domingo, 30 de março de 2014 0 comentários By: Fred

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quarta-feira, 26 de março de 2014 0 comentários By: Fred

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{clube-do-e-livro} Livros Espíritas em TXT - Marcelo Cezar, Elisa Masselli, Mônica de Castro, Zibia,



PARA SEMPRE COMIGO
PSICOGRAFADO POR MARCELO CEZAR
PELO ESPÍRITO MARCO AURÉLIO





"Ao meu pai,
Gilberto Rodrigues Gândara
Meu querido, meu velho, meu amigo."



Sinopse:

Caio é acusado e preso por um crime que não cometeu. Em seu desespero quer apenas provar que é inocente.
Agora só Deus pode ajudá-lo.
Será que ele conseguirá ajuda Divina? Ou ele não é realmente inocente aos olhos da Vida? Deus pune? Ou a vida tem outras razões para nos colocar diante de difíceis desafios?
As leis da Vida são mais infalíveis do que as dos homens.
Neste extraordinário romance você terá a oportunidade de entender os segredos da inteligência que move os destinos do homem.
LUIZ GASPARETTO




Prólogo


Caio revirou-se várias vezes na cama. O suor escorria-lhe pela fronte, sem cessar. Estava aturdido, preocupado, muito preocupado. A atitude que tomara horas antes teria sido a mais correta? Tinha de deixar a casa de Loreta sem avisar nem mesmo a polícia? Deveria confiar em Isilda?
Ele não havia feito nada de errado, sabia disso. Mas sua consciência lhe chamava a atenção para a falta de prudência. Por que não ligara para uma das meninas da Casa da Eny? Por que ficara apavorado e saíra correndo da casa de Loreta, como se fosse um assassino? Custava ter esfriado a cabeça e pensado de maneira sensata, a fim de não arrumar problemas no futuro? E agora, o que fazer?
Sua cabeça latejava. O fluxo de pensamentos era intenso e não o deixava conciliar o sono. O jovem consultou o pequeno relógio sobre a cabeceira e viu que logo o sol ia aparecer. Mais um dia.
E como seria esse dia? Com certeza, não mais como antes. Não depois do que ocorrera. E se a polícia viesse atrás dele? Ele juraria inocência, mas tinha certeza de que a corda sempre estoura no lado mais fraco. Caio era pobre. E fazia alguma idéia da diferença de tratamento dada pela justiça a alguém sem sobrenome importante ou recursos.
Se fosse a julgamento, como iria se defender e provar sua inocência?
Talvez fosse melhor ir à polícia – foi o que sua consciência lhe sugeriu.
— Isso não! Agora já é tarde demais – rebateu para si.
Novamente aquela voz inspirava-lhe tomar atitude que não viesse a lhe causar problemas mais à frente. Era quase um sussurro, mas perfeitamente audível, soava ser uma voz familiar, amiga.
— Vá até a delegacia. Conte a verdade. O delegado vai entender e você não terá problemas no futuro.
Entretanto, o rapaz estava lutando contra essa corrente de pensamentos e deixou—se dominar pelo medo e insegurança.
— Perdi o sono. Vou me levantar. Chega de pensar no que deveria fazer, oras – tornou para si mesmo, fazendo movimento brusco com uma das mãos, como se estivesse botando sua consciência para correr.
Caio finalmente se levantou movimentos delicados, a fim de não fazer barulho e acordar Rosalina, sua mãe, que iria levantar-se dentro de alguns minutos para pegar no batente. Ela merecia um pouco mais de descanso, visto que dava duro para sustentar a ambos e ele levava uma vida de almofadinha, como se tivesse condições de ser um playboy de verdade.
Viviam em uma casinha de dois cômodos, todinha feita em madeira, de péssima qualidade. No inverno o vento frio entrava por tudo quanto era fresta e no verão, a casa mais se assemelhava a uma fornalha. Era composta de uma cozinha e um quarto.
No quintal ficava outra casinha, também de madeira, que consistia num cubículo fechado e no meio havia um buraco cavado na terra por aonde iam às necessidades fisiológicas. Quando enchia, era hora de mudar a casinha de lugar e cavar novo buraco. Ainda naquele bairro pobre e afastado da cidade não havia chegado esgoto, água encanada, asfalto, nada de infra-estrutura básica.
Caio olhou ao redor, fez negativas com a cabeça. Apanhou seu maço de cigarros e foi até o quintal. Aspirou o ar quente da madrugada que se findava e, num movimento rápido, acendeu e tragou vagarosamente seu cigarro.
— Não posso mais ficar aqui nesta cidade. Eu posso ser preso e, aí sim, minha vida estará arruinada.
Ele deu sucessivas tragadas e jogou o cigarro longe. Após soltar a fumaça pelo nariz tornou, aflito:
— Preciso e quero ir para a capital. Vou ter de antecipar meu sonho. Não tenho ainda condições de me sustentar, mas não vejo alternativa. Vou pedir ajuda à Sarita.
O rapaz respirou fundo, andou até a murada, abriu a portinhola da casa e estugou o passo. Precisava ir ao encontro de sua amiga.
Fazia algum tempo que Caio acalentava o desejo de sair de sua cidade natal, Bauru, e tentar a sorte na capital paulista. Depois desta madrugada, talvez fosse à hora de dar novo rumo à sua vida. O que acontecera na casa de Loreta horas atrás anteciparia um sonho reservado para o futuro, Agora Caio precisava ir embora. Melhor, ele tinha de partir de qualquer jeito.



CAPÍTULO 1

Distante poucas horas da capital e com população superior a trezentos mil habitantes, a cidade de Bauru, situada na região central do Estado de São Paulo, era – e ainda é – considerada uma das mais promissoras do país, principalmente em função da intensa atividade comercial, historicamente favorecida por sua posição geográfica e invejável estrutura de transportes.
É cidade conhecida em todo o território nacional, seja pelo sanduíche que leva seu nome – invenção de um conterrâneo —, seja pelo fato de quase ter se tornado capital do Estado de São Paulo em fins da década de 1960. Em todo o caso, além de vender simpatia e hospitalidade, o município, há anos exerce a função de pólo centralizador das atividades comerciais e de serviços, além de figurar num processo recente e crescente de expansão industrial.
Bauru também é nacionalmente conhecida por ter abrigado um dos bordéis mais famosos do Brasil. Era o bordel da Eny, popularmente conhecido como Casa da Eny.
Eny montara o prostíbulo anos atrás e tinha um séqüito de garotas bonitas e encantadoras, escolhidas a dedo para saciar toda a sorte de fantasias sexuais de seus clientes endinheirados. Era um bordel decente e de clientela distinta, freqüentado por artistas, empresários, políticos e boa parcela de indivíduos da alta sociedade.
Não obstante, no fim da década de 1970, a liberação dos costumes produzidos na sociedade – como o sexo livre, a emancipação da mulher e a promulgação do divórcio, dentre outras – fez com que os homens, de uma maneira geral, fossem cada vez menos aos bordéis ou prostíbulos para a realização de suas práticas sexuais.
A virgindade perdia seu valor, arrancava—se enorme peso cravado sobre os ombros da mulher por séculos e as moças podiam permitir—se a experimentar o sexo antes do casamento. As casadas iam perdendo, aos poucos, os pudores e se permitiam uma vida íntima mais satisfatória com seus maridos. Os motéis cresciam vertiginosamente e Eny, pela mudança dos tempos, fora obrigada a pôr seu estabelecimento à venda.
Rosalina, a mãe de Caio, trabalhava no bordel. Ela não era uma das meninas da Eny. Rosalina era mulher que não possuía atrativos para esse tipo de negócio e também sua rigidez moral não permitia que ela sequer sonhasse em se meter numa profissão dessas. Era mulher que preferiria passar fome a se submeter a esse tipo de serviço, como ela mesma frisava.
Rosalina era mulher forte, valente, cheia de entusiasmo. Vencera as adversidades da vida com coragem e otimismo e nunca se deixara abater, mesmo quando a tragédia, por duas vezes, batera à sua porta.
Primeiro foi à morte do marido, quando os dois filhos ainda eram pequenos. Um enfarte fulminante tirou—o de cena e Rosalina teve de dar duro para sustentar as crianças.
Viúva, sem os rendimentos do marido e sem parentes, ela precisou de trabalho. Rosalina era boa cozinheira e era boa de faxina. Por meio de uma amiga foi parar na casa de família rica e tradicional de Bauru. Recebeu ajuda da família e conseguiu, ao longo de alguns anos, construir sua casinha de madeira. Não era uma casa como ela sonhara para si e seus filhos, mas pelo menos não precisava mais se preocupar com aluguel.
Tinha seu cantinho, seu lar. Uma grande conquista para quem nunca tivera nada na vida.
Tudo parecia caminhar para o melhor, quando nova tragédia abateu—se sobre sua vida. Numa tarde qualquer, anos atrás, sua filha Norma, de dezoito anos recém completados, ao sair de uma loja de aviamentos, foi atropelada e não resistiu aos ferimentos. Morreu no asfalto, mais precisamente num dos cruzamentos da Rua Araújo Leite.
Rosalina sentiu o coração estraçalhar, tamanha dor pela perda da filha, mas não sucumbiu e tratou de levar a vida adiante. Precisava continuar viva e com saúde para encaminhar o filho Caio, na época um rapazote de pouco mais de catorze anos.
Embora rígida na moral que permeava sua vida, Rosalina era livre de preconceitos. Mal sabia escrever seu nome, contudo tinha uma sensibilidade de colocar qualquer letrado no chão. Era uma mulher sábia. Continuava trabalhando como doméstica para aquela família rica. Como dividia seu trabalho com outras empregadas no casarão, sobrava—lhe tempo para serviços extras. Foi assim que conseguiu trabalho na casa da Eny. Rosalina entrava às três da tarde e trabalhava até as sete da noite, quando os primeiros clientes davam as caras no bordel. Caio chegava ao bordel pouco antes das sete da noite e esperava pela mãe, nos fundos da casa. De lá até a casa deles era uma caminhada longa, permeada por algumas ruas desertas e sem iluminação. O rapaz religiosamente encostava—se à porta dos fundos do bordel todos os dias. Saía da escola e ia direto para a Casa da Eny.
Num desses dias, a professora passou mal e as aulas terminaram mais cedo. Caio decidiu ir diretamente ao bordel e chegou lá muito antes das sete da noite. Sem ter o que fazer, sentou—se em um degrau da escada que dava acesso a um pequeno quarto contíguo do estabelecimento, quando foi surpreendido por uma das garotas que trabalhava no local.
— O que faz por aqui?
— Estou esperando minha mãe.
A moça desatou a rir.
— Esperando a mãe? Aqui?
— É
— Tem certeza?
— Sim, tenho. Por quê?
— Por nada – ela levou a mão à boca, a fim de abafar o riso.
— Qual a graça?
— Nenhuma. Desculpe—me, não quis ofendê—lo. Mas é que aqui...
Ele a cortou e respondeu seco:
— Eu sei o que é esse lugar – apontou. – Uma casa de viração, de venda de sexo.
— Esperto – ela mudou o tom. – Não conheço moça aqui que tenha criança e.
Novo corte.
—Escute dona, estou esperando minha mãe, a Rosalina. Ela faz faxina aqui todos os dias.
— Ah, você é o filho da Rosalina...
— E não sou criança. Vou completar dezessete anos semana que vem.
— Hum, bela idade – redargüiu a moça, com a voz carregada de malícia.
O rapaz corou. Nesse aspecto era tímido. Caio nunca havia tido relações sexuais com mulher nenhuma, mas já era esperto o suficiente para perceber os olhares de cobiça que a jovem lhe dirigia.
— Você tem um rosto lindo.
— Obrigado.
— Poderia ser modelo.
— Está de brincadeira comigo?
— Não, por quê?
— Modelo?!
— Estou falando sério.
— Como? Nesta cidade?
— Não. O mundo não se restringe a Bauru e adjacências. Falo em ser modelo de verdade, ir a São Paulo, tentar uma carreira profissional.
Os olhos de Caio brilharam emocionados.
— Puxa, ir a São Paulo, tornar—me famoso, que maravilha... — ele desanimou no mesmo instante. – Não tenho como ir. Sou pobre, estou ainda no ginásio e....
A moça aproximou—se e o apalpou na altura da virilha. O rapaz ficou atônito. Ela deu uma risadinha. Caio corou, sua face ardia de vergonha. Ela percebeu e procurou ser gentil. Pegou em sua mão e foi puxando—o para dentro de casa.
— Meu nome é Sarita, trabalho aqui há alguns anos.
— O meu é Caio.
— Bonito nome. Nunca se deitou com uma mulher?
O rapaz moveu negativamente a cabeça para os lados. Sarita considerou:
— Prometo que vou ser boazinha. E, de mais a mais, preciso conferir e ver se você tem mesmo potencial...
Caio sorriu timidamente para a moça e deixou—se conduzir. Entraram no bordel. Os clientes ainda não haviam chegado e Sarita dirigiu—se até seu quarto, sem antes dar uma espiadinha para ver se Eny, ou uma das garotas, ou mesmo Rosalina não iriam pegá—los de supetão. Caio foi conduzido até um quarto no piso superior e Sarita pôde conferir de perto os atributos do garoto.
O jovem prometia. Tinha atributos que ia torná—lo um homem lindo e desejado. Caio tinha um corpo naturalmente bem—feito e bem torneado. Era forte, alto para sua idade – pouco mais de um metro e oitenta – ombros largos.
Possuía um rosto quadrado que lhe conferia ar maduro e viril. Os cabelos, anelados e jogados para os lados, eram um charme à parte.
Sarita não foi à única. Hilda, Estelita, Joana, Irene, foram muitas as garotas do bordel que se aproveitaram do apetite e abusaram do vigor do rapaz.
No decorrer dos anos, Caio passou a sair mais cedo do colégio para ir até o bordel. Entregava—se ao prazer com sofreguidão. As meninas da Eny ensinavam—lhe as mais variadas técnicas do sexo, mostrando a Caio como tratar a parceira, os carinhos preliminares, as partes do corpo que excitam uma mulher, a melhor posição para se relacionar etc. Acima de tudo, ensinaram—lhe a ser carinhoso e gentil no trato com uma mulher.
Rosalina nunca suspeitou das atividades sexuais do filho. Notou que Caio andava mais bem—disposto, cantarolava sem mais nem menos, sorria sem motivo aparente. Parecia um garoto movido a constante alegria e felicidade. Nem mesmo notara que ele chegava ao bordel duas horas antes de ela terminar o serviço. Religiosamente, de segunda a sexta—feira, ele se deitava, pelo menos, com uma menina da casa.
Os atributos físicos, o vigor e a virilidade do rapaz correram à boca pequena e logo uma rica viúva da cidade interessou—se pelo rapaz.
Loreta Del Prate era mulher perto dos 60, muito distinta, ainda muito bonita. Mantinha corpo bem torneado, era ainda capaz de chamar a atenção dos homens. Contudo, era bastante conhecida, tinha parentes importantes, promovia chás beneficientes para a paróquia da cidade. Sua reputação contava bastante e ela não podia, em hipótese alguma, aparecer nas ruas ao lado de um rapaz que tinha idade para ser seu neto. Não pegava bem, e Loreta dava muita importância aos comentários dos outros.
Loreta enviuvara havia pouco tempo, e enquanto esteve casada, nunca atingira o prazer com o marido. Ela comprou livros sobre sexualidade, fez análise com renomado psiquiatra da capital e descobriu que podia, sim, sentir prazer durante o ato sexual, que não tinha necessidade de fingir um orgasmo.
Isso era tudo muito novo para ela.
Educada de forma rígida, numa época em que o papel da mulher na sociedade consistia somente em cuidar do lar e parir filhos, Loreta a custo engolia a idéia de que a mulher deveria simplesmente ser um instrumento para que o homem chegasse ao prazer. Ouvira de sua mãe que uma esposa decente dá prazer ao marido, e de boca fechada, sem emitir um som sequer.
— Mulher é um objeto, que deve saciar o marido, sem direito a nada em troca – repetia a mãe.
Inconformada, após a morte de Genaro, ela passou a excursionar pelo país e pagava para ter sexo com rapazes, geralmente jovenzinhos cheios de virilidade e capazes de qualquer coisa por um prato de comida. Foi dessa forma incomum que ela descobriu que era capaz de sentir prazer.
O espírito de Loreta ansiava pelo prazer. Durante algumas vidas ela bem que perdera a cabeça por conta de seus desvarios sexuais. Comprometeu—se nesta encarnação a suprimir o prazer como forma de debelar seus instintos. Jurou para si mesma que, reencarnada, não daria tanta importância ao sexo.
Desta feita, reencarnou com a libido em baixa, a fim de facilitar os anseios de seu espírito. Loreta cresceu num lar sem religiosidade alguma e ao longo dos anos, seu espírito foi se distanciando dos objetivos traçados antes do reencarne. Ou seja, por falta de contato com a espiritualidade, de maneira geral, seus instintos estavam novamente superando os anseios de sua alma.
De volta a Bauru, descobrira que os homens interessados nela – geralmente mais velhos – não foram educados para saciar suas esposas, além de serem brutos e indelicados. Ela não podia fazer, ou melhor, pagar por serviços sexuais numa cidade do interior, onde todos a conheciam e respeitavam.
Ao saber do vigor de Caio, ela se empolgou e, com a ajuda de uma das garotas de Eny, Loreta passou a receber o jovem em sua casa, à noite, duas vezes por semana. Contava com a prestimosa ajuda de sua governanta, Isilda.
A governanta, na hora combinada, deixava o portão destrancado e a porta da cozinha entreaberta, a fim de facilitar a entrada de Caio na casa. Tudo feito de maneira muito discreta.
Fazia dois anos que Caio comparecia religiosamente todas as terças e quintas—feiras na casa da ricaça. O dinheiro que recebia – gorda mesada – dava para ajudar nas despesas da casa, gastar em roupas e. às vezes, comprar uma ou outra lembrança para a mãe.
Rosalina nunca suspeitou de nada, a princípio, porquanto seu filho estava sempre bem—disposto, era amável, ajudava nas tarefas da casa e dizia estar trabalhando num boteco no centro da cidade que fechava tarde da noite.
Ela começou a desconfiar num Dia das Mães, em que Caio lhe comprou um rádio de pilha último tipo, que valia mais do que ele supostamente afirmava ganhar no emprego. Ela foi ter com o Manolo, dono do boteco. O espanhol mentiu e afirmou que o menino trabalhava para ele no bar, duas vezes por semana e recebia uma ajuda, um salário simbólico.
— Se o salário é simbólico, como meu filho teve condições de me dar um rádio tão caro?
— Ora, minha senhora – volveu o espanhol, enquanto coçava o bigode espesso —, eu comprei esse rádio para minha esposa e ela não gostou. O prazo para devolvê—lo à loja expirou e, para diminuir meu prejuízo, ofereci a Caio. Eu desconto pequeno valor de seu pagamento. Deu para entender?
Rosalina entendeu ou fez que entendeu.
E por que Manolo mentira? Ora, porque ele era casado e freqüentava a Casa da Eny. Caio havia lhe salvado o casamento quando interpelado pela esposa de Manolo, tempos atrás. O rapaz afirmou, jurou de pés juntos que Manolo trabalhava noite após noite no bar, e, quando não estava lá, era porque tinha de resolver problemas com fornecedores de bebidas. Um acobertando as estripulias sexuais do outro. Bem típico dos homens...
Tudo o que aprendera com as meninas da viração, Caio passou a testar em Loreta e percebeu que o resultado era mais que satisfatório.
Ele era capaz de levar Loreta – e qualquer mulher que fosse – à loucura.
Era um verdadeiro gentleman, um Don Juan, amante insaciável e que sabia dar a qualquer mulher a dose certa de prazer.
Aos dezenove anos de idade, Caio alcançara a experiência que muitos homens nunca alcançaram ao longo da vida, em matéria de mulher.
Do prazer inicial, o sexo tornou—se um vício na vida de Caio. Ele não se saciava a contento. Precisavam se relacionar todos os dias, com qualquer mulher. Ele nem percebia, mas espíritos presos em nossa dimensão, ainda dependentes dos prazeres terrenos, grudavam—se na aura do rapaz e isso aumentava sobremaneira sua libido.
Caio nem imaginava que estava servindo de instrumento para espíritos de baixa vibração, que lhe sugavam as energias vitais. Daí sua necessidade descomunal de ter de fazer sexo sempre, a todo custo, a toda hora. Sua vontade era potencializada pela presença dos vários espíritos que se grudavam nele.
Não que o sexo seja algo condenado pela espiritualidade. Muito pelo contrario. O sexo, quando feito entre duas pessoas que se sentem atraídas é algo mágico, divino. Trata—se de uma troca salutar de energias para os parceiros. E, quando feito entre pessoas que nutrem sentimentos nobres uma pela outra, cria—se automaticamente, uma barreira energética que impede espíritos assanhados ou ignorantes de se aproximarem ou mesmo poderem assistir ao ato.
Isso não acontecia durante os encontros sexuais entre Caio e Loreta. Como não havia sentimento algum que os unisse, a não ser o puro desejo descontrolado pelo sexo, espíritos ligavam—se ao casal a fim de saciar seus desejos mais sórdidos. Ambos nada percebiam, a não ser uma tremenda vontade de transar e um cansaço, um vazio sem igual após as relações, que em nada satisfaziam os anseios de suas almas.
As relações com Loreta foram se tornando cada vez mais ousadas e picantes. Numa noite, após tomarem uma taça de champanhe, a fim de brindarem uma dessas peripécias sexuais, Loreta teve um ataque cardíaco fulminante.
Caio num misto de terror e desespero, ficou estático por alguns instantes. Deu um salto da cama e correu até os aposentos de Isilda, a empregada.
Ele bateu na porta com força.
— Isilda, pelo amor de Deus, abra a porta.
Ela levantou—se meio cambaleante, assonada.
— O que é?
— Loreta... Não sei... Acho que ela...por favor, venha comigo, me ajude, não sei o que fazer – gritava ele, aturdido e desesperado.
Isilda abriu a porta e, ao ver o rosto pálido do rapaz, pressentiu o pior. Ela o acalmou e retornaram ao quarto de Loreta. Ao ver os olhos da patroa arregalados e fixos no nada, além do corpo imóvel e a boca semi—aberta, Isilda quase teve a constatação. Aproximou—se e tomou o pulso da patroa. Nada. Depois, pegou um espelhinho na cômoda ao lado da cama e aproximou—o dos lábios de Loreta.
— Para que isso? – Perguntou Caio, aflito.
— Para saber se ela está viva. Se o espelho embaçar, é porque está respirando e ainda temos chance de trazê—la à vida.
Todavia, o espelho não embaçou. Isilda fez movimento com a cabeça para que o rapaz saísse dali o mais rápido possível.
— Melhor ir. Dona Loreta é mulher de respeito. Preciso evitar o escândalo. Vou dar um jeito em tudo. Agora, por favor, vista—se e vá.
Caio nem hesitou. Vestiu—se rapidamente, de qualquer jeito, e saiu correndo da casa, sem mesmo olhar para os lados ou para trás.
Assim que dobrou a esquina da casa de Loreta, dois olhos negros observaram—no saltar o portão, justamente naquela fatídica hora, naquela fatídica noite. Caio não percebeu a presença daquele homem que sorriu satisfeito assim que ele ganhou a rua.
Caio entrou em sua casa meio esbaforido, a camisa do avesso, o cinto da calça na mão. Rosalina dormia o sono dos justos e nada percebeu. O rapaz pegou uma jarra d´água e encheu uma caneca. Entornou—a garganta abaixo num gole só, mais de desespero do que de sede. Passou as costas da mão pela boca, respirou fundo e procurou dormir.
Mas não conseguiu. Os pensamentos fervilhavam em sua cabeça e ele decidiu, após levantar—se e fumar nervosamente seu cigarro, que Sarita poderia ajudá—lo.
— Confio nela – repetia para si mesmo, enquanto caminhava, passos rápidos, até a Casa da Eny.



CAPÍTULO 2

Uma das empregadas do bordel abriu a porta meio a contragosto.
— O último cliente saiu há pouco. Acabamos de fechar.
— Preciso falar com Sarita.
A empregada fez cara de poucos amigos, mas voltou para dentro e chamou a moça. Sarita apareceu alguns minutos depois, aparentando nítido cansaço.
— O que faz aqui? – indagou, meio a um bocejo.
— Preciso de sua ajuda. É importante.
Sarita percebeu o nervosismo estampado nas feições do rapaz e preocupou—se.
— O que aconteceu? Meteu—se em encrenca?
— Receio que sim...
Sarita mordeu os lábios levemente e considerou:
— Entre, acompanhe—me.
Caio pegou na mão dela e entraram na casa. Foram até o bar e sentaram—se nas banquetas.
— Eu estava com a Loreta e... – ele falava quase sem respirar, de supetão.
— Calma. Respire fundo – Caio assentiu com a cabeça. – E?
— Estávamos nos amando quando de repente ela teve um ataque, acho...
Sarita levou a mão à boca.
— Mesmo? Mas acha que foi um ataque fatal?
— Sim. Disso não tenho dúvidas. Seu corpo estremeceu, Loreta deu um gritinho abafado de dor e em seguida, seus olhos ficaram estatelados, fixados no nada. Tentei reanimá—la, mas ela nem se mexeu. Morreu.
— E por que não chamou Isilda, a empregada?
— Depois do susto, foi à primeira coisa que fiz. Corri até o quarto de Isilda e pedi ajuda. Ela constatou que a patroa morreu. Em seguida, pediu que eu fosse embora. Disse—me que Loreta não merecia ser vítima de um escândalo.
— Faz sentido. Isilda sempre fora fiel à Loreta.
— É o meu fim! – exclamou o jovem, apreensivo.
— Você não fez nada de mais.
— Pois é Sarita. Tenho medo de que alguém venha atrás de mim.
— Por que diz isso?
— Tive a sensação de que alguém me vigiava. Não sei ao certo.
— Fique sossegado.
Acalme—se. Isilda sabia das peripécias de Loreta, era conivente com a patroa, fiel e muito discreta. Vai inventar uma história qualquer e a polícia nem vai investigar.
— Mas estou com muito medo. Se eu vir um policial sou capaz de me entregar, por puro medo, por bobeira. Não gostaria de macular a imagem de Loreta. Não sei – ele hesitou —, Isilda pode dar com a língua nos dentes e você vem sabe Loreta sempre foi mulher benquista, admirada, ajudava na igreja, o padre Osório ia almoçar na casa dela todo domingo...
Sarita sorriu.
— O que foi?
— Padre Osório – ela suspirou. – Como um homem tão bonito como aquele pode ser celibatário?
— Nasceu para ser padre – tornou Caio.
— Não. Algo me diz que Padre Osório entregou—se ao sacerdócio por outro motivo, talvez uma decepção amorosa. Ainda vou descobrir o que se passa na cabeça e no coração desse padre.
Caio riu com gosto. Sentiu—se menos nervoso.
— Você fala do padre como se ele fosse...
— Um homem, ora! Atrás daquela batina esconde—se um homem. Escute – Sarita pousou suas mãos na dele —, procure padre Osório.
— Procurá—lo? Por quê?
— Para se confessar. Você bem sabe que um padre guarda muito bem nossos segredos. Converse com ele antes de partir.
— Partir, Sarita?
— E tem outro jeito? Não seria nada agradável a cidade descobrir que Loreta Del Prate deitava—se com um jovem da sua idade, Caio. A hipocrisia da sociedade arrasaria tudo o que ela fez de bom para Bauru. Sua reputação seria destruída e toda ajuda prestada à cidade seria ignorada. Loreta não merece isso. Nem a cidade.
— Tem razão. Preciso sumir por uns tempos.
— Sim. Por uns tempos – repetiu Sarita. – Daqui um mês o assunto vai se esgotar e todos vão esquecer.
— Uma temporada longe daqui não faria mal.
— Você tem razão, querido. Ademais, você poderia arrumar uma grande encrenca com a família de Loreta. Imagino a crueldade dos filhos caso soubessem como ela morreu e que você estava com ela no momento de sua morte. Nem quero pensar a respeito.
— Família? Filhos?
Ela não era viúva e sozinha?
Sarita deu uma risadinha irônica.
— Loreta, infelizmente, deu a luz dois seres desprezíveis.
— Como assim? – indagou, sem entender.
— Ela era mulher muito bacana, mas seus filhos... – Sarita fez um esgar de incredulidade. – Bom, os dois filhos de Loreta são ardilosos, intragáveis.
— Os dois?
— Hum, hum. E, mesmo sendo insuportáveis, são figuras conhecidas e respeitadas em todo o território nacional.
— Mesmo?
— Sim. Gregório, o mais novo, é solteiro e as más línguas dizem que não gosta de mulher, por esse motivo se mudou para a capital, a fim de não ser recriminado. Afinal, morando na maior cidade do país, é mais fácil dissimular sua preferência por rapazes. Com o dinheiro da herança, recebido após a morte do pai, ele se instalou confortavelmente num apartamento em um bairro nobre da capital e montou uma empresa que fabrica perfumes. Deu—se muito bem por um tempo. Seus produtos caíram no gosto do seleto e exigente público e fazem sucesso – ela fez uma pausa. – Espere um pouco.
Sarita saiu e voltou sobraçando uma revista. Folheou algumas páginas e apontou para uma propaganda de página inteira.
— Nunca ouviu falar na marca de perfume Nero?
— Claro que já. Todo homem de bom gosto e com dinheiro usa esse perfume.
— Dizem que até exportam o perfume para diversos países. É Gregório quem fabrica esse perfume.
— Ele deve mesmo ser cheio da nota.
— Parece que ele é excêntrico, gasta demais com seus meninos e vive em dificuldades financeiras. Vira e mexe estava por estas bandas, implorando à mãe que lhe desse mais dinheiro. Viviam às turras, Loreta e o filho. Agora ele vai queimar de vez a parte da herança que lhe cabe.
Caio interessou—se.
— E o outro filho?
— Um pulha, uma casca de ferida – Sarita riu. – E bota ferida nessa casca. Genaro, o filho mais velho, tem o nome do pai. É inescrupuloso, mesquinho, autoritário, odeia ser contrariado. É grosso e estúpido. Tornou—se político corrupto e finge ser carismático para o povo.
Foi vereador aqui na cidade.
— Não me lembro.
— Você era garoto. Genaro se envolveu num esquema de corrupção e quase teve o mandato cassado. Entretanto, como tem amigos influentes no poder, saiu ileso. Ele é forte candidato para o cargo de deputado federal às eleições diretas deste ano.
— Como sabe de tanta coisa?
— Ora, trabalho no prostíbulo mais famoso do Brasil. Aqui sabemos de tudo e de todos.
— Com tanta gente importante que vem aqui...
— Pois é, meu lindo. Somos garotas bem informadas – ela encostou o dedo no queixo. – Creio que você faz bem em partir. Talvez tenha chegado à hora de tentar a carreira de modelo. Fotográfico, de preferência.
Caio riu irônico.
— As únicas fotos que tirei na vida foram para os boletins de escola e para o documento de identidade. Não sou fotogênico.
— Eu diria que você está redondamente enganado, meu caro. Você tem porte e rosto de modelo. Se souber como encontrar e se relacionar com as pessoas certas, vai fazer carreira de sucesso. Acredite.
— E o que faço?
— Como disse, tem de partir, de preferência hoje.
— Assim, sem mais nem menos?
— Tem alternativa?
— Não. Até pensei nisso. Sinto que devo partir, mas não tenho recursos. Eu não tenho dinheiro para a passagem. Será que você podia me ajudar?
— Com o maior prazer. Tenho algumas economias e posso lhe emprestar algum dinheiro.
Caio sorriu aliviado, mas logo seu semblante contraiu—se. Sarita perguntou:
— O que foi?
— De que adianta passagem se não conheço ninguém lá na capital?
— Isso é o de menos. Passagem eu lhe dou de presente. E, quanto à morada em São Paulo, eu lhe faço uma carta de recomendação.
— Como assim? Para quê?
— Tem uma ex—colega nossa de trabalho que se deu muito bem anos atrás. Conheceu um figurão rico aqui no bordel, tornou—se amante dele e, quando o velho morreu, deixou para ela um sobradão lá na capital. Fani transformou o sobradão numa pensão e vive disso. Ela poderá lhe dar guarida por uns tempos.
Fani é muito generosa, uma boa mulher. Tenho certeza de que vai ajudá—lo.
Caio mordeu os lábios. Passou a mão pelos cabelos. A idéia não era má. Iria para a capital, tentaria ser alguém bem—sucedido. Estava cansado da vida sem perspectivas em Bauru. Na verdade, se continuasse no interior, sem estudo, Caio vislumbrava um futuro totalmente embaçado, pobre e sem atrativos. São Paulo era o centro do país, a locomotiva que movia o Brasil, acreditava ele. Poderia ter muitas possibilidades de trabalho, conhecer gente importante, e até tornar-se alguém de fama e prestígio. Por que não?
— Você faria tudo isso por mim? De verdade?
Ela sorriu maliciosa.
— Posso sim, desde que você se despeça de mim. Vou sentir saudades do garotão. Venha.
Caio devolveu o sorriso malicioso e subiram até o quarto de Sarita. Chegando lá, ele a deitou e a amou com toda a intensidade, num misto de desejo e gratidão por tudo o que ela lhe fizera.
Sarita era uma mulher linda, de vasta cabeleira negra e lisa que corria até sua cintura. A pele era morena, da cor que o diabo e a maioria dos homens gostam. Os olhos negros e as sobrancelhas espessas conferiam—lhe ar sedutor, tanto que alguns clientes a chamavam de Pantera. Essa pantera era muito disputada pelos clientes. Tinha um corpo de fazer inveja, perfeito, bem torneado, cheio de curvas pecaminosas.
Após se amarem, descansaram e ao acordarem, entabularam conversação.
— Você merece uma vida melhor.
— Também acho, meu querido – assentiu Sarita. – Nunca tive preconceitos e a vida me empurrou para esse trabalho. Contudo, tenho repensado minha vida... Creio que vou me confessar com o padre Osório. Quem sabe ele me entende.
— Sarita! – exclamou Caio. – Você gosta tanto assim do padre Osório?
— Sim. Às vezes vou à missa só para vê-lo, mais nada. Por duas vezes nossos olhares se encontraram e eu sei que ele me olha diferente.
— Você, apaixonada por um padre! Essa é boa.
— Que mal há nisso? Além do mais, não pago um centavo por sonhar.
Caio a abraçou e a beijou na face.
— Você tem alguma formação?
— Comecei o curso de secretariado, mas por falta de grana, tive de parar. Meus pais morreram num acidente de carro e eu nunca me dei bem com meu irmão. Ele já era casado na época do acidente e não se mostrou muito disposto a me ajudar. Sozinha e sem recursos, uma noite conheci um cavalheiro que me prestou ajuda. Saí de Goiânia e vim direto para a Casa da Eny. Entretanto, aprendi minha lição.
— Que lição, Sarita? – indagou o jovem, interessado.
— Aprendi que sexo é bom. Usá—lo como profissão, não é errado, contudo, não me faz bem. Eu acredito em Deus, em algo invisível que rege esse Universo todo. Sou mais que a tal da pantera, sou mais que esse corpo – disse, fazendo um gesto e apontando para si mesma. – Conforme tenho me dado valor e tido consciência de que posso ser dona de meu destino e mudar a hora que bem entender, fico com menos vontade de flanar pelo mundo da prostituição. Quero voltar a estudar, concluir o curso de secretariado, encontrar um bom moço, quem sabe um ex—padre – ela sorriu maliciosa —, e ser feliz, constituir família.
— Você é especial, Sarita – volveu o rapaz, de maneira sincera. – Espero um dia poder retribuir a ajuda que está me oferecendo. Ainda vamos nos encontrar no futuro e, quem sabe, poderemos ficar juntos.
Ela riu.
— Não se iluda. Osório é minha cara-metade. Você ainda vai encontrar a sua.
— Como pode afirmar uma coisa dessas?
— Intuição feminina – ela sorriu. – Eu poderei encontrá-lo no futuro e ser sua amiga, mas nunca serei sua mulher. Posso me deitar com vários homens, mas o meu coração é de um só.
Ele fez uma careta.
— O tal padre.
— É. Enquanto eu tiver esperanças, não vou desistir.
— Queria amar alguém, de verdade.
— Há alguém no seu caminho.
— Fala de um jeito... Até me deu um arrepio!
— Minha intuição é afiada, não me engana. Algo me diz que você precisa partir. Agora é que sua trajetória de evolução vai ter início.
— O que é isso?
— Você verá. Ou melhor, vai sentir na própria pele. Para seu bem, é claro.
Sarita o beijou delicadamente nos lábios e deitou a cabeça sobre o peito musculoso e bem torneado do rapaz. Para Caio, além de um mulherão, Sarita era seu anjo bom, uma mulher de princípios, de valores. Não era hipócrita e parecia ser dona de si. Inspirava confiança. Iniciara—o no sexo, ensinara—lhe as artes secretas do amor, era amiga leal e estava lhe dando o empurrão que faltava para tomar coragem e mudar, de uma vez por todas, para a capital do Estado.
Caio voltou para casa aliviado. Pegou uma maleta, arrumou algumas roupas e pertences. Rosalina acabava de chegar da padaria. Trazia um saquinho de leite e dois pãezinhos embrulhados num papel amarronzado.
– O que está fazendo?
Ele aproximou—se de Rosalina e a abraçou com carinho.
— Está na hora de partir, mãe. Preciso me tornar gente, ganhar dinheiro. Quero tirá—la daqui desta casa, dar—lhe uma vida boa. Não quero que trabalhe para sempre e.
Rosalina pousou delicadamente o indicador nos lábios do filho.
— Você nunca pertenceu a esta cidade. Sabia que em breve partiria.
— Ao mesmo tempo me dá medo. Não queria que ficasse sozinha.
— Sei me virar. Ainda sei e posso tomar conta de mim – ela sorriu.
— Estou com dezenove anos, não tenho formação, sempre a ajudei fazendo bicos por aí. Em São Paulo – os olhos dele brilharam emocionados —, terei condições de trabalhar, crescer e ganhar dinheiro. Você sabe que acalento esse sonho há anos.
— Eu sei. Pode ir em paz, meu filho.
— Não sabia como lhe contar sobre essa vontade súbita em partir.
— É?
— Percebo que está muito calma para o meu gosto.
Ela o beijou na fronte.
— Estou tranqüila, em paz. Eu sabia que você partiria. A Norma me contou.
— A Norma lhe contou?
— Sim.
— Quando foi isso, mãe?
— Algumas semanas atrás. Por essa razão, estou em paz.
— De novo isso? – perguntou, com a voz irritadiça.
— Por que fica bravo toda vez que converso com Norma?
— Porque não é normal, mãe. Isso me dá até arrepio – redargüiu o jovem, enquanto sacudia o corpo.
— Ela é sua irmã, sempre se preocupou com você.
Ela me contou dia desses que você partiria e que eu deveria aceitar. Disse que você precisará passar por determinadas situações na vida, a fim de confrontar e libertar—se das ilusões que impedem seu espírito de amadurecer. Sem esse confronto, seu espírito não vai sossegar.
— Idéia louca essa, mãe.
— Tudo isso tem a ver com o seu passado.
— Passado? Que passado?
— Vidas passadas. Norma teve acesso a algumas de suas vidas passadas e me contou tudo. Sua irmã afirmou que o seu espírito não vai sossegar enquanto não sentir na pele as injustiças que provocou no passado. Norma disse que tudo poderia ser diferente, mas você não quer crescer de outra forma. Ela me afirmou também que você poderia evitar o sofrimento e se libertar da culpa com inteligência e sabedoria.
— Mãe, assim você me preocupa. Não gosto quando fala nesse tom. Isso é coisa de gente desmiolada, biruta. Desde que Norma morreu você tem falado em outras vidas, em reencarnação. Você já perdeu seu marido e filha, faz sentido apegar—se a alguma religião para diminuir o sofrimento. Mas não venha com esse papo furado.
— Ninguém aqui falou em religião, meu filho. Mesmo porque Espiritismo não é religião, mas ciência. E eu estou falando sobre as verdades da vida, sobre a existência do espírito que habita nosso corpo físico. Isso não esta ligado a nenhuma religião, mas sim, ao conhecimento dos valores espirituais.
— Não gosto desse tipo de assunto.
— Sinto—me aliviada. Transmiti o recado de sua irmã. Agora cabe a você decidir o que fazer.
— Eu saberei me virar – ele hesitou por instantes. Afinal, será que Rosalina ouvira algum comentário logo cedo sobre a morte de Loreta? Isilda era bem discreta e as notícias ainda iriam demorar a correr. Mesmo assim, ele procurou saber:
— você ouviu alguma coisa aí na rua?
— Ouvi sim.
Ele mordeu os lábios com força para dissimular sua angústia. Será que a cidade já estava a par do ocorrido? Ele timidamente perguntou:
— O que foi que ouviu?
— Estava na padaria e, na fila, vi um amontoado de gente em volta do rádio. Era notícia de morte. De gente famosa.
Caio sentiu as pernas falsearem por instantes e balbuciou:
— Quem mo...morreu?
Rosalina deu de ombros.
— Não sei ao certo. Não dei tanta atenção, mas acho que era mulher. E muitas pessoas pareciam estar consternadas. Deve ser pessoa muito querida.
Caio encostou—se na parede, a fim de não ir ao chão. Agora tinha certeza. A notícia da morte de Loreta vazara e logo ele seria procurado pela polícia. Tinha de partir o mais rápido possível. A cidade já sabia do crime. Ele respirou fundo e confessou:
— Eu a amo muito, mamãe.
— Eu e sua irmã também o amamos. Queremos o seu bem.
— Você só se esqueceu de que Norma está morta há alguns anos – retrucou, a fim de afastar os pensamentos que corroíam sua mente.
— E que problema tem?
Caio levou a mão a boca para evitar o estupor.
— Fala com uma naturalidade sem precedentes! Os mortos não falam. Estão mortos, oras.
— Tsk, tsk – fez Rosalina, estalando a língua no céu da boca. – Eu sou iletrada, mas tenho um pouco de conhecimento espiritual. Sua irmã tem me passado muitos ensinamentos e está mais viva do que nunca. Seu espírito vive numa outra dimensão. Norma encontra—se tão viva quanto eu e você.
— Não quero discutir.
— Estou fazendo supletivo, quero aprender a ler corretamente para comprar livros de cunho espiritual. Quero conhecer tudo o que foi publicado sobre o mundo de lá – ela apontou para o alto – e sua relação com o nosso mundo.
Sabia que o mundo espiritual influencia sobremaneira o mundo da Terra?
— Essa é boa. As coisas acontecem aqui porque tem de acontecer e ponto final.
— Ledo engano, meu filho.
Na verdade, fazemos parte do mundo de lá. A gente vem para cá por um tempo, somente para fazer com que nosso espírito vá se tornando cada vez mais lúcido, livrando—se dos medos, das inseguranças, além de resolver situações pendentes do passado, que martirizam nossa consciência e impedem nosso espírito de alçar vôos maiores em outros mundos.
— Mundo de lá... Sei, sei. Eu não acredito em nada disso. Se Norma pudesse se fazer presente, aqui e agora, na minha frente, eu poderia começar a mudar meus conceitos.
— Ela não pode fazer isso, meu filho, por dois motivos: Primeiro, porque você não possui mediunidade educada para enxergar os espíritos e segundo, ela diz que você vive preso ao mundo das ilusões e, por conta disso, está envolvido numa vibração cujo teor a afasta de você. É como se você tivesse algo ao seu redor que repele o contato com sua irmã – Rosalina tentou explicar na sua maneira simples, porém sábia, de enxergar a vida. – É mais ou menos assim: imagine quando você entra em casa e sente um cheiro forte, mas ruim, desagradável, que o enjoa. O que você faz?
— Saio correndo. Por que vou sentir um cheiro que vai me fazer mal?
— Pois bem, é como se você tivesse esse cheiro esquisito. Norma tem dificuldade de se aproximar. O máximo que ela consegue é transmitir—lhe algumas idéias à distância, mais nada.
Caio riu gostoso.
— Prometo que vou pensar no assunto – ela a abraçou com carinho e uma lágrima sentida escorreu pelo canto de seu rosto. – A Norma me faz muita falta.
— Se mudar seus conceitos acerca da vida e da morte, a falta que sua irmã lhe faz pode ser amenizada.
Ele afastou—se da mãe e nada disse. Apanhou o resto de seus pertences, meteu tudo numa maleta. Rosalina afastou—se e voltou com um saquinho.
— O que é isso, mãe?
— Um dinheirinho guardado para emergências.
Caio ia falar, mas ela tapou sua boca com carinho.
— Isso estava reservado para você, meu filho. Não vai me fazer falta. Por favor, fique com esse dinheiro.
Por consideração a mim e à Norma.
Caio caiu num choro sentido. Precisava desabafar contar à mãe o que acontecera naquela noite, mas não tinha coragem. Rosalina era pura de coração e não merecia o desgosto de saber sobre as peripécias do filho. A notícia já chegara ao rádio e ele precisava partir. Não tinha muito tempo para estender a despedida. Nem iria procurar por Padre Osório. Ficaria para outra ocasião. O tempo urgia.
Caio abraçou a mãe com carinho.
— Obrigado pela força que está me dando. Eu vou retribuir toda essa ajuda, pode acreditar.
Norma, em espírito, sorria para ambos. O teor da conversa e o amor sincero que emanava de Rosalina e Caio permitiu que ela pudesse achegar—se deles. Com delicadeza, aproximou—se e abraçou—se aos dois, iluminando toda a pequena casinha de madeira, naquele bairro pobre e distante, encravado nas extremidades de Bauru.



CAPÍTULO 3


Munido de pequena maleta numa mão, e um papel amarrotado com o endereço de Fani em outra, Caio saltou do ônibus, na estação Julio Prestes. Olhou para a cobertura colorida que cobria a estação rodoviária e se emocionou. O sol refletido por aqueles arcos dava um novo colorido à sua nova etapa de vida.
O rapaz saiu da estação e mal podia acreditar na quantidade de gente que entrava e saía, na multidão que andava pelos arredores, um grande formigueiro humano. Ao ganhar a rua ele avistou a torre da estação da Luz. Caio sorriu.
— São Paulo, aqui estou! Por favor trate—me com carinho. Ele falou para si e foi caminhando até um terminal de ônibus. Indagou um senhor na enorme fila que se formava para se entrar no veículo:
— Sabe como chego até a Rua Humaitá, na Bela Vista?
— Sei não – respondeu o homem, coçando o queixo.
Caio foi perguntando às outras pessoas que estavam na fila, até que um rapaz, de aspecto simpático, aproximou—se e retorquiu:
— Meu ônibus passa próximo dessa rua. Quando chegarmos perto eu lhe aviso ou até desço e lhe mostro onde fica.
— Obrigado moço.
— Por nada. Sabe esta cidade, além de grande, é cheia de teias, praticamente uma arapuca. Cidade grande tem muita violência, muita gente má, inescrupulosa. Você precisa fazer logo boas amizades, senão pode se dar muito mal.
Caio admirou—se com a postura do rapaz. Agradeceu a gentileza e foi puxando conversa.
— Você é daqui da cidade?
— Não, sou do Rio de Janeiro. Quer dizer, do interior do Estado. Minha família é de Vassouras.
Caio pousou a maleta no chão e estendeu—lhe a mão.
— Prazer, meu nome é Caio.
O rapaz retribuiu.
— Prazer. O meu é Guido.
— Nome diferente. Guido. Nunca ouvi antes.
O rapaz baixou o tom de voz, como se estivesse fazendo uma confissão sagrada.
— O meu nome, de verdade, é outro.
— Qual é?
Guido falou de maneira misteriosa:
— A minha profissão exige que eu adote um nome, digamos, mais charmoso.
— E o nome Guido tem charme?
— Pois se tem! Eu invento histórias, conto que minha família veio da Itália, que meu avô foi perseguido pelo ditador Benito Mussolini durante a Segunda Guerra Mundial. Floreio bastante sobre o meu passado. A clientela adora.
— Clientela? Que clientela?
— Depois eu lhe conto – respondeu Guido, entre dentes.
Caio deu de ombros. Não se interessou em saber seu nome verdadeiro. Nem tampouco o que fazia. Ele gostara dele, parecia ser simpático.
— Você me é familiar. Eu o conheço, não?
Guido esticou o lábio. Fez negativa com a cabeça.
— Nunca nos vimos antes.
— Sinto como se o conhecesse. Engraçado... Nunca o vi, mas parece que o conheço há tempo.
— Impressão. Talvez a minha simpatia, hospitalidade sei lá – Guido prosseguiu: — você veio de onde? Com esse sotaque, só pode ser do interior de São Paulo.
— Está tão forte assim?
Guido riu.
— Forrrte. Não precisa carregar tanto na letra erre.
— Eu nem percebo.
— Isso pode se tornar seu charme, sua marca registrada.
— Para quê?
— Não sei ainda. Poderá ser útil no futuro.
— Não vejo como.
— Veio de onde?
— De Bauru.
— E veio fazer o quê em São Paulo?
Caio titubeou. Não seria de bom tom dizer logo de cara que ele, recém—chegado do interior, tinha vindo à cidade grande para se tornar modelo famoso. Procurou dissimular.
— Vim tentar a sorte.
— Tem algum parente, algum lugar para ficar?
— Tenho um endereço. Devo procurar uma senhora que tem uma pensão na Rua Humaitá.
— Olha, acho meio difícil você chegar lá, pelo menos nas próximas horas.
— Não entendi.
Guido meneou a cabeça para os lados. Sorriu.
— Hei, em que mundo você vive?
— Por quê?
— Porque a Rua Humaitá é uma travessa da Rua Brigadeiro Luis Antônio.
— É?
— E essa rua está interditada hoje porque o corpo da cantora Elis Regina está sendo velado no Teatro Bandeirante.
— A Elis Regina morreu?
— Ontem. Ninguém sabe direito de quê. Também não interessa. Ela morreu mesmo. Pena que não vamos mais poder escutar sua linda voz, vê—la com seus gestos e idéias irreverentes na TV.
Elis já faz falta – finalizou, com a voz embargada.
Caio impressionou—se.
— Você é um rapaz sensível e inteligente.
— Obrigado. A vida me ensinou bastante coisa.
— Mas, se eu não posso ir até a Rua Humaitá, o que vou fazer?
A fila começou a andar e os dois subiram no ônibus. Guido foi gentil e pagou as passagens. Caio sorriu. Mal chegava à cidade e conhecia um cara bacana. Tinha uma idéia de que o pessoal da cidade grande era metido e reservado, frio e impessoal. Não era essa a impressão que ele verificava na prática.
Sentaram—se.
— Você pode ir até meu apartamento.
— Mora só?
— Divido com um amigo, lá no bairro dos Jardins. Trata—se de um dos endereços mais chiques de São Paulo. Você pode ficar comigo.
— Seu amigo não vai reclamar? Sou um estranho.
— De jeito algum. Maximiliano está a trabalho em Londres e deve voltar perto do carnaval. Estamos em janeiro e se você precisar, pode ficar comigo até ele chegar.
— Fala sério?
— Claro. Fui com a sua cara. Você parece ser um cara legal. Inspira—me confiança.
Caio sorriu emocionado. Lembrou—se de Sarita. Havia muita gente boa no mundo, pensou.
— Obrigado pela ajuda e pela força, Guido.
Guido era um moço nem bonito nem feio. Cabelos loiros, encaracolados, olhos grandes e boca carnuda. Possuía corpo bem—feito, atlético. Tinha estatura mediana, seu sorriso era encantador, embora seus olhos amendoados fossem enigmáticos e misteriosos. Era necessária muita perspicácia para medir a sinceridade do rapaz. Estava com vinte e um anos de idade.
O rapaz sorriu e, no trajeto, foi mostrando a Caio os pontos conhecidos da cidade, os prédios, monumentos, ruas e avenidas famosas. Caio não desgrudava os olhos da janelinha do ônibus e absorvia toda a informação que recebia com felicidade. Seus olhos emocionavam—se a cada indicação de Guido. A catedral da Sé, o viaduto do Chá, o Teatro Municipal, o famoso prédio da finada loja Mappin, tudo o encantava. Parecia um garoto que acabara de ganhar um brinquedo no Natal. Sua chegada a São Paulo não poderia ser melhor...
Enquanto Guido lhe servia de guia, Caio agradecia aos céus pela nova amizade.
O ônibus teve de parar por um bom tempo. O motorista nem mesmo podia fazer um caminho alternativo. O engarrafamento era enorme. Todas as vias próximas à Rua Brigadeiro Luís Antônio e adjacências estavam entupidas de carros e de gente. Muita gente que queria ir até o teatro para dar adeus à maior cantora do Brasil.
Os rapazes saltaram do ônibus.
— Acompanhe—me – solicitou Guido.
Caio assentiu com a cabeça e misturaram—se à multidão.
— Olhe – apontou Guido —, o caixão está sendo colocado no caminhão do Corpo de Bombeiros.
Os dois pararam numa esquina e, acotovelados entre muitas outras pessoas, permaneceram ora em silêncio, ora cantarolando músicas que fizeram sucesso na voz de Elis. Caio sensibilizou—se com seu novo amigo. Guido cantava e chorava ao mesmo tempo, assim como todos ao redor.
— Eu gostava muito dela. O Maximiliano tem muitos discos de Elis lá no apartamento. Vamos – ordenou —de nada vai adiantar ficar aqui embaixo desse sol. Melhor irmos andando até o apartamento. Agüenta cerca de vinte minutos de caminhada?
— Claro.
— Vamos por aqui.
Caio o acompanhou e meia hora depois, eles dobraram a Brigadeiro e entraram na Alameda Casa Branca.
Pararam diante de um prédio bem apanhado, sofisticado, cuja opulência e beleza se faziam notar.
— Chegamos meu caro.
— Nossa! – exclamou Caio. – Você mora aqui?
— Sim, por enquanto este aqui é o meu endereço. Espero que para sempre – retrucou Guido, de maneira arrogante.
Caio deu de ombros e não quis esmiuçar a vida de Guido. Nem queria. O rapaz estava sendo bom demais, mostrava ser amigo e lhe convidara para ficar hospedado em sua casa, sem cerimônias.
Guido cumprimentou o porteiro.
— Oi Malaquias.
— Como vai, seu Guido?
— Bem. Este é meu primo Caio.
— Como vai, seu Caio?
— Bem obrigado.
Guido aproximou—se do porteiro.
— Ele vai passar um tempo aqui comigo, até o Maximiliano voltar. Portanto, comunique os outros empregados do prédio. Não quero, em hipótese alguma, que meu primo seja barrado na portaria, entendeu?
— Sim, senhor. Pode deixar.
Os rapazes se afastaram e pegaram o elevador. Ao entrarem, Caio coçou a cabeça, sem entender.
— Por que disse ao porteiro que sou seu primo?
— Para não arrumar encrenca. Este prédio é cheio de cerimônias, alguns moradores reclamam das visitas que recebo e o Max então...
— Max? Quem é Max?
Guido sorriu.
— Maximiliano, o dono do apartamento. O nome é muito comprido e todo mundo o chama de Max.
— Tem certeza mesmo que o Max não vai se incomodar de eu me hospedar na casa dele?
— Fique tranqüilo. Ele é um bom camarada. Pode crer.
O elevador parou no andar e saltaram num hall decorado com gosto. Guido meteu a chave no trinco e, ao girar a maçaneta, foi como se Caio entrasse num mundo de sonhos. O apartamento de Max era puro requinte e sofisticação. Imenso, com janelas amplas e vista atraente, mobiliado com excelente bom gosto, peças e obras de arte. Tudo arrumado de maneira perfeita, organizada.
Caio não sabia para onde olhar. Lembrou—se da Casa da Eny e da casa da família rica que sua mãe trabalhava lá em Bauru, os únicos lugares que conhecera e julgara serem os mais lindos e sofisticados do mundo. Agora, no apartamento de Max, seu conceito de beleza e sofisticação adquiria novo grau de avaliação.
— Pode babar e, depois, estirar—se no sofá – sugeriu Guido, enquanto tirava a camisa e dirigia—se até o bar da sala. – Quer uma bebida?
— Não acha cedo?
— Não existe hora certa para um bom trago. Vai de quê?
— Sei lá. O que você vai beber?
— Uísque.
— Eu também quero.
— Puro ou com gelo?
— Duas pedras.
Guido pegou a garrafa e debruçou—a sobre os dois copos já com gelo. O telefone tocou e ele correu a atender.
— Sim. Claro. Que horas? Perfeito.
Guido pousou o fone no gancho e voltou ao bar.
— Que maravilha, recebi ligação de cliente.
— Cliente? – indagou Caio.
— Sim. Eu saio com algumas mulheres e recebo bom dinheiro para lhes dar prazer. São mulheres ricas, conhecidas da sociedade, de fino trato, mas que não podem ser vistas, porque senão a imprensa faz da vida delas um inferno. Foi difícil me tornar call boy, mas consegui.
Caio não entendeu.
— Call o quê?
Guido sorriu.
— Call boy, acho que vem de cowboy no inglês. São rapazes que fazem sexo com mulheres em troca de dinheiro. Tem também os chamados call táxi, que transam com homens. Eu sou uma mistura dos dois. Algum preconceito?
— Nenhum. Cada um faz o que quiser de sua vida.
— Pura necessidade – confessou Guido, dando de ombros. – Eu nunca saí com homens, mas um dia conheci o Max e então pintou um clima. No inicio me assustei um pouco, mas depois me acostumei. Transar com homem ou com uma mulher, para mim, não faz diferença. E, de mais a mais, a mesada que Max me dá para ficar só com ele e mais ninguém é mais que satisfatória. Veja por si – apontou ao redor do apartamento –, levo uma vida de luxo, ganho um bom dinheiro dele e ainda me satisfaço com as mulheres e ganho uns trocados.
— Max sabe que você sai com mulheres?
— Desconfia. Entretanto, ele viaja muito. E, quando ele viaja, eu aproveito e atendo minha clientela. Você poderia também fazer isso.
— Isso o quê?
— Ser um call boy. Você tem atributos que podem atiçar o desejo de uma mulher.
Enquanto Caio pensava nessa possibilidade, Guido serviu—se de uísque, deu meia volta no bar e entregou o outro copo a ele.
— Um brinde a você.
— A mim?
— Sim, meu amigo. A você. Que São Paulo e as mulheres ricas desta cidade possam lhe dar tudo o que você sempre sonhou.
Encostaram os copos e beberam. Caio estalou os lábios com a língua. Nunca havia tomado um uísque tão puro e que descia tão bem garganta adentro. Estava com sorte.
Havia saído de Bauru com medo, aturdido e cheio de inseguranças. Chegara à cidade grande e já encontrara um grande amigo para lhe dar atenção e suporte. Assim ele acreditava.
Caio foi acometido de leve tontura. Embora sentisse que esse não deveria ser em hipótese alguma, seu caminho a seguir, viu—se tentado. Ele aprendera a fazer sexo e sabia ser bom de cama. As meninas da Eny haviam—lhe ensinado muitas coisas e ele poderia se dar muito bem nessa nova empreitada. Ganharia bastante dinheiro até se tornar modelo famoso. Será mesmo que precisava se tornar modelo?
A tontura tinha motivo. Caio chegara a São Paulo, mas não viera sozinho. Alguns espíritos que o acompanhavam em Bauru estavam ali presentes. Ao chegarem ao apartamento, esses espíritos, sedentos de prazer, sentiram—se no paraíso.
Caio e Guido não enxergavam nem percebiam, mas no apartamento tinha um grupo de mais ou menos trinta espíritos, que entrava e saía, bebia e colava—se à aura de Guido, potencializando no jovem o desejo pelo sexo fácil e desprovido de qualquer sentimento nobre.
A consciência de Caio implorava para que ele negasse a proposta de Guido e tomasse novo rumo na vida. Todavia, sua mente perturbada pela horda de espíritos sedentos por sexo, bebida e outras paixões típicos da vida terrena, mal escutava a consciência. E a proposta de Guido tornava—se uma possibilidade bem interessante para a sua vida.



CAPÍTULO 4


Luísa fechou a porta do closet com raiva. O barulho assustou a empregada.
— O que foi?
— Nada Eunice. Nada. Estou nervosa, só isso.
— Outra briga?
Luísa suspirou profundamente. Abriu e fechou os olhos algumas vezes. Abraçou—se a Eunice.
— Você me conhece desde pequena. Quando me casei exigi que mamãe a liberasse para vir morar comigo. Você é como uma mãe para mim. Vou lhe contar um segredo.
Eunice emocionou—se.
— Eu sei disso, minha querida – apertou—a de encontro ao peito. – O que está acontecendo? Quer se abrir comigo?
— Genaro tem me tratado de maneira tão estúpida! Era tão diferente quando namorávamos...
— Tenho percebido as alterações de humor dele. Realmente Genaro parecia ser outro homem quando vocês estavam noivos.
— Não entendo, Eunice. Ele era carinhoso comigo e me respeitou de verdade. Embora vivendo numa época moderna como a atual, em que a sociedade rompeu com vários tabus, ele exigiu que eu me mantivesse pura e virgem até o casamento.
Confesso que foi difícil reprimir meu instinto, os meus desejos e quase cedi. Pensei que após o casamento teríamos uma vida intima satisfatória e feliz. Não é o que acontece.
— E esse arroxeado no pescoço?
Luísa mordeu os lábios com raiva.
— É esse o segredo.
Eunice meneou a cabeça negativamente para todos os lados.
— O que aconteceu? Conte—me.
— Quando eu reclamo de sua brutalidade, Genaro fica mais nervoso. Nesta noite ele ficou tão bravo que apertou meu pescoço.
— Isso não se faz meu Deus! – choramingou Eunice. – Eu creio que o melhor a fazer é se separar.
— Genaro disse que só será possível depois das eleições. Ele afirmou com todas as letras que me mata se eu tentar manchar sua reputação de bom homem.
Veja só, Eunice, o Genaro é pessoa benquista pela mídia. Todos o julgam simpático e charmoso. O político ideal para um novo Brasil.
— Tanta hipocrisia! Seu marido não passa de um homem inescrupuloso e corrupto. Um dia ele terá de arcar com tudo isso.
— Aqui neste país? – indagou Luísa, em tom de deboche. – Esta é a terra dos espertos. Infelizmente, não vivemos num mundo justo.
Eunice a apertou novamente de encontro ao peito.
— Não diga isso, minha querida. Ainda vai ser muito feliz. Você merece.
Continuaram abraçados por mais algum tempo até que ouviram a voz grave e irritante de Genaro romper pela casa. Luísa assustou—se.
— Ele nunca vem para casa antes do anoitecer. O que será que aconteceu?
Genaro subiu os lances de escada de maneira rápida e entrou abruptamente no quarto. Mal olhou Luísa ou Eunice.
Foi direto para o closet, meneou a cabeça e escolheu um terno escuro. Ordenou:
— Eunice, tire os amassados deste terno. Ele deve estar impecável.
— Sim senhor. Para quando?
— Para ontem, mulher – ele atirou o terno sobre os braços dela. – Seja rápida, o motorista nos aguarda. Eu e Luísa vamos viajar. Agora.
Luísa estava atônita.
— Viajar? Agora?
— Estou falando em outro idioma? – retrucou Genaro, num tom ríspido.
— Para onde?
— Bauru.
— Oras, seus comícios começarão somente quando oficializarem sua candidatura e.
Genaro a cortou.
— Que comício que nada! Vamos a um enterro. Se vista com apuro, com elegância. Mulher minha tem de estar bem vestida sempre. Entendeu?
Genaro falou e foi tirando a roupa do corpo, caminhando para o banheiro.
— Seja rápida, nada de demora. Vou me banhar e, quando estiver botando a gravata, quero você pronta.
Luísa assentiu com a cabeça. Entrou no closet e escolheu um conjunto preto, composto de casaquinho e saia. Bem elegante bem discreto e perfeito para a ocasião. Ela debruçou a roupa sobre a cama, com delicadeza, e caminhou para o banheiro. Genaro estava se enxugando.
— Quem morreu?
— Sua sogra.
Luísa não entendeu de pronto.
— Hã? O que disse?
— Minha mãe morreu. Ataque cardíaco.
Luísa levou a mão à boca.
— Pobre Loreta. Meu Deus!
Ela caminhou até o marido e o abraçou.
— Oh, querido. Agora entendo por que está tão nervoso e tão agitado. Por que não me disse antes? Por que não me telefonou? Creio que você deva estar triste, bastante abalado e.
Luísa parou de falar. Genaro a estava mordiscando a orelha, o seu pescoço. A aproximação da esposa o excitou. Ele largou a toalha e a abraçou com força.
— Genaro o que é isso?
— Eu a quero agora.
— Por favor... Como pode? Sua mãe acabou de morrer, não tenho cabeça para intimidades. Não agora.
— Eu a quero.
— É absurdo e...
Ela procurou afastar—se, mas Genaro era bem mais forte. Ele a apertou e em seguida arrancou sua roupa. Atirou Luísa contra o chão frio do banheiro e a possuiu ali mesmo. Ela chorava baixinho. Fechou os olhos e orou a Deus para que a matasse naquele instante, tamanha dor e sofrimento, enquanto seu marido praticamente a estuprava, sem dó nem piedade.


***


O carro que levava Genaro e Luísa chegou a Bauru por vota das quatro da tarde. Luísa foi calada, óculos escuros, olhos inchados de tanto chorar, fosse pela violência sofrida horas atrás, fosse pela morte da sogra. Ela gostava de Loreta, muito. A própria sogra a havia alertado sobre o comportamento bruto e insensível do filho, mas Luísa deixou—se levar pela ilusão. Sonhava em casar e ter filhos. E julgara Genaro ser o marido ideal para a realização de seus sonhos.
Filha de um cafeicultor da região de Campinas, Luísa cresceu coberta de regalias. Os negócios da família foram de mal a pior e eles perderam tudo. Apareceu um pequeno negócio de terras para seu pai em Bauru e assim mudaram para a cidade.
Luísa conheceu Genaro na festa em que ele fora coroado o mais jovem vereador do município.
Neuza, mãe de Luíza, frustrada com a vida pobre e procurando oportunidades para se tornar rica novamente, a qualquer custo, viu na filha uma mina de ouro.
Fez de tudo para que ela se casasse com Genaro. Gastou o que não podia, fez jantares, praticamente vendeu Luísa ao político.
Luísa hesitou ante o casamento, não o amava. Será que deveria mesmo se casar?
— O amor vem com o tempo – garantia a mãe.
O tempo passou e o amor não veio. Luísa ao menos queria ter um filho para dar um novo colorido à relação, mas havia algo de errado, fosse com ela, fosse com o marido. Estavam casados havia cinco anos e ela não engravidava. Nem com reza braba.
Genaro queria uma mulher pura, virgem, cujo passado, caso esmiuçado, não comprometesse o grande plano para seu futuro: tornar—se Presidente do Brasil. E Luísa era moça bonita, recatada, estudara em bons colégios, era fina, trejeitos elegantes e cativava as pessoas com seu sorriso açucarado. Era a esposa ideal para um político com as pretensões de Genaro.
Sabendo da hesitação de Luísa, na época com apenas dezessete anos de idade, Genaro prometeu a Neuza que, se ela convencesse a filha a se casar com ele, todos sairiam no lucro. O político prometera a Neuza gorda pensão vitalícia, o que encheu de cobiça os olhos de sua futura sogra.
Não obstante, a vida de casado não se mostrava tão encantadora assim. Genaro, quinze anos mais velho que Luísa, mostrara—se homem bruto e agressivo. Transava com a esposa como se estivesse sobre um animal ou uma boneca inflável. Machucava Luísa, quase a sufocava com seu peso e sua falta de amabilidade. Terminava de amá—la, pegava um paninho na cômoda ao lado da cama, limpava—se, virava—se de lado e dormia ronco alto, noite adentro.
Luísa chorava por inúmeros motivos, fosse de dor, de falta de prazer, por sentir—se usada e mal—amada. Encheu—se de coragem e, certo dia, tentou conversar com o marido sobre a intimidade de ambos.
— Querido, precisamos ter uma conversa séria.
— Que conversa? – perquiriu ele, tom seco e agressivo.
— Sobre nossa vida sexual.
— O que tem ela?
— Eu não sinto prazer e.
Genaro a cortou secamente.
— E quem foi que disse que você tem de sentir prazer?
— Bom, é que eu li numa revista feminina...
— Que absurdo é esse?
— Genaro, estamos vivendo em uma época de liberação de costumes e a mulher pode e deve sentir prazer com o companheiro. Não acho justo você deitar—se sobre mim e mal se importar se eu sinto ou não...
Luísa não terminou de falar. Iria continuar de maneira delicada e repreender o marido pelas atitudes brutas e indelicadas. Estava com vontade de afirmar, de maneira corajosa e sincera, que ela estava insatisfeita e que ele precisava ser mais gentil. A conversa foi suspensa por violento soco que atingiu em cheio seu olho esquerdo. Luísa mal teve tempo de se defender, de tão inesperado. O soco de Genaro levou—a ao chão, sem dó nem piedade.
— Mulher minha não trata desses assuntos comigo. Você é minha esposa, e não uma meretriz. Comporte—se e nunca mais toque nesse assunto.
Esse fora o primeiro – dentre muitos – socos na cara. Genaro a reprimira com veemência e nem queria mais tocar no assunto.
Para agravar a situação, o tempo passava e Luísa não engravidava. Genaro começava a perder a paciência com ela. Queria e precisava ter filhos. Todo político que se preze – acreditava, – tinha de ter, mesmo que aparentemente, uma linda e bela família.
— Depois do enterro, assim que chegarmos a São Paulo quero um filho.
— Precisamos ir ao médico – falou ela num tom indiferente. – Doutor Ribeiro disse que precisamos fazer exames e.
— Cale a boca! – bramiu Genaro. – Você não quer engravidar. Sei que toma pílula escondida.
— Quem disse isso? Eu nunca tomei pílula. Sempre sonhei em ter filhos.
— Sou cabra macho. Tenho leite.
— Algum de nós deve ter problemas.
— Só se for você – contrapôs Genaro, de maneira brusca. – Vai ver é seca. Além de chata, é seca. Como pude arrumar uma mulher tão inútil?
Luísa não respondeu. Não adiantava argumentar com Genaro. A palavra dele era lei. Sempre.
O motorista encostou o carro no meio—fio. Desceu e abriu a porta para Genaro. Ele saiu e puxou a esposa de maneira nada delicada.
— Comporte—se – falou baixinho e entre dentes. – Sou muito conhecido em Bauru. Quero que chore muito e finja sentir bastante a morte de minha mãe.
— Eu não preciso fingir – retrucou Luísa, com a voz já embargada. – Eu gostava muito de sua mãe e minhas lágrimas são sentidas. Não sou como você, que mal derrubou uma lágrima até agora e parece estar feliz com o fato de ela não estar mais entre os vivos.
— E estou.
— Não acredito no que ouço, Genaro.
— Mamãe era um tanto estouvada. Mulher boa, mas meio doidivanas. Fico grato de não ter mais de me preocupar com ela. Você não sabe o quanto ela me custava caro.
— Sua mãe? Do que está falando?
— Você é mesmo uma caipira idiota. Casei com você porque era pura e inocente. Mas nunca poderia imaginar que fosse tão burra.
— Pode me tratar de maneira polida?
— Não me desafie, Luísa ou...
— Ou o quê? Vai me encher de pancada aqui no meio da multidão? Do seu eleitorado? Isso pode manchar a sua reputação, futuro deputado Genaro.
Ele teve vontade de socá—la ali mesmo na frente de todos. Não podia. Tinha de zelar pela sua figura de bom moço. Mordeu os lábios com uma fúria incontida e logo sentiu o gosto amargo de sangue. Cerrou os punhos por trás de si. Respirou fundo e voltou à questão.
— Tem dificuldade de perceber a realidade à sua volta.
— O que isso tem a ver com Loreta?
— Mamãe era ninfomaníaca, saía com rapazotes de idade suficiente para ser seu neto e eu tive de gastar muito dinheiro para calar a boca de jornalistas e colunistas loucos para levar esse lado desconhecido de mamãe aos jornais e revistas de fofocas.
— Não acredito nisso. Sua mãe era boa.
— Boa, porém ordinária. Agora que morreu, fico aliviado. Eu sou um político de respeito e, de agora em diante, não terei que temer suas declarações e seu comportamento devasso. Logo vão esquecer dela e eu poderei continuar com meus planos de conquistar o Planalto. Você verá.
Luísa ia contestar, mas Genaro a cortou e a puxou com aspereza e violência.
— Agora vamos. Padre Osório nos espera para fazer uma oração e realizar o sepultamento.
Luísa meneou a cabeça para os lados. Como pudera se casar com homem tão vil? Por que se deixara enganar pelas aparências? Quanto mais suportaria esse marido, esse casamento fracassado desde o início e os tapas que feriam seu corpo e sua alma? Como juntar forças para se tornar forte e se separar de Genaro?
Ela abaixou a cabeça com pesar. Agora não era o momento de pensar nesse assunto.
Luísa espantou as idéias com as mãos e dirigiu—se para a sala em que velavam o corpo de Loreta.
As pessoas se acotovelavam mais para ver Genaro do que para ver o corpo da mãe dele. Queriam tirar foto ao lado dele, outros, abraçavam—no como se fossem íntimos, lamentando – de maneira notoriamente fingida – a morte de Loreta. Genaro sorria, fazendo cara de choro, contorcia o rosto numa dor jamais sentida, mas fazia muito bem seu papel. Posou para fotos, abraçou senhoras que nunca vira na vida.
Luísa aproveitou que Genaro se deixara fascinar pelos flashes e afastou—se, parando diante do caixão. Passou as mãos pela testa da sogra, abaixou—se e beijou Loreta no rosto. Em seguida fez sentida prece.
Luísa não percebeu, mas assim que começou a orar, o ambiente começou a irradiar uma luz de coloração amarelada, que brotava de seu peito, espalhava—se ao redor do caixão e concentrava—se sobre a região do umbigo de Loreta. Um espírito que trabalhava no local aproximou—se e sussurrou em seu ouvido:
— Obrigado, querida. Não sabe o quanto sua prece é importante para que possamos desatar o cordão de prata que prende o espírito de Loreta ao corpo físico. Infelizmente, a maioria das pessoas vem ao velório como se estivesse vindo a uma partida de futebol e esquece de orar pelo ente querido que acabou de desencarnar. Você fez diferente. E merece nosso agradecimento. Você ainda vai ser muito feliz.
Luísa não escutou, mas sentiu tremendo bem—estar tão logo terminou de orar. Uma lágrima sentida escorreu pelo canto de seu olho.
— Descanse em paz, Loreta.
— Falando com os mortos?
Luísa abriu os olhos e, por instantes, não conseguiu identificar a voz.
— Não vá me dizer que está tão sentida assim. Ela nem era sua parente de sangue! Você foi à agregada que se deu bem.
A voz esganiçada e malévola fez—se notar. E, para não ter dúvida de quem falava logo Luísa sentiu o mau hálito característico que a boca dele exalava. Só podia ser ele. Ela não ocultou a contrariedade em ter de cumprimentá—lo.
— Meus sentimentos, Gregório.
— Obrigado, querida cunhada. Estou muito triste,
Luísa notou o tom de deboche na voz. Procurou manter certa cordialidade na conversa.
— Fiquei bastante chocada. Loreta vendia saúde.
— E como vendia! Você não sabe do que minha mãe era capaz.
— Não entendi.
— E nem precisa – respondeu Gregório, num tom para lá de irônico.
— Chegou faz tempo?
— Logo que Isilda me ligou, peguei um jatinho e vim para cá. Desci na fazenda de um conhecido, aqui perto. Detesto viajar de carro, você sabe disso.
— Cadê Isilda? Ela gostava tanto de Loreta.
Gregório deu uma risadinha abafada.
— Digamos que Isilda fez uma longa viagem. De emergência. Creio que nunca mais a veremos.
— Estranho.
— Você deve estar triste, não?
— Nem tanto – ele sorriu. – Sabe que eu e mamãe nunca nos demos bem. Ela era bem sovina, não me ajudava. Mas era boa pessoa. Agora vai descansar no céu e eu poderei botar a mão na minha parte da herança.
— É só nisso que pensa Gregório? Na herança?
— Luísa, sua tolinha. Em que mais eu deveria pensar? Na morte da bezerra? – ele deu uma gargalhada que ecoou pela sala. Algumas pessoas espantaram—se com a risada, outras acreditaram que fosse uma catarse do filho, que Gregório estivesse em estado de choque, em decorrência da morte de sua amada mãe.
Luísa chocou—se com a ausência de sentimentos dele.
— Você e seu irmão são igualzinhos. Não tem sentimento.
— Igualzinhos não. Graças a Deus não nasci com vontade de gostar de mulher.
Ainda bem, imagine eu apaixonado por uma caipira decadente como você? Genaro é que tem estomago. Agora me dê licença, querida, tenho de tratar do enterro.
Luísa mal podia acreditar no que ouvira. Gregório e Genaro eram muito parecidos na essência. Ainda estavam muito presos nas coisas materiais, não davam a mínima para os semelhantes, não tinham respeito por nada nem por ninguém.
— Será que são felizes? – indagou para si mesma.
O espírito que terminava de desatar os últimos nós que prendiam o espírito de Loreta ao corpo físico balançou a cabeça negativamente para os lados.
— Você não faz idéia do quanto são infelizes, minha cara. Não faz a mínima idéia...



CAPÍTULO 5



Após jantarem em um restaurante sofisticado e freqüentado por figurões da alta sociedade, Caio e Guido retornaram para casa. Mal entraram no apartamento e a vontade de fazer sexo se fez notar. Algo impressionante como esses espíritos eram capazes de influenciar e tumultuar os pensamentos dos dois rapazes. Caio sentiu um arrepio gelado percorrer—lhe a espinha e um calor sem igual no baixo—ventre.
— Será que você não tem uma cliente para mim? Estou muito excitado.
— Opa! – exclamou Guido, contente. – Mal chegou à cidade e quer começar na nova profissão? — perguntou, gargalhando, enquanto enrolava um pedaço de seda. Guido preparava um cigarro de maconha.
— Eu preciso fazer sexo, Guido. Meu corpo todo anseia por isso.
— Agora é muito tarde. Madrugada. As mulheres que atendemos são ricas e de família. Elas têm sobrenome de peso, são conhecidas da sociedade. Seus maridos mal desconfiam de suas estripulias. Eu nunca posso ligar para elas. Jamais. Essa é uma das regras. Elas é que sempre ligam e, de preferência, nunca à noite. Nesta hora elas estão em casa, fingindo ser esposas amorosas e recatadas – concluiu Guido, de maneira irônica.
Ele acendeu o cigarro de maconha, tragou—o vagarosamente, prendeu a respiração por instantes, a fim de que a droga surtisse efeito e relaxasse seu corpo. Em seguida, ofereceu—o ao companheiro.
Caio contorcia—se de prazer no sofá. Pegou o cigarro e aspirou uma grande quantidade de fumaça. Sentiu que sua cabeça latejava, porém seus sentidos iam—se entorpecendo. Caio não percebia, mas os espíritos ali presentes, agora inúmeros, sugavam—lhe as energias para perpetuar em seus corpos já degradados, sensações de prazer.
— Eu tenho de fazer sexo, Guido. Estou ficando louco. Vamos a algum lugar, uma boate ou mesmo pegar uma mulher na rua.
— Isso eu não faço, embora esteja morrendo de tesão – Guido também era açoitado pelo bando de espíritos empedernidos e desejosos da energia que emanava das relações sexuais.
— Guido... Eu...
Caio parou de falar. Ele infelizmente, não suportou tamanho assédio dos espíritos. Tomado de um desejo incontido e desenfreado, atirou—se sobre Guido. Empurraram móveis e ambos foram ao chão. Um rasgava a roupa do outro e amaram—se de maneira violenta e insaciável. Enquanto ambos faziam aquele sexo induzido, alguns espíritos abraçavam—se aos corpos dos jovens para sentir prazer. Outros batiam palmas e inalavam a fumaça que saía do cigarro de maconha. E outros enfiavam – literalmente – a boca nos copos de bebida, para dali extraírem os fluidos que os entorpeciam e lhes davam a sensação de aparente euforia que a bebida causava—lhes quando estavam encarnados.
Os dois fizeram sexo por horas e, quando seus corpos físicos já não mais agüentavam e o dia estava por nascer, caíram num sono agitado e atormentado.
Seus perispíritos desgrudaram—se de seus corpos e ficaram alguns palmos acima do corpo físico. Balançavam e tremiam, enquanto alguns espíritos ainda tentavam sugar—khes as energias resultantes do ato sexual.
Num canto da sala , de maneira imperceptível a esses espíritos, por conta da diferença de sintonia energética, Norma chorava copiosamente. Havia feito prece, pedido ajuda, mas em vão. Era impossível que seu irmão recebesse algum tipo de ajuda, por ora. Caio estava usando de seu livre—arbítrio e ela não tinha como interceder e afastar aqueles espíritos do convívio de seu irmão.
O espírito bondoso de sua irmã sentiu—se impotente e também não podia ficar tanto tempo ali. O ambiente estava carregado de uma energia pesada e sufocante. Embora protegida e vibrando numa sintonia diferente daquele ambiente, Norma era atingida por uma náusea sem igual.
Também pudera. Era necessário manter a mente ligada em bons pensamentos e muito equilíbrio.
Afinal, não era qualquer espírito de luz que podia estar ali e não se deixar influenciar pela baixa vibração que o ambiente exalava. Norma era espírito evoluído, que reencarnara por amor a Caio e Rosalina. Havia programado uma estada curta na Terra e, tão logo desencarnasse, faria de tudo para ajudar, orientar e inspirar bons pensamentos à sua mãe e, principalmente, ao seu irmão.
Norma só pensava em coisas boas, a fim de não se deixar impressionar pelo ambiente carregado. Pelo chão e pelas paredes do apartamento corriam bichos astrais, na forma de larvas. Eles percorriam o ambiente e o corpo dos rapazes. Alimentavam—se dos fluidos deles. Tratava—se de criações astrais de baixa vibração, que se formam em ambientes em que o sexo é promovido de maneira irresponsável. O apartamento de Maximiliano tornara—se foco de criação dessas larvas astrais e de estada para os espíritos desencarnados e inconscientes de seu estado.
Norma orou com tanto fervor que uma forte luz brotou de seu peito e irradiou—se pelo apartamento, destruindo, por ora, as larvas astrais.
Os espíritos mais conscientes assustaram—se com a luminosidade repentina e correram dali. Outros, mais endurecidos, fincaram pé e, mesmo sentindo seus corpos serem queimados pela luz, não se deixaram abater.
A luz promoveu uma limpeza no ambiente e logo o ar sufocante se dissipou, promovendo, inclusive, um sono mais tranqüilo e reconfortante para os rapazes.
O sol já ia alto quando Caio e Guido acordaram. Meio zonzos, cabeça pesada, os dois espreguiçaram—se. Guido encarou Caio e sorriu. Levantou—se, pegou as roupas estiradas e rasgadas e sentou—se no sofá. Caio levantou—se enquanto se apoiava em alguns móveis. Seus olhos encontraram os de Guido e ele sentiu vergonha.
— Não sei o que me deu e.
Guido procurou tranqüiliza—lo.
— Chi! – ele levou o dedo para os lábios. – Não se deixe corroer pela culpa. Ambos sentimos vontade e... Passou. Acabou.
— Eu juro que isso nunca mais vai se repetir – contrapôs Caio, num misto de censura e reprovação.
— Não sou homossexual e nunca fiz isso antes e.
— Calma! – exclamou Guido. – Ninguém aqui está pondo em xeque a sua masculinidade. Aconteceu e ponto final. Prometo que esse será o nosso segredo.
— Não sei onde estava com a cabeça, Guido. Nunca fui tomado por um desejo tão incontrolável quanto este. Eu simplesmente perdi o controle sobre mim mesmo. Perdi o controle total de minhas emoções.
— Isso passa. Você mal chegou à cidade e um novo mundo se descortina à sua frente. Sabe, Caio, esse mundo de dinheiro e de possibilidades nos fascina e nos excita. Entendo porque você ficou tão louco de desejo na noite passada. Entretanto, tenho certeza de que logo você vai ter vasta clientela e ganhar muito dinheiro. Se você fizer com as mulheres um décimo do que fez comigo, vai se tornar um homem rico, em pouco tempo.
Potencial você tem. E muito.
Caio baixou os olhos de maneira envergonhada. Por fim, tornou:
— Já que aconteceu o que aconteceu entre nós – a voz de Caio era abafada –, tenho algo a lhe confessar.
— Oba, adoro confissões.
— Bom Guido, na verdade, eu quis vir a São Paulo para ser modelo.
— Modelo?
— Uma amiga em Bauru afirmou que levo jeito.
Guido o observou de maneira atenta, por instantes.
— Você leva jeito sim. Tem um rosto bonito, bem masculino. Eu posso ajudá—lo. Conheço muita gente influente. Amanhã vou levá—lo a uma boate sensacional. Tem muito figurão da alta sociedade lá.
— Não tenho dinheiro Guido.
— Com as clientes que vou lhe arrumar, logo estará com os bolsos cheios. E quem disse que precisa de dinheiro agora?
Nunca ouviu falar em convites?
— Claro. Sou caipira, mas não sou burro.
Guido riu.
— Eu sou bem relacionado, tenho convites para sairmos todas as noites, se você quiser.
— E para que isso vai servir para mim?
— Ora, Caio se quer ser modelo, você precisa fazer contatos, conhecer gente rica e influente, senão não deslanchará nem em São Paulo nem na China. O relacionamento é tudo, meu caro. No entanto... – ele hesitou.
— No entanto?
— Você se veste muito mal. Seu cabelo está mal cortado. Você é muito bonito, mas precisa de uns retoques aqui e acolá. Se aspira ser modelo, precisa de certos cuidados. A imagem é tudo. Amanhã trataremos disso – Guido aproximou—se e encostou seu rosto bem rente ao de Caio. – Abra a boca.
— O quê? – perguntou aturdido. – Eu já disse que não sou chegado e.
Guido gargalhou.
— Bobo. Abra a boca. Não vou beijá—lo, quero fazer uma inspeção. Vamos, abra a boca.
Caio abriu—a meio sem jeito. Guido olhou para dentro, perscrutou a boca do rapaz.
— Seus dentes não estão tão ruins assim. Mas precisamos procurar um dentista. Boca bonita é fundamental.
— Eu não tenho dinheiro, já disse.
— Mas eu tenho. Eu lhe empresto. Pode contar comigo.
— Não é justo.
— Sem muitas delongas, Caio. Você não quer ser um modelo famoso?
— Quero.
— Então precisa ter boa aparência. Você é um cara bonito, boa pita, tem um corpo naturalmente bem torneado, mas está com a aparência desleixada. Precisamos torná—lo um jovem atraente e sedutor. E com cara de bem—nascido. Isso é fundamental.
— Puxa, você está sendo muito legal comigo, Guido. Só uma pessoa me ajudou tanto assim na vida. E eu pensei que nunca mais fosse encontrar gente bacana assim.
— Quem é essa pessoa?
— Uma amiga de Bauru. A mesma que disse que eu levo jeito para ser modelo.
— Como ela o ajudou?
— Deu—me dinheiro para poder vir para cá, para as despesas básicas. Sarita é muito legal.
Guido riu.
— Sarita. De onde essa mulher tirou esse nome? Será que em homenagem à famosa atriz espanhola, Sarita Montiel?
— Não sei. Eu sou bronco, não tenho cultura como você. O nome dela é Sarita mesmo.
— Você gosta dela?
— Sim, mas como amiga. Ela é uma boa pessoa, ajudou—me bastante.
— Você é apaixonado por alguém?
— Não.
— Não deixou nenhum amor para trás?
— Sou muito jovem para isso.
— Isso pode comprometê—lo no futuro.
— Nada – afirmou Caio. – Totalmente desimpedido.
— Isso é bom. Nunca se envolveu com algum tipo de encrenca mais pesada?
Caio hesitou por um instante. Pensou em Loreta, na maneira como ela morrera de sua fuga e do medo de Isilda dar com a língua nos dentes. Mas também não poderia se abrir totalmente para Guido. Ele parecia ser um cara legal, porém mal se conheciam. Caio ainda estava se sentindo deveras envergonhado por ter se deitado com Guido horas antes. Seus sentimentos estavam confusos e era melhor não tocar nesse assunto. Por ora.
— Nunca me envolvi em nenhuma encrenca – considerou Caio. – Sou um rapaz do bem.
Guido aproximou—se e lhe estendeu a mão.
— Então confio. Amigos?
— Sim. Amigos.
Caio apertou a mão do companheiro e sentiu os pêlos eriçarem. A certa distancia, Norma tentava, a custo, induzi—lo a se afastar e sair daquele apartamento.
— É inútil – confidenciou Carlota, um espírito lúcido, espécie de tutora de Norma e cuja luz procurava inundar o ambiente de boas energias. Ela recebera o pedido de ajuda de Norma e seu espírito rumou até o apartamento.
Carlota, ao chegar, passou delicadamente o rosto na face de Norma e tornou, numa voz doce, porém firme:
— Ele precisa aprender a se defender, ser dono de seu destino. Não podemos ficar a mercê dele e impedir que confronte a verdade. Na vida, Norma aprendemos ou pela inteligência, ou pela dor.
— Meu irmão é bom.
— Isso não impede que ele esbarre em pessoas de má fé. Terá de aprender a reconhecer aqueles que lhe querem bem.
— Gostaria de ajudá—lo.
Então ore bastante por ele. Tenho certeza de que nossos amigos espirituais poderão prestar—lhe auxilio, na medida do possível. Agora, precisamos partir. Você já fez muito pelo ambiente. Saiba que em breve as larvas astrais voltarão com toda a intensidade, pois a mente de Guido as projeta com a maior naturalidade.
— Meu irmão está se desvirtuando do caminho que traçou antes de reencarnar. Ele prometeu que não iria se atirar no sexo. Agora sua alma anseia por isso.
— Concordo – assentiu Carlota.
— Mas Caio é dono de si. No momento em que perceber que esse não é o seu verdadeiro caminho, vai mudar.
— Pressinto que até lá ele vai se meter em encrenca. Precisará mesmo passar por tudo isso?
— Cada um é responsável por si. A vida nos deu a possibilidade de fazer escolhas, de decidir o melhor para nós. Seu irmão, no momento certo, vai acordar para as verdades da vida. Agora, precisamos partir. O tempo urge e você está há muito tempo neste ambiente pernicioso. As energias logo afetarão seu corpo perispiritual. Vamos.
Norma assentiu. Mesmo a contragosto, pousou suas mãos nas de Carlota e os dois espíritos desvaneceram no ambiente.
Caio trocou algumas outras idéias com Guido e foi para o banheiro. Tomou uma ducha reconfortante e em seguida voltou a se deitar. Jogou—se na cama e logo adormeceu.
Estava por um lado cansado da noite que tivera e por outro, extenuado diante das novidades e do que a vida lhe ofertava dali em diante. Deitou—se, todavia, não teve um sono tranqüilo.
Nos dias que se seguiram, a vida de Caio foi de festas, bebidas, mulheres e noitadas. Guido apresentou—lhe duas clientes e, como na época das peripécias com as meninas de Eny e Loreta, Caio amou—as de maneira ímpar. A propaganda correu à boa pequena e logo Caio tinha uma boa carteira de clientes. Ora ele as atendia em hotéis, ora ele as recebia no apartamento de Max, muito discretamente, a fim de não chamar a atenção dos vizinhos e, principalmente, do porteiro. O rapaz começou a ganhar dinheiro e distanciar—se de seus verdadeiros objetivos.
Havia momentos em que sua consciência o chamava para que se afastasse desse caminho. Norma, inutilmente, tentava chamar o irmão para que despertasse e tivesse tempo de se libertar desse mundo atraente, porém promíscuo. Em vão.
Caio às vezes pensava em parar, prometia a si mesmo que não mais atenderia às mulheres. Não obstante, quando recebia uma ligação, ele mal sustentava sua promessa. Marcava o encontro e, após o serviço, sentia—se triste e vazio. O remorso apoderava sua alma.
E, de mais a mais, o grupo de espíritos grudados em Caio, desejosos de que ele continuasse com aquele hábito, eram muitos e mais fortes que sua própria vontade.
Guido o levou a todos os lugares da moda, a todas as boates, bares, restaurantes em que poderiam esbarrar em gente importante, influente.
Caio cortou os cabelos à moda, comprou roupas chiques e, com os toques de Guido, tornou—se rapaz admirado e requisitado pelas mulheres, fossem clientes ou simples admiradoras de sua beleza.
Foi numa madrugada, ao saírem de um bar na região dos Jardins, perto do apartamento de Guido, que os dois foram abordados por um homem alto, rosto quadrado, nariz proeminente e de trejeitos efeminados.
— Estou lhe procurando há dias. Onde se meteu? – inquiriu Gregório, de maneira severa.
— Estava mostrando a cidade ao meu novo amigo.
— Você ficou de ir à minha casa e acertarmos o valor daquele serviço. Parece que não quer receber.
— Longe disso, eu simplesmente perdi a noção do tempo, esqueci—me.
O homem encarou Caio da cabeça aos pés.
— E você, criança, quem é? Nunca o vi por estas bandas.
— Cheguei a São Paulo faz pouco tempo – respondeu Caio. – O Guido tornou—se meu amigo e tem me levado aos lugares da moda.
— Amigo do Guido? Só amigo?
Caio não gostou da maneira como o homem lhe falou e percebeu o tom malicioso e o mau hálito exalado por aquele indivíduo de fala afetada.
— Só amigo. Por quê?
— Por nada. Você bem que podia trabalhar para mim.
— Para o senhor? Essa é boa!
— Por que não?
— Como?
— Petulante o menino. Gostei. Pelo menos você tem atitude – ele aproximou—se de Caio e o mau hálito invadiu as narinas do rapaz, provocando—lhe leve mal—estar. – Procure—me amanhã na fábrica. Aqui está meu endereço – ele retirou um cartão do paletó e o entregou a Caio.
— Estou sentindo que você poderá me passar para trás – alegou Guido.
— Você não nasceu para essa profissão.
— Eu tenho porte – objetou Guido.
— Mas não tem rosto bonito, criança.
— Mas...
O homem o cortou.
— Nem mas, nem meio mas.
E, para que trabalhar? Você vive a custa daquele rico expositor, curador, sei lá.
— Max é rico, muito rico.
— E por que quer trabalhar? Contente—se com esse seu coroa, aliás, coroa não, mina de ouro.
Disse isso e se afastou. Guido balançou negativamente a cabeça para os lados.
— Ele sempre me trata com desdém. Estou cheio dele.
— Quem é esse homem?
— Não leu o cartão?
Caio fixou os olhos no cartão e sentiu as pernas falsearem por alguns instantes. Tratava—se de um cartão comercial, e nele estava escrito: "Gregório Del Prate – Presidente". Ele então balbuciou:
— É que... Bom...
Guido riu.
— Sei, você ficou aturdido porque recebeu um cartão do poderoso Gregório Del Prate, presidente da famosa Cia. De Perfumes. Não disse que precisava sair e se relacionar? Esse homem pode lhe abrir muitas portas.
— Mas você acabou de dizer que ele lhe trata mal e que está cheio disso tudo.
— Isso não importa. Em todo o caso, vou lhe confiar alguns de meus segredos.
Ele puxou Caio pelos braços e foram para outro bar, mais sossegado. Guido cumprimentou o gerente e em seguida sentaram—se numa mesa afastada, a fim de que pudessem conversar sem serem ouvidos. Guido pediu ao garçom dois drinques e, assim que chegaram, eles brindaram. Ele começou a relatar:
— Eu conheci o Gregório há dois anos. Ele tentou me lançar como modelo de um de seus perfumes, o Netuno. Todavia, o perfume não decolou, meu rosto não caiu nas graças do público e eu fiquei sem trabalho. Aí surgiu um almofadinha metido à modelo e teve mais sorte. Sorte curta, diga—se de passagem. Marco Antônio fez campanha para o perfume Nero e, bem, você bem sabe que esse perfume vende como água, no mundo inteiro. Marco Antônio ficou famoso, apareceram outras propostas e Gregório não está podendo mais cobrir seu cachê.
Caio não emitia som. Estava mudo, o suor escorria pela fronte.
— Você está se sentindo bem? – perguntou Guido, preocupado.
— E... Estou. É que eu já ouvi esse nome em algum lugar – balbuciou sem saber o que, de fato, dizer ao amigo.
Guido continuou e não deu muita atenção à maneira desconfortável com que Caio ouvia a conversa. Caio, procurando manter as aparências, questionou:
— E como se resolveu o impasse com o Marco Antônio?
— Não precisou se resolver – respondeu Guido, sorrindo. – O idiota teve o que mereceu.
— Como assim?
— Digamos que ele sofreu um pequeno acidente e está impossibilitado de trabalhar, seja para o Gregório, seja para outra empresa ou agência de modelos.
— Sério?
— Sofreu queimaduras e não poderá voltar tão cedo ao mercado. Se é que vai ter chance de voltar para o mercado de modelo.
— Pobre coitado – rebateu Caio, sentindo compaixão pelo rapaz acidentado.
— Eu vou receber um bom dinheiro do Gregório porque fui eu quem ajudou Marco Antônio a se machucar.
— Não entendi...
Guido fez um gesto vago com a mão.
— Uma hora eu explico melhor. O bom disso tudo é que a vaga dele precisa ser preenchida na Cia. De Perfumes. Talvez Gregório queira você para ser seu novo garoto—propaganda.
— Eu não gostei dele.
— E adianta gostar ou não? O que importa são as oportunidades que aparecem.
— Mas você não queria ser o modelo do perfume Nero? Eu não posso tomar seu lugar.
— Você não vai tomar o meu lugar. Eu tenho o Maximiliano, para que vou trabalhar?
Além do mais, eu não tenho esse rosto bonito que você tem.
Caio sorriu.
— Você tem sido muito bom para mim, um grande amigo. Nunca trairia sua confiança.
— Obrigado, meu caro. Não se esqueça de que o Max é louco por mim e, quando voltar de Londres, vai me dar um apartamento e aumentar a minha mesada. Prefiro ter alguém que me sustente a trabalhar feito burro de carga.
— Vai ser dependente dele o resto da vida?
— Claro! – rebateu Guido. – Eu quero muito dinheiro, entende? Muito. Muito mais que qualquer emprego possa me dar. Eu falo em ser rico de verdade, em viver no luxo, viajar para lugares sofisticados e ficar hospedado nos hotéis mais caros do mundo. E conseguirei isso tudo trabalhando? Nunca. Com Max ao meu lado, terei isso e muito mais.
E, como ele é sozinho no mundo, sem parentes, eu vou herdar tudo o que ele tem.
— Como tem tanta certeza de que ele nunca vai deixá—lo?
— Oras, porque tenho. Max é de palavra, homem de confiança. Se ele me prometeu, vai ter de cumprir, custe o que custar.
— E se ele mudar de idéia?
Infeliz essa pergunta de Caio. Os olhos de Guido brilharam rancorosos.
— Ele não vai mudar de idéia. Isso eu nunca vou permitir.
Caio sentiu ligeiro mal—estar. Era melhor sentir o mal—estar e deixar Guido soltar suas farpas. Assim ele ganharia tempo e poderia se recompor do susto. Como esse mundo era pequeno! Numa cidade enorme como São Paulo ele tinha de topar justamente com o filho de Loreta? Será que Gregório sabia do seu envolvimento com a mãe? Não, isso não era possível. Loreta era mulher discreta e ninguém sabia de nada, a não ser a empregada. Isso era coincidência. Pura coincidência, nada mais.
Gregório, mesmo que o tivesse visto em Bauru, nunca iria imaginar que fosse a mesma pessoa. Caio agora estava mudado, outra aparência, roupas bonitas e elegantes. Estava bem distante daquele rapaz caipira, cabelos mal ajambrados e roupas puídas. Era melhor afastar essas besteiras da cabeça. Gregório nunca soubera e nunca saberia do envolvimento entre ele e Loreta. Caio tinha certeza disso. Ou melhor, precisava acreditar nisso para não começar a delirar e entrar em desespero.


CAPÍTULO 6


Luísa remexeu—se nervosamente na cadeira do consultório. O médico fazia anotações e, percebendo seu estado, parou e a encarou nos olhos. Sua voz era doce e serena.
— O que a aflige Luísa?
— Genaro deveria estar aqui comigo. O Dr. Pediu que ambos viéssemos para uma conversa séria. Mas ele não faz outra coisa a não ser comício. Mal o vejo.
— Eu precisaria falar com ambos, é claro. Mas posso lhe adiantar alguma coisa.
— E então, Dr. Ribeiro?
— Temos aqui um caso de infertilidade.
— Infertilidade?
— Sim – tornou o médico. – Falo na impossibilidade de procriação. É um problema que pode acontecer com qualquer casal e deve sempre ser considerado como de ambos, pois uma parte pode apoiar a outra e, assim, a solução será mais rápida e menos dolorosa.
— Eu sou seca, é isso?
Ribeiro sorriu.
Esse termo não é apropriado. Na verdade, Luísa, a causa da infertilidade pode estar presente em ambos os sexos.
A investigação diagnóstica deve começar pelo homem, por tratar—se de exames menos evasivos e mais simples. Depois, partimos para a mulher. Mas – ele salientou – como Genaro se recusou a fazer exames, começamos por você.
— E? – perguntou ela, apreensiva.
— Você não tem nada. Aparentemente, pode engravidar à vontade.
— Quer dizer que Genaro tem problemas?
— Sim. Seus exames me dão certeza de que você não tem problema algum para engravidar. Logicamente, o problema está em Genaro.
— Santo Deus! – exclamou Luísa.
— Ao contrário do que alguns pensam, a infertilidade não tem nada a ver com impotência. Isso tem de ficar bem claro para que Genaro não se sinta constrangido ou diminuído.
— Ele se diz cabra macho.
Doutor Ribeiro riu:
— Cabra macho, mas infértil.
— Pode ser genético, doutor?
— Não creio. Posso citar como exemplos de causa da infertilidade masculina, a obstrução do sistema de condução do espermatozóide, causas hormonais e varicocele.
— Varicocele? O que é isso?
— É o processo de dilatação das veias do testículo, semelhante àquela que ocorre nas pernas.
— Varizes?
— Isso, Luísa. Entendeu bem. Como varizes. Pode causar dor e infertilidade. O tratamento, normalmente, é cirúrgico. Pelos seus exames, tenho certeza de que o problema está com seu marido. Por essa razão, queria reunir os dois aqui no consultório.
— Genaro não vai entender. Ele diz que sou fria e jura que tomo pílulas.
— Quero que o traga ao consultório, qualquer dia, qualquer horário. Sei que ele é homem de vida pública e sua agenda de compromissos está sempre lotada. Ainda mais agora que sua candidatura foi lançada.
— É ele mal pára em casa – respondeu ela, procurando ocultar a felicidade que sentia de ver o marido raras vezes em casa.
— Deve estar muito orgulhosa de Genaro, não?
Luísa deu um sorrisinho amarelado, amuado. Procurou ocultar seu descontentamento com o marido. Estava triste, muito triste. Genaro continuava a ser grosso e bruto. Continuava a procurá—la para fazer amor e a machucava, sem dó nem piedade. Sem contar os tapas. Ela estava farta de tanto levar tapa na cara. Até quando iria suportar?
Ela estava cansada, mas Genaro lançara—se candidato às eleições para deputado federal e ela precisava segurar as pontas até o fim do ano. Estavam em abril e faltavam sete meses para a eleição.
Era muito tempo. Luísa orava todos os dias e pedia aos céus que lhe desse forças para suportar tanta dor e humilhação. Assim que saísse o resultado das urnas, ela pediria a separação. Sabia que ia arrumar encrenca com sua mãe. Mas Neuza não apanhava como ela, não sentia as dores físicas e morais que ela sentia.
Luísa despediu—se do médico, saiu do consultório e preferiu caminhar, colocar as idéias em ordem. Deixara o carro a algumas quadras de distância.
Iria até uma confeitaria ali perto e depois pegaria o carro. Precisava relaxar.
O médico fora claro. Genaro era infértil, não poderia gerar ou ter filhos. Os exames dela nada aprontavam. Doutor Ribeiro não quis afirmar com todas as letras, porquanto daria o diagnóstico preciso diante dos exames realizados por Genaro.
Por um lado isso a entristecia, visto que ela era louca por crianças e desejava ter filhos. Por outro, na atual situação em que seu casamento se encontrava uma gravidez não seria bem—vinda.
A criança iria nascer num lar triste, em que os pais não se amavam e as brigas estavam se tornando recorrentes e insuportáveis.
— Melhor assim – disse ela para si mesma. – Não quero saber de filhos por enquanto. Preciso aparar as arestas do meu casamento.
— Falando sozinha, como sempre?
Luísa voltou a si e olhou para trás assustada. Ao reconhecer a amiga, abriu largo sorriso.
— Renata! É você mesma?
— Em carne e osso!
— Quanto tempo.
As duas se abraçaram e se beijaram.
— Eu a vi saindo do consultório e quase não acreditei. Você não mudou nada nesses anos todos. Continua linda e muito exuberante.
Luísa corou.
— Obrigada. Pelo que tenho passado, isso é mais que um elogio.
— Há muito tempo penso em lhe procurar. Todavia, acabo metida no trabalho e me esqueço – Renata olhou para a amiga e viu que Luísa não estava bem. – Eu tenho certeza de que esse encontro não foi ao acaso. Você está com cara de quem precisa desabafar conversar.
— Você adivinhou – suspirou Luísa. – Estou precisando de um ombro amigo. Tem tempo para mim?
— Claro! – exclamou feliz. – Trabalhei até tarde ontem e pude sair mais cedo hoje. Fui fazer umas compras e estava indo para casa.
— Mora por aqui?
— Aqui perto. Na Alameda Casa Branca.
— Estamos morando na mesma cidade! – exclamou Luísa, feliz.
— Estamos.
— Você não escapa mais de mim, Renata.
As duas riram.
— Quer tomar um chá lá em casa?
— Adoraria.
— Depois eu a levo para casa.
— Não será necessário, meu carro está a algumas quadras daqui.
Vamos conversar muito!
— Está motorizada, Renata?
Ela sorriu.
— Minha vida mudou bastante, Luísa. Desde que cheguei a São Paulo, muitas coisas aconteceram. Coisas boas e não tão boas. Mas aprendi bastante e aqui estou. Venha, será um prazer recebê—la em casa.
Luísa sorriu feliz. Gostava muito de Renata. Ela fora uma de suas grandes amigas de colégio, lá em Campinas. Fazia alguns anos que perderam o contato e agora, milagrosamente, Renata aparecia, num momento em que Luísa estava precisando de boa companhia, de uma voz amiga que lhe desse suporte para sua vida tão atribulada e infeliz.
Um espírito jovem, vendo—as se afastar abraçadas e felizes, suspirou alegre.
— Pensei que esse encontro nunca fosse acontecer.
— Você não pode se exceder, Henry. Fique atento ao controle de suas emoções. Isso lhe custou caro no passado e aqui no astral. Está careca de saber que qualquer descontrole pode resultar numa tremenda dor de cabeça. Então, componha—se.
— Eu sei Carlota. Mas eu quero nascer, ou melhor, reencarnar. Estudei anos a fio, mudei minha postura, minha maneira de ser e tenho certeza de que Luísa não vai se importar em ser minha mãe de novo.
— Não adianta colocar a carroça na frente dos bois. Tudo tem seu tempo certo. Precisamos conversar ainda com ela e com o pai da criança.
— Se é que ele não vai me abandonar de novo – falou Henry, num tom sentido.
— O futuro a Deus pertence. Vocês terão nova chance. Poderão formar uma linda família.
— Assim espero. Aprendi tanto sobre o amor, sobre o perdão, fiz tanto curso, e, olhando para minhas vidas passadas, aprendi que a paixão causa grande estrago em nossa alma. Às vezes, precisamos de muitas vidas para nos livrarmos ou mesmo nos curarmos.
— Você tem razão – ponderou Carlota. – É grande o número de pessoas insatisfeitas afetivamente.
— Por quê? – indagou Henry. – Mesmo tendo feito muitos cursos e mudado algumas crenças em relação à afetividade, é bom ouvir seus comentários. São sempre inteligentes.
Carlota sorriu:
— Obrigada, meu querido – e continuou: — as respostas das pessoas geralmente são semelhantes. Muitas vão responder que tem medo de se envolver, que a relação íntima sempre termina em dor, que para se ter alguém é preciso ceder, abrir mão de ser você mesmo para satisfazer o outro, etc.
Carlota pousou a mão no ombro do espírito afoito e prosseguiu:
— O amor, Henry, é assunto delicado, porquanto a afetividade é feita de emoções, vibrações provocadas pela mente. Muitos condicionamentos nos trazem dor e sofrimento devido a uma maneira errada de enxergar a vida. Se aprendermos a olhar certo, a dor se vai e sentimos bem—estar.
— Concordo com você, Carlota. Cada um é responsável por sua vida afetiva e mudar a mente é mudar nossas reações afetivas. Tal evolução é trabalho de cada um.
— A paixão faz parte de um conjunto de crenças que produzem emoções sacrificiosas e doloridas.
— É só ver o que aconteceu ao meu pai, em sua última vida. Por conta da paixão, arruinou a minha vida e a da minha mãe.
— Pois é. Gostar de alguém é sempre bom, é saudável, é comunicação de alma para alma. A vida nos ensina que não temos necessidade dos outros, e sim da gente, mostrando que a fonte de segurança é o nosso espírito. Fortalecendo essa ligação, não dependemos de ninguém. E, não dependendo de ninguém, nossa busca vai se tornar mais acertada, menos dependente. Poderemos ser nós mesmos e amar de verdade.
— Torço para que Luísa compreenda isso e pare logo de sofrer.
— Antes de se envolver com alguém, é necessário, em primeiro lugar, estar bem consigo mesmo. Assumir os próprios valores é passo decisivo para uma vida afetiva sadia e feliz. Luísa tem tudo para ser feliz. Cabe a ela tomar posse de si e abrir—se para o verdadeiro amor.
— Sabemos que não será fácil, mas eles têm tudo para se ajustar.
— Estamos por perto. E Renata é uma das nossas. Sua aproximação vai fazer muito bem à Luíza.
— Assim espero Carlota.

****

Caio arrumou—se com aprumo. Depois de uma semana pensando em que atitude tomar, resolveu ir ao encontro de Gregório. Tinha certeza de que o empresário nunca soubera nem saberia de seu envolvimento com Loreta. Isso era coisa do passado, agora ele estava chegando aonde queria: a um passo de ser famoso.
Guido chegou com algumas correspondências nas mãos. Separou as que pertenciam a Maximiliano e as depositou numa caixa específica para isso. Max ligava de Londres a cada quinze dias. Guido pegava a caixa, passava para Max o teor dos envelopes e assim cuidava da correspondência, pagava as contas e mantinha a casa em ordem.
Todo fim de mês, Max lhe enviava uma boa quantia para as despesas da casa e dos empregados, bem como uma mesada para Guido.
Ele aproximou—se de Caio, sorriso largo.
— Tem correspondência para você.
Caio sorriu feliz.
— Nesses meses morando aqui com você, tomei a liberdade de dar o endereço para minha mãe. Deve ser carta dela.
Caio apanhou os envelopes e um deles era de sua mãe. Ele abriu—o rasgando a lateral com os dentes.
Na carta Rosalina dizia estar bem. Havia terminado o supletivo relativo ao ginásio. Sabia ler e escrever com desenvoltura. Quanto às novidades, informava que Eny finalmente conseguira vender a casa em que funcionava o bordel e que, por conseguinte, ela, Rosalina, perdera o emprego de faxineira. Entretanto, conseguira o emprego de bedel na mesma escola em que cursava o supletivo à noite. O salário não era tão alto, mas dava para pagar as despesas e fazer pequena poupança. Rosalina dizia que ainda sonhava em mudar para uma casa de tijolos. No mais, finalizava a carta abençoando o filho e terminava por dizer que estava freqüentando um Centro Espírita, porquanto agora ela tinha condições de ler os livros da doutrina e tantos outros que tratavam de assuntos ligados à espiritualidade.
Caio fez um esgar de incredulidade.
— Algum problema? – perguntou Guido.
— Mamãe está bem.
— Então não tem com o que se preocupar. Por que está com essa cara?
— Ela está freqüentando um Centro Espírita.
— Mesmo?
— Não gosto de ver minha mãe metida nesses assuntos.
— Por que não?
— É coisa de gente ignorante.
Guido meneou a cabeça para os lados.
— Você está sendo preconceituoso, isso sim.
— Eu?!
— Claro. Espiritismo não é sinal de ignorância, muito pelo contrário.
— Não gosto do assunto.
— Eu sou espírita.
Caio arregalou os olhos.
— Você, Guido?!
— Sou.
— Mas nunca me contou nada!
— Porque não sabia qual a sua parada, entende?
— Você acredita mesmo na existência dos espíritos?
— E como! – exclamou Guido. – Eles são grandes aliados da gente.
— Aliados?
— Sem dúvida. É só pedir e eles fazem tudo o que a gente quer.
— Como assim? – indagou Caio, sem entender.
— Na verdade eu não sou assim um espírita convencional. Eu freqüento um lugar na cidade.
— Um lugar?
— É. Uma espécie de terreiro. Lá você pede o que quiser e os espíritos fazem.
Caio gargalhou.
— Isso é patético. Então eu vou, peço e eles fazem?
— Hum, hum.
— Assim, sem mais nem menos?
— É sim. De vez em quando eu levo uma bebida ou dou um dinheiro para eles comprarem material para o trabalho. Até hoje eu me dei muito bem.
— E para que eu precisaria de ajuda?
— Acha que me aproximei do Maximiliano como?
— Como?
— Com a ajuda dos espíritos, oras.
— Está de brincadeira...
— E pensa que o Marco Antônio se queimou por quê?
— Não vá me dizer...
Guido o interrompeu, freneticamente.
— Sem dúvida foi obra dos espíritos. Eles afastaram o marco Antônio para eu ganhar o dinheiro que Gregório havia me prometido.
— Conversa fiada.
— Não é, não.
— Coincidências, mais nada.
— Os espíritos têm atuado sobre o Maximiliano. Quando voltar de Londres, eles me garantiram que o Max vai me dar um apartamento e gorda mesada.
— Por que tem tanta certeza disso?
— Porque os espíritos me asseguraram que ele está no papo. Vai fazer tudo o que eu quero. Os espíritos enfeitiçaram—no.
Caio riu novamente. Bem alto. Caminhou em direção à sala. Estava atrasado para o encontro com Gregório.
— Você e suas histórias fantasiosas. Feitiço é coisa de filme, como aquele do Elvis Presley, Feitiço Havaiano.
— Pode rir e debochar, mas é a mais pura verdade. Eu fiz um trabalho para amarrar o Maximiliano na minha vida. Ele não escapa de mim. Eu juro.
— Se você acredita, sorte sua.
Caio afastou—se, guardou a carta da mãe numa cômoda. Pegou o outro envelope. Olhou o verso e não havia remetente.
— Muito estranho – disse em voz alta –, uma carta sem remetente.
Ele abriu e, conforme lia, seu rosto foi se tornando pálido. Guido aproximou—se do amigo, mas não conseguiu ler o conteúdo da carta. Era um papel sulfite branco e as palavras eram recortadas de revistas e jornais. Estavam coladas, lado a lado, e formavam a seguinte frase:
"Você matou Loreta. Eu sei. Estou de olho em você."
— O que foi cara? – perguntou Guido, com ar interrogativo e estupefato no semblante. – Você está com uma aparência cadavérica.
— Não sei... Quer dizer... Eu... Eu...
Caio não respondeu. Seu corpo pendeu para frente e ele apoiou—se no ombro de Guido para não cair. O ar parecia lhe faltar.



CAPÍTULO 7


Loreta tinha despertado havia algum tempo no mundo espiritual. Fazia meses que havia desencarnado e estava em fase de tratamento, num posto de atendimento perto da crosta terrestre. Sentia—se fraca e infeliz.
— A fraqueza é natural – comentou a enfermeira, – visto que seu corpo físico foi sugado de suas energias vitais. Você atirou—se de maneira desenfreada ao sexo e larvas astrais formaram—se e grudaram—se ao redor de sua aura. Precisará de bom tempo para se recuperar e se livrar delas.
— Mal consigo me levantar – ela balbuciou.
— Assim será por mais algum tempo, Loreta. Até que seu perispirito possa se reequilibrar por completo e aí sim, você poderá ter alta, sair desse posto de atendimento.
— São meses aqui dentro. Estou cansada.
— Tenha paciência. Logo estará apta para sair e nos deixar.
Uma lágrima escorreu pelo canto do olho de Loreta
— Estou muito triste.
— Por quê?
— Porque fracassei. Como esposa, como mãe, como mulher. Reencarnei decidida a frear meus impulsos sexuais, a ser menos atirada em matéria de sexo e não consegui me conter. Falhei.
A enfermeira ia responder, mas a porta se abriu e Carlota entrou no quarto.
— O que se passa nessa cabecinha triste?
— Não sei Carlota. Um sentimento de impotência, de não ter feito nada certo nessa vida. Na verdade, sinto como se houvesse desperdiçado uma encarnação inteira.
Carlota fez sinal e a enfermeira se retirou. Ela caminhou até a janela, abriu as cortinas, a luz do sol invadiu o quarto, dando novo colorido ao ambiente. Carlota sorriu e aproximou—se de Loreta.
— Creio que está na hora de você fazer terapia.
— Terapia?
— Sim. Seu perispírito está se recompondo aos poucos, não obstante, você não ajuda. A mente é ferramenta poderosa para o bem—estar de nosso corpo, seja ele físico ou espiritual. Você está fazendo com que o processo se prolongue, arraste—se por tempo indeterminado.
— E o que fazer? Estou perdida. Sinto—me triste porque não fiz nada certo.
— Quem lhe disse isso?
— Minha consciência me acusa. É como se algo dentro de mim estivesse com raiva, acusando—me de que não fiz o meu melhor.
— Você fez o melhor que pôde. Tudo bem, não conseguiu cumprir com os anseios de sua alma. Exigiu muito de si mesma e acabou por não cumprir seus objetivos. Mas isso é natural, Loreta.
— Natural?
— Sim. A maioria dos encarnados volta com essa mesma sensação. Quando percebem que podiam ter feito diferente, quando constatam que a vida continua, que nada muda a não ser a dimensão que nos separa do mundo físico, muitos perdem a cabeça, querem se matar até. E isso é impossível, porquanto o corpo físico pode ser morto, mas o espírito, jamais. E a consciência os acusa.
Isso, na verdade, é bem típico dos críticos. Você é muito crítica consigo mesma?
— Sempre fui exigente, crítica nunca.
Carlota sorriu.
— É a mesma coisa. Você sempre exigiu muito de si. Isso torna nossa passagem na Terra muito pesada, visto que, pelo fato de reencarnarmos esquecidos das vidas passadas, às vezes não entendemos porque temos de passar por situações tão dolorosas. Claro que essa escolha é nobre e nós, aqui do astral, vibramos muito e procuramos ajudar quem toma essa resolução. Todavia, são poucos os que conseguem não se deixar levar pelas ilusões do mundo terreno.
— Eu me deixei levar. Sinto que não evoluí.
— Você deu vida a Genaro e Gregório. Isso conta bastante. Você procurou ser mãe amorosa, deu—lhes amor, carinho, educação, cumpriu seu papel de mãe com louvor.
— E veja no que eles se transformaram! Um não dá a mínima pelo semelhante e o outro é corrupto e engana as pessoas, além de tratar mal sua esposa.
— Você enxerga por um ângulo, eu enxergo por outro. Você fez o que uma mãe zelosa e amorosa deveria fazer. O que eles se tornaram, quando adultos, é de responsabilidade deles. A educação que você lhes deu amenizou bastante a maneira rude e cruel com que eles tratavam o próximo.
— Amenizou! – exclamou Loreta, incrédula. – Eles desprezam o ser humano.
Carlota sorriu novamente.
— Você ainda não tem condições de ver o que os dois fizeram em outras vidas. O que fazem hoje é nada, comparado aos atos cruéis do passado. E por quê? Porque você os recebeu como filhos e, de alguma maneira, seu amor os tornou menos agressivos.
— Não vejo diferença.
— Um dia você verá. E assim poderá se livrar do sofrimento que criou para si mesma. A terapia vai ajudá—la Loreta, sem dúvida.
Entretanto, só você vai poder sair desse estado de desânimo. Só você.
Loreta deu livre curso às lagrimas. A sensação de impotência e inutilidade apossava—lhe a alma e ela não tinha forças, por ora, para se livrar dessas forças destrutivas que permeavam seu espírito. Fazia parte de seu aprendizado, de seu crescimento. Logo, Loreta teria plenas condições de se livrar desse estado de tristeza e tratar de sua evolução. Essa tarefa cabia somente a ela. E a mais ninguém.


****



A conversa de Renata e Luísa fluiu agradável. Mataram as saudades, colocaram o papo em dia. Falaram do passado, dos problemas que ambas enfrentaram da falta de dinheiro, das adversidades da vida. Renata concluiu, após saborear delicioso chá de maça:
— Confesso que, olhando para trás, sinto—me vitoriosa. Quando papai morreu e perdemos tudo, eu arregacei as mangas e fui à procura de trabalho. Fui contratada pela fábrica de bebidas lá de Campinas. Depois me esforcei, estudei à noite, fiz uns bicos em alguns bares e assim me graduei em administração e vim para São Paulo.
Luísa emendou:
Hoje, passados alguns anos, você se encontra numa posição confortável, graças ao seu próprio esforço.
Renata sorriu. Pousou sua xícara no pires, sobre a mesinha, e assentiu:
— Sim. Devo muito a mim mesma. Entretanto, devo muito ao plano espiritual.
Luísa abriu e fechou os olhos algumas vezes.
— Como disse?
— Se não fossem os amigos espirituais, eu não teria conseguido.
— Explique melhor.
— Um dia eu estava sentada na cama, não conseguia dormir. Conciliar o sono estava impossível. O calor naquela noite estava insuportável e eu resolvi me sentar, no escuro mesmo. Passei a pensar na minha vida, nas perdas que tivera. Primeiro eu perdera papai. Mamãe, triste e amargurada, entrou em desespero, num desgosto muito grande e morreu alguns anos depois.
— Eu me lembro dessa fase.
Renata prosseguiu:
— Meu tio Plínio nos tirou tudo e eu e meus irmãos ficamos jogados, literalmente, na sarjeta. De repente, comecei a chorar. Eu estava para ser demitida. A fábrica de cerveja estava com dificuldades e eu sabia que possivelmente poderia ser cortada do quadro de funcionários.
Luísa interessou—se. Pegou um biscoitinho, mordeu—o na ponta e encarou a amiga.
— Estou interessadíssima. Por favor, amiga, continue.
— Eu já havia passado por tanta dificuldade que naquela noite rezei com força. Lembrei—me dos tempos de colégio e orei, orei bastante, pedindo ajuda a Deus. Então dormi.
— E?
— Sonhei que estava caminhando por uma rua comprida, embora florida e bem calçada. De repente, encontrei meu pai. Eu o abracei tão feliz tão saudosa. Ele retribuiu o abraço e assim continuamos a caminhar, de braços dados. Eu podia sentir seu perfume, o calor de sua pele. Era algo inacreditável. Papai me disse muitas coisas. Que mamãe ainda estava em recuperação e que eu deveria continuar firme em meus propósitos, que não deveria esmorecer.
Renata parou por um instante. A lembrança do pai sempre a enchia de saudade e ela não conseguia deixar de marejar os olhos. Luísa apertou—lhe a mão com carinho, encorajando a amiga a continuar seu relato.
Renata pigarreou, tossiu e, por fim, continuou.
— Papai me disse que tudo o que acontecera era porque ele havia praticado muitos atos escusos no passado e havia prejudicado meu tio Plínio.
Não obstante, meu tio poderia agir de outra maneira para resolverem à pendência do passado, sem criar laços de discórdia e tristeza. Papai assegurou—me que estava bem, que havia aprendido a lição e que, não por acaso, eu havia atraído essas adversidades por conta de meu crescimento espiritual. Pediu—me que eu fosse ao Centro Espírita perto de onde eu morava, porque lá eu iria receber ajuda dos espíritos e, em breve, se eu persistisse minha vida iria mudar para melhor, para muito melhor.
— E o que você fez? Se era um sonho...
— Pois bem. Eu acordei com a última frase de papai e vi a imagem do Centro Espírita. Naquele mesmo dia fui até lá.
— E isso a ajudou?
— Muito!
— Como sabe que o sonho tinha a ver com a realidade? Afinal, às vezes somos nós que criamos nossos sonhos. Acho que li isso em uma revista, lá no consultório do Dr. Ribeiro.
— Sei disso, mas você não vai acreditar Luisa! Assim que cheguei ao Centro Espírita fui encaminhada para atendimento.
— Como assim? Como funciona isso?
— Quando chegamos ao Centro Espírita, na recepção, sempre há alguém simpático para nos atender. Afinal, quase ninguém vai a um Centro Espírita por amor. São sempre os casos mais tristes, as curas impossíveis, a dor de perda de entes queridos. Depois que passamos por médicos, exames e igrejas desesperamo—nos e encontramos alento num Centro Espírita. Por tudo isso, o trabalho de quem está na recepção é de extrema importância.
— A idéia que sempre tive desses lugares é de que não são confiáveis, cheio de aproveitadores. Porque as pessoas chegam lá em desespero, tristes, e indivíduos inescrupulosos podem nos iludir e arrancar nosso dinheiro.
Renata sorriu.
— Quando se trata da dor humana, sempre haverá os charlatões de plantão.
Entretanto, um Centro Espírita nunca cobra por nada. O atendimento é gratuito, sempre.
— Gratuito?
— Sim. Ocorre que o Centro funciona num determinado espaço, seja um galpão ou um sobrado. Há o aluguel do espaço, o pagamento de impostos, o consumo de luz elétrica, de papel higiênico dos banheiros, de água e de copinhos para tomar água e outras tantas despesas. Se o atendimento é de graça, lógico que o Centro Espírita vive de doações, de ajuda dos que lá freqüentam. Por tudo isso há almoços beneficientes, bingos, rifas etc. Tudo para ajudar no pagamento das contas.
— Nunca havia pensado nisso, Renata.
— Pois agora pode mudar seus conceitos.
— Sem dúvida – Luísa falou curiosa. – Mas como foi o atendimento nesse Centro? Parece que você gostou muito de lá.
— Você não tem idéia de como fui bem atendida. Assim que informei sobre minha ida, a atendente me encaminhou para uma salinha e deu—me uma senha para que eu passasse em consulta com um médium da casa, a fim de saber qual o tratamento espiritual mais adequado para mim naquele momento, se devia ser um tratamento emocional ou mental. Tão logo o meu número foi chamado e me sentei, fiquei admirada com as palavras da senhora que me atendeu:
"— Seu pai está ansioso aqui do meu lado. Achava que você não fosse acreditar no sonho e não viesse. Veio aqui para dizer que o que você sonhou na noite passada nada mais foi do que um encontro entre ambos. Seu pai está bem, diz que sua mãe está em recuperação e que seu tio Plínio não merece receber sua vibração de ódio. Ele não tem culpa do que fez. Vai responder pelos seus atos, é claro, porque a vida é regida por leis, e uma delas é a da ação e reação. Seu tio precisa que você vibre luz para ele. Assim, não vai se ligar nele nem tampouco em outros problemas que não lhe dizem respeito".
Renata não conteve as lágrimas. Luísa a abraçou com carinho.
— Meu Deus! Você ouviu da atendente o mesmo que seu pai lhe disse!
— Sim. E ela ainda descreveu meu pai. Seus olhos, os cabelos, o sorriso, os óculos que ele usava... Até a roupa que ela me descreveu eu conhecia. Foi o terno com o qual nós o enterramos.
— Isso é de espantar qualquer um – asseverou Luísa, levando a mão à boca.
— E foi então que passei a acreditar na continuidade da vida. Não tinha mais dúvidas a respeito. Fui tão bem atendida e acolhida! Fiz tratamento de passes e, em quatro semanas, os passes atuaram sobre minha mente; eu me tornei outra pessoa, muito mais alegre, mais dona de mim, mais segura.
— O que me diz é formidável!
— Passei a freqüentar o Centro Espírita, fiz cursos, participei das atividades sociais e das palestras. Logo em seguida arrumei emprego numa fábrica aqui em São Paulo e tudo começou a ficar mais colorido para mim – Renata riu. – Li muitos livros e hoje sou uma pessoa melhor, comigo e com os outros.
— E seus irmãos?
— Não querem saber de melhorar. Ficam na cola de meu tio, recebem migalhas dele e estão lá, numa vidinha apertada, cheios de ódio no coração. Não é o que escolhi para mim.
— Mas você não lhes contou sobre o sonho? Ou sobre o Centro Espírita?
— Claro que contei, mas eles não acreditaram. Riram de mim. Disseram que eu estava me transformando numa doida varrida, que minha vida ia afundar em breve. Que eu estava para me tornar uma mulher ignorante e presa nessas bobagens espirituais – Renata deu de ombros, e prosseguiu: — continuei meus estudos, graduei—me em administração e hoje sou gerente de uma confecção em expansão. Apresentei ao meu chefe algumas idéias de modelos de biquínis para a próxima estação. Se forem acatadas, tenho chances de ser promovida. E ganhar mais.
— A próxima estação não está muito distante?
— Penso lá na frente, Luísa – ela fez um gesto engraçado com as mãos –, lá na frente.
— Você sempre foi diferente. Atirada, moderna, sempre adorou o novo. Está na profissão certa.
— Queria mesmo ser dona de meu próprio negócio. Mas tudo vem no tempo certo. Talvez a vida esteja me preparando para maiores responsabilidades. Sinto isso.
— Quanto aos seus irmãos, creio que não há nada que você possa fazer.
— Eu não posso mudar a opinião deles, a vida deles. Tentei ajudá—los, inclusive com dinheiro, para custear uma faculdade, para que os dois tivessem uma profissão e pudessem crescer por si mesmos. Mas eles brigaram comigo, disseram que eu queria comprá—los. E, ainda, que eu tencionava fazer isso para tê—los em minhas mãos. Pura ilusão. É que eles são assim e acreditam que, por serem manipuladores, todas as outras pessoas também o são. Cada um é responsável por si.
— Concordo... Quer dizer... Em termos – Luísa hesitou.
— Como assim?
— Somos responsáveis em termos.
— Por que diz isso?
— Ora, Renata, acha que eu gostaria de estar até hoje ao lado de Genaro? Eu quero ser feliz e veja o que a vida me fez... Sou vitima de um destino cruel. Será que o Espiritismo pode me ajudar? Será que eu fui muito má e estou agora tendo de arcar com isso?
Renata riu.
— Você está lendo muita revista de consultório.
— Mas o Espiritismo não diz que o sofrimento é causa de erros do passado?
— Não. Cada um interpreta as obras de Allan Kardec de acordo com seu grau de evolução, de acordo com suas experiências de vida. Eu diria que o sofrimento é falta de inteligência.
A gente sofre porque não faz o melhor de si. Ficamos presos às ilusões do mundo, distanciamo—nos de nossa essência, de nossos verdadeiros valores e, quando nos damos conta, estamos metidos em situações que nos trazem dor e sofrimento.
— Eu não gostaria de sofrer.
— Vivemos num mundo em que o sofrimento faz parte de nosso destino. Se não sofremos nas situações desagradáveis, sofremos pela perda de um ente querido, pela perda de um grande amigo. A dor, nesse estágio de evolução da Terra, serve para amadurecer nosso espírito, livrar—nos das amarras da ilusão de que tudo é feito segundo ordem das forças superiores que regem o Universo.
— E não é?
— Ora, Luísa, se essas forças ou Deus fizessem tudo, onde estaria o nosso mérito? De que adiantaria viver, sofrer, chorar, rir, se temos alguém – Renata apontou para cima – que faz tudo a toda hora? E, de mais a mais, se esse Deus determina tudo, por que então deixaria que vivêssemos entre guerras, discórdias, crianças mortas prematuramente e outros desatinos?
— Não sei. Talvez a minha concepção de Deus seja muito humana. Nunca me aprofundei nas verdades da vida.
— Então não crê que seja a hora de mudar?
— De mudar?
— Sim. De mudar, de deixar que essa impotência tome conta de você. Está na hora, Luísa, de abandonar a vítima que paira sobre si mesma e tornar—se adulta de verdade. Você mais parece uma criança triste e indefesa, como se todos os que a cercam fossem maiores e bem mais fortes que você.
Luísa não conseguiu conter o pranto. Abraçou a amiga com força.
— Oh, Renata, você não sabe como anda a minha vida. Estou tão triste, tão perdida. Ajude—me, por favor, ajude—me...
Renata deu forte abraço na amiga. Deixou que ela desse livre curso às lágrimas. Quando Luísa acalmou—se, ela lhe serviu nova xícara de chá.
— Quer um lenço?
— Hum, hum.
Renata pegou uma caixinha sobre a mesa e o entregou a Luísa. Ela apanhou alguns lenços de papel e assuou o nariz. Recompôs—se e bebericou sua xícara de chá.
— Sou—lhe muito grata. Não sei explicar, mas sinto que você apareceu na minha vida na hora certa.
Renata deu uma piscadinha.
— Tenho certeza de que os espíritos estão nos ajudando.
— Acha?
— Tenho certeza. Minha intuição não falha.
— Não sei, preciso entender melhor tudo isso. Você pode me ajudar?
Renata retribuiu com inquietante pergunta:
— Você está pronta para mudar?



CAPÍTULO 8


"Você matou Loreta. Eu sei. Estou de olho em você."

A frase ecoava a todo instante na mente de Caio. Martelava sua cabeça, como se alguém o estivesse acusando a todo e qualquer momento. Fazia meses que ele havia recebido aquela carta misteriosa. Quem havia feito isso? Quem? Além da frase acusadora, a pergunta também fervilhava sua mente.
Caio revirou—se na cama. Estava sem sono, triste, cansado. Fazia alguns meses que chegara a São Paulo e não conseguira nada. Digamos que não conseguira nada em relação à sua sonhada carreira de modelo.
O rapaz entregou—se ao sexo fácil e acomodou—se nessa vida libertina. Tinha suas clientes, ganhava bem. Todavia, seu corpo apresentava sinais de desequilíbrio e cansaço. Havia uma voz que pedia para ele parar com essa vida.
Caio achava seu sua consciência, não percebia que Norma estivesse sempre ao seu lado, procurando inspirar—lhe bons pensamentos. Ele não acreditava em vida após a morte, era homem de pouca ou quase nenhuma fé.
Ela tentava, sempre que possível, aproximar—se do irmão e soprar—lhe idéias positivas, a fim de que ele saísse desse circulo pernicioso e desgastante que tornara sua vida.
Se ele continuasse assim, logo seu corpo físico apresentaria sinais claros de esgotamento vital e uma doença poderia facilmente instalar—se em seu corpo debilitado.
Norma acreditava que o irmão pudesse mudar. Afinal, ela tivera acesso a algumas vidas passadas de Caio e pôde verificar que ele fora batalhador e firme em seus propósitos. O que o atrapalhava sobremaneira eram os impulsos sexuais desenfreados. Isso sim, era motivo de alarde, porquanto a paixão desenfreada e o sexo fácil haviam lhe causado grande estrago em outras vidas.
Por conta do sexo sem responsabilidade, Caio terminara sua última encarnação de maneira deplorável. Já fora hóspede do Vale do Sexo, local de permanência, no astral, de espíritos desencarnados em virtude do abuso desmedido de seus corpos em função de práticas sexuais desprovidas de qualquer sentimento nobre.
Por interferência das orações do espírito bondoso de sua irmã, Caio, às vezes, enchia—se de coragem para mudar e retomar o rumo de seus sonhos. Inicialmente, o jovem pensou em arrumar um emprego simples, mas Guido o demoveu da idéia. Queria a todo o custo que o amigo trabalhasse com ele.
Guido chegara a São Paulo havia alguns anos. Sempre fora ambicioso e prometera a si mesmo que iria ganhar a cidade, ser rico e famoso. A qualquer custo. Rosto jovem, porém comum, percebeu ser atraente de certo modo, e passou a seduzir mulheres e homens.
As chances de emprego não eram boas, visto que Guido não tinha formação, havia concluído a quarta série do primário, somente. Sabia ler e fazer adição e subtração. Divisão era algo que o atrapalhava. Vendo que o dinheiro estava por acabar, e percebendo os olhares de cobiça sobre si, resolveu tirar proveito do corpo. Foi assim que ele atirou—se no mundo da prostituição.
Seu primeiro alvo foi às mulheres.
Guido descobriu que havia um ponto próximo ao parque do Trianon, na região da Paulista, onde mulheres endinheiradas circundavam com seus carrões à procura de sexo com rapazes. Esses meninos eram chamados de call boys, garotos cuja clientela era formada única e exclusivamente por mulheres. A concorrência era pesada e logo Guido percebeu que os homens pagavam mais e exigiam menos. O sexo era mais rápido e o faturamento também.
Havia um código entre os call boys de só saírem com mulheres. Guido quebrou esse código e foi escorraçado das imediações do parque. Apanhou bastante e acabou nas mãos de rico empresário, que o ajudou, deu—lhe um teto, dinheiro. Óbvio que tudo isso em troca de sexo, com exclusividade, quer dizer, nem tanta exclusividade assim.
A infidelidade ao parceiro lhe custou à perda do teto e do homem que o sustentava. Até que numa noite apareceu Maximiliano em sua vida. Homem na faixa dos quarenta, Max, como era conhecido pelos amigos, era um homem bonito, culto e trabalhava como curador de um museu. Era responsável por trazer ao país exposições de artistas internacionais de vários ramos das artes, fossem pintores, artistas plásticos, escultores. Pessoa boníssima, Maximiliano era adorado por muitos, pessoa conhecida na sociedade.
Ele era homossexual e afeiçoou—se sinceramente a Guido. Foi aí que a vida do menino mudou, para melhor, é claro. Guido foi morar no belo apartamento de Max. Passou a ganhar uma gorda mesada para cuidar da casa, visto que Max estava sempre viajando, tratando de negociar com artistas ao redor do globo para que viessem expor suas obras no Brasil.
Guido aproveitou—se da generosidade de Max. Passou a freqüentar lugares sofisticados e conheceu Gregório. Foi quando surgiu o convite para trabalhar como modelo. Mas a campanha fracassou e Guido passou a fazer pequenos serviços escusos para Gregório.
Caio conhecia Maximiliano somente por fotos. Chegou a atender ao telefone uma vez e ouviu sua voz. Maximiliano fora gentil, discreto – nem perguntara sem nome – e pedira para transmitir um recado a Guido. Esse fora o único contato. Maximiliano deveria retornar em fevereiro, porém estavam quase no fim daquele ano. Será que ele voltaria?
Guido acendeu a luz do quarto. Caio instintivamente levou as mãos aos olhos.
— Apague a luz, por favor. Ainda é cedo.
— Você não dormiu nada esta noite – retorquiu Guido.
— Como sabe?
— Ouvi seus passos.
Caio jogou—se na cama.
— Preciso arrumar um jeito de trabalhar.
Guido riu alto.
— Você já trabalha. E as clientes que atende? Não lhe dão bom dinheiro?
— Isso não é vida. Algo dentro de mim diz que tenho de parar com essa vida leviana. A cada dia que passa estou me distanciando de meus objetivos. Eu vim para cá para me tornar um modelo, um homem que minha mãe pudesse ter orgulho e admirar. E veja no que estou me tornando: um prostituto. Até quando Guido, até quando?
Caio estava nervoso e confuso. Enquanto ele esteve dormindo, Norma aplicou—lhe um passe calmante e novamente inspirou—lhe bons pensamentos, para que acatasse suas idéias e tratasse de mudar de vida. Ele mal se lembrava de ter ouvido algo, mas sentia que estava na hora de dar uma virada em sua vida.
Guido nunca o vira desse jeito. Aproximou—se e sentou—se na cama.
— Você está bem?
— Sim, estou. É que uma voz me diz que estou indo para o caminho da perdição. Eu não quero ser michê, você me entende?
— Claro que entendo. Mas você adia sua ida até o escritório do Gregório.
Caio abaixou a cabeça. Guido tinha razão. Ele evitava o contato com Gregório, mas o que fazer? O tempo urgia e ele precisava ir até o figurão da Cia. De Perfumes. Embora atormentado com a possibilidade de que Gregório soubesse de sua ligação com Loreta, esse era um risco que ele deveria correr. O rapaz estava com o prato e o queijo nas mãos. Queria se tornar modelo. Gregório precisava de um. Era juntar a fome com a vontade de comer.
— E então? – prosseguiu Guido. – Vai deixar de arrumar desculpas esfarrapadas e ir ao encontro do presidente da Cia. De Perfumes?
— Devo ir. Estou adiando por quê? – perguntou. – Preciso e quero mudar. E também preciso de um lugar próprio para morar. Não posso viver sob o teto cujo dono mal conheço. E ainda, logo o porteiro vai começar a desconfiar das visitas femininas que recebemos. Isso não é justo com o Max.
— Justo ou não, você logo vai conhecê—lo – respondeu Guido, fazendo gestos com um dos indicadores.
Caio coçou o queixo.
— Agora é verdade? Max vem mesmo para o Brasil?
— Ligou—me ontem. Agora está tudo acertado. Ele se meteu lá com um grupo de estudos, sei lá o que anda fazendo. Esses caras ricos são muito excêntricos, sabe? Max não foge à regra. É um cara bom, legal, mas esquisito, cheio de manias. Disse—me que, assim que regressar de Londres vai mudar algumas coisas aqui em casa.
— Mesmo?
— Bom, ele pode mudar o que quiser desde que eu não saia. Daqui não saio daqui ninguém me tira.
— Eu vou ter de sair. Não compreende?
— Quando Max chegar, em breve, você terá de partir. Mas lugar a gente arruma.
— Não quero mais saber disso.
— O que deu em você? Acordou determinado!
— Algo dentro de mim exige mudanças em meu comportamento. É como se eu já tivesse vivido situação parecida e terminasse mal. Consegue compreender?
Guido fez ar de mofa.
— Não entendo, mas você é crescido e sabe o que é melhor para si. Por acaso – Guido perguntou num tom malicioso – não preferiria fazer como eu e arrumar um coroa endinheirado e carente?
— Nunca! Eu jamais me uniria a alguém por isso – antes de Guido se pronunciar ele concluiu: —não o estou julgando, mas não tenho estômago.
— Mas tem estômago para transar com várias mulheres ao mesmo tempo. Isso é patético, Caio.
— Eu não quero mais essa vida. Não tenho vínculo afetivo com as mulheres. Eu faço sexo e pronto. Acabou. Elas me pagam e vão embora. Mas você alimenta sentimentos no Maximiliano. Não tem compaixão? Não se importa com os sentimentos dele? Ou mesmo de machucar seu coração?
Guido levantou—se da cama. Andou até a janela do quarto.
— Max é grandinho e sabe se defender. Eu não sou responsável pelo que ele sente.
— Não é responsável, mas alimenta o sentimento. Isso é comprometimento. Você não pode simplesmente usá—lo e depois jogá—lo fora,
— Max vale muito para ser jogado fora. Isso é algo que não pretendo. Aliás, eu posso fazer o Max engolir você. Quer ficar morando aqui conosco?
— Como assim, engolir?
— Posso ir lá naquele lugar que eu lhe falei, lembra?
— Nem pensar! – Caio levantou—se de um salto. – Não gosto disso.
— Por quê? Já teve alguma experiência ruim?
— Não é isso, mas ouço tantas histórias ruins sobre esses pedidos...
Guido sorriu.
— Comigo não tem problema, não. Eu posso tudo. Quer dizer, esse senhor que faz os trabalhos para mim não falha. Ele é muito bom.
— Peça então para ele cuidar dos seus negócios. Dos meus, eu me entendo.
— Você é quem sabe. Se quiser uma ajuda, não hesite em me chamar – Guido rodou nos calcanhares e apoiou—se no batente da porta. Voltou o rosto para dentro do quarto e disse: — tem certeza de que não vai querer a prestimosa ajuda dos espíritos?
— Tenho.
— Não gostaria de saber se os espíritos poderiam descobrir sobre esse bilhete estranho que você recebeu?
Caio voltou a sentar—se na beirada da cama, nervoso.
— Recebi faz tempo. Deve ter sido uma brincadeira de extremo mau gosto.
— Quem sabe eu...
— Não! – bramiu Caio. – Absolutamente. Isso compete somente a mim.
— Tudo bem – replicou Guido, num tom conciliador. – Estou às ordens para ajudá—lo, caso precise.
— Obrigado.
Guido saiu do quarto e, em seguida, Caio voltou a se levantar. Havia dormido mal, as palavras daquela carta não saiam de sua cabeça. Entretanto, sua mente registrara as palavras da irmã e ele havia decidido que iria até o escritório de Gregório. Havia mais de um mês que adiara sua ida à Cia. De Perfumes. Maximiliano estava para regressar ao Brasil. Caio precisava arrumar um novo lugar para morar, mas, para isso, necessitava de um emprego decente, de uma renda que pudesse ajudá—lo a se tornar independente. E longe de sexo.
Ele não estava gostando de determinadas atitudes de Guido. Quando havia entre eles algum tipo de discórdia, um conflito que fosse Guido atirava—lhe na cara que ele estava vivendo bem na cidade grande graças a ele.
Isso o deixava triste e abatido. Caio sentia algo de estranho no ar, uma desconfiança que não sabia de onde vinha. O único registro no seu corpo era a clara sensação de medo, de fuga. Ele sentia vontade de sair daquele apartamento o mais rápido possível. Resolveu que iria procurar Gregório. Não encontrava outra solução.



*****


Norma andava de um lado para o outro do quarto, sem saber qual atitude deveria tomar. Carlota apareceu e aproximou—se dela.
— Você não deveria estar aqui. O ambiente às vezes fica pesado devido ao padrão vibratório dos pensamentos negativos de Guido. Ele não tem bons pensamentos e inunda o ambiente de energias de baixa vibração.
— Guido está manipulando meu irmão. Caio deseja ter uma vida independente e está praticamente preso a ele. Eu sinto que essa amizade não faz bem ao Caio.
— Seu irmão tem o livre—arbítrio, querida. Não se esqueça disso, jamais. Caio escolheu encontrar essas pessoas nesta etapa de sua jornada evolutiva. Ele poderia escolher outros caminhos, mas desejou que as coisas fossem por esse lado.
— Pelo menos eu tento soprar—lhe palavras de encorajamento, de força, e de procura pela espiritualidade.
— Isso fará toda a diferença – tornou Carlota, esboçando lindo sorriso. – Se Caio procurar estudar e entender a vida espiritual poderá passar pelos dissabores de maneira menos dolorida. Eu e você estamos fazendo nosso papel, inspirando—lhe bons pensamentos, ajudando—o a se afastar de atividades ilícitas, a manter um coração bom e puro. A revolta, muitas vezes, só nos afasta do caminho que traçamos na vida, e, no fim das contas, percebemos que ficamos mais cansados e tristes.
— Meu irmão é bom. Não canso de repetir isso.
— Todavia – rebateu Carlota, com candura –, Caio é quem precisa acreditar que é bom. Enquanto isso não se concretizar, vamos vibrar e pedir às forças espirituais que o ajudem a manter—se em equilíbrio.
Os dois espíritos aproximaram—se do rapaz e lhe ministraram um passe revigorante. Caio havia se sentado na cama e sentiu vontade de se deitar mais um pouco. Assim que se deitou, imediatamente sentiu um bem—estar como há muito tempo não sentia. Em seguida, espreguiçou—se, bocejou, esticou os braços e dirigiu—se ao banheiro. Entregou—se a uma ducha forte, morna e reconfortante.
Passava das dez da manhã quando Caio entrou na elegante recepção da Cia. De Perfumes. Foi atendido por uma simpática recepcionista.
— O que deseja senhor?
— Tenho entrevista com o Sr. Gregório Del Prate.
A moça pegou uma agenda ao seu lado e checou o nome.
— Desculpe—me, senhor, mas não consta reunião para esse horário. Seu nome, por favor?
— Caio Abrantes Souza.
Ela novamente checou e nada. Pegou outra lista e nada.
— Desculpe—me, senhor, mas não...
O rapaz a interrompeu com delicadeza.
— Eu é que devo pedir desculpas. Essa reunião está marcada há bastante tempo e eu não avisei...
A recepcionista sorriu e lhe deu uma piscada.
— Como se trata de um moço bonito e simpático, creio que poderei checar com o Sr. Gregório.
Caio sorriu sem graça. Afastou—se da recepção e sentou—se numa cadeira ali perto. Alguns instantes depois ela o chamou.
— O Sr. Gregório vai atendê—lo. Dirija—se até o fim deste corredor – ela fez um gesto sensual com os dedos. – Depois tome o elevador da esquerda até o último andar. Vai sair diretamente na sala do presidente.
— Obrigado.
— Por nada. Às ordens. Meu nome é Meire.
Caio devolveu o sorriso.
— Obrigado Meire.
Assim que ele se afastou ela suspirou emocionada.
— Tão bonito! Ele me lembra o Marco Antônio – Meire disse emocionada. – Ah, Marco Antônio, por onde anda você?
Caio tomou o elevador e, ao chegar ao último andar, as portas se abriram e ele saiu diretamente na sala de Gregório. O homem estava sentado em sua poltrona, atrás de sua mesa e de costas para quem entrava. Parecia que Gregório apreciava a vista da cidade, através da imensa janela de sua sala. Caio estugou o passo e aproximou—se da mesa. Gregório fez delicado movimento com o corpo e girou a poltrona com os pés. Os olhos de ambos se cruzaram. Caio sentiu um estremecimento, um mal—estar sem igual.
— Até que enfim. Se Maomé não vai à montanha...
Caio pigarreou.
— Bom dia, Sr. Gregório.
— Pode me chamar simplesmente de Gregório. O senhor me deixa mais velho do que já aparento.
— Desculpe—me.
— Sente—se, criança – Gregório fez gesto para que o rapaz se sentasse. Caio anuiu com a cabeça e sentou—se numa cadeira próxima à grande mesa talhada em ferro e com vidro. – Sabe que parece que o conheço de algum lugar?
Caio estremeceu. Será que Gregório o havia visto na casa de Loreta? Não. Era impossível.
— Eu tenho um rosto comum. Deve ser isso.
Gregório deu uma gargalhada espalhafatosa.
— Rosto comum?! Você? Está tirando sarro da minha cara, isso sim. Criança, você tem o rosto perfeito para minha nova campanha do perfume Nero. Preciso desassociar a imagem do perfume ao rosto do antigo modelo, Marco Antônio.
— Soube que ele se acidentou.
— De maneira tola. Um acidente doméstico. Imagine o que aconteceu ao garoto! Pobre Marco Antônio.
— E há chances de ele se recuperar?
— Sim. Mas as queimaduras provocadas pelo álcool deixam marcas. Sorte dele que o rosto não foi afetado, porém os braços, ah, os braços ficaram bem machucados.
— Se o rosto não sofreu queimaduras, então...
— Deixe de sentimentalismo, criança. Os meus modelos aparecem de corpo inteiro nas propagandas. Quem compra perfume quer ver um rosto bonito e corpo bem—feito, esculpido. Marco Antônio já era. Agora quero um rosto novo. E aposto em você.
— Puxa, seu... Quer dizer, Gregório. Eu sempre quis ser modelo. Você não sabe o bem que me faz ao me oferecer esse trabalho. Contudo...
Caio parou de falar. Gregório o encorajou.
— Contudo?
— Eu nunca fiz propaganda, nunca posei para fotos. Não precisaria fazer um curso?
— Eu arrumo uma equipe para você. Terá tudo e todos aos seus pés. Quando pode estar disponível para os primeiros ensaios fotográficos?
— No momento que quiser. Estou disponível.
— Muito bem. Vou confeccionar o contrato. Isso leva algum tempo, pois os advogados adoram encher os contratos com muitas cláusulas. Eu tive muita dor de cabeça com o Marco Antônio e não quero correr mais riscos.
— Você é que sabe.
— Eu vou adiantar parte de seu cachê – Gregório apertou um botão sobre um dispositivo em sua mesa. – Meire, peça para que o departamento financeiro preencha um cheque no valor de...
Caio arregalou os olhos quando ouviu o valor que lhe seria adiantado. Nunca imaginara ganhar aquilo na vida. Era muito dinheiro. Pelo menos agora teria condições de alugar um apartamento modesto, largar a profissão de call boy e encher sua mãe de orgulho.
Faria Rosalina se sentir a mãe mais feliz do mundo.
Caio sorriu. Despediu—se de Gregório com imenso sorriso nos lábios. Chegaria até o apartamento e ligaria para suas clientes. Não iria mais atendê—las. Estava convicto disso.
O rapaz desceu e, ao entrar no elevador, olhou o cheque e conferiu o valor várias vezes.
— É muito dinheiro – disse para si mesmo.
Ao sair do elevador e deparar com Meire, retribuiu—lhe a piscada.
— Sua piscada me deu sorte. Obrigado.
Meire ficou sem palavras. Abanou o rosto com as mãos.
— Além de bonito, é simpático. Mas o Marco Antonio é mais bonito.
Caio saiu do prédio da Cia. De Perfumes feliz e contente. Tinha vontade de ligar para sua mãe e contar—lhe as novidades. Mas iria esperar e assinar o contrato. Guardou o cheque no bolso do paletó e tomou um táxi. Deu ao motorista o endereço de seu banco. Enquanto o motorista avançava pelo trânsito caótico da cidade, Caio cantarolava uma canção em voga, sentindo—se o mais feliz dos homens.



CAPÍTULO 9


O avião que transportava Maximiliano aterrisou na cidade numa linda manhã. O céu era de um azul intenso, não havia uma nuvem sequer. Max finalmente retornava ao seu país depois de longa ausência. Fazia meses que partira para Londres a fim de negociar uma exposição de quadros com um pintor que despontava no circuito das artes.
Entretanto, Max conheceu, nesta estada em Londres, o Dr. Bryan Scott, médico fundador do Instituto Scott de Estudos Espirituais, voltado ao estudo de casos inexplicáveis para a ciência oficial.
Ele encantou—se com o médico, com suas experiências e resolveu ficar em Londres e absorver todo o conhecimento espiritual que esse médico pudesse lhe passar. Foi pensando no médico inglês que Max desembarcou no aeroporto. A história de Bryan Scott era impressionante.
Médico cético e ateu, Bryan Scott nunca quis saber de religião ou mesmo de espiritualidade. Considerava tudo isso uma grande bobagem, uma espécie de entorpecente para que as pessoas pudessem ser manipuladas e usadas por mentes mais fortes.
Não obstante, Scott teve todo o seu sistema de crenças sacudido e abalado quando sua filha Stella, de apenas doze anos, morreu num desastre de trem que ia do condado de Nolfork a Devon, no sul da Inglaterra. Isso ocorrera no meio da Segunda Guerra Mundial, há muitos anos.
Triste e abatido, Scott fechou—se em seu mundo e tornou—se homem mais cético ainda. Deus, segundo sua observação, não passava de uma invenção, de uma força inventada por homens espertos a fim de aproveitar—se da dor alheia.
Os anos foram passando e o coração de Scott foi embrutecendo na mesma proporção. Tornara—se homem amargo e descontente com a vida. Aposentou—se e, num dia particular, sonhou com sua filha. Stella dizia estar bem, já havia reencarnado e morava atualmente em Bristol.
Bryan Scott acordou com a cabeça embaralhada, não se recordava direito o que havia sonhado. Só se lembrava de ter visto o rosto de uma menina parecida com sua Stella, mas com os cabelos e as feições alteradas.
O tempo passou e Scott foi convidado para dar uma palestra acerca do impacto do aquecimento global sobre as pessoas, tema que já era de preocupação de algumas pessoas no início da década de 1980. O médico fez brilhante palestra, advertindo que aquela era a época certa para que toda a humanidade somasse esforços e todos os povos lutassem pela preservação do ambiente. Essa palestra foi muito comentada e discutida anos depois.
Ao sair da palestra e dirigir—se para seu hotel, Bryan Scott foi abordado por uma moça, de olhos tristes e feições simpáticas. Ela implorava para que o médico lhe desse um minuto de sua atenção.
— Necessito falar—lhe urgente.
— Em que posso ajudá—la? – questionou o médico, num tom polido.
— Minha filha Emily. Ela deseja lhe falar. Há meses quer conversar com o senhor.
— Sua filha? Mas você é muito jovem e...
Ela o cortou, com delicadeza.
— Desculpe—me, Dr. Scott, mas Emily jura que o conhece e deseja lha falar. Foi ela quem me mandou vir aqui. Disse que o senhor iria dar uma palestra e que ao terminar eu deveria convencê—lo a ir até a nossa casa.
— Por que eu iria até sua casa?
A moça apertou as mãos com certo nervosismo. Seus lábios tremeram levemente e ela, por fim, declarou:
— Minha filha diz que é a reencarnação de sua filha Stella.
Uma bomba sob a cabeça do médico não teria surtido efeito tão devastador. Scott ficou parado por alguns instantes, mudo estático, sem palavras mesmo. Aquilo era aviltante. Só podia ser brincadeira de mau gosto daquela desconhecida que vinha tocar—lhe em feridas profundas e não cicatrizadas do passado. Ou tratava—se de um milagre? Em que confiar? Ou melhor, em quem confiar?
Scott voltou do choque e balbuciou.
— Senhorita, por favor, não brinque com meus sentimentos.
Uma lágrima sentida escapou pelo canto do olho da moça.
— Sinto muito doutor, mas minha filha afirma ter sido sua filha Stella.
— Ninguém sabe que tive uma filha. Quer dizer, isso faz muitos anos. As pessoas hoje nem se recordam e.
A moça tirou um pequeno papel do bolso. Havia ali algumas anotações.
— Emily diz que foi sua filha, que nasceu no condado de Norfolk em 1932 e desencarnou em 1945 e.
Bryan Scott fez um gesto com as mãos para que ela parasse de ler.
— Por favor – tornou emocionado –, leve—me até sua filha. Eu lhe imploro.
O encontro do médico com a menina foi algo comovente e, ao mesmo tempo, surreal. Eram duas pessoas que nunca haviam se visto na vida, mas ligadas pelos verdadeiros laços do espírito.
Assim que entrou na sala e viu a pequena Emily, Scott ainda teve certa desconfiança. Achou que iria encontrar uma cópia perfeita de sua Stella, mas o que via na sua frente era uma menina magra, esquálida, doente. Os cabelos de Stella eram ruivos e encaracolados, a pele era de alvura estupenda. A menina à sua frente tinha os cabelos mal cortados, pretos e lisos. A pele era mais para morena e a aparência, no geral, em nada lembrava sua finada filha.
Scott rodou nos calcanhares e fez menção de sair. Aquilo devia ser armação, das boas. E ainda tripudiaram sobre seus sentimentos. Deveria isso sim, processar aquela mãe desmiolada e louca. Claro! Havia notado que a casa ficava em um bairro pobre, que a família não tinha recursos e que, talvez com esse "golpe" da reencarnação, elas pudessem tirar algum dinheiro dele.
O médico mordeu os lábios de raiva, estava chegando perto da porta de saída quando a menina zangou—se:
— Papai, não faça isso. Sou eu, Stella. Em outro corpo, mas sou eu.
Ele virou—se abruptamente e quase avançou sobre a menina. Tinha uma vontade louca de desferir—lhe uns bons bofetões. Antes de tomar atitude irascível, ela concluiu:
— O acidente de trem que me tirou deste mundo estava programado pelo plano maior. Era a minha hora de partir. A vovó Elizabeth resgatou meu espírito dos escombros. Eu juro que não senti nada quando desencarnei. Só me lembro de um forte estrondo, de alguns gritos e depois meu corpo começou a flutuar, como se eu estivesse boiando, como naquela vez que você me levou para nadar numa praia, na região de Brigthon. Isso se deu logo depois que vovó Elizabeth morreu, lembra—se?
Scott não tinha palavras para rebater ou professar naquele momento. Seus olhos marejaram e ele sentiu um perfume de flores bem característico que sua mãe costumava usar. Antes que ele pudesse dizer algo, Emily alegou:
— Vovó está aqui e diz que está com aquele perfume de flores que você tanto gosta. Diz que o ama muito e.
Emily não disse mais nada. Scott ajoelhou—se e abraçou a menina, cuja debilidade física se fazia notar. Emily beijou—lhe a face.
— Eu não vou viver muito mais aqui nesta dimensão. Necessito partir. Vim para lhe provar a existência da vida após a morte do corpo físico. Que o processo de morte nada mais é do que uma transformação e que nosso espírito é eterno.
As lágrimas de Scott corriam insopitáveis. Ele acariciava os cabelos negros e lisos da menina, beijava—lhe as faces, inundado de felicidade.
— Você voltou para mim. Você voltou para mim!
— Por pouco tempo, papai. Você precisa acreditar na existência das forças superiores que regem o Universo. Pode chamar de Deus, se quiser. Mas não pode deixar de acreditar nessas forças. Você é homem muito inteligente e sempre esteve ligado às verdades espirituais. Médico de renome, no passado fez estudos que comprovaram a reencarnação. Vítima de pessoas inescrupulosas e que se sentiram ameaçadas com as verdades que você iria revelar ao mundo, foi parar na fogueira dos inquisidores. Por tudo isso, está tão relutante em aceitar a existência da vida após a morte do corpo físico. Eu reencarnei neste corpo frágil – ela fez um sinal, apontando para o próprio corpinho adoecido – porque precisava chamá—lo para a sua missão. Você não pode partir deste mundo sem antes se dedicar aos estudos espirituais.
— Eu vou estudar, eu quero estudar. Entretanto, não quero perdê—la de novo. De novo, não.
— Não vai me perder papai. Só vou para outra dimensão. Assim que voltar para o nosso verdadeiro mundo, a pátria espiritual vou—me reequilibrar e logo estarei ao seu lado, inspirando—lhe, ajudando—o na fundação de seu instituto. É um trabalho grande e árduo. Você vai enfrentar preconceitos, mas não vai esmorecer, porquanto do outro lado estarão amigos espirituais determinados a ajudá—lo em seu intento.
— Não sei se nesta altura da vida...
— Nem pense nisso! – a pequena Emily o censurou. – Você ainda vai viver muito, vai morrer bem velhinho. Nunca é tarde para se começar um novo trabalho. Será de grande importância para a humanidade. O mundo atualmente precisa cada vez mais se certificar da existência do Universo espiritual. A humanidade encontra—se pronta para receber as verdades da vida.
Emily conversou algumas outras particularidades com Scott e, após se despedirem e marcarem novo encontro, ela finalizou:
— Mamãe ainda está em processo de recuperação, mas bem. Quem lhe manda lembranças é o William Moore, seu colega de faculdade. Ele está tão bem, que não tem mais medo de água. William também fará parte do projeto de criação do instituto.
Não havia mais nenhuma possibilidade de dúvidas. Bryan Scott nunca havia dito nem mesmo à sua finada filha, sobre a existência e a forte amizade entre ele e William, na época da universidade. William não sabia nadar e afogara—se no lago do campus da universidade, depois que um forte vento virou o barco que ele remava. Foi muito difícil para Scott superar a dor traumática da separação. Entretanto, mais de cinqüenta anos haviam se passado e muito raramente Scott lembrava—se do amigo.
— Fico contente que William esteja ao meu lado. Sempre estimei muito sua amizade.
Bryan Scott despediu—se da pequena Emily e de sua mãe, Sarah. Saiu daquela humilde casa, no subúrbio de Bristol, atordoado, perturbado e. feliz. Sim, aquela conversa havia lhe aberto à mente. Tudo fazia sentido, e Scott teve uma vontade louca de começar a estudar e contatar pessoas que se dedicavam seriamente aos estudos espirituais.
O médico pensou em mudar—se para perto da casa daquela que julgava ser sua filha. Iria voltar na semana seguinte para visitá—la. Queria voltar no dia seguinte, mas alguns compromissos inadiáveis não lhe permitiriam esse intento. Ele faria uma proposta para Sarah. Talvez até pudessem viver todos juntos, como uma família. Ela nem imaginava quem era o pai de Emily".
Tudo em vão. Na semana seguinte, quando ele estava livre para passar alguns dias ao lado de Emily, nova bomba. A menina havia desencarnado dois dias antes. Sarah, em prantos, entregou ao médico uma carta que a filha, em letrinhas miúdas e ainda infantis, escrevera para ele no seu leito de morte.
Na carta, Emily lhe dava indicações de como começar o projeto e quais pessoas deveria procurar inicialmente. Deu nomes, profissões, endereços. Tudo detalhado.
Bryan Scott encontrou todas as pessoas ali mencionadas. Juntos, criaram o Instituto Scott de Estudos Espirituais, que foi um sucesso desde o início e agora contava com a colaboração de muitos profissionais sérios que corriam o mundo provando a existência da reencarnação.
Maximiliano empolgou—se de tal maneira que foi esticando sua estada na Grã—Bretanha até o último instante. Uma exposição do pintor que ele queria trazer ao Brasil iria começar dali a uma semana. Ele planejava cuidar da exposição e, ao seu término, iria mudar—se de vez para a Inglaterra. Queria ingressar no instituto e dedicar—se ao estudo sério da espiritualidade.
Ele era homem culto e muito simpático. Fora alertado por Bryan Scott de que havia energias densas, bem pesadas, pairando sobre sua casa. Maximiliano deveria regressar ao Brasil, mas deveria ficar na casa de outra pessoa. Não na dele. Antes haveria a necessidade de uma boa limpeza energética para não interferir no seu sistema físico, psíquico e espiritual.
Maximiliano apanhou suas malas, botou—as no carrinho e sorriu feliz. Após passar pela policia federal, atravessou a porta de saída e seus olhos perscrutaram o ambiente, em busca de sua amiga. Mais adiante viu uma mão delicada e bem cuidada, que balançava euforicamente. Ela deu um grito lá do fundo do saguão de desembarque.
— Sou eu, Max. Cheguei a tempo.
Ele sorriu e, quando se aproximou dela, abraçaram—se com ternura. Eram amigos de longa data. E de longas vidas. Max a beijou várias vezes na face.
— Renata, não sabe quanta saudade eu estava sentindo de você.
— E eu? Acha que vim do escritório até aqui para buscá—lo por quê?
Max riu gostoso.
— Você não larga o trabalho por nada! Se veio até aqui no meio do serviço, é porque gosta de mim.
— Bobo! – exclamou ela, contente. – Eu sempre faço tudo pelos meus verdadeiros amigos. Você me ajudou tanto, sou—lhe eternamente grata pela ajuda que me deu. Aliás, esse emprego eu devo a você.
— Nem diga isso. Eu sou amigo do dono da empresa. Ele é serio competente, jamais contrataria alguém por conta de nossa amizade. Você foi contratada porque é excelente profissional. É isso.
Abraçaram—se novamente. Foram caminhando até o carro de Renata.
— Pensei que não voltaria mais.
— Eu também. Vim a trabalho, mas quero voltar em definitivo. Londres é minha casa.
— Mesmo? – uma nuvem de tristeza cobriu os olhos de Renata. – Pensei que estivesse enjoado dos ingleses. Que agora iria ficar aqui com seus amigos.
— Eu adoro o Brasil, Renata. Mas pertenço àquele mundo. Eu gosto de cumprir horário, gosto de organização.
Nosso país é maravilhoso, mas ainda estamos longe disso. Mesmo com os problemas existentes na Inglaterra, eu me identifico mais com aquele país.
— Vai ver, viveu lá muitas vezes.
Ele sorriu.
— Não tenha dúvidas. Por falar nisso, tenho tanta coisa para lhe contar!
— Adoro suas histórias!
— Pena que eu tenha que voltar ao trabalho – suspirou ele, triste.
Renata piscou o olho de maneira maliciosa.
— Tirei o dia para nós. Eu amo meu trabalho, mas está tudo acertado com meus funcionários. Sabe o quanto sou organizada, e deixei todos sob as devidas orientações. Transferi uma reunião com um cliente importante para amanhã. Pode abusar de mim à vontade.
Max a abraçou novamente.
— Como gosto de você, Renata. Se eu tivesse outra orientação sexual, com certeza você não me escaparia.
— É, nem tudo é perfeito...
Ele deu um tapinha em seu ombro e riram a valer.
— Está na hora do almoço. Sente fome?
— Muita. Sabe que sou um bom garfo.
— Vamos àquele nosso restaurante predileto. Depois para casa. Você deve estar cansado da viagem.
— Um pouco. Tenho de conversar seriamente com você sobre voltar para casa.
— O que aconteceu?
Max fez um sinal com o indicador, apontando para cima.
— Aviso dos amigos do Além. Recebi um comunicado de que não devo, em hipótese alguma, botar os pés em minha casa, por ora.
— A Mafalda, lá do Centro Espírita, alertou—me sobre algo esquisito lá no nosso prédio. Talvez seja no seu apartamento que resida o problema.
O problema reside em Guido. Mas não quero tocar neste assunto agora. Vamos almoçar e, quando chegarmos a sua casa, eu lhe conto tudo.
— Minha casa? – perguntou Renata, exagerando propositalmente no tom.
— Sim, senhora. Vou ficar hospedado na sua casa. Não sei por quanto tempo, mas vou ficar lá, até os espíritos me liberarem para voltar para a minha casa.
Entraram no carro e Renata deu partida. Saíram do aeroporto e, ao pegarem larga avenida, foram conversando, animados, sobre os mais variados assuntos.


