
que fazer?...
Era o pr��prio Putifar que, rubro e irritado, apontara
na porta; mas vendo o aspecto aturdido e desesperado dos
dois homens, perguntou surpreso:
��� Aconteceu alguma coisa? Por que estais assim alu-
cinados?
��� �� senhor! salva-nos, ele vai enforcar-nos ��� gri-
taram ambos ao mesmo tempo, prostrando-se diante de
Putifar e abra��ando-lhe as pernas.
��� Estais delirando? Quem vos vai enforcar? ��� per-
guntou sem compreender o motivo de semelhantes pa-
vores.
��� Ele, o Adon ��� urrou Bebi ���; quando o arrastei
pelo p��tio para ser castigado, dei-lhe ao menos dez pon-
tap��s e tu n��o o tinhas ordenado.
��� E eu espanquei-o de tal modo que o sangue correu
do nariz, e ordenei-lhe que fechasse a imunda goela!...
Agora, ele �� Adon! ��� disse Pin��ias, chorando.
Amargo sorriso aflorou fugidio nos l��bios de Putifar;
depois, estendendo a m��o para o velho intendente, disse
com bondade:
��� Erguei-vos e n��o temais coisa alguma: o Adon ��
noivo de minha sobrinha; vem como visitante e amigo,
n��o pensar�� em fazer mal a fi��is servos, que s�� agiram
por minha ordem.
Tome cada qual uma bilha de vinho para se recon-
fortar e volte depressa ��s suas ocupa����es; garanto-lhes
a vida.
Uivantes de alegria os dois homens beijaram os p��s
do senhor, correndo cheios de novo ardor para cuidar dos
��ltimos aprestos.
Pouco depois chegou Pot��fera com a fam��lia, e Ra-
nofrit mostrou-lhe os presentes enviados pelo Adon. A
senhora estava preparada e bela como outrora, mas n��o
podia guardar o sangue-frio, querendo a todo o instante
desmanchar-se em solu��os, apesar das persuas��es do
irm��o e do marido.
200
J. W. R O C H E S T E R
Desta vez Jos�� chegou sem pompa alguma, acompa-
nhado apenas do condutor do carro. Enquanto atravessa-
va a fila de escravos que se curvavam �� sua passagem,
deu com o olhar em Bebi e Pin��ias, os quais, por prud��n-
cia, tinham o rosto voltado para o ch��o; apesar disso,
reconheceu-os e desdenhoso sorriso perpassou-lhe nos
l��bios.
Putifar o recebeu �� entrada, com uma reserva am��-
vel, temperada ainda daquela bondade inata que lhe era
pr��pria e lhe fazia desejar, no interesse de Asnath, rela-
����es menos tensas com o homem a quem todos odiavam
e com quem, entretanto, for��avam-na a casar-se.
Encontrando o olhar bom e leal do antigo senhor,
aquele mesmo olhar indulgente que tinha afagado e ani-
mado o mo��o t��mido e abandonado, quando, pela primeira
vez, entrara ao seu servi��o, estranha emo����o apoderou-se
de Jos��. Na verdade! Era agora rico e poderoso, mas, t��o
s�� e isolado como no dia em que Ptah trouxera para de-
baixo desse teto o m��sero escravo desconhecido. O aco-
lhimento simples e nada hostil de Putifar fez-lhe bem.
Apertando fortemente a m��o que lhe estendia, Jos�� incli-
nou-se e murmurou s�� para ele:
��� Agrade��o-lhe o cordial acolhimento e o bom olhar;
�� o primeiro que encontro, no meio dessa multid��o servil
e odiosa que me cerca. Quanto seria feliz se quisesses ser
meu amigo, depois de teres sido generoso senhor, no tem-
po da minha servid��o.
Putifar fitou-o espantado, mas, notando uma emo����o
verdadeira no olhar brilhante do antigo favorito, res-
pondeu:
��� Tuas palavras me alegram, Adon, e serei feliz se
te lembrares somente das horas calmas que passaste sob
meu teto ��� disse igualmente em surdina. ��� Grande �� a
for��a do deus que te elevou ao poder: possa ele guiar-te
em todos os teus atos, para a felicidade do pa��s que te
confiou. Um homem, embora Fara��, nunca �� infal��vel por
si s��; foram os imortais que o guiaram em sua escolha;
portanto, �� um mandato celeste que te confiaram, desem-
penha-o com dignidade.
O C H A N C E L E R DE F E R R O
201
Sem esperar resposta, Putifar conduziu o h��spede ao
sal��o. Jos�� saudou Pot��fera, depois aproximou-se polida-
mente de Ranofrit, que, p��lida e de olhos baixos, balbu-
ciou algumas palavras de agradecimento pelos presentes
recebidos. Sua agita����o, as l��grimas mal contidas que lhe
enchiam os olhos, eram t��o vis��veis que o Adon se incli-
nou, apertando-lhe a m��o e perguntando com uma ponta
de mal��cia:
��� �� minha presen��a ou minha investidura que te
incomoda, nobre Ranofrit?
��� Uma e outra ��� respondeu ela com uma franqueza
irreprim��vel.
Jos�� p��s-se a rir:
��� Eu o deploro, mas, apesar disso, desanuvia a fron-
te, nobre mulher; esque��amos o passado e aceitemos o
presente como imperativo dos deuses.
Putifar apresentou-lhe em seguida os dois filhos, aos
quais Jos�� abra��ou, mas, para desespero de Ac��, n��o lhe
prestou aten����o alguma, apesar da sua saia de um ama-
relo berrante e do gorro policromo; e quando, no mesmo
dia, o intendente do Adon distribuiu gratifica����es a todos
os escravos, ela s�� recebeu uma parte igual �� das outras
mulheres, o que a ofendeu al��m da medida.
Gra��as a uma conversa����o animada, mantida por
Putifar, a refei����o correu mais cordial do que se espera-
va; a mais silenciosa era Asnath, que, desfigurada e ap��-
tica, n��o se interessava por coisa alguma; o olhar ar-
dente do mo��o hebreu fitava-lhe demoradamente o pe-
queno rosto melanc��lico, que exercia sobre ele estranha
fascina����o, fazendo-lhe esquecer as m��s palavras que lhe
dissera e deixando apenas subsistir o desejo ardente de
ver o sorriso renascido nos seus l��bios.
Depois do jantar foram para o jardim e, aproveitando
a primeira vaza, Jos�� conduziu a noiva para um passeio
a dois. De novo ficaram silenciosos, mas logo, parando, o
mo��o perguntou baixinho:
��� Por que est��s t��o p��lida, t��o triste, Asnath? �� o
pensamento de me pertenceres que te aflige dessa ma-
neira?
202
J. W. ROCHESTER
A mo��a estremeceu e levantou os olhos: encontrando
o olhar do noivo, n��o mais duro e altivo como de costume,
mas ��mido e cheio de amor, corou e baixou a cabe��a,
visivelmente perturbada.
��� Pobre crian��a, procura esquecer o passado; reflete
antes de condenar; v��, antes de desesperar; talvez a rea-
lidade te desfa��a esse desvario ��� continuou, atraindo-a a
si e beijando-a nos l��bios e nas faces aveludadas.
Asnath n��o se esquivou, apenas pensou: "ele n��o guar-
da rancor das minhas cru��is palavras". Envergonhou-se
e teria dito, talvez, uma palavra conciliadora; mas a lem-
bran��a de Hor e do juramento voltaram-lhe em agonia;
calou-se e duas l��grimas lhe rolaram dos olhos. Jos�� sus-
pirou, mas aquele sil��ncio e o beijo suportado sem repug-
n��ncia eram j�� um progresso. P��s-se a refletir que, uma
vez em seu poder, seq��estrada �� influ��ncia dos parentes,
acabaria amando-o.
O tempo a seguir foi ocupado nos aprestos do casa-
mento. Jos�� ornamentou o pal��cio com um luxo r��gio;
nada lhe parecia bastante belo, bastante rico para a mu-
lher a quem adorava e cuja beleza o subjugava cada vez
mais. Quando conseguia evocar um sorriso, um lampejo
de alegria e travessura dos seus olhos azuis, considerava-
-se feliz. Nada suspeitava do estranho estado dalma da
noiva e do perigoso drama que no seu ��ntimo se desen-
rolava, ao abrigo de todos os olhares.
Com efeito, Asnath era presa dos mais contradit��rios
sentimentos: todo o mundo em redor dela, exceto Putifar,
continuava a odiar, difamar e maldizer a Jos��; por��m, a
ela, as freq��entes visitas do Adon o tinham tornado fa-
miliar, e menos que nunca chegava a sentir por ele a
avers��o e o desprezo que toda a gente lhe votava. Toda-
via, o pensamento de que pudesse amar o futuro esposo,
enchia-a de espanto, porque n��o s�� se interpunham o
seu juramento e a maldi����o da sua casta, como a lem-
bran��a das palavras proferidas por Jos��: "vir��, talvez,
uma hora em que mendigar��s o amor que hoje desde-
nhas". Ao pensar em semelhante humilha����o, revoltava-se
toda e raivosa agonia dela se apoderava. A perspectiva
da vida em comum ergueu-se �� sua frente como espectro
O C H A N C E L E R DE F E R R O
203
aterrador: sentia que o olhar desse homem exercia nela
poderoso fasc��nio, que o amor que lhe prodigalizava, em
vez de afast��-la, enchia-a de prazer e de esquisita calma.
Que seria quando inteiramente lhe estivesse entre-
gue, longe dos parentes, cuja autoridade e prote����o ha-
viam de acabar no limiar do pal��cio do Adon? Jos�� que-
reria domin��-la, arrancar-lhe uma confiss��o de amor,
isso era certo; e se ela sucumbisse seria perjura, maldita
e desonrada. "Oh! pensou, se eu pudesse morrer, o sacri-
f��cio estaria consumado, n��o poderiam acusar meu pai
de oposi����o �� vontade do Fara��, e eu escaparia de toda
esta mis��ria, presente e futura." Uma vez concebido, este
projeto implantou-se no esp��rito da mo��a, e a chegada de
Armais deu-lhe novo impulso. O fogoso rapaz, possu��do de
��dio louco contra Jos��, n��o achava express��es bastante
fortes para rebaix��-lo e, se uma severa ordem de Pot��fera
o for��ava a moderar-se em p��blico e na presen��a do fu-
turo cunhado, vingava-se fortemente nas conversas com
a irm��, e desequilibrou-a de tal maneira que, exaltada,
tomou a firme resolu����o de morrer e assim romper uma
situa����o invi��vel.
Assente a resolu����o, achou tamb��m o meio de exe-
cut��-la. Tinha ouvido falar de uma esp��cie de feiticeira
e locutora de buena-dicha, que vivia num arrabalde e
gozava da pior reputa����o; a pretexto de consultar a adi-
vinha sobre o pr��prio futuro e o de Hor, persuadiu a ve-
lha aia que a acompanhasse secretamente �� casa dessa
mulher. A n��bia, cegamente devotada �� menina e n��o
suspeitando dos seus verdadeiros des��gnios, concordou.
Quanto �� bruxa, que entretinha um antigo com��rcio
de t��xicos e n��o conhecia a filha do sacerdote, nenhum
escr��pulo teve em lhe vender por bom pre��o um frasco
de ess��ncia incolor, que assegurou suficiente para matar
dez homens prontamente, e sem dor.
De posse desse tesouro, Asnath tornou-se mais calma,
mas, em compensa����o, mortal apatia apoderou-se dela;
considerava-se j�� morta e todos os preparativos que a
rodeavam s�� lhe inspiravam um misto de agonia e indi-
feren��a.
204
J. W. R O C H E S T E R
Assim chegou o dia do casamento. Muda e concen-
trada, deixou-se preparar com a roupa bordada a ouro e
p��rolas finas, que para o ato ofertara a esposa do Fara��;
ornados o pesco��o, a cabe��a e os bra��os com j��ias de
subido valor, nem deitou os olhos ao espelho de metal que
lhe a apresentou Ranofrlt, e seu olhar resvalou, perturbado
e incerto, pelo garboso vulto de Jos��, particularmente
avantajado debaixo do seu rico trajo. Em compensa����o,
o olhar do mo��o cravou-se inebriado no semblante da
noiva, que nunca lhe tinha parecido mais ador��vel.
O festim de n��pcias realizou-se no pal��cio real, com
a presen��a de Apopi, em cujo rosto esquel��tico se refletia
profunda satisfa����o.
Os rec��m-casados ocupavam lugares de honra ao lado
do monarca; mas, apesar da alegria do rei e da benevo-
l��ncia que dispensava aos convivas, sobretudo a Pot��fera
e ao jovem par, alguma coisa de l��gubre pairava no am-
biente. Asnath estava p��lida e desfigurada de fazer pie-
dade, e os rostos bronzeados dos padres estavam im��veis
e duros como os das est��tuas dos seus deuses; em pom-
posas palavras, tinham expressado infinita gratid��o pelas
d��divas que o Fara�� oferecera aos templos a prop��sito
do evento, mas nem uma nota de verdadeiro sentimento
tinha vibrado nos discursos empolados.
Terminada a festa, o rei, sua mulher e s��quito se reti-
raram aos aposentos e Jos�� se disp��s a levar a jovem
esposa para o seu pal��cio. Antes de transportar-se �� litei-
ra, todos os membros da fam��lia se retiraram um momento
para pequena sala cont��gua ao corredor de sa��da, a fim
de se despedirem da noiva, sem testemunhas. Pot��fera
parecia calmo e impass��vel e somente Asnath percebeu
que nervoso tremor d agitava, quando, silencioso, aper-
tou-a de encontro ao peito e aben��oou-a. Armais mal do-
minava o nervosismo; Maia e Ranofrit romperam solu-
��antes e pareciam t��o desesperadas como se levassem a
mo��a para enterr��-la.
Jos�� encostara-se a uma mesa e, bra��os cruzados,
contemplava a cena para ele pouco agrad��vel; seus dentes
se enterravam profundamente no l��bio inferior, denotan-
O CHANCELER DE FERRO
205
do que a calma era apenas aparente; todavia, n��o disse
palavra, n��o fez um gesto para apressar as despedidas.
Foi Putifar quem lhes p��s termo, dirigindo muito baixo
algumas palavras severas �� sua mulher; depois, abra��an-
do Asnath, p��s-lhe a m��o na do marido e disse com
ternura:
��� Vai, filha querida, possam os deuses do Egito pro-
teger-te e Ra iluminar todos os passos da tua vida.
O sacerdote desviou-se bruscamente e, sem dizer pa-
lavra, deixou a sala: abafavam-no a raiva, o ��dio, a hu-
milha����o do seu orgulho de casta.
Apenas transpunha o limiar, sentiu que lhe segura-
vam a m��o e uma voz lhe murmurava ao ouvido:
��� Vem!
Era o sacerdote do templo de Ptah, em M��nfis, que,
silenciosamente, o arrastou para um corredor, e depois
f��-lo galgar uma escada. Logo se viram na plataforma
de um dos altos castelos que flanqueavam a resid��ncia
real.
��� Acalma-te, irm��o; aqui estamos s��s e posso dizer-
-te que sinto e sofro contigo ��� disse o padre de Ptah.
Mas Pot��fera n��o respondeu, encostou-se �� balaus-
trada e, olhar ardente, fitou uma longa esteira de fogo
que, em sinuosidades ondeantes, se desenrolava a seus
p��s, perdendo-se cada vez mais longe, nas ruas: eram
as chamas das centenas de tochas que acompanhavam o
cortejo ao pal��cio do Adon.
Ali lhe levavam a filha e parecia-lhe que cada passo
que a afastava de si, cavava entre eles um abismo mais
profundo; movido subitamente por verdadeiro del��rio,
sacudiu o punho fechado e clamou com voz rouca e sibi-
lante:
��� Maldito! maldito! C��o impuro, por que n��o te posso
matar antes que ponhas uma n��doa indel��vel na minha
casta e em minha filha?
��� A filha de Pot��fera fica sempre pura como a pedra
preciosa na qual n��doa alguma pode fixar-se, e a vin-
gan��a que se aproxima lavar�� no sangue do impuro o
206
J. W. R O C H E S T E R
insulto feito �� nossa casta ��� murmurou o padre de
Ptah ��� e o que timbrava na sua voz, o que cintilava no
olhar venenoso com o qual seguia a longa linha das tochas,
restituiu a calma ao sacerdote. Silenciosamente, aperta-
ram-se as m��os.
XIV
A NOITE NUPCIAL
Cabisbaixa, Asnath acompanhara o marido, sentan-
do-se a seu lado na espl��ndida liteira dourada que os
conduzia para um novo destino. Longo sil��ncio reinou
entre eles, at�� que, de repente, Jos�� se inclinou e, aper-
tando-lhe a m��o, murmurou:
��� Os teus te choram qual morta: esquece, pois, esses
la��os do passado que eles pr��prios destroem com o ex-
cesso do seu orgulho e consagra-te de todo a mim; con-
fia-me teu cora����o e teu futuro; nunca te h��s de arre-
pender.
Sentiu a m��o de Asnath tremer na sua e viu, �� luz
das tochas, o brilho febril do olhar com que o encarou:
��� Nunca poderei amar-te; entre n��s levanta-se Hor
e a maldi����o de minha casta ��� respondeu com voz incer-
ta, mas num tom de angustia e verdade que ela pr��pria
n��o suspeitaria.
Ele estremeceu violentamente, mas n��o teve tempo
de responder, porque a liteira acabava de parar �� porta
do pal��cio feericamente iluminado e engalanado. Lam-
pi��es multicores assinalavam todos os contornos, em
enormes copos de bronze ou de pedra ardiam luzes de
alcatr��o; por toda parte estendiam-se tapetes, alcatifas
de p��rpura, grinaldas de flores; entre fileiras de escravos
suspendendo tochas, precedidos de crian��as que lhes ati-
ravam aos p��s pequenas coroas de plantas m��gicas, des-
tinadas a preserv��-los de toda m�� influ��ncia oculta, os
rec��m-casados chegaram ao vest��bulo. A��, recebeu-os um
208
J. W. ROCHESTER
padre de Hator, que lhes ofereceu amuletos e derramou-
-lhes na cabe��a punhados de trigo em gr��o, s��mbolo da
abund��ncia que lhes deveria encher a casa. Depois, o in-
tendente apresentou, de joelhos, dois copos de ouro,
cheios: um de mel, outro de vinho. Jos�� bebeu um gole,
passou o copo �� mulher. Depois de saborearem o vinho e
o mel, o Adon conduziu a jovem at�� �� entrada dos apo-
sentos que lhe estavam reservados, voltando para junto
dos rapazes da elite de M��nfis que o tinham acompanha-
do, para tomar com eles um derradeiro copo de vinho
e oferecer-lhes uma lembran��a preciosa daquele dia me-
mor��vel.
Asnath foi recebida nos aposentos por sua velha ama
e todas as mulheres destinadas ao seu servi��o. Recebeu
com bondade as suas felicita����es, em seguida fez-se de-
sembara��ar rapidamente dos pesados adornos que a re-
vestiam e, depois que lhe vestiram leve t��nica de dormir
e entran��aram-lhe os longos cabelos, despediu-as a todas,
exceto a ama.
��� Onde a caixinha que te confiei, Panafi?
��� No quarto de dormir, senhora ��� respondeu a n��-
bia, suspendendo o pesado reposteiro franjado de tecido
da Babil��nia.
Esse quarto era uma vasta pe��a quadrada e clareada
por duas janelas, veladas por cortinas listradas; as pa-
redes estavam cheias de pinturas imitando tapetes sus-
pensos; soalho de largos capachos multicores; o fundo
ocupado por um estrado rodeado de sanefas listradas
alvirrubras, sob o qual se via o leito de cedro incrustado
de ouro e marfim.
De um lado, em nicho para o qual se subia por tr��s
degraus, estavam colocadas as est��tuas de alguns deuses,
ornadas de flores e fitas. Em pequena mesa lavrada, todo
o necess��rio para os sacrif��cios: l��mpadas de ��leo odo-
r��fero clareavam suavemente o nicho e o quarto.
Aproximando-se do pequeno cofre que Panafi lhe
designou, Asnath o abriu e retirou pranchas seladas.
��� Levar��s isto amanh�� a meu pai ��� disse ��� e, agora,
deixa-me s��, vou orar aos deuses.
O C H A N C E L E R DE F E R R O
209
Logo que a n��bia obediente se retirou para agachar-
-se como c��o fiel �� entrada do aposento cont��guo, a mo��a
tirou do fundo da caixinha o frasco comprado �� feiticeira
e foi deposit��-lo na mesa de cabeceira, ao p�� do leito;
em seguida, dirigiu-se apressadamente para o nicho, fez
um sacrif��cio de vinho e incenso; ajoelhando-se, levantou
as m��os e orou �� meia voz: "Os��ris, pai de todas as coisas,
tu me formaste com tua m��o, e tu, Isis, m��e divina, vede
a ang��stia de minhalma e sustentai-me no momento de
sacrificar a vida; morro para a terra de Kemi, a fim
de livrar de uma n��doa a casta augusta dos vossos servos
e, pura, venho a v��s; n��o manchei minhalma de qual-
quer abomina����o; honrei aos deuses, n��o fiz mal a nin-
gu��m, vesti a quem estava nu, saciei a quem tinha fome;
ningu��m derramou l��grimas por minha causa, fartamen-
te vos tenho oferecido sacrif��cios e prestado ��s vossas
imagens as honras que lhes s��o devidas. Sou pura, pura,
pura, e apelo para ti, An��bis, condutor dos esp��ritos:
guia-me e sustenta-me em minha viagem atrav��s do
sombrio reino; defende-me dos perigos e dos monstros
do Amenti.
"E tu, Os��ris, e v��s, os quarenta e dois ju��zes, admi-
ti-me no pa��s da luz eterna; abri meus olhos e meus ouvi-
dos; consolai meus pais que ficam na afli����o!"
Rosto incendido, olhos brilhantes de febril exalta����o,
levantou-se e correu para junto do leito. Sobre a mesa
estava preparado o copo j�� cheio de vinho e pequena
��nfora de prata cinzelada; com a m��o ligeiramente tr��-
mula, destampou o frasco; mas, na ocasi��o de derramar
o veneno no vinho, estremeceu, deteve-se: s��bita id��ia
acabava de assalt��-la. Por que morrer s��? Talvez Jos��
vingasse cruelmente a sua morte nos parentes e em toda
a casta sacerdotal; depois se consolaria e outra mulher,
outra filha de sacerdote iria ocupar o lugar que ela dei-
xava. Estranho sentimento, misto de c��lera, rancor, algu-
ma coisa que n��o teria podido definir, invadiu-lhe de
repente o cora����o. "Morre tamb��m ��� murmurou com
enigm��tico sorriso ��� com um s�� golpe livro o Egito de
um opressor, de um impuro que ousa reinar sobre ele
e rebaixar os servos de seus deuses!" Derramou metade
210
J. W. ROCHESTER
do veneno, depois esvaziou o copo de um trago. Em se-
guida, encheu-o novamente e derramou o conte��do do
frasco. "Antes de deitar-se, beber�� o vinho, morreremos
juntos e eu serei a sua ��ltima v��tima."
Aproximou-se da janela, levantou a cortina e atirou
o frasco numa touceira do jardim; depois, apoiando os
cotovelos, aspirou a plenos haustos o ar t��pido e embal-
samado da noite. O quarto era no primeiro andar e, por
uma aberta do arvoredo, divisou ao longe o Nilo cinti-
lando ao claror da Lua. Barcas ornadas de lampi��es cruza-
vam o rio em todos os sentidos e o murm��rio alegre da
multid��o, �� qual distribu��am cerveja e v��veres, vinha-lhe
aos ouvidos. Era a festa do seu casamento que despertava
aquela anima����o, e e l a . . . ela ia morrer! N��o veria mais
aquele c��u estrelado, n��o mais aspiraria aquele ar em-
balsamado, e os raios do sol nascente haveriam de ilumi-
nar o seu cad��ver... O cora����o apertou-se dolorosamen-
te; horr��vel medo da destrui����o, um desejo ardente de
viver apoderou-se dela e, com abafado suspiro, compri-
miu a cabe��a com as m��os. Mas, como rel��mpago, sur-
giu-lhe novo pensamento: Havia mais de um quarto de
hora que tinha bebido o veneno e nenhum efeito se fazia
sentir: "A feiticeira ter-se-ia enganado? O l��quido que
me deveria livrar do amor do impuro seria apenas ��gua
inofensiva?" ��� murmurou exaltada entre a esperan��a e
a c��lera.
Nesse instante, foi sacudida por um tremor glacial e
um peso de chumbo invadiu-lhe os membros: n��o, n��o
fora enganada, era bem a morte que chegava.
Com esfor��o, arrimando-se nos m��veis, arrastou-se
at�� o leito, caiu nele como um fardo e suspirou aliviada.
Se tivesse ca��do do outro lado do quarto, o marido talvez
n��o bebesse a sua parte de veneno. No desejo de o matar
concentravam-se, agora, todas as suas faculdades. Apesar
do ingurgitamento e do frio mortal que lhe invadiam o
organismo, conservava-se perfeitamente l��cida. N��o po-
deria mover um dedo, mas a vista e o ouvido tinham
adquirido estranha e penosa acuidade. Assim, p��de sentir
um ru��do impercept��vel de passos leves no tapete do quar-
to vizinho; depois viu uma impaciente m��o afastar o
O CHANCELER DE FERRO
211
reposteiro e seus olhos desmesuradamente abertos prega-
ram-se na alta estatura de Jos��, que se dirigia para ela.
Tinha-se despido e trazia apenas estreita t��nica de linho
e os curtos mas espessos an��is escuros que lhe caiam na
testa transformavam bastante a sua fisionomia, dando-
-lhe um ar quase juvenil. Um instante, seu esbelto perfil
se desenhou vigorosamente no fundo sombrio do repos-
teiro; perto da mesa de cabeceira parou, hesitante, tomou
o copo e esvaziou-o. "Louvados sejam os deuses! eu e o
Egito estamos livres!" ��� pensou Asnath, mas, ao mesmo
tempo, dor aguda perpassou-lhe nas veias, o olhar es-
cureceu e perdeu a consci��ncia.
��� Asnath! ��� murmurou o rapaz, tomando-lhe a
m��o.
Depois, inclinando-se, beijou-a na boca, mas, quase
logo, perfilou-se estremecendo: que significavam a rigi-
dez, o frio glacial da m��o e da boca que acabava de tocar?
��� Que tens, Asnath? ��� exclamou pela segunda vez,
procurando levant��-la.
Vendo-a recair inerte, correu em busca de uma l��m-
pada; mas, quando a claridade lhe mostrou o rosto l��vido
e desfigurado, os dedos azulados e os olhos v��treos da
mo��a, um grito surdo lhe escapou e, por instantes, raiva
e desespero quase lhe roubaram a raz��o. Sacudindo for-
temente Asnath, tentou reanim��-la, mas em v��o: ela
parecia morta. S��bito, lembrou-se da pedra m��gica: se
alguma coisa no mundo pudesse ainda salvar Asnath,
seria aquele poderoso contraveneno.
Como louco, precipitou-se para o gabinete de traba-
lho, trouxe c copo no qual tinha introduzido a pedra; en-
cheu-o de ��gua e voltou ao quarto de dormir. Todavia, n��o
chamou ningu��m, tinha recobrado a presen��a de esp��rito
e n��o queria alarmar todo o pal��cio. Se chegasse a salvar
a mulher, o melhor seria ocultar o incidente. Enquanto
procurava um len��o e uma faca para desapertar os dentes
da mo��a, a ��gua do copo tomara a cor azulada e fosfo-
rescente que lhe comunicava a pedra misteriosa. Ajoe-
lhando-se ao p�� do leito, entreabriu com for��a os dentes
enegrecidos de Asnath e derramou-lhe, pouco a pouco,
212
J. W. R O C H E S T E R
na boca o l��quido azulado, que, ao contacto, fervia e cre-
pitava como se tocasse ferro em brasa. S��bito, uma con-
vuls��o sacudiu o corpo inerte da mo��a e suas p��lpebras
desceram.
Nesse instante o mancebo foi acometido de fraqueza
e arrepios g��lidos, mas n��o prestou maior aten����o, atri-
buindo esse desfalecimento ao susto e �� emo����o por que
acabava de passar. Sentando-se na borda do leito, incli-
nou-se para Asnath, cujo corpo se cobria de suor escuro
e viscoso, mas readquiria calor e flexibilidade. Muito satis-
feito, tomou do len��o que antes molhara e com ele enxu-
gou o rosto, o pesco��o e os bra��os da mo��a; de repente,
por��m, seu bra��o recaiu inerte, um frio mortal invadiu-
-lhe as veias e pareceu-lhe que todo o corpo se petrificava.
"Ela quis que eu compartilhasse a sua sorte; sim, sal-
vei-a, mas, no entanto, vou morrer!" Esse pensamento
passou como rel��mpago pelo c��rebro do rapaz. Mas n��o,
a salva����o ali estava, a dois passos dele. Sobre a mesa
de cabeceira, que antes colocara ao p�� do leito para agir
mais desembara��adamente, estava o copo com mais de
metade do l��quido salvador. Era s�� alcan����-lo...
Fazendo um supremo esfor��o, levantou-se, mas, per-
dendo o equil��brio, caiu sobre as peles de tigre que cobriam
o estrado e ficou estendido, incapaz de mover-se. Alguma
coisa de infernal se passava nele: morrer assim, no auge
do poder, no limiar da felicidade, ferido por aquela insen-
sata, fanatizada pela casta maldita, era tanto mais hor-
r��vel quanto a salva����o ali estava, ao alcance da m��o. Uma
fosforesc��ncia cada vez mais viva sa��a do copo, acima do
qual parecia flutuar, agora, uma nuvem azulada e bri-
lhante.
E n��o podia mexer-se; o corpo parecia-lhe petrificado
e sentia, com dolorosa evid��ncia, que uma estranha cis��o
nele se operava; que seu ser era duplo e uma das meta-
des, a mat��ria grosseira que ia dissolver-se, chumbava-o
�� terra de que era formada, tendendo para ela em virtude
da lei imut��vel da atra����o e do peso, enquanto que o
corpo astral procurava, num espeda��amento horr��vel, ar-
rancar-se, elevar-se, para unir-se no espa��o ao seu ele-
mento primitivo. E era para morrer assim, miseravelmen^
O C H A N C E L E R DE F E R R O
213
te, sentindo todas as fases dessa destrui����o que o invadia,
que tinha vencido o destino, lutando com a fatalidade?
Ele que tinha dominado a serpente vinda do Amentl, dei-
xar-se-ia vencer por essa mat��ria inerte que o abando-
nava? Com um desespero selvagem e for��a sobre-huma-
na, que provavam, mais uma vez, que a vontade, esse
incalcul��vel poder, propriedade da centelha divina que nos
anima �� bem verdadeiramente a governadora da mat��-
ria ��� Jos�� levantou-se: a for��a invis��vel erguia e dirigia
a massa inerte, pesada qual rochedo, nela suspensa.
Lentamente rastejou para a mesa, levantou-se sobre os
joelhos e, dominando uma dor atroz, estendeu a m��o rija
para o copo da salva����o e o atraiu aos l��bios. Em sua
face azulada, convulsa, s�� os olhos dilatados e fulgurantes
pareciam viver ainda, mas, �� medida que bebia com avi-
dez, o peso esmagador que o chumbava ao solo parecia
dissipar-se, torrentes de fogo lhe corriam nas veias.
Subitamente, tudo redemoinhava em torno, sentiu-se
rolar num abismo, o copo resvalou e caiu pesadamente
nos degraus do estrado.
Amanhecera. A claridade insinuou-se atrav��s das cor-
tinas mal fechadas por Asnath, mas no quarto nupcial
tudo continuou im��vel e silencioso; os jovens esposos ja-
ziam estendidos, como mortos. Por fim, um raio de sol
come��ou a brincar no rosto de Jos�� e, como se o brilhante
mensageiro do astro vivificante o tivesse reanimado, ele
abriu os olhos. De pronto, n��o p��de dar conta do que ocor-
rera. Por que ali estava, estendido no ch��o? Que signifi-
cavam a fraqueza e o torpor que sentia em todo o corpo?
De borco no soalho, como se achava, f��-lo lembrar o que
havia acontecido e uma onda de amargura e c��lera lhe
invadiu o cora����o. Assim se explicava o aflitivo adeus dos
parentes de Asnath: em seu ��dio cego, Pot��fera e os seus
tinham-lhe enchido o cora����o de tanto fel e tanto des-
prezo, que ela se decidira a mat��-lo. Mas ele se vingaria;
acusaria, diante do Fara��, Pot��fera e sua filha ��� mise-
r��vel instrumento do ��dio sacerdotal.
Com dificuldade levantou-se, estirou os membros in-
gurgitados e, depois, vacilando, encostou-se ao leito, por-
que a cabe��a lhe rodava e nervoso tremor o agitava. Fitou
214
J. W. ROCHESTER
com express��o indefin��vel a mo��a que, mergulhada em
pesado letargo, jazia im��vel. Estreme����es convulsivos agi-
tavam-lhe o fr��gil corpo gracioso, e o rosto encantador
refletia indiz��vel sofrimento.
A c��lera de Jos�� desvaneceu-se e, num misto de paix��o
e de amargura, inclinou-se para ela e murmurou:
��� N��o ��s a mais culpada, pobre crian��a; eles sim,
os malditos que, em seu ��dio contra mim, obscureceram-te
a raz��o e o cora����o.
Apertando os punhos, desviou-se, apanhou o copo e
saiu.
Como na v��spera, a serva l�� estava junto �� porta,
esperando que a senhora a chamasse.
��� Que tens, senhor? ��� exclamou, levantando-se, es-
pantada, �� vista da palidez cadav��rica de Jos��, dos seus
olhos encovados e o andar incerto.
Um ��nico olhar pela face honesta e espantada da
n��bia bastou ao hebreu para convencer-se de que ela n��o
conhecia o atentado.
��� Depressa, Panafi, vai para junto de tua senhora
que est�� muito doente; �� preciso friccion��-la com ess��n-
cias arom��ticas e fazer-lhe beber vinho quente, enquanto
n��o chega o m��dico ��� disse.
E enquanto a criada se precipitava para junto de
Asnath, galgou o gabinete e, fingindo n��o perceber o es-
panto dos criados pelo seu aspecto desfigurado, mandou
expedir logo dois mensageiros, um ao templo de Ptah
para chamar o primeiro profeta m��dico, Ptah-hotep;
outro para dizer a Pot��fera que viesse �� sua presen��a para
neg��cio urgente e grave.
Em casa de Pot��fera todo o mundo descansava ainda.
Maia, esgotada de l��grimas, dormia. O sacerdote se tinha
deitado, novamente, depois de preenchidas, apesar da sua
fadiga, todas as cerim��nias e sacrif��cios ao sol nascente,
como prescrevia o ritual do seu cargo.
S�� Armais acabava de levantar-se e almo��ava um
copo de vinho e past��is, quando chegou o filho de Panafi
com os escritos que, na v��spera, Asnath tinha entregado
�� criada para serem enviados ao pai, e os quais ela reme-
O CHANCELER DE FERRO
215
tera ao sacerdote. O rapaz ficou um tanto surpreso. Que
pretenderia Asnath? Talvez tivesse esquecido algum obje-
to e desejasse que lho enviassem. Displicente, sem exami-
nar se o escrito lhe era destinado, Armais o abriu, mas
o cora����o cessou de bater quando leu as seguintes linhas:
"N��o posso viver com o homem impuro cujo contacto
seria uma n��doa inapag��vel; minha morte ser�� tamb��m
uma liberta����o para a terra de Kemi; seu opressor pere-
cer�� do mesmo veneno que me h�� de matar. Quando esta
not��cia vos chegar, vossa Asnath ter�� descido ao reino
das sombras. Depreca aos deuses, pai querido, a fim de
que sejam indulgentes comigo e que minha lembran��a
vos seja cara, porque fiquei pura e me sacrifiquei pelo
Egito.
A Hor e a v��s todos, meus bem-amados, um ��ltimo
beijo."
Armais ficou como petrificado, depois precipitou-se
como louco para o quarto do pai. A leitura da mensagem
produziu no sacerdote um efeito n��o menos fulminante;
por instantes s�� falou nela e algumas l��grimas ardentes
rolaram-lhe no rosto bronzeado; mas, dominando essa
fraqueza, levantou-se e disse com solenidade:
��� Era uma crian��a her��ica e, se os imortais lhe acei-
taram o sacrif��cio, sua curta vida igualar�� os m��ritos da
mais longa exist��ncia; sua mem��ria viver�� eternamente
pura e gloriosa, como os raios de Amon-Ra. Tu, Armais,
guarda segredo, por enquanto, do que acabamos de saber;
vou j�� ao templo de Ptah para discutir e combinar como
havemos de enfrentar a c��lera do Fara��.
Acabava de paramentar-se quando lhe anunciaram o
mensageiro do Adon. At��nito, mandou-o entrar. Era Pi-
bisi, o escravo favorito de Jos��: prostrando-se, declarou
a Pot��fera que o Adon o chamava incontinenti para ne-
g��cio urgente.
��� Ele est�� vivo? ��� perguntou imprudentemente Ar-
mais.
��� Sem d��vida; embora doente, e mandou-me buscar
o vener��vel Ptah-hotep ��� respondeu o escravo um tanto
desconfiado.
216
J. W. R O C H E S T E R
Deitando ao filho um olhar de censura, o sacerdote
despediu o mensageiro, declarando que iria imediatamen-
te procurar o genro.
Com o cora����o pressago, cenho carregado, subiu ��
liteira. Era evidente que o plano de Asnath tinha falha-
do; ela talvez estivesse morta, ao passo que ele, o mise-
r��vel, vivia e a a����o impensada da mo��a somente criava
para os padres a mais falsa e perigosa das posi����es.
No pal��cio do Adon tudo respirava ordem e calma
habituais; o oficial de servi��o pediu a Pot��fera se dignasse
passar �� sala de espera, porque o vener��vel padre Ptah-
-hotep se achava junto do Zaphnath-Paaneach (t��tulo
oficial eg��pcio, de Jos��).
O sacerdote declarou que voltaria e, chamando o vigi-
lante dos escravos, ordenou-lhe que o conduzisse ao quarto
da filha. O homem obedeceu sem vacila����o. Se Asnath
estava morta, nenhum dos criados o sabia, era evidente,
e um misto de medo e esperan��a inflou o cora����o de
Pot��fera.
A porta do quarto, foi recebido por uma jovem criada,
visivelmente comovida e, assaltado por um mau pressenti-
mento, apressou o passo e, nervoso, afastou uma cortina
atr��s da qual se fazia ouvir a voz lamentosa de Panafi.
Envolvida apenas na t��nica de linho, olhos cerrados,
visivelmente esgotada, Asnath estava estendida no leito
e duas criadas lhe esfregavam os p��s e as m��os, enquanto
a velha ama tratava de derramar-lhe vinho na boca.
Um momento Pot��fera tudo esqueceu: �� vista do pe-
queno rosto l��vido e desfigurado da filha, uma onda de
amor e de ang��stia inundou-lhe a alma; afastando Pa-
nafi, levantou Asnath e apertou-a de encontro ao peito.
Estremecendo, a mo��a reabriu os olhos, dos quais jorrou
um raio de felicidade.
��� Saiam, e ningu��m ouse penetrar nos quartos vizi-
nhos ��� disse o sacerdote.
E logo que os criados desapareceram, inclinou-se e
murmurou em tom de censura:
��� Que fizeste? Que golpe para os nossos cora����es se
estivesses morta!
O C H A N C E L E R DE F E R R O
217
��� �� pai! eu quis livrar-vos a todos e furtar-me ao
amor do impuro; mas os deuses n��o aceitaram o sacri-
f��cio de minha vida.
Pot��fera n��o teve tempo de responder, porque nesse
instante entrou Ptah-hotep. O velho padre parecia exal-
tado e os olhos lhe ardiam debaixo das sobrancelhas
cerradas.
��� Foi bom encontrar-te, irm��o; tenho que falar-
-te ��� disse apertando fortemente a m��o do sacerdote. ���
Antes, por��m, devo ver o que falta �� Asnath.
Tendo cuidadosamente examinado a mo��a, emperti-
gou-se, abanando a cabe��a:
��� Que fizeste, crian��a insensata? Onde encontraste
o veneno horr��vel com o qual pretendias liquidar a tua
vida e a desse homem perigoso, que disp��e de for��as
ocultas e desconhecidas, para conseguir salvar a ambos
de uma morte inevit��vel? As conseq����ncias da tua loucura
podem ser terr��veis; Jos�� est�� fora de si; amea��ou-me de
acusar perante o Fara�� toda a nossa casta de ter querido
envenen��-lo e de entregar-te �� vindita das leis. Esque-
ceste, infeliz, que a mulher que atenta contra a vida do
marido �� condenada a ter a m��o direita cortada e a ser
apedrejada viva, depois de enterrada numa cova at�� aos
ombros?
Asnath deu um grito e, fora de si, agarrou-se �� m��o
do pai.
Intenso rubor cobrira a fronte do sacerdote, logo se-
guido de marm��reo livor. Na alegria de encontrar viva a
filha, esquecera as conseq����ncias poss��veis do seu gesto
desesperado, mas o pavor de Asnath, o seu olhar desvai-
rado restitu��ram-lhe instantaneamente o sangue-frio e o
��nimo resoluto. Beijou-a e disse, segurando-lhe fortemen-
te a m��o:
��� As palavras de Ptah-hotep s��o verdadeiras, mas
tranq��iliza-te, filha; se esse miser��vel verdugo te fizer
condenar, n��o te deixarei entregar ao carrasco, morrer��s
por minha pr��pria m��o.
��� Obrigada, pai ��� murmurou, apertando a m��o de
Pot��fera e levand��-a aos l��bios.
218
J. W. ROCHESTER
��� Conta com o aux��lio de todos n��s, irm��o ��� disse
Ptah-hotep de olhos cintilantes ��� e, se o impuro tentar
contra a tua vener��vel cabe��a, todos nos levantaremos
como um s�� homem... E que os acontecimentos se desen-
rolem como o quiserem os deuses! �� nos efl��vios dos astros
que est��o consignados os destinos humanos; os homens
s��o apenas cegos instrumentos da sorte e, na sua maldade
e fraqueza, pensam dirigir a roda que levanta e abate;
se nosso sangue correr, �� que ele �� necess��rio, como se-
mente fecunda de importantes acontecimentos; e a estrela
que ilumina o destino do r��probo, e que parece t��o bri-
lhante, pode inopinadamente extinguir-se, rolando ele no
abismo, arrastado pelos efl��vios de vergonha, desgra��a e
desespero que provocou.
N��o se pode impunemente perturbar o equil��brio das
for��as invis��veis que regem o Universo, e todos esses efl��-
vios de ��dio e de mal, emanados dos cora����es ulcerados
dos fracos, dos oprimidos, acabar��o recaindo sobre ele,
como um torvelinho destruidor, e o esmagar��o.
Pot��fera inclinou a cabe��a:
��� Dizes verdade, meu irm��o, somos fracos e igno-
rantes quando o perigo nos amea��a; as li����es da sabe-
doria s��o esquecidas, os interesses mesquinhos nos cegam
e tememos os homens, quando s�� dever��amos tremer em
face do destino. Tu, minha filha, s�� calma e confia na
bondade dos deuses.
Abra��ou-a e saiu �� procura do genro, enquanto Ptah-
-hotep fazia as prescri����es exigidas pelo estado de Asnath.
Jos�� estava deitado num leito de repouso, os p��s en-
volvidos num manto.
Sua conversa com Ptah-hotep tinha-o fatigado e
acentuado maiormente a transforma����o nele operada
pelo t��xico. As orelhas e as unhas azuladas provavam ��
evid��ncia o perigo mortal que experimentara.
�� entrada do sogro, um estremecimento de raiva o
agitou e, um instante, os olhares de ambos se cruzaram
como dois raios fulgurantes.
��� Sois h��beis int��rpretes da vontade dos deuses,
quando vos inspiram o exterm��nio das pessoas inc��mo-
O CHANCELER DE FERRO
219
das ��� disse Jos�� com veem��ncia. ��� Como vedes, vosso
infal��vel rem��dio n��o me matou e tomarei medidas que
tirar��o �� tua casta o prazer de envenenar os dignit��rios
de Estado, que o Fara�� escolhe, mas que t��m a desgra��a
de desagradar aos padres. Darei queixa ao rei, acusando
do atentado contra minha pessoa, a ti, a tua casta e a
tua filha.
Pot��fera encostou-se levemente na mesa e o seu olhar
caiu com desprezo glacial no rosto desfigurado do adver-
s��rio.
��� Acalma-te, Adon, e reflete antes de arriscares t��o
grave acusa����o. Tens em conta de muito parvos os pa-
dres de M��nfis e de Heli��polis: se houv��ssemos decidido
tentar esse duvidoso meio de livrar o Egito, ter-te-��amos
exterminado antes de minha filha te ser entregue por
lei; e se, em geral, um padre da minha classe tivesse
querido manchar-se com um homic��dio, n��o seria nas
m��os inocentes da filha que haveria de colocar a arma
assassina. Nem eu, nem padre algum de M��nfis ou de
Heli��polis sabia do plano insensato de Asnath e eu ainda
ignoro onde encontrou o veneno com o qual, no seu des-
peito infantil, quis matar-te, suicidando-se. Lembra-te
Adon, de que arrancaste a Asnath um noivo estremecido,
para for��ar uma uni��o que lhe repugna. O Fara�� p��de
dar-te a sua m��o, mas n��o o cora����o.
��� E v��s tendes o cuidado de envenenar esse cora����o
e ench��-lo de ��dio contra o esposo a que est�� ligada;
a lei ��� penso eu, acharia pouco v��lidas as raz��es que me
d��s para desculpar um ato inaudito ��� obtemperou Jos��
com amargura.
��� N��o vim para me desculpar, nem para te pedir
perd��o ��� respondeu orgulhosamente Pot��fera. ��� Instaura
o processo contra mim e contra os padres de M��nfis e
de Heli��polis: n��s responderemos aos juizes. Quanto a
Asnath, podes faz��-la condenar, eu o sei; mas tamb��m
sua morte romper�� o la��o que desejavas travar com a
nossa casta. N��o mendigaria a sua vida mais que a mi-
nha, se te arriscasses feri-la t��o alto; toma por��m cuida-
do! Em guerra desse g��nero, �� dif��cil saber-se quem ser��
o vencedor; eu sou e permane��o, para o povo do Egito,
220
J. W. ROCHE STER
o primeiro servo do grande deus de Heli��polis; tu, um
estrangeiro, elevado da esc��ria do povo �� posi����o que
ocupas; se, pois, desencadeares a guerra aberta, teremos
necessidade de aceit��-la.
Sem esperar resposta, desviou-se, saiu, e a c��lera que
fervia na alma de Jos�� o enfraqueceu de tal maneira que
adormeceu e s�� despertou horas depois. Esse repouso o
havia reconfortado e, com a fria resolu����o que o caracte-
rizava, sondou a situa����o e pesou as probabilidades. Po-
t��fera tinha raz��o: instaurar um processo escandaloso
contra a casta poderosa e venerada pelo povo, era uma
cartada perigosa. O pr��prio Apopi desej��-la-ia? Apesar do
seu ��dio contra os padres, testemunhava-lhes sempre,
oficialmente, respeito e benevol��ncia. E, quanto �� morte
de Asnath, apenas lhe arrancaria para sempre a mulher
fascinadora, cuja ��nica lembran��a lhe fazia palpitar o
cora����o.
"Devo calar-me, mas guardarei o que se passou hoje,
e a ocasi��o de me vingar de ti, casta maldita, n��o me
faltar��" ��� murmurou com os dentes cerrados.
Nessa mesma tarde escreveu ao sogro: "Refleti e
decidi ocultar ao rei o atentado, com a condi����o de dei-
xarem M��nfis, tu e os teus, nestes pr��ximos dias; perd��o
�� tua filha e conservar-lhe-ei no lar a posi����o que lhe ��
devida; n��o quero, por��m, que ela se apassive �� vossa
odiosa influ��ncia, que lhe inspira sentimentos contr��rios
aos seus deveres; se, todavia, te obstinares em ficar aqui
e em desviar de mim o cora����o de tua filha, serei for��ado,
embora contra a vontade, a recorrer ao rigor das leis."
Quando Pot��fera recebeu esta carta, suspirou aliviado:
a perspectiva de um processo escandaloso repugnava ex-
tremamente aos padres, qualquer que fosse o resultado;
e o pensamento de matar a pr��pria filha, para subtra��-la
ao verdugo, tinha queimado, qual ferro em brasa, o cora-
����o do sacerdote. Compreendeu, de resto, que a rara be-
leza de Asnath exerceria o seu imp��rio sobre Jos��, e que
este n��o queria perder a mulher t��o dificilmente adqui-
rida. Ora, por mais repugnante que fosse a seus olhos esse
amor, ele o favorecia no momento. Sem demora, ordenou
preparassem tudo para regressar a Heli��polis.
O CHANCELER DE FERRO
221
No dia seguinte, acompanhado da mulher e do filho,
dirigiu-se ao pal��cio do Adon. Este o recebeu algo sur-
preso, mas compreendeu que a visita era uma resposta ��
carta, quando Pot��fera declarou que neg��cios urgentes o
chamavam a Heli��polis e que, decidido a partir no dia
seguinte, vinha despedir-se dele e da filha.
Dada a presen��a de um escriba e de um funcion��rio
interno, o adeus, apesar de um tanto precipitado, reves-
tiu-se de ternura oficial. Maia conteve corajosamente as
l��grimas e deixou-se abra��ar pelo genro, assim como
Armais; em seguida, Jos�� declarou que, achando-se sua
mulher ligeiramente indisposta, ia conduzi-los ao quarto.
Acompanhou-os at�� �� entrada dos aposentos de Asnath
e retirou-se. Mas a despedida de Asnath foi tamb��m
curta; Pot��fera n��o queria comover mais a mo��a, ainda
fraca e desfigurada, com l��grimas e adeuses aflitivos.
Contentou-se em apert��-la nos bra��os, dizer em poucas
palavras que o processo n��o se faria, e acrescentou: "Com
o teu ato irrefletido podias perder-te e a n��s tamb��m; s��
mais prudente de futuro, n��o irrites a serpente e subme-
te-te aos deveres inerentes �� tua nova posi����o. Se eu tiver
necessidade de te mandar qualquer mensagem, �� revelia
de conhecimento oficial do teu marido, ouvir��s no bosque
mais pr��ximo de tua janela o grito cinco vezes repetido
de uma ave noturna. Dever��s, ent��o, descer ao jardim,
onde o mensageiro achar�� meios de transmitir-te minhas
ordens ou conselhos."
Depois que se retiraram, ela debulhou-se em l��grimas:
sentia-se s��, abandonada, infeliz a mais n��o ser. Os seus
estavam longe agora e o pensamento de rever Jos�� susci-
tava-lhe ang��stia e c��lera. N��o pregou olhos toda a noite,
pensando, ao menor ru��do, v��-lo surgir no quarto; mas
o mancebo n��o apareceu porque, por sua vez, esperava
lhe fosse ela pedir perd��o. E como a sua expectativa foi
igualmente frustrada, escreveu-lhe no dia seguinte, pedin-
do explica����o do seu procedimento. "Sou criminosa, espe-
ro a tua senten��a" ��� respondeu a orgulhosa eg��pcia.
Compreendia que deveria desculpar-se, ao menos do ato
delituoso, mas preferia morrer antes que humilhar-se.
222
J. W. R O C H E S T E R
A resposta produziu em Jos�� uma triste e dolorosa
impress��o, mas os deveres do cargo e um excesso de ex-
pediente impediram-no de entregar-se ��s suas reflex��es.
A noite fechara, quando, afinal, despediu o derradeiro es-
criba e, fatigado de alma e de corpo, desceu ao jardim.
De cabe��a baixa, errou longo tempo pelas alamedas som-
brosas, sentando-se depois num banco de pedra e apoian-
do-se na esfinge em que terminava o encosto.
Profundo sil��ncio reinava em torno. Lembraram-lhe
logo as belas noites calmas, passadas nas plan��cies viren-
tes da sua tribo. Ent��o, era pobre; a vida mon��tona e
rude lhe pesava e, mais de uma vez, vigiando os rebanhos,
entressonhava a exist��ncia refinada das grandes cidades,
de que lhe falava Schebna; a afei����o do velho pai tinha-
-Ihe parecido pouca coisa, os irm��os que o invejavam e
aos quais espionava e denunciava, por quaisquer pequenos
delitos, esses eram-lhe indiferentes, ��s vezes odiosos.
Agora, todo esse passado estava longe. Vencera o destino
e, qual o predissera o caldeu, achava-se no fast��gio do
poder... M a s . . . feliz? "N��o, gritou-lhe a alma ulcerada;
��s mais desgra��ado que o pobre pastor, porque, nesta ver-
tiginosa altura, tu te encontras s��. O pesar e o medo, a
alegria ou o desespero podem fazer-te bater o cora����o,
e tu n��o tens a quem confi��-lo."
Abafado suspiro agitou-lhe o peito: era a verdade!
Nessa urbs imensa, nesse pa��s que governava, nem um
cora����o batia por ele; todos os que rastejavam diante
dele eram interessados ou inimigos, que cavavam a sua
ru��na. Verdadeira tempestade agitou-lhe subitamente o
cora����o, veio-lhe um desejo enorme de possuir um ente
amado, propriamente seu, a quem pudesse confiar o cora-
����o ermo, confiar tudo que o oprimia; ou, ent��o, fugir para
longe daquela terra odiosa que o desprezava, ganhar de
novo o deserto, procurar o velho pai para reencontrar a
paz entre os seus bra��os. Recalcando a custo os solu��os
que o abafavam, escondeu a cabe��a nas m��os e silencio-
sas l��grimas lhe perolaram entre os dedos.
��� Sou, porventura, capaz ainda de chorar, quando
o cora����o deveria estar r��gido como o granito das pir��-
mides? ��� murmurou com amargura.
O CHANCELER DE FERRO
223
Um leve rumor f��-lo erguer a cabe��a e, com espanto,
divisou Asnath, de p��, a dois passos, fitando-o conster-
nada. Tamb��m ela n��o achava repouso, e, receando as-
fixiar-se nos aposentos, fora para o jardim, onde o acaso
a levara junto ao banco. Percebendo um homem, tinha
estacado, mas logo reconheceu o marido e viu que ele
chorava.
