sábado, 16 de janeiro de 2021 By: Fred

{clube-do-e-livro} Livro, Adriana Falcão - O Doido da Garrafa

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e n�o mais lutando por dinheiro e poder, ent�o nossa sociedade poder� enfim evoluir a um novo n�vel."












De amor




O grande e o pequeno




Todo caso de amor tem sempre um grande e um pequeno.

Algu�m um dia falou, em franc�s, que em todo caso de amor il y a toujours celui qui aime et celui qui se laisse aimer. � mais ou menos a mesma coisa. O pequeno ama, o grande se deixa amar. O grande fala, o pequeno ouve. O grande discorda, o pequeno concorda. O pequeno teme, o grande amea�a. O grande se atrasa, o pequeno se antecipa. O grande pede, ou nem precisa pedir, e o pequeno j� est� fazendo.

N�o � uma quest�o de g�nero. Existem homens pequenos e homens grandes, mulheres grandes e mulheres pequenas. O temperamento e as circunst�ncias influem, mas n�o determinam. O grande pode ser o mais bem-sucedido dos dois ou n�o. O pequeno pode ser o mais sens�vel, mas nem sempre � assim. Muitas vezes o grande � o mais esperto, mas existem pequenos espert�ssimos. Depende do caso.

Como ningu�m descobriu, at� hoje, uma regra que permita determinar qual � o grande e qual � o pequeno, s� observando o casal mais atentamente.

Na rua, o que anda distra�do quase sempre � o grande.

Quase sempre, no cinema, o grande s� decide comprar pipoca depois que os dois j� est�o acomodados nas poltronas. pequeno, ent�o, fica esperando, vigiando, tomando conta para o filme n�o come�ar antes de o grande voltar, o que, por algum motivo, seria uma trag�dia.

Numa festa, o pequeno deve estar ansioso para que a noite seja boa, principalmente se foi ele que sugeriu o programa. O grande se comportar� de maneira indiferente at� se deixar embriagar pela m�sica, pela bebida ou pelo ambiente, quando ent�o ficar� muito mais animado do que o pequeno. Mesmo que o pequeno dance bem, o grande sempre dan�ar� melhor. O pequeno evita o sil�ncio porque tem certeza de que a culpa � dele, por isso sempre tem arquivados na cabe�a assuntos que possam ser �teis em todas as ocasi�es. A cal�a nova do pequeno dificilmente lhe cai t�o bem quanto a do grande, assim como o cabelo do grande est� sempre melhor do que o pequeno, ainda que a festa inteira pense exatamente o contr�rio. O pequeno geralmente se comove com a Lua calado, enquanto o grande aponta, olha s� a Lua. No final da festa � sempre o pequeno que quer ir embora, reservando o melhor da sua alegria para o resto da noite, enquanto o grande se despede dos amigos displicentemente.

Mais tarde, o pequeno � macho, � gueixa, � desgra�ado, � exclusivo e, se o cora��o do grande por acaso ouvir seus gritos, que sorte. No dia seguinte o pequeno estar� inevitavelmente preocupado: ser� que eu fiz tudo certo? Acho que eu n�o devia ter dito aquilo. Por que toda vez sou eu que beijo primeiro? Na d�vida, vai correndo procurar o grande, apesar de ter se prometido que nunca mais faria isso.

O grande e o pequeno podem ser de qualquer esp�cie, inclusive bichos, com exce��o dos gatos, que s�o todos grandes.

N�o necessariamente formam um casal. N�o � s� nas hist�rias de amor que existem grandes e pequenos. Havendo mais de um, um par qualquer, dois advers�rios, dois irm�os, dois amigos, sempre haver� o que quer mais e o que quer menos, o fascinante e o fascinado, o generoso e o pedinte.

Mas como tudo pode acontecer, sen�o nada disso ia ter gra�a, a qualquer momento, por alguma raz�o, geralmente � noite, imprevisivelmente, o grande pode ficar pequeno, e o pequeno ficar grande de repente. Basta um vacilo, um acaso, um cair de tarde, um olhar mais assim, um furac�o, uma inspira��o, uma imprud�ncia.

Quando isso acontece, � comum o pequeno ficar maior ainda, o que torna automaticamente o grande ainda menor. O ex-pequeno, logo que � promovido a grande, pode se vingar do ex-grande, se o seu sofrimento tiver boa mem�ria. A�, coitado do novo pequeno, vai se arrepender de cada n�o beijo, cada n�o telefonema, cada n�o noite de ins�nia, cada n�o desespero, cada n�o entusiasmo, cada n�o carinho inesperado, indispens�vel, inevit�vel, imprescind�vel, cada n�o todas as palavras apaixonadas em qualquer l�ngua do mundo. Ele vai se surpreender com a reviravolta, no come�o, mas vai se conformar com sua nova condi��o de pequeno em seguida. E ent�o vai seguir, cuidadoso e desastrado, na quase in�til inten��o de conquistar o grande urgentemente.




Quem diria?



�N�o � que eu n�o goste mais de voc�, eu gosto de voc�, � s� uma quest�o de l�gica.

Se um dia isso tudo vai acabar, n�o � melhor acabar logo agora?

J� que vai terminar dando errado mesmo, pra que esperar?

� claro que um dia vai dar errado.

A maior parte dos casais d� errado um dia.

Por que haveria de dar certo justo com a gente?

Melhor ficar por aqui enquanto n�o deu errado ainda.

Pelo menos agora a gente ainda tem chance de ser feliz por a�.

A gente � feliz, eu sei.

Ent�o, pra que estragar?

� claro que o amor vai se gastar.

� l�gico que um dia isso tudo vai passar.

� �bvio que a gente n�o vai ser feliz assim a vida inteira.

N�o vai ser muito mais triste depois, quando a tristeza pegar a gente desprevenido?

Um dia eu vou me sentir infeliz com voc�, voc� vai pensar em outra pessoa, eu vou pensar que me sinto infeliz com voc� porque voc� pensa em outra pessoa, voc� vai pensar que pensa em outra pessoa porque eu me sinto infeliz com voc�, ou vice-versa.

A� a gente vai brigar, vai se acusar, vai se culpar, vai ver que � melhor acabar, mas j� vai estar muito mais acostumado um com o outro e vai ser ainda mais dif�cil.

Ent�o a gente vai tentar mais uma vez.

A gente vai tentar mais uma vez n�o sei quantas vezes.

Vai ter hora que sou eu que vou pedir, vamos tentar?

Vai ter hora que quem vai pedir � voc�.

A gente vai alternar os pap�is de vez em quando, um indiferente e um apaixonado, uma v�tima e um culpado, um coitado e um tirano, a gente vai terminar se odiando.

Vamos deixar assim como est�, eu gostando de voc� e voc� gostando de mim?

� dif�cil, eu sei.

Mas dif�cil mesmo vai ser um dia a gente se olhar e pensar, passou.

Vai ser muito mais dif�cil ver o amor diminuindo, diminuindo, acabando, ver o tempo que era bom ficando cada vez mais distante, a gente se lembrando de agora e pensando, t� vendo?, era melhor ter acabado antes.

Eu sei que � dif�cil.

Mas eu acho melhor a gente acabar aqui, Fulano.�

E s� quando Fulano desistiu de argumentar e foi saindo, triste, muito triste, ela gritou, �primeiro de abril!�.

Primeiro ele riu. Ent�o parou. E, antes de voltar, raciocinou um pouquinho.

Era uma quest�o de l�gica. Se um dia aquilo tudo ia acabar, n�o era melhor acabar logo ali? J� que ia dar errado mesmo, pra que esperar? Pensou que ia ser muito triste olhar pra ela um dia e pensar, passou. Pensou, ainda, que a tristeza tem essa mania de pegar a gente desprevenido. Mas a tristeza j� estava t�o longe dali, naquela hora, que nem metia mais tanto medo.

Ent�o ele pensou, azar.

A�, voltou.

E os dois morreram de rir.

E se beijaram.

E morreram de rir.

E se beijaram.

Vai ver eles pegaram a tristeza desprevenida naquele primeiro de abril, n�o sei, n�o posso afirmar, mas eu acho que ela foi embora de susto.

S� sei dizer que n�o voltou nunca mais e eles foram felizes para sempre, quem diria?




Um casal perfeito



O ENCONTRO (praia, montanha, parque, carnaval, noite, dia, festa, bar, escrit�rio, rua, shopping, p�tio de escola ou engarrafamento).

Ele olha para ela, ela olha para ele.

Ele fica na d�vida.

Ela tem quase certeza.

Ele s� queria ser Humphrey Bogart, mesmo que nunca tenha ouvido falar nesse nome.

Ela s� queria acreditar.

O fato � que eles terminam juntos.

Algumas considera��es, uma pequena confiss�o, nenhuma promessa, um beijinho s�.

Ent�o come�a.

UM M�S DEPOIS (em qualquer lugar).

� claro que ele est� atrasado. � claro que ela est� esperando. E se ele n�o vier?

Veio. Chega bastante ofegante, mas finge que n�o estava com pressa.

� Voc� veio correndo?

� Eu? N�o. Eu tenho asma.

Tem asma, herpes, astigmatismo, essa cal�a listrada horrorosa, � atrasado, irrespons�vel, desajeitado, doido, ser� que � apenas isso ou ainda tem mais algum defeito?

Ela � totalmente incompreens�vel, nervosa, uma chata. Mas � t�o engra�adinha, ele pensa.

Ent�o d� um beijo de desculpa nela e a t�tica funciona.

O CASAMENTO (cart�rio, igreja ou caminh�o de mudan�a).

� claro que vai dar certo. N�o vai? Vai sim. Sei n�o.

Esse neg�cio de casamento � muito dif�cil hoje em dia.

Casamento sempre foi dif�cil.

Por que as pessoas casam, ent�o?

Pra ficar junto, amar, ser feliz, n�o sei o que, n�o sei o que l�, essas coisas de letra de m�sica.

Por que, no fundo, todo mundo � rom�ntico, sabe?

Sei.

Quero ver daqui a cinco anos.

DAQUI A CINCO ANOS (na cozinha?).

N�o � que casamento seja ruim, � que a mesma pessoa, todo dia a mesma coisa, de vez em quando cansa um pouco, � isso, e depois crian�a pequena d� trabalho demais, meu Deus, deviam ter avisado antes. Avisaram. Eu sei. � que a gente nunca escuta quando est� apaixonado, fica surdo, fica tonto, abobalhado, fica feliz demais, uma coisa meio louca, lembra? Aquela noite? Cinco horas da manh� e a gente l� dan�ando. N�o queria nem saber de nada de neg�cio de dinheiro, de neg�cio de fam�lia, de neg�cio de trabalho no outro dia. N�o queria. Nem saber. Agora � fralda, mamadeira, IPVA de carro, supermercado, gripe, quer tomar outra cerveja? Agora n�o posso. N�o devo. Tenho contas a pagar, sou pessoa respons�vel. Uma cerveja s�, t�? Ent�o t�. J� s�o cinco da manh�. Quer dan�ar? Quero.

DEZ ANOS DEPOIS (dentro da cabe�a).

T� passando. A vida t� passando. A vida t� passando. Ser� que � essa vida que eu quero? Ser� que ainda d� tempo de viver outra? Eu quero outra ou quero essa? N�o posso afirmar muito bem, assim, com certeza absoluta. Se pudesse guardar essa vida na gaveta e ir l� fora pensar um pouco... �s vezes eu tenho essa d�vida. Mas depois passa. T� passando.

DEPOIS DE TUDO (juntos. Ou separados).

Tirando os problemas todos at� que foi bom, foi ruim, foi m�dio, engra�ado, meio triste, uma desgra�a!, foi imposs�vel, t� certo, foi chat�ssimo, foi p�ssimo inclusive, mas tamb�m foi muito divertido, eu diria at� que foi �timo, excelente mesmo, foi perfeito, n�o foi?

E al�m de tudo ainda teve cada beijo!




Um dia de pai



Quando o despertador toca, e os sonhos fogem, a� come�a: banho, barba, caf�, beijo e rua!

A vida tem essa mania de passar as obriga��es na cara dele.

� Bom trabalho, pai!

� V� se n�o se atrasa pro jantar.

� E n�o esquece de deixar aqueles cinquenta que eu pedi ontem.

Quando era garoto, ele queria ser cantor de rock.

Hoje trabalha muito, sai pouco, agrada m�dio, raramente chora, adora m�sica, de vez em quando arrisca um samba. Desistiu de ficar rico. Desistiu de ficar jovem. Desistiu de tocar guitarra. Desistiu de falar ingl�s fluentemente. Desistiu de entender as mulheres. Desistiu. Infelizmente.

Faz contas e mais contas.

V� TV pra se distrair um pouco.

Bebe quando pode. Quando bebe, geralmente ele ama.

Parou de fumar v�rias vezes. Parou de dan�ar. Parou de pensar. Parou de insistir. Parou.

Tem colesterol alto. Fica meio preocupado. Depois passa.

Joga paci�ncia no computador apenas quando est� �impaciente.

Al�m do colesterol, ainda tem a tendinite.

Fora a vista cansada.

Lia muito antigamente. Leu at� filosofia.

Nunca mais foi ao cinema. Sexta que vem vai sem falta. S�bado tem jogo. Domingo tem pizza. Segunda tem mais. Ter�a tem mais ainda.

D�lar sobe. Sal�rio fica. Restaurante t� pela hora da morte. Praia que � bom t� polu�da. Problema tem muito. Candidato n�o falta. Solu��o � que t� bastante dif�cil. Assim n�o h� quem aguente. Depois passa.

J� tentou promessa. J� tentou incenso. J� tentou calmante. J� tentou contar at� dez. Um dia chegou a mil e duzentos. J� tentou de tudo, na verdade. Continua tentando.

A mulher pede aten��o. O filho ficou em recupera��o. As filhas querem ora isso, ora aquilo, sabe como � que � menina. A mais velha arranjou um namorado. A mais nova � a cara da m�e. Viu s� como a m�e dela j� foi linda?

Adorava cartas, principalmente as que vinham em envelope bonito e com v�rios selos colados, mas nunca mais recebeu nenhuma.

� praticamente fiel.

Pretende conhecer Veneza.

De vez em quando, ele olha pra tr�s.

O garoto que queria ser cantor de rock at� que n�o est� t�o longe assim, lembra?

Luz negra, cal�a de nesga, rum com coca, viol�o, passeata, LP, parece que foi outro dia.

Mas hoje n�o d� pra ter saudade. Cad� tempo? Olha a hora! Olha pra frente.