*****


Genaro chegou à casa radiante. Fora eleito deputado federal. Um dos mais votados do país.
—Essa gente que vota é muito ignorante. Como é fácil iludir o povo. Daqui para frente, agora o caminho será o Planalto! – exclamou, enquanto batia a mão no peito.
— Falando sozinho, Genaro?
Ele virou—se para trás e deparou com Eunice. Sorriu.
— Estúpida!
— Ela fez uma careta.
— Você é estúpida e deve me tratar com deferência. De agora em diante devo ser chamado de Sr. deputado.
— Para mim será sempre Genaro. Que é isso menino? Quando você mal saiu dos cueiros eu já estava batalhando na vida.
Ele deu uma gargalhada.
— De que adiantou tanta batalha? Vai terminar a vida lavando e passando roupa para os outros. Vai morrer doméstica. Pobre.
— Valeu o esforço.
— De que valeu tanto esforço?
— Eu durmo com a consciência tranqüila, Sr. deputado – ela aumentou o tom.
— Não estou comprometida com nada nem ninguém.
— Não disse que você é estúpida? O mundo, minha cara Eunice, pertence aos espertos, àqueles que sabem tirar proveito desse povo ignorante que habita o Brasil em profusão. Adoro o povão.
Eunice balançou a cabeça para os lados, de maneira negativa.
— Isso ainda vai acabar mal. Você deverá prestar conta do que faz. Tem responsabilidade social e, se falhar, o peso da cobrança poderá ser muito maior do que talvez possa carregar.
— Que papo mais estúpido. Que responsabilidade social que nada. Eu quero mais é maracutaia. Quero meter a mão no governo e ganhar muito dinheiro. Acha que quero ser deputado e futuro presidente para quê? Para fazer algo pelo país? Ora, Eunice. Eu quero é tirar tudo e um pouco mais. Eu sou inteligente, preciso aproveitar a ignorância das pessoas.
— Vai se dar mal.
— Isso é praga?
— Pode ser.
— Praga de pobre não pega em mim.
— Cuidado para não ser preso.
Genro riu com desdém.
— Você já viu político ser preso ou cassado neste país? Já viu?
— Ainda não, mas nunca é tarde. Se continuar assim, vai se dar mal. Sei que vai.
Genaro fez gesto obsceno com um dos dedos. Eunice levou a mão à boca, estupefata.
— Grosso!
— Anda, anda. Sai da minha frente; Quero ver minha esposa. Onde está a donzela?
— No quarto, arrumando—se.
— Arrumando—se para ir aonde?
— Vai ao banco.
— Só torra o meu dinheiro. Luísa pensa que eu sou o quê? Cofre público? Ela vai se ver comigo.
— Não a maltrate, por favor – suplicou Eunice.
Genaro deu—lhe um empurrão e ela caiu sentada no sofá.
— Eu não maltrato minha esposa. Apenas lhe aplico uns corretivos, quando necessário.
Genaro falou e subiu as escadas. Eunice balançou a cabeça para os lados. Até quando Luísa iria suportar aquele homem? Ela amava Luísa como filha. Conhecera—a desde pequenina. Havia uma ligação de amor muito forte que as mantinha unidas, sob quaisquer circunstâncias.
Eunice voltou à cozinha em seguida. Foi atrás de seus afazeres. Genaro entrou no quarto e Luísa estava sentada na banqueta defronte à penteadeira. Escovava seus cabelos castanhos e sedosos.
— Estou feliz – admitiu ele. – Fui eleito. Agora sou deputado federal.
Ela continuou escovando os cabelos. Sem virar o rosto, encarando—o pelo espelho que refletia sua imagem, Luísa tornou:
— Você comprou quase todos do seu partido. Estava na cara que seria eleito.
— Não importa como fui eleito. O que importa é que fui eleito. Isso sim.
— Entendo.
— E trate de se preparar, porque nossa vida vai mudar.
— Mudar?
— Sim, viajaremos muito a Brasília. Sempre que possível você vai me acompanhar.
— Está certo. Serei a esposa de deputado mais correta e educada do mundo. Você vai ver.
— Isso sim. Nenhum deslize. Não foi à toa que me casei com você. Tem um passado imaculado. Só falta agora me dar um filho.
Luísa estremeceu. De novo Genaro vinha com a história de filhos.
O casamento ia de mal a pior. Ela estava esperando o resultado das eleições para poderem sentar e falar sobre a separação e agora ele vinha tocar no assunto de filho?
— Você precisa ir ao consultório do Dr. Ribeiro. Há exames que precisam ser feitos para diagnosticar se você é estéril.
O sangue subiu pelas faces de Genaro. Ele aproximou—se e levantou a mão. Luisa defendeu—se com a escova.
— Por favor, não me bata! – ela suplicou, de maneira comovente e apavorada.
— Você me irrita.
— Desculpe—me, mas...
Genaro a cortou, seco.
— Por que afirma que sou estéril? Eu não lhe disse que já fui pai?
— Sim... Vo... Você me disse. Mas aquele menino em Bauru não tem nenhum traço seu. Como pode afirmar que seja mesmo seu filho? Que aquela mulher não seja uma embusteira e esteja com vontade de chantageá—lo pelo resto da vida?
— Como saber? Oras, eu me deitei com ela, puxa vida! Tenho certeza de que o filho é meu. E meus advogados acreditam que o melhor é aceitar e dar—lhe gorda mesada para que ela não venha a público arranhar minha imagem. Imagine uma noticia dessas da imprensa? Minha reputação conta muito.
— Eu fiz todos os exames, Genaro. Não tenho problema algum. Custa você ir ao consultório do Dr. Ribeiro? Só para tirar essa dúvida?
— Vamos tirar a dúvida agora.
Genaro falou de maneira libidinosa. Seus olhos ardiam de paixão e Luísa assustou—se. Ela tentou se levantar, mas ele era bem mais forte. Arrancou—lhe a escova das mãos, rasgou seu vestido e a arrastou até a cama, puxando—a com extrema força. Genaro jogou a esposa sobre o leito, arrancou suas vestes de maneira rápida e, antes que Luísa pudesse escapar, ele se jogou sobre ela e a possuiu de maneira violenta.
Dessa vez Luísa não conteve a ira e o desespero invadiu sua alma. Ela gritou de dor e de humilhação. Eunice ouviu os gritos dela, mas não podia fazer nada. Absolutamente nada. Uma lágrima correu pelo canto de seu olho e ela chorou, chorou e rogou a Deus que ajudasse sua menina a se livrar daquele brutamontes sem coração.
Genaro foi rápido. Em cinco minutos havia consumado o ato. Suando muito, ele desprendeu—se do corpo da esposa. Virou de lado e fez o mesmo ritual de sempre: abriu à cômoda, pegou um paninho, limpou—se, virou—se novamente e caiu num sono profundo e pesado. Em instantes seu ronco ecoou pelo quarto, de maneira irritante.
Luísa levantou—se, sentindo uma dor sem igual no baixo—ventre. As lágrimas escorriam insopitáveis pelo rosto e ela mal tinha forças para se levantar. Foi ao banheiro, encheu a banheira, temperou a água e entregou—se ao relaxamento. Naquele instante pensou em se afogar. Era melhor.
Ela tentou uma vez. Depois outra. Quando ia tomar coragem para cometer o ato insano, Eunice entrou no banheiro.
— Eu ouvi os gritos e orei bastante. Quando ele começou a roncar, decidi entrar. Como está?
Luísa começou a chorar novamente.
— Genaro é um crápula, Eunice. Trata—me como se eu fosse um objeto, uma boneca. Ele mal liga para meus sentimentos. Veio para cima de mim, machucou—me.
— Ele a estuprou, essa é a verdade.
— Eu não agüento mais viver ao lado dele.
— Então se separe. Você tem seus pais e.
Luísa foi categórica.
— Meus pais foram comprados pelo Genaro. Eles nunca permitirão que eu me separe dele. Acha que minha mãe vai me defender? Vai ficar ao lado da filha e correr o risco de perder a casa, o carro, a mesada que Genaro lhe dá? Nunca, Eunice.
Eu não tenho ninguém que possa me ajudar. Só tenho você. E Renata.
— Converse com sua amiga. Vá ao Centro Espírita.
— Sinto medo.
— Mais medo do que apanhar de Genaro? Duvido. Depois de tudo o que você tem passado ao lado desse brutamontes, nada mais poderá lhe causar medo.
Luísa titubeou por um instante.
— Creio que você tenha razão. Renata me disse a mesma coisa dias atrás. Em outras palavras, mas com o mesmo significado. Talvez esse seja um sinal para eu procurar ajuda espiritual. Estou a ponto de explodir, Eunice.
— Ligue para sua amiga. Eu fiz almoço, mas posso guardar para o jantar. Convide—a para almoçar.
— Até pensei em ligar, mas Renata tinha compromisso hoje. Um amigo querido regressou de Londres e ela iria passar o dia com ele. Não quero, de maneira alguma, atrapalhar. Eles devem ter muitas coisas para conversar. Eu prefiro sair, dar uma volta.
— Ótimo! Vá dar uma volta.
— Você poderia vir comigo, Eunice.
— Não posso. O técnico vem consertar a máquina de lavar roupas logo mais. Se ele não der um jeito nisso hoje, terei de voltar ao tanque e não tenho mais idade para esfregar roupa. Imagine eu no tanque esfregando as cuecas de Genaro? Não mereço esse sofrimento!
Luísa riu.
— Só você para me fazer rir numa hora dessas. Não gostaria de vê—la fazendo os serviços da casa. Poderia muito bem acompanhar—me nos eventos. Eu contrato uma empregada.
— De maneira alguma. Eu não vou deixar de fazer o que gosto. Adoro cuidar da casa, das roupas, da comida, de deixar tudo limpo e em ordem. Eu nasci para isso e gosto disso. Por favor, não deprecie o meu trabalho. Afinal de contas, eu não trabalho para você, mas conduzo os serviços da casa porque gosto. Ponha isso na sua cabeça.
— Eu adoro você, Eunice.
— Eu também a adoro, minha querida.
Eunice levantou—se da beirada da banheira.
— A água deve estar esfriando. Vamos sair daí, antes que pegue um resfriado.
Luísa assentiu. Levantou—se, apanhou a toalha das mãos de Eunice e enxugou—se com vagar.
— Por que não vai almoçar fora e depois compra alguma coisa para você? Um vestido, um mimo qualquer. Dar—se um presente sempre eleva a auto—estima.
— Você tem razão, querida. Farei isso. Entretanto, estou sem cheque e sem dinheiro. O Genaro vive monitorando meus cartões de crédito. Você me deu uma boa idéia. Vou me arrumar e ir ao banco. De lá vou a um shopping, almoço e depois compro algo para mim e para você.
— Eu não preciso de nada. Seu bem—estar é o meu maior presente.
— Não senhora! Vou comprar sim. Um vestido bem bonito, do jeito que você gosta.
— Obrigada. Mas não vá gastar muito. Não confio na fonte de onde vem esse dinheiro.
Luísa riu.
— Eu vendi algumas peças de roupas num bazar e tenho umas economias. Vou comprar com o meu dinheiro. Fique tranqüila.
Eunice sorriu. Fez sentida prece ao Alto, pedindo para que os amigos espirituais pudessem ajudar Luísa a se livrar de Genaro. O mais rápido possível.



CAPÍTULO 10


Renata encostou o carro no meio-fio.
— Chegamos.
— Adoro esse lugar – aquiesceu Maximiliano.
— Eu também. A comida é deliciosa e o atendimento, um primor.
Renata entregou a chave do carro ao manobrista. Entraram no restaurante e, como ela e Max eram fregueses assíduos do estabelecimento, logo o gerente apareceu, cumprimentou—os e lhes conduziu a uma mesa afastada do burburinho. Naquela hora de almoço, o restaurante estava quase lotado e eles queriam privacidade.
Sentaram—se atrás de uma coluna, fizeram seus pedidos e, quando o garçom serviu—os de água e refrigerante, entabularam conversação.
— Eu tenho muitas coisas para lhe falar – tornou Max, de maneira alegre. – Agora faço parte do Instituto Scott de Estudos Espirituais.
— O instituto é rigoroso na seleção de seus alunos. Como chegou lá?
— Uma noite, durante um jantar com um dos artistas que pretendia trazer ao Brasil, fui apresentado ao Dr. Bryan Scott.
— Você o conheceu?
— Em carne e osso, minha amiga. Um homem admirável. Está bem velhinho, mas tem uma lucidez, uma percepção das coisas que é fascinante. Que homem brilhante!
— Eu adoraria conhecer o instituto.
— Poderá conhecê—lo, Renata. O Dr. Scott quer fazer um intercâmbio com os médiuns e outros estudiosos da vida espiritual daqui. Você bem sabe que o Brasil é o maior país espírita do mundo.
— Como também acolhemos as religiões africanas, que também acreditam no mundo espiritual e utilizam—se da mediunidade de seus trabalhadores.
— Por certo. Não é a toa que muitos estudiosos estão de olho na nossa nação.
Renata estava exultante.
— Adoraria participar. Tenho estudado muito e tornei—me amiga de Mafalda, a dirigente do Centro. Você a conheceu, antes de ir para Londres.
— E se conheci. A Mafalda foi quem me disse que essa viagem seria um marco decisivo em minha vida.
— Ela lhe disse isso?
— Disse. Mas foi um tanto vaga. Talvez estivesse querendo que eu entrasse em contato com os estudos para depois podermos conversar. Pensei muito em Mafalda durante minha estada na Inglaterra.
O garçom trouxe os pedidos e eles pararam de falar por instantes. Após o rapaz se afastar, Maximiliano falou, com voz apreensiva:
— Sabe Renata, eu recebi um aviso de que preciso fazer um trabalho de limpeza espiritual em meu apartamento antes de voltar a morar lá. Vou precisar dos préstimos de Mafalda. E contarei com sua ajuda também. Precisarei ficar em sua casa por alguns dias.
— Por mim, meu amigo, pode ficar em casa o tempo que for necessário.
— Eu fui invigilante, Renata. Coloquei em minha casa um rapaz que mal conhecia. Um perigo.
— Eu mal paro em casa. É muito difícil encontrar algum vizinho. Creio que nunca tenha visto esse... Como é o nome?
— Guido – respondeu ele, de maneira enfadonha. – Fui tomado de pena e comiseração e resolvi convidá—lo para morar comigo. Nunca cometi um erro tão crasso em toda a minha vida.
— Você se deixou levar pela pena e esse sentimento nunca deve ser alimentado. Mas você colocou o menino lá. Por acaso aconteceu alguma coisa? Eu recebi uma mensagem dos amigos espirituais de que havia algo de estranho no prédio e que deveria fazer determinadas orações. Tive de comprar inclusive um livro de salmos. Leio o de número 91 diariamente.
— A leitura dos salmos é poderoso instrumento de ligação com as forças espirituais superiores. No instituto, há um grupo de estudiosos que se debruçam sobre o poder dos salmos e como sua leitura nos beneficia.
— Por enquanto é o que faço. Mas você soube de mais alguma coisa?
Maximiliano passou a mão pelos cabelos.
— Sim. Fui alertado de que o ambiente em casa está impregnado de energia sexual de baixa vibração. Parece que Guido usou minha casa como local para promover orgias.
— Nunca vi nenhum movimento estranho no prédio.
— Ele botou um rapaz para morar lá.
— É sério?
— Sim.
— Sem o seu consentimento?
— Eu nunca deveria ter deixado minha casa nas mãos de um estranho.
— Não adianta se lamentar. O estrago foi feito e, pelo jeito, o apartamento está impregnado de energias negativas.
— Por essa razão eu não posso entrar lá.
Há necessidade de uma defumação e da utilização de algumas ervas que talvez Mafalda nos oriente a usar.
— Mafalda é boa na indicação de ervas. Tenho certeza de que vão conseguir reequilibrar as energias de sua casa.
— Assim espero.
— Escute, Max.
— Sim?
— Você, eu, Mafalda e os espíritos amigos vamos promover essa limpeza no ambiente, certo?
— Certo.
— E o que vai fazer com esse tal de Guido?
Max suspirou.
— Precisaremos ter uma conversa dura e firme. Eu não posso mais alimentar essa pena que sinto dele. Isso só vai nos causar mais dissabores. Um amigo meu, em viagem recente a Londres, disse que o viu várias vezes na companhia de outro jovem. Eu sabia que ele tinha hospedado um moço no prédio, mas, engraçado, não sinto que esse rapaz passe algo de negativo.
— Vai ter de tirá—los de sua casa.
— O que me preocupa, Renata, é que alguns amigos me alertaram que Guido anda com aquele empresário, Gregório Del Prate.
Renata levou a mão à boca, estupefata.
— Que horror! – ela bateu por três vezes a mão sobre a mesa. – Se seu amiguinho anda metido com Gregório Del Prate, então vamos ter de exorcizar a sua casa!
Maximiliano riu a valer.
— Você é danada, Renata. Danada!
— E não? O mundo todo sabe que Gregório é o capeta em forma de gente. Sabemos de tantas coisas ruins que ele aprontou com pessoas próximas a nós, gente do bem...
— Pois é. Vou ter uma conversa definitiva com Guido. Quero marcar um encontro com ele hoje mesmo.
— Pode ser lá em casa.
— Não acho uma boa idéia. Ele pode se revoltar e.
— E o quê? Ora, Max, estamos ligados ao bem. Aliás, somos pessoas de bem. Vamos orar e pedir a ajuda aos nossos amigos do astral superior. Minha casa é um santuário e tenho certeza de que, sendo lugar neutro, seu amiguinho Guido não vai fazer nada. Podemos também recorrer à Mafalda.
— Ela poderia nos atender hoje?
Renata deu um risinho abafado.
— Conversei ontem com Mafalda. Ela disse que posso procurá—la a hora que quiser. Podemos almoçar e ir ao Centro Espírita. Não está cansado?
— Não. Estou ótimo. Quero resolver essa situação o mais rápido possível.


*****

Caio entrou no banco e foi até o caixa. A instituição estava vazia e ele logo foi atendido. Chegou ao caixa e fez o depósito em sua conta.
— Preciso sacar algum dinheiro.
— Vou verificar com o gerente, senhor. O cheque é desta mesma agência e, se tiver fundo, o senhor poderá retirar quantia limitada. Este valor – o caixa apontou para o cheque – somente é liberado caso o senhor faça pedido de saque com quarenta e oito horas de antecedência.
— Onde aguardo?
— Aqui mesmo. Já volto.
Caio sorriu e assentiu com a cabeça. O caixa foi até o gerente, que viu o cheque e imediatamente ligou para a Cia. de Perfumes. Conversou com Gregório e, em seguida, permitiu que Caio sacasse determinada quantia. O gerente assinou o cheque e o devolveu ao caixa, que pegou o dinheiro, contou as notas por duas vezes e, em seguida, entregou—as a Caio.
— O senhor pode conferir?
— Não é necessário, você já fez isso por duas vezes.
O caixa sorriu e agradeceu. Caio rodou nos calcanhares e, enquanto contava algumas notas, de cabeça baixa, deu tremendo esbarrão na moça que também saía do banco. O choque foi tão grande que ela se desequilibrou e caiu.
— Mil desculpas – foi o que ele pôde pronunciar. Abaixou—se imediatamente e a ajudou a se levantar e se recompor. – Machucou—se?
— De maneira alguma. Eu me desequilibrei, mais nada. Está tudo bem.
— Mesmo? Não quer um copo d'água?
Luísa sorriu e Caio estremeceu. Nunca vira mulher mais bonita em toda a sua vida. Seu coração bateu descompassado e ele procurou ocultar a emoção.
— Desculpe—me mais uma vez.
Ela estendeu a mão. Achou—o bonito e simpático.
— Eu adoraria tomar um refresco.
— Está muito calor – tornou Caio.
— Quer me acompanhar?
— Desde que eu pague.
— Oras, por quê?
— Eu fui o responsável pelo acidente. Depois, vou levá—la para casa.
— Não será necessário – Luísa apontou com o dedo. – Há uma lanchonete na outra esquina. Vamos até lá?
— Meu nome é Caio.
— Muito prazer. O meu é Luíza.
Caio assentiu com a cabeça. Não tinha palavras. Estava atordoado com tamanha beleza. Seu coração continuava batendo descompassado. A cada esbarradinha, a cada toque entre seus corpos, Caio sentia um leve tremor, uma sensação que nunca sentira na vida. Nem mesmo nos braços de Sarita.
Será que isso era o que Sarita lhe dissera sobre cara—metade?
Caio estava com os pensamentos confusos, não conseguia articular direito as palavras, tamanha a emoção diante daquela mulher que lhe despertava os mais nobres e puros sentimentos.
Caio estava encantado. Era como se a conhecesse, como se já a tivesse visto em algum lugar? Ele tinha essa certeza. De onde a conhecia?
Enquanto caminhavam em direção à lanchonete, Henry suspirou feliz.
— Até que enfim eles se encontraram. Eu pensei que isso nunca fosse acontecer.
— Continua ansioso, não é mesmo? – inquiriu Carlota.
— Por certo. Eles foram meus pais. E serão de novo.
— Você não vê que tudo na vida ocorre na hora e no tempo certos?
— Sim, mas...
Carlota prosseguiu, sem deixá—lo falar.
— Quantos cursos fez aqui no astral? Será que não aprendeu nada?
Henry abaixou a cabeça, envergonhado.
— Não é isso, Carlota. A ansiedade é natural. Sei que tudo corre no tempo certo, tudo está programado no Universo e não cai uma folha de uma árvore sem o consentimento do Alto. Entretanto, fui abandonado pelo meu pai e demorei muito para perdoá—lo. Amargurado pelo seu abandono, tornei—me um péssimo filho para minha mãe. Ela não merecia esse desgosto. Já havia sido abandonada, e eu me senti revoltado. Não juntei forças para lhe dar suporte, carinho e atenção.
Carlota levou a mão delicadamente sobre seus lábios.
— Você fez o que achou melhor.
— Agora quero fazer tudo diferente.
— Primeiro aguardemos até que Luísa torne—se mais forte, dona de si. Há necessidade de ela mudar crenças e atitudes que a impedem de crescer. Ela é muito insegura, ainda. Ao lado de Genaro. Ela deve ter a noção de que também tem força, e, assim, tudo poderá ser diferente.
— Eu gosto de Caio. Ele aprontou muito e deixou minha mãe numa situação de penúria.
— Ele fez o melhor que pôde. Sabe que ele se comprometeu a ajustar—se com vocês dois. Vamos ver se ele é forte o suficiente para agüentar o tranco que virá pela frente.
— Farei o possível para ajudá—lo. Meu pai ontem, meu pai hoje...
— Calma Henry. Ainda nem conversamos com eles. Essa etapa – o seu reencarne – só poderá ocorrer depois de determinadas situações mal resolvidas entre Caio, Gregório, Luísa e Genaro. Depois que isso se resolver, poderemos traçar sua nova vida.
— Estou louco para voltar ao orbe, Carlota. Quero jogar bola, dormir de tarde, tirar férias. Aqui no astral se trabalha e se estuda muito. Estou cansado de tantas atividades.
Carlota riu.
— Pena que os encarnados não pensem como você. Para os habitantes da crosta terrestre, o nosso mundo é o do descanso. Pobres coitados, não sabem aproveitar essa vida cheia de situações que lhes permitem viver entre doses cavalares de descanso.
— Quem me dera poder ir a uma praia e refestelar—me na areia, tomar banho de mar, ficar deitado e receber os raios benéficos do sol em minha pele. Ah, Carlota, que saudade dessa vida boa.
— Ora, ora, você nunca viveu no Brasil!
— Mas agora eu quero viver aí sim. Quero reencarnar neste solo sagrado e, se possível, fazer meus pais se mudarem para uma cidade litorânea.
— Você e seus planos. Vamos Henry. Deixemos Caio e Luísa se conhecerem, ou melhor, se reconhecerem. Era chegado o momento.
— Só um instante.
Henry afastou—se e aproximou—se de Luísa, beijando—lhe a fronte.
— Se cuida mãe! Logo estaremos juntos.
Luísa não registrou o beijo, mas sentiu tremendo bem—estar.
Assim que recebeu o beijo de Henry ela sorriu. Caio novamente encantou—se com aquele sorriso singelo e sincero.
Entraram na lanchonete, sentaram—se em banquetas ao redor do balcão. Pediram um guaraná.
— O que você faz afinal, Caio? – perguntou Luísa, de maneira inocente.
— Sou modelo.
— Modelo?
— Sim. Farei campanha para um perfume.
— Adoro perfume. Puxa um rapaz importante.
Caio sorriu.
— Nem tanto. Ainda não assinei contrato, sabe? Mas recebi um adiantamento. Estava agora a pouco no banco para efetuar o depósito em minha conta.
— Eu estava sem dinheiro e vim para pegar algum.
Caio notou a aliança dourada no dedo anular dela. Sentiu uma tristeza, um desapontamento sem igual. Quis que o chão se abrisse e ele sumisse.
— O que foi? Parece triste.
Caio dissimulou.
— Seu marido não lhe dá dinheiro?
— Como sabe que sou casada?
— Notei sua aliança.
Luísa corou.
— Bom observador – ela baixou os olhos, um pouco envergonhada.
— Você está bem? Também me parece triste.
— Eu sou uma mulher triste. Vivo presa a um casamento sem amor.
O semblante de Caio iluminou—se. Havia uma chance...
— Oras, então por que não se separa? Hoje é tão comum entre os casais.
— Adoraria ter essa coragem. Mas meu marido é político, acabou de se eleger deputado federal. Uma separação a essa altura dos acontecimentos não lhe faria bem.
— Você é pura de coração – rebateu Caio.
— Por que diz isso?
— Está interessada no bem—estar de seu marido.
— Não é bem assim. Minha família também está metida nisso – Luísa afastou os pensamentos com as mãos. – A história é longa.
— E quem vai cuidar do seu bem—estar?
— Você tem razão. Entretanto, o que fazer? Eu não tenho formação, sempre fui criada para ser dona de casa. Se eu me separar de meu marido, como sobreviverei?
— Para tudo tem jeito na vida – redargüiu Caio. – Eu sou do interior, sabe? Cheguei a São Paulo determinado, a princípio para seguir a carreira de modelo. Mas no começo eu me afastei de meus objetivos e acabei me envolvendo em outras atividades.
— O que você fez?
Caio enrubesceu.
Luísa o fitou. Estava esperando a resposta. Será que podia confiar nela? Eles mal se conheciam, entretanto, Caio sentiu—se tão à vontade na companhia dela, que não hesitou em ser franco e direto.
— Eu sempre fui ligado em sexo – ele pigarreou e Luísa arregalou os olhos. Ele iria parar, mas ela fez menção com a cabeça para que ele continuasse. – Cheguei a São Paulo e, influenciado por um amigo, comecei a ganhar dinheiro com sexo. Eu me prostituía.
Luísa levou a mão à boca.
— Oh, que triste. Como pôde ter estomago para viver disso?
— Prazer e necessidade, aliados. Eu sempre tive um fraco por sexo e também precisava de dinheiro. Juntei a fome com a vontade de comer.
— E você ainda faz... Isso?
— Não mais.
— Não mesmo?
Caio meneou a cabeça para os lados.
— Pensei muito em minha mãe, que vive lá no interior. Ela não merece isso. Deu duro para criar a mim e minha irmã.
— Ah, você tem uma irmã?
— Tive. Norma morreu anos atrás.
— Sinto muito – respondeu Luísa.
— Eu também não tenho pai. Ele morreu quando éramos pequenos. Eu tinha dois anos e nem me lembro da figura paterna. Mamãe sempre foi mulher batalhadora e fez de tudo para que eu me tornasse alguém na vida. Por esse motivo, prometi a mim mesmo que, de agora em diante, só serei motivo de orgulho para ela.
— Fico feliz que pense dessa forma.
— Você continua sorrindo e conversando comigo.
— E daí?
— Não me recrimina pela vida que tive?
— Por que o recriminaria?
— Preconceito, talvez...
— Eu acabei de conhecê—lo e o que você fez de sua vida até agora não é do meu interesse. Claro, de agora em diante, ficarei de olho em você. Creio que ganhei um amigo.
Caio sentiu brando calor no peito. Nunca tinha sentido algo semelhante por alguém antes. Ele se sentiu imediatamente atraído por ela. Apaixonado seria o termo mais adequado. Amor à primeira vista seria perfeito para traduzir esse encontro. Mas o que fazer? Luísa era casada. Acima de tudo, deveria – e queria – respeitá—la.
— Você é muito legal, Luísa. Obrigado por não me recriminar. Eu prometo a você que serei um grande amigo e você terá muito orgulho de mim.
— Assim espero.
Terminaram de beber o refrigerante. Caio pagou a conta e, antes de se despedirem, ele disse:
— Eu ainda não tenho lugar para ficar. Estou de mudança. Importa se me der seu telefone? Espero, até a semana que vem estar em outro apartamento. Só meu.
— Que inveja. Adoraria ter um apartamento só para mim, uma vida independente, ser feliz.
Caio encarou—a nos olhos.
— Você tem tudo para ser feliz.
Luísa estremeceu. A presença de Caio a desestabilizou. Não sabia se pela beleza ou pela inocência. Ou por outros fatores que por ora ela não saberia explicar. Mas sentia algo como há muito tempo não sentia. Ela disfarçou.
— Espero que um dia isso aconteça.
— Bom, preciso ir e cuidar de minha vida. Apenas diga—me uma coisa...
— Sim?
— Gostaria de me ajudar na decoração do apartamento?
— Oh, adoraria!
— Eu devo arrumar um lugar por estes dias. Depois, terei de comprar móveis, objetos para a casa e não levo muito jeito para isso. Você me ajudaria?
— Mas é claro. Façamos o seguinte. Eu vou lhe dar o telefone de casa.
Caio hesitou.
— E seu marido? Não pode arrumar encrenca com você?
— Não. Ele é muito ocupado com política. Agora que se elegeu deputado deve ficar mais em Brasília que em casa. Graças a Deus.
Caio riu por dentro. Parecia que Luísa era infeliz no casamento. Para ele, havia uma chance. Ele disfarçou o que ia a seu coração.
— Assim que arrumar o apartamento, eu ligo.
— Combinado – Luísa abriu a bolsa e retirou um cartão. – É melhor me ligar após o almoço. Nesse horário meu marido nunca está em casa.
— Eu ligarei sim – Caio lhe estendeu a mão. – Prazer em conhecê—la, Luísa.
— O prazer foi todo meu.
Caio a viu sumir pela rua. Sentiu novamente aquele calor no peito.
Não queria se separar dela. Não queria que aquela conversa terminasse. Já sentia saudade da companhia de Luísa. Será que era normal?
Ele não saberia responder. Sorriu para si mesmo e voltou para casa, feliz.




CAPÍTULO 11



Maximiliano e Renata chegaram ao Centro Espírita pouco antes da abertura dos trabalhos espirituais da tarde. Geralmente, durante as tardes, eram feitas consultas e tratamento de passes. Caso houvesse algum problema espiritual mais sério – como obsessão, por exemplo –, a pessoa era encaminhada para o horário da noite, no qual havia um grupo de médiuns da casa treinados para esse tipo de trabalho.
Os dois foram recebidos por uma moça simpática que os conduziu imediatamente à sala de Mafalda. Ela bateu levemente e Mafalda deu ordem de entrar.
— Mafalda, aqui está a Renata e seu amigo.
— Faça—os entrar.
A moça fez sinal para os dois e eles entraram. Em seguida, perguntou solícita:
— Aceita uma água, um café?
— Não quero nada – respondeu Renata.
— Eu também não desejo nada. Obrigado – redargüiu Maximiliano.
Mafalda levantou—se e foi até eles. Cumprimentou Renata com um beijo e um abraço. Era mulher muito afetuosa e demonstrava isso nos cumprimentos e trato com as pessoas.
— Como vai, minha querida?
— Estou muito bem, Mafalda. Melhor, impossível. Sempre ligada com os amigos espirituais do bem.
— É assim que se faz – ela encarou Maximiliano e abriu largo sorriso. – Estava lhe esperando, meu amigo. Bom ter vindo aqui.
— Nosso último encontro foi tão rápido! Espero poder ter mais de seu tempo.
Mafalda o beijou na face e o abraçou efusivamente. De seu corpo emanava um calor agradável, que fez Max se sentir muito confortável.
— Os espíritos me avisaram que você viria.
— Mesmo?
— Sim. Por favor – ela fez sinal para duas poltronas –, sentem—se.
— Eu sabia que você poderia nos atender, Mafalda.
— Você foi intuída a trazer o Max até aqui.
— Eu?!
— Sim. Você tem progredido bastante aqui em nosso Centro. Procura estudar com afinco, tem construído dentro de si uma fé inabalável. Tem progredido bastante no caminho do bem. Os espíritos amigos contam com encarnados como você.
— Obrigada, Mafalda. Desde que vim para cá, minha vida mudou para melhor. Eu cresci muito, em todos os níveis. E creio que os espíritos amigos podem contar comigo para o que der e vier.
— Por tudo isso, usaram—na como instrumento para trazer nosso nobre amigo até aqui.
— Eu sou um simples mortal – rebateu Max. – Tenho ainda muito que aprender.
— Por certo, meu amigo. Entretanto você se ligou a um poderoso grupo de estudiosos lá na Inglaterra e juntos realizarão grandes feitos no mundo.
Max estava estupefato.
— Como sabe disso?
— Eu sei de muitas coisas – respondeu Mafalda, num sorriso encantador. – E sei que, neste momento, precisamos nos dedicar à limpeza astral de sua casa.
— Parece que o ambiente está bastante contaminado por energias perniciosas.
— A energia sexual – tornou Mafalda, numa voz levemente alterada – é rica em ectoplasma. Os espíritos desencarnados, perdidos entre esta e a outra dimensão, necessitam desse fluído para se sentirem "vivos". Afinal, não aceitam a morte do corpo físico nem tampouco querem se desligar dos prazeres da carne.
Eles nem piscaram os olhos. Absorviam cada palavra.
— Todavia, nos tempos atuais, o sexo descontrolado e inconseqüente será freado por um tipo de vírus, digamos assim, que já está se instalando no corpo de algumas pessoas aqui no orbe. Esse vírus vai trazer à tona o questionamento acerca do sexo e suas conseqüências, quando mal utilizado.
— Faz sentido – disse Max. – Lá na Inglaterra li algo sobre um tipo raro de câncer que está destruindo a imunidade das pessoas. Parece um tipo de vírus que é transmitido pelo sangue contaminado e relações sexuais.
— Pois é. A humanidade passará por um período sombrio nesse aspecto e teremos de repensar a maneira como praticamos o sexo.
— Eu não ouvi nada a respeito – comentou Renata.
— Logo você saberá. O mundo inteiro vai ser atingido por esse vírus. Ele não vai respeitar sexo, cor, raça, nada. Será um vírus democrático, atingirá todos aqueles que fazem mau uso das funções sexuais. E por essa razão – Mafalda refletiu –, precisamos retirar as energias que permeiam sua casa.
Maximiliano sentiu—se envergonhado. Nunca deveria ter permitido que Guido morasse em sua casa. Sentira pena do rapaz e estava agora diante de uma grande encrenca. Mafalda absorveu—lhe os pensamentos e rebateu:
— Agora não adianta se martirizar, meu amigo. Você deve conversar com o rapaz que mora em sua casa e afastá—lo de lá o mais rápido possível. Nossos amigos espirituais estarão ao seu lado para ajudá—lo.
— Fico agradecido, Mafalda.
— E tem mais.
Max levantou o sobrolho.
— Mais?
— Sim. Esse rapaz que está na sua casa está consorciado a espíritos de baixa vibração. Ele foi à procura de um médium que utiliza sua sensibilidade de maneira torpe e pediu que fizessem um feitiço para prejudicar você.
— Um feitiço para me prejudicar?
— Acha que você colocou o rapaz dentro de sua casa só por conta da pena que sentiu?
— E não foi? – perguntou Max, aturdido.
— Não. Alguns espíritos negativos aproveitaram o seu fascínio pelo garoto e assim conseguiram influenciar sua mente para que ele ficasse em sua casa. Por tempo indeterminado.
— Não posso crer!
— Mas é verdade. Recomendo que sempre precisamos ter controle absoluto de nossa mente. Não podemos nos deixar interferir por pensamentos maledicentes vindos de encarnados ou desencarnados.
— Vou tomar conta de meus pensamentos. Mafalda pode acreditar. Não vim aqui por acaso.
— Conte comigo – finalizou ela. – E com os espíritos de luz que prestam serviços aqui nesta casa espírita.
Mafalda abriu uma gaveta, pegou um bloco de papel e fez algumas anotações. Depois, entregou—o a Max.
— Você deve comprar essas ervas e utilizá—las na defumação de sua casa. Sabe fazer defumação?
— Nunca diz, mas não acredito que seja um bicho—de—sete—cabeças.
— E não é. A energia extraída da queima dessas ervas higieniza o lar, arrancando dele formas astrais nocivas ao nosso corpo físico e, por conseguinte espiritual.
Você terá de fazer isso por sete dias seguidos, sem interrupção.
— Como procedo? – perguntou Max, interessado.
— Comece pela compra das ervas. Compre também um defumador.
— Onde compro isso?
— Em casas que vendem artigos religiosos.
— E depois?
— Coloque as ervas no defumador, acenda—as e, quando começarem a produzir fumaça, está na hora de trabalhar na queima das energias nocivas. Comece pelos fundos da casa.
— Eu moro em apartamento.
— Comece pela área de serviço. Depois, se tiver banheiro e quarto de empregada, passe por eles. Vá para a cozinha, os quartos, banheiro, vá passando por todas as dependências do apartamento até chegar à sala e à porta de entrada. Passe o defumador pelos quatro cantos de cada parede, em todos os cômodos. Não se esqueça de abrir todas as janelas, porque essas ervas produzirão bastante fumaça. E, não se espante caso a fumaça aumente em determinados cantos.
— Por que isso?
— Quando a fumaça aumenta, é porque há uma forte concentração de energia negativa no local. É natural. Enquanto você defuma a casa, Renata pode auxiliá—lo.
— Em que eu poderia ajudá—lo, Mafalda?
— Assim que Maximiliano começar a defumação da casa, gostaria que você ficasse ao lado dele e fosse lendo, em voz alta, o salmo de número 91. Esse salmo é poderoso. A vibração da leitura dele, em voz alta, ajuda na limpeza.
— E quando acabar a leitura do salmo?
— Recomece. Leia—o quantas vezes for necessário, até que Maximiliano termine a defumação. Depois, peguem o defumador e deixem—no na porta de trás da sala, por sete dias seguidos.
Seria importante – ela ressaltou – que nesses dias ninguém entrasse na casa. Nem empregados, ninguém.
— Para mim não tem problema – tornou Max. – Eu farei tudo o que for possível para que seja restabelecido o equilíbrio e a harmonia em meu lar.
— Quando passarem os sete dias é prudente que você pinte as paredes de sua casa, além de providenciar uma boa faxina na casa toda. Limpe armários, jogue fora tudo o que não precisa mais. A limpeza física também é importante. Livre—se de roupas, objetos, livros, tudo o que não for necessário. Que seja retirado de sua casa e doado a alguma instituição filantrópica.
— Posso trazer para cá. Vocês não organizam bazares para arrecadação de dinheiro para manter o funcionamento do Centro?
Mafalda sorriu.
— Faça o que achar melhor, meu filho. Agora vá. O tempo urge. Quando tiver feito tudo o que falamos aqui, volte para nova conversa.
Max e Renata se despediram de Mafalda com largo sorriso nos lábios. Depois, ambos foram convidados a tomar um passe. Aceitaram imediatamente. Foram conduzidos a uma salinha aconchegante. Nada de luxo. Algumas cadeiras em círculo, uma mesa lateral, um jarro d´água e alguns copinhos com água fluidificada. A música na sala era acolhedora e envolvente.
Os dois se sentaram nas cadeiras e dois médiuns ministraram—lhes um passe reconfortante. Renata e Maximiliano sentiram agradável sensação de bem—estar. Terminado o passe, tomaram a água fluidificada e saíram em paz.
Foram até o carro.
— Max – ponderou Renata –, somos vizinhos há anos. Creio que agora chegou o momento de eu retribuir a ajuda que você me prestou nos tempos de vacas magras. Como lhe disse no restaurante, pode ficar em casa o tempo que for necessário.
Tenho um quarto de hóspedes e ele será todo seu.
— Agradeço de coração. Vou adorar ficar em sua casa. Adoro sua companhia.
Entraram no carro. Renata deu partida e foram para o prédio em que moravam.

*****

Luísa chegou a casa e o brilho em seus olhos se fazia notar. Eunice, vendo—a em estado de graça, não conteve a alegria e perguntou:
— Há muito tempo que não a vejo assim tão feliz. Como foi o passeio?
— Eunice, você tem razão. Faz tempo que não me sentia tão bem. Tive uma tarde tão agradável...
— Fico feliz em vê—la dessa maneira. Essa é a Luíza que conheço. Alegre, sorridente.
— O Genaro já voltou?
— Está lá em cima. Disse que vai a Brasília amanhã. Quer que você vá junto.
— Não! Isso não. Eu quero ficar aqui. Não gosto de política e não quero me meter nesse mundo.
— Vá com calma e exponha o assunto ao seu marido.
— É o que vou fazer.
Luísa deixou a bolsa sobre o aparador, ajeitou os cabelos e subiu decidida a enfrentar o marido. Com jeito. Entrou no quarto e Genaro terminava de arrumar a mala.
— Demorou muito. Precisa fazer sua mala.
— Não quero ir a Brasília. Sabe que não gosto de política. Nem mesmo o acompanhei nos seus comícios.
— Agora é diferente, Luíza. Tenho reputação a zelar. Você é minha esposa, precisa estar ao meu lado. Pelo menos agora. Só para a posse.
— Ninguém vai notar a minha falta.
— Você é caipira mesmo. Às vezes me pergunto por que me casei com você. E ainda gasto um dinheiro danado com a sua família.
— Não precisa me ofender.
— Tudo bem que tenha um passado incólume, limpo. Mas é muito sonsa. Você não tem gosto pelo poder?
— De maneira alguma. O poder não me seduz.
— Boba. Como pode dizer uma coisa dessas?
— O poder não me seduz. Em absoluto.
— Você é quem sabe. Quer ficar? Pois que fique. Eu vou. Mas se começarem a perguntar sobre minha esposa, você terá de ir a todo custo para o Planalto. Não quero dar motivo para fofocas.
Luísa riu com gosto. Genaro irritou—se.
— O que é? Está rindo de quê?
Ela tentou parar de rir.
— Você fala sobre reputação. Tem medo de que seu nome vá para a lama. Mas você se esquece de que é irmão de Gregório? E os comentários acerca de seu irmão são os mais sórdidos possíveis.
— Gregório é um torto, um anormal.
— Não o julgo pela sua homossexualidade, mas Gregório é maledicente, provocativo, atiça as pessoas. Ele desrespeita todos ao seu redor.
— As pessoas tem pena de mim porque eu tenho um irmão pederasta.
— Mas que fofocam sobre vocês, ah, fofocam.
Luísa falava de maneira espontânea. Não tinha a intenção de ser maldosa. Mas não foi o que Genaro interpretou. Acreditou que ela estivesse tripudiando sobre ele.
O soco veio de maneira rápida, violenta e dolorida. Luísa o recebeu de maneira desprevenida e seu corpo tombou para trás. Ela imediatamente foi ao chão.
Genaro avançou sobre a mulher e desferiu—lhe violentos golpes. Na cabeça, nos braços, no abdome. Luísa urrava de dor.
Mal podia se defender. Genaro era alto, forte. Ela possuía estatura mediana, era magra.
Eunice ouviu o barulho e os gritos. Subiu os degraus da escada aos pulos. Entrou no quarto e mal podia acreditar no que via. Genaro sentado sobre a esposa, enchendo—a de sopapos.
— Desgraçada! Maldita! Nunca mais ouse falar de mim, de meu irmão, de minha família. Inútil! Você deve me agradecer por me ter como marido. Eu sustento seu pai, sua mãe, seus irmãos vagabundos. Bando de parasitas. Eu os odeio! Odeio!
Luísa não tinha mais forças para se defender. A vista estava embaçada, o sangue escorria—lhe pela fronte. Um dos socos cortou—lhe o supercílio. Outro arrebentou o lábio superior.
Diante da cena tão cruel, Eunice, num ato de defesa, pulou sobre Genaro. Passou a mordê—lo na orelha e puxou—lhe os cabelos. Genaro sentiu tremenda dor e saiu de cima da esposa. Luísa teve forças ainda para se arrastar e esconder—se embaixo da cama. Eunice o enfrentou.
— Covarde! Você é um covarde.
— Cale a boca ou vou acabar com você também – vociferou ele, levando a mão à orelha.
Eunice encheu—se de coragem.
— Pois venha e bata! Bata bastante. Porque vou sair daqui com sua esposa e vamos direto para uma delegacia. Vamos prestar queixa contra você.
Ele riu à beça.
— Estúpida. Crê que algum delegado vai acreditar em vocês? Não se esqueça de que somos homens e pensamos da mesma forma.
— Eu quero ver o estrago que isso vai causar na sua imagem de bom político.
Genaro mordeu os lábios de raiva.
— Se forem à delegacia, eu corto o dinheiro que mando para a família de Luísa. Quem vai custear o tratamento do pai dela? O espírito santo?
— Chega de ameaças.
— Não chega, não! Luísa está presa a mim. Eu mando e desmando nela. A família dela está do meu lado. Eu comprei todos eles. Vá, Eunice – Genaro bramia –, vá e faça um boletim de ocorrência. Eu destruo a família de Luísa. Acabo com a doce vida da Neuza. E destruo você também.
Ele falou, voltou até a cama, fechou a mala e saiu do quarto, batendo a porta com força. Desceu as escadas, saiu de casa, ganhou a rua e chamou um táxi.
Eunice correu até a cama. Abaixou—se e delicadamente puxou Luísa pelo braço.
— Minha menina – disse entre lágrimas –, dessa vez ele abusou. Você está muito machucada.
Luísa balbuciou:
— Ligue... Ligue para a Renata. Peça que ela venha até aqui. Por favor.
— Não! De maneira alguma. Primeiro precisamos de um médico. Vou ligar para o Dr. Ribeiro.
— Eu suplico... Por... Fa... Vor... Ligue para Renata.
Luísa falou e imediatamente pendeu o rosto para o lado. Desmaiou tamanha a surra que levara do marido.


*****

Maximiliano instalou—se confortavelmente no quarto de hóspedes que Renata lhe oferecera. Era um quarto simples, com uma cama de viúvo, uma cômoda e um guarda—roupa de duas portas. Numa delas havia um espelho oval. Era um quarto de solteiro do início do século, estilo art nouveau.
Renata tinha bom gosto. As paredes eram pintadas de verde bem clarinho e o lustre e o abajur eram peças de vidrilhos coloridos, em tons de amarelo. No chão, para completar a decoração, um tapete persa de cor delicada.
— Vou gostar de ficar aqui. Adoro esse estilo de móveis.
— Eu também Max. Esses móveis eram de meu avô, quando solteiro.
Ficou na casa dele até sua morte. Quando ele morreu, meus irmãos quiseram jogar tudo fora. Afirmaram que era velharia, lixo.
Max meneou a cabeça para os lados.
— Seus irmãos não têm percepção pelo belo. Olhe só para esses móveis – apontou. – Não tem um prego sequer. Tudo era feito por encaixe. Algo que não se faz há muitos anos.
— Agora estão bem cuidados, em boas mãos e serão usados por você. Faça bom uso deles.
— Obrigado.
A empregada apareceu, aflita.
— Dona Renata, telefone para a senhora.
— Quem é?
— Da parte de D. Luíza. Parece que aconteceu alguma coisa séria lá na casa dela.
Renata coçou a cabeça.
— Genaro deve ter aprontado alguma – ela virou—se para Max e solicitou: – tome um banho, descanse e depois ligue para o Guido. Pode chamá—lo aqui em casa. Não se esqueça, antes de ele entrar aqui, de fazer prece e pedir a presença e orientação de nossos amigos espirituais.
— Você não vai ficar?
— Não Max. Você deve estar sozinho com ele. A Alzira estará por aqui se precisar. Eu vou atender ao telefone. Sinto que minha amiga Luíza precisa de mim.
— Está certo.
Renata foi até a sala e atendeu ao telefone. Ficou espantado com o relato de Eunice. Genaro tinha passado dos limites. Ela precisava ir ao encontro da amiga e convencer Luísa a acompanhá—la a uma delegacia e, depois, ao Centro Espírita. Sentia que Luísa corria sério risco de morte.
Maximiliano tomou um banho reconfortante. Depois, descansou por duas horas. O sono reparador, aliado ao passe de horas atrás, fez—lhe muito bem. Ele despertou disposto. Lavou o rosto, escovou os dentes. Abriu um livro espírita e fez a leitura de um trecho.
Fez uma prece pedindo ajuda aos amigos espirituais e solicitou que Guido fosse beneficiado pela energia emanada pelos espíritos de luz.
Feito isso, Max ligou para seu próprio apartamento. Guido atendeu de maneira eufórica.
— Pensei que não viesse mais. Você deveria estar aqui há algumas horas. O que aconteceu?
— Preciso conversar com você.
— Aconteceu alguma coisa, Max?
— Não, nada. Você poderia vir até o quarto andar?
— Quarto andar? Por quê?
— Estou hospedado na casa de uma amiga aqui no prédio e preciso conversar com você.
Guido ficou com a pulga atrás da orelha.
— O que é isso? Hospedado na casa de uma amiga?
— Sim.
— Aqui é sua casa, oras!
— Eu sei Guido, mas não posso ir até aí. Poderia vir até o quarto andar?
— Está bem, irei.
Guido desligou o aparelho de maneira intrigante. Por que Maximiliano não queria subir até seu próprio apartamento?
— Que coisa estranha – disse para si mesmo. – Homem esquisito esse Max.
Guido estava só de shorts. Foi até seu quarto, pegou uma camiseta, calçou um par de sandálias e desceu. Alguns minutos depois estava na porta do apartamento de Renata.
Alzira sabia de sua chegada e, assim que ele tocou a campainha, conduziu—o até pequena saleta.
— Seu Max já vem.
— Obrigado.
Guido ficou sentado por alguns minutos. Logo, Maximiliano entrou na saleta. Estava trajando um robe de algodão branco. Sua aparência estava ótima. Guido levantou—se e procurou abraçá—lo. Max deu um passo para trás e lhe estendeu a mão.
— Como vai, Guido?
O rapaz estranhou a maneira fria e distante de Maximiliano. Sentiu que estava em apuros. Ele apertou a mão de Max, meio sem graça.
— Nossa quanto tempo fora!
— Pois é. Agora estou de volta. Precisamos conversar.
— Qual assunto?
— Vou direto ao ponto.
— Sou todo ouvidos.
— Eu gostaria que você saísse de minha casa.
Guido não entendeu. Ou fez que não entendeu.
— Como é que é?
— Isso mesmo, Guido. Eu não o quero mais morando em minha casa.
— Você não pode fazer isso comigo, Max. Volta de Londres e me despacha assim, sem mais nem menos?
— Sinto muito, mas não o quero mais em minha casa.
— Eu cuidei de tudo direitinho, paguei os empregados, as contas. Por que isso agora?
— Porque chegou à hora de implementar mudanças em minha vida. Quero e preciso estar só. Eu o coloquei em casa porque tive pena de você – Max nem quis falar sobre o tal médium que tentara enfeitiçá—lo. – Confesso que essa atitude minha foi um erro. Nunca tivemos laços afetivos.
— Como não?
— Tudo em nossa relação foi por conta de interesse.
— Imagine Max...
— Você não gosta de mim.
Max falou sem tirar os olhos dos de Guido. O rapaz sentiu—se invadido por aqueles olhos firmes e penetrantes. Abaixou o rosto.
— Somos amigos. Eu nunca fiz nada que você pudesse...
Max o cortou.
— Você trouxe um desconhecido para casa. Para dentro de minha casa.
— Ele é um cara legal. Achei que não tinha problema algum. Aliás, se esse for o problema, estamos resolvidos. Eu o alertei de que teria de mudar caso você chegasse.
— Se fosse só isso... – Max hesitou. – O Valter esteve em Londres meses atrás e me disse que você continua circundando o parque Trianon.
Guido sentiu as faces arderem. Então Maximiliano sabia de suas estripulias? Ele prometera que não se envolveria com mulheres e sexo. Precisava ganhar novamente sua confiança. Era isso.
— Escute Max. Eu errei. Perdoe—me, sim? Eu cometi alguns deslizes, mas quem não os comete? Vamos passar uma borracha em cima disso. Vamos recomeçar do zero.
— Eu não tenho de recomeçar nada. É um bom rapaz, mas não quero mais nada com você. Quero ficar só.
Guido o encarou.
— Conheceu alguém! Só pode ser isso.
— De forma alguma.
— Quem é o desgraçado que vai me substituir? Quem é?
— Não tem ninguém em minha vida. Ninguém vai substituí—lo. Simplesmente quero viver sozinho e em paz.
— Não pode arrancar—me de sua casa de uma hora para outra. Eu não saio.
— Por favor – pediu Max, num tom apaziguador.
— Quero ver quem me tira de lá.
— Eu já previa essa sua atitude. Por essa razão, liguei para o delegado Telles, conhecido meu. Ele está a caminho do prédio.
Guido desesperou—se. Tinha pavor de polícia. Não queria saber de encrenca. Não gostava de delegados de polícia.
— Não precisa botar a polícia no meio disso.
— Infelizmente, terei de usar de força policial, caso não queira sair de minha casa de maneira civilizada.
Max saiu da saleta e voltou minutos depois.
— Neste envelope tem um punhado razoável de dinheiro.
O suficiente para você poder se hospedar num hotel simples por alguns dias.
Guido pegou o envelope, abriu—o e apanhou o maço de notas, dizendo:
— É. Isso dá para uma semana, caso eu me instale numa boca de porco, no centro da cidade.
— É tudo o que posso fazer por você – respondeu Max, de maneira firme.
— Você vai se arrepender de ter feito isso comigo. Vai pagar por isso.
— Pode me ameaçar e fazer o que quiser. Telles já está a caminho.
A janela da saleta dava para a rua e Max foi até ela. De repente, uma sirene se fez ouvir.
— O delegado Telles chegou.
— Não!
— Você tem meia hora para fazer sua mala e sair.
Guido bufou de raiva. Não tinha saída. O barulho da sirene o deixava em pânico. Já passara pela polícia quando adolescente. Sabia que, se fosse para uma delegacia, talvez não mais saísse dela. Era melhor pegar o dinheiro, fazer sua mala e partir. Pelo menos por ora.
— Eu vou embora, mas ainda vou cruzar seu caminho.
— Pode me ameaçar. Estou ligado ao bem. Nada de mal pode me acontecer. Não se esqueça de que tudo o que fizer voltará para você. Faz parte da vida. É lei.
Guido amassou o punhado de notas, cerrou o punho. Saiu batendo as portas. Alzira ouviu o barulho e correu até a saleta.
— Deu tudo certo, seu Max?
— Por enquanto, sim. Creio que o pior já passou.
Max apareceu na janela e fez sinal positivo para o delegado. Telles sorriu e repetiu o sinal.
— Tem certeza de que está tudo bem?
— O rapaz já se foi, Telles. Obrigado.
— Se precisar, pode ligar. Estarei de plantão no distrito.
— Obrigado.
O delegado entrou no veículo, desligou a sirene, e ficou à espreita, esperando o rapaz sair. Telles estacionou o carro do outro lado da calçada.
— Vou me certificar da saída desse garoto. Depois vou embora.
Guido entrou no apartamento feito uma bala de canhão. Pegou suas roupas e meteu—as numa mala grande. Pegou outros pertences de Max, como alguns objetos de valor e um quadro que ele julgava ser autêntico e valer uma fortuna.
— Esse desgraçado vai me dar mais dinheiro. Eu ainda vou voltar aqui.
Ele disse isso em voz alta e em seguida Caio apareceu na soleira, enrolado numa toalha.
— O que foi? Está com uma cara!
— O Max me expulsou de casa. Quer dizer, expulsou nós dois – fez sinal com os dedos.
— Onde ele está?
— Alguns andares abaixo. Está hospedado na casa de uma amiga.
— Uê. Estranho. Por que ele não vem para a própria casa?
— Vai entender o que se passa na cabeça dessa bicha excêntrica!
— Não precisa ofendê—lo, Guido. Ele deve ter suas razões.
— Eu não me conformo. O pai—de—santo me garantiu que o Max iria voltar para mim, sabe?
— Ainda freqüenta esse lugar?
— Claro! Os espíritos sempre me ajudaram.
Caio riu.
— Ora, se os espíritos ajudam—no, por que está sendo expulso da casa de Max?
— Alguma interferência, das bravas. Pode ter certeza. Ainda vou tirar essa história a limpo.
— Melhor não se meter em encrenca, Guido. Olhe só – Caio retirou um maço grande de notas do bolso –, fui contratado pelo Gregório.
Recebi um bom adiantamento. Vou procurar apartamento e você poderá ficar comigo. É o mínimo que posso fazer. Você foi tão legal comigo. Ajudou—me desde que aqui cheguei.
— Agradeço a oferta, mas não posso aceitar. Eu vivo num apartamento de luxo, encravado num dos bairros mais caros do país. Não vou morar num apartamento pequeno e apertado. Não nasci para isso.
— E vai para onde?
— Para a casa do Gregório, é claro.
— Do Gregório?
— Ele me deve alguns favores. Não vai recusar—me estada. Até que o pai—de—santo me ajude a voltar para cá.
— Bom, se você pensa assim... Não quer ir comigo até um hotel? É tarde e talvez o Gregório não esteja em casa.
— Ele vai me atender, Caio. Gregório sempre me atende. Eu afastei o Marco Antônio do caminho dele, não afastei? Agora chegou o momento de ele me retribuir.
Guido terminou de arrumar suas coisas. Caio notou que ele pegava alguns objetos de valor.
— Isso lhe pertence?
— Não pertencia. Mas agora me pertence. O Max pensa que vou sair só com a ninharia que ele me deu? Essas peças valem um bom dinheiro. Conheço um antiquário na cidade que vai me pagar boa quantia por elas.
— É roubo.
Guido fuzilou—o com os olhos.
— Não se meta em minha vida! Ficou morando aqui de favor esse tempo todo e não tem o direito de me recriminar.
Caio baixou os olhos. A amizade de Guido estava mesmo por um fio. Ele não era rapaz confiável. Sentiu que precisava se afastar dele o mais depressa possível. Foi até seu quarto, fez sua mala e saiu. Na portaria, pediu auxilio a Malaquias para lhe chamar um táxi.
— Conhece algum hotel bom e barato aqui por perto, Malaquias?
— Olha seu Caio, tem uma pensão muito boa na Rua Humaitá. Não é longe daqui.
A pensão da Rua Humaitá! Como Caio havia se esquecido dela? Fazia meses que tinha chegado a São Paulo e havia se esquecido completamente do endereço que Sarita lhe deu.
— Malaquias, é uma pensão decente?
— Uma das melhores da região. Fica num casarão antigo, bem bonito, bem conservado. Parece que é freqüentado por gente de nível.
— É para lá que eu vou.
— O senhor é um bom homem, seu Caio. Não tem nada a ver com seu primo. Nem parecem parentes.
Caio riu. O táxi chegou e ele abriu a porta de trás. Meteu a mala dentro e curvou o corpo para dentro. Antes de entrar, encarou Malaquias e redargüiu:
— O Guido não é e nunca foi meu primo.
— Como?
— Nem meu amigo ele é mais.
Caio entrou no táxi e deu ao motorista o endereço da pensão de Fani.
Malaquias ficou na porta do prédio, coçando o queixo.
— Não são primos? Então é o quê? – uma nuvem de dúvida perpassou pela cabeça de Malaquias. Ele a rebateu e fez o sinal da cruz. – Cruz—credo! Homem com homem dá lobisomem!
A rua estava escura e Telles, ao ver Caio colocando a mala no táxi acreditou que fosse Guido. Satisfeito com a partida do rapaz, ligou o carro, acelerou e foi embora.



CAPÍTULO 12


Norma acompanhava o irmão dentro do táxi. Estava feliz com sua decisão em se afastar de Guido.
— Oh, Caio, estou tão feliz que tenha partido. Você vai gostar da Fani. O lugar e as pessoas são amáveis. E ainda terá uma surpresa tão agradável...
Caio não registrou as palavras da irmã, mas se lembrou de Norma com carinho. Disse para si mesmo:
— Minha irmã, sinto tanta saudade de você. Será que depois que morreu você virou pó? Uma menina tão bonita, tão alegre – uma lágrima escapou de seu olho –, tão cheia de vida! Norma, será que você continua viva em outro mundo? Será isso possível?
Caio abaixou a cabeça e chorou baixinho. O motorista percebeu e, de maneira gentil, apanhou uma caixinha de lenços no porta—luvas e a estendeu para o rapaz.
Norma, emocionada, passava delicadamente as mãos nos cabelos do irmão amado.
— Querido, eu estou bem. Muito bem. Tenho aprendido muitas coisas. Estou mais amadurecida. Entretanto, preocupo—me com você. Sei que cada um é responsável por si mesmo, mas eu não posso deixar de ajudá—lo, na medida do possível.
Não gostaria que você se envolvesse com Gregório. Ele é um homem mau. Nutre uma paixão doentia por você, que vem de outras vidas. Afaste—se dele o quanto antes.
Caio absorvia os dizeres da irmã de maneira entrecortada. Registrava pouca coisa, visto que nunca fora um rapaz de fé. Por essa razão, a inspiração da irmã lhe vinha de maneira débil, tosca.
De repente, veio em sua mente à imagem de Gregório e ele sentiu um frio percorrer—lhe a espinha. Desde sempre tivera reservas com o empresário, todavia o homem iria lhe abrir as portas do sucesso, da fama. Deveria seguir sua intuição e se afastar? Ou deveria seguir adiante, fazer dinheiro, ter fama? Caio estava indeciso. Não sabia ao certo o que fazer.
O táxi chegou e ele levantou a cabeça. Pagou o motorista, pegou sua mala e, ao descer, parou por instantes na porta da pensão.
O prédio era um casarão estilo eclético, muito em voga nas construções brasileiras de classe abastada no início do século. Predominavam vários estilos arquitetônicos. Tratava—se de um casarão enorme, muito bem conservado. A pintura, em tons de amarelo e laranja, dava certo realce à construção.
— De dia deve ser muito bonito – disse Caio para si mesmo. – Mal parece uma pensão.
Ele tocou a sineta e, em seguida, uma moça bem novinha e bem simpática o atendeu.
— O que deseja?
— Vim procurar D. Fani. Ela está?
— Ih, moço, D. Fani está em Bauru. Volta somente daqui a alguns dias.
— Puxa, eu precisava muito falar com ela. Eu venho de Bauru. Foi uma amiga em comum que me deu o endereço.
A menina sorriu e o convidou a entrar.
— Ela não está, mas o senhor pode falar com o José. Ele cuida da pensão quando D. Fani viaja.
— Será que ele pode me atender?
— O senhor espera aqui na recepção que eu vou chamá—lo, está bem?
A menina saiu e Caio sentou—se numa poltrona antiga, porém conservada. Olhou ao redor. O local era muito bem cuidado. As paredes bem pintadas e ornamentadas com graça e sem ostentação. Alguns objetos bonitos, quadros de arte, um tapete oval e a própria estrutura da casa davam certo charme ao ambiente. Logo em seguida apareceu um senhor na faixa dos cinqüenta, parrudo e de estatura mediana. Entretanto, possuía belo sorriso.
— Boa noite.
— Boa noite, senhor. Meu nome é Caio, venho de Bauru.
— Celinha me contou. Quem o mandou para cá?
— Foi uma amiga em comum, a Sarita.
O rosto de José iluminou—se.
— Você é amigo de Sarita? A Sarita da Casa da Eny?
— Essa mesma. Um anjo bom que me ajudou bastante. Foi a Sarita que me mandou procurar a D. Fani.
— Fani está tratando de negócios em Bauru e regressa a São Paulo na semana que vem. Você vai querer um quarto?
— Se possível.
José coçou o queixo. A pensão estava lotada. Era muito popular e estava sempre cheia. Celinha ouviu a conversa e os interrompeu.
— Seu José, o Itamar ainda não voltou de viagem. Ele vai demorar a chegar de Araçatuba.
— É verdade. A família do Itamar está lhe dando muito trabalho. É – disse pensativo –, acho que você pode ficar no quarto dele. Não é o melhor da casa, mas é aconchegante.
— Para mim está ótimo, seu José. Um quarto é tudo o que estou precisando.
— Pretende ficar quanto tempo aqui?
— Não sei ao certo. Acabei de arrumar trabalho e logo terei condições de alugar um apartamento.
— Você é solteiro?
— Sou sim senhor.
— Tem namorada?
— Não.
— Meu filho, guarde seu dinheiro ou use—o para fazer uma poupança e comprar seu próprio imóvel. Vai pagar aluguel para quê, se tem a pensão da Fani? Aqui você vai gastar bem menos, vai ter roupa lavada e comida todo dia. Quer dizer, café da manhã e almoço. Não servimos jantar.
— Não sou de comer muito.
— Fechado – José fez um sinal para Celinha. – Leve o moço até o quarto do Itamar. Providencie roupas limpas e mostre—lhe onde fica o banheiro.
— Pode deixar seu José.
Celinha conduziu Caio até o andar superior. Eram várias portas, circundadas por um corredor bem iluminado. No fim do corredor havia outra escada, menor.
— O que é isso?
— O quarto do Itamar fica no sótão. É um pouco menor, porque D. Fani o dividiu em dois, mas proporciona privacidade. Você poderá ficar mais à vontade ali.
Caio subiu as escadas e entrou no primeiro quarto. Era um cômodo todo pintado de branco, que lhe causou agradável sensação. O chão era de tábuas corridas. Havia uma cama de solteiro, uma cômoda e uma pequena escrivaninha, com uma cadeira. Ao lado da cama, uma mesa de cabeceira e um pequeno abajur.
— O quarto é muito bom. Gostei.
— Sabia que o senhor ia gostar. Vou pegar roupa de cama limpa. Volto já.
Celinha saiu e Caio colocou a mala sobre a cama. Abriu—a e retirou suas roupas. Ajeitou—as na cômoda. Naquele instante, lembrou—se de Luísa. Sentiu uma sensação esquisita no peito, uma dor que não era física.
— Será que ela está bem? Será que vai querer me ver de novo?
Caio não percebeu, mas o espírito de sua irmã Norma, ao seu lado, enquanto lhe ministrava um passe reconfortante, respondeu—lhe:
— Ela não está bem, mas vai ficar melhor. Você vai vê—la sim, muitas outras vezes, se Deus quiser.


*****

Renata chegou à casa de Luísa e, ao vê—la toda machucada ficou arrasada.
— Custo a crer que o crápula tenha feito essa crueldade com você, minha amiga.
Renata falou e aproximou—se de Luísa. Ela estava com o rosto inchado e os olhos semicerrados. O lábio superior também estava inchado e uma atadura no supercílio completava o quadro de sua desgraça. Ambas se abraçaram e foi inevitável que as lágrimas corressem, em ambas as faces.
— Luísa, pelo amor de Deus, largue esse homem. Genaro ainda vai matá—la.
— Ele disse que – Luísa falava com certa dificuldade – se eu o largar, vai parar de sustentar minha família, vai deixar de custear o tratamento do meu pai.
— E o que você tem a ver com isso? Seu bem—estar não conta? Saiba que se você morrer, Genaro vai deixar de ajudar sua família. Não acha melhor arregaçar as mangas, ir à luta e fazer algo por si mesma? Melhor arrumar um emprego, alguma função. Assim poderá ajudar no tratamento do seu pai.
— E meus irmãos?
— Francamente Luísa! Seus irmãos são adultos e saudáveis. Eles podem trabalhar.
— E o que posso fazer? Eu não sou formada em nada.
— Tem tanto emprego que não precisa de formação! Você pode ser vendedora, telefonista, sei lá, Luísa – a voz de Renata era enérgica –, tem muita coisa aí para se fazer. É só querer.
— Tenho medo.
— Você é insegura. Sempre foi. Desde o tempo de colégio. Nunca sabia em que time jogar, nunca sabia qual doce escolher, se queria chocolate ou paçoca. Será que ainda vai ter de levar mais surras como esta para aprender a ser dona do próprio destino?
— Assim você me insulta.
— Sou sua amiga, oras.
— Sou vitima de um crápula, de um homem que me iludiu esses anos todos.
— Conversa fiada.
— Fala assim porque não precisa. Vive bem, tem salário, é independente.
— Sou independente porque corri atrás de minha independência, oras! Acha que tudo caiu do céu? Você bem sabe que comi o pão que o diabo amassou Luísa. Passei muito aperto nessa vida, mas sempre confiei em mim, na minha força de vencer toda e qualquer adversidade.
Luísa começou a chorar baixinho. Eunice entrou na sala.
— Renata, quer um chá?
— Aceito Eunice. Pelo jeito, a noite aqui vai ser longa.
Eunice assentiu com a cabeça e saiu. Gostava de Renata e ela tinha a peculiaridade de dizer tudo o que ela – Eunice – queria falar à sua menina, mas não tinha coragem.
— Que Luísa abra essa cabeça e enxergue que precisa largar esse homem. Só assim ela será feliz.
Eunice fez o sinal da cruz e foi para a cozinha.
Renata aproximou—se de Luísa e acariciou sua face – procurou o lado que não estava inchado ou machucado.
— Minha amiga, eu tenho a obrigação de lhe falar às claras. A verdade dói, mas é necessária. Você precisa abrir os olhos. A vida está lhe mostrando o quanto você se maltrata.
— O quanto eu me maltrato?
— Sim, Luísa. Você não percebe, mas está deixando de fazer o que quer. Está se privando de uma vida melhor, mais feliz, não quer arriscar, fica com medo e por tudo isso está acuada, sentindo—se pequena, frágil e indefesa.
— É assim que me sinto. Estou tão cansada de tudo isso...
— E não crê que esteja na hora de uma mudança? Rever suas crenças, mudar atitudes? Sabe Luísa, a vida, em hipótese alguma, nos pune ou nos faz sofrer. É o resultado de nossas atitudes que nos trazem sensações de desconforto. Veja só: você acredita que seja impossível separar—se de Genaro. Usa a desculpa de que ele sustenta sua família.
— Mas...
Renata a cortou.
— Mas nada. Sua família sabe se virar. Seus irmãos podem arrumar trabalho, progredir na vida, como todo mundo. Eles podem ajudar no tratamento do seu pai. Você está dando força demais ao seu marido.
— Creio que sim.
Renata acariciou os cabelos em desalinho da amiga. Tinha verdadeira afeição por Luísa. Por essa razão, mesmo mantendo postura firme, ela deixou que uma lágrima escapasse pelo canto de seu olho, ao afirmar:
— Ninguém é mais forte que ninguém. Você é tão forte quanto Genaro. Coloque isso na sua mente.
Luísa assentiu com a cabeça. Não queria pensar em mais nada. Todavia, nos escaninhos de sua alma, ecoava a frase: você é forte, você é forte...



CAPÍTULO 13


Os dias seguiram céleres. O tempo parecia correr mais que o habitual durante as semanas que sucederam os fatos ocorridos até então.
Genaro mal voltava a São Paulo. Como deputado federal, além do salário, recebia verba para moradia. Infelizmente, consorciado a outros deputados de má índole, Genaro criou um forte esquema de corrupção que desviava dinheiro público para o seu cofre e para o cofre desses amigos deputados. Ele comprou um lindo apartamento em Brasília e, algum tempo depois, passou a fazer de seu apartamento local de festas e orgias. Mulheres, bebidas, drogas e alguns deputados eram presenças constante no apartamento de Genaro.
Não poderia ser melhor para Luísa. Nos dias que se seguiram, a dor física foi—se dissipando mais rapidamente do que a dor moral. Os ferimentos cicatrizaram e, incentivada por Renata, ela passou a freqüentar o Centro Espírita coordenado por Mafalda. Os resultados se faziam notar: após o tratamento inicial de quatro semanas, Luísa apresentou sinais de melhora, tanto exterior quanto interior. Ela sempre ficava mexida toda vez que assistia a alguma palestra proferida no Centro. Maximiliano fez a limpeza no apartamento conforme as orientações de Mafalda.
Surtiu o efeito desejado. O poder energético das ervas por ela indicadas foram capazes de fazer uma forte e total higienização do apartamento. As energias densas, bem como as larvas astrais, foram completamente dissipadas do local. A leitura do salmo, proferida por Renata, fez com que o ambiente fosse inundado por uma energia apaziguadora e harmoniosa. A casa de Max voltou a se tornar um lar habitável.
Max também passou a freqüentar o Centro amiúde e ia pegando anotações aqui e acolá com os médiuns. Fazia suas anotações, vertia para o inglês e colocava no correio para o Dr. Bryan Scott. Assim, continuava mantendo o intercâmbio de idéias e estudos pertinentes às coisas espirituais.
Guido recebeu ajuda de Gregório, mas se instalou num hotel, no centro da cidade. Não era o que desejava, mas Gregório prometeu que em breve a vida de Guido iria mudar. Não satisfeito com essas promessas e com profundo ódio de Max, por ter sido expulso do apartamento, Guido não hesitou e marcou uma consulta com seu pai—de—santo.
Cabe aqui ressaltar que, inadvertidamente, muitas pessoas de má índole se autodenominam pais—de—santo ou mesmo zeladores de terreiros, cuja mediunidade é usada de maneira torpe, única e exclusivamente com objetivos de explorar a dor humana. Essas pessoas de má fé não tem ligação ou vínculo com os verdadeiros pais e mães—de—santo que trabalham de maneira séria e atendem com muito amor a todos os que necessitam de ajuda na hora dos apertos.
Guido freqüentava um local, digamos assim, de baixíssima vibração. O médium que lá se autodenominava pai—de—santo, havia se desentendido na tenda espírita em que trabalhava. Irritado, e julgando—se dono de poderes "mágicos", sem ao menos perceber que estava sendo assediado por espíritos gananciosos e cheios de más intenções, ele alugou um galpão na periferia da cidade e lá realizava todo e qualquer tipo de serviço, principalmente serviços espirituais que pudessem – e devessem – prejudicar o próximo.
Esse era o único intento do "terreiro" desse falso pai—de—santo que se auto—intitulava Pai Juão – com a letra "u" no lugar da letra "o". Para os clientes mais assíduos, permitia ser chamado por seu Juão.
Guido saltou do ônibus e andou algumas quadras. Chegou a frente a uma portinhola preta, numa casa de extremo abandono. As paredes estavam praticamente sem tinta e a energia que pairava sobre o local ajudava a construção, aos olhos humanos, parecer mais decadente e feia do que já era.
Ele bateu na porta e logo um rapazote de seus catorze anos veio atender.
— Preciso falar com Pai Juão. Urgente.
— Marcou consulta?
— Não, mas sou cliente assíduo. Não ta lembrado de mim, menino?
O rapazote coçou a cabeça.
— Acho que lembro sim. Ah – o rapaz bateu com a mão na testa –, foi você quem me deu aquele par de tênis para ser atendido na frente dos outros no mês passado, não foi?
Guido sorriu, satisfeito.
— Sim. Fui eu. Será que seu Juão pode me atender?
— Ele está terminando uma consulta. Vai levar mais uns dez minutos. Pode entrar.
Guido acenou com a cabeça e entrou. O local era muito decadente. As paredes eram caiadas e mal pintadas, a tinta já havia quase toda se desgrudado das paredes. Guido passou por um corredor escuro, abafado e úmido. O cheiro de mofo era forte e ele teve de prender a respiração para passar. Chegou a uma espécie de pátio, com algumas cadeiras de plástico, dispostas de maneira uniforme. No fim do pátio ou quintal, chegava—se a dois cômodos. Num deles Juão fazia os atendimentos. No outro, realizavam—se os trabalhos solicitados pelos clientes.
Aos olhos humanos, o local era sujo e decadente. Aos olhos espirituais, o lugar era muito mais feio muito mais sujo e muito mais poluído energeticamente.
Espíritos umbralinos, cuja vibração era baixíssima, entravam e saíam do segundo cômodo, onde os trabalhos de Juão eram realizados. Carregavam bichos, plantas, ossos, etc.
Alguns minutos depois, uma senhora de aspecto carrancudo saiu, passou por Guido sem cumprimentá—lo e sumiu pelo corredor escuro. Pai Juão apareceu na porta do cômodo onde fazia atendimento:
— Ora, ora, você aqui! De novo?
Guido levantou—se de maneira rápida. Suas feições não eram as mais simpáticas possíveis.
— Estou muito irritado, seu Juão.
— O que foi dessa vez? O pederasta cortou sua mesada? – ele falou e deu uma gargalhada.
— Maximiliano me expulsou de casa. Fui parar num hotel lá no centro da cidade. Uma boca de porco.
— Eu já sabia disso.
— Já?
— Sim. Fui alertado de que não poderia brigar com esse Max. Ele está protegido pelos filhos do Cordeiro.
— Como assim? – Guido parecia não entender.
— Seu amiguinho está com uma proteção danada de seres ligados à luz. Eu não tenho força para lutar contra eles. Nem quero.
— Mas você me prometeu. Disse—me que Max seria meu, que faria tudo o que eu quisesse. Que minha vida estava na flauta!
— Pois é. Entretanto, eu não esperava que ele fosse se aliar aos espíritos de luz. Sabe de uma coisa? Quando você veio aqui e pediu para que eu o "amarrasse" a você foi fácil. Ele era invigilante nos pensamentos, não tinha muita religiosidade, era homem que não possuía ligação com a espiritualidade. De repente, ele se uniu a um bando de gente metida a estudar o Espiritismo, começou a ter companhia constante de seres da luz. Tornou—se impossível para o meu bando mantê—lo amarrado.
— Você conseguiu afastar o Marco Antônio.
— Mas isso foi sopa no mel. Esse menino mal sabia rezar o Pai—Nosso. Tinha a cabeça oca. E, cá entre nós, meus espíritos adoram uma cabeça oca. Mas esse tal de Max tem uma cabeça dura. Não tenho como me meter com ele.
— E agora Juão? O que faço? Estou sem dinheiro. Pressionei um empresário e ele não quer me ajudar.
— Com esse aí eu posso fazer alguma coisa. O que você quer dele?
— Quero que ele me dê dinheiro. Estou pensando em chantageá—lo.
— Tem como fazer chantagem?
— Tenho. Eu tenho uma carta na manga.
— Então, não precisa de minha ajuda.
— Você pode dar uma forcinha. Esse homem é mau e sovina. Indivíduo ardiloso.
— Entre, vamos consultar os guias.
Guido acompanhou Juão e entraram num pequeno cômodo úmido e abafado. O local era fracamente iluminado por duas velas pretas acesas sobre uma mesa pequena e retangular. Sobre a mesa, alguns ossos ou pedaços de ossos, cartas e também bebidas.
Juão fez menção para que Guido sentasse a sua frente. Ele sentou—se numa cadeira, em frente à mesa. Juão deu meia—volta e sentou—se. Respirou fundo e entrou em contato com seus guias espirituais.
— O que você deseja, de verdade?
— Ser rico. Muito rico.
— Mais especifico, por favor.
— Quero dinheiro, seu Juão. Não importa como seja. Pode ser por meio de chantagem, não importa. Se me ajudar a arrancar dinheiro desse empresário, eu o recompensarei regiamente.
Juão riu.
— Vamos ver.
— Ou pode fazê—lo gostar de mim. Amarre—o para mim.
— Isso é impossível. Esse homem tem o coração ruim, duro e embrutecido. Nunca vai se apaixonar, pois alimenta uma paixão doentia por outro. O buraco nessa história é mais embaixo.
— O que pode fazer, então?
— Eu posso fazer com que ele lhe dê dinheiro, mas duvido que ele se torne um novo Max em sua vida. Esse fulano é mais esperto do que você imagina.
Guido ia falar, mas se assustou com o grito que Juão deus no quarto. Ele até arregalou os olhos. Juão foi tomado por uma força, um espírito que desejava há muito se comunicar com Guido. Com a voz totalmente alterada, mais rouca e grave, ele falou:
— Você fez um pacto com esse tal de Gregório. Pensa que não sabemos de tudo?
Guido estremeceu na cadeira. Ninguém sabia de nada. Ninguém.
— Você não o ajudou? Agora é hora de ele lhe ajudar.
— Como assim?
— Deixe de ser idiota, rapaz! Lembre—o do serviço que você fez tempos atrás. E diga a ele que, se não lhe der dinheiro, você vai botar a boca no trombone. Vai a público fazer escândalo.
— Acha que isso vai me ajudar a ter o que quero?
— Marque um encontro com ele e diga tudo isso. Eu e meus comparsas estaremos ao seu lado para lhe inspirar bons pensamentos – o espírito falou e deu uma tremenda gargalhada. – Depois, ainda, poderá afastar e prejudicar seu amigo, o caipira.
— Eu o iludi, mas me afeiçoei a ele. Não gostaria de prejudicá—lo. Sinceramente. Não gostaria que nada de mal acontecesse a Caio.
— Bom, entre ele e você se dar mal, o que prefere?
— Também não sou trouxa. Prefiro salvar a minha pele.
— Então conte com nosso apoio.
— O meu dinheiro está acabando e Gregório é mais forte, mais poderoso.
O espírito deu uma gargalhada pavorosa, fazendo Guido assustar—se.
— Ora, e suas clientes?
— O que têm elas?
— Nesse meio tempo, enquanto preparamos o ambiente para você atacar o empresário, por que não às ameaça?
— Ameaçar?
— Sim. Faça chantagens, as mais diversas. Faça—as sentirem medo, aproveite da culpa que sentem por estarem traindo seus maridos. Com certeza, essas mulheres ricas poderão lhe dar mais dinheiro do que você imagina, em troca de não terem seus nomes jogados na lama.
— Gostei da idéia.
O espírito fez uma lista a Guido para que ele comprasse "material" para ajudá—lo em seu intento, além de uma nota preta para o dito pai—de—santo. Guido concordou, afinal, acreditava piamente que dessa vez, finalmente, dar—se—ia bem na vida.
Guido deixou a casa de Juão e começou a seguir o conselho dos espíritos. No dia imediato, passou a ligar e aterrorizar algumas clientes, que, com medo de serem desmascaradas e serem motivo de escândalo, passaram a lhe dar dinheiro em troca de silêncio.


*****

Caio deixou de procurar apartamento, por ora. Seguiu os conselhos do bom e querido José. A convivência na pensão fez com que ambos criassem um forte elo emocional, permeado pelo carinho e amizade. Era como se José fizesse o papel de pai de Caio. Como perdera seu pai ainda muito cedo, quando ele mal tinha completado dois anos de idade, José preenchia a falta que ele sentia de uma figura paterna.
Gregório o estava enrolando com a assinatura do contrato.
O tempo corria e Gregório ligava para a pensão, conversava com Caio e pedia para que ele tivesse paciência. Logo ele assinaria o contrato para a campanha. Caio começou a sentir que algo estranho estava acontecendo. Foi ter com José, que agora se tornara seu amigo e confidente.
— Eu fui uma única vez ao escritório dele e agora ele não me deixa mais ir. Diz que está atarefado, cheio de compromissos e que logo me chamará para assinar o contrato.
— Quer saber? – disse José, realmente preocupado. – Esse homem o está enrolando. Não sei o porquê, mas parece que tem algo muito estranho nessa história.
— Mas ele me deu dinheiro. Bastante até. Por que iria me enrolar? Não consigo entender.
— Eu sinto que você deve se afastar dele. Procure estudar, arrumar um emprego qualquer. O emprego dignifica o homem. Você é muito jovem para ficar parado.
— Eu queria ser famoso, ter dinheiro.
— E acha que só sendo modelo terá fama e sucesso? Há tantas profissões que poderá lhe proporcionar isso, meu filho. Pense bem.
— Eu vou pensar.
— Se você estivesse apaixonado, talvez pensasse diferente.
— Eu, apaixonado? – Caio imediatamente lembrou—se de Luísa. E, só de lembrar, seu coração vibrava. Ele não respondeu nada.
José prosseguiu:
— Sim. Se houvesse uma mulher por quem você tivesse um sentimento nobre, sincero, de amor puro, talvez pensasse em melhorar na vida e ter um emprego. Uma relação de amor sempre nos impulsiona para o crescimento.
Caio vislumbrou o futuro ao lado de Luísa. Em sua mente, os dois caminhavam juntos, de mãos dadas, os filhos correndo na frente deles. É, se ele quisesse um futuro promissor, precisava pensar em arrumar trabalho, crescer, estudar, progredir. Ele apoiou o braço no ombro de José.
— Você fala com uma propriedade, como se já tivesse amado alguém na vida. Pelo que sei você é só.
Uma lágrima desceu pelo rosto de José. Ele fechou os olhos e imediatamente flashes do passado invadiram sua mente. Ele respirou fundo, deu uma pigarreada e tornou, com ar melancólico:
— Eu tive um grande amor. Já fui casado.
— Casado?
— Sim.
— E o que aconteceu? Separou—se?
— Não. Pior. Eu fiquei viúvo.
— Oh, meu amigo. Sinto muito.
José encostou as costas na cadeira e deixou o corpo relaxar. Suspirou e contou parte de sua vida. Confiava e tinha imenso carinho por Caio. Afinal, ele poderia ser o filho que perdera anos atrás.
— Eu me casei há muitos anos e tivemos um filho. Éramos pobres, porém eu e minha mulher trabalhávamos duramente. Eu era vigia numa fábrica de bebidas e ela trabalhava como faxineira. Tivemos um único filho, que levou meu nome, embora o chamássemos de Zezinho.
Os olhos de José brilhavam emocionados. Ele continuou sua história:
— Zezinho cresceu, tornou—se rapaz bonito, inteligente, sensível. Trabalhava de dia e estudava à noite. Éramos uma família feliz até...
Caio percebeu o tom emotivo na voz de José. Passou delicadamente a mão em seu ombro, como sinal para que ele continuasse seu triste relato.
— Bom, morávamos numa favela. Era o que o nosso dinheiro permitia pagar. Eu trabalhava a noite inteira e, numa madrugada de forte chuva, o barraco não suportou. Houve um deslizamento de terra e muitas casinhas foram pegas de supetão. A minha foi uma delas. E, lá dentro, estavam minha esposa e meu filho...
José não conseguiu finalizar. As lágrimas desciam sem cessar. Caio também se emocionou e o abraçou.
— José que tristeza. Não sei o que falar.
José recuperou—se da emoção. Enxugou o rosto com as costas da mão.
— Pois é, meu filho. Isso aconteceu há mais de dez anos. Eu larguei o emprego de vigia e, por intermédio de um amigo vim parar aqui na pensão da Fani. Ela sensibilizou—se com minha história e me deu emprego. Eu moro aqui, faço a manutenção da pensão e vou levando minha vida. Confesso que sou feliz, embora tenha muita saudade de minha esposa e meu Zezinho – ele acariciou o rosto de Caio. – Meu filho, hoje, teria a sua idade. Por tudo isso me afeiçoei tanto a você. Gostaria que você se tornasse o homem próspero e feliz que idealizei para meu filho. Coisa de pai. Desculpe—me.
— De maneira alguma. Eu perdi meu pai muito cedo e você tem preenchido essa lacuna em minha vida. Sou feliz por tê—lo encontrado em meu caminho.
Abraçaram—se emocionados. Ali se restabelecia uma forte amizade, oriunda de outras vidas.
Como a pensão não oferecia jantar, foram comer num restaurante ali próximo, barato e com comida excelente. Caio contou a José sobre sua vida e sentiu—se confortável e seguro para lhe contar sobre Loreta e a curta vida de prostituição que tivera na capital.
— Fico feliz que tenha abandonado essa vida. Ela só nos degrada o físico e o espírito.
— Eu conheci uma moça, José.
— É mesmo?
— Sinto que a amo. Meu coração trepida só de pensar em Luísa.
— Amar faz bem ao espírito.
Caio entristeceu—se.
— Ela é casada...
— Não se meta mais em encrencas, meu filho.
— O casamento não vai bem, ela quer se separar.
— Só a procure quando estiver separada. Se é que ela vai se separar.
— O que faço com o que sinto por ela? Tenho saudades.
— Aguarde. Tenha paciência. Peça a Deus para ajudá—lo.
— Eu não sou um homem de fé, José. Não acredito em nada. Tive uma vida muito dura e não creio que Deus esteja ao meu lado.
— Como não, meu filho? Você não está vivo? E saudável?
— Sim, mas minha vida poderia ser diferente.
— Faça—a diferente. Isso depende de nós. Mesmo com toda a desgraça que se abateu em minha vida, nunca deixei de ir à missa. Eu vou todo domingo, faça chuva ou faça sol. Fui criado no catolicismo e, embora não seja católico praticante, gosto de missa e sou devoto de Santa Rita de Cássia. A santa das causas impossíveis.
— É mesmo?
— Se quiser, um dia eu o levo lá na paróquia que leva seu nome. Fica no bairro do Pari. Você vai gostar.
Caio riu. Não tivera formação religiosa na sua vida e para ele tudo era novidade. Se fosse para agradar José, com certeza ele iria a tal Igreja. Terminaram de conversar, José pagou a conta e voltaram para a pensão.
Na entrada, José sacou a carteira do bolso e tirou um folhetinho, desses distribuídos nas portas das igrejas, com a imagem da santa.
— Tome. Guarde com você. Se bater uma saudade forte da moça casada, peça à Santa Rita que o ajude. Espero que ela possa ajudá—lo quando precisar.
Caio o abraçou, comovido.
— Obrigado, meu amigo.
Entraram na pensão. Assim que atravessaram o jardim de entrada, ouviram vozes altas vindas da recepção. Não imaginavam que gritaria era aquela, se era confusão ou conversa entre as mulheres.
Caio entrou primeiro no saguão. Uma senhora de costas conversava alegremente com as demais, enquanto gesticulava e movia os braços e o corpo. Elas voltaram à atenção para Caio e imediatamente a senhora voltou o corpo para trás. Ela o olhou de cima a baixo e, vendo José pelo ombro do rapaz, perguntou:
— Quem é você, rapaz?
— Meu nome é Caio.
— O famoso Caio!
— Ainda não sou famoso...
Ela riu, aproximou—se e o beijou no rosto, de maneira afável.
— Prazer. Meu nome é Fani. Sou a dona da pensão.
Caio abriu largo sorriso.
— Eu pensei que a senhora não existisse!
— Por quê?
— Porque falaram que voltaria de Bauru em uma semana e faz mais de mês. Eu pensei que todos estavam mentindo para mim. As pessoas riram da forma ingênua e espontânea com o jeito que Caio falou. José aproximou—se e a cumprimentou.
— Como vai, Fani?
— Estou muito bem.
— Fez boa viagem?
— Fiz. Estou cansada de ficar tantas horas sentada – ela disse, olhando ao redor. – Pelo visto, você cuidou direitinho da pensão.
— Não fiz mais que minha obrigação.
Celinha intrometeu—se entre os dois.
— Eu também ajudei. Bastante.
— Eu sei querida. Você é nosso braço direito.
Celinha sorriu.
— Obrigada. Eu adoro trabalhar aqui, se bem...
— Se bem? – encorajou Fani.
— Se bem que o trabalho anda pesado. Depois que a Dinorá foi embora, não consigo dar conta de tudo.
Muita comida para fazer, muito hóspede para atender, muita roupa para lavar e haja faxina. Parece que o pó adora esse casarão.
O riso foi geral. Fani continuou.
— O trabalho de Dinorá faz falta. Fui a Bauru resolver alguns negócios, vendi uma casa e agora vou reformar o casarão. Teremos novos quartos, mais modernos e mais espaçosos para servir os hóspedes.
Celinha bateu palmas.
— Que bom, D. Fani. Mas o serviço vai ficar mais pesado.
— Não precisa fazer beicinho. Pensando nisso, já contratei mais uma pessoa para ajudar nas lidas domésticas.
— Ufa! – fez Celinha, passando a mão pela testa. – Quem é essa pessoa?
— Uma antiga conhecida. Está lá em cima. No quarto ao lado de Caio – ela aproximou—se do rapaz e o encarou nos olhos. – Não quer subir e ver quem é? Aposto que você vai gostar.
Caio abriu largo sorriso. Só podia ser Sarita. Seu anjo voltara! Ele iria lhe falar de Luísa, perguntar ao seu anjo se tudo aquilo que estava sentindo era amor. Sarita sabia dessas coisas e poderia confirmar.
O rapaz foi caminhando até o quarto, ansioso. Subiu os lances da escada de maneira rápida. Abriu a porta do quarto e quase teve uma síncope. Seus olhos arregalaram e suas pernas falsearam por instantes. Ele só pôde balbuciar:
— Mãe...


CAPÍTULO 14


O tratamento espiritual a que Luísa fora submetida fizera com que ela melhorasse bastante. Os bons espíritos trabalharam em seu corpo emocional, reequlibraram seu chacra cardíaco. Aos poucos, ela passou a rever conceitos e mudar algumas atitudes que iriam acelerar o crescimento de seu espírito.
A sua única preocupação era arrumar algum trabalho por conta da doença do pai. Luísa prontificou—se a ajudar no tratamento de Inácio, cujos rins estavam paralisados e ele necessitava fazer diálise, três vezes ao dia. O governo não oferecia material com regularidade e, temendo o pior, Luísa fora condescendente com o marido, que pagava o tratamento do pai dela no hospital particular mais caro de Bauru.
Luísa havia conversado com Renata sobre a possibilidade de arrumar um emprego e a amiga ficou de ver, na empresa em que trabalhava se havia algum cargo de auxiliar ou recepcionista, porquanto Luísa não tinha formação profissional. Concluíra o ensino médio e tinha parado de estudar para se casar com Genaro.
Diante disso, ela sentiu força para poder enfrentar os pais, principalmente a mãe, e convencê—los de que, caso todos se unissem – ela e os irmãos –, o pai não precisaria mais da ajuda de Genaro e, assim, ela poderia se livrar de vez do marido.
Algo de inesperado, triste e, de uma certa maneira, reconfortante, atingiu Luísa e sua família. No fim do tratamento espiritual, ela recebeu a notícia de que seu pai tinha morrido. Luísa entristeceu—se, afinal, mesmo não tendo afinidades com o pai, fora ele que a criara e lhe dera um teto até o casamento com Genaro. Ela fora criada de maneira esmerada e só não teve mais porque Inácio perdeu tudo anos atrás. Ela sentia que não amava o pai, que nunca o amara, mas nutria por ele um sentimento de gratidão.
Luísa compareceu ao enterro sozinha. Genaro estava em Brasília, metido entre maracutaias e alegou impossibilidade de viajar até Bauru para o evento fúnebre.
Ela mudara algumas posturas e, vestida de firmeza, duas semanas após a morte do pai, retornou para conversar com sua mãe. O encontro não foi tão amigável assim. Seus irmãos fuzilaram—na com o olhar, logo que ela entrou na casa, ante a possibilidade de perderem a gorda mesada de Genaro. Sua mãe foi mais dura:
— Só pensa em você? E o que será de nossas vidas? – Neuza falava de maneira agressiva. – Eu a coloquei no mundo, enchi—a de mimos e carinho. Demos boa educação, que – Neuza metia—lhe o dedo em riste – a ajudou a conseguir um marido rico. Essa você vai nos dever pelo resto da vida.
— Eu não posso mais manter esse casamento.
— Não seja estúpida!
— Não precisa me ofender.
— Quer que eu fale como?
— Você não conhece Genaro como eu.
— Bobagem. Genaro é homem conhecido, político influente e importante. Logo terá cargo mais alto, quem sabe até será presidente do país. E você fica querendo abandonar o barco?
Vocês não imaginam o inferno que está sendo minha vida nesses anos todos.
Neuza exasperou—se.
— É você que nem ao menos imagina como será as nossas vidas se perdermos a mesada de Genaro.
— Mãe, entenda. Eu tinha medo de me separar porque Genaro bancava o tratamento de papai. Agora que ele morreu, um peso foi arrancado de minhas costas. Meus irmãos podem ajudá—la no sustento da casa.
— Esperou Inácio morrer para se virar contra nós?
— Eu me preocupava com o estado de saúde do papai, mas, agora, não vejo por que vocês têm de continuar recebendo mesada do Genaro.
— Acha que na idade em que estou eu vou trabalhar?
— Não é isso...
— Quer ver sua mãe esfregando chão e lavando privada?
— Não foi o que imaginei. Creio que você esteja dramatizando sua vida.
— Eu dramática?
— Sim. Está carregando nas tintas do drama. Eu preciso seguir minha vida, ser dona de meu destino. Não posso mais ficar sob as asas de um marido truculento.
— Agüente. Seja esperta. Manipule—o.
Luísa suspirou fundo e falou num tom alto.
— Ele bateu em mim!
— Ah! Ele bateu em você? – rebateu Neuza, com desdém. – O que você fez para ele tomar atitude extremada?
— Está defendendo Genaro?
— Boa coisa não foi Luísa. Você sempre foi muito mimada, muito cheia de nhenhenhém. Um nojo de menina.
Luísa não podia acreditar no que estava ouvindo. A mãe defendia o genro com unhas e dentes. Tratava—a como um objeto, como um trampolim para que eles vivessem essa boa vida que Genaro lhes proporcionava.
— Eu vou me separar.
— Engravide.
— O quê?
— Isso mesmo – tornou Neuza de maneira veemente. – Engravide. Tenha um filho dele. Assim você poderá arrancar—lhe dinheiro pelo resto da vida. Nada como um filho.
— Eu nunca faria isso, mãe. Nunca usaria uma criança para arrancar dinheiro. Não combina com meus princípios.
— Tola. Acha que princípios põem comida à mesa?
— Claro que não, mas pelo menos durmo com a consciência tranqüila.
— Você está mudada. O que tem feito?
— Nada de mais.
— Não Luísa, eu a conheço bem. Você está diferente, mais dona de si. De onde tirou essa panca?
— Que panca?
— Quem a ensinou a fazer isso?
Luísa titubeou.
— Não é bem assim... Algum tempo atrás tive uma discussão horrível com Genaro. Ele me bateu, sofri muito e fui procurar ajuda num Centro Espírita.
Neuza bufou de raiva. Aquilo não podia ser verdade. Ouvira errado.
— Não! – protestou num tom maledicente e, num riso forçado, disparou: — você não pode estar metida com isso.
— Eu passei a freqüentar um Centro Espírita e tenho melhorado muito. Fiz tratamento espiritual, aprendi...
Neuza foi curta e grossa.
— Chega! – exclamou um tom grave.
— Deixe—me explicar, por favor.
— Além de burra agora se meteu com essa gente ignorante que afirma se comunicar com espíritos? Isso sim é o fim da picada. Só mesmo uma tonta como você para cair na armadilha dessa gente que só quer tirar proveito da dor alheia.
— Quem lhe disse isso? De onde tirou essas idéias?
— Não tirei. Elas existem. É o que as pessoas dizem por aí.
Espírito, fantasma, é tudo invenção da mente humana. Já foi comprovado que não passa de balela.
— Como também já comprovaram a existência da reencarnação. Há livros sérios acerca do assunto e.
— Chega, Luísa.
— Mas, mãe...
— Não quero mais uma palavra sobre espírito aqui dentro de minha casa.
— Está certo. Eu vou respeitá—la. Nossos pontos de vista são diferentes.
— Totalmente diferentes.
— Mas o Otávio e o Paulo podiam trabalhar e ajudar aqui no sustento da casa.
— Está louca?
— Por quê? Falei alguma bobagem?
— Seus irmãos não têm idade para trabalhar.
— Eles são adultos, oras!
— São estudantes universitários.
— Mãe! Quantos rapazes na idade deles cursam faculdade à noite e trabalham de dia para ajudar suas famílias? Inúmeros.
— Seus irmãos são diferentes.
— O que há de diferente neles?
— Precisam de tempo para estudar.
— Você os defende. Quer transformar seus filhos em quê? Em inúteis?
Neuza não conteve a raiva e deu um tapa na cara da filha.
— Nunca mais fale assim de seus irmãos. Eles não merecem a irmã que têm.
Luísa passou a mão pela face ardida e vermelha.
— Você nunca mais vai encostar o dedo em mim!
— Vai me ameaçar?
— Eu juro. Daqui para frente, vocês que se virem. Eu vou me separar. Acabou a mamata.
— Nem pense nisso, sua...
Luísa nem quis ouvir mais. Pegou sua bolsa e falou:
— Adeus, mãe.
Neuza gritava e dirigia à filha palavras duras e agressivas. Por sorte, Luíza estava ligada aos espíritos de luz e não deu ouvidos às barbaridades proferidas por aquela mulher que podia ser qualquer coisa, menos sua mãe.


****


Guido conseguia manter—se com o dinheiro que arrancava de suas clientes, por meio da chantagem. Mas isso era muito pouco para ele. Tinha sede de mais, muito mais.
Certa noite ele foi à mansão de Gregório. Precisava de mais dinheiro. Entrou no jardim de inverno e Gregório o esperava, com um robe de seda preto.
— Vou direto ao assunto, Gregório. Estou precisando de um adiantamento.
— Não.
— Por quê?
— Porque você já ganhou bastante dinheiro.
— Eu o ajudei. Fiz tudo o que você mandou.
— E ainda fará mais.
— Quanto ao dinheiro?
— Semana que vem lhe dou mais.
— Jura?
— Palavra de Gregório Del Prate.
— Estou precisando agora.
— E o que recebe de suas chantagens com as ricaças?
— Esse dinheiro dá para pagar comida, mais nada. Você precisa me ajudar.
Gregório levantou—se e dirigiu—se até uma parede ao lado da estante. Tirou de lá um quadro e Guido percebeu que se tratava de um cofre. Gregório abriu e de lá tirou algumas notas.
— Isso serve para você?
Guido apanhou os maços rapidamente, como se Gregório pudesse mudar de opinião. Ele contou as notas e sorriu.
— Dá para mais alguns dias.
— Alguns dias? Está louco? – vociferou Gregório. – Esse dinheiro é para mais de mês. Veja lá como gasta! Economize.
— Não sei fazer economia.
— Procure um panaca igual ao Maximiliano. Aí fora – fez gesto com as mãos – tem um monte de homem carente e cheio de grana.
— Para que vou atrás deles se tenho você?
— Não gosto que fale comigo nesse tom!
— Eu posso arruinar sua vida, Gregório.
Gregório aproximou—se e lhe meteu o dedo em riste. Guido nem se importou com aquele mau hálito ácido e insuportável.
— Se fizer novas ameaças a mim, eu acabo com a sua raça, entendeu?
— É que, depois de tudo o que lhe fiz...
— Cuidado comigo, Guido.
— Você podia me arrumar um apartamento, um carro...
— Ficou maluco?
— Eu fiz coisas que se vier a público, poderão acabar com a sua vida.
Gregório enfureceu—se. Odiava ser chantageado. Deu um tapa no rosto de Guido.
— Você nem ouse me chantagear! Se eu ouvir outra vez dessa boca suja, mesmo nas entrelinhas, que vai me chantagear, eu dou cabo de sua vida, entendeu? Eu acabo com você!
Gregório falou de maneira tão assustadora que Guido estremeceu. O proprietário da Cia. De Perfumes era mais forte, sem dúvida. Ele não podia criar uma situação de animosidade com Gregório. Não agora. Precisava ganhar mais tempo. Quem sabe o Juão não resolveria logo seus problemas?
Ele levou a mão ao rosto e contemporizou.
— Está certo. Perdi a cabeça. Desculpe—me.
— Assim está melhor. Agora pegue esse dinheiro e suma.
Guido assentiu com a cabeça e saiu. Pelo menos agora teria dinheiro para mais alguns dias.
Entretanto, ao sair da mansão, ele mentalizou o local onde ficava o cofre. Era lá que ele tinha de atacar.


****


Maximiliano estava confortavelmente sentado em sua sala quando a campainha tocou. A empregada foi atender e, em seguida, Renata surgiu linda e exuberante. Trazia Luíza a tiracolo.
— Boa noite, amigo.
Max levantou—se e foi ao encontro delas. Cumprimentou Renata e, em seguida, Luísa.
— Eu a vi no Centro da Mafalda algumas vezes, mas não quis me aproximar. Você parecia estar num outro mundo – comentou Max, enquanto conduzia as duas moças para se sentarem ao seu lado, num gracioso sofá.
— Eu passei por momentos muito difíceis. Recentemente perdi meu pai e parece que também perdi minha família.
Renata aduziu:
— Luísa é casada com Genaro Del Prate.
— O político? – inquiriu Max.
— Esse mesmo – respondeu Luísa. – Nosso casamento sempre foi um fiasco e eu tentei me separar. Genaro me bateu sempre me ameaçou com surras e outras ameaças.
— Por que não prestou queixa na delegacia?
— Genaro ameaçou—me caso eu fizesse um boletim de ocorrência. E, de mais a mais, de que adiantaria prestar queixa? Nós, mulheres, não temos direito algum. Os delegados riem de nós.
— Riem? – perguntou Max, estupefato.
Renato afirmou.
— Certa vez acompanhei uma amiga à delegacia para prestar queixa contra o marido. Fiquei impressionada com o descaso das autoridades. Eles trataram—na como se fosse culpada por ter apanhado. Como se o marido tivesse razão para espancá—la.
— É uma pena – disse Max. – Os homens não podem continuar cometendo agressões contra suas companheiras. É injusto e desumano.
Luísa tornou, de maneira doce.
— Agora me sinto forte para seguir adiante.
— Seu marido é um homem covarde. Homem que agride sua mulher deveria ser preso, mas infelizmente vocês ainda – fez, apontando para as duas – são recriminadas. Eles batem, matam e ainda declaram, com a maior cara lavada, terem sido feridos na honra.
Renata intercedeu.
— Está havendo mudança de valores no Brasil. Infelizmente, ainda, a sociedade é chamada a rever seus conceitos diante de crimes bárbaros e aí sim, clama para que certas leis sejam revistas e mudadas.
— Concordo – ajuntou Max. – Lembre—se do caso Lindomar Castilho (O cantor Lindomar Castilho foi condenado a doze anos de reclusão, por homicídio doloso e tentativa de homicídio. Ele cumpriu seis anos em regime semi—aberto, por bom comportamento, tendo ganhado a liberdade em 1996, retornando sua carreira artística em seguida – Nota do Autor), quando o tema é a violência contra a mulher. O cantor matou sua esposa, aliás, ex—esposa – porquanto a separação havia já sido assinada por ambos – e também cantora Eliane de Grammont recentemente. Até agora o caso reverbera na sociedade e tenho certeza de que, por conta desse crime bárbaro e de tantos outros nunca noticiados, muitas mudanças virão, para benefício das mulheres que sofrem como você, Luísa, nas mãos de homens covardes e que, em breve, não mais terão a lei a seu favor.
— Ainda vale a figura da "legítima defesa da honra", que justificava crimes covardes como o cometido pelo cantor. As entidades feministas, porém, estão pressionando as autoridades para que a justiça seja feita – ajuntou Renata.
— Afinal – concluiu Luísa –, quem ama, não mata.
— Pois é. E você – Max apontou para Luísa – precisa se fortalecer e procurar meios de se desligar de seu marido antes que seja tarde demais.
— Por que me diz isso?
— Pela ficha dele...
— Falando assim, Max você me assusta.
— Genaro é homem vil, inescrupuloso. Você temia se separar, porquanto seu pai necessitava de ajuda no tratamento médico. Estava atordoada e preocupada porque não via possibilidade de arrumar um trabalho que pudesse cobrir essas despesas. Entretanto, a vida foi generosa com você.
— Generosa? Como?!
— Luísa, a vida tirou seu pai de cena. Você está enxergando as coisas de maneira muito torpe. Veja o lado positivo das coisas, mesmo que se trate de uma perda, de uma tragédia, até. Tudo na vida é para o nosso melhor, para o nosso crescimento, para a nossa evolução.
— Max tem razão – concordou Renata. – Você se preocupava com seu pai, com seu tratamento. Ele partiu, terminou sua jornada nesta vida. Seu pai cumpriu o que tinha de cumprir. Você deve orar para que o espírito dele possa estar recebendo ajuda num Posto de Socorro no astral e agradecer a Deus por não ter de se preocupar com seu tratamento. É uma maneira diferente de enxergar o que nos acontece na vida. A morte de Inácio, no fim das contas, fez um bem a você.
— Pensando desse modo, sim – asseverou Luísa. – Concordo.
— E sua mãe e irmãos terão de se virar. Você não está fazendo tudo sozinha? – perguntou Max.
— De certa forma.
— Claro, você tem seus amigos, tem a Renata, a mim, Mafalda e os bons amigos espirituais. Mas você é que tem feito as mudanças por si. Que sua família também aprenda a mudar com as adversidades da vida. Você não é responsável pela vida deles. Só pela sua.

— E minha mãe não me quer por perto. Não gosta de mim. Eu sinto – contrapôs Luísa.
— E por que vai ficar ao lado de quem não lhe quer bem?
— Mas ela é minha mãe, Max.
— E daí?
— Eu sinto culpa.
— Neuza comprometeu—se a lhe dar a vida. Ela foi responsável pelo seu reencarne. Merece todo o seu respeito. Entretanto, você não é obrigada, de maneira alguma, a ter de aturá—la pelo resto da vida, a não ser que você a ame. Você a ama?
— Não. Sinceramente, não.
— Mas pode fazer um esforço para também não nutrir nenhum sentimento de raiva. Isso não nos faz bem, Luísa. Quer voltar junto dela na próxima encarnação?
— Eu?!
— É
— Deus me livre – Luísa bateu na madeira três vezes.
— O amor e a raiva caminham juntos. Esses sentimentos criam laços entre os espíritos. E, se nos ligam, vão nos manter juntos em outras vidas, movidos pelo sentimento de amor ou de ódio. Por tudo isso, mesmo que você não goste de sua mãe, procure compreendê—la e perdoá—la pelos seus atos insanos.
— Compreender e perdoar?
— Sim. Perdoar para você se livrar do sentimento de raiva que as une. E compreendê—la porque Neuza foi criada de outra maneira, numa outra época, faz parte de outra geração. É uma mulher embrutecida, perdeu tudo na vida.
— Mas... – Luísa ia protestar. Max fez sinal com a cabeça e continuou: — tudo bem, a vida de cada um é reflexo do conjunto de suas atitudes e crenças, ninguém no mundo é punido, digamos assim, em vão. Sua mãe atraiu essa experiência para sua vida e, se tirou proveito ou não das experiências pela qual passou, isso é problema dela. Mas você cresceu, procurou forças dentro de si para mudar.
Tem estudado bastante, procurado entender os mecanismos que regem nossa vida. Tem condições de perdoar e seguir em frente.
Renata concluiu:
— Você não precisa, minha amiga, ficar lambendo sua mãe ou mesmo manter com ela uma relação de falsidade, visto que ambas não se dão bem. Mas não custa nada perdoá—la e vibrar para que ela acorde e saia das teias de ilusões que criou.
— Isso mesmo – ajuntou Max. – Vibre para que Neuza possa crescer e se libertar das ilusões que a impedem de enxergar a força que seu espírito tem para viver sem depender de ninguém. Esse trabalho é só da sua mãe. Ninguém poderá fazer por ela. Mas perdoar, deixar de sentir rancor e mágoa, isso vai ajudar você a se libertar e seguir adiante, com mais segurança, mais fé.
Luísa emocionou—se. As palavras dos amigos ajudavam—na bastante a refletir e ver que poderia, sem dúvida, perdoar sua mãe e seguir adiante.



CAPÍTULO 15


Caio abraçou sua mãe e assim permaneceram por longo tempo. A emoção impedia que pudessem dizer alguma coisa. O abraço sincero, forte, quente e afetuoso causou—lhes uma sensação de indescritível bem estar.
Rosalina afastou—se e mediu o filho da cabeça aos pés.
— Você está tão bonito! Diferente, bem vestido.
— Obrigado, mãe.
— O que anda fazendo?
— Tenho muita coisa para contar, mas agora quero saber o que você faz aqui. Que surpresa é essa? Veio para ficar?
— Sim. A proposta de Fani foi irrecusável.
— Mas você estava trabalhando na escola, ganhando bem, pensava até em comprar uma casinha...
— Pois é, meu filho, entretanto muitas coisas aconteceram. A escola fechou por falta de verbas públicas. Eu perdi me emprego. Por sorte, consegui concluir o supletivo. Formei—me no ginásio.
— Fico feliz que tenha se graduado. Era um sonho antigo.
— Agora sei ler, escrever e fazer contas diversas. Tornei—me uma mulher muito mais inteligente, mais culta e mais lúcida. Mais feliz.
— Como fez para se sustentar?
— Voltei a fazer faxina e lavar roupa para fora. Consegui me manter. Foi quando reencontrei a Fani em Bauru. Um dia estava saindo da venda do seu Gomes e ela lembrou—se de mim. Conversamos, falei de minha situação e foi então que veio a proposta.
— Qual proposta?
— Eu vou trabalhar só na cozinha fazer as refeições. O salário é bom e eu terei um teto para morar. E agora, vendo que você está aqui ao meu lado, o que mais quero?
Ele a abraçou e a beijou várias vezes no rosto.
— Estava mesmo morrendo de saudades, sabia? Muita saudade.
— Eu também.
— Ninguém mais vai nos separar.
— Sabe, filho, a Norma me falou que iríamos nos encontrar. Só não sabia como. Esta cidade é tão grande, e veja só: mal cheguei e o reencontrei.
Caio afastou—se e coçou a cabeça.
— Continua com essas idéias?
— Que idéias? Eu disse que sua irmã me procurou, oras.
— Mãe!
— Norma mandou uma carta para mim.
— Como assim? Uma carta?! – perguntou estupefato.
— Uma carta psicografada.
— Mãe, não entendo dessas coisas e...
Rosalina silenciou o filho com o indicador em seus lábios.
— Chi! Calma. Deixe—me explicar melhor.
Ela foi até sua bolsa e pegou um envelope.
— No Centro Espírita que eu freqüentava em Bauru, havia sessões em que levávamos o nome de nossos entes queridos desencarnados e esperávamos até que eles se comunicassem. Isso poderia levar dias ou semanas, sendo que algumas pessoas eram chamadas, outras não. Eu custei a receber notícias de sua irmã.
Quando fui chamada, certa noite, após uma sessão, meu coração transbordou de alegria. Uma carta endereçada a mim!
— E o que diz a carta?
Rosalina riu misteriosa.
— Para você tomar cuidado e prestar mais atenção às pessoas a sua volta.
— Grande coisa.
— E disse—me que vou me casar de novo!
— Mãe, que absurdo é esse?
— Por que absurdo?
— Não creio que Norma esteja entre nós. Por acaso – perguntou de maneira desafiadora – a letra na carta é dela?
Rosalina moveu a cabeça para os lados.
— Você não entende nada das coisas espirituais. Claro que a carta vem com a letra do médium que a escreveu.
— Sei...
— Segundo a doutrina espírita, meu filho, a psicografia é uma das múltiplas possibilidades de expressão mediúnica existentes. Allan Kardec classifica—a como um tipo de manifestação inteligente, digamos assim, por consistir na comunicação discursiva escrita de um espírito, por intermédio de um médium, seja homem ou mulher, com quantos se prestem a ler—lhe os textos.
Ele coçou o queixo, meio intrigado. Rosalina prosseguiu:
— O fenômeno ocorre pela intercessão da vontade do espírito comunicante sobre a vontade passiva do médium que, apesar de ceder sua vontade para que a comunicação se dê, estando consciente, interfere mais ou menos no seu teor e forma.
— Nunca ouvi falar disso.
— Porque não lê, oras!
— Existe publicação sobre esse assunto é? – perguntou em tom de deboche.
Rosalina nem ligou. Sentia que Caio era resistente para aceitar e compreender os fenômenos mediúnicos. Ela finalizou:
— Em descrições contidas nas obras da série André Luiz (coleção intitulada A Vida no mundo espiritual, do espírito André Luiz, composta por dezesseis livros psicografados pelos médiuns Francisco Cândido Xavier e Waldo Vieira e publicados pela FEB – Federação Espírita Brasileira Editora – Brasília, DF. No movimento espírita brasileiro a coleção também é conhecida como Série Nosso Lar (N.A.)), existe uma interligação entre os chamados centros de força do perispírito do desencarnado com o encarnado intermediário, permitindo que ele atue na produção de textos, consoante sua vontade.
— Está falando difícil para me impressionar?
— Não, para que você desperte para a verdade. Só isso.
A postura de Rosalina surpreendeu Caio. Ela falava com propriedade, de maneira articulada, usando até palavras mais difíceis. Sua aparência estava melhorada, ela estava mais bonita, embora algumas rugas teimassem em ocupar o canto dos olhos.
— Você acredita mesmo que Norma tenha se comunicado?
— Sem dúvida alguma.
Caio pegou o envelope das mãos da mãe. Abriu e tirou a carta. Era uma comunicação curta, de algumas linhas, mas Norma falava em Roberval e que também estivera com Elza. Ele abriu e fechou a boca sem poder articular som.
— As pessoas desse Centro Espírita a conhecem?
— Não a ponto de saberem que seu pai se chamava Roberval e que sua avó se chamava Elza.
Caio abraçou a mãe. Sentiu forte emoção, e a lembrança de Norma veio forte à sua mente.
— Ah, mãe – tornou ele, emocionado –, será que Norma está perto de mim? Será que ela me protege?
— Caio querido! – Rosalina alisou seus cabelos. – Norma afirma na carta que está sempre ao seu lado. Será que você não poderia ser mais flexível e abrir—se ao conhecimento espiritual?
— Ainda estou confuso, mas prometo que, qualquer hora, pego um livro seu.
— Está certo, meu filho.
Abraçaram—se e continuaram conversando. Caio contou de maneira empolgada à mãe sobre o contrato e a campanha do perfume. Rosalina sentiu uma pontada no peito, um desconforto sem igual. Alertou o filho.
— Creio que você poderia ir atrás de outra atividade. Esta cidade é tão grande, pode lhe proporcionar muitas coisas boas. Lembre—se do que sua irmã disse na carta. Cuidado com quem você se envolve.
— Ouvi isso hoje do José. Ele me falou a mesma coisa.
— Caio meu filho, preste atenção aos sinais que a vida lhe dá. Eu mal conheço esse José e tanto ele quanto eu, mais a carta de sua irmã, dizem—lhe a mesma coisa?
— Bom...
Rosalina aumentou o tom.
— No mesmo dia? Não é para pensar?
— É. Creio que sim.
— Abra os olhos, meu filho. Cuidado com gente que é lobo em pele de cordeiro. Você sabe do caráter desse Gregório Del Prate, ou melhor, da falta de caráter. Você não está sendo enganado.
— Eu sei.
— Os fatos se mostram à sua frente.
— Entendo.
— Tome cuidado com o que você vai fazer.
— Mas e se eu não aceitar?
— Assinou alguma coisa?
— Não.
— Fica mais fácil.
— Não é tão fácil assim, mãe.
— Por quê?
— O Gregório me deu um adiantamento.
— Devolva.
— Como?
— Devolva o dinheiro.
— Contudo, eu usei um pouco do dinheiro.
— Não tem problema. Você poderia pegar o dinheiro e sumir. Não assinou nada. Mas você tem caráter, é um homem bom. Por esse motivo, pegue o que tem no banco, não importa a quantia e devolva ao Gregório.
— E o resto do dinheiro?
— Diga que no tempo certo vai lhe pagar aquilo que falta. E pronto. Livre—se dele.
— Você tem razão. Mas, mãe, se eu devolver o dinheiro, vou viver de quê?
— Eu converso com Fani. Você fica no meu quarto e não pagará mais a pensão. Ficaremos apertados, mas sobreviveremos. Depois, você vai se ajeitar colocar uma roupa bonita e ir à cata de emprego. Tenho certeza de que logo estará estudando e trabalhando. Vamos, meu filho, força!
Caio a beijou demoradamente na fronte.
— Você é a melhor mãe do mundo.
— Você é o melhor filho do mundo – rebateu Rosalina.
Caio despediu—se da mãe e foi para seu quarto. Deitou—se na cama e lembrou—se da irmã querida.
— Será que Norma tentou se comunicar comigo? Será que depois da morte existe algo? Será?
Caio pensou na irmã, na saudade que sentia dela e, dessa forma, adormeceu.
Norma estava com ele desde que Rosalina chegou. Não queria perder o reencontro entre mãe e filho. Ficou emocionada ao vê—los juntos.
— Ele continua resistente – disse para Carlota.
— Você fez o que lhe foi permitido, Norma.
— Infelizmente, ele vai arrumar encrenca.
— Se o espírito dele precisar passar por essa experiência, paciência. Não podemos, de maneira alguma, interferir na escolha das pessoas. Você lhe mandou a mensagem. Para bom entendedor, bastam as entrelinhas.
Isso é sinal de que a espiritualidade entendeu que Caio não precisaria passar por situações desagradáveis. Entretanto, o espírito dele anseia passar por isso. Entende que é algo mais forte que a própria vida?
— Sim, entendo.
— Seu irmão precisa, deseja, mesmo que inconscientemente, passar por essa provação. Caso contrário Caio teria grande vontade de procurar um Centro Espírita. Isso faria toda a diferença.
— Você tem razão, Carlota. Isso faria toda a diferença. Todavia, meu irmão está fazendo suas escolhas. O melhor a fazer é orar e pedir para que seja feito o melhor.
— Isso mesmo. Que tal darmos um passe no perispírito de seu irmão? Aproveitamos que ele adormeceu e lhe ministramos um passe revitalizante. Amanhã, com certeza, ele vai acordar mais bem—disposto.
Norma pendeu a cabeça afirmativamente. Os dois espíritos ergueram as mãos. Fecharam os olhos, concentraram—se e aplicaram um passe sobre o perispírito de Caio, que descansava há alguns palmos do corpo físico. Feito isso, as duas desvaneceram no ar.


****

Luísa sentia—se mais forte. Renata tinha lhe conseguido entrevista na empresa em que trabalhava. Era para o cargo de recepcionista. O salário era pouco, mas dava para Luísa começar a sentir o sabor da independência e a pagar suas contas.
Após a entrevista, ela foi almoçar com Renata.
— Fiquei tão feliz! A gerente de recursos humanos gostou de mim. Disse que sou simpática, comunicativa e que talvez o cargo seja meu. Ela tem mais duas moças para entrevistar, mas sinto que o cargo será meu.
— Eu também acredito nisso – ponderou Renata. – Você quer mudar crescer, está colocando muita força em seu caminho.
Isso faz com que tudo ao nosso redor comece a mudar. Para melhor, sempre.
— Genaro mal sabe disso.
— Mas vai saber. Ele vem para as festas de fim de ano?
— Não. Disse que tem compromissos inadiáveis.
— É verdade?
— Não. Papo furado. Sei que ele deve estar se divertindo com mulheres e desviando dinheiro publico a torto e a direito.
— Problema dele, Luísa. Um dia Genaro terá de arcar com as conseqüências de suas atitudes. Sejam elas boas ou não.
— Será?
— Mas é claro, minha amiga! E, se a justiça dos homens for cega e falha, ninguém escapará da justiça divina.
— Não sei, não. Isso me incomoda profundamente. Genaro aprontou muito quando era vereador em Bauru. Desviou dinheiro e veja: ele foi um dos deputados federais mais votados do país. Como pode?
— Todo político inescrupuloso um dia acaba metendo os pés pelas mãos. Genaro começou com pequenos golpes, pequenos desvios de dinheiro público. Ele vai querer mais e, uma hora, vai se dar mal.
— Duvido. Todo político é esperto.
— Também não vamos generalizar Luísa. Um político é um indivíduo ativo que atua em nome de um grupo social. Pode ser formalmente reconhecido como membro ativo de um governo ou uma pessoa que influencia a maneira como a sociedade é governada por meio de conhecimentos sobre poder político e dinâmica de grupo. Essa definição inclui pessoas que estão em cargos de decisão no governo, e pessoas que almejam esses cargos tanto por eleição, quanto por indicação, fraude eleitoral, hereditariedade etc. Apesar de a política ter historicamente sido considerada uma profissão honrada – existem políticos que efetivamente promovem o bem—estar de seu eleitorado ou de seu povo –, muitas pessoas, atualmente. Mesmo em países democráticos, tem uma opinião negativa a respeito dos políticos como classe.
Existem muitos Genaros por aí, inescrupulosos, cujas promessas não são verdadeiras. Também são, ocasionalmente, acusados de desvios de verba para o seu próprio interesse e não para o interesse do povo. De fato, casos de corrupção política não são raros.
— Conheço políticos que dariam seu sangue para que nosso país melhorasse em todos os aspectos.
— Sei disso, Luísa. No entanto, Genaro não é o tipo. Políticos como Genaro são poucos, mas causam grande estrago, seja pelo desvio de dinheiro, seja por arranhar a imagem da classe por expressiva parcela da população. E não devemos nos importar com eles. Neste mundo ou em outro, um dia eles terão de se acertar com o Universo.
— Pedi que Genaro viesse a São Paulo para conversarmos sobre a separação. Ele disse que isso é conversa fiada e que não vai me dar nada. Que estou delirando.
— Você não precisa ficar à mercê dele. Sabe disso.
— E se ele não der a separação? O que faço? Ficarei presa a ele pelo resto da vida?
— Claro que não, amiga. Ninguém fica preso a ninguém. O tempo da escravidão acabou há muito tempo.
— Sei, mas Genaro afirmou com todas as letras que não me dará a separação. Divórcio nem pensar.
— Então, contrate um advogado e entre com o pedido de separação litigiosa.
— Como assim?
— Existem dois tipos de separação judicial. A consensual, que é a mais comum e todos saem ganhando, porque é mais simples e rápida. Todavia, isso ocorre quando o marido e a mulher estão de pleno acordo quanto à separação. No seu caso, como Genaro não quer, em hipótese alguma, dar—lhe a separação, então, Luísa, não tem jeito. Você terá de requerer uma separação litigiosa. Isso quem vai tratar são os advogados de ambos. Eles vão lá brigar com o juiz.
— Eu não tenho dinheiro, Renata.
— Você pode exigir pensão.
— Não quero dinheiro de Genaro. Quero assinar os papéis, separar—me e viver minha vida.
— Se precisar de advogado, eu posso lhe arrumar um.
— Ai é que está. Eu estou completamente dura.
— Você pode requerer assistência judicial gratuita. Todavia, creio que o melhor a fazer é arrumar dinheiro para pagar o advogado. O que conheço é muito bom, cobra um valor justo e parcela.
— Eu tenho algumas jóias. Poderia vendê—las.
— Excelente idéia, Luísa.
— Jóias caras.
— Pegue as suas jóias, leve—as até um avaliador, faça cotação de preço e venda. Você já terá dinheiro para pagar seu advogado. E tem a casa de vocês. Pelo menos, meio a meio.
Luísa meneou a cabeça para os lados, de forma negativa.
— A casa é de Genaro. Ele a comprou antes do casamento. E nos casamos em regime de comunhão parcial de bens, ou seja, só temos de dividir algo caso Genaro tenha comprado após nosso casamento.
— Se você quiser, pode ir para casa e por lá ficar, quanto tempo necessitar.
— Agradeço, mas eu tenho Eunice. Não posso deixá—la. Ela sempre me ajudou, ela sempre foi uma mãe para mim.
— Eu posso dispensar a minha empregada e Eunice pode trabalhar para mim.
Luísa mordeu os lábios, aflita.
— Não sei ao certo. Não seria justo invadirmos sua privacidade. Você é solteira e.
— E nada – rebateu Renata. – Sou independente, solteira e não estou à procura de um amor. Não por enquanto. Estou mais focada em minha carreira, em fazer o meu pé—de—meia. Na hora certa vai aparecer um homem bom, de preferência bonito – ela riu –, que eu ame com todas as minhas forças. Saberei disso no dia em que eu pousar meus olhos nos dele.
— Como tem tanta certeza de que será assim?
— É a minha intuição trabalhando a meu favor. Você verá Luísa, logo vou encontrar o amor de minha vida. Eu mesma vou lhe dizer.
Luísa ergueu seu copo.
— Façamos um brinde ao amor!
— Ao amor – respondeu Renata.


*****

Caio estava sentado no banco do jardim da pensão quando Celinha veio correndo ao seu encontro.
— O que foi?
— Chegou carta para você! – exclamou ela, de maneira graciosa.
— Obrigado.
Caio apanhou o envelope pardo e, ao constatar que não havia remetente, sentiu um frio no estômago. Fazia tantos meses que não recebera carta, e por um fio de esperança acreditou que aquele trote de mau gosto havia parado lá trás. Ledo engano. Com as mãos trêmulas, ele abriu o envelope e lá estava escrito a mesma frase, cujas letras coladas na carta, eram recortadas de revistas e jornais.

" Você matou Loreta. Eu sei. Estou de olho em você."

Celinha notou que a cor do rosto dele mudou repentinamente e perguntou:
— Recebeu alguma noticia ruim?
— Na... Não – ele balbuciou. – É carta de um amigo. – Mentiu.
— Vou para a cozinha. Aceita um copo d'água com açúcar?
— Sim, Celinha. Aceito.
A menina correu até a cozinha e, em seguida, voltou ao pátio com o copo d'água com açúcar.
— Beba, vai lhe fazer bem.
Caio sorveu cada gole com vontade. Devagar, acalmou—se.
— Obrigado, Celinha.
José estava fazendo manutenção no telhado e desceu para o lanche da tarde. Notou o ar preocupado estampado na face do rapaz.
— O que foi?
— Nada, José.
— Tem certeza?
Caio não agüentava mais. Tinha de dividir com alguém essa brincadeira de mau gosto que estava lhe azucrinando a vida.
— Sente—se aqui, José.
O senhor obedeceu e, em poucas palavras, Caio lhe contou tudo. José já sabia de Loreta, mas não das circunstancias em que ela tinha morrido. Ele coçou o queixo, mordiscou os lábios.
— Deixe—me ver a carta.
Caio a retirou do bolso. José checou.
— Onde está o envelope?
— O envelope?
— Sim. Deixe—me vê—lo.
Caio meteu a mão no bolso e retirou o envelope pardo.
— De nada vai adiantar José. O envelope não tem remetente. Nunca saberei quem manda isso para mim.
— Alguém que o conhece bem e que está bem perto.
— Como pode afirmar isso?
— Eu adoro ler romances policiais, inclusive li muitos livros da Agatha Christie – José riu. – Quem está lhe mandando estas cartas nunca leu livro algum da maior escritora policial de todos os tempos. Está tudo muito fácil.
— Não estou seguindo—o. Explique—se melhor.
José ajeitou—se no banco.
— Meu filho, primeiro, você recebeu uma carta no apartamento de seu amigo, certo? Quem sabia que você estava lá?
Hum, bem, quando me mudei para lá as únicas pessoas que sabiam de meu endereço eram minha mãe e Sarita.
— Pois bem, esqueçamos de sua mãe. Rosalina não faria uma brincadeira dessas com você e – ele salientou – nem desconfia que você era metido com essa dona, certo?
— Sim.
— Vamos à segunda pessoa.
— Sarita. Ela foi um anjo bom que me ajudou. Ela não pode estar metida nisso.
— Por que não?
— Porque Sarita nem imagina que eu estou morando na pensão. Como a carta veio direto para este endereço?
— Puxa – José deu uma batida de leve no peito de Caio –, o garoto está ficando esperto. Portanto, descartamos sua mãe e Sarita. Quem mais conviveu com você aqui na cidade?
— O Guido. Mas ele é meu amigo. Quer dizer, foi meu amigo. Ajudou—me desde que cheguei. Ofereceu—me um teto para morar, foi muito gentil.
José o olhou desconfiado.
— Quando a ajuda é demais, o santo desconfia.
— E, de mais a mais – completou Caio –, Guido não é de Bauru, jamais saberia do meu envolvimento com Loreta.
José ficou pensativo por instantes. De repente veio um flash em sua mente. Ele pegou o envelope da mão de Caio e olhou no carimbo dos correios. Mostrou para Caio:
— Veja.
— O que?
— Veja o carimbo do correio.
— O que tem?
— Foi postado na região central da cidade.
— E daí?
— Daí que temos uma pista. Quem o está chantageando mora aqui na cidade. Quem mora no centro?
— Eh, bem – ele coçou a cabeça –, o Guido mudou—se para um hotel no centro da cidade e...
José o interrompeu.
— Você tem o outro envelope?
— Tenho. Está lá no quarto.
— Suba e pegue—o. Vamos ver onde foi postado.
Caio subiu rapidamente os lances de escada. Apanhou o envelope e o carimbo era claro: Jardins. Ele desceu as escadas e, esbaforido, entregou—o a José.
— Foi carimbado na agência dos Jardins.
— Quem mora nos Jardins?
— Eu morava nos Jardins... Com o Guido!
— Se eu fosse você, meu caro, iria atrás desse rapaz. Creio que ele tenha de lhe dar muitas explicações.
— Não sei onde ele mora. Nunca mais nos vimos. Já faz algum tempo.
— Vocês conhecem alguém em comum?
— Sim. O dono da Cia. De Perfumes.
José sentiu um aperto no peito, uma sensação muito desagradável.
— Não fale com esse homem. Algo me diz que você deve ficar quieto. Tente achar esse Guido. Ele poderá contar a verdade.
— Mas a cidade é grande. Mesmo sabendo que a carta foi postada no centro, sabe que a região é enorme, lotada de hotéis.
— Aguarde meu filho. Tudo acontece no tempo certo.


CAPÍTULO 16


Naquela noite, os trabalhos espirituais no Centro Espírita dirigido por Mafalda correram de maneira tranqüila, como de costume. Luísa além de participar do curso sobre mediunidade, ajudava na triagem das pessoas que eram atendidas. Renata e Maximiliano trabalhavam como atendentes e encaminhavam as pessoas para os devidos tratamentos, após pequena entrevista.
Mafalda havia proferido uma linda palestra sobre a força interior que há em cada um de nós. Ressaltou a disciplina necessária para que nossos pensamentos sempre estejam voltados para o bem, não importa a situação em que nos encontremos. O desânimo e a maledicência, como ela disse no final, são os grandes vilões que emperram a nossa escalada evolutiva no bem.
Em seguida, ela deu passagem para outro médium que, incorporado, falou sobre a evolução do Espiritismo no Brasil. Falou também sobre as religiões africanas trazidas ao Brasil pelos escravos. Um tabu entre as casas espíritas brasileiras. Todavia, como Mafalda era mulher sem preconceitos e à frente de seu tempo, deixava que seus médiuns incorporassem espíritos que geralmente não se manifestavam num Centro Espírita convencional.
O médium pigarreou e a modulação de sua voz alterou—se levemente.
— Gostaria de lhes falar hoje sobre a história do médium Zélio Fernandino de Moraes.
A platéia estava num silêncio só. O médium prosseguiu.
— Nos idos de 1908, acometido de doença misteriosa, o médium fora levado à Federação Espírita de Niterói e, durante os trabalhos da sessão espírita, incorporou espíritos que afirmavam ser de índio e escravo. O dirigente da mesa exigiu de todas as maneiras, que eles se retirassem, por acreditar que não passavam de espíritos atrasados ou até mesmo mistificadores.
Mais tarde, naquela mesma noite, um dos espíritos se nomeou como Caboclo das 7 Encruzilhadas. Devido à hostilidade e à forma como essas entidades de luz foram tratadas, porquanto imaginem o preconceito ao negro ou então a um espírito que afirmava ter sido negro, quando encarnado, no início deste século, elas resolveram iniciar uma nova forma de culto, onde qualquer espírito pudesse trabalhar.
No dia seguinte, os espíritos começaram a atender na residência de Zélio a todos os que necessitavam de ajuda, e, posteriormente, fundaram a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade. Essa nova forma de religião, inicialmente chamada de Alabanda, acabou recebendo o nome de Umbanda, religião sem preconceitos, que acolheria a todos que a procurassem: encarnados e desencarnados, em todas as bandas, quer dizer, em todos os lugares.
O espírito terminou sua explanação e agradeceu emocionado. Em seguida, o médium voltou a si, pigarreou e sentou—se. Mafalda tomou a palavra:
— Nosso Centro foi fundado sob os preceitos de Allan Kardec. Seguimos os ensinamentos contidos em seus livros. Entretanto, por que o Brasil sempre foi tido como pátria do Espiritismo?
A platéia meneou a cabeça para os lados.
— Porque neste solo sagrado, existe uma infinidade de espíritos amigos que vêm prestar ajuda e auxílio, não importando se é em um Centro Espírita convencional ou Centro de Umbanda. Aqui em meu centro, recebemos a assistência de falanges de espíritos ligados a várias religiões. Ora, se recebemos ajuda de espíritos que fazem parte da falange de Maria, que são da corrente de Clara e Francisco, ligados ao catolicismo, por que devemos recusar a ajuda de espíritos que se apresentam como preto—velhos, caboclos, ou índios? Por que iremos ser preconceituosos a ponto de impedir que essas entidades evoluídas – ela frisou – e cheias de luz e conhecimento sejam tratadas diferentemente de um espírito que vivera encarnado como padre ou freira? Por quê?
Mafalda suspirou e esboçou leve sorriso.
— Quando você tem dor de dente, vai ao dentista. Quando tem dor de barriga, vai a outro especialista. Quando tem dor de cabeça, vai a outro. Cada médico é especialista numa determinada parte do corpo, num determinado órgão. E, da mesma maneira que funciona a medicina, funcionam as coisas no astral. Se você precisa de um passe restaurador, a fim de manter seu equilíbrio, receberá fluidos da corrente de espíritos ligados a Maria, mãe de Jesus. Se você necessita de, além do passe, um banho de ervas, a fim de higienizar sua aura e arrancar os miasmas negativos que circundam seu corpo energético, precisará que um espírito ligado à mata ou à manipulação de ervas lhe dê a receita certa. Por essa razão, nosso Centro é diferente. Não tocamos atabaques porque não nos familiarizamos somente com os espíritos ligados à Umbanda. Entretanto, nossa casa é espírita, sim, trabalha com equipes de espíritos de luz, não importando a que bando pertença. Desde que trabalhem para o bem da humanidade, todos serão bem—vindos nesta casa.
Mafalda recebeu uma salva de palmas dos presentes.
Ela teve bastante fibra e coragem para admitir que sua casa era aberta para todo e qualquer tipo de espírito de luz, desde que trabalhasse ou mesmo orientasse as pessoas para o bem, para o seu melhor, para evoluir, sempre.
Quando todos se retiraram do Centro, Max, Luísa e Renata foram ter com ela.
— Fiquei impressionado com o discurso, Mafalda. Impressionado. Parabéns.
— Obrigada. Mas eu precisava falar isso para as pessoas. Não podemos criar preconceito dentro do Espiritismo. Isso não se faz. Se Allan Kardec não citou essa gama de espíritos formidáveis em seus livros, é porque não teve tempo para estudá—los e conhecê—los. O Espiritismo, assim como o mundo espiritual, está em crescimento e renovação constantes. Devemos sempre estudar os livros básicos da doutrina espírita. Lá encontraremos sempre material que vai nos ajudar a compreender o mundo espiritual e, acima de tudo, o nosso mundo. Mas cabe a nós percebermos que o mundo espiritual é muito maior, cheio de equipes ligadas às mais variadas correntes. Como acontece na Terra. Procuramos manter a paz e harmonia entre brancos, negros, orientais, árabes, muçulmanos, palestinos, judeus, católicos e evangélicos. O nosso país sempre teve a característica de acolher todo e qualquer imigrante. As religiões aqui se respeitam. Não seria diferente com os espíritos.
— Concordo com você, Mafalda – tornou Renata. – Se orássemos e pedíssemos aos espíritos do bem que limpassem a casa de Max, isso seria impossível.
Mafalda sorriu.
— Isso mesmo! A casa de Max estava tão impregnada de energias astrais de baixa vibração, que orações não seriam suficientes para dissipá—las do ambiente. Necessitávamos também de defumação, porquanto o poder higienizador das ervas, extraído da queima delas, é que pôde, efetivamente, limpar o ambiente daquelas energias nocivas.
— Isso prova que devemos ter a mente aberta e o coração também. Creio que não podemos, em hipótese alguma, tratar nossos amigos espirituais de acordo com a hierarquia da Terra – ponderou Maximiliano.
— Você está certo, Max – concordou Mafalda. – Eu passei por uma situação muito parecida a do médium Zélio, fundador da Umbanda, anos atrás.
— É mesmo? – perguntou Luísa, interessada. – E o que aconteceu?
— Eu fazia parte de um grupo de doutrinação num Centro Espírita kardecista, há muitos anos. Num determinado momento da sessão, por meio da vidência, vi o espírito de um preto—velho aproximar—se, com sua candura, e pedir para que ajudássemos outro espírito que ele havia resgatado no Umbral, depois de um longo período de negociações com entidades que o mantinham preso. O dirigente de nosso trabalho, não só insultou o espírito amigo, como pediu que ele se retirasse da casa. Mentalmente, conversei com o preto—velho e prestei o auxílio necessário ao outro, que precisava ser doutrinado e encaminhado, posteriormente, a um Posto de Socorro no astral. Depois deste incidente, passei a estudar com profundidade as obras de Kardec e algumas publicações de religiões africanas. Atualmente, procuro, aqui em meu Centro, dar passagem a todo e qualquer espírito, desde que seja para fazer o bem.
— Não teme ser julgada por espíritas ou mesmo umbandistas ortodoxos?
— Não, Renata. Eu tenho a minha consciência tranqüila e sei que estou amparada por espíritos de luz. Afinal, fazemos parte do mesmo Universo, somos governados por um mesmo Deus. Isso é o que importa.
Continuaram a conversa. Na saída, Max foi buscar o carro e elas aguardaram no portão. Mafalda foi cumprimentada por uma senhora que ficara encantada com a casa espírita.
Devo dizer que adorei o lugar e gostaria muito de freqüentá—lo, amiúde.
— Seja bem vinda.
Ela estendeu a mão.
— Prazer, meu nome é Rosalina.
— Prazer, chamo—me Mafalda.
— Eu sei. Foi uma amiga que me indicou o seu Centro. Vim para tomar um passe e confesso que me senti muito bem.
— Que bom. Venha quantas vezes quiser. Aliás, você não veio aqui por acaso.
— Não?
— Não. Você foi enviada aqui pela sua filha Norma.
Rosalina levou a mão à boca, estupefata.
— Minha... Minha filha?
— Sim. Ela esteve presente na sessão de hoje. É espírito lúcido e zela muito por você e seu filho. Eu sabia que iria encontrá—la em breve, porquanto Norma me pediu que eu intercedesse e pedisse a você que trouxesse seu filho para cá. Ele necessita fazer um tratamento espiritual e aprender a lidar com sua sensibilidade.
Rosalina não tinha palavras. Estava profundamente emocionada. Renata e Luísa também se emocionaram e cumprimentaram—na. Iriam entabular conversação, mas Maximiliano apareceu com o carro próximo à calçada, buzinando.
— Vamos meninas, senão hoje não voltaremos para casa. Muita mulher junto dá muita conversa.
Todos riram. Mafalda despediu—se deles. Rosalina fez o mesmo, mas como a sessão acabara tarde, Maximiliano lhe ofereceu carona.
— Eu moro não muito longe daqui. Vou pegar o ônibus e.
Max não a deixou terminar de falar.
— Não senhora. Suba no carro, é uma ordem.
Rosalina aceitou de bom grado. Fazia pouco que chegara a São Paulo e ainda se perdia com os ônibus. Embora soubesse o ponto e o ônibus que deveria tomar para regressar à pensão, preferiu ir ao carro com eles. Simpatizou com os três.
Max parou no meio—fio. Rosalina saltou do carro e despediu—se. Luísa saltou também para passar para o banco da frente.
Nesse momento, Caio apareceu na porta da pensão. Os olhos dos dois se encontraram. E, efetivamente, ambos sentiram um friozinho na barriga.
— Você aqui? – perguntou ele, de maneira surpresa.
— Vim dar carona a esta senhora.
— Minha mãe, por sinal.
Luísa sorriu surpresa.
— Rosalina é sua mãe?
Rosalina respondeu:
— Pelo menos é o que consta na certidão de nascimento.
Os três riram. Maximiliano e Renata cumprimentaram o jovem de dentro do carro. Caio abaixou e acenou.
— Queria encontrá—la, mas fiquei com receio.
— Eu passei por tanta coisa. Depois eu lhe conto.
— Podemos nos ver?
— Sim. Você mora aqui?
— Moro.
— Amanhã eu dou uma passadinha aqui. Pode ser na hora do almoço?
— Pode sim.
Despediram—se. Rosalina e Caio entraram na pensão e Luísa sentou—se no banco da frente do carro. Max deu partida e, logo adiante, assim que o carro dobrou a esquina, Renata deu uma cutucada na amiga.
— Conhece esse bonitão de onde?
— Conheci há algum tempo, na porta do banco.
— Sei...
Luísa virou o corpo para trás.
— É verdade. Conhecemo—nos de maneira engraçada até. Demos um esbarrão um no outro e fui ao chão. Ele foi educado, fomos a uma lanchonete, tomamos um refresco e depois...
— Depois? – perguntou Max, interessado.
— Depois nada, oras. Dei meu telefone a ele.
— Ele ligou? – indagou Renata.
— Não. Creio que ficou triste ao saber que eu era casada.
— Esse rapaz é correto e bom, além de possuir rara beleza. Faz o quê? – inquiriu Max.
— Ele me disse que é modelo.
— Pelo menos tem rosto para isso. É muito bonito.
— Também achei – ajuntou Renata. – Será que Luísa vai desencalhar?
— O que é isso? Eu mal me separei do Genaro.
— Questão de tempo, somente. Logo você será livre e poderá amar de novo.
— Não sei se quero isso para minha vida.
— O quê? Vai me dizer que não quer mais saber de um amor na sua vida? Você só tem vinte e quatro anos de idade! – exclamou Renata.
— Entretanto, tenho outros planos. Quero arrumar emprego, separar—me. Depois pensarei nisso.
— Acho que vai ter de pensar nisso antes do tempo – revidou Max.
— Eu também acho. Você não virá aqui amanhã?
— Sim, mas...
— Nada de, mas. Seus olhos a incriminam. Você está gostando desse moço.
— Não dá para negar – disse Max.
— Será? – Luísa voltou o rosto para frente do carro. Ela havia achado Caio um tipo bem interessante. Talvez tivessem a mesma idade ou até fosse mais novo que ela. Bom, isso não importava. Mas ele não ligara também.
— Vou admitir que ele mexe com qualquer mulher – disse ela entre risos.
— Você virá conversar com ele amanhã? – inquiriu Max.
— Sim. Espero.
— Acho que desse mato vai sair coelho.
— Por que me diz isso?
— Intuição, minha amiga. Intuição.


CAPÍTULO 17


No dia seguinte, Luísa acordou bem—disposta. Tomou uma chuveirada, escolheu um vestido de alças azul—claro – o calor estava insuportável –, maquiou—se levemente, passou batom e aspergiu delicioso perfume sobre o corpo. Estava encantadora.
Apanhou sua bolsa e desceu as escadas sorridente e feliz. Chegou até a cozinha e sentiu o cheiro gostoso do café.
— Hum! Fez café para mim?
— Fiz – respondeu Eunice. – Do jeito que você gosta.
Luísa estalou nela um beijo na bochecha.
— Você é tudo para mim, Eunice.
— E você é meu tesouro, minha linda. Por favor, sente—se. Vou servir o café.
— Está tarde. Eu tenho um almoço e...
— Um cafezinho com leite e uma torrada. Só isso. Você está muito magra.
— Estou com o corpo ótimo.
— Precisa ficar mais forte.
— Preocupação boba, a sua.
— A Neuza ligou hoje cedo.
— O que minha mãe queria?
— Estava fula da vida. Disse que não quer mais ver você na frente, nem pintada de ouro.
— Minha mãe disse isso?
— Disse sim.
— Bom, depois de nosso último encontro, tive certeza de que nunca mais iríamos nos falar.
— Entendo.
— Ela me bateu em defesa de meus irmãos. Não gosta de mim.
— Mas você deve esquecer. Perdoar e esquecer. Não carregue mágoas em seu coraçãozinho. Isso não faz bem para sua alma.
— Você tem razão. Quando vou ao Centro, sempre coloco o nome dela e de meus irmãos na caixinha de orações.
— Continue assim. Não se ligue à sua mãe ou aos seus irmãos pelos laços da discórdia.
— Assim pretendo. Em todo o caso – Luísa mordeu uma torrada com manteiga e, em seguida, sorveu um pouco de café com leite – o que minha mãe queria tão cedo? E tão nervosa?
Ela disse que você arruinou a vida dela.
— Por que motivo?
— O Genaro cortou—lhes a mesada. Ela disse que o Paulo está trabalhando numa fazenda lá perto e que vai ter de parar de estudar. E que Otávio está deprimido. Que tudo é culpa sua.
— A culpa que minha mãe tenta jogar em mim não cola mais. Meus irmãos são adultos, saudáveis, inteligentes. Podem arrumar emprego e dar outro rumo às suas vidas. E mamãe também é jovem. Mal completou quarenta e três anos. Eu não estou à cata de um? Ela que também vá à procura de trabalho.
— Concordo com você, mas Neuza estava muito brava.
Luísa riu.
— Isso quer dizer que Genaro está me pressionando.
Imagine quando eu contratar um advogado e lhe pedir a separação? Que Deus me dê forças.
Foi só falar no nome do capeta, ele apareceu. Genaro abriu a porta de casa de maneira escancarada e bruta, como de costume. Luísa levou a mão ao peito. Seu coração disparou.
— É ele Eunice. Ele voltou.
— Calma, minha filha. Muita calma. Vamos orar.
— Não dá tempo...
Luísa estava muito nervosa. Mal conseguia concatenar os pensamentos. Genaro entrou na cozinha e a encarou com desdém.
— Olá. Vim dar uma passadinha para saber como andam as coisas.
— Olá – disse Luísa, de forma lacônica. – O que veio fazer aqui?
— Nada especial. Tinha uns contratos para assinar, uns amigos da Câmara dos Vereadores para conversar. Volto logo mais a Brasília.
— Como anda a vida por lá?
— Muito boa!
— Tenho visto seu nome nos jornais.
— Estou fazendo amigos e conquistando a simpatia do povo. Você sabe o quanto sou carismático.
Luísa segurou o riso.
— O que foi? Não acha que sou carismático?
— Você tem poder persuasivo, Genaro. Mas de que adianta enganar as pessoas?
— Porque elas merecem ser enganadas. Só isso. Eu sou esperto. Estou acima do bem e do mal.
— Está se sentindo muito dono de si.
— Eu não me sinto, eu sou dono de mim – ele corrigiu.
— Estou atrasada. Volto mais tarde. Ah – ela aproximou—se do ouvido de Genaro –, espere—me para conversarmos.
— O que é que temos para conversar? Não pode ser agora?
Luísa consultou o relógio. Ainda tinha tempo de sobra.
Sentiu—se temerosa, mas tinha de enfrentar o marido. Talvez, depois da conversa, ele a mandaria sair de casa. Renata já sabia desta possibilidade e avisara Malaquias, o porteiro, de que Luísa e Eunice poderiam aparecer a qualquer momento. Ela estava pronta para tudo.
— Está bem. Vamos ao escritório.
— Não. Prefiro conversar lá em cima.
— Lá em cima?
— Sim.
Luísa olhou de esguelha para Eunice. Ela assentiu com a cabeça. Luísa saiu da cozinha e subiu para o quarto. Genaro foi logo atrás. Ele fechou a porta, sentou—se na beirada da cama. Ela sentou—se na banqueta da penteadeira.
— Pois bem – disse ele –, o que quer conversar?
— Precisamos falar de nosso futuro.
— Nosso futuro?
— É Genaro. Você mal pára em casa e.
— Você não quis ir comigo para Brasília. Aliás, temos de resolver essa situação. As pessoas me cobram a presença de minha esposa. Você vai ter de começar a freqüentar algumas festas comigo.
— Não tenciono ir a Brasília.
— Mulher de político tem de ir a Brasília. Ninguém mandou casar—se comigo.
— Pois é sobre isso que quero conversar.
— O que é?
— Bom, Genaro, acho que nosso casamento chegou ao fim.
— Você acha?
Luísa estranhou a maneira como ele falava. A voz estava pastosa, os olhos esbugalhados. Genaro parecia estar drogado. Só podia ser isso. Ele jamais se comportaria de maneira tão tranqüila.
— Vou procurar um advogado. Chegamos ao fim do ano e quero começar o próximo dentro de nova perspectiva de vida.
Genaro balançou a cabeça para cima e para baixo.
Você faça o que achar melhor.
— Só isso? – ela espantou—se.
— Só.
Genaro falou, levantou—se e foi para a porta. Passou a chave pelo trinco, tirou—a e meteu no bolso. Voltou—se para Luísa.
— Agora vamos conversar no meu tom.
— Como assim? – ela assustou—se de verdade. O rosto de Genaro parecia estar transfigurado. O sorriso cínico no canto dos lábios denotava que ele iria aprontar alguma. – O que vai fazer?
Ele não respondeu. Tirou o cinto da calça e o levantou. Virou a parte da fivela em direção a Luísa. Ela mal teve tempo de se defender. Os golpes foram em todo o corpo. A fúria de Genaro era demoníaca. Dessa vez ele foi longe demais.
— Cadela! – vociferava ele. – Pensa que pode comigo? Pensa que pode se separar de mim? Nunca. Ouviu? Nunca!
Luísa mal podê gritar. A dor era tanta que ela tentou, em vez de gritar, correr para a porta. Estava trancada. Ela fechou os olhos e pensou no Centro Espírita. Mais nada.
Genaro bateu e bateu. Depois, quando ela estava desacordada, ele baixou suas calças, arrancou—lhe o vestido e ainda a possuiu. Luísa não sentiu nada. Ajudada pelos espíritos, ela desmaiou e seu perispírito fora afastado do corpo físico.
Quando Genaro terminou o ato, ouviu o barulho de sirene lá embaixo. Chegou perto da janela e avistou uma viatura e alguns policiais que saltaram do veículo e entraram correndo em sua casa.
— Meu Deus! – exclamou ele. – Estou perdido.


****

Caio também acordara bem—disposto naquele dia. Dormira e sonhara com Luísa. Pareciam discutir. No sonho, ambos usavam roupas antigas – ele recordava vagamente deste detalhe – e ele pedia seu perdão. Ela chorava e lhe dizia não.
Ele despertou ainda com as imagens nítidas na mente.
— Que estranho! – disse para si mesmo, ao levantar—se da cama.
Lembrou—se de que logo mais ela viria ao seu encontro. Iria lhe falar do sonho estranho. Caio tomou um banho demorado e, em seguida, vestiu—se com apuro. Colocou uma camisa pólo, uma calça jeans e mocassim. Perfumou—se. Desceu para o desjejum. Entrou na cozinha e cumprimentou sua mãe.
— Bom dia, mãe.
— Bom dia, filho. Hoje é o dia que vai devolver o dinheiro?
— Vou ligar para o Gregório. Preciso saber se ele pode me atender hoje.
— É bom resolver logo essa pendência.
— Vou resolver, mãe. Depois vou atrás de uma agência de modelos. Quem sabe eu arrumo alguma coisa?
— Faça isso – ponderou Rosalina. – No entanto, o mais importante é livrar—se desse homem. Ele não é bom.
Caio sentou—se na mesa e serviu—se de café e leite. Pegou um pedaço de pão e, enquanto passava manteiga, tornou:
— Luísa vem para cá logo mais.
Rosalina abriu largo sorriso.
— É uma moça encantadora. Conheci—a ontem, no Centro Espírita. Gostei dela.
— Eu também.
— Você a conhece de onde?
— Encontramo—nos por acaso. Faz uns meses. Mas o corre—corre do dia—a—dia não permitiu que nos encontrássemos novamente.
— Vocês formam um lindo par.
Caio rebateu.
— Ora, mãe, Luísa é casada. Por mais que eu tenha sentido uma forte atração, não posso me declarar.
Rosalina fechou o cenho.
— Ela é casada?
— Sim.
— Que pena. Assim que os vi, senti que nasceram um para o outro.
Caio riu.
— Não delire, mãe.
— Mas é verdade. Eu senti isso. Aprendi a dar muito valor à minha intuição e ela me diz que há uma boa chance de vocês se entenderem.
— E de que adiantaria isso? Não tenho estudo nem profissão definida. O que poderia oferecer a ela? Nada.
— Pois trate de arrumar algo para oferecer a ela. Vá atrás de uma agência de modelos ou de empregos. Não importa. Depois, como não precisamos pagar aluguel, economizamos e você volta a estudar. Tudo tem jeito na vida, meu filho.
— Sei disso. Vou pensar no caso. Entretanto, deixe—me primeiro conversar com Luísa. Como ela é casada, creio que seremos bons amigos, a principio.
Rosalina nada disse. Voltou aos seus afazeres. Caio terminou seu café, estalou um beijo na face da mãe e foi para o jardim. Faltava pouco para o horário combinado.
O tempo passou. Minutos, mais minutos, até completar uma hora. Depois outra e depois mais outra hora. Passava das três quando Caio desistiu de esperar. Sentiu—se verdadeiramente desapontado. Estava com vontade de conversar com Luísa, falar de seus planos, de sua vida, contar inclusive sobre o sonho que tivera na noite anterior. Pelo jeito – pensou ele – Luísa havia pensado bem e, por ser casada, preferiu não ir ao seu encontro. Uma pena. Ele sentiu uma dor no peito sem igual.
Triste por não revê—la, o coração apertado e a mente confusa, Caio foi tratar de resolver suas pendências com Gregório. Ligou para a Cia. De Perfumes e foi informado de que Gregório estava viajando e voltaria somente após os festejos de Ano—Novo.
— O que fazer? – perguntou para si mesmo. – Melhor esperar. Deixarei o dinheiro aplicado no banco e, assim que Gregório voltar de viagem, devolverei tudo.



CAPÍTULO 18


O barulho ensurdecedor da sirene causou pânico em Genaro. Ele mal teve tempo de concatenar suas idéias. Antes que pudesse destrancar a porta do quarto, um grupo de policiais armados invadiu o cômodo. Genaro acuou—se num canto.
Max foi um dos primeiros que entrou e viu o corpo de Luísa desfalecido no chão, ao pé da cama.
— Chamem uma ambulância. Temos uma mulher gravemente ferida – falou a um dos policiais.
Renata entrou logo atrás. Ao ver o corpo da amiga caído e ferido, correu ao seu encontro.
— Minha amiga, por favor, não desista! Estamos aqui. As pessoas que a amam estão aqui. Vai ficar tudo bem.
Luísa não emitia um som, um movimento. Estava desacordada. A surra de Genaro foi de uma violência inenarrável. Um quadro triste de se ver.
Em seguida, a ambulância chegou e Luísa foi socorrida. Eunice e Renata acompanharam a amiga na ambulância. Maximiliano e um policial tentavam fazer com que Genaro saísse daquele estado catatônico.
— Você está bem? – perguntou o policial.
Nenhuma resposta. Os olhos de Genaro permaneciam fixos no chão.
Ele estava de cócoras e parecia estar alheio a tudo e a todos ao seu redor. Max tentou trazê—lo de volta à realidade. Deu um tapinha em seu ombro.
— Genaro, você pode nos escutar?
Nada. Nenhum movimento. O policial declarou:
— Precisamos levá—lo à delegacia. Teremos de tomar o depoimento dele, da empregada, que nos ligou e, assim que possível, colher o depoimento de Luísa.
— Esse caso vai cair como uma bomba na carreira política de Genaro – sentenciou Max.
— Não creio – ajuntou o policial. – Ele é político bem relacionado e tem muito carisma junto ao seu eleitorado.
— Mas o que ele fez foi um ato insano, desprezível. A violência contra a mulher precisa ser levada ao conhecimento de toda a sociedade. Não podemos mais permitir atos de agressão desse porte.
— Todavia – afirmou o policial –, infelizmente ainda não temos mecanismos legais que possam dar proteção às mulheres que sofrem agressões de seus companheiros. Espero que logo possamos ter leis mais justas e mais duras contra esse tipo de ato.
— As mulheres ficarão contra Genaro.
— Não creio – rebateu o policial. – Depende da maneira como o caso vai parar nos jornais. Haverá a versão de Luísa, mas Genaro poderá criar a sua.
— Isso é desumano!
— Mas o que fazer? Eu adoraria colocar esse cidadão atrás das grades. Todavia, ele é político, deputado conceituado. Não é fácil meter uma figura pública dessas no xadrez. Um político tem imunidade, tem proteção. Tenho certeza de que, assim que Genaro sair desse estado de choque, vai usar de todo seu poder e influência para sair desse escândalo de cabeça erguida e, acredite aplaudido pelo seu eleitorado.
Não deu outra. Na tardinha do mesmo dia, Genaro assinou o seu depoimento e voltou a Brasília. Nem passou pela cadeia.
Prestou seu depoimento, contou o caso a sua maneira – afirmando que Luísa o tirara do sério –, contratou um dos melhores advogados de família do país e, por meio da amizade com jornalistas e outras pessoas influentes da mídia, o caso da agressão a sua mulher não teve repercussão. Quase ninguém ficou sabendo do que ocorrera com Luísa.
Genaro saiu da cadeia e foi direto para sua casa. Fez as malas e, instruído por seu advogado, deixou a casa em direção ao aeroporto. Mudou—se para Brasília. Não tinha mais jeito. Ele deveria dar a separação e, ainda por cima, de maneira consensual.
Antes de deixar a casa, ele explodiu com o advogado.
— Vou ter de dar a casa para Luísa? Nunca!
O advogado procurou ser cordial.
— Genaro, veja só: você agrediu sua esposa e, mesmo que o escândalo não tenha vazado na imprensa, a policia está de olho em você.
— E daí?
— Caso queira uma separação litigiosa, talvez a separação de vocês vá aos jornais e todo mundo vai querer esmiuçar sua vida, vão saber das surras que você dava em Luísa.
— Mas a casa já era minha quando nos casamos. Ela não tem direito.
— Não é questão de direito, mas de perspicácia. Sabe que o povo adora um escândalo, uma fofoca forte. Você quer arranhar sua imagem de uma vez?
— Não quero, de maneira alguma.
— Pois bem – tornou o advogado –, você é benquisto, bem relacionado. Está construindo um bom patrimônio e está nervoso porque vai deixar a casa para Luísa? Pelo que sei, ela mal sabe de suas contas no exterior.
— Ela nem desconfia.
— Então, dê a casa a ela. Vai ganhar a simpatia do eleitorado. E uma pensão.
— Pensão?
— Sim.
— Terei de dar pensão a essa mulher? Já não chega a família de chupins que sustentei até pouco tempo? Isso é loucura! Não vou lhe dar nada.
— Você vai ter de dar. É a lei.
— Luísa não vai se sair bem dessa. Prometo que não vai.
— Genaro, calma. Não queira estragar sua vida por conta disso. Não almeja a Presidência da República?
— É tudo o que quero.
— Instale—se de vez em Brasília. Saia do apartamento largue as festas de arromba, compre uma bela casa no Lago Sul. Comece a se preparar para sua candidatura ao Senado. Deixe o casamento e Luísa para trás.
— Um político separado não é bem—visto pelo eleitorado.
— Então, arrume outra esposa. Case—se de novo tão logo saia o divórcio. Você não é homem feio. Tem fama e poder. Que mulher não gostaria de estar casada com você?
Genaro deu um risinho.
— Pode ser. Vamos embora que estou enjoado desta casa, de Luísa, da cara de piedade da Eunice. Vou deixar essa história para trás.
O advogado assentiu com a cabeça e, ajudando Genaro com as malas, ambos desceram as escadas e pararam diante da porta. Genaro foi até o escritório, abriu o cofre e pegou uma pasta cheia de documentos e um maço de dólares. Colocou tudo numa valise saiu para o jardim. O táxi o esperava. Meteu as malas no porta—malas e, olhando para a casa com ar de repulsa, pensou:
"Você não perde por esperar, Luísa. Ainda vou me vingar de você".
Genaro entrou no carro por uma porta e o advogado por outra. O motorista deu partida. Logo o veículo dobrou uma esquina e sumiu.
A caminho do aeroporto, enquanto eles conversavam seu advogado mal podia imaginar que, sobre a cabeça do político,
Uma grossa e espessa nuvem enegrecida pairava sobre sua cabeça, em virtude dos pensamentos maledicentes que permeavam sua mente.


*****

Rosalina chegou do Centro Espírita e foi ter com o filho. Ele estava conversando com José, quando ela o interpelou:
— Caio, precisamos conversar.
— O que foi, mãe?
— Temos de conversar – ela olhou para José e concluiu –, a sós.
José levantou—se, sorriu para ela e foi para a cozinha.
— O que foi?
Ela devolveu o sorriso a José. Caio percebeu e também riu, mas preferiu dissimular.
— Percebo que vocês se dão muito bem. Você gosta dele, né filho?
— José é o pai que nunca tive mãe. Eu não conheci meu pai.
— Como não? Você tinha dois anos quando ele morreu.
— Eu era muito pequeno, mal me lembro de seu rosto.
— Infelizmente, não tenho uma foto sequer para fazê—lo se lembrar de seu pai.
— Não tem problema. O José está fazendo muito bem esse papel.
— Fico feliz que esteja dando ouvidos aos mais velhos. Como tivemos mais experiências que vocês, às vezes, uma palavrinha pode livrá—los de uma grande encrenca.
— Tem razão. Mas o que queria falar comigo?
— Estou muito triste, meu filho. Fiquei sabendo no Centro Espírita sobre a menina bonita.
— Que menina bonita?
— Luisa.
Caio assustou—se.
— Aconteceu alguma coisa com ela?
— Parece que teve uma briga com o marido e foi internada.
— Internada!?
— Sim, meu filho. Faz alguns dias. Hoje participei de um grupo de médiuns que faz tratamento à distância. Vibramos bastante por ela. Mafalda disse que ela vai se recuperar e que logo vai iniciar nova etapa em sua vida.
Caio não sabia o que dizer. Agora tudo fazia sentido. Luísa ficara de ir ao seu encontro e desaparecera. Fazia quase uma semana. Ele acreditava que Luísa houvera se entendido com o marido, que estava vivendo feliz. E, embora estivesse triste com essa resolução, começara a acreditar, mesmo a contragosto, que nunca mais iriam se ver.
Um brilho de emoção perpassou pelos olhos do rapaz. Ele sorriu para si e perguntou à mãe:
— Onde ela está? Preciso vê—la.
Rosalina deu o endereço do hospital ao filho. Caio subiu, foi ao seu quarto, arrumou—se e saiu feito um foguete.
Celinha o viu sair daquela maneira e comentou com Rosalina:
— O que deu em seu filho?
Rosalina riu.
— Amor, Celinha. Caio corre atrás do amor.
Celinha não entendeu. Foi para o tanque terminar de lavar algumas peças de roupas dos hóspedes.
— Uai! Essa pensão está cheia de doidos, isso sim.

***

Luísa deu entrada no pronto—socorro do hospital, foi medicada e sedada. Ela teve um corte profundo no canto dos lábios e fraturou uma costela. No resto, estava bem. Quer dizer, perto da surra que Genaro lhe deu, até que Luísa se safara dessa. Pelo estado em que chegou ao hospital, parecia que ela não sobreviveria.
Mas Luísa sobreviveu. Fosse pelo carinho extremado de Renata, fosse pela dedicação de Eunice, fosse pela sua própria força interior. Luísa aprendera de forma rude e agressiva que o preço da dependência pode nos custar à própria vida.
Fazia alguns dias que estava internada. Mais um dia e receberia alta. Renata entrou no quarto carregando lindo sorriso no semblante.
— Bom dia, amiga. Como vai?
— Bem.
— Está com a cara bem melhor.
— Tenho melhorado bastante e confesso estar pronta para mudar completamente minha vida.
— Pois vai mudar mesmo. Seu marido mudou—se em definitivo para Brasília.
— Genaro partiu?
— Sim.
— Assim, sem mais nem menos?
— E o que você queria que ele fizesse? Depois do ocorrido, após ter abafado o caso na imprensa, ele teve medo e o advogado dele quer conversar com você.
— O que será?
— Genaro vai lhe dar a separação. Sem litígio.
— Você está brincando!
— Não estou não, minha amiga. Depois da covardia com a qual ele lhe atacou, não tem escapatória. Ele preza muito sua imagem de bom político e convenceu—se de que o casamento de vocês foi por água abaixo.
— Fico tão feliz! – exultou Luísa. – É a primeira noticia boa que recebo em muito tempo.
— E tem mais.
— Mais?
— Ele vai lhe deixar a casa. E vai ter de lhe dar uma pensão. Luísa revirou—se e ajeitou o corpo na cama, com delicadeza. Seu corpo doía bastante quando se mexia.
— Não quero pensão do Genaro. Na verdade, não quero nada.
— Deixe de ser orgulhosa. Você precisa se reerguer refazer sua vida. Ficou anos ao lado de Genaro como esposa dedicada e fiel. Agora chegou o momento de ser restituída.
— Mas não gostaria de manter vínculo algum com ele.
— Faça mudanças. A principio, fique na casa.
— Aquela casa me traz lembranças muito tristes.
— Venda—a. Compre outra, em outro bairro.
— Pode ser...
Renata teve um flash.
— Por que não compra um apartamento lá no meu prédio? Poderemos nos tornar vizinhas, ficar próximas e fazer companhia uma a outra.
— Não deixa de ser má idéia.
— Com o dinheiro da pensão, você vai providenciando uma poupança.
— E poderei ajudar minha mãe.
— Claro! E não se esqueça de retomar os estudos, procurar um emprego. Quando estiver bem e sentindo—se auto—suficiente, corte a pensão. Mas use a cabeça, Luísa.
— Não sei ao certo.
— De nada adianta ser orgulhosa. Você não tem condições para isso.
— Assim você me ofende.
— De modo algum. Sou sua amiga. Só falo a verdade. Você sempre se sentiu muito insegura. Desde os tempos de colégio era assim, lembra—se? Nas gincanas, ficava indecisa em qual time participar. Quer que eu repita a indecisão em comprar os doces no recreio?
Luísa riu.
— Não precisa. Você gosta de me provocar com essas histórias.
Renata sorriu.
— A indecisão faz parte de sua natureza, mas creio que é chegado o momento de rever essa sua postura de insegurança.
Está na hora de abrir os olhos e ter a coragem de olhar para dentro de si mesmo, promover mudanças, rever conceitos.
— É fácil falar. Sofri muito nesta vida. Fui criada como uma princesa e, de repente, papai perdeu tudo. Em seguida, conheci Genaro e minha família me empurrou para o casamento. Nunca tive amor, carinho, atenção. Ele sempre foi bruto comigo, sempre foi egoísta e me tratava como um pano de chão.
— É o que você é.
— Desculpe—me – disse Luísa, aturdida. – Não entendi o que disse.
— Eu falei com todas as letras, que você é um paninho de chão. A gente usa, pisa em cima e joga fora.
— Nunca pensei ser ofendida dessa forma. E ainda se diz minha amiga?
Renata ficou séria. Aproximou—se da cama e sentou—se próxima a Luísa.
— Você nunca se deu valor. Sempre se achou menos, sempre acreditou ser impotente, uma coitadinha largada no mundo. Atraiu um marido como Genaro para reconhecer que tem força. Luísa – ela acariciou os cabelos da amiga, que teimavam em lhe cobrir um dos olhos –, você é tão bonita, tão inteligente. Como pôde ser submissa por tantos anos? Por que aturou Genaro até chegar a essa situação? Se estivesse do seu próprio lado, se desse o devido valor... No primeiro tapa que levou, teria saído de casa e sua vida poderia ter sido outra.
— Mas...
— Nem mais, nem meio mas. Você agüentou o primeiro tapa. Depois veio o primeiro soco. Logo em seguida o início das surras, cada vez piores cada vez mais agressivas. Por quê? Ora, porque a vida iria lhe proteger se você nunca se deu um pingo de consideração?
As lágrimas escorriam sem cessar sobre a face de Luísa.
— Sempre tive medo de ser independente. Nunca acreditei em meu potencial.
— Talvez isso a acompanhe já há algumas vidas. Quem sabe não chegou o momento de um basta, de se livrar dessa postura que só lhe traz dor e sofrimento? O que custa tentar dar um passo à frente, mudar e crescer? Às vezes, estamos a um passo da felicidade e mal notamos.
— Como faço para mudar, Renata? Ajude—me, por favor.
Elas abraçaram—se de maneira comovente. Renata acariciava os cabelos da amiga e passava delicadamente as mãos pelas costas de Luísa.
Henry deixou que uma lágrima escapasse pelo canto de seu olho. O espírito estava deveras emocionado. Carlota tocou em seu braço, chamando—o à realidade.
— Luísa está pronta para mudar e crescer.
— Eu sinto tanto por ela! Se eu estivesse encarnado, poderia ajudá—la.
— Tenha calma, Henry. Você foi um bom filho no passado e será agora no futuro. Eu confio em você e acredito que vai fazer Luísa muito feliz. Você tem aprendido muito aqui no astral sobre o valor da família. Aproxima—se o momento de Luísa recebê—lo como filho. Creio que agora terão uma relação permeada pelo carinho, respeito e unidos, sim, pelos verdadeiros laços do amor.
— Eu tenho certeza de que farei Luísa e Caio muito felizes. Formaremos uma linda família.
— Tudo tem seu tempo. Entretanto, ainda teremos de esperar pelo desenrolar dos acontecimentos. Sabemos que Luísa e Caio mudaram bastante o jeito de ser. Seus espíritos desejam imensamente mudar para melhor. Todavia, Guido, Genaro e Gregório ainda se sentem traídos, estão presos às reminiscências do passado. Talvez não seja dessa vez que vão se libertar das mágoas.
— Quer dizer que Luísa e Caio não vão se libertar do ódio deles? Terão de estar eternamente presos a esses espíritos?
— De forma alguma – ponderou Carlota. – Luísa e Caio estão caminhando para mudanças positivas.
Querem se libertar dos erros do passado e estão reformulando suas atitudes. Ponto positivo para seus espíritos. Saiba que, ao passo que vão se libertando das amarras do passado e caminhando em direção à evolução, ambos vão deixando para trás quem não se sintonizar na mesma faixa vibratória deles.
— Como assim?
— Luísa e Caio anseiam por uma vida melhor. Querem melhorar. Genaro e Gregório, por exemplo, não querem saber de crescer, porquanto estão presos ainda ao passado. Se eles não mudarem, não haverá mais como mantê—los ligados a Luísa e Caio. Estarão, digamos assim, vibrando numa outra sintonia.
— Quer dizer que, ao mudarem as atitudes, Caio e Luísa estarão mudando seu padrão energético?
— Sim, Henry. E as nossas ligações na Terra se dão por atração energética. Quanto mais Caio e Luísa promoverem as mudanças necessárias em suas crenças e atitudes, enxergando o mundo de maneira mais lúcida, libertando—se das ilusões, mais vão se afastando da companhia de Genaro e Gregório. Ou mesmo da influência negativa de Guido.
— Interessante. Bom, creio que estou muito feliz em poder encontrar Luísa nesse estado de mudança positiva.
— E agora, o que vai fazer?
— Fiquei de visitar Loreta. Ela vai receber alta da estação de tratamento e vai para a mesma cidade espiritual que resido.
— Loreta tem progredido bastante. Vai já ao seu encontro?
— Sim.
Henry assentiu com a cabeça e aproximou—se do leito de Luísa. Estalou delicado beijo em sua fronte.
— Cuide—se mãezinha. Você precisa ficar boa para me receber como filho.
Os dois espíritos alçaram vôo, enquanto Renata e Luísa permaneceram abraçadas, em silêncio, dando—se forças para que a vida as ajudasse a continuarem firmes no propósito do crescimento de seus espíritos.