Essa descoberta produziu-lhe verdadeira como����o:
nunca lhe viera �� mente que aquele homem orgulhoso e
altivo, investido de poderes r��gios, pudesse julgar-se in-
feliz ao ponto de derramar l��grimas, considerar-se insu-
lado e mais pobre que o mais miser��vel pescador do Nilo,
tendo uma fam��lia que o amava e compartia das suas
dores e alegrias. Um sentimento de profunda compaix��o,
misturada com essa simpatia e poderosa atra����o que o
olhar do hebreu exercia sobre ela, despertou-se-lhe no
cora����o:
��� Choras, Jos��? ��� murmurou timidamente.
�� vista dessa emo����o, assim como da beleza da mu-
lher que o fitava p��lida e perturbada, a alma de Jos��
estremeceu numa insopitada explos��o de dor.
Tomando as m��os de Asnath, atraiu-a bruscamente e
disse com voz entrecortada:
��� Sim, sim, Asnath, choro porque estou insulado;
porque todos os que me cercam me odeiam e desprezam
e porque, at�� o ��nico ente que deveria ser meu susten-
t��culo e minha alegria, quis matar-me. N��o estreme��as
assim, sei que n��o foi em teu cora����o inocente que germi-
nou esse mau pensamento; suplico-te, por��m, ama-me um
pouco, a fim de que eu saiba que nesta grande cidade ini-
miga teu cora����o bate por mim.
��� N��o te posso amar ��� balbuciou Asnath suspiro-
sa ���, mas, se queres aceitar minha amizade, t��-la-��s de
boa-vontade, farei porque n��o te sintas t��o isolado e n��o
me tenhas como inimiga.
��� Compreendo: eles te amea��aram com a maldi����o
da sua casta, se me amasses ��� murmurou Jos�� com amar-
gura. ��� N��o importa! Aceito a tua amizade e leio em
224
J. W. ROCHESTER
teus olhos inocentes que me dar��s mais do que prometes.
Fa��amos, pois, a paz e possam os deuses proteger nossa
uni��o.
Beijou-a, silenciosamente, ela apoiou a cabe��a no seu
peito. Um indefin��vel sentimento, misto de dor e inquie-
ta����o, lhe invadia todo o ser. Um quarto de hora mais
tarde, os jovens esposos subiam lentamente os degraus do
terra��o para come��ar uma vida desconhecida.
S E G U N D A P A R T E
PODER REAL E PODER SACERDOTAL
I
O A D O N E S U A M U L H E R
Chegaram pois os sete anos de
fertilidade; e o trigo, tendo sido posto
em molhos, foi depois amontoado nos
celeiros do E g i t o .
P �� s - s e t a m b �� m de reserva em t o -
das as cidades esta grande abund��n-
cia de gr��os.
A n t e s que c h e g a s s e a fome, t e v e
Jos�� dois filhos de sua mulher A s -
nath, filha de Pot��fera, sacerdote
de Heli��polis. ��� G��nese, cap. XLI,
w . 47, 48, 50.
Os primeiros meses que se seguiram �� reconcilia����o,
n��o registraram nenhum acontecimento de nota. Apenas
uma s��rie de pequenos incidentes, provocados pela estra-
nha e falsa situa����o que, apesar de tudo, reinava entre
os esposos e impedia se estabelecesse uma verdadeira har-
monia. Cego pela paix��o a que se entregou sem reservas,
Jos�� s�� pensava em conquistar o cora����o da jovem, lison-
jeando-a de toda maneira, cumulando-a de presentes e
car��cias, concedendo-lhe plena liberdade de a����o e sub-
metendo-se com a docilidade de homem verdadeiramente
enamorado, satisfazendo todos os seus desejos e caprichos.
226
J. W. ROCHESTER
Se Asnath tivesse sido abandonada sem restri����es aos
seus pr��prios impulsos, provavelmente teria correspondi-
do ao amor do marido, cuja personalidade sedutora exer-
cia sobre ela poderosa influ��ncia; mas, o juramento feito
a Hor, assim como o pensamento de atrair o desprezo da
sua casta, deixando-se arrastar pelo sentimento que a
impelia para Jos��, provocaram desde o come��o uma de-
sarmonia interior, e bastava a lembran��a do antigo noivo
para sust��-la num impulso de ternura ou de confian��a;
da mesma forma que a presen��a de um padre, o pesado
e percuciente olhar que a fixava, produziam-lhe o efeito
de um c��ntaro de ��gua fria. Em tais momentos petrifi-
cava-se, por assim dizer, num orgulho glacial, recebia
com ��spera repulsa a ternura que o marido, muito amo-
roso para dissimular, lhe prodigalizava, mesmo diante de
mal��volas testemunhas.
Apesar do moment��neo exaspero despertado por se-
melhantes incidentes, Jos�� reca��a logo sob o jugo da sua
fascina����o e bastava um sorriso, um beijo, para desarmar
a c��lera. A consci��ncia de um tal poder sobre o homem
diante do qual tremia todo o resto do Egito, divertiu enor-
memente Asnath, logo que se assegurou da sua for��a; e,
sob a influ��ncia dos sentimentos controversos que o ma-
rido lhe inspirava, resolveu provar que, se para todos ele
era o poderoso e terr��vel Adon, para ela era apenas o
homem obscuro, que devia considerar-se feliz como bone-
co dos seus caprichos.
Apesar da sua amorosa cegueira, Jos�� tinha muita
sagacidade para deixar de compreender a situa����o e n��o
observar a influ��ncia exercida em sua mulher pela casta
sacerdotal. Embora n��o tivesse provas palp��veis dessa in-
flu��ncia oculta, seu ��dio pelos padres e pela parentela de
Asnath foi aumentando. Resolveu dominar sua fraqueza
e mostrar �� esposa que n��o se deixaria maltratar inde-
finidamente e que, se pela afei����o tudo podia, nem por
isso deixaria de antepor aos seus caprichos e fantasias a
autoridade de esposo.
A ocasi��o de experimentar este novo m��todo se apre-
sentou, cerca de oito meses depois do casamento. Uma
viagem de inspe����o for��ava-o a deixar M��nfis por tr��s
O C H A N C E L E R DE F E R R O
227
semanas e, ao sab��-lo, Asnath, sem o prevenir, decidiu
aproveitar o tempo de sua aus��ncia para uma viagem a
Heli��polis em companhia de Ranofrit, que desejava igual-
mente visitar Pot��fera e sua mulher, enquanto Putifar
se dirigia a uma regi��o afastada, onde um inc��ndio tinha
produzido estragos consider��veis. Mas, imagine-se o es-
panto da jovem esposa, quando o intendente lhe anun-
ciou, respeitosamente, que o Adon tinha proibido p��r ��
sua disposi����o o material e o s��quito necess��rios a qual-
quer viagem, bem como que, na sua aus��ncia, qualquer
viagem lhe ficava interdita.
Asnath ficou um instante petrificada; depois, corou
vivamente e, com um gesto impaciente, despediu o inten-
dente. Logo que saiu, por��m, precipitou-se para o quarto
de Jos��, onde Pibisi lhe declarou que o senhor se encon-
trava s��, no corredor cont��guo ao gabinete de trabalho.
Passeava pensativo debaixo das arcadas, parando de
instante a instante junto da mesa para inscrever uma
nota, quando divisou a mulher que corria ao seu encontro.
As faces coradas e os olhos chamejantes deram-lhe a
compreender, incontinenti, o de que se tratava. Cruzando
os bra��os, encostou-se a uma coluna, preparando-se para
enfrentar a tempestade, enquanto um sorriso ��� que
Asnath divisou, exasperou-a ainda mais ��� errava-lhe nos
l��bios.
��� Desde quando estou prisioneira e como ousas com-
prometer-me perante os criados proibindo-lhes cumprir
minhas ordens? ��� exclamou batendo o p�� ��� quero visitar
meus parentes e vamos ver se mo pro��bes...
��� Desde que ��s minha mulher, tenho o direito de
proibir-te o que considero inconveniente e minhas ordens
devem ser respeitadas por ti como por toda a casa ��� res-
pondeu calmo. ��� Al��m disso, pedir-te-ei que vejas com
quem falas, pois n��o sou nenhum escravo com o qual se
possa gritar dessa maneira. N��o ir��s ver tua fam��lia, o
que ali��s n��o influi para que deixes de sentir a influ��ncia
da tua casta na minha vida ��ntima. N��o ousando revol-
tar-se contra mim, os vener��veis padres inspiram-te en-
genhosamente a id��ia de me afrontar. Dar-te ainda a
ocasi��o de ouvires todos os t��tulos honor��ficos com que
228
J. W. ROCHE STER
me gratificam teu pai e seus amigos, eis o que �� desne-
cess��rio !
Ela baixou os olhos um instante, mas quase logo
ergueu a cabe��a e disse ir��nica:
��� Pensas, na verdade, que todo o mundo tenha obri-
ga����o de estar compenetrado da tua grandeza, mesmo em
seu foro ��ntimo? Todos esses homens vener��veis podem
calar-se diante da viol��ncia tir��nica de Apopi, mas n��o
se rebaixar��o ao ponto de rastejar diante de ti.
��� Raz��o demais para te afastar deles; est��s sufi-
cientemente industriada no desprezo que me deves; longe
das li����es de teus mestres, poder�� despertar em ti o res-
peito devido �� minha autoridade. Eis o que te proponho:
se te aborreces em M��nfis, vem comigo; n��o conheces
Tanis e as festas e honras que a�� se tributarem �� esposa
do Adon te distrair��o.
Noutro momento, a proposta teria certamente agra-
dado a Asnath, que n��o desdenhava representar o pri-
meiro papel e ver-se cercada de homenagens e adula����es;
agora, por��m, estava muito irritada para apreciar a in-
ten����o conciliadora do marido e, por isso, abanou a ca-
be��a e respondeu com um sorriso impertinente:
��� Agrade��o-te essas honras; mas esqueces que sou
eg��pcia e sei o que elas custam a eg��pcios que se prezam.
Quanto ��s homenagens dos chasous, eu as tenho aqui em
abund��ncia
As narinas do Adon tremelicaram e sombrio fulgor
jorrou-lhe das pupilas.
��� Asnath, n��o abuses do teu fasc��nio e da minha
paci��ncia ��� disse severamente.
E, dando um passo para ela:
��� Sei que me desprezas pela minha origem, bem
como tua casta, que te dita a conduta; sei que podes
sentir, pensar o que quiseres, mas pro��bo-te, compreendes?
de mo dizeres. Range os dentes, silenciosamente, como
teus caros eg��pcios, mas, assim como eles se curvam diante
do Adon, que pode esmag��-los, deves testemunhar a teu
marido respeito e obedi��ncia. E agora, deixa-me: tenho
que trabalhar.
O CHANCELER DE FERRO
229
Voltando-lhe as costas, puxou um tamborete, sentou-
-se junto a mesa e come��ou a ler.
Ardendo em c��lera, Asnath voltou para o quarto, ru-
minando planos de vingan��a. No dia seguinte, logo que
Jos�� partiu, foi �� casa de Ranofrit e contou-lhe indignada
a cena passada.
��� Era o que faltava! que te deixasses dirigir por esse
c��o impudente! Vem comigo e prova-lhe que sabes dis-
pensar-lhe a permiss��o ��� advertiu a mulher de Putifar
com um gesto de profundo desd��m.
Asnath voltou radiante e, no dia seguinte, declarou
ao intendente que viajava com a tia; mas como n��o levou
nem um escravo, contentando-se com a companhia da
velha aia, nem um animal para as bagagens, o homem
n��o ousou constranger a pessoa de sua senhora e ela
deixou M��nfis muito satisfeita de pregar semelhante pe��a
ao marido.
Chegando a Heli��polis, evitaram dizer a verdade a
Pot��fera alegre com a visita da filha e achando natural
que ela aproveitasse a viagem do marido para ausentar-
-se. N��o suspeitou da sua desobedi��ncia e, al��m disso, o
sacerdote estava sobrecarregado de trabalho em conse-
q����ncia das obras do templo. S�� tinha raros momentos
para dedicar �� familia. Maia teve alguns receios quando
lhe confiaram a verdade, mas as duas visitantes acalma-
ram-na persuadindo-a que era indispens��vel dar uma
li����o ao insolente.
Asnath estava em Heli��polis havia quinze dias, quan-
do um dia, cedo, chegou inopinadamente Putifar visivel-
mente preocupado e descontente, dirigindo-se logo ao ga-
binete do sacerdote. "Eis o que nada de bom pressagia"
��� disse Maia ��� e com efeito, apareceram logo os dois
homens, e Pot��fera fez �� filha severas censuras, n��o s��
por ter desobedecido ao marido como por lhe haver
ocultado o fato. Depois, declarou que dentro de duas
horas deveria voltar para M��nfis, com o tio.
��� N��o quero voltar para junto do Adon; ele me mal-
trata, humilha e atormenta de toda maneira ��� gritou
em solu��os.
230
J. W. R O C H E S T E R
��� N��o tens vergonha de inventar hist��rias e proce-
der loucamente, quando teu pai te recomendou prud��n-
cia? ��� interrompeu Putifar com acrim��nia.
Quanto ao sacerdote, abra��ou a filha, procurou acal-
m��-la e disse-lhe que Jos��, muito incomodado, declarou
que, se retivessem sua mulher em Heli��polis, imporia ��s
terras dos templos um imposto sobre os gr��os, for��ando
a entrega aos celeiros p��blicos. E a s�� id��ia de uma tal
viol��ncia, exercida contra sua casta e da qual Jos�� era
bem capaz, exasperava Pot��fera.
Apesar da raiva, a mo��a teve que partir, mas enco-
lerizada de tal maneira que apenas se despediu dos seus,
duvidando at�� da afei����o do pai. Foi em v��o que o tio
procurou persuadi-la, recomendando prud��ncia e tratando
de lhe fazer compreender a responsabilidade da sua po-
si����o, uma vez que sua pessoa era uma arma terr��vel
nas m��os do Adon. Mas a mo��a zombava da pol��tica e das
raz��es de Estado, pensando somente em rever o marido
para fazer-lhe uma cena como ele ainda n��o tinha visto.
N��o longe de M��nfis foi encontr��-los um enviado de
Jos��, que pedia a Putifar conduzisse sua mulher a uma
casa de campo pr��xima da cidade, ali deixando-a. Essa
nova disposi����o aumentou a raiva de Asnath, e Putifar,
ao deix��-la, n��o o fez sem inquieta����o.
Tr��mula de impaci��ncia, esperou o marido, mas, de-
balde. Mais de quinze dias decorreram sem que ele apa-
recesse e ela ficava abandonada na aldeia, sem ver nin-
gu��m e sem poder deixar o recinto dos vastos jardins.
Pensou enlouquecer, mas, uma tarde, deitada no s��t��o de
onde se descortinava a estrada de M��nfis, percebeu uma
nuvem de poeira e logo reconheceu um carro escoltado
por alguns cavaleiros da guarda do marido. Tudo se p��s
a esfervilhar dentro dela. Afinal, vinha! Mas, em lugar
do Adon, veio um pequeno escravo dizer-lhe que o senhor
lhe pedia que descesse. Ela fechou os olhos e n��o se mexeu,
mas, ao cabo de um quarto de hora, o carro e os cava-
leiros regressaram.
Quinze dias mais, de sil��ncio e solid��o. Compreendia
que o marido a estava castigando e queria for����-la a re-
O CHANCELER DE FERRO
231
conhecer seus erros; morreria antes de dar-lhe seme-
lhante prazer. Todavia, a c��lera se abrandava, substitu��da
por tenebroso rancor. N��o se amofinava mais, deitada
dias inteiros, e principiou a distrair-se inventando novos
arranjos na casa e nos jardins. Um dia, ocupava-se com
dois jardineiros e algumas criadas a transplantar flores
e arbustos raros para as platibandas que rodeavam o
pavilh��o predileto, que queria ornar de jarros, quando um
escravo correu arquejante para anunciar a chegada do
Adon.
Intenso rubor coloriu-lhe as faces e um sentimento
��spero e mau lhe fez bater o cora����o. Como, no mesmo
instante, percebesse no extremo da longa alameda de
sic��moros o perfil esguio de Jos��, ordenou aos criados que
se recolhessem, compreendendo que a entrevista n��o
seria pr��pria para ouvidos de escravos. Logo que estes
desapareceram, encostou-se �� entrada do pavilh��o e seu
pequeno rosto tomou express��o de glacial indiferen��a.
Mostraria ao c��o impuro que, se podia seq��estr��-la e mal-
trat��-la fisicamente, nenhum ascendente possu��a sobre a
sua alma.
Jos�� encaminha-se rapidamente e seu olhar dardejou,
inflamado, no rosto fascinante da mulher, que deixava
transparecer feroz obstina����o e n��o pressagiava nada de
bom. Profundo suspiro intumesceu-lhe o peito e o brilho
febril dos olhos, as pancadas c��leres do cora����o, debaixo
da fina t��nica de bisso, teriam denunciado a um obser-
vador, mais atento, que ele estava longe da calma exterior
que aparentava. Na verdade, Jos�� sofria a longa separa����o
da mulher e, por necessidade, desempenhava o papel de
marido severo e impass��vel. Se tivesse escutado s�� o cora-
����o, teria atra��do aos bra��os a adorada antagonista e
assinado a paz com um beijo; mas sentia que Asnath,
armada contra ele por seus inimigos, abusaria do poder
que sobre ele exercia, para afront��-lo e humilh��-lo sem
piedade. S�� lhe domando a altiva natureza e a revolta,
poderia inspirar-lhe amizade e abrir caminho ao amor
que sentia por ele, mas contra o qual lutava ��s ordens da
sua casta e por obstina����o.
232
J. W. ROCHESTER
Parando em frente de Asnath, que parecia metamor-
foseada em est��tua, disse com calma:
��� �� assim que recebes teu marido, depois de t��o
longa separa����o e de o haveres afrontado e ofendido com
a tua desobedi��ncia? Insol��ncia e obstina����o, em vez de
uma desculpa, de uma palavra afetuosa?
Ela ergueu a fronte, provocadora, as pupilas azuis
faiscantes e, sorrindo, ir��nica:
��� O Fara�� Apopi ainda n��o decretou, que eu saiba,
que toda esposa eg��pcia deve prosternar-se perante o
marido chasou; e como n��o tive desejo algum de rever-te,
Adon, n��o me julgo obrigada a t��o extraordin��ria grati-
d��o por tua visita. Sinto-me bem nesta solid��o absoluta,
de modo algum desejei ser perturbada.
Ele empalideceu ligeiramente e o tremor das narinas
mal encobriu a tempestade que lhe roncava no ��ntimo.
N��o revidou, porque n��o queria falar sem reconquistar a
posse de si mesmo. Passeou os olhos distra��dos pelos
jarros, pelos mont��es de terra fresca e arbustos deitados
na grama, fixando-os afinal num feixe de varas de junco,
colocadas no banco ao lado e destinadas a sustentar as
flores recentemente plantadas. Maquinalmente, apanhou
uma e vergou-a, nervosamente, entre as m��os; mas As-
nath suspeitou do gesto inconsciente, prevendo uma agres-
s��o e inflamou-se como estopa. Segurando a machadinha
do jardineiro, atirou-se para o marido e, brandindo-a,
gritou com voz desconhecida: -
��� Se ousas bater-me, mato-te!
Jos��, que n��o tinha pensado em semelhante coisa,
fitou-a espantado e, recuando um passo, disse com auste-
ridade:
��� Vejo que tu mesma compreendes qual o tratamen-
to que merecias, mas n��o tenho inten����o de utilizar esses
meios para tornar-te mais polida; n��o �� a for��a do meu
pulso, mas da minha vontade, que te h�� de ensinar a
respeitar-me. E agora, larga a machadinha. Seria edifi-
cante que os criados te vissem brandir uma arma contra
mim. Larga j�� a machadinha ��� repetiu franzindo a testa
e dardejando nela um olhar t��o imperioso que, depois de
um instante de hesita����o, obedeceu.
O C H A N C E L E R DE F E R R O
233
Ent��o Jos��, por sua vez, atirou longe a vara de junco
e continuou em tom calmo, por��m en��rgico:
��� Bem, agora vou dar-te uma explica����o decisiva.
Estou cansado de ouvir insultos que n��o tens o direito
de proferir; aproximei-me de ti, h�� pouco, sem palavras
ofensivas, intencionando restabelecer entre n��s uma vida
suport��vel, mas n��o para mendigar teu amor. Cr��s, na
verdade, que eu n��o te poderia fazer experimentar triste-
mente o meu poder, por mais filha de Pot��fera que sejas?
Mandando-te para aqui, teu pai provou que n��o me
quer desafiar e que compreende perfeitamente onde aca-
bam os direitos do pai e onde come��am os do marido.
Se fosses casada com um eg��pcio, nunca ousarias afron-
t��-lo assim. Comigo, o escravo liberto, acreditas poder
faz��-lo, mas eu declaro que est��s enganada. A esse escra-
vo liberto, transformado em teu senhor, deves respeito e
obedi��ncia, tal qual como a Hor ou a qualquer outro ho-
mem da tua ra��a, com quem tivesses casado. N��o supor-
tarei que ostensivamente me demonstres desprezo.
Agora, ouve o que decidi sobre o incidente provocado
por tua desobedi��ncia; j�� que recusaste um entendimento
amig��vel, far-te-ei sentir minha severidade. Se me n��o
vieres pedir perd��o, como conv��m a uma esposa submissa,
aqui ficar��s isolada, exclu��da da sociedade, e para sem-
pre. Tomo aos deuses por testemunha (levantou a m��o)
de que nenhum pedido me far�� mudar de resolu����o; a
teu pai, assim como ao Fara��, responderei que uso do
meu direito imprescrit��vel para com a mulher rebelde;
e se n��o vieres pedir-me perd��o, ao retirar-me daqui,
amanh�� de manh��, ter��s de vir a p�� para M��nfis, porque
aqui n��o haver��, para servir-te, carro nem liteira, se n��o
fores comigo. Reflete bem nas conseq����ncias da tua obsti-
na����o, e escolhe: queres voltar amanh�� ao pal��cio de
M��nfis, ou preferes a solid��o? O que acabo de dizer-te
�� a minha ��ltima palavra.
Com um grito de c��lera e desespero, ela atirou-se ao
banco e escondeu o rosto nas m��os. Jos��, que j�� se havia
afastado alguns passos, virou-se e, vendo as l��grimas que
corriam entre os dedos de Asnath e os solu��os convulsivos
234
J. W. ROCHESTER
que a sacudiam, voltou depressa e, inclinando-se, mur-
murou baixinho:
��� Asnath, s�� boa e justa; deixa falar teu cora����o sem
o fel que te instilam: dize-me uma palavra conciliadora,
afetuosa; eu quero esquecer esta hora e muitas outras n��o
menos dolorosas.
Com o cora����o oprimido, esperou: a mulher lutava,
visivelmente, consigo mesma; sua respira����o arquejava,
os l��bios tremiam. Entretanto, ficou muda, frisando nos
l��bios um amargo sorriso.
Jos�� desviou-se, galgou o quarto e mandou chamar
os escribas que o acompanhavam, procurando afogar no
trabalho os pungitivos pensamentos que o oprimiam.
Asnath tamb��m se encerrou no quarto; proibiu, a
quem quer que fosse, entrar sem ser chamado e entregou-
-se a verdadeira crise de nervos, que s�� terminou em com-
pleta prostra����o, semelhante a um desmaio.
A noite ca��a quando esse estado let��rgico se dissipou
e ela p��de levantar-se. Sentia-se alquebrada, mas readqui-
rira a faculdade de raciocinar. Sentando-se ao p�� da
janela, refletiu...
Com dolorosa lucidez ponderou as conseq����ncias da
sua obstina����o.
Jos�� n��o desistiria das condi����es estabelecidas, era
indubit��vel; mas seu pai n��o suportaria tranq��ilamente
o v��-la prisioneira e abandonada naquele ermo. Isso era
tamb��m certo. Que conflitos poderiam nascer desses inci-
dentes e, na sua pessoa, humilhar cruelmente, a casta
sacerdotal! Que vergonha para ela e para os seus, se,
afinal de contas, aquele escravo liberto a obrigasse a ir
a p�� para M��nfis, mendigar-lhe perd��o! O bom senso
mandava conjurar tais eventos, cedendo. Mas o orgulho
se obstinava e revoltava contra essa necessidade.
Com um gemido abafado, fechou os olhos e apoiou-se
no encosto da cadeira, mas s��bito estremeceu e prestou
aten����o: o grito de uma ave noturna acabava de fazer-se
ouvir num bosque, perto da janela; depois, a intervalos
iguais, esse grito se repetiu ainda quatro vezes. Ergueu-
-se apressada, envolveu-se num manto escuro e desceu
O CHANCELER DE FERRO
235
ao jardim: n��o havia d��vida, algum servo do templo ia
transmitir-lhe qualquer mensagem secreta do pai e, com
o sinal combinado, prevenia sua presen��a. Cautelosa-
mente, Asnath introduziu-se no bosque, escondendo-se
entre as sar��as, quando sentiu que lhe seguravam a m��o.
Distinguiu uma vaga sombra que sa��a de uma ��rvore e
uma voz murmurou-lhe ao ouvido: "Evita tudo o que
possa originar conflitos entre os padres e o Adon; apro-
xima-se a hora em que todas as humilha����es ser��o vin-
gadas; vai, pois, pedir perd��o ao c��o insolente; atende ��
sua ordem, tal �� a vontade de teu pai, e que Ra te pro-
teja!"
Um ligeiro farfalhar de ramos, a sombra fundiu-se
na obscuridade e Asnath ficou s��! Tr��mula, voltou ao
quarto; nem um instante pensou em resistir �� ordem do
templo, mas como seu pai podia saber o que se passara
entre ela e o marido, horas antes? Subitamente, lembrou-
-se de que muitas vezes seu pai tinha sido informado de
coisas desconhecidas, verificadas em lugares distantes.
Assim que, no dia da eleva����o de Jos��, em M��nfis, Po-
t��fera o anunciou a Racapou. Ela por acaso surpreendera
algumas palavras da conversa, e sabia que essas not��cias
graves se transmitiam de templo a templo com extraor-
din��ria rapidez. Mas ignorava de que maneira se fazia a
transmiss��o. A coisa, de resto, pouco interessava no mo-
mento; a humilha����o Inevit��vel empolgava-a inteiramen-
te e, com o cora����o apertado, dirigiu-se lentamente para
o quarto de Jos��.
Tendo recebido a indica����o do escravo, atravessou a
antec��mara, onde, sobre a mesa, via-se a ceia ainda in-
tacta e penetrou no terra��o cont��guo: ali lobrigou logo
o marido, sentado ao varandim. A chama de duas altas
tr��podes, cheias de alcatr��o, iluminava-lhe a curta vesti-
menta branca e as j��ias que ornavam o pesco��o e os bra-
��os; nesse fundo avermelhado destacava-se n��tido o seu
perfil alto e regular. Estava estranhamente p��lido e uma
indiz��vel express��o de amargura e c��lera lhe agitava os
l��bios.
Asnath parou, tomada de s��bita fraqueza, suspirou
profundamente; rodava-lhe a cabe��a, quase tombou. To-
236
J. W. ROCHESTER
davia, aquele resfolgo comprimido atingira os ouvidos de
Jos��, que se voltou e logo se levantou, aproximando-se da
mulher. Fez-se sil��ncio: mudo, cenho carregado, o mo��o
esperava, observando a luta intima que se desenhava no
rosto desfigurado de Asnath. Por fim, ela murmurou ma-
quinal e quase imperceptivelmente:
��� Perdoa-me...
��� Est�� bem; amanh�� voltar��s para M��nfis ��� res-
pondeu ele com frieza. ��� Executaste bem a ordem que te
veio do templo. Deixa-me dizer-te que ��s muito altiva
para cederes �� voz do cora����o e da justi��a; mas que se
coaduna com teu orgulho seres a escrava, o instrumento
cego dos padres, humilhando-te quando lhes conv��m.
O desprezo glacial, que lhe timbrava na voz, feriu
Asnath como se fosse uma bofetada, surpreendeu-a o co-
nhecimento que tinha o marido da vinda do padre; titu-
beou e, se Jos�� n��o a tivesse sustentado a tempo, teria
ca��do. Vendo que ela perdera os sentidos, levou-a para
um leito e tratou de faz��-la voltar a si; sua c��lera se
havia desfeito �� vista do pequeno rosto p��lido e sofredor
de Asnath; mas, ao lembrar-se dos instigadores de todos
os seus pesares, os punhos se lhe crisparam: "Oh! como
vingar-me de v��s, casta execranda, cuja infernal maldade
achou meios de matar-me a felicidade at�� nos meus bra-
��os" ��� murmurou com os l��bios tr��mulos.
Quando ela voltou a si, seu primeiro olhar encontrou
o rosto ansioso do marido; fechou vivamente os olhos, e
depois, ao cabo de um instante, recomp��s-se e murmurou
sem encar��-lo:
��� Quero voltar para casa, sinto-me bem agora.
��� Em verdade, est��s bem e queres ir embora? N��o
experimentas, pois, nenhuma necessidade de ficar perto
de mim, de fazer a paz, sinceramente, e esquecer um pou-
co os espectros vestidos de branco que se levantam entre
n��s? ��� perguntou Jos��, erguendo a cabe��a e mergulhando
nos olhos azuis de Asnath um olhar meio zombeteiro,
meio apaixonado.
Asnath corou: o sorriso carinhoso, a voz velada, o
brilho fascinante dos grandes olhos verdes exerceram nela
O C H A N C E L E R DE F E R R O
237
o seu imp��rio habitual; seu cora����o bateu tumultuosa-
mente e n��o p��de resistir quando Jos�� a cingou e disse:
��� Repete agora, espontaneamente, as palavras que te
ditaram meus inimigos.
��� Perdoa-me, Jos�� ��� murmurou.
A voz era d��bia, um sorriso lhe brincava nos l��bios
descorados. Jos�� esqueceu e perdoou todos os delitos, todas
as palavras ofensivas da fr��gil e sedutora advers��ria, des-
de o momento em que, vencida, apertou-a nos bra��os.
Tinha consci��ncia da sua fraqueza, da paix��o que o sub-
jugava e tornava t��o indulgente, t��o conciliador, o severo,
o impiedoso e crudel��ssimo chanceler de ferro do Fara��
Apopi.
II
ISRAEL NO EGITO E A FOME
Trazei de l�� vosso pai com toda a
sua fam��lia e vinde ter comigo. Eu vos
darei todos os bens do E g i t o e v��s sereis
nutridos do que de melhor h�� nesta
terra.
Sem nada deixardes em v o s s a s ca-
sas, porque todas as riquezas do E g i t o
ser��o vossas. ��� G��nese, cap. XLV,
vv. 18, 20.
O incidente que acabamos de descrever produziu em
Asnath uma impress��o profunda e provocou em seu car��ter
e na sua maneira de ser uma pronunciada transforma-
����o; tornou-se mais prudente, mais reservada, evitando
cuidadosamente todas as ocasi��es de descontentar o ma-
rido, conformando-se submissa aos seus desejos. N��o mais
queria dar motivo a conflitos nem atrair humilha����es ��
sua pessoa, mas esse constrangimento �� sua natureza,
arrebatada e voluntariosa, criou em suas rela����es uma
inc��moda tens��o, uma frieza mon��tona, que, ��s vezes,
levava Jos�� a ter saudades dos contratempos e mal-en-
tendidos dos primeiros tempos de casado. N��o tinha mais
que se queixar de palavras ofensivas, mas a obedi��ncia
passiva e quase t��mida da companheira chegava por vezes
a exasper��-lo.
O nascimento de um filho foi-lhe motivo de alegria
indefin��vel. Nesse menino fundava Jos�� as maiores espe-
ran��as, pensando que ele se tornaria n��o s�� um elo de
O CHANCELER DE FERRO
239
concilia����o com a orgulhosa e vingativa casta sacerdotal,
mas tamb��m que o cora����o materno esqueceria os preju��-
zos que os separavam e estenderia ao pai a afei����o que
devia nutrir pelo filho.
Essa esperan��a n��o vingou. Nos primeiros tempos
Asnath pareceu ligar-se muito ternamente ao primog��nito,
mas uma visita de Pot��fera a M��nfis estendeu uma cama-
da de gelo nessa ternura nascente. Bem que restabelecida
do parto, a mo��a ainda guardava o leito quando o sacer-
dote foi v��-la. A ama apressou-se a apresentar-lhe o pe-
queno Manass��, mas, em vez de o abra��ar e aben��oar,
Pot��fera afastou a escrava com um gesto esquivo e, fin-
gindo n��o ver a crian��a, aproximou-se vivamente da filha
e, abra��ando-a, murmurou:
��� Tu continuas sendo a filha dileta, que eu tive de
sacrificar e que os deuses purificar��o, quando soar a hora
da liberdade; mas o filho desse c��o impuro ser�� sempre
como o pai e n��o gozar�� jamais do amor de nossa fam��lia.
P��lida e confusa, ela baixou a cabe��a: tinha com-
preendido que lhe proibiam amar o menino como lhe ha-
viam proibido amar o pai e, desde esse dia, tornou-se mais
pensativa e mais silenciosa. O nascimento do segundo filho
em nada mudou a situa����o. Pot��fera e sua mulher prodi-
galizavam aos netos glacial indiferen��a e Asnath ocupa-
va-se pouco dos filhos, votando-lhes a mesma frieza que
ao marido; apenas, ��s vezes fitava demoradamente as
pequeninas criaturas graciosas, e uma car��cia furtiva pa-
recia trair sentimentos mais profundos, por��m sempre
dissimulados. .
Compreende-se que semelhante atitude fosse, ��s vezes,
intoler��vel para Jos��. Tinha mesmo provocado cenas de
raiva e censuras, mas a sua decis��o amortecera diante
da resist��ncia passiva de Asnath. Al��m disso, o estranho
fasc��nio que a beleza da esposa exercia sobre ele, levava-o
para ela e, com o tempo, rela����es friamente polidas se
estabeleceram entre ambos. Ele tamb��m dissimulava a
paix��o oculta do seu cora����o, mas o ��dio pelos padres e
pela nobreza eg��pcia tinha atingido o apogeu; consumia-o
intenso desejo de vingar neles os dissabores da vida con-
240
J. W. ROCHESTER
jugal; demais, os neg��cios do Estado o absorviam mais
que nunca, porque a fome predita chegara e, havia dois
anos, desolava o Egito; a mis��ria come��ava a fazer-se
sentir duramente e, quem quisesse obter p��o nos celeiros
reais, deveria pag��-lo a dinheiro. Nesse particular o Adon
n��o conhecia miseric��rdia.
Desde que come��ou a pen��ria, a Corte deixara M��nfis
para estabelecer-se em Tanis. As causas da mudan��a ha-
viam ficado desconhecidas para o povo, mas os padres
e os nobres compreendiam que o Fara�� e seu ministro pre-
feriam instalar-se, durante esses duros anos, no centro
das popula����es sem��ticas que habitavam o Delta e que,
por sua origem, assim como pela religi��o (eles adoravam
Set-Tifon, ou o Baal s��rio), eram aparentados com os
Hyksos e, por conseq����ncia, menos hostis que o povo pu-
ramente eg��pcio. Finalmente, em Tanis estavam mais pr��-
ximos de Avaris, a formid��vel fortaleza dos pastores que
mantinham nesse campo entrincheirado uma guarni����o
de perto de 200.000 homens, assegurando-lhes um abrigo
certo e importante base de opera����es no caso de levante
do pa��s, provocado pela mis��ria e sustentado por Ta�� III
e os padres, cuja surda mas incessante hostilidade n��o
pressagiava nada de bom.
E na verdade, sem ostenta����o mas com uma persis-
t��ncia que n��o esmorecia, os padres espalhavam entre o
povo o boato de que a seca e a fome eram um castigo
infligido pelos deuses para punir o povo por sua covardia
em suportar tanto tempo o jugo do estrangeiro que des-
prezava as divindades do pa��s de Kemi, desconsiderava os
padres e oprimia o povo vencido. Representavam Jos��
como um monstro suscitado pelo deus cruel dos chasous,
para impedir qualquer revolta e manter o povo, �� for��a
de mis��ria, na obedi��ncia e na submiss��o.
Estes boatos encontravam confirma����o na dureza com
que o Adon manejava o terr��vel poder que punha em suas
m��os os imensos dep��sitos de trigo acumulado nos celei-
ros p��blicos, e que, em toda a acep����o da palavra, faziam
dele o ��rbitro de vida e morte das popula����es famintas
que, de todas as prov��ncias do Egito, assim como da S��ria
e do pa��s de Cana��, aflu��am para Tanis, trazendo o seu
O CHANCELER DE FERRO
241
ouro, a sua prata e, muitas vezes, seus vasos preciosos e
as j��ias de suas mulheres, para troc��-los pelo p��o indis-
pens��vel. Com a energia e esp��rito pr��tico que o carac-
terizavam, Jos�� tinha tomado as mais largas medidas para
assegurar o poder e tamb��m o funcionamento regular do
tr��fico nos celeiros p��blicos, assim como os corpos de
tropa quem os vigiavam eram exclusivamente compostos
de Hyksos; os chefes eram homens de fidelidade compro-
vada; e, em geral, a maior parte dos altos cargos do Es-
tado, ainda confiados a eg��pcios no come��o do reinado de
Apopi, passava insensivelmente para criaturas de Jos��,
enfeixando assim em suas m��os de ferro toda a engrena-
gem da m��quina governamental, que o fraco Fara��, mais
enfermi��o e sofredor que nunca, abandonava completa-
mente ao favorito.
O pal��cio do Adon tamb��m tinha mudado de aspecto:
no sal��o onde outrora recebia os solicitadores e dava au-
di��ncia aos estrangeiros antes de se apresentarem ao
Fara��, estava montado agora um vasto escrit��rio. Rodea-
do de escribas acomodados nas esteiras, Jos�� dava as suas
audi��ncias num estrado; impass��vel e duro, negociava
cada medida de gr��o pelo ouro, pelo gado ou mesmo pela
liberdade dos desgra��ados que desfilavam �� sua frente
e submetiam-se aos mais duros sacrif��cios para serem
apenas nutridos, com suas fam��lias. Quando, enfim, todas
as condi����es eram combinadas, os escribas as anotavam,
o comprador e as testemunhas assinavam o documento,
no qual o Adon aplicava o selo do Estado. Entregavam-
-lhe, ent��o, um certificado, munido do qual o comprador
se apresentava no celeiro, onde recebia o produto ajus-
tado. Na entrada da sala e no corredor que a precedia,
estavam as balan��as nas quais pesavam os metais, as
especiarias e artigos preciosos, enquanto joalheiros e ar-
tistas outros examinavam e avaliavam as j��ias, as pedras
preciosas, os tapetes de Babil��nia, os tecidos fen��cios e
as armas de pre��o, vindos de toda parte.
Essa vasta sala de audi��ncia era uma esp��cie de mo-
derna caixa de socorro, onde nada se fazia sem o visto
do Adon. A miragem das riquezas inauditas, que a�� se
acumulavam, despertara nele o instinto rapace. O pri-
242
J. W. R O C H E S T E R
melro dignit��rio do Egito se erigira tamb��m em primeiro
usur��rio, precursor do judeu ��vido e inescrupuloso, que
fez da usura uma arte e que, qual vampiro, se adapta
a qualquer pa��s, a qualquer povo onde a mis��ria ou a
desgra��a plantam sua bandeira, a cevarem-se na ru��na
dos que o abrigaram. Jos�� era odiado, como deviam ser
depois seus descendentes, esses financeiros que fazem
dinheiro de todas as desgra��as, n��o admitindo outra as-
pira����o que n��o seja o lucro e zombando de todo o culto
que n��o seja o do ouro.
E para que me n��o acusem de impiedade e vanilo-
q����ncia, citarei aqui o que a antiga cr��nica dos hebreus
conservou sobre as atividades de Jos��, no Egito:
"G��nese ��� No cap. XLVII, v. 15, e s t �� escrito: "E
como n��o restasse m a i s dinheiro a pessoa alguma, para
comprar trigo, todo o povo do E g i t o veio ter c o m Jos��,
dizendo-lhe: "D��-nos p��o; por que nos deixas tu morrer
por falta de dinheiro?"
Verso 16 ��� Jos�� lhes respondeu: "Se v �� s n �� o ten-
des dinheiro, trazei os v o s s o s g a d o s e eu v o s darei trigo
em troca."
Verso 17 ��� E l e s pois lhe trouxeram os seus g a -
dos; e Jos�� lhes deu trigo pelo pre��o de seus cavalos,
de suas ovelhas, de seus bois e de s e u s jumentos.
Verso 18 ��� Tornaram eles a vir o outro ano e lhe
d i s s e r a m : N �� s n��o te ocultaremos, m e u senhor, que por
ter faltado o dinheiro, nos f a l t a r a m t a m b �� m os gados;
e tu n��o ignoras que e x c e t o n o s s o s corpos e n o s s a s
terras, n��o t e m o s m a i s nada.
Verso 19 ��� P o r que, pois, h a v e m o s n��s de morrer
aos t e u s olhos? N �� s nos damos a ti com as n o s s a s ter-
r a s : compra-nos para escravos do rei e d��-nos que
semear, para que n��o suceda que a terra se torne em
charneca, por deixares perecer os que a podiam cultivar.
O C H A N C E L E R DE F E R R O
243
Verso 20 ��� A s s i m comprou Jos�� todas as terras
do Egito, vendendo cada um tudo o que possu��a, por
causa da extremidade da fome. E desta sorte adquiriu
ele para o Fara�� todo o Egito.
Verso 21 ��� Com todos os povos, desde u m a extre-
midade do Reino at�� a outra.
Verso 22 ��� E x c e t o somente as terras dos padres
que lhes tinham sido dadas pelo rei; porque a e s t e s se
dava certa quantidade de trigo dos celeiros p��blicos; e
por isso n��o foram obrigados a vender as s u a s terras."
Esta cita����o bastar�� ��� penso eu ��� para convencer
o leitor imparcial de que, se Jos�� salvou o Egito da fome,
o fez duramente pagar e que �� bem dif��cil crer que os
eg��pcios tenham considerado como prazer e admirado
como benef��cio a necessidade de vender tudo o que pos-
su��am, at�� a liberdade pessoal, esse bem supremo do
mundo antigo. N��o; os mesmos sentimentos humanos, que
n��s alimentamos, animavam essas gera����es extintas: no
cora����o desses homens, que se despojavam de todos os seus
haveres para salvar a vida, fervia implac��vel ��dio; ape-
nas, quando todo e qualquer recurso estava esgotado, di-
rigiam-se ao pal��cio do Adon, e os rostos emagrecidos e
bronzeados se enrugavam de raiva e dor quando a vinha
heredit��ria, o colar de honra, ganho por um antepassado
ou o gado de que cada um fazia sua riqueza e seu orgu-
lho, passavam, com alguns tra��os de pena dum escriba
indiferente, para as m��os do implac��vel estrangeiro.
A chegada de seus irm��os despertou no cora����o de
Jos�� m��ltiplos sentimentos: a satisfa����o de fazer sentir
seu poderio aos que desumanamente o tinham vendido e,
ao mesmo tempo, um desejo ardente de rever o pai e o
irm��o Benjamim, esses afins n��o somente pelo sangue
como pelo cora����o. Em seu pal��cio, cumulado de honras,
sentia-se s��, ao lado dessa esposa que n��o sabia nunca
se o amava ou n��o, e cuja fam��lia em peso lhe testemu-
nhava hostilidade e desd��m, apenas dissimulados, irredu-
t��veis. Mas, a satisfa����o causada pela vinda dos irm��os
244
J. W. ROCHESTER
desfez-se rapidamente, pois tinha prelibado de modo
muito diverso o gozo de lhes dizer: "Vede para que futuro
de grandeza e riqueza me vendestes!"
Esses homens r��sticos, simples, s�� experimentavam
na sua presen��a humildade e temor; n��o consideravam
mesmo, como irm��o, a altiva personagem de aspecto ele-
gante, polida, de maneiras refinadas; prostravam-se t��o
facilmente diante dele, beijavam-lhe os p��s e as vestes
com t��o ing��nua e sincera adora����o, que, para Jos��, habi-
tuado a curvar as frontes mais altivas do Egito, a supre-
macia sobre pobres pastores perdera todo interesse. De-
sejava, por��m, rever o pai; no s��bio velho encontraria
um amigo, um fiel e ��til confidente.
Enfim, depois de longas semanas de expectativa, re-
cebeu a not��cia, impacientemente esperada, de que a
imensa caravana que trazia do pa��s de Cana�� o pai e sua
fam��lia, aproximava-se de Tanis. Decidiu logo ir ao seu
encontro e ordenou a Asnath que o acompanhasse.
A mulher nada objetou e, como de h��bito, respondeu:
"Bem, estarei pronta para quando ordenares." Mas, na
noite seguinte, recebeu do templo a ordem formal de n��o
assistir �� recep����o do impuro pastor, �� qual o filho s��
queria dar cunho ostentoso para esc��rnio dos eg��pcios.
Asnath ficou satisfeita e inquieta com semelhante proi-
bi����o. N��o tinha desejo algum de ir ao encontro desse
bando de n��mades; homens barbados e selvagens, aos
quais tinha visto o marido banquetear e chamar irm��os,
e que lhe causavam invenc��vel t��dio. Mas, por outro lado,
repugnavam-lhe as dissens��es, sua desobedi��ncia formal,
ainda quando n��o provocasse uma cena inc��moda, pertur-
baria, com certeza, a harmonia morna, por��m convenien-
te, que na ocasi��o reinava entre eles. Depois de madura
reflex��o, resolveu usar de ast��cia, mandou tudo preparar
como se fosse acompanhar o marido, e, somente no ins-
tante em que ele s�� esperava por ela para tomar a liteira,
uma criada correu a anunciar-lhe que s��bita e violenta
indisposi����o impedia a senhora, que acabava de acamar-se.
Jos�� corou, mas, sem responder nem procurar ver a
esposa como costumava fazer em tais casos, mandou re-
colher a liteira e atrelar o carro, partindo s��.
O C H A N C E L E R DE F E R R O
245
Asnath julgava que ao voltar lhe fizesse uma cena
desagrad��vel. Ele n��o voltou, por��m, ao quarto da mu-
lher, e quando n��o jantava no pal��cio real ou em casa
dos conhecidos, mandava servir as refei����es, mesmo a da
tarde, no seu gabinete. Mais de uma semana assim correu.
Triste e cismadora, Asnath passeava uma tarde, no jar-
dim, quando, ao dobrar uma alameda, uma mulher surgiu
das sar��as e atirou-se-lhe aos p��s, murmurando:
��� Perd��o!
Surpresa ao deparar-se-lhe uma desconhecida, Asnath
parou e interrogou-a; mas a jovem e bela criatura pa-
recia louca de desespero, e, rebentando em solu��os con-
vulsivos, repetiu somente:
��� Salva Neitotep, nobre senhora; pede ao Adon
por ele!
Quando a explos��o de dor se calmou um pouco, As-
nath soube que se tratava de um empregado subalterno,
que trabalhava num celeiro perto de Tanis, e que se havia
tornado culpado de malversa����es e dilapida����es conside-
r��veis. Posto que inspirado por bons sentimentos, tinha
primeiro distribu��do, depois vendido trigo a pobres paren-
tes e conhecidos. A coisa fora descoberta, Neitotep encar-
cerado e Jos�� o condenara a cruel castigo corporal, com
perda do cargo e deporta����o para uma fortaleza das fron-
teiras, para trabalhar nas fortifica����es que l�� se cons-
tru��am. A mulher de Neitotep, louca de desespero, tinha
imaginado implorar a Asnath e obter que intercedesse
junto do marido, para alcan��ar sen��o o perd��o, ao menos
um abrandamento da pena para o infeliz que, no dia se-
guinte, devia ser castigado, deportado e incorporado a
uma leva de sentenciados.
��� Por que n��o vieste mais cedo?
��� Todos os dias procurava chegar �� tua presen��a,
mas, em v��o, porque n��o sa��as do pal��cio. S�� esta noite
consegui penetrar no jardim ��� respondeu a mulher de
Neitotep, em l��grimas.
Asnath apoiou-se no espaldar do banco e come��ou a
refletir: profunda piedade lhe inspiravam essas pobres
gentes e de boa-vontade as ajudaria... Mas, como fazer?
246
J. W. ROCHESTER
Conhecia a severidade de Jos�� para delitos dessa ordem
e como poderia, ela que nunca lhe pedia coisa alguma,
pleitear um indulto? E isso no momento em que se mos-
trava molestado, em que o havia sensivelmente ofendido?
Se lhe dissesse n��o, se se humilhasse em v��o?... Todo
o sangue lhe subiu �� cabe��a, assim pensando, mas o rosto
l��vido e desfigurado da mulher que, olhos pregados nela,
se tinha posto de joelhos, comoveu-a de novo:
��� Amas muito a teu marido? ��� perguntou de re-
pente.
��� Se o amo! Sacrificaria dez vezes minha vida para
salvar a dele ��� respondeu num tom que feriu profunda-
mente Asnath e lhe encheu subitamente o cora����o de um
como ci��me amargo por essa mulher ��nfima e infeliz, que
tinha o direito de amar o marido com toda a sua alma
e n��o hesitaria, certamente, em lhe pedir um favor.
��� Procurarei livrar Neitotep ��� disse tomada de s��-
bita resolu����o ���, vai para aquele pavilh��o ali �� esquerda
e espera-me. N��o desanimes se eu demorar muito tempo:
ser�� preciso esperar que o Adon esteja s��, para falar-lhe.
��� Esperarei at�� de manh��, rogando aos deuses que
te inspirem e abrandem o cora����o do teu esposo ��� res-
pondeu Toua, beijando o vestido da adonisa.
Esta foi ao quarto, ajustou a fina t��nica bordada,
assim como as j��ias que lhe ornavam o cinto, os bra��os
e os cabelos, e, depois de um ��ltimo olhar atirado ao es-
pelho de metal, dirigiu-se com passo hesitante para o
gabinete de Jos��.
��� O senhor est�� s��, Pibisi? ��� perguntou ao escravo
que habitualmente vigiava a entrada do quarto cont��guo.
��� Sim, nobre senhora, o escriba Hapi acaba de sair.
Asnath atravessou o quarto a passo ligeiro, levantou
a cortina listrada e penetrou na sala de trabalho, ilumi-
nada por l��mpadas de ��leo perfumado. Jos�� estava senta-
do em frente �� mesa carregada de papiros, mas n��o tra-
balhava: com a cabe��a apoiada na m��o, absorvia-se em
profunda medita����o; tinha posto na cadeira ao lado o
gorro que habitualmente trazia, e a doce luz da l��mpada
O CHANCELER DE FERRO
247
lhe brincava nos belos cabelos anelados; as faces p��lidas,
impregnadas de tristeza, acusavam profunda fadiga.
Ao aproximar-se do vest��bulo, a mo��a parou; mil
sentimentos contradit��rios agitaram-lhe o espirito: o
pesar, o mal-estar e o orgulho diziam-lhe que fugisse;
a piedade e inata bondade diziam-lhe que ficasse e ten-
tasse a intercess��o. Ele parecia triste e isento de c��lera;
talvez fosse acess��vel �� piedade. Com um gesto nervoso,
passou a m��o pelo rosto, esse movimento fez tinir os bra-
celetes e amuletos do colar e Jos�� voltou-se, r��pido, e,
avistando-a, corou ligeiramente.
��� Tu, Asnath?
��� Sim, eu; desculpa vir importunar-te ��� respondeu
constrangida.
Um sorriso triste e ir��nico encrespou os l��bios do
Adon.
��� Eis uma desculpa certamente sup��rflua para a
maior parte dos casais de Tanis; geralmente, uma esposa
amada considera-se sempre bem-vinda.
��� Venho importunar-te com um pedido, coisa que,
sei, te despraz, e receio faz��-lo em v��o ��� disse corando
vivamente.
��� Na verdade? E lamentas-te mesmo antes de ter
falado? ��� obtemperou calmo. ��� Mas aproxima-te, sen-
ta-te aqui. (Designou-lhe a cadeira ao lado, de onde tirou
o gorro que atirou ao ch��o.)
Vendo-a hesitar, acrescentou:
��� Preferes ficar a�� na porta em atitude mendicante?
Asnath sentou-se de olhos baixos, pensando em como
abordaria melhor a quest��o. Jos�� fitou-a e seu cora����o
p��s-se a bater mais forte; invadiu-o a fascina����o que lhe
infundia a beleza da mulher; seu amor sempre recalcado
pela frieza de Asnath, sempre irritado pelos obst��culos e
dissens��es, aumentava em vez de diminuir; pareceu-lhe
que de h�� muito n��o a vira t��o sedutora como naquele
instante; t��o fr��gil, t��o graciosa com aquela express��o
de constrangimento e medo no rosto infantil.
��� Pois bem! que fale a mais rara das suplicantes
nesta sala, e dize-me se �� ao Adon ou ao esposo que vens
pedir ��� admoestou com voz vibrante.
248
J. W. R O C H E S T E R
Ela ergueu a cabe��a, mas, encontrando o olhar ar-
dente das pupilas verdes que a fitavam, experimentou s��-
bita fraqueza; sabia que o Adon nada lhe concederia e
suas rela����es com o esposo eram t��o estranhas... De
novo, a amargura e o ci��me provocados pela conversa
com Toua lhe enfraqueceram a tens��o dos nervos. De-
bru��ou-se na mesa e rebentou em solu��os.
��� Que tens? ��� disse Jos�� inclinando-se sol��cito para
ela.
��� Nada, nada ��� disse procurando sustar as l��gri-
mas; e, para evitar qualquer explica����o penosa, exp��s
rapidamente o assunto.
O Adon ouvia silenciosamente, n��o tirando os olhos
do rosto encantador e dos l��bios tr��mulos da gentil
locutora.
Quando ela acabou, ele puxou, sem responder, duas
bandas de papiros, tra��ou algumas linhas numa e nou-
tra, aplicou-lhes o selo e estendeu-as �� esposa.
��� Que �� isto? ��� perguntou ela toda enleada.
��� �� a ordem ao chefe das pris��es para soltar Nei-
totep; concedo-lhe o perd��o. Podes expedir imediatamen-
te este papiro por um dos oficiais de servi��o; mas, como
n��o posso deixar este homem ao servi��o do Estado, man-
do-o, na qualidade de intendente, para a nossa herdade
perto de M��nfis, em substitui����o do velho An��bis, que
faleceu.
A�� tens a nomea����o e nosso primeiro intendente far��
o resto, quando teu protegido se apresentar a ele.
Um rubor de alegria inundou o rosto de Asnath:
��� Obrigada, Jos��! ��� exclamou com os olhos cinti-
lantes.