Amanh� tem reuni�o importante. Tomara que d� tudo certo. Dizem que o neg�cio t� feio. Imagina como � que vai ser quando as crian�as crescerem? Se ao menos desse pra juntar algum pro futuro. Como � que se diminui ainda mais esse or�amento? S� refazendo as contas. Mas a mulher reclama que nunca mais saiu pra jantar. Tudo bem. V�, l�, que seja. Promete para si mesmo que n�o vai beber muito hoje. S� uma. Ou duas. No m�ximo, tr�s. (�s quatro da manh� estar� irremediavelmente arrependido.) Depois passa.

Todo dia � isso: matar um le�o, encarar chatea��o, cumprir obriga��o, garantir o seu quinh�o e ainda manter o sorriso.

Uma vez por ano tem dia dos pais. Ele guarda com carinho o peso de papel que o filho pintou quando ainda estava no jardim.

� Presente pra mim? Muito obrigado.

O garoto que queria ser cantor de rock hoje � pai de fam�lia e �s vezes fica especialmente emocionado.

Depois passa.

Amanh� � outro dia.




N�o pode dar certo



Estavam juntos havia alguns anos, eram bastante felizes e ela gostava muito dele. Mas o problema n�o era s� esse.

Ela gostava dele demais. Aquilo n�o era mais gostar, era pior, era amar mesmo. Sabe amor, amor, que nem em m�sica, em hist�ria de romance ou ent�o em filme, amor que n�o acaba mais, amor de verdade, sabe l� o que � isso?

Pois imagine.

Ela amava aquele cara com todas as qualidades e todos os defeitos que ele tinha, pior ainda, amava os defeitos dele, inclusive aquela mania de exagerar as hist�rias que contava (ela sempre usava o verbo exagerar, em vez de mentir, quando ele era o sujeito da frase).

Ela amava o jornal inteiro que ele lia, o cachorro dele que latia, a toalha no ch�o do banheiro, o sapato no meio da sala, o sal de fruta, a pressa, o amigo chato, a noite besta, o dia a dia, mesmo quando ele estava mal-humorado, deprimido, insuport�vel, imposs�vel, mesmo quando ele n�o estava, nem telefonava, mesmo quando ele se atrasava, n�o vinha, faltava, n�o ouvia, mesmo assim ela amava, fazer o qu�?, o amor � assim mesmo, dizem.

Logo come�aram a estranhar um pouco o fato.

Diziam que ela era insensata de amar daquele jeito, com aquela intensidade, sem medo nem cautela, sem fazer economia, diziam que ela era burra, que era cega, que era boba, diziam que ela era doida.

Doidinha.

Isso n�o pode dar certo.

Que ingenuidade, meu Deus.

Ainda vai quebrar a cara um dia.

Deixa ela.

A vida ensina.

As coisas mudam.

O tempo passa.

Mas o tempo ia passando e ela continuava a amar o mesmo amor, igualzinho. Quando as coisas iam mudando, ela amava mais ainda. Todos os casais que existiam j� tinham se separado, e ela l� com ele. Todos os separados (inclusive os mais descrentes) j� tinham encontrado outros amores, e ela l� na mesma.

Fosse em casa, na rua, no trabalho, nas f�rias, em Verona, em Fortaleza, em Niter�i, em Ibiza, aqui mesmo, em qualquer lugar que fosse, em toda e qualquer circunst�ncia, mesmo nas mais adversas, chovesse ou fizesse sol, ela amava incondicionalmente. Aquilo at� irritava, que amor � esse, gente? Quem j� viu uma coisa dessas? Ela n�o era normal.

Estava errado. N�o podia.

Foi ent�o que resolveram estudar o caso com detalhes, e ela virou fonte de pesquisa.

Fizeram exames psicol�gicos, psicot�cnicos, semi�ticos, ergom�tricos, enzim�ticos, neurog�nicos, hemoculturas, eletrocardiogramas, gr�ficos, c�lculos, an�lises, conjecturas, cronometraram tudo e deram o diagn�stico: aquilo n�o tinha cura.

Tente se p�r no lugar dela.

Quem n�o se preocuparia em saber que � pessoa desenganada?

Ela ficou meio confusa.

Ser� que n�o tinha jeito?

E decidiu tentar de tudo. Acupuntura, homeopatia, praia, ioga, teatro, reza, l�gica, tequila, aula de dan�a, namorado, voo livre, nada disso adiantava, o problema era grav�ssimo.

Terminou acontecendo: ela p�s a culpa nele, � claro.

Ele n�o era normal. Era bom demais pra ela. Muito direito, trabalhador, sincero (s� um pouquinho exagerado), mas era moreno, por outro lado, inteligente, bonito. Pra completar, fazia tudo o que ela gostava, qualquer coisa, ainda por cima. Quem j� viu uma coisa dessas? N�o podia. Estava errado.

Tiveram uma conversa muito s�ria madrugada adentro com direito a choro, acusa��o e grito. Quando o dia nasceu, encontrou os dois mortos de cansa�o. Era in�til, ao que parece, aquilo n�o tinha sa�da.

Decidiram ficar juntos assim mesmo, apesar disso. Qual � o casal, afinal, que n�o tem os seus problemas, n�o � mesmo?




Inverno



A paix�o apagou.

Sumiu.

Devagarinho, talvez, ou ent�o de vez, como uma bolha de sab�o, o fato � que se foi.

Paix�o, cad� voc�?

N�o existe mais?

N�o faz mal n�o.

Dizem que depois da paix�o fica o amor. (�s vezes.)

� quando a doidice sossega, a agonia desaperta, o pensamento serena, a vida acena com outras possibilidades, a sanidade retorna, a realidade se reapresenta: Lua � Lua, noite � noite, palavras s�o s� palavras e nem todas elas s�o boas.

Agora sim.

Tamb�m, era imposs�vel viver ardendo naquele fogo, eternamente.

Ainda bem que passou, n�o cega mais, aquilo j� era um �inferno.

Melhor assim, sem tanto calor.

J� d� pra respirar melhor.

D� at� pra raciocinar, eu sou eu, voc� � voc�, e n�s dois juntos somos dois.

� s� somar.

Se eu quero isso e voc� quer aquilo, tudo bem. (� impress�o minha ou o querer da gente coincidia sempre antes? Esquece.) Nada melhor do que se sentir de novo uma pessoa.

Eu vou pra c�, voc� vai pra l�, mais tarde a gente se v�.

Agora eu preciso olhar as garotas saindo das escolas com seus moletons, de prefer�ncia com as mangas sobrando para fora das m�os, tomar um caf�, depois um licor, usar meu chap�u, sabe quando a pessoa est� incrivelmente necessitada de dan�ar na chuva?

Voc� faz o que quiser: cinema, teatro, boteco, futebol, o controle remoto � todo seu.

Antes de dormir a gente se encontra embaixo do cobertor eu e voc�, dois, mais esse friozinho, tr�s. Vai ser �timo. Muito agrad�vel. Confort�vel. Calmo. Tranquilo.

Reconhe�a: n�o � muito mais f�cil viver assim, desafogado, do que naquela tormenta?

N�o ouviu o que eu falei?

Deixa pra l�.

Est� bom a�, em voc�?

Aqui em mim est� um fracasso, eu confesso.

Que tal meia garrafa de vinho, uma lareira, uma m�sica antiga, qualquer coisa?

N�o tem mais jeito?

A paix�o n�o volta?

Quem disse?

A l�gica? A qu�mica, a f�sica e a biologia? Toda e qualquer estat�stica? O funcionamento hormonal? O passar do tempo?

Pois ent�o danem-se todos eles.

Voc� est� com 21 e eu com 19, frente a frente, enlouquecidos. Ent�o voc� tem 33. (De presente de anivers�rio eu at� escrevi uns versos, mas voc� continuava preferindo beijos.) De repente, eu me dou conta, j� fiz 40 e continuo louca. Quando voc� tiver 58, estaremos mais encantados ainda. Viraremos mat�ria de pesquisa, objeto de museu, motivo de inveja, o mundo inteiro comentando �t� vendo aqueles dois? Que loucura. Que grude. Que estranho. Eu acho que � mentira. Ser�? Sei l�. Que coisa!�.

Deixa falar.

N�o liga n�o.

Ent�o, vai: me tira pra dan�ar.

Agora, sim, qual o problema?

Depois eu termino a cr�nica.




Revela��o



Vou ao banheiro, ela disse. Ele piscou o olho pra ela e continuou a conversa.

Eram casados havia alguns anos, nem ricos nem pobres, dois filhos, um cachorro, todos os s�bados sa�am com os amigos. Formavam um casal feliz. At� aquele s�bado, pelo menos. Mas ela foi ao banheiro e ent�o se deu a trag�dia. Foi o destino. Tinha que acontecer. Ningu�m est� livre de precisar ir ao banheiro. Ela precisou. E, quando ia voltando para a mesa, percebeu como tinha se enganado com aquele homem durante esses anos todos e viu uma vida inteira desabar sobre sua cabe�a.

Imagine voc� que ele estava conversando normalmente, como se nada tivesse acontecido, sem demonstrar nenhuma dificuldade em continuar conversando normalmente, apesar da aus�ncia dela. Pior ainda. Ele estava feliz. T�o feliz que ela at� se assustou, parou na porta do banheiro e ficou observando a dist�ncia.

Ele falava alto, enquanto derramava mais cerveja no copo, e ria como n�o ria havia muito tempo. At� a� tudo bem. Admite-se. Mas ent�o ele disse, �s gargalhadas, �voc�s sabem como eu odeio piadas, n�o �?�, uma inverdade, ali�s, uma grande mentira. Ele sempre gostou de piadas. Ou seja, tratava-se de um mentiroso. Uma pessoa que mentia sem a menor necessidade s� pra impressionar os outros. Uma pessoa que gostava de impressionar os outros, principalmente as mulheres, provavelmente. Mas a desgra�a ainda estava por vir, e veio, quando ele se levantou da cadeira e continuou a frase, �a� o Lu�s Afonso chegou andando assim, daquele jeito dele...�, e ent�o, veja a que ponto chegamos, ele imitou o Lu�s Afonso andando. Com as pernas abertas. Sem a menor vergonha. Imitou igualzinho. Era um excelente imitador, quem diria. Longe dela ele parecia outro homem.

Longe dela ele era outro homem, essa � que � a verdade.

Um mentiroso, um imitador, um falso, um homem capaz at� de imitar o Lu�s Afonso andando com as pernas abertas e, portanto, capaz de tudo. Olha s� o perigo que ela estava correndo. Tinha dois filhos com um indiv�duo altamente periculoso, um cara capaz de fazer qualquer coisa para agradar os amigos, principalmente as mulheres, numa mesa de bar, at� imitar o Lu�s Afonso andando. Logo o Lu�s Afonso. O melhor amigo dele. Ele n�o tinha mesmo a menor considera��o por ningu�m, muito menos por ela, tanto � que continuou conversando normalmente, como se nada tivesse acontecido, �... e o Lu�s Afonso pediu um u�sque e come�ou a contar piada�. Quer dizer que o Lu�s Afonso pediu um u�sque, n�o �? Quando? Onde? Com quem? Fazia meses que ela n�o via o Lu�s Afonso. � claro que os dois deviam estar em alguma �farra que ela n�o era besta nem nada. Se fosse coisa sem import�ncia, ele teria contado, �tomei um u�sque com o Lu�s Afonso hoje�. Se n�o contou, ent�o � porque tinha coisa no meio. Tinha coisa no meio sim. O Lu�s Afonso e u�sque? A� tinha coisa.

Ent�o ela come�ou a tremer sem saber se era de raiva ou de surpresa, pensou em ir embora dali correndo e abandonar aquele homem pra sempre, mas preferiu ficar ouvindo a conversa. Ele contava a piada que o Lu�s Afonso contou pra ele, numa noite de sexo, u�sque, rock�n�roll e sabe-se l� mais o que, muito possivelmente, e se comportava como se contar uma piada fosse a coisa mais natural do mundo, quando de repente aconteceu, fim, acabou, ele morreu pra ela ali, naquela hora.

N�o que contar uma piada seja crime.

A pessoa tem todo o direito de contar uma piada.

O problema � que quem tinha contado aquela piada pra ele foi ela, na noite passada; ele n�o tinha achado gra�a nenhuma, e agora estava ali morrendo de rir com uma piada que o Lu�s Afonso nem devia conhecer, duas mentiras em uma, um milh�o de mentiras, mais precisamente, e ela nunca imaginou que ele fosse capaz de tudo aquilo. Continuar conversando normalmente, na aus�ncia dela, como se nada tivesse acontecido, afirmar de maneira falsa e leviana que n�o gostava de piadas, imitar o pr�prio amigo descaradamente, sair com o Lu�s Afonso e n�o contar para ela, omitir o fato de que ela havia contado uma piada para ele na noite passada, fingir que quem contou a piada foi o Lu�s Afonso, rir publicamente de uma piada sem gra�a nenhuma, continuar rindo, n�o ligar a m�nima pra demora dela, chegando a preferir, talvez, que ela tivesse morrido afogada no banheiro.

Pensou mais uma vez em ir embora dali correndo e abandonar aquele homem pra sempre, deixando pra tr�s um passado constru�do de mentiras, mas resolveu se fazer de sonsa e voltar pra mesa. Ele parou de rir, o impostor, ajeitou-se na cadeira, deu um beijinho nela, como � que a pessoa pode ser t�o falsa?, disse, �� vamos, meu bem?�, ela disse que n�o, e a� ele ficou devidamente calado enquanto ela pedia outra cerveja.




Um dia de m�e



Chegou exausta, cheia de sacolas, de dor de cabe�a, morta de calor, faminta, ca�tica, e com um firme prop�sito: tomar um banho e cair na cama. Encontrou uma acalorada discuss�o a respeito da impossibilidade de se dividir um computador em tr�s (sem despeda��-lo) e as tr�s crian�as aos berros. Todas as luzes da casa estavam acesas. A press�o subiu um pouco.

� Voc�s querem fazer o favor de apagar as luzes enquanto eu tomo o meu banho?

In�til. Todos os membros da fam�lia foram acometidos da s�ndrome de pensar em outra coisa, mal muito comum entre maridos e filhos durante reclama��es, queixas, opini�es etc.

Saiu pela casa desligando tudo o que estava aceso para nada: l�mpadas, som, TV, internet...

� Por isso que eu liguei pra c� e s� deu ocupado o dia inteiro!

� O qu�?

Nada. J� tinha desistido de competir com o walkman havia muito tempo.

No quarto da filha mais velha, dezenove blusas, cinco saias e quatro vestidos estavam espalhados em cima da cama para a devida aprecia��o da mesma.

� Vai sair?

� Desisti. N�o tenho roupa.

