sábado, 7 de agosto de 2010 By: Fred

[livros-loureiro] A enviar correio electrónico: O JARDIM SECRETO - FRANCES H. BURNETT.txt

Frances H. Burnett.
O Jardim Secreto.
Frances Hodgson Burnett.
Teixeira Mendes
www.ediouro.com.br
"The Secret Garden"
Este livro é obra original de Paulo Silveira, escrito com base em Frances Hodgson Bumett. Existem em todas as línguas versões modernas de A Ilíada, Odisséia,
Robinson Crusoe e de outros clássicos, feitas por autores ingleses, alemães, etc. No Brasil, há versões atuais de D. Quixote, Peter Pan, etc., de autores como Monteiro
Lobato, Orígenes Lessa e Outros escritores. Portanto, este texto é de propriedade da EDITORA TECNOPRINT S.A. e somente poderá ser reproduzido com autorização expressa
da titular.
Helenice Padovani Ferreiro
Sônia Maria Ferreiro Arruda
Vocabulário
As explicações contidas nas notas de rodapé visam um maior entrosamento do leitor com o texto.
Muitas vezes, durante o decorrer da leitura, palavras ou formas de expressão são apenas parcialmente interpretadas ou nem mesmo isso acontece. Assim, o que
se verifica é um mau aproveitamento do trabalho literário e, o que é pior, um possível desinteresse pela leitura.
Objetivamos, então, dentro de cada texto e de acordo com o contexto, abrir novas fronteiras para o pequeno leitor, oferecendo-lhe maiores esclarecimentos,
proporcionando-lhe um enriquecimento de vocabulário e, ao mesmo tempo, um aprimoramento de sua forma de expressão.
Sempre existirão outras formas que não as usadas para fazer uma criança compreender o que leu.
Em se tratando de inte1pretaçdo, o trabalho estará sempre em aberto para quaisquer modificações.
Esperamos, assim, atingir nossos propósitos.
A Equipe
Agradecimento.
A Editora agradece à equipe de professores, escolhidos criteriosamente em um colégio que há muitos anos vem utilizando, sistematicamente, os livros da Ediouro.
Esta equipe foi convidada pela Direção da Empresa paro a difícil tarefa de examinar o vocabulário de cada livro, procurar explicar o significado dos termos ao nível
de compreensão dos alunos e fazer uma classificação dos diversos livros de acordo com a idade dos presumíveis leitores.
Sabíamos que muitas divergências poderiam surgir e ainda surgirão no futuro, especialmente quanto ao modo de interpretar os vocábulos.
Por isso os professores insistiram na idéia de a Editora rever, no futuro, parte do trabalho oro efetuado.
Assim a Editor espero que outros professores, no manuseio diário destes livros, nos enviem sugestões e críticas paro que possamos, com o passar do
tempo, aperfeiçoar o que já foi feito.
Desejamos expressar nossos agradecimentos pela tão valiosa colaboração da equipe chefiada por Betty Zimmennan.
Frances Hodgson Burnett
Frances Eliza Hodgson Burnett nasceu em Manchester, Inglaterra, e faleceu em Tenessee, Estados Unidos. Orfã de pai aos quatro anos, foi educada pela mãe
com poucos recursos financeiros. Fez os primeiros estudos em Manchester, indo depois para a América, onde morou em Knoville, Tenessee. Casou-se duas vezes; a primeira
com o Dr. Swan Burnett, de quem guardou o sobrenome, e a segunda com Stephen Townshend. Seu primeiro romance editado foi That Lass o'Lowrie's, de sucesso imediato.
Mudou-se, em seguida, para Washington, onde começou a escrever pequenas histórias infantis para a famosa revista St. Nicholas. Lançou então, com grande êxito, Little
Lord Flauntleroy, de grande aceitação, tornando-se rapidamente um best-seller da literatura infantil.
Outras obras importantes suas são: A Little Princess (Sara Crewe), What Happened at Miss Minchin's, Little St. EIizabeth and Other Stories, The One I Knew
the Best of All, e The Land of the Blue Flower.
Frances Burnett caracteriza-se por um estilo simples, sentimental e, ao mesmo tempo, elegante e preciso. Em O Jardim Secreto, ela retrata toda a ternura,
encanto, mistério e bondade espontânea de uma garotinha obstinada, e como ela encontra amigos, bem-estar e felicidade, quando vai morar numa grande mansão em Yorkshire.
É uma história que vem comovendo meninos e meninas, desde a sua primeira publicação em 1912. Seu sentimentalismo é altamente positivo e de apreciável valor artístico,
psicloógico social.
Não Escapou Ninguém
Quando Mary Lennox foi viver com o tio, na Mansão de Misselthwaite, todos disseram que ela era a criança mais desagradável do mundo. E era verdade. A carinha
magra e um corpo franzino, cabelos escorridos e um ar amargo, tinha uma tez amarelada, pois nascera na Índia e sempre sofrera de uma ou outra doença. Seu pai ocupara
um cargo oficial e andava sempre enfermo. E sua mãe, que fora muito bonita, só tratava de reuniões sociais e divertimentos em companhias alegres. Na verdade, não
desejara filhos e, quando Mary nasceu, confiou-a a uma ayah, fazendo-a entender que, se quisesse agradar Memsahib, a patroa, devia manter a criança o mais afastada
dela possível.
Assim, enquanto fora uma criança doente e feia, Mary ficou longe e, quando se tomou moça doente e feia, continuou à distância, e só se lembra e ter visto
familiarmente apenas os rostos da babá e de; outros servos nativos. Como sempre obedeciam às suas vontades, para que seu choro não incomodasse a patroa, quando a
menina fez seis anos parecia um bichinho tão tirânico e egoísta como poucos podem ser. A governanta inglesa, contratada para lhe ensinar a ler, desgostou-se tanto
que, ao fim de três meses, deixou o emprego. As outras, que tentaram o lugar, saíram em prazo ainda menor. Desse modo, se Mary não tivesse vontade de ler livros
de histórias, jamais teria aprendido a ler.
Numa manhã muito quente, quando já contava nove anos, acordou muito aflita e foi piorando até que percebeu que a criada, a seu lado, não era a sua ayah.
franzino = miúdo
escorridos = lisos
tez = pele
enfermo = doente
ayah = babá
familiarmente = mais próximos
servos nativos = empregados do lugar
tirânico = exigente
- Quem é você? - perguntou. - Vá chamar a minha ayah.
A mulher olhou-a com espanto, e só gaguejou que a ayah não podia. vir. Quando Mary começou a gritar e a agredi-la, apenas olhou para a menina, com maior espanto
ainda, e repetiu que não era possível à ayah vir atender ao seu chamado.
Havia algo de misterioso no ar, naquela manhã. Nada era feito como de hábito e muitos dos nativos não apareceram, enquanto outros, que Mary via, andavam
a correr, pálidos e assustados. Ninguém lhe dizia nada e sua ayah não aparecia. Continuou sozinha, enquanto a manhã passava e, afinal, saiu para o jardim e começou
a brincar sob uma árvore. Fazia de conta que cuidava de um canteiro e plantava galhos de hibiscos em montinhos de terra. Cada vez mais enraivecida, resmungava coisas
que gostaria de dizer à ayah, quando ela voltasse:
- Porca! Filha de porcos!
E esse era o maior insulto que se podia fazer a um nativo.
Trincava os dentes e repetia aquilo, quando viu sua mãe na varanda, em companhia de um bonito rapaz. Mary reconheceu o moço: era um jovem oficial que acabara
de chegar da Inglaterra. A menina olhou para ele e para a mãe. Sempre a fitava, quando tinha ocasião de vê-la, porque Memsahib - Mary costumava chamá-la assim -
era uma pessoa alta, elegante e bonita e usava vestidos lindos. Seus cabelos pareciam de seda, tinha um nariz delicado, quase desdenhoso, e grandes olhos sorridentes.
Seus vestidos eram esvoaçantes e Mary dizia que eram "todos de rendas".
Naquela manhã, pareciam ainda mais cheios de rendas, mas seus olhos não mostravam risonhos, mas assustados e voltados, suplicantes, para o jovem oficial.
- É tão grave assim? - Mary ouviu-a perguntar.
- Extremamente, senhora Lennox - respondeu ele. - A senhora devia ter ido para as colinas há duas semanas.
Memsahib torcia as mãos:
- Sim, sei que devia! Fiquei somente para ir àquele estúpido jantar... Que louca eu fui!
Naquele instante, um grande clamor se elevou, vindo dos alojamentos dos servos. Ela se agarrou ao braço do rapaz e Mary se pôs a tremer.
- Que aconteceu? Que é aquilo? - perguntou, ofegante.
- Alguém morreu - respondeu o oficial. - A senhora mesma não disse que já começara entre os criados?
- Eu não sabia! Venha comigo! - e ela correu para a casa.
A partir de então, coisas horríveis aconteceram e tudo ficou claro para Mary:
hábito = costume
fazia de conta = imaginava
insulto = ofensa
desdenhoso = convencido
extremamente = muito
clamor se elevou = barulho surgiu
cólera irrompera na sua forma mais aguda e as pessoas morriam como moscas. A ayah adoecera à noite e foi porque ela acabava de falecer que as criadas gritavam tanto.
Antes do dia seguinte, três outros criados morreram e alguns fugiram em pânico. Havia muitos mortos em todos os bangalôs.
Durante a confusão do segundo dia, Mary se refugiou no quarto e foi esquecida. Ninguém se lembrou dela, ninguém a procurou e estranhas coisas aconteceram,
sem que ela soubesse de nada. Mary chorou e dormiu, alternadamente. Sabia apenas que as pessoas estavam doentes e ouvia sons misteriosos. Uma vez, foi até a sala
de jantar e achou-a vazia, embora uma refeição, parcialmente consumida, estivesse posta e cadeiras e pratos parecessem ter sido abandonados às pressas. A menina
comeu uma fruta e alguns biscoitos e bebeu um copo de vinho doce e forte. Logo, sentiu-se tonta voltou para o quarto, lá se fechando amedrontada com os gritos dos
servos com o bater de pés que ouvia. O vinho lhe deu sono - mal podia manter os olhos abertos. Deitou-se e nada mais soube por longo tempo.
Muitas coisas aconteceram durante o tempo em que ela dormiu. Ao acordar, olhou as paredes. A casa estava completamente quieta, como nunca vira antes. Não
ouvia vozes ou passos e admirou-se de que todos tivessem ficado bons da cólera e de que a calma tivesse voltado. Pensou em quem tomaria conta dela, agora que sua
ayah tinha morrido. Haveria uma nova ayah que talvez conhecesse novas histórias - Mary já se cansara das velhas. Não chorou pela ama morta, pois não era criança
afetiva e pouco se preocupava com as pessoas. O barulho e as lamentações, com a cólera, tinham-na assustado e ela ficara amolada porque ninguém se lembrara dela.
Todos estavam traumatizados para pensar numa garota de que ninguém gostava. Quando as pessoas tinham o cólera só se lembravam de si mesmas. Mas se todos já estavam
sãos, outra vez, certamente alguém se lembraria dela e viria procurá-la.
Ninguém veio e, como estivesse deitada, à espera, a casa parecia mais silenciosa ainda. Ouviu algo se arrastando no tapete e deu com uma pequena cobra deslizando
e olhando-a com olhos que pareciam pedras preciosas. Não teve medo - era uma inofensiva coisa que não iria atacá-la e parecia ter pressa em sair do quarto. Afinal,
passou por baixo da porta.
- Tudo está estranho e quieto - refletiu. - É como se não houvesse ninguém no bangalô, apenas eu e a cobrinha.
Então, ouviu passos por perto e, depois, na varanda. Eram passos de homens, que entraram no bangalô e falaram em voz baixa. Ninguém foi recebê-los ou falar
com eles. Parecia que vasculhavam os quartos.
cólera = doença infecciosa, contagiosa, caracterizada por diarréia e
cãimbras; comumente conhecida como raiva
pânico = desespero
alternadamente = um pouco de cada
parcialmente consumida = comida em parte
manter = conservar
traumatizados = chocados
uma inofensiva coisa = algo que não lhe faria mal
bangalô = pequena casa
vasculhavam os = remexiam nos
- Que desolação! - ouviu uma voz dizer. - Aquela mulher linda! Acho que também a criança, embora ninguém a tivesse visto.
Mary estava de pé, no meio do quarto, quando eles abriram a porta, e parecia uma feia e apavorada coisinha. Tremia, tinha fome e se sentia abandonada. O
primeiro homem era um oficial enorme, que ela já vira, antes conversando com seu pai. Tinha um ar fatigado e, quando a viu, ficou tão assustado que quase deu um
salto. .
- Barney! - gritou. - Tem uma criança aqui. E sozinha! Num lugar como este. Quem será ela?
- Eu sou Mary Lennox - disse a menina, adiantando-se. Achou o homem grosseiro, por tratar o bangalô de seu pai de "um lugar como este"... - Peguei no sono
quando todos adoeceram. Por que ninguém aparece aqui.
- É a criança que ninguém nunca viu! - exclamou o homem, voltando - se para os companheiros. - Ela foi mesmo esquecida!
O moço, que se chamava Barney, olhou para ela com tristeza e Mary até pensou que o vira piscar, para esconder uma lágrima.
- Pobre menina! Não escapou ninguém. Por isso, ninguém aparece.
Foi assim, desta forma estranha que Mary descobriu que já não tinha pai e mãe, que ambos haviam morrido e sido levados, de noite, e que poucos criados que
não morreram tinham deixado a casa tão depressa quanto puderam, nenhum deles se lembrando de que ainda estava na casa a senhorita Sahib!
Sim, havia razão para a casa estar tão quieta. Era verdade que ninguém ficara no bangalô, além dela e da pequena cobra.
desolação = tristeza
fatigado = cansado
adiantando-se = aproximando-se
Dona Mary Bronquinha
Mary gostava de ver sua mãe e, mesmo de longe, achava que ela era muito bonita. Mas, como pouco sabia a respeito dela, mal podia pensar em amá-la ou sentir
sua falta, quando se foi. Não chegou a sentir saudades dela a como era muito introvertida, só pensou em si mesma. Se tivesse mais idade, certo teria ficado aflita
por ter sido deixada só no mundo. Mas era anda criança e, como sempre haviam cuidado dela, achou que continuariam a fazê-lo. Gostaria, porém, de saber se iria morar
com gente agradável, que lhe seria dedicada e deixaria que fizesse o que quisesse, como sua ayah e os demais criados nativos faziam.
Sabia que não ficaria na casa do pastor protestante, para onde fora inicialmente levada. Não queria ficar ali. O pastor era pobre e tinha cinco filhos, e
usavam roupas velhas. Viviam a brigar, tomando os brinquedos uns aos outros. Mary detestava o desarrumado bangalô onde moravam e se mostrava hostil para com eles.
Tanto que, desde o primeiro ou segundo dia, ninguém queria mais brincar com ela. Foi então que lhe puseram um apelido que a deixou furiosa.
Basil foi quem primeiro se lembrou daquilo. Era um garotinho de atrevidos olhos azuis e nariz arrebitado - Mary o odiava. Ela brincava, sozinha sob uma árvore,
exatamente como no dia em que a cólera se manifestou. Fazia canteiros para um jardim, quando Basil apareceu, aparentemente interessado, tanto que, de repente, sugeriu:
- Por que não põe um monte de pedras ali, para parecer uma pedreira? Ali no centro - e encostou-se a ela, para mostrar.
bronquinha = zangada
introvertida = esquisita
dedicada = amiga
hostil = agressiva
arrebitado = levantado
- Vá embora! - gritou Mary. - Não gosto de meninos! Vá embora!
Por um instante, Basil pareceu ofendido, depois começou a troçar. Ele estava sempre troçando de suas irmãs. Pôs-se a dançar em volta de Mary, fazendo caretas,
rindo e cantando uma canção em que Dona Mary Branquinha fazia o seu jardim. Cantou, até que as outras crianças apareceram e todos caíram na gargalhada.
Daí em diante, enquanto Mary esteve na casa do pastor, eles só a chamavam de Dona Mary Bronquinha, sempre que falavam com ela ou a respeito dela.
- Você vai ser mandada para casa - disse-lhe Basil, certo dia. - E nós vamos gostar muito disso!
- Eu também vou gostar muito. Onde é que fica a casa?
- Vejam só, ela não sabe onde é a casa! Você vai para a casa de sua avó? Nada disso. Você não tem avó nenhuma. Vai é para a casa de seu tio, que se chama
Archibald Craven.
- Não sei nada disso - rosnou Mary.
- Você não sabe de nada. Meninas nunca sabem. Ouvi papai e mamãe falando sobre ele. Mora numa casa velha, no interior, e ninguém se aproxima dele. É tão
desagradável que ninguém teria coragem de fazer isso, mesmo que ele consentisse. É um corcunda horrível!
- Não acredito nisso! - disse Mary, tapando os ouvidos.
Depois, porém, a menina pensou muito no fato. E quando a Srª Crawford lhe disse, de noite, que ela iria para a Inglaterra, para morar com tio, Archibald
Craven, na Mansão de Misselthwaite, Mary se mostrou tão dura e desinteressada que nem souberam o que pensar. Tentaram ser bondosos, mas ela virava o rosto quando
o Sr. Crawford procurava abraçá-la.
- É uma criança vulgar - disse a Srª Crawford. - E sua mãe foi uma mulher tão bonita! E tinha boas maneiras, enquanto Mary é tão groseira! As crianças a
chamam de Bronquinha e, embora isso seja ma1feito não se pode negar que tenham razão.
- Quem sabe. se a mãe dela tivesse sido mais dedicada à filha, Mary poderia ter aprendido boas maneiras. É multo triste, agora que sua mãe se foi, lembrar
que muita gente nunca soube sequer que ela tinha uma filha.
- Acho que raramente ela olhava para a menina - observou a Srª Crawford. - Quando a ayah morreu, não havia ninguém para cuidar da pobrezinha. Pense nos criados
fugindo e deixando-a completamente só, no bangalô. O Coronel McGrew disse que quase desmaiou quando abriu a porta e a viu sozinha no quarto.
troçar = debochar
a respeito dela = sobre ela
desagradável = aborrecido
consentisse = permitisse
no fato = no que acontecera
vulgar = comum
Mary fez a viagem para a Inglaterra confiada à mulher de um oficial, que levava os filhos para um pensionato. Ocupada com seus próprios rebentos, ficou muito
feliz ao entregar a menina à senhora que Archibald Craven mandou para recebê-la, em Londres. Era a governanta da Mansão de Misselthwaite e se chamava Srª Medlock,
uma dama corpulenta, de faces vermelhas e olhos negros e penetrantes. Trajava um vestido roxo-berrante, casaco de seda preta, com franjinhas, e trazia um gorro com
flores de veludo espetadas, que tremiam quando ela mexia a cabeça. Mary não gostou do tipo, mas como raramente gostava de alguém, nada havia de extraordinário nisso.
Depois, era evidente que a Srª Medlock não se interessava por ela.
- Puxa! É uma coisinha à-toa, mesmo! - dizia. - E ouvimos falar tanto que sua mãe era linda. Não herdou muito dela, não é mesmo?
- Talvez melhore quando crescer - disse a senhora do oficia!. - Se ela não fosse tão pálida e tivesse uma expressão mais amável... seus traços até que seriam
bons. Crianças mudam muito.
- Aquela vai ter que mudar bastante... E nada melhor que Misselthwaite, para melhorar crianças...
As duas pensaram que Mary não estivesse ouvindo, pois se achava um pouco distante, à janela do hotel em que se hospedaram. Olhava os ônibus que passavam
e os transeuntes, mas ouvia muito bem e ficara curiosa a respeito do tio e do lugar em que ele vivia. Que espécie de lugar? Como seria o tio? Um corcunda? Nunca
vira um. Talvez não houvesse nenhum, na Índia.
Desde que vivia na casa dos outros e não tinha mais ayah, começara a se sentir sozinha e a ter estranhas idéia. Admirava-se de nunca ter parecido ser de
ninguém, nem mesmo quando seus pais viviam. Outras crianças pertenciam a seus pais, mas ela nunca fora realmente a menininha de alguém. Tinha criados, alimentos
e roupas, é certo, mas ninguém lhe dava atenção. Ignorava que isso acontecia porque sempre fora uma criança desagradável e, afinal, não sabia o que era ser desagradável.
Achou a Srª Medlock a pessoa mais desagradável de todas as que conhecia. Quando, no dia seguinte, partiram para Yorkshire, caminhou para o trem de cabeça
alta, procurando ficar tão distante dela quanto possível: não queria parecer que lhe pertencia e ficaria danada da vida se alguém pensasse que era sua filhinha.
Mas a Srª. Medlock não ligava a mínima. Era o tipo de mulher que "não tomava conhecimento das bobagens das crianças". Afinal, é o que diria se
lhe perguntassem. Nem tinha querido ir a
rebentos = filhos
dama corpulenta = senhora gorda
berrante = vivo
evidente = claro
herdou = recebeu
uma expressão = uma aparência
transeuntes = pedestres, passantes
Londres, justamente por ocasião do casamento de sua sobrinha, Maria, mas tinha um bom emprego como governanta da mansão e o único meio de não perdê-lo era fazer
o que o Sr. Archibald mandasse.
- O Capitão Lennox e sua mulher morreram de cólera - disse o Sr. Craven, no seu modo seco. - O capitão era meu cunhado e eu sou tutor de sua filha. A menina
deve vir para cá e a senhora vai a Londres buscá-la.
Assim, ela arrumou a pequena mala e partiu.
Mary sentou-se a um canto do vagão e lá ficou, emburrada. Não tinha o que ler e nada para olhar: conservava as magras mãos enfiadas em luvas pretas, cruzadas
no regaço. Seu vestidinho preto fazia com que parecesse mais amarela, e seus cabelos ralos caíam em mechas, sob a aba do pequeno chapéu de crepe negro.
"É a menina mais cafona que já vi" - pensava a Srª Medlock. (Na sua linguagem, cafona significava sem jeito.) É que ela nunca vira uma criança que ficasse
tão quieta e, afinal, cansou-se de observá-la e começou a falar em voz áspera:
- Acho que posso lhe dizer alguma coisa sobre o lugar para onde vai. Será que você sabe alguma coisa do seu tio?
- Não! - respondeu Mary.
- Seus pais nunca lhe falaram dele?
- Não - repetiu Mary, fechando a cara porque se lembrava de que seus pais nunca lhe falaram a respeito de qualquer coisa.
- Puxa! - bufou a Srª Medlock, olhando para o impenetrável rostinho. E, depois de pequena pausa, recomeçou: - Acho que você deve saber alguma coisa, para
ficar preparada. Você vai para um lugar bem diferente.
Mary não respondeu e a Srª Medlock pareceu chocada com aquela aparente indiferença. Mas insistiu, depois de respirar fundo:
- Não é que seja um lugar triste, e o Sr; Craven até tem orgulho da casa. Mas é bem lúgubre, com seiscentos anos de idade e situada no fim de uma charneca.
Tem uns cem quartos e quase todos permanecem fechados. E quadros, móveis antigos, que lá estão há séculos. Há um imenso parque, com jardins e árvores - fez uma pausa,
respirou fundo outra vez e continuou: - É só. Não há mais nada além disso!
Mary começava a se interessar, mau grado seu. Tudo aquilo parecia tão diferente da Índia! Mas não queria se mostrar curiosa - era uma de suas atitudes desagradáveis.
Continuou como estava.
por ocasião = na época
a governanta da = responsável pela
tutor de = responsável por
no regaço = no colo
áspera = dura
bufou = resmungou
impenetrável = misterioso
chocada = assustada
lúgubre = escuro
mau grado seu = contra a sua vontade
- Bem - disse a Srª Medlock. - Que é que acha?
- Nada! - respondeu Mary. - Não sei nada de lugares assim.
- Bolas! Você até parece uma velha gagá - e a Srª Medlock deu uma risadinha. - Não se importa?
- Não interessa se me importo ou não.
- Acho que você tem razão. Não interessa, mesmo. Não entendo por que a mandaram para Misselthwaite, talvez seja a maneira mais fácil de resolver um problema.
"Ele" não vai se incomodar com você, é certo. Nunca se incomoda com ninguém - interrompeu-se, como se tivesse se lembrado de alguma coisa, e acrescentou: - Ele tem
uma corcunda, e isso foi o seu mal. Ficou um moço amargo e de nada vale toda a sua fortuna. Até o dia em que se casou...
Os olhos de Mary se voltaram para ela. Não lhe ocorreu que o corcunda pudesse ser casado e ficou meio espantada. A Srª Medlock, que era muito tagarela continuou,
com o maior interesse:
- Era uma moça linda e ele seria capaz de tudo para satisfazer os seus desejos. Ninguém imaginou que ela se casasse com ele. Casou, porém, e todo mundo disse
que foi por causa do dinheiro. Mas não foi. Quando ela morreu...
- Ela morreu? - exclamou Mary, estremecendo. Acabava de se lembrar de um conto de fadas francês - Riquet à la Houppe - sobre um corcunda e uma princesa e
isso a fez sentir pena do Sr. Craven.
- Morreu - disse a Srª Medlock. - E o Sr. Craven, daí então, ficou mais esquisito. Não quer ver ninguém, ausentando-se a maior parte do tempo e, quando está
em casa, fecha-se na ala oeste e, a não ser Pitcher, ninguém se aproxima dele. Pitcher é um velho que cuidava dele em criança e sabe do que ele gosta.
Aquilo parecia uma história fantástica e não fazia Mary sentir-se melhor. Uma casa com cem quartos fechados, no fundo de uma charneca - que diabo seria uma
charneca? - soava aterrador. Um corcunda que se trancava numa parte da casa, também era de morte! Ela olhava pela janela, apertando os lábios, e parecia-lhe natural
que a chuva começasse a cair. Se bela mulher ainda estivesse viva, sim, poderia tornar as coisas melhores e seria como sua mãe, entrando e saindo de casa, freqüentando
festas, toda vestida de rendas. Só que ela não estava mais lá.
- Não precisa pensar que vai conhecê-lo, pois terá apenas uma, e dez probabilidades, de que isso aconteça - disse a Srª Medlock.
acrescentou = ajuntou
corcunda = defeito nas costas
tagarela = faladeira
daí então = dai em diante
ausentando-se = ficando fora
na ala = no lado
- E não espere ter alguém com quem conversar. Vai brincar sozinha e cuidar de si
mesma. Dirão onde serão seus aposentos e os lugares proibidos. Quando estiver nos jardins, não fique mexendo nas coisas e andando por todos os lugares.
- Não costumo mexer em nada - disse Mary. E, com a mesma facilidade com que começara a ter pena do Sr. Craven, deixou de sentir tal impressão, achando que
ele era bastante antipático para merecer o que lhe acontecera. Voltou o rosto para os molhados vidros da janela, olhando a paisagem cinzenta. Observou-a por tanto
tempo e com tal atenção que o céu cinzento se tomou mais pesado aos seus olhos. Então, caiu no sono.
probaba1idades = chances
serão seus aposentos = poderá ficar
Através da Charneca
Dormiu por muito tempo e, quando despertou, a Srª Medlock tinha comprado uma cestinha de lanche. As duas comeram frango frito, bifes frios, pão com manteiga
e tomaram chá. A chuva ainda era forte e todos, na estação, usavam impermeáveis reluzentes. O guarda acendeu as luzes do vagão. Depois de comer bastante, a Srª Medlock
foi dormir. Mary ficou a observá-la: o chapéu tinha caído de lado. Então, ela mesma voltou a adormecer, embalada pela batida da chuva na vidraça. Já estava escuro
quando acordaram. O trem parara numa estação e a Srª Medlock sacudia Mary:
- Puxa! Como você dormiu! Já estamos em Thwaite e ainda temos muito e caminho pela frente.
Mary se levantou, procurando manter os olhos abertos, enquanto a Srª Medlock arrumava os embrulhos. Não se prontificou a ajudá-la: na Índia as criadas nativas
é que tratavam dessas coisas, e isso lhe parecia certo. Era. uma estação modesta e, ao que parecia, somente elas desembarcaram. O chefe da estação falou à
Srª Medlock, em sua maneira simples, articulando as palavras de modo estranho. Mais tarde, Mary descobriria que aquela era a linguagem própria de Yorkshire.
- Vejo que está de volta e que trouxe a menina.
- Isso mesmo - respondeu a Srª Medlock, usando a mesma linguagem e apontando para Mary. - Como vai sua senhora?
- Bem, obrigado, Srª Medlock. O carro está à sua espera.
impermeáveis reluzentes = capas brilhantes
embalada = destra ida
prontificou a = ofereceu para
articulando = dizendo
Um trole esperava, junto à pequena plataforma. Mary notou que era um carro elegante, fechado, e que o valete, que a ajudou a subir, era também vistoso, com
a capa comprida e o chapéu coberto por um impermeável, tudo brilhando com a água da chuva.
O valete fechou a portinhola, subiu à boléia, e a viagem teve início. Agora, Mary não tinha a menor intenção de tornar a adormecer. Ficou olhando pela janelinha,
curiosa de ver algo da estrada por onde seguia para o lugar de que a Srª Medlock falara. Não era uma criança tímida e não estava com medo, mas sentia que não podia
prever o que aconteceria numa casa com cem quartos, quase todos fechados, no fim de uma charneca. Subitamente, perguntou à Srª Medlock:
- Que é um charneca?
- Fique olhando pela janela e já vai ficar sabendo. Temos que rodar nove quilômetros, pela charneca de Missel, antes de chegarmos. Não verá muita coisa,
pois já está escuro, mas dá para ter uma idéia.
Mary não fez mais perguntas. Esperou, no canto do banco, com os olhos na janelinha. As lanternas do carro lançavam raios de luz a uma pequena distância e
ela via um pouco da paisagem por onde passavam. Depois de saírem da estação, atravessaram um vilarejo e ela vira casinhas pintadas de branco e as luzes de uma estalagem.
Depois, passaram por uma capela e pela casa do vigário. Mais adiante, por uma loja de brinquedos, doces e outras coisas. Em seguida, entraram em outra estrada e
ela percebia árvores e cercas ficando para trás. Daí para a frente, a paisagem não mudava, por longo tempo - pelo menos, era o que lhe parecia.
Até que os cavalos diminuíram o passo, como se subissem um morro e, então, era como se não houvesse mais cercas e árvores. Não via nada, de fato, senão a
escuridão de cada lado. Inclinou-se um pouco e colou o rosto no vidro, justamente quando o carro deu uma sacudidela.
- Boa! Já estamos na charneca! - exclamou a Srª Medlock.
As luzes do trole brilhavam, amarelas, sobre a estrada cheia de buracos, cortada de moitas e arbustos, estendendo-se interminavelmente. O vento começou a
soprar, estranha e selvagemente.
- E o mar, não é? - perguntou Mary.
- Nada disso. Também não são campinas ou montanhas. São léguas e léguas de terra selvagem, onde nada cresce, a não ser a torga, o tojo, a giesta e onde nada
vive senão ovelhas e pôneis bravios.
- Mas se tivesse água, poderia ser o mar - disse Mary. - O barulho
é bem parecido.
- É o vento soprando nas moitas. Isso aqui é selvagem.
um trole = uma carruagem
o valete = o cocheiro
intenção = desejo
prever = adivinhar
um vilarejo = uma aldeia
uma estalagem = um tipo de hotel
interminavelmente = sem fim
Seguiam através da escuridão e, embora a chuva tivesse cessado, o vento zumbia ferozmente. A estrada subia e descia e o carro atravessava pequenas pontes,
sob as quais uma corrente de água passava, rápida .
Mary sentia que a viagem não acabava, que aquela vasta charneca era um negro oceano, através do qual o carro rodava.
"Não gosto disso, não gosto!" - pensava, cerrando os lábios.
Os cavalos subiam um íngreme trecho e, pela primeira vez, ela percebeu uma luzinha. A Srª Medlock também a viu e deu um suspiro:
- Que bom ver aquela luz piscando! É a casa do guarda. Logo estaremos tomando um chá bem quente, pelo menos!
Não foi "logo", na verdade, pois o carro transpôs os portões e ainda rodou por três quilômetros, numa alameda estreita. As árvores que a ladeavam, formando
uma espécie de túnel, davam a impressão de que cobriam uma comprida e escura caverna.
Ao fim da alameda, desembocaram num espaço claro e pararam diante de uma casa acachapada, que parecia circundada por uma pavimentação de pedra. A princípio,
Mary pensou que não havia luz nas janelas, mas, logo que desceu, viu um dos quartos de cima iluminado por uma luz mortiça.
A porta de entrada era enorme, com painéis de carvalho, trabalhados e adornados com armações de ferro. Dava para um vestíbulo, clareado por luz tão fraca
que os rostos pálidos dos retratos, nas paredes, e as armaduras, mais pareciam fantasmas. Tanto que Mary afastou os olhos deles e, ali parada, no chão de pedra,
parecia uma criaturinha infeliz. Um homem idoso, magro e distinto, estava ao lado do criado que abriu a porta.
- A senhora deve levá-la ao quarto - disse ele, em tom áspero.
"Ele" não quer vê-la e vai para Londres amanhã cedo.
- Está bem, Sr. Pitcher - respondeu a Srª Medlock.
- Trate de evitar que "ele" seja importunado, Srª Medlock.
Mary foi então conduzida por uma ampla escadaria. Depois, por um corredor sem fim, depois por uma escadaria, depois por outro corredor, depois ainda por
outro, até que, passando por uma porta, viu-se num aposento onde havia uma lareira acesa. À mesa, havia um jantar servido.
- É neste quarto e no cômodo ao lado que você vai morar - disse Srª Medlock. - Não deve se afastar daqui, lembre-se disso!
Foi assim que Mary Lennox chegou à Mansão de Misselthwaite e nunca em sua vida sentiu tanta vontade de dar uma de suas "bronquinhas".
são léguas e léguas = é uma grande extensão
a torga, o tojo, a giesta = uma raiz, um espinheiro, uma planta ornamental
íngreme = inclinada
alameda = caminho
desembocaram = saíram
acachapada = pequena
mortiça = fraca
importunado = incomodado
conduzida = levada
ampla = grande
no cômodo = no quarto
Marta
Quando abriu os olhos na manhã seguinte (porque uma arrumadeira entrara para acender a lareira), Mary ficou olhando a moça tirar a cinza do borralho. Depois
começou a esquadrinhar o ambiente. Nunca vira um quarto, como aquele, tão estranho e sombrio. As paredes eram cobertas de tapetes bordados com cenas de floresta:
homens e mulheres, trajados da maneira mais fantástica, sob as árvores e, à distância, as torres de um castelo. Havia caçadores, cavalos, cães e damas. Mary sentiu
como se estivesse na floresta com eles. Pela janela, via uma colina que parecia sem árvores, dando antes a impressão de um trecho de mar, monótono.
- Que é aquilo? - perguntou, apontando para a janela.
- Aquilo lá - repetiu Marta, também apontando.
- Sim.
- É a charneca. Você gosta?
- Não. Odeio-a.
- É porque não está acostumada, acha que é muito triste. Vai acabar gostando.
- Você gosta?
- Claro que gosto, mesmo. Não é nada triste. É uma jóia na primavera e também no verão, quando tudo floresce. Eu não viveria longe da charneca por nada no
mundo!
Mary a ouvia com expressão intrigada. As criadas indianas não se pareciam mesmo com aquilo: não se atreviam a falar com as patroas.
do borralho = da lareira
esquadrinha = observar
sombrio = triste
trajados = vestidos
monótono = cansativos
jóia = beleza
floresce = começa a nascer
- Você é uma criada esquisita.
Marta sentou-se nos calcanhares e limitou-se a sorrir:
- Eu sei. Se houvesse uma verdadeira senhora aqui, eu nem sequer poderia ser uma das criadas mais humildes - não passaria da cozinha. Mas gosto de trabalhar
aqui. Parece que não se tem patrões, a não ser o Sr. Pitcher e a Srª Medlock. Quando está em casa, o Sr. Craven faz questão de não ser incomodado. Só que, quase
sempre, está fora.
- Você vai ser minha criada?
Marta a encarou, com espanto:
- Como? Não sabe se arrumar?
- Não! - disse Mary, indignada. - Minha ayah é que me vestia!
- Pois já é tempo de aprender a cuidar de si mesma. Minha mãe sempre diz que não sabe como filhos de gente rica não ficam abobalhados com tanto criado para
lavá-los, vesti-los, como se fossem bonecas.
- Na Índia é diferente.
- Deve ser, pois os criados lá não são brancos como nós. Quando ouvi que você vinha da Índia pensei que fosse uma menina de cor.
- O quê?! Que é que está dizendo? - E Mary sentou-se na cama, enraivecida. - Pensou que eu fosse uma nativa? Sua... filha de um porco!
- Por que está me insultando? - perguntou Marta, espantada. - Não precisa ficar com raiva. Isso não são modos de uma senhora falar. Nada tenho contra pretos
e até fiquei alegre pensando que ia conhecer um. Mas hoje, quando vim acender a lareira, cheguei perto da cama e puxei as cobertas de leve para olhá-la. Fiquei desapontada,
vendo-a tão branca como eu, embora muito amarelinha.
- Você teve a audácia de pensar que eu era uma nativa! Você não sabe nada dos nativos. Não são pessoas, são servos, prontos! Você não sabe nada de nada!
Estava com tanta raiva e se sentia tão incompreendida, que mergulhou rosto no travesseiro, em pranto. Soluçava tanto que Marta teve pena dela e, meio assustada,
aproximou-se da cama:
- Não chore, ora! Eu não sabia que ia se zangar. Não sei mesmo nada de nada. Desculpe, miss. Agora, pare de chorar!
Havia algo de confortador na voz de Marta, no seu acento característico dos que falam o dialeto do Yorkshire. Aos poucos, Mary foi parando de chorar e a
criada se sentiu aliviada:
- Está na hora de se levantar. A Srª Medlock recomendou que eu levasse as refeições para a sala ao lado, preparada para você. Vou ajudá-la
se vestir, se os botões estiverem atrás: você não poderia abotoá-los.