Era t��o feliz e grata naquele momento, que, cedendo
ao primeiro impulso, quis atirar-se ao pesco��o do marido;
mas, contendo-se, apertou-lhe apenas a m��o, repetindo:
��� Obrigada! obrigada!
��� N��o podes agradecer muito ternamente, mesmo
quando teu cora����o a isso te impele? Sabes que o que
acabo de fazer, ningu��m no mundo t��-lo-ia obtido?
��� observou com surda irrita����o.
O CHANCELER DE FERRO
249
��� N��o, n��o; eu te agrade��o de todo o meu cora����o,
sobretudo neste momento em que, sei, est��s aborrecido
comigo ��� murmurou, empalidecendo.
��� Aborrecido por qu��?
��� N��o acreditas na minha doen��a da semana pas-
sada ��� disse, t��o baixo que s�� o fino ouvido de Jos�� lhe
percebeu as palavras.
��� Ah! muito ao contr��rio ��� respondeu com zombe-
teira ingenuidade ���, creio nessa terr��vel e perigosa mo-
l��stia prescrita pelo templo e sei que est��s sujeita a indis-
posi����es deste g��nero; n��o negues... (Tomou-lhe a m��o
e abra��ou-a.) Asnath, teus olhos refletem uma alma pura,
um cora����o amor��vel e bom; podes fitar-me e repetir que
estavas verdadeiramente doente?
Ela baixou a cabe��a, muda.
��� Estou bem certo disso ��� afirmou Jos�� com acerba
raiva. ��� Oh! como tua casta abusa da minha paci��ncia!
Eu lhes perdoaria o ��dio, o desprezo pelo estrangeiro; mas
sua inger��ncia na minha vida ��ntima ultrapassa todos os
limites; esta inf��mia de arrancar-me o ser que me �� mais
caro, que est�� ligado a mim pelos mais sagrados la��os;
isso de inspirar-te sentimentos contra a Natureza, matan-
do em ti, por sua influ��ncia nefasta, a m��e, assim como
mataram a esposa, cuja boca se fecha quando quer dizer:
"amo-te!", oh! disso eu me vingarei neles, serei impie-
doso como eles o s��o comigo.
Sua voz vibrava de exaspera����o mal contida, seus
olhos verdes cintilavam como duas chamas destruidoras.
��� Que dizes, Jos��? ��� murmurou Asnath assom-
brada.
��� N��o nego a verdade; quaisquer que sejam os sen-
timentos que lutam em ti, ��s muda porque tremes diante
do desprezo da tua casta e deixas-me isolado, embora te-
nhas prometido ser minha amiga.
Confusa, a debater-se entre a agonia de trair o jura-
mento e o reconhecimento pelo que acabava de merecer,
impelida pelo sentimento estranho, mas profundo, que o
marido lhe inspirava, enla��ou-lhe o pesco��o, apertou-lhe
250
J. W. ROCHESTER
a cabe��a de encontro ao peito, as l��grimas lhe transbor-
davam.
Com um gesto nervoso, o mo��o apertou-a contra o
peito:
��� Estas l��grimas, tamb��m eles mas pagar��o ��� ros-
nou em surdina.
Asnath perfilou-se, mortal ang��stia estampava-se no
olhar que lhe dirigiu:
��� Jos��, n��o lutes com os padres, n��o os afrontes t��o
orgulhosamente ��� exclamou s��plice. ��� Tua luta ser��
baldada, acabar��s sucumbindo. Tu reinas sobre o Egito
pela for��a e a opress��o, eles governam as almas; ��s um,
eles se contam por centenas e, para eles, ��s e ficas sendo
o estrangeiro impuro, elevado �� dignidade de Adon por
um Fara�� usurpador e impuro como tu. S�� prudente, Jos��,
porque terr��vel �� a for��a dos templos, o poder desses ho-
mens que falam com a divindade e sondaram todos os
mist��rios da Natureza; eles disp��em de for��as desconhe-
cidas e te destruir��o.
Ele a escutara de olhos cintilantes.
��� Agrade��o-te as palavras ditadas pela amizade e a
afei����o ��� disse beijando-a nos l��bios. ��� Mas, entre mim
e tua casta a paz j�� n��o �� poss��vel; eles me t��m ferido
muito dolorosamente para que lhes n��o restitua ��dio por
��dio; impiedosamente lutarei contra eles; s��, �� certo,
mas, tamb��m s��, os tenho enfrentado a todos, e quanto
mais me ferirem, mais os hei de humilhar. Com l��grimas
de sangue �� que lhes hei de fazer pagar cada hora de
amargura com que me envenenam.
Tinha-se levantado, uma resolu����o inflex��vel lhe vi-
brava na voz, o olhar transbordava de orgulho e de ��dio;
com um profundo suspiro, Asnath baixou a cabe��a: que
poderia fazer mais do que curvar-se e sofrer, d��bil flor
atirada pelo destino entre os dois elementos destruidores
em conflito, e cujo embate devia fazer tremer, at�� os fun-
damentos, a velha terra do Nilo!
III
COMENDO, ABRE-SE O APETITE
N �� o foi por vosso conselho que
eu aqui fui mandado, m a s pela von-
tade de Deus, que me fez como o
pai de Fara��, o senhor de toda a sua
c a s a e o pr��ncipe de todo o Egito. ���
G��nese, cap. XLV, v. 8.
O incidente, que acabamos de relatar, tinha renovado
entre os esposos rela����es mais amistosas; todavia, no
fundo dalma, Asnath continuava triste, sacudida entre
os dois partidos que disputavam o Egito e a cada um dos
quais se via ligada. Sofria por todas as feridas que se
faziam reciprocamente, e sabia que, se Jos�� era bom para
ela, mantinha-se impiedoso para o povo devorado pela
mis��ria. Seu cora����o apertava-se como num torno quan-
do a liteira encontrava a fila de homens macilentos, ros-
tos encarquilhados, que traziam ao pal��cio do Adon o
derradeiro peda��o de terra ou o pr��prio corpo, para tro-
c��-lo pelo p��o cotidiano.
Estremecia, tamb��m, diante dos olhares sombrios,
odientos, desdenhosos que a fitavam e, em tais momen-
tos, o luxo r��gio que a cercava, as j��ias que trazia, pesa-
vam-lhe como cadeias de ferro.
Na tristeza e no isolamento em que vivia, apesar de
tudo, foi uma inesperada alegria o saber que o irm��o
Armais, que servia em Heli��polis, mostrara-se desejoso de
ser transferido para a guarda do Fara��, em Tanis.
252
J. W. ROCHESTER
Jos��, que conhecia a antipatia mal dissimulada que
lhe votava o jovem oficial, ficou surpreso com aquele pe-
dido; entretanto, acedeu ao desejo do cunhado e Armais
foi nomeado para importante cargo na guarda do rei.
O belo rapaz fizera-se um homem s��rio e altivo, pon-
derado e pouco expansivo. No f��sico parecia-se com a
irm�� e sua personalidade sedutora atraiu desde logo a
aten����o das mulheres, tanto mais quanto Armais estava
livre. Fora noivo da filha do primeiro hierogramatista do
templo do Sol, em Heli��polis, mas, tendo a noiva faleci-
do, n��o contra��ra outro compromisso.
Jos�� o observou, procurando ver que atitude adotaria
a seu respeito, mas o rapaz apresentou-se cerimoniosa-
mente, em uniforme de servi��o, como um subordinado
diante do seu chefe e, da�� por diante, mantendo rela����es
apenas oficiais, visitando a irm�� muito raramente, nas
horas em que esperava encontr��-la s��, e s�� se apresen-
tando nas reuni��es mais numerosas, mediante convite
expresso. Essa conduta inspirou a Jos�� a suspeita de que,
nessa mudan��a de resid��ncia, Armais guardava algum
fim oculto e desconhecido, resolvendo observ��-lo de perto.
Os acontecimentos pol��ticos absorviam completamen-
te o Adon; o plano gigantesco que tinha desenrolado a
Apopi, no pr��prio dia da sua eleva����o, come��ava a efeti-
var-se: cada vez mais ass��duos, chegavam do alto Egito,
mesmo das prov��ncias mais remotas, pretendentes que
empenhavam as terras ou derramavam ouro nas m��os do
cruel financeiro, o qual, lenta mas seguramente, envolvia
a terra de Kemi, do delta ��s cataratas, numa rede invi-
s��vel, por��m indestrut��vel, porque representava a necessi-
dade, a fome e a ru��na que lhe forjavam as malhas.
Enquanto a mis��ria e as priva����es acabrunhavam
cada vez mais o povo, a col��nia de n��mades, vinda com
Jac�� e estabelecida na parte mais f��rtil da terra de
Gessen, vivia na abund��ncia e mesmo na riqueza, porque
Jos�� tinha ostentado, na instala����o de sua fam��lia, uma
generosidade grandiosa. Jac�� e os filhos ocupavam nas
proximidades de Tanis uma vasta e confort��vel vivenda
cercada de jardins. Forneciam-lhes trigo e outros g��ne-
ros, al��m do necess��rio ao consumo, e as mais belas ca-
O C H A N C E L E R DE F E R R O
253
be��as de gado dos numerosos rebanhos que o Egito vendia
e empenhava, passavam, pouco a pouco, para os est��bulos
da tribo dos Beni-Israel. Al��m disso, os rec��m-chegados
tinham sido nomeados guardas dos rebanhos do Fara��,
beneficiando-se de uma posi����o t��o honrosa qu��o lu-
crativa.
Mas, compreender-se-�� desde logo que a presen��a
desses estrangeiros, fartos e ricos, estabelecidos em uma
como ilhota verdejante, transbordando abund��ncia no
meio do oceano de mis��ria e desespero, cujas vagas ma-
rulhosas a rodeavam bramindo, despertava nos cora����es
eg��pcios um ��dio furioso, uma raiva concentrada que se
acumulava, pressagiando, para o momento em que trans-
bordasse, uma dessas terr��veis tempestades populares, que,
semelhantes ao ciclone, destroem tudo que encontram em
sua passagem.
Jos�� n��o prestava aten����o a esses perigosos sintomas,
talvez at�� nem os visse. A ambi����o invadia-lhe a alma
e o orgulho da sua for��a e poderio o cegava, levando-o a
afrontar, cada vez mais duramente, os preconceitos e o
orgulho das castas superiores. N��o era ele o verdadeiro
Fara��, e o fraco, o doentio Apopi, apenas um titular, um
instrumento c��modo, que assegurava ao Adon a legali-
dade do poder?
Prosseguindo no plano de assegurar aos membros de
sua fam��lia brilhantes posi����es, colocara em casa duas
filhas da tribo; uma de quatro anos apenas, filha do
irm��o Benjamim; e a segunda, Serag, tinha j�� quinze
anos e o Adon se propunha cas��-la com algum dignit��-
rio, embora ainda n��o tivesse feito a escolha. Enquanto
esperavam, as duas criaturas deviam adaptar-se, no pa-
l��cio do tio, ��s maneiras e requintes das mulheres eg��pcias.
Asnath tinha-se oposto �� recep����o dessas duas criatu-
ras selvagens e mal-educadas, que lhe inspiravam inven-
c��vel aborrecimento, e a tenacidade do marido a obrigara
a ceder; mas, invariavelmente, prodigalizava ��s intrusas
do seu lar glacial indiferen��a, abandonando tudo o que
dizia respeito �� sua educa����o e vestu��rio, ��s vigilantes
designadas por Jos��.
254
J. W. ROCHESTER
Estas novas dissens��es ��ntimas irritavam vivamente
o Adon e, quando podia, dirigia-se para junto do pai, a
fim de conversar de cora����o aberto e desabafar com o
��nico ser cuja afei����o integral lhe era dedicada.
Um dia em que se sentia particularmente irritado por
um incidente f��til, mas doloroso para ele, mandou atre-
lar o carro e, acompanhado apenas de alguns cavaleiros
de escolta, dirigiu-se �� casa de Jac��. Desde a v��spera,
ardia em c��lera: num festim em que se congregara a elite
de Tanis, estava tamb��m presente Serag, a sobrinha do
poderoso chanceler, acolhida com afabilidade e tratada
como igual; mas a rude e inculta mo��a causara esc��ndalo,
n��o s�� por sua indument��ria sem gosto, como por alguns
grosseiros descuidos, que os convidados fingiram n��o ver,
mas tinham feito enrubescer de c��lera as faces do Adon.
Asnath, nem com uma palavra, nem com um gesto
tinha procurado auxiliar Serag ou esconder seu descaso
e o olhar cintilante de Armais tinha tocado a mo��a israe-
lita com express��o tal de desprezo e zombaria, que Jos��
entremecera. N��o foi mais que um rel��mpago, porque,
quase logo, o rapaz se voltou; mas, mal sabia quanto lhe
custaria aquele olhar.
Jac�� recebera o filho com alegria, como sempre, e
os dois se assentaram �� sombra de um sic��moro plantado
no centro de vasta clareira, assim garantidos contra qual-
quer indiscreto ouvido. O patriarca muito mudara desde
o dia em que o apresentamos ao leitor: agora era um ve-
lho decr��pito e gebo, mais cego, cuja vida se aproximava
do termo. Vestia t��nica de l�� ricamente bordada e, sobre
a mesa, a seu lado, estavam um copo de prata cinzelado
e uma ��nfora de vinho de Perusia. Todos os irm��os de
Jos�� tinham desaparecido, depois de se terem prostrado
para receb��-lo, como n��o podia desabitu��-los de fazer,
porque, naturezas primitivas e grosseiras, conservavam
invenc��vel desconfian��a do poderoso Adon, sentindo mui-
to pouco o parentesco que os unia e temendo sempre que
o irm��o, t��o maltratado por eles, fosse acometido de ve-
leidades de vingan��a e, afinal, os fizesse duramente pa-
gar as vilanias de outrora. Ele tamb��m n��o deixava de
O CHANCELER DE FERRO
255
lhes guardar certo rancor e provando-o com o medo
que lhes havia infligido por ocasi��o de sua primeira vinda.
Jos�� tinha descansado os cotovelos, seus dedos poli-
dos e ornados de an��is esmigalhavam maquinalmente um
pequeno ramo arrancado da sar��a pr��xima.
��� Est��s pensativo hoje, meu filho; tiveste algum des-
gosto nos neg��cios do Estado? O Fara�� te sobrecarregou
de muito trabalho? ��� perguntou o velho, rompendo o
longo sil��ncio e pondo a m��o no ombro do filho.
Este empertigou-se como se despertasse de um sonho
e respondeu, abanando a cabe��a:
��� N��o, pai, n��o �� isto que me faz pensativo: estou
habituado ao trabalho e, h�� anos, todo o peso do governo
est�� em minhas m��os; mas vejo aproximar-se a realiza-
����o de um plano que medito de longo tempo, e cuja
solu����o definitiva �� um problema que ainda n��o cheguei a
resolver a contento.
��� Qual �� o plano? N��o mo queres confiar? Talvez
a experi��ncia da minha longa vida me inspire um con-
selho ��til.
��� De boa-vontade, pai; n��o ��s o ��nico homem em
quem posso confiar sem restri����es? A id��ia que tenho em
vista �� unir, debaixo de um s�� cetro, o Alto e o Baixo
Egito; e, para isso, preciso extirpar para sempre o inces-
sante perigo que nos amea��a da parte do insolente haq
do Sul, Ta��, que, sustentado pelos padres, sonha depor
Apopi. O meio de atingir o fim, achei-o na fome que
assola o pais, que j�� tornou tribut��rias as prov��ncias mais
afastadas; dentro de um ano ou dois, quando muito, n��o
restar�� a Ta�� e seus aliados um peda��o de terra; todas
estar��o arruinadas e seu povo suficientemente extenuado
para tornar imposs��vel uma guerra ofensiva; incapazes
mesmo de uma resist��ncia s��ria. Ter�� ent��o chegado o
momento de ocupar seu territ��rio por nossas tropas e,
quando Tebas e todas as suas cidades e fortalezas tiverem
guarni����es de soldados Hyksos, comandados por chefes
fi��is e experimentados, poder-se-�� facilmente destruir
Ta�� e for��ar �� plena submiss��o os outros haqs menos pe-
rigosos. Ao mesmo tempo, os padres perder��o o seu mais
s��lido apoio, a sua base de opera����es, e poderemos fazer-
256
J. W. ROCHESTER
-lhes compreender radicalmente que se devem ocupar de
ora����es e sacrif��cios, mas que as intrigas pol��ticas e cons-
pira����es entregariam ao carrasco as suas cabe��as, raspa-
das t��o facilmente como outras quaisquer.
��� Teu plano �� grandioso e se o executares o Fara��
te dever�� reconhecimento eterno e alguma recompensa
excepcional ��� disse o velho, fitando embevecido o belo
rosto do filho, animado de orgulho e de energia.
��� O Fara��? (uma express��o de indiz��vel desd��m agi-
tou fugitivamente os l��bios de Jos��) o que mais me po-
der�� dar, al��m do que j�� deu? N��o �� a recompensa que
me pudesse dar o que me preocupa e sim o saber quem
herdar�� o soberbo reino que hei de fundar. Apopi est��
gravemente doente, uma das terr��veis crises pode lev��-lo
inopinadamente; o pr��ncipe Namourod nunca mais se
restabeleceu da queda que sofreu na ca��ada e que lhe deve
ter lesado algum ��rg��o interno; n��o viver�� tamb��m muito
tempo e sua mulher que, t��o infelizmente deu �� luz um
natimorto, n��o ter�� mais filhos, o trono ficar�� vago...
Que pensas tu, pai (Jos�� inclinou-se com os olhos cinti-
lantes), se eu galgasse o ��ltimo degrau que me separa
do trono para cingir, eu mesmo, a dupla coroa?
��� Se tal �� a vontade de Eloim, ele, que te elevou t��o
alto, dar-te-�� tamb��m a coroa de Fara��; mas os padres
n��o te combater��o como usurpador? ��� perguntou o velho,
vivamente comovido.
��� Haveria um meio f��cil de os atrair e legalizar a
situa����o. Ah! (suspirou longamente) se Asnath, a filha
do primeiro pr��ncipe dos sacerdotes fosse minha aliada
e n��o um servil instrumento do templo, tudo estaria re-
solvido.
��� Eu sei, falaste-me dos teus dissabores dom��sticos,
n��o podes contar com o aux��lio de tua mulher. Sobre este
ponto, �� lament��vel que a lei eg��pcia n��o admita a poli-
gamia, pois ent��o poderias desposar a segunda filha do rei
e atingir o mesmo fim.
O Adon corou at�� �� menina dos olhos.
��� Casar com Hichelat? ��� exclamou ��� tens raz��o,
pai, isso cortaria a dificuldade. Mas �� imposs��vel ��� acres-
centou depois de refletir um instante ���, apesar de tudo,
O CHANCELER DE FERRO
257
amo Asnath. Apenas utilizarei teu conselho de outra ma-
neira, vigiando para que a princesa n��o case com algu��m
em condi����es de me prejudicar. Mas �� tempo de deixar-te,
tenho ainda hoje muito que fazer.
Preocupado, retomou apressadamente o caminho de
Tanis, mas, no momento em que o carro ia penetrar no
p��tio, puxou bruscamente as r��deas, desviando o r��pido
ve��culo para um lado da rua, a fim de dar passagem a
uma liteira aberta, rodeada de condutores de leques, que
sa��a do port��o de entrada.
Nessa cadeira port��til estava uma linda mo��a vestida
de branco, tendo �� cabe��a uma coifa ornada com a uraeus;
aos p��s, um pequeno an��o, extraordinariamente desfi-
gurado.
Jos�� saltara do carro para saudar a princesa, respei-
tosa e humildemente. Ela correspondeu com ligeira incli-
na����o de cabe��a e o seu olhar caiu no Adon, frio e indi-
ferente.
A princesa Hichelat, filha mais mo��a e favorita do
Fara��, tinha quinze anos e era uma criatura encantadora;
seu rosto fino e delicado nada tinha dos tra��os rudes do
pai; filha de uma princesa asi��tica, que morreu ao dar-
-lhe �� luz, Hichelat herdara a altiva beleza materna, e
Apopi, que muito amara a segunda esposa, tinha concen-
trado na filha uma afei����o exclusiva.
Embora altiva, voluntariosa e friamente reservada, a
princesa se tomara de grande afei����o por Asnath e, pouco
a pouco, sincera amizade se estabelecera entre a melan-
c��lica adonisa e a altiva e circunspecta mo��a. Visitavam-
-se t��o freq��entemente quanto poss��vel, e, ��s vezes, para
evitar os protocolos, Hichelat ia ver a amiga atravessando
os jardins reais, que confinavam com os do pal��cio do
Adon. De prefer��ncia, fazia-se acompanhar por Ouna, o
seu an��o, infeliz ser estropiado cruelmente por um fabri-
cante de monstros desse g��nero, e que a princesa com-
prara a um saltimbanco que o exibia pelas ruas. Ouna
ficou votando �� benfeitora um reconhecimento apaixona-
do, era-lhe dedicado como um c��o. De alguns meses, Hi-
chelat vinha mais ami��de e as duas mulheres conversa-
vam longamente. Levada pelo interesse e pelas perguntas
258
J. W. ROCHESTER
da princesa, Asnath falava da sua inf��ncia, dos parentes,
da vida em Heli��polis e do irm��o Armais, seu jovial e
fiel companheiro de meninice. Absorta em suas reminis-
c��ncias, n��o observara que, sempre que falava do oficial,
um leve rubor tingia o rosto p��lido de Hichelat e seus
grandes olhos negros tomavam indefin��vel express��o.
Jos�� entrara em casa cabisbaixo. O encontro com a
princesa avivara-lhe as palavras de Jac��, despertando um
sentimento estranho, que lhe seria imposs��vel definir. Mas
n��o teve tempo de muito pensar, porque o secret��rio lhe
foi ao encontro para anunciar que, havia mais de uma
hora, esperava-o uma mensagem do rei, convocando-o in-
continenti ao pal��cio. Abafou um suspiro de impaci��ncia
e t��dio, sentia invenc��vel necessidade de repouso e de so-
lid��o; mas, dissimulando o constrangimento, ordenou lhe
trouxessem depressa uma roupa leve e meia hora depois
penetrava no gabinete do Fara��.
P��lido, fisionomia carregada, Apopi andava de um
lado para outro, visivelmente nervoso. Tamb��m ele tinha
envelhecido e profundas rugas vincavam-lhe o descarnado
rosto. Ao avistar Jos��, que se prostrava, parou e fez-lhe
sinal que se levantasse:
��� Enfim, eis-te aqui, Adon; h�� mais de uma hora
que te espero ��� disse, como ligeiramente amuado.
��� Perdoa-me, filho de Ra, a involunt��ria demora,
pois dei um pulo a ver meu velho pai, que est�� doente ���
respondeu Jos��, respeitoso.
��� Coisa de cuidado?
��� N��o, Fara��, gra��as a Eloim, j�� est�� melhor.
��� Antes assim. Ent��o passaremos ao neg��cio para o
qual te mandei chamar ��� disse Apopi, sentando-se. ���
Uma deputa����o de sacerdotes solicita audi��ncia e quer,
eu sei, requerer que, �� vista da espantosa mis��ria popu-
lar, o trigo seja distribu��do gratuitamente aos mais pobres
e vendido em condi����es menos onerosas aos pais de fa-
m��lia que tiverem mais de dez bocas a sustentar, inclusive
os escravos. O pedido �� justo e eu desejava aceder, mas, que
pensas a respeito?
Jos�� ficou impass��vel, apenas nos olhos verdes acen-
deu-se intensa chama:
O CHANCELER DE FERRO
259
��� Tua vontade, Fara��, �� a minha lei; mas, j�� que
te dignas pedir a opini��o do servo, devo dizer o que me
inspira a minha dedica����o: se dermos de gra��a uma s��
medida de trigo, ningu��m mais querer�� pagar; a porta
ficar�� aberta para mil fraudes e subterf��gios, e a for��a
incalcul��vel concentrada em tuas m��os se escoar�� como
areia, sem proveito algum, antes, pelo contr��rio, a be-
nef��cio exclusivo dos teus inimigos. Agora todas as pro-
v��ncias do Alto Egito v��m entregar-nos seus tesouros e
terras; brevemente, ao redor de Ta�� s�� restar��o escravos
e, mesmo que ainda tenha an��is de ouro, n��o ser�� com
o metal que poder�� alimentar soldados e um concurso
��nico de circunst��ncias por��, dentro em pouco, em tuas
m��os, o teu inimigo mais perigoso. Se, ao contr��rio, come-
��armos a nutrir gratuitamente os presumidamente mais
pobres, as reservas acumuladas se consumir��o rapidamen-
te e a multid��o alimentada, ingrata por natureza, ter�� o
descanso para tramar revolu����es, facilmente exacerbada
pelos padres, que lhe dir��o ser insuficiente quanto dermos.
Por que os vener��veis sacerdotes em vez de recorrerem ��
tua generosidade n��o v��o, por si mesmos, em aux��lio dos
famintos? Suas terras est��o isentas de imposto e, al��m
disso, d��-se-lhes trigo de gra��a.
Apopi ouvira calado e pensativo. Quando Jos�� termi-
nou, o monarca passou a m��o pela testa, nervoso, e disse:
��� Tens raz��o, como sempre; contudo, aflige-me o
saber que h�� homens morrendo de fome, quando poder��a-
mos socorr��-los; depois, n��o receias que a popula��a exas-
perada acabe saqueando os celeiros?
��� Ela que experimente: os dep��sitos est��o bem guar-
dados. Tranq��iliza-te, Fara��, que eu saberei fazer respei-
tar, por toda parte, tua autoridade e o patrim��nio do
Estado.
��� Nesse caso, faze como entenderes. Somente n��o
quero tratar este neg��cio pessoalmente, dir-me-ei doente
e ordenarei �� deputa����o que se apresente a ti. Responde
aos padres como entenderes.
��� Terei cuidado de lhes provar que os n��o tememos:
ceder seria prova de fraqueza ��� respondeu despedindo-se
do monarca.
260
J. W. R O C H E S T E R
Quando, tr��s dias depois, a deputa����o dos mais ve-
ner��veis sacerdotes do pa��s se apresentou ao Adon, este,
em termos frios e altaneiros, temperados de ��speras alu-
s��es, recusou formalmente a pretens��o.
Depois do insucesso dessa suprema tentativa para ali-
viar a sorte do povo, tudo pareceu recair no sil��ncio e no
indiferentismo. Cada qual parecia cuidar apenas de pro-
ver a subsist��ncia, e os templos, na medida dos seus re-
cursos, mitigavam o sofrimento dos infelizes esfaimados.
Mas, debaixo daquela calma aparente, roncava um vulc��o
e nas mentes exaltadas come��avam a germinar os mais
sang��in��rios e ousados projetos, a fim de acabar com a
intoler��vel situa����o e vingar-se do opressor, que, dispondo
de provis��es inesgot��veis, deixava criaturas humanas mor-
rerem de inani����o.
Cego de orgulho, inteiramente absorto na ambi����o
que lhe acenava com o trono dos Fara��s, Jos�� pouco se
inquietava com a opini��o dos seus futuros vassalos; em
compensa����o, vigiava por n��o demonstrar nenhum sinal
exterior que pudesse trair o seu descontentamento. Havia
organizado maravilhosamente uma pol��cia de seguran��a e
uma pol��cia secreta, que descobriam e abafavam, com im-
piedosa crueza, todas as veleidades de rebeli��o ou qual-
quer conspira����o tramada contra ele ou contra o Trono.
Al��m disso, movido pelo sentimento vago que lhe des-
pertaram as palavras do pai, observava desconfiadamente
Hichelat e, com tanta raiva quanto espanto, tinha sur-
preendido nos olhos da princesa, quando fitava Armais,
uma express��o que nenhuma d��vida lhe deixou sobre o
interesse que o cunhado inspirava �� filha do Fara��.
Feita essa descoberta, refletiu: as eventualidades cria-
das por este imprevisto desagradavam-lhe absolutamente.
O ascendente de Hichelat sobre o pai fazia supor que ela
poderia obter o que desejava, e a alta linhagem de Armais
tornava a uni��o perfeitamente admiss��vel.
A possibilidade de semelhante cons��rcio f��-lo tremer
de c��lera: o filho do sacerdote de Heli��polis, convertido
em genro do Fara��, podia ser para ele, do ponto de vista
pol��tico, um perigos��ssimo rival. Depois de ter pesado ma-
O C H A N C E L E R DE F E R R O
261
duramente a situa����o, tomou uma resolu����o que, a todos
os respeitos, pareceu-lhe satisfat��ria.
Dias depois, encontrou Armais quando sa��a dos apo-
sentos reais. Frio e indiferente, o rapaz apresentou-lhe as
sauda����es protocolares, mas Jos�� aproximou-se e aper-
tou-lhe a m��o.
��� Tu nos abandonas, Armais ��� disse amistosamen-
te ���, Asnath queixou-se, ainda esta manh��, de te n��o
ver h�� muito tempo; al��m disso, tenho que te falar de
um neg��cio. Procura-me, pois, amanh��.
��� A que horas? ��� perguntou cerimoniosamente o
oficial.
��� Depois da audi��ncia.
IV
A ��GUA CAINDO GOTA A GOTA DESGASTA
A MAIS DURA PEDRA
�� suficientemente conhecido que
os egipcios suportavam dificilmente
um j u g o estrangeiro e eram infati-
g �� v e i s em suas revoltas contra um
semelhante dom��nio.
Isto se pode dizer m a i s do que
nunca do ��dio que lhes inspiravam
s e u s inimigos seculares, os H y k s o s .
��� Brugsch, K��nigsbuch.
No dia seguinte, cerca de uma hora antes do tempo
marcado, Armais apresentou-se no pal��cio do Adon, mas
primeiramente foi aos aposentos da irm��. Asnath estava
sentada debaixo do peristilo cont��guo �� sala de trabalho
e examinava todo um amontoado de tecidos e roupas
bordadas, que a inspetora das escravas, auxiliada por duas
mulheres, lhe apresentava um por um.
Avistando o irm��o, despediu de chofre as mulheres e,
com um bom sorriso, estendeu-lhe as duas m��os:
��� Enfim vens ver-me, Armais: por que me foges?
N��o compreendes que tenho necessidade de ver um ente
pr��ximo e amado?
O rapaz sentou-se no banco ao lado dela, e, abra-
��ando-a ternamente, disse em voz baixa:
��� Sabes que n��o �� a falta de afei����o por ti que me
impede visitar-te mais vezes; repugna-me, por��m, trans-
O CHANCELER DE FERRO
263
por o limiar desta morada, onde reside este chacal que
oprime o Egito!
Alguma coisa se revolta em mim quando respiro o
mesmo ar que ele; e saber-te em seu poder, como sua
esposa, dilacera-me o cora����o, pensando que terias sido
feliz com...
Asnath suspirou sem nada dizer e depois replicou,
fitando com olhos escrutadores o rosto anuviado do irm��o:
��� Tens algum pesar, Armais? Pareces t��o preocupado!
��� Teu poderoso marido chamou-me hoje para um
neg��cio e como n��o tenho nada a ver com ele, o convite
parece-me de mau agouro.
��� Receias alguma coisa?
��� N��o �� bem isso, mas ele me odeia tanto quanto eu
o desprezo; e quando esta v��bora deseja particulares com
algu��m, nada de bom pressagia.
Asnath fitou-o, empalidecendo:
��� S�� franco, Armais: n��o te meteste imprudente-
mente em alguma conspira����o? Sei que as tramam, mas
�� empresa baldada; dize-me se assim ��, porque te prote-
gerei, com risco embora de minha vida. De resto, ��s meu
irm��o e seu parente, e Jos�� n��o tocaria em tua cabe��a.
O oficial desviou-se para dissimular um sorriso de
amarga ironia, mas, dominando-se, acrescentou:
��� Deixa-te de id��ias sinistras, minha irm��; a triste
situa����o da nossa p��tria basta para tornar-me inquieto;
a mis��ria e a raiva geral aumentam dia a dia e o que
exaspera positivamente a popula����o arruinada �� a presen-
��a dessa horda de brutos, que se chafurdam na opul��ncia,
enquanto ao redor deles tudo morre de fome. Se porven-
tura sobrevier alguma explos��o de desespero, os caros
irm��os de teu marido bem poderiam passar um mau quar-
to de h o r a . . .
��� Caluda! ��� interrompeu Asnath, lan��ando para o
jardim um olhar significativo.
De uma alameda lateral sa��a Serag, acompanhada da
vigilante eg��pcia. Era, indubitavelmente, uma bela cria-
tura com a sua tez mate, tran��as de ��bano e grandes
olhos ��midos; uma verdadeira beleza oriental, provoca-
264
J. W. ROCHESTER
dora e voluptuosa. Mas, uma t��nica de cores vivas, san-
d��lias encarnadas e uma sobrecarga de j��ias, davam-lhe
aspecto rude e selvagem.
��� Eis a�� uma companheira que te deve ser bem pe-
sada e cuja educa����o n��o �� f��cil ��� observou Armais.
��� N��o me ocupo com ela, que bem me basta suportar
esta selvagem em minha casa. N��o compreendo por que
Jos�� se obstina em conserv��-la aqui.
��� Para cas��-la com algum dignit��rio, certamente ���
respondeu o rapaz com ironia.
Nesse meio tempo, o alvo da conversa se tinha apro-
ximado e, depois de uma desajeitada sauda����o, p��s-se a
mirar Armais com o mais ing��nuo desembara��o; todavia,
o olhar desdenhoso do rapaz acabou por perturb��-la e,
desviando-se bruscamente, correu para o jardim.
��� Verdadeira selvagem, s�� lamento o infeliz a quem
Jos�� gratificar com esta encantadora esposa ��� murmu-
rou Armais, levantando-se. ��� Adeus, minha irm��, �� tempo
de apresentar-me ao Adon.
��� Voltas aqui? Estou inquieta com essa entrevista.
��� Sim, se n��o for detido muito tempo e se sobrevier
algo de grave.
Jos�� passeava de bra��os cruzados, no gabinete. Aca-
bara de despedir uma deputa����o de egipcios de Tebas,
que viera comprar trigo, e parecia preocupado. Vendo
entrar o cunhado, saudou-o, inclinando a cabe��a e, sen-
tando-se em frente �� mesa, indicou-lhe uma cadeira.
��� Eis-me ��s tuas ordens, Adon; que tens a dizer-
-me? ��� disse Armais, recusando o convite para encos-
tar-se na janela aberta.
Jos�� n��o respondeu. Descansando os cotovelos na
mesa, envolveu num demorado olhar o jovem e esbelto
oficial, cujo belo rosto retratava um frio e orgulhoso des-
d��m. Acerbo sorriso entreabriu os l��bios do Adon. Como
essa calma desdenhosa se mudaria depressa em c��lera e
viol��ncia e como dobraria ele, rudemente, esse altivo
dorso ao seu guante de ferro!
��� Espero o que me queiras dizer, porque n��o foi s��
para me contemplares, penso eu, que me chamaste aqui
��� disse, enfim, Armais com impaci��ncia mal contida.
O C H A N C E L E R D E F E R R O
265
��� Perfeitamente: e eu dizia a mim mesmo, que um
homem t��o ricamente dotado pela Natureza, de t��o ilustre
nascimento, t��o bem colocado na sociedade, deveria ca-
sar-se ��� respondeu Jos��, puxando uma caixinha de mar-
fim esculpido e tirando dois rolos de papiros. ��� Achei uma
mulher com quem desejo ver-te casado.
��� Tua bondade �� verdadeiramente sem limites, mas,
em assunto t��o ��ntimo, prefiro escolher por mim mes-
mo ��� respondeu o oficial, tremendo de indigna����o.
��� �� poss��vel e s�� tens que te queixares de ti mesmo,
se n��o fizeste essa escolha h�� mais tempo; mas, uma
vez que o fiz por ti, andar��s bem aprovando o meu gesto
e casando-te com minha sobrinha Serag, pois �� ela que
te destino para esposa.
O sangue afluiu com tal viol��ncia �� cabe��a de Armais,
que ele titubeou e as veias da fronte encordoaram-se.
Mas, logo em seguida, atirou-se ao cunhado, escumando,
louco de raiva; tinha perdido a cabe��a e exclamou com
voz mal sofreada:
��� Creio que est��s louco, ousando insultar-me assim!
Eu, desposar essa imunda e selvagem filha da tua tribo?
Nem para concubina quereria essa abomin��vel bruta, e ��
j�� uma vergonha suficiente, para nossa gloriosa fam��lia,
ter entre os seus membros um escravo liberto!... ��� Pa-
rou, receando sufocar-se.
Jos�� tinha empalidecido e seu olhar, venenoso e pene-
trante, algo of��dico, dardejou no rosto do rapaz:
��� Conhe��o a honorabilidade da tua fam��lia e per-
gunto o que mais a desonrar��: o parentesco de um antigo
escravo, ou de um traidor e conspirador, que trama as-
sassinar o seu rei? Olha isto (desenrolou um dos papiros
tirados da caixinha) e ficar��s convencido de que tua
cabe��a oscila nos ombros e que tu e teus c��mplices po-
dereis todos acabar na forca.
Ao primeiro olhar atirado sobre o peda��o de papiro,
Armais empalideceu de morte e, tonteando, agarrou-se ��
mesa para n��o cair.
��� Pois bem! futuro regicida, tua altiva carranca pa-
rece sensivelmente desfeita ��� advertiu Jos�� com despre-
266
J. W. ROCHESTER
zo. ��� Agora, consente dizer-te que desdenho as vossas
conspira����es, brinquedos de crian��a que abafarei t��o fa-
cilmente como amarfanho este peda��o de papiro; quis
apenas provar-te que, nas minhas m��os, n��o ��s mais que
um migalho de palha. Se me compreendeste e prezas tua
cabe��a e de teus loucos comparsas, n��o mais recuses des-
posar a mulher bela e inocente que te destinei.
Armais tinha fechado os olhos; tal a tempestade que
lhe ia nalma, que, por um instante sup��s o sangue rolan-
do-lhe nas veias qual torrente de lava a incendi��-lo. De-
batia-se preso, qual mosca na teia de aranha. Se apenas
se tratasse da sua cabe��a, morreria contente por n��o
chamar esposa �� criatura que lhe inspirava ��dio feroz;
mas, poderia sacrificar os mais nobres rapazes do Egito,
seus amigos e companheiros, mergulhando no luto e na
mis��ria numerosas fam��lias? Aquele homem tinha raz��o:
as conspira����es que descobria e abafava com maravilho-
sa sagacidade, n��o o atemorizavam; ceder-lhe, por��m,
era sacrif��cio que ultrapassava quase as suas for��as.
Aflitivo sil��ncio reinou no gabinete, at�� que Armais
aprumou-se e seu olhar, porejando ��dio e desprezo, fuzi-
lou no advers��rio qual chama destruidora. Afinal, tinha
reconquistado o sangue-frio:
��� Dizes a verdade, Adon; ��s muito h��bil para ga-
rantires o Fara�� e a pr��pria vida preciosa; h�� anos que
te divertes em humilhar, arruinar e matar o povo eg��pcio,
cujo destino um desgra��ado acaso te p��s nas m��os. Esco-
lheste, especialmente, nossa fam��lia para lud��brio de tua
maldade; n��o te basta teres manchado Asnath, unindo-te
a ela, agora �� a minha vez e, para ferir meu pai em pleno
cora����o e desonrar-me, queres impor-me essa mo��a re-
pugnante e empestar o sangue puro e nobre que me corre
nas veias, com o sangue abjeto da tua ra��a. Bem sabias
que a morte pela m��o do carrasco, se s�� a mim atingisse,
eu a preferiria a semelhante uni��o, e �� com a vida dos
meus amigos que me for��as �� submiss��o; somente te
iludes, acreditando que a imp��es ao povo com esta alian-
��a, pois todos compreender��o que sou v��tima da tua vio-
l��ncia, tal como Asnath.
O CHANCELER DE FERRO
267
Para todo o Egito ser��s sempre o escravo impuro, e
tua fam��lia uma quadrilha de aventureiros que se locuple-
ta com os bens extorquidos aos verdadeiros filhos de Kemi.
O Adon levantara-se, n��o tinha interrompido o cunha-
do, mas seus l��bios frementes, os olhos incendidos, pro-
vavam que tamb��m nele roncava uma tempestade.
��� Abusas demasiado do parentesco para me atirares
em rosto todos os insultos poss��veis. Exprobras o que,
qualquer dia, o acaso da guerra te poderia infligir. A des-
gra��a, n��o o nascimento, me fez escravo; sou filho de
um chefe de tribo, de um haq livre, mais livre do que
vossos pr��ncipes, que ostentam o t��tulo e pagam tributo
a Apopi.
Nossa alian��a n��o �� oprobriosa, sen��o porque vos
acreditais de uma ra��a superior, que decidi misturar ao
nosso sangue. Ouve, pois, a minha decis��o imut��vel: se
amanh�� n��o te apresentares a pedir oficialmente Serag
em casamento, tu e teus companheiros sereis presos como
conspiradores contra a vida do rei; se vieres como noivo,
calar-me-ei; e agora, vai; dou-te tempo para te acal-
mares.
Mudo, Armais deixou o gabinete; violento mal-estar
tinha-o acometido: zumbiam-lhe os ouvidos, nuvens es-
cureciam-lhe os olhos e os pensamentos se turbavam;
todavia, tinha-lhe ficado uma vaga lembran��a de haver
desejado encontrar-se novamente com a irm��. Maquinal-
mente norteou, a passos vacilantes, os aposentos de As-
nath e, sem notar o espanto que o seu aspecto causava
aos escravos, deixou-se levar para um vasto terra��o onde
lhe disseram encontrar-se a senhora.
Asnath n��o estava s��; como de costume, a princesa
Hichelat viera visitar a amiga e, esquecendo momenta-
neamente a sua inquieta����o, ela e a ilustre visitante se
haviam instalado junto de pequena mesa, �� sombra de um
bosquete de odorantes arbustos. Comendo past��is de mel,
conversavam sobre a pr��xima festa do Nilo, para a qual
se preparavam cerim��nias religiosas, a fim de obter dos
deuses o benef��cio da inunda����o. Ao ver o irm��o que,
l��vido, olhar desvairado, adiantava-se a passos titubean-
tes, Asnath saltou da cadeira.
268
J. W. ROCHESTER
��� Que tens, Armais? que te aconteceu? ��� gritou cor-
rendo para ele. O rapaz nada respondeu, a cabe��a lhe
rodava e, sem notar Hichelat, que se levantara espantada,
come��ou a andar ��s tontas, procurando um apoio, at�� que
caiu pesadamente numa cadeira, com a cabe��a pendida
e de olhos fechados.
Num ��pice, as duas mulheres correram em seu au-
x��lio.
��� Depressa, Asnath, ��gua e uma ess��ncia ��� disse
Hichelat comovida, sustentando nas m��os a cabe��a inerte
do jovem oficial.
Asnath apanhou na mesa uma ��nfora com ��gua e
ordenou a uma escrava que trouxesse sem demora a cai-
xeta dos rem��dios, mas tremia de tal modo que a ��nfora
quase lhe caiu das m��os.
��� Sustenta-o ��� ordenou energicamente Hichelat, e,
enchendo um copo, derramou-lhe a ess��ncia de pequeno
frasco preso �� cintura por uma corrente de ouro. Molhou
o len��o e enxugou o rosto do rapaz. Ao contacto da ��gua
fria, fortemente aromatizada, ele arrepiou-se e reabriu
os olhos. A vista ainda turva deu com o ansioso rosto
inclinado para o seu, mas, reconhecendo subitamente a
filha do Fara��, estremeceu e procurou levantar-se. A
princesa, que tinha recuado, corando, tomou-lhe logo o
bra��o e disse com graciosa autoridade:
��� N��o, nobre Armais, deixa-te ficar �� vontade; vou
sair j�� e descansar��s enquanto Asnath me acompanha
um instantinho.
Saudou-o com a gracilidade que lhe era pr��pria e
desceu apressada os degraus do terra��o, enquanto Armais
balbuciava palavras de agradecimento e desculpa. Logo
que a princesa se viu s�� com Asnath, na sombria alameda,
parou e disse apertando-lhe a m��o:
��� Volta para junto de teu irm��o: dir-se-ia que est��
doente ou sob o peso de terr��vel emo����o; irei s�� at�� ao
pavilh��o, onde me esperam Ouna e Abracro; somente esta
noite, ou antes, amanh�� pela manh��, vai ver-me. Se ti-
veres necessidade de aux��lio, de algum favor do Fara��,
podes contar comigo.
O C H A N C E L E R DE F E R R O
269
E sem esperar resposta, a encantadora crian��a afas-
tou-se l��pida qual gazela, desaparecendo na curva da
alameda.
Quase a correr, Asnath voltou ao terra��o, onde encon-
trou o irm��o, de cotovelos fincados na mesa, imerso em
morno desespero.
��� Dize-me o que h �� . . . pressinto algo de terr��vel ���
murmurou abra��ada ao irm��o e conchegando o rosto ao
dele.
Num ��mpeto convulsivo, o rapaz enla��ou-a:
��� Asnath, a desgra��a �� tal e tanta a vergonha, que
a l��ngua se recusa a exprimi-la; esse c��o impuro entendeu
que a ta��a da humilha����o com que envenena a nossa
fam��lia n��o era suficientemente amarga e for��a-me a
desposar essa criatura repugnante que te empesta a casa.
��� Serag? �� imposs��vel... E concordaste? ��� excla-
mou fora de si.
��� Fui obrigado ��� murmurou Armais.
E, inclinando-se, acrescentou de modo que somente
ela entendeu:
��� N��o te sacrificaste tamb��m? Se pudesse entregar
apenas a minha cabe��a ao carrasco, f��-lo-ia contente,
antes de consentir numa desgra��a que vale por morte
indefinida; mas catorze pessoas est��o comprometidas
(citou alguns nomes) e o pre��o da salva����o �� o meu ca-
samento.
��� Infame! como ousou um tal insulto? ��� disse As-
nath, rilhando os dentes.
��� Al��m disso ��� continuou o oficial ��� acha-se aqui
um homem que te foi caro, a quem amo como irm��o e
cuja descoberta seria morte certa.
Asnath descorou mortalmente:
��� E l e . . . aqui? mas como?
��� Disfar��ado em escriba subalterno, meteu-se no
s��quito dos padres e negociantes de Tebas que vieram
comprar trigo. Est�� oculto no templo de Isis.
��� Ah! se pudesse v��-lo...
��� Seria para ele uma felicidade; ama-te como sem-
pre, ficou-te fiel e se quiseres ir esta noite ao templo de
270
J. W. ROCHESTER
��sis, avisarei a Chnoum e ser��s conduzida a um ponto
onde possas v��-lo.
Ficou meditativa um instante, visivelmente lutando
consigo mesma; depois, s��bito, levantou a cabe��a em de-
safio e murmurou:
��� Podes avis��-lo, irei.
Depois que o irm��o se foi, Asnath recolheu-se ao
quarto, mandou cerrar as cortinas, despediu toda gente
e atirou-se ao leito, procurando coordenar id��ias. Indiz��-
vel c��lera lhe esfervia contra Jos��: a id��ia cruel de casar
Armais, o belo, o caro Armais, com essa mo��a obscura e
de ra��a abjeta, revoltava-a de tal modo que, nessa irrita-
����o, desapareceu completamente o sentimento estranho,
misto de ��dio, ci��me e paix��o que o marido lhe inspirava.
Nesse instante, apenas odiava o homem implac��vel que
t��o cruamente se vingava na sua fam��lia dos desd��ns que
lhe testemunhavam. Sob o impulso do momento, a ima-
gem do antigo noivo ergueu-se diante dela circundada de
uma aur��ola radiosa. Como era delicado, generoso, pro-
fundamente bom! Ao seu olhar apaixonado, as c��leras
infantis se transformavam sempre em doce calma; nunca
lhe surpreendera a express��o que a fazia estremecer sob
o olhar ardente de Jos��. Que vida pac��fica, repleta de
harmonia teria passado com Hor! Assaltou-a, ent��o, imen-
so desejo de o rever e, abandonando-se inteiramente ��s
suas recorda����es, fechou os olhos.
Nem Asnath nem Jos�� suspeitavam que a pr��pria ex-
travag��ncia de suas rela����es os vinculava profundamente.
Ela debatia-se no caos de sentimentos que ora lhe faziam
detestar o marido, ora a tornavam escrava da sua pode-
rosa fascina����o. Diante dele, o espectro do seu juramento
e da fam��lia ultrajada tornava-a fria e muda; e, quando
ele estava longe, quereria ��s vezes procur��-lo; atirar-se
em seus bra��os, dizer-lhe "amo-te"; embriagar-se no seu
olhar radiante, no seu beijo apaixonado. Jos��, por sua vez,
devorado por violenta paix��o de que tinha consci��ncia,
sentia-se perpetuamente irritado com aquela frieza, que
acreditava n��o ser mais que um disfarce, mas da qual n��o
podia triunfar. Seu orgulho o aconselhava a castig��-la
com a indiferen��a, at�� que conseguisse verg��-la, for����-la
O CHANCELER DE FERRO
271
a confessar humildemente o seu amor. E justamente essa
luta surda, de dois elementos contrariados, criava o im��
que os atra��a entre si ap��s dez anos de casados, manten-
do-lhes ��ntegros de frescor e intensidade os primeiros ar-
roubos da sua uni��o.
Desde algumas horas Asnath sonhava com o passado
e de tal maneira se havia identificado com ele que esque-
cera completamente o presente. N��o ouviu os passos de
Jos�� no compartimento vizinho, n��o o viu penetrar no
quarto e somente quando lhe perguntou com voz sonora:
"Est��s doente, Asnath, por que ficas deitada o dia inteiro
neste quarto escuro?" ��� voltou-lhe a no����o da realidade.
Ao deparar com o marido que levantava a cortina da
janela, toda a sua c��lera despertou: vermelha, olhos cha-
mejantes, saltou do leito e exclamou:
��� Ainda me perguntas por que fujo da luz? Seria
natural que fugisse da vida, depois da inj��ria que nos
fazes, criatura miser��vel e rancorosa.
Pela primeira vez, depois de alguns anos, era a antiga
Asnath que reaparecia, veemente, provocadora, revoltada.
Com ��ntimo deslumbramento, Jos�� fitou-lhe no rosto ani-
mado as faces em fogo, os pequenos p��s impacientes
prestes a sapatear na esteira, e, num relance, lhe veio
�� mem��ria a cena do pavilh��o, quando se lan��ara contra
ele de machadinha em punho. Dissimulando como sem-
pre, disse, calmo:
��� Rogo-te que te abstenhas de inj��rias; pois abso-
lutamente ignoro que te insultasse.
��� N��o? ��s muito ing��nuo. Creio que atirar Armais
em uma emboscada, para em seguida desonr��-lo, �� um
insulto.
��� N��o fui eu, mas teu irm��o que se desonrou a si
mesmo, metendo-se em intrigas criminosas. Seu casamen-
to com Serag s�� �� humilhante para a tua imagina����o.
��� N��o na quero para cunhada; essa bruta, mais
grosseira que a ��ltima das escravas, e que, para Armais,
�� t��o repugnante como um r��ptil; renuncia a esse plano
inspirado apenas pelo ��dio e pelo desejo ign��bil de nos
humilhar ��� exclamou fora de si.
272
J. W. ROCHESTER
��� Minha mulher n��o deveria dizer-nos humilhar,
quando se trata de alian��a com uma parenta minha ���
disse Jos�� com amargura. ��� Encontro-te sempre ao lado
dos meus inimigos. Quanto a mudar uma resolu����o to-
mada, deverias saber que n��o est�� em meus h��bitos; o
irresist��vel Armais esposar�� Serag, que, nem por seu ex-
terior, nem por seu dote, deslustrar�� a fam��lia de Pot����era.
��� Queres dotar essa guardadora de porcos? Sem d��-
vida com o ouro, as j��ias e as terras que roubas aos
famintos. Armais dever�� mandar colocar uma tabuleta na
sua liteira, ou mandar proclamar pelos lacaios que ali est��
sua mulher; de outro modo, os antigos donos das j��ias
tom��-la-��o como usur��ria dos arredores ��� respondeu
Asnath com ironia mordaz.
Jos�� corou e as sobrancelhas se carregaram:
��� Vejo que para conversar contigo ser�� ��til esperar
que tenhas readquirido calma e racioc��nio. At�� �� vista...
Voltando-lhe as costas saiu.
Ardendo em c��lera, ela p��s-se a andar pelo quarto, es-
perando com impaci��ncia o momento de ir ao templo. Com
toda a profundeza do ressentimento que experimentava
nesse instante, contra Jos��, aspirava a rever Hor. Sim,
daria ao seu rival o que em v��o o Adon desejava ouvir:
palavras de amor e a explos��o de ternura que obstina-
damente lhe recusava.
Logo que chegou a noite, pediu a liteira e, acompa-
nhada apenas da velha aia, dirigiu-se ao templo de Isis.
Como o fazia muitas vezes e sabiam que gostava de assis-
tir aos sacrif��cios noturnos oferecidos a Os��ris, ningu��m
prestou aten����o nessa surtida da jovem senhora. Deixan-
do, como de costume, a liteira e o s��quito na portada do
santo lugar, penetrou no sombrio peristilo fracamente
iluminado por uma l��mpada; um padre, que vigiava ��
porta, recebeu a ilustre visitante e conduziu-a rapida-
mente para o fundo do templo.
Parando ao p�� de uma est��tua cujos colossais con-
tornos mal se distinguiam na penumbra ambiente, o pa-
dre murmurou:
��� Permite, nobre senhora, que te vende os olhos e,
sem receio, confia-te �� nossa dedica����o.
O C H A N C E L E R DE F E R R O
273
��� Faze o necess��rio ��� respondeu brevemente.
O padre atou-lhe um v��u por cima dos olhos e, ins-
tantes depois, sentiu-se suspensa por vigorosos bra��os,
tornando-se-lhe imposs��vel orientar-se, saber em que di-
re����o a levavam. Sentiu o condutor descer uma escada,
depois atravessar um corredor estreito, porque os vestidos
ro��avam as paredes, e, por fim, deposit��-la no solo, reti-
rando-lhe o v��u.
Lan��ou ao redor um olhar curioso e espantado; acha-
va-se em longa sala subterr��nea, sustentada por colunas
curtas e maci��as; as paredes da cripta, assim como as co-
lunas, eram pintadas de cores vivas, representando ale-
gorias e sinais misteriosos. Em uma das extremidades,
larga mesa carregada de rolos de papiros e rodeada de
assentos, provava que o lugar, destinado �� celebra����o dos
mist��rios, servia ent��o de sala de reuni��o para secretos
concili��bulos. In��meras l��mpadas, pendentes do teto, ilu-
minavam intensamente todos os objetos, mas Asnath es-
tava s��, o guia tinha desaparecido.
