Adolfo Caminha
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A Raul Pomp�ia, o mais
original e correto escritor
brasileiro de seu tempo.
Cap�tulo I
� Ora, sempre vamos ao Rio de Janeiro, ao grande e espetaculoso
Rio de Janeiro! � exclamou Evaristo, pousando o chap�u, com ar de
triunfo. � � como l� diz o outro: � quem espera... Eu nunca me enganei
com o Lu�s... nunca!
Sa�am-lhe em jorro as palavras, num tom quente de vit�ria, de
aclama��o, de regozijo.
Adelaide n�o o compreendeu logo, e, sem o compreender, exultava
diante da intempestiva alegria do marido, com os olhos nele, ansiosa.
� Que �, homem de Deus, que foi... Que mist�rio!
� Nada, filha, nada; estamos aqui, estamos no Rio de Janeiro �
ouviste? � no grandioso Rio de Janeiro!
Ela sorriu com um muxoxo:
� Brincadeira!
� Brincadeira? Telegrama do Lu�s Furtado. Um emprego no Banco
Industrial...
� Que � do telegrama? � perguntou Adelaide, arredando o cabelo dos
olhos e com o mesmo sorriso de incredulidade.
� C� est�, no bolsinho; recebi quando menos esperava.
E, desdobrando o papel:
� �Emprego Banco Industrial garantido. Venha. � Lu�s."
Foram entrando ambos para a sala de jantar � Evaristo um pouco
apressado.
� Tu n�o imaginas � ia ele dizendo, sem se voltar para a mulher � , tu
n�o imaginas como estou alegre! No Rio de Janeiro a coisa � outra! Um
homem adquire rela��es, ganha fama e, quando pensa, tem sua
economiazinha... Quem vai ao Rio, ipso facto1, vai � Europa. Ora, digam l�
para que me tem servido a carta de bacharel? Para nada, para cois�ssima
alguma! Bacharel em prov�ncia � objeto de luxo e eu estou farto de
mis�rias!
Adelaide, meio triste, perguntou-lhe se queria jantar.
� Por que n�o? Imediatamente. Hoje �?...
� Ter�a.
1 No texto: automaticamente.
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� Domingo h� vapor e eu tenho muito que fazer. Hoje mesmo,
acabando daqui, vou telegrafar ao Lu�s. Manda botar a sopa.
� Jesus, que sofreguid�o, Evaristo! Ao menos tira o palet�.
� Qual palet�! � daqui para o Tel�grafo e amanh�, se Deus quiser, os
jornais d�o not�cia da minha ida ao Rio. Um emprego no Banco Industrial
do Rio de Janeiro � papa-fina. J� ouviste falar no Banco Industrial?
� N�o.
� Pois � um excelente emprego � um empreg�o!
Adelaide pediu o jantar � porta da cozinha e veio sentar-se � mesa.
Eram pobres, de uma pobreza honesta e limpa. Moravam nos
arredores da cidade, num lugar chamado Coqueiros, onde a vida era quieta
e ningu�m os ia incomodar nas horas de descanso. Assim que desciam as
primeiras sombras da noite, ca�a todo o bairro numa extraordin�ria mudez,
num sil�ncio de aldeia feliz, cortado, apenas, em noites de lua, pelo choro
melanc�lico dalgum viol�o bo�mio que passava dizendo hist�rias de
amor... A pr�pria esta��o do trem era um pouquinho longe da casa em que
moravam.
Evaristo, por�m, tinha suas ambi��es e n�o podia contentar-se com
aquela vida de jesu�ta. O Rio de Janeiro atra�a-o para as grandes lutas, para
cometimentos estrondosos, que o celebrizassem dalguma forma. Rapazes,
seus conhecidos (o Lu�s Furtado era um deles) viviam muito bem na Corte
� formados, gozando de nomeada na advocacia, no magist�rio; outros, que
nem sabiam o b�-�-b� do direito, elogiados na literatura, na imprensa, em
tudo! Lu�s Furtado, por exemplo, Lu�s Furtado, ele o conhecia desde
crian�a, desde os bancos colegiais, quando ambos cursavam o Liceu; eram
amigos, amiguinhos como dois irm�os. Pois bem, Lu�s Furtado n�o tinha
nenhum preparat�rio, fora p�ssimo estudante de latim, na aula do Padre
Lustosa, de franc�s, e mesmo da l�ngua de Cam�es; no entanto, estava
muit�ssimo bem colocado no Rio � podia-se dizer que era dono de jornal,
influ�ncia liter�ria e quase capitalista! E ele, Evaristo? Formado, bacharel
em direito, autor de muitos escritos, no entanto era aquilo: duzentos milr�is
� uma vergonha � casa em Coqueiros, e, quanto a futuro, temos
conversado!
� � ou n�o � verdade o que eu digo? � perguntava ele � mulher.
Esta confirmava: �� N�o dizia que n�o; mas o tal Rio de Janeiro, o
tal Rio de Janeiro...�
� Inven��es, minha mulher, inven��es da gente que n�o tem o que
fazer. O Rio de Janeiro n�o �, nem nunca foi bicho-de-sete-cabe�as. Eu leio
jornais e sei bem o que aquilo �. Voc� ver� com os pr�prios olhos. Falam
muito nas francesas do Largo do Rocio, nos teatros, na jogatina. Ora, isso
em toda parte h�; o v�cio est� no sangue do indiv�duo; quando o homem
tem de ser coisa ruim, o � no Rio de Janeiro, na Patag�nia, em Paris... no
inferno! Compreende agora que n�o me vou atirar ao luxo, ao pagode, �
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bandalheira. O que eu quero simplesmente, exclusivamente, � fazer pela
vida, ganhar algum dinheiro, prosperar, com os diabos!
Adelaide, rapariga d�cil, de cora��o meigo como o cora��o das
pombas, ouvia tudo, e, em extremo confiante no marido, achava que o que
ele dizia era a pura verdade. Mas n�o deixava de o aconselhar que pensasse
bem, antes de tomar uma resolu��o. Nada de vexame, para depois n�o
haver arrependimento.
� Que arrependimento! Arrependido estou eu de j� n�o ter metido
ombros a uma viagem. A prov�ncia n�o bota ningu�m pra diante. Vamos �
Corte, vamos melhorar. Por que n�o hei de ser feliz, eu, que trabalho como
trabalho, por qu�? Fa�a de conta que comprei um bilhete. A vida �
simplesmente uma loteria: quest�o de felicidade.
Evaristo tomou um gole d'�gua, para rebater a sobremesa e ergueuse,
palitando os dentes.
� Ent�o, sempre queres ir � cidade? � perguntou Adelaide sem se
mover.
� Imediatamente. Vou telegrafar ao Lu�s e espalhar a grande not�cia!
� Mas n�o te demores, Evaristo; olha que fico s� neste subterr�neo...
� Nada, n�o me demoro nada: � um pulo.
E o futuro empregado do Banco Industrial do Rio de Janeiro, depois
de acender um cigarro, largou-se, numa precipita��o de m�dico que vai a
chamado urgent�ssimo.
� ��T� logo, ��t� logo!
Que pressa de homem! � sorriu Adelaide, ouvindo bater a porta da
rua. � Que desespero!
� Nh� Varisto nem quis jantar! � acrescentou a cozinheira se
aproximando.
� Tira a mesa, Balbina. Sabes que vamos para o Rio de Janeiro?
� Rio Janeiro, nh� Delaida! Onde � isso?
Uma terra muito boa, muito bonita, onde mora o Imperador...
� Ah!... Rio Janeiro...
E a preta velha ficou a olhar o teto, a olhar, com a m�o no queixo,
muito admirada.
� Rio Janeiro... E a velha Balbina agora tem de procurar casa?
� N�o sei; o Evaristo � que h� de dizer...
As duas mulheres, a velha e a mo�a, trocaram um olhar vago, um
olhar quase sem express�o, mas onde havia uma sombra de tristeza.
Balbina compreendeu, �quela simples not�cia, que ia ficar abandonada no
seu rancho de negra velha, sem ganhar dinheiro, sem emprego, sem
ocupa��o � ela, que estimava tanto �nh� Varisto� e �nh� Delaida�, e que
estava t�o bem naquela casa! Adelaide, por sua vez, compreendia a tristeza
de Balbina � pobre criatura quase octogen�ria, que eles ainda conservavam
por amizade, por gratid�o. Balbina fora escrava do pai de Evaristo, falecido
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h� anos. Adelaide compreendia e ficava-se tamb�m a pensar no destino da
velha, com uma ponta de saudade, quase com remorso de a deixar. Porque
Evaristo absolutamente n�o podia levar Balbina � uma mulher idosa,
coitada, muito boazinha, mas muito velha, sem for�as mesmo para resistir.
Entretanto, a meiga senhora n�o quis precipitar as coisas. Mais vale
uma esperan�a tarde que um desengano cedo. Deu a not�cia por lealdade e
calou-se.
� noite voltou o marido, cerca de nove horas, com um embrulho
debaixo do bra�o, o colarinho imprest�vel de suor, �s carreiras.
� C� estou! � disse entrando. � Agora � arrumar os ba�s e tocar!
Amanh� os jornais d�o a minha ida, isto �, amanh� estoura a bomba!
Evaristo chamava �estourar a bomba� ao efeito que a not�cia havia
de produzir entre os seus inimigos, que n�o eram poucos.
� Que embrulho trazes a�? � perguntou Adelaide, curiosa.
� Um palet� de alpaca para a viagem.
Adelaide cruzou as m�os, meneando a cabe�a.
� Oh, homem vexado! Nem que fosses embarcar amanh�...
� N�o h� tempo a perder, n�o h� tempo a perder. Fa�a-se logo o que
se tem de fazer!
� Quando h� vapor?
� Domingo: o Maranh�o. Hoje � ter�a, n�o �? Quarta, quinta, sexta e
s�bado, apenas quatro dias para os preparos de viagem. Nada!
� E a Balbina? � inquiriu Adelaide.
� A Balbina fica... n�o h� rem�dio. Que vai ela fazer ao Rio? Nada
de criados, por enquanto; as despesas s�o muitas e eu n�o posso arcar...
O cora��o de Adelaide comoveu-se ante aquele decreto formal de
Evaristo. � Pobre da negra: t�o boazinha...
� Que queres? � a vida. Ela que procure outra casa. Est� livre, est�
senhora de si.
E foram-se recolher, � hora acostumada, sempre falando na viagem,
no embarque, nas despedidas � Evaristo arquitetando planos, construindo
castelos, lembrando uma coisa, outra...
Da� a quatro dias, com efeito, embarcava o futuro representante do
Banco Industrial. Foi um acontecimento, em Coqueiros, a ida de �dona
Adelaide� para a Corte, um verdadeiro acontecimento, porque todos a
estimavam, todos queriam bem a ela, mesmo os estranhos, que s� a
conheciam de vista.
Balbina chorou a noite inteira, sem deixar o cachimbo, que lhe
pendia dos bei�os tr�mulos, fungando e resmoneando.2 �� S� os
abandonaria, quando eles, nh� Varisto e nh� Delaida, dobrassem a
esquina...�
2 Resmungando.
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� Deixe estar, Balbina, deixe estar que hei de lhe mandar umas coisas
do Rio � consolava Adelaide. � Tamb�m voc� j� n�o � mulher para sair dos
seus c�modos.
� �, nh� Delaida, � assim memo.
E a velha enxugava os olhos com a aba do casaco.
� E, nh� Delaida, �...
Um carro de aluguel esperava os viajantes, enquanto Evaristo,
pingando suor, conclu�a umas arruma��es no fundo da maleta, e Adelaide,
assoando as l�grimas, em toilette de gorgor�o, abanava-se na sala de jantar.
� Pronto? � perguntou de repente o bacharel.
� Eu estou pronta... respondeu a esposa, devagar, numa voz
comovida.
E, da� a pouco, a velha Balbina se atirava aos p�s de Adelaide,
chorando, solu�ando, agarrando-a espetaculosamente pelas pernas, numa
dolorosa cena de l�grimas e exclama��es.
� Deus a leve, nh� Delaida... v� com Deus!... N�o lhe hei de querer
mal, n�o, minha filha...
Adelaide � aquele cora��o terno de ave mansa � chorava tamb�m,
um choro mudo que pungia.
� Basta, basta! � interrompeu Evaristo, limpando a face magra. �
Acabem com isso...
No fundo, ele tamb�m estava comovido, e homem nervoso, n�o
podia ver outra pessoa chorar.
O boleeiro3 perguntou para dentro se era s� a caixa de chap�u, a
maleta e a gaiola...
� S� � respondeu Evaristo.
Adelaide embarcou aos olhos curiosos da vizinhan�a, que tinha o ar
compungido, depois embarcou Evaristo, ouviu-se um � adeusinho! � e o
carro estremeceu.
Balbina, em p� no meio da rua, levava ainda uma vez a aba do
casaco aos olhos.
...Foi assim que o bacharel Evaristo de Holanda se desenterrou de
Coqueiros � �humilde e saudoso lugarejo de prov�ncia� � como depois
mandava dizer, em carta aos amigos.
Figurava a Corte do Imp�rio uma terra legend�ria de aventuras e de
muito dinheiro, onde, com algum trabalho, qualquer homenzinho podia
fazer fortuna em poucos anos, ou, quando mais n�o fosse, galgar posi��es,
emin�ncias cobi�adas, conquistar nome � celebrizar-se. Devorava os
jornais do Rio, na biblioteca; lia tudo quanto na grande capital se publicava
em prosa e verso; n�o era estranho ao movimento liter�rio, aos saltosmortais
da pol�tica, �s artes; interessava-se, como republicano, pela sa�de
do monarca e pelos esc�ndalos mais ou menos ruidosos da Rua do
3 Cocheiro.
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Ouvidor; enfim, o Rio de Janeiro era, a seus olhos est�ticos de provinciano,
a quintess�ncia da civiliza��o � Paris em ponto pequeno.
Formado em Direito, casara aos vinte e oito anos com uma rapariga
�rf�, chamada Adelaide � essa de cora��o meigo como o das pombas � que
o amava desde o primeiro ano do curso e que o vira certo domingo numa
festa de igreja. Adelaide era pobre, mas isso o n�o demovia de suas boas
inten��es: queria exatamente uma mo�a pobre, que o idolatrasse. Ele
tamb�m nada possu�a, mesmo nada: estudara � custa de um parente do Rio
Grande, que lhe estabelecera parca mesada at� que recebesse o t�tulo de
bacharel. Antes, por�m, do �ltimo ano acad�mico, p�de arranjar (a gente
sempre se arranja...) um emprego, n�o muito rendoso, que conservou, a
despeito da in�til carta doutoral, renunciando, com extraordin�ria isen��o,
� esmola que lhe vinha todos os meses do Rio Grande. � �Era tempo de se
libertar!�
N�o consultou a ningu�m sobre o casamento; um belo dia soube-se
que o Holanda, filho do finado juiz de direito, estava casado com uma
mo�a pobre, mas �bonitinha�...
E estava. Casou sem ru�do, sem luxo, indo logo morar em Coqueiros
e acabando por achar aquilo muito fora da civiliza��o, incompat�vel com a
sua natureza irrequieta de homem que n�o veio ao mundo para morrer
obscuro �num lugarejo humilde de prov�ncia...�
Lu�s Furtado � que lhe metera na cabe�a o Rio de Janeiro. � �Por que
n�o te mudas para o Rio? � escrevia ele. � Uma coisa � a gente viver na
prov�ncia e outra coisa � respirar numa atmosfera civilizada. Sei de mim
que estou muito bem, muit�ssimo bem. Dou-me com o Jo�o Alfredo4 e com
os principais personagens da pol�tica fluminense. Minha mulher est� gorda
e n�o quer saber de outra vida; diz que o Rio de Janeiro � um para�so
(express�o dela) e que tudo o mais, que n�o for o Rio de Janeiro, no Brasil,
� caboclada, � selvageria. O Raul, meu filho mais velho, botei-o no col�gio,
no Internato Meneses Vieira, por insuport�vel. A Julinha � que est� um
encanto, uma del�cia! J� fala, j� diz mam�e, papai, bala, tot�... N�o
imaginas. � uma gra�a ouv�-la chamar � diabo, diabo, diabo! Enfim, meu
Evaristo, a nossa casa, em Botafogo, se n�o � um pal�cio, tamb�m n�o �
uma choupana... Vamos entrar na esta��o l�rica.�
E conclu�a instando para que o amigo fizesse um sacrif�cio,
abandonasse aquela vida de prov�ncia, trocando a monotonia de Coqueiros
pela Rua do Ouvidor, pela civiliza��o, por um chalezinho em Botafogo.
Evaristo ficava triste, mordia a ponta do bigode, passava a m�o na
cabe�a, refletindo, parafusando, oscilando entre o presente e o futuro, entre
a quieta��o provinciana e o tumulto de uma cidade grande cheia de
movimento e de sensa��es. ��T� que um dia, n�o obstante os ing�nuos
4 Jo�o Alfredo Correia de Oliveira (1835-1919), importante pol�tico do Segundo Reinado. Foi
consecutivamente presidente das prov�ncias do Par� e S�o Paulo, deputado, senador e ministro.
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receios de Adelaide, optou pelo Rio de Janeiro e escreveu a Lu�s Furtado,
autorizando-o a arranjar-lhe um emprego decente, � claro.
Meses depois Lu�s Furtado comunicava-lhe a sua nomea��o para o
Banco Industrial.
O Maranh�o chegou ao Rio num domingo luminoso e calmo.
Adelaide enjoara horrivelmente, sem sair do camarote, sem gozar dos
aspectos da viagem, numa indol�ncia est�pida, com a cabe�a a doer, os
olhos mortos de fadiga, debaixo dos len��is, muit�ssimo p�lida. Oh, aquele
maldito cheiro de azeite e de alcatr�o, que vinha da proa, dava-lhe
tonteiras, embrulhava-lhe o est�mago, causava-lhe arrepios de n�usea!
Sempre meiga, por�m, n�o se queixava, n�o se revoltava contra o marido,
que, em parte, era o culpado. Bem que estavam tranq�ilos na prov�ncia!
Evaristo foi de uma solicitude incompar�vel, de um carinho
extremoso. Ela nunca o vira t�o am�vel, se � que se podia ser mais am�vel
do que ele sempre fora. Todos a bordo notavam que �aquele mo�o de
palet� de alpaca amarela� trazia os criados numa roda-viva, ocupava-os a
todo instante, e era s� abrindo e fechando o camarote, subindo e descendo
escadas, numa az�fama. E entravam bandejas e sa�am bandejas com
iguarias especiais, com limonadas e frutas, e Evaristo ainda achava que era
pouco!
Os passageiros desconfiavam de tanta dedica��o e piscavam-se os
olhos e sublinhavam risinhos de instintiva mal�cia. N�o era poss�vel que
fossem casados! Qual casados! Donde sa�ra aquele exemplo de marido?
E falava-se baixinho no camarote n� 16 e no mo�o de palet� amarelo.
Um caixeiro-viajante, que s� andava de bin�culo a tiracolo e sombrero de
corti�a, afirmou que no camarote n� 16 ia uma senhora t�sica; uma ocasi�o
vira-a, de relance, no fundo do beliche, muito magrinha, coitada, quase a
morrer... Outro passageiro dizia que era a m�e do �palet� amarelo�, uma
velha doente de reumatismo.
Quando o Maranh�o largou ferro, Adelaide estava pronta para
desembarcar. A primeira pessoa que Evaristo viu da tolda5 na lancha do
Arsenal de Guerra, foi o seu inestim�vel amigo Lu�s Furtado.
� N�o � ele, � Adelaide? � perguntou, indicando um sujeito alto, de
cartola e sobrecasaca, muito aprumado na lancha.
Adelaide conhecia-lhe o retrato.
� � ele, sim, creio que � ele...
Nesse instante Lu�s Furtado acenava para bordo com o len�o;
reconhecera o amigo; e de ambos os lados trocaram-se sinais de boasvindas.
Horas depois rodava um carro para Botafogo, conduzindo Evaristo
de Holanda, a mulher e Lu�s Furtado.
5 Toldo. Cobertura feita de palha ou madeira destinada a abrigar carga ou passageiros.
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A resid�ncia deste era uma excelente casa de dois andares, vistosa,
olhando para o Corcovado, nas imedia��es do cemit�rio de S. Jo�o Batista.
Morava no primeiro andar; o segundo era ocupado por uma fam�lia
estrangeira de vida misteriosa.
Furtado quis mostrar que inda era amigo do seu amigo, hospedandoo
em casa, acudindo-lhe �s primeiras necessidades. Ele, que se gabava
tanto de altas empresas no Rio de Janeiro, que dizia-se �muit�ssimo bem
colocado�, na pra�a e na sociedade fluminense, que falava no L�rico, em
personagens eminentes da pol�tica contempor�nea, despiu a vaidade que
ostentara de longe para com Evaristo, e agora fazia-se pequeno, sem
import�ncia, �humilde secret�rio do Banco Industrial�.
� Mod�stia... mod�stia � opunha Evaristo, batendo-lhe
amigavelmente na coxa.
Adelaide sorria.
Enquanto o carro rodava para Botafogo, iam os tr�s conversando,
abrindo-se, dizendo novidades, perguntando pelos amigos. Os tr�s, n�o,
porque Adelaide n�o falava, n�o dizia nada � com um ar ing�nuo e t�mido.
Lu�s Furtado provocou-a:
� Vossa Excel�ncia que acha, minha senhora: Evaristo fez bem ou
mal vindo ao Rio?
Ela sorriu ainda, mas respondeu:
� Nem bem, nem mal... � voltando-se para o marido e catando um fio
de algod�o que brincava na roupa dele.
� Esta minha mulher � uma santa! � gracejou Evaristo.
� Acredito, pois n�o! acredito � confirmou o secret�rio. � Na minha
opini�o, todas as mulheres s�o umas santas...
� Oh, isso n�o! � exclamou o outro. � Mais devagar... Mulheres
conhe�o eu de g�nio infernal, capazes de vender... Judas!
� Qual! � duvidou Lu�s com uma ponta de ironia.
Certo � que ele achava qualquer coisa de puro no rosto sereno e
meigo de Adelaide, uns longes de pintura religiosa, uma translucidez
m�stica e evocadora, qualquer coisa, enfim, que n�o sabia determinar.
Olhava-a de banda, enquanto dava aten��o a Evaristo, como se quisesse
gravar bem, na mem�ria, aquele estranho tipo de brasileira.
O carro parou. Tinham chegado.
� � aqui � disse Lu�s.
E, r�pido, adiantou-se para oferecer a m�o a Adelaide.
A rua estava, como de costume, silenciosa, muito banhada de luz, na
calma do meio-dia.
� Papai! Papai!
Era o filho mais velho de Lu�s, o Raul, que anunciava, berrando, as
suas f�rias do domingo.
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� N�o � preciso gritar, meu filho, oh! � advertiu o secret�rio. E para
Evaristo: � C� est� o meu Raul. Hoje, como � domingo, veio passar o dia
em casa com a m�e
� Um homem! � exclamou Evaristo. � Que idade tem?
� Nove anos... N�o �, meu filho?
� �, sim, papai; ainda vou fazer nove.
� Um homem!
Foram subindo a escada do sobrado.
� Aqui moro eu desde 882.
� Boa casa, muito boa, tem quintal?
� Um quintal�o! H�s de ver.
Em cima, no primeiro andar, houve um rumor de passos
precipitados, corridinhos na ponta dos p�s, e de vozes falando baixo.
� D. Sinh� est� a�, papai, comunicou o Raul.
� Bem, bem...
Entraram para a sala de visitas.
� Nada de cerim�nias � pediu Lu�s Furtado. � Voc�s agora � como se
estivessem na pr�pria casa. Vai chamar tua m�e, Raul.
O pequeno saiu correndo.
Adelaide, contrafeita, risonha por delicadeza, mas, em verdade, bem
fora dos seus h�bitos, ia notando intimamente, sem express�o de surpresa
no olhar, a perspectiva do in�cio carioca. Enquanto esperava a mulher de
Furtado, abstra�a-se na contempla��o dos objetos que a cercavam agora,
cada um dos quais era uma novidade para ela. Imobilizava-se, retra�da,
quase esmagada pelo aspecto luxuoso e confort�vel da mob�lia, dos
quadros, das tape�arias que ornavam a sala do secret�rio. E aquilo dava-lhe
uma vol�pia de bem-estar, uns arrepios de gozo calmo e de independ�ncia
honesta que estava um pouco na massa do seu sangue.
... Foi interrompida nas suas reflex�es por D. Branca, esposa de
Furtado, que vinha entrando acompanhada de outra senhora mais mo�a e
do Raul.
� Oh!... � fez aquela, numa voz que n�o era bem de surpresa.
� Ainda te lembras da Branca, � Evaristo?
� Como n�o? � disse o bacharel, erguendo-se para cumprimentar as
duas senhoras. � Lembro-me bem. Est� um pouquinho mudada, est�...
D. Branca dirigiu-se a Adelaide, e beijaram-se.
� Sua senhora inda � muito mo�a! � observou a esposa de Furtado
para Evaristo. E apresentando a companheira: � Esta � uma amiga nossa �
D. Sinh�, filha do desembargador Lousada...
Raul, de m�os pra tr�s no meio da sala, n�o perdia palavra, remoendo
ocultas inten��es brejeiras.
Todos se sentaram, menos ele, e a conversa prolongou-se atrav�s dos
costumes, da moda e da pol�tica.
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As duas senhoras estavam em toilette de ver�o, cada uma com o seu
leque fantasia. � D. Branca um pouco gorda, mas ainda frescalhona,
parecendo mais mo�a do que realmente era; a filha do desembargador
muito derretida, encobrindo, sob densa camada de p� de arroz, a pele
salpicada de sinaizinhos indel�veis, uma rosa Petr�polis no seio; costumava
passar os domingos em casa do �Sr. Furtado�, um dos bons amigos do
velho Lousada.
Evaristo achou-a pedante e feia; Adelaide tamb�m, na sua mudez
obstinada.
A prop�sito do Raul, que mereceu a aten��o dos circunstantes, veio a
Julinha nos bra�os da ama. O pai adorava-a, e tomou-a logo, num alvoro�o,
numa grande festa de beijos que ela � o diabrete! � repugnava,
esperneando.
� Como achas minha filha? � perguntou o secret�rio erguendo a
menina alto, nas m�os.
Evaristo, lisonjeiro, fazendo gra�a para a crian�a, achou-a muito
parecida com D. Branca, muit�ssimo parecida! Os olhos, ent�o, eram os de
D. Branca!
Adelaide, ao contr�rio, achou que ela �tinha ares do Sr. Furtado�. O
secret�rio exultou, porque, na verdade, Julinha era uma crian�a linda, muito
rosada, muito loura, de olhos vivos e angelicais.
� Quem � aquele homem, minha filha?
A pequena encarou Evaristo, sem responder.
� Quem �? � tornou Furtado. � Olhe bem para ele... quem �?
Julinha amuou, desconfiada, e abriu a chorar.
� Ta, ta, ta... n�o foi nada, n�o foi nada! � o Evaristo, minha filha � o
Evaristo!
� Menina! � ralhou D. Branca.
Mas a pequerrucha debatia-se com os p�s e com as m�os, numa
c�lera rubra, num desespero: � Diabo! diabo! diabo!
Todos riram, todos gostaram da assombrosa precocidade!
� Saiu � m�e � explicou Furtado, agora com um ar bonach�o de pai
que tudo perdoa aos filhos.
D. Branca n�o protestou, e a menina foi conduzida para dentro.
Falou-se depois nas acomoda��es da casa. Evaristo e a mulher iam ocupar
um quarto nos fundos, defronte da sala de jantar, vizinho � �rea: um bom
quarto espa�oso, forrado e com bico de g�s.
� Tanto inc�modo! � murmurou Evaristo.
� Qual inc�modo!
D. Branca entrou em familiaridades com Adelaide, franqueou-lhe a
toilette, mostrou-lhe o �lbum de retratos, o vestido de seda com que fora ao
�ltimo baile no Cassino, uma j�ia que a princesa lhe dera no dia de seus
anos...
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� A princesa?...
Sim, eram muito amigas, o pr�prio imperador podia-se dizer que era
amigo do Furtado; at� lhe prometera uma comiss�o � Europa. Sim, a
princesa, por que n�o? A princesa dava-se com muitas fam�lias no Rio de
Janeiro, n�o tinha orgulho, apertava a m�o a todos... Boa senhora! A
mulher do desembargador Lousada era dama do Pa�o, tinha intimidade
com a imperatriz; por interm�dio dela � que D. Branca se relacionara com a
princesa.
D. Sinh� confirmou: � �A mam�e era dama do Pa�o...� Entraram
ganhadores6 com a bagagem, que foi recolhida ao novo aposento de
Evaristo. Raul tomou conta da gaiola dos p�ssaros, onde refulgiam asas de
corrupi�o7 e de xex�u8. Evaristo disse logo que o corrupi�o era do Furtado:
podia garantir a esp�cie; o xex�u, ele trazia para o diretor do Banco.
E nesse andar escoou o domingo, com grande tristeza para o Raul,
que no dia seguinte voltava ao col�gio, pensando no corrupi�o.
Os h�spedes recolheram fatigados da viagem, morrinhentos de calor
e de cansa�o.
Adelaide, principalmente, queixava-se de uma dor na cabe�a e de
�confus�o nas id�ias�.
Evaristo, para a consolar, disse que tamb�m estava com a cabe�a a
arder. Trataram de se agasalhar na cama fresca e cheirosa a sab�o. Da
janela do quarto via-se luz no segundo andar, e n�o poucas vezes ecoava
embaixo, no fundo escuro da �rea, o som de uma cusparada.
� Ent�o, Adelaide, que achas do povinho?
� Que povinho?
� Da Branca e do Furtado... Assim... N�o se pode adiantar ju�zo.
� E a tal D. Sinh�? Oh, mulher feia!
� Credo! � murmurou Adelaide. � Feia e pedante.
� � verdade: feia e pedante.
� Fala baixo...
� Viste, ao jantar, quando ela abria a boca?
� A m�e � dama do Pa�o.
� Que est�s dizendo!
� �. D�o-se com a fam�lia imperial.
Adelaide respondia com os olhos fechados, morta de sono, �s
perguntas do marido. Ele � que n�o tinha sono, encantado com a sua nova
posi��o, ruminando programas de vida, conjeturando sobre o futuro, sobre
o dia de amanh�.
6 No texto: carregadores.
7 Ave canora de porte m�dio, negra e alaranjada. O mesmo que concliz.
8 Ave canora de porte m�dio, negra e amarela. O mesmo que bagu�.
12
E corria os olhos nos m�veis do quarto, no lavat�rio de ferro, no saco
de roupa, no cabide, nos menores objetos, como quem duvida de uma
situa��o nova.
� Era, ent�o, verdade que estava no �grande� Rio de Janeiro!
O que � a gente se decidir! o que � ter-se coragem!
Meio acordado, meio dormindo, viu a casinha de Coqueiros, na
prov�ncia, entre �rvores, a Balbina, ca�da aos p�s de Adelaide, � hora do
embarque..., o Maranh�o, onde ia um rapazinho, estudante, que tocava
flauta, e o Furtado acenando para bordo...
Cap�tulo II
D. Branca era mulher que, ao simpatizar com uma pessoa, n�o
admitia restri��es, e Adelaide, fosse pelos seus bonitos olhos, fosse pelos
modos � que ningu�m os tinha mais acentuadamente provincianos � caiulhe
nas gra�as, merecendo um lugarzinho no cora��o dela.
A esposa de Evaristo ficou sendo, em pouco, uma das melhores
amigas da esposa de Furtado, com extraordin�ria satisfa��o para este, que
n�o ocultava a simpatia que lhe inspirava Adelaide.
Naquela casa de Botafogo viviam todos como se constitu�ssem uma
s� fam�lia, como se Evaristo fosse irm�o de Furtado e D. Branca irm� de
Adelaide, intimamente unidos, querendo um o que o outro desejava, n�o se
contrariando em coisa alguma. De manh� iam os dois homens para o
Banco, � mesma hora, depois do almo�o, e ficavam as duas na bela e
encantadora harmonia de irm�s que se prezam, lendo, costurando, trocando
confid�ncias na sala de jantar, enquanto n�o chegavam os maridos � o Raul
no col�gio e a pequena com a ama.
Evaristo, por seu lado, ia conhecendo o Rio de Janeiro, inclusive a
famosa Rua do Ouvidor, que ele pitorescamente alcunhava de �beco da
perdi��o�. N�o gostava da Rua do Ouvidor; aquele zunzum de abelhas que
desciam e subiam num movimento cont�nuo, aquela vozeria est�ril dos
caf�s e das portas de loja, punham-no de mau humor, enchiam-lhe os
ouvidos, irritavam-no, desequilibravam-lhe o sistema nervoso, ao mesmo
tempo que faziam-lhe confus�o no c�rebro habituado � vida calma e
refletida de homem honesto. � �Evidentemente nascera provinciano e havia
de morrer provinciano� � dizia.
� Mas � um engano � opunha Furtado � � mesmo uma grande tolice!
O homem, para ser homem �s direitas, carece de lutar, de sofrer as
pequeninas mis�rias sociais... A natureza humana quer movimento, quer
emo��es... quer vida, enfim. Todos n�s somos uns aventureiros que
andamos � cata de fil�es de ouro...
Evaristo argumentava, por�m, que n�o dizia o contr�rio, que tudo
aquilo era uma grande verdade, mas que ningu�m podia ir de encontro �
13
natureza. Era o primeiro a reconhecer os benef�cios e as incalcul�veis
belezas da civiliza��o; mas tamb�m n�o havia negar que a t�tulo de
civiliza��o, emitia-se muita moeda falsa, muito princ�pio errado � muita
bandalheira!
E ficavam-se a olhar um para o outro.
O secret�rio do Banco Industrial conhecia o Rio de Janeiro de um
extremo ao outro e gozava mesmo de muito boas rela��es na sociedade
fluminense, n�o tanto quanto mandara dizer em carta a Evaristo, mas
gozava. Al�m do desembargador Lousada, seu vizinho tinha outros amigos
de alta posi��o na Corte, e era verdade que a princesa surpreendera D.
Branca com uma j�ia no seu trig�simo anivers�rio. A herdeira do trono
ficara estimando a esposa do secret�rio desde uma c�lebre noite no Cassino
Fluminense. Essas rela��es, por�m, n�o excediam �s praxes aristocr�ticas,
guardando-se, de lado a lado, o m�ximo respeito, como convinha �
fidalguia imperial da ilustre senhora.
Tamb�m era verdade que Lu�s Furtado uma vez � primeira e �ltima �
conferenciara com o imperador no Pa�o e este lhe prometera rendosa
comiss�o � Europa; mas decorriam semanas e n�o se realizava a imperial
promessa.
Entre pol�ticos, banqueiros e titulares, havia sempre um que era
amigo de Lu�s: o deputado Ismael Pessegueiro, de Alagoas, mo�o muito
bem preparado, conservador at� � raiz do cabelo, baixote na estatura e no
falar; o visconde de Santa Quit�ria, diretor do Banco Luso-Brasileiro, cuja
fortuna se avaliava em muitos contos de r�is fora � casa de resid�ncia �
vistoso palacete que s� se abria nas grandes festas; o comendador Pinto,
outra fortuna consider�vel, portugu�s, que se fizera a custo de muito
trabalho e que encanecera no Brasil..., e outros personagens de elevada
hierarquia.
Quanto a jornalistas e poetas, conhecia-os quase todos; um por um,
desde o redator-chefe do Com�rcio do Rio (�O Times brasileiro�, na
opini�o de Furtado), at� o Valdevino Manh�es, diretor da Revista Liter�ria
e autor de muitos livros, de muit�ssimas obras, entre as quais o poema
her�i-c�mico Juca Pir�o, par�dia ao I-Juca-Pirama, de Gon�alves Dias.9
Evaristo j� os conhecia tamb�m � de longe uns, outros mais
familiarmente. O Valdevino Manh�es, ou o Dr. Condicional, estava no
n�mero destes; fora-lhe apresentado uma noite, no jardim do Teatro
Santana. Baixo, pequenino, metidinho a cr�tico, um bigodinho quase
impercept�vel, sempre de lunetas � era conhecido por Dr. Condicional,
porque nunca dizia as coisas em tom afirmativo: tinha sempre um mas...,
um talvez..., um se..., quando criticava obras alheias. Ningu�m para ele era
9 Personagem parodiando dois escritores reais: o cr�tico Valentim Magalh�es (1859-1903), diretor da
revista A Semana, e o poeta Jo�o Lopes (1859-1902), autor de A vida de seu Juca, par�dia de A morte de
D. Jo�o do poeta portugu�s Guerra Junqueiro.
14
escritor feito, nem mesmo os consagrados: todos haviam de ser grandes
poetas, grandes romancistas, grandes homens..., se continuassem a estudar.