A press�o subiu vertiginosamente. Bobagem. Nada que um banho n�o resolvesse.

� Esse jantar n�o sai hoje n�o?

Esquece o banho.

� Sopa de novo?

Calma.

� Argh!

Respira.

� Por que eu n�o tenho copo?

Palpita��o moderada. Coisa control�vel. Foi buscar o copo.

� Aproveita que t� na cozinha e frita um ovo pra mim?

Claro. Fritar ovo inclusive � uma �tima terapia ocupacional pra quem j� passou por dois engarrafamentos, banco, pediatra, gin�stica, supermercado, uma papelaria entupida de m�es comprando material escolar e cinco reuni�es de trabalho. Normal.

� Voc� n�o sabe que eu s� gosto de gema mole?

Teve uma leve s�ncope nervosa, mas conseguiu se controlar. Afinal, a culpa era dela. Como podia ter cometido um erro t�o grave? Era �bvio que a mais velha e a do meio gostavam de gema mole (muito sal para a primeira, pouco para a segunda), a menor preferia ovo mexido (sal no ponto), o marido n�o suportava gema... Ou n�o suportava clara? Quem gostava de omelete? Qual das crian�as teve sarampo? Quem foi que quebrou a perna?

Bateram na porta. Era o porteiro pra avisar que ia faltar �gua. Amea�a de enfarte. Passou, gra�as a Deus. Voltou quando algu�m espatifou a jarra de suco no ch�o. (Dessa vez foi de mioc�rdio.) A menorzinha disse que foi a mais velha. A mais velha disse que foi a do meio. A do meio disse: tudo eu! E trancou-se no quarto, de onde s� sa�a em �ltimo caso, um inc�ndio ou um telefonema, por exemplo. O telefone tocou.

� Algu�m pode atender enquanto eu limpo o ch�o ou limpar o ch�o enquanto eu atendo?

Todos os membros da fam�lia foram acometidos de um acesso de paralisia generalizada (esp�cie de praga que costuma ser causada pela presen�a da m�e no recinto) acompanhado de mudez instant�nea. Acontece. Ela atendeu o telefone, era engano, limpou o ch�o, voltou para a mesa, a sopa tinha esfriado. Melhor. Comer engorda.

� O ar-condicionado do meu quarto quebrou.

� Voc� lembrou de comprar o meu livro de ingl�s?

� N�o tem geleia n�o, �?

� O cachorro fez xixi na minha colcha.

� Por que eu n�o tenho garfo?

O telefone tocou de novo. Nova palpita��o seguida de falta de ar s�bita. Era para a menor.

� A J�lia pode dormir aqui hoje?

Pode.

� A mam�e deixou. Desce daqui a dez minutos que a gente passa a� pra te pegar.

Ligeiro formigamento no bra�o esquerdo. Angina? Isquemia? Talvez. Saiu de casa com o firme prop�sito de pegar a J�lia, voltar correndo, ir direto tomar um banho e cair na cama.

� Aproveita que vai sair e passa na locadora pra devolver os filmes.

� Aproveita que vai passar na locadora e compra o meu rem�dio na farm�cia.

Casa da J�lia. Locadora. Farm�cia. Ia ter que deixar o enfarte e o banho pra mais tarde.




Verdade ou mentira?



Verdade ou mentira, o que eu vou contar aqui � meio esquisito e merece ser lido com alguma aten��o. (Por precau��o, vale ficar perto do telefone e n�o custa nada se certificar de que a porta est� trancada.)

Por mais impressionante que seja a hist�ria, procure controlar os nervos.

Prepare-se como lhe parecer melhor. (Uma boa companhia, uma m�sica de fundo e uma luz indireta sempre ajudam.)

Prometo manter-me imparcial e evitar aumentativos. Narrarei aqui t�o somente o que me foi contado, tentando, dentro do poss�vel, driblar a poesia.

Tudo pronto? Ent�o l� vai.

Houve uma mulher que amou um amor de verdade.

Por mais estranho que pare�a, foi isso o que me contaram exatamente.

Um dia ela conheceu um homem, ent�o descobriu que seu amanhecer j� n�o era o mesmo. Os dois trocaram juras eternas, e, o que � mais fant�stico ainda, essa mulher, pelo que consta, amou mesmo esse homem, s� ele, muito e sempre.

Parece que ele n�o era especialmente bonito, rico nem inteligente, era boa gente apenas e (segundo fontes seguras) tinha um sorriso engra�ado.

Ela tamb�m era uma pessoa normal (pelo menos aparentemente), e s� apresentou esse comportamento estapaf�rdio em toda a sua vida.

Os motivos que levaram essa mulher a amar tanto o tal homem, de forma t�o descabida e excessiva, nunca ficaram provados.

Primeiro levantaram a hip�tese de um surto de loucura passageiro. (Um atestado de insanidade resolveria a quest�o sem a necessidade de uma an�lise mais apurada.) N�o era.

Cogitaram, ent�o, a influ�ncia de algum agente externo. (Drogas? Ch� de catuaba? Superexposi��o � a��o de livros de romance? Overdose de filme?) Nada.

Algu�m sugeriu um componente gen�tico. (A m�e dela, sua av�, sua bisav� e sua tatarav� tamb�m tiveram um s� homem a vida inteira.) Logo lembraram que, naquele tempo, as pessoas� ficarem juntas por toda a vida n�o era uma prova de amor contundente, e assim foi descartada a possibilidade.

Uma menina chegou a deduzir que ela s� podia ser a Cinderela, mas n�o foi dif�cil provar o contr�rio, e as investiga��es foram reiniciadas.

O fato foi tomando propor��es maiores, � medida que o tempo passava, e o amor daquela mulher n�o diminu�a.

Psiquiatras, soci�logos e sex�logos chegavam, vindos do mundo inteiro, interessados no caso. (Seria um v�rus desconhecido? Uma bact�ria fabricada em laborat�rio? Um ato terrorista? Uma alucina��o coletiva? Um novo tipo de gripe? Algo m�stico?)

Um numer�logo garantiu que tudo aconteceu porque ela conheceu o seu amado no dia 5 do 9 �s 4 horas, noves fora zero.

Houve quem apostasse que aquele amor todo era mentira da mulher, com a clara inten��o de aparecer na m�dia.

Pelo sim, pelo n�o, foi convocado um congresso internacional sobre paix�o, com a presen�a de competentes profissionais apaixonados pelo tema.

Wilhelm Gertkurt, renomado cientista alem�o especialista em �paix�es duradouras nos tr�picos�, depois de examinar detalhadamente os sintomas: beijos, batimento card�aco, beijos, admira��o, beijos, felicidade, beijos, abra�os, beijos etc., deu o diagn�stico: era amor mesmo. N�o havia d�vida.

Valia a pena procurar as autoridades e os poetas para notificar o caso.

A mulher foi ficando meio assustada com aquela agonia de gente e flashes de rep�rter, confere daqui, examina de l�, at� que acabou fugindo, coitada. Aquilo j� estava imposs�vel.

O homem ficou muito triste, � �bvio, de perder um amor assim t�o interessante.

H� quem garanta que at� hoje ele passa o dia bebendo na esquina e chora constantemente.

Dela, nunca mais se teve not�cia. Possivelmente se autoexilou em algum lugar ignorado.

Est� vendo s� que perigo?

Existe uma mulher capaz de amar de verdade solta por a� e voc� nem sabia.




De pensamentos
e divaga��es




Entrada proibida



A sala do cora��o tem muitas janelas e duas portas, a que d� pra dentro e a que d� pra fora. A que d� pra dentro est� sempre aberta. A que d� pra fora vive trancada.

Espalhadas pela sala, as not�cias do jornal de hoje, a bobagem dita ontem, o Natal passado, o retrasado, a mula sem �cabe�a, o Banco Imobili�rio, uma febre, um sarampo, a enchente, o cometa Halley, um S�o Jo�o, um jipe amarelo, a foto do casamento, o nascimento do filho, o vel�rio da av�, a festa do tetra, a desesperan�a do mundo, a expectativa do pr�ximo fim de semana e outras tralhas, cada qual l�, com sua import�ncia, �acumulando poeira. Talvez se sintam meio tristes por estarem virando mem�ria, quadro, objeto na estante. Talvez se sintam felizes. Quem sabe?

O cora��o tem muitos quartos. No primeiro, logo o da frente, algumas lembran�as dormem, umas riem, umas mentem, outras doem. O bolo de anivers�rio dos seus oito anos, n�o o dos sete nem o dos nove, o olhar azul da av� quando entrava na ambul�ncia, o primeiro beijo (foi na escada?), a primeira m�o que desceu mais um pouquinho, o refr�o daquela m�sica que um dia embalou o final do seu namoro e nunca, nunca mais vai tocar no r�dio, a primeira vez que, sem ningu�m �explicar, voc� juntou o nome � pessoa, e a palavra orgasmo (tirada de alguma mat�ria de revista) legendou seu pensamento, uma cama laqueada com um estrado t�o atento que, no melhor da hist�ria, por piada ou por recato, quase sempre desabava, aquele sapatinho de beb� que s� voc� sabe a cor exata e o exato pompom, o dia da derrota do seu candidato, da sua ingenuidade, da sua felicidade, da sua ignor�ncia, da import�ncia daquela pessoa, daquela outra, e daquela, especialmente, que um dia j� foi tanto, tanto, tanto.

O segundo quarto � meio escuro e faz tempo que n�o recebe um vento. � ali que est�o guardados, em caixas, caixinhas, caixonas, envelopes, sacolas, pelos cantos, uns entulhos e uns tesouros. Quase ningu�m entrou nesse quarto, al�m de voc�, e mesmo voc� s� entra l� muito de vez em quando. Imagine s� que perigo deparar-se, assim de repente, com aquela can��o de ninar, um l�pis de bandeirinhas mordido na ponta, o apontador verde, o estojo, a m�quina de escrever do escrit�rio do seu pai, uma barraca colorida de praia, o bot�o n�mero tr�s do elevador de um pr�dio antigo, o nome que voc� fazia com letras de macarr�o ou o formato exato da boca do dono desse nome, a primeira desilus�o, o primeiro desapego, a primeira devassa, uma tarde, numa praia, uma certeza insistente, a vontade de que chegue amanh�, vai, amanh�, chega logo, amanh� vai ser uma beleza.

O terceiro quarto permanece fechado de dia e s� se abre certas noites, em alguns sonhos. L� est�o, entre outras tantas, coisas que n�o fazem nenhum sentido aparente, peda�os, cheiros, fitas, mofo, uma bacia de lata, um compacto simples, um cinzeiro laranja, uma mentira, uma vergonha, um medo, um choro engolido, detalhes que nem voc� sabia que existiam ainda, violentos assim, se � que eles ainda existem (o cora��o �s vezes tamb�m inventa um pouco).

O �ltimo quarto, no fim do corredor, hoje em dia � s� dep�sito. Um drag�o imenso, parado na porta, tenta parecer assustador, uma vez que serve de vigia. Ou pensa que serve. Mal sabe ele que foi tirado da fachada de um restaurante chin�s, ou, na melhor das hip�teses, de uma p�gina de um livro de arte.

Ningu�m sabe at� hoje o que tem dentro desse quarto, nem voc�, nem a sua m�e, nem o seu psiquiatra. Enquanto o drag�o fica l� convicto de que voc� morre de medo dele, voc� continua convencido de que s� n�o entra ali pra n�o ter o trabalho de matar o coitado.

No banheiro, antigo e grande, tem uma banheira que j� foi oceano de bonecos, uma cortina de pl�stico, alguns decalques (meio tortos) descascados nos azulejos, um bid� muito importante e uma mania de comer pasta de dente escondido dos outros.

Um biscoito, que voc� mordia cuidadosamente pelas bordas para preservar intacta a figura que tinha dentro (era uma �rvore, parece), est� guardado na cozinha do cora��o junto com o cheiro do feij�o da sua av� e a esperan�a de que estivessem fritando batatas.

O quintal est� interditado. � campo minado. � um perigo. Deve ser at�vico. Ningu�m precisa ter tido um quintal na vida pra saber a alegria e a tristeza que podem causar uma cerca, um port�o, uma pedra, uma lagarta. Nunca visite o quintal do seu cora��o, n�o corra esse risco, n�o cometa essa loucura, a n�o ser em caso de extrema necessidade ou em dias de vento forte, raios, rel�mpagos e muitas trovoadas. Se voc� por acaso der de cara com voc� l�, brincando, bem contente, a sua vida pode virar uma calamidade.




Segunda-feira



Toda segunda-feira come�a cedo mesmo que se acorde tarde.

As segundas, ali�s, come�am quase sempre na v�spera, �amanh� j� � segunda� (toda noite de domingo traz com ela, al�m da depress�o habitual e do som de uma TV ligada, uma segunda-feira inevit�vel).

Toda segunda h� uma promessa a ser cumprida, pelo menos uma, muitos �nibus lotados, atrasos motivados pelos mais diversos motivos e um alto �ndice de enfartes.

Toda segunda tem a esperan�a de um telefonema que mude a sua vida, tem um papel pra ser assinado, tem uma presta��o pra se botar em dia e tem uma importante decis�o a ser tomada.

Toda segunda tem um pouquinho de primeiro do ano.

Toda segunda, um cantor de bar fica rouco, um bailarino est� exausto, um artista de teatro aproveita sua folga at� a pr�xima quarta e a namorada de um gar�om capricha na lavanda.

Toda segunda, um homem que bebe procura urgentemente uma desculpa.

Toda segunda tem algu�m que parou de beber, tem algu�m que parou de fumar, tem algu�m come�ando uma dieta.

Toda segunda, em um prato, em uma cozinha, tem um resto de bolo de chocolate.

Toda segunda, as agendas das garotas acumulam novos ingressos de show, notinhas de bar, p�talas de flor, guardanapos de papel, bilhetes de amor e ficam ainda mais gordas.

Em compensa��o, as folhinhas, se � que ainda existem folhinhas, v�o ficando mais magras.

Toda segunda tem pelo menos um bom-dia que � dito com alegria por algu�m que encontrou o seu amor no final de semana, e pelo menos um que � dito com tristeza por algu�m que perdeu o seu, ou porque ele se foi, ou porque o amor perdeu a gra�a.

Toda segunda, secret�rias com muitas aventuras pra contar deixam os chefes malucos atr�s de documentos, relat�rios e cronogramas.

Toda segunda, os desenganados t�m mais um domingo pra contar e os infelizes da vida ficam contentes porque t�m menos um domingo pela frente.

Toda segunda, algu�m come�a uma contagem regressiva.

Toda segunda, uma expectativa se estabelece.

Toda segunda, um prazo se esgota.