Nervosa, tr��mula, atirou num banco o manto e o v��u
e encostou-se na parede. Para matar o tempo, procurou
examinar os desenhos extravagantes de um quarto em
frente, mas imposs��vel lhe foi coordenar id��ias: toda ela
se concentrava no ouvido. Tamb��m um passo r��pido, na
outra extremidade da sala, f��-la estremecer; voltou-se
bruscamente e deu de face com um homem t��o p��lido e
comovido quanto ela mesma.
��� Hor! ��� murmurou em surdina.
Sem responder, impelido pelos pr��prios sentimentos,
o mancebo apertou-a de encontro ao peito. O misto de
felicidade e amargura que lhe ia nalma, fechava-lhe a
boca. Tr��mula, sacudida por sentimentos contradit��rios,
a mo��a descansou a cabe��a no ombro do antigo noivo.
Hor foi quem primeiro voltou a si e conduziu-a para
o banco pr��ximo, f��-la sentar-se ao seu lado e disse co-
movido:
��� Obrigado por teres vindo, minha bem-amada; esta
alegria de rever-te, encher-me-�� de nova coragem para o
per��odo da aus��ncia expectante. Mas, dize-me, n��o me
esqueceste? amas-me ainda?
274
J. W. ROCHESTER
��� Cumpri a palavra que te dei ��� murmurou ela ���
nunca lhe disse: amo-te.
Hor inclinou-se e o seu olhar ansioso mergulhou nos
olhos dela.
��� Obrigado! Mas, dize-me, como te corre a vida ��n-
tima? ��s feliz?
��� N��o, absolutamente ��� exclamou explodindo em
solu��os convulsivos ���; sou uma estranha no meu lar, vivo
como sob um rochedo e Jos�� odeia a todos os meus. At��
Armais ele pretende desonrar com uma alian��a infa-
mante!
Todo o rancor da alterca����o com o marido revivera,
assaltara-a um ��spero desejo de feri-lo, faz��-lo sofrer e,
encontrando o olhar franco e amoroso do ex-noivo, pare-
ceu-lhe que s�� ele lhe podia dar a calma felicidade, a
quieta����o dalma que faltava nas suas rela����es com Jos��.
��� Sim, Hor, �� a ti que eu amo, a ti somente! E, per-
dendo-te, perdi a felicidade ��� exclamou, lan��ando-se ao
seu pesco��o.
Fremente de alegria, ele apertou-a com ternura, con-
chegada ao cora����o.
��� Espera, Asnath, embora n��o venha t��o depressa
qual a desejamos, a liberta����o est�� pr��xima e, logo que
derrubemos o monstro que oprime o Egito, ir��s, como um
raio de Ra, iluminar minha casa vazia. E agora s�� calma:
tuas l��grimas, que eu n��o posso secar, espeda��am-me o
cora����o.
Para distra��-la, come��ou a descrever sua vida naque-
les anos decorridos, at�� que a conversa foi interrompida
pelos padres, que se reuniam em conselho secreto e pe-
diram �� mo��a que se retirasse, a fim de que sua longa
aus��ncia n��o despertasse suspeitas. Depois de curto, mas
ardente adeus, Asnath foi reconduzida �� liteira.
Essa entrevista deixou-lhe no esp��rito uma estranha
impress��o. Tendo readquirido calma, verificou que algu-
ma coisa se modificara na sua afei����o a Hor. Certo, ama-
va-o de toda a sua alma, parecia-lhe a incorpora����o de
uma felicidade pura e pac��fica, mas, apesar disso, reco-
nheceu que ele n��o lhe infundia a inexplic��vel fascina����o
O CHANCELER DE FERRO
275
de Jos��, malgrado ��s tempestades e ao constrangimento
da sua vida conjugal.
A not��cia dos esponsais de Armais com Serag desper-
tou geral espanto; a indiferen��a glacial do mancebo fora
t��o not��ria que a suspeita de uma viol��ncia contra ele
propagou-se �� surdina. Pot��fera e sua mulher ficaram
profundamente aflitos com um casamento t��o esdr��xulo.
A participa����o de Armais produziu no sacerdote uma co-
mo����o tal que ficou perturbado dos sentidos, mas essa
s��ncope foi tamb��m o ��nico sinal de dor ou desgosto de-
monstrado. Aparentemente, mantinha-se calmo e apenas
passava longas horas no santu��rio, sisudo e concentrado.
Desejando concluir rapidamente essa uni��o que tanto
o interessava, Jos�� fixara um prazo assaz curto para o
casamento, que desejava festejar com pompas verdadei-
ramente r��gias, a julgar pelos preparativos do pal��cio e
pelo enxoval da noiva.
As rela����es dos futuros esposos n��o podiam ser mais
tensas e aflitivas. Oficialmente, Armais se conformava
com todos os imperativos da situa����o; enviava flores e
outros presentes, preparava sua casa e ia visitar a noiva,
mas evitava, tanto quanto poss��vel, estar s�� com ela. Tes-
temunhava-lhe a mais fria polidez, ocultando com difi-
culdade sua avers��o quando ela lhe tocava a m��o ou apro-
veitava um instante de isolamento para abra����-lo, porque
Serag, indisciplinada e impulsiva, apaixonara-se pelo belo
oficial que sempre lhe despertara interesse. Muito pouco
desenvolvida para compreender as raz��es que a tornavam
odiosa ao mancebo, irritava-se com a sua frieza, sem sa-
ber dominar os pr��prios sentimentos.
Pot��fera chegou na v��spera do dia fixado e, quando
Armais ficou a s��s, seu desespero transbordou; parecia-
-lhe acima de suas for��as suportar a exist��ncia que o
aguardava.
��� Acalma-te, filho, e confia na miseric��rdia dos
deuses; da noite para o dia podem sobrevir muitas coi-
sas ��� advertiu o sacerdote, com olhar t��o estranho que
o rapaz estremeceu mas n��o ousou interrog��-lo.
Asnath veio �� noite, mas a preocupa����o do pai era
t��o evidente, t��o sombria a chama dos seus olhos, que
276
J. W. ROCHESTER
ela se retirou inquieta e oprimida. Pela primeira vez, ti-
vera medo de Pot��fera.
A esposa de Jos�� passou uma noite de ins��nia e agi-
ta����o. Pela manh��, assaltada por tristes pensamentos,
mexia-se e remexia-se na cama, quando um rumor lon-
g��nquo lhe chegou aos ouvidos. Atentou, ansiosa, e logo
se convenceu de que o tumulto aumentava, ouvindo-se j��
distintamente gritos e clamores.
Inteiramente sobressaltada, acordou Jos��, que, n��o
menos surpreso, levantou-se aconselhando-lhe que tivesse
calma e prometendo vir tranq��iliz��-la depois de inteirar-
-se do que ocorria.
Pibisi, espavorido, declarou ao Adon que alguma coisa
de grave sucedera nos aposentos da nobre Serag; que as
criadas �� que tinham feito o alarido e pareciam loucas,
mas ningu��m sabia ainda, ao certo, o que tinha havido.
Levado por funesto pressentimento, Jos�� passou a toda
pressa para o quarto da sobrinha; os vestidos rasgados,
os rostos aflitos das mulheres que se apinhavam �� en-
trada, soltando gritos agudos e dilaceradores, que enchiam
o pal��cio ��� eis o espet��culo que se lhe deparou. Ao avis-
tarem o senhor, tomaram-se de verdadeira loucura e lan-
��aram-se-lhe aos p��s, gritando: "Perd��o! n��s n��o somos
culpadas." Afastando-as col��rico, entrou, e, sem prestar
aten����o a algumas escravas que, com gritos de desespero
rebolcavam-se no assoalho, aproximou-se do leito. Ao
primeiro olhar lan��ado a Serag, que jazia inerte, com
uma express��o de terror louco estampada no rosto vio-
l��ceo, recuou horrorizado: ao redor do pesco��o da mo��a,
enrolava-se uma serpente da mais perigosa esp��cie, e uma
pequena chaga negra, na garganta, explicava suficiente-
mente a trag��dia.
Passado o primeiro estupor, Jos�� inclinou-se para a
morta e no mesmo instante a serpente se al��ou com a
cabe��a sibilante e dardejou nele um olhar venenoso. O
Adon sentiu s��bita fraqueza, um estremecimento glacial
sacudiu-lhe os membros; parecia-lhe ver as horr��veis
pupilas do invis��vel inimigo, da misteriosa serpente que
havia vencido, na mat��ria e na ess��ncia. Branco da cor
da t��nica, recuou e murmurou com voz abafada: "Matem
O CHANCELER DE FERRO
277
o monstro!" Como se houvesse compreendido a ordem, e
antes que um dos criados hesitantes pudesse aproximar-
-se, a serpente se desenrolou, arrastou-se pelo peito gela-
do de Serag e perdeu-se nas cobertas da cama.
Sombrio, olhar flamante, Jos�� voltou ao quarto onde
Asnath, desfigurada e aturdida, ouvia a narra����o incoe-
rente de uma serva.
��� �� verdade? Ser�� poss��vel que Serag esteja mor-
ta? ��� exclamou, voltando-se para o marido.
��� Sim, �� evidente que os deuses de Heli��polis s��o
muito favor��veis a teu irm��o e o livraram de uma esposa
t��o pouco desejada ��� respondeu com um sorriso ir��nico.
Apanhou o selo, que tinha debaixo do travesseiro e dei-
xou o quarto.
Logo que voltou a si do espanto, Asnath escreveu algu-
mas linhas a Armais, informando-o do ocorrido.
O rapaz n��o tinha fechado os olhos durante a noite
e, pela manh��, voltara para junto do pai, que, com grande
espanto, achou dormindo ainda. Perguntando-lhe, inquie-
to, se n��o estava doente, o sacerdote respondeu que velara
a noite inteira. Depois calaram-se e Armais dispunha-se,
com a morte no cora����o, a vestir-se para a cerim��nia,
quando lhe trouxeram a mensagem da irm��. Apenas aca-
bou de l��-la, caiu atordoado na cadeira, exclamando:
��� Serag est�� morta, pai! Isto nos vem do templo
��� acrescentou com voz muito baixa e d��bia.
��� Isto �� a m��o da divindade que, cansada dos abusos
deste homem, quis provar-lhe que ele pode fixar a data
de um casamento, mas a realiza����o dos destinos huma-
nos depende de um poder superior ao seu ��� respondeu
Pot��fera solenemente. Contudo, a express��o de implac��-
vel dureza que lhe pairava no semblante, impressionou
Armais: nunca surpreendera semelhante express��o nos
olhos l��mpidos e calmos do velho sacerdote.
��� Agora vai e prepara-te para testemunhar a dor
convencional em circunst��ncia t��o cruel. De resto, aos
mortos devemos sempre render homenagens, e tu est��s
livre de uma esposa odiosa. Vou sacrificar aos deuses ���
disse, despedindo o filho.
V
O ADON E O CALDEU
Mandou aos m��dicos, que tinha
em seu servi��o, e m b a l s a m a s s e m o
corpo de seu pai.
E o E g i t o chorou Jac�� setenta
dias.
F a r a �� lhe disse: vai e sepulta
teu pai, visto ter-te ele obrigado a
isso com juramento.
E quando Jos�� foi, acompanha-
ram-no todos os primeiros oficiais da
casa de F a r a �� e todos os grandes do
Egito. ��� G��nese, cap. L, vv. 2, 3,
6, 7.
O dia tristonho e pesado, que come��ou t��o tr��gico
com a morte de Serag, chegava ao seu termo. Jos�� n��o
tivera um momento de repouso, as visitas de condol��ncias
dos ilustres convidados que, acreditando vir a um festim,
chegavam a uma c��mara mortu��ria, a vinda oficial de
Armais, que, trajando luto, o rosto empoeirado, prestara
a homenagem convencional de louvores e pesares �� defun-
ta noiva, enfim as provid��ncias para o embalsamamento,
tinham ocupado o Adon e era j�� noite quando se recolheu
ao gabinete de trabalho para, finalmente, pensar �� von-
tade no que acabava de suceder. Sombrio e carrancudo,
caminhava a passos agitados. Serag cair�� v��tima de um
crime misterioso, eis o que era evidente; mas a habilidade
com que sub-rept��cia m��o havia libertado o filho de Po-
t��fera de uma liga����o humilhante para a casta sacerdo-
O C H A N C E L E R DE F E R R O
279
tal, ainda mais que a dele com Asnath, dava-lhe o que
pensar.
Com efeito, era mesmo imposs��vel formular uma sus-
peita: os aposentos das mulheres eram guardados por nu-
merosos e dedicados servos; al��m das criadas eg��pcias,
Serag tinha tamb��m ao seu servi��o diversas mulheres da
sua tribo, que tinham velado; ningu��m vira nem ouvira
coisa alguma; ningu��m notara o momento exato em que
se dera a morte, e, contudo, a mo��a deveria ter acordado,
a julgar pelo espanto retratado no semblante. Fora, por-
tanto, bem h��bil a m��o que insinuara a serpente no leito,
ou, ent��o, a ci��ncia secreta dos templos dera espantosa
prova do seu poder. Lembrou-se de ter ouvido Schebna
afirmar ser poss��vel, �� magia, suscitar esses mensageiros
de morte, que, sob a forma de serpentes, escorpi��es e
outros animais venenosos, arrastavam-se para a v��tima,
ferindo-a sem que ningu��m pudesse impedi-lo. O caldeu
n��o lhe revelara o segredo de semelhante feito m��gico,
e, contudo, n��o duvidava da sua possibilidade. Mas, neste
caso, sua pr��pria vida estaria presa por um fio de cabelo,
se os padres decidissem utilizar o processo para elimin��-lo.
Com um longo suspiro enxugou a fronte molhada de
suor. Oh! como os odiava, a esses padres! E, todavia, pre-
cisava calar-se, porque, como provar que a serpente n��o
estava oculta nas flores, ou que tinha passado do jardim
para o quarto? Tais casos n��o eram raros.
A entrada de Pibisi, o escravo favorito, interrompeu-
-lhe os pensamentos em tumulto.
��� Senhor, a�� est�� um homem que parece vindo de
pa��s long��nquo e tem aspecto fatigado. Pretende conhe-
cer-te e deseja falar-te Incontinenti.
��� Est�� louco, sem d��vida; ponham esse imbecil no
olho da rua e digam-lhe que venha em dia de audi��ncia,
se tem alguma requisi����o a fazer.
��� Ele insiste, senhor, e n��o se deixa intimidar; quan-
do quisemos afast��-lo, disse que tu nos castigarias, visto
como tem coisas graves a confiar-te.
O Adon refletiu um momento:
��� Neste caso, podes traz��-lo aqui e v�� que ningu��m
nos ou��a.
280
J. W. ROCHESTER
Momentos depois, um homem de alta estatura, envol-
to num manto escuro cujo capuz lhe cobria a cabe��a,
penetrou no gabinete e, prostrando-se diante do Adon,
tocou as esteiras com o rosto. Com olhar percuciente,
Jos�� examinou as vestes poeirentas e as sand��lias estra-
gadas do desconhecido, que devia ser muito velho, con-
forme indicava a longa barba de neve.
��� Quem ��s e que me queres? Fala depressa, n��o te-
nho tempo a perder.
��� Tratarei, poderoso senhor, de conformar-me ��s
tuas ordens ��� respondeu uma voz sonora, cujo timbre
conhecido fez estremecer Jos��, embora n��o pudesse dizer
onde a tinha ouvido. Mas, no mesmo instante, o desco-
nhecido retirou o capuz.
��� Schebna! ��� exclamou o Adon, recuando como se
contemplasse um espectro.
O velho s��bio n��o mudara; os longos anos decorridos
passaram por ele sem deixar vest��gios e o fogo juvenil
de outrora cintilava-lhe nos olhos, quando disse, sem le-
vantar-se:
��� Sim, sou eu e chegada �� a hora que te predisse,
meu disc��pulo de antanho: dominas no fast��gio das hon-
ras e eu, com o rosto na poeira, venho pedir-te hospita-
lidade. A mim tamb��m a fome me expulsou do meu asilo
e venho refugiar-me junto de ti.
��� Sabias que me encontravas aqui? ��� perguntou
Jos�� com voz surda.
��� N��o, eu te havia perdido de vista e talvez a mis��-
ria n��o me tivesse arrancado do meu calmo retiro, onde
s�� vivia para a Ci��ncia: tenho necessidade de muito pou-
co: um copo de ��gua fresca e algumas ra��zes me bastam.
Foi uma ordem divina que me fez tomar o cajado de
viajante. Vou contar-te o que sucedeu; mas, n��o me man-
das levantar? A idade torna-me dif��cil permanecer de
joelhos.
Vendo Jos�� fazer um brusco movimento com a m��o,
levantou-se e encostou-se �� mesa.
��� Uma noite, quando trabalhava, apresentaram-se-
-me tr��s homens vestidos de branco; seu aspecto era
O C H A N C E L E R DE F E R R O
281
vener��vel e os rostos velados de tristeza: "Vem em nosso
aux��lio, disseram, prostrando-se e beijando-me os p��s;
adquiriste um saber e poder que n��o possu��mos; livra-nos,
pois, de uma serpente que se introduziu em nossa p��tria;
envolve-a e sufoca-a com os seus an��is de ferro; oprime
o inocente e arranca o ��ltimo bocado ao pobre que morre
de fome." Respondi-lhes que voltassem em paz �� sua
p��tria e consultaria os astros; se tal fosse a vontade dos
imortais, eles me indicariam o pa��s a libertar e o meio
de o fazer.
"Nos efl��vios onde se entramam os decretos do des-
tino, li: "Parte e n��s te conduziremos." Pus-me, pois, a
caminho e vim ao pa��s de Kemi, que est�� sendo ro��do pela
fome e pela mis��ria. Passando por esta cidade, ouvi teu
nome e, lembrando-me que o poderoso Adon foi meu dis-
c��pulo, quis rever-te, repousar debaixo do teu teto e tam-
b��m perguntar-te, a ti que conheces todos os reinos cir-
cunvizinhos, qual o pa��s sufocado por implac��vel opress��o
e qual a serpente que os homens vestidos de branco me
pedem para destruir."
O mago calou-se, mas seu olhar ardente cravou-se
no rosto subitamente p��lido de Jos��, que passava a m��o
tr��mula pelas faces ��midas de suor. "Foram os padres que
o chamaram e foi ele quem matou Serag!" Este pensa-
mento passou-lhe como rel��mpago pelo c��rebro.
��� N��o sabias quem s��o esses homens, meus impla-
c��veis inimigos e a quem odeiam e caluniam, chamando-o
serpente e opressor? ��� interpelou Jos�� com amargura.
��� Que te deram eles, Schebna, em paga da minha des-
trui����o? Em todo caso, por tua amizade, prometo-te o
triplo.
O caldeu abanou a cabe��a.
��� Esqueceste meus ensinamentos, se julgas poss��vel
comprar um mago e, principalmente, para cometer um
crime. Os vener��veis postulantes invocaram o meu aux��lio
em nome da justi��a, da liberdade e das for��as celestes;
pediram-me que arrancasse �� mis��ria e �� morte seres ino-
centes. Nunca pensaste no pre��o que representa uma vida
humana perante o Trono do Ser ��nico, do Ser Inef��vel,
cujo nome s�� se pronuncia tremendo?
282
J. W. ROCHESTER
"Toma cuidado, Jos��, as l��grimas, as maldi����es, a
ang��stia dos sofrimentos imerecidos, sobem ao c��u como
nuvem escura. Segundo a lei imut��vel, que faz todo o peso
cair sobre a terra de onde partiu, tu bem poderias ser
esmagado."
��� Vieste amea��ar-me?
��� N��o; vim tocar a tua consci��ncia e abrandar teu
cora����o. Tem piedade dos que sofrem, n��o te deixes cegar
pela ambi����o e lembra-te do que te disse outrora: "Teu
futuro �� singular, soberbo, mas quanto ao teu fim paira
uma nuvem; n��o esque��as nunca que o homem pode usar,
mas n��o abusar dos favores do destino, e que o abuso
pode constituir a ru��na da tua sorte." Eu que te instru��,
que te armei para a luta, que te dotei com o poderoso
talism��, sem o qual nunca terias atingido a situa����o
��nica que desfrutas, creio ter o direito de falar-te deste
modo.
Jos�� n��o respondeu: no cora����o e no c��rebro rugia-
-lhe a tempestade. A morte de Serag, a presen��a do cal-
deu, as severas palavras que acabava de ouvir, tudo se
juntava para indiciar em torno dele um perigo incessante.
Claro que a destrui����o da sobrinha devia ser uma adver-
t��ncia que precedia o aparecimento de Schebna. Mas,
sobrar-lhe-ia a for��a para lutar se deixasse nas m��os
dos inimigos o terr��vel instrumento de destrui����o que eles
tinham conseguido, sabe Deus como? Inteiramente absor-
to nessas reflex��es, n��o reparou o olhar ardente do mago
e o indefin��vel sorriso que lhe brincava nos l��bios.
��� Tens raz��o: de ti tudo devo ouvir e a hospitalida-
de em minha casa cabe-te de direito ��� disse, levantan-
do-se. ��� Acompanha-me; vou servir-te refrescos; depois
descansar��s, porque est��s fatigado.
Sem obje����o o caldeu acompanhou-o atrav��s de ex-
tensa galeria, um p��tio interior, depois um corredor abo-
badado e conduziu o h��spede a um quarto cujas paredes
eram guarnecidas de estantes pejadas de rolos e pran-
chas; um leito, uma mesa rodeada de alguns assentos e
um arm��rio constitu��am toda a mob��lia desse comparti-
mento iluminado por uma l��mpada de ��leo suspensa no
teto.
O CHANCELER DE FERRO
283
Tendo convidado o caldeu a sentar-se, o Adon retirou
do arm��rio um copo, um cesto cheio de past��is e uma
��nfora, que depositou sobre a mesa; o velho s��bio bebeu
e disse sorrindo:
��� O vinho �� capitoso e propicia um sono profundo
e reparador.
��� Bebe e come, descansa neste leito e que os deuses
aben��oem teu sono! Amanh�� nos veremos de novo ��� disse
saudando-o com a m��o.
��� Agrade��o-te a hospitalidade e lembrar-me-ei do
teu bom acolhimento.
Uma hora depois Jos�� voltou: ao sair tinha fechado
a porta com o ferrolho; tudo estava calmo e silencioso
e, no leito, achou o velho imerso em sono profundo como
a morte. Desenrolando um ma��o de cordas, amarrou soli-
damente, mas com precau����o, os p��s e as m��os do caldeu,
o qual n��o despertou; em seguida acendeu uma tocha e,
aproximando-se da parede, tocou oculta mola; parte das
estantes se abriu, descobrindo um gabinete do qual partia
uma escada em caracol, que conduzia a um subterr��neo
bastante vasto, onde estavam estantes e cofres cheios de
papiros e objetos preciosos. Eram os arquivos secretos e o
tesouro provis��rio do terr��vel chanceler de Apopi. Tendo
ai deixado a tocha, o Adon subiu lesto, suspendeu Scheb-
na nos robustos bra��os e desceu novamente com ele.
��� Por ora, que fique aqui, onde n��o me poder�� fazer
mal; veremos se o seu poder o tirar�� deste subterr��neo ���
resmungou, depositando no ch��o o caldeu. ��� E est�� fa-
zendo honra ao meu vinho ��� acrescentou, fazendo ironia.
Nesse instante, Schebna deu um longo suspiro e rea-
briu os olhos. Um momento pervagou o olhar pelo am-
biente.
��� �� para impedir-me de te fazer mal que me atiras
neste subterr��neo, amarrado como um malfeitor? Cego,
ingrato, deste-me apenas a prova de que, na verdade, ��s
a serpente de que me falaram os homens vestidos de linho.
A voz do mago timbrava, vibrante e severa, os olhos
pareciam despedir chamas. Jos�� sentiu-se como parali-
sado e, mudo de espanto, viu o velho sentar-se, elevar as
284
J. W. ROCHESTER
m��os atadas e entoar um c��ntico esquisito, do qual so-
mente uma parte lhe era compreens��vel.
Entremeando esse c��ntico de f��rmulas misteriosas,
invocava os quatro elementos e os deuses supremos da
Caldeia (1): Anou, o rei do Universo e dos Esp��ritos ce-
lestes e terrestres; Ea, rei do Oceano, condutor dos fados;
Samas, o juiz supremo; e Adar-Samdan, o destruidor
do mal.
Ao passo que a voz do s��bio se tornava mais retum-
bante, um silvo semelhante ao de uma tempestade pare-
cia encher o subterr��neo, o solo tremia como se estivesse
para fender-se e nuvens surgiam em torno do evocador,
envolvendo-o em bruma avermelhada. S��bito, um rel��m-
pago fulgurante atravessou obliquamente o subterr��neo,
um trov��o fez tremer as paredes e, diante do Adon at��-
nito, ergueu-se a esfinge que j�� uma vez lhe tinha apa-
recido. O rosto do ser enigm��tico era severo e amea��ador;
seus olhos serenos estavam turvos, dos seios inchados e
contundidos perolavam gotas de sangue e a voz rugia qual
tormenta long��nqua:
��� Desgra��ado de ti, ingrato, se n��o sustares teu or-
gulho e tua impiedosa severidade! Abusas dos meus dons
e n��o �� mais meu leite, por��m meu sangue que chupas.
Toma cuidado a fim de que me n��o volte contra ti, por-
que, ent��o, hei de domar-te com a for��a do touro; minhas
garras de ferro te espeda��ar��o; minhas asas te derribar��o
da altura em que pairas e, da estrela que me coroa a
fronte, partir�� o raio que te h�� de fulminar.
Cambaleante, atordoado, quase cego pelo efeito do
resplandecente clar��o, Jos�� caiu ao ch��o e fechou os
olhos. Quando voltou a si, apenas a tocha iluminava o
subterr��neo vazio, as cordas estavam no ch��o, Schebna
tinha desaparecido.
Cabisbaixo, cora����o opresso, voltou ao seu quarto,
mas, �� medida que recobrava calma, come��ava tamb��m a
c��lera a lhe ferver no ��ntimo. O mago lhe escapara e era-
-lhe agora duplamente inimigo: mas, por que acaso os
(1) Ver Fr. Lenormant ��� "La Magie chez les Chald��ens"
O C H A N C E L E R DE F E R R O
285
padres tinham sabido da exist��ncia de Schebna e atirado
contra ele esse inimigo perigoso e intang��vel? Precisava
sab��-lo, assim como onde estaria oculto. Sem hesitar,
correu em busca da caixinha que guardava o copo do qual
se servia para adivinhar: o infal��vel talism�� lhe desven-
daria tudo. Consultava-o raramente, agora, nos casos ex-
tremos, para n��o se extenuar no esfor��o de vontade e na
concentra����o indispens��veis; mas nesse instante devia
faz��-lo, qualquer que fosse o pre��o. Com impaci��ncia apa-
nhou o copo e quis ench��-lo de ��gua, mas, s��bito, tornou-se
l��vido e deu um grito surdo. A pedra misteriosa estava
fendida em toda a largura, como se a tivesse atravessado
um raio.
Como que atingido por forte martelada, Jos�� caiu
desmaiado.
Lentamente recobrou-se do terr��vel abalo, mas sua
natureza de a��o n��o era das que vergam ou quebram ao
primeiro embate; al��m disso, como nenhum incidente
novo lhe veio provar que Schebna procurava vingar-se,
tranq��ilizou-se; o orgulho e a consci��ncia da sua for��a
lhe restitu��ram o equil��brio e um excesso de trabalho e
preocupa����es atenuou a impress��o sofrida. Todavia, res-
tava-lhe uma vaga inquieta����o no fundo dalma, e, ��s
vezes, tornava-se triste, receoso, inquieto. Nesses momen-
tos, parecia-lhe que a situa����o era prec��ria, que o ��dio
e a trai����o que o cercavam por todos os lados iam preci-
pit��-lo da altura que ocupava e que, talvez o abandono
e a mis��ria amea��assem o fim da sua exist��ncia. Apreen-
s��es desse g��nero, expendidas em conversas com o pai,
originaram um plano a cuja execu����o entregou-se com o
ardor e a energia que o caracterizavam, e ao qual jun-
tava-se ainda um tra��o caracter��stico da ra��a sem��tica:
a paix��o de adquirir, de acumular sem medida, de criar
uma arma e um apoio pela for��a bruta do capital, id��ia
sempre acesa, mesmo no judeu de hoje, o qual, sempre
pronto a vender tudo pelo ouro, pensa tamb��m tudo poder
comprar, uma vez que possa pagar.
J�� enriquecido e cumulado de benef��cios durante os
anos de abund��ncia, Jos�� tinha acumulado, desde que
reinava a fome, uma fortuna colossal, porque, entregan-
286
J. W. ROCHESTER
do-se ao tesouro do Fara��, oficialmente ao menos, a
maior parte das riquezas que o Egito e a ��sia deposita-
vam em suas m��os, guardava para si uma parte escolhi-
da, menos embara��osa, mas n��o menos substancial, que
eram os numerosos lotes de burros e carros que transpor-
tavam para a resid��ncia real e para suas tesourarias.
Justo dizer que o pr��prio Fara�� tinha autorizado o chan-
celer a guardar para si uma parte desses bens; somente
Jos�� se tinha aproveitado largamente da permiss��o.
Foi o plano de p��r em seguran��a, com receio do futu-
ro, uma parte dessas riquezas, que abarcou o esp��rito do
Adon. Na opini��o de Jac��, os tesouros do filho estariam
mais garantidos na tribo que no pal��cio, que podia ser
pilhado ao primeiro levante popular; e para furt��-los
definitivamente ao rancor e �� raiva dos eg��pcios, toma-
va-se urgente transport��-los para fora do pa��s e depo-
sit��-los em lugar seguro.
O patriarca, que previa a morte pr��xima, declarou
que o t��mulo de fam��lia, que possu��a perto do Hebron,
era o abrigo menos exposto e que, se Jos�� lhe acompa-
nhasse o corpo para deposit��-lo no sepulcro heredit��rio,
teria toda a facilidade de conduzir o tesouro sem desper-
tar a menor suspeita. Isto decidido, Jac�� reuniu os filhos,
confiou-lhes o que se projetava e os obrigou, sob terr��veis
juramentos e amea��a de maldi����o, a nunca tocar em ri-
quezas que, n��o somente eram propriedade de Jos��, mas
destinadas por ele para formarem o tesouro de Israel, um
recurso supremo em caso de perigo ou desgra��a para eles
ou seus descendentes. O segredo s�� devia ser transmitido
aos chefes de tribo e comunicado mediante juramento.
Jos��, enquanto vivesse, tinha o direito de tocar no te-
souro; seus descendentes, somente no caso de deixarem
o Egito, conduzindo o seu corpo; enfim, todos os detalhes
dessa misteriosa pilhagem foram fixados. Em reuni��o se-
creta, todos os irm��os juraram respeit��-los e o juramento
era sincero, porque Jos�� os amea��ou dizendo que viria,
mesmo em espectro, destruir o audacioso que afrontasse
a sua vontade. E a fama do Adon, como m��gico terr��vel,
estava bem firmada para que algu��m se arriscasse a lhe
desobedecer. E, na verdade, o segredo desse tesouro foi
O CHANCELER DE FERRO
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t��o bem guardado, que somente Moses (Mois��s), com o
consentimento de todos os chefes de tribo, tomou posse
dele, porque a liberta����o do povo de Israel, da terra de
opress��o, foi julgada o caso extremo, previsto pelo grande
homem de Estado e m��gico, seu fundador.
Al��m disso, sempre na previs��o de alguma cat��strofe,
Jos�� estatuiu que, no caso de morte repentina, os dois
filhos entrariam na tribo, da qual ficariam membros;
Rubem foi nomeado tutor eventual e, em suas m��os, de-
positada forte soma destinada aos rapazes, por ocasi��o
da sua maioridade.
O acerto de todos esses neg��cios, a coloca����o e trans-
porte clandestinos de tudo o que procurava resguardar,
absorviam de tal maneira o Adon, que n��o prestou aten-
����o bastante a uma circunst��ncia que, entretanto, lhe
devia desagradar soberanamente, qual a brusca aproxi-
ma����o de Hichelat e Armais. Enquanto o mancebo era
noivo, a princesa se conservara retra��da; mas depois da
morte de Serag voltara a ser uma visita muito freq��ente
no pal��cio do Adon. E Armais visitava quase sempre a
irm��, quando l�� estava a princesa. Jos�� concluiu da�� que
sua mulher favorecia o namoro da ilustre amiga e pre-
venia, em tempo, tanto a ela como ao irm��o.
O Adon come��ou a aparecer intempestivamente nos
aposentos de sua mulher e convenceu-se logo de que seus
maus pressentimentos estavam prestes a desfechar num
enlace do cunhado com a filha do Fara��. P��s-se a pro-
curar seriamente um meio de cortar essa eventualidade,
quando a morte de Jac�� veio novamente distra��-lo.
Mostrou e sentiu, verdadeiramente, um pesar profun-
do; perdia o mais fiel amigo, o ��nico que o amava sem
restri����es e sem segundas inten����es. Tendo mandado em-
balsamar o corpo do pai e encomendado um sarc��fago
dourado e incrustado, o Adon, vestido de luto, dirigiu-se
ao pal��cio real, onde Apopi, com a costumada benevol��n-
cia, lhe dirigiu palavras de condol��ncias. Jos�� agradeceu
e prostrou-se:
��� Meu senhor e benfeitor, venho pedir-te uma con-
cess��o: jurei a meu pai, moribundo, sepult��-lo no t��mulo
288
J. W. ROCHESTER
de nossa fam��lia, perto do Hebron; permite-me cumprir
esse dever filial. Mas, como o defunto era pai do homem
a quem elevaste t��o alto, autorizas que decrete luto oficial
e me fa��a acompanhar por um s��quito de padres e dig-
nit��rios, de acordo com a minha investidura?
Apopi fitou-o surpreso e uma express��o de aborreci-
mento e zombaria transpareceu-lhe na fronte. Apesar do
ascendente do favorito e do h��bito que adotara, deixan-
do-o fazer o que quisesse, aquela pretens��o de luto na-
cional pela morte de t��o ��nfima personagem, pareceu-lhe
justamente exorbitante.
��� Estranho desejo o teu, que os padres e nobres do
Egito considerariam como provoca����o e ofensa premedi-
tadas; exigir-lhes que chorem como a um rei um simples
pastor de ra��a estrangeira e que se submetam ��s fadigas
de t��o penosa viagem para acompanhar a m��mia �� ��ltima
morada... Mas tu podes ir, consinto.
O olhar fulguroso de Jos�� mergulhou como raio nas
pupilas cansadas de Apopi.
��� Dizes bem, Fara��, meu pai era apenas um simples
chefe de pastores, mas o filho ��, depois de ti, o primeiro
homem do Egito e as honras que se prestarem �� mem��ria
do pai s�� podem aumentar o respeito devido ao teu servo e
a obedi��ncia passiva que deve despertar qualquer de tuas
ordens. Tua vontade, poderoso senhor, �� minha lei: mas
prefiro depor a teus p��s o poder de que me investiste, a
deixar de honrar meu pai como merece.
O rei descansou a cabe��a no espaldar da cadeira e
fechou os olhos; seu rosto descarnado e p��lido exprimia
indiz��vel fadiga.
��� Faze como entenderes ��� disse depois de breve sil��n-
cio ���; e se o ousas e n��o receias um tumulto, promulga
um decreto que, repito, ser�� considerado uma provoca����o
e uma zombaria. Somente, decreta o luto e os funerais em
teu pr��prio nome, pois estou doente e n��o quero ser im-
portunado com representa����es de padres e cortes��os.
Embora furioso com esse meio consentimento, Jos��
n��o se deu por vencido; emitiu sem hesitar uma ordem
que prescrevia ao Egito luto de 70 dias e anunciou que
O CHANCELER DE FERRO
289
um s��quito consider��vel de escribas reais, conselheiros e
outros funcion��rios, assim como dois porta-leques do
Fara��, o sacerdote de Tanis e toda uma s��rie de sumida-
des sacerdotais o acompanhariam a Hebron para celebrar,
com sacrif��cios e cerim��nias religiosas, as ex��quias de
Jac��. Al��m disso, soube de tal modo influenciar Apopi,
que este mudou de opini��o e declarou altamente a sua
satisfa����o em face das ordens expedidas.
Este decreto inesperado provocou um verdadeiro estu-
por entre os eg��pcios; mas, pela primeira vez, a c��lera
foi acompanhada e suavizada por verdadeira hilaridade:
a obriga����o de deitar luto e enterrar como a um rei esse
��nfimo pastor, de ra��a considerada t��o abjeta que nenhum
eg��pcio teria querido comer um peda��o de p��o �� sua mesa,
era t��o soberanamente rid��cula que as palavras c��usticas
quase abafavam as impreca����es; todavia, houve cabe��as
esquentadas que tomaram a coisa ��s avessas e teriam
respondido ao desafio com uma sedi����o e massacres, se
os chefes do movimento nacional, que entretinham com
Ta�� IH constantes rela����es, n��o tivessem julgado o mo-
mento desfavor��vel, impondo calma aos exaltados. Tudo
ficou, pois, silencioso e os dignit��rios eg��pcios se prepa-
raram docilmente para a viagem fatigante que lhes im-
punha o opressor; quanto aos Hyksos que, sob Jos��, ocupa-
vam os primeiros cargos, deram prova de zelo e dedica����o
sem limites e disputaram positivamente a honra de acom-
panhar o seu Adon e a m��mia do pai.
Asnath, durante essas semanas de luto, sentia-se
constrangida; por Armais sabia o que rugia nalma dos
seus compatriotas e sofria com eles o insulto e o rid��culo
que lhes infligiam: a pr��pria Hichelat parecia irritada com
o excesso de condescend��ncia paterna, e algumas palavras
acerbas tinham tra��do perante Armais e sua irm�� o des-
contentamento da princesa em face da jact��ncia do Adon.
Asnath aproveitou, quase com alegria, o ensejo de deixar
Tanis; tendo not��cia da grave enfermidade de Ranofrit,
pediu ao marido que a deixasse partir por duas ou tr��s
semanas, a fim de tratar da tia, o que lhe foi concedido.
Um inc��ndio, sobrevindo �� noite, em sua casa de
M��nfis e que quase custara a vida de um dos filhos, havia
290
J. W. R O C H E S T E R
causado terr��vel susto a Ranofrit e provocado a mol��stia;
Putlfar tinha colocado a doente em casa do cunhado, e,
quando Asnath l�� se apresentou, j�� encontrou os pais,
chegados na antev��spera. Perto de duas semanas decor-
reram em vig��lias e cuidados incessantes; o perigo foi
conjurado, mas as duas fi��is enfermeiras estavam com-
pletamente esgotadas.
Uma noite, Maia, a inst��ncias da filha, tinha ido dei-
tar-se; a doente dormia e Asnath foi ao jardim respirar
o ar fresco e embalsamado do exterior; andou um pouco,
mas, sentindo-se fatigada, sentou-se num banco encos-
tado na parede da casa e meio escondido por moitas de
jasmim. A alguns passos do banco havia uma janela que
abria para o gabinete do sacerdote.
Desde um quarto de hora, talvez, a mo��a cismava,
quando ouviu Pot��fera entrar com algu��m; acenderam
uma l��mpada cuja claridade avermelhada projetou-se na
folhagem. A conversa interessou pouco a Asnath; nunca
tinha ouvido o nome de Schebna e que lhe importava o
caldeu, cuja aus��ncia seu pai deplorava, irritando-se por-
que ele se retirara para lugar ignorado, a fim de orar e
jejuar, justamente na ocasi��o que mais necessidade ti-
nham da sua presen��a.
Aborrecida com o ru��do de vozes, quando procurava
sil��ncio e solid��o, a mo��a dispunha-se a voltar, quando
ouviu o pai e o h��spede se levantarem vivamente e, ins-
tantes depois, a voz do sacerdote do templo de Ptah per-
guntar ansioso:
��� Estamos bem abrigados de qualquer ouvido indis-
creto?
��� Fala sem receio ��� respondeu Pot��fera ���, todos
os escravos est��o afastados, conforme teu desejo, minha
mulher dorme e Asnath vela ao p�� de Ranofrit.
��� Ent��o, posso anunciar-vos que chegou a hora da
liberta����o e que o c��o nauseabundo, que escarnece da
nossa dignidade, n��o voltar�� a Tanis.
Asnath levantou-se, estremecendo, e prestou aten����o.
Embora o padre falasse em surdina, seus sentidos con-
centrados permitiam captar todos os pormenores do plano
O CHANCELER DE FERRO
291
descrito: um jovem padre, sacrificador, chamado Ra-
-hotep, inimigo fan��tico de Jos��, apresentara-se secreta-
mente aos anci��os do templo e declarara-se pronto a sa-
crificar a vida pela liberta����o do pa��s e que, no momento
azado, durante os sacrif��cios f��nebres, degolaria o Adon.
��� Compreendeis ��� terminou o sacerdote ���, que ali,
na terra de Cana��, ningu��m suspeitar�� um atentado e a
energia, assim como a for��a extraordin��ria de Ra-hotep,
garantem o ��xito da empresa; os pomposos funerais do
velho c��o representam a ��ltima inf��mia do verdugo e seus
irm��os poder��o, desde logo, depositar o cad��ver junto ao
do ilustre genitor.
Tr��mula, cabe��a em fogo, Asnath deixou o banco e,
qual sombra, insinuou-se em seu quarto; caindo numa
cadeira, apertou com as m��os o peito oprimido; sentimen-
to infernal atormentava-lhe o cora����o, suscitando uma
luta como jamais experimentara. Sem o querer, tornara-se
c��mplice de um assassinato, do assassinato de seu marido,
e n��o podia nem preveni-lo nem impedir o atentado. Des-
de que ouviu que Jos�� estava irrevogavelmente condenado
�� morte, todos os seus rancores contra ele se dissiparam,
ficando-lhe somente a m��goa de perd��-lo. Entretanto,
seus l��bios estavam selados. Como poderia trair sua casta
e entregar ao carrasco os mais ilustres padres, o pr��prio
pai, talvez? Passou uma noite de ins��nia e, no dia se-
guinte, aproveitando-se de uma mensagem insignifican-
te, que Jos�� lhe enviara, declarou que ele a chamava e,
no mesmo dia, voltou a Tanis.
Somente Maia ficou impressionada com o seu sem-
blante desfigurado e o atribuiu ao excesso de fadiga; os
homens estavam t��o preocupados que nada viram.
Quando Jos��, muito satisfeito com o seu pronto re-
gresso, foi saud��-la, inquietou-se com a sua m�� fisio-
nomia:
��� Asnath, est��s doente, est��s muito fatigada; pobre
crian��a! ��� disse, abra��ando-a ternamente.
��� Sim; creio que me resfriei ��� respondeu, domi-
nando-se com esfor��o quase sobre-humano.
292
J. W. ROCHESTER
O Adon mandou buscar um m��dico, que constatou
febre e prescreveu repouso absoluto. Ela se conformou
de boa-vontade com as prescri����es, pois desejava ficar
s��. O que se passava nela era indescrit��vel e Jos�� inco-
modava-se com o seu estado, que lhe parecia estranho e
perigoso.
Enfim, chegou o dia da partida. De muito cedo, imen-
sa multid��o apinhava-se em todas as ruas que desembo-
cavam no pal��cio do Adon, a fim de ver a enorme cara-
vana que se movimentava a caminho da S��ria. Admiravam
o soberbo caix��o funer��rio sobre um carro e o toldo bor-
dado a ouro que cobria o esquife, os carros de duas e
quatro rodas, ocupados pelos padres, escribas reais e outros
dignit��rios; enfim, a intermin��vel fila de asnos e camelos
que transportavam as bagagens, sob a vigil��ncia de um
ex��rcito de escravos, assim como os destacamentos de
soldados que deviam escoltar o cortejo.
Tudo estava pronto; so esperavam Jos��, cujo carro,
atrelado com dois soberbos corc��is, estava parado diante
do grande port��o. Mas o Adon n��o aparecia.
Uma hora antes, ele fora despedir-se da mulher.
Achou-a sentada junto da janela. Sua palidez mortal e a
febril agita����o que visivelmente a devorava encheram
o cora����o do Adon de uma nova ansiedade; abra��ou-a
com ternura, recomendando-lhe tivesse cuidado consigo
durante a sua aus��ncia. Asnath ergueu os olhos e a estra-
nha express��o daqueles olhos azuis muito o impressionou.
O tempo urgia, fez-lhe nova sauda����o e dirigiu-se para
a porta.
��� Jos��! ��� murmurou subitamente Asnath com voz
abafada, atirando-se para ele e abra��ando-o frenetica-
mente.
Surpreso com aquele impulso da mulher, sempre r��spi-
da e reservada, apertou-a apaixonadamente de encontro
ao peito, e um imenso desejo de felicidade o invadia,
quando, inclinando-se, murmurou:
��� Que tens, minha querida? n��o te aflijas assim.
Sem responder, Asnath caiu-lhe nos bra��os e, com
espanto, viu que ela perdera os sentidos.
O CHANCELER DE FERRO
293
Levou-a para a cama e somente quando o m��dico lhe
assegurou que o estado da mulher n��o apresentava gra-
vidade, decidiu-se a deix��-la antes que voltasse a si. Com
o cora����o opresso, beijou uma ��ltima vez a pequena boca
descorada e os olhos fechados, deixou o quarto; minutos
depois tomou o carro e deu o sinal de partida, mas todo
o mundo notou a sombria preocupa����o que parecia aca-
brunh��-lo. Em compensa����o, ningu��m suspeitou que um
tesouro consider��vel deixava clandestinamente a terra
de Kemi.
VI
O AMBICIOSO N��O CONHECE OBST��CULOS
Com a casa de Jos�� e com todos
os seus irm��os que o seguiam, dei-
xando na terra de Gessen as s u a s
crian��as e todos os seus rebanhos.
T e v e t a m b �� m Jos�� na sua comi-
tiva carruagens e cavaleiros; de sor-
te que se via ai um numeroso con-
curso de pessoas.
Depois que c h e g a r a m �� eira de
Atad, a qual est�� situada a l �� m do
Jord��o, celebraram ali o funeral por
sete dias com grandes prantos e al-
t o s gritos.
Tanto que Jos�� sepultou seu pai,
tornou a vir para o E g i t o com seus
irm��os e toda a s u a comitiva. ��� G��-
nese, cap. L, vv. 8, 9, 10, 14.
O estreito vale, cercado de montanhas cobertas de
mato, ao fundo do qual elevava-se Hebron, apresentava
aspecto desusado: em redor da colina solit��ria e silen-
ciosa, ao p�� da qual se abria a gruta funer��ria, reinava
desde alguns dias o ru��do e a anima����o de um vasto acam-
pamento. De um lado, viam-se em linhas sim��tricas as
barracas eg��pcias, no meio das quais destacava-se a
grande barraca do Adon; �� entrada desta barraca, onde
estavam fincados dois mastros com galhardetes, velavam
sentinelas. De outro lado e separado dos eg��pcios por toda
O CHANCELER DE FERRO
295
a largura do vale, estendia-se o acampamento dos pasto-
res hebreus.
No dia seguinte �� chegada, Jos��, acompanhado so-
mente dos irm��os, depositava no t��mulo os despojos do
pai e, durante duas noites consecutivas, a pretexto de ritos
religiosos do seu povo, os filhos do patriarca voltaram
s��s �� gruta e nela esconderam os tesouros que levaram.
Ningu��m os incomodou. Saturados de aborrecimento e
desprezo, os eg��pcios se conservaram afastados, persua-
didos de que "os impuros Amou" imolavam secretamente
v��timas humanas, crian��as sem d��vida ��� essas v��timas
preferidas do seu deus sang��in��rio.
Na manh�� do terceiro dia come��aram, por ordem de
Jos��, as cerim��nias f��nebres, segundo o ritual eg��pcio.
Sombrios e silenciosos, os padres e dignit��rios se reuni-
ram e, acompanhados de c��nticos vibrantes, o imponente
cortejo desceu para a gruta, �� frente da qual sacrifica-
ram numerosas v��timas. Sem prestar aten����o ao sinistro
sil��ncio, ao ��dio mal contido de todos os eg��pcios presen-
tes, Jos��, altivo e impass��vel, presidia aos sacrif��cios.
A cerim��nia chegava ao termo, quando se deu um
incidente inesperado: acabavam de imolar um boi e o
padre sacrificador se levantava ��� supunham ��� para de-
cepar os membros ainda palpitantes do animal, quando, de
s��bito, atirou-se ao Adon, brandindo o sagrado cutelo
sangrento. Esse padre era um jovem de estatura colossal,
cujo rosto enrugado e olhos injetados e flam��vomos de
��dio selvagem eram verdadeiramente aterradores. Invo-
luntariamente, Jos�� deu um passo atr��s, enquanto um
oficial da sua comitiva, Hykso de origem, agarrava-se ao
bra��o do desvairado, no momento mesmo em que atirava
ao Adon furioso golpe. A arma resvalou e, em vez de pe-
netrar no peito, rasgou profundamente o f��mur do Adon.
Gritos espocaram: "Assassinato! trai����o! matam o
Zophenat-Peaneah!" Produziu-se o tumulto: uns corriam
a socorrer Jos��, que tinha ca��do banhado em sangue;
outros seguravam o padre, procurando desarm��-lo. Este,
dotado de for��a herc��lea, debatia-se vigorosamente con-
tra uma dezena de advers��rios, alguns j�� gravemente fe-
296
J. W. ROCHESTER
ridos, rolados ao ch��o, quando, desprendendo-se brusca-
mente, o sacrificador deu um pulo para tr��s.
��� Morro pelo meu pa��s; outra m��o mais feliz que
a minha, nojento e maldito c��o, achar�� o caminho do teu
cora����o ��� gritou com voz retumbante. Depois, com a ce-
leridade do raio, cravou o cutelo no pr��prio peito e caiu
em cheio.
Levaram Jos�� para a barraca, ligaram a ferida, mas
a grande perda de sangue e dores cruciantes prenderam-
-no ao leito e retardaram mais de oito dias o regresso da
caravana.
Essa tentativa de assass��nio tinha provocado nos dois
acampamentos verdadeiro estupor. No primeiro dia, os
gritos e clamores s�� cessaram alta noite: todo Hykso es-
pumava de raiva em face do atentado, acusando a casta
sacerdotal de coniv��ncia. Os padres mantiveram-se cal-
mos: nada podiam provar contra eles e torn��-los respon-
s��veis pelo ato insensato de um fan��tico, que agira por
impuls��o do momento; nem o Fara��, nem o Adon se
arriscariam a faz��-lo. No fundo dalma, bem entendido,
deploravam amargamente que um infeliz acaso tivesse
malogrado o plano de Ra-hotep e custado a vida ao co-
rajoso patriota.
Logo que as for��as lho permitiram, Jos�� retomou o
caminho do Egito; mas durante as longas horas em que,
embalado ao passo cadenciado dos seus condutores, ficara
s�� consigo, pensou no passado e no futuro e indiz��vel sen-
timento de amargura, de raiva e ang��stia apertou-lhe o
cora����o. O atentado de Ra-hotep tinha esclarecido com
uma nova luz o procedimento de Asnath, desde que regres-
sara de M��nfis, e o seu desesperado adeus. Era, pois, um
plano longamente urdido, n��o do louco impulso de um
fan��tico, que ele escapara... E Asnath sabia que tencio-
navam assassin��-lo e se tinha calado! Todavia, ela o
amava e havia demonstrado, como nunca o fizera antes.
Essa convic����o fazia-lhe bater o cora����o com um senti-
mento em que a felicidade e a dor tinham partes iguais.
Refletia, dias inteiros, procurando sondar aquele cora����o
de mulher, que era para ele um enigma. E diante dessa
O C H A N C E L E R DE F E R R O
297
preocupa����o, acabavam por amortecer e apagar-se, mo-
mentaneamente, todas as complica����es e dificuldades da
sua conting��ncia pol��tica. Com impaci��ncia febril, dese-
java rever a esposa, ler nos seus olhos azuis a impress��o
que o seu regresso lhe causaria.
Em Tanis a not��cia da tentativa de assassinato, le-
vada por um correio, fez grande ru��do, despertando sen-
sa����es muito diversas. Todos os eg��pcios fremiram de
raiva e pesar, por ter escapado o opressor; todos os Hyksos
aclamaram como triunfo a salva����o do homem que con-
sideravam o seu mais s��lido sustent��culo. Apopi mos-
trou-se muito indignado e conversando com o sacerdote
de Ptah, que mandara chamar, declarou asperamente que
responsabilizaria toda a casta sacerdotal, caso se reno-
vasse t��o odioso atentado ao seu primeiro conselheiro.
Al��m disso, ordenou sacrif��cios e a����es de gra��as para o
dia que o Adon chegasse s��o e salvo a capital, enviando
correios a felicitarem o favorito.
A not��cia de que Jos�� escapara ao perigo mortal que
o amea��ava, produziu em Asnath terr��vel como����o: a
id��ia de tornar a v��-lo, s��o e salvo, fazia-lhe palpitar o
cora����o, de amor e felicidade; o temor das conseq����n-
cias que o atentado pudesse acarretar �� casta; das cru��is
repres��lias que ele n��o deixaria de exercer contra os
padres, causava-lhe premente ang��stia. A perturba����o era
tal, que nem mesmo refletiu na posi����o falsa que lhe cria-
ra a imprud��ncia com que tra��ra a sua cumplicidade.
Mulher, ela o era em toda a acep����o da palavra: viva
e exaltada por natureza, nascida sob os raios ardentes do
Sol tropical, suspirava pelo amor e pela felicidade; Hor
estava longe (longe da vista, longe do cora����o) e ela
devia odiar e tratar com indiferen��a, obedecendo �� sua
casta, o mais belo e mais ilustre homem, que lhe perten-
cia como esposo e pelo qual sabia-se profundamente
amada. Seu jovem cora����o debatia-se ao impulso das duas
correntes contr��rias, que o espeda��avam porque, para o
amor, n��o existem ��dios de ra��a nem preconceitos de
casta; e, no entanto, a disciplina imposta por um pre-
conceito era t��o imperativa sobre a filha de Pot��fera, que
298
J. W. R O C H E S T E R
contrabalan��ava o mais forte sentimento do cora����o
humano.