CAPÍTULO 19


Meia hora depois, Caio saltou do ônibus e, ao descer uma quadra, alcançou o hospital. Deu o nome de Luísa na recepção.
— Quarto 602. Favor preencher essa ficha de visita.
O rapaz preencheu a ficha, pegou o crachá. Ao lado da recepção ele avistou uma pequena banca de flores. Comprou um vasinho de violetas.
Tomou o elevador e, ao chegar ao andar indicado, foi caminhando pelo corredor e procurando pelo número 602. Bateu levemente na porta entreaberta. Uma voz ordenou:
— Entre.
Caio empurrou a porta e entrou. Quando seus olhos e os de Luísa se encontraram, ambos sentiram um choquinho, uma espécie de brando calor que lhes invadiu o peito.
— Fiquei sabendo a pouco do ocorrido. Teria vindo antes, se soubesse.
Luísa abriu largo sorriso.
— Seja bem—vindo.
Ele aproximou—se de sua cama e cumprimentou Renata.
— Olá.
Ela devolveu com o mesmo cumprimento e tornou, de maneira engraçada:
— Creio que estou sobrando aqui no quarto. Vou embora. O horário de meu almoço está chegando ao fim e necessito voltar ao trabalho.
Ela beijou Luísa no rosto.
— Ligue—me se precisar. Amanhã virei buscá—la, após a alta.
— Não será necessário.
— Como não?
— Eu tomo um táxi e, ademais, não quero que falte ao trabalho por minha causa.
— De maneira alguma. Eu conversei com meu chefe e está tudo acertado. Uma das enfermeiras me informou que logo cedo o médico lhe dará alta. Estarei aqui para levá—la. Será um grande prazer.
— Obrigada, minha amiga.
— Hoje à tarde irei ao distrito policial. O delegado vai tomar meu depoimento. Precisamos terminar logo com essa burocracia toda.
Renata despediu—se de Caio com um aceno. Ao sair do quarto, encostou a porta.
— O que aconteceu? – perguntou o rapaz, aturdido. – Você está bastante machucada.
— Tive uma briga feia com meu marido.
— Briga feia? Parece—me que ele bateu muito em você.
— Bateu para valer!
— Que covardia! Se eu o visse na minha frente, juro que lhe daria uma boa surra.
— Não será necessário. Não quero mais confusão. Renata indicou—me um advogado conhecido, muito bom, e não falarei mais com meu marido, quer dizer, ex—marido. Entrei com os papeis para a separação.
Caio sentiu o coração tremer. A boca ficou sem saliva e ele pigarreou, tentando disfarçar a emoção que o dominava.
— Vai mesmo se separar?
— Sim. Não posso mais viver um casamento que há muito está acabado. Faltava somente formalizar a separação.
— E o que vai fazer de sua vida?
— Recomeçar. Vou vender a casa, talvez comprar um apartamento no mesmo prédio da Renata. Pretendo voltar a estudar e me graduar. Quero ser independente, trabalhar, ganhar meu próprio sustento. Não quero mais depender de ninguém. Olhe só para mim. Este é o resultado de tanta submissão e dependência.
— Você é uma mulher forte.
— Vou estudar Direito. Pretendo prestar assistência às mulheres que sofrem violência doméstica. Assim como eu.
— Eu a admiro muito.
Ela sorriu. Caio queria lhe falar tanta coisa, mas vendo—a tão machucada, preferiu esperar por outra oportunidade. Pelo menos ela estava desimpedida. Isso já o alegrava bastante.
Luísa o arrancou de seus pensamentos.
— Como anda sua carreira de modelo?
Caio fechou o cenho.
— Não tem mais carreira.
— Por quê?
— Porque não sinto confiança no homem que quer me contratar. Conversei com minha mãe a respeito e chegamos à conclusão de que não vale a pena. Vou devolver o dinheiro do adiantamento e procurar uma agência de modelos.
— Bom para você. Mas vai viver de quê até que alguma agência se interesse por esse rosto tão bonito?
Caio enrubesceu. Abaixou a cabeça, envergonhado.
— Pretendo arrumar trabalho. Vou a uma agência de empregos procurar alguma coisa.
— Não pensa em estudar?
— Sim, mas não agora. Eu sonhei tanto com a carreira de modelo, Luísa! Preciso apostar todas as minhas fichas. Se amanhã eu perceber que esse não é o meu negócio, paciência, eu vou procurar estudar algo que me interesse que me dê futuro. Cansei de dar murro em ponta de faca. Quero ser feliz.
— Eu também. A felicidade é uma conquista interior. Estou revendo conceitos e posturas que me impedem de ser feliz. Creio que esteja a um passo da felicidade.
— Pois muito me agrada vê—la assim, cheia de ânimo e disposição, depois de tudo o que lhe aconteceu.
— Renata e eu conversávamos sobre minha vida até há pouco. Ela fez com que eu enxergasse que meu marido, perdão, ex—marido, não é o culpado de eu estar aqui nesse estado. Eu contribuí para estar aqui, de certa forma.
— O que diz é insano.
— Não é não.
— Como ele não tem culpa? E o mal que lhe fez?
— Ele não me causou mais mal do que eu estava causando a mim mesma. Caio – a voz de Luísa estava embargada –, eu permiti que as coisas chegassem a esse ponto por responsabilidade minha. Como Renata bem disse se no primeiro tapa eu tivesse revidado ou mesmo sido mais firme e enérgica, talvez o rumo dos acontecimentos fosse alterado.
— Fala de maneira como se não fosse vítima daquele infeliz. Você foi uma, oras!
— Não. Não fui. Não existem vítimas no mundo, Caio. Eu já havia aprendido sobre esse assunto numa palestra lá no Centro Espírita.
— Mamãe já me falou algo a respeito. Contudo, eu tenho um pé atrás em relação a essa crença no mundo invisível.
— Por quê?
— Ora, porque eu não vejo nada, não consigo acreditar em algo que eu não vejo.
— E quanto a sentir?
— Sentir?
—É. Nunca sentiu um arrepio, sem mais nem menos? Nunca se percebeu sendo vigiado, como se alguém estivesse ao seu lado, quando na verdade você estava sozinho?
— Isso já me aconteceu, sim. Mas não tem nada a ver com Espiritismo.
— Claro que tem. Como pode acreditar que vivemos sozinhos? Estamos rodeados de amigos espirituais, sejam eles bons ou não. É como o mundo em que vivemos. Existem pessoas boas e más. E nós nos juntamos a elas por sintonia, por vibração. O mesmo se dá com os espíritos.
— Será? Você parece ser tão inteligente.
— Obrigada.
— Mas freqüenta um Centro Espírita.
— Está sendo preconceituoso.
— Não é isso – tornou Caio, sem jeito.
— E sua mãe?
— O que tem ela?
— Crê que seja ignorante?
— De forma alguma! Eu fico confuso. Outro dia ela me trouxe uma carta psicografada pela minha irmã.
— E?
— Fiquei em dúvida.
— Havia algo na carta que despertou sua atenção?
— Sim. Falava de meu pai e de minha avó. Até o nome deles estava escrito lá. Eles morreram há muitos anos...
— Aí está uma prova incontestável.
Caio coçou a cabeça.
— Tenho medo, talvez. É difícil acreditar nisso. A ciência diz que os espíritos não existem e os intelectuais, em geral, tripudiam sobre o assunto.
— Trata—se do mecanismo de defesa dessas pessoas que não querem enxergar as verdades da vida. A reencarnação já foi comprovada. Existem livros sérios acerca do assunto, inclusive de cientistas de renome.
— É mesmo?
— Sim. Façamos o seguinte, um dia você me acompanha no Centro Espírita. Depois de assistir a uma palestra, e tomar um passe, você me diz o que achou de tudo. Assim terá como argumentar.
— Eu topo.
— Tão logo eu me recupere iremos juntos ao Centro. Para você ter uma idéia – ela se ajeitou na cama –, um amigo meu, Maximiliano, regressou de Londres cheio de histórias fascinantes sobre a existência da reencarnação. Lá na Europa o tema é estudado com afinco por muitos profissionais.
Caio não podia acreditar no nome que ouviu. Luísa conhecia Max? O famoso Max, amigo de Guido e que ele nunca conhecera? Será que era a mesma pessoa?
— Esse homem mora na Alameda Casa Branca?
— Ele mesmo. Foi ele quem deu carona à sua mãe, do Centro Espírita à pensão naquela noite, recorda—se?
— Vagamente. Ouvi falar dele, até achei que ele não fosse de verdade.
— Por quê?
— Um conhecido meu vivia dizendo que o Max iria voltar de Londres. Mas ele nunca voltava. Ia ficando. Um dia chegou, mas não tive a chance de conhecê—lo.
— Já sabe de quem se trata – tornou Luísa. – Max é um homem fascinante, um amigo fora do comum. Ele e Renata, hoje, são meus melhores amigos.
— Gostaria de fazer parte desse grupo.
— Será um prazer.
Caio queria lhe falar mais. Queria dizer a Luísa que ela era linda, mesmo machucada. Que seu sorriso era encantador e que, nos últimos dias, chegara inclusive a sonhar com ela. Entretanto, não sentiu coragem para falar tudo aquilo. Luísa estava em estado de repouso. Quando ela voltasse para casa, se a amizade continuasse ele talvez tivesse coragem para abrir o coração. E, de mais a mais, de que adiantaria lhe abrir o coração? O que ele tinha a lhe oferecer? Nada. Caio estava sem trabalho, sem estudo, sem dinheiro. Precisaria fazer alguma coisa. Urgente.
Bem que José lhe disse que quem ama cresce. Será que ele estava amando? Será que esse calor no peito, essa vontade de ficar ao lado de Luísa para sempre, esse troço que subia em sua barriga toda vez que sentia seu hálito perfumado era amor?
Caio nunca tivera sentimento parecido. Amava sua mãe, mas de outra forma. Não sentia choquinhos quando se aproximava de Rosalina. Com Loreta e Sarita sentira prazer, mas nada de o coração bater descompassado.
A conversa fluiu agradável e alguns minutos depois, quando a enfermeira chegou para lhe aplicar uma injeção, ele resolveu partir. Despediu—se e, quando ela lhe depositou um beijo na face, Caio pensou que iria ao chão, sentindo as pernas trêmulas. Ele se despediu e saiu o mais rápido possível, para que Luísa não percebesse sua emoção.
Pelo menos ele tinha a certeza de que queria e deveria mudar. Iria naquela tarde mesmo a uma agência de empregos. Iria arrumar algum tipo de serviço, mesmo que a remuneração fosse baixa. Precisava mostrar à sua mãe, à Luísa e, acima de tudo, a si mesmo, que tinha valor e podia crescer.
Foi assim que ele tomou o metrô com destino à Praça da Sé. Lá havia uma concentração grande de agências de emprego. Caio tinha certeza de que iria arrumar um.



CAPÍTULO 20


Loreta despertou cedo naquela manhã. Sabia que seria sua despedida naquela estação de tratamento. Iria morar numa colônia espiritual não muito longe da crosta terrestre. Estava feliz.
Uma enfermeira entrou no quarto e a cumprimentou.
— Como vai, Loreta?
— Vou bem. Acordei tão feliz!
— Há muito tempo que eu não a via tão bem. Você ficou meses em sonoterapia e depois custou um pouco para se livrar da depressão pós—morte.
— Já tinha ouvido falar em depressão pós—parto, mas pós—morte? Nunca.
As duas riram. A enfermeira considerou.
— Esse tipo de desânimo atinge a maioria dos desencarnados. Tão logo o espírito se vê livre do corpo físico e retorna ao mundo espiritual, começa o período, para os de mente lúcida, de avaliação da última vida terrena. Por conta de preconceito, medo, insegurança e tantos outros sentimentos negativos, esses espíritos percebem que não cumpriram com o que haviam traçado antes do reencarne.
— Foi como eu me senti. Não consegui cumprir com os objetivos previamente traçados.
Senti—me uma inútil e precisei de muita terapia para entender todo esse processo e aceitar que tudo está certo no mundo.
— Correto, Loreta. Está tudo certo, não há nada errado. Você se propôs a levar sua vida encarnada de um jeito e acabou vivendo de outro. Entretanto, o seu espírito amadureceu, de uma forma ou de outra. Mesmo não tendo conseguido seus intentos, seu espírito lucrou bastante com essa experiência na Terra. Afinal, uma vida nunca é desperdiçada, por pior que ela nos pareça.
— Sei e aprendi a aceitar essa realidade. Sinto—me mais forte para recomeçar e ajudar àqueles que amo.
— Vai se dedicar a ajudar seus filhos no orbe?
— Sim. Genaro e Gregório estão em franco desequilíbrio. Eu não os condeno, não os julgo por suas atitudes, visto que a consciência de ambos será juiz suficientemente duro a condená—los, mais adiante. Eu prefiro ficar na vibração, torcer para que eles aprendam com seus erros. Afinal, não posso mudá—los.
Carlota entrou no quarto. Sorriu para ambas.
— Bom dia.
A enfermeira a cumprimentou. Depois, despediu—se de Loreta e saiu. A sós com Carlota, Loreta declarou:
— Quero melhorar e crescer.
— Está a caminho.
— Fui fraca e deixei—me levar pelo prazer. Perdi—me no emaranhado de sensações que o prazer nos arremessa.
— O prazer faz parte da grandeza do espírito. Tudo o que fazemos de bom para nós e para os outros, enche o espírito de prazer. Mas – Carlota salientou – não confunda prazer com libertinagem, pois aí reside o desrespeito a si próprio e às pessoas ao nosso redor.
— Aprendi minha lição, de maneira árdua, mas aprendi. É por esse motivo que estou determinada a passar um bom tempo aqui no astral. Quero acompanhar a vida de meus filhos, inspirarem—lhes bons pensamentos dentro do possível.
— Ambos precisarão de muita vibração positiva.
— Vou dar o melhor de mim, Carlota.
— Seu ônibus parte em meia hora.
— Ônibus?
Carlota riu.
— Sim. Ônibus. Aqui no astral utilizamos um veículo parecido com um ônibus, que serve para transportar os espíritos para as várias colônias espirituais. Na verdade, o meio de transporte aqui se chama aeróbus.
— Se podemos voltar, por que precisamos de transporte?
— Você não consegue volitar, consegue?
— Tentei, mas ainda tenho muita dificuldade. Quando encarnada, eu tinha pavor de altura.
— Se tinha pavor de altura, como pode querer se transportar entre as dimensões, entre os vários mundos que percorremos? Consegue se imaginar sobrevoando a Terra?
— Acho lindo, mas só de pensar me dá um frio na barriga!
— É por essa e outras razões que temos meios de transporte. Espíritos recém—desencarnados, ainda sem consciência de seu real estado, são transportados nesses veículos. Espíritos doentes também. E, quando temos de atravessar determinadas faixas densas do Umbral, usamos esse meio de transporte.
— Tenho tanto a aprender, Carlota. Assim talvez eu me distancie dos prazeres sexuais. Terei mais tempo para refletir e repensar o uso do sexo.
— Faz bem. A lucidez é nossa grande amiga – ela pousou sua mão na de Loreta. – Use a seu favor, para o seu crescimento.
— É o que farei.
Carlota consultou o relógio.
— Estamos na hora. Vamos.
Loreta pendeu a cabeça para cima e para baixo, concordando. Pegou alguns pertences e saíram. Loreta despediu—se dos enfermeiros e caminhou mais uma vez pelo belo e perfumado jardim que circundava o edifício.
Em seguida, pegou na mão de Carlota e deixou—se conduzir até o ponto em que o aeróbus iria pegá—las.


****

Mais um ano se iniciou...
Luísa separou—se oficialmente de Genaro e, em seguida, vendeu a casa. Comprou um apartamento no mesmo edifício que Renata. No andar imediatamente abaixo da amiga. Eunice foi junto.
Em seguida, retomou os estudos. Ingressou na faculdade de Direito, como almejara. Luísa estava firme no propósito de se graduar e advogar para mulheres vítimas de violência doméstica e sexual.
Ela admirava o trabalho e a competência de Renata. Sua amiga tornara—se executiva bem—sucedida e aquele projeto que vislumbrara para a próxima estação foi escolhido pela direção da empresa, e, com isso, Renata foi promovida à diretora de vendas. Além, é claro, de ganhar excelente remuneração por esse feito.
Maximiliano acompanhou duas exposições de artistas de renome e estava decidido a retornar o mais rápido possível para Londres. Havia recebido uma carta do Dr. Bryan Scott, solicitando que ele voltasse para continuarem seus estudos acerca da reencarnação.
Genaro arrumara nova companheira. Marisa era bem diferente de Luísa. Mulher determinada, forte, falante e ardilosa como Genaro. Colocava—o em seu devido lugar. Por incrível que pareça, Genaro a adorava.
Gregório voltou de viagem, depois de alguns meses fora do país. Com a campanha do perfume Nero pronta, estava à procura de Caio. Fazia dois dias que havia ligado para a pensão e deixado recado.
Caio arrumou emprego naquela mesma semana que fora a uma das agências de emprego da Praça da Sé.
Conseguiu a vaga de vendedor numa butique, num shopping center em região nobre da cidade.
O rosto bonito, sorriso cativante e olhar sedutor abriram as portas para Caio. Logo, ele começou a ter um séqüito de clientes que iam à butique somente para vê—lo. A gerente da loja, aproveitando o potencial de seu mais novo empregado, deu a Caio uma promoção, para que ele pudesse trabalhar em tempo integral e, por conseguinte, aumentar o ganho, pois vivia de comissões. Quer dizer, quanto mais tempo na loja, mais ele faturava. Todos saíam ganhando e, agora, neste ano, ele pretendia retomar os estudos.
Ele e Luísa viam—se de vez em quando. Cada encontro era verdadeiro tormento para Caio. O rapaz não sabia como articular as palavras perdia—se na conversa, tamanha emoção que sentia ao aproximar—se de Luísa. Ela estava mais bonita, mais segura de si. Caio percebera que estava completamente apaixonado, mas não podia declarar—se. Ainda não.
Ele recusou os convites para ir ao Centro Espírita. Mafalda alertara Luísa para não forçar o rapaz. Dizia—lhe de que nada como um dia após o outro. Em breve, ele iria ser chamado a ter contato com o mundo espiritual. Era uma questão de tempo. Não adiantava querer arrastá—lo para o Centro. Ele deveria ir por si próprio, sem ser obrigado a nada.
Caio saiu da loja feliz naquela noite. Havia ultrapassado todas as expectativas de meta estipuladas pela sua gerente. Sua beleza fez com que a loja fechasse o mês com mais vendas do que as costumeiras. Por conta disso, o rapaz recebera grata gratificação.
Ele não cabia em si, tamanha felicidade. Chegou a casa, queria falar com José, mas já era tarde e ele havia se deitado. Rosalina também tinha ido dormir. Ele deu de ombros e foi para a cozinha. Estava com fome e Rosalina sempre deixava um prato feito para ele dentro do forno.
Caio entrou na cozinha, acendeu a luz e foi direto ao forno.
— Te peguei!
Ele deu um pulo e o coração foi quase à boca.
— Que é isso, Celinha? Não gosto quando você me assusta assim.
— Brincadeirinha.
— De mau gosto. E se eu sofresse do coração?
Ela fez uma careta.
— E se desmaiasse? Como é que ficaria?
— Eu faria respiração boca a boca. Com o maior prazer.
— Menina – censurou Caio –, anda impossível, ultimamente. O que foi que te deu?
— Hormônios à flor da pele. Pôxa – tornou ela, fazendo beicinho –, estou com dezoito anos e... Nada.
— Nada o quê, Celinha?
— Nada. Nada de beijo, nada de nada. Sem namorado, sem contato, entende?
Caio riu.
— Entendi. Você está matando cachorro a grito, é isso?
— Estou tão nervosa que estou sem grito para matar um cachorro que seja.
Caio pegou seu prato de comida.
— Quer que eu esquente? – perguntou Celinha, solícita.
— Não. Gosto de comida fria. Sente—se aí comigo – ele disse, apontando para uma cadeira ao seu lado.
— Obrigada.
— Você precisa arrumar um namorado.
— Não, Caio, preciso de outra coisa. Ainda sou virgem. Minhas amigas fazem chacota, como se eu fosse um ser do outro mundo.
— Continue assim, não dê trela para suas amigas.
— Elas não estão certas? Todas já foram para a cama com algum rapaz. Menos eu.
— Não tenho como julgar o próximo, Celinha. Fiz tanta burrada nesta vida que não tenho como atirar uma pedra que seja em alguém.
Mas creio que você deva se manter pura sim, até encontrar um homem que efetivamente desperte em você o mais nobre dos sentimentos. O sexo entre duas pessoas que se amam é a coisa mais linda do mundo.
— Como você sabe? Pelo que sei, nunca amou ninguém.
Caio enrubesceu. Essa menina era danada.
— Nunca amei – ele riu –, mas tenho experiência. Sei que o sexo sem amor é sem graça, e pode, inclusive, deixar marcas doloridas e profundas dentro de nós. Sabe Celinha – ele cortou um pedaço de bife e levou à boca –, eu fui um pervertido, fiz sexo de maneira inconseqüente, com qualquer mulher que aparecesse na minha frente. Achava também que eram os tais hormônios.
— E não eram?
— Pura balela. Eu estava sendo fraco, entregando—me a um tipo de vício. Porque sexo sem amor não passa de vício, como fumar ou beber. Note a diferença.
— Nunca pensei em nada disso. Meus pais têm idade e nunca conversaram comigo sobre sexo. Eu vim para cá há três anos e raramente escrevo ou recebo uma carta deles.
— Se você quiser, podemos conversar a respeito.
— Mas você é homem.
— E daí, qual o preconceito? Faça de conta que eu sou seu irmão mais velho. Você me pergunta e eu tento esclarecer. Se eu não souber a resposta, vou atrás.
— Obrigada, Caio. Sabia que poderia contar com você.
— Pode contar, de verdade.
— Você é um anjo bom na minha vida.
Celinha falou e ele imediatamente lembrou—se de Sarita. Como ela estaria? Onde será que morava? Soube que Eny fechara o bordel e cada uma das meninas seguiu seu rumo. Onde andaria sua amiga, seu anjo bom, que tanto o ajudara no passado? Caio fitou o nada por algum tempo, até que sentiu Celinha cutucar—lhe o braço.
— Onde estava? Na lua?
Ele voltou a si.
— Desculpe—me, mas me lembrei de uma amiga, um anjo bom que tive também.
— Cadê ela?
— Não sei Celinha. Acho que pelo mundo. Sarita é mulher de extrema sensibilidade, deve estar vivendo bem. Um dia a gente vai se encontrar, tenho certeza disso.
Enquanto Caio se refestelava com o arroz, feijão e bife com batatas fritas que sua mãe deixara no forno, Celinha ia enchendo—o de perguntas sobre sexo, desde as mais toscas e banais, básicas, até as mais cabeludas.
Caio enrubescia.
— Sobre isso eu não falo, Celinha. Você está colocando a carroça na frente dos bois. Vamos com calma.
— Desculpe—me, mas tem tanta coisa que eu quero e preciso aprender!
— Você vai experimentar tudo isso. Mas precisa aprender como eu e muita gente, a frear seus impulsos sexuais. Não dê ouvidos às suas amigas. Não fique grudada na televisão ou acredite em tudo o que lê. Você precisa aprender a domar seus sentimentos. Tem de ser dona de si mesma, e para tal, precisa ser dona do que sente. E não o contrário.
— Prometo que vou pensar sobre isso.
Ela deu um beijo na testa de Caio. Ele sorriu.
— Obrigado, irmãzinha.
Celinha se levantou. Antes de sair da cozinha, voltou o rosto para trás.
— Tem três recados de um tal de Gregório para você. Disse que deve ligar a qualquer horário. Insistente esse homem...
Ela falou e saiu. Caio sentiu o sangue gelar. Fazia meses que queria ter um encontro com Gregório. Faltava pouco para completar o que lhe devia. Dentro de mais um mês, com os juros do dinheiro aplicado e as vendas crescendo na loja, poderia, enfim, pagar o valor total daquele adiantamento. Estaria livre de Gregório. Para sempre.
Caio terminou sua refeição. Tomou um copo de refrigerante. Após, mordiscou os lábios.
— Ligou ou não ligo? – perguntou para si mesmo. – Talvez seja melhor ligar. Preciso acabar logo com essa situação.
Decidido, Caio foi até a recepção, discou o número no aparelho. Uma voz melosa atendeu ao telefone. Era Gregório.
— Olá, criança.
— Como vai? – perguntou Caio, sem jeito.
— Estou ótimo. Nada como sair desse país horroroso e ter contato com a verdadeira civilização. Detesto este mundo de tupiniquins.
— Por que fica aqui? Você é tão rico!
— Rico, mas não sou burro – disse Gregório, numa gargalhada afetada. – Em qual país do mundo eu posso sonegar os impostos, fazer caixa dois e não ser preso? Daqui não saio. De jeito algum.
— Se pensa assim...
Caio não sabia como começar. O que diria a Gregório? Que não queria mais participar de campanha publicitária nenhuma? Assim, de maneira seca? Ou era melhor conversarem cara a cara? O que fazer? Caio estava sem ação. Gregório prosseguiu:
— Seu contrato está pronto. Precisa vir buscá—lo, além de assiná—lo, claro. — Amanhã passo em seu escritório.
— Não. Precisa ser hoje. Aqui em casa.
— Hoje? É muito tarde. Passa das onze da noite.
— Precisa ser hoje. Demorei muito com o contrato. Viajei, esbaldei—me e esqueci—me da empresa e da campanha. Agora estou de volta e quero tudo para ontem.
— Eu passo aí amanhã cedinho. O que acha?
— Não.
— Pode ser às sete da manhã, se você quiser.
A fala de Gregório estava visivelmente nervosa.
— Criança, eu disse hoje, entendeu? Hoje – ele gritou.
Caio teve de afastar o fone do ouvido, tamanho o grito estridente.
— Como faço? Onde mora?
— Anote aí – Gregório deu o endereço. – Pegue um táxi. Se não tiver dinheiro, eu pago.
— Pode deixar, eu tenho como pagar.
— Espero você. Em meia hora, no máximo.
— Está certo. Meia hora.
Caio pousou o fone no gancho. Sua fronte suava. Ele não queria mais falar com Gregório, talvez nem mesmo vê—lo. Sentia por ele um asco, uma repulsa que não sabia de onde vinha.
Mas o que fazer? Precisava devolver o dinheiro que o mantinha preso a ele. Era chegado o momento de colocar as cartas sobre a mesa. Iria sair daquela casa sem contrato, sem campanha, sem nada.
Caio nem trocou de roupa. Pegou o dinheiro que julgava ser necessário para a corrida de táxi, o dinheiro que daria a Gregório e o resto guardou numa cômoda ao lado de sua cama. Fez o mínimo de barulho possível para não acordar sua mãe.
O rapaz saiu da pensão e pegou um táxi na esquina da Rua Brigadeiro Luis Antônio. Deu o endereço ao motorista.
— Acha que demora muito?
— Não há trânsito nesta hora. Chegaremos ao bairro do Morumbi em menos de vinte minutos.
Caio fez sinal afirmativo com a cabeça. Recostou a cabeça no banco e, enquanto o motorista percorria o trajeto, ele ia contemplando as ruas, as casas, os prédios. E o pensamento ia longe, muito longe.




CAPÍTULO 21


Renata saiu do trabalho e foi direto ao Centro Espírita. Freqüentava o local com assiduidade, todas as semanas e, além de fazer curso de médiuns, oferecido gratuitamente pela casa, estava ajudando no atendimento da recepção.
Munida de beleza, simpatia e, acima de tudo, carisma, arrancava sempre um sorriso, fosse de quem fosse, mesmo que a pessoa estivesse passando por sérios problemas.
Uma senhora, elegantemente vestida, aproximou—se da recepção e a cumprimentou.
— Boa noite.
— Boa noite. Em que posso ajudá—la?
— Estou com um sério problema de saúde. Fui a vários especialistas e mandaram—me para cá. Esta é a minha última esperança.
— A senhora já havia ido a um Centro Espírita?
— Nunca. Sempre fiz vista grossa em relação ao mundo espiritual. Não acreditei que isso fosse verdade, no entanto... – ela abaixou a cabeça envergonhada.
— No entanto? – Renata a encorajou.
— Eu perdi meu marido há três anos. Oduvaldo foi meu grande amor. Companheiro mesmo.
Vivemos uma linda história, construímos um lar, tivemos dois filhos lindos, hoje formados e com bons empregos. Um casou—se recentemente. O outro resolveu morar sozinho. Diz que sua profissão pode me colocar em risco e prefere ter sua privacidade. É muito independente. Eu fiquei sozinha, mas vivo muito bem. Sinto muita falta de meu marido, e.
A senhora pigarreou e continuou:
— Há três meses surgiu um nódulo no meu seio e eu preocupei—me. Fui ao médico e fiz exames. Enquanto isso passei a sonhar todas as semanas com Oduvaldo. Ele aparece bem—disposto, com lindo sorriso nos lábios e me afirma que eu não tenho nada. Que eu deveria sim, procurar uma casa espírita para aprender sobre o mundo espiritual. Afirma que eu posso me curar se quiser.
— Faz sentido. Você deve ter se encontrado com seu marido fora do corpo físico. É isso.
— Então não delirei?
— Não.
— Sabe – a senhora baixou o tom de voz –, eu tenho um filho que afirma ouvir os espíritos.
— Seu filho é médium?
— É alguma doença?
Renata riu.
— Não, minha senhora. Não é doença. Trata—se de uma sensibilidade que todos nós temos de perceber o mundo invisível. Alguns sentem isso de maneira débil, outros, com a sensibilidade aguçada, conseguem manter conversação com os espíritos.
— Hum – a senhora mordiscou o lábio. – Entendo. Mas o meu sonho foi tão real, tão vivo. Despertei, todas às vezes, sentindo inclusive o cheiro da colônia que Oduvaldo usava.
— Você esteve com ele, sem sombra de dúvidas.
— Eu gostaria muito de fazer um tratamento espiritual que me ajudasse a me livrar desse nódulo. Creio que ele – apontou para o seio – apareceu para que eu desse uma parada, criasse coragem para confrontar meus medos e começasse a mudar meu jeito de ser.
— Como assim?
— Desde que fiquei viúva, sonhei em fazer algumas coisas. Pensei em voltar a estudar, a freqüentar o clube da família, mas me julguei velha para recomeçar.
— Idade não é motivo para nos manter no ostracismo.
— Foi o que percebi. Eu não quero ficar parada e não vou mais usar minha idade como fator para me manter em casa, sem fazer nada e ainda pior, pensando besteira.
— Você está corretíssima. Vou encaminhá—la para atendimento e você explica melhor sua história.
— Obrigada.
Renata deu—lhe um papel. Nele estava impresso um número.
— Preste atenção neste numero. Assim que ele for pronunciado, dirija—se à mesa correspondente, está bem?
— Muito obrigada. Você é muito simpática.
— Obrigada. Meu nome é Renata. Qualquer dúvida é só me procurar.
— Obrigada, Renata. Meu nome é Zulmira. Foi um prazer conhecê—la.
Zulmira entrou no corredor e Renata ficou observando—a até ela desaparecer numa curva. Engraçado. Ela tinha a sensação de que conhecia Zulmira de algum lugar. Seu rosto era—lhe bastante familiar e ela sentiu por aquela senhora uma simpatia, um carinho sem igual.
Sorriu para si e voltou aos seus afazeres. Depois apareceu um senhor, carrancudo, ar desconfiado.
— Quanto tenho de pagar para ser atendido?
— Aqui não se paga nada. O atendimento é gratuito. Caso contrário não seria um Centro Espírita.
— Como não pago nada?
— Nada, senhor.
— Passo por consulta, por tratamento, posso freqüentar cursos, tudo isso sem pagar?
— Isso mesmo.
Ele encarou Renata de maneira desconfiada.
— Nem um tostão?
— Nem um tostão – ela replicou.
Ele sorriu, pegou sua senha e entrou. Quando os trabalhos estavam para ser encerrados, Mafalda a chamou.
— Vamos nos reunir após os trabalhos. Necessitamos fazer uma corrente de oração para dois amigos.
— Podem contar comigo – declarou Renata.
Após o encerramento dos trabalhos espirituais, Renata, Maximiliano, Luísa, Mafalda e mais três médiuns dirigiram—se a uma pequena sala que ficava nos fundos da casa. Era uma sala pequena, porém muito confortável. Havia algumas cadeiras dispostas em semicírculo e uma música agradável enchia o ambiente. O toque final era dado por uma luz azul, bem suave.
Mafalda fez sinal para que se sentassem. Depois, fez sentida prece e deu passagem para que um espírito se comunicasse. Ela suspirou e, alguns instantes depois, o tom de sua voz sofreu leve alteração.
— Prezados companheiros, precisamos da ajuda de vocês a fim de enviarmos energias de equilíbrio para um querido ente encarnado, bem como vibrar forte luz para outro amigo que, por ora, só poderemos atingir com nossas vibrações de amor. Sua aura enegrecida não nos permite aproximação, devido ao seu comprometimento com determinados espíritos do Umbral.
— Não podemos orar para esses espíritos também? – inquiriu Maximiliano.
— Sim, mas não podemos interferir no destino das pessoas. Cada um é responsável por suas escolhas e nós, aqui do lado espiritual, podemos tão somente emanar, com a ajuda de vocês, vibrações que ajudem a apaziguar a dor.
O espírito deu—lhes mais algumas orientações e, logo em seguida, formaram um círculo em volta de Mafalda.
Eles deram—se as mãos e começaram a orar conforme a orientação dada.


*****

Caio chegou à casa de Gregório por volta de meia—noite. Tocou o interfone. Em seguida, o próprio Gregório o atendeu e acionou o portão para que este fosse aberto e Caio pudesse entrar na residência.
O rapaz contornou elegante jardim, passou pela piscina e chegou ao jardim de inverno. Gregório estava vestindo seu indefectível robe de seda preto. Uma mão segurava um cigarro e a outra um copo com uísque.
— Oi criança. Gosto de quem cumpre com as minhas exigências.
A voz de Gregório soava meio pastosa. Ele estava um tanto embriagado pela quantidade enorme de bebida que havia ingerido. Caio falou a contragosto.
— Não tinha outro jeito. Você foi categórico. E, como eu tenho mesmo de resolver um assunto com você, preferi vir e acabar logo com esse peso em minhas costas.
— Peso nas costas? – Gregório sorriu. – Por favor – fez sinal –, sente—se porque a noite promete ser longa.
Gregório pegou a garrafa de uísque e a entornou em outro copo. Colocou duas pedras de gelo e ofereceu—o a Caio.
— Beba criança.
Caio pegou o copo e sorveu quase todo o líquido.
— Calma, assim você vai ficar tontinho.
— Quero mais – ordenou Caio.
Gregório apanhou a garrafa, aproximou—se de Caio e despejou o líquido no copo.
— Beba devagar, criança.
Sua voz soava de maneira irritante. Gregório, quando bebia, tornava—se pessoa insuportável. Se, quando sóbrio, não tinha respeito pelos outros, bêbado, então, não tinha limites.
Caio, sentado numa poltrona em frente ao homem, pegou o copo e bebeu com vagar. Gregório, por sua vez, deixou que o robe ficasse entreaberto, mostrando, propositalmente, as suas partes íntimas. Aquilo causou terrível mal—estar em Caio. Ele virou os olhos.
— Aceita um cigarro?
— Não. Parei de fumar.
— Ah, as crianças de hoje! – suspirou Gregório. – Adoro essa geração saúde.
— Preciso e quero tomar conta de meu corpo. É o único que tenho. Devo tratá—lo bem, oras.
— Faz sentido essa sua observação idiota. Perfeito para a sua idade.
— Queria logo tratar do assunto que me fez vir aqui.
— É sobre o contrato.
— É sobre isso que eu também queria lhe falar.
Enquanto isso, uma voz amiga inspirava Caio para que ele não aceitasse provocações de Gregório. O jovem captou alguma coisa.
— Então nosso primeiro assunto é o mesmo – tornou Gregório, após virar o copo e estalar a língua no céu da boca.
— Qual o outro assunto?
— Você.
Caio não entendeu de pronto.
— Desculpe—me, mas...
Gregório o cortou.
— Quero você. Pelo menos hoje. Ou tão somente hoje.
Caio levantou—se num salto. Sua face ardia, tamanho rubor.
— O que pensa que sou?
Gregório riu.
— Um prostituto.
— Olhe como fala!
— Não é o que você é?
— Eu não sou e.
— Cale a boca! – vociferou Gregório.
– Não venha dar uma de santinho para cima de mim. O Guido me contou sobre vocês.
— Foi um ato insano. Nunca havia me deitado com um homem antes. Não sei o que deu em minha cabeça. Na realidade, posso jurar que essa não é minha praia. Nunca foi.
— Mas Guido disse—me que você gostou.
— Não interessa. Foi uma loucura que cometi. E não mais se repetiu.
— Vai ter de repetir comigo.
— Nunca!
Gregório levantou—se e aproximou—se do rapaz. Chegou tão perto, que Caio pôde sentir seu hálito fétido e desagradável.
— Vai se deitar comigo. Quer queira, quer não.
— Você não pode me obrigar.
— Não vou obrigá—lo, criança. Vai me amar porque fui sempre seu.
Caio o empurrou.
— Pare com isso, Gregório! Vim aqui para falar de meu contrato, que na verdade eu não quero mais assinar. E vim também lhe devolver o dinheiro do adiantamento. Consegui um emprego e daqui uns dois meses eu lhe pago tudo o que devo.
Gregório recuperou—se do empurrão e voltou a se aproximar. Seus olhos brilhavam rancorosos.
— Não quero saber do dinheiro do adiantamento. Aquilo foi um mimo para você.
— Não! – Caio exclamou nervoso. – Vou devolvê—lo, tintim por tintim.
Gregório deu de ombros e caminhou até próximo de sua poltrona. Serviu—se de mais um trago de uísque. Caio aproveitou e tirou o maço de dinheiros que trazia no bolso.
— Aqui está – ele colocou o dinheiro sobre uma mesinha. – Não quero dinheiro dos outros.
— Orgulhoso. Além de prostituto, é orgulhoso.
— Assim você me insulta. Eu não sou prostituto.
— Mas foi. Sei de tudo a seu respeito. Você tinha uma carteira de clientes. Atendia ricaças insatisfeitas sexualmente. Guido me falou.
— Cadê o Guido? – bramiu Caio. – Tenho de falar com ele.
— Não pode. Não quero que vocês se vejam.
— Ele não tem o direito de falar assim de minha vida para qualquer um.
Gregório meteu—lhe o dedo em riste.
— Eu não sou – ele gritou – qualquer um! Sou Gregório Del Prate, dono da Cia. De Perfumes. Você, sim, é um nada, um lixo, um parasita que vive de michetagem. Você é sujo e imundo. Por tudo isso, vai fazer amor comigo. De qualquer jeito.
— Não!
— Não sai desta casa enquanto não ficar comigo.
Antes que Caio pudesse raciocinar, Gregório deu um assovio e logo dois cães pastores alemães vieram e pararam na porta do jardim de inverno. Seus latidos e a expressão de maus amigos encheram Caio de pânico.
— Eles me obedecem. Se eu gritar – ele abaixou bem o tom de voz – agora!, Eles avançam e não sobrará pedacinho de Caio para contar a história.
— Por que faz isso comigo? Estou aqui para lhe devolver o dinheiro. Sou homem de bem e não quero encrenca. Vamos esquecer que um dia nos encontramos e cada um segue seu caminho.
— De maneira alguma – Gregório tirou o robe e ficou nu na frente de Caio. O rapaz abaixou a cabeça. – O que foi? Não gostou do meu corpo? Não tem vontade de me amar?
— Pare com isso, Gregório. Eu não vou me deitar com você. Pode dar ordem aos cachorros para me atacar, mas não encostarei um dedo em você.
Os olhos de Gregório marejaram.
— Patife! Ordinário! Você tem de me amar! Eu fiz tudo o que fiz para você me amar. Eu sou sua. Você tinha de ser meu. Nunca deveria se casar com ela.
Caio estava aturdido. Os olhos de Gregório pareciam querer saltar das órbitas. Ele não estava em seu juízo perfeito. Mas o que fazer? Ele acuou—se numa parede e falou, num tom apaziguador.
— Eu não quero o contrato, não quero...
Gregório não lhe dava ouvidos.
— Eu fiz tudo por amor e agora você vai me ter. Para sempre.
Caio olhava para Gregório e para os cachorros. Eles estavam em posição de alerta. Ele não sabia o que fazer. Os cachorros só atacariam sob a ordem de Gregório. Aproveitou que ele estava delirando e andou, pé ante pé, até que atingiu a sala. De lá poderia correr pela casa e tentar uma outra saída, antes que os cães o pegassem. Quando ele ia dobrar o corredor da sala, Gregório bradou:
— Você matou Loreta. Eu sei. Estou de olho em você.
Caio imediatamente parou. Suas pernas falsearam por instantes. A frase de Gregório caiu como uma bomba na sua cabeça. Caio rodou nos calcanhares. Encarou Gregório com espanto.
— O que foi que disse?
— Não vou repetir. Eu o perturbei por um bom tempo, mas fiz tudo por amor.
— Não posso acreditar! Você não seria capaz de um ato insano desse porte.
— Fui.
— Mas por quê?
— Eu o atormentei durante longo tempo, porque eu sabia. Aliás, sempre soube do seu envolvimento com Loreta.
Caio levou a mão à boca.
— Você sabia do meu envolvimento com sua mãe?
— Sim. Você amava Loreta, uma velha. Por que não pode me amar? Por que ela e não eu? Eu sou a sua Lucy.
Caio não entendeu. Aliás, estava tão atarantado que nada mais fazia algum sentido para ele.
— É um absurdo. Eu gostava de sua mãe.
— Entretanto, transava com ela por dinheiro. A tonta da Isilda deu com a língua nos dentes.
— Isilda contou tudo?
Gregório riu com gosto.
— Nada que um bom punhado de dinheiro não abra ou feche a boca das pessoas. Isilda foi ameaçada e, sob ameaça de morte, uma pessoa é capaz de tudo. A infeliz – ele gargalhava –, antes de se borrar toda, claro, contou—me tudo sobre seu caso com mamãe.
Caio engolia as palavras em seco.
— Isilda ganhou bom dinheiro. Fugiu para o Paraguai.
O rapaz estava muito atordoado. Não esperava por essa.
— Eu... Eu...
— Sei você matou minha mãe. Eu tenho provas. Tenho você em minhas mãos. Por esse motivo – Gregório virou—se e encostou o corpo na parede, de maneira vulgar –, comece o serviço.
— O quê?
— Venha me amar.
Caio sentiu que as lágrimas escapavam—lhe pela face. Aquilo era ultrajante. Gregório o obrigava a fazer algo com o qual ele não compactuava. Ele prometera a si mesmo que não mais se envolveria em estripulias sexuais. Nem mesmo numa situação como essa, em que ele corria o risco de ser preso, caso Gregório fosse à polícia.
O rapaz não sabia o que fazer. Pela primeira vez, desde a infância, Caio ajoelhou—se no tapete da sala e rezou com fé. Não lembrava mais das orações feitas na infância, mas suplicou, a seu modo, ajuda a Deus.
Uma luz suave, porém vibrante, saiu de seu peito. O espírito de Norma estava ao seu lado e ministrou—lhe um passe calmante.
— Não ceda, Caio! – a voz dela era firme. – Não caia em tentação. Mantenha—se firme em sua fé e os danos serão minimizados.
Caio não registrou as palavras do espírito da irmã, entretanto, a imagem de Norma, sorridente, apareceu com força na sua mente. Ele terminou de rezar a sua maneira e chorou, chorou muito.
Gregório continuava naquela posição digna de compaixão.
— Vamos, acabe logo com essa ladainha. Venha me ter. Eu sempre fui melhor que minha irmã. Sempre.
Gregório falava palavras desconexas. Caio não entendia mais nada do que ele falava. Ele não tinha irmã. Do que estaria falando?
Enconstado na parede, passando a mão pelo corpo de maneira lânguida, Gregório murmurava:
— Venha amar a sua Lucy. Venha amar a sua Lucy...
Caio tapou os ouvidos e lembrou—se da santinha que José havia lhe dado. Meteu a mão no bolso e fixou os olhos no folheto com a imagem de Santa Rita de Cássia.
— Ajude—me, por favor...
Caio orou com tanta fé, que logo sentiu brando calor invadir—lhe o peito. Sentiu também uma força inexorável, vibrante, pulsante, que lhe tomava todo o ser. Ele levantou—se, fez o sinal da cruz, jogou um beijo para o Alto. Em seguida, moveu a cabeça negativamente para os lados.
— Você é doente, Gregório. Precisa se tratar.
Gregório não o escutava. A bebida havia entorpecido seus sentidos e ele continuava a repetir:
— Venha amar a sua Lucy.
— Eu vou embora. Podem vir seus cães, pode vir a sua chantagem. Eu não cedo. Juro por tudo quanto é mais sagrado nesta vida que não cedo!
Caio falou com tamanha força, tamanha propriedade, que logo passou pelos cães, sem medo, e chegou ao portão. Estava trancado. Ele nem titubeou. Subiu as grades e pulou. Surpreendentemente, os cães não o atacaram, talvez porque Gregório não tivesse lhes dado ordem de ataque.
O rapaz dobrou a esquina e chegou à Avenida Giovanni Gronchi, deserta.
Seria difícil aparecer táxi por ali. Caio foi caminhando e viu um ônibus que passava do outro lado da avenida. Ele correu, fez sinal e pegou o último ônibus com destino ao centro da cidade.
— Eu nunca deveria ter me metido com esse homem. Que Deus tenha piedade dele – disse para si mesmo, enquanto o motorista corria um pouco mais do que o normal, em virtude da quase ausência de carros nas vias àquela hora da madrugada.
Caio desceu no ponto e, algumas quadras depois, chegou à pensão de Fani. A casa estava em silêncio. Todos dormiam. Ele subiu os degraus de maneira que não fizessem estalo ou rangessem. Chegou ao seu andar e correu para o banheiro. Despiu—se e tomou uma ducha morna e reconfortante. Em seguida, dirigiu—se para o quarto. Na penumbra, aproximou—se da cama de Rosalina e beijou—lhe a testa. Sem fazer barulho, deitou—se em sua cama. Dormiu profundamente, como há muito tempo não dormia.




CAPÍTULO 22


Luísa acordou, tomou seu banho e arrumou—se com apuro para o trabalho. Antes de sair do quarto, olhou ao redor. Desde que vendera a casa e se mudara para o apartamento, sentia que tudo caminhava para melhor em sua vida. Ela saiu do quarto e disse para si mesma:
— Aqui eu sou e serei muito feliz.
Luísa havia ingressado na faculdade de Direito. Arrumara emprego numa empresa indicada por Renata. O cargo era de recepcionista, o salário não era tão formidável assim, mas dava para começar a sentir o gosto da liberdade, da independência. Contava com o dia que não mais fosse precisar da pensão de Genaro. Queria, de toda maneira, livrar—se dele, até economicamente. A separação já havia sido homologada. Mais um ano e poderia entrar com o pedido de divórcio e acabar com qualquer vínculo que fosse com seu ex—marido.
Genaro começava a virar notícia corrente nos jornais. O eleitorado estava se tornando mais exigente, mais consciente do voto, e a maioria dos políticos era composta por pessoas comprometidas com o bem do país. Infelizmente, havia uma maçã podre aqui e acolá dentro da classe política e eram essas pessoas inescrupulosas que ganhavam destaque na mídia.
O ex—marido de Luísa anunciava seu casamento, embora o divórcio ainda não o permitisse casar—se oficialmente – as pessoas nem ligavam – com Marisa, porquanto ela esperava o filho que ele tanto sonhara.
Luísa entrou na copa. Deixou a bolsa sobre o aparador e sentou—se para seu desjejum. Eunice ria e não falava nada. Serviu—lhe café, suco e torradas. Luísa encarou—a de maneira divertida.
— O que foi? Está rindo de quê?
— Nada em especial – tornou Eunice com a voz amável.
— Você não está rindo à toa. Que cara é essa? Parece uma menina arteira!
— Ah, você vai adorar essa notícia – Eunice foi até a cozinha e voltou à copa, trazendo um pedaço de mamão papaia e o jornal. Colocou a fruta sobre um pratinho e entregou o jornal a Luísa, dizendo: — leia a coluna da página inferior.
Luísa olhou para o periódico.
— E lá sou mulher de ler coluna social? Fofoca da vida de gente importante? Está me estranhando, Eunice?
Ela continuava rindo.
— Leia a última nota – ordenou, apontando com o dedo. Luísa concentrou—se na leitura da notinha. Era um texto curto, de quatro linhas.
— Leia em voz alta, por favor.
Luísa assim o fez:
"— O deputado federal Genaro Del Prate anunciou, num jantar oferecido a poucos amigos, em sua mansão, localizada no Lago Sul, em Brasília, o seu casamento com a jovem Marisa Pompeo Ramos. O casal, apaixonado e feliz, cujo enlace está programado para maio, espera o primeiro herdeiro para daqui a cinco meses".
— Viu o porquê de minha risada? – perguntou Eunice, em tom de deboche.
Luísa levou a mão à boca. Não segurou a risada.
— Nunca poderia imaginar Genaro metido numa situação como essa.
— O Genaro nunca quis ir ao consultório do Dr. Ribeiro para fazer os exames que comprovariam a sua infertilidade.
— Ele sempre se recusou. Disse—me, certa vez, durante uma discussão, que eu era seca e estava tomando pílula anticoncepcional escondido.
— Problema dele. E se um dia ele descobrir isso? Coitada dessa Marisa. Ele pode fazer picadinho dela.
— Eu é que não quero saber disso. O que acontece com Genaro não é de minha conta. Quero distância dele. Que construa sua família, não importa como, e que seja feliz.
— Você é uma mulher de fibra. Se fosse outra, Luísa estaria arrumando um jeito de extorquir a Marisa ou mesmo chantagear Genaro com a ameaça de um escândalo.
— Quero ficar longe desse tipo de comportamento. Eu nunca me aproveitaria das pessoas. Não está em mim.
Eunice a beijou no rosto.
— Você ainda vai se dar muito bem na vida, minha menina. É cheia de valores nobres.
— Deveria ter pensado assim antes de apanhar.
— Já passou.
— Como pude descer tão baixo? Por que me deixei de lado, tornei—me uma mulher submissa e sem brilho? – Luísa fitou o nada. Declarando em seguida: — não tenho um pingo de saudade da Luísa de ontem. Estou tão feliz comigo, Eunice. Sinto—me muito bem com meu progresso. Vou me formar e trabalhar para mulheres que passam pelo que passei. Tenho orgulho de mim.
— Só falta arrumar alguém.
— Como?
— Quer dizer, acho que arrumou, entretanto, não quer confessar para si mesma que está gostando dele. Ou mesmo que está apaixonada.
— Eunice, de onde tirou essa idéia?
— Eu vi você falando do rapaz, o Caio outro dia que estava com a Renata.
Luísa a censurou:
— Ouvindo atrás das portas? Que costume mais feio!
— Não. Estava preparando o chá para servi—las. Quando cheguei à saleta, notei o brilho em seus olhos toda vez que pronunciava o nome do Caio.
Luísa esboçou sorriso encantador. Seus olhos voltaram a brilhar.
— Você tem razão. Caio despertou—me sentimentos que nunca havia sentido antes.
— Nem mesmo por Genaro?
— Não. Com Genaro foi diferente. Eu era muito menina, tinha medo do futuro, de não ter proteção, e ele, por ser bem mais velho, passava—me a impressão de segurança. Genaro é homem bonito, mas nunca me cativou o coração.
— E Neuza praticamente a empurrou para aquele casamento. Eu me lembro bem.
— Nem me fale. Mamãe conseguiu me ludibriar. Eu era muito nova, muito ingênua.
— Neuza ligou de novo. Reclamando, para variar. Disse que seus irmãos estão trabalhando e que, graças ao esforço deles, ela não passa fome. Porque, se dependesse de você...
— Eu quis ajudá—la, Eunice. Assim que comecei a receber a pensão do Genaro, ofereci—lhe um valor para o mercado, pagamento de contas etc. Sabe o que ela me disse?
— O quê?
— Que esse dinheiro era muito pouco. Ou eu lhe dava mais ou então era melhor não receber nada. Problema dela. Eu tentei fazer o melhor. Se seu orgulho a deixa tão cega a ponto de recusar minha ajuda, só posso orar para que ela fique em paz. Mais nada. Minha família acabou. Agora só tenho você.
— E quanto ao Caio...
— Quanto ao Caio, não sei explicar. Encontramo—nos muito pouco, entretanto, essas poucas vezes foram suficientes para eu perceber que sinto algo diferente. Os sentimentos são conturbados.
— Como?
— Dia desses – ela confessou – sonhei que vivíamos juntos, numa outra época, e discutíamos bastante. Lembro—me de ter muita mágoa do Caio. Meu coração fica mole quando eu o vejo, mas minha mente tem lá suas reservas. Mesmo assim, quando ele foi me visitar no hospital fiquei muito feliz!
— Lembro—me disso. Você não parava de falar nessa visita. Creio que melhorou mais pela visita dele do que pelo repouso sugerido pelo médico.
Luísa soltou um risinho abafado, enquanto se levantava e pegava sua bolsa sobre o aparador.
— Você não toma jeito, Eunice. Quer me ver enrabichada de novo?
— Quero. Você é muito nova.
— Caio é mais jovem que eu.
— Qual o problema? Uns três ou quatro anos mais novo, talvez. Por quê? Tem algum preconceito em relação a isso?
— De forma alguma. Só acho tudo engraçado. Casei—me com um homem quase quinze anos mais velho que eu e agora começo a me interessar por um rapaz mais jovem.
— Talvez agora você acerte a mão. Não conheço o Caio, todavia ele deve ser um bom moço. Está mexendo com você.
— Tem razão. Eu vou ligar para ele e convidá—lo para jantar no sábado aqui em casa. O que acha?
— Perfeito. Hoje ainda é quinta—feira, tenho dois dias para preparar um belo jantar. E tempo suficiente para comprar os ingredientes necessários para um jantar especial! – exclamou Eunice, contente.
— Podemos fazer aquele macarrão com camarão e molho de especiarias que só você é capaz de fazer.
— Receita de minha sobrinha. Não lembro direito todos os ingredientes.
— Certifique—se do que precisa. Mais tarde eu ligo para você e pego a relação do que devo comprar. Vou ao mercado amanhã depois do trabalho e faço as compras.
— Será que o Caio virá?
— Ele vem. Tenho certeza. Vou ligar para ele assim que chegar ao escritório.
Luísa despediu—se de Eunice e saiu no hall do apartamento. Tomou o elevador e, surpresa agradável, encontrou Maximiliano. Ela o cumprimentou com um beijinho no rosto.
— Bom dia, vizinho.
— Bom dia, vizinha. Nossa – ele aspirou o perfume que exalava do corpo dela – que aroma delicioso.
— Obrigada. Acordei muito bem hoje.
— Eu não posso dizer—lhe o mesmo.
— Por quê?
Max não queria falar. Mudou o tom da conversa.
— Está gostando de ir ao Centro Espírita?
— Sim. Senti—me útil quando fui convidada para fazer parte daquele grupo de oração e vibração.
— Eu também gostei.
— Você tem idéia de quem eram as pessoas para as quais estávamos em oração?
— Faço alguma idéia, Luísa – tornou Max, dando de ombros. – Não nos esqueçamos do grande ensinamento: "Fazer o bem, não importa a quem". Entretanto, nesse caso específico, creio que sei para quem estávamos dirigindo nossas energias.
— Eu senti, não sei se isso é da minha cabeça ou não, que uma das pessoas para quem estávamos em oração era o Caio.
— Eu tive a mesma impressão. Quanto ao outro, lembrei—me de um conhecido de outros tempos com quem não tenho afinidades. Aliás, nunca tive.
— É mesmo?
— Sim. Quando Mafalda, incorporada, solicitou que fechássemos os olhos e entrássemos em meditação, eu tive a leve sensação de que na minha mente apareceram o rosto de Caio e desse conhecido. A energia que senti não foi das melhores.
Aliás, eu preciso ligar para a Mafalda. Tive um sonho muito ruim esta noite.
— Pesadelo?
— Sim.
O elevador chegou ao térreo. Max declarou:
— Fico por aqui. Tenho alguns compromissos no centro da cidade. Prefiro tomar um táxi. Esse trânsito me irrita profundamente.
— Eu vou até a Praça da República. Posso lhe dar carona.
— Puxa, eu adoraria.
— Você aproveita a carona e, no trajeto, conta—me sobre seu sonho.
— Resolvido.
Apertaram o botão do elevador e desceram na garagem. Caminharam em silêncio até o carro de Luísa. Entraram e ela deu partida. Quando ganharam à rua, ela perguntou, de maneira delicada.
— Pode—me dizer o que aconteceu?
— Ontem à noite, ao chegar a casa, resolvi tomar uma ducha e fui para a copa preparar um lanche. No meio da refeição, senti um calafrio, um frio perpassando minha nuca. Senti um arrepio sem igual pelo meu corpo todo.
Luísa fez um esgar de incredulidade.
— Eu, hein? Parece que recebeu a visita de algum espírito perturbado.
— Foi à impressão que tive. Pensamentos ruins vieram à minha cabeça naquele momento. Afastei—os com as mãos. Depois, fiz uma oração, mudei o teor dos pensamentos e fui para a cama. Mas, durante o sono...
— Conte—me, Max. Estou tão interessada!
— Sonhei que um conhecido de longa data aproximou—se de mim desesperado. Seu rosto estava desfigurado. Um horror. Ele dizia estar sendo perseguido e pedia minha proteção. Eu disse que não tinha o que fazer, a não ser que ele ficasse em casa. Lembro—me de que lhe ofereci o quarto de hóspedes.
— E?
Maximiliano deu um longo suspiro. Tudo parecia tão real.
— Ele foi ao quarto de hóspedes e, no sonho, eu voltei para o meu quarto. Sensações ruins se apossavam de meu corpo. Lembro—me nitidamente de passar as mãos nos braços a fim de "arrancar" aquelas sensações desagradáveis. Daí ouvi um grito de pavor. Corri ao quarto de hóspedes e vi uma cena dantesca.
Luísa estava estupefata.
— Continue.
— Esse conhecido meu estava sendo arrancado do quarto à força por espíritos enegrecidos, cheios de sombras. Algo pavoroso. Ele ainda me encarou com olhos de súplica e, quando tentei interferir, um braço tocou meu ombro. Eu não consegui olhar para trás, mas ouvi. "Cada um é responsável pelo seu destino. Você não pode e não deve se intrometer. Vibre por ele".
— E daí?
— E daí que acordei suando bicas. Minha testa estava molhada, meu pijama empapado de suor. Levantei—me, fui à cozinha, bebi um copo d'água e tomei nova ducha. Fiz nova prece e dormi melhor. Mas ainda estou impressionado com o sonho.
— Pretende falar com Mafalda?
— Hum, hum. Assim que terminar meus compromissos eu vou até o Centro Espírita. Sinto que tem algo a ver com aquela corrente de orações.
— O que pode ser?
— Não sei Luísa, mas, cá entre nós, alguma coisa muito grave aconteceu nesta noite que tive esse pesadelo.
Luísa fez o sinal da cruz. A seguir chegaram à praça. Ela encostou o carro no meio—fio e Max saltou. Abaixou na altura da janela do passageiro.
— Caso eu tenha alguma notícia, avisarei você e Renata.
— Por favor, faça isso.
— Até logo.
— Tenha um bom dia – tornou ela, apreensiva.
Impressionada com o relato, Luísa não se sentiu muito bem. Percebeu energias pesadas ao seu redor. Fez também uma prece e, em seguida, meteu—se no trabalho. Logo estava envolvida com os atendimentos na recepção e esqueceu a conversa com Maximiliano.


****

Caio despertou cedo, cheio de vigor. Espreguiçou—se na cama, sentou—se e bocejou. Lembrou—se de algumas cenas da noite anterior. Espantou tais pensamentos com as mãos.
— Faz parte do passado. Quero esquecer esta noite.
Ele levantou—se e caminhou para o banheiro. Escovou os dentes, lavou o rosto e desceu para o desjejum. Rosalina e Celinha entravam e saiam da cozinha a todo o instante. Ainda havia muitos hóspedes tomando o café da manhã.
— Quer alguma ajuda? – perguntou ele, de maneira educada.
Celinha se surpreendeu.
— Logo cedo em pé e quer nos ajudar?
— Exato.
— O que foi? Dormiu com os anjinhos?
Caio riu.
Despertei tão bem! Há muito tempo não dormia assim tão gostoso.
— Vi que chegou uma e meia da manhã.
Seu rosto mudou e ele adquiriu expressão temerosa.
— Viu? Acho que...
— Danado! Eu vi sim. Acordei para fazer xixi. Quando você entrou no banheiro para tomar banho, eu havia acabado de sair. Estava tentando pegar no sono.
— Eu cheguei antes.
— Eu sei que era você. Fiquei na espreita. Deixei a porta entreaberta e fiquei observando. Aí vi você sair do banheiro.
Caio ruborizou.
— Celinha! Como pôde?
— Oras, por quê?
—Eu saí do banheiro completamente pelado.
Ela riu maliciosa.
— Eu notei todos os detalhes.
— Celinha!
— Dormi tão melhor. Nem mais acordei para ir ao banheiro. Você é um espetáculo de homem.
— Olhe os modos! Posso ser seu irmão.
— Não poderia. Nunca. Iríamos praticar incesto.
Caio pegou um pano de cozinha, esticou—o e passou a perseguir Celinha, que corria em volta da mesa.
— Venha, cá, sua pilantra – ria ele, vou lhe dar uma sova.
Celinha corria e ria. Até que Rosalina entrou na cozinha, expressão séria.
— Vamos parar com brincadeira. Celinha – ela encarou a menina –, os hóspedes estão esperando. Cadê o café do seu Antenor? E o leite do seu Francisco? E a geléia da D. Odete?
— Desculpe—me. Vou providenciar tudo num instante.
Rosalina cumprimentou o filho.
— Bom dia.
— Bom dia, mãe. Está com uma cara tão brava. O que foi?
— Sua irmã veio me visitar hoje cedo – Caio ia responder, mas a mãe o interrompeu: – Norma está muito preocupada. Disse—me que você necessita de muita oração e que precisa ir ao Centro Espírita.
— De novo isso?
— Por que reluta tanto, meu filho? Sei que tem de ir por vontade própria, mas por que tanta defesa?
— Não é defesa. Só não acredito.
— Norma disse que não vai ter jeito. Você vai ter de passar apertos para acordar para a vida espiritual.
Ele a beijou na fronte.
— Quem sabe, na hora certa, eu vá?
— Tome seu café.
Caio sentou—se à mesa. Serviu—se de dois pãezinhos com manteiga e café com leite. Celinha saiu com uma bandeja para a sala de refeições. Caio aproveitou estar a sós com a mãe.
— Ontem à noite devolvi aquele dinheiro.
— Mesmo? Tudo?
— Quer dizer, quase tudo. Usei uma parte. Mas apliquei o saldo e recebi bom salário este mês. Se tudo continuar bem, em dois meses eu saldo a dívida com o Gregório.
— Eu não gosto desse homem. Deve ficar afastado dele.
— E estou mãe. Não quero mais saber dele.
— Nem de campanha de perfume. É melhor arrumar um emprego que lhe dê dinheiro todo mês do que essa vida instável de modelo.
— Você se engana. Um modelo profissional, famoso, ganha muito, mas muito dinheiro. Eu ainda acredito que vou conseguir mãe. Pode escrever.
Rosalina moveu a cabeça para os lados.
— Cheio de sonho. Você não desiste.
— Não. Vou à luta. Ainda mais agora que estou gostando de alguém.
O coração de Rosalina se enterneceu.
— É a moça do Centro Espírita, né? A Luísa.
Caio riu, enquanto mordiscava um bom pedaço de pão com manteiga.
— É ela mesma.
— Moça de classe, fina, educada, elegante, bonita, simpática e...
Ele cortou a mãe de maneira engraçada.
— Quanta propaganda! O que é isso? Um complô?
— Se for para a sua felicidade, e eu sinto que é – ela disse olhando nos olhos dele –, vale tudo.
Ele terminou o desjejum e despediu—se.
— Você está impossível. Quer se ver livre de mim?
— Não, meu filho. Quero vê—lo feliz.
Ao passar pela sala de refeições, ele encontrou Fani.
— Oi meninão!
— Bom dia, Fani.
— Estava à sua procura.
— O que foi?
— Telefone para você.
— Quem é?
Fani fez uma cara de suspense.
— Adivinhe!
Caio pegou o fone e ao ouvir a voz melodiosa de Luísa, sentiu um friozinho gostoso no estômago.
— Oi.
— Como vai, Caio?
— Bem. E você?
— Ótima. Quero lhe fazer um convite.
— Um convite?
— Sim. Quer vir jantar em casa no sábado?
Ele não sabia o que lhe dizer. Estava surpreso, agradavelmente surpreso.
— Sábado, é...
Luísa mordiscou os lábios do outro lado da linha. Aqueles segundos de mudez pareceram durar uma eternidade. Será que ele estava arrumando uma desculpa? Ela perguntou indecisa:
— Tem compromisso?
— Não, não. De forma alguma.
— Você demorou para dar a resposta e.
— Porque sábado é um dos melhores dias na loja. E eu saio um pouco mais tarde.
— Pode ser às dez da noite?
— Não fica tarde para jantarmos?
— Não. Eu faço um lanche antes – ela riu. – Está marcado? Sábado às dez da noite?
— Confirmado. No sábado, assim que eu sair da loja, vou direto para sua casa.
— Um beijo.
— Outro.
Caio desligou o telefone com as mãos trêmulas. O ar parecia lhe faltar. Iria jantar com Luísa, num sábado à noite. Poderia aproveitar o momento e, no decorrer do jantar ou após, declarar—lhe seu amor. Ele não sabia como fazer tal declaração e viu nesse jantar o momento certo para dizer a Luísa tudo o que ia a seu coração.
Fani o trouxe à realidade.
— Viu um passarinho verde?
— Não, Fani. É o amor. O meu amor, do qual não quero nunca mais me separar.
Ele a beijou na bochecha e saiu contente. Fani disse para si mesma, enquanto meneava a cabeça para os lados:
— Esses jovens! Quanto romantismo! Que coisa boa!



CAPÍTULO 23


O delegado Telles era um homem bem apessoado. Alto, um metro e noventa, corpo atlético. Chamava a atenção por onde passava. Tinha um rosto charmoso, uma barba preta, bem cuidada, que contrastava com o tom claro de sua pele.
Seu nome era José Carlos. Mas, desde que entrou para a polícia, recebeu a alcunha de Telles, seu sobrenome.
O rapaz adorava o que fazia. Amava sua profissão. Acreditava que havia nascido para a investigação. Tinha faro, uma maneira peculiar de resolver os enigmas que se apresentavam sobre sua mesa. Todos os casos mal resolvidos, os grandes abacaxis de maneira geral, caíam nas mãos de Telles.
Ele trabalhava na Divisão de Homicídios, ligada ao Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa – DHPP, um dos setores mais corretos e incorruptíveis da polícia brasileira. Seus investigadores trabalhavam com afinco e Telles fazia parte deste grupo de homens dedicados a desvendar os crimes que ocorriam na cidade. Quando o crime era de autoria conhecida, ficava a cargo dos distritos policiais. No caso de autoria desconhecida, eram encaminhados para os agentes especializados do DHPP.
A sala de Telles ficava num dos andares do Palácio da Polícia, na Rua Brigadeiro Tobias, no centro velho da cidade.
Ele encarou as pastas feitas de cartolina na sua frente e, por um instante, sua mente voltou ao passado.
Havia uma peculiaridade em Telles. Ele tinha uma intuição, como se uma voz amiga o ajudasse a desvendar os crimes aparentemente sem solução.
Tudo começou dez anos antes, quando um primo de Telles fora morto por um amigo. O crime chocou a cidade, causou comoção. O rapaz responsável pelo tiro jurara inocência. Dizia ter sido acidental, que estavam ambos brincando com a arma do pai do falecido.
O crime repercutiu bastante, ganhou as manchetes de jornais e a família do morto foi pedir alento ao famoso médium Chico Xavier.
Chico recebeu os pais do garoto morto, conversou com eles e lhes ofereceu, como sempre, palavras gentis de consolo. Alguns dias depois, o próprio Chico recebeu uma carta psicografada do espírito do menino, relatando que ele não fora assassinado, que o tiro tinha sido disparado de maneira acidental.
A carta foi anexada ao inquérito policial e, por conta dela, o rapaz que deu o tiro foi inocentado do crime.
Telles ficou impressionado com essa conexão, com a possibilidade de um mundo paralelo, coexistente com nosso mundo físico. Naturalmente, interessou—se pelos estudos espíritas. Ingressou num Centro perto de casa, estudou, e conheceu um grupo de pessoas sérias, dedicadas aos estudos do mundo espiritual.
Assim que Telles ingressou na polícia, apareceu—lhe um caso que, aparentemente, não tinha solução. Era o caso de uma mulher cujo corpo fora encontrado nas margens do rio Tietê. O marido havia morrido e seu enteado morava no exterior. Ela não tinha parentes nem tampouco amante ou coisa do gênero. Tratava—se de mulher de comportamento irrepreensível.
O crime havia ocorrido há mais de três anos e a polícia ia arquivá—lo. Nenhuma prova nenhuma evidência. Nada. O jovem Telles, com a pasta na mão, pronto para levá—la ao arquivo, sentiu os pêlos eriçarem e uma voz insistia em lhe dizer:
— O crime tem solução, não o arquive.
Aquilo ficou bombardeando a cabeça do jovem por um bom tempo. Telles escutou a intuição, foi ao encontro desse grupo de estudos espirituais e, numa noite em que discutia o caso com os amigos, um deles sentiu forte tremor pelo corpo e, em seguida, incorporou um espírito.
— Eu preciso falar com você, Telles. Só você pode me ajudar.
— Quem é você?
— Meu nome é Lena. Foi assassinada e meu corpo físico jogado às margens do rio Tietê.
Telles deu um pulo da cadeira. Olhou para seu amigo médium de maneira aturdida.
— Você?!
— Sim, estou atrás de você faz tempo, desde que resolveram arquivar o processo. Isso não pode se repetir. Aurélio me matou uma vez e ficou impune, numa outra vida. O mesmo agora não pode se repetir.
— Aurélio? Quem é Aurélio?
— Meu enteado.
— Seu enteado mora no exterior. Ele não estava aqui na época do crime.
O espírito estava ansioso. Deu uma suspirada, tomou fôlego e prosseguiu:
— Aurélio veio ao Brasil de maneira incógnita. Usou nome falso, passaporte falso, entrou no país com outra identidade. Obrigou—me a assinar uma procuração. Eu não aceitei. Depois, fez—me assinar dois cheques. Com medo de que o pior estava por vir, eu os assinei. Mesmo assim ele me matou.
— Eu não posso reabrir o processo – tornou Telles. – Não posso usar como prova o depoimento de um espírito.
— Pode. Houve um saque grande em minha conta logo após o crime.
— Verificamos isso e não pudemos rastrear quem sacou. Acreditamos ter sido algum ladrão.
— O outro cheque ele usou para pagamento de uma conta.
— Sim, verificou—se nos autos do processo que era uma conta, mas não nos despertou atenção.
O espírito finalizou.
— A conta era de Aurélio. Voltem e cheque tudo novamente. Além do mais, Aurélio ainda mantém em seu poder a arma que me tirou a vida. Podem conferir, duas balas estão faltando. São as que perfuraram meu corpo. Aurélio encontra—se em férias no país e está numa chácara, no interior do Estado. A justiça deve ser feita, antes que ele saia e não possa mais ser capturado.
O espírito falou e se foi. Telles não sabia direito o que fazer. Reunido com seu grupo, fizeram nova reunião espiritual e Lena manifestou—se numa médium que psicografava. A jovem escreveu tudo o que Lena havia anteriormente relatado a Telles.
Aurélio foi localizado na chácara e intimado a depor. O tempo passou e a promotora e o advogado de acusação não contestaram a carta psicografada.
Até que tentaram impugnar o documento no momento do julgamento, entretanto, a carta psicografada foi lida para os jurados. Aurélio foi condenado a dez anos de prisão, por homicídio doloso.
O caso repercutiu no país inteiro e Telles deu a seguinte declaração a uma jornalista:
— Sabemos que os jurados julgam sem motivo, somente por convicção íntima. Eles não têm que fundamentar suas decisões, de maneira alguma. É obvio que uma carta psicografada, para um espírita ou alguém que acredita no mundo dos espíritos, será vital para sua decisão. Mas não sabemos se havia algum jurado espírita entre o grupo que o condenou.
A meu ver, a carta foi, sim, decisiva para a condenação de Aurélio.
Após esse evento, Telles ganhou popularidade entre seus colegas de trabalho como o "delegado do Além". Ele não se importava com as brincadeiras, porquanto todos os casos não resolvidos, de autoria desconhecida, vinham até suas mãos. Entretanto, desde o caso de Lena, nunca mais houve algo tão evidente, com interferência clara dos espíritos para ajudá—lo a resolver um crime.
Telles escutava vozes, ia atrás das dicas, dava importância demasiada ao que sua intuição lhe dizia. Sempre acertava, e encontrava provas e evidências onde ninguém jamais ousaria procurar.
O delegado estava encostado em sua cadeira puída, atrás de sua mesa, observando aquelas pastas cujas capas estavam gastas pelo manuseio. Todas, em seu interior, continham desde crimes banais a cruéis, desde morte acidental a chacina, todavia, as autorais eram todas desconhecidas. Muitos marginais, pobres, pessoas sem destaque na mídia.
Era sábado e Telles estava cansado. Trabalhara muito durante a semana e queria sair talvez caminhar no parque da Luz, não muito longe dali, tomar um sorvete, relaxar.
Ele começou a arrumar as pastas, ordená—las para botar no arquivo, quando o investigador Paranhos entrou na sala feito uma bala de canhão. Trazia na mão uma pasta recém—aberta, pois a cor rosa da cartolina era nova.
— Este é para você. O caso vai esquentar os jornais e a televisão. O cadáver tem um cheiro especial.
— Cadáver é cadáver – objetou Telles. – O que tem aí em mãos?
Paranhos jogou sobre sua mesa a pasta. Nela estava escrito IP – 255/83, ou seja, inquérito policial de número duzentos e cinqüenta e cinco, ano de mil novecentos e oitenta e três. Telles abriu e leu. Voltou os olhos para Paranhos.
— Esse caso vai dar o que falar.
— Não lhe disse?
— Você tem razão, alguns cadáveres são mais especiais que outros.
Paranhos continuou:
— Veio da delegacia do Morumbi. Como não sabem a autoria do crime, mandaram direto para cá.
— Isso demanda tempo – objetou Telles. – Não podem mandar assim, sem mais nem menos, um inquérito recém—aberto. Checaram as evidências? Tomaram depoimentos? E.
Paranhos o cortou, seco:
— Este caso é quente, meu jovem. Recebi ordens lá de cima para que o processo viesse até aqui. Homem branco, trinta e quatro anos, empresário, rico e conhecido em todo o país.
Telles leu o nome da vítima.
— Gregório Del Prate?
— Sim, meu amigo. Brutalmente assassinado. Esse caso vai ser destaque nas principais mídias. E tem um detalhe picante: ele era homossexual. Parece que um grupo de ativistas gays exige justiça. Estão fazendo alarde e até uma manifestação no Largo do Arouche. E tem um bando de repórteres lá embaixo querendo suas declarações.
— Minhas. Por quê?
— Você é o delegado do Além, o xerife do invisível – brincou Paranhos. – O próprio secretário de segurança do Estado mandou um aviso a você. Quer que resolva o mais rápido possível esse crime.
— As coisas não funcionam assim. Eu tenho de checar, investigar, reunir provas, evidências. Não posso sair à cata de um culpado assim, sem mais nem menos.
— O morto era irmão do deputado Genaro Del Prate.
— E daí?
— Sabe o quanto Genaro é queridinho da mídia e amigo do general Figueiredo. Está determinado a que cassem o assassino da maneira mais rápida possível. Ele não quer que sua imagem fique associada a do irmão gay.
— Mas... – tentou argumentar Telles.
— Nem, mas nem meio, mas. O secretário de segurança está numa enrascada. A pressão lá de Brasília é forte e ele exigiu que pulemos etapas e peguemos logo o assassino.
— Gregório Del Prate assassinado! – exclamou Telles. – Esse é um abacaxi dos grandes.
— Assassinado de maneira horrível. Você precisa ver.
— Aonde ocorreu o crime?
— Em sua mansão, no bairro do Morumbi. As emissoras de televisão estão lá aguardando a saída do corpo – Paranhos fez uma cara de nojo.
— O que foi? Por que essa cara?
— Você não tem idéia de como encontramos o corpo. Em estado avançado de decomposição.
— Sério?
— Hum, hum.
— Tem idéia de quando o crime ocorreu?
— Entre quatro e seis da manhã de quinta—feira.
— Uau! – exclamou Telles. – Quase três dias.
— Pois é. Vamos – ordenou Paranhos –, temos de ir a casa e liberar o corpo para o Instituto Médico Legal. O tempo urge.
Telles assentiu com a cabeça. Pegou seu paletó sobre a cadeira, lançou—o nos ombros e partiram.
Foi difícil passar pelo bando de repórteres que lotavam o saguão do prédio da polícia, em busca de uma nota, um depoimento que fosse. O caso já estava repercutindo no país inteiro. Telles tinha de correr. A pressão em cima dele era forte demais.
A viatura da polícia chegou à mansão de Gregório pouco depois das seis da tarde. Driblaram os repórteres e curiosos que se amontoavam e acotovelavam na porta do milionário assassinado.
Após contornar o jardim e a piscina, o carro encostou próximo à entrada principal da casa. Alguns investigadores esperavam por eles. Um tomava depoimento da empregada da casa.
O outro, do empregado que cuidava da manutenção do imóvel, uma espécie de caseiro.
Telles afastou—se deles e foi entrando. Percorreu as salas, chegou às escadas e subiu.
Conforme ia subindo os lances de escada, um cheiro adocicado e enjoativo invadiu—lhe as narinas. Telles sentiu ligeiro mal—estar. Deixou de respirar pelo nariz e ficou só respirando pela boca. Assim, não precisava inalar aquele odor agridoce e malcheiroso.
Ele contornou a escada, ganhou o corredor. No fundo, ficava a suíte de Gregório. Assim que entrou, Telles voltou à cabeça para trás. Era uma cena deprimente e triste de se ver.
O corpo de Gregório estava deitado de costas na cama. Suas mãos estavam amarradas nas grades da cabeceira, com laços feitos de camisetas rasgadas. Os pés estavam envoltos por tiras de camisetas também. O corpo estava nu.
Telles respirou fundo pela boca e entrou. Aproximou—se do cadáver. A cor da pele de Gregório já adquirira o tom arroxeado. O corpo estava bem inchado e era praticamente impossível ver naquele corpo inerte a figura de Gregório Del Prate.
Seus olhos estavam esbugalhados, parecendo querer saltar das órbitas. A boca estava entupida por cuecas. Em todo o peito, marcas de sangue ressecado. As unhas dos dedos das mãos e dos pés estavam enegrecidas. Em virtude do tempo decorrido da morte, o corpo de Gregório estava em adiantado processo de decomposição. Partes da pele se desprendiam do corpo, e, o que é natural em casos assim, pelo lençol escorria quantidade considerável de matéria fecal, o que resultava nesse cheiro nauseante que impregnava o ambiente.
Telles meneou a cabeça para os lados de maneira negativa.
— Pobre homem – disse para si mesmo. – Que Deus se compadeça de sua alma.
Ele falou, fez o sinal da cruz e saiu. Voltou ao jardim de inverno e perguntou:
— Quem descobriu o corpo?
O caseiro, tímido, levantou a mão.
— Fui eu, doutor.
— Como foi? Quando o encontrou?
A empregada tomou a palavra, visto que o rapaz encontrava—se em estado de choque, sem condições de concatenar as idéias.
— Meu nome é Sueli. Tenho quarenta e três anos. Trabalho para o seu Gregório desde que ele veio de Bauru.
— Prossiga Sueli.
— Eu contei tudo ao outro investigador. Tenho de repetir?
— Se isso não a incomodar – Telles aproximou—se dela e tocou suas mãos. – Eu preciso muito saber o que aconteceu. Seu depoimento é de extrema importância para nós.
Ela concordou. Limpou o nariz com as costas da mão e iniciou seu relato:
— Sou responsável pela faxina da casa. Embora seja grande, eu dou conta de tudo, porquanto seu Gregório não permitia que se cozinhasse na casa. Fazíamos pedidos em restaurantes todos os dias, então eu tinha mais tempo para o meu serviço.
Sueli pigarreou e continuou:
— Todos os dias de manhã eu venho ao jardim de inverno e o limpo primeiro.
— Por quê?
— Porque é aqui que seu Gregório passa – ela consertou –, passava todas as noites. Era hábito. Ele podia chegar à hora que fosse. Tomava seu banho, botava o seu robe preto de seda, descia, comia algo e vinha para cá. Servia—se de bebida naquele barzinho – ela apontou para um carrinho mais à frente – e geralmente tomava uísque. Fumava bastante e sempre deixava a luz acesa e o som ligado. Era praxe.
— E por que só hoje você o encontrou? Não estranhou que ele ontem não estivesse aqui?
— Pois é. Ele me deu folga na quarta—feira. Disse—me que eu podia faltar na quinta e na sexta para resolver problemas pessoais. Seu Gregório era rude e afetado, mas era bom patrão.
— E o caseiro? Não sentiu falta do patrão?
— Décio nunca se meteu na vida de seu Gregório. Certa vez, ele ficou dois dias trancado no quarto. Dois dias – ela levantou a mão e fez sinal com os dedos. – Ficamos deveras preocupados. Eu e Décio batemos na porta e nada. Até que Décio pegou a chave reserva no escritório e abrimos o trinco.
Sueli levou as mãos à cabeça, envergonhada. Telles foi compreensivo.
— Se não quiser, não fale.
— Tudo bem. Eu nunca havia visto aquilo. O seu Gregório estava dormindo com outro homem, abraçado! Ficamos, eu e Décio, perplexos. A gente sabia que nosso patrão era homossexual, mas nunca tínhamos visto dois homens juntos.
Sueli meneou a cabeça para os lados.
— Prossiga – solicitou Telles, enquanto tomava nota em seu bloquinho.
— Levamos um puxão de orelhas, e ele disse que nunca mais deveríamos invadir sua privacidade. Não cometemos mais esse deslize. Entretanto, quando cheguei hoje cedo, o Décio comentou que o seu Gregório não saía do quarto a dois dias. Eu ri – ela levou a mão à boca, meio sem graça, por conta da ocasião – porque pensei que ele estivesse com alguém e procurei fazer meu serviço.
— Você veio até o jardim de inverno e.
— Estava como sempre eu o encontrava. Dois copos de bebida sobre a mesinha, o cinzeiro cheio de bitucas de cigarro. Exceto... – Sueli hesitou.
— Exceto? – inquiriu Telles, curioso.
— Havia algumas notas de dinheiro espalhadas, também notei o quadro que escondia o cofre lá no chão – ela apontou para o canto –, e esse bilhete... – Sueli meteu a mão no bolso do avental e pegou o bilhete. Entregou—o a Telles. Ele leu:
— Caio... O que quer dizer isso?
— Não sei. Parece à letra do seu Gregório, tinha esse nome escrito.
— Conhece algum Caio?
— Não me recordo doutor.
— Não viu nenhum estranho entrar aqui? Quem veio visitar Gregório nos últimos dias?
— Havia um moço, tal de Guido. Toda vez que vinha aqui ele e seu Gregório quase se pegavam no tapa. Gritavam e se insultavam. Mas sempre terminavam as discussões lá em cima – ela apontou, envergonhada.
— E teria visto esse Guido nesta semana?
— Faz algumas semanas que ele não aparece.
Telles continuou suas anotações.
— Como encontrou o corpo?
— Eu limpei tudo aqui. Deixei o jardim de inverno em ordem. Depois, arrumei a casa e por fim subi ao quarto. Aprendi a não incomodar seu Gregório, mas eu sentia um cheiro estranho no corredor. Muito estranho. Chamei o Décio e ficamos na dúvida, se batíamos ou não na porta. Algo me fez bater.
— E então?
— Batemos uma, duas, três vezes. Décio bateu com mais força e, mesmo correndo riscos, tivemos a sensação de que algo errado tinha ocorrido e resolvemos pegar a chave reserva – Sueli mal continha as lágrimas.
— E daí?
— Foi horrível. Assim que abrimos à porta, o cheiro nos pegou de surpresa. Eu quase desmaiei e o Décio correu ao banheiro do corredor. Teve ânsia.
— Encontraram o corpo desse mesmo jeito?
— Tinha uma camiseta sobre o rosto do seu Gregório. Eu não tive coragem de mexer. O Décio foi lá e puxou. Por esse motivo, ele ficou tão impressionado.
Telles aproximou—se do caseiro.
— Sente—se melhor?
— Sim, senhor. Depois do susto que tomei, creio que agora estou bem melhor.
— Você chegou a... – Telles deu uma olhada sobre as suas anotações – conhecer ou ver um rapaz chamado Guido?
— Conheci, sim. Ele vinha aqui de vez em quando. Dormia lá com o seu Gregório.
— Faz mais de semana que não o vê?
— Sim, senhor.
— Tem certeza?
Décio hesitou.
— Bom, na noite de quarta para quinta—feira os cachorros latiram bastante. Era pouco mais de quatro da manhã quando eu ouvi os latidos. Já havia escutado antes, por volta da uma da manhã. Mas desta vez os latidos estavam incomodando muito. Eu me levantei e fui checar. Vi um vulto pulando a grade do portão.
— Tem como identificar a pessoa?
— Não sei, não, senhor. Estava muito escuro e eu ainda estava assonado.
Paranhos aproximou—se.
— Vamos resolver esse caso num piscar de olhos. Só falta pegar esse tal de Caio.
— Como sabe que foi ele?
— A empregada não lavou os copos e mandamos checar as digitais. Se bater com as do rapaz, o caso está encerrado. Os repórteres vão sossegar, o secretário de segurança vai agradecer e os grupos de ativistas homossexuais vão aplaudir. E, obviamente, Genaro Del Prate vai ficar muito feliz. Esse caso é sopa no mel.
— Não sinto isso – contrapôs Telles. – Algo me diz que o buraco é mais embaixo.
Paranhos riu com desdém.
— O que foi? Algum ente do Além veio lhe cochichar alguma coisa?
— Não se trata disso. Algo me diz que estamos no caminho errado.
— Não me importa o caminho, desde que eu pegue o infeliz que cometeu esse crime e o bote atrás das grades.
— Vai demorar para sair o resultado das digitais.
— Engano seu. Os rapazes estão correndo a toda brida. A pressão é forte e querem solucionar esse caso o mais rápido possível.
— Entraram em contato com Genaro para cuidar do enterro?
— Ele deu uma declaração bombástica, que irritou muita gente, mas agradou em cheio àqueles setores mais endurecidos da sociedade.
— O que Genaro Del Prate disse?
— Que não fazia a mínima questão de quem fosse o criminoso. Queria, sim, que o culpado fosse preso e que acabassem logo com esse circo. Genaro afirmou que seu irmão tinha uma vida torpe, era homossexual – o que ele condena sobremaneira –, e recebeu o troco pelo seu comportamento antinatural. Genaro declarou à imprensa que a ira de Deus puniu seu irmão.
— Quanto absurdo numa única declaração – tornou Telles, perplexo.
— Acho que Genaro carregou na tinta do preconceito, mas o que fazer? Ele quer que seu eleitorado não pense que ele seja conivente com o comportamento sexual do irmão. Isso é jogada política. Mais nada.



CAPÍTULO 24


Caio trabalhou bastante naquele sábado. Deu duro para vender e ganhar boa comissão. Logo, talvez em um mês, teria condições de terminar de pagar o que devia ao Gregório, ele quisesse ou não.
O rapaz estava particularmente contente. Foi trabalhar bem vestido e levara uma mochila com roupas e apetrechos de uso pessoal. Iria sair do serviço, tomar banho na casa de um amigo, que também trabalhava no shopping, porquanto o rapaz morava perto da casa de Luísa.
Faltava pouco para fechar a loja, quando ouviram um burburinho lá fora. O falatório foi crescendo, crescendo e, em seguida, uma multidão parou na frente da loja. A gerente, as vendedoras e o próprio Caio entreolharam—se sem nada entender e deram de ombros. Não imaginavam o que poderia ser aquilo.
Um delegado entrou na loja, com pose arrogante e jeito exagerado. Dirigiu—se até Caio, visto que ele era o único homem ali presente.
— Caio Abrantes Souza?
— Sim, sou eu.
— Você está preso.
O burburinho foi geral. As pessoas falavam entre si, causando uma verdadeira bagunça na loja. A gerente aproximou—se e disse:
— Creio que o senhor esteja equivocado. Caio é bom funcionário, uma boa pessoa. Não podem entrar na minha loja, sem mais nem menos, e fazer uma acusação tão grave.
O delegado riu de maneira sarcástica.
— Eu tenho aqui uma intimação expedida pelo juiz. Enquanto levamos o rapaz para o distrito, pode ligar para a família dele e pedir um bom advogado.
Caio estava perturbado. Sua boca estava seca. Ele perguntou, pausadamente.
— Estou preso por quê?
O delegado fez suspense. Em seguida afirmou:
— Você está preso pelo assassinato de Gregório Del Prate.
A gritaria agora era geral. Dois policiais entraram na loja e algemaram Caio. Ele abaixou a cabeça de maneira triste. Não estava envergonhado. Estava triste, muito triste.
Caio foi levado à delegacia e passou horas dando à mesma declaração. Paranhos recebera ordens expressas e superiores de que deveria prender o rapaz. Genaro fizera muito barulho entre os militares e tudo foi feito de maneira muito rápida. Assim eles calavam a boca da imprensa.
Caio foi preso. Telles tentou argumentar.
— Isso não se faz. Mal abrimos inquérito policial.
— Ordens lá de cima – fez Paranhos com um movimento brusco de mão.
— E daí? A Divisão de Homicídios é conhecida como o braço da polícia com o maior número de policiais honestos. Fazemos um time que trabalha corretamente, mesmo sem ter recursos necessários para tal.
— Paciência. Eu cumpro ordens. O rapaz vai para o xilindró. A confissão dele, de que esteve na casa de Gregório na noite do crime, é prova suficiente para incriminá—lo e detê—lo. E tem mais, aqui não tem espaço para ele. Está superlotada.
O rapaz vai para uma cela no distrito do Marquês de Paranaguá. Talvez fique por lá até o julgamento.
— Vocês estão indo longe demais. Falando até em julgamento? Estão colocando a massa na frente do pão – protestou Telles. – Caio jura que saiu da casa de Gregório por volta da uma da manhã. Pegou um dos últimos ônibus do horário.
— Ele pode ter pego o primeiro ônibus que saiu da garagem, logo cedo. Quem garante? – perguntou Paranhos, de maneira duvidosa.
— Tomamos o depoimento de... – Telles deu uma passada de olho no inquérito – Célia Bastos, conhecida como Celinha. Ela declarou que viu Caio chegar a casa por volta de uma e meia da manhã.
— É a palavra dela contra a da acusação. E o caseiro? Ele confirmou que Caio foi o rapaz que pulou a grade do portão.
— O caseiro estava aturdido, nervoso. Décio me relatou que mal viu quem pulou. Podia ser Caio ou Guido.
Paranhos riu.
— Guido. Quem é esse Guido? Alguma ficha na polícia?
— Não.
— Alguém o viu?
— Também não.
— Porque não existe Guido algum. Se tivéssemos como encontrar esse rapaz – e acredito que ele não exista –, eu até relutaria em prender o pobre Caio. Mas cadê esse moço? Sumiu. Desapareceu. Escafedeu—se no mundo.
— Tem razão. O pior é que as impressões digitais num dos copos confere com as de Caio. Esse rapaz está metido numa encrenca braba. Entretanto...
Telles parou de falar. Fitou o nada, por alguns instantes. Paranhos inquiriu:
— Entretanto?
— Sinto que ele não cometeu esse crime. Caio é inocente.
— Teremos de provar isso.
— Paranhos, aí está um grave erro de nossa justiça.
Primeiro devemos checar todas as evidências, até que se prove a culpabilidade. Nós estamos começando errado. Esse menino é inocente.
Paranhos salientou:
— O Código de Processo Penal, datado de 1941, sofreu poucas modificações até hoje. O Código foi criado durante o Estado Novo de Getúlio Vargas. E, tanto Getúlio quanto nosso atual presidente, o general Figueiredo, valeram—se de ferramentas policialescas para governar.
— O despacho do juiz foi fundamentado sobre elementos probatórios e indício forte de autoria. Genaro fez tanta pressão, criou tanto caso lá em Brasília – Telles moveu os dedos para o alto – que o juiz decretou a prisão de Caio sob alegação de suspeita de que ele fuja, caso responda ao processo em liberdade.
— É uma truculência, mas estão se valendo da Lei.
— Caio vai ter de aguardar a sentença na delegacia e só será transferido para a Penitenciária do Carandiru após sentença condenatória definitiva.
— Acredita que isso vá acontecer?
— Algo me diz que não. Sinto isso – tornou Telles.
Paranhos riu alto.
— O que foi? Algum espírito veio tagarelar e contar—lhe algo que não sabemos?
— Deixe de brincadeira. Ninguém veio me procurar. É minha consciência que me chama para a realidade.
— Diga isso ao juiz amigo de Genaro. Quero ver o que ele vai mandar você fazer com sua consciência.
Paranhos continuou a rir e deixou a sala de Telles. O delegado estava sem forças. Havia feito de tudo para que Caio não fosse preso, mas em vão. A correria dentro da corporação, pressionada pelos militares, acelerou a prisão de Caio. Algumas evidências apontavam para ele, mas não eram suficientes para que ele fosse preso.
— Se fosse rico – disse Telles para si mesmo – ele nem iria para a cadeia.
Pagaria fiança, contrataria um bom advogado e responderia ao crime, se é que o cometeu, em liberdade. Infelizmente, o rapaz não tem recursos e vai amargar o diabo.
Telles sabia de alguma forma, que Caio não tinha cometido aquele crime. Tinha plena certeza de que o autor do crime fora Guido. Mas e Guido? Quem era esse moço? Onde estava? Por que sumira do mapa?
Guido efetivamente desaparecera. Sumira da vida de todos. Por ora.


****

Rosalina teve de ser acudida e levada a um pronto—socorro quando soube do que ocorrera com seu filho.
— Ele não faria uma coisa dessas. Caio é um bom menino— repetia intermináveis vezes.
— Sabemos disso – declarou Fani. – Mas o que fazer? Ele é acusado de ter matado uma pessoa importante, conhecida. O irmão da vítima é um político famoso também. Caio se meteu com gente graúda, influente e inescrupulosa. Até que prove o contrário, vai ficar preso.
— Não posso concordar com isso. Onde está a justiça neste país? Será que ela é mesmo cega?
— Não se aflija – interferiu José. – Estamos do seu lado. Também vamos dar todo o suporte necessário a Caio.
— Eu conheço um bom advogado – tornou Fani.
— Custa dinheiro. É caro – protestou Rosalina. – Meu filho não merece passar por tudo isso.
Rosalina foi medicada e o médico exigiu que ela repousasse por alguns dias. Mas ela não era mulher de ficar parada e, no dia imediato, em equilíbrio, resolveu visitar o filho na cadeia.
O distrito policial, na Marquês de Paranaguá, ficava numa rua tranqüila e arborizada, encravada na região do bairro da Consolação. Rosalina decorou o trajeto. Tomava o ônibus na Rua Brigadeiro Luís Antônio.
O ônibus dava uma volta enorme, contornava o centro e subia a Rua Martins Fontes, sentido Paulista. Quando a rua mudava de nome para Augusta, Rosalina puxava a cordinha e descia quase na esquina do distrito.
Era com pesar que ela entrava e ia ao encontro do filho, metido numa cela com mais quatro rapazes. Rosalina procurava conter o pranto. Aquilo não era justo, embora, neste dia em particular, ela precisava falar com o filho. Tinha recebido recado de Norma.
Rosalina cumprimentou algumas pessoas e, como era conhecida, foi levada pelo carcereiro para ver o filho.
O aspecto de Caio era desolador. As olheiras se faziam notar. Ele havia emagrecido, sua pele adquirira cor pálida. Ele mal se alimentava, não queria saber de mais nada. A vida, para ele, acabara no exato instante em que seus pulsos foram agraciados com aquele incômodo par de algemas.
— Trouxe um pedaço de bolo de cenoura. Você adora.
— Não quero mãe. Estou sem fome.
— Precisa se alimentar. Como pode querer ficar bem se não se ajuda?
— E me ajudar para quê? Quantos dias choramos juntos? Eu e você perdemos as esperanças. Creio que minha vida vai se encerrar aqui, dentro das grades.
— Eu não penso assim.
— Você mesma estava tão desiludida. O advogado que Fani conseguiu afirmou que irei a júri e tenho chance quase nula de ser absolvido. Disse que o juiz que expediu o mandato de prisão é amigo do Genaro. Amigo íntimo. Pode uma coisa dessas?
— Não ligo para isso. Estou confiante.
— Por quê? – o semblante dele iluminou—se por um momento. – Teve notícias de Guido? Ele apareceu?
Rosalina meneou a cabeça para os lados.
— Não, meu filho. Esse seu amigo sumiu do mapa. Parece que tomou um bom chá de sumiço.
O rosto dele voltou a entristecer—se.
— Guido nunca vai aparecer. Eu sei que houve algo entre ele e o Gregório naquela noite. Guido está metido até o pescoço com esse crime. Todavia, como vamos encontrá—lo?
— Não sei meu filho. Precisamos confiar na justiça.
— Na justiça dos homens? – ele riu com desdém. – Ela é falha, porque foi feita pelo homem. O homem não é perfeito.
— Mas se não houvessem leis, o mundo estaria perdido. Infelizmente, injustiças acontecem, mas precisamos de leis. No estágio em que nos encontramos na Terra, elas são importantes para manter a ordem social. Eu... – Rosalina hesitou por instantes, sentiu coragem e continuou: — eu recebi um comunicado de sua irmã.
Caio deu um passo para trás. Encarou a mãe com espanto.
— De novo isso? Como pode?
— Norma esteve comigo. Dessa vez foi diferente.
— Outra carta? – ele perguntou com desdém.
— Não. Ela deu comunicação no Centro da Mafalda. Não fui só eu que ouvi. Maximiliano, Renata e até Luísa ouviram o médium transmitir o recado de Norma.
Caio esboçou leve sorriso. A imagem de Luísa veio à sua mente e ele não pôde deixar de sentir imensa saudade.
— Luísa deve estar decepcionada comigo. Imagine se meter com um rapaz dito criminoso!
— Ela não se deixa levar pelas aparências. Luísa é moça culta e sensível. Ora por você todos os dias.
— Nunca veio me ver.
— Talvez ela tenha seus motivos.
— Diga a ela para vir me ver, mãe, por favor.
— Vou tentar. Na próxima reunião no Centro Espírita, falarei com ela. Agora trouxe o recado que todos eles, não só eu, recebemos de sua irmã.
Caio encarou a mãe com ar desconfiado.
— O que Norma disse dessa vez?
— Que você não é o culpado.
— Grande coisa. E quem vai acreditar num espírito?
— Norma disse que o seu espírito – apontou para Caio – desejava passar por essa experiência, a fim de aplacar a culpa que sentia por atos irresponsáveis do passado.
— Não creio que pediria uma coisa dessas. Por que sofrer?
— Você escolheu. Poderia ser de maneira inteligente, por outros meios, mas você escolheu este caminho.
— Não me lembro de ter escolhido isso. É tudo balela.
— Norma garantiu que não. Você e Gregório traziam situações mal resolvidas do passado.
— Mas eu não o matei, mãe! O que é que eu tinha de resolver, ora bolas?
— Não sei ao certo. Tudo aparece no seu devido tempo. A verdade pode demorar, mas uma hora aparece.
— Duvido.
— Todos ficaram impressionados na reunião. Sua irmã falava com propriedade. Disse que logo você vai sair da cadeia. Esse tempo servirá para você descansar, digamos assim.
— Descansar?!
— Sim. Poderá refletir sobre sua vida, pensar no que vai fazer no futuro. Você era muito desmiolado, filho. Veio a São Paulo e, em vez de batalhar pela sua carreira de modelo, preferiu o sexo fácil, afastou—se de seu verdadeiro caminho.
Caio não sabia o que dizer. Rosalina jamais poderia saber de sua vida promíscua assim que chegara a São Paulo. Como ela soubera disso? Quem lhe contara, porquanto Guido era o único que sabia e estava desaparecido. Ou José teria lhe traído a confiança?
Antes que ele pudesse formular uma pergunta, Rosalina disparou:
— Norma me contou. Tudo. Disse que vibrou muito para que você pudesse captar os pensamentos dela e sair daquela vida que iria destruí—lo. Afirmou também que você estava sendo ameaçado por outro crime que não cometeu.
Caio não podia acreditar no que ouvia. Será que existia mesmo essa outra dimensão?
Será que havia um mundo espiritual, ligado ao nosso mundo físico? Será que as pessoas morriam e iam para esse tal mundo? As perguntas fervilhavam—lhe a cabeça. De repente, Rosalina retorquiu:
— Você deve confiar na justiça divina. Ela não falha, jamais. Sua irmã mandou lhe dizer que vão descobrir quem matou Loreta. Você não é o culpado, embora tenha sido chantageado.
As lágrimas corriam—lhe sem cessar. Caio estava deveras emocionado. Rosalina falava tudo o que se passara com ele nos últimos tempos. Como ela podia saber de tanta coisa?
Ele, triste, aproximou—se das grades e estendeu os braços para Rosalina.
— Mãe, ajude—me a entender esse mundo espiritual. Pensei que estivesse ficando louca, que não queria aceitar a morte de Norma, mas vejo que tem razão. O espírito de minha amada irmã deve estar ao seu lado. Tudo o que você me disse agora – ele falava com voz entrecortada por soluços – é a pura verdade. Eu me atirei ao sexo fácil, vendi meu corpo, fui influenciado por Guido. Poderia adotar outro comportamento, mas me deixei levar pelo dinheiro que aparecia fácil. Algo dentro de mim dizia que aquilo não estava correto, que eu devia mudar.
— Era sua irmã, meu filho. O espírito de Norma sempre o acompanhou.
Ele ruborizou.
— Sempre?
— Sim. Norma presenciou muita coisa. Até o que não devia.
Caio enxugou os olhos com as costas das mãos.
— Ela é meu anjo bom. Assim como Sarita o foi.
— Fani foi a Bauru para o casamento de Sarita.
Ele esboçou largo sorriso, mostrando seus dentes alvos e perfeitos.
— Pelo menos uma notícia boa nessa fase ruim.
— Sempre gostei muito dessa menina.
— O meu anjo vai se casar? Com quem?
— Não sei, mas parece que será um grande evento. Fani me garantiu que Sarita está feliz.
— Sinto tanta saudade dela. Ela me ajudou tanto. Gostaria muito de reencontrá—la.
— Quando sair daqui, poderá ir ao seu encontro. Não crê que está na hora de voltar—se para o conhecimento do mundo espiritual? Vai ficar na cadeia pensando em quê? Em bobagens? Não acha melhor, depois do que eu lhe falei de Norma, começar a ler alguns livros e abrir sua cabeça para as verdades da vida?
— Tem razão, mãe. Depois do que me falou, não tenho dúvidas de que Norma está a meu lado. Mas não entendo nada. Sou muito cru.
— Não importa – Rosalina sorriu. – Eu sabia que você iria me escutar e abrir seu coraçãozinho combalido para a espiritualidade. Tomei a liberdade de trazer alguns livros para você.
Rosalina tirou da sacola três livros. Passou—os por entre as grades.
— São fáceis de entender, mãe?
— Claro. Um é O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec. Este livro é à base de estudo de qualquer pessoa que queira entender o mundo espiritual que nos cerca. É composto de perguntas e respostas. Trata—se de um livro de fácil leitura, porém riquíssimo em ensinamentos.
Caio olhou para o livro de capa dura. Abriu—o e deu uma folheada.
— Incrível! Há resposta para tudo.
— Pois bem – tornou Rosalina –, esse outro é mais técnico, fala sobre a reencarnação. E esse terceiro é um romance.
— Romance?
— Sim. Romance espírita. Nesse tipo de livro encontramos também muitos ensinamentos. Este aqui chama—se Entre o amor e a guerra, de Zibia Gasparetto. Tenho outros romances dela. Se você gostar desse aí – ela apontou para a capa do romance –, eu trago os outros para você ler.
— Obrigado, mãe. Creio que agora terei tempo de sobra para ler esses livros todos. Sabe que até senti fome? Vou querer um pedaço desse bolo de cenoura.
Um companheiro de cela, ligado na conversa, objetou:
— Sejam democráticos. Dêem um pedaço para cada um de nós.
Rosalina sorriu.
— Eu trouxe bolo para todos vocês. Vamos, peguem seus pedaços.
Os rapazes aproximaram—se e pegaram uma fatia de bolo. Caio pegou a sua e, depois que ele comeu, Rosalina despediu—se. Precisava voltar para a pensão, porquanto Fani estava viajando e ela e José tornavam—se responsáveis por tudo o que lá acontecia quando a patroa viajava.
Caio sentiu uma leve brisa acariciar seu rosto. Lembrou—se de Norma. Intimamente, pensou:
"Você me vê, irmã? Você me escuta? Será que continua me acompanhando?"
Ele não percebeu, mas o espírito de Norma estava a seu lado na prisão. Uma lágrima escorreu pelo canto de seu olho. Ela acariciou seus cabelos em desalinho e tornou com a voz amável:
— Estarei sempre a seu lado, meu irmão. Prometo que assim que seu espírito amadurecer e livrar—se da culpa do passado, os fatos vão se desenrolar de outra maneira, em direção à felicidade. Tenho certeza de que agradáveis surpresas virão. Para o bem de todos.
Norma o beijou na fronte e sumiu. Caio pegou O Livro dos Espíritos e começou a ler. Interessou—se amiúde e manteve—se na leitura por horas a fio. Seu espírito começava a se libertar, efetivamente, das situações mal resolvidas que ele se impusera no passado.



CAPÍTULO 25


Luísa estava sentada numa poltrona, folheando uma revista de moda. Seu olhar estava perdido, alheio. Ela mal prestava atenção nas páginas. Suas mãos viravam as folhas de maneira automática.
Sua mente voltou alguns meses atrás. Ela ainda se sentia desconfortável com tudo o que tinha ocorrido. Ainda lembrava bem daquela sexta—feira. Fora ao mercado, parecendo uma adolescente apaixonada. Comprara os ingredientes para o jantar de sábado, escolhera, inclusive, um bom vinho branco para acompanhar a refeição. Chegara à casa feliz e radiante.
No sábado, arrumou a casa com apuro. A mesa de jantar estava repleta de candelabros e velas acesas iluminavam o ambiente, de maneira romântica e acolhedora. Eunice a ajudou nos detalhes, desde a escolha da toalha branca de linho, passando pelos talheres, louças, guardanapos e taças.
A decoração do ambiente estava primorosa, não havia nada a acrescentar ou tirar. Estava tudo perfeito.
As horas foram se aproximando e a ansiedade estava difícil de ser controlada. O relógio da sala deu dez badaladas. O coração de Luísa veio à boca.
— Ele vai chegar logo – disse, sorrindo para si mesma.
Dez e meia. Onze horas. O interfone tocou e ela correu a atender. Era Malaquias, informando que o entregador de pizza estava lá embaixo.
— Eu não pedi pizza, Malaquias.
O porteiro tapou a boca do fone e percebeu que o entregador se confundira com o apartamento.
— Desculpe—me, D. Luísa, ele se enganou com o número.
Ela aproveitou:
— Malaquias, alguém apareceu aí na portaria à minha procura?
— Não, senhora.
— Não apareceu ninguém aí às dez da noite?
— Nada.
— Obrigada.
Ela desligou o interfone e a expressão em seu rosto não era das melhores. Eunice procurou contemporizar.
— Ele disse que trabalha muito no sábado. Vai ver teve de ficar até mais tarde. Vamos aguardar.
— Ele podia ao menos ter me ligado e dito que ia se atrasar. Odeio essa falta de pontualidade nas pessoas.
— Calma querida – Eunice serviu—a de uma taça de vinho branco. – Tome um pouco. Relaxe. Ele vem logo.
Luísa quis acreditar naquilo. Bebericou seu vinho e voltou para a sala. Esperou, esperou, até cochilar. Acordou com a mão de Eunice apoiada delicadamente sobre seu ombro. Ela despertou e levantou—se rápida.
— Ele está aí? Caio chegou?
— Não. Já passa das duas da manhã. Vamos nos deitar.
Luísa fez o possível para segurar as lágrimas. Nunca se sentira tão humilhada. Seu coração a enganara, pensou. Caio não estava interessado nela. Bem que ela percebeu seu mutismo ao telefone, quando o convidou. Ele não quis ser indelicado e dizer—lhe não. Foi isso! Caio aceitou o convite porque ela foi insistente. E ele era mais jovem. É obvio que tinha preferência por meninas de sua idade.
O turbilhão de emoções e pensamentos não parava de bombardear—lhe a mente. Luísa precisou de um bom tempo para pegar no sono. Dormiu até quase meio—dia.
Eunice a despertou com o semblante carregado de preocupação.
— O que foi?
— Maximiliano e Renata estão na sala. Querem lhe falar, com urgência.
— Estou com dor de cabeça. Dormi muito mal. Diga—lhes para passar aqui outra hora.
Não foi preciso Eunice ir até eles. Renata entrou no quarto e, antes que Luísa lhe fizesse uma reprimenda, ela disparou:
— Caio foi preso.
As palavras demoraram para surtir efeito em sua cabeça. Luísa ia perguntar novamente, entretanto Renata contrapôs:
— Caio foi preso ontem à noite.
Luísa remexeu—se na cama. Ajeitou o corpo, sentou—se.
— O que me diz?
— Isso mesmo que você ouviu amiga.
— Como foi? O que aconteceu?
— Ele está sendo acusado de ter matado Gregório Del Prate, seu ex—cunhado.
— Caio?
— Hum, hum.
— Ele conhecia Gregório? Como?
— Não sabemos ao certo, Luísa, mas as emissoras de TV não falam noutra coisa. As imagens da entrada dele no distrito policial passam de cinco em cinco minutos. Quer ver?
Renata foi até o aparelho de TV e o ligou. Colocou em um canal que estava dedicando o horário à cobertura do crime.
— É ele! – exclamou Luísa.
— Teve de ver com seus próprios olhos.
— Mas como?
— Eu e Max fomos até a pensão e prestamos nossa ajuda à Rosalina. Mafalda nos ligou e pediu que fizéssemos orações pelo espírito de Gregório e Caio.
Ambos precisam de muita vibração positiva.
Luísa demorou para concatenar os pensamentos. Sua mente voltou para a revista que folheava. Fazia alguns meses que separavam este dia daquele longíquo domingo, quando soube do crime pela TV. Ao saber do envolvimento de Caio com Gregório, sentiu—se mal, muito mal. Não teve coragem para visitar Caio e ouvir o seu lado da história.
Ela estava ficando paranóica, louca mesmo. Pensava em Caio todos os dias, todas as horas. Rezava por ele, fazia vibrações no Centro. Entretanto, tinha medo de visitá—lo. No fundo, ela acreditava que Caio tinha se aproximado dela por interesse. Ele era amigo – ou talvez amante de Gregório, vai saber... – e estava tripudiado sobre seus sentimentos.
Mas por que Luísa acreditava numa sandice dessas?
Ora, porque o espírito de Gregório, mesmo sabendo quem havia matado seu corpo físico, procurava incutir na mente de Luísa essas idéias disparatadas. Gregório ainda estava cego de paixão e não permitia ou queria que ninguém se aproximasse de Caio.
Ele ainda estava preso ao passado e sua cabeça, perdida e atordoada pela maneira brutal com que perdera a vida física, assim que tinha chance, aproximava—se de Luísa e inspirava—lhe esses pensamentos dúbios.
Luísa, invigilante nos pensamentos, acreditava que tudo o que passava em sua mente era dela e de sua intuição. Não suspeitava que pudesse estar sendo influenciada por um espírito.
Ela freqüentava o Centro Espírita, fazia os trabalhos, mas não levava os estudos a sério. Sentia—se útil em ajudar as pessoas, mas não fazia muito esforço para entender melhor o mundo espiritual e a si mesma.
Como havia se livrado de Genaro e agora se sentia mais forte, Luísa acreditava que não precisava ir fundo nos estudos espirituais. Estava tudo indo muito bem em sua vida, por que estudar sobre o invisível? Ela tinha mais o que fazer.
Luísa acreditava, lá no fundo, que a maneira séria com que Renata e Max se debruçavam sobre os estudos espirituais era falta de alguém em suas vidas. Se amassem ou fossem amados – acreditava ela – eles não dariam tanta importância aos estudos espíritas.
Ledo engano. A mente de Luísa começava a receber assédio de espíritos que não gostavam de quem se interessava pelos estudos espíritas. Havia um bando – como há até hoje no nosso mundo – de espíritos cuja única função é espalhar a descrença e semear a ignorância espiritual sobre os encarnados. Como muitos sempre andam com a cabeça solta, deixam—se levar e invadir por todo e qualquer tipo de pensamento, sem ao menos, dar—se ao trabalho de checar o que é seu e o que não é.
Fazia quatro meses que Caio estava preso e Luísa ainda não havia lhe feito uma visita sequer. Embora estivesse com a mente embaralhada, ela sofria. Seu coraçãozinho, impotente, gritava, debatia—se, tentava mostrar a Luísa que ela estava se distanciando de seu grande amor, influenciada por pensamentos que não eram seus.
Sentindo—se atordoada, e inspirada pelo espírito de Loreta, certa noite Luísa aguardou o fim dos trabalhos espirituais e foi ao encontro de Mafalda.
— Preciso falar com você.
— Eu sei, os espíritos me avisaram. Venha, vamos até uma sala reservada.
Mafalda despediu—se dos demais e, em seguida, conduziu Luísa até sua sala.
— Pois bem, acredita que agora poderá mudar o teor de seus pensamentos?
— Do que está falando?
— Eu prezo muito pelo seu bem—estar, Luísa – disse Mafalda com uma voz para lá de amorosa. – Sei que está sendo assediada por um espírito perturbado e, invigilante, sem tomar conta dos seus próprios pensamentos, acredita que tudo seja fruto de sua cabeça.
— E não é?
— Não, minha querida. Você está sofrendo forte interferência espiritual.
— Eu não sinto nada e....
— Não sente, mas pensa – declarou Mafalda. – Pensa que tudo que passa pela sua cabeça é seu?
— E não é?
— Nunca parou para pensar que, muitas vezes, captamos os pensamentos dos outros, sejam encarnados ou desencarnados? Não estudou o assunto aqui no Centro?
Luísa sentiu a face arder. Aprendera sobre o domínio dos próprios pensamentos, nunca se esquecera da aula em que aprendera o verdadeiro sentido de "Orai e Vigiai", tão pregado pelos espíritos. Mafalda percebeu—lhe os pensamentos.
— Orai e vigiai. Temos de prestar atenção aos nossos pensamentos. Não podemos aceitar tudo o que invade nossa mente como sendo nosso.
— Sei disso, mas é difícil saber e separar o que é meu e o que não é.
— Ora, tenha um pouco mais de paciência consigo mesma – ajuntou Mafalda. – Quando um pensamento ruim se apossar de sua mente, pergunte se ele é seu ou de outros, não importando se for de gente encarnada ou de espírito. Tanto faz. O importante é saber selecionar o que entra e permanece em nossa mente. Esse exercício compete somente a nós e mais ninguém.
Uma lágrima escapou pelo canto do olho de Luísa.
— Eu sinto que às vezes minha cabeça fica bastante tumultuada. Eu tento combater, mas os pensamentos continuam a me perturbar.
— Pela sua invigilância, está sofrendo forte ataque espiritual. Gregório está em sua cola.
— Gregório? – perguntou Luísa, de maneira espantada.
— Sim. O espírito de Gregório aproveitou a sua falta de atenção nos pensamentos e a está bombardeando com energias negativas.
Ele está fazendo com que você sinta medo, raiva, angústia.
Luísa estava estupefata.
— Por que o espírito de Gregório se ligaria em mim? Nunca tivemos nada em comum. Eu o vi pouquíssimas vezes nesta vida. Não compreendo.
A voz de Mafalda era doce, porém firme.
— O véu do passado não permite que saibamos de muitas coisas, única e exclusivamente para o nosso próprio bem. De que adiantaria ter acesso às vidas passadas?
— Facilitaria em muitas coisas.
— Como assim Luísa? – perguntou Mafalda, de maneira desafiadora. – Acaso acha que, o filho que descobre ter sido assassinado pelo pai numa outra vida terá condições de perdoá—lo e de amá—lo? Ou mesmo de manter com esse pai um convívio saudável? Será que uma mãe dará à luz um filho que, numa outra época passada a tenha feito infeliz? Será que não saber do passado acaba por se tornar ferramenta útil voltada para o nosso crescimento espiritual?
— Faz sentido. Mas não consigo, em hipótese alguma, entender por que Gregório está me assediando.
— Vocês estão vibrando no mesmo padrão energético, em primeiro lugar. Você anda negativa, descrente do futuro, acredita que a vida tenha perdido seu brilho e não faz força para mudar essa atitude de prostração que maltrata sua aura. Segundo, porque você, Gregório e Caio estão ligados pelas teias do passado. Vocês estão recebendo a chance de desfazer os laços de rancor que os prendem há algumas vidas.
As lágrimas escorriam sem cessar. Luísa levou a mão à boca para abafar os soluços. Não conseguia ter certeza, mas algo lá no cantinho de sua alma parecia constatar, parecia acreditar piamente em tudo o que Mafalda lhe falava. Sentia que tudo aquilo fazia sentido e tratava—se da mais pura verdade.
Ela pousou suas mãos nas de Mafalda.
— Não sei como agradecê—la. Tenho vontade de falar com Caio, de procurar—lhe, dar—lhe meu apoio enquanto está preso, entretanto uma força me impede.
– Impedia – corrigiu Mafalda. – Nesta noite, com a permissão do Alto, o espírito de Gregório foi afastado de você. Se mudar o teor de seus pensamentos e mantiver—se—se vigilante, sabendo selecionar o que entra em sua mente – apontou para sua cabeça – nem Gregório, nem mesmo outro espírito, nem mesmo um encarnado poderá aproveitar—se e incutir—lhe na mente pensamentos negativos.
— E os pensamentos dos bons espíritos? Não vou captar nunca mais?
— Esses vamos sempre captar, caso estejamos de bem conosco mesmos, em equilíbrio. Quando estamos invigilantes e não temos controle de nossa mente, os bons amigos espirituais não conseguem se aproximar. Fica muito difícil captarmos o que eles nos inspiram quando estamos invigilantes, em desequilíbrio.
— Eu não tenho como agradecer, Mafalda. Sinto como se um peso muito grande fosse retirado de minhas costas e minha cabeça. Sinto—me inclusive mais leve.
— É que agora você não tem companhias espirituais que a atormentam.
— Gregório foi mesmo afastado?
— Sim, esta noite. Tentamos encaminhá—lo para doutrinação, mas ele recusou—se terminantemente. Há muitos espíritos desafetos que o estão perseguindo. Gregório está colhendo o que plantou. Mas, em hipótese alguma, devemos julgá—lo. Pelo contrário. Todos somos filhos do mesmo Pai e devemos, ao menos, vibrar pelo espírito atormentado de Gregório. Seu nome está na caixa de orações do nosso Centro. Espero que essas orações aliviem seu sofrimento e possam ajudá—lo a despertar e dar novo passo no caminho de sua evolução.
Luísa despediu—se de Mafalda e saiu do Centro sentindo—se mais leve.
Em seguida, tirou as luvas cheias de sangue e as colocou no bolso. Pegou novo par de luvas e as meteu nas mãos. Olhou ao redor para ver se tinha deixado algum vestígio. Nada.
O assassino desceu as escadas, jogou sobre a mesinha uma carta que Gregório começara a escrever, tentou abrir o cofre, mas não conseguiu. Depois, pegou o maço de dinheiros que estava sobre a mesa, enfiou na jaqueta de náilon e saiu. Os cachorros, acostumados com ele, latiram muito, mas não o morderam. Ele pôde tranqüilamente ganhar o pátio, contornar a piscina, passar pelo jardim e pular o portão, escalando as enormes grades de ferro.
Décio viu o vulto pular o portão e ganhar a rua nesta hora. Eram quase cinco da manhã.
Gregório atordoado viu—se assediado por sombras escuras. Ele não conseguia lhes perceber a forma. Somente ouvia gemidos e gritos desesperados. Eram vozes, as mais variadas, cobrando—lhe satisfações de coisas que ele mal se lembrava de ter feito.
Desesperado com o número crescente de sombras ao seu redor, o espírito de Gregório ajoelhou—se, e, mesmo sentindo uma dor aguda no peito, lembrou—se de Maximiliano, conhecido seu. Max e ele não eram amigos, mas, sem saber o porquê, Gregório lembrou—se dele e assim foi arremessado para o quarto de Max.
Foi então que Max teve o sonho. Ou pesadelo. O espírito atormentado de Gregório tocou—lhe o perispírito e pediu por ajuda. Max, sem saber direito o que ocorria, ofereceu—lhe o quarto de hóspedes e voltou a dormir. Gregório acreditou que lá estaria seguro, entretanto, logo em seguida as sombras reapareceram e levaram—no de lá.
Começou o sofrimento de Gregório. Passou a ser assediado por essas sombras e por espíritos de baixa vibração ligados a elas. Embora tenha sido, quando encarnado, amoral e sem escrúpulos, ele trazia em sua memória espiritual a brutalidade que usara em outras vidas.
Logo, tomou ciência de sua força, botou as sombras, as vozes murmurantes e os espíritos para correr e passou a andar a esmo, perdido e desorientado.
Certa vez, um espírito de luz ofereceu—lhe ajuda. Gregório recusou. Noutra vez, quando tencionava perseguir seu assassino, seus planos mudaram. Gregório teve um lampejo de sua vida passada e, desta feita, passou a assediar Luísa. Aproveitou que ela andava amuada e triste, invigilante nos pensamentos, e colou—se a aura dela.
Nesta noite, os espíritos que trabalhavam no Centro Espírita conseguiram atraí—lo para a sala em que eram realizadas incorporações e doutrinação de espíritos, digamos, perturbados e sofredores.
Cabe ressaltar que, esse tipo de trabalho espiritual é feito por médiuns experientes que estudam com afinco a espiritualidade. Precisam ter muito equilíbrio e serem donos absolutos de seus pensamentos, a fim de não caírem na lábia dos espíritos empedernidos.
A doutrinação, no caso, nada mais é do que um bate—papo sincero e amigo, a fim de que o espírito possa tomar consciência de seu novo estado e ser encaminhado a uma estação de tratamento espiritual.
Loreta interveio e tentou prestar algum tipo de ajuda a ele. Em vão. Nada adiantava.
Gregório recusou—se terminantemente a receber ajuda. Saiu do Centro gritando impropérios. Esperou que Luísa saísse de lá para continuar a assediá—la. Mas algo de errado aconteceu, porquanto ele não conseguia aproximar—se dela. Era como se Luísa estivesse envolta por uma rede invisível de proteção. Gregório tentava lhe influenciar os pensamentos, porém Luísa não os captava, de forma alguma.
Louco de raiva, Gregório correu até Caio. Talvez o rapaz, triste e revoltado por estar indevidamente preso, poderia dar—lhe passagem.
— Vocês não vão ficar juntos – vociferou Gregório, enquanto fechava os olhos e mentalizava o rosto de Caio, a fim de ir ao seu encontro. – Eu juro que prefiro separar vocês a ir atrás de meu assassino.



CAPÍTULO 26


Telles coçou a barba espessa, porém bem aparada. Estava intrigado. Sentia ser assediado por amigos espirituais do bem, espíritos de luz que lhe incutiam na mente o desejo de ir além nas investigações do assassinato de Gregório Del Prate.
O secretário de segurança deixara de ser incomodado, Genaro estava tranqüilo, a TV e os jornais não deram mais atenção ao caso. A sociedade, como de costume, deixara de fazer alarde e logo esqueceu do crime.
Caio estava preso há quase um ano e, em breve, iria a julgamento. Não podiam fazer mais nada, afinal Guido, que poderia prestar alguma ajuda um esclarecimento, uma luz sobre o caso, estava desaparecido. E ninguém conhecia esse tal de Guido.
Telles acreditava na inocência de Caio. Mas o que fazer? Como apresentar evidências que pudessem mudar o rumo do caso?
O delegado meneou a cabeça para os lados. Zulmira o chamou a atenção.
— Filho, você veio até aqui me visitar e mal tocou na comida.
— Desculpe—me, mamãe – tornou ele com a voz cansada. – Estou sem fome. Perdi o apetite.
Zulmira zangou—se.
— José Carlos! – bradou ela. Aliás, ela sempre o chamava pelo nome, principalmente quando estava nervosa. – Você sempre foi de ter apetite de leão! O que está acontecendo? Algum amor mal correspondido?
Ele riu.
— Quem me dera! – exclamou ele, desiludido. – As mulheres não querem mais saber de relacionamento sério. Ganharam destaque na sociedade, são donas de seu nariz. Eu até tento algo sério, mas elas querem só se aproveitar do meu corpinho.
Zulmira riu gostoso.
— Tenho a plena convicção de que você vai encontrar a moça certa, na hora certa.
— Será?
— Sim. Todos nós temos direito à felicidade e de compartilhar a vida ao lado de alguém que possamos amar. Ser amados também ajuda, e muito, a ter uma vida mais colorida.
— Estou desacreditado. Posso parecer um homem sisudo, talvez pela minha barba e meu porte, mas não passo de um romântico inveterado. Lembra—se de como chorei feito criança no dia que soube da morte da Elis Regina?
— Lembro—me como se fosse hoje.
— Sempre sonhei em enlaçar uma mulher e dançar ao som de Dois pra lá, dois pra cá. Mas essas moças que encontro zomba desse meu comportamento romântico. Teve até uma que me chamou de frouxo.
— Azar o dela. Você é tão bonito – ela acariciou seu rosto –, tão inteligente. Tem feito brilhante carreira na polícia. Ponha em sua cabeça que você é excelente partido. E, no dia em que uma mulher reconhecer tudo de bom que você pode oferecer essa sim, será a companheira ideal que vai estar a seu lado, seja nos momentos bons, seja nos momentos ruins. E ainda vai lhe dar uma penca de filhos. Você sempre sonhou com uma família grande...
Telles sorriu e seus olhos fitaram o infinito.
— Quem me dera. Espero que um dia eu possa encontrar essa mulher. Onde será que ela se esconde?
— Talvez esteja muito próxima. Quem sabe?
— É, mãe, quem sabe.
— Bom, se você não está amuado por conta de um amor não correspondido, o que o faz ficar prostrado desse jeito?
— É o caso do rapaz preso pelo assassinato do empresário Gregório Del Prate. Não me conformo com a injustiça que estão cometendo com o Caio. Eu sinto que ele é um bom moço e que diz a verdade. Acredito em sua inocência.
— Entretanto, ele vai a julgamento.
— Pois é. As poucas evidências apresentadas contra ele foram acatadas de maneira incontestável. Todos queriam uma solução rápida para calar a imprensa e os grupos de defesa dos homossexuais. O irmão da vitima é político muito bem relacionado e comprou até o juiz, que expediu o mandato de prisão. Mas estão sendo injustos com o menino. Eu tenho ouvido as vozes...
Zulmira pendeu a cabeça para cima e para baixo.
— Sei como se sente. Lembro—me como se fosse hoje do caso da Lena Alcântara. Graças aos espíritos, e graças a você, o assassino foi condenado e está preso. Tem sentido o mesmo em relação ao Caio?
— Sim. Ouço uma voz feminina que insiste na busca da verdade. Ela me assegura que há provas que podem livrá—lo do eminente julgamento.
— Você poderia ir comigo ao Centro Espírita. Fui lá por conta daquele nódulo que me tirou noites de sono. Graças a Deus, hoje não tenho mais nada. Aprendi muito sobre espiritualidade e sou grata à casa espírita. Nessa mesma casa eu conheci a mãe do Caio. Trata—se de mulher correta, de caráter. Sempre enviamos vibrações para ele. Mafalda, a dirigente do Centro, afirma que, em breve, o caso vai se resolver.
— Mas como? Eu só ouço a voz, mais nada.
Se ao menos eu conseguisse captar o que ela quer me dizer – suspirou Telles, triste.
— Poderia me acompanhar ao Centro. Seria ótimo. Quem sabe lá não seja o ambiente propício para que você possa captar com precisão o que o espírito tanto quer lhe dizer?
— Não deixa de ser uma idéia interessante. Aquele grupo do qual eu fazia parte se desfez. Nunca mais tive contato com o Espiritismo.
— Quer me acompanhar dia desses?
— Sim. Gostaria muito.
— Certo. Quando quiser, ligue—me... O Centro não fica distante aqui de minha casa.
— Farei isso, mãe.
— Ótimo. Agora – ela apontou para o prato –, coma!
Telles sorriu e beijou Zulmira na face.
— Você é a melhor mãe do mundo.


****


Caio tentava, nesse tempo de cárcere, concatenar as idéias. Queria entender o porquê disso tudo. Havia melhorado sua conduta, abandonara a curta vida de prostituição. Mudara o comportamento, arrumara emprego e queria ser um homem de bem. Mas a vida lhe havia tirado tudo. Por quê?
Os pensamentos ferviam—lhe a mente. Ele tentou mergulhar no estudo da espiritualidade, mas em pouco tempo deixou os livros num canto da cela. Sentia—se impotente para estudar e compreender as verdades da vida. A revolta começava a tomar conta dele, porquanto o julgamento se aproximava e ele mal vislumbrava uma maneira de se safar dessa injustiça e provar sua inocência.
Havia também a ausência de Luísa. Passaram—se meses e ela não tinha ido visitá—lo. Ele acreditou que ela nutrisse algum sentimento por ele, e, se nutrira esse sentimento desvaneceu no ar por conta de sua prisão. Afinal, que mulher iria se apaixonar por um homem acusado de assassinato?
E ainda por cima, um assassinato cheio de requintes de crueldade?
Caio meneou a cabeça para os lados. Queria esquecer Luísa. Intimamente, sentia que a amava de verdade, mas o que fazer? A vida lhe havia sido muito dura e ele nem podia reclamar a sua ausência.
O espírito de Gregório aproveitou a melancolia que se apossara sobre Caio. Aproveitou a brecha criada pelo desânimo e pela desesperança e passou a assediá—lo, constantemente.
— Ela não serve para você. Como vai querer se unir a um assassino? Ela não merece seu amor. Luísa é fraca e não lhe pertence.
Gregório bombardeava Caio diariamente, incessantemente. O rapaz absorvia os pensamentos como se fossem seus. A cada dia, mais ele se deixava influenciar pelos pensamentos perniciosos daquele espírito fixado nele, tão somente nele.



****

Luísa preparou—se para aquele dia. Até que enfim ele chegara. Tomara coragem e, finalmente, iria ao encontro de Caio. Ensaiara o que falar sentia—se um tanto nervosa. Meses haviam se passado, mas, agora, livre dos assédios de Gregório e dona de seus pensamentos, ela decidiu visitar o rapaz.
Ela acreditava na inocência do jovem. Sentia que Caio não havia cometido aquele crime hediondo. Logo, tudo se resolveria e eles poderiam caminhar juntos, em busca da felicidade.
Renata apareceu no quarto e tirou—a dos pensamentos.
— Vamos. Estamos no horário.
— Estava aqui divagando – tornou Luísa, enquanto retocava a maquiagem.
— Pelo tempo perdido?
— É, Renata. Tantos meses se passaram e eu nem dei a ele o meu apoio.
— Você estava em uma outra sintonia.
Aprendeu com seus erros e está pronta para dar a cara para bater. É assim que se procede. Você acredita na inocência de Caio e sabe lá Deus como tudo vai se resolver. No entanto – Renata frisou –, você o ama.
— É verdade – Luísa levou a mão ao peito. – Caio desperta em mim os mais nobres sentimentos. Acho que o amo desde o primeiro dia, quando nos esbarramos na saída do banco.
— Sorte sua. Quisera eu encontrar um homem assim.
— Deixe de ser boba amiga – censurou Luísa. – Os convites e galanteios masculinos a perseguem!
— E de que adianta? Eu sou assediada e marco um encontro. Quando falo de mim, de minha vida profissional, é como se quem está na minha frente visse o capeta. Ser uma mulher independente assusta os homens.
Luísa protestou.
— Você é bonita, charmosa, tem um corpo escultural, é inteligente e tem seu próprio dinheiro. Será que não existe um homem sensível o suficiente para perceber o mulherão que você é?
— Obrigada pelo carinho. Eu sinto que sou tudo isso que você diz. Entretanto, eles fogem. Têm medo.
— Calma, porque sempre existe alguém para nós. É uma questão de sintonia, de estar aberta para o amor.
— Confesso que estou – sorriu Renata. – Eu quero muito encontrar um homem e ser feliz. Mais nada. Quer dizer, que seja um pouquinho romântico e leve—me num bom restaurante e depois me convide para dançar.
— Só você para me fazer rir de seus sonhos.
Renata ajuntou.
— E que também me acompanhe ao cinema, pelo menos uma vez por semana.
— Você e seus filmes – disse Luísa, enquanto passava o batom pela boca.
— Adoro cinema. Eu me transporto na tela. São duas horas em que eu me perco naquela salinha escura.
E se for um filme romântico, deixo as lágrimas correrem livremente. Saio tão bem, tão feliz.
— Depois de visitarmos Caio, podemos ir até o Cine Metro. Eu ainda não assisti a Laços de Ternura, com a Shirley MacLaine e Debra Winger.
— Dizem que esse filme arranca lágrimas até dos mais endurecidos.
— Combinado – Luísa sorriu, levantou—se da banqueta em frente à penteadeira. Apanhou sua bolsa sobre o console. – Eu pago o cinema. Hoje é por minha conta.
— Eu compro a pipoca e o refrigerante.
— Certo.
Saíram animadas e foram tagarelando até chegarem ao distrito. Assim que estacionou o carro, Renata notou a apreensão nos olhos de Luísa. Ela apoiou o seu braço no da amiga.
— Não tem volta. Chegou o momento.
— É – suspirou Luísa. – Chegou o momento.
Deixaram o carro e aproximaram—se do prédio. Luísa ergueu a cabeça e mirou os degraus. Eram muitos. Subiu com vagar. Chegou ao topo e, pedindo ajuda aos protetores espirituais, entrou de braços dados com Renata.
O Carcereiro as conduziu até o andar em que Caio se encontrava. Ao chegarem, o rapaz – de postura carrancuda – fez sinal a elas, indicando o local da cela.
Luísa caminhou a passos lentos. O braço de Renata, enlaçado ao seu, dava—lhe estímulo a continuar.
Caio estava deitado na tosca cama de sua cela. Fazia tempo que ele estava ali e havia uma troca constante de companheiros. Uns saíam para julgamento, outros eram absolvidos, outros transferidos para outras delegacias. Havia dois rapazes ali com ele, entretanto, ambos estavam deitados no canto da cela, fumando seus cigarros, alheios à realidade.
Luísa aproximou—se e segurou as grades. Falou baixinho.
— Caio.
Ele não escutou. Ela insistiu, agora com modulação de voz mais firme e perfeitamente audível.
— Caio!
O rapaz abriu os olhos e demorou um pouco para reconhecer aquela moça linda à sua frente. Aliás, eram duas, porquanto Renata estava logo atrás da amiga. Assim que concatenou os pensamentos e certificou—se de que se tratava de Luísa, em vez de sentir—se feliz com sua visita, foi tomado de incontida fúria.
Gregório estava ao seu lado e vociferava:
— Não dê ouvidos a essa vagabunda! Enquanto você está aqui preso, ela sai com outros homens. Por que veio visitá—lo só agora, depois de tanto? Para espezinhá—lo. Somente para isso.
Ele gritava e Caio absorvia tudo aquilo, como se sua própria mente estivesse produzindo aqueles pensamentos. Ele levantou—se de um salto de sua cama e aproximou—se das grades, de maneira nada cordata.
— O que faz aqui?
Luísa sentiu o sangue sumir. O tom na voz de Caio mostrava que ela não era bem—vinda.
— Eu... É... Bom
— Vai ficar gaguejando feito uma tonta?
— Bom, eu...
— O que faz aqui?
— Vim vê—lo e.
Caio a cortou. Aos olhos humanos, parecia um homem irritado e profundamente desconfortável com a presença de Luísa. Aos olhos espirituais, o rapaz estava praticamente em franco processo de incorporação. O espírito de Gregório estava tão grudado em sua aura, que Caio registrava e imediatamente transformavam em palavras os pensamentos empedernidos do espírito.
— Depois de tantos meses? Por que esse interesse tão repentino?
— Passei por uma fase difícil e...
— Você passou por uma fase difícil? E eu?
— Desculpe—me a demora em vir visitá—lo, contudo...
— Por acaso está sem homem? Você me quer, é isso?
Luísa engoliu em seco. Seus olhos marejaram. Renata sentiu uma tontura muito forte. Ela não tinha vidência, mas pôde constatar, pela sua sensibilidade educada e em equilíbrio, que Caio estava sob forte interferência espiritual. Ela procurou manter um tom apaziguador.
— Viemos em paz. Luísa gosta muito de você e só não veio esses meses todos por puro medo e insegurança. Mais nada.
— Não venha defendê—la! São todas iguais. Vocês mulheres são todas iguais. É por isso que as odeio.
Renata ia continuar, mas Caio tomado pela raiva de Gregório, bramiu:
— Saiam daqui, suas ordinárias! Saiam!
Luísa não terminou de escutar o que ele dizia. Colocou a mão na boca para abafar o soluço e saiu correndo. Renata percebeu que ele estava praticamente incorporado. Os olhos de Caio estavam esbugalhados e uma baba espessa escorria pelo canto do lábio. A imagem de Gregório veio forte e ela teve certeza de que ele estava ali. Inspirada por Norma, que ali também se encontrava, ela disparou, de maneira enérgica:
— Pode fazer o que quiser, você não tem mais o direito de separá—los. O passado já passou. Você os impediu de ficarem juntos em outra vida. Isso não mais será permitido. Eles vão ser felizes – Renata aproximou—se das grades e encarou Caio nos olhos, como se estivesse falando para além dele. – Ambos reencarnaram com esse propósito e você não tem o direito nem o poder de interferir e mudar o que está traçado. Você não pode ser mais forte que o destino.
Ela falou de maneira tão firme, tão convincente que, naquele momento, Gregório desgrudou—se de Caio, aturdido. Ele pôde ver Norma logo atrás de Renata e sentiu medo.
Caio voltou a si, meio zonzo. Não se recordava direito do que acontecera.
Olhou ao redor e não viu Luísa. Renata atravessou a mão pela grade e deu um tapinha em seu ombro.
— Melhore o teor de seus pensamentos. Leia os livros que sua mãe lhe trouxe. Vai querer estragar novamente a oportunidade que a vida lhes deu de ficarem juntos?
Caio estremeceu. Aquelas palavras atingiram fundo seu coração. Ele queria falar, mas se sentiu prostrado. Enquanto Renata saía e sumia pelo corredor atrás de Luísa, ele jogou—se na cama e chorou, chorou como há muito não chorava.
Norma aproximou—se de Gregório e, antes que ele a atacasse com seus impropérios, ela disse:
— Você não é mais a Lucy. Acorde para a realidade. Está preso entre recordações de duas vidas, desta e da outra. Num momento comporta—se como Gregório. Em outro, comporta—se como Lucy. Percebe—se que está em franco desequilíbrio. Precisa de tratamento urgente.
— Eu não posso deixá—lo. Philip é meu grande amor e verdadeiro amor.
— O que chama de amor é isso? Esse sentimento mesquinho e que só lhe causou dissabores no passado? Será que está falando do sentimento certo que nutre por Philip?
— Philip é meu.
— Não vê que agora ele está reencarnado como Caio? Não vê que o tempo é outro, que você está preso ao passado?
Gregório soluçava. A paixão doentia que sentia por Caio o feria por dentro. Arranhava sua alma. E o impedia de continuar sua jornada rumo à evolução de seu espírito. Ele deixou—se cair no chão e, ajoelhado, cobriu o rosto com as mãos.
— Eu o amo. Eu o amo.
— Será? – inquiriu Norma. – Será que o ama? Ou será um capricho que está na hora de acabar?
Gregório estava bastante confuso. Em sua mente ele via Caio, em seguida via Philip. Eram os mesmos, mas em outras épocas. Os rostos também eram bem diferentes.
Só os olhos eram os mesmos. Os mesmos por quem se apaixonara antes. Como podia ser isso? Conforme sua mente se fixava no passado, o espírito dele foi automaticamente adquirindo contornos femininos. Logo, Gregório estava com os cabelos presos em coque e suas roupas agora eram antigas, muito antigas. Ele retomara a forma de sua vida anterior. Como Lucy.
Foi então que tudo ficou vivo em sua mente. Lembrou—se do sofrimento que essa paixão lhe causara no passado e do sofrimento posterior, no astral.
Norma aproximou—se e passou a mão pelo seus cabelos.
— Lucy, precisamos ir. Philip morreu há muito tempo.
— Ele está aí – apontou.
— Caio está longe de ser aquele homem que você acreditou amar.
— Sei que ele mudou o rosto para me enganar. Mas sei agora eu sei que este é Philip.
— Não é mais.
— Meu Philip – murmurava o espírito.
— Venha se tratar, depois poderá pensar no que fazer.
— Se eu for – afirmou Gregório, agora como Lucy e com voz feminina – Philip e Sally vão ficar juntos. Eu não posso deixar isso acontecer de novo.
— E vai fazer o quê? Repetir o erro? Matar Sally por acaso trouxe Philip para seus braços?
O espírito chorava aos pés de Norma. Lucy lembrou—se das atrocidades cometidas na última existência e sentiu remorso. Começava aí a mudança de Lucy. Ou de Gregório...
Norma lhe estendeu a mão.
— Temos muito o que fazer, o que conversar. Você precisa se tratar. Este mundo não lhe pertence mais. Venha comigo.
— Para onde? – perguntou o espírito, hesitante.
— Para um lindo Posto de Socorro. Lá você vai receber atendimento, vai conseguir se livrar de suas culpas, reverem as atitudes que a levaram a desencarnar dessa maneira violenta.
Lucy, ou Gregório, apertou firme a mão de Norma e deixou—se conduzir. Norma, antes de partir, aplicou um passe calmante sobre Caio. O rapaz agora dormia um sono tranqüilo e reconfortante.



CAPÍTULO 27


O delegado Telles conversou com o advogado de Caio e falou—lhe sobre o que sentia... Acreditava piamente na inocência do rapaz.
— Entretanto – salientou o advogado —, precisamos urgentemente de evidências que provem sua inocência. O tempo urge e, se nada aparecer, infelizmente, o juiz vai expedir a sentença condenatória definitiva e Caio vai para a Penitenciária do Carandiru.
— Isso não pode acontecer, Dr. Lopes.
— Corra, Telles.
— Eu tento, mas sei que falta encaixar uma peça nesse quebra—cabeças.
— Como assim? – perguntou Lopes, interessado.
— Preciso achar esse Guido. Vou conversar com Caio.
— E o que pretende fazer?
— Ir aos locais que eles freqüentavam. Quem sabe alguém possa nos ajudar? Eu vou fazer isso, doutor, para aliviar a crise de consciência que me persegue.
— Se Paranhos descobrir que você ainda está cutucando o caso...
— Paranhos não pode nada. Ele está louco par ser transferido para Belo Horizonte, quer ficar perto da família.
Ele ganhou notoriedade com esse crime e nem quer saber se Caio vai ou não a julgamento.
Telles e Dr. Lopes conversavam enquanto subiam as escadas da delegacia. Luísa saiu em disparada do prédio. Desceu os degraus de maneira rápida e deu um esbarrão em Telles. Quase foram ao chão. Ela se segurou nos braços do delegado e sussurrou:
— Desculpe—me.
— Você está bem?
— Sim.
Luísa falou, desprendeu—se de seus braços e correu em direção ao carro. Renata saiu em seguida, de maneira apressada. Desceu os degraus rapidamente e, ao procurar Luísa, seus olhos encontraram—se com os de Telles. Ambos sentiram uma emoção diferente, como se já tivessem se visto antes.
Renata sentiu leve tremor no corpo e o delegado percebeu que suas pernas falsearam por instantes. Ela engoliu em seco e perguntou, a fim de disfarçar a emoção que aquele desconhecido lhe causara:
— Viu uma moça de cabelos castanhos e lisos passar por aqui em disparada?
Telles riu, mostrando um sorriso encantador.
— Acabou de me atropelar. Creio que foi para lá – apontou em direção aos carros estacionados na calçada.
Renata perpassou o olhar e avistou a amiga, de cabeça baixa, encostada no capô do veículo.
— Ah, lá está! Acabei de encontrá—la.
— Parece que ela não está bem.
— Hoje não é o seu melhor dia – Renata afirmou. Em seguida ela notou que não estavam sozinhos no Universo e que ao lado de Telles estava o advogado de Caio.
— Doutor Lopes, que surpresa revê—lo.
— Como vai, Renata?
— Não tão bem quanto gostaria. Depois de meses, Luísa decidiu visitar o Caio e o encontro não foi nada agradável.
— Que pena. Ela tem tanto carinho por ele.
— Muito mais que carinho, Dr. Lopes. Mas vamos esperar por dias melhores. Caio está perturbado e, como logo será expedida a sentença, sua cabeça anda confusa.
— Vou conversar com ele – ponderou o advogado.
Telles interessou—se.
— É amiga de Caio?
— Não propriamente. Sou amiga de Luísa, que gosta de Caio – ela disse rindo. – É uma história incomum. Eu me afeiçoei a mãe dele e aposto em sua inocência. Sinto que Caio é inocente.
— Eu penso da mesma forma – ele estendeu o braço e Renata não pôde deixar de notar a mão firme e os pêlos que saltavam do punho da camisa. – Prazer, sou o delegado Telles.
Renata o cumprimentou. Sentiu a mão quente e firme do delegado. Novo tremor invadiu—lhe o corpo. Renata sentia—se tal qual um vulcão, cujos tremores indicavam que logo entraria em erupção. Ela recompôs—se para não mostrar o que estava sentindo naquele momento. Afinal, era a primeira vez – pelo menos nesta encarnação – que ela se encontrava com Telles.
— Prazer. Meu nome é Renata Gonçalves.
— Encantado – ele devolveu.
Lopes percebeu o clima entre os dois e se afastou. Ambos ficaram se olhando por algum tempo, em silêncio. A emoção era muito forte. O famoso "amor à primeira vista", quando nos pega, deixa—nos desnorteados, sem ação imediata. Foi o que aconteceu entre Renata e Telles.
— Gostaria de conversar mais, entretanto minha amiga não está bem. Ela precisa de mim.
Telles tirou um cartão do bolso.
— Por favor, ligue—me assim que sua amiga estiver melhor. Estou disponível vinte e quatro horas por dia, sete dias na semana.
— É sempre direto assim? Sem rodeios? – perguntou ela, rindo.
— Quando me interesso verdadeiramente por alguém, e aconteceu somente duas vezes em minha vida, eu sou franco e direto. Não gosto de perder tempo.
— Rapaz de atitude – salientou Renata.
— Rapaz de atitude e de outras peculiaridades que adoraria serem descobertas por você.
Renata sentiu novo tremor. Era melhor se despedir, acalmar os sentimentos, socorrer Luísa. Desse jeito ela ia desfalecer nos braços do delegado. Não queria pagar mico logo de cara.
— Eu ligarei.
— Quer jantar comigo nesta semana?
— Boa idéia.
— Aguardo sua ligação.
Eles se despediram e, no caminho até o carro, Renata respirou fundo. Depois pensaria em Telles e nos sentimentos que ele tinha lhe despertado. Precisava ajudar sua amiga.
Ela aproximou—se de Luísa e a abraçou.
— Ele me odeia, Renata.
— Chi! Não diga nada agora.
— Será que ele não vai mais falar comigo?
— Não pensemos nisso agora. Vamos a uma lanchonete aqui perto. Estou com fome.
— Estou sem vontade de comer nada.
— Acompanhe—me. Que tal um suco?
— Pode ser.
Renata ofereceu—lhe a mão e dirigiram—se a uma lanchonete simpática e graciosa a duas quadras dali.


*****

Telles esboçou um largo sorriso. Essa pequena tinha lhe despertado um sentimento que há muito tempo não sentia.
Ele ainda olhou para trás e ficou observando Renata por alguns instantes.
— Que mulher linda! – disse para si. – Espero que ligue para mim.
Em seguida, ele afugentou os pensamentos com as mãos. Subiu até o andar em que Caio se encontrava. Doutor Lopes lhe fazia algumas perguntas e Telles aproximou—se.
— Como vai, meu jovem?
— Não tão bem como gostaria. Acabei de ser grosso e estúpido com quem não devia. Uma força estranha se apossou de mim. Queria sair daqui correndo e lhe dizer que tudo não passou do calor do momento. Contudo – Caio suspirou triste –, eu não tenho como sair.
— Eu acredito em você – disse Telles. – Preciso que me ajude a encontrar o verdadeiro assassino.
— Eu tenho quase certeza de que Guido é o responsável pela morte de Gregório.
— É sobre isso que eu queria lhe falar.
— O que tem em mente?
— Por ora, nada – tornou Telles. – Entretanto, sabe como eu poderia tentar localizar o Guido?
— Não faço a mínima idéia.
— Não se lembra dos lugares que freqüentavam? Talvez alguém se recorde dele, caso eu faça sua descrição.
— Pouco provável, delegado. O Guido saía com mulheres da sociedade, ricas e bem—casadas. Não creio que consiga chegar até elas.
— Você não teve um período em que se prostituiu?
Caio baixou os olhos, envergonhado.
— Sim, foi por pouco tempo, mas eu joguei os telefones fora. Quando decidi que não queria mais essa vida, rasguei agenda, perdi todos os contatos.
— Escute de onde era esse Guido?
— Como assim?
— Veio de onde?
Caio fez pequeno esforço com a mente.
— Acho que de Vassouras. Lembro—me de ter dito certa vez que sua família era de Vassouras, no Estado do Rio.
— Algo mais? Um nome, uma referência?
Caio riu.
— Ele falava que Guido era seu nome de guerra, porque dava mais glamour à profissão.
— Nunca lhe falou seu verdadeiro nome? – interveio o advogado.
— Não me recordo.
Telles mordiscou os lábios
— A imprensa não se interessa mais pelo casoe a polícia também não. Ninguém está interessado em prender o verdadeiro culpado. Para eles você é o assassino e ponto final.
— Genaro Del Prate conseguiu o que queria. Difícil você escapar – suspirou Dr. Lopes.
— Mas eu juro que não o matei. Eu juro.
Telles aproximou—se das grades e encarou Caio nos olhos.
— Você jura que é inocente?
— Do fundo de meu coração – respondeu Caio, sem desviar os olhos do delegado.
— Acredito em você. Vou tentar descobrir o paradeiro desse rapaz. Sei que temos quase nada em mãos, mas estamos a caminho.
— O tempo urge – advertiu o advogado. – Precisamos ser rápidos, se quisermos reverter o quadro.
— Vamos correr – declarou Telles.
O delegado despediu—se de Caio, deixando—o conversando com o advogado. Saiu do prédio, ganhou a rua e resolveu caminhar pelos arredores. Telles tinha a certeza de que iria encontrar Guido. Algo dentro dele dizia que, em breve, o verdadeiro assassino de Gregório seria capturado.
Logo depois, Caio despediu—se do advogado e voltou à sua cama. Antes de deitar, pegou o folheto com a imagem de Santa Rita de Cássia. Beijou o papel gasto e amassado.
— Ajude—me, por favor.
Deitou—se e fechou os olhos. Norma passou a mão sobre sua testa.
— Logo você vai sair daqui. Confie.


****

Rosalina visitou o filho no dia seguinte. Ao ouvir o relato do encontro entre ele e Luísa, ela não hesitou:
— Você merece mesmo ficar na prisão.
— Mãe! – exclamou aturdido. – Como pode afirmar uma barbaridade dessas?
— Por que não está aproveitando o período em que se encontra aí, encarcerado? Sua irmã me visitou e me disse que você anda invigilante nos pensamentos. Que você botou tudo a perder quando Luísa veio lhe visitar.
— Não sei o que deu em mim. Perdi a noção do tempo, do espaço. Era como se alguma força estranha tomasse conta de meu corpo. Eu me arrependo sinceramente. Fui muito duro com Luísa.
— Ela não merece passar por tudo isso. De que adiantou eu lhe trazer os livros para ler e entender melhor os desígnios da vida? De que adianta nossas preces para que o verdadeiro culpado seja preso e você possa se libertar? Para quê? Para continuar levando a mesma vida pregressa de sempre?
— Assim você me insulta.
— E você não nos ofende com sua postura mesquinha e arrogante? Não acha que está na hora de parar para pensar em tudo o que lhe aconteceu desde que saiu de Bauru? O que você quer dessa vida, meu filho?
Caio emocionou—se. Passou os braços pelas grades e procurou abraçar a mãe.
— Eu não sei, estou perdido. Sinto que amo Luísa, quero constituir família com ela. Ao mesmo tempo – falava com voz entrecortada pelos soluços —,
Às vezes, sinto que de nada vai adiantar nossos esforços. Como vou sair daqui?
— Norma me disse que tudo está para ser resolvido. Em breve, o assassino será encontrado.
— Ela assegura isso?
— Sim.
— Entendo...
— Ainda não acredita que o espírito de sua irmã o esteja ajudando nessa fase difícil em que se encontra?
— Eu li um pouco dos livros. Confesso que tive bastante interesse no início. Em seguida, toda vez que desejava ler, um torpor, um cansaço me tomava por completo e eu deixava a leitura de lado. Cochilava e, quando acordava, não tinha a mínima vontade de ler.
— Não se esqueça de que vivemos num mundo rodeado de espíritos de toda sorte, desde bons e desejosos em fazer o bem até aqueles de coração embrutecido, sedentos para que as pessoas não enxerguem além. Você se deixou levar por essa corrente de espíritos que não quer que aprendamos sobre o mundo espiritual.
— Por quê?
— Porque quando nossa consciência se abre para os verdadeiros valores da alma, esses espíritos empedernidos e perturbados perdem a sua força. Quanto mais caminhamos para o crescimento espiritual, menos poder eles tem de nos perturbar, influenciar, atrapalhar nossa vida. Quem é dono de si, de seus pensamentos, dificilmente é assediado por essas entidades.
— Quer dizer que eu sou o responsável por esse assédio negativo?
— Evidente. Somos responsáveis por tudo o que nos acontece. Cabe a nós procurarmos nos aperfeiçoar no bem e, assim, criar um campo de proteção que nos mantenha imunes aos ataques constantes desses espíritos.
— Ando desanimado, triste. Nem Santa Rita de Cássia tem me ajudado.
— Não meta a culpa de sua fraqueza nos ombros de uma santa. E não se esqueça de que esses seres de luz – santos, para os católicos – simplesmente são instrumentos para que possamos nos ligar às forças espirituais superiores.
— Às vezes, creio que esse tormento não acabará.
— Confie na vida. Norma assegurou—me que tudo vai acabar bem.
— Quero acreditar nisso.
— Há uma linda moça aqui fora esperando pelo seu amor. Acaso, quer deixar de viver essa experiência deliciosa que a vida lhe oferta?
— Depois de tudo que falei Luísa talvez não queira mais falar comigo.
— Será?
— Ela tem todos os motivos para se afastar de mim.
— Gosta dela?
— Sim.
— Lute pelo seu amor.
— Dentro do cárcere?
— Comece por mudar o teor de seus pensamentos. Torne—os saudáveis. Procure encarar a vida de maneira mais positiva. Ninguém agüenta uma pessoa pessimista ao seu lado. É muito chato.
— Estou muito chato mesmo. Vou recomeçar a ler os livros.
— Faça isso, meu filho. Leia bastante, procure entender o mundo espiritual. Esses ensinamentos vão ajudá—lo a tornar—se uma pessoa melhor no mundo.
— Obrigado por suas palavras gentis. Você me estimula a crescer.
— Faço isso porque o amo.
Caio notou que Rosalina estava diferente. Os cabelos estavam penteados à moda, seu vestido parecia ser novo e realçava a silhueta esguia que mantinha desde a juventude. E – detalhe que ele não pôde deixar de notar – Rosalina estava usando lindo par de brincos e o rosto estava levemente maquiado.
Ela olhou séria para o filho.
— Que tanto me olha?
— Está diferente. Mais bonita mais bem tratada.
Rosalina riu com gosto.
— Estou sim. Mudei muito nesses meses todos.
Caio desconfiou.
— Só pode ser homem.
— Sim.
— Você está interessada em algum homem?
— É. Estou gostando de alguém.
Foi só eu ficar longe que você abriu as asas? – perguntou num tom de brincadeira.
— Confesso que depois que perdi seu pai desacreditei no amor. Pensei que nunca mais fosse gostar de alguém. Mas, aqui em São Paulo, depois desses anos todos sozinha, acabei por encontrar um companheiro leal, dedicado, carinhoso.
— Está namorando?
— Hum, hum.
— Quem?
Rosalina aproximou—se das grades e baixou o tom de voz.
— Estou namorando o José, lá da pensão.
Caio não poderia receber notícia melhor. Ele abriu um sorriso de ponta a ponta.
— Jose! – exclamou contente. – Eu o adoro.
— Sim. Ele também o adora. Vê em você o filho que perdeu anos atrás. Parece que o Zezinho hoje estaria com a sua idade.
— É, sei. Sempre vi no José o pai que nunca tive. Afinal, eu mal me lembro de papai.
— Faz muitos anos...
— Fico muito feliz que vocês estejam juntos.
— Obrigada. Sabia que ia aprovar nosso namoro.
— Vou torcer para virar casamento.
— Tudo no tempo certo, meu filho – ponderou Rosalina. – Tudo no tempo certo.
Mãe e filho continuaram a falar sobre suas vidas e seus amores quando ouviram uma gritaria vindo lá de baixo. As vozes foram crescendo, crescendo e chegaram ao andar. Dois policiais arrastavam um indivíduo, e o carcereiro estava mais à frente. Correu, passou por Rosalina e abriu a cela ao lado da de Caio.
Rosalina e o filho olhavam para aquela cena com verdadeiro estupor. Os policiais jogaram o homem dentro da cela. Ele vociferou alguns palavrões. O carcereiro fechou a portinhola, meteu o trinco e gritou.
— Mais respeito, seu charlatão. Não vê que tem uma senhora aqui presente?
O homem nada disse. O carcereiro continuou:
— Eu torcia para que você fosse preso, desgraçado. Arruinou a vida de muita gente. Inclusive a minha.
O rapaz o olhou sem entender.
— Nunca vi sua cara antes.
— Mas sei de você. Minha ex—esposa foi ao seu encontro e lhe pediu para me separar da minha atual mulher. Você quase conseguiu. Numa crise de arrependimento, minha ex—esposa confidenciou—me que o procurou para fazer feitiçaria. E ainda por cima você se autodenomina pai—de—santo? Como pode querer tripudiar sobre um nome sagrado como de um zelador de tenda de Umbanda?
— Dava—me destaque.
O carcereiro riu com desdém.
— Agora quero ver, Pai Juão. Vamos ver se seus amigos do astral inferior vão ajudá—lo. Espero que apodreça na cadeia por ter atrapalhado a minha vida e a vida de tantas outras pessoas.
Juão afastou—se e sentou—se no canto da cela. Seus olhos encontraram os de Caio e ele fez uma cara de maus amigos para o jovem.
Rosalina aproximou—se do filho.
— Mantenha—se firme no bem. Ninguém pode nos machucar quando estamos ligados aos espíritos de luz.
— Pode deixar mãe. Vou seguir seus conselhos.
— Não se esqueça, Caio – ela frisou, enquanto olhava para Juão, que envergonhado, abaixou os olhos –, o mal não tem poder sobre o bem. O mal é ilusão. Só o bem é real.
Caio assentiu com a cabeça.
— Tem razão. O mal nunca vence o bem.
Abraçaram—se da maneira como podiam, separados pelas grades da prisão. Rosalina deixou um pedaço de bolo para o filho. Despediu—se de Caio, do carcereiro e voltou para a pensão.
Caio ficou muito feliz ao saber do envolvimento amoroso entre sua mãe e José. Gostava muito dele. A notícia deu—lhe ânimo para pensar no sentimento de amor que nutria por Luísa. Ele iria atrás de seu amor. Algo dentro dele dizia que logo tudo isso acabaria e ele estaria, finalmente, livre. Livre do passado. Livre para amar.




CAPÍTULO 28


Luísa terminava de tomar seu chá. Pousou a xícara delicadamente sobre o pires e considerou.
— Estou melhor, Renata. Muito melhor.
— Percebeu como o encontro com Caio serviu para lhe mostrar o mesmo que ocorria com você?
— Sim. Depois que refleti, percebi que naquele dia, não era Caio quem estava falando comigo.
— Havia a presença de um espírito que o atormentava sobremaneira.
— Tem idéia de quem era?
Renata deu de ombros.
— Acreditei que o espírito de Gregório estivesse lá, mas foi só uma impressão.
— Cruz credo! – Luísa fez o sinal da cruz. – Não quero mais pensar em Gregório ou em sua família. Que mundo pequeno esse!
— São os reencontros de vidas passadas, minha amiga. Estamos sempre nos reencontrando no mundo. Ninguém se conhece por acaso.
— Hoje eu não tenho dúvidas quanto a isso. Quero ir ao distrito novamente. Preciso conversar com Caio.
— Está caidinha por ele.
— Não! – Luísa protestou.
— Claro que está! Vocês mal se encontraram e estão assim, apaixonados. Espero pelo dia em que poderão estar juntos sem as grades. A terra vai tremer.
Luísa pegou uma almofada e atirou na amiga.
— O que é isso?
— Você está apaixonada.
— E você também. Saiu duas vezes para jantar com aquele delegado bonitão e está toda melosa.
Renata abriu e fechou os olhos, em êxtase.
— Telles é o homem da minha vida.
— Em dois encontros você afirma uma coisa dessas? Não está viajando muito no romance?
— De forma alguma – respondeu Renata, agora de forma séria, ajeitando seu corpo na poltrona. – Eu e Telles nos identificamos bastante. Somos muito parecidos. Ele não se assustou com o fato de eu ser uma executiva de sucesso e ganhar mais que ele. Pelo contrário, incentivou—me a crescer ainda mais.
— Está falando sério?
— Sim.
— Será que ele não quer ser sustentado por você?
— Como?
— Olhe o golpe!
Foi à vez de Renata atirar a almofada em direção a Luísa.
— Eu sinto que ele gosta de mim. Telles tem respeito por tudo o que consegui até hoje. Ele me admira por eu ser assim. Eu preciso de um homem que me apóie. Que me ame, e que me apóie.
— Ele parece ser um encanto de pessoa.
— Além de encantador, Telles é lindo! – Renata suspirou. – E aquela barba?
— Deve machucar o seu rosto.
— Imagine! Aquela barba me deixa louca, amiga. Quando roça em meu rosto, eu perco o juízo.
Ambas riram a valer.
— Sabe que, neste segundo jantar, Telles confidenciou—me algo que me encheu de desejo?
— O que foi?
— Ele acredita que eu tenho muito potencial para crescer profissionalmente, e me estimulou a ser dona de meu próprio negócio. Não ter mais patrão.
— Combina com você. É esforçada, trabalha com afinco, é responsável, tem garra. Não é qualquer um que pode ter seu próprio negócio. É necessário muito mais que dinheiro e tino para os negócios.
— Pois é. E o Telles falou—me de um assunto que ainda não vazou na imprensa. Se vazar, eu perco a oportunidade que vislumbro para ser dona de meu próprio negócio.
— O que é? Conte—me. Estou aflita.
— Você bem conhece a Cia. De Perfumes.
— Do Gregório – Luísa falou com ar de mofa.
— Sim. Com a morte dele, a empresa foi para seu ex—marido, o Genaro.
— Correto. O único parente de Gregório era o irmão. Nada mais justo que ele herdar a empresa.
— Aí é que está! – disse Renata, eufórica. – Genaro quer se livrar da empresa.
— Quer?
— Sim, sim.
— Por quê?
— Fiquei sabendo que ele preza muito sua imagem perante o eleitorado. É político ardiloso, mas adorado por muita gente; Entretanto, agora que está novamente casado e tem um filhinho, afirmou, dia desses, a um conhecido de Telles, que não quer mais a empresa.
— E por qual motivo?
— Genaro quer se livrar da empresa, pois parece que Gregório metia os pés pelas mãos e não cuidava da empresa com o cuidado e a responsabilidade de um empresário competente.
Parece—me que a Cia. De Perfumes está à beira de uma concordata. E pode falir.
— E? Não sei aonde quer chegar.
— Tenho algumas economias – redargüiu Renata. – Telles me estimulou a ir atrás de Genaro, procurá—lo e fazer—lhe uma oferta. Comprar a empresa por um preço baixo e trabalhar com afinco para que ela volte a crescer, conquistar novamente a credibilidade dos fornecedores e fazer da Cia. De Perfumes uma empresa rentável, com lucro e que gere mais e mais empregos.
— Boa idéia. Você acredita que tem cacife para isso?
— Acredito.
— Abandonaria seu emprego, a posição em que se encontra para se atirar em um projeto onde poderá correr riscos?
— Adoro correr riscos, Luísa. Sinto que essa era a oportunidade que estava faltando em minha vida. Vou me reunir com seu ex—marido na semana que vem.
— Ele sabe de sua amizade comigo?
— Creio que não. A única vez que me viu, de relance, foi naquele fatídico dia em que você foi brutalmente espancada. Seu ex—marido estava em estado catatônico e, com certeza, não se lembra nem de mim, nem de Max. E, de mais a mais, Genaro vive outra vida e está muito bem lá em Brasília. Ele vai me abençoar, caso eu fique com a Cia. De Perfumes. E ainda tem mais um motivo porque Genaro quer se livrar da companhia.
— Qual?
— Genaro tem horror aos homossexuais e não quer saber de nada que o ligue ao irmão. Ele desprezava Gregório e seu comportamento. Se ficar com a empresa, as pessoas vão sempre dizer que ele é dono da empresa daquele gay assassinado etc.
— Que horror.
— Pois é. Seu ex—marido pensa assim.
— Genaro sempre foi homofônico.
— Para ele, isso arranha sua imagem de político benquisto.
Como a maioria de seu eleitorado é homofônica, tanto quanto ele, Genaro só tem a ganhar ao desvincular—se da imagem de seu irmão, Gregório.
— Puro preconceito. Que idéia mais disparatada. Quem Genaro pensa que é para julgar o comportamento das pessoas? Ele seria o último a ter direito de julgar. Se as pessoas soubessem o crápula que é, o marido covarde que sempre foi.
— A verdade nunca chegará às pessoas, Luísa. Entretanto, nós não devemos julgar Genaro pelas suas idéias e pelo seu comportamento, porquanto estaremos agindo como ele.
— E deixar que ele cometa outras agressões? Permitir que xingue as pessoas e estipule o padrão correto de comportamento na sociedade?
— Não compete a nós o que virá adiante. Genaro, um dia, vai ter de responder pelos seus atos. A lei de ação e reação não tarda nem tampouco falha. Aguardemos porque, mais dia, menos dia, Genaro terá de colher o que semeou.
— Eu estou decidida, Renata. Assim que me graduar na faculdade farei o exame da Ordem e advogarei em prol das vítimas de agressão doméstica por seus companheiros.
Renata sorriu.
— Fantástico. Nada melhor que você para prestar esse tipo de serviço, amiga.
— Eu senti na própria pele o que é ser agredida dentro de casa. E tem mais.
— O quê?
— Além de agredida fui estuprada, porquanto Genaro me amava de maneira bruta, agressiva e, na maioria das vezes, sem o meu consentimento. Muitas mulheres sofrem essas agressões e não têm como e onde recorrer.
— Podem ir à delegacia e prestar queixa.
— E de que adianta, Renata? Não temos garantias. Não há punição severa para o agressor. É voltar para casa e levar mais pancada. E a maioria dos delegados ri de nós, faz chacota, é constrangedor. Eu senti isso quando fui fazer aquele boletim de ocorrência contra o Genaro.
O delegado me tratou com desdém, como se eu – machucada física e moralmente – fosse à culpada por ter apanhado.
— Ainda fazemos parte de uma sociedade machista.
— Mas sinto que tudo vai mudar.
— Por que diz isso?
— Dia desses – tornou Luísa, após mordiscar um biscoitinho – Mafalda alertou—me de que mudanças virão em benefício das mulheres. Que em breve vamos ter delegacias voltadas só para a mulher.
— Nem acredito! Isso seria o máximo. Um avanço na sociedade sem precedentes.
— E creio que isso já começou a ocorrer. Por conta do descaso do poder judiciário e da maneira como os distritos policiais lidam com a violência doméstica e sexual contra a mulher, foi criado o SOS — Mulher.
— Não foi o SOS — Mulher que apresentou em público o caso de uma mulher que tinha sido espancada pelo seu companheiro, professor da Universidade de São Paulo, intelectual, branco e de classe média alta?
— Sim. Isso foi importante para combater a idéia de que os negros, os alcoolizados e os pobres são os únicos que maltratam as mulheres.
— Situação parecida a sua, não é, minha amiga?
— Pois sim. Esse grupo de atendimento, formado há pouco tempo, é responsável por assistência jurídica, social e psicológica às mulheres vítimas de violência. "(Em 1985 foi criada a primeira delegacia da mulher). Em 1990, foi criada também, pela Prefeitura de São Paulo, a Casa Eliane de Grammont, um centro especializado no atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica e sexual. (N.A.)"
— Interessante.
Luísa falava de maneira animada.
— O conselho criado recentemente, ligado ao SOS — Mulher, propõe políticas públicas que visam promover o atendimento às vitimas de violência,
Dando—lhes, efetivamente, essa assistência jurídica, social e psicológica.
— Acredita que o governo vai acatar essa idéia?
— Sim. O governo vai criar, muito em breve, a primeira delegacia de polícia de defesa da mulher. Pode anotar o que estou dizendo. Isso vai se concretizar.
— Existe alguma delegacia específica para o atendimento da mulher em outra cidade?
— Não. São Paulo será a primeira cidade do Brasil e do mundo a criar uma delegacia assim, em defesa da mulher.
— Torço para que isso se concretize.
— Pois vai – afirmou Luísa. – Mafalda certificou—me de que espíritos abnegados trabalham para que membros do governo sejam receptivos à implantação desse projeto.
— Dessa forma, nós, mulheres, poderemos ter um instrumento que nos ajude a combater a violência.
— E meter medo nesses homens! Está na hora de eles pararem de se sentirem os donos do mundo. Nós temos o nosso valor e, garanto que assim que eu estiver formada, vou trabalhar em algum desses órgãos em defesa da mulher. Sei que vou ajudá—las.
— Tem razão, Luísa. Você sentiu isso na própria pela. Tenho certeza de que será uma boa defensora.
Luísa abaixou a cabeça, tentando conter a emoção. Mudou o tom:
— E aquele delegado bonitão? Convidou—a para mais um jantar?
— Convidou—me. E quer que eu conheça sua mãe. Esses encontros com possíveis futuras sogras me dão um frio na barriga.
Luísa riu.
— Vou torcer para que seja uma senhora bem velhinha, bem doente, que não possa, de maneira alguma, atrapalhar a vida de vocês.
— Vire essa boca para lá – brincou Renata. – espero que seja uma mulher tão interessante quanto o filho. Mais nada.


****

Renata teve de adiar o almoço com a mãe de Telles. Genaro, assim que soube de seu interesse em comprar a quase falida Cia. De Perfumes, ligou insistentemente e até ofereceu as passagens para que Renata fosse a Brasília.
Ela explicou a situação a Telles e marcaram um novo almoço, para a semana seguinte.
Genaro a recebeu de maneira polida. Mal se recordava de tê—la visto naquele dia distante, em que a polícia apareceu em sua casa. Ele simplesmente acreditou que o rosto dela era—lhe familiar. Mas não quis entrar em detalhes.
Conversaram por duas horas. Ele fez suas considerações, falou dos problemas da fábrica e explicou que queria se ver livre da empresa.
— E quanto aos funcionários? Se não entrarmos num acordo – ponderou Renata –, muitos funcionários perderão trabalho e muitas famílias serão atingidas.
— Estou pouco me lixando para as famílias. Eu quero me livrar desse abacaxi em minhas mãos.
Renata fechou o cenho. Agora tinha certeza do caráter sem verniz de Genaro. Ela tratou de ser rápida. Apresentou sua proposta e, ao término das duas horas de conversa, Renata deixou o gabinete do deputado com uma alegria contagiante a invadir—lhe o peito.
— Eu vou transformar a Cia. De Perfumes na maior empresa de cosméticos deste país – disse para si mesma, de maneira convicta.
Ela retornou a São Paulo no mesmo dia e Telles fez questão de buscá—la no aeroporto. Ela apareceu no desembarque e ele estava lá parado, com as mãos para trás.
Quando a viu, abriu largo sorriso.
— Quanta saudade!
Ela o beijou e respondeu.
— Vimo—nos hoje cedo. Não fiquei fora um mês.
— Um dia longe de você é muito triste – antes que Renata pudesse falar alguma coisa, ele sacou de uma das mãos um lindo buquê de flores sortidas. – Para você.
Renata emocionou—se. O romantismo de Telles era contagiante. Ela pegou o buquê e aspirou o perfume delicado das flores. Em seguida, beijaram—se demoradamente.
— Amanhã você vai conhecer minha mãe.
— Amanhã vai ser o grande dia! – replicou ela, de maneira engraçada.
— Vai adorar minha mãe. Ela está louca para conhecê—la.
— Mesmo?
— Sim. Ela até que tentou arrumar uma candidata para mim algum tempo atrás.
— Não me diga! Ela se preocupa tanto assim com a sua solidão?
— É. Minha mãe insistiu, mas eu não quis conhecer a moça.
— E quem era a moça?
— Não faço a mínima idéia – respondeu Telles. – E, agora que conheci você, não quero saber de mais ninguém.
— Olha lá. Esse é nosso quarto encontro. Não acha cedo demais?
— O que posso fazer se eu a amo? Esperar para quê?
Renata corou.
— Você me surpreende Telles.
Beijaram—se novamente. Entraram no veículo, ele deu partida e o carro perdeu—se no meio da multidão de outros veículos que cortavam a avenida de acesso ao aeroporto.