Então, Mary resolveu pular da cama. Notou que as roupas que Marta tirara do armário não eram as que vestia ao chegar:
desapontada = surpresa
audácia = coragem
servos = empregados
em pranto = chorando
acento característico = jeito
dialeto = a língua
- Essa roupa não é a minha! As minhas são pretas! - e, examinando melhor o vestido e o casaco de lã, acrescentou, com ar de aprovação: - Esta é melhor do
que a minha. .
- E é a que deve vestir. Foi o Sr. Craven quem mandou a Srª Medlock comprar tudo em Londres. Disse: "Não quero uma menina vestida de preto andando
por aí, como um fantasma." Foi o que ele falou: "Vai fazer a casa parecer mais triste do que já é." Minha mãe também não gosta de roupa preta.
- Eu detesto coisas pretas.
Foi bom para ambas o trabalho de vestir Mary. Marta sempre ajudava a vestir as irmãs menores, mas nunca tinha visto ninguém ficar parado daquele jeito, como
se não tivesse mãos e pés. Depois, perguntou:
- Por que você mesma não calça os sapatos?
- Minha ayah é quem fazia isso. Era o costume.
De acordo com o costume, Mary nada devia fazer, só deixar que Marta a vestisse e calçasse. Mas, antes do café, começou a ficar desconfiada de que sua vida
naquela mansão iria ensinar-lhe algumas novidades, como calçar meias e sapatos e apanhar do chão as coisas que caíssem. Se Marta não passasse de uma roceira, veria
que também era seu dever escovar os cabelos da menina. Depois, a criada crescera em casa humilde, entre um monte de irmãos que sempre cuidaram de si e dos mais novos.
Fosse Mary criança alegre, ela acharia graça nos modos e no falatório de Marta. Mas via aquilo com frieza, admirada de que uma criada fosse assim.
- Você precisava ver meus irmãos - dizia Marta. - Somos doze e meu pai só ganha uma ninharia por semana. A mãe diz que é com o ar da charneca que os meninos
engordam - comem até capim! Dickon tem doze anos e já pegou um poneizinho.
- Onde o encontrou?
- Na charneca, estava com a mãe. Começou a fazer amizade com ele, dando-lhe pão e capim tenro. Ele ficou tão amigo que o segue, agora, por toda a parte.
Dickon é legal e os bichos gostam muito dele.
Mary nunca teve um animal para companheiro, mas sempre desejar um. Assim, começou a sentir um ligeiro interesse por Dickon. Como jamais se interessara por
coisa alguma, a não ser por si mesma aquilo parecia um bom sinal. Ao entrar no aposento transformado em quarto de brinquedo, achou-o igual ao outro em que dormira.
Não era um quarto de crianças, mas de gente grande, com retratos velhos pendurados nas paredes e pesada cadeiras de carvalho. A mesa já estava servida, com variado
lanche matinal. Sempre sem apetite, ela olhou para o primeiro prato que Marta lhe ofereceu:
ambas = as duas
roceira = atrasada
um monte = uma porção
uma ninharia = pouco dinheiro
tenro = novo
lanche matinal = café da manha
- Não quero isso!
- Não quer mingau de aveia?
- Não.
- Você nem sabe como é gostoso! Ponha um pouco de mel. Não agüento ver coisas boas assim jogadas fora. Se meus irmãos estivessem aqui, limpavam tudo em um
minuto!
- Por quê?
- Porque raramente andam de barriga cheia. Estão sempre esfomeados.
- Não sei o que é ter fome.
- Pois devia experimentar. Não suporto gente que fica olhando um prato meio, sem querer comer. Só queria que eles vissem isso...
- Por que não leva isso tudo para os seus irmãos?
- Porque isso aí não é meu, e hoje não é minha folga. Tenho um dia livre por mês. Aí, vou em casa e ajudo minha mãe.
Mary tomou um pouco de chá com torrada e geléia. Marta disse:
- Agasalhe-se e vá brincar lá fora. Depois, ficará com fome.
Mary foi até a janela. Jardins, flores e árvores - tudo parecia cinzento. Perguntou:
- Sair? Que vou fazer lá fora num dia assim?
- Bem, se não sair terá de ficar aqui dentro. Que vai fazer?
Mary olhou em volta. Nada para brincar: o melhor era sair.
- Quem é que vai comigo? - perguntou.
- Vai sozinha, ora! Precisa aprender a brincar como as outras crianças. Dickon vai sozinho para a charneca e fica o dia inteiro.
Foi a referência a Dickon que decidiu Mary, embora ela não o notasse. Marta lhe deu o casaco, o chapéu e um par de botinhas, mostrando-lhe a direção que
devia tomar:
- Virando ali, chega aos jardins. No verão, há muitas flores, mas agora não. Olhe - pareceu hesitar - um dos jardins está fechado, há dez anos e ninguém
entra lá.
- Por quê?
- Quando sua esposa morreu, o Sr. Craven mandou fechá-lo: era o jardim dela. Trancou o portão, fez um buraco no chão e enterrou a chave. Ouça, a Srª Medlock
está me chamando. Tenho que correr.
Depois que Marta saiu, Mary seguiu caminho. Não podia tirar do pensamento o jardim onde ninguém podia entrar. Como seria? Viu-se, então, entre grandes jardins,
com relvados. que se estendiam em meio a arbustos sem cuidados. Havia árvores, canteiros e um tanque com uma velha fonte o centro. Só que nos canteiros não havia
flores e a fonte estava seca. Aquele não era o jardim de que Marta falara. Como podia um jardim ser fechado? Não é um jardim lugar onde se pode entrar quando se
quer?
limpavam = comiam
suporto = agüento
a referência a = a comentário sobre
decidiu = fez com que resolvesse
o notasse = percebesse
hesitar = ter dúvidas
Pensava nisso quando viu, no fim da vereda, um muro quase todo coberto de hera. Foi em direção a ele e descobriu, entre a hera, um portão verde, aberto. Não
era o jardim secreto, pois podia entrar à vontade. Adiante, outro portão, também aberto, pelo qual se viam arbustos e canteiros com uma rala vegetação de inverno.
Então, um velho com uma pá no ombro atravessou o portão do segundo jardim. Espantou-se quando viu Mary, saudando-a com um toque no boné. Tinha o rosto severo e não
pareceu muito contente de vê-la. Mary também não gostara do jardim e adotou a sua expressão de amuo:
- Que lugar é este? - perguntou.
- Uma das hortas - respondeu o velho.
- E lá o que é? - indagou Mary, apontando para o portão verde.
- Outra horta. Há mais, do lado de lá e, depois, um pomar.
- Posso ir até lá?
- Se quiser. Só que não tem nada para ver.
Mary nada disse e atravessou o portão verde. Encontrou hortaliças, estufas de vidro, muros e outro portão verde, que não estava aberto. Quem sabe se aquele
portão não dava para o jardim há dez anos fechado? Girou o trinco, pensando que não adiantaria. Mas o portão se abriu facilmente para um pomar. Ali também havia
muros em volta e muitas árvores plantadas árvores frutíferas, mas sem folhas. Desta vez, Mary não viu nenhum portão. Quis procurá-lo mas, quando chegou ao fim do
pomar, viu que o muro não acabava ali, estendia-se além dele, como se limitasse uma área. Podia ver a copa das árvores do outro lado do muro e notou um passarinho
de peito vermelho, pousado no galho mais alto de uma árvore. O passarinho começou a cantar, como se a tivesse visto e quisesse chamar a sura atenção.
Mary ficou a ouvir o passarinho: era um canto agradável. Até uma criatura como ela podia sentir-se solitária. O casarão fechado, a charneca e os jardins desertos
davam-lhe a impressão de que estava só no mundo. O canto do passarinho trouxe-lhe ao rosto algo que parecia um sorriso. Talvez vivesse no jardim secreto e conhecesse
os seus mistérios. E talvez por nada que fazer é que Mary tanto pensasse naquele jardim proibido. Queria saber como era. Por que teria o Sr. Craven enterrado a chave?
Se amava tanto sua mulher, por que tinha ódio do jardim? Mary queria saber se algum dia veria o tio. Sabia que não iria gostar dele e que ele tampouco gostaria dela.
Perguntaria a ele por que fizera aquilo.
"Ninguém gosta de mim e eu não gosto de ninguém", refletiu. "Nunca falarei como os Crawford, gente que vive rindo e fazendo barulho." Penso no passarinho e
como ele cantava para ela, do alto da árvore:
da vereda = do caminho
de hera = de planta
adotou = fez
expressão de amuo = cara de mau humor
copa = parte de cima
solitária = sozinha
secreto = misterioso
mistérios = segredos
Acho que aquela árvore está no jardim secreto - disse. - Há um muro em volta daquele lugar e não vi portão nenhum.
Voltou à primeira horta e reencontrou o velho:
- Estive nos outros jardins.
- Nada a impedia de ir até lá.
- Fui até o pomar.
- Não tinha nenhum cão para mordê-la.
- Não vi nenhum portão no outro jardim.
- Que jardim? - perguntou ele, parando de cavar.
- Aquele, do outro lado do muro. Tem árvores lá, vi as copas, e um passarinho de peito vermelho estava numa delas, cantando.
A face carrancuda mudou de expressão, mostrando um sorriso. Mary admitiu que um sorriso faz uma pessoa mais bonita! Nunca pensara nisso!
O homem se voltou para o pomar e começou a assoviar suavemente. Quase no mesmo instante, algo de maravilhoso aconteceu. Ela ouviu um leve bater de asas:
era o passarinho de peito vermelho que voava até eles, poupando num montinho de terra bem junto aos pés do jardineiro.
- Aqui está ele - disse o velho, e logo se pôs a falar ao passarinho como se falasse a uma criança: - Seu malandrinho, por onde tem andado? Já namorando,
mesmo com o frio do inverno? Não acha cedo demais?
O passarinho pôs a cabecinha de lado e fitou o jardineiro. Parecia acostumado àquilo. Saltitava e bicava a terra alegremente, tão vivo que parecia gente.
- Ele sempre vem, quando o senhor chama? - perguntou Mary.
- Claro. Conheço-o desde que nasceu. Era de um ninho do outro jardim e, quando veio para este lado, não pôde voltar. Ficou aqui e nos tornamos os amigos.
- Que espécie de passarinho é ele?
- Não sabe? É um pintarroxo com peito vermelho, o passarinho mais manso que existe. Fica igual a um cãozinho, a gente sabendo lidar com ele.
Olhava para a bolinha de peito vermelho, cheio de orgulho:
- Veja como é convencido! Gosta de ouvir a gente falar dele. E é curioso - Deus me perdoe! Anda sempre aqui, vendo o que estou plantando. E o próprio jardineiro-chefe,
é o que é.
- Para onde foi o resto da ninhada?
- Quem pode saber? Os pássaros mais velhos põem os filhotes para hora do ninho e eles somem. Este ficou aqui porque estava sozinho.
- Eu também me sinto muito sozinha.
tampouco = também não
impedia = proibia
a face carrancuda = a cara aborrecida
expressão = jeito
fitou = olhou
lidar = mexer
- Você não é a menina que veio da Índia? - indagou o jardineiro.
Mary fez que sim com a cabeça.
- Não admira que se sinta sozinha. Mas devia ser ainda mais sozinha, antes - e o jardineiro voltou ao trabalho, enquanto o passarinho parecia também muito
ocupado.
- Como é o seu nome? - perguntou Mary.
- Ben Weatherstaff - respondeu o jardineiro. - Eu também sou sozinho, salvo quando ele está comigo - e apontou o passarinho. - É o meu
único amigo.
- Eu não tenho amigos. Minha ayah não gostava de mim.
- Até que somos parecidos, como farinha do mesmo saco. Nenhum de nós dois é bonito e somos muito ranzinzas, com o mesmo gênio, aposto!
De súbito, um som claro irrompeu e Mary se voltou. Estava a alguns passos de uma macieira e o passarinho pousara num dos galhos, soltando seu trinado. O
velho Ben deu uma gargalhada.
- Para que ele fez isso? - perguntou Mary.
- Quer ser seu amigo. Acho que gostou muito de você.
- De mim? - E Mary foi andando para a macieira. - Quer ser meu amiguinho, mesmo?
Agora, não tinha o ar amuado nem a voz irritante de sempre. Seu tom era suave, tanto que até o velho Ben se espantou quando ouviu o passarinho cantando cada
vez mais melodiosamente.
- Você fala feito uma criança, quase como o Dickon, que conversa com os bichos na charneca.
- O senhor conhece Dickon?
- Se conheço?! Ele anda por toda parte, todos o conhecem. Garanto que as raposas mostram a ele suas tocas, e as cotovias seus ninhos.
Naquele instante, o passarinho terminou seu canto e alçou vôo.
- Ele foi para o outro lado do muro! - disse Mary, seguindo-o com os olhos. - Para o pomar, para o jardim que não tem portão.
- É lá que ele mora - explicou Ben. - Se estiver namorando, foi ver a companheira, que deve viver numa das roseiras de lá.
- Roseiras? Há roseiras ali?
Bem apanhou a pá e recomeçou a cavar. Respondeu secamente:
- Há dez anos, havia.
- Queria tanto vê-las. Deve haver um portão lá, em algum ponto!
- Há dez anos, havia um. Agora, não há mais.
- Não há portão? Tem que haver um!
- Se há, ninguém pode achar e não é da conta de ninguém. Não seja entrometida. Vá embora, eu tenho muito o que fazer. Vá brincar. Eu é que não tenho tempo
a perder.
indagou = perguntou
salvo = menos
como farinha do mesmo saco = como irmãos gêmeos
ranzinzas = teimosos
as cotovias = os pássaros
alçou vôo = voou
secamente = com poucas palavras
ponto = lugar
não é da conta de = não interessa a
O Choro no Corredor
A princípio, cada dia era para Mary exatamente igual aos anteriores despertava e via Marta ajoelhada junto à lareira, acendendo o fogo. Cada manhã, tomava
o desjejum no quarto ao lado, que nada tinha de divertido, depois olhava, pela janela, a charneca que parecia se espalhar por todos os lados e subir até o céu. Então,
saía. Não sabia que era a melhor coisa a fazer e que, enquanto estivesse andando ou correndo, tornava-se mais forte e mais disposta.
Depois de alguns dias quase inteiramente ao ar livre, ela acordou cor
fome e, quando se sentou para comer, não desprezou o mingau, nem o afastou, enjoada: agarrou a colher e esvaziou a tigela.
- Você hoje comeu como gente - falou Marta.
- Estava gostoso, hoje - respondeu Mary, espantada com o fato.
- É o ar da charneca que está lhe dando estômago. Sorte a sua: achar comida quando tem fome. Lá em casa há doze que têm estômago, mas pouco para enchê-lo.
Você deve sair todos os dias. Ganhará mais carne e não ficará mais tão amarela.
- Eu não tenho com que brincar.
- Não tem, é? Lá em casa as crianças brincam com paus e pedrinhas correm, gritam e descobrem coisas.
Mary não era de gritar, mas gostava de descobrir coisas. Havia um lugar que ela visitava mais que os outros. Era a grande alameda que passava junto do jardim
murado, ladeada de canteiros e, cobrindo o muro uma horta muito verde.
anteriores = passados
desjejum = café
mais disposta = melhor
o fato = o acontecimento
murado = cercado
Numa parte do muro, as folhinhas pareciam mais abundantes, como se aquele lado tivesse sido abandonado há muito. Dias depois de sua conversa com Ben, Mary ali parou.
Olhava para um ramo de hera, balançando ao vento, quando viu um lampejo vermelho e ouviu um brilhante trinado: no alto do muro o pintarroxo de Ben inclinava-se para
vê-la, virando a cabecinha.
- Ah, é você! - exclamou, sem estranhar que estivesse falando com um passarinho.
O pintarroxo não respondeu. Continuou a cantar, como se lhe estivesse relatando uma porção de coisas. Parecia que Mary o entendia, embora ele não articulasse
palavras. Era como se falasse assim:
- Bom dia! Não é bonito o vento? E o sol? Tudo não é bonito? Vamos os dois chilrear, saltitar e gorjear? Vamos?
Mary começou a rir e enquanto ele pulava e chilreava, ela o seguia, correndo. A pobre Mary, magra e feia, quase parecia bonita, agora.
- Gosto de você! Gosto de você! - gritava ela, correndo pelo jardim. E tentava chilrear, imitando o passarinho que, muito satisfeito, respondia com seu gorjeio
maravilhoso. Até que abriu as asas e voou para o alto de uma árvore, onde pousou e continuou a cantar.
Mary se lembrou da primeira vez que o vira. Agora, ela estava no lado oposto ao pomar, no caminho que seguia o muro e, por cima deste, via a mesma árvore.
- Ele está no jardim secreto - disse Mary para si mesma. - É o jardim sem portão. Gostaria de ver como é lá dentro.
- Correu em direção ao portão por onde entrara na primeira manhã. Depois, seguiu pela aléia, atravessou o outro portão e entrou no pomar. Lá estava a árvore,
no outro lado do muro, e, pousado num galho, o pintarroxo que, findo o canto, alisava as penas com o biquinho.
- É o jardim - disse ela. - Tenho certeza!
Voltou-se e examinou aquele lado do muro do pomar, mas nada encontrou senão o que já vira: não havia portão algum. Depois, começou de novo a correr ao longo
do muro de hera. Foi até a outra extremidade, examinando tudo, e nada de portão.
- É esquisito - disse ela. - O velho Ben falou que não havia portão e não há mesmo. Mas devia haver, pois o Sr. Craven, há dez anos, até enterrou a chave.
Pensou tanto nisso que acabou por não se lamentar de ter vindo para a mansão. Na Índia fazia calor e ela não se interessava por coisa alguma.
mais abundantes = em maior quantidade
lampejo = brilho
relatando = contando
articulasse = falasse
chilrear = cantar
oposto = contrário
aléia = caminho
findo = terminado
extremidade = ponta
se lamentar = reclamar
O fato é que o vento da charneca começa a desfazer as teias de aranha de seu cérebro e a despertá-la um pouco.
- Por que será que o Sr. Craven tem ódio do jardim? - perguntou à Marta, quando se sentou para jantar.
- Você ainda está pensando no jardim? Eu sabia que ia ser assim. Comigo foi o mesmo, quando me contaram aquela história.
- Por que será que ele o odeia?
- Escute o vento uivando em volta da casa - disse Marta. - Você mal se agüentaria de pé, se estivesse na charneca, esta noite.
Mary não sabia o que queria dizer "uivar", até que ouviu e, então, compreendeu. Devia ser o rugido arrepiante que dava voltas pela casa, como se fosse um
gigante invisível batendo nas paredes e janelas. Mas a gente sabia que ele não podia entrar, e isso dava uma sensação de segurança no interior de um quarto bem aquecido.
- Mas, por que ele o odeia tanto? - perguntou, outra vez.
Então Marta lhe contou tudo o que sabia:
- Olhe, a Srª Medlock não quer que se fale nisso. Aqui há muita coisa em que não se deve tocar. O Sr. Craven diz que não é da conta de ninguém. Se não fosse
o jardim, ele não seria como é. Foi a Srª Craven quem mandou fazer o jardim, logo que se casou. Ela adorava o lugar e, de tarde, os dois iam lá colher flores. Nem
o jardineiro entrava ali. Os dois fechavam - o portão e lá ficavam, horas e horas, lendo e conversando. Ela era quase uma criança e havia uma velha árvore com um
galho que parecia um banco. A senhora gostava de se sentar ali. Um dia, o galho se partiu e ela caiu. Machucou-se e morreu no outro dia. Os médicos chegaram a pensar
que o Sr. Craven também morreria. Ninguém mais voltou lá.
Mary não fez mais perguntas. Ficou olhando o fogo e ouvindo o vento uivar. Naquele instante uma coisa boa acontecia com ela. Na verdade, quatro coisas boas lhe tinham
sucedido, desde que chegara. Tivera a impressão de que podia conversar com pintarroxo; aprendera a correr e sentir o sangue nas veias; tinha tido fome pela primeira
vez na vida e aprendera a ter pena de alguém. Estava melhorando.
Ouvia o vento, sim, e começou a ouvir outra coisa também. Não sabia exatamente o que era, pois, a princípio, mal distinguia uma coisa da outra. Era um som
curioso: às vezes o vento parecia um choro de criança, mas, naquele momento, Mary teve certeza de que o som vinha de dentro da casa não de fora. Voltou-se para Marta:
- Você está ouvindo alguém chorar?
- Não. É o vento - disse Marta, assustada. - Tem vezes que parece uma pessoa perdida na charneca, lamentando-se.
rugido arrepiante = barulho de meter medo
sensação = impressão
sucedido = acontecido
distinguia = separava
- Ouça! É aqui dentro de casa, num desses corredores.
Naquele mesmo instante uma porta deve ter sido aberta, escada abaixo. Depois, uma rajada veio pelo corredor e, forçando a porta do quarto, abriu-a de par
em par. Elas se puseram de pé, a luz se apagou e o som do choro se fez mais forte.
- Bem que eu falei! - disse Mary. - É alguém chorando, uma criança! Marta correu e fechou a porta a chave, mas, antes, ambas ouviram o som de uma
porta, em um ponto distante, fechando-se com violência, e então tudo ficou quieto - até o vento parou de uivar.
- Era o vento, mesmo - disse Marta, teimosamente. - Ou então foi a pequena Betty, da cozinha. Teve dor de dentes o dia todo.
Alguma coisa de confuso, que percebera em Marta, fez com que Mary olhasse firme para ela. Não acreditava que falasse a verdade.
uma rajada = um vento
de par em par = completamente
som = barulho
confuso = diferente
Havia Alguém Chorando
A chuva continuava a cair, no outro dia, e, quando Mary olhou pela janela, a charneca estava oculta pela névoa e pelas nuvens. Nem podia pensar em sair.
Perguntou a Marta:
- Que faz você, na sua cabana, quando chove assim?
- Bem, cuidamos para não pisar nos pés uns dos outros. A casa fica mais cheia. Mamãe é mulher de bom gênio, mas fica nervosa. As crianças mais velhas vão
para o estábulo. Dickon não liga para a chuva, sai como se fizesse sol. Diz ele que, quando chove, vê coisas novas. Uma vez achou um filhote de raposa meio afogado
na toca e o trouxe para casa. A mãe tinha sido morta ali perto, a toca estava cheia d'água e os outros filhotes morreram. O que ele salvou agora, vive, mansinho,
lá em casa. De outra vez, achou um corvo, também quase afogado: levou-o para casa e domesticou-o. Chama-se Fuligem, é todo pretinho, e salta e voa por toda parte,
atrás de Dickon.
Já se fora o tempo em que Mary achava enfadonhas as conversas de Marta. Agora, chegava a ficar triste quando ela parava de falar. As histórias que a ayah
lhe contava, na Índia, eram diferentes daquelas que Marta lhe contava sobre a cabana da charneca, sobre as quatorze pessoas que lá moravam, sem comida bastante para
todos. Contudo, Mary se interessava mais por Dickon e pela mãe de Marta. As histórias que ouvia sobre os dois lhe causavam uma sensação agradável.
oculta = escondida
névoa = neblina
estábulo = lugar dos animais
na toca = no buraco
domesticou-o = educou-o
enfadonhas = enjoadas
causavam = davam
- Se eu tivesse um filhote de raposa ou um corvo, poderia brincar com eles - disse Mary. - Mas eu não tenho nada.
- Você não sabe fazer tricô? - perguntou Marta, admirada.
- Não.
- Sabe costurar?
- Não.
- E ler, sabe?
- Sim. Sei ler.
- Então, por que não lê um livro, ou não estuda um pouco? Você está na idade de aprender mais.
- Não tenho nenhum livro. Os que eu tinha ficaram na Índia.
- É pena. Se a Srª Medlock a deixasse ir à biblioteca... Lá tem milhares de livros.
Mary não perguntou onde era a biblioteca, pois teve a súbita idéia de procurar localizá-la por conta própria. A Srª Medlock ficava na confortável sala de
estar, lá embaixo. Na estranha mansão raramente as pessoas se encontravam.
As refeições de Mary eram regulares. Marta lhe dispensava toda atenção, porém ninguém mais se preocupava com ela: estava aprendendo a se vestir e a andar
sozinha. Ficou à janela por uns minutos, naquela manhã. Tornou a pensar na biblioteca. Lera poucos livros e não se interessava pela biblioteca só por causa deles.
A biblioteca era um dos quartos fechados e achou que podia tentar entrar lá e, depois, abrir os outros cômodos. Seriam mesmo cem quartos? E se contasse as portas?
Boa maneira de passar o tempo...
- Mary abriu a porta do quarto e saiu para o corredor, começando sua investigação. Era um longo corredor, do qual partiam outros, menores. Havia portas e
mais portas, e quadros nas paredes. Alguns, de paisagens estranhas. Em geral, retratos de homens e mulheres em roupas esquisitas. Achou-se em uma galeria com paredes
também cobertas de retratos. Olhou para eles, que também pareciam fitá-la, sentindo como se eles estivessem admirados de ver aquela menina da Índia andando pela
casa. Alguns eram retratos de crianças, meninas em vestidos de cetim e garotos de golas rendadas, mangas bufantes e cabelos compridos. Sempre se fixava mais nas
crianças retratadas e ficava a pensar em como se chamariam, para onde teriam ido, por que vestiam aquelas roupas. Havia uma menina, empertigada e sem graça, com
um vestido verde e um papagaio pousado no dedo. Seus olhos eram penetrantes e curiosos:
- Onde é que você está agora? - perguntou, em voz alta. - Gostaria que estivesse aqui!
súbita = feliz
localizá-la = achá-la
raramente = dificilmente
regulares = razoáveis
empertigada = convencida
Nenhuma outra menina terá passado manhã tão estranha. Era como se não houvesse mais ninguém no casarão, a não ser ela subindo e descendo escadas, varando
corredores que davam a impressão de que ninguém jamais os percorrera. Só depois que subiu ao segundo andar é que se lembrou de mover o trinco de uma porta. O trinco
girou e a porta se abriu, deixando-a assustada. Dava para um quarto de dormir, com enfeites nas paredes e móveis entalhados. Ampla janela abria-se para a charneca
e, sobre a lareira, havia outro retrato da menina do papagaio, a encará-la com maior curiosidade, agora.
"Talvez tenha dormido aqui", pensou Mary. "Puxa! Até me incomoda o jeito como me olha!"
Depois, continuou a abrir portas. Acabou cansada de tantos quartos e achou que havia mesmo uns cem. Num deles, talvez a antecâmara de uma dama, a tapeçaria
era em veludo bordado. Num armário havia uns cem elefantinhos de marfim, de diferentes tamanhos, alguns com palanquins às costas. Uns eram tão pequenos que pareciam
filhotes dos maiores. Mary vira muito marfim lavrado na Índia e sabia tudo sobre elefantes. Abriu a porta do armário e ficou brincando com eles. Depois, arrumou
tudo e fechou o armário.
Nos demais quartos vira somente objetos. Mas, naquele, deu com uma coisa viva. Ouviu um leve ruído e olhou para o sofá, ao pé da lareira, de onde parecia
ter vindo o ruído. No canto do sofá havia uma almofada e, no veludo que a recobria, via-se um buraco, de onde surgia uma minúscula cabeça com dois olhinhos brilhantes
e assustados.
Mary atravessou o quarto para ver de perto. Os olhos eram de um ratinho-cinzento. Fizera o buraco na almofada e ali construíra seu ninho. Seis filhotes dormiam
enroscados perto dela, pois era uma ratinha.
"Se os bichinhos não ficassem com medo, eu os levaria", pensou. Já andara muito e resolveu voltar. Perdeu-se por duas ou três vezes mas, por fim, conseguiu
chegar ao seu andar, embora não estivesse perto do seu quarto e não soubesse exatamente onde se encontrava.
"Acho que tomei outro caminho errado", admitiu, parando na ponta do que parecia uma passagem protegida por reposteiros. "Não sei por onde ir." Enquanto estava
ali parada, o silêncio foi quebrado por um ruído. Era um choro, não igual ao que ouvira na outra noite, mas um débil choro de criança, que lhe chegava abafado, como
se viesse de trás da parede. "Agora está mais perto", pensou Mary, com o coração batendo depressa.
varando = atravessando
os percorrera = andara por eles
entalhados = trabalhados
palanquins = cadeirinhas
lavrado = feito
recobria = cobria
enroscados = enrolados
reposteiros = cortinas
abafado = baixinho
Acidentalmente, pôs a mão no reposteiro e deu um passo para trás, estarrecida. O reposteiro escondia uma porta, que se abriu mostrando outra
parte do corredor. A Srª Medlock vinha em sua direção, com uma penca de chaves na mão e exibindo um ar zangado.
- Que está fazendo aqui? - perguntou, segurando o braço de Mary e empurrando-a. - Que foi que eu lhe disse?
- Eu errei o caminho - explicou a menina. - Não sabia por onde seguir e ouvi alguém chorando.
- Você não ouviu nada! Volte para o quarto ou lhe puxo a orelha!
A governanta agarrou-a pelo braço e a foi levando, pelas escadas e corredores, até que a empurrou para dentro do quarto.
- Agora - disse ela - não saia daqui ou ficará trancada. O patrão devia arranjar alguém para vigiá-la. Eu tenho mais o que fazer!
Saiu, batendo a porta. Mary se sentou junto da lareira, com raiva, trincando os dentes mas sem chorar.
- Havia alguém chorando, havia! - disse para si mesma.
Ela ouvira o choro duas vezes e algum dia saberia quem chorava. Descobrira muita coisa naquela manhã e sentia-se como se tivesse feito uma longa viagem.
Divertira-se, enfim, com os elefantes de marfim e encontrara os ratinhos-cinzentos.
acidentalmente = sem querer
estarrecida = espantada
A Chave do Jardim
Dois dias mais tarde, Mary abriu os olhos e chamou Marta:
- Veja a charneca!
O temporal tinha terminado. A névoa e as nuvens foram varridas pelo vento da noite. O próprio vento cessara e um céu azul brilhante cobria a charneca. Nunca
Mary vira céu tão azul. Na Índia, o céu era sempre sombrio e abrasador, mas aquele era de um azul repousante, que parecia brilhar como as águas de um lago e, aqui
e ali, no alto azul, flutuavam nuvens de fã branca como a neve. Até o distante mundo da charneca parecia azul.
- A tempestade passou - disse Marta, sorrindo. - É sempre assim, neste tempo. Some de repente. É sinal de que a primavera já vem ar...
- Pensei que aqui chovia sempre e que o céu fosse sempre escuro.
- Nada disso! Eu falei que você ia acabar gostando da charneca. Espere um pouco para ver as urzes florescerem e aquilo ficar cheio de borboletas e abelhas,
e cotovias cantando e voando. Vai ter vontade de ficar lá o dia inteiro, como Dickon.
- Será que poderei ir até lá?
- Sei lá... Acho que você não agüentaria a caminhada - e Marta olhou para ela, antes de acrescentar: - Vou conversar com mamãe. Ela sempre sabe resolver
os problemas. Hoje vou para casa e peço para ela falar com a Srª Medlock. São amigas.
- Eu também gosto de sua mãe.
- Acredito...
- Não a conheço ainda, mas gosto dela.
varridas = afastadas
cessara = parara
sombrio e abrasador = escuro e quente
no alto azul = no céu
urzes = plantinhas
- Bem, ninguém pode deixar de gostar dela. Quando vou para casa fico tão alegre que chego a pular, atravessando a charneca.
- Gosto de Dickon. E nunca o vi também.
- Já lhe disse que até os passarinhos gostam dele, e os coelhos, as ovelhas, as raposas ariscas e os pôneis selvagens... Bem que eu gostaria de saber o que
ele vai pensar de você.
- Acho que não vai gostar de mim. Ninguém gosta.
- Você gosta de você mesma?
- Creio que não. Nunca tinha pensado nisto.
- Sabe o que minha mãe me disse um dia? Estava lavando roupa e eu falando mal de todo mundo. Então, ela falou: "Você aí dizendo que não gosta dos outros.
E de você mesma, você gosta?", Comecei a rir e logo a minha irritação foi embora.
Marta saiu depois de servir o desjejum. Ia para casa, de folga, ajudar a mãe. Mary se sentiu mais sozinha, sabendo que ela não estava em casa. Foi para o
jardim e se pôs a dar dez voltas em torno da fonte. Contou as voltas e, ao final, sentiu-se bem disposta. O sol tornava o lugar diferente. Ergueu os olhos, pensando
como seria se pudesse deitar-se numa daquelas nuvens brancas e ficar vogando no azul. Entrou na horta e encontrou o velho Ben trabalhando com dois jardineiros. A
mudança do tempo lhe fazia bem, pois foi ele quem falou em primeiro lugar:
- A primeira vem aí. Não está sentindo o cheiro no ar?
- Estou sentindo um cheiro gostoso - disse Mary.
- É o cheiro da terra. Ela está feliz, preparando-se para fazer nascer as coisas. No tempo do plantio, a terra fica feliz. Ruim é no inverno. Naquele canteiro,
as sementes já estão germinando, sob o solo. Não demora muito e as plantinhas brotarão.
- Que plantas?
- Açafrão, campainhas-brancas, narcisos. Já viu essas flores?
- Não. Na Índia não tem.
- Tente vê-las. É divertido olhar como nascem e crescem.
- É o que vou fazer... - Mary ouviu um leve e ligeiro bater de asas. Já sabia que era o pintarroxo, que chegava alegre e saltitante e virando a cabecinha
de lado para vê-la.
- Acha que ele ainda se lembra de mim? - perguntou Mary.
- De você? - respondeu Ben. - Ele conhece cada pé de couve, quanto mais as pessoas! Nunca viu uma menina por aqui e quer descobrir tudo a seu respeito. Não
adianta esconder nada dele!
- As sementes também estão germinando no jardim onde ele mora?
- Que jardim? - rosnou O velho Ben, franzindo a cara.
ariscas = espertas
pôneis selvagens = cavalos bravos
de folga = em descanso
vogando = passeando
germinando = nascendo
brotarão = nascerão
a seu respeito = sobre você
- Aquele, onde estão as roseiras. As flores de lá morreram ou ainda há algumas que voltarão a viver com a primavera? E as roseiras?
- Pergunte a ele - disse Ben, indicando o passarinho. - É o único que pode saber, pois há dez anos ninguém entra lá.
Dez anos era muito tempo, pensou Mary, que nascera exatamente há dez anos. Afastou-se, pensativa. Começava a gostar do jardim, do pintarroxo, de Dickon e
da mãe de Marta. E começava a gostar também de Marta. Era gente demais para gostar, ainda mais que ela não tinha o hábito de gostar das pessoas. Pensava no passarinho
como se ele fosse gente. Foi andar na alameda rente ao muro de hera e, quando voltava pelo mesmo caminho, algo aconteceu. Ouviu um gorgeio e, olhando para o canteiro
sem plantas do lado esquerdo, viu o pintarroxo pulando, fingindo procurar alguma coisa na terra, e fingindo que não a via. Mary bem sabia que ele a seguia e fico
contente com isso:
- Você se lembra de mim, não é? Você é a coisa mais linda!
O passarinho se agitava, pulava e cantava, como se lhe respondesse. Seu peitinho vermelho parecia de cetim. Mary aproximou-se dele, abaixou-se e ficou conversando
com ele, procurando imitar o seu canto. Nem podia crer que ele a deixasse chegar tão perto!
O canteiro de flores não estava tão desnudo. Faltavam-lhe flores, porque as plantas haviam sido podadas para o inverno. Mas havia arbustos vicejando. O pintarroxo
saltou sobre um montículo de terra, procurando verme. A terra fora revolvida, talvez porque um cão tivesse buscado esconder ali um osso, num buraco que teria cavado.
Mary olhou para lá, não sabendo o que significava o buraco, até que viu algo meio enterrado nele. Era uma coisa parecida com uma enferrujada argola de ferro.
Assim que o passarinho voou para uma árvore, ela apanhou a argola. Era mais que uma argola - era uma velha chave que devia ter ficado enterrada por muito tempo.
Mary espantou-se:
- Acho que esteve enterrada por dez anos - sussurrou. - Talvez seja a chave do jardim!
rosnou = resmungou
rente = próximo
desnudo = vazio
podadas = aparadas
vicejando = brotando
sussurrou = falou baixinho
O Passarinho que Mostrou o Caminho
Ficou olhando a chave por muito tempo, virando-a entre os dedos. Se aquela fosse a chave do jardim secreto e se ela conseguisse descobrir o portão! Então,
poderia ver 0 que havia lá dentro e o que tinha acontecido ao roseiral. Pensava em que o jardim devia ser diferente dos outros lugares e que, em dez anos, alguma
coisa devia ter acontecido lá. Se o lugar lhe agradasse, iria lá todos os dias, fecharia o portão, inventaria coisas para se divertir sozinha. Todos pensariam que
o portão continuava fechado e a chave interrada. Sentiu-se feliz.
Vivendo sozinha numa casa com cem quartos fechados e nada tendo para encher o tempo, Mary pôs o cérebro a trabalhar. Sem dúvida, o ar fresco da charneca
teve nisso papel de importância. Da mesma forma como lhe despertara o apetite e fizera o sangue correr mais rápido em suas veias, também influenciara seu espírito,
despertando-o para a vida.
- Pôs a chave no bolso e continuou seu passeio, na aléia ao longo do mundo. Ninguém, a não ser ela, parecia andar por ali, de forma que podia caminhar, assim,
devagar, olhando o muro e a hera que o cobria. Por mais que o examinasse, contudo, nada descobria entre a folhagem. Decepcionou-se, um pouco de seu mau humor voltou.
Uma pena: estar assim tão perto e não poder entrar no jardim! Voltou para casa, guardando a chave no bolso o pensando que, sempre que saísse, a levaria consigo.