Outra mania de Valdevino Manh�es era falar na sua viagem � Europa. �
Oh, em Lisboa merecera os maiores elogios, as mais belas refer�ncias de
quanto jornalista sabe ter�ar a pena (ter�ar a pena era uma de suas frases
prediletas). O poeta Jo�o de Deus...
E ningu�m o interrompia, ningu�m dizia palavra enquanto ele
comentava Jo�o de Deus e o Chiado.
O novo escritur�rio do Banco Industrial n�o confiava muito no
Valdevino. � �Se todos os literatos do Rio de Janeiro fossem como o autor
do Juca Pir�o, a literatura brasileira tinha de pedir licen�a � C�mara para
andar de quatro p�s� � dizia ele a Furtado.
E Furtado, surpreendido:
� Pois olha: � o cr�tico da moda hoje, no Rio de Janeiro.
� Prefiro o visconde de Santa Quit�ria ou mesmo o comendador
Pinto, que ao menos t�m ju�zo para ganhar dinheiro...
Foram andando.
Uma tarde conversavam os dois sobre a vida na Corte, sentados �
janela, quando o h�spede do secret�rio lembrou-lhe que era tempo de
procurar casa e de instalar-se definitivamente com Adelaide: � uma casinha
barata, um c�modo, qualquer aposento, inda que fosse nos �subterr�neos da
Cidade Nova�.
� Qual instalar-te! Daqui n�o sair�s enquanto formos amigos �
respondeu Furtado. � Minha mulher gostou muito de D. Adelaide � vivem
muito bem, d�o-se perfeitamente... Podemos chegar a um acordo nas
despesas...
� N�o, isso n�o! Voc�s t�m sido muito incomodados... isso n�o!
� Hist�ria, homem! Incomodados t�m sido voc�s naquele quartinho...
Mas a Branca falou-me que os do segundo andar est�o procurando casa...
Uma bela aquisi��o para voc�s o segundo andar.
Evaristo levou o dedo � boca, refletindo, e apertando os l�bios:
� �... assim bem...
� Pois ent�o? Esperem um pouco mais... n�o h� vexame...
D. Branca aproximou-se, com o bra�o na cintura de Adelaide.
� � Branca � disse Furtado , � n�o � exato que os estrangeiros de
cima v�o se mudar?
� � sim. Andam em procura de casa. Por qu�?
� O Evaristo, que lembrou-se agora de bater a linda plumagem, inda
que fosse, diz ele � para os subterr�neos da Cidade Nova!
� Qual, Sr. Evaristo, qual! Adelaide est� muito bem. A Cidade Nova
� um lugar infecto, um horror! Esperem pelo segundo andar.
� E o aluguel? � perguntou, interessado, o rapaz.
� Oitenta mil-r�is, filho! oitenta mil-r�is... n�o � dinheiro.
15
� N�o � dinheiro, para os capitalistas...
� Oitenta mil-r�is, nunca foi dinheiro.
� Eu, por mim, n�o me mudava... � ousou discretamente Adelaide.
Evaristo arregalou os olhos:
� Oh! ent�o j� vais gostando do Rio!
� N�o desgosto...
� O Sr. Evaristo quer conversar � disse, rindo, a esposa de Furtado. �
Vamos a tocar um pouquinho de piano...
A tarde estava calma. Crian�as brincavam na rua, enchendo-a de
alvoro�o, em toilettes de ver�o. O desembargador Lousada passeava no
jardim, com o seu indefect�vel gorro de seda bordado a retr�s, enquanto a
mulher e a filha, sentadas � porta, abanavam-se de leque. Dezembro morria
numa explos�o de sol. A fam�lia imperial estava toda em Petr�polis,
gozando as del�cias de um clima pregoadamente aristocr�tico, os que n�o
podiam sustentar o luxo de Petr�polis, a vida fidalga de Petr�polis, os
hot�is de Petr�polis, corriam para o ar livre da rua, em trajos brancos, ou
para a janela das casas, num alvoro�o de formigueiro incendiado.
� parte o clima, na esta��o outonal, a vida em Botafogo tinha
qualquer coisa da vida em Petr�polis, era como um prolongamento do
high-life10, cuja sede firmara-se na antiga col�nia alem�. Falar na Cidade
Nova a um morador de Botafogo, era o mesmo que cair no rid�culo e no
desprezo de uma sociedade que n�o admitia plebe�smos sentimentais, nem
alus�es de mau gosto... Cidade Nova, isto � Saco do Alferes, Gamboa,
preto-mina11, len�o no pesco�o, viol�o, maxixe... e outras belezas de igual
jaez. Tudo isso era contra as boas normas de um povo civilizado e muito
principalmente contra os brios de um homem que vive na mesma atmosfera
de Sua Majestade o Imperador! Botafogo odiava a Cidade Nova como
quem repugna um meio asqueroso.
Os aristocratas que n�o tinham podido acompanhar o monarca a
Petr�polis bufavam de calor, e, � porta dos jardins ou � janela, iam
refrescar o sangue, os pulm�es, como o desembargador Lousada. Ao
anoitecer, recolhiam � frescura do linho, pensando na volta das andorinhas
imperiais.
D. Branca executou ao piano uma valsa de Strauss, para Adelaide
ouvir. Tocava bem, na opini�o de v�rios professores ilustres; j� se exibira
em concertos de primeira ordem.
Quando as tardes eram demasiado quentes, iam os dois casais arejar
� praia, onde passeavam fam�lias numa liberdade encantadora, trajando
garridamente suas roupas de ver�o, sem luxo, sem cerim�nia, parando �
sombra das �rvores, em grupos, vendo deslizar em pequeninas embarca��es
10 Alta sociedade.
11 Chamavam-se assim os negros escravos embarcados no castelo de Elmina, na Costa do Ouro, atual
Rep�blica de Gana.
16
de recreio na �gua cintilante. Que bom! Adelaide examinava tudo com essa
curiosidade infantil dos rec�m-chegados, comparava as toilettes, as
fisionomias, lendo hist�rias mundanas no sorriso dos rapazes e na
franqueza das raparigas, que se entrecruzavam piscando os olhos � vista
dos homens s�rios. Como tudo aquilo tinha um encanto particular! Como
tudo era novo para ela! Sentia na alma um remo�ar impetuoso, uma
vontade de possuir j�ias com que se enfeitar, com que real�ar a sua beleza,
e toilettes de luxo, � �ltima moda, e ess�ncias caras, embriagantes, e tudo o
mais que seus olhos viam, desde que ela pusera os p�s no Rio de Janeiro.
D. Branca enchera-lhe os ouvidos de tanta coisa, meu Deus! de tanta
hist�ria! � Que no Rio de Janeiro as mulheres timbravam em se apresentar
cada qual mais bem vestida; que Botafogo era o bairro da aristocracia e do
bom gosto; que o luxo nada tinha com a honestidade de uma senhora, desde
que ela se portasse bem..., ao menos aparentemente; que, enquanto se era
mo�a, devia-se gozar, levar a vida rindo, passeando, nos bailes, nos
concertos, nos teatros; que os homens eram muito ego�stas; enfim, Senhora
D. Branca despertara nela um sentimento novo, que lhe abafava toda a
nostalgia da prov�ncia e deixava-a oscilando, remoendo, entre a vida
simples e calma de burguesinha honesta e a vida tumultuosa de mulher
elegante e adorada nos c�rculos aristocr�ticos de uma cidade como o Rio de
Janeiro.
Enquanto Evaristo aborrecia-se � ele, que falava tanto da prov�ncia:
�porque a prov�ncia era o statu quo, a imobilidade, o abandono� � ela
deliciava-se agora, em plena Corte, em pleno Botafogo, cheia de vida e de
ambi��es, a exemplo de D. Branca e de outras senhoras, que, sem
desprezar os maridos, gozavam quanto podiam, vestindo-se bem, trajando
com eleg�ncia, ostentando beleza e mocidade aonde quer que se
apresentassem. Nos primeiros dias estranhara o Rio, achara tudo falso, tudo
superficial, tudo para enganar os olhos. Agora, n�o: tudo impunha-se ao
seu esp�rito como um dever, como uma necessidade l�gica e humana.
E sempre que ia � praia, sempre que ia a um teatro, a um passeio,
voltava triste, desalentada, com uma dor no cora��o... N�o poder �como as
outras� ostentar o frescor dos seus vinte anos, aparecendo nas rodas
elegantes, de bra�o com o Evaristo � ele todo nobreza, todo modernismo,
aristocraticamente enluvado; ela chique, numa pompa de rainha, um sorriso
� flor dos l�bios � os dois em carruagem aberta ou num camarote do L�rico!
Oh, n�o poder gozar, como as outras mulheres que ela via, deslumbrada e
abatida, da sua pobreza honesta, da sua triste posi��o de mulherzinha d�cil,
de esposa exemplar!
Aquilo ia calando em seu esp�rito, onde um princ�pio de orgulho
feminino brotava ocultamente.
Evaristo ganhava pouco ainda, o essencial para se ir mantendo com
alguma independ�ncia, sem dever a ningu�m. Era inimigo de contrair
17
d�vidas; um alfinete, que comprasse, havia de ser pago logo, na ocasi�o
mesma do neg�cio; por forma que o dinheiro do Banco, o ordenado, ia-se
num abrir e fechar de olhos, para a m�o do homem da venda e para o bolso
do alfaiate. Ele pr�prio conservava a roupa que trouxera da prov�ncia; n�o
tinha luxo, nem j�ias de valor. Afinal n�o passava � como dizia � de um
pobret�o m�sero, empregado subalterno. D. Branca podia luxar, aparecer �
n�o era admira��o; o Lu�s ganhava tanto como oitocentos mil-r�is, fora a
renda das ap�lices que possu�a no Tesouro e de umas a��ezinhas do Banco
Industrial. Onde, pois, a admira��o? Nenhuma. Feria-lhe tamb�m o amorpr�prio
de marido extremoso ver Adelaide, a sua Adelaide, com os mesmos
vestidos, com o mesmo chap�u, sem um brilhante, uma j�ia de ouro,
envergonhada no meio das outras. � Mas... que se havia de fazer? Por isso �
que desejava ter uma casinha na Cidade Nova, �um albergue�, de cinq�enta
mil-r�is, longe desse rumor de etiquetas e ostenta��es. Um dia pra diante,
quando pudesse � muito bem! alugava um chal� em Botafogo e Adelaide
n�o tinha de que baixar a cabe�a �s exig�ncias do high-life. Por enquanto a
palavra de ordem era � economia, muita economia!
De resto, o procedimento de Adelaide para com o esposo n�o
mudara. Evaristo continuava sendo o mesmo Evaristo, bom e leal, por
vezes de uma ternura l�nguida, quase pueril, achando muita raz�o em tudo
quanto ela dizia, tratando-se como noivos.
D. Branca estranhava que eles ainda n�o tivessem filho, ao menos
um morgado12 para dar que fazer � mam�e...
E aconselhava banhos de mar no Flamengo: � por que n�o
experimentavam os banhos de mar no Flamengo? Um filhinho era
indispens�vel a um casal...
Evaristo ria e jurava, rindo, que no m�s seguinte iam come�ar os
banhos ali mesmo na praia de Botafogo.
A prop�sito de filhos, a mulher do secret�rio anunciou o batizado da
Julinha no primeiro domingo de janeiro. Ia fazer uma festa sem �
cerim�nia, entre pessoas de intimidade.
Evaristo recebeu a not�cia com um � oh!... de surpresa. � Muito bem!
muito bem! Era preciso batizar a menina... Ele, se tivesse filhos, batizavaos
ao nascer.
E com ironia:
� Temos, ent�o, a princesa?
� Como, Sr. Evaristo?
� Digo: a princesa h� de comparecer � festa.
� Qual o qu�! Pensa o senhor que a princesa anda se exibindo assim?
� Pensei.
� Vai ser a madrinha de minha filha, por procura��o; isso bem...
E Evaristo, sempre ir�nico:
12 Filho �nico.
18
� O imperador � o padrinho...
� N�o senhor, n�o senhor... O padrinho � o Lousada, o velho
Lousada. O imperador j� � padrinho do Raul.
� Onde estamos n�s metidos, Adelaide! exclamou o bacharel,
arregalando os olhos. Tudo aqui � principesco, minha senhora!
D. Branca compreendeu o debique, mas atalhou risonha:
� Tudo aqui n�o � principesco, n�o senhor! N�o queira fazer pouco...
� Eu, fazer pouco? Oh, n�o se lembre de tal coisa! Principesco � uma
maneira de dizer.
� Ah! o senhor � republicano?
� Republicano n�o: democrata.
� Pois est� muito bem arranjado com a sua democracia!
Furtado, que estava lendo o Com�rcio do Rio, saltou:
� Quem � democrata � o Evaristo?
� Eu, sim...
� Democrata enquanto n�o conheceres bem o Rio de Janeiro...
� Por qu�?
� Ora, por qu�! Porque o Rio de Janeiro em globo � monarquista e
quem diz monarquista diz aristocrata.
� N�o � raz�o. Se o Rio de Janeiro em globo (quero dizer o
munic�pio neutro...) � monarquista, eu posso muito bem sair um
republicano �s direitas.
Furtado abriu numa gargalhada estridente.
� Aonde vens pregar essas teorias, meu caro? Na Corte do Imp�rio, e
o que � mais, em Botafogo! Ilus�es da academia, rapaz, ilus�es de
estudante de ret�rica!
� N�o senhor, que o partido republicano est� ganhando terreno aqui
mesmo, na Corte, �s barbas d'El-Rei! Fala-se na ida do velho � Europa; o
velho est� doido, j� n�o pode governar, e o resultado � que...
� � que est�s a dizer tolices... A monarquia est� guardada por
sentinelas da for�a do bar�o de Cotegipe13, do visconde de Ouro Preto14, do
Jo�o Alfredo e de outros... Cada um desses homens � um obst�culo contra
qualquer tentativa de assalto �s institui��es.
Chegou a vez do bacharel rir, mas rir com gosto, dando pulinhos na
cadeira.
� O Cotegipe! (e ria). O Ouro Preto! (tornava a rir). O Jo�o Alfredo!
No momento psicol�gico voam todos, como aves de arriba��o, para
Petr�polis! Desaparecem como por encanto, somem-se na noite do medo...
� � o que pensas. A opini�o � deles, o povo n�o permitir� que eles
sejam desacatados.
13 Jo�o Maur�cio Wanderley (1815-89), pol�tico baiano, mais de uma vez ministro no Segundo Reinado.
14 Afonso Celso de Assis Figueiredo (1837-1912), importante pol�tico mineiro do Segundo Reinado.
19
� O povo! � exclamou Evaristo com voz de trov�o. � A que chamas
tu povo?
� � popula��o do Rio de Janeiro, � popula��o do Brasil � a treze
milh�es de almas que adoram o imperador!
� O povo brasileiro n�o se envolve nisso, meu Furtado; se f�ssemos
esperar pelo povo, est�vamos bem arranjados.
� E ent�o?
� E ent�o, � que a for�a armada...
� Basta de pol�tica, basta de pol�tica, Sr. Evaristo. � Lu�s, por favor,
continua a ler teu jornal � interveio D. Branca. � � favor!
Adelaide correu a tapar a boca do marido com a m�o espalmada: �
�N�o senhor, nada de pol�tica!�
E continuou-se a falar no batizado da pequena, sem alus�es �
princesa, nem ao monarca. A esposa do secret�rio disse que tinha mandado
fazer um vestido para estrear nesse dia � uma toilette simples, de um tecido
novo, muito usado em Paris, que A Notre Dame recebera...
Adelaide mordiscou a pelezinha do bei�o com tristeza. � Um vestido
novo, chegado de Paris!... E ela como se havia de apresentar no dia da
festa? Oh, com o seu vestido de provinciana, de mangas compridas e
babados! Que vergonha, Santo Deus! O melhor vestido que possu�a era o
de gorgor�o, com que embarcara..., mas estava fora da moda e da etiqueta.
Antes nunca tivesse vindo ao Rio de Janeiro...
Quase n�o dormiu, essa noite, pensando no batizado. � hora de
recolher, Evaristo achou-a triste, com um arzinho de choro, descobrindo
mesmo uma l�grima vagarosa na face dela. Mas n�o disse nada. Adelaide
continuou a se despir � meia-luz do g�s, e rolou na cama silenciosamente,
de rosto para a parede.
� � Adelaide!... � chamou Evaristo, j� desconfiado.
A mulher n�o respondeu.
Adelaide! tornou ele, aproximando-se.
� Que �?... choramingou a rapariga, encolhendo-se.
� Olha...
Ela n�o se moveu.
� Olha!
Mesma posi��o, mesmo sil�ncio.
� Olha c� uma coisa.
� Que �?
� Est�s chorando?
� N�o...
Mas pelo tom da voz, conheceu bem que alguma coisa havia no
cora��o de Adelaide.
� Como n�o, se te ouvi solu�ar?
� Eu?!...
20
� Exatamente. Queres ocultar-me algum desgosto?
E devagarinho, como para n�o acordar uma crian�a, o bacharel foi-se
inclinando no leito.
� Vamos: � a primeira vez que choras em minha companhia, depois
que estamos casados.
� Nada... lembrei-me da Balbina.
� Da Balbina? Homessa!
Falavam muito em segredo, cochichando, ela de costas para ele. A
casa estava toda no escuro. Furtado e a mulher n�o davam sinal de vida.
� Que tens tu com a Balbina? � tornou Evaristo. � N�o � m� a
lembran�a! Como se a Balbina fosse tua m�e!
� Mas lembrei-me.
� Se me n�o dissesses, eu n�o acreditaria, palavra de honra!
E admirado:
� Chorar com saudades da Balbina! � curioso, � singular!
Os inquilinos do segundo andar apagaram a luz e um rel�gio bateu
meia-noite.
Involuntariamente, por causa de Adelaide, Evaristo adormeceu
pensando na Balbina, a negra velha de Coqueiros, sem atinar com a
significa��o da l�grima que vira na face da esposa.
Certo � que a amiga de D. Branca recolhera com o pensamento no
batizado da Julinha. Quis desabafar, dizer tudo a Evaristo, suplicar-lhe que
trouxesse um vestido novo para a festa de D. Branca, rogar-lhe, pelo amor
de Deus, que fizesse um pequeno sacrif�cio... Mas n�o teve �nimo: podia
parecer uma exig�ncia, uma falta de aten��o, e ela nunca abrira a boca para
pedir a Evaristo um grampo, quanto mais um corte de fazenda! N�o era por
vaidade, nem por orgulho, nem por capricho � � que tinha obriga��o de se
apresentar � aristocracia em trajos de mulher educada e n�o com um pobre
vestido fora da moda, sem eleg�ncia, mal cosido, mal ajustado ao corpo �
horr�vel!
No outro dia Evaristo, inda na cama, interpelou-a sobre o acidente da
v�spera, gracejando, rindo, na melhor boa-f�, longe de adivinhar o que se
passava no esp�rito de Adelaide. � Chorar pela Balbina � ela! Que
extraordin�rio cora��o, que alma c�ndida!
� Chora-se at� pelos animais, por um gatinho, por um cachorro, por
um p�ssaro que a gente criou!...
E Adelaide, ocultando ingenuamente o desgosto que a pungia,
lembrou ao marido o fato de ter ele chorado a morte de uma patativa, antes
de vir para o Rio de Janeiro.
O bacharel n�o disse que n�o, mas afirmou que o caso era diverso e
que entre a patativa e a Balbina preferia a patativa.
E a l�grima da jovem senhora caiu no esquecimento como todas as
coisas deste mundo.
21
Ela, por�m, via se aproximar o domingo do batizado, cheio de
tristeza, maldizendo a nova situa��o em que a colocara o destino.
Positivamente Evaristo n�o enxergava al�m das grosseiras necessidades da
vida dom�stica e n�o via que uma dona de casa no Rio de Janeiro tinha a
obriga��o de ser, ao mesmo tempo, uma dama elegante, uma senhora
distinta, com todos os requisitos para figurar num sarau pomposo ou em
qualquer parte aonde houvesse aristocracia e luxo... Como � que ela,
vivendo na casa de um homem fino, de um capitalista, vivendo entre
pessoas de �tratamento� em Botafogo, ia-se apresentar aos olhos de D.
Branca, aos olhos de D. Sinh� e da mulher do desembargador, aos olhos de
uma gente fidalga, na sua humilde toilette de provinciana pobre? Todo o
mundo havia de reparar e dizer mal. No entanto, com qualquer dinheirinho
comprava-se um vestido s�rio, novo, que ao menos aparentasse... A pr�pria
D. Branca lhe dera a perceber que se obtinha, no Rio, muita coisa de alto
valor por �pre�os barat�ssimos...�
Oh, aquela festa, domingo, tirava-lhe o sono! Que belo, se ca�sse
uma grande chuva, um aguaceiro medonho, de alagar a cidade inteira, de
deixar tudo quanto fosse rua na lama! Quem dera! Ficava transferido o
batizado ou ningu�m ia � casa de D. Branca, e ela, ent�o, ela, Adelaide, n�o
tinha de se envergonhar, de baixar a cabe�a a estranhos.
Mas � nem de prop�sito! � fazia um tempo claro, azul, luminoso,
ador�vel, como os belos dias de primavera, sem o menor sintoma de
varia��o barom�trica, sem nuvens na limpidez cristalina das montanhas.
E a jovem esposa de Evaristo perdia-se em cogita��es de toda a
ordem, moralmente abatida no seu orgulho, na sua vaidade latente de
mulher nova que se v� roubada nos seus direitos � partilha dos gozos.
Lembrava-se, por uma natural associa��o de id�ias, de que D. Branca lhe
dissera certa vez: �O homem � ego�sta e finge n�o compreender as
necessidades da mulher, quando se trata de um vestido novo ou de uma
despesa extraordin�ria. A mulher � obrigada a pedir, a reclamar, a dizer o
que precisa, o que lhe falta.� Ela pedir a Evaristo? Pedir o qu�? Uma
toilette para o batizado da pequena? E a roupa que trouxera do Norte, um
enxoval quase completo, inda que fora da moda? Que havia de dizer? Que
raz�es apresentar a ele, que sempre a conhecera pobre e refrat�ria � etiqueta
e ao luxo? N�o, n�o tinha coragem, nem queria, com uma exig�ncia
descabida, molestar o grande cora��o de Evaristo.
Esperou, resignada, abafando impulsos d'alma.
Em casa de Lu�s Furtado, naqueles dias mais pr�ximos � festa, era
este o assunto obrigado de todas as conversas. D. Branca, principalmente,
cuja loquacidade contrastava com a modera��o dos inquilinos do segundo
andar � n�o fazia outra coisa sen�o remexer nas gavetas, polir os m�veis,
expor os cristais, num a�odamento, numa impaci�ncia que lhe dava ares de
inseto doido. Queria tudo nos seus lugares, para quando chegasse o
22
domingo. Mandou afinar o piano, lavar a casa de um extremo ao outro,
inclusive o quarto dos h�spedes e o escrit�rio de Furtado, no r�s-do-ch�o,
substituir as cortinas da sala de visitas; enfim, toda a casa ficou pronta com
quatro dias de anteced�ncia para receber o desembargador Lousada e
alguns convidados �sem-cerim�nia�. Era pouca gente: o Visconde de Santa
Quit�ria, o Dr. Condicional, dois amigos quase �ntimos do secret�rio, o
Loiola, tesoureiro do Banco, a vi�va Tourinho, muito boa senhora, tamb�m
rica e prendada, o Xavier, do Jornal de Not�cias, e um ou outro rapaz, de
intimidade.
Evaristo caiu das nuvens.
� Minha mulher � disse ele � esposa � temos grosso forrobod�!15
Esta gente chama festa sem-cerim�nia a uma reuni�o de altos personagens
que se divertem aristocraticamente. Com que vestido te v�s apresentar?
� Eu?... O melhorzinho � o de casimira cinzenta, n�o falando no de
gorgor�o...
� De casimira?.
Evaristo levou a m�o ao queixo e fitou os olhos na mulher em atitude
contemplativa.
� Que dizes?
� N�o sei... � respondeu Adelaide com indiferen�a.
O bacharel agarrou-se aos bigodes, repuxando-os com a l�ngua,
mordendo-os, como se empacasse na resolu��o dalgum problema de
direito.
� Aonde nos vimos meter! � dizia, passeando no quarto. � Aonde nos
vimos meter!
� � o teu grandioso e espetaculoso Rio de Janeiro!
Evaristo sorriu da ironia, e continuando a passear:
� H� um rem�dio...
� Qual?
� Fazer um neg�cio com o Banco...
� Neg�cio?
� Sim, levantar um pequeno empr�stimo.
Noutras quaisquer circunst�ncias, Adelaide o aconselharia que n�o,
como j� o fizera uma vez na prov�ncia; mas D. Branca acenava-lhe de
longe, no seu esp�rito, �que n�o desse uma nota, que n�o fosse tola.�
� Que dizes? � repetiu o bacharel.
� N�o sei...
� Pois eu sei: vou falar ao Furtado. Achei a inc�gnita da equa��o.
Isto de dever, todos devem mais ou menos; a quest�o � pagar.
Com duzentos mil-r�is, sim, com duzentos mil-r�is, arranjava-se
tudo: uma toilette para Adelaide, uma cal�a de casimira, e... e charutos.... O
vestido, comprava-se feito, numa modista.
15 Festan�a popular, em geral degringolando em balb�rdia e confus�o.
23
Entraram em acordo, ele e a mulher, sobre as despesas, fizeram
c�lculos � ponta de l�pis, rabiscaram papel at� quase meia-noite. Adelaide
j� agora tamb�m pedia a Deus que n�o chovesse. Era uma �tima ocasi�o
para se apresentar �s amigas de D. Branca, ficar conhecendo a vi�va
Tourinho, a esposa do desembargador e outras senhoras do grand monde
fluminense.
Evaristo falou, com efeito, ao secret�rio, no pr�prio Banco, acerca do
empr�stimo, alegando raz�es de ordem dom�stica. � Era mais um grande
favor ao �amigo Furtado...�
� Queres um conselho de amigo? pergunta Lu�s.
� N�o contraias empr�stimo ao Banco. O Banco foi criado para altas
transa��es financeiras, e... e o diretor � um homem... um homem...
� ... um homem de t�mpera antiga, velho e rabugento. Espera a� um
bocado...
O secret�rio levantou-se, abriu um cofre de ferro, que estava no
gabinete de trabalho, e contou duzentos mil-r�is.
� Toma l�, sou eu quem tos empresta sem juros e sem prazo.
Restituir�s no fim do m�s... daqui a um ano, daqui a um s�culo...
� Isso n�o! interrompeu o marido de Adelaide. � Vim pedir ao Banco
e n�o quero que te sacrifiques por minha causa. Isso n�o!
� Toma l�, homem, n�o sejas menino. Eu que tos empresto, � que
tenho absoluta confian�a em ti � que diabo!
� Qual confian�a! Isso j� n�o � ser amigo, � ser pai!
� Pois quero ser teu pai � d�-me essa honra.
Riram e o bacharel guardou as notas na algibeira da cal�a, com um
movimento discreto e reconhecido. � Ora, muito obrigado, Sr. Lu�s, muito
obrigado!
� Cavalheiros somos, na carreira andamos... � disse enfaticamente,
com um sorriso, o fidalgo de Botafogo.
�s quatro horas iam os dois no mesmo bonde a caminho de casa.
O bacharel entrou radiante, com um estranho fulgor na pupila.
Adelaide acompanhou-o ao quarto.
� Sabes o que � isto? � foi dizendo com a m�o espalmada no bolso.
E, antes que Adelaide respondesse, tirou o dinheiro, erguendo a m�o
em triunfo.
� Quanto? � perguntou a rapariga com aquele risinho ing�nuo que
lhe era muito natural.
� Vinte!
� Vinte? apenas vinte?
� ... notas de dez!
� Ah!...
24
Evaristo, ent�o, narrou, palavra por palavra, o di�logo entre ele e
Furtado, no Banco, e n�o ocultou o seu entusiasmo pela �generosidade� do
amigo, que ainda uma vez se revelara �digno e correto!�
� Belo homem, o Lu�s!
� Eu tamb�m acho... � murmurou Adelaide.
� Olhe que me colocou, deu-me hospedagem, trata-nos � vela de
libra, e agora... duzentos mil-r�is, para pagar amanh�, no fim do ano, daqui
a um s�culo!
Adelaide aprovou com a cabe�a o entusiasmo do marido.
E na mesma tarde, ao anoitecer, foram ambos dar um giro � Rua do
Ouvidor.
Cap�tulo III
Lu�s Furtado era homem de meia-idade, alto, robustez f�sica
invej�vel, pele r�sea e conservada, bigode negro, tratado a brilhantina,
olhos negros e comunicativos, um pouco l�nguidos, talvez por afeta��o,
talvez por temperamento.
Belo, verdadeiramente belo, ningu�m o diria sem risco de profanar o
ideal antigo da beleza m�scula; no entanto, podia dizer-se dele que era, na
acep��o modern�ssima, um bonito homem. A conviv�ncia na Corte dera-lhe
tintas de nobreza ao rosto largo de provinciano setentrional. O Rio de
Janeiro, com o seu maravilhoso poder de cidade cosmopolita, afinara-lhe a
c�tis e a educa��o. Davam-lhe doutor, mas, em verdade, nunca pusera os
p�s numa academia; os preparat�rios mesmo, ele os n�o completara; e
como no Rio de Janeiro, na Corte, toda a gente � doutor, ningu�m punha
d�vida no fict�cio diploma de Lu�s Furtado.
Mas a qualidade caracter�stica do secret�rio do Banco Industrial era o
amor �s mulheres, uma tend�ncia not�vel para as conquistas de boudoirs16,
para o livre c�mbio de afei��es delicadas, para o culto imoderado de
V�nus. Esse fraco, longe de o desprestigiar no conceito das rodas
aristocr�ticas, tornava-o ainda mais querido de um e outro sexo, que viam
no esposo de D. Branca, um homem de bom gosto, entendido em ess�ncias
finas e em cotillons.17 Quem � que, em Botafogo, n�o o admirava, quem?
Chegava-se at� a dizer, num exagero, que era a alma do bairro!
O casamento n�o lhe tirava a liberdade de homem que se governa;
cumpria seus deveres conjugais; nada faltava � mulher, nem aos filhos,
todos em casa o estimavam; queria, portanto, sua liberdade; �a melhor
coisa que Deus deu ao homem�. Tinha id�ias definitivas, absolutas, sobre o
casamento e opunha-as a qualquer moralista indiscreto que lhe fosse
criticar os atos.
16 Budoar. C�modo privativo da dona da casa, onde recebe seus convidados �ntimos.
17 Saiotes.
25
D. Branca nunca se agastava com ele, nunca lhe fizera a menor
obje��o no tocante �s suas aventuras donjuanescas. Quando algu�m,
homem ou mulher, os queria intrigar e levava ao conhecimento dela fatos
particulares da vida do esposo, a ilustre senhora tinha sempre um risinho de
incredulidade: �� O Furtado era um bom marido e um bom pai de fam�lia.
Os invejosos � que o queriam desmoralizar.�
No entanto, conhecia o g�nio do Furtado e uma ocasi�o
surpreendera-lhe no bolso do palet� uma cartinha de mulher, muito
cheirosa e dentro da qual havia um amor-perfeito j� desbotado como essas
flores raras que se eternizam entre as p�ginas dos �lbuns. D. Branca sorriu
e devorou com os olhos a misteriosa ep�stola, em verdade bem misteriosa,
porque nada tinha de indiscreto sen�o o car�ter visivelmente feminino da
letra. Nunca se vira maior laconismo, nem t�o cautelosos dizeres numa
correspond�ncia de mulher. Assinavam as iniciais B. F. � "Branca
Furtado!", pensou com estranheza e admira��o.
E tornou a colocar o papel no bolso do marido, respeitosamente. Era
um segredo e ela n�o tinha o direito de violar segredo a quem quer que
fosse.
Outra ocasi�o deparou com o retrato da cuja. � �Sim senhor: uma
mulher espl�ndida! O Lu�s tinha gosto para mulheres...� No dorso da
fotografia, em cart�o imperial, a seguinte dedicat�ria:
Ao Lu�s � B. F.
Petr�polis, 18....
� Petr�polis! � exclamou D. Branca. � � gente fina... (e com uma
ponta de despeito) esses homens... esses homens!...
O retrato voltou ao lugar onde estava, sem um arranh�o.
Imposs�vel haver mais liberdade e mais confian�a entre marido e
mulher.
O procedimento de Lu�s para com D. Branca era igualmente recatado
e tudo fazia crer que a v�bora do ci�me n�o lhe mordera ainda o cora��o de
esposo. Compreendiam-se um ao outro, e, quando em um casal, a mulher
compreende o marido e o marido compreende a mulher, n�o h� mais bela
institui��o que o casamento. Ningu�m peca por aceitar a vida como a vida
sempre foi � tal a filosofia de D. Branca, e com pequenas restri��es, a do
secret�rio.
Dizer que se n�o amavam? Erro grav�ssimo. Adoravam-se quase, e,
em certos momentos, era como se fossem noivos em plena lua-de-mel.
Segredos da alma humana...
Uns olhos cobi�osos e apaixonados como os de Lu�s n�o podiam,
decerto, ver indiferentemente um rosto lindo de mulher. Foi o que se deu
com rela��o a Adelaide, a meiga esposa de Evaristo de Holanda. O
secret�rio viu-a no dia da chegada e admirou-a intimamente, com olhadelas
furtivas e trai�oeiras, enquanto o carro rodava para Botafogo. Ria, e o seu
26
riso tinha um tique muito delicado, muito nobre, muito fino, de cavalheiro
gentil, que se aprimora numa cortesia de sal�o. E, era a todo o instante �
�vossa excel�ncia�, a todo o instante uma frase elogiosa e comedida e mais
uma perguntazinha discreta que Adelaide respondia com o natural
embara�o de quem chega a um lugar estranho e pela primeira vez ouve
linguagem desconhecida.
O que logo provocou a aten��o da jovem esposa de Evaristo foi um
grande anel de brilhante que Furtado trazia no dedo � uma pedra enorme,
de primeira �gua, cujas facetas se multiplicavam � vista incisivamente,
como um prisma, quando ele erguia a m�o morena para cofiar o bigode.
No outro dia, ao almo�o, Adelaide estava com um vestido branco de
cassa e Furtado achou-a mais comunicativa e mais bela. A toilette de
gorgor�o dava-lhe uns ares de respeito, que n�o iam bem com a frescura
primaveril do seu rosto; e aquela mudan�a de vestu�rio, aquela
nonchalance18 obrigou-o tamb�m a mudar o tratamento de �vossa
excel�ncia� que tantas vezes repisara na v�spera. Evaristo mesmo j� lhe
havia observado que estavam �em fam�lia�, que deixasse o �vossa
excel�ncia� para pessoas de cerim�nias, do contr�rio n�o se entendiam,
nem podiam estimar-se como bons e velhos amigos.
E entraram todos na mais ampla intimidade, no mais belo conv�vio
dom�stico e na mais franca harmonia. � Era pena que o andar superior n�o
estivesse desocupado, oh, era pena! � lamentava o marido de D. Branca. �
Uns estrangeiros que ningu�m sabia donde tinham vindo!...
Mas, no �ntimo, desejava que os estrangeiros n�o se mudassem
nunca; ele assim estava mais perto do seu novo ideal... Em casa ou no
Banco, uma s� preocupa��o enchia-lhe o esp�rito: � Adelaide. Como e por
qu�? Mist�rio! E a vida o que � sen�o um grande e tenebroso mist�rio?