Nunca esse conflito ��ntimo lhe foi t��o pesado e dolo-
roso, como no dia da chegada de Jos��. Sentiu-se incapaz
de assistir �� recep����o, da qual Apopi tinha feito um ver-
dadeiro triunfo. Limitou-se a mandar os filhos com os
respectivos pajens.
Esse dia foi festejado em Tanis como o de uma en-
trada real. Desde o romper da alva sacrificavam em
todos os templos: o sangue das v��timas fumegava nos al-
tares e, dentes cerrados e fel no cora����o, os padres se
prostravam diante das est��tuas divinizadas, agradecendo-
-lhes o haverem salvo a vida do primeiro funcion��rio do
Estado. Nunca, talvez, t��o secretas maldi����es se acumula-
ram na cabe��a aborrecida daquele a quem, oficialmente,
honravam por ordem do Fara��. Depois das pomposas pro-
ciss��es sacerdotais, do c��ntico dos padres e das sacerdo-
tisas, dirigiram-se fora das portas da cidade, para receber,
in corpore, o her��i do dia, apresentando-lhe felicita����es.
Apopi mesmo, coisa inaudita, fora ao seu encontro at��
ao templo de Soutech, e quando o favorito prostrou-se e
beijou o solo com l��grimas de alegria e reconhecimento,
o rei levantou-o, abra��ou-o como a um filho e concedeu-
-lhe, dali em diante, que lhe beijassem os p��s.
Depois de ter sacrificado no templo de Soutech, o
Fara��, acompanhado do chanceler, voltara ao pal��cio real,
onde espl��ndido banquete congregava as sumidades da
Corte e da cidade. Ao entrar no seu pal��cio, Jos�� teve
ainda que testemunhar a recep����o de toda uma s��rie de
parlamentares dos seus subordinados. Era j�� noite quan-
do, enfim, se retirou para os aposentos particulares e des-
pediu toda a gente, proibindo que o incomodassem a
qualquer pretexto. Estava ainda fraco, em virtude do fe-
rimento e as fadigas do dia tinham-no estafado. P��lido
e combalido, estendeu-se no leito de repouso, colocado
debaixo da colunata, e esperou Asnath, que deveria agora
vir saud��-lo. Sua aus��ncia no cerimonial da manh�� n��o
o surpreendera: n��o quisera, decerto, rev��-lo diante do
rei e dos padres, ao mesmo tempo.
O CHANCELER DE FERRO
299
Mas em v��o esperou. A qualquer ligeiro ru��do emper-
tigava-se, supondo ouvir os passos da jovem eg��pcia, ou
ver seu esbelto perfil desenhar-se �� sombra da colunata:
n��o ousaria vir, sabendo-se c��mplice dos padres? J�� ner-
voso e superexcitado, subitamente acometido de um de-
sespero, de um desgosto indiz��veis, mergulhou a cabe��a
nos travesseiros e l��grimas ardentes lhe transbordaram
dos olhos. Oh! por que tinha posto p�� nesta terra de
Kemi! por que o destino zombeteiro fizera do pastor sel-
vagem, por��m livre e feliz, o Adon do rei Apopi?
Nos desertos verdejantes da terra de Cana��, n��o teria
conhecido tantas honras, mas tamb��m n��o teria colhido
tanto ��dio; todas as regalias que desfrutava n��o eram
mais que apar��ncia ilus��ria, sob a qual jaziam, com efei-
to, o desprezo e o ��dio. Nessa manh�� mesma, quando,
com glacial altivez ouvia os protestos de dedica����o dos
padres, as torrentes de lisonja que lhe depunham aos p��s,
seu pr��prio olhar n��o estava aceso diante da multid��o,
receando que dentre os homens vestidos de linho ou dos
guardas de honra que o aclamavam, surgisse um desvai-
rado a brandir o machado luzidio, ou o cutelo afiado, para
retalhar, como r��ptil venenoso, aquele a quem proclama-
vam o filho mais glorioso do Egito? Tudo, tudo com que
se embriagava, era mentira e n��o chegava a preencher
o v��cuo do seu cora����o. Esse vasto pal��cio era um de-
serto ��rido e, s��bito, essa solid��o, esse sil��ncio lhe pare-
ceram insuport��veis; o desejo de rever Asnath, de estreitar
nos bra��os essa filha do seu mortal inimigo Pot��fera,
assaltou-o com viol��ncia; sentia estranha vol��pia em cha-
m��-la esposa e em saber-se amado por ela; ela, cujo pai
o tinha como um c��o repugnante. E depois, queria ouvir
da sua pr��pria boca se soubera que ele ia morrer.
Saltou da cama, as fontes latejavam, todo o corpo
lhe ardia e tremores nervosos o agitavam. Atravessou
quase correndo a longa galeria, penetrou no quarto da
mulher.
Ela tamb��m estava s��. Assentada junto da janela,
lutava consigo mesma, buscando analisar o que lhe dila-
cerava a alma, pondo um termo a esse aflitivo combate.
300
J. W. ROCHESTER
Quereria correr para junto de Jos��, que considerava um
ressuscitado, e, no entanto, um sentimento que n��o podia
definir a impedia de faz��-lo. Com os olhos fechados e
m��os enfurnadas entre os joelhos, estava de tal modo per-
dida em cismares que n��o deu pela entrada do marido,
nem viu que ele se inclinava para ela. O caos dos seus
sentimentos pintava-se t��o claramente no seu rosto des-
figurado que Jos�� estremeceu:
��� Asnath! ��� murmurou num misto de ang��stia e
arrebatamento.
Ela ergueu-se tr��mula e tudo esquecendo atirou-se-
-lhe nos bra��os. Um momento ficaram abra��ados, mudos;
mas, s��bito, ele desprendeu-se e, inclinando-se, pergun-
tou, imperativo:
��� Sabias que me queriam assassinar?
Ela recuou, p��lida de morte:
��� Jos��, Jos��, nada me perguntes ��� murmurou s��-
plice.
��� Fala ��� prosseguiu rouco, quase esmagando-lhe as
m��os.
Mas, vendo-lhe a mortal agonia, acrescentou, pro-
curando dominar-se:
��� Fala sem medo; juro-te pela mem��ria de meu pai
n��o trair tua confid��ncia, mas quero, enfim, saber a ver-
dade: soubeste que eu caminhava para a morte, quando
me deixaste partir?
Asnath tremia, mas, vencida pelo olhar de fogo que
parecia devor��-la, respondeu quase imperceptivelmente:
��� Sim, sabia que queriam assassinar-te, mas, se as
mesmas circunst��ncias se apresentassem de novo, devia
ainda deixar-te partir, quaisquer que fossem meus pesa-
res, porque a minha mem��ria se tornaria execrada se
tra��sse a minha casta.
Jos�� afastou-a e apoiou-se, cambaleando, numa ca-
deira; a tempestade que lhe rugia no ��ntimo cortava-lhe
a respira����o. Mas logo se aprumou.
��� Venci o destino e hei de vencer a tua casta ��� disse
com o olhar flamante. ��� E que tremam os sic��rios, por-
O CHANCELER DE FERRO
301
que inventarei as torturas do Amenti para lhes fazer ex-
piar todo o mal que me causam.
Voltou-lhe as costas e tornou ao gabinete. Toda a
fadiga tinha momentaneamente desaparecido. A passo
acelerado, andou de um lado para outro, engolfado na
tempestade interior: uma onda de projetos cru��is, in��-
quos, inspirados pela exaspera����o que lhe agitava todas
as fibras do ser, assomava-lhe �� mente. Desse caos des-
tacou-se o desejo ��spero, tenaz, de subtrair Asnath ��
influ��ncia delet��ria da sua casta. Mas, onde ocult��-la?
Onde escond��-la t��o seguramente que, nem a m��o nem
a voz dos padres pudessem atingi-la? Mil f��rmulas irrea-
liz��veis surgiam para serem logo rejeitadas. Afinal, al-
quebrado, esgotado, deixou-se cair no leito e a louca su-
perexcita����o acabou por extinguir-se num sono pesado e
profundo, como catal��ptico.
Quando despertou, muito tarde, no dia seguinte, sua
natureza de a��o tinha recobrado o equil��brio, mas no
fundo dalma ficou acumulado todo o fel provocado pela
tempestade moral, assim como a id��ia de subtrair Asnath
a todos os olhares. Entretanto, de pronto o plano vago e
informe foi prejudicado, a benef��cio de cogita����es mais
urgentes. Em primeiro lugar, enorme sobrecarga de ne-
g��cios diversos haviam-se acumulado na sua aus��ncia.
Al��m disso, a quest��o pol��tica era ainda delicada, os rela-
t��rios dos agentes secretos provavam que a surda agita����o
das massas populares, definitivamente arruinadas, au-
mentava dia a dia. �� verdade que tudo parecia calmo, mas
alguma coisa de pesado, de intang��vel, pairava no ar,
nada de bom pressagiando. Bandos de salteadores famin-
tos vagavam pelos campos; grupos se tinham formado em
torno dos celeiros p��blicos e, embora essa multid��o de
esfarrapados nada tivesse tentado, dispersando-se todas
as vezes que os soldados marchavam contra ela, as impre-
ca����es, amea��as e mesmo gritos sediciosos de: "abaixo o
Adon! morra o usur��rio!" se fizeram ouvir.
Por ��ltimo, dizia-se que massas consider��veis de ho-
mens v��lidos, embora desprovidos de tudo, tinham achado
abrigo nos templos, onde esse elemento perigoso podia tor-
302
J. W. ROCHESTER
nar-se, em dado momento, arma terr��vel na m��o dos
padres.
Jos�� apertou ainda mais as r��deas do Estado no seu
punho de ferro. Patrulhas militares correram os campos
perseguindo e punindo impiedosamente a bastonadas, ou
prendendo os desgra��ados que abandonavam suas aldeias
desoladas. Os destacamentos que guardavam os pai��is
foram dobrados; tr��plice cord��o de sentinelas vigiava, dia
e noite, em torno do pal��cio real e do Adon; enfim, uma
vigil��ncia t��o severa quanto poss��vel foi estabelecida nos
templos, embora a�� uma inspe����o fosse mais dif��cil, dadas
a vasta extens��o dos recintos sagrados, a enorme popu-
la����o que encerravam, e a desconfian��a hostil e nimia-
mente sens��vel que as corpora����es sacerdotais antepu-
nham a qualquer inger��ncia e exame nos seus neg��cios
internos. Compreende-se que semelhante situa����o tornasse
duplamente desagrad��vel, e mesmo perigosa para Jos��, a
uni��o de Armais com Hichelat, j�� iminente, porque uma
conversa entre sua mulher e o cunhado, que ele surpreen-
deu certo dia, patenteou-lhe um entendimento decisivo
entre o oficial e a princesa e que, logo que o rapaz vol-
tasse de uma viagem a Heli��polis, aproveitaria a primeira
oportunidade para falar a Apopi e obter o seu consenti-
mento.
Compreendeu que o cunhado queria, antes de tentar
um passo decisivo, aconselhar-se com Pot��fera, e quem
poderia prever o partido que o orgulhoso sacerdote tiraria
dessa alian��a? Em todo caso, podia ele propor a Apopi um
conv��nio, que cortaria todas as dificuldades, se este ��lti-
mo designasse herdeiro da coroa o esposo da filha. Todos
os padres se juntariam de boa-vontade a esse Fara�� pro-
cedente da sua casta; de um s�� golpe cairiam, ent��o,
todas as conspira����es, todas as intrigas clandestinas com
Ta�� III; e, para atingir esse resultado, bem podia acon-
tecer que Apopi sacrificasse o seu chanceler, a criatura
que tanto elevava como podia degradar. Ele, Jos��, cairia,
v��tima expiat��ria, e o povo saciado de ��dio congra��ar-
-se-ia francamente com a dinastia reinante.
A perspectiva de tal eventualidade f��-lo tremer. Era
muito estadista para crer na gratid��o ou confiar na fide-
O C H A N C E L E R DE F E R R O
303
lidade de quem quer que fosse; tratou pois de garantir-se
e, como primeira medida preventiva, procurou casar Hi-
chelat com um pr��ncipe estrangeiro. Mas o rei n��o queria
separar-se dela. Ent��o, surgiu no c��rebro do Adon o plano
fugitivamente esbo��ado por seu falecido pai: desposar
H��chelat e ocupar ele pr��prio o trono dos Fara��s, em lu-
gar de o facultar ao mortal inimigo.
Quanto mais sondou e ruminou esse plano, tanto
mais lhe sorriu ele, porque servia maravilhosamente n��o
s�� �� sua ambi����o como ao seu ��dio; e at�� ao desejo que
o perseguia desde que regressara do Hebron: o desejo
selvagem de seq��estrar Asnath, de separ��-la da sua casta
maldita, de modo que nenhuma sombra de influ��ncia
pudesse mais atingi-la.
A resolu����o tornou-se logo irrevog��vel e, com a ener-
gia e presteza que lhe eram peculiares, come��ou a exe-
cut��-la. Primeiro, preparou o esconderijo no qual deveria
desaparecer a mulher, a fim de, oficialmente livre, poder
esposar a princesa.
Para obrig��-la a aceit��-lo, tinha de reserva meios
que considerava irresist��veis.
Havia anos que mandara construir depend��ncias e
obras diversas no pal��cio e, como nunca se fiara na afei-
����o do povo, a maior parte dessas obras era de s��lida
constru����o e fizeram o pal��cio mais semelhante a uma
fortaleza do que a resid��ncia arejada, leve e alegre de
um grande eg��pcio.
Em uma dessas misteriosas depend��ncias onde, mur-
murava o vulgo, o Adon ocultava os tesouros que lhe ex-
torquia, havia tamb��m algumas criptas bastante vastas,
uma das quais comunicava por um corredor com pequeno
p��tio rodeado de altas e espessas paredes, e do qual par-
tia secreta galeria que desembocava no Nilo.
Realmente, esse lugar fora primitivamente destinado
a servir de abrigo, em caso de tumulto, para Jos�� e sua
fam��lia. Dali, em chegando a noite, poderia ganhar o rio
e dirigir-se para Avaris. Decidiu instalar a infeliz Asnath
nesse impenetr��vel esconderijo que tinha, ao demais, a
vantagem de comunicar por secretos corredores com os
304
J. W. ROCHESTER
seus pr��prios aposentos, o que lhe facultava o plano de
visitar a mulher, sem que algu��m o pudesse suspeitar.
Tendo tudo preparado e escolhido como futuro guar-
da da prisioneira um negro surdo-mudo, est��pido e de-
votado como um c��rbero, s�� esperou pelo momento azado.
A partida de Armais para Heli��polis pareceu-lhe fa-
vor��vel e, no dia seguinte ao da partida do oficial, ines-
perada cat��strofe abalou a cidade.
Asnath sempre gostara de fazer �� tarde, e muitas
vezes �� noite, passeios solit��rios no rio, e tanto em M��nfis
como em Tanis, todo mundo conhecia a barca na qual,
acompanhada pela velha aia e uma serva, fazia esses
passeios.
Nesse dia, tinha ela ceado no seu quarto com o mari-
do e queixara-se de dor de cabe��a; em seguida, esperando
que a frescura da noite lhe fizesse bem, partira como de
costume, mas as horas passaram sem que voltasse.
Quando Jos��, que trabalhava at�� tarde, foi deitar-se
e soube que a mulher n��o regressara, tomou-se de terr��-
vel c��lera, porque n��o lhe preveniram do incidente. Ins-
tantaneamente espalhou-se o alarme e o pr��prio Jos��
ordenou batidas no rio. N��o deram resultado e, somente
no dia seguinte, pescadores encontraram a barca de As-
nath, que flutuava com a quilha emergida. Acharam-se,
ou as ��guas arremessaram, os cad��veres das duas cria-
das e de um remador; os corpos dos tr��s outros e da
mo��a n��o foram encontrados. Que sucedera? Que acidente
havia provocado a tr��gica aventura? Ningu��m p��de pe-
netrar tal mist��rio.
Enquanto Tanis em peso discutia a sua morte pre-
matura ei l��grimas e clamores dolorosos enchiam o pa-
l��cio do Adon, Asnath repousava, mergulhada em letargia,
na cripta onde, morta-viva, deveria vegetar para o fu-
turo. J��, na barca, a mo��a tinha desmaiado, invadida
por um peso de chumbo e n��o tivera consci��ncia alguma,
nem da cat��strofe que fizera so��obrar a embarca����o, nem
do seu transporte para o subterr��neo.
Era j�� noite quando, enfim, despertou. N��o p��de, a
princ��pio, dar-se conta do que havia sucedido e por que
O CHANCELER DE FERRO
305
acaso se encontrava naquele lugar desconhecido e estra-
nho; fatigada, com a cabe��a pesada, levantou-se, mas ��
medida que examinava a cripta alumiada por duas l��m-
padas suspensas no teto e mobiliada apenas com uma
mesa, um leito, duas cadeiras e um arm��rio lavrado, con-
vencia-se de que era, realmente, uma pris��o subterr��nea
e nervoso tremor se apoderou dela. Como louca p��s-se a
correr, batendo com a cabe��a nas paredes e dando gritos
desesperados.
N��o duvidava mais de que Jos�� a tivesse ali encar-
cerado. M a s . . . por qu��? Para vingar-se dos seus ou para
deix��-la morrer de fome e desfazer-se dela? Dando um
grito selvagem, premiu a cabe��a nas m��os e rolou no
ch��o. Desta vez, n��o perdera os sentidos, mas uma esp��-
cie de torpor a invadira e foi como atrav��s de um v��u
que viu a porta maci��a abrir-se e aproximar-se um velho
negro de alta estatura, trazendo um copo e uma ��nfora.
Ele ergueu-a, f��-la sentar-se numa cadeira e, por
gestos, convidou-a a beber. "Quero sair!" ��� exclamou com
voz rouca, mas o negro pareceu n��o ouvir coisa alguma.
Com toda a simplicidade, retirou a toalha que cobria a
mesa e designou-lhe pratos cheios de carnes frias e pas-
t��is; em seguida, abriu bojuda cesta e mostrou-lhe que
continha t��nicas e uma caixinha de j��ias, assim como
o arm��rio, que encerrava as bacias de banho e todos os
pequenos objetos elegantes, indispens��veis ao servi��o de
uma mulher. Asnath, por��m, nada via, convencida de que
tinha um carcereiro e que esse carcereiro era surdo-mudo.
Foi assaltada por desespero tal, que ficou tonta e caiu
completamente desmaiada. Vendo-a resvalar ao ch��o, o
negro meneou a cabe��a e levou-a para o leito; depois,
visivelmente atarantado, deixou o subterr��neo.
Uma hora depois, a porta reabriu-se e Jos�� entrou
acompanhado pelo guarda. Apressado e visivelmente in-
quieto, aproximou-se do leito de p��rpura no qual a mu-
lher jazia inerte e l��vida, qual morta. Pronunciando um
juramento abafado, o Adon levantou-a como a uma crian-
��a e fez sinal ao negro, que correu a abrir uma porta t��o
perfeitamente escondida na parede, que Asnath n��o a
306
J. W. R O C H E S T E R
tinha visto e, atrav��s de longo corredor abobadado, levou
a mulher ao p��tio murado de que falamos.
Ali havia um banco de pedra ao p�� de pequena fonte
que corria murmurante para a bacia de pedra. O Adon
sentou-se, amparando a mulher e, apanhando ��gua com
a outra m��o, molhou-lhe a testa e as t��mporas. A fres-
cura da ��gua e o ar puro e arom��tico da noite tiraram
Asnath da sua prostra����o; abriu os olhos e, vendo-se nos
bra��os do marido, seu primeiro pensamento foi que tivera
um mau sonho.
Mas um olhar pelo p��tio ermo, murado, convenceu-a
do contr��rio e, arrancando-se bruscamente das m��os de
Jos��, gritou desesperada:
��� Explica-me esta odiosa viol��ncia; quero sab��-lo!
Faltou-lhe a respira����o e, ofegante, comprimiu o
peito com as m��os. Ele fitou-a embriagado, de olhos in-
cendidos. Nunca lhe parecera t��o encantadora como na-
quele momento de desespero e exalta����o; fr��gil, di��fana,
toda tr��mula, seus grandes olhos cintilantes e lacrimo-
sos, envolta no manto dos cabelos desnastrados e revoltos.
��� Bem poderias ter adivinhado a raz��o de tudo
isto ��� disse depois de breve sil��ncio ���; uma esposa que
se faz c��mplice de assass��nio do marido �� uma criminosa;
al��m disso, n��o achas natural que eu queira, enfim, se-
q��estrar-te �� influ��ncia maldita da tua casta? Aqui, o
olhar glacial de um padre n��o abafar�� os teus impulsos;
n��o votar��o tua mem��ria �� execra����o, por me dizeres
"amo-te!".
��� E �� para te vingares que inventaste esta crueldade
de aqui me enterrar viva, condenando toda minha fam��-
lia ��s ang��stias inomin��veis da incerteza da minha sorte?
��� Tua fam��lia!... (um sorriso cruel moveu-lhe os
l��bios). Sou mais clemente com ela do que o tem sido
comigo; dou-lhe a possibilidade de se acalmar e chorar-
-te em paz; a esta hora acreditam-te afogada no Nilo.
Ela n��o respondeu; estava mesmo incapacitada de
chorar. A id��ia de haverem-na por morta, de que nenhum
dos parentes nem mesmo cogitaria de procur��-la, de estar
perdida, aniquilada, encheu-a de tal agonia e desespero
O C H A N C E L E R DE F E R R O
307
que sup��s que o cora����o lhe estalava enquanto surdo ge-
mido se lhe escapou dos l��bios.
Jos�� aproximou-se ansiosamente:
��� Asnath, sossega; outras raz��es ditaram minha con-
duta: amo-te e s�� aqui, onde nenhum olhar inimigo te
ver��, onde nenhuma voz odiosa atingir�� teu ouvido, ser��s,
enfim, minha inteiramente. Poderei embriagar-me com a
tua beleza, confiar-te o que me oprime a alma.
Enla��ou-a e quis dar-lhe um beijo, mas o contacto do
seu bra��o pareceu despert��-la. Recuando e repelindo-o
horrorizada, murmurou fremente:
��� E ainda ousas escarnecer, monstro! Teu amor ��
uma n��doa, uma desgra��a; odeio-te, carrasco da minha
vida, da minha felicidade quanto do Egito; se te aproxi-
mares, esgano-te...
Jos�� empalideceu ligeiramente, mas seu olhar conti-
nuava a cravar-se, flamante de paix��o, no rosto desfi-
gurado da mo��a.
��� Crian��a louca ��� murmurou em tom velado ��� com-
preende que est��s sob meu jugo absoluto e deves abrandar,
n��o afrontar. �� com essas fr��geis, pequeninas m��os que
me queres esganar quando disp��es de bem mais poderosas
armas para me subjugares? Repito que te amo, Asnath,
e que vir�� o dia em que te restituirei a liberdade. A meu
lado sentar-te-��s no trono dos Fara��s; mas, para que eu
galgue esse ��ltimo degrau do poder, importa desaparece-
res momentaneamente. Que me teria custado matar-te se
quisesse desfazer-me de ti? Mas nunca o farei, porque te
amo, n��o posso viver sem ti.
Tinha-se animado, toda a sua paix��o, amorda��ada e
dissimulada de tantos anos, transbordava nesse instante.
Outrora, tinha cuidadosamente evitado trair sua fraqueza
para que nem ela nem os parentes abusassem; mas agora,
tendo aqueles muros e o c��u por ��nicas testemunhas do
seu arroubo, nada o continha e, ao contacto daquele vul-
c��o desencadeado, cujo poder ela n��o suspeitava, Asnath
calou-se espantada. Como paralisada, n��o resistiu quando
ele cingiu-a e beijou-a em transporte, mas, s��bito, escon-
deu o rosto nas m��os e rebentou em solu��os convulsivos.
308
J. W. ROCHESTER
Jos�� estremeceu: as l��grimas que lhe pingavam nas
m��os, apesar de tudo, comoviam-no. N��o pensava que
aquela hora para ele tamb��m seria amarga.
��� Asnath! ��� murmurou resvalando a seus p��s ���
n��o chores assim; juro-te por Eloim (ergueu a m��o sole-
nemente) que te restituirei �� liberdade e tudo que puder
fazer para suavizar tua pris��o provis��ria, eu o farei. Di-
ze-me o que desejas, ter��s aqui tudo que quiseres; todas
as tardes, ou todas as noites, virei passar algumas horas
junto de ti: somente ama-me e cr�� em mim; v��, eu to
suplico de rastos.
��� Farei tudo o que quiseres, contanto que me retires
deste antro horr��vel ��� murmurou tr��mula.
��� F��-lo-ei logo que poss��vel, e se me amas como eu
a ti, suportar��s paciente este per��odo de reclus��o. Aqui
virei haurir for��as, confiar-te meus planos; tu, s��, sabe-
r��s tudo, ler��s em minhalma, conhecer��s o momento em
que hei de empunhar o cetro e, deste subterr��neo, sair��s
para o trono.
Toda a ambi����o, todo o orgulho desmesurado que lhe
enchia a alma, flamejava no olhar, vibrava na voz, e esta
energia, este poder dominador que ressumava de todo o
seu ser dava-lhe uma fei����o positivamente fascinadora.
Por instantes Asnath, subjugada, esqueceu que era o seu
carrasco que lhe estava aos p��s; n��o refletiu que as fala-
ciosas palavras, a torrente de paix��o em que a inundava,
n��o eram mais que o v��u enganoso de uma terr��vel rea-
lidade; viu somente os olhos cintilantes de amor, o mur-
m��rio dessa voz met��lica deslumbrou-a e, enla��ando o
pesco��o do marido, encostou os pr��prios l��bios na sua
boca, essa boca traidora, que lhe prometia o c��u e a con-
denava ao inferno.
VII
PRIMEIROS FRAGORES DA TEMPESTADE
A hist��ria do E g i t o s�� mencio-
na um A d o n ( a l �� m de J o s �� ) que g o -
vernou o pa��s inteiro. O rei Horem-
hib (Horus segundo Manethos) da
XVIII dinastia conforme a narra����o
de um monumento conservado em
Turim, a n t e s de subir ao trono,
ocupou alguns altos cargos que o
aproximaram da pessoa do F a r a �� ;
este ficou t �� o satisfeito com seus
servi��os que finalmente o elevou ��
dignidade de Bo-hir, isto ��, de Epi-
tropo, ou procurador de todo o pa��s.
N e s t a qualidade, s e m ter u m igual
ao seu lado, Horemhib foi Adon du-
rante alguns anos, a t �� que se tornou
herdeiro do trono e definitivamente
cingiu a coroa real.
De tudo isso decorre que o Adon
do pais inteiro ocupava um cargo
t��o elevado que Jos�� trazia de di-
nheiro o t��tulo de Moschel ou Schal-
lith, isto ��, de um pr��ncipe ou regente
do reino. ��� Brugsch ��� Histoire
d'Egypte sous les Pharaons.)
Tinham decorrido algumas semanas. A not��cia do
tr��gico fim de Asnath enchera de estupor e desespero
toda a fam��lia de Pot��fera. Maia, alquebrada e envelhe-
cida, passava os dias em l��grimas e ora����es, e somente
310
J. W. ROCHESTER
o sacerdote, passado o primeiro momento de dolorosa
prostra����o, tinha readquirido estranha calma: recusou
celebrar as cerim��nias f��nebres antes de passado um ano,
esperando ��� dizia ��� que as ��guas devolvessem os des-
pojos. E, �� recompensa estipulada por Jos�� a quem en-
contrasse o corpo de sua mulher, acrescentou uma soma
equivalente.
Enquanto centenas de pescadores e pessoas de todas
as condi����es, movidas pelo desejo de ganhar uma fortuna,
esquadrinhavam o rio e suas margens, em todo o curso
at�� �� foz, a pobre Asnath continuava a vegetar na pris��o.
Desde muito extinguira-se a ef��mera embriaguez provo-
cada pela fogosa cena de amor entre ela e o marido, no
primeiro dia do seu encerramento. Ele cumprira a pro-
messa, visitando-a todos os dias, levando-lhe presentes
e doces, assegurando-lhe o seu amor apaixonado, contan-
do-lhe novas da Corte e da cidade, confiando-lhe seus
planos, exceto o de casar-se com Hichelat.
Mas a mulher tudo ouvia com indiferentismo cres-
cente; n��o acreditava mais numa afei����o que impunha tal
tortura, cada vez mais indiferente. Atormentavam-na o
t��dio, o desespero, o desejo de ver os parentes e s�� a con-
vic����o desoladora de que devia contemporizar com o ter-
r��vel verdugo, �� merc�� do qual permanecia naquela mas-
morra inacess��vel, inspirava-lhe a coragem de n��o o
repelir abertamente. Empalidecia, definhava a olhos vis-
tos, deitada dias inteiros em morna apatia; e s�� quando
se sentia abafar, ia ao p��tio refrescar-se e respirar o ar
puro da noite.
Uma noite em que, sentada no banco de pedra, fitava
com olhar desesperado o c��u recamado de estrelas, estre-
meceu subitamente e levantou-se como eletrizada: a brisa
"trazia-lhe o som long��nquo de trombetas e de um c��ntico
sagrado, que, pouco a pouco, aproximava-se, aumentando
de intensidade.
Distinguiu logo, n��tido, o coro de padres e sacerdo-
tisas cantando um hino sagrado; depois, as vozes enfra-
queceram e extinguiram-se ao longe. Ficara em ��xtase;
conhecia o hino e a festa que celebravam: era a procis-
s��o na cidade dos mortos, para sacrificar aos que repou-
O CHANCELER DE FERRO
311
savam no seio de Os��ris e, entre eles seu nome talvez fosse
pronunciado; seus parentes choravam-na, enquanto ela
definhava naquela tumba. Com inaudita viol��ncia des-
pertou-se-lhe o desejo de viver e desencadeou-se-lhe
nalma uma tempestade de desespero. Como louca, rasgou
as vestes, correndo pelo p��tio e batendo-se de encontro
aos muros; por fim, cambaleante e exausta, voltou para
o subterr��neo. Mas a prostra����o foi curta e o esp��rito
atormentado, desesperando do aux��lio humano, voltou-se
para a divindade, buscando socorro e prote����o.
Arrancando do pesco��o um amuleto de Ra, que lhe
dera o pai, caiu de joelhos e, apertando a rel��quia nos
l��bios, murmurou com exalta����o: "Poderoso deus do qual
meu pai �� o sacerdote; tu, a quem no santo dos santos
ele v�� face a face e de quem recebe ordens, d��-me um
sinal de que ouves minha voz, de que v��s minhas l��gri-
mas; deus Sol, que d��s luz e calor a tudo o que vive, ilu-
mina este c��rcere e dize-me se devo esperar a liberta����o
ou perecer neste t��mulo; porque, ent��o, prefiro enterrar
o cutelo no cora����o e sacrificar meu sangue em liba����o,
no teu altar, enquanto minhalma livre ir��, junto de meu
pai, descobrir-lhe a realidade. Responde-me, poderoso
deus; �� a filha de Pot��fera que te implora, do teu servo
devotado que toda a vida tem fielmente servido o teu
altar; que aumentou e embelezou teu santu��rio e te ofe-
rece, com suas m��os puras, as d��divas consagradas; d��-me
um sinal da tua prote����o."
Pronunciara esta invoca����o em voz cada vez mais
alta e vibrante; palpitante de exalta����o, bra��os estendi-
dos, olhar ardente, exigia imperiosamente um sinal divi-
no, parecendo mais ordenar que implorar, quando, s��bito,
da figurinha de ouro e cornalina que apertava nas m��os
convulsivamente, jorrou um feixe de chispas multicores.
Alvacenta nuvem desenhou-se no fundo escuro da cripta,
a fraca claridade da l��mpada fundiu-se em deslumbrante
clar��o que jorrou da nuvem e, de repente, ergueu-se pr��-
ximo uma forma humana, rodeada de irradia����es doura-
das. Era um adolescente de estatura elevada e esbelta,
revestido de t��nica t��o alvinitente que era dif��cil supor-
tar-lhe o brilho; encimando-lhe a fronte, fulguravam sete
312
J. W. ROCHESTER
estrelas com as nuan��as de um prisma; o rosto de beleza
sobre-humana, grandes olhos serenos a refletirem calma
inalter��vel.
��� Vim ao teu apelo, filha do meu fiel servidor ��� disse
como em acorde de harmonias ���, em recompensa �� tua
f��, e anuncio-te que sair��s desta pris��o e viver��s livre;
assim como a pr��xima liberta����o da terra de Kemi, do
jugo que a esmaga. No trono sentar-se-��o os filhos de
Amon-Ra e, em todos os templos, os servidores dos deuses
cantar��o o hino da liberta����o. Espera, pois, sem murmu-
rar, pacientemente, filha de Pot��fera, e cr�� na palavra
do teu deus.
A luz extinguiu-se de chofre, a radiosa vis��o desapa-
receu e, como esmagada, Asnath tombou nos ladrilhos.
Mas, ao cabo de um instante, levantou-se e uma prece
de gra��as ardente brotou-lhe do cora����o ulcerado para
o deus misericordioso, que a iluminara com um raio de
imperec��vel esperan��a.
Sim, acreditava-o de toda a sua alma, e n��o estava
sonhando, porque a seus p��s jazia uma flor de l��tus, que
o imortal visitante lhe deixara em sinal tang��vel da sua
gra��a.
A esse tempo, Jos�� se preparava para dar o golpe de-
cisivo e obter a m��o da princesa. �� verdade que ele dese-
java procrastinar, deixando decorresse algum tempo sobre
a morte da mulher, que fingia lamentar profundamente;
mas, diversas circunst��ncias induziram-no a apressar o
desenlace e assegurar-se uma posi����o inatac��vel.
Em primeiro lugar o ��dio do povo, contra ele, aumen-
tava em propor����es inquietadoras e come��ava a desbordar
em demonstra����es jamais tentadas. Certa feita, chegara
a assumir car��ter de verdadeira sedi����o e isso apesar da
presen��a do Fara��.
Celebrava-se uma festa anual e Apopi, seguido de
Jos�� e toda a comitiva brilhante, dirigiu-se ao templo; a
multid��o extraordin��ria e nunca vista desde que a fome
e a mis��ria dizimavam o povo, tinha-se postado em todo
o percurso do cortejo, e somente �� for��a de murros e pau-
ladas, aplicados a esmo nas costas descarnadas e nas
O CHANCELER DE FERRO
313
cabe��as obstinadas dessa turba, podiam os guardas abrir
passagem ao trono port��til, de Apopi, coberto com as
reais ins��gnias. A multid��o mantinha-se silenciosa, mas
apenas a repeliam num ponto, reflu��a para outro com
irresist��vel tenacidade. Quando, depois do sacrif��cio, o rei
deixou o templo, as massas populares se reapertaram
subitamente, calcando tudo o que se lhes opunha. De re-
pente, as faces macilentas, os olhos ardentes dos homens
da primeira fila estavam ao lado da liteira real: "D��-nos
p��o, p��o, sem nos tirar o ��ltimo trapo que nos cobre os
rins!" ��� gritaram centenas de bocas.
Apopi ficou t��o branco como a t��nica que vestia e
s�� o h��bito permitiu conservasse a imobilidade indife-
rente, prescrita pela pragm��tica. Baixou os olhos, simulou
surdez, mas quando aos gritos de "p��o! p��o!" juntaram-se
vocifera����es furiosas e centenas de vozes bradaram:
"Abaixo o Adon! morra o usur��rio, o opressor! fora o
chacal que se farta com a nossa ru��na!" o cetro tremeu
na m��o do Fara�� e contra����es nervosas lhe desfiguraram
o rosto.
O rubor da c��lera inundou o rosto de Jos��. Num gesto
brusco, chamou um oficial da comitiva e deu algumas
ordens. Quase logo repercutiu uma fanfarra e os soldados
caindo sobre a multid��o for��aram-na a recuar a golpes
de escudo e ponta de espada. Gritos de ang��stia, clamo-
res de feridos foram abafados ao som das trombetas; mas
de repente as massas exasperadas voltaram �� carga; ala-
ridos ferozes dominaram qualquer outro ru��do; pedras,
cajados come��aram a voar, cutelos cintilaram nos punhos
levantados e tornava-se dif��cil prever o que sucederia se,
no instante cr��tico, uma carga de cavaleiros Hyksos, de
lan��a em riste, n��o tivesse sulcado uma brecha e desem-
bara��ado o cortejo real, que atingiu apressadamente o
pal��cio. A multid��o foi escoiceada, varrida por um pelo-
t��o de carros que acompanhava os cavaleiros e o povo se
dispersou, deixando no local cerca de vinte mortos e uma
centena de feridos.
Logo que chegou aos aposentos, o Fara�� chamou Jos��
e, presa de grande agita����o, ordenou-lhe distribu��sse gra-
tuitamente trigo aos habitantes mais pobres de Tanis e
314
J. W. R O C H E S T E R
arredores. O Adon teve que obedecer; fizeram-se, no dia
seguinte, fartas distribui����es aos mais famintos e a calma
pareceu restabelecer-se. Todavia, o incidente produziu tal
abalo no esp��rito do rei, que, nessa mesma noite, enfer-
mou. As crises nervosas de que sofria assaltaram-no com
viol��ncia inaudita. Apesar da fraqueza, que se seguia a
esses ataques, Apopi delirava; as cenas do motim assal-
tavam-lhe a imagina����o e seu estado inspirou s��rios re-
ceios aos m��dicos. No fim de quinze dias come��ou a me-
lhorar, mas continuava debilitado, estremecia ao menor
ru��do e, quando adormecia, sonhos horr��veis o senhorea-
vam: via o povo furioso invadir o pal��cio, assassinos es-
conderem-se debaixo da cama, grupos famulentos espeda-
����-lo a dentadas e, despertava em gritos, pondo em alvo-
ro��o toda a Corte.
O mais exaltado era talvez Jos��: se Apopi morresse
antes de tornar-se seu genro e reconhecido como herdeiro
da coroa, tudo estaria perdido. Resolveu agir logo que o
Fara�� estivesse bastante melhorado para ouvir falar de
neg��cios. Al��m disso, receava que a princesa o precedesse
e obtivesse autoriza����o para casar com Armais.
�� verdade que os dois jovens estavam muito impedi-
dos de se verem e se falarem, depois do desaparecimento
de Asnath; mas Jos�� suspeitava que se correspondessem
por interm��dio de uma pessoa que ainda n��o pudera des-
cobrir, t��o bem guardado era o segredo.
Ele n��o amava Hichelat, ��nica pessoa da fam��lia real
que nunca lhe testemunhara uma afabilidade quase ser-
vil, como .os primos do rei, que, todos o temiam; mesmo
Namourod e sua mulher, os quais o tratavam como igual
e, n��o tendo filhos, acariciavam e faziam todas as vonta-
des aos dois filhos dele, tendo-os em casa dias inteiros,
depois que os consideravam ��rf��os de m��e.
S�� ela, a altiva rapariga, nunca se tinha afastado,
perante o Adon, da sua gravidade real; nunca, por um
gesto de benevol��ncia, tinha-lhe poupado uma s�� das
genuflex��es prescritas no protocolo e, depois do desapa-
recimento de Asnath, parecia reservar-lhe uma hostili-
dade mal disfar��ada; tamb��m seu esp��rito vingativo se
O C H A N C E L E R DE F E R R O
315
deleitava, de antem��o, com a vingan��a a exercer contra
ela. Representava-se o encanto picante de vergar aquela
orgulhosa fronte, for��ando-a a submeter-se-lhe como es-
posa. E tudo o que sofreria de humilha����o, quando reapa-
recesse Asnath, sua mulher leg��tima, enquanto ela n��o
passaria de sua concubina. Al��m de tudo, era bastante
bela para diverti-lo na sua meia viuvez.
Preparou-se pois, certa manh��, para ir ao pal��cio. Os
documentos que lhe tinham servido outrora para violen-
tar Armais, deviam ajud��-lo agora a conquistar Hichelat
e destruir, definitivamente, as probabilidades do rival.
Quase �� mesma hora, em pequena sala do pal��cio
que fazia parte dos aposentos privados do rei, achavam-
-se Apopi e a filha. Tinham jogado as damas, mas, fati-
gando-se logo, o Fara�� estendera-se num leito e Hichelat,
sentada a seus p��s, num tamborete, fitava com olhar an-
sioso o rosto p��lido e descarnado do pai.
��� Por que est��s assim calada e tristonha, tu cujo
riso �� minha ��nica alegria, e cuja presen��a afugenta os
fantasmas que me perseguem? ��� perguntou subitamente
o rei.
Ela ergueu-se lesta e, ajoelhando-se, enla��ou o pes-
co��o do pai.
��� Ah! se quisesses poderias tornar-me t��o feliz que
o riso nunca mais me fugiria dos l��bios ��� murmurou,
conchegando ao seio o rosto purp��reo do monarca.
��� Fala francamente, minha querida; h�� atualmente
t��o poucas pessoas felizes no Egito, que eu nada mais
desejo do que dar felicidade, ao menos �� minha filha ���
respondeu num sorriso melanc��lico.
��� D��-me para esposo Armais, o filho do sacerdote
de Heli��polis ��� disse ela em tom s��plice. E, sucinta-
mente, contou a hist��ria do seu amor.
��� E ele ama-te? ��� perguntou o rei estremecendo.
��� Sim, de todo o cora����o.
O Fara�� levantou-se rubro e, calado, come��ou a pas-
sear na sala; por fim, parou junto de Hichelat, ansiosa:
��� Preciso refletir e falar sobre isto ao Adon; quero
saber se, ao parecer dele, �� prudente dar-te a um homem
316
J. W. R O C H E S T E R
cujo pai �� meu inimigo pessoal e alma de todas as intri-
gas tramadas com o haq de Tebas.
Intenso rubor tingiu o rosto delicado da princesa.
��� Queres condicionar minha felicidade e meu futuro
�� fantasia desse homem que s�� a tua vontade tirou da
lama? ��� disse ela com veem��ncia. ��� �� pai! meu casa-
mento com Armais, o eg��pcio, te granjearia muito mais
seguramente a casta sacerdotal do que as crueldades do
Adon, que exasperam o povo contra ti.
��� N��o compreendes nada disto, Hichelat, e pe��o-te
que te abstenhas de termos ofensivos falando de um con-
selheiro e servidor cuja fidelidade tenho comprovado ���
disse Apopi, franzindo o sobrolho.
Nesse momento, ouviu-se o som, amortecido pela dis-
t��ncia, de um toque militar.
��� �� o Adon que chega; vou pois, desde j��, falar-lhe.
Retira-te e ainda esta noite saber��s a minha decis��o.
Sem responder, Hichelat deixou a sala. Mas, em vez
de voltar aos aposentos, ocultou-se nas amplas e espessas
dobras do reposteiro. Minutos depois de se conservar im��-
vel no seu esconderijo, entrou Jos��. Estava visivelmente
nervoso, pensativo e, depois de ter saudado o rei, beij an-
do-lhe os p��s, declarou ter neg��cio grave a expor.
��� Que sucedeu? pareces-me nervoso ��� perguntou
Apopi, designando-lhe o tamborete.
��� Sim, meu senhor e benfeitor, minhalma se entris-
tece por ter de confiar ao teu ouvido o plano de uma
conspira����o odiosa, cujo sacr��lego fim era atentar contra
a tua vida.
Vendo o rei empalidecer, acrescentou prontamente:
��� N��o te assustes, meu rei; enquanto teu servo viver,
ele vigia e nem um cabelo te cair�� da cabe��a sagrada e
vener��vel. �� para obter tua autoriza����o de exterm��nio
desses miser��veis, qual merecem, que aqui vim.
Exp��s rapidamente todos os detalhes do atentado
tramado outrora por Armais e seus amigos, e acrescentou
ao terminar:
��� O que me �� particularmente doloroso �� que o ins-
tigador dessa abomina����o seja Armais, o irm��o de minha
O C H A N C E L E R DE F E R R O
317
mulher; mas, por mais penoso que me seja destruir um
parente t��o pr��ximo, n��o posso hesitar quando se trata
da vida do meu soberano.
��� Ah! o miser��vel traidor! E ousa ainda pedir minha
filha para esposa! ��� exclamou o rei tr��mulo de raiva.
Jos�� pareceu um instante mudo de espanto, depois
disse com enfado:
��� Na verdade! Ainda �� mais ousado e infame do que
eu pensava. Achou, sem d��vida, que, como noivo da prin-
cesa, teria mais facilidade de se aproximar de tua real
pessoa e poderia ferir-te mais seguramente. Hoje mesmo
mandarei prender o traidor.
Agil e silenciosa qual serpe, Hichelat esgueirou-se do
esconderijo e voou ao seu quarto, onde se trancou. To-
mando das pranchas, tra��ou apressadamente: "Foge, Ar-
mais; Jos�� acaba de desvendar ao rei vossa conspira����o
para assassin��-lo. Apressa-te; dentro de algumas horas
ser��s preso com teus c��mplices. Foge; e que os deuses te
perdoem!"
Tendo fechado e selado a missiva, chamou Ouna e
lha entregou, ordenando que a levasse sem demora ao jo-
vem oficial. O an��o, que era justamente o inacess��vel in-
termedi��rio da correspond��ncia da princesa com Armais,
desapareceu logo, enquanto Hichelat, impalp��vel como
sombra, retomava o caminho dos aposentos do pai. Quan-
do lan��ou um olhar para o interior, viu o rei aplicar o
selo num papiro, entregando-o a Jos��.
��� Isto basta. Dentro do mais breve prazo deve ser
instaurado o processo e os culpados ser��o executados.
��� Mas, como direi �� infeliz Hichelat que o seu amado
est�� condenado �� morte? Minha l��ngua se recusa a isto.
Miser��vel! roubar o cora����o da filha para matar mais
seguramente o pai ��� acrescentou fechando os punhos.
��� Quando a princesa conhecer os verdadeiros m��veis
do amor de Armais, arrancar��, certamente, do cora����o
um sentimento indigno dela ��� respondeu Jos��.
O Fara�� levantou-se bruscamente e saiu, quase ro-
��ando Hichelat, sem descobri-la.
Pensativo, Jos�� inclinava-se na mesa e examinava a
assinatura real, quando sentiu algu��m segurar-lhe o
318
J. W. R O C H E S T E R
bra��o. Voltou-se e, surpreso, reconheceu Hichelat Um s��
olhar ao rosto l��vido da princesa, seus l��bios tr��mulos e
os olhos ardentes, fizeram-no compreender que ela sabia
o que acabava de passar-se. Decididamente, as circunst��n-
cias o favoreciam; a presa cobi��ada entregava-se, por si
mesma, em suas m��os.
Com todas as demonstra����es de respeito, quis pros-
trar-se, mas, pela primeira vez, a mo��a lho impediu.
��� Deixa as formalidades, Adon, pois foi para te rogar
que vim aqui. O acaso me fez ouvir o que acabas de dizer
ao rei: pois bem! quero lembrar-te que Armais �� o irm��o
de tua pobre e infortunada Asnath; ao tormento que pa-
dece seu Ka (alma) por ver o corpo insepulto, queres
juntar o de entregar o irm��o ao carrasco? ��� disse com
voz entrecortada.
��� Que posso fazer, princesa? Ele pr��prio condenou-
-se �� morte, tramando um regic��dio e, na verdade, admi-
ro-me que intercedas por um homem que quis matar
teu pai.
��� Amo Armais ��� disse ela com orgulhosa franque-
za ��� e n��o posso acreditar que tenha querido assassinar
meu pai. Mas, n��o importa, as apar��ncias s��o contra ele:
que desapare��a portanto, que fuja e se oculte em algum
pa��s long��nquo; somente n��o quero que morra e venho
suplicar-te, Adon, a ti que tudo podes perante o rei, obte-
nhas dele uma comuta����o de pena, ou me auxilies com a
tua pr��pria autoridade a salvar Armais. Olha, para abran-
dar teu cora����o, estou pronta a te implorar de joelhos.
L��grimas ardentes impediram-na de continuar, mas,
resvalando aos p��s de Jos��, ergueu para ele as m��os
postas.
O Adon levantou-a rapidamente.
��� Que �� isso, princesa? Desejaria servir-te, mas ��
quase arriscar a pr��pria cabe��a o que me pedes. Todavia,
h�� um meio de conciliar tudo; amas bastante o traidor
para n��o recuares diante de coisa alguma, a fim de sal-
v��-lo?
��� Estou pronta a sacrificar tudo, at�� a vida ��� res-
pondeu Hichelat sem hesitar.
O C H A N C E L E R DE F E R R O
319
��� Bem; ent��o, dize-me em primeiro lugar o que
queres.
��� Que facultes a evas��o de Armais e de seus
c��mplices.
��� Isso n��o posso fazer, a pre��o algum. A justi��a
deve seguir seu curso para todos os conjurados, com exce-
����o de meu cunhado. Fecharei os olhos �� sua fuga, com
a condi����o ��nica de que, para me garantir de toda a
responsabilidade, tornar-me inatac��vel de futuro, tu, prin-
cesa Hichelat, consintas em ser minha esposa.
Ela recuou, estarrecida.
��� Eu! eu? queres-me para esposa, sabendo que amo
Armais? ��� exclamou enfim, toda tr��mula.
��� N��o �� teu cora����o, mas tua m��o que pe��o; e jus-
tamente porque amas Armais, proponho-te escolher mi-
nha m��o ou sua cabe��a ��� respondeu rapidamente. ��� Ao
sair daqui tudo estar�� acabado; e, ainda esta noite, o
culpado ser�� preso e submetido a tortura.
Com um grito surdo a mo��a cobriu o rosto com as
m��os e encostou-se, cambaleante, na cadeira antes ocupa-
da pelo pai. Travava-se em seu ��ntimo uma luta atroz;
tinha lido muito claramente nas pupilas verdes do Adon
que era mais f��cil amolecer o granito de um obelisco do
que o homem inflex��vel que lhe impunha a inaudita con-
di����o.
E contudo, o pensamento de lhe pertencer inspirava-
-lhe tal horror, que, por vezes, a morte de Armais pare-
ceu-lhe prefer��vel. Sim, a m o r t e . . . m a s . . . a tortura? Que
supl��cios n��o inventaria o dem��nio para vingar-se da sua
recusa? A cabe��a tonteou, deu um gemido abafado e, to-
davia, os l��bios ficaram mudos.
Lentamente, Jos�� enrolou os papiros e dirigiu-se para
a porta. Ainda um passo e o limiar seria transposto, Ar-
mais estava perdido. "Que vale meu amor se recua diante
de um sacrif��cio?" Esse pensamento passou como rel��m-
pago pelo c��rebro dolorido da mo��a.
��� Fica, acedo ��� murmurou num cicio.
Um raio de triunfo jorrou dos olhos do Adon. Com
duas passadas estava ao p�� da princesa.
320
J. W. R O C H E S T E R
��� Pois bem, nosso pacto est�� conclu��do. N��o preciso
dizer-te que ele deve ficar entre n��s; mas como garantes
o cumprimento da tua palavra, uma vez que Armais es-
teja longe?
Hichelat levantou-se e seu olhar flamejante de orgu-
lho e desprezo mediu o Adon dos p��s �� cabe��a:
��� Minha palavra? Est�� garantida pela minha nobre-
za principesca; a filha de um Fara�� n��o especula e n��o
mente, mesmo quando se trata da sua vida perdida. Sem
d��vida julgas-me por ti mesmo, e, quem sabe? talvez me-
dites j�� uma trai����o. ��s tu, covarde traficante de vida
humana, quem me deve garantir que n��o matar��s Armais,
depois de me haveres extorquido a promessa de esposar-te.
Jos�� empalideceu de c��lera:
��� Fazes mal insultando-me, princesa; em conv��nio
como o nosso, �� justo premunir-se contra a versatilidade
feminina e s�� se consentires que hoje mesmo informe ao
Fara�� da felicidade que me cabe, deixarei para me aper-
ceber muito tarde que Armais fugiu.
��� Bem; apenas repito que, tamb��m eu, exijo um pe-
nhor da tua sinceridade; d��-me esse documento que tens
em m��o, eu to entregarei dentro de tr��s dias.
Sem esperar resposta, arrancou o papiro das m��os
de Jos�� estupefato, e acrescentou desdenhosa:
��� E agora, vai anunciar ao pobre rei cego, que des-
confia de todos, exceto da serpente a que tirou da lama,
que n��o te bastam todas as honras de que te saciou e
ainda precisas da filha para fazer dela um pedestal e es-
tender a m��o para a sua coroa.
Deu-lhe as costas e saiu correndo.
Jos�� acompanhou-a com olhar ir��nico e rancoroso:
"Terei o cuidado de tornar-te mais humilde, mulher
altiva e perigosa, perspicaz como verdadeiro inimigo" ���
resmungou, dispondo-se a procurar imediatamente o rei.
Mergulhado em profundo marasmo, Apopi estava es-
tendido num leito; tinha despedido toda a gente, e a en-
trada do Adon, que era s�� quem tinha o direito de se
apresentar diante dele a qualquer hora, pareceu-lhe in-
c��moda. Enquanto Jos��, em termos humildes, por��m fir-
O CHANCELER DE FERRO
321
mes, expunha-lhe o pedido, acrescentando que a princesa
consentia em despos��-lo, febril rubor coloriu as faces do
rei: o orgulho despertava, segredando-lhe que, da parte
desse escravo liberto, era um excesso de imprud��ncia pre-
tender a m��o da filha, que, al��m de tudo, amava outro.
Um instante teve ��mpetos de mand��-lo agarrar pelos
guardas e arremess��-lo �� turba ��nfima, de onde o havia
tirado. Mas essa rea����o de energia extinguiu-se t��o de-
pressa como viera. Enervado pela mol��stia, desacostuma-
do da atividade governamental, Apopi habituara-se a
viver �� sombra do seu chanceler... E n��o era um gigante,
esse homem que tinha a��aimado os padres, desarmado
Ta�� III, tornado tribut��rias do seu cetro todas as pro-
v��ncias do Alto Egito? Ele, cujo olhar penetrante desco-
bria qualquer conspira����o, e que, com m��o de ferro, es-
magava qualquer sedi����o? Que faria sem ele, abandonado
��s dificuldades inauditas da situa����o? Subitamente, o
fraco rei sentiu quase al��vio ao pensar em ligar-se ainda
mais a esse homem perigoso e forte. Baixou a cabe��a e
apenas perguntou:
��� Mas, como e por que Hichelat, que pretendia amar
o traidor, mudou t��o rapidamente de opini��o?
��� Pilho de Ra, um cora����o de mulher �� cera mole
e devo dizer-te que a princesa surpreendeu parte da nossa
conversa. Depois da tua sa��da, ela apareceu-me e quis
conhecer a parte de Armais na conspira����o. Sua alma
desviou-se, ent��o, do miser��vel e, concedendo a m��o a
teu servo, feriu duas vezes o traidor.