A Srª Medlock deixou Marta passar a noite em casa. Mas, de manhã cedinho, ela já estava de volta e com melhor disposição:
- Levantei-me às quatro horas - disse a Mary. - Você nem imagina como a charneca estava linda!
influenciara seu espírito = dera-lhe idéias
contudo = porém
decepcionou-se = ficou amolada
disposição = jeito
Na cabana, todos se haviam sentado, na noite anterior, em volta do fogo, para ouvir Marta lhes contar o caso da menina que veio da Índia, de suas empregadas
pretas, da menina que nem sabia calçar as meias.
- Todos gostaram de me ouvir falar de você - disse ela.
- Eu vou lhe contar muito mais antes de sua próxima folga - prometeu Mary. - Você poderá contar a seus irmãos muitas coisas sobre os elefantes, os
camelos e os oficiais que caçam tigres.
- Viva! - exclamou Marta. - Você fará isso, mesmo? Será como ver os bichos de um circo!
- A Índia é bem diferente de Yorkshire, eu nunca tinha pensado nisso Sua mãe e Dickon gostaram mesmo de ouvir você falar de mim?
- Nem imagina! Os olhos de Dickon pareciam saltar do rosto! Mas a mãe ficou foi com pena de você viver tão sozinha. Ela disse: "O Sr. Craven não arranjou
uma governanta para ela?" Eu respondi que não, que a Srª. Medlock falou que ele ainda não pensou nisso e nem tão cedo pensará.
- Não quero uma governanta.
- Mamãe diz que você tem que estudar e que eu devo fazer tudo para distraí-la.
- Você me distrai muito. Gosto de ouvir você falar.
Marta saiu do quarto e voltou em seguida, trazendo alguma coisa sob o avental:
- Um presente para você. Adivinhe o que é!
- Presente? - perguntou Mary, admirada de como uma família pobre podia dar presentes.
- Foi assim - Marta contou. - Passou um vendedor ambulante, com uma porção de coisas, mas nós não compramos nada. Já ia embora quando Elizabeth Ellen gritou:
"Mamãe, o homem tem corda de pular!" Mamãe então falou: "Quanto é a corda de pular?" Ele respondeu e mamãe mexeu no bolso, dizendo-me: "Marta, você me deu todo o
seu ordenado e tenho que comprar muitas coisas mas, ainda assim, vou comprar uma corda para a menina que veio da Índia." Aqui está, é sua.
Mary Lennox nunca vira antes uma corda de pular:
- Para que serve?
- Para quê? Vê-se logo que não brincam de pular corda na Índia. Veja para que é que isto serve!
Marta foi para o meio do quarto e, pegando a corda pelas extremidade, começou a pular como fazem as meninas do mundo inteiro. O interesse demonstrado por
Mary é que a deliciava e ela continuava a pular e contar pulos, chegando a alcançar cem vezes.
- Posso saltar mais do que isto - disse ela, parando. - Já pulei quinhentas vezes, quando tinha doze anos e era mais magra.
Mary se levantou, sentindo-se também excitada:
pareciam saltar do rosto = estavam enormes
ambulante = de rua
ordenado = dinheiro
excitada = nervosa
- Parece divertido. Você acha que eu poderei pular como você?
- Ora, experimente - disse Marta, dando-lhe a corda. - No começo, não vai pular cem vezes. Mas, se praticar, poderá chegar a muito mais. Foi o que mamãe
falou: "Nada lhe poderá fazer tanto bem como uma corda. Deixe que ela pule ao ar livre e ficará com pernas fortes."
É claro que, quando começou a pular, Mary não tinha muita força nos braços e pernas. Mas gostou muito, tanto que não queria parar.
- Vista-se e vá pular lá fora - disse Marta. - Mamãe acha que você deve viver ao ar livre e, mesmo com chuva, tem que sair, agasalhada, naturalmente .
Mary vestiu um casaquinho, pôs o chapéu e saiu com a corda. De repente lembrou-se de alguma coisa e voltou:
- Marta, isto saiu do seu ordenado. O dinheiro era seu. Obrigada.
Disse isso meio emproada, pois não tinha o costume de agradecer o que fizessem por ela, e estendeu a mão, sem saber o que fazer.
Marta apertou sua mão, sem jeito: também não tinha o hábito disso.
- Ei! Nós parecemos duas velhotas - disse, rindo. - Se fosse a maninha Elizabeth Ellen, teria me dado um beijo.
Mary ficou ainda mais emproada:
- Você quer que eu lhe dê um beijo?
- Não, isso não - disse Marta, sempre rindo. - Vá correr, vá pular corda lá fora!
Que coisa maravilhosa era a corda de pular! Ela pulava e contava, pula e contava, até que sentiu o rosto afogueado, animada como nunca estivera antes na
vida. O sol brilhava e uma leve aragem soprava - não um vento norte, mas uma aragem suave, com cheiro de terra há pouco revolvida. Mary deu a volta ao jardim da
fonte, pulando corda. Por fim, entrou na hora e encontrou o velho Ben trabalhando e conversando com o pintarroxo. Bem olhou-a com ar curioso: ela queria que a notasse
que a visse saltando corda.
- Boa! - exclamou ele. - Palavra de honra! Acho que agora você é mesmo uma menina que tem sangue nas veias. Você está corada e, ou não e chamo Ben Weatherstaff,
ou foi essa corda que a deixou assim...
- Nunca tinha pulado antes. Comecei agora, só posso chegar a vinte pulos.
- Vá praticando. Começa muito bem, para uma menina que sempre viveu entre selvagens. Veja como ele olha para você - e apontou o passarinho. - Ontem, ele
a acompanhou e hoje vai fazer o mesmo. Ele quer o saber que é essa corda, nunca vi nenhuma.
Mary pulou por todos os jardins, pelo pomar, parando de vez em quando. Por fim foi à sua aléia preferida, sempre pulando. Não era fácil: antes a chegar à
metade da aléia, estava ofegante e teve que parar. Então, viu que o pintarroxo a seguia e, agora, balançava-se num ramo de hera,
praticar = fizer muitas vezes
emproada = convencida
afogueado = vermelho
aragem = vento
ofegante = cansada
cantando. Pôs-se a pular na direção dele e sentiu algo pesado no bolso.
- Você me mostrou onde estava a chave, ontem, não foi? Pois bem, mostre agora onde é o portão!
O pitarroxo voou do galho para o alto do muro e de lá mandou-lhe um trinado alto, de pura exibição. Mary Lennox ouvira contar muitas coisas sobre magia,
nas histórias de sua ayah, e achava que o que lhe estava acontecendo agora era efeito de uma magia.
Uma rajada soprou sobre o muro, uma rajada forte. Mary estava mais perto do passarinho e subitamente um golpe de vento ergueu alguns ramos da hera e, mais
subitamente ainda, ela deu um pulo para perto do muro e agarrou a ramagem com a mão. É que vira, sob a hera, alguma coisa que parecia um trinco, escondido pela folhagem,
O trinco de um portão.
Meteu as mãos sob as folhas e começou a afastá-las. A hera cerrado parecia uma cortina sobre o muro. O coração de Mary começou a saltar e o pintarroxo continuou
a tritar e a saltitar, como se quisesse mostrar que também estava excitado. O que seria aquilo que ela sentia sob sua mão? Alguma coisa de ferro... Era a fechadura
do portão que fora fechado há dez anos. Mary enfiou a mão no bolso, tirou a chave e viu que servia direitinho orifício. Pôs a chave e rodou-a. Teve que usar as duas
mãos para isto mas a chave girou na fechadura.
Deu um suspiro fundo e olhou para ver se alguém a observava. Não havia ninguém. Deu outro suspiro, afastou a cortina de hera e empurro o portão, que se abriu
lentamente.
Então, passou por ele, fechando-o atrás de si. Ficou olhando em redor e respirando ofegante de emoção, maravilhada.
Estava no interior do jardim secreto.
de pura exibição = para chamar atenção
magia = mágica
trinco = fecho
cerrada = em grande quantidade
A Casa Mais Estranha em que Alguém já Viveu
Era um lugar delicioso mas estranho. Os altos muros que o cercavam estavam cobertos de rosas-trepadeiras. Mary sabia que eram rosas porque vira muitas na
Índia. Revestia o chão uma grama pardacenta e havia numerosas roseiras de espécie comum e também árvores diferentes. Mas as roseiras é que faziam o lugar estranho
e encantador, e cresciam por toda a parte.
Não se viam folhas ou flores, agora, e Mary não sabia se estavam vivas ou mortas - os ramos cinzentos eram como um mantel nevoento, cobrindo tudo, muros,
árvores, até o relvado, fazendo daquele um lugar misterioso. De fato, era diferente de qualquer outro lugar que Mary já tinha visto.
- Como isto é quieto! - murmurou. - E como é silencioso!
Esperou um instante e ficou escutando o silêncio. O pintarroxo voara para a copa de sua árvore e se calara, como O resto, ficando a olhar para Mary. "Não
é de estranhar que tudo esteja tão quieto", pensou ela. "Sou a primeira pessoa que entra aqui, em dez anos!"
Afastou-se do portão, com cuidado, como se não quisesse despertar alguém. Estava alegre de que houvesse grama sob seus pés, abafando o ruído dos seus passos.
Foi até uma das abóbadas, entre duas árvores, e olhou para a ramaria de cipós e trepadeiras que a formavam.
- Será que tudo está morto? Será mesmo um jardim morto? Gostaria tanto que não fosse.
Ela estava dentro do maravilhoso jardim e poderia passar pelo portão
pardacenta = escura
de espécie comum = conhecidas
mantel nevoento = manto escuro
abafando = escondendo
abóbodas = coberturas
à hora que quisesse. Sentia como se tivesse descoberto um mundo novo e todo seu. Tinha a corda de pular no braço, quando entrou no jardim. Depois de andar um pouco,
achou que podia ir pulando corda em volta do jardim. Como se aproximasse de uma das pérgulas, parou de pular. Sim, ali houvera antes um canteiro e ela achou que
via alguma coisa surgir da terra negra - alguns pontinhos verde-claro. Lembrou-se de que o velho Ben lhe falara sobre o nascimento das plantas e ajoel1lou-se para
olhar de perto.
- Sim, são débeis brotinhos e devem ser açafrão, fura-neve ou narcisos - murmurou e inclinou-se para aspirar o cheiro da terra úmida. Recomeçou a andar,
lentamente, olhando para o chão, à procura de outros lugares. Assim, descobriu mais pontinhos verdes e ficou novamente entusiasmada.
- Isto não é um jardim morto - falou, em tom baixo. - Mesmo que as rosas estejam mortas, há coisas que vivem.
Não entendia de jardinagem, mas a grama parecia tão cerrada, nos lugares em que apareciam os brotinhos verdes, que ela decidiu arrancá-la, abrindo espaço
em torno deles. Pôs-se a arrancar mato e erva daninha, deixando tudo limpo em torno dos brotos.
- Agora, sim, podem respirar mel1lor - murmurou. - É o que vou fazer sempre. Se não acabar hoje, volto amanhã.
Foi de canteiro em canteiro, capinando. O trabalho lhe fez bem, sentiu calor e tirou o casaco e o chapéu. O pintarroxo continuava ocupado e muito contente
de ver alguém cuidando do seu jardim: sempre se admirara de que o velho Ben não ligasse para o lugar. Mary trabalhou até o meio-dia, hora do seu almoço.
- Volto de tarde - disse às árvores e às roseiras, como se elas pudessem entender.
Em casa, comeu tanto que Marta se espantou:
- Dois bifes e dois pratos de arroz-de-leite! Mamãe vai ficar alegre quando eu lhe contar o milagre que a corda fez.
Quando limpava o jardim, Mary encontrara uma espécie de raiz branca, como uma cebola. Tornara a deitá-la no solo, recobrindo-a de terra. Agora queria que
Marta lhe dissesse o que era.
- São bulbos. Uma porção de flores nascem de bulbos. Dickon planta muitos, lá em casa. Ele sabe lidar com isso.
- Dickon sabe tudo sobre bulbos?
- Dickon pode fazer flores nascerem numa parede de tijolos. Mamãe diz que ele diz segredinhos às plantas.
- Os bulbos vivem por muito tempo? Será que resistem anos e anos, mesmo que ninguém cuide deles?
uma das pérgulas = um dos abrigos
débeis = delicados
cerrada = cheia
decidiu = resolveu
erva daninha = planta venenosa
capinando = limpando
resistem = duram
- São coisas que se ajudam a si mesmas. Se ninguém mexer com eles, ficam um tempão debaixo da terra e, depois, brotam de novo. Tem um lugar no bosque, aqui,
com milhares de galantos. É o lugar mais bonito de York shire, na primavera. Ninguém sabe quando foram plantados.
- Gostaria que já fosse primavera - disse Mary, que acabara de almoçar e fora para junto da lareira. Continuou: - Seria bom se eu tivesse uma pazinha...
- Para quê? - perguntou Marta. - Quer cavar a terra? É boa!
Mary ficou pensando que, para manter o segredo, teria que tomar cuidado. Não fizera nada de mal, mas, se o Sr. Craven soubesse, seria capaz de mandar fazer
outra chave e tornar a fechar o jardim. Não queria nem pensar nisso!
- Este é um lugar tão grande e solitário - disse, lentamente, como se estivesse remoendo coisas na cabeça. - A casa é solitária, o parque é solitário e os
jardins são solitários. Nunca fiz muitas coisas, na Índia, mas lá havia mais gente para ver - nativos e soldados marchando - às vezes, até bandas de música. Aqui
não tem ninguém com quem eu possa falar, só você e o velho Ben. E você tem muito o que fazer. Também, o velho Ben não gosta muito de conversa. Acho que, se eu tivesse
uma pazinha, poderia cavar em algum lugar, como ele, e fazer um jardinzinho.
- Veja só! - disse Marta, com o rosto iluminado. - Foi uma das coisas que mamãe disse! Falou assim: "Com tanto terreno naquela casa, por que não lhe dão
um pedacinho de terra para ela cuidar?"
- Foi mesmo? Puxa! Ela sabe das coisas, não é?
- Diz ela que quem tem doze filhos tem que saber das coisas.
- Quanto poderá custar uma pazinha das menores?
- Há uma loja, na aldeia, que vende coisas de jardinagem. Acho que um conjunto com uma pazinha, um ancinho e um garfo, tudo junto, custa bem barato.
- Tenho um pouco de dinheiro comigo. A Srª Morrison me deu cinco pratas e a Srª Medlock me deu mais, que o Sr. Craven mandou.
- Então, ele se lembrou até disso?
- A Srª Medlock me disse que eu ia receber uma prata por semana. E tem me dado uma todos os sábados. Não sei o que fazer...
- Meu Deus! Você tem uma fortuna e pode comprar o que quiser. Bem, pensei numa coisa.
- Que é?
- Na tal loja eles vendem saquinhos de sementes e Dickon sabe quais as mais bonitas. Ele vai à aldeia quase sempre, para se divertir com o passeio. Você
sabe escrever?
- Claro que sei.
- Mas Dickon só sabe ler o que estiver em letras de imprensa. Faça uma carta a ele, pedindo que vá à aldeia comprar o que você quer.
galantos = planta
remoendo = pensando
iluminado = feliz
- Você é o máximo! Vamos pedir à Srª Medlock pena e tinteiro.
- Não é preciso, tenho tudo aqui, no quarto - e Marta saiu.
Mary teve que esperar um tempão, pois a Srª Medlock mandou Marta fazer uma porção de coisas. Finalmente, chegou. Só que não era tão simples assim escrever
uma carta em letra de imprensa.
Marta foi ditando o que devia ser escrito e, em pouco, haviam feito a carta, pedindo a Dickon que comprasse o conjunto de jardinagem e as sementes. Foi Marta
quem assinou a missiva.
- Vamos mandar o dinheiro junto com a carta. O rapaz do açougue leva tudo, quando for à aldeia. Ele é muito amigo de Dickon.
- E como vou receber as coisas que ele comprar?
- Ele traz aqui, gosta de vir por estes lados.
- Quer dizer que eu vou vê-lo? Nunca pensei que ia vê-lo!
- Você quer tanto, assim, ver Dickon?
- Quero. Nunca vi um menino amigo das raposas e dos corvos.
Marta pareceu lembrar-se de alguma coisa:
- Escute! Mamãe falou com a Srª Medlock para deixar você ir lá em casa.
- Acha que a Srª Medlock vai deixar?
- Por que não?
Então, vou conhecer sua mãe e Dickon. Ela não me parece igual às mães que conheci lá na Índia.
E antes que Marta fosse buscar o bule de chá, Mary perguntou:
- A menina da cozinha teve dor de dentes outra vez?
- Por que pergunta?
- É que, enquanto eu esperava você, andei um pouco no corredor e ouvi de novo aquele choro triste e distante. Não pode ter sido o vento...
- Você não deve ficar pelos corredores. Se o Sr. Craven souber, pode se zangar e a gente nunca sabe o que acontece quando ele se aborrece.
- Eu não estava querendo escutar nada, só esperava que você voltasse. Ouvi o choro, pela terceira vez.
- Ouça! É a sineta da Srª Medlock! - e Marta saiu correndo.
- É a casa mais estranha em que jamais alguém viveu - disse Mary, caindo de sono e recostando-se nas almofadas da poltrona. Logo adormeceu.
é o máximo = é formidável
um tempão = muito tempo
simples = fácil
ditando = falando
missiva = carta
recostando-se = encostando-se
Dickon
Já fazia uma semana que o sol brilhava no jardim secreto, nome que Mary lhe dera. Gostou do nome e da sensação de que, quando transpunha os muros e se fechava
entre eles, ninguém sabia onde ela estava. Era como estar fechada em outro mundo. Os poucos livros que lera contavam histórias encantadas, e em algumas delas havia
jardins secretos. As vezes, as pessoas iam dormir neles por cem anos, o que ela considerava meio estúpido. Começara a gostar de viver ao ar livre e já não odiava
o vento. Podia correr mais depressa e ir mais longe e já pulava corda até cem vezes. Os brotos, no jardim secreto, deviam estar espantados, pois, em redor deles,
foram abertos largos espaços e podiam crescer à vontade.
Durante aquela semana de sol, tomou-se mais amiga do velho Ben, surpreendendo-o muitas vezes, como se tivesse brotado da terra. Na verdade, ela tinha medo
de que, vendo-a de longe, fosse embora. Por isso aproximava-se silenciosamente. Ben, entretanto, já não a hostilizava como no princípio.
- Você até parece o pintarroxo - disse ele, certa vez. - Nunca sei quando você vem, nem de que lado vai aparecer.
- O pintarroxo agora é meu amigo, sabe?
- Ele é assim mesmo. Adora impressionar as mulheres.
Ben falava pouco e, algumas vezes, nem respondia ao que Mary lhe perguntava. Mas, naquela manhã, falou mais do que de hábito:
- Há quanto tempo está na mansão?
- Acho que já faz um mês.
transpunha = atravessava
encantadas = de fadas
considerava = achava
hostilizava = recebia tão mal
impressionar as = chamar atenção das
- Pois está aproveitando muito. Parecia um filhote de corvo, quando veio ao jardim da primeira vez.
- É, estou mais gorda. Minhas meias já estão apertadas. Veja! É o pintarroxo, Ben!
Lá estava ele, resolvido a se fazer admirado. O velho Ben falou:
- Viva! Então, já veio? Só aparece quando não tem companhia melhor. Deve andar namorando alguma pintarroxinha por aí, dizendo-se o melhor pintarroxo do mundo,
conheço você.
O passarinho se aproximou de Ben e, pousando num ramo de arbusto, quase à altura do seu rosto, pôs-se a cantar para ele. E como Ben se mostrasse indiferente
àquela prova de carinho, voou e foi pousar no cabo da pá do jardineiro.
- Você é mesmo uma beleza! - disse o jardineiro, com afeto. - Gosto muito de você - e o pintarroxo voou, assim que ouviu isto.
- Você tem um jardim só seu? - perguntou Mary.
- Não. Sou solteiro e moro com Martin.
- Se tivesse um jardim, que plantaria nele?
- Couve, cenoura, cebola...
- E se quisesse fazer um jardim de flores, que plantaria?
- Bulbos e coisas cheirosas, como as rosas.
- Gosta de rosas?
- Aprendi a gostar de rosas com uma moça de quem fui jardineiro. Tinha uma porção delas e as amava como se fossem crianças ou passarinhos. Eu a vi curvar-se
para elas e beijá-las. Foi há uns dez anos.
- Onde é que ela está, agora?
- No céu, é o que diz o padre.
- Que aconteceu com as roseiras?
- Ficaram sozinhas, abandonadas.
- Morreram todas? Se são abandonadas, as roseiras morrem, não ê?
- Bem, eu gostava das rosas e gostava dela. E ela gostava das rosas. Aí, uma ou duas vezes por ano eu ia cuidar delas. Acho que algumas ainda estão vivas.
- Quando ficam sem folhas e os galhos caem, como é que se sabe se estão vivas ou não?
- Espere até que a primavera as encontre. Olhe nos galhos e raminhos e verá uns carocinhos pardos. Examine-os, depois da chuva. Mas, a propósito de quê,
esse interesse pelas rosas, de repente?
- É que eu quero... fazer de conta que tenho um jardim - Mary teve a impressão de que ele ficara com pena dela e perguntou: - Você continua indo ver aquelas
rosas?
- Este ano ainda não fui. Por causa do reumatismo. Olhe aqui, menina! Não faça tantas perguntas. Vá brincar. Já falei demais.
Uma alameda circundava o jardim secreto, indo acabar num portão
se mostrasse indiferente = não ligasse
carocinhos pardos = sementinhas escuras
circundava = rodeava
dava para um bosque. Ela pensou que o melhor seria pular corda por ali. Quando chegou ao portão, ouviu um assovio suave que despertou seu interesse. Era algo de
estranho e Mary que desmaiou quando o viu: um garoto estava sentado sob uma árvore, encostado ao tronco, e tocava uma flautinha de bambu. Era um menino engraçado,
de uns doze anos. Mary nunca tinha visto olhos tão redondos e azuis. Num galho da árvore, um esquilo olhava para ele e, de um arbusto próximo, um faisão esticava
o pescoço para espiar, Quase junto do garoto, dois coelhinhos farejavam - e todos pareciam gostar de ouvir a música de sua flautinha.
Quando ele viu Mary, ergueu a mão e falou, bem baixinho:
- Não faça barulho, senão eles se espantam.
Mary ficou imóvel, O menino parou de tocar e começou a se levantar, devagarinho. Então, o esquilo subiu para a árvore, o faisão se recolheu numa moita e
os coelhinhos se afastaram, lentamente.
- Eu sou Dickon. E sei que você, é a senhorita Mary.
De certo modo, ela Já adivinhara, Dickon tinha uma boca larga, vermelha, e seu sorriso espalhava-se por todo o rosto.
- Levantei-me bem devagar porque os movimentos bruscos os assustam.
- Você recebeu a carta de Marta? - perguntou Mary.
- Foi por isto que vim - disse ele, balançando a cabeça afirmativamente, e apanhando do chão um pequeno embrulho: - Trouxe as ferramentas. Uma pazinha, um
ancinho e um garfo. Ah, também trouxe uma colher de jardim, A moça da loja me deu um envelope com sementes de papoula branca e outro de resedá azul, quando comprei
as coisas.
- Quer me mostrar as sementes? .
Sentaram-se no tronco e Dickon tirou do bolso um pequeno embrulho. Desamarrou-o e Mary viu que eram diversos envelopes pequenos, cada um deles com uma flor
diferente impressa.
- Tem uma porção de resedás e de papoulas - disse ela, - Resedá é a flor de cheiro mais delicioso e cresce onde você semear, feito as papoulas
- Dickon moveu a cabeça, como se procurasse algo: - De onde é que aquele pintarroxo está chamando? - perguntou.
O canto vinha de uma pequena moita e Mary sabia quem cantava:
- Ele está chamando a gente, é isso?
- Claro! - respondeu Dickon, muito seguro de si. - Está chamando um amigo, assim: "Eu estou aqui, olhe para mim, quero conversar um pouco". De quem é o pintarroxo?
- É de Ben Weatherstaff, mas acho que também gosta de mim.
- Se gosta! Está na cara, Vou falar com ele, agora.
farejavam = cheiravam
recolheu = escondeu
bruscos = rápidos
diversos = vários
impressa = desenhada
moveu = mexeu
seguro de si = confiante
Aproximou-se da moita e assoviou um canto quase igual ao do pintarroxo, que escutou por algum tempo e depois cantou, em resposta.
- Ele diz que é seu amigo - falou Dickon.
- Você acha que é? Será que gosta mesmo de mim?
- Não chegaria tão perto, se não gostasse. Pássaros são muito espertos. Olhe, ele está se mostrando a você, e diz: "Não está me vendo, aqui?"
- Você entende tudo o que os passarinhos dizem?
- Acho que entendo - e Dickon sorriu - acho que eles também me entendem. Às vezes até penso que sou um passarinho. Outras vezes penso que sou raposa, coelho,
esquilo, sei lá! Até um escaravelho! - deu uma risada e tornou a se sentar no tronco, falando sobre as sementes, até que, de repente, disse: - Olhe aqui, o melhor
é eu mesmo plantá-las para você. Onde é que fica o seu jardim?
Mary cruzou os braços, sem saber o que dizer. Dickon insistiu:
- Você tem um pedaço de jardim, não tem? - e como Mary continuasse muda, ficou intrigado e perguntou: - Não lhe deram ainda um pedacinho de terra? Não tem
um jardinzinho?
- Não sei nada sobre rapazes - disse Mary, afinal. - Você é capaz de guardar um segredo, um grande segredo?
- Vivo guardando segredos a vida inteira - disse Dickon, coçando a cabeça. - Se não soubesse guardar segredos sobre filhotes de raposa e ninhos de passarinhos,
nada escaparia na charneca.
Mary não teve a intenção de estender a mão e segurar a manga dele, mas foi o que fez, dizendo:
- Eu roubei um jardim. Não é meu, entende? Ninguém o quer, ninguém cuida dele ou vai lá. Talvez tudo já tenha morrido no jardim. Não me importo, mesmo! - parecia
zangada. - Ninguém tem o direito de me tira-lo. Sou eu quem trata dele. Estão deixando que ele morra, abandonado! - quase gritou, desatando a chorar.
Os olhos azuis de Dickon iam ficando cada vez mais redondos.
- Espere um pouco - disse, num tom de simpatia.
- Não tenho o que fazer, nada me pertence. Eu é que descobri aquele jardim e entrei lá por minha conta.
- Onde é que fica? - perguntou Dickon, em voz baixa.
- Venha comigo, vou lhe mostrar - disse Mary, levantando-se. Dickon seguiu-a, com passo cauteloso. Quando ela chegou ao muro coberto de hera e levantou a cortina
verde, ele se espantou. Mary empurrou o portão e os dois entraram juntos.
- É este - disse Mary. - É um jardim secreto. Somente eu, no mundo, quero que ele viva.
- Puxa! - exclamou Dickon, olhando em volta. - É um lugar estranho, mas muito bonito. Parece que a gente está sonhando, não é?
muda = sem falar
intrigado = curioso
a intenção = o desejo
desatando = começando
num tom de simpatia = numa voz agradável
cauteloso = cuidadoso
O Ninho do Melro
Dickon ficou olhando por uns minutos e, depois, começou a andar pelo jardim, tão silenciosamente quanto o fizera Mary na primeira vez em que chegou ao lugar.
Seus olhos pareciam registrar tudo: as árvores, as trepadeiras, o emaranhado sobre os muros, a relva e os bancos de pedra.
- Nunca pensei que veria este lugar - disse, afinal, murmurando.
- Você sabia alguma coisa a respeito dele? - Mary falou muito alto e Dickon lhe fez um sinal:
- Precisamos falar baixo, senão alguém pode ouvir.
- Isso mesmo, tinha esquecido. Você sabia do jardim?
- Marta me falou de um, onde ninguém podia entrar - calou-se e olhou para os ramos: - Deve haver pinhos aqui, é o melhor lugar que pode haver para ninhos,
em toda a Inglaterra. Nem sei como todos os passarinhos da charneca ainda não se mudaram para cá.
Mary pôs de novo a mão no braço dele, sem dar por isso.
- Será que as rosas vão nascer aqui? Pensei que todas estivesse mortas.
- Mortas, nada. Pelo menos, não todas elas. Veja aqui!
Dickon foi até uma árvore coberta de líquen, com um emaranhado de ramos. Tirou um canivete do bolso.
- Tem muita coisa morta que precisa ser cortada. Aqui está um broto - e mostrou um galhinho verde, em vez de cinzento e seco.
Mary pegou o pequeno rebento, emocionada e alegre:
- Este? Está vivo, bem vivo, mesmo?
registrar = guardar
emaranhado = enrolado
sem dar por isso = sem sentir
rebento = brotinho
- Tão vivo como eu e você - disse ele, sorrindo.
- Puxa, que beleza! Vamos dar uma volta e procurar outros.
Saíram os dois, de árvore em árvore, e Dickon, de canivete em punho, mostrava coisas que ela achava maravilhosas.
- Ficaram selvagens, mas os mais fortes agüentaram. Os mais delicados morreram. Os outros cresceram, cresceram, espalharam-se e tornaram a se espalhar, até
ficarem essa maravilha! Olhe só este! A gente pode penam que está morto. Vou dar um corte mais embaixo para ver.
Dickon abaixou-se e cortou, bem perto do chão, um galho que também parecia morto:
- Está vendo só? Olhe como está verde!
Mary ajoelhara-se perto dele e olhava, com interesse.
- Quando está verde e meio úmido, é que ainda tem vida - continuou Dickon. - Aqui tem uma enorme raiz de onde nascem todos estes galhos. Se a gente tirar
o que está morto e escavar em volta - interrompeu-se e olhou para cima - vai haver uma cascata de rosas, aqui, neste verão.
Quando Dickon cortava um galho aparentemente seco e ela percebia sinal de vida - verde e úmido - quase gritava de contentamento.
- Ora! - disse ele, apontando um ponto próximo. - Quem foi que fez aquilo?
Referia-se a um trecho capinado por Mary, em tomo dos pontinhos verdes.
- Fui eu - confessou Mary.
- Está vendo? Eu pensei que você não entendesse de jardins...
- Não entendo mesmo. Mas eles eram tão pequenininhos e a grama tão alta e fechada, que pareciam não poder respirar...
- Trabalhou muito direitinho - disse ele, ajoelhando-se no lugar que ela havia capinado. - Agora, vão crescer como o pé de feijão do Jack. Aquela da história,
sabe?
Dickon não parara de trabalhar nem por um instante e Mary o ajudava como podia.
- Posso vir todos os dias, chova ou faça sol - disse ele. - É o maior prazer que posso ter na vida, despertar um jardim!
- Se você vier, se me ajudar a fazer renascer o jardim, nem sei o que poderia fazer por você...
- Eu lhe direi o que pode fazer. Você ficará mais gorda e tão esfomeada como uma raposinha, e aprenderá a conversar com o pintarroxo.
- Não gostaria é que ele ficasse feito jardim de jardineiro, quadrado. E você? Prefiro um jardim mais selvagem...
- Eu também. Nada de jardim quadrado. Deixaria até de ser um jardim secreto.
em punho = na mão
escavar = fazer um buraco
ponto = lugar
referia-se = falava de
renascer = crescer novamente
- É mesmo um jardim secreto, mas parece que alguém, além do pintarroxo, andou por ele, há dez anos...
Mary lhe falou do apelido de "Bronquinha" que lhe puseram na casa dos meninos, onde estivera, e admitiu que era mesmo meio enfezada, Dickon sorriu e falou:
- Não acho que alguém tenha de ser desagradável, havendo tanta coisa bonita no mundo: pássaros, bichos e flores, não é?
Dickon, você é mesmo como Marta disse. Gosto de você. É a quinta pessoa de quem eu gosto.
Só gosta de cinco pessoas? Quais são os outros?
- Sua mãe e Marta - Mary foi contando nos dedos - o velho Ben e o pintarroxo...
Você deve me achar muito esquisito - Dickon a interrompeu - mas garanto que você é a menina mais estranha que já vi.
Então, Mary se inclinou e fez uma coisa estranha mesmo. Perguntou-lhe uma coisa que nunca pensou que tivesse coragem de perguntar:
- Você gosta de mim?
- Gosto, ora. Gosto muito de você, como o pintarroxo, eu acho.
E continuaram a trabalhar. Mary não gostou de ouvir o relógio no pátio bater as horas de seu lanche:
- Nossa! Tenho que ir. E você também, não é?
- Meu lanche eu trago comigo. Minha mãe enfia qualquer coisa no meu bolso... - e apanhou o casaco, que tinha jogado no chão, tirando do bolso um embrulho com
dois pedaços de pão recheado.
- Quase sempre é só pão, mas hoje tem uma fatia de toucinho... - e deu um dos pedaços de pão a Mary: - Coma o seu lanche que vou tratar de devorar o meu. E
vou chamar o seu pintarroxo, que ele gosta de comer um tiquinho de toucinho, não é mesmo?
Mary não admitia a idéia de deixá-lo. Tivera a súbita impressão de que ele era um geniozinho da floresta e que poderia desaparecer a qualquer momento. Então,
foi andando vagarosamente para o portão, e a meio caminho parou para lhe perguntar:
- Aconteça o que acontecer, você não vai contar nada, tá?
- Bem, se você fosse uma melrinha e me mostrasse onde é o seu ninho - respondeu Dickon, engolindo às pressas o pedaço de pão com toucinho que tinha na boca
e sorrindo - acha que eu diria a alguém? Nada disso! Você está tão garantida como a melrinha.
Ela sentia que estava.
enfezada = nervosa
estranha = diferente
inclinou = baixou
a súbita impressão = o pensamento
melrinha = passarinha
Posso Ter um Pedacinho de Terra?
Mary correu tão depressa que ficou sem fôlego quando chegou ao quarto e deu com Marta, que a esperava com certa impaciência:
- Um pouco atrasada, não? Onde é que esteve?
- Encontrei Dickon, estive um tempão com ele!
- Onde é que você o viu? Que achou dele?
- Acho... que é lindo!
- Bem, é o melhor rapaz que existe, mas nunca o achamos bonito. Tem o nariz arrebitado demais.
- Gosto assim mesmo.
- Os olhos são redondos, não se pode negar que têm uma cor muito bonita.
- Gosto de olhos redondos. São da cor do céu sobre a charneca.
- Mas tem a boca grande demais, não é?
- Gosto de boca grande. Queria que a minha fosse assim.
- Ia ficar muito engraçada, boca grande em rostinho pequeno. E como foi com as sementes e as ferramentas de jardinagem?
- Como é que sabe que ele trouxe?
- Ora, Dickon é um rapaz de confiança.
Mary receava que Marta começasse a fazer perguntas difíceis, o que não aconteceu. Perguntou:
- Com quem você já conversou sobre isto?
- Com ninguém, é claro.
- Se eu fosse você, não pediria nada ao jardineiro-chefe, o Sr. Roach.
Ele é muito importante.
- Nunca o vi. Só conheço os que trabalham com o velho Ben.
sem fôlego = sem ar
receava = tinha medo
- Eu se fosse você pedia conselhos a Ben. Só é mau na aparência. O Sr. Craven deixa-o fazer o que quer, pois Ben já trabalhava aqui no tempo da Srª Craven,
que gostava dele. Ele pode lhe arranjar um lugarzinho nos jardins.
- Se for um lugar onde eu não incomode ninguém, um lugar que ninguém queira, talvez pudesse usá-lo...
- Claro, não vai incomodar ninguém.
Mary comeu depressa e já ia sair de novo. Marta a deteve:
- O Sr. Craven chegou hoje e parece que quer ver você.
- É mesmo? - exclamou Mary, pálida. - Por quê? Ele não quis me ver quando cheguei. Pitcher disse isso.
- Bem - explicou Marta. - A Srª Medlock falou que ele quer vê-la porque mamãe esteve com ele. Não sei o que ela disse sobre você, mas isso fez com que ele desejasse
vê-la, antes de viajar, amanhã.
- Então, ele vai embora amanhã?! Ótimo!
- Vai ficar fora por muito tempo, no estrangeiro...
Se ele não voltasse até o outono ou o inverno, ela teria tempo de cuidar do jardim secreto e fazê-lo voltar à vida. Mesmo que, ao regressar, ele fosse contra
e o tomasse dela, ainda assim já teria tido aquela alegria.
- Quando é que você acha que ele quer?...
Não terminou a frase. A porta se abriu e a Srª Medlock entrou, em traje de gala e trazendo ao peito o retrato esmaltado de um homem. Era o Sr. Medlock, que
morrera há anos. Parecia nervosa e excitada:
- Precisa arrumar os cabelos! Marta, ajude-a a se arranjar e ponha-lhe o melhor vestido. O Sr. Craven mandou chamá-la ao escritório.
O tom róseo desapareceu das fuces de Mary e seu coração começou a bater descompassado. Ela se sentiu novamente a menininha calada e sem graça de antes. Acompanhou
a Srª Medlock, em silêncio, até uma parte da mansão em que não estivera ainda. A Srª Medlock bateu a uma porta e as duas entraram juntas. Um homem estava sentado
a uma cadeira de braços, diante da lareira, e a Srª Medlock dirigiu-se a ele:
- É a senhorita Mary, senhor.
- Pode retirar-se e deixar a menina aqui. Chamarei depois.
Assim que ela saiu e fechou a porta, Mary ficou de pé, esperando. Uma pobre coisinha, torcendo as mãos. Viu o homem: não era tão corcunda, nem era corcunda!
Mas um homem com ombros altos e meio recurvados, de cabelos pretos. Ele se voltou e falou:
- Chegue para cá.
Mary se aproximou. Não o achou feio. Seu rosto seria até bonito se não tivesse um ar de amargura. Dava a impressão de que a presença dela preocupava.
na aparência = por fora
regressar = voltar
fosse contra = não quisesse
em traje de gala = com roupa de festa
esmaltado = pintado
descompassado = nervosamente
recurvados = inclinados
- Você está bem? - perguntou.