****

Caio estava lendo um romance espírita envolvente, mal prestava atenção ao seu redor. Juão tentava puxar conversa, mas Caio recusava—se a conversar.
Num dia, cansado de ser assediado pelo falso pai—de—santo, encarou—o com firmeza.
— Que tanto me azucrina? Já não chega o mal que fez a tanta gente?
— Minha sensibilidade está em franco desequilíbrio. Abusei de minha mediunidade, conduzi—a de maneira torpe. Hoje sinto peso do mal que causei a muita gente.
— Ore meu amigo. Peça perdão e recomece.
— Como?
— Ajude àqueles a quem você prejudicou. Isso é um começo. Um belo começo.
Juão estava sinceramente disposto a mudar. Havia se comprometido com entidades de baixa vibração, abusara de seus poderes mediúnicos. Entretanto, sua consciência lhe cobrava o acerto de contas com as pessoas que prejudicara. Ele mal sabia como começar.
Ao que Caio respondeu:
— Comece fazendo o bem. Eduque sua mediunidade para o bem, e, ao sair da cadeia, vá trabalhar num Centro Espírita. Coloque—se à disposição de espíritos de luz, voltados à realização do bem. Isso vai ajudá—lo a amenizar a culpa que corrói seu espírito.
— Pode ser – ponderou Juão.
— Peço a Deus que me ajude, todos os dias, mesmo pagando por um crime que não cometi.
— Sei do seu caso. Você foi acusado do assassinato daquele empresário famoso.
— Pois é. Mas sou inocente. Tive o azar de estar com o falecido justamente horas antes de ele ser assassinado.
— Sabe quem é o assassino?
— Desconfio.
— Algum conhecido?
— Por que quer saber? – perguntou Caio, desconfiado.
— Para ajudar. Quem sabe, com minha mediunidade entrando na rota do bem, eu não possa ajudá—lo a localizar o assassino?
— Isso seria um milagre.
— Pois eu acredito neles. Hoje tenho a consciência de que recebi um basta da vida. Estou tendo a chance de mudar minhas crenças e atitudes. Ainda posso me tornar uma pessoa de bem.
Caio condoeu—se com Juão. O homem estava sendo sincero. Mesmo perturbado por espíritos com os quais se comprometera Juão também recebia a visita de espíritos amigos, que conhecera em outras vidas.
Juão fora um feiticeiro poderoso no passado. Nesta atual encarnação comprometeu—se a fazer o bem. Levado pela cobiça e pelo dinheiro fácil, com seu poder natural de persuasão, e a sensibilidade bem desenvolvida, passou a fazer qualquer tipo de trabalho espiritual.
Tão logo foi preso, ele passou a refletir bastante sobre suas ações. Aos poucos, foi mudando seu jeito arrogante de ser. Passou a ser mais humilde. Ainda havia chance de Juão mudar, crescer e redirecionar sua vida de acordo com os anseios de sua alma.
— Eu vou ajudar você, Caio – tornou Juão, de maneira sincera.
— Como poderia?
— Vou tirá—lo desta prisão.
— Que você e Deus me ajudem!


****


Luísa tomou coragem e reapareceu na delegacia. Dessa vez, o encontro entre ela e Caio foi completamente diferente daquele triste primeiro encontro.
Ela aproximou—se e o chamou.
— Caio.
O rapaz abriu os olhos e mal conteve a emoção.
— Você! – exclamou, de maneira espontânea. – Pensei que nunca mais a veria.
Caio se levantou e aproximou—se das grades. Luísa sentia o corpo tremer.
— Como está?
— Vou indo. Ainda não apareceu nada que pudesse me ajudar a sair daqui.
— Você vai sair.
— Assim espero, entretanto, o tempo urge.
— Mafalda afirmou no Centro que você vai sair em breve. Os espíritos estão trabalhando a seu favor.
— Eu acredito neles. Relutei, mas tive de me render às verdades da vida. Tenho lido tanto, que tudo agora para mim ficou mais claro, mais coerente.
— Para mim também. As diferenças sociais, de cor, raça, sexo, tudo tem uma razão de ser quando analisamos pelo lado espiritual, quando abrimos à mente e ampliamos nossa lucidez em busca da verdade. Eu mudei muito, Caio. Depois de meu casamento, refleti sobre o mal que me aconteceu e percebi o quanto estava longe de minha essência, da minha verdade.
— Eu também – considerou ele. – Não sei por que estou aqui encarcerado. Minha mãe afirma que tem relação com o passado.
— Não importa, Caio. Nesse tempo todo você amadureceu, cresceu, não ficou parado. Pode ter tido essa sensação porque ficou aqui, privado do mundo. Mas seu espírito cresceu. Você é um campeão.
Ele sorriu. Ergueu os braços e suas mãos enlaçaram as de Luísa. Ambos sentiram o coração bater descompassado.
— Eu prometo que vou sair daqui, recomeçar minha vida e, se você me quiser, farei de tudo para sermos uma família feliz.
Os olhos de Luísa umedeceram. Havia tanto carinho nas palavras de Caio, que ela não pôde deixar de se emocionar.
— O que diz me enche a alma de contentamento. Eu o amo muito.
Caio fechou os olhos e aproximou seu rosto da grade fria que os separava. Forçou o rosto para frente. Seus lábios e os de Luíza encontraram—se. Beijaram—se longamente. Após, ele tornou:
— Vamos ser muito felizes. Eu prometo. Não vou decepcioná—la. Dessa vez não vou ferir seus sentimentos.
— Por que diz isso?
Caio deu de ombros.
— Não sei. Talvez no passado eu a tenha feito sofrer. Não quero que isso se repita. Eu também a amo, com toda a minha força.
Luísa sentiu um brando calor invadir—lhe o peito. Ela amava Caio, mais que tudo no mundo. E se sentia amada, verdadeiramente amada.



CAPÍTULO 29


Maximiliano terminou de realizar mais uma exposição. Foi à última. Estava decidido a parar com as exposições no Brasil. Tencionava regressar em definitivo para Londres, que julgava ser seu verdadeiro lar.
Ele estava cansado do trabalho extenuante. Queria passar o resto do tempo estudando os fenômenos mediúnicos, a espiritualidade como um todo.
Londres seria sua casa, mas ele rodaria o mundo atrás de relatos, provas, declarações que comprovassem a reencarnação. Esse era seu compromisso. E Max estava muito feliz em poder retornar e reencontrar seu velho e querido amigo Bryan Scott.
Ele, Renata e Telles estavam almoçando em um restaurante pequeno e charmoso, na região dos Jardins. Após os pedidos, brindaram a sua partida.
— Eu não queria que nos deixasse – protestou Renata.
— Eu não pertenço a este lugar – redargüiu Max. – Cansei da minha vida neste país. Adoro o Brasil, mas a Inglaterra é o meu lar. O que fazer? Eu sinto isso.
— Deve ser porque viveu lá muitas vidas – tornou Telles.
— Acredito que sim. O Dr. Bryan Scott uma vez me disse que minha última encarnação foi em Londres.
— Ele revelou outros detalhes? – interessou—se Renata.
— Sim. Disse—me que você era minha sobrinha e que vivemos muito bem.
— Fui sua sobrinha? Mesmo?
— Sim. E casou—se com um implacável investigador de policia. – Seus olhos se dirigiram a Telles e Max riu malicioso. – Pelo jeito, você reencarnou em outro país, mas com profissão semelhante.
Telles sorriu contente.
— Eu amo minha profissão.
— E não a deixaria para trabalhar na Cia. De Perfumes?
— Nunca! Negócios são com minha futura esposa. Eu trato de investigar os crimes. Um casal adorável, não acha?
Eles riram à beça.
— Eu sempre fui muito grato ao Telles – tornou Max. – Se não fosse você naquela noite, próximo àquela boate, eu seria roubado e morto por aquele garoto.
— Que história é essa? – inquiriu Renata.
— Certa vez, acompanhando um amigo meu em uma ronda noturna, percebemos uma discussão acalorada entre dois rapazes. Um deles era Max, acuado. O outro sacou um canivete do bolso e só me lembro de quase jogar a viatura sobre o menino.
— Naquele dia você salvou a minha vida – disse Max, bastante emocionado.
— Foi aí que ficamos amigos.
— Por conta desse incidente, eu parei para refletir e ver o rumo que minha vida estava levando. Eu só queria dançar beber e sair da boate com qualquer um, só para me satisfazer sexualmente. Depois dessa história em que Telles fora meu anjo guardião, larguei essa vida e debrucei—me nos estudos espirituais. Como vê – Max deu uma piscada para Renata –, seu namorado é o responsável por eu estar metido até a cabeça com o mundo dos espíritos. E vivo ainda por cima!
— Ainda bem que por uma boa causa – devolveu ela.
— Sim.
Max levantou—se e abraçou Telles.
— Você me salvou de novo da enrascada com o Guido.
— Se eu o conhecesse pessoalmente, eu já estaria no seu encalço – suspirou Telles, triste.
Max aproveitou e mudou o rumo do assunto. Voltou a sua cadeira e, ao ajeitar o corpo, perguntou a Renata:
— Como anda a fábrica?
Ela suspirou.
— Trabalho é o que não falta. Tem muita coisa para fazer. Infelizmente, o Gregório não cuidava da empresa com a responsabilidade de um bom administrador. Deixou—a nas mãos de pessoas incompetentes e por um triz a empresa não foi definitivamente para o buraco. Estou trabalhando duro. Estou lá há apenas alguns meses e ainda há muito, muito trabalho.
— Vai relançar os perfumes?
— Tiramos alguns do mercado, por ora – respondeu Renata. – Vamos reformular as campanhas. Usar novos rostos. Pretendo revolucionar o mercado.
— Torço para que você tenha muito sucesso – tornou Max, com sinceridade.
— Outro dia, um antigo modelo da Cia. De Perfumes foi me procurar.
— Quem, Renata? – indagou Max, curioso.
— Lembra—se do Marco Antônio?
— Marco Antônio – Max repetiu e coçou o queixo –, não era um rapaz loiro, muito bonito, de cabelos jogados para trás?
— Esse mesmo. Fazia a campanha do perfume Nero, anos atrás.
— Lembro—me dele sim, de algumas festas. Mas me parece que ele se acidentou e sumiu.
— Sofreu queimaduras pelo corpo todo. Uma judiação – ajuntou Telles.
— Como sabe? – inquiriu Renata.
— Eu o conheço, mora no mesmo prédio que eu. Ele realizou um churrasco para os amigos, a fim de comemorar a nova campanha do perfume que iria fazer e, num descuido, em vez de jogar água sobre a chapa, pegou o frasco errado e jogou álcool.
Max e Renata fizeram um esgar de incredulidade.
— Ele perdeu o contrato e ficou sem trabalho. Continua lá no prédio, vive dando aulas de inglês, está com o condomínio atrasado...
— Ele foi me procurar na Cia. De Perfumes – tornou Renata. – Fiquei triste com seu estado, mas seu rosto está intacto. Marco Antônio continua bonito.
— Por que não o contrata para fazer alguma campanha?
— É o que pretendo fazer. Vou chamá—lo para trabalhar conosco.
— Brilhante idéia – ponderou Max. – Esse rapaz, agora me lembro bem, é muito bonito, uma simpatia de pessoa. Você está sendo justa ao contratá—lo. Tenho certeza de que Gregório lhe virou as costas.
— Foi o que aconteceu. Ele pediu ajuda e lhe foi negada. Mas agora vai ser tudo diferente. Marco Antônio será um dos modelos escolhidos para o relançamento dos perfumes masculinos.
— Um dos modelos? Você pretende contratar outros homens bonitos?
— Sim.
— Assim eu fico com ciúmes – Telles fez beicinho.
Renata o beijou delicadamente nos lábios.
— Fique tranqüilo, meu amor. Você me fisgou desde o primeiro olhar. Só tenho olhos para você e mais ninguém.
— Quisera eu ser amado assim – suspirou Max.
— Nunca se sabe...
— Quem sabe – ajuntou Telles – o seu príncipe encantado não esteja lá em Londres?
— Pode ser, pode ser – respondeu Max, de maneira jovial.
O semblante de Renata ficou mais sério. Ela fitou o nada e declarou:
— O Caio vai trabalhar comigo. Vai fazer muitas campanhas. Vai ser famoso. E vai ser feliz.
— Como tem tanta certeza disso? – perguntou Telles.
— Eu sinto. Caio vai se safar dessa e vai ser muito feliz.
— Gostaria de vê—lo – solicitou Max.
— Podemos ir amanha. O que acha? – perguntou Renata.
— Perfeito. Quero conversar com esse menino. Tenho algumas considerações a lhe fazer sobre a vida espiritual.
— O que é?
— Recebi uma carta do Dr. Bryan Scott dois dias atrás. Ele me relatou um caso espantoso.
— O que é Max? – inquiriu Renata.
— Estou curioso – completou Telles.
Max relatou o caso descrito por Bryan Scott. Ambos ficaram estupefatos com a história.
— Você precisa contar ao Caio – replicou Renata.
— É fascinante – finalizou Telles.
— Sim. Vou contar a ele. Os espíritos querem que Caio aprofunde—se cada vez mais nos estudos do mundo espiritual. Aí estará a sua salvação.
Um dia depois, Renata, Max e Telles foram à delegacia. Luísa tinha prova na faculdade e não pôde comparecer. Iria visitar seu amado no dia seguinte.
Eles aproximaram—se de Caio. O rapaz os cumprimentou e Renata os apresentou.
— Esse aqui é o nosso amigo Maximiliano. Pode chamá—lo de Max.
Caio estendeu a mão pela grade. Max o cumprimentou.
— Nós nos conhecemos rapidamente, há muito tempo, na porta da pensão. Dei carona à sua mãe.
— Eu me lembro. Entretanto, mal nos falamos. Eu queria muito conhecê—lo.
— É mesmo?
— Sim. Morei em sua casa, na época do Guido, faz um bom tempo.
Max meneou a cabeça para cima e para baixo.
— Eu me recordo. Falamo—nos umas duas vezes por telefone. Vocês deixaram uma energia pesada naquela casa – disse Max, entre sorrisos.
— Perdoe—me, Max. Eu não entendia nada do mundo espiritual nem mesmo queria acreditar que ele existia. Entretanto, o tempo aqui na prisão tem me mostrado que eu estava enganado.
— O conhecimento em geral nos abre muitas portas. O conhecimento espiritual, por conseguinte, nos abre as portas do desconhecido, ajudando—nos a compreender melhor o mundo em que vivemos e a nós mesmos.
— Tem razão – ponderou Caio. – Mudei muito nesse tempo todo. Tenho lido bastante e até arrumei um companheiro que discute comigo temas espirituais.
— Quem é?
Caio apontou para Juão, que estava na outra cela, e baixou o tom de voz.
— Ele está dormindo agora. Teve uma noite de pesadelos. Às vezes Juão é assediado por uma leva de espíritos que vem lhe cobrar satisfações. Tem a ver com seu passado, com sua consciência pesada.
— Espero que ele possa se livrar desses ataques – afirmou Telles.
— E vai – disse Caio. – O Juão prometeu que vai me ajudar a sair daqui.
— Tomara – retrucou Renata. – Preciso de você para trabalharmos bastante.
— Trabalhar?
— Sim. Pensa que vai sair da cadeia e não fazer nada? Não senhor. Vai trabalhar comigo.
— Eu não sei fazer nada – disse Caio, em tom humilde.
— Tem um rosto bonito. Está maltratado pelo tipo de vida que leva, mas com o tempo a beleza ressurgirá. Você vai ser um dos modelos da Cia. De Perfumes.
Os olhos de Caio brilharam emocionados.
— Jura?
— Sim. Não é o seu sonho?
— É.
— Não veio a São Paulo para ser modelo?
— Sem dúvida.
— Então aproveite seus dias de férias. Quando sair da cadeia, você vai trabalhar bastante.
Caio não cabia em si tamanho era seu contentamento.
— Obrigado por tudo, Renata. Não tenho palavras para lhe agradecer.
— Não tem de agradecer. Tem de fazer os homens comprarem meus perfumes. Só isso.
Caíram numa risada gostosa. Foi então que Max aproximou—se e contou a Caio sobre a carta que recebera de Bryan Scott.
— A reencarnação, meu amigo Caio, é um assunto cheio de controvérsias.
— Sei. Tenho lido a respeito.
— Neste ano, lá na Inglaterra, foi revelado um dos casos mais convincentes da história.
— É mesmo?
— Sim.
— Gostaria de me contar?
Max assentiu com a cabeça.
— Vim justamente para lhe contar essa fascinante história.
— Sou todo ouvidos – afirmou Caio.
Max apoiou—se nas grades e iniciou seu relato.
— O Dr. Joe Keeton já havia conduzido várias regressões por meio da hipnose quando conheceu o jornalista Ray Bryant. (Assuntos co—relacionados podem ser encontrados no livro Encounters with the past: astonishing accounts of hypnotic regression – que, numa tradução livre, poderia ser Encontros com o passado: relatos surpreendentes de regressão hipnótica, escrito por Joe Keeton e Peter Moss, Londres: Ed. Penguin Book Lt., 1984 (N.A.)). O Evening Post, periódico em que o jornalista trabalhava, encomendara—lhe a uma série de artigos ligados à paranormalidade. Em um desses artigos, Ray pretendia enfocar as evidências de reencarnação. E, a fim de dar à matéria um enfoque pessoal, o jornalista propôs ao Dr.Keeton que o hipnotizasse. Embora Bryant jamais tivesse sido hipnotizado, acreditou na seriedade com que Keeton conduzia seu trabalho.
Caio mostrou—se veementemente interessado. Maximiliano continuou:
— Sob efeito hipnótico, o jornalista Ray Bryant lembrou—se de algumas vidas passadas. A mais marcante, durante as sessões de hipnose, foi quando o jornalista havia vivido como um soldado, de nome Reuben Stafford, que lutou na Guerra da Criméia e, ao retornar à Inglaterra, passou os últimos anos da vida trabalhando como barqueiro no Tamisa.
De acordo com as lembranças de Bryant durante a regressão, ele reencarnou em 1822, quando nasceu em Brighthelmston, e desencarnou em 1879, quando morreu afogado em um acidente em Londres. Nessa vida anterior, o jornalista londrino adquiriu um acentuado sotaque da região de Lancashire, detalhe que refletia o fato de que Stafford passara grande parte de sua vida no norte da Inglaterra. A regressão do jornalista, em si, não constituía prova de nada, e, após testemunharem a manifestação do soldado vitoriano, dois membros da equipe de Keeton, Andrew e Margaret Selby, foram buscar evidências da existência real daquele homem.
Max suspirou e deu prosseguimento.
— Em Londres, na biblioteca Guildhall, o casal teve acesso, por coincidência, digamos assim, a uma lista com nomes de vítimas da Guerra da Criméia. Dela constava o sargento Reuben Stafford, que servia no 47º Regimento de Infantaria de Lancashire, e fora ferido na mão, na Batalha dos Quarries. Na sessão de hipnose seguinte, essas informações foram ditas por Ray Bryant. A data, o local, e o nome da batalha foram recordados por "Stafford", assim como outros fatos da sua carreira militar. Todos absolutamente corretos.
— Isso é formidável – replicou Caio.
— Tem mais – finalizou Max. – Todavia, a pesquisa do casal Selby não parou. Trabalhando alguns dias nos registros do cartório, descobriram a certidão de óbito do soldado Stafford, e puderam verificar que o militar morrera por afogamento, tendo sido enterrado em East Ham, como o jornalista revelara na primeira sessão de regressão. E, de mais a mais, os dados biográficos do soldado morto não eram publicamente conhecidos.
— Estou estupefato – concluiu Caio. – E esse caso foi revelado agora?
— Sim – tornou Max. – Faz duas semanas. O Dr. Bryan Scott me escreveu tão logo o artigo foi publicado. Por essa razão, quero voltar o mais rápido possível para Londres e debruçar—me cada vez mais sobre as evidências da reencarnação. Não há mais como duvidar.
— Estou fascinado. Tenho aprendido muito com os livros que mamãe me trouxe.
— O Max queria vir até aqui e contar esse caso pessoalmente a você – redargüiu Telles.
— Obrigado – tornou o rapaz. – Vocês fizeram meu dia. Ouvir essa explanação que prova a reencarnação e ainda ser convidado para ser modelo! Só falta a minha Luísa aqui para eu explodir de felicidade.
— Luísa está estudando bastante – ajuntou Renata. – Ela encontrou—se no Direito.
— E me encontrou – rebateu Caio. – O que mais ela quer?
Os três riram à beça. Continuaram entabulando conversação por mais alguns minutos e, algum tempo depois, Renata, Max e Telles despediram—se de Caio.
O rapaz deitou—se em sua cama e a expressão em seu rosto era puro contentamento.
Próximo dele, os espíritos de Norma e Carlota mantinham conversação.
— Estou tão feliz! – exclamou Norma. – Fiquei afastada algum tempo, dando assistência ao Gregório, quer dizer, Lucy, e nem vi o tempo passar. Parece que caminhamos para um desfecho feliz para todos.
— Sim – tornou Carlota. – Logo Caio será solto e poderá recomeçar sua vida ao lado de Luísa.
— E Henry? Eu não mais o vi – perguntou Norma.
— Ele está fazendo um cruso preparatório próprio para aqueles que vão reencarnar. Henry anseia muito por uma vida feliz ao lado de Luísa e Caio.
— Ele fora privado do convívio do pai no passado. Não vai estranhar o convívio com Caio?
— De forma alguma. Caio em outra vida os abandonou, mas agora sua consciência o chama para a responsabilidade do matrimônio e da paternidade. No fundo, ele anseia por ser bom marido e bom pai. Henry o perdoou de coração e vai nascer num lar muito feliz.
— Pelo menos alguns nós do passado foram desatados.
— Sim, Norma. E por falar em nós – Carlota adquiriu um olhar sério –, onde está Loreta? Ela não queria ver o Caio?
— Loreta virá em outra oportunidade. Está ao lado de Lucy. Elas estão se entendendo.
— Mãe e filho nesta vida, irmãs no passado. Como a vida é mágica, proporcionando—nos oportunidades diversas de reencontros e ajustes!
— Nem me fale Carlota. Sinto—me gratificada em poder ajudar a todos. Afinal, fazemos parte de uma grande família.
Carlota assentiu com a cabeça. Em seguida, beijaram a fronte de Caio e dirigiram—se para a cela ao lado.
— Vamos assoprar em Juão a evidência? – perguntou Norma, em tom de malícia.
Carlota deu uma piscadela.
— Creio que está na hora. O espírito de Caio amadureceu e ele se libertou das culpas do passado. Não precisa mais passar por essa experiência. Chegou o momento de lhe ajudar.
— E também ao Juão.
— Por certo, Juão falhou muito nesta vida, mas encontra—se sinceramente arrependido. Ele merece uma nova chance. Quem sabe, ligado ao nosso grupo, ele não venha a desenvolver um bonito trabalho espiritual na Terra?
— Tem razão, Carlota, todos merecemos uma nova chance.
As duas aproximaram—se de Juão. Ele estava adormecido. Carlota pousou a mão em sua fronte. Uma luz cristalina irradiou de sua mão e entrou na mente do rapaz. Em seguida, Norma abaixou—se na altura da nuca dele e assoprou. Juão remexeu—se na cama, seu corpo estremeceu por instantes e ele voltou a dormir.
— Terminamos nossa parte – tornou Norma.
— Que Deus abençoe a todos – finalizou Carlota.




CAPÍTULO 30


Renata chegou cedo ao Centro Espírita naquela noite. O trabalho na Cia. De Perfumes ia de vento em popa, era pesado, mas ela começava a colher os resultados de sua dedicação extremada. Ela conseguiu renegociar as dívidas com os fornecedores, pagou os salários atrasados dos funcionários e a campanha do novo perfume Adônis, estrelada por Marco Antônio, fez tremendo sucesso.
O dinheiro entrava aos montes no caixa da empresa e Renata sentia—se realizada. Era o que desejava. Ter seu próprio negócio. Aliás, um negócio bem rentável.
Ela estava intrigada com algo que acontecera no finalzinho da tarde. Não era costume, não obstante, naquela tarde em particular, Renata decidiu largar o batente mais cedo. Deixou algumas recomendações a Meire, que agora era sua secretária.
— Pode ir mais cedo. O dia foi puxado e nós merecemos um descanso maior.
— Obrigada, Renata – agradeceu Meire, sincera. – Entretanto, tenho me sentido feliz em ver a empresa voltar a crescer. Tenho orgulho de fazer parte do quadro de funcionários da Cia. De Perfumes.
— Vocês fazem por merecer. Tenho excelentes funcionários. Sem vocês, eu não conseguiria tamanho sucesso.
— Obrigada.
— Por esse motivo, hoje você pode ir para a casa mais cedo para descansar.
— Eu vou ficar mais um pouco.
— Por quê?
Meire riu.
— Marco Antônio está assinando um contrato lá no departamento de recursos humanos. Ele vai me levar para casa.
Renata balançou a cabeça para cima e para baixo.
— Entendo.
Meire ruborizou.
— Assim que ele sair, vamos embora.
— Está namorando o Marco Antônio?
— Estamos saindo.
— Torço por vocês. Marco Antônio é um bom moço e, cá entre nós, muito bonito. Veja como o rosto dele vende meu perfume!
— Ele é lindo, sim, Renata. Mas é cavalheiro, sensível. O homem dos meus sonhos.
— Vocês formam um lindo casal. Você também é muito bonita, Meire.
— Obrigada.
— Que sejam felizes. Vibrarei por vocês.
Meire sorriu e, ao chegar na porta da sala de Renata, virou o corpo e perguntou:
— Vou passar o tempo e quero jogar alguns papéis fora. Tem muita coisa do seu Gregório na minha sala.
— O quê, por exemplo?
— Contas, correspondências que fui guardando após sua morte. Há um monte lá nas minhas gavetas – ela fez um sinal com as mãos. – Posso me livrar delas?
— Pode sim. Afinal, faz mais de um ano que Gregório morreu. Genaro vendeu—me a companhia e, quando vendeu a mansão do Morumbi, mandou para cá todas as correspondências de Gregório.
Creio que podem ir para o lixo.
— E – ajuntou Meire – quando a casa foi vendida, o Genaro mandou todas as contas para cá também. Tem muito papel para jogar fora.
Renata sentiu um aperto no peito, parecia que sua intuição queria lhe dizer algo.
— Façamos o seguinte. Separe as correspondências de Gregório, as contas e tudo o mais que estiver no nome dele, coloque—as numa caixa e deixe aqui na minha sala. Faria essa gentileza?
— Não quer que eu jogue fora? Vieram muitas contas antigas lá da casa do seu Gregório. É muita papelada sem valor.
— Algo me diz que não devemos, ainda, jogá—las fora. Deixe—as aqui na minha mesa.
— Está certo. Boa noite.
— Boa noite, Meire. Até amanhã.
Mafalda deu—lhe um cutucão de leve.
— Está aqui ou em outro mundo?
— Olá Mafalda. Por que já chegou?
— Os espíritos me avisaram que você viria mais cedo. Pediram para que façamos uma corrente de orações para o Caio.
Renata preocupou—se.
— Algo ruim?
— Não creio. Vamos atender às recomendações do Alto.
Elas continuaram a conversar. Em seguida, Zulmira apareceu na recepção. Após o tratamento espiritual, ela passou a freqüentar a casa espírita amiúde. Cumprimentou—as com beijinhos na face.
Mafalda pediu licença, dizendo:
— Conto com você, Renata, para a corrente de orações no término dos trabalhos. Se quiser – convidou Zulmira – poderá participar também.
— Adoraria.
— Espero—as logo depois das dez horas.
Mafalda afastou—se, e Zulmira ajuntou:
— Adoro sentir—me útil. Hoje vamos orar por alguém em especial?
— Sim. Um amigo nosso precisa de nossas vibrações positivas. Será um prazer ter você conosco.
— Gosto muito de você, Renata – disse ela, de maneira bem espontânea.
— Eu também prezo muito a sua amizade, Zulmira. Simpatizei com você desde aquele distante dia, aqui na recepção.
— Eu também a achei muito simpática. Algo me dizia que eu a conhecia. Mas de onde?
Renata sorriu.
— Talvez de outras vidas.
— Será?
— Como diz Mafalda, os encarnados nunca se encontram por acaso.
— Creio que – Zulmira suspirou – se você conhecesse meu filho, tenho certeza de que se dariam muito bem. Entretanto – disse ela de maneira triste –, ele está apaixonado, morre de amores por uma moça.
— E isso não é bom? – perguntou Renata. – O amor não é espontâneo, não vem de graça. Amor é potencial que se desenvolve, que se educa. Seu filho merece ser feliz. Não é o que almeja?
— Sem dúvida! – exclamou Zulmira. – Bom, ele vai levá—la para jantar na minha casa qualquer dias desses. Sempre que marcamos, alguma coisa dá errado. Ou eu não posso, ou ela não pode, ou até mesmo meu filho não pode.
— Na hora certa você vai conhecê—la e tenho certeza de que vai adorá—la.
— Será?
— Confie, Zulmira. Se seu filho é tão bom como você diz, então a moça também deve ter lá seu charme, sua simpatia. Não se esqueça de que nos unimos por afinidades.
— Assim espero. Por falar nisso – ela baixou o tom de voz –, meu filho vem conhecer o Centro hoje.
Eu falo tão bem daqui, que ele está curioso para saber onde sua mãe se meteu.
Elas riram. Renata perguntou:
— Ele é médium, não é? Lembro—me de você ter me falado que ele escutava os espíritos.
— É. Você se lembra mesmo! Na profissão dele...
Zulmira começou a contar sobre a profissão do filho, todavia Renata não lhe deu ouvidos. Enquanto prestava atenção ao relato de Zulmira, ela ficou estática, dura, ao ver aquele homem barbudo entrar no Centro Espírita. Seu coração bateu descompassado e Renata sentiu a boca secar, tamanha era sua emoção.
Zulmira percebeu o estado apoplético da moça e acompanhou os seus olhos. Ela abriu largo sorriso e estendeu os braços.
— Filho! Que bom que chegou.
Telles deu um abraço bem apertado na mãe, enquanto seus olhos não desgrudavam dos de Renata. Zulmira desprendeu—se dele e apresentou:
— Essa é a moça de que lhe falo tanto.
— Renata?
— Sim.
— Você queria me apresentar a Renata, mãe?
— É! Como sabe o nome dela?
Zulmira não disse mais nada. Notou o olhar apaixonado de ambos. Telles beijou delicadamente os lábios de Renata e, antes que sua mãe pudesse articular som, ele contrapôs:
— Mãe, esta é a moça que eu tanto quero lhe apresentar.
— Como assim? – inquiriu Zulmira, sem entender.
— A Renata é a moça por quem estou perdidamente apaixonado.
Zulmira não conteve a emoção. As lágrimas escorriam pelo seu rosto. Ela abraçou—se a Renata.
— Você não sabe como estou feliz hoje. Sempre roguei a Deus que pudesse intervir e aproximar você do meu filho. Eu sentia que vocês iam se dar bem. Nasceram um para o outro.
— Você tem razão – tornou Renata, profundamente emocionada. – Nascemos um para o outro.
Os três fecharam—se num abraço caloroso. Após baixar o calor da emoção, conversaram animados, sobre as coincidências da vida. Se é que aquilo era coincidência.


***


Caio acordou com o grito desesperado de Juão.
— Eu sei! Eu sei!
Dois outros presos gritaram impropérios para Juão. Ele nem ligou. Chamou Caio, insistentemente.
— Ouça—me. É importante. Eu descobri!
Caio levantou—se de maneira irritada.
— Cale a boca, Juão. Não vê que é tarde?
— Por favor – ele fazia movimentos frenéticos com as mãos –, escute—me. É importante.
— O que foi dessa vez?
— Eu descobri a prova que vai inocentá—lo.
Caio não entendeu de pronto.
— O que foi que disse?
— Descobri a evidência que vai livrá—lo das grades.
— Deixe de besteiras, homem. Volte a dormir.
— Caio, por favor, escute—me. Eu orei muito nesses dias e comecei, sinceramente, a me perdoar e a pedir perdão aos meus desafetos, tanto encarnados quanto desencarnados. Eu jurei que se pudesse ajudar você de alguma maneira, que minha mediunidade servisse de veículo para tal. Eu quero fazer o bem, somente o bem. E jurei que, se eu pudesse ajudá—lo para valer, eu iria me redimir e usar minha mediunidade para ajudar outras pessoas. Só para fazer o bem. É verdade.
Juao falava de maneira comovente. As lágrimas escorriam pela fronte e sua voz era entrecortada por soluços. Caio sentiu que ele falava a verdade. Ele aproximou—se das grades.
— O que tem a me dizer?
— Sonhei que estava na casa do empresário assassinado.
— Gregório?
— Esse mesmo. Eu estava na casa dele e de repente eu vi um papel. Aproximei—me e, chegando bem perto, era como se eu estivesse acordado. Foi muito nítido.
— O que você viu?
— Uma conta.
— Uma conta, Juão?
— É. Uma conta de telefone. Nela está a prova de que você não matou o empresário.
Caio não conseguia articular as palavras nem mesmo concatenar os pensamentos. Juão prosseguiu:
— Eu peguei a conta nas mãos e li no canto superior: fevereiro de 1983. Você deve mandar procurar essa conta de telefone, desse mês especifico. Nela vai estar à evidência que faltava.
Caio sentiu que seu coração ia explodir. Ele mordeu os lábios, mas não conseguiu conter o pranto. Precisava falar com Telles, com Dr. Lopes, com Luísa... Ele mal cabia em si tamanho era seu contentamento.
— Prometo – ele disse a Juão – que se isso for verdade e eu for solto, farei de tudo para tirá—lo da cadeia.
— E vou trabalhar num Centro Espírita. Usarei minha mediunidade em benefício das pessoas. Serei um homem de bem. Eu juro. Depois de hoje, eu não tenho mais dúvidas de que o Alto está me ajudando. Os espíritos de luz voltaram a ficar do meu lado – exultava Juao, profundamente emocionado.
Aquela noite foi difícil para Caio conciliar o sono. Ele bem que tentou, mas a ansiedade não lhe permitia fechar os olhos. Não obstante, a corrente de orações vindas do Centro Espírita e endereçadas a ele surtiram efeito. Caio sentiu—se bem, como há muito tempo não se sentia. Num dado momento, suas pálpebras cerraram e ele dormiu um sono profundo e reconfortante.
Na manhã seguinte, após ouvirem o relato emocionado de Juão, Telles e Dr. Lopes correram até a Cia. De Perfumes.
Relataram o sonho do médium a Renata.
— É impressionante – disse ela. – Com tanta riqueza de detalhes?
— Sim – afirmou Telles. – E Juão declarou que a conta está por aqui, nos pertences de Gregório.
Renata levou a mão ao peito.
— O que foi? – inquiriu o advogado.
— Meire ontem me falou que ia fazer uma limpeza e jogar fora as contas e correspondências de Gregório.
Telles sentiu o sangue gelar.
— Você não...
Renata tranqüilizou o namorado, encostando o indicador na boca dele.
— Chi! Calma. Eu tive um pressentimento de que deveria guardar essas correspondências. Segui minha intuição.
— Graças a Deus! – ponderou Telles.
— Elas estão naquela caixa – apontou.
Telles e Lopes vasculharam os documentos, as correspondências, as contas. Acharam à conta de telefone que Juão garantiu ver no sonho. Lopes checou e, para seu espanto, verificou:
— Olhe só isso! – apontou.
Telles espremeu os olhos e não podia acreditar no que via.
— Uma chamada à distância para Vassouras? Na madrugada do crime? Às quatro e meia da manhã?
— É. Como não atentamos a esse detalhe? Por que deixamos de verificar as contas telefônicas?
— Agora não vem ao caso, Dr. Telles. Vamos rastrear essa ligação.
E assim foi feito. A polícia entrou em contato com a companhia telefônica e descobriu—se que na madrugada que Gregório fora assassinado, de sua casa fizeram uma ligação para Vassouras, no Rio de Janeiro. Com posse do número discado, chegaram à casa de um humilde caseiro de um sítio.
Finalmente, descobriram o paradeiro de Guido. Ele estava morando com os pais, na casinha anexa ao sítio. Mas Guido não pôde ir a julgamento. E nem teria condições de esperar pela sentença condenatória. Era como se seu corpo, combalido e doente, estivesse esperando por aquele momento, a fim de se redimir e desencarnar com a consciência menos pesada.
Os investigadores de polícia tomaram seu depoimento. Ele confessou ter assassinado Gregório.
Um dos investigadores, vendo o estado precário em que Guido se encontrava, perguntou ao pai:
— O que ele tem?
— Doença ruim. Parece que ele pegou esse câncer que está matando os homossexuais – falou, num tom envergonhado e triste.
Guido desencarnou três dias depois de assinar seu depoimento. Pressentindo que a morte o levaria naquela noite, solicitou ao pai que entregasse uma carta a Caio.


*****


A imprensa não se interessou pela prova que inocentava Caio. Como o culpado do assassinato de Gregório havia morrido e o crime já começava a desaparecer da mente social, nenhum alarde foi feito no dia em que o juiz expediu o alvará de soltura.
Luísa, Rosalina e José chegaram cedo ao distrito policial. Em seguida, chegaram Telles, Renata e Max. Até Celinha estava presente. Todos estavam ali para abraçá—lo, beijá—lo e ajudá—lo a reintegrar—se à sociedade, depois de um longo período preso.
As lágrimas banhavam a face de Caio. Ele não tinha palavras para expressar a sua gratidão. Todos aqueles à sua volta prezavam pelo seu bem—estar.
Caio nunca se sentiu tão amado em toda sua vida.
Luísa entregou—lhe a carta de Guido. Caio abriu o envelope e tirou o papel amarelado pelo tempo. As letras continham vários garranchos, mas ele conseguiu entender.


Prezado Caio,

Não sei quando esta carta vai chegar em suas mãos. Mas tenha a certeza de que, quando você estiver lendo essas linhas, eu não estarei mais entre o mundo dos vivos...
Eu o conhecia muito antes de nos encontrarmos no ponto de ônibus, afinal, tudo não passou de uma armação do Gregório. Ele descobriu que Loreta, sua mãe, tinha—o como amante e sentiu—se ultrajado, porém fixou na mente que se ela podia ter um rapaz lindo em sua cama, ele também podia.
Eu tentei demovê—lo da idéia, mas Gregório me deu um bom dinheiro para ir a Bauru e vigiar seus passos. Ele arquitetou tudo. Loreta não morreu de ataque cardíaco, foi assassinada. Por Gregório. Isilda colocou um pó na taça de champanhe de Loreta, pó esse fornecido por Gregório, na noite do crime.
A mãe estava morta e assim comecei a persegui—lo. Eu fiquei na espreita e vi quando você saiu da casa de Loreta, aturdido. Sabia que você ia fugir como Gregório previu. Eu o segui na viagem de ônibus. Você nem notou minha presença. Em São Paulo, eu fui um dos últimos a sair do ônibus. Fui atrás de você e, num dado momento, fingi estar na fila do ponto e apresentei—me como amigo.
Mas eu estava fazendo tudo o que Gregório queria. A idéia dele era tê—lo a todo custo. Por esse motivo quis atrai—lo para a Cia. De Perfumes.
E, para atormentá—lo, ele escrevia aquelas cartas em que dizia ser você o autor da morte de Loreta.
Foi uma espécie de vingança, não sei ao certo.
Quando Max me deixou, eu procurei Gregório e o extorqui. Arranquei bastante dinheiro dele, porque, se ele não me desse o que eu queria, eu contaria tudo sobre a morte de Loreta.
Na noite em que você esteve para lhe devolver o dinheiro, eu estava no quarto. Eu precisava de mais dinheiro e estava me deitando com Gregório.
Assim que você saiu, ele subiu para o quarto, aos prantos, dizendo que o amava e que você não podia ser de ninguém. Eu afirmei que ele era doente e que estava bêbado. Gregório pegou um papel e começou a escrever seu nome. Eu arranquei o papel da mão dele.
A nossa discussão durou até umas quatro da manhã. Eu exigi que ele me desse à combinação do cofre. Gregório me esbofeteou. Fiquei fora de mim. Corri ao banheiro, olhei—me no espelho e ao ver a marca de seus dedos no meu rosto, fiquei possesso.
Peguei um par de luvas plásticas na gaveta sob a pia, porque tencionava esganá—lo. Mas aí eu vi uma tesoura e não pensei duas vezes.
Saí do banheiro e mudei o tom de voz. Implorei para que Gregório se deitasse na cama. Ele me dizia ser Lucy. Falava que você era dele e deitou—se de costas. Aproveitei aquele momento, amarrei seus braços, peguei a tesoura e... O resto você já sabe. Não preciso dizer como o matei.
Após meu ataque de fúria, eu concatenei os pensamentos, mas já era tarde. Gregório estava morto e eu me apavorei. Pensei em meu pai e liguei para Vassouras. Meu pai ainda brigou comigo porque era madrugada e ordenou que eu ligasse pela manhã.
Eu estava atordoado, perturbado. Ainda sob o efeito do álcool e da maconha, eu meti as luvas no bolso da jaqueta, peguei o dinheiro que você deixou sobre a mesinha no jardim de inverno e, propositadamente, deixei sobre ela o papel em que Gregório escrevera seu nome.
Fui até o cofre e não consegui abri—lo. Eu estava muito nervoso. Os cães me conheciam e só latiram. Não me morderam. Eu escalei o portão, ganhei a rua e tomei um táxi em direção à rodoviária. Comprei uma passagem para o Rio de Janeiro. Quando desci na rodoviária, comprei o bilhete para Vassouras.
Eu me arrependi e decidi procurar a polícia. Entretanto, comecei a ter diarréia constante e febre. Encharcava os lençóis. Descobri estar com AIDS. A doença evoluiu de maneira rápida e, envergonhado e doente, não tive coragem de me entregar a policia.
Eu orei muito para que, de alguma forma, você pudesse não ir a julgamento. Deus me ouviu. Provavelmente agora, você está livre.
Estou com medo. Sinto que vou morrer e nunca pensei que um dia isso fosse acontecer. Pelo menos não tão cedo.
Eu não enfrentei um tribunal, mas vou enfrentar o de minha consciência.
Que Deus o abençoe.

Guido.


Caio terminou de ler e enxugou os olhos com as costas das mãos. Ele abraçou—se a Luísa e chorou, chorou muito. Não adiantava sentir raiva de Guido. Ele estava colhendo o que havia plantado. E, o mais importante era que ele estava livre. Estava solto.



EPÍLOGO


Os dias que se seguiram foram de imensa felicidade para Caio. Ele mudou—se para o apartamento de Luísa. Marcaram a data do casamento para dali três meses. Telles e Renata animaram—se e marcaram a data de seu enlace para logo mais.
Maximiliano ficaria até o casamento de Telles e Renata, e no dia imediato partiria para Londres. Não tencionava mais regressar ao Brasil.
Isilda foi localizada e presa, mas não pôde também ir a julgamento. Estava louca, atormentada por espíritos zombeteiros com os quais ela se comprometera no passado. Terminou seus dias trancafiada em uma instituição para doentes mentais.
Juão saiu da prisão com a ajuda de Caio. Não quis fazer outra coisa na vida a não ser trabalhar para o benefício das pessoas, assessorado sempre por espíritos de luz. Foi trabalhar no Centro Espírita de Mafalda.
Genaro foi pego em um esquema monstruoso de corrupção, que lesou bastante os cofres públicos. O deputado federal foi preso e seus amigos poderosos sumiram. Sentindo—se abandonado e traído, Genaro chamou repórteres de todas as mídias e descreveu o funcionamento de um sistema articulado que arrancava verbas do governo e distribuía propinas.
Depois, dedurou ministros, governadores, senadores e outros deputados. Foi um escândalo. Ele teve seu mandato cassado, perdeu seu eleitorado e nunca mais conseguiu retornar à política. Seu filho, anos depois, tornou—se importante ativista em defesa dos direitos homossexuais.
Só então, Genaro percebeu que o telhado de sua casa também era de vidro...


*****

Em uma tarde chuvosa, Caio ficou no estúdio até mais tarde, para ensaio de nova campanha publicitária. Seu rosto começava a despontar em outdoors, cartazes e páginas de revistas. A cada foto impressa, Luísa exultava de felicidade.
Nesse dia, passava das quatro quando Luísa entrou no estúdio. Era pausa para o café e ela aproveitou para beijar o noivo.
— Não tem aula na faculdade?
— Hoje não. E, mesmo que tivesse, eu não iria.
— Por quê?
Luísa fez ar de mistério.
— Trouxe alguém que deseja muito vê—lo.
— Alguém?
— Sim, que você gosta muito.
Caio deu de ombros.
— Mande entrar.
Luísa afastou—se e saiu da sala. Caio pegou uma xícara de café. Estava de costas quando ouviu a voz familiar:
— Não vai cumprimentar a sua pantera?
A xícara de café quase foi ao chão. Caio rodou lentamente nos calcanhares e gritou:
— Sarita!
Abraçaram—se de maneira afetuosa. Havia muito que Caio queria encontrá—la, mas soube que ela se casara e sumira no mundo.
— Não faz idéia do quanto desejava revê—la – ele a enlaçou pela cintura e disse à Luísa: — esse é o meu anjo bom.
— Eu sei – concordou Luísa. – E eu sou o quê?
— E agora? – perguntou Sarita. – Está numa enrascada!
— Não – objetou ele. – Luísa é meu grande amor.
Elas riram. Luísa balançou a cabeça para cima e para baixo.
— Se saiu bem, hein? Sedutor de araque.
Caio notou a barriga proeminente de Sarita.
— Você está grávida!
— Sim. De meu primeiro filho. Eu me casei e fomos para a Europa. Osório ganhou uma bolsa de estudos e eu o acompanhei. Decidimos que iríamos morar em Lisboa, entretanto, quando engravidei, decidimos que queríamos criar nosso filho em solo brasileiro. Aqui podemos ser livres, podemos nos expressar à vontade, não precisamos seguir regras rígidas de comportamento. Quero que Caio cresça nesse ambiente descontraído.
— Você disse Caio?
— Sim – respondeu Sarita. – Nosso filho vai receber o seu nome. É homenagem minha e de meu marido pela sua garra, pela sua luta, pelo que passou na cadeia esse tempo todo. Você é um vencedor. E meu filho vai ter o privilégio e o orgulho de levar o seu nome.
Caio emocionou—se. Beijou a testa de Sarita e a abraçou mais uma vez.
— Você não imagina o quanto me deixa feliz com essa homenagem. Obrigado.
— Queremos que você e Luísa sejam os padrinhos de nosso filho.
— Fico lisonjeada. – afirmou Luísa.
— Obrigado – disse Caio, enquanto segurava e beijava as mãos de Sarita. – Quando eu e Luísa tivermos nosso primeiro filho, você e seu marido também serão os padrinhos. Concorda?
— Sim. Espero que nossos filhos cresçam juntos, amigos, rodeados de carinho e de amor.
Unidos pelos laços sagrados da amizade.
— É isso aí – tornou Caio, com a voz embargada.
— Quero apresentar a você meu marido.
Sarita foi até a porta e chamou. O homem era alto, os cabelos negros jogados naturalmente para trás. A camisa estava aberta até o meio do peito e dele saltavam tufos de pêlos. Era um tipão. E Caio jurou que conhecia aquele rosto quadrado e bem apessoado de algum lugar.
Osório estendeu a mão e o cumprimentou.
— Como vai?
Caio observou mais atentamente e seus olhos quase saltaram das órbitas ao constatar quem era aquele homem.
— Padre Osório?
Osório riu.
— Padre não. Ex—padre. Larguei o sacerdócio por amor a Sarita. Desliguei—me da igreja, casamo—nos e ganhei uma bolsa para fazer pós—graduação em Teologia.
Caio abriu e fechou a boca, sem articular som. Abraçou Osório com carinho.
— Padre... Quer dizer, Osório, como estou feliz por você e Sarita.
— Eu não lhe dizia que ele me olhava de esguelha na igreja? – falou Sarita, de maneira divertida.
— É – tornou Caio, emocionado –, você estava certa.
Eles abraçaram—se e continuaram a conversa por longo tempo. Caio deixou os ensaios para o outro dia. Queria passar cada minuto ao lado de seu anjo bom. Quanta saudade sentiu de Sarita. E agora não mais se desgrudariam. Nunca mais.


****

Alguns meses depois, Caio e Luísa batizaram, conforme o prometido, o filho de Sarita e Osório, o pequeno Caio.
Dois anos se passaram e agora era o momento de Sarita e Osório fazerem o mesmo com o pequeno Henrique, um menininho lindo, forte, robusto, vendendo saúde e parecido com o pai.
Luísa e Caio, acompanhados por Rosalina, José e Eunice, chegaram primeiro à igreja de Santa Rita de Cássia. Celinha e Malaquias vieram logo atrás. Eles haviam se conhecido no dia em que Celinha ajudou Caio na mudança para o apartamento de Luísa. O namoro ia muito bem.
— É aqui que quero me casar, entendeu? – falou Celinha.
— Não sei se poderei arcar com as despesas.
— Nem pense nisso! – ela protestou. – Vamos conseguir pagar e.
Caio os interrompeu.
— Eu ajudarei nas despesas. Será meu presente de casamento para vocês.
Malaquias riu com gosto.
— Agora não tenho como dar desculpas.
Celinha fez ar de mofa, enquanto os demais caíram em sonora risada.
No caminho para o altar, Caio puxou José pelo braço.
— Eu prometi a você, meu pai, que meu filho seria batizado nesta igreja. Em sua homenagem.
José sentiu a voz embargada. Adorava quando Caio o chamava de pai.
— Obrigado, meu filho. Estou muito feliz... José parou de falar. As lágrimas o impediam de continuar. Caio o abraçou.
— Eu o amo, José. Você é o pai que nunca tive. E – ele afastou—se e riu, procurando ocultar a emoção –, trate de cuidar bem de seu neto.
José enlaçou o braço no de Rosalina. As lágrimas teimavam em cair.
Sarita e Osório chegaram em seguida. Cumprimentaram—se e ela pegou o pequeno Henrique do colo de Luísa. O padre iniciou a missa de batismo. Próximo deles, os espíritos de Norma e Carlota sorriam felizes.
— Carlota, como estou feliz que tudo tenha dado certo.
— Como vê, Norma, nada como um dia após o outro. Veja nosso pequeno Henrique. Ontem estava aqui conosco como Henry e hoje está iniciando uma nova etapa reencarnatória.
— Formam uma linda família.
— Concordo.
— Visitei Loreta e Lucy na semana passada. Lucy recusa—se a recordar—se de sua existência como Gregório. Continua presa ao passado.
Carlota suspirou.
— Isso vai ajudar esse espírito a amadurecer, rever suas atitudes pretéritas e preparar—se para mudar. Um dia chegará em que Lucy terá de enfrentar Gregório, porquanto ambos são e estão no mesmo espírito. Enfim, tudo tem seu tempo certo. Sabemos que nenhuma folha cai sem o consentimento do Pai.
— Entendo. E quanto aos que estão encarnados? Terão acesso ao passado?
— Isso não se faz necessário – ponderou Carlota. – Eles estão felizes. É o que importa.
— Tive acesso ao passado deles e agora entendo muita coisa – redargüiu Norma. – Caio e Luísa eram casados, moravam em Londres. Entretanto, Caio tinha uma queda pelo sexo fácil e traía a esposa a torto e a direito. Ele a amava, mas seus instintos falavam mais alto. Até que Caio conheceu Loreta e tiveram um tórrido romance. Loreta também tinha um fraco pelo sexo e ambos se entregaram à paixão descontrolada. Triste e com o coração partido, Luísa se separou e casou—se com Genaro. Viviam relativamente bem, até que Caio, cansado da vida degenerada que tinha, quis voltar para seu verdadeiro amor. Luísa não o aceitou e ele fez de tudo para tê—la de volta.
Carlota tornou, de maneira calma:
— Foi então que Caio arquitetou o plano para que Genaro fosse preso, por um desfalque que jamais cometera. Luísa, mesmo assim, não voltou para Caio. Amargurado, ele foi pedir ajuda a Guido.
Ardiloso e inescrupuloso, Guido era casado com Lucy, irmã de Loreta e apaixonada secretamente por Caio. Lucy encheu—se de coragem e um dia declarou seu amor a Caio – naquele tempo, Philip. Ele rejeitou—a, humilhou—a. Ela o embebedou para que ele fizesse amor com ela. Quando Caio despertou, tiveram uma calorosa discussão. Caio não queria saber de Lucy, de jeito algum. Decidida de que Caio deveria ser dela, e só dela, Lucy quis matá—lo, para que ele não fosse de mais ninguém.
— E assim foi feito – concluiu Norma. – Lucy, depois reencarnada como Gregório, preparou poderoso veneno e entregou o cálice mortal ao amado. Por um lapso, a taça foi parar nas mãos de Guido. E, pelas imagens a que tive acesso, a morte de Guido foi lenta e cruel.
— Anos depois, já no mundo espiritual, Caio arrependeu—se de ter arquitetado a prisão contra Genaro e afirmou aos amigos espirituais que sua consciência só o deixaria em paz caso ele passasse pelo mesmo.
— Ele não precisava passar por isso – objetou Norma. – Eu tinha sido sua irmã também naquela vida e aqui no astral tentei demovê—lo dessa idéia de ser preso. Mas ele insistiu e coube a mim estar ao seu lado para que não esmorecesse.
— Mas Caio quis. Seu espírito ainda precisa passar pelas experiências desagradáveis, precisa do sofrimento para crescer. Há outros espíritos que crescem de maneira menos sofrida. Como você, por exemplo.
Norma sorriu.
— Cada caso é um caso.
— Guido está muito atormentado.
— Será que vai se recuperar de tudo o que fez? – perguntou Norma.
— Na eternidade tudo é possível – ponderou Carlota. – Num momento mais à frente, Guido vai ter de enfrentar a si mesmo. Essa triste e dolorosa experiência deve ser realizada, por ele, tão somente por ele.
— Que Deus o abençoe.
Norma falou e, em seguida, o padre falou o mesmo.
— Que Deus o abençoe, Henrique Galvão Souza...
As duas sorriram. Aproximaram—se do pequenino e Henrique notou—lhes a presença. O bebê esboçou largo sorriso, o que comoveu os padrinhos e os pais. Elas se afastaram e chegaram à porta da igreja. Olharam para o sol que já ia alto e para o céu azul. Fecharam os olhos e fizeram sentida prece de agradecimento.
Em seguida, avistaram lindo jardim rodeado por árvores e flores de várias espécies.
— O que acha de caminharmos pelo jardim antes de nossa partida?
— Excelente idéia, Norma.
Os dois espíritos iluminados deram—se as mãos e entraram no jardim. Uma brisa gostosa tocou—lhes o rosto, e ambas aspiraram o ar puro e delicado daquela linda manhã.
Logo a atenção de seus espíritos foi desviada para agitado, porém gracioso, beija—flor, que, suspenso no ar, alimentava—se do néctar de uma flor. Carlota e Norma sorriram e tiveram a certeza de que o dedo de Deus está em tudo, até mesmo em pequenos gestos que nós, muitas vezes, não damos à mínima atenção.


F I M



















































JUREMA DAS MATAS

MÔNICA DE CASTRO


Meu amor pela literatura existe desde os meus tempos de menina. Sempre gostei de ler e escrever, em verso e prosa, e foi nos poemas de Manuel Bandeira que lapidei ainda mais a sensibilidade da minha alma. Gostava de escrever poemas, contos, textos diversos, e cheguei a ganhar um concurso de poesia aos treze anos, aqui na cidade do Rio de Janeiro, onde nasci, em 1962. Ao mesmo tempo, minha mediunidade despertou, e adotei o espiritismo como bálsamo do meu coração. Meu desejo sempre foi o de ser escritora. Mas a vida nos leva por caminhos diferentes, sempre em nosso benefício, e acabei me formando em Direito e passando num concurso para o Ministério Público do Trabalho. Anos depois, após o nascimento do meu filho, senti a primeira inspiração. Foi uma coisa estranha. Uma voz ficava na minha cabeça, repetindo esse nome: Rosali, e a ideia de fazer um romance brotou na mesma hora. Rejeitei a ideia e pensei: "Quem sou eu para escrever um romance?". Por outro lado, a mesma voz também me dizia: "Não custa nada tentar. O máximo que pode acontecer é não dar em nada". Aceitei a sugestão do invisível, acreditando ser o meu pensamento, e fui sentar-me ao computador. Na mesma hora, a inspiração para Uma História de Ontem surgiu espontânea, e fui escrevendo, cada dia um pouquinho. Até então, eu não sabia que estava psicografando. Foi só quando terminei o romance que recebi a psicografia do Leonel, que abre o meu primeiro livro, e nele se apresenta, dando o seu nome. Mas foi preciso uma boa dose de desprendimento para escrever, sem questionar e aceitar a interferência do espírito. Hoje, posso dizer, Leonel é parte fundamental da minha vida. Não escrevo para viver. Escrevo porque gosto e porque acredito estar levando algum bem para as pessoas. E é esse sentimento que me faz querer escrever cada vez mais. É pelas pessoas que vale a pena escrever. Pelos leitores, que estão em busca de algo, além do aqui e agora, e que acreditam no poder da fé, do autoconhecimento e do amor, como caminhos seguros para a transformação do Ser. Acredito que nós todos podemos trabalhar pelo aperfeiçoamento moral da humanidade para construir um mundo melhor.

Falando sobre o passado...

Não sei dizer se é doloroso relembrar tantos acontecimentos que se perderam na poeira dos tempos... Os anos se passaram e eu me modifiquei, tentando remodelar a imagem austera, arrogante e orgulhosa que, durante tantos séculos, ficou grafada em mim. Hoje faço parte de uma nova vida. Não daquela à qual os homens se acostumaram por ilusão, mas à real existência dos seres imortais que habitam os muitos espaços acima deste pequenino mundo que é a Terra. Gosto de viver em espírito, assim como gostei de ter um corpo de carne e desfrutar os prazeres e vícios que me satisfaziam as paixões e o ego. Agora, porém, tudo isso passou. As marcas da desilusão serviram para tornar confiante e segura a manifestação da minha vontade. Tento crescer e levar comigo tantos quantos possam me acompanhar. Mas a visão estreita do mundo ainda faz com que os olhos do homem permaneçam fechados, mesmo quando a luz da verdade desponta diante dele, quase a ofuscar-lhe a mente nebulosa. Não foi fácil acertar o ritmo dos pensamentos para trazer esta história. No entanto, ela está aqui e é real, em cada uma das existências em que experimentei a sensação da matéria densa. Os ensinamentos foram muitos e enriqueceram minha alma de uma forma que não poderia descrever. Quanta gratidão tenho a Deus pela chance de enxergar dentro de minha mais profunda essência e buscar, em mim mesma, o caminho da redenção. A dor foi necessária e me ajudou, porque eu ainda não havia compreendido o poder transformador e curativo do amor. A vida só vale a pena se for vivida pelo amor ou em busca do amor. Fora disso, tudo é ilusão e há de ficar para trás nas sombras das encarnações. A inteligência é um atributo divino e, se exercida com amor, transcende os limites da razão mesquinha e adentra, límpida e serena, o mais alto plano que a alma humana pode tocar. Por todos nós, que ainda estamos presos às tramas desse mundo de sonhos, é que resolvi contar a minha história...

CAPÍTULO I

Chovia torrencialmente quando Alejandro Velásquez deixou a taverna, ainda sentindo os efeitos estonteantes do rum e da mulher que o inebriara na cama. Foi caminhando, cambaleante, tentando recordar-se do local em que havia deixado o cavalo. Como a memória lhe falhava, sacudiu os ombros e cuspiu no chão, tomando o caminho da rua à direita, e seguiu chutando as poças e espargindo água por todo lado. Era madrugada, e não havia ninguém na rua. Um cão encharcado se aproximou, e Alejandro lhe teria dado um pontapé, não fosse o bichinho mais rápido e fugisse assustado, alertado pelo instinto de que não estava diante de uma pessoa amiga.
- Idiota - rosnou o homem, tentando equilibrar-se e seguir avante.
Quando chegou em casa, o dia estava prestes a raiar, e ele abriu a porta com estrondo, atirando-se na primeira poltrona que viu pela frente. Ali mesmo adormeceu, até que foi despertado algumas horas depois pelo murmurinho da criada, ocupada em limpar a sala enquanto cantarolava uma cantiga da moda.
- Pare com esse barulho infernal! - esbravejou ele, assustando a moça, que deixou cair a bandeja de prata que segurava.
- Senhor! - redarguiu ela, cabeça baixa e voz humilde. - Não sabia que estava aí.
Ele não respondeu. Levantou-se, coçando o queixo, e passou por ela sonolento, não sem antes lhe beliscar as nádegas e dar uma gargalhada irônica. Apesar da contrariedade, a moça nada fez e se encolheu para lhe dar passagem.
- Onde está a minha mulher? - perguntou, ainda sustentando no canto da boca aquele sorriso maroto.
- Está dormindo.
Alejandro não disse nada e saiu. No quarto, a esposa dormia placidamente, e ele parou para fitá-la por uns instantes. Era linda e lhe pertencia, por mais que ela não gostasse disso. Com gestos bruscos e desajeitados, sentou-se na cama ao seu lado e alisou os seus cabelos. Rosa abriu os olhos contrariada e fixou-os no marido, esforçando-se para conter o repúdio e não o mandar embora.
- Não o vi chegar - foi o que conseguiu dizer em sua mal disfarçada repulsa.
- Não quis acordá-la, minha querida. Você dormia feito um anjo dos céus.
Rosa sabia que era mentira, que ele havia passado a noite fora na companhia de mulheres de reputação duvidosa e de bebida farta, porém, não disse nada. Tinha vontade de xingá-lo e depois fugir correndo dali, mas não podia. O pai a forçara àquele casamento sem amor em troca de um nome que lhe salvasse a honra. Parecia que fora há muito tempo que se apaixonara por um artesão de sapatos, dono de uma oficina próxima à casa em que viviam, ainda na Espanha. De uma hora para outra, Rosa dera para fazer constantes visitas ao artesão, encomendando-lhe mais sapatos do que tinha ocasiões para usar. O pai, desconfiado, acompanhou-a em uma dessas visitas e logo percebeu um brilho diferente na troca de olhares entre os dois. Naquele momento, julgava tratar-se de uma paixão inocente e platônica, mas, ainda assim, proibiu a filha de ver o rapaz. Auxiliada por uma criada, Rosa passou a receber o moço em seu quarto todas as noites. O pai, a princípio, julgou que a obediente Rosa houvesse esquecido o artesão. Contudo, com o passar dos dias, notou que ela vivia com o olhar sonhador, sorrindo sem motivo e prestando pouca atenção aos jovens que a cortejavam. Foi quando o pai descobriu tudo. Furioso, teria matado o rapaz, mas este, mais rápido, fugiu espavorido pela sacada e nunca mais foi visto. A tristeza de Rosa só não foi maior do que o desgosto do pai, que viu, de uma hora para outra, sua reputação esvair-se nos lençóis manchados do pecado da filha. Ele já estava decidido a mandá-la para um convento quando conheceu Alejandro. Acontecera na taverna de sempre. Alejandro, abraçado a Giselle, a proprietária, sua amiga, e por vezes amante, falava com os companheiros sobre um lugar chamado Castilla de Oro1, colônia da Espanha nas recém-descobertas terras de além-mar, para onde pretendia ir assim que surgisse uma oportunidade. A novidade chamou a atenção do pai de Rosa e, em poucos minutos, estava negociado o casamento da moça. Alejandro lhe daria um nome em troca de dinheiro para a viagem e as primeiras despesas. Na véspera do casamento marcado às pressas, Alejandro repartia com Giselle a excitação que o dominava ante a perspectiva da viagem.
- Acho que o que você está fazendo é uma loucura! Deixar o mundo civilizado por uma terra de selvagens? Francamente!
- É lá que está o ouro, Giselle. Vou voltar rico!
- Conversa! Aposto que não tem nada lá além de mato e mosquitos. Sem falar nos índios que comem gente. Você vai se arrepender.

1 - Castilla de Oro – Nome dado pelos colonizadores espanhóis aos territórios da América Central, que se estendiam desde o golfo de Urabá (a oeste da atual Colômbia) até as margens do rio Belém, no Panamá.

Ele se movimentou na cama e a abraçou:
- Por que não vem comigo? Poderia ser minha amante.
- Deus me livre! Já tenho amantes suficientes aqui mesmo, na Espanha. E, depois, não nasci para essa vida de aventuras. Além do mais - ela aproximou a boca dos lábios dele e sussurrou baixinho -, estou apaixonada. De verdade.
- Sei. Por aquele velhote?
- Aquele velhote tem sido muito bom para mim, mas não, não estou apaixonada por ele. Conheci um homem de verdade.
Alejandro suspirou e ficou olhando-a. Gostava de Giselle. Eles eram amigos de longa data e, por vezes, dividiam a mesma cama. Giselle, no entanto, não era mulher de se prender a ninguém e estava envolvida com gente importante.
- Você é quem sabe - lamentou ele. - Mas vou sentir a sua falta.
- Eu também - ela se desvencilhou dele e foi apanhar a taça de vinho. - No fundo, você é como eu, Alejandro: livre e ambicioso.
- Estamos ambos em busca de uma vida de luxos. Não estou certo?
- Exatamente - concordou ela, levantando a taça em um brinde solitário.
Ele soltou novo suspiro e acrescentou em tom nostálgico:
- Reluto em deixá-la, mas já é hora de partir. Caso-me amanhã e, no outro dia, parto com minha doce esposa para Castilla de Oro.
- Sua doce esposa já experimentou o fel da desgraça - desdenhou ela. - Não vai ser fácil manter sob as rédeas uma mulher assim.
- Olhe só quem fala! Até parece que você é algum exemplo de doçura.
- É por isso mesmo que estou lhe avisando. Uma mulher conhece a outra. Sua Rosa é uma mulher experiente e apaixonada por outro homem. Aceitou esse casamento por imposição paterna. Ou você acredita mesmo que ela se apaixonou por você?
- Sei que não. Digamos que foi uma troca de interesses. Dinheiro por honra. É um preço justo.
- E a fidelidade? Faz parte do negócio?
- Você está certa de que ela vai me trair, não está?
- Ela não o ama e, na primeira oportunidade, vai cair nos braços de outro.
- Pois lhe garanto que isso não vai acontecer. Se Rosa é uma mulher fogosa, eu mesmo posso lhe oferecer o fogo de que necessita. E ela vai se dobrar a mim. Estarei sempre de olho nela.
- Bem, espero que se lembre do que lhe falei e não se surpreenda quando a encontrar na cama de outro.
- Lamento decepcioná-la, mas sei dobrar uma mulher. Rosa me será fiel, você verá.
- Infelizmente, meu caro, não verei. Você parte para o desconhecido, e eu terminarei meus dias aqui, no sossego de Sevilha.
- Escreverei para você e contarei o quanto Rosa é dedicada a mim. Só para deixá-la morta de inveja. Duvido que o seu padreco seja fiel a você.
- Ele não me interessa mais como homem. Já disse que estou apaixonada por outro, e sua fidelidade é inquestionável. É louco por mim.
- Será? Que homem é fiel se não está morto?
Ela atirou a taça em cima dele, errando o alvo, e riu gostosamente. Alejandro puxou-a para junto de si e beijou-a, deitando-se sobre ela na cama. Aquela seria a última vez que faria amor com Giselle e na Espanha. Pensar nisso causou-lhe certo arrepio. Será que nunca mais tornaria a ver a amante nem sua terra natal? E foi assim que Rosa se viu forçada àquele casamento arranjado às pressas, com um homem a quem repudiava e em cuja companhia foi enviada para o exílio. Em Castilla de Oro, a vida não transcorreu conforme o esperado. O sonho de riqueza se perdeu na ausência de ouro, e a vida permanecia estagnada na monotonia. Naquela terra estranha e sem muitas possibilidades, não havia ocupação para homens feito Alejandro, que acabou por obter permissão para se mudar para Cuba, junto com mais uma centena de espanhóis. Sem escolha, Rosa partiu com ele. Tudo isso agora era passado. A vida em Cuba se revelara bem mais agitada, o que não serviu para diminuir a aversão de Rosa por Alejandro. Ele era um homem rude e mal-educado, bebia em excesso e fazia sexo como um animal. Quase não lhe dirigia a palavra, a não ser para mandar e exigir obediência. Assim, foi com a usual repugnância que Rosa o sentiu aproximar-se, espargindo sobre ela aquele hálito repulsivo de bebida e suor. Rosa puxou o lençol alvo sobre a camisola de linho e virou o rosto, enojada, enquanto Alejandro a puxava pelo queixo para um beijo. No auge da repugnância, avistou um pequenino pedaço de pergaminho sobre o aparador da lareira, dando graças aos céus pela salvação.
- Chegou uma mensagem para você - conseguiu articular.
- Que mensagem?
Com um aceno de cabeça, Rosa indicou o pergaminho, e Alejandro a soltou com um suspiro. Apanhou-o e rompeu o lacre. Desdobrou-o, e seus olhos foram percorrendo a escrita desenhada até chegar ao fim. Leu e releu a mensagem umas três vezes, e Rosa ficou olhando-o, ansiosa para que ele lhe dissesse do que se tratava.
- Alguma coisa importante? - perguntou, tentando aparentar gentileza.
- Um convite. Para uma viagem.
- Viagem? Para onde?
- Outras ilhas - Rosa levou a mão ao peito e conteve um suspiro. - A mando de Bernal Diaz de Castilho2.
- Por quê?
- Parece que o governador acatou nosso pedido. Vamos partir em busca de índios.
Rosa não disse nada, mas, em seu íntimo, exultava. Que Alejandro fosse mandado para longe era o que ela mais queria.

2 - Bernal Diaz de Castilho - um dos cento e dez espanhóis que partiram de Castilla de Oro para Cuba, foi o cronista da expedição liderada por Francisco Hernández de Córdova ao Iucatã, no México.

No dia seguinte, ele atendeu ao chamado de Bernal e ficou sabendo que uma expedição seria montada, sob o comando de Francisco Hernández de Córdova3, a fim de capturar índios para o trabalho nas fazendas e na mineração. Seria a chance dele de adquirir escravos e estabelecer-se como fazendeiro. No caminho de volta para casa, ouviu uma voz familiar atrás de si. Ao se voltar, avistou Lúcio, seu amigo desde o dia em que chegara a Cuba, e foi ao seu encontro.
- Lúcio, meu amigo! - alegrou-se. - Há quanto tempo! Lúcio estendeu-lhe a mão e apertou a de Alejandro, sorrindo, ao mesmo tempo que dizia:
- Soube que vocês conseguiram a expedição. Era o que você queria, não era?
- Há muito tempo. Já não aguento mais esta falta de ação e aventura. E vou precisar de escravos se quiser realmente me transformar em fazendeiro. O dinheiro que meu sogro envia é suficiente para comprar a fazenda, mas, sem escravos, é quase impossível fazer algo.
- É verdade. E não há muitos disponíveis, há?
- Quem tem não quer vender. Eu também não venderia.
- Quem vai liderar a expedição?
- Um fidalgo chamado Francisco Hernández de Córdova.
- Já ouvi falar. Dizem que é muito rico e possui um povoado de índios aqui mesmo, em Cuba.
- Pois é esse homem que será o nosso capitão.
- Espero que a missão seja bem-sucedida, e que os índios não sejam selvagens.
- Não há selvageria que resista ao estrondo de um mosquete. Vamos domá-los, você vai ver.
- Pena que não poderei acompanhá-los. Tenho assuntos urgentes a tratar por aqui.
- É mesmo uma pena. Gostaria que pudéssemos ter uma aventura juntos.

3 - Francisco Hernández de Córdova - conquistador espanhol que, em 1517, liderou a expedição que descobriu a costa setentrional da península do Yucatã, onde foi travado o primeiro contato com a civilização maia.

- Oportunidades não hão de faltar, meu amigo.
- Já que vai ficar, poderia me prestar um grande favor?
- É claro! O que pedir.
Alejandro se aproximou ainda mais de Lúcio e falou baixinho:
- Você se lembra da história que lhe contei de Rosa, não lembra? - Lúcio assentiu. - Isso me deixa preocupado.
- Por quê?
- Rosa já era uma mulher experiente quando me casei com ela. Nunca se importou com reputação, ou honra, ou castidade.
- Você descobriu alguma coisa sobre ela? - horrorizou-se o amigo.
- Não é isso. Tenho certeza de que ela é fiel, mas porque eu estou aqui para satisfazê-la. Agora eu pergunto: o que fará uma mulher fogosa feito ela sem um marido para esquentar-lhe a cama?
- Você está exagerando. Rosa não me parece esse tipo de mulher.
- Ela nunca ficou sozinha. Sempre estive de olho Tela. É melhor não facilitar.
- E você quer que eu tome conta dela?
- Na minha ausência, sim. Seria um grande favor, de amigo para amigo.
- Está certo - concordou Lúcio com um suspiro. - Acho desnecessário, mas, se você insiste...
- Eu insisto. Sei que é um pedido um tanto fora do comum, mas só posso confiar em você.
- Fique tranquilo. Rosa estará bem guardada.
- Obrigado, amigo. Ah! E não deixe que ela perceba, ou, mais tarde, há de voltar-se contra mim.
- Não se preocupe. Ela não perceberá que a estou vigiando.
A conversa estava quase terminada quando um homem se aproximou. Era jovem e musculoso, e cumprimentou Lúcio como se já o conhecesse de muito tempo.
- Quero apresentá-lo a meu sobrinho, recém-chegado da Espanha - disse Lúcio para Alejandro, segurando o ombro do rapaz. - Este é Soriano e vai viajar com você.
- Muito prazer, Soriano. E seja bem-vindo. Espero que possamos ser amigos.
- Bem, aí vai então uma troca de favores - tornou Lúcio.
- Já que vou tomar conta de Rosa para você, será que se importaria de dar uma olhada em Soriano para mim? O rapaz é jovem e inexperiente.
Alejandro lançou um olhar para Soriano e revidou sorrindo:
- Com tantos músculos, talvez seja melhor ele tomar conta de mim.
- Nada me daria maior prazer, senhor - falou o rapaz, com voz servil.
- Soriano é forte, mas não tem experiência - explicou Lúcio.
- E meu irmão não me perdoaria se algo lhe acontecesse. É seu único filho varão.
- Deixe-o por minha conta - garantiu Alejandro. - Prometo defendê-lo com a minha vida e sei que você defenderá, com a sua, a minha honra de marido.
- Considero um privilégio servir ao seu lado, senhor - acrescentou Soriano, em tom embevecido. - Ouvi muito a respeito de sua intrepidez e ousadia.
- Não conte comigo para sua ama-seca, rapaz. Estarei ao seu lado para ajudá-lo a se tornar um homem. Sabe manejar uma espada?
- Sei, senhor. Mas reconheço que ainda tenho muito que aprender.
- Ótimo. Com sorte, estaremos a bordo do mesmo navio e poderemos praticar um pouco.
- E, depois, capturar muitos índios - finalizou Soriano, com ar arrebatado e sonhador.
Quando os três se despediram, havia um clima de forte expectativa no ar. Alejandro não estava acostumado a tomar conta de ninguém além de si mesmo, mas tinha que manter a palavra dada a Lúcio. Precisava que o amigo vigiasse Rosa, e o favor bem que valeria o sacrifício. Ademais, Soriano era um rapaz simpático, e poderia ser divertido tê-lo por companhia. Bastava esforçar-se para mantê-lo vivo, o que não deveria ser difícil, já que os índios que iriam capturar deveriam ser dóceis e amistosos. Ao menos era o que ele esperava.

CAPÍTULO 2

O dia da partida chegou veloz como uma flecha e Alejandro despediu-se de Rosa em casa. Ela não lhe preparou nenhuma despedida especial, mas fora carinhosa com ele na noite anterior e se entregara de um jeito ardente e apaixonado. Sim, fizera bem de impedir a Lucio que tomasse conta dela, porque uma mulher feito Rosa não se acostumaria a passar as noites sozinha. Em meio ao burburinho do porto, Alejandro avistou Lucio, que se aproximou com o sobrinho ao lado.
- Bom dia, amigo Alejandro. Entusiasmado com a viagem?
- E quem não estaria?
- É verdade. Soriano nem conseguiu dormir.
- Vá com calma, rapaz.
- É minha primeira expedição, senhor – justificou o moço. – Vim da Espanha louco por uma aventura.
- Chegar a Cuba já foi uma aventura – considerou Lucio.
- Essa é diferente. Nós vamos caçar índios!
- Espero que não sejam os índios a nos caçar - brincou Alejandro.
- Vocês estão no mesmo navio? - indagou Lúcio.
- Sim. E, por acaso, no mesmo em que viaja dom Francisco e o próprio Bernal.
Soriano lançou um olhar maravilhado para o navio e tornou com euforia:
- Se me derem licença, gostaria de embarcar logo.
- Ele não vê a hora de se lançar ao mar - comentou Lúcio, vendo o sobrinho subir a rampa da embarcação. - Espero que nada lhe aconteça.
- Nada vai lhe acontecer, eu prometo.
- Obrigado, meu amigo.
- E quanto a mim? Ou melhor, a Rosa?
- Não se preocupe, Alejandro, já disse. Estarei de olho nela.
- Sei que estará. Todavia, se por acaso acontecer de ela se encontrar com alguém...
- Isso não vai acontecer, eu lhe asseguro.
- Rosa é esperta. Enganava o pai para se encontrar com o amante artesão.
- Mas não vai me enganar. Tenho meus métodos para controlá-la.
- Que métodos?
- Pessoas que trabalham para mim e que ficarão encarregadas de vigiar sua casa à noite. Ninguém estranho entra ou sai.
- Ótimo! Aprecio a sua competência.
Despediram-se em seguida, e Alejandro embarcou no navio, em cujo convés Soriano já o aguardava. Era o dia 8 de fevereiro de 1517, e a flotilha partiu de Cuba contando com dois navios e um bergantim. Por muito tempo, Lúcio permaneceu parado no cais, vendo as embarcações se afastarem vagarosamente. Foi só quando o último mastro sumiu no horizonte que resolveu ir embora. Precisava contar a Rosa que Alejandro já partira. Foi informado de que Rosa se encontrava no jardim e partiu para lá, procurando-a pelas alamedas floridas que recendiam aos mais variados perfumes. Avistou-a perto de uma roseira e pôs-se a admirá-la. Ela usava um vestido amarelo-claro que quase se confundia com seus cabelos, e Lúcio permaneceu parado, como se a sua presença pudesse macular tamanha delicadeza. Rosa percebeu a sua chegada, encaminhou-se para ele e indagou com ironia:
- O que está fazendo parado aí feito uma estátua?
- Eu... - balbuciou ele, confuso por ter sido surpreendido naquela atitude de contemplação. - Perdoe-me, Rosa. Vim trazer-lhe notícias.
- Que notícias?
- De seu marido.
- Você sabe tão bem quanto eu que Alejandro viajou hoje.
- Eu sei. Estive com ele até há pouco, no porto. Vi, pessoalmente, quando ele embarcou e o navio partiu.
- Você viu?
- Vi.
- Quer dizer então que ele se foi e não vai mais voltar?
- Não.
- Como pode ter tanta certeza?
- Muitos perigos rondam essa viagem. O mar, os índios, os mercenários...
- E muita coisa pode acontecer, não é mesmo? - ele assentiu, sem nada dizer. - Você lamenta?
- Alejandro é meu amigo.
- Mesmo? Que provas ele lhe deu dessa amizade? Lúcio olhou-a fixamente e respondeu com voz grave:
- Deu-me a mulher para tomar conta.
Com um sorriso sardônico, Rosa argumentou:
- Creio então que você deveria estar fazendo o que ele pediu. É assim que toma conta de mim?
- Há três anos espero por esse momento.
- Não sente remorso, Lúcio? Ou medo?
- Não fui eu que escolhi partir nessa aventura insana - contrapôs ele, balançando a cabeça de um lado a outro.
- Mas Soriano...
Lúcio se aproximou e passou os dedos nos lábios de Rosa, fixando nela os olhos negros de noite.
- Soriano não é ninguém. Não temos que nos preocupar com ele.
- E se ele falhar?
- Não vai falhar.
- Você me parece muito seguro.
- Sei bem com quem estou lidando.
- Quisera eu ter a sua certeza.
- Você não tem com que se preocupar. Eu disse que cuidaria de tudo e vou cuidar, como Alejandro pediu - terminou ele, com um esgar maldoso.
Lúcio puxou Rosa para si, beijando-a apaixonadamente, até que se deitaram sobre a grama e se amaram com paixão.
- Eu a amo, Rosa - sussurrava ele, apertando-se cada vez mais contra ela. - Alejandro não merece você. Ele não sabe dar valor à mulher que tem.
- Também o amo - replicou ela, cheia de arder. - Quero ser sua para sempre.
- Você já é minha... só minha. Em breve, estaremos casados e voltaremos para a Espanha, ricos.
- Nosso plano vai dar certo, não vai? - afirmou ela, vislumbrando o momento em que entraria triunfante nos salões da Coroa de Espanha. - Não suportaria ter que me separar de você novamente. Eu odeio Alejandro, odeio!
- Calma, minha querida. Quando Soriano voltar sem Alejandro, você não terá mais que se submeter aos seus caprichos. Estaremos livres, enfim.
- E se ele não morrer?
- Isso não vai acontecer. Soriano foi muito bem recomendado.
- Tem certeza?
- Absoluta. Os índios levarão a culpa e ninguém ficará sabendo de nada.
- E se não houver nenhum embate?
- Então, Soriano forjará um acidente. Em expedições desse tipo, não é incomum.
Entre risos, Lúcio abraçou Rosa, e ambos se entregaram novamente aos prazeres do sexo. Seus pensamentos abandonaram Alejandro, que, no navio, só pensava na fortuna que faria ao retornar a Cuba com um punhado de índios para trabalhar na lavoura como escravos.
- Pensando na vida? - a voz de Soriano interrompeu os pensamentos de Alejandro, que levantou os olhos para ele e sorriu. Na verdade, sim. Estou apostando tudo nessa expedição.
- É o sonho de todo homem enriquecer, não é mesmo?
- Também não é o seu?
- Certamente. Prometi a mim mesmo que voltaria à Espanha rico, e é o que pretendo fazer. Quando voltar, vou-me casar, e Cibele vai ter tudo que meu dinheiro puder comprar.
Alejandro soltou uma gargalhada estrondosa e retrucou de bom humor:
- Sabia que havia uma mulher envolvida nisso.
- Minha. Cibele merece o melhor.
- E que mulher não merece?
Soriano não respondeu, pensando no quanto o outro se iludia com a mulher que tinha. Riu intimamente. Se Alejandro soubesse que seu falso tio havia pagado uma pequena fortuna para que ele desse cabo de sua vida, não estaria tão confiante nem tão tranquilo. O serviço encomendado parecia fácil, mas era preciso encontrar a oportunidade certa. Poderia jogar Alejandro do navio, como Lúcio primeiramente sugerira, mas quem lhe garantia que não haveria testemunhas? Eles estavam na primeira embarcação, e havia ainda mais duas repletas de homens. Não. Tinha que esperar. Nas ilhas para onde rumavam, certamente haveria um momento, uma chance para acabar com Alejandro. Riqueza era o que Soriano mais desejava obter com aquela aventura criminosa. Lembrava-se de Cibele, tão doce e tão meiga, esperando por ele na distante Madri. Precisava de fortuna para garantir a Cibele o luxo e o conforto que ela merecia. Antes de partir para Cuba, Soriano se despedira da noiva que, em lágrimas, pedira a ele para não ir.
- Por favor, Soriano, não vá - implorara ela.
- Eu vou voltar cheio de riquezas. Prometa que vai esperar por mim.
- Não preciso de riquezas, só de você.
- Você não entende, Cibele. Seu pai morreu, e sua mãe é uma pobre viúva. Quem vai cuidar de você quando ela se for?
- Você.
- Mas eu não tenho o que lhe dar.
- Não peço muito. Apenas o seu amor.
- Isso não é o suficiente. Você merece ser tratada feito uma rainha.
- Quanta ilusão, Soriano! Não é isso que importa na vida. E, depois, não creio que essa viagem vá fazê-lo tão rico quanto você pensa. O que pretende descobrir afinal? Alguma mina de ouro?
Ele sorrira enigmaticamente e a abraçara com ternura. Nem ele sabia o que o esperava em Cuba, contudo, tinha que tentar. Chegara à ilha cheio de sonhos de grandeza, mas não fora isso que encontrara. Nada das prometidas riquezas, e ele acabou envolvendo-se com homens de má vida e entregando-se ao crime. Enviava cartas apaixonadas a Cibele, que respondia a todas relatando a sua saudade. Quando Soriano achava que tudo estava perdido, eis que a oportunidade surgiu inesperada. Um fidalgo andava à procura de um homem corajoso para se engajar numa viagem ao Novo México e liquidar um inimigo. Era a oportunidade perfeita para ele enriquecer de vez e mandar buscar Cibele na Espanha para que pudessem se casar. Além de fortuna, o que mais Soriano desejava era ter em seus braços a mulher que amava, e por ela valia a pena enfrentar qualquer perigo.

CAPÍTULO 3

Durante mais de dez dias, os navios seguiram pela costa da ilha, até que, finalmente, pegaram o rumo do oceano. O mar, antes calmo e sereno, subitamente começou a ondular. A intensidade do vento aumentou e parecia impulsionar as ondas para que subissem pelo costado do navio e o invadissem. Marujos preocupados acorriam ao convés e, no corre-corre que se iniciou, tentavam manter a ordem dentro do navio e a água fora da embarcação. Durante dois dias e duas noites, a tempestade não deu trégua, levando Francisco de Córdova a temer pela segurança de seus barcos e homens, e pelo sucesso da expedição.
- Vamos todos morrer - dizia Soriano, certo de que o oceano pretendia engoli-los a qualquer momento. - E nunca mais verei Cibele.
- Ainda não, meu amigo - replicava Alejandro. - Ainda não capturei os meus índios.
- O senhor é louco?
Embora fosse essa a previsão geral entre os navegadores, o pior não aconteceu. O mar serenou de repente, e as embarcações seguiram por vários dias, atravessando águas mais amenas. Certa feita, Soriano e Alejandro divertiam-se no convés com outros navegantes, quando um grito interrompeu suas risadas:
- Terra! Terra à vista!
Todos olharam ao mesmo tempo, surpresos e ansiosos por novidades. Ao longe, uma praia de areias brancas se descortinou diante deles, terminando em frondosa floresta que parcialmente ocultava imensas e sólidas construções de pedra. Era o primeiro povoado que avistavam em quase dois meses, e a tripulação soltou vivas de genuína alegria.
- É o Grande Cairo - disse um dos navegantes, já que os espanhóis consideravam muçulmano tudo que não fosse cristão.
- O que faremos, senhor? - indagou um dos homens a Francisco.
Como o menor barco se aproximara da costa e informara que não havia perigo, Francisco de Córdova deu ordens para que os navios lançassem âncora e aguardassem. Todos permaneceram em silenciosa expectativa, olhos pregados na praia, à espera de que algo acontecesse. Foi quando uma movimentação repentina fez com que os espanhóis sustassem o fôlego, e Soriano exclamasse espantado:
- Vejam!
Canoas a remo e a vela se aproximaram com índios4 curiosos e de fisionomias risonhas, trajando roupas estranhas e coloridas, aparentemente pacíficos. Ao se aproximarem, Francisco os recepcionou com cortesia, dando ordens aos marinheiros para que lhes oferecessem as bugigangas reluzentes que haviam trazido, como prova de sua amizade. O brilho colorido das miçangas pareceu fascinar os indígenas, que respondiam com gestos amistosos e comunicativos. Estimulados pela pacata recepção, os navegantes relaxaram e tentaram comunicar-se com eles através de sinais.

4 - Índios dos povos maias.
- O que será que estão dizendo? - indagou Soriano, ante um homenzinho baixo e de braços compridos que puxava sua túnica e apontava para a praia.
- Não sei - respondeu Alejandro, fixando-se em seus cabelos negros e lisos. - Parece que querem nos levar à terra.
O linguajar dos índios era incompreensível, e Francisco, seguindo o som do que diziam, batizou de Yucatã o que ele pensava ser uma ilha. Decorrido um longo tempo, os espanhóis se convenceram de que o que eles realmente queriam era que os homens descessem à terra, e, depois de muitos gestos engraçados de ambas as partes, marcaram um novo encontro para o dia seguinte. Conforme o combinado, os nativos retornaram no outro dia com mais canoas para conduzir os navegantes à terra.
- Por que será que há tantos índios na praia? - perguntou Soriano, curioso.
- Não sei - respondeu Alejandro, abanando a cabeça para afastar um pressentimento sombrio. - Mas é melhor não facilitar.
- Levem suas armas, homens - ouviram o imediato dizer. - Esse encontro pode ser perigoso.
Do outro lado, Francisco se entendia com quem parecia ser o líder dos selvagens. Por todos os lados, então, batéis foram descidos à água, e os homens começaram a desembarcar.
- Parece que nosso capitão não confia nos nativos - comentou Alejandro. - Vamos usar nossos próprios botes, em lugar das canoas deles.
- Decisão muito mais sensata - concordou Soriano.
O cacique dos índios pareceu não se ofender com a recusa de Francisco em ocupar suas canoas e continuou a falar naquela estranha língua, sempre mostrando os dentes num sorriso gutural.
- Como são feios esses selvagens - observou Soriano. Disse bem, meu jovem amigo. Parecem mesmo selvagens. Não podemos confiar neles.
Alejandro e Soriano embarcaram em um dos batéis, e logo pisavam a areia. Mal começaram a caminhar, foram surpreendidos com a perturbadora aparição das esculturas nativas, lembrando seres diabólicos e maléficos. Ídolos de argila com cabeças monstruosas e mulheres gigantescas retratando cenas demoníacas desafiavam a mente limitada dos desbravadores cristãos. O padre que os acompanhava persignou-se três vezes, chamando de hereges aqueles índios pagãos que provavelmente haviam sido postos ali pelo próprio Satanás. A caminhada prosseguiu, mas não por muito tempo. Ainda aturdidos pelo choque causado pelas estátuas profanas, os espanhóis não perceberam a movimentação bélica dos selvagens, que surgiram de todos os lados da floresta e se atiraram sobre eles. Lanças e pedras em punho feriam e matavam com uma selvageria nunca antes experimentada, pondo no rosto uma horrível expressão de prazer ante a iminência da carnificina. O sangue começou a tingir a selva, e levou algum tempo até que os exploradores saíssem de seu torpor e conseguissem reagir, revidando a agressão. Seguiu-se um corpo a corpo feroz, e Alejandro investiu contra o índio mais próximo, gritando em desvario:
- Desgraçados!
Seguindo o movimento do companheiro, Soriano também se lançou contra eles, desferindo golpes a torto e a direito tentando atingir o máximo de selvagens que pudesse. Aos primeiros golpes, os índios recuaram, com medo daquelas armas cortantes e letais. Mas a surpresa e o espanto não duraram muito. Logo perceberam que podiam não só evitar o fio das espadas, mas também enfrentá-las com a ponta de suas lanças afiadas. Aquela certeza superou o pavor do desconhecido e lhes deu confiança. Brandindo lanças e pedras, prepararam-se para uma nova investida, exibindo olhares aterradores e sorrisos maléficos. Já iam avançar, sedentos de sangue, quando um barulho ensurdecedor e desconhecido paralisou-lhes os movimentos. O disparo dos mosquetes espanhóis encheu os selvagens de assombro e receio, pois nunca haviam escutado estampido mais terrível e tão carregado de ira. A debandada foi geral, e Francisco aproveitou para fazer cessar fogo e gritar aos seus homens:
- Bater em retirada!
Na mesma hora, Alejandro deu meia-volta, não sem antes se certificar de que Soriano estava com ele. Havia no rosto do rapaz uma expressão indefinível, que Alejandro, na pressa de fugir o mais rápido que suas pernas permitissem, não conseguiu perceber. Nem sequer notou que ele empunhava uma lança tirada das mãos de um selvagem morto.
- Está tudo bem? - perguntou Alejandro. - Não está ferido, está?
- Estou bem.
O temor de novo ataque impediu Alejandro de identificar o olhar de decepção de Soriano, que soltou a lança ao sentir a proximidade dos demais homens. Alejandro agora empunhava um mosquete, apontando-o para todos os lados, e foi recuando rapidamente, seguido de perto pelo companheiro.
- Vejam o que conseguimos apanhar - anunciou um homem, com incrível desprezo na voz.
E exibiu dois indígenas, presos pelas mãos de seus companheiros.
- Vamos embora - disse Francisco. - E tragam-nos.
Com o coração em sobressalto, fizeram o caminho de volta aos barcos, levando os dois prisioneiros e algumas peças de ouro que conseguiram furtar de uma pirâmide próxima.
- Vejo que o nosso clérigo descobriu ouro - falou Alejandro, atento ao olhar de cobiça do padre ao revirar nas mãos os utensílios dourados. - Isso pode mudar nossos planos, não é mesmo?
Soriano não respondeu, porém, ficou pensativo. Talvez fosse melhor desistir da ideia de matar Alejandro e entregar-se à pilhagem. O problema era Lúcio. Soubera, por conhecidos, que ele era rico e influente, e provocar a fúria de um homem assim poderia ser perigoso. Se Lúcio encontrara um assassino para matar Alejandro, bem poderia achar outro que o matasse. E como ficaria Cibele? Pensando nela, achou melhor não arriscar. Seguiria com o plano de matar Alejandro, e Lúcio lhe pagaria a devida recompensa, tornando-o rico para poder, finalmente, se casar com ela. Soriano perdera a primeira oportunidade que tivera de liquidar Alejandro sem levantar suspeitas. O ataque dos selvagens teria sido um álibi perfeito. Agora, contudo, tinha que esperar um outro momento. Por ora, primordial era proteger a própria vida. A ameaça dos índios era perigosa demais para que Soriano se descuidasse da segurança, então, seu plano teria que esperar. Todos embarcados, os navios retomaram a navegação. Soriano agora seguia calado, e Alejandro atribuiu seu silêncio ao horror daquela primeira incursão na floresta.
- Não se deixe abater - consolou Alejandro. - A luta faz parte de toda expedição. Ainda mais em se tratando de índios.
- Eu estou bem - afirmou Soriano, tentando parecer natural. - Foi apenas um susto, nada mais.
A embarcação avançava lentamente, ladeando a costa do que todos julgavam ser uma ilha. A imagem de Cibele acompanhava Soriano em todos os momentos, e ele não via a hora de o navio tornar a atracar para ultimar o seu propósito de entregar Alejandro aos nativos. O plano seria até perfeito, não fossem aqueles índios tão imprevisíveis e violentos. Não apenas Soriano, mas todos da expedição estavam certos de que os índios, muito embora selvagens, não seriam tão inteligentes, audazes e furiosos como revelaram ser. Diante desse quadro assustador, tenebroso e altamente arriscado, o que fazer para forjar a morte de Alejandro sem colocar em risco a própria vida? De tão absorto nesses pensamentos, Soriano não percebeu a aproximação de Alejandro nem o burburinho no convés, e foi só quando o outro tocou o seu ombro que olhou adiante. A visão, ao longe, de duas grandes torres desafiando o céu arrancou-lhe suspiros entre esperançosos e amedrontados. O navio seguiu naquela direção e atracou a poucos metros da praia. A tripulação parecia em alvoroço, e Alejandro puxou o rapaz pelo braço, falando com voz grave e apressada:
- Venha. Precisamos encher as pipas de água.
Sem nada dizer, Soriano saiu atrás de Alejandro, seguido por mais alguns marujos. Caminharam o mais silenciosamente possível, atentos a qualquer movimento na selva. Finalmente, encontraram um poço de água potável e puseram-se a encher as vasilhas, em estado de alerta constante, como se esperassem que, de uma hora para outra, uma horda de índios se atirasse sobre eles.
- Estamos muito próximos do povoado deles - comentou Soriano, indicando com o queixo as enormes construções.
- Não se preocupe - tranquilizou Alejandro. - Eles não sabem que estamos aqui e, além do mais, temos as nossas armas.
- Eu não teria tanta certeza.
Havia tremor na voz de Soriano, e Alejandro acompanhou o seu olhar assustado. Parados alguns metros adiante, alguns indígenas os fitavam imóveis. Instintivamente, Alejandro apertou o cabo de seu mosquete. Como da outra vez, os nativos se aproximaram, risonhos e amistosos, puxando os espanhóis pelas mangas das túnicas, rodeando-os como se farejassem a presa antes de devorá-la. Apesar da linguagem incompreensível, os dedos, apontando na direção da cidade, deixavam claro o desejo de que os seguissem até lá. Alejandro, desconfiado, olhou para Francisco, mas este já se havia posto em marcha ao lado dos índios, com o restante dos homens atrás deles.
- O que ele está fazendo? - sussurrou Soriano, apavorado. - Já não basta o que nos aconteceu da outra vez?
- Fique quieto! - censurou Alejandro. - Francisco sabe o que faz.
A cena parecia se repetir. Os espanhóis caminharam pela floresta com os índios ao redor, gesticulando e rindo guturalmente. Ao adentrarem o povoado, os sólidos e já conhecidos edifícios se descortinaram, seguidos de mais e mais ídolos diabólicos.
- Isso me dá calafrios - observou Soriano, acercando-se mais de Alejandro.
- Você ainda não viu nada - retrucou o outro, estacando com ar aterrado.
Surgiu à sua frente uma figura singular. Vestido numa espécie de túnica branca, um homem de cabelos negros e respingando sangue segurava nas mãos um facão igualmente ensanguentado. Atrás dele, sobre um altar de pedra parcialmente visível, jazia inerte, numa poça de sangue, um corpo retalhado e sangrento.
- Jesus Cristo! - exclamaram muitos.
- Mas o que é isso? - horrorizou-se Soriano.
- Parece que o nosso amigo acabou de praticar um sacrifício humano - constatou Alejandro, lutando entre o terror e o pânico.
- Ele está todo ensanguentado!
Todos olhavam para Francisco, esperando que ele tomasse alguma atitude, mas o capitão parecia tentar entender-se com o macabro sacerdote.
- Acho que não está adiantando - constatou Alejandro.
O sacerdote dizia estranhas palavras e gesticulava para os muitos guerreiros que acompanhavam o encontro. Mais que depressa, os índios se juntaram, apontando as lanças e fitando o grupo com olhar hostil e ameaçador. Alguém acendeu uma fogueira, e o sacerdote deu prosseguimento ao seu bailado gutural, apontando ora para o fogo, ora para os espanhóis, ora para os guerreiros, que emitiram um grito de guerra assombroso.
- O que é isso agora? - horrorizou-se Soriano.
- Acho que ele quer dizer que, se não partirmos até o fogo se extinguir, vai lançar seus guerreiros sobre nós.
- E o que Francisco está fazendo? - desesperou-se. - Por que não vamos logo embora?
- Será que ele enlouqueceu e vai combater esses demônios?
Dessa vez, até Alejandro estava com medo. Enfrentar aqueles guerreiros seria quase suicídio. Os homens começaram a se apavorar, ameaçando dar meia-volta e fugir, mas Francisco permanecia parado, na esperança de fazer-se entender.
- Vamos embora, capitão - falou um dos homens mais próximos. - Por Deus, não podemos mais continuar aqui. Se tiver amor a nossas vidas, volte conosco aos navios!
Ainda defronte ao sacerdote, Francisco ensaiou mais alguns gestos, tentando um entendimento, mas o olhar feroz do outro o convenceu a partir.
- Vamos recuar - ordenou ele, com a voz mais calma que conseguiu entoar.
Sem se virar, os homens foram recuando e, passo a passo, tomaram o caminho de volta. Só quando já se encontravam fora das vistas dos guerreiros foi que se viraram de frente e puseram-se a andar, quase a correr. Caminhando ao lado de Alejandro, Soriano ia remoendo seu fracasso. Ao mesmo tempo em que desejava que Francisco declarasse guerra aos selvagens, tinha medo do que poderia lhe acontecer. Já não aguentava mais o papel de idiota que precisava representar para ganhar a simpatia e a confiança do outro. Aqueles índios malditos, contudo, não facilitavam as coisas. Concentrar-se em Alejandro poderia custar-lhe a vida, e agora tinha duas coisas com que se preocupar: matar o outro e não se deixar matar. Finalmente, os homens chegaram aos botes e remaram de volta aos navios, que se puseram em movimento outra vez.
- Ao menos conseguimos nos reabastecer de água - comentou Alejandro, sorrindo aliviado. - Perdemos o ouro, mas garantimos a vida.
Soriano, contudo, não conseguia sorrir. Achava mesmo que nunca mais voltaria a sorrir enquanto não conseguisse executar o seu plano, que foi tornando-se uma obsessão em sua cabeça. Durante alguns dias, o mar se manteve calmo e sereno, e os navios seguiram viagem sem maiores transtornos. A calmaria, porém, durou pouco. Quando menos se esperava, o céu escureceu e os ventos expulsaram o sol para trás das nuvens espessas e carregadas. Uma tempestade se aproximava, e os navios, mais uma vez, seriam testados em sua resistência. A ventania foi aumentando, e as ondas cresciam ao redor dos barcos, como se tentassem engoli-los de uma só vez.
- Já passamos por isso antes - estimulou Francisco. - Vamos vencer mais essa tormenta.
Mas as rajadas produzidas pelo vento quase estouravam as velas, e os navios eram constantemente sacudidos pelas vagas gigantescas que os atiravam de um lado a outro. As ondas avançavam pelo convés, aproximando as embarcações do naufrágio iminente. Alejandro juntou-se ao corre-corre dos marujos para tentar manter a embarcação acima da água. Era uma luta ferrenha contra a natureza, e parecia que o navio não iria resistir. Tábuas começaram a estalar, e cordas se partiram das amarras, atirando fragmentos de lona e madeira em todas as direções. Foi tudo muito rápido. Com incrível habilidade, Soriano agarrou uma verga solta e, auxiliado pelo vento e pela inclinação do navio, que tombava para o lado onde Alejandro se encontrava, lançou-a de encontro a ele, atingindo-o em cheio na altura do ombro. Com a chuva e a ventania, o outro não conseguiu ver de onde partira o golpe, mas perdeu o equilíbrio e tombou para trás, indo bater na amurada semidestruída do convés e se precipitando para dentro do mar negro e revolto. Alejandro nem teve tempo de pensar. Em frações de segundos, viu-se aproximar do oceano faminto, que escancarava sua bocarra para levá-lo às profundezas. A sorte, entretanto, laborou a seu favor. Quando tudo parecia perdido, uma mão forte e robusta o agarrou firmemente, puxando-o para cima no exato instante em que o navio começava a adernar para o outro lado. Durante alguns instantes, Alejandro ficou pendurado, os pés se sacudindo acima do mar, até que um marujo corpulento o alçou de volta, evitando seu mergulho para a morte. Oscilando bruscamente, a embarcação retornou para cima, atirando água por todos os lados, enquanto os homens lutavam para se manter agarrados aos mastros e balaústres. Auxiliado pelo homem que o salvou, Alejandro conseguiu rastejar até alcançar a porta do porão e se atirar para dentro.
- Meu Deus, Alejandro! - gritou Soriano, correndo para ele com olhar mortificado. - Quando não o vi, tive medo de que tivesse morrido.
- Ainda não - rebateu o outro, sem de nada desconfiar. Não chegou a hora de fazer de Rosa uma viúva. Graças ao meu amigo aqui - e apontou para o marinheiro - ainda pertenço ao mundo dos vivos. Obrigado.
O marujo sorriu em resposta, e Soriano engoliu o ódio junto com o suor e a água que escorriam de seu rosto. Tinha vontade de esganar aquele marinheiro intrometido, mas precisava se conter. Perdera, até ali, a sua maior chance de liquidar Alejandro sem levantar a menor suspeita. Outra oportunidade igual àquela muito dificilmente surgiria. Passados quatro dias, a tempestade amainou e os homens conseguiram contabilizar os estragos. Velas e mastros haviam sido destruídos e, o que era pior, a água potável, misturada à do mar, não servia mais para consumo.
- O que vamos fazer? - perguntou alguém.
- Precisamos desembarcar - anunciou Francisco, após breve reflexão.
- Mas, senhor - objetou o imediato -, e os índios? Já não está claro que não são nada amistosos?
- Dessa vez estaremos preparados - afirmou ele, batendo no punho de sua espada.
Mesmo em dúvida e com medo, a tripulação desembarcou. A situação, que já era ruim, ficaria muito pior sem água. Enfrentar os selvagens lhes daria uma chance de sobrevivência. Sem água, acabariam morrendo. Não tinham alternativa. Precisavam encontrar outro poço onde pudessem reabastecer as pipas. Com o máximo de cautela possível, mais uma vez embrenharam-se na mata, procurando não chamar atenção nem dos animais silvestres. Depois de intermináveis horas, chegaram à margem de um rio. Francisco deu ordens para que alguns homens enchessem as pipas, enquanto outros, em estado de alerta, colocaram-se de vigília. De nada adiantou. Sob a proteção da floresta, os índios se acercaram dos navegadores, ameaçando-os com flechas e lanças. Os homens de Francisco, embora temerosos, permaneciam firmes em sua guarda, armas em punho, mirando a selva sem se atrever a atirar. Os selvagens surgiam e desapareciam, invisíveis atrás das árvores, confundindo os tripulantes, que não sabiam para onde apontar seus mosquetes. De vez em quando, uma flecha zunia no ar e caía em meio aos aterrados espanhóis.
- Nem pensem em desistir - avisou Francisco. - Precisamos dessa água tanto quanto de nossas vidas. Sem ela, nem adianta voltarmos. Não temos chance de sobreviver.
- Senhor - suplicou Soriano -, podemos esperar nova chuva ou buscar água em outro local. Eles nos cercaram e não podemos vê-los. Sabemos que estão lá, mas onde?
- Nada disso! Não somos covardes, somos homens! Não podemos nos deixar vencer por um bando de índios armado de flechas e pedras! Não enquanto não levarmos conosco esse líquido tão precioso!
Ninguém ousou mais discutir, e o temor da partida era uma realidade fria e cruel. Mesmo após encher todas as pipas, os exploradores não ousaram adentrar a floresta novamente. Paralisados de terror, sabiam-se sitiados pelos nativos, que os observavam à distância, camuflados pelas folhas. A tarde chegava ao fim e a noite avançava, redobrando o pânico e pondo os homens em estado de alerta total.
- Senhor, o que faremos? - indagou Alejandro.
- Vamos pernoitar. Acamparemos aqui mesmo, às margens do rio, e nos revezaremos na vigília.
Foi uma noite em que ninguém ousou dormir, temendo jamais voltar a acordar. Atentos ao menor ruído e com tochas acesas para espantar a escuridão, os homens permaneceram acordados, rezando para estarem vivos até o romper do dia e partir em segurança. Logo ao amanhecer, foram despertados com nova arremetida, e os homens já começavam a se desesperar, ameaçando abandonar seus postos e debandar, enquanto uma chuva de lanças desabava sobre eles.
- Vamos fugir! - gritou alguém.
- Ninguém sai daqui! Se formos embora, eles irão atrás de nós, e precisamos desesperadamente dessa água. Por ela lutaremos até que não sobre um único desses selvagens vivos.
Durante algum tempo foi possível resistir, mas os índios intensificaram o ataque, redobrando a brutalidade, e Francisco finalmente viu-se obrigado a ceder. Ou partiam ou pereceriam, sem chance alguma de sobreviver. Já tinham a água, agora só lhes restava tentar voltar aos navios com vida. Sob uma saraivada de flechas e lanças, os navegantes iniciaram o caminho de volta, disparando inutilmente seus mosquetes. Os nativos, agora acostumados ao barulho que faziam, não os temiam mais e guardavam distância segura, fora do alcance das balas. De repente, Alejandro soltou um grito esganiçado, carregado de medo, diante de horripilante cena:
- Eles estão tentando matar o capitão!
Uma enorme quantidade de flechas atravessava o corpo de Francisco, que, apesar de gravemente ferido, ainda respirava e tentava lutar.
- Protejam-no! - berrou alguém.
Foi uma carnificina. Francisco de Córdova, com pelo menos dez flechadas no corpo, não podia mais resistir ao ataque sangrento dos índios, cujo número aumentava a cada minuto. Seus homens conseguiram ampará-lo e saíram arrastando-o pela floresta, sob uma espessa chuva de flechas. Os nativos atacavam com ferocidade descomunal, mas havia algo estranho em sua investida. Eles feriam gravemente, porém procuravam não matar os espanhóis, queriam capturá-los vivos.
- Malditos! - vociferou Alejandro. - Querem-nos para sacrifício.
Alejandro assistiu, aterrado, a um português de barbas brancas ser arrastado pelos cabelos, mas nada pôde fazer para ajudá-lo. O ódio foi crescendo dentro dele, ao ver seus companheiros feridos, muitos deles mortos, e o capitão rastejando pela relva como uma serpente moribunda. Por todo lado, jaziam também muitos índios mortos, e, embora a visão fosse aterradora, Alejandro não conseguiu conter a cobiça ao vislumbrar as joias em ouro que adornavam seus pescoços escuros e suas orelhas compridas. A exemplo de outros homens, pôs-se a recolher as peças que conseguia alcançar, guardando-as cuidadosamente dentro das calças e debaixo da túnica. De vez em quando, tinha que parar para se proteger de um ataque direto, disparando seu mosquete naqueles que se descuidavam e se punham ao alcance de sua mira. Ia passando entre os cadáveres e recolhendo o que podia. Um colar particularmente brilhante quase ofuscou seus olhos, e, certificando-se de que não havia nenhum selvagem vivo nas proximidades, abaixou-se, hábil e ligeiro, e arrancou-o do pescoço do índio morto. Foi quando uma dor aguda perpassou-lhe as costas. Alejandro se virou apavorado, e qual não foi o seu espanto ao se deparar não com um índio carniceiro e cruel como esperava, mas com o jovem Soriano, que ainda tinha as mãos trêmulas do golpe que, covardemente, acabara de desferir no companheiro.
- O que você fez? - indignou-se, sentindo pelo outro um misto de ódio e decepção.
- Eu? - retrucou Soriano com ironia. - Não fiz nada. Por acaso essa lança me pertence? Não, claro que não. Então, quem o matou não fui eu, mas um desses selvagens malditos que o atacou pelas costas e que eu depois matei. Quem sabe aquele ali? - ele apontou para um índio caído de borco numa poça de sangue. -Não estou certo?
Soriano não conhecia Alejandro e subestimou sua força. A lança que lhe cravara não perfurou o pulmão, passando a milímetros de seu coração. Fortalecido por um ódio descomunal, arrancou a lança de seu corpo, engolindo o grito que a dor lhe causou, e atirou-se sobre Soriano, travando com ele uma luta feroz. Ambos agora lutavam pela própria vida, sabendo que um dos dois deveria morrer. No desespero da fuga, nenhum de seus companheiros notou o que estava acontecendo, e apenas Alejandro e Soriano, agora inimigos, debatiam-se, desesperados, no embate de morte. O ódio de Alejandro redobrou sua força. Poderia morrer ali, mas não vítima de perfídia. Reunindo o máximo de energia que a situação permitia, conseguiu derrubar Soriano no chão e, num gesto rápido e preciso, encostou em seu pescoço a lâmina afiada de sua espada.
- Diga, verme! - vociferou. - Por que fez isso comigo?
- Por favor... - balbuciou o outro, com medo. - Não me mate. Eu não queria feri-lo.
- Mentiroso, canalha! - tornou Alejandro, apertando ainda mais a lâmina contra a garganta de Soriano. - Exijo que me diga por que quer me matar. Por que, se só o que fiz foi lhe dar minha amizade? Vamos, patife, responda!
- Não foi culpa minha... Fui obrigado...
- Obrigado? Por quem? Quem o obrigou?
- Não posso dizer... eu morreria... Vai morrer agora, de qualquer jeito! Diga, covarde! Quem foi que o mancou me matar?
- Se eu disser... - balbuciou ele ofegante, os olhos turvos de um medo real - promete não me matar?
Alejandro não tinha a menor intenção de poupar a vida daquele traidor, mas precisava saber quem havia encomendado a sua morte.
- Prometo - respondeu entre os dentes.
- Foi o senhor Lúcio.
- O quê?! - exasperou-se. - Isso é uma infâmia! Uma calúnia! Lúcio é meu melhor amigo.
A ponta da espada de Alejandro já começava a perfurar a garganta de Soriano, e uma gota de sangue vivo brotou em seu pescoço.
- É verdade, Alejandro. Foi o senhor Lúcio. Eu só fiz o que e me mandou.
- Por quê? Por que Lúcio faria uma coisa dessas?
- Ele e sua esposa... são amantes.
- Mentiroso! - enfureceu-se Alejandro ainda mais. - Lúcio não é um traidor. Ao contrário de você, verme!
- Eu juro, meu senhor, é verdade. Lúcio queria matá-lo para poder desposar a senhora Rosa...
Alejandro não ouviu mais nada. Sentindo a presença de um índio às suas costas, puxou Soriano com extrema agilidade e atirou-o sobre o selvagem, que imobilizou os seus braços e saiu arrastando-o floresta adentro. Quase desfalecido e esvaindo-se em sangue, Alejandro rodou nos calcanhares e correu na direção oposta, torcendo para ainda conseguir alcançar seus companheiros. Os demais homens, perseguidos pelos indígenas, abandonaram as vasilhas de água, que se derramavam sobre a terra, para chegar com mais rapidez aos botes salvadores. À medida que corria, Alejandro ouvia os gritos de Soriano diminuindo à distância, imaginando o destino cruel que os índios lhe iriam. Ao alcançar a praia, alguns homens já se atiravam ao mar, em busca dos batéis, nadando desajeitadamente por causa das feridas. Alejandro se jogou na água, sentindo o ferimento arder em contato com o sal. Nem deu importância. Impulsionou as pernas o mais que pôde, tentando desviar das pedras e flechas que os índios atiravam da areia. Alguns botes, atingidos pelos projéteis, desequilibravam-se e emborcavam, sendo agarrados por mãos desesperadas que os impulsionavam feito pranchas toscas. Finalmente, o bergantim os resgatou feridos e quase mortos. À exceção de um único homem, que estranhamente saíra ileso, todos os demais haviam-se ferido gravemente. Alejandro mal respirava e apalpou o local em que Soriano lhe cravara aquela lança, sentindo uma dor lancinante espalhar-se por todo o peito. Em terra, os índios gritavam e agitavam lanças e flechas, como em um ritual macabro de guerra. Eles haviam saído vencedores em sua própria terra, e Alejandro engoliu a raiva juntamente com o sangue. Tomara-se de ódio por aqueles selvagens, transferindo a eles o ódio que sentia por Soriano, Lúcio e Rosa. Como num sonho, recordou as palavras de sua amiga Giselle, que o alertara sobre a possível traição da esposa. E ele não lhe dera ouvidos. Deveria ter escutado a voz de uma mulher experiente feito Giselle, que conhecia tão bem os desejos e as fraquezas femininas. Com os pensamentos ainda em Giselle, tombou a cabeça no chão do navio e desmaiou.

CAPÍTULO 4

Alejandro tinha a impressão de ouvir o crepitar do fogo do inferno em sua mente. Por seus olhos, pareciam passar chamas vivas e torturantes que incendiavam o seu cérebro com a dor da traição. Agitou-se em seu catre, virando o rosto para os lados e balbuciando palavras incompreensíveis. O corpo todo úmido e quente lhe dava a impressão de que havia mergulhado num poço de lava, que lhe consumia a vida na turbulência do ódio. Em agonia, abriu os olhos e saltou da cama, correndo para a em busca de ar. Ao ver as chamas que manchavam de amarelo e rubro o mar que as espelhava, parou aterrado, certo de que mundo, efetivamente, se acabava em fogo. Rapidamente, um homem se aproximou e tocou o seu ombro.
- Deveria estar deitado, Alejandro - falou com bonomia. - Perdeu muito sangue.
Só então Alejandro sentiu a ardência no tórax e apalpou as idas por onde a ponta da lança havia penetrado em seu corpo e saído do outro lado. Fixou os olhos no interlocutor e abaixou a cabeça, envergonhado por sentir tanto ódio diante do homem que o erguera da morte no dia em que fora atingido por uma verga solta. Alejandro apertou o ombro de Damian e encenou o melhor sorriso que conseguiu, apontando, em seguida, para o mar incandescente.
- O que está acontecendo?
- Tivemos que atear fogo no bergantim. Não podemos manobrar os três barcos, devido às condições da tripulação. Perdemos muitos homens e, dos que sobreviveram, a maioria está ferida.
- E o capitão?
- Por pouco não o perdemos, e ainda não está nada bem. Você não desceu à terra, desceu?
- Não. Fiquei cuidando do navio.
- Sorte a sua. Não imagina o horror que passamos com aqueles selvagens.
- Já ouvi as histórias.
- E a água? - retrucou Alejandro, a garganta seca tornando roucas as suas palavras.
- Perdemos tudo.
A partir daquele dia, a desesperança se tornou companheira constante da tripulação. Alejandro ardia em febre e sede, a língua grossa, em fogo, e a garganta, de tão seca, dava a impressão de que explodiria, soltando as cordas vocais se tentasse falar. Em dado momento, uma espécie de demência tomou conta do navio. Os marujos, alucinados, acorriam à amurada e atiravam baldes presos em cordas, bebendo água do mar na tentativa desesperada de matar a sede. Alejandro sentiu-se tentado a fazer o mesmo, porque a sede também lhe dava a ilusão de que o mar a saciaria. Mas ainda conseguia manter um mínimo de sanidade e resistia à tentação. Pegava água do mar, sim, mas para embeber a ferida, que aos poucos foi-se fechando. A água salgada só fez piorar a situação dos que a beberam, aumentando a sede e precipitando a morte. Por todo lado, homens adoeciam, acometidos de convulsões e fortes dores. Fracos em virtude das feridas e do corpo desidratado, logo começaram a morrer, e seus corpos iam sendo atirados ao mar. Até Damian foi assaltado pela insanidade que a sede causticante causava em todos. Vendo os baldes descendo à água, tornou de um deles e atirou-o também, levantando-o avidamente para levá-lo à boca.
- Não cometa essa loucura! - gritou Alejandro, dando vigoroso tapa na mão de Damian e atirando para longe a água. - A sede só vai aumentar, fazendo a saliva parecer sal. Tente suportar, meu amigo, resista!
- Não posso... - gemeu Damian. - A sede me inflama a garganta...
Damian desmaiou. Delirava e falava coisas sem nexo, e Alejandro deitou-o no catre. A seu lado, vários doentes agonizaram, atendidos pelos poucos que ainda tinham alguma resistência.
- Não entendo por que ele adoeceu tão rápido - comentou Alejandro. - Permaneceu embarcado, não tem chagas. Há outros feridos em pior situação que ainda conseguem resistir.
- Damian reservou sua ração de água para você, que estava doente - contou um marujo. - Enquanto todos ainda se saciaram, ele deitava em sua boca a porção de água que lhe cabia. Por isso você não morreu.
- Por que ele fez isso? - a voz de Alejandro denotava surpresa e emoção.
- Quem é que vai saber? - respondeu o outro.
Os olhos de Alejandro se encheram de lágrimas. Aquele, sim, ara um amigo de verdade, alguém por quem valia a pena lutar e morrer. Alisou os cabelos engordurados de Damian e pousou a mão sobre seu peito.
- Farei de tudo para que você sobreviva. De hoje em diante, será meu único amigo.
Os navios prosseguiam em sua jornada de morte, até que, finalmente, avistaram terra outra vez.
- Acha seguro desembarcarmos? - alguém perguntou a Francisco.
Com o raciocínio comprometido pelas flechadas que levara, o capitão respondeu de forma quase inaudível:
- Temos que tentar.
Quinze homens foram mandados à terra, e os que ficaram mal podiam conter a ansiedade e a esperança. Quando voltaram, o desespero foi maior. A água recolhida era salobra, não servia para beber. Os homens quedaram desanimados, aguardando sem forças a chegada da morte iminente e, àquela altura, desejada como alívio para seus sofrimentos. Em seu catre, Damian oscilava entre o delírio e a lucidez. Repetia frases desconexas e ininteligíveis, e Alejandro cuidava dele e de outros sem esperança de que sobrevivessem.
- Vamos todos morrer - diziam os marujos, desanimados.
- Não vamos, não - afirmava Alejandro, convicto. - Recuso-me a morrer antes de concretizar minha vingança.
- Não sei do que está falando, mas, de qualquer forma, estamos perdidos.
- A Situação é de extrema gravidade, mas nos resta uma esperança. Alaminos5 e os outros estão nos levando para La Florida6, por uma rota que ele julga mais segura. O único problema é que teremos que nos defrontar com mais selvagens, que, segundo eles, são ainda mais violentos.
Como era esperado, a recepção dos nativos foi deveras sangrenta. Alejandro, apesar da fraqueza, desembarcou com os outros e ainda conseguiu matar mais alguns índios, muito embora o esforço da luta reabrisse a ferida, ainda não totalmente cicatrizada. A batalha foi feroz, mas o destino, dessa vez, lutou ao lado dos espanhóis, que, apesar de exaustos e bastante machucados, conseguiram finalmente chegar aos navios com água potável.

5 - Anton de Alaminos - um dos pilotos da expedição, juntamente com Camacho e Joan Álvarez.

6 - Flórida, nos EUA, na época sob o domínio espanhol.

A água foi logo distribuída, e os feridos foram os primeiros a beber. Como a sede era desesperadora, muitos bebiam avidamente e sem parar, vindo a desencarnar poucos dias depois. Damian, contudo, sobreviveu. Quando por fim se recuperou parcialmente, saiu em busca de Alejandro, indo encontrá-lo enfraquecido sobre um catre.
- Meu amigo - disse ao enfermo -, quando caí ente, lembro-me de tê-lo deixado bem. O que aconteceu?
- Mais índios - retrucou o outro.
- Você estava ferido! Ninguém ia exigir que desembarcasse de novo.
- Eu precisava ir, Damian. Não podia simplesmente ficar sentado e aguardar. Não é da minha natureza esperar pela morte de braços cruzados.
- Mas agora a sua ferida inflamou outra vez - constatou Damian, levantando as bandagens que cobriam o corte de Alejandro.
- Eu vou ficar bem! - exclamou ele com certa fúria, erguendo o corpo e agarrando o braço do outro. - Tenho contas a ajustar com alguém.
- Muito me admira e alegra a sua determinação, mas tenha calma. Seja o que for que tiver em mente, pode contar com este seu amigo aqui.
- Obrigado - respondeu Alejandro comovido. - Você é realmente um bom amigo. E isso me faz lembrar uma coisa. Quero saber por que você deixou de beber água por minha causa.
Damian deu de ombros e respondeu com simplicidade:
- Achei que você precisava mais do que eu. E não me passou pela cabeça que fôssemos demorar tanto a encontrar água.
- Seu tolo, você poderia ter morrido.
- Mas não morri. E nem você.
- Exatamente. Nem vou morrer. Como disse, tenho contas a acertar.
- Posso saber com quem?
- Com minha mulher e seu amante.
Damian ergueu as sobrancelhas, e Alejandro contou-lhe tudo. Quando terminou, o companheiro tinha o olhar distante e pensativo.
- Sua reivindicação é justa - disse depois de algum tempo. Se minha mulher fizesse isso comigo, eu mataria ela e o cachorro que a seduziu.
- É exatamente o que pretendo fazer. É meu direito.
Com o fracasso da expedição, os navegantes retornaram a Cuba, e Alejandro deixou o navio avariado no porto, antegozando o momento em que ultimaria sua vingança contra Rosa e Lúcio. Antes, a conselho de Damian, iria se certificar da veracidade do que Soriano dissera, para não cometer uma injustiça da qual se arrependeria depois. Além do mais, precisava se recuperar do ferimento com todo o cuidado para que Rosa, aproveitando-se de seu estado debilitado, não concluísse ela mesma o serviço que Soriano não lograra terminar. Alejandro chegou em sua casa amparado por Damian, e só o olhar estupefato de Rosa já seria suficiente para dar crédito à confissão de Soriano. Rosa parecia estar diante de um fantasma e, nos primeiros minutos, não conseguiu esboçar qualquer reação. Quando recobrou o equilíbrio e conseguiu falar, Damian o havia ajudado a deitar-se na cama e dava instruções para que ela cuidasse pessoalmente do ferimento.
- Ele já está fora de perigo - avisou Damian. - Mas sua saúde ainda é precária.
- O que foi que aconteceu, Alejandro? - indagou ela, aterrada. - Não compreendo...
- Eu deveria estar morto, não é? - Rosa se sobressaltou, mas ele prosseguiu como se não tivesse percebido. - Fomos atacados por selvagens durante toda a jornada e, por sorte, sobrevivi. Além disso, devo a minha vida a meu amigo Damian aqui, que conseguiu evitar que eu caísse do navio em meio a uma tempestade.
Rosa estava muda e pálida, olhando de Alejandro para Damian assustada e surpresa. A informação da chegada de dois dos três navios que partiram naquela aventura logo se espalhou por toda a ilha, e Lúcio, sabendo que muitos navegadores haviam perecido vítimas dos ataques dos índios, correu apressado para a casa da amante, certo de que a notícia da morte de Alejandro logo chegaria aos seus ouvidos. Foi abrindo portas num rompante e adentrou o quarto de Rosa com a certeza do sucesso de sua empreitada, quase desfalecendo ao encontrar Alejandro deitado no leito, ferido, porém, vivo.
- Alejandro... - balbuciou. - Mas... Você está vivo!
- É o que parece, não é? - tornou o outro com ar de ironia. - Embora isso pareça surpreender você.
- Surpreender-me? Sim, surpreendo-me com grata alegria. Ao ouvir as notícias e ver o estado em que os navios ficaram, temi por sua integridade.
- Quanta generosidade! - ironizou novamente. - Só os amigos sinceros lamentam profundamente a morte de um homem.
Lúcio olhou de soslaio para Rosa, que não ousava levantar a cabeça, tamanho o pavor que a atitude de Alejandro lhe infligia. Pelo tom de sua voz, estava claro que já sabia de tudo.
- E onde está Soriano? - indagou Lúcio, só então percebendo que deveria ter primeiro se preocupado com a ausência do falso sobrinho.
- Não se informou na capitania? - replicou Alejandro em tom de sarcasmo.
Lúcio ficou confuso, já que era o primeiro lugar a que deveria ter ido para saber notícias do tão amado parente.
- Não... - tornou confuso. - Confesso que fiquei atarantado...
- Os índios o levaram.
- Levaram? Para onde?
- Só Deus sabe... Ou talvez saibam os deuses pagãos daqueles selvagens, porque me parece que é para eles que sacrificam pessoas.
- Sacrificam?
- Pois é. Soriano não deu sorte. Caiu nos braços de um selvagem, que o arrastou floresta adentro, sumindo com ele das minhas vistas. Por sorte não fui capturado também, ou hoje estaria estirado em alguma pedra de altar, com uma adaga cravada no coração, e meu sangue derramado pelas paredes de algum templo demoníaco - ele regozijava-se com o ar de horror de Lúcio e Rosa, e prosseguiu com toques de sadismo: - Pelo menos foi o que vimos. Um sacerdote que tinha nos cabelos o sangue ainda fresco de sua vítima. E, a julgar pela forma como aqueles índios nos perseguiam, evitando matar-nos e tentando nos prender, concluímos que o seu intento era na verdade fazer prisioneiros para oferecer em sacrifício a seus deuses diabólicos.
- E Soriano foi capturado por um desses? - revidou Lúcio, mortificado.
- Uma pena. Senti não poder ajudá-lo, mas tinha que salvar a própria pele. Diga a seu irmão que lamento muito a perda do filho amado.
- Ele... nem teve tempo de lhe dizer nada?
- O que poderia o pobre coitado me dizer? Só o que pude ouvir dele foram seus gritos de agonia desaparecendo no meio da mata.
Lúcio engoliu em seco e olhou para Rosa, cujo semblante avermelhado e rijo lhe dava uma ideia do temor que ela sentia.
- E o que houve com os navios? - continuou Lúcio, tentando aliviar a tensão.
- Foram as tempestades - explicou Alejandro. - Damian, meu novo amigo, foi quem me salvou de uma delas.
À exceção de Damian, ninguém sabia o esforço que Alejandro fazia para manter a conversa em um nível razoável de normalidade. Seu tórax ainda doía dos ferimentos, e ele sentia uma fraqueza mordaz se apoderando de seu corpo. Era preciso, contudo, demonstrar naturalidade para evitar que Rosa e Lúcio se deixassem seduzir pelo oportunismo e engendrassem um plano maligno para acabar com a sua agora frágil vida. O efeito satisfez Alejandro, que fitou Damian discretamente. O amigo permanecia parado ao lado da cama, mãos cruzadas sobre o peito, como um fiel cão de guarda. Enquanto isso, Rosa e Lúcio, acabrunhados, não sabiam ao certo o que dizer ou pensar. Pela primeira vez desde que chegara, Lúcio olhou diretamente para Rosa, que devolveu o olhar com outro de genuíno pavor. Em seu íntimo, o pavor foi-se alastrando, junto com uma quase certeza de que não tinham ainda experimentado a fúria de Alejandro.

CAPÍTULO 5

Encoberta por um manto negro, com o capuz derrubado sobre o rosto, Rosa ia caminhando pelas ruas estreitas, procurando o lado escuro das calçadas a fim de evitar ser vista. De vez em quando, parava e olhava ao redor e para trás, certificando-se de que não estava sendo seguida. Retomava a caminhada e ia avançando silenciosamente, sobressaltando-se ao menor sinal de movimento ou de barulho. Finalmente, chegou ao seu destino e bateu à porta, entrando apressada assim que ela se abriu. Do lado de fora, imperceptível, Damian espreitava. A mando de Alejandro, vinha seguindo Rosa desde que ela deixara a casa. Ainda convalescendo, encontrava-se ele preso ao leito, e Rosa se aproveitava de sua debilidade para oferecer-lhe ervas soporíficas e ausentar-se tão logo ele caísse no sono. Da primeira vez, a artimanha surtiu efeito. Todavia, no dia seguinte, Alejandro mandou chamar Damian e contou-lhe o ocorrido:
- Desconfio de que Rosa colocou alguma erva no chá para me fazer dormir. Excelente ideia! Quero que você fique de vigília todas as noites até que a veja sair e a siga. Quanto a mim, não beberei mais o remédio.
Assim foi feito. Dali em diante, todas as noites, Damian se colocava à espreita. E quando Rosa novamente ofereceu o chá a Alejandro, ele o despejou atrás da cama, sem que ela visse. Ele fingiu dormir, e ela, encobrindo-se com o manto, saiu, sem perceber que Damian a seguia à distância, oculto pelas sombras da noite. Dentro da pequena casa de pedra, Lúcio a aguardava ansioso e tomou-a nos braços tão logo fechou a porta.
- Minha querida - sussurrou ele, coberto de paixão. - Não aguentava mais a torturante demora.
- Tive que esperar Alejandro dormir - respondeu ela, beijando-o ardentemente.
- Precisamos acabar com isso. Não podemos continuar nos encontrando desse jeito.
- O que podemos fazer? Matá-lo?
- Temos que concluir o que Soriano não conseguiu fazer. O tolo, idiota, deve ter sido morto pelo próprio Alejandro.
- Você acha que foi Alejandro quem o matou?
-Tenho minhas desconfianças. Essa história de índios levando-o para o meio da selva não me convenceu. Para mim, Alejandro fez o que Soriano deveria ter feito. Matou-o e colocou a culpa nos selvagens. E, se o matou, só pode ter sido por um motivo.
- Porque descobriu a verdade - completou Rosa, totalmente aturdida com as conjeturas de Lúcio.
- Exatamente.
- Soriano deve ter-lhe contado tudo.
- Isso não importa. O importante é que nós mesmos teremos que fazer o serviço.
- Não seria mais prudente contratarmos outra pessoa?
- Alejandro deve estar alerta. E, depois, tem aquele touro que ele arranjou por amigo. Damian não desgruda do lado dele.
- Oh! Lúcio, o que vamos fazer? - ela se atirou em seus braços, chorando dolorosamente. - Eu o amo, não quero ter que me separar de você. Quero ser sua esposa, só sua.
- Você será. Encontraremos um jeito de acabar com a vida dele.
- Tenho medo. E se eu for presa?
- Isso não vai acontecer. Não vou permitir. Podemos fugir para a Terra do Brasil, e ninguém nunca há de nos descobrir.
Rosa apertou a mão de Lúcio, sentindo esvair-se a confiança que tinha antes de Alejandro partir no navio. Lúcio começou a beijá-la e, em breve, o silêncio dominou o ambiente, entrecortado pelos gemidos de prazer de Rosa. Esquecera-se, por instantes, de Alejandro, envolvida no calor excitante do amado. Com o ouvido colado contra a janela, Damian não perdia uma só palavra do que eles diziam. Quando Rosa entrou na casa, ele se aproximou e foi acompanhando a direção das vozes, que passaram de um cômodo a outro, seguindo o rastro da luz das velas. A casa era muito pequena, talvez dois ou três cômodos, e fora comprada por Lúcio para facilitar os seus encontros. Não distava muito da casa de Alejandro, para que Rosa pudesse caminhar sem ter que tomar nenhuma charrete ou carruagem, de forma a não chamar atenção. O plano o indignou, e ele partiu dali com a cabeça fervilhando de ideias de vingança. Alejandro era seu único amigo. Mesmo doente, não o abandonara e cuidara dele, assim como ele havia salvado a vida de Alejandro e cuidado de sua ferida. Tinham agora um pacto de vida, porque viviam graças aos cuidados recíprocos. Era em nome desse pacto que não pretendia deixar que Alejandro fosse enganado pela mulher e o amante, muito menos permitiria que o matassem. Damian despertou Alejandro de seu sono leve. Durante boa parte da noite, Alejandro permanecera à espera de notícias sobre o possível encontro de Rosa e Lúcio. Como o amigo demorava a voltar, cochilou por instantes, e não foi preciso muito esforço para acordá-lo.
- Damian! - exclamou eufórico, totalmente desperto. - E então? Alguma notícia? Viu alguma coisa?
- Suas suspeitas têm fundamento. Segui Rosa até uma casinha perto daqui e ouvi sua conversa com Lúcio. Pretendem matá-lo e fugir para as Terras do Brasil.
Alejandro deu uma risada abafada, porém sinistra, e acrescentou com desdém:
- Talvez devêssemos deixá-los ir. Lá também só tem índios. Com um pouco de sorte, quem sabe eles não são devorados por uma tribo de canibais?
- Gostaria de fazer com eles o que fez com Soriano?
- Não, meu amigo, não é bem assim. Para Rosa e Lúcio guardo uma vingança mais doce. Quero ter o prazer de acabar com suas vidas com minhas próprias mãos, e não posso roubar-me o prazer de vê-los agonizar e morrer.
- Sabe que vou ajudá-lo, não sabe? - Alejandro assentiu. - Você é o único amigo que tenho, e tudo farei que estiver ao meu alcance para que você lave sua honra.
- Obrigado, meu amigo. Em breve, muito em breve, alcançaremos sucesso.
- Como é que você pretende fazer isso? Eles não são tolos.
- Você vai ver. Mas, por ora, é melhor que se vá. Não seria prudente que Rosa o visse aqui a esta hora da noite. Poderia pôr todo o nosso plano a perder.
- Você já tem um plano?
Alejandro deu um sorriso enigmático e acrescentou:
- Na verdade, sim. Estou amadurecendo a ideia e logo, logo você saberá de tudo.
Damian ficou satisfeito. Despediu-se de Alejandro efusivamente e partiu antes que Rosa voltasse. Durante o mês que se seguiu, Rosa não conseguiu mais ir ao encontro de Lúcio. Embora Alejandro já estivesse praticamente reabilitado de suas feridas, fingia fraqueza e alegava sentir muita dor requisitando a companhia da esposa quase que diuturnamente. Ela já não suportava mais, contudo, não via meios de sair e ver o amante. Como Alejandro deixara de beber o chá, exigia que Rosa dormisse a seu lado, despertando sempre que ela se mexia. Louco da vida, Lúcio aparecia ocasionalmente, mais para ver Rosa do que para visitar Alejandro. Para todos os efeitos, ainda era o melhor amigo dele. Vinha poucas vezes, desculpando a escassez de visitas com a enorme quantidade de afazeres que seu cargo público exigia. Tinha certeza de que Alejandro sabia a verdade e temia ser confrontado por ele em seu próprio lar. Todos os dias, Damian ia visitá-lo, e era nesses momentos que Rosa se afastava um pouco, a pretexto de deixá-los a sós para conversarem. Não conseguia sair de casa, mas ao menos se libertava da companhia desagradável de um marido inválido e repugnante. Isso permitia a Alejandro confabular secretamente com Damian, e o plano foi-se armando e estruturando, até que chegou o dia de, finalmente, ganhar vida. Era o aniversário de Alejandro, que encomendou uma festa muito íntima para comemorar a data. Poucos amigos haviam sido convidados, e Lúcio viu naquela festa a oportunidade que tanto esperava. Com muitas pessoas e a bebida a distrair Alejandro, seria mais fácil encontrar um momento a sós com a amante, longe das vistas do rival e de Damian. Tudo estava planejado para acontecer naquela noite se nenhum contratempo os impedisse. Lúcio foi um dos primeiros a chegar, e Damian veio em seguida, com a esposa. O jantar foi servido e os convidados se deliciaram com as iguarias que Rosa mandara preparar. Em seguida, um pouco de música e muita bebida. Rosa e Lúcio sentiam uma explosão a percorrer-lhes os corpos cada vez que se viam, embora mal pudessem se falar. Durante toda a noite, aguardaram ansiosos um momento para ficarem sozinhos, mas Alejandro não lhes dava nenhuma oportunidade, solicitando a presença da mulher a seu lado por quase toda a festa. Seguindo o combinado, Damian foi um dos últimos a sair, muito embora tomasse o cuidado de colocar o xale da mulher sobre o espaldar da cadeira, sem que ela se desse conta.
- Será que vai dar certo? - murmurou ele ao ouvido de Alejandro. - E se eles não caírem na nossa armadilha?
- Eles vão cair - sussurrou Alejandro de volta. - Faz tempo que não se deitam. Devem estar ardendo de um desejo incontrolável, e é isso que vai fazê-los abandonar a prudência.
Damian e a esposa saíram e, logo em seguida, Alejandro levantou-se, apalpando as costelas com ar de sofrimento.
- Meus amigos, perdoem-me, mas preciso me recolher. Ainda estou convalescendo. Todavia, Rosa está aqui para alegrá-los. Fiquem e divirtam-se.
Como era de se esperar, os últimos convidados se retiraram logo após a saída de Alejandro, inclusive Lúcio. Rosa se despediu dele polidamente e mandou a criada para casa, a fim de no testemunhar o adultério.
- Mas, senhora - objetou a moça -, há muito que limpar.
- Amanhã você cuida disso. Sei que trabalhou demais e deve estar exausta. Pode ir.
A criada agradeceu e foi apanhar suas coisas. Assim que ela saiu, Rosa voltou correndo para a sala e abriu a porta devagarinho, dando entrada sorrateira a Lúcio.
- Aguarde-me na saleta de chá. Vou ver se Alejandro está dormindo e, em breve, estarei com você.
Lúcio puxou-a e beijou-a sofregamente, relutando em largá-la. Ela se afastou dele com um gesto brusco e subiu para ver o marido. Encontrou-o ressonando na cama, recendendo a suor e vinho. Propositadamente, ela deixou cair a escova de cabelos, que ecoou surdamente no chão de pedras, mas Alejandro não acordou. Soltou um ronco mais grave, mastigou saliva e se virou para o outro lado, parecendo dormir pesadamente. Contendo a repulsa, Rosa acercou-se dele pelo outro lado e aproximou o rosto o mais que pôde. Ficou nessa posição por alguns minutos, experimentando para ver se o marido abria os olhos. Queria certificar-se, com absoluta certeza, de que ele não estava fingindo. Após um tempo razoável, ele não se moveu, e ela se convenceu de que, efetivamente, dormia embriagado. Pé ante pé, Rosa saiu do quarto e fechou a porta, descendo as escadas às pressas, à procura de Lúcio. Ele a esperava na saleta, bebendo calmamente um cálice de vinho. Mal colocou a taça sobre a mesa, Rosa atirou-se sobre ele, arrancando-lhe as roupas e puxando as mãos dele para cima de seus seios. Nesse mesmo instante, sem que os amantes se dessem conta, Damian entrava por uma porta lateral, cuja chave Alejandro lhe dera. Ouviu sussurros e gemidos e seguiu para a saleta, onde aguardou atrás da porta, sem entrar. Em poucos instantes, Alejandro surgiu armado. Durante algum tempo, permaneceu parado, ouvindo os sons característicos do sexo e tecendo na mente a cena grotesca do amor depravado da mulher.
- Você está bem? - perguntou Damian. - Quer desistir?
- Os descarados! - rosnou Alejandro, olhando para o amigo com olhar insano e vermelho de raiva. - Não hesitam em trair-me dentro da minha própria casa.
Com a espada na mão, Alejandro empurrou a porta, entrando com Damian em seu encalço. O que viu embrulhou seu estômago e encheu-o de um ódio tão fremente que ele mal conseguiu pensar. Rosa se mexia freneticamente sobre Lúcio, apertando-lhe os flancos com as coxas e espalhando no ar os seus gemidos de luxúria e os seus gritos de prazer, enquanto o amante, de olhos fechados, lhe apertava os seios e emitia sussurros lúbricos e palavras obscenas.
Ele quase não acreditava no que via e ouvia. Rosa, que o evitava o mais que podia, entregava-se a Lúcio com a lascívia de uma meretriz, em atitude que ele, até então, só experimentara no leito das prostitutas. Com Damian como testemunha, Alejandro puxou Rosa pelos cabelos, e ela, sem entender o que se passava, soltou um grito estridente de pavor.
- Sua vagabunda, meretriz, cadela! - esbravejou Alejandro, desferindo-lhe um murro no queixo.
Rosa tombou para trás com a boca ensanguentada e Damian a segurou para que ela não fugisse.
- Alejandro, deixe-me explicar - suplicava Lúcia - Nós não queríamos. Mas você ficou muito tempo longe... Pediu-me sara tomar conta de Rosa...
- E você tomou conta tão bem que não apenas dormiu com ela, mas tramou a minha morte para poder ficar com a minha esposa e tudo que é meu.
- Não é nada disso...
À medida que ia tentando desculpar-se, Lúcio se arrastava para trás, o corpo ainda desnudo repugnando e enfurecendo cada vez mais Alejandro, que o seguia com a ponta da espada apontada para seu pescoço.
- Por Deus, Alejandro - Rosa implorou. - Tenha piedade de nós. Expulse-nos, mande-nos embora, mas não nos mate.
- Mandá-los embora seria o mesmo que reconhecer a sua vitória. Não posso deixá-los livres para que sejam felizes à custa da minha desonra.
- Nós nos amamos! - confessou Rosa. - Não temos culpa de nos amar.
- Você é minha mulher, Rosa! - vociferou ele, os olhos injetados de sangue. - Como pôde me trair com meu melhor amigo e ainda tramar a minha morte? Pensam que não sei? Como acham que Soriano morreu? - ninguém disse nada. - Eu o entreguei aos índios! Fui eu. Tive-o sob a ponta da minha espada, como você agora, Lúcio, que rasteja como um covarde, e poupei-lhe a vida para que um índio truculento o levasse.
Lúcio e Rosa não sabiam o que dizer para sensibilizar Alejandro, que cuspia sobre o rival com o ódio do inimigo voraz.
- Poupe-nos, Alejandro, por favor - gemeu Lúcio. - Em nome dos nossos anos de amizade...
- Dos anos em que você me traiu, fingindo-se meu amigo para poder dormir com a minha mulher!
De forma inesperada, Lúcio tentou se levantar para correr, mas Alejandro foi mais rápido. Atravessou a espada no coração do outro e ficou assistindo a sua breve agonia, até que o último suspiro se esvaiu de sua boca. Matar Lúcio lhe deu grande prazer, e os gritos desesperados de Rosa só fizeram aumentar a sua sanha, fazendo com que ele a encarasse com um brilho de loucura no olhar. Rosa se debatia nos braços de Damian, tentando soltar-se a todo custo.
- Por piedade, Alejandro, não me mate - ela chorava descontrolada. - Farei o que você quiser, serei sua prisioneira, nunca mais falarei com homem algum. Mas não me mate, pelo amor de Deus, não me mate!
- Se permitir que viva, cada vez que olhar para você desprezarei a mim mesmo por ter deixado impune a sua traição.
Ele ficou olhando o corpo perfeito de Rosa, que já não mais lhe pertencia, e o ódio recrudesceu em seu coração. De repente, lembrou-se da amiga Giselle, que o advertira sobre aquilo, mas a quem não quisera dar ouvidos. Alejandro tomou Rosa das mãos de Damian e a arrastou até o meio da sala.
- Vista-se - ordenou.
Aos prantos, ela se vestiu, na esperança de que a sua submissão o tocasse, e ele a perdoasse e deixasse viver. Mas não foi isso que aconteceu. Alejandro tornou a arrastá-la, dessa vez para o pátio interno, e jogou-a sobre o chão de pedras. Ela chorava cada vez mais e rastejou até ele, agarrando os seus joelhos e implorando entre lágrimas:
- Em nome de Deus, Alejandro, não me mate. Farei o que você quiser - e, vendo que Damian os seguira com uma tocha, que iluminava parte do átrio, virou para ele os olhos em súplica e prosseguiu: - Você é amigo dele. Por favor, convença-o a ter piedade e não cometer esse crime.
- Adúlteras não merecem piedade. E não há crime maior do que a traição.
Assim instigado pelas palavras de Damian, Alejandro chutou-a para o chão e estendeu a mão, onde Damian depositou a tocha que trazia consigo.
- O que vai fazer? - horrorizou-se Rosa, sentindo o calor do fogo que Alejandro aproximava dela.
- Vê-la morrer lentamente - foi a resposta cruel e fria.
Na mesma hora, Alejandro ateou fogo em Rosa, regozijando-se com seus gritos lancinantes e as voltas desencontradas que ela dava sobre o próprio corpo, numa tentativa desesperada de extinguir as chamas. Mas as chamas só se extinguiram muito tempo depois, quando a vida de Rosa já se havia esvaído.

CAPÍTULO 6

A água escorria da cascata em nuvens esbranquiçadas e densas, indo cair num lago transparente e fundo, onde Alejandro esfregava o corpo para soltar da pele o sangue ressecado dos índios que matara. Na margem, amarrada a uma árvore e com a boca amordaçada, uma mulher jovem e de pele morena acompanhava cada movimento dele, tentando imaginar o que aquele homem tão branco poderia querer com ela. Depois que terminou de se lavar, Alejandro se atirou na relva verde e ficou olhando o céu azul, praticamente ignorando sua prisioneira, que não podia nem se mover, nem falar. De repente, um estalido na mata despertou os seus sentidos, e ele passou a mão no mosquete, fazendo pontaria na direção de onde provinha o barulho. Damian apareceu com ar cansado, deu uma olhada na mulher amarrada e sentou-se perto de Alejandro, que protestou mansamente:
- Deveria tomar mais cuidado. Por pouco não atiro em você.
Damian sorriu e apontou para a mulher, indagando com ar de quem sabia a resposta:
- Mais uma? - Alejandro assentiu. - Não acha que está exagerando?
- Não - foi a resposta seca.
Em silêncio, Damian se retirou. Não tinha pena daqueles selvagens nem achava que deviam ser tratados como gente, mas Alejandro já ultrapassava os limites. Usava os índios para extravasar sua raiva e vingar-se da traição da mulher. Só que as índias não eram Rosa, e, por mais que ele matasse, jamais se veria livre da lembrança do que ocorrera naquela noite. O plano todo fora arquitetado cuidadosamente. Quando, no dia seguinte, a criada descobriu os corpos de Lúcio e de Rosa, Alejandro fora preso, mas conseguira se salvar alegando legítima defesa da honra. Damian servira como testemunha de que ele, enfermo e debilitado, fora vítima da traição da esposa e do melhor amigo, tendo flagrado os dois em adultério em sua própria casa no dia da festa de seu aniversário. Que homem suportaria a visão desse crime sem perder a cabeça e liquidar os culpados? No julgamento, Alejandro dissera que se recolhera um pouco mais cedo, em função de seu estado, e já estava quase dormindo quando ouvira um ruído estranho vindo do andar de baixo. Assustado, apanhou a espada e desceu, encontrando Damian ao pé da escada. O amigo voltara à sua casa para apanhar o xale que a mulher havia esquecido. Damian também ouvira o barulho e acompanhara o outro, que, por sua debilidade, poderia acabar nas mãos de algum bandido. Qual não foi o espanto de ambos, porém, ao descobrir Rosa e Lúcio em posição que nenhum ser humano decente ousaria relatar. Ainda assim, por insistência da defesa bem articulada, Alejandro narrou, em minúcias, os movimentos de luxúria e sem qualquer pudor em que flagrara os amantes, sua nudez, seus gestos e gemidos. Tal visão o mortificara, fazendo-o permanecer algum tempo paralisado, enquanto Damian procurava ocultar o rosto daquela cena vergonhosa. Foi quando Alejandro, tomado de ira, empunhou a espada e cravou-a no peito do rival, ateando fogo nas vestes de Rosa num gesto tresloucado de fúria. Nenhum juiz ousou discordar dos motivos mais que justos de Alejandro. Surpreender a esposa, que ele até então julgava casta e pura, nos braços de quem ele acreditava ser o seu melhor amigo foi um golpe duro demais. Qualquer homem perderia a cabeça e a razão e, num impulso vingativo, daria cabo da vida dos amantes. O depoimento de Damian, ademais, confirmava as alegações do réu, que foi absolvido por se encontrar no exercício de seu legítimo direito de defender, com sangue, a honra que a mulher indigna conspurcara. Daí em diante, Alejandro se tomou de ódio pelas mulheres e sentia prazer em lhes infligir sofrimento e dor. Não raras eram as prostitutas que se queixavam de sua brutalidade, até que chegou ao ponto de nenhuma delas querer mais dormir com ele. Passados quase dois anos de sua volta da aventura ao lado de Francisco de Córdova, Alejandro soube de uma nova expedição, dessa vez sob o comando de Hernán Cortés7, partindo de Cuba rumo ao Yucatã para a conquista de outros povos. Alejandro não aguardou o convite. Apresentou-se ao chefe da expedição e ofereceu os seus serviços, seguindo com Damian em busca de ouro e de algo que lhe permitisse extravasar sua fúria e seu desgosto. Apesar de não concordar com o modo que Alejandro escolhera para se vingar da vida, Damian não dizia nada. Afastou-se do lugar em que o amigo se encontrava e foi descansar, em sua tenda, do último ataque aos nativos. Depois que ele se foi, Alejandro permaneceu quieto por alguns momentos, fitando o vazio, até que soltou um suspiro e se levantou, aproximando-se da índia. Desamarrou-a, e ela tentou fugir, desencadeando nele uma fúria sem igual. Desde que matara Rosa, Alejandro se enfurecia por qualquer motivo, principalmente com as mulheres, e costumava espancá-las até quase deixá-las sem vida.

7 - Hernán Cortés - conquistador espanhol, responsável pela queda do império asteca, em 1519, notabilizado da violência com que atacou e dizimou povoados inteiros.

Não foi outra a reação que teve com a índia. Alejandro agarrou-a com força e desferiu-lhe vários socos no rosto, deixando-a com as faces inchadas e vermelhas. A índia começou a chorar, mas ele não se compadeceu. Deitou-a no chão e violentou-a fria e cruelmente, e depois, quando a mulher começou a dizer coisas que ele não compreendia, sacou de uma faca e cortou o seu pescoço, arrematando com indiferença:
- Ora, cale a boca.
Era apenas mais uma selvagem insignificante que nenhuma falta faria ao mundo civilizado. Depois que a matou, Alejandro limpou a faca na água do riacho e voltou para o acampamento. Ao longe, apenas alguns vestígios de fumaça cinzenta subiam do povoado que haviam acabado de queimar. Ele inspirou profundamente, como se quisesse engolir parte daquela fumaça de morte, e sorriu, satisfeito consigo mesmo. Matara muitos índios naquele dia, o que se tornara motivo de glória e satisfação para ele e os seus companheiros, que disputavam quem alcançaria a maior quantidade de selvagens abatidos. Foram muitas as jornadas que Alejandro fez na campanha Cortés, seguido por seu amigo Damian, que se orgulhava de matado quase tantos índios quanto ele. Mas faltava a Damian o entusiasmo da morte, algo que se via nitidamente nos olhos de Alejandro desde que incendiara o corpo de Rosa. Para Damian, matar os índios era parte da conquista, enquanto para Alejandro era fonte de vingança e prazer. No dia seguinte, Cortés saiu a cavalo com mais homens e alguns índios, estando Alejandro e Damian entre eles. Ao invadirem o primeiro povoado, Alejandro se distraiu, fazendo pontaria nos indígenas que fugiam assustados, enquanto os companheiros ateavam fogo às cabanas. Quando Alejandro saltou do cavalo, já sabia o que iria fazer. Vendo as índias fugirem espavoridas, encurralou uma jovenzinha de seus quatorze anos e repetiu com ela o ritual macabro que se acostumara a realizar. Estuprou-a com violência, regozijando-se ante o seu desespero, e depois a matou sem piedade. No outro povoado, a mesma coisa, e no outro também, e em todos os outros que ele invadiu. Alejandro entrava nas vilas, matava muitos índios, tocava fogo em suas casas e estuprava as índias que cruzavam o seu caminho, liquidando-as logo após. Justificava-se com o cumprimento da tarefa, executando as ordens que o capitão lhe dava. Se Cortés mandava matar, ele matava. Se mandava queimar, queimava. E dos prisioneiros que faziam, muitos eram mulheres, postas à disposição dos homens para seu divertimento e lazer. Alejandro apenas usufruía o que julgava ser seu por direito, já que, conquistadores, aos espanhóis cabia dispor de suas vítimas como parte da pilhagem. Após vários meses de ataques sangrentos, Alejandro começou a sentir os primeiros sintomas da doença. Tudo começou com um mal-estar que o deixou cansado e abatido. Haviam acabado de entrar em Tenochtitlán8 e se instalado no palácio real. Uma índia foi designada para servir os soldados, e Alejandro, ao colocar os olhos sobre ela, desejou-a instantaneamente. Enquanto ela o servia, ele a admirava e seguia todos os seus passos ao redor dos homens. Depois de comer, Alejandro se levantou e foi atrás dela atraindo-a para a floresta com falsos sorrisos. A moça seguiu-o sem de nada desconfiar, certa de que se tratava de um mensageiro do deus Quetzalcoatl9. Aproveitando-se dessa crença, Alejandro a imobilizou e estava prestes a subjugá-la, quando súbito mal-estar se apoderou de seu corpo. Uma dor profunda o trespassou, e ele soltou a índia, que, apavorada, correu para o meio da selva. Ainda pensou em ir atrás dela, mas a fadiga não permitiu. Como a campanha de Cortés já durava mais de um ano, ele atribuiu o cansaço às lutas incessantes que empreendera contra os nativos. Talvez estivesse ficando velho e precisasse ir mais devagar. Dominado pela exaustão, sentindo o corpo dolorido e trêmulo, a cabeça explodindo de dor, resolveu se deitar por uns minutos.

8. Tenochtitlán - capital do império asteca, atual Cidade do México.

9. Quetzalcoatl - deus asteca com o qual Cortés foi confundido.

Quando Damian entrou na barraca que dividia com ele, assustou-se com o seu estado. Alejandro, coberto até o pescoço, tinha gotículas de suor no rosto e tiritava de frio.
- Alejandro - chamou Damian baixinho -, o que você tem? Lentamente, Alejandro abriu os olhos e custou a focar o amigo. Quando finalmente o reconheceu, respondeu com voz sumida:
- Não sei... Sinto-me fraco, a cabeça dói, a garganta também... e o nariz... parece tampado...
Damian experimentou a testa do outro, que ardia em febre.
- Hum... acho que é melhor chamar o médico.
- Não é preciso - objetou Alejandro, segurando-o pelo punho. - É só um mal-estar. Amanhã estarei bem.
- Mas e se alguma índia lhe passou doença?
- Não... Deixe estar. Vou melhorar, você verá.
A melhora não veio. Três dias depois, Damian se apavorou com o que viu. Deitado de lado na cama, Alejandro apertava o estômago e se contorcia todo, em espasmos de dor que sacudiam o seu corpo.
- Alejandro - disse ele -, você está piorando!
- O médico... - balbuciava ele. - Vá chamar o médico... Tenho... dores horríveis... Todo o meu corpo... a barriga...
Começou a vomitar violentamente, e Damian saiu correndo da barraca. Foi chamar o médico da expedição, que entrou apressado e sussurrou penalizado:
- Ele contraiu a doença10. Só nos resta esperar que resista.
- O que... o que eu tenho... doutor? - gaguejou Alejandro. O médico não respondeu e fez com que Alejandro engolisse um preparado de ervas que o fez dormir um pouco.
- O que eu faço, doutor? - indagou Damian, preocupado.

10 - Varíola.

- Eu, no seu lugar, procuraria outro canto para dormir. Daqui para frente, os sintomas só vão piorar, e a aparência dele vai se tornar repugnante. Você não vai querer presenciar isso - acercou-se bem de Damian e cochichou ao seu ouvido: - Sem contar que é contagioso. Altamente contagioso.
Damian olhou para o médico com ar assustado, mas ainda não havia se dado conta da gravidade da situação. Em nome da sua amizade, recusou-se a sair e permaneceu ao lado de Alejandro. As pústulas começaram a aparecer pouco depois, primeiro na garganta, que ardia imensamente, e depois na boca, passando em seguida para o rosto e, por fim, espalhando-se por todo o corpo. Em toda a sua extensão, a pele de Alejandro estava coberta de bolhas purulentas. Em outras barracas, alguns soldados padeciam do mesmo mal. e logo os enfermos foram isolados num local mais afastado do palácio. O aspecto de Alejandro foi-se tornando cada vez mais repulsivo, e a certeza da malignidade daquela enfermidade caiu feito um raio sobre a cabeça de Damian, enchendo-o de pavor. Muito embora quisesse permanecer ao lado de Alejandro, o temor de contrair a doença tornou-se tão intenso que, mesmo a contragosto, decidiu afastar-se. Corroía-se de remorso por abandonar o amigo numa hora daquelas e rememorava os momentos de maior perigo que atravessaram juntos.
- Nenhum ataque de índio é tão fatal quanto essa doença advertiu o médico.
Foi impossível conter a disseminação do mal, que contaminou os índios e levou à morte mais de oitenta por cento da população, facilitando a tomada e destruição de Tenochtitlán. Alejandro, todavia, não participou de mais essa investida. Sem forças para combater tão maligna enfermidade, cerrou os olhos após intensa agonia, sozinho em sua tenda, longe da ilusão da glória e do calor das batalhas, dos selvagens e do amigo Damian.

CAPÍTULO 7

Ao despertar, Alejandro assustou-se com o que viu. Estava num lugar seco e muito quente, deitado sobre uma areia áspera e escaldante. Uma queimação espalhou-se pelas feridas, e ele as apalpou suavemente. A umidade grudou em seus dedos, algo parecido com pus misturado a sangue. Enojado, virou-se para o lado e vomitou, contudo, o que saiu de sua boca foi um jorro quente de sangue.
A muito custo, conseguiu levantar-se. Parecia que se encontrava no deserto, visto que um calor asfixiante fazia arder sua garganta e ressecar sua língua. Precisava de água, mas não via nenhuma fonte ou rio nas proximidades. Ficou a imaginar que lugar seria aquele, porém, a única coisa que lhe ocorria era que Cortés talvez tivesse mandado atirá-lo em alguma fenda de montanha para padecer no inferno e queimar consigo a doença maldita. Só que ele não morrera. Caíra no inferno, sim, mas continuava vivo e precisava descobrir uma maneira de voltar à superfície e fugir, ou Cortés mandaria matá-lo novamente. Sentiu um ódio profundo pelo capitão, que eliminava os enfermos que já não serviam mais, esquecendo-se de todos os momentos de perigo em que eles haviam arriscado as próprias vidas para defender a causa do conquistador. Alejandro sentia o corpo todo dolorido, no entanto, precisava controlar a dor e se esforçar se quisesse sair vivo dali. A sede ainda era o pior, e ele estreitou a vista para ver se conseguia vislumbrar alguma coisa que fosse líquida. Nada. Procurando mais além, pareceu-lhe divisar a silhueta de uma pessoa e caminhou para lá. Muito vagarosamente, arrastando a perna como um aleijão e mal conseguindo respirar, Alejandro se acercou do que pensou ser uma pessoa. Foi-se aproximando com ansiedade e estendeu a mão para o vulto, que se encontrava de costas para ele.
- Por favor... amigo... - balbuciou. - Ajude-me...
Foi quando o vulto se virou, e Alejandro estacou horrorizado. Agora com a visão mais nítida, notou que a pessoa era um índio e que seu corpo todo estava coberto de sangue. O índio se voltou para ele e soltou um grito lancinante, fazendo com que Alejandro rodasse nos calcanhares e tentasse correr, pois vira a lança se levantar na mão do inimigo. Inútil tentativa. Muito debilitado, não conseguiu se mover, e o índio chegou muito perto dele, quase colando o rosto ao seu, rosnando palavras ininteligíveis naquela língua nativa. Sentiu o cheiro de sangue que emanava de todos os poros do selvagem, embrulhando seu estômago. Instintivamente, virou o rosto para o lado, e novo jato de sangue amargo espirrou de sua boca. Quando Alejandro tornou a virar o rosto para frente, o índio havia desaparecido. Piscou várias vezes, para se certificar de que o que vira não era real.
- Devo estar delirando - disse em voz alta para si mesmo.
Ainda sentindo imensas dores, retomou a caminhada. Não sabia em que direção seguir, mas não fazia diferença. Estava certo de que a saída era para cima, contudo, nenhuma elevação havia. Por onde fora atirado naquela cratera, não saberia dizer. Tinha que procurar um lugar para subir. Mais adiante, uma aglomeração de pessoas atraiu sua atenção. Chegando mais perto, ouviu lamentos e gritos que eriçaram todos os seus pelos. Apesar do medo, aproximou-se cautelosamente e notou que todos tinham o corpo coberto de fuligem, como se tivessem acabado de limpar uma chaminé. As pessoas o viram e, por um momento, emudeceram, fitando Alejandro com um misto de ódio e medo. A um sinal do que deveria ser o líder, todos se empertigaram e puseram-se a urrar tão alto que Alejandro tapou os ouvidos, embora continuasse escutando a gritaria, sem, contudo, compreender o que diziam. A multidão se aproximou, e ele recuou novamente aterrado. O que ele julgava ser fuligem, na verdade, eram queimaduras enegrecidas cobrindo toda a pele de uma gente que ele constatou, horrorizado, serem novos índios. Alguns ainda soltavam fumaça, e um odor horrendo de carne carbonizada atacou as narinas de Alejandro, que, mais uma vez, foi acometido por forte náusea. Vomitou sangue novamente. Tentou recuar, mas a dor nos membros lhe dificultou a escapada, e ele tropeçou nas próprias pernas, tombando no chão sobre as pústulas, que estouraram e o picaram feito agulhas fininhas e cortantes. Imediatamente, os índios queimados se atiraram sobre ele, que se encolheu todo para receber os golpes violentos da malta enfurecida. Não podendo mais suportar a dor, Alejandro desmaiou. Ao abrir os olhos, sentiu uma viscosidade sob seu corpo e constatou que havia caído de borco em uma poça de sangue. Apesar dos músculos doridos, conseguiu levantar-se e começou a desconfiar de que havia algo de muito estranho naquele lugar e naquelas pessoas. Como podiam estar vivas com os corpos cobertos de sangue e queimaduras? Só se estivessem mortas. Mas, se havia pessoas mortas ali, era porque ele também tinha morrido e fora parar no inferno. Ou talvez tudo não passasse de um pesadelo causado pela insânia da doença, o que era mais provável.
- Isso só pode ser uma alucinação - pensou. - Não posso estar morto, e isso não é o inferno. Sinto que respiro, estou vivo.
Foi assim por muito tempo, embora Alejandro não conseguisse precisar dias ou horas. Por onde passava, vinham índios ensanguentados ou carbonizados investindo contra ele. Até que, de repente, os ataques cessaram. Quando Alejandro já relaxava, acreditando que os índios não voltariam mais, uma nova investida aconteceu. Mas dessa vez não eram índios. Eram índias. De toda parte, surgiam mulheres estranguladas e retalhadas, expondo o sexo ferido e ultrajado.
Um grupo de índias atirou-se sobre ele e, fazendo gestos obscenos, começou a provocá-lo, forçando-o a manter relações sexuais. Mesmo involuntariamente, Alejandro se excitou e assistiu, horrorizado, à dança erótica das mulheres sobre ele. Fazer sexo causava-lhe imensa dor, mas elas pareciam não se importar com as bolhas que roçavam seus corpos. Quando um grupo terminava, lá vinha outro do mesmo jeito, tão rápido que ele nem conseguia fechar os olhos e descansar. Corpos mutilados e queimados, de todos os lados surgiam espectros tenebrosos a exigir que Alejandro se deitasse com eles. As mulheres o dominavam e riam dele, de seu pênis encaroçado e de suas lágrimas de súplica.
- Por favor, não façam mais isso - implorava ele, a garganta seca ainda sem água. - Não aguento mais. Prefiro morrer! Prefiro morrer! Oh! Deus, por favor, ajude-me!
Nesse momento, as mulheres desapareceram, e ele conseguiu dormir um pouco. Quando acordou, sentiu que não estava sozinho e se encolheu todo, temendo o assédio de mais índias. O ataque, contudo, não veio, e Alejandro experimentou olhar para os lados. Perto de onde estava, um homem o observava, o abdome aberto em imenso talho bem abaixo do diafragma, por onde afluía uma grande quantidade de sangue.
- Não aguento mais - choramingou ele. - Mate-me, se quiser, mas não me torture mais com a visão do sangue.
Para sua surpresa, o homem respondeu em bom e audível espanhol:
- Não é possível matar quem já está morto.
Pelos primeiros segundos, Alejandro permaneceu fitando o interlocutor, puxando a memória para se lembrar de onde é que o conhecia. Finalmente, a lembrança se fez presente, e ele deu um salto, aterrado e atônito:
- Você!?
Soriano começou a andar em volta dele, sem chegar muito próximo, e respondeu com certa frieza:
- Quem você esperava? Um anjo de asas brancas? Sou o que há de melhor para atender o seu chamado.
O pavor dominava Alejandro, que interpretava a presença de Soriano como um ato de vingança.
- Não chamei ninguém.
Soriano ergueu uma sobrancelha e, afinando a voz, repetiu debochadamente as palavras dele:
- Oh! Deus, por favor, ajude-me! - em seguida, fulminou-o com o olhar e, apontando o dedo ensanguentado para ele, disparou: - Não foi você quem disse isso?
- Foi, mas... não esperava que alguém ouvisse. Muito menos alguém feito você.
- Pois alguém ouviu, e não fui eu. Foi alguém que está acima de mim aqui nessa treva profunda, alguém que manda, mas que também recebe ordens de outro alguém, e por aí vai. Enfim, alguém mais poderoso do que eu ouviu a sua súplica patética e covarde, e me enviou para ajudá-lo.
- Ajudar-me em quê? Vai tirar-me daqui?
- Você não tem para onde ir, Alejandro. Essa vai ser a sua casa pelos próximos quinhentos anos.
- Ficou louco? Ninguém vive tanto tempo.
- Será que você é muito burro ou fui eu que não me fiz entender? Você está morto, idiota, morto! Acabou para o mundo lá de cima. Compreendeu agora?
Ao contrário do que o próprio Alejandro esperava de si mesmo, não se surpreendeu. Na verdade, já tinha essa desconfiança, embora seu coração se recusasse a acreditar, pois ainda se sentia vivo.
- Isso aqui é o inferno?
- De certa maneira, sim, se você compreender que só vêm para cá aqueles que têm o que temer.
- Temer?
- Quando o coração do homem é negro, faz com que ele tema que a treva que nele habita se vire contra si próprio. Vendo que Alejandro não compreendera, esclareceu:
- Os que aqui estão não são almas; são sombras escurecidas pela maldade. Como o mal traz o medo do retorno, todos aqueles que não se perdoam vêm parar aqui por suas próprias culpas, que se transformam em guias para esse mundo de trevas.
Soriano deu um passo na direção de Alejandro, que andou para trás e procurou a espada na cintura.
- Não se aproxime de mim - ele pediu, quase implorou. Não suporto mais tanta vingança.
- Não vim aqui para me vingar de você, embora me agradasse ter o seu pescoço em minhas mãos.
- Se não veio se vingar, o que pretende, então?
- Você é mesmo estúpido, não é? Já não disse que está morto?
- E você veio aqui só para me dizer isso?
- Recebi uma incumbência. Como você pediu ajuda, mandaram-me aqui para avisá-lo de que seu corpo de carne está morto e que você continua vivo em essência.
- E você?
- Acho que já deu para perceber que estou morto também.
- O que foi que lhe aconteceu?
- Ora, obrigado por perguntar - desdenhou Soriano. -Mas pensei que você soubesse. Quando me entregou nas mãos daquele selvagem carniceiro, devia saber o que estava fazendo.
- Eles o sacrificaram?
Soriano exibiu a ferida sangrenta aberta na barriga e retrucou com mórbido prazer:
- Sabe o que é curioso nesses selvagens? É que conhecem procedimentos cirúrgicos melhor do que os médicos incompetentes que temos na Coroa. O sacerdote foi tão preciso com a faca que cortou a minha barriga sem tocar nenhum osso, agarrou meu coração e puxou.
- Jesus Cristo! - horrorizou-se Alejandro.
- Ele não me ajudou, mas não porque tivesse me abandonado. Fui eu que simplesmente nem me lembrei de que ele existia.
- Por favor, Soriano, pare com isso. Não estou me sentindo bem.
Soriano, contudo, pareceu ignorá-lo, deleitando-se com a reação de repulsa e pavor que suas palavras produziam.
- Na verdade - prosseguiu ele -, não vi quando ele cortou os ligamentos que prendiam meu coração ao corpo porque... morri. Mas sei que ele o arrancou para fora e o levantou ainda pulsante. O mais engraçado foi que não senti raiva dele... e nem de você por querer me matar. Meu ódio foi porque, por sua causa, eu nunca mais tornaria a ver Cibele. Se fosse só pela minha vida, eu não me importaria tanto. Quanto vale a vida de um condenado? Mas Cibele... Tudo o que eu mais queria era estar ao lado dela, todavia, por sua causa, nunca mais tornei a vê-la. Nunca... - calou-se, engolindo uma lágrima, e fulminou o outro com o olhar.
Nesse ponto, Alejandro se virou para o lado e vomitou sangue novamente, várias vezes, sentindo uma dor terrível no estômago e na garganta:
- Acho que isso ainda é pior do que a varíola - ironizou Soriano, já recuperado de sua momentânea fraqueza.
- Chega - murmurou Alejandro, quase sem conseguir falar.
- Será que você sabe por que vomita tanto sangue? - ele meneou a cabeça. - Porque todo sangue inocente que você derramou fluiu para dentro de você.
Alejandro escondeu o rosto entre as mãos e desatou a chorar convulsivamente:
- Oh, Deus, como me arrependo do que fiz! Só agora percebo o quanto fui cruel e orgulhoso.
- Ah! E sem falar na pobre Rosa e no tolo do Lucio – Alejandro ergueu a cabeça e fitou Soriano. – Não se arrepende do que lhe fez também!
- Foi por causa deles que me permiti decair – confessou Alejandro, a voz sofrida e entrecortada por soluços. – Porque o meu orgulho não me permitiu perdoar.
- Eles planejaram matar você. Então, você estava com a razão.
- Não deveria ter devolvido na mesma moeda. Vingar-me só me trouxe sofrimento.
- Sabe, Alejandro, assim como você, estou tentando compreender que a razão está com Deus, que nunca erra.
- Está arrependido também? – surpreendeu-se.
- Quase. Só não consegui ainda perdoar o que você me fez.
Nada mais se fez ouvir. Soriano desvaneceu nas brumas, deixando Alejandro entregue à total solidão. Daquele momento em diante, o calor aconteceu um pouco, e ele encontrou um poço de água lamacenta e malcheirosa, onde pôde finalmente saciar sua sede. Alejandro não poderia precisar quanto tempo havia que estava vivendo naquele inferno. Desde o encontro com Soriano, os índios haviam desaparecido, e o insulamento lhe trouxe a reflexão. Sozinho, só lhe restava seus pensamentos, e eles acabaram conduzindo-o para Deus. Pela primeira vez em sua vida, Alejandro ajoelhou-se e rezou.