Segunda sim, segunda n�o, j� se passou uma quinzena e algu�m continua esperando alguma coisa que n�o chega nunca.

Toda segunda existe um trabalho chat�ssimo pra fazer, a n�o ser que, sorte a sua, seja feriado.

Toda segunda � ensolarada, mesmo as mais chuvosas, s� para arruinar o humor da humanidade.

Toda segunda � igual � outra, menos se o seu time ganhou, se o despertador n�o tocou, se o seu filho nasceu ou se um terremoto destruiu a cidade.

Toda segunda nascem n�o sei quantas crian�as, umas de parto normal, umas de cesariana, e todas elas, benza Deus, segunda que vem v�o completar uma semana.

Toda segunda faz um ano exato que um fato qualquer aconteceu e para alguma pessoa, por algum motivo, isso tem uma enorme import�ncia.

Toda segunda � meio lembran�a, meio come�o, meio cansa�o, meio ma�ante, meio pregui�a, meio esperan�a.

Toda segunda tem alguma coisa ruim, alguma coisa boa e uma p�ssima fama.




O resultado



No princ�pio Deus criou os c�us e a terra. � parte s�lida, chamou terra, e ao conjunto das �guas, chamou mar.

E Deus viu que isso era bom.

A terra produziu verdura, ervas com semente e �rvores de fruto.

E Deus viu que isso era bom.

E disse: �Fa�a-se a luz!� E a luz foi feita.

E Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas.

Para reger o dia e a noite, Ele colocou no firmamento duas grandes luzes, a maior para iluminar o dia e a menor para iluminar a noite, e milh�es de estrelas.

E Deus viu que isso era bom.

Criou, ent�o, todos os seres vivos que se movem nas �guas e na terra, e as aves.

E Deus viu que isso era bom.

A seguir, Ele criou o homem � sua pr�pria imagem e disse: �N�o � conveniente que o homem esteja s�; vou dar-lhe uma companheira semelhante a ele�. Ent�o, criou a mulher. �Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra.�

E se pudesse avaliar o resultado agora, bilh�es de anos depois, por maior que fosse Seu otimismo, dificilmente Deus veria que isso era bom.

Mesmo com toda Sua boa vontade.

Assim que o mundo ficou nas m�os do homem e da mulher, eles cresceram, multiplicaram-se, dominaram tudo, e come�ou uma confus�o sem precedentes na hist�ria.

A partir da�, era s� com eles.

E talvez eles n�o estivessem preparados para tanto.

�Comer�s o p�o com o suor do teu rosto�, Deus ordenou ao homem, sem prenunciar a crise que vinha pela frente, o desemprego, a carestia, a chatice de alguns chefes, o valor do sal�rio m�nimo e o imposto de renda. Esqueceu Ele de dizer, tamb�m, que a mulher ingressaria no mercado de trabalho e por isso exigiria, � claro, que o homem ajudasse na faxina, lavasse lou�a e tivesse que aprender a cozinhar, �eu j� cansei de explicar qual � a colher de sopa, seu cretino�.

No item �Crescei e multiplicai-vos�, Ele mais uma vez se mostrou bastante otimista.

Como � que Deus ia adivinhar que os homens seriam t�o trapalh�es em quest�es como justi�a social, sa�de e educa��o para todos, e a popula��o ia acabar nessa mis�ria? E a falta de consci�ncia ecol�gica, e os problemas de saneamento b�sico, e as praias lotadas, e os engarrafamentos, e a viol�ncia, e as filas, e as favelas?

N�o. Deus n�o era adivinho.

Quando deduziu que n�o era conveniente deixar o homem sozinho e criou a tal companheira para o coitado, Ele n�o podia prever que mulher gosta de discutir a rela��o, adora fazer compras no shopping e chora por tudo. Por isso, talvez, Ele n�o predisse: tentar�s fugir desse inferno que virou a tua vida, pedir�s o div�rcio, mas o advogado dela exigir� at� o teu �ltimo centavo.

Por outro lado, Deus ordenou � mulher: �Procurar�s compaix�o a quem ser�s sujeita, o teu marido�, sem prevenir que ela estaria sujeita a um sujeito t�o complicado e, o que � pior, sem determinar se ela precisava se sujeitar inclusive ao sapato dele no meio da sala.

Al�m disso, Ele esqueceu de comunicar detalhes important�ssimos como: acreditar�s em tudo o que o teu marido disser e te dar�s muito mal, comprar�s um brinco novo e ele n�o perceber�, aguardar�s flores, todas as manh�s, e elas n�o chegar�o nunca. (A n�o ser que teu marido cometa uma besteira muito grande, minha filha.)

Deus disse � mulher: �os teus filhos h�o de nascer entre dores�. � verdade.

Mas Ele n�o avisou: e para te ajeitares depois, s� com quinhentos abdominais por dia ou uma lipo. Nem lembrou de anunciar: beb�s acordam a noite inteira, principalmente se tiverdes uma reuni�o no dia seguinte. Nem informou: e quando eles crescerem, a� ver�s o que � bom, pois teus filhos n�o amarrar�o os cadar�os dos t�nis, n�o avisar�o que v�o chegar mais tarde, julgar-te-�o uma chata e n�o sair�o do telefone.

O fato � que a bagun�a que virou este mundo de Deus (sem falar na programa��o da televis�o) tomou propor��es t�o �gigantescas que o m�nimo que a gente pode fazer agora � inventar outro final pra essa hist�ria: at� que os homens tomaram vergonha na cara e reinou para sempre a paz, o amor e a felicidade.

E Deus viu que isso era bom e ficou satisfeit�ssimo com o resultado.




Outros olhos



No fundo de cada cabe�a devem existir outros olhos, uns olhos que enxergam para dentro, e provavelmente s�o eles que veem as imagina��es, as reminisc�ncias, os sonhos, as ideias, as doidices que a gente pensa.

Enquanto os olhos que olham para fora se limitam a contemplar o que est� na frente deles, esses tais olhos de dentro ora veem o que querem, ora o que a gente quer ver.

�s vezes eles s�o obedientes. Outras s�o muito teimosos.

Quase sempre s�o criativos. De vez em quando s�o t�o sens�veis. S�o imprevis�veis, os olhos de dentro.

Em caso de necessidade, s�o capazes de reproduzir fielmente as imagens que os de fora j� viram, o que � chamado vulgarmente de lembran�a, fen�meno f�cil de ser compreendido.

� feito foto, filme, computador. Deve estar tudo registrado em alguma parte da mem�ria.

O mais dif�cil de entender � como eles conseguem inventar coisas que os olhos de fora nunca viram:

Acontecimentos que n�o aconteceram.

Momentos que jamais passaram.

Situa��es completamente estapaf�rdias.

Condi��es imagin�rias.

Suposi��es.

Trag�dias.

Finais felizes.

Sinais.

Hip�teses.

Subterf�gios.

Absurdos.

Desejos.

Aquilo que n�o existe, ou que n�o � vis�vel, ou que ainda n�o foi descoberto, o que j� foi embora, tudo o que est� no brejo, o que est� sempre no escuro, soterrado, escondido, ap�s, por tr�s, o microsc�pico, a conjectura, o que foi arrancado, o que n�o foi aberto.

Brincar com os olhos de dentro pode ser engra�ado.

� s� imaginar o que quiser, por mais maluco que seja, e podem acontecer laranjas azuis � s�is sem luz � duas luas no c�u � uma tartaruga veloz � uma fuga, um ref�gio, um lugar � outro valor para �Pi� � paz aqui no planeta � cometas, estrelas cadentes, beijos noturnos, mil e uma viagens � paisagens � vontade do fregu�s � um Saturno sem an�is, uma ilha encantada, uma cidade tranquila, uma casinha na floresta � festas de chuva no sert�o � um patr�o m�o-aberta (ou qualquer outra pessoa inventada).

Quem manda nos olhos de dentro?

Ser� um Deus?

Um louco?

Um desenhista?

Um escritor?

Um diretor de cinema?

Ser� o desejo da gente?

H� quem diga que � o inconsciente.

H� quem pense que � o por acaso.

Eu n�o sei o que pensar.

Mando meus olhos de dentro pensarem sozinhos e l� se v�o eles inventando caminhos.

Deixo o agora para tr�s.

Olho s� para o depois.

Encontro um farol.

Sofro uma alucina��o?

Tanto faz.

Fa�o uma poesia, ent�o, e imagino um pa�s.

Vejo a gente feliz num dia de sol.

Tem hora que o melhor que se pode fazer � ver as coisas com outros olhos.




Ser humano



�Cada um dos indiv�duos da esp�cie Homo sapiens, �nica existente hoje em dia da fam�lia dos homin�deos, do g�nero Homo, esp�cie esta que ocupa uma posi��o especial na natureza�, diz o dicion�rio.

Ser humano � complicado.

Obra de Deus, sobra do Big Bang, descendente do macaco, filho do acaso, talvez.

Descobriu o fogo, inventou a roda, foi primata, ca�ador, rei, servo, cavaleiro, fil�sofo, artista, guerreiro, explorador, pirata, poeta, aristocrata, carrasco, v�tima, mocinho, fan�tico, machista, mascate, banqueiro, revolucion�rio, democrata, bandido, economista, prisioneiro, astronauta, funcion�rio p�blico, feminista, hippie, rico, pobre, banido, favelado, empres�rio, desiludido, evang�lico, capa de revista, e l� vai ele mudando com o tempo.

Suas principais caracter�sticas:

1. A postura vertical.

2. O polegar das m�os oposto aos outros dedos.

3. O volume do c�rebro.

4. O uso da linguagem articulada.

5. O desenvolvimento da intelig�ncia, especialmente das faculdades de generaliza��o e de abstra��o.

6. Outras.

7. O h�bito de sair pra beber, ou de jantar fora, ora em grupo, ora em casais, ora na mais absoluta solid�o.

Ser humano � esquisito.

Tem de todo tipo.

O boteco, por exemplo, est� cheio deles. Um vive uma desgra�a, um comemora o sucesso, um abra�a uma morena, um toma a oitava cerveja, um estuda as meninas que passam, um at� arrisca um gracejo, um descobre que � hora de ir pra casa. A mulher est� esperando, hoje � sexta, e toda sexta, bem, voc� sabe.

Ser humano � t�o bonito.

Num restaurante franc�s, um casal levemente embriagado de champanhe repete a mesma cena cl�ssica: as bocas se colam, os olhos se fecham, o escuro roda.

� Pe�o outra?

Num cantinho, no forr�, dois se entregam.

No Baixo G�vea, dois disputam a mesma mo�a. (De repente eles s�o tr�s, daqui a pouco ser�o quatro.)

Ser humano � fogo, sabia?

O pessoal do escrit�rio toma saqu� no japon�s enquanto discute a alta do d�lar.

No baile funk, a namorada de um comenta com a de outro que eles n�o s�o de nada.

No balc�o do bar de sempre, um qualquer, abandonado pela mulher, chora.

No bar da frente, lotado, uma mulher separada tenta se convencer de que � mais feliz agora.

Na Feira de S�o Crist�v�o, um toma outra cacha�a somente pra dar coragem.

Ser humano � triste, um dia ou outro.

Mas l� no macrobi�tico, toda contente, uma garota mostra pra outra sua nova tatuagem.

Na churrascaria, felizmente, uma fam�lia inteira comemora mais um anivers�rio.

A galera do cursinho, no mesmo mexicano, todo dia, bebe marguerita frozen, pula, gira, fica, troca, o mundo muda.

Ser humano � engra�ado.

Na boate GLS, um casal meio deslocado tenta se divertir. Est� na moda.

Porque leu que faz bem pra sa�de, um toma diariamente um copo de vinho tinto.

Porque vinha tonto h� meses, um deu um tempo na bebida e anda mais desanimado.

Ser humano � assim mesmo.

� bem bacana?

� um problema?

Hoje � uma coisa. Amanh� � outra. De repente n�o � mais aquilo.

�s vezes, ser humano � humanamente imposs�vel.

Dif�cil. Incr�vel. Estranho. Doido. Do�do. �timo. P�ssimo. Mais ou menos. Animado.

Ser humano � tudo isso.

Fora o resto todo, � claro.




De doidos e afins




O Doido da Garrafa



Ele n�o era mais doido do que as outras pessoas do mundo, mas as outras pessoas do mundo insistiam em dizer que ele era doido.

Depois que se apaixonou por uma garrafa de pl�stico de se carregar na bicicleta e passou a andar sempre com ela pendurada na cintura, virou o Doido da Garrafa.

O Doido da Garrafa fazia passarinhos de papel como ningu�m, mas era especialista mesmo em construir barquinhos com palitos. Batizava cada barco com um nome de mulher e, enquanto estava trabalhando nele, morria de amores pela dona imagin�ria do nome. Depois ia esquecendo uma por uma, todas elas, com exce��o de Ol�via, uma nau antiga que levou dezessete dias para ser constru�da.

Batucava muito bem e vivia inventando, de improviso, m�sicas especialmente compostas para toda e qualquer finalidade, nos mais variados g�neros. Vai a� aquela da mulher de blusa verde atravessando a rua apressada, e o Doido da Garrafa imediatamente compunha um samba, uma valsa, um rock, um rap, um blues, dependendo da mulher de blusa verde, do atravessando, da rua e do apressada. Geralmente ficava uma obra-prima.

Gostava muito de observar as pessoas na rua, do cheiro de caf�, de cantar e de ouvir m�sica. N�o gostava muito do fato de ter pernas, mas acabou se acostumando com elas. De cabelo ele gostava. Em compensa��o, tinha verdadeiro horror a multid�o, bermud�o, tubar�o, ladr�o, cambur�o, bajula��o, afeta��o, dan�a de sal�o, falta de educa��o e � palavra bife.

Escrevia cartas para ningu�m, umas em prosa, outras em poesia, como mero exerc�cio de estilo.

Tinha mania de dar entrevistas para o vento e j� sabia a resposta de qualquer pergunta que porventura algu�m pudesse lhe fazer um dia.

Ajudava o dicion�rio a explicar as coisas inventando palavras necess�rias, como dorinfinita.

Adorava �lgebra, mas tinha particular antipatia por trigonometria, pois n�o encontrava nenhum motivo para pegar peda�os de tri�ngulos e fazer contas t�o dif�ceis com eles.

Conhecia mitologia a fundo.

Tinha ang�stia matinal, uma depress�o no meio da tarde que ele chamava de cinco horas, porque era a hora que ela aparecia, e uma ins�nia cr�nica a quem chamava carinhosamente de Proserpina.

Sentia uma paix�o azul dentro do peito, desde crian�a, sempre que olhava o mar e orgulhava-se muito disso.