- Estou bem.
- Eles cuidam bem de você?
- Cuidam.
- Você está muito magra.
- Estou engordando - respondeu Mary, secamente.
- Eu me esqueci de você. Como poderia lembrar-me? Tinha a intenção de lhe arranjar uma governanta, mas me esqueci.
- Por favor - disse Mary, com um nó na garganta. - Acho que já sou muito grande para ter uma ama. Por favor, isso não...
- Foi exatamente o que a mulher da charneca me disse.
- A mãe de Marta? - perguntou Mary, enchendo-se de coragem.
Ela tem doze filhos e sabe das coisas.
- Que é que você quer fazer?
- Quero brincar lá fora. Nunca fazia isto na Índia. E é bom.
- A Srª Sowerby, a mãe de Marta, disse que lhe faria bem. Talvez faça. Ela acha que você tem que ficar mais forte.
- Eu me sinto forte, quando estou lá fora, na charneca.
- Onde é que você brinca?
- Por aí. A mãe de Marta me deu uma corda de pular. Pulo e corro e fico olhando as plantas, nos jardins. Não faço nada de mal.
- Ora, não se assuste. Você não poderia fazer mal algum, uma criança como você. Pode fazer o que quiser.
- Posso, mesmo? - perguntou, trêmula.
- Não tenha medo. Claro que pode. Sou seu tutor, embora um mau tutor, talvez. Sou muito doente, mas quero que seja feliz e tranqüila. Não sei nada de crianças,
mas a Srª Medlock está aí para atendê-la. Mandou chamá-la hoje porque a Srª Sowerby disse que eu devia vê-la. Ela acha que você precisa de ar livre.
- Ela sabe tudo sobre crianças - repetiu Mary.
- Fiquei espantado quando ela me falou na estrada. Mas ela me disse que a Srª Craven tinha sido muito boa para ela - parecia difícil para referir-se à esposa
morta. - É uma mulher respeitável. Agora que já a acho que ela disse coisas muito sensatas. Quer alguma coisa: brinquedos, livros, bonecas?
- Será que eu poderia ter... um pedacinho de terra?
Na sua ansiedade, ela nem pensou como suas palavras poderiam parecer estranhas. O Sr. Craven olhou-a com espanto:
amargura = tristeza
intenção = vontade
referir-se = falar sobre
respeitável = que merece atenção
sensatas = ajuizadas
na sua ansiedade = no seu nervosismo
- Pedacinho de terra? De que é que está falando?
- Isso mesmo. Quero plantar sementes e fazer crescerem as plantas.
- Você gosta tanto assim de jardins? - perguntou, lentamente.
- Na Índia eu não sabia nada de jardins. As vezes eu fazia canteirinhos e espetava flores neles. Mas aqui é diferente.
- Um pedaço de terra - disse o Sr. Craven, como se falasse consigo mesmo, pondo-se a andar pelo escritório. E acrescentou, fixando o olhar em Mary: - Você
pode ter a terra que quiser. Você me faz lembrar alguém que amava a terra e gostava de ver a plantas crescendo...
- Posso ficar com um pedaço, então, um pedaço que ninguém queira?
- O que você quiser. Escolha à vontade. E agora você deve ir, estou cansado - disse o Sr. Craven, tocando a campainha para chamar a Srª Medlock. - Adeus.
Estarei ausente todo o verão.
A Srª Medlock não tardou a aparecer e o Sr. Craven lhe disse:
- Agora que vi a menina, entendo o que a Srª Sowerby quis me dizer. Mantenha-a bem cuidada, bem alimentada, deixe-a viver livremente, não seja rigorosa com
ela. Ela precisa de ar fresco
A Srª Medlock pareceu satisfeita. Afinal, até que era bom não gastar seu tempo vigiando Mary:
- Muito bem, senhor. Susan Sowerby e eu fomos colegas de escola. É uma moça muito inteligente e sensível. Eu nunca tive filhos, mas ela tem doze, e todos
são fortes e saudáveis. A senhorita Mary estará em boa companhia.
Assim que a Srª Medlock se afastou para os seus aposentos, Mary disparou na direção do seu quarto, onde Marta a esperava.
- Posso ter o meu jardim! - gritou ela. - Posso fazer o que quiser! Sua mãe pode me levar até a sua cabana. É o máximo! Ouça, Marta: o Sr. Craven é um homem
maravilhoso, ainda que não pareça!
E saiu correndo para o jardim, queria encontrar Dickon. Mas não havia ninguém no seu jardim secreto, tudo parecia mais desolado ainda. "Será que ele foi
embora?", pensou Mary. Mas, de repente, alguma coisa atraiu o seu olhar. Era um pedaço de papel, na verdade, aquele mesmo papel que ela usara para imprimir as letras
da carta de Marta a Dickon, e estava preso a um ramo. Mary o recolheu e, no verso, viu que havia o desenho de um melro no ninho e alguma coisa escrita, em letras
de imprensa:
Eu volto depois.
Claro, era uma mensagem de Dickon.
Ausente = fora
tardou = demorou
rigorosa = severa
saudáveis = com saúde
desolado = triste
imprimir = escrever
uma mensagem = um recado
"Sou Colin!"
Mary voltou para casa e levou o papel com o recado de Dickon - queria mostrá-lo a Marta.
- Muito bem! - disse Marta, com certo orgulho. - Nunca pensei que, Dickon fosse tão vivo.
E Mary não podia esconder sua ansiedade. Que chegasse logo o outro dia, para que ela, manhã cedo mesmo, pudesse voltar ao seu jardim. Mas o tempo em Yorkshire
é imprevisível, sobretudo na primavera. Foi acordada alta noite, com o barulho da chuva que caía torrencialmente. O vento uivava por todos os lados e em volta das
chaminés da velha casa. Mary sentou-se na cama e se sentiu infeliz e aborrecida.
- Chuva irritante! Um verdadeiro desmancha-prazeres! - mas não chorou, apenas ficou ali, com raiva, escutando o uivo do vento.
Ficou acordada, virando-se na cama, cerca de uma hora, quando, de súbito, algo fez com que esticasse o pescoço para o lado da porta.
- Agora, não é o vento - disse, apurando o ouvido. - Não, não é o vento. F. diferente. É outra vez alguém chorando.
A porta do quarto estava entreaberta e o som vinha do corredor, um som distante de choro aflito. Escutou por alguns minutos e cada vez ficava
mais certa de que alguém chorava. Parecia tão estranho como o jardim secreto e a chave enterrada. Pôs o pé fora da cama e levantou-se.
- Vou descobrir o que é isso - disse para si mesma. - Todos estão dormindo e eu não me importo com a Srª Medlock.
tão vivo = tão esperto
imprevisível = cheio de surpresas
sobretudo = principalmente
torrencialmente = fortemente
cerca de = quase
apurando o ouvido = escutando melhor
Havia um castiçal na cabeceira de sua cama e ela acendeu a vela, saindo do quarto. O corredor era longo e escuro, mas ela estava excitada demais para se preocupar
com isso. Pensou que podia se lembrar dos lugares em que devia dobrar para achar o corredor com a porta escondida sob a tapeçaria, aquele de onde a Srª Medlock saíra,
no dia em que ela tinha se perdido na casa. O som vinha dali. Dirigiu-se para lá, quase adivinhando o caminho, o coração batendo forte. O fraco lamento parecia mais
próximo. De vez em quando parava e, depois, recomeçava, sempre mais próximo. Sim, aqui devia virar e, depois, descer por ali e, depois, de novo para a direita. Sim,
ali estava a porta escondida sob a tapeçaria. Empurrou-a delicadamente e fechou-a atrás de si. Ficou parada, ouvindo perfeitamente o choro. Era do outro lado da
parede, à esquerda, a alguns passos, e havia uma porta. Alguém chorava naquele aposento, e devia ser uma criança. Avançou, então, e entrou no quarto. Um grande quarto,
com móveis antigos e luxuosos, uma lareira com um fogo quase extinto e um castiçal aceso ao lado de um leito. Sobre ele, um menino chorava de causar dó.
Mary não sabia se encontrava num lugar real ou se sonhava. O menino tinha um rosto magro e delicado, cor de marfim, e grandes olhos. A cabeleira era farta
e lhe caía pela face em pesados cachos, fazendo com que seu rostinho ficasse ainda menor. Mary parou perto da porta, com a vela na mão, deu alguns passos no quarto
e a luz da vela chamou a atenção do rapazinho, que se voltou, fitando-a com olhos que pareceram maiores. E perguntou, em um assustado murmúrio:
- Quem é você? Um fantasma?
- Não, nada disso. Não sou fantasma! - respondeu Mary, também murmurando meio assustada. - E você, é?
Então Mary notou que os olhos do menino eram estranhos, cor cinza-ágata e pareciam grandes demais para o rosto.
- Não - ele respondeu, depois de um momento. - Eu sou Colin.
- Colin? Quem é Colin?
- Colin Craven. E você, quem é?
- Mary Lennox. O Sr. Craven é meu tio.
- Ele é meu pai.
- Seu pai? Nunca ninguém me disse que ele tinha um filho!
- Chegue para cá - disse ele, com expressão de ansiedade.
Ela foi para mais perto do leito e o menino estendeu a mão para tocá-la:
- Você existe mesmo, não é? Pensei que você fosse um sonho meu.
Mary deixara o quarto com um roupão de lã. Pôs um pedaço dele entre os dedos do menino:
excitada = agitada
fraco lamento = chorinho
extinto = acabado
farta = cheia
um assustado murmúrio = uma vozinha assustada
cinza-ágata = cor de pedra
expressão de ansiedade = cara de curiosidade
- Pegue nisso e veja como é fino e quente. Poderei lhe dar um beliscão, para mostrar que sou real. Eu também pensei que você fosse um sonho.
- De onde você veio?
- Do meu quarto. O vento não me deixava dormir. Por que você estava chorando?
- Eu também não podia dormir, com dor de cabeça. Diga seu nome outra vez, por favor.
- Mary Lennox. Ninguém lhe disse que estou morando aqui?
- Não! - respondeu. - Eles não teriam coragem.
- Por quê?
- Porque eu poderia ter medo de que você quisesse me ver. Não gosto que ninguém me veja.
- Por quê?
- Porque quase sempre estou assim, doente e acamado. Meu pai não
quer que os outros falem de mim. Se eu viver, serei um corcunda, e meu pai odeia pensar que eu venha a ser como ele.
- Puxa! Que casa mais esquisita, quanto mistério! Os quartos são fechados e os jardins também. E você! Você vive trancado aqui?
- Não. Fico aqui porque não quero ir lá fora. Me canso.
- Seu pai vem ver você, algumas vezes?
- Geralmente quando estou dormindo. Ele não gosta de me ver.
- Por quê?
- É que minha mãe morreu quando eu nasci e ele fica arrasado quando me olha. Pensa que eu não sei, mas ouvi dizer. Ele quase me odeia.
- E odeia o jardim porque ela morreu - disse Mary, em voz baixa.
- Que jardim? - perguntou o menino.
- Ora, um jardim de que ela gostava muito. Você não sai nunca?
- Às vezes me levam para as praias, mas não gosto - as pessoas ficam me olhando. Antes, usava um colete com armações de ferro, para corrigir a coluna, mas
um médico de Londres disse que era bobagem e que tirassem aquilo e me deixassem respirar ar puro. Só que não gosto de ar puro.
- Eu também não gostava, quando cheguei. Por que está me olhando desse jeito?
- Por causa dos sonhos reais. Abro os olhos e não acredito que esteja acordado.
- Estamos acordados os dois. Parece mesmo um sonho, tudo aqui. É noite alta e todos estão dormindo. Mas nós estamos acordados.
- Não quero que isto seja um Sonho.
- Se não gosta que o vejam, quer que eu vá embora?
- Não. Se você for embora, então vou pensar que foi um sonho. Se você é de carne e osso, sente-se ali e converse comigo.
leito = cama
arrasado = muito triste
reais = verdadeiros
Mary pousou o castiçal na mesa de cabeceira e sentou-se num tamborete. Não queria ir embora, mas ficar ali e conversar com o menino. - Que quer que lhe conte?
Bem, Colin queria saber há quanto tempo ela estava em Misselthwaite; por onde se ia para o quarto dela; que é que ela fazia; se gostava da charneca; onde
vivia antes. Ela respondeu a essa pergunta e a muitas outras e ele a ouvia. Fez-lhe também um relato sobre sua vida na Índia e a viagem pelo oceano. E achou que,
por ser ele inválido, não aprendera as coisas que os demais meninos aprendem. Uma de suas amas lhe ensinara a ler e ele vivia folheando álbuns de gravuras.
- Todos têm que fazer o que eu quero - disse ele, com indiferença. - Fico doente se me irritam. E todos acham que não viverei muito.
Disse isso como se estivesse acostumado à idéia. Parecia gostar da voz de Mary. Por uma ou duas vezes pareceu que ele cochilava. Afinal, fez uma pergunta que
a deixou interessada?
- Quantos anos você tem?
- Dez. Como você.
- Como é que sabe a minha idade? .
- Porque, quando você nasceu, o portão do jardim foi fechado e a chave enterrada. Isso foi há dez anos.
- De que portão está falando? - e Colin ergueu-se um pouco, apoiado no cotovelo. - Quem o fechou?
- É o jardim que o Sr. Craven odeia. Ele trancou o portão e ninguém sabia onde a chave tinha sido enterrada.
- Que espécie de jardim é este?
- Durante dez anos ninguém pôde entrar nele - foi a cautelosa resposta de Mary.
Mas era tarde para ter cautela. A idéia de um jardim oculto o atraiu, como havia atraído a ela. Onde ficava o jardim? Procurara ela o portão? Não perguntara
aos jardineiros?
- Ninguém quer falar sobre isso. Acho que receberam ordens.
- Ora, eu teria feito com que respondessem.
- É mesmo?
- Todos são obrigados a me obedecer, já lhe disse. Se eu tiver que viver, tudo isto será meu, um dia. Eu os obrigaria a falar.
Mary podia perceber que o menino fora muito mimado: pensava que o mundo inteiro era seu. E com que naturalidade falava em morrer!
- Você acha que não vai viver muito? - perguntou, por curiosidade e para fazer com que ele se esquecesse do jardim.
tamborete = banquinho
Fez-lhe também um relato sobre = Contou-lhe também a história de
inválido = doente
folheando = observando
apoiado = firmando-se
o atraiu = chamou sua atenção
mimado = mal-educado
- Acho. Desde que me entendo, ouço falar que não viverei muito. No princípio, pensavam que eu era pequeno demais para entender, agora acham que não ouço
o que falam. Mas, eu ouço. O médico, Dr. Craven, primo de meu pai, é homem pobre e, se eu morrer, herdará tudo quando meu pai se for. Acho que ele não quer que eu
viva.
- E você? Quer viver?
- Não! - respondeu ele, com enfado. - Mas também não quero morrer. Quando me sinto doente, deito-me aqui e fico pensando, até chorar.
- Ouvi você chorar três vezes. Chorava por causa disso?
- Vamos dizer que sim. Mas falemos sobre o jardim.
- Você quer vê-lo?
- Quero, sim! Nunca pensei seriamente em ver alguma coisa, mas agora quero ver esse jardim. Quero o portão aberto. Vou deixar que me levem até lá, em minha
cadeira! - estava excitado e seus olhos começaram a brilhar como estrelas: - Têm que fazer o que eu quero. Mandarei que me levem até lá, e você irá comigo.
As mãos de Mary se apertavam uma na outra, tudo estaria perdido! Dickon não voltaria mais e ela não se sentiria como um pequeno melro em seu ninho seguro.
- Não, por favor! Não faça isso! - ela quase gritou e ele fitou-a como se pensasse que ela enlouquecera.
- Por que não?
- Se você os obrigar a abrir o jardim, não haverá mais segredo.
- Que segredo? Que quer dizer?
- Está bem... Se ninguém mais, somente nós dois, souber que há um portão escondido sob a hera, e somente nós pudermos passar por ele, fechando-o depois,
e nós dissermos que aquele é o nosso jardim, imaginando que somos melros e ele é o nosso ninho, se brincarmos lá, cavando e plantando, fazendo com que viva...
- Então, está morto? - interrompeu ele.
- Morrerá logo, se ninguém cuidar dele. Os bulbos viverão, mas as rosas...
- Que são bulbos?
- São narcisos e lírios. Estão sob a terra, vivos, e brotam com a primavera.
- A primavera já está vindo? Como é ela?
- A primavera é o sol depois da chuva e a chuva vem depois do sol e as plantas brotando e palpitando. Se o jardim fosse um segredo e nós pudéssemos entrar
lá, veríamos as plantas crescendo. Você não percebe como seria bem melhor se ele continuasse a ser um segredo?
que me entendo = sou crescido
herdará = ficará
enfado = aborrecimento
palpitando = vivendo
percebe = entende
- Nunca tive um segredo, a não ser o de que não viverei muito. Eles não sabem que eu sei disso, logo é um segredo. Mas gosto mais do seu segredo.
- Se você não obrigar alguém a levá-lo ao jardim, estou quase certa de encontrar um meio de entrar lá, um dia. Se o médico aconselhá-lo a sair
de cadeira de rodas e se você pode mesmo fazer o que quer, talvez achemos um rapaz que a empurre e nós iremos lá. E o jardim continuará a ser secreto, para sempre.
- Acho que isso é bom - disse Colin. - Não me incomodaria com o ar puro, num jardim secreto.
- O jardim esteve fechado por tanto tempo que as plantas cresceram demais e se emaranharam.
Ele ficou imóvel, ouvindo-a falar do jardim, do pintarroxo e do velho Ben e havia tanto o que contar e era tão fácil sua narrativa...
- Não sabia que podiam ser assim os passarinhos - disse ele. - Se a gente fica fechado num quarto, não sabe de nada. E você sabe de uma porção de coisas! Parece
até que já esteve naquele jardim.
Mary ficou sem saber o que responder. Evidentemente, ele não esperava uma resposta e logo lhe fez uma surpresa:
- Vê a cortina de seda cor-de-rosa, na parede sobre a lareira?
- Sim - respondeu ela.
- Há um cordão, de um dos lados. Vá até lá e puxe-o.
Mary se levantou, preocupada, e quando puxou o cordão a cortina se abriu e revelou o retrato de uma moça sorridente. Tinha cabelos brilhantes e seus belos olhos
eram iguais aos olhos de Colin, cinza-ágata, parecendo duas vezes maiores devido às pestanas longa.
- É minha mãe, e nem sei por que ela morreu - disse Colin, num lamento. - Às vezes, eu a odeio por isso. É que, se ela fosse viva, eu não estaria sempre
doente e meu pai não me olharia com ódio. Cerre a cortina de novo, por favor.
- Ela é muito mais bonita do que você - disse Mary, voltando para o seu banco. - Mas tem os mesmos olhos, do mesmo tamanho e da mesma cor. E a cortina que
o cobre? Por que isso?
- Nem sempre gosto de vê-la me fitando. Depois, ela é minha e não quero que todos a vejam.
- Que diria a Srª Medlock se soubesse que eu estive aqui?
- Faria apenas o que eu lhe dissesse para fazer. Gostaria muito que você viesse todos os dias conversar comigo.
- Virei quantas vezes puder, mas ela hesitou - terei que continuar a procurar o portão do jardim.
emaranharam = embaraçaram
narrativa = história
evidentemente = certamente
revelou = mostrou
num lamento = numa reclamação
cerre = feche
hesitou = ficou com dúvidas
- Isso mesmo. Depois me dirá o que houve... - pensou um pouco e acrescentou: - Você também vai ser um segredo. Direi que quero ficar sozinho e mando a enfermeira
embora. Você conhece Marta?
- Conheço, é claro. Ela toma conta de mim.
- Marta dorme no quarto ao lado, sempre que a enfermeira está de folga, ela dorme aí. Marta lhe dirá quando poderá voltar aqui.
- Marta sempre soube que você vivia aqui? - perguntou ela, compreendendo enfim por que a criada se assustara quando ela lhe falou que ouvira o choro.
- Sempre me atende, na folga da enfermeira.
- Bem, já é tarde. Posso ir agora? Precisa dormir um pouco.
- Preferia dormir com você aqui - disse ele, timidamente.
- Então, feche os olhos. Vou fazer como a minha ayah fazia, na Índia. Ficarei acariciando a sua mão e cantando bem baixinho.
Encostou-se no leito e começou a acariciar a mão dele, cantando, bem baixinho uma canção de ninar.
- É muito bonito - disse ele, quase dormindo.
Mary continuara a cantar mas, quando olhou de novo para ele, viu que estava de olhos fechados e dormia. Levantou-se devagarinho, pegou o castiçal e deslizou
para o seu quarto.
timidamente = com vergonha
acariciando a = fazendo carinho em
ninar = adormecer
deslizou = saiu delicadamente
Um Jovem Rajá
O nevoeiro escondia a charneca, pela manhã, e a chuva continuava a cair. Nem se podia pensar em sair. Marta estava tão ocupada que Mary
não pôde falar com ela, mas, de tarde, chamou-a ao seu quarto.
- Que é que há com você? - perguntou Marta, sentando-se com as meias que vivia cerzindo, quando não tinha o que fazer.
- Descobri de onde vem o choro.
- Não é possível! - e Marta olhou-a, quase em pânico.
- Ontem de noite ouvi o choro e levantei-me. Saí procurando e encontrei Colin.
- Senhorita Mary! Não devia ter feito isso! Vai complicar a minha vida. Nunca lhe falei sobre ele, mas vão achar que fui eu. Que fará mamãe se eu perder
o emprego?
- Não vai perder emprego nenhum. Ele ficou satisfeito porque eu fui vê-lo. Conversamos muito.
- É mesmo? Você nem imagina como ele fica, quando qualquer coisa o amola. Quando tem um acesso de raiva, grita de assustar a gente.
- Não ficou amolado, não. Perguntei se queria que eu saísse, e ele me fez ficar lá. Mostrou-me o retrato de sua mãe. Antes de ir embora, cantei para ele
adormecer.
- Mal posso acreditar! É como se você tivesse entrado na jaula de um leão! Se ele estivesse como de costume, teria feito um barulho daqueles.
Ele não gosta de estranhos.
- Pois ele me deixou vê-lo o tempo todo.
cerzindo = costurando
pânico = desespero
acesso = ataque
- Não sei o que vou fazer. Se a Srª Medlock descobrir, vai pensar que não cumpri suas ordens e serei despedida.
- Colin nada dirá à Srª Medlock. É um segredo meu e dele. Todos são obrigados a fazer o que ele quer, não é mesmo?
- E isso mesmo. Aquele menino mau!
- A Srª Medlock também. Ele quer que eu vá conversar todos os dias. E você é quem me dirá quando ele quiser me ver.
- Eu vou é perder o meu emprego, estou certa disso!
- Não vai nada. Basta fazer o que ele mandar.
- Você está dizendo que ele foi gentil e agradável?
- Acho até que ficou gostando de mim.
- Nesse caso, você o deve ter enfeitiçado.
- Você quer dizer encantado, com mágica? Ouvi falar nisso, na Índia, mas não sei de que se trata. Afinal, que há com ele?
- Ninguém sabe ao certo. O Sr. Craven quase ficou louco quando o menino nasceu. Tudo porque a Srª Craven morreu. Ele não queria ver a criança. Gritava que
seria outro corcunda, como ele.
- Colin é corcunda? Não me pareceu.
- Bem, ainda não é. Como diz mamãe, há muita trapalhada nesta casa. Ficaram com medo de que a coluna dele fosse fraca e tomaram cuidados excessivos, não o
deixando andar. Uma vez obrigaram-no a usar um colete isso o irritou a ponto de cair doente. Aí, um médico mandou que o livrassem daquilo. Disse que o estavam matando
de tanto remédio.
- Acho que é um garoto muito mimado.
- É o rapazinho mais desaforado que já vi. Não digo que não tenha estado doente. Quase morreu de gripe, já teve febre reumática e tifo. A Srª Medlock ficou
muito perturbada e conversava com a enfermeira pensando que ele não ouvia. Disse: "Desta vez ele morre e é o que pode acontecer e melhor para todos.", Aí, olhou
para ele e lá estava o menino com os olhos arregalados. E lhe disse: "Você pare de falar bobagens e vá buscar um copo d'água!"
- Você acha que ele vai morrer?
- Mamãe acha que é ruim para uma criança não respirar ar puro, ficar sempre deitado, olhando figuras e tomando remédios. Ele é fraco e se respira facilmente.
- Quem sabe, talvez lhe fizesse bem ir para o jardim e ver as plantas crescerem?
- Um dos seus piores ataques foi quando o levaram para ver as rosas, certo da fonte. Começou a espirrar e a dizer que pegara um resfriado. O jardineiro, que
não sabia nada sobre ele, começou a olhá-lo com curiosidade, e ele teve um ataque. Disse que o sujeito estava olhando porque ele era corcunda.
A campainha soou e Marta tratou de guardar as meias que cerzia:
excessivos = demais
desaforado = malcriado
perturbada = nervosa
- Garanto que é a enfermeira pedindo para que eu fique com ele, um pouco - saiu, mas voltou dez minutos depois. - E, você o enfeitiçou. Está no sofá, com
os livros de gravuras. Disse à enfermeira que saísse e só voltasse às seis horas. Então, me disse: "Quero que Mary Lennox venha conversar comigo. E não fale disso
a ninguém!"
Mary queria ir logo. Na verdade, não desejava tanto ver Colin quanto Dickon, mas, ainda assim, tinha curiosidade de tornar a vê-lo.
Quando entrou no quarto, à luz do dia, viu que era um lindo cômodo. As cortinas e OS tapetes, de belo colorido, alegravam o ambiente e lhe davam um aspecto
confortável. O próprio Colin parecia um quadro, vestido num roupão de veludo e recostado numa almofada. Tinha uma mancha vermelha em cada face.
- Entre - disse ele. - Pensei em você a manhã toda.
- Eu também pensei em você - disse Mary. - Nem imagina como. Marta está assustada. Diz que a Srª Medlock vai pensar que ela me falou em você e a mandará
embora.
- Peça a ela para vir aqui - e ele franziu as sobrancelhas. - Está no quarto ao lado.
Mary foi chamar Marta que, coitada, tremia da cabeça aos pés. Colin continuava de cara fechada:
- Você tem que fazer o que eu quero, ou não?
- Certo, senhor - respondeu Marta, trêmula e ruborizada.
- Então, se eu lhe ordenei que chamasse a senhorita Mary, como que a Medlock vai mandá-la embora, caso fique sabendo?
- Por favor, Sr. Colin, não diga nada a ela!
- Eu é que mandarei a Medlock embora, se ela criar caso!
- Obrigada, senhor. Agora, tenho que fazer o meu trabalho.
- Seu trabalho é o que eu quiser que faça. Não se preocupe. Pode ir, agora.
Quando a porta se fechou atrás de Marta, Colin viu que Mary olhava para ele como se estivesse fascinada.
- Por que está me olhando assim? Em que está pensando?
- Estou pensando em duas coisas.
- Que coisas? Sente-se e conte-me.
- Uma vez, na Índia, vi um rapazinho que era um rajá. Tinha rubis, esmeraldas e diamantes da cabeça aos pés e falava aos outros como você falou com Marta.
- Você falará sobre rajás mais tarde. E a segunda coisa?
- Estive pensando em como você é diferente de Dickon.
- Quem é Dickon? Que nome mais estranho!
- É irmão de Marta. Tem doze anos e não se parece com nenhum outro menino. Sabe encantar raposas e pássaros, como os nativos da Índia que encantam serpentes.
tornar = voltar
cômodo = aposento
um aspecto = uma aparência
ruborizada = corada
fascinada = encantada
rajá = príncipe
Toca sua flauta e os bichinhos vêm ouvi-lo.
Colin tirou um grande livro de sobre a mesinha de cabeceira:
- Aqui há uma estampa de um encantador de serpentes. Veja.
Era um lindo álbum, com gravuras coloridas. Mostrou uma delas a Mary:
- Ele sabe fazer isso?
- Bem, ele toca a flauta e os bichos ouvem. Não é magia. Ele diz que é porque conhece todos eles, na charneca. E conversa também, em trinados, com o pintarroxo.
- Conte mais sobre ele - pediu Colin.
- Sabe tudo sobre ovos e ninhos. E guarda segredo para que outros meninos não estraguem tudo.
- Então, ele gosta da charneca? Mas aquilo é tão triste!...
- Triste, nada! É o lugar mais lindo que há. E cheio de vida, de cantos, de gorjeios, de movimento - como um mundo à parte.
- Como é que você sabe de tudo isso?
- Nunca estive na charneca, mas passei por lá, de carro, certa noite. Pensei que fosse uma coisa hedionda. Depois, Marta me falou dela e Dickon também. Agora,
sei que é uma beleza.
- Quando a gente está doente, numa cama, não pode ver nada.
- É isso mesmo. Não pode.
- Quer dizer que eu não posso ir à charneca?
- Você bem que pode, algum dia - arriscou Mary.
- Ir à charneca?! Ora, eu estou para morrer...
- Como é que sabe? - ela não gostava do modo como ele falava em morrer, como se sentisse orgulhoso disso.
- Bem, tenho ouvido isso desde que me entendo. Acho que todos eles querem mesmo que eu morra.
Mary apertou os lábios para não dar um grito de protesto:
- Se alguém quiser que eu morra, eu não quereria, ora! Quem é que está querendo que você morra?
- Os criados e também o médico, que ficará com a mansão. Ele não ousa dizer isso, mas se alegra quando eu passo mal. Até engordou, quando peguei o tifo.
Acho que meu pai também quer que eu morra.
- Não acredito - disse Mary, com firmeza.
- Não acredita? - e Colin a encarou. Voltou a se recostar na almofada e houve um longo silêncio. Talvez ambos estivessem pensando em coisas estranhas, coisas
em que as crianças geralmente não pensam.
de cabeceira = ao lado da cama
estampa = figura
mundo à parte = outro mundo
hedionda = horrível
arriscou = falou
protesto = reclamação
ousa = tem coragem
- Gostei foi daquele médico que veio de Londres, aquele que fez com que lhe tirassem o colete incômodo - disse Mary. - Ele também falou que você está para
morrer?
- Não.
- Que disse, então?
- Bem, ele disse tudo em voz alta: "O rapaz viverá se pensar nisto seriamente". Aquilo soou como se ele mesmo estivesse revoltado.
- Vou lhe dizer quem poderá ajudá-lo a pensar assim. É Dickon. Ele está sempre falando em coisas vivas. Olha sempre para o céu para ver os pássaros voando,
ou para a terra, onde as plantas nascem. Tem olhos redondos e sempre abertos e ri, sempre. Seu rosto é vermelho como as cerejas mais vermelhas - e Mary chegou seu
banquinho para perto do sofá: - Olha aqui, não vamos mais falar em mortes, não gosto. Vamos falar de viver. Vamos falar de Dickon e depois ver o álbum de gravura.
Era o que de melhor poderia dizer e Mary falou como jamais havia falado antes. Colin também a ouviu como nunca ouvira ninguém antes. Ambos riram, como as
crianças costumam rir, como duas crianças normais. Estavam tão felizes que esqueceram o álbum de gravuras e também o tempo Sem se preocupar com suas costas fracas,
Colin falou:
- Tem uma coisa em que nós nunca pensamos. Nós somos primo. Parecia absurdo que não tivessem pensado em coisa tão simples. Os dois riram mais do que antes.
Então, a porta se abriu e o Dr. Craven entrou com a Srª Medlock.
- Santo Deus! - exclamou ela, com os olhos arregalados.
- Mas, o que é isto? - disse o médico dando um passo à frente.
Mary se lembrou do jovem rajá: Colin respondeu como se o espanto do médico e o escândalo da Srª Medlock não tivessem importância:
- Esta é minha prima Mary Lennox. Mandei chamá-la para conversar comigo. Gosto dela. Virá conversar comigo sempre que eu queira.
- Não sei como isto aconteceu, doutor. Não há um empregado aqui capaz de desobedecer às minhas ordens - desculpou-se a Srª Medloc.
- Ninguém falou nada - disse Colin. - Mary me ouviu chorando e me encontrou aqui. Deixe de ser tola, Medlock!
Mary notou que o médico não ficou satisfeito, mas era claro que ele não ousava contrariar Colin. Sentou-se e tomou-lhe o pulso:
- Receio que tenha ficado muito excitado e isso não lhe pode fazer bem, meu jovem.
- Excitado eu ficaria se ela não viesse. Estou melhor. A enfermeira pode trazer nosso chá, o meu e o dela.
- Ele está com melhor aspecto, doutor - arriscou a Srª Medlock olhando para o médico. - Já parecia melhor hoje pela manhã, antes que ela aparecesse.
incômodo = que atrapalhava
pensar nisto seriamente = quiser realmente
absurdo = esquisito
escândalo = susto
contrariar = ir contra
- Ela esteve aqui na noite passada e ficou comigo por muito tempo. Cantou uma canção para me fazer dormir. Senti-me melhor, quando acordei. Quero o chá,
agora. Diga à enfermeira, Medlock.
O Dr. Craven não quis demorar-se. Falou à enfermeira por um momento e dirigiu algumas palavras a Colin: que não falasse muito e não se esquecesse de que
estava doente.
- O que eu quero é exatamente esquecer tudo! - disse Colin, fitando o médico. - Ela me faz esquecer que estou doente. Por isto é que eu a quero aqui, comigo.
O Dr. Craven não estava nada contente quando saiu do quarto. Deu uma olhadela reprovadora à mocinha, que voltara a ser uma garota tensa e silenciosa, outra
vez. Na verdade, o rapaz parecia mais animado. Mas, de qualquer forma, o médico deu um suspiro, quando se viu no corredor. Sempre querem que eu coma quando não tenho
vontade - disse Colin. - Agora, se você quiser comer, eu farei o mesmo. Os bolinhos devem estar gostosos. Fale mais sobre rajá.
por um momento = rapidamente
exatamente = na verdade
fitando = olhando
reprovadora = de censura
tensa = nervosa
A Construção do Ninho
Em seguida à outra semana de chuva, surgiu de novo a alta abóbada azul e o sol apareceu, ardente. Embora sem oportunidade de ver Dickon e o jardim secreto,
Maty se divertiu. Passou muitas horas, todos os dias, com Colin, conversando sobre rajás, jardins, Dickon e a cabana na charneca. Viram os livros de estampas e,
às vezes, Maty lia para Colin, e vice-versa.
- Você é uma garota muito sabida - disse, certa vez, a Srª Medlock.
- Não se pode negar, porém, que foi uma bênção para nós. Ele não teve mais acessos ou crises de choro, desde que vocês se tornaram amigos. A enfermeira estava
para dar o fora, cansada de lidar com ele e, agora, não se importa de continuar, pois você a ajuda bastante.
Mary era cautelosa nas conversas com Colin sobre o jardim secreto. Claro, queria saber tudo sobre ele, mas queria descobrir isso por ela mesma, sem fazer
perguntas indiscretas. Em primeiro lugar, quis descobrir se ele era capaz de guardar um segredo. Em nada se parecia com Dickon, mas se mostrou claramente entusiasmado
com a idéia de um jardim que ninguém conhecia. Mary achou, assim, que talvez pudesse confiar nele. A segunda coisa que queria descobrir era: confiando nele, de verdade,
haveria um jeito de levá-lo ao jardim secreto, sem que ninguém soubesse? O médico de Londres dissera que Colin precisava de ar puro e ele mesmo confessara que gostaria
do ar puro de um jardim secreto. Talvez, se ele conhecesse Dickon e respirasse o ar puro do jardim, deixaria de pensar em morrer. Se os jardins e o ar livre fizeram
a ela tanto bem, com certeza fariam o mesmo a Colin. Mas, talvez, Colin não gostasse de encontrar Dickon.
- Por que se irrita quando os outros olham para você? - Mary perguntou um dia.
vice-versa = e ele para ela
bênção = felicidades
indiscretas = curiosas
- Sempre odiei isto, desde pequeno. Às vezes, as senhoras paravam junto ao meu carrinho, cochichavam, davam tapinhas no meu rosto e murmuravam: "Pobre criança!"
Certa vez, eu gritei e mordi a mão de uma delas. Puxa! A mulher saiu correndo!
- Deve ter pensado que você era maluco - comentou Mary.
- Pouco me importa o que tenha pensado!
- Até que me admiro de que não tenha gritado ou me mordido, quando fui ao seu quarto...
- Pensei que fosse um fantasma ou um sonho -e ele começou a sorrir, mansamente. - Não se pode morder um fantasma ou um sonho. E se a gente grita, eles não
se incomodam...
- Você se zangaria com um menino que olhasse para você?
- Bem, há um menino, sim - disse ele, como que pensando intensamente - que poderia olhar para mim, sem que eu me incomodasse. É aquele menino que sabe onde
vivem as raposas. Dickon, não é este o nome?
- Estou certa de que não se importaria mesmo.
- Os passarinhos não se importam, os outros bichinhos também não e, talvez, eu também não me importe. Ele é uma espécie de encantador de animais e eu sou
um menino-animal.
Os dois riram e, afinal, o riso se transformou numa grande gargalhada com aquela idéia de um menino-animal escondido em sua toca.
* * *
Na primeira manhã em que o céu apareceu azul outra vez, Mary se levantou cedo, pulou da cama e correu para a janela. Abriu as cortinas e uma rajada de ar
fresco bateu em seu rosto: parecia alguma magia.
- Está quente! - exclamou ela. - Vai fazer com que os brotinhos cresçam! Bulbos e raízes lutarão com toda a sua força debaixo da terra!
Debruçou-se à janela, aspirando o ar em grandes sorvos:
- Deve ser muito cedo - falou para si mesma. - As nuvenzinhas ainda estão cor-de-rosa e nunca vi um céu assim. Acho que todos ainda estão dormindo... - e,
de repente, exclamou: - Não posso esperar!