Lu�s co�ava a cabe�a, atordoado, impaciente, fechando os olhos
como para ver melhor no fundo da sua alma, e quer os fechasse, quer os
abrisse, tinha diante deles a imagem de uma criatura excepcional � anjo e
mulher � e essa criatura tinha os olhos de Adelaide, a boca de Adelaide, o
sorriso de Adelaide! Como resistir � tenta��o, ele, que julgava a mulher
uma for�a divina, um poder acima de todos os poderes humanos e acima de
todos os preconceitos sociais? .
E nesse filosofar �-toa, nesse monologar do c�rebro, perpassava
tamb�m o riso bom de Evaristo, a alma simples do amigo, cheio de
confian�a e de um otimismo �s vezes ing�nuo. Furtado espancava uma
imagem para deliciar-se com a outra, com a dos olhos meigos e sorriso
angelical...
� noite, fora de horas, acordava, abria os olhos num �xtase
son�mbulo � enquanto a mulher se imobilizava � e punha-se a fazer
18 Falta de cuidado pessoal. Indol�ncia. Moleza.
27
c�lculos, a maquinar planos de general em v�spera de batalha. � Como
havia de ser isso? Como havia de ser aquilo?...
E, no outro dia, eram os mesmos olhares, as mesmas finezas, que
Adelaide j� n�o estranhava, por virem donde vinham. N�o padecia d�vida
que o Sr. Furtado era um cavalheiro de educa��o e ela achava muito bonito
um homem de educa��o... Os modos do Sr. Furtado, quem � que os n�o
apreciava?
Ao almo�o e ao jantar, longamente discutiam assuntos caseiros e D.
Branca via-o quase sempre de bom humor � hora das refei��es, dizendo
pilh�rias, mostrando-se entendido em mat�ria culin�ria e em coisas de
boudoirs, improvisando anedotas, gracejando, servindo � mulher e ao
Evaristo, para poder servir a Adelaide, fito �nico dos seus olhos e da sua
imagina��o.
� noite escancaravam-se as janelas da frente e jogava-se � luz do g�s
amortecido por causa do calor. Nos jogos de parceria, Furtado sentava-se
defronte de Adelaide, tocando-se os joelhos, a pontinha dos p�s, em torno
da pequenina mesa de char�o colocada ao centro da sala, e divertiam-se
horas e horas, num t�te-�-t�te19 voluptuoso e calmo, perturbado, �s vezes,
por uma gargalhada geral que irrompia un�ssona das quatro bocas.
Evaristo chamava aquilo, aquelas reuni�es familiares �uma
p�ndega�, sempre melhor que as da Rua do Ouvidor: mais honesta e menos
tumultuosa.
� Inda havemos de fazer um piquenique no Jardim Bot�nico! � disse
uma noite o secret�rio.
� � verdade, � verdade! � aplaudiu, com entusiasmo, D. Branca.
� Vamos um dia, um domingo, ao Jardim Bot�nico!
� � Tijuca n�o seria melhor? � lembrou Evaristo, que ardia por fazer
um passeio � �tal Tijuca�.20
Mas Furtado apontou inconvenientes de ida e volta: � era muito
longe a cascatinha, l� onde o diabo perdeu as esporas, enquanto que o
Jardim Bot�nico ficava perto e era mais elegante. Depois, com o tempo, irse-
ia � Tijuca...
� Em primeiro lugar � concluiu Evaristo � � preciso que esses
estrangeiros do segundo andar ponham-se ao fresco, v�o para o diabo que
os carregue!
E ficou assentado que num belo domingo iriam os dois casais ao
Jardim Bot�nico, em piquenique.
Antes disso, por�m, havia o batizado da Julinha. Estava tudo pronto
como para uma grande recep��o de anivers�rio: vidros, m�veis, tapetes,
cristais, o servi�o da copa, o buffet, uma quantidade enorme de garrafas,
mesa lauta sobre � qual via-se toda a baixela da casa e vasos com flores
19 Face a face.
20 Floresta da Tijuca.
28
naturais e altas pir�mides de doce, pondo manchas na brancura da toalha, e
em cada prato um buquezinho de violeta arranjado especialmente pelas
m�os de D. Branca; e em toda a casa, desde a sala de visitas at� os fundos
da cozinha, um ar alegre de interior holand�s, um ar festivo e risonho,
cheirando a flores como a atmosfera matinal dos jardins. Viam-se em todo
aquele esmero, em toda aquela simplicidade grega � na composi��o de um
vaso, no arranjo dos buqu�s � o zelo aristocr�tico de D. Branca e o gosto
n�o menos aristocr�tico de Lu�s Furtado harmonizando-se nas menores
coisas, traindo-se a cada hora. O papel da sala de visitas parecia mais novo;
os quadros destacavam-se, muito n�tidos, numa bela disposi��o ornamental
de galeria pobre; o piano sofrera uma m�o de �leo e guardava ainda o
cheiro da f�brica, de costas para a janela, reluzindo como um espelho; as
cortinas pendiam frouxamente das arma��es de ouro... Enfim, na alcova
esponsal�cia de D. Branca estava o ber�o de Julinha todo em festa, ao lado
da grande cama de casal. Para a� � que deviam convergir os olhares do
desembargador e da mulher, especialmente destes, porque D. Branca
entendia que ser dama do Pa�o era merecer as aten��es devidas � pr�pria
imperatriz; al�m disso, o velho Lousada tinha, mais do que ningu�m,
direito a essas aten��es como padrinho da pequena. D. Branca esfor�ara-se
por dar ao ber�o um aspecto luxuoso e sereno, para que se n�o dissesse que
ela, no meio das suas ostenta��es, pouco amor tinha aos filhos. E
conseguira-o, sem desprezar um ou outro conselho quer de Adelaide, quer
de Furtado, quer mesmo de Evaristo, que tamb�m fora chamado a dar sua
opini�ozinha.
� Eu nunca tive filhos, minha senhora... � protestou ele.
Mas a esposa do secret�rio alegou que era justamente por ele nunca
ter tido filhos que lhe pedia a opini�o.
E, agarrado por um bra�o e pelo outro, o marido de Adelaide
lembrou, espirituosamente, que se devia colocar na c�pula a seguinte
inscri��o: Este filho � o �ltimo da prole... � o que fez rir muito a D. Sinh�
do desembargador, a ela s�, porque os outros n�o acharam gra�a na id�ia.
O leito de Julinha era todo de uma madeira escura e s�lida, como
�bano-da-�ndia, e custara um dinheir�o ao Furtado. Imitava o casco de urna
pequena g�ndola com a proa recurva e estreita. Sobre ele ca�a fartamente
uma nuvem de rendas, abrindo-se para um e outro lado e quase tocando o
ch�o. A c�pula era um verdadeiro trabalho de arte, muito simples, mas
curioso, representando uma coroa ducal com embutidos de marfim. No alto
do cortinado, um grande la�o de seda azul com franjas de ouro...
Ao todo seis carros, inclusive a berlinda21, em que ia a pequena nos
bra�os da ama e a mulher do desembargador. As outras eram ocupadas
sucessivamente pelo funcion�rio do governo e D. Branca, pelo Furtado e o
21 Pequena carruagem de quatro rodas, com seis lugares, suspensa por molas e com vidra�as laterais.
29
Raul, pela vi�va Tourinho, pelo tesoureiro do Banco Industrial e a esposa, e
o �ltimo carro por dois amigos do secret�rio, rapazes do com�rcio.
D. Sinh� n�o quis ir � igreja, deixando-se ficar em companhia de
Evaristo e de Adelaide nas suas toilettes de pouca cerim�nia, esperando a
volta do batizado � �que era uma grande ma�ada vestir-se toda de luxo
somente para ouvir o latim de monsenhor Teixeira; logo n�o estavam
vendo?...�
Ca�am as primeiras sombras da noite quando um rodar de carros
anunciou o regresso da Julinha com todo o seu acompanhamento.
Encheram-se as janelas de curiosos que queriam ver a crian�a, e um ligeiro
alvoro�o percorreu, como um fr�mito de novidade, aquele trecho do
aristocr�tico bairro. � � o batizado! � o batizado! � exclamaram vozes
alvissareiras; e os carros, um a um, foram parando na mesma ordem da
sa�da, com a mesma distin��o, e um a um foram-se apeando os convidados,
primeiro os cavalheiros, depois as senhoras, risonhos todos, numa onda
invis�vel de ess�ncias. � porta da casa, tapetada de folhas, houve um
murm�rio, destacando a voz de Furtado:
� Entrem, meus senhores, queiram ter a bondade...
Seguiu-se o jantar � �um banquete de pr�ncipe!� na opini�o de
Evaristo. Adelaide foi apresentada � vi�va Tourinho e ao Loiola do Banco,
houve brindes ao dessert22, todos acabaram tratando-se familiarmente,
esquecendo o vestido de seda e a casaca, e a pr�pria Julinha que, depois de
um berreiro infernal, adormeceu com a serenidade de um anjo.
Era noite quando Lu�s Furtado ergueu-se para levantar o �ltimo
brinde, o brinde de honra � �Seren�ssima senhora D. Isabel, princesa
imperial e herdeira presuntiva do trono do Brasil!� O champanha espumava
nas ta�as de cristal e os hip! hip! hurras! estrondearam em toda a casa.
� � Seren�ssima!
� � herdeira da coroa!
� � imperial madrinha da J�lia!
E, todos de p�, esvaziaram as ta�as.
Furtado observou, ent�o, limpando o bigode, que na sala estava mais
fresco.
� Vamos, desembargador... � Evaristo, d� o bra�o � D. Rosa.
D. Rosa era a mulher do Loiola. O bacharel, estranho a etiquetas,
muito fil�sofo, como dizia o secret�rio, deu dois passos � frente e recebeu
amavelmente a mulher do tesoureiro.
� Muito obrigada, Sr. Evaristo, muito obrigada! � repetiu a gorda
matrona.
� Oh, minha senhora...
22 Sobremesa.
30
E, em prociss�o, desfilaram os convivas pelo corredor. No alto da
escada do segundo andar ocultou-se, r�pida, uma sombra de mulher.
Instintivamente o desembargador ergueu os olhos, baixando-os logo.
Furtado ia na frente, guiando os amigos, de bra�o com a ilustre dama
de Sua Majestade a Imperatriz.
Agora � que a sala de visitas tinha um aspecto nobre e luxuoso, ao
reflexo das serpentinas e do grande candelabro de cristal pendente do teto.
Quadros e bibel�s, o piano e a mob�lia, o espelho de primeira ordem,
rodeado de arabescos, a estante de m�sica, as tape�arias, as cortinas, o
papel do forro, tudo resplendia e dava uns tons de alta nobreza ao conjunto.
Adelaide, sempre t�mida, vinha de bra�o com um dos rapazes do
com�rcio.
Sentaram-se todos, rindo, palrando, o tesoureiro com a face
congestionada, a mulher idem, ambos muito gordos; a mulher do
desembargador com o seu ar indefect�vel de nobreza pouco comunicativa,
querendo parecer mais mo�a do que na realidade era, assestava de vez em
quando o lorgnon23 de tartaruga, que pendia-lhe de um corrent�o de ouro, e
punha-se a observar uma estampa do imperador, que havia na sala, entre
dois consolos, enquanto o velho Lousada falava com a vi�va Tourinho
acerca dos �ltimos inc�modos do monarca; o secret�rio instalara-se entre
Adelaide e D. Branca e respondia prontamente �s perguntas que lhe faziam,
ora um dos rapazes, ora D. Sinh�, ora o tesoureiro do Banco, ora o pr�prio
desembargador, interrompendo a conversa com a Tourinho, e volvia-se
freq�entemente para a esposa de Evaristo. O bacharel divertia-se a gabar os
trajos de Raul, dando-lhe palmadinhas no ombro.
E pouco a pouco ia-se tornando maior a familiaridade.
� E o Santa Quit�ria? � lembrou Furtado com ar de desgosto. Ele,
que � um dos meus bons amigos, faltar ao batizado de minha filha!
� E o Dr. Condicional? � saltou Evaristo. � Ainda ontem disse-me
que vinha.
� Faltaram todos: o Santa Quit�ria, o Pinto, comendador, o
Condicional, o Xavier... todos, enfim!
� Todos n�o! � protestou o velho Lousada, sorrindo � eu aqui estou
com minha mulher...
� O desembargador � gente nossa, � de casa � emendou Furtado.
� E eu tamb�m sou de casa? � perguntou maliciosamente a vi�va.
� V. Ex�., com a sua bondade, � de todo o mundo!
� Alto l�, meu amiguinho! � sorriu a boa senhora. � De todo mundo �
que n�o.
E quis saber o que � que o Sr. Furtado entendia por todo o mundo.
Furtado explicou-se razoavelmente.
23 �culos de bra�o, manipulado por uma longa haste lateral de um s� lado.
31
Nisso p�ra um carro � porta. Todos os olhares volveram-se para a
entrada da sala. D. Branca e o secret�rio ergueram-se. Mas, antes que se
aproximassem da escada, j� o Raul anunciava indiscretamente que "era o
Dr. Condicional!"
� Oh, o Manh�es! � acudiu Furtado.
� Eu mesmo, caro amigo, eu mesmo. Venho dar-lhe os parab�ns pelo
glorioso dia!
Movimento nas cadeiras; leve sussurro.
� Ah, esse � que � o autor do Juca Pir�o? � fez um dos rapazes do
com�rcio.
� Sei que n�o vim de bonne heure... � tornou o literato dirigindo-se
para o grupo, consertando a sobrecasaca. � Em todo o caso, antes tarde que
nunca!...
Apresenta��es, cumprimentos, e o Dr. Condicional, dando jeito ao
pincen�24, sentou-se. Trazia um grande buqu� de violetas na lapela.
Novo carro parou quase imediatamente. Furtado, que se ia
acomodando, ergueu-se outra vez. Outra vez o Raul adiantou-se para
anunciar, agora com toda a discri��o e respeito, �o Sr. visconde de Santa
Quit�ria!�.
� Oh!
A exclama��o foi geral.
� O visconde de Santa Quit�ria!
� Logo vi que n�o faltava! � disse Furtado.
E D. Branca teve um movimentozinho de surpresa muito especial,
exclamando tamb�m: � Oh!
Era, com efeito, o Visconde de Santa Quit�ria, o grande capitalista,
diretor do Banco Luso-Brasileiro.
Bem que todos tinham ouvido parar um carro!
Pelo menos naquele instante, ningu�m se lembrou do ilustre poeta
que acabava de entrar. A chegada do visconde enchia a todos de surpresa e
de alta considera��o. Entre a poesia e o capital � preferia-se o capital, tanto
mais quanto o diretor do Banco Luso n�o representava simplesmente um
capitalzinho de alguns mil-r�is. N�o. O Santa Quit�ria tinha fortuna para
mais de seis mil contos!.
O ilustre personagem estacou � porta, fez um cumprimento geral
com a cabe�a e entrou, muito correto, admir�vel de mocidade e de frescura.
D. Branca recebeu-o no meio da sala com o mais belo dos seus sorrisos.
Era um perfeito cavalheiro, o visconde. Residia ora em Petr�polis,
quando j� n�o suportava o calor na Corte, ora no seu rico palacete das
Laranjeiras, pelo inverno chuvoso e nublado. Para as transa��es da Bolsa
tinha escrit�rio na Rua da Alf�ndega, onde ocupava uma saleta de frente e
uma alcova com toilette de m�rmore e outros objetos indispens�veis ao
24 Pince-nez. �culos sem bra�o, que se prendem ao nariz por press�o.
32
asseio de um homem. Idade m�dia (pouco mais de quarenta anos),
muit�ssimo conservado, sem um fio branco na cabe�a, olhos vivos, todo ele
irrepreens�vel, tinha fama de beleza entre as mulheres, que o admiravam,
n�o tanto pela fortuna, mas especialmente pela corre��o do trajo e pelo
estranho conjunto das linhas fision�micas. Muita gente achava-lhe pontos
de semelhan�a com Lu�s Furtado, que se orgulhava disso, que era uma
honra para ele, uma grande honra! Por duas vezes o tinham saudado na Rua
do Ouvidor julgando cumprimentar o Santa Quit�ria: Sr. Visconde!... � e
ele correspondera delicadamente. Era um engano que o honrava.
O visconde descera de Petr�polis na manh� daquele dia para n�o
faltar ao convite do secret�rio.
� Dou-lhe os meus parab�ns � disse ele a Furtado. E voltando-se para
D. Branca, antes de sentar-se: � Pe�o licen�a a V. Ex�., para um
presentezinho � pequena, uma simples lembran�a.
D. Branca, humilhada, recebeu a d�diva do banqueiro, que este
entregou dentro de uma caixinha de veludo gren�. Era uma j�ia de ouro e
brilhante, uma linda medalha para pesco�o.
� Oh, Sr. visconde!...
D. Sinh� quis logo ver o que era:
� Veja, mam�e, veja que bonita!
A dama de honra de Sua Majestade a Imperatriz tomou,
cautelosamente, o brinde, assestou o lorgnon e achou, com efeito, lindo,
muito lindo!
A j�ia correu de m�o em m�o, arrebatando um � oh! � de cada boca.
O Dr. Condicional lembrava-se de ter visto coisa semelhante na vitrina do
Farani.
D. Branca n�o se esqueceu de apresentar Adelaide ao visconde.
� "Sua amiga Adelaide, esposa do Sr. Evaristo de Holanda,
comprovinciano e amigo de Furtado..."
E a conversa continuou animada, picante, com um acentuado car�ter
de brasileirismo, entrecruzando-se as vozes, as opini�es, os ditos
espirituosos.
O Dr. Condicional, que se sentara ao lado do desembargador, fez a
apologia do Instituto Hist�rico, do que o velho magistrado era membro,
discorrendo sobre os �ltimos trabalhos do bar�o da Corte Real,
apresentados ao Instituto, e sobre os progressos da geografia e das letras no
nosso pa�s.
Lousada inclinava a cabe�a para ouvir melhor, e saboreava os
elogios de Valdevino Manh�es como quem escuta uma m�sica voluptuosa,
uma vaga harmonia encantadora, os olhos entrecerrados, meio
adormecidos, a boca im�vel, serenamente im�vel...
De repente estalava uma risada e ele abria os olhos, com um
sustozinho, pigarreando.
33
� E V. Ex�. j� apresentou algum trabalho, Sr. desembargador? �
inquiriu, por delicadeza, o poeta.
� Ainda n�o, meu amigo, ainda n�o, mas tenho pronta uma refuta��o
aos Irm�os Pinz�n do conselheiro Lisboa.25
� Uma refuta��o?
� Exatamente, umas notas sobre os primeiros descobridores da
Am�rica, uns documentos important�ssimos, que valem toda a fortuna dos
Rothschilds...
O visconde de Santa Quit�ria, ao ouvir falar nos Rothschilds, deitou
o rabo do olho.
� ... Calcule o senhor que os fen�cios, muito antes de Pinz�n26, numa
�poca remot�ssima, andaram no Amazonas...
� No Amazonas, desembargador? � repetiu Manh�es com espanto.
� Pois n�o, no Amazonas... admira-se? Quanto mais se eu lhe disser
que os Cananeus27 andaram na Para�ba do Norte! Pois � a pura verdade.
Encontrei na biblioteca de Sua Majestade um fac-s�mile de inscri��es
fen�cias descobertas numa pedra da Para�ba.
� Mas, ent�o, Colombo n�o descobriu a Am�rica?
� N�o senhor... Colombo n�o descobriu coisa alguma...
E o desembargador, pausadamente e circunspectamente, explicou a
magna quest�o do ovo de Colombo.
� E o senhor, tem escrito muito? � inquiriu depois ao �mulo de
Gon�alves Dias.
� Oh, muito. V. Ex�. n�o imagina! O pior � que no Brasil ainda n�o
h� editores. V. Ex�. decerto conhece o meu poema...
� Qual deles?
� Eu s� escrevi um poema at� hoje...
� Ah!... Como intitulou?
� Ent�o V. Ex�. n�o conhece? � insistiu o literato com surpresa.
� Homem, eu, para lhe falar a verdade, em mat�ria de verso, s�
conhe�o os Lus�adas, que tenho em casa.
Valdevino Manh�es deu um jeitinho ao pincen�, verificou que as
violetas estavam na lapela, e, como se acabasse de ouvir uma horrorosa
blasf�mia, uma heresia medonha, exclamou, fitando os olhos do
magistrado:
� S� os Lus�adas?!
� S� os Lus�adas.
Nesse instante aproximava-se um criado oferecendo sorvetes em
conchazinhas de porcelana, e um ar frio inundou o ambiente.
25 Jo�o Francisco Lisboa (1812-63), c�lebre jornalista e historiador maranhense.
26 Vicente Y�nez Pinz�n (1460-1523), navegador espanhol. Teria estado na foz do Amazonas antes da
chegada de Pedro �lvarez Cabral ao Brasil.
27 Uma das tribos da antiga Fen�cia.
34
� S� os Lus�adas! repetiu o poeta, estendendo a m�o � bandeja.
Parecia-lhe incr�vel, extraordin�rio, fora de toda a verdade, que um
membro do Instituto Hist�rico do Rio de Janeiro, autor de uma mem�ria
sobre os irm�os Pinz�n, desembargador da Rela��o, n�o lesse os poetas do
seu pa�s. Era incr�vel. Mas o que ele estranhava ocultamente � que o
desembargador n�o houvesse lido a par�dia do I Juca-Pirama, que tantos
elogios merecera da cr�tica nacional.
As outras pessoas ouviam interessadas o visconde de Santa Quit�ria,
bebendo-lhe as palavras, religiosamente fitos nos seus olhos.
O Dr. Condicional, por�m, animado pelo desembargador e fingindo
prestar aten��o ao Visconde, imobilizava os olhos sobre a esposa de
Evaristo. Subitamente a presen�a dela o atra�ra como um clar�o que de
repente se abrisse, mais forte que a luz do g�s.
Ainda n�o havia reparado! Como � que se achava ali aquela mulher e
ele � cego! � n�o lhe fizera as devidas cortesias? O que mais o
impressionava era o ar triste de Adelaide, o tom magoado do seu rosto, a
express�o recolhida e meiga dos olhos dela... Pobre senhora! Talvez algum
drama �ntimo, talvez algum desses epis�dios "lutuosos" de fam�lia, talvez...
� quem sabe? � alguma dor oculta pungindo-lhe a ignorada exist�ncia... E �
sua imagina��o vinham casos de adult�rio, romances de amor infeliz,
trag�dias em que os maridos matavam as esposas, num formid�vel acesso
de loucura; � suic�dios por amor; namorados que faziam saltar os pr�prios
miolos e raparigas que ingeriam veneno... horrores do cora��o humano! � e
repetia mentalmente, sensibilizado por uma vaga apreens�o que o punha
nervoso: � �Aquela senhora tem o que quer que seja!...�
Valdevino Manh�es carregava de tintas sombrias o rosto de
Adelaide, o rosto e a alma � embalado por seu natural pessimismo que ia
at� a nega��o de Deus e do Bem. Explicava tudo pela fatalidade, e n�o
podia ver uma pessoa triste que n�o dissesse logo: �A� vai um desgra�ado!�
No fundo desse pessimismo havia, entretanto, uma compaix�o pelo
sofrimento alheio � compaix�o que ele calculadamente escondia �para se
mostrar superior �s fraquezas humanas�.
A natural express�o do rosto de Adelaide fazia-a mais triste do que
na verdade ela estava; seus olhos nunca se abriam completamente; eram
olhos meigos, de uma vaga melancolia serena e cismadora, olhos
recolhidos, quase mortos, onde �s vezes brilhava, como por encanto, um
reflexo de alegria, olhos contemplativos, olhos ideais... Naquele momento a
esposa de Evaristo, dominada pela palavra do banqueiro, via diante dela,
como um estranho fantasma, a Corte Imperial, desde o monarca, com a sua
longa barba branca de rei Davi, carregando o pesado manto de arminho e
ouro, rodeado de �ulicos e cortes�os sob uma grande c�pula majestosa, at�
o �ltimo lacaio dando-se ares de fidalgo, indo e vindo pelos corredores na
sua libr� carnavalesca de s�dito fiel e servo obediente.
35
O assunto do visconde era a doen�a do real personagem, a grave
mol�stia do imperador. Todos o ouviam em grande sil�ncio e com grande
respeito, por se tratar ainda uma vez do homem para quem o Brasil inteiro
voltava-se naquele momento da vida nacional. A aristocracia brasileira, j�
ouvindo falar em rep�blica, e zeloza das suas posi��es e dos seus cr�ditos,
temia um desastre pol�tico, um assalto ao poder, naquela hora de tristeza,
quando na verdade que os m�dicos tinham aconselhado ao chefe da na��o
um passeio � Europa, uma vilegiatura em Spa ou em Cannes...
� E a imperatriz, como deixou o senhor a imperatriz? � perguntou a
mulher do desembargador, inclinando-se para o visconde.
� A imperatriz, minha senhora, � aquele mesmo cora��o, aquela
mesma brandura: diz que h� de morrer onde morrer o velho... Uma santa!
� Mas, quando pretende embarcar a fam�lia imperial? � interrogou
Furtado.
� Por enquanto nada est� resolvido. Sua Majestade n�o quer
precipitar uma viagem dolorosa, tem saudades do Brasil.
� Coitado!... � murmurou D. Branca, sem tirar os olhos do
capitalista.
� E ningu�m sabe, afinal, qual � a doen�a do imperador! � disse o
velho Lousada.
� N�o � cora��o? � atalhou a dama de honor.
O visconde, muito respeitosamente, pediu licen�a � nobre senhora
para dizer que n�o, que o Sr. D. Pedro II estava com uma glicos�ria...
� Glicos�ria? Que � glicos�ria?
� Diabetes...
� Creia o senhor que ainda n�o compreendi...
� Diabetes... glicos�ria... � fez o visconde atrapalhado, esfregando-se
os dedos.
� Enfraquecimento cerebral, minha mulher � explicou Lousada
convictamente.
� N�o � bem enfraquecimento cerebral; o enfraquecimento, segundo
ouvi dizer, � um dos m�ltiplos sintomas da diabetes... � emendou o
banqueiro. � A glicos�ria �... � uma doen�a dos rins.
� A��car na urina, homem, creio que est� muito bem dito a��car na
urina! � opinou o Dr. Condicional interrompendo as suas reflex�es po�ticas
para emitir ju�zo cient�fico.
� �... � confirmou friamente o Visconde.
� Pois eu j� ouvi dizer por um m�dico ilustre que Sua Majestade
sofre de um esgotamento nervoso... � falou o secret�rio.
� Em franc�s surmenage, isto �, excesso de trabalho mental... �
explicou ainda uma vez, com um ar pedante, o literato.
36
As indiscretas e bruscas explica��es do Dr. Condicional causaram
m� impress�o ao Visconde, que perguntou baixinho a Furtado �se aquele
mo�o era doido�.
Os �ltimos inc�modos do soberano interessavam mais � popula��o
fluminense que a alta ou baixa do c�mbio ou que a queda estrondosa de um
minist�rio em peso. Na Rua do Ouvidor, na Bolsa, nas secretarias de
Estado, nas reda��es de jornais, todo o mundo comentava a diabetes do
monarca, citando pareceres de alta valia, recordando feitos ilustres do
segundo imperador, como se o homem j� estivesse nas �nsias da morte,
discutindo o car�ter da enfermidade, que, para uns era diabetes, para outros
les�o card�aca, para outros ainda, esgotamento nervoso, e, finalmente, para
um grupo de cortes�os, um ligeiro inc�modo dos rins. E ningu�m acertava
com o verdadeiro mal que se apoderava lento e lento do imperial
organismo. O governo, escrupuloso por demasia quando se tratava do chefe
da na��o, ficava mudo ante a curiosidade do povo, sem dar � C�mara o
gostinho de lhe responder �s sucessivas interpela��es. Deputados e
senadores erguiam a voz no seio do Parlamento, inquirindo sobre os �fatos
que alarmavam o pa�s inteiro� e quer o presidente do Conselho de
Ministros, quer o Secret�rio do Imp�rio, diziam simples e laconicamente
que �Sua Majestade estava em pleno gozo das suas prerrogativas e das suas
faculdades�. Mas o grande caso � que os boatos enchiam as ruas,
comunicando-se, num furor de inc�ndio, a todas as casas, a todos os
arrabaldes e a todas as prov�ncias. Falava-se mesmo na ida do imperador
para a Tijuca e da�, se n�o melhorasse, para bordo de um vapor estrangeiro.
Que ia fazer Sua Majestade na Tijuca � ele que s� arredava o p� da Boa
Vista para Petr�polis? O clima da Tijuca era quase o de Petr�polis: que ia
ele fazer ao alto da Tijuca?
Multiplicavam-se as d�vidas e os coment�rios. Os bar�es e os
Viscondes, que se sentiam incomodados, apregoavam logo a sua diabetes, o
seu enfraquecimento nervoso; e a palavra surmenage, at� ent�o pouco
vulgarizada, tornou-se uma palavra � moda, um voc�bulo chique para
exprimir dor de cabe�a, indisposi��o nervosa e at� impurezas do sangue.
Todo o Rio de Janeiro era uma grande surmenage...
O visconde de Santa Quit�ria, ao cabo de meia hora, reconheceu que
as not�cias de que fora portador involunt�rio enchiam de tristeza os
convidados de D. Branca, e, um pouco no ar, um pouquinho sem saber o
que dissesse, ele, o gentleman, o correto homem de sal�o, nunca sup�rfluo,
nem amigo de contrariar o pr�ximo, bandeou-se para Adelaide.
� V. Ex�. tem gostado da Corte?
A esposa de Evaristo acordou da abstra��o em que mergulhara e
respondeu timidamente, com um leve suspiro:
� Sim, senhor... muito!
37
� Ah, naturalmente! A Corte � hoje um dos centros mais
aristocr�ticos do mundo. Nas prov�ncias, em geral, n�o se faz id�ia do que
isto �...
D. Branca interveio:
� Mas ainda n�o foi a Petr�polis, senhor Visconde.
� Oh, ent�o � preciso ir, � preciso fazer um passeiozinho � cidade dos
reis... � tornou o banqueiro afetando um sorriso.
� L� isso concordo � apoiou Valdevino Manh�es, �s voltas com o
pincen�. � Petr�polis � o complemento do Rio de Janeiro, ou antes, do
munic�pio neutro.
Evaristo quis dar um aparte; mas por prud�ncia, engoliu a express�o.
Ia desgostar o Santa Quit�ria com uma alfinetada na monarquia. Para qu�?
J� era tarde. O calor sufocava. N�o se ouvia uma pisada na rua. Tudo
quieto. Longe, para os lados da praia, tilintavam as campainhas dos bondes.
Os dois rapazes do com�rcio tinham-se erguido para fumar um cigarro �
janela. � �Como estava escura a noite!� murmurou um deles. O g�s da sala
dava uma luz pregui�osa, uma claridade de antec�mara. O piano, sempre
aberto, esperava que algu�m o fosse animar com as teclas muito alvas,
muito novinhas.
O primeiro a retirar-se foi o visconde. Tinha cumprido o seu dever.
Pedia licen�a...
Lu�s Furtado acompanhou-o � porta da rua, embaixo.
E aquela noite, que devia ser de festa e de regozijo pelo batizado da
Julinha, acabou como todas as noites que n�o s�o de festa, nem de regozijo
� tristemente, quase lugubremente.
Quando todos sa�ram, Lu�s Furtado abriu a boca num grande bocejo,
que estrondeou na casa e acendeu um cigarro, cantarolando.
Cap�tulo IV
Quando, um belo dia, Evaristo chegou da rua, soube que os
estrangeiros do segundo andar tinham-se mudado, sem dizer que esp�cie de
gente eram, nem para onde iam.
� Com efeito! � exclamou, surpreendido. � Nem que se estivesse
esperando a volta de D. Sebasti�o28... Ah!... Eu j� estava resolvido a alugar
o palacete do Friburgo!
28 Rei de Portugal, morto no Marrocos, em 1578, lutando contra os mu�ulmanos. Seu corpo nunca foi
encontrado e criou-se a lenda de que continuava vivo. �Esperar a volta de D. Sebasti�o� significa
aguardar por algo pouco prov�vel de aconteceer.
38
� Agora, sim, senhor � disse Lu�s, batendo no ombro do amigo e
rindo para Adelaide � agora v�o dormir folgadamente na sua cama de casal,
v�o se regalar!
� Queres dizer, ent�o, que pass�vamos as noites de olho aberto, no
nosso belo quartinho? Est�s muito enganado. Nunca dormi tanto, e a
Adelaide melhor um pouco.
� N�o se segue, por�m, que deixem de almo�ar e de jantar conosco...
� Em primeiro lugar, um exame nos aposentos; depois, trataremos do
almo�o e do jantar.
� J� andamos por l� � disse D. Branca espevitadamente. � Sabem o
que encontramos?
� Algum menino pag�o... � adiantou-se Furtado.
� Algum fac-s�mile de inscri��es hebraicas para presente ao
desembargador?
� S�rio; vejam se podem adivinhar � insistiu a esposa do secret�rio.
Os dois homens puseram-se a pensar em qual teria sido o misterioso
encontro das duas senhoras...
� N�o sei � disse, por fim, o marido de Branca.
� Nem eu... � imitou Evaristo.
� Um irrigador de Ermarck29, por sinal bem novinho.
� Que diabo quer isso dizer? � perguntou o bacharel com assombro.
Adelaide n�o se p�de conter e abriu numa risada sonora e gostosa,
ocultando o rosto nas m�os. D. Branca, ante a ing�nua pergunta de
Evaristo, ria tamb�m para outro lado, enquanto o secret�rio justificava a
ignor�ncia do amigo dizendo que o aparelho de Ermarck ainda n�o era
bastante conhecido no Brasil e que, por isso, o Holanda tinha toda a raz�o...
E acrescentou com ironia:
� S�o muito maliciosas as mulheres!
Mas Evaristo n�o descruzava os bra�os, estatelado, vendo as duas
senhoras rir.
� Ent�o, � que j� sabes o emprego do irrigador, Adelaide!
� Eu?
Novo acesso de riso sufocou a esposa do bacharel, como se lhe
estivessem a fazer c�cegas.
� Sabem que mais? � disse afinal Evaristo. � Os ingleses, que
deixaram o irrigador � porque o irrigador n�o presta! Vamos ao que
interessa.
J� Lu�s Furtado galgava o primeiro degrau da escada que ia ter no
segundo andar. Evaristo, Adelaide e D. Branca o acompanharam, todos
risonhos, a falar dos ingleses.
Eram trinta degraus estreitos, que subiam em curva, gemendo sob os
p�s, iluminados por uma grande clarab�ia de vidro.
29 Aparelho para higiene �ntima feminina, precursor do bid�.
39
O andar superior compunha-se de uma sala de frente, alcova,
corredor e dois quartos menores que a alcova, comunicando-se. Havia
tamb�m um terra�o com grades de ferro, onde se erguia uma esp�cie de
quiosque para o water-closet.30
O secret�rio come�ou a inspe��o pela frente. As janelas estavam
abertas, deixando ver a praia de Botafogo; a enseada, n�o muito longe, o
P�o de A��car e os morros de Niter�i dando um aspecto grandioso e
selvagem � ba�a. � direita, erguido a prumo, o perfil negro do Corcovado
atra�a os olhos, em linha reta para o alto, como um dedo enorme de gigante
apontando o azul sereno. A vista alcan�ava, depois, outras montanhas, e
entre elas, o cemit�rio de S�o Jo�o Batista, salpicado de t�mulos brancos,
numa simetria pitoresca e l�gubre. �quela hora, distinguia-se grupos de
pessoas, grupos negros em marcha, sumindo-se e aparecendo entre os
mausol�us.
� esquerda, telhados e hortas.
O secret�rio n�o gostava de olhar o cemit�rio: recordava-se
tristemente da �ltima vez em que l� fora enterrar a ilustre senhora, bela
mulher, cujo nome o Rio de Janeiro todo conhecia... N�o gostava, n�o
gostava de olhar o cemit�rio...
D. Branca estava aflita por chegar aos fundos; queria surpreender o
marido de Adelaide com o irrigador de Ermarck.
� Que achas? � perguntou Furtado ao amigo, relanceando os olhos no
aposento.