Acreditava no amor, mas tinha vergonha da frase.

�s vezes falava sozinho, mas s� �s vezes.

Preferia tristeza � agonia.

Todas as noites, entre oito e dez e meia, era visto andando de um lado para o outro da rua, m�todo que tinha inventado para acabar de vez com a preocupa��o de fazer a volta de repente, quando achava que j� tinha andado o suficiente. (Preferia que ningu�m percebesse que ele n�o tinha para onde ir.) Enquanto andava, repetia dentro da cabe�a incessantemente a palavra ecum�nico sem ter a menor ideia da raz�o pela qual fazia isso.

Durante o dia o Doido da Garrafa trabalhava numa multinacional, era sujeito bem-visto, supervisor de departamento, ganhava um bom sal�rio e gratifica��es que entregava para a mulher aplicar em fundos de investimento.

No fim do ano ia trocar de carro.

Era excelente chefe de fam�lia.

N�o era mais doido do que as outras pessoas do mundo, mas sempre que ele passava as outras pessoas do mundo pensavam, l� vai o Doido da Garrafa, e assim se esqueciam das suas pr�prias garrafas um pouquinho.




O homem que s�

tinha certezas



Nem o homem feliz de Maiakovsky nem o homem liberto de Paulo Mendes Campos, resolvi imaginar outra improbabilidade. Digamos que aparecesse agora, justo aqui no Brasil, no Rio de Janeiro, mais exatamente, bem a� na sua frente, um homem que s� tivesse certezas.

O homem que s� tinha certezas quase nunca usava ponto de interroga��o, e em seu vocabul�rio n�o constavam as express�es: talvez, qui��, quem sabe, porventura.

Parece que foi de nascen�a. Ele j� teria vindo ao mundo assim, com todas as certezas junto, pulou a fase dos porqu�s e nunca soube o que era curiosidade na vida. Na escola, era uma sensa��o. Mas n�o ligava muito pra isso n�o. E cresceu achando muito natural viver derramando afirma��es pela boca. Tinha resposta pra tudo, o homem que s� tinha certezas, mas o maior orgulho do homem eram as certezas mais duvidosas que ele tinha. A certeza de que o mais fraco ia vencer, de que as coisas iam melhorar, de que o desenganado ainda teria muitos anos pela frente.

A not�cia espalhou-se rapidamente. Como ele vivia no meio de pessoas, e pessoas vivem cheias de d�vidas, logo �come�aram a pedir sua opini�o para os mais diversos assuntos, os triviais e os de grande import�ncia, e ele, certo de que podia viver muito bem de suas certezas, virou um consultor. Pendurou em sua porta uma placa onde estava escrito �Consultor de tudo� e o neg�cio foi crescendo aos pouquinhos. Devido ao boca a boca favor�vel de clientes e a um �nico an�ncio no r�dio, passou a atender, sem nenhum exagero, milhares de pessoas por dia, at� que limitou o n�mero de consultas di�rias para quatrocentos e oitenta, um minuto e meio por pessoa, o que era mais do que suficiente para uma resposta certa desde que a pergunta n�o fosse muito longa.

Chegava gente do pa�s inteiro e depois de outros continentes, pessoas comuns, pessoas ilustres, todas elas indecisas, mas cada pessoa s� tinha direito a uma pergunta por consulta, o que as deixava mais indecisas ainda. Certa vez uma mo�a chegou na d�vida se devia perguntar primeiro sobre o amor ou o trabalho, no que o homem respondeu, sobre o amor, � claro, sen�o voc� n�o vai conseguir trabalhar direito, e deu por encerrada a consulta. O homem que s� tinha certezas aconselhou um garoto t�mido a tomar quatro cervejas, encorajou um pol�tico receoso a aprovar um projeto esquisit�ssimo que se destinava a melhorar a vida dos homens, avisou a uma senhora preocupada com os anos que no caso dela nada melhor do que beijos na boca, desentorpeceu um rapaz doente de amor por uma mulher que gostava de outro, convenceu o ministro da fazenda de que ou o dinheiro era pouco, ou eram muitos os homens, ou ele estava louco, ou algu�m tinha se enganado nas contas.

N�o demorou muito para se tornar capa de todas as revistas e personagem ass�duo dos programas de TV. Para cada pergunta havia uma s� resposta certa e era essa que ele dava, invariavelmente, exterminando aos pouquinhos todas as d�vidas que existiam, at� que s� restou uma d�vida no mundo: ser� que ele n�o vai errar nunca? Mas ele nunca errava, e j� nem havia mais o que errar, uma vez que n�o havia mais �d�vidas.

Num mundo que s� tinha certezas, o homem que s� tinha certezas virou apenas mais um homem no mundo. Melhor assim, ele pensava, ou melhor, tinha certeza.

Um dia aconteceu um imprevisto, e o homem que s� tinha certezas, quem diria, acordou apaixonado. Para se assegurar de que aquela era a mulher certa para ele, formulou cento e vinte perguntas, que ela respondeu sem vacilar, mandou fazer mapas do c�u, exames de sangue, contagem de triglicer�deos, planilhas complicad�ssimas e finalmente apresentou a mo�a � sua m�e e ao seu cachorro. Os dois se amaram noites adentro, foram a Barcelona, tiraram fotos juntos, compraram �lbuns, porta-retratos, garfos, facas, um escorredor de pratos, tiveram filhos e tal, e, desde ent�o, por alguma raz�o desconhecida, o homem que s� tinha certezas foi perdendo todas elas, uma por uma. No in�cio ainda tentou disfar�ar, por via das d�vidas, quem sabe era um mal passageiro? Mas as d�vidas multiplicavam-se como praga (d�vidas se multiplicam?), espalharam-se pelo mundo, e agora, meu Deus? Deus existe? Existe sim. Ou ser� que n�o? Ele n�o estava bem �certo.




Rams�s Terceiro



O nome dele era Rams�s Terceiro Gon�alves de Souza, mas quando o povo chamava �Z��, ele vinha na hora. � que l� em S�o Miguel dos Milagres n�o havia quem decorasse nome t�o qualificado, �Rams�s de qu�, menino?�.

Cresceu subindo no coqueiro e escutando conversa de turista: isso aqui sim � o para�so. Achava uma grande besteira. Qualquer lugar � o para�so com essa lourinha ao lado, mo�o, me desculpe.

Parou de estudar na quinta, ou foi na sexta, mesmo assim ainda lembrava o nome das capitais de cada estado brasileiro, de Mato Grosso do Sul inclusive.

Um belo dia irritou-se, saiu de S�o Miguel e foi pra Macei�, ele mais seu primo Ne�lson. Desse, nunca mais ouviu falar, se n�o morreu, esqueceu-se dele. Vai ver foi isso.

O problema de Macei� � que l� era grande mas era pequeno, portanto veio morar no Rio de Janeiro.

Foi em 1994, n�o havia de esquecer, no dia em que o Brasil ganhou o t�tulo. O italiano l� errou o gol, ele tomou mais uma, comprou a passagem e quando acordou j� estava naquele Itapemirim amarelo assim, �Maceio�Rio de Janeiro�.

No que chegou, ligou logo para a m�e, �adivinha onde � que eu tou?�, ela n�o havia de adivinhar era nunca. �S� n�o me diga que � no manic�mio�, � mulher pessimista, dona Maria do Socorro.

Arranjou um bico aqui, outro ali, acabou ajudante de pedreiro num pr�dio enorme de t�o grande, emprego certo que durou v�rios meses. De l� pra c� n�o parou mais. Foi porteiro, eletricista, camel�, ladr�o de carro, motoboy, evang�lico e balconista de loja, s� n�o lembra em que ordem exatamente. Mandava dinheiro para casa, quando dava, e ainda conseguiu juntar novecentos e cinquenta.

Quando ia completar vinte e nove anos, tempos atr�s, resolveu passar o anivers�rio em casa. Era saudade da fam�lia. Foi pra S�o Miguel sem avisar, mas quem levou o susto foi ele.

Descobriu que n�o tinha vinte e nove, tinha trinta e quatro, e que seu anivers�rio n�o era aquele dia.

Dona Socorro contou tudinho com a maior sinceridade. Esqueceu de registrar o menino, passaram-se anos, mais cinco nasceram, e ela acabou perdendo a lembran�a do dia exato do seu nascimento.

� Acho que foi l� pro fim do m�s, s� n�o me lembro de qual m�s � disse. � Se n�o me engano, voc� � filho de Seu Tabosa da venda, e como eu fiquei com ele por tr�s anos, de 64 a 67, portanto voc� nasceu em 65.

� Em 70 n�o era melhor n�o, m�e? � Pelo menos era o ano da Copa, mas, como dona Socorro j� tinha tomado oito cervejas, n�o adiantava perguntar mais nada. Conformou-se.

Desde ent�o procura seu hor�scopo em todos os signos e aquele que parecer mais, ele acredita. Muitas vezes d� Sagit�rio,� geralmente. No dia em que leu �clima prop�cio para o amor�, conheceu uma moreninha na Central-Rodovi�ria que despertou seu interesse, parece at� mentira.

Montaram casa, compraram colch�o, mesa, cadeira, e at� almo�o ela fazia. Era amor pra duzentos anos, ele dizia. Engano seu. Oito meses depois ela se foi.

Rodou foi tudo procurando a peste, de casa em casa, de bar em bar, n�o � que ela j� estava com outro? Encontrou os dois na parada de �nibus.

N�o tinha a inten��o de agredir ningu�m, o miser�vel � que veio pra cima dele.

Fugiu com a ideia concentrada apenas em n�o ficar louco, coisa que se tornava cada vez mais dif�cil com aquele inferno na lembran�a, a cabe�a do miser�vel na pedra, o sangue correndo e uma velha gritando: �Meu Pai, Nosso Senhor!�. Pra que tanta gritaria?

Esse neg�cio de complexo de culpa � complicado mesmo, realmente. Ela � que arranjou outro, o outro � que partiu pra cima dele, e quem se arrependeu foi ele pr�prio, v� se pode, porque o tal do miser�vel ficou um pouco abaixo do ju�zo depois de todo o acontecido.

Desse dia pra c� n�o encontrou mais nenhum dos dois, gra�as a Deus. Parece que depois ela conheceu um gringo e hoje est� pros lados da Alemanha, ou coisa parecida, isso � problema l� dela.

Nunca mais ligou pra m�e, nem arrumou emprego certo, nem quis saber de mulher fixa. Em compensa��o passou a comemorar seu anivers�rio todos os dias do ano, de segunda a domingo.

Tomava conta de um carro aqui, arranjava uma coisa ali, vendia l�, deixou o cabelo crescer, voltou a fumar e a beber, tinha um batimento card�aco triste, at� que deu pra conversar com cachorro vira-lata, conversa besta. N�o � que o infeliz do cachorro era t�o sem esperan�a que chegou a lhe convencer que a vida n�o prestava?

Atualmente, Z� tem a impress�o de que est� com trinta e sete anos completos. Desde abril est� no manic�mio. Toda noite reza pra S�o Miguel dos Milagres. Est� s� esperando.

Quando fala que seu nome � Rams�s Terceiro, comentam que ele � doido.




Gar�om!



Para ele, as mulheres dividiam-se em dois tipos: as que dividiam os homens em dois tipos e as que n�o dividiam. E ela era o tipo de mulher que dividia os homens em dois tipos: os que sabiam chamar o gar�om e os que n�o sabiam.

Ele n�o sabia chamar o gar�om. Nunca soube. Nem chamar o gar�om, nem pedir abatimento, nem passar conversa no guarda, nem descolar convite pra festa, nem entender as mulheres, nada disso ele sabia. Tamb�m n�o sabia se ela dividia mesmo os homens em dois tipos, pelo menos n�o tinha certeza, nenhuma prova concreta. S� intu�a.

Mas, como homens que n�o sabem chamar o gar�om na maioria das vezes t�m �tima intui��o, tudo levava a crer que ele estava perdido.

Logo mais eles iam sair juntos pela primeira vez. Ele ia peg�-la em casa (j� tinha at� feito uma lista de assuntos para conversar durante o caminho), finalmente haviam de chegar ao restaurante, iam sentar numa mesinha agrad�vel num cantinho aconchegante (os cantinhos aconchegantes s�o sempre os de mais dif�cil acesso), e, ent�o, se Deus ajudasse, o gar�om ia se aproximar espontaneamente para anotar o pedido das bebidas. Logo depois ia trazer uma vodca para ele e uma ta�a de vinho branco para ela (ela era o tipo de mulher que pede uma ta�a de vinho branco, infelizmente, devia pedir logo uma garrafa inteira) e depois ia sumir novamente, o gar�om, �s vezes eles somem mesmo.

Enquanto a ta�a dela estivesse at� a metade, ele ainda ia ter algum sossego. Mas assim que a ta�a estivesse mais vazia do que cheia, sinal de que o momento fatal n�o tardava a chegar, ele n�o ia pensar em outra coisa a n�o ser �tenho que chamar o gar�om�.

E como � que se chama um gar�om, minha Nossa Senhora?

� f�cil. Um simples gesto. Levanta-se qualquer uma das m�os acenando delicadamente. S� isso. � claro que o gar�om n�o ia ver. Acontece. Mas se ele tentasse de novo, e mais uma vez, se passasse a noite inteira tentando, sempre com forte pensamento positivo, n�o era poss�vel que uma hora o gar�om n�o visse, mesmo que fosse m�ope e que tivesse esquecido os �culos em casa. Ainda restava a esperan�a de que outro gar�om, mais atento, avisasse o colega. Afinal, n�o � t�o imposs�vel assim algu�m ver um homem acenando a noite inteira, com forte pensamento positivo, dentro de um pequeno restaurante.

Imagine-se que ele obteve sucesso, e o gar�om finalmente respondeu ao seu chamado. Ele pediria outra ta�a de vinho para ela, podia at� pedir logo as tr�s pr�ximas, aproveitava e j� pedia o card�pio.

Imagine-se agora que a ta�a dela esvaziou, ele acenou, nada, acenou outra vez, horas seguidas, ela ficou querendo outra, o gar�om n�o viu, ela desistiu do vinho e disse: vamos pedir logo os pratos? Vamos. E como � que se faz para pedir os pratos? Pede-se o card�pio. Isso! Chamando o gar�om.

E como � que se chama um gar�om, minha Nossa Senhora?

Talvez ele tivesse que apelar para o grito. �Companheiro!� N�o. �O card�pio, Mestre!� Pior. ��, meu querido, a gente queria dar uma olhadinha no card�pio.� Era melhor morrer.