CAPÍTULO 8

Era noite, e o silêncio se espalhava pela ilha adormecida, somente interrompido pelo marulho das ondas, que se despedaçavam na areia branca. A lua esbranquiçada dava seu toque especial ao mar, encobrindo as ondas como uma colcha de retalhos pálida e ondulante. Vento não havia, e apenas uma brisa morna e suave corria pela areia, sem levantar muitos grãos nem interferir nas ondas.
Tudo quieto. Contrastando com o transcorrer pacífico da noite, o coração de Damian se agitava em sobressaltos de agonia e remorso. Desde a morte de Alejandro, não conseguia se perdoar por haver abandonado o amigo em momento tão doloroso. Mas o médico fora claro ao alertá-lo sobre aquela doença maldita que deformava o rosto com suas bolhas purulentas. De que valeria morrer com Alejandro? Aquela não era uma forma aconselhável de prestar solidariedade.
Cerca de vinte anos haviam-se passado desde que Alejandro se fora. Damian nem sabia como ainda estava vivo, após ter fugido a nado da cidade índia com os bolsos carregados de ouro. Tivera que matar muitos selvagens, mas sobrevivera. Agora, Tenochtitlán estava destruída, e os índios, praticamente dizimados. Com isso, Damian perdeu o interesse pelas conquistas sangrentas e recusou ingresso em nova expedição, cuja finalidade seria liquidar de vez os povos do litoral11. Estava cansado de tanto sangue.
A mulher o havia deixado e sumido no mundo na companhia de um grumete recém-chegado de Portugal. Estranhamente, Damian nem sentiu raiva do fato. Chegou mesmo a experimentar certo alívio por ficar sozinho, pois assim não se veria obrigado a compartilhar com ninguém o seu remorso.
Damian contava agora cinquenta e sete anos, e o peso das atrocidades de toda uma vida desabou sobre sua consciência. Queria lavar a alma de tantas maldades, sentir-se leve como alguém que nunca desafiara a morte. Sem pensar no que fazia ou por que fazia, desatou o cinturão de onde pendia a espada e deixou-a cair na areia, praticamente sem ruído.
Como se o mar pudesse limpá-lo de tanta sujeira, atirou-se entre as ondas e foi nadando em direção ao horizonte, até que os músculos se cansassem e o obrigassem a parar. Ao se virar, uma enorme quantidade de água se estendia entre ele e a praia. Havia nadado uma distância que agora seria impossível refazer. A terra parecia pequenina e inacessível, e ele sentiu o medo da morte se avizinhar. Quando entrara na água, não pensava em se matar. Era como se o oceano tivesse a força e o poder de purificá-lo de seus pecados e conduzi-lo ao perdão de si mesmo. Não queria morrer. Tinha medo de se deparar com seus inimigos do outro lado e das cobranças que lhe fariam. Não. Precisava desesperadamente voltar à praia. Ergueu os braços para a primeira braçada de volta, mas desistiu logo em seguida. Inútil. A dor muscular era grande e a distância, imensa, quase invencível.
Chorou arrependido, nos lábios o gosto salgado das lágrimas e da água do mar. Os pés tentaram inutilmente alcançar alguma coisa sólida abaixo; não havia nada em que pudessem se apoiar. Cansado, seu rosto começou a afundar, para logo em seguida emergir das águas, na esperança vã de manter o nariz e a boca na superfície.
11 - Os maias.

A cada minuto, afastava-se mais e mais da costa e das chances de sobrevivência. Caíra numa correnteza que o levou lenta e mansamente para o mar aberto. Damian chorou. Queria voltar, mas não podia. A morte era inevitável, e ele precisava se curvar a ela para não sofrer ainda mais do que sofria. Entre lágrimas, finalmente parou de resistir e entregou-se ao destino.
Durante muitos anos, ficou perdido no astral inferior, vagando entre seres miseráveis feito ele. Quando finalmente recebeu auxílio para abandonar aquele mundo de treva, encontrou-se com os velhos companheiros de jornada. O primeiro que viu após o restabelecimento foi Alejandro. O amigo emagrecera, muito embora seu rosto não exibisse mais as marcas da doença.
- Alejandro - balbuciou Damian, vendo-se de frente para o amigo. - Onde estamos?
- Em uma cidade no mundo invisível.
Durante alguns minutos, Damian permaneceu em silêncio, até que Alejandro prosseguiu:
- Não se sinta culpado pelo que me aconteceu. Muito mais do que eu, você soube ser meu amigo. Era natural que tivesse medo de tão horrível doença.
O espanto dominou Damian, que retrucou constrangido:
- Você não tem raiva de mim?
- Agora não. Nos primeiros anos de minha estada nesse mundo, carreguei imensa mágoa pelo seu abandono. Mas depois percebi que o único responsável por tudo que me aconteceu fui eu mesmo.
- O que, exatamente, aconteceu a você?
Alejandro narrou a Damian tudo por que passara desde que desencarnara, e este fez o mesmo. Trocaram experiências e Alejandro continuou a contar:
- Lúcio e Rosa também se encontram aqui.
- E...?
- Ainda guardam muito rancor de mim, e de você também. Sobretudo Lúcio, que o considerou um intruso em nossas vidas.
- Eu, um intruso? Mas não fui eu que me intrometi no casamento do meu melhor amigo.
- Mesmo assim. Lúcio não consegue entender por que você ficou do meu lado e compactuou com os assassinatos. Acusa-o de cumplicidade.
- Sei que fui cúmplice, mas eu realmente era seu amigo. Posso ter cometido um crime, porém, o que me moveu foi a amizade, não a traição.
- Infelizmente, não é assim que ele vê. Tomou-se de ódio por você também. Quando alguém toca no seu nome, ele reage com rispidez e desdém, chamando-o de covarde e bajulador, insinuando que havia algum motivo obscuro na nossa amizade.
- Que motivo? - indignou-se Damian.
- Acho que ele pensa que você esperava ser favorecido com ouro.
- Você sabe que isso não é verdade, não sabe? Eu nunca quis nada seu.
- Sei disso. Mesmo porque eu nunca tive tanto dinheiro assim. E você não deveria se importar com as insinuações maldosas de Lúcio. Ele ainda não esqueceu o que lhe fizemos.
Damian ficou algum tempo pensativo, remoendo as palavras de Alejandro e imaginando até que ponto Lúcio o responsabilizava pela participação nos crimes. Depois de alguns instantes, como se quisesse desligar-se da imagem do outro, indagou subitamente:
- E Soriano? Também está aqui?
- Não.
- Ele não conseguiu perdoá-lo, então.
- Não. Mandaram-no avisar-me que eu havia morrido, e hoje sei que essa foi uma tentativa de dissolver o ódio. Ele cumpriu o que lhe determinaram, não de boa vontade, mas foi categórico em afirmar que obedecia a ordens, mas que não havia me perdoado.
- E agora? O que vai nos acontecer?
- Precisamos reencarnar, meu amigo. Só através da experiência no corpo físico conseguiremos dissolver tanto ódio e tanta mágoa.
- Entendo. Mas quanto tempo faz que estamos aqui?
- Estamos no ano de 1643.
- Mais de cem anos... - lamentou Damian. - Tanto tempo desperdiçado!
- Na verdade, nada se desperdiça na vida, e tudo por que passamos é repositório de experiências. É através delas que vamos lapidando nossa essência para, um dia, alcançarmos a unidade com o divino.
- Você está estranho, Alejandro. Tão mudado.
- Aprendi muito durante esse tempo em que estive aqui. Passei setenta anos no umbral, e faz pouco mais de cinquenta que estou nesta cidade iluminada. Foi o suficiente para rever meus valores e modificar minha consciência.
- Será que chegarei a isso também?
- Você sempre foi melhor do que eu.
- Até parece...
- É verdade. Você não se comprazia em matar nem estuprar. Fazia o que achava que era certo.
- E isso me valeu esses anos todos na treva. Fui escravizado por espíritos mesquinhos.
- Que lhe deram proteção. Não fosse por eles, você hoje estaria preso a algum maioral que o obrigaria aos trabalhos mais sórdidos e cruéis. Não foi melhor assim?
- Bom, olhando por esse ângulo...
- Não devemos nos culpar por nossas ações. Cada um faz o que sabe e dá o que tem. A ninguém pode ser cobrado mais do que possui.
- Você não se sente culpado por tudo que fez?
- E como! Tenho medo de fazer tudo de novo, caso retorne à Terra.
- Tem medo? Mas, então, como sugere que devemos reencarnar? Será que não é melhor ficar por aqui mesmo, já que é tão bom?
- Sei que é necessário. O que estou dizendo agora vem das minhas experiências na treva. Foi muito doloroso, horrível, aterrador. Aqui, tudo é perfeito. A vibração que existe no ar é de amor e compreensão. Por isso, é muito fácil sentir coisas boas. Mas me pergunto: será que eu realmente aprendi o valor da vida e do respeito ao meu semelhante? O que irá me manter firme em meu propósito de me modificar?
Damian o encarava abismado, voltando para si mesmo as perguntas que Alejandro se fazia.
- Não sei - murmurou ele. - Pergunto-me a mesma coisa.
- Precisamos experienciar situações difíceis. Só assim conseguiremos compreender, e essa compreensão será para sempre.
- Você diz que devemos sofrer? É isso?
- Disseram-me aqui que o sofrimento não é necessário. Que posso me reconciliar com a vida de uma maneira que não seja dolorosa. Eu' contudo, carrego muitas culpas. Como então me sentir merecedor de uma vida sem dores?
Damian silenciou e ficou encarando Alejandro, pensando na imensa quantidade de coisas que tinha para lhe dizer e que agora não importavam mais. Conseguiu abraçá-lo com carinho e tornou com sinceridade:
- Quero estar com você, Alejandro. Aonde você for, quero ir junto e ficar ao seu lado. Juntos, quem sabe não conseguiremos superar nossos erros e nos reconciliar com a vida? Podemos nos ajudar mutuamente.
Comovido, Alejandro apertou o ombro do amigo e declarou:
- Sua companhia será de grande ajuda. Mas quero que saiba que você não me deve nada. Sou grato por tudo o que fez por mim em vida.
- Não fiz nada por você. Salvei a sua vida num gesto impulsivo...
- Ainda assim, salvou.
- E contribuí para a sua ruína, servindo de cúmplice para o assassínio frio de duas pessoas. Terei de responder por isso.
- A sua consciência é quem vai lhe dizer por quais atitudes você deve responder. Só lhe peço que medite sobre a ignorância e a imaturidade, e se coloque disponível para o crescimento sem dor. Você pode fazer isso.
- Você não fez.
- Mas você pode.
Damian fitou-o em dúvida. Seus crimes eram muitos, e ele não estava bem certo se poderia livrar-se deles em uma única encarnação, ainda mais com a culpa que sentia. Tinha, contudo, que tentar. E era o que faria. Quitar-se-ia com os homens, com sua consciência e com a vida.
Falando sobre o passado...
Depois desses fatos tristes, segui o destino que a minha consciência traçou para mim. Não vou dizer que foi fácil. Senti na pele o sofrimento que infligi a outros, e foram muitos os momentos em que pensei desistir. Mas eu não podia. O crescimento de outras pessoas dependia em parte de mim, e eu precisava prosseguir. Se desistisse, o que seria daqueles que atrelaram seus destinos ao meu, na esperança de podermos, todos juntos, levar nossos espíritos adiante na senda da elevação espiritual?
As passagens que aqui deixo narradas não tiveram outro intuito além de mostrar todo o processo por que passei e que culminou na minha reforma. Falar do sofrimento não dói em mim, embora muitas pessoas não consigam ainda encarar com naturalidade e respeito as dores que foram criadas nesse mundo. E fomos nós que as criamos, com o nosso orgulho e a nossa falta de amor. Por que então precisamos fugir com pavor de nossa própria criação?
Não falo do sofrimento como algo bom, mas necessário, na medida em que ainda não conseguimos acreditar no poder transformador do amor. Não digo que é preciso sofrer para alcançar algum tipo de elevação espiritual, mas também não podemos negar que é através do sofrimento que o homem vem conquistando novos valores. Poderia e pode ser diferente. Ninguém precisa sofrer para ser feliz. Há muitos caminhos que conduzem ao estado de bem-aventurança, e só aqueles que conseguem compreender e respeitar a verdadeira dor é que podem se livrar dela.
É preciso viver para conhecer, experienciar para discernir, sentir para se libertar. Provar para poder dizer: eu não quero e não preciso mais disso. Apenas entendemos que não precisamos da dor depois de termos passado por ela.
Só deixa de sofrer quem já vivenciou o sofrimento e alcançou o estado de compreensão de que ele não é o único caminho para o crescimento moral do Ser.

PARTE 2

CAPÍTULO 9

Padre Gastão havia acabado de encerrar a missa quando ouviu, do lado de fora da pequena igreja de madeira, um alarido estrondoso e infernal. Uma gritaria foi ecoando pela vila, e o ruído de patas de cavalos pisando firme na pedraria do chão provocou gritos de espanto e medo, e o som do pranto das crianças invadiu os ouvidos do pároco.
- Mas que diabos está havendo por aqui? - blasfemou o padre, persignando-se em seguida.
Nem precisou chegar à porta para saber do ocorrido. Aracéli entrou esbaforida e assustada, os olhos esbugalhados de espanto.
- Padre Gastão! - exclamou ela. - Esses homens a cavalo... Estão por toda parte, assustando as crianças!
Tenha calma, Aracéli. Vou procurar ver o que está acontecendo.
Depois que o padre saiu, Aracéli sentou-se num dos bancos da igreja e ficou escutando o alarido. Aos poucos, suas pálpebras foram pesando e, à medida que o ruído lá fora diminuía, seus olhos iam se fechando lentamente, e ela acabou adormecendo. Poucos instantes depois, foi despertada pela mão do padre, que apertava seu ombro com doçura. Ela abriu os olhos lentamente e fixou-os em Gastão, que lhe sorria com bondade.
- Tenha calma. Já está tudo resolvido.
- O que foi aquilo? - indagou ela, esfregando os olhos e levantando-se devagar.
- Aventureiros, como sempre, em busca de ouro e fortuna. Um tal senhor Licínio... Acorrem a Vila Rica na ilusão do Eldorado. Onde já se viu?
Aracéli não disse nada. Pouco entendia daqueles assuntos e não lhe interessavam as loucuras do homem branco em busca do metal dourado.
Quando Aracéli nasceu, o pai, português, havia morrido numa disputa por uma jazida de ouro, assassinado por um paulista enfurecido. O choque antecipou o parto de sua esposa índia, e Aracéli veio ao mundo minutos antes do falecimento da mãe. Órfã, a pequena índia permaneceu aos cuidados de padre Gastão, que, compadecido da sorte da menina, criou-a nos arredores da paróquia, dando-lhe educação apropriada, além da religiosa.
Aracéli tornou-se uma moça muito bonita, culta e generosa, embora um pouco rebelde. Tinha as feições do pai e a cor da mãe, o que lhe emprestava um ar ao mesmo tempo exótico e gracioso. Cuidava da casa de padre Gastão e o amava como o único pai que conhecera em toda a sua vida.
Ao entrar na cidade, Licínio veio cheio de esperanças e com a certeza de que terminaria de concretizar o seu sonho de se tornar um fidalgo e receber um título de barão da Coroa. Não que ainda não possuísse dinheiro. Fizera sua fortuna traficando escravos para os senhores de engenho, mas agora estava cansado de lidar com os negros e suas constantes revoltas. Por isso, ao juntar uma boa quantia, partiu em busca de novas chances. Ouviu falar do Arraial do Padre Faria12 e em suas possibilidades mineradoras. Quando soube de sua recente transformação em sede do Conselho, não hesitou. Partiu para a recém-inaugurada Vila Rica na certeza de que se consolidaria na mineração. Vencida a concorrência com vários outros pretendentes, ganhou o direito de explorar uma considerável área de garimpo, que iria torná-lo muito mais rico do que já era.
Casado com Esmeraldina, tinha um filho de cinco anos, de nome Teodoro, a quem idolatrava. Os dois permaneciam ainda na capital, à espera de que ele arranjasse uma casa grande e confortável e começasse a mandar seus escravos para a garimpagem.
Licínio passou a primeira noite em uma hospedagem local e, no dia seguinte, saiu em busca de uma casa que lhe servisse. Depois de muito perambular, encontrou o que procurava. Era um pequeno sítio, nos arredores da cidade, onde o filho poderia crescer em meio a árvores frutíferas e correr em liberdade pelos campos. Além disso, a distância do centro manteria a esposa longe dos olhares cobiçosos de garimpeiros e mineradores.
Finalizada a compra, faltava-lhe apenas arranjar uma mucama para servir de ama-seca ao filho. Uma escrava novinha, com disposição para brinquedos infantis, lhe serviria bem. Ele não sabia onde procurar nem a quem recorrer, mas talvez o padre pudesse ajudá-lo. Lembrava-se bem do padre. Era um homem magro e baixinho, que ficara enfurecido porque ele entrara com seus cavalos pisoteando fortemente o chão. Licínio achara graça e não revidara. Era-lhe interessante travar amizade com as autoridades e os clérigos, porque era com eles que poderia obter ajuda e favores.
A porta da igreja estava aberta, contudo, não havia ninguém por ali. Andando de um lado a outro, foi informado de que o padre se encontrava atrás, na casa paroquial. Dirigiu-se para lá e bateu à porta, e foi o próprio padre quem atendeu.

12 - Arraial do Padre Faria - um dos arraiais que deram origem à Vila Rica, atual Ouro Preto (MG), fundada em 1711.

- Ah! Senhor Licínio - surpreendeu-se ele. - O que o traz aqui?
- Preciso de um favor - retrucou Licínio, passando para o lado de dentro.
- Já encontrou casa?
- Já, sim. Um sítio encantador, não muito longe do centro da cidade.
- Conheço o lugar, bem como a viúva que o vendeu. O marido morreu no garimpo...
- Lamentável...
- São coisas da vida. Bem, mas deixemos isso de lado e diga-me: o que o trouxe aqui?
- Bom, agora que encontrei um lugar para fixar minha residência, preciso de uma ama-seca para o meu filho, um menino de apenas cinco anos, um primor de criança. Por acaso o senhor não conhece aí uma negrinha jovem que esteja à venda?
Padre Gastão fitou-o com ar de desgosto e repulsa, mas não emitiu nenhum comentário. Deu um muxoxo e respondeu com secura:
- Não.
Licínio notou a contrariedade do padre e logo deduziu que ele era daqueles que condenavam a escravatura. Como não era sua intenção criar polêmicas nem estabelecer divergências ou debates filosóficos nem religiosos, mudou o tom de voz e rebateu com simpatia:
- Mas nem uma mocinha que esteja à procura de trabalho? - ele meneou a cabeça. - Olhe que pago bem.
- Não conheço ninguém - continuou o padre, agora com um tom glacial que fez gelar os ouvidos de Licínio.
- Mas nem uma...
A frase parou no ar, e Licínio estacou, de boca aberta, olhando para a figura que acabara de passar pela porta.
- Está fazendo um calor danado, padre Gastão! E está faltando de tudo lá na venda do seu Ferreira - disse Aracéli.
A jovem percebeu a presença de Licínio e deu-lhe um sorriso formal, passando para a cozinha abraçada ao saco de compras. Ele acompanhou os seus passos, sentindo a boca salivar, estupefato com a beleza da moça.
- Quem é a menina? - indagou ele, analisando os seus movimentos na cozinha contígua.
- É Aracéli.
- Ela trabalha para o senhor?
- Ela foi criada por mim. É como se fosse minha filha.
- Entendo. E será que o senhor, como bom cristão, alma generosa que é, não poderia me ceder a moça para cuidar do meu Teodoro? Seria só até eu encontrar alguém.
- Aracéli não está interessada.
- Como é que o senhor sabe? Ainda nem perguntamos a ela.
Padre Gastão tinha vontade de mandar aquele homem embora dali, mas a educação e o dever não permitiam. Nisso, Aracéli voltou segurando uma bandeja com dois copos e uma jarra. Pousou-a na mesa e serviu o refresco.
- Fiz uma limonada para os senhores - anunciou, entregando um dos copos a Licínio e o outro ao padre. - Está muito quente, e achei que gostariam de se refrescar.
- Obrigado, minha filha - falou Gastão, louco de vontade de mandá-la para o quarto.
- De nada.
Antes que ela pudesse virar-se para ir embora, Licínio retornou de seu estupor e chamou-a de volta:
- Por favor, Aracéli, fique mais um pouco. Gostaria de falar com você.
Espantada, a moça se virou para ele e olhou discretamente para padre Gastão, que fez um gesto para que ela se sentasse.
- Este é o senhor Licínio, Aracéli. Acabou de chegar à cidade.
- Senhor Licínio? Não é o homem que entrou no outro dia assustando a todos com os cascos dos cavalos?
Licínio soltou uma gargalhada e retrucou com prazer:
- Eu mesmo, mocinha. Mas já me desculpei com o bom padre pelos transtornos que causei.
- O senhor Licínio está à procura de uma ama-seca, mas já lhe disse que não conheço ninguém.
- Pensei se você não gostaria de trabalhar para mim - sugeriu Licínio, fitando-a com crescente admiração.
- Eu?! - surpreendeu-se Aracéli. - Mas, senhor, nunca trabalhei fora daqui. Só sei servir ao padre Gastão.
- Será que o padre quer você só para ele?
- Não é nada disso - interrompeu Gastão. - É que Aracéli não está acostumada.
- Ora, mas é só para cuidar de uma criança de cinco anos. Um menino lindo e inteligente. E você pode ganhar muitas coisas bonitas da patroa. Dona Esmeraldina é generosa e aprecia a companhia de jovens feito você. Não seria uma ótima oportunidade para experimentar coisas novas?
- Aracéli é só uma criança inexperiente e ingênua de dezesseis anos - arrematou o padre.
- Não sou, não! - contestou ela, com veemência. - Já sou uma moça, padre Gastão. E trabalhar fora talvez seja bom para mim. Nunca vou a lugar algum além da venda do seu Ferreira.
- Viu só? - exultou Licínio. - Ela quer.
- E o senhor vai me pagar?
Licínio balançou a cabeça e olhou de soslaio para o padre, que parecia enfurecido, embora se esforçasse para não demonstrar.
- Isso não é comum - objetou o padre. - O normal é que esse trabalho seja feito por uma negra, e o senhor pode perfeitamente adquirir uma, do jeito que está procurando, no mercado de escravos.
O olhar de espanto de Aracéli foi genuíno. Ela nunca ouvira Gastão dizer aquelas coisas. Pois se ele era radicalmente contra a escravidão, como é que agora aconselhava o senhor Licínio a comprar uma escrava?
- Padre Gastão! - exclamou Aracéli. - Como pode sugerir uma barbaridade dessas? Não é o senhor que vive dizendo que a liberdade não tem preço e que ninguém deveria comercializar seus semelhantes? O senhor mesmo diz que isso é uma vergonha!
Ele queria desesperadamente dizer-lhe que estava falando aquele absurdo tão grande só para protegê-la, mas ela não entenderia. Criara Aracéli envolta em uma campânula de proteção, afastando-a de tudo que pudesse fazer-lhe mal, principalmente homens feito Licínio. Ela se havia transformado numa moça realmente bonita e sedutora, embora não se desse conta disso.
- É para o seu bem - disse ele simplesmente.
Aracéli não discutiu. Conhecia muito bem o padre para duvidar do que ele dizia. Embora não compreendesse por que ele falava coisas tão estranhas e contraditórias, não o questionou.
- Bem, senhor Licínio, se padre Gastão não quer, então não posso ir.
- É melhor então que eu compre uma escrava? - retrucou ele com raiva.
- O senhor é quem sabe - falou ela.
Licínio retirou-se furioso. Aquilo não terminaria assim. Ver Aracéli fora como ser atingido por um furacão, e precisava acalmar a turbulência que se instalara dentro dele. Ela era uma jovem fresquinha e tenra, bem do jeito que ele gostava. E virgem. Só de pensar na virgindade de Aracéli, sentiu-se invadido por uma onda incontrolável de desejo.
- Preciso tê-la - disse para si mesmo. - Custe o que custar.
Não havia nada que o dinheiro não pudesse comprar, e ele estava disposto a pagar o mais alto preço pela inocência de Aracéli.

CAPÍTULO 10

Esmeraldina e o pequeno Teodoro somente foram chamados a Vila Rica quando a casa já estava pronta para recebê-los. Licínio espalhou escravos por toda a propriedade, mandou cuidar do pomar e do jardim, e decorar os quartos ao gosto de cada um. Queria que, quando a mulher e o filho chegassem, pensassem que entravam numa casa de sonhos.
- Finalmente! - exclamou Licínio, beijando Esmeraldina na e erguendo Teodoro no colo.
O menino envolveu o pescoço do pai e estalou-lhe um beijo no rosto:
- Saudades do papai...
- Meu menino, minha vida! -e, virando-se para Esmeraldina, prosseguiu: - Como foi a viagem?
A mulher fez cara de repulsa e respondeu com desdém:
- Horrível, como sempre. Só você para nos tirar de Salvador nos trazer para este fim de mundo.
- Não é um fim de mundo - objetou Licínio, com indignação. - É aqui que está a fortuna, a riqueza, o ouro!
- Ouro? - repetiu Teodoro, impressionado porque sabia que ouro era algo bonito e brilhante, mas cujo valor real desconhecia.
- Muito ouro, meu filho. E quando sua mãe estiver com o pescoço e as orelhas pesados de tanto ouro, quero ver se vai continuar com essa cara de desprezo.
- Isso são modos de falar comigo, Licínio? E na frente da criança?
Esmeraldina retirou o menino dos braços do marido e entregou-o à escrava idosa que a acompanhava.
- Leve-o para brincar lá fora - ordenou. - Está um lindo dia de sol.
Depois que eles saíram, Esmeraldina pôs-se a inspecionar cada canto da casa, inclusive algumas peças em ouro e prata que Licínio havia comprado. Ele não dizia nada, apenas acompanhava os seus gestos e observava o ar de surpresa que ela fazia ao constatar a riqueza de seu novo lar.
- Não posso negar que você se esmerou - reconheceu ela, fascinada e satisfeita com o luxo que a cercava. - Talvez você tenha razão... acho que vou gostar daqui.
- Fiz tudo isso por você e por Teodoro. Quero que se sintam vivendo num palácio.
- Você já começou a trabalhar?
- Sim. Logo que cheguei, mandei os escravos para o garimpo. Não se preocupe, Dina, vamos ficar muito mais ricos do que já somos.
Os olhos da mulher brilharam, e ela seguiu alisando os móveis, até que parou e fixou o olhar penetrante no marido.
- E a aia? - indagou. - Já encontrou alguém?
- Estou procurando.
- Você sabe que não gosto que Teodoro fique em companhia daquelas velhas. Ele precisa de uma mocinha que brinque com ele. E aquelas escravas que você deixou para mim não prestam para nada.
- Não tenho culpa se a última morreu.
- Nem eu. Como é que eu iria saber que aquela ferida na perna iria infeccionar e ela iria morrer?
- Bom, deixe isso para lá. São coisas que acontecem. Temos é que agradecer porque quem rasgou a perna naquele prego foi a estúpida da negra, e não o nosso Teodoro.
- É, mas agora preciso de outra escrava.
- Eu estou de olho em uma menina que vi na casa de um padre. É uma garota índia, de seus dezesseis anos, ótima para brincar com Teodoro.
- Índia? Não sei não, Licínio, nunca tivemos escravas índias.
- Essa não é escrava. Foi criada pelo padre, e é por isso que é a pessoa ideal para o nosso filho. Tem boa educação, é limpinha e de boa aparência. Muito melhor do que essas negras que a gente precisa toda hora mandar se lavar.
- Índios são selvagens. Quem me garante que essa menina não é alguma espécie de canibal?
- Que canibal, que nada! Aracéli foi civilizada pelo padre.
- Esse é o nome dela? Aracéli? - ele assentiu. - E os pais dela, onde estão?
- Acho que morreram. E ela não tem jeito de ser totalmente índia. Possui feições finas e delicadas, como as de um europeu, embora sua pele seja bem da cor do jambo.
Esmeraldina não percebeu a excessiva empolgação com que Licínio descrevia Aracéli, preocupada que estava com a possibilidade de colocar uma selvagem dentro de casa.
- Tem certeza de que ela serve para Teodoro?
- Absoluta! Você tem que ver a menina. É esperta, inteligente, lin... - ele ia dizer linda, mas corrigiu a tempo: - limpinha, como já disse. E você mesma diz que não gosta das negras.
- E não gosto mesmo. São feias e sujas, com aquela carapinha espetando o rostinho inocente de Teodoro.
- Pois então? Aracéli não é assim. Tem os cabelos negros mais lisos e lustrosos que já vi.
- Bom, isso é uma vantagem, realmente. É... pensando bem, você tem razão. Creio que ela deve servir.
- Só tem um problema.
- Que problema?
- O padre não quer deixá-la vir trabalhar conosco. Por que não?
- Ora, porque não! Porque ela serve a ele, por isso. Ele não quer perder a criada.
- E se lhe oferecêssemos dinheiro?
- Esqueça. Esse padre não é do tipo que se deixa comprar. Parece gostar de causas nobres e ser muito correto.
Esmeraldina pensou por alguns minutos. Não podia deixar que um simples padre se opusesse à sua vontade e saísse vencedor.
-Acho melhor irmos falar pessoalmente com ele. Levaremos Teodoro. Não há quem não se encante com ele e, vendo-o, talvez o padre mude de ideia.
Foi no domingo seguinte que padre Gastão e Aracéli conheceram Esmeraldina e Teodoro. Logo após a missa matinal, Licínio os apresentou. Aracéli logo se encantou com o menino, e ele com ela. A simpatia foi recíproca. Esmeraldina não era uma mulher afetiva nem carinhosa, e a criança se ressentia disso. Assim, quando Aracéli o pegou nos braços e começou a fazer brincadeiras com ele, Teodoro imediatamente sentiu a sua afeição.
- Teodoro gostou de Aracéli - observou Licínio, enquanto padre Gastão cumprimentava Esmeraldina.
- Pois é, padre, como o senhor deve saber, Teodoro e eu chegamos ainda essa semana de Salvador - tagarelava Esmeraldina. - E uma moça como Aracéli, para cuidar de nosso Teodoro, seria o ideal. É claro que podemos comprar uma escrava, mas acho que não seria aconselhável, tendo uma menina tão fina e educada bem aqui perto de nós. E livre. Não acha que seria um bom exemplo para o nosso filho ter uma criada que não fosse escrava?
- Perdão - falou o padre. - A senhora é contra a escravidão?
Espertamente, Esmeraldina havia dito aquilo. É claro que ela não era contra a escravidão. Afinal, onde encontrariam mão de obra barata sem o concurso dos negros? Todavia, pelo que Licínio lhe contara do padre, era óbvio que ele era contrário à escravatura, e fingir-se solidária a sua causa a faria simpática aos olhos dele.
- Acho que os negros são gente, como todo mundo, e deveria haver uma lei que proibisse a captura deles.
Ela nem olhou para Licínio, que abriu a boca, estupefato, pois nunca ouvira a mulher falar daquele jeito. Segundos depois, ele sorriu intimamente, já percebendo o jogo da esposa para conquistar a confiança do padre.
- Mas a senhora tem escravos, não tem?
- Infelizmente, padre Gastão - retrucou ela baixinho -, quem manda é o marido. Mas, por mim, nós não teríamos nenhum. Foi por isso que, quando Licínio falou em Aracéli, logo pensei que seria um bom começo.
- É verdade.
- E, depois, Teodoro adorou Aracéli. Olhe só como os dois se deram bem.
Aracéli e Teodoro corriam pelo pátio da igreja, brincando de esconder, e ele dava gargalhadas cada vez que ela o segurava pela cintura e o rodopiava no ar.
- São duas crianças - comentou Licínio, sentindo, outra vez, a boca salivar ao ver os seios de Aracéli subindo e descendo por baixo do vestido simples, mas desviou os olhos rapidamente, para que o padre nada notasse.
Realmente, a cena comoveu padre Gastão. Fazia muito tempo que Aracéli não tinha contato com ninguém além dele. Os pais das outras crianças não permitiam que seus filhos brincassem com um filhote de índio, como diziam pejorativamente, e ela passou a infância sozinha.
Contudo, havia Licínio. Gastão temia que houvesse intenções ocultas no interesse dele por Aracéli. Ou seriam o apego e a preocupação excessiva que o faziam imaginar uma maldade que realmente não existia? O que ele notava agora na relação entre Licínio e a família era muito carinho e atenção, e talvez Aracéli representasse para ele apenas isso: uma criada jovem para cuidar de seu filho pequeno.
- Por favor, padre Gastão, permita que ela vá - implorou Esmeraldina, que se irritava quando contrariada. - Nosso filho é pequenino, precisa de alguém com a educação de Aracéli para lhe servir de exemplo. Não pode nos ajudar?
- Bem... - hesitou o padre. - Parece mesmo que eles se deram bem.
- Quer dizer, então, que ela pode ir?
- Não sei. Vamos perguntar a ela.
Na mesma hora, Aracéli concordou. Se antes já queria ir, que diria agora, que conhecera Teodoro e se apaixonara por ele? Não poderia perder a oportunidade de cuidar de uma criança tão doce e meiga.
Ficou acertado que Aracéli dormiria com o menino, mas viria para casa aos domingos. No dia seguinte, lá estava ela, pronta para seu primeiro dia de trabalho. Ficou impressionada com a riqueza e o luxo do casarão de Licínio e adorou o jardim e o pomar, onde havia muitas árvores para subir e muitas frutas para colher.
No quarto de Teodoro, vários livros de história trazidos de Portugal enfeitavam as prateleiras, e brinquedos coloridos que Aracéli jamais havia visto se espalhavam pelo chão. Ela estava encantada com aquele mundo de brilho que sequer imaginava existir.
E Teodoro, então, era uma criança adorável. O menino também gostara muito de Aracéli, que se transformara numa espécie de irmã mais velha com quem ele podia brincar. Tudo parecia perfeito para os dois. Aracéli só não sabia que, nos momentos de brincadeira, os olhares de Licínio eram muito mais para ela do que para o filho.

CAPÍTULO 11

- Onde estão seus pais, Aracéli?
A vozinha miúda de Teodoro chegou aos ouvidos de Aracéli, que abriu os olhos e tentou focá-los no menino. O sol estava muito forte, e os dois haviam-se deitado embaixo de uma árvore para fugir do calor.
- Eles morreram.
- Que pena. Não queria que meus pais morressem.
- Eles não vão morrer.
- Você é índia?
- Sou meio índia. Minha mãe era índia, mas meu pai era português.
- O que é português?
- É quem nasce em Portugal.
- Você sabe falar a língua dos índios?
- Um pouco. O meu nome, por exemplo, significa altar do céu. Não é bonito?
- É lindo. E o meu, o que quer dizer?
- Não sei. Você não tem nome de índio.
- A sua mãe morava numa tribo?
- Morava. Padre Gastão me contou que ela foi capturada pelos bandeirantes, e meu pai a comprou, porque gostou dela.
- Não entendi. O que são bandeirantes?
Aracéli passou a mão sobre os cabelos de Teodoro e perguntou sorrindo:
- Não quer nadar?
- Quero!
Os dois estavam sozinhos perto de um riacho ao qual sempre iam e onde costumavam tirar as roupas para nadar. O que diria Esmeraldina se soubesse daquela loucura? Na certa mandaria a menina embora, horrorizada com a sua falta de pudor e o seu descaramento. Para Aracéli, não havia mal algum naquilo, talvez porque o seu sangue índio não guardasse registros de censura, e ela se deliciava sentindo a água bater em seu corpo nu.
Embora Teodoro nunca houvesse tomado um banho de rio na sua vida, adorou a experiência ao lado de Aracéli. Os dois tiravam toda a roupa e se atiravam no riacho, espargindo água por todo lado. Depois, deitavam-se ao sol para se secar, vestiam-se e voltavam para casa.
O sol já ia se pondo quando Aracéli decidiu que era hora de voltar. Não queria que Teodoro se atrasasse para o jantar, ou dona Esmeraldina reclamaria. Aproximava-se de casa quando Licínio a avistou, e ela nem percebeu que ele, da janela, acompanhava todos os seus passos, passando a língua nos lábios, consumido pelo desejo. Quando ela se aproximou ainda mais, ele saiu para a varanda.
- Aracéli - chamou, assim que ela cruzou o seu caminho.
- Pois não, senhor.
- Onde vocês estavam? Seus cabelos estão molhados.
Ele segurou a ponta dos cabelos ainda úmidos de Aracéli, esfregando-os entre os dedos como se experimentasse uma peça da mais fina seda.
- Estávamos nadando - respondeu ela, com naturalidade.
- Nadando? Onde?
- No riacho lá embaixo.
Ele ficou observando-a, pensativo, até que tornou:
- Mas suas roupas estão secas.
- Isso é porque a gente nada pelado - falou Teodoro, de forma inocente.
O sentimento de Licínio deveria ser de horror, no entanto, seu coração deu um salto, e o desejo ardeu numa espécie de febre maldita, resultado da imagem que sua imaginação construiu das gotas douradas escorrendo pelo corpo úmido e fresco de Aracéli.
- Pelados? - foi só o que conseguiu balbuciar.
- O senhor vê algum problema nisso? - redarguiu ela, notando o ar de espanto dele.
- Você costuma fazer isso sempre?
Impulsionado pela paixão ardente, Licínio agora falava e agia com mais desenvoltura, imaginando a facilidade que aquilo poderia representar para a realização de seu intento.
- Padre Gastão às vezes ralha comigo, mas nunca me proibiu.
- Nunca a proibiu?
- Ele diz que é o meu lado índio que gosta de liberdade.
- Entendo... Bem, Aracéli, não sou eu que vou censurar a sua liberdade índia. E acho que é bom para Teodoro experimentar um pouco dessa liberdade também. Contudo, advirto-a para que não deixe Esmeraldina saber. Ela não compreenderia e poderia proibi-los de voltar ao riacho. Ou, pior, poderia mesmo mandá-la embora.
- Não quero que Aracéli vá embora - protestou Teodoro com veemência.
- Então não conte nada a sua mãe.
- Não vou contar.
- Desculpe-me, senhor Licínio, mas padre Gastão me ensinou a não mentir, e não me agrada esconder a verdade de sua esposa. Se ela não aprova o que faço, não farei mais.
- De jeito nenhum! Por que vai roubar do menino esses momentos de inocente prazer?
- Porque o senhor disse que sua esposa não gosta.
- Ela não compreende. Foi criada por padrões rígidos de moral e desconhece a liberdade dos índios - ele frisou bem a palavra liberdade, mas Aracéli não conseguiu captar-lhe o sentido. - E você não precisa mentir. Basta lhe ocultar.
- Não sei. Padre Gastão não gostaria.
- Padre Gastão não está aqui e não manda na minha casa. E eu, como seu patrão, quero que você ensine meu filho a nadar. Não é nada de mais. Existe apenas uma pequena divergência entre mim e minha mulher no modo como criamos Teodoro. E eu sou o homem da casa, sou eu quem decide.
Ela o fitou em dúvida, no fundo ciente de que o que Licínio pedia não era o mais correto. Contudo, não queria contrariá-lo e não pretendia desagradar Esmeraldina porque, àquela altura, não poderia mais prescindir da companhia de Teodoro.
- Não vamos dizer nada à mamãe, não é, Aracéli? - suplicou o menino. - Por favor, diga que não vamos.
- Não, não vamos - concordou ela, embora não muito satisfeita.
- E também não vão parar de nadar no rio, não é? - questionou Licínio.
- Não vamos, não. Vamos, Aracéli? - insistiu Teodoro. - Também não.
- Viu, papai? Não precisa se preocupar com mamãe.
- Não, não preciso - concordou ele, olhando bem dentro dos olhos negros da moça e imaginando até que ponto ela seria inocente e não perceberia o que ele realmente desejava dela.
Naquele momento, algo despontou em Aracéli. Não era apenas a dúvida, mas uma desconfiança das palavras de Licínio. Ela não sabia ainda identificar o desejo que ele sentia por ela e nem imaginava o que ele poderia estar tramando. Sua intuição apenas lhe dizia que algo não estava certo na conduta do patrão. Todavia, pensar em afastar-se de Teodoro era muito doloroso. Aracéli não lembrava de ter sido tão feliz em toda a sua vida. Adorava aquele menino e não pretendia separar-se dele.
Por isso, silenciou e, naquele domingo, quando voltou para casa e padre Gastão lhe perguntou se tudo estava bem, ela disse que sim. Não queria mentir, mas o fato era que não saberia o que lhe dizer. Licínio não lhe fizera nada, nem sequer uma ameaça, e ela desconhecia o quão devastador o desejo de um homem apaixonado poderia ser.
- Dona Esmeraldina pediu-me para ir inaugurar a pequena capela que mandou construir atrás de sua casa - disse Gastão, atribuindo ao cansaço o mutismo de Aracéli. - Você sabia que ela estava construindo uma capela?
- Sabia.
- Por sua causa, acho que acabaram se apegando a mim. Minha paróquia não é a mais próxima da casa deles, nem a mais rica.
- Talvez eles gostem do senhor.
- Deve ser isso - ele se sentou ao lado dela para jantar e prosseguiu: - E como estão indo as coisas por lá?
- Muito bem. Teodoro é um menino adorável.
- Você gostou mesmo dele, não foi?
- Muito.
Embora Aracéli nada dissesse sobre o banho de rio, Gastão, em sintonia com os seus pensamentos, captou-lhes o sentido e, sem saber, foi orientando:
- Você deve tomar cuidado com o fato de ser índia. Muitas coisas que você faz aqui não são permitidas em uma casa como a do senhor Licínio.
- Como assim? - tornou ela, espantada.
- Você sabe que nunca lhe proibi os costumes de seu povo. Você tem certas liberdades que ninguém jamais permitiria aos filhos. Eu compreendo isso, porque, inclusive, acho injusto o que fizeram a sua gente. Você deveria estar lá, junto a sua tribo.
- A minha tribo não existe mais.
- Infelizmente. O seu pai foi um homem muito bom para a sua mãe e a amou de verdade. Viveu com ela muitos anos antes de você nascer e ensinou-lhe a nossa língua. E ela queria que você fosse criada como os de seu povo. Depois que ela morreu, não pude devolver você aos seus. Tive medo de que eles não a aceitassem por causa do seu sangue branco. Desculpa... A verdade mesmo é que não pude mais ficar sem você. Quem é que segura uma criança nos braços e depois consegue se separar dela?
- Por que está me contando essas coisas?
- Não sei - respondeu ele, com sinceridade. - De repente, senti um aperto no coração, um medo infinito de perder você.
- Não diga isso, padre Gastão. Eu só vou lá para trabalhar. Minha casa é aqui.
- Não é isso que me preocupa. Se você quiser se mudar para lá para ser feliz, eu não me oponho. Não sei... sinto um perigo no ar que não consigo definir. Ou talvez saiba, mas não queira acreditar.
- Assim o senhor me assusta.
- Não quero assustá-la, contudo, talvez seja melhor que você volte para casa. Dona Esmeraldina pode arranjar outra pessoa.
- Não posso fazer isso.
- É para o seu bem, criança. Você já se divertiu bastante por lá.
- Não se trata de divertimento. A verdade é que me afeiçoei ao menino.
- Compreendo, mas ele tem mãe. E você pode arrumar um trabalho junto aos órfãos se gosta de cuidar de crianças.
- O senhor não está entendendo, padre. Eu também segurei nos braços uma criança. E agora é difícil, para mim, separar-me dela.
- Está falando sério? Você gosta tanto assim desse menino?
- Gosto. E sinto que ele não só gosta, mas precisa de mim. Não posso deixá-lo agora.
Padre Gastão suspirou profundamente e afagou a cabeça de Aracéli, sentindo uma ternura sem igual por aquela menina a quem amava como filha. Sabia, contudo, o que era afeiçoar-se a uma criança e compreendia por que ela não podia afastar-se de Teodoro.
- Muito bem, então - aquiesceu. - Mas tome cuidado, por favor. Não faça nada que não seja comum entre os brancos. Pelo amor de Deus, Aracéli!
- Não se preocupe, padre. Sei me comportar direitinho ela se levantou e deu-lhe um abraço apertado, sussurrando em seu ouvido: - Amo-o muito, meu pai.
Emocionado, Gastão segurou as lágrimas nos olhos. Não queria chorar na frente dela para não demonstrar excessiva preocupação. Agora, só lhe restava orar para que tudo não passasse de um engano seu, e Aracéli não estivesse exposta a nenhum perigo.

CAPÍTULO 12

Assim que Esmeraldina entrou no quarto, foi surpreendida pela impetuosidade de Licínio, que a tomou nos braços e beijou-a longamente, vendo em seu rosto as feições morenas de Aracéli. Durante os primeiros segundos, ela se deixou beijar e depois afastou-se dele com um empurrão sutil, apertando a gola do robe para que ele não vislumbrasse o seu corpo.
- O que deu em você? - indagou. - Não pode esperar?
- Esperar pelo quê? - rebateu ele, mal conseguindo conter a febre que o dominava.
- Teodoro acabou de dormir e está sozinho. Tenho que prestar atenção a qualquer ruído em seu quarto.
- Por que não coloca uma escrava com ele, só por esta noite?
- Agora que ele se acostumou com Aracéli, não quer ninguém mais dormindo com ele. Isso é um problema.
- Como assim?
- Esse menino está muito apegado àquela índia. Quase em se importa mais comigo.
- Ele se importa tanto quanto você se importa com ele.
- Mas que infâmia! - zangou-se ela. - Tenho meus compromissos, mas você não pode negar que sou boa mãe.
- Você vive cercada de mercadores e mascates. Não se cansa de comprar coisas que nem usa?
- Ora essa, não foi você quem disse que nos tornaríamos cada vez mais ricos? Então, o que faço é apenas gastar para ostentar a nossa fortuna.
- Então não reclame que o menino não se importa com você.
Antes que Esmeraldina respondesse, ele a puxou novamente, mas ela se esquivou. Ainda não tinha dado por encerrada a discussão.
- Você não acha que Teodoro está muito apegado a Aracéli?
- De novo com isso? Por favor, Dina, deixe Aracéli para lá. Venha, preciso de você.
Sem dar importância aos apelos do marido, Esmeraldina continuava a falar:
- Ele realmente está muito apegado a Aracéli. Quando fui colocá-lo para dormir, estava chorando, dizendo que sentia saudades dela.
- Ele é só uma criança, e ela satisfaz todas as suas vontades.
- Eles passam tempo demais juntos. Talvez seja melhor mudarmos um pouco as coisas.
- Mudarmos como?
- A Marocas tem uma criada francesa. Você precisa ver só. Um luxo! Imagine o nosso filho aprendendo a falar francês e desfilando pela cidade no colo de uma lourinha com sotaque! Muito mais fino do que a cor de jambo e os vestidos sem graça de Aracéli. E até o nome da moça é mais gracioso: Marie. Elegante, não acha?
- Você não está pensando em mandar Aracéli embora, está?
- Quem sabe? Marocas me disse que pode tentar achar uma outra francesa se eu quiser. Acho que seria muito mais apropriado do que aquela caboclinha.
- Você está inventando coisas. Pois não tínhamos concordado que a índia daria uma boa ama-seca?
- Isso foi antes de eu conhecer a francesinha.
- Nada disso! Nem pense em trocar Aracéli por uma francesa. Você não está pensando no bem-estar de nosso filho. Teodoro morre se ficar sem Aracéli.
- Ele é só um menino. Com o tempo, esquece.
- Não, Dina, de jeito nenhum. E como é que fica a minha cara diante do padre, depois de tudo o que fiz para trazer Aracéli para cá?
- Desde quando você se importa com o padre?
- Você não mandou construir a capela? E não o chamou para abençoá-la? Pois então! Se o dispensarmos agora, ficaremos mal perante a sociedade.
- Quem foi que falou em dispensá-lo? Inaugurar a capela não tem nada a ver com Aracéli. E, se quer mesmo saber, acho até que ele vai gostar que ela volte para casa.
- Escute aqui, Esmeraldina! - esbravejou ele, mas de tal forma alterado que ela se assustou e se encolheu. - Eu a proíbo de despedir Aracéli. Teodoro gosta dela, e não vou permitir que você o magoe. Pelo bem do nosso filho, ela fica.
Estava encerrada a discussão. Licínio ficou tão indignado e enfurecido que até perdeu o desejo de fazer sexo com a mulher. Na verdade, queria usá-la para saciar a fome que sentia de Aracéli, mas ela o deixara realmente aborrecido. Ele, que fizera de tudo para trazer Aracéli para junto de si, não poderia permitir que a mulher, por um capricho fútil, a substituísse por uma francesa insossa e idiota.
Quanto mais pensava em Aracéli, mais Licínio enlouquecia. Fazia já alguns meses que ela estava trabalhando em sua casa e, até então, ele não se atrevera a procurá-la. Descobrir que ela costumava nadar nua no riacho o deixara deveras transtornado.
Por que lhe contara aquela particularidade? Talvez estivesse se insinuando e tentando provocá-lo. Era no que ele queria acreditar.
Na segunda-feira, ela chegou cedo e foi ao encontro de Teodoro, que se atirou em seus braços tão logo a avistou. Pelo canto do olho, Esmeraldina a observava com certo desdém, sem perceber a insânia no olhar do marido. A partir de então, Licínio seguia Aracéli por todos os lados e procurava sempre estar por perto nos lugares e momentos em que ela passava. Só não se atrevia a descer até o riacho, com medo de sua própria reação, de não conseguir se conter e dominá-la na presença do filho.
Após o jantar daquela noite, Esmeraldina esperou até que Aracéli retirasse Teodoro da mesa e comentou com o marido:
- Hoje cedo chegou uma carta de Salvador. Minha irmã teve seu quinto bebê.
- Que ótimo - disse ele, sem nenhuma emoção.
- É um menino. Finalmente, depois de quatro filhas.
- Bom para o seu cunhado.
- Estive pensando em visitá-la. Faz tempo que não vou a salvador e poderia aproveitar para matar as saudades de papai e mamãe também.
Licínio olhou-a estupefato, mal contendo a súbita euforia de ver naquela viagem a oportunidade que tanto queria para estar a sós com Aracéli.
- Se você quiser ir, por mim, está tudo bem - anunciou, com voz contida.
- Sabia que você compreenderia.
- Quando é que pretende partir?
- Creio que em duas semanas estará bom. É o tempo de inaugurar a capela e preparar um novo enxoval para mim e Teodoro. - O quê? - surpreendeu-se ele. - Pretende levar Teodoro?
- Ele precisa ver os avós. Não quero que se esqueça dos meus pais.
- Você só pode estar brincando, Dina. Teodoro não pode ir... e padre Gastão não vai permitir que você leve Aracéli com ele.
- Quem falou em levar Aracéli? Vou convidar Marocas para ir comigo, e talvez ela me ceda sua criada francesa.
Aquela notícia era inesperada. Sem Teodoro ali, não haveria motivo para que Aracéli permanecesse. Não poderia permitir.
- De jeito nenhum! - protestou ele, dando um salto da cadeira. - Teodoro não sai daqui.
- Mas o que é isso agora, Licínio?
- Não quero ficar longe do meu filho - exasperou-se ele. -Se quer ir, vá sozinha, eu não me oponho. Mas Teodoro fica.
- Você não está sendo sensato. Teodoro é criança e deve acompanhar a mãe.
- Deixá-lo comigo só vai beneficiar você, que estará mais livre para ir aos bailes de que tanto gosta.
- Você está sendo injusto! - objetou ela com veemência. - Resolveu agora que eu não dou importância ao meu filho, mas isso não é verdade. Sempre que posso, tenho-o junto a mim.
- Está certo, Dina, não vamos brigar - reconsiderou ele, com medo de despertar suspeitas na mulher. - Mas eu lhe peço que deixe Teodoro comigo. Nem bem ele se recuperou da primeira viagem, já vai ter que fazer uma segunda? E pense um pouco em mim. Vou ficar meses sem ver a minha mulher. Terei também que me separar de meu filho?
- Será por pouco tempo.
- Para mim, será como a eternidade. Você vai para Salvador se divertir com a sua família. E eu? Quem estará aqui para me confortar quando a saudade for insuportável?
Ela permaneceu algum tempo em silêncio, encarando-o e refletindo sobre o que ele lhe dissera. Ele fingia tão bem que ela não conseguiu perceber a dissimulação em suas palavras e acabou sentindo pena dele, de sua solidão naqueles muitos meses. Aracéli nem lhe passou pela cabeça. Licínio era esperto e nunca a deixara perceber a paixão que rugia em seu peito tal qual uma besta insana prestes a emergir.
- Muito bem - suspirou Esmeraldina. -Talvez você tenha razão. A viagem é mesmo muito cansativa para uma criança de cinco anos, e não quero que você se sinta tão só. Irei sozinha.
Licínio mal cabia em si de contentamento. Puxou a mulher e deu-lhe um beijo demorado e ardoroso, já imaginando como seria o gosto dos lábios carnudos de Aracéli colados ao seu. Pensar na cabocla só fez aumentar o seu desejo, e ele amou Esmeraldina com a paixão que alimentava pela outra.
A inauguração da capela aconteceu no domingo e, duas semanas depois, Esmeraldina partiu. Durante os dias que precederam a viagem, Licínio agiu como um marido dedicado, cobrindo a mulher de carinhos e atenções, satisfazendo seus desejos e mimando-a de todos os modos. Pouco olhava para Aracéli e só falava com ela o necessário para dar ordens relacionadas ao filho.
Quando a carruagem atravessou o portão e ganhou a estrada, Licínio encarou Aracéli pela primeira vez naquelas duas semanas. Ela segurava Teodoro no colo e erguia a mãozinha do menino em um gesto de adeus.
- Não fique triste, Teozinho - falou com ternura. - Sua mãe volta logo.
Ao colocar a criança no chão, Aracéli notou que Licínio a fitava insistentemente. Um rubor lhe subiu pelo rosto, contudo, antes que ele pudesse dizer alguma coisa, um burrico adentrou o pátio do casarão, e Licínio percebeu insatisfeito que se tratava de padre Gastão.
- O senhor por aqui, padre? - perguntou, disfarçando a contrariedade.
- Vim para me despedir e quase não chego a tempo. Cruzei com a carruagem agorinha mesmo e acenei para dona Esmeraldina.
- Que bom - retrucou Licínio, com ar de mofa. - E agora, padre, se me der licença, preciso ver como estão as coisas no garimpo.
Licínio saiu furioso. Estava há tanto tempo esperando por Aracéli que, por um momento, deixou-se levar pela ansiedade e quase armou um bote precipitado. Não fosse a chegada daquele padre intrometido, teria dado um jeito de se desembaraçar de Teodoro e levar Aracéli para seu quarto.
No pátio, Aracéli abraçou padre Gastão, enquanto Teodoro se distraía seguindo o rastro de algumas formigas.
- É sempre bom vê-lo, padre.
- Quero falar com você, Aracéli. Estive pensando muito e não acho que seja prudente você ficar sozinha aqui com o senhor Licínio.
- Mas, padre, não posso deixar Teodoro sozinho. Não há ninguém para cuidar dele.
- O senhor Licínio tem muitas escravas. Alguma há de servir. Mas o menino já se acostumou comigo! E foi por isso que dona Esmeraldina não o levou com ela.
- Você não entende... - padre Gastão olhou ao redor e puxou Aracéli pela mão, afastando-se com ela da casa. - Licínio não é confiável. E se ele lhe fizer alguma coisa?
Aracéli compreendeu o porquê do temor de Gastão e ficou alguns minutos pensativa. Quando falou, foi com cautela, escolhendo bem as palavras:
- O senhor está imaginando coisas. O senhor Licínio me trata bem porque eu cuido do filho dele. Só isso.
- Quisera eu ter a sua certeza, mas meu coração não se engana.
- Não precisa se preocupar. Acho que o senhor Licínio não vai me fazer nada e, além do mais, sei me cuidar. Estou sempre com Teodoro, e ele não seria louco de me atacar na frente do menino... seria?
- Não digo que ele vá atacá-la. Mas um homem vivido como ele tem lá as suas manhas. Homens feito Licínio sempre conseguem o que querem.
- Não a mim! Não sou uma coisa que ele possa obter nem pretendo me deixar seduzir. E, se quer saber, acho que o senhor exagera. Não creio que o senhor Licínio tenha algum interesse em mim. Ele é um homem rico, tem uma esposa linda e elegante, por que haveria de querer uma cabocla bronca feito eu?
Não adiantava discutir. Os jovens sempre têm a mania de achar que os mais velhos é que não sabem das coisas, e Aracéli não era diferente. Padre Gastão não conseguiria convencê-la a sair daquela casa e deixar o menino.
- Que Deus a proteja, Aracéli - desabafou ele, quase em lágrimas. - E que livre do seu caminho todo mal que você não precise encontrar.
Depois disso, ele se foi, o coração confrangido pela impotência em proteger Aracéli. Queria desesperadamente livrá-la daquele perigo, mas não via meios. Só lhe restava orar.

CAPÍTULO 13

Naquela noite, Aracéli sonhou. Ela estava caminhando por uma espécie de ravina e tinha o corpo todo pintado de vermelho. A princípio, achou que era tinta indígena, mas logo percebeu que se enganara. Passou a mão pelo corpo e sentiu a quentura do sangue. Ouviu uma gargalhada sonora e olhou espantada na direção de onde ela partia. Parado mais adiante, um índio segurava um coração palpitante e executava uma dança demoníaca, rindo às alturas, enquanto um homem branco chorava e apertava o peito, tentando conter o fluxo de sangue que afluía de um corte profundo na altura do abdome.
Acordou assustada e levantou-se de um salto, olhando para baixo como se esperasse ver sangue na umidade que fazia grudar a camisola. Enganara-se. A roupa continuava branca como sempre, sem nenhum vestígio de sangue, colada ao corpo pelo efeito do suor. Na cama ao lado, Teodoro dormia tranquilamente, e ela escancarou a janela, deixando que o ar fresco da noite a envolvesse e lhe trouxesse alívio. Tornou a deitar-se, sentindo uma espécie de presença maligna ao seu lado, e orou. Em poucos instantes, a sensação passou e ela adormeceu novamente, dessa vez, sem sonhar. O espírito que estivera junto dela havia desaparecido.
No dia seguinte, levou Teodoro para brincar do lado de fora, torcendo para não encontrar Licínio, mas ele não apareceu. No outro dia, também não. No terceiro, encontraram-se ao jantar. Ele sentou Teodoro no colo e ficou brincando com o menino, até que a comida foi servida, quando entregou o filho novamente a Aracéli. Ao passar a criança para seu colo, seus dedos acidentalmente se tocaram, e Licínio retirou os seus, apressado, abaixando os olhos e evitando encará-la mais do que o necessário.
Por dentro, ele quase explodia. Só ele sabia o esforço que precisava fazer para não arrancar a roupa de Aracéli, acariciá-la, beijá-la e amá-la com ardor e fúria. E quando sentira a pele macia dela próxima de sua mão, teve que retirá-la às pressas, como se os dedos dela estivessem em brasa, queimando-lhe a pele com a força ígnea do desejo. Não poderia se descontrolar. Não na frente do filho.
E ainda havia o padre. Licínio tinha certeza de que Gastão conhecia as suas intenções. Questionava-se se Aracéli também havia percebido alguma coisa e, em caso positivo, por que não ia embora. Se permanecia, não seria porque ela também ansiava estar com ele?
Era preciso disfarçar. Não queria arruinar o seu casamento nem que padre Gastão fizesse algum tipo de escândalo porque ele resolvera se divertir com sua indiazinha de estimação. Por isso, só por isso, Licínio procurava não demonstrar o vulcão prestes a explodir dentro de seu corpo. Tinha que se conter e aguardar o momento mais oportuno.
O sol, naqueles dias, reluzia com um calor excessivo, marcando de forma abrasiva os longos dias de verão. Acostumada a banhar-se nos rios, Aracéli saía logo cedo com Teodoro para nadar no riacho. Da janela de seu quarto, Licínio a acompanhava com os olhos, louco de vontade de segui-la. Certa manhã, não resistiu mais. Vestiu-se apressadamente e saiu sem que ninguém percebesse. Seguiu-os a uma distância segura e ocultou-se atrás de uns arbustos, sem fazer qualquer ruído.
De forma inocente, Aracéli e Teodoro se despiram e se atiraram no riacho, cuja água cristalina e refrescante logo os cingiu. Aracéli dava mergulhos e emergia perto de Teodoro, levantando o corpo dele e atirando-o na água. O menino soltava gargalhadas de prazer e se apertava ao pescoço de Aracéli, que o envolvia, e afundavam juntos. A visão do corpo nu de Aracéli foi causando uma espécie de febre em Licínio, que chegou a invejar o filho por experimentar o contato dos seios morenos da índia. Licínio sentia-se no lugar do menino, abraçando-a e apertando-a, alisando todo o seu corpo e beijando-a em suas partes mais íntimas. Quanto mais pensava, mais se excitava, e estava certo de que não conseguiria mais conter o desejo ardente. Precisava dar um jeito de afastar Teodoro de Aracéli.
Enquanto os dois se deliciavam de forma inocente na água, ele retornou para casa e mandou chamar Zenaide, escrava bajuladora, que tudo fazia para cair nas boas graças de seus senhores.
- Vá buscar Teodoro na beira do rio - ordenou. - Traga-o imediatamente, sem nem mesmo vesti-lo nem esperar por Aracéli. Leve-o para o quarto e fique com ele lá. E não saia para nada, ouviu bem? Ou vai se ver comigo.
- Sim, sinhô - foi a resposta da escrava.
Ela saiu, e Licínio foi atrás dela, pisando de leve para que ela não o notasse. Seguiu-a até a beira do riacho e retomou seu lugar atrás dos arbustos. Ao ver os dois nus dentro da água, Zenaide estacou boquiaberta e pôs as mãos nas cadeiras, falando com autoridade:
- Sinhô Licínio mandou buscar o menino. Quer que leve ele agora.
Aracéli olhou para Teodoro e fez um gesto para que ele saísse de dentro do rio. A escrava, mais que depressa, agarrou o menino pelo punho e saiu arrastando-o, sem nem mesmo dar-lhe chance de se vestir. Teodoro começou a gritar, e Aracéli saiu da água, o corpo dourado reluzindo ao sol.
- Espere um minuto - protestou ela. - Deixe-nos ao menos nos vestir.
- Sinhô Licínio mandou levar o menino assim mesmo, pelado - comunicou Zenaide, escandalizada com a nudez de Aracéli. – E você deveria se envergonhar de andar por aí desse jeito.
Sem ligar para os protestos de Teodoro e de Aracéli, a escrava pegou-o no colo e foi saindo com ele, indignada com a atitude da índia.
- Você é que deveria se envergonhar de agir dessa maneira – gritou Aracéli, revoltada. - Fala como os brancos, mas se esquece de que é negra. Não tem respeito pelo seu povo?
Zenaide se enfureceu e parou abruptamente, virando-se para Aracéli com o ódio estampado no olhar.
- Isso não é da sua conta! Eu nasci na casa de sinhá Esmeraldina, recebi educação civilizada. E ela não me ensinou a andar pelada por aí, como uma desavergonhada!
A vontade de Licínio era esganar aquela negra. Ele não a mandara questionar as atitudes de Aracéli nem lhe dar lições de moral. Queria apenas que ela tirasse o filho dali e deixasse o caminho livre para ele se aproximar.
- Ponha Teodoro no chão - falou Aracéli com firmeza. -Ele vai para casa comigo.
- Não vai, não! - objetou ela com rispidez, temendo perder a oportunidade de provar ao seu senhor que era boa escrava e sabia obedecer ordens. - Sinhô Licínio mandou que eu levasse ele, e é isso que vou fazer.
Teodoro se debatia no colo de Zenaide, que saiu com ele a passos apressados, deixando Aracéli, também furiosa, parada na beira do rio com o vestido na mão. A escrava se afastou correndo, e ela começou a se vestir às pressas, tencionando alcançá-la antes que chegasse à casa.
Logo que Zenaide passou, Licínio saiu de seu esconderijo, certificando-se de que ela não podia mais vê-lo nem ouvi-lo. Com a boca seca, aproximou-se de Aracéli, ocupada em desdobrar o vestido que tivera que despir porque, na pressa, vestira-o pelo lado do avesso. A sombra de Licínio chegou mais perto, e ela ergueu os olhos, assustada. Instintivamente, encobriu o corpo com a roupa e exclamou:
- Senhor Licínio! Teodoro... saiu agora mesmo com Zenaide. O senhor não os viu?
Ele não respondeu. Chegou bem perto dela e segurou-lhe as mãos, baixando-as de seu corpo para exibir-lhe nudez. Aracéli fez força para não se descobrir, mas ele conseguiu dominá-la facilmente e retirou o vestido das mãos dela, olhando-a com uma lascívia assustadora.
- Você é linda - balbuciou ele. - Linda...
Ele aproximou-se ainda mais, a ponto de Aracéli sentir em seu rosto a respiração ofegante dele.
- Por favor, me solte- implorou ela. - Está me machucando.
Ele não soltava. Em vez disso, puxou-a para si e comprimiu os seus lábios, forçando-a a corresponder-lhe o beijo. Aracéli tentou se soltar, mas ele dobrou os braços dela para trás e estreitou-lhe o corpo bem de encontro ao seu. Ela estava completamente nua, e ele a jogou com facilidade na areia, deitando-se por cima dela.
Fique quieta - ordenou ele. - Não quero machucá-la.
Ao mesmo tempo em que era firme, Licínio agia com cuidado, evitando feri-la. Aracéli tentou resistir, lutando para escapar, excitando-o ainda mais. Sentir o corpo dela se debatendo sob o seu foi aumentando a sua volúpia, até que não conseguiu mais se conter. Ouviu o grito lancinante de Aracéli quando a penetrou e tapou a sua boca, para que ninguém mais a ouvisse. O corpo dela acompanhava o vaivém do de Licínio, até que ela cessou de se debater e apenas chorou de mansinho.
Quando ele terminou, os olhos de Aracéli estavam secos e seu corpo, imóvel. Por um momento, Licínio pensou que a tivesse matado, mas o seu peito arfante mostrou que ela estava viva, e bem viva. Licínio saiu de cima dela e abotoou as calças, enquanto ela permanecia deitada, a virgindade perdida manchando de vermelho a areia do riacho. Não fosse isso, nada denunciaria o que acabara de acontecer. Ele fora cuidadoso e não deixara manchas em sua pele, que permanecia viçosa como sempre.
- Levante-se - falou ele por fim. - Não aconteceu nada de mais.
As palavras dele a encheram de indignação, e Aracéli, finalmente, saiu de seu torpor:
- Por que fez isso comigo, senhor Licínio, por quê?
- Do que está se queixando? Não foi você quem disse que foi criada com toda a liberdade dos índios?
Ela abaixou os olhos, magoada, e chorou novamente, dobrando os joelhos para ocultar os seios desnudos.
- Padre Gastão tentou me alertar, mas eu não quis escutá-lo. O senhor é um monstro.
Por um instante, ele sentiu pena dela e apanhou a sua roupa.
- Não sou um monstro, Aracéli - disse ele, estendendo-lhe o vestido. - O monstro estava dentro de mim, e foi você quem o ajudou a sair.
- Cada um deve domar seus próprios monstros. Não é justo usar os outros para redimir o que lhe pertence.
- Você não está entendendo. Eu queria você. Só você.
- Mas eu não queria o senhor.
- Não queria? Ora, não foi tão ruim assim, foi? - ele se abaixou e afagou o rosto dela. - Fui gentil e não a machuquei. Não vá me dizer que não gostou nem um pouquinho.
Ela não respondeu e afastou a mão dele, levantando-se para vestir-se, vagarosamente. Enquanto se vestia, Licínio foi sentindo o desejo inflando o seu corpo novamente, mas não fez nada.
- Não precisa responder - continuou ele. - Sei que gostou.
Ela o olhou com desprezo e revidou com azedume:
- Iluda-se o quanto quiser. Pouco me importa. A partir de hoje, não fico mais aqui. Vou apanhar minhas coisas e voltar para casa.
- Não vai, não - objetou ele com firmeza. Você tem responsabilidades aqui.
- Sinto muito, senhor Licínio. Amo muito Teodoro, mas não posso mais ficar. O senhor me dá nojo.
O comentário o desagradou, e ele se deixou insuflar pelo orgulho, sentindo necessidade de demonstrar-lhe a sua superioridade.
Nem pense em me deixar. Você fica enquanto eu assim determinar. Do contrário, algo muito ruim pode acontecer.
- Está me ameaçando? Pois não tenho medo do senhor, ouviu?
- Sei que não. Você é jovem, forte e corajosa. Mas padre Gastão... bem, ele não é mais nenhum jovenzinho. Vive para cima e para baixo montado naquele burrico, e, você sabe, acidentes acontecem...
- O senhor não seria capaz! - horrorizou-se ela.
Não? Pois, então, experimente deixar-me para ver. Depois não diga que não avisei.
- Cafajeste! - esbravejou ela, partindo para cima dele e tentando arranhá-lo no rosto.
Licínio riu alto e segurou-a pelos punhos, ao mesmo tempo em que dizia:
- Você é mesmo uma gata selvagem, não é? Não faz mal, gosto disso. Mas é bom que você não confunda as coisas - ele a fuzilou com um olhar de crueldade. - Serei tolerante com a sua selvageria, desde que você me obedeça e faça direitinho o que eu mandar. Ou acabo com você e o seu paizinho de saias. Ouviu bem?
As lágrimas que escorriam pelo rosto de Aracéli eram de revolta, não de submissão. Licínio, contudo, não viu a diferença nem se importaria com ela.
- Ouviu bem? - repetiu ele em tom autoritário e aterrador, ao qual ela assentiu com ódio. - Ótimo. E agora deixe-me explicar-lhe como você deve proceder. Quero que todas as noites, depois que Teodoro dormir, você desça até aqui com um cobertor limpo e perfumado. Espere-me. Assim que Esmeraldina pegar no sono, virei atrás de você. Por enquanto, como minha mulher está viajando, virei fogo em seguida. E você será boazinha. Muito boazinha. Fará tudo o que eu mandar, sem se queixar, nem chorar, nem gemer. Compreendeu?
Ela engoliu em seco e respondeu entre soluços de ira:
- O senhor não pode...
- Posso. Posso o que quiser. De hoje em diante, serei o seu dono.
- Ninguém é meu dono! - objetou ela, a raiva misturando-se à indignação. - Sou livre, não sou escrava.
- A sua liberdade é essa que agora lhe dou - arrematou ele com frieza, soltando os pulsos dela e empurrando-a levemente para longe. - E posso retomá-la a hora em que desejar.
Ele segurou-a outra vez pelos punhos e puxou-a para si, beijando-a na boca. Aracéli lutou novamente, e Licínio a afastou dele, olhando-a com ar entre divertido e intimidador, sem dizer nada. Naquele olhar, Aracéli reconheceu o peso da ameaça e temeu, sobretudo, pela vida de padre Gastão. Licínio falava sério, e ela sabia bem do que ele era capaz. Mesmo a contragosto, no emaranhado do desprezo por si mesma, do medo e de um ódio fremente daquele homem, viu-se obrigada a ceder.
Sentindo o tremor de seus braços, Licínio soube que havia vencido. Ela podia morder-se de ódio, no entanto, o medo era maior. Suas ameaças eram bem reais, e ele contava com o amor de Aracéli pelo padre para garantir a obediência dela. Ela agora lhe pertencia.
Com essa certeza, ele a puxou para novo beijo e, dessa vez, ela não resistiu.

CAPÍTULO 14

Veio o domingo, e Aracéli não apareceu em casa de padre Gastão. No outro domingo, também não, e quando chegou o terceiro e Aracéli não veio, Gastão achou que já era hora de verificar o que estava acontecendo. Montado em seu burrico, partiu para a casa de Licínio.
Foi informado de que ela estava na beira do riacho mais abaixo, e ele encaminhou-se para lá. À distância, ouvia a voz de Teodoro, embora não conseguisse escutar o que Aracéli dizia. Mais próximo, identificou as palavras do menino, que a interpelava:
- Por que você não entra, Aracéli? A água está fresca e gostosa.
- Não estou com vontade, Teozinho. Estou bem aqui, tomando conta de você.
- Mas você sempre gostou da água...
Ele parou de falar e encarou o padre, que se acercou de Aracéli. Ela se levantou apressada, julgando tratar-se de Licínio, mas relaxou os músculos e distendeu a face num sorriso verdadeiro, atirando-se nos braços de seu pai.
- Como está a minha menina? - perguntou ele, acariciando-lhe os cabelos.
- Aracéli está esquisita - respondeu Teodoro. - Não quer cais brincar e há dias não entra na água.
- Aconteceu alguma coisa? - retrucou ele, segurando o queixo miúdo de Aracéli.
- Nada, padre. Eu apenas me cansei dessas brincadeiras.
- Está cansada de mim? - era o menino. - Você vai embora?
Aracéli fez que não com a cabeça, e Teodoro saiu da água.
- Venha se vestir - disse ela, estendendo-lhe as roupas. Mas primeiro a gente não se seca?
Teodoro se estirou ao sol, e Aracéli começou a dobrar suas roupas, evitando encarar padre Gastão.
- Aracéli - chamou, e ela voltou o rosto para ele. - Eu a criei desde que nasceu. Conheço-a melhor do que ninguém e sei que alguma coisa está errada. O que é?
- Impressão sua, padre. Estou só um pouco cansada. Tenho trabalhado demais.
- É por isso que não tem ido para casa aos domingos?
- Dona Esmeraldina não está... e Teodoro precisa de mim.
- Você está mentindo. Sei que é difícil fazermos coisas às quais não estamos acostumados e, como você não está acostumada a mentir, não está mentindo direito - ela não disse nada e, quando seus olhos começaram a lacrimejar, voltou o rosto apressada. - Foi o senhor Licínio? Ele lhe fez alguma coisa?
- Não, padre. Ele não me fez nada.
Desvencilhando-se dele, Aracéli foi sentar-se ao lado de Teodoro, que abriu os olhos quando ela passou pela sua frente, barrando a claridade do sol. Padre Gastão aproximou-se também e ficou contemplando-a vestir o menino.
- Já vamos voltar? - indagou a criança.
- Está na hora do almoço, e você sabe que seu pai não gosta que se atrase.
- Padre Gastão vai almoçar com a gente?
- Depende de seu pai.
Depois de vestido, Teodoro deu a mão a Aracéli e a padre Gastão, e os três voltaram para casa em silêncio, quebrado apenas pelas ingênuas observações do menino, que apreciava os pássaros e os insetos. Da janela da sala, Licínio os viu aproximando-se e fez um muxoxo de desagrado. Não queria aquele padre intrometido interpondo-se entre ele e Aracéli. Ainda assim, saiu para cumprimentá-lo, a fim de não levantar suspeitas.
- Muito boa tarde, padre Gastão - saudou ele, estendendo a mão para o outro. - O que o traz ao meu humilde lar?
- Vim ver como Aracéli está passando. Ela não tem ido para casa, e fiquei preocupado.
- Como pode ver, ela está muito bem, cuidando de Teodoro. Não é, meu filho?
- É, sim, papai.
- O nosso trato, contudo, não foi esse - rebateu o padre. - Consenti que Aracéli viesse cuidar do menino com a condição de que fosse para casa aos domingos. Ela ainda é uma criança.
- Ela não é mais criança, padre - rebateu Licínio, com uma estranha entonação que Gastão não conseguiu definir. - Já tem dezesseis anos. Idade bastante para se casar.
- Você vai se casar, Aracéli? - retrucou Teodoro, de forma inocente.
Ela meneou a cabeça e falou com certa ousadia:
- Gostaria de ir para casa hoje, se não se importa, senhor Licínio. Quero estar com padre Gastão.
- Na verdade, importo-me sim - declarou Licínio. - E o padre deve ter coisas mais importantes a fazer do que ficar paparicando você. Não tem missas para rezar hoje?
- Já celebrei as missas matinais, e agora só tem a das dezoito horas.
- Ainda me resta tempo para aproveitar sua companhia - continuou Aracéli. - Sinto muitas saudades de meu pai.
O olhar de Licínio era assustador, ao menos para Aracéli. Ele deu um sorriso irônico, mexendo apenas o canto da boca e, olhando para o burrico do padre, acrescentou em tom mordaz:
- Bela montaria a sua, padre. Mas não é perigosa?
- O quê? - fez Gastão, o pensamento ligado em Aracéli. -Ah! O burrico? Não, é seguro.
- É preciso tomar cuidado com esses animais. Às vezes, são imprevisíveis.
Padre Gastão não compreendeu a referência ao burro, mas Aracéli identificou a ameaça velada.
- Por que o padre não almoça conosco? - tornou Teodoro. Assim, Aracéli fica feliz e não precisa ir embora.
Aracéli deu graças a Deus pela interferência de Teodoro e, para sua surpresa, ouviu a voz grave de Licínio:
- É uma boa ideia, meu filho. Vá, Aracéli, vá avisar na cozinha que temos um convidado para o almoço. E você, hoje, se sentará conosco.
Pouco à vontade, Aracéli sentou-se à mesa para almoçar, aproveitando ao máximo a companhia de padre Gastão. Ele ficou até às três horas, quando teve que partir por causa da missa das seis. Despediu-se de Licínio e de Teodoro, e Aracéli acompanhou-o até o portão.
- Gostaria que ficasse - disse ela, segurando a mão do padre e levando-a ao rosto.
Você pode voltar comigo. Não há nada que a prenda aqui. Ele não tem poder sobre você.
- Não se trata disso - retrucou ela, a voz já embargada pela emoção. - Não quero deixar Teodoro sozinho.
- Tem muita gente nessa casa para que o menino se sinta sozinho.
- Gosto de Teodoro. É por ele que fico.
Não era a verdade integral, mas também não era mentira. Padre Gastão suspirou profundamente e a abraçou com ternura, pousando-lhe demorado beijo na testa. Em seguida, montou em seu burrico e partiu.
À noite, depois que Teodoro dormiu, Aracéli apanhou o cobertor e foi ao encontro de Licínio, que já a aguardava na beira do rio. Ela mal teve tempo de estender a manta, porque Licínio a puxou pelos cabelos e deu-lhe um beijo asfixiante, ao qual ela não pôde fugir.
- O que pensa que está fazendo? - rugiu ele, os olhos chispando de cólera. - Quer pôr tudo a perder?
- Não fiz nada - gemeu ela.
- Você e esse padreco têm algum segredo. O que é? São amantes?
A insinuação causou-lhe tanta indignação que, sem sentir, Aracéli estalou-lhe uma bofetada no rosto, provocando uma fúria em Licínio que ela nunca havia visto. Na mesma hora, ele devolveu o bofetão, mas com tamanha violência que Aracéli rodopiou sobre si mesma se estatelou no chão, a vermelhidão começando a se espalhar pela face morena.
- Nunca mais, enquanto viver torne a fazer uma coisa dessas - esbravejou ele. - Se não quiser experimentar a força do meu punho ou a ponta do meu chicote.
Aracéli estava aturdida demais para falar e permaneceu sentada no chão, engolindo as lágrimas e os soluços. Não daria a Licínio o gostinho de vê-la chorando porque havia apanhado. Ele, porém, parecia não se dar conta de seu drama interior. Com uma brutalidade desconhecida, atirou-se sobre ela e forçou-a ao sexo. Aracéli se submeteu, permitindo que crescesse dentro do peito o ódio que sentia por ele.
Quando ele terminou, puxou-a para si e fez com que ela deitasse a cabeça sobre seu peito.
- Não queria bater-lhe, Aracéli, mas você provocou. Não admito que mulher alguma me bata na face - ela não disse nada.
- E quanto a você e ao padre, admito que exagerei. Peço que me perdoe a insinuação maldosa. Sei que são como pai e filha, mas o caso é que fiquei com ciúmes ao ver vocês se abraçando. Gostaria que você sentisse por mim o mesmo que sente por ele.
As palavras de Licínio causaram imenso espanto em Aracéli, que ergueu a cabeça e o encarou.
- Padre Gastão me conquistou pelo amor. O senhor me domina pelo medo. Como pode pretender que meus sentimentos por ambos sejam iguais?
- Não quero que sinta medo de mim.
- Não tenho medo do senhor. Temo a sua maldade e o que ela pode fazer a meu pai.
- É isso, Aracéli? Acha que sou mau?
- O senhor é mau. E não gosto do senhor.
A menina tinha coragem, o que causou imensa admiração em Licínio. Contudo, ele não podia permitir que Aracéli o tratasse como um igual e revidou com rispidez:
- Você não precisa gostar de mim. Basta me obedecer.
A discussão estava encerrada, porque Licínio se deitou sobre Aracéli novamente. A vontade dela era de empurrá-lo para longe e fugir correndo dali, mas sabia que ele concretizaria suas ameaças, e a vida de padre Gastão correria perigo. Por Teodoro, não temia. Apesar de gostar do menino, tinha certeza de que Licínio amava o filho acima de qualquer coisa e nada faria contra ele.
Por enquanto, sua única opção era submeter-se.

CAPÍTULO 15

Não havia dúvidas na cabeça de Gastão de que algo muito errado estava acontecendo em casa de Licínio. Aracéli estava diferente, mais séria e calada. Ela, que sempre fora uma moça alegre, parecia haver perdido o viço da juventude, e ele estava certo de que Licínio tinha alguma coisa a ver com aquilo. No entanto, não havia nada que pudesse fazer. Tentara convencer Aracéli a voltar para casa, mas ela se recusara, alegando responsabilidades para com Teodoro. No íntimo de Gastão, todavia, ele sabia que aquilo não era verdade.
Só lhe restavam suas orações. Homem de fé, acostumara-se a rezar por tudo, para pedir e agradecer, ou simplesmente para desafogar seu coração. E, todas as noites, orava para que Deus protegesse Aracéli das garras de Licínio.
Com o passar dos dias, Gastão acostumou-se a visitar a menina aos domingos, já que ela não aparecia mais em sua casa. Sempre que a via, ela estava com ar cansado e triste, mas não havia meios de fazê-la contar o que a afligia.
Até que, finalmente, Esmeraldina retornou de Salvador.
- Padre Gastão, que surpresa agradável! - exclamou ela, beijando a mão do clérigo.
- Dona Esmeraldina! - retrucou Gastão, feliz por vê-la de volta. - Quando foi que chegou?
- Ontem à noite. Foi uma viagem terrível, o senhor nem queira saber. Cheguei e logo fui dormir.
- E a família, como está?
- Oh! Muito bem. Meu sobrinho é lindo, e meu cunhado não cabe em si de contentamento.
- Fico satisfeito que esteja tudo bem.
- A propósito, padre, já que está aqui, não se importaria de rezar uma missa? Faz tempo que a capela está fechada, porque Licínio não se incomoda com religião.
- Pois deveria. A religião aproxima o homem de Deus e o ajuda a compreender a vida.
- Quer dizer então que posso contar com o senhor para a missa?
- Lamentavelmente, não vim preparado para a celebração...
- Ah! Isso não é empecilho. Mando um escravo agora mesmo a sua casa buscar o necessário.
- Mas eu preciso estar de volta para a missa das seis!
- Veja bem, padre, não é longe. A cavalo, chega-se rapidamente.
- Está certo, dona Esmeraldina, desde que eu possa levar Aracéli comigo esta tarde.
- Nem sei por que ela ainda está aqui, se o combinado foi que voltaria para casa aos domingos.
- É que Aracéli não quis deixar Teodoro sozinho. Como a senhora estava ausente, ela se dispôs a ficar.
- Bom, isso agora não será mais necessário. Ela pode retomar a rotina.
Ao receber a notícia de que Aracéli voltaria para casa naquela tarde, Licínio quase espumou de raiva. Após o primeiro momento de cólera, a reflexão levou-o a concluir que, no momento, seria o mais aconselhável. Esmeraldina passara três meses fora, e o esperado era que ele cumprisse o seu papel de marido. Não seria prudente que ele fosse ao encontro de Aracéli naquela noite.
A moça recebeu com entusiasmo a notícia de que iria para casa ao menos por uma noite. Sentia saudades de seu lar, da igreja e dos cuidados que tinha com padre Gastão. Sem falar nos passeios que estava acostumada a fazer pelas matas atrás do pátio da igreja.
Logo após a missa, Esmeraldina mandou que uma carruagem levasse padre Gastão e Aracéli para casa. Com o burrico amarrado atrás, eles partiram, e o coração da índia, pela primeira vez naqueles três meses, festejou a alegria e a liberdade.
- Feliz por estar indo para casa? - indagou Gastão, vendo que ela respirava profundamente o ar que entrava pela janela.
- Muito! Queria não ter mais que voltar.
Aracéli dissera aquilo num impulso que o padre não deixou passar despercebido.
- Por que não quer mais voltar? Pensei que gostasse do menino.
- Eu gosto... - balbuciou ela. - Mas é que sinto saudades de casa.
- Você não está sendo bem tratada naquela casa, minha filha. Eu sinto isso.
- Bobagem, padre. Teozinho é um amor de menino.
- Não me refiro à criança. Sei o quanto Teodoro a aprecia. Falo do senhor Licínio e da senhora Esmeraldina.
- Eles são apenas vaidosos - disse ela com cautela. -Mas não me incomodam.
Habilmente, Aracéli desviou a conversa para assuntos mais amenos, e Gastão não insistiu. Se havia algo errado ele iria descobrir em seu tempo certo. No momento, queria aproveitar a companhia da filha para conversarem e lerem juntos, como costumavam fazer.
Naquela noite, Licínio obrigou-se a amar a mulher, pensando que amava Aracéli. Esmeraldina não era velha, mas seu corpo já não guardava mais o frescor da juventude, castigado que fora pela gestação e o parto, ao passo que Aracéli possuía ainda as formas rígidas e macias. Mesmo assim, Licínio fez o que era esperado rapidamente e sem muito entusiasmo.
- Como ficaram as coisas por aqui? - indagou ela depois, enquanto passava a escova no cabelo.
- Muito bem.
- E Teodoro? Ele parece não ter sentido muito a minha falta.
- Isso é porque Aracéli não saiu do lado dele. Ficou o tempo todo aqui, abrindo mão até de voltar para casa aos domingos.
- Padre Gastão parece não ter gostado de tanta dedicação.
- Padre Gastão é ciumento e quer a índia só para ele. - Talvez seja melhor mesmo devolvê-la. Você sabe que faço minhas restrições a Aracéli.
- Você acabou de chegar de uma viagem longa e exaustiva. Não acha melhor deixar isso para depois?
- Tem razão. Não quero me desgastar desnecessariamente.
- Ainda mais depois desta noite - finalizou ele, carregando na doçura da voz e abraçando-a por trás.
Ela sorriu e apertou os braços dele. Encarando-o pelo espelho, questionou:
- E você? O que fez na minha ausência?
- O de sempre. Fui ao garimpo, perambulei pela cidade, fiz-lhe algumas compras...
- Compras?
Os olhos de Esmeraldina brilharam, enquanto Licínio apanhava no baú um pacote bem embrulhado em veludo vinho. Estendeu-o para ela, que o apanhou e o desembrulhou avidamente. Dentro, um maravilhoso colar de ouro e rubis reluziu à luz das velas. Ela apanhou o colar e o revirou entre os dedos, espantada com a quantidade de pedras incrustadas no metal dourado.
- Então? Gostou?
- Se gostei? É maravilhoso!
- E isso não é tudo. Passou por aqui um mercador de sedas, e veja o que consegui.
Mais uma vez, ele abriu o baú e dele retirou três peças da mais pura seda, desenrolando-as sobre a cama.
- Licínio! - exclamou ela, experimentando a maciez do tecido. - Mas são lindas!
- E de boa qualidade. E veja só o que mais!
Novamente, de dentro do baú surgiu um frasco de perfume, que ele destampou e ofereceu ao nariz de Esmeraldina, que o inspirou profundamente.
- Hum... - fez ela, maravilhada. - Que aroma!
- Direto da França, meu bem.
- E o que mais? - exaltou-se ela, pulando sobre o baú e tentando levantar-lhe a tampa. - O que mais há nesse baú do tesouro?
Licínio abriu o baú, e dentro ainda havia dois leques de pena de pavão, três pares de sapatos cintilantes, mais três peças de joias: um colar de pérolas, um brinco de brilhantes e um bracelete de ouro e prata.
- Meu Deus! Como você conseguiu tudo isso?
- Somos pessoas ricas, Dina. Tudo se compra com dinheiro.
Na verdade, as três últimas joias Licínio ganhara em apostas de dados com amigos abastados que frequentavam a mesma taverna, tendo negociado o restante com um mascate. Tudo para impressionar Esmeraldina e impedir que ela o crivasse de perguntas sobre o que fizera em sua ausência e, principalmente, sobre Aracéli.
- É tudo tão maravilhoso! - disse ela embevecida. - Oh! Licínio, você é um homem extraordinário. Realmente sabe como agradar uma mulher.
- Sei como agradar a minha mulher. Só a minha esposa merece tudo isso e muito mais.
O efeito dos presentes foi o esperado. Inebriada com tantas riquezas, Esmeraldina deixou de lado a curiosidade e a preocupação com o marido, ocupada que estava em experimentar tudo o que ganhara. Licínio sorriu, intimamente satisfeito consigo mesmo. Conhecia a ambição da mulher que ele podia sempre usar em seu benefício. Quando ela se cansou e foram dormir, Licínio custou a pegar no sono, remoendo a falta que Aracéli fazia. Acostumara-se a estar com ela todas as noites, ainda que não fizessem amor, quando ele se satisfazia em admirá-la ou simplesmente acariciar o seu corpo.
Dali em diante, precisava ter cuidado para que Esmeraldina nunca descobrisse sobre Aracéli. Se isso acontecesse, ele lamentaria muito, mas teria que se livrar dela. Como a índia não era sua escrava, não poderia simplesmente mandá-la de volta para a senzala e calar a sua boca. Havia o padre intrometido que bem poderia comprometer a sua reputação.
Pensar naquilo lhe causava angústia, porque Licínio não queria se desfazer de Aracéli. Mas sabia que, entre ela e a esposa, não haveria dúvidas sobre qual das duas escolher. Esmeraldina era a mulher virtuosa e elegante com quem se casara, aquela que mantinha o respeito de seu nome. Aracéli não passava de uma cabocla anônima, rude e sem trato, cuja serventia se limitava aos estreitos de um cobertor. Entre as duas, ficava com Esmeraldina. Com Aracéli dava vazão a seus instintos mais primitivos, ao passo que Esmeraldina lhe evocava a civilidade e a honradez. E ele tinha que manter estas últimas se quisesse conservar sua respeitabilidade e, no futuro, conquistar um título de nobreza.

CAPÍTULO 16

Foi com alívio que Licínio viu Aracéli chegar na segunda-feira, logo pela manhã. Por mais que a houvesse ameaçado, temia que ela, vendo-se a sós com o padre, lhe contasse tudo e decidisse não voltar. Se ela tomasse essa atitude, ele teria que reagir, e matar o padre era algo que, embora previsível, não era o mais aconselhável.
Sem oportunidade de falar com ela, Licínio se conformava em olhá-la à distância. Embora Esmeraldina não houvesse percebido nada de errado na conduta do marido, vivia atrás dele pela casa e não lhe dava chance de ficar a sós com Aracéli. Ao se deitarem, adormeceu abraçada a ele e, quando ele se levantou, sentindo o vazio na cama, abriu os olhos ainda a tempo de vê-lo encaminhar-se para a porta.
- Vai a algum lugar? - perguntou ela, sonolenta.
- Preciso urinar - respondeu ele, mas mudou de ideia e voltou para a cama.
- Você não queria urinar? - replicou Esmeraldina.
- Perdi a vontade. Vamos dormir.
Naquela noite, Licínio não foi ao encontro de Aracéli. Para ela, foi uma alegria. Esperou até bem depois da meia-noite, quando então desistiu e voltou para o quarto de Teodoro. Na noite seguinte, ele também não apareceu, nem na outra, nem na próxima, nem nas noites seguintes. Certa de que, com a volta da mulher, Licínio se cansara dela, Aracéli respirou aliviada e deixou de comparecer à beira do riacho.
Ao contrário do que ela imaginava, Licínio não se cansara dela. Muito pelo contrário. A cada dia, seu desejo aumentava mais e mais, insatisfeito com o amor insosso que Esmeraldina lhe oferecia. Apenas não conseguia se ausentar porque ela se agarrava a ele e despertava todas as vezes que saía do seu lado.
Até que, saturado de uma paixão mal saciada, resolveu tomar suas providências. Ao jantar, carregou nas taças de vinho, incentivando a mulher a beber, até que ela, zonza e com o rosto afogueado, acabou adormecendo pesadamente, dando a Licínio a chance de sair sem ser notado.
Chegando ao lugar do encontro, qual não foi a sua surpresa ao constatar que Aracéli não estava ali. Licínio ficou furioso e gritou alto, tão alto que espantou as corujas próximas. Voltou para casa enraivecido e foi direto ao quarto do filho. Aracéli dormia tranquilamente ao lado do menino, e ele a sacudiu com força, tapando a sua boca para que ela não gritasse de susto.
- Venha comigo - ordenou num sussurro exasperado.
Trôpega de sono, Aracéli obedeceu. Levantou-se e saiu do jeito que estava, de camisola e sem apanhar o cobertor. Ela o foi seguindo pelo corredor, temendo ser surpreendida por alguém. Licínio, contudo, parecia não se incomodar com uma possível aparição de Esmeraldina.
Chegando à beira do riacho, Licínio puxou Aracéli com violência e rasgou sua camisola, deitando-a no chão com impetuosidade.
- Nunca mais me deixe esperando - dizia ele, ao mesmo tempo em que investia contra ela. - Você é minha, Aracéli, minha! Você me deve isso!
Ela não compreendeu bem e chorou baixinho. Só quando ele terminou foi que ela tentou se explicar:
- Vim as outras noites, mas o senhor não apareceu. Então, pensei que tivesse se cansado de mim.
- Nunca! Não vim porque não consegui me desvencilhar de Esmeraldina, mas nunca vou me cansar de você. Deveria saber disso. Não se lembra do que lhe disse? - ela não respondeu. -Não se recorda de que lhe mandei vir todas as noites? Pois é isso que você tem que fazer. Se eu não vier, é porque não pude. Então, você volta para o quarto e vem na noite seguinte. Quero que faça isso sempre, quer eu compareça, quer não. Entendeu?
Ela assentiu e buscou a camisola rasgada para encobrir o corpo, porque começava a chover.
- Como vou voltar para casa desse jeito? E se dona Esmeraldina me vir?
- Minha mulher dorme um sono pesado depois que eu a embebedei. Foi a única maneira que encontrei de sair e vir ao seu encontro.
- Senhor Licínio... - começou ela a dizer pausadamente - será que não é hora de pararmos de nos encontrar? Pode ficar perigoso...
- De jeito nenhum! Não posso prescindir de você, Aracéli. Se quiser, pode se sentir envaidecida, mas você me enlouquece de um jeito que nenhuma outra mulher consegue. Nem Esmeraldina, nem as rameiras com quem andei. Você é especial e é minha.
- Não sou sua. O senhor me usa, mas eu não lhe pertenço.
- Engano seu. Você pertence a mim, e é meu direito fazer com você o que bem entender.
- Não! - bradou ela de um salto. - Jamais pertencerei ao senhor nem a ninguém. Minha alma é livre, e aprisionar o meu corpo não vai me impedir de ir ao encontro dessa liberdade. O senhor é quem está preso: na sua ignorância, na tirania e na ilusão de que é maior do que Deus!
Dizendo isso, Aracéli rodou nos calcanhares e correu de volta a casa, deixando Licínio espantado e sem ação. Pensou em correr atrás dela, mas seria abandonar a prudência. Já fora ao seu quarto no meio da noite. Retornar lá com a raiva que estava acabaria acordando todo mundo na casa. Não. No dia seguinte, ele lhe daria a lição que merecia.
Ele mal conseguiu dormir naquela noite. A todo instante, acordava com as palavras de Aracéli ressoando em seus ouvidos, e uma febre rancorosa foi tomando conta dele. Ao café da manhã, não conseguia disfarçar a raiva. Não dizia nada, mas olhava para ela como quem está prestes a trucidar o inimigo, e tanto ódio acabou despertando a atenção de Esmeraldina.
- O que foi que Aracéli fez? - perguntou ela.
- Nada - respondeu ele assustado. - Por quê?
- Você olha para ela como se quisesse devorá-la viva. Ela fez alguma coisa?
- Não.
- Maltratou Teodoro?
- Não.
- Então, o que é?
- Nada, já disse.
Depois que Esmeraldina o questionou, Licínio procurou disfarçar e não olhou mais para Aracéli, embora seu coração saltasse do peito toda vez que ela passava. Teve que aguardar até a noite para vê-la, temendo que ela não comparecesse. Como havia feito antes, serviu uma dose excessiva de vinho à mulher e, assim que ela pegou no sono, saiu do quarto.
Aracéli já o aguardava, enrolada no cobertor para se proteger da chuva. Ele se aproximou e, sem dizer nada, puxou-a para cima, beijando-a com furor. Em seguida, atirou longe o cobertor e rasgou novamente a sua camisola, deitando-a sobre a areia fria. Ele estava sendo mais bruto do que o habitual, e Aracéli gemeu de dor. Licínio fez com ela o que quis. Quando terminou, os olhos dela estavam secos, mas transmitiam um ódio que ele foi capaz de sentir.
- Você me odeia, não é? - ela não respondeu. - Se pudesse, me mataria, mas sou eu quem tem esse poder. Se me matar, seu destino é a forca, e seu paizinho de saias vai ficar muito triste. Mas eu... posso fazer com você o que bem entender - ele passou as mãos em volta do pescoço de Aracéli e começou a apertar. - Posso acabar com você aqui mesmo, agora, e nada irá me acontecer. Sabe por quê? Porque você não é nada nem ninguém. É uma caboclinha atrevida, mas mais insignificante do que um inseto. E o que é que se faz com os insetos? Nós os esmagamos. Posso esmagar você sem nenhuma consequência. Então? Quem é que ousa falar em liberdade? Eu sou livre para fazer com você o que bem entender, mas você não pode sequer pensar em me atacar ou agredir. Sua vida me pertence, está em minhas mãos, eu é que sou livre para decidir o que fazer com você.
Enquanto falava, Licínio ia estrangulando-a aos pouquinhos, enquanto Aracéli se debatia, tentando desesperadamente puxar as mãos dele de seu pescoço. O desespero dela dava-lhe um prazer mórbido, e ele continuou a apertar, até ela quase desmaiar. Quando sentiu que ela estava prestes a desfalecer, Licínio a soltou, e o ar penetrou pela garganta de Aracéli com a rapidez de um cometa, inflando seus pulmões como uma rajada de vento. Ela tossiu e se engasgou várias vezes, para divertimento de Licínio.
Logo que ela se recuperou, excitado pela proximidade da morte de Aracéli, Licínio a subjugou novamente, mas, dessa vez, ela lutou contra ele. Debateu-se sob seu corpo, aumentando ainda mais o desejo dele. Ela era pequena, e ele facilmente a dominou.
- Chega... - implorou ela num sussurro. - Não aguento mais... Por que não me matou? Preferia morrer.
- Acha mesmo que eu aniquilaria o meu brinquedo favorito? Onde é que eu iria arranjar outra caboclinha apetitosa feito você?
Aracéli o encarou com ressentimento e rancor. Naquele momento, sentia que as palavras seriam inúteis para traduzir toda a angústia que lhe ia na alma. Simplesmente balançou a cabeça e começou a se levantar, puxando o cobertor por sobre o corpo. Já nem tinha mais o que vestir.
Enrolada na coberta, o corpo todo dolorido da brutalidade e da humilhação, virou as costas a Licínio, mas, antes que começasse a retornar, ele a puxou pela mão, obrigando-a a ficar de frente para ele.
- Não fique triste nem com raiva, Aracéli - falou em tom s ameno. - Gosto de você, mas não posso permitir rebeldias. Perdê-la me levaria à loucura, por isso, não me obrigue a livrar-me você. Não seria bom para nenhum de nós.
Ela puxou a mão com força e correu para casa, atirando-se na cama e chorando copiosamente. Teodoro ouviu o seu pranto e abriu os olhos, espantado ao perceber que era ela quem chorava.
- Aracéli - chamou, saltando para a cama dela e a abraçando, sem nem perceber que ela estava nua por debaixo do cobertor. - O que aconteceu, Aracéli? Foi um sonho ruim?
- Ah! Teodoro...
Abraçou-se a ele, e chorou ainda mais, ouvindo a vozinha miúda do menino, que repetia com amorosidade:
- Não chore, Aracéli, eu estou aqui. Não vou deixar nenhum monstro pegar você.
As palavras de Teodoro só fizeram aumentar o seu pranto. Agarrada a ele, Aracéli chorava e soluçava, não se importando mais com quem pudesse ouvi-la. Do lado de fora, Licínio escutava com o ouvido grudado à porta. Ouviu distintamente o seu choro e o consolo de Teodoro. Pé ante pé, abandonou a porta do quarto do filho e voltou para sua cama.
- O que foi que houve? - perguntou Esmeraldina, sonolenta.
- Nada. Fui urinar.
Alguma coisa muito errada estava acontecendo naquela a, e essa certeza desanuviou o efeito do álcool do cérebro de Esmeraldina, que esfregou os olhos com vigor, lutando para restabelecer a sobriedade. Os olhares de Licínio para Aracéli, que ela surpreendera várias vezes, retornaram-lhe à lembrança. Seria possível que o marido estivesse se engraçando para aquela selvagem? Ela deitou a cabeça sobre o peito dele e inspirou fundamente. Um cheiro que misturava suor e sexo infiltrou-se em suas narinas, e ela afastou-se enojada.
- Por onde você andou? - inquiriu duramente.
- Fui urinar, já disse.
- Você cheira como quem acabou de fazer sexo.
Ele quase pulou da cama, mas conseguiu manter a calma aparente e redarguiu com mal contida indiferença:
- Você está sonhando. Cheiros não dizem nada.
Cheiros diziam tudo, e ela conhecia muito bem aqueles odores. Não retrucou, porém. Queria certificar-se de suas desconfianças, para depois agir. Havia muitos escravos naquela casa, e não seria difícil encontrar algum que tivesse algo para contar.

CAPÍTULO 17

Havia quietude e silêncio quando a janela do quarto de Teodoro se abriu lentamente. De modo sorrateiro e quase imperceptível, Aracéli se esgueirou pela janela e saltou para o lado de fora, sem emitir qualquer ruído. Caiu e rolou para o chão, apanhando a trouxa com suas poucas roupas. Levantou-se, sacudiu o corpo dos pedaços de grama e ainda deu uma última olhada para cima, pensando no quanto Teodoro ficaria triste quando acordasse e não a visse. Lamentava por ele, porque aprendera a amá-lo de verdade, assim como sabia que o amor do menino também era verdadeiro. Contudo, não podia mais suportar tanta humilhação.
Como uma lebre, correu para fora do pátio, sempre se ocultando nas sombras da noite. Foi correndo o mais que pôde sem fazer barulho e só parou quando a casa já não era mais visível à distância, caminhando então para dentro da noite.
Na casa de padre Gastão, tudo ainda permanecia quieto. Em breve ele despertaria para suas obrigações matinais, mas, por enquanto, as janelas estavam cerradas e não havia nenhuma lamparina acesa além daquela que guarnecia o pequenino altar em seu quarto. Aracéli experimentou a porta. Estava trancada, e ela bateu levemente. Tornou a bater, dessa vez aplicando mais força e aguardou até que um ruído lá dentro anunciou que padre Gastão havia acordado.
- Quem é? - perguntou ele, do outro lado da porta.
- Sou eu, padre, Aracéli. Deixe-me entrar.
A porta abriu-se imediatamente, mostrando um Gastão lívido e assustado.
- Aracéli! Por Deus, o que foi que houve?
Em vez de responder, ela se atirou nos braços dele e desatou a chorar. Gastão levou-a para dentro e trancou a porta, conduzindo-a até seu quarto. Ela se sentou na cama e alisou a colcha de retalhos que ela mesma costurara, pousando a cabeça na almofada macia e umedecendo-a com suas lágrimas.
- O que foi que houve, Aracéli? - repetiu o padre. - O que fizeram a você?
Ela olhou para ele e enxugou os olhos. Não queria preocupá-lo com o mal que já estava feito e não havia como desfazer.
- Não posso mais ficar naquela casa, pai - anunciou.
- Por que não? Eles a trataram mal? O senhor Licínio lhe fez alguma coisa?
Engolindo em seco, ela respondeu com Cautela:
- Não. Mas ele é uma pessoa detestável e gosta de me humilhar.
- Como? O que ele fez?
- Prefiro não falar.
- Você tem que me contar, Aracéli! É preciso que eu saiba para poder protegê-la.
- Não tenho o que contar. apenas não gosto de ser humilhada só porque sou índia.
- Então é isso? Ele a humilha porque você é índia? – ela assentiu, e ele continuou: - Não acredito. Você não está acostumada a mentir e não sabe fazê-lo direito. Mas não importa. Estou feliz porque voltou sã e salva. Todos os dias fico orando para que você retorne em segurança, e hoje Deus ouviu as minhas preces. Vamos rezar e agradecer.
Padre Gastão apanhou-a pela mão e foi ajoelhar-se com ela diante do altar. Após a breve oração, a alma de Aracéli se aquietou, embalada pela sensação de bem-estar que se espalhara no ambiente. Depois disso, ela se deitou em sua cama e, mansamente, adormeceu.
Do lado de fora, um espírito espumava de ódio. Estava conseguindo ultimar a sua vingança graças à sintonia que estabelecera com Licínio e Esmeraldina. Soriano não conseguira ainda perdoar Alejandro por tê-lo entregado aos índios. Tivera a oportunidade, muitos anos antes, quando fora enviado para esclarecê-lo sobre a sua morte. Contudo, fizera aquilo em obediência a seus superiores, quando, na verdade, o que gostaria mesmo era de cravar os dentes na jugular de Alejandro para vê-lo sangrar até a morte.
Alejandro mudara muito. De espanhol sanguinário a cabocla ingênua era um grande passo. E aquele idiota do Damian ainda pensava que era seu salvador. O que dera nele para escolher a roupagem clerical? Será que os anos de trevas o haviam modificado tanto assim? Era provável, porque ele parecia sincero em sua vocação. Soriano não podia deixar de achar aquilo tudo muito estranho, mas a esquisitice do outro não lhe interessava. O único problema era a aura que criara ao seu redor e em volta de sua casa, que não lhe permitia aproximar-se.
Com Aracéli se passara algo semelhante. Estranho como o sofrimento muda a vida das pessoas. Alejandro fora um homem cruel e arrogante, mas a índia era bem diferente disso. Ainda guardava um pouco de seu orgulho, que ela lutava com todas as forças para dominar. De onde estava, Soriano tinha o privilégio de perceber aquelas coisas.
Até Aracéli encontrar Licínio, ele fora obrigado a se manter afastado. Quando, porém, a moça caíra nas garras do garimpeiro, ele conseguira aproximar-se. Enquanto morava com o padre, Aracéli vivia cercada pelas energias poderosas de suas rezas, que o mantinham afastado, impedindo-o de se juntar a ela. Mas na casa de Licínio era diferente. A sintonia com o antigo rival de Alejandro era perfeita para que ele pudesse dar vazão a seu desejo de vingança, e ainda podia contar com a raiva de Aracéli para fortalecer ainda mais a conexão entre eles.
Não era possível, contudo, que ela se mudasse novamente para a casa do padre. Soriano, particularmente, não tinha nada contra ele, porque mal conhecera Damian em vida. Haviam-se cruzado poucas vezes no navio, e a única lembrança significativa que tinha dele era do dia em que salvara Alejandro de se precipitar no mar revolto. Já Licínio era diferente, pois tinha todos os motivos para odiá-lo também. Não fora Damian cúmplice do ato cruel e sanguinário que tirara a vida de Lúcio e de Rosa?
"Que coisa engraçada", Soriano pensou. Lúcio virara Licínio Rosa, Esmeraldina. Damian, padre Gastão. E Alejandro, que era um homem másculo, viril, arrogante e muito valente, se transformara naquela coisinha minúscula que era Aracéli. Em seu íntimo Soriano se questionou por que apenas ele não se transformara em ninguém. Passados quase duzentos anos, permanecia o mesmo Soriano espanhol, habitando o mesmo mundo de sombras, servindo aos mesmos senhores do mal. Por que só a ele não fora dada a chance de uma nova vida?
Subitamente, lembrou-se de Cibele. Será que ela também recebera uma nova chance? Desde que desencarnara, nunca mais tivera notícias suas. Teria ela reencarnado também? De repente, sentiu imensa saudade da noiva que nunca mais tornara a ver. Na certa certificando-se de que ele não retornaria de sua expedição criminosa esquecera-se dele e casara-se com outro. Não. Cibele devia ser um anjo, e anjos não se ocupavam com os que eram parte do inferno.
Soriano balançou a cabeça para afastar aqueles pensamentos de desânimo. Não adiantava nada ficar se lamentando. Tinha que aproveitar que recebera permissão para ultimar sua vingança antes que o chefão mudasse de ideia e mandasse chamá-lo de volta para algum serviço sujo. Ali onde estava, entretanto, não obteria sucesso. Precisava estimular aqueles que lhe eram receptivos, ou seja, Lúcio e Rosa.
Ninguém percebeu a fuga de Aracéli até que o dia amanheceu. Teodoro foi o primeiro a dar o sinal. Ao despertar, a moça não estava ali para ajudá-lo a se lavar e vestir, como sempre fazia. O menino se levantou assustado e, não vendo Aracéli, pôs-se a chorar, atraindo a atenção de uma escrava, que correu a chamar Esmeraldina. A mulher entrou no quarto correndo, seguida por Licínio, que pegou o filho no colo e tentou acalmá-lo.
- Aracéli sumiu - soluçava ele. - O monstro a levou embora!
- Que monstro, que nada, Teodoro- retorquiu Esmeraldina. - Ela simplesmente não tem responsabilidade alguma. Eu não falei, Licínio?
Licínio não respondeu, mas o menino continuou a lamentar:
- Foi o monstro, mamãe, eu sei. Ela estava chorando, com medo dele, e ele voltou para levá-la.
- Aracéli estava chorando ontem à noite?
- Estava.
- Por quê?
- Por causa do monstro.
Licínio afagou o menino e não olhou para Esmeraldina, que o fitava com desconfiança.
- O monstro não pegou Aracéli - tranquilizou ele. - Ela só foi visitar padre Gastão, mas logo estará de volta.
- Não, não, papai, não foi isso. O senhor não sabe, não viu...
- Eu sei. Pode acreditar em seu pai. Vou sair agora mesmo e trazê-la de volta.
Deu um beijo no menino e, sem encarar a mulher, pegou seu cavalo e partiu a galope para a casa do padre. Gastão rezava a primeira missa matinal, e Aracéli não estava com ele. Licínio foi até a casa do clérigo, nos fundos da igreja, e espiou pela janela. Aracéli estava lá dentro, varrendo o chão, e, mais do que viu, ela sentiu a presença dele e estacou assustada. Havia tanto ódio no olhar dele que ela sentiu como se uma onda a empurrasse para trás e teve que se segurar para não cair.
- Abra a porta, Aracéli - ordenou ele, mas ela não se moveu. - Abra antes que eu a arrebente ou pule a janela.
Ela abriu. Não temia Licínio naquele momento, porque ele não seria louco de tentar nada contra ela na casa de padre Gastão. Todavia, não precisava de um escândalo em sua porta nem dos comentários dos fiéis.
- O que o senhor quer? - perguntou ela, afastando-se dele
- Vim buscá-la. Teodoro pergunta por você. Está preocupado, achando que algum monstro a levou.
- Diga a ele que estou bem, que fugi para longe do monstro e não vou mais voltar.
Ela pensou que ele fosse bater-lhe, mas ele, calmamente puxou uma cadeira e se sentou.
- Acho que você não compreendeu bem. Teodoro reclama a sua presença, e eu a exijo. Creio que não preciso dizer o que irá acontecer se não vier comigo.
- Não vou voltar, senhor Licínio. Não aguento mais viver como sua escrava. Eu nasci livre. Lamento por Teodoro, mas não posso mais me sujeitar aos seus desvarios. Eu sou uma pessoa, não gosto de ser tratada como um inseto, e até os insetos são dignos de respeito.
- Você continua atrevida, falando o que quer e sem pensar.
Nesse momento, padre Gastão irrompeu pela porta. Vira quando Licínio entrara na igreja e, dominado pela aflição, tratara de encurtar a missa e terminá-la logo. Aracéli suspirou aliviada, enquanto Licínio permanecia impassível.
- Algum problema? - indagou Gastão, aproximando-se de Aracéli.
- Nenhum, padre - retrucou Aracéli. - O senhor Licínio já estava de saída.
Licínio não contestou. Com um sorriso mordaz, se levantou.
- É verdade, já estou indo - e, dando tapinhas no ombro de Gastão, concluiu: - Que bom que é um homem forte, padre.
Saiu. Gastão não compreendeu o comentário, mas Aracéli ficou alarmada. Tinha esperanças de que Licínio não concretizasse suas ameaças, que se cansasse dela e arranjasse outra escrava para satisfazer seus desejos. Todavia, o olhar maldoso que ele lhe lançara não deixava dúvidas: Licínio seria capaz de tudo para tê-la de volta.
- Padre - começou ela a dizer -, tenho medo do que o senhor Licínio é capaz.
- Ele não pode obrigá-la a voltar.
- Mas pode atentar contra o senhor. E se ele fizer alguma coisa para feri-lo?
- Não acredito nisso. Nada vai me acontecer.
- Tenho medo - ela se atirou em seus braços e repetiu chorando: - Tenho medo do que ele é capaz.
Gastão acariciava os cabelos de Aracéli, até que perguntou:
- Minha filha, responda-me com sinceridade: aconteceu alguma coisa entre vocês? - ela não disse nada. - O senhor Licínio lhe fez algo que não deveria? Vamos, pode me dizer. Não tenha medo.
Ela quase contou, mas não queria preocupá-lo com algo que já não tinha mais remédio. Todavia, mentir que nada acontecera não o convenceria, e ela resolveu relatar parte da verdade:
- Ele tentou. Quer que eu seja sua amante.
- E você?
- Eu o odeio.
Gastão sabia que a pergunta não fora bem respondida, mas conformou-se. Pela própria vibração de Aracéli, sentia que Licínio havia ultrapassado o limite da mera tentativa. Todavia, não desejava violar sua intimidade, sabendo o quanto seria doloroso e vergonhoso narrar os ultrajes a que Licínio poderia tê-la submetido. E aquilo não tinha mais importância. O importante era que ela voltara para sua casa e não precisaria mais retornar ao convívio daquele homem detestável.
- Eu jamais deveria ter consentido que você fosse trabalhar na casa dele - lamentou-se o padre.
- Fui porque quis, porque queria experimentar coisas novas, e acabei me afeiçoando a Teodoro. A única coisa que me entristece é saber que vou fazê-lo sofrer.
- Ele é uma criança, logo esquece. E tem mãe.
Teodoro não teria tempo de esquecer, porque Licínio não esqueceria e, mais cedo do que Aracéli imaginava, daria seu jeito para levá-la de volta.

CAPÍTULO 18

Licínio entrou em casa espumando de ódio. Aquilo não ficaria assim. Aracéli não era ninguém para desobedecer-lhe, e o padre não tinha o direito de se interpor entre eles. Teodoro correu para o pai, pedindo colo, e ele levantou o menino, por instantes se esquecendo do próprio ódio.
- Onde está Aracéli, papai?
- Ela está em casa de padre Gastão, como lhe disse. Precisa ajudá-lo em alguma coisa e depois voltará.
- Ufa! - desabafou ele. - Não foi o monstro então?
- Não existem monstros, meu filho. Aracéli está bem, mandou lembranças e pediu que você aguardasse por ela. Em breve, estará com você outra vez.
- Que bom.
Ao colocar o menino de volta no chão, Licínio percebeu a presença de Esmeraldina, que o fitava com ar de suspeita e indignação. Ela deu ordens para que uma escrava levasse o filho e, quando se viram a sós, anunciou:
- Enviei um bilhete a Marocas, pedindo que me arranje uma criada francesa.
- O quê? Ficou louca?
- Aracéli foi embora. Melhor assim. Teodoro precisa de uma pessoa de classe para cuidar dele.
A vontade de Licínio era agarrar a mulher pelos ombros e proibi-la terminantemente de colocar qualquer outra pessoa no lugar de Aracéli, mas não poderia ser tão imprudente.
- Espere apenas um pouco mais - pediu ele, afagando-lhe as mãos e fitando-a com uma ternura forçada. - Por Teodoro, que gosta tanto dela. Se ela não voltar até o final da semana, você pode sair em busca de sua criada francesa, e eu até a ajudarei.
Esmeraldina não tinha a menor vontade de consentir que aquela selvagem sem linha retornasse a sua casa, mas não queria desgostar o marido e acabou concordando, após um longo suspiro de resignação:
- Está bem. Mas é só até o final da semana, nem um dia a mais. Na segunda-feira, já terei outra pessoa para o lugar de Aracéli.
Até segunda-feira era tempo mais do que suficiente para dar um susto na cabocla e trazê-la de volta. Licínio mandou tirar do garimpo dois escravos de sua mais alta confiança, homens fortes, robustos e, acima de tudo, obedientes. Deu-lhes as instruções devidas, recomendando-lhes que não falhassem, ou se veriam em maus lençóis.
No dia seguinte, na hora do almoço, um bilhete chegou às mãos de padre Gastão:

"Por [avô, padri, venha em meu aussílio. Meu maridu tá morrendo, í por aqui só tem insetu que num tem respeito ninhum por náis; num tem ningum padri pra lhe dá a istrema unção. É urgenti! Moru na istradffla du mato seco, duas curva dispois du morro di San Sebastian. Gradecida i que Deus 1h! pagui. Manuela."
O sacerdote terminou de ler a mensagem, tocado pela simplicidade daquela gente que nem sabia escrever direito. Apanhou as suas coisas e, imediatamente, pôs-se a caminho, montado em seu burrico. Já estava no portão quando Aracéli vinha chegando, descalça, a saia dobrada servindo de cesta para as goiabas que colhera na mata.
- Aonde vai, padre?
- Ministrar uma extrema-unção. Não me demoro.
- Vou fazer doce de goiaba para quando o senhor chegar.
Ele riu e pôs o burrinho em movimento, seguindo devagar pela rua. A casa da mulher ficava um pouco distante da igreja, e ele esperava chegar a tempo de aliviar o coração do moribundo. Preocupado em atender pessoas que, ele pensava, precisavam de sua ajuda, nem lhe passou pela cabeça que aquele pedido de socorro nada era senão uma armadilha.
Em casa, Aracéli jogou as goiabas dentro de uma bacia e foi lavar as mãos. Depois de secá-las, apanhou uma faca e sentou-se para descascá-las e tirar-lhes os caroços. Foi quando viu o papel sujo e amassado esquecido na ponta da mesa. Limpou as mãos no avental e apanhou o papel. Depois que o leu, soltou-o no chão e escancarou a porta, correndo para a rua, na esperança de alcançar padre Gastão. Ele, porém, já havia sumido de vista. Aracéli seguiu o calçamento à sua procura, mas nem sinal dele. Desesperada, pôs-se a chorar.
Ninguém a ajudou nem parou para perguntar o que estava acontecendo. Ela ainda tentou pedir um cavalo emprestado para ir atrás dele, mas não havia quem se dispusesse a emprestar-lhe. Tampouco conseguiu uma carruagem, nem carroça, nem charrete. Nada. Ninguém estava disposto a colaborar com as estripulias de uma cabocla matreira e descalça.
Desanimada, voltou para casa, intimamente rezando para que nenhum mal acontecesse ao clérigo. A referência a insetos naquele bilhete mal escrito deixou-a desconfiada de que Licínio estava por trás de tudo e teria armado um plano para fazer mal ao clérigo.
Ao entrar em casa, parou estarrecida. Sentado na mesma cadeira do outro dia, Licínio comia uma goiaba e fitava, pela janela, a floresta mais atrás.
- Entre, Aracéli - falou ele em tom impassível. - E feche a porta.
Ela obedeceu e sentou-se defronte a ele, sem saber se o agredia ou se implorava para que não machucasse seu pai. Por fim, perguntou:
- Onde está padre Gastão?
- Pelo que li aqui - ironizou ele, apanhando o bilhete do chão -, ele foi dar uma extrema-unção.
- Nós sabemos que isso é mentira. Foi o senhor quem armou essa arapuca.
- Talvez... E talvez possa desarmá-la. Só vai depender de você.
- Ainda há tempo de desfazer tudo isso?
- É claro. Você não acha que eu iria planejar ferir o seu paizinho de saias sem antes lhe dar a chance de se arrepender e remediar o que fez, acha?
- Por Deus, senhor Licínio, o senhor não pode ser assim tão insensível! Deixe-nos em paz. Eu não sou ninguém, e o senhor é rico, pode ter a mulher que quiser.
- Acontece, Aracéli, que eu quero você - ela abaixou a cabeça, lutando para segurar as lágrimas, e ele prosseguiu: -Façamos o seguinte: você volta comigo e o padre retorna para casa ileso. Não acha que é uma troca justa?
- Se o senhor já deu ordens para alguém feri-lo, como pretende impedir uma desgraça?
- Minha cara, o lugar é longe e, montado naquele burrico, ele vai levar, no mínimo, uma hora para chegar. E acontece que tenho dois homens a meu serviço: um está na curva da estrada, aguardando que ele passe para assaltá-lo e dar-lhe uma surra como retribuição pela sua pobreza. O outro está lá fora, à espera de um sinal meu para voar em seu cavalo, passar à frente do padre e avisar o companheiro de que o plano está desfeito. Padre Gastão irá passar, não vai encontrar estradinha alguma e vai retornar indignado, julgando-se vítima de alguma brincadeira de mau gosto.
- O senhor é cruel... Como pode ter idealizado um plano sórdido feito esse?
- Você me dá trabalho. Tive que ficar plantado aqui esperando você sair para o mato e deixar o padre sozinho para então mandar o rapaz entregar o bilhete. Foi cansativo, mas valeu a pena, sabe? Por você, sou capaz de tudo... menos de sacrificar o meu filho e o meu casamento, é claro. E então? O que me diz? Volta comigo ou prefere cuidar das feridas de padre Gastão? - ela engoliu em seco e não respondeu. - Acho bom pensar depressa. O tempo está passando, e pode ser que meu homem se atrase para salvá-lo. E só Deus sabe o quanto um padre, já de certa idade, pode resistir...
- Por favor, não me obrigue a voltar para aquela casa.
- Oh! Mas não a estou obrigando! Você volta se quiser. Mas depois, não lamente as consequências quando vir o 'estrago na ara do padre. Ou o seu corpo num caixão...
Aracéli sentiu um calafrio só de pensar em seu pai morto. Licínio, contudo, não tinha mais paciência de esperar que ela se decidisse e arrematou:
- Muito bem. A escolha é sua.
Disse isso e saiu. Nem bem cruzou o portal e Aracéli já estava atrás dele, gritando em desespero:
- Espere! Não faça isso. Eu vou com o senhor, mas, por favor, não deixe que façam mal a padre Gastão! Impeça seus homens de feri-lo, eu imploro!
- Agora não sei se dá mais tempo. Você demorou muito a se decidir.
- Não! Faço qualquer coisa para salvar padre Gastão. Deito-me com o senhor aqui, agora, mas o senhor tem que salvá-lo!
Licínio deixou escapar o sarcástico riso da vitória. Deu um assobio curto, e logo um escravo apareceu.
- Pode ir, Rufino. O plano está desfeito. Depressa! Não quero que nada aconteça ao padre.
O homem saiu desabalado, e Licínio se virou para Aracéli. Não havia pensado na possibilidade de possuí-la na cama do padre, mas a ideia o agradou.
- Venha - chamou ele, passando na frente dela. - Vai ser bom fazer amor com você em uma cama, para variar. Ainda mais no leito sagrado e imaculado de seu paizinho.
- Não... - sussurrou ela, horrorizada. - Na cama de padre Gastão, não. Não podemos. Venha para a minha...
- Na sua cama não será tão divertido. Agora, se quiser que eu mude de ideia e vá atrás do meu escravo...
A imagem de padre Gastão todo ensanguentado no lombo do burrico fez Aracéli se decidir e conduzir Licínio ao quarto de seu pai. O ambiente era limpo e perfumado, como o resto da casa. A cama era simples, mas muito bem-arrumada e convidativa, com aquela colcha branca de rendas esticada sobre ela. Licínio experimentou o colchão e riu satisfeito. Agarrou a colcha com uma das mãos e puxou-a com força, exibindo o alvo e perfumado lençol. Estendeu a mão para Aracéli, que a apanhou e sentou no colo dele, lutando, como sempre, para não chorar.
- Seja boazinha comigo - considerou ele, alisando o corpo da menina e beijando o seu ouvido. - E serei bom para você.
Aracéli entregou-se sem resistir, engolindo a dor da derrota e de mais aquela humilhação. A sensação de estar vilipendiando o leito sagrado de padre Gastão ainda piorava a sua angústia, e ela se deixava usar por Licínio da forma que ele queria, na esperança de que ele terminasse logo e encerrasse aquela profanação.
Licínio demorou mais do que o usual, regozijando-se com a vitória sobre Aracéli e a conspurcação do lar e do leito imaculados do padre. A sensação de ilicitude divina só fazia aumentar o seu prazer, e ele concluiu o ato sexual sem pressa, aproveitando cada momento de dor e constrangimento de Aracéli.
Ao final, beijou-a longamente e se levantou saciado.
- Vista-se - ordenou ele em seu tom autoritário de sempre. - E vamos embora.
- Não vamos esperar padre Gastão? - retrucou ela incrédula, trocando rapidamente o lençol e esticando novamente a colcha. Pretendia queimá-lo mais tarde, para que seu pai não se deitasse sobre um leito de heresias.
- Padre Gastão vai demorar a chegar, e eu tenho pressa.
- Mas... ele vai ficar preocupado, pensando que algo me aconteceu.
- Você é uma indiazinha esperta e culta, não é? Pois então, escreva-lhe um bilhete. Garanto que ele vai entender.
Aracéli não resistiu e chorou baixinho. Sem contestar, apanhou a pena e o papel e escreveu um bilhete lacônico, informando a Gastão que tivera que voltar à casa de Licínio para cuidar de Teodoro, que adoecera em virtude de sua ausência.
- Está muito bom - elogiou Licínio, tirando o papel das mãos de Aracéli depois que ela escreveu. - Sem lamúrias nem choramingos. Agora, vamos.
- Preciso apanhar algumas roupas.
- Seja rápida.
Aracéli juntou umas poucas roupas numa trouxinha feita com o lençol que tirara da cama e saiu atrás de Licínio, sem esquecer-se de colocar o bilhete na escrivaninha de padre Gastão. Fechou a porta com cuidado e o seguiu até onde ele havia deixado a carruagem. Entrou em silêncio e fitou o vazio, sentindo que o vazio se espalhava pelo seu corpo e dominava sua alma.

CAPÍTULO 19

Só quando chegou a casa foi que padre Gastão compreendeu o motivo daquela troça. Ele não conseguira encontrar o lugar indicado no bilhete e, a princípio, julgara que fora vítima de algum galhofeiro sem fé. Só que não era brincadeira, mas uma estratégia de Licínio para levar Aracéli embora. E o bilhete que ela deixara não o convenceu. Tinha certeza de que Aracéli fora obrigada a partir.
A viagem de ida e volta até a casa fictícia minara-lhe as forças, e ele não poderia ir, naquele mesmo dia, à casa de Licínio buscar Aracéli. Tinha que esperar até a manhã seguinte.
A chegada de Aracéli foi recebida com alegria por Teodoro e desprezo por Esmeraldina. Ela abraçou o menino e cumprimentou a todos, seguindo com ele para o quarto.
- Que bom que o monstro não pegou você, Aracéli - comentou Teodoro.
Ela sorriu e o abraçou, imaginando que fora um monstro que a trouxera de volta e jamais a deixaria partir.
Padre Gastão foi vê-la logo cedo. Aracéli o abraçou de um jeito comovido, felicitando-se interiormente por ver que ele não sofrera nenhum arranhão.
- O que deu em você para partir sem me avisar, minha filha? - indagou ele, assim que se viu a sós com ela, caminhando pelo quintal do casarão.
- Não viu o meu bilhete?
- Vi. No entanto, Teodoro não me parece doente. Por que continua a mentir para mim?
- Não quero mentir para o senhor - sussurrou ela, olhando ao redor e constatando que Licínio estava a uma das janelas, vigiando todos os seus movimentos. - Só queria que estivesse bem.
- Ele a obrigou, não foi? Foi ele quem inventou aquela história toda de extrema-unção só para afastar-me de casa e obrigá-la a voltar. Que argumentos ele usou para convencê-la? - ela não respondeu. - Sei que ele fez alguma coisa. Ele a ameaçou?
- Não.
- Bateu em você?
- Não.
- Atentou contra a sua honra?
Nesse ponto, ela o fitou com amargura e retrucou com um quase desespero:
- O que é a honra, padre? É o que aparentamos no mundo externo ou é a dignidade que carregamos na alma? - ele não respondeu, confuso, e ela prosseguiu: - Mais importante do que tudo, para mim, é saber que o senhor está vivo e bem. O senhor é a minha honra, porque são os seus valores que carrego em minha alma, e não a degradação a que qualquer homem possa submeter o meu corpo.
- O que quer dizer com isso? - horrorizou-se ele. - O que o senhor Licínio fez a você?
- Nada que eu não merecesse.
- Não entendo, Aracéli. O que está dizendo?
- Não é o senhor mesmo quem diz que nada acontece no mundo que não seja da vontade de Deus? - ele assentiu. - Então, por algum motivo, Ele deve achar importante e justo que eu... que nós estejamos passando por tudo isso. Do contrário, nada nos aconteceria.
- Não sei bem o que lhe aconteceu, mas não se revolte contra Deus.
- Ao contrário, padre, é graças a Ele que consigo suportar a dor, exatamente por saber que tudo há de ter um motivo e que Deus somente quer o meu bem. É Ele quem me dá forças.
- Por Deus, Aracéli, o que foi que esse homem fez a você?
- Nada.
- Ele fez, e imagino o que seja. Mas você não precisa temê-lo nem se sujeitar a ele. Pode voltar para casa comigo, podemos até nos mudar daqui.
- O senhor não compreende. Ele irá atrás de mim aonde quer que eu vá. E o pior é o que poderá lhe acontecer caso eu não faça a vontade dele.
- Não tenho medo dele. Não tenho medo de ninguém que seja parte deste mundo, porque aqui não há quem seja mais poderoso do que Deus. E, como você mesma disse, tudo se processa segundo os Seus desígnios.
- Os desígnios de Deus são um mistério, e é por isso que faço a minha parte: para colaborar na realização de Sua obra.
- Minha menina... Quanto amadurecimento em uma alma tão jovem!
- Não se preocupe comigo, pai. Estou bem e tenho Teodoro para me confortar.
Efetivamente, o menino era a única ilha naquele oceano de torpezas, e era através dele que Aracéli via a bondade de Deus. Parecia que Ele lhe enviara um anjo bom para ajudá-la a suportar os reveses da vida. Ela procurou tranquilizar padre Gastão, que voltou para sua paróquia sem conseguir convencê-la a partir com ele.

Nas noites que se seguiram, Licínio não foi à beira do riacho, temendo alimentar as suspeitas de Esmeraldina. Realmente, ela possuía lá as suas desconfianças, mas não queria despertar a curiosidade dos escravos antes que a dúvida tivesse um fundamento real. Mesmo assim, Aracéli comparecia, por ordem de Licínio, que não queria ter a decepção de chegar à beira do córrego ardendo de desejo e não encontrar a amante pronta para saciar-lhe a fome.
Assim que Esmeraldina pareceu desligar-se de Aracéli, Licínio voltou ao riacho, e ela lá estava, aguardando por ele. Agora, porém, estava diferente. Não lhe respondia mais nem se debatia sob seu corpo, entregando-se a ele com uma passividade irritante. Licínio gostava de demonstrar sua superioridade, o que só seria possível se ela o provocasse ou contradissesse. Ela, contudo, nada fazia. Limitava-se a se deitar sobre o cobertor e permitir que ele a usasse como bem entendesse. Depois, quando ele dava a noite por encerrada, ela simplesmente se levantava e ia embora.
Licínio voltava para o quarto decepcionado. Gostava da vivacidade e do vigor de Aracéli. Sua resistência o estimulava. Excitava-o sua rebeldia. Só que Aracéli, após o susto com o padre, passara a agir como uma boneca sem vida ou uma estátua fria. Quem sabe não era uma estratégia para que ele se cansasse dela e a despedisse? Ainda assim, ela exercia sobre ele inexplicável fascínio e, fosse como fosse que ela agisse, ele jamais a deixaria partir.
- Onde você esteve? - ele ouviu a voz de Esmeraldina assim que entrou no quarto. - Foi urinar?
- Se você já sabe, por que pergunta?
Mais uma vez, ele vinha cheirando a suor e sexo. Fazia tempo que Licínio não se ausentava à noite, e agora, refletindo melhor, Esmeraldina percebia que ele não saíra desde que Aracéli se fora, somente voltando a fazê-lo depois de seu retorno.
Estranhamente, naquela noite, Licínio lhe servira vinho em excesso, causando-lhe uma sonolência gostosa e irresistível. Logo ferrara no sono, até que, de repente, sentira uma espécie de cutucão nas costelas e abrira os olhos. Não vira o espírito ávido de Soriano, que fora quem a despertara, mas percebera uma presença no quarto e chamara pelo marido. Licínio não respondera, e ela custara a se convencer de que estava só. O lugar vazio dele a sobressaltara, e ela se pôs desperta, até que ele entrou em seguida.
- Com quem esteve? - era Esmeraldina novamente.
- Não preciso de companhia para urinar. Estava sozinho.
Ela não disse nada e se virou para o lado, imaginando se Aracéli passara a noite toda no quarto de Teodoro. Custou muito a dormir e, no dia seguinte, assim que Licínio saiu para vistoriar o garimpo, mandou reunir os escravos.
- Muito bem - começou ela em tom imponente e intimidador. - Quero saber se alguém percebeu algum movimento estranho na casa nos últimos tempos. Qualquer coisa - ninguém disse nada, e ela prosseguiu, apontando para uma escrava mais velha: - Você! Viu alguma coisa?
A escrava meneou a cabeça e falou com os olhos voltados para o chão:
- Não vi nada, sinhá.
- E você? - indagou à outra, que também balançou a cabeça em negativa. - Será possível que ninguém percebeu nada estranho ultimamente? Nem quando estive fora?
Uma escrava novinha e magricela deu um passo à frente e anunciou:
- Aconteceu uma coisa, sinhá.
- O que foi, Zenaide? Pode falar.
- Não sei se tem importância...
- Deixe que eu decido o que é importante. Fale logo. O que você sabe?
Zenaide olhou para os demais, dando mostras de que estava prestes a revelar um importante e comprometedor segredo, e Esmeraldina fez sinal para que os outros escravos saíssem. Só então ela começou a contar:
- Bom, uma vez, a senhora estava viajando, e o sinhô Licínio me mandou buscar Teodoro na beira do córrego lá embaixo. Eu fui. Cheguei lá, o menino estava nadando sem roupas com aquela índia.
Esmeraldina ergueu uma sobrancelha e inquiriu:
- Aracéli também estava sem roupas?
- Estava.
- O que mais?
- Eu apanhei o menino, conforme sinhô Licínio mandou, e ela ficou reclamando. Queria que ele se vestisse, mas o sinhô me deu ordens para levar ele como estivesse. Não queria esperar. Eu achei que não era certo sair andando com o menino pelado por aí, mas não podia desobedecer o sinhô Licínio. Peguei o menino no colo e voltei para casa.
- E Aracéli?
- Ficou lá, lutando com a roupa. Eu chamei ela de desavergonhada, mas ela não se importou, não. Essa gente índia não tem pudor, sinhá Esmeraldina.
- E depois?
- Bom, depois que eu entrei com o menino, não vi mais nada. O sinhô Licínio havia saído, e fui eu que tive que vestir Teodoro, porque a índia ficou lá de moleza e não voltou.
- Ela não voltou? Hum... E você tem certeza de que o senhor Licínio não estava em casa?
- Eu procurei ele para dizer que o menino já havia chegado, mas não encontrei.
Durante alguns minutos, Esmeraldina ficou remoendo a dúvida e a raiva, até que tomou uma decisão:
- Vou incumbi-la de uma tarefa, Zenaide. Acha que conseguirá cumpri-la?
A escrava estufou o peito e respondeu cheia de si:
- O que a sinhá mandar. Sou boa em cumprir ordens.
- Pois bem. O que irei lhe dizer deve ficar apenas entre nós. Se descobrir que você contou a alguém, mando cortar-lhe a língua.
- Cruz-credo, sinhá! Não conto nada, não.
- Muito bem. Quero que você vigie Aracéli.
- Vigiar aquela índia malcriada?
- À noite. Se ela sair do quarto de Teodoro, quero que a siga.
- Por quê?
- Porque eu estou mandando! - aborreceu-se. - E se você a vir com o meu marido ou com qualquer outro homem, fique quieta e corra para me contar. Mesmo que eu esteja dormindo, quero que me acorde.
- Sim, sinhá.
- E lembre-se: não diga nada a ninguém. Se você se sair bem, far-lhe-ei um agrado.
Zenaide deu um largo sorriso, imaginando que Esmeraldina a presentearia com alguma joia maravilhosa, já antegozando um colar de esmeraldas em seu pescoço. E seria muito bom descobrir algum pecado daquela índia metida, que se julgava superior só porque era cria de um padre.
Sinhá Esmeraldina iria ver do que ela era capaz. Não falharia.

CAPÍTULO 20

Aracéli dormia um sono agitado, com o espírito de Soriano parado a seu lado, fitando seu rosto com ódio. Aquele artifício de reencarnar como mulher não servira para ludibriá-lo, pois ele conhecia bem as suas artimanhas. Estava ligado a Alejandro pelo ódio, e somente depois de ultimar a sua vingança é que poderia descansar.
Subitamente, uma luz começou a brilhar perto da janela, e ele procurou as sombras para se ocultar. Se fosse algum espírito iluminado, seria visto de qualquer jeito, mas a ilusão de estar encoberto lhe trouxe segurança, e ele recuou para dentro da penumbra. Aos poucos, uma figura feminina foi-se delineando em meio à claridade suave, até que ganhou corpo, e a forma translúcida de sua antiga noiva, Cibele, surgiu diante de seus olhos.
Ele deu um salto da escuridão e se postou em frente a ela, sem voz, imaginando de que paraíso estelar teria surgido aquela presença. Cibele sorriu para ele, que permanecia retraído, sem saber se acreditava ou não em que seus olhos viam.
- Não tenha medo, Soriano - falou o espectro de luz. -Sou eu mesma, Cibele.
- Não... não é possível - gaguejou ele. - Cibele me abandonou há muitos anos.
- Só porque você não me via não significa que não estive a seu lado.
- Você esteve?
- Não pude unir nossos corpos astrais, porque você optou por viver num mundo no qual eu não podia penetrar. Mas muitas foram as vezes em que rezei por você e senti o seu apelo quando pensava em mim.
- Ah! Cibele! Como eu gostaria de poder tocá-la novamente Tenho me sentido tão só aqui...
- Por que não vai embora?
Ele riu amargamente e respondeu com tristeza:
- Para onde? Não há nada para mim além deste mundo.
- Quanto pessimismo! Somos espíritos livres. Podemos ir aonde quisermos.
- Não é bem assim... Existem aqueles que me aprisionaram na treva e não me permitiriam sair.
- São as suas culpas que o aprisionam. É por causa delas que você mantém vivo o vínculo que o prende a seus captores. Se romper a sintonia com eles, vai conseguir sair.
- Como?
- Comece a pensar de forma diferente. Reconheça e aceite a culpa como elemento transformador. Depois, descarte-a. Você não precisa dela para manter viva a sua essência.
- Você fala em culpas com muita propriedade, mas quem tem do que se culpar é aquele assassino ali!
Soriano apontou para Aracéli, e Cibele apanhou a mão dele fechando-a na sua.
- Por que aponta os crimes de outro quando você mesmo foi autor de muitos crimes? - indagou ela, virando a mão de Soriano para o peito dele e abrindo-a sobre o coração. - Você também foi assassino e só não matou Alejandro porque ele foi mais ágil e mais esperto.
- Você não sabe o que ele fez comigo! - esbravejou, esquivando-se da aura de luminosidade de Cibele e procurando um canto de sombras. - Entregou-me para aqueles índios do inferno. E veja!
Soriano rasgou a camisa, exibindo o talho no abdome, por onde ainda afluía grande quantidade de sangue.
- Eu morri e não paro de sangrar. É a minha sina, a maldição que ele fez recair sobre mim!
Sem se importar com o sangue que agora jorrava e descia até o chão, Cibele o abraçou, envolvendo-o num halo cintilante e suave.
- Este mundo é repleto de ilusões. O sangue que derrama de você flui primeiro da sua mente. Se você deixar de acreditar na ferida, deixar de senti-la e vir a si mesmo como um homem são, seu corpo fluídico vai se recompor e você vai ver que não há nada aí além do que deveria estar.
Ela colocou uma das mãos sobre a ferida aberta e outra na fronte de Soriano, e o sangue encharcou os seus dedos. Após curtíssimo momento, como por milagre, a sangueira estancou, e as manchas vermelhas se dissiparam no ar feito éter. Não havia, em lugar algum, vestígio de sangue.
- Você fez um milagre! - exclamou Soriano, embevecido. - Cibele, você é um anjo de luz!
- Não fiz nada de mais. Eu apenas desviei momentaneamente o seu padrão mental da ferida sangrenta. Todavia, se você não alimentar essa crença, se a sua mente se voltar outra vez para a convicção de que há um talho na sua barriga que não para de sangrar, não serei eu que poderei conter o sangramento.
Em poucos instantes, como que cumprindo uma profecia, o sangue voltou a jorrar do abdome de Soriano, que o apertou freneticamente, na esperança vã de fazê-lo parar.
- Faça alguma coisa! - implorou ele. - Ponha as suas mãos milagrosas novamente sobre mim!
- Não crie ilusões desnecessárias, Soriano. Você é o responsável pela cura de si mesmo. Já lhe mostrei o caminho, agora cabe a você segui-lo ou não.
Soriano arriou no chão e começou a chorar, enquanto Cibele permanecia quieta, em silenciosa oração. Aos poucos, um fio energético e invisível foi-se estendendo para ele e penetrando por todo o seu corpo fluídico, levando-lhe uma sensação de conforto e paz. Como ele conseguira se acalmar, a prece de Cibele foi capaz de estabelecer uma união com a mente de Soriano, afastando de seus pensamentos a sensação da ferida.
O sangue parou de jorrar, e embora o talho permanecesse aberto no mesmo lugar, apenas um filete avermelhado percorria-lhe a extensão. Cibele estendeu a mão e alisou os cabelos de Soriano, que levantou os olhos e a encarou com gratidão.
- Leve-me daqui, Cibele - pediu ele. - Não aguento mais.
- Para vir comigo, basta querer.
Ele apanhou a mão dela, mas, assim que se levantou, colocou-se de frente ao leito de Aracéli, e o antigo ódio ressurgiu com toda intensidade.
- E ela? - perguntou, indicando Aracéli.
- Vai prosseguir com a sua vida.
- Se eu for embora, perderei o contato com ela?
- Certamente.
Ele soltou a mão de Cibele e se aproximou da cama.
- Não posso permitir que ela viva uma vida de felicidade enquanto eu me martirizo neste inferno.
- Disse-o bem, Soriano. É você quem se martiriza. Ninguém está lhe impondo o sofrimento.
- Ela! Ela fez isso comigo!
- Alejandro encontrou seus próprios meios de se reequilibrar com a vida. Por que não pensa em uma maneira de fazer o mesmo?
- Não posso permitir que ela seja feliz.
- Ela não é feliz. Não vê o que seu amigo Lúcio faz com ela?
- Bem feito!
- Não é benfeito nem malfeito. É o necessário, porque ela assim acreditou que seria. Aracéli já tem o seu fardo para carregar. Será que precisa de você para se debruçar sobre ele e acrescentar-lhe mais peso?
Soriano se voltou e fitou Cibele nos olhos, sentindo o quanto ainda a amava. O amor, contudo, não era mais poderoso do que o ódio que alimentava por Alejandro.
O que deseja, Cibele? - perguntou ele com voz sofrida.
- Não desejo propriamente nada. Pensei apenas que poderia despertar em você a compreensão da vida e a vontade de se modificar.
- Eu gostaria. Mas não saio do lado desse assassino enquanto não conseguir me vingar.
- Posso saber como seria essa vingança?
- Aracéli tem que morrer. Do lado de cá, vou providenciar a sua derrota definitiva.
- Alejandro já esteve do lado de cá, e você nada pôde contra ele. Ao contrário, foi o encarregado de seu esclarecimento a respeito da morte de seu corpo físico. Por que acha que, agora que Alejandro se modificou e se transformou em Aracéli, muito mais amadurecida, confiante e digna, você vai conseguir o seu intento?
- Eu tenho que tentar. Se não conseguir aprisioná-la, ao menos a terei feito sofrer e morrer.
- Morrer não é a pior coisa que pode acontecer a alguém em vida. Ao contrário, a morte é a chave da prisão. Só quando morremos nos libertamos das ilusões deste mundo e começamos a vislumbrar o caminho da verdade.
- Você fala muito bonito, Cibele, mas isso não é para mim. Vou conseguir matar Aracéli, você vai ver.
- Você não tem esse poder.
- Mas conheço quem tem e tudo vou fazer para inspirá-lo. Ou você vai tentar me impedir?
- Não posso. Não da maneira como você pensa.
- E de que maneira seria?
- Eu vou retornar, Soriano.
- Como assim, retornar?
- Vou reencarnar.
- Você vai voltar para lá? - ele apontou para o quarto e continuou sonhador. - Como eu gostaria de estar no seu lugar!
- Você pode estar não no meu lugar, mas comigo.
- Como?
- Posso esperar por você. Podemos planejar alguma coisa juntos.
- Você pode me esperar para ser minha mulher?
- Posso. Mas você vai ter que desistir de Aracéli.
- O que me pede é impossível, é maior do que minhas forças. Vingar-me de Alejandro é um sentimento poderoso que está infiltrado em meu próprio sangue.
- É por isso que ele não para de fluir. Quer mostrar a você o desperdício de energia que é a vingança.
Ele hesitou por uns momentos, e Aracéli remexeu-se na cama, atingindo sua atenção. Soriano permaneceu alguns minutos explorando o sono dela, para ver se teria acesso a seu corpo fluídico, mas ele estava adormecido junto com o físico e protegido por uma espécie de cerca energética que impedia sua aproximação.
- Amo você, Cibele - declarou ele, encarando-a com olhos úmidos. - Mas não posso desistir de Alejandro. Não depois de tudo por que passei para vê-lo sofrer. Fico feliz que você tenha a chance de reencarnar e gostaria de estar com você. Mas não posso. Tentarei acompanhar a sua nova jornada e, quem sabe, mais tarde, numa próxima vida, não poderemos nos reencontrar?
- Tudo é possível. E foi com essa esperança que pensei convencê-lo. Você não mudaria de ideia nem se soubesse que, prejudicando Aracéli, vai também me atingir?
- Isso é impossível! Você e Aracéli nada têm em comum. Ela está do lado de lá, e você, do lado da luz.
- Por enquanto. Não disse a você que vou reencarnar?
- Sim, mas...
- Vou reencarnar como filha de Aracéli, Soriano. E se você a matar, estará matando também a mim.
- Não!
- Os arranjos já estão feitos. Em breve, Aracéli vai engravidar de Licínio, e será a mim que ela carregará no ventre.
- Você não pode fazer isso!
- Já fiz. Foi a única maneira que encontrei de tentar evitar que você continue alimentando esse ódio insano. Isso tem que acabar.
- Você não compreende. Licínio não vai deixar Aracéli viver se souber que ela espera um filho seu.
- Pois então, tente impedi-lo. Com a mesma força que você busca matar Aracéli, lute pela minha vida. É a sua chance de se reencontrar com Deus.
- Mas você disse que poderia me esperar!
- E foi por isso que Aracéli não engravidou ainda. Porque eu tinha que falar com você primeiro e lhe dar essa chance. Mas você não a aceitou.
- Espere! Posso mudar de ideia. E se eu reconsiderar? Quero que você me espere. Vou voltar com você, e vamos reencarnar juntos. Por favor, não cometa essa loucura de reencarnar como filha de Aracéli.
- Suas palavras não são sinceras, Soriano. Posso ler em sua mente os sinais da mentira. Assim que eu desistir, você vai retomar os seus planos de vingança e se esquecer do compromisso que assumiu comigo.
Soriano silenciou. Ela tinha razão. Não estava sendo sincero nem conseguiria mudar de atitude tão rapidamente. O que ele pretendia, na verdade, era demover Cibele daquela ideia tenebrosa, porque não poderia prejudicar Aracéli se isso afetasse também a sua amada.
- Sinto muito - desabafou ele. - Eu queria que fosse assim, mas você tem razão. Não estou preparado para desistir de Alejandro.
- Você terá todos os motivos para reconsiderar. Ao pensar em destruir Aracéli, pense que me destruirá junto com ela. Antes ou após o meu nascimento, estaremos unidas em tudo, para o que nos acontecer de bom ou ruim.
Diante do ar estarrecido de Soriano, Cibele se despediu. Pousou-lhe um beijo terno nos lábios e esvaneceu num halo de luz, antes que ele pudesse protestar ou dizer qualquer outra coisa. Mesmo após a sua saída, sentia-se envolvido em doce perfume, que refrescava o seu coração e desanuviava sua mente, dando-lhe a oportunidade de raciocinar sem a trava da vingança.
Ele achava que o ódio por Alejandro era maior do que o amor que sentia por Cibele, mas ela conseguira plantar a dúvida em seu coração. Realmente, era mais fácil vingar-se do desafeto sabendo que a amada estava em segurança e muito bem protegida Todavia, como atentar contra a vida do outro e, ao mesmo tempo, aniquilar a única mulher que amava e que defenderia com a própria vida? Seria ele capaz de tirar a vida de alguém assim?
A resposta mais provável era que não.

CAPÍTULO 21

Nada do ocorrido naquela noite ficou registrado na mente de Aracéli, que sequer tomara conhecimento do drama que se desenrolara bem diante de seu leito. Conseguira até dormir mais tranquila, porque Licínio, temendo a atitude da mulher, não fora ao seu encontro naquela noite. Zenaide, contudo, a seguira até a beira do rio e, no dia seguinte, quando Licínio saiu para vistoriar o garimpo, foi logo contar tudo a Esmeraldina.
- E então, menina, o que foi que você viu? - indagou a mulher.
- Aracéli saiu do quarto no meio da noite, sinhá. Foi até a beira do rio, estendeu o cobertor e ficou lá sentada, olhando as estrelas.
- Ninguém apareceu?
- Ninguém.
- Muito bem. Pode ir.
Então era lá que eles se encontravam? Na beira do riacho, Bem perto de casa? O que Zenaide lhe dissera fazia sentido. Ela ficara acordada até tarde e adormecera com o corpo quase todo sobre o do marido, de forma que, se ele tivesse saído, ela teria percebido. Também não bebera vinho ao jantar. Licínio adquirira o hábito de servir-lhe além do necessário, e ela não pretendia mais se deixar embebedar para facilitar-lhe as fugas.
Na noite seguinte, o mesmo sucedeu. Esmeraldina recusou o vinho e custou muito a dormir, despertando ao menor sinal de ruído ou movimento dentro do quarto. Com isso, Licínio não conseguiu sair, e o que Zenaide teve a contar foi o mesmo do dia anterior. Aracéli saíra sozinha, esticara o cobertor e depois voltara para casa.
Na terceira noite, tudo igual, embora Esmeraldina já demonstrasse os sinais do cansaço que a falta de sono produzia. Mais uma noite, e ela começou a cochilar tão logo se deitou, mas ainda despertava quando percebia que Licínio se mexia a seu lado. Na quinta noite, contudo, não resistiu mais. As noites mal dormidas começaram a pesar, e ela ferrou no sono assim que seu corpo bateu na cama. Licínio esperou até que ela começasse a ressonar e experimentou movimentar-se. Esmeraldina soltou um ronco alto e virou para o lado, fazendo ruídos enquanto se encolhia sob o lençol.
Certificando-se de que ela dormia pesadamente, Licínio se levantou. Vestiu-se e saiu porta afora feito uma bala de canhão. Rápido e cheio de um fogo que lhe devorava as entranhas. Aracéli o aguardava no lugar de sempre, deitada no cobertor e de olhos cerrados. Licínio chegou apressado e, sem dizer nada, começou a despi-la, dando início ao seu ritual de amor.
De trás dos arbustos, Zenaide quase tombou sobre eles, tamanho o espanto que experimentava. Finalmente, alguém aparecera e, para sua felicidade, era justo o seu senhor. Esmeraldina lhe havia recomendado que voltasse ao quarto e a avisasse imediatamente, mas o fascínio da cena a paralisou. Uma inveja muda arrebatou o coração da escrava, que se pôs a imaginar-se no lugar de Aracéli, desfrutando da alegria de ser a preferida de Licínio.
Perdida em seus devaneios, Zenaide quase deixou a oportunidade escapar. Contudo, percebendo que Licínio havia terminado, e temendo que Esmeraldina lhe desse uma surra, abandonou o seu posto e voltou correndo, sacudindo a mulher com veemência.
- Acorde, sinhá Esmeraldina, ele está lá! O sinhô Licínio está lá na beira do riacho com Aracéli!
Esmeraldina teve que sacudir a cabeça várias vezes até perceber o que estava acontecendo. Ao ver a escrava gritando a seu lado, compreendeu tudo. O lugar de Licínio estava vazio, o que significava que ele estava nos braços daquela índia vagabunda.
- O que está dizendo, Zenaide? - sobressaltou-se Esmeraldina, enquanto acendia a vela na mesinha. - Que meu marido está lá na beira do rio com aquela cabocla?
- Sim, sinhá. Já deve até estar voltando.
- Por que não veio logo me avisar, sua estúpida? Eu não mandei que viesse falar comigo assim que alguém aparecesse por lá?
- Ai, sinhá, não me castigue, não. Fiquei com medo de sair de trás dos arbustos e sinhô Licínio me ver.
- Saia daqui! Não quero que ele a encontre.
A escrava saiu correndo bem a tempo de sumir de vistas quando Licínio chegou. Ele estranhou a luz em seu quarto e teve um mau pressentimento. Mesmo assim, entrou. Esmeraldina estava sentada em uma poltrona, as mãos fechadas sobre o colo, fitando-o com ar austero e frio.
- Dina! - espantou-se ele. - O que está fazendo acordada?
- Eu é que pergunto Licínio. Por que não está na nossa cama? E não me diga que foi urinar. Não aguento mais ver você ultrajar a minha inteligência.
Ele se aproximou em silêncio, sem saber o que dizer, e ajoelhou-se ao lado dela.
- Você é a única mulher que eu amo - desabafou, em tom que pareceu de desculpa.
- Ainda assim, você sai do nosso quarto sorrateiramente, no meio da noite, para se encontrar com aquela selvagem indecente e sem-vergonha!
- Do que está falando?
- Não adianta fingir, Licínio! Já sei de tudo. Você foi visto com aquela índia na beira do riacho, fazendo sabe-se lá o quê!
- Quem foi que lhe contou uma infâmia dessas?
- Atreve-se a dizer que é mentira? Por acaso você me toma por alguma camponesa ingênua e estúpida? Sei muito bem que você e Aracéli andam dormindo juntos.
Ela começou a caminhar nervosamente pelo quarto, e Licínio a acompanhava aturdido, dando voltas ao redor do próprio corpo, tentando encontrar uma desculpa convincente para dar. Não havia nenhuma. Esmeraldina era uma mulher vivida e inteligente, e qualquer coisa que ele dissesse soaria como um insulto.
- Perdoe-me, Dina - gemeu ele, vendo-se encurralado e sob pressão. - Ela não significa nada. Nada! Você é a mulher que eu amo.
- Então você confessa! Admite que se deitou com aquela índia? - ele assentiu envergonhado. - Que decepção, Licínio! E logo com uma cabocla suja?
- Ela não é suja...
- Não a defenda! Jamais ouse defender outra mulher em minha presença!
- Por Deus, Dina, ouça-me. Aracéli não representa nada para mim. É só um brinquedo, um objeto, uma coisa. Só me serve para o sexo. Não sinto nada por ela além de desejo. É a você que eu amo.
- Suponho que isso deveria servir-me de consolo.
- Não seja irônica.
- Você é quem está de ironias! Como pode chegar aqui e, descaradamente, admitir que tem dormido com a índia? Não tem vergonha? E o respeito? Perdeu o respeito por mim e por si mesmo?
- Tente compreender. Eu sou homem... ela ficou se insinuando. Você foi viajar, me deixou sozinho. Queria ter você, e você não estava aqui. No princípio, consegui me controlar. Mas a fome de sexo foi aumentando com a sua ausência, até que, um dia, não resisti mais. Quando Aracéli me provocou...
- Chega!
- Coloque-se no meu lugar - prosseguiu ele, sem dar ouvidos ao protesto de Esmeraldina. - Que homem se priva de sexo por muito tempo? Com certeza, nenhum. Você me deixou abandonado por quase três meses, Dina. Três meses! Por pouco, não enlouqueci.
- E resolveu se atirar nos braços da primeira vagabunda que apareceu, não foi?
- O que mais eu podia fazer? Aracéli ficava por aí, me provocando com aquele jeito brejeiro. Por várias vezes me contou o quanto era livre. Um dia, mandei Zenaide buscar Teodoro na beira do rio e, como ela estava demorando, fui ao seu encontro. Qual não foi a minha surpresa ao encontrar Aracéli completamente nua, junto com nosso filho. Imagine só o exemplo que ela estava dando a ele. Nadando nus, os dois! - ele fez uma pausa dramática, avaliando a reação dela, e prosseguiu: - Embora indignado, o pudor me impediu de me aproximar. Não queria que a escrava e meu filho vissem o meu constrangimento diante da nudez da cabocla. Mas não podia permitir aquele descaramento. Aracéli não tinha o direito de expor nosso filho a tanta falta de vergonha. Esperei até que Zenaide o levasse para dentro e só então me aproximei. Queria repreender Aracéli com todo o ímpeto de minha cólera, mas sabe o que ela fez? Atirou-se sobre mim e começou a me beijar e acariciar o meu corpo em partes que nem você, que é minha mulher, se atreve a tocar.
Nesse momento, Esmeraldina não conseguiu conter a repulsa e gritou contrariada:
- Basta! Poupe-me da sordidez de sua lascívia. Não quero escutar mais nada.
- Digo isso só para que você compreenda como é difícil para um homem sozinho resistir à provocação das mulheres. Aracéli pode ser índia, mas é jovem e bonita. Como acha que eu poderia resistir à tentação?
- Ela era virgem?
- Virgem? Que nada! - mentiu, e a mentira lhe deu um nó na garganta, que ele procurou engolir. - Já deve ter tido muitos homens antes de mim.
- E foi essa mulher que você trouxe para dentro da nossa casa, para cuidar de nosso filho!
- Como é que eu iria saber?
- Quando descobriu, deveria tê-la mandado embora.
- Deveria, mas não fiz. Esse foi o meu erro. Os prazeres que ela me oferecia eram tantos e tão diversos, que não consegui. Por isso, me penitencio e peço, humildemente, o seu perdão.
Ele se atirou aos pés de Esmeraldina, beijando-os em sinal de arrependimento e submissão. Foi tão convincente em seu teatro que ela se comoveu. Por uns instantes, tentou manter a postura da mulher austera e inflexível, mas logo se deixou amolecer e passou a mão gentilmente sobre a cabeça de Licínio.
- Não deveria perdoá-lo - falou com altivez. - Mas compreendo a sua fraqueza de homem. Aracéli é que não presta e deve, imediatamente, ser afastada desta casa.
- Como quiser, minha querida - concordou ele, mantendo a cabeça abaixada para que ela não percebesse a sua contrariedade.
- Quero que a mande de volta a padre Gastão agora mesmo. E diga a ele que, a partir de hoje, não precisaremos mais de seus serviços religiosos. Vou encontrar outro padre que não carregue uma meretriz na barra da batina.
A cabeça de Licínio girava com rapidez, tentando encontrar uma solução para aquele dilema. Não poderia simplesmente desfazer-se de Aracéli. Não estava ainda preparado para ficar sem o seu corpo quente e a sua boca macia. No entanto, não tinha forças para contrariar Esmeraldina, e o medo de que ela o deixasse foi-se transformando em pânico. Se não podia prescindir do corpo de Aracéli, era-lhe impossível viver sem a alma de Esmeraldina.
- Vou providenciar isso agora mesmo - anunciou ele, beijando a bainha da camisola da mulher. - E obrigado, amor da minha vida, por me perdoar e me dar uma segunda chance. Verá que não a decepcionarei e tudo farei para corrigir o meu erro.
Ele se levantou e beijou-lhe as mãos com reverência, saindo apressado para o quarto de Teodoro, onde Aracéli devia estar dormindo tranquilamente. No trajeto até os aposentos do filho, foi lutando com a mente para descobrir um meio de preservar as duas mulheres. Esmeraldina, que já o perdoara, continuava intocável em seu lar. Quanto a Aracéli, já sabia o que fazer.

CAPÍTULO 22

- Levante-se e vista-se! - ordenou Licínio, batendo nos ombros de Aracéli com exagerada impetuosidade.
Com o sono ainda leve de quem acabou de adormecer, Aracéli abriu os olhos rapidamente, surpreendendo-se com o olhar terrível e assustador de Licínio.
- Levante-se, já disse! - repetiu ele, quase derrubando-a da cama.
- O que aconteceu? - opôs ela, tentando erguer o corpo em meio aos sacolejos.
- Não discuta comigo, vagabunda! - exasperou-se. Seus dias nesta casa terminam hoje.
Com a gritaria, Teodoro despertou e fitou os dois cheio de susto. Sem nada entender, começou a chorar e saltou no pescoço de Aracéli.
- O que é isso, Aracéli? - choramingou o menino. - O monstro voltou?
- Não é o monstro - acalmou ela. - É seu pai.
O olhar de espanto do menino, que não reconhecera Licínio gesticulando no escuro, atravessou o coração do homem como uma agulha incandescente. Não queria deixar marcada no filho uma imagem de monstro, mas não tinha jeito. Ele agarrou a criança com força e puxou-a do colo de Aracéli, fazendo-a berrar e se debater.
- Me solta! Me larga! - gritava ele. - Quero ficar com Aracéli!
- Lamento, meu filho, mas, de agora em diante, Aracéli não trabalha mais aqui - e, virando-se para a moça, continuou a esbravejar: - O que está esperando? Não ouviu a minha ordem, meretriz?
Aracéli se levantou magoada. Ele estava fazendo um estardalhaço, atraindo a atenção dos escravos, que se assomavam à porta sem coragem de entrar. O mais rapidamente que pôde, Aracéli se vestiu e juntou suas coisas. Licínio fez sinal para os escravos, e Zenaide se adiantou, pegando Teodoro de Nus braços. O olhar de triunfo que lançou a Aracéli esclareceu tudo, tanto para ela quanto para Licínio.
Teodoro passou para o colo de Zenaide aos prantos, batendo nela e esticando os braços para alcançar Aracéli. A índia passou por todos de cabeça erguida e, ao cruzar com Zenaide, aproximou a cabeça do ouvido do menino e soprou:
- Não chore, Teodoro. Mesmo que eu vá embora, meu coração permanecerá junto ao seu.
O menino a fitou em lágrimas, mas se acalmou. Todas as pessoas da casa estavam nas proximidades, menos Esmeraldina. Licínio passou por eles também e agarrou o braço de Aracéli, puxando-a para o lado de fora.
- Fomos descobertos - foi só o que conseguiu sussurrar, enquanto saía com ela de casa.
Ele já havia dado ordens para que encilhassem dois cavalos e saiu puxando a montaria de Aracéli. Cavalgaram por um bom tempo, e ela começou a temer por sua vida. Do jeito que ele estava, parecia que ia matá-la. Chegaram a um casebre em ruínas e entraram.
- O que vai fazer comigo? - perguntou ela, mal ocultando o receio. - Por que me trouxe aqui? Que lugar é esse?
- Não faça tantas perguntas - respondeu ele, fitando-a diretamente nos olhos. - E não tenha medo, nada vai lhe acontecer. Vejo este casebre sempre que venho ao garimpo. Não sei a quem pertence, mas vai servir para você passar a noite. Amanhã, verei o que fazer com você.
- Acha mesmo que eu vou ficar aqui?
Ele apanhou uma corda e esticou-a, anunciando com certo sadismo:
- Tenho certeza.
Era demais a humilhação. Aracéli pensava que já havia se submetido a tudo, mas aquilo ultrapassava todo tipo de aviltamento a que alguém poderia se expor.
- Não faça isso - horrorizou-se. - Não sou um animal para ser amarrado.
- Acontece que, se eu deixá-la solta, você vai voltar correndo para a barra da saia do seu paizinho. E isso eu não posso permitir.
- Não vou fugir. Por favor, aceite a minha palavra.
Ele a olhou em dúvida e retrucou:
- E se você fugir?
- Se fugir, o senhor sabe onde me encontrar e conhece os meios para me castigar.
Licínio a fitou em dúvida, mas acabou concordando:
- Está certo. Vou dar-lhe um voto de confiança. Mas lembre-se: se tentar me enganar, nunca mais tornará a ver o seu padreco.
- Não se preocupe, dou-lhe a minha palavra.
- Ótimo.
- Será que o senhor não poderia contar a padre Gastão o que aconteceu?
- O quê? Dizer a ele que você é meu objeto de deleite? Nada me daria mais prazer, mas talvez não seja aconselhável no momento.
- Ele não sabe o que houve. Vai procurar por mim e ficar preocupado.
- Talvez você tenha razão. Foi uma das exigências de Esmeraldina que padre Gastão não reze mais missas em minha casa.
- Como foi que ela descobriu?
- Tenho quase certeza de que foi Zenaide quem contou, mas isso não importa agora.
- E como foi que Zenaide soube?
- Esmeraldina estava desconfiada e deve ter botado Zenaide para nos espionar. Isso também não me interessa. O fato é que não posso arriscar a felicidade do meu casamento.
- Por que não me deixa partir? - revidou ela, em súplica. - Já não está cansado de mim? E agora que dona Esmeraldina descobriu, não poderemos mais nos ver. Por favor, deixe me voltar para a casa de meu pai.
- Nunca! Só depois de morta é que poderá me deixar.
- Por Deus, senhor Licínio, tenha piedade! Não suporto mais viver assim.
- Pode chorar à vontade. Você me pertence, e é bom que jamais se esqueça disso. Se quer manter a integridade de padre Gastão, não me desafie. Você sabe do que sou capaz. E agora vou deixá-la. Ainda tenho uma missão a cumprir com ele.
- Diga-lhe que estou bem.
Licínio não respondeu, mas finalizou com ar ameaçador:
- Amanhã, quando voltar, nem pense em não estar aqui.
- Eu estarei.
Licínio não tinha certeza se havia agido corretamente deixando Aracéli solta, mas precisava confiar nela. O medo que a menina sentia de que ele machucasse padre Gastão era a garantia de que lhe obedeceria, e ele relaxou, certo de que ela não fugiria. Não enquanto o padre estivesse ao alcance de sua mira.
Dali, foi correndo para a igrejinha. Tudo estava às escuras, e ele passou pela lateral até chegar à casa do clérigo, atrás. Bateu à porta e esperou. Gastão logo veio abrir, talvez na esperança de que, de uma hora para outra, Aracéli voltasse para casa.
- Senhor Licínio! - alarmou-se. - Aconteceu alguma coisa a Aracéli?
- Deixe-me entrar - anunciou ele com superioridade. -Precisamos conversar.
Padre Gastão franqueou-lhe a passagem, e Licínio se instalou na cadeira que já ocupara antes. Deu uma olhada para o quarto do clérigo, com a cama desfeita, e sentiu o gosto da vitória umedecendo-lhe os lábios.
- Por Deus, homem - era a voz de Gastão, interrompendo seu regozijo, - diga-me logo o que aconteceu a Aracéli.
- Bem, padre - falou Licínio -, eu não estaria aqui a essa hora se não tivesse acontecido nada. Todavia, para tranquilizá-lo, aviso-o de que Aracéli está bem.
- Oh! - exclamou ele, fazendo o sinal da cruz. - Graças a Deus!
- Ela está bem e sob a minha proteção, embora não esteja mais em minha casa.
- Não está? Mas como? Para onde ela foi?
- Fui obrigado a escondê-la, depois que minha mulher descobriu que somos amantes.
Ele terminou a frase olhando bem fundo nos olhos de Gastão, aproveitando cada esgar de susto e indignação no rosto do sacerdote.
- O senhor não sabia? - prosseguiu Licínio. - Pensei que Aracéli lhe tivesse contado.
- Ela não tinha por que me contar, embora eu já soubesse - retrucou ele, friamente.
- Pois é. Essas indiazinhas são assim mesmo. Difíceis de serem domadas, sempre fazem o que querem. Aracéli se entregou a mim espontaneamente, não sem antes implorar que eu a possuísse.
- Está mentindo! - revoltou-se Gastão. - Aracéli não é esse tipo de mulher.
- Imagino que deva ser uma decepção para o senhor saber que a sua joia rara já passou por várias lapidações. Mas não se preocupe: isso é para deixá-la cada vez melhor.
- Se veio aqui só para me envenenar com as suas infâmias, pode ir embora - rebateu Gastão, remoendo a ira.
- Na verdade, vim para lhe dizer que minha mulher não o quer mais em nossa casa. Sabe como é, o senhor é o alcoviteiro da caboclinha.
- Eu não iria mais a sua casa nem que Deus me ordenasse!
- Blasfemando, padre? Quem diria!
- Para onde levou Aracéli? Quero vê-la.
- Infelizmente, isso não vai ser possível.
- O que fez com ela? Onde a escondeu?
- Não fiz nada, e ela está segura, muito mais segura comigo do que com o senhor. Aliás, acho até que ela prefere a minha companhia à sua.
- Pode me provocar o quanto quiser. Só me interessa o bem-estar de minha filha.
- Filha? Ela não é sua filha. Aposto que vocês já foram amantes. É isso. O senhor ficou velho e ela não conseguiu apagar a fogueira que arde dentro dela e me procurou. Diga-me, padre: alguma vez ela o beijou naquelas partes ocultas e íntimas, cujo desejo só a santidade da batina conhece?
Licínio estava passando dos limites. O que ele dizia era uma provocação desnecessária, um desrespeito, um insulto à dignidade e à honra de Aracéli, que sempre fora uma menina decente. Gastão tinha certeza de que ela só se entregara aos caprichos daquele brutamontes porque ele a obrigara e ameaçara, inclusive, matá-lo.
Sem pensar nas consequências, Gastão atirou-se sobre o outro com fúria e revolta, procurando acertar-lhe um soco no queixo. Licínio riu às gargalhadas, debochando da incapacidade e da fragilidade do sacerdote, que jamais agredira alguém em toda a sua vida.
- Herege! Canalha! Patife! - bramia o clérigo, tentando esmurrar Licínio.
O outro se esquivava com facilidade e continuava a rir, até que se cansou e juntou as mãos ao redor do pescoço de Gastão, fazendo-o parar de tentar agredi-lo e começar a se debater.
- Já fiz o mesmo com Aracéli, padre! - rilhou entre os dentes. - Não a matei porque ela me interessa. Mas o senhor... não tem serventia alguma para mim.
Empurrou-o para longe, e ele bateu no fogão, arfando e buscando o ar com agonia.
- Cachorro! - grunhiu Gastão, aparentemente sem medo de uma nova agressão.
- Para um padre, até que o seu repertório de imprecações é bem extenso. Será que está pensando em largar a batina? Por Aracéli, vale a pena. Mas não se apresse. Ela já tem dono, e não é o senhor.
- Saia daqui!
- Com todo prazer - ironizou.
Sustentando a arrogância e o ar de vitória, Licínio passou por Gastão e foi apanhar seu cavalo. Até que gostara de humilhar o padre. Por um momento, considerou devolver-lhe Aracéli, todavia, pensando melhor, mantê-la naquele casebre talvez fosse mais proveitoso. Longe de casa, poderia passar mais tempo com ela, sem se preocupar com a vigilância de Esmeraldina. Bastava descobrir a quem pertencia aquele casebre abandonado e, se fosse o caso, comprá-lo. Poderia decorá-lo e deixar Aracéli vivendo ali, onde seria só dele. Com as constantes ameaças a padre Gastão, ela continuaria se submetendo mais e mais, sem nem sequer pensar em fugir.
Admirando e elogiando a própria esperteza, esporeou o cavalo. Antes de tomar qualquer atitude com relação a Aracéli, precisava reconquistar a confiança de Esmeraldina.