� Bom... bom � murmurou o bacharel. � Vamos c�!
E dirigiu-se aos fundos da casa, inspecionando o teto e o papel do
forro.
� Voc�s aqui est�o muito bem � tornou o secret�rio.
� Muito melhor que na Cidade Nova � acrescentou D. Branca.
� Ao menos est�o em Botafogo.
O corredor ia sair na �rea, forrado em todo o comprimento, claro,
fresco e iluminado pelos reflexos da clarab�ia.
Percorreram tudo at� o quiosquezinho do terra�o, que o bacharel
comparou poeticamente a uma �casa de pombos�.
� Agora venha ver, Sr. Evaristo, venha ver o que os ingleses
deixaram � insistiu de novo D. Branca.
� Tolice de minha mulher, Evaristo!
� N�o, n�o, tenha a bondade, Sr. Evaristo, tenha a bondade. Quero
que o senhor veja...
A um canto do terra�o, entre o quiosque e o gradil, estava uma
esp�cie de cilindro cor de cobre novo, com uma das extremidades em
forma de funil donde sa�a molemente, quebrando-se em curvas, um tubo
estreito de borracha.
30 Banheiro.
40
� Isso o que �? � perguntou, inclinando-se, o bacharel.
As duas senhoras abriram outra vez na risadaria, cabeceando,
agarrando-se como duas colegiais.
� Branca! � advertiu Furtado. � Olha que o Evaristo n�o � menino de
escola...
E segurando o amigo pelo bra�o o foi levando para dentro do
corredor.
� Isso � uma das grandes inven��es do s�culo, meu amigo; veio com
a descoberta do micr�bio parasit�rio.
Falavam baixo, com hipocrisia de homens que se querem dar ao
respeito. Mas D. Branca ouviu ainda um oh! de exclama��o que o marido
de Adelaide n�o p�de abafar.
Estava escurecendo. J� o sol mandava o seu �ltimo adeus � ter�afeira
com uns restos de claridade crepuscular.
Tanto o bacharel como a esposa acharam que se devia tratar logo da
mudan�a, ou antes da instala��o, porque Evaristo inda n�o comprara sequer
a cama de casal. � Mudar o qu�? S� se fosse uma rede que ele trouxera do
norte, uma rede espl�ndida, de labirinto, e os indiscretos ba�s de couro..
� N�o te fa�as miser�vel! � ralhou Furtado. � Um homem n�o tem o
direito de menosprezar-se. Um ba� pode conter as minas de Salom�o!
� O Evaristo vive a gracejar, Sr. Lu�s � disse Adelaide. � A mania
dele � chamar-se pobre, lamentar-se, berrar contra quem tem dinheiro!...
Isso at� desanima.
� Mas, ent�o, que querem voc�s que eu diga? Que ando com os
bolsos recheados? que tenho ap�lices no Tesouro? que deixei na prov�ncia
uma fazenda de gado? que trago os ba�s repletos de ouro e prata? Ora,
muito obrigado, minha mulher!
� N�o estou dizendo isso...
Aquele � que querem voc�s que eu diga? � referia-se exclusivamente
ao marido de D. Branca e a Adelaide. Esta notou o carinhoso plural e como
que sentiu no fundo d�alma um prazerzinho em se achar na companhia de
homem t�o educado e nobre. Aquele voc�s, dirigido a ela e ao Sr. Lu�s,
trouxe-lhe um pequeno abalo ao cora��o, qualquer coisa de intimamente
agrad�vel.
� D. Adelaide n�o est� dizendo isso � repetiu Furtado. � O que ela
est� dizendo � que tens a mania da pobreza, a mania das lamenta��es...
D. Branca, por seu turno, observou que o marido tratava Adelaide
com muita distin��o, muita gentileza; mas atribuiu � natural bonomia do
secret�rio.
Evaristo � que n�o observou cois�ssima alguma; dissera voc�s,
porque achava familiar o tratamento e porque tratava o Lu�s por voc� e
Adelaide por voc�, isoladamente. N�o havia raz�o para, referindo-se aos
dois, proceder doutro modo.
41
A mulher, por�m, descobre manchas no sol em pleno meio-dia e �
capaz de enxergar, com os olhos fechados, uma agulha num palheiro.
No outro dia, quando Evaristo voltou do Banco, encontrou o segundo
andar mobiliado; cadeiras, mesas, uma estante para livros, bela cama de
casal, guarda-roupa, cabides... o inferno!
Adelaide recebeu-o no primeiro andar, como de costume, risonha e
feliz, mas estranhando que lhe n�o perguntasse coisa alguma, rompeu o
sil�ncio:
� Que despes�o fizeste!
� Despes�o?..
� Sim; quanto custariam as cadeiras, a cama, o sof�...
Evaristo, em p�, no alto da escada, julgou que a mulher houvesse
enlouquecido e olhava-a, sem compreender as palavras.
� Que cama? que sof�? que cadeiras?...
� Que mandaste da rua...
� Eu?!
� Est� de muito bom gosto a cama, Sr. Evaristo � saltou D. Branca. �
Felicito-o!
Cada vez o bacharel compreendia menos o que lhe estava entrando
pelos ouvidos.
� De bom gosto?...
� Pois n�o foi o senhor quem escolheu a mob�lia?
� Eu n�o escolhi nada, pelo amor de Deus! � nem sei do que se
trata...
� Quer nos debicar, Adelaide, quer fazer surpresa... � disse a mulher
do secret�rio.
� Debicar!... surpresa!... Temos aqui almas doutro mundo?
Adelaide n�o quis acreditar numa brincadeira do marido, tal era a
sizudez que ele imprimia �s palavras naquela ocasi�o. Evaristo brincava,
mas conhecia-se logo o seu tom de pilh�ria.
� Deixem-me primeiro tomar f�lego, que eu estou me acabando! �
exclamou, dirigindo-se � sala de jantar.
As duas senhoras o acompanharam, entreolhando-se.
O bacharel encostou a bengala, respirou com al�vio e sentou-se.
� O Furtado inda n�o veio?
� ��T� agora, n�o � respondeu D. Branca.
� Ent�o, que hist�ria � essa de cadeiras e camas e sof�s? Expliquemse!
Adelaide explicou o caso da mob�lia: �s duas horas, mais ou menos,
tinha vindo um galego trazendo, numa carrocinha, meia d�zia de cadeiras,
um sof�, uma cama de casal, uma estante e outros objetos "para a casa do
Sr. Evaristo de Holanda, em Botafogo". N�o podia haver engano.
� Onde est�o esses objetos?
42
� L� em cima, tudo arrumado. A cama � que � um pouco larga...
Pois ele n�o mandara cois�ssima alguma nem tampouco autorizara
compra de m�veis ao Furtado. �s duas horas tinha estado com o secret�rio
no Banco e ele em tal coisa n�o falara. Salvo se o amigo inda uma vez
queria ser generoso e bom apresentando seu nome a algum armaz�m de
m�veis... Podia muito bem ser isso... Mas, ent�o, dir-lhe-ia francamente,
prevenindo-o com anteced�ncia, tomando mesmo uma nota dos objetos
indispens�veis a um casal. O Furtado, por�m, n�o o prevenira, n�o o
avisara sequer! Donde tinham vindo esses m�veis? de que armaz�m? de
que rua?
� Voc� compreende que a minha obriga��o era receb�-los � fez
Adelaide numa voz humilde.
� Perfeitamente, ningu�m diz o contr�rio.
� O Lu�s explicar� tudo, Sr. Evaristo. Havemos de saber quem foi da
id�ia.
� Corramos um olhar nos tais m�veis � disse o bacharel, erguendose.
O pavimento superior da casa j� n�o tinha o mesmo aspecto desolado
e vazio da v�spera, com as suas paredes escorridas, com o seu ar glacial de
eremit�rio. N�o. A sala da frente impunha-se agora aos olhos, convidando �
familiaridade, ao repouso honesto, � leitura de um bom livro. Meia d�zia de
cadeiras austr�acas, torneadas, o sof�, cadeiras de balan�o, dois consolos,
outra mesinha decorativa para o centro... Na alcova o leito, e o toucador
com espelho de cristal e pedra-m�rmore. Num dos quartos, o guarda-roupa
e os ba�s (os c�lebres ba�s de couro) e no outro a estante. Assim � que
Adelaide dispusera os m�veis, em acordo com D. Branca; unicamente para
surpreender Evaristo. Depois comprar-se-iam cortinas e bibel�s. O soalho
inda estava �mido da lavagem.
O bacharel cruzou os bra�os diante daquela transforma��o quase
milagrosa.
� Isto n�o pode deixar de ser obra do Lu�s! � disse, risonho. Sim,
estava quase convencido de que o Lu�s queria pregar-lhe uma pe�a. Quem,
no Rio de Janeiro, se lembraria dele sen�o o secret�rio? Ningu�m,
absolutamente ningu�m. Ele � que o tratava com um carinho de irm�o.
� Voc� que acha?
� Penso a mesma coisa. S� o Sr. Furtado...
� No entanto, o Furtado n�o arredou p� do Banco!
� As almas � que n�o foram... � murmurou, sorrindo, Adelaide.
E enquanto o outro n�o chegava, discutiu-se a proced�ncia dos
m�veis.
O secret�rio foi recebido com exclama��es e altos brados de
agradecimento e jovialidade.
43
� Est� de muito bom gosto a cama! � repisou D. Branca. � Assim �
que eu queria que voc� comprasse uma...
� E o guarda-roupa! � exclamou Evaristo.
� E a toilette! � fez Adelaide.
Mas o homem era como se estivesse numa casa de orates31; fitava
um, fitava outro, com ar interrogativo e surpreso.
� As senhoras est�o enganadas... Mob�lia?...
� Quem havia de ser? � interpelou o bacharel, crendo e n�o crendo
na estupefa��o do amigo.
� N�o mo perguntes a mim, que tamb�m n�o posso atribuir o caso ao
meu bodegueiro ou �s almas do outro mundo.
� Ora, falemos s�rio, n�o foste tu, mas foi o teu grande cora��o! �
resumiu Evaristo, desapontado.
� Juro-te!
� N�o acredito.
� Melhor pra ti...
Ao final das contas, a dignidade do bacharel teve um �mpeto de
orgulho contra �esse misterioso fornecedor gratuito de m�veis�, e declarou
positivamente que ia mandar tudo para o dep�sito, as cadeiras, a cama, o
sof�... tudo! N�o aceitava favores de pessoas estranhas e, de mais a mais,
ocultas num criminoso sil�ncio. Tudo para o dep�sito!
Uma gargalhada do secret�rio acolheu as �ltimas palavras de
Evaristo, comunicando-se a D. Branca e a Adelaide, que ia abrindo a boca
para lamentar �a sua linda cama de ramagens e o seu querido toucador de
m�rmore...�.
� Ent�o, vais mandar tudo para o dep�sito!...
E Furtado novamente ria, batendo com as m�os na mesa, inclinando
a cabe�a, sapateando.
� Impag�vel o nosso Evaristo! Simplesmente impag�vel esse homem
com a sua filosofia de algibeira e com os seus �mpetos!
� N�o te rias, que estou falando s�rio!
� Por isso mesmo...
E Furtado confessou generosamente, aprumando-se na cadeira, que
os m�veis tinham sido comprados por ele. N�o fizera mais do que um
dever de amigo.. . Restava saber se o Evaristo opunha-se � qualidade
sofr�vel do guarda-roupa...
� Qual opor-me! � disse o bacharel todo humilhado com a fineza do
secret�rio. � Escolheste a dedo!
� Mas n�o para ser entregue ao dep�sito.
� Para o dep�sito vou eu mandar os ba�s de couro e umas velharias
do meu tempo de prov�ncia.
31 Loucos.
44
E n�o se tornou a falar nos m�veis e a estima do bacharel pelo
secret�rio aumentou. Evaristo n�o perdia ocasi�o de gabar o Furtado,
exaltando-lhe o cora��o generoso, a grandeza d�alma e outras virtudes que
ele pouco a pouco ia descobrindo no seu velho colega de Liceu... Um
homem como se n�o encontravam muitos na terra do ego�smo e da
hipocrisia, nesse Rio de Janeiro fundamentalmente pervertido, onde as
trai��es contavam-se pelas amizades e ningu�m dava cr�dito sen�o ao ouro
e � maledic�ncia... Um homem que o recebera no seio da pr�pria fam�lia e
que, depois de o hospedar em casa, inda lhe emprestava dinheiro e fazia
surpresas como a da mob�lia! Era o que se podia chamar um filantropo, um
amigo excepcional!
� Que achas?
Adelaide confirmou os elogios, mostrando-se reconhecida �s boas
inten��es do secret�rio, qualificando-o de generoso, de nobre, de fidalgo,
emprestando-lhe todos os caracteres de homem de bem que n�o alardeia as
a��es merit�rias que pratica. O Sr. Furtado era um exemplo de delicadeza e
cavalheirismo. � Evaristo n�o via como ele a tratava? Interessava-se por ela
como por uma irm�; nas refei��es, nos passeios, � noite, quando jogavam.
E a mulher tamb�m, a D. Branca. Ambos muito am�veis!
� S�o simpatias... s�o simpatias... � explicava o bacharel, acendendo
o cigarro, com uma ponta de vaidade. � Tudo neste mundo � a gente se
insinuar... O orgulho mata a aspira��o, enfraquece o est�mulo.
De manh�, vinham os dois, ele e a esposa, almo�ar em companhia
dos Furtado, como pensionistas dum hotel, e Adelaide passava quase todo o
dia embaixo, na sala de jantar, com D. Branca, at� � hora da segunda
refei��o, lendo romances, relendo jornais, discutindo modas, costurando.
Uma vida sem preocupa��es, nem intrigas. D. Sinh�, do desembargador, �
que �s vezes ia interromp�-las com hist�rias de namoro e bilhetinhos e
novidades de Botafogo, sempre muito misteriosa e muito coberta de p�-dearroz.
Furtado n�o gostava dela, n�o lhe achava encanto e profetizava-lhe
horrores!
Que mais podia querer Adelaide? Que outras ambi��es podia desejar
Evaristo? Perguntasse-lho, e eles n�o saberiam responder. Tinham casa,
c�modos independentes. boa mesa, boas amizades, tudo por pouco
dinheiro, gra�as � generosidade do secret�rio, cuja dedica��o parecia
aumentar.
� E o piquenique no Jardim Bot�nico? � lembrou Furtado uma bela
manh�.
� � verdade, o piquenique? � repetiu D. Branca.
� Por mim, � quando quiserem � disse o bacharel. � Ningu�m mais
do que eu aprecia o campo, as �rvores, o ar fresco, e o perene correr de um
fio d'�gua.
� Voc� por que n�o determina? � perguntou Branca ao marido.
45
� Tantas manh�s boas para a gente se divertir!
Furtado marcou o primeiro domingo de sol. Convidava-se
unicamente o visconde de Santa Quit�ria. Nada do desembargador, nem de
pessoas estranhas. Havia de ser um piquenique familiar, uma coisa toda
�ntima sobre a relva macia, bem longe da entrada do jardim, debaixo de
uma �rvore.
� Ao champanha? � perguntou D. Branca com os olhos faiscantes,
numa alegria s�bita.
� Ao champanha, sim, ao champanha. Um piquenique delicado e de
bom gosto, como se usa em Petr�polis e na Europa... Toilettes claras,
roupas leves, menu � francesa, encomendado ao Pascoal!... e que ningu�m
se lembre de morrer enquanto houver sol e �rvores na natureza!
� N�o convidas a Tourinho?
Mas Furtado declarou inda uma vez que s� convidava o visconde,
isso mesmo porque devia muitos favores ao Santa Quit�ria.
� Nem ao Dr. Condicional? � gracejou Evaristo.
Furtado esbo�ou um risinho, compreendendo a ironia, e n�o
respondeu.
Eram de uso, ent�o, os piqueniques no Jardim Bot�nico. Em se
aproximando o calor, o grande parque enchia-se, aos domingos, de uma
popula��o ruidosa e prom�scua, de milhares de pessoas de ambos os sexos,
largamente espalhadas, indo e vindo, nos seus trajos fofos, ao som de uma
banda de m�sica oculta pitorescamente sob as �rvores; e os tons claros das
toilettes, o colorido g�rrulo dos vestu�rios matizavam a frescura sombria
dos caramanch�es, de mistura com o vermelho sang��neo dos flamboyants.
Risadas estalavam num cascatear argentino que se ia perder nos longes da
mata, ecoando em ondas sonoras de uma cristalinidade musical. No centro
da comprida al�ia de palmeiras que vai desde a entrada at� o fundo da
quinta, um repuxo esguichava perenemente, caindo em leque numa grande
bacia de pedra, rodeada de mirtos silvestres. Crian�as apostavam corridas e
juntavam ao som da m�sica a alegria de suas vozes. Em toda a parte a
mesma liberdade comunicativa, a mesma expans�o domingueira. Desde as
cinco horas da manh� at� as sete da noite, o Jardim Bot�nico era como uma
grande sala de hotel. Almo�ava-se, lanchava-se, jantava-se ao ar livre, sob
os castanheiros, na relva fresca e cheirosa, � beira dos lagos.
Ao primeiro domingo de abril realizou-se o sonhado piquenique. A
manh� estava radiosa, de uma inef�vel limpidez, o contorno das montanhas
muito vivo, sem borr�es de nuvens, recortando em ziguezague o azul
infinito e puro do c�u � manh� deliciosa como uma recorda��o do passado
ou como uma tela impressionista em que vibrasse a alma das coisas numa
estranha sinfonia buc�lica de poema virgiliano32... manh� como essas de
que falava a esposa do secret�rio � boa para a gente se divertir, para a gente
32 Relativo ao poeta romano Virg�lio (71-19 a.C.), autor das Buc�licas, das Ge�rgicas e da Eneida.
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esquecer um pouco as mis�rias da vida, longe da Rua do Ouvidor e das
mexeriqueiras do bairro... Valia a pena, decerto, aproveitar uma manh�
como aquela, indo entre as �rvores, no seio bom da natureza, bebendo a
�gua das fontes, a ouvir o misterioso segredar dos p�ssaros e o trilar dos
insetos invis�veis � na Tijuca, no Jardim Bot�nico, em Petr�polis, em
Friburgo, em Santa Teresa..., onde quer que houvesse frescura e um pouco
d'�gua l�mpida.
Todos acordaram cedo, a come�ar por D. Branca e a acabar por
Evaristo, que, � �ltima hora, n�o se sentia em condi��es muito favor�veis a
uma jornada no campo; mas, enfim, sempre se resolveu, depois de tomar
uma dose de conhaque com a��car.
A mulher de Furtado, sobretudo, n�o ocultava o bom humor que lhe
ia na natureza. Era doida por piqueniques, ningu�m lhe falasse em
piqueniques! Ergueu-se �s quatro horas, mesmo porque n�o dormira bem
com o calor, e foi � janela da frente ver como amanhecera o dia, �se o
Corcovado tinha nuvens�... Qual nuvens! O perfil da montanha estava
limpo na meia sombra do alvorecer. Qual nuvens! Da� a pouco o solzinho
estava fora e ela em caminho para o Jardim Bot�nico, mais o Furtado e a
Adelaide e o Evaristo e o visconde, o simp�tico visconde, o homem que ela
tanto admirava e que em toda a parte era o mesmo � elegante, correto,
generoso como um nababo, fidalgo at� no abotoar a luva a uma dama... Oh,
o visconde de Santa Quit�ria! Como ela se ia divertir, naquele passeio ao ar
livre, como ela ia gozar! A �ltima cartinha dele...
� Que horas s�o?
Era a voz do secret�rio, inda na cama, na frescura matinal dos
len��is. D. Branca teve um pequeno susto, um ligeiro sobressalto.
�Que horas eram? Quatro e meia...�
Ele, ent�o, bocejou, espregui�ou-se molemente, co�ando-se e tornou
a perguntar:
� Quatro e meia?
� Deu agora... N�o fa�as barulho para n�o acordar a Julinha.
� Vamos tratando de nos vestir.
� Vamos. N�o tarda clarear.
E come�aram as ablu��es, os preparativos.
No segundo andar o som abafado de um despertador el�trico fez
sinal retinindo embaixo, nos aposentos do secret�rio. Ele e a mulher
trocaram algumas palavras. Tinham combinado com o visconde para as seis
horas e o visconde prometera n�o faltar. � �s seis em ponto estaria na casa
do amigo Furtado.
Foi pontual o Santa Quit�ria � quest�o de mais um minuto, menos
um minuto. Vinha chique e alegre, sorrindo ao aproximar-se da casa do
47
secret�rio, no seu veston33 de brim, chap�u de palha, bin�culo a tiracolo e
uma pequena valise cor de chocolate.
As duas senhoras correram � janela e o marido de D. Branca foi
receb�-lo � porta da rua.
O visconde apeou nobremente, murmurou qualquer coisa ao
boleeiro, e, risonho, apertando a m�o a Furtado:
� Creio que estou na hora...
O secret�rio respondeu com uma exclama��o venturosa, estirando o
bra�o para o Corcovado:
� Veja que dia lindo!
� Efetivamente! Est� convidativo, est� pr�prio!
E respeitoso, solene, o am�vel banqueiro perguntou pela
�excelent�ssima senhora� e pelas crian�as.
� Todos bons, muito obrigado. O senhor visconde � que tem
mocidade para um s�culo!
� Oh, meu amigo... As apar�ncias iludem... j� me vou sentindo
cansadinho, gra�as a Deus.
� Ora, o senhor visconde!
Branca e Adelaide gentilmente o acolheram no alto da escada.
Evaristo completava a toilette no segundo andar
� Que dia lindo, senhor visconde! � fez a esposa do secret�rio.
recuando para deixar passar o Santa Quit�ria.
� Lindo, minha senhora, lind�ssimo!
Tinham todos um ar alegre e trataram-se com uma familiaridade
burguesa, na mais bela disposi��o de �nimo.
Adelaide, curiosa, quis ver se o visconde trazia o anel�o de brilhante,
e os seus olhos procuravam a m�o do banqueiro. Trazia, sim. Era uma das
coisas que ela admirava naquele homem � o anel, uma j�ia primorosa,
inestim�vel.
� O senhor seu marido vai bem, minha senhora?
� Bem, obrigada � respondeu Adelaide, menos cerimoniosa.
Porque o visconde de Santa Quit�ria em roupa de passeio n�o tinha
ares de fidalgo, como quando se apresentava de casaca ou mesmo no seu
fraque justo e elegante. A roupa branca � larga e mole no corpo dava-lhe
uma fei��o distinta, mas democrata, uma fei��o popular de rapazola que
sacrifica o luxo pela comodidade, a moda pelo bem-estar. Vendo-o assim, a
esposa de Evaristo animara-se a lhe responder em tom quase �ntimo de
conhecidos velhos.
O criado trouxe uma bandeja com chocolate e p�o-de-l�. Todos se
serviram, inclusive o bacharel, que j� estava presente.
33 Jaquet�o.
48
Afinal, depois de meia hora de palestra matutina, e aos primeiros
clar�es do sol triunfante, a comitiva, em dois carros, tomou a dire��o do
Jardim.
O visconde fora se reunir � fam�lia do secret�rio n�o tanto por
delicadeza, quanto por �chiquismo�, para ir na companhia das senhoras,
gozando a am�vel presen�a de D. Branca e da jovem Adelaide. N�o queria
perder ocasi�o de se mostrar na altura dos seus sentimentos e da intimidade
com que o tratavam as dignas senhoras. O t�tulo de nobreza, que ele
carregava solenemente h� dois anos, gra�as � benevol�ncia do Sr. D. Pedro
II, n�o o impedia dessas e outras manifesta��es democr�ticas. Os reis
tamb�m apertam a m�o ao povo e tamb�m l� um dia esquecem as p�rpuras
e a coroa, trocando-as pelo redingote34 burgu�s... O pr�prio imperador j�
uma vez desembarcara na Europa, no cais Sodr�, de sobrecasaca e guardap�,
como qualquer mortal.
Estimava muito o amigo Furtado e a Sra. D. Branca para n�o ter
orgulhos de nobreza, nem de fidalguia. O seu palet� branco e a sua cal�a
branca naquele momento significavam intimidade e tamb�m um pouco de
eleg�ncia. A toilette em harmonia com a esta��o e com o g�nero de
passeio.
Num dos carros ia ele, D. Branca e o secret�rio, no outro Adelaide,
Evaristo e o Raul. A Julinha fora passar o domingo � casa do
desembargador; D. Sinh� prometeu desvelar-se por ela.
Na frase entusi�stica do visconde �o dia estava lind�ssimo!�, o c�u,
muito azul, parecia o fundo largo de uma tela desdobrando-se infinitamente
por sobre o universo. A Corte espregui�ava-se aos primeiros ru�dos da
manh� luminosa. Na plataforma dos bondes flutuavam bandeirinhas verdeamarelas
com a coroa nacional. Os quiosques de Botafogo tinham o
aspecto risonho de pavilh�es infantis, embandeirados tamb�m, com os seus
galhardetes em arco, sob as �rvores, olhando para o mar. Um cheiro vivo
de jasmins inundava a atmosfera, como que aveludando-a cariciosamente.
Principiava a agita��o nos caf�s e nas hospedarias. O Raul julgou mesmo
ouvir sons de m�sica ao longe e apurou o ouvido: � �Se n�o estava
enganado...�
Ia para mais de seis horas.
O visconde foi o primeiro a apear. Todos apearam, numa grande
alegria, diante do port�o do �nosso Bois de Boulogne�35 como dizia o Santa
Quit�ria.
Furtado indagou logo se o homem da rotisserie36 j� teria vindo, e
lan�ou um olhar curioso pelas proximidades do port�o.
� Qual! Ainda n�o veio... Pois olhem que eu tratei para as sete horas!
34 Sobrecasaca.
35 O Bois de Boulogne � o maior parque de Paris.
36 Estabelecimento onde se vendem carnes e outros assados.
49
O visconde tranq�ilizou-o puxando o rel�gio, e dizendo que ainda
faltavam quinze minutos para as sete.
� A� vem ele! � descobriu o Raul com um gesto alvissareiro,
apontando para um homem que trazia na cabe�a uma grande caixa de folha
em que se liam as inscri��es: Confeitaria Pascoal � Rua do Ouvidor.
� Ora muito bom-dia! � Saudou o empregado aproximando-se.
� Bom-dia � corresponderam todos a uma voz.
Um clar�o iluminou os olhos vivos do filho do secret�rio.
� J� h� bocado que estou � espera de vossas senhorias � tornou o
homem da caixa.
� V� entrando e acompanhe-nos � ordenou Furtado.
O visconde ofereceu o bra�o gentilmente � D. Branca e, com as
demais pessoas � ele � frente � �seguiu em linha reta para o interior do
jardim.
L� estava, entre as palmeiras, o repuxo cantando, em fios d'�gua, a
mon�tona balada das fontes; ouvia-se, de longe, o ruidozinho da �gua a
esguichar, caindo em arcos para um e outro lado e confundindo-se quase
com o nost�lgico farfalho das �rvores. O sol, brando e macio, erguia-se
lento, sobredourando as emin�ncias, pouco a pouco iluminando a espessura
do arvoredo e a larga extens�o verde que enchia bruscamente os olhos
encantados de Adelaide como um sonho de gl�ria e bem-aventuran�a.
Respirava-se a frescura das plantas e o aroma fino das trombetas e das
rosas, a ess�ncia matinal das grandes �rvores e dos pequenos vegetais que
acordavam � vida num banho morno de luz. Pompeavam estranhas
flora��es no recesso da mata e um hino misterioso parecia levantar-se da
natureza ao astro fecundante que ressurgia com o seu esplendor
incompar�vel de rei absoluto.
Vinham chegando outras fam�lias, outros casais, outros grupos, que
logo se perdiam no emaranhado das al�ias laterais, e em todas as
fisionomias brilhava uma satisfa��o �ntima, um como prazer novo e
especial, um reflexo de imortalidade astral.
O visconde parou no chafariz. Todos pararam no chafariz.
� � realmente belo! � exclamou o bacharel com os olhos erguidos em
�xtase para a copa das palmeiras.
� A Tijuca � mais solene... � observou circunspecto o visconde.
� O barulho da cascata � como se a gente estivesse num ermo
religioso... no meio de um deserto... muito longe... . muit�ssimo longe...
� Oh, ent�o deve ser triste demais... � argumentou o marido de
Adelaide.
� Como triste? � encantador! � po�tico!
� Falta aqui o Dr. Condicional para dizer que lembra o Evangelho na
selva... � insinuou o amigo de Furtado.
50
O visconde achou gra�a, e, desdenhoso, carregando a esposa do
secret�rio:
� Um petit-ma�tre37, o tal Manh�es!
Todos riram, inclusive o Raul que perguntou � mam�e o que era
petit-ma�tre.
Escolhido o local para o piquenique, sob um caramanch�o agreste de
parasitas imitando a entrada de um t�nel e onde havia uma grosseira mesa
de pedra, nos fundos do jardim, o bacharel prop�s uma volta, uma grande
volta �para abrir o apetite�.
Ningu�m discordou da id�ia. O Ant�nio ficava botando sentido �
comida. (Ant�nio era o criado do secret�rio.)
� Um vermutezinho n�o � mau antes do almo�o, oh, visconde... �
lembrou Furtado.
� V� l� um vermute.
� J� t�o cedo! � exclamou Adelaide.
� Pois ent�o!... � fez D. Branca.
� Cedo para preparar o est�mago � replicou o banqueiro.
� Ah!...
O pr�prio Furtado tirou da cesta c�lices, uma garrafa intacta que o
Ant�nio abriu com estampido, e bebericaram.
� Agora, toca!
E marcharam, ora a dois e dois, ora a tr�s e tr�s, por entre os tufos
verdejantes, papagueando e rindo, num come�o de liberdade familiar. Aves
ariscas voavam pressentindo-os; pipilavam ninhos na frondosa espessura
das ramagens; estridulavam cigarras em desafio, numa orquestra��o aguda
e un�ssona.
Evaristo, no meio de toda aquela paisagem tropical, de uma riqueza
encantadora, lembrou-se da prov�ncia, e, num tom solene e misterioso,
recitou descobrindo a cabe�a e estacando:
� Solid�o, eu te sa�do! Sil�ncio do bosque, salve!
Lera isso h� muito num cl�ssico portugu�s e nunca um pensamento
alheio fora t�o bem empregado!
� Olhe, D. Adelaide, como se deita a perder um homem � gracejou o
secret�rio.
Adelaide sorriu.
� Voc�s � porque n�o sabem glorificar a natureza, voc�s � porque
n�o l�em os cl�ssicos! � replicou o bacharel.
� Mas n�o te lembras do resto.
� Como n�o me lembro, se � uma das p�ginas que eu nunca hei de
esquecer?
E o bacharel, sem receio de escandalizar o aprumo do Santa Quit�ria,
berrou para o alto, como se falasse �s nuvens:
37 Janota. Homem trajado com luxo desmedido e pretensioso.
51
� Solid�o, eu te sa�do! Sil�ncio do bosque, salve! A ti venho, oh
natureza; abre-me o teu seio. Venho depor nele o peso aborrecido da
exist�ncia; venho despir as fadigas da vida!. .. Os homens n�o me deixam;
amparai-me v�s, solid�es amenas, abrigai-me, oh solid�es deleitosas.
� Onde queres tu chegar com essa desfruteira,38 oh Evaristo? �
interrompeu o outro.
� Quero chegar ao fim da p�gina...
� Olha que isso � um desrespeito ao visconde! � segredou Adelaide.
O banqueiro, por�m, havia-se destacado um pouco e marchava com
D. Branca, sem se incomodar, no seu passo lento de gar�a real. Atr�s
vinham as outras pessoas. O secret�rio tinha absoluta confian�a no
visconde; at� aborrecia-o dalgum modo a sisudez, a gravidade patriarcal do
celibat�rio. A Branca ia muito bem na companhia dele, do Santa Quit�ria.
Este, enquanto o bacharel discursava e vendo-se longe de ouvidos
perigosos, abriu v�lvulas ao cora��o, baixinho e disfar�adamente.
� Creio que n�o a posso esquecer; acordo e deito-me pensando no
nosso grande amor... Imagine se estiv�ssemos s�s aqui.
� Oh!...
Mas deixe estar que ainda havemos de ser muito felizes... muito
felizes.
� Eu bem sei que me ama, bem sei, mas vi-o outro dia interessar-se
tanto pela minha amiga Adelaide...
O capitalista sorriu benevolamente, como quem perdoa.
� Sua amiga Adelaide � uma crian�a... uma menina de ontem... e eu
seria incapaz... Oh!... fa�a-me justi�a...
� Eu n�o estou afirmando...
� Creia que n�o me preocupo com outra pessoa.
� E que tal a id�ia do piquenique? Supus que n�o viesse...
O banqueiro guardava a atitude respeitosa e fidalga de quando se
exibia nos sal�es. Ia responder, mas ouviu passos na areia. Voltou-se: eram
as outras pessoas, o Raul, Evaristo, Adelaide e o secret�rio, que se
aproximavam silenciosamente.
Foi longo o passeio atrav�s das �rvores, em romaria buc�lica e
matinal pelas avenidas do jardim. O visconde colhia flores dedicadamente
para as senhoras. D. Branca, mesmo na presen�a do marido, colocou uma
na sua botoeira, sempre risonha, sempre af�vel, multiplicando-se em
gentilezas ao Santa Quit�ria. Adelaide, entre Evaristo e Furtado n�o perdia
o ar ing�nuo e melanc�lico que tanto preocupava ao Manh�es na noite do
batizado e que encantava o secret�rio. Este volvia constantemente os olhos
para ela e de vez em quando arriscava um segredinho inofensivo, uma
pilheriazinha, elogiando-a, gabando-lhe os olhos, a boca, fazendo alus�es
amorosas �s flores, glorificando o amor livre dos p�ssaros, lembrando
38 Fantasia.
52
cenas de romances, epis�dios do campo... Furtado aproveitava os
momentos em que o bacharel ia, com o Raul, fazer provis�o de flores �para
enfeitar a mesa do lanche�.
Os dois j� n�o sabiam onde colocar flores; levavam grandes buqu�s
feitos � pressa. O secret�rio achava muita gra�a naquela amizade do Raul
ao Evaristo.
� Se meu marido � uma crian�a! � ralhava Adelaide.
� Uma crian�a de vinte e oito anos!... � dizia o secret�rio.
� Crian�a, porque n�o tem ju�zo, porque n�o se importa...
� Deixe-o l�, deixe-o l�... � g�nio.
� Mas n�o fica bonito, n�o � s�rio.
De novo entravam todos na grande al�ia de palmeiras e de novo
chegaram ao caramanch�o escolhido para o piquenique.
Ia para as onze horas. O sol inundava a floresta e nenhuma nuvem
toldava a maciez l�mpida do c�u. Todos respiraram ao entrar no
improvisado restaurante coberto de folhas, rodeado de �rvores e onde se
gozava uma frescura deleitosa e aromada de selva.
� Uf! � respirou Evaristo sentando-se. � J� � andar. Olhem que
demos a volta ao jardim!
� Outra dose de vermute � prop�s o secret�rio.
� Apoiado, apoiado! � murmurou o visconde fazendo-se alegre.
As duas senhoras conversavam endireitando as toilettes, revistandose
uma � outra com risadinhas.
O Ant�nio pusera �a mesa�; uma toalha muito branca alvejava no
pequeno recinto que a luz mal penetrava. Sobre a toalha brilhavam os
talheres de metal branco e os copos de cristal muito finos, e as flores que o
Raul colhera. Ao aspecto risonho da mesa as fisionomias tomaram uma
express�o viva de conforto. � �Era tempo de se ir comendo qualquer
coisinha...� � balbuciou Evaristo ao secret�rio. Este dispunha tudo na
melhor ordem, falando ao Ant�nio, sorrindo ao banqueiro, uma atividade
pasmosa de gar�on d'h�tel.39
De dentro da caixa da confeitaria surgiu primeiro um prato com volau-
vents40 e logo seguiu-se o estampido de uma garrafa que se abre.
� Vamos, vamos � comandou Furtado. � Senhor visconde. D.
Adelaide... Branca... Evaristo... V�o se sentando...