�Gar�om!�, pura e simplesmente, ainda era a melhor op��o, em se contando com a sorte de ser ouvido. Se tudo desse certo, exibiria a m�o esquerda aberta, como se estivesse segurando um card�pio imagin�rio, e faria um movimento vertical com a direita, como se varresse o card�pio, que n�o estava na m�o esquerda, de cima a baixo. Ou at� diria �o card�pio, por favor!�, frase que, sejamos autocomplacentes, n�o chega a matar ningu�m.

O card�pio chegou, imagine-se. Ent�o, era torcer para ela escolher logo o prato antes que o gar�om se fosse outra vez. Escolheu. Pediu. Gra�as a Deus. Agora ele teria a refei��o inteira para pensar na maneira menos tr�gica de pedir a conta. Escrevendo uma suposta conta com uma caneta imagin�ria? O gar�om n�o ia ver, � �bvio. E se pedisse a conta junto com os pratos? N�o. Ela podia querer uma sobremesa. Quem sabe at�, depois, um cafezinho.

Resolveu ligar para ela. �N�o d� pra continuar lhe enganando. Eu sou o tipo de homem que n�o sabe chamar o gar�om. Pronto. Confessei. Se voc� quiser desmarcar o encontro, pode desmarcar, eu compreendo.�

E ela, que era o tipo de mulher que acreditava que s� existia um tipo de homem, o que engana as mulheres, n�o s� confirmou o encontro como ainda escolheu o vestido mais decotado que tinha.




O casal da mesa 9



Eles n�o t�m dia certo pra aparecer, n�o t�m hora pra chegar, n�o t�m hora pra sair.

N�o t�m amigos nem inimigos. (At� onde se sabe.)

N�o t�m a menor import�ncia.

Transitam pelo sal�o o m�nimo poss�vel (estritamente para ir ao banheiro) e demonstram certa cerim�nia com o �ambiente.

At� parece que n�o � com eles a alegria das mo�as, a boa vontade dos maridos, o movimento dos gar�ons, os espelhos nas paredes, a afli��o dos abandonados, a euforia dos b�bados, a solid�o dos velhinhos, a opini�o dos outros, a sabedoria alheia, as discuss�es pol�ticas, o carpete velho e verde, o barulho da coqueteleira, os celulares que tocam, os brincos, os an�is, as pulseiras, um ou outro olho que brilha, alguns casais que trocam beijos, as piadas dos grupos, as risadas, as garrafas de champanhe que estouram, a mesma m�sica de sempre.

Na verdade, eles n�o t�m nada a ver com aquele bar.

Ficam sempre na mesa 9, no canto deles, e logo j� est�o envoltos pela fuma�a que produzem, embalados num assunto qualquer, levemente embriagados no come�o.

Ele fala, ela responde, ou vice-versa.

Riem muito.

�s vezes.

�s vezes ficam graves. Pensativos. Circunspectos.

Algumas noites bebem mais, noutras noites bebem menos.

De vez em quando pedem um prato. Ou dois. Mas n�o pedem sobremesa. Um cafezinho, um licor, a conta, s� isso. Sempre deixam alguma gorjeta.

Que mais se pode dizer deles?

N�o muito.

Atravessam a porta de vidro que separa o bar do resto do mundo e deixam a vida l� fora.

A� o ma�tre avisa ao gar�om: �O casal da mesa 9!�, e o gar�om se prepara, traz uma �gua, uma marguerita, um u�sque com pouco gelo.

Tem semana que eles v�m no s�bado.

Tem semana que v�m na ter�a.

Tem semana que eles nem aparecem.

O que ser� que est�o fazendo?

Ser� que ela tem uma filha? Ser� que ele tem talento? Ser� que s�o namorados? Amantes? Ser� que faz diferen�a? Quem sabe t�m uma fam�lia? Talvez tenham desaven�as.

Pode ser que ele seja m�dico, engenheiro, importante, louco, artista, poeta, alegre, triste, ciclot�mico, centroavante, lun�tico, remador, excelente pianista, fan�tico por bolas de gude, descendente de italianos, comunista, paulista, flamengo doente.

E se ela for fluminense? E se for chata? Estressada. Mal-humorada. Tensa. E se for bem-sucedida? Devota de Santa Terezinha? Ser� que ela gosta de gatos? Ser� que tem sinusite? E se for especialmente rom�ntica? E se odiar poesia? E se for um amor de pessoa? E se ele for embora um dia?

Quem sabe?

Sabe-se deles apenas que chegam sozinhos e sentam na mesa 9 sempre.

A� come�am: sonho, riso, abra�o, lembran�a, novidade, beijo, devem ser muito felizes.

Isso � o que se imagina. Mas ningu�m pode ter certeza.

Olhando assim parece que eles n�o t�m proced�ncia nem destino.

N�o t�m nada al�m daquele instante.

S�o um durante uma imagem, um enquanto, ali dentro.

Se n�o est�o na mesa 9, � como se n�o existissem.

Ser� que a vida deles continua da porta de vidro pra fora, nos outros dias da semana?

Ser� que eles existem mesmo?

Ou ser� que s�o s� delirium tremens?




Da cria��o




Palavras



As gram�ticas classificam as palavras em substantivo, adjetivo, verbo, adv�rbio, conjun��o, pronome, numeral, artigo e preposi��o. Os poetas classificam as palavras pela alma, porque gostam de brincar com elas, e pra brincar com elas � preciso ter intimidade primeiro. � a alma da palavra que define, explica, ofende ou elogia, que se coloca entre o significante e o significado pra dizer o que quer, pra dar sentimento �s coisas, pra fazer sentido. Nada � mais f�nebre do que a palavra f�nebre. Nada � mais amarelo do que o amarelo-palavra. Nada � mais concreto do que as letras c, o, n, c, r, e, t, o, dispostas nessa ordem e ditas dessa forma, assim, concreto, e j� se disse tudo, pois as palavras agem, sentem e falam por elas pr�prias. A palavra nuvem chove. A palavra triste chora. A palavra sono dorme. A palavra tempo passa. A palavra fogo queima. A palavra faca corta. A palavra carro corre. A palavra palavra diz. O que quer. E nunca desdiz depois.

As palavras t�m corpo e alma, mas s�o diferentes das pes�soas em v�rios pontos. As palavras dizem o que querem, est� dito, e pronto. As palavras s�o sinceras, as segundas inten��es s�o sempre das pessoas. A palavra juro n�o mente. A palavra mando n�o rouba. A palavra cor n�o destoa. A palavra sou n�o vira casaca. A palavra liberdade n�o se prende. A palavra amor n�o se acaba. A palavra ideia n�o muda. Palavras nunca mudam de ideia.

Palavras sempre sabem o que querem. Quero n�o ser� desisto. Sim nunca jamais ser� n�o. �rvore n�o ser� madeira. Lagarta n�o ser� borboleta. Felicidade n�o ser� trai��o. Tes�o nunca ser� amizade. Sexta-feira n�o vira s�bado nem depois da meia-noite. Noite nunca vai ser manh�. Um n�o ser� dois em tempo algum. Dois n�o ser� solid�o. Dor n�o ser� constantemente. Semente nunca ser� flor. As palavras tamb�m t�m ra�zes, mas n�o se parecem com plantas, a n�o ser algumas delas, verde, caule, folha, gota.

As c�lulas das palavras s�o as letras. Algumas s�o mais importantes do que as outras. As consoantes s�o um tanto insolentes. Roubam as vogais pra constru�rem s�labas e obrigam a l�ngua a dan�ar dentro da boca. A boca abre ou fecha quando a vogal manda. As palavras fechadas nem sempre s�o mais t�midas. A palavra sem-vergonha est� a� de prova. Prova � uma palavra dif�cil. Porta � uma palavra que fecha. Janela � uma palavra que abre. Entreaberto � uma palavra que vaza. Vig�simo � uma palavra bem alta. Carinho � uma palavra que falta. Mis�ria � uma palavra que sobra. A palavra �culos � s�ria. Cambalhota � uma palavra engra�ada. A palavra l�grima � triste. A palavra cat�strofe � tr�gica. A palavra s�bito � r�pida. Demoradamente � uma palavra lenta. Espelho � uma palavra prata. �timo � uma palavra �tima. Queijo � uma palavra rato. Rato � uma palavra rua.

Existem palavras frias como m�rmore. Existem palavras quentes como sangue. Existem palavras mangue, caranguejo. Existem palavras lusas, Alentejo. Existem palavras it�licas, ciao. Existem palavras grandes, anticonstitucional. Existem palavras pequenas, microsc�pico, min�sculo, mol�cula, part�cula, quinh�o, gr�o, covardia. Existem palavras dia, feijoada, praia, bon�, guarda-sol. Existem palavras bonitas, madrugada. Existem palavras complicadas, enigma, trigonometria, adolescente, casal. Existem palavras m�gicas, shazam, abracadabra, pirlimpimpim, sim e n�o. Existem palavras que dispensam imagens, nunca, vazio, nada, escurid�o. Existem palavras sozinhas, eu, um, apenas, sert�o. Existem palavras plurais, mais, muito, coletivo, milh�o. Existem palavras que s�o palavr�o. Existem palavras pesadas, chumbo, elefante, tonelada. Existem palavras doces, goiabada, marshmallow, quindim, bombom. Existem palavras que andam, autom�vel. Existem palavras im�veis, montanha. Existem palavras cariocas, Corcovado. Existem palavras completas, elas todas.

Toda palavra tem a cara do seu significado. A palavra pela palavra tirando o seu significado fica estranha. Palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra n�o diz nada, � s� letra e som.




Brutalidade



�Assalto seguido de tentativa de homic�dio em praia �paradis�aca.�

Ser� que o mundo agora enlouqueceu de vez?

�Adolescente assassinado durante blitz.�

Calma.

�Preso torturado na cela.�

Alguma coisa deve estar errada.

�Tiroteio entre PMs e bandidos para a Avenida Brasil.�

Isso aqui n�o � uma p�gina policial.

�Confirmado: turistas foram enterrados vivos.�

Ali em cima n�o est� escrito �cr�nica�?

�Bala perdida mata mulher gr�vida.�

Ent�o � uma cr�nica que voc� tem que escrever.

�Sequestrador mata dois policiais e faz um ref�m.�

Cr�nica. Esqueceu como �?

�Aguarde mais not�cias sobre a trag�dia depois do intervalo comercial.�

V� no dicion�rio.

Verbete: cr�nica [Do lat. chronica.] S.f.

1. Narra��o hist�rica, ou registro de fatos comuns, feitos por ordem cronol�gica.

2. Genealogia de fam�lia nobre.

3. Pequeno conto de enredo indeterminado.

4. Texto jornal�stico redigido de forma livre e pessoal, que tem como temas fatos ou ideias da atualidade, de teor art�stico, pol�tico, esportivo etc., ou simplesmente relativos � vida cotidiana.

Olha a�, n�mero 4: texto que tem como tema fatos relativos � vida cotidiana. L� vai.

�Artista ferido durante assalto perde a vis�o.�

Escolhe o n�mero 3.

�Vereadora desvia sal�rio de funcion�rios.�

Escreve uma fic��o, vai.

�Poeta � assassinado dentro de casa.�

Ningu�m aguenta mais a realidade.

�Assassinos de poeta aguardam julgamento em liberdade.�

Podia ser uma aventura.

�Luta de gangues faz mais uma v�tima.�

De prefer�ncia alguma coisa mais alegre.

�Final de semana sangrento no pa�s inteiro acaba com v�rios mortos e feridos.�

Uma hist�ria de amor?

�Teste de fidelidade. Vai continuar a ver o seu marido com outra ou vai desistir?�

Mas uma hist�ria de amor que termine bem, por favor.

�Casal revela todos os detalhes da sua reconcilia��o e posa junto com exclusividade.�

Esquece o amor. Tenta, sei l�, uma fic��o cient�fica.

�Moradores de condom�nio podem ter sido contaminados por subst�ncia t�xica.�

Essa n�o.

�Descoberta nova falcatrua de ex-senador.�

Tamb�m n�o.

�D�lar volta a disparar e bate novo recorde.�

Quem sabe uma hist�ria infantil?

�Mais um atentado em escola da rede p�blica.�

J� sei! Qualquer coisa com coelhinhos brancos dan�ando alegremente no Vale da Felicidade.

Eram dois coelhinhos brancos dan�ando alegremente no Vale da Felicidade. Um abriu o jornal, o outro ligou a televis�o, e acabou a hist�ria.




Que n�o daria eu por

essa ideia?



A Elegia da lembran�a imposs�vel, de Jorge Luis Borges (Obras Completas, v. III, p. 137), � um poema que prop�e um jogo inesgot�vel.

�Que n�o daria eu pela mem�ria...� � como come�a.

A partir da� o poeta lamenta a impossibilidade de se lembrar de momentos que n�o viveu, mas gostaria de ter vivido.

As n�o mem�rias de Borges relatam desde um discurso de S�crates que ele n�o presenciou at� uma declara��o de amor que n�o ouviu de algu�m, o que tornaria uma certa autora, talvez, a mais feliz de todas.

Enquanto todo mundo imagina um futuro, ele imagina um passado.

Quem jamais se imaginou daqui a alguns anos mais bem-sucedido, muito bem acompanhado, trabalhando menos, ganhando mais e com tr�s quilos abaixo do peso atual?

Quem n�o perdeu horas pensando nas poss�veis respostas de uma poss�vel entrevista que um dia, quem sabe, ser� publicada no The New York Times?

Quem nunca planejou o que faria com o pr�mio de dezessete milh�es da Sena?

Qualquer futuro que se imagine n�o chega a ser imposs�vel, por mais improv�vel que seja.

Mas um passado que n�o aconteceu jamais ter� acontecido. Por isso, a brincadeira de imaginar pra tr�s, em vez de imaginar pra frente, � t�o livre.

Que n�o daria eu por essa ideia.

Sair inventando por a� possibilidades imposs�veis.

Recordar mentiras que poderiam ter mudado tudo.

Vislumbrar o futuro ao contr�rio.

Reconstruir a partir de um passado imagin�rio outro �presente.

Ou ent�o fazer poesia do que n�o aconteceu, somente.

Que n�o daria eu pela mem�ria de uma menina menos magra e de uma mo�a menos t�mida.

De um show dos Beatles em Liverpool.

De um curso de fotografia em Paris.

De um primeiro beijo � luz negra, numa garagem.

De mais de mil rosas vermelhas, uma manh� a�.

De uma noite perdida inventando um futuro que n�o era esse.

Da melhor cr�nica do mundo que eu nunca escrevi.

De um pressentimento que deu certo, de uma intui��o exata (bem que eu disse!), da apari��o de um fantasma, de um voo de asa-delta, do tempo em que eu era surfista.