Vestiu-se (já aprendera a fazê-lo sozinha), saiu de casa por uma porta lateral. Tudo parecia ter ficado verde da noite para o dia. Envolta na onda perfumada
do ar que vinha da charneca e ouvindo o canto dos pássaros, juntou as mãos e ergueu os olhos para o céu azul e branco, cheio de luz primaveril. Saiu correndo para
o jardim.
cochichavam = falavam baixinho
mansamente = calmamente
se incomodam = ligam
intensamente = com muita força
rajada = quantidade
aspirando = respirando. engolindo
sorvos = goles
envolta = envolvida
primaveril = da primavera
- Tudo já está diferente - disse para si mesma. - A relva está mais verde e as plantas surgem por todos os lados. Tenho certeza de que Dickon vai aparecer,
hoje.
Chegando ao lugar em que o portão se escondia sob a hera, assustou-se ao ouvir um estranho ruído. Era o grasnar de um corvo, vindo do alto do muro, e, quando
olhou para cima, viu um grande pássaro de plumagem azul-preta, inclinado para baixo, olhando-a com ar inteligente. Mary nunca vira um corvo tão de perto e ficou
um pouco nervosa. Mas logo ele abriu as asas e voou sobre o jardim. Ela esperou que ele não ficasse lá dentro e abriu o portão. Então, notou que o corvo tinha se
empoleirado numa macieira e, embaixo da árvore, estava deitado um bichinho avermelhado, de cauda espessa. Ambos olhavam o corpo inclinado e a cabeleira ruiva de
Dickon, trabalhando na grama.
- Dickon, é você! - gritou Mary. - Como é que chegou tão cedo?
O sol mal acaba de aparecer!
- Eu me levantei antes do sol - disse ele, rindo. Não podia ficar na cama, numa manhã tão fantástica.
- Puxa, Dickon! Você nem sabe como eu estou alegre!
Vendo que o menino conversava com uma pessoa estranha, o bichinho de cauda espessa saiu de sob a árvore e se aproximou. A gralha, grasnando, desceu do galho
e pousou no seu ombro.
- Este aqui é o filhote da raposa - disse Dickon, alisando o pêlo do animal. - Chama-se Capitão. E este é o Fuligem. Veio voando pela charneca, seguindo-me,
enquanto Capitão corria como se uma matilha estivesse atrás dele.
- Veja como isto aqui brotou, e aquilo, e aquilo ali também!
Mary inclinou-se e beijou as plantas que tinham brotado:
- A gente nunca beija as pessoas assim. Plantas são diferentes.
- Muitas vezes eu beijo minha mãe, quando volto da charneca.
Andaram por todo o jardim e viram tanta coisa maravilhosa que tiveram que lembrar um ao outro que deviam falar baixo, para não se denunciarem. E ainda lhes
sucedeu uma alegria maior: rapidamente, algo voou sobre o muro e foi pousar num arbusto, a um canto do jardim. Era o passarinho de peito vermelho e levava alguma
coisa no bicho. Dickon ficou quieto e tocou em Mary como se, de repente, tivessem os dois dado uma gargalhada numa igreja:
- Não podemos nos mexer. Quando o vi da última vez, sabia que e andava em busca de uma companheira. É o pintarroxo de Ben e está construindo o seu ninho.
Se não o espantarmos, ficará aqui.
Sentaram-se, lentamente, na relva e se mantiveram imóveis.
- Precisamos fingir que não o estamos vendo. Iria embora se desconfiasse que estamos tomando conta dele. Está arrumando a casa.
empoleirado = trepado
espessa = grossa
fantástica = maravilhosa
matilha = porção de cães
sucedeu = aconteceu
se mantiveram imóveis = ficaram parados
Vamos fazer de conta que somos grama, árvores ou arbustos. Depois que se acostumar com a nossa presença, assoviarei um pouco e ele compreenderá que não vamos incomodá-lo
- e Dickon ficou muito quieto, sentado, e quando falou o fez em voz tão baixa que chegava a ser curioso que ela o entendesse:
- A construção de ninhos faz parte da primavera. Garanto que tem sido assim desde que o mundo é mundo. Pode-se perder um amigo, na primavera, mais facilmente
do que em outra estação, se formos curiosos.
- Se a gente ficar falando dele, tenho que ficar olhando para onde ele está. Vamos conversar outras coisas. Quero lhe falar de uma outra coisa...
- Ele vai gostar de que a gente fale de outra coisa. Que é que você - quer me dizer?
- Você conhece Colin?
- Que sabe a respeito dele?
- Eu o vi. Conversei com ele todos os dias, esta semana. Ele gosta que eu o procure. Diz que estou fazendo com que ele se esqueça de que está doente e vai
morrer.
- Fico muito contente com isso. E mais à vontade. Sabia que não podia dizer nada a você sobre ele, e não gosto de simulações...
- E sobre o segredo do jardim? Você não vai guardá-lo?
- Isso é outra coisa. Não direi nada. Só que à minha mãe falei assim: "Olhe tenho que guardar um segredo. Não é nada de mal, ta? É como não revelar onde
é o ninho de um pássaro, ta?
- Que foi que ela disse?
- Puxa, ela é a maior! Passou a mão na minha cabeça e falou, rindo: "Ora, garoto, você pode ter todos os segredos que quiser. Já conheço você há doze anos."
- E sobre Colin, que é que você sabe?
- O que todos sabem: que é um menino que vai crescer aleijado. Todos sabem também que o Sr. Craven não gosta que se fale nele. Todos têm pena do Sr. Craven,
porque a mulher dele era muito bonita e os dois se amavam. Mas como foi que você descobriu o menino? Marta ficou toda atrapalhada na última vez em que esteve lá
em casa. Disse que você ouviu o choro dele e começou a fazer perguntas.
Mary contou tudo o que aconteceu na noite da ventania:
- Você acha que O Sr. Craven quer que ele morra?
- Isso não. Mas gostaria que ele não tivesse nascido. Mamãe diz que
o pior que pode acontecer a uma criança é isso. Quase nunca sobrevive uma criança que não foi desejada. Com o dinheiro que tem, o Sr. Craven pode comprar tudo, menos
o esquecimento de que tem um filho vivo. Tem medo de olhar para ele e descobrir, um dia, que o coitado ficou corcunda.
- Colin também tem medo disso, nem tem coragem de se sentar. Diz que, se descobrir que tem um caroço nas costas, ficará
incomodá-lo = atrapalha-lo
simulações = fingimentos
revelar = contar
aleijada = defeituoso
sobrevive = vive
louco de tanto gritar.
- Eu acho que ele não devia ficar no quarto, pensando essas bobagens. Desse jeito, nunca ficará bom.
O filhote de raposa estava deitado aos pés dele, olhando de vez em quando para o seu rosto, e Dickon inclinava-se para lhe alisar o pescoço. Relanceou a
vista pelo jardim:
- Quando entramos aqui a primeira vez tudo parecia cinzento. Agora, dê uma olhada e veja como mudou!
- É mesmo! Até o muro cinzento está mudando. Parece que uma névoa verde está nascendo nele. Um véu de gaze verde.
- E vai ficar cada vez mais verde. Sabe o que estou pensando?
- É sobre Colin, não é?
- Acho que se ele estivesse aqui e visse essas coisas, não ficaria pensando em caroço nas costas. E se nós fôssemos capazes de, um dia, trazê-lo aqui, na
sua cadeira de rodas?
- Também estive pensando nisso. Será que ele guardaria nosso segredo? Acho que você poderia empurrar a cadeira. O médico disse que ele precisa de ar puro
e, se ele quiser que a gente o traga para fora, ninguém teria coragem de contrariá-lo.
Dickon estava pensando, enquanto acariciava o Capitão:
- Isso faria bem a ele. Nós dois não achamos que melhor seria ele não ter nascido. Somos duas crianças vendo o jardim crescer e ele seria mais uma. Dois
meninos e uma mocinha vendo a primavera. Isso será melhor para ele que toda a trapalhada do médico.
- O coitado está preso no quarto há muito tempo. Lê muitos livros mas, como tem pavor da doença, vai ficando lá. Só sabe o que lê nos livros, mais nada.
Gostou de ouvir falar do jardim, porque é um jardim secreto.
Disse que gostaria de vê-lo.
- Um dia desses a gente o traz aqui. Eu empurro a cadeira. Viu como o pintarroxo e sua companheira trabalharam enquanto estávamos conversando? Agora, ele
está pendurado no ramo, estudando o melhor lugar para construir o seu ninho.
Dickson deu um assovio melodioso e o passarinho olhou para onde ele se encontrava, mantendo um raminho preso ao bico. Dickon lhe falou como velho Ben fazia,
só que num tom de conselho amigo:
- Onde você puser o raminho, está bem. Antes de sair do ovo, você já sabia construir um ninho. Vá em frente, amigo!
- Adoro ver você falando com ele! - disse Mary, com um sorriso. - O velho Bem ralha com ele, e não adianta nada: ele fica saltitando como se entendesse
cada palavra e acho até que gosta disso.
relanceou = passou
a trapalhada = o tratamento
pavor = horror
melodioso = musical
ralha = briga
O velho Ben diz que ele e tão vaidoso!...
Dickon também sorriu e continuou falando com o pintarroxo:
- Você sabe muito bem que não queremos perturbá-lo. Nós dois somos feito uns bichinhos. Também estamos cuidando de construir um ninho. Veja lá se vai espalhar
nosso segredo por aí!...
E embora o pintarroxo não respondesse, pois tinha o bico ocupado, Mary sabia que nunca ele revelaria o segredo de ambos a ninguém.
revelaria = contaria
"Não Volto!"
Com tanto trabalho a fazer, Mary só voltou muito tarde para casa e quase esquecera Colin.
- Diga a Colin que ainda não posso ir vê-lo - falou a Marta. - Estou muito ocupada no jardim.
- Ele vai ficar muito aborrecido - observou Marta, assustada.
Mary, porém, não tinha medo dele, como as outras pessoas, e saiu correndo, de volta ao jardim. A tarde foi de mais trabalho ainda que a manhã. Quase todo
o mato fora capinado e as roseiras tratadas. Dickon falou sobre as árvores frutíferas e as flores e disse que a grama ficaria como um tapete florido. A raposinha
e o corvo estavam tão felizes e ocupados como eles e o pintarroxo e sua companheira voavam para cá e para lá. Às vezes o corvo as asas e se elevava sobre as copas
das árvores. Cada vez que voltava, pousava perto de Dickon, falando com ele. De uma feita, como Dickon estivesse ocupado e não lhe desse atenção, Fuligem pousou
no seu ombro e gentilmente bicou sua orelha. Quando Mary quis descansar, Dickon se sentou ela sob uma árvore, tirou sua flautinha do bolso, tocou a musiquinha e
dois esquilos apareceram no muro para ouvir.
- Você está bem mais forte do que antes - disse Dickon.
- É, estou cada vez mais gorda. A Srª Medlock vai ter que me arranjar vestidos maiores. Marta disse que meu cabelo também melhorou.
O sol começara a se pôr quando se retiraram, e Dickon disse:
- Amanhã vai ser melhor. Venho logo que o sol se levantar.
- Eu também - respondeu Mary.
Correu para casa tão depressa quanto pôde, ansiosa para falar a Colin sobre o filhote de raposa, o corvo e sobre o que a primavera já havia feito. Tinha certeza
de que ele iria gostar de ouvi-la.
se elevava = voava
de uma feita = certa vez
Quando abriu a porta do quarto, deu com Marta de cara fechada:
- Que foi que Colin disse quando você lhe deu meu recado?
- Puxa! Teria sido melhor que você mesma tivesse ido lá. Ele quase teve um acesso. Queria saber as horas, a todo momento.
Mary apertou os lábios: não havia razão para que um garoto malcriado interferisse com o seu prazer. Nada sabia sobre piedade para com doentes e nervosos,
que sentiam a necessidade de tomar os demais doentes e nervosos também. Quando, na Índia, tinha dor de cabeça ou coisa parecida, fazia o possível para que os outros
ficassem com o mesmo problema. Enfim, seus pensamentos eram algo confusos e, conduzida por eles, foi ao quarto de Colin.
O rapaz estava no leito e não se voltou quando ela apareceu. Era um mau começo e Mary se dirigiu a ele na sua maneira empertigada:
- Por que você não se levantou?
- Levantei-me de manhã, quando pensei que você vinha - respondeu, sem olhar para ela. - Mandei que me pusessem de novo na cama, à tardinha. Minhas costas
doíam e eu estava cansado. Por que não veio?
- Estive trabalhando com Dickon no jardim.
Colin franziu a testa e a encarou, afinal:
- Não vou deixar que aquele rapaz venha mais aqui, se você prefere ficar com ele a me fazer companhia!
- Se você fizer isso, nunca mais voltarei a este quarto - e Mary disse isso em tom azedo.
- Se eu quiser, terá de voltar.
- Não volto!
- Eu a obrigarei! Eles a arrastarão até cá!
- É mesmo, Sr. Rajá? Podem me arrastar, mas eu não direi uma palavra. Fico sentada de boca fechada, e nem olharei para você!
Até que faziam um parzinho engraçado, um olhando para o outro. Se fossem dois garotos de rua, teriam se atracado. Mas, como não podiam fazer isso, optaram
pela coisa mais natural.
- Você é muito egoísta! - gritou Colin.
- E você, o que pensa que é? O egoísta sempre acusa os outros: acha egoístas todos os que não se dispõem a fazer o que ele quer. Você é mais egoísta do que
eu!
- Essa não! Egoísta é o seu lindo Dickon. Ele a prende lá, naquele imundície, sabendo que eu fico aqui, sozinho. Aquilo é que é um egoísta, ouviu?
- Dickon é mais decente do que qualquer outro - e os olhos de Mary cintilavam. - Ele é como um anjo!
pôr = se esconder
interferisse = se metesse
os demais = os outros
conduzida = levada
empertigada = convencida
se atracado = brigado
optaram pela = escolheram a
se dispõem a = querem
cintilavam = brilhavam
- Bonito anjo! É um garoto vagabundo que mora numa cabana!
- Melhor ser assim do que ser um rajá vagabundo! Mil vezes!
E como ela era mais forte que ele, vencia, naturalmente, o torneio. Na verdade, ele nunca tivera uma briga de igual para igual e, no fim das contas, aquilo
lhe fazia bem, embora ele e Mary não se dessem conta. Voltou a se afundar no travesseiro e fechou os olhos, de onde uma lágrima escorreu. Começava a sentir pena
de si mesmo:
- Não sou tão egoísta como você, porque sou doente e sei que um caroço está crescendo nas minhas costa. E vou morrer.
- Vai nada! - retrucou Mary, sem piedade.
Colin arregalou os olhos, indignado: nunca ouvira uma coisa assim. De fato, estava ao mesmo tempo furioso e deliciado:
- Não vou, é? Fique sabendo que vou morrer! Todos sabem!
- Só que eu não acredito nisso. Você quer é que a gente tenha pena de você. Quer saber? Acho que você é muito pretensioso!
Embora com as costas doendo, Colin se ergueu no leito, zangado:
- Vá embora! - e arremessou o travesseiro no rosto dela. Mas, como não era bastante forte, o travesseiro apenas caiu aos pés dela.
O rosto da menina ficou branco de indignação:
- Claro que vou-me embora! E não voltarei mais! - dirigiu-se à porta e, quando lá chegou, virou-se e disse: - Vim para lhe contar uma porção de coisas lindas.
Dickon trouxe a raposinha e o corvo e eu ia falar deles. Agora, não digo mais nada.
Passou pela porta, fechando-a ao sair e ficou espantada de encontrar a enfermeira no corredor, como se estivesse à escuta. E, o que era mais curioso, ela
estava sorrindo. Na verdade, era uma mulher simpática, que não via ser enfermeira pois não Suportava inválidos. Mary, porém, não simpatizava com ela e admirou-se
de vê-la rindo, assim:
- De que é que está rindo?
- De vocês dois. Foi a melhor coisa que podia ter acontecido a esse doentinho, ter alguém para enfrentá-lo, alguém tão estragado como ele. Se e tivesse uma
raposinha como irmã, estaria salvo.
- Então, ele vai morrer, mesmo?
- Não sei. Histeria e temperamento são a metade do que sofre.
- Que é histeria?
- Ficará sabendo quando o encontrar depois de um de seus habituais acessos. Agora, você lhe deu algo que o tornará histérico...
Mary voltou para o seu quarto, irritada e desapontada, mas sem sentir pena de Colin. Teria que pensar de novo se valia a pena confiar a ele
se dessem conta = percebessem
indignado = revoltado
pretensioso = vaidoso
de indignação = de raiva
suportava = agüentava
histeria = nervosismo
desapontada = sem graça
um segredo. Não valia, não. Nunca lhe diria e ele que ficasse no quarto e não tomasse ar puro e morresse se quisesse, ora!
Marta a esperava com uma expressão de ansiedade. Sobre a mesa, havia uma caixa de madeira cheia de: embrulhos.
- O Sr. Craven mandou isto para você. São livros de gravuras.
Mary se lembrou de que o Sr. Craven lhe perguntara se queria bonecas, brinquedos e livros. Havia muitos volumes bonitos, como os de Colin e dois tratavam de
jardins. Num dos embrulhos encontrou apetrechos para escrever. Tudo era tão bonito que seu contentamento começou a vencer a raiva. Não pensava que o tio fosse lembrar-se
dela, e seu coração começou a se aquecer:
- Sei escrever melhor do que pintar. Vou fazer uma carta e dizer a ele que estou muito agradecida.
Se ainda fosse amiga de Colin, teria corrido para lhe mostrar os presentes. Então, olhariam as estampas e leriam algumas páginas sobre jardinagem - ele teria
se divertido tanto que nem pensaria de novo que estava para morrer, ou no tal caroço das costas. Ele costumava dizer que, se sentisse um caroço nas costas, por menos
que fosse, saberia que sua corcunda começara a se formar. Ouvira a Srª Medlock dizer qualquer coisa à enfermeira, que as costas do seu pai tinham começado a mostar
a corcunda quando ele ainda era criança. E somente a Mary, Colin confessara que seus acessos surgiam por causa desse medo oculto.
Mary sentiu pena dele e ficou pensando, olhando para o chão.
- Disse que não iria nunca mais ao quarto dele... - hesitou, franzindo as sobrancelhas. - Mas... talvez... volte lá, para ver se ele quer... bem, se ele quiser
que eu vá... Acho que ele vai jogar o traveseiro na minha cara... Bem... acho que vou até lá, de manhã...
volumes = livros
apetrechos = material
a se aquecer = a ficar feliz
surgiam = começavam
Um Acesso
Levantara-se cedo e trabalhara muito no jardim. Estava cansada e com sono. Assim, quando Marta trouxe o jantar, comeu e foi se deitar, dizendo para si mesma:
- Saio antes do café e trabalho um pouco com Dickon. Depois, acho que vou vê-lo...
Devia ser meia-noite quando foi despertada por um barulho infernal. Saltou da cama e ficou a imaginar o que seria aquilo. Logo, soube do que era. Portas se
abriam e fechavam e havia forte rumor de passos pelos corredores. Alguém chorava e gritava ao mesmo tempo.
- É Colin! - exclamou ela. - Está com um dos acessos que a enfermeira chama de histeria. É horrível! Que é que eu vou fazer? -indagava a si mesma, tentando
tapar os ouvidos com as mãos. - Não posso agüentar isso!
Pensou que talvez ele parasse com aquilo se fosse até o seu quarto. Mas lembrou-se de como fora expulsa de lá: talvez sua presença fizesse com que piorasse.
Mesmo apertando as mãos contra os ouvidos, ouvia os pavorosos gritos. Ela o detestava tanto e estava tão apavorada que, de repente, teve vontade de sofrer também
um acesso e apavorá-lo, como ele a estava apavorando. Tirou as mãos dos ouvidos, pulou e começou a bater com os pés no chão.
- Ele tem que parar com isso. Alguém deve bater nele! - gritou.
No mesmo instante, alguém veio correndo pelo corredor, a porta se abriu a enfermeira entrou, muito pálida:
- O menino está com outro ataque histérico - disse, muito aflita.
- Vai passar muito mal e ninguém pode fazer nada. Talvez você possa fazer alguma coisa. Ele gosta de você.
rumor = barulho
indagava = perguntava
- De mim? Ele me expulsou do quarto, hoje de manhã!
A resposta pareceu ter agradado à enfermeira. A verdade é que ela tivera medo de encontrar Mary chorando e escondida sob os lençóis:
- Muito bem. Você vai até lá e faz com que ele tenha outra coisa em que pensar. Vá, minha filha, depressa!
Somente depois do acontecido é que Mary viu que a coisa fora tão divertida como assustadora. Divertida porque as pessoas adultas ficaram tão assustadas que
foram apelar para uma menina, exatamente por considerarem que ela era tão insuportável como o próprio Colin.
Disparou pelo corredor e quanto mais perto chegava da gritaria mais aumentava a sua raiva. Chegou à porta do quarto e abriu-a de um golpe. Dirigiu-se, rápida,
ao leito, gritando:
- Pare com isso! Já! Tenho ódio de você, todo mundo tem ódio de você! Queria que todos saíssem da casa e o deixassem sozinho e gritando até rebentar! Isso
é o que deviam fazer!
Claro, uma menina boazinha nunca diria aquelas palavra. Mas acontece que o choque que elas provocaram foi a melhor coisa possível para conter a histeria do
rapaz, que ninguém ousava contrariar.
Ele se ergueu no leito. Seu rosto parecia apavorado e ele tremia e se sacudia. Mas a selvagem Mary não recuou:
- Se você der outro grito, eu gritarei também! E saiba que eu posso gritar mais alto do que você. E você vai ficar com um bruto medo de mim, ora se vai!
De fato, ele já havia parado de gritar, pois ela o assustara:
- Não posso parar... Não posso.
- Pode, sim! - gritou Mary. - Metade do que você tem é histeria, só histeria, entende? - e batia com o pé, enfurecida.
- Senti o caroço nas costas - murmurou Colin. - Vou ficar corcunda e depois morrer - agora não gritava, apenas soluçava.
- Você não sentiu caroço nenhum! - retrucou Mary. - E se sentiu, foi de pura histeria, um caroço histérico. Não há nada com suas horríveis costas, nada além
de histeria. Vire as costas, deixe-me ver!
Até que ela gostara da palavra histeria e sentiu que, de algum modo, fizera efeito sobre Colin. Ordenou:
- Enfermeira! Venha cá e me mostre as costas dele!
A enfermeira, a Srª Medlock e Marta tinha ficado na porta, espantadas com o que ela dizia. A enfermeira avançou, murmurando:
- Talvez ele não queira...
Colin ouviu o que ela dizia e falou, quase sussurrando:
- Mostre a ela... Ela... quer ver!
aflita = nervosa
apelar = pedir ajuda
insuportável = enjoada
disparou = correu
um golpe = uma só vez
retrucou = respondeu
avançou = se aproximou
Eram umas costas magras, cada costela desenhada sob a pele, e cada vértebra poderia ser contada, embora Mary não as contasse, quando se inclinou para examiná-lo
de perto. Houve um minuto de silêncio, até Colin procurava reter a respiração, enquanto Mary olhava a espinha de cima para baixo e de baixo para cima, tão aplicadamente
como se fosse aquele famoso médico de Londres.
- Não tem um simples sinal de caroço aqui! - disse ela. - Nem um carocinho do tamanho da cabeça de um alfinete! Só vejo os caroços da espinha, mas isto eu
também tinha quando era magra. Se você falar mais em caroço nas costas, eu vou morrer de rir.
Somente Colin conheceu o efeito das palavras daquela menina zangada. Se ele tivesse tido alguém com quem falar sobre seus temores secretos não tivesse vivido
num quarto, numa casa sombria, respirando um ar pesado e entre gente amedrontada, ignorante ou enjoada dele, teria descoberto que todo o seu medo era criação dele
mesmo. Agora, vinha uma menina agressiva e insistia em que ele não era doente, e ele se sentia como se ela estivesse dizendo a verdade.
- Que idéia de caroço nas costas é essa? - perguntou a enfermeira - Ele tem as costas fracas porque não quer se sentar. Claro que não há nenhum caroço ali,
eu podia ter dito isso há muito tempo, ora!
- Você... podia? - Colin ainda soluçava.
- Claro que podia.
- Você acha, então, que vou viver e ficar homem? - perguntou, então, à enfermeira.
- Naturalmente, senhor. Basta fazer o que o médico aconselha e controlar o seu temperamento. Também precisa de muito ar puro.
O acesso de Colin passara de todo. Sentiu-se fraco e cansado de chorar e talvez isso o tenha tornado gentil. Estendeu a mão para Mary e deve se dito que o
acesso dela também cessara.
- Quero sair com você, Mary! Não detesto ar puro, o ar do... - interrompeu-se porque ia falar no jardim secreto. Completou: - Gostaria muito de sair com você,
encontrar Dickon, a raposa e o corvo.
- Acho que agora você pode ir dormir - disse a enfermeira a Mary - Colin vai repousar e eu também. Estarei no quarto ao lado.
- Quer que eu cante aquela canção hindu? - segredou Mary a Colin.
- Quero, sim! É uma beleza de canção. Eu dormirei logo.
- Eu vou fazê-lo dormir - disse Mary à enfermeira. - Pode ir.
- Bem, se ele não dormir, pode me chamar.
Logo que a enfermeira saiu, Colin puxou a mão de Mary.
- Quase que eu falei no jardim secreto, viu? Será que você já descobriu onde fica o portão?
reter = prender
um simples = o menor
o efeito = o resultado
sombria = escura
agressiva = malcriada
temperamento = gênio
- Descobri, sim. Acho que sim. Se você dormir, amanhã eu conto tudo - e Mary olhou para o pobre rosto cansado, sentindo que seu coração amolecia.
- Puxa, Mary! Se eu puder entrar lá, acho que viverei e ficarei homem. Em vez de cantar a canção hindu, você podia era me contar, suavemente, como é lá dentro,
como você imagina que é o jardim secreto.
- Então, feche os olhos.
Mary segurou a mão dele e começou a falar muito docemente e em voz baixinha. Colin a ouvia, tranqüilo.
- Talvez... talvez os bulbos já estejam brotando por entre a grama. E as folhas já devem estar surgindo e o cinzento dos galhos desaparecendo, o mesmo tempo
em que um véu de gaze verde vai se estendendo por toda parte. E os passarinhos, milhares deles, estão chegando, sobrevoando tudo... E talvez... talvez o pintarroxo
tenha encontrado a sua companheirinha e estejam os dois, agora, ocupados em: construir o seu ninho...
Colim não tardou a pegar no sono.
suavemente = devagarzinho
sobrevoando = voando por cima de
Sem Perda de Tempo
Afinal, Mary não se levantou cedo na manhã seguinte. Custara a dormir, de tão cansada, e, quando Marta lhe trouxe o café, disse que Colin embora sossegado,
estava febril, como sempre acontecia depois de um acesso.
- Ele disse que quer ver você, logo que você possa. Quando entrei hoje no quarto, foi logo dizendo: "Pergunte à senhorita Mary se, por favor, pode vir falar
comigo!" Imagine, ele falando "por favor"...
- Primeiro, vou ver Dickon. Não, vou ver Colin primeiro e dizer-lhe... bem, sei o que vou dizer a ele.
Colin estava deitado, quando ela chegou ao seu quarto, e com um aspecto deplorável, pálido e com profundas olheiras.
- Foi bom você ter vindo - disse ele. - Estou com dor de cabeça. Você vai a algum lugar?
- Não vou demorar. Vou me encontrar com Dickon mas volto logo. É um negócio sobre o jardim secreto, entende?
- Sonhei com ele a noite toda. Ouvi você falar do cinzento se transformando em verde, e sonhei que estava num lugar cheio de folhas verdes e muitos pássaros
nos ninhos. Vou ficar pensando nisso até você voltar.
Em menos de cinco minutos, Mary encontrou-se com Dickon, no jardim. A raposa e o corvo lhe faziam companhia e, desta vez, ele também trouxera dois pequenos
esquilos.
- Vim montado no pônei - disse ele. - É muito bom o Saltador! Trouxe esses dois nos bolsos. Um se chama Noz e o outro Casca.
Quando se sentaram na relva, com Capitão enroscado aos seus pés, Fuligem pousado num galho e Noz e Casca farejando por ali, pareceu a Mary que nada no mundo
podia ser mais agradável. Mas, quando ela começou a contar o caso de Colin, a expressão no rosto
sossegado = calmo
febril = com febres
deplorável = horrível
profundas olheiras = olhos fundos
de Dickon foi mudando sua opinião. Via que a compaixão dele por Colin era maior que a sua. Dickon ergueu os olhos para o céu e depois relanceou-os em volta:
- Veja os passarinhos! A gente diria que o mundo está cheio deles, todos cantando e voando. Quando vem a primavera é uma revoada geral. E aquele pobre garoto
trancado num quarto e pensando em coisas que apavoram! Sabe o que acho? Vamos trazê-lo para cá, para que ele veja tudo isto e receba um banho de sol. E isto,
sem perda de tempo, tá?
- Você falou. Sem perda de tempo, ele quer conhecer você, quer ver Fuligem e Capitão. Quando voltar, hoje, vou procurá-lo para saber se ele quer que você vá
vê-lo amanhã de manhã, com todos os bichinhos. Depois, quando houver mais verde por aqui, nós o traremos. Você empurra a cadeira de rodas.
O jardim estava lindo, parecia que mágicos tinham passado por ele, aumentando sua beleza. Era penoso deixá-lo, sobretudo agora que Noz subira em seu regaço
e Casca ao tronco da macieira. Mas ela tinha que ir para casa. E quando se sentou ao lado da cama de Colin, ele lhe perguntou:
- Você está cheirando a flores e a coisas verdes, não é? Um cheiro fresco, quente e doce, tudo ao mesmo tempo.
- É o vento da charneca. Vem quando nós nos sentamos sob uma árvore, como eu e Dickon, com Capitão, Fuligem, Noz e Casca. É cheiro de primavera, entende?
Havia muita coisa para falar e Colin gostava de ouvir as histórias dos bichinhos de Dickon. Falou neles e se deteve em descrever o Saltador, o cavalinho que
ela tinha ido ver, com Dickon, no bosque, e que havia relinchado quando os viu e que Dickon mandou que a beijasse e ele o fez, com seu focinho macio.
- Será que ele entende mesmo o que Dickon lhe diz?
- Acho que entende. Dickon diz que qualquer bichinho entende a gente, quando a gente é amigo dele. Tem que ser amigo de verdade.
Colin ficou pensativo por uns segundos e, depois, disse:
- Eu também gostaria de ser amigo de várias coisas, mas não posso. Nunca fui amigo de coisa nenhuma e não gosto das pessoas.
- E de mim?
- Você é diferente. É engraçado: de você, eu gosto!
- O velho Ben diz que eu sou feito ele, que temos o mesmo mau gênio. Acho que você também é assim. Somos iguais nós três.
- Quer dizer que, antes, você detestava as pessoas?
- Se detestava?! Teria detestado você, se o tivesse encontrado antes de conhecer o pintarroxo e Dickon.
- Mary, gostaria de não ter dito o que disse, sobre mandar Dickon embora - e Colin estendeu a mãozinha magra para ela:
a expressão no = o jeito de
compaixão = pena
penoso = triste
se deteve em = parou para
- Me zanguei porque você falou que ele era feito um anjo...
- Bem, até que foi engraçado, porque o nariz dele é arrebitado, e ele tem uma boca deste tamanho, e as roupas são todas manchadas, e ele fala num dialeto que
a gente quase nem entende e, você imagina, um anjo falando assim e morando na charneca!
- Quero que Dickon venha me ver. Quero conhecê-lo.
- Posso confiar mesmo em você? Confio em Dickon, até os pássaros confiam nele. E em você, posso confiar?
- Pode, sim. Pode confiar em mim, Mary.
- Pois Dickon vem ver você amanhã e trará os bichinhos para você conhecer. E tem mais uma coisa: existe um portão no jardim. Eu descobri onde é. Está coberto
pela hera.
Se fosse um menino sadio, Colin teria começado a pular e a gritar, mas era fraco: seus olhos se tornaram maiores e ficou ofegante:
- Puxa, Mary! Será que viverei para entrar lá? Para vê-lo?
- Claro que verá o jardim, entrará lá. Claro que vai viver, ora! Não seja tolo!
A menina não histérica acabou por trazê-lo ao bom senso e ele começou a rir de si mesmo. Minutos depois, sentada na sua banqueta, ela lhe contava, não o que
imaginara que fosse o jardim, mas o que ele realmente era, e as dores de Colin e seu cansaço desapareceram. Enlevado, ele ouvia tudo.
- Eu já tinha visto o jardim, já entrei lá - disse ela. - Achei a chave do portão há muitas semanas. Só que não tinha coragem de dizer isso a você. Não sabia
se podia confiar o segredo a você...
feito um anjo = lindo
sadio = cheio de saúde
bom senso = juízo
enlevado = encantado
Ela Está Ai!
O Dr. Craven tinha sido chamado na manhã seguinte ao acesso de Colin. Vinha sempre quando aquilo acontecia e sempre encontrava um menino pálido e abalado,
na cama. De fato, o Dr. Craven detestava as dificuldades dessas visitas.
- Como vai ele? - perguntou, ao chegar, à Srª Medlock. - Um dia desses ele rompe um vaso sangüíneo, de tanto gritar.
- Bem doutor - respondeu a Srª Medlock - o senhor nem vai acreditar. Aquela menina feia, de rosto zangado, enfeitiçou-o completamente. Como fez isto, ninguém
entende. Deus sabe que ela não é nada agradável e a gente mal a escuta dizer alguma coisa. Mas fez o que nenhum de nós jamais teve coragem de fazer. Atirou-se sobre
ele, como uma gatinha, na noite passada, bateu com os pés e ordenou que ele parasse de gritar. Assustou-o tanto que ele teve mesmo de se calar e, agora de tarde...
bem, o melhor é o senhor mesmo ir ver.
A cena que o Dr. Craven presenciou era surpreendente. Quando a Srª Medlock abriu a porta, ouviu risadas. Colin estava de roupão, no sofá, sentado quase a prumo,
vendo uma gravura num dos livros sobre jardinagem e falando à menina feia que, porém, naquele instante, mais parecia bela, tanto seu rosto brilhava de alegria.
- Aqueles azuis de haste longa, Vamos plantar uma porção deles. Chamam-se del-fí-nios - explicou Colin.
- Dickon os chama de esporinhas - disse Mary. - Temos muitos.
abalado = nervoso
de fato = em verdade
rompe = arrebenta
a prumo = reto
hastes longa = cabo comprido
Então, viram o Dr. Craven e se calaram. Mary ficou quieta e Colin parecia aflito.
- Lamento ter ouvido que você passou mal, ontem de noite, meu jovem - falou o Dr. Craven, que era meio nervoso.
- Já estou melhor - respondeu Colin, à maneira dos rajás. - Vou
sair na minha cadeira de rodas um dia desses, se fizer bom tempo. Quero respirar ar puro.
O Dr. Craven sentou-se perto dele e tomou-lhe o pulso:
- O tempo tem que estar firme e você não pode se cansar.
- O ar puro não vai me cansar - respondeu o jovem rajá.
- Bem... pensei que você não gostasse de ar livre.
- Não gosto quando estou sozinho. Mas minha prima vai sair comigo.
- E a enfermeira também, não é mesmo?
- Nada de enfermeira! - disse tão magnificamente que Mary se sentiu obrigada a recordar como o jovem príncipe indiano aparecia coberto de diamantes, e esmeraldas,
e pérolas e com os dedos ornados de anéis com enormes rubis cintilantes.
- Minha prima sabe cuidar de mim. Fico melhor quando ela está comigo. Foi ela que me fez sentir melhor, ontem de noite. Um rapaz muito forte que conheço vai
empurrar a cadeira.
O médico pareceu alarmado. Se aquele menino histérico viesse a melhorar, ele próprio perderia a oportunidade de vir a herdar Misselthwaite. Mas, embora fraco,
não era sem escrúpulos e não tinha a intenção de deixar o enfermo correr riscos sérios:
- Tem que ser um moço forte e correto. Preciso saber quem é e o que faz. Como se chama?
- Dickon - respondeu Mary, pois tinha a impressão de que todos os que conheciam a charneca deviam conhecer Dickon. E estava certa: a face apreensiva do Dr.
Craven desanuviou-se.
- Dickon! - disse. - Se é Dickon, você está garantido. É forte como um pônei da charneca. Você está aprendendo dialeto com ele?
- Estou aprendendo, sim, como se estivesse aprendendo francês - respondeu Mary. - É como os dialetos na Índia. Colin e eu gostamos muito do modo como ele fala.
- Bem, se divertem com isso, não lhes fará mal - e, dirigindo-se diretamente a Colin: - Você tomou seu remédio, ontem de noite?
- Não. Primeiro, não quis tomar o calmante e, depois, Mary falou comigo, baixinho, para me fazer dormir.
lamento = sinto muito
magnificamente = entusiasmado
ornados = enfeitados
alarmado = assustado
escrúpulos = consciência
tinha a impressão = achava
apreensiva = preocupada
desanuviou-se = tranqüilizou-se
- É um bom calmante - disse o doutor, cada vez mais perplexo. - Claro que você está melhor, mas deve se lembrar...
- Não quero me lembrar - interrompeu o rajá. - Quando fico aqui sozinho e me lembro, começo a sentir dores e penso em coisas que me fazem gritar, coisas que
odeio. Se houvesse um doutor que me fizesse esquecer a doença, em vez de me lembrar disso a toda hora, gostaria que viesse me ver - e ele agitou a mãozinha magra
que devia estar coberta de anéis com sinetes reais e rubis cintilantes. -Minha prima faz com que eu esqueça isso e eu fico melhor perto dela.