Riram-se todos � falta de cadeiras. Mas havia no caramanch�o, longe
da mesa, um banco de pedra, onde se sentaram as duas senhoras. Os
homens comiam em p�.
� Aqui h� ainda um lugar, senhor visconde � ousou amavelmente a
esposa de Furtado conchegando-se � amiga.
39 Empregado de hotel. Camareiro.
40 Tipo de guloseima salgada semelhante � empada, recheada com creme de leite.
53
� N�o, n�o, minha senhora, obrigad�ssimo; eu fa�o companhia aos do
meu sexo...
� Isso, visconde, isso! � aprovou o bacharel. � Um homem � um
homem!
Vieram outros pratos, outras iguarias delicadamente feitas no
Pascoal, sob encomenda do secret�rio: uma espl�ndida torta de camar�es �
regada a Sauterne41 � ostras e uma bela garoupa fria e apetitosa, n�o
falando no hors-d'oeuvre42, no fiambre, nas azeitonas muito fresquinhas e
muito negras que o visconde colhera com a ponta dos dedos, e as frutas ao
dessert43 � p�ssegos, uvas e abacaxi frapp�.44
O almo�o correu alegre, muit�ssimo alegre, cheio de risos,
fermentado pelo Bourgogne45 e pelo champanha � um almo�o leve,
delicad�ssimo e substancial, �aristocraticamente fino�, como ideara o
esposo de D. Branca. Evaristo, ao abrir-se o champanha, pediu que n�o se
fizessem brindes.
� O brinde � a maior tolice do s�culo dezenove � explicou ele,
tragando uma roda de abacaxi. � O brinde parece at� uma inven��o do
Valdevino Manh�es ou de Mr. de La Palisse46; eu sou contra o brinde como
sou contra a mon...
Ia dizendo monarquia, mas arrependeu-se logo, sem olhar para o
visconde:
� ... Como sou contra o voto feminino!
� Eu s� compreendo o brinde quando � de honra, � Sua Majestade o
Imperador, � princesa... ou mesmo a um homem ilustre que se n�o
confunda com o resto da gente.
� Qual, senhor visconde! exclamou o bacharel depondo o talher.
� O brinde, seja ele a quem for, � uma das muitas ridicularias da
civiliza��o... N�o sei como qualificar o indiv�duo que interrompe a boa
digest�o de uma mesa, de uma sociedade, para, de ta�a em punho, levantar
um brinde �s virtudes de outro, n�o sei.
Evaristo esquecia-se do batizado da Julinha em que o diretor do
Banco Luso-Brasileiro fizera diversos brindes entre os quais um a seu
amigo Furtado, que por sua vez brindara � seren�ssima herdeira do trono.
Adelaide fez-lhe sinal piscando o olho, mas o bacharel n�o percebeu
e concluiu dizendo catedraticamente que o brinde �era uma prova de
ignor�ncia e de tacanhez intelectual�.
41 Esp�cie de vinho branco.
42 Pequenos petiscos servidos antes da refei��o principal.
43 Sobremesa.
44 Gelados.
45 Tipo de vinho tinto franc�s de alta qualidade.
46 Jacques de Chabannes, senhor de La Palisse (1470-1525). Nobre franc�s cujo nome � associado �
redund�ncia dos fatos.
54
Todos estranharam aquela franqueza perante o visconde de Santa
Quit�ria, na presen�a do respeit�vel amigo de Suas Majestades que
ningu�m ousava contrariar nas menores coisas.
Furtado disfar�ou o mau efeito das palavras de Evaristo, dizendo
alegremente que, para provar ignor�ncia e tacanhez intelectual, ia brindar �
Inspetoria do Jardim Bot�nico e mais � flora brasileira.
� Muito bem, muito bem, meu amigo � fez o visconde erguendo o
copo. � O esposo da Sra. D. Adelaide estava bem para niilista47, ao que
vejo. Atira-lhe com um brinde � flora.
As palavras do visconde mereceram aplauso das duas senhoras.
Adelaide e Branca saudaram-no entusiasticamente.
� Bravo, senhor visconde, bravo � exclamaram as duas a um tempo.
E Evaristo, esmagado pela maioria, bebeu tamb�m � sa�de do Jardim
Bot�nico, �uma vez que o amigo Furtado e o ilustre senhor visconde faziam
quest�o�.
Beberam, e o champanha, caindo no est�mago farto dos homens e
das senhoras, trouxe-lhes ainda mais alegria e expans�o.
A pr�pria Adelaide tinha agora um brilho comprometedor nos olhos,
uma viveza fora do natural, e falava tamb�m, muito risonha, inclinando a
cabe�a no ombro de Branca. A mulher do secret�rio lamentou a aus�ncia da
vi�va Tourinho; faltava uma senhora para completar tr�s casais, e a vi�va
sabia se divertir como gente, era uma bela companhia.
� E o desembargador? por que n�o convidaram o desembargador
Lousada? � disse o marido de Adelaide, devorando um cacho de uvas.
� Oh, Evaristo, voc� ainda come? � acudiu a jovem esposa do
bacharel, cujas faces, ordinariamente p�lidas, tinham agora um ruborzinho
quente.
Furtado perguntou, ent�o, se ainda queriam tomar alguma coisa, e
como todos recusassem, prop�s novo passeio atrav�s das �rvores. Ningu�m
discordou da id�ia. Evaristo, por�m, falou ao ouvido do secret�rio, que lhe
respondeu baixinho, acrescentando alto, para as senhoras e o visconde:
� Podemos ir, podemos ir; o Evaristo ir� depois...
� Como, ir� depois? � perguntou Adelaide com um arzinho de riso.
� V�o andando, que eu j� os encontro � disse o bacharel
misteriosamente. � � quest�o de minutos...
� Espera por ele, oh Raul � ordenou Furtado.
E, oferecendo o bra�o a Adelaide, � imita��o do visconde, que j� se
apoderara de D. Branca, saiu do caramanch�o.
O n�mero de passeantes aumentava com o correr da tarde. O jardim
ia-se enchendo de fam�lias e rapazes que percorriam as avenidas de chap�ude-
sol aberto � luz das duas horas. Os sons da m�sica chegavam aos
ouvidos distintamente na aragem acariciadora que soprava. Como que
47 Adepto do movimento revolucion�rio russo que pregava a destrui��o de todas as institui��es.
55
esmoreciam os tons vivos da paisagem, num desmaio lento; o sol esfriava
um pouco e o azul tinha agora uma cor poeirada de cinza, como um espelho
que de repente se ofuscasse a um bafejo �mido. Todas as coisas iam
mudando de aspecto � propor��o que se aproximava o fim da tarde. Os tons
vivos iam-se traduzindo em tons melanc�licos; a natureza, cansada de luz,
queimada pelos ardores do sol, numa indol�ncia outonal, volvia-se para o
crep�sculo, adivinhava a noite. O repuxo central do Jardim entoava a sua
ladainha num ritmo blandicioso48 de cascata long�nqua.
Furtado queria se abrir com Adelaide agora que estavam s�s, dizerlhe
tudo quanto sentia por ela desde que a vira pela primeira vez, contar-lhe
as suas ins�nias, o muito que a estimava, a extraordin�ria simpatia que ela
lhe inspirava; mas uma timidez amorda�ava-o, uma timidez de colegial, e,
no fundo, um vago sentimento de compaix�o pelo amigo, pelo Evaristo,
seu velho contempor�neo do Liceu, cujas qualidades, ontem como hoje,
eram dignas do respeito que se deve a um chefe de fam�lia honesto e
exemplar. Al�m disso, temia qualquer movimento de indigna��o por parte
de Adelaide; ela talvez o repelisse, dando esc�ndalo num lugar p�blico,
desabafando ali mesmo em face do visconde e de sua mulher, inutilizandoo.
Mas logo esses temores desapareciam e voltava-lhe o �nimo, a coragem
de homem useiro e vezeiro nas pugnas do amor f�cil.
E j� n�o pensava no Evaristo nem nas conseq��ncias de uma
deslealdade infame, trancando o cora��o ao sentimentalismo e aos influxos
nobres, abstraindo de tudo que n�o fosse o desejo criminoso e l�brico de
aumentar o n�mero das suas conquistas. Porque, em verdade, a presen�a
daquela mulher tirava-lhe o sossego �ntimo, arrebatava-o como a presen�a
de outras igualmente respeit�veis e a quem ele seduzira com os seus
brilhantes e com as suas l�bias, triunfando como um general invenc�vel.
Apontava-as a dedo; via-as passar na Rua do Ouvidor e saudava-as feliz e
glorioso. Adelaide sorria-lhe e tanto bastava para que dentro dele se ateasse
a chama rubra do desejo, lambendo-o vorazmente, como uma l�ngua de
fogo, queimando-lhe o cora��o, escaldando-lhe o c�rebro.
Ele ent�o apertava-a contra si, mordendo o bei�o, ameigando o olhar,
com �mpetos de explodir numa declara��o formal, absoluta e suprema,
como se estivesse de joelhos num confession�rio, e pedir-lhe, pelo amor de
Deus, por vida de seus olhos, por tudo! que soubesse corresponder �quela
estima, �quele amor, �quela loucura.
Adelaide ia rindo, muito satisfeita, n�o completamente fora do
c�rculo de id�ias que preocupavam a Furtado; de algum modo ela n�o
estava muito longe de preferir o secret�rio a Evaristo; iniciada nos
segredinhos de alcova por D. Branca, que lhe abrira os olhos � vida
fluminense, tumultuosa e desregrada, na rua como nos sal�es, vendo o
exemplo de outras mulheres e da pr�pria Branca, Adelaide insensivelmente
48 No texto: suave.
56
ia-se deixando absorver pelo meio que a cercava, embora a educa��o que
recebera na prov�ncia, os h�bitos ing�nuos, a natural timidez, que ainda
conservava, n�o cedessem logo a um primeiro impulso do cora��o. Ela
notava as delicadezas de Furtado, via-o quase sempre de olhos cravados no
seu rosto como se quisesse adivinhar o que lhe ia n�alma, guardava o caso
da mob�lia e dos duzentos-mil-r�is e muitas outras provas de generosidade
e fineza do secret�rio; mas atribu�a tudo a um sentimento de amizade para
com Evaristo, a um impulso natural de velho companheiro de escola.
Iam por uma al�ia sombria de bambus, cuja copa unia-se formando
um t�nel verde extenso, que se prolongava em ziguezague. �s vezes o
banqueiro desaparecia numa curva com a mulher de Furtado, e o secret�rio
conchegava o bra�o de Adelaide, numa press�o meiga e voluptuosa, como
se a quisesse envolver de carinhos, o olhar medindo toda a singeleza do seu
perfil, resvalando-lhe na c�tis do rosto e caindo apaixonadamente no
pesco�o que as rendas do pliss�49 guarneciam de branco.
As palavras dele, ungidas de ternura, ritmadas pela emo��o, Adelaide
ouvia-as inquieta, e, instintivamente, apressava o passo, medrosa, de estar
ali sozinha �com um homem!�.
� Como � escura esta avenida! � exclamou, de repente, erguendo os
olhos para a copa dos bambus.
Furtado estremeceu.
� Escura, mas muito agrad�vel, n�o acha? � murmurou quase ao
ouvido dela.
� Pelo contr�rio...
� N�o diga pelo contr�rio... Leia os poetas... A solid�o convida ao
amor...
Adelaide estranhou aquelas palavras e calou-se.
O trajo branco do visconde assomou longe e tornou a desaparecer
entre as �rvores.
A esposa do bacharel queixou-se de uma dorzinha de cabe�a; o
champanha lhe fizera mal.
Ele tranq�ilizou-a, dizendo que o champanha n�o fazia mal a
ningu�m; que era uma bebida inofensiva como �gua... O vinho do Porto,
sim, o vinho do Porto estragava o est�mago. Mas n�o tinham tomado vinho
do Porto...
� Ent�o � do sol.
� E do muito sol que apanhamos. Eu mesmo sinto um fogo na
cabe�a, uma quentura no c�rebro.
De repente o secret�rio estacou; descobrira um pequeno inseto cor de
ouro no ombro de Adelaide. Colheu-o na ponta dos dedos e mostrou-lho.
� Veja que bonito!
� � verdade: lindo!
49 Plissado. Que possui pregas uniformes e sim�tricas.
57
� Naturalmente confundiu-a com alguma rosa..
� Que gra�a, senhor Furtado...
� E ent�o? Admira-se de que eu a compare a uma rosa?
� Muito lindo! � repetiu Adelaide observando o insetozinho na palma
da m�o.
Estavam agora frente a frente ocupados com a descoberta do
cole�ptero50, ele sem tirar os olhos dela, todo embebido na contempla��o
do seu rosto ideal.
� O Evaristo gosta muito de insetos, vou guardar para ele.
E depositou cautelosamente o besouro na bolsa de couro da R�ssia
que sempre trazia, dizendo:
� Que demora de meu marido!
� Anda �s voltas, com o Raul.
E no momento em que ela fechava a bolsa para continuar o passeio,
Furtado abaixou a cabe�a, num movimento nobre, e beijou-lhe
audaciosamente a m�o, oferecendo-lhe, ato cont�nuo, o bra�o.
� Senhor!...
Ia exclamando: � Senhor Furtado!... � num tom de admira��o e de
queixa; mas, o ins�lito procedimento do secret�rio gelou-a.
Um beijo!... Faltava-lhe toda a coragem, toda a presen�a de esp�rito,
para reagir no mesmo instante, lembrando ao marido de D. Branca o
respeito que todo o homem deve a uma senhora casada. Penderam-lhe os
bra�os, curvou a cabe�a, e em vez de uma explos�o de palavras que
demonstrassem a Furtado a sua indigna��o e o seu assombro, ela deixou
que as l�grimas corressem como p�rolas de ros�rio desfiado. Nunca homem
algum se atrevera a tanto, nunca o seu pudor de mulher fora t�o cruelmente
magoado como naquela ocasi�o e por um homem que devia ser o primeiro
a respeit�-la.
� Adelaide... � murmurou Furtado numa voz suplicante. � Zangouse?
A jovem senhora n�o respondeu. Ia calada, muda, abafando o seu
�dio, enxugando as l�grimas. Compreendia agora os zelos do secret�rio
para com ela, a sua fingida dedica��o ao Evaristo; compreendia tudo...
Mas, ao mesmo tempo, compreendia a necessidade de ocultar aquele
epis�dio revoltante �para n�o dar esc�ndalo�, para evitar a c�lera de
Evaristo e uma grande desordem, talvez, entre o secret�rio e a mulher. Oh,
infelizmente era preciso mostrar cara alegre, ainda que o cora��o estivesse
sangrando... Nunca lhe passara pela id�ia que o Sr. Furtado, um homem
que se dizia t�o fino, t�o bem-educado, abusasse da sua posi��o e de um
momento como aquele para... para beij�-la, como se estivesse tratando com
uma criadinha de fam�lia, sem pejo nem nada! Era muita coragem e muita
desfa�atez!
50 Besouro.
58
� D. Adelaide... � repetiu Furtado aproximando-se dela. � Queira
desculpar-me se a ofendi...
A esposa de Evaristo continuou no mesmo sil�ncio obstinado, como
uma pessoa que de repente perdesse a fala, indo maquinalmente pela
avenida, sem ver as coisas, olhando para o ch�o fofo que seus p�s iam
pisando insensivelmente. De alegre que estava quando saiu do
caramanch�o, tornou-se melanc�lica e indiferente �s belezas do jardim e �s
fulgura��es da luz. Do�a-lhe a cabe�a com uma intensidade atroz.
Furtado emudeceu tamb�m, penalizado, um pouco arrependido j�,
receoso de que Adelaide n�o fosse cometer alguma imprud�ncia
desabafando-se. Mordia o cast�o da bengala com um ar s�rio de quem
cogita numa grave quest�o.
Aventurou nova pergunta:
� Quer que me ajoelhe e pe�a perd�o? Creia que foi uma loucura de
que me confesso arrependido...
Adelaide suspirou levemente, como al�vio, ainda sem responder.
Neste instante a m�sica do outro lado do parque tocava uma habanera51
saudosa cujo eco ia morrer longe nas montanhas, penetrado de evoca��es.
O cora��o terno da esposa de Evaristo encheu-se de bondade e acordou
subitamente da melancolia em que o deixara Furtado. Ela, por�m, n�o tinha
coragem de abrir a boca e dizer uma simples palavra, como se estivesse na
presen�a de um estranho, de um desconhecido. Queria esquecer a ofensa
que recebera do amigo do Evaristo, acabar com aquilo e continuar a viver
como dantes; o homem �s vezes n�o � senhor de si... Lembrava-se dos
favores que o bacharel devia ao secret�rio, da extremosa amizade de D.
Branca e um sentimento de gratid�o penetrava-a desanuviando-lhe a alma,
restituindo-lhe o bom humor e a vis�o otimista da paisagem e das coisas...
N�o valia a pena zangar-se, amofinar-se por uma tolice, de uma loucura...
Ningu�m vira o secret�rio beijar-lhe a m�o, ningu�m...; a al�ia estava
deserta como o interior de uma gruta long�nqua. Para que, ent�o, provocar
esc�ndalo? Tamb�m n�o se deve ser muito escrupulosa... deve-se
desculpar, fechar os olhos a estas coisas.
Furtado ouviu um rumor na areia. O Raul aproximava-se correndo;
atr�s dele vinha o bacharel em passo ordin�rio.
� Eh, l�! � gritou Evaristo. � Esperem ao menos pela gente!
O secret�rio voltou-se com Adelaide e riram ambos da filosofia
ing�nua daquele marido excepcional.
� J� te faz�amos desertor!
� A mim?... Ufa, que j� me n�o tenho nas pernas!... Desertor?
� Onde andaste h� quase uma hora?
� Vendo as cascatas e os reservat�rios... Pergunta ao Raul!
51 Ritmo dan�ante de origem cubana.
59
� Oh, que bonito, hem, senhor Evaristo? Que bonito, papai! A
cachoeira vem de l� de cima da montanha rolando, rolando como uma
chuva...
� Espl�ndido! � tornou o bacharel. � J� n�o nos lembr�vamos de
voc�s... Que � do visconde?
� Vai l� adiante com a Branca.
� Papai, oh papai! � interrompeu o menino.
� Que �, meu filho?
� Um homem estava tirando o retrato da cachoeira, com uma
m�quina...
� J� sei.
E para Evaristo:
� D. Adelaide � que est� com uma dorzinha de cabe�a.
� Melhorei um bocado, j� n�o d�i tanto � disse Adelaide.
� E agora para onde nos atiramos? � perguntou o bacharel.
� Ao encontro do visconde e da Branca.
Foram andando os tr�s, mais o Raul. Sa�ram na grande al�ia das
palmeiras, onde se achava o Santa Quit�ria de bra�o com D. Branca cm
torno do repuxo, vendo cair a �gua em fios dentro do reservat�rio.
� Ol�, como est�o embebidos! � exclamou o Furtado.
O bacharel, por tr�s do secret�rio, piscou maliciosamente o olho �
esposa.
� � verdade, como est�o embebidos! � repetiu Evaristo.
E aproximaram-se justamente na ocasi�o em que o Santa Quit�ria
falava em voz muito baixa no seu escrit�rio na Rua da Alf�ndega, onde
havia uma alcova, toilette, jarro com flores, et coetera...
O instinto de D. Branca advertiu-a da aproxima��o de Furtado; ela
fez sinal com os olhos ao banqueiro e entraram todos a confabular
alegremente.
Estava reunida a troupe sem faltar uma s� pessoa. O Visconde
consultou o rel�gio: eram tr�s e meia.
� Cedo � murmurou.
� Querem tomar alguma coisa? � ofereceu o secret�rio. � Um
vermute, um conhaque, um copo de �gua gelada.
Ningu�m queria; em todo caso foram repousar � sombra do
caramanch�o, enquanto o sol ainda estava quente.
Adelaide aparentava a mesma fisionomia naturalmente ing�nua do
costume. Evaristo sempre despreocupado, n�o adivinhou, atrav�s do seu
rosto, a mais leve contrariedade. J� se habituara �queles longes de
melancolia, que eram a verdadeira express�o do olhar da esposa. D. Branca
notou por�m um tom cerimonioso na voz do Furtado, quando este se dirigia
a Adelaide. Desconfian�a, talvez, mas notara... e ela que conhecia bem o
g�nio do esposo, imaginou logo o fio de uma secreta hist�ria de amor...
60
As cinco horas, nova refei��o desafiava o apetite do bacharel e do
Raul, somente deles, porque as outras pessoas torceram o nariz � galinhola
e � maionese de salm�o; contentaram-se parcamente com uma fatia de
queijo holand�s, um pouco de marmelada e vinho de Bourgogne. O
Visconde acrescentou �gua de Selters, limpando o bigode com cerimoniosa
fidalguia.
Evaristo e Raul � que n�o dispensaram a comezaina e entraram, de
rijo, na asa de galinha e na maionese.
� Voc�s n�o sabem o que est�o perdendo! � excitava o bacharel, sem
cerim�nia, trincando as azeitonas. � Um bocadinho de maionese, Adelaide!
O Raul achava gra�a nas palavras e no apetite de Evaristo e ria
mastigando, com um risinho dobrado e sonoro que fazia os outros rir.
� Ent�o, D. Branca? Mostre ao menos que � filha do sul!
� N�o, senhor Evaristo, muito obrigada � sorriu corando a elegante
fluminense.
� E o senhor Visconde? e o amigo Furtado? Olha que gente!...
Abriam-se garrafas de vinho. O Ant�nio sempre alerta movimentava
o quadro, exibindo as suas qualidades de copeiro que ama o of�cio.
� N�o v�s indigestar... � advertiu o secret�rio ao filho.
No mesmo instante Adelaide recomendava ao marido que �tivesse
cuidado com a maionese�.
A luz do sol desmaiava num crep�sculo cheio de misteriosas
palpita��es. Descia das montanhas um ar �mido; o som das cascatas vinha
impregnado do aroma da floresta, como se dele fizesse parte, e evocava,
aquela hora, longes de natureza tropical, saudosas ave-marias da inf�ncia...
O parque com as suas �rvores colossais, com os seus renques de palmeiras,
com os seus t�neis de verdura e com as suas plan�cies de grama, onde
brotavam pequeninos eucaliptos e obscuros vegetais de fam�lias obscuras
da �ndia e do norte da Am�rica � o grande parque ia-se revestindo de
melancolia e cada �rvore com a sua etiqueta explicativa tinha um ar f�nebre
de cemit�rio...
� Agora podemos ir � disse Evaristo -, mesmo porque vem caindo a
noite...
Dirigiram-se todos para o port�o do Jardim.
Cap�tulo V
Adelaide recolheu-se triste naquela noite; por maiores esfor�os que
fizesse, n�o podia esquecer a afronta do secret�rio aos seus brios de mulher
casada, e o que mais a impressionava era o desplante, o cinismo audacioso
com que ele a beijara... � Que coragem de homem, Senhor! Quase � vista
de todos, em pleno Jardim Bot�nico, num lugar p�blico! Eis a� quando a
gente perde a cabe�a e comete uma loucura, eis a�!
61
Depois falam, depois n�o d�o raz�o, e uma mulher v�-se obrigada
sofrer os maiores insultos, porque tem medo de que lhe aconte�a pior...
J� h� dias notara certas liberdades de Furtado, certa maneira de lhe
falar, de lhe dizer as coisas baixando a voz, ameigando o sotaque, olhandoa
insistentemente; j� h� dias notara... mas, palavra de honra como n�o
supunha o marido de D. Branca um homem sem escr�pulos, um sedutor,
um amigo desleal... Pobre Evaristo! nem sequer imaginava...
E ca�a-lhe n�alma um desgosto, uma tristeza, um cansa�o da vida, um
peso enorme. Oh, quanto mais para dentro da civiliza��o, mais horrores,
mais espinhos, como no interior de uma floresta de cardos, povoada de
insetos venenosos. Homens e mulheres traem-se com a mesma facilidade
com que se juram amar eternamente uns aos outros. Bem lhe diziam na
prov�ncia que o Rio de Janeiro era um centro de perdi��o, uma Babil�nia
de v�cios, bem lhe diziam!... Melhor prova ela n�o podia ter: o Sr. Lu�s
Furtado, aristocrata de Botafogo, pai de fam�lia, mostrava-se dedicado aos
outros para poder abusar.. E assim era tudo.
O c�rebro de Adelaide enchia-se de considera��es, enquanto
Evaristo mergulhava num sono calmo e reparador. O bacharel n�o esperou
pela hora habitual de se deitar, fatigado do passeio, com uma invenc�vel
morrinha no corpo, os olhos ardendo, a vista turva, esvaziou uma moringa
d��gua fresca e estendeu-se na cama, na bela cama de casal. �N�o era de
bronze para resistir �s conseq��ncias de um piquenique!� E dormia, o
Evaristo, como o mais feliz de todos os bachar�is.
Adelaide � que n�o podia dormir, apesar de cansada tamb�m. Era
maior a preocupa��o moral que o sono. Ouviu bater oito horas, nove, dez,
onze, meia-noite, e o c�rebro a trabalhar, a funcionar como uma m�quina
de alta press�o. Chocavam-se nela as mais desencontradas id�ias: ora
Furtado parecia-lhe um homem sem car�ter, indigno da amizade de
Evaristo ou de quem quer que tivesse um bocado de vergonha, ora
afigurava-se-lhe cavalheiro distinto, com todas as virtudes e defeitos (n�o
h� homem sem defeitos ...) da sociedade em que vive. Ao mesmo tempo
que o condenava por lhe ter beijado a m�o, ferindo-a no seu amor-pr�prio,
intimamente o perdoava, lembrando-se de que talvez ele a amasse deveras e
o amor � cego, o amor n�o quer saber de raz�es... Quem sabe? ele talvez a
amasse, talvez lhe consagrasse alguma estima particular e fora de suspeitas
criminosas. Beijou-a porque... porque n�o teve for�as para se dominar...
A consci�ncia, por�m, dizia-lhe baixinho que uma mulher casada,
uma mulher que se ligou a um homem para toda a exist�ncia, � objeto que
outro homem n�o deve tocar nem de leve, ainda mesmo a pretexto de
amizade fraternal ou de sagrada admira��o; e a esposa que se deixa beijar
por um homem, que n�o � o seu leg�timo marido, tem na sociedade o feio
nome de ad�ltera. Vinha-lhe, ent�o, um arrepio nervoso, uma sensa��o de
remorso por n�o ter energicamente repelido o secret�rio, mesmo com
62
esc�ndalo, embora ca�sse sobre ela todo o �dio de Furtado e de D. Branca;
acima deles estava a sua dignidade e a honra de Evaristo. No meio dessas
id�ias, e como uma apari��o bendita, surgiu-lhe a figura de Balbina, a preta
velha de Coqueiros, e uma l�grima triste, uma l�grima de saudade
embebeu-se no travesseiro da meiga esposa do bacharel.
Evaristo roncava.
No outro dia falou-se muito no piquenique; todos tinham gostado
imenso. A corre��o do Visconde, o ar fidalgo que ele n�o perdia mesmo
entre amigos, a toilette com que se apresentava, as suas delicadezas
mereceram especiais refer�ncias de D. Branca.
O secret�rio n�o esteve muito loquaz ao almo�o; dava uns apartes
t�midos e avan�ava um ou outro ju�zo ir�nico sobre o passeio da v�spera,
lamentando as dores de cabe�a de Adelaide e a eterna circunspec��o do
Visconde. � �Afinal, a verdade � que ningu�m se divertira. Resultado: um
passeio de burgueses, um piquenique f�nebre!�
� F�nebre por qu�? � saltou Evaristo. � Voc�s � que n�o sabem se
divertir; eu pelo menos fiz honra � confeitaria Pascoal e gozei o que h�
muito n�o gozava: o aspecto da nossa natureza, a sombra de uma �rvore e a
frescura de um veio d��gua. Nesta imperial cidade, onde a vida do rei � o
que de mais precioso existe, vale a pena um homem sair dos seus c�modos
para respirar o ar livre do Jardim Bot�nico ou de outro jardim qualquer.
N�s � que n�o sabemos gozar o que possu�mos. O imperador absorve o
c�rebro e o cora��o deste povo...
� Deixe o velho, Sr. Evaristo, Sr. Evaristo ... � fez D. Branca. � O
imperador � um bom homem.
� Ningu�m diz o contr�rio; mas o Brasil ainda � melhor que ele...
� A� vem pol�tica! � murmurou Adelaide, que at� a� n�o dera palavra.
Furtado olhou-a e sorriu; ela abaixou os olhos gravemente.
O resto do dia passou calmo. Adelaide subiu, depois do almo�o,
como �s vezes costumava, e foi ler os jornais. Estava resolvida a mudar-se
daquela casa antes que estalasse algum esc�ndalo.
Mas a insistente id�ia de Furtado n�o a abandonava e todo o santo
dia pensou nele, como num objeto querido, e nas hist�rias de amor que lhe
contara D. Branca. Como exigir de Evaristo uma mudan�a brusca, ela que
nenhuma raz�o podia alegar contra o sobrado ou contra a fam�lia do
secret�rio? Dizer-lhe simplesmente que n�o estava bem ali era uma
imprud�ncia, tanto mais quanto as suas rela��es com a esposa de Furtado
eram estreit�ssimas e ela sempre fizera grandes elogios � casa e ao pr�prio
marido de D. Branca. Antes esquecer, antes esquecer tudo e apresentar-se
alegre, fazendo pela vida como os outros, n�o estorvando os projetos de
Evaristo, aceitando os homens como eles s�o � desleais e corruptos... Que
podia ela s� contra uma sociedade inteira, contra milhares de pessoas?
Nada, absolutamente nada. Homem e mulher vivem conforme a sociedade
63
os obriga a viver, fingindo n�o perceberem aquilo que lhes est� entrando
pelos olhos; a mulher principalmente, a mulher � um ente nulo, uma
criatura sem vontade, uma pobre m�quina dos caprichos do homem. Triste
daquela que, instigada pelo amor-pr�prio, arrebatada por um movimento de
dignidade feminina, rebelar-se contra o jugo do meio em que vive! N�o lhe
faltar�o apodos, nem grosseiras alus�es...
Na sua simplicidade provinciana a jovem esposa do bacharel
come�ava a compreender o papel inferior da mulher na civiliza��o, e
tra�ava mentalmente um programa de vida, uma linha de conduta humilde
e utilit�ria sobre as bases que lhe fornecera a experi�ncia de alguns meses.
O Rio de Janeiro aparecia-lhe agora sob um aspecto novo e convencional.
Furtado representava, a seus olhos, o homem moderno, capaz de todas as
pervers�es, de todas as hipocrisias, colocando acima da dignidade pr�pria,
o sensualismo, os gozos inconfess�veis, a lux�ria sob todas as formas e as
exibi��es p�blicas de toilettes � �ltima moda. Notara, no piquenique, a
insist�ncia com que o Visconde de Santa Quit�ria se dirigia a D. Branca,
levando-a pelo bra�o a passear no Jardim, fora das vistas do secret�rio,
enquanto este, por seu turno, ia maquinando o melhor meio de p�r em
pr�tica uma trai��o ao amigo... e essas e outras coisas enchiam-lhe o
cora��o de descren�a e de pesar. O verdadeiro � a prud�ncia lho dizia � era
fechar os olhos a tudo e esperar que Evaristo se convencesse da asquerosa
realidade... Ela nunca o havia de trair, isso nunca! Preferia morrer, preferia
suicidar-se... Queria-o muito, orgulhava-se em o ter como esposo de sua
alma. Ou a mulher ama o homem com quem vive e, se o ama, n�o o pode
trair, ou n�o o ama e, neste caso, � a pior de todas as mulheres de vida f�cil,
porque diz hipocritamente que o ama para, � sombra de um respons�vel,
cometer inf�mias. N�o, ela havia de respeitar seu maridinho enquanto Deus
lhe desse ju�zo.
Arrumou a casa, espanou os m�veis, passou uma vista nos jornais e
sentou-se entregue �s suas reflex�es, o esp�rito alvoro�ado pelo enxame das
id�ias, num grande sil�ncio de tug�rio que nenhum estalido quebrava.
D. Branca, p� ante p�, foi encontr�-la na cadeira de balan�o, a olhar
o teto, numa abstra��o infinita, rodeada de jornais.
� Boa vida! � exclamou, com um sorriso afetuoso, a mulher de
Furtado.
Adelaide teve um pequeno sobressalto: �� Oh!... Estava pensando...�
� Estava pensando! Isso � grave... Cai ou n�o cai o minist�rio! O
imperador vai ou n�o vai � Europa?
A outra endireitou-se na cadeira, passou a m�o nos olhos, como
quem acorda, e suspirou de leve.
� Olhe que a vida � curta, menina, olhe que a vida � curta � repetiu a
amiga em tom conselheiro.
� E os desgostos s�o muitos...
64
� Qual desgostos, criatura! Uma mulher nova e bonita n�o pode
queixar-se.
E sem transi��o, D. Branca aludiu ao piquenique. Adelaide gabou a
festa, para n�o contrariar a esposa do secret�rio, recordou o champanha, os
ditos espirituosos do senhor Furtado e, propositalmente, n�o falou no
Visconde.
D. Branca, ent�o, sem estranhar o sil�ncio de Adelaide, fez o elogio
de Santa Quit�ria, enaltecendo-lhe os modos, �a impec�vel distin��o com
que ele tratava uma senhora, a extrema delicadeza que punha nas palavras e
nos menores gestos�, concluindo que o Visconde era, na sua opini�o, �o
que se podia desejar de tout � fait chic�.
� Ele parece simpatizar muito com a senhora.
� Comigo? Oh n�o, nem diga tal coisa!
� Por qu�?
� Porque n�o � bom, pode algu�m ouvir e eu n�o quero � Deus me
livre � uma quest�o com o Furtado ...
O certo, por�m, � que D. Branca exultou intimamente com as
palavras de Adelaide. � �Era, ent�o, verdade que o Visconde parecia
Simpatizar com ela... Que lembran�a?...�
Ia animada a palestra, quando a campainha soou embaixo e vozes
repercutiram na escada.
Eram os dois amigos que voltavam juntos do Banco.
� noite ainda se falou no piquenique, tema inesgot�vel das
conversa��es daquele dia. Ningu�m se lembrava de outra coisa; o
piquenique no Jardim Bot�nico era a grande novidade, o grande
acontecimento.
Adelaide estava mais expansiva; trocou algumas palavras,
diretamente com o secret�rio, emitiu opini�es, teve risos gostosos; enfim, j�
n�o era a mesma que D. Branca surpreendera com os olhos no teto, a
pensar e que se conservara silenciosa ao almo�o, enquanto as outras
pessoas comentavam o piquenique.
As noites eram mais frescas ent�o; respiravam-se as primeiras brisas
do equin�cio das flores, o sol ia perdendo a intensidade abrasadora e
caniculante que afugentara para Petr�polis e Friburgo os sat�lites imperiais
do monarca. A vida fluminense, por assim dizer interrompida com a
aus�ncia da aristocracia palaciana, voltava a funcionar, � verdade que sem
o est�mulo habitual, porque a sabedoria de Hip�crates52 ordenava ao
imperador uma retirada para o outro continente, e os olhos do povo e da
nobreza cedo come�avam a chorar a ida inevit�vel do augusto e perp�tuo
defensor do Brasil. Voltavam tristes as andorinhas de Petr�polis, e essa
tristeza comunicava-se ao meigo rebanho que atravessara dezembro e
52 O maior m�dico da Antiguidade (460-375 A.C.), considerado o patrono da Medicina.
65
janeiro ao sol, enquanto a asa negra da febre amarela estendia-se pavorosa,
sobre a her�ica cidade.