Que n�o daria eu pela mem�ria de um vira-lata que eu encontrei na rua, e que me seguiu at� em casa, e que ficava o dia inteiro me esperando, e que abanava o rabo quando eu chegava, e que dormia comigo na minha cama, e que um dia teve oito filhotes, quatro meninos e quatro meninas, cada um mais lindo que o outro.

De um chap�u igual ao da Jackie.

De uma boca igual � da Brigitte.

De um sorriso igual ao da Ingrid.

De um vestido igual ao da Rita.

De um macac�o Lee desbotado.

De um guarda-chuva florido.

De uma mala de couro cheia de etiquetas coloridas.

De um trem, numa esta��o, onde foi? N�o lembro mais.

Que n�o daria eu pela mem�ria de um encontro com Borges que n�o aconteceu anos atr�s.

E do momento em que eu n�o tive a ideia, n�o tomei coragem e n�o sugeri pra ele: por que voc� n�o escreve uma elegia da lembran�a imposs�vel, Borges? (�ramos �ntimos.)

E da resposta que ele n�o me deu: pra voc� escrever uma cr�nica sobre o tema daqui a muitos anos, menina. (Ele me chamava de menina na minha mem�ria. Eu juro.)




Quando o telefone toca



�s seis e meia da tarde, depois de pensar por quase oito horas seguidas, de tomar sete x�caras de caf� e de fumar onze cigarros, o escritor finalmente teve uma ideia para a hist�ria.

A primeira frase saiu de uma vez s�.

Ele teve apenas o trabalho de transcrever as palavras que j� vieram prontas, de presente:

Georgia entrou no bar lotado decidida a tentar uma �ltima vez.

�s vezes isso acontecia com ele, um momento de sorte, de ilumina��o ou de pl�gio.

Deve existir um assoprador de plant�o para ajudar escritores sem ideias. Deus, quem sabe? Ou algu�m contratado pelas editoras.

Ele sempre pensava isso quando era beneficiado pelo destino com palavras de gra�a.

Seja quem fosse o seu ajudante inc�gnito, emudeceu, e ele teve que continuar a escrever por conta pr�pria. Afinal era um escritor, ora:

Procurou primeiro no balc�o. Ele n�o estava l�. Come�ou a procurar mesa por mesa, desesperadamente, o cora��o descompassado e aflito nem sabia bater direito (os cora��es t�m essa mania de fazer tudo errado quando a gente mais precisa deles).

Releu at� aqui. Gostou. J� era um come�o. Quando ia continuar, todo feliz, o telefone tocou. �Droga�, o escritor pensou, �aposto que l� vem problema�. Era o vizinho de baixo:

� Voc� pode dar uma descidinha aqui pra verificar pes�soalmente o vazamento?

O escritor deixou Georgia l� e saiu resmungando: �Vazamento a essa hora?�.

Ela ficou no bar lotado, com o cora��o descompassado e aflito, pensando, e agora?

Como � que continuava a hist�ria? Ela s� sabia at� ali. Seu nome era Georgia, tinha entrado no bar decidida a tentar uma �ltima vez, procurou primeiro no balc�o, ele n�o estava l�, come�ou a procurar mesa por mesa, desesperadamente, n�o sei que l� e tal e coisa.

E daqui pra frente? Daqui pra frente n�o sabia mais.

E dali pra tr�s? Georgia, ent�o, deu uma r� no pensamento at� onde conseguia alcan�ar, mas n�o chegou muito longe. Sua hist�ria j� come�ava de quando entrou no bar pra c�.

Dali pra tr�s, sabe-se l�. N�o tinha um antes. Era feliz? Infeliz? Como saber?

Coitada de Georgia, personagem de uma cr�nica que teve que parar de repente. Ser� que o seu passado existia por a� em alguma cabe�a, papel, pasta, gaveta, lixo, perdido em algum dep�sito das hist�rias n�o contadas? Ser� que tinha futuro? E se o escritor demorasse pra voltar e ela tivesse que ficar ali naquele bar indefinidamente? Olha s� o problema. As hist�rias paradas existem? N�o? Pelo menos existiram enquanto foram uma possibilidade? E nada de o escritor chegar. O jeito era continuar sozinha a partir dali.

J� estava ficando at� chato, ela, naquele bar lotado, pra cima e pra baixo, feito uma louca. Uma pessoa sem objetivo claro, sem lembran�as, sem nada, fora a informa��o de que estava � procura de algu�m. De quem, meu Deus?

Quem era esse tal �ele� que ela estava procurando?

Seria esse? Seria aquele? Quanta gente!

Se o escritor tivesse inventado um bar vazio ia dar menos trabalho.

Pelo menos ela sabia que �ele� n�o estava no balc�o. Devia estar numa mesa, ent�o. Em qual delas? O bar era muito grande, e o cora��o de Georgia batia �descompassado e aflito�; precisava desse detalhe irritante? Bem que ele podia ter escrito que ela estava calma, serena. Mas n�o. Inventou uma mulher nervosa, num bar lotado, havia inferno maior do que esse?

Havia. As pessoas n�o paravam de circular dentro do bar, de forma que �ele� podia muito bem ter sa�do da sua mesa pra ir ao balc�o, ao sal�o ou ao banheiro. Como � que algu�m (que n�o sabe quem �) pode encontrar algu�m (que n�o sabe quem �) desse jeito?

Ela come�ou a perguntar, rapaz por rapaz: �� voc�?�.

Eles n�o sabiam responder.

Na hora que inventou um bar lotado, o escritor criou um monte de gente com o mesmo problema. Ningu�m sabia quem era, nem o que estava fazendo, nem as mo�as, nem os gar�ons, nem o porteiro, nem aquele rapaz ali, sozinho naquela mesa...

Espera. Ser� que �ele� era aquele? T�o simp�tico. Bonito. Interessante. T�o sozinho.

Georgia sorriu pra ele. Ele sorriu pra ela e convidou: �Quer sentar?�.

Nesse momento o escritor voltou l� do vizinho. Droga de vazamento! Releu o que tinha escrito at� ali. Essa hist�ria n�o estava com muita cara de que ia dar em alguma coisa, pensou.

Ent�o deletou Georgia e o bar inteiro.




Ins�nia



Considerando-se que oito horas de sono � o ideal para uma pessoa, quase oito horas de sono deve ser quase o ideal. � l�gico. Ent�o, se eu conseguir dormir at� a meia-noite e acordar amanh� �s sete e vinte, est� �timo. Ou quase �timo. Eu vou acordar feliz, bem disposta, extremamente capaz, praticamente recuperada. Se eu dormir at� a meia-noite. Ainda tenho cinco minutos. Cinco minutos � tempo de sobra pra uma pessoa pegar no sono, quer ver? Vou pegar no sono em cinco minutos. Boa noite. Estou quase dormindo. Quase. Dormi. N�o dormi? Acho que n�o. Mas vou dormir agora. Sen�o os pensamentos come�am a entrar na minha cabe�a e, a�, minha filha, nunca mais. Um pensamento puxa outro, que puxa outro, que puxa outro, parece at� que pensamento tem corda. O neg�cio � n�o deixar entrar o primeiro, t� vendo? Foi s� come�ar a pensar em n�o pensar e quando eu vi j� estava pensando em pensamento com corda. E de corda pra acorda � um pulo. E � melhor eu n�o pensar em acordar, sen�o eu n�o consigo dormir. E eu preciso estar inteira amanh�. Ou vai ser uma trag�dia. Calma, tamb�m n�o � assim. Eu ainda tenho cinco minutos pra pegar no sono. Se bem que agora j� n�o faltam mais cinco, quantos minutos se passaram at� agora? Esquece e dorme. Boa noite. Dormi. N�o dormi? Se eu tivesse dormido n�o estaria pensando se dormi ou n�o dormi. Estaria dormindo. Isso prova que eu n�o dormi ainda. Amanh� vou acordar um lixo. E eu tenho um dia dific�limo pela frente, com uma lista enorme de coisas pra resolver: vinte minutos de medita��o ao acordar, gin�stica �s oito, reuni�o �s dez em ponto, consertar o carburador do carro, desmarcar o dentista, comprar tinta pra impressora, ligar pro Geraldo... esquece o Geraldo e dorme. Voc� j� trancou a porta, j� fechou o g�s, j� tomou seu banho, j� foi na cozinha, j� bebeu seu leitinho quente, j� pensou em quantas calorias tem um copo de leite quente, voc� j� se preocupou demais por hoje. Voc� precisa dormir. Isso. Eu preciso dormir. Ent�o, boa noite. Tem certeza de que eu tranquei a porta? Tranquei, sim. Tenho certeza. Fechou o g�s? Claro. N�o lembra? Logo depois do banho. Fechei o g�s, fui na cozinha, bebi meu leitinho quente, quantas calorias tem um copo de leite? Eu n�o devia ter botado a��car pra depois n�o ficar culpada. Depois eu fico culpada. Agora eu vou dormir. J� me preocupei demais por hoje e por amanh�... N�o, eu n�o vou pensar no que tenho que fazer amanh�. Tenho um dia dific�limo pela frente, com uma lista de coisas pra resolver, e se eu n�o dormir at� meia-noite e meia, uma hora, vou terminar pulando a medita��o. � uma op��o. Fa�o gin�stica �s oito e de l� vou direto pra reuni�o, �s dez em ponto, no centro da cidade, vou de carro ou vou de t�xi? Amanh� voc� resolve isso. Certo. Eu resolvo isso amanh�. Boa noite. Mas eu j� tenho coisa demais pra resolver amanh�, assim n�o vai dar tempo. Ser� que n�o � melhor ir pro centro da cidade de t�xi pra poder ir resolvendo outras coisas no caminho? Est� resolvido. Amanh� eu resolvo o resto. Boa noite. Se eu conseguir dormir at� uma e meia e acordar �s nove, j� est� bom. Pulo a medita��o, falto � gin�stica, pego um t�xi pro centro da cidade e a� s� falta resolver o resto da vida. Mas eu tenho o dia inteiro pra resolver tudo. Ligar pro Geraldo, terminar o relat�rio, passar no supermercado, chamar o homem da televis�o, esquece o homem da televis�o e dorme. J� deve ser bem mais de uma. Olho o rel�gio ou n�o olho? Se eu olhar e for muito tarde, vou ficar nervosa. Mas, se eu n�o olhar, vou ficar imaginando que � mais tarde do que � na verdade e fico mais nervosa ainda. Esquece o rel�gio e dorme. Boa noite. Eu n�o vou pensar em amanh�, n�o vou pensar em hoje, n�o vou pensar nas horas, n�o vou pensar em nada. Nadinha. Um nada absoluto. Pensar em nada � pensar em alguma coisa? Olha a� eu pensando de novo. � por isso que eu n�o durmo. Durmo sim. Quer ver? Vou contar carneirinhos. Um carneiro, dois carneiros, tr�s carneiros, quatro carneiros, pronto, agora o quinto carneiro enganchou e n�o quer entrar no meu pensamento. Vem, carneiro. Por favor. T� fazendo o que a� fora? Arranjou uma namorada, foi? Ent�o j� s�o mais dois carneiros, ele e a namorada, fora os filhotinhos que eles podem ter, olha s� que maravilha, v�o ser n�o sei quantos carneirinhos pra contar. Eu vou dormir na hora. Venham, carneiros. Um de cada vez. Podem entrar. Esses carneiros est�o de implic�ncia comigo. Eu estou come�ando a me irritar. Daqui a pouco eu cometo um carneiric�dio. Assim que eles entrarem. O problema � que eles n�o entram. Esquece os carneiros e dorme. Ser� que, se eu pensar em capim, os carneiros entram pra comer o capim? Capim. Capim. Capim. Capim. Carneiro come capim? Esquece o capim e dorme. J� devem ser quase duas e voc� a� acordada. Amanh� vai estar um lixo. Eu n�o vou estar um lixo amanh� pela simples raz�o de que vou dormir agora, quer ver? Boa noite, dormi, n�o dormi?, ainda n�o. Mas vou dormir imediatamente. � s� n�o pensar em amanh�, porque amanh� eu tenho um dia dific�limo pela frente com uma lista de coisas pra resolver: chamar o homem da televis�o, comprar queijo ralado, dar uma passadinha no laborat�rio pra buscar os exames, descobrir se carneiro come capim, eu n�o acredito que j� � de madrugada e eu estou aqui pensando em capim, esquece os pensamentos e dorme, vou dormir, voc� n�o pode pensar em amanh�, eu n�o vou pensar em amanh�, n�o vou mesmo, de jeito nenhum, amanh� eu tenho um dia dific�limo com uma lista de coisas pra resolver: descobrir se carneiro come capim...




De cartas




A carta



Prezada Nena,

Espero que esta lhe encontre gozando de muita sa�de assim como todos os seus.

Nem tr�s meses faz que a gente chegou aqui e j� deu pra reparar que as diferen�as da� s�o muitas, por�m s�o muitas tamb�m as parecen�as.

Esse Rio de Janeiro � t�o amostrado, Nena, que parece at� que a gente t� na Fran�a, de tanto canto lindo que aparece. Por outro lado, tem hora que d� pra jurar que aqui � a�, tamanha a desgraceira. O povo daqui, sendo rico ou sendo pobre, fala igualmente alto. S� n�o sei o motivo de tanta gritaria, se � falta de alegria ou se � falta de tristeza.

O Maracan� � grande mesmo e se a pessoa for arrodear ele a p� leva bem meia hora, Nena.

A Lagoa por fora � uma beleza, infelizmente � estragada por dentro.

O que voc� n�o ia acreditar era em cada t�nel, n�o sei quantos, devido ao fato de aqui ter muita pedra. O Cristo Redentor quando acende l� em cima � todinho o Cristo Redentor, exato como ele aparece nas novelas. J� o P�o de A��car, esse de fato s�o dois, o maior e o menor, mesmo tendo nome de um apenas. Se Nossa Senhora me der um tantinho assim mais de coragem, juro que ainda tomo aquele bonde.

O c�u daqui fica muito mais perto do ch�o do que o da�. � s� olhar pro topo dos pr�dios e l� est� ele parado, logo ali em cima, diariamente. Dia que tem nuvem s� se enxerga o p� do morro. Noite que tem chuva s� se escuta a choradeira.

A gente vai levando como Deus quer e consente, ora � uma coisa, ora outra, ora nem uma coisa nem outra e � a� que o neg�cio pega. De trabalho mesmo s� me apareceu uma faxina dia de quarta na casa de uma mulher que mora em Copacabana. Ela n�o paga muito, n�o, em compensa��o tem tanta prata que d� at� gosto limpar tudo e depois empilhar bem direitinho.