O Dr. Craven nunca fizera uma visita tão curta, depois de um acesso. Usualmente, era obrigado a permanecer por muito tempo. Quando falou à Srª Medlock, na
biblioteca, ela achou que ele estava intrigado.
- Bem, doutor - aventurou ela - poderia ter acreditado?
- É uma situação nova - respondeu ele. - E bem melhor do que a antiga.
- Acho que Susan Sowerby tem razão - disse a Srª Medlock, que gostava muito da mãe de Dickon. - Parei na sua cabana, ontem, e ela me falou assim: "A menina
pode não ser muito bonita, ou muito boazinha, mas é uma criança e crianças precisam conviver com outras crianças."
- É uma mulher inteligente - concluiu o médico, vestindo o sobretudo.
- E tem um modo curioso de dizer as coisas...
* * *
Naquela noite, Colin dormiu sem acordar uma só vez. Quando abriu os olhos, na manhã seguinte, sorriu sem motivo, ou porque sentia um enorme bem-estar. Sim,
era bom acordar. Deu voltas na cama e esticou as pernas. Era como se as cordas que o amarravam tivessem se partido, deixando-o livre. Então, ouviu o rumor de passos
apressados no corredor. Mary apareceu à porta e correu para junto dele.
- Puxa! Você já foi lá fora! Garanto! Está toda cheirando a folhas! - exclamou Colin.
- É lindo! - exclamou Mary, que já saíra e tinha os cabelos soltos, despenteados. - Você nunca viu nada tão bonito. Ela está aí, a primavera! Foi o que Dickon
disse!
- Já chegou? - e embora de fato ele nada soubesse sobre o assunto, sentiu seu coração bater depressa e sentou-se na cama: - Abra a janela! Talvez a
gente possa ouvir trombetas de ouro!
- É o ar puro - disse ela, abrindo a janela. - Deite-se de costas e
aspire. É o que Dickon faz quando se deita na charneca. Diz que
perplexo = confuso
usualmente = comumente
aventurou = disse
conviver = estar junto
sobretudo = casaco
trombetas = cornetas
sente o ar circulando nas veias. Respire, respire mais! E viva!
Ela apenas repetia o que Dickon lhe dissera e Colin, interessado, perguntou:
- Viver, sempre e sempre? É isso o que ele sente? - e fez o que Mary lhe mandara fazer, respirando em longos e seguidos sorvos, até que notou que algo novo
e delicioso lhe estava acontecendo.
- As plantas estão brotando da terra - disse ela. - Há flores e botões por toda parte e o véu verde recobriu tudo. Os pássaros estão vindo, para fazer os seus
ninhos, e brigam pelos melhores lugares no jardim secreto. Dickon está aqui, trouxe a raposa e o corvo, e os esquilos, e um carneirinho.
Mary parou um pouco para tomar fôlego. Dickon encontrara o carneirinho havia três dias, ao lado da mãe morta, na charneca. O pobrezinho estava faminto e ele
o alimentou com leite quente, depois de o levar para a cabana. Agora mesmo, trouxe a mamadeira no bolso, para alimentá-lo. Quando Mary se sentou sob a árvore, no
jardim, com o bichinho no regaço, sentiu-se tão feliz que nem podia falar. Um carneirinho vivo, nos seus braços, como se fosse uma criancinha! Ela descrevia tudo
sem muita ordem mas com muita alegria e Colin ouvia e respirava fundo. Quando a enfermeira entrou,
ficou um tanto assustada ao ver a janela aberta:
- Tem certeza de que não está sentindo frio, Sr. Colin?
- Frio, nada! - foi a resposta. - Estou arejando os pulmões com ar puro. Vou tomar a refeição no sofá, com minha prima.
A enfermeira saiu para providenciar o lanche. Na cozinha, encontrou a criadagem querendo saber as novidades. Todos comentavam o jeito que a garota dera no
pequeno recluso, e se contentavam com isso: já andavam fartos dos acessos do menino e o mordomo, pai de numerosa família, chegara a dizer, em mais de uma ocasião,
que ele melhoraria bastante se levasse uma boa surra. Quando a refeição foi servida, Colin disse à enfermeira, no seu melhor estilo jovem-rajá:
- Um rapaz, uma raposa, um corvo, dois esquilos e um carneirinho vêm me visitar. Traga-os todos para aqui.
- Sim, senhor - respondeu a espantada mulher.
- Diga a Marta para vir com eles. O rapaz é irmão dela, chama-se Dickon e é encantador de animais.
- Tomara que os bichos não mordam a gente! - disse ela.
- Já falei que Dickon é um encantador e animais encantados não mordem, ora!
- Na Índia há muitos encantadores de serpentes - disse Mary - e
eles até enfiam a cabeça da cobra na boca - e vendo o apetite com que Colin comia o seu lanche: - Você vai engordar feito eu. Antigamente, na Índia, eu nunca comia
pela manhã. Agora, é como você está vendo.
circulando nas = andando pelas
faminto = com fome
regaço = colo
arejando = refrescando
providenciar = arranjar
recluso = preso
- Quando é que você acha que Dickon vai chegar?
- Escute! Está ouvindo um grasnar de corvo? - e Mary levantou a mão.
- Estou ouvindo, sim.
- É Fuligem. Ouça. Está escutando um méé bem fininho?
- Estou ouvindo, sim.
- É o carneirinho-bebê. Dickon está chegando.
As botinas ferradas de Dickon logo se anunciaram no corredor. Mary e Colin ouviam os passos do rapaz se aproximando até que se tornaram abafados, pisando no
tapete à porta do quarto.
- Com licença, Sr. Colin! - disse Marta, entreabrindo a porta. -Dickon e a bicharada estão aqui.
Dickon entrou, sorridente, com os seus amiguinhos. Colin sentou-se no sofá e ficou olhando, admirado. O carneirinho estava em seus braços e a raposinha marchava
a seu lado. Noz encarapitara-se no seu ombro esquerdo e Fuligem no direito. Casca mostrava para fora do bolso do seu casaco a cabecinha e as patinhas.
Colin nunca havia conversado antes com um menino e estava tão espantado que nem podia dizer coisa alguma. Mas Dickon não ficou nada constrangido. Não se espantara
quando encontrou o corvo, e ele não o entendia e nem lhe falava. Caminhou para Colin e colocou o carneirinho nos braços dele e logo o bichinho tratou de se agasalhar
no quente roupão de veludo.
- Que é que ele está fazendo? - perguntou Colin.
- Está à procura da mãe - respondeu Dickon, sorrindo. - Eu o trouxe meio com fome porque sei que você vai gostar de vê-lo comer - ajoelhou-se perto do sofá
e tirou a mamadeira do bolso: - Tome, nenê! É o que você quer, não é? - e o carneirinho começou a mamar.
Depois, não houve falta de assunto. Assim que o carneirinho ferrou no sono, surgiram as perguntas. Dickon contou como achara o bichinho na charneca, quando
ouvia o canto de uma cotovia, três dias atrás. Aí, ouviu um balido muito fraco e percebeu que seria um carneirinho recém-nascido. Procurou um pouco e, por fim, encontrou-o
numa elevação da charneca. Foi até lá e o recolheu, quase morto de fome e de frio. Enquanto ele falava, Fuligem voava, grasnando comentários a respeito do tempo
e da paisagem, Noz e Casca faziam excursões pelas árvores, lá fora, e corriam acima e abaixo dos troncos, explorando a ramaria. Capitão se enroscara junto de Dickon
no tapete espesso.
grasnar = piar
botinas ferradas = botas com saltos de ferro
anunciaram = ouviram
marchava = caminhava
constrangido = atrapalhado
ferrou = pegou
recolheu = apanhou
excursões = passeios
explorando = conhecendo
Olharam as estampas nos livros de jardinagem e Dickon conhecia todas flores pelos seus nomes comuns e sabia exatamente quais as que já estavam nascendo no
jardim secreto.
- Quer dizer que eu vou ver todas elas! - exclamou Colin.
- Isso mesmo! - Mary confirmou. - E sem perda de tempo!
sem perda de tempo = sem demora
"Vou Viver Para Sempre"
Mas foram obrigados a esperar mais de uma semana. Primeiro, porque começaram alguns dias de muito vento e, depois, Colin teve uma ameaça de resfriado. Quase
todos os dias Dickon vinha à mansão, ainda que por poucos minutos, para conversar sobre o que acontecia na charneca e nos outros lugares. O que contava ele sobre
lontras, texugos e ratos-d'água fazia Mary e Colin tremerem de emoção:
- São como a gente - dizia Dickon - só que têm de construir suas casas todos os anos. Isso os mantém sempre ocupados.
O mais importante de tudo, porém, eram os preparativos para a ida de Colin ao jardim. Ninguém podia ver a cadeira de rodas, e Dickon e Mary levaram muito tempo
estudando o percurso. Depois de dobrar uma esquina, ingressariam no caminho que ladeava o muro coberto de hera. A cada dia, Colin mais se compenetrava de que o mistério
que envolvia o jardim era o seu maior encanto. Ninguém devia nem mesmo suspeitar de que os três tinham um segredo. Deviam pensar que ele estava saindo com Mary e
Dickon só porque gostava deles. Falaram muito sobre o caminho a seguir (sempre voltavam ao tema). Iriam por este, desceriam por ali, virariam mais adiante, seguiriam
os canteiros de flores. Tudo pareceria tão natural que ninguém desconfiaria.
Enfim, rumores dos sigilosos fatos que se passavam no quarto do enfermo transpiraram, chegando aos estábulos e aos jardineiros. O Sr. Roach ficou muito espantado
no dia em que foi chamado aos aposentos do Sr. Colin, onde nenhum estranho jamais havia entrado: o doente desejava lhe falar.
uma ameaça = um princípio
percurso = caminho
compenetrava = convencia
tema = assunto
rumores dos sigilosos fatos = comentários dos acontecimentos estranhos
- Imaginem só - disse para si mesmo. - Sua Alteza Real chamando um homem que ele nunca viu! .
O Sr. Roach estava curioso. Jamais vira o rapazinho, mas ouvira dizer, entre outras coisas, que ele poderia morrer a qualquer momento. Escutara também algumas
referências a uma corcunda e a pernas paralíticas, tudo meio complicado e misterioso.
- As coisas estão mudando por aqui, Sr. Roach - disse-lhe a Srª Medlock, quando o conduzia ao quarto de Colin.
- E que estejam mudando para melhor, Srª Medlock.
- Bem, para pior é que não poderiam mudar. Muitos já acham que o ambiente está mais agradável. Não se assuste se encontrar no meio de um jardim zoológico dirigido
pelo irmão de Marta Sowerby.
Havia, realmente, algo de mágico a respeito de Dickon, como Mary sempre achou. Ao ouvir o nome do menino, o Sr. Roach sorriu:
- Dickon, Dickon. É um garoto e tanto. Estaria à vontade no palácio real ou no fundo de uma mina de carvão, pode acreditar!
O jovem rajá estava sentado em uma poltrona e um carneirinho muito novo, a seu lado, abanava a cauda, enquanto Dickon o alimentava com a mamadeira. Um esquilo
dependurava-se nas costas de Dickon, roendo nozes. A mocinha da Índia assistia à cena, sentada a uma banqueta.
- O Sr. Roach está aqui, Sr. Colin - disse a Srª Medlock.
O jovem rajá olhou o jardineiro-chefe de alto a baixo:
- Então, você é Roach? Mandei chamá-lo para lhe dar algumas ordens da maior importância.
- Muito bem, meu senhor.
- Vou sair na cadeira de rodas hoje de tarde. Se o ar puro combinar comigo, sairei todos os dias. Quando sair, nenhum dos jardineiros deverá ficar nas imediações
da alameda principal que leva aos jardins. Pretendo sair por volta das duas horas e todos devem se afastar do local até que eu mande dizer que podem voltar ao trabalho.
- Muito bem, meu senhor.
- Mary - disse Colin - como é que dizem na Índia, quando querem dispensar alguém?
- Assim: "tem minha permissão para retirar-se" - disse Mary.
O rajá fez um gesto com a mão:
- Tem minha permissão para retirar-se, Roach. Lembre-se das minhas recomendações. O caso é muito importante.
- Muito bem, meu senhor - disse o Sr. Roach, retirando-se.
Sendo de natural um homem bem-humorado, o Sr. Roach quase deu uma gargalhada quando deixou o quarto:
Ótimo! O rapazinho até que tem um ar distinto. Eu diria que
referências = coisas sobre
à cena = ao acontecimento
nas imediações = perto
minhas recomendações = meus avisos
ele é uma família real completa, condensada num só indivíduo.
- Um momento - protestou a Srª Medlock. - Ele espezinha a gente. Tem vez que chega a acreditar que todos nasceram para servi-lo.
- Talvez se modifique, se chegar a viver...
- Uma coisa é certa. Se ele viver e essa garota da Índia ficar aqui, garanto que ela o corrigirá.
No seu quarto, Colin recostava-se nas almofadas:
- Tudo está certo. Hoje de tarde entrarei no jardim secreto!
Dickon voltou ao jardim com seus bichinhos e Mary permaneceu ao lado de Colin. Não lhe parecia Cansado, mas estava tão calado que ela o interpelou, enquanto
comiam:
- Por que você está com os olhos tão arregalados?
- Não posso deixar de pensar em como será o jardim! Em como será a primavera. Nunca a vi antes. Quase nunca safa de casa e, quando ia lá fora, nunca olhava
as coisas.
- Na Índia não existe a primavera. Só a conheci agora.
- Naquela manhã em que você entrou aqui gritando "ela está aí!", senti uma coisa estranha - disse Colin. - Era como se tudo estivesse chegando num cortejo,
com bandas de música e cânticos. Tenho uma gravura assim: multidões de pessoas bonitas e crianças com guirlandas e ramos de flores, todos rindo e dançando. Foi por
isto que eu disse: "talvez ouçamos as trombetas de ouro" , e lhe Pedi para abrir as janelas.
- Engraçado! É exatamente assim que a gente Pensa! E se todas as flores, e folhas, e Pássaros, e bichinhos viessem dançando, já pensou a multidão que seria?
Estou certa de que dançariam, e Cantariam, e tocariam flautas, e isso produziria ondas de música, a música que você sente.
Os dois riram, não porque a idéia merecesse risos, mas porque ambos gostaram dela. Pouco depois, a enfermeira apareceu, trazendo o Dr. Craven:
- Está num dos seus melhores dias, doutor, muito Contente e bem mais forte.
- Mais tarde voltarei, depois que ele regressar do passeio - disse o médico. - Quero ver o resultado. Seria bom se você o acompanhasse.
- Acho melhor não ir, doutor - respondeu a moça, com firmeza.
- Bem, vamos tentar a experiência e confiá-lo a Dickon, rapaz a quem eu entregaria até um recém-nascido.
Um dos criados levou Colin pela escada, colocando-o em sua cadeira de rodas, junto à qual Dickon já o esperava. Depois de acomodado em suas mantas e almofadas,
o pequeno rajá disse ao criado e à enfermeira:
- Vocês têm minha permissão para retirar-se.
condensada num só indivíduo = numa só pessoa
espezinha = maltrata
permaneceu = ficou
interpelou = perguntou
cortejo = grupo
guirlandas = coroas
regressar = voltar
firmeza = segurança
acomodado = ajeitado
Dickon começou a empurrar a cadeira, lenta e cuidadosamente. Mary seguia ao lado e Colin ia recostado, Com o rosto voltado para o céu. A abóbada celeste
parecia muito alta e as pequenas nuvens assemelhavam-se a pássaros brancos flutuando no azul-cristalino. O vento soprava em grandes e suaves lufadas, impregnado
de um perfume agreste e doce.
- Há tantos sons de cantos, de assovios, de trinados - disse Colin.
- Que cheiro é este que o vento nos traz?
- É o tojo, na charneca, abrindo suas flores - respondeu Dickon. - As abelhas é que vão gostar!
Não havia ninguém pelos caminhos do jardim. As três crianças tomaram o itinerário que haviam previamente traçado, Com o prazer do mistério. Finalmente, atingiram
a alameda principal, ladeando os muros. Passaram falar em voz baixa, como haviam combinado.
- Este é o caminho - sussurrou Mary. - É por aqui que eu Costumava passear, pensando, pensando...
- É mesmo? - perguntou Colin, procurando, com os olhos arregalados, a cortina de hera. - Não consigo ver nada, não há portão nenhum!
- Calma! Este é o jardim onde trabalha o velho Ben - explicou Mary. - Aqui foi onde o pintarroxo voou para o alto do muro - e, apontando para um pé de lilás:
- Ali foi onde ele pousou num montinho de terra e me mostrou a chave.
- Como? Onde? Ali? - perguntava Colin, excitado, e seus olhos cresceram ainda mais.
Dickon fez uma parada com a cadeira.
- E isto - disse Mary, subindo no canteiro junto à hera - é onde eu vim falar com ele, quando ele trinou para mim do alto do muro. E aqui está a hera que
o vento levantou - e ela afastou a cortina verde. - Veja a maçaneta e o portão! Vamos, Dickon, abra o portão!
Colin recostara-se nas almofadas e cobrira os olhos com as mãos para transpor a entrada. A cadeira se deteve como por magia e o portão foi novamente fechado
depois que os três passaram. Só então ele descobriu os olhos para examinar em volta, como Dickon e Mary haviam feito antes. E sobre os muros, pela relva, árvores
e ramos, alastrara-se o véu verde jante. E pelas pérgulas, e urnas, e Ornatos, se fixavam pontos dourados e purpúreos, róseos e nevados, e havia um farfalhar de
asas e suaves pipilos e perfumes, perfumes. O sol batia nos seus rostos com uma carícia leve e tépida. Mary e Dickon olhavam para ele: parecia estranho e diferente
Porque manchas rosa-brilhantes coloriam sua face de marfim, seu pescoço e suas mãos pálidas.
- Vou ficar bom! Vou ficar bom! - exclamava ele. - Mary, Dickon! Vou viver! Vou viver para sempre e sempre!
cristalino = transparente
lufadas = jatos
impregnado = cheio
itinerário = caminho
previamente traçado = pensado antes
se deteve = parou
alastrara-se = espalhara-se
urnas e ornatos = caixas e enfeites
farfalhar = barulho
tépida = morna
O Velho Ben
Uma das coisas estranhas em nossa existência é que só muito raramente temos a certeza de que vamos viver para sempre e sempre. Sentimos isso, às vezes, quando
nos levantamos à hora doce do amanhecer, saímos ao ar livre, jogamos a cabeça para trás, olhamos para o alto e vemos o pálido céu ganhando cores - e essa coisa maravilhosa
vem acontecendo há milhares e milhares de anos. Temos então aquela certeza, por um momento pouco mais. E sabemos disso, outras vezes, quando estamos sozinhos num
bosque, ao crepúsculo, e a misteriosa quietude dourada, infiltrando-se pela copas das árvores, parece dizer-nos alguma coisa que a gente não pode entender. Em certas
ocasiões é a imensa quietude azul-escura da noite, com milhões de estrelas que vigiam, ou é o som distante de certa música ou ainda, o olhar de alguém.
Foi assim com Colin, quando pela primeira vez viu, ouviu e sentiu a primavera no jardim secreto. Naquela tarde o mundo inteiro parecia devotar-se em ser
perfeito e radiantemente belo, para que um rapazinho o visse. Talvez, por celestial bondade, a primavera tenha chegado e reunido todas as coisas num mesmo lugar.
Mas de uma vez, Dickon parou e ficou quieto com uma crescente admiração em seu olhar:
- Sim, é mesmo uma beleza! Tenho doze anos, perto de treze, e me parece que nunca vi uma tarde tão bonita como a de hoje.
- Linda, é o que é! - acrescentou Mary. - Posso garantir que é mais bonita tarde que já houve no mundo!
- Você acha que tudo isto foi feito para mim? - indagou Colin.
- Quem sabe? - fez Dickon.
- Eu acho que foi - afirmou Mary.
crespúsculo = entardecer
infiltrando-se = entrando
devotar-se = dedicar-se
A cadeira foi colocada sob a ameixeira, branquinha de flores e sonora de abelhas. Havia floridas cerejeiras e macieiras, cujos botões eram rosa e branco.
Por entre os ramos, apareciam pedacinhos de céu, que olhavam para baixo como admiráveis olhos azuis.
Mary e Dickon trabalhavam e Colin os observava. Traziam coisas para ele ver - botões que se abriam, galhos cujas folhas começavam a nascer, a peninha de
um pica-pau que acharam no gramado, a casca vazia do ovo de um passarinho, cujo filhote acabara de nascer. Dickon empurrou a cadeira por todo o jardim, para que
ele pudesse ver as maravilhas da primavera. Era como se um rei, acompanhado de sua rainha, estivesse sendo levado em visita ao seu reino.
- Será que vamos ver o pintarroxo? - perguntou Colin.
- Claro, daqui a pouco - disse Dickon. - Quando os ovos se abrem, eles ficam muito ocupados e andam de um lado para outro em busca de alimento. Haverá uma
barulhada nos ninhos, tantos biquinhos à espera que nem saberão a quem alimentar primeiro.
- Aquela árvore ali deve ser um bocado velha - disse Colin.
Dickon olhou para a árvore e Mary também. Fez-se silêncio.
- É muito velha, sim - disse Dickon, e sua voz teve uma entonação gentil.
- Os ramos estão completamente cinzentos e não há uma simples folha - observou Colin. - Está morta, não é mesmo?
- Isso mesmo - admitiu Dickon. - Mas as rosas trepadeiras que se enroscam no tronco, quando florirem, esconderão a árvore morta. Então, ela não parecerá
morta, será a mais bonita de todas.
- Parece que um dos seus galhos se partiu. Como terá sido? - perguntou Colin, enquanto Mary oll1ava a árvore, pensativa.
- Aconteceu há muitos anos - respondeu Dickon. - Olhe! Lá está pintarroxo!
Colin quase não o viu, mas o relâmpago vermelho lhe chamou a atenção. Tinha algo no bico e sumiu na espessa moita onde estava o ninho. Colin e recostou de
novo, sorrindo:
- Está levando o chá para a companheira. Talvez já sejam cinco horas. Acho que tomarei um pouco de chá, também.
- Foi um mágico que mandou o pintarroxo - disse Mary, baixinho, Dickon. - Foi por efeito de magia que ele apareceu, tenho certeza.
Ela e Dickon tinham ficado apavorados com a possibilidade de Colin perguntar mais a respeito da árvore, cujo galho se tinha partido dez anos antes.
- Não devemos dar a entender que aquela árvore é diferente das outras - recomendou Dickon. - Não poderíamos explicar como o galho se partiu.
sonora = barulhenta
em busca = à procura
uma entonação gentil = um tom delicado
efeito = causa
possibilidade = idéia
recomendou = aconselhou
Ele poderá insistir, e nesse caso, temos que distraí-lo, fingindo que estamos alegres.
Mas Mary sabia que não estava de cara alegre quando tomou a olhar para a árvore. Naqueles instantes ela pensava se era verdade o que Dickon lhe contara.
- A Srª Craven era muito bondosa - falara ele, hesitante - Mamãe diz que talvez ela ande por aqui, de vez em quando, olhando por Colin, como fazem todas
as mães que já estão neste mundo. Quem sabe se ela não está mesmo presente e se não foi ela que nos disse para trazer Colin até aqui?
Mary pensara que ele falava em magia. No íntimo, admitia que Dickon tinha poderes mágicos e que por isso todos gostavam dele, até os bichinhos. Imaginava
que fora aquele dom que trouxera o pintarroxo, no exato momento em que Colin fez a pergunta embaraçosa. Sentia que a magia de Dickon estava agindo a tarde toda e
fazendo de Colin um rapaz diferente. Era inacreditável que ele fosse aquele mesmo menino histérico, que gritava, surrava e mordia o travesseiro. A leve cor que aparecia
em seu rosto e no pescoço e nas mãos, não o deixou mais - parecia mesmo feito de carne, não de marfim ou cera.
- Diga a um dos criados para trazer o cesto com o lanche para a alameda - disse Colin a Mary. - De lá, você e Dickon o trazem até aqui.
A toalha branca foi estendida sobre a relva, com chá e torradas e tanto coisa mais, e vários pássaros chegavam a interromper o vôo para saber o que estaria
acontecendo. Noz e Casca subiam às árvores, com migalhas do bolo, e Fuligem pegou a metade de uma torrada com manteiga, virando-se de um e de outro lado, fazendo
roucas observações a respeito, até que a comeu de uma só vez.
Ia-se aproximando a hora mais suave da tarde. O sol atenuara o ouro de seus raios, as abelhas partiam para casa e já eram poucos os pássaros que passavam.
Dickon e Mary estavam sentados na relva, e o cesto de lanche já fora arrumado. Colin recostava-se sobre as almofadas e tinha perfeitamente naturais as cores do rosto.
- Não queria que esta tarde acabasse - disse ele. - Mas voltarei amanhã, e depois de amanhã, e depois de depois de amanhã, e depois de depois de depois de
amanhã!
- Você quer respirar muito ar puro, não é? - perguntou Mary.
- Não quero outra coisa. Agora, já vi a primavera e vou ver o verão Vou ver tudo crescer aqui. Eu mesmo vou crescer aqui!
- E vai crescer mesmo - disse Dickon. - Vamos fazer você andar por tudo quanto é lugar, cavando a terra, como nós fazemos.
- Andar? Cavar a terra? Eu?! - Colin parecia excitado.
hesitante = sem coragem
No íntimo = Por dentro
admitia =achava
embaraçosa = que os atrapalhou
suave = bonita
atenuara = diminuíra
Dickon o encarou com bondade. Ele e Mary jamais tinham pensado em que houvesse, mesmo, algo de errado com as pernas dele.
- Você mesmo, ora! Você tem pernas como todos nós!
Mary ficou meio assustada, até que ouviu Colin dizer:
- Não tenho nada nas pernas. Só que elas são fracas e tremem. Tenho medo de ficar de pé.
- Quando você parar de ter medo e se levantar - disse Dickon, vivamente - vai ver como pode!
- Você acha?
Em meio àquela quietude, não foi pequeno o alarma quando Colin, afastando a cabeça da almofada, exclamou, em voz estridente:
- Quem é aquele homem?
- Que homem? - gritaram Dickon e Mary, erguendo-se de um salto.
- Olhem ali! - e Colin apontou para o alto do muro.
Mary e Dickon se voltaram para olhar. Era Ben, que os fitava por cima do muro, trepado numa escada, e fez um gesto ameaçador na direção de Mary:
- Se eu não fosse um solteirão e você fosse minha filha, levaria uma boa surra!
O jardineiro subiu mais um degrau, como se tivesse a intenção de pular no jardim e pegá-la. Mas como ela começou a marchar para ele, Com certeza, pensou
que o melhor era ficar mesmo no alto da escada.
- Nunca fiz bom juízo de você - continuou Ben. - Você, com suas perninhas finas, a cara de açafrão e sempre perguntona, sempre se metendo em tudo! Se não
fosse o pintarroxo, diabos o levem!...
- Ben Weatherstaff! - gritou Mary. - Foi o pintarroxo que me mostrou o caminho!
- Você é de morte, menina! Caluniando um pobre Passarinho! Você é uma mentirosa - e Ben parecia mais do que indignado.
- Foi ele mesmo, sim, que me mostrou o caminho. Talvez ele não soubesse o que estava fazendo, mas fez. E não adianta ficar aí gritando e ameaçando.
Ben parou de sacudir a mão, pois, olhando para mais além, viu que algo vinha pela grama para o ponto onde se encontrava.
Ao ouvir as primeiras palavras do velho, Colin ficou surpreso e atento, como se estivesse fascinado. Depois, recobrou-se e disse, imperiosamente, a Dickon:
- Leve-me até lá! Pare bem junto dele!
Foi exatamente a cadeira de rodas empurrada por Dickon que Ben percebeu, lá de cima, e o que fez sua carranca desfazer-se, pois era uma cadeira
de rodas com ricas almofadas e mantas,
alarma = susto
estridente = fina
marchar = caminhar
açafrão = planta
caluniando = mentindo sobre
recobrou-se = recuperou-se
imperiosamente a dando ordens
carranca desfazer-se = cara feia desmanchar-se
parecendo um coche real, e dentro vinha um jovem rajá de olhos grandes e com a mãozinha magra firmemente estendida para ele. Quase lhe caiu o queixo.
- Sabe quem sou eu? - perguntou o rajá.
Ben arregalou os olhos, como se estivesse vendo um fantasma.
- Sabe quem sou eu? - repetiu Colin. - Responda!
Ben ergueu a mão nodosa, passando-a sobre os olhos e pela testa e, então, conseguiu responder, numa voz sumida:
- Rum... sei quem é, sim. Tem os olhos de sua mãe. Deus sabe como veio parar aqui. O senhor é o pobre inválido.
Colin se esqueceu de que, algum dia, tivera costas. Seu rosto ficou vermelho e ele se sentou, num movimento brusco.
- Inválido coisa nenhuma! - gritou, furioso.
- Não é inválido não! - exclamou Mary, indignada.
Ben tremia, todo, o corpo e a voz. Era um velho ignorante e sem tato e apenas podia se lembrar de coisas que tinha ouvido.
- O senhor... - (quase dissera você) - o senhor não tem uma giba?
- Não! - gritou Colin.
- Não tem pernas tortas? - voltou Ben, mais confuso ainda.
A força que Colin desperdiçava, nos acessos, surgiu de uma nova forma. Nunca fora acusado de ter pernas tortas - mesmo em cochichos - e a pergunta era mais
do que um rajá poderia aturar. A cólera e o orgulho deram-lhe um poder antes desconhecido e uma quase sobrenatural energia. Então, ordenou a Dickon:
- Venha cá! - e começou a se desfazer das mantas que lhe cobriam as pernas. - Venha cá, agora mesmo!
Mary prendeu a respiração e sentiu que o sangue lhe fugia.
- Ele pode andar! - disse para consigo mesma. - Que bom!
As mantas foram jogadas ao chão, Dickon segurou o braço de Colin, as perninhas finas saíram da cadeira e pisaram o chão. Colin estava, de pé, tão teso como
um poste e parecendo estranhamente alto, a cabeça levantada e os olhos fulgurantes:
- Olhe para mim! Olhe bem para mim, você! - gritou.
- Ele é tão teso como eu! - exclamou Dickon. - Tão empertigado como qualquer garoto de Yorkshire!
Mary achou fora de propósito o que Ben fez. Ele ficou sufocado por um momento, e lágrimas corriam pelas suas faces enrugadas:
- Meu Deus! Como essa gente diz mentiras! O senhor é franzino e branco, está certo, mas não tem caroço nenhum nas costas. E vai ficar homem, Deus o abençoe!
brusco = rápido
tato = jeito
giba = corcunda
se desfazer das = afastar as
teso = duro
fulgurantes = brilhantes
franzino = miúdo
Dickon mantinha os braços de Colin, mas o rapaz não vacilava, encarando Ben Weatherstaff bem nos olhos:
- Eu sou seu patrão, quando meu pai se ausenta. E você tem que me obedecer. Este jardim é meu. E não fale dele a ninguém! Desça dessa escada e venha até
aqui! Não o queríamos no jardim, mas, agora, você já conhece o segredo. Ande depressa!
A face rugosa de Ben ainda mostrava vestígios daquela estranha chuva de lágrimas. Era como se ele não pudesse afastar os olhos de Colin, de pé à sua frente,
a cabeça erguida quase num desafio.
- Viva, rapaz! - exclamou ele, então, levou a mão ao chapéu e arrematou: - Sim, senhor! Sim, meu senhor!
Obedientemente, desapareceu do muro, descendo a escada.
vacilava = tinha dúvidas
arrematou = falou
Quando o Sol se Pôs
Assim que a cabeça de Ben desapareceu do muro, Colin pediu a Mary :
- Vá encontrá-lo e traga-o aqui.
Mary voou pela relva, enquanto Dickon olhava para Colin com a maior atenção. Havia cores róseas em suas faces e ele não mostrava o mais vago sinal de cansaço.
- Posso ficar em pé - disse, num tom de orgulho.
- Eu disse que você poderia, era só perder o medo - respondeu Dickon. - Agora, você já não tem medo.
- É isso aí. Perdi o medo!
Subitamente, ele pareceu se lembrar de algo que Mary dissera:
- Você sabe fazer magia?
- Magia, eu? - respondeu Dickon. - Você mesmo é que fez a magia. A mesma magia que faz as plantas nascerem da terra.
- Vou andar até aquela árvore - disse Colin - e vou ficar de pé até que Ben chegue aqui. Posso encostar-me no tronco, se precisar.
Caminhou para a árvore e, embora Dickon lhe segurasse o braço, mantinha-se admiravelmente firme. Quando se encostou no tronco, não parecia apoiar-se nele
e continuava tão certo que parecia bem mais alto.
Ao passar pelo portão, Ben o viu, ali, parado, e ouviu Mary murmurar qualquer coisa.
- Que foi que você disse? - perguntou o jardineiro.
Ela não lhe disse que sussurrara estas palavras: "Você pode andar! Pode mesmo! Você pode andar!" Dissera-o porque não podia admitir que Colin falhasse diante
do velho Ben, ainda mais agora, quando ele lhe
mais vago = menor
mantinha-se = conservava-se
falhasse = errasse
parecia bonito, apesar de tão magro. Colin fixou os olhos em Ben, dizendo:
- Olhe para mim! Olhe bem para mim, para meu corpo todo! Sou corcunda? Tenho as pernas tortas?
Ben não se recuperara ainda da emoção e custou a responder: - Nada disso! Mas, Deus meu, que é que andaram fazendo com o menino, escondendo-o de todos,
espalhando que era aleijado e idiota?
- Idiota? - exclamou Colin, encolerizado. - Quem disse isto?
- Muita gente - Ben falou. - O mundo está cheio de pessoas que só sabem mentir. E por que O menino se escondeu, por tanto tempo?
-Todos pensavam que eu ia morrer logo. Só que não vou, não!
- O senhor, morrer logo? - Ben falou. - Isso é que não. Tem muita vida em si. Sente-se aí, meu senhor, e dê as suas ordens.
Havia uma curiosa mistura de rude ternura e aguda compreensão na maneira como falava. Mary lhe dera instruções, pelo caminho, dizendo-lhe que o principal
era que Colin estava ficando bom. E isto graças ao jardim secreto. Ninguém lhe devia lembrar caroços nas costas ou morte.
- Que trabalho você faz nos jardins, Ben? - perguntou o rajá.
- Tudo o que me mandam. Vivo aqui de favor... porque ela gostava de mim.
- Ela quem?
- Sua mãe, meu senhor.
- Minha mãe? - e ele olhou em redor, serenamente. - Este jardim era dela, não?
- Sim, meu senhor. Ela gostava muito deste jardim.
- Bem, agora o jardim é meu. Virei aqui todos os dias. Mas isto deve ficar em segredo. Dickon e minha prima estão fazendo com que eu volte a viver. Vou mandar
chamá-lo, de vez em quando, para nos ajudar... mas deverá vir sem que ninguém o veja.
- Vim aqui antes, sem que ninguém me visse - disse Ben.
- Que disse? - perguntou Colin. - Quando foi isso?
- A última vez que estive aqui foi, mais ou menos, há dois anos.
- Ora, ninguém entra aqui faz dez anos! Nem havia portão!
- Eu sou ninguém - disse Ben, secamente. - E não preciso de portão para passar. Pulei o muro. Nos últimos dois anos é que o reumatismo me impediu.
- Você veio e fez um bocado de serviço! - exclamou Dickon. - Eu não podia atinar quem teria feito o trabalho que encontrei.
- Ela gostava tanto do jardim! - disse Ben. - Uma vez, ela me pediu: "Ben, se algum dia eu adoecer ou for embora, cuide de minhas rosas."
- Assim, quando ela partiu, as ordens eram para que ninguém viesse aqui. Mas eu vinha sempre, passando pelo muro.
encolerizado = com raiva
rude ternura = bruto carinho
aguda = grande
serenamente = calmamente
atinar = imaginar
- Estou contente com o que você fez, Ben - disse Colin. - Sei que você vai guardar o segredo.
- Certo, meu senhor. E será melhor para o meu reumatismo usar, agora, o portão.
Mary tinha deixado a sua pá na relva, perto da árvore. Colin a apanhou, com uma expressão estranha no rosto. Começou a cavar a terra. Sua mão era fraca mas,
como olhassem para ele, mergulhou a pá e retirou um pouco de terra.
"Você pode fazer isto! Você pode!", dizia Mary a si mesma.
Dickon, apesar de dominado pela curiosidade, não disse uma palavra. O velho Ben olhava, muito interessado.
Depois de ter cavado mais um pouco, Colin disse a Dickon:
- Você disse que eu poderia andar, como qualquer outro, e disse também que eu iria cavar a terra. Pois bem, no meu primeiro dia, andei e agora estou cavando
a terra!
- Viva! - exclamou o velho Ben. - O menino fala como quem tem muita coragem. Que tal plantar alguma coisa? Quer umas mudas de roseiras? Posso trazê-las agora
mesmo.
- Vá buscá-las! - ordenou Colin, continuando a cavar.
Ben saiu às pressas, esquecido do reumatismo. Dickon pegou a escavadeira para aprofundar a cova. Mary saiu em busca de um regador. Quando Dickon completou
a cova, Colin ajudou-o a remover a terra. Depois, olhou para o céu, corado e feliz:
- Preciso acabar isto antes que o sol se ponha.
Mary achou que talvez o sol se tenha demorado alguns minutos, de propósito. Ben trouxe uma roseira da estufa. Ajoelhou-se Perto do buraco e partiu o vaso
com a muda:
- Está aqui, meu senhor. Ponha-a na terra, o senhor mesmo.
As mãozinhas magras e brancas tremeram um pouco e a cor em seu rosto se acentuou, quando Colin pôs a muda no buraco, sustentando-a enquanto o jardineiro
enchia a cova de terra. Mary estava de joelhos, também. Fuligem baixara ao chão para ver melhor. Noz e Casca, do alto da ameixeira, contemplavam, atentos, a cena.