Espero que o tempo e um amor fiel conquistar��o o
cora����o da tua divina filha, se tua bondade inef��vel per-
mitir seja minha esposa.
��� Que seja, pois, assim. De longo tempo me ��s pr��xi-
mo e caro, e regozijo-me de poder conceder-te a recompen-
sa de te tornares membro de minha fam��lia ��� respondeu
Apopi com voz fraca, estendendo a m��o ao terr��vel fa-
vorito.
Quando, meia hora depois, Jos�� deixou o quarto real,
mandou chamar o comandante de Tanis e todos os con-
selheiros presentes no pal��cio, deu-lhes parte do que
322
J. W. ROCHESTER
acabava de resolver e ordenou que, no dia seguinte, ao
romper da aurora, anunciassem ao som de trombetas, em
todos os quarteir��es de Tanis, as n��pcias do Adon com
a filha do Fara��.
*
Ca��ra a noite, Tanis estava mergulhada no sono e at��
no grandioso pal��cio real reinava o mais profundo sil��n-
cio. A essa hora, velavam somente as sentinelas e uma
mulher que, sentada ao p�� de uma mesa, cabe��a debru-
��ada nos bra��os, poderia supor-se adormecida, se o tremor
nervoso que ��s vezes lhe agitava o corpo n��o denunciasse
que chorava silenciosamente.
Era Hichelat; a inquieta����o e o desespero tinham-na
expulsado da cama. A tarde ainda, sua coragem se sub-
metera a uma nova prova; fora chamada �� presen��a do
pai, junto do qual estavam sua irm��, o pr��ncipe Namou-
rod e alguns parentes e dignit��rios, bem como o Adon.
Escrutando com percuciente olhar o rosto desfigurado da
filha, o rei perguntara se era do seu desejo esposar Jos��
e, dada resposta afirmativa, colocara a sua m��o na do
chanceler. Mas o que aumentara a tortura moral da mo��a,
�� que Ouna n��o tinha reaparecido e ela n��o sabia se
Armais tinha partido. Contudo, estava bem decidida, caso
Jos�� fizesse alguma perf��dia, a destruir-lhe os planos,
matando-se.
Tendo vestido ampla t��nica de dormir e mandando
entran��ar os cabelos, a princesa despedira as criadas,
proibindo que a incomodassem e, devorada pela ang��stia,
levantara-se e sentara-se na pequena sala cont��gua ao
terra��o. O ar estava fresco, mas n��o deu por isso e, debru-
��ando-se na mesa, deu livre curso ��s l��grimas.
Havia mais de uma hora que estava nessa atitude,
quando no terra��o apareceu um pequeno ser desfigurado,
que se insinuou no quarto e lhe tocou ligeiramente no
bra��o, murmurando: "Caluda!" Hichelat levantou-se, es-
tremecendo:
��� Ouna, onde estiveste tanto tempo? ��� disse em tom
de censura.
O C H A N C E L E R DE F E R R O
323
��� N��o pude vir, minha real senhora, mas o que fiz
alegrar�� teu cora����o. Agora, vem; ele est�� no jardim e
n��o quer partir sem ver-te.
��� Vamos ��� respondeu, segurando o bra��o do an��o e
arrastando-o para o terra��o.
Apesar da escurid��o quase completa que reinava sob
o arvoredo, Ouna e sua companheira corriam com segu-
ran��a e rapidez, que provavam o conhecimento daqueles
s��tios, e logo alcan��aram a parte dos jardins reais, que mar-
ginavam o Nilo. Ali, num banco escondido pela folhagem
espessa, estava sentado um homem envolto num manto
escuro, agitado, impaciente, arrancando punhados de sar-
��as. S��bito, uma sombra esbranqui��ada surgiu na entrada
do bosque e, murmurando em voz abafada ��� "Armais!" ���
atirou-se-lhe aos bra��os. Um momento conservaram-se
silenciosamente abra��ados, mas, de repente, ele afastou a
mo��a, perguntou com voz entrecortada:
��� �� verdade o que me disseram no templo? ��s noiva
do Adon? Que significa semelhante decis��o?
��� Significa que, por tal pre��o te garanti a vida e a
seguran��a da fuga; mas tu, Armais, responde: como pu-
deste, amando-me, decidires-te a matar meu pai?
��� Quis faz��-lo outrora, quando cheguei de Heli��polis,
mas nunca depois que te amei ��� respondeu indignado.
E contou ent��o o que se tinha passado e que Jos�� tinha
j�� utilizado os mesmos documentos para for����-lo a casar-
-se com Serag.
��� Agora os empregou para me destruir e te conquis-
tar; mas, por esse pre��o, n��o quero a vida e antes de saber-
-te entregue ao monstro, mat��-lo-ei ou morrerei ��� termi-
nou fremente de raiva.
��� N��o tentes uma loucura que te perderia sem me
salvar, mas se meu pedido, minha tranq��ilidade t��m algum
valor a teus olhos, foge. Que meu sacrif��cio n��o se torne
in��til.
Desculpando-te de uma inten����o odiosa, livraste meu
cora����o de um peso esmagador. E agora parte, vive para
Pot��fera e para teu pa��s; vinga-me e vinga o Egito do seu
opressor, mas n��o esque��as nunca que Apopi foi meu pai.
324
J. W. ROCHESTER
��� Viverei, pois, para a vingan��a e na esperan��a de
arrancar-te ao miser��vel, que h�� de morrer nas minhas
m��os. E, ent��o, seremos felizes, porque nada pode separar
nossos cora����es. Se antes te amei, agora te venero, adoro
como �� pr��pria Isis.
��� Adeus, Armais! Um pressentimento me diz que
meus olhos nunca mais te ver��o, mas, no teu cora����o a
pobre Hichelat viver�� sempre. Adeus! Adeus! vai-te, os
instantes s��o preciosos.
Enla��ou-lhe o pesco��o, beijou-o nos l��bios, mas quan-
do Armais quis ainda ret��-la, escapou-se-lhe dos bra��os e
desapareceu na sombra das ��rvores.
Hichelat tinha retomado, correndo, a dire����o do pal��-
cio, mas, depois de atravessar algumas alamedas, parou
subitamente e, num louco acesso de desespero, atirou-se
na relva ��mida e ficou im��vel. Parecia-lhe que Armais
levava consigo o seu cora����o, a sua vida, o seu futuro, e
que ia rolar num abismo mais terr��vel que o Amenti.
Por que milagre do instinto Ouna a encontrou? Di-
f��cil diz��-lo. Mas, horrorizado, o an��o verificou que a jovem
senhora, transida de frio com aquela fina t��nica de linho,
perdera os sentidos. Espantado, suspendeu-lhe a cabe��a,
esfregando-lhe as m��os e acabou por faz��-la voltar a si.
Cabe��a em fogo, membros pesados de chumbo, Hiche-
lat arrastou-se at�� o quarto e deitou-se; mas, quando no
dia seguinte as criadas aflitas por n��o serem chamadas,
l�� penetraram, encontraram-na estendida, em prostra����o
completa, os olhos parados, banhada em suor gelado. N��o
reconheceu ningu��m e os m��dicos, chamados, declararam
o seu estado dos mais perigosos. Horas depois das fanfar-
ras anunciarem aos habitantes de Tanis os esponsais do
Adon com a filha do Fara��, espalhou-se a not��cia de que
a jovem princesa, acometida de febre perniciosa, estava
entre a vida e a morte.
VIII
RA MANIFESTA SUA VONTADE
A i m a g e m do deus �� o verdadei-
ro mist��rio do santu��rio. Ora����es,
sacrif��cios, ritos misteriosos, obt��m
da divindade descer do c��u para ani-
m a r e vivificar a e s t �� t u a de pedra.
Os padres da I g r e j a ainda e s t a -
v a m convencidos de que as e s t �� t u a s
p a g �� s se a n i m a v a m ��s v e z e s e exer-
ciam no espectador u m a influ��ncia
diab��lica. ��� B r u g s c h ��� Steinin-
schrift und Bibelwort.
O disco do Sol come��ava a subir acima da cadeia
Ar��bica; seus raios inundavam de ouro e rubis as ��guas
do Nilo e, ao longe, os templos e obeliscos de Tebas.
Deslizando serena sobre as ��guas baixas do rio sagra-
do (apertado entre baixios ou entre as massas abruptas
de lama escura, cozida e recozida pelo Sol), navegava
uma barca muito simples, pintada de preto e provida de
pequeno camarote. Seis remadores trabalhavam penosa-
mente para fazer avan��ar a embarca����o, ora servindo-se
de compridas varas, ora dos remos, quando a profundi-
dade o permitia.
Despertados sem d��vida pelos gritos do piloto, dois
homens sa��ram do camarote e, encostando-se ao mastro,
olharam o horizonte. Um, baixo e obeso, de aspecto jovial
e evidentemente turbulento por natureza, p��s-se desde
logo a conversar com os marinheiros, enquanto o compa-
nheiro, mo��o esbelto, de alto porte, permanecia calado,
326
J. W. R O C H E S T E R
fitando com olhar sombrio a paisagem desolada que se
estendia pelas duas margens. Na verdade, o deserto pa-
recia invadir a terra de Kemi: por toda parte a areia co-
bria os campos e a vegeta����o mofina, de folhagem pulve-
rulenta, mal se diferen��ava do len��ol amarelado e polido
que cintilava no meio dessa atmosfera abrasada.
��� Olha, l�� est�� Tebas e dentro de poucas horas
(aben��oados sejam os deuses!) l�� estaremos ��� exclamou
o homem baixo, cuja cabe��a raspada denunciava um
padre.
��� Para quem viaja acabrunhado, a chegada n��o causa
alegria ��� respondeu o mancebo suspirando.
Depois, designando a praia, acrescentou com amar-
gura:
��� E que cora����o n��o se espeda��aria com esse es-
pet��culo desolador! Isto �� o Egito; este deserto de p��,
em uma ��poca do ano em que as colheitas deveriam co-
brir a terra! Este rio meio ressecado �� o Nilo, cujas ma-
jestosas ��guas h�� mais de um m��s deveriam trazer por
toda parte a fecundidade e a vida! Oh! quando cansar��
a c��lera dos deuses!...
O rosto do padre se tinha enfarruscado:
��� Tens raz��o, Armais; desgra��ados tempos, estes que
atravessamos, e este ano tampouco se pode contar com
uma colheita: como haveremos de nutrir os desgra��ados
por mais um ano?
Armais n��o respondeu e ambos voltaram ao camaro-
te. Foi somente pr��ximo de Tebas que o rapaz voltou a
falar com o companheiro, escriba de um templo de M��n-
fis, que o acompanhara na fuga e a quem encarregava
de escrever a seu pai e a Hichelat. Pouco depois atraca-
vam e os remadores despejaram no cais algumas cestas
tran��adas contendo a pequena bagagem do viajante. O
escriba chamou alguns carregadores e os dois companhei-
ros se separaram: um dirigindo-se ao templo de Amon,
outro em demanda �� resid��ncia de Hor ��� o chefe dos ar-
cheiros reais.
A tristeza e a mis��ria que dizimavam o Egito pesa-
vam tamb��m visivelmente sobre a antiga capital do Alto
O CHANCELER DE FERRO
327
Egito e n��o eram disfar��ados, como em Tanis, pelo faus-
toso luxo da corte fara��nica.
O antigo noivo de Asnath ocupava pequena mas con-
fort��vel vivenda n��o longe do pal��cio de Ta��. Acreditou-
-se mal-assombrado vendo chegar Armais; mas, com a
franca cordialidade que o caracterizava, estreitou-o nos
bra��os, instalou-o logo em quarto cont��guo ao seu, e quan-
do o rec��m-vindo se reconfortou com a merenda, conver-
saram de cora����o aberto.
As not��cias trazidas por Armais sombrearam desde
logo a fisionomia dos interlocutores e a comunica����o do
desaparecimento de Asnath mergulhou Hor em raivoso
desespero.
��� Outrora, acreditei num incidente infeliz, mas logo
que Jos�� desmascarou seus planos em rela����o a Hichelat,
n��o duvido mais que Asnath tenha morrido assassinada.
Ela devia dar o lugar a uma esposa de ra��a realenga, que
abre a Jos�� o caminho do trono ��� terminou Armais. ��� Oh!
quando iremos, enfim, a Tanis, castigar esse c��o impru-
dente e arrastar pelas ruas os seus membros sangrentos?
Hor levantou-se e passou a m��o pelo rosto desfigu-
rado.
��� Quem sabe essa hora estar�� mais pr��xima do que
supomos? Vens admiravelmente a prop��sito: hoje mesmo
h�� importante reuni��o em casa de Ta��; os haqs de todas
as prov��ncias do Alto Egito vieram a Tebas deliberar se
n��o seria poss��vel tentar um levante geral, que pusesse
fim �� situa����o j�� intoler��vel. A mis��ria aqui �� atroz; todos
os pr��ncipes se tornaram tribut��rios, o povo est�� escra-
vizado a Apopi; �� �� custa dos maiores sacrif��cios que os
templos e os grandes nutrem os soldados, a fim de con-
servar um ex��rcito de homens v��lidos, mas isto n��o pode
durar muito tempo e o ex��rcito ser�� dizimado, como o
resto, pela fome. ��, portanto, uma quase necessidade
arriscar um golpe decisivo e tu vens muito a prop��sito
para esclarecer os chefes, e ao rei, o estado dos esp��ritos,
das for��as dos Hyksos e dos seus meios de defesa. Vou
entender-me de pronto com o rei e pedir autoriza����o para
levar-te esta noite ao conselho secreto. Descansa enquan-
to esperas, para teres o esp��rito l��cido; precisamos traba-
328
J. W. ROCHESTER
lhar para vingar, enfim, nossa felicidade t��o miseravel-
mente destru��da ��� terminou o chefe dos archeiros com
um olhar de ��dio feroz.
Na hora em que o calor asfixiante come��ava a decli-
nar substitu��do por agrad��vel frescura, Hor e Armais en-
caminharam-se a p�� para o pal��cio de Ta�� III. Ambos
mostravam-se circunspectos e, ocultando a m��goa pes-
soal, apenas conversavam sobre os neg��cios do Estado.
Hor punha o jovem companheiro ao corrente da si-
tua����o; fez-lhe uma pintura caracter��stica dos haqs reuni-
dos e, afinal, anunciou-lhe que os preparativos de guerra
acumulados durante anos, por Ta�� III, com uma energia
extraordin��ria, estavam terminados, tanto quanto o per-
mitiam as circunst��ncias: a flotilha pronta, as armas e
muni����es depositadas nos armaz��ns e o velho rei, va-
lente e possu��do de indom��vel decis��o, esperava impa-
ciente o momento de agir, realizar o sonho da sua vida,
libertando o Egito do jugo dos opressores. Acrescentou
que Ta�� tinha encontrado um auxiliar ativo em Ahm��s,
rapaz dotado de prud��ncia e energia invulgares na sua
idade. Quanto a Kam��s, o herdeiro da Coroa, seu estado
enfermi��o o afastou da administra����o e, segundo todas as
previs��es, sua vida n��o podia ir muito longe.
Depois de curta expectativa, os dois homens foram
introduzidos na sala do Conselho, onde todos, com exce-
����o de Ta�� III, j�� estavam reunidos. No fundo, sobre um
estrado de dois degraus, estava a poltrona real, junto da
qual um tamborete era destinado a Ahm��s; aos dois lados
do trono, cadeiras baixas para os nomarcas e alguns pa-
dres da classe mais alta; sobre esteiras, curvados, diversos
escribas e, mais ao fundo, oficiais de altas patentes, os
conselheiros militares do rei. Foi com eles que se mistu-
raram Hor e Armais; mas o primeiro apenas teve tempo
de trocar algumas palavras com os amigos, quando a en-
trada dos dois pr��ncipes interrompeu as conversas.
Ta�� in pouco tinha mudado: a idade ainda n��o tinha
podido curvar-lhe o corpo robusto; seu rosto bronzeado
transpirava sa��de e, sob as espessas sobrancelhas bran-
cas, os olhos negros cintilavam com energia toda juvenil.
O pequeno Ahm��s tinha-se tornado um belo rapaz, de ex-
O CHANCELER DE FERRO
329
terior elegante e esbelto, cuja precoce gravidade fazia-o
parecer mais velho.
Depois de ter amistosamente saudado os nomarcas e
o resto da assembl��ia, Ta�� III sentou-se e entrou logo no
assunto. Explicou aos aliados o estado da quest��o; os
preparativos feitos e por fazer, enfim a necessidade d��
tentar um levante se n��o quisessem arriscar-se a ficar
arruinados, a tal ponto dizimados pela fome, que qualquer
tentativa de repelir o estrangeiro (o qual, como aranha
venenosa, enleava pouco a pouco o seu territ��rio e os
seus vassalos) se tornaria imposs��vel. Por fim, pedia-lhes,
antes de emitir opini��o, que ouvissem um homem che-
gado naquele mesmo dia de Tanis e que lhes podia mi-
nistrar todos os informes desej��veis.
Quando Armais foi prostrar-se diante do trono, Ta��
lhe fez sinal que se levantasse e disse com benevol��ncia:
��� Soube por Hor o concurso de circunst��ncias que
te determinaram a procurar ref��gio em Tebas; s�� bem-
-vindo, nobre filho do vener��vel Pot��fera, aqui achar��s
amigos e eu, assim como os meus nobres aliados aqui pre-
sentes, esperamos sirvas �� causa da liberta����o da terra
de Kemi, com tanta dedica����o como teu ilustre pai.
Acabas de ouvir a importante quest��o que nos con-
grega; dize-nos tu, que vens de Tanis, o que sabes quanto
ao estado do pa��s, a disposi����o dos esp��ritos, os meios de
defesa dos ehasous e as medidas que tomaram para o
caso de tomarmos a ofensiva.
Armais inclinou-se modestamente diante dos pr��nci-
pes e depois, em linguagem clara e imaginosa, exp��s em
primeiro lugar o que concernia �� quest��o militar, descre-
vendo a seguir a mis��ria e exaspera����o do povo, o ��dio
feroz que o Adon inspirava a todas as classes populares,
que s�� esperavam um sinal de Tebas para levantar-se
como um s�� homem. Quando Armais mencionou o motim,
gritos de satisfa����o fizeram-se ouvir, mas a not��cia dos
esponsais de Jos�� com a princesa Hichelat provocou ver-
dadeira tempestade. Todos compreenderam que o cruel
opressor do Egito preparava-se para apoderar-se audacio-
samente da Coroa.
330
J. W. ROCHESTER
��� Na opini��o de meu pai e de todos os padres, n��o
devemos dar tempo ao miser��vel de galgar o poder su-
premo; todos te chamam, divino filho de Ra, como a um
libertador; �� tua aproxima����o, milhares de aliados se
juntar��o aos teus soldados, porque, tanto nas cidades
como nos campos, cada cora����o eg��pcio pulsa por ti. Os
pr��prios deuses te s��o favor��veis, os astros te predizem
a vit��ria e terr��veis sinais provam que o chasou e seu
indigno assecla cansaram, com suas iniquidades, a pa-
ci��ncia dos imortais.
Assim concluiu Armais, inflamado.
Empenhou-se animada e ruidosa discuss��o, todos os
pr��ncipes nomarcas optavam pela guerra e desejavam-
-na quanto antes, ��vidos por vingar suas perdas e repelir
obriga����es odiosas; mas alguns velhos, temendo os riscos
de uma derrota, aconselhavam esperar ainda. As alus��es
come��avam a se envenenar, quando se levantou o velho
sacerdote de Amon-Ra e reclamou um momento de si-
l��ncio.
��� O que o olhar humano n��o pode sondar, �� conhe-
cido dos imortais; para eles o futuro n��o tem segredos e a
palavra dos nossos adivinhos, assim como as not��cias hoje
recebidas dos vener��veis profetas de M��nfis, de Sais e He-
li��polis, parecem provar que os deuses nos s��o favor��veis;
mas, para que nenhuma d��vida possa ainda existir, vem,
�� rei, consultar teu divino pai no seu santu��rio; agir��s
como ele te disser.
��� Teu conselho �� prudente, vener��vel padre, confor-
mar-me-ei com ele; amanh�� irei consultar meu pai em
sua casa sagrada, e ele me responder�� se a sua c��lera
contra o Egito est�� apaziguada; amanh��, �� tarde, nos
reuniremos novamente aqui e transmitirei a todos a pa-
lavra do grande deus ��� respondeu Ta��, levantando-se e
saudando a assembl��ia, que se dispersou tumultuosamente.
Na ��poca que versamos, o templo do grande deus de
Tebas estava ainda longe de ser o monumento colossal,
cujas ru��nas confundem o forasteiro contempor��neo, tan-
to por suas dimens��es como pela riqueza e originalidade
da ornamenta����o. Amon-Ra n��o era ainda a primeira di-
vindade do Egito; seu templo era um edif��cio muito sim-
O CHANCELER DE FERRO
331
pies, de alvas pedras calc��rias, com portas de granito e
pilastras de dezesseis faces, que lhe decoravam o interior.
A mis��ria geral tamb��m reagia sobre o estado da casa
do deus, regulado, como se sabe, pela Corte e, em vez de
receber do povo inteiro dons e ofertas, era agora o deus
que nutria os esfaimados com os magros rendimentos dos
seus dom��nios.
No dia imediato, Ta�� dirigiu-se pela manh�� ao tem-
plo e foi recebido �� porta por dois padres, de p��s nus e
cabe��a raspada, os quais, depois de se terem prostrado,
o introduziram com a comitiva no p��tio destinado aos sa-
crif��cios. O rei que, desde a aurora, se tinha purificado
por meio de um banho no Nilo, sacrificou dois touros bran-
cos, leite, incenso e perfumes preciosos, depois do que o
sacerdote cingiu-o com faixas sagradas, aspergiu-o com
��gua lustral e purificou-o uma ��ltima vez com o fumo do
incenso. Depois conduziu-o at�� �� entrada do santu��rio e
retirou-se.
Grave, profundamente concentrado, o rei penetrou no
Santo dos Santos: uma sala de pequenas dimens��es, cujas
paredes, �� meia altura, eram revestidas de chapas de cobre.
A luz vacilante de uma l��mpada iluminava fracamente o
s��lio sagrado, ricamente decorado, sobre o qual estava a
barca de Amon-Ra, projetando-se nos dourados e incrusta-
����es do naos (1) meio coberto por comprida sanefa bran-
ca. Depois de prostrar-se e orar silenciosamente, Ta�� abriu
as portas do naos. Mal se distinguindo na sombra que a
envolvia, via-se a est��tua do deus, cujos olhos de esmalte
reluziam com um resplendor fosforescente: "Poderoso deus
dispensador de vida e gra��a; tu que formaste com tuas
m��os tudo o que existe; tu que n��o tens come��o nem fim;
tu de quem decorre toda seiva de vida e cujo sopro cria
as almas, ouve minha ora����o ��� murmurou o rei, elevando
as duas m��os: ��� venho implorar-te, a ti que ��s a for��a,
o n��mero, a harmonia; que ouves a s��plica dos surdos,
cegos, fracos, estropiados; que criaste a quem n��o com-
(1) Camarote que existia na barca e servia de nicho �� es
t��tua piotrchape.
332
J. W. ROCHESTER
preende tua sabedoria, ouve-me, Amon-Ra, meu pai ce-
leste, e projeta um raio de luz no caminho tenebroso do
destino do povo de Kemi. Devo tentar sacudir o jugo es-
magador dos chasous? Combater��s a meu lado, enchendo
de terror os inimigos e dando a teus filhos a vit��ria? Ser-
-me-�� dado reunir o Alto e o Baixo Egito num imp��rio, a
fim de que, das cataratas ao mar, todos os povos cantem
a gl��ria de Amon-Ra e adorem o seu poder?"
Nesse instante um raio dourado surgiu no fundo do
naos, iluminando os membros dourados do deus, sua barba
negra tran��ada e os olhos que fitavam Ta�� como se vivos
fossem. Cheio de supersticioso temor, o rei viu a cabe��a
da est��tua inclinar-se tr��s vezes; depois, desprendeu-se
uma voz harmoniosa, vibrante e met��lica, mas como que
velada pela dist��ncia:
"Vai, meu filho ��� disse ela ���, concedo-te quebrares
o jugo do estrangeiro impuro, que infesta a terra de Kemi
e ousa aquecer-se aos meus raios; por toda parte onde
brandires tua acha-de-armas, a vit��ria te preceder�� e o
sangue fumegante dos inimigos, subindo a mim, ser�� um
aroma agrad��vel as minhas narinas.
"Minha c��lera se apaziguar�� e as ��guas sagradas do
Nilo, tanto tempo retidas, vir��o no tempo prescrito tra-
zer-vos fecundidade e abund��ncia. A gl��ria e o triunfo
iluminar��o o decl��nio da tua vida e tua mem��ria aben-
��oada e venerada viver�� eternamente como libertador do
meu povo. Mas �� na cabe��a de Ahm��s que porei a dupla
coroa; aben��oarei sua posteridade e dele nascer��o os
maiores Fara��s que jamais reinaram sobre a terra do Nilo.
Para que ningu��m duvide do que acabo de dizer-te, que
Ahm��s deposite em meu santu��rio uma vara cortada da
��rvore sagrada e, por um sinal vis��vel, provarei a gra��a
de que vos quero saturar."
O raio extinguiu-se bruscamente; sil��ncio e escurid��o
encheram de novo o santu��rio. Tr��mulo de m��stico terror,
Ta�� prostrou-se, adorou o deus benfazejo que acabava de
o encher de nova esperan��a. Fechou as portas do naos e
retirou-se.
Com o rosto incendido, comunicou ao sacerdote o que
acabava de ouvir e ficou decidido que, depois de se ter
O C H A N C E L E R DE F E R R O
333
purificado com tr��s dias de jejum e ora����o, o jovem pr��n-
cipe traria ao templo um ramo da ��rvore sagrada de
P��rsea (1), que ele pr��prio cortaria e depositaria por uma
noite, no santu��rio.
O boato da resposta favor��vel ao rei, pelo pr��prio
Amon-Ra e da promessa de um sinal vis��vel da sua gra��a,
espalhou-se rapidamente em Tebas e arredores, desper-
tando em todas as classes alegria e ansiedade; a desgra��a
feria t��o duramente a cada qual, sofria-se de t��o longo
tempo, que todos os cora����es estavam desacostumados de
esperar.
Assim que, na tarde do terceiro dia, enorme multid��o
se amontoou em todo o percurso, entre o pal��cio e o tem-
plo; logo apareceu, rodeada de condutores de tochas, a
sede port��til na qual estava sentado Ahm��s, levando na
m��o a varinha da ��rvore sagrada que acabava de cortar.
O belo e en��rgico semblante do pr��ncipe exprimia solene
gravidade.
Diante do recinto do templo, as massas populares
eram t��o compactas que o cortejo passou com dificuldade;
mas logo que apareceu a liteira, as maci��as portas de
bronze se abriram e o pr��ncipe foi recebido por padres car-
regados de tochas, que o introduziram no primeiro p��tio;
depois dele, entraram todos os dignit��rios da comitiva e
tanto povo quanto o templo podia conter, porque, desta
vez, a cerim��nia era p��blica e, diante de todos, iam su-
plicar ao deus cumprimento da promessa.
Do interior do templo partiu, ent��o, uma prociss��o de
padres conduzindo a barca de Amon-Ra, que foi colocada
em s��lio para isso preparado, e o sacerdote abriu as portas
do naos; depois, apresentou-se ao pr��ncipe uma caixinha
aberta, na qual ele p��s o ramo de P��rsea; na tampa da
(1) Entre as diversas ��rvores que, nesta qualidade, gozavam
de venera����o especial, estava em primeiro lugar a esp��cie chama-
da pelos gregos P��rsea. Desde os mais remotos tempos os eg��pcios
lhe votavam uma aten����o especial. Mesmo os primeiros crist��os
do Egito herdaram essa antiga cren��a e criaram uma graciosa
legenda para metamorfosear sua santidade pag�� em santidade
crist��. ��� Brugsch ��� Ob. clt.
334
J. W. R O C H E S T E R
caixa o pont��fice colocou sete velas de cera virgem e de-
positou-a na mesa diante do naos aberto. Elevando os
bra��os, o sacerdote pronunciou uma invoca����o ao deus
benfeitor, pedindo-lhe mostrasse, diante de todo o povo,
que autorizava o servo a depositar no santu��rio a vara
da ��rvore sagrada e provasse, com um sinal vis��vel, a
gl��ria e felicidade que reservava ao pr��ncipe e �� sua pos-
teridade.
Toda a gente caiu de joelhos e fez-se grande sil��ncio:
todos os olhos estavam pregados na barca sagrada e, ao
cabo de um instante, viu-se uma centelha rutilar no
fundo do naos, dilatar-se em chama que lucilou uma se-
gunda vez sobre a cabe��a da est��tua e depois, crepitando,
flutuou no ar e foi acender os sete c��rios na tampa da
caixinha.
Um murm��rio de alegria, temperada de supersticioso
temor, percorreu as fileiras da multid��o e somente quando
a barca, assim como a caixinha conduzida pelo sacerdote,
desapareceram no interior do templo, o povo se dispersou,
grave e recolhido, mas cheio de impaci��ncia pelo dia se-
guinte.
Desde a aurora, massas ainda mais compactas que
na v��spera, invadiram todas as ruas. Ruidosas aclama-
����es receberam a liteira real, na qual sentavam-se Ta�� III
e Ahm��s, p��lido de emo����o; atr��s deles seguiam todos os
nomarcas e altos funcion��rios presentes em Tebas, entre
os quais Hor e Armais.
No grande p��tio, diante de uma est��tua de Amon-Ra,
os padres sacrificadores, armados de luzidios cutelos, pos-
tavam-se junto das v��timas enfeitadas de flores e fitas.
Depois que Ta��, ajudado pelo pr��ncipe, sacrificou um
touro, os dois penetraram no templo e, enquanto no p��tio
o sangue fumegante das v��timas continuava a correr,
alguns vener��veis padres conduziram os pr��ncipes ao san-
tu��rio, a cuja entrada pararam com Ahm��s, enquanto
Ta�� entrava no Santo dos Santos. Desta vez, uma luz
suave e branca, semelhante a luar, iluminava a pequena
sala. Provinha da chama acesa de sete tr��podes coloca-
das em torno da barca de Amon-Ra, diante da qual o sacer-
dote estava ajoelhado. Bra��os erguidos, im��vel, era uma
O C H A N C E L E R DE F E R R O
335
express��o de fan��tico. Aroma sutil e penetrante saturava
o ar, enquanto ao longe se ouvia deliciosa m��sica; vozes
melodiosas casavam-se ao som das harpas, ora elevando-
-se em acordes majestosos, ora perdendo-se em harmo-
nioso murm��rio.
Quando o rei prostrou-se, um silvo semelhante ao
vento tempestuoso encheu subitamente o santu��rio; des-
lumbrante clar��o jorrou do naos e, quando se extinguiu,
s�� a l��mpada suspensa no teto iluminava o tabern��culo
do deus. O sacerdote levantou-se e, tomando a caixinha
aberta, apresentou-a ao rei: no fundo jazia o ramo de
P��rsea marcado com o sinete de Ahm��s, mas a vara seca
havia-se coberto de folhas, de flores, e entre elas via-se
um fruto maduro. Tr��mulo de emo����o, Ta��, acompanhado
pelo sacerdote, deixou o santu��rio e aproximou-se de
Ahm��s, que o esperava cheio de inquieta����o e impaci��n-
cia, entregando-lhe o ramo florido.
��� Toma, filho, este sinal visivel da gra��a do grande
deus, da prote����o que promete a ti e a tua ra��a. E agora,
vai mostrar tamb��m a todo o povo esse penhor de uma
divina promessa de alegria e de esperan��a.
Com a rapidez do raio, a not��cia do milagre tinha-se
espalhado no exterior, despertando na multid��o verdadeiro
regozijo, que se transformou em tempestade de entusias-
mo quando apareceu a liteira real, a mover-se lentamente,
dando tempo a todos de contemplar a vara maravilhosa,
cheia de vi��o e de flores, que Ahm��s suspendia na m��o,
saudando o povo com gracioso sorriso. Extraordin��ria efer-
vesc��ncia se apoderara das massas populares, ardentes
como o sol de fogo que as banhava. A mis��ria, a ru��na, a
fome foram esquecidas. Podia-se ainda desesperar, te-
mer pelo futuro, quando o pr��prio Ra prometera gl��ria ao
rei e ao seu herdeiro; e ao povo de Kemi todos os bens da
terra? O Nilo transbordaria e suas ��guas fecundas trariam
a cada qual o p��o cotidiano, a abastan��a, o trabalho e,
como remate de tudo, a expuls��o do estrangeiro. Derra-
mando l��grimas de felicidade, aqueles homens, cuja maior
parte n��o possu��a mais que o peda��o de pano grosseiro que
lhes cingia os rins, atiraram-se aos bra��os uns dos outros,
abra��ando-se como irm��os, dando-se parab��ns pela feli-
336
J. W. ROCHESTER
cidade que os aguardava. Depois, de milhares de peitos
partiu o grito: "Viva Sekenen-Ra Ta��, o rei aben��oado
pelo C��u! Viva Ahm��s, a esperan��a do pais de Kemi!"
Prostravam-se rendendo homenagem a esses dois homens
como aos mais poderosos Fara��s. O impulso geral tinha
arrastado at�� os nomarcas, dos quais, mais de um, no
fundo d alma, aspirava para si mesmo o supremo poder;
e foi entre os estrondos dessa tempestade de entusiasmo
que os dois pr��ncipes voltaram ao pal��cio.
Desde esse dia, os ��ltimos aprestos de guerra prosse-
guiram com ardor febril, cada qual trabalhava como para
si mesmo e secretos correios levaram a todos os principais
templos do reino de Apopi a noticia de que, dentro de dois
meses, quando muito, Ta�� III deixaria Tebas com o seu
ex��rcito, para sitiar M��nfis.
IX
QUEM SEMEIA VENTOS COLHE
TEMPESTADES
Jos�� governava todo o E g i t o e
n��o se vendia trigo aos povos sen��o
por ordem sua. ��� G��nese, cap. XLII,
v. 6.
Porque em todo o mundo faltava
p��o e a fome afligia toda a terra,
m a s principalmente o E g i t o e o pa��s
de Cana��. ��� G��nese, cap. XLVII,
v. 13.
Durante tr��s semanas a vida da princesa Hichelat es-
teve por um fio. Todavia, a mocidade triunfou e lenta-
mente se restabeleceu, mas, por ordem m��dica, instalou-se
numa casa de campo perto de Tanis, a fim de isentar-se
de todo ru��do e agita����o. O casamento foi adiado por dois
ou tr��s meses. No primeiro per��odo de convalescen��a, Jos��
ia muitas vezes ver a noiva e, irritado com a fria indife-
ren��a que ela lhe dispensava, invariavelmente, censurou-a
um dia por demonstrar t��o ostensiva frieza ao seu futuro
esposo.
��� Creio que esqueceste que foi para resgatar a vida
de um ser amado que te concedi a m��o ��� respondeu, me-
dindo-o desdenhosa e altivamente. ��� Portanto, al��m do
nosso acordo, nada existe de comum entre a filha do Fara��
Apopi e o homem reles que ele tirou da lama para des-
gra��a sua e do seu povo. Poupa-me, portanto, de censuras
rid��culas; se te vendi minha pessoa e direitos correspon-
dentes, contenta-te com isso. O futuro dir�� se a c��lera
338
J. W. ROCHESTER
celeste n��o te h�� de impedir de aproveit��-lo e n��o te des-
truir�� por mais m��gico que sejas.
Furioso, Jos�� voltara-lhe as costas e, depois, apenas
fazia �� noiva visitas oficiais. Al��m disso, os neg��cios po-
l��ticos absorviam-lhe todo o tempo e, com tenacidade e
energia, preparava-se para transpor o derradeiro obst��culo
que o separava da meta ambicionada. O t��mido Fara��,
completamente dominado pelo terr��vel favorito, cego pelo
desejo de ver a filha dileta ocupar o trono, consentira que
Jos�� fosse proclamado herdeiro da Coroa. Para esse im-
portante ato pol��tico, o rei e o futuro genro decidiram
fixar o dia do casamento, a celebrar-se com pompa ��nica.
O projeto n��o estava anunciado oficialmente, mas, como
era natural, entre os ��ntimos do rei, parentes e sumida-
des administrativas, sabiam que a proclama����o do Adon
estava sendo preparada. Compreende-se que a perspectiva
de saudar como pr��ncipe herdeiro o antigo escravo de
Putifar despertasse sentimentos muito d��spares.
Blindado no seu orgulho, mais que nunca impiedoso
e cruel, Jos�� n��o prestava aten����o �� atmosfera pesada,
asfixiante, amea��adora, que pesava sobre Tanis qual nu-
vem de chumbo.
A mis��ria e a fome tinham provocado uma epidemia
perniciosa, que dizimava o povo; os cad��veres negros e in-
chados dos infelizes jaziam nas ruas e nas estradas e
nunca a atividade silenciosa dos templos tinha atingido
t��o vastas propor����es. Carregados de provis��es e rem��-
dios, os padres de grau inferior circulavam nos quarteir��es
pobres e nas aldeias, distribuindo cuidados e esmolas ��s
crian��as, ��s mulheres, aos velhos; mas os homens s��os e
jovens desapareciam pouco a pouco dos campos, reunin-
do-se insensivelmente nos quarteir��es miser��veis, ocupados
pelos eg��pcios em Tanis.
Os jovens famintos e doentes achavam abrigo no re-
cinto sagrado dos templos; nos subterr��neos, nos imensos
celeiros vazios pululavam ex��rcitos de homens exaspera-
dos, prontos para tudo; e por toda parte os caritativos
benfeitores, tratando os doentes, distribuindo alimenta-
����o, insinuavam brandamente que os sofrimentos eram
um castigo pela apatia do povo de Kemi, submisso ao es-
O C H A N C E L E R DE F E R R O
339
trangeiro impuro e que, quando se apresentasse o ensejo
de sacudir o jugo vergonhoso, cada qual devia sacrificar
a vida e tudo o que possu��sse, a fim de readquirir a bene-
vol��ncia dos imortais.
Nas hospedarias improvisadas nos templos, os servi-
��ais dos deuses falavam mais explicitamente �� multid��o
esfarrapada que sustentavam. Consolando os moribundos
e cuidando dos doentes, os vener��veis padres diziam fran-
camente que era tempo de acabar com a intoler��vel situa-
����o; que os celeiros do Estado continham trigo bastante
para nutrir todo o Kemi durante dois anos, e que bastaria
tomar o que pertencia ao Egito e aos seus filhos, em lugar
de ver os impuros chasous nutrindo-se com ele gratuita-
mente; que esses pest��feros estrangeiros n��o pagavam,
como os eg��pcios, com a sua liberdade e haveres a c��dea
de p��o, pois o c��o imundo, favorecido com o t��tulo de
Adon, n��o deixava morrerem de fome os chasous. Mas
os tempos se aproximavam, a hora da vingan��a estava
iminente, os astros o prediziam, vis��es e profecias o anun-
ciavam, sendo apenas necess��rio estar pronto para agir
no momento decisivo. Depois de t��o insidiosos discursos,
as faces l��vidas se coloriam de anima����o febril, um ardor
fan��tico cintilava nos olhos e, cheios de ��dio feroz, os
homens procuravam brandir as armas, verificar se os
m��sculos tinham readquirido vigor bastante para entesar
um arco ou sufocar o chasou que lhe ca��sse nas m��os. E
justamente na ocasi��o em que Jos�� considerava a desgra-
��ada popula����o por tal modo enfraquecida e desanimada
que lhe seria imposs��vel atentar contra o Governo, seus
inimigos tinham preparado e agu��ado, �� sorrelfa, uma
terr��vel arma de destrui����o, que s�� esperava o momento
de funcionar.
De resto, era contra o inimigo proveniente de outro
lado, que o Adon tomava as medidas mais en��rgicas, em-
bora secretas. Um desses espi��es, que ele distribu��a por
toda parte, trouxe-lhe de Tebas a not��cia das manifes-
ta����es celestes, que prometiam a expuls��o dos chasous
e o ressurgimento da abund��ncia; dos preparativos de
guerra de Ta�� III e do entusiasmo inaudito das popula-
����es do Alto Egito. Apesar do novo e terr��vel inimigo que
340
J. W. ROCHESTER
lhe criava a perspectiva de guerra indubitavelmente acom-
panhada de uma revolta de todos os vassalos eg��pcios de
Apopi, a natureza de a��o de Jos�� n��o esmoreceu e, com
energia e presteza, tomou medidas defensivas. As guar-
ni����es de Tanis e M��nfis foram dobradas; todos os chefes
de tropas e comandantes de cidades receberam instru����es
do seu pr��prio punho; transportou parte consider��vel dos
seus tesouros para sua tribo, que recebeu ordem de estar
pronta, a fim de, ao primeiro sinal, fugir para Avaris; mas
tudo isso se fez sem ru��do, enquanto oficialmente se pre-
paravam festas e regozijos para a data do casamento com
Hichelat. Somente, irritado, ferventando raiva interior,
mostrava-se cada vez mais impiedoso e o orgulho da su-
prema posi����o que ia ocupar, dentro de algumas semanas,
fazia-o cada vez mais desprezar quaisquer conveni��ncias.
Dois fatos ent��o ocorridos em Tanis puseram em re-
levo a crueldade de Jos�� e sua brutal viol��ncia contra a
casta sacerdotal; mas, tamb��m eles deveriam t��-lo pre-
venido de que a medida da paci��ncia popular, muito vio-
lentamente revolvida, estava prestes a se esgotar.
Um desses fatos foi o processo dos conspiradores, com-
panheiros de Armais, acusados de ter querido assassinar
o rei. Eram todos mo��os, pertencentes ��s primeiras fam��-
lias eg��pcias. Dois tinham conseguido fugir, nove foram
presos e violentamente submetidos �� tortura, depois con-
denados �� morte. O estupor e o desespero encheram todos
os cora����es, sobretudo de um padre chamado Ameni, pri-
meiro hierogramatista do templo de Isis, e no qual a sen-
ten��a produziu efeito fulminante. Entre os condenados,
estava o seu filho ��nico, rapaz de 23 anos, o ��ltimo que
a sorte lhe deixara e a quem adorava cegamente. Em v��o
o desgra��ado pai tudo fez para salv��-lo. Suplicou a Apopi,
prostrou-se lacrimoso aos p��s do Adon; o rei ficou surdo
e Jos�� insens��vel aos rogos e a dor do velho. O Adon de-
clarou apenas que, por uma gra��a insigne, em aten����o ��
idade e �� sua dignidade sacerdotal, n��o o condenavam,
tamb��m ele, como pai do regicida.
O jovem Amenhotep foi executado, mas, desde esse
dia, o infeliz pai caiu em marasmo profundo, fugindo dos
homens e parecendo sempre ruminar alguma coisa que
O CHANCELER DE FERRO
341
ele mesmo n��o se explicava. Todos pensaram que tinha
perdido a raz��o.
Certa manh�� em que Jos�� ia subir �� liteira, um ho-
mem surgiu da multid��o, insinuou-se como enguia entre
os soldados da escolta e, arrancando o cutelo da cintura,
tentou ferir o Adon em pleno peito. Por mais inesperado
o ataque, um dos oficiais Hyksos teve a presen��a de esp��-
rito para fazer saltar com um golpe violento o bra��o do
assassino; a arma desviou-.se e, em vez de atingir o cora-
����o, lavrou extenso corte no ombro e no bra��o do Adon,
que tombou ensang��entado. O criminoso, imediatamente
preso e amarrado, era o velho Ameni.
Jos�� foi sem demora conduzido para casa e o m��dico
que tratou do ferimento declarou-o sem perigo. O cutelo
n��o penetrara al��m das carnes; todavia, o Adon furioso
ruminou como poderia vingar-se, da maneira mais refi-
nada, a fim de conjurar para sempre a reprodu����o de tais
atentados.
A not��cia do evento tinha afligido muitos amigos do
velho padre e alguns dignit��rios sacerdotais dirigiram-se
logo ao pal��cio do Adon, no intuito de explicar que Ameni
estava louco, mas n��o foram recebidos. Jos�� mandou di-
zer-lhes que voltassem no dia seguinte, visto sentir-se
muito debilitado com a perda de sangue.
Saboreando, antecipadamente, a inj��ria sang��in��ria
que ia infligir �� casta sacerdotal, mandou chamar o chefe
da pol��cia de Tanis, rude e cruel Hykso de nome Sabou,
que o povo cognominara de carrasco e ordenou-lhe que,
ao cair da noite, levantasse a forca defronte do templo
de Isis, e enforcasse Ameni revestido dos h��bitos sacer-
dotais, postando ao redor do pat��bulo um destacamento
de soldados para evitar aproxima����o durante tr��s dias.
Decorrido esse tempo, o corpo devia ser transportado para
fora da cidade e atirado em pasto aos corvos. Um letrei-
ro, no peito do criminoso, devia mencionar-lhe o nome, a
condi����o e a senten��a aplicada ao delito.
Quando, aos primeiros raios do sol nascente, os servi-
��ais do templo abriram as portas de bronze do recinto sa-
grado, ficaram estupeficados com a forca, da qual pendia
342
J. W. R O C H E S T E R
o vener��vel Ameni, envolto na indument��ria sacerdotal.
Acima da cabe��a raspada j�� voejavam as aves carniceiras.
Num abrir e fechar de olhos, todo o templo ficou em
polvorosa, uns mudos de horror, outros como tomados de
loucura, rolando nas pedras. Os padres reuniram-se �� en-
trada: a inj��ria era tamanha que os orgulhosos servido-
res dos deuses se interrogavam se n��o significaria o fim
do mundo e se os deuses tolerariam semelhante iniq��idade.
N��o tardou que enorme multid��o enchesse a pra��a,
diante das torres, mas, amedrontado e tr��mulo, o povo
n��o ousava aproximar-se do pat��bulo guardado por sol-
dados de aspecto feroz e arma em punho. Ningu��m notou
que, do recinto do templo, surgiam homens p��lidos e des-
carnados, olhos cintilantes de ��dio selvagem, os quais se
infiltravam na multid��o, praguejando, pregando a revolta
e a vingan��a de t��o ignominiosa afronta. "�� nosso dever
��� diziam ��� libertar o corpo ultrajado do vener��vel Ameni;
deix��-lo-emos pendido aqui como qualquer malfeitor, pri-
vado de sepultura, este amigo dos pobres, consolador dos
doentes e dos fracos, cujo desespero o levou a vingar a
morte horr��vel do filho ��nico? Vergonha para n��s, se co-
vardes ficarmos espectadores inativos, quando o opressor
que se farta com a nossa fortuna, que nos deixa morrer
de fome, come��a a enforcar nossos padres, nossos benfei-
tores que se arru��nam para nos nutrir. Se o deixarmos, ele
arrastar�� nossos deuses ao lixo."
Tais discursos ca��am como semente fecunda em ter-
reno f��rtil; as massas mudas, petrificadas de espanto,
come��aram a ondular qual mar de ��leo, um surdo ru��do
levantou-se. Quem deu o primeiro passo? Quem deu o sinal
de agir? Ningu��m poderia diz��-lo, mas, s��bito, de todos
os lados a multid��o arrojou-se para a frente e, sob pres-
s��o irresist��vel os soldados da guarda foram derribados,
pisados antes mesmo de poderem utilizar as armas; num
abrir e fechar de olhos, o pat��bulo foi abatido, e o corpo
de Ameni arrebatado. Levando o cad��ver em trof��u, a
multid��o em bloco engolfou-se no templo, enquanto os
que n��o podiam penetrar saciavam a raiva, reduzindo a
migalhas os restos da forca e espeda��ando os corpos dos
soldados Hyksos. S�� uma carga de carros e cavaleiros p��de
O CHANCELER DE FERRO
343
dispersar os amotinados. Mais prudentes que na primeira
refrega, debandaram em todas as dire����es, abandonando
os membros sangrentos de suas v��timas, que preparavam
para atirar ao Nilo. As portas do templo imediatamente se
fecharam.
Esse acontecimento provocou severa sindic��ncia. Jos��,
ardendo em f��ria, mandou enforcar ou bastonar, sem mi-
seric��rdia, quem quer que fosse suspeito de haver tomado
parte no motim; mas n��o atacou novamente os padres,
julgando que lhes tinha dado uma li����o suficiente para
o momento. Fingiu, pois, acreditar que Ameni fora asso-
mado de loucura e reservou repres��lias ainda mais en��r-
gicas para quando fosse Fara��. Al��m disso, o dia do casa-
mento aproximava-se e n��o queria perturbar com exe-
cu����es e poss��veis rea����es populares a pompa real das
n��pcias.
Para essas, fazia imensos preparativos: os sacerdotes
de todos os templos eram chamados a Tanis, fartas distri-
bui����es de trigo e roupas eram prometidas ao povo e, no
pal��cio do Adon, deveriam regalar-se de vinho, cerveja e
v��veres, todos quantos l�� se apresentassem.
Oito dias antes do evento, enquanto toda a cidade dor-
mia, numerosa assembl��ia se reunia em uma das criptas
do templo de ��sis. L�� estavam os sacerdotes e os mais ve-
ner��veis dignit��rios sacerdotais de Tanis, M��nfis, Sais,
Bubastis, Heli��polis e outras cidades do Baixo Egito;
alguns militares entre os quais Racapou e Putifar, e dois
mensageiros de Ta�� III, chegados na v��spera para anun-
ciar que o rei e seu ex��rcito tinham deixado Tebas, mar-
chando sobre M��nfis.
Discutia-se em voz baixa essa ��ltima not��cia, quando
Pot��fera entrou acompanhado de um homem alto, envolto
num manto escuro; abaixo do capuz descido, longa barba
branca cobria-lhe o peito.
��� Meus amigos, trago-vos um aliado cujo poder e
ci��ncia nos auxiliar��o no momento decisivo ��� disse o sa-
cerdote cujo rosto austero refletia calma satisfa����o. ��� To-
dos v��s sabeis que chegou o momento em que precisamos
morrer ou vencer o miser��vel opressor que, com m��o impu-
344
J. W. ROCHESTER
ra, quer apoderar-se da coroa e do cetro. O que ele nos
reserva, quando dispuser do supremo poder, vimo-lo no
assassinato de Ameni.
"Inimigo dos nossos deuses e do nosso povo, desejaria
destru��-lo; mas, cansados dos crimes desse homem, os
imortais nos enviam um auxiliar, o mestre que o dotou do
saber que possui, e que vem destruir o que fez."
O desconhecido levantou o capuz e todos viram o rosto
calmo e majestoso de Schebna. O sacerdote de Ptah em
M��nfis e alguns padres de Tanis, que, evidentemente o
conheciam, rodearam-no alegres, abra��ando-o como a um
irm��o. Mas, vendo o espanto dos outros, Pot��fera voltou-
-se para eles:
��� Em poucas palavras, amigos, vou explicar-vos a
presen��a do vener��vel Schebna. Mais de uma vez, deveis
lembrar-vos, n��s nos temos interrogado por que acaso esse
pastor n��made podia ter adquirido a ci��ncia terr��vel de
que disp��e, e at�� segredos de n��s desconhecidos.
"Mas eu quis saber, porque ningu��m, como eu, tem
ferido o cora����o por esse c��o nauseabundo, que destruiu
meus filhos, fez branquear meus cabelos e enrugar-se-me
o rosto por todos os ultrajes que me imp��s. Quando, um
dia, isolado no santu��rio, implorava a Amon-Ra conce-
desse, como ��nica recompensa de meus longos servi��os,
lavar meu cora����o no sangue do opressor, o deus me ins-
pirou uma id��ia salutar; um emiss��rio se estabeleceu junto
da fam��lia do Adon e esse homem h��bil e prudente soube
logo, pelos selvagens e indiscretos pastores, que, no tempo
em que Jos�� ainda vivia entre .eles, havia na tribo um
velho s��bio caldeu, que se interessava pelo rapaz e devia
t��-lo instru��do na ci��ncia secreta.
"Foi um fio de luz, e, gra��as ��s rela����es entre todos
os santu��rios, sem distin����o de sangue, pude descobrir o
nome e o retiro de Schebna; informei-o de nossa desgra��a
e apelei para o seu aux��lio; ele veio a primeira vez e, tendo
experimentado toda a ingratid��o do miser��vel, que preten-
deu prend��-lo, aqui esteve algum tempo oculto, depois em
M��nfis, que deixou para retirar-se ao deserto. Agora, vol-
tou por delibera����o pr��pria, a fim de nos oferecer o seu
concurso."
O CHANCELER DE FERRO
345
��� Sim, foi para isso que vim; desencadeei o mal e ��
justo que o detenha ��� respondeu solenemente Schebna,
quando todo o mundo o cercou para apertar-lhe a m��o.
A discuss��o prosseguiu mais animada, ficando assen-
tado que o dia das n��pcias devia ser tamb��m o ��ltimo
do poderio do Adon; e que aproveitariam a perturba����o
da festa para desencadear a rebeli��o em diversos pontos,
com a morte do Adon.
��� Que seja minha essa tarefa: dou-vos minha pala-
vra em como o meu aluno de outrora n��o ver�� levantar-se
o sol do dia seguinte ��� observou Schebna.
��� A ti, irm��o, o direito de abater o monstro ao qual
deste bico e garras, e n��o menos justo ser�� que, no dia
em que o audaz criminoso ornar a fronte com o uraeus,
a ��spide real o penetre com o seu dardo mortal ��� respon-
deu Potifera com um sorriso de sat��nica ironia.
*
P��lida, taciturna, silenciosa, Hichelat tinha voltado
para Tanis, onde a esperava ef��mera alegria. Por interm��-
dio de um padre, recebera not��cias de Armais, certifican-
do-a de sua feliz chegada a lugar seguro (por cautela n��o
fala em Tebas) e reafirmando o seu amor em termos apai-
xonados, rogando-lhe n��o perdesse a coragem, visto como
esperava firmemente que os deuses ainda lhes acordariam
a felicidade.
Comprimiu nos l��bios as linhas tra��adas pela m��o
amada, enquanto l��grimas amargas inundavam-lhe as
faces. Nada mais esperava: dentro de vinte e quatro horas
n��o seria a mulher do maldito?
A id��ia de que uma fatalidade cruel lhe conservara
uma vida que s�� inspirava aborrecimento, quando a mor-
te estivera t��o pr��xima, proporcionava-lhe desesperada
c��lera.