Os jornais, numa faina l�gubre, pediam contas ao governo sobre o
verdadeiro diagn�stico da imperial mol�stia e j� se dizia por toda a parte
que �o rei ia, mas n�o voltava... � Diabetes ... glicos�ria... surmenage...
eram palavras que enchiam a Rua do Ouvidor subindo e descendo com os
transeuntes. � Quem ficava no trono! Quem se responsabilizava pelos
destinos da grande p�tria americana? Toda a gente sabia que era a princesa,
mas toda a gente perguntava: � Quando era o dia do embarque? � e cada
boca era uma interroga��o e cada olhar uma profecia. Republicanos,
abolicionistas, em concili�bulos secretos, viam na doen�a do imperador o
triunfo das novas id�ias, a conquista da liberdade, a grande hora da
fraterniza��o brasileira...� E reduzido �s m�seras propor��es de inv�lido, o
segundo Alc�ntara, bisneto da Sra. D. Maria I, universalmente conhecido
pelos seus versos ao bom povo ituano e pelo seu amor �s letras, que na
Europa dava-lhe foros de primeiro poeta do Brasil � O celebrado amigo de
V. Hugo53 e das canjas do Teatro L�rico ia sulcar o Atl�ntico para bem do
povo e felicidade da na��o, desse povo que tanto o amava e dessa na��o
que ele governava h� meio s�culo.
Povo e na��o volviam os olhos para a Tijuca � espera de que sa�sse o
augusto enfermo, com o seu pr�stito de �ulicos e turifer�rios54, humilde
agora mais do que nunca, dentro de um cup� imperial55, abatido e tristonho
na grande dor que o pungia... Quantas pessoas ainda n�o o tinham visto e
queriam v�-lo agora no embarque! As ruas haviam de se encher, as ruas e
as pra�as quando os clarins dessem sinal da aproxima��o d�Ele. Oh, havia
de ser um espet�culo comovedor, uma tristeza enorme, um pranto geral nos
pal�cios e nas choupanas, onde quer que brilhasse a fama do seu
querid�ssimo nome. Os republicanos mesmo n�o se conservariam
insens�veis.
� Porque � dizia, numa roda, o secret�rio � voc�s podem negar tudo,
menos que o imperador seja querido pelos brasileiros.
A roda compunha-se dele Furtado, de Evaristo, de Valdevino
Manh�es, do deputado Ismael Pessegueiro, de Alagoas, e do Freitas
Camargo, outro poeta, companheiro do Manh�es na Revista Liter�ria.
O tema era a viagem do imperador da� a alguns dias. Estava-se em
fins de maio. Aboletados ao redor de uma mesinha no Castel�es, cada um
expunha o seu ju�zo acerca do monarca e da imperial viagem � Europa. O
secret�rio do Banco apelava para a consci�ncia de todos: � era ou n�o
estimado no Brasil o imperador?
53 Victor Hugo (1802-1805) poeta e romancista franc�s, autor de Os miser�veis.
54 No texto: bajuladores.
55 Carruagem fechada com duas portas e dois lugares.
66
Valdevino Manh�es, cavalgando o pincen� afetadamente, e cruzando
as pernas com um ar doutoral, lembrou as suas tradi��es republicanas e
disse que, apesar de nunca ter merecido favor nenhum do Imp�rio, n�o
ousava negar a estima do povo ao rei; mas isso n�o queria significar ades�o
eterna do povo �s institui��es mon�rquicas: era um sentimento pessoal,
uma generosidade afetiva, um respeito mesmo �s barbas brancas do
velho...
� Engana-se, amigo � interrompeu o representante de Alagoas calmo,
sem se mover na cadeira, fitando os olhos no Dr. Condicional. � Pedro II
enraizou a monarquia no Brasil, e, ainda que tiv�ssemos o desgosto de
lamentar a sua morte hoje ou amanh�, o Brasil havia de ser sempre Imp�rio
do Brasil, nunca uma rep�blica. Desejar o sistema republicano para o nosso
pa�s � querer a ru�na de uma das maiores na��es do mundo. Veja o senhor a
Inglaterra.
� Exatamente � apoiou Furtado.
� A Inglaterra � uma na��o decadente! � berrou o Manh�es. � N�o h�
termo de compara��o entre a Inglaterra e o Brasil. O Brasil um pa�s novo,
ainda nas faixas infantis...
� Por isso mesmo, por isso mesmo! � argumentou o deputado. � Os
pa�ses novos precisam de um freio, como o indiv�duo na inf�ncia.
Qual freio, Sr. Doutor! De freio precisam os burros, e n�s somos um
povo inteligente, um povo que n�o precisa de freios nem de monarcas. A
rep�blica h� de se fazer, creia!
O alagoano, que pela primeira vez tratava com o Manh�es,
estranhou-lhe o modo agressivo com que discutia e n�o retrucou.
Valdevino continuou a falar no meio do sil�ncio dos companheiros, n�o
perdendo ocasi�o de aludir � sua viagem � Europa e ao bom acolhimento
que tivera em Lisboa.
Camargo apoiava tudo quanto ele dizia por esp�rito de coleguismo e
em aten��o ao diretor da Revista. Mas Valdevino lembrou-se de que se
comprometera a jantar no Globo com uns rapazes, e, estabanadamente,
despediu-se de todos. Foi ent�o, s� ent�o, que o Camargo abriu a boca, para
dizer que o Valdevino era um idiota, uma besta!
Ismael Pessegueiro olhou Furtado e baixou a cabe�a. Evaristo, mais
positivo e menos convencional, estendeu a m�o ao poeta:
� Toque, amigo! O senhor agora disse tudo o que muita gente pensa
e n�o tem coragem de dizer.
� Um homem que vive a escrever asneiras e a rabiscar sujidades! Um
repetidor de frases ocas! Porque veio da Europa, entende que � j� um
mestre, um alto personagem nas letras... Uma cavalgadura � o que ele �!
� Pobre Valdevino!... � lamentou Furtado ironicamente.
� Pobre Dr. Condicional! � fez Evaristo.
67
� � o que lhes digo � continuou o poeta. � Quando Ramalho
Ortig�o56 aqui esteve, no Rio, a primeira pessoa que correu a beijar-lhe os
p�s foi ele, o Valdevino.
� Os p�s ou as m�os? � inquiriu malicioso, Evaristo.
� Os p�s... que ele quando adula � para beijar os p�s. Em literatura,
como em pol�tica, � um rafeiro dos medalh�es...
� Oh!... � balbuciou com um risinho especial o representante de
Alagoas.
� Pode acreditar, doutor! O Valdevino Manh�es � conhecido na Rua
do Ouvidor; toda a gente sabe de quanto � capaz aquele idiota...
O secret�rio interveio com uma pilh�ria.
� Voc�s esquecem-se de que est�o a falar do autor do Juca Pir�o... �
Belo t�tulo de uma obra: Juca Pir�o � continuou Camargo. � Vejam voc�s
at� onde pode chegar a estupidez humana!
� E � verdade que existe essa obra? � perguntou o deputado.
� �, doutor, infelizmente �! Fa�a o senhor id�ia: um livro com o
t�tulo de Juca Pir�o!
O Dr. Ismael carregou uma risada cheia de sarcasmo.
� Deixem o pobre homem... suplicou o Furtado. � O Valdevino �
uma boa criatura...
� Ouvi dizer que tem a mania do renome liter�rio, � verdade? �
perguntou o Evaristo...
� Mania que o h� de levar ao hosp�cio � resmoneou o Camargo.
� Esses literatos, esses literatos... � disse com mist�rio o Holanda.
� Vivem se digladiando! � acabou Furtado. � Queres mais cerveja,
oh Camargo?
� N�o, n�o, merci...
� Doutor, outro copo...
� Obrigado...
� E tu, Evaristo?
� Eu tamb�m recuso.
� Ent�o podemos levantar acampamento.
Ergueram-se os quatro fumando, com grandes ares de capitalistas.
A Rua do Ouvidor estava num de seus dias de festiva alacridade,
inteiramente cheia, como um rio a transbordar, tumultuoso, murmurejante e
iluminado por um sol acariciador de primavera. Iam e vinham os habitu�s
de ambos os sexos, numa prociss�o de toilettes vivas, num burburinho de
festa p�blica entrechocando-se, acotovelando-se. Fam�lias conversavam �
porta das lojas, mo�as e velhas madamas, senhoras de todas as idades e de
todos os tamanhos, rindo, como se estivessem no interior de suas casas,
beijando-se alto, enquanto os pais e os maridos discutiam pol�tica � porta
dos caf�s, � espera que elas acabassem de �fazer as compras�. Ecoavam
56 Jornalista e escritor portugu�s (1836-1915).
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gargalhadas entre os homens. Uma banda de m�sica a tocar polcas e valsas
faria toda aquela gente esquecer-se de que estava na Rua do Ouvidor e cair
num grande bailado ao ar livre. As maiores notabilidades da pol�tica, da
literatura e das artes, os mais conhecidos escritores e homens de Estado
viam-se ali, em grupos, � porta do Caf� de Londres, do Castel�es ou do
Pascoal, frechando, com o olhar, o madamismo suspeito e as demoiselles
ricas, assistindo ao desfilar tumultuoso das cocotes, e das condessas,
biografando-as uns aos outros com risinhos de inveterada mal�cia,
observando-lhes o andar, os meneios, a toilette, a opul�ncia das carnes,
como se as quisessem devorar num �mpeto de canibalismo sexual,
acompanhando-as a perder de vista, gulosos, famintos e banais. Mo�os de
flor ao peito, no rigor da moda, alguns chegados de Paris, iam e vinham,
numa ostenta��o pedantesca de polainas, de casimiras claras, de coletes
brancos e de frases tolas, cumprimentando � direita e � esquerda, eretos
como figuras de vitrina. Os armaz�ns de modas enchiam-se; enchiam-se os
caf�s e as confeitarias, e o zunzum aumentava de entontecer, dentro das
lojas e na rua.
� Sabes quem � aquela, oh Evaristo? � disse, parando, o secret�rio.
Indicava uma senhora de presen�a estranha, muito bem vestida, que ia pelo
bra�o de um cavalheiro, na outra cal�ada. Um movimento de ansiosidade
propagou-se no trecho da rua.
� Quem �?
� A baronesa de Lima-Verde, uma das mulheres mais formosas do
Rio de Janeiro...
� Oh!... Vai com o marido...
� Isso � o que ainda n�o est� suficientemente provado.
� Que queres dizer?
� Afirmam uns que o marido, o Bar�o, passeia na Europa e que ela, a
baronesa... n�o gosta de andar s�...
� Aquele senhor � ent�o o cunhado, o irm�o...
� Qual cunhado, nem qual irm�o! Aquele senhor � s�cio de uma
firma de capitalistas...
O bacharel compreendeu a alus�o e exclamou, voltando-se para o
objeto do di�logo:
� Que est�s dizendo?
� N�o achas formosa?
� � realmente uma beleza... Mas ent�o...
� Fecha os olhos, Evaristo, fecha os olhos... e n�o queiras saber de
mais nada.
Furtado, por�m, resumiu em poucas palavras a cr�nica da baronesa,
citando nomes com um perfeito conhecimento de coisas. Entre os
adoradores da ilustre senhora estava o Visconde de Santa Quit�ria.
� O Santa Quit�ria!
69
� Ele mesmo, e n�o te admires, porque outros de maior sisudez
fazem a corte � baronesa.
O Camargo e o deputado Ismael tinham-se despedido. Os dois
amigos subiram a Rua do Ouvidor, no meio de torvelinho geral, afastandose
a cada instante para deixar passar as senhoras, rompendo a multid�o,
esgueirando-se com as paredes, esbarrando com os transeuntes, aos
encontr�es, �s apalpadelas quase.
No Largo de S�o Francisco um golpe de ar bafejou-os de improviso,
como se sa�ssem de um t�nel.
� Caramba! � exclamou o secret�rio. � A Rua do Ouvidor �s quintas
� um formigueiro! Nunca vi tanta gente!
� Olha daqui... olha daqui! � insistiu o bacharel, voltando-se no meio
do largo, para a famosa art�ria que regurgitava.
Era um espet�culo curioso. A rua muito estreita, com os seus
sobrados de dois a tr�s andares, com os seus arcos de ilumina��o, com as
suas bandeiras, tinha o aspecto movimentado de uma pequena c�pia de
bulevar em dia de festa. Embaixo a massa negra e compacta, ondulando
como uma prociss�o vista de longe, e um sibilar de vozes indistintas como
o vago rumor de uma colmeia alvoro�ada.
� Queres que te diga o efeito que isso me produz, oh Furtado?
� ?
� Lembra-me o caos, o misterioso, o incompreens�vel, a vertigem
dos abismos... o grande nada dos her�is que dormem...
� Do vasto pampa no fun�reo ch�o! � concluiu o secret�rio erguendo
o bra�o numa pose orat�ria.
E fitando o bacharel:
� Est�s apocal�ptico, homem! Olha, n�o v�s fazer como no Jardim
Bot�nico, onde assassinaste barbaramente, creio que o Garrett ou o
Alexandre Herculano...
� Pois � o que me parece a tal Rua do Ouvidor, e a compara��o, se
n�o � original, tem o m�rito de exprimir exatamente o que eu quero dizer.
E Evaristo dava �s palavras um tom de ironia bo�mia sublinhando-as
com um risinho c�ustico e p�rfido.
� Nunca h�s de ser coisa alguma, porque vives a criticar a
humanidade, e a humanidade o que quer � que a gente n�o veja os seus
rid�culos e as suas fraquezas.
� Pior! Achas que eu me devo subordinar aos caprichos da
humanidade!...
� Que rem�dio tens tu!...
� O rem�dio dos incur�veis: a paci�ncia...
� Bem, o lugar n�o se presta a discuss�es. Enfiemos outra vez pela
Rua do Ouvidor.
� Outra vez?
70
� Para tomar o bonde de Botafogo...
Mas uma surpresa estava reservada ao secret�rio. Justamente na
ocasi�o em que o bacharel passava diante da Notre Dame de Paris, deram
de ombros com D. Branca e Adelaide.
� Oh!
� Oh!
A mesma exclamativa saiu da boca de Furtado e da esposa. Evaristo
soltou um ol�! fino, esgani�ado e t�o alto que algumas pessoas voltaram-se
com um movimento de viva curiosidade.
� As senhoras por aqui! � estranhou o bacharel.
� Por aqui! ... � repetiu Furtado.
� Que grande admira��o! E os senhores tamb�m n�o andam
passeando? � op�s D. Branca com um olhar interrogativo por tr�s do v�u
que lhe cobria o rosto.
Adelaide esperou, sorrindo, a defesa da amiga.
� N�s somos homens...
� Morreu o Neves!
� �amos ao Banco � disse Adelaide.
� Com escala pelo Largo de S�o Francisco... � atalhou o bacharel.
� Nada de esc�ndalo, nada de esc�ndalo! � preveniu Furtado. � J�
agora...
� J� agora vamos fazer um lanche ao Pascoal � interrompeu a esposa
do secret�rio.
E os dois casais, bras dessus, bras dessous57, foram andando rua
abaixo tranq�ilamente.
Eram duas horas da tarde. A onda de povo crescia; o movimento era
cada vez maior nos caf�s; ouviam-se orquestra��es de harpa e o preg�o
mon�tono de leiloeiros destacando no meio da vozeria dos transeuntes.
Logo depois do almo�o D. Branca sem dizer nada ao marido,
convidara Adelaide para �uma volta na Rua do Ouvidor�. A t�mida esposa
de Evaristo, guardando os seus escr�pulos e as suas conveni�ncias de
mulher bem casada, objetou-lhe o desgosto que isso podia causar ao
bacharel.
� Vais comigo, filha, vais com a tua amiga.
� E o Sr. Furtado?
� O Furtado n�o ralha, porque sabe que � perder tempo. � uso no Rio
de Janeiro as mulheres sa�rem sem os maridos. Uma coisa t�o velha! Outro
dia fomos, eu e D. Sinh� do desembargador...
� Outro dia?
� Voc�s ainda n�o estavam aqui; foi num s�bado... Pensas que o
Furtado se incomodou? Qual!
� D. Branca! � fez a outra com um ar medroso.
57 Bra�os dados.
71
� N�o � nenhuma admira��o, mulher. Metemo-nos no bonde, como
quem vai fazer compras � cidade, sem mist�rios, aos olhos de todo o
mundo.
Adelaide n�o se resolvia. � � Sair sem Evaristo e logo para a Rua do
Ouvidor!... Hum!...�
� Qual um, qual dois, rapariga; vista-se e vamos, que � meio-dia.
� D. Branca, D. Branca!
� Pior! ...
� ...Mas a senhora se responsabiliza, ent�o...
� Responsabilizo-me pelo que voc� quiser.
� Bem... depois, depois! ...
E Adelaide atra�da pelas cavila��es da esposa do secret�rio (sempre
f�rtil em expedientes), levada mesmo por um irresist�vel amor de se
mostrar, de se apresentar, de exibir os seus formosos olhos numa rua t�o
p�blica, de ver as suas iniciais num jornal que descrevia as toilettes da Rua
do Ouvidor.
Adelaide correu, l�pida, ao guarda-vestidos.
� Olha, o de rendas, hem! � lembrou a amiga.
� Sim, o de rendas, � claro...
E da� a pouco um aroma fino, de sabonete, de p�-de-arroz e de
ess�ncia de Houbigant espalhava-se em toda a casa � no primeiro e no
segundo andar -; fechavam-se gavetas com a�odamento, farfalhavam sedas
e tiniam j�ias. D. Branca por um lado e Adelaide por outro, esmeravam-se
nas toilettes como se fossem a um baile ou a alguma festa de rigor.
� Pronta?
� Pronta... � respondeu a esposa do bacharel, dando um jeito no
vestido, ao mesmo tempo que se revirava para o grande espelho do
toucador.
E sa�ram de chap�u-de-sol aberto, uma jovialidade infantil, pelas
ruas de Botafogo, a tomar o bonde. Os passageiros olhavam-nas com esse
olhar curioso e indiscreto que �s vezes confunde uma mulher honesta com
uma horizontal. Adelaide ia um pouquinho no ar, um bocadinho gauche58,
�s voltas com a luva da m�o esquerda que n�o queria abotoar, sempre
t�mida, em contraste com os modos vivos da esposa do secret�rio.
Um senhor de �culos e barba grisalha cumprimentou-as.
� Quem �?
� N�o conhe�o...
� Nem eu...
D. Branca n�o se lembrava, ou fazia que se n�o lembrava: era um
dos titulares de Botafogo, o comendador Beltr�o, dono de uma grande
f�brica de cigarros. N�o gostava de cumprimentar os homens de fisionomia
idosa. � �Ora, o Beltr�o... um velho!�
58 Desajeitada.
72
� E se encontrarmos o Sr. Furtado? � balbuciou Adelaide.
� Melhor... voltamos em boa companhia.
Mas o pensamento da jovem senhora estava no outro, no bacharel, no
Evaristo. � Que diria ele, depois? Que ela j� o n�o consultava em seus
neg�cios, que n�o era a mesma Adelaide, que n�o fazia caso dele, talvez...
E como explicar a sua ida � Rua do Ouvidor, como convenc�-lo de que D.
Branca a arrastava responsabilizando-se perante ele, como? Os homens n�o
acreditam facilmente nas mulheres, enquanto n�o as v�em chorar, enquanto
n�o as v�em de rojo a seus p�s... H� dois anos que eram casados e nunca
Evaristo duvidava das suas palavras; mas agora, no Rio de Janeiro... quem
sabe? talvez n�o as aceitasse logo, como na prov�ncia. Outras id�ias. O
mundo � todo cheio de contradi��es...
� Vamos voltar? � prop�s ela � amiga.
E ia pretextar uma dor de cabe�a, uma dor no f�gado, um inc�modo
qualquer, mas D. Branca atalhou:
� Voltar? Que id�ia! Eu, nem que me pagassem; meu rico vestidinho
h� de dar que falar hoje � Rua do Ouvidor. Voltar por qu�?
� Por causa do Evaristo... � sorriu timidamente Adelaide.
� Ora, minha filha, tenha ju�zo! Ent�o voc� � alguma crian�a? O Sr.
Evaristo � um rapaz inteligente, um homem de bem, um cavalheiro... Os
tolos � que prendem as mulheres, como se elas fossem escravas. J� lhe
disse que me responsabilizo...
� Eu sei, mas...
� N�o admito raz�es. A senhora vai comigo; quem a leva sou eu. E,
em todo o trajeto de Botafogo � Rua do Ouvidor, uma e outra mereceram
grandes elogios, grandes exclama��es e vivos olhares de capitalistas e
doutores que, mesmo na faina dos seus neg�cios, nunca se descuidam do
sexo am�vel.
No ponto dos bondes houve um senhor que lhes dirigiu a seguinte
frase cheia de ocultas inten��es, numa voz mel�flua e carinhosa:
� Como s�o lindas!
E outro, mais adiante:
� Oh, que beleza!
E ainda outro, j� em plena Rua do Ouvidor:
� Deliciosas!
Tudo gente s�ria, mo�os bem vestidos, de colarinho alto e chap�u de
forma e an�is de brilhante.
Adelaide n�o sabia como pisar, nem que jeito desse �s m�os, nem
onde pusesse os olhos, vendo surgir, de repente, o bacharel e agarrar pela
gola do fraque um homem daqueles, e culp�-la, e dar esc�ndalo!
Arrependia-se mil vezes de ter acedido �s inst�ncias de D. Branca.
A esposa do secret�rio, num coquetismo de mulher f�cil, abanandose
com o rico leque de plumas, uma ostenta��o imperiosa de sedas e gazes
73
resplandecia ao lado da amiga. Todos os olhares cravavam-se nela, no seu
belo porte de mundana, nas suas formas rijas que o espartilho evidenciava,
torturando-a.
� Bela rapariga! � foi uma das exclama��es que lhe chegaram ao
ouvido. E ela como que redobrou de altivez, aprumando-se, garbosamente.
O instinto ou o que quer que seja levou-a a tomar o caminho da
Pra�a, pela Rua Direita. A mulher tem uma esp�cie de faro t�o pronunciado
e admir�vel como em certos animaizinhos de estima. D. Branca ia pelo
faro, quando quem lhe havia de surgir? o Visconde, o respeitabil�ssimo
Santa Quit�ria... Vinha de uma assembl�ia-geral de acionistas no Banco.
� Oh, excelent�ssimas, folgo de v�-las! � exclamou o banqueiro
estendendo a m�o, todo inclinado, primeiro � Branca e depois � Adelaide. �
Andam passeando?
� Andamos passeando... � murmurou a esposa do secret�rio.
E emendou logo:
� Vamos fazer umas compras
� Ah!... Est� muito bem, est� muito bem.
� O Sr. Visconde j� veio de Petr�polis.
� Sim, excelent�ssima; Petr�polis est� deserto... Desde que a fam�lia
imperial mudou-se para a Tijuca que Petr�polis est� deserto. O imperador
embarca definitivamente na pr�xima semana.
� Para a Europa?
� Exatamente.
E, com um ar compungido, o Visconde acrescentou:
� Pobre velho! Vossa excel�ncia n�o o conhece...
� Por que, Sr. Visconde?
� Porque... porque reputo grav�ssimo o seu estado...
Adelaide prestava aten��o � conversa, olhando o banqueiro,
medindo-o de alto a baixo, examinando-o.
� Que est� dizendo?
� Grav�ssimo... E comigo pensam os doutores da ci�ncia.
� Pobre velho! � repetiu D. Branca sensibilizada. � Eu imagino a
imperatriz...
� A imperatriz n�o o abandona; segue tamb�m.
� Coitada! E os pr�ncipes?
� Os pr�ncipes ficam em companhia da princesa. Pelo menos � o que
se diz...
� Um homem t�o forte, um h�rcules! � exclamou a esposa do
secret�rio.
� As apar�ncias iludem, minha senhora, e a morte � trai�oeira.
Andam, ent�o, fazendo compras?...
� Fazendo umas comprinhas...
� Bem, n�o as quero importunar.
74
E o Santa Quit�ria descobriu-se, apertando, com uma del�cia enorme,
a m�o enluvada e fina de D. Branca.
� Recomende-me ao nosso Furtado...
� Agradecida.
Oh, como ela desejaria prolongar aquele t�te-�-t�te, aquele doce
encontro!... Mas o movimento era grande na Rua Direita, e n�o menos
grande a l�ngua do povo.
O banqueiro afastou-se, num gracioso ademane, e elas, depois de
ligeira hesita��o, voltaram pela Rua do Ouvidor.
Novos ditos, novas exclama��es.
De um grupo, � porta de uma confeitaria, sa�am estas palavras:
� As mesmas! as mesmas!
E uma chusma de olhares cobi�osos assaltou-as.
Entraram numa grande loja de fazendas, trocaram algumas palavras
com o caixeiro, mo�o am�vel que trazia sempre a ponta do len�o fora do
bolso do palet�, e � obrigada, hem, muito obrigada!... � sa�ram.
Foi ent�o que o bacharel bispou-as, quando ele e o secret�rio
voltavam do Largo de S�o Francisco, e os dois casais resolveram-se a
tomar qualquer coisa no Pascoal.
A presen�a de Adelaide �quela hora na Rua do Ouvidor significava,
para Evaristo, uma desconsidera��o, aos seus h�bitos e �s suas normas �
um desvio da esposa, uma quebra de respeitos ... Sempre a conhecera
t�mida, obediente �s suas prescri��es e inimiga de se apresentar onde ele
n�o estivesse, e agora via-a na rua mais p�blica do Rio de Janeiro, em
grande toilette, como uma senhora habituada ao luxo e � publicidade, que
n�o receia o eco das m�s-l�nguas, nem a aud�cia dos ociosos! � certo que ia
pelo bra�o de D. Branca, mas a esposa de Furtado... a esposa de Furtado... a
Sra. D. Branca... E enquanto caminhava para o Pascoal, Evaristo, silencioso
ao lado da mulher, como que se empenhava na resolu��o de problema
dif�cil. Adelaide merecia-lhe toda a confian�a, mas, positivamente, j� n�o
era a mesma Adelaide. Vir � cidade sem lhe dizer, sem o prevenir?... N�o,
j� n�o era a mesma...
E enquanto durou o lanche, enquanto estiveram na confeitaria
debicando empadas e sandu�ches � o bacharel manteve-se casmurro a torcer
o bigode, a olhar os que entravam e os que sa�am, mais fil�sofo que nunca,
a alma vibrando numa indigna��o muda e tenebrosa.
Adelaide compreendeu que o havia desgostado e cruzou o talher.
D. Branca e Furtado entreolharam-se com admira��o. Era a primeira
vez que os viam amuados.
Cap�tulo VI
75
Ia enfim realizar-se a misteriosa e pranteada viagem do imperador.
Na eterna alegria do sol, que amanhecera esplendidamente luminoso,
flutuavam preces ao bom Deus pelo pronto regresso do monarca. Suspiros
de saudade, louvores � boca pequena, exclama��es de inconsol�vel tristeza
erguiam-se nas ruas da cidade, formando uma atmosfera de vagas
melancolias, um como ambiente glacial de apreens�es sinistras que a luz
triunfal do sol n�o espancava. Ia ficar deserta a Quinta de S�o Crist�v�o e o
Brasil sem o imperador, o Brasil sem o Sr. D. Pedro II era como um pa�s
abandonado � aventura dos selvagens... Oh, o homem extraordin�rio que
antes de ser homem era rei! que tristeza para o povo, que desola��o para a
Corte! Ningu�m queria acreditar naquela viagem l�gubre como a pr�pria
morte...
No entanto, chegava a hora do embarque. Apresentavam-se as
carruagens; n�o havia tempo a perder.
�s seis horas da manh� o desembargador Lousada e a mulher, em
berlinda especial, abalaram para a Tijuca. A ilustre dama de Sua Majestade,
a imperatriz, ia chorosa, com o len�o nos olhos, quase muda na sua toilette
de seda marrom. O Visconde de Santa Quit�ria, amigo particular do
imperador, n�o quis deixar de cumprir o religioso dever que lhe impunham
a amizade e a gratid�o: l� foi tamb�m corretamente encasacado, de luvas
pretas. E outros e outros personagens de etiqueta levaram a sua
homenagem aos augustos viajantes.
Lu�s Furtado entendeu que melhor seria assistir ao embarque no
Arsenal de Marinha com D. Branca e os Holanda. Mas Evaristo foi dizendo
logo que �s� costumava ir ao embarque dos seus amigos e que n�o transigia
com as suas convic��es...�
� N�o se trata aqui de convic��es, nem de id�ias pol�ticas � fez o
secret�rio. � � um dever de todo o brasileiro levar as suas despedidas ao
imperador, ao homem que nos governa h� quase cinq�enta anos e cujas
virtudes o mundo inteiro admira...
� Nesse caso vai tu, eu n�o. O meu dever, como republicano, � n�o
ir, � ficar em casa ou � minha banca de trabalho. Nunca recebi favor do Sr.
D. Pedro II, nem ele me deve cois�ssima alguma.
� Queres, ent�o, privar D. Adelaide.
� N�o senhor, n�o senhor, Adelaide ir� se quiser, eu n�o pro�bo...
� Sempre a mesma veleidade republicana; sempre a mesma tolice! �
exclamou Furtado. � H�s de lucrar muito com essas id�ias!
� N�o � quest�o de lucro, � quest�o de consci�ncia. Tenho o direito
de pensar e de agir como entender.
� Bem; fica-te l� com a tua consci�ncia, meu Camilo Desmoulins,59 e
depois n�o te arrependas... Ent�o, D. Adelaide vai conosco?
59 Advogado, jornalista e revolucion�rio franc�s (1760-94). Embora tenha comandado a tomada da
Bastilha, foi posteriormentte acusado de �modera��o� e guilhotinado por ordem de Robespierre.
76
� Pode ir...
A jovem esposa do bacharel tinha, com efeito, muita vontade de ver
o imperador, cujas barbas brancas ela nunca vira sen�o em retratos; mas o
marido era homem esquisito, inimigo figadal da monarquia, cheio de
escr�pulos, timbrando em continuar na Corte a mesma vida aperreada da
prov�ncia � um incorrig�vel � e ela respeitava as id�ias dele como se fossem
as suas pr�prias id�ias. Resignou-se com um suspiro. O mundo n�o se
acabava; quando o imperador voltasse da Europa, iria v�-lo...
Furtado, por�m, renovou o seu pedido a Evaristo, obtendo dele uma
resposta que trouxe aos l�bios da esposa o mais ador�vel dos sorrisos. �
Que sim � que Adelaide n�o devia perder o embarque espetaculoso do Sr.
D. Pedro II... ao menos por curiosidade, por desfastio...
� Muito bem, muit�ssimo bem! � aplaudiu o secret�rio, risonho,
batendo as m�os. Gosto de ver um republicano de id�ias largas como o
Evaristo. D. Adelaide agora n�o tem mais do que ir preparando a toilette..
E no dia anunciado pelos jornais, todos, menos o bacharel que os
acompanhou somente at� � cidade, dirigiram-se ao Arsenal de Marinha,
ponto de embarque do imperador.
A galeota imperial, encostada ao cais, fumegava, toda pintada de
verde e ouro, fria como uma baleia, crivada de olhares que a contemplavam
num �xtase selvagem. Dentro dos muros do Arsenal passeavam oficiais de
Marinha e do Ex�rcito, em grande gala, arrastando as espadas com ar
marcial. Viam-se tamb�m altos funcion�rios � paisana, de casaca e luva, e
senhoras em trajo de baile, exibindo o colo num decote pomposo de
rainhas, vestido de cauda, brilhantes no cabelo.
Era intensa a luz do sol, mas o povo aflu�a, na rua, dominado pela
irresist�vel curiosidade de assistir � passagem da fam�lia imperial.
Uns queriam ver o pr�prio monarca, outros, que o conheciam, n�o
ocultavam o desejo de �reparar bem� na herdeira do trono, outros nada
mais queriam sen�o lan�ar os olhos � imperatriz. O trecho entre o morro de
S�o Bento e a Secretaria da Marinha estava repleto de curiosos � oper�rios
do Arsenal, ganhadores, catraieiros, no meio dos quais sobressa�am altos
chap�us de forma de um ou outro personagem desconhecido que tamb�m
se abalava a ver o embarque.
De vez em quando parava um carro e o povo abria alas, num
movimento de ex�rcito em revista. Chegavam Ministros e diplomatas cujos
nomes corriam de boca em boca.
Eram j� onze horas da manh� e nada do imperador, nem sinal do
augusto viajante.
A essa hora precisamente uma carruagem estacou no port�o do
Arsenal e logo apeou o secret�rio do Banco Industrial; em seguida apearam
duas senhoras: D. Branca e Adelaide.
77
Furtado ouviu uma voz no meio do povo: � Mulher�o! e, teso, ereto,
numa pose de verdadeiro diplomata, disse qualquer coisa ao porteiro e
entrou. As duas senhoras iam na frente com o ar compungido, silenciosas,
lado a lado.
Quase no mesmo instante o povo agitou-se e mais de duas mil
cabe�as volveram-se para o extremo oposto da rua. Vozes exclamaram: � �
ele! � ele!
Houve, ent�o, uma balb�rdia, um atropelo, uma �nsia fenomenal.
Cometas60 estrugiram ao longe e ouviu-se um estr�pito de cavalhada em
correria.
Com efeito, era o imperador que chegava. A multid�o abriu caminho,
tal as �guas do Mar Vermelho para deixar passar os hebreus, e uma
exclama��o un�ssona, estrepitosa e l�mpida, vibrou no espa�o:
� Viva Sua Majestade o Imperador do Brasil!
� Vi... ����!
Dentro no Arsenal, uma m�sica militar rompeu o hino com
entusiasmo belicoso enquanto os vivas continuavam, fora. � Vi... ���! Vi...
���!... sucessivamente.
O carro imperial estacou, seguido de outros carros, e o velho
monarca, cumprimentando � direita e � esquerda, surgiu tr�mulo,
incrivelmente p�lido, os olhos fundos, a barba longa como a de um profeta
da antig�idade.
Compunha-se a comitiva de S. M. Imperiais, conde e condessa d�Eu,
pr�ncipes D. Ant�nio, D. Lu�s e do Gr�o-Par�, Visconde da Mata, Visconde
de Santa Quit�ria, um general, um almirante, o desembargador Lousada e a
esposa, e outras pessoas de distin��o.
O povo cercou o monarca e quis beijar-lhe a m�o antes dele entrar no
Arsenal; mas o velho, todo tr�mulo, com os olhos �midos, partido de
saudade, balbuciou fitando os que o rodeavam:
� N�o, aqui n�o: o sol est� muito quente!
� Viva Sua Majestade a Imperatriz! � berrou uma voz.
E todas as cabe�as se descobriram e todas as bocas exclamaram � �
Vi.... ���! num entusiasmo ardente e apaixonado.
Vozes de comando estrondeavam no recinto da pra�a; uma guarda de
honra do batalh�o naval fazia as contin�ncias ao monarca. E ele, muito
am�vel, muito cheio de cortesias ao lado da Sra. D. Teresa, a m�e dos
brasileiros, ia-se multiplicando em cumprimentos para aqui, para ali,
curvado ao peso dos anos e da trai�oeira enfermidade que o minava.
Uma onda acompanhou-o vitoriando-o, aclamando-o de chap�u no
ar, aos gritos de Viva Sua Majestade o Imperador! Viva Sua Majestade a
Imperatriz! Viva Sua Alteza a Sra. D. Isabel! Viva o Sr. Conde d�Eu!
60 Tipo de fogo-de-artif�cio.
78
E a m�sica repetia o hino nacional uma vez, duas vezes, tr�s vezes,
confundindo-se com o alvoro�o da multid�o.
Por fim um sil�ncio medroso caiu aos pouquinhos, amortecendo o
entusiasmo e transformando-o num vago pigarrear abafado e t�mido.
A galeota61 resfolegava e dentro dela j� se moviam homens
pressurosos, na sofreguid�o de evitar o arrocho e de se garantirem um lugar
c�modo. O imperador do Brasil, com os olhos vagamente nublados, num
grande c�rculo de homens e senhoras que o queriam ver e beijar, tinha a
fisionomia resignada dos m�rtires que a lei desterra para long�nquos pa�ses,
donde n�o voltam nunca.
Ainda n�o era chegado o momento das despedidas, hora tr�gica dos
beijos e das l�grimas. Havia uma ansiedade em todos os olhares; uma
tristeza calada e circunspecta ia dominando os esp�ritos, empolgando-os de
leve, penetrando os cora��es vitoriosamente.
A herdeira do trono enxugava os olhos, muito rubros de como��o e
de calor, em contraste com a branca fisionomia do pai. O monarca
repousava numa cadeira que lhe fora oferecida por um velho almirante de
rosto escanhoado. Mas de repente ergueu-se, compungido, e abriu os
bra�os � filha. Sua Alteza percebeu que o velho ia-se despedir e murmurou:
� N�o, meu pai, eu vou a bordo...