- Pronto, está plantada! - exclamou Colin. - E o sol apenas se esconde no horizonte. Ajude-me, Dickon. Quero estar em pé quando o sol se puser de todo. Faz
parte da magia.
Dickon o ajudou, sim. E a magia - ou o que quer que fosse - tanto lhe deu forças que, quando o sol se pôs, pondo fim à estranha e linda tarde, ali estava
ele, firme nos seus próprios pés, e sorrindo.
cova = buraco
remover = tirar
se acentuou = aumentou
contemplavam = olhavam
horizonte = céu
Magia
O Dr. Craven já esperava havia algum tempo, quando eles voltaram a casa. O médico chegara a ficar preocupado e tinha querido mandar alguém chamá-los. Quando
Colin foi levado a seu quarto, o médico olhou para ele, seriamente:
- Você não devia ter demorado tanto - disse ele.
- Estou bem e amanhã sairei bem cedo - respondeu Colin. - Também vou sair de tarde.
- Não sei se vou deixá-lo fazer isso - o médico falou. - Temo que não seja conveniente.
- Inconveniente seria tentar impedir-me - e Colin olhava firme para o Dr. Craven. - Irei de qualquer forma.
Mary descobrira que uma das particularidades de Colin era a de que desconhecia quanto era rude ao tratar com os outros. De certo modo, Mary também era assim,
mas, desde que chegara a Misselthwaite, fora aos poucos descobrindo que seus modos não eram lá muito finos. Tendo percebido isto, achou de todo interesse falar com
Colin a respeito. Sentou-se e olhou para ele, por alguns minutos, depois que o médico se retirou.
- Porque está me olhando assim? - perguntou Colin, e era o que Mary queria exatamente que ele perguntasse.
- Acho que estou um pouco triste por causa do doutor.
- Eu também - disse Colin, calmamente. - Ele não vai herdar a mansão, agora que não vou morrer...
- Por causa disso também - falou Mary. - Mas eu estava pensando como deve ser horrível para ele ter sido delicado, durante
conveniente = bom
particularidades = especialidades
finos = educados
com um rapaz tão rude.
- Você acha que eu sou rude?
- Se você fosse filho dele e ele um pai severo, na certa teria surrado você.
- Ele não ousaria.
- Claro, não ousaria! Afinal, você ia morrer, era um Pobre coitado.
- Agora, não mu morrer nem sou um pobre coitado.
- Foi fazendo sempre o que queria que você se tornou tão estranho - disse Mary, pensando em voz alta.
- Acha que eu sou estranho?
- E muito! Mas não precisa ficar zangado, pois eu também sou e o velho Ben igualmente. Bem, agora mudei um pouco, depois que comecei a gostar das pessoas,
depois que encontrei o jardim.
- Posso deixar de ser estranho se for ao jardim todos os dias. Lá existe magia, Mary, estou certo! Mesmo que não seja magia real, podemos fazer de Conta
que é. Algo existe lá... algo!
- É magia, não a magia negra, mas uma magia branca como neve.
Eles se habituaram a chamar aquilo de magia e, na realidade, assim parecia. Oh!, as coisas maravilhosas que aconteceram Daquele jardim, nos meses que se
seguiram. No começo, parecia que as plantas nunca deixariam de brotar na terra, na relva, nos canteiros, até nas fendas dos muros. Logo depois, foram os botões a
se abrir, mostrando Cores variadas, todos os tons do azul, do vermelho e do rosa. Nos tempos de sua antiga glória, o jardim tinha cada canto, cada polegada cobertos
de flores. O velho Ben cuidava para que os muros estivessem sempre limpos, à espera das trepadeiras. Íris e lírios surgiam do solo e as pérgulas se enchiam de exércitos
de lanças azuis e brancas - delfínios, aquilégias e campânulas.
- Ela gostava muito destas flores - dizia Ben - porque estavam sempre apontando para o céu, assim ela falava. Também gostava da terra, mas dizia que o céu
azul era sempre alegre.
As sementes que Dickon e Mary haviam plantado pegaram logo, como se as fadas cuidassem delas. Papoulas bailavam à brisa, alegres, e, agora, pareciam admiradas
de que estranhos tivessem entrado ali. E as rosas... as rosas! Erguendo-se da terra, enroladas no re1ógio de sol, pelos troncos e galhos, subindo pelos muros e alastrando-se
por toda parte, renasciam dia a dia, hora a hora.
Todas as manhãs Colin era levado para fora e, quando não chovia, passava muito tempo no jardim. Gostava de deitar-se na relva, "espiando coisas crescerem.
"Tratava conhecimento com
ousaria = teria coragem
magia negra = mágica para fazer o mal
fendes = buracos
polegada = Pedacinho
bailava à brisa = dançava ao vento
renasciam = nasciam novamente
estranhos insetos, entregues a complicadas tarefas, às vezes levando alimento ou fiapos de grama, palha ou paina, subindo ao alto dos arbustos, como se daquelas
alturas pudessem descortinar o mundo. Uma toupeira, fazendo montinhos de terra diante da toca, prendera-o durante toda uma manhã. Os costumes das formigas, dos escaravelhos,
das abelhas, das rãs e dos passarinhos, deram-lhe um novo campo de exploração e Dickon lhe explicou os costumes das raposas, das lontras, dos furões, dos esquilos,
dos texugos e dos ratos-d'água.
E isto não era nem metade da magia. O fato de que tinha conseguido ficar de pé, fizera Colin pensar intensamente em muitas coisas e, quando Mary lhe falou
do voto que se impusera, ele se mostrou muito entusiasmado com tudo.
- É claro que deve haver muita magia no mundo - disse, uma vez. - Só que as pessoas não sabem o que é, nem o que fazer para que funcione talvez o princípio
de tudo seja exatamente dizer que coisas boas estão para
acontecer, até que elas aconteçam mesmo.
Na manhã seguinte, quando foram para o jardim secreto, ele mandou chamar o velho Ben. O jardineiro o encontrou de pé, sob a árvore.
- Bom dia, Ben Weatherstaff - disse o rajá. - Quero que você, Dickon e Mary prestem atenção ao que vou dizer. É muito importante.
- Muito bem, meu senhor! - respondeu Ben, batendo uma continência, como era seu costume, desde que, na juventude, fora marinheiro.
- Vou fazer uma experiência científica. - Quando eu crescer, pretendo me dedicar às descobertas e, por isto, vou começar agora.
- Muito bem, meu senhor! - voltou Ben, prontamente, embora aquela fosse a primeira vez que ouvia falar de experiências e descobertas.
Era a primeira vez, também, que Mary ouvia a esse respeito. Mas ela Já começava a compreender que, estranho como fosse, Colin lera sobre coisas importantes
e era um sujeitinho muito convincente. Agora mesmo, fazia quase um discurso, como uma pessoa adulta:
- As grandes descobertas científicas, que tentarei fazer, relacionam-se com a magia. Raramente uma pessoa sabe muito sobre isso, exceto alguns sábios e Mary,
um pouco, porque nasceu na Índia, onde há faquires. Creio que Dickon conhece um pouco de magia também. Eu nunca teria deixado que ele fosse me ver, se não se tratasse
de um encantador de animais. Estou certo de que existe magia em tudo, nós é que não sabemos como usá-la.
- Muito bem! - aplaudiu o velho Ben, empertigando-se todo.
- Quando Mary descobriu este jardim, ele parecia morto - continuou Colin. - Depois, algo começou a fazer nascer as plantas. Num dia, nada havia
ali e, no outro, tudo estava lá. Isso me tomou muito curioso. Os cientistas são sempre curiosos e eu pretendo ser um deles. Perguntei a min mesmo: "Que é
isto? Deve haver algo
travava = fazia
tarefas = trabalhos
do voto = do desejo
se impusera = fizera com ele mesmo
convincente = que sabia convencer
relacionam-se = ligam-se
aí!" Não sei o nome, portanto chamei-o de magia. Nunca vira o nascer do sol, mas Mary e Dickon já, e, pelo que me disseram, estou certo de que é magia, também. As
vezes, no jardim, olho para o céu e tenho a estranha sensação de ser feliz, como se algo estivesse empurrando o meu peito para cima e para baixo, fazendo-me respirar
mais depressa. A magia está sempre puxando e empurrando as coisas, tirando-as do nada. Tudo é feito por magia, folhas e árvores, flores e pássaros, texugos, e raposas,
e esquilos, e gente. Assim, a magia deve estar sempre perto de nós. E neste jardim, ela me fez ficar de pé e saber que mu viver e ser um homem. Vou fazer uma experiência
científica: conseguir um pouco de magia e colocá-la em mim mesmo, tornando-me forte. Não sei como fazê-lo, mas acho que, se ficarmos pensando nisso e invocando-a,
talvez ela venha. Quando eu ia tentar me levantar, Pela primeira vez, Mary ficou repetindo: "Você pode! Você pode!", e eu pude. Esforcei-me, é claro, mas a magia
que Mary irradiou ajudou-me. E também a magia de Dickon. Toda manhã e toda tarde, quando Pude me lembrar, Vou dizer: "A magia está em mim! A magia está me fazendo
bem! Vou ficar tão fone como Dickon, tão fone como Dickon! ' , E vocês todos vão fazer o mesmo. É esta a experiência que Vou tentar... Quer ajudar nisso, Ben Weatherstaff?
- Sim, meu senhor. Quero ajudar, sim!
- Se você fazer assim todos os dias, tão regularmente como os soldados fazem os seus exercícios, descobriremos se a experiência teve êxito. Tudo o que a
gente aprende é repetindo as coisas, pensando nelas até que se fixem em nossa mente, para sempre, e eu acho que será o mesmo com a magia. Ela acabará por fazer parte
da gente.
- Uma vez, na Índia, ouvi um oficial dizer à minha mãe que havia faquires repetindo as mesmas palavras milhares de vezes - disse Maty.
- E eu ouvi a mulher de Jem Fettleworth repetir milhares de vezes que ele era um bêbado vagabundo - acrescentou Ben, Com ingenuidade. - E alguma coisa aconteceu:
ele lhe deu uma surra de tirar o Couro e, depois, embriagou-se de rolar no chão.
Colin fechou a cara, ficou pensando um pouco, e disse:
- Ben, como você vê, alguma coisa resultou daquilo. Ela usou a magia erradamente e acabou apanhando. Se a usasse da maneira certa, talvez Bem não bebesse tanto
e talvez, até lhe desse um presente.
- Você é um garoto inteligente, além de ter as pernas firmes - disse Ben. - Quando eu encontrar Bess Fettleworth outra vez vou lhe dizer o que a magia
Pode fazer por ela.
- Você acha que a experiência vai dar certo? - perguntou Colin a Dickon e este abriu-se num largo sorriso:
- Claro que vai! É como o sol brilhando sobre as sementes.
invocando-a = chamando-a
regularmente = repetidamente
êxito = sucesso
fixem = fiquem
ingenuidade = inocência
resultou = Surgiu
Colin estava satisfeito e Mary também. Inspirado pela recordação do que ouvira dizer sobre os faquires, Colin sugeriu que todos deviam sentar-se de pernas cruzadas,
sob a árvore:
- É como se estivéssemos num templo. Depois, sentar-se até é bom para quem está cansado, como eu.
- Você não deve começar dizendo que está cansado. Pode estragar a magia - falou Mary.
- Tem razão - disse Colin. - Só devemos pensar na magia.
Tudo ficou majestoso e imponente quando se sentaram, de pernas cruzadas, formando um círculo. Mary parecia embevecida e Dickon tinha o coelhinho no colo.
E deve ter feito um sinal mágico que ninguém viu, pois logo que se sentou, o corvo, a raposa, os esquilos e o carneirinho se aproximaram do círculo.
Colin tinha a cabeça erguida, como se fosse um sacerdote, e seus olhos mostravam um especial fulgor.
- Podemos começar agora - disse ele. - Vamos nos balançar para frente e para trás, como os dervixes?
- Bem, não posso fazer isso - falou Ben. - É o reumatismo.
- A magia acabará com ele - respondeu Colin. - Por enquanto, vamos cantar.
- Só que eu não sei cantar - voltou o jardineiro. - Fui até expulso do coro da igreja, na primeira vez que fui cantar lá.
- Então, canto eu - disse Colin, e começou a cantar, parecendo o espírito de um rapaz: - O sol está brilhando... o sol está brilhando. Isto é magia. As flores
crescem... as raízes trabalham. Isto é magia. Estar vivo é magia... ser forte é magia. A magia está em mim... está em mim, está em cada um de nós. Está nas costas
de Ben! Magia, venha ajudar-nos!
Repetiu isso muitas vezes, não mil, é claro, mas grande número de vezes. Mary, enlevada, ouvia. Para ela, aquilo era belo. Ben tinha começado sentir uma
espécie de sono agradável. O zumzum das abelhas misturava-se com o cântico e produzia uma certa sonolência. Dickon, de pernas cruzadas, sustinha o coelho no regaço
e Fuligem espantara um dos esquilos e ousara no ombro de Dickon.
- Agora, vou dar uma volta pelo jardim - disse, enfim, Colin.
Ben tinha deixado cair a cabeça e ergueu-a num arranco.
- Ben, você está cochilando! - reclamou Colin.
- Essa não, senhor! - protestou Ben. - Até que o sermão estava bonito, mas vou sair antes que passem a bandeja das esmolas.
inspirado = levado
num templo = numa igreja
imponente = importante
embevecida = encantada
fulgor = brilho
dervixes = religiosos muçulmanos
sustinha = carregava
num arranco = de repente
- Ora, você não está na igreja! - disse Colin.
- Quem é que disse que eu estou na igreja? Ouvi tudo, palavra por palavra. O senhor disse que a magia estava até nas minhas costas, isto que médico chama
de reumatismo.
- Não se preocupe, você vai ficar bom. Agora tem minha permissão para se retirar. Volte amanhã.
- Ora, eu gostaria de ver o senhor andando pelo jardim - resmungou Ben.
Sendo um sujeito teimoso e não tendo muita fé na magia, Ben decidira, aso fosse mandado embora, subir na escada e ficar olhando por cima do muro: se houvesse
um desastre, ele estaria ali para socorrer.
Parecia uma procissão. Colin ia na frente, Dickon de um lado e Mary o outro. Ben ia atrás e os bichos os acompanhavam em ordem. A procissão movia-se lentamente,
mas com dignidade. As vezes detinha-se para um rápido descanso. Colin segurava o braço de Dickon e Ben olhava, assustado. Daí a pouco, Colin retirava a mão e dava
alguns passos sem qualquer apoio.
- A magia está em mim! - continuava a dizer. - Estou sentindo!
Era como se alguma coisa o soerguesse e sustentasse. Quando completou o percurso, suas faces estavam afogueadas e triunfantes.
- Consegui! A magia deu certo! - exclamou.
- E o Dr. Craven? Que será que vai dizer? - perguntou Mary.
- Não vai dizer nada - respondeu Colin. - Simplesmente porque ele não vai saber de coisa alguma, até que eu tenha ficado tão forte que possa dar e correr,
como qualquer rapaz. Virei aqui todos os dias. E não quero notar pessoas murmurando e não quero que meu pai saiba, até que a experiência tenha tido êxito. Então,
quando ele voltar a Misselthwaite, irei ao meu escritório e direi: - Veja, sou igual a qualquer outro rapaz. Estou completamente bom e viverei para me tornar um
homem.
Colin estava convencido de que ficaria bom, e isso era meia batalha venda, embora ele não se desse conta do fato. E o que mais o estimulava era pensar na
reação do pai ao ver que tinha um filho perfeito e forte como os mais jovens de sua idade. Uma das maiores tristezas de Colin, ao longo desses anos todos de infortúnio,
era saber que o próprio pai tinha receio de olhá-lo.
- Vai ter que acreditar nos seus próprios olhos - disse. Uma das coisas que pretendo fazer, antes de me dedicar às descobertas científicas, é me sornar um
atleta.
- Em uma semana, vamos levá-lo para treinar box - disse o velho Ben.
- Vai acabar campeão.
permissão = autorização
decidira = resolvera
detinha-se = parava
soerguesse = levantasse
triunfantes = vitoriosas
o estimulava = lhe dava coragem
infortúnio = doença
- Weatherstaff, isso é falta de respeito - advertiu Colin. - Você não pode tomar liberdades, só porque está a par do segredo. Por muito que a magia opere,
eu não poderei ser um campeão. Vou ser cientista, ouviu?
- Está bem, meu senhor. Eu estava brincando - os olhos de Ben faiscaram e ele, no fundo, estava mesmo era divertindo-se: não se incomoda de ser advertido,
se isto significava que o menino ganhava força e vontade de viver.
opere = aconteça
faiscaram = brilharam
advertido = chamado a atenção
"Podem Rir!"
O jardim secreto não era o único lugar em que Dickon trabalhava. Havia charneca, perto da cabana, um pedaço de solo cercado por uma mureta de pedras. Cedo,
pela manhã e de tarde, à luz do crepúsculo, nos dias em que Colin e Mary não o viam, Dickon trabalhava numa plantação de batatas, couves, nabos e cenouras. Enquanto
trabalhava, assoviava ou cantava canções da charneca, falando com Fuligem ou Capitão e com os irmãos, que o ajudavam.
- Não passaríamos tão bem - dizia a Srª Sowerby - se não fosse horta de Dickon.
E quando tinha um momentinho de folga, ela própria gostava de ir até lá conversar com o filho, geralmente depois do jantar. Lá também havia flores, que Dickon
semeara nos lugares mais indicados, mesmo por entre as pedras da mureta. Plantara dedaleiras e espécies da charneca, que recobriam as pedras a tal ponto que a gente
tinha de procurá-las por entre os ramos.
- Qualquer menino pode fazer isto, mamãe - dizia ele. - É só tratá-las. As plantas são como as pessoas e os animais, precisam de amigos. O que querem
é viver, como a gente. Se uma delas morre, eu sinto tanto como fosse uma pessoa conhecida.
Foi numa dessas tardes que a Srª Sowerby ouviu Dickon relatar o que acontecera na Mansão de Misselthwaite. A princípio, apenas ficou sabendo que dera na veneta
do Sr. Colin ir ao jardim, com a senhorita Mary. Depois, os garotos entenderam que a mãe de
uma mureta = um pequeno muro
semeara = plantara
indicados = certos
a princípio = no inicio
veneta = vontade
de Dickon também' 'podia entrar no segredo" - era de inteira confiança.
- Assim, numa bela tarde, Dickon contou à mãe, com todos os detalhes, o caso da chave enterrada, do pintarroxo e do segredo que a senhorita Mary resolvera
não revelar.
- Meu filho! - disse ela. - Foi uma boa coisa aquela mocinha ter vindo para a mansão. Bom para ela e para o Sr. Colin. Conseguiu ficar de pé e andar! E nós
todos pensando que ele era paralítico!
A Srª Sowerby fez uma porção de perguntas e seus olhos azuis refletiam os pensamentos que lhe ocorriam:
- E na mansão? Que é que acham de tudo isso?
- Nem sabem o que pensar - respondeu Dickon. - Cada dia o Sr. Colin está mais corado, mais forte. De vez em quando, ele ainda se queixa
fazendo até uma careta de dor. Mas é só de mentirinha, sabe?
- E tem que fingir assim?
- Bem, se o doutor descobrir que ele pode ficar em pé e andar, é capaz de escrever ao pai. O Sr. Colin, porém, quer ser o primeiro a dar a notícia ao velho.
Continua a praticar sua magia todos os dias, exercitando pernas, à espera do pai. Quando ele chegar, o Sr. Colin caminhará ao se encontro e lhe mostrará como está
são e forte.
- É, pelo que estou ouvindo, aqueles dois estão se divertindo e muito - disse a Srª Sowerby, rindo. - Estão representando uma pequena comedia, e sei como
crianças gostam de representar.
Dickon interrompeu o que estava fazendo e contou como faziam para ir ao jardim, o que faziam lá e também como Colin careteava e dava gemidos, para ouvir
Mary dizer coisas assim: "Pobrezinho, está sofrendo muito?" E depois como todos riam e tinham que abafar as gargalhadas com as almofadas de Colin para que, de fora,
não os pudessem ouvir.
- E quanto mais rirem, melhor - disse a Srª Sowerby. - Aposto que aqueles dois vão ficar muito fortes!
- Já estão - disse Dickon. - Têm tanta fome que não sabem o que fazer para não dar na vista. O Sr. Colin falou que, se pedir mais comida, vão desconfiar
de alguma coisa.
- Vou dar um jeito - disse a Srª Sowerby. - Quando você for, pela manhã, levará um bujão de leite e uns bolinhos. Eles podem comer isso no jardim. Quando
chegarem em casa, completam a refeição.
- Puxa, mamãe! A senhora sempre encontra um jeitinho para dar!
- São crianças e estão crescendo. Têm que comer bastante, para ficarem sadios - e ela deu outro sorriso, muito parecido com os sorrisos Dickon.
refletiam = mostravam
ocorriam = lhe passavam na cabeça
são = com saúde
careteava = fazia caretas
bujão = jarra
Na verdade, ela estava certa quando falou na "pequena comédia" que os divertia. Colin e Maty encontravam na encenação a melhor fonte de divertimento. E a
idéia de se protegerem lhes tinha sido inconscientemente
sugerida pela enfermeira e, depois, pelo próprio Dr. Craven.
- Seu apetite está melhorando muito - disse-lhe a enfermeira, certo dia. - O senhor quase não comia...
- É isso mesmo. Até que meu paladar não é tão mau. Deve ser do ar puro - replicou Colin, pensando que não devia aparentar tão excelente disposição.
- Deve ser do ar - concordou ela. - Tenho que discutir com o Dr. Craven.
- A enfermeira não tirava os olhos de você - disse Mary, assim que a mulher saiu. - Acho que ela está farejando alguma coisa.
- Essa, não - retrucou Colin. - Ninguém pode descobrir nada.
O Dr. Craven veio naquela manhã e fez uma porção de perguntas que não agradaram a Colin:
- Você tem se demorado muito lá fora. Onde é que vai?
- Ninguém deve saber onde é que eu vou. Todos receberam ordens para sair do meu caminho. Não gosto de ser olhado, o senhor bem sabe!
- Você fica fora o dia todo, mas isto não lhe tem feito mal, acho que não. A enfermeira disse que você está comendo bem melhor do que antes.
- Talvez - respondeu Colin, com súbita inspiração. - Talvez seja um apetite falso.
- Não creio. Parece que os alimentos lhe agradam. Você está engordando e suas cores já são outras.
- Pode ser inchação, talvez eu esteja com febre - disse Colin, com ar de fadiga e tristeza. - As pessoas que estão para morrer têm, em geral, um aspecto
assim.
- Você não está com febre- disse o doutor, tomando o pulso de Colin -estas carnes são sadias. Se continuarmos assim, meu jovem, não falaremos mais em morrer.
Seu pai vai ficar muito feliz.
- Não quero que lhe digam nada! - explodiu Colin. - Ficaria desapontado, caso eu piorasse -e posso piorar até esta noite. Acho que já estou com febre. Não
quero que escreva a meu pai! O senhor me faz ficar nervoso. Já estou quente, veja! Detesto que escrevam a meu respeito, que falem de mim, detesto que olhem para
mim!
- Calma, meu jovem! Nada será feito sem a sua permissão. Sei o quanto você é sensível.
fonte = forma
inconscientemente = sem que percebessem
paladar = gosto
disposição = saúde
farejando = Sentindo
falso = mentiroso
fadiga = cansaço
Não voltou a falar em escrever ao Sr. Craven e disse à enfermeira que tal providência não devia mais ser sugerida ao enfermo:
- O rapaz está bastante melhor, ainda que se excite facilmente. Nada devemos dizer-lhe que possa irritá-lo.
Mary e Colin ficaram alarmados e foi daí que surgiu a idéia da "comediazinha" que deviam representar.
- Serei obrigado a ter um acesso, de vez em quando - disse Colin, pesaroso. - Não tenho vontade de fazer isso. Mas, se começarem a falar em Cartas, outra
vez...
Resolveu comer um pouco menos, mas como é que podia? Levantava-se pela manhã com uma fome daquelas e as coisas boas na mesa eram de desestimular a falsa
inapetência. A manhã em que Dickon dirigiu-se a uma moita e apareceu com um cesto com um jarrão de leite e uns bolinhos feitos em casa, tudo muito bem arrumado pela
mãe, foi uma festa para eles. "Que boa e querida era a Srª. Sowerby! É uma criatura cheia de magia! Diga-lhe que gostamos muito!" Assim falaram Colin e Mary, depois
de saborear tudo o que o cesto continha.
Nos dias que se seguiram, eles se lembraram de que a boa senhora, com magia e tudo, tinha quatorze bocas para alimentar em casa. Assim, resolveram mandar-lhe
algum dinheiro, para ajudá-la nas despesas extras que estava fazendo com eles.
Dickon fez outra grande descoberta: achou naquela parte do parque, onde pela primeira vez Mary o encontrara tocando flauta, uma caverna com jeito de forno,
onde poderiam assar e cozinhar batatas e ovos.
Todas as manhãs, havia a sessão de magia, com o círculo místico formado à sombra da árvore. Depois da cerimônia, Colin dava o seu passeio e, pelo resto do
dia, exercitava suas novas forças. Dia a dia, ele se tomava mais musculoso e podia andar com mais firmeza. E cada dia, sua fé na magia crescia.
- Ontem - disse Dickon, certa manhã - fui a Thwaite e, perto da Taverna da Vaca Azul, encontrei Bob Haworth. É o mais forte de todos os rapazes daqui, campeão
de luta e lançador de pesos. Freqüentou campos de esporte na Escócia. Como é meu amigo há muito tempo, fiz-lhe algumas perguntas. Todos o chamam de atleta e pensei
que ele poderia ser útil ao Sr. Colin. Ele me falou de um instrutor que apareceu aqui e lhe deu as primeiras lições. Recomendou que começasse devagar, combinando
os exercícios musculares e respirat6rios. Perguntei a ele se um rapaz franzino poderia ficar forte como ele. Não falei no nome de ninguém e nem ele perguntou de
quem se tratava. Então, ele me mostrou alguns exercícios e como fazê-los, mandando que eu os repetisse até ficar sabendo.
providência = sugestão
excite = irrite
pesaroso = tristonho
inapetência = falta de apetite
saborear = comer com prazer
continha = possuía
extras = diferentes
círculo místico = grupo misterioso
instrutor = professor
- Será que você pode mostrar como é? - perguntou Colin, que o ouvira atentamente.
- Claro! - respondeu Dickon. E, de pé no relvado, foi mostrando uma série de exercícios simples e eficientes: - Olhe, aqui a gente descansa um pouco. E respirando
fundo, entende?
- Pode deixar - disse Colin. - Terei o maior cuidado.
Daquele dia em diante, a ginática passou a fazer parte do programa matinal. O resultado foi que ficaram com maior apetite. Continuaram a recusar um pouco
do almoço e um pouco do jantar, para confundir a Sr. Medlock, o Dr. Craven e a enfermeira.
- Eles quase não comem - dizia esta. - Acabam morrendo de fome!
E apesar de tudo, vejam como estão bem dispostos! Não entendo.
- Estou preocupada com esses dois - observou a Sr. Medlock. - Estão rebentando as costuras das roupas de tanto que engordam, mas fazem cara feia quando se
sentam à mesa. A cozinheira já não sabe o que inventar. Quase chorou ontem quando devolveram o maravilhoso pudim que ela fez com tanto carinho!
O Dr. Craven apareceu para examinar Colin. Assumiu uma expressão de seriedade, depois de uma conversa que teve com a enfermeira, e ainda mais impressionado
ficou quando sentou-se ao lado de Colin e o examinou. Tinha passado uns dias em Londres, a chamado, e não via o rapaz por perto de duas semanas. A cor de cera sumira
da pele de Colin e um ardente rosado mostrava-se em suas faces. Os olhos eram claros, sem olheiras, e os cachos de cabelos, que antes pareciam sem vida, agora se
apresentavam brilhantes e macios.
- Lamento saber - disse o médico - que não está comendo quase nada, meu rapaz. Isso não é bom. Você estava se alimentando tão bem, há pouco tempo...
- Eu não lhe disse que era um apetite falso?
Mary se sentara em sua banqueta, perto deles. De repente, teve um grunhido tão estranho que o médico se alarmou:
- Que é que tem, Mary? Está sentindo alguma coisa?
Muito pálida e muito impertigada, a menina explicou:
- Foi uma espécie de tosse e espirro. Fiquei meio sufocada.
Depois que o Dr. Craven se retirou, ela explicou a Colin:
- Não pude conter uma bruta vontade de rir, e aí saiu aquele grunhido. De repente, me lembrei da batata enorme que você comeu, enfiando-a toda na boca.
- Será que eles estão conseguindo alimento fora de casa? - perguntou o médico à Srª. Medlock, quando deixou o enfermo.
- De jeito nenhum, doutor. Só se encontram o que comer cavando na terra ou apanhando nas árvores.
eficientes = que dão resultado
matinal = da manhã
confundir = atrapalhar
ardente = vivo
grunhido = barulho
- Bem - disse o Dr. Craven - se a falta de comida não lhes causa mal, não há por que ficarmos preocupados. O rapaz parece outra pessoa.
- A garota também é outra - acrescentou a Srª. Medlock. - Está ficando até bonitinha, com novas cores e cabelos mais vivos. Agora, ela e o Sr. Colin riem
juntos, muitas vezes, como um par de maluquinhos. Talvez estejam engordando de tanto rir, os dois.
- Pode ser, pode ser... - admitiu o médico. - Deixe que riam!
admitiu = concordou
A Cortina
E o jardim secreto continuava a florescer, revelando, a cada manhã, novos e maravilhosos milagres. No ninho do pintarroxo, havia ovinhos e sua companheira
se mantinha a chocá-los, carinhosamente. A princípio, ela se sentira nervosa: nem Dickon podia chegar muito perto do ninho, e teve que esperar até que o minúsculo
casal formasse a idéia de que, no jardim, não havia nada que não fosse como eles mesmos, nada que não fosse capaz de entender o que lhes estava acontecendo, a imensa,
terna e emocionante beleza que aqueles ovinhos proporcionavam. Se houvesse naquele jardim alguém que, infame até o mais íntimo de sua alma, tivesse a coragem de
retirar um ovo do ninho, ou quebrá-lo, todo um mundo ruiria e poria termo à irradiante felicidade que a primavera espalhava.
De início, o casal de pintarroxos achou que devia ficar em guarda. Em primeiro lugar -pensavam -aquele rapaz não chegava ao jardim por seus próprios pés,
mas numa coisa que andava sobre rodas e tinha peles de animais estendidas sobre suas pernas. Aquilo, por si só, já era para desconfiar. Então, quando o menino começou
a ficar em pé e a andar por ali, fazendo-o de maneira estranha e sem jeito. ..O pintarroxo costumava esconder-se para vigiar a cena, pensando que aqueles movimentos
vagarosos eram a preparação de um bote, como fazem os gatos. O pintarroxo falou com a companheira e, depois, desistiu de tocar no assunto, pois ela estava tão aterrorizada
que podia prejudicar os filhotes por nascer.
Quando o menino começou a andar sozinho e mais depressa, foi um alívio.
revelando = mostrando
se mantinha = ficava
minúsculo = pequenino
proporcionavam = causavam
infame = ruim
ruiria = cairia
irradiante -enorme
Mas ainda por longo tempo, ele continuou a ser, para o casal de passarinhos, uma fonte de ansiedade. Parecia satisfeito de andar, mas, de vez em quando, fazia uma
parada, sentava-se e depois voltava a andar.
Um dia, o pintarroxo se lembrou de que, quando ele mesmo estava aprendendo a voar, com os pais, tinha feito a mesma coisa: dera pequenos vôos e depois fora
obrigado a descansar. Assim, ocorreu-lhe que aquele rapaz aprendia a voar, ou, antes, a caminhar. Falou nisso com a companheira e quando lhe disse que os filhotes
teriam de proceder de igual modo, ela ficou tranqüila e até curiosa, observando o rapaz pela borda do ninho. Então, admitiu, com indulgência, que os humanos eram
sempre mais desajeitados do que os passarinhos.
Depois de algum tempo, o rapaz começou a se mover como os outros meninos. Mas os três faziam coisas esquisitas, às vezes. Ficavam sob uma árvore e moviam
os braços, as pernas e as cabeças de uma forma que não era nem andar, nem correr ou sentar. Faziam tais movimentos em certas horas do dia, e o pinarroxo nunca poderia
explicar à companheira o que faziam ou tentavam fazer. O máximo que podia dizer é que seus filhotes jamais fariam aquilo.
Quando o rapaz passou a andar e a correr, capinando e plantando como os outros, reinou no ninho dos pintarroxos uma grande paz e contentamento. Os temores
pelos filhotes foram esquecidos. Sabendo que seus rebentos estavam tão seguros como no cofre de um banco e podendo assistir a tanta coisa curiosa, passaram até a
divertir-se e, nos dias de chuva, se entediavam, porque os meninos não vinham ao jardim.
Certa manhã, quando chovia forte, Colin se sentiu um pouco enfadado - era obrigado a ficar em seu sofá. Foi então que Mary teve uma inspiração.
- Agora que sou um menino de verdade - disse Colin - estou tão cheio de magia que não posso ficar quieto. Quando me levanto pela manhã sinto uma vontade
enorme de sair correndo e de cantar! Imagine só se eu fizesse isso... O que aconteceria?
Mary deu uma gargalhada:
- A enfermeira viria correndo e a Srª. Medlock mandaria chamar o doutor, certa de que você ficou maluco.
- Queria tanto que meu pai voltasse para casa! Eu mesmo vou dizer a ele, não podemos guardar o segredo por muito tempo.
- Colin, você sabe quantos quartos tem esta casa?
- Sei lá... Uns mil, talvez.
- São cem quartos e ninguém entra neles. Num dia de chuva assim, eu saí por aí e abri uma porção de portas. Quase que a Srª. Medlock me pegou em flagrante.
Eu me perdi e parei no fim do corredor do seu quarto. Foi quando eu ouvi você chorando pela segunda vez.
ocorreu-lhe = percebeu
proceder = agir
indulgência = paciência
entediavam = amolavam
pegou em flagrante = viu na hora
- Cem quartos em que ninguém entra! Parece igual ao jardim secreto! E se fôssemos vê-los? Você pode me empurrar na cadeira!
- Era isso mesmo o que eu estava pensando. Ninguém ousaria nos seguir. Há galerias em que você pode correr. Poderemos continuar com os nossos exercícios.
Num pequeno quarto indiano, encontrei um armário cheio de elefantinhos de marfim.
- Toque a sineta, Mary! - ordenou Colin.
Logo que a enfermeira apareceu, ele ordenou:
- Vá buscar minha cadeira. A senhorita Mary e eu vamos visitar a parte da casa que não é usada. John pode me empurrar até a galeria dos retratos e nos deixar
sozinhos, até que eu o mande chamar.
Quando o criado John deixou a cadeira de rodas na galeria dos retratos, Colin e Mary se entreolharam, deliciados. Assim que John se retirou, Colin se pôs
de pé:
- Vou dar uma corrida desta ponta da galeria até a outra. Depois, tentarei uns pulos e os exercícios que Bob Haworth ensinou.
Claro que fizeram tudo isso e mais ainda. Olharam os retratos e descobriram o da menina feia, que tinha um papagaio pousado num dos dedos.
- São meus antepassados - disse Colin. - Viveram há muito tempo. Aquela do papagaio, acho que é uma das minhas tatara-tatara-tatara-tias-avó
s. Até que se parece com você, Mary. Não como você é agora, mas como você era quando chegou aqui.
Foram ao quarto indiano e brincaram com os elefantinhos de marfim. Encontraram a sala de brocados cor-de-rosa e a almofada com o buraco dos ratos. Visitaram
outros quartos e fizeram outras descobertas. Acharam novos corredores, e recantos, e escadinhas, e mais quadros antigos, e misteriosas velhas coisas que nem sabiam
para que poderiam servir.
- Nunca pensei que vivia numa casa tão grande e tão misteriosa - disse Colin. - Gosto disso. Vamos percorrê-la sempre que chover. Poderemos descobrir muitas
coisas.
Naquela manhã, ficaram com tal apetite que, quando retomaram ao quarto de Colin, não lhes foi possível recusar nada do lanche.
Depois que a enfermeira levou a bandeja de volta, a cozinheira notou, com alegria, os pratos limpos:
- Vejam só! Esta casa é misteriosa e aqueles dois meninos são mais misteriosos ainda.
- Se comem assim todos os dias - aparteou o criado John - não é de espantar que O garoto esteja pesando agora o dobro do que pesava no mês passado.
Na tarde daquele dia, Mary notou que havia alguma coisa de novo no quarto de Colin.
galerias = corredores
entreolharam = olharam um para o outro
antepassados = parentes já falecidos
brocados = bordados
recantos = cantos
percorrê-la = andar por ela
Não disse nada, mas sentou-se e olhou fixamente para o quadro que ficava em cima da lareira. Era o retrato da Srª Craven, e ela observou que a cortina, que habitualmente
o cobria, fora afastada.
- Sei o que quer que lhe diga - disse Colin. - Vou deixar a cortina sempre afastada, de agora em diante.
- Por quê?
- Porque já não fico aborrecido de vê-m sorrindo. Há duas noites, quando fazia luar, senti como se o quarto estivesse cheio de magia. Acordei e não pude
ficar quieto: levantei-me e olhei pela janela. O quarto estava claro e havia um mio de luar sobre o quadro coberto. Aquilo me fez puxar a cortina. Ela olhou para
mim, e sorria porque estava me vendo de pé. Quero vê-la sorrindo assim, sempre. Acho que ela deve ter sido uma espécie de criatura encantada.
- Você se parece tanto com ela, agora!
Colin pensou um pouco e depois disse, calmamente:
- Se eu fosse o fantasma dela, acho que meu pai gostaria de mim.