Segundo um velho costume, as mo��as festejavam a
v��spera do casamento com uma reuni��o de suas compa-
nheiras: jogos, dan��as e permuta de presentes mais ou
menos preciosos, conforme a classe e a fortuna da noiva.
346
J. W. ROCHESTER
Hichelat, por��m, recusou terminantemente a tradi����o. Ale-
gando sentir-se ainda fraca e fatigada da mol��stia, prefe-
riu ficar s�� e passar em recolhimento e ora����o a derradeira
noite de solteira. Apopi, inquieto com a palidez e morna
apatia da filha, acedera ao seu desejo e, na v��spera das
n��pcias, achamos Hichelat sozinha no quarto. At�� a me-
lhor amiga, Nephtys, filha do comandante de Tanis, se
recolhera ao quarto cont��guo, ao ver o abatimento e o
mutismo da amiga. Fugiram as horas e a princesa n��o se
moveu do terra��o; deitada numa poltrona, olhar perdido
no v��cuo, refletia que essas horas t��o fugazes eram as
��ltimas da sua liberdade; que no dia seguinte pertenceria
a Jos�� e, �� id��ia de ser sua mulher, de sofrer constante-
mente a sua presen��a, um suor glacial a inundava, inven-
c��vel sentimento de horror e repulsa lhe esvurmava o
cora����o.
O dia todo fora quent��ssimo, o ar pesado, abrasado,
asfixiante, dificultava a respira����o. A tarde, nuvens ne-
gras invadiram o c��u; um vento forte come��ou a soprar
e alguns long��nquos trov��es anunciaram a aproxima����o
da tormenta. Vendo que a amiga n��o prestava aten����o
a esses fen��menos inquietantes, Nephtys foi ter com ela
e convidou-a delicadamente a recolher-se. Hichelat levan-
tou-se, sem obje����o, e as duas subiram ao gabinete da
princesa, que, com enorme pesar para Nephtys, postou-se
n��o longe da janela e recaiu logo em seu cismar. Em
compensa����o, a filha do comandante, que se tinha sen-
tado perto dela num coxim, fitava ansiosamente o exte-
rior. Por um claro entre as ��rvores do jardim, via-se o
Nilo, cujas vagas eram fustigadas pelo vento, sacudindo
como cascas de noz as embarca����es que tentavam chegar
�� margem.
A noite caiu logo e verdadeira tempestade se desen-
cadeou; rel��mpagos fulgurantes zebravam o c��u negro; o
trov��o rugia ininterrupto, fazendo tremer os alicerces do
pal��cio; o vento sibilava, vergando e torcendo as palmeiras
e grossos sic��moros, como gravetos; enfim, a chuva tor-
rencial come��ou a cair estrepitosamente.
Muda de espanto, Nephtys escondera o rosto nas m��os,
enquanto Hichelat permanecia indiferente e calma. Aquele
O C H A N C E L E R DE F E R R O
347
desencadear dos elementos aliviava-a, parecia-lhe que a
sua tempestade ��ntima se descarregaria nessa tempestade
exterior; que todo o seu desespero comprimido chorava,
rugia, gritava no sibilar do vento e nos fragores do trov��o.
Com um longo suspiro apoiou a cabe��a no encosto da ca-
deira e fechou os olhos.
S��bito, estranho rumor atingiu-lhe o ouvido e, tran-
sida de medo, viu as ��guas do Nilo transbordarem, cresce-
rem quais montanhas, inundarem os jardins e rolarem as
ondas espumarentas e tumultuosas pelo pal��cio; com ver-
tiginosa rapidez as ��guas subiam, penetravam por todas
as portas, alagando-lhe o quarto e amea��ando afog��-la.
Nesse instante surgiu do f��rvido bulc��o um homem de
estatura gigantesca; barba alvacenta, cintilante como go-
tas de orvalho ao Sol, moldurava-lhe o rosto de beleza
severa e, todavia, juvenil; uma coroa de l��tus cingia-lhe
a fronte e os grandes olhos de azul-ferrete refletiam a
soberba calma das energias conscientes. Tomando-a nos
vigorosos bra��os, apertou-a de encontro ao peito. Hichelat
sentia o contacto do poderoso deus desconhecido, tinha
consci��ncia de que as ��guas geladas submergiam-na, ar-
rastavam-na; sentia-se morrer. Em v��o tentou debater-se,
desprender-se: o abismo a tragava e, com um grito surdo,
levantou-se. Seu olhar agitado vagou pelos objetos conhe-
cidos que a rodeavam e ali estavam fracamente iluminados
pela l��mpada colocada no fundo do quarto, fixando-se de-
pois em Nephtys, ajoelhada a seu lado e fitando-a ansio-
samente.
��� Sonho, ou vis��o? Em todo o caso, um an��ncio de
morte ��� murmurou estremecendo. ��� Vem, Nephtys, des-
��amos, quero deitar-me; e tu, vigia ao p�� de mim at�� de
manh��.
*
Apesar da satisfa����o inaudita, radicada no seu orgu-
lho, em cingir o uraeus, que o esperava dentro de poucos
dias, o Adon estava atormentado por vaga inquieta����o e
s�� a vontade de ferro e orgulhosa confian��a que lhe ins-
pirava o seu poder conseguiam dominar os maus pressen-
timentos. Essa disposi����o de esp��rito provinha de duas
348
J. W. ROCHESTER
causas: a primeira era sua posi����o em face de Asnath,
que o embara��ava cada vez mais. Havia semanas, n��o
tinha visitado a esposa, cujo mudo desespero e vis��vel en-
fraquecimento o irritavam; e o pensamento de que ela
pudesse morrer antes de faz��-la reaparecer para vingar-
-se e degradar Hichelat, enchia-o de furor. A segunda
causa, que ainda mais o preocupava, era uma s��rie de maus
press��gios que se tinham sucedido nos ��ltimos tempos.
Assim que, os astros consultados deram resposta desfavo-
r��vel, anunciando no seu caminho perigos desconhecidos;
o sol-poente mostrara uma grandeza dupla da habitual e
cercado de tr��s c��rculos azulados, o que, segundo os adivi-
nhos caldeus, predizia a destrui����o do rei.
Jos�� interpretou esse press��gio pela morte de Apopi,
que desapareceria para lhe ceder o trono, quando, na ma-
nh�� da v��spera do casamento, um fato ainda mais agou-
rento veio alarm��-lo: um c��o desconhecido insinuara-se
no sal��o do pal��cio do Adon, emporcalhara o sof��; depois,
vomitara nos degraus da escada e, para c��mulo da des-
gra��a, se tinha escapado sem que soubessem por onde e
como. Era not��rio a toda a gente que um tal incidente
significava a morte do dono da casa.
Uma nuvem sombria cobriu a fronte de Jos��, e quando,
�� tarde, desencadeou-se a tempestade, a inquieta����o, a
vaga agonia que o ensombrava empolgou-o novamente
com redobrada viol��ncia. Cabisbaixo, galgou a escada da
torre do observat��rio; queria enfrentar os rel��mpagos e
escutar o trov��o ��� essa voz retumbante das for��as pla-
net��rias.
Sombrio, de cenho carregado, encostou-se a uma co-
lunata, fitando atentamente o c��u e os ziguezagues do
fogo, que, fendendo as nuvens negras, pareciam ferir a
terra. O claror dos rel��mpagos iluminava fantasticamente
a silhueta do Adon vestido de branco, e seu rosto caracte-
r��stico, sereno e intr��pido no meio da tempestade que es-
trondeava em torno.
S��bito, uma gir��ndola de fogo iluminou todo o hori-
zonte e um raio pareceu ferir a torre, que vacilou em
sua base. Assombrado, Jos�� fechou um momento os olhos,
mas, quando os abriu de novo, um grito de louco terror
O C H A N C E L E R DE F E R R O
349
morreu-lhe na garganta. Abaixada no parapeito do obser-
vat��rio, rodeada de larga aur��ola fosforescente, estava a
sua esfinge protetora; mas o rosto, outrora t��o calmo,
era agora sombrio e amea��ador; seus olhos flamejavam e
a estrela da testa, vermelha de sangue, despedia, crepi-
tando, fagulhas luminosas.
��� Ingrato, a quem nutri com a seiva do meu ser, a
quem aqueci com o meu sopro e abriguei sob as asas
��� murmurou o misterioso ser ���, que fizeste desta terra
de Kemi, onde te fiz grande e poderoso? Tu a semeaste
de ru��nas e cad��veres; meu seio esgotou-se com a tua ar-
dente avidez e as maldi����es que sobre ti pesam fizeram
pender para o abismo a balan��a do teu destino. N��o mais
te protejo. Que a tua sorte se cumpra e as emana����es do
mal, acumuladas na tua passagem pela Terra, recaiam
no teu cora����o como nuvem de chumbo que te h�� de
esmagar.
Desdobrando as asas imensas, a esfinge elevou-se nos
ares, enquanto Jos�� sentia uma como martelada na ca-
be��a, baqueando desacordado.
Quando reabriu os olhos, era dia alto; estava esten-
dido na cama e Pibisi, o fiel escravo, friccionava-lhe o
rosto e as m��os com ess��ncias arom��ticas.
��� Louvados sejam os deuses, senhor, pois que des-
pertas, finalmente! Eu te supus morto, quando, depois de
muito procurar, te encontrei no observat��rio. Ia mandar
chamar o m��dico quando te moveste. Aben��oado seja
Os��ris!
Jos�� levantou-se com a cabe��a pesada e murmurou:
��� Sim, o raio devia ter ca��do no jardim; fiquei ator-
doado.
��� No jardim, n��o, mas fez inauditos estragos ��� res-
pondeu Pibisi ���; uma das torres, na frente do pal��cio
do Fara��, ficou partida de alto a baixo; depois, no templo
de Soutech, quebrou a cabe��a do deus e o altar. O povo
est�� muito impressionado com tudo isso.
Jos�� levantou-se taciturno, cora����o opresso; os pre-
n��ncios de desgra��a se acumulavam e isso justamente no
dia em que festejava o seu triunfo supremo. Mas, o indo-
350
J. W. ROCHESTER
mito orgulho e presun����o tenaz, pr��prios da ra��a sem��tica,
conservaram-no de p��; com o ousado desembara��o que
seus descendentes herdaram e lhes faz estender m��o ��vida,
n��o somente para a riqueza de qualquer na����o, como para
os mais elevados cargos, o chanceler do rei Apopi acredi-
tava-se j�� solidamente sentado no trono fara��nico e em
condi����es de tudo afrontar. Esquecia que a Fortuna ��
deusa caprichosa, que, muitas vezes, se diverte em esma-
gar sob suas rodas aqueles que mostram ter sido dema-
siadamente favorecidos.
Com a sua peculiar atividade, o Adon ocupou-se dos
neg��cios mais urgentes e, depois, fez-se aprontar para a
cerim��nia nupcial.
Quando, no espelho de metal, examinou a sua figura
imponente e ajustou o gorro em forma de capacete, orna-
do com o uraeus, com o qual devia formalizar-se no pal��-
cio, um sorriso de orgulhosa satisfa����o frisou-lhe os l��bios
e, empertigando-se, murmurou: "Pobre e ��nfimo, venci o
destino; Fara�� do Egito, afrontarei o destino."
X
A NOIVA DO NILO
No palacio real era tudo ru��do, alegria, anima����o; por
toda parte flutuavam galhardetes, enla��avam-se grinal-
das; extensas filas de carros e liteiras despejavam os dig-
nit��rios e suas esposas carregadas de j��ias. E apenas os
estragos produzidos pelo furac��o, a torre meio destru��da,
mastros arrancados, ��rvores desenraizadas, assim como os
buracos cavados pelas torrentes pluviais, contrastavam
desoladamente com os aprestos da festa. Todavia, o agua-
ceiro tinha trazido suas vantagens; a folhagem lavada
pelas grossas ��guas da espessa camada de p�� que a cobria,
parecia animada de nova seiva, o ar tinha readquirido
frescura. Tamb��m, apesar da desordem e da lama invul-
gar, as ruas regurgitavam de povo e centenas de embar-
ca����es embandeiradas sulcavam as ��guas avolumadas e
ainda tumultuosas do Nilo.
No sal��o do trono apinhava-se a multid��o brilhante
dos cortes��os e dignit��rios, e, destacando-se nesse fundo
policromo, ostentava-se, qual faixa branca, a fila dos pa-
dres que, impass��veis, graves, concentrados, formavam
grupo �� parte. �� face deles, no fundo da sala, estavam
colocadas no estrado uma mesa e uma poltrona, junto da
qual postavam-se dois escribas reais, segurando um prato
de ouro com um papiro enrolado. Logo surgiu Apopi, con-
duzindo pela m��o a filha ricamente trajada e coberta de
pedrarias de valor inestim��vel.
Aparentemente, a princesa mostrava-se calma e nunca,
talvez, sua beleza altiva ostentou um brilho t��o fulgente;
apenas, estava t��o branca como a t��nica bordada de ouro
352
J. W. ROCHESTER
e p��rolas que vestia, e os olhos ora cintilantes e ardentes,
ora velados e quase mortos, tra��am a agita����o interior.
Mal o rei e ela tomaram lugar no estrado e os porta-
-leques e a comitiva se gruparam em redor deles, Jos��
entrou na sala. Dirigindo-se desembara��adamente para o
trono, prostrou-se; mas Apopi levantou-o com bondade;
depois, voltando-se para a assembl��ia, declarou em pala-
vras breves, mas claras, que sua sa��de vacilante for��ava-o
a pensar no momento em que Os��ris o chamasse a si, e
que considerava seu dever nomear, desde logo, um su-
cessor. Acreditava n��o poder escolher outro mais digno
do que o homem que ia tornar-se seu genro, o s��bio e
prudente conselheiro que salvara o Egito da fome e a cujo
governo toda a gente estava habituada; cuja bondade e
energia eram a mais segura garantia da prosperidade do
Estado. Era, portanto, vontade sua que, desde aquele dia,
fosse ele considerado o herdeiro do trono, pelo que ia ime-
diatamente assinar o decreto que dava for��a de lei a essa
disposi����o.
Descendo do estrado, dirigiu-se para a mesa prepara-
da, na qual os escribas se apressavam a desenrolar o papi-
ro e assinou o importante documento, que definitivamente
entregava o Egito ao seu cruel opressor. Depois de aplicado
o selo real, assinaram a seu convite Pot��fera e alguns ou-
tros dignit��rios. Isso feito, dois camaristas apresentaram
numa bandeja o gorro de p��rpura em forma de capacete,
ornado com dois uraeus de ouro ��� distintivo dos pr��ncipes
reais ���, com o qual Jos�� foi coberto. Ent��o, Apopi tomou
a m��o da filha e colocou-a na do noivo. Leve palidez
cobriu o belo rosto de Jos�� e um estremecimento nervoso
percorreu-lhe o corpo: finalmente, galgava o fast��gio do
estranho e soberbo futuro que lhe havia predito Schebna.
Olhos cintilantes, narinas frementes, ergueu-se em toda
a sua altura e seus dedos apertaram como um tomilho a
m��o gelada da princesa, enquanto gritos e aclama����es
estrugiam na sala e a Corte desfilava diante deles para
felicit��-los.
A cerim��nia nupcial deveria, conforme o programa,
celebrar-se no templo de Soutech, mas, em conseq����ncia
da destrui����o da imagem do deus, pelo raio, Apopi deter-
O CHANCELER DE FERRO
353
minara que trouxessem ao pal��cio a est��tua de Hator, e
era diante dela que devia proceder-se ao ato religioso. Em
sala cont��gua, tinha sido colocada em altar port��til a ima-
gem da deusa recoberta de flores; atr��s dela, postaram-
-se em semic��rculo todos os padres presentes e, enquanto
as cantoras do templo entoavam um hino sagrado, o sa-
cerdote uniu, acima da chama de uma tr��pode, as m��os
dos c��njuges.
Hichelat, p��lida e muda qual est��tua de cera, parecia
indiferente ao que se passava. S��bita escurid��o invadiu a
sala e um raio, acompanhado de trov��o, pareceu jorrar do
teto, apagando a chama da tr��pode. Hichelat deu um grito
e, caindo para tr��s, perdeu os sentidos. L��vido e respirando
dificilmente, Jos�� amparou a jovem esposa, enquanto um
murm��rio de espanto percorria as fileiras de espectadores;
mas j�� a claridade do dia tinha voltado e verificou-se,
com admira����o, que as flores que ornavam a est��tua de
Hator estavam murchas e que no altar jazia uma v��bora
morta. Donde tinha vindo? Oculta nas grinaldas? Nin-
gu��m o sabia e os padres ficaram mudos e impass��veis.
Pouco a pouco e gra��as �� pragm��tica, todos se tran-
q��ilizaram e a festa continuou; apenas a noiva faltou ao
festim; tinham-na conduzido desacordada aos seus apo-
sentos e todo o mundo notou a palidez, a sombria preocupa-
����o de Apopi e as convuls��es nervosas que, cada vez mais
freq��entes, contra��am-lhe a face.
Somente quando chegou a hora de ir para o pal��cio
do marido, Hichelat reapareceu e tomou lugar na cadeira
port��til ornada de pedrarias; mas no momento em que
Jos�� ia colocar-se junto dela, um oficial do seu s��quito
atravessou apressadamente a multid��o dourada que ro-
deava a liteira e apresentou-lhe a mensagem que um cor-
reio, quase morto de fadiga, acabava de trazer, dizendo
que se tratava de assunto importante.
Jos�� abriu a mensagem e, �� medida que ia lendo, s��-
bita palidez cobria-lhe o rosto: o chefe dos armaz��ns de
trigo mais pr��ximos de Tanis escrevia que, desde a v��spe-
ra, uma turba sempre crescente tinha cercado os dep��sitos,
tomara-os de assalto apesar da resist��ncia desesperada
354
J. W. ROCHESTER
dos soldados, e estava pilhando o trigo. Pedia refor��os,
visto a massa dos amotinadores aumentar incessantemen-
te. Sem demora, o novo pr��ncipe real tra��ou algumas
linhas, ordenando que expedissem incontinenti ao teatro
das perturba����es um corpo de tropas consider��vel e pu-
nissem os rebeldes sem miseric��rdia. Tendo ordenado que
remetessem imediatamente essa ordem ao comandante da
guarni����o de Tanis, tranq��ilizou-se e tomou lugar junto
da jovem esposa.
Fez-se longo sil��ncio. Involuntariamente, Jos�� se lem-
brara de Asnath, do dia em que, naquele mesmo pal��cio
real a transportara �� sua nova morada. Em turbilh��o,
repassaram-lhe na mente as perip��cias da sua uni��o, at��
a ��ltima entrevista no subterr��neo; e a lembran��a do
pequeno rosto p��lido e emagrecido; do olhar at��nito e
desesperado da inocente prisioneira, encheu de s��bito o
seu cora����o de insuport��vel mal-estar. Passando a m��o
pelo rosto, procurou repelir aqueles pensamentos impor-
tunos e voltou-se para a nova esposa: a princesa n��o
parecia mais desesperada e morna, como durante a ceri-
m��nia; seu olhar, calmo e altivo, parecia escrutar a mul-
tid��o, que, formando alas, apertava-se dos dois lados da
rua; apenas um friso estranhamente duro e amargo se
cristalizara na comissura dos l��bios esmaecidos.
��� Hichelat, n��o queres honrar-me com um raio de
benevol��ncia? ��� murmurou inclinando-se e tomando-lhe
a m��o, que prendeu na sua.
"Teu esposo, suponho, merece mais do que este glacial
sil��ncio. A vontade do Fara��, teu pai, tornou-me teu igual
e destruiu o derradeiro escr��pulo do teu orgulho; entre
a filha do rei e o herdeiro do trono n��o existe mais o
abismo."
O olhar da princesa caiu-lhe em cima com um tre-
mendo desprezo:
��� N��o tenho mais pai, desde a hora nefasta em que,
por cega fraqueza, escolheu para herdeiro o homem que
o Egito abomina e, com sua pr��pria m��o, deu o golpe que
far�� desabar o trono. E se a presun����o te cega, olha esta
multid��o silenciosa e l�� nessas faces sinistras a alegria
O C H A N C E L E R DE F E R R O
355
que experimentam em ter-te por soberano. Nem uma voz
eg��pcia se fez ouvir para saudar tua eleva����o e o c��u, can-
sado dos teus crimes, apagou a chama sagrada, acima da
qual me ligavam contigo. Quanto a te tornares meu igual,
nunca o ser��s, pois, entre a princesa Hichelat e o escravo
de Putifar, em cujas costas dan��ou o bast��o do capataz,
cavar-se-�� sempre um abismo.
L��vido, olhos injetados de sangue, Jos�� ficou um mo-
mento incapacitado de responder; apenas seus dedos se
apertaram como tenazes no pulso da mo��a, vincando pro-
fundamente nas carnes o pesado bracelete que o cingia.
��� Insensata, n��o esque��as que, de hoje em diante,
tenho sobre ti os direitos de esposo e n��o me afrontes t��o
insolentemente ��� disse com voz rouca ���; quanto a Putifar
e Ranofrit, far-lhes-ei pagar na forca as cal��nias que
ousam propalar contra o herdeiro do trono.
Apesar da dor aguda que lhe mo��a o bra��o, Hichelat
ficou impass��vel e, no tom baixo e velado em que se fazia
essa conversa, respondeu com ironia cruel:
��� Queres assassinar-me como a Asnath? Ou pensas
que, matando os mais nobres filhos do Egito aumentar��s
tua pr��pria nobreza? Toma cuidado contigo e n��o esque-
��as que Ranofrit �� a irm�� de Pot��fera; que h�� limites ��
paci��ncia popular e que bem poderias acabar massacrado
por seus vassalos. Quanto a mim, declaro-te que, mesmo
coroado, ficas sendo o c��o imundo cuja origem abjeta ne-
nhuma p��rpura pode dissimular.
Com os l��bios tr��mulos de raiva, Jos�� preparava-se
para responder, quando a liteira parou e o cerimonial da
recep����o interrompeu a conversa.
Nos p��tios do pal��cio apinhava-se multid��o enorme,
devorando com olhos rapaces os presentes e vitualhas que
lhes distribu��a um ex��rcito de escravos, enquanto outros
derramavam em copos, que incessantemente se esvazia-
vam, vinho, cerveja e leite. Debaixo das colunatas, inten-
dentes davam, a quem se apresentasse, vestidos ou an��is
de cobre, convidando os que se aproximavam a dar vivas
em homenagem ao pr��ncipe real. O povo, por��m, ficava
silencioso, como silencioso se mantivera no desfile do cor-
356
J. W. R O C H E S T E R
tejo nupcial; apenas as massas que chegavam eram t��o
compactas, uma tal multid��o se apinhava qual viva mu-
ralha em torno do pal��cio, atravancando as ruas adja-
centes, que os soldados do posto, assim como os intenden-
tes, come��aram a sentir receios. Mas, sem ordem superior
ningu��m ousava dispersar a popula��a silenciosa e humil-
de, que n��o demonstrava nenhuma hostilidade. S��bito,
como a um sinal, as massas populares se abalaram e, com
��mpeto irresist��vel e gritos ferozes, arrojaram-se ao inte-
rior do pal��cio.
No sal��o o festival tocava ao termo. Tinha-se comido
e bebido fartamente, como o provavam as faces incendidas
dos convivas, mas os chasous, especialmente, porque os
eg��pcios tinham dado exemplo de sobriedade.
No fundo da sala, sobre um estrado ao qual se subia
por alguns degraus, estava posta uma mesa para duas
pessoas e nela se sentavam em douradas cadeiras, o pr��n-
cipe real e a esposa, dominando toda a assembl��ia e res-
pondendo com ben��volas sauda����es aos brindes e vivas dos
convidados.
Hichelat n��o tocara em coisa alguma e Jos�� dissimu-
lava, com esfor��o, a tempestade que lhe ia no ��ntimo,
provocada pelas palavras insultuosas da princesa e pela
acusa����o de assassinato que lhe lan��ara em rosto.
Rancoroso, cogitava na maneira de castig��-la mais
sensivelmente, quando gritos, clamores cada vez mais pr��-
ximos, chamaram sua aten����o. O barulho de uma luta,
misturado aos gritos de "Morra o Adon, morra o opressor!"
fizeram-se ouvir distintamente e todas as conversas pa-
raram. Mas, antes dos convidados sa��rem do seu estupor,
um tro��o de soldados ensang��entados, procurando em v��o
deter a onda de esfarrapados que os cercava de todos os
lados, irrompeu na sala. Os convivas, espantados, saltaram
das cadeiras, mas quase no mesmo instante alguns ca��ram
debaixo de cutiladas. Jos��, que se tinha levantado, viu
com espanto todos os eg��pcios cobrirem a cabe��a com os
gorros vermelhos, que traziam escondidos debaixo das
roupas e, compreendendo que estava em face de uma
conspira����o longamente preparada, pulou do estrado e,
insinuando-se entre a multid��o estupefata, saiu por uma
O CHANCELER DE FERRO
357
porta lateral; o tumulto era tal que ningu��m notou o seu
desaparecimento. No sal��o dava-se verdadeiro massacre;
todos os que n��o traziam gorro vermelho eram massa-
crados sem miseric��rdia e, enquanto uma parte da multi-
d��o, sedenta de sangue, saciava-se nos Hyksos, outros
saqueavam a mesa, disputando-se a comida e a baixela,
esvaziando as ��nforas e arrancando aos cad��veres, aos
feridos, ��s mulheres, as j��ias que traziam.
Hichelat tamb��m se tinha levantado e, agarrada con-
vulsivamente ao encosto da cadeira, contemplava, livida
e muda, a cena horr��vel e hedionda que se desenrolava
a seus p��s. Inopinadamente, a aten����o da turba convergiu
para ela, cercaram o estrado e os olhares ferozes dessas
f��rias cravaram-se avidamente na mo��a, que, im��vel em
suas vestes bordadas a ouro, cintilante de j��ias, parecia
um ��dolo suspenso num altar.
Durante alguns segundos o respeito inato, o h��bito
de se prostrar na poeira, diante dessa mulher em cuja
fronte se erguia o uraeus, pareceu deter os amotinados,
mas s��bito uma voz retumbante gritou: "Morra a mulher
do traidor, do opressor." "N��o! Ao Nilo a filha de Apopi;
sacrifiquemos ao rio sagrado esta noiva real!" "Sim, tal-
vez o deus se deixe comover por semelhante v��tima; que
ela pague pelos crimes do pai e do esposo!" ��� clamaram
cem vozes discordantes. Vendo os homens esfarrapados
atirarem-se violentamente para si, sentindo as m��os ca-
losas segur��-la e suspend��-la qual trof��u, acima de suas
cabe��as, Hichelat perdeu os sentidos. Pot��fera que, desde
o come��o do dist��rbio, procurava, em v��o, galgar o es-
trado, empalideceu; tinha jurado a Armais proteger e
salvar a mo��a, cujo generoso sacrif��cio lhe salvara o filho;
mas tudo se passara t��o rapidamente que lhe fora impos-
s��vel atingir Hichelat isolada e �� vista de todos sobre o
estrado, para salvaguard��-la com a sua presen��a e o
respeito que inspiravam suas vestes brancas. Ouvindo os
gritos da multid��o, compreendeu que a infeliz estava per-
dida e que seria mais f��cil arrancar uma presa da goela
de um le��o, do que subtrair ao povo supersticioso e feroz
a v��tima que ele destinava ao rio sagrado. Os sacrif��cios
humanos eram coisa habitual e, desde que viera a fome,
358
J. W. R O C H E S T E R
in��meras vitimas, donzelas principalmente, tinham achado
a morte no rio, que esperavam abrandar com semelhantes
oblatas, para obter que a inunda����o voltasse, enfim, a
fecundar os campos.
A mole humana que conduzia Hichelat, rolava agora
para o Nilo, aclamada com selvagens exclama����es de ale-
gria pela multid��o que se afastava para lhe dar passa-
gem. Receando ser ele pr��prio esmagado e compreendendo
que na ocasi��o n��o tinha ascendente sobre o elemento
terr��vel que ele e seus confrades tinham desencadeado,
Pot��fera, sinceramente aflito com o golpe que feria o filho,
retirou-se para uma alcova, aguardando os sucessos.
Chegados �� margem do rio, os condutores da princesa
apoderaram-se de uma barca embandeirada, que esperava
os donos, remaram at�� o meio do Nilo e, com o grito de
"Aceita esta noiva real, rio sagrado, e s��-nos prop��cio"
lan��aram Hichelat nas ondas. A frescura da ��gua f��-la sair
do seu desmaio; um momento flutuou, agitando fracamente
os bra��os na superf��cie; os raios do sol-poente refletiam -
-se no ouro dos seus vestidos e rodeavam-na de uma
aur��ola m��gica. Depois, bruscamente, mergulhou, desapa-
receu. Gritos de alegria fren��tica acolheram a morte da
inocente v��tima e a multid��o, t��o satisfeita na sua vin-
gan��a como nas suas supersticiosas esperan��as, retomou,
correndo, o caminho do pal��cio do Adon, para ter a sua
parte na pilhagem.
Enquanto isso se passava, Jos�� tinha galgado sem
obst��culo os aposentos particulares. No tumulto geral,
ningu��m lhe prestou aten����o e ele respirou aliviado ao
penetrar nos quartos onde reinavam o sil��ncio e a ordem
habituais. Sem perder tempo, precipitou-se no corredor
secreto que conduzia �� pris��o de Asnath; de l�� poderia
ganhar o Nilo e, favorecido pela noite, dirigir-se para
Avaris, de onde voltaria com for��as suficientes para cas-
tigar os rebeldes. "Esperai, miser��veis! Como vos farei
pagar esta hora!" ��� rosnava fechando os punhos, quan-
do inesperado obst��culo veio transtornar-lhe os pensa-
mentos; acabava de esbarrar numa porta fechada, cuja
chave n��o tivera a lembran��a de apanhar. Soltando uma
blasf��mia, arrepiou caminho e, qual veado em apuros,
O C H A N C E L E R DE F E R R O
359
galgou de novo o quarto; tudo remexeu, n��o achou a chave
que habitualmente trazia consigo; veio-lhe a id��ia de que
talvez, na v��spera, a tivesse perdido quando desmaiara
no observat��rio. De quatro em quatro, galgou a escada em
espiral e pulou na pequena plataforma, mas, no mesmo
instante, deu um grito abafado e, acometido de vertigem,
recuou: encostado ao parapeito, no mesmo local em que
na v��spera tinha visto a esfinge, achava-se Schebna com
o seu longo vestido branco. Sobre a pequena mesa, ao
lado, via-se o copo no fundo do qual Jos�� tinha mandado
encastoar o talism��; mas a pedra misteriosa tinha sido
retirada e achava-se em pequena almofada feita com a
pele manchada de uma serpente, enquanto o copo estava
pela metade de um l��quido cor de sangue.
A perspectiva desse homem, ao qual tinha demons-
trado t��o covarde ingratid��o, sua presen��a naquela hora
cr��tica fez Jos�� arrepiar-se. Por que motivo estaria ali?
Que viria fazer? Perd��-lo ou salv��-lo?
��� Schebna? ��� exclamou de s��bito, angustiado. ��� Tu,
o mago, terias vindo para te vingares?
Misterioso sorriso perpassou nos l��bios do caldeu:
��� H�� muito que teria podido faz��-lo, se o quisesse,
mas a vingan��a �� o brinquedo f��til das almas cegas, sub-
jugadas pela mat��ria, que duvidam da justi��a e, no seu
baixo e mesquinho rancor, previnem e desviam, apenas, o
choque de retorno que, em lugar de ferir o culpado, as
atinge a elas mesmas. Toda a vingan��a humana n��o ��
mais que um fogo de palha, comparada �� justi��a das
esferas.
��� Se desdenhas vingar-te, perdoa-me, Schebna, e
salva-me em lembran��a da afei����o que me dedicavas ou-
trora; tu o podes, eu o sei ��� exclamou, elevando para o
s��bio as m��os s��plices.
��� Ajudar-te como desejas, n��o posso; n��o depende
mais de mim deter a corrente do mal que acumulaste e
vai recair sobre ti para esmagar-te. Teus momentos est��o
contados, porque n��o soubeste conservar o equil��brio da
caridade e do poder; o trono que elevaste sobre a ru��na
de milhares de homens desaba e dever��s deixar o corpo
360
J. W. ROCHESTER
perec��vel para aprender, em futuras migra����es, a subir,
sem te embriagares com o poder; a equilibrares a gran-
deza com o amor, o poder com a justi��a.
Esqueceste que as afli����es enviadas pelos imortais
para provar os povos, n��o devem ser empregadas como
instrumento de ambi����o pessoal; esqueceste que ��s o mes-
mo verme do ch��o, igual a essa multid��o que agora mesmo
saqueia o teu pal��cio e que s�� tem necessidade de se reunir
para abater-te e precipitar-te na lama de onde sa��ste. Con-
tudo, eu vim para salvar-te, mas, libertando-te pela morte.
Olha este copo: cont��m um veneno sutil que, em alguns
instantes, te livrar�� desse corpo, do qual abusaste; mas
apressa-te porque teus inimigos te procuram e dar-te-��o
morte mais dura.
L��vido, tr��mulo, Jos�� recuou, fitando com olhos de
espanto aquele l��quido rubro, que era a morte. Um suor
gelado o inundou; n��o queria morrer, tinha horror ao
abismo desconhecido e, com todas as fibras do seu corpo
robusto, com todas as aspira����es da sua alma apaixonada,
agarrava-se �� vida, ao poder, �� id��ia da vingan��a.
��� N��o quero morrer ��� exclamou exasperado.
��� Insensato, imaginas poder lutar contra a vontade
dos imortais? ��� disse Schebna com indefin��vel sorriso, e
designando a pedra misteriosa que, denegrida, fumegan-
te, parecia rodeada de uma barreia escura, acrescentou:
��� Olha o talism�� que te auxiliou na vida: vai dissolver-
-se, da ampulheta da tua exist��ncia correm os ��ltimos
gr��os. E agora, olha l�� embaixo (designou o Nilo que,
inundado de ouro e p��rpura pelo sol-poente, via-se ao
longe): o turbilh��o humano que por l�� se precipita, arras-
ta Hichelat, tua inocente v��tima, para sacrific��-la ao rio
sagrado, em expia����o dos crimes de outrem. Mas o resto
da multid��o esquadrinha o teu pal��cio e vai encontrar
Asnath, tua leg��tima esposa, outra v��tima inocente. �� a ti
que procuram; ouve esses clamores ferozes, os gritos de
"Morra o opressor!" Tu deves morrer; apenas, podes ainda
escolher o g��nero de morte. Preferes ser precipitado do
alto desta torre, ou espeda��ado vivo e teus membros san-
grentos arrastados pelas ruas? N��o �� melhor morrer livre-
mente, realizando em ti mesmo o ato de condena����o que,
O C H A N C E L E R DE F E R R O
361
sem hesitar, decretaste para tantos infelizes, sacrlfican-
do-os �� tua ambi����o ou �� tua vingan��a? Morre, insensato!
A vida tudo te deu: todas as honras, todas as satisfa����es
do orgulho; teu ��ltimo dia te fez pr��ncipe, esposo de uma
filha de rei, herdeiro do trono do Egito; cada momento
que passa pode arrancar-te tudo isto para te entregar ��
vergonha e ao castigo.
"Prometo garantir teus despojos das inj��rias popu-
lares, mas apressa-te, o ru��do se aproxima e serei impo-
tente se te acharem com vida."
O caldeu inclinara-se, estendendo-lhe o copo, e o seu
olhar ardente, fascinador, imperioso, dardejava em Jos��
qual chama, anquilosando-o no lugar que ocupava.
Fremente, olhos esbugalhados, l��vido qual m��scara de
cera, o chanceler de ferro do rei Apopi escutava as pala-
vras do caldeu, a timbrarem-lhe no ouvido como a voz
dos ju��zes do Amenti. Compreendia que Schebna tinha
raz��o; os gritos, os clamores se aproximavam, parecia-
-lhe ouvir j�� os passos dos assassinos na escada da torre.
Maquinalmente, com a m��o gelada, tomou o copo, mas
seus pensamentos borbulhavam, ang��stia sem-nome o agi-
tava, o horror da morte fazia-o ainda hesitar, quando
Schebna p��s-lhe a m��o no ombro e disse em tom profundo
e vibrante:
��� O nascimento e a morte s��o os dois grandes mist��-
rios que o homem sonda em cada encarna����o com um
novo espanto; porque, quando ele morre para a vida espi-
ritual, �� para tentar, cheio de impulso e de esperan��a, a
prova que se imp��s para progredir; depois, estremecendo,
a alma volta ao invis��vel com a consci��ncia dos atos bons
ou maus que praticou; mas s�� o covarde recua diante do
inevit��vel.
Com um brusco movimento, Jos�� levou o copo aos l��-
bios e esvaziou-o de um trago: no mesmo instante, sentiu
uma como chama percorrer-lhe as veias, tudo rodopiava
aos seus olhos e, atordoado, caiu no banco, junto da mesa.
Schebna o amparou, observando sem como����o alguma as
contra����es convulsivas que agitavam o moribundo. Uma
vez ainda, Jos�� reabriu os olhos, respirou dificilmente. De-
362
J. W. R O C H E S T E R
pois, a cabe��a pendeu inerte e o corpo estirou-se, imobili-
zou-se. No mesmo instante, a pedra misteriosa estalou,
crepitando, e dispersou-se em ��tomos.
Com calma e sem esfor��o aparente, o caldeu levantou
o cad��ver, carregou-o nos ombros e desceu a escada. Quem
o visse naquele instante, ficaria certamente espantado da
for��a herc��lea desse velho, que n��o vergava sob o enorme
fardo.
Quando Schebna penetrou no quarto de dormir, ouviu
atr��s da porta o tumulto e o estr��pito de uma luta; eram
os soldados Hyksos, da guarda do Adon, que, acreditando-o
refugiado no quarto, defendiam-lhe a entrada com a te-
nacidade do desespero, enquanto a popula��a enraivecida
procurava for��ar o ��ltimo reduto do tirano.
"Cheguei a tempo" ��� murmurou Schebna, depositan-
do cad��ver no leito de prata maci��a, rodeado de cortinas
de tecido fen��cio, e cobriu-lhe os p��s com uma pele de
pantera. Essa cama, quase real, preparada para o herdeiro
do trono do Egito, recebia apenas o seu cad��ver. Inclinan-
do-se, o caldeu contemplou o belo rosto im��vel, que tinha
j�� tomado a estranha e misteriosa express��o dos que son-
daram o mist��rio da morte. No seu rico vestu��rio, coberto
de pedrarias, o uraeus na fronte, Jos�� estava soberbo
ainda, e, ouvindo a porta fender-se com estr��pito, Scheb-
na levantou-se, suspirando, e, retirando debaixo das vestes
uma estrela incrustada de pedrarias, presa a uma corrente
de ouro, colocou-a no peito, postando-se �� cabeceira do
leito.
Em presen��a do majestoso velho vestido de branco,
com um cintilante adorno no peito, os amotinados que
invadiam o quarto recuaram indecisos:
��� Parai, eg��pcios; aquele a quem procurais j�� est��
condenado por si mesmo e seu esp��rito criminoso vai com-
parecer perante os tem��veis ju��zes do Amenti. Olhai: eis
o que resta do vosso opressor. Estais vingados, portanto
retirai-vos sem nada tocar neste quarto, onde passou a
morte, a fim de que n��o recaia sobre v��s uma indel��vel
m��cula.
Mudos e at��nitos, os amotinados contemplaram o
corpo inerte do homem que os tinha feito tremer durante
O C H A N C E L E R DE F E R R O
363
tantos anos, e o velho desconhecido cujo olhar fulgurante
os trespassava; depois, acometidos de s��bito p��nico, pre-
cipitaram-se fora do quarto, a fim de levar aos comparsas
a sensacional noticia da morte do Adon.
Enquanto parte dos invasores investia os aposentos
de Jos��, outro grupo de assaltantes tinha penetrado no
corredor secreto, que o Adon deixara aberto quando correu
em busca da chave que lhe faltava. Persuadidos de que
tinham encontrado o caminho dos subterr��neos onde se
ocultavam os tesouros, ficaram possessos de verdadeira
cupidez. Ao esfor��o furioso dos bra��os e dos machados,
logo cedeu a porta que tinha detido Jos��, bem como outra
segunda porta; e, de repente, o bando, ��vido e feroz, pe-
netrou no subterr��neo iluminado por duas l��mpadas. Mas,
em lugar dos tesouros esperados, descobriram uma mu-
lher vestida de branco, que, l��vida de espanto, colava-se
�� parede.
��� Quem ��s e que fazes aqui? Se ��s uma v��tima do
estrangeiro, dize-nos teu nome e te restituiremos �� tua
fam��lia ��� exclamou um dos chefes do grupo, suspendendo
a tocha para melhor clarear o canto sombrio onde ela
se tinha refugiado.
��� Levai-me para fora desta pris��o horr��vel e entre-
gai-me a meu pai, Pot��fera, o sacerdote de Heli��polis ��� ex-
clamou estendendo os bra��os ���; sou Asnath, a infeliz
esposa do Adon.
Os homens trocaram um olhar de espanto:
��� Eis uma inf��mia bem digna do ��mpio ��� exclamou
com desprezo um alentado pescador ���: escarnecer de
pobres homens, mandando-lhes procurar um corpo que
nunca esteve no Nilo e casar com outra mulher, enquanto
a leg��tima apodrecia num subterr��neo! Mas chega, nobre
mulher, nada receies; somos libertadores da p��tria e es-
tamos fazendo a esse c��o imundo um festim de n��pcias
que lhe h�� de lembrar por toda a vida.
Vendo Asnath vacilar e fechar os olhos, o homem
susteve-a, procurando com delicadeza dar-lhe coragem;
depois, auxiliado por outro, levantou-a e, supondo que o
subterr��neo n��o tinha outra sa��da, voltaram pelo mesmo
364
J. W. ROCHESTER
caminho. Quando desembocavam do corredor, esbarraram
com a multid��o superexcitada que voltava do quarto mor-
tu��rio.
��� Morreu! morreu! ��� gritaram alguns, agitando os
bra��os e com olhos ferozes.
��� Quem morreu? Fala, Tourn, e acalma-te ��� gritou
um dos condutores de Asnath, procurando deter um ho-
mem gordo que corria esbaforido.
��� Ele, o Adon; com estes olhos o vi estendido, morto
no seu leito de ouro branco (os eg��pcios chamavam a
prata ouro branco) e, �� sua cabeceira, vela o deus da
sua tribo; tem um sol no peito e uma barba que vai at��
ao ch��o ��� respondeu o homem, velho fabricante de san-
d��lias, encostando-se na parede para tomar f��lego.
��� N��s descobrimos a mulher do miser��vel, sua verda-
deira mulher e levamo-la ao vener��vel Pot��fera ��� disse-
ram os que tinham ido procurar os tesouros, continuando
em seu caminho com Asnath, que, atordoada, esmagada,
temia perder a raz��o.
Na sala cont��gua encontraram Pot��fera que, acom-
panhado de alguns padres, tinha deixado os aposentos de
luxo, transformados em campo de batalha e, com os ami-
gos, procurava alcan��ar os jardins.
��� Pai! ��� gritou Asnath, estendendo-lhe os bra��os.
Sem notar a estupefa����o dos companheiros, o sacer-
dote precipitou-se para ela e, estreitando-a ao peito, ex-
clamou:
��� Est��s viva, minha filha querida; a ci��ncia sagrada
n��o me enganou! ��� e cobriu-a de beijos.
Mas, muitas emo����es sucessivas tinham abalado a
mo��a j�� doente e enfraquecida, porque, subitamente, caiu
desacordada nos bra��os do pai.
��� �� preciso deixar este lugar de desgra��a; n��o se
pode saber at�� aonde ir�� o furor do povo e os chasous
tamb��m acabar��o por intervir ��� observou um jovem sa-
cerdote, aproximando-se com vivacidade e desdobrando
o manto. ��� Permite-me, nobre Pot��fera, levar tua filha
e guiar-te pelos jardins. No Nilo acharemos barca que
nos conduza ao templo.
O C H A N C E L E R DE F E R R O
365
O conselho era prudente e foi logo aceito. O jovem
padre conduziu Asnath, sempre desmaiada, e, quando che-
garam ao templo, prestaram-lhe socorros, verificando
quanto tinha definhado e envelhecido.
Fervendo de indigna����o, Pot��fera tencionava deixar
Tanis e, mal branqueava a barra do horizonte, partiu
com a filha em dire����o a M��nfis, onde ficara sua mulher.
Ali, junto de sua m��e, de Putifar e de Ranofrit, rodeada
de todos os que amava, voltaria �� vida. Depois veria Hor
e, sob o quente efl��vio do seu amor, renasceria para a
felicidade.
X I
O P O V O S U B L E V A D O P R E C I S A
O D I A R A L G U �� M
Terminado o festim de n��pcias, Apopi, fatigado e
doente, retirara-se para o dormit��rio e, intimando a comi-
tiva a velar no quarto cont��guo, estendeu-se no leito e,
embalado ao som de uma harpa, adormeceu profunda-
mente. Havia cerca de duas horas que assim repousava,
quando o chefe dos guardas, l��vido, agitado, precipitou-se
no quarto real e, como Apopi, despertado pelo tinido das
armas, se levantasse espantado, disse-lhe com voz entre-
cortada, enquanto dobrava os joelhos:
��� Perdoa-me perturbar teu repouso, mas um terr��vel
motim acaba de rebentar na cidade; o Amentl parece que-
rer vomitar todos os seus dem��nios, Tanis est�� em ebuli����o
e o povo invadiu o pal��cio do pr��ncipe real, onde est�� pi-
lhando e assassinando; j�� tomei todas as provid��ncias
para garantir o pal��cio e tua pessoa sagrada, mas, para
as outras provid��ncias, venho receber tuas ordens.
O rosto do rei cobriu-se de intenso livor, mas o perigo
que corriam a filha e o genro despertou-lhe momenta-
neamente energia e resolu����o: dominando as dores agudas
que come��avam a caustic��-lo, mandou isolar o pal��cio de
Jos�� por um cord��o de soldados e expulsar o povo por todos
os meios. Cargas de carros e de cavaleiros deviam ao mes-
mo tempo varrer as ruas.
A execu����o desta ordem encontrou, todavia, dificulda-
des enormes: um corpo de tropas muito consider��vel tinha
j�� deixado Tanis, por ordem de Jos��, a fim de garantir os
O C H A N C E L E R DE F E R R O
367
celeiros amea��ados; e grande parte dos chefes achava-se
no festim e ningu��m lhes sabia a sorte. A imin��ncia do
perigo estimulou o ardor dos Hyksos e os primeiros esfor-
��os da tropa convergiram para o pal��cio do Adon, com-
pletamente invadido pelo povo. Foi um verdadeiro cerco;
os amotinados, ��brios de sangue e de vinho, batiam-se
como loucos. Apoderaram-se das armas encontradas no
corpo da guarda do pal��cio e das pilhadas aos soldados
mortos, e s�� cediam pouco a pouco. Duas horas depois de
encarni��ado combate, as tropas regulares dominaram a
turba revoltada e o pal��cio foi evacuado. Nas ruas escuras
e lamacentas o tumulto extinguiu-se logo, o povo dispersou
num abrir e fechar de olhos, e, quando a Lua surgiu, Tanis
parecia ter readquirido a calma e a ordem habituais.
No pal��cio, desde que foi expulso o ��ltimo rebelde,
postaram-se soldados em todas as entradas; os mortos
foram retirados, os feridos eg��pcios impiedosamente mas-
sacrados, os escravos, escribas e funcion��rios que povoa-
vam a imensa morada come��aram a surgir dos jardins,
subterr��neos e adegas onde se tinham refugiado. Mudo
estupor, por��m, apoderou-se de todos, quando encontra-
ram, estendido em luxuosa cama, o cad��ver do Adon.
De muitos anos estavam habituados a ver o poder
supremo concentrado naquela m��o de ferro, agora inerte
e gelada: enquanto essa poderosa intelig��ncia, essa von-
tade en��rgica e sutil velara por eles, os Hyksos e os eg��p-
cios que haviam abandonado a causa nacional sentiam-se
amparados. Aqueles homens l��vidos e tr��mulos que se
amontoavam em torno do leito mortu��rio, parecia-lhes
que o pr��prio eixo da m��quina governamental acabava
de quebrar-se; momentaneamente sentiram-se fracos, per-
didos e resolveram prevenir o Fara�� das desgra��as su-
cedidas.
L��vido, olhos ardentes, Apopi caminhava no quarto
de um lado para outro. Contra����es nervosas o sacudiam,
mas o excesso mesmo de exalta����o parecia sobrepujar o
mal peri��dico que o abatia e, sem pestanejar, ouvia os
mensageiros que, de quarto em quarto de hora, lhe davam
conta das perip��cias e dos progressos das tropas que var-
368
J. W. ROCHESTER
riam o pal��cio do herdeiro. Quanto �� morte de Hlchelat,
ningu��m ainda se tinha atrevido a anunciar-lha.
Ao entrar um oficial superior, cuja f��cies de exaspe-
ra����o nada de bom pressagiava, o rei deteve-se e pergun-
tou se, finalmente, o pal��cio estava expurgado.
��� Sim, filho de Ra, os revoltosos foram expulsos e
debandaram, mas o que tenho a comunicar-te �� de tal
modo horr��vel que minha l��ngua se recusa, �� Fara��, a
traduzir a desgra��a ��� respondeu o oficial, prostrando-se.
Depois, por insist��ncia do soberano, relatou titubeante
o fim tr��gico da princesa, a morte misteriosa de Jos�� e o
massacre dos numerosos dignit��rios, seus conselheiros e
servidores mais fi��is e mais ��ntimos.
Apopi a princ��pio ficou aturdido; depois, acometido de
louco desespero, rasgou as vestes, derramou torrentes de
l��grimas e maldisse o povo e os deuses que lhe roubavam
de um s�� golpe a filha bem-amada e o grande chanceler
que, de tantos anos, lhe vinha garantindo tranq��ilidade.
Profundo desmaio seguiu-se a essa violenta explos��o.
*
O Sol levantou-se radiante, como sempre, e seus raios
dourados inundaram as ruas silenciosas e desertas de
Tanis, cuja popula����o parecia desaparecida como por en-
canto. Todas as casas estavam fechadas, os recintos sa-
grados n��o se tinham aberto, as maci��as constru����es dos
templos erguiam-se como outras tantas fortalezas som-
brias e amea��adoras. Destacamentos militares estaciona-
vam em todas as pra��as e cruzamentos, e s�� o passo ca-
denciado das patrulhas perturbava o sil��ncio geral.
Pelas dez horas da manh��, a liteira real, rodeada de
numerosa escolta, saiu do pal��cio e dirigiu-se para a resi-
d��ncia do Adon. P��lido, espectral, olhos fundos e faces
encovadas, Apopi sentara-se no trono port��til. Somente
pela madrugada despertara do longo desmaio e, logo que
adquiriu algumas for��as, mostrou desejo de ver o cad��ver
do favorito.
O pal��cio do Adon continuava rodeado de soldados,
sentinelas vigilantes nas sa��das e nos compartimentos sa-
O CHANCELER DE FERRO
369
queados, onde ningu��m cogitara de restabelecer a ordem.
Por toda parte, estavam evidentes sinais do terr��vel fura-
c��o da v��spera: as salas e escadas coalhadas de cacos de
vasos e de armas; sangue a empastar as paredes e m��veis,
cortinas e reposteiros arrancados e amarrotados; tudo,
enfim, demonstrava o furor da refrega.
Mudo, cenho carregado, o rei atravessou o ambiente
desolador e s�� quando se viu no quarto onde Jos��, revestido
dos seus trajos de gala, jazia no leito, tal como o depusera
Schebna, a dor do Apopi transbordou e l��grimas amargas
inundaram-lhe o rosto. Demoradamente, fitou o rosto do
fiel conselheiro, que j�� apresentava a cor esverdeada da
decomposi����o. Tendo feito embalsamar o corpo, como o
faziam ��s m��mias reais, Apopi mandou buscar os dois
filhos. Os pequenos tinham sido escondidos por seus
pajens e s�� quando os desordeiros foram expulsos, retor-
naram aos seus aposentes. Mas as crian��as tinham pre-
senciado muita carnificina e n��o houve persuas��o que
pudesse acalm��-los.
Apopi abra��ou os pobrezinhos, declarou perfilh��-los,
transmitindo-lhes todos os direitos do pai e imediatamen-
te os levou consigo para o pal��cio real. Ali, ordenou a
alguns dignit��rios, reunidos �� pressa, convocassem para
a tarde um conselho extraordin��rio, mandassem mensa-
geiros aos templos intimar os padres a comparecerem, e,
al��m disso, publicassem desde logo, ao som de trombetas,
que Manasse, reconhecido como herdeiro da Coroa, nesse
mesmo dia, percorreria a cidade em carruagem real, para
que todos lhe rendessem homenagem.
Tudo se fez conforme a ordem do rei e Manasse, re-
vestido das ins��gnias de pr��ncipe real, foi com grande
pompa levado pelas ruas. Multid��o quase exclusivamente
composta de Hyksos acompanhou o cortejo, mas essa mul-
tid��o estava opressa; ang��stia e espanto pintavam-se em
todos os rostos. Enquanto essa cerim��nia, irris��ria para o
momento, se consumava nas ruas de Tanis, em frente ao
pal��cio de Jos�� atroavam alaridos ferozes e clamores de
desespero: �� que l�� se tinham reunido os seus irm��os com
suas fam��lias e criados, pedindo em altos brados para pe-
netrar na casa do ilustre parente:
370
J. W. ROCHESTER
��� Deixai-nos ver nosso pai, nosso benfeitor ��� grita-
vam as mulheres com suas vozes agudas ��� desgra��a! des-
gra��a! extinguiu-se a luz dos nossos olhos, foi-se-nos o
calor que nos vivificava.
Acabaram deixando-os entrar e eles, cheios de deses-
pero, despediram-se do corpo um pouco antes de ser le-
vado pelos embalsamadores.
Manasse acabava de voltar do seu torneio triunfal,
quando um segundo cortejo penetrou na resid��ncia real;
era uma padiola de ramos de palmeiras, conduzida por
pescadores e, sobre essa alcatifa de folhas, coberta com
grosseiro manto, repousava Hichelat, cujo corpo os pobres
trabalhadores do Nilo tinham encontrado enganchado nos
cani��os. Levaram o cad��ver da infeliz para os seus apo-
sentos, depositaram-no e as servas, mudas, cheias de es-
panto e dor, puseram-se a enxugar-lhe o rosto, a limp��-lo
das algas e escumas que lhe manchavam os membros e os
vestidos. Mas este trabalho foi logo interrompido pela en-
trada do rei. Em face da filha deitada como se estivesse
dormindo, com uma express��o de paz profunda estampada
no rosto l��vido, Apopi pareceu enlouquecer. Com torrentes
de l��grimas e gritos, rojou-se com as faces no ch��o, ras-
gando as vestes e maldizendo-se por ter imposto o casa-
mento, tornando-se dessarte o causador do tr��gico de-
senlace.