� Vais a bordo?... Oh!...
� Sim, vamos todos a bordo...
� Conselheiro � disse ent�o o velho para um homem idoso, fardado
de ministro, que conversava com o pr�ncipe Gast�o de Orleans � um
abra�o...
� Vossa Majestade permitir� que o acompanhe ao Gironde... � fez o
conselheiro dobrando-se.
� N�o quero que se incomodem por minha causa... O tempo �
dinheiro...
� N�o � inc�modo, senhor, � um prazer e uma obriga��o...
� Pois bem, vamos, para n�o demorar o vapor...
A essas palavras do monarca, a onda dos cortes�os agitou-se,
trovejou a voz do oficial que comandava a guarda de honra, tilintaram
espadas e uma fila de homens e senhoras marchou, com solenidade, para a
galeota. O cais estava todo negro de gente que tinha ido ver �o embarque�.
A prociss�o fez alto � borda d'�gua, trocaram-se muitos
cumprimentos, D. Isabel levou ainda uma vez o len�o aos olhos, o conde
abaixou a cabe�a, de lado, para ouvir um general que o importunava com
perguntas; uma menina de seis anos, vestida de branco ofereceu ao
imperador um buqu� de flores artificiais, com dizeres em ouro numa larga
fita verde, e, ao som do hino, os imperiais turistas embarcaram.
61 Pequena gal� de 20 remos.
79
Lanchas apitavam, cruzando-se na ba�a, defronte do Arsenal. Uma
tristeza enorme avassalou todos os cora��es naquele momento, e quando a
galeota fez-se ao largo e o �ltimo adeus flutuou na asa de um len�o �
palpitante, como um cora��o espeda�ado � milhares de silhuetas brancas
emergiram da onda negra dos que ficavam... E uma aclama��o geral,
clamorosa e dorida, vibrou na luz intensa, pelos cais, pelas embarca��es,
mar adentro, como uma celeuma de vencidos...
Adelaide chorou sem saber de qu�; encheram-se-lhe d��gua os olhos;
quis falar e faltou-lhe a voz: era como se nunca mais pudesse contemplar
aquela insinuante fisionomia do velho, meiga e boa, que ningu�m ousava
desrespeitar.
Estavam � sombra de uma �rvore, ela, D. Branca e Furtado; dali �
que tinham visto tudo � os menores movimentos do imperador e da fam�lia
imperial at� a hora do embarque.
Os olhos da esposa de Evaristo iam e vinham, de um lado para outro,
e pouco a pouco foram-se umedecendo, pouco a pouco foram tomando uma
express�o comovida e inquieta que o secret�rio logo percebeu.
D. Branca esticava o pesco�o, erguia-se na pontinha dos p�s, a m�o
enluvada no ombro do marido, equilibrando-se. Nada lhe escapou �
indiscreta curiosidade: viu o desembargador Lousada e a mulher, os
pr�ncipes, a princesa, o monarca e a imperatriz e, por fim, o Visconde, o
Santa Quit�ria enfronhado na sua casaca solene, de bra�o com uma ilustre
dama que ela n�o p�de reconhecer. O banqueiro levava ao peito um crach�
faiscante, uma grande comenda que a todos causava admira��o. � Mas de
bra�o com uma mulher! Qh, a esposa de Furtado arriou os calcanhares,
estremeceu de ci�me, como se lhe houvessem roubado a mais querida j�ia,
trincou o l�bio num assomo de desespero, e abanou-se com f�ria.
� Voc�s n�o est�o sentindo calor! � disse para Adelaide e o
secret�rio.
� Muit�ssimo! � exclamou Furtado.
� Muito � respondeu Adelaide.
� Oh, eu estou sufocada! Se houvesse �gua por aqui...
� Arranja-se � tranq�ilizou o marido. � Queres?
� Quero, sim, tem paci�ncia...
E quando ele afastou-se muito cavalheiro, para trazer �gua:
� Viste o Santa Quit�ria? � perguntou D. Branca � amiga.
� N�o.
� Que pena! Pois ia de bra�o...
� Com quem?
� Com uma velha, com uma mulher horrivelmente feia...
� Sim.
O Santa Quit�ria, um Visconde, um homem t�o elegante!
� � para voc� ver o que s�o os homens.
80
� N�o, que h� homem de muito bom gosto! Eu n�o creio que o
Visconde esteja cego...
� Exig�ncias de ocasi�o, coitado! ele at� acha quase todas as
mulheres feias... Pelo menos j� o ouvi dizer.
� �, mas l� ia com uma coruja!
Adelaide achou gra�a no ep�teto e, sem desviar os olhos da onda de
gente que se aglomerava no cais, respondeu com um sorriso em que se lia
toda a tristeza de uma alma ing�nua. N�o podia esquecer o imperador com
a sua longa barba muito branca, uma n�voa no olhar, inclinado para frente,
caminhando devagar, como quem j� est� marchando para a sepultura...
Tinha os olhos �midos ainda e ficava-lhe dentro d�alma uma piedade
imensa, uma ternura por aquele velho t�o diferente do que ela imaginava...
Um servente aproximou-se com uma bandeja e �gua para as duas
senhoras.
Furtado vinha com um riso de profunda ironia nos l�bios.
� Este mundo! este mundo!...
� Que �? � perguntou D. Branca olhando o secret�rio.
� Adivinha, se �s capaz!
� Eu n�o...
E Furtado cruzou os bra�os em atitude de misteriosa surpresa.
� Olhem que a vida � uma com�dia!...
� Explica-te, homem! � tornou D. Branca, muito inquieta j�.
Adelaide tinha uma interroga��o curiosa nos olhos.
� O Condicional, Branca, o Dr. Condicional, sabes? o grande
republicano, o inimigo dos reis, o poeta da Ode � Coroa � todo
empertigado, assistindo ao embarque do imperador, entre os amigos da
casa imperial! � exclamou o secret�rio num tom de comisera��o.
� Ora!...
� N�o achas um cinismo, uma pouca-vergonha?
� Est� voc� a se preocupar com um idiota!
� Porque, minha mulher, inda outro dia ouvi o Manh�es dizer
horrores de Pedro Segundo e agora vejo-o aumentando o n�mero dos
monarquistas!..
� O Evaristo � que havia de se rir muito � disse Adelaide.
� E com raz�o, com toda a raz�o!
� Vamo-nos daqui � interrompeu D. Branca.
� Vamos... vamos � concordou Furtado. � Este mundo! este mundo
velho!
J� n�o havia quase ningu�m no Arsenal e fora, na rua. Tudo nos cais
da cidade, no Pharoux, no Arsenal de Guerra, na Lapa, na Gl�ria, no
Flamengo... at� Botafogo, para assistir � sa�da do Gironde. Viam-se grupos
de homens e senhoras no alto dos morros, � luz quente do sol. Prolongavase
o cord�o negro dos espectadores at� os confins da Praia Vermelha �
81
extensa linha de curiosos que abandonavam o trabalho, as oficinas, as
reparti��es na �nsia de ver as �ltimas despedidas do monarca.
Com as primeiras salvas de bordo explodiu o sentimentalismo
ing�nuo do povo. Aqueles tiros ritmados, um ap�s outro, e logo todo o
confuso estourar da artilharia dos navios de guerra e das fortalezas, numa
balb�rdia de m�gica, eram como o �ltimo adeus, a um general que se
enterra.
�s salvas corresponderam ruidosas aclama��es: � Vi���! Vi���!...
Vi���!
E o Gironde singrava barra fora, numa inconsci�ncia de ave que solta
o v�o para a morte... O olhar da multid�o acompanhou-o longe, como se o
quisesse levar at� o fim da travessia.
Mas a dist�ncia encobriu tudo numa n�voa... desde esse dia ficou
entregue o governo � Sua Alteza Imperial Regente D. Isabel, herdeira do
trono.
� Agora � mais f�cil arranjar uma comiss�o � Europa � dizia Furtado
� esposa.
� Por qu�?
� J� te n�o lembras de que a princesa � nossa comadre?
� Sim... sim... Qual Comiss�o � Europa! Estamos muito bem no
Brasil!
� Isso hei de ir custe o que custar! Morrer sem ir � Europa? N�o.
Morrer depois de ter gozado...
� Bem, mas eu fico...
� Pois fica; � como quiseres.
� O Sr. Furtado deseja tanto sair do Brasil? � perguntou Adelaide
entre admirada e risonha.
� N�o � sair do Brasil � � passear, viajar, gozar um pouquinho as
decantadas belezas do Velho Mundo.
� Eu irei depois, quando j� o conheceres � tornou D. Branca.
� Pois sim, pois sim � ir�s depois...
Nesse andar chegaram a Botafogo. Evaristo lia, repoltreado na
espregui�adeira, um panfleto abolicionista que trouxera da rua. Ao som da
campainha, fechou o volume e correu ao bala�stre da escada.
Primeiro entraram as duas senhoras; Furtado vinha atr�s falando ao
criado: se n�o esquecera de dar alpiste ao can�rio? se algu�m o
procurara?...
O bacharel, com o livro na m�o, rompeu de cima:
� Embarcou, o homem?
� Oh!... j� vieste?
� H� mais de uma hora. Ent�o, como se foram?
� Perfeitamente bem.
� O homem sempre embarcou?
82
-� Por que n�o havia de embarcar?
� Est� salva a p�tria! � exclamou Evaristo, interrompendo o
secret�rio � Deus o leve, que de monarcas n�o precisa o Brasil.
� Evaristo! � ralhou Adelaide, encaminhando-se para o segundo
andar.
� Boa tarde, Sr. Evaristo! � cumprimentou D. Branca.
� Boa tarde, excelent�ssima! Estimo que se tenha divertido...
� Ao contr�rio...
As duas fam�lias recolheram-se aos seus aposentos.
O bacharel estava de bom humor �quela hora e tanto bastou para que
Adelaide exultasse. Abra�aram-se no alto da escada, ela muito meiga, com
a face incendida de calor, as luvas amarrotadas, ele todo em roupa branca, o
cabelo penteado, em chinelos de couro.
� Ent�o?
� Ent�o � que vi o homem.
� Viste-o?
� Vi... N�o te conto nada... quase chorei...
� O que, minha mulher!
� Quase chorei, sim. Tive pena do velho, coitado!...
� Oh, coitadinha, quase chorou!... Faltou o quase, n�o � assim? E...
faltou o quase... E depois? N�o houve quem te socorresse com uma
mamadeira?
� A� vem o Evaristo!
� Sim... uma mulher que chora por causa do imperador!...
� ... Mostra que tem cora��o...
� Mostra que n�o tem ju�zo!
� Mas eu n�o te disse que chorei...
� Faltou o quase...
Houve um r�pido sil�ncio, enquanto Evaristo acendia um cigarro. As
janelas estavam abertas, como de ordin�rio. L� longe os morros e o
cemit�rio.
� Ent�o, viste o homem!
Adelaide despia-se defronte do toucador. O leito de casal, o mesmo
que Furtado comprara no dia da instala��o do bacharel, saltava aos olhos,
enchendo quase todo o aposento. Ouvia-se o tique-taque de um rel�gio
invis�vel. Cheirava a perfumarias, como se se estivesse num armaz�m de
modas.
� Ah!... sabes quem foi ao embarque?
� ?
� O Dr. Condicional...
� O Valdevino Manh�es?
� O Valdevino Manh�es...
� Hist�ria, Adelaide!
83
� Palavra! O Sr. Furtado viu-o numa roda de homens.
� � poss�vel? � exclamou Evaristo com um ar incr�dulo, fitando a
esposa.
� N�o juro, porque n�o vi, mas o Sr. Furtado...
� O Furtado viu?
� Disse-nos ele...
� Ora, eis a� o que s�o republicanos no Brasil! Por isso � que os
monarquistas riem de n�s, por isso � que ningu�m toma a s�rio a
Rep�blica!
Adelaide continuava a se despir tranq�ilamente, numa exibi��o de
ombros e de bra�os, repuxando o colete, as saias, at� ficar em camisa diante
do marido que lhe n�o estranhava a ing�nua familiaridade. Ningu�m, sen�o
ele, podia v�-la naqueles trajos simples, quase primitivos, que a outro
homem seriam escandalosos. Ningu�m, porque o sobrado era alto e as
janelas davam exatamente para o deserto panorama das montanhas e para a
long�nqua tristeza de um cemit�rio. Demais era t�o grande o calor, t�o
abafada a atmosfera naquele dia, que imposs�vel se tornava a uma pessoa
que chega da rua fechar-se num quarto.
Oh, como lhe arrepiava a pele o contato dos ombros nus e dos bra�os
nus com o estreito ambiente, onde sempre corriam as primeiras brisas da
tarde! Uma id�ia pousou-lhe no c�rebro, trai�oeira como uma mosca: se
Furtado a visse em camisa de renda, o colo descoberto, os p�s nus no
tapete?... Se, em vez do bacharel, aquele homem que ali se achava diante
dela fosse o secret�rio?... Oh, n�o... nem era bom pensar... Ele, que ousava
dar-lhe um beijo na m�o...
� Realmente! � suspirou Evaristo.
Adelaide olhou-o, j� esquecida de Valdevino Manh�es.
� Que �?...
� O Condicional, filha, o Condicional renunciando �s suas id�ias
pol�ticas! Um homem que vociferava contra o imperador e a monarquia!
E Evaristo, indignado, p�s-se a andar de um lado para o outro da
sala, com o panfleto abolicionista na m�o. Ultimamente encasquetara-selhe,
como uma id�ia fixa, o programa republicano: abolir a escravid�o e
declarar a rep�blica brasileira, o governo do povo pelo povo... Um dos
membros do partido j� o convidara para s�cio e ele se comprometera a
tomar parte ativa nas reuni�es do clube. Da� a sua indigna��o contra o
Valdevino que tamb�m apregoava entusiasmo pelas id�ias liberais de
Saldanha Marinho62 e de Quintino Bocai�va.63 N�o lhe sa�a da cabe�a o
poeta da Ode � Monarquia! Como � que um homem t�o depressa abjura
das suas cren�as? Como � que se explicava essa pouca-vergonha de um
escritor p�blico?
62 Pol�tico pernambucano (1816-95), importante l�der republicano.
63 Pol�tico carioca (1836-1912), importante l�der republicano.
84
Sentou-se, afinal, e continuou a interrompida leitura do panfleto. Da�
a pouquinho vieram avisar que a sopa estava na mesa.
Cap�tulo VII
N�o obstante o insucesso da primeira tentativa, Lu�s Furtado n�o
renunciou aos seus projetos de conquistar o cora��o de Adelaide, �aquele
cora��o misterioso e duro como uma esfinge de bronze...�
Nada de precipitar os acontecimentos, nada de esc�ndalos! A vida �
uma eterna luta: ele lutaria... Resistir �s tenta��es do homem quase que �
um dever de toda a mulher. A sociedade a� est� de olho aberto para, de
chofre, cair, como um raio, sobre os vision�rios do amor, os que
transgridem as leis da Moral com preju�zo de terceiro... E a mulher, a pobre
mulher � quase sempre a v�tima indefesa � o cordeiro imolado em sacrif�cio
do homem. Resistir, todas resistem; poucas, no entanto, levam a resist�ncia
ao fim.
Adelaide era o que se pode chamar uma esposa meiga e boa, tinha
todos os predicados de uma senhora honesta... Mas Lu�s Furtado queria-a
justamente por isso, pelas suas excelentes qualidades de burguesinha n�o
corrompida, que idolatra o marido, que n�o vai a bailes, que fecha os olhos
� vida mundana e que se faz respeitar em casa ou nos lugares p�blicos. O
orgulho � tanto maior quanto mais dif�cil � a vit�ria, nos combates do
Amor. � Oh, ele o sabia muito bem, muit�ssimo bem... O caso de Adelaide
era, al�m de tudo, um caso excepcional, uma tenta��o de nova esp�cie, e
para os casos novos a prud�ncia aconselhava toda a diplomacia, toda a
sutileza... A primeira vez � nada! A segunda vez � nada! Mas a terceira
vez... quem sabe?...
Estas considera��es, fazia-as ele � noite, ao lado da esposa, ou no seu
gabinete do r�s-do-ch�o, quando estava s�, ou nas horas do trabalho, no
Banco, a dois passos do Evaristo, onde quer que estivesse, mesmo na rua. E
conclu�a sempre de bom humor, um trecho de �pera a escapulir-lhe dentre
os l�bios como uma can��o de triunfo: Tr�-l�-l�... tr�-l�-l�... tr�-l�-l�!...
Ia tudo em casa �s mil maravilhas, tudo inclusive o can�rio belga que
ele tinha pendurado numa gaiola, na sala de jantar. Depois de Adelaide era
a sua preocupa��o o can�rio belga; esquecia-se, a ouvi-lo cantar, pela
manh�, antes do almo�o, enquanto lia os jornais. D. Branca, o Raul e a
Julinha n�o lhe davam grandes cuidados. A mulher encarregava-se dos
pequenos. O Raul, esse vivia no col�gio.
Quanto aos do segundo andar, os Holanda, a mesma amizade
fraternal, as mesmas rela��es. Branca e Adelaide entendiam-se.
Evaristo � que n�o dispensava agora uma sortida � noite. Acabava de
jantar, envergava o palet�, punha o chap�u e adeusinho, t� logo... � ia
assistir �s sess�es noturnas do Clube Republicano de Botafogo.
85
Adelaide habituou-se �quilo, e para n�o ficar sozinha no segundo
andar, vinha distrair-se embaixo, na companhia de D. Branca e de Furtado
at� que o marido chegasse do clube, ordinariamente �s onze horas, quando
j� n�o havia vivalma na rua. Nesse �nterim tocava-se um pouco de piano;
jogava-se a dama ou o tr�s-e-sete64, conversava-se � luz do g�s, na sala de
visitas, ou ent�o na sala de jantar, em torno � mesa oval coberta com um
pano grosso de l�, arabescado.
O secret�rio ocupava a cabeceira, como nas refei��es, D. Branca �
direita e Adelaide � esquerda e principiava o jogo. � Isso quase todas as
noites, quando ningu�m os vinha visitar. O bacharel encontrava-os naquela
intimidade, os olhos rubros de sono, disputando uma �ltima partida, como
tr�s pessoas muito amigas, cada uma das quais existe porque as outras duas
existem.
Boa vida! � costumava dizer Evaristo arriando o chap�u, num tom de
ador�vel bonomia.
� Que se h� de fazer sen�o isto mesmo? � replicava o secret�rio. � A
pol�tica � para os bachar�is; eu prefiro as cartas.
� Como vamos de rep�blica, Sr. Evaristo? � gracejava a esposa de
Furtado.
� Muito bem, D. Branca. E extraordin�rio o n�mero de ades�es. A
id�ia prospera e... le monde marche!65
� Isso � o que se quer...
� Obrigado, excelent�ssima, obrigado em nome do Progresso... O
elemento feminino h� de colaborar na obra da reden��o do Brasil...
Uma dessas noites o secret�rio, aproveitando a aus�ncia de D.
Branca, e, em conversa com Adelaide, aludiu, indiretamente, ao epis�dio
do Jardim Bot�nico. � �Nunca mais havia de esquecer o desgosto que
tivera, o doloroso instante que passara...�
Ela compreendeu a alus�o, mas n�o teve sequer uma palavra em
resposta.
Furtado continuou, baixando a voz:
� No entanto, D. Adelaide, eu estimo-a, como se fosse minha irm�.
Nunca mulher alguma dominou t�o poderosamente um cora��o. N�o quero
dizer que a amo, porque... porque seria uma deslealdade... Que id�ia faz de
mim? Pensa ent�o que eu n�o considero as coisas, que me deixo levar por
utopias ou por sentimentos que nivelam o homem com o animal? O meu
estado obriga-me � circunspec��o, ao respeito, � sizudez. Al�m disso, eu
n�o desejaria para os outros o que n�o quero para mim...
Adelaide, sempre muda, o rosto voltado para o piano, batia com a
ponta do p� no soalho, inquieta, uma exacerba��o de todos os nervos, quase
a romper numa caudal de desespero.
64 Variedade de jogo de cartas.
65 �E o mundo gira.�
86
O secret�rio ia continuar, mas D. Branca penetrou na sala.
Da� em diante Furtado n�o perdia ocasi�o de aludir ao epis�dio do
beijo com uma insist�ncia atrevida, numa voz untuosa de padre que
aconselha um pecador. Ela ouvia-o � que rem�dio! � de olhos baixos,
calada, sem exalar um suspiro, sem fazer um movimento, presa ao ch�o,
como uma est�tua. Era a mesma sempre, a mesma mulher fraca, incapaz de
repelir qualquer ofensa aos seus brios de esposa honesta, d�cil como um
animalzinho que a gente acaricia, meiga como uma pomba. E esta
passividade era tanto maior porque Adelaide estimava o secret�rio,
habituara-se a v�-lo todos os dias, a receber favores e finezas dele e D.
Branca, a consider�-o quase como um parente. Romper agora, depois de
tantos meses de intimidade, � que esc�ndalo! N�o pensava tampouco em
ceder, isso nunca lhe passara pela id�ia. Era toda de Evaristo, toda do seu
marido, a quem amava e respeitava abaixo de Deus. Nada se lhe afigurava
t�o desprez�vel como uma mulher ad�ltera, uma mulher que pertence a
mais de um homem, depois de ter escolhido publicamente um esposo, um
companheiro eterno para as suas dores e para as suas alegrias. Demais
Evaristo nunca faltara com os deveres de homem casado: adorava-a como
se adora a imagem de uma santa; era sempre o mesmo Evaristo da
prov�ncia, o mesmo car�ter bondoso, e reto, confiando nela, sacrificando-se
por ela, respeitando-a tamb�m. Lamentava que o marido de D. Branca,
�homem distinto e de t�o belos modos, de t�o fina educa��o, tentasse uma
coisa imposs�vel, julgando-a capaz de um ato vergonhoso e torpe!�
Lamentava em sil�ncio, pungida de desgosto, e n�o raras vezes
umedeciam-se-lhe as p�lpebras, quando estava s� refletindo nas coisas da
vida.
E tornava a pensar: � Antes nunca houvesse deixado a casinha de
Coqueiros, perdida entre �rvores, longe de tenta��es.
Mas Evaristo chegava e ela redobrava de carinhos abra�ando-o,
como se quisesse pregar-se a ele, beijando-o, e iam os dois unidinhos por
aquele tristonho segundo andar que sem ele era um deserto.
O bacharel agora vivia para Adelaide, para a rep�blica e para o
Clube Republicano de Botafogo. N�o pensava noutra coisa. A propaganda
abolicionista entusiasmava-o, porque, dizia ele, feita a aboli��o, estava feita
a rep�blica, e um pa�s de escravos � um pa�s atrasado. O escravo era ainda
o �nico obst�culo para a realiza��o da forma democr�tica no Brasil!
Nas discuss�es com os amigos ia buscar no pr�prio direito romano
argumentos contra a escravid�o. Um dia o diretor do Banco Industrial
preveniu-o que "ali n�o era lugar de palestras"... O diretor do banco possu�a
fazendas em S�o Paulo. Evaristo queixou-se a Furtado.
� Voc� logo n�o est� vendo que eu n�o troco as minhas id�ias por
um lugar de escritur�rio! � bradou ele. � A rep�blica h� de se fazer, depois
da aboli��o, e tudo quanto � visconde e marqu�s vai para a rua!
87
� Isso devias tu dizer ao diretor, n�o a mim... � obtemperou
gravemente o secret�rio. � Por que lhe n�o respondeste?
� Ora, porqu�! Porque n�o h� liberdade, porque neste pa�s domina o
capital e sem dinheiro ningu�m vive!
� Ah! neste caso, meu amigo, � sempre melhor o empreguinho do
que as tais id�ias!
Evaristo, por�m, amea�ava o diretor do banco com o novo sistema de
governo, e citava epis�dios da revolu��o francesa, repetindo os nomes de
Marat66, Robespierre67 e Danton68, batendo com o punho na mesa,
erguendo-se na ponta dos p�s, num entusiasmo apaixonado pelos homens
de 1789.
Furtado �s vezes, por distra��o, opunha-lhe argumentos em defesa da
monarquia, rebaixando Marat, chamando-o de assassino, de bandido,
apelando para o ju�zo da hist�ria e para as altas qualidades do imperador do
Brasil. Via-se, ent�o, o marido de Adelaide ficar sem gota de sangue no
rosto, desabotoar o palet�, o colete, arrega�ar as mangas e berrar, como um
possesso, contra os ministros da coroa, contra o regime imperial, contra os
abusos do Poder!
� Eu lhe pe�o, Sr. Furtado, pelo bem que quer � D. Branca: n�o
discuta pol�tica com o Evaristo! suplicou uma vez Adelaide.
Furtado olhou-a, enternecido, e jurou por todos os santos da Corte
celeste, n�o mais discutir pol�tica com o Evaristo.
De modo que o bacharel agora n�o se expandia em casa sobre as
delibera��es do clube ou sobre os acontecimentos pol�ticos da �ltima hora.
� Que h� de novo? � perguntava o secretario.
� Nada... � respondia ele com despeito.
E costumava dizer � mulher, em tom de solene desd�m:
� Esse Furtado � um idiota! N�o tem id�ias pol�ticas, n�o tem
convic��es! Eu, �s vezes, palavra! o aborre�o!
Adelaide defendia o secret�rio: � �N�o havia raz�o para aborrecer o
homem, somente porque ele n�o era republicano... Cada qual tem a
liberdade de pensar como quer... Isso de id�ias varia.�
� Mas discuta seriamente, prove como o sistema de governo que
defende � superior ao republicano, fale, diga... mas n�o se ponha a rir e a
insultar os outros!
� Ele n�o insultou...
� Insultou, sim, senhora; j� n�o � a primeira vez que tenta profanar a
gl�ria de Saldanha Marinho! N�o quero! n�o admito!
� Olha que ele nos tem feito muitos favores.
66 Jean-Paul Marat (1743-93), l�der exaltado da Revolu��o Francesa. Morreu assassinado.
67 Maximilien de Robespierre (1758-94), l�der radical da Revolu��o Francesa. Morreu guilhotinado.
68 Georges-Jacques Danton (1759-94), l�der radical da Revolu��o Francesa. Morreu guilhotinado sob a
acusa��o de modera��o.
88
� Reconhe�o e sou-lhe agradecido... mas n�o � raz�o... Amigos
amigos, neg�cios � parte.
Falavam baixinho para que ningu�m os ouvisse. Evaristo acabava
repetindo que ia procurar casa antes de qualquer rompimento � casa de
pobre, casa de cinq�enta mil-r�is, na Cidade Nova, no Castelo, no Morro
do Pinto, no inferno!
Adelaide, sempre que o marido falava em procurar casa, estremecia.
Por qu�? N�o sabia... n�o sabia por qu�. Era-lhe talvez mais agrad�vel
voltar � prov�ncia, deixar o Rio de Janeiro, a Corte, as apar�ncias de uma
vida fidalga, e recolher a um canto esquecido e long�nquo, onde ningu�m a
visse... O mundo � muito grande.
� Eu o que quero � estar � vontade com as minhas id�ias! � rematava
o bacharel.
Nada o importunava tanto, agora, como a presen�a de um aristocrata.
A mulher do desembargador Lousada com a sua luneta de tartaruga e com
os seus modos afetados de dama do Pa�o; o Visconde de Santa Quit�ria,
muito enluvado, muito correto; bar�es e comendadores, que freq�entavam
a casa do secret�rio � todos o aborreciam. � �Canalha de gra�dos! Corja de
mandri�es! Visconde... que quer dizer um Visconde? Que quer dizer um
Bar�o? Que quer dizer um comendador?�
Adelaide pedia, cansava de pedir, suplicava de m�os postas, que
falasse baixo, por amor de Deus! � Ele moderava o seu �dio aos grandes e
punha-se a fumar ou a ler.
Ambos viviam muito preocupados: o bacharel com a pol�tica,
Adelaide com a insist�ncia do secret�rio, sem se esquecerem um do outro,
amando-se como noivos em lua-de-mel. Ela, sobretudo, por uma
extraordin�ria delicadeza do sentimento, por um nervosismo doentio, n�o
lograva arredar da imagina��o os olhos de Furtado, a boca sensual de
Furtado, o rosto inteiro daquele homem que era como uma tenta��o do
inferno a persegui-la, a persegui-la... Evitava-o, como se evita um perigo,
como se evita um abismo, uma desgra�a... Mas quase n�o tinha for�a para
reagir, para dominar a impress�o que lhe enchia o esp�rito, escravizando-a,
subjugando-a imperiosamente. Via-o a todo o instante, mesmo quando ele
n�o estava em casa � via-o risonho, afagando o bigode, olhando-a com a
meiguice de um namorado, com aqueles olhos muito sedutores, de uma
do�ura infinita � e perdia de vista o marido, como se j� pertencesse ao
outro, ao estranho.
Uma noite em que o bacharel se demorava at� quase uma hora da
madrugada no clube, ela s� faltou perder o ju�zo. Bateu dez horas, onze
horas, e o Evaristo �na rua!� Adelaide come�ou a ficar nervosa, a
concentrar o esp�rito numa id�ia l�gubre... � �Se lhe houvessem
assassinado o marido!... Se algum inimigo... algum ladr�o o tivesse
89
apunhalado �s escuras num beco, ao sair do clube?... Que horr�vel coisa a
viuvez de uma pobre mulher como ela, �rf� e desconhecida!�
E seus olhos buscavam Furtado instintivamente, como os olhos de
um n�ufrago a sombra long�nqua duma vela. � propor��o que as horas
passavam, confrangia-se-lhe o cora��o numa angustiosa crise de des�nimo.
A luz da sala de jantar entibiava-se, parecia ir morrendo aos poucos,
uma consump��o lenta.
D. Branca explicou: � �era �gua no g�s...�
Deu meia-noite. Adelaide tirou do bolso do vestido o len�o, baixou a
cabe�a e explodiu num choro nervoso.
� Pelo amor de Deus, D. Adelaide! Chorando � toa! � disse o
secret�rio.
� � toa, � toa � repetiu D. Branca.
E tratavam ambos de distrair a esposa do bacharel, consolando-a,
rindo, gracejando � custa de Evaristo:
� O homem est� metido com os republicanos, minha senhora! � dizia
Furtado. � Isso de rep�blica e como o espiritismo: p�e a gente doida!
� E, depois, ele j� n�o � crian�a, Adelaide! � juntava D. Branca. �
Voc� logo n�o est� vendo que a sess�o de hoje foi maior que a dos outros
dias?
Mas Adelaide n�o tirava os olhos do rel�gio, o len�o na m�o, todo
�mido, um ruborzinho na ponta do nariz.
� Ah! meu Deus, permiti que aquele homem j� volte!
� H� de voltar, h� de voltar � por que n�o?
E o secret�rio rondava a mesa, de um lado para o outro, indo e vindo,
com o seu ar de fidalgo, cal�a de casimira e palet� branco.
Foi ent�o que, pela primeira vez, Adelaide viu quanto estimava o
marido, quanto o idolatrava. Aquela demora do�a-lhe como se o j� estivesse
contemplando morto no meio da casa, dentro de um caix�o negro com
gal�es de ouro...
Mais um quarto de hora: novo acesso de choro.
� Menina, tenha paci�ncia que o homem vem! Adelaide! � ralhou D.
Branca.
Com efeito, a campainha retiniu no corredor e uma alegria s�bita
iluminou o rosto de Adelaide que ergueu-se para ver chegar o bacharel.
Evaristo vinha carrancudo, muit�ssimo s�rio.
� Boa noite! cumprimentou, respeitoso.
� Oh, Evaristo! � fez a esposa abra�ando-o.
� Oh, o qu�?
� Que horas!
� Ent�o, faz-se ou n�o se faz a rep�blica? � interrompeu o secret�rio.
� N�o posso responder agora; estou com muito sono... � disse,
enfadado, o bacharel.
90
� Acredito, acredito; vamos tratar de dormir, que j� passa de meianoite.
Trocaram-se ainda algumas palavras frias, sem interesse, e os dois
casais separaram-se.
Adelaide compreendeu que o marido estava de mau humor e n�o lhe
fez a menor pergunta, a mais leve recrimina��o: tinha-o a seu lado � era o
principal. Ele tamb�m n�o disse a causa da demora, nem falou em
cois�ssima alguma. Cantarolava baixo, desafinadamente, enquanto se
despia.
Mas Adelaide n�o adormeceu logo; ferroava-a uma esp�cie de
remorso, um vago arrependimento de ter pensado, com insist�ncia, numas
tantas loucuras de mulher sem ju�zo, nem moralidade... ela �a mais honesta
das esposas, a mais virtuosa das donas-de-casas�. Como aquilo fora, n�o
sabia; o certo � que tinha uma esp�cie de remorso, uma dor no fundo
d�alma como um ponto negro na brancura da sua consci�ncia.
Duas vezes viu, � luz do quarto, o rosto tranq�ilo do bacharel
dormindo e duas vezes teve vontade de o acordar, simplesmente, para lhe
dizer �que estava nervosa�; mas n�o se animou: preferiu respeitar o sono
calmo de Evaristo. Chegava-se a ele, medrosa, supersticiosa, sentindo-lhe a
quentura do corpo, a respira��o ronronada, e encolhia-se muito franzina,
quase a desaparecer nos len��is, como uma crian�a. Uma figura de homem
interpunha-se entre ela e o marido, tentadora, chamando-a com os l�bios
fechados em beijo, criminosamente, o olhar voluptuoso, fosforescente de
desejo, pousando nela e queimando-lhe as faces.
� Evaristo! Evaristo!
� H�!... Que �?
O bacharel levantou a cabe�a, espantado, os olhos muito vermelhos
de sono.
� Que �?... � repetiu.
Adelaide estava diante dele fitando-o, como se o n�o reconhecesse.
Mas, ouvindo-o falar:
� Nada... uma sombra...
� Que sombra?
� Uma coisa na parede...
� Pois tu ainda est�s acordada?.
Ela n�o respondeu; tornou a deitar-se, muda, com arrepios de frio,
enroscando-se toda.
Foi uma noite de pesadelos, de sonhos incr�veis e de sobressaltos.
Adelaide, pela manh�, jurou ir-se embora daquela casa, fugir para
longe, voltar � prov�ncia, onde nunca o dem�nio lhe sorrira t�o de perto..
Em Coqueiros, ao menos gozava tranq�ilidade, ningu�m lhe ia meter na
cabe�a id�ias perniciosas a titulo de civiliza��o, nem era obrigada a luxo e
a hipocrisias. E outra vez a imagem da negra Balbina, como um tipo
91
primitivo de ingenuidade e candura, acenava-lhe do fundo da mem�ria,
recordando-lhe o passado, os tempos felizes de uma exist�ncia quase
b�blica, dourada pela esperan�a e pelo amor... Come�ava a odiar o Rio de
Janeiro � esse Botafogo aristocrata e imoral, cheio de conven��es, onde
todo o mundo era grande, onde n�o havia pobreza, nem sinceridade, e s� se
falava no L�rico, em Petr�polis e vestidos � �ltima moda e passeios a carro
e piqueniques e na fam�lia imperial! J� podia ter-se mudado, j� podia estar
longe de tanta mentira. A culpa era sua de mais ningu�m... Bem feito,
muito bem feito!...
Andava-lhe na cabe�a um enxame de id�ias; palpitava-lhe o cora��o
desordenadamente; queria, mas n�o tinha coragem de falar a Evaristo numa
mudan�a breve, numa retirada escandalosa, que podia suscitar desconfian�a
no esp�rito dele. Era preciso ir pouco apouco fugindo � tenta��o daquele
homem, evitando-o, mostrando-se fria, de uma frieza de est�tua, cada vez
que ele se aproximasse dela, at� ir-se embora da Corte com Evaristo.
E enquanto Adelaide pensava nessas coisas, sem nada dizer ao
marido, o bacharel premeditava o arrasamento das institui��es, ao mesmo
tempo que lia, com avidez, os artigos revolucion�rios d�A Folha.