- Gostaria que ela o amasse?
- Costumava odiá-lo, porque ele não gostava de mim. Se vier a gostar acho que lhe poderia falar sobre magia. Isto o tornaria menos triste.
criatura encantadora = pessoa maravilhosa
"E Minha Mãe!"
A fé que tinham na magia era permanente. Às vezes, Colin fazia verdadeiras palestras sobre o assunto.
- Quando eu crescer - explicava - e fizer descobertas científicas, serei obrigado a proferir discursos e conferências e, assim, é bom ir praticando desde
agora. Por enquanto, não tenho condições de falar por muitas horas, pois ainda sou muito jovem e, além disso, Ben Weatherstaff pensaria que está numa igreja e pegaria
no sono.
- O bom nesse negócio de palestras - disse Ben - é que cada um pode se levantar, dizer o que quiser e ninguém o interrompe. De vez em quando, até eu sinto
vontade de fazer uma palestra.
Quando Colin se levantava, à sombra da árvore, o velho Ben olhava-o atentamente, com uma expressão crítica. Não era tanto a palestra que lhe espertava
o interesse, mas as pernas do rapaz, que a cada dia pareciam mais fortes, e seu rosto sempre mais corado. Às vezes, quando Colin sentia que a expressão de Ben significava
que o velho jardineiro estava comovido, ficava pensando, tentando acompanhar o que passava pela cabeça do pobre homem. Certa vez em que Ben parecia quase em quase,
interpelou-o:
- Em que é que está pensando, Ben?
- Ora, pensava que o senhor engordou de um a dois quilos, esta semana, aposto! Estava reparando em sua barriga e em seus ombros. Acho que devia se pesar.
era permanente = existia sempre
palestras = conversas
proferir = falar
condições = oportunidade
atentamente = com atenção
despertava o interesse = chamava a atenção
transe = sonho
- Devo isso à magia, ao leite fresco e aos bolinhos da Srª Sowerby. Como vê, a experiência científica deu certo.
Naquela manhã, Dickon chegou atrasado para ouvir a palestra. Quando apareceu, vinha vermelho de tanto correr e seu rosto brilhava mais do que de hábito.
Começaram os três, logo, a trabalhar. É que tinham sempre o que fazer, depois de uma chuvarada, pois a umidade, se era boa para as flores, também o era para as ervas
daninhas.
- A magia atua melhor quando a gente trabalha - disse Colin, enquanto capinava. - Podemos senti-la em nossos ossos e músculos. Ainda vou ler sobre ossos
e músculos, mas pretendo fazer um livro sobre magia, sabem? - e Colin pôs sua pá no chão, ficando em pé. Mary e Dickon compreenderam que algo de importante estava
acontecendo com ele. Colin ergueu os braços, esticou-se nas pontas dos pés e disse: - Mary! Dickon! Olhem bem para mim!
Os dois interromperam o que faziam e o olharam. Ele continuou:
- Vocês se lembram da manhã em que me trouxeram aqui, pela primeira vez?
Sendo um encantador de animais, Dickon podia ver sempre mais coisas do que os outros. E agora ele via, naquele rapaz, algumas coisas. - Claro que
nos lembramos, ora! - respondeu Dickon.
- Neste minuto - disse Colin - agora, mesmo, me lembrei disto, quando cavava a terra. Olhei para minha mão e tive que me levantar par ter certeza de que
era real. É real. Eu estou bom! Estou bom!
- Boa! Ele está bom! - exclamou Dickon.
Antes, ele já sentira aquilo. Mas, naquele instante, era como uma arrebatadora consciência, tão forte que não podia deixar de gritar a todos:
- Vou viver para sempre, e sempre, e sempre! Vou descobrir centenas e centenas de coisas. Vou descobrir coisas sobre gente, e sobre animais, e sobre tudo
o que vive - assim com Dickon descobre - e jamais deixarei de apelar para a magia. Estou bom! Sinto que estou bom!
O velho Ben, que se achava a alguma distância, resmungou:
- Acho que poderia cantar um salmo!
- Cantar o quê? - indagou Colin, que nada sabia de salmos.
- Dickon pode cantar, garanto! - afirmou Ben.
- Cantam salmos na igreja - disse Dickon. - Mamãe falou que as cotovias também os cantam, quando amanhece.
- Nunca estive numa igreja. Cante o salmo, Dickon. Quero ouvi-lo.
Dickon entendeu o que Colin queria e ficou de pé, tirando o boné e olhando em volta, com um sorriso nos lábios.
- Deve tirar o chapéu - disse a Colin - e você também, Ben, e ficar em pé.
Colin tirou o gorro e o sol brilhou nos seus cabelos. Ficou olhando para Dickon. Ben ergueu-se, igualmente, e descobriu a cabeça, meio confuso como se não
compreendesse por que estava fazendo aquilo.
interpelou-o = perguntou-lhe
interromperam = pararam
arrebatadora consciência = realidade tão grande
apelar = pedir
gorro = boina
De pé, entre & árvores e roseiras, Dickon começou a cantar com um bela e forte voz de rapaz:
Louvai o Senhor, fonte de todas as bênçãos,
Louvai-o todos os seres sobre a terra,
Louvai-o, hóspedes celestes,
Louvai o Pai, o Filho e o Espírito Santo,
Amém.
Quando terminou, o velho Ben continuou parado, de boca fechada, mas com um olhar perturbado, fitando Colin, que parecia meditar.
- É um bonito canto - disse ele. - Gostei muito. Talvez signifique exatamente o que quis dizer, quando falei que era grato à magia. Talvez sejam ambos a
mesma coisa. Como poderemos saber o nome certo de tudo? Cante de novo, Dickon. Vamos tentar também, Mary. Quero cantar. Como é mesmo que começa? "Louvai o Senhor,
fonte de todas as bênçãos!"
E novamente cantaram, e Colin e Mary uniram suas vozes tão musicalmente quanto puderam à bela voz de Dickon e à inculta e rouca voz do velho Ben. Quando
o Amém foi entoado, Mary viu que os olhos de Ben piscavam e sua face rugosa estava molhada de lágrimas.
Colin olhava através do jardim e algo atraiu a sua atenção:
- Quem é que vem lá? Quem é?
O portão do muro coberto de hera abrira-se lentamente e uma mulher entrara e ficara parada, olhando para eles. Com a ramaria por fundo, a luz do sol filtrada
pelas árvores e iluminando seu casaco azul, parecia mesmo uma estampa de um dos álbuns de Colin. Seus olhos afetuosos passavam pelas flores, as crianças, os bichos,
o velho Ben. O rosto de Dickon parecia iluminado:
- É mamãe! - e correu ao seu encontro.
Colin também começou a andar e Mary o seguiu, sentindo os dois que seus corações batiam aceleradamente.
- Mesmo quando eu estava doente, queria vê-la! - disse Colin. - A senhora, Dickon e o jardim secreto. Acho que foram & coisas que mais desejei ver na vida.
- Oh! meu menino! - exclamou ela. - Que alegria, meu querido! - dizia ela, como se não pudesse conter a emoção.
Ela não o chamou de "Sr. Colin", mas disse, exatamente, "meu menino", e parecia que se referia a Dickon, com o mesmo calor e a mesma espontaneidade. Colin
gostou imensamente de ouvi-la assim dirigir-se a ele.
- Ficou surpresa de me encontrar tão bem?
- Sim, fiquei. Você se parece tanto com sua mãe que meu coração quase saltou fora do peito!
meditar = rezar
inculta = sem preparo
entoado = cantado
rugosa = cheia de rugas
aceleradamente = agitadamente
se referia = falava
espontaneidade = naturalidade
- A senhora acha que, agora, meu pai vai gostar de mim?
- É claro, meu menino! Ele precisa vir logo para casa, logo!
- Susan Sowerby - disse o velho Ben, chegando-se ao grupo. - Olhe pernas dele, olhe só! Há dois meses pareciam duas ripas e ouvi muita gente dizer que
eram tortas. Olhe como estão agora!
- E vão ficar ainda mais fortes - disse a Srª Sowerby, dando uma gargalhada. - Basta continuar aqui no jardim, brincando e trabalhando, e comendo e bebendo
leite. Ficará com as pernas mais fortes do mundo, se Deus quiser! - pôs as mãos nos ombros de Mary e olhou-a com ar maternal: - E você também! Já está quase tão
forte como a minha Elizabeth. Aposto que você também se parece com sua mãe. Você vai ser como uma rosa, quando crescer. Deus a abençoe.
Mary não tivera muito tempo de atentar para a mudança que vinha se operando em si mesma. Sabia que estava engordando e que parecia diferente, que seus cabelos
cresciam muito depressa. Mas na verdade ficou feliz e ouvir que, algum dia, seria uma moça bonita.
Susan Sowerby passeou com eles por todo o jardim. Colin ia de um lado e Mary do outro. Parecia que a simpática mulher os compreendia tão em quanto Dickon
compreendia seus bichinhos. Parava junto a uma flor lhes falava dela, como se falasse de uma criancinha. Quando os meninos e contaram sobre o pintarroxo e o primeiro
vôo dos filhotes, ela deu uma risadinha maternal:
- Acho que ensinar os filhotes a voar é o mesmo que ensinar as criança andar. Mas eu ficaria aflita se meus filhotes tivessem asas em vez de pemas.
- A senhora acredita em magia? - perguntou Colin. - Espero quem...
- Claro que acredito, meu menino. Nunca a conheci por esse nome, as nome não tem importância. Pode ter outro nome na França ou na Alemanha. Mas é a mesma
coisa que faz as sementes germinarem e o sol brincar, e faz de você um bom rapaz, e é uma Coisa Boa. Não é como nós, que não gostamos de que troquem o nosso nome.
Essa Grande Coisa Boa não se preocupa com isso. Nunca deixe de acreditar nessa Coisa Boa, e chame-a pelo nome que preferir. Você estava cantando para ela, quando
entrei no jardim.
- É que eu me sentia muito alegre - disse Colin. - De repente, percebi que estava diferente de antes, como meus braços e pernas estavam fortes como eu podia
cavar a terra e ficar de pé. Aí, eu me levantei e quis gritar alguma coisa para alguma coisa que pudesse ouvir.
- A magia ouviu quando você cantou o salmo. Ouviria qualquer coisa e você cantasse. Ora, meu menino querido! De que vale o nome para o criador da alegria?
Susan Sowerby tinha preparado um cesto enorme, naquela manhã, cheio de coisas gostosas.
ripas = tiras
atentar = prestar atenção
se operando = acontecendo
Sentou-se para comer com eles e lhes contou histórias e lhes ensinou palavras novas. E riu muito, principalmente quando lhe contaram da dificuldade que Colin tinha
em fingir que ainda era doente, quase inválido.
- Não podemos deixar de rir o tempo todo, quando estamos juntos - explicou Colin. -E isso não acontece com gente enferma. Tentamos conter o riso, mas ele
vem, assim mesmo, mais forte do que nunca.
- Tem uma coisa de que me lembro sempre - disse Mary. - Fico pensando se, de repente, o rosto de Colin se tornasse redondo e gordo como a lua cheia. Não
está ainda assim, mas ele não pára de engordar!
- Deus nos proteja a todos. Acho que vocês ainda têm que continuar a representar a "comediazinha". Tudo acabará, em breve. O Sr. Craven não demorará a voltar
para casa.
- A senhora tem certeza? - perguntou Colin.
- Você não gostaria que ele soubesse pelos outros o que aconteceu não é mesmo? Você deve ter passado muitas noites planejando tudo.
- Puxa, é verdade! Penso nisso todos os dias. Acho que, quando ele voltar, vou entrar correndo no quarto dele.
- Será um bom começo - disse Susan Sowerby. - Até que eu gostaria de ver a cara que ele vai fazer...
Também falaram muito da visita que fariam à cabana, na charneca. Já tinham decidido: tomariam lanche com ela e conheceriam seus doze filho visitariam o jardim-horta
de Dickon e só voltariam quando estivesse cansados.
Já se fazia tarde e Colin deveria ser levado para casa. Mas, antes de se sentar na cadeira de rodas, ficou bem junto de Susan Sowerby, olhando-a com uma
espécie de veneração:
- A senhora é exatamente como eu queria que fosse. Gostaria que fosse minha mãe, como é a mãe de Dickon!
Ela o abraçou fortemente, como se fosse seu próprio filho, outro irmão de Dickon. E algumas lágrimas correram de seus olhos.
- Meu menino querido! Sua verdadeira mãe está aqui no jardim, agora, eu sei! Ela nunca safa daqui, antes! Seu pai vai voltar para você, sim!
planejando = imaginando
decidido = resolvido
veneração = respeito
No Jardim
Desde que o mundo é mundo, cada século que passa revela novas maravilhas. Agora mesmo, nos tempos em que vivemos, centenas de descobertas são feitas e postas
a serviço dos homens. No princípio, as pessoas se recusam a aceitar as coisas novas, ou não acreditam que elas sejam transformadas em realidade. Depois, aceitam-nas
e se admiram mesmo de que não tivessem sido descobertas há mais tempo.
Uma das coisas que as pessoas começaram a descobrir no século passado foi que os pensamentos - apenas os pensamentos - são tão poderosos como baterias elétricas:
fazem tanto bem como o sol, ou tanto mal como veneno. Libertar um mau pensamento ou deixar que penetre em nosso cérebro é tão perigoso como permitir que o germe
da escarlatina entre em nosso corpo: arriscamo-nos a nunca mais nos livrarmos dele.
Pelo tempo em que o espírito de Mary esteve dominado por pensamentos desagradáveis, ela foi uma menina doentia, sempre com um rosto pálido triste. As circunstâncias,
contudo, lhe foram favoráveis e generosas, embora ela mesma não tivesse consciência disso.
E quando seu espírito, aos poucos, povoou-se de pintarroxos, de uma cabana cheia de crianças, de um velho jardineiro, de uma criada de Yorkshire, da primavera,
de um jardim secreto que voltava à vida e de um rapaz da charneca e seus bichinhos, não houve mais espaço para os pensamentos maus.
O mesmo sucedeu com Colin. Enquanto se deixava ficar em seu quarto, com seus temores e fraquezas e sua aversão às pessoas que o olhavam,
século = período de cem anos
postas = colocadas
escarlatina = doença infecciosa caracterizada por febre, pontos vermelhos no corpo e descamação em largas placas.
aversão = antipatia
só pensando em caroços nas costas e morte prematura, era um histérico, que nada sabia do sol e da primavera, ignorando que poderia ficar bom e andar com seus próprios
pés, se quisesse fazê-lo. Assim, na medida em que novos e belos pensamentos começaram a banir os antigos e horríveis, a vida começou a lhe voltar, o sangue a correr
em suas veias e a energia a se espalhar por todo o seu corpo. Sua "experiência científica" era prática e simples, nada tendo de misteriosa. Coisas ainda mais surpreendentes
podem acontecer a qualquer pessoa que eventualmente tomada por um pensamento deprimente logo se dá conta do perigo e o afasta, pondo em seu lugar um idéia agradável:
Onde você planta uma rosa, meu jovem, não pode nascer um cardo.
À proporção que o jardim secreto voltava à vida, o mesmo acontecia com as duas crianças. E nesses dias havia um homem viajando por lugares distantes, um
homem que, há dez anos, tinha o espírito povoado de negro e lastimosos pensamentos. Não tivera coragem, não tentara nunca substitui os maus pensamentos por outros,
confortadores.
Uma terrível amargura o invadira, quando deixara de ser feliz, e ele permitira que sua alma se enchesse de sombras, fechando-a a qualquer raio de luz. Em
razão disso, esquecera sua casa e seus deveres. Corria o mundo e as sombras o envolviam a tal ponto que sua simples presença causava mal estar aos outros - era como
se ele envenenasse o ar em redor. Muitos o supunham louco ou escondendo no coração algum crime tenebroso.
Era um homem alto, de faces encovadas e ombros recurvados e sempre escrevia, nos livros dos hotéis, os mesmos nome e endereço: Archibald Craven, Mansão de
Misselthwaite, Yorksllire, Inglaterra. Já viajara muito, desde o dia em que estivera com a menina Mary, em seu escritório, e lhe dissera que ela poderia ter o seu
"pedacinho de terra". Visitara os lugares mais belos da Europa, embora neles passasse poucos dias apenas. Preferia paragens mais tranqüilas, nas montanhas que se
escondem entre as nuvens, de onde olhava, maravilhado, o nascer do sol, espetáculo que lhe dava a idéia de que assistia à criação do mundo.
A luz, porém, parecia não penetrar em seu espírito, até o dia em que, pela primeira vez, sentiu que algo estranho lhe acontecia. Foi num vale de Tirol austríaco.
Já tinha andado bastante, mas aquele deslumbramento não o tocara. Por fim, sentiu-se cansado e deitou-se num tapete de musgo, ao lado de um regato, que corria alegre
através de uma luxuriante vegetação.
prematura = cedo
banir = afastar
deprimente = triste
de negros e lastimosos pensamentos = lembranças tristonhas
supunham = achavam
tenebroso = pavoroso
encovadas = magras
paragens = lugares
luxuriante = rica
Às vezes, a água fazia um som parecido com um risinho suave, saltando pelas pedras ou envolvendo-as alegremente. E o barulhinho suave como que aumentava a quietude.
Na verdade, o vale estava muito tranqüilo.
Parado ali, olhando o regato, Archibald Craven sentiu que seu espírito e seu corpo aquietavam. Pensou, então, que fosse adormecer, mas isso não aconteceu.
Olhava o regato brilhando ao sol e seus olhos começaram a distinguir as plantas das margens. Havia tufos de mios6tis azuis, tão perto da corrente que suas
folhas mergulhavam na água. Pensava com ternura em como eram lindas e maravilhosas aquelas florzinhas azuis. Não percebeu que aquele pensamento ingênuo ia aos poucos
ocupando o seu espírito, e que, ao mesmo tempo, outras idéias eram lentamente expulsas.
Foi como se uma doce e clara fonte começasse a jorrar num lago estagnado e o fosse enchendo até que, por fim, o lago transbordava e a água poluída escorria
para fora. Não sabia há quanto tempo estava ali ou o que se passava com ele. Finalmente, moveu-se como se tivesse despertado e levantou-se vagarosamente, respirando
longa e profundamente, maravilhado e com uma sensação de felicidade.
- Que é isto? - murmurou, passando a mão pela testa. - Sinto-me como se estivesse vim.
Ninguém poderia explicar o que lhe aconteceu. Ele também parecia não entender, mas recordou o estranho momento, meses depois, quando, de novo, em Misselthwaite,
descobriu, quase ocasionalmente, que, naquele mesmo dia, Colin tinha gritado, ao ingressar no jardim secreto:
- Vou viver para sempre, e sempre, e sempre!
A singular tranqüilidade não o deixou pelo resto da tarde e, quando adormeceu, foi com um sono novo e repousante - verdadeira paz que não duraria muito,
talvez, e que ele tanto desejaria conservar.
Na noite seguinte, voltaram-lhe os sombrios pensamentos. Mas, estranho como pareça, havia minutos, às vezes muitos minutos, em que, sem que o notasse, o
tétrico fardo parecia tornar-se mais leve e ele sentia que era um homem vim. Lentamente, e sem que soubesse o motim, ia voltando à vida, tal como o jardim secreto.
O verão se transformou no outono e ele partiu para o lago de Como, onde encontrou uma atmosfera de sonho encantado. Passava os dias caminhando pelas verdes
colinas, procurando cansar-se ao máximo para poder dormir melhor.
- Será - pensou - que meu corpo está ficando mais forte?
Sim, isso mesmo. Seu corpo se fortalecia, mas por causa das horas tranqüilas, quando seus pensamentos eram outros. E sua alma igualmente se fortalecia, pouco
a pouco.
aquietavam = acalmavam
tufos = montes
estagnado = parado
ocasionalmente = sem querer
ingressar = entrar
singular = estranha
tétrico fardo = horrível peso
Começou a pensar em Misselthwaite, indagando-se se não devia voltar para casa. Lembrava-se vagamente do filho e se perguntava o que sentiria quando voltasse
e se visse diante do leito, contemplando a desfeita e cinzelada fuce de marfim do garoto adormecido. Não pôde evitar de estremecer a esse pensamento.
Em certo e magnífico dia, andou tanto que, quando voltou, a lua cheia ia alta no céu e tudo parecia imerso em púrpura e prata. A calma era tão maravilhosa
que não tomou logo o caminho da vila em que morava. Foi até um pequeno caramanchão perto do lago, e ali sentou-se, respirando as fragrâncias da noite. Sentiu que
estranha tranqüilidade se insinuava nele e crescia cada vez mais. Então, adormeceu e sonhou: era um sonho tão real que nem sonho parecia - tinha a impressão de que
estava acordado e consciente. Imaginava que, ao sentar-se e aspirar o perfume das rosas, ouvindo o marulho das águas, aos seus pés, escutara uma voz, suave e clara,
risonha e distante, muito distante, mas ele a ouvia tão distintamente como se estivesse ao seu lado:
- Archie! Archie! Archie! - chamava, melodiosamente.
Não se assustou e até achou natural que ouvisse aquela voz.
- Lília! Lília! - respondeu ao apelo. - Lília, onde está você?
- No jardim! - veio a resposta, como o som de uma flauta de ouro.
- No jardim!
O sonho acabou aí, mas ele não despertou: continuou dormindo profunda e docemente, durante toda aquela noite. S6 acordou, mesmo, na manhã seguinte e radiosa.
Um criado estava de pé, diante dele, um criado italiano habituado como todos os empregados da vila, a aceitar qualquer extravagância do patrão estrangeiro.
O criado trazia uma bandeja com algumas cartas e esperou até que o Sr. Craven as apanhasse. Depois, o patrão ficou olhando para o lago, com as cartas na
mão. Sua estranha serenidade indicava que ele desfrutava uma sensação de leveza, como se a tragédia que lhe acontecera não houvesse realmente acontecido, como se
alguma coisa de novo tivesse ocorrido. Na verdade, ele estava recordando O sonho - o sonho real.
- No jardim! - repetiu ele, para si mesmo. - No jardim! Mas, o portão está fechado e a chave foi enterrada!
Então, viu que a carta que se encontrava em cima das demais vinha do Yorkshire, endereçada numa clara letra feminina que ele não conhecia. Abriu-a e as primeiras
palavras chamaram logo sua atenção:
vagamente = ligeiramente
a desfeita e cinzelada face de marfim = o rosto doentio e branco
as fragrâncias = o perfume
se insinuava = penetrava
marulho = barulho
extravagância = exigência diferente
serenidade = paz
desfrutava = sentia
ocorrido = acontecido
Prezado senhor,
Sou Susan Sowerby e tive a ousadia de lhe falar, certa vez, na charneca. Foi sobre a senhorita Mary. Vou ter de novo a mesma coragem. Desculpe, senhor, mas,
se eu fosse o senhor, acho que voltaria para casa. Acho que o senhor ficaria feliz se viesse e - queira o senhor me desculpar - penso que sua mulher pediria ao
senhor para vir, se ela estivesse aqui.
Sua fiel servidora,
Susan Sowerby.
O Sr. Craven leu a carta duas vezes, antes de devolvê-la ao envelope, e continuou pensando no sonho.
- Vou voltar para Misselthwaite - disse. - E imediatamente!
Ordenou a Pitcher que preparasse seu regresso à Inglaterra e, em poucos dias, estava no Yorkshire. Durante a longa viagem, pensou no seu filho, como nunca
havia pensado nos últimos dez anos. Recordava-se dos negros dias, quando delirara como um louco porque a criança vivia e a mãe não. Recusava-se a vê-lo e, afinal,
quando decidiu olhar para ele, viu uma criança tão franzina que, certamente, como todos admitiam, morreria logo.
Não que desejasse ser um mau pai, mas não se sentia um verdadeiro pai. Consultava médicos, contratava enfermeiras, dava-lhe tudo que houvesse de melhor,
mas obstinava-se em viver entrincheirado em sua própria infelicidade.
Nos primeiros tempos, depois de um ano de ausência, o Sr. Craven voltou a Misselthwaite e a pobre criança ergueu para ele seus grandes olhos de espessas
pestanas negras, tão parecidos e, contudo, tão horrivelmente diferentes dos olhos que ele tanto havia adorado. Não suportou a cena e deixou o quarto, pálido e acabrunhado.
Depois daquele encontro, poucas vezes o via, e sempre quando o menino dormia. Tudo quanto sabia a seu respeito é que seria mesmo um inválido, de mau gênio
e histérico. E mais: para atenuar ou evitar seus acessos de fúria, todos eram obrigados a atender aos seus caprichos.
Agora, porém, enquanto o comboio o levava através dos desfiladeiros e planícies, o homem que estava voltando à vida começara a pensar de outro modo, meditando
profundamente:
- Talvez eu tenha agido erradamente nesses dez anos. Será que já é tarde demais para fazer alguma coisa?
Era o recurso a uma falsa magia falar logo em "tarde demais". Até Colin lhe teria dito isto. Mas ele nada sabia de magia, teria ainda de aprender. Perguntava-se
se Susan Sowerby não lhe escrevera apenas por ter notado que o menino piorara ou estava desenganado. E se não se encontrasse sob o sortilégio da tranqüilidade
que se
servidora = empregada
obstinava-se = teimava
entricheirado = metido
acabrunhado = desanimado
atenuar = melhorar
o comboio = a carruagem
meditando profundamente = pensando muito
apossara de seu íntimo, teria ficado ainda mais deprimido. A paz lhe trouxera uma espécie de coragem e, com ela, a esperança: em vez de se deixar dominar por pensamentos
negativos, o Sr. Craven preferiu crer em idéias otimistas.
- Talvez ela pense que eu possa fazer alguma coisa pelo rapaz. Falarei com ela, no caminho para Misselthwaite.
Quando cruzava a charneca, deteve-se ao lado da cabana. Sete ou oito crianças, que ali brincavam, fizeram-lhe amistosas reverências, dizendo-lhe que a mãe
saíra cedo para atender a uma mulher que tivera um novo bebê. "Dickon - adiantaram - estava na mansão, trabalhando num dos jardins, onde costuma passar muitos dias,
todas as semanas."
O Sr. Craven sorriu para eles e tirou do bolso uma moeda de ouro, entregando-a a Elizabeth Ellen, que era a maiorzinha:
- Se você dividir isto em oito partes, tocará um pouco para cada.
A viagem através da charneca o acalmava. Por que tinha, ali e agora, a sensação da volta ao lar, ao aproximar-se da grande casa que tinha sido o lar dos
seus antepassados durante seiscentos anos? Como fora possível que se afastasse dela, tremendo ao pensar nos seus quartos fechados e no pobre menino, preso a um leito
de enfermo? Será que iria encontrá-lo melhor, que poderia dominar o horror que ele lhe inspirava? Aquele sonho fora tão real! E real, maravilhosa e clara a voz que
lhe dissera:
- No jardim! No jardim!
- Vou tentar encontrar a chave - pensou - e abrir o portão. Devo fazê-lo, mesmo que não saiba por quê.
Ao chegar à mansão, os criados notaram que ele parecia melhor e que não se tinha dirigido aos aposentos que normalmente ocupava. Foi para a biblioteca e
mandou chamar a Srª Medlock, que apareceu de imediato, ex-citada e curiosa.
- Como está o Sr. Colin, Medlock? - perguntou-lhe.
- Bem, senhor, quer dizer... nem o Dr. Craven, nem a enfermeira, nem eu mesma... podemos entender...
- De que está falando?
- Para usar de franqueza, senhor, o Sr. Colin pode estar melhor e pode estar ficando pior. Seu apetite, senhor, escapa a todo entendimento.
- Está dizendo que ele ficou... mais esquisito?
- Isso mesmo, senhor, muito esquisito.. .quando a gente o compara com o que era antes. Costumava não comer nada e, de repente, desandou a comer de tudo.
Depois, as refeições voltaram a ser devolvidas, intatas. Antes, não admitia ser levado para fora. Pois bem, sem qualquer aviso, pouco depois de um de seus mais violentos
acessos, insistiu em ir para fora todos os dias, levado pela
o sortilégio da = a sensação de
amistosas reverências = delicados cumprimentos
tocara = caberá
de imediato = rapidamente
desandou = começou
intatas = sem serem tacadas
Srtª Mary e pelo filho de Susan Sowerby, numa cadeira de rodas. Ele ficou muito amigo de ambos e Dickon trouxe para cá seus animais domesticados. Ainda que o senhor
não possa acreditar, o Sr. Colin fica lá fora da manhã até à noite.
- Como está ele?
- Bem, se comesse regularmente, senhor, diria até que está engordando. Mas acho que está mesmo é inchado. Ele ri, às vezes, de maneira estranha, quando está
só com a Srª Mary. Antes, nunca ria! Mas o Dr. Craven virá imediatamente e lhe falará, senhor. Acho que o próprio doutor está muito confuso, sem entender nada!
- Onde está o Sr. Colin, agora?
- No jardim, senhor. Ele está sempre no jardim, embora a ninguém seja permitido ir lá. Não gosta de ser visto por ninguém.
- No jardim! - disse consigo mesmo o Sr. Craven, depois de despedir a Srª Medlock. E repetia: - No jardim! No jardim!
Teve de fazer grande esforço para voltar à realidade e só então encaminhou-se para o jardim. A fonte jorrava, no parque, cercada de canteiros de flores outonais.
Foi direto à alameda principal, com o muro coberto de hera. Sentia como se estivesse sendo arrastado para lá, para o lugar que ele esquecera, por tanto tempo, e
não sabia por quê. Quanto mais se aproximava, mais lentos se tornavam seus passos. Sabia onde era o portão, mesmo escondido pela hera, mas não podia dizer exatamente
onde a chave fora enterrada.
Parou e ficou imóvel, olhando em redor. No instante seguinte, espantou-se e ficou de ouvido atento. Estaria sonhando? A hera cobria o portão, a chave fora
enterrada, nenhum ser humano passara por ali durante dez anos... e, contudo, do jardim vinham ruídos, bem audíveis. Ruídos de passos correndo, como se dessem voltas
seguidas sob as árvores, sons de vozes e risos abafados, um ou outro grito alegre. Pareciam, realmente, risos juvenis, incontroláveis risos de jovens que tentavam
não se fazer ouvidos, mas que, num ou noutro momento, acabavam por explodir. Estaria ele sonhando? E sonhando o quê, em nome do céu? Estaria ouvindo alguma coisa?
Que coisa, em nome do céu? Estaria ele entendendo, afinal, o que a clara e distante voz tinha querido dizer?
Então, foi o instante, o incontrolável instante em que os invisíveis personagens se esqueceram de abafar sons e ruídos. Os pés corriam cada vez mais rápidos,
aproximavam-se do portão, já se podia ouvir a respiração forte de jovens sadios e uma selvagem explosão de risos. O portão foi aberto abruptamente, afastada a cortina,
a verde cortina de hera que o escondia...
e, contudo = porém
audíveis = reais
incontroláveis = alegres
explodir = estourar
abruptamente = sem aviso
e um rapaz surgiu em disparada. E sem ver quem estava do outro lado, precipitou-se em seus braços.
O Sr. Craven tivera a preocupação de estendê-los, no segundo exato, para evitar que o afoito jovem caísse ao chocar-se contra o seu corpo. Quando o conteve
e o afastou um pouco para poder ver-lhe o rosto, percebeu que o jovem, que tanto parecia divertir-se, estava sem fôlego.
Era um rapaz alto e simpático, radiante de vida e com um colorido esplêndido a lhe realçar as faces. Atirou os cabelos para trás e arregalou um par de estranhos
olhos cinzentos, orlados de negros cílios.
Foram esses olhos que impressionaram ao extremo o Sr. Craven.
- Que é... quem? Quem é você? - conseguiu ele gaguejar.
Não era assim que Colin queria, não fora assim que planejara o encontro. De qualquer forma, porém, vir correndo daquele jeito, ganhando uma corrida, talvez
até tivesse sido melhor. Recuperou-se, empertigando-se, e Mary, que vinha correndo com ele e passara também pelo portão, achou que ele ficava um pouco na ponta dos
pés, para parecer mais alto do que realmente era.
- Papai! Sou Colin. O senhor pode não acreditar! Eu também quase não acredito! Mas sou eu mesmo, Colin, seu filho!
Como havia acontecido com a Srª Medlock, ele não entendeu o que o pai queria dizer, quando murmurou, em tom de ansiedade:
- No jardim! No jardim!
- Isso mesmo, papai! Foi o jardim que fez isto. E Mary e Dickon, e os bichinhos e a magia! Ninguém ainda sabe! Guardamos o segredo para o senhor, para quando
o senhor voltasse. Estou bom, entende? Posso até ganhar de Mary uma corrida! Vou ser atleta!
Colin disse tudo isto como um rapaz cheio de saúde - o rosto corado, as palavras jorrando na pressa de falar tudo de uma vez, e o coração do Sr. Craven
pulsou de inaudita alegria.
- Está satisfeito, papai? - perguntou Colin, estendendo a mão e segurando o braço do Sr. Craven, que, de seu lado, pôs suas mãos nos ombros do rapaz, para
mantê-lo quieto. Sabia que não poderia falar, prontamente, mas, depois de curto instante, pediu:
- Leve-me ao jardim, meu filho! E conte-me o que aconteceu, tudo, tudo!
O jardim parecia um emaranhado de ouro e pt1rpura, e violeta, e vermelho flamejante do outono. E de cada lado havia tufos de lírios tardios, brancos e encarnados.
O Sr. Craven recordou-se de quando os primeiros foram plantados, para que, na mesma estação do ano, seu esplendor retardado pudesse revelar-se em toda a plenitude.
Rosas tardias subiam pelas árvores
precipitou-se = caiu
afoito = animado
orlados = cercados
em tom de ansiedade = numa voz diferente
pulsou de inaudita = bateu com imensa
curto instante = um momento
flamejante = vistoso
esplendor retardado = beleza
plenitude = totalidade
e o sol poente aprofundava o matiz amarelecente das folhagens. O jardim parecia o interior de um templo de ouro.
Por instantes, o Sr. Craven ficou calado, tal como as crianças quando ali entraram pela primeira vez. Olhava em redor, embevecido:
- Pensei que tudo estivesse morto!
- No princípio, Mary também pensou - disse Colin. - Mas tudo voltou a viver!
Então, sentaram-se à sombra da árvore - todos, menos Colin, que fizera questão de ficar de pé, enquanto contava sua história.
"Nunca ouvi nada mais estranho na minha vida" - pensava Archibald Craven, deitando-se no chão, como se fosse um rapaz. Mistério e magia e animais selvagens,
o fantástico encontro da primavera, a paixão do orgulho ofendido que pusera de pé o jovem rajá e o fizera desafiar o velho Ben, face a face. A camaradagem, a "comediazinha",
o segredo tão cuidadosamente guardado!
O ouvinte ria até às lágrimas e, às vezes, o pranto corria de seus olhos mesmo sem que ele estivesse sorrindo. Atleta, Conferencista, Cientista-Inventor-Descobridor,
seu filho era um simpático, alegre e sadio rapaz.
- Agora - disse Colin, findo o relato - não precisamos mais guardar segredo. Acho que todos vão ficar um bocado assustados, quando me virem. Mas nunca mais
usarei aquela cadeira de rodas. Vou para casa com
você, papai! Andando a seu lado!
* * *
As obrigações de Ben Weatherstaff raramente lhe permitiam afastar-se dos jardins. Mas, naquela ocasião, ele tinha a desculpa de ter que levar algumas
verduras à cozinha. E, tendo sido convidado pela Srª Medlock a beber um caneco de cerveja, estava no ponto certo (como, de resto, desejava), quando teve lugar o
acontecimento mais dramático que a Mansão de Misselthwaite jamais tinha presenciado nesta geração.
Uma das janelas que dava para o pátio deixava ver, também, o gramado. Sabendo que o velho Ben tinha vindo dos jardins, a Srª Medlock esperava que ele tivesse
visto o patrão e o encontro entre o pai e o filho:
- Você viu os dois, Ben? - perguntou ela.
O velho jardineiro tirou o caneco de cerveja da boca e enxugou os lábios com as costas da mão:
- Ora, se vi! - e seu tom de voz não dissimulava uma significativa malícia.
- Viu os dois? Tem certeza? - insistiu a Srª Medlock.
- Os dois, sim. Vi os dois! - retrucou o velho Ben, acrescentando, para aproveitar a oportunidade: - Agradeceria muito,
o matiz amarelecente = tom amarelado
em redor = em volta
findo = terminado
dramático = emocionante
presenciado = visto
dissimulava = disfarçava
dona, se pudesse beber outro caneco!
- Os dois, juntos? - perguntou de novo a Srª Medlock, enquanto enchia o caneco de Ben.
- Isso mesmo, dona. Juntos! - e Ben entornou o caneco.
- Onde estava o Sr. Colin? Parecia bem? Que disseram eles, um ao outro?
- Não ouvia nada, isso não... Eu estava no alto da escada, no muro. Mas posso lhe garantir uma coisa. Fatos muito importantes estão acontecendo lá fora e
o povo aqui dentro nem imagina!
Nem dois minutos se passaram e ele apontava, pela janela, com o caneco vazio:
- Veja, dona, se quer saber! Veja só o que vem vindo para cá!
A Srª Medlock olhou pela janela, na direção do gramado, ergueu as mãos e deu um gritinho. Todos os criados, homens e mulheres, acorreram e, de olhos arregalados,
fitavam o pátio.
Cruzando o gramado, vinha o Sr. de Misselthwaite, com uma aparência que nenhum deles conhecia. Ao seu lado, de cabeça erguida e com os olhos refletindo uma
alegria irrefreável, caminhava, firme e disposto, como qualquer rapaz do Yorkshire, o Sr. Colin!
fatos = coisas
cruzando = atravessando
irrefreáve = incontrolável
Fim.
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O JARDIM SECRETO - FRANCES H. BURNETT.txt

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