Avise a Neto que quando as coisas melhorarem eu come�o a juntar dinheiro pra comprar o celular dele. Quem sabe at� o fim do ano eu deposito uns duzentos. Mande dizer o n�mero da conta, mas copie com cuidado que de outra vez o algarismo veio errado e foi uma agonia de vai no banco e volta n�o sei quantas vezes, isso que voc� n�o avalia o tamanho da fila.

N�o fosse a perna de m�e que n�o desincha nem com antibi�tico nem com rezadeira, de resto tudo t� mais ou menos nos conformes. S� n�o sei dizer o que � pior, se � o custo de vida ou a saudade, pois aqui n�o tem cheiro de cana, Nena, e at� hoje n�o vi um �nico p� de algaroba pra chorar mais eu, portanto tenho que chorar sozinha.

Eu continuo procurando um quarto grande que d� n�s quatro dentro, pois morar de favor na casa dos outros al�m de ser bastante desagrad�vel ainda por cima � ruim demais. Por mais que se ajude na despesa e no servi�o, pensa que resolve? Olhe que se tem coisa que eu n�o sou � desagradecida, mas tia Carminha vive de cara feia, e as meninas reclamam de tudo, � um aperto danado, imagine s� o desmantelo. Tem dia que eu me dano a andar cidade afora somente pra n�o escutar queixa por queixa. Esquecendo as desaven�as, vai se indo.

Para o m�s, Mariinha completa quinze anos. Na aus�ncia de festa, faz-se um bolo. Ela est� namorando um rapaz muito direito, que toma conta de carro em rua de rico, embora eu pense que ela ainda n�o esqueceu Z� Geraldo a� do posto. J�nior arrumou emprego, mas desarrumou em seguida e t� parado no momento. Eu mesma j� repeti mais de mil vezes pra ele largar de ser desleixado e tratar logo de aprender a mexer em computador, pois hoje em dia quem n�o se entende com o dito n�o arranja nada decente nessa vida. Pelo visto, ele puxou mesmo ao pai, inclusive na leseira.

Por falar no desinfeliz do pai dele, j� bati a cidade inteira e ainda n�o encontrei o homem, tamb�m como � que eu ia adivinhar que o Rio de Janeiro era t�o grande?

Tenho pra mim que ele tava era me enganando o tempo todo com essa conversa de mandar buscar a gente no Natal, ou ent�o n�o teria escrito o endere�o errado, que essa tal rua que ele falou nem existe, Nena.

Se eu encontrar o triste, ligo a cobrar avisando. Dia de domingo � mais barato. Mesmo n�o encontrando, ligo de todo modo, uma vez que, com homem ou sem ele, a vida segue.

Nena, n�o se esque�a de aguar minhas plantas nem de dar de comer � Duquesa.

Deus lhe pague em dobro tudo que voc� fez por mim, por m�e e pelos meninos.

A sorte ajudando, dia desses eu tiro na raspadinha e mando passagem de leito pra voc� mais Neto virem conhecer o Rio.

Reze da� que eu rezo de c�.

D� lembran�as minhas a todos e aceite todo o carinho da sua eterna amiga,

Doris.




Mania de persegui��o



Excelent�ssimo Senhor Destino,

Venho por meio desta pedir encarecidamente a Vossa Senhoria que fa�a o favor de parar de me perseguir, fato este que vem ocorrendo de forma ass�dua e incans�vel (e �s vezes bastante desagrad�vel), desde que eu nasci at� os dias de hoje. Os acontecimentos di�rios que me trouxeram ao atual estado de desespero em que me encontro s�o muitos (afinal, s�o di�rios), mas, se eu fosse tomar seu tempo listando aqui todas as vezes em que fui perseguido por Sua Excel�ncia, o que seria do destino da humanidade? Por essa raz�o, serei breve.

Quis o Destino que o meu nascimento tenha ocorrido em pleno carnaval, �poca em que todos os m�dicos viajam. A coitada da minha m�e ficou horas sofrendo de trabalho de parto, pedindo a Deus que aparecesse algu�m no hospital, uma parteira, uma vizinha, meu pai, uma visita (mesmo que fosse para o quarto do lado), qualquer um que resolvesse aquele problema: eu. Finalmente, �s cinco da manh�, conseguiram arrastar um dermatologista fantasiado de �ndio diretamente do Baile dos Casados, e assim foi. Nasci. Estava um calor desgra�ado. A roupinha bordada pela minha bisav� era de l�. Continuo al�rgico.

Contava eu com apenas cinco dias de idade quando meu encantador primo Rodolfo, num lampejo de senso de justi�a, concluiu que eu deveria participar mais ativamente da festa em comemora��o ao meu pr�prio nascimento e me serviu uma mamadeira de feijoada com um pouco de cerveja. Continuo sofrendo de �lcera. Quando eu estava com sete meses, minha irm� mais velha me derrubou no ch�o (continuo com medo de altura); no meu primeiro anivers�rio, morri de medo� do palha�o que contrataram (continuo com s�ndrome do p�nico); com pouco mais de cinco anos, rolei a escada (continuo rolando vida abaixo); aos nove, o helicopterozinho que eu ganhei de Natal espatifou no meio da rua, s� porque eu resolvi arremess�-lo do 12o andar.

Relevarei aqui os v�rios arranh�es no joelho, topadas de toda esp�cie, trope��es, belisc�es, recupera��es em matem�tica e a infinidade de trag�dias que ocorreram durante a minha adolesc�ncia, incluindo as espinhas e o fora que levei da Katya Regina. Levarei em considera��o que, na d�cada de setenta, o senhor estava muito ocupado com a ditadura e o destino do pa�s. Mas n�o posso deixar de culp�-lo pela vergonha que passei quando o meu z�per quebrou no dia da minha formatura. Eu podia ter passado sem essa, n�o acha? Mesmo assim, serei compreensivo. Pouparei Vossa Excel�ncia das queixas relativas ao s�culo passado, Plano Collor, hiperinfla��o, o �passarinho quer dan�ar� no programa do Gugu, e outras chacinas.

O conte�do deste documento se concentrar� exclusivamente nos �ltimos tempos. L� vai.

Dois mil e um. R�veillon: porre de cidra seguido de uma ressaca de tr�s dias. Abril: prendi o dedo na porta do carro. P�scoa: dois quilos a mais. Agosto: toda a sorte de azares. Outubro: fui demitido. Natal: tirei meu cunhado no amigo secreto.

Dois mil e dois. Janeiro, fevereiro, mar�o e abril: falta de dinheiro. Maio: falta de dinheiro seguido de div�rcio. Junho: falta de dinheiro, apendicite e problemas com o plano de sa�de.

Julho, agosto e setembro: falta de dinheiro e vara de fam�lia. (Perdi a a��o movida pela minha ex-mulher e continuo deprimido e sem dinheiro.) Evitarei comentar os engarrafamentos, a alta do d�lar, os aterradores �ndices de viol�ncia e a desigualdade social com o intuito de me ater � sua persegui��o particular em rela��o a mim. A gota d��gua, seu Destino, foi o reboco do banheiro que o senhor jogou na minha cabe�a ontem, causando um alagamento que destruiu todos os meus m�veis. Acho que n�o merecia tamanha desconsidera��o vinda de sua pessoa, e nem venha me pedir desculpas agora, pois dessa feita sua atitude foi totalmente indefens�vel. Enquanto n�o ficar provado que o meu destino tem sido fruto de algum problema operacional no seu sistema, continuarei me sentindo pessoalmente ofendido com seus atos. Gostaria ainda de dizer, em minha defesa, que n�o pedi para nascer e portanto n�o me coloquei ao seu dispor. Nunca lhe dei meu nome ou endere�o. Jamais aceitei suas interfer�ncias em ju�zo ou fora dele. N�o fui consultado a respeito das minhas prefer�ncias. Sequer escolhi o tom da minha voz, a cor dos meus olhos, meu manequim ou minha estatura. Compreendo que, seja por h�bito, seja por of�cio, o seu destino � justamente esse: meter-se nos destinos alheios. Talvez at� n�o tenha sido escolha sua. Nem por isso vejo raz�o para me submeter �s suas vontades. Ali�s, esse seu poder absoluto e arbitr�rio, pr�prio de um tirano, n�o condiz com seu t�o sonoro nome. Algu�m chamado Destino, com tamanha influ�ncia no ciclo da vida, deveria ouvir as pessoas em vez de agir sempre por conta pr�pria. Afinal, n�s n�o vivemos numa democracia?

Certo de que contarei com sua aten��o, subestimo-me atenciosamente,

Jos� dos Santos Souza e Silva




Requerimento



Caro Senhor Tempo,

Espero que esta lhe encontre passando bem, ou melhor, passando o mais devagar poss�vel.

Por aqui vai-se indo, como o Senhor quer e consente, meio r�pido demais para o meu gosto, e quando vi j� era dezembro.

Foi-se mais um ano.

E com ele se foi uma quantidade incalcul�vel de amores, cores, idades, alguns amigos, n�o sei quantos neur�nios, mem�rias, remorsos, desvarios, cabelos, ilus�es, alegrias, tristezas, v�rias certezas (se n�o me engano, treze), algumas verdades indiscut�veis, umas cal�as que n�o fecham mais e aquele vestido de que eu gostava tanto.

Foi-se o meu gosto por vitrine.

Foi-se quase todo meu vidro de perfume.

Foi-se meu costume de imaginar asneiras � noite.

Foi-se meu forte instinto de acreditar no que me dizem.

Foi-se meu a�ucareiro de porcelana.

Que pena.

Foi-se o tempo em que uma simples farra n�o significava necessariamente uma condena��o sum�ria do dia subsequente.

Foi-se a poupan�a.

O troquinho da gaveta.

Foi-se aquele antigo projeto.

Foram-se exatamente nove v�rgula seis por cento de todas as minhas esperan�as.

Ser� que o Senhor n�o cansa, seu Tempo?

N�o pensa em tirar umas f�rias, dar uma pausa, respirar um pouco? N�o lhe agrada a ideia de mudar o andamento? Diminuir o ritmo? Em vez de tique-taque, inventar uma palavra mais comprida para compasso, mantra, �cone, diagrama?

Me diz sinceramente: para que tanta pressa?

Anda dif�cil acompanhar seus passos ultimamente.

N�o precisa dar meia-volta, eu n�o espero tanto. Eternidade? N�o. S� queria sua amizade.

Mas j� � dezembro.

Foi-se mais um ano.

E o Senhor passou voando, rebocou os meus momentos, foi desbotando minhas lembran�as, carregou mais doze meses inteiros levando cada instante meu de carona.

Tentei voltar atr�s em algumas decis�es. J� era tarde.

N�o deixei nada para amanh�. Mesmo assim, n�o fiz sequer metade do que pretendia. Imaginei v�rias maneiras de estancar os dias, segunda, ter�a, quarta, quando via j� era quinta. Sexta. S�bado. Domingo. Pronto.

Pensei em fuga. Ser� que existe algum lugar deste mundo onde as horas n�o me encontrem? Fiquei meses trancada em casa. Foi in�til. L� fora, o Senhor continua passando.

E j� passou mais um pouquinho.

Calma, Tempo! Espera s� um minutinho para eu explicar melhor meu ponto de vista.

Nem todo mundo � pedra, concorda? Dito isso, imagine ent�o quantos pobres mortais sofrem da mesma agonia di�ria: giros e mais giros nos ponteiros, os cantos dos cucos, as den�ncias das sombras, os gr�os de areia escorrendo (parece at� hemorragia cr�nica), tudo escapulindo, descendo, subindo, o frenesi dos d�gitos, um, dois, tr�s, quatro, cinco, cem, o Senhor vai tirar o pai da forca? Est� fugindo de algu�m? De quem? De mim? De ontem?

Eu conhe�o de cor suas obriga��es.

Estou convencida de suas utilidades.

N�o fosse o senhor, n�o existiria saudade, retrato, suvenir, antiguidade, hist�ria, �poca, per�odo, calend�rio, outrora, passatempo, novidade, creme antirrugas, disputa por p�naltis, antepassado, descendente, dia, noite, nada, n�o existiria sabedoria, eu sei disso.

N�o tome como queixas minhas palavras, por favor n�o tome.

Aqui vai apenas uma s�plica.

Ah, se o senhor fosse mais indulgente, mais piedoso, mais pensativo, se fosse baiano, menos estressado, mais manso, menos rigoroso, um bon vivant, e se distra�sse a� pelo caminho, e se deixasse apreciar as paisagens, e sofresse um devaneio, e ficasse de bobeira, esquecido das horas, divagando.

Escute aqui, seu Tempo, que tal deixar passar o resto e parar quieto um pouco?




A escritora


Adriana Falc�o nasceu no Rio de Janeiro, em 1960, mas passou boa parte de sua vida em Recife, onde se formou em arquitetura. Adriana nunca exerceu a profiss�o, mas com certeza usa suas habilidades arquitet�nicas para criar as rocambolescas estruturas de suas hist�rias, sempre muito divertidas e influenciadas pelo folclore nordestino.

Ela � escritora premiada de livros para crian�as, jovens e adultos. Mas tamb�m encanta o p�blico com seu talento nos roteiros que cria para programas de TV (A com�dia da vida privada; A grande fam�lia; As brasileiras; Louco por elas); para o cinema (O auto da compadecida; A m�quina; O ano em que meus pais sa�ram de f�rias; Fica comigo essa noite; Mulher invis�vel; Eu e o meu guarda-chuva; Se eu fosse voc� 1 e 2) e tamb�m para o teatro (A vida em rosa e Tarja preta).

Todos os livros de Adriana Falc�o est�o sendo publicados pela Editora Salamandra.

Livros para crian�as: Mania de explica��o; Mania de explica��o: pe�a com seis atos, um pr�logo e um ep�logo; A tampa do c�u; Sete hist�rias para contar; Valentina cabe�a na lua; e A gaiola.

Livros para jovens e adultos: Luna Clara & Apolo Onze; A com�dia dos anjos; Procura-se um amor; Pequeno dicion�rio de palavras ao vento; P.S. Beijei; A m�quina; e O Doido da Garrafa.




Para Rodrigo Penna, que
entende as minhas palavras
at� melhor do que eu.




� ADRIANA FAL��O, 2014

Ilustra��es: Carlos Araujo

1� edi��o digital 2014

ISBN 978-85-16-09242-9

Reprodu��o proibida.

Art. 184 do C�digo Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Todos os direitos reservados.

Editora Moderna Ltda.

Rua Padre Adelino, 758 - Belenzinho

S�o Paulo - SP - Brasil - CEP 03303-904

Atendimento: tel. (11) 2790-1500 e fax (11) 2790-1501

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