CAPÍTULO 23

Não foi preciso que Licínio comprasse a velha choupana, abandonada por garimpeiros que haviam partido para uma residência melhor. Apenas levou alguns escravos e mandou que reformassem o lugar, tornando-o limpo e, na medida do possível, acolhedor. Aracéli desejava fugir, contudo, tinha medo do que poderia acontecer a seu pai.
- Quero ver padre Gastão - disse ela certa vez. - Já faz quase dois meses que estou aqui, e o senhor não me permite vê-lo.
- Para quê? Para tentar fugir? - retrucou ele com desdém. - De jeito nenhum!
- Se eu quisesse fugir, já o teria feito. Não estou presa nem amarrada. Bastava simplesmente abrir a porta e sair.
- Isso lá é verdade. Até que você tem sido boazinha e merece uma recompensa. Está certo. Vou providenciar sua visita ao padre. Mas não lhe conte nada a respeito deste esconderijo. Nem uma palavra sobre o local desta cabana, ou nunca mais tornará a vê-lo.
- Por que teme tanto padre Gastão? Ele nada pode contra alguém poderoso feito o senhor.
- Eu não o temo. Apenas não o quero se intrometendo em nossos assuntos. No final da semana, Licínio levou Aracéli, pessoalmente, para visitar padre Gastão. Assim que ele ouviu a voz de Aracéli, que entrara correndo no pátio da igreja, saiu apressado para abraçá-la. Por sorte ela chegara entre o horário das missas, de modo que ele teve tempo de ficar com ela.
- Minha filha! - exclamou ele. - Quanta saudade!
- Oh! padre, pai! Deus sabe o quanto senti a sua falta!
- Vamos deixar desses choramingos - interrompeu Licínio, fazendo cara de nojo. - Às oito da noite em ponto, mandarei alguém vir buscá-la, Aracéli. Não se esqueça do que lhe falei.
O clérigo olhou para Aracéli com ar interrogador, mas ela não disse nada. Depois que Licínio foi embora, Gastão passou o braço ao redor dos ombros dela e levou-a para dentro de casa.
- O que o senhor Licínio quis dizer com aquele: não se esqueça do que lhe falei?
- Ele não quer que o senhor saiba onde estou escondida -confessou ela, com olhos que revelavam profunda tristeza.
Gastão sentiu vontade de protestar, mas nada falou. Aracéli já havia sofrido demais, e talvez fosse melhor mesmo ele não saber. Do contrário, poderia ir visitá-la muitas vezes e provocar a ira de Licínio. Foi imensa sua alegria ao caminhar por entre os móveis simples, porém bem cuidados, e os cômodos cheios de luz. Passou pela cozinha, que também servia de sala, e pelos dois quartos, sentindo como amava aquele lugar.
- Há quanto tempo não durmo em meu quarto - considerou ela. - Sinto tantas saudades de minha vida aqui!
- Por que você não volta? Aqui é seu verdadeiro lar.
- O senhor sabe que não posso. O senhor Licínio não permitiria.
- Aos diabos com Licínio! - exasperou-se ele, logo em seguida fazendo o sinal da cruz. - Veja a que ponto esse homem me levou. Estou até praguejando contra Deus por causa dos desmandos daquele herege.
- O senhor Licínio é poderoso. Não sei do que seria capaz.
- Não a estou reconhecendo, minha filha. Você, que sempre foi uma moça livre e corajosa, com medo de um simples garimpeiro?
- Ele é mau - ela sussurrou, sentindo as lágrimas forçarem-lhe a vista. - Posso sentir a crueldade em suas palavras e seus gestos. Não tenho medo dele, pois várias foram as vezes em que o enfrentei. Temo, contudo, pelo que ele possa fazer àqueles a quem amo.
- Preocupe-se com você, Aracéli. Contra mim, ele nada pode. Sou um velho, já estou mesmo no fim da vida. Você, contudo, ainda é jovem, tem muito que viver.
- Não é verdade, padre, e nós sabemos disso - ela abaixou os olhos e segurou a mão dele. O senhor Licínio me tirou todas as chances de ser feliz.
- Cachorro! Quando penso no que ele a obriga a fazer...
- Não quero falar sobre isso. Pensar já me traz vergonha e humilhação. Falar seria uma dor insuportável.
Ele a abraçou e retrucou em lágrimas:
- A culpa foi minha. Deus falou ao meu coração que Licínio era uma pessoa egoísta e cruel. Mas eu não soube compreendê-lo.
- O senhor não tem culpa de nada. Fui eu quem quis ir trabalhar na casa dele.
- Não, minha filha, Deus falou comigo muito antes de Licínio entrar em nossas vidas, quando sua mãe me pediu que a entregasse ao seu povo. Naquela época, senti o quanto você poderia sofrer vivendo entre brancos mesquinhos e carregados de preconceito. Mas pensei que pudesse compensar isso com o meu amor. Não foi suficiente...
- Não diga isso! Seu amor foi o que de melhor eu poderia receber. E, depois, esquece-se de que meu pai era branco? Quem lhe garante que o meu povo iria aceitar uma criança sem sangue puro de índio? E se eles me evitassem também?
- Oh! Meu Deus, não sei mais o que é certo! Só o que sei é que você está sofrendo, e eu me sinto impotente para fazer qualquer coisa que a ajude. Sou um fraco, não posso enfrentar o senhor Licínio.
- Não quero que faça isso. O senhor não foi preparado para a luta. É um homem de Deus, um homem que veio ao mundo para semear a paz, não para empunhar armas.
- Sou um homem de Deus, mas não sou Deus. Apenas Ele não se revoltaria contra o que está acontecendo.
- Revolta, padre? Justo o senhor, falando em revolta?
- Sou humano, e o que o senhor Licínio está fazendo com você faz despertar o lado mais sombrio que o meu sacerdócio tenta ocultar.
Aracéli sentiu toda a força das palavras de Gastão, só então percebendo quantas lutas interiores ele devia travar consigo mesmo.
- Tem razão - falou ela. - Perdoe-me. Acostumei-me tanto a vê-lo como o padre que dirige almas que me esqueci de que o senhor também é uma alma que precisa de direção.
- Talvez eu precise até mais do que os outros, porque tenho responsabilidades para com aqueles que vêm me procurar. Se eu errar o caminho, todos que estão atrás de mim errarão também.
- Será que um sacerdote tem mesmo a função de conduzir as almas? Talvez ele tenha apenas que ajudá-las a encontrar o seu próprio caminho.
- Mas como é que eu posso ajudar alguém a encontrar o seu caminho se eu mesmo me perdi do meu?
- Não sei, padre, mas agora, refletindo em tudo o que o senhor me disse, acho que a sua responsabilidade para com as pessoas não pode ir além da orientação e dos conselhos.
- Sim, mas em que posso orientá-las, se me distanciei dos ensinamentos de Deus e pequei contra um irmão, desejando até mesmo a sua morte?
- Acho que pecado é uma palavra muito forte e pouco caridosa. Agora há pouco, o senhor mesmo me disse que era humano e tinha um lado sombrio. Por que lutar contra ele? Não seria mais fácil deixá-lo sair para, conhecendo-o, poder dominá-lo?
Ele a olhou espantado e respondeu, cheio de admiração:
- Você é uma alma nobre, Aracéli. Tem sentimentos que só podem ter sido adquiridos em algum lugar de suas vidas passadas.
- O senhor acredita nisso?
Gastão deu de ombros e acrescentou em dúvida:
- Não sei bem. A Igreja diz que é impossível, mas os índios editam, e é algo a se pensar.
- Também acredito - revelou ela, após breve reflexão. - E sinto, em minha alma, que o senhor Licínio e eu já nos encontramos em outra vida, e é por isso que ele faz essas coisas comigo. Acha que lhe devo alguma coisa.
- E você, pelo visto, também acredita que deve. Do contrário, não ficaria assim tão ligada a ele.
- E se for verdade? - ponderou ela. - Será que não é me- deixar que ele satisfaça a sua vingança e depois me deixe em paz?
- Esse raciocínio atenta contra a bondade e o amor de Deus. Vingança não é um sentimento que seja estimulado por Ele. Não, minha filha, não acredito que ninguém deva permitir a vingança, que só vai gerar mais vingança. O mal tem que acabar.
- Mas, padre, se há mesmo outras vidas, então, o senhor não só pode estar se vingando de algo que eu lhe tenha feito.
- Pode ser, mas não acredito que tenha que ser assim. Você já parou para pensar que Deus pode tê-los reunido aqui não para dar a Licínio a oportunidade de vingança, mas para que o ódio se desfaça e vocês aprendam a se amar?
- Como então explica a atitude dele?
- Acho que ele ainda não amadureceu espiritualmente e pensa, equivocadamente, que a vingança lhe trará alívio. Mas não trará. Isso é uma ilusão. A vingança é um engano que só traz sofrimento. Ninguém pode ser feliz com a consciência presa na culpa e na dor.
Aracéli se calou e ficou olhando para o clérigo, meditando sobre o que haviam conversado. Realmente, havia muito mais coisas envolvidas naquela trama do que uma simples coincidência.
- Talvez a minha consciência também esteja presa na culpa, e é por isso que eu não consigo realmente ser feliz.
Gastão puxou a cabeça de Aracéli e pousou-a sobre seu ombro, falando com indescritível doçura:
- Não sei por que você está passando por isso nem por que fui eleito o seu mentor. Todavia, precisamos unir nossas forças em prece e confiar na bondade daquele que nos guia. Eu, especialmente, tenho me desviado um pouco do caminho da oração, porque a minha alma se confrange toda vez que meu coração chora por você. Não podemos questionar os propósitos da vida, porque ela sempre nos conduz pela senda do crescimento. Precisamos confiar.
- Oh! Padre! - chorou Aracéli, abraçando-se com força a ele.
Ele afagou seus cabelos e beijou sua cabeça. Assim, entrelaçados, elevaram os pensamentos em prece e, de súbito, uma paz reconfortante foi-se espalhando no ambiente e em seus corpos.
- Venha escutar a missa das oito - chamou ele, quando já revigorados pela chama poderosa da oração e da fé.
Aracéli assistiu à missa e ajudou padre Gastão a ornamentar a igreja com flores para um batizado que aconteceria ao meio-dia. Ela se emocionou ao ver a criança nos braços da madrinha, lembrando-se do pequeno Teodoro, que deveria sentir muito a sua falta, assim como sentia a dele.
Do lado de fora da igreja, o espírito de Soriano encontrava-se sentado em uma pedra, atirando gravetos invisíveis nos pássaros que voejavam por ali. Os passarinhos, alheios à sua presença, continuavam catando pequeninos galhos físicos para levar aos ninhos.
- Mas que droga! - praguejou. - Por que é que nunca consigo seguir Aracéli até lá dentro?
Ele permaneceu parado, olhando para o alto como se esperasse que alguma voz invisível lhe respondesse, mas nada aconteceu. Seus pensamentos se voltaram para Cibele, e ele ficou imaginando por que ela não voltara para falar com ele. Será que já cumprira seu plano de reencarnar?
Soriano amassou um graveto, atirando-o longe, e ele foi despedaçar-se no tronco de uma árvore, transformando-se numa castanha que se desfez no ar. Pacientemente, aguardou até o fim do batizado, quando Aracéli surgiu em companhia de padre Gastão.
- Vou catar goiabas para fazer-lhe um doce - Soriano ouviu-a dizer.
Quando ela passou, ele se levantou e foi atrás dela. Aracéli entrou em casa com Gastão e, minutos depois, saiu, embrenhando-se na mata logo atrás. Soriano a seguiu, e uma sensação esquisita foi-se apossando dele. Viu-se, de repente, em outra selva, muito tempo atrás, seguindo Alejandro para tirar-lhe a vida.
A lembrança de seu antigo e pérfido intento causou-lhe estranho choque. Em sua sanha vingativa, não evocava o motivo que levara Alejandro a infligir-lhe tão horrenda morte. Fora ele que atraíra para si mesmo aquele destino trágico. Se não tivesse se deixado levar pela ambição, teria terminado os seus dias feliz ao lado de Cibele. Mas queria dar-lhe uma vida de princesa, mesmo contra os desejos dela, que só desejava casar-se com ele e levar uma vida simples e plena de amor.
Parou abruptamente, sem coragem de continuar seguindo Aracéli. Aquela floresta era outra, dizia a si mesmo, entretanto, não conseguia vencer o terror e prosseguir. Paralisado em seu terror, não pôde avançar, até que Aracéli retornou com as goiabas. Ela passou por ele sem se dar conta de sua presença e entrou em casa, feliz.
Subitamente, sentiu uma umidade morna descendo pelo seu corpo. A ferida voltara a sangrar, e Soriano apalpou o ventre na esperança de conter o fluxo. Não conseguiu. Tentou lembrar-se do que Cibele lhe dissera, porém, a mente embotada não encontrava a lembrança.
- O que está acontecendo comigo? - gemeu alto, mas nenhuma voz lhe respondeu.
Seus pés haviam-se desgrudado da terra, mas, ainda assim, não podia correr. Uma estranha força o prendia ali, como se suas pernas vestissem calças de chumbo. De onde estava, via e ouvia tudo o que se passava no interior da casa de padre Gastão. Foi obrigado a assistir o carinho com que ela lhe preparara o doce e os elogios que ele lhe fizera. Depois, acompanhou as conversas edificantes e reflexivas a que se entregavam e surpreendeu-se com a luminosidade rósea que envolvia toda a casa do padre.
Jamais havia percebido aquela luz tão brilhante e suave ao mesmo tempo. Só agora, que se encontrava impossibilitado de fugir, certos detalhes se lhe revelavam. Soriano, consumido pelo desejo de vingança, nunca compreendera realmente por que não conseguia entrar na casa do sacerdote. Pensava que o lar de um padre era o santuário de Deus. Agora, contudo, compreendia que não.
O que o impedia de entrar na casa de Gastão era a aura de proteção que o amor erguera em derredor. Por que nunca notara aquilo? Porque só naquele momento foi que o seu coração, tocado pela ternura de Cibele, conseguiu identificar um sentimento que ainda existia dentro dele, muito embora, naqueles anos todos, ele se houvesse esquecido de evocá-lo.

CAPÍTULO 24

Licínio tapava os ouvidos e caminhava de um lado a outro do quarto, tentando não escutar a gritaria que Teodoro espalhava pela casa toda. Fugindo da babá francesa, o menino se escondia nos cantos mais improváveis, pondo-se a berrar todas as vezes que ela o encontrava e tentava pegá-lo no colo.
- Viu o que você conseguiu, afastando Aracéli de Teodoro? - Licínio acusou Esmeraldina. - O menino parece estar possuído.
- Cruz-credo, Licínio! - Esmeraldina persignou-se e o encarou com zanga. - Teodoro foi mal-acostumado por aquela índia. Agora vai receber educação de verdade.
O berreiro diminuiu, e ele destapou o ouvido, acercando-se da mulher e tomando-lhe as mãos.
- Quando é que você vai me perdoar, Dina? - sussurrou com ar súplice. - Será que já não me puniu o bastante?
- Como posso perdoá-lo se você ainda pensa naquela sem-vergonha?
- Engano seu. Eu apenas acho que Aracéli era boa para Teodoro.
- E para você também, não é mesmo?
- Não diga isso, minha querida. Já lhe falei que Aracéli foi apenas mais uma prostituta. Você é que é minha esposa, a mulher pura e merecedora de todo o meu respeito e admiração.
- Não me venha com bajulações. Você ainda não me contou o que fez com ela.
- Eu a devolvi a padre Gastão, já disse.
- Ela que fique por lá! Teodoro está muito bem com Aneci.
- Bem se vê - ironizou ele. - Ele só falta bater naquela francesa branqueia e sem sal.
- Isso é porque ele ainda não se acostumou. Aneci é boazinha e vai pegar o jeito.
- Se ele vier um dia a compreender o que ela diz. Quem é que entende aquela fala nasalada e arrastada de erres?
- É muito fino. E quer saber? Não quero mais ouvir falar naquela cabocla desavergonhada. Se sente tanta falta dela assim, pode se juntar a ela na casa do padre. Aproveite e peça a ele para casar vocês dois.
- Que sacrilégio, Dina! Já sou casado e não quero outra mulher além de você.
- Pois, então, chega de falar em Aracéli! Ou vou pensar que você ainda a deseja e que a encontra às escondidas.
- Isso é um disparate! Nunca mais fui à casa de padre Gastão. Pergunte a quem quiser.
Ela o fitou em dúvida, mas não disse nada. Era melhor não cutucar muito, ou acabaria perdendo o moral. Para Licínio, era ui' alerta. Ele estava levando Aracéli aos domingos para ver padre Gastão, mas tinha que parar com aquilo. Alguém poderia vê-lo, e o que não faltavam eram mexeriqueiros que se compraziam em envenenar a vida alheia.
No dia seguinte, ele levou a notícia a Aracéli:
- Você não vai mais poder ver padre Gastão com tanta frequência. Minha mulher está ficando desconfiada e pode descobrir que a escondi.
- Mas, senhor Licínio, isso não é justo. Vivo aqui sozinha, e padre Gastão é minha única alegria.
- Lamento, Aracéli, mas minha mulher vem em primeiro lugar.
- Pois, então, permita que ele venha me ver. Ao menos uma vez.
- Não, de jeito nenhum!
- Por quê? O que ele poderá fazer contra o senhor se descobrir onde estou?
- Quem é que vai saber o que a cabeça daquele padre é capaz de tramar?
- Se o senhor tem medo de que ele me facilite a fuga, não deveria. Sabe muito bem que, se eu quisesse fugir, já o teria feito. Não envolveria padre Gastão nisso.
- Vou fazer o seguinte - retrucou ele, para encerrar o assunto: - Uma vez por mês, mando um escravo levá-la até ele. E é só.
Havia rancor nos olhos de Aracéli quando ela os voltou para ele:
- Tenho vivido em silêncio por todo esse tempo, obedecendo às suas ordens e submetendo-me à sua luxúria. Não vou permitir que me afaste de padre Gastão novamente.
- Você não tem que permitir nada. Será que ainda não se convenceu de que quem manda aqui sou eu? Mando nesta casa, em você e até em padre Gastão. E agora chega dessa conversa. Tenho sede do seu corpo.
Ele a puxou bruscamente e a beijou, mas ela o afastou com um gesto súbito. Tapando a boca com uma das mãos, correu porta afora, bem a tempo de evitar vomitar no soalho da sala.
- O que você tem? - perguntou ele, entre a preocupação e a desconfiança.
- Não sei dizer. Devo ter comido alguma coisa estragada. Desde ontem não me sinto bem.
Aracéli voltou para dentro, e ele ficou olhando-a com ar de suspeita. Seria possível que ela... Afastou o pensamento com a rapidez de um relâmpago, temendo que o pior tivesse acontecido.
- Como está o seu sangramento? - sondou ele, e ela silenciou, com medo da reação dele ao saber que estava grávida. Vamos, responda-me: como está o seu sangramento?
- Não é o que está pensando...
Licínio não disse mais nada. Saiu desabalado pela porta, montou no cavalo e disparou pela estrada poeirenta. Voltou duas horas depois, acompanhado de um homem que ela nunca havia visto.
- Venha cá, Aracéli - ordenou ele, puxando-a bruscamente pelo braço. - Tire a roupa e deite-se aí.
- O quê? - espantou-se ela. - Quer que eu me dispa diante de um estranho?
- Ele não é um estranho. É um médico e veio examinar você.
- Não estou doente - objetou ela, de má vontade.
- Sabemos que não está, não é mesmo? Mas o doutor está aqui para tirar a prova.
- Não preciso de médico.
Ela apertou a gola do vestido, como se quisesse proteger o corpo, e foi-se afastando para o canto da parede. O doutor fitou Licínio com impaciência e disse com irritação:
- Vamos logo com isso, senhor Licínio. Tenho muitos pacientes para atender.
O médico concordara em atender o seu chamado porque Licínio lhe pagara uma importância muito além dos seus honorários, mas não podia reter-se ali por muito tempo. Já bastante agastado, Licínio segurou Aracéli pelo pulso e atirou-a na cama falando com rispidez:
- Tire logo essa roupa, se não quiser que eu a rasgue.
- Não é preciso - contestou ela novamente. - Já sei o que ele vai encontrar.
- Mas eu quero saber! - vociferou Licínio.
- Eu estou grávida! - confessou ela, retendo os soluços.
Licínio se atirou sobre ela, que tentava afastá-lo a tapas. Deitou-a com brutalidade e rasgou toda a sua roupa.
- Examine-a! - gritou para o médico, enquanto ela chorava de humilhação.
O doutor fez um breve exame, mas só de olhar para a barriga de Aracéli já dava para reconhecer a gestação.
- Não sei como o senhor não percebeu - disse ele. - O ventre já demonstra um leve sinal de elevação.
- Arranque-o! - ordenou ensandecido. - Agora mesmo, arranque-o! Não quero um bastardo na família.
O médico guardou seus instrumentos na maleta e fixou bem o olhar em Licínio. Não entendia por que aquela gente se deitava com miseráveis feito as índias para depois se surpreenderem quando engravidavam. Contudo, não lhe cabia questionar os motivos de homens ricos feito Licínio, e ele simplesmente anunciou:
- Lamento, mas o que me pede é impossível. Há leis que o clero fez aprovar impedindo tal prática.
- Não há leis aqui entre nós. Faça o aborto e será regiamente recompensado.
- Não carrego comigo os instrumentos necessários e não estou familiarizado com essa operação. Todavia, se essa for mesmo a sua vontade, posso arranjar quem o faça, mediante quantia módica.
- O que está esperando, homem? Vá agora mesmo buscar essa pessoa!
- Para agora, não prometo. Amanhã, contudo, lhe enviarei uma parteira.
- Parteira? Isso é alguma piada?
- Uma mulher que está acostumada a esses serviços. Pague-a e tudo ficará bem.
- Está certo. Até amanhã, então. Mas não se atrase!
O médico apanhou a maleta e já ia saindo, quando voltou para dentro e, encarando Aracéli com desdém, indagou:
- Por que não manda que ela mesma faça? Esse povo índio conhece as ervas melhor do que ninguém. Duvido que ela não saiba de uma que seja abortiva.
Disse isso e saiu. Licínio voltou-se para Aracéli, mas ela foi logo se adiantando:
- Não é verdade, senhor Licínio. Eu nada sei sobre ervas. Fui criada por um padre, desconheço os segredos de meu povo.
- Idiota - murmurou ele.
- Por favor, deixe-me ficar com a criança. Para servir de alegria aos meus dias.
- Acha mesmo que vou permitir que você crie um bastardo? Um filho para se igualar a Teodoro? É muita audácia! Filhos só tenho com minha mulher legítima, que é e sempre será Esmeraldina. Você não é ninguém, Aracéli. É só... uma caboclinha apetitosa que me serve de distração - ele segurou-a pelos punhos, encarando-a com chispas nos olhos. - Minha cabocla, minha! Posso fazer com você o que bem entender. Quem vai descobrir? Quem vai se importar?
Aracéli não aguentava mais a humilhação. Ele a empurrou violentamente, e ela encolheu-se na cama, as lágrimas transbordando de seus olhos aos borbotões. Vendo-a tão frágil e tão indefesa, Licínio não teve compaixão, mas sentiu crescer dentro do peito a sensação de poder absoluto que detinha sobre ela. Aproximou-se do leito em que ela estava, nua e toda encolhida, e puxou os seus braços que abraçavam os joelhos. Forçou-a a deitar-se novamente e a beijou com fúria. Ela nem tinha mais forças para resistir. Apenas gemia baixinho e chorava, implorando a Deus que a levasse e a seu filho ainda não nascido.
Ele mordeu-lhe os lábios e olhou para ela, comprazendo-se com suas lágrimas. Ela estava deitada de costas, o corpo todo trêmulo exposto à luz das velas. Licínio foi admirando-lhe as formas, até que seus olhos ultrapassaram as coxas e se detiveram sobre o ventre. A elevação minúscula trespassou a sua vista como um dardo incandescente, e um ódio surdo se apossou dele. Instintivamente, fechou o punho e desferiu violento murro na barriga de Aracéli, que se dobrou sobre si mesma, presa de infinita dor e agonia.
O golpe foi tão forte que ela sentiu-se sufocar, um gosto acre de sangue subindo-lhe à boca. Debruçou-se sobre o ventre e vomitou em cima da cama, fazendo com que Licínio se afastasse, enojado.
- Por que fez isso? - gemeu ela, mal conseguindo articular as palavras.
Na esperança de que o feto não houvesse resistido ao golpe, Licínio permaneceu afastado, olhando com ansiedade para as coxas de Aracéli. Nenhum sangue desceu por ali, e a ideia de desferir-lhe um novo soco o assaltou, porém, algo deteve a sua mão. Talvez fosse melhor desfazer-se da cria com a erva abortiva que a parteira iria ministrar a Aracéli no dia seguinte.
Mal contendo a ansiedade, Licínio, logo pela manhã, partiu em busca do médico, que lhe forneceu o endereço da parteira. Ela estava prestes a sair para um parto, mas a soma em ouro que ele lhe ofereceu encheu os olhos da mulher de cobiça, e ela desistiu de atender à parturiente para ir com ele.
Aracéli estava na cabana, vigiada por Rufino, escravo de confiança de Licínio, e se encolheu quando ele chegou, tentando proteger a barriga com as mãos.
- Espere lá fora - disse ele para o escravo.
Rufino se foi, e Licínio aproximou-se de Aracéli com a parteira, que a encarava com ar divertido. A mulher abriu sua sacola e dela retirou um frasquinho. Entornou o conteúdo numa caneca e estendeu-a para Aracéli.
- Beba - falou com autoridade.
Aracéli não bebeu. Deu um tapa na caneca, que voou longe, derramando todo o líquido no chão. O sangue de Licínio começou a borbulhar nas veias, e ele agarrou a moça pelos ombros, sacudindo-a violentamente.
- Idiota! - vociferou ele. - Mil vezes idiota! O que foi que você fez?
Ela tentou se esquivar, mas Licínio a prendia com firmeza, fulminando-a com seu olhar de ódio.
- Deixe estar, senhor - sossegou-o a parteira. - Já prevendo essa reação, trouxe mais poções.
Ela abriu um novo frasco e, dessa vez, Licínio estava preparado. Deitou Aracéli na cama e imobilizou-a, enquanto segurava a cabeça dela para trás, forçando-a a abrir a boca. Num gesto rápido e preciso, a mulher deitou o líquido, que desceu pela sua garganta, fazendo com que Aracéli engasgasse e tossisse. Certificando-se de que ela engolira tudo, Licínio a soltou.
- Pode ir agora - falou para a mulher. - Já fez a sua parte. E lembre-se: nem uma palavra!
- Pode contar com a minha discrição, senhor. Não direi nada a ninguém.
A mulher não sabia quem ele era nem onde morava, nem lhe importava. Só o que queria era o dinheiro.
Aracéli ficou jogada sobre a cama, chorando amargamente a perda do filho que nem chegara a nascer. Nada disso comovia Licínio. Permaneceu alguns instantes a mirá-la com irritação, até que disse secamente:
- Quando esse filho descer pelas suas pernas, poderemos retomar nossa vida. Por ora, você me dá nojo - ele colocou a cabeça para fora da cabana, e o escravo reapareceu. - Tome conta dela. Amanhã voltarei para ver como estão as coisas.
Em seguida, partiu. Aracéli olhou para Rufino, que permanecia parado na porta, impassível. Naquele momento, sentiu que nada mais possuía que pudesse prendê-la à vida, ao mesmo tempo em que uma força invisível lhe dizia que não era hora de desistir.

CAPÍTULO 25

Um dia se foi, e nada aconteceu. Passaram-se mais dois, três, quatro dias sem que Aracéli desse mostras de que havia abortado a criança. As ervas que a mulher lhe ministrara não surtiram efeito.
Em casa, Licínio dava mostras de aflição ao caminhar de um lado a outro em seu gabinete ou ficar parado, o olhar perdido e a mente mergulhada no mar do desespero. Como era de se esperar, Esmeraldina percebeu-lhe o desassossego, e uma desconfiança indizível roubou-lhe a tranquilidade.
- O que está acontecendo? - perguntou ela.
Como é que Licínio iria lhe dizer que a índia que ela tanto detestava carregava no ventre um filho seu?
- Problemas no garimpo - mentiu ele.
A resposta de Licínio não a satisfez, mas ela fingiu acreditar. O que quer que fosse que estivesse acontecendo, era melhor não saber. Se havia problemas com a índia, que ele resolvesse sozinho.
Não era apenas Esmeraldina quem percebia a preocupação de Licínio. Os escravos também haviam notado, principalmente Zenaide, que ainda remoía o despeito por ter recebido de presente, em vez da maravilhosa joia com que sonhara, apenas um xale velho e puído.
Nesse ínterim, padre Gastão se contorcia de preocupação. Aracéli não aparecera naquele domingo, e Licínio não mandara ninguém avisar. Nos dias que se seguiram, a todo instante ele corria para a porta de casa ou pausava a liturgia sempre que escutava o ruído de alguém entrando atrasado na igreja. Mas nunca era Aracéli.
Quando ela não apareceu no domingo seguinte, tomou uma decisão: esperou até o término das missas matinais, montou em seu burrico e partiu para a casa de Licínio. O homem tinha que lhe dar alguma explicação.
Chegou perto da hora do almoço, e um escravo correu a anunciar a sua chegada.
- Padre Gastão? - surpreendeu-se Esmeraldina. - Aqui' Mas o que será que ele quer?
É claro que Licínio sabia o motivo que levara o outro a procurá-lo em sua casa e foi tomado de imensa raiva pela atitude do padre. Sem responder à mulher, saiu apressado ao encontro de Gastão. Ele estava na sala, em pé perto da porta, e Licínio agarrou-o pelo braço, puxando-o para o lado de fora. Passou pela lateral da casa e foi com ele para os fundos, levando-o até um tronco de árvore cuidadosamente talhado para servir de banco e estrategicamente colocado à sombra de uma mangueira.
- O que está fazendo aqui? - rilhou entre os dentes. – Minha esposa já não disse que não o quer em nossa casa?
- Quero saber onde está Aracéli. Exijo que me responda.
- O senhor não exige nada! Aracéli não lhe pertence mais Ela é minha!
- Ou o senhor me conta o que fez com ela, ou vou agora mesmo procurar sua esposa e dizer a ela que o senhor mantém Aracéli escondida.
- Quieto! - sibilou ele, apertando o braço do clérigo. - Faça isso e nunca mais a verá com vida.
- Está ameaçando-a de morte? Se quer que eu me cale diante dessa barbaridade, vai ter que me matar também!
- Muito nobre de sua parte, padre, mas sua vida não tem valor para mim. O senhor não é nada!
- Solte-me - replicou ele baixinho. - Ou vou começar a gritar.
- O senhor parece um maricas - desdenhou ele. - Já usa saias e se comporta como uma mulher. Vamos, dê os seus gritinhos!
As humilhações não atingiam padre Gastão, que só se importava com Aracéli. Alguma coisa em seu íntimo ficava martelando e dizendo que ela não estava bem.
- O que fez com Aracéli? - retrucou Gastão, olhando ao redor para ver se a via.
Com medo de que a atitude do padre acabasse atraindo a atenção de Esmeraldina, que devia estar em casa morta de curiosidade, Licínio respondeu calmamente:
- Ela não está aqui.
- Onde ela está?
- Em um lugar seguro.
- Que lugar é esse?
- Não posso dizer-lhe. Mas asseguro-lhe que ela está bem.
- Por que não a levou para visitar-me? Faz dois domingos que não a vejo.
- Não posso mais levá-la sempre. Vai ter que se contentar com visitas esporádicas, de acordo com a minha disponibilidade.
- Alguma coisa está acontecendo, senhor Licínio, sei que está. Exijo saber o que é.
- Não está acontecendo nada!
Nesse instante, a silhueta de Esmeraldina delineou-se na porta, e Licínio quis acabar logo com aquela conversa, para se livrar do padre o mais rápido possível e voltar para a esposa antes que ela resolvesse sair.
- Olhe, padre - disse ele, em tom mais ameno -, Aracéli está tendo uns probleminhas, mas nada que não se resolva.
- Ela está doente? - ele meneou a cabeça, e Gastão ficou algum tempo parado, pensando, até que exprimiu alarmado: - Ela está grávida!
O olhar silente de Licínio já dizia tudo, e Gastão abaixou a cabeça, escondendo entre as mãos os olhos umedecidos.
- Fale baixo, homem! - repreendeu Licínio, olhando ao redor. - Que isso não saia daqui, ou as consequências serão altamente desastrosas.
- Minha pobre menina... sozinha, com uma criança no ventre. Por favor, senhor Licínio, deixe-me vê-la. Permita-me levá-la de volta para casa. Cuidarei dela e da criança como sempre cuidei, e ninguém nunca ficará sabendo que o filho é seu.
A proposta até que era tentadora, mas ele não podia deixar arma tão poderosa nas mãos de seus inimigos. Só se o padre sumisse dali com Aracéli... Tudo ficaria bem, e ele não precisaria mais se preocupar com a índia nem com seu filho bastardo.
- Pensando melhor, padre, talvez o senhor esteja com a razão. Acho que já é mesmo hora de Aracéli desaparecer da minha vida.
- Deus seja louvado! Podemos ir buscá-la imediatamente.
- Calma, não se apresse. Eu não disse que ia buscá-la. Apenas concordei que seria boa ideia sumir com Aracéli da minha vida. Ela não pode continuar aqui. É perigoso demais. As más línguas falam, e logo Esmeraldina ficará sabendo. É imperioso que minha mulher não descubra nada. Muito menos Teodoro, meu único e legítimo herdeiro.
- Seu filho é uma criança amorosa e ficaria feliz com um irmãozinho vindo de Aracéli...
- Jamais ouse dizer isso novamente! - rugiu Licínio com raiva, apertando os ombros de Castão. - Meu filho, um menino branco, de linhagem pura, jamais poderia se misturar a um bastardo mestiço e rude.
Gastão engoliu em seco, mas não se deixou abater:
- Perdoe-me se o ofendi, senhor Licínio. Só o que quero é de volta minha Aracéli.
- Minha Aracéli - corrigiu ele. - Posso devolvê-la ao senhor com uma condição.
- O que quiser.
- Que o senhor a pegue e suma com ela daqui para sempre.
- Isso não é problema. Posso pedir a meus superiores que transfiram...
- De preferência, para uma paróquia do outro lado da colônia - interrompeu Licínio.
- O que o senhor quiser.
- Não posso permitir que Aracéli crie o bastardo - divagou ele.
- Não será preciso. Nós iremos embora daqui, e o senhor não terá notícias da criança.
- Não lhe dirá quem é o seu pai?
- Nunca.
- Jura?
- Juro - respondeu o clérigo, sem titubear. - Farei o que for preciso para salvar a vida de Aracéli e do filho que ela carrega.
- Ótimo. Providencie tudo para a partida e, quando estiver preparado, mande avisar-me. Só então trarei Aracéli.
- Pensei que o senhor fosse levá-la de volta imediatamente.
- Nada disso. Não posso me arriscar a expor a sua barriga. Já está ficando volumosa, sabe?
- E daí? Ninguém sabe de nada, e Aracéli vai ficar dentro de casa. Garanto-lhe que não vai aparecer em público.
- Não vou colocar em risco a honra de minha mulher e meu filho. Sempre há os mexeriqueiros, e alguém pode fazer um comentário maldoso. O senhor sabe como são essas coisas de maledicência, não sabe? A intriga logo se espalha, e aí, mesmo que não seja real, é no que todo mundo acredita. Ainda mais no meu caso, em que o mexerico é verídico.
- Mas Aracéli pode estar precisando de ajuda. Uma menina sozinha e grávida...
- Não se preocupe com isso. Aracéli não é mais menina há muito tempo. É uma mulher. E que mulher! O senhor nem imagina o quanto de experiência ela adquiriu comigo.
- Nada disso me interessa - cortou o padre, rispidamente.
- Pense no lado positivo - prosseguiu Licínio, deleitando-se com a repulsa de Gastão. - O senhor não vai mais precisar trabalhar para a Igreja. Pode ir viver com Aracéli e fazê-la trabalhar para o senhor, fazendo... o senhor sabe o quê. Garanto que não lhe faltarão clientes.
- Deveria se envergonhar! - exasperou-se Gastão, pondo-se de pé e encarando-o com revolta. - Eu sou um sacerdote e Aracéli é uma menina que foi violada em sua inocência. Nada que o senhor faça poderá macular a alma dela, que é pura e está livre dos seus pecados.
Ele acentuou bem as últimas palavras, apontando um dedo acusador para Licínio. Por uns momentos, o homem pareceu que ia reagir, mas logo relaxou as faces e sorriu maliciosa e sarcasticamente.
- Pode ir agora, padre - falou Licínio, enxotando o outro com um gesto de mãos. - E não se esqueça: quando tudo estiver pronto para a partida, avise-me. Entrego-lhe Aracéli, e vocês somem no mesmo dia.
Gastão sabia que não adiantaria mais tentar discutir com Licínio. Levantou-se furioso e voltou para o lugar onde havia deixado o burrico, retornando com incontida raiva a crescer-lhe no peito. Era-lhe difícil honrar a expressão do sacerdócio diante de um demônio feito Licínio.
Contudo, uma chance se abria. Ele estava disposto a aceitar qualquer paróquia, mesmo no mais remoto rincão, desde que levasse Aracéli consigo. E era isso mesmo que faria. Levaria sua filha dali, para um lugar onde ela pudesse criar a criança longe das atrocidades de Licínio.

CAPÍTULO 26

Depois que Gastão se foi, Licínio permaneceu arda alguns minutos sentado no banco e aguardando até que a emoção daquele encontro se dissipasse entre as árvores. Esmeraldina devia estar esperando que ele entrasse para despejar sobre ele uma saraivada de perguntas, para as quais lhe exigiria respostas convincentes.
Enquanto permanecia reunindo forças para enfrentar a mulher, um vulto pequenino se esgueirou entre as árvores, ocultando-se no mato e nos arbustos. Sem que ninguém percebesse, Zenaide os havia seguido. Ao perceber que a visita era de padre Gastão, tratara de se pôr em alerta. Quando Licínio o apanhou pelo braço, Zenaide foi espiar da janela e viu-os encaminharem-se para os fundos da casa. Da porta da cozinha, não foi difícil divisá-los no banco do pomar, e ela conseguiu escapulir sem ser notada e aproximar-se em total silêncio, disfarçando o som de seus passos com o rebuliço das aves refestelando-se ao sol.
Aproximou-se cautelosamente e tomou lugar no arbusto mais próximo, de onde tinha certeza que não seria vista. Ouvidos aguçados, pôs-se a escutar. A distância que havia entre eles não era pequena, de forma que ela ouvia parcialmente a conversa, pescando aqui e ali uma palavra de indignação ou raiva pronunciada em tom mais elevado.
Embora não conseguisse captar todo o sentido do diálogo, a menção à gravidez de Aracéli chegou nítida aos seus ouvidos. Ouvira claramente a afirmação do padre de que Aracéli estava grávida, e a reação de Licínio, que o mandara falar baixo. Era difícil para ambos manter o tom ameno da conversação, e se exaltavam a todo instante, tornando o colóquio perfeitamente audível.
De posse da preciosa informação, Zenaide aguardou até que padre Gastão se levantasse para então voltar à casa dos patrões. Por sorte, Licínio ficara onde estava, dando-lhe a oportunidade de chegar primeiro e contar a novidade a Esmeraldina.
- O que foi, Zenaide? - perguntou a mulher de má vontade, mais interessada no retorno do marido. - Estou ocupada.
- Não quer saber o que sinhô Licínio estava conversando com o padre? - retorquiu ela, em tom malicioso e divertido.
- O que você sabe disso?
- Eu ouvi tudinho o que eles disseram.
- Como?
- Sou esperta, sinhá. Quando vi o sinhô correndo com o padre para o pomar, logo vi que devia ser para tratar de alguma coisa sobre Aracéli. E foi isso mesmo. O padre veio aqui para saber da índia.
- Tem certeza?
- Tenho, sim. O padre estava muito preocupado.
Zenaide fazia mistério de propósito, guardando a melhor parte para o final.
- Mas, então, Aracéli não voltou a morar com ele - disse Esmeraldina.
- Não, sinhá. Sinhô Licínio escondeu ela.
- Onde?
- Isso, eu não sei. Mas sei de uma coisa que é muito pior e que a sinhá vai ficar furiosa se souber.
- O que é? Vamos, criatura, conte-me logo! Ou quer levar uma surra?
Antegozando cada palavra, Zenaide contou a Esmeraldina sobre a gravidez de Aracéli e o plano de Licínio e do padre para levá-la para longe. Ficou observando o rosto da mulher mudar de cor a cada parte da revelação, desde o lívido, quase desmaiado, até o rubro lustroso e explosivo.
- Infame! - esbravejou ela, por fim. - Canalha! Patife! Vil! Imundo! Obsceno! Degradado! Desprezível!
Esmeraldina seguia com seu repertório de pragas, que Zenaide, à exceção de imundo, não conhecia. Imaginou, contudo, que não deviam ser palavras boas, do contrário, ela não estaria com o rosto em chamas e a língua cuspindo fogo.
Em pouco tempo, Licínio recuperou o ânimo e resolveu voltar para dentro de casa. Ao aproximar-se do quarto, ouviu a voz estridente da mulher, e as imprecações perfuraram seus ouvidos. Por um momento, tomado de susto pela energia de ódio que ela espalhara no ambiente, Licínio sentiu medo e pensou em voltar. Seria possível que ela houvesse escutado a sua conversa com padre Gastão? A imagem de Esmeraldina saindo sorrateiramente de casa e embrenhando-se na mata para ouvi-los não casou bem com o que ele conhecia da mulher, e Licínio teve certeza de que ela nada escutara pessoalmente.
Precisava, contudo, enfrentar a sanha descontrolada da mulher e descobrir do que se tratava. Enchendo-se de coragem, abriu a porta do quarto e entrou. A primeira coisa que viu foi Zenaide parada a um canto e, num átimo, compreendeu tudo. Já andava mesmo desconfiado de que fora ela quem o delatara à mulher. Deu uma olhada ameaçadora para a escrava e aproximou-se da esposa, que gritava com Zenaide, de costas para ele.
- Dina - chamou ele, e ela se virou para olhá-lo. - O que foi que houve?
- Saia daqui, Zenaide - ordenou ela friamente.
A escrava se foi, e Licínio desejou ir atrás dela para aplicar-lhe uma sova. No entanto, o ar intimidador de Esmeraldina o paralisou. Cuidaria da escrava depois.
- Posso saber o que está acontecendo? - insistiu ele, já conhecendo a resposta.
- Como se atreve a entrar aqui assim, seu descarado? Depois de tudo o que fez?
Ela avançou para ele com ar tão aterrador, que Licínio recuou, temendo que ela tivesse em mãos alguma faca oculta.
- Do que está falando? - tornou ele, não querendo fazer revelações antes de ser acusado.
- Você sabe do que estou falando! De você e de sua prostituta índia!
- O que foi que lhe contaram, Dina?
- Não me obrigue a repetir as infâmias que ouvi a seu respeita! Seria uma humilhação desnecessária. Já não basta eu saber que a sua amante está esperando um filho seu, e com as bênçãos de um padre da Igreja?
- Você se deixa impressionar pelas palavras de uma negra? Vai dar crédito ao que Zenaide contou?
- E ela mentiu, por acaso? Vai me dizer que Aracéli não está grávida?
Não adiantava mais mentir, e a afirmação de Licínio buscava uma brecha para a desculpa:
- Sim, mas...
Todo o sangue de Esmeraldina borbulhou, tornando seu corpo tão quente quanto a cratera de um vulcão, e ela vociferou, cuspindo lavas:
- Mas o quê? Ela está grávida, mas o filho pode ser de qualquer um? É nisso que espera que eu acredite?
- Não... Mas estou tomando minhas providências. Vou fazer com que ela desapareça de nossas vidas para sempre.
- O único jeito de fazê-la desaparecer para sempre é acabar com a vida dela - sugeriu Esmeraldina, os olhos ofuscantes como a sombra do mal.
- Você quer dizer matá-la?
- A ela e ao seu bastardo imundo! Ou pensa que vou dividir o lugar de Teodoro com uma criança morena de sangue selvagem?
- Não precisa. Padre Gastão irá levá-la embora...
- Aonde quer que ela vá, o fruto do seu pecado vai estar com ela, pairando sobre nossas cabeças como um machado inimigo prestes a nos desfechar o golpe fatal.
- Você exagera. Ela é apenas uma índia, nada pode contra nós, que somos ricos e poderosos. E eu estou prestes a receber o título de barão.
- Pior ainda! Espera exibir o seu título sobre a desonra de um bastardo?
- Não é bem assim, Dina. Vou lhes dar dinheiro, e eles vão sumir.
- E voltar um dia para exigir os direitos do seu bastardo?
- Eles não farão isso. Tenho a palavra de padre Gastão. Além do mais, a criança não terá direito algum. Apenas Teodoro é fruto de nossa união abençoada. Aracéli é só... uma prostituta cabocla.
- Pois eu exijo que essa prostituta morra, bem como o filho que está emprenhado nela. Ou você a ama tanto que não pode ficar sem ela? É isso, Licínio? Você a ama, a ela e a seu filho, mais do que a Teodoro e a mim?
- Não cometa um sacrilégio desses! Você e Teodoro são tudo o que tenho. Aracéli serviu apenas para minha diversão.
- Pois está na hora de você cancelar seus divertimentos. Acabe com ela e com aquele padre indecente se ele ousar interferir.
- Tenha calma, Dina. Matar Aracéli é uma coisa: ela é índia, e ninguém vai se importar com uma índia a menos no mundo. Mas padre Gastão é um homem da Igreja. Pode ser que haja algum tipo de reação.
- Não me interessa! - vociferou ela, ensandecida. - Só o que quero é que se livre da cabocla! Livre-se daquela ordinária, ou voltarei para a casa de meus pais em Salvador, levando Teodoro comigo. E ninguém vai conseguir me impedir.
- Você não faria isso. Seria uma vergonha para a sua honra de mulher casada.
- E uma desonra a pesar na sua pretensão ao baronato.
- Não faça isso, Dina, eu lhe imploro - ele se atirou a seus pés, beijando-os em sinal de humilhação. - Sou capaz de qualquer coisa por você e Teodoro. Mas, por favor, não me abandone. De nada valem títulos e ouro sem o seu amor e o de meu filho.
- Como ousa falar em amor depois de tudo o que fez?
- Não confunda as coisas, minha querida. Aracéli é apenas um joguete, um capricho da minha vaidade masculina. Nada é, se comparada a você. Você é a minha doçura, minha vida, sustentáculo da minha existência, a única mulher que amo e por quem vale a pena viver. E Teodoro... não tenho palavras para descrever, mas eu seria um homem pela metade se perdesse o amor e o respeito do único ser que posso chamar verdadeiramente de filho.
As declarações de Licínio foram consideradas satisfatórias por Esmeraldina, que deixou escapar o sorriso arrogante da vitória.
- Se é assim - prosseguiu ela com a superioridade do triunfo -, faça o que lhe peço: mate Aracéli e livre-nos de sua cria espúria. É a única maneira de me manter ao seu lado.
Controlando o pânico, Licínio conseguiu retrucar, com aparente segurança:
- Farei como você me ordena, porque a sua vontade é lei. Hoje mesmo, providenciarei alguém que dê desfecho a esse drama.
- Não. Você tem que fazer isso pessoalmente. Só assim vou acreditar que não a ama e não se importa com ela nem com seu filho bastardo. E quero ver o seu corpo sem vida. Será uma prova de amor e fidelidade a mim.
Aquela ordem fora inesperada e Licínio saiu derrotado, deixando a Esmeraldina o sabor da vitória. Não contava com aquela determinação. Encarregar Rufino de dar cabo de Aracéli não seria tão ruim. Matá-la pessoalmente exigiria dele muita coragem e frieza. Tudo por causa daquela maldita escrava! Quando voltasse, pensaria no castigo mais apropriado para Zenaide. Por ora, tinha que se concentrar na dolorosa tarefa de, com suas próprias mãos, tirar a vida de Aracéli e levar seu corpo inerte para saciar a sede de vingança de sua mulher.

CAPÍTULO 27

Na frente de Licínio, partiu Soriano, aterrado. Do lado invisível, acompanhara toda a conversa, sem perder qualquer detalhe. Assim que soubera que Aracéli havia engravidado, perdera o sossego. A hesitação que sentira a princípio cedera ao amor que tinha por Cibele. Um aborto poderia causar muita dor e sofrimento a ela, e ele já a fizera sofrer demais; Cibele não merecia mais uma tragédia em sua vida.
Decidiu que poderia se vingar de Alejandro depois. O importante agora era preservar a integridade de Cibele, e se ela escolhera o ventre de Aracéli para se abrigar, era essa a pessoa que ele precisava proteger em primeiro lugar.
Quando Licínio desferira aquele soco inesperado na barriga de Aracéli, Soriano sentiu como se o murro tivesse sido endereçado a ele também, só de imaginar o que teria sentido Cibele lá dentro, recebendo em seu corpo pequenino e indefeso aquele golpe violento. Por proteção divina, o murro não danificou o envoltório físico da criança, muito embora Cibele, em estado quase adormecido, ainda não totalmente ligada ao feto, tivesse tido uma espécie de convulsão.
Aquilo foi o estopim na mente de Soriano. Ele não chegara a ver, mas percebera o sofrimento de Cibele através de uma corrente magnética que o ligava a ela pelos laços afetivos que ela, recentemente, fora despertar. Em desespero, Soriano soprou ao ouvido de Licínio que deveria esperar pela parteira, em vez de usar de violência, e surpreendeu-se quando ele assentiu à sua ideia. Mal sabia que, num plano invisível e superior ao seu, espíritos iluminados enviavam, a distância, fluidos capazes de atuar na mente do encarnado e desestimular o golpe fatal.
Quando Licínio mandara chamar a parteira, o próprio Soriano envidara esforços para impedir o assassinato da amada, convocando seus comparsas para ajudar. Por determinação superior, espíritos treinados na manipulação de energias foram enviados para obstar o aborto. Haviam adquirido o conhecimento nos muitos anos passados no astral inferior, protegendo antigos companheiros de trevas. Espíritos de luz poderiam ter ido pessoalmente, mas acabariam assustando Soriano, ainda despreparado para o contato com seres mais elevados. Foi por isso que, em respeito a ele, somente espíritos seus conhecidos comparecerem, portando elementos fluídicos neutralizadores da energia abortiva das ervas que Aracéli havia ingerido.
Encerrado o trabalho silencioso, os espíritos se despediram de Soriano e voltaram a seu próprio mundo de sombras, muito embora o gesto de auxílio, prestado de boa vontade e sem queixas, lhes tivesse conquistado a simpatia e a admiração dos seres superiores, angariando créditos a seu favor. Gomo resultado, a poção inexplicavelmente não surtiu efeito, e a gestação de Aracéli prosseguiu incólume.
Agora, contudo, Licínio pretendia matá-la com suas próprias mãos, e contra o ato consciente e determinado dos encarnados, os espíritos nada podiam. Soriano lhe sopraria conselhos, chamando-o à razão e tentando despertá-lo para a impropriedade do crime. Mas não havia espírito que conseguisse segurar-lhe a mão e impedir o golpe.
Como Licínio não era acessível, envolvido que estava pela energia de ódio de Esmeraldina e pela sua própria vibração de medo e o desejo de se ver livre de um estorvo, Soriano nada conseguiu com ele. Licínio nem de longe percebeu-lhe as palavras. O jeito mesmo era tentar Aracéli.
Encontrou-a adormecida. No cômodo contíguo, Rufino tirara as botas e se distraía esculpindo imagens toscas de madeira com a ponta do facão. O corpo astral de Aracéli permanecia flutuando alguns centímetros acima do físico, e Soriano o tocou gentilmente. Ela despertou e, reconhecendo-o, quis fugir, mas ele foi mais rápido e segurou-a pela mão, impedindo-a de retornar ao corpo e desfazer o contato com ele.
- Espere um momento - disse ele, transmitindo-lhe certa calma. - Não quero lhe fazer mal.
- Já sonhei com você - rebateu ela, desconfiada. - Do que me acusa?
- Não estou aqui para acusá-la. Vim para avisá-la de que você corre grande perigo. Licínio está, agora mesmo, vindo aqui para matá-la.
Ela não duvidou nem um momento, sentindo a vibração de veracidade nas palavras dele. Instintivamente, colocou a mão sobre o ventre diáfano e rebateu com angústia:
- E agora? O que devo fazer?
- Você tem que fugir.
- E o escravo lá fora?
- Tem que haver algum jeito de passar por ele.
- Ele é grande e é mau. Não vai ter piedade nem me deixar sair.
Nesse momento, um estrondo se fez ouvir, e Licínio irrompeu pelo quarto. Na mesma hora, o envoltório físico de Aracéli despertou, puxando de volta o seu corpo fluídico, que não reteve quase nada do breve diálogo que mantivera com Soriano. Apenas a sensação de perigo permaneceu, e, ao olhar para Licínio, sua alma evocou o alerta de que ele estava ali para matá-la.
- Vá para casa imediatamente! - ordenou ele a Rufino, que o seguira até o quarto. Não queria testemunhas de sua covardia.
O escravo não pensou duas vezes. Conhecia bem o patrão e identificava, como ninguém, quando ele estava dominado pela fúria. Mais que depressa, enfiou as botinas, apanhou a escultura malfeita do que deveria representar um de seus deuses africanos e saiu, pensando na alegria de sua mulata ao receber o rústico presente.
Em desespero, Soriano gritava e tentava, em vão, acertar o rosto de Licínio, atirando sobre ele réplicas astrais dos objetos presentes. Nada surtia efeito, porque o invólucro físico e grosseiro de Licínio não sentia as vibrações provenientes daquele outro plano. Mesmo assim, Soriano ia jogando sobre ele o que encontrava, coisas que iam sumindo no ar à medida que a matéria sutil que as compunha se diluía na atmosfera.
Viu o facão que o escravo, na pressa de sair e recolher o presente da amada, esquecera deitado sobre a mesa. Atirar aquela réplica astral sobre Licínio não adiantaria. Tampouco podia levar o facão físico a Aracéli, que não era dotada de sensibilidade para auxiliar a movê-lo. O jeito então era mudar de método. Chegou para perto dela e pôs-se a gritar o mais alto que podia:
- A faca! O escravo esqueceu a faca!
No princípio, Aracéli não percebeu a movimentação invisível, preocupada que estava com a ameaçadora aproximação de Licínio.
- O que você quer? - perguntou ela, aterrada.
- Por que não me obedeceu, Aracéli? - retrucou Licínio, o olhar ensandecido de ódio. - Por que não tirou do ventre essa coisa indesejável?
- Não foi culpa minha. As ervas que a mulher me deu não fizeram efeito.
- E, agora, veja no que deu. Vou ser obrigado a me desfazer de você.
Ela engoliu em seco e sondou em pânico:
- Como assim?
- O idiota do padre foi procurar-me hoje - prosseguiu ele, como se ela não estivesse ali. - E sabe o que aconteceu? Aquela estúpida da Zenaide ouviu tudo o que conversamos e correu a contar a Esmeraldina. Você pode imaginar o escândalo que ela fez.
À medida que ia falando, Licínio foi-se aproximando de Aracéli, que recuava para a sala, com Soriano gritando e gesticulando a seu lado, apontando para o facão que jazia sobre a mesa.
- Pegue a faca, Aracéli, a faca!
- Minha mulher me perdoou - continuou ele. - Mas impôs condições. Será que você é capaz de adivinhar que condições seriam essas? - Ele chorava enquanto falava, dando mostras de um quase desespero. - E agora... o que posso fazer? Diga-me, Aracéli, que escolha eu tenho? Ela me mandou acabar com você e o seu filho... nosso filho.
- Por favor... - suplicou ela, andando para trás e batendo nos poucos móveis espalhados pela sala.
- Eu tentei, Aracéli, juro. Tentei poupá-la, mas Esmeraldina foi implacável. Está no direito dela, acho, livrar-se da rival que ameaça a sua família. Não quis aceitar o plano que eu havia traçado com padre Gastão...
- Padre Gastão? - repetiu ela, sentindo um lume de esperança aquecer-lhe o peito.
- Falei que ele foi me procurar. Era para ele sumir com você de Vila Rica, ir para bem longe. O coitado deve estar até agora fazendo os preparativos de uma viagem que não vai acontecer. Pobre padre... - Ele deu um soluço alto e emendou: - Minha pobre Aracéli... Prometo que não vou deixá-la sofrer...
- Por Deus, senhor Licínio, poupe-me! Eu juro que fujo com padre Gastão e nunca mais apareço por aqui. Mas não me mate. Pelo nosso filho, deixe-nos viver!
- Não posso - sussurrou ele. - Como gostaria de poder, mas não posso. Fiz uma promessa a Esmeraldina.
- Ela não vai saber. Diga que me matou e me enterrou ou entregou meu corpo para as onças comerem. Mas, por favor, poupe-nos!
- Não posso, Aracéli, não posso! Prometi a ela que lhe mostraria seu corpo sem vida.
Licínio estava em lágrimas, mas não retrocedeu. Foi como se estivesse possuído por uma sanha assassina incontrolável e maligna. Num gesto rápido, atirou-se sobre Aracéli, que tombou em cima da mesa, e envolveu-lhe o pescoço miúdo com suas mãos brutas. O corpo da menina se dobrou sobre o móvel, e o ar, lentamente, começou a faltar-lhe nos pulmões. Desesperada, ela tentou afastar as mãos de seu agressor da garganta e, ante a inutilidade da luta, começou a debater-se em agonia, atirando para longe as estátuas inacabadas que o escravo deixara ali.
- A faca! - gritava Soriano, tentando direcionar sua mão. Pegue a faca!
Guiados pelos fluidos que o espírito atirava na direção dela, os dedos de Aracéli tocaram a lâmina fria e, como se escavassem a salvação, conseguiram puxá-la, virando-a freneticamente para firmar nas mãos o cabo grosseiro. Ela estava prestes a desfalecer, mas Soriano fazia irradiar em sua direção vibrações imperceptíveis e débeis suficientemente fortes para auxiliá-la a sustentar o peso do facão e erguê-lo.
O gesto foi tão rápido que Aracéli nem se apercebeu de que havia cravado a faca nas costas robustas de Licínio. Só quando ele afrouxou a pressão em seu pescoço e começou a se agitar numa espécie de dança fantasmagórica foi que ela se deu conta de que ele tentava alcançar com a mão o cabo do facão enfiado no dorso. Inútil, porém. A faca entrara fundo, perfurando-lhe os pulmões e sufocando-o com o sangue que afluía aos borbotões.
Sob o olhar aterrado de Aracéli, Licínio sentiu que a vida lhe esvaía. Esticou as mãos para frente, na tentativa de alcançá-la, mas seus dedos estreitaram o vazio. Paralisada, a moça assistia à agonia daquele homem que roubara sua alegria e sua juventude, mas a quem ela não permitiria roubar-lhe também o filho.
Os olhos de Licínio tornaram-se opacos, e ele desmoronou no chão com estrépito, agitando-se em todas as direções como alguém que não aceita a irreversibilidade da morte. Resistia, o olhar colérico fincado em Aracéli, derramando sobre ela toda a força de seu ódio. Custou muito para Licínio perder a consciência, até que, por fim, cuspindo sangue e estertorando diabolicamente, arregalou os olhos e expirou, deixando impressa em Aracéli a visão assustadora de seu olhar maligno em seu derradeiro instante de vida.
- Agora fuja! - berrou Soriano, a quem foi dado ver os espíritos trevosos que arrastaram um Licínio inconsciente para o fundo da terra.
Como se ouvisse as palavras do espírito, Aracéli rodou nos calcanhares e destrancou a porta, ganhando o mato com a rapidez de uma febre. O ar fresco da noite clareou-lhe o raciocínio fazendo-a perceber que, se quisesse chegar a algum lugar sem ser alcançada, teria que arranjar montaria urgente.
Montou como um raio no cavalo de Licínio, que seguiu em disparada pela estrada. Por sorte, a lua reluzia argêntea, iluminando a estrada de barro batido por onde pisoteavam os cascos do animal. Foi circundando a cidade, até se aproximar dos fundos da casa de padre Gastão. Soltou o cavalo mais ao longe afugentou-o. Correndo pela mata, adentrou o pátio e esmurrou a porta:
- Padre Gastão! Padre Gastão!
Não foi preciso chamar muito. Assim que ouviu sua voz Gastão escancarou a porta, recebendo-a em seus braços.
- Aracéli, graças a Deus! Como eu rezei para que você pudesse voltar.
- Eu o matei, padre! - desabafou ela aos tropeços, com a voz grave e assustada. - Matei o senhor Licínio!
- Meu Deus!
Ele recuou aterrado, passando a tranca na porta e correndo a fechar as cortinas. Vislumbrou, rapidamente, a barriga ainda não muito volumosa, mas de uma gravidez visível.
- Ele ia me matar. A mim e a meu filho. Mas uma voz ficava na minha cabeça... e tinha uma faca... eu o matei... não queria, mas ele ia me matar!
- Onde foi que isso aconteceu?
- Na cabana onde ele me mantinha prisioneira.
- A que horas?
- Agora! Foi agora, padre! O escravo saiu, mas vai voltar. E, quando voltar, vai encontrar o senhor Licínio com a faca nas costas. E eu vou ser presa e enforcada! Não ligo para mim, mas o que será do meu filho?
- Você precisa fugir - alertou ele, com urgência na voz. - Quando dona Esmeraldina descobrir o que você fez, não vai descansar até vê-la morta.
- Para onde eu vou?
- Você vai viver com o seu povo.
- Sozinha? E se eles não me aceitarem?
- É mais fácil a aceitarem sozinha do que em companhia de um padre branco, que eles odeiam.
- Mas, e o senhor? O que aquela mulher horrível fará ao senhor depois que eu me for?
- Nada. Eu não fiz nada. Foi o marido dela quem seduziu você. Não se preocupe comigo. Pense em você e na criança. Eu estarei bem.
- Como poderei encontrar alguém de meu povo? Não sei nem onde procurar.
- Você sabe caminhar nas matas e não tem medo da noite, tem? - ela meneou a cabeça. - Pois então, caminhe o mais que puder para longe de Vila Rica. Embrenhe-se na floresta e só pare quando encontrar uma tribo.
- E se eles forem canibais?
Gastão não havia pensado naquela possibilidade, mas algo em seu íntimo lhe dizia que Aracéli não corria aquele risco.
- Temos que confiar em Deus. Você estará mais segura entre os índios do que na cidade, onde só a morte a aguarda. Vá e tenha seu filho em paz.
Enquanto falava, Gastão ia arrumando coisas para Aracéli levar. Roupas ela não tinha. Havia deixado tudo na cabana quando fugira. O padre lhe deu uma batina e um casaco, que ela poderia improvisar como vestido. Colocou pão, queijo e frutas numa cesta e entregou tudo a ela.
- É o suficiente para você começar. Água você encontrará nos rios. Quanto à comida, a terra é abundante e não faltarão frutas nem peixes. E agora vá. Não se demore mais. Em breve, toda a milícia estará à sua procura.
Aracéli abraçou-se a ele, sentindo inigualável tristeza por ter que abandonar de vez a sua vida. Deixaria para trás a segurança da casa de padre Gastão, o único que a amara em toda a sua vida, para arriscar-se numa aventura incerta e misteriosa. Tudo para sal var a vida do filho que carregava no ventre.
- Oh, padre! - chorou ela, apertando-se ao pescoço dele. - Sentirei tanto a sua falta!
- Também sentirei a sua e rezarei todos os dias por você e pela criança.
- Não sei se conseguirei viver sem o senhor.
- É preciso. Se ficar, vão matar você. Por favor, Aracéli, vá. Não pense que é fácil me despedir de você, mas só em nome de todo o amor que lhe tenho é que sou capaz...
Ele se calou, a voz embargada pela emoção. Ela o apertou ainda mais e deu-lhe um beijo demorado na face. Quando o soltou, as lágrimas em seus olhos cintilavam como coriscos.
- Adeus, padre - arrematou ela. - E obrigada por ter sido o esteio da minha vida.
Gastão pôs as mãos em suas faces e acrescentou:
- Vá. E não se esqueça de mim.
Ela se afastou dele, as lágrimas gozando da liberdade de seu rosto, e concluiu:
- Jamais.
Em seguida, virou-lhe as costas e sumiu na floresta.

CAPÍTULO 28

Preocupada com a demora de Licínio, Esmeraldina começou a indagar aos escravos se o haviam visto. Ninguém sabia dele, à exceção de Rufino, que ficou tenso. Escravo de confiança, gozava de liberdade para sair à hora em que bem entendesse, pois não tinha pretensões de fuga. Alarmado, partiu em silêncio para a cabana.
Chegando lá, sua maior surpresa. O cavalo de Licínio havia desaparecido. A porta encontrava-se escancarada, e a sala, uma bagunça. Rufino entrou com um mau pressentimento e logo avistou o corpo de Licínio estirado no chão, os olhos ainda abertos sem qualquer expressão, o sangue coagulado grudado nas vestes e no solo. Aterrado, rodou nos calcanhares e voltou correndo para casa.
- Preciso falar-lhe, sinhá Esmeraldina - anunciou ele com urgência na voz. - Encontrei o patrão agora mesmo, morto, numa cabana na estrada que leva ao garimpo.
- O quê? - ela pareceu não compreender.
- Disse que o sinhô Licínio está morto. Foi assassinado. Rufino teve que correr para amparar Esmeraldina, que caiu ao chão, desmaiada. As escravas mais velhas acudiram, dando-lhe tapinhas no rosto para despertá-la, e até Teodoro, que já se acostumara com a criada francesa, veio lá de dentro, alarmado.
- Mamãe, mamãe! - chamava, pensando que ela havia morrido.
Ouvindo a voz do filho, Esmeraldina acordou e começou a concatenar as ideias, só então compreendendo o significado das palavras de Rufino.
- Licínio... - balbuciou ela - morto?
- Papai está morto? - repetiu o menino, incrédulo.
Ante o silêncio geral, Teodoro começou a chorar, e Esmeraldina, pondo-se de pé, ordenou atarantada:
- Aneci, leve-o para o quarto.
A criada apanhou o menino com jeito e saiu com ele, tentando acalmar o seu pranto. Depois que se foram, Esmeraldina sentou-se, abanando o rosto, do qual havia fugido toda a cor.
- Conte-me agora o que aconteceu - disse para o escravo.
- O que aconteceu, não sei, sinhá. Só sei que, quando cheguei lá, o patrão estava morto, com uma faca nas costas.
- Quem fez isso? - ele hesitou. - Pode falar, Rufino. Sei tudo sobre aquela índia. Foi ela, não foi?
Havia ódio, muito ódio na voz de Esmeraldina, e o escravo não conseguiu esconder-lhe nada.
- Lamento, sinhá, mas deve ter sido ela mesma. Quando saí, deixei o patrão sozinho com ela.
- Aquela maldita! - vociferou ela, não se incomodando com a presença de Rufino. - Onde está?
- Não sei. Mas, como o cavalo do patrão desapareceu, imagino que ela o tenha roubado.
- Sim, e só pode ter ido a um lugar. Vá correndo chamar a milícia, Rufino. Talvez ainda tenhamos tempo de pegar a assassina.
Rufino conduziu os guardas até o local do crime, e, seguindo as ordens de Esmeraldina, foram procurar Aracéli em casa de padre Gastão. Prevenido daquela possibilidade, Gastão os recebeu com surpresa e fingida preocupação:
- Não posso acreditar no que estão dizendo! Aracéli não seria capaz de uma atrocidade dessas!
- Dona Esmeraldina diz que foi ela, e nós acreditamos. E depois, o negro confirmou que deixou o senhor Licínio sozinho com a índia.
- Meu Deus! - lamentou ele, forçando os olhos para chorai - O que terá levado Aracéli a um ato tão desesperado?
- Ela era amante do senhor Licínio.
- Eu bem que desconfiava... - prosseguiu ele, intimamente pedindo perdão a Deus pelas suas mentiras, cujo único propósito era salvar a vida de Aracéli. - E onde está ela?
- Nós esperávamos que o senhor pudesse nos dizer. Ela roubou o cavalo dele e sumiu.
- Pois não veio me procurar.
- Talvez seja verdade, senhor - falou um dos guardas. - Se ela fugiu a cavalo, não veio aqui. Não há marcas de cascos lá fora nem nas matas próximas.
- Eu não disse? - continuou padre Gastão. - Minha pobre Aracéli. Deve estar perdida e assustada.
- Precisamos encontrá-la. Se a vir, mande nos avisar.
- Sim, claro. Tenho certeza de que não foi Aracéli quem fez isso, e há de haver uma explicação para tudo.
- Não acredite nisso. E lembre-se: avise-nos, ou mandaremos prendê-lo por cumplicidade.
Gastão balançou a cabeça em assentimento e retrucou:
- O que acontecerá a ela se for presa?
- A pena, para esses casos, é a morte por enforcamento.
- Meu Deus! - exclamou ele, aumentando a expressão de horror que genuinamente sentia.
O pavor de Gastão era tão grande que ele temeu ser descoberto. Os guardas, contudo, nada perceberam e acabaram indo embora, deixando-o a sós com seus pensamentos. Onde estaria Aracéli àquela hora? Bem longe, era o que esperava.
Aracéli caminhou a noite inteira, seguindo as estrelas. Só parou para beber água no rio uma vez, retomando a caminhada em seguida. Para sobreviver, tinha que contar com a vantagem sobre a milícia, e, se parasse para descansar, daria a eles tempo de vencer a diferença e alcançá-la. A lua continuava a ajudá-la, com seu prateado brilhante a iluminar toda a floresta.
A seu lado, o espírito de Soriano a acompanhava, preocupado com Cibele, adormecida em sua barriga. Vencera o medo de mato e penetrara a selva junto com Aracéli. Se encontrasse algum índio do tipo daqueles maias, eles nada poderiam contra ele. Mas, e contra Cibele?
Aracéli prosseguia incansável, na esperança de avistar alguma tribo pacífica, mas não via nenhuma. A ideia de índios canibais a assaltou, mas, lembrando-se da fé de padre Gastão, afastou o pensamento e prosseguiu, certa de que não se depararia com selvagens daquele tipo. Só muito tarde da noite foi que desabou exausta e adormeceu por duas horas.
Antes do amanhecer, prosseguiu caminhando, orientando-se pelo sol para não se perder. Em dado momento, parou para se alimentar. Como o cansaço a dominava, permitiu-se descansar enquanto comia. Um pouco mais refeita, levantou-se e continuou a viagem, o tempo todo orando para que Deus não a desamparasse e lhe mostrasse o caminho mais seguro para uma tribo amistosa.
Ao anoitecer, seu estado de exaustão era crítico, havia bolhas em seus pés, pontilhadas de gotículas de sangue, e ela não conseguiu dar nem mais um passo. Precisava urgentemente dormir. Pensou em acender uma fogueira, mas teve medo de que alguém visse a fumaça e encontrasse seu rastro. Devia estar bem longe de Vila Rica, todavia, era preciso muito cuidado. Ajeitou um cantinho no mato e, pela primeira vez, invocou os deuses de seu povo, como padre Gastão lhe havia ensinado, pedindo-lhes proteção. Não queria terminar sendo comida por uma onça.
De manhãzinha, Aracéli sentiu uma movimentação por perto e forçou os olhos a se abrirem, a muito custo identificando o lugar em que estava. Foi piscando lentamente, enquadrando as imagens ao redor, e raios de sol salpicaram o seu rosto, insinuando-se por entre as copas das árvores. Por todo lado, a floresta a envolvia, e ela balançou a cabeça, confusa, até que percebeu o som de risadas nas proximidades, risadas infantis. Olhares curiosos a fitavam, e ela se levantou de um salto. Dois meninos índios conversavam em sua língua, rindo alto e apontando para suas vestes. Ela reconheceu o idioma tupi e agradeceu em silêncio, porque era o único que entendia e que sabia falar.
- Podem me levar a sua tribo? - pediu ela.
Ela falava corretamente, embora tivesse certa dificuldade, e os meninos, a princípio, não a compreenderam. Mas ela apontou para a mata e repetiu a pergunta. Um dos meninos, então, deu mostras de tê-la entendido e partiu correndo na frente, com o outro atrás e Aracéli no encalço dos dois.
Correndo pelo meio da floresta, Aracéli não os perdia de vista. Parecia mesmo que os dois queriam pregar-lhe uma peça, fazendo com que ela se distanciasse deles. Os pés de Aracéli, apesar de doloridos, também foram treinados descalços na selva, e as bolhas não a impediram de segui-los.
Subitamente, a tribo surgiu diante dela, incrustada numa clareira no meio da mata. Aracéli ficou maravilhada com o que viu. De um lado, extensa área dedicada à lavoura e, de outro, uma aglomeração de ocas construídas com troncos de árvores e recobertas por folhas de palmeiras.
Havia enorme movimentação na tribo, e Aracéli foi-se aproximando devagar. Sendo ela morena, com lindos cabelos negros e lisos, os índios não perceberam que se tratava de uma estranha. Só quando a mãe de um dos meninos o chamou e percebeu Aracéli perto dele, foi que a presença de alguém de fora foi anunciada.
Os índios, assustados, reuniram-se em círculo ao redor dela, fitando-a com ar entre hostil e curioso. Alguns apontavam suas lanças, enquanto outros limitavam-se a observá-la. Embora ela se parecesse com uma índia, estava claro que não era como eles.
Ela também estava assustada, pois era a primeira vez que mantinha contato com alguém de seu povo que não estivesse acostumado ao modo de vida dos brancos. Precisava tomar alguma atitude para demonstrar a eles que ela não representava nenhuma ameaça. Assim, buscou dentro de si as palavras exatas e falou em perfeito tupi:
- Vim aqui em paz, fugindo do homem branco. Podem me ajudar?
Quando ela colocou a mão sobre a barriga, uma das mulheres notou sua gravidez, e os demais silenciaram. Os que lhe apontavam lanças as abaixaram, e a mulher se aproximou.
- O que aconteceu com você? - perguntou ela.
- Caminhei dois dias inteiros. Matei um homem branco...
A menção do assassínio de um branco pareceu agradar aos índios, que relaxaram os músculos e a saudaram. Muitos chegaram mais para perto e tocaram suas vestes, outros retiraram-lhe o saco das mãos e o abriram, expondo o seu conteúdo. Provaram o pão e o queijo, e apenas cheiraram as frutas, que já conheciam. Desdobraram a batina, para imediatamente atirá-la longe, dando visível mostra de que já conheciam os padres.
- O homem que me deu esta foi quem me criou - esclareceu ela. - Não é igual aos que tentaram dominar os índios. Foi ele quem me mandou procurá-los, para que pudesse viver em paz e segurança, aprender com vocês e criar o meu filho.
Eles compreenderam e concordaram, a maioria já simpatizando com Aracéli.
- Quem lhe falou sobre nós? - perguntou um índio com aparência de guerreiro.
- Ninguém me falou. Padre Gastão me orientou a me embrenhar na floresta e vir procurá-los. Rezei para que Tupã me guiasse e me trouxesse até uma tribo amiga.
Ela conhecia seus deuses, o que agradou ainda mais aos indígenas. Aracéli não lhes pareceu uma ameaça, e eles a acolheram na tribo. Cercando-a por todos os lados, foram conduzindo-a até uma das ocas. Aracéli deixou-se levar. Ao chegar ao meio da tribo, olhou para trás. Na beira da floresta, o saco com seus poucos pertences encontrava-se espalhado no chão. Não precisaria mais deles. Agora, tinha um novo lar e, estranhamente, percebeu que seria ali que encontraria a verdadeira vida.

CAPÍTULO 29

As dores do parto finalmente cessaram, e Aracéli ouviu o choro insistente e forte do bebê que acabara de nascer. A índia que ajudara no parto exibiu a menina lívida, e Aracéli a fitou por uns momentos, sentindo um misto de alegria e tristeza por aquela criança que fora fruto do desamor. Aracéli virou o rosto, como se quisesse esconder as lágrimas de sua filha, e vislumbrou o dia recém-nascido pela fresta da oca, onde apenas uma única estrela cintilava soberana no azul pálido do céu da manhã.
- Airumã... - balbuciou ela.
E foi assim que a menina recebeu o nome da estrela-d'alva, na língua nativa dos tupis, marcando o seu nascimento simultâneo ao nascer do dia.
Os índios estranharam um pouco a pele descorada de Airumã, contudo, nada perguntaram. Desde a sua chegada, Aracéli se mostrara uma moça dócil e meiga, muito corajosa e decidida, sempre pronta a ajudar no que fosse preciso.
A mulher de um dos guerreiros que integrava o nheengaba (13) tendo-a recebido na entrada da tribo, foi a primeira a se afeiçoar a Aracéli. A gravidez se desenvolvera toda sob o olhar atento Guaiani. O marido de Guaiani, satisfeito com a presença de uma índia jovem em sua oca, demonstrou intenções de casar-se com Aracéli, mas depois desistiu. Ele e Guaiani já estavam ficando velhos, e era melhor deixar a moça para algum bravo guerreiro.
Foi o que aconteceu, e Piraju foi o escolhido para desposar Aracéli. Jovem e destemido, apaixonou-se por ela desde o primeiro instante em que a viu. Acompanhou com paciência toda sua gestação e, após o nascimento de Airumã, finalmente o casamento foi realizado.
Aracéli mudou-se com Airumã para a oca de Piraju. Enquanto o marido saía para a caça, ela auxiliava as mulheres nos trabalhos agrícolas e na fabricação da cerâmica. Airumã, por sua vez, foi crescendo juntamente com as outras crianças, participando de suas brincadeiras e aprendendo os costumes do povo indígena
Finalmente, a felicidade chegara para Aracéli. Ela ainda se ressentia dos acontecimentos passados e sentia muita falta de padre Gastão e de Teodoro, por quem orava todas as noites, pedindo em prece seu perdão. Não queria ter matado o pai do menino, mas fora obrigada para salvar a própria vida. Piraju participava de suas aflições como amigo e marido apaixonado, preocupado em dar-lhe alegria e fazer de Airumã uma verdadeira índia, para compensar a pele desbotada que herdara do homem branco.
Nas horas vagas, Piraju ensinava Aracéli a atirar com o arco e flecha e a caçar, além de levá-la para longas travessias numa canoa, pelos rios da região.
- Padre Gastão estava certo - dizia ela a Piraju. - Minha vida é aqui, entre os de meu povo.
13. Nheengaba - espécie de conselho.
- Você foi a mais linda oferenda no altar de Rudá (14) - declarou ele certa vez, em referência ao significado do nome de Aracéli. - Que Jaci (15) nos proteja para sempre e nos dê ainda muitos filhos.
Aracéli sorria para ele e afagava seu rosto.
- Nunca pensei que pudesse amar alguém em toda a minha vida - tornou ela. - Minha felicidade, contudo, não é completa, pois sinto muitas saudades de padre Gastão.
- Você não pode mais ver esse homem - objetou Piraju com veemência. - É o homem branco que nos causa destruição. Não sabe que muitas tribos foram completamente destruídas pela fúria de sua ambição?
- Padre Gastão não é assim. Pois se foi ele quem me enviou para cá!
- Ele pode ser diferente, mas aqueles que convivem com ele não são.
- Você tem razão, e ele sabia disso. Foi por isso que me enviou para cá, e eu não penso em voltar. Apenas sinto falta do único pai que conheci.
Piraju colocou sua mão sobre a de Aracéli, levando ambas ao coração da moça, e acrescentou:
- Você é o clarão da lua que afugenta as sombras que espreitam na mata. Qualquer um que sinta o seu toque se transforma imediatamente em luz.
Ela levou a mão dele aos lábios e retrucou emocionada:
- Se você fosse um homem branco, seria um poeta. Nunca ninguém me disse coisas tão bonitas. Sei, contudo, que essas palavras tão doces transbordam de um coração apaixonado. Não sou essa mulher de quem você está falando.
- Você é isso e muito mais.
- Já matei um homem, Piraju. Deixei uma criança sem pai... Ele colocou o dedo sobre os lábios de Aracéli e revidou com firmeza:

14. Rudá - deus do amor, na mitologia tupi.
15. Jaci - a Lua, deusa protetora dos amantes e da reprodução.
- O destino do inimigo é o sacrifício. Aquele homem não tinha o direito de tomá-la à força.
- Não quero mais falar sobre isso - murmurou, pousando a cabeça sobre o ombro dele. - Guardo uma única coisa boa que Licínio me deu, que foi Airumã.
- Ela não é filha dele. Seu espírito se fundiu ao da tribo e ela agora pertence ao nosso povo.
A noite avançava rapidamente, e Aracéli voltou para junto da tribo com Piraju. Em sua oca, Airumã dormia tranquila, os longos cabelos lisos e negros, herdados da mãe, derramados para fora da borda da rede. Ela se aproximou da filha e beijou-a no rosto, sentindo o quanto a amava. Piraju alisou a cabeça da menina, guardou o arco e a flecha, e foram se deitar.
Não era apenas Aracéli que sofria a dor da saudade. Padre Gastão também sentia muita falta da menina e se perdia em horas de reflexão, imaginando onde ela estaria e se teria dado à luz em segurança. Sempre que lhe chegava aos ouvidos a notícia do extermínio de alguma tribo, ele se sobressaltava e fazia todas as orações que conhecia, não apenas pelas pobres almas atingidas, mas para que Aracéli estivesse bem. Se ela e a criança fossem mortas pelo ataque dos bandeirantes, ele nunca ficaria sabendo.
O assassinato de Licínio permaneceu sem solução, e a milícia logo parou de procurar Aracéli, convencida de que ela havia fugido e se embrenhado no mato. Por mais que Esmeraldina tentasse, não conseguiu incriminar padre Gastão, que ameaçou levar a público a relação de Licínio com a cabocla.
Além de Esmeraldina, apenas Teodoro sentiu a morte de Licínio. Muito apegado ao pai, não compreendia por que ele havia sumido, juntamente com Aracéli.
- Porque foi Aracéli quem o matou! - acusava Esmeraldina. - Aquela índia maligna assassinou o seu pai!
- Mas, mamãe - contrapunha ele -, Aracéli é minha amiga.
- Ela nunca foi sua amiga. Apenas o enganou para poder se aproveitar de seu pai.
- Como assim? Não entendo...
- Porque você é ainda muito pequeno. Por ora, basta você saber que seu pai foi morto por causa da perfídia daquela índia, que se fingia de amiga para tomar tudo o que temos. Como não conseguiu, matou-o.
Teodoro chorava, e Esmeraldina aproveitava para incutir-lhe mais e mais veneno, alimentando no menino um ódio crescente por Aracéli e, por extensão, por todos os índios.
- Aracéli não gostava de mim? - indagava ele, ainda pequenino.
- Se gostasse mesmo de você, não o teria abandonado quando seu pai a repeliu. E matou-o por causa disso. Porque ele descobriu suas artimanhas e a feitiçaria que ela havia feito para afastá-lo da família.
- Aracéli era boa comigo...
- Só enquanto foi amante de seu pai. Quando ele a repeliu, não hesitou em abandonar você. Não se iluda, meu filho, os índios são traiçoeiros e maus. Têm o instinto cruel e maléfico. Eles são a encarnação do mal, e Aracéli não era diferente. Os índios não prestam, são assassinos natos, frios e sanguinários. É bom que você nunca se esqueça de que foi uma índia que matou o seu pai.
Teodoro era pequeno e não sabia das mentiras que uma mulher ciumenta, ferida em seu orgulho, era capaz de inventar. Cresceu ouvindo as acusações da mãe contra Aracéli e os índios. No princípio, seu coraçãozinho encheu-se de tristeza, que cedeu lugar à indignação e, mais tarde, já adulto, transformou-se num ódio cego e sequioso de vingança por todos os índios.
Foi esse ódio que escreveu o seu futuro, fazendo dele um feroz inimigo de todo povo indígena, incansável e sanguinário. Especializou-se em caçar índios e, a cada um que matava, pensava em Aracéli. Ela era a mulher pérfida e cruel que determinara o homem em que ele se tornara, e que o iludira e enganara, até conseguir matar o menino dentro dele.

CAPÍTULO 30

Muito antes de Teodoro se tornar caçador de índios, as vidas de Aracéli e de Airumã tomaram novo rumo. Ela e padre Gastão nunca mais tornaram a se ver em vida, e somente após o desenlace dele foi que ficou sabendo o que acontecera a sua protegida.
Por quase sete anos, Aracéli viveu entre os índios uma vida de paz e serenidade que jamais experimentara no mundo dos brancos. Eles a tratavam como igual e adotaram Airumã como filha nativa da tribo. Suas diferenças de pele e de cultura não incomodaram os índios, e o casamento com Piraju serviu para consagrar definitivamente os laços de Aracéli com o seu povo.
Todos os dias eram vividos com a intensidade que só os índios conheciam. Naquele dia, o destino havia traçado seu rumo sem que ninguém de nada soubesse. Como de costume, Aracéli entrou na oca após ter ido se lavar no rio e ficou admirando o marido e o filho que acabara de nascer. Era um menino robusto, cor de jambo feito o pai, que Piraju se distraía em embalar. Airumã, agora com seis anos, lhe fazia companhia e admirava a graciosidade do irmão.
- Ele é lindo, mamãe! - comentou a menina, assim que ela entrou. - E se parece com meu pai. Piraju olhou para Aracéli e sorriu, afagando, com a mão livre, a cabecinha de Airumã.
- E você é uma linda princesa que desceu do céu em forma de estrela - elogiou ele. - A primeira estrela do dia e a última a ir embora à noite. Não poderia ter mais brilho.
Airumã sorriu satisfeita e agarrou-se às pernas do pai, que as sacudiu gentilmente, como um balanço, enquanto Aracéli corria para segurá-la.
- Vamos, deixe seu pai embalar seu irmão.
A noite caiu, e a família de Piraju se preparou para dormir. Aracéli colocou Airumã na rede e ajeitou o bebê no estrado ao lado, indo deitar-se com o marido. A quietude baixou sobre a aldeia, e apenas um pio ocasional de coruja se fazia ouvir. Toda a tribo dormia tranquila, enquanto a madrugada silente avançava sem se incomodar com os ruídos peregrinos da noite.
Foi quando o mundo pareceu desabar. Um barulho ensurdecedor se alastrou pela aldeia, e os gritos aterrados e indistintos se misturaram a estampidos retumbantes e infernais. Rapidamente, Aracéli e Piraju despertaram, e as crianças puseram-se a gritar assustadas. Os adultos correram para fora, e a cena que viram os encheu de horror. Vários homens a cavalo invadiam a aldeia, disparando seus mosquetões ruidosos e derrubando, a golpes de machete, aqueles que tentavam opor-lhes resistência.
Os gritos de pavor eram de assombrar. Por mais que os índios tentassem se defender, a sanha assassina dos bandeirantes era maior. Armados com artilharia pesada, que os índios não conheciam, iam abatendo cada homem, mulher e criança que lhes surgisse na frente.
No momento em que perceberam a invasão, Piraju e Aracéli apanharam seus arcos e flechas e puseram-se a atirar, na tentativa inútil de defender os filhos. Dentro da oca, Airumã segurava no colo o irmãozinho, enquanto os pais se entregavam à batalha do lado de fora.
Piraju foi o primeiro a tombar. Uma bala o atravessou na altura do coração, e outra varou-lhe a perna. Caído de borco, ele agonizava, enquanto Aracéli, tomada de ódio e pavor, só pensava em defender, com a própria vida, a vida dos filhos. Um homem chegou correndo a cavalo, sacudindo pesada corrente, com a qual acertou o seu flanco. Aracéli caiu ao chão gemendo de dor e raiva, e assistiu, coberta de pânico, um outro homem se aproximar da cabana, onde os gritos do filhinho recém-nascido se sobressaíam no meio da balbúrdia geral. Com uma tocha, o homem ateou fogo à oca, fazendo recair sobre Aracéli invisível força que a fez levantar e cambalear em direção ao arco. Apanhou-o com as mãos trêmulas e conseguiu armá-lo com a flecha, disparando-a num lançamento certeiro que varou a garganta do agressor.
O homem caiu do cavalo, morto, e ela iniciou o que parecia uma longa caminhada até a oca incendiada. Não conseguiu alcançá-la, porque um tiro a atingiu pelas costas, levando-a novamente ao chão, dessa vez sem forças remanescentes. Aracéli ainda tentou rastejar até a cabana, que as chamas haviam rapidamente consumido, na esperança de sentir um alento da vida dos filhos. Inútil, porém. De sua oca, apenas o crepitar das chamas era o que se podia ouvir. Os filhos tinham silenciado seu lamento de medo e dor havia muito.
Em pouco tempo, tudo estava acabado. Os bandeirantes haviam logrado mais uma vitória, desbravando a selva e dizimando outra aldeia indígena, levando à morte centenas de índios e aprisionando outros tantos.
Os corpos sutis da maioria foram logo acolhidos por espíritos preparados para a tragédia, e Aracéli despencou numa espécie de sono confortador. Seus últimos pensamentos, um pouco antes de morrer, haviam-se voltado para padre Gastão e, em seguida, para os filhos.
Naquele exato momento, Gastão dormia um sono agitado. Não sonhou com guerras nem com morticínios, mas Aracéli lhe apareceu com semblante triste e lágrimas nos olhos. Ele esticou os braços para ela, que tentou alcançá-los, no entanto, uma espécie de redemoinho a sugou para trás.
Gastão acordou suando frio e se levantou para beber água. Do lado de fora de sua casa, tudo permanecia quieto. Ele abriu a janela e espiou, pensando se o sonho não seria um sinal de que Aracéli estaria voltando. A noite, contudo, permanecia igual, sem qualquer movimento que lhe perturbasse o sossego.
As notícias dos feitos dos bandeirantes chegavam ao seu conhecimento como uma grande vitória, e Gastão as recebia consternado. Várias tribos eram dizimadas e muitos índios, feitos prisioneiros, eram levados, em sua maioria, para São Paulo. O padre se perguntava se Aracéli e o filho estariam entre eles e se haveriam sobrevivido, mas nenhuma resposta obtinha.
Transferira-se para São Paulo, para ver se encontrava Aracéli ou alguma criança branca descoberta em alguma tribo. Sempre que os bandeirantes chegavam com uma nova leva de índios, lá ia o padre, na esperança de encontrá-la viva. Mas Aracéli não estava entre os índios aprisionados nem ninguém nunca ouvira falar de uma criança branca vivendo entre eles.
Os bandeirantes, já acostumados com as frequentes visitas do clérigo aos prisioneiros, riam de sua esquisitice e faziam troça de sua insistência.
- Está sonhando, padre - disse um deles, certa vez. - Brancos vivendo entre os índios? Só se fosse no caldeirão.
- A moça era uma cabocla muito bonita, e talvez ninguém notasse a diferença. Agora, a criança devia ser mais branca.
- Era menino ou menina?
- Não sei, não a vi nascer.
- Adentramos muitas tribos e não nos deparamos com nenhuma criança branca. E se o senhor não sabe nem para onde moça foi, fica impossível lhe dizermos qualquer coisa.
Não é possível que ninguém a tenha visto...
- Quem lhe garante que ela foi viver com os índios? Ela pode ter fugido para outro lugar. Se era tão bonita como o senhor falou, e civilizada também, pode ser que esteja em algum bordel.
- Não Aracéli! Ela foi viver com os índios, disso tenho certeza. Faz quinze anos que ela partiu, e a criança, hoje, deve estar com cerca de quatorze anos.
- Quinze anos! - desdenhou um dos homens. - Ora, padre, pense bem. Sua indiazinha, agora, já deve até ser avó!
Os bandeirantes riam às escâncaras, e Gastão afastou-se desanimado. Não sabia que Aracéli, havia muito, deixara o mundo da matéria. Sem que ele percebesse, um rapaz de pouco mais de vinte anos, de aparência distinta e nada parecido com o restante da tropa, seguiu atrás dele. Acercou-se de Gastão e tocou-lhe o braço, falando com gentileza:
- Já faz muito tempo que o senhor perdeu sua índia, padre. Se ela estiver viva, hoje deve ser outra pessoa.
Gastão olhou para ele com tristeza e retrucou:
- O senhor me parece familiar. Já nos vimos antes?
- Creio que não - respondeu o moço, sem o encarar. Apenas me comove a sua persistência.
O padre enxugou uma lágrima e acrescentou:
- O senhor não faz ideia do que passei. Se soubesse, teria insistido também.
- Não sei. Gastar tanto tempo assim com uma índia me parece desperdício. Na certa, seus fiéis precisam muito mais do senhor do que uma selvagem ingrata.
- Aracéli não é selvagem, muito menos ingrata. Foi uma moça a quem a sorte não sorriu, mas que jamais se deixou derrotar diante do infortúnio.
Os olhos do rapaz reluziram, e seu semblante empalideceu por alguns momentos.
- Por que diz isso, padre? - retorquiu acabrunhado. – Não me parece que uma índia tenha muito do que se orgulhar.
- Diz isso porque não conheceu Aracéli. Ela era rara e especial.
- Por quê? O que aconteceu a ela de tão fantástico?
- Nada que possa interessar a um jovem feito você. São apenas lembranças dolorosas de um velho que não consegue deixar o passado.
- Engano seu. Gosto de ouvir histórias e, quem sabe, conhecendo a sua e a de sua índia, eu não possa ajudar? Gastão fitou-o em dúvida, mas alguma coisa naquele olhar deixou nele a vontade de contar tudo sobre a vida de Aracéli.
- Venha comigo até minha casa e lhe direi.
O rapaz foi seguindo Gastão até a paróquia, vazia àquela hora, e sentou-se com ele em um banco mais atrás. O padre reuniu forças e começou a falar. Contou tudo ao rapaz, desde o nascimento de Aracéli até sua partida de Vila Rica, carregando na barriga o filho bastardo de seu malfeitor. O moço ouvia tudo com a respiração presa, sem pestanejar. Quando Gastão finalmente terminou, ele estava chorando.
- O senhor disse que ela foi vítima desse tal Licínio?
- O homem fez com ela o que quis. E, depois, quando ela engravidou e a mulher exigiu que a matasse, Aracéli conseguiu se defender e matou-o primeiro. Mas foi legítima defesa!
- E ela fugiu...
- Fugiu pela mata, e ninguém nunca mais a viu. Se tivesse ficado, Licínio a teria matado.
- E o menino de quem ela cuidou? O que foi feito dele?
- Teodoro? Não sei. Nunca mais o vi nem ouvi falar dele. Deve estar, até hoje, morando em Vila Rica. O pai era garimpeiro, muito rico.
O rapaz engoliu em seco e, olhos pregados no chão, falou em tom abatido:
- Vou confessar uma coisa para o senhor, padre. O que fazemos aos índios não é nada bonito de se ver. Muitos deles nem chegam a compreender o que está acontecendo. Morrem antes mesmo de sair das tocas. Mulheres e crianças geralmente são feitas prisioneiras, mas muitas padecem dentro daquelas choupanas queimadas ou asfixiadas pela fumaça. Nem têm tempo de sair, e nós nem chegamos a colocar os olhos sobre elas.
Gastão, já bastante emocionado, chorava de mansinho, agora imaginando a carnificina que resultava da entrada dos bandeirantes nas aldeias.
Por que faz isso, meu filho? - retorquiu com amargura. - Por que toda essa violência contra seres que têm tanto direito à vida como você? Eles só querem viver em paz.
- Pensei que estava me vingando - justificou ele, pesaroso.
- Vingando-se? Mas de quê, meu Deus?
- Dessa mesma Aracéli que o senhor agora afirma que matou meu pai para se defender.
Gastão abriu a boca, mortificado.
- O que está dizendo?
- Isso mesmo que o senhor ouviu. Licínio Figueira era meu pai, que minha mãe jurou ter sido morto pelas mãos pérfidas de Aracéli. Passei a minha vida toda alimentando pelos índios um ódio descomunal, tão grande que só conseguia aplacar vendo-os morrer. E hoje o senhor me diz que Aracéli nada mais fez do que tentar salvar a vida das garras de um homem sanguinário e maldito? Meu pai, a quem tanto amava, era um fornicador torpe e cruel?
- Jesus Cristo! - exclamou o padre, persignando-se várias vezes. - O senhor é... Teodoro Figueira? O menino Teodoro?
- Em pessoa, embora não mais tão menino.
- Por isso achei seu rosto familiar...
- Saí de Vila Rica assim que completei dezoito anos e me juntei aos bandeirantes. Larguei minha vida de luxo e riqueza porque minha mãe me fez jurar que mataria muitos índios para vingar a morte de meu pai. E eu acreditei nela. Acreditei que Aracéli, que me amara com sinceridade, fora capaz de me usar e me trair só para se deitar com meu pai e se aproveitar da nossa fortuna.
- Meu filho - confortou Gastão, pousando a mão sobre a dele. - Não alimente mais ódios desnecessários. Sua mãe sempre foi uma mulher perdida nas ilusões do mundo, sem noção de amor ou compaixão. Não a culpe por não ter algo melhor para dar. Ela fez o que achou certo.
- Minha mãe morreu deixando que eu acreditasse que Aracéli era uma mentirosa. Por causa dela, cometi todos esses crimes!
- Você não pode mudar o pensamento dela nem apagar o que você fez. Mas sua alma lamenta o caminho que tomou e clama por uma chance de se modificar.
- Como, padre? Como posso apagar todo o mal que já fiz?
- Fazendo o bem. Largue essa vida de conquistador sanguinário e abrace uma causa mais nobre.
- Sou um homem perdido, padre. Para mim, não há mais perdão. Só me resta voltar ao meu posto e prosseguir...
- Não faça isso! Você nada tem a ver com aqueles verdugos. É um homem bom, embora transtornado por uma mentira e seduzido pela vingança.
Oh, padre! Por que fui me deixar levar pelas palavras de minha mãe, sem averiguar o que realmente aconteceu?
- Não se culpe. Você era apenas uma criança entregue aos desvarios de uma mãe ignorante e inconsequente. Mas é jovem. Ainda tem tempo de largar essa vida.
- Matei tantos índios... e me orgulhava disso...
- Será que se orgulhava mesmo?
Teodoro olhou rapidamente para padre Gastão e abaixou novamente os olhos, rebatendo num sussurro:
- Não. Eu tinha vergonha de mim mesmo, de minha torpeza. Quanto mais matava, menos sentia o prazer da vingança e mais me odiava por estar descontando nos inocentes a frustração que sentia pela traição de Aracéli.
- Porque ela nunca o traiu. No fundo, seu coração sabia disso, e era por esse motivo que você não conseguia se comprazer. E você não é um assassino.
- Sou um assassino, sim. Depois de tantas vidas roubadas sob a fúria do meu mosquete, de que outra coisa posso me chamar?
- Mude de vida, Teodoro. Posso ajudá-lo a se reencontrar com Deus.
- Deus não vai perdoar os meus crimes.
- Deus perdoa todos os crimes, desde que o pedido seja sincero.
- Sou sincero em minha dor, padre. Nunca me arrependi tanto de algo que fiz.
- Pois, então, afaste-se dos bandeirantes. Você não é como eles.
Teodoro permaneceu algum tempo em silêncio, a testa pousada sobre a mão de Gastão. Quando falou, havia sinceridade e dor em sua voz:
- Perdoe-me, padre! Em nome de Deus, não peço absolvição, mas apenas a chance de mostrar à vida que ainda posso ser bom!
Ele chorava descontrolado, e Gastão o abraçou com um carinho de pai. Daquele momento em diante, Teodoro se separou dos bandeirantes e, guiado pelo padre, abraçou a vida religiosa. Nunca mais tornou a erguer uma espada ou a segurar um mosquete. Passou o resto de seus dias dedicado à causa dos índios, ajudando tantos quanto pôde e recolhendo-os em sua casa.
Ele e Gastão se tornaram como pai e filho e nunca mais ouviram falar de Aracéli.

CAPÍTULO 31

Havia ainda muito ódio no coração de Licínio e Esmeraldina quando reencontraram Aracéli no mundo espiritual. Foi difícil para eles ficarem frente a frente com ela, e Licínio repetia, a todo instante, as mesmas palavras rancorosas:
Assassina. Por duas vezes, assassina.
Não conseguia perdoar nem compreendia que fora o responsável por sua própria morte como Licínio. Para ele, Aracéli lhe devia, e era seu direito cobrar. Por mais que os amigos espirituais tentassem, Licínio e Esmeraldina identificavam-se, ainda com Lúcio e Rosa, sem conseguir enxergar que a vida os impelia à reconciliação e ao amor.
Só o tempo e novas experiências seriam capazes de diluir tanto ódio.
Durante longos anos, Soriano permaneceu vagando pelo mundo, remoendo no peito a frustração e a culpa por não ter conseguido salvar a vida de Cibele, reencarnada como Airumã. Seus esforços para conter a fúria sangrenta dos bandeirantes não surtiram efeito, e ele não fora capaz de impedir o ataque. Tentara derrubar muitos dos cavalos, mas em vão. Chegara mesmo a criar lanças, manipulando matéria astral, mas de nada adiantara. As lanças atravessavam os corpos dos agressores sem os ferir, e a única coisa que ele pôde fazer foi assistir, inerte, à destruição de uma tribo inteira.
Parado do lado de fora da oca incendiada, Soriano chorara de desespero. Não podia vencer as chamas e resgatar o espírito de Cibele, mas tinha certeza de que alguém o fizera. Estranhamente, ao pensar em salvar Cibele do fogo, desejara salvar também o pequenino que ela segurava no colo, e mesmo a queda de Aracéli e Piraju lhe causara revolta e tristeza.
Enquanto Aracéli criava Airumã, ou Cibele, Soriano viu e sentiu o amor com que ela se dedicara à menina. Aos poucos, foi percebendo em Aracéli uma alma mais nobre do que aquela que, anos atrás, o atirara nas mãos dos índios maias. Ela se havia modificado, conforme a própria Cibele dissera, e ele teve a oportunidade de acompanhar essa mudança e constatar o quanto era sincera.
Seria impossível odiar alguém que tratava tão bem a mulher que ele amava. O que se iniciara como um desejo desesperado de salvar a vida de Cibele acabara se transformando em admiração e respeito. Se antes odiava Aracéli, Soriano agora a respeitava e admirava. Só lamentava não ter podido ajudá-la a salvar-se e aos filhos.
Era estranho, mas Soriano não pensara apenas em Cibele. O extermínio de toda a tribo lhe provocara forte comoção. No princípio, entrar em uma aldeia indígena lhe causou arrepios. Ainda guardava viva a lembrança de seu sacrifício pelos maias. Nos primeiros tempos, ficou olhando à distância, sem penetrar, com medo principalmente do pajé, que parecia ver e sentir a sua presença.
Temendo a sua feitiçaria, Soriano não se aproximava. Além do mais, o pajé queimava ervas que o mantinham afastado, e ele ficava do lado de fora, rondando a taba na esperança de vislumbrar Aracéli e a menina. Só de vez em quando conseguia se aproximar. Percebendo que os índios não faziam sacrifícios humanos, foi ganhando coragem e aprendeu a ludibriar a atenção do pajé. Evitava fazer-se visível e não se aproximava dele, desaparecendo quando ele surgia.
Soriano não compreendia, mas o fato era que aquele pajé parecia ter um poder semelhante ao de padre Gastão. O padre, com as suas orações, mantinha-o afastado tanto quanto o pajé, com suas ervas. Entretanto, Soriano agora não queria mais o mal de ninguém.
Tudo fora em vão. Tanto esforço ele fizera para preservar a vida de Cibele, para tudo se desmanchar em fogo. Soriano ficou perdido. Não conseguia ver nem sentir para onde Cibele havia sido levada. Já se haviam passado alguns anos, ele supunha, sem que tivesse qualquer sinal ou notícia da noiva. Perdido, vagueava pelo mundo, tentando achar Cibele, mas ela não se encontrava em lugar nenhum. Provavelmente, pensava ele, algum ser de luz a levara para o lado de cima e não permitia mais que ela se ocupasse com as coisas cá de baixo.
Sempre que podia, Soriano ia ao encontro de padre Gastão. Acompanhara de perto sua incessante procura por Aracéli e tentara lhe dizer, em sonho, que ela havia morrido, mas ou o padre não o escutava, ou se recusava a acreditar. Acordava desses sonhos com o corpo suado e se entregava a suas orações, pedindo a Deus que não fosse verdade e que sua Aracéli estivesse viva.
Um dia, notou que Aracéli havia ido visitar padre Gastão em sonho. À distância, acompanhou a chegada da índia, mas não entrou na casa do padre. Quando ela saiu, Soriano a chamou:
- Aracéli.
A moça não guardava raiva nem ressentimentos de Soriano. Depois que desencarnara, reconhecera no rapaz o mesmo homem que entregara nas mãos do índio tantos séculos atrás, e tentava intimamente o seu perdão. Ouvindo aquela voz que a chamava, aproximou-se:
- Sei quem você é, Soriano - disse ela, encarando-o com bondade. - E conheço a sua dor.
- Eu só quero notícias - choramingou ele. - Onde está Cibele?
- Ela está bem. Teve muitos traumas do incêndio, mas está se recuperando.
- Quero vê-la.
- Em breve.
Ele a fitou por uns momentos, com o coração dilacerado. Havia tantas coisas que gostaria de lhe dizer, mas a língua se travara no medo, na vergonha e no orgulho.
- Eu... - balbuciou - sei que a prejudiquei...
- A mim? Ou a Cibele?
- Às duas.
- Não, meu amigo, você só prejudicou a si próprio. Cibele e eu continuamos a nossa jornada, mas e você? Por quantos anos ficou esquecido de si mesmo, perambulando por um mundo que já não é mais o seu?
Ele abaixou os olhos úmidos e respondeu lentamente:
- Primeiro, fiquei acorrentado ao ódio. Depois, quando você reencarnou, prendi-me à vingança. Mais tarde, deixei-me ficar pelo apego a Cibele. E agora o que me prende é a culpa.
- Tudo isso contribuiu para o seu amadurecimento. Tenho certeza de que hoje você é uma pessoa diferente.
- Pessoa? Eu nem ao menos sou uma pessoa. Não passo de um espectro miserável...
- Você é um ser humano, Soriano. Despir-se de um corpo de carne não o transformou em fera.
- Diz isso porque está em uma situação vantajosa. Está bem assistida, protegida em algum lugar de luz. Mas eu... sou um desgraçado...
- Por que você gasta a sua energia com palavras que trazem peso ao seu coração? Por que, em vez de se lamentar e amaldiçoar, não se lembra das coisas boas que fez?
- Que coisas boas? Quando estava vivo, recebi dinheiro para matar você. Depois que morri, fiz o que pude para me vingar, e hoje estou aqui, neste inferno sem fim.
- Quando vivo, você fez o máximo que podia para um homem ignorante, assim como eu. Por sorte, você ficou a serviço de alguém poderoso na treva, enquanto eu tive por companhia apenas o sofrimento e a dor. Ainda assim, você venceu o ódio e veio em meu auxílio para esclarecer-me sobre meu desenlace.
- Fui obrigado.
- Mas veio. Cumpriu a tarefa para a qual foi designado. Depois, quando eu encarnei, você deixou de lado o desejo de vingança e passou a me proteger. Hoje sei que foi a sua inspiração que guiou a minha mão para a faca com a qual matei Licínio e fugi.
- Eu só fiz aquilo porque você carregava no ventre a única pessoa que amei na vida.
- Vê como o amor é mais forte? Tantos anos você se entregou ao ódio e à vingança, mas bastaram apenas alguns poucos momentos para transformar tudo isso em nome do amor. Não percebe?
- Não se iluda. Fiz o que fiz por Cibele, não por você.
- No começo, sim. Mas sei como você se sentiu quando viu aqueles homens dizimarem minha tribo. Seu coração se confrangeu.
- Foi um morticínio... Lembrei-me do que fizemos há muitos anos.
- Você, hoje, faria a mesma coisa?
- Não.
- Por quê?
- Através de você e Cibele vi a vida daquelas pessoas e compreendi que não temos o direito de matar ou nos julgar melhores.
- Você compreendeu, no astral, o que eu só pude aprender através da reencarnação.
- E daí? Aonde foi que isso me levou? Ainda estou perdido, e você já se reconciliou consigo mesma.
- Você também já se reconciliou consigo mesmo. Só está preso aqui por causa de Cibele. Não consegue se perdoar por ela ter morrido.
- Foi tudo em vão... - lamentou com um soluço. - Tentei salvar-lhe a vida, mas o destino foi mais rápido e cruel.
- A vida apenas se encarregou de seguir o seu curso. E você também deveria seguir o seu.
- Como assim?
- Já é hora de partir, Soriano. Há muito tempo você não faz mais parte deste mundo. Seus pensamentos agora mudaram, sua consciência tomou novos rumos. Por que permanecer aqui?
- Não vou seguir com você, se é o que está sugerindo. - Ainda me odeia?
- Não, nem um pouco. Mas não posso sair daqui enquanto não vir Cibele.
- Você pode vê-la no lugar em que ela se encontra.
- E se ela não estiver lá?
- Acha que estou mentindo para você?
- Você pode estar enganada. Pensar é uma coisa, e ser, outra. Quero ter certeza. Preciso me certificar de que Cibele está bem e me perdoa.
Aracéli suspirou profundamente. Sabia que não adiantava mais insistir. Aproveitara a oportunidade para conversar com Soriano, mas somente Cibele poderia convencê-lo a sair dali.
- Muito bem, Soriano, vou respeitar sua vontade - disse Aracéli. - Quando Airumã puder, virá ao seu encontro.
Ela se foi. Por muito tempo ainda, Soriano continuou vagando entre a floresta e a cidade. Ia da aldeia incendiada à casa de padre Gastão e, por vezes, encontrava Aracéli. Cumprimentava-a e conversava com ela. Falavam sobre os velhos tempos e os sentimentos que já não eram mais os mesmos. Eram conversas proveitosas, esclarecedoras e reconfortantes. Cada vez mais, o ódio inicial de Soriano ia-se dissolvendo e transformando em amizade. Aracéli deixara de ser sua inimiga há muito.
Um dia, Soriano perambulava pelo local que um dia fora a aldeia de Piraju quando ouviu um barulho na mata. Olhou sem interesse, certo de que um animal estava se aproximando. Soriano acostumara-se com os animais da selva, que não podiam lhe fazer mal. Acompanhava-os, por vezes, e até tocava o pelo das onças, rindo, porque só em espírito tinha coragem para fazer aquilo.
Ele ficou aguardando até que o animal surgisse, mas, em vez disso, uma menina passou correndo pela sua frente. Acostumado a circular entre os vivos, Soriano reconheceu o espírito e saiu atrás dela. Será que era Cibele? Seguiu-a até uma clareira mais adiante e viu quando ela se sentou em uma enorme pedra à sombra de uma árvore. Aproximou-se, sentindo o coração disparar. Ela estava de costas, os cabelos negros jogados sobre os ombros, e ele se aproximou. Mesmo sem vê-la, sabia que era a menina Airumã.
Soriano ajoelhou-se e tocou o seu ombro. Lentamente, a menina foi-se virando, até ficar de frente para ele. De repente, não era mais a pequenina Airumã que ele tinha diante de si, mas a mulher doce e meiga que um dia fora sua noiva. Ele não suportou a visão. Caiu aos seus pés e pôs-se a soluçar, murmurando entre lágrimas:
- Perdoe-me! Minha querida, perdoe-me! Não pude salvá-la! Você me deu a chance, e eu não consegui livrá-la daquela morte horrenda!
Gentilmente, Cibele o ergueu e sentou-o ao lado dela, pousando a cabeça dele sobre seu colo. Acariciou-lhe os cabelos e permitiu que ele extravasasse o pranto. Ficaram ali por muito tempo, até que a noite veio, e as estrelas perfuraram o tapete do céu, sem a luz esbranquiçada da lua para roubar-lhes a cintilação.
Soriano havia adormecido no colo de Cibele, tomado pela exaustão dos últimos anos de procura. Quando finalmente acordou, permaneceu olhando-a em silêncio, sem saber o que dizer, com medo de que ela de repente se esvanecesse no ar.
- Do que tem medo, Soriano? - perguntou ela com voz dulcíssima.
- De tornar a perdê-la.
- Em momento algum isso vai acontecer. Mesmo quando estava distante, meu coração permaneceu junto ao seu. Sou um miserável. Não consegui protegê-la.
- Eu nunca pedi que me protegesse.
- Mas você me deu essa chance... e eu falhei com você...
- Quem sou eu para dar chances? Foi Deus quem lhe deu a oportunidade de limpar o seu coração do ódio e da vingança. Eu fui apenas o instrumento.
- Você morreu tão menina... Não tive como segurar os dedos que dispararam aqueles tiros nem as mãos que lançaram tantas tochas...
- Não era para que você o fizesse. Sua chance não foi de salvar-me a vida, mas de transformar o ódio que sentia por Aracéli. Quando reencarnei, já sabia que tudo acabaria assim. Estava previsto que os bandeirantes invadiriam a tribo e matariam a todos. Eu aceitei porque poderia me harmonizar com a vida e ajudar você a ver Aracéli como Aracéli, não mais como Alejandro. E você conseguiu.
- Eu... não precisava salvá-la?
- Nem você, nem ninguém teria esse poder. Quem é que pode mais do que as forças da vida?
- Mas foi errado, Cibele. Se a vida programou aquele morticínio, ela não é justa.
- Como é que você, na sua pequenez, pode pretender definir o que é justo ou não? A única injustiça que existe na vida é não reconhecer a justiça divina. Deus é justo o tempo todo. Não encare a justiça como instrumento da vingança nem como uma forma lícita de devolver uma agressão. Ainda assim, seria vingança. A justiça está no equilíbrio de todas as coisas. Se você causa um abalo nas leis da natureza, tem que harmonizá-las, e tudo o que nos acontece é para compensar o desequilíbrio do qual fomos responsáveis. Além disso, a obra divina segue um plano, e as oscilações são necessárias para impulsionar o crescimento.
- Então, eu não tive culpa pelo que aconteceu a você?
- Nenhuma. Você não poderia evitar. O que você deveria fazer foi feito. Diluiu o ódio que sentia por Aracéli, e hoje são até amigos. Isso é que era importante.
- Bem, olhando por esse lado...
- Pois então, não se aprisione mais aqui. Você agora é livre. Pode partir.
Mas e aqueles a quem eu servia?
- Vê alguém por aqui? - ele olhou ao redor e meneou a cabeça. - Há quanto tempo você está sozinho?
- Não sei.
- Há tanto tempo que perdeu a noção. Aqueles a quem você obedecia já não têm mais ascendência sobre você. Há muito você rompeu a sintonia com eles.
- Nem percebi...
- Vamos embora, Soriano. Não há mais nada para você aqui. Dê a si mesmo a oportunidade de uma nova vida.
- Ao seu lado?
- Quem sabe?
Cibele fechou as mãos sobre as de Soriano, que se entregou ao destino com confiança. Num piscar de olhos, os dois sumiram, deixando a selva entregue aos seus próprios habitantes.
Falando sobre o passado...
Nada está perdido para sempre. Em todo lugar há um recanto onde as coisas ocultas aguardam o momento de se mostrarem. Eu havia experimentado a minha dor e estava pronta para continuar a dar o meu quinhão de sofrimento, se isso fosse necessário para crescer.
Meus inimigos, assim como eu, foram se transformando em seres mais conscientes e dispostos a uma reconciliação pautada na compreensão. Podíamos tentar. Para alguns, contudo, era difícil esquecer e perdoar. Os que haviam caído pela minha espada se levantaram contra mim, e eu tive que me esforçar para também não me levantar contra aqueles que haviam causado a minha derrota.
Foi assim com Licínio. Hoje reconheço o quanto deve ter sido difícil para ele me perdoar e compreendo que eu também me enganava, dizendo a mim mesma que não lhe guardava mágoas nem rancor. Afinal, fora eu a agredida. Por que me revoltaria contra aquele que teimava em me perseguir, estando eu na confortável posição de vítima?
Às vezes é mais fácil nos colocarmos no lugar da vítima do que do algoz. Ser o coitadinho atrai a atenção e a simpatia daqueles que nos rodeiam, e cria, para o agressor, uma aura de censura e reprovação. Somos aquele que tenta inutilmente a reconciliação, ao passo que o outro passa a ser o cruel perseguidor, incompreensivo e renitente na falta de perdão. Para nós, todos os atributos nobres. Para ele, a crítica e a condenação. Essa é mais uma das muitas ilusões pelas quais nos permitimos seduzir em nossas vidas.
A cegueira de meu coração não me deixava ver que a submissão, assim como muitas outras coisas que eu fazia, era mais um artifício que o meu orgulho criara para impedir um ajuste não de contas, mas de sentimentos. Eu estava longe de amar Licínio e me justificava com a teimosia dele. Afinal, era ele quem me cobrava, enquanto eu nada precisava cobrar. Ele acertava as coisas por nós dois, encarnando o conveniente papel do ofensor e fazendo de mim uma inocente ofendida.
Mas quem, nessa vida ou em outra, pode ser algoz ou vítima? Não somos todos uma coisa só?

PARTE 3

CAPÍTULO 32

Quando a filha de sinhô Eusébio morreu, pareceu que o mundo ia desabar. Fátima estava com cinco anos quando pegou uma febre maldita que a levou embora em pouco tempo. Era a única filha que Eusébio e Helena teriam, porque Helena, após um parto difícil, ficara impossibilitada de ter mais filhos. O luto caiu sobre a fazenda, e até os escravos trabalhavam em silêncio para não perturbar o sono da menina, enterrada no pequeno cemitério no alto do morro.
Todos os dias, Helena ia ao cemitério lamentar a perda da filhinha. A Eusébio, não agradavam aquelas constantes visitas, mas ela ficava agitada e agressiva, então, o melhor era deixá-la ir. Chegava de manhã cedo, sentava-se à sombra de uma árvore próxima à sepultura e ficava ali observando, na esperança de que a filha se levantasse e corresse para ela de braços abertos. Helena havia enlouquecido.
Com o tempo, Eusébio foi-se acostumando e já não se incomodava mais que Helena passasse as manhãs ao lado do túmulo da criança. À hora do almoço, um escravo ia chamá-la, e ela voltava mais tranquila, dizendo que Fátima havia conversado com ela e pedia que fosse ao seu encontro.
- E como é que você pretende fazer isso? - perguntava Eusébio, desconfiado.
Helena dava de ombros e não respondia, até que Eusébio deixou de se preocupar. Ela sempre dizia a mesma coisa, fruto da sua imaginação doentia.
Os escravos da fazenda, em sua maioria, não gostavam nem de Eusébio, nem de Helena. Trazidos da África em um navio negreiro, foram convertidos à religião dos brancos e aos seus costumes à força, além de se verem obrigados, sob ameaça de tortura e morte, a trabalhar pelo cultivo dos alimentos daquela gente. Eusébio e Helena, embora não fossem dados a crueldades, viam os escravos como ferramentas de trabalho, dispensando-lhes tratamento em nada condizente com a dignidade humana.
Por isso, eram revoltados, e muitos riam intimamente da desgraça do patrão. Era bem feito que a sinhá houvesse enlouquecido e que estivesse, agora, sofrendo a perturbação de espíritos que não gostavam dela.
Fazendo-se passar por Fátima, seus inimigos espirituais desencarnados procuravam levá-la ao suicídio. E ela, transtornada com a morte da filha, desejando intimamente reencontrar-se com ela, dava vazão ao assédio dos desafetos, que a instigavam constantemente, minando-lhe a resistência e o restinho de lucidez que havia em sua mente.
Naquela manhã, tudo parecia como antes. Helena saíra logo cedo, e Sebastião foi chamá-la perto da hora do almoço. Foi subindo a colina devagarinho, maldizendo o sinhô e toda a sua comitiva de canalhas, capatazes e feitores que viviam de olho nos escravos e não os deixavam fugir. Se pudesse, daria o troco naquela gente, mas sabia que, se tentasse qualquer coisa contra um branco, o resultado seria morte certa.
Mesmo antes de chegar ao topo da colina, Sebastião pressentiu que havia algo errado. Um gorgolejar agonizante foi levado pelo vento até seus ouvidos, e ele estugou o passo, para ver o que poderia estar acontecendo. Ao avançar pelas árvores e adentrar o cemitério, estacou aterrado, sustendo no peito a respiração ofegante.
Balançando de um lado a outro na árvore acima da sepultura de Fátima, o corpo de Helena se contorcia em espasmos de dor. Os pés se agitavam freneticamente, chutando o ar em todas as direções, enquanto as mãos desesperadas lutavam para afrouxar o nó que apertava sua garganta. Na mesma hora em que prendera a corda ao pescoço e saltara daquele galho alto e grosso, Helena se arrependera. Os espíritos que a instigavam afastaram-se momentaneamente, de forma a permitir que a sua consciência retornasse ao mundo e percebesse o que estava fazendo. Foi só aí que se deu conta do ato insano que havia cometido. Ela não queria morrer.
Próxima da semiconsciência, Helena não percebeu a chegada de Sebastião, que se ocultou entre as árvores para assistir a sua agonia, regozijando-se com a possibilidade de vingança. Por que salvaria aquela mulher azeda que os tratava como animais? Deixá-la morrer os livraria de sua detestável presença e causaria muito sofrimento a sinhô Eusébio, que ainda não se havia recuperado da morte da filhinha. Quem sabe ele não morria também, permitindo que os escravos se libertassem e voltassem para sua terra?
Quis o destino que, naquele momento, uma menina passasse por ali. Maria era a filha de oito anos da Chica, escrava encarregada dos quitutes, e a mãe lhe dera uma incumbência: colher laranjas para um bolo. Como as melhores árvores frutíferas ficavam no pomar atrás do cemitério, Maria fora correndo para lá, e agora carregava nas mãos uma cesta quase do seu tamanho, repleta de frutas.
Quando Maria se deparou com a cena macabra, parou estarrecida. A visão de Helena pendurada na árvore, os pés se agitando freneticamente e fazendo a saia esvoaçar num bailado horripilante de morte encheram a menina de pavor. Maria soltou a cesta no chão, espalhando laranjas por todos os lados, e desatou a correr. Queria chamar alguém que tirasse sinhá Helena dali.
Não teve tempo. Vendo-a, Sebastião a agarrou.
- Sebastião! - exclamou ela, apontando para Helena. -Depressa, Sebastião, a sinhá vai morrer!
- Sebastião não se mexia e continuava segurando-a.
- O que está esperando? - prosseguiu. - Vá salvar sinhá Helena!
O escravo olhou para Helena com um misto de ódio e prazer, voltando-se, em seguida, para Maria:
- Por que deveria? O que ela fez por nós?
- Sebastião! - tornou Maria, indignada. - Você não pode deixar uma pessoa morrer.
- E eles podem nos deixar morrer? Podem? Podem nos tratar feito bichos, nos escorraçar e nos deixar naquela senzala fétida para apodrecer em vida? Não, Maria, não se preocupe. Ela não merece viver. Nem ela, nem o maldito marido dela, nem aquela menina esnobe que os vermes da terra agora estão devorando!
Havia tanto rancor no tom de voz de Sebastião, que Maria se aquietou assustada.
- Isso não é certo - sussurrou ela, agora em lágrimas. Não podemos simplesmente ficar vendo morrer.
- Não podemos é deixar que ela viva. Que morra!
Ele estava com tanta raiva que Maria se aproveitou. Deu-lhe uma mordida na mão, com toda força, e Sebastião a soltou com um grito de dor. Maria saiu correndo em desabalada corrida colina abaixo, com o outro atrás dela:
- Venha aqui, Maria! Não seja besta!
Maria não se deteve. Correu o mais que pôde e só parou quando entrou em casa, gritando feito louca:
- Sinhô Eusébio! Sinhô Eusébio!
A balbúrdia foi tanta que todo mundo acorreu, inclusive Eusébio.
- O que está acontecendo? - censurou ele. - Que gritaria é essa?
- É a sinhá... - ofegou ela. - Sinhá Helena se pendurou lá na árvore do cemitério...
Eusébio não esperou mais. Saiu pela porta feito um furacão gritando para que o capataz o acompanhasse. Subiu correndo o morro, até que encontrou a árvore onde Helena balançava. Já não se debatia mais, e os pés haviam-se aquietado. As mãos pendiam ao longo do corpo, o pescoço arroxeado espremido no nó apertado.
Com a ajuda de Ubaldo, o capataz, Eusébio desceu o corpo de Helena, afrouxando a corda que a estrangulava. Experimentou-lhe o coração, que ainda batia fracamente. Eusébio ergueu a mulher no colo e desceu a colina às pressas, dando ordens ao capataz para que corresse em busca do médico local.
Quando o médico chegou, já era tarde demais. Em seus UI timos momentos de vida, Helena nem se mexia. O médico fez um exame superficial e constatou a inutilidade de qualquer tentativa Olhou para Eusébio e balançou a cabeça, enquanto ele ficou assistindo, inerte, à respiração quase imperceptível da mulher, que ia escasseando aos poucos, até sumir por completo.
- Ela está morta - constatou Eusébio, quase não acreditando no que acontecera.
- Lamento - disse o médico, examinando o pescoço de Helena. - O que foi que aconteceu?
- Ela se enforcou - esclareceu Eusébio, quase sem expressão.
- Se eu tivesse chegado um pouco antes, talvez tivesse tido tempo de salvá-la. Mas o senhor me chamou muito tarde.
- Eu não sabia. Mandei Sebastião ir buscá-la, e...
Foi então que Eusébio notou que Sebastião havia desaparecido. Mandou chamar Maria, para que ela informasse se o havia visto.
- Não sei do Sebastião, não, sinhô - respondeu a menina de forma inocente. - Deixei ele lá no morro.
- Ele viu sinhá Helena na árvore?
- Viu.
- E não fez nada? - Maria percebeu que Sebastião fizera algo muito errado e que seria punido. - Vamos, menina, responda-me! Sebastião nada fez para salvar minha mulher?
- Eu... não sei, sinhô...
- Conte-me a verdade, eu lhe ordeno!
Só a voz tonitruante de Eusébio já era suficiente para apavorar Maria, que se encolheu num canto e começou a chorar, com medo até de abrir a boca.
- Eu não sei, já disse. Ele só ficou lá parado, olhando...
- E Helena estava viva? Quando você chegou, ela ainda se mexia?
- Sim.
Eusébio foi sentindo um ódio tremendo crescer dentro dele. Descontrolado, começou a sacudir Maria pelos ombros, ao mesmo tempo em que gritava:
- Vocês a deixaram morrer, não foi? Por vingança e ódio! Vou acabar com vocês!
Ele começou a bater em Maria, que tombou no chão e procurou se defender com os braços.
- Não fui eu, sinhô! - contestou ela, aos prantos. - Eu pedi a Sebastião para salvar sinhá Helena, mas ele não quis. Disse que ela merecia morrer! Ele me segurou, para não me deixar buscar ajuda, mas eu mordi a mão dele e corri. Eu tentei salvar sinhá Helena, eu tentei...
Eusébio susteve o braço e virou-se para Ubaldo, que acompanhava a surra sem mexer um dedo:
- Vá atrás daquele negro nojento. Traga-o vivo! Quero acabar com ele com as minhas próprias mãos.
Do lado de fora, Chica escutava tudo sem poder interferir. Havia outras escravas com ela, algumas penalizadas, outras com medo, outras reprovando a atitude de Maria.
- A menina não teve escolha - defendeu Chica. - Está apanhando de sinhô Eusébio!
- Ela deveria morder a língua! - retorquiu Norma. - Por causa dela, Sebastião vai ser morto.
A porta se abriu bruscamente, e Ubaldo passou apressado.
- Vão procurar o que fazer - mandou ele. - Não quero ninguém perturbando ainda mais o patrão. Xô! Chispem!
As escravas voltaram correndo para a cozinha, menos Chica, que ficou esperando Maria. A menina saiu em seguida, cabeça baixa, olhos inchados de tanto chorar.
- Maria!
A mãe correu para ela, abraçando-a e puxando-a para fora. Estreitou-a o mais que pôde, para protegê-la dos olhares acusadores dos outros escravos, e levou-a para a cozinha, sem saber se temia mais a ira de Eusébio ou a revolta dos companheiros.

CAPÍTULO 33

Não tardou muito para Sebastião ser encontrado. Temendo a reação de Eusébio, embrenhara-se no mato tão logo Maria descera correndo o morro. Por que não terminara, ele mesmo, o serviço que Helena começara? Deveria tê-la tirado da árvore e enforcado com a mesma corda. Depois, poderia colocá-la de volta, e ninguém ficaria sabendo. Todos pensariam que ela se havia enforcado, e nenhuma suspeita recairia sobre ele.
Mas não. Achara que ela ia mesmo morrer, e só o que ele tinha a fazer era esperar, para depois voltar para casa esbaforido e dar a notícia a sinhô Eusébio, que nem iria desconfiar. Ele andava ocupado e não tomava conta da hora exata em que Sebastião saía para buscar sinhá Helena. Por isso, tinha tempo para esperar que ela morresse e retornar, pesaroso, para contar que a mulher se havia enforcado.
Só não contava com a intrometida da Maria. A menina sabia que ele se omitira deliberadamente para não salvar Helena e deixá-la morrer. E agora? O que seria dele? Só lhe restava fugir e rezar para que não o achassem.
Inútil ilusão. Sem experiência no mato, Sebastião foi capturado em breve tempo e reconduzido à fazenda. Ainda tentou correr, mas Ubaldo atirou uma corda e laçou-o como se laça um touro feroz.
- Venha cá, animal - exasperou-se o capataz. - O patrão tem contas a acertar com você.
Com a corda presa ao pescoço, Sebastião seguiu puxado por Ubaldo. De vez em quando caía e era arrastado pela estrada áspera até que o feitor diminuísse a marcha para que ele se levantasse.
Foi assim que Sebastião entrou na fazenda, atado pelo pescoço ao laço do feitor. Estava exausto e machucado, o suor do corpo se misturando ao sangue das feridas. Ubaldo deu uma volta com ele pela fazenda, para que todos os escravos o vissem, e parou em frente à porta de entrada, onde Eusébio os aguardava.
- Seu negro maldito! - urrou Eusébio, desferindo-lhe violenta chibatada. - Vai ter o que merece!
Enquanto Ubaldo descia do cavalo, Eusébio chicoteou o escravo ali mesmo, diante dos outros. Quanto mais batia, mais sentia a raiva guiando a mão do chicote.
- Canalha! Isso é pelo que fez à minha mulher!
Os escravos da fazenda queriam não olhar, mas foram obrigados pelos capatazes, que seguiam ordens de Eusébio. Maria chorava de mansinho, o rosto enfiado na saia da mãe, corroendo-se de remorso e dor.
- Não foi culpa sua - sussurrava Chica, bem baixinho. Você não teve escolha.
Do outro lado, Norma se atirou ao chão, lamentando, em desespero, o destino de seu amado Sebastião. O escravo apanhava sem dizer uma palavra. Apenas em um momento, quando conseguiu virar o rosto para o lado, seu olhar cruzou com o de Maria, e ela sentiu toda a força de seu ódio. Parecia que ele a acusava com palavras mudas.
Chegou o momento em que as chicotadas já não causavam dor em Sebastião. A carne, de tão ferida, tornara-se insensível aos golpes, e ele apenas ficou ali parado, entorpecido pelo sofrimento. Percebendo isso, Eusébio se deu por satisfeito e fez cessarem os golpes do chicote.
- Leve-o daqui - ordenou a Ubaldo. - E enforque-o na árvore mais alta do terreiro.
- Não! Não! - era Norma que, não podendo mais se conter, atirou-se aos pés de Eusébio, implorando pela vida do amado.
Eusébio empurrou-a com o pé e retrucou com desdém:
- Quer juntar-se a ele, negra?
Norma recuou aterrada, enquanto Ubaldo ria e jogava água no rosto de Sebastião, para acordá-lo.
- Você não pode perder o melhor da festa - anunciou em tom irônico. - E olhe que a sua amada vai assistir de camarote, já que ela não quis lhe fazer companhia como a estrela principal do espetáculo.
Sebastião olhou com amargura para Norma, que abaixou a cabeça, tocada pela decepção gravada no olhar dele. Ele não esperava mesmo que ela o acompanhasse, mas não contava que lhe desse as costas e fugisse. Foi o que ela fez. Com medo de ter-se excedido, evitou encarar Sebastião e voltou correndo para o seu canto, dando a si mesma a desculpa de que não poderia suportar vê-lo morrer, quando, na verdade, temia ser enforcada junto com ele.
Com risadas de euforia, Ubaldo amarrou as mãos de Sebastião e montou-o em seu cavalo. Prendeu a corda no galho mais alto da árvore e passou o laço ao redor do pescoço do negro. Os outros escravos choravam, evitando olhar para Sebastião. A uma ordem de Eusébio, Ubaldo deu uma chicotada no cavalo, que se pôs em movimento.
O cavalo foi, e Sebastião ficou, pendurado na corda que pendia do galho. Ao contrário de Helena, não resistiu muito tempo. Nem sequer chegou a se debater. Pescoço quebrado, encontrou a morte mais depressa.
Entre os escravos, o clima era de pesar e revolta. Eusébio mandou que os próprios negros enterrassem o corpo de Sebastião, não permitindo qualquer cerimônia fúnebre. Apenas em seus corações, os escravos rezaram pela sua alma.
À noite, quando todos voltaram a se reunir na senzala, ninguém dizia nada. Estavam muito chocados com o ocorrido, pois aquela era a primeira vez que Eusébio mandava castigar alguém, e logo com a morte.
- A culpa é toda dela! - esbravejou Norma, apontando o dedo acusador para Maria. - Foi ela quem delatou Sebastião.
- O que você queria que ela fizesse? - defendeu Chica. - Sinhô Eusébio estava batendo nela.
- Ela poderia ter mentido - insistiu Norma. - Ter inventado alguma história. Mas não. Foi logo contando tudo.
- Ela é apenas uma menina. Não sabe pensar como você.
- Que, por acaso, morreu de medo quando sinhô Eusébio mandou que se juntasse a Sebastião, não foi? - contrapôs Fidência, mais ponderada.
- É isso mesmo - disse alguém mais. - Maria é uma criança, mas você, Norma, já é mulher feita.
- E se acovardou diante do sinhô - observou um outro. - E nem olhar mais para Sebastião, olhou.
- Deveria se envergonhar - acrescentou um terceiro. -Acusar uma criança para esconder sua covardia.
- Ah! Agora a culpa é minha? Fui eu que dei com a língua nos dentes?
- A culpa não é de ninguém - contestou Fidência. - Foi Sebastião que escolheu o caminho dele. Não deveria ter deixado a sinhá morrer.
- Você agora vai defender aquela gente? - indignou-se um escravo robusto.
- Não estou defendendo ninguém.
- Pois eu acho que Sebastião fez muito bem em deixar aquela malvada morrer - comentou mais um escravo.
- Também acho - disse outro.
- E Maria deveria ter ficado quieta - incentivou Ninoca, amiga de Norma. - Se não tivesse corrido para sinhô Eusébio, nada disso teria acontecido.
- É, e ninguém iria mesmo sentir falta de sinhá Helena.
- Quem mandou você chamar o sinhô, Maria? - replicou Norma, fulminando-a com aquele olhar de acusação mordaz.
- Ninguém - respondeu a menina. - Eu só achei que era o certo...
- É certo querer salvar essa gente que só faz mal ao seu povo? - revidou Zeferina, outra amiga de Norma. - Viu só no que deu?
- Fiquei com pena de sinhá Helena. Ela parecia estar sentindo dor.
- E quem foi que teve pena de Sebastião, hein? - insistiu Norma. - Ninguém ligou a mínima para a dor dele.
- Eu liguei... - soluçou Maria. - Não queria que ele morresse.
- Se não queria, não deveria ter ido correndo contar tudo ao sinhô Eusébio.
- Pare com isso! - gritou Chica, pondo-se na frente de Maria. - Pare de atormentar a minha filha.
- Sua filha é a única culpada pela morte de Sebastião!
- Ninguém é culpado de nada - objetou Fidência. - E chega de veneno! Maria só tem oito anos, e você deveria se envergonhar de ficar acusando ela por algo de que não foi culpada.
- É melhor todo mundo deixar isso para lá e ir dormir - repreendeu um escravo velho e de cabeça branca. - Amanhã cedo temos que estar na lida e, sem dormir, não vamos produzir, e mais de nós serão castigados. É isso que vocês querem?
Ninguém queria mais ouvir falar em castigos, e todos foram dormir. Maria agarrou-se a Chica, que a estreitou para protegê-la. O silêncio caiu sobre a senzala, e apenas alguns roncos se faziam ouvir de vez em quando.
Norma era a única que não conseguia conciliar o sono. Ainda se recordava do olhar desapontado de Sebastião, revivendo o medo que sentira de ser chicoteada também e, pior, enforcada junto com ele. Para aliviar a consciência, punha a culpa em Maria, e logo uma crescente antipatia pela menina foi tomando conta do coração de Norma.

CAPÍTULO 34

Norma não esquecia a morte de Sebastião e buscava desculpas para si mesma. Mas o que poderia ter feito? Insistir com sinhô Eusébio e ser enforcada também? Era esperar demais de um ser humano, e ela não tinha jeito para heroína. Gostava de Sebastião, mas queria sobreviver, mesmo que a sua vida não fosse uma vida que valesse tanto a pena assim. De qualquer forma, estava viva.
E agora, só por isso, sentia que os outros a recriminavam e a evitavam, mudando de conversa toda vez que ela se aproximava. Não fosse a consciência de Norma, que era a única a dirigir-lhe cobranças e acusações, veria que nada daquilo era real, pois os outros escravos apenas prosseguiam com suas vidas. Ninguém achou que Norma deveria ter-se deixado matar por causa de Sebastião. Era ela, e apenas ela, quem sentia sobre si acusações invisíveis. E, para aliviar-se da culpa, descontava tudo em Maria, não perdendo a oportunidade de maldizer a menina para os companheiros.
Certo dia, Norma lavava roupas na beira do riacho em companhia de mais outras três escravas, quando avistaram Maria cor rendo por entre as árvores.
- Lá vai a malandrinha - observou Norma, em tom malicioso. - Desde que virou a filha preta do sinhô, pensa que não precisa mais trabalhar.
- Deixe de intrigas, Norma - censurou Fidência. - Maria continua a fazer o que sempre fez.
- O quê? Brincar?
- Ela é criança e não pode ficar o tempo todo trabalhando Agora fique quieta e faça o seu serviço.
- Esse foi o prêmio que ela recebeu por ter entregado Sebastião - prosseguiu Norma, sem dar atenção a Fidência.
- Que prêmio? - quis saber Ninoca.
- Você não sabia? - a outra meneou a cabeça. - Pois Maria agora é a preferida de sinhô Eusébio, que a tomou como filha.
- Não me diga... - espantou-se Zeferina.
- Deixe de intrigas - censurou Fidência. - Sinhô Eusébio ficou muno triste com a morte da mulher e da filha. Quem poderia culpar o homem por se afeiçoar a outra criança, já que perdeu a que tinha? Maria é uma menina muito meiga e carinhosa. Não há quem não goste dela.
- Isso é o que a Chica diz, para proteger a filha - objetou Norma. - Porque tem medo da reação da nossa gente. E agora, Maria acha que pode ficar por aí, desfilando com ares de sinhazinha.
- Isso tudo são invenções maldosas - objetou Fidência. Maria é uma menina boazinha, e nem lhe passa pela cabeça que possa vir a ser tratada como sinhazinha.
- Pois espere só para ver - desafiou Norma. - Não vai demorar muito para Maria deixar a senzala.
- Você acha que Maria vai passar a viver na casa grande? - indagou Ninoca.
- Não só viver na casa grande, mas ocupar o quarto da sinhazinha morta. E vestir as suas roupas, e brincar com seus brinquedos. E vai até poder mandar em nós.
- Oh! - fizeram Ninoca e Fidência ao mesmo tempo, a primeira já sentindo raiva da menina. A segunda, surpresa com tanta mentira.
- Será que vai se pintar de branco também? - ironizou Zeferina, mas com ira na voz.
- Não duvido nada - concordou Norma. - E a Chica, aquela aproveitadora... não duvido nada que agora passe a fazer as vezes de mulher do sinhô Eusébio.
- Não diga! - falou Ninoca, surpresa. - Você acha que ela e o sinhô...?
- Acho. Ninguém me disse nada, mas eu percebi. Podem ver como Chica anda toda metida, com ares de gente importante.
- É mesmo - concordou Zeferina. - Outro dia mesmo, pedi a ela um pedaço de bolo de laranja e ela disse que não podia, que era para sinhô Eusébio. Vejam só que esnobe!
- Cuidado com a língua - repreendeu Fidência -, ou vão acabar morrendo do próprio veneno.
- Vai ser a única a defender aquelas traidoras do nosso povo? - provocou Norma.
- É você quem está dizendo que elas são traidoras. Pois, para mim, elas continuam as mesmas. Maria recebeu um favor de sinhô Eusébio, e daí? Ela é só uma criança, fez o que podia para salvar sinhá Helena, e eu teria feito o mesmo. Não acho certo ficar vendo alguém morrer sem fazer nada, mesmo que seja um cachorro. Quanto a Chica, ela é responsável pelos quitutes de sinhô Eusébio. Como acha que ela iria explicar um bolo mordido antes de ele experimentar o primeiro pedaço?
As escravas ficaram em silêncio. Terminaram de lavar a roupa e se levantaram. Ao passar por Fidência, Norma evitou encará-la, mas a outra a segurou pelo braço e censurou veemente:
- Deveria se envergonhar. Maria e Chica nunca lhe fizeram nada.
Devolvendo à outra um olhar de raiva, Norma puxou o braço, abraçou a trouxa de roupas e partiu atrás das amigas, sem imaginar o resultado de tantas mentiras. Norma acendera a primeira fagulha, e Zeferina e Ninoca proporcionaram a palha por onde o fogo se alastraria. Em pouco tempo, os escravos da senzala estavam comentando sobre a preferência de sinhô Eusébio por Maria e Chica.
- Outro dia mesmo vi a Chica de mãos dadas com o sinhô - comentou alguém.
- Verdade? - indignou-se outra pessoa.
- É, e Maria estava brincando com as bonecas da sinhazinha. - Vocês sabiam que Maria está aprendendo a montar?
- Mentira!
- É verdade. Eu vi Maria na garupa do cavalo de sinhô Eusébio.
- E a Chica, toda derretida! Vi, pela janela do quarto do sinhô, quando ela se deitou na cama dele.
- Não, isso não!
- Vi, sim, eu juro! E cheirava o seu travesseiro.
- Mas que desavergonhada!
- Isso não é nada. Pois eu ouvi a própria Maria chamando sinhô Eusébio de meu paizinho.
Todos emudeceram, tamanho o espanto, menos Fidência, que se adiantou e replicou em tom de censura:
- Vocês deveriam se envergonhar. Olhos e ouvidos nos enganam, e nem sempre as coisas são o que parecem. E, ainda que Maria e Chica caíssem nas boas graças de sinhô Eusébio, o que vocês têm com isso? Por acaso é pecado querer ser bem tratada?
Ninguém disse mais nada, e foram todos saindo, retomando seus afazeres. Norma não conseguiu conter a euforia e deixou escapar um risinho de satisfação. As coisas estavam tomando o rumo que ela desejava.
Na verdade, nada do que haviam dito era o reflexo da verdade. Chica supostamente ficara de mãos dadas com Eusébio quando ele se cortara e mandara que ela lhe fizesse um curativo. E Maria recebera ordens para colocar as bonecas da sinhazinha no sol e escová-las, de modo a tirar-lhes o pó e o cheiro de mofo. Também andara a cavalo no dia em que Eusébio a chamara para ir com ele à vila comprar aguardente, e ela tivera que se equilibrar na garupa, com um pacote cheinho de garrafas no colo. Na hora de desmontar, o saco se rompeu e ela, morrendo de medo de deixar alguma garrafa cair e se quebrar, deixara escapar a súplica:
- Ai, meu paizinho... - referindo-se àquele que está no céu.
Chica, por outro lado, fora obrigada a deitar-se na cama de Eusébio certa vez em que, por descuido, derramara a bandeja do café da manhã sobre os lençóis, quando fora recolhê-la após Eusébio haver tomado o desjejum. Na queda, um bolinho rolara pela cabeceira, indo alojar-se num cantinho entre o colchão e o estrado, obrigando-a a esticar-se sobre a cama, com a cara colada no travesseiro, para alcançá-lo.
Anteolhos e ouvidos maldosos, a verdade se distorce e toma a forma daquilo que se deseja ver ou ouvir. O fato, contudo, foi que as mentiras acabaram prevalecendo nos corações ressentidos e invejosos, e muitos escravos passaram a olhar Maria e Chica com desconfiança e raiva, evitando-as sempre que podiam. Se antes Maria brincava com as poucas crianças negras que havia, agora, ninguém mais queria a sua companhia. E toda vez que Chica vinha conversar com alguém, os outros respondiam com evasivas e meias palavras, arranjando sempre algo que fazer para não ter que falar com ela.
- Por que elas estão fazendo isso, mamãe? - perguntava Maria, com lágrimas nos olhos.
- Não sei, minha filha.
- Ninguém mais quer brincar comigo.
- Vai passar.
Dali a pouco, ao encontrar-se com Fidência, Chica comentou:
- Não entendo por que todo mundo, de uma hora para outra, não fala conosco direito. Será que fizemos alguma coisa, Maria e eu, que não sabemos? As outras crianças até evitam brincar com ela.
Fidência não queria se envolver, mas aquilo já era demais.
- Não ligue - aconselhou. - São mexericos de gente que não tem mais o que fazer, como se isso fosse possível entre nós.
- Que mexericos?
- Bobagens. Nem vale a pena falar.
- Não, Fidência. Você falou em mexericos, e eu quero saber o que é. Andam falando mal de mim pelas costas, é?
Fidência suspirou, mas acabou contando:
- Olhe, Chica, corre um boato por aí que você é amante de sinhô Eusébio, e que ele colocou a Maria no lugar da filha dele.
- O quê?! Mas que ideia ridícula! E você acredita nisso?
- Eu, não, mas alguns dos outros escravos, sim.
- Por quê? Quem foi que andou espalhando esse absurdo?
- As pessoas...
- Sinhô Eusébio não é um homem mau, Fidência. Ele se apegou um pouco a Maria, é verdade, mas não do jeito como estão dizendo.
- Ele mandou matar Sebastião.
- Coloque-se no lugar dele. Sebastião deixou sinhá Helena morrer. O homem ficou feito doido. Perdeu a mulher e a filha em menos de um ano.
- Você tem razão, mas os outros não pensam assim.
- Era só o que me faltava, ser acusada pela minha própria gente. Já não basta ter que servir a um branco?
- Acho que o melhor é deixar para lá. Se você não der importância, as pessoas param de falar.
Chica ficou em dúvida. Agora entendia o olhar atravessado de algumas pessoas, mas não lhe agradava ser o alvo das futricas de seu povo. Estavam todos pensando que ela era amante de sinhô Eusébio, e ele nunca olhara para ela com a menor sombra de desejo. O homem ainda era apaixonado pela esposa e vivia a lamentar a morte dela e da filha. Se os outros estivessem dentro da casa grande, saberiam do que ela estava falando.
O melhor mesmo era seguir o conselho de Fidência e não se importar com o falatório. Só era ruim para Maria, que era ainda muito criança para compreender a maledicência humana.

CAPÍTULO 35

Certa vez, Fidência estendia os lençóis no varal, enquanto Norma, Zeferina e Ninoca terminavam de enxaguar a rouparia. Ao se levantarem para voltar, Norma avistou Maria brincando na beira do rio e soltou um risinho de escárnio. Com o queixo, mostrou a menina às outras e aproximou-se, falando alto, em tom de reprovação:
- Deixe sinhô Eusébio saber que você mata o trabalho para ficar brincando com peixinhos.
Maria levou um susto tão grande que quase caiu dentro do rio. Norma, secundada por Zeferina e Ninoca, ria a valer da menina, que se enfureceu e, mostrando-lhes a língua, retrucou com impertinência:
- E deixe o sinhô saber que vocês ficam vagabundeando pelo mato em vez de esfregar as ceroulas dele.
- Ora, sua atrevida! - esbravejou Norma, partindo para cima de Maria. –Vou lhe dar uma surra, que é o que você merece.
Maria se virou para correr. Na pressa, seu pé escorregou nos seixos cheios de limo, fazendo-a desequilibrar-se. Seu corpo fez um rodopio estranho, e ela tentou se segurar em apoios invisíveis. Estendeu os braços para todos os lados, contudo, não havia nada em que se agarrar. Suas pernas bambearam, o pé falseou várias vezes, e ela quase caiu, mas conseguiu se sustentar, embora muito precariamente.
Foi tudo muito rápido. Norma achou que poderia se divertir e escarnecer um pouco mais da menina e, aproveitando-se da posição mal equilibrada de Maria, empurrou-a com força para dentro da água. O riacho ali não era fundo, e havia muitas pedras encobrindo seu leito. Maria caiu de costas, espargindo água para todos os lados, o corpo afundado na areia do leito, a cabeça de encontro a uma pedra pontuda, lavada pela água fluente.
Ela não emitiu nenhum gemido e, a princípio Norma e as amigas se escangalharam de tanto rir. Foi Ninoca quem percebeu algo estranho. No lugar onde a água banhava a cabeça da menina, um filete avermelhado escorria, diluindo-se rapidamente na correnteza tênue que fazia o rio rumorejar.
Aos poucos, Ninoca foi cessando as gargalhadas, e só então as outras duas notaram que havia algo errado. Um pavor enevoava os olhos de Ninoca, que cobriu a boca com uma das mãos enquanto, com a outra, apontava para o local onde o corpo da criança jazia inerte, balançando ao sabor da corrente. Norma seguiu a direção do dedo da amiga, com os lábios ainda distendidos no sorriso mordaz, que se extinguiu tão logo percebeu o sangue de Maria diluído na água.
As três se olharam em silêncio, recusando-se a acreditar no que havia acontecido.
- Não pode ser... - balbuciou Norma, com medo de se aproximar. - O rosto está fora da água...
- Ela bateu com a cabeça! - esganiçou-se Zeferina. -Olhe o sangue!
O sangue continuava a correr, e Norma começou a se desesperar.
- Vão dizer que fui eu - apavorou-se, associando tudo às acusações mudas e fantasiosas acerca da morte de Sebastião. Não foi culpa minha. Ela caiu.
- Você a empurrou - lembrou Zeferina.
- Ela escorregou. É o que vamos dizer - sugeriu Norma, em pânico.
- Ai, meu Deus, o que é que fazemos? - soluçou Zeferina.
- Vamos chamar alguém e dizer que ela caiu. Vocês entenderam?
Norma e Ninoca estavam de costas para a mata, e apenas Zeferina viu quando Fidência chegou. Como demoravam a voltar com a roupa lavada, Fidência partira atrás delas para ver o que havia acontecido.
- O que vocês fizeram? - gritou Fidência, que havia escutado parte da conversa.
- Foi um acidente - afirmou Norma. - Não fizemos nada. Ela caiu...
Fidência havia passado por elas às pressas e examinava o corpo inerte de Maria.
- Ela está morta! - constatou horrorizada. - Vocês a mataram
- Não! Foi um acidente, eu juro!
- Não jure pelo que sabe que é mentira. Eu ouvi o que vocês disseram. Ouvi claramente quando Zeferina disse: você a empurrou. Você quem? Qual das duas empurrou Maria?
- Ela caiu! Escorregou na pedra e caiu!
- Mentira! Vocês a empurraram! Ou você, ou Ninoca!
- Eu, não! - defendeu-se Ninoca, apavorada ante a possibilidade de ser acusada de criminosa pelos demais. - Nem cheguei perto dela.
Norma permaneceu em silêncio, maldizendo intimamente a covardia da amiga.
- Foi você, não foi? - acusou Fidência, apontando para Norma. - Você a detestava e aproveitou-se da oportunidade para livrar-se de uma criança inocente. Como pôde?
- Foi sem querer, eu juro! - choramingou Norma. - Não queria que ela morresse. Foi uma brincadeira.
- Você a empurrou? Foi isso que fez?
- Norma a empurrou, mas não para matá-la - intercedeu Zeferina.
- Nós só queríamos nos divertir esclareceu Norma. -Não era para isso acontecer.
Fidência não disse mais nada. Lançou a Norma um olhar de muda reprovação e foi apanhar o corpo de Maria. Como faria para contar a Chica que fora Norma quem matara sua filha?
- Você deveria vir comigo - aconselhou. - Se realmente foi sem querer, venha comigo e conte tudo a Chica.
- Ficou louca? - protestou Norma. - Chica vai querer me matar.
- É o mínimo que você deve fazer. Assumira responsabilidade pelo que fez.
- Mas foi sem querer!
- Ainda assim, você fez.
- Pelo amor de Deus, Fidência, não conte nada. Confirme a nossa versão do acidente.
- Nunca menti na vida e não vou começar agora para acobertar o seu erro. Venha comigo e conte a Chica. Talvez assim ela não fique com tanta raiva de você.
- Ela vai me odiar. Já me odeia.
- É você quem a odeia, assim como odiava Maria. Foi o seu ódio que matou a menina.
- Não me peça para fazer uma coisa dessas!
- Por sua causa, Maria e Chica foram discriminadas pela nossa gente. Por causa das mentiras infames que você inventou.
- Eu estava com raiva e com medo. Achei que Maria e Chica tinham passado para o lado dos brancos.
- Mentira. Você quis descontar em Maria a sua própria covardia. Vai ser covarde novamente?
- Não sou covarde. Eu não podia salvar Sebastião.
- Ninguém achou que podia. O que aconteceu a Sebastião não foi culpa sua, nem ninguém esperava que você perdesse a vida junto com ele. Você é quem se acusa de covarde e quis punir Maria no seu lugar para ver se, culpando-a, aliviaria a própria culpa.
- Eu não fui culpada, você mesma disse...
- Eu disse, mas não é assim que você pensa. Com Maria, contudo, é diferente. Foi por sua causa que ela morreu. Vai ser covarde novamente?
Sem argumento, Norma abaixou os olhos e chorou. Fidência tinha razão. Ela fora longe demais. Não tivera culpa na morte de Sebastião, mas, o que dizer de Maria? De onde estava, ficou olhando Fidência erguer o corpo da menina e sentiu o coração se confranger. Queria muito contar a verdade, mas tinha medo da reação dos outros. E se ficassem zangados e a matassem também? E se sinhô Eusébio, que gostava tanto da menina, mandasse que Ubaldick a amarrasse no tronco, lhe desse umas chibatadas e a enforcasse?
Apesar do medo, Norma sentiu que precisava fazer alguma coisa. Estava muito arrependida de tudo o que fizera. As mentiras que inventara sobre Maria e, principalmente, o empurrão que lhe dera. Nunca pensou em matar a menina. Quando a empurrara, nem sequer lhe passou pela cabeça que poderia matá-la. Não era uma assassina. Podia ser invejosa, covarde e maledicente. Mas criminosa, não era.
E, agora, Maria estava morta por causa da sua inconsequência. Norma sentiu um medo indescritível apoderar-se de todo o seu corpo, só não a paralisando porque o remorso foi mais intenso. Seria difícil, mas sabia o que tinha que fazer.
- Você vem comigo ou não? - indagou Fidência, parando ao lado dela com a menina no colo.
Em vez de responder, Norma estendeu as mãos e tomou o corpo de Maria dos braços da outra.
- Deixe que eu a levo - falou com voz sofrida. - Como você mesma disse, a responsabilidade é minha.
Percorreram o caminho todo em silêncio. Apenas Fidência e Norma, carregando a menina morta, entraram na casa. Chica estava mexendo as panelas no fogão e ouviu o barulho de passos. Pensando que fosse a filha, virou-se despreocupadamente, ao mesmo tempo em que dizia:
- Você demorou...
As palavras morreram na garganta, e a mente de Chica não conseguiu decifrar a cena insólita que tinha diante de si. O que Fidência fazia ali parada, ao lado de Norma, que segurava no colo sua filha adormecida? Aos poucos, o susto foi passando, e a lucidez voltou a animar a mente de Chica, que soltou a colher de pau e correu para elas.
- Maria! Minha filhinha! O que foi que aconteceu?
Chica retirou a menina dos braços de Norma e sentou-se com ela ao colo, sem imaginar que ela não tinha mais vida. Maria estava toda molhada, e a mãe custou a perceber o sangue que começava a grudar na carapinha. Algumas gotas, contudo, se espargiram sobre a alvura de sua blusa, e Chica afastou a criança, apalpando-lhe a cabeça até encontrar a ferida.
Só então se deu conta da moleza do corpo de Maria, bem como da falta de respiração, dos olhos cerrados que não se abriam e da ausência do compasso de seu coração. Durante alguns minutos, em que tentou disfarçar a verdade, não acreditou que Maria estivesse morta. Parecia que dormia. Alisou-lhe os cabelos e chamou baixinho:
- Maria...
A menina não se movia, e o contato de seu corpo frio lembrou à Chica o toque da morte. Um arrepio percorreu os ossos da escrava que, finalmente, percebeu que a fatalidade a tinha escolhido. Soltou um grito e apertou o corpo da menina, chorando com a dor da certeza de que ela havia morrido.
- Maria... - rumorejou. - Oh! não...
Durante muito tempo, Chica permaneceu agarrada ao corpo da filha, e ninguém teve coragem de interrompê-la ou dizer alguma coisa. Fidência as olhava emocionada, e Norma padecia de remorso. Depois que ela parou de soluçar, permanecendo tão imóvel quanto a criança, Fidência se aproximou e falou gentilmente:
- Ela se foi, Chica. Precisamos enterrá-la.
Chica levantou os olhos e enxugou as lágrimas, e a dor que havia impressa neles causou um calafrio em Fidência e mal-estar em Norma. Ela havia, sem querer, roubado uma criança de sua mãe.
- Minha filhinha - soluçou Chica -, o que foi que aconteceu?
Fidência olhou para Norma, que engoliu em seco e pensou em recuar, mas o caminho não tinha mais volta. Era preciso reunir coragem e agir.
- Chica... - sussurrou ela -, Maria caiu no rio...
Os olhos de Chica se estreitaram, como se quisessem impedir que, com as lágrimas, a dor fugisse de dentro dela.
- Caiu? - repetiu ela, ouvindo as palavras de Norma como se estivesse num sonho.
- Bem, na verdade... - ela hesitou e olhou para Fidência, que a encorajou com o olhar. - Eu estava com ela, e... nós estávamos brincando, e ela estava na beira do rio... Havia muitas pedras, muitos seixos escorregadios... Eu não queria, eu juro...
O quase descontrole de Norma chamou Chica de volta à razão. Ela acomodou o corpo de Maria sobre o banco e se levantou, agora mais consciente.
Você não queria o quê?
Norma engoliu em seco e respondeu com voz inaudível: Não queria que ela morresse...
Olhou de relance para Chica e, vendo seus olhos ávidos, temeu a sua reação.
- O que você estava fazendo com ela? - tornou Chica, tentando imaginar por que Norma estava com Maria, se não gostava dela.
- Eu... eu a vi na beira do rio... Fui brincar com ela, e ela caiu...
- Brincar com ela? Não compreendo...
- Eu... só encostei nela... e ela caiu.
- Você a empurrou?
Norma não conseguiu responder. Fechou os olhos e fez que sim com a cabeça, esperando pela explosão de Chica. A reação, contudo, não veio. Quando Norma abriu os olhos, o que viu a deixou ainda mais angustiada. Chica estava de joelhos, o corpo dobrado sobre si mesmo, a cabeça quase tocando o chão.
- O que está fazendo? - questionou Fidência, com medo de que a amiga estivesse passando mal.
- Estou rezando para que Deus não permita que meu coração se encha de ódio pelo que Norma nos fez.
A resposta foi deveras pungente, e Norma sentiu o remorso afundar diante da nobreza e da superioridade do gesto de Chica.
- Por Deus, Chica, perdoe-me! - suplicou transtornada, atirando-se ao chão à frente da outra. Eu não queria! Fui tola, covarde, maldita! Mas jamais teria matado uma menina ou qualquer outra pessoa. Posso ser uma mulher sem alma, mas não sou assassina! Foi sem querer. Eu a empurrei, sim! Mas, por idiotice, pensei que ela iria cair e se molhar. Jamais imaginei que sua cabeça fosse encontrar aquela pedra. Foi um acidente, eu juro! Não me odeie, Chica, perdoe-me! Perdoe-me! Oh! Meu Deus, o que fui fazer?
Quem chorava em descontrole era Norma, ao passo que Chica permanecia serena, apesar da dor profunda. Ela estendeu a mão para a frente e tocou o braço da outra, que olhou para ela assustada.
- Se dissesse que não estou sofrendo pelo que você fez, eu estaria mentindo. Mas não odeio você, e perdão quem tem que lhe dar é o seu coração.
- Você é uma alma nobre - afirmou Norma, a voz entrecortada pelos soluços. - Ao passo que eu... sou uma perdida. Só agora percebo a cegueira que me guiou por toda a vida. Ainda que eu viva cem vezes, jamais serei como você.
A dor e o arrependimento de Norma eram sinceros, e Chica não disse mais nada. Auxiliadora por Fidência levantou-se e foi cuidar do enterro da filha. Em nenhum momento Chica acusou Norma ou fez qualquer insinuação maldosa. Nem sequer comentou sobre o ocorrido. Disse apenas que a menina havia caído e batido com a cabeça numa pedra, o que era verdade. Não queria destilar o ódio entre os seus nem provocar a punição de Norma por parte de Eusébio.
Com o passar do tempo, Norma foi desfazendo as intrigas que levantara sobre Maria e Chica. Admitiu que havia inventado aquelas histórias porque estava com raiva da menina, mas que agora, depois que ela morrera, arrependia-se. E teria até contado que fora ela quem empurrou a criança se Chica não a impedisse, argumentando que aquela revelação não faria bem a ninguém, pois as críticas, as acusações e os julgamentos só servem para aliviar as culpas de quem os faz.
- Aquele que julga é porque se considera superior, e nenhum de nós está acima dos outros ou de Deus - dizia ela. - Só sabe a verdade quem pode se beneficiar com ela. Para todos nós, ela serve de lição. Para os outros, será um estímulo à prática da maledicência e do mal.
Se bem que não florescesse uma amizade entre Chica e Norma, nenhum ressentimento restou entre as duas. Chica tratava Norma bem, embora com certo distanciamento, e esta correspondia com respeito, defendendo-a sempre que alguém pensava em falar mal dela. E Norma nunca mais em sua vida usou a palavra para ofender ou agredir quem quer que fosse, servindo ainda de exemplo para suas amigas Ninoca e Zeferina, que também aprenderam que o silêncio é uma bênção que todos devem cultivar.
Falando sobre o passado...
Maria foi uma alma nobre que se dispôs a me acompanhar na vida. Pode ser que muitos não saibam, mas ela gostava de ser minha filha, porque fui sua mãe por três encarnações sucessivas. Assim como eu, tinha muito que aprender, embora ela estivesse mais preparada para enfrentar as armadilhas de seu próprio coração.
Falando um pouco de Maria, que antes foi Airumã, e antes ainda Cibele, só o que posso dizer é que ela foi a luz que me guiou pelas noites infindas e que, sem ela, talvez eu não conseguisse vencer. O maior conflito de Maria era sua dificuldade de adaptação ao mundo e, por isso, pelo seu merecimento, podia retornar mais cedo do que a maioria de nós. Embora aparentemente dolorosos, seus desenlaces não foram sentidos com sofrimento, porque sempre houve muitos bons espíritos que a desligavam da matéria milésimos de segundos antes de ela ser atingida pela dor. Com isso, Maria foi crescendo em espírito e hoje consegue, sozinha, auxiliar muita gente.
Para mim, os anos transcorreram solitários, porém, proveitosos. Eu, que um dia fora Aracéli e antes Alejandro, podia agora me considerar preparada para novas experiências. Não vivi muitos anos na terra, porque também tinha pressa de retornar, e me foi concedida essa graça.
Quando reencarnei naquela senzala, muitos dos que me acompanharam haviam sido antigos índios e índias que pereceram sob a sanha da minha espada, nos tempos dos maias e astecas. Reuniram-se todos ali, uns para me cobrar, outros para me ver cair. Alguns, como Norma, Ninoca e Zeferina, consegui conquistar. Com outros precisava ainda me esforçar um pouco mais.
De toda sorte, aprendi com a vida o valor exato do orgulho. É o orgulho que nos dá o reconhecimento do que somos e podemos, desde que não nos deixemos envenenar pela soberba, a presunção e a arrogância. Quando isso acontece, nós decaímos, mais uma vez, pelas veredas da ilusão e nos atribuímos uma importância maior do que qualquer um pode ter nesse mundo de enganos.
Ninguém que habite este planeta está em condições de merecer o título de melhor, supremo ou absoluto. Ninguém. Somos todos parte do Um, que não se fragmenta nem se divide, apenas se irradia em diferentes direções. E todas essas centelhas, um dia, inexoravelmente, tornarão à fonte da qual partiram para resplandecer numa única flama de amor.
Se é assim, então, por que perder tempo alimentando o orgulho que destrói, que invalida e que engana? Basta olharmos a natureza para percebermos o tamanho da nossa pequenez. Que arrogância é essa que nos faz pensar que somos absolutos, quando o desconhecido ainda ocupa a maior parte de nossas vidas? Como pode alguém que conhece tão pouco do Universo pretender ter a última palavra no sentido da verdade?
E o que é a verdade senão aquilo que nosso coração sente como a resposta indizível aos nossos questionamentos mais profundos?

PARTE 4

CAPÍTULO 36

Eleonora se distraía no jardim de sua casa com as crianças. Silmara, a mais velha, percorria, com a boneca, caminhos imaginários por entre as flores perfumadas, enquanto Evandro espetava formigas com uma vareta pontiaguda. Eleonora se levantou e, gentilmente, retirou a varinha das mãos do menino.
- Quantas vezes tenho que repetir que não se deve maltratar os animais?
- Ora, mamãe, é só um inseto - protestou ele, com irritação. Mesmo assim. É crueldade.
Ela não percebeu a chegada de Sérgio, que a abraçou por trás e beijou sua cabeça perfumada.
- Olá, querido - disse ela, virando-se para ele. - Vai sair?
- Mais tarde. Temos reunião no centro espírita.
- Ah!
- Você não vai?
- Eu gostaria, mas não tenho com quem deixar as crianças.
- Você é quem sabe.
Permaneceram algum tempo no agradável convívio em família, até que a noite se aproximou, e Sérgio partiu para o centro. Chegando lá, encontrou, entre os presentes, algumas pessoas que não conhecia.
- Quem são? - indagou a um amigo.
- Um tal de seu Joaquim. Veio trazendo o filho, um jovem chamado Zélio (16), que, dizem, sofria de paralisia e começou a andar de repente.
Os presentes sentaram-se à mesa, e iniciaram-se os trabalhos. Logo após a abertura, para surpresa de todos, o rapaz se levantou da cadeira e falou com voz categórica:
- Aqui falta uma flor!
E saiu, deixando todos mudos de espanto.
- Seu Joaquim, não é permitido se ausentar no meio da reunião - censurou o presidente.
- Eu... lamento muito. Não sei o que aconteceu.
O rapaz voltou em seguida, trazendo uma rosa branca e depositando-a sobre a mesa. O dirigente ficou confuso, e um pequeno tumulto estabeleceu-se no ambiente, com todos falando ao mesmo tempo. Sérgio parecia paralisado com a cena e, principalmente, com aquele menino de nome Zélio. A muito custo, o dirigente conseguiu conter a balbúrdia, e os médiuns se aquietaram.
Mas não por muito tempo. Logo um homem sacudiu o corpo, seguido por muitos outros, inclusive Sérgio, que não sabia bem o que se passava. Na verdade, todos incorporavam espíritos diversos, que falavam com estranho chiado na voz.
- O que está acontecendo? - indagou o dirigente. - Onde está a disciplina? E quem são vocês, que aparecem assim na sessão, sem convite?
- Nós somos os espíritos dos índios que aqui habitaram - disse um dos médiuns.

16. A História conta que o episódio com Zélio de Moraes, jovem de 17 anos que inaugurou o culto da Umbanda no Brasil, ocorreu na Federação Espírita do Rio de Janeiro, em Niterói, no dia 15 de novembro de 1908.
E outros de nós, antigos escravos, pretos velhos que agora desejam trabalhar.
- Isso não é possível - repreendeu o dirigente. - Peço que, por favor, se retirem. Aqui não são permitidas manifestações de espíritos tão atrasados e incultos.
Sérgio viu-se dominado por um daqueles espíritos e não lutou contra ele. Sentiu indescritível bem-estar com a presença da entidade, que se dizia um índio, e permitiu a incorporação tranquila e benéfica.
A seu lado, Zélio havia-se levantado e, igualmente incorporado, falou com voz clara e segura17:
- Por que repelem a presença dos citados espíritos, se nem sequer se dignaram a ouvir suas mensagens? Seria por causa de suas origens sociais e da cor?
Um médium vidente, percebendo a luminosidade que irradiava do espírito incorporado em Zélio, perguntou espantado:
- Por que o irmão fala nesses termos, pretendendo que a direção aceite a manifestação de espíritos que, pelo grau de cultura que tiveram quando encarnados, são nitidamente atrasados? Por que fala desse modo, se estou vendo que me dirijo, neste momento, a um jesuíta, cuja veste branca reflete uma aura de luz? E qual o seu nome, meu irmão?
- Se julgam atrasados os espíritos de pretos e índios, devo dizer que amanhã estarei na casa deste aparelho, para dar início a um culto em que esses pretos e índios poderão dar sua mensagem e, assim, cumprir a missão que o plano espiritual lhes confiou. Será uma religião que falará aos humildes, simbolizando a igualdade que deve existir entre todos os irmãos, encarnados e desencarnados. E se querem saber meu nome, que seja este: Caboclo das Sete Encruzilhadas, porque não haverá caminhos fechados para mim.
- Julga o irmão que alguém irá assistir a esse culto? - ironizou o vidente.

17 - O diálogo a seguir é transcrito das anotações que constam das fontes históricas.

- Cada colina de Niterói atuará como porta-voz, anunciando o culto que amanhã iniciarei.
A manifestação do espírito, embora desdenhada pela maioria dos presentes, muito impressionou Sérgio. De volta a sua casa, encontrou Eleonora sentada na sala, lendo uma obra espírita, e foi logo contando:
- Minha querida, você nem imagina o que aconteceu.
- O que foi?
- Apareceu por lá, hoje, um rapaz muito simpático, chamado Zélio de Moraes.
Em minúcias, Sérgio contou a Eleonora o que havia acontecido, inclusive com ele, que incorporara o espírito de um índio.
- Não me diga! - interessou-se Eleonora. - E quando foi que você disse que ele iniciaria o novo culto?
- Amanhã, às oito da noite. Por quê? Está interessada?
- Para falar a verdade, estou sim. Achei essa história fantástica e maravilhosa! Não conheço esse menino nem sei o que ele pretende, mas só de ouvir você falar, já simpatizei com ele. Acho que ele resumiu bem tudo o que eu penso e sinto.
- Está pensando em ir à casa dele?
- E por que não? Você mesmo disse que o achou simpático.
- Sim, mas, daí a frequentarmos o seu culto...
- O que é que tem? Por acaso está com medo da reação de seus colegas do centro?
- Não. Só não estou bem certo sobre a seriedade desse rapaz.
- É por isso que temos que ir até lá. Só assim saberemos se o menino é sério e se essa entidade, realmente, está em condições de introduzir esse novo culto.
- Ficou curiosa?
- É mais do que isso. Sinto como se uma voz interior me impelisse a ir. Eu tenho que conhecer esse moço.
- Também fiquei curioso. Você tinha que ver o garoto. Parecia tão espontâneo, tão verdadeiro!
- Então, você tem que me levar até lá. Precisamos ver de perto o que está para acontecer.
- Muito bem, minha querida, iremos até lá. Está satisfeita?
- Muito.
Ele a beijou com carinho e indagou:
- E as crianças, como estão?
- Silmara está bem, mas Evandro, como sempre, faz das suas. É rebelde, malcriado e autoritário. Sem falar que gosta de maltratar os animais.
- Você se preocupa à toa. Com o tempo, isso passa.
- Espero que sim.
Deitados para dormir, Eleonora não conseguia parar de pensar no que Sérgio dissera sobre o rapaz que fora ao centro naquele dia. Embora o marido insistisse para que ela frequentasse as reuniões, tinha certa resistência. Eleonora gostava das leituras que fazia e achava bonitas as palavras do Evangelho. No entanto, sentia uma inquietação que não podia definir. Havia algo que não guardava coerência com a ideia que ela fazia de caridade ou das verdades divinas.
E, agora, Sérgio vinha lhe falar sobre um novo culto, iniciado por uma entidade que se dizia caboclo. Só o nome do espírito, Caboclo das Sete Encruzilhadas, já a impressionou. Sentiu imensa alegria e ficou imaginando por que a ideia de um índio dirigindo um culto a entusiasmara tanto.
Naquela noite, Eleonora sonhou. Sonhou que caminhava por uma floresta muito verde, até que encontrou um índio imenso, musculoso e muito atraente. Sem temê-lo, aproximou-se. Ao vê-la, o índio sorriu e a estreitou num abraço forte e amistoso.
- Sinto saudades, Piraju - disse ela, ainda abraçada a ele.
- Também eu - respondeu o índio. - Mas está chegando a hora em que trabalharemos juntos.
- Por onde você anda? Por que não me acompanhou?
- Foi preciso que eu ficasse. Juntos, temos muita contribuição a dar a essa religião nascente.
- Você vai estar comigo?
- O tempo todo. Serei o seu guia, o espírito com o qual você desenvolverá a sua mediunidade e trabalhará para ajudar não só aqueles que necessitam, mas a si mesma. É através da sua missão na Terra que terá a chance de finalmente se reajustar com os últimos desafetos. E os laços de inimizade se diluirão pelo bem que você lhes fará.
- Não sei se estou à altura.
- Se não estivesse, não teria sido permitido que você viesse ao mundo com essa tarefa. E agora, minha querida, volte ao corpo físico. A manhã se aproxima e, em breve, Sérgio despertará.
Piraju pousou-lhe um beijo suave na testa, e Eleonora voltou ao corpo. Em poucos instantes, sentiu as cutucadas gentis do marido, que lhe dizia ao ouvido:
- Levante-se, preguiçosa. O relógio acaba de dgr seis horas.
Eleonora abriu os olhos mansamente e fixou-os nele. Lembrou-se vagamente do sonho que tivera naquela noite e comentou com Sérgio:
- Sonhei com um índio.
- Teria sido o Caboclo das Sete Encruzilhadas?
- Não sei dizer. Só o que me lembro é que ele dizia que teríamos que trabalhar juntos. Não é estranho?
- Talvez você tenha ficado impressionada com a história do Zélio e de seu caboclo.
Talvez...
Eleonora sabia que não era só isso. Impressionara-se, sim, mas aquele sonho era muito mais real do que qualquer impressão que tivera. Tinha certeza de que, de alguma forma, ela se encontrara com aquele índio, em algum outro lugar, e ele era uma pessoa muito querida.
O índio, de cujo nome não se recordava, dissera-lhe que trabalhariam juntos. Mas juntos em quê? Embora não se lembrasse com exatidão do sonho, Eleonora sabia que ela e aquele índio ainda se encontrariam muitas vezes, e que ele seria, durante toda a sua vida, seu protetor e amigo.