A jovem senhora estava emagrecendo, mas emagrecendo como quem
sofre uma les�o oculta, uma doen�a profunda na parte mais delicada do
organismo. J� era d�bil, naturalmente franzina, com olheiras sintom�ticas
de anemia, o pesco�o esguio, o nariz afilado, a voz cansada, de um timbre
melodioso, quase a extinguir-se, uma passividade meiga aos olhos; mas
agora, tudo isso como que ia tomando uma express�o visivelmente m�rbida
aos olhos de toda a gente, menos aos de Evaristo, que os tinha voltados
para a pol�tica e para os republicanos.
� N�o me achas magra? � perguntava ela ao bacharel.
� N�o, a mesma coisa... � dizia ele fitando-a. � Sempre foste
magrinha.
At� que uma tarde, ap�s o jantar, Adelaide, em conversa com
Evaristo, disse-lhe:
� Oh! quem me dera voltar � prov�ncia!
O bacharel encarou-a.
� Homessa!
� � o que te estou dizendo...
� Ent�o j� aborreceste o Rio?
� J�.
� Pois admira... Inda n�o h� muito tempo falavas com entusiasmo na
Rua do Ouvidor e nos bailes do Cassino...
� � verdade, mas.
� Mudaste de id�ia como o Valdevino Manh�es de pol�tica...
� Isso mesmo. H� dias que penso doutra forma. O Rio de Janeiro �
essencialmente ego�sta e eu n�o me coaduno com a vida que temos vivido
92
nele... De repente apoderou-se do meu esp�rito uma nostalgia, uma tristeza
mesclada de apreens�es e de des�nimo... um aborrecimento das coisas que
me cercam... Prefiro viver s�, bem longe desta sociedade... l� no fundo da
minha prov�ncia, em Coqueiros, como outrora...
� Est�s eloq�ente! � exclamou Evaristo, interrompendo a esposa.
E logo:
� Mas vem c�: desfeitearam-te? trataram-te com menos polidez?
� Nada... todos me tratam muit�ssimo bem... D. Branca � um anjo... o
Sr. Furtado um cavalheiro irrepreens�vel... todos, enfim, com quem nos
damos, s�o umas belas pessoas...
� E ent�o, filha? Dir-se-ia que tens lido os romances de Georges
Ohnet69 ou os folhetins de Montepin70... Se a quest�o � de casa, se n�o est�s
contente aqui � mudemo-nos: sempre foi este o meu desejo.
Debru�ados ambos no peitoril da janela, iam assim confidenciando
baixo, �quela hora crepuscular, frente para a perspectiva sombria das
montanhas que se recostavam numa mudez piramidal e tenebrosa, como
dorsos de dromed�rios fugindo nos longes de um deserto...
Havia pausas curtas no di�logo.
O cemit�rio dava uma nota ainda mais triste � paisagem, �quele
rec�ncavo da natureza, cuja melancolia tinha o sainete f�nebre da morte...
O c�u, por�m, o grande c�u, numa impassibilidade m�stica, sem a
dobra ou a franja de uma nuvem, sem o brilho de uma estrela precursora,
vazio e desolado, era como a retrata��o simb�lica do Nirvana oriental para
onde correm as almas dos eleitos de Buda... � misterioso, inexpressivo e
assim mesmo belo!
Uma claridade argentina e deliq�escente, qual o reflexo para o alto
de uma cidade iluminada, emergiu como os pr�dromos71 de uma aurora
boreal, no liso descampado que o sol ia deixando.
� Olha aquilo! � exclamou o bacharel, tocando no ombro de
Adelaide.
Ela volveu o rosto � esquerda, para o lugar indicado, e, sem se
aperceber de que j� era noitinha, viu o medalh�o esbraseado da lua no
nascente, carregando toda a tristeza dos desiludidos, toda a inconsol�vel
amargura dos infelizes, cujo olhar se embebera nele desde o princ�pio do
mundo.
E a esposa de Evaristo n�o teve uma palavra de admira��o, um
movimento de surpresa: disse simplesmente, quase inconscientemente:
� � a lua...
E, com a face na m�o, esperou que o astro bendito dos poetas lhe
trouxesse algum rem�dio �s dores, que eram muitas e profundas...
69 Georges Ohnet (1848-1918), romancista e dramaturgo franc�s.
70 Xavier de Montepin (1823-1902), escritor franc�s de folhetins.
71 Pren�ncios.
93
Mas Evaristo continuou, distraindo-a:
� Tu est�s nervosa, Adelaide, isso � nervoso, a mol�stia da moda...
Vamos procurar casa, que � o verdadeiro...
� N�o, n�o! � interrompeu ela com um arzinho de amuo. � Daqui, de
Botafogo, para a prov�ncia... para outro lugar... fora do Rio de Janeiro.
� Com efeito! Muito �dio tens tu ao Rio de Janeiro!
� Dizes bem: muito �dio...
� Queres, ent�o, decididamente, voltar � doce vidinha de Coqueiros!
Pois olha, n�o te gabo o gosto. O Rio de Janeiro sem o imperador e sem os
preconceitos da monarquia, o Rio de Janeiro tal qual sonham os bons
republicanos, h� de ser uma coisa �nica! Palavra de honra como eu n�o
desejava abandonar esta terra, enquanto n�o visse um homem do povo
governando o Brasil!
� De forma que, se os m�dicos me aconselhassem uma retirada...
� Isso � outro caso, filha; a sa�de em primeiro lugar. Mas n�o me
consta que estejas t�o doente assim...
� Pois estou... estou muito doente, muito apreensiva, muito nervosa...
j� n�o acho encanto em cois�ssima alguma... Vem-me uma vontade de
chorar, uma tristeza no cora��o...
Evaristo imaginou logo que se tratava de um primeiro filho. Oh, o
seu ideal dom�stico: um filho! Ouvira falar nos m�ltiplos sintomas da
gravidez, nas primeiras manifesta��es desse estado... e o nervoso de
Adelaide, aquela tristeza, aquela morbidez, n�o o enganavam...
Era pai.
Um sorriso complacente arqueou-lhe os l�bios; todo ele sentiu-se
invadido por uma onda de alegria e de ternura paternal. J� n�o estava ali o
republicano exaltado, o homem feroz, o pol�tico sem entranhas, o abutre
dos monarquistas e dos reis! A simples id�ia de que em breve estaria com
um beb� ao colo, nascido do seu amor, um novo e leg�timo representante
dos Holanda, fazia-o outro homem, calmo, generoso, inclinado ao perd�o,
amigo dos seus inimigos.
Adelaide compreendeu a ilus�o do marido e sorriu tamb�m:
� N�o... n�o � o que tu pensas...
� N�o �! Ora, se �...
� Juro-te!
Mas ele, na sua embriaguez, no seu enleio, na extrema felicidade que
o assaltava, respondeu:
� O futuro nos dir�...
Com uma voz t�o firme, t�o convencida, que a esposa, mais meiga
do que nunca, tornou a sorrir e beijou-o carinhosamente.
O luar banhava as montanhas com essa claridade misteriosa que faz
sonhar em coisas vagas, intang�veis, et�reas, que a linguagem humana n�o
define. Todos os objetos que a vista alcan�ava pareciam diluir-se, esgazear94
se numa neblina luminosa e transparente. Embaixo, na rua, os lampi�es,
espa�ados, morriam de abandono e de tristeza.
Evaristo acendeu o g�s, porque � �aquilo estava cheirando a ru�nas
de Pomp�ia em noites de luar...�
� Ora, at� que enfim! � dizia ele, riscando o f�sforo. � At� que,
enfim, o muito digno Sr. Evaristo de Holanda acertou no alvo!
Cap�tulo VIII
O Visconde de Santa Quit�ria foi o primeiro a anunciar a chegada do
monarca a Lisboa, depois a Paris, depois a Baden-Baden; recebia
telegramas diretos, que lhe enviava um amigo da corte, igualmente
condecorado por Sua Majestade. E no mesmo dia em que o carteiro lhe
entregava o despacho, abalava para Botafogo, dentro do seu cup� de arreios
novos, com a not�cia na ponta da l�ngua.
Furtado dizia logo � mulher: � �Temos novidade!� E D. Branca
ensaiava o melhor dos seus sorrisos para apertar a m�o ao banqueiro.
Numa dessas noites (porque era sempre � noite que o Visconde
visitava os Furtado) � numa dessas noites o Santa Quit�ria n�o encontrou
Furtado em casa. O secret�rio tinha ido � F�brica das Chitas visitar um
amigo doente �... o que estimei bastante... � acrescentou D. Branca em
segredo.
O Visconde limitou-se a um � oh! de agradecimento.
J� havia um princ�pio de disc�rdia entre os Furtado e os Holanda.
Evaristo e a esposa recolhiam agora muito cedo, ao lusco-fusco, para evitar
discuss�es com o outro casal, n�o obstante o bom g�nio do secret�rio. D.
Branca era sempre mais caprichosa e altiva.
De modo que o Visconde n�o podia encontrar melhor ocasi�o para
um rendez-vous72 amoroso.
Sentaram-se os dois, ele e ela, no sof�, tranq�ilamente, numa
familiaridade discreta, como se estivessem nalgum remanso impenetr�vel,
interdito a olhos e ouvidos humanos. A quest�o era falar baixinho, para que
as vozes n�o ecoassem, denunciadoras, al�m do teto, no aposento dos
Holanda.
Ouvia-se o piano de D. Sinh�, na casa do desembargador. Mas a rua,
como de costume, estava silenciosa.
O primeiro movimento de D. Branca, depois de sentar-se, foi para
entregar ao banqueiro uma carta que h� dias lhe andava no bolso do
vestido.
� Leia em casa, recomendou.
Ele tomou o envelope, com um carinho singular, e guardou-o.
� Mesmo, aqui n�o teria encanto...
72 Encontro.
95
E entraram a conversar numa voz sibilada, num tom de reza ou de
confiss�o mal quebrando o sil�ncio da sala. Falavam de amor e do �ltimo
encontro que haviam tido. Ela achava �um bocadinho� prosaico o escrit�rio
da Rua da Alf�ndega, �um bocadinho exposto�.
J� se tratavam por voc�.
� Voc� n�o imagina � dizia ela � o sacrif�cio que me custou!. E os
homens ainda falam mal das mulheres...
Ele, ent�o, fazia-se meigo, derreava a cabe�a, sem prejudicar a linha
correta do porte, dando palmadinhas na m�o dela, numa intimidade de
casal. Tirou da botoeira a rosa que trazia e ofereceu-lha com uma gra�a
muit�ssimo gentil.
Depois, ela pediu licen�a por um instante � mandou trazer vinho fino
do Porto que o criado apresentou numa salva de prata.
Eram quase dez horas quando o Visconde quis retirar-se.
� Agora espere o Lulu � insistiu D. Branca. � Ele n�o deve tardar...
� J� se havia demorado tanto! � retrucou o banqueiro. O amigo
Furtado chegava cansado... e n�o era bonito, n�o era correto... E retirou-se.
Quando a campainha deu sinal do secret�rio, ia para mais de onze
horas. A esposa n�o lhe ocultou a visita do Visconde.
� Fizeste mal em o deixar ir.
� Disse que era tarde, que voc� vinha cansado...
� E que novidades trouxe ele?
� Que a fam�lia imperial chegou a Cannes. Os m�dicos receitaram
duchas, estricnina e aplica��o do gelo ao imperador.
� J� sei: o tratamento hidroter�pico...
� Isso.
� Todos v�o bem?
� Todos; o Velho mesmo tem esperan�a de se restabelecer.
� Coitado! Sempre muito am�vel, o Visconde!
� Amabil�ssimo! Perguntou pelo Raul, pela Julinha, pelos Holanda...
at� pelo Condicional!...
Furtado j� encontrara a mulher no val dos len��is, e, enquanto se
despia, ela lhe ia dizendo tudo.
A noite estava fresca: eram os primeiros dias do inverno que
aproximava eri�ando a cabeleira das �rvores.
Evaristo e a mulher tinham visto, da janela, entrar e sair o Visconde.
O bacharel n�o se conteve: � armou o punho indignado:
� Corja!
E recolheu cheio de �dio, tempestuoso, numa das suas explos�es mal
contidas de jacobino73 incendi�rio. � �Neste pa�s devia haver uma forca,
um cadafalso em cada esquina!�
73 Os jacobinos formavam o grupo mais intransigente da Revolu��o Francesa. Como adjetivo, jacobino
significa qualquer radical pol�tico anti-clerical, anti-monarquista e anti-liberal.
96
Quanto a Adelaide, continuava a abrir-lhe os olhos:
� �Vamo-nos daqui, Evaristo... Mudemo-nos de uma vez...
Abandonemos este Rio de Janeiro, que � um inferno... uma tenta��o!�
Furtado n�o a esquecera, apesar da disc�rdia que reinava entre as
duas fam�lias. Era o primeiro a querer que ela se mudasse, que o bacharel
fosse morar em outra casa, longe de Botafogo, mas n�o do Rio de Janeiro...
Adelaide cativava-o ainda irresistivelmente. Nas horas em que os
dois casais se reuniam para almo�ar ou jantar, ele sentia afluir-lhe do
cora��o todo o sangue das veias numa pletora sensual, num gozo abstrato e
mudo, que o desnorteava; e ela, como se lhe percebesse as secretas
maquina��es e a intensidade do calor afetivo, nem o olhava sequer...
As refei��es eram r�pidas agora � r�pidas e frias como o
cumprimento de um dever penoso. Trocavam-se glacialmente os � bons
dias! � e quase n�o se falava mais, quase n�o se dizia outra coisa.
O bacharel era homem de resolu��es moment�neas e inesperadas;
opunha-se a qualquer id�ia da esposa, mas acabava sempre concordando
com ela, e o seu fiat74 era um decreto irrevog�vel.
Adelaide dera-lhe a maior prova que uma mulher pode dar ao marido
de n�o estar em via de aumentar a esp�cie humana, e ele resignara-se.
Vendo-a, por�m, definhar, emagrecer, e estranhando-lhe certos h�bitos,
como o de acordar alta noite, sobressaltada, o de n�o comer com o mesmo
apetite de quando tudo andava em ordem naquela casa, e, principalmente, o
de amofinar � mais leve contrariedade, chorando �s vezes, como uma
crian�a, quando ele lhe fazia qualquer censura � vendo-a nesse estado de
desequil�brio nervoso, pensou em chamar m�dico.
� Por amor de Deus, Evaristo, n�o fa�a tal coisa! � rogou Adelaide.
� Por qu�? N�o andas doente? N�o te queixas tanto?
� Pelo amor de Deus! O que eu quero � ir-me embora do Rio de
Janeiro, ainda que seja para um deserto! Arranquem-me daqui, tirem-me
deste inferno � � o que eu quero...
Evaristo, meio intrigado com aquela relut�ncia da esposa, com
aquela id�ia fixa de deixar o Rio de Janeiro � ela, que a princ�pio tanto
encanto achava nele � refletiu, tornou a refletir, sacrificando, nesse duro
trabalho mental, as guias75 do bigode, que lhe n�o era muito farto, e optou
pelo regresso a Coqueiros. Adelaide queria, n�o � assim? Fiat voluntas76...
Em primeiro lugar estava ela, sua mulher, depois o Rio de Janeiro.
Franqueza, franqueza... ele tamb�m se dera muito mal no Rio.
Hipocrisia, hipocrisia e mais hipocrisia era o que a gente encontrava. O
pr�prio Lu�s Furtado e a pr�pria Sra. D. Branca o que eram, sen�o uns
74 Fa�a-se.
75 Pontas de um bigode.
76 Fa�a-se a vontade.
97
hip�critas? O Visconde, o desembargador, o Condicional, o Pessegueiro...
tudo uma corja de hip�critas! Adelaide tinha muita raz�o, muit�ssima raz�o.
E sempre agitado, esfarelando o bigode, tomou o primeiro jornal que
lhe caiu nas vistas.
� Que dia � hoje?
� Primeiro de maio.
� Ah... Bem; no dia dez temos vapor para o norte...
� Est�s resolvido, ent�o?...
� Mais que resolvido. N�o podemos continuar nesta terra... tu,
porque andas com a sa�de arruinada, eu, porque tenho arruinado o
esp�rito... De um lado o corpo, doutro lado a alma. O Rio � muito bom, sim
senhores, mas para quem tem flex�vel a espinha dorsal e o car�ter.
Preparemos a trouxa!
Adelaide ficou olhando o marido, com um risinho seco e incr�dulo �
flor dos l�bios, a m�o no queixo, a cabe�a inclinada numa pose de modelo
vivo.
� Por que me olhas com esses olhos t�o admirados? � perguntou o
bacharel agarrado ao Com�rcio do Rio.
� Por nada...
� J� disse: preparemos a trouxa. Amanh� vou me despedir do Banco
e telegrafar ao Rocha.
Adelaide continuava a olhar Evaristo, sem o compreender, sem
compreender toda aquela precipita��o.
� N�o me venhas com hist�rias... � tornou ele.
� Mas...
� Que mas o qu�! Para longe deste inferno! para longe desta
porqueira! Vive-se melhor, mais barato e mais honradamente na
obscuridade da prov�ncia, criando galinhas ou plantando jerimuns. Estou
farto de aturar a pedantocracia de Botafogo e do Sr. Lu�s Furtado. Um
bacharel em direito vive em qualquer parte do mundo: vou advogar, vou
esperar a Rep�blica no sert�o!
� O que eu quero dizer � que n�o te precipites, Evaristo. Fa�amos as
coisas com jeito, sem desgostar a ningu�m. Olha que devemos favores ao
Sr. Furtado, � D. Branca...
� Adeus, minhas encomendas! � disse o bacharel erguendo-se e
atirando o jornal para o lado. � Quem te afirmou o contr�rio? � verdade
que devo muitos favores �quele bigorrilha77, inclusive os duzentos mil r�is
que me emprestou j� l� vai um ano; mas porque mos n�o cobrou? Neg�cio
� neg�cio. Agora, da� n�o segue-se que lhe devo beijar as m�os como um
cachorrinho de grisette.78
� Evaristo!
77 Pessoa desprez�vel
78 Jovem sedutora da classe oper�ria.
98
� Digo e torno a dizer: n�o sou um cachorrinho de grisette para andar
beijando as m�os a fidalgos!
� Fala baixo!
� Estou falando mais baixo do que costumo...
E encerrou-se a discuss�o entre Evaristo de Holanda e a mulher
naquela tarde melanc�lica demais, ao crep�sculo.
Adelaide n�o dormiu, pensando na brusca resolu��o do marido e em
mil e tantas coisas f�teis que aos olhos de uma mulher inexperiente como
ela, e como ela supersticiosa, adquirem estranhas propor��es. Mas no meio
de todas essas coisas erguia-se o vulto de um homem, que n�o era o
Holanda, que absolutamente n�o se parecia com aquele que ali estava a seu
lado, na cama, e de novo um extraordin�rio medo apoderava-se dela, um
pavor inexplic�vel, uma covardia criminosa, que a obrigava a abrir e fechar
os olhos intermitentemente... Era o vulto do secret�rio... �a tenta��o�,
chamando-a para o mist�rio do gozo e para a desonra, num apelo fidalgo de
cavalheiro do Amor, num requinte donjuanesco de vol�pia mundana... Sim,
era ele, era. Lu�s Furtado acenando-lhe com a felicidade ef�mera de um
instante, ajoelhando-se-lhe aos p�s e suplicando um beijo, uma palavra de
amor, um movimento de simpatia... E ela, inconscientemente, fechava os
olhos para o ver melhor, e naquele sonhar acordada, ia-se-lhe a alma, num
v�o r�pido e trai�oeiro para o marido de D. Branca... Depois voltava ao
corpo donde sa�ra, e logo a jovem esposa do bacharel abria os olhos,
tr�mula de medo, arrependida como se houvesse praticado uma a��o m�.
Naquela noite, mais do que em todas as outras, Adelaide pensou no
secret�rio. � Am�-lo-ia?... N�o, porque adorava o marido. Talvez acabasse
amando-o... Mas o futuro � t�o incerto, s�o t�o incertas as previs�es
humanas!... Certo � que a imagem dele n�o a deixava, por mais que a
repelisse.
Amanheceu o dia soberbo de luz. Evaristo tornou a falar na viagem
para o norte. Adelaide disse-lhe que sim, que ia tratando de arrumar as
coisas, e fez um gesto de enfado.
O bacharel vestiu-se, cantarolando de bom humor, e desceu para a
refei��o.
� Bom dia.
� Bom dia.
Repetiram-se os habituais cumprimentos da manh�.
Mais do que nunca o almo�o correu frio. D. Branca estava de olhos
duros e passava os pratos com um gesto de vis�vel apatia. Furtado aludiu,
em frases lac�nicas, ao �ltimo telegrama de Cannes:
� Sua Majestade continuava no uso das duchas, � publicado nos
jornais matutinos. Leu alto, para que todos ouvissem, inclusive o bacharel,
que fingiu n�o dar aten��o.
99
Adelaide petiscava de leve as migalhas de arroz e os bocadinhos de
fritada, baixando os olhos com cerimoniosa discri��o.
Evaristo, por sua vez, guardou o mais profundo recolhimento, n�o
aludindo sequer � projetada viagem. Ia falar ao amigo no Banco e l�
mesmo ajustar suas contas.
� Vamos? � disse o secret�rio tomando o chap�u e palitando os
dentes.
� Vamos � respondeu friamente Evaristo.
E sa�ram como de costume, agora menos comunicativos.
Adelaide acompanhou o marido � escada e, logo que este
desapareceu embaixo, porta fora, recolheu ao segundo andar, numa crise de
nervos. N�o havia decorrido uma hora depois do almo�o, quando D.
Branca ouviu gritos finos de mulher no alto do sobrado.
� � Adelaide, minha gente! � disse arregalando os olhos para o
Ant�nio que correra.
Os gritos aumentavam, numa progress�o assustadora.
� � ela! � ela! � repetiu a esposa de Furtado investindo para o
corredor.
A ama, com a Julinha nos bra�os, abalou tamb�m dos fundos da
casa, e ela e D. Branca e o Ant�nio acudiram precipitadamente, aos
encontr�es.
O f�mulo do secret�rio n�o esperou pela patroa: galgou os degraus
dois a dois, tr�s a tr�s, numa elasticidade felina de m�sculos, e, sem
guardar conveni�ncias, enveredou pelos aposentos do bacharel. D. Branca
foi encontr�-lo sobrepujando Adelaide que se debatia no leito numa
agita��o de todo o corpo, os olhos desvairados, a face muito p�lida, em
convuls�es hist�ricas.
� Mas o que foi? o que foi?! � perguntava, assombrada, a esposa do
secret�rio.
Ningu�m sabia explicar, ningu�m sabia dizer o que aquilo era.
� O doutor, minha senhora, o doutor! � aconselhava o Ant�nio,
agarrado aos pulsos da doente.
A primeira id�ia de D. Branca foi pedir socorro da janela, alarmar a
vizinhan�a, salvar a sua responsabilidade, mesmo porque n�o tinha �quela
hora quem fosse chamar o m�dico ou prevenir a Evaristo. O Ant�nio era
indispens�vel, a ama n�o sa�a � rua, e ela, D. Branca, estava em trajos
muito caseiros para se apresentar a qualquer estranho. Que falta que fazia o
Raul!
A ama, sem largar a Julinha, desceu em procura do vidro de �ter.
� Depressa, rapariga, depressa! � bradava a mulher do secret�rio,
at�nita no meio da casa.
Felizmente Adelaide arriou os bra�os, como extenuada, e os gritos
foram-lhe morrendo pouco a pouco, dolorosos e cansados, na garganta.
100
� Oh meu Deus, que afli��o me faz isso! � imprecava D. Branca.
� N�o � nada, minha senhora, n�o � nada... � dizia o Ant�nio numa
voz conciliadora. � E bom desabotoar-lhe a roupa... Foi um ataque...
� Espera, Ant�nio, espera, que eu j� desabot�o... N�o saias daqui..
traze um copo com �gua.
O copeiro obedeceu, enquanto ela ia afrouxando a roupa de
Adelaide.
Veio o �ter, veio a �gua, fizeram-se fric��es, chamaram muitas vezes
pelo nome da doente, a ver se ela acordava, cobriram-na com um len�ol
desde os p�s at� o pesco�o, colocaram-lhe a cabe�a nos travesseiros; mas a
esposa do bacharel n�o dava sinal de vida.
� O cora��o est� batendo? � perguntou inquieta, a ama.
D. Branca encostou o ouvido no peito de Adelaide.
� Est�, sim... est� batendo devagarinho.
� E agora? � quis saber o Ant�nio, pronto a retirar-se.
� Agora � ordenou D. Branca � toma um t�lburi e vai, vai, correndo,
avisar ao marido dela, no Banco Industrial. � Sabes onde �?
� Sei, sim senhora.
� Pois vai.
O criado atirou-se pelas escadas, mais veloz que um andarilho.
D. Branca ficou � beira do leito, muito nervosa, cheia de
desapontamento, velando a enferma.
Adelaide parecia dormir, numa imobilidade de cad�ver, os olhos
fechados, a boca entreaberta, mal respirando.
A esposa do secret�rio esfregava-lhe a testa e os pulsos, dando-lhe a
cheirar �ter, enxugando-lhe o suor que porejava do rosto. De instante a
instante mandava um olhar ao espelho do toucador. � Estava t�o p�lida!
Afina, Adelaide abriu os olhos com um largo suspiro que f�-la
estremecer toda.
� Quer beber um pouquinho d'�gua? � inquiriu Branca.
A esposa de Evaristo n�o respondeu; olhou-a, com os olhos muito
l�nguidos, muito mortos, encarando, em seguida, a ama, que estava em p� a
seu lado. Mas a mulher do secret�rio derramou algumas gotas de �ter num
copo e deu-lhe a beber o calmante.
� Que horas s�o? � perguntou Adelaide numa voz d�bil que lhe sa�a
do fundo do peito com outro suspiro de al�vio.
� Vai para as duas... Descanse, que o Sr. Evaristo n�o pode tardar...
Com efeito, o bacharel n�o tardou. Para isso � que havia t�lburis na
pra�a e boleeiros de encomenda. Subiu a escada num v�o.
Adelaide estava melhor, muito melhor, e j� se sentava na cama;
recebeu-o com l�grimas, atirando-se a ele.
� Mas que foi?... que foi? � perguntava, aflito, o marido.
101
A esposa do secret�rio explicou tudo; uma crise de nervos, um
desequil�brio... m� digest�o, talvez.
� Uma crise? Mas n�o chamaram m�dico?
Adelaide continuava a solu�ar com a cabe�a no ombro de Evaristo.
� Como chamar m�dico, Sr. Evaristo, se n�o havia por quem?...
� E o Ant�nio?
� O Ant�nio foi avis�-lo ao Banco... ora, o Ant�nio!
� Deixavam-te morrer, minha mulher, deixavam-te expirar � m�ngua!
� disse o bacharel transbordando ironia. � Onde h� dinheiro falta piedade...
Mil vezes a Cidade Nova!
� Que quer o senhor dizer com isso? � perguntou D. Branca,
ofendida.
� Que quero dizer com isto? Nada, excelent�ssima, absolutamente
nada.
� O senhor ofende-nos, a mim e ao Lulu...
� Eu, ofend�-la? � tornou Evaristo com um sorriso de esc�rnio.
� Sim, senhor: ofende-nos, tanto mais quanto nunca o maltratamos...
sua senhora sempre foi muito bem tratada em nossa casa.
� Perd�o, eu n�o vim discutir.
� N�o vem discutir, mas vem ofender a quem nunca o ofendeu... Isto
mesmo hei de dizer ao Lulu...
E a orgulhosa D. Branca Furtado, num assomo de c�lera, que nada
tinha de nobreza, embarafustou, resmungando, escadas abaixo.
� Pro diabo que a carregue! � explodiu Evaristo.
Adelaide n�o teve tempo de lhe tapar a boca. A frase saiu inteira,
completa, dos l�bios do jacobino.
� Ao dinheiro oponho eu a dignidade, morra, embora, na mis�ria! �
continuou, afagando os cabelos da esposa.
E seguiu-se uma cena muda de carinhos entre os dois.
O pr�prio bacharel tinha l�grimas nos olhos.
Cap�tulo IX
Naquele mesmo dia Evaristo de Holanda mudou-se para um hotel no
Campo da Aclama��o. � �Bastava de fidalgos...� N�o quis levar os trastes,
porque � dizia ele � n�o lhe pertenciam; recolheu apenas os ba�s que
trouxera do norte, um ou outro objeto que comprara depois, inclusive um
grande quadro de Tiradentes e os livros, meia d�zia de volumes
encadernados.
Quando �s seis horas o carro parou � porta de Furtado, a vizinhan�a
toda chegou � janela. O desembargador Lousada, com o indefect�vel gorro,
a mulher e a filha tamb�m apareceram, D. Sinh�, branca de p�-de-arroz,
falava t�o alto que se ouvia dos extremos da rua. � S� nessas ocasi�es
102
aquele trecho do bairro animava-se um pouco; o mais simples epis�dio, um
incidente qualquer fora do comum dava �s casas aspecto novo de quarteir�o
em festa, excitando a curiosidade dos moradores, transmitindo-lhes aos
nervos uma sensa��o especial de alegria, de bom humor e de �ntima alian�a
entre o corpo e o esp�rito. Era necess�rio que um sopro de esc�ndalo
varresse a atmosfera estagnada dos bras�es e do preconceito fidalgo para
que o long�nquo recanto de Botafogo sentisse um calor de vida, um fr�mito
de exist�ncia animal nas art�rias.
Bastava o rodar de uma carruagem: todo o mundo esquecia
obriga��es para satisfazer uma necessidade imperiosa do esp�rito e do
olhar. As varandas enchiam-se, mil cabe�as surgiam como peixes � tona
d'�gua. Era a avidez do esc�ndalo, a eterna bisbilhotice de oper�rios e
ociosos, de homens e mulheres, acordando para a faina do dizia-se, para a
mistifica��o do boato.
Um carro � porta dos Furtado! Ainda se fosse o do Visconde... mas
n�o � n�o era o cup� do Santa Quit�ria... Talvez alguma visita de
cerim�nia... Entretanto � coisa not�vel! � as janelas do primeiro andar
estavam fechadas e n�o havia ningu�m na varanda do secret�rio!
A filha do desembargador cravava os olhos na alta frontaria do
sobrado:
� �Ningu�m�!
E aquele �misterioso� ve�culo de segunda ordem, atrelado com
animais de �nfima esp�cie, causava arrepios de curiosidade � era como um
ponto de interroga��o erguido a fidalgos e burgueses no meio de uma rua
sombria.
Lu�s Furtado passeava de um lado para o outro, na sala de jantar.
Incomodava-o a brusca retirada do amigo, n�o obstante as insinua��es
odiosas da mulher. D. Branca enchera-lhe os ouvidos: que fora desacatada
pelo bacharel, que o marido �da Sra. D. Adelaide� era um grosseir�o; que
antes nunca os tivesse admitido em sua casa; que o culpado era ele,
Furtado, homem de muitas facilidades e de pouca experi�ncia...
O secret�rio ouvia tudo com uma resigna��o de carneiro imolado,
sem proferir palavra, sem a mais leve queixa. N�o foi pedir explica��es ao
amigo: esperou os acontecimentos com a mesma calma de homem que sabe
ajuizar dos homens e cr� numa fatalidade que a tudo resiste e tudo domina
na ordem moral e nas rela��es sociais.
O Evaristo era um pancada79, ele o sabia melhor que ningu�m: para
que provoc�-lo? Esperava, at� que o bacharel se resolvesse a um acordo, a
uma concilia��o honrosa para ambos. Nenhum dos dois tinha a lucrar com
um rompimento escandaloso e menos digno de cavalheiros que se prezam.
Imaginava Adelaide sucumbida, os olhos em pranto, o cora��o intumescido
de desgosto � pobre senhora! � �s voltas com um homem de g�nio
79 Amalucado.
103
pirr�nico80 e macamb�zio, sem o necess�rio equil�brio para a vida
dom�stica � exagerando tudo, revoltando-se contra todos.
Como ela havia de estar sofrendo, aquela pomba sem fel!
E o secret�rio do Banco Industrial forrava-se de uma tranq�ilidade
assombrosa para n�o dar a perceber a D. Branca o pesar, o grande pesar que
lhe causavam a hist�ria do ataque e a narrativa do epis�dio com o bacharel
na presen�a de Adelaide.
Ela, coitada, ela tamb�m sentia muito, a jovem esposa de Evaristo;
habituara-se �quele viver, �quela exist�ncia em comum com os Furtado e
do�a-lhe, agora, como um punhal que lhe enfiassem nas carnes tenras, o
abandono de todas as comodidades, a separa��o brusca das duas fam�lias
t�o intimamente unidas no princ�pio, quando ela chegara ao Rio de
Janeiro... E por qu�? Por nada, por cois�ssima alguma, por um simples
capricho, por uma fatalidade!
Evaristo desceu ao lado da mulher, guiando-a na escada, todo
cauteloso, carregando-a quase.
� N�o te despedes?... � lembrou ela.
� Eu?!
E com uma ironia na voz:
� Queres me debicar...
Adelaide n�o insistiu: foi-se deixando levar at� embaixo, � porta da
rua, como uma convalescente.
O boleeiro abriu, com um movimento estabanado, a portinhola do
carro e ela entrou. Foi como se entrasse numa pris�o para nunca mais sair;
tudo escureceu ao redor dela, como se lhe tapassem a vista com um pano
negro; faltava-lhe o ar, faltava-lhe a lucidez do esp�rito, fugia-lhe a
clarivid�ncia das coisas, fugia-lhe tudo! Apenas um objeto perdurava na
sua imagina��o; � triste esfinge na aridez de um deserto � a figura do
secret�rio, mais do que nunca tentadora, numa aur�ola deslumbrante que o
divinizava, olhando-a, todo voltado para ela, todo dela...
E um golf�o de l�grimas, uma torrente de p�rolas brotou caudalosa
de seus olhos meigos, ensopando o lencinho de rendas que lhe dera
Evaristo no seu �ltimo anivers�rio.
� S�o os Holanda, s�o os Holanda! � repetiu, espevitada, a filha do
desembargador.
E a vizinhan�a toda repetiu baixinho:
� S�o os Holanda...
Furtado, quando soube que o amigo abalara, n�o sentiu menos que
Adelaide a rudez do golpe, e, instintivamente, revoltou-se contra a mulher,
contra a asa-negra de D. Branca, origem do desespero que lhe ia no fundo
d�alma. Guardou, por�m, esse desespero no mais �ntimo do cora��o,
80 Teimoso.
104
trancou-o a sete chaves l� onde ningu�m o pudesse desvendar, forte como
um her�i vencido, e apelou para a Fatalidade...
Mas o destino � caprichoso e n�o quis que o secret�rio tomasse a p�r
os olhos insaci�veis na miragem que o fizera sonhar noites inteiras, dias
inteiros, na �nsia de um gozo novo.
Embalde esperou, embalde correu lugares aonde nunca o conduzira a
sede de aventuras: ningu�m lhe dava not�cias do bacharel. Para onde teria
ele ido? Como explicar o eclipse total daquela mulher numa cidade como o
Rio de Janeiro, em que toda a gente se encontrava por mais que se quisesse
ocultar? De que ia viver Evaristo, agora, sem um amigo que lhe desse a
m�o? De que ia viver a pobre Adelaide numa �poca tenebrosa de
empr�stimos for�ados e de gerais clamores, quando o pr�prio Banco
Industrial n�o oferecia seguran�a?
E enquanto por um lado apiedava-se do amigo, quase arrependido de
o ter deixado ir embora sem rumo certo no mare magnum da vida, por
outro lado reconstru�a mentalmente o epis�dio do Jardim Bot�nico, em que
fora protagonista a esposa do bacharel, e sentia extraordin�ria vol�pia cada
vez que se lembrava daquele beijo de fogo, mais precioso que todas as
riquezas do mundo e cujo calor como que lhe ficara impregnado na boca
para todo o sempre... Ela o repelira brandamente, cheia de dignidade, cheia
de pudor, fiel ao homem que escolhera para esposo; mas nisso � que estava
o sabor esquisito e fidalgo que lhe ainda permanecia, por um efeito da
imagina��o, nos l�bios tr�mulos...
FIM
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De: antónio veloso
De: antónio veloso
Adolfo Caminha - Tentação
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