Todavia, os acontecimentos n��o permitiram ao infeliz
pai entregar-se inteiramente �� sua dor, e a not��cia de que
o conselho extraordin��rio o esperava foi lembrar-lhe os
deveres do rei.
Nervoso, desfigurado, dominando com esfor��o as dores
internas que recome��avam a tortur��-lo, Apopi apareceu
entre os conselheiros e a situa����o que se discutia n��o era
de molde a acalm��-lo.
Al��m de Jos��, tinham perecido os seus auxiliares mais
ativos e h��beis; alguns chefes militares afamados e dif��-
ceis de substituir de pronto. Alguns celeiros tinham sido
saqueados e destru��dos e a popula����o eg��pcia tinha tomado
atitude t��o hostil e amea��adora, que era preciso contar
com uma subleva����o geral.
O CHANCELER DE FERRO
371
Apenas terminava o conselho, anunciaram que os pa-
dres convocados pediam licen��a para chegar �� sua pre-
sen��a. Diante dos implac��veis advers��rios, daqueles que
considerava causadores de todas as desgra��as que o feriam,
Apopi sentiu o sangue ferver-lhe e s�� o h��bito de dissi-
mular lhe deu ��nimo de ouvir com aparente serenidade o
discurso do sacerdote de Hator que, com palavras firmes
e dignas, exprimia os protestos de fidelidade de sua casta
�� pessoa do Fara�� e o seu pesar pelo assassinato de Hi-
chelat. Acrescentou que s�� as exa����es do Adon tinham
provocado o motim, e que todos deploravam que a con-
fian��a do rei tivesse sido captada por um indigno, que
levara a ousadia ao ponto de encarcerar a mulher leg��ti-
ma, a fim de estender a m��o impura para a filha do Fara��!
Ouvindo estas ��ltimas palavras, um rubor viol��ceo
inundou o rosto de Apopi:
��� Provas! Tragam aqui Asnath! ��� gritou estent��rico.
Quando o sacerdote respondeu que, infelizmente, a
senhora tinha partido com o pai, mas, podiam apresen-
tar-lhe os homens que a libertaram, Apopi deu uma gar-
galhada estridente:
��� Mentira! torpe cal��nia ��� exclamou. ��� Pensais que
vos n��o conhe��o, homens vis e odientos que me enfeiti-
��astes e empestastes com uma mol��stia incur��vel? Homens
que, sem tr��guas, solapais o Trono e, agora, quereis de-
sonrar-me a filha em seu t��mulo? �� obra de Pot��fera essa
maquina����o infernal; e se Asnath est�� viva, �� que seu pai
a escondeu para vingar-se do homem infeliz que ele per-
seguiu com o seu ��dio, e para fazer dela uma arma contra
ele e minha filha.
"Mas, esgotou-se-me a paci��ncia; guardo ainda o cetro
e resta-me energia bastante para vos destruir. Antes do
amanhecer, mandarei decapitar-vos a todos e vossos corpos
atirados aos corvos servir��o de v��timas expiat��rias �� me-
m��ria de Hichelat e de Jos��. Eia! guardas, prendei-os!"
��� uivou, saltando da cadeira, a espumar de raiva, com os
olhos injetados de sangue.
Ao apelo do Fara��, soldados e oficiais invadiram a
sala, esperando ordens, mas o excesso de raiva e exalta����o
372
J. W. ROCHE STER
tinham subitamente tirado a palavra ao monarca. De pu-
nhos fechados, a boca aberta, o rosto congesto, era horr��-
vel e espantoso! Depois, abateu-se a fio comprido no soalho
e rebolcou-se em tremendas convuls��es. Todos se lhe acer-
caram e, aproveitando a desordem e confus��o, os padres
deixaram apressadamente o pal��cio.
A noite, enquanto o Fara�� se debatia em terr��vel acesso
do seu mal, um correio estafado e suarento trazia a no-
t��cia de que o ex��rcito de Ta�� III marchava sobre M��nfis.
XII
A AURORA DA XVIII DINASTIA
Entretanto se levantou no E g i t o
um novo rei, que n��o conhecia a
Jos��. ��� ��xodo, cap. I, v. 8.
Sem dificuldade e fazendo toda a dilig��ncia poss��vel,
Pot��fera atingira M��nfis e n��o procuremos descrever a
alegria de Maia e Ranofrit, tornando a rever aquela que,
havia oito meses, choravam como morta. A debilidade ex-
trema de Asnath atenuou essa alegria, inspirando a todos
os mais vivos receios pela sua vida e, durante alguns dias,
Pot��fera deixou-se absorver inteiramente pelos cuidados ��
filha. Nada obstante, os deveres do cargo o chamavam a
Heli��polis e dispunha-se a partir, confiando a Putifar o
cuidado de lhe levar dentro de algumas semanas a mulher
e Asnath, quando uma ordem inopinada do governador de
M��nfis proibiu, a quem quer que fosse, deixar a cidade,
cujas portas se fecharam, enquanto a guarni����o se prepa-
rava ativamente para sustentar o cerco do ex��rcito de Ta��,
que vinha pr��ximo. Pot��fera ficou a princ��pio muito in-
quieto com esse impedimento; depois, achou meio de expe-
dir a Heli��polis um escrito, pelo qual investia nas fun����es
do seu cargo o irm��o mais mo��o, Ramerl, em cuja prud��n-
cia e energia podia confiar. Tranq��ilo por esse lado, entre-
gou-se de todo a uma atividade misteriosa que absorvia
todos os padres de grau superior.
Em vista do ass��dio iminente, o sacerdote de Ptah con-
vidara Pot��fera e seus parentes a hospedarem-se no templo,
atr��s de cujo espesso recinto estariam abrigados, e cujos
374
J. W. ROCHESTER
subterr��neos secretos, preparados para tais circunst��ncias,
ofereciam retirada mais ou menos segura no caso dos
Hyksos, exasperados por uma derrota, entregarem-se ao
massacre dos habitantes da cidade.
Asnath com sua m��e e a tia instalaram-se, pois, em
pequeno compartimento cont��guo ao do sacerdote. A sa��de
da mo��a melhorava visivelmente, embora continuasse ta-
citurna e ap��tica. Ficava dias inteiros estendida no pe-
queno terra��o e imersa em profundo cismar.
Nunca procurara informar-se dos pormenores da morte
de Jos��, nem da sorte dos filhos e somente �� noite, na soli-
d��o, dava livre curso ��s l��grimas, ang��stias e saudades
que lhe dilaceravam o cora����o. Era um estado dalma dif��-
cil de descrever. O ��dio e a c��lera que nutrira contra Jos��,
depois de encarcerada, desapareceram pouco a pouco. N��o
estava tudo acabado? Morto, aniquilado, fosse l�� como
fosse?
N��o tornaria a ver aqueles olhos fascinantes, cujo
brilho fazia arfar-lhe o peito; n��o ouviria mais aquela
voz, que, ��spera e imperiosa para os outros, somente para
ela achava inflex��es t��o carinhosas!
Sim, ele a tinha amado de todo o cora����o, o mesmo
encarceramento que todos os parentes censuravam como
crueldade e inf��mia, era-lhe uma prova da paix��o tenaz
do Adon. Ter-lhe-ia sido t��o f��cil mat��-la, se o intuito
fosse apenas desembara��ar-se dela!
E, quem sabe? se a inexor��vel press��o da sua casta n��o
tivesse cavado entre eles um abismo, nunca, talvez, a am-
bi����o teria a tal ponto invadido a alma de Jos��, pois a
felicidade dom��stica t��-lo-ia abrandado.
Todos esses pensamentos se chocavam no esp��rito de
Asnath, quando, muda e de olhos fechados, permanecia
deitada em seu leito; todo o passado revivia nela, evocan-
do mil incidentes alegres ou tristes da vida conjugal. Mas
Asnath ocultava cuidadosamente aos seus o que lhe absor-
via os pensamentos e tremia receando denunciar, com
alguma l��grima furtiva, que sentia saudades. Via que ne-
nhum parente suspeitava que o homem impuro, ao qual
a sacrificaram por necessidade pol��tica, tivesse podido, com
O CHANCELER DE FERRO
375
a sua poderosa e sedutora personalidade, vencer o preju��zo
de casta e fazer-se amar. Esse preconceito era t��o forte,
que o s�� pensamento de se ver adivinhada por Pot��fera,
fazia-a corar e tremer, selando-lhe os l��bios. Um senti-
mento cada vez mais imperioso levava-a a informar-se da
sorte dos filhos e, na solid��o da noite, arrancava-lhe l��-
grimas ardentes.
Al��m disso, acontecimentos da mais alta import��ncia
absorveram logo todos os esp��ritos e desviaram dela a aten-
����o dos parentes: o ex��rcito de Ta�� III aproximou-se e os
Hyksos se preparavam para uma defesa desesperada. O
cerco seria longo e desastroso, era indubit��vel, porque M��n-
fis era uma pra��a forte de primeira ordem, dificilmente
expugn��vel.
Os Hyksos compreendiam bem que, enquanto estives-
sem senhores do M��dio Egito, sua causa n��o estaria perdi-
da. Tamb��m haviam fortificado por todos os lados a antiga
capital, cercando-a de uma muralha denteada, com 20
metros de espessura e precedida de profundo fosso, com
30 a 40 metros de largura, lajeado no fundo, e cujas escar-
pa e contra-escarpa eram cheias de pedras polidas, o que
aumentava as dificuldades da escalada. Nos muros, prin-
cipalmente do lado plano, os Hyksos tinham constru��do
andaimes, de onde poderiam atirar sobre os sitiantes pe-
dras, flechas e dardos. Mas, al��m desse reduto pr��prio de
todas as cidades fortificadas da antig��idade, M��nfis pos-
su��a uma cidadela, uma segunda fortaleza que compreen-
dia cerca de um ter��o da cidade, na sua zona mais im-
portante. Ali estavam os principais templos, os pal��cios
sacerdotais, as pris��es, quart��is, armaz��ns de v��veres e
muni����es, assim como a resid��ncia do comandante. O
muro que abrangia este cora����o da cidade, igualmente
da espessura de 30 metros, era, al��m disso, guarnecido de
pedra, rebocado de cal, que lhe tinha granjeado o t��tulo
de muro branco.
Certa manh��, as sentinelas deram sinal da aproxima-
����o do inimigo e, na tarde do mesmo dia, um cerco impe-
netr��vel rodeava M��nfis. T��o longe quanto a vista podia
alcan��ar, levantavam-se as bagagens do acampamento
eg��pcio, enquanto a flotilha de Ta�� coalhava o Nilo, de-
376
J. W. ROCHESTER
sembarcando incessantemente tropas, v��veres e muni����es
de guerra.
Um s��tio em regra come��ou, mas como todos os que
na guarni����o eram eg��pcios simpatizavam com os sitiantes
e batiam-se a contragosto, os soldados de Ta�� obtiveram
algumas vantagens que encheram de raiva o comandante
de M��nfis, velho Hykso en��rgico e cruel. Impiedoso e seve-
ro, mandou punir as tropas eg��pcias, alguns oficiais foram
rebaixados, outros enforcados, os soldados a��oitados; depois
do que, aparentemente, cada qual cumpriu com zelo o seu
dever, ocultando no fundo dalma um patriotismo inopor-
tuno.
Decorreram semanas aflitivas; os v��veres come��aram a
rarear, os doentes e feridos aumentavam em propor����o
inquietadora, quando se espalhou a not��cia de que um
ex��rcito enviado por Apopi marchava em socorro de M��n-
fis. Os Hyksos readquiriram esperan��a e prepararam-se
para uma surtida que sustentasse os esfor��os dos seus e
ferisse de flanco as tropas de Ta��.
Na noite anterior �� batalha, que devia, por assim di-
zer, decidir da sorte do Egito, misteriosa atividade se de-
senvolveu nas criptas do templo de Ptah, preparado de
longa data para esse fim. A mais vasta das salas subter-
r��neas tinha sido decorada como um templo; as paredes
e colunas baixas, que sustentavam a ab��bada, estavam
cobertas de pinturas simb��licas, an��logas �� ci��ncia her-
m��tica, ou representando cenas extra��das do livro dos
mortos.
No centro foi cavada grande bacia, que canais sub-
terr��neos, sabiamente dispostos, alimentavam com ��gua
do Nilo, e sa��a por outros canais, formando assim, no
fundo da cripta, um como pequeno bra��o do rio sagrado.
No meio da bacia, emergindo da ��gua, elevava-se um pe-
da��o triangular de basalto preto, e, nessa esp��cie de altar,
um aer��lito sagrado jazia no fundo de uma escudela de
pedra, na qual ardiam, em ��leo odor��fero, ervas, gr��os di-
versos e peda��os de resina. Um padre mo��o, completa-
mente nu, estava ajoelhado nos degraus, alimentando
cuidadosamente o fogo que se n��o devia apagar. De face
O C H A N C E L E R DE F E R R O
377
�� pedra triangular, em nicho no muro e sobre um altar,
erguia-se a est��tua do deus Ptah, ornamentada de flores
de l��tus e ramos de palmeira; perante essa ef��gie do grande
deus protetor de M��nfis, dois padres sacrificavam e oravam
sem interrup����o. Uma l��mpada de sete bra��os, presa por
uma corrente na ab��bada, iluminava a est��tua com uma
luz avermelhada.
Os sete sacerdotes dos principais templos de M��nfis,
de Heli��polis e de Sais, que por acaso ali estavam reuni-
dos, bem como os profetas e iniciados de grau superior,
repartiam-se em tr��s grupos, que, por sua vez, celebravam
estranho ritual, ininterrupto dia e noite.
A come��ar pelos sacerdotes, tr��s homens se postavam
entre o altar e a bacia e, com os bra��os erguidos, recitavam
em altas vozes ora����es e encantamentos, pedindo a b��n����o
e o socorro dos deuses para o ex��rcito de Ta��, implorando
e exigindo deles a derrota dos Hyksos e a tomada da cidade
pelo leg��timo soberano da terra de Kemi.
A tens��o de sua vontade era tal, que as veias se esti-
cavam como cordas e o suor corria-lhes em todo o corpo,
abundante. Dois padres, de grau inferior, mantinham os
bra��os suspensos e, somente quando desfaleciam comple-
tamente extenuados, eram levados �� bacia, mergulhados
n��gua e, em seguida, davam-lhes como fortificante o vinho
sagrado e o p��o da comunh��o, enquanto tr��s outros sacer-
dotes, ou profetas, os sucediam. Quando todos os membros
dos tr��s grupos tinham passado por esse transe mortifi-
cante, que devia continuar at�� �� rendi����o definitiva da
cidade, eram os primeiros que recome��avam. Todos jejua-
vam e descansavam apenas o estritamente indispens��vel.
A batalha que se travou no dia seguinte, sob as mura-
lhas de M��nfis, foi sanguinolenta e encarni��ada; mas, ape-
sar da bravura desesperada dos Hyksos e da surtida da
guarni����o, estes foram completamente batidos e dispersos;
uma grande parte, repelida para o rio pelos eg��pcios, afo-
gou-se no Nilo; o resto fugiu em desordem e at�� as tropas
da guarni����o, consideravelmente dizimadas, tiveram gran-
de dificuldade em galgar de novo o abrigo atr��s das trin-
cheiras.
378
J. W. ROCHESTER
Sem lhes deixar tempo de voltar a si da impress��o
desta derrota, Ta�� III ordenou o assalto e, depois de dois
dias de combate, apoderou-se do primeiro reduto.
Os Hyksos encerravam-se na cidadela, mas compreen-
diam que a situa����o era prec��ria e que, realizando-se as
melhores previs��es, n��o podiam contar com aux��lio de
fora antes de algumas semanas e que, faltando j�� os v��ve-
res, ser-lhes-ia imposs��vel sustentarem-se t��o longo tem-
po. Portanto, a fome, quando n��o os soldados de Ta�� III,
os expulsariam do ��ltimo reduto.
Duas atrozes semanas se passaram: os pastores de-
fendiam-se com o denodo do desespero, saciando seu ��dio
contra os habitantes, degolando todo eg��pcio que ousava
sair �� rua. A popula����o aterrada confinava-se em casa e
todos os que tiveram possibilidade de faz��-lo, refugia-
ram-se nos templos. �� sabido que um templo eg��pcio, com
sua muralha denteada da largura de 10 metros, maci��as
portas de bronze, um ex��rcito de padres e criados no re-
cinto, representava por si s�� uma pequena fortaleza. A
massa dos refugiados refor��ava os defensores dos santu��-
rios: tamb��m, por ordem dos padres, todos os homens
v��lidos foram escolhidos e armados; as mulheres, as crian-
��as e os velhos, assim como os tesouros do templo, foram
escondidos nas criptas e cada qual preparou-se para vender
caro a vida.
Uma tarde, o comandante de M��nfis recolheu-se mais
sombrio e preocupado do que nunca; desde pela manh��
estivera nas trincheiras e um furioso assalto dos eg��pcios
fora repelido; mas o velho soldado tinha muita experi��n-
cia para n��o compreender que o fim estava pr��ximo; tam-
b��m julgou chegado o momento de executar as ��ltimas
ordens que lhe mandara Jos��, e que prescreviam s�� entre-
gar aos eg��pcios ru��nas e cad��veres. O chanceler do rei
Apopi estava morto, mas sua vontade parecia sempre viva
e suas ordens supremas iam ser executadas com a impie-
dosa crueldade que as havia inspirado.
Um conselho dos chefes Hyksos se reuniu �� noite e,
de manh��, apenas uma parte das tropas ocupou as trin-
cheiras; o resto da soldadesca, dividida em bandos, per-
correu a cidade, pondo tudo a fogo e sangue. Todo eg��pcio
O CHANCELER DE FERRO
379
que pilhavam, era impiedosamente degolado, sem distin-
����o de idade ou de sexo; mas o furor maior foi dirigido
contra os templos. Os mais importantes resistiam, e nota-
damente o de Ptah, vigorosamente defendido por seus pa-
dres, apesar dos golpes de ar��ete arremessados contra as
portas. Em compensa����o, um pequeno santu��rio foi toma-
do, horrivelmente destro��ado e os padres arrastados para
a frente do templo de Ptah foram, uns decapitados e as
cabe��as atiradas para dentro do reduto sagrado; outros,
estaqueados vivos e postados de maneira a formar l��gubre
avenida fronteando a porta principal.
Esse medonho massacre durava dois dias, quando os
turbilh��es de chama e fumo que se desprendiam do inte-
rior da cidadela, assim como a fraqueza da resist��ncia,
chamaram a aten����o dos sitiantes.
Prevendo o que se passava, Ta�� ordenou o assalto ge-
ral: todos ��� chefes e soldados ��� compartiam as apreen-
s��es do seu rei. Num abrir e fechar de olhos, as escadas
se levantaram e, afrontando as nuvens de flechas e dardos
que choviam, os eg��pcios escalaram as muralhas.
Hor e Armais foram os primeiros a galgar, enquanto
impetuoso ataque, dirigido pelo pr��prio rei, for��ava uma
das portas da cidadela. Em menos de uma hora os sitian-
tes estavam senhores da pra��a; mas �� vista da cidade sa-
queada, do sangue que empapava as ruas e os edif��cios,
dos mont��es de cad��veres que juncavam o solo, uma raiva
louca se apoderou dos eg��pcios. Arremessaram-se aos des-
tro��os dos Hyksos e travou-se o combate corpo a corpo.
Nesse c��menos, os gritos de guerra dos eg��pcios tinham
chegado aos ouvidos dos defensores do templo de Ptah
e um jovem padre subiu lesto �� torre mais elevada por ver
o que se passava; imediatamente, verificou que os sitiantes
tinham penetrado na fortaleza e se empenhava nas ruas
um combate cujo resultado n��o era duvidoso. Louco de
alegria, desceu como um rel��mpago e entrou no p��tio
grande, gritando: "Gloriosos sejam os deuses: a cidade
est�� tomada, Ta�� foi vencedor!"
Rapidamente todo o templo se animou: uns correram
para as torres a certificarem-se da boa nova, outros atira-
380
J. W. ROCHESTER
ram-se para os subterr��neos. Era proibido penetrar na
cripta misteriosa onde os sacerdotes e seus auxiliares con-
tinuavam a orar, mas, na sala contigua, havia suspenso
um largo escudo de bronze, no qual um velho past��foro
bateu tr��s pancadas retumbantes: era o sinal combina-
do, anunciando que o C��u tinha cedido ��s s��plicas que lhe
eram dirigidas, concedendo aos filhos de Kemi a vit��ria
pedida.
Uma hora mais tarde, solene prociss��o percorria os
p��tios e avenidas, preparando-se para deixar o templo,
desde que os sacerdotes dessem o sinal. Como por milagre,
tinham surgido das criptas a barca de Ptah, incrustada
de ouro e de pedrarias e o boi ��pis ornamentado de fitas,
rodeado dos seus padres vestidos de linho, enquanto as
sacerdotisas e cantoras, empunhando harpas de ouro, pre-
paravam-se para entoar o hino sagrado. Todas as fisio-
nomias estavam lividas e, nas faces emagrecidas e fati-
gadas, viam-se os tra��os das priva����es, das ang��stias e
desgra��as sofridas; mas em todos os olhos cintilavam a es-
peran��a e a alegria do triunfo.
O combate com os restos debandados da guarni����o
tinha terminado rapidamente, e Ta�� que, coberto de san-
gue e p��, combatera como simples soldado, ordenou a um
comandante que exterminasse, ou mandasse encarcerar o
que restasse dos Hyksos. Depois, acompanhado dos seus
oficiais, o grosso dos soldados dirigiu-se para o templo de
Ptah. Em face dos cad��veres trespassados dos padres, a
dor e a c��lera sombrearam o m��sculo rosto do velho rei,
mas n��o teve tempo de exprimir sua indigna����o porque,
nesse instante, as vibra����es harmoniosas e penetrantes de
um hino sagrado encheram a atmosfera; as portas de
bronze do recinto se abriram e a prociss��o imponente e
majestosa encaminhou-se ao seu encontro. A sua frente
estavam Pot��fera e o sacerdote de Ptah, trazendo o p��o
e o vinho sagrados.
Profundamente comovido, Ta�� parou, quando, por��m,
os dois velhos pont��fices prostraram-se diante dele, le-
vantou-os rapidamente e abra��ou-os como irm��os. Entu-
siasmo sem-nome apoderou-se de todos; os eg��pcios esque-
ceram os males sofridos, as ru��nas e os cad��veres que em
O CHANCELER DE FERRO
381
torno deles constitu��am quadro l��gubre, e de milhares de
bocas elevou-se o grito: "Viva Sekenen-Ra Ta��-Kene, o
glorioso Fara��, o libertador da terra de Kemi!" No meio
da alegria e das aclama����es gerais, o rei incorporou-se ��
prociss��o e dirigiu-se para o santu��rio, onde sacrificou so-
lenemente a Ptah, agradecendo-lhe com profunda emo����o
o haver cumprido a promessa feita tantos anos antes pela
boca do velho profeta e t��-lo conduzido vitorioso a M��nfis,
para sacrificar no seu altar.
Quando o Fara�� deixou o templo, a fim de se recolher
�� resid��ncia do comandante e a�� repousar um pouco, Hor
e Armais puderam abrir uma passagem at�� Pot��fera que,
muito feliz, abra��ou os dois mancebos, levou-os ao pequeno
aposento que ocupava no recinto sagrado e no qual aca-
bavam de entrar as mulheres libertas da abafante estadia
nos subterr��neos. A presen��a de Asnath causou aos dois
oficiais verdadeira como����o, pois ignoravam ainda a sua
milagrosa ressurrei����o e, a princ��pio, acreditaram ver um
espectro.
Sabendo que a mo��a tinha sido encarcerada pelo Adon,
Hor estremeceu de raiva; depois apertou-a apaixonada-
mente de encontro ao peito. Enfim, estava livre e, se ele
sobrevivesse �� guerra, nada o impediria de lhe fazer es-
quecer, �� for��a de afei����o, tudo o que ela sofrera. Silen-
ciosa, Asnath descansou a cabe��a no peito do antigo noivo.
Debatia-se num caos de sentimentos tais, que a si mesma
n��o se compreendia: Oh! quanto o seu sonho, na v��spera
dos esponsais com Jos��, fora verdadeiro! Seu cora����o dila-
cerado e dividido n��o mais lhe pertencia e sem cora����o
deveria comparecer ao tribunal de Os��ris.
A alegria que experimentaram Pot��fera e sua mulher,
ao verem Armais vivo e coberto de gl��ria, foi sombreada
pelo desespero do rapaz ao conhecer o triste fim de Hiche-
lat; mas consolaram-se, considerando que o excesso mesmo
dessa dor o esgotaria e que o tempo, o grande terapeuta,
faria esquecer a Armais a sua perda.
De resto, faltavam lazeres para cuidar de neg��cios
particulares; a cidade, saqueada e abarrotada de cad��ve-
res, exigia pronta reorganiza����o e, al��m disso, Ta�� III s��
concedia ao ex��rcito tr��s dias de repouso. Ele queria, a
382
J. W. ROCHESTER
marchas for��adas, dirigir-se para Tanis e, se poss��vel,
encurralar o inimigo secular no seu ��ltimo reduto ��� Ava-
ris. Putifar foi nomeado governador de M��nfis e Pot��fera
preparou-se para voltar para Heli��polis, onde sua presen��a
era imperiosamente necess��ria.
Na v��spera da partida do sacerdote e do ex��rcito, Pot��-
fera, din��mico e remo��ado de vinte anos, trabalhava em seu
quarto, quando foi interrompido pela entrada de Asnath.
��� Que queres, minha filha? ��� perguntou, fitando a
mo��a que, p��lida e indecisa, permanecia de p�� �� sua frente.
��� Pai, venho pedir-te provid��ncias a fim de que meus
filhos me sejam entregues. O pai est�� morto e eles aban-
donados, sem prote����o, podem perecer no cerco de Tanis.
Pot��fera mediu-a com um olhar espantado e descon-
tente: era a primeira vez que ela mostrava interesse pela
sorte dos filhos.
��� N��o depende de mim aceder ao teu desejo ��� res-
pondeu franzindo as sobrancelhas ���; esqueceste que Apopi
proclamou Manasse seu herdeiro? N��o h�� de querer entre-
gar os dois rapazes, que est��o junto dele em pal��cio e,
conforme o caso, os levar�� para Avaris. Al��m disso, con-
fesso que estranho as tuas apreens��es pelos descendentes
do homem abjeto que foi carrasco do Egito.
"�� uma vergonha para ti essa maternidade e podes
tranq��ilamente esquec��-los, agora que outro futuro se te
oferece. Os deuses te conceder��o, sem d��vida, filhos em
cujas veias correr�� o sangue de um pai t��o nobre como
tu mesma."
S��bito rubor inundou o rosto p��lido de Asnath, que,
levantando-se, disse vibrante:
��� N��o me envergonho dos filhos de Jos�� e n��o coro
de lhes ser m��e. Jos�� est�� morto, odiado e destru��do, mas
isso n��o impede tenha sido e continue a ser, na mem��ria
dos povos, o maior homem do seu tempo: debaixo da sua
m��o de ferro, curvaram-se o Fara��, nossa casta poderosa
e todo o povo; e se os filhos herdaram a energia e a sabe-
doria do pai, o Egito pode gloriar-se deles.
Diante dessas palavras inesperadas, Pot��fera levantou-
-se, empalidecendo; depois, segurando-lhe bruscamente o
bra��o, murmurou com voz entrecortada:
O CHANCELER DE FERRO
383
��� Infeliz! amaste-o, tu, a filha do sacerdote de He-
li��polis; amaste um escravo liberto, um c��o abjeto que te
apanhou com m��os impuras para encarcerar-te como cri-
minosa, logo que te tornaste um obst��culo �� sua ambi-
����o . . .
Os olhos de Asnath flamejaram: tudo quanto de amar-
gura e sofrimento se tinha acumulado em sua alma, por
tantos anos, transbordou de repente:
��� Pai, esqueces que foi por ordem tua e dos padres
que desposei Jos��. Nunca esqueci o que devia a ti e �� nossa
casta; desprezei o Adon perante a sociedade; a ele s�� de-
monstrei indiferen��a e desd��m; nunca lhe disse que o
amava; mas n��o se governa o cora����o. Esse homem que
fez tanto mal a v��s todos, cumulou-me de amor; foi sempre
bom para mim. Muitas causas o impeliram a uma insaci��-
vel ambi����o; mas, apesar disso, n��o se p��de decidir a ma-
tar-me, o que lhe teria sido t��o f��cil, e ainda me prodiga-
lizou mais amor na pris��o que no pal��cio. Submeti-me ��s
ordens cru��is da minha casta; n��o fui esposa, nem m��e
como tem direito de o ser a mais pobre mulher do povo;
mas, maldizer a mem��ria de Jos��, isso n��o posso.
Pot��fera escutara-a estupefato; s�� nesse momento aca-
bava de compreender quanto fora cruel na sua cegueira;
quanto sofrimento impusera �� filha. Arrastado pelo fana-
tismo pol��tico e pelo orgulho de casta, o padre, nele, tinha
suplantado o pai.
Com brusco movimento, atraiu a mo��a em seus bra��os
e beijou-a no rosto.
��� Perdoa-me, filha querida, o ter sido t��o cego, t��o
cruel contigo. Hoje mesmo escreverei para Tanis, ao sacer-
dote do templo de Hator e, se humanamente for poss��vel,
teus filhos ser-te-��o restitu��dos.
*
Em Tanis, o tempo superveniente havia sido bem duro:
o acesso do seu mal, que tinha acometido Apopi no dia
imediato �� morte do Adon, durante a recep����o dos padres,
degenerara em perigosa enfermidade, que, durante sema-
nas, fez-lhe periclitar a vida.
384
J. W. ROCHESTER
Foi o pr��ncipe Namourod que, embora fraco e tamb��m
enfermo, tomou as r��deas do governo, mas defrontou-se
com percal��os quase insuper��veis. A morte de Jos�� des-
mantelara toda a m��quina governamental. O poder tinha
sido abandonado, de longos anos, nas m��os do h��bil chan-
celer, de sorte que, na sua falta, todos se sentiam como
perdidos; era preciso, n��o somente restabelecer a ordem
e a disciplina, mas preparar a defesa, esbarrando a cada
passo com a surda hostilidade, a trai����o e a m��-vontade
da popula����o egipcia.
Todavia, a imin��ncia do perigo despertou toda a ener-
gia dos Hyksos e muito rapidamente eles se reuniram e
puseram em campo o ex��rcito destinado �� liberta����o de
M��nfis.
Foi um golpe terr��vel quando souberam da derrota
desse ex��rcito; todavia, Apopi, que tinha readquirido um
pouco de for��as, tomava medidas en��rgicas para reunir
novas tropas, quando um soldado, isento por acaso do mas-
sacre de M��nfis, trouxe a not��cia da tomada da fortaleza
e da aproxima����o de Ta�� III que, a marchas for��adas,
avan��ava para Tanis.
Um conselho extraordin��rio reuniu-se na mesma noite
e Apopi quis presidi-lo, apesar da sua extrema fraqueza.
Movido por um derradeiro lampejo de orgulho e de ener-
gia, declarou querer defender Tanis a todo o transe; mas
todos os chefes presentes protestaram, declarando a cidade
muito fraca para resistir com vantagem e exigiram cate-
goricamente que a pessoa do rei fosse posta em seguran��a,
atr��s das inexpugn��veis fortifica����es de Avaris. Apopi teve
que ceder. Tomada essa decis��o, apressaram febrilmente a
partida do Fara��; numerosos carros, burros e camelos
foram carregados com os tesouros r��gios e encaminhados
para Avaris.
Quarenta e oito horas depois, o ��ltimo rei pastor ��o
Egito, p��lido, desfigurado, recostado como um espectro
descarnado nos coxins da sua liteira, deixava Tanis para
n��o mais voltar. Em outra liteira acomodavam-se Manasse
e Efraim, os irris��rios herdeiros do carcomido trono que
o pai sonhara ocupar.
O CHANCELER DE FERRO
385
A partida do Fara�� provocou verdadeiro p��nico na
cidade; tudo que era Hykso e teve a possibilidade de faz��-lo,
pos-se em fuga para Avaris; mas todos sentiam que se
iam de uma vez e saciavam, na medida do poss��vel, sua
raiva desesperada; os dignit��rios punham fogo, com as
pr��prias m��os, aos seus pal��cios; e as cenas de assassinato
e carnificina, que tinham ensang��entado as ruas de M��nfis,
renovaram-se em Tanis.
Dias depois desses sucessos, Ta�� III ocupou, sem o
menor esfor��o, a capital do inimigo, sendo recebido com
entusiasmo pela popula����o eg��pcia e disfar��ada raiva dos
Hyksos restantes.
O velho rei resolveu demorar-se longamente em Tanis.
A cidade estava meio destru��da, uma administra����o regu-
lar tinha deixado de existir, era preciso restabelecer a
ordem, apurar o saque e, finalmente, tomar medidas para
encurralar os Hyksos no seu ��ltimo reduto e impedi-los
de retomar a ofensiva. Ta�� instalou-se no pal��cio de Apopi,
e foi ao tratar de p��r um pouco de ordem na resid��ncia
real, devastada e saqueada, que Armais fez uma descoberta
que o perturbou, sem deixar de lhe causar triste alegria:
em uma sala vazia, achou a m��mia de Hichelat; os embal-
samadores tinham-na entregado pouco antes da fuga de
Apopi; os funerais ainda n��o tinham sido celebrados; de-
pois, na confus��o da fuga, esqueceram o corpo. Quanto ��
m��mia de Jos��, fora levada pelos membros da sua tribo,
os quais, na sua ingenuidade supersticiosa, imaginavam
que os restos do poderoso protetor lhes serviriam de sal-
vaguarda no futuro.
Armais derramou l��grimas sinceras pelo fim tr��gico
da generosa mo��a que se tinha sacrificado para salv��-lo
e jurou fidelidade eterna �� sua mem��ria. Pouco tempo de-
pois, ele e Hor partiram para Heli��polis: Armais levava o
corpo de Hichelat, que pretendia sepultar no t��mulo da
fam��lia; Hor fora nomeado, pelo Fara��, para elevado cargo
na cidade do Sol, e tinha pressa de regular definitivamente
as suas rela����es com Asnath, celebrando quanto antes o
casamento.
Alguns dias depois de chegar a Heli��polis, vendo que
Asnath evitava, evidentemente constrangida, uma expli-
386
J. W. ROCHESTER
ca����o definitiva e, pesaroso e melindrado, pediu a Maia
que falasse �� filha e indagasse, se poss��vel, os motivos da
sua estranha atitude.
Surpresa e descontente, a mulher do sacerdote saiu
logo �� procura de Asnath e entabulou, sem pre��mbulos,
uma conversa sobre o casamento com Hor, seu ��nico noivo
leg��timo, com quem s�� por excepcionais circunst��ncias dei-
xara de cumprir a palavra empenhada.
Um vivo rubor inundou bruscamente o p��lido sem-
blante da mo��a:
��� Nunca pensei em romper o compromisso que me
prende a Hor; apenas n��o sei como fazer e como ele
receber�� a not��cia de que serei m��e de um terceiro filho
d o . . . outro ��� disse confidencialmente.
��� Ah! ainda nos faltava isso? Que desgra��a! Que
esc��ndalo! ��� exclamou Maia enraivecida. ��� Agora com-
preendo tua tristeza, filha desgra��ada...
E uma longa lista de t��tulos honor��ficos e de invecti-
vas foi bolsada �� mem��ria do Adon, o miser��vel que tinha
procurado incomodar o mais poss��vel todo o mundo, at��
depois da morte.
Asnath, calada, baixara a cabe��a e escutava resigna-
damente, quando a entrada de Ranofrit interrompeu as
exclama����es da cunhada. Inteirada do que se passara, a
mulher de Putifar disse, sorrindo:
��� Deixa-te de gritos e ap��strofes, Maia; eis a�� um
fato de alta import��ncia! Se Hor perdoa a Asnath dois
filhos de Jos��, n��o far�� bulha in��til por causa de um
terceiro; n��o ser�� isto que impe��a a uni��o.
��� Tens raz��o, na verdade: como n��o pensei nisso?
Vou informar Hor da verdade ��� respondeu Maia subita-
mente tranq��ilizada e, sem mesmo esperar o consentimen-
to da filha, saiu precipitadamente.
E P �� L O G O
Dobaram anos. Sekenen-Ra Ta�� III ��� o Muito-Vito-
rioso ��� tinha entrado no seio de Os��ris; Kam��s, seu su-
cessor, seguira-o no t��mulo ap��s um reinado muito curto,
mas a mem��ria do glorioso rei que desfechara o golpe mor-
tal no poder dos Hyksos, era sempre lembrada e vene-
rada; seu modesto t��mulo, na necr��pole de Tebas, torna-
ra-se alvo das peregrina����es, de oferendas e numerosos
sacrif��cios.
Havia seis anos que Ahm��s I ocupava o trono e acaba-
va de ilustrar o nome com a tomada de Avaris. Depois de
prolongado cerco, o inexpugn��vel reduto dos abominados
opressores tinha baqueado. Das embocaduras at�� ��s ca-
choeiras do Nilo, a terra sagrada de Kemi era livre.
Na cidade santa de Heli��polis preparava-se uma sole-
nidade imponente e grandiosa: o jovem rei ali tinha ido
para celebrar sua coroa����o, conforme o antigo uso, e, pela
primeira vez depois de quinhentos anos, um Fara�� cingira
a coroa alvirrubra do Alto e Baixo Egito.
Desde a v��spera, extraordin��ria anima����o invadira a
cidade; de todas as prov��ncias, mesmo das mais distantes,
nomarcas, padres, dignit��rios tinham acorrido a Heli��po-
lis, a fim de assistir �� grande solenidade nacional. Sem
d��vida, entre os haqs, n��o faltavam descontentes ocultos,
que se julgavam lesados na sua mesquinha ambi����o pes-
soal, com o advento de um ��nico e poderoso soberano;
mas, sendo o momento impr��prio para manifestar preten-
s��es, n��o hesitavam em demonstrar que compartilhavam
do entusiasmo geral.
Desde a madrugada, multid��o florida e ��lacre apinha-
va-se nas ruas embandeiradas; todas as casas ostentavam
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J. W. R O C H E S T E R
guirlandas de flores e at�� a mais pobre cabana arvorava
um ramo verde. A multid��o era compacta, sobretudo nas
imedia����es do pal��cio real e a alegria, a ing��nua bondade
natural do povo eg��pcio, manifestou-se sob todas as for-
mas: discutiam a ornamenta����o da festa palaciana, con-
tavam-se �� meia voz anedotas que denunciavam o car��ter
do Fara�� e dos seus principais conselheiros, trocavam ep��-
tetos e pilh��rias com os vizinhos, ao mesmo tempo que
comiam doces trazidos ou comprados aos mercadores am-
bulantes, porque, mesmo no tempo de Ahm��s, j�� existiam
modestos representantes da especula����o.
Todo mundo era feliz e alegre, sem restri����es; a fome
e as desgra��as passadas pareciam esquecidas, porque, des-
de anos, as inunda����es regulares do Nilo tinham restau-
rado a abund��ncia e a riqueza. Tamb��m os padres mendi-
cantes, que circulavam entre as fileiras apertadas dos
espectadores, levando amarrados ao peito pequenos ora-
t��rios port��teis, faziam excelente neg��cio; cada qual exal-
tava o poder milagroso e a efic��cia protetora do deus ou
deusa cuja ef��gie expunha �� venera����o dos fi��is, que bei-
javam devotamente o pequeno orat��rio e depositavam nu-
merosas d��divas na sacola de couro presa ��s costas do
postulante.
As fanfarras retumbantes, que anunciavam o come��o
da cerim��nia, interromperam as conversas, e todos os olhos
fitaram avidamente o cortejo que acabava de desembocar
dos p��tios do pal��cio para alinhar-se na rua, precedido
dos lacaios reais, que, munidos de varinhas douradas, afas-
tavam a multid��o, abrindo larga passagem �� prociss��o.
Um estremecimento de orgulho e entusiasmo percorreu
as massas, quando puderam contemplar o imponente des-
file dos soldados, luzidamente armados, conduzindo ramos
de flores dos nomarcas, dos pr��ncipes aliados e dos digni-
t��rios. Quando, finalmente, apareceu o trono port��til, ro-
deado por uma floresta de leques e no qual sentavam-se
Ahm��s e sua esposa Nofrit��ri, gritos de alegria e aclama-
����es fren��ticas saudaram o jovem rei, que n��o era mais
um estrangeiro, como Apopi e seus predecessores, mas um
verdadeiro filho de Ra, a pr��pria encarna����o da vit��ria
do Egito sobre o inimigo secular.
O CHANCELER DE FERRO
389
Durante esse tempo, uma segunda prociss��o deixava
o santu��rio do templo do Sol e lentamente se dirigia, atra-
v��s dos imensos p��tios e avenidas de esfinges, ao encontro
do Fara��. Nela viam-se os cantores e cantoras do templo,
de harpa ao ombro, precedidos pelo regente, que, com um
rolo na m��o, dirigia os c��nticos sagrados; depois, extensa
fila de padres, conduzindo as est��tuas e os s��mbolos dos
deuses; a barca de Ra ornamentada de flores e, sob um
p��lio, os profetas e iniciados; finalmente, Pot��fera, que
oficiava revestido de todas as ins��gnias da primeira digni-
dade sacerdotal eg��pcia, na m��o o cetro emblem��tico de
suas altas fun����es.
Quando os dois cortejos se encontraram, o rei desceu
do trono port��til e encaminhou-se para o sacerdote, que
o esperava debaixo da torre, antes da grande porta do
recinto sagrado.
Depois de ter aspergido o soberano com ��gua purifi-
cadora, Pot��fera o levou para o grande p��tio do templo,
ao centro do qual levantavam-se dois altares cobertos de
ins��gnias sagradas; e a��, ao som dos hinos, entre nuvens
de incenso, o Fara�� sacrificou ao seu pai imortal. Depois,
quando se realizaram as imponentes cerim��nias da sagra-
����o, e quando o rei cortou com uma foice de ouro o feixe
que lhe apresentavam, um padre, por ordem de Pot��fera,
soltou quatro p��ssaros que voaram em todas as dire����es,
ao mesmo tempo que o sacerdote exclamava retumbante:
��� Voai para as quatro vidas, Amset, Sis, Soumants,
Kebhsniv; ide para o Sul, Norte, Ocidente e Oriente; dizei
aos deuses desses pa��ses que Horus, filho de Isis e de Os��ris,
cobriu-se com a coroa real, e que o Fara�� Ahm��s I igual-
mente cingiu o duplo diadema do Alto e Baixo Egito.
Na tarde desse grande dia, enquanto o Fara��, voltando
ao pal��cio, descansava da longa e fatigante cerim��nia
e o povo em j��bilo percorria todas as ruas de Heli��polis,
um pequeno grupo de parentes e amigos ��ntimos estava
reunido em casa de Pot��fera.
Junto de ampla janela que dava para o jardim, sen-
tava-se o velho pont��fice, conversando com Putifar e
Racapou.
390
J. W. R O C H E S T E R
A idade e os trabalhos tinham curvado a elevada es-
tatura do sacerdote; rugas profundas sulcavam-lhe a larga
fronte, mas as grossas sobrancelhas sombreavam olhos
cintilantes, de uma energia e ardor inteiramente juvenis.
O velho comandante de Heli��polis tinha-se reformado e
era Hor quem ocupava esse posto importante; Putifar
continuava como comandante de M��nfis. Pouco afastado,
um segundo grupo composto de Hor, Ranofrit, Armais e
sua m��e; e, na extremidade da sala, dois belos rapazes,
os filhos de Putifar, brincavam ruidosamente com uma
encantadora menina de doze anos e um robusto rapaz de
nove.
S�� Asnath faltava a essa reuni��o familiar. �� que fale-
cera, havia seis anos, minada por uma debilidade rebelde
a todos os rem��dios. Como l��mpada a que falta ��leo, ex-
tinguira-se sem sofrimento, depois de seis anos de casada
com Hor, deixando ao esposo desesperado um filho e a
filha p��stuma de Jos��, adotada e a quem ele amava com
afeto verdadeiramente paternal.
Embora profundamente ferido com a perda da filha
querida, Pot��fera tinha considerado essa morte uma liber-
ta����o e a estranha mol��stia como ��ltimo efeito do sorti-
l��gio com que o Adon lhe havia empestado a alma, inspi-
rando-lhe indigna paix��o por ele. Aos olhos do sacerdote,
Asnath era uma v��tima da pol��tica e da maldade do Apopi;
um amor da parte dela pelo homem impuro, ao qual a
tinham sacrificado, era-lhe inadmiss��vel e s�� podia provir
de um feiti��o. Por isso, celebrou junto do corpo ritos mis-
teriosos de purifica����o e oficiou pessoalmente nos funerais.
Quando chegou �� cerim��nia da abertura dos olhos e dos
ouvidos do duplo et��reo, Pot��fera levantou as duas m��os
acima da m��mia e, tendo por tr��s vezes chamado: "As-
nath!" ��� pronunciou com exalta����o:
��� Abro teus olhos �� luz extraterrestre; abro teus
ouvidos �� voz dos deuses; e, usando do poder de que dis-
ponho como primeiro servidor do grande deus de Heli��po-
lis, desprendo teu cora����o do sortil��gio por meio do qual o
hebreu te havia prendido; corto o la��o da for��a impura
e livro-te do homem nefasto que, vivo, encheu-te de pesar, e
morto, aspirou tua vida, chamando-te a si. Vai, minha filha
O C H A N C E L E R DE F E R R O
391
querida, livre, reconfortada, perante o trono de Os��ris e os
quarenta e dois ju��zes do reino das sombras, e dize-lhes:
"Sou a filha de Pot��fera, purificada de toda a influ��ncia
m��gica e inocente por minha vida; se manchei-me ao
contacto de um impuro, foi para desviar da casa do deus
e de seus servos a c��lera do estrangeiro; sacrifiquei-me
por minha casta e por meu povo, e suplico-te n��o aches
meu cora����o muito pesado em tua balan��a e me admitas
nos paramos da luz eterna."
Esta cena e este discurso tinham produzido em todos
os assistentes profunda impress��o; depois, o sacerdote
readquiriu calma, e mais ��� coisa estranha! ���, parecia
ter esquecido a origem da filha de Asnath e lhe dedicava
grande afei����o, apesar da semelhan��a frisante, da rapa-
riga, com o Adon; tinha os mesmos cabelos negros e ane-
lados, os grandes olhos verdes impenetr��veis e profundos,
o sorriso fascinador e o nariz ligeiramente aquilino do
pai; mas Pot��fera n��o demonstrava dar por isso e enchia
de carinhos a menina, que possuiu o nome genuinamente
eg��pcio de Isis.
Ranofrit era ainda uma fresca e airosa matrona; Maia,
por��m, tinha envelhecido e emagrecido muito; silenciosa-
mente recostada em sua cadeira, contemplava Armais com
um misto de orgulho e pesar materno. Ele atingira toda
a expans��o da sua m��scula beleza, e as ricas vestes, o
soberbo colar que Ahm��s lhe dera de manh��, mais lhe
real��avam a formosa apar��ncia. Altiva e severa frieza,
por��m, se desprendia de todo o seu ser, e sua indiferen��a
pelas mulheres era not��ria.
Armais tinha cumprido a palavra e, apesar dos pedidos
e persuas��es dos parentes, permanecera celibat��rio. "E isso
por causa de uma estrangeira, uma filha dos chasous, era
uma vergonha!" ��� n��o deixava de dizer Maia, na aus��n-
cia de Armais, cada vez que ia por ��gua abaixo um novo
plano matrimonial.
Nesse momento, o jovem guerreiro conversava com
Hor sobre um grande sacrif��cio f��nebre, que se propunha
celebrar no dia seguinte, em mem��ria de Hichelat, no seu
t��mulo de fam��lia. Seu cunhado, tendo pronunciado algu-
392
J. W. ROCHESTER
mas palavras de pesar, a prop��sito do tr��gico fim da prin-
cesa, Armais respondeu suspirando:
��� Sim, foi morte horr��vel, confesso que n��o posso
acreditar que uma inocente vida humana constitua grata
obla����o ao rio sagrado. O Fara�� pensa do mesmo modo e
disse-me, ultimamente, que se propunha promulgar uma
lei que acabe com os sacrif��cios humanos no Nilo.
��� Contanto que semelhante decis��o, por mais justa e
humana que seja, n��o v�� irritar o povo, que est�� habituado
com essas oblatas ao r i o . . .
��� Far-se-�� a substitui����o por figuras de cera, o que,
devemos esperar, contentar�� todo mundo; e minha pobre
Hichelat ter�� sido uma das ��ltimas e, certamente, a mais
nobre v��tima nesse h��bito selvagem ��� disse Armais.
Mas foi impedido de continuar, porque Putifar gritava
alegremente:
��� Que est��s cochichando a�� em segredo? ��� venham
aqui esvaziar um copo em homenagem ao glorioso Fara��,
que os deuses conservem e cubram de gl��ria!
Toda a gente se aproximou do grupo formado pelo sa-
cerdote e seus amigos, ao p�� do qual os escravos acabavam
de colocar vinho, frutas e doces; at�� as crian��as foram, e
a pequena Isis, trazendo na m��o um bolo dado por Hor,
sentou-se num banquinho, aos p��s de Pot��fera, para rega-
lar-se.
A conversa tornou-se geral e alguns brindes entusi��s-
ticos tinham sido j�� erguidos, quando Racapou exclamou
jovialmente:
��� Ah! quanto agrade��o aos deuses por me terem dei-
xado viver at�� o dia de hoje, em que libamos em honra
do nosso rei leg��timo e da liberta����o do Egito! Quem o
teria pensado, naquele dia em que fomos obrigados a re-
ceber o Adon em Heli��polis, com honras r��gias!
"Lembras-te, Pot��fera, como o c��o imundo se empa-
vonava no festim, sentado entre n��s dois, deixando-se
tributar as honras e acolhendo gentilmente as homena-
gens? Maldito canalha!... (Racapou escarrou t��o energi-
camente como o tinha feito outrora.) At�� o excesso de
favor que ele te prodigalizou, fez-te girar a cabe��a e per-
O C H A N C E L E R DE F E R R O
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deste os sentidos" ��� terminou rindo ruidosamente o antigo
comandante de Heli��polis.
Ao ouvir essas palavras do velho amigo, a fisionomia
de Pot��fera enfarruscou-se subitamente:
��� Sim ��� disse descansando o copo, com um ar som-
brio ���, nunca esquecerei esse nefasto incidente, que foi
a primeira causa da perda de Asnath. Se eu n��o tivesse
ca��do doente, ele nunca teria visto minha filha e teriam
sido evitadas incalcul��veis desgra��as. Oh! quanto o odeio
pelo inferno que me fez padecer ��� continuou batendo na
mesa com o punho fechado... E se alguma vez revivermos
em novos corpos, eu o reconhecerei debaixo do novo in-
v��lucro e far-lhe-ei pagar seus crimes e sortil��gios; mas
enquanto isso n��o vem, que ele seja maldito... maldito!
que o seu esp��rito vague sem repouso entre os monstros
do Amenti; e que todo o sangue e l��grimas que fez o Egito
derramar, recaiam sobre ele e sua mem��ria.
Todo o fel, todo o ��dio que jazia nalma de Pot��fera
acabava de transbordar inopinadamente, �� lembran��a
evocada pelo velho Racapou; forte rubor inundava-lhe o
rosto e os olhos despediam chamas devoradoras. Nesse ins-
tante, pequenina m��o carinhosa lhe toca o bra��o e uma
voz clara perguntou:
��� Quem era esse mau homem de quem tanto maldi-
zes, vov��? como se chamava ele?
O sacerdote estremeceu e seu olhar sombrio e vago
mergulhou nos olhos verdes de Isis, que para ele se vol-
taram brejeiros e curiosos. Houve profundo sil��ncio, porque
a ing��nua pergunta, feita pela filha daquele a quem se
condenava t��o impiedosamente, tinha despertado certo
mal-estar em todos os presentes.
Pot��fera foi o primeiro que recobrou o desembara��o
e, passando a m��o pelos cabelos da mocinha, disse:
��� Tu n��o conheceste esse homem, n��o te direi o seu
nome, mas quando cresceres mais, saber��s dele e de seus
atos.
��� Em todo caso, se isso depender de mim, nunca sa-
ber�� quem foi seu pai ��� murmurou Hor.
��� Como, ent��o? Queres que ela ignore para sempre
a verdade? E se, vendo toda a execra����o que se vota ao
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J. W. R O C H E S T E R
nome de Jos��, come��asse a odi��-lo tamb��m, Isso seria hor-
r��vel, porque, enfim, ele �� sempre o seu pai ��� disse Maia
muito baixinho.
E voltando-se para o genro:
��� Pensas que ela o amaria sabendo que em suas veias
corre o sangue impuro do opressor do seu povo? N��o, n��o;
se estiver em minhas for��as, n��o saber�� nunca que o Adon
foi seu pai; ela �� e continua sendo minha filha.
Vendo a aflitiva impress��o que continuava a pesar
sobre os assistentes, Armais encheu os copos e, erguendo
o seu, disse com calma e gravidade:
��� N��o evoquemos o passado, n��o revolvamos feridas
que o glorioso presente nos deve ajudar a cicatrizar; so-
nhemos, antes, com o futuro que se desenrola radiante
para n��s e para a terra de Kemi, enfim liberta do jugo
estrangeiro. Bebamos uma ��ltima vez, meu pai, e v��s, meus
amigos, pelo nosso Fara�� Ahm��s ��� vida, for��a, sa��de! ���
de sua divina esposa, a rainha Nofrit��ri, e de sua linhagem
que, pressinto-o, dar�� ao Egito os mais gloriosos soberanos.
��� Tens raz��o ��� disse Pot��fera levantando-se e empu-
nhando a ta��a: ��� "Viva o Egito, sua grandeza e sua gl��ria,
at�� ao fim dos s��culos; e desgra��ado de todo estrangeiro
que ousar, com p�� impuro, pisar-lhe o sagrado solo!"
De: Reginaldo Mendes <
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