CAPÍTULO 37

Eleonora não saberia descrever a emoção que sentia. Só de pensar que, à noite, iria conhecer Zélio de Moraes, seu coração disparava. Desde menina, sempre fora bastante curiosa a respeito das verdades ocultas da vida e procurava estudar e se instruir. Casou-se aos dezoito anos e ganhou de presente dos sogros uma viagem à Europa.
Por essa época, ela já conhecia a doutrina espírita. Quando pequena, leu alguns artigos publicados em jornais cariocas e logo travou contato com a doutrina de Kardec18. Ficou fascinada e procurava estudar cada vez mais. No Brasil, contudo, a literatura espírita e esotérica era muito restrita, e Eleonora permanecia com um anseio inenarrável e insatisfeito.
A fim de dar cumprimento à tarefa que lhe fora confiada, Eleonora nasceu em uma família de posses e de mente aberta para seu tempo. Teve educação aprimorada, estudou nas melhores escolas e aprendeu inglês e francês, idiomas que dominava tão bem quanto o português. Gostava de ler e se instruía o mais que podia, e foi adquirindo uma cultura pouco vista em mulheres brasileiras do início do século 20.

18 - Allan Kardec - pseudônimo do Professor Hippolyte Léon Denizard Rivail (Lyon, 3/10/1804 - Paris, 31/3/1869), pedagogo e escritor, codificador do Espiritismo.

Para sua felicidade, casou-se com um homem compreensivo e inteligente, também disposto a estudar e conhecer as verdades ocultas e invisíveis. Sérgio tinha um próspero consultório dentário em Niterói e era dedicado médium em um centro espírita local.
Em sua viagem à Europa, Eleonora conheceu obras de escritoras como Helena Blavatsky19 e Annie Besant20, dentre outros, interessando-se cada vez mais pelas coisas ocultas. Em posse de tão variada literatura espírita e esotérica, não era de se espantar que a mente de Eleonora sofresse um impulso muito além do comum de sua época, e as doutrinas praticadas no Brasil não despertavam muito o seu interesse, por achá-las incompletas e muito seletivas.
Por isso, quando Eleonora ouviu falar de um menino que vinha trazendo a mensagem de um caboclo para dar início a uma nova doutrina que falaria aos humildes, algo dentro dela se acendeu. Parecia que aquela religião nascente resolveria os seus questionamentos, pois Eleonora tinha reservas quanto à excessiva erudição de certos segmentos espiritualistas. Para ela, estudar era importante, mas mais importante do que o conhecimento era a compreensão para com os humildes.
Era preciso inaugurar uma corrente que despertasse a fé nas pessoas sem, contudo, exigir-lhes mais do que suas capacidades intelectuais poderiam dar. E seu coração lhe dizia que seria através daquele menino, Zélio de Moraes, que essa nova doutrina se iniciaria e depois se espalharia por todo o Brasil.

19 - Helena Petrovna Blavatsky (Yekaterinoslav, Rússia, 31/7/1831 - Londres, 8/5/1891), uma das fundadoras da Sociedade Teosófica.

20 - Annie Wood Besant (Londres, 1/10/1847 - Madras, Índia, 30/9/1933), escritora e teósofa, uma das principais discípulas de Helena Blavatsky.

As crianças haviam acabado de voltar da escola, e Eleonora as recebeu com o carinho de sempre. Silmara, a mais velha, contava agora nove anos, e Evandro, sete. Os dois eram muito diferentes. Silmara era meiga e compreensiva, amiga de todos e estava sempre sorridente. Evandro, ao contrário, era agressivo e autoritário, além de morrer de ciúmes da mãe. Ao mesmo tempo que era possessivo, parecia comprazer-se quando fazia algum comentário que a indignava ou feria.
- Como estão os meus amores? - indagou ela, beijando cada um no rosto.
- Muito bem, mamãe - respondeu Silmara, envolvendo o pescoço de Eleonora. - E o meu rapazinho? - tornou ela, puxando o menino para si. Evandro deu de ombros e apertou-a com força.
- Não gosto da escola - queixou-se. - A professora é uma chata.
- Não diga isso - repreendeu ela. - A professora está apenas cumprindo o dever dela de ensinar alguma coisa a você; principalmente boas maneiras. Isso não é jeito de se referir a ninguém. O rosto de Evandro enrubesceu. Ele não gostava quando a mãe lhe chamava a atenção e fulminou Silmara com o olhar, como se ela fosse a culpada pela repreensão que sofrera.
- Podemos ir ao parque mais tarde? - perguntou Silmara, sem notar o olhar do irmão.
- Depois que fizerem o dever de casa, podem. E agora vão lavar as mãos para o almoço. Já passa do meio-dia.
Ao final da tarde, as crianças foram ao parque com a babá, e Eleonora começou a sentir a ansiedade crescer. A todo instante, consultava o relógio na esperança de que ele avançasse mais depressa e logo chegasse a hora de ir à reunião em casa de Zélio.
Quando Sérgio chegou, encontrou a mesa posta para o jantar. Eleonora e as crianças o aguardavam na sala, e a mulher foi logo falando, assim que ele entrou:
- Boa noite, querido. Venha jantar, depois poderá tomar o seu banho e iremos à casa de Zélio.
- Sim, senhora - brincou ele, fazendo-a rir. - Mas será que antes eu não mereço um beijo de minha mulher e meus filhos?
Ainda sorrindo, Eleonora o beijou levemente nos lábios, e Silmara pulou no colo do pai, dando-lhe prolongado beijo no rosto. Evandro, por sua vez, fingiu que não escutou e permaneceu sentado em seu lugar, brincando com o guardanapo. Sérgio não disse nada. Aproximou-se do filho e beijou-o na face, desalinhando seus cabelos.
- Vamos comer? - chamou Eleonora, sentando-se à mesa com a família.
O jantar transcorreu tranquilo, e Eleonora e Sérgio chegaram à casa de Zélio de Moraes um pouco antes das oito horas.
- É aqui mesmo? - perguntou Eleonora, surpresa com a multidão espalhada pela calçada.
Sérgio consultou o papelzinho com o endereço e retrucou igualmente espantado:
- O endereço está correto. É aqui, sim.
Pediram licença e entraram. Os demais membros do centro já se encontravam presentes e cumprimentaram Sérgio e Eleonora. Os dois tomaram assento, e Eleonora viu pela primeira vez o menino Zélio. Sentiu uma estranha força partindo dele e teve certeza, naquele momento, que era ali que realizaria a tarefa que lhe cabia, embora ainda nem soubesse ao certo o que era.
Quando o relógio da sala bateu vinte horas, Zélio se agitou e incorporou o Caboclo das Sete Encruzilhadas, que começou a falar com estranha fonação21:
- Aqui se inicia um novo culto, onde os espíritos de pretos velhos africanos, que haviam sido escravos e que desencarnaram, e que não encontram campo de ação nos remanescentes das seitas negras, já deturpadas e dirigidas quase exclusivamente aos trabalhos de feitiçaria, e os índios nativos da nossa terra poderão trabalhar em benefício dos seus irmãos encarnados, qualquer que seja a sua cor, raça, credo ou posição social. A prática da caridade, no sentido do amor fraterno, será a característica principal deste culto, que tem base no Evangelho de Jesus e, como mestre supremo, o Cristo.

21 - Aqui são transcritas as palavras literais, segundo fontes históricas, do Caboclo das Sete Encruzilhadas.

O olhar de todos era de espanto, menos de Eleonora, que parecia beber as palavras do caboclo. Após um breve instante, ele prosseguiu:
- Serão chamados de sessões os momentos de trabalho espiritual, que se realizarão diariamente, das oito às vinte horas. Os participantes devem estar uniformizados de branco, e o atendimento será gratuito. Esse culto será chamado de Umbanda, que é a manifestação do espírito para a caridade.
Ninguém ousava dizer nada, e o caboclo continuou:
- Este grupo, que acaba de ser fundado, será conhecido por Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade porque, assim como Maria acolhe em seus braços o filho, a tenda acolherá os que a ela recorrerem nas horas de aflição. Todas as entidades serão ouvidas, e nós aprenderemos com aqueles espíritos que souberem mais e ensinaremos àqueles que souberem menos, e a nenhum viraremos as costas e nem diremos não, pois essa é a vontade do Pai.
Dentre os presentes, havia alguns sacerdotes que, indignados com a atuação daquele espírito, endereçaram-lhe perguntas em latim e alemão, às quais o caboclo respondeu com facilidade.
- Como pode ser uma coisa dessas? - maravilhou-se Eleonora. - Sérgio, esse espírito é um sábio, e o menino que tem o privilégio de incorporá-lo é um abençoado!
- Ele é uma fraude - comentou alguém a seu lado.
- Um índio ignorante não pode ser o portador de nenhuma doutrina que se preze - sussurrou um homem. - Que ousadia!
Alguns se levantaram para sair, outros permaneceram. Sem se incomodar com a reação dos presentes, o caboclo deu início, então, à segunda parte dos trabalhos. Eleonora e Sérgio estavam paralisados e ficaram observando, maravilhados, as curas aparentemente milagrosas que ele realizou.
- Como, Sérgio? - espantou-se Eleonora. - Como ele pode fazer isso?
- Não sei - respondeu ele, igualmente espantado. - Como você mesma disse, ele é abençoado.
O entra e sai de enfermos era grande, e a todos o caboclo recebeu com igual amorosidade, curando-os e dando-lhes conselhos amigáveis. A sessão já chegava ao fim quando nova entidade se manifestou, autodenominando-se pai Antônio, espírito de um preto velho, ex-escravo, que vinha para auxiliar nos trabalhos de cura.
Quando a sessão terminou, Eleonora esperou até que os presentes se retirassem e foi falar com Zélio.
- Estou encantada com o que você fez. Nunca vi nada parecido.
- Não se espante com a minha tarefa - respondeu ele, fitando-a fixamente nos olhos. - Porque a sua dará continuidade à minha, pois você é uma das voluntárias na propagação desta doutrina do bem.
- Como assim? - surpreendeu-se ela. - Não entendo o que quer dizer.
- A hora ainda não é agora, porque você ainda tem muito que aprender. Por isso, convido-a, e ao seu marido, a se unirem a mim nesta Tenda. Sei que são pessoas de coração puro e que estão dispostas a trabalhar pela caridade e o amor. Vejo a seu lado um belo índio, com o qual você poderá desenvolver a sua mediunidade e ajudar no auxílio aos enfermos do corpo e da alma.
- Por que está dizendo uma coisa dessas? - protestou Sérgio. - Você nem nos conhece!
- O que sei de vocês é o que basta para conhecer-lhes o coração.
- E nós nada sabemos sobre essa Umbanda! - continuou Sérgio a objetar.
- Mas não desejam aprender? - Eleonora fez que sim, e Zélio prosseguiu: - Pois é o que é preciso para filiar-se a nós. Não exigimos nada além de amor e boa vontade. Isso vocês têm?
- Sim - afirmou Sérgio. - Mas... não sei o que dizer...
- Você tem medo do que desconhece. Seu coração está ainda preso a antigos dogmas surgidos da interpretação da obra espírita. Noto, contudo, que os seus anseios são maiores e as suas dúvidas são pertinentes.
- Perdoe-me, Zélio. O que vimos aqui hoje realmente nos impressionou. Temos, no entanto, algum conhecimento sobre o desenrolar das seitas africanas no Brasil, e não é isso que procuramos.
- Ele disse que a Umbanda seria diferente do Candomblé lembrou Eleonora.
- Diferente, sim. Não quis dizer que seria melhor nem pior. Apenas que é um novo culto, para pessoas que buscam outras coisas. Não quero, com isso, competir com outras seitas nem lhes retirar o mérito. Tudo está certo na obra divina, e não se pode dizer que um culto é melhor do que outro. Todos são bons. O que faz a diferença são as pessoas, são elas que os fazem melhores ou piores.
- Mas diferente em quê? - insistiu Sérgio.
Para começar, não teremos sacrifícios de animais nem utilizaremos tambores ou roupas coloridas. Será um ritual simples para os que são simples.
- Não precisa dizer mais nada - arrematou Eleonora. - Eu aceito o seu convite e estarei aqui amanhã para contribuir com as sessões. E Sérgio virá comigo, não é?
- Sim, claro - concordou ele, embora não muito seguro.
- Não vão se arrepender - finalizou Zélio, despedindo-se deles.
Já em casa, Eleonora conversava com o marido sobre o ocorrido naquela noite.
- Não sei o que pensar - dizia Sérgio. - Tenho minhas dúvidas sobre o resultado de tudo isso.
- O futuro mostrará o resultado - contrapôs Eleonora. - E acho que você está sendo preconceituoso.
- Preconceituoso, eu? Desde quando tenho preconceito com as pessoas?
- Desde que julga o Candomblé uma religião atrasada.
- Eu não disse isso. Apenas não me agradam seus rituais.
- A mim também não, porque não tenho afinidade com sacrifício de animais ou coisas do gênero. Mas nós não podemos criticar o que não conhecemos. Aquelas pessoas com certeza têm um motivo para fazer o que fazem, e há de haver um fundamento em seus rituais. Não nos cabe julgar, Sérgio. E se essa nova religião promete um culto diferente, por que não experimentar?
- Ora, se você já aceitou o convite de Zélio, acho que não tenho escolha.
- Você não precisa ir se não quiser.
- E deixá-la sozinha? Nunca.
- De que tem medo?
Não tenho medo de nada, mas quero estar ao seu lado.
- Você também gostou do que viu hoje, confesse.
Eu gostei, não nego. E o centro também já não me satisfaz. Sinto falta de algo mais. Mas será que esse algo mais está nessa tal Tenda de Nossa Senhora da Piedade?
- Como disse, temos que experimentar. Se não frequentarmos, não vamos descobrir.
- Está bem. Como sempre, você venceu.
Eles se abraçaram sorrindo e foram dormir. No dia seguinte, lá estavam eles, às oito em ponto, prontos para participar da sessão. Eleonora mandou fazer roupas brancas para ela e Sérgio, e logo se integraram aos cultos.

CAPÍTULO 38

Durante os dez anos seguintes, Eleonora esteve com Sérgio ao lado de Zélio de Moraes. Quando, em 1918, ele recebeu ordens do astral superior para fundar sete novos templos, Eleonora e Sérgio, a seu pedido, transferiram-se para a Tenda Espírita São Jerônimo, onde trabalharam por cerca de dez anos. Ao final desse período, Eleonora finalmente estava pronta para assumir a direção de seu próprio centro espírita, onde continuaria sua tarefa de propagar a Umbanda e contribuir para o crescimento moral e espiritual do ser humano.
Na inauguração do novo centro de Umbanda, Eleonora contava com poucos médiuns que a acompanharam da Tenda São Jerônimo, mas os trabalhos corriam bem. Sérgio e Silmara atuavam a seu lado, ficando a condução das sessões doutrinárias a cargo de Eleonora. Evandro, por sua vez, comparecia vez ou outra, normalmente quando precisava de alguma coisa.
Quando a ideia de abrir seu próprio centro brotou, Eleonora ainda resistiu, julgando não estar à altura de tão nobre missão.
Contudo, o próprio Zélio a estimulou, e o sonho com Piraju tornou-se bastante revelador, levando-a a aceder à vontade do Alto.
- Você deve abrir o centro - disse-lhe o índio em sonho. É a sua chance de se libertar de tantas cobranças.
- Por quê?
- Não se lembra do que Alejandro fez?
- Sim, mas isso foi há tanto tempo!
- Não há tempo bastante para que todos que você matou a perdoem. E, agora, morrer não é mais uma opção válida de crescimento. Você já passou por essa fase de necessidade da dor. O que precisa, agora, é orientar aqueles que deixou ao desabrigo da fé.
- E abrindo o centro conseguirei isso?
- É a melhor maneira de reunir todos os antigos desafetos, espíritos ainda empedernidos que não conseguiram perdoá-la e que esperam uma oportunidade de serem conduzidos por você pela seara do bem.
- Mas, e se eles quiserem vingança?
- Não querem mais. Estão perdidos, desnorteados, necessitando de uma orientação espiritual, de alguém que lhes mostre o caminho da verdade. E você pode ser esse alguém.
Não sou ninguém para revelar o caminho a outras pessoas.
- Muitos que virão procurá-la estão ainda presos à escuridão da inconsciência. Ajude-os a acender a primeira chama.
- Quem sou eu para acender alguma chama? Está me superestimando, Piraju. Sou apenas um ser humano comum.
- Cada alma humana pode ser um cristal rutilante na vida das pessoas. Não para clarear os caminhos e apontar por onde elas devem seguir, mas para mostrar onde está a chama e incentivá-las a buscá-la e acendê-la em seu próprio coração e iluminar a própria consciência. Com a consciência iluminada pelo reconhecimento do que pode ser e fazer, cada criatura encontrará dentro de si mesma a resposta do porquê de sua vida e a natureza de sua essência.
- Suas palavras são muito bonitas e me deixam emocionada. Temo apenas decepcioná-lo.
- Você veio preparada para isso, minha querida. E não se esqueça de que tem ao lado um homem que já foi sacerdote. Seu auxílio será de grande valia. Pense nos muitos espíritos que estão à espera de que você os oriente.
Com as palavras de Piraju, Eleonora se convenceu e se deixou conduzir pelo caminho que a vida havia traçado para ela. O centro foi inaugurado sob a direção espiritual do Caboclo Rompe Mato, nome que Piraju assumiu por afinidade com todos aqueles espíritos que desbravaram florestas em busca do direito à vida.
E hoje, passados seis anos desde a inauguração do centro, ela se encontrava ali, trabalhando pelo crescimento de todos e, principalmente, dos filhos. Silmara abraçara a causa espírita com fervor, mas Evandro era resistente. Não que não acreditasse. Apenas não queria assumir responsabilidades.
De repente, contudo, passara a frequentar o centro assiduamente, embora nada fizesse de útil.
- Deveria se interessar mais pelos assuntos espíritas, meu filho - disse Eleonora, enquanto terminava de arrumar o altar com a filha.
- Evandro até que tem vindo mais, mamãe - observou a moça. - Não percebeu?
- Percebi, sim. Mas não o vejo fazer nada, a não ser ficar perambulando por aí.
- Não quero ficar carola feito Silmara - esnobou ele.
- Não sou carola - defendeu-se a irmã. - Apenas gosto do trabalho que fazemos aqui. Tem algum mal nisso?
- Isso é falta de marido. Deveria ter-se casado enquanto ainda era jovem. Agora, quem é que vai querer você?
- Nunca me interessei por casamento porque jamais conheci um homem que correspondesse aos meus anseios.
- E agora seus anseios são os de ficar para titia. Ninguém vai querer se casar com uma velha de mais trinta anos.
- Deixe disso, Evandro - cortou Eleonora. - Sua irmã sabe o que faz.
- Se aparecer alguém que me interesse, eu me caso. Mas não vou me casar com qualquer um só para satisfazer a sociedade. Ou você.
- E você também não deveria falar da sua irmã, pois não consegue se acertar com moça nenhuma - observou Eleonora.
- Não é bem assim - murmurou ele, os olhos voltados para uma menina que acabava de entrar no centro.
- Boa noite - cumprimentou a moça, os olhos igualmente presos em Evandro.
- Ah! Boa noite, Gilda. Chegou cedo hoje.
- Vim ver se precisavam da minha ajuda.
Imediatamente, Eleonora notou a troca de olhares entre Gilda e Evandro. Então era por isso que ele andava indo ao centro; para se encontrar com Gilda! E provavelmente também não era por outro motivo que a menina aparecera mais cedo. Havia alguma coisa se iniciando entre os dois, e Eleonora sentiu certa preocupação. Não que fosse impedir o filho de namorar, mas era preciso cuidado com os médiuns do centro. Envolvimentos amorosos não eram o problema, e ela não se opunha a isso. Apenas orientava os médiuns sobre a necessidade de estarem alertas contra o ciúme, guardando o decoro e o equilíbrio, principalmente nos casos de rompimento. Era lamentável, mas, toda vez que isso acontecia, um ou outro deixava o centro, incapaz de lidar com as emoções de uma forma madura e consciente.
Gilda era ainda uma menina e fora conduzida ao centro pela mãe por causa de dificuldades para dormir, pois ouvia vozes que a chamavam durante toda noite. Eleonora a havia atendido com seu guia, o Caboclo Rompe Mato, e foi constatada a obsessão. Havia, ao redor da menina, alguns espíritos de ex-escravos clamando por vingança.
- O que devemos fazer? - perguntou a mãe, apavorada.
- Rezar, em primeiro lugar22 - orientou o caboclo. - Pedir perdão a eles e perdoar a si própria pelos atos cometidos nos momentos de maior ignorância. E trabalhar. Trabalhar muito para reconquistar as almas que hoje se mostram inimigas.
- Trabalhar como? - quis saber a menina.
- Procure um lugar onde você possa desenvolver a sua mediunidade e aplique-a no auxílio ao próximo. Fazendo isso, estará ajudando a si mesma.
- Mas que lugar seria esse? - interessou-se a mãe.
- Qualquer lugar. Se gostar desta Casa, as portas estarão abertas para você. Vejo, em seu coração, um sincero desejo de aprender e crescer.
- Eu posso ficar aqui? - tornou Gilda.
- Pode. Tem a minha permissão.
Duas semanas depois, Gilda ingressou no corpo mediúnico e encontrava-se ainda em desenvolvimento. Seus guias começavam a incorporar, e ela agora tentava vencer o medo e se entregar com mais confiança. Além disso, Gilda comparecia às sessões de doutrina, onde todos os médiuns se sentavam para ouvir as explanações de Eleonora e de Sérgio sobre O evangelho segundo o espiritismo. Nessas ocasiões, havia debates e todos podiam perguntar e tirar suas dúvidas.
Foi aí que Evandro viu Gilda pela primeira vez. Ele havia saído do trabalho e resolvera passar no centro, aparentemente sem motivo algum. Os pais estavam à frente do grupo, e um debate havia-se iniciado. Gilda levantou a mão, e lhe foi dada a palavra:
- Por que temos que pagar por erros dos quais nem nos lembramos?
Não vamos pensar dessa forma - falou Sérgio. - Vamos imaginar que a divindade nos fornece um meio seguro para nos reajustarmos com a vida, que é a reencarnação. Podemos não nos lembrar do que fizemos, porque o esquecimento é uma das ferramentas de crescimento. Ninguém pode ser livre se está preso a lembranças dolorosas. E precisamos ser livres para nos abrirmos às várias possibilidades de experiências que a vida oferece. Daí o porquê de esquecermos tudo. Para que lembranças difíceis não coloquem em nós nenhuma amarra de culpa, medo, desvalor ou ódio, entravando-nos as escolhas e a ação.

22 - As falas dos guias de Umbanda foram reproduzidas naturalmente, sem os erros comuns, de forma a facilitar a compreensão pelo leitor.

- A alma, todavia, jamais esquece - completou Eleonora. - E é por isso que ficamos amarrados a sentimentos cuja origem desconhecemos. Às vezes nos sentimos tristes e nem sabemos por quê. Muito provavelmente, algum sentimento do passado está impregnado em nossa alma, e é esse sentimento que precisamos transformar.
- Isso só vale para sentimentos ruins? - prosseguiu Gilda, sob o olhar penetrante de Evandro.
- É claro que não. Simpatias florescem espontaneamente e, muitas vezes, podem ter sido geradas em outras vidas e prosseguem ganhando força.
- Vejam Eleonora e eu, por exemplo - falou Sérgio. -Quando nos conhecemos, foi amor à primeira vista. Parecia que já nos conhecíamos há muito tempo, não foi?
Eleonora assentiu rindo, e todos os médiuns sorriram também. Ao final dos estudos, Evandro se aproximou de Gilda, que guardava seu exemplar do Evangelho e se preparava para sair.
- Você é nova por aqui, não é? - indagou.
- Faz dois meses que comecei.
- Tudo isso? Como é que nunca a vi?
- Não sei. Mas também nunca vi você.
- Sou Evandro, filho de Eleonora e Sérgio.
- É mesmo? - surpreendeu-se Gilda.
- Por que o espanto? Nunca ouviu falar de mim?
- Não é isso... Foi apenas a surpresa, porque muitas garotas falam de você.
- E o que elas dizem?
- Nada que lhe interesse - brincou ela.
- Tem razão. Não me interessam as outras moças. No momento, estou mais interessado em você. Como é que se chama? - Gilda.
- Muito prazer, Gilda - ele beijou a mão dela, e ela enrubesceu. - E como é que você vai para casa?
- Meus pais estão me esperando - ela apontou para os pais, que haviam acabado de entrar, e Evandro ficou sem graça. - Tenho que ir.
Evandro ficou vendo-a afastar-se em companhia dos pais e imaginando que jamais havia visto moça mais linda em toda a sua vida. Gilda também teve o mesmo sentimento, porque voltou para casa com os pensamentos presos nele. Apenas Eleonora e Sérgio não haviam notado nada, ocupados em dar atenção aos médiuns que se despediam.
Dali em diante, sempre que Gilda chegava, Evandro a estava esperando. Ficava arranjando desculpas para ir ao centro e falar com ela. Até então, não tinham tido nenhuma conversa em particular, mas só o fato de estar perto dela já o deixava irrequieto. Por isso, quando Gilda entrou naquela noite, ele se entusiasmou como sempre, deixando transparecer seu interesse pela moça, interesse esse que a mãe logo captou.
- Por que não me ajuda a limpar os bancos lá de fora? -perguntou ele para Gilda.
Que bancos? - surpreendeu-se Silmara. - Lá fora já está tudo limpinho.
Evandro fulminou-a com o olhar, e Silmara logo compreendeu.
- Posso ir, dona Eleonora? - pediu Gilda.
Eleonora apenas assentiu, e Gilda foi com Evandro para fora.
- Será que eles estão namorando? - sondou Silmara.
- Acho que não. Mas que estão interessados um no outro, isso estão.
- E você vai permitir?
- Não adianta nada proibir. Sabemos que as coisas sempre acontecem do jeitinho que devem acontecer. O máximo que posso fazer é orientá-los.
- Tomara que Evandro saiba o que está fazendo. Gilda é uma moça direita, e os pais podem ficar aborrecidos.
- Se Evandro a tratar com respeito, vão até gostar. Tudo vai depender dele.
- Será que ele gosta dela?
- Algo me diz que sim.
Eleonora não sabia o quanto estava certa. Realmente, Evandro estava apaixonado por Gilda e era correspondido. Do lado de fora, ele apanhou um pano e, enquanto passava nos bancos, ia dizendo:
- Não posso mais esconder o que sinto por você, Gilda. Estou loucamente apaixonado.
- Oh! Evandro, por favor, não brinque comigo.
- Não estou brincando. Quero pedir permissão a seu pai para namorar você. A menos que você não queira.
Ele soltou o pano e olhou bem fundo dentro dos olhos dela, que brilhavam de emoção.
- Eu... - ela balbuciou - quero muito.
- Pois então, está decidido. Vou falar com meus pais primeiro, para que eles não se espantem de eu estar namorando você aqui no centro, e depois falo com os seus. Acha que eles vão consentir? Afinal, sou bem mais velho do que você.
- Tenho certeza de que vão. Mamãe vive dizendo que você é um bom partido.
Olhando para ela, a vontade de Evandro era tomá-la nos braços e beijá-la, mas a reverência ao local em que estavam o impedia.
- Por que não saímos daqui um pouco? - sugeriu ele, coberto de desejo.
- Não posso - sussurrou ela, em resposta. - Já é noite, e meus pais não gostam que eu saia do centro sozinha.
- Será, que não podemos sair no final de semana?
- Se você falar com eles...
- Falo com eles na sexta, então. E, no sábado, vamos sair só nós dois. Podemos ir a um cinema e depois à confeitaria. O que acha? - Vou adorar!
Evandro conteve o beijo, porque a mãe os observava lá de dentro, mas apertou as mãos de Gilda com paixão. Tinha certeza de que, finalmente, encontrara a mulher de sua vida.

CAPÍTULO 39

Era dia de sessão no centro, que crescia rapidamente. Muitas eram as pessoas que acorriam ao local em busca de auxílio espiritual. O número de médiuns também aumentava, e Eleonora se preocupava em orientar cada um deles no sentido da honestidade e da firmeza de propósitos.
Antes das sessões ditas de terreiro, os médiuns se reuniam para estudar, e Eleonora lhes passava os ensinamentos que ela mesma aprendera em seus estudos e na convivência com Zélio de Moraes. Os ouvintes, corno sempre, eram muitos. Não apenas os médiuns, mas vários espíritos começavam a chegar, trazidos pelos guias que colaboravam com a casa. Alguns vinham contrariados, outros, esperançosos. Entravam em fila e iam ocupando os lugares vazios. Muitos se sentavam no chão, outros permaneciam em pé.
Como de costume, os guias se cumprimentaram com alegria, principalmente o Caboclo Rompe Mato, que era o dirigente espiritual daquela casa. Acomodados os espíritos necessitados, saíram para iniciar o trabalho de auxílio no plano astral situado logo acima do centro. Havia ali algumas macas e máquinas desconhecidas e incompreensíveis à imaginação humana da época. Para lá eram conduzidos os espíritos mais necessitados e que não estavam ainda em condições de compreender a doutrina. Alguns pareciam dementes, outros, desesperados. Mas todos, sem exceção, haviam pedido ajuda e agora a recebiam naquele local imantado.
Eleonora fitou os presentes, visíveis e invisíveis, e mentalmente cumprimentou o Caboclo Rompe Mato, que era quem sempre a intuía. Fez a prece de abertura e começou a preleção da tarde:
- Estamos aqui para ajudar. Ao próximo e a nós mesmos em primeiro lugar. Não adianta nada fazer caridade para os outros quando os mais necessitados somos nós. Cada médium deve investir no seu autoconhecimento, pois assim ganhará compreensão para enfrentar as dificuldades, aceitar as inevitáveis e modificar as que estão no seu domínio. Mas, acima de tudo, temos que compreender que a vontade que se faz é sempre a de Deus, que é o único que está em condições de avaliar o que é melhor para nós.
Dentre os médiuns, muitos havia que tinham sido antigos inimigos de Eleonora, desde a época de Alejandro, e que ainda não tinham conseguido se libertar do passado. E era orientando-os na senda do bem que ela ia desmanchando os liames que a prendiam a eles, transformando-os em fios luminosos de simpatia e amor. Alguns, embora não abraçassem a tarefa mediúnica, vinham em busca de auxílio, e Eleonora os atendia e orientava, ajudando muitos a encontrar o caminho da cura física, espiritual e moral.
- Por que temos que nos vestir de branco? - perguntou Jonas, um dos que haviam perecido sob a espada de Alejandro no passado, ainda na época dos maias.
- Porque o branco, além de representar a paz, a pureza e a perfeição, possui a vibração da luz que contém todas as cores. O branco é a luminosidade que penetra até a alma, tornando-nos mais alegres e renovando-nos para a vida. Facilita a nossa relação com o mundo externo, retirando-nos do isolamento de nossos sentimentos. E nada melhor do que igualar a todos nessa vibração de pureza. Vestidos de branco, estamos todos iguais, evitando comparações de quem é melhor ou pior.
- Quer dizer então que os centros que utilizam roupas coloridas estão errados? - indagou Lilian, outra desafeta de vidas passadas.
- Eu não disse isso. Nada no mundo está errado, e nós não somos ninguém para fazer um julgamento desse tipo. Isso seria leviandade da minha parte. O que eu disse foi que aqui, na nossa casa, a opção foi por igualar a todos na pureza do branco. Existem lugares que prezam as diferenças individuais, porque isso é importante para o tipo de trabalho que desenvolvem, e deve ser respeitado, assim como desejamos que respeitem o nosso culto.
- Mas isso não sugere uma superioridade c4nossa casa em relação às demais? - insistiu Lilian.
- Não. Sugere apenas que cada um tem os seus métodos próprios. Essa distinção entre superior e inferior está somente no coração dos orgulhosos.
Lilian calou-se envergonhada, e Nádia, outra médium, tomou a palavra:
- Mas essas vestes coloridas não despertam a vaidade de certa forma?
- A vaidade, como tudo mais, habita o coração de cada ser. Quando falo em vaidade, refiro-me àquela que é daninha, que nos faz crer que possuímos algo que nos diferencia dos demais por sermos melhores, diferentes ou especiais. Essa deve ser combatida. Mas há aquela vaidade que brota do reconhecimento dos nossos valores e do nosso desejo de estar bem. Essa é apenas fruto do valor pessoal que cada um deve estimular em si.
- Certo. Mas a utilização de vestes coloridas não faz nascer justamente esse sentimento de que se é melhor do que os outros?
- A utilização de vestes coloridas pode estimular a vaidade de quem a tem, assim como pode despertar o gosto pela beleza naqueles que apreciam o que e belo. Pode também servir de facilitador para a incorporação das entidades não por elas, mas pelo médium, que ainda necessita de artifícios para abrir o seu canal comunicação com o mundo astral.
- Mas como saber o que vai no coração de cada um? -interessou-se Silmara.
- Não sabemos. Cada um é que sabe de si, quando sabe. Como as vestes coloridas podem representar uma faca de dois gumes, nós da Umbanda preferimos não arriscar. As almas que vêm a nós tentam vencer as suas dificuldades, e a vaidade pode ser uma delas. Então, por que dar a esses a oportunidade de exercitar um sentimento contra o qual estão tentando lutar?
- Para testá-los - sugeriu Gilda.
A vida não cria armadilhas. E todos os testes só são aplicados depois de aprendida a lição. Ora, se os que aqui estão vieram aprender, por que os iríamos testar antes de estarem preparados? A Umbanda é uma escola que prepara para a vida, e os testes, se é que assim podemos chamá-los, surgem naturalmente na convivência do dia a dia. Não é preciso provocá-los para ver cair aquele que ainda não está firme na sua convicção.
- Tudo bem. Mas, e as guias? - interpôs Jonas.
- As guias não são colares de enfeite. Podem ser bonitas, brilhantes e coloridas, mas sua função não é o embelezamento.
- E qual é? - falou Evandro, que acabara de entrar.
Embora sua intenção fosse chamar a atenção de Gilda, Eleonora se sentiu gratificada porque, ao menos por isso, ele estava ali. Considerou a pergunta pertinente e esclareceu:
- As guias servem de facilitador para a conexão do médium com a entidade que representam. Podem também funcionar como elemento de proteção, atraindo a vibração da entidade para o campo áurico da pessoa.
- As guias são imantadas, não são? - observou Lilian, e Eleonora assentiu. - Podemos dizer então que são uma espécie de amuleto?
- Pode-se dizer que sim.
- Mas, então, como conciliar sua utilização com a doutrina de Kardec, que nós seguimos, quando ele diz que amuletos e talismãs são dispensáveis? Não há aí uma incoerência? Ou a Umbanda contradiz a doutrina de Kardec?
- A Umbanda não veio para segregar, mas para somar aos ensinamentos que levam ao engrandecimento do homem. E nenhuma religião se contradiz. Existem formas de ver. Para uns, há os espíritos de caboclos e pretos velhos. Para outros, tudo é o espírito santo. Que diferença isso faz?
- Nenhuma. Contudo, a contradição ainda persiste.
- Não há contradição. A doutrina de Kardec dispensa o uso de amuletos, mas não os proíbe e nem poderia. Assim como nós dispensamos o uso de roupas coloridas, mas temos que reconhecer a sua eficácia para determinados segmentos religiosos. Assim também as guias e os demais elementos, pois a Umbanda trabalha com a manipulação das energias daí provenientes, enquanto Kardec as considera desnecessárias, porque concentra a sua força no poder mental da oração.
- Então, quer dizer que só os elementos bastam para os trabalhos da Umbanda?
- Umbanda é magia, e os elementos nada são sem a vontade e o pensamento. Eles são apenas facilitadores, e há segmentos religiosos que os dispensam.
- Qual é o melhor método? - perguntou Nádia.
- Não existe o melhor. Existe o ser humano que deve procurar a sua melhora em qualquer religião, culto ou seita.
- É, mas há pessoas, sacerdotes mesmo, que consideram a sua religião a única que pode verdadeiramente levar a Deus. E aí? Quem está certo?
- Ninguém e todos. Não se esqueçam de que as religiões foram criadas pelo homem, que é falível e vulnerável às ilusões do mundo. Mas em toda religião há espíritos iluminados que orientam no sentido das verdades divinas, só que nos moldes em que a religião foi criada. O que acontece é que algumas pessoas, por orgulho ou ignorância, distorcem as mensagens que vêm do Alto e as transmitem de acordo com os seus interesses ou com o máximo que o seu intelecto permite alcançar.
Nesse momento, Sérgio chegou à porta, anunciando que a hora já ia avançada e que havia chegado o momento de iniciar-se a sessão pública. Eleonora convocou um médium a fazer a prece de encerramento, e todos se retiraram para um pequeno intervalo.
- Como foi a reunião de hoje? - perguntou Sérgio.
- Muito produtiva, embora haja médiuns que gostam de polemizar. Enfim... é assim que se cresce.
- Você tira isso de letra - brincou ele, apertando o queixo dela. - Já está tudo pronto para começarmos. A assistência está cheia hoje.
- Há muitas pessoas precisando de auxílio. Espero que estejamos em condições de ajudar.
Sérgio sorriu e a abraçou. Pouco depois, tinha início a sessão de terreiro, como era chamada. Reunidos os médiuns, Sérgio fez a defumação do ambiente, queimando ervas cujas energias, manipuladas pelos guias espirituais, iam dissolvendo as impurezas espirituais e atraindo energias mais sutis. Dotada do dom da vidência, Eleonora percebia as nuvens cinzentas e as crostas astrais desmanchando-se sob a ação da fumaça impregnada do princípio ativo das ervas que estavam sendo queimadas. Em alguns médiuns, particularmente, a ação era mais forte, devido ao baixo teor vibratório de seus pensamentos.
Com o ambiente assim purificado, os espíritos dos caboclos, que há muito já se encontravam no local, atuando no plano astral correspondente, começaram a espargir glóbulos brancos e minúsculos, parecidos com flocos brilhantes de algodão. Eram milhares de pontinhos, atirados pelas mãos dos caboclos e caboclas, fazendo o efeito de uma chuva nívea, refrescante para a alma.
Algumas pessoas, mais receptivas, imediatamente sentiram o bem-estar que aquela torrente de luz causava. Outras, porém, ainda um pouco mais endurecidas, deixavam-na passar despercebida. Eram essas as mais necessitadas, aquelas que mais atraíam a atenção dos guias, que iam aplicando passes em todos os presentes, demorando-se um pouco mais na energização dos mais enfermos, fosse do corpo ou da alma.
Há, nos templos de qualquer religião voltada para o crescimento do ser humano, seres iluminados que atuam sobre os encarnados, ajudando-os a reequilibrar suas forças físicas, mentais e emocionais. Essas entidades, contudo, não agem sozinhas. Necessitam do concurso dos assistentes para um resultado mais eficaz. Cada pessoa está em condições de ajudar a si mesma contribuindo com seus pensamentos, palavras e atitudes. A concentração, o silêncio e a vigília são caminhos fáceis para a penetração das energias derramadas pelos guias.
Em especial nas casas de Umbanda, onde o julgamento e a crítica decorrem da falta de conhecimento acerca dos rituais, essa necessidade se redobra. A curiosidade leva muitos a visitarem os centros espíritas sem que haja, realmente, o envolvimento da fé. Nesses casos, a postura mais adequada é a observação sem julgamentos. Todos são livres para frequentar qualquer lugar de culto, desde que o façam com respeito. Pois é do pensamento das pessoas, sobretudo aqueles de crítica, deboche e arrogância, que os espíritos mais empedernidos retiram forças para tumultuar e atrapalhar o desenvolvimento dos trabalhos, dificultando a atuação dos guias dedicados ao trabalho sério.
Não era por outro motivo que, nos lugares destinados à assistência, havia avisos de silêncio e oração, recomendações pelas quais os médiuns, sem exceção, tinham o dever de zelar, orientando amorosamente os que chegavam.
Com a chegada da assistência, mais desencarnados vieram com ela. Havia pessoas que se faziam acompanhar de espíritos protetores, que as conduziam intuitivamente a um local de ajuda. E havia também aquelas que traziam consigo inimigos, galhofeiros e toda sorte de espíritos ignorantes e necessitados de ajuda. Alguns, todavia, não chegavam a entrar. Baderneiros, eram barrados na porta do centro pelos espíritos que ali estavam, encarregados de fazer a filtragem dos frequentadores. Todos aqueles que estivessem em sofrimento ou quisessem se esclarecer, descansar, ou, simplesmente, visitar e conhecer, podiam passar. Havia espíritos que inclusive passavam pela rua e eram atraídos pela vibração do lugar. Movidos pela curiosidade, mas sem intenções de desordem, tinham a entrada franqueada.
Apenas os espíritos cujo propósito era criar confusão e atrapalhar não podiam entrar. Os que ainda assim entravam faziam-no com permissão, pela necessidade de aprendizado ou em atenção a algum pedido do Alto, e eram o tempo todo acompanhados por guias que, em vez de incorporar, ficavam rondando o ambiente para manter a ordem e fazer o que fosse necessário do lado invisível. Mas ninguém, absolutamente ninguém, burlava a vigilância dos porteiros e entrava despercebido. Todos que estavam ali tinham permissão para estar.
Deu-se, então, início aos trabalhos. Não apenas Eleonora atendia, incorporada com o Caboclo Rompe Mato, mas também muitos outros médiuns, incorporados com caboclos e caboclas. Era um trabalho bonito de se ver. As entidades eram esclarecidas e orientavam os consulentes sempre no caminho do bem e da oração. Estimulavam a prática do amor e do perdão, incentivavam as pessoas a buscar o seu autoconhecimento através da leitura.
Eleonora ia, assim, reconquistando inimigos, transformando-os em companheiros e admiradores de sua fé, desembaraçando-se pouco a pouco das cobranças da vida.

CAPÍTULO 40

A cada dia, Evandro se sentia mais e mais apaixonado por Gilda. Ela era um tanto rebelde e autoritária, mas os pais a mantinham sob constante vigilância. Além disso, os trabalhos no centro a ajudavam, e Gilda começou a vislumbrar algo na vida além de seus próprios prazeres.
- Não posso esperar mais - disse Evandro, sentado com ela na confeitaria. - Quero me casar com você.
- Tem certeza? - retrucou Gilda, um tanto receosa. - Sua reputação de solteiro mulherengo me assusta.
- Desde que a conheci, não tive olhos para nenhuma outra mulher. Só você me interessa.
- Você me ama?
- Ainda tem dúvidas?
- Não. E eu também o amo.
- Pois então é só falarmos com seus pais. Quanto aos meus, tenho certeza de que não se oporão. E nem podem, visto que já sou um homem maduro e ganho um bom salário no Banco do Brasil.
- Não é só isso que faz um casamento dar certo.
- Sei que não - ele a abraçou. - Mas é um bom começo. E o principal é que a amo.
- Se você tem certeza do que quer, então podemos falar com meus pais.
- Que tal marcarmos um jantar lá em casa?
- De noivado?
- E por que não?
- É uma boa ideia.
Os dois estavam felizes. Os pais de Gilda não se opuseram ao casamento, e Sérgio mandou fazer uma bonita festa de noivado. Todos os médiuns do centro foram convidados, e havia muitos amigos e parentes de ambas as partes. Os coquetéis estavam sendo servidos por três garçons na espaçosa varanda e no quintal atrás da casa.
Num grupinho de amigos, Silmara se divertia. Era uma moça alegre e gostava de ouvir os sonhos das colegas, preocupadas com o futuro e os rapazes. Como a maioria das moças de sua idade já estava casada, suas amigas eram mais jovens, ainda solteiras e à procura de um noivo.
Ela havia ultrapassado a fase de sonhos com príncipes. Mais jovem, interessara-se por alguns rapazes, todavia, nenhum conseguiu realmente arrebatar seu coração. Tivera muitas propostas de casamento, porém, estar casada com um homem a quem não amava a repugnava, e ela preferiu ficar solteira, mesmo enfrentando a solidão e a chacota das amigas, que a chamavam de solteirona e titia.
- Vocês são terríveis, meninas - gracejou ela, levantando-se bruscamente.
Nem teve tempo de erguer o corpo por completo. O garçom que passava atrás foi atingido em cheio pela cadeira de Silmara, fazendo-o virar a bandeja e entornar uma taça de champanhe sobre o vestido dela.
- Meu Deus! - exclamou o rapaz. - Desculpe-me, eu não sabia que a senhora ia levantar-se.
- Não se preocupe - tornou Silmara, bem-humorada. - O descuido foi meu. E ainda bem que a bandeja estava praticamente vazia.
Naquele momento, os olhos dos dois se cruzaram, e Silmara sentiu como se uma corrente elétrica percorresse o seu corpo. O rapaz sentiu o mesmo, porque abaixou os olhos, intimidado pela posição da moça e recriminando-se por sua ousadia.
- Eu... - balbuciou ele - vou encher novamente a bandeja. Se a senhora estiver bem...
- Estou ótima. E não precisa me chamar de senhora.
Ele balançou a cabeça, envergonhado, e foi para a cozinha buscar mais champanhe. Ela permaneceu parada, acompanhando-o com o olhar, e só voltou a si quando o risinho abafado das meninas na mesa alcançou os seus ouvidos.
- Está flertando com o garçom, Silmara? - ironizou Nádia.
- Não - respondeu ela, sonhadora. - Mas bem que poderia.
Afastou-se do grupo e já ia entrar em casa quando a mãe se aproximou. Vendo o estado do vestido da filha, Eleonora perguntou curiosa:
- O que foi que aconteceu?
- Um garçom derramou champanhe em cima mim. Não foi nada, minha filha. Isso acontece.
- Eu sei. Vou-me trocar e já volto.
Eleonora deixou-a ir e foi ao encontro de Evandro e Gilda. Nunca havia visto o filho tão feliz. Ele estava diferente, mais maduro e compenetrado, sem os traços da rebeldia que lhe fora tão peculiar na infância. E Gilda era uma boa moça. Os pais lhe disseram que ela também era rebelde, mas que o centro a estava ajudando a se ajustar. Isso era ótimo. Talvez ela incentivasse Evandro a se dedicar um pouco mais à causa espírita.
Ela se afastou do filho e foi procurar o marido, quando viu Silmara passar. Eleonora tinha o dom de sempre estar olhando para o lugar certo, na hora certa. Um garçom passou pela filha, carregando uma bandeja de champanhe. Silmara o parou e pegou uma taça e, em vez de prosseguir servindo, o moço ficou parado ao lado dela. Naquele momento, Eleonora teve a certeza de que algo diferente havia nascido entre os dois.
- Vejo que a senhora trocou de vestido - observou o rapaz.
- Já disse que não precisa me chamar de senhora - contestou Silmara, procurando por uma aliança no dedo dele, mas não havia nenhuma. - Meu nome é Silmara. E o seu?
- Otávio. Otávio das Neves Assunção.
- Veio com nome e sobrenome - brincou ela, e Otávio enrubesceu.
- Perdão, moça, mas não posso ficar de conversa. O dono da casa me pagou para servir os seus convidados.
- Você está falando com a filha do dono da casa. O noivo é meu irmão.
- Mais um motivo para eu não me deter - retrucou ele, entre confuso e surpreso. - Ele pode não gostar.
- Você não o conhece - objetou ela, em tom sério. - E nem a mim.
Otávio reparou no quanto ela era bonita, embora não fosse tão jovem. Seria solteira? Alguém chamou: garçom! E ele teve que deixá-la. No entanto, o rosto bonito e cativante continuou gravado em seus pensamentos, e uma vontade louca de tornar a vê-la o foi dominando. Mas como? Aquelas pessoas pareciam ter dinheiro, e ele era um simples e pobre garçom. Como faria para se aproximar de Silmara sem despertar a fúria do pai dela?
Durante o resto da noite, não se falaram mais. Otávio, contudo, não perdia Silmara de vista, e ela o seguia com olhares disfarçados aonde quer que ele fosse. Quando a festa chegou ao fim, ela resolveu aproximar-se. Estendeu-lhe um papelzinho, onde ele leu o número de um telefone.
- Ligue para mim, se quiser - falou ela.
Otávio ficou parado com o papel na mão, e Silmara se afastou.
Quanta ousadia! Já havia ultrapassado em muito o tolerável para uma moça solteira e não queria mais se expor. Por mais que não ligasse para comentários alheios, não era sua intenção alimentar os mexericos das pessoas.
Dos familiares, apenas Eleonora percebera a atração dos dois, e era melhor que permanecesse assim por enquanto. Por mais que Sérgio fosse compreensivo, não aceitaria com facilidade o interesse da filha por um garçom, não por preconceito, mas por medo de que o rapaz quisesse se aproveitar dela.
Passaram-se duas semanas até que Otávio se decidisse a telefonar. Como não tinha telefone em casa, tivera que recorrer à mercearia próxima, o que o impedia de ficar falando por muito tempo.
- Gostaria de vê-la - disse ele, acabrunhado. - Se for possível.
É possível. Onde e a que horas?
- Você é quem sabe. Não tenho automóvel nem dinheiro.
- Vou lhe dar o endereço de uma confeitaria. Encontre-me lá hoje, às cinco da tarde.
Quando Silmara chegou, Otávio já a aguardava na porta da confeitaria. Ela se aproximou e estendeu a mão para ele, que a tomou meio sem jeito e a levou aos lábios.
- Vamos entrar? - convidou ela.
- Eu disse que não tenho dinheiro. Não posso pagar um lanche aqui.
- Deixe por minha conta - ela ia entrando, mas ele a segurou pelo braço. - O que foi?
- Sinto muito, mas não posso permitir que uma moça pague a conta.
- Que besteira!
- Não é besteira. E nem o seu pai ficaria satisfeito com isso. Silmara recuou e olhou-o de frente.
- Muito bem. O que quer fazer, então?
- Vamos olhar a baía23.
Caminhando lado a lado, chegaram até a baía. Otávio estava quieto e pensativo, e foi Silmara quem, novamente, iniciou a conversa:
- Você não gosta muito de falar, não é mesmo?
- Não é assim... - tornou ele. - Eu simplesmente não sei o que dizer.
- Por que não me conta onde mora, quantos anos tem, o que faz... Não, o que faz não precisa. Sei que você é garçom. Mas você só trabalha em festas?
Sim. Consegui, com muito sacrifício, ingressar na Faculdade de Letras, onde estudo de manhã, e trabalhar só à noite me possibilita estudar.
- Que maravilha! E mora por aqui?
- No Fonseca.
- Você mora sozinho?
Por que todo esse interrogatório?
- Não é um interrogatório. Eu só queria conhecê-lo melhor.
- Olhe, Silmara, acho que foi um erro eu ter vindo aqui. Você é uma moça de sociedade, e eu, um joão-ninguém. Não é certo nos encontrarmos. Sua família não vai gostar.
- Está enganado a nosso respeito. Minha família não costuma julgar as pessoas pela aparência ou condição social. Ele a olhou indignado e prosseguiu:
- Sou um homem pobre... viúvo... sem instrução. O que uma moça feito você pode querer com alguém feito eu?
- O que você quer comigo?
- Hein?
- Por que me telefonou e veio ao meu encontro? Se pensa realmente tudo isso, por que me procurou?
Otávio ficou confuso, mas acabou confessando:

23 - BAÍA DE GUANABARA

- Não pude parar de pensar em você. Sei que é errado, mas não consegui esquecer aquela noite.
- Eu também não. Se nós dois sentimos a mesma coisa, por que não podemos nos conhecer melhor?
- Você é uma moça diferente das demais. É decidida, sabe o que quer e não se importa em tomar iniciativas.
- Isso incomoda você?
- Assusta-me.
- Não sou mais criança, Otávio. Tenho mais de trinta anos e sou solteira. Não me casei porque não quis, porque nunca me interessei por ninguém. E sou professora. Dou aulas na escola primária todos os dias pela manhã. E você? Quando foi que ficou viúvo?
Ele balançou a cabeça e acrescentou com pesar:
- Faz cinco anos. Minha mulher morreu no parto, levando consigo a criança. De lá para cá, nunca mais me interessei por ninguém. Até agora...
Disse isso de cabeça baixa e em tom quase inaudível, mas que Silmara escutou.
- Eu também não - arrematou ela. - Até ver você, nunca me senti atraída por homem algum.
Estavam sendo sinceros. Ambos se viam presas de inexplicável afeição. Desde a noite em que se viram pela primeira vez, seus corações se reconheceram imediatamente e voltaram muitos anos no passado, quando Silmara era ainda Cibele, e Otávio, seu noivo Soriano. E agora, depois de muitos anos separados, ambos haviam reconquistado o direito de se reencontrarem para construir o que não haviam conseguido naquela época tão remota.

CAPÍTULO 41

Sérgio e Eleonora estavam na sala, conversando sobre os progressos que vinham alcançando no centro, quando Silmara entrou. Ela beijou os dois no rosto e ficou olhando para eles, pensando na melhor maneira de lhes contar o que estava acontecendo. Ensaiara aquele momento muitas vezes, mas agora, sozinha com eles, não tinha mais certeza do que diria.
- Deseja alguma coisa, minha filha? - perguntou Sérgio, levantando os olhos para ela.
- Queria falar com vocês - respondeu ela, puxando uma cadeira e sentando-se mais próxima da mãe.
- O que é?
Sérgio não sabia do que se tratava, mas Eleonora tinha uma ideia. Desde a noite do noivado de Evandro, Silmara andava diferente, mais alegre e animada. Nos últimos dias, passara a sair todas as tardes, sendo que muitas vezes não voltava do trabalho para almoçar.
- Bem, eu... - começou ela, tentando escolher as palavras com cuidado - conheci uma pessoa.
- Uma pessoa? - repetiu o pai. - Você quer dizer, um rapaz?
- Isso mesmo.
- Finalmente! E quem é esse príncipe que despertou o seu interesse?
- Não é nenhum príncipe, papai.
- Mas deve ser alguém muito especial, ou você não estaria interessada. Há anos que vejo os rapazes flertarem com você, e você não liga para nenhum.
- Otávio é diferente.
- Ah! O nome dele é Otávio. E onde foi que o conheceu?
- Aqui mesmo, em casa.
- Aqui? Como? Só pode ter sido na festa de noivado de seu irmão. É filho de algum amigo nosso?
- Não.
- É amigo de seu irmão? Parente de Gilda?
- Também não.
Mas, então, quem pode ser? Diga logo, Silmara. Por que tanto mistério?
- Otávio tem medo de que vocês não o aceitem.
- Por que não o aceitaríamos?
- Porque ele é garçom, é pobre e desvalorizado - quem respondeu foi Eleonora, e todos se voltaram para ela.
- Isso é verdade? - retrucou Sérgio.
- É, sim.
- Não vejo motivo para todo esse mistério - comentou Eleonora. - Você sabe que não nos importamos com essas coisas. Desde que ele seja um bom rapaz...
- Ele é. Só que é viúvo.
- Viúvo? - indagou Sérgio. - Tem filhos?
- Não. A mulher e a filha morreram no dia do parto, há cinco anos.
- Coitado! - condoeu-se Eleonora. - Ele deve se sentir muito só.
- Olhe, Silmara - intercedeu Sérgio -, o fato de ele ser garçom e viúvo não nos incomoda. Mas você tem certeza de que ele é um homem direito?
- Ele é trabalhador. Trabalha à noite como garçom, em festas como a que demos.
- E durante o dia? Não faz nada?
- De manhã faz Faculdade de Letras. Quer ser professor. Isso agradou Eleonora e principalmente Sérgio, que tornou interessado:
- Quando é que iremos conhecê-lo?
- Quando vocês quiserem - anunciou ela. - Podemos marcar um almoço.
- Que seja para o próximo sábado - sugeriu Sérgio. - Está bom assim?
- Está ótimo!
- E ele sabe de nossas atividades no centro? - questionou Eleonora.
- Sabe. Já lhe contei tudo, mas ele tem um pouco de medo de espiritismo.
- Leve-o lá. Tenho certeza de que será bom para ele.
- Depois que vocês o conhecerem, vou convencê-lo a ir. Ela beijou os pais novamente e se virou para sair, mas Sérgio a segurou pela mão e acrescentou:
- Você está namorando a sério esse rapaz? - ela assentiu. - Você o ama?
- Amo. E tenho certeza de que ele também me ama.
- Você já não é mais nenhuma jovenzinha, e acho que não temos o direito de interferir na sua vida. Mas tenha cuidado. Não vá se machucar com nenhum aventureiro.
- Entendo a sua preocupação, pai, mas as intenções de Otávio são sinceras. Vocês verão quando o conhecerem.
Ela saiu animada, feliz com a conversa que tiveram. Sabia que os pais não procurariam impedir o namoro, se bem que Sérgio, como era natural, se preocupasse com a sinceridade de Otávio. Agora era só esperar o dia marcado.
- O que você acha? - sondou Sérgio, depois que ela se foi.
- Ainda é cedo para dizer - falou Eleonora. - Mas algo me diz que ele é uma boa pessoa.
- Fico mais tranquilo. Você sempre acerta nas intuições que tem.
Depois do jantar, deitaram-se para dormir, e Eleonora, como sempre, abriu um livro para ler. Naquela noite, contudo, um sono diferente se apoderou dela. As pálpebras foram piscando, piscando, até que o livro tombou sobre o colo, e ela adormeceu rapidamente. Assim que seus olhos se fecharam, seu corpo fluídico se libertou parcialmente do físico, e ela viu Piraju a seu lado.
- Você deve vir comigo. Há alguém que precisa de sua ajuda.
Eleonora obedeceu prontamente. Em segundos, estavam parados à porta de um edifício todo branco, circundado por um jardim florido e iluminado por luzes que escapam à percepção dos olhares humanos. A porta parecia de vidro esmaltado de uma cor marfim bem suave e, antes de abri-la, Piraju estacou e segurou o braço de Eleonora. Ao se virar para ele, ela percebeu que ele havia mudado a sua aparência de índio e agora se apresentava como um indiano vestido de branco, tal qual o mestre que fora na encarnação anterior à do indígena.
- Antes de entrar, quero preveni-la sobre a pessoa que vamos encontrar. Trata-se de alguém que foi sua conhecida há muitos anos, quando Alejandro ainda vivia na Espanha.
Ela ergueu a sobrancelha, demonstrando a imensa surpresa, e retrucou curiosa:
- Na Espanha? Quem poderia ser? Há muito não tenho notícias de ninguém que tenha convivido comigo por lá.
- Ela agora é uma menina. Desencarnou de forma violenta e traumática, e precisa da sua ajuda.
- Quem é ela?
- Lembra-se de Giselle?
- Giselle? - fez ela, tentando puxar pela memória. - Refere-se à dona da taverna que eu frequentava na Espanha? A mesma onde conheci o pai de Rosa?
- Essa mesma.
- Meu Deus! Há quanto tempo não tenho notícias! O que foi feito dela?
- Giselle escolheu caminhos tortuosos para trilhar.
- Assim como eu...
- Como todos nós, mas isso não vem ao caso. O importante é que ela desencarnou na Europa e veio para cá, a fim de iniciar uma nova tarefa. Só que está ainda muito confusa, traumatizada pela sua última encarnação e a morte violenta que atraiu.
- Por que eu para ajudá-la? Com certeza, há outros que tiveram mais contato com ela.
- A maioria de seus antigos companheiros está hoje no mundo espiritual, preparando-se para uma nova oportunidade. Muitos amadureceram, contudo, o que ela necessita agora é de alguém que a esclareça sobre certos aspectos da vida na matéria. Você já está familiarizada com o Brasil, sua língua e seus costumes, ao passo que Giselle ainda permanece apegada à Inglaterra, onde viveu sua última encarnação, e veio para cá um tanto quanto a contragosto.
- Se é assim, por que veio então?
- Porque é no Brasil que ela poderá desenvolver seus dons mediúnicos juntamente com a moral. Em outros lugares, esses assuntos ganham aspectos de sobrenatural e extraordinário, e passam a ser tratados como objeto de estudo científico, sem o preparo moral e a fé que devem acompanhá-los. Só aqui, no Brasil, a mediunidade será vista como fonte de crescimento e apreensão dos valores morais, além de oportunidade para o exercício da fé. É disso que Giselle precisa no momento.
- Entendo.
- Ela foi um espírito muito rebelde, egoísta e orgulhoso. Agora, está tentando se modificar. Já conseguiu grande progresso, mas ainda tem muito que aprender e fazer. E você poderá ajudá-la, mostrando-lhe os caminhos da Umbanda e procurando despertar sua atenção para ela.
- Giselle vai trabalhar na Umbanda?
- Quando reencarnar, quem sabe? Por isso escolhemos você. Se lhe mostrar o trabalho que a Umbanda desenvolve, temos certeza de que ela se interessará. Pode ser muito bom para ela.
- Como vou encontrá-la? Triste? Acabrunhada? Revoltada?
- Não é que esteja propriamente triste; é mais como se tivesse perdido a alegria interior. Ela não reclama nem se revoltou contra a vida ou Deus, mas perdeu um pouco da vitalidade e se tornou por demais silenciosa. Se você puxar assunto, ela vai conversar normalmente, mas nós, que já estamos acostumados aos processos cármicos do ser, podemos reconhece-la no mais íntimo da alma humana os sinais da felicidade perdida. Uma coisa é estar triste por causa de experiências ruins. Essa tristeza passa à medida que o tempo vai cicatrizando as feridas. Outra, bem diferente, é banir da alma a alegria genuína. Essa é preciso reconquistar.
Eleonora fitou Piraju com firmeza e considerou:
- Será que estou à altura dessa tarefa? Giselle pode nem mais se lembrar de mim.
- Muito provavelmente, não vai lembrar a princípio. Mas vai reconhecê-la. Vocês podem não ter sido grandes amantes, mas foram amigos, e amizade nunca se esquece.
- Por que isso é tão importante, Piraju? O que ela tem de especial?
- O que todo mundo pode ter: coragem e vontade de crescer. Quando o espírito empreende esforços para se modificar, todo o plano espiritual trabalha para favorecer essa mudança. Ela é tão especial quanto qualquer outro em igual situação. E então? Está pronta para vê-la?
- Só mais uma coisa. Quem eu conheci foi Giselle de quatrocentos anos atrás. Como devo chamá-la agora?
- Deixe que ela mesma lhe diga.

CAPÍTULO 42

Quando Eleonora entrou com Piraju, encontrou-se num aposento cujas paredes, de cima a baixo, encontravam-se recobertas de prateleiras com os mais variados livros. Havia réplicas astrais de muitas obras humanas, e alguns livros estranhos, que pareciam plasmados pela própria menina. Ela estava sentada na beira da cama, lendo um livro para um rapaz. Quando percebeu a entrada dos dois, parou a leitura e olhou para eles. Sorriu. Naquele momento, Eleonora compreendeu o que Piraju lhe dissera sobre a perda da alegria. O sorriso de Giselle, se bem que sincero, transmitia uma melancolia que lhe passava pelo coração e parecia emanar-se pelo olhar.
- Boa noite, Mohan - cumprimentou ela, chamando Piraju pelo seu nome indiano.
Piraju devolveu o cumprimento com um aceno de cabeça, e o rapaz que estava com Giselle se levantou e disse:
- Vejo que conseguiu trazer a nossa amiga.
Eleonora não o conhecia, mas sentiu certa familiaridade em sua voz.
- Trouxe alguém para conversar com você - disse Piraju, frente a frente com Giselle.
A menina olhou para Eleonora sem interesse e retrucou com voz monótona:
- Lamento, mas não a conheço.
- Engano seu. Vocês foram muito amigas no passado.
- Sempre o passado... - ironizou ela, buscando, com os olhos, seu acompanhante. - Aonde é que você vai, Leonel?
Leonel se virou para ela e, com um sorriso cativante, respondeu:
- Vou dar uma volta com Mohan. Enquanto isso, você e Eleonora podem conversar melhor.
Só então Giselle ficou sabendo que a moça se chamava Eleonora. Os dois saíram, e elas ficaram a sós.
- Não quer se sentar? - convidou a menina, gentilmente.
- Obrigada.
Eleonora sentou-se no lugar antes ocupado por Leonel e pôs-se a observá-la. Era uma menina de seus dezesseis ou dezessete anos, nem bonita, nem feia, mas de olhar inteligente e perscrutador.
- Onde foi que nos conhecemos? - indagou ela, agora mais curiosa.
- Não se lembra de mim?
- Não.
- Pois eu me lembro de você, Giselle. Lembro-me como se fosse hoje.
A menina deu um salto e se afastou de Eleonora, respondendo com voz rouca:
- Giselle ficou para trás. Sou Martha agora.
- Desculpe-me, Martha, mas quando a conheci, você se chamava Giselle.
- Faz muito tempo que não nos vemos?
- Tomamos caminhos opostos.
- Você veio me cobrar algo?
- Não. Vim para conversar com você.
Martha pareceu aliviada e voltou a se sentar na cama.
- Se você me conheceu como Giselle, quem foi você então?
- Não se lembra da Espanha... e de Alejandro?
Ela levou apenas um minuto para associar o nome à lembrança do homem forte e barulhento que fora seu amante havia mais de quatrocentos anos.
- Alejandro... Alejandro Velásquez? - ela assentiu. - Mas você era homem!
- Era.
- Meu Deus, há quanto tempo! Desde que você partiu para... Cuba, não foi? - ela fez que sim. - Pois é, nunca mais soube de você.
- Está surpresa?
- Muito! - exclamou ela, visivelmente interessada e eufórica. - Minha nossa! O que foi que você fez durante esses quatrocentos anos?
Quer mesmo saber?
- Quero.
- Pois então, vou lhe contar.
Durante o resto da noite, Eleonora contou a Martha tudo o que havia feito desde que deixara a Espanha, como Alejandro, passando por Aracéli, Chica e agora Eleonora. Martha, por sua vez, narrou-lhe um pouco de suas aventuras e desventuras, e as duas terminaram se abraçando.
Você era... um bom amigo - comentou Martha, rindo, sem saber se deveria referir-se a ela como o homem do passado ou a mulher do presente.
- Passou-se muito tempo, não foi? Nós duas tivemos os nossos tropeços e hoje estamos aqui.
- Mas você está encarnada - Martha apontava para o tênue fio prateado que ligava Eleonora ao plano físico. - E como mulher, veja só!
- Nada disso me impediu de vir visitá-la.
- Quem diria... Alejandro Velásquez. E eu que pensei que você havia sumido. Mas você se saiu muito bem.
- Nem tanto assim. Fiz muitas coisas das quais me arrependi depois.
- Também eu... - calou-se, como se sentisse medo das próprias palavras.
- Sabe, Martha, seus amigos estão preocupados com você.
- Exagero deles. Estou bem.
- Piraju me disse que você vai reencarnar no Brasil.
- Piraju...? Ah! Mohan. É verdade.
- E você parece não estar muito satisfeita.
- Não é isso. É que eu gostava da Inglaterra. Fui feliz lá...
- E pode ser feliz no Brasil também. Você agora vai ser brasileira.
- Pois é.
- Quando será isso?
- Daqui a uns anos. Preciso me preparar um pouco mais.
- Quer conhecer o país comigo?
- Como assim?
- Sou dirigente de um centro de Umbanda lá na Terra. Não gostaria de ir conhecê-lo e ver o que você pode fazer quando voltar?
- Eu nem sei o que é Umbanda!
- É uma religião muito nova. Na verdade, tem raízes bem mais remotas, mas veio para o Brasil como uma reunião das culturas negra, indígena e branca.
- E daí?
- E daí que surgiu para auxiliar todos aqueles que precisam de ajuda. É uma religião que trata todos os seres como iguais, sem qualquer distinção de cor, sexo, raça ou posição social. Nós, que a praticamos, adotamos certos rituais para facilitar nossa conexão com os guias espirituais e, assim, trabalhar no auxílio ao próximo e a nós mesmos. Quem procura a Umbanda busca iluminar o seu ser com o conhecimento, a caridade e a humildade.
Estamos trabalhando pela melhora do ser humano e pelo desenvolvimento das faculdades mediúnicas em prol do bem comum.
- Parece interessante.
- Talvez você possa trabalhar conosco.
- Eu?! Como? Não tenho cara de guia espiritual, tenho? Não. Mas você disse que vai reencarnar e, pelo que sei, está tentando se reequilibrar com a vida. Não é verdade?
- É.
- Então, a Umbanda pode ser um bom caminho de se transformar sem sofrimento. O que você acha?
- Não sei. Preciso conversar com meus mentores.
- Foram eles que mandaram me chamar. Talvez, se me acompanhar, consiga compreender o sentido da vida e aceitar a mudança. Você vai viver no Brasil e pode escolher fazê-lo com ou sem dor.
- Não tenho vocação para mártir. Já dei à vida minha quota de sacrifício. Quero experimentar coisas diferentes. Chega de sofrimento físico.
- Isso quer dizer que você aceita a minha oferta?
- Pode ser. Mas vou conversar com Leonel primeiro.
- Quem é ele?
- O melhor amigo que já tive. Não faço nada sem antes falar com ele.
- Pois então, vá consultá-lo. Se ele está aqui, com certeza, é um espírito de bem.
- Ele foi mais esperto do que eu e cresceu mais rápido. Agora está me esperando.
- Isso se chama amor. É muito bonito.
- Ele pode ir comigo?
- Não sei. Piraju é quem deve saber.
- Por que o chama de Piraju?
- Ele foi índio na última encarnação. Não sabia?
- Sabia. Mas é que ele usa seus conhecimentos hindus nos trabalhos que realiza.
- Isso não quer dizer nada. Piraju trabalha comigo no centro de Umbanda que dirijo. É ele o dirigente espiritual de nossa casa e se apresenta como Caboclo Rompe Mato.
- Que interessante!
- Sim, é muito interessante. Tenho certeza de que você vai gostar.
- Qual a ligação que Piraju tem com você?
- Ele foi meu marido.
- Quando você foi índia?
- Exatamente. Duas encarnações atrás.
- Olhe, Eleonora, você me convenceu. Sei que não ando muito animada ultimamente, mas já estou cansada de ficar por aqui. Talvez um novo lugar, longe de onde vivi minha última encarnação, seja uma boa ideia.
- Procure não pensar mais na Inglaterra. Foi bom para você durante um tempo, mas agora suas necessidades são outras. O Brasil tem um grande potencial espiritual, e soube que é disso que você precisa.
- Eu amo a Inglaterra. Foi muito doloroso, para mim, sair de lá, mas Leonel me fez ver que era o melhor. Deixei muitas alegrias e tristezas naquele solo, e ele diz que o que eu preciso agora é de renovação.
- Ele está certo.
- Tenho que me acostumar a viver em outro lugar. - Não deve ser difícil. Afinal, você também viveu na Espanha.
- É, mas, antes da Espanha, vivi na Escócia e de novo na Inglaterra. Foram muitas e muitas vidas naquelas terras.
- Hora de mudar. Sua terra agora é o Brasil.
Martha balançou a cabeça, e Eleonora sentiu novamente a perda de alegria em sua alma. O que Piraju lhe dissera era quase visível na menina.
- A vida vai ensiná-la a recuperar a alegria - disse Eleonora, apertando-lhe as mãos.
Martha não sabia por que Eleonora dissera aquilo e sentiu lágrimas lhe subirem aos olhos.
- Quando é que você vem me buscar? - perguntou, enxugando as lágrimas que nem chegaram a cair.
- Não serei eu que virei buscá-la. É mais provável que Piraju a leve com ele.
- Até lá, então.
- Adeus, Martha. E procure animar-se. Você vai gostar da Umbanda.
Eleonora se despediu de Martha e, no mesmo instante, Piraju entrou, acompanhado de Leonel.
- Obrigado - disse Leonel, emocionado.
Ela os abraçou também emocionada, e enquanto Leonel ia ao encontro de Martha, Piraju apanhou Eleonora pela mão e voltou com ela para a Terra.
- Você ouviu o que dissemos? - quis saber Eleonora, parada ao lado de seu corpo físico.
- Não. Mas posso ler em seus pensamentos. Você fez a coisa certa. Obrigado.
- Fiz o que pude.
- No próximo dia de sessão, Leonel estará comigo, e levaremos Martha.
Eleonora o abraçou e voltou ao corpo, dando um longo suspiro. Piraju ainda ficou olhando-a por uns minutos, mas Eleonora retomou o sono, e seu corpo fluídico permaneceu flutuando alguns centímetros acima do físico. Ele espargiu energias luminosas pelo ambiente e se foi.

CAPÍTULO 43

Otávio estava muito nervoso para aquele encontro. Silmara lhe dissera que ele não tinha que se preocupar com seus pais, mas ele se sentia inseguro. Afinal, ele era um pobretão, e os pais dela eram pessoas distintas. Podiam não ser milionários, mas tinham posses e com certeza não eram iguais a ele.
Parou em frente à casa da namorada e alisou o terno com as duas mãos. Suspirou fundo, tossiu nervosamente e abriu o portão. Subiu hesitante os cinco degraus que davam acesso à pequena varanda da frente e tocou a campainha. Não demorou muito, e Silmara veio atender, linda feito uma noiva em seu vestido branco-pérola. Ele segurou as suas mãos, e ela ofereceu-lhe a face para que ele a beijasse.
Ao ser apresentado a Eleonora, parecia que já a conhecia havia muitos anos. A primeira impressão foi de alguém a quem devia temer, mas, logo em seguida, foi como se um calor o houvesse envolvido, e ele se pôs à vontade na confortável sala de estar. Sérgio o cumprimentou amistosamente, e ele se sentiu em casa. Logo estavam conversando, e ele então compreendeu o que Silmara lhe dissera a respeito dos pais. Eram pessoas maravilhosas e se esforçaram ao máximo para agradá-lo.
Apenas com Evandro ele não simpatizou. Achou-o um pouco esnobe, mas não disse nada que pudesse ofendê-lo. Na verdade, a alma de Otávio, evocando as vivências de Soriano tanto na carne quanto em espírito, recebia as sensações de seus antigos companheiros de jornada em séculos remotos. Ao conhecer Silmara, seu coração imediatamente reconheceu a Cibele de outros tempos. Eleonora, a responsável por sua morte violenta e traumática nas mãos do índio maia, passara por Aracéli, a quem ele a princípio tentara matar, mas que depois procurara defender por amor a Cibele. E, por fim, Evandro, que tão bem serviu a seus propósitos no início, como Licínio, mas que depois se tornou seu inimigo por tentar liquidar sua Cibele, ainda no ventre da mãe. Gilda não lhe despertou nenhum sentimento, já que nada vivera com Esmeraldina. De Sérgio não guardava lembranças ruins, porque a antipatia que sentira inicialmente por padre Gastão se devia ao fato de que as suas orações representavam um empecilho a suas investidas.
E agora encontravam-se todos ali reunidos para alcançar uma nova compreensão. Apenas Teodoro não estava presente, ainda aguardando a oportunidade de voltar ao mundo e reencontrar seus amigos.
Otávio foi informado das atividades da família no centro espírita e demonstrou interesse em conhecer o lugar. Não sabia nada de espiritismo, nunca lera coisa alguma a respeito. Apenas ouvira falar uma coisa ou outra, como se fosse algo sobrenatural que se devesse temer. Sobre a Umbanda, então, não tinha nenhum conhecimento, achando mesmo que ali se adotava a prática do fetichismo.
- Não é nada disso - informou Sérgio. - A Umbanda é uma religião nova para nós, mas trabalha dentro da lei do amor e da fraternidade. Procuramos levar conforto e esperança às pessoas.
- Você precisa apenas manter a sua mente aberta - disse Eleonora. - Não pode ter preconceitos nem ideias preconcebidas.
- Vou tentar.
- Teremos sessão hoje - prosseguiu Sérgio. - Mais tarde, iremos para lá. Não quer nos acompanhar?
- Hoje? - surpreendeu-se Otávio. - Mas não estou preparado.
- Ora, vamos, Otávio, você vai gostar - pediu Silmara. - E não precisa de preparo algum.
- É isso mesmo - concordou Sérgio. - Basta a sua boa vontade.
- Bem, se é assim, então eu vou. Estou mesmo curioso para conhecer esse culto.
Terminado o almoço, Evandro e Gilda saíram para dar uma volta, e Silmara e Otávio ficaram em casa conversando. Às quatro da tarde, lá estavam para abrir o centro e iniciar os preparativos para t reunião de estudos e as consultas mais tarde.
No plano invisível, Piraju chegou com Leonel e Martha. A atividade no astral já era intensa, com os guias empenhados na imantação do ambiente. Martha notou vários espíritos ali, muito embora o centro estivesse praticamente vazio de pessoas encarnadas.
- Quem são esses espíritos? - indagou ela, curiosa, referindo-se a uma porção de criaturas nitidamente pouco evoluídas.
- São almas necessitadas de auxílio - esclareceu Piraju. - Vê como se acomodam no fundo do salão? Estão aguardando a chegada de Eleonora e Sérgio, para ouvir-lhes a palestra e ganharem algum conhecimento.
- Mas por quê? No nosso mundo não há espíritos sábios o suficiente para ensinar-lhes?
- Muitos desencarnados se recusam a frequentar reuniões no mundo astral. Sentem-se mal e, às vezes, intimidados com a presença de espíritos mais iluminados. Todavia, um lugar como este, onde a vibração, apesar de elevada, está ainda ligada à matéria, faz com que eles se sintam mais à vontade. É a presença dos encarnados, sobretudo, que lhes traz a sensação de familiaridade, pois vários desses espíritos encontram-se ainda afinizados com a vida física que, muito a contragosto, tiveram que deixar.
Quando Sérgio e Eleonora chegaram, todos os espíritos se aquietaram e ficaram atentos às palavras do palestrante e às perguntas que os médiuns lhes endereçavam, esclarecendo muitas de suas dúvidas. Encerrada a primeira parte, houve uma pequena pausa, e, em seguida, todos retornaram para dar início à sessão de consulta.
Nessa hora, Piraju se despediu de Martha e Leonel e foi para junto de Eleonora. Incorporado na médium, ia atendendo as pessoas. O primeiro a se consultar foi o próprio Otávio, que Piraju, agora Caboclo Rompe Mato, recebeu com um abraço. Após o passe inicial para energizar seus corpos físico, astral e mental, o caboclo começou a falar24:
- Você sabe por que está aqui, não sabe?
Otávio ficou confuso e respondeu hesitante:
- Vim acompanhar minha namorada...
- Vocês estão ligados por vidas passadas e agora têm a chance de se reencontrar e buscar, em seus corações, alegria e felicidade.
A conversa foi rápida, porém, construtiva, e Otávio saiu de lá com o coração leve, sentindo nascer a fé naquela doutrina tão nova para ele. Em seguida, entrou uma mulher mal-humorada, que o caboclo abraçou com amorosidade. Via, em sua mente, que ela estava ligada ao passado de Eleonora. Fora Zenaide, escrava que delatara Aracéli para Esmeraldina, informando-a do caso da índia com Licínio. Piraju captou essa informação, mas ocultou-a da consciência de Eleonora, que nada registrou a respeito.

24 - Aqui também serão colocados os diálogos com fluência normal, sem o característico linguajar aparentemente inculto das entidades de Umbanda, para melhor compreensão do leitor. Fica apenas a observação de que caboclos e pretos velhos adotaram a forma simples de falar em sinal de humildade, numa simbologia clara de que a Umbanda estaria voltada para os simples e humildes de coração. Atualmente, além desse motivo, existe a questão cultural, pois muitos são aqueles que, acostumados a esse linguajar, teriam dificuldades em crer na força de espíritos de Umbanda que falassem como pessoas cultas e letradas. Sendo a religião dos humildes, ainda hoje subsiste a crença nessa característica peculiar de humildade. As entidades de Umbanda, todavia, podem conversar naturalmente e possuem conhecimentos muito mais avançados do que se pode supor.

- Minha vida está muito difícil, seu Rompe Mato - começou ela a dizer. - Meu marido me largou por conta de uma fofoca que fizeram com o meu nome. Foi embora e nem me deixou pensão. Tenho dois filhos para criar sozinha. Arranjei um emprego de doméstica, mas havia outra empregada na casa que dormia com o filho da patroa. Quando ela descobriu, a danada tirou o corpo fora e colocou a culpa em mim. Inventou que era eu que dormia com ele. E o pior foi que o safado confirmou!
A mulher pôs-se a chorar, e o caboclo ficou olhando-a calmamente. Esperou até que ela se acalmasse para então poder dizer:
- Não culpe a vida pelos seus atos. Saiba que nada que acontece é por acaso, e cada um somente colhe aquilo que plantou um dia.
- O senhor quer dizer que eu estou pagando por algo que fiz no passado?
- Não pense nas coisas dessa forma. Ninguém paga porque ninguém é devedor. Você está apenas presa à necessidade de compensação, como todo mundo. Mas não precisa ser assim. Você não precisa sofrer. Modifique as suas atitudes, e sua vida também vai mudar. O auto perdão e a disciplina interior conduzem à transformação que, por sua vez, levam à felicidade.
- Mas eu não sou fofoqueira...
- Silencie e olhe um pouco para dentro de si. Se está segura de que não é dada a maledicências, saiba que é no passado que está a causa de tudo isso.
- Se é assim, estou mesmo pagando, porque tenho certeza de que, nessa vida, não falo mal de ninguém.
Piraju sabia que era mentira, que a mulher, ainda hoje, fazia intrigas e falava mal da vida alheia, repetindo a atitude de antes que tanto lhe trouxera transtornos. Contudo, não estava ali para acusá-la nem julgá-la, e sim para ajudá-la a enxergar a si mesma e tentar se modificar.
- Como disse, faça uma reflexão sobre seus atos e procure modificar suas atitudes. Só com a reforma interior é que poderá quebrar o elo que você criou com os problemas de maledicência.
Depois de muita conversa, Piraju conseguiu acalmar a mulher e fazê-la aceitar, ao menos para si mesma, que precisava conter a língua se quisesse mesmo modificar aquela tendência que tinha para atrair fofocas. Quando ela saiu, veio um rapazinho de seus dezessete anos, meio abobado, acompanhado pela mãe. Estava tendo problemas de obsessão. Na primeira vez que o recebeu, Piraju logo detectou o comprometimento com espíritos menos esclarecidos que estavam a seu redor e reconheceu nele o antigo dono da fazenda onde Eleonora fora escrava, ainda na pele de Chica. Fazia-se acompanhar pelo espírito de um escravo que se chamava Sebastião, revoltado com o fim que tivera, enforcado em uma árvore por conta da ordem do rapaz, conhecido então como sinhô Eusébio.
- Como está o menino hoje? - indagou Rompe Mato.
- Está melhor - afirmou a mãe. - As orações têm surtido bastante efeito.
Piraju segurou o menino pelos ombros e disse:
- Vingança não leva a lugar algum de felicidade. Quanto mais você perturbar o menino, mais vai trazer perturbação para si mesmo. Não acha que é melhor perdoar e seguir o seu caminho? Você não pertence mais ao mundo da matéria, e não é ao lado desse moço que você vai encontrar o que procura.
- Você fala em perdão porque nunca sofreu - respondeu o rapaz, completamente alheio ao que dizia.
- Todo mundo sofreu na vida, mas o sofrimento não termina com a vingança. Ao contrário, ele se prolonga. Deixe-o e siga o seu caminho. Há aqui espíritos que podem ajudá-lo a reencontrar a paz. Ou vai me dizer que, desde que iniciou essa vingança, você tem vivido em paz?
O menino, com o espírito colado a ele, hesitou:
- Foi por culpa dele que perdi minha paz - respondeu, referindo-se à sua presa.
- A responsabilidade foi sua pelo que fez. Aquele que age, seja para o bem ou para o mal, tem que assumir a responsabilidade pelas consequências que gerou
- Não quero mais passar por isso - queixou-se o rapaz.
- E nem precisa. Você se ligou a ele pela vingança. É tão prisioneiro do ódio quanto ele. Liberte o menino e estará se libertando também.
O espírito titubeou. Era obrigado a acompanhar seu antigo algoz àquele centro fazia muito tempo. Havia espíritos que o prendiam e o levavam até ali juntamente com o rapaz, e ele já estava ficando cansado.
- Para onde é que eu vou? - questionou ele, com medo de ir parar em algum calabouço.
- No lugar para onde o convido não existem prisões - esclareceu Rompe Mato, notando o medo do espírito. - É um local calmo e sereno, onde só vibram a paz e a amorosidade.
- Tem certeza?
- Não estou aqui para enganar ninguém.
O menino deu um suspiro longo e falou pelo espírito:
- Sabe de uma coisa? Vou aceitar o seu convite. Já estou mesmo farto desse bobalhão.
Em silêncio, Piraju ficou observando o espírito ser levado dali por uma cabocla, que se aproximara deles ao perceber o que estava acontecendo. Era um dos guias que trabalhavam na casa sem incorporar, pronta para executar importantes tarefas que escapavam aos olhos e à compreensão dos encarnados. O espírito se deixou conduzir mansamente, e o menino olhou ao redor, como se só agora percebesse onde estava. Mente ainda confusa, não disse nada.
- Vou passar um banho para ele - informou Piraju. - Aos poucos, seus corpos irão se limpando da influência do espírito que o acompanhava. E não se esqueça de orar todos os dias. Em breve, ele dará sinais de significativa melhora.
O caboclo abraçou a mulher e o filho, que se foram cheios de gratidão. Em seguida, veio uma menina pequena, também acompanhada da mãe. Como sempre, o caboclo as abraçou, e a mulher foi logo dizendo:
- Quero que o senhor me perdoe, seu Rompe Mato, mas ela insistiu em vir. Disse a ela que não deveria ocupar o seu tempo com bobagens, mas ela tanto insistiu que não tive remédio. Precisei trazê-la, ou ela não me deixaria em paz.
- O que foi que houve, pequenina? - perguntou Piraju, carinhosamente.
- O meu cachorro está doente - respondeu ela, em lágrimas. - Não quero que ele morra.
- Eu disse que era besteira - cortou a mulher, envergonhada. - Onde já se viu ocupar o tempo do caboclo com uma coisa dessas? Animal não é gente.
- Filha - falou Piraju, dirigindo-se à mulher -, não nos cabe impor graus no sofrimento. Não temos o direito de decidir que dores são justas e quais não são. Tudo que aflige as criaturas tem importância aos olhos de Deus. E um ser humano não é melhor do que um cão só porque sabe pensar. Toda vida é importante porque é através dela que o espírito se manifesta e os seres têm a chance de evoluir. Assim também os animais, e a preocupação de sua filha é plenamente justificável. Você deveria agradecer por ter colocado no mundo alguém que se preocupa com a vida, em vez de um ser que a despreze.
A mulher ficou vermelha de vergonha, mas a menina se adiantou e perguntou:
- O senhor vai curar o meu cachorro?
Rompe Mato colocou a mão sobre a cabecinha da criança e, durante alguns minutos, permaneceu de olhos fechados, conectando-se mentalmente à casa dela, onde se encontrava o animal. Depois, abriu os olhos e aconselhou:
- Dê-lhe chá de quebra-pedra. Ele não tem nada, a não ser uma pedra no rim. Com o chá, vai ficar bom.
A menina ficou tão feliz que se agarrou às pernas de Eleonora, e o caboclo se abaixou para abraçá-la. Abraçou também a mulher, e as duas foram embora.
Após mais algumas consultas, a sessão estava terminada. Os médiuns, reunidos em grupo, batiam palmas e cantavam uma cantiga para os caboclos subirem e retornarem para Aruanda. Depois que os caboclos subiram, Piraju foi juntar-se a Leonel e Martha.
- E então? - perguntou a Martha. - Gostou?
- Estou impressionada - respondeu Martha sinceramente. - Eu não podia imaginar que fosse assim. Tanta gente que veio aqui e recebeu ajuda!
- Você vai ver muitas coisas mais.
- Tem uma coisa que não entendi. O que é Aruanda? É urna cidade astral?
- Na verdade, é um lugar onde os caboclos e pretos velhos se reúnem após deixarem o terreiro de Umbanda, mas não é lá, necessariamente, que residem no invisível. Todos nós temos os nossos afazeres no mundo astral e nas diversas cidades espalhadas pelo cosmo acima da Terra e, muitas vezes, abaixo dela. Além disso; nem todos estamos constantemente sob a vestimenta de caboclos ou pretos velhos. Na maioria das vezes, longe do centro, reassumimos alguma aparência que tínhamos em outra vida, voltando à forma que utilizamos na Umbanda quando precisamos, seja para os trabalhos, seja para nos apresentarmos a algum vidente que nos chama ou com quem precisamos nos comunicar. Todos nós que trabalhamos na Umbanda estamos ligados por um fio mental que nos coloca em permanente contato, e é através dele que somos acionados sempre que a Umbanda de nós precisar, para nos reunirmos em Aruanda.
- É lá que são traçadas as diretrizes da Umbanda? - questionou Leonel.
- Sim - respondeu Piraju. - Em Aruanda, todos aqueles que trabalham na Umbanda se reúnem para trocar experiências e resolver importantes questões ligadas aos trabalhos que são realizados. Aruanda não é uma cidade cheia de índios e escravos. É um lugar de encontro, de repouso e de estudos voltados à prática da Umbanda aonde qualquer um pode ir. Mas, como disse anteriormente, cada um de nós segue para um local diferente, onde nossa ajuda é solicitada. Quando, por qualquer motivo, precisamos nos reunir, somos imediatamente contatados através desse fio mental que nos une e nos dirigimos para lá.
- Se entendi bem - prosseguiu Martha Aruanda não é um lugar de moradia espiritual que aloja caboclos e pretos velhos, mas um ponto de encontro para todos aqueles ligados pelo mesmo fio mental que os convoca e reúne quando é preciso.
- Pode ser que, eventualmente, haja espíritos morando por lá, mas o que quero dizer é que isso não é um padrão, não é obrigatório. Aruanda é uma cidade astral livre e franqueada a qualquer um que tenha interesse na prática e nos estudos da Umbanda. E estamos todos ligados a ela por um elo mental, pois o que nos une é a mente ligada no propósito comum, não importa onde estivermos.
Depois disso, ao apagar das luzes do centro, Piraju foi-se despedindo dos demais guias e voltou para o Astral juntamente com Leonel e Martha.

CAPÍTULO 43

Como era de se esperar, Silmara e Otávio se casaram, e Evandro e Gilda tiveram seu primeiro filho. O menino, de nome Ricardo, era adorado pelos pais, principalmente por Evandro, que não hesitava em fazer todas as suas vontades. Ricardo era um menino amistoso e dócil, desde cedo ligado ao centro espírita. Tinha verdadeira adoração pelos avós e gostava de passar os fins de semana em sua casa. Além disso, era fascinado por tudo o que se referisse aos índios, demonstrando um pendor natural para as questões relacionadas à causa indígena.
- Quando crescer - disse ele numa tarde de domingo, após ouvir as histórias que a avó lera de um livro de contos indígenas -, vou morar na Amazônia e fazer parte do SPI25.

25 - SPI - inicialmente, Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais, passando depois a Serviço de Proteção aos Índios (SPI), órgão criado pelo Decreto-lei no. 8.072, de 20 de junho de 1910, para tratar das questões indígenas do país. Somente em 1967 foi criada a Funai - Fundação Nacional do Índio, pela Lei no. 5.371, de 5 de dezembro de 1967, em substituição ao extinto Serviço de Proteção aos Índios.

Sérgio e Eleonora riram muito, embora os pais não aprovassem a escolha de Ricardo e tudo fizessem para demovê-lo daquela ideia absurda.
- O que você sabe sobre o SPI, seu bobinho? - indagou o pai carinhosamente.
- Bem... - hesitou o menino - sei que é um lugar para onde vão as pessoas que defendem os índios.
Todos riram bastante, menos Gilda, que protestou veemente:
- Onde já se viu meu filho vivendo entre os índios? Você está recebendo uma boa educação, Ricardo. Não é para se meter no meio de selvagens.
- Não deveria falar assim, Gilda - censurou Sérgio. - Os índios são pessoas como nós e merecem o nosso respeito.
- Concordo, desde que eles estejam no mato e nós aqui, na cidade, bem longe de sua selvageria.
- Índios não são necessariamente selvagens - objetou Sérgio novamente.
- Quando falo em selvagens quero dizer não civilizados -corrigiu Gilda.
- E daí, mamãe? - prosseguiu Ricardo. - Quanto mais selvagens, melhor.
- Jamais concordarei com um absurdo desses - contestou Gilda.
- Deixe de se apoquentar por bobagens - repreendeu Evandro mansamente. - Ricardo é só um menino e está impressionado com tantas histórias de índios que minha mãe lhe conta. Com o tempo, isso passa e ele muda de ideia.
Gilda olhou-o em dúvida, e Ricardo foi-se aninhar no colo do avô, a quem sussurrou baixinho:
- Não mudo.
Realmente, Ricardo, querendo redimir-se do extermínio dos índios a que procedera quando fora Teodoro, jamais mudou o seu objetivo. Sempre se interessou pela causa indígena e, mais tarde, conforme era de seu desejo, ingressou nos quadros do SPI, passando, com a extinção deste, a trabalhar para a FUNAI, sempre defendendo os direitos dos silvícolas.
Com essa encarnação, fechava-se o ciclo de troca de experiências e reajustes recíprocos entre os integrantes dos dramas que se desenrolaram desde princípios de 1500, quando Alejandro se arvorara nas terras dos maias e dos astecas, auxiliando Cortés no extermínio dos índios. Desde aquele tempo, muita coisa acontecera, e o amadurecimento espiritual trouxera a todos uma nova visão do mundo e da vida. Mesmo os mais empedernidos, como Evandro e Gilda, acabaram cedendo ante o poder imbatível do amor.
Nos idos de 1947, Sérgio retornou ao mundo astral, tendo Eleonora desencarnado serenamente no ano seguinte, deixando aos filhos a tarefa de dar continuidade ao trabalho espiritual que haviam começado. Evandro e Gilda, contudo, não tiveram nem a firmeza de propósitos, nem o preparo moral necessário para dar seguimento à tarefa iniciada por Eleonora e Sérgio. Não por serem pessoas sem moral, mas por estarem com seus interesses ainda voltados às ilusões do mundo, pouco comparecendo ao centro após o desenlace de Eleonora.
Ricardo, por sua vez, envolvido com a FUNAI e os índios, não tinha tempo para se dedicar a outros assuntos, muito embora lamentasse a sorte do centro que sua avó fundara com tanta satisfação e alegria.
Assim, a tarefa coube a Silmara e Otávio, que continuaram se dedicando ao trabalho espiritual até sua passagem para a outra vida. Não tiveram filhos nem ninguém que pudesse substituí-los. Quando Silmara desencarnou, os médiuns não conseguiram chegar a um consenso sobre quem dirigiria o centro. Houve até algumas brigas de pessoas iludidas pela fascinação do poder. Julgavam-se melhores e mais poderosas do que as demais, porque sabiam mais, porque estavam no centro há mais tempo, porque se intitulavam herdeiras dos poderes de Eleonora, sucessoras de Rompe Mato e outras tantas justificativas que arranjavam para convencerem-se a si mesmas de que mereciam o cargo.
Do lado invisível, Eleonora, Sérgio e Silmara presenciavam essas desavenças com tristeza e decepção.
- A culpa foi minha - disse Eleonora a Piraju. - Deveria ter preparado alguém para realmente me substituir.
- Será que adiantaria? - retrucou o índio. - Quando se está firme na moral, o preparo surge espontaneamente. O que acontece é que as pessoas ainda não se desapegaram da ilusão do poder.
- E para que serviu toda aquela doutrina que procuramos lhes dar? - tornou Sérgio. - Será que ninguém aprendeu nada?
- Você não deve generalizar. Os que se encontram realmente preparados não estão sendo cogitados para ficar no lugar de Eleonora. Nem sequer estão se oferecendo ou se digladiando com os demais para serem eleitos.
- Mas por quê? - indignou-se Silmara. - Deveriam! - Junto com o conhecimento vem a humildade. Só os ignorantes são orgulhosos.
- O que podemos fazer, Piraju? - indagou Eleonora. -Temos que direcioná-los.
- Infelizmente, minha querida, não podemos mais intervir. Trata-se de uma questão que agora está fora do seu alcance. O centro não mais lhe pertence nem a Silmara. Vocês concluíram sua tarefa na Terra, deixando sua continuidade a cargo de outros. Interferir na escolha desses outros seria o mesmo que alterar seus planos de vida. São os que ficaram que agora precisam testar sua maturidade espiritual e evoluir. Podemos orar por eles e inspirar-lhes bons conselhos, mas não temos como impedir que ajam de acordo com a sua moral. A responsabilidade agora não é mais de vocês.
- Mas é multo triste. Tantos anos de luta, tanto trabalho perdido!
- Tantas pessoas que vocês ajudaram a se reequilibrar na vida. O seu trabalho, o de Sérgio e o de Silmara jamais serão perdidos. Todos aqueles que passaram pelo centro, sob a direção de vocês, beneficiaram-se com os seus ensinamentos e o exemplo da retidão de caráter. Mas isso foi no seu tempo. O tempo agora é outro, para ser experienciado por outras pessoas, com outras necessidades e outros projetos. Sintam-se felizes pelo dever cumprido. Deem aos outros o direito de tentar cumprir o deles.
- Você está certo - concordou ela por fim. - Acho que fiquei um pouco apegada ao centro. Afinal, fui eu que o fundei.
- Você o fundou para a vida, não para você. Depois que lhe deu vida própria, o centro se separou de você. Enquanto na matéria, cabia-lhe a direção material e espiritual, que passou a Silmara por similitude de propósitos e necessidades temporais.
- Mas o que acontecerá? Será que essa disputa vai acabar e alguém vai continuar a minha obra?
Os que lá ficaram vão se debater por algum tempo, mas depois se acertarão. Mais tarde, quando perceberem que o poder que buscam reside apenas na fantasia de seu orgulho, sairão em busca daquele que tiver melhor preparo moral para conduzi-los. Por enquanto, é necessário que se desgastem na luta para que possam, mais tarde, fazer uma reflexão e alcançar o entendimento sobre o que é realmente dirigir um centro espírita.
- Tem razão. Vou rezar para que Deus ilumine as cabeças daqueles que estão em luta, para que consigam se desvencilhar da quimera do poder e se entregar ao que verdadeiramente tem valor.
- É o melhor que podemos fazer por ora.
Por alguns anos, o centro fundado por Eleonora pareceu perder a força. A doutrina, tão estimulada por ela, Silmara e Sérgio, fora posta de lado para dar lugar a rituais cada vez mais elaborados e complexos. Esqueciam os médiuns que os rituais servem para possibilitar a criação de uma harmonia de pensamentos e sentimentos, organizando-os de forma a facilitar as experiências espirituais e a captação de energias para aplicação adequada nos trabalhos e na vida. Distanciados dessa verdade, passaram a utilizar os rituais como forma de demonstração de poder e exibicionismo, transformando-os em formalidades vazias e sem nenhum equilíbrio, retirando-lhes o sentido de libertação da alma de tudo o que fosse material. Ao contrário, prendiam as pessoas cada vez mais na falsa ilusão do poder e da vaidade.
Os guias, não encontrando um ambiente espiritual propício, tinham dificuldades em manter contato com os médiuns, que não conseguiam transmitir as mensagens com fidelidade. Os que estavam em busca do autoconhecimento e da verdadeira caridade não se afinizavam com o lugar e logo saíam. Outros, ainda apegados à vaidade e ao orgulho, permaneciam, e, devido a sua constante invigilância, iam abrindo buracos na camada magnética que guarnecia as dependências do centro, responsável pelo constante bem-estar que, até então, sentia-se ao adentrar-se o local.
Mesmo as entidades encarregadas de guardar a casa se afastaram, atraídas para outros centros iniciantes, cujos propósitos eram mais sinceros dos que o de lá. A situação chegou a tal ponto que o centro quase fechou as portas. Os Consulentes deixaram de comparecer, e os médiuns pararam de contribuir com o sustento da casa.
A casa espiritual agonizava. Foi quando alguém teve a ideia de iniciarem uma cobrança módica pelas consultas, para cobrir o déficit deixado pelos próprios médiuns. A maioria concordou, até que alguém com firmeza de caráter suficiente para protestar se levantou e ergueu a voz num alto e sonoro não.
- Assim também já é demais! Já suportei ao máximo todos esses desmandos e guerra de vaidades. Agora chega! Se iniciarmos a cobrança pelas consultas, podem ir dizendo adeus de vez ao centro. Fecharemos as portas e teremos que nos acertar com a vida depois, porque essa não é, nem nunca foi, a nossa política.
- Mas há centros que cobram pelas consultas - observou alguém. - Será que estão todos errados?
- Se dona Silmara estivesse viva, diria que não há certo nem errado na vida - contrapôs Sônia, a médium inconformada. - Quem cobra consultas tem um motivo e não nos cabe julgar, principalmente porque desconhecemos as razões que movem os atos de cada um, que são sempre justas. Cada um trabalha a seu jeito. Mas esse não é o nosso. Não foi assim que começamos e não é assim que terminaremos. Estamos comprometidos com a gratuidade.
Todos ficaram em silêncio, refletindo nas palavras da médium, que estava sendo intuída pelo seu próprio guia, a quem fora recomendada uma última tentativa para salvar o centro. Iniciou-se uma discussão acalorada, e os médiuns se dividiram. A maioria já estava cansada dos resultados pouco produtivos dos trabalhos e começou a pressionar o presidente, que acabou renunciando. Sônia foi eleita para a presidência, e iniciou-se o trabalho de reforma do centro. Os médiuns que eram contra as novas diretrizes saíram, ficando apenas aqueles que davam razão a Sônia.
Do lado invisível, Eleonora, Sérgio e Silmara felicitavam os novos guias que acompanhariam os trabalhos do centro a partir de então. Sentiam-se gratificados porque o plano espiritual não havia perdido mais um posto de luta a favor do bem. Os três abraçaram-se chorando, até que Piraju falou:
- Muito bem, Eleonora. Terminou a sua missão aqui. Sua tarefa agora deve iniciar-se em outro lugar.
Eleonora olhou para ele e sorriu. Sabia bem do que ele estava falando e, juntos, os quatro partiram em direção ao seu novo destino na Terra.

EPÍLOGO

Eleonora e Silmara foram encontrar Martha num aconchegante campo estrelado, onde ela e Leonel, deitados ao ar livre, contemplavam os milhares de pontinhos cintilantes polvilhados no céu. Martha sentiu a sua aproximação e se sentou, sorrindo ao ver as duas chegando de mãos dadas.
- Olá, minhas amigas - cumprimentou ela. - Como estão?
- Bem - respondeu Eleonora. - E vocês?
- Bem, também.
- Martha e eu estávamos fazendo planos para o futuro - esclareceu Leonel. - Ela está animada.
- Mais ou menos. Vou voltar porque sei que será bom para o meu crescimento, o que não significa que esse seja o meu desejo. Preferiria ficar aqui com você. Ou, então, que você fosse comigo.
- Já conversamos sobre isso, e você sabe que não vai ser bom para você. Mas essa é uma outra história, não foi para falar dela que Eleonora veio aqui, foi?
- Não - concordou Eleonora. - Na verdade, estamos à espera de Piraju, que vai nos orientar sobre o que devemos fazer.
Não demorou muito, e Piraju apareceu. Sentaram-se todos no chão e, por uns momentos, ficaram deliciando-se com o silêncio e a paz que absorviam da visão das estrelas.
- Muito bem - começou Piraju. - Acho que estão todos prontos, não é mesmo?
- Sim... - concordou Martha, um pouco hesitante.
- Você não tem com o que se preocupar. Eleonora vai estar com você. Procure apenas não se revoltar contra a vida e se dedique à causa espiritual o mais cedo que puder. Vai evitar-lhe muitos sofrimentos.
- Vou tentar.
- Haverá outras entidades que a acompanharão na tarefa mediúnica, mas Eleonora é quem estará à sua frente. Será sua força e sua guia.
- Está bem.
- Silmara estará conosco também - acrescentou Eleonora. - Embora não tenha tanta necessidade de se fazer presente e incorporar.
- Eleonora, contudo, virá sempre em primeiro lugar - acrescentou Piraju. - Entregue-se a ela, e tudo correrá bem.
Martha suspirou profundamente, demonstrando estar um pouco assustada com tantas novidades.
- Sei que deve ser difícil para você - falou Eleonora -, mas vai se acostumar. Também para mim será novidade.
E para mim também - concordou Silmara.
- Eleonora integrará a falange de Jurema por afinidade, e Silmara se apresentará como criança, integrando a falange das crianças. Tudo conforme os preceitos da Umbanda, que já não está mais como antes, mas que continua crescendo em sua força.
Conversaram por mais algum tempo, até que se despediram de Martha e Leonel. Tudo já estava pronto para a nova descida de Martha na matéria, que seria acompanhada de perto por Leonel e Eleonora, até o momento em que ela iniciaria sua tarefa mediúnica com eles.
- Está satisfeita com os novos planos? - indagou Piraju a Eleonora, depois que Silmara os deixou.
- Sim, muito embora quisesse trabalhar no centro que fundei.
- Você sabe que os companheiros de Martha se encontrarão em outro lugar. Eles não conheciam você.
- Sei disso. E não quero que pense que estou contrariada. Nada disso. Vou para qualquer lugar que trabalhe no bem.
- Você e Martha se darão muito bem lá. Sempre houve entre vocês uma camaradagem sincera que facilitou sua união. Se não fosse você, quem mais poderia estimulá-la a aceitar a mediunidade? E mais: a trabalhar num centro de Umbanda, com todas aquelas culpas e medos que ela traz? Todos os que conviveram mais intimamente com ela precisam estar na matéria, menos você e Leonel. E a proposta dele, no momento, é outra.
- Compreendo isso muito bem e me sinto agradecida por poder, eu também, continuar ligada a essa força astral que é a Umbanda, que eu vi nascer. E trabalhar numa falange de caboclos, como a de Jurema, é um privilégio que não posso deixar de honrar.
- Somente aqueles que já alcançaram um alto nível de discernimento e amor estão aptos a ingressar na falange de Jurema. Você está à altura dessa tarefa, senão, não teria sido escolhida para ela.
- Sei disso e agradeço. Comprometo-me a fazer o meu melhor e continuar contribuindo para o engrandecimento da Umbanda.
Eleonora e Piraju deram-se as mãos e fitaram as estrelas. Naquele momento, pela primeira vez em muitos anos, ela retomou a forma astral da jovem Aracéli, hoje conhecida, na Umbanda, como cabocla Jurema da Mata.
1


O PREÇO DA PAZ
MARCELO CÉZAR (ESPÍRITO MARCO AURÉLIO)

Idealizamos com sonhos dourados um futuro cheio de felicidade. Alimentamos expectativas que geram ansiedade e desassossego, fazendo de nossas vidas um verdadeiro inferno. Quando nada sai como queremos, a frustração e a raiva nos levam ao desânimo e à depressão. Buscamos soluções nas fugas viciosas do desequilíbrio destruidor. É quando percebemos que o que queremos é a paz para voltarmos a ter gosto de viver. Mas teremos de pagar "O preço da paz".

Para Mônica de Casto e Leonel, pelo carinho, pela amizade, por tudo.

PRÓLOGO

Em meados da década de 1980, o Brasil passava por profundas, sucessivas e até mirabolantes mudanças no terreno da economia. A cada troca de governo, a população era brindada com um conjunto de planos econômicos que prometia equilibrar as contas públicas e acabar de vez com os efeitos nocivos da inflação. Todos esses planos fracassavam, não davam resultado, como se houvesse uma ziquizira, uma tremenda falta de sorte pairando sobre a economia brasileira. Para se ter uma idéia, a inflação medida no período de março de 1989 a março de 1990 chegou a 4.853%. Isso mesmo, quase cinco mil por cento! Uma loucura. Os trabalhadores recebiam seus salários e corriam ao mercado, a fim de pelo menos conseguir comprar o básico para suas famílias antes que os preços sofressem os aumentos galopantes da inflação em franco descontrole. As empresas deixaram de produzir e passaram a aplicar seu dinheiro, porquanto os juros das aplicações diminuíam a corrosão efetiva da moeda. Assim que tomou posse, o então presidente Fernando Collor de Mello anunciou um pacote econômico, mais um daqueles terríveis planos, oficialmente chamado Plano Brasil Novo - popularmente conhecido como Plano Collor. Esse plano tinha como objetivo colocar fim à inflação, ajustar a economia e elevar o país do Terceiro para o Primeiro Mundo. A moeda vigente, o cruzado novo, foi substituída pelo cruzeiro, totalizando a sétima troca de moeda ocorrida em menos de cinqüenta anos. O governo bloqueou por dezoito meses os saldos das contas-correntes, cadernetas de poupança e demais investimentos superiores a cinqüenta mil cruzeiros. A título de curiosidade, a fim de que o leitor entenda esses valores, sem ser expert em números ou fissurado por economia, finanças ou contas matemáticas, cabe ressaltar que esses mesmos cinqüenta mil cruzeiros eram equivalentes a cinqüenta cruzeiros reais em menos de três anos e, logo em seguida, com o advento do Plano Real, um real em valores de hoje valia 2.750 cruzeiros reais. Confuso? Bastante, mas o brasileiro, como sempre acostumado a adequar-se rapidamente a grandes mudanças, tirou mais essa de letra. Muito cálculo? Talvez, entretanto não estamos aqui para dar aulas de matemática, mas simplesmente para informar o leitor de que o valor livre deixado pelo governo Collor no banco era muito pouco. Os preços foram tabelados e depois liberados gradualmente. Os salários foram pré-fixados e posteriormente negociados entre patrões e empregados. As empresas foram surpreendidas com o plano econômico e, sem liqüidez, demitiram funcionários. Resultado de toda essa explanação: Otávio, que em dois anos iria se aposentar, não foi demitido. Em todo caso, poderia acontecer-lhe coisa pior? Sim. A empresa em que ele trabalhava famosa pela fabricação de componentes eletrônicos, foi à falência, da noite para o dia. Otávio não recebeu um tostão, e, o pouco que tinha guardado no banco, o governo acabara de reter por conta desse plano econômico. Aos 48 anos de idade, sem curso superior, seria impossível arrumar emprego que lhe pagasse tão bem e lhe permitisse sustentar, sem preocupações, uma família composta de uma esposa e duas filhas. Mariana, de vinte anos recém-completados, teria de deixar a faculdade. Letícia, de apenas dezoito anos de idade, teria de esperar para ingressar numa faculdade até sabe lá Deus quando e teria de ir à caça de serviço. E o que seria de Nair, a esposa de Otávio? Ela mal concluíra os estudos, muito embora fosse excelente dona de casa. Mas donas de casa não têm função, pelo menos que possa ser remunerada. O que a pobre Nair poderia fazer para ajudar no orçamento doméstico? A cabeça de Otávio latejava; ele sentia pontadas violentas na fronte. Eram muitas as inquietações, e, parado em frente ao portão lacrado da firma, não sabia nem mesmo qual rumo tomar. Inácio aproximou-se e abraçou por trás o colega de trabalho. Otávio estava desesperado, não tinha coragem de voltar para casa.
- Não sei o que fazer Inácio. A falência da empresa e o plano do governo arruinaram minha vida. Tudo isso vai cair como uma bomba sobre a minha família. Eu sou o chefe do lar, eu banco tudo na minha casa. Minhas filhas e minha esposa não estão preparadas para uma mudança tão radical em nossas vidas.
- Acalme-se, homem - tornou Inácio, tentando dar tom despreocupado à voz. - Em breve tudo isso passa, o dinheiro retido no banco voltará gradualmente para o nosso bolso e arrumaremos novo emprego.
Otávio esbravejou:
- Mentira! A mais pura mentira! Eu tenho quarenta e oito anos, não tenho especialização. Você é jovem, tem vinte e seis, uma vida inteira pela frente.
- Você também.
- Não! Estou velho.
- Qual nada!
- Emprego não vai lhe faltar. Já eu estou quase para sair do mercado de trabalho. Ia me aposentar em dois anos. E agora?
- Calmo Otávio. Sei que, por enquanto, nada que eu lhe disser vai acalmá-lo. Entretanto, de que vai adiantar o desespero? Não vai ajudá-lo em nada.
- E minha família? - Otávio não conseguiu conter as lágrimas.
- Nair é mulher maravilhosa, e suas filhas também. Tenho certeza de que vão ajudá-lo, e vocês, juntos, vão superar esta crise.
Inácio era um bom moço e belo tipo. Na flor de sua juventude, não deixava de ser notado. Por onde passava, sempre arrancava suspiros femininos. Alto, forte, ombros largos, possuía pele bem clara, quase rosada. Os lábios eram finos, embora bem desenhados. Os dentes eram perfeitos e seus olhos azuis contrastavam harmoniosamente com os cabelos fartos, ondulados e alaranjados. Combinação formidável, resultado do cruzamento de um pai goiano, criador de gado e também bem bonitão, e uma mãe linda, alta, loira e filha de suecos. O jovem crescera na fazenda, no interior de Goiás, e com sete anos de idade instalou-se com a família no Rio de Janeiro. Os anos passaram e, assim que concluiu os estudos na universidade, recebeu proposta para trabalhar numa empresa em São Paulo. O casamento de seus pais, Íngrid e Aluísio, chegaram ao fim, de uma hora para outra, sem traumas, aparentemente. Após amigável divórcio, sua mãe decidiu mudar-se do Rio e vir para São Paulo morar com o filho. Íngrid e Inácio instalaram-se numa bela casa no Jardim Europa. Nessa época, Inácio fora recrutado pela fábrica de componentes eletrônicos tão logo se graduou em engenharia eletrônica. Fazia dois anos que era chefe e amigo de Otávio. Inácio gostava muito dele. A amizade estreitou-se, e logo o rapaz foi convidado a participar da vida íntima de Otávio e conhecer sua família. Inácio tornou-se bastante inseguro após o divórcio dos pais. A separação caíra como uma bomba sobre sua cabeça, porquanto ele acreditava que Íngrid e Aluísio viveriam felizes para sempre. Diante da efetiva separação, o jovem não quis mais saber de namorar, de assumir compromisso sério. Paquerava as garotas, saía com elas, flertava e mais nada. Quando o coração começava a pulsar, Inácio pulava fora. Fugia do compromisso afetivo assim como o diabo foge da cruz. No entanto, ao conhecer Mariana, Inácio sentiu ser impossível ocultar seus sentimentos. Isso ficou patente num domingo ensolarado, quando Inácio foi almoçar na casa de Otávio e encantou-se imediatamente com Mariana, a filha mais velha. Romântico inveterado, o coração de Inácio amoleceu no instante em que Mariana lhe mostrou sua coleção de discos. Além da atração mútua, sentiram algo mais em comum: o gosto por músicas brasileiras, especialmente as cantadas por Maria Bethânia. Mariana displicentemente colocou o disco no aparelho e cantaram Cheiro de Amor. Os olhares foram correspondidos e Inácio, pela primeira vez em anos, pensou na possibilidade de namoro sério. Depois da tarde agradável, da troca de olhares e das músicas de Bethânia, ele tencionava seriamente conversar com Otávio sobre a possibilidade de namorar sua filha. Entretanto, não queria confundir as coisas e estava esperando o momento certo para abordar o amigo e dizer-lhe o que ia em seu coração. Na verdade, o que Inácio tinha de bonito, tinha de inseguro. O jovem tinha medo de que as moças só se acercassem dele por conta de sua beleza e dinheiro, mais nada. Otávio agarrou-se ao portão da fábrica. Tentou inutilmente arrancar o lacre e vociferou:
- Quero meu dinheiro!
A cena era muito triste. Outros colegas da fábrica também choravam e balançavam a cabeça para os lados, incrédulos, não querendo aceitar a dura realidade que a vida lhes havia imposto. Otávio parecia estar fora de mim. Gritava cada vez mais alto:
- Exijo meus direitos! Foram vinte anos aí dentro... Não posso voltar para casa sem nada...
Inácio procurou acalmá-lo:
- Tudo vai se resolver. Recebi excelente proposta para trabalhar na Centax. Está quase tudo acertado. Vou coordenar os novos projetos no escritório central e, se eu pegar esse cargo de chefia, poderei contratá-lo.
- Mas isso demanda tempo. Enquanto isso, eu e minha família vamos viver de quê?
- Eu posso ajudá-los. Sabe que minha família tem muitos bens, bastante dinheiro. Posso arranjar-lhe alguns trocados até que arrume novo emprego.
Os olhos de Otávio injetaram-se de fúria.
- Isso nunca! Nunca precisei do dinheiro dos outros.
- Um empréstimo, então. Depois você me paga, como puder, do jeito que der.
- Não!
- Não seja orgulhoso numa hora destas.
- Eu sempre me virei. Não vai ser agora que vou depender de alguém.
- Pense na sua família. Orgulho besta não põe comida na mesa, oras.
Inácio falava, mas Otávio não registrava uma só palavra. Sua cabeça continuava latejando, seus olhos estavam querendo saltar das órbitas. De repente, seu braço esquerdo começou a formigar. Logo veio a falta de ar, o mal-estar e, num estalar de dedos, uma terrível dor apossou-se de seu peito, como se o coração tivesse sofrido uma explosão, um ataque devastador. E sofreu mesmo. O nervoso fora tanto, que Otávio teve um infarto fulminante. Inácio tentou acudir o amigo, que caiu abruptamente sobre si mesmo, mas em vão. Não adiantou a gritaria, os poucos colegas de trabalho ao redor, os transeuntes que paravam na tentativa inútil de acudi-lo, a chamada por socorro, a chegada do resgate, nada. Otávio morreu ali mesmo, nos braços de Inácio, bem defronte ao portão da empresa onde trabalhara por tantos anos. Uma cena triste e deprimente.
CAPÍTULO 1

Nair caminhava a passos lentos, quase estáticos. Sentia ser arrastada, mal se sustinha em pé. Passara a noite inteira acordada e logo cedo tomara dois calmantes para agüentar o tranco, afinal o dia lhe parecia infindável. O calor infernal naquela manhã dava-lhe a nítida impressão de que ela iria derreter.
- Podia me derreter mesmo - suspirou aflita. - Assim eu sumiria de vez. Minha vida se tornou um pesadelo, isso sim.
Mariana e Letícia estavam cada uma ao lado da mãe, seguindo o cortejo fúnebre. O caixão com o corpo de Otávio seguia mais à frente e as meninas davam suporte e alento à mãe. Eram muito unidas as três, entretanto Mariana era mais ligada à mãe, sua maneira de ser e pensar era semelhante à de Nair. Passando delicadamente a mão no rosto da mãe, a fim de secar o suor que escorria pela sua fronte, Mariana tornou:
- Não é o fim do mundo, mamãe. Formamos um belo trio, somos mulheres fortes.
- Isso mesmo - ajuntou Letícia. - Unidas venceremos essas adversidades.
- Será? - suspirou Nair, hesitante.
- Confie na vida, mamãe. Tudo vai dar certo.
Nair suspirou profundamente. Não tencionava, naquele momento, confiar na vida, ou raciocinar, ou mesmo concatenar pensamento que fosse. Para ela, o futuro parecia algo nebuloso, totalmente incerto, bastante escuro mesmo. Na verdade, Nair não estava pensando na falta que o amor de Otávio iria lhe fazer dali em diante. Longe disso. Davam-se bem, respeitavam-se, eram amigos... E mais nada. Nunca houve amor entre os dois a ponto de fazê-la, agora, chorar de saudade. O que a fazia sentir-se vazia naquele momento era perceber como havia levado uma vida oca e sem emoção nos últimos vinte anos. Como isso fora possível? Aos dezoito anos, Nair apaixonou-se por Virgílio, homem feito, e uns doze anos mais velho que ela. Diziam ser amor passageiro, de interesses - por parte dela – e de brincadeira - por parte dele. Mas não era. Eles se amavam de verdade. Infelizmente, por conta dos desvarios do destino, Virgílio casou-se com Ivana, uma conhecida da família. Nair ficou chocada, triste e sem opção. Desiludida e cansada de lutar contra aqueles que julgava serem mais fortes, Nair envolveu-se com Otávio. Era melhor esquecer logo seu amor por Virgílio; metida num casamento, não teria tempo para lembranças, pensou. Ela e Otávio casaram-se, constituíram família e viviam seu mundo, com suas filhas, suas rotinas, com tudo acontecendo do mesmo jeito, da mesma maneira, mês após mês, ano após ano. Pobre Nair... Aos dezenove anos já era mãe. Ela abandonou a idéia de continuar a estudar, embora tivesse completado o curso de modista. Ela era muito boa de corte e costura. Quando quis aperfeiçoar-se no estudo de costura e aviamentos a fim de colaborar no orçamento doméstico, nova gravidez. No meio de tanta fralda para lavar e passar o casal não podia dar-se o luxo de comprar fraldas descartáveis, Nair foi levando sua vidinha de dona de casa, cozinhando, lavando e passando, fazendo feira e mercado, cuidando do marido e das filhas. E agora Otávio morria, sem mais nem menos. De que teria adiantado casar-se sem amor? Teria valido a pena? A vida fora generosa, dera-lhe duas filhas lindas, saudáveis e amorosas. Entretanto, ela, sem mesmo chegar aos quarenta anos de idade, sentia-se acabada, a pele sem viço, os primeiros fios de cabelo branco despontando na fronte. Ganhara bastante peso nos últimos anos, perdera a vontade de se cuidar. Tratava-se de uma mulher viúva, sem profissão definida, sem pensão, sem economias guardadas no banco, sem amor, sem nada. O medo do futuro tinha razão de existir. A morte súbita de Otávio era castigo, e dos grandes. Agora Nair tinha certeza de que estava pagando, e muito caro, por ter trocado o amor de sua vida por um punhado de dinheiro.
- A justiça divina tarda, mas não falha - disse para si, aflita, mordendo os lábios, impregnada de culpa.
Inácio andava logo atrás delas. Estava acompanhado de sua mãe, Íngrid. Ela era mulher distinta, muito bonita, alta, loura e de andar muito elegante. Andava de salto alto com a maior desenvoltura do mundo, causando inveja em muitas amigas. Íngrid sabia do sentimento do filho por Mariana e apoiava-o na decisão de namorá-la. Sentia carinho pela garota e acreditava que o filho seria muito feliz ao lado da jovem. Por isso fez questão de acompanhar o cortejo, dar os pêsames à família e oferecer todo e qualquer tipo de ajuda a Nair e suas filhas. Depois de quase uma hora, muito sol e muito suor, o caixão de Otávio foi depositado no jazigo da família, num cemitério popular, localizado na periferia da cidade. Os presentes, na maioria amigos do trabalho e poucos vizinhos, vagarosamente começaram a se retirar. Despediam-se da família do morto e retiravam-se do local, tristes, acreditando que a vida havia sido muito injusta com aquelas pobres mulheres e que dali para frente as três teriam de ralar muito para manter a vida que Otávio lhes proporcionara. Inácio e Íngrid, após cumprimentarem rapidamente Nair e Letícia, aproximaram-se de Mariana.
- Sinto muito, minha filha - declarou Íngrid.
- Estou muito triste. Mas o que fazer? Temos de tocar a vida. De nada vai adiantar reclamar, brigar com Deus.
- Isso é verdade: brigar com Deus não vai trazer seu pai de volta.
- Concordo com a senhora.
- Torço sinceramente para que a vida de vocês volte ao normal o mais rápido possível.
- Por mim, tudo bem. Estou na faculdade, iniciei meu estágio. Letícia também é jovem e pode lidar melhor com a perda. Contudo, mamãe não merecia ficar assim. Ela perdeu o marido, o companheiro e, o pior de tudo, perdeu o sustento. O pouco que tínhamos ficou retido no banco, por conta desse plano econômico. Eu e Letícia podemos nos virar, mas o que será de minha mãe?
- Ora, minha filha, sua mãe é jovem, está vendendo saúde. Sinto que ela é forte o suficiente para driblar as adversidades e crescer por si. Nair me inspira força. Talvez se sinta melancólica no início. Vocês deverão ter paciência com ela. Depois, com o tempo, tudo volta ao normal e, quando menos se esperar, sua mãe estará envolvida em outras atividades. Acredite.
Mariana concordou com a cabeça, mas nada disse. O calor era demasiado, e ela não via à hora de sair do cemitério, chegar a casa, tomar um bom banho e descansar. Seus pés inchados doíam vertiginosamente. Inácio aproximou-se e abraçou-a. Mariana sentiu-se confortável. Desde o almoço naquele distante domingo, sentira estar gostando de Inácio. Esperava uma oportunidade para que pudessem trocar confidências, mas agora o momento era inoportuno para uma declaração de amor.
- Você pode contar comigo para o que der e vier - disse ele, sinceramente emocionado. - Fui amigo de seu pai e gosto de sua família. E gosto muito de você - falou, sem tirar seus olhos dos de Mariana.
Ela sentiu um brando calor invadir-lhe o peito. Suspirou e abraçou-o novamente. E ficaram assim por alguns instantes. Íngrid interveio:
- Nosso motorista nos espera. Vamos levá-las até sua casa.
- Não precisa se incomodar. Dona Íngrid - tornou Mariana. - Pegamos o ônibus. Tem um ponto próximo ao portão de entrada do cemitério.
- Não - protestou Íngrid.
- Mas...
- Levaremos as três para casa. É o mínimo que posso fazer. Não arredarei o pé daqui sem que venham comigo.
Mariana não teve alternativa. Aceitou de pronto. Não estava para ataques de orgulho, nem tinha mais forças para discutir, ou mesmo pensar. O pai havia morrido na tarde anterior, ela estava acordada desde então. Ela, a mãe e a irmã estavam visivelmente cansadas. Letícia foi se despedir de algumas colegas do colégio. Nair ficou parada, sozinha, próxima ao jazigo. Olhava para a mistura de cal e cimento que encobria o humilde túmulo e, em sua mente, desfilavam cenas da vida em comum com Otávio. Tanto sacrifício, tanto esforço... E agora? Teria valido a pena? Essa pergunta martelava sua mente. Uma lágrima escorreu pelo canto do olho. Nair passou delicadamente a mão sobre o olho e, num movimento natural, ergueu o rosto. Foi tudo muito rápido. Petrificada, seus olhos voltaram-se para o lado e ela o viu.
- Não pode ser... - murmurou. Será que era? Estaria alucinando? O calor a estaria fazendo ver coisas?
Mas era ele. Um pouco mais velho, mas era ele. Nair beliscou-se e ele continuava em pé, olhar sério, atrás daquela lápide, encarando-a com pesar. Quis chamá-lo, mas não teve forças, a voz sumira. Suas pernas falsearam e ela caiu sobre si ali mesmo. Inácio e Ismael, o motorista, correram e a acudiram. Pegaram Nair delicadamente pelos braços e a conduziram até o carro. As meninas correram atrás preocupadas. Ingrid considerou:
- Está muito quente. Vamos até o pronto-socorro. Nair deve estar desidratada.
Ismael ajeitou o corpo fatigado de Nair no banco de trás. Íngrid sentou-se no banco da frente. Mariana e Letícia foram com Inácio no carro dele. Nenhum deles viu o causador do desmaio. Não se tratava de espírito ou alma penada, embora o cemitério estivesse repleto dessas entidades que podiam ser sentidas ou vistas por quem tivesse sensibilidade suficiente para percebê-las. Mas não era o caso. Tratava-se de um legítimo ser encarnado. Num canto do cemitério, atrás de uma lápide, estava Virgílio. Depois que Nair fora acudida, escondido atrás de uma árvore, ele levou as mãos ao rosto e não conteve o pranto. Virgílio estava muito triste. Os anos passaram Nair não era mais a menina linda e magrinha com quem ele se entusiasmara e se apaixonara um dia. Entretanto, ele continuava amando-a como se nunca tivessem se separado, como se o tempo jamais tivesse passado. Nair, dentro do veículo, acordou e, retomada do susto, sentenciou:
- Leve-me para casa, por favor.
- Você não tem condições, Nair. Deve estar desidratada. Não custa nada passarmos no pronto-socorro.
- Não quero.
- Tem certeza?
- Sim. Sinto-me melhor. Preciso ir para casa, tomar um banho e descansar.
- Posso lhe fazer uma proposta?
- Qual?
Íngrid voltou-lhe o rosto e, entre sorrisos, indagou:
- Vamos até minha casa.
- Não.
- Por quê?
- Por favor, não queremos incomodar, de maneira alguma.
- Não será incômodo. Vocês estão cansadas. Se forem para sua casa, não terão disposição para cozinhar.
Íngrid ergueu os olhos na direção do vidro retrovisor, encarando o motorista.
- Ismael?
- Sim, senhora?
- Encoste o carro e faça sinal para Inácio emparelhar. Mudança de planos. Vamos para casa.
- Sim, senhora.
Ismael diminuiu a marcha, baixou o vidro e, com o braço para fora, fez sinal para que Inácio se aproximasse com seu carro. Alguns minutos depois, estavam todos na casa de Íngrid. Ela conduziu Nair e as meninas até uma saleta bem aconchegante. Cerrou as persianas, tornando o ambiente acolhedor e sem o incômodo do sol. As três sentaram-se e imediatamente tiraram os sapatos.
- Isso mesmo - disse Íngrid, sorridente. - Fiquem à vontade. Vou até a cozinha pedir para que nos prepare uma refeição leve.
- Não tomaremos seu tempo. Dona Íngrid - tornou Mariana.
- Hoje estou ao dispor de vocês. Fiquem à vontade. Mais tarde, quando desejarem, Ismael as levará para casa.
- Muito obrigada - respondeu Letícia.
- Não estou fazendo nada por obrigação. Estou adorando ser-lhes útil de alguma maneira. Agora tratem de descansar, fiquem à vontade. Volto num instante.
Inácio aproximou-se e sentou-se ao lado de Mariana.
- Sente-se melhor?
- Hum, hum. Sua mãe é muito legal. É simpática, e seu sorriso expressa sua bondade.
- Mamãe é espontânea, verdadeira. Jamais faria jogo de cenas com vocês. Sinto que ela está solidária, triste e de alguma maneira quer lhes ajudar neste momento tão difícil.
- Assim que as coisas melhorarem, vamos lhes preparar um almoço - sugeriu Letícia.
- Isso, sim, era só o que me faltava - objetou Nair.
- O que é isso, mamãe?
- Mal sabemos o que será de nossas vidas daqui para frente e vocês me vêm com essa de almoço? Francamente!
- Mamãe, estamos tristes e perdidas. Também não sabemos o que será de nossas vidas daqui por diante. Mas francamente digo eu! De que adianta essa amargura? Precisamos nos manter unidas.
- E ser fortes - acrescentou Letícia.
Nair nada disse. Baixou a cabeça, esticou as pernas sobre uma banqueta e cerrou os olhos. Estava se sentindo amarga, azeda, e não queria discussão. Estavam todas exaustas, e o melhor era procurar não pensar em nada. Mas ela não conseguia evitar o fluxo de seus pensamentos. A imagem de Virgílio veio-lhe forte, e Nair não conseguia desvencilhar-se da cena. Seu corpo estremeceu levemente.
- Meu Deus, quantos anos! - suspirou.
Anos atrás ela participara de um joguete por conta de dinheiro, uma quantia suficiente para comprar bom sobrado em simpático bairro na zona leste da cidade. No momento, de que adiantava lembrar-se desse período negro de sua vida? O passado havia acabado e estava morto, enterrado para sempre. Mesmo abatida, cansada e esgotada, algo dentro dela tinha forças para lembrar-se com ternura de seu grande, único e inesquecível amor: Virgílio Gama.

CAPÍTULO 2

Ivana andava de um lado para outro da sala, esbaforida, praguejando, rangendo os dentes de ódio, puro ódio. Acabara de chegar de uma loja chique na Rua Oscar Freire e sentia-se indignada, a última das criaturas.
- Bloquearam meu cartão de crédito! - bramiu. - Isso é um absurdo, um acinte à minha pessoa.
Ivana só queria saber de gastar, e mais nada. Para ela, Virgílio teria de tomar satisfações com a gerente, deveria até processar a loja por danos morais. Entretanto, ela não conseguia falar com o marido. Daí sua irritação descomunal. Ela ligara para o escritório, e Virgílio havia saído para uma reunião. Reunião? Essa era boa! Ela sabia que o marido não queria atendê-la. Além de neurótica, Ivana era mulher extremamente desconfiada. Desconfiava de Deus e do mundo, inclusive de sua melhor amiga, Otília Amorim. Ivana só confiava em si mesma. Dessa vez estava espumando de ódio, e por dois motivos. Primeiro, pelo vexame na loja de roupas. Na hora de pagar, o cartão fora recusado. Um constrangimento sem tamanho. E segundo porque Virgílio era quem resolvia esses problemas e, para variar, ele não estava, ou mandava a secretária dizer que não estava em sua sala. Ivana odiava ser preterida pelas amigas de seu círculo social. Soubera no dia anterior que conhecida socialite não a convidara para um almoço beneficente em prol de crianças carentes de renomada instituição. Ivana pouco se importava com a finalidade dos eventos, desde que pudesse ser fotografada e aparecer em todas as colunas ou revistas da moda. Mas justamente esta socialite podia ver o capeta na frente, menos Ivana. Fuxicos de alta sociedade, digamos assim. Nem mesmo sua poderosa amiga Otília pôde interceder a seu favor. Impedida de ir ao almoço resolveu fazer compras. Isso sempre aliviava sua tensão. Assim que chegou da loja e não conseguiu falar com o marido, Ivana fora acometida de forte enxaqueca - o que ocorria sempre que era contrariada - e passou à tarde em casa, afundada na cama, numa mistura interessante de barbitúricos, bombons e vodca. No finalzinho da tarde, irritada - como de costume -, ela ligou a televisão e ficou apertando o controle remoto do televisor à deriva. Numa dessas trocas de canais, deixou-se entreter por aqueles programas vespertinos, estilo mundo-cão, sensacionalistas de cabo a rabo. Ivana gostava de ver o sofrimento exacerbado das pessoas. Isso a confortava. Ela começou a rir com a história de uma mulher que havia perdido tudo numa enchente, quando outro repórter, num tom exageradamente dramático, começou a relatar a morte do ex-funcionário de renomada empresa, fabricante de componentes eletrônicos, que acabara de falir. Enquanto ele entrevistava algumas pessoas, o programa mostrava uma foto da identidade de Otávio, amarelada, tirada há mais de vinte anos, e em seguida uma imagem rápida de Nair tentando ser entrevistada na porta de casa sobre a tragédia que se abatera sobre sua família. A cena foi bem curtinha, rápida, mas o suficiente para que Ivana imediatamente se lembrasse de Nair.
- Não pode ser... Seus olhos arregalaram-se e seu corpo estremeceu. - Ela ainda mora neste planeta? - indagou para si, em tom de horror mesclado com ironia.
Ivana esboçou sorriso sinistro. Lembrou-se de anos atrás, quando obrigou o pai de Virgílio a fazer proposta irrecusável a Nair, desde que ela se afastasse do namorado e deixasse o caminho livre para Ivana. A tonta aceitou rapidinho e sumiu da vida de Virgílio, permitindo a união dele com Ivana. Contudo, ela tinha certeza de que Nair pegara o dinheiro e sumira, fora para outra cidade, talvez até outro Estado. E agora a televisão diante de seus olhos mostrava-lhe que Nair nunca saíra da capital. No entanto, ela deu de ombros:
- Se Virgílio quiser, pode ficar com ela, mas só depois que nosso trato terminar.
Ivana desligou o aparelho e correu ao telefone. O desbloqueio do cartão de crédito era algo de suma importância para sua existência. Sem o cartão de crédito, Ivana não era nada, sentia-se impotente, órfã. Assim que a secretária lhe disse que Virgílio estava em reunião, Ivana sentiu o sangue ferver. Despejou toda a sua ira sobre a garota, bateu o telefone com força e ruminou:
- Ele adora me tirar do sério!
Ficou aguardando o marido chegar do trabalho, mas nada. Eram quase oito da noite quando a secretária ligou:
- Seu Virgílio precisa tratar de assunto urgente e pegou um vôo para o Rio de Janeiro e...
Ivana nem terminou de ouvir. Desligou e em seguida atirou o aparelho contra a parede, espatifando-o sem dó.
- Meu Deus! Vou ficar sem cartão e sem dinheiro - exagerou.
Ela tinha o dom de dramatizar as situações. Era só pedir para a secretária de Virgílio ou mesmo pedir dinheiro ao filho. Mas Ivana era turrona e, quando ficava irritada, perdia o controle de si mesma. Virgílio tivera mesmo de resolver assunto urgente no Rio de Janeiro e mandara avisar a esposa por mera questão de formalidade. Estava acostumado a fazer isso, via secretária, pois ele e Ivana mal se falavam. Entretanto, ela não conseguira pregar o olho, e já passava das seis da tarde do outro dia e nada de Virgílio dar o ar da graça. Nem ao escritório ele tinha ido. Bruno adentrou a sala e aproximou-se dela.
- Oi, mãe, tudo bem?
- Tudo bem uma ova!
- O que foi?
- Seu pai, para variar.
- Papai viajou de novo?
- Sim.
- Já sei... - Bruno coçou o queixo e finalizou: - O seu cartão foi bloqueado de novo, certo?
- Não brinque comigo quando estou nervosa, Bruno. Meu humor hoje não está para isso.
- E quando seu humor está bom?
Ela não respondeu. Quis revidar, mas estava sem vontade. Embora não fosse dada a demonstrações de afeto, como abraçar ou beijar, gostava do filho, mas não discutia com ele ou mesmo com Nicole, a caçula. Jamais discutira com os filhos. E jamais participara de suas vidas. Ivana sempre tivera horror a crianças, e não foi diferente quando teve as suas. Criara Bruno e Nicole por intermédio de babás, empregadas e educadoras. Ivana nunca teve jeito para assumir o papel de mãe. Achava que tinha feito sua parte carregando-os no ventre e colocando-os no mundo. Cumprira seu papel e até pagara alto preço por ele, literalmente. Sim, porque, depois da segunda e última gestação, ela gastou os tubos para deixar o corpo em ordem, sem um resquício dos tempos de gravidez. Até o minúsculo corte da cesariana desaparecera sob os cuidados de renomados e experientes cirurgiões plásticos.
- Ele sempre vai e volta mãe. Tem sempre assuntos urgentes a tratar.
- Ele poderia me ligar, dizer que estava de viagem, deixar-me algum dinheiro.
- Se quiser, eu lhe dou algum. Ou mesmo ligo para a administradora do cartão e tento desbloqueá-lo.
- Isso é dever de seu pai. Ele tem de me dar satisfações. Afinal, não gasto tanto assim.
Bruno não conseguiu evitar o riso. Ivana não tinha noção do que estava dizendo. Ele procurou mudar o assunto.
- Por que não pediu para ele ligar? Não disse à secretária que era urgente?
- Disse, mas seu pai não gosta de falar comigo quando está no trabalho. Não sei por quê.
- Eu sei.
- O que é?
- Você sempre o trata aos berros.
- Eu, aos berros? - indagou surpresa.
- Você poderia tratá-lo com um pouco mais de respeito.
- Não agüento mais este casamento.
- E por que ainda permanecem juntos?
- O que disse? - a indagou, na tentativa de ganhar tempo e arrumar uma desculpa bem esfarrapada.
- Peça o divórcio.
- Não diga uma coisa dessas - esbravejou Ivana.
- É loucura a maneira como ambos vivem. Isso não pode fazer bem. Eu e Nicole somos adultos, vocês podem se separar.
- Tenho medo de ser achincalhada pela sociedade.
- Nos dias de hoje? Todo mundo casa e separa. Esse preconceito faz parte do passado.
- Isso é problema meu.
- Sim, mas...
Ivana atalhou o filho:
- Trate de sua vida.
- Só estou tentando compreender.
- Disso trato eu - finalizou ela, ao mesmo tempo em que consultava o relógio. - O que está fazendo em casa tão cedo? Não tem aula de esgrima? - indagou, contrariada.
- Parei com a esgrima há seis meses.
- Nem tinha percebido.
- Creio que fosse demais para você perceber alguma coisa.
- Por quê?
- Você mal nos dá atenção.
Ivana fez muxoxo.
- Não me venha com choramingas. Você é adulto e sabe cuidar de sua vida. Não tem mais idade para ficar preso à barra da saia da mãe.
- Não é isso. É que você podia pelo menos ser um pouco mais amorosa só isso.
Bruno abaixou-se e pegou nas mãos dela. Ivana sorriu para o filho. Entretanto, não podia contrariar sua natureza. Ela tinha dificuldade de lidar com demonstrações de carinho e afeto, não só com os filhos, mas com todos ao seu redor. Fazia parte de seu temperamento. Ela alisou a mão do filho de maneira pouco carinhosa.
- Não tenho culpa de ser o que sou.
- Poderia tentar mudar. O que acha?
Ivana se desvencilhou das mãos do filho e levantou-se.
- Não me amole.
Ela não gostava desse tipo de assunto. Mudou a postura de voz e retrucou:
- E a ajuda aos necessitados? Não tem com quem brincar? - perguntou, em tom de desdém.
- Está com dor de cabeça de novo?
- Sim.
Ivana vinha tendo fortes dores de cabeça nos últimos tempos, enxaquecas que a deixavam mais irritada que de costume. Virgílio pedira-lhe para consultar um especialista, visto que aquilo não era normal. Ivana retrucava e dizia que não era velha, tampouco doente, para ir atrás de um médico. Afirmava que as dores de cabeça persistiam porque ela era naturalmente nervosa. Para que a dor de cabeça não a incomodasse tanto, Ivana adorava ficar em casa sozinha, sem ninguém por perto, sem um pio. Os empregados estavam acostumados e procuravam fazer o mínimo barulho possível. Em casa, a presença dos filhos, principalmente Nicole, irritava-a sobremaneira. Sua filha, nos últimos tempos, vivia trancada no quarto, ouvindo música pesada - rock, estilo heavy metal -, e isso atrapalhava seu descanso. Bruno aproximou-se por trás e delicadamente massageou suas têmporas. Ivana fechou os olhos e sentiu alívio imediato. Enquanto massageava a mãe, ele comentou:
- Estou preocupado com Nicole.
- Por quê?
- Ela não dormiu em casa esta noite.
Ivana deu de ombros:
- Nicole é adulta, dona de seu nariz.
- Mãe, sabe que sempre me preocupei com ela. E se lhe aconteceu alguma coisa?
- Notícia ruim chega rápido. Tenho certeza de que Nicole está bem. Provavelmente foi assistir a algum show de rock pauleira e dormiu na casa de alguma amiga.
- Acha isso normal?
- Sua irmã não dorme em casa desde os quinze anos de idade. Ela é crescidinha, adulta, tem vinte e um anos. Nessa altura de minha vida não vou preocupar-me com filho.
- Estou cismado. Nicole tem andado com pessoas que não me agradam.
- Se está incomodado, que tome as providências.
- Ela não me escuta.
- Nicole não escuta ninguém. Só dá ouvidos àquele namoradinho dela, o Artur.
- Sabe, mãe, eu não gosto desse tal de Artur.
- Por quê?
- Ele tem uma turma barra-pesada.
Ivana abriu os olhos e afastou-se. Acendeu um cigarro. Tragou e deu uma baforada.
- Até que enfim sua irmã arrumou alguém que goste dela. Ela tem de levantar as mãos para o céu.
O tom de Bruno era de pura preocupação:
- Artur é mau-caráter, rapaz sem moral. Ele está com Nicole porque ela paga as noitadas, as bebidas. Por favor, mãe, garanto que, se você conversar com ela...
Ivana cortou o filho:
- Nem por decreto! Não tenho essa... Essa... Habilidade é essa a palavra. Não sei lidar com educação de filho. Nicole que não venha reclamar que não tem com quem desabafar. Pago muito bem pelo seu desabafo, três vezes por semana.
- Sim, mas...
- Mas nada. Eu pago preço salgado para sua irmã fazer terapia, e você vem-me dizer que está preocupado com ela?
- Receio que ela esteja metida com droga pesada.
- Só porque aquele motorista desconfiou que aquele pacotinho de maconha fosse dela? Faz tanto tempo...
- Mãe, é sério.
- A maconha é inofensiva. Era vendida em farmácias sob o nome de cigarros índios. Seu avô a vendia para curar sintomas da asma e para insônia.
- Disse bem: era. Sua venda é proibida no País desde fins da década de 30.
Ela não respondeu.
- Mãe, não acho que a maconha seja inofensiva. Os olhos de Nicole estão sempre avermelhados, sua boca sempre seca. Outro dia eu a peguei com taquicardia.
Ivana preferia não encarar a realidade. Era melhor fazer de conta que nada estava acontecendo. Desconversou:
- Ora, Bruno, por que você também não vai fazer análise?
O rapaz baixou os olhos, pensativo. A mãe não dava a mínima para ele ou para a irmã. À bem da verdade, Ivana não dava a mínima para ninguém. Tudo girava em torno dela, de seu mundo, de seus desejos e caprichos. Ela não enxergava um palmo diante de si. Era ela, depois ela e, mais adiante, ela.
- Seu pai já devia estar em casa - desconversou Ivana.
- Você nunca controlou os horários dele. O que a aflige?
- Nada, absolutamente nada.
Por coincidência, naquele exato instante Virgílio adentrou a sala. Estava cabisbaixo. Murmurou um boa-noite, subiu rapidamente as escadas e dobrou o corredor, indo direto para o quarto. Bruno foi até o bar e serviu-se de refresco, enquanto Ivana, bufando, pulava os degraus numa rapidez incrível. Alcançou Virgílio entrando no banheiro. Acendeu novo cigarro. Tragou nervosa e, ao expelir a fumaça, perguntou:
- Onde esteve?
- Trabalhando, como sempre.
- Onde esteve? - Ivana parecia não escutar e insistia na pergunta.
- Já disse...
- Não faça com que eu me sinta estúpida.
Virgílio baixou os olhos e lentamente foi tirando a roupa.
- Preciso de um banho. Dê-me licença.
- Por quê?
- Oras, estou cansado, Ivana. Tive de resolver assunto sério no Rio, viajei ontem à noite e trabalhei o dia inteiro hoje e... - Ele engoliu as palavras.
- E?
- Nada.
Ivana cerrou os punhos e rangeu os dentes. Apagou o cigarro na pia do banheiro, irritada. Precisava atirar alguma coisa contra a parede para aliviar sua tensão. Ela sempre atirava alguma coisa contra a parede quando sentia raiva. Chilique total e absoluto. Era a maneira de aplacar sua ira. Ela olhou ao redor e encontrou sua vítima: o secador de cabelos. Avançou sobre o objeto, pegou-o sobre a pia e atirou-o com força contra o espelho. Um estrago só.
- Está muito nervosa - rebateu Virgílio, acostumado àqueles ataques da mulher. - Já disse que precisa consultar um especialista, talvez um neurologista.
- Não mude de assunto.
- Amanhã mando consertar o espelho. Depois você compra outro secador. Ainda tem limite no cartão de crédito, não tem?
Ivana uivou:
- Argh! Fico maluca quando você desconversa. Virgílio nada respondeu. Ela continuou:
- Fiquei aqui sozinha, sem marido e sem cartão de crédito.
- Bloquearam seu cartão de novo?
- Sim. Imagine a saia justa que passei na loja.
- Você precisa medir mais os seus gastos.
Ivana estava cansada e farta de tudo e de todos.
- Não agüento mais esta vida.
- É mesmo? - perguntou Virgílio, tom jocoso.
- Não vejo a hora de ficar livre de você.
- Sinceramente, minha cara, eu penso o mesmo em relação a você. Em todo caso, amanhã cedo pedirei o desbloqueio de seu cartão.
- Você controla tudo, eu não posso mexer no nosso dinheiro.
- Faz parte do acordo.
Ela o encarou com olhos injetados de rancor.
- Tem certeza de que não tem mais nada a me dizer?
- Não, não tenho. Por quê?
Ivana deu uma gargalhada.
- A sua namoradinha pré-histórica apareceu na televisão. Está morando aqui na cidade e ficou viúva. O que acha?
Virgílio engoliu seco. Meteu a cabeça sob a ducha morna para disfarçar.
- Não lhe devo satisfações.
- Ah, não? Você sabe muito bem que não podemos pular a cerca. Isso arruinaria nosso contrato. Só estou lhe avisando, Virgílio: cuidado com quem você anda. Não deixarei que nada nem ninguém atrapalhe nossa vida. E, depois de tanto sacrifício, não acho justo entregar todo o nosso dinheiro de mão beijada aos nossos filhos. Quero minha independência.
Virgílio pendeu a cabeça para os lados, enquanto a água escorria por seu corpo.
- Não entendi o que meu pai nos fez.
- Como, não entendeu? Ficamos ricos.
- Ricos e infelizes. Perdemos a chance de sermos felizes. Mas agora isso não tem mais importância. Agüentei você por quase vinte e quatro anos.
- Você é bom de cálculo.
- Falta pouco mais de um ano para eu me livrar de você. Ambos fomos idiotas e irresponsáveis. Sacrifiquei meu amor e casamo-nos, expandi os negócios da família. Tudo por dinheiro.
- E não foi bom?
- Veja como estamos infelizes.
Virgílio falou e terminou de lavar-se. Fechou o chuveiro e pegou a toalha. Vagarosamente foi enxugando o corpo, o pensamento alheio, distante. Ivana voltou para o quarto, pensativa: "Tantos anos de sacrifício!", pensou ela. "Espero que ele não vá atrás daquela mulher. Não, por enquanto. Precisamos cumprir nosso trato. Depois ele pode fazer com ela o que bem entender. Mas Virgílio que não queira me enganar. Se eu descobrir que ele a procurou de novo, não respondo por mim?

CAPÍTULO 3

Nair terminou de tomar sua sopa, descansou a tigela sobre a mesinha e recostou-se na poltrona. O caldo quente lhe caíra bem, e agora seu corpo reclamava-lhe do cansaço.
- Sinto que está na hora de partirmos - disse, enquanto bocejava.
- Também creio estar na hora, mamãe - tornou Letícia, corpo alquebrado.
- Ismael vai levá-las - sentenciou Íngrid.
- Não será necessário. Vocês nos acolheram, e não queremos mais dar trabalho.
Íngrid ignorou-a:
- Vou chamá-lo.
Ela saiu à procura do motorista, enquanto Letícia e sua mãe colocavam os sapatos. Mariana e Inácio estavam no jardim de inverno. Passaram boa parte da tarde em agradável conversação.
- Sabe que gosto muito de você, não?
- Sei. Não paro de escutar nossa música.
- Eu também - sorriu ele, emocionado.
- Mas sinto-me insegura.
- Insegura? Como assim?
Mariana hesitou. Baixou a cabeça envergonhada.
- Eu moro na periferia, minha família é humilde. E, agora que perdemos papai, não sei ao certo qual será o rumo de nossas vidas.
- E daí?
- Faço parte de um mundo bem diferente do seu. Você é rico, mora na área nobre da cidade, freqüenta ambientes sofisticados, bem diferentes daqueles por onde transito.
- Não sou bairrista e preconceituoso. Às vezes encontro alguns amigos na Toco, e, pelo que notei, fica perto de sua casa.
- É uma onda, uma moda. Montaram essa danceteria na Vila Matilde, mas isso logo passa.
- Não. As pessoas estão cansadas de freqüentar os mesmos lugares. O lazer não se concentra mais somente nos Jardins e no centro da cidade. Eu vou com freqüência à zona leste. - Ele riu. - Talvez porque meu coração já soubesse que você estava por perto.
- Eu tenho medo.
Inácio balançou a cabeça para os lados.
- Quando duas pessoas estão apaixonadas e percebem que esse sentimento é verdadeiro, nada mais lhes importa.
- Como não?
- Juntos poderemos passar por cima das diferenças sociais.
- Acredita mesmo nisso?
- Eu não me importo com essas coisas; minha mãe, também não. E tenho certeza de que meu pai e minha irmã, lá no Rio de Janeiro, também não se importam.
- Não? - indagou Mariana, surpresa.
- De maneira alguma. Papai não dá a mínima para os valores cultivados pela sociedade. Tem maneira própria de encarar as coisas, e jamais se envolveu em minha vida, porquanto está sempre viajando e cuidando de nosso patrimônio. Mamãe gosta muito de você e já me confessou que ficaria muito feliz se namorássemos.
- Não sei...
- Eu a entendo. Quando meus pais se separaram, fiquei muito triste. Sempre acreditei que um dia viveria uma linda história de amor, igual à deles. Quando recebi a notícia do divórcio, fiquei chocado. Era como se o meu sonho de amor tivesse ido por água abaixo. Jurei não mais me apaixonar ou me envolver afetivamente com uma garota. Embora ainda esteja emocionalmente fragilizado, um pouco confuso, sinto que vale a pena namorar você. Acredite.
- Aprecio sua sinceridade. No entanto, somos muito diferentes, pertencemos a mundos distintos. Isso pode atrapalhar.
- Olhe Mariana, temos apoio da família e nos gostamos. Qual o problema? Acredita que sua mãe possa interferir?
- De maneira alguma. Isso, não. Mamãe jamais interferiria em minhas decisões. Ela também simpatiza muito com você.
- Então façamos um trato.
- Qual? - perguntou ela, em tom surpreso.
- Deixemos as nossas inseguranças de lado.
- Posso pensar, mas...
- Mas?
Mariana pousou suas mãos nas de Inácio. Mordeu levemente os lábios.
- Tem outro ponto - suspirou ela, por fim.
- O que a aflige?
Mariana sentiu-se embaraçada. Inácio prosseguiu:
- Se nada pode impedir nosso namoro, o que a deixa tão insegura?
- Teresa...
- Que Teresa?
- Teresa Aguilar. Está sempre grudada no seu pé.
Inácio deu uma gargalhada. Mariana fez bico.
- Do que é que está rindo?
- Está com ciúmes?
- Não, bom... É que...
Inácio não a deixou terminar de falar e delicadamente beijou-lhe os lábios. Mariana estremeceu de prazer.
- Sei que você gosta de mim, Inácio. Mas sempre sinto aperto no peito quando o vejo ao lado dessa patricinha de araque.
- Teresa é só uma amiga do Rio. Ela não é apaixonada por mim, nunca rolou nada entre nós.
- Às vezes sinto que ela tenta dar suas investidas.
- Problema dela, porque meu coração já tem dona.
Beijaram-se novamente. Mariana estava apaixonada, queria muito namorar, sonhava até mesmo casar-se com Inácio. Contudo, ao lembrar-se de Teresa, seu peito se fechava, ela sentia um aperto estranho, uma sensação muito desagradável. Ismael dobrou a esquina e diminuiu a marcha no meio do quarteirão, defronte a um conjunto de sobradinhos geminados, com a mesma cor, e até mesmo com pessoas parecidas. Algumas crianças brincavam na rua. Algumas mães, encostadas em suas portas, ficavam de olho nos filhos. Em toda vizinhança há aquela vizinha bisbilhoteira, do tipo que adora cuidar da vida alheia, conferir horários de chegada e saída das pessoas, observar atentamente quem bate à porta de quem. No quarteirão onde Nair morava havia duas dessas vizinhas. Salete e Creusa davam palpites na vida de tudo e de todos. Quando interpeladas, juravam que queriam ajudar, forem amigas, solidárias. Qual nada! Elas sentiam um prazer indescritível em vasculhar a vida íntima dos vizinhos. Elas pareceram adivinhar que Nair chegaria naquele momento. Salete e Creusa estavam debruçadas sobre o portãozinho de ferro da casa desta última, impacientes. Assim que avistaram Ismael estacionar no meio-fio da calçada e Nair saltar do carro, correram em sua direção.
- Querida, sentimos muito - declarou Salete, tentando imprimir pesar na voz.
- Não pudemos ir ao enterro porque o cemitério é muito longe, não tínhamos como pegar condução e - a voz de Creusa soava fria e esganiçada - eu sou sozinha e solteira, não tenho ninguém para me acompanhar. Pensamos que talvez, se ficássemos aqui à sua espera, bem, sabe...
Nair as interrompeu com gentileza:
- Sei, sei obrigada por tudo. No entanto sinto-me exausta e preciso descansar. Poderíamos nos falar outra hora?
- Claro - tornou Salete, tentando esconder a contrariedade.
- Precisa mesmo descansar. Depois de tudo que passou... Pobrezinha! - emendou Creusa, abraçando Nair de maneira ostensiva e chorando em seu ombro.
- Preparamos um jantar para vocês. Afinal de contas, sabíamos que chegariam arrasadas e, bom, tenho certeza de que você vai ter um ataque daqueles quando entrar em casa. Quando fiquei viúva, custei a adentrar minha casa, sabe...
Nair suspirou e fechou os olhos. Estava tão cansada que parecia não ter mais lágrimas, por ora. Letícia e Mariana desceram do carro e juntaram-se à mãe. Letícia, sempre a mais ousada, tomou a dianteira. Falou, decidida:
- Por favor, senhoras. Estamos muito cansadas e queremos ir para casa. Daqui a uns dois ou três dias passem por aqui, visitem-nos, e serão bem recebidas. No entanto, agora queremos ficar sós.
- Eu fiz janta, oras...
- Dona Salete - Letícia estava séria e sua voz era firme -, por favor, deixe-nos sozinhas, sim? Agradeço sua preocupação, mas já nos alimentamos e queremos descansar, ficar sós. Respeite nossa dor.
Letícia falou enquanto puxava o braço de Nair. Mariana despediu-se de Ismael e, sem graça, despediu-se das vizinhas.
- Até mais.
As duas fizeram bico e balançaram a cabeça para o lado. Salete estava indignada.
- Veja só quanta ingratidão!
- Pois é, Salete. Você passou a tarde toda no fogão cozinhando para elas, e veja como foi tratada. Não acho isso justo.
- Eu também não acho justo. Somos vizinhas há tantos anos, e essa fedelha da Letícia me esnoba desse jeito.
- Essa menina é jovem, inconseqüente. Fiquei sabendo - Creusa baixou a voz - que tem gente drogada morando aqui no quarteirão.
Salete levantou as mãos para o alto, em tom desesperador.
- Era só o que me faltava. Quem lhe contou isso?
- O pessoal da delegacia. Disseram que estão de olho, fazendo ronda aqui na nossa rua.
- Que horror! Você sabe quem é?
- Ainda não descobri. O pessoal não me contou. Eles têm medo de que eu fique preocupada.
Salete anuiu:
- Eles têm razão. Você mora sozinha, é solteira, não tem parentes, não tem ninguém. A equipe do delegado quer que se sinta segura.
- Aonde foi que chegamos, hein? Estou indignada.
- E por acaso você acha...
- Acho, não! Eu tenho certeza. A Letícia sempre teve uns amigos esquisitos. Vai ver, até o pai sabia de alguma coisa e morreu por conta de desgosto - dramatizou.
Salete estava boquiaberta.
- Pode ser verdade. Deus me livre e guarde. Ainda bem que meu filho nunca se meteu com elas.
Creusa continuou a falar, e sua voz safa cada vez mais esganiçada, tamanha euforia em falar mal da vida alheia.
- Seu filho é um tesouro, Salete. Nunca queira compará-lo a essas duas aí. A Nair sempre teve a mão solta na educação das meninas. Otávio bem que sabia botar ordem na casa. Agora quero ver com vai ser. Talvez se tornem duas perdidas, pobrezinhas.
- Confesso estar ainda chocada. Precisamos conversar com o delegado, obter mais informações, manter a vizinhança em estado de alerta. Vamos embora.
- Vamos, sim - anuiu Creusa, acrescentando: - Não ligue, não, Salete. A Letícia sempre foi metida, esnobe mesmo. Quero ver agora, que o pai morreu como elas vão se virar! Pago para ver toda essa banca delas ir ao chão, num estalar de dedos.
- Bem feito para todas elas. Nair nunca foi de muita conversa sempre bastante reservada, e agora está sozinha. Vai correr e pedir ajuda para nós, mas também não facilitaremos.
- É isso mesmo. Que elas paguem o preço por serem tão metidas.
As duas foram se afastando, gesticulando, ruminando algumas palavras, e logo a atenção de Salete foi desviada para outro vizinho que elas juravam estar traindo a esposa. Elas cochicharam, desceram a má língua sobre a vida do pobre rapaz e esqueceram Nair e suas filhas, por ora. Nenhuma delas percebeu uma massa cinzenta que pairava sobre suas cabeças, tamanha a quantidade de pensamentos negativos que emanavam acerca dos outros. Tanto Salete quanto Creusa possuíam comportamento típico de gente que não tem o que fazer e cuja tentativa de olhar para dentro de si é coberta pelo mais absoluto pavor. Esse era o caso delas e muitas outras vizinhas espalhadas pelo mundo afora: preocupar-se com a vida alheia a fim de não ter de encarar a sua própria vida e tomar as atitudes necessárias para mudar, amadurecer e crescer. Dentro de casa, Nair teve um choque. O ambiente parecia triste, sem vida, um silêncio aterrador. Enquanto Mariana e a mãe se puseram a chorar, Letícia foi abrindo as cortinas, permitindo que um restinho de sol atravessasse a fresta da janela e iluminasse a sala, tornando a casa mais acolhedora.
- Ficamos sozinhas, mas temos de continuar a viver. Uma tragédia dessas pode acontecer com qualquer família. Uns perdem o pai, outros a mãe, outros ainda perdem seus filhos. Faz parte da vida, é algo natural.
- Você vê tudo com muita naturalidade - esbravejou Nair. - Não sente dor? Não está triste?
Letícia aproximou-se da mãe e pegou em sua mão. Enquanto falava, uma lágrima escorreu-lhe pelo canto do olho.
- Claro que sinto dor, é óbvio que estou muito triste. Perdi meu pai, ele morreu. É difícil continuar vivendo e saber que aqueles que amamos não estão mais aqui. Mas, com o tempo, a dor diminui, a saudade aumenta e a gente se acostuma.
- Para você é tudo muito fácil. Acredita em vida depois da morte, em reencarnação.
- Isso me conforta.
- A morte para você tem outro significado - comentou Mariana. - Parece ser menos trágica.
- Você também tem o direito de pensar assim.
- Pois eu - declarou Nair, em tom decidido - digo a você que acho isso tudo fantasioso demais.
- Ora, mãe, por que pensa assim?
Nair deu de ombros. Sentenciou:
- Porque, para mim, depois da morte não existe mais nada. Morremos e pronto: está tudo acabado.
- Você pensa e acredita que a vida seja assim? Para você, a gente nasce, vive e morre?
- Sim. O resto é fantasia.
Letícia meneou a cabeça negativamente para os lados. Levantou-se e, encarando tanto a mãe quanto a irmã, perguntou:
- E o caso de crianças que morrem cedo demais?
As duas deram de ombros. Não sabiam o que responder.
- Se Deus é tão justo e bom quanto se diz, por que Ele permitiria que uma criança vivesse meses ou poucos anos de vida e lhe tirasse a oportunidade de crescer, de estudar, de namorar, de constituir família, de progredir pelos seus próprios esforços...
- Não sei. Nunca parei para pensar nisso - disse Nair.
- Cada um de nós abriga um espírito dentro do corpo físico. Um bebê recém-nascido, por exemplo, abriga um espírito.
- Será? - indagou Nair, pensativa.
- Até mesmo um feto. A partir do momento em que você está gerando um ser, ele já possui alma.
- Isso, não. Um feto é um feto, oras!
- Não, mãe. Um feto é vida. E vida abriga espírito, não importa a forma.
- E um feto pode sentir dor?
- Claro!
Nair levou a mão à boca. De repente, lembrou-se do passado, do acidente. Nunca pensara que um feto pudesse sentir dor. Aquilo a desestabilizou profundamente. Sentiu uma culpa muito grande, lembrou-se do passado, e não conseguiu evitar o choro. Mariana abraçou a mãe e lançou olhar raivoso à irmã.
- Veja só o que você fez.
- Eu?!
- Sim. Vem com essas bobagens de espíritos, morte, dor, numa hora destas?
- Eu só estava...
Mariana cortou-a:
- Letícia, pare com esse papo. Não toque mais nesse assunto aqui dentro de casa. Eu e mamãe não gostamos de falar sobre espíritos.
Mariana ajudou Nair a levantar-se e subiram os degraus vagarosamente em direção aos quartos.
- Vamos, mãe. Está na hora de se trocar e descansar. Não deixarei ninguém perturbá-la - falou e voltou à cabeça para trás, fuzilando a irmã com o olhar.
Letícia deu de ombros. Mais cedo ou mais tarde elas teriam de lidar com o assunto. Ela sabia que um dia Nair e Mariana seriam obrigadas a despir-se do orgulho e de seus preconceitos para encarar as verdades da vida.

CAPÍTULO 4

Virgílio apanhou a pasta e caminhou em direção à garagem. Ivana colocou-se à sua frente.
- Acordou com as galinhas? Ultimamente não estava saindo tão cedo assim. Algum problema com as nossas farmácias?
- Não, absolutamente nenhum. Muito trabalho, como de costume. Viajo quinta à noite e vou esticar o fim de semana.
- Vai para onde?
- Não interessa. Já faz anos que cada um de nós cuida da própria vida.
Ivana mordeu o lábio.
- Não estou gostando nada disso. Se você for atrás daquela fulana...
Virgílio riu:
- Fulana? Nem fulana nem sicrana. Você sabe, tanto quanto eu, que somos impedidos de ter amantes. Faz parte do nosso castigo. Às vezes penso por que meu pai seria tão ardiloso a ponto de fazer com que nós dois, que nunca tivemos nada em comum, ficássemos juntos por vinte e cinco anos, sem direito ao menos a puladas de cerca. Ainda é difícil entender uma atitude insana como essa.
- Atitude insana é aturá-lo por todos esses anos. Estou farta de você, de seu azedume, de sua palidez.
- Pois então aproveite minha escapada de fim de semana e remodele os quartos. Transforme o quarto de hóspedes no meu quarto e fique sozinha. O nosso quarto pode ser só seu. O que acha?
- Patético isso sim.
- Nada patético. Temos dois quartos de hóspedes. Deixar só um para visitas já está bom demais. Eu fico com o quarto no canto do corredor e ficamos mais afastados um do outro.
- Preciso de dinheiro para fazer as mudanças.
- Dinheiro não é problema, Ivana. Gaste o que achar necessário. Aliás, por conta de nosso casamento, seu patrimônio só aumentou e talvez nesta vida você nunca saiba o que é viver apertado.
- Ainda bem. Não nasci para ser pobre.
Virgílio nada disse. Baixou a cabeça e entrou no carro.
- E não se esqueça de desbloquear meu cartão, ou pagar a fatura, ou mesmo aumentar o meu limite. Não quero mais passar constrangimentos em lojas ou restaurantes.
Virgílio assentiu com a cabeça. Entrou no carro, deu partida e se foi. Ivana ficou pensativa por instantes. Resolveu:
- Ligarei para minha amiga Otília.
E assim o fez. Correu até a sala e discou o número. Ivana e Otília eram amigas de longa data. Otília não era fútil como Ivana e também não era de chiliques. Tampouco vivia em eterno estado de tensão pré-menstrual, como Ivana. Otília queria mais era viver a vida, aproveitando o que ela podia dar-lhe de melhor. Fazia bom uso de seu dinheiro. Ela adorava participar de leilões de arte, por exemplo. Comprava quadros de artistas famosos e também apostava em jovens pintores. Otília já havia lançado dois rapazes no mundo das artes, e no momento ambos estavam excursionando pela Europa, expondo e vendendo seus trabalhos. Otília estava sempre de olho em novos talentos. Viajava bastante, sabia efetivamente curtir a vida. Filha de rico industrial casara-se com outro rico empresário e tinha dinheiro suficiente para manter uma família por mais de três gerações seguidas. Não tivera filhos porque descobriu que o marido era estéril. Adamastor também não queria adotar uma criança. Se Deus o havia feito estéril, então a vida do casal deveria ser diferente - ele assim pensava. Otília Amorim acatou frustrada, a decisão do marido. Com os anos, descobriu que poderia usar seu instinto materno reprimido na busca, orientação e promoção de jovens artistas. Ela descobrira nova vocação e podia extravasar suas qualidades maternais. E também era conhecida da sociedade pelos saraus que promovia, ora em seu casarão próximo ao Parque do Ibirapuera, ora em seu suntuoso chalé localizado em Campos do Jordão. Otília atendeu ao telefone ofegante.
- O que foi? - indagou Ivana. E brincou: - Peguei-a num momento impróprio?
- Longe disso, amiga. Adamastor saiu para trabalhar faz uma hora. Acabei de chegar do parque. Fui fazer minha caminhada diária.
- Você e essa mania de andar, correr, nadar.
- Precisamos exercitar o corpo, minha amiga. Ainda mais na idade em que estamos.
- Deus me livre! Prefiro pagar bons profissionais. A plástica supre tudo isso.
- Até certo ponto. O organismo precisa ser estimulado, precisa de exercícios.
- O meu, não.
- Caso mude de idéia, venha dia desses caminhar comigo.
- Agradeço o convite, mas prefiro meu cigarro e minha vodca.
- Não sei como consegue se entupir com tanta besteira, Ivana.
- Sou forte.
- Pois bem. O convite está feito, pela milésima vez. Quando quiser, me avise um dia antes.
- Está certo. Vou pensar no caso.
- Afinal, de que adianta ter dinheiro e não poder usufruir dele?
- Do que está falando, Otília?
- De ficar doente, ter algum problema grave de saúde e ficar imobilizada numa cama, sem poder usar nosso dinheiro.
- Que horror!
- Isso, sim, é que é castigo. Por isso prefiro me exercitar, fazer boa alimentação, abusar só de vez em quando.
- Vire essa boca para lá!
Otília riu.
- Você ligou por quê?
- Porque é minha única amiga.
Ivana tinha razão. Otília era sua única e verdadeira amiga. Não havia pessoa no mundo que agüentasse os chiliques de Ivana. Mas Otília os agüentava. Gostava de Ivana, não importando se a amiga era descontrolada ou não. Isso era problema dela. O que importava era o sentimento. E Ivana, por seu lado, sabia re-conhecer isso. Sentia que podia se abrir com Otília, falar de suas intimidades, a seu modo, sem ser censurada. Ivana acendeu um cigarro e pigarreou:
- Quer ir comigo ao shopping?
- Você só pensa em comprar, comprar e comprar.
- E para que mais serve o dinheiro, Otília?
- Para viajar, viver melhor, incentivar gente jovem e de talento.
- Eu nunca gastaria meu dinheiro com gente que não conheço. Isso é o cúmulo.
- Eu gosto de você, Ivana. Embora estouvada, é autêntica, não faz gênero.
Ivana sorriu do outro lado da linha. Ela admitia ter um gênio de cão e era sincera, embora curta e grossa.
- Preciso de umas idéias para mudar e reformar o quarto de hóspedes.
- Quer ver móveis? Comigo?
- Ah, Otília, você tem bom gosto indiscutível. Tenho certeza de que vai me ajudar.
- Está bem. Quer que meu motorista haja apanhe que horas? Às onze está bom para você?
- Está ótimo. Depois almoçamos naquele restaurante do qual lhe falei semana passada.
Ivana protestou:
- Argh! Naquele restaurante só servem comida sem gordura, sem sal, sem gosto. Eu prefiro uma churrascaria.
- Nem por decreto eu piso numa churrascaria! - disse Otília, rindo. - Façamos o seguinte: eu a acompanho nas lojas e você vai almoçar comigo, naquele restaurante.
- Está perfeito - respondeu Ivana, meio a contragosto.
- Aguardo você às onze.
Ivana pousou o fone no gancho feliz da vida. Gastar, fazer compras em geral, atenuava sua irritação. Ela não precisava de ginástica e exercícios para aliviar suas tensões cotidianas. Bastava-lhe um bom cartão de crédito na mão, sem limite de gastos. Mais nada. Na verdade, ela estava farta daquele casamento. Anos atrás havia aceitado casar-se com Virgílio por capricho e por vontade das famílias dos dois para preservar e aumentar o patrimônio. O pai de Ivana herdara uma pequena farmácia localizada num excelente ponto no centro da cidade. Endividado e sem tino para os negócios, Everaldo quase perdeu o estabelecimento. Ivana, esperta e só pensando em cifrões, procurou Homero, o pai de Virgílio, e fez-lhe uma proposta irrecusável. Virgílio era homem feito e apaixonado por Nair. Mas Nair sumira de sua vida de uma hora para outra, sem motivo, sem explicação. Desiludido e infeliz, ele aceitou casar-se com Ivana. A consciência de Ivana às vezes tentava chamá-la à realidade e fazê-la pensar nos desatinos que cometera. Virgílio e Nair estavam apaixonados e felizes. Pensavam em se casar, e ela destruiu o sonho de ambos. Com os olhos voltados tão-somente para seu próprio umbigo, louca para viver num mundo que sempre sonhara - o dos ricos -, Ivana deixava os pensamentos acusadores de lado e seguia em frente, sem remorso. Ela arrumou-se com esmero para encontrar-se com Otília logo mais. Bom, arrumar-se com esmero, para Ivana, era usar roupas espalhafatosas, combinações de gosto duvidoso, perfume forte e adocicado, além de ter o corpo coberto de jóias, da cabeça aos pés. Assim que desceu as escadas e dobrou o corredor, deu de cara com a filha.
- Em casa a esta hora? Estou de saída. Pode ligar o som e escutar aquelas músicas esquisitas.
Nicole não respondeu. Fez um gesto vago com as mãos e subiu um lance de escada.
- Ei, senhorita, estou falando com você!
Ivana alcançou-a e puxou-lhe braço. Nicole olhou para o braço e em seguida encarou a mãe com rancor.
- Por que quer saber de minha vida se nunca deu a mínima para mim?
- Força de hábito.
- Estou cansada. Quero dormir - disse a jovem, com voz pastosa.
- Você está drogada, isso sim.
Nicole permaneceu parada. Não conseguia concatenar os pensamentos com lucidez. As drogas começavam a afetar seu sistema nervoso. Ivana mal se importou com o estado da filha:
- Afinal de contas, você mora nesta casa e é sustentada por mim e seu pai. Aqui não é pensão. Quando quero que me dê satisfações, você tem de responder.
- Você é completamente louca.
- Ah, sou louca? A partir de agora vou cortar sua mesada.
- Isso não! Você não tem esse direito.
Ivana gargalhou:
- Não só tenho como vou fazê-lo.
- Se fizer isso, vou infernizá-la até não mais agüentar. Vou ficar o tempo todo em casa e trazer meus amigos para passar à tarde comigo. Vou botar música no último volume quando você tiver enxaqueca.
- Você agora foi longe demais - suspirou Ivana, vencida. - Não suportaria conviver com você, esse bando de desajustados e sua música de péssimo gosto. Minha enxaqueca não merece isso. Continuarei lhe dando a mesada.
- Não me amole.
Nicole falou, empurrou o braço da mãe e subiu. Ivana ia responder, mas ouviu a buzina familiar do carro de Otília. Ela deu de ombros, apanhou a bolsa e saiu. Bruno terminou de se arrumar e, ao sair de seu quarto, deu um esbarrão em Nicole.
- Que bom vê-la - disse ele, abraçando-a com ternura.
Nicole tentou falar, mas sua garganta estava seca, mal conseguia articular som. Seu aspecto era terrível e havia vômito sobre sua blusa. Bruno sentiu o cheiro característico e preocupou-se.
- Você não está bem.
- Passei mal, vomitei. Estávamos numa festa, gente da alta sociedade, eu exagerei e quando percebi estava no hospital.
- Hospital?
- Tive de tomar uma injeção de glicose na veia. Foi então que vomitei. Mas melhorei, recebi alta e estou aqui.
Nicole falava com uma naturalidade espantosa. Bruno pendeu a cabeça para os lados.
- O que foi que tomou?
Nicole balançou a cabeça.
- Vamos, minha irmã, não tenha medo de me dizer. Confie em mim. O que foi que você tomou?
Nicole estava agitada, voz pastosa, porém havia um pingo de lucidez que a deixava envergonhada, principalmente na frente do irmão.
- Eu misturei bebidas, depois eu cheirei pó.
- Você precisa se tratar.
- Fui a essa festa com Artur ontem, bebi, então alguém nos ofereceu cocaína de graça, e...
Ela não terminou de falar. Baixou a cabeça, envergonhada. Tinha muito carinho e consideração pelo irmão. Bruno era seu porto seguro, fazia o papel de pai e mãe. Ela não se importava de lhe dar satisfações.
- Você saiu com o Artur de novo? Não se lembra de nossa conversa na semana passada?
- Sim, mas...
Bruno foi seco:
- Enrico foi preso semana passada no aeroporto. Trazia quilos de maconha na bagagem. E sabemos que parte dessa droga iria para as mãos de Artur. Esse rapaz não presta de maneira nenhuma.
- E daí? O Enrico saía com a gente de vez em quando. Mas nada foi provado contra o Artur.
- Esses seus amigos só pensam em festas, noitadas, baladas, drogas...
- Isso é que é viver, meu irmão.
- Não! - protestou ele. - De maneira alguma. Isso pode destruir a vida de todos vocês.
- Minha vida está um caos total.
- Você é tão bonita, tão jovem, podia fazer tantas outras coisas...
- Me dê um exemplo.
- Estudar, é um bom exemplo.
- Estou na faculdade.
- Não, isso não. Você está na faculdade por hobby. Não estuda, não leva nada a sério. Só se importa em promover festas com seus amiguinhos endinheirados.
- Não tenho vontade de nada.
- De nada?
- Nada. Não tenho interesse em uma profissão, em nada. A vida para mim se resume ao namoro com Artur, baladas e... - Nicole parou.
- Baladas e drogas?
Ela não respondeu.
- Quer se destruir?
- Qual o problema? Se eu morrer hoje, ninguém vai dar falta. Talvez uma pequena matéria no noticiário, porque sou filha do rei das farmácias. Na semana seguinte, serão outros que vão ocupar meu lugar e fim de papo.
- Não diga isso nem por brincadeira. Eu a amo.
A jovem deixou escapar uma lágrima.
- Eu sei. Se não fosse seu amor, eu estaria morta.
- Promete que vai se afastar do Artur?
- Eu gosto muito dele.
- Nicole, por favor.
Ela desconversou:
- Vou descansar. A parada no hospital foi cansativa, e também preciso tirar esta roupa. Não suporto mais este cheiro. A gente se fala mais tarde.
Ela deu um beijo estalado no rosto de Bruno, entrou no quarto, despiu-se e deslizou sob os lençóis. Custou a pegar no sono, e, quando este veio, foi assaltada por pesadelos. Bruno meneou a cabeça para os lados. A situação da irmã piorava a cada dia. Ele acreditou que as sessões de terapia estivessem surtindo efeito, mas Nicole continuava amuada, triste, abatida e cada vez mais afundada nas drogas. Bruno não sabia o que fazer. Iria conversar com o pai logo mais. Virgílio poderia ajudar. Bruno e Nicole foram criados à deriva, rodeados de pessoas estranhas desde o nascimento. Ivana nunca quis saber de cuidar dos filhos e não media esforços e dinheiro para contratar boas babás e empregadas para as crianças. Nicole sempre se ressentira desde cedo e sentia muito a falta dos pais por perto. Ivana nunca participara de uma festinha na escola, de uma apresentação de teatro, nunca fora a nenhuma formatura da filha. O pai estava sempre viajando e tinha suas desculpas. Mas a mãe dividia o tempo entre casa, salão de beleza e shopping, mais nada. Tudo isso magoava Nicole profundamente, e assim ela foi se tornando tímida, retraída e isolada em seu mundo. Quando as festinhas adolescentes surgiram, Ivana não tinha tempo para levar ou buscar a filha. Isso ficava por conta dos motoristas. Ivana mal sabia quem eram os amigos de Nicole, nunca se importara com isso. Na festa de uma coleguinha, aos onze anos de idade, Nicole teve contato com o cigarro. Aos doze, numa outra festinha, conheceu uísque e destilados em geral. Aos treze ela teve contato com seu primeiro cigarro de maconha e aos catorze já consumia tudo isso e mais um pouco. Ela descobriu que a droga entorpecia seus sentidos e lhe permitia entrar em contato com outro mundo, uma realidade imaginária, mas bem melhor do que aquela com que ela deparava todos os dias. Por uma questão de essência, Bruno cresceu feliz, temperamento sereno, sorriso sempre cordato. Tornou-se homem bonito, constantemente assediado pelas garotas de seu meio social. Entretanto, ele não ligava para namoro. Achava perda de tempo namorar alguém que não tocasse seu coração. Bruno estudou Economia por obrigação. Virgílio queria preparar o filho para assumir a rede de farmácias, porém o jovem sempre fora avesso aos negócios do pai, ou à maneira como Virgílio os conduzia, sempre pensando em lucro e mais nada. Durante a faculdade, surgiu a idéia de montar um tipo de farmácia que vendesse produtos mais baratos, mais em conta para a população carente. Por meio de bons acordos com os fornecedores, ele poderia reduzir a margem de lucro e baratear os medicamentos. Virgílio era contra essa idéia, porquanto isso diminuía em muito o lucro de suas farmácias. Descontente com a falta de apoio do pai, Bruno associou-se a um amigo da faculdade e foi atrás de seu sonho. O jovem sempre gostara de ajudar as pessoas, principalmente as carentes, de baixa renda. Por isso estava sempre metido em ações voluntárias de ajuda a necessitados, fossem de favelas, comunidades pobres ou bairros bem distantes, que não possuíam adequada infra-estrutura nos quesitos saúde, educação e transporte. O rapaz havia dois anos, passou a ter sonhos repetidos. Sem saber ao certo o que ocorria, embora sempre ligado na intuição, Bruno acordou certo dia com a clara intenção do que tinha - e queria - fazer. Com o dinheiro acumulado de mesada que ele regiamente depositava na poupança, ele e mais Daniel, seu amigo de turma, montaram pequena farmácia num bairro bem distante, bem pobre e carente de infra-estrutura básica. O galpão onde instalara a farmácia tinha, nos fundos, um pequeno salão sem uso, utilizado como depósito. Já fazia quase um ano que Bruno estava metido no negócio - sem a ajuda do pai, cabe ressaltar -, quando um pequeno grupo de jovens graduados em Serviço Social interessou-se pelo salão e quis formar um núcleo de ajuda e amparo aos necessitados. A líder da turma era Michele, irmã de Daniel, assistente social de vinte e dois anos, negra de corpo escultural, olhos castanhos, lábios carnudos, cabelos pretos, longos e tratados à base de Henê Maru - conhecido creme alisante para cabelos. Bruno tinha uma queda por ela, mas não queria misturar o trabalho com sentimento e tinha respeito por Daniel, que cuidava de Michele como um pai, visto que ambos haviam perdido os pais fazia alguns anos e criaram-se sozinhos. A prefeitura passou a colaborar financeiramente, e logo muita gente passou a exigir que o pequeno salão nos fundos da farmácia, antes funcionando duas vezes na semana, fosse aberto todos os dias, de segunda a sexta-feira. Isso era uma novidade e tanto no bairro. Muitos moradores passaram a freqüentar o local e a comprar mais na farmácia. A procura por atendimento e orientação cresceu sobremaneira. Logo Michele sentiu a necessidade de ampliar o local e prestar auxílio aos jovens da região que queriam livrar-se das drogas. Bruno atirou-se de cabeça no projeto afinal, vivia esse problema dentro de casa e, mesmo com dificuldades financeiras, não se deixou cair no descontentamento. Ele queria conversar com Nicole e ver se ela aceitaria participar de alguma reunião, mas nas poucas tentativas percebera que a irmã se esquivava, e ele jamais iria forçar Nicole a alguma coisa. Bruno sentia que precisava ajudar a irmã. Do mesmo jeito que sonhara com a farmácia, agora sonhava repetidas vezes com um rapaz que ele nunca vira, mas que encarecidamente lhe pedia para ficar mais próximo da irmã. Bruno pensou em conversar com Michele a respeito dos sonhos repetidos. Além de assistente social, ela era médium; talvez pudesse lhe dar alguma explicação. Contudo, sempre que ele se aproximava da morena, ficava nervoso, não conseguia articular direito as palavras. Bruno pegou a marginal do Tietê e depois de uns bons quilômetros dobrou numa larga avenida. Continuou por um bom tempo até que a avenida foi diminuindo de tamanho, as calçadas foram sumindo, o asfalto também. Logo seu carro deslizava sobre uma rua de terra batida, e, mais alguns minutos, ele encostou o carro defronte à farmácia. Ele saltou do carro e foi ao encontro de Daniel, que, mal o viu, perguntou:
- Que cara é essa, rapaz?
- Estou preocupado com Nicole.
- Ela continua...
- Sim, continua metida em noitadas e drogas. E hoje descobri que ela não está só fazendo uso da maconha. Agora está envolvida com cocaína.
- Tem certeza?
- E como. Ela mesma disse. Se você visse o estado deplorável em que ela se encontrava agora há pouco. Cheia de olheiras, a pele seca e enrugada, às vezes eufórica e excitada. Hoje chegou mais cansada porque terminou a noite num hospital. Foi à cocaína.
Daniel preocupou-se.
- Além de viciar o indivíduo, outro problema em relação à cocaína é a adulteração pela qual o produto puro passa. Por ser comercializada por peso, diversas substâncias são acrescidas ao produto inicial e, não raro, a cocaína chega ao consumidor final com apenas trinta por cento de pureza. Vários produtos são misturados, como soda cáustica, solução de bateria de carro, água sanitária, cimento, pó de vidro, talco... Vai saber o que tinha no pó que sua irmã cheirou...
- Tenho muito medo de que algo pior possa lhe acontecer.
- Conversou com Nicole para saber se ela quer participar de um de nossos encontros?
- Já pensei no assunto, mas tenho medo.
- Medo de quê? - indagou Daniel, confuso.
- Medo de que ela não queira mais me confiar seus segredos e se perca de vez no mundo do vício. Sabe que Nicole só conta comigo. Meus pais não estão à par do problema.
- Certa vez você me contou que um motorista da família encontrou um pacote de maconha no carro e desconfiou ser de Nicole. Isso já era motivo suficiente para ficarem alertas. Não tomaram nenhuma providência?
- Meus pais fecharam os olhos. Mamãe achou natural, disse que era coisa de adolescente. Papai ficou preocupado no início, mas depois voltou a afundar-se nos seus afazeres e esqueceu. Pagaram terapia para Nicole e acreditaram que tudo se resolveria com algumas sessões de análise.
- Muitos pais preferem fechar os olhos para o problema e, quando o vício se agrava, eles ficam perdidos.
Daniel conversou com Bruno até que o sentiu mais calmo e despreocupado. Aproveitou e perguntou à queima-roupa:
- Algo mais o aflige. O que é?
- Tenho sonhado de novo.
- Você tem a mente aberta e está sempre à procura da verdade. Lembra-se dos sonhos com a farmácia?
- Hum, hum.
- Está tendo sonhos repetidos?
- Iguais aos da farmácia. Um rapaz aparece e me diz que preciso ajudar Nicole.
- Você o conhece?
- Não. Nunca o vi antes.
Daniel esboçou leve sorriso. Puxou o amigo pelo braço e foram até a pequena sala contígua à farmácia, onde aplicavam injeções. Os atendimentos ainda não haviam começado, e os dois rapazes puderam conversar à vontade. Daniel fez Bruno sentar-se numa cadeira e sentou-se em outra postada à sua frente.
- Você é simpático ao Espiritismo, certo?
- Certo.
- Pois bem, o Espiritismo trouxe a primeira teoria realmente científica em relação ao sonho. E, também, a mais completa, porquanto afirma ser o sonho desde uma manifestação puramente cerebral até o desprendimento do espírito e suas atividades fora do corpo físico.
- Você acha que, no meu caso, seria um encontro fora do corpo físico, além da matéria?
- Creio que sim. Terminei de ler um livro de Léon Denis chamado No Invisível. Nesse livro, Léon divide os sonhos em três categorias. Na primeira encontra-se o sonho ordinário, puramente cerebral, simples repercussão de nossas disposições físicas ou de nossas preocupações do cotidiano. A segunda categoria equivale ao primeiro grau de desprendimento do espírito, quando este flutua na atmosfera, sem se afastar muito do corpo; mergulha, por assim dizer, no oceano de pensamentos e imagens que de todos os lados rolam pelo espaço. Por último, os sonhos profundos, ou sonhos etéreos. O espírito desprende-se do corpo físico, percorre a superfície da Terra e a imensidade, visita parentes e amigos encarnados ou desencarnados, vai até as colônias espirituais, etc.
- Então tive um sonho profundo ou etéreo? - perguntou Bruno, aturdido. - Mas eu mal conheço aquele rapaz!
- Pode ser um amigo espiritual preocupado com o envolvimento de Nicole com as drogas. Sabe que nossos amigos no astral têm uma visão mais ampla acerca dos acontecimentos que nos rodeiam. Talvez queira alertá-lo a fim de poder ajudar sua irmã.
- Ela anda muito perturbada. E, desde que começou a namorar o Artur, tudo piorou.
- Artur tem forte ascendência sobre Nicole. Mas sua irmã pode escolher mudar e melhorar. Ela tem livre-arbítrio.
- Li algo a respeito no Livro dos Espíritos, que você me deu de presente.
- Caso queira se aprofundar mais no estudo dos sonhos leia o capítulo 8 do livro.
- Por quê?
- Esse capítulo, intitulado Emancipação da Alma, trata com propriedade o sono e os sonhos. Dê uma olhada nas questões 400 até 412, pelo menos. Vale à pena.
- Vou seguir seu conselho. Farei tudo que estiver ao meu alcance para ajudar Nicole.
Continuaram entabulando conversação até que em determinado momento os olhos de Bruno brilharam emocionados. Daniel o conhecia muito bem.
- Há a possibilidade de conversar mais à fundo com Michele. Ela é médium e entende mais de espiritualidade que eu. Sou mero estudioso do assunto.
- Ela já chegou? - indagou Bruno, ansioso.
- Está lá no fundo, preparando as fichas para atender aqueles que necessitam de orientação. Uma assistente social nata.
Bruno deu uma piscadela para o amigo. Seu coração bateu descompassado. Nunca sentira aquilo por mulher que fosse, e agora estava literalmente de quatro por aquela garota.
- Ah, Michele... - suspirou e, em seguida, ele rodou nos calcanhares e estugou o passo até os fundos do salão.

CAPÍTULO 5

Fazia pouco mais de seis meses que Otávio havia morrido. Nesse tempo, suas filhas tentaram dar novo rumo às suas vidas. Menos Nair. Ela continuava prostrada na cama. Passava praticamente o dia todo deitada, dormindo, amuada, sem vontade de fazer absolutamente nada. Nesse quadro depressivo, algo lhe fizera bem: a perda de peso. Triste e sem apetite, Nair emagrecera bastante e voltara a ter cintura e quadris definidos. Em compensação, os cabelos, o rosto, a pele, tudo parecia ter envelhecido anos em questão de poucos meses. A falta de cuidados deixou-a mais velha, com aspecto doentio, até. Nem à televisão ela queria saber mais de assistir. Prostração total. Faltava-lhe estímulo para continuar a viver. Letícia e Mariana passaram a administrar a casa e, com pequeno empréstimo de Inácio, fizeram mercado, pagaram as contas atrasadas, acertaram as dívidas do funeral. Com o dinheiro emprestado, Mariana pôde continuar na faculdade de Enfermagem e concluir os estudos, finalizar o estágio. Afinal, o ano chegava ao fim, ela estaria formada e teria chance de uma boa colocação profissional, talvez até fosse efetivada na clínica onde estagiava. Letícia havia interrompido o cursinho preparatório para o vestibular. Pensaria em faculdade em outro momento de sua vida. Queria ajudar no pagamento das despesas e precisava de um trabalho. Comprou jornais, procurou nas agências de emprego. A situação do País continuava caótica. A população ainda se encontrava abalada pelo confisco do dinheiro que o governo havia feito. O Brasil parecia estar engessado, nenhuma empresa contratava, muito pelo contrário: demitiam-se funcionários em larga escala. De espírito batalhador, a jovem e ousada Letícia não desanimou e continuou à cata de um emprego. Se por um lado ela não tinha nenhuma experiência profissional, por outro ela tinha simpatia e presença. Bonita, estatura mediana, corpo bem-feito, cabelos negros e volumosos e olhos acinzentados, vivos e brilhantes, para Letícia não seria problema arrumar emprego de recepcionista ou vendedora, profissões para as quais uma boa aparência contava bastante. Ela tentou, tentou, perseverou, até que apareceu uma vaga de vendedora numa loja de roupas femininas num dos tantos shopping centers da cidade. O salário era comissionado, mas valia à pena. Letícia acreditava em seu carisma, em seu potencial, e tinha certeza de que iria vencer e vender bastante. Ela chegou à casa radiante. Mariana ainda não havia regressado da faculdade. A garota correu as escadas aos saltos e irrompeu no quarto de Nair.
- Mãe!
Nair levantou-se assustada. Acendeu o abajur de cabeceira.
- O que foi? Aconteceu alguma coisa?
- Consegui um emprego! - tornou Letícia, radiante.
- Parabéns - comentou a mãe, sem um pingo de animação na voz, e voltou a deitar-se.
- O que foi?
- Nada, nada. Estou cansada.
- Cansada de quê?
Nair não queria argumentar.
- Estou cansada de tudo. De que adiantou me sacrificar tanto? Seu pai morreu e agora eu não tenho mais motivo para viver.
Letícia botou a mão nas ancas. Fazendo pose, considerou:
- Ei, que história é essa? Muito drama para o meu gosto.
- Drama, drama... Não foi você quem perdeu o companheiro de uma vida inteira.
- Grande coisa! Se ao menos houvesse amor de verdade entre vocês dois, eu até lhe daria um pouco de razão.
- Não fale do que não sabe! - disse Nair chorosa, puxando as cobertas até as orelhas e encolhendo-se na cama.
- De nada vai adiantar ficar largada nessa cama. Se quiser morrer, é melhor se internar num hospital e esperar pela morte. Será atendida por profissionais experientes.
Eu e Mariana não temos tempo para tanta lengalenga. Aqui em casa não quero nada disso.
- Na minha casa...
Letícia interrompeu a mãe:
- Na nossa casa, você quer dizer. Mariana está dando duro nos estudos e fazendo estágio a fim de conseguir seu diploma e boa colocação profissional. Eu saí à cata de emprego e consegui um. E você precisa fazer alguma coisa para melhorar, pelo amor de Deus.
- Não quero nada.
Letícia meneou a cabeça para os lados. Estava ficando difícil tirar a mãe daquele estado depressivo. A jovem sabia que mais cedo ou mais tarde Nair voltaria a si, era só uma questão de tempo e paciência. Mas sua paciência com a mãe estava chegando ao limite. Decidida a tomar um banho, ajeitou os cabelos e prendeu-os em coque atrás da nuca com uma fivela. Nesse instante, Mariana, com sorriso aberto, adentrou o quarto da mãe.
- Que cara boa é essa? - indagou Letícia, surpresa.
- Tive uma reunião com o reitor da universidade. Eles me deram bolsa integral. Terei condições de me formar este ano. Não dependerei do Inácio. Não é uma maravilha? Um acontecimento que merece comemoração!
Letícia exultou de felicidade e abraçou a irmã com carinho.
- Fico muito feliz que possa terminar sua faculdade sem depender de ninguém. O mundo ficaria triste se não pudesse contar com uma enfermeira do seu porte.
- Tenho me dedicado bastante, estou prestes a terminar o estágio. E, se tudo correr bem, o Dr. Sidnei disse que me garante uma vaga. Creio que a enfermeira-chefe da clínica vai se aposentar em breve e uma das enfermeiras vai ser promovida. Tudo indica que serei efetivada. Estou feliz com os acontecimentos.
- O Dr. Sidnei é bom homem. Sabe dar valor e reconhecer à distância um bom profissional.
Nair, ainda deitada, interveio triste:
- Quem sabe eu vá parar nessa clínica?
- Que é isso, mãe? - retrucou Mariana, estupefata. - A clínica é geriátrica e para pessoas bem doentes. Você mal chegou aos quarenta.
- E o que posso esperar mais da vida? Doença e morte.
- Hoje ela está no auge do drama - ajuntou Letícia. - Não a leve tão a sério.
- Que pensamento mais impróprio, mamãe - volveu Mariana. - Não pense assim. Por que anda tão triste? Não acha que está na hora de dar uma trégua à dor e começar devagarzinho a viver melhor?
- Não tenho vontade de nada. Não quero mais viver.
- Se ela continuar insistindo nisso, vai mesmo morrer - tornou Letícia.
- Não fale assim com a nossa mãe! - censurou Mariana.
- É verdade! Sabe que há estudos científicos atestando que a força do pensamento é capaz de produzir maravilhas ou mesmo arruinar com a vida de um ser humano?
- Não creio que sejamos tão fortes assim.
- Como não, Mariana? Perdemos nosso pai, ficamos sozinhas e sem dinheiro. Ambas acreditamos que iríamos superar nossa dor e dar a volta por cima, fortes e unidas. E aqui estamos. Eu consegui emprego e você ganhou bolsa integral, não precisa se preocupar em pagar a faculdade e pode concluir seus estudos. Isso não mostra o quanto somos fortes e estamos encarando firmes o revés em que a vida nos meteu? E também não mostra que por conta de nossas atitudes positivas estamos sendo agraciadas pela vida?
- É - concordou Mariana -, olhando por esse ângulo...
- Esse é o único ângulo, não há outro. Se olharmos para o lado ruim, seremos tomadas pelo desespero, medo, e nada faremos. Ficaremos assim, paralisadas, sem ação... Como a mamãe.
- De novo me atacando, Letícia?
- E o que quer que eu faça? Você fica largada nessa cama o dia todo. Vai saber Deus quais os pensamentos que povoam essa mente. Sabe que cabeça desocupada só atrai besteira. Não acredito que esteja tendo bons pensamentos, caso contrário estaria ativa, fazendo os deveres de casa, zelando pelo bom funcionamento do nosso lar, ou mesmo procurando uma atividade que lhe rendesse algum dinheiro.
- Não sei o que poderia fazer para ganhar dinheiro. Não tenho profissão, a não ser a de dona de casa. Isso não dá dinheiro.
Mariana teve uma idéia.
- Por que não costura para fora?
- Costurar para fora? - Letícia exultou.
- Isso mesmo, mãe. Você sempre foi boa de costura. Fez curso de modista na juventude.
- Isso faz anos. Tive pouca prática.
- Não importa. E só começar a costurar, botar a cabeça para trabalhar, que logo tudo que aprendeu vem à tona. O conhecimento não morre jamais.
- Vou ganhar uma ninharia, isso sim. De que vai adiantar?
- Pelo menos não teremos de encarar essa cara feia todos os dias - replicou Letícia.
- Fala comigo como se eu fosse uma desocupada. Não tem pena de mim?
- Não. Tenho compaixão, entendo sua dor e sei que está passando por um momento muito triste e difícil de sua vida. Entretanto, de nada vai adiantar ficar aí parada sem fazer nada. Ou a senhora muda ou...
- Ou? - perguntou Nair, espantada.
- Ou então pedirei pessoalmente ao Dr. Sidnei que lhe arrume uma vaga na clínica. Vai ser bom você passar um tempo com pessoas realmente doentes, cujo corpo físico se encontra deteriorado a ponto de tirar-lhes a perspectiva de mudar de vida. Também sou dona desta casa e tenho o direito de exigir não ver cara feia aqui dentro.
- Sua irmã é cruel - resmungou Nair chorosa, levantando-se da cama e abraçando Mariana.
- Ela está nervosa, mãe. Letícia acalentava ir para a faculdade ano que vem e teve de interromper os estudos. Todas nós fomos atingidas pela perda de papai. E, neste caso, concordo com ela: creio que de nada vai adiantar você ficar caída na cama dia após dia. Sua atitude não vai trazê-lo de volta. Nossa vida não é mais a mesma, e temos de lidar com a realidade.
- Não sei o que fazer - disse Nair, pondo-se a chorar.
Fazia algum tempo que Nair pensava em retomar sua vida, voltar à normalidade. Entretanto, parecia que uma força a minava, a deixava prostrada na cama, sem vontade própria. Ela não encontrava forças para reagir e voltar a ser dona de si. Pura depressão.
Nesse momento, uma luz, embora invisível aos olhos das três, fez-se presente no quarto e postou-se atrás de Nair. A intensidade da luz recrudesceu e atingiu as meninas também. Tocada pela luz, Letícia considerou, voz amável:
- Comece ajeitando a casa. Você sempre foi zelosa, sempre cuidou bem do nosso cantinho.
Nair gabou-se:
- Isso é verdade. Sempre mantive a casa limpa, cheirosa, de maneira impecável. Até seu pai, que não era dado a elogios, admirava meu serviço.
- Retome esse gosto. Nós e a casa agradecemos.
Mariana ajuntou:
- E que tal começar por uma sopa de legumes bem caprichada?
- Não sei...
- Mariana tem razão. Está friozinho, e uma boa sopa vai nos esquentar - tornou Letícia, voz afável. - Estou com saudades de sua comida, do seu tempero.
- E poderemos nos sentar à mesa, como fazíamos sempre - disse Mariana. - Não sentamos juntas à mesa desde que papai morreu. Que tal esta noite?
Nair balançou a cabeça e mordeu os lábios.
- Você tem razão. Desde que seu pai morreu, não sentamos as três juntas na mesa da cozinha.
- Isso mesmo, mamãe. Reaja. E, ademais, saiba que nós a amamos muito.
Mariana beijou a mãe nas faces e foi ao banheiro, junto com a irmã.
- Quando sair - volveu Letícia -, quero sentir o cheiro de sopa, hein?
Nair sorriu. Fazia tempo que não sorria. Sentiu-se mais animada, com mais força para retomar sua rotina e vencer a melancolia. A luz ainda se fazia presente no quarto e parecia colar-se nela. Nair respirou fundo, espreguiçou-se e resolveu. Um bom começo seria descer e preparar o jantar.
- Minhas meninas têm razão: todas precisamos nos alimentar adequadamente.
Ela calçou as chinelas e desceu para a cozinha. Acendeu a luz, abriu a geladeira, pegou alguns legumes e levou-os até a pia. As lágrimas escorriam sem cessar, e, enquanto descascava cenouras e mandioquinhas para a sopa, Nair fez um balanço de sua vida. Sentia-se impotente para mudar, não conseguia enxergar um futuro promissor pela frente. Como poderia? Estava perto dos quarenta, sem profissão, viúva, sem dinheiro e com duas filhas ainda necessitando de sua ajuda. Teria valido a pena largar seu amor por conta de um punhado de dinheiro? Sua vida podia ter sido tão diferente...
Enquanto ela pensava e chorava de mansinho, uma voz familiar tentava acalmá-la:
- Você fez o que foi melhor. Vivia pobremente e, diante dos fatos, preferiu ter seu filho e dar-lhe um lar. Você pensou no filho que carregava no ventre e em mais ninguém. Sua atitude foi nobre diante das forças que regem a vida. Você fez o melhor que pôde. Creio que está na hora de largar o passado e seguir adiante, sem culpa nem remorso.
Nair não saberia dizer se aquela voz era sua, da intuição ou do espírito santo. Estava muito emocionada para tirar conclusões. No entanto, aquela voz teve o dom de acalmar seu coração. Pela primeira vez em meses, desde a morte do marido, Nair sentiu seu coração pulsar mais leve e suas costas ficarem menos sobrecarregadas de culpas, medos e frustrações. Ela suspirou aliviada, esboçou leve sorriso e continuou concentrada no preparo do jantar. Ao lado dela, a luz que se fizera presente, instantes antes no quarto começou a tomar forma. Logo o espírito de um senhor aparentando não mais que sessenta anos de idade fez-se presente e sorriu-lhe feliz. Homero, quando vivo, tinha sido homem bruto, sem escrúpulos. E agora, anos e anos vivendo em outra dimensão, no mundo espiritual de fato, tinha clara noção dos desatinos que cometera e tentava, a todo custo, consertar ao menos uma parcela do estrago feito anos atrás na vida de Nair. O espírito aproximou-se dela e delicadamente acariciou-lhe as faces. O corpo dela estremeceu levemente.
- Minha menina, tenho certeza de que tudo vai se resolver. Enquanto você não me perdoar, não vou sossegar e não vou partir. Farei o que for possível para ajudá-la a reconquistar a felicidade.

CAPÍTULO 6

Inácio entrou em casa e subiu apressado para o quarto. Estava decidido a procurar Mariana, abrir seu coração e namorá-la. Convicto de seu amor achava que o tempo estava passando rápido demais. Era hora de tomar uma atitude. Íngrid chegou logo em seguida. Estava se aprontando para um jantar de gala.
- Tentei falar com você o dia todo, mas sua secretária não deixou.
- Tive tantos problemas no escritório hoje. Sou engenheiro responsável, e a diretoria da Centax conta com minha dedicação. Isabel sabe que, quando é urgente, deve passar a ligação.
Íngrid sorriu. Admirava a competência e dedicação do filho.
- Realmente não se tratava de assunto urgente.
- O que você queria?
- Sua irmã vai passar uns dias conosco.
Inácio sorriu feliz.
- Tenho muita saudade de Sílvia. O papai vem também?
- Seu pai está namorando - rebateu ela, num tom ríspido.
Inácio percebeu o tom irritado da mãe, mas procurou disfarçar:
- Ele está firme com a Júlia?
- Parece que sim. As más línguas dizem que Júlia estava noiva, mas o rapaz descobriu em tempo que se tratava do bom e velho golpe do baú. Tenho medo de que seu pai sofra.
- Mãe! - protestou Inácio.
- Não estou sendo cínica, nem mesmo irônica. Seu pai é adulto e sabe o que é melhor para si. Eu nunca me meteria em sua vida. Aluísio é atraente, continua bonito, os fios grisalhos lhe conferem ar sedutor. Todavia, tenho amigas na alta sociedade carioca e sei que essa moça não morre de amores pelo seu pai. Júlia estava noiva daquele banqueiro, parente dos Guinle...
Inácio fez sinal com a mão, interrompendo a mãe.
- Papai sabe se safar das oportunistas. Ele precisa de companhia, é diferente de você.
- De mim? - ela protestou.
- Você é auto-suficiente. Seu sangue nórdico é bem diferente do sangue latino que papai carrega nas veias. Ele gosta de ser paparicado, precisa ter alguém que o espere após o trabalho em casa.
- Eu sempre amei seu pai. O meu sangue nórdico entendeu perfeitamente quando ele escolheu uma companhia mais jovem ao seu lado. Aluísio esqueceu que ambos começamos a envelhecer. Ambos! Seu pai não aceita os avanços da idade. Acredita que desfilar com uma menina a tiracolo vai lhe trazer status, vigor e juventude. Não vai.
- Não quero me meter. Em todo caso, se essa moça não estiver apaixonada, papai vai descobrir. Ele é esperto.
- Pode ser. Aluísio foi criado em fazenda, no pasto. Ele aprendeu a distinguir uma ovelha de uma vaca.
Inácio riu gostoso.
- Você é muito divertida. - Aproximou-se e abraçou-a.
- Se para mim não foi fácil aceitar a separação, imagino como você ainda deve estar se sentindo.
Íngrid sentiu os olhos marejarem. Ela percebeu o quanto Inácio sofreu com a separação e passou a viver desconfiado das meninas, fugindo dos compromissos. Agora que ele parecia feliz e dava largas ao coração, não era justo preocupá-lo com seus problemas afetivos. Íngrid respirou fundo e procurou ocultar sua fragilidade.
- Seu pai escolheu seu caminho. Aluísio fez sua escolha e terá de arcar com as conseqüências. Infelizmente não posso fazer nada. Não tenho mais a ilusão de que seu pai volte para meus braços. Entretanto, não gostaria que ele sofresse uma desilusão amorosa. Nessa altura de sua vida, tal ocorrência seria devastadora. – Ingrid mudou o tom. - Bom, como seu pai sabe se safar das golpistas creio que ele vai saber direitinho o que fazer com essa tal de Júlia, caso ela esteja mais apaixonada pelo seu patrimônio do que por ele.
- Não devemos nos meter. Papai está bem. Falei com ele ontem ao telefone, e ele estava bastante feliz.
Íngrid apertou a língua contra o céu da boca. Tinha vontade de dar um grito, desabafar, mas precisava mostrar-se forte diante do filho.
- Torço para que seu pai seja muito feliz. Aluísio merece.
Inácio terminou de ajeitar os cabelos e mudou o assunto.
- Quando Sílvia chega?
- Amanhã, na hora do almoço.
- Vem de avião?
- Sim, vem de ponte aérea.
- Quer que eu vá buscá-la?
- Não. Dedique-se ao seu trabalho. Eu mesma irei. Já conversei com Ismael e acertamos o horário. Vou buscá-la no aeroporto e seguiremos até um shopping. Vamos almoçar fazer umas compras. Assim que chegar do escritório, você nos encontra. Podemos marcar e sair para jantar, os três juntos. O que acha?
- Ótima idéia. Vou reservar mesa para nós no seu restaurante predileto.
- Não sei ao certo. Sílvia é enjoada para comer. Disse-me que só come peixe.
- Então vamos àquele restaurante japonês em Moema. O que me diz?
- Ótima pedida. Sua irmã vai adorar o local: bem freqüentado, ambiente agradável, e os donos são bem simpáticos.
- Combinado. Vou pedir para Isabel fazer as reservas.
Inácio falava e ao mesmo tempo procurava uma jaqueta no armário.
- Está apressado por quê? - indagou Íngrid.
- Vou até a casa de Mariana. Quero oficializar nosso namoro.
- Fico tão feliz! - suspirou Íngrid. - Mariana é ótima moça. É bonita, boa família e independente.
- É um pouco ciumenta - ajuntou ele.
- Ciumenta?
- É. Mariana se faz de segura e forte, mas no fundo morre de ciúmes.
- Até eu sentiria, com essa Teresa por perto...
Inácio riu.
- Está falando sério?
- Sim. Ela não larga do seu pé. Por que tem estreitado tanto a amizade? Até agora não entendi por que ela largou tudo no Rio de Janeiro e veio atrás de nós. Nunca fomos íntimos.
- Ela terminou o namoro, está se sentindo só.
- Ela sabe que você está comprometido?
- Sim. Eu disse a ela que estou apaixonado por Mariana.
- E qual foi a sua reação? Não vá me dizer que ela aceitou numa boa.
- Qual o problema? Teresa é boa moça. Ela tem liberdade para se abrir comigo, mais nada.
- É raro uma mulher confiar seus segredos a um homem, a não ser que ele seja gay.
- Olhe o preconceito...
Íngrid levantou-se impaciente. Apoiou-se no braço de Inácio.
- Meu filho, se fosse outra mulher, eu tentaria compreender. Não sou preconceituosa, você sabe disso. Tenho a mente aberta, respeito às pessoas, aprecio as diferenças. E creio que possa haver amizade sincera entre um homem e uma mulher. Mas, no caso de Teresa, isso não cheira bem. Tome cuidado com ela.
Inácio sorriu, mostrando os dentes alvos e enfileirados.
- Eu me cuidarei.
Ele apanhou uma jaqueta. Vestiu-a e rogou:
- Torça por mim e Mariana.
- Vocês serão felizes juntos - finalizou Íngrid, sincera.
Inácio estalou um sonoro beijo na bochecha da mãe.
- Deus a ouça. Ficar com Mariana é o que mais quero na vida.
- Mas todo cuidado é pouco.
- Ah, mãe - Inácio fez gesto com a mão. - Teresa e eu saímos algumas vezes, e mais nada. Somos bons amigos. Não tem nada a ver.
- Algo me diz que ainda tem a ver. Teresa acalenta um dia casar-se com você. Acha que ela se mudou para São Paulo a troco de que? Crê que ela se cansou das belezas do Rio e resolveu vir de mala e cuia para cá? Assim, de repente?
- Não acredito nessa história. Você está afirmando isso ou ouviu alguma coisa?
- Os boatos correm...
Inácio interrompeu-a.
- Não podemos confiar em boatos.
- Meu instinto de mãe diz que Teresa é perigosa.
- Impossível.
- Fique atento.
- Não creio ser necessário.
Íngrid afastou-se do batente da porta e fez sinal com os dedos para o filho. Inácio acompanhou os movimentos da mão e espantou-se ao olhar para o aparador próximo à porta do quarto. Sobre o móvel, um vaso acolhia enorme ramalhete de cravos vermelhos.
- O que é isso?
- Leia o cartão - sentenciou Íngrid.
Inácio aproximou-se do móvel e apanhou o pequeno envelope branco. Abriu-o e leu o cartão:

"Querido Inácio,

Nossa conversa ontem foi bastante prazerosa. Gostaria de repetir. Que tal novo encontro? Aguardo sua ligação. "Com amor, Teresa"

- Mãe, você está toda preocupada, só por causa disto?
- Bom, ainda acho que você deve tomar providências. Não gostaria que ela prejudicasse seu namoro. Gosto de Mariana.
- Você está vendo coisas demais. Isso é só um agradecimento. Tivemos uma conversa longa acerca do término do namoro dela com tal de Artur, mais nada.
- Então resolva a situação a contento. Quanto mais rápido, melhor.
O jovem assentiu com a cabeça e saiu. Otília e Ivana almoçavam num elegante e badalado restaurante, repleto de figuras da alta sociedade, empresários, artistas e políticos. Era o restaurante da moda na cidade. Ivana curvou o corpo sobre a mesa e baixou o tom de voz:
- Sabe que Teresa Aguilar está noiva do Inácio Menezes?
Otília suspirou triste.
- Dizem as más línguas que essa menina aprontou no Rio de Janeiro, sumiu por uns tempos e veio fugida para cá.
- Mentira, tudo inveja.
- Conheço a família de Inácio. Sua mãe é mulher extraordinária. Deve estar triste com o namoro do filho e Teresa Aguilar. Ela não é boa pessoa.
- Como sabe?
- Fiquei sabendo que Teresa namorava um fotógrafo na cidade, viciado em drogas.
Ivana deu de ombros.
- E quantos não se drogam nesta cidade?
- Teresa sustentava o vício do namorado, desde que ele tirasse umas fotos, digamos, comprometedoras de pessoas com as quais ela não simpatizava, somente para causar estrago e infelicidade a essas pessoas. E às vezes arrancar-lhes dinheiro.
- E daí?
- O Artur fazia o trabalho, tirava as fotos e era fartamente recompensado em drogas, de espécies variadas. Mas de uma hora para outra a Teresa resolveu apostar as fichas no Inácio Menezes e houve uma briga feia entre ela e o Artur. Ela o ameaçou e dizem por aí que a prisão do Enrico...
- O playboy pego com droga no aeroporto?
- Esse mesmo - tornou Otília, preocupada. - Dizem que a Teresa armou uma cilada para a polícia prender o Artur, mas ele se safou. Ela queria se vir livre dele e agora o rapaz a chantageia.
- Tudo invenção. Pode acreditar.
Otília baixou o tom de voz.
- Disseram-me que esse rapaz está namorando sua filha.
- E daí? Nicole é dona de sua vida.
- Não teme pela integridade de sua filha?
- Por quê?
- Ivana, você é mãe!
Ela impacientou-se. Apanhou o cardápio e abriu-o. Prosseguiu voz fria.
- Você não pode dizer nada sobre filhos. Nunca os teve.
- Mas tenho experiência de vida e sou sua amiga. De certo modo, sinto que algo muito ruim pode acontecer a Nicole.
- Ela que se dane - disse Ivana, incisiva. - Não quero mais falar na minha filha. Se continuarmos com esse lero-lero, vou perder o apetite.
Otília engoliu seco. Mudou o assunto.
- E, por falar em filhos, como está Bruno? Faz tempo que não o vejo em nossas festas e jantares.
- Esse parece odiar a riqueza - esbravejou Ivana. - Vive metido na periferia, vendendo remédio barato, promovendo trabalhos assistenciais, essas bobagens de gente com o coração mole.
- Bruno tem caráter, é íntegro. Gosto muito dele.
- Não sei por que vocês têm essa mania de querer pegar pessoas ignorantes e pobres e promovê-las, dar-lhes melhores condições de vida.
- Faz parte da vida, Ivana. Ajudar as pessoas é algo bastante gratificante. Quando descubro um artista em potencial, não tenho dúvidas: eu o ajudo a especializar-se, melhorar seu trabalho e mostrar seu talento ao mundo. Se tivermos bastante dinheiro, é bom dividir com quem acreditamos valer à pena.
- O nosso mundo é dividido em classes, em castas. Pobre deve ficar no seu lugar e rico no seu. Branco com branco, preto com preto. A mistura nunca deu certo. É como óleo e vinagre.
- Não seja tão dura e preconceituosa, minha amiga.
- Sou realista.
- Por que essa visão distorcida acerca do mundo? Por que não revê valores para mudar suas atitudes?
- Estou bem assim, obrigada.
- Você está plantando hoje o que vai colher amanhã. Não custa nada mudar essa postura fria e arrogante.
Ivana foi incisiva:
- Sou sua amiga porque nunca me censurou. Vai vir com aulas de auto-ajuda? Acha que vou cair nessa baboseira de melhorar minha cabeça para ter uma vida melhor?
- Isso mesmo - sentenciou Otília.
- A minha vida está boa, oras. Às vezes não sei por que sou sua amiga. Somos tão diferentes. Como posso gostar de alguém que jura acreditar em duendes?
As duas riram a valer. Otília gostava das tiradas bem-humoradas de Ivana.
- E o casamento, como anda?
- De mal a pior. Daqui a alguns meses eu e Virgílio assinaremos os papéis da separação.
- Vocês nunca se deram bem mesmo. Quem sabe você não vai começar uma nova etapa?
- Sem dúvida - afirmou Ivana. - Fizemos belo acordo financeiro no passado, e creio que nada vai dar errado. Não agora, depois de tantos anos.
- Você nunca me contou direito essa história.
- Não interessa, vai acabar. O que posso lhe dizer é que, se quiséssemos nos separar antes do prazo, todo o nosso patrimônio iria para o Bruno e a desmiolada da Nicole.
- Mesmo?
- Sim. Imagine a cena: o Bruno distribuindo dinheiro aos pobres e a Nicole comprando montanhas e carreiras de cocaína.
Otília meneou a cabeça para os lados. Embora fossem amigas, havia muitos pontos em que ela discordava de Ivana. Ela chegava a ficar zonza com os ataques que Ivana destilava contra tudo e contra todos. Precisava de clima agradável para o almoço.
- O que acha do Dr. Sidnei?
Ivana sorriu.
- Sidnei é excelente partido. Ele está no topo da minha lista. Vou confessar-lhe algo.
- O que é?
- Eu e Sidnei tivemos um namorico na adolescência.
- Vocês foram namorados?
- Faz muitos anos, mas ele gostava muito de mim.
- E por que não ficaram juntos?
Ivana fez muxoxo.
- Oras, Sidnei era um pé-rapado, não tinha onde cair morto. Entre viver uma história de amor passando fome e um casamento sem amor polvilhado com robusto saldo no banco, preferi o último.
- Sidnei deve ter sofrido muito. Parece homem correto, amoroso.
- Ele nunca se casou. Creio que goste de mim até hoje.
- Espero que Sidnei ainda nutra algum sentimento por você.
- Eu também.
- Está na hora de ir comigo até a cigana - replicou Otília, séria.
- Que cigana Otília?
- A que faz leitura da mão. Você deve ir comigo.
Ivana fez ar de mofa.
- Você é tão inteligente... Não sabia que era dada a crendices.
- E daí? Acredito em tudo. Uma vez precisei tomar uma decisão muito séria, que poderia mudar os rumos de minha vida. Era uma fase em que eu estava muito insegura, o casamento com Adamastor não ia bem.
- Por que não rezou? - indagou Ivana, lacônica.
- Eu rezei. Mas sentia grande desconforto interior. Foi então que uma amiga me indicou a cigana.
- Não acredito nessas idiotices. E o que mais ela fez para você?
- Nada. Mas minhas amigas não saem de lá e...
- Um bando de mulheres inseguras, isso sim. Eu jamais pediria opinião a um estranho para dirigir minha vida.
- O que custa tentar? De repente ela pode dar uma olhada na sua mão e dizer se Sidnei está mesmo na sua linha de destino.
- Não vou dar dinheiro a essas charlatonas desocupadas.
- Essa mulher até que é boa. Tem um monte de gente - Otília fez largo gesto, e juntou os dedos - que a procura. Dolores é poderosa.
- Sabe que não gosto disso. Nunca precisei saber do meu futuro ou coisas do gênero. Sou dona de minha vida.
- Mas não custa nada tentar - atiçou Otília. - E se porventura Sidnei estiver interessado em outra? Você terá tempo de agir e cortejá-lo.
Ivana riu.
- Quanta fantasia, Otília! Não sou mais adolescente.
- Se quiser, é só me dizer. Vamos aos pedidos?
Otília fez gracioso gesto ao garçom. Enquanto isso, Ivana ficou pensativa, alheia a tudo, por instantes. Sidnei era muito bonito, um partidão, e também era bem discreto. Podia estar enrabichado por alguma fulana e ela nem soubesse. Até que não era má idéia saber se o caminho estaria mesmo livre para ela. Seria um desgaste a menos na sua vida.
- Está certo. Qualquer dia vamos procurar essa Dolores. Vamos ver o que ela tem a me dizer.
A noite estava fria e a garoa caía fina. Passava das nove quando Inácio chegou à casa de Nair. Tocou a campainha e Mariana atendeu.
- Estava aflita. Você demorou.
- Trânsito e garoa.
- Combinação perfeita! - exclamou ela.
- A Avenida Radial Leste está entupida de carros, e a garoa faz todos dirigirem com prudência.
- Entre, acabei de passar café.
Inácio adentrou a casa, tirou a jaqueta úmida e beijou Mariana próximo ao lábio. Ela corou de prazer e desconversou.
- Mamãe e Letícia descem logo.
- Não quero atrapalhar.
- Estão assistindo novela lá em cima - ela apontou.
- Estava com saudades.
- Eu também.
- Temos nos falado bastante ao telefone, mas mal a tenho visto.
- A faculdade, o estágio... Estou me esforçando bastante, e deverei ser efetivada na clínica.
- Gosto muito da clínica do Sidnei. É conceituada, tem credibilidade.
- Não tenho tido tempo para sair.
- Precisamos conversar.
- Sobre o quê? - perguntou Mariana, desconfiada.
- Sobre nós.
A jovem estremeceu. Algo dentro dela dizia que o namoro iria se transformar em compromisso mais sério. Todavia, sua cabeça apontava o contrário. Tomada pela insegurança, Mariana sempre esperava pelo pior. Procurou ocultar a emoção servindo o cafezinho.
- O que quer falar? - indagou, num tom impessoal.
Inácio sentou-se no sofá e espantou-se com tamanha frieza.
- O que acontece?
- Nada.
- Você ficou fria de repente.
- Nada de mais - tornou ela.
- Quero oficializar nosso namoro.
Mariana derrubou a xícara. Inácio acudiu-a.
- Sou uma desastrada mesmo.
- Está feliz?
Ela balançou a cabeça para cima e para baixo. Esperava pelo pior, e tudo não passava de pensamentos fúteis e desgastantes. Mariana sentiu vergonha de si mesma por pensar de maneira tão negativa acerca do iminente namoro. Inácio era bom moço, e ela achava que esse namoro era bom demais, que talvez ela não merecesse tanto. Inácio esperou-a limpar-se e servir-se de nova xícara de café e tornou amoroso:
- Conversei com minha mãe hoje e cheguei à conclusão de que quero namorar você, e gostaria de falar com a Dona Nair.
Mariana corou de prazer novamente. Suas faces ficaram vermelhas. Estava apaixonada por Inácio e hesitava entre o medo da rejeição e o desejo de revelar ao moço o que ia a seu coração.
- Estou apaixonado e gostaria de namorá-la, buscá-la na faculdade ou no estágio quando possível levá-la para passear, viajar nos fins de semana, ouvir os discos de Maria Bethânia ao seu lado. Quero estar cada vez mais perto de você.
Mariana não teve tempo de resposta. Inácio aproximou-se e beijou-a demoradamente nos lábios. Ela sentiu o chão sumir e corpo estremecer. Beijaram-se com amor.
- Eu a amo. Quero que seja a mãe dos meus filhos. Você consegue entender isso?
- Sim. Não sei explicar, mas me apaixonei por você desde aquele almoço meses atrás. Parece que o conheço há tanto tempo, como se estivesse com grande saudade, e agora me sinto mais calma.
- Seremos felizes, você vai ver.
- E aquela garota, continua no seu pé?
- Que garota?
Mariana fez gesto vago com a mão.
- A Teresa Aguilar. Vocês têm-se visto?
- Não.
- Sinto algo estranho no peito quando a imagem dela vem à minha mente. Não gosto dela.
Inácio abraçou-a e delicadamente encostou a cabeça da namorada em seu peito.
- Não ligue para isso. Não vamos deixar que os outros nos ameacem. Nós nos amamos, e creio que não há nada mais forte do que nosso sentimento para combater os comentários maledicentes dos outros. A nossa força no bem é capaz de superar qualquer obstáculo.
- Não creio nisso.
- Por que tamanho pessimismo?
- Sinto que ela está apaixonada por você.
- Por que tanta certeza?
- Tive um sonho umas duas noites atrás.
- Um sonho? - indagou Inácio, surpreso.
- É, um sonho. Muito estranho. Eu me vi rodeada de cravos vermelhos. Eu andava e os cravos me perseguiam. Corri, corri e, quando não tinha mais saída, fiquei atônita. Então vi o rosto de Teresa. Ela ria e gargalhava da minha cara assustada. Acuei-me num canto e ela gritava:
- Afaste-se de Inácio. Ele é meu, só meu.
Inácio gelou. Sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. Lembrou-se dos cravos que recebera horas atrás. Talvez fosse uma grande coincidência. Ele afastou os pensamentos com as mãos e procurou esquecer. "Tinha certeza de que era tudo mera coincidência, nada mais que isso."

CAPÍTULO 7

Sílvia chegou à capital numa manhã nublada, tão nublada quanto seus sentimentos. Triste e abatida, ela desceu as escadas do avião, contemplou ao redor e, através de seus grandes óculos escuros, vislumbrou o céu encoberto. A jovem respirou fundo. Precisava seguir adiante. Passara as últimas noites sem conciliar o sono. De uma hora para outra decidira: tinha de vir a São Paulo e passar um bom tempo ao lado da mãe e do irmão. Talvez eles pudessem ajudá-la a esquecer. Sílvia não queria nem pensar no nome do rapaz. Ela sentia-se profundamente rejeitada e triste. Era moça bonita, loira como a mãe, cabelos lisos e sedosos. Os olhos verdes contrastavam com o nariz fino, a boca delicada e o queixo arredondado. Era disputada pelos rapazes, mas seu coração escolhera justamente apaixonar-se por um canalha. Sílvia foi alertada pelas amigas, pelo pai, mas não resistiu. Entregou-se de corpo e alma na relação, e agora, alguns anos depois, o resultado não poderia ser pior. Estava desiludida, sem chão, sem rumo. Ela tirou três grandes malas da esteira e colocou-as sobre o carrinho. Estava com saudade da mãe. Íngrid era sua amiga. Sílvia precisava desabafar chorar, sentir o carinho e os braços ternos da mãe alisando seus cabelos, dando-lhe conselhos. Caminhou célere e, no desembarque, seus olhos procuravam ansiosamente pela figura da mãe. Até que os olhos de ambas se cruzaram. Sílvia sentiu emoção sem igual. Correu até Íngrid. Abraçaram-se com amor.
- Oh, filha! Quanta saudade!
- Eu também estava saudosa, mamãe - volveu à jovem, chorosa.
- Moramos em cidades próximas, no entanto mal temos tempo de nos ver. Gostaria que ficasse mais tempo comigo, e não só alguns dias.
Sílvia fez sinal com o dedo.
- Olhe minhas malas. Acha que toda essa bagagem é para ficar apenas o final de semana?
Íngrid corou de prazer e satisfação.
- Vai ficar comigo por um bom tempo?
- Creio que sim.
Íngrid abraçou-a feliz.
- Você escolheu continuar no Rio, não quis se mudar para São Paulo comigo e seu irmão. Sentimos muito a sua falta, entretanto você não queria distanciar-se de seus amigos e principalmente de Mateus.
Sílvia fez cara de poucos amigos. Íngrid havia alertado a filha. Sabia do caráter de Mateus e tinha certeza de que o desfecho daquele romance seria muito doloroso para sua pequena. Íngrid foi incisiva:
- Como anda seu namorado?
A jovem não respondeu, e Íngrid percebeu os olhos tristes e marejados da filha, mesmo escondidos sob os óculos escuros. Sílvia encostou a cabeça no ombro da mãe e disse chorosa:
- Oh, mamãe, sinto-me perdida, tão insegura! A vida não tem sorrido para mim.
- O que está acontecendo?
- Estou muito triste.
Íngrid fez sinal para o motorista. Ismael acelerou e emparelhou o carro no meio-fio, desceu e cumprimentou Sílvia. Ela respondeu com um aceno de cabeça. Ismael pegou as malas do carrinho e colocou-as no porta-malas do veículo.
- Para casa, Dona Íngrid?
Ela acariciou os cabelos sedosos e volumosos de Sílvia.
- Creio que iremos ao shopping, dar uma volta, espairecer. Depois almoçaremos num bom restaurante. O que acha minha filha?
- Ótima idéia. Preciso desabafar.
- Vamos.
Ambas entraram no carro e continuaram a conversa. Íngrid arriscou:
- Você e Mateus terminaram?
Sílvia fez sinal positivo com a cabeça.
- Quer falar a respeito?
A menina suspirou, limpou as lágrimas com as costas das mãos.
- Sim.
- Não quero ser chata, mas quantas vezes eu a avisei?
- Eu sei mãe, mas...
- Nem, mas, nem meio, mas. O Rio de Janeiro inteiro sabe que Mateus sempre foi apaixonado por aquela pequena, a Paula Mendes. Você se arriscou muito.
- Ele me jurou que estava tudo acabado entre eles.
- Eles viviam rompendo o compromisso.
- Ficamos dois anos juntos.
- O tempo não quer dizer nada, minha filha, principalmente quando as relações terminam de maneira dúbia, sem clareza.
- Eu estava apaixonada. Ele me cortejou. Aí a Paula começou a namorar com outro, então me senti segura a continuar. E descobri que faz mais de um ano que ela e Mateus se encontram às escondidas. Uma amiga os flagrou aos amasso na Barra.
- Isso é verdade?
- Sim. Fui tirar satisfações, e sabe o que o infeliz me disse? Que ainda a ama.
Íngrid suspirou.
- Pelo menos ele foi sincero. Você sempre soube do risco que corria. No fundo, sabia que havia forte possibilidade de ele reatar com a Paula.
- Oh, mamãe. Eles marcaram casamento. Distribuíram os convites. Isso eu não posso agüentar. Não tenho sangue de barata. Resolvi passar uns tempos aqui em São Paulo até que tudo se normalize.
- Vão se casar? Para valer?
- Isso mesmo. Ela aprontou, fez cena, disse estar grávida. E o pior: o Mateus acreditou. Disse para mim que ainda nutre sentimentos por ela e tem responsabilidade, acima de tudo. Fiquei tão nervosa!
- Ele deve estar confuso.
- Pô, mãe! Eu fui super-compreensiva, disse que não me importava, que ele podia ter o filho com ela, poderia visitá-lo, etc., etc. Ele nem me deu ouvidos. No dia seguinte estava desfilando com ela lá na Marina da Glória. Saiu até notinha no Globo.
- Não ligue para notinhas de jornal. Fez bem em voltar.
- Quero ficar com você e Inácio.
- E seu pai? Concordou com sua vinda?
- Papai nem liga mais para mim.
Íngrid defendeu o ex-marido:
- Seu pai é homem ocupado, tem muitos negócios. Sílvia fez ar de mofa.
- Qual nada! Papai está apaixonado.
- Estou sabendo.
- Marcou casamento com a Júlia.
Íngrid fez um esgar de incredulidade.
- Não pode ser!
- Sim. Parece que ele foi fisgado de verdade.
- Pensei que fosse romance passageiro.
- Mas não é. Quer dizer, não parece.
Íngrid não sabia o que dizer. Aquilo era duro de engolir. Nervosa, retrucou:
- Seu pai caiu nas garras da Júlia Albuquerque? Os comentários chegaram até mim, mas achei que fosse passageiro, nada de compromisso sério. Tem certeza de que vão se casar?
- Hum, hum.
- Ainda não consigo acreditar.
- Você e Inácio vão receber o convite em breve.
- Seu pai sempre foi tão esperto!
- Dessa vez ele parece cego. Você nem imagina. Precisa ver para crer.
- Sério?
- Uma loucura! Papai está apaixonadíssimo. Disse-me que, se a Júlia quiser, ele se casa num estalar de dedos.
- Não, seu pai não disse isso.
- Disse, sim, mãe. Ele está disposto a levar essa sandice adiante.
- E você chegou a dizer a Aluísio que acha isso uma loucura?
- Sim.
- E ele?
Sílvia sorriu e balançou a cabeça para os lados.
- Falou que estou com ciúmes porque a Júlia tem a minha idade. Papai disse para não me preocupar, porque ele continuaria me amando e viveríamos os três felizes, lá no Joá.
- Seu pai endoideceu.
- De vez. A Júlia foi minha amiga de colégio. Freqüentava nossa casa e papai nunca a notou. Ela ficou noiva do pai da Estelinha ano passado e, quando o Dr. Alaor sentiu cheiro de golpe no ar, desmanchou o noivado. A Júlia deu escândalo, mas depois mudou a estratégia e se encostou naquele jovem banqueiro. Esse era descolado e sentia cheiro de golpista a larga distância. Júlia não obteve sucesso com ele, mas finalmente encontrou alento em papai. O negócio dela é dinheiro, mais nada.
- Aluísio é adulto e sabe se cuidar.
- Se o papai descobrir que ela está com ele somente por dinheiro, vai ser pior.
- Por que diz isso?
- Está se sentindo velho.
- Velho? Seu pai tem cinqüenta e dois anos de idade. Está bonito, corpo em forma e saudável.
- Mas sente-se velho. Júlia o faz se sentir jovem, cheio de vida. E como se fosse um troféu que ele carrega para cima e para baixo e adora mostrar aos amigos.
- Quanta insegurança! Seu pai sempre foi tão inteligente...
- Nem tão inteligente assim. Ele se separou de você.
- Isso não tem nada a ver.
- Como não? Você o amava.
Íngrid estremeceu por um instante. Sílvia continuou:
- Ele chegou e terminou, rompeu um casamento sólido e feliz. E tenho certeza de que estava se sentindo no limite, meio velho, sem perspectivas. Algo me diz que papai ainda vai voltar para você.
- Não diga uma coisa dessas. Nem por brincadeira.
- Você ainda o ama, não é?
Íngrid não mentia para os filhos. E não queria representar para Sílvia.
- Nunca deixei de amar seu pai. Entretanto, a escolha foi dele. E, diante disso, fui obrigada a mudar minha vida, a fazer as minhas próprias escolhas também. Mudei de cidade, reconstruí a vida ao lado de seu irmão. Você não quis vir por conta do namoro com Mateus e dos seus amigos. Agora estou bem. Superei a dor, o mal-estar. É muito triste chegar à meia-idade e ver que seu casamento ruiu mesmo recheado de boas lembranças e feliz. Senti-me incompetente no início, como se tudo que fizera nesses quase trinta anos não tivesse valido a pena.
- Mas valeu né?
Íngrid sorriu.
- Sim. Hoje percebo que muita coisa valeu à pena. Você e seu irmão, por exemplo. Tenho muito orgulho de ambos. Inácio e você são a razão de minha existência.
Sílvia abraçou-a.
- Eu a amo muito, mamãe.
- O seu amor e o de Inácio para mim bastam. Eu e seu pai cumprimos o nosso ciclo.
- Será?
- Sim.
- Não pensa num retorno?
- Eu não vejo possibilidade de retorno. Seu pai quis a separação e foi viver sua vida. Eu aprendi a viver só e agora estou pegando gosto. Faço os meus horários, programo as minhas atividades e não sou cobrada. Também não preciso dar satisfações a ninguém. É bom esse gostinho de liberdade, de dona de mim mesma.
- Creio que papai vai voltar a lhe procurar.
- Ele está apaixonado pela Júlia. Logo vai se casar e até quem sabe ter um filho com essa golpista.
Sílvia meneou a cabeça para os lados, de maneira sinistra.
- Ele vai voltar.
- Por que diz isso com tamanha convicção? Sílvia arriscou um tanto insegura:
- Porque eu sonhei mamãe.
Íngrid arregalou os olhos. Sentiu um friozinho percorrer-lhe a espinha.
- Vo... Você disse que sonhou?
- Sim.
- Quantas vezes?
A garota encostou o indicador no queixo.
- Deixe-me ver... Acho que umas três vezes.
- Três vezes seguidas?
- É. E você sabe que os meus sonhos repetidos se tornam realidade.
- Santa mãe de Deus!
- Prepare-se, mamãe.
Íngrid procurou ocultar o medo que se lhe apossava.
- Gostaria de consultar um especialista?
- Por enquanto, não. Sinto-me bem. Sabe que quando fico chateada e triste esses sonhos aparecem. Lembra-se na época em que não passei no vestibular? Eu tive aqueles sonhos repetidos com a tia Alzira e...
- Lembro-me perfeitamente. E o que aconteceu no sonho aconteceu com sua tia.
- Então se prepare, porquanto papai voltará a procurá-la.
Íngrid remexeu-se nervosa no banco do carro. Aquilo não podia acontecer de novo. Amava Aluísio com toda a sua força, numa intensidade sem igual, ainda vibrante e pulsante em seu coração. Entretanto, ela se sentira muito magoada quando ele propôs o divórcio. Eles viviam bem até o dia em que Íngrid notou mudanças em seu próprio corpo e também em seu temperamento. Era acometida por ondas de calor, suores noturnos, depressão, e o pior: seu desejo sexual diminuíra bastante. Ela consultou seu médico no Rio, o Dr. Martins, e ele lhe deu o diagnóstico: menopausa. Íngrid não se sentiu à vontade para falar com o marido sobre essa transformação a qual toda mulher enfrenta geralmente depois dos quarenta anos. Assim, aos poucos, a vida íntima do casal esfriou. Aluísio apaixonou-se por Júlia, pediu a separação. Íngrid, mesmo ferida em seu íntimo, assinou os papéis e decidiu mudar-se para São Paulo e morar com o filho. Ainda amava o marido, e ser-lhe-ia penoso vê-lo saracoteando pelo Rio nos braços de outra. Seu coração pulsava pelo marido, entretanto a razão a chamava à realidade. Se ele não queria mais o casamento, ela precisava aceitar e procurar seguir adiante. E era o que estava tentando fazer, nos últimos três anos. O carro adentrou o shopping. Íngrid fez sinal para o motorista.
- Encoste logo ali. Vamos saltar. Você pode fazer sua hora de almoço, Ismael - disse ela, consultando o relógio. - Encontre-nos no saguão do estacionamento VIP daqui a duas horas.
- Sim, senhora.
As duas desceram do carro, caminharam até o elevador e subiram para a praça de alimentação. Escolheram singelo e discreto restaurante numa das quinas da praça. Queriam privacidade. Assim que o garçom anotou os pedidos, Sílvia sorriu.
- Estava com saudades do movimento, das pessoas, da agitação desta cidade.
- Fico feliz que esteja gostando. Espero que fique bastante tempo aqui comigo.
- Minha intenção é essa, mamãe. Quero ficar por aqui.
- E o trabalho, como ficou?
- Eu pedi demissão da prefeitura.
- Que pena! A comunidade da Rocinha vai sentir muito a falta de excelente assistente social.
- Infelizmente. Eu gostaria de continuar coordenando o projeto de conscientização de jovens quanto à gravidez precoce, mas há pessoas bem competentes lá para levar o projeto adiante. Meus amigos vão continuar com o projeto.
- Eles são jovens inteligentes, sensíveis, e farão um belo trabalho.
- Eu pretendo procurar algo similar aqui em São Paulo.
Íngrid sorriu feliz. Passou delicadamente a mão no braço da filha.
- Você nasceu para abraçar o serviço social, minha filha.
- Por que me diz isso?
- Ora, você tem todo o perfil.
- Como assim?
- O assistente social tem perfil caracterizado pela habilidade e capacidade de desenvolver ações que aprofundem suas reflexões no tocante à justiça social, ao respeito à igualdade de direitos de cada um, ao compromisso ético, com vistas à formação de uma vida digna e à conquista da cidadania e da democracia para todos.
Íngrid sorveu um gole de refresco e prosseguiu:
- Trata-se de agente construtor da cidadania, capaz de interagir nos projetos e programas sociais dos setores público e privado nas áreas de saúde, saúde mental, saúde ocupacional, relações de trabalho, educação, habitação, conservação e preservação do meio ambiente, relações de gênero, raça e etnia, direitos humanos e sociais, etc., etc.
Sílvia estava estupefata.
- De onde tirou tanta informação?
- Assisti a um programa na televisão dia desses sobre pessoas que abraçaram o serviço social com amor. Lembrei-me logo de você.
- Amo o que faço.
- Então está decidida mesmo a ficar conosco?
- Sem dúvida.
Continuaram a conversa, mas de repente Sílvia sentiu ligeiro mal-estar.
- Alguma coisa, filha? - perguntou Íngrid, preocupada. - A comida não está boa?
- Não é isso, é uma sensação... Não sei explicar.
No mesmo instante, Teresa entrou no restaurante e veio ao encontro delas.
- Querida! Não quis acreditar quando a vi aqui, Sílvia. Precisei esfregar meus olhos - exagerou.
Íngrid e Sílvia levantaram-se. Sílvia olhou para a mãe de esguelha e Íngrid compreendeu o porquê do mal-estar da filha. Sílvia procurou dar tom simpático à voz:
- Como vai, Teresa? Quanto tempo!
- Vou bem. Faz séculos! Está de passagem por São Paulo?
- Pretendo ficar um pouco mais. Talvez passar uma temporada.
Teresa riu maliciosa.
- Compreendo. A propósito, fiquei sabendo do noivado de Mateus e Paula.
- Não seja indelicada - rompeu Íngrid, numa voz firme.
- Oh, desculpe-me. É que as notícias correm. - Teresa foi rápida e mudou de assunto: - Aceitariam jantar comigo esta noite?
Sílvia ia responder, mas Íngrid tomou a palavra:
- Sinto muito.
- Por quê?
- Inácio, meu filho, reservou lugar para nós hoje à noite.
- Ótimo! Eu me juntarei ao grupo.
- Hoje, não - respondeu Íngrid.
Teresa odiava ser contrariada. Procurou disfarçar o ódio:
- Bom, poderemos marcar outra hora.
- Com certeza.
Teresa despediu-se delas e, antes de sair em definitivo, perguntou:
- Só por curiosidade, onde vai ser o jantar, querida?
Íngrid disse automaticamente:
- Num restaurante em Moema, não me lembro ao certo o nome.
- Fiquem com Deus, queridas. Até mais.
Teresa saiu do restaurante e ambas voltaram a se sentar. Sílvia serviu-se de um copo de água e sorveu o líquido de um gole só.
- Meu Deus, essa garota me dá calafrios. Agora sei de onde veio o mal-estar.
- Teresa é ardilosa, não gosto dela.
- Dizem lá no Rio que ela veio a São Paulo porque estava fugindo de traficantes.
- Não diga! - exclamou Íngrid, indignada.
- Você sabe que lá no Rio todo mundo se conhece. Principalmente na zona sul.
- Boatos.
- Não, mãe - tornou Sílvia, com veemência. - Eu trabalhava na Rocinha. Sei que Teresa se envolveu com um perigoso traficante, o Tonhão.
Íngrid assustou-se.
- Ela está no pé do seu irmão.
- Mesmo? Não pode ser perigoso? Vai saber com quem ela se meteu...
- Concordo. Felizmente, Inácio me garantiu que não quer nada com ela.
- Tomara Deus!
- Seu irmão conheceu uma moça tão simpática, tão bonita...
- É?
- Sim. Você vai adorá-la.
Nair suspirou, olhou para o altar, fez sinal da cruz, levantou-se e, ao sair da igreja, deu um esbarrão em Salete.
- Desculpe. Estava tão concentrada nas minhas orações que não a vi.
- Como vai, Nair?
- Melhor. Agora já saio de casa, ajudo as meninas nos afazeres domésticos. Comecei a costurar para fora. Se precisar de um remendo, um ajuste de bainha, de barra, é só me procurar.
Salete riu com desdém.
- O salário de Otávio lhe faz falta, não?
- E como! - suspirou Nair. - Tenho duas filhas ótimas, e agora arrumei esse serviço de costura. Estou muito feliz. O dinheiro é pouco ainda, mas dá para pagar as despesas e levar nossas vidas com dignidade.
Creusa aproximou-se.
- Está com ótima aparência, Nair.
- Obrigada. Sinto-me bem melhor.
- As aparências enganam - suspirou Salete.
- Como disse? - indagou Nair, sem entender.
- Nada.
Salete falou, rodou nos calcanhares e saiu rápida. Nair a pegou na porta da igreja.
- O que está acontecendo? Do que me acusa?
- Sabe de uma coisa? Eu não gosto de gente falsa.
- Falsa? O que eu fiz para me caluniar assim?
- Ainda vai trazer má fama para a vizinhança. Santinha do pau oco!
Creusa intrometeu-se na conversa:
- Estamos na porta de uma igreja, Nair. Não se faça de dissimulada. Não minta em frente à casa de Deus. É pecado.
- Não estou entendendo.
Salete puxou a amiga.
- Vamos embora, Creusa. Eu disse que ela, além de dissimulada, não prestava.
- Ei, como ousam falar assim comigo? Exijo respeito.
- Ui! Além de sirigaita, é agressiva - volveu Creusa, em tom irônico.
Nair aproximou-se e meteu-lhe o dedo em riste.
- Dá para entender por que não se casou e nunca teve ninguém. Você é estúpida e arrogante.
Creusa nem se importou. Disparou:
- Na nossa rua só moram pessoas decentes e honestas, de boa índole. Não queira manchar a nossa reputação. Pensa que a gente não vê aquele carro parado na sua porta todas as tardes?
- Que carro? - perguntou Nair, estupefata. - Do que estão falando?
- Bem que você disse Salete - ajuntou Creusa. - Ela se faz de desentendida. Está querendo nos fazer de bobas. Mal o marido esfriou na cova e ela vai botando as asinhas de fora.
Salete olhou para Nair e fuzilou-a com o olhar.
- Não queremos mais sua amizade. Somos pessoas de bem. Não falamos com mulher de vida fácil.
As duas cuspiram no chão, rodaram nos calcanhares e saíram apressadas. Nair estava completamente aturdida. Não fazia a menor idéia do que elas diziam. Padre Alberto aproximou-se.
- Eu ouvi o final da conversa, Nair.
- Ouviu padre?
- Ouvi.
- Não acredito que ouvi tamanha barbaridade na porta da igreja.
- Não se deixe contaminar pelo veneno delas.
- Padre, não sei do que estavam falando. Não sei de nada.
- Não lhes dê ouvidos.
- Fazia tempo que eu não saía de casa. Estou melhorando, costurando para fora. Consegui vencer a depressão.
- Eu sei. Você é uma vencedora.
Ele apoiou-a no braço.
- Vamos até a sacristia. Vou lhe dar um copo de água com açúcar. Aceita?
Nair fez sinal afirmativo com a cabeça e, apoiada nos braços de padre Alberto, voltou para a paróquia.

CAPÍTULO 8

Teresa mal continha sua ira. Tão logo saíra do restaurante, dirigiu-se até o toalete mais próximo. Entrou e lavou o rosto. Precisava se acalmar. Olhou para sua imagem refletida no espelho.
- Aquelas duas me pagam! Preciso fingir cordialidade com elas para conquistar Inácio. Se eu me casar com ele, serei rica. Poderei pagar a dívida aos traficantes. Eu corro risco de morte. Ademais, Inácio não pode me trocar por aquela suburbana. Mariana é simples demais.
Teresa terminou de se ajeitar e, ao sair do toalete, deu de encontro com uma moça loira e de proporções avantajadas. Iria soltar uns impropérios, mas a aparência da moça fez com que Teresa se lembrasse de Isabel, a secretária de Inácio. Teve um lampejo, uma idéia fantástica, e veio-lhe o impulso de ligar. Foi até a loja de uma conhecida e pediu para usar o telefone. Discou.
- Oi, Isabel, como vai?
- Desculpe-me... Quem fala?
- Querida, sou eu. Teresa Aguilar.
- Como vai, Teresa?
- Bem.
- Sinto, mas o Dr. Inácio está numa reunião neste momento e...
Teresa respirou fundo.
- Não, querida, não quero falar com Inácio.
- Não?
- Liguei para falar com você mesma.
- Comigo? - perguntou a secretária, em tom surpreso.
- Isso mesmo.
- O que seria?
- Você sempre foi muito simpática comigo. Eu gostaria de retribuir. Estava passeando no shopping, como quem não quer nada, e vi algo que é a sua cara. Não vou poder deixar de comprar.
Isabel envaideceu-se. Suas faces coraram. Ela era gordinha, baixinha, cabelos presos em coque, pele bem clara. E usava óculos de grau, bem pesados. A aparência não era seu ponto forte, e ela tinha dificuldade em lidar com sua baixa auto-estima. Teresa continuou aplicando o golpe:
- Vi uma blusa perfeita para você. No entanto queria confirmar seu número. E tamanho médio, certo?
Isabel sorriu contente.
- Imagine Teresa. Meu número é... É um pouco maior.
- Não posso acreditar! Você é tão ajeitadinha, tem um corpo tão bonitinho... Ah, você deve estar brincando comigo.
- Não, Teresa, eu...
- Está certo. Mas vou comprar para você um número maior, muito a contragosto. Tenho certeza de que você vai ter de trocar por número menor.
- Obrigada, muito obrigada.
Agora era o momento do golpe de misericórdia. Isabel estava praticamente em suas mãos. Era o momento de Teresa arrancar o que queria, sem despertar suspeitas.
- Querida, me responda uma coisa.
- Pois não?
- Encontrei Dona Íngrid há pouco, e ela me falou que Inácio fez reserva naquele restaurante de Moema.
- Sim.
Teresa fez beicinho:
- Você geralmente lhe faz as reservas, não?
- Sim.
- Oh, eu preciso do número de telefone. Você poderia dar para mim?
- Claro! Só um momento, por favor.
Isabel consultou a agenda e em instantes deu telefone, endereço, todas as informações de que Teresa precisava.
- Obrigada, querida. Você é um amor de menina. Não esquecerei o seu presente.
Desligou o telefone e bufou. A vendedora olhou-a com ar desconfiado.
- Vai levar alguma coisa, senhorita?
Teresa deu uma olhada geral pela loja.
- Você tem alguma blusinha bem barata e bem grande?
- Grande como, senhora?
Teresa abriu os braços e os estendeu.
- Assim, tamanho "E".
- Perdão, senhorita? Mas qual tamanho?
- Tamanho "E".
- Não entendo...
Teresa foi incisiva:
- "E" de enorme, compreende? Para uma moça bem gorda e horrorosa.
A vendedora espantou-se.
- Sim... Quer dizer, não sei se trabalhamos com números tão grandes.
- Verifique no estoque.
- Aguarde um momento, por favor.
Teresa sorriu feliz. Agora precisava fazer duas coisas: impedir Íngrid de ir ao restaurante e avisar Mariana do jantar.
- Isso eu tiro de letra. Se Sílvia chegou agora a pouco, não teve tempo de conhecer a namoradinha do Inácio. A insegura da suburbana não vai gostar de ver seu namorado jantando com uma loira...
Enquanto Teresa sorria triunfante, sombras escuras dançavam ao seu redor, sugando-lhe as energias perniciosas que emanavam de sua mente. Nair chegou em casa mais calma. A conversa com padre Alberto havia sido proveitosa. Não valia a pena dar trela a Salete ou Creusa. Elas estavam cheias de pensamentos negativos e, pior, precisavam de muita oração para melhorar e sair do círculo vicioso de calúnia e fofocas.
- Vou tocar a minha vida e não dar ouvidos as duas - disse para si.
Entretanto uma pulga atrás de sua orelha dizia que elas não haviam inventado a história do homem parado à porta de sua casa. Seria muita fantasia das vizinhas. É fato que Salete enviuvara e passara bom tempo em estado de choque. Não sabia explicar - ou tinha vergonha de dizer aos vizinhos - de qual doença seu marido padecera. O sistema imunológico dele foi perdendo força, foi enfraquecendo. As doenças oportunistas apareceram e ele não resistiu. As más línguas diziam que o pobre coitado morrera vítima de AIDS. Severino, o falecido, era um nordestino arretado, e Salete não se permitia ter intimidades. Era bastante carola, temente a Deus. Severino, não podendo ter prazer com a esposa, passou a pegar meretrizes no centro da cidade. Certa noite acordou suando muito, os lençóis ensopados, com febre contínua, e ele fora internado. Em meados de 1980 não havia tratamento adequado para combater o vírus HIV e muitas pessoas morreram em conseqüência da AIDS. Severino foi um deles. Mas Salete jamais admitiu a doença do marido, mesmo ele internado e morto no Emílio Ribas, hospital da cidade de São Paulo que tratava única e exclusivamente de casos de AIDS naquela época. Salete convenceu-se de que tinha sido pneumonia. Os vizinhos esqueceram o ocorrido. Pouco depois, o filho de Salete arrumou emprego em outra cidade e ela ficou só. Mas será que ela tinha uma mente tão fantasiosa a ponto de afirmar que sempre via um carro parado à porta de Nair? - Será verdade? - perguntou para si, insegura. Nair espantou os pensamentos com as mãos. Trancou a porta de casa, jogou a bolsa sobre o pequeno aparador e acendeu a luz. Mariana estava na clínica e Letícia estava no trabalho. Sozinha, ela jogou-se no sofá, tirou os sapatos. Deu uma boa espreguiçada. Depois, levantou-se e foi até a janela. Pela fresta avistou, do outro lado da rua, Salete e Creusa conversando, olhando e apontando para sua casa.
- Será que essas duas fofoqueiras não têm nada melhor para fazer?
Nair bufou e foi para a cozinha. Lembrou-se das palavras doces de padre Alberto e procurou desviar o pensamento. Estranho um homem ficava parado, dentro do carro, à porta de sua casa, quase todas as tardes. Será que era verdade? E se fosse, será que seria perigoso? Sim, porque na casa moravam três mulheres sozinhas, sem nenhum homem para protegê-las. Nair sentiu um aperto no peito e medo, muito medo. Correu até a sala e de novo puxou a cortina. Um carro acabara de estacionar no meio-fio, em frente à sua casa. Era verdade! O carro estava lá. Salete era fofoqueira de mão cheia, mas não fantasiara. O carro estava parado à sua porta. Nair espremeu os olhos para enxergar melhor. Olhou, olhou e, quando reconheceu o homem ao volante, deu um pulo para trás e um grito abafado.
- Santo Deus! Ele de novo? Como me encontrou aqui? Como descobriu meu endereço?
Nair tremia e mal conseguia articular som. Seria prudente ir até lá fora e falar com ele? Não. Isso não. Salete e Creusa estavam na rua e com certeza iriam deitar e rolar sobre a situação. Mas o que fazer? Ela pensou, pensou e decidiu:
- Vou tirar satisfações.
Nair estugou o passo, abriu a porta, ganhou à calçada e praticamente atirou-se na frente do carro. Virgílio tomou um susto danado. Arregalou os olhos e abriu a porta.
Desceu do veículo meio sem graça.
- O que faz aqui? - a indagou, nervosa.
- De... Desculpe. Não tive a intenção.
- Faz dias que me persegue.
- Eu, bem...
- Como chegou aqui? Quem lhe deu meu endereço? Por que fica parado na minha porta toda tarde?
- Calma. Vou explicar tudo, tudo.
Ela botou as mãos na cintura.
- Pode começar. Já.
Virgílio baixou o tom de voz. Sentiu vergonha.
- Na rua, não.
Nair hesitou. Olhou para o lado e viu Salete e Creusa cochichando. Ambas mexiam as mãos, gesticulavam, aparentavam estar indignadas. Nair meneou a cabeça para os lados. Estava farta daquelas vizinhas mexeriqueiras. Botou a língua para fora, fez uma careta e as duas se espantaram. Virou-se para Virgílio:
- Vamos, entre. Seja rápido.
Virgílio trancou o carro e entrou. Nair fez sinal e ele se sentou numa poltrona.
- Explique-me tudo. Agora.
- Bom. .eu... Sabe...
- Sem meias palavras. Você aparece depois de vinte e tantos anos, do nada, e me persegue? Por quê?
- Não a estou perseguindo.
- Como não? Eu o vi no enterro de meu marido. Era você. Eu juro que o vi.
- Sim. Eu estava lá. Queria constatar. Não acreditei quando soube.
- Não acreditou em quê?
- Que fosse você. Pensei que meu pai a tivesse mandado para bem longe daqui, outra cidade, outro Estado, talvez. Pensei em procurá-la, mas achei prudente ficar em silêncio.
- O que seu pai fez comigo não tem perdão.
- Não diga isso, Nair.
- Como não?
- Eu falhei, cometi um deslize.
- E preferiu casar-se com a víbora da Ivana. Isso foi uma bela prova de amor que você me deu.
- Você desapareceu e não me procurou mais. O que queria que eu fizesse?
Nair mordeu os lábios, receosa. Ele tinha razão. Ela sumira, mas acalentou o sonho de que ele iria atrás dela. E Virgílio não correu. Ela se magoara, acreditando que, por não ter corrido atrás dela, ele não a amava.
- O passado está morto.
- Creio que temos muito que conversar.
- Não temos nada a conversar. Você está casado, tem sua família.
- Como sabe?
- Quando vou ao salão de beleza sempre vejo a foto do casal feliz nas revistas de fofocas.
- Ivana adora aparecer.
- Então por que não me deixa em paz? Por que quer me atormentar depois de mais de vinte anos?
- Não quero atormentá-la. E que pensei, bom...
- Vamos, diga.
Virgílio respirou fundo. Por fim disse:
- Eu ainda a amo.
Nair sentiu o sangue gelar e as pernas falsearem. Precisou ser firme para manter o controle.
- Bobagens. Não me diga besteiras, homem.
- É verdade. Descobri esses anos todos que sempre a amei.
- Isso não é verdade.
- Por favor, escute-me. Eu nunca deixei de amá-la.
Ela vociferou:
- E por que não foi atrás de mim? Foi só eu dar um sumiço e em seguida você se casou com a Ivana.
- Não tive alternativa. Eu vou me separar logo, você está viúva, podemos repensar nossas vidas. Ainda podemos ser felizes.
- Estamos na meia-idade. Não temos muito mais tempo assim.
- Não diga isso. Não importa quanto tempo ficaremos juntos, mas pense.
- Não tem o que pensar.
- Você não me ama mais?
Nair baixou os olhos. Não poderia encará-lo num momento desses.
- Não.
- Éramos felizes e nos amávamos. Esse sentimento não pode ter se esvaído de seu coração.
- Mas foi. Eu o arranquei no dia em que você se casou.
- Eu estava confuso.
- Culpa sua.
- Eu sei. Meu pai me meteu numa grande enrascada.
- Não me fale no seu pai. Só de pensar no Dr. Homero, sinto uma raiva descomunal.
- Após todos esses anos, percebo que ele não fez por mal.
- Não? Separou-nos por um golpe baixo. Ajudou Ivana a engravidar de você. Isso é baixeza, é uma falta de escrúpulos e de moral que não tem cabimento.
- Estávamos em dívidas. Se fôssemos proprietários da farmácia do pai de Ivana, no centro da cidade, era certo que poderíamos saldar as dívidas e fazer fortuna. Papai só quis aumentar e salvaguardar nosso patrimônio.
- E por que Ivana consentiria uma coisa dessas?
- Porque ela vivia uma vida classe média. E sabia que seu pai não tinha tino para os negócios. Ela sempre foi apaixonada pelo luxo e pela riqueza. Sabia que, se meu pai fosse dono daquela farmácia, faríamos muito dinheiro. Meu pai a convenceu disso.
Nair tentou ocultar, mas a lágrima escapou pelo canto do olho.
- Por favor, saia daqui. Não temos o que conversar.
- Escute Nair.
- Não tenho o que escutar. Por favor, retire-se de minha casa e não apareça mais.
- Por favor...
- Se voltar a encostar o carro na minha porta, eu juro que chamo a polícia. E digo que você está me ameaçando.
- Mas...
- Sem, mas. Dou queixa na polícia. Vou à delegacia e faço um boletim de ocorrência. Compreendeu?
Virgílio nada disse. Mordeu os lábios e saiu amuado, cabisbaixo. Nair bateu a porta da sala com força e jogou-se pesadamente no sofá. Não conseguiu conter o pranto.
Por que ele aparecia depois de tanto tempo? Ela tentara sufocar seu amor por anos, casara-se sem amor, formou sua família, e agora ele voltava e cutucava em suas feridas ainda não cicatrizadas? Isso não era justo, depois de tudo o que fizeram com ela. O passado veio com força e ela permaneceu caída no sofá, chorando, remoendo suas emoções. O espírito de Homero tentava a todo custo acalmá-la. Outro espírito, contornos delicados e forma de mulher, aproximou-se.
- De nada vai adiantar, Homero.
- A culpa me corrói. Eu preciso uni-los, Consuelo.
- Agora você é Deus?
- Não, mas...
- Quem disse que tem de fazer isso?
- Preciso acalmar minha consciência. Ela não pára de me acusar.
- Você precisa se perdoar. Assim vai facilitar as coisas.
- Não consigo. Enquanto eu não os vir juntos, não vou sossegar. Preciso reparar o mal que fiz a Nair. Ela perdeu...
Consuelo pousou suas mãos na dele.
- Chi! Não se esqueça de que não há vítimas no mundo. Se Nair fosse firme e acreditasse no seu amor, as coisas poderiam ter sido diferentes. Entretanto, ela não foi firme. Não vou dizer que isso não o exime de sua danosa interferência na vida dela e de Virgílio. Mas agora não vale a pena lembrar-se do passado. O ambiente está carregado, visto que Nair está remoendo um passado cheio de dor. Ao invés de entrar na mesma faixa vibratória que ela, que tal me ajudar a acalmá-la e limpar o ambiente dessas energias pesadas? As meninas vão chegar logo e não é justo que encontrem uma casa cheia de energias nocivas e impuras.
Homero concordou com a cabeça. Ambos se concentraram, esfregaram as mãos, ergueram-nas para o alto e em instantes ministraram um passe em Nair. Aos poucos ela foi se acalmando, sentindo-se mais leve, e cochilou. Homero fez rápida limpeza no ambiente, beijou a testa de Nair e, acompanhado por Consuelo, desvaneceu no ambiente. Passava das sete da noite quando a empregada avisou Íngrid:
- Sua prima Elisa disse que chega daqui à uma hora.
- Minha prima?
- Sim, senhora. Disse ser assunto urgente.
Íngrid estranhou o recado.
- Elisa nunca vem de supetão. Ela me avisa com antecedência quando vem a São Paulo. Tem certeza de que foi ela quem ligou?
- A empregada dela ligou e avisou. Eu estava dando ordens ao jardineiro, talvez tenha me confundido.
Íngrid levantou-se desconfiada. Elisa nunca usou a empregada para dar recados. Estranhou o fato. A empregada entregou-lhe um papel.
- Ela disse para ligar neste número.
Íngrid nem cogitou conferir o número com o da agenda. A princípio, parecia ser apenas um recado estranho, mais nada. Ela pegou o fone e discou. O telefone tocou, tocou e ninguém atendeu. Íngrid tentou de novo e tocou até cair à linha.
- Pode ser que Elisa esteja vindo para cá.
Sílvia estava sentada numa poltroninha próxima à sala.
- Mamãe, não se preocupe. Fique à espera da prima Elisa. Eu vou ao restaurante com Inácio.
Íngrid hesitou por instantes. O filho desceu as escadas e ouviu o fim da conversa.
- Não me diga que não irá ao restaurante?
- É pena, meu filho, mas recebi um recado de Elisa, dizendo que deve chegar daqui à meia hora.
- Então esperemos por ela e vamos todos jantar.
- Não.
- Oras mãe.
- Elisa sempre se atrasa. Deve chegar mesmo é daqui à uma hora. Você estava morrendo de saudades de sua irmã. Aproveitem o jantar para pôr a conversa em dia.
Inácio deu meia-volta e aproximou-se de Sílvia. Beijou-a na testa.
- É verdade: eu estava com muita saudade de minha irmã. Fico contente de saber que vai ficar um bom tempo conosco.
- Preciso aproveitar nossos poucos momentos juntos.
- Por que diz isso?
- Mamãe me falou de Mariana...
Os olhos de Inácio brilharam emocionados.
- Ah, estou tão apaixonado! Encontrei a mulher da minha vida.
- Fico feliz por você.
Íngrid interveio, amável:
- Você reservou horário. Não é de bom tom chegarem atrasados. Eu recebo minha prima e, se der tempo, peço para o Ismael me levar ao encontro de vocês.
- Está certo - concordou Inácio. - Eu e Sílvia temos muitos assuntos para conversar.
Ele puxou a irmã delicadamente pelo braço. Despediram-se e partiram. Nesse mesmo instante, Teresa ligava para a casa de Nair, perguntando por Mariana. Nair atendeu e chamou a filha:
- Mariana, telefone para você.
- É o Inácio, mãe?
- Não. Diz que é uma amiga da faculdade.
Mariana acabara de sair do banho. Ajeitou a toalha sobre os cabelos molhados, vestiu o robe e gritou do corredor lá em cima:
- Diga para ligar mais tarde. Acabei de sair do banho.
- Ela diz que é urgente.
Mariana deu de ombros e por fim desceu. Pegou o fone.
- Quem é?
- Oi, querida.
- Quem fala?
Teresa botou parte da mão sobre o bocal do telefone.
- Sou eu.
- Eu quem?
Teresa foi ligeira e cortou-a:
- Vou direto ao ponto. Cadê seu namorado?
- Hã?
- Você não está com seu namorado, está?
- Não, Inácio não está aqui. Mas, escute o que você quer?
- Não sou de arrumar encrenca. Longe disso, sabe? Mas eu vi seu namorado há poucos instantes abraçado a uma loira bem vistosa.
- Isso é um trote? - indagou Mariana, completamente nervosa.
- Quem avisa amiga é. Acabei de ver seu namorado de braços dados com uma loira bem bonita. Se eu fosse você, iria checar, viu querida?
Mariana bateu o fone no gancho com força.
- Aconteceu alguma coisa, filha?
- Ainda não sei. Vou saber já.
Mariana bufou e discou para a casa de Inácio. A empregada deu o recado:
- Inácio saiu para jantar. Devo anotar recado?
Ela nem respondeu. Ele havia saído para jantar? Quem ligara sabia do encontro. O telefone tocou novamente. Mariana atendeu esbaforida:
- Alô!
- Querida! Desculpe-me, mas creio que nesse tempo você ligou para a casa dele e soube que Inácio não está certo?
Mariana parecia estar fora de mim.
- Quem é você? O que quer?
- Ora, sou apenas uma amiga. - Teresa deu o nome e endereço do restaurante. - Cumpri a minha missão. Como disse quem avisa amiga é. Eu não quero que você seja enganada, querida.
Teresa desligou o fone e caiu na gargalhada. Mariana não sabia o que fazer. De início ficou parada, olhando para o aparelho e pensando em tudo aquilo. Inácio não podia ser canalha. Isso não. Era um trote danado, pesado, mas ela não iria dar trela. Era tudo bobagem. Não iria se preocupar com uma bobagem desse naipe. Não? Movida pela insegurança, Mariana hesitou. Teresa não parava de rir. Seus olhos expressavam seu contentamento.
- Bem feito! Essa suburbana de quinta categoria vai atrás dele. Se bem a conheço, ela é toda certinha e não vai fazer alarde. Mas vai ficar profundamente abalada com a cena de Inácio e Sílvia juntos. Ah, sim - ela jogou os cabelos castanhos para os lados enquanto dizia para si -, Mariana não sabe que a loira é irmã de Inácio. Coitada, que confusão para a cabecinha tola dela...
Mariana continuou estática, sem ação. Nair saiu da cozinha e notou o estado apoplético da filha.
- O que foi? Aconteceu alguma coisa?
-... Não. Nada.
- Como nada? Você está pálida. O que aconteceu?
- Nada, mãe.
Nair tornou:
- O jantar está servido.
Mariana decidiu:
- Vou sair.
- Sair agora? Por quê?
- Precisam de mim na clínica - mentiu.
- Há esta hora?
- São ossos do ofício.
- Acabei de botar o jantar à mesa. Você mal saiu do banho.
- Precisam de mim na clínica. Volto logo.
Mariana subiu as escadas, correu até o quarto e vestiu-se. Desceu rápida, apanhou a bolsa a saiu. Nem teve tempo de secar os cabelos. Enrolou-os num lenço. Bateu a porta com força. Letícia desceu em seguida.
- O que deu na Mariana? Ela mal me cumprimentou.
- Parece que precisam dela lá na clínica do Dr. Sidnei.
- Alguma coisa grave?
- Não sei. Ela não me disse. Saiu e pronto.
Letícia deu de ombros.
- Bom, não vamos nos preocupar.
- Sua irmã sabe o que faz.
- Vamos jantar?
- Sim, vamos.
- Estou faminta.
- Venha, filha, vamos comer.

CAPÍTULO 9

Rogério era um rapaz bem apessoado. Alto, moreno, delicada franja cobria-lhe a testa. Os olhos eram amendoados e levemente esticados. Era filho único de Ismael e Celeste. Com a morte da mãe, quando ele mal completara dezesseis anos de vida, Rogério foi morar com o pai na casa de Virgílio, de quem Ismael era motorista na época. O rapaz dedicou-se aos estudos e Virgílio percebeu que Rogério daria excelente profissional. Diante da certeza, investiu nos estudos do menino e contratou-o para trabalhar em uma de suas farmácias. O tempo correu célere e, de entregador de medicamentos, agora Rogério era o gerente da farmácia que mais dava lucro a Virgílio. Rogério era educado, atendia muito bem os clientes, e a localização da farmácia, numa esquina da Avenida Ibirapuera, próxima ao shopping, atraía clientela distinta, endinheirada e fiel. Infelizmente, alguns anos atrás Ivana implicara com Ismael. Na verdade, Ivana sempre implicava com empregados. Berrava com eles e destratava-os sempre. Ninguém ficava mais que seis meses na casa. Ismael segurou bem a onda. Permaneceu no emprego por longos seis anos, mas chegou um momento em que nem ele queria mais ficar lá, mesmo tendo apreço por Virgílio, Bruno e Nicole. Ismael era de grande valia para a família. Certa manhã, Ismael disse a Ivana que tinha algo sério para conversar com ela.
- Se for aumento de salário, esqueça.
- Não é isso, Dona Ivana. É que... Bem... Eu levo sua filha às festas de suas amigas e tenho notado algo estranho.
- Estranho, como?
- Nicole vai quieta e bem comportada. Quando passo para buscá-la, parece outra pessoa, eufórica, falante, excitada ao extremo.
- Ela se distrai se diverte e sai mais animada.
- Não, senhora. Ontem fui buscá-la numa festa e, ao sair do carro, Nicole distraiu-se e deixou cair isto - disse ele, entregando-lhe um pacotinho.
- O que é isso?
- Acho que sua filha está metida com tóxico.
Ivana sentiu o sangue subir. Desconfiava que Nicole estivesse envolvida com algum tipo de droga. Mas achou que fosse coisa de adolescente, talvez um inofensivo cigarro de maconha e mais nada. Mas, ao ver o pacotinho cheio de ervas, percebeu que sua filha caminhava para coisa pior. No entanto, achou melhor fechar os olhos, esquecer e não encarar a realidade. Ismael ficou parado, esperando uma resposta. Com medo de que ele desse a língua nos dentes e fosse contar sobre o ocorrido a Virgílio, Ivana não pensou duas vezes e demitiu-o. Num único dia ela colocou pai e filho para fora de sua casa. Virgílio tentou argumentar, quis que ela reconsiderasse, todavia Ivana não deu ouvidos ao marido, bateu pé e, quando Virgílio ainda mostrou ânimo para convencê-la do contrário, Ivana começou a quebrar tudo que via pela frente, completamente fora de si, irascível. Ismael saiu da casa muito triste. Gostava de Virgílio e das crianças e temia pelo futuro de Nicole. Tempos depois, ao encontrar Virgílio ao acaso, e na tentativa de alertar o ex-patrão, ele comentou sobre o episódio da maconha, mas Virgílio também não lhe deu atenção. Agradeceu, deu um tapinha nas costas de Ismael e jurou para si que sua filha não era barra-pesada e meteu na cabeça que aquele pacote de maconha era de alguma amiga de Nicole. Ismael alugou um cômodo no centro da cidade e não desanimou. Comprou jornais e esmiuçou os classificados, na tentativa de arrumar uma colocação. Havia recebido um bom dinheiro de indenização, mas seria o suficiente para dois meses, no máximo. Em três dias, no entanto, Ismael estava empregado, foi admitido para ser motorista de Íngrid. Ele tinha certeza de que se daria muito bem nesse novo emprego. A entrevista com Íngrid correra tranqüila, e houve simpatia imediata entre ambos. Rogério, feliz com o novo emprego do pai, alugou pequeno apartamento próximo de seu trabalho. Ia a pé, e assim economizava no combustível. Deixava o carro na garagem do prédio e só o tirava nos fins de semana, para passear com o pai. O rapaz insistia para que morassem juntos, mas o pai preferia seu quarto nos fundos da casa de Íngrid. Ismael não queria ser um estorvo e também queria que o filho, nos seus vinte e dois anos de vida, pudesse ter suas liberdades e tocar a vida de seu jeito. Eles se encontravam todo fim de semana e passavam os domingos juntos. Iam a parques, eventos, museus, almoçavam, assistiam às vezes a uma partida de futebol e depois Rogério deixava o pai na casa da patroa. Era o único dia da semana em que Ismael não dirigia. Rogério, mesmo cansado, fazia questão de que o pai nem tocasse na direção do veículo. Nesta noite Rogério ficara até mais tarde na farmácia e foi um dos últimos a sair. Ajudou a descer as portas do estabelecimento. Despediu-se dos funcionários e dobrou a quadra. A noite estava gelada, ele encolheu o corpo no, sobretudo e esticou o passo. Ao dobrar uma alameda, deparou com uma jovem aos prantos, sentada à beira da calçada, aparentando profundo desequilíbrio emocional. Momentos antes, Mariana saltara do ônibus na Avenida Ibirapuera e correu dois quarteirões para dentro da avenida. Chegou arfante na porta do restaurante. O maitre atendeu-a solícito.
- Alguém a espera, senhorita?
Mariana procurou recobrir o fôlego.
- Sim, tenho amigos que marcaram jantar comigo aqui esta noite. Teria algum problema caso eu pudesse dar uma entradinha e procurá-los? Creio que estou atrasada.
O maitre foi gentil:
- Faça o favor, senhorita. Entre e procure à vontade.
Mariana agradeceu com um aceno e entrou. Seus olhos ansiosos procuraram por todo o salão. Nada. Ela forçou os olhos, espremeu-os e perpassou o olhar mesa por mesa.
Seus olhos grudaram num casal mais ao fundo do estabelecimento. Um garçom parou à frente da mesa e ela não conseguia determinar se o homem ali sentado era Inácio. Teve de esperar mais alguns instantes. Mariana estava impaciente. Algo lhe dizia que o moço ali sentado era seu namorado. O garçom afastou-se, ela novamente espremeu os olhos e constatou: era verdade! Inácio estava acompanhado de bela loira. E pior: Inácio acariciava a mão da garota, passava a mão sobre seu rosto. Pareciam bastante íntimos enamorados até. A jovem sentiu o estômago embrulhar. Desesperou-se. O maitre veio até seu encontro, mas Mariana afastou-se, trôpega e com as mãos na boca, sentindo forte enjôo. Numa rapidez desconcertante, ela deixou o restaurante e ganhou a rua. A jovem dobrou a esquina, não sabia para onde ir. Sentia-se sem rumo, desorientada. Totalmente perdida. Aflita, dando largas à razão, disse para si:
- Bem que desconfiei. Por que ele iria se sentir atraído por mim? Eu sou da periferia, não pertenço à mesma classe social que ele. Sou um brinquedo, um passatempo em suas mãos.
Ela amava Inácio com tanta intensidade, e ele aprontava uma dessas com ela? Isso era o cúmulo do desrespeito. Como pudera se enganar com aquele homem? Como pudera ter sido tão cega? Mariana não agüentou e esparramou-se na calçada. Suas pernas não sustinham seu peso. Sentia-se fraca e desamparada. Arrancou o lenço dos cabelos ainda úmidos e cobriu o rosto com as mãos. Desatou num choro compulsivo. Rogério dobrou a quadra e, ao vê-la em franco desespero, desacelerou os passos e aproximou-se. Hesitou por um momento e, por fim, perguntou:
- Algum problema?
Mariana levantou os olhos inchados e vermelhos.
- Estou desorientada.
- O que foi?
- Quero ir para casa, mas não sei qual ônibus tomar.
- Está perdida? - o indagou solícito.
- Não, só não sei como voltar para casa.
- Onde você mora?
- Na Vila Carrão.
Rogério coçou o queixo, pensativo.
- É, fica do outro lado da cidade, fora de mão.
Mariana continuava a chorar.
- Por que não toma um táxi?
- Não tenho dinheiro para um táxi.
- Quer que eu a acompanhe?
- Não... - Mariana desconfiou. - Não é necessário.
Rogério percebeu a desconfiança e sorriu.
- Escute, estamos no mesmo barco. Você crê que posso lhe fazer algum mal e eu também posso estar sendo alvo de uma armadilha.
- Não entendo.
Ele olhou para os lados, temeroso.
- Jura que não tem ninguém com você?
Mariana sorriu pela primeira vez.
- Está desconfiando de mim?
- Sinto ser observado. Ao aproximar-me, vi o clarão de um flash. Por que não desconfiaria? Só porque é bonitinha?
- Acha que sou assaltante ou coisa do tipo?
- Nesta cidade não dá para confiar em todo mundo. Seja como for, você me passa a impressão de ser uma boa garota. Não me parece ser pessoa de má índole.
Mariana sorriu novamente.
- Estou desconcertada. Eu deveria suspeitar de você, mas creio que somos ambos inofensivos.
Rogério balançou a cabeça, sorridente.
- Isso é verdade. Acabei de sair do trabalho.
- Mora longe?
- Moro aqui perto.
- No ponto lá perto de casa me indicaram qual ônibus tomar. Não sei como voltar. Conhece ônibus daqui que vá para a zona leste? Ou mesmo que passe próximo ao metrô? Eu moro perto da estação Carrão do metrô.
- Posso acompanhá-la.
- Não será necessário.
- São dez horas da noite. É perigoso uma moça andar sozinha pela cidade.
- Se eu pegar ônibus e metrô vou chegar em casa bem depois das onze. Minha mãe deve estar preocupada.
- Façamos o seguinte... - propôs Rogério. - Eu a levo até sua casa.
- Não tenho dinheiro para duas passagens.
- Pegamos um táxi. O trânsito está mais calmo há esta hora. Em vinte minutos você estará lá.
- Não poderia...
- Não se preocupe. Eu pago, depois você acerta comigo.
Mariana titubeou por instantes. Rogério apressou-a.
- Pense logo. Está começando a garoar e o frio está de rachar. Tenho boa saúde, mas não quero arriscar. Venha.
Rogério estendeu-lhe a mão. Mariana apoiou-se nele e levantou-se. Ele lhe parecia ser bom moço. De repente ouviram passos e um barulho, em seguida outro flash espocou. Rogério olhou para os lados, mas não viu nada, ninguém. Mariana estava tão aturdida que mal se importou com aquele clarão. Desejava ardentemente chegar rápido em casa e afundar-se nos travesseiros. Continuaram a caminhar e nem notaram, perto deles, um jovem todo vestido de preto, atrás de um carro. O rapaz colocou a máquina fotográfica na mochila e sorriu satisfeito.
- Teresa me arruma cada uma! Faz uma semana que sigo essa garota. Já estava desistindo. Pelo menos vou receber meu pagamento em drogas.
Artur sorriu feliz. Tinha certeza de que, ao revelar as fotos, Teresa ficaria impressionada e lhe daria boa quantidade de pó. Era isso que ele queria, mais nada. Rogério e Mariana não o notaram e foram andando até alcançarem a Avenida Ibirapuera. Rogério fez sinal para um táxi, o motorista encostou no meio-fio e eles entraram. Mariana deu o endereço e o motorista assentiu com a cabeça. No trajeto, Rogério perguntou:
- Desculpe, não quero me intrometer, mas poderia saber o que você fazia naquela calçada? Parecia estar bem chateada.
- Magoada, desapontada, decepcionada.
- Discutiu com alguém?
- Não. Na verdade, recebi um telefonema.
- Um telefonema?
- Sim. Um trote. Uma mulher me ligou e disse que viu meu namorado com outra, num restaurante aqui em Moema.
- E você acreditou?
- A princípio pensei realmente que aquilo tudo fosse trote, uma farsa. Não dei mais trela para a garota e desliguei o telefone. Entretanto, fiquei com uma pulga atrás da orelha e...
- Desconfiada?
- Hum, hum. Não sei explicar, mas naquele momento era como se eu houvesse sido tomada por uma força estranha, um desejo enorme de ligar para a casa de Inácio e saber se ele estava lá.
- E ele não estava - arriscou Rogério.
- Não. E, logo em seguida, o telefone tocou de novo. Era a mesma mulher.
- Como sabe?
- Era a mesma voz. Então ela foi enfática: "Eu não disse?" ou coisa do tipo. Aquilo me pegou de um jeito... Não agüentei e vim até aqui.
- Você gosta de seu namorado?
Mariana encarou-o séria.
- Claro!
- Mas não o suficiente para deixar que boatos interfiram na relação.
- Mas eu vi. O pior é que era verdade.
- Você pode estar tirando conclusões precipitadas. Ademais, se você gosta mesmo dele, não deveria se importar.
- Não?
- De maneira alguma. Até que se prove o contrário, eu prefiro acreditar em quem amo, e nunca num estranho. E, mesmo que ele estivesse numa situação, digamos, delicada, se eu gostasse realmente dele, daria a chance de se explicar, iria ouvi-lo e depois tirar minhas próprias conclusões. Jamais iria jogar meus sentimentos no lixo por conta de besteira.
Mariana estava indignada.
- Você o defende?
- Não é isso.
- Claro! - ela bateu a mão na testa - Homens! Vocês têm uma capacidade incrível de defender uns aos outros.
Rogério balançou a cabeça para os lados.
- Não foi o que eu quis dizer. Resumidamente, diria que você não confia no seu namorado e, o pior de tudo, não confia em si mesma.
- Como?
- Falta de confiança, total e absoluta,
- Mas eu o vi agarrado com outra!
- E daí?
- O que os olhos vêem, o coração sente.
- Se seu coração se entristece com rapidez, impressiona-se com facilidade, não deveria ter visto. Você não tem estrutura psicológica para enxergar os fatos como realmente são.
- Claro que tenho estrutura! - bramiu Mariana, chamando a atenção do motorista, que os encarou pelo retrovisor.
Rogério prosseguiu:
- As coisas devem ser como você as idealiza. Você quer ver de um jeito e só aceita ver os fatos à sua maneira.
- Não. Sou flexível.
- Não é o que parece.
Mariana explodiu:
- Ele me traiu! Não é o suficiente?
- Será?
- Ninguém me contou. Eu vi.
- Conhece quem estava com ele?
- Nunca a vi antes. Deve ser uma dessas patricinhas endinheiradas. Meninas da mesma classe social que ele.
- Ah, ele é rico - suspirou Rogério.
- É. Bem que desconfiei. Por que um homem bonito e rico iria se meter comigo? No fundo, ele queria era se aproveitar de mim. Mas eu não quis ouvir minha cabeça, deixei o coração ir à frente. Isso que dá.
- Isso é preconceito de sua parte.
- Está me chamando de preconceituosa?
Rogério riu com gosto.
- Estou. Por que um homem bonito e rico não pode se apaixonar por moça de classe social mais baixa?
- Porque é a regra - sentenciou Mariana.
- Que regra?
- Regra da sociedade. Assim é que as coisas funcionam.
- Você dá muito valor às aparências. E por essa razão sente-se insegura. Desse modo não vai segurar esse homem por muito tempo.
- E nem quero. Ele me traiu. Não é de confiança.
- Tem certeza?
- Eu juro para você que o vi com outra.
- Nessas horas é melhor sentar e conversar. Ele pode ter uma amiga.
Mariana cortou-o:
- Homens não têm amigas.
- Porque não?
- Só se for com outra intenção.
Rogério espantou-se:
- Está vendo? Você é preconceituosa e vê maldade em tudo. Como pode querer ter uma vida saudável, próspera e alegre se seus olhos só registram negatividade em tudo que vê?
Mariana deu de ombros.
- A vida é dura.
- Porque você acredita assim.
- Mas é. Perdi meu pai, quase perdi a faculdade. Minha irmã dá um duro danado para ajudar a sustentar a casa e minha mãe agora está se recuperando, colaborando nas despesas, costurando para fora. Ainda está se adaptando à viuvez.
- Seu pai morreu faz pouco tempo?
- Alguns meses.
- É difícil adaptar-se a nova realidade.
- Você tem pai? - indagou Mariana, mais calma.
- Sim.
Ela meneou a cabeça para os lados:
- Então não sabe do que estou falando.
- Por outro lado - retorquiu Rogério -, não tenho mãe.
- Irmãos, você os tem?
- Não. Sou filho único.
- Sinto muito.
- Não há o que sentir. Eu e meu pai nos amamos e nos damos muito bem.
- Mas é triste saber que um dia eles se vão. A morte é algo muito triste. Isso me desagrada profundamente.
- Faz parte da vida.
- Não concordo.
- Não se trata de concordar, mas de entender e procurar aceitar. Afinal, nascer e morrer é algo o qual não podemos fugir neste mundo.
- As pessoas que amamos nunca deveriam morrer.
- Isso causaria uma explosão demográfica no mundo - considerou o jovem, esboçando novo sorriso e mostrando os dentes alvos. - Por outro lado, a saudade nos ensina muita coisa.
- Ah, essa é boa! A saudade só traz dor.
- Depende do ponto de vista. Saudade é quando sentimos a falta de algo ou alguém e isso nos faz refletir. Por isso, quando encontro meu pai, por exemplo, procuro viver intensamente os momentos que temos juntado. Não quero desperdiçar nem uma gota de segundo e, quando surge uma desavença, procuro acalmar logo com a questão e encarar o lado bom da situação. Minha mãe me ensinou muita coisa. E graças a ela hoje eu sinto saudade, ao contrário de muitas pessoas, que, ao invés de saudade, sentem remorso.
- Sinto falta do meu pai.
- É natural, afinal de contas você o amava. É duro, mas a gente aprende. Logo você vai se casar formará uma família, terá filhos e saberá distribuir melhor o seu amor. E nossa vida se torna esse vaivém de gente. Já percebeu quanta gente entra e sai de nossas vidas?
Mariana assentiu com a cabeça.
- Sim.
- Nossa vida funciona assim.
O carro aproximou-se da casa de Mariana. O motorista encostou e puxou o breque de mão. A jovem saltou e Rogério pediu ao motorista que o aguardasse. A jovem tocou a campainha impaciente e, assim que Nair abriu a porta, ela se jogou nos braços da mãe, chorosa e aflita. Nair e Letícia estavam preocupadas. Nair abraçou a filha e desabafou, num tom preocupado:
- Liguei para a clínica e disseram que você não esteve lá. Onde se meteu, filha?
Ela não respondeu. Chorava, e a aflição impedia-a de dizer alguma coisa. Letícia olhou por cima do ombro da mãe e avistou Rogério. De repente seu corpo estremeceu levemente. Ela aproximou-se.
- Olá.
O rapaz sorriu.
- Boa noite. Meu nome é Rogério. Encontrei sua irmã chorando numa calçada, perto do meu trabalho, e a trouxe até em casa.
Nair voltou-se para ele:
- Algo grave? Ela foi assaltada? Molestaram minha filha?
Ele procurou acalmá-la:
- Não aconteceu nada de grave, senhora.
Nair levantou as mãos para o alto.
- Graças a Deus!
O rapaz concordou com a cabeça e prosseguiu:
- O importante é que sua filha está sã e salva.
- Que você seja abençoado, meu jovem. Obrigado por trazer minha filha para casa.
- Não há de quê.
Rogério sacou a carteira do bolso do, sobretudo e tirou um cartão. Estendendo-o a Letícia.
- Ligue-me qualquer dia desses. Podemos marcar um almoço e então lhe conto tudo. O táxi está parado lá fora, me esperando, e o taxímetro não dorme no ponto.
Elas riram. Rogério despediu-se e Mariana aproximou-se, estendendo-lhe a mão.
- Obrigada. Você foi um anjo que me apareceu na hora certa.
- Não tem o que agradecer. Senti vontade de ajudá-la e aqui está no aconchego de seu lar. Agora preciso ir.
Ele despediu-se de Nair e, ao virar-se para sair, esbarrou seu braço no de Letícia. Ele sentiu um choquinho percorrer-lhe o corpo, seus pêlos eriçaram. Ele a olhou e sorriu.
- Espero sua ligação. Boa noite. Letícia respondeu alegre:
- Boa noite.
O jantar decorreu agradável, e pouco antes da meia-noite Inácio e Sílvia estavam em casa. Haviam trocado confidências, conversado bastante sobre suas vidas e principalmente sobre seus relacionamentos afetivos. Ele estimulou a irmã para que esquecesse Mateus e se abrisse para encontrar um novo amor. E procurou encher a cabeça da irmã de esperanças, ao contar-lhe sua própria descoberta amorosa. Inácio e Sílvia se davam muito bem, pois, além de irmãos, eram muito amigos. Não tinham pudores e adquiriram alto grau de confiança, revelando um ao outro todos os seus segredos. O jovem estacionou. Desceram do carro contentes e entraram em casa, abraçados. Íngrid estava esticada numa poltrona, folheando uma revista de moda na saleta de inverno.
- Acordada ainda?
- Sim - respondeu, sem tirar os olhos da revista.
- Onde está Elisa? - indagou Inácio.
- Não tem Elisa nenhuma aqui em casa - esbravejou Íngrid. - Brincadeira de mau gosto. Trote feio esse, viu?
- O que aconteceu? - indagou Sílvia, preocupada.
- Elisa não tirou os pés de Jundiaí. Disse que tenciona vir a São Paulo somente no fim do ano.
- A Maria deu o recado direitinho?
- Deu. Ela jurou para mim, de pés juntos. Disse-me que uma das empregadas de Elisa ligou e avisou que ela chegaria por volta das nove da noite.
- Estranho... Você não ligou para a casa dela?
Íngrid bufou:
- O telefone que Maria me deu não é o da casa de Elisa. Eu, tonta, nem me dei conta de procurar na agenda.
- Talvez seja um mal entendido, mãe - tornou Sílvia.
- Não sei, não. Algo me diz que fui impedida de ir a esse jantar.
- Como assim?
- Não sei coisas da intuição. - Íngrid mudou o tom de voz, agora mais doce. - Contem-me, como foi o jantar? Colocaram todas as conversas em dia?
- Uma boa parte - asseverou Inácio.
- Eu falei pelos cotovelos. Dei um caldo nas orelhas de meu irmão.
- Fico contente. Sua irmã chegou muito tristonha. Eu gosto de vê-la assim, feliz, sorridente. Essa é a minha filha.
- Teria sido mais gostoso se você tivesse partilhado nossa companhia - volveu Sílvia, beijando-lhe as bochechas.
- Vejo que o jantar foi prazeroso.
- Bastante. - Sílvia estava feliz. - Sabia mamãe, que Inácio tem um amigo que trabalha com jovens da periferia?
- Sim. Até pensei em lhe contar isso no caminho do aeroporto ao restaurante.
- E por que não o fez?
- Naquele momento não queria falar de trabalho. Você estava triste, queria desabafar, falar do rompimento do namoro com o Mateus.
- Que Mateus? - perguntou Sílvia, voz irônica.
Íngrid levantou-se da poltrona e abraçou a filha.
- Fico contente de que tenha esquecido esse playboy de araque. Você vai encontrar companheiro à sua altura. Acredite.
Sílvia fez sinal afirmativo com a cabeça.
- Lembra-se do Daniel, mãe? - interveio Inácio.
- Aquele rapaz simpático que almoçou conosco dia destes?
- Ele mesmo. Está metido nesse projeto com o filho do Dr. Virgílio e da Dona Ivana.
- Não posso crer que o filho de Ivana esteja numa empreitada dessas.
- Por que não? - perguntou Sílvia.
- Ivana odeia a pobreza, trabalhos voluntários. Ainda é daquelas que distingue o ser humano por faixa de riqueza, raça, cor. Trata-se de mulher fútil, dondoca. Vive dividida entre compras e shoppings. Nem deve saber que seu filho participa de um projeto social.
- Bruno é bom rapaz, mãe. Nem parece pertencer à alta sociedade. Ele é bastante simples, não gosta de luxo, tem a fala mansa. Gosto muito dele. Vou levar a Sílvia comigo dia desses. Algo me diz que os dois têm muito em comum.
- Vê só, mãe, como as coisas estão se encaixando? Eu tinha de vir para cá e ficar com vocês. Já estou até arrumando trabalho na minha área!
- Vou apresentada ao Daniel - repetiu Inácio. Tenho certeza de que ele vai querer que você trabalhe junto de sua irmã.
- Fico muito contente. Esse Daniel é bonito?
Inácio deu uma gargalhada.
- Você está impossível hoje. Deve sei o saquê. Bebeu demais.
Sílvia achegou-se ao irmão.
- Quando terá uma folga em seu trabalho?
- Na sexta-feira. Tenho algumas horas para descontar, e pretendo sair mais cedo. Será um prazer levá-la até Daniel.
- Assim espero - afirmou Sílvia, feliz e contente.

CAPÍTULO 10

Alguns dias depois, Letícia ligou para Rogério. Ele atendeu sorridente:
- Pensei que fosse dar uma de difícil.
- Eu?
- É.
- Não, sou direta, não gosto de rodeios.
- E por que motivo não me ligou antes? Eu lhe dei meu número e, confesso, queria que me ligasse logo no dia seguinte.
- Tenho trabalhado bastante, me desculpe. Não quis me passar por difícil. E, agora que minha chefe me deu uma trégua, resolvi ligar.
- Você não sabe o quanto estou feliz. Fiquei sonhando com sua ligação.
- Agora pode parar de sonhar - disse ela, em tom de brincadeira. - Quando vai me convidar para sair?
Ele admirou-se:
- Você é sempre assim?
- Assim, como?
- Direta?
- Somente por quem me interesso.
- Uau!
- Eu gostei de você - Letícia foi sincera.
O jovem corou do outro lado da linha. Passou a mão nervosamente pela franja, jogando os cabelos para trás.
- Quando... Quando poderei convidá-la para jantar?
- Quando quiser.
- Pode ser hoje?
- Sim.
- Eu saio da farmácia por volta das oito. E você, a que horas sai do trabalho?
- Devo ficar até mais tarde também. Vamos marcar as nove?
- Pode ser.
- Venha até o shopping - solicitou Letícia. Comemos um lanche e pegamos um cineminha.
- Adoro cinema. Não acredito ter encontrado alguém que goste de cinema, de verdade.
- Pois encontrou uma cinéfila à altura. Adoro filmes.
- O que você está pensando em assistir?
- Estou louca para ver Ghost - Do Outro Lado da Vida, com a Demi Moore e o Patrick Swayze.
- Também estou morrendo de vontade de assistir a esse filme. Desde a estréia não tive tempo, e o público e a crítica afirmam que é lindo, tocante.
- Também li a respeito e assisti ao trailer. Tem sessão às dez da noite. Vai dar tempo de comer um lanche e ainda pegar a sessão. Vou ligar para minha mãe e dizer que o anjo que salvou Mariana vai me levar para casa.
Ele riu.
- Se eu for mais uma vez à sua casa, talvez aprenda o caminho e queira voltar mais vezes.
- Isso veremos.
- Combinados. Encontro você às nove.
Rogério anotou o endereço do shopping e o local onde deveriam se encontrar. Escolheram a praça de alimentação, local de maior visibilidade e fácil acesso. Ele desligou o telefone com largo sorriso nos lábios. Simpatizara bastante com Letícia e agora tinha certeza de que estava começando a gostar da moça, de verdade. Ivana estava impaciente. Andava desconcertada de um lado para outro do quarto. Numa mão, dois dedos prendiam o cigarro e, na outra, um telegrama. Tentou inutilmente apagar o cigarro, mas o cinzeiro estava cheio. Num acesso de fúria, atirou o cinzeiro contra a parede e apagou o cigarro no próprio carpete, fazendo considerável rombo no piso.
- Amanhã ligo e mando trocar - esbravejou. - Eu odiava mesmo essa cor. Estava ficando enjoada.
Ela sentou-se na cama, acendeu novo cigarro e desdobrou novamente o telegrama:

CHEGO ESTA SEMANA -
NO TREM DA MANHÃ -
BEIJOS -
CININHA.

Um telegrama curto e grosso, simples. Só isso, mais nada.
- Não posso crer que aquela doidivanas venha para minha casa. O que a infeliz vem fazer aqui?
- Falando sozinha? - indagou Virgílio.
- Já chegou? Não percebi sua entrada.
Ele nada disse. Dirigiu-se até a janela e subiu os vidros.
- Só depois que me mudei de quarto foi que notei como este aqui tem cheiro forte de cigarro.
- O quarto é meu.
- Não sei como agüenta ficar trancada neste quarto com esse maldito cheiro de cigarro.
- Não sinto cheiro nenhum.
- Quantos maços fumou hoje?
- Isso não é da sua conta - rangeu Ivana, entre dentes. - Nunca se preocupou com minha saúde. Poupe-me de seus comentários.
- Mas está exagerando. Você não cuida da saúde, abusa do cigarro e da bebida.
- Sou forte e saudável.
- Precisa se exercitar.
- Deus me agraciou com belo corpo. Não tenho tendência para engordar e estou muito bem, obrigada.
Virgílio sabia que era difícil entabular conversa com a esposa, principalmente quando Ivana aparentava estar contrariada.
- Que bicho a mordeu hoje?
- Nenhum.
- Como, não? E esse estrago no chão. O cinzeiro espatifado aqui no canto do quarto? Não foi à toa.
- Nada.
- Quando exagera, é porque aconteceu alguma coisa. O que foi?
Ivana amassou o telegrama e jogou-o no chão.
- Minha sobrinha Cininha chega esta semana.
- Esta semana? Que dia?
Ela mordiscou os lábios. Sentou-se na cama.
- Não mencionou a data em que vai chegar. Só disse que é num dia desses, de manhã. Isso é bem dela. Ai, que raiva, viu? Essa menina tem o prazer de me tirar do sério.
- Sorte dela que ainda temos um quarto de hóspedes sobrando.
- Estava pensando em acomodá-la no quarto vago, que foi de Ismael.
- Está louca? - indagou Virgílio, perplexo.
- Por quê? Ela é minha sobrinha e...
- Ela é nossa sobrinha.
- Filha da minha irmã - esbravejou Ivana.
- Cininha nunca teve pai; eu me sinto meio pai dela.
- Eu não esperava que ela viesse. Não somos íntimas.
- Tive muito pouco contato com ela, mas sempre lhe tive simpatia. Era uma menina espevitada, falante, estava sempre bem-humorada.
- É por isso mesmo. Ela é espevitada, fala pelos cotovelos. Não tem modos. Não combina com nossa classe social.
- Pelo menos ela é autêntica e não é fútil como a maioria dessas garotas endinheiradas.
Ivana deu de ombros.
- Ela não é endinheirada e eu não gosto dela.
- Ela é sua única parente viva.
- E daí?
Virgílio, às vezes, não queria acreditar nas barbaridades que a mulher dizia.
- Sua irmã morreu há um ano.
- E eu com isso?
- Você nem foi ao enterro.
Ela levantou-se de pronto. Acendeu mais um cigarro. Tragou e, ao soltar as baforadas, foi enfática:
- Acha que eu iria ao enterro da minha irmã e perder o casamento da filha dos Capanema? Eu jamais iria perdei aquele casamento. Foi o acontecimento do ano.
- Em todo caso, vale ressaltar que era o enterro da sua única irmã.
- Azar o de minha irmã. Oras morrer bem naquele final de semana?
- Você não tem coração. É totalmente insensível.
- Argh...
- Só pensa em si mesma.
- E devo pensar em mais alguém? Por acaso alguém pensa em mim? Não. Então que se lixe o mundo e seus conceitos de benevolência para com o próximo. Você não pode me dar lição de moral. Estamos no mesmo barco.
- Eu tenho coração.
- Tem? Essa é boa!
- Eu e você somos diferentes - protestou Virgílio.
- Podemos ser, mas somos parecidos em muitas coisas.
- Me dê um exemplo.
- Nossos filhos.
Virgílio coçou o queixo.
- O que têm nossos filhos?
- Você também não liga a mínima para os dois. Bruno se meteu com gente de classe social inferior e receio que seja contaminado pelos valores mesquinhos e limitados dessa gente pobre e miserável.
- Ele faz o que gosta. Tenho pensado em conversar com ele a respeito de seu trabalho. Perdi muito tempo longe de meus filhos. Sinto que ainda a tempo de uma reaproximação.
Ivana sorriu maliciosa.
- Então creio que deva correr.
- Não entendi. O que quer dizer? Bruno tem se saído muito bem e...
Ivana foi enfática:
- Não estou falando de seu filho. Esse infeliz talvez caia de amores por uma pobretona e vai seguir sua vida, trocando o bairro dos Jardins pela periferia, cheio de filhos a tiracolo e feliz. Vai ter uma vida limitada e pobre, mas feliz.
- Então não sei o que quer dizer.
- Falo de sua filha, oras.
- Nicole está terminando faculdade. Soube que faz terapia. Parece que não tem problema nenhum.
- Você me surpreende. Não sei se é ingênuo demais ou dissimulado de menos.
Ele estava aparentemente confuso.
- O que está tentando me dizer?
Ivana fez um esgar de incredulidade. Ela não tinha estrutura para lidar com o problema. Ele que se virasse e ficasse com a bomba nas mãos.
- Nicole está cada vez mais afundada no vício.
- Vício?
- Ela se droga.
Virgílio não queria escutar. Ivana estava exagerando, pensou. Ele tentou argumentar:
- Ultimamente eu a tenho visto com bom aspecto. Ela faz análise e...
Ivana foi seca;
- Faz séculos que você não vê sua filha. Preocupa-se demasiadamente com o lucro das farmácias e mais nada. Juro que não nasci para ser mãe.
- Tenho refletido muito ultimamente. Confesso que não fui bom pai. Mas ainda há chance de melhorar meu relacionamento com meus filhos. Essa fase de Nicole...
- Deixe de ser idiota! - atalhou ela. - Não é fase! Sua filha é dependente química, é um caso sem salvação.
- Não creio!
- Ah, é? Sabe onde sua filha está?
- Não.
- Nicole está internada num hospital.
Virgílio preocupou-se.
- Internada?
- Sim. In-ter-na-da. Entendeu?
- Como? O que aconteceu a Nicole?
- Você não consegue deduzir? Eu acabei de lhe dizer: sua filha é fraca e é amante das drogas.
- E por que ninguém nunca me falou nada?
- Como não? O Ismael lhe contou. Eu sei que contou.
Virgílio coçou a cabeça, impaciente. Tentara fechar os olhos à realidade. Mas agora percebia que a situação havia passado dos limites. Tinha de encarar o problema da filha.
- Tem certeza?
Ivana gargalhou.
- Nicole é fraca. Acha que fazia terapia por conta de quê?
- Eu, bem...
- Crê que um punhado de sessões de terapia iria libertá-la do vício pesado em que ela se meteu? Não se faça de ingênuo numa hora dessas. Isso não combina com sua personalidade.
- Por que minha filha está internada? Responda-me!
- Overdose.
Virgílio desesperou-se. Era a primeira vez em anos que se preocupava de verdade com os filhos. Ele não se considerava um pai ausente. Muito pelo contrário. O problema é que ele tinha de trabalhar bastante, dar um duro danado para que a rede de farmácias desse lucro e ele pudesse garantir uma vida boa à mulher e aos filhos. Entretanto, depois que passou a encontrar-se e conversar com Nair, algo dentro dele mudou. De uma hora para outra, Virgílio passou a interessar-se mais pelos filhos. Conversava com Bruno sobre seu projeto de venda de medicamentos na periferia, por exemplo. Mas esquecera-se completamente de Nicole. Nisso ele havia falhado. E sentiu um remorso sem igual.
- Diga-me, o que aconteceu à nossa filha?
- Nicole cheirou cocaína em excesso e foi hospitalizada. Bruno está com ela no hospital.
- E você fala comigo nesse tom? Por que não me ligou no trabalho?
- Não queria atrapalhar...
Ivana virou-se e foi ao banheiro.
- Preciso de um banho relaxante. Cininha chega nesta semana, talvez. Tenho de me preparar psicologicamente para receber a fedelha. Nada como um bom banho de banheira para começar.
Antes de entrar no banheiro, Ivana entregou a Virgílio um pequeno papel no qual constava o endereço do hospital.
- É onde Nicole está internada.
Virgílio afligiu-se completamente. Vestiu o paletó, desceu as escadas aos pulos, pegou o carro e acelerou até o hospital. Chegando lá, pediu informações na recepção e em seguida encontrou Bruno. Aproximou-se do filho e viu-o abraçado a uma moça de belos traços, de beleza ímpar. Ele sorriu para si, com satisfação. Aproximou-se pé ante pé e deu um tapinha no ombro do filho.
- Por que não me ligou?
Bruno virou-se e espantou-se com a presença de Virgílio no hospital. Michele afastou-se e ficou num canto da recepção.
- De que adiantaria pai? - perguntou ar triste. - Você e mamãe estão sempre ocupados.
- Assim que soube, vim correndo.
- Obrigado por ter vindo.
- Sua irmã corre alguma risco de morte?
- Fizeram uma lavagem estomacal e parece que conseguiram desintoxicá-la.
- Sua mãe disse que foi cocaína.
- Ela não sabe o que fala. Sua filha encheu-se de tranqüilizantes. Quase morreu.
- Não me diga uma barbaridade dessas!
- Estou lhe contando a verdade - tornou Bruno, angustiado. - Por que vocês não se interessam um pouco mais pela própria filha?
Virgílio não respondeu.
- Eu vivo bem, pai, sei o que quero da minha vida e não preciso de conselhos ou amparo. Mas Nicole é frágil, precisa de carinho e cuidado, de um braço forte que a apóie.
Virgílio deixou que uma lágrima escorresse pelo canto do olho.
- O que aconteceu de verdade?
- Nicole estava sem sono, deprimida, triste. Exagerou na dose de calmantes. Havia bebido uísque em excesso. A combinação explosiva resultou num pré-coma. A sorte é que uma das empregadas estranhou o silêncio no quarto. Nicole, quando está em casa, liga o som no último volume, bem alto. Nice foi bem esperta. Assim que chamou por Nicole e ela não respondeu, ela desconfiou, entrou no quarto e a encontrou caída no chão. Correu até o telefone e chamou pelo resgate.
- E sua mãe?
- Para variar, estava na Oscar Freire, comprando não sei o quê, para não sei quem.
Virgílio passou nervosamente as mãos pelos cabelos.
- Santo Deus! - exclamou.
- Foi por pouco.
Virgílio abaixou-se e sentou-se no sofá da recepção do hospital. Cobriu a cabeça com as mãos.
- Nunca fui bom pai. Nicole está assim porque eu e sua mãe sempre estivemos distantes de ambos.
- Não adianta se culpar. O melhor é esquecer o passado e começar uma nova etapa. Procure se achegar de Nicole for seu amigo. Ela é muito carente e precisa de seu apoio, de seu amor.
- Eu me dediquei esses anos todos ao trabalho para lhes dar vida boa, deixar-lhes bastante dinheiro, aumentar o patrimônio de vocês.
- Isso nada vale pai. Dinheiro ajuda, mas não é o suficiente. Às vezes é bom deixar que os filhos consigam amealhar seu patrimônio por força própria. Isso nos enche ele valor, nos torna fortes e confiantes, donos de nós mesmos. Um filho gosta e precisa de carinho, amor, aconchego. Dinheiro é bom, é ótimo, mas a gente aprende a ganhar. Faz falta danada não ter amor de pai e mãe...
- Não posso falar pela sua mãe, mas eu sempre os amei. Não fiquei próximo como devia porque tudo girava em torno do trabalho. Eu sempre fiz tudo sozinho. De uns tempos para cá estou ficando mais relaxado.
Bruno esboçou leve sorriso. Notou a tristeza nos olhos do pai e procurou contemporizar.
- Até que enfim! Quem o está ajudando? Alguma empresa terceirizada?
- Não. Estou gostando muito do trabalho do Rogério.
- Fiquei muito triste quando mamãe o botou para fora de casa, junto com o Ismael - suspirou Bruno, triste.
- Eu também. Mas quem consegue enfrentar Ivana, quando está fora de si?
- É verdade - concordou Bruno. - Da próxima vez que o encontrar, diga que mandei um abraço.
- Sem dúvida.
- Gosto muito desse moço. Isso, sim, é algo que você fez e de que me orgulho muito. Você deu-lhe condições para que pudesse vislumbrar uma vida melhor. Deu a Rogério a possibilidade de estudo e oportunidade de trabalho, e veja no que ele se tornou: um homem de responsabilidade, inteligente, e com todos os ingredientes para ter uma vida plena, próspera e feliz. Basicamente, o que você fez com ele é o que eu e meus amigos tentamos fazer na periferia.
Virgílio interessou-se pelo trabalho do filho. Haviam conversado superficialmente tempos atrás, mas agora ele se sentia verdadeiramente interessado.
- Conte-me mais. Gostaria de ouvi-lo.
Bruno sorriu.
- Acredito que podemos estimular o potencial de crescimento que há em todo ser humano. Promover o homem dar-lhe condições de estudo e trabalho. Toda pessoa precisa ser estimulada para o melhor. Depois que ela se contagia nesse ambiente positivo, geralmente vai querer só o melhor para si e para o próximo. É uma cadeia da qual não podemos fugir. Desse modo vamos nos impregnando dessa energia e promovendo uma vida mais digna e feliz para todos.
- Não sabia que você fazia um trabalho tão valioso. Para mim, você só tinha a farmácia.
- Você sempre foi contra a criação da farmácia popular.
- Fui porque só pensava em lucro, em ganhar cada vez mais. Entrei nesse círculo vicioso. Agora entendo um pouco melhor o seu trabalho. A sua margem de lucro é menor, todavia aqueles que não têm condições financeiras para ir a uma farmácia convencional podem pagar pelos seus medicamentos.
- No fundo, as pessoas não gostam de receber de graça. O homem precisa de trabalho, precisa ganhar e se sente feliz em poder pagar. Vendo os medicamentos a preços mais acessíveis, as pessoas se sentem realizadas por poder comprar, pagar, sem depender de ninguém.
Virgílio orgulhou-se do filho.
- Tive umas idéias e gostaria de discuti-las mais à frente.
- Fico feliz.
Os dois se abraçaram.
- Talvez esteja na hora de dar uma trégua no trabalho - ponderou Bruno. - As farmácias vão bem, você tem o Rogério, excelente profissional, ao seu lado. Pode desacelerar sua rotina e curtir mais a vida. Sua filha precisa de você.
- Tem razão, preciso pensar em muita coisa.
Michele estava afastada e, vendo que ambos haviam terminado a conversa, aproximou-se.
- Gostaria de lhe apresentar alguém, papai.
- Quem é essa bela moça?
- Essa é Michele, minha namorada.
Virgílio levantou-se admirado. Sorriu com gosto.
- Prazer.
- O prazer é todo meu - devolveu-a, numa simpatia contagiante.
- Onde se conheceram? - interessou-se o pai.
- Michele trabalha no salão atrás da farmácia popular.
- Ah, sei.
Bruno prosseguiu:
- E também no projeto que visa a oferecer uma vida melhor aos jovens da periferia.
- Muito interessante.
- Sou assistente social.
- Sim, sim.
Virgílio encantou-se pela bela Michele. Sentiu orgulho do filho. Ele fora agraciado com uma moça bonita, que lhe transmitia simpatia e bem-estar.
- Meu filho é um homem de sorte - disse Virgílio em alto e bom som.
- Obrigada. Gosto muito do Bruno.
- Dá para notar pelo brilho de seus olhos. Ele aproximou-se e sussurrou em seus ouvidos:
- Espero que faça meu filho o homem mais feliz do mundo.
Michele sorriu comovida. Assentiu com a cabeça.
- Faz parte da minha missão - respondeu, rindo.
Bruno notou a cumplicidade dos dois. Sorriu alegre. Tinha plena certeza de que o pai aprovara seu namoro com Michele. Logo em seguida, um médico fez sinal para Bruno, chamando-o para o quarto. Ele puxou o pai pelo braço.
- Vamos.
- O que foi filho?
- O médico liberou e permitiu a visita. Nicole precisa de nós.
Virgílio assentiu com a cabeça. Ele, o filho e Michele caminharam esperançosos até o quarto de Nicole. Antes, porém, Michele olhou para um canto do corredor e sorriu. Bruno percebeu e indagou:
- O que foi? Para quem sorriu?
Michele respondeu com simplicidade:
- Um amigo espiritual de Nicole está nos dando às boas-vindas.
Bruno olhou para os lados, não viu nada. Deu de ombros e entraram no quarto. Um espírito em forma de homem, jovem e robusto, sorriu e agradeceu. Everaldo sentia que Nicole poderia se libertar do vício e começar uma nova vida.
- Não esmoreça Nicole. Estou ao seu lado.
Ele falou isso e atravessou a parede do quarto, postando-se ao lado da cama de Nicole.

CAPÍTULO 11

Às nove da noite, em ponto, Rogério chegou ao local marcado. Letícia chegou em seguida. Cumprimentaram-se e ela foi dizendo:
- Eu deveria estar esperando você, mas fiquei falando com minha mãe. Ela não gosta que eu chegue tarde em casa, principalmente durante a semana. Eu disse a ela que qualquer coisa, se eu sumir, deve denunciá-lo à polícia.
- É mesmo?
- Sim. Ela lembrou-se de você. Qualquer sumiço, ela fará o seu retrato falado.
Rogério riu.
- Sua mãe não irá à delegacia, pode acreditar - disse entre sorrisos, mostrando os dentes perfeitamente enfileirados. Vamos comer? Estou com tanta fome...
- Também estou faminta. Eu me antecipei e comprei os ingressos. Temos meia hora para nos alimentarmos.
- Você é muito eficiente.
- Façamos o seguinte... - ajuntou ela. - Eu paguei os ingressos e você me paga o lanche.
- Isso não é justo. O lanche custa mais caro.
Ela deu uma piscadinha maliciosa.
- Por isso mesmo.
- Trabalha em quê?
- Numa loja de roupas femininas dois andares aqui embaixo - apontou com o dedo para o chão.
- Deve ser interessante.
- Nem tanto.
- Você não me parece muito animada. Pensei que gostasse do seu trabalho.
- Eu gosto - volveu. - Dá para dar uma boa ajuda em casa, pagar nossas contas.
- E isso não é bom?
- Claro. Entretanto, eu trabalho muito mais que todas as minhas colegas, por exemplo. Eu faço quase todo o serviço que lhes compete. Minha chefe é mulher insegura e não combina com vendas. Está sempre de cara amarrada, insatisfeita com o serviço, com o atendimento. Ela não é muito simpática.
- Em vendas, é essencial ter simpatia, saber ganhar o cliente com um sorriso, palavras doces.
- Lá na loja as coisas não funcionam assim. Hoje mesmo eu estava atendendo uma cliente e logo depois chegou outra. Eu não podia atender as duas de uma vez só. Minhas colegas estavam em horário de almoço. Chamei minha chefe e ela ficou furiosa.
- Furiosa?
- É. Disse que eu estava atrapalhando sua concentração. Saiu da sala feito foguete, foi grossa com a cliente. Tratou-a de maneira tão fria e impessoal que tanto a moça quanto a minha cliente foram embora.
- Sua chefe conseguiu perder duas clientes. Creio que dificilmente elas voltarão.
- E o pior... - prosseguiu ela. - Minha chefe disse que eu sou incompetente e devia ter atendido as duas. Botou a culpa nas minhas costas.
- Isso não é justo.
- Mas ela é cunhada da dona da loja. Pode mandar e desmandar. Sente-se poderosa. Estou farta desses abusos.
- Também não gosto de chefes que abusam de funcionários.
- Não sinto que ela abuse de mim. Percebo isso sim, que ela se sente insegura, diminuída, parece ter medo ele tomar decisões. E, para finalizar, é muito grossa.
- Então ela não devia estar no cargo - concluiu Rogério.
A conversa fluiu e pararam em frente a uma lanchonete e fizeram o pedido. Pegaram as bandejas com os lanches e escolheram uma mesinha encravada numa quina da praça de alimentação. Letícia continuou:
- Eu sou muito organizada, sempre fui desde pequena e sou muito prática, também. Sei que sou muito útil no trabalho. Mas estou ficando cansada de fazer muito e não ter reconhecimento.
- E por que não pede demissão?
- Nem pensar! O salário não é lá uma maravilha, mas paga as contas e ajuda muito em casa. Outras despesas que temos são cobertas com as costuras que mamãe faz para fora. Vivemos apertadas, mas estamos indo bem.
- Mas podia pensar na possibilidade de um novo trabalho.
Letícia suspirou, enquanto mastigava seu lanche:
- Ah, quisera eu poder mudar de emprego.
- Por que não muda?
- Eu tenho dezenove anos recém-completados e nunca havia trabalhado antes na vida. Tive essa oportunidade e creio que, com o meu atual currículo, não encontrarei algo melhor. Prefiro aguardar, engolir essa chefe, ter mais experiência.
- Vamos ver se a situação não se torna favorável.
- Que situação? - indagou Letícia, sem nada entender.
- Por ora, nada. Estou aqui pensando numas possibilidades.
A jovem encolheu os ombros e terminou seu lanche. Consultou o relógio:
- A sessão vai começar. Vamos?
Fazia três dias que Inácio tentava ligar para Mariana e ela não estava ou não podia atender. Isso era estranho, estavam bem, haviam passado o último fim de semana de mãos dadas, dias recheados de passeios românticos, e agora ela mal queria falar-lhe ao telefone. Alguma coisa estranha devia estar acontecendo ou acontecera. Esse comportamento da namorada não era usual, não era de forma alguma o habitual.
- Tem certeza de que ela vai voltar às seis horas da clínica?
- Isso mesmo.
- Eu liguei para a clínica e me disseram que ela já saiu. Devia ter chegado em casa.
- Vai ver, ela parou na padaria. Mariana sempre traz pão fresquinho para casa.
- Está bem, Dona Nair.
- Dê uma ligadinha lá pelas sete. Porque ela chega, vai direto para o banho, etc.
Inácio suspirou resignado.
- Diga a ela que ligarei à noite. Precisamos conversar.
Inácio desligou o telefone e ficou pensando. Mariana estava estranha. Estava evitando-o, era o que ele sentia. De uma hora para outra. Ele estava tentando agendar um jantar para apresentada à sua irmã, mas Mariana vivia uma semana "cheia de compromissos". Os horários não batiam, ela nunca estava, e tudo isso soava muito estranho.
- Que diabos deu nela? - disse ele para si.
Seu telefone tocou e arrancou-lhe dos pensamentos. Era Isabel, a secretária.
- Dr. Inácio, a senhorita Teresa Aguilar encontra-se na ante-sala. Posso mandá-la entrar?
- Sim, pode.
Teresa irrompeu a sala e o ambiente foi contagiado por sedutora fragrância de perfume. Ela estava impecavelmente vestida, os cabelos soltos e balançando sobre os ombros. Teresa podia ser uma mulher vil, podia ser ardilosa e manipuladora. Era a mulher sem um vestígio de moral. Todavia, era linda, mulher de rara beleza. Os cabelos eram castanhos e sedosos, lisos e bem cuidados. Os olhos verdes eram sedutores e enigmáticos. Os lábios bem-feitos e o nariz fino conferiam-lhe ar delicado. Não havia homem no mundo que não se sentisse atraído por ela. E isso incluía Inácio. Teresa tinha sido o terror da zona sul carioca. Namorava todos os jovens, saía com todos, fazia os rapazes de gato-sapato, entretanto Inácio era seu preferido. Ela não o amava. Longe disso. Sentia contentamento íntimo quando o pobre jovem lhe lançava olhares carregados de extrema cobiça. Era puro prazer sexual, mais nada. No entanto, vale ressaltar que Inácio alguns anos atrás não caiu nas graças ou mesmo nas garras de Teresa. Saíram duas vezes lá no Rio, e mais nada. Os jovens sempre cometem tolices, e uma das tolices de Inácio foi se empolgar com Teresa a ponto de colocá-la no carro e subir até a Barra da Tijuca, considerado o maior motel a céu aberto da América Latina nos distantes anos 70. Inácio estava mais interessado nos estudos, e não deu muita trela para Teresa. Divertiram-se e acabou. Ele mudou-se para São Paulo e ela continuou no Rio. Teresa era classe média e queria desesperadamente fazer parte da alta sociedade, fosse carioca, paulista, não importava. Assim que Inácio se mudou para a capital paulista, ela passou a fazer pequenos trabalhos, até que caiu nas graças de um conhecido traficante carioca, o temível Tonhão. Bonita e muito esperta, logo Teresa desfilava pela cidade com carro do ano e apartamento no bairro do Leblon. Querendo mais e mais, bolou um plano e passou a perna no traficante, interceptando uma carga de cocaína vinda da Colômbia. Vendeu praticamente toda a droga e sumiu do Rio de Janeiro, para ira do traficante. Foi passar uma temporada no Pantanal e lá conheceu Artur, fotógrafo que estava trabalhando como free-lance para uma revista de ecologia. Teresa seduziu o rapaz, e Artur logo se apaixonou. Ele gostava de fumar um baseado de vez em quando e cheirar uma ou duas carreiras de cocaína. Teresa presenteava-lhe com cocaína, e assim ele foi se tornando seu escravo. Fazia tudo que ela mandava desde que o abastecesse de drogas. Artur trouxe Teresa para São Paulo e viveram juntos por uns tempos. Em seguida ele apaixonou-se por Nicole. Teresa resolveu partir para conquistar Inácio. Ela e Artur ainda se encontravam. Ele fazia pequenos trabalhos escusos para ela, em troca de um punhado de pó. O último trabalho que lhe fora solicitado foi seguir Mariana por uns tempos e tentar flagrá-la em alguma situação que, através das lentes de Artur, pudesse comprometê-la. Mariana não era empecilho para Teresa, muito pelo contrário. Mariana crescera cheia de medos e inseguranças. Tentava ocultar os sentimentos e a total falta de firmeza interior por meio de atitudes forçadas. Em seu íntimo, julgava-se sozinha e incapaz de tomar atitudes próprias. Com a morte do pai, tentou se passar por valente, demonstrando ser moça forte e articulada de idéias, mas era pura fachada. Em seu íntimo habitava uma moça insegura, triste e que não se sentia suficientemente boa para ter uma vida próspera e feliz. As mulheres são extremamente competitivas. Faz parte da natureza humana feminina. A experiente Teresa percebeu o ponto fraco de Mariana e passou a tirar vantagem disso. Totalmente desprovida de moral e valores, queria unir-se a Inácio somente por conta do dinheiro, mais nada. Não seria uma suburbana desequilibrada que iria fazê-la lamber os dedos, à toa. E havia um agravante: Teresa corria o risco de ser morta. Tonhão, o traficante, conseguiu descobrir seu paradeiro e ela foi posta na parede. Ou pagava o valor da carga uma fortuna - ou seria morta. E ela não tinha muito tempo para cumprir o trato. Estava desesperada.
Teresa lançou sobre Inácio olhar significativo.
- Saudades.
- Que surpresa - disse ele por fim, após alguns segundos com os olhos paralisados sobre o extenso decote do vestido, mostrando o colo avantajado e robusto da jovem.
Inácio disfarçou e encarou-a nos olhos.
- O que faz aqui no meu trabalho.
- Amigos aparecem e são necessários nessa hora.
Inácio coçou a cabeça. Ela continuou:
- Vim prestar solidariedade.
Ele não estava entendendo nada.
- O que diz? - indagou, carregando no semblante um enorme ponto de interrogação.
Teresa mordeu os lábios, jogou os cabelos para os lados e sacou da bolsa um envelope pardo. Inácio com olhou com expressão interrogativa no rosto.
- Explique-se melhor.
- Desculpe, mas acho isso muito desagradável.
- O que é?
- Não gosto de me meter na vida de meus amigos, ainda mais quando são amigos de quem prezo muito a amizade.
- Não me venha com rodeios. O que é isso?
- Olhe você mesmo.
Ele apanhou o envelope, abriu-o e, conforme ia vendo as fotos, suas mãos tremiam e seu coração pulsava acima do normal. Logo uma grossa camada de suor escorreu pela fronte e pingou sobre uma das fotografias. Ele as jogou nervosamente sobre a mesa.
- De onde veio isto? - indagou perplexo.
- Um amigo me deu. Estava tirando fotos para uma campanha publicitária quando se interessou pelo casalzinho aí da foto e foi clicando. No princípio acreditei ser pura coincidência, não quis levar a sério. Mas, depois, olhando bem para as fotos, percebi que a moça em questão é a Mariana.
- Sim, é ela - balbuciou ele.
- Conhece o rapaz?
Inácio suspirou.
- Não sei, parece familiar. Estou nervoso.
Teresa adicionou com malícia:
- E as fotos são bem comprometedoras.
Realmente as fotos foram tiradas de um ângulo comprometedor. Quem as olhasse teria a impressão de que Mariana e Rogério eram íntimos, bastante íntimos. Ora a cabeça dela no ombro dele, ora uma mão sobre a outra, ou mesmo um sorriso cúmplice. Talvez no momento em que Mariana, arrasada na calçada, apoiou-se nas mãos de Rogério para se erguer, o espocar da foto dava a impressão de que ela estava se atirando em seus braços. E... Cada um vê o que quer. Teresa queria forçosamente, claro, que Inácio visse um casal apaixonado. E Inácio caiu na armadilha e viu um casal. Não conseguia mais concatenar os pensamentos. Teresa aproveitou o estado emocional do rapaz e deu-lhe o golpe de misericórdia:
- As fotos podem ser um erro, um engano qualquer.
- Não creio - disse ele, enfático.
Ela aproximou-se e tocou levemente em seu braço.
- Essas fotos podem ser armação, um truque de fotografia, talvez.
Inácio caiu na armadilha. Nem sequer pensou que Teresa estivesse fazendo cena.
- Por favor, não queira proteger a Mariana. Vocês, mulheres, são incompreensíveis. Querem acobertar os delitos de alcova que cada uma comete. Não tem piedade de mim.
Ela fez beicinho:
- Oh, querido! Creio que estou me fazendo passar por lobo em pele de cordeiro. Jamais agiria dessa forma.
- As fotos não mentem.
- Claro que não.
O circo estava armado. Teresa foi implacável:
- Diga-me uma coisa...
- O quê? - perguntou Inácio, mãos trêmulas e suando frio.
- Notou alguma diferença de comportamento.
- Como assim?
- Ah, sei lá, Mariana tem se comportado normalmente ou está diferente? Porque, se ela estiver agindo com naturalidade, se não há diferença de tratamento que você tenha notado então isso foi um equívoco e essas fotos devem ser queimadas e encerramos o assunto aqui. Agora, se Mariana estiver se comportando de maneira estranha, o que não creio, então deve procurá-la para uma conversa.
- Mariana tem se comportado de maneira bem estranha, se quer saber.
- Jura? Como assim?
- Ela não atende aos meus telefonemas. Tem-me evitado.
Teresa escondeu o rosto entre os volumosos e sedosos cabelos para ocultar o sorriso de satisfação. Recompôs-se:
- Bom, nesse caso, se ela tem adotado comportamento estranho, então...
Ela deixou a frase solta no ar. Inácio andava de um lado para o outro do escritório. Estava possesso. Tudo se encaixava. Ele, idiota, acreditando que Mariana estava brava, triste, e agora descobria que ela não passava de uma... Ele censurou os pensamentos. Não podia descer tanto em sua escala moral. Estava bastante nervoso, e quando se está fora de si o melhor é não pensar nada, para não se arrepender depois. O rapaz deixou-se cair pesadamente sobre a cadeira. Apoiou os cotovelos sobre a mesa e cobriu o rosto, com enorme pesar.
- Ela me parecia ser tão sincera em seus sentimentos!
- A gente se engana com as pessoas - volveu Teresa.
- Se não fossem essas fotos, eu jamais acreditaria.
Teresa riu triunfante. Nada como contar com a ajuda de um viciado. Artur era excelente fotógrafo, mas não parava em nenhum emprego por conta de seu namoro com as drogas, pois elas começavam a interferir em seu trabalho. Teresa já o conhecera na intimidade e sabia do gosto do rapaz por destilados e substâncias tóxicas em geral. Foi só lhe oferecer um papelote de cocaína em troca do serviço. Artur aceitou de pronto, e o serviço era uma barbada. Em menos de uma semana conseguiu fotografar Mariana numa situação adequada aos interesses de Teresa. No final das contas, Artur cheirou sua cocaína e Teresa abalou a relação dos pombinhos felizes. Momentos antes, logo depois que Inácio conversou com Nair, ela desligou o telefone e olhou para a filha, estendida no sofá, rodeada de lenços de papel, aparência nada atraente. Mariana estava prostrada no sofá, não tinha vontade de se alimentar, de tomar banho, de ir à faculdade. Dera uma desculpa meio esfarrapada e saíra mais cedo da clínica do Dr. Sidnei.
- É a quinta vez que Inácio liga hoje - volveu Nair.
- Pode ligar a sexta e milésima vez, eu não vou atendê-lo.
- Por que está tão desconfiada?
- Mãe, contei milhões de vezes à mesma história. Eu vi com meus próprios olhos. Inácio estava de amores com uma fulana. Ninguém me contou, eu vi.
- Não custa nada conversarem a respeito. Pergunte a ele. Caso diga que não fez nada naquela noite, que não saiu, caso invente uma desculpa que não confira com a realidade, então o melhor é se separar. Não tem nada pior do que amar e desconfiar de alguém. Amor e desconfiança não andam juntos.
- Eu sei mãe. Não combinam.
- Mas - prosseguiu Nair -, se ele confessar que saiu e foi jantar fora naquela noite, então há uma chance de conversar, de retomar o namoro, e isso vai até acabar fortalecendo e melhorando a relação de ambos.
- Obrigada. Mas tenho medo de encarar a verdade. E se ele mentir? Vou ficar mais decepcionada ainda. Por enquanto a dúvida me assola, mas eu prefiro a dúvida à verdade.
- Melhor ouvir a verdade do que ficar sendo corroída pela dúvida. Pelo menos você pode tomar alguma atitude.
- E ficar mais arrasada e mais decepcionada?
- Pior do que você está? Duvido.
Mariana fez força e sentou-se no sofá, indignada.
- Você sempre se pareceu muito comigo. Pensávamos da mesma maneira. Você tem mudado bastante. Saiu daquela depressão, tem uma vida ativa, começou a costurar para fora...
- Estou fazendo o melhor que posso. Letícia me ensinou isso. Cometi muitos erros no passado.
- Que erros?
- Isso não é da conta de ninguém. Tem a ver com a minha vida, não compromete nem você nem sua irmã. Aprendi muita coisa nesses anos todos, e agora cansei de ser triste. Cansei. Ponto final.
- Não dá para mudar de uma hora para outra.
- Dá, sim. Com vontade e determinação, todos podemos mudar. É uma questão de reforma interior, de mudança de atitudes, renovação de crenças e posturas.
- Isso é impossível. Somos o que somos e não há como mudar nosso jeito de ser.
- O jeito de ser não muda, faz parte do espírito. Entretanto, a maneira de enxergar os fatos, de encarar a vida pode ser mudada. Eu resolvi mudar. Passei vinte anos ao lado de seu pai, como se fosse um vegetal, e, agora que as criei e cumpri meu papel de mãe, quero cuidar de mim.
- Estou espantada. Você mudou bastante.
- Mudei e quero mudar mais ainda. Quero ser dona de mim.
- Gostaria de pensar como você.
- É uma questão de escolha. Prefere mudar ou vai continuar aí sofrendo e ruminando por algo que nem mesmo possa ser verdade?
Mariana não sabia o que dizer. O espírito de Homero aproximou-se de Nair e ela, sem saber, captou o que ia em seu pensamento. Com a modulação de voz levemente alterada, ela disparou:
- O que você tem a perder? O diálogo é a melhor maneira de entendimento entre duas pessoas. Ligue para Inácio, converse com ele a respeito. Quem sabe você não terá uma grata surpresa e se sentirá uma tola apaixonada?
- Tola?
- Melhor se sentir tola do que perder a chance de viver uma linda história de amor. Depois não venha me dizer que a vida lhe foi injusta. Você está jogando sua felicidade pela janela. Não faça como eu.
Nair falou num rompante, levantou-se da poltrona, rodou nos calcanhares e caminhou até a cozinha. Mariana estava estupefata. A mãe estava bem mudada, já havia notado algumas mudanças desde quando Nair passou a costurar para fora e conciliar esse novo trabalho com os afazeres domésticos. A casa estava mais bem arrumada, os móveis pareciam mais bem tratados, as louças bem mais limpas e impecavelmente dispostas nos armários. E havia um brilho nos olhos da mãe que ela nunca notara antes. Sua mãe num ponto tinha razão. Era melhor saber toda a verdade do que ficar remoendo possibilidades, ficar presa nesse mar de inseguranças e aflições. A dúvida não é boa conselheira, e estava na hora de dar um basta naquele estado de prostração. Homero soprou sobre a cabeça de Mariana, e logo a tonalidade cinzenta de sua aura foi adquirindo nova cor, surgindo um azul tímido a princípio, e logo uma tonalidade de azul mais intenso ganhou forma, espalhando-se ao redor de seu corpo todo, trazendo-lhe bem-estar e disposição. Imediatamente Mariana lembrou-se de Inácio, de seu amor, dos momentos felizes juntos, e ligou para o escritório. Isabel atendeu e passou a ligação justamente no instante em que Inácio acabara de ver as fotos, jogava-se na cadeira e apoiava os cotovelos sobre a mesa, cobrindo o rosto com as mãos. Ele atendeu o telefone de maneira ríspida:
- O que foi?
- Desculpe Dr. Inácio, mas a senhorita Mariana está ao telefone. Necessita falar-lhe com urgência.
- Impossível atendê-la.
Ele sentiu tremenda raiva brotar dentro de si. Finalizou:
- Diga a ela que estou numa reunião importante e que ligo depois.
- Sim, senhor.
Isabel transmitiu o recado a Mariana. Ela desligou o telefone desapontada. Ansiava falar com o namorado. Entretanto, renovada em suas energias, sorriu para si mesma. Deu de ombros e pensou alto:
- Quem sabe, dia desses, no fim da tarde, eu apareça no escritório? Sairei mais cedo da clínica e lhe farei uma surpresa. Ah, como eu o amo...
Homero riu com satisfação. Consuelo aproximou-se.
- Não gostaria que interferisse na vida das duas.
- Só estou ajudando. De certa forma me sinto responsável também pela felicidade das garotas. Mariana se parece muito com a mãe. Letícia é mais forte, independente, e sabe se virar.
- Todos sabem se virar, de uma maneira ou de outra - afirmou Consuelo. - Por favor, pense em sua própria melhora, nas coisas boas e nas pessoas que o esperam. Ficar preso nesta dimensão não é apropriado. As energias da Terra são naturalmente mais densas, e você pode ser atacado a qualquer momento. Há muitos espíritos perdidos por aqui, e não temos como protegê-lo caso uma falange de espíritos infelizes se aproxime.
- Sei me defender dos arruaceiros.
- Entretanto vai chegar um ponto em que você não poderá mais ficar preso às energias deste mundo. Você morreu, desencarnou, não faz mais parte deste ambiente. Já percebeu há quantos anos está aqui parado, tentando inutilmente ajudar Nair?
- Preciso reparar meu erro. Já fiz curso no astral, tentei melhorar por meio de terapia, mas não consigo. Meu terapeuta disse que o melhor a fazer para diminuir o peso da minha consciência seria retornar e tentar remediar. E aqui estou. Não importa se estou aqui há dez, vinte anos. O tempo é o que menos importa. Eu separei Virgílio e Nair. Agora vou tentar uni-los de novo.
- Você é quem sabe. Marta está saudosa.
Homero sorriu emocionado.
- Marta é espírito evoluído e pode esperar. Ela me prometeu. Tenho certeza de que logo estarei quite com esses dois e com minha consciência e poderei partir.
- Mas...
- Por favor - ele suplicou. - Me dê um pouco mais de tempo.
- E se você tivesse uma conversa com Nair? Não seria mais proveitoso?
Homero deu de ombros.
- Ela ainda tem raiva de mim.
- Vai precisar enfrentá-la, se quer mesmo se redimir.
Homero hesitou.
- Prefiro ficar oculto, ajudá-la à distância.
- Você é quem sabe - ponderou Consuelo.

CAPÍTULO 12

Nicole acordou e seus olhos timidamente procuraram identificar o local em que se encontrava. Virou lentamente a cabeça para os lados, mas não reconheceu o ambiente de imediato. Havia um homem próximo à cama e ela precisou espremer os olhos e fazer tremendo esforço para lembrar-se de quem era. Virgílio apertou delicadamente sua mão.
- Onde estou? - indagou sonolenta, voz pastosa.
- Não se preocupe meu bem. Papai está aqui.
- Papai? - estranhou.
- Sim, querida. Estou aqui ao seu lado.
- Que lugar é este?
- Seu quarto. Você está no seu quarto, em casa.
- Mas a ambulância, o resgate... Estou com a mente embaralhada.
- Chi! Calma, meu amor. Você teve ligeiro mal-estar ontem. Foi hospitalizada e hoje cedo foi liberada. Eu a trouxe para casa.
- Não me lembrei direito do que ocorreu.
- Não se preocupe. Você vai ficar boa. Vou ajudá-la na sua recuperação.
Nicole ia dizer mais alguma coisa, mas a quantidade de sedativos que lhe fora ministrada deixara-a sonolenta. Ela virou o pescoço para o lado e adormeceu novamente. Sidnei aproximou-se de Virgílio.
- Melhor deixá-la descansar. Sabe Deus como vai reagir na hora em que ela acordar de fato.
- Por quê? Acha que Nicole possa ter uma recaída?
- Receio que sim.
Virgílio levantou-se impaciente.
- Isso não pode ser verdade.
- Nicole é dependente química, Virgílio.
- Minha filha não é viciada. Cometeu alguns excessos, mas só.
Sidnei esboçou leve sorriso. Deu um tapinha no ombro de Virgílio.
- Sei que é duro admitir que tenham sob nosso nariz um dependente químico, ou adicto - denominação preterida pela instituição Narcóticos Anônimos.
- Não posso crer. Minha filha não é nada disso.
Sidnei respirou e por fim disse voz pausada:
- Nicole é portadora de uma doença chamada dependência química, progressiva, às vezes incurável e fatal, conhecida também como adição. Quem sofre disso tem obsessão para usar a primeira dose e, quando o faz, passa a sofrer de compulsão, fica impossível exercer controle sobre si mesmo e não se consegue mais parar. O adicto deixa a droga influir em sua vida, entra em depressão, envolve-se em crimes e delitos.
- Isso é terrível.
- O importante é saber que sua filha se droga há muitos anos. Se você não aceitar o fato de que Nicole é viciada, então não poderei ajudá-la no tratamento de desintoxicação.
Virgílio estava aturdido. Admitir que a filha fosse viciada em drogas minava sua aura de suposto bom pai. Ele se sentia um crápula, sua consciência acusava-o de abandono e desleixo na educação da filha. A culpa corroia-o sem perdão.
- Diga-me uma coisa.
- Sim, colega.
- Como pode me ajudar?
- Tenho amigos e posso conseguir uma boa clínica para sua filha. Nicole passará por processo de desintoxicação, e só uma clínica especializada em viciados, ou adictos, é que poderá dar-lhe o tratamento adequado. O paciente torna-se agressivo, sente falta da droga, tem pesadelos e calafrios. É uma tortura inimaginável para nós que não tivemos contato com tipo nenhum de substância química.
- Sei disso tudo, mas é duro admitir que Nicole seja uma viciada. Olhe como ela dorme bem. Se fosse uma drogada inveterada, estaria agora agitada, clamando por alguma droga, não acha?
- Virgílio, sente-se aqui.
Sidnei indicou uma poltrona e pacientemente começou a conversar com o amigo.
- Segundo a Organização Mundial de Saúde, droga é qualquer produto, lícito ou ilícito, que afete o funcionamento mental e corporal de uma pessoa, podendo causar-lhe intoxicação ou dependência.
- O que você quer dizer com lícito ou ilícito? Não entendo.
- Pois bem. As drogas lícitas, por exemplo, podem ser o álcool e o tabaco, e são consideradas lícitas porque a sua venda é legal. Incluem-se também alguns tipos de chá, o café e os inalantes, que não são ilegais a não ser no seu propósito de uso para querer se intoxicar. As drogas ilícitas são substâncias controladas, algumas proibidas para qualquer pessoa, como a maconha, a cocaína, o ácido lisérgico...
- Ácido lisérgico é o LSD, que apareceu e caiu no gosto dos jovens nos anos 60
- Esse mesmo.
Virgílio desesperou-se:
- Eu cheguei a experimentar o ácido lisérgico na faculdade.
- E daí?
- Será que Nicole é viciada por minha culpa: Isso é hereditário?
Sidnei apoiou seu braço no do amigo.
- Nenhum estudo científico, até hoje, conseguiu comprovar a origem da doença. Tempos atrás, um pregador declarou sua satisfação de ter recebido educação evangélica e, graças a essa educação, fora afastado do envolvimento com drogas. É um grave equívoco, porquanto nos centros de recuperação existem centenas de filhos e filhas de pastores, de católicos, de espíritas e toda sorte de orientação religiosa que, apesar da educação severa, se envolveram com drogas por causa da doença. Assim como existem milhões de lares desajustados onde, apesar de todo o sofrimento, não existem dependentes químicos. O médico exalou profundo suspiro e continuou:
- Portanto, meu caro, isso é característica de cada um, não tem nada a ver com hereditariedade. Caso fosse assim, Bruno também teria queda por drogas. E não acho que esse seja o caso de seu filho.
- Muito pelo contrário. Meu filho nunca colocou um cigarro na boca e não gosta de bebidas. Bruno é fã de refrigerante.
- Pois bem. Então se acalme. Pare de se culpar. Você precisa estar bem, em equilíbrio, a fim de ajudar sua filha.
- Obrigado, meu amigo. Sabia poder contar com sua ajuda.
- Não há de quê.
Virgílio beijou a testa da filha. Passou delicadamente a mão pelo seu rosto. Voltou-se para Sidnei.
- Desculpe-me, mas você falava das drogas ilícitas. O assunto me interessa.
- Além do LSD, há também uma variedade de plantas alucinógenas e oleáceos, e tantas outras que podem ser adquiridas por meio de prescrição médica, como os tranqüilizantes. Nicole deve ter algum médico amigo ou conhecido que lhe prescreveu as receitas para a compra desses tranqüilizantes.
- É bem provável - anuiu Virgílio. É fácil conseguir uma receita médica.
O médico continuou:
- E essas drogas ainda podem se classificar em depressoras do sistema nervoso central, tais como o álcool e os soníferos; podem também ser estimulantes do sistema nervoso central, como a cocaína; e ainda podem ser perturbadoras do sistema nervoso central, como a maconha e o ácido lisérgico.
- É tanta informação! Entretanto, acha mesmo que minha filha seja dependente química?
- Receio que sim - respondeu Sidnei, recostando-se na cadeira. - O usuário de drogas pode ser recreativo, usando-a por puro prazer, na hora em que bem entende. Geralmente é usuário que sabe à hora em que começa e termina como quem bebe socialmente, por exemplo. Já o usuário dependente usa a droga como meio de fuga da realidade e não pode, não consegue de forma alguma ficar sem ela. A grande maioria dos usuários recreativos, como eu e você, que de vez em quando bebemos um uísque, nunca será dependente.
- Não é o caso de Nicole - disse por fim Virgílio, desolado.
- Creio que não. Por acaso nunca deu falta de nada de valor em sua casa? Um objeto, um quadro, uma jóia?
- Nunca dei falta de nada. Creio que Ivana também não, porquanto ela controla tudo, é extremamente ligada em dinheiro, nas nossas jóias, na riqueza. Mas Nicole ganha gorda mesada, talvez seja por isso que nunca tenha trocado algum objeto aqui de casa por droga.
- E notou por acaso reações tóxicas agudas, como vômitos, dores abdominais, convulsões?
- Sinto muito, mas não tenho dado muita atenção à minha filha.
- Está na hora de ficar de olho na sua pequena Nicole. Pelo bem dela e pelo seu próprio bem.
- Confesso - disse amargamente Virgílio - que fui um pai relapso.
Sidnei sorriu triste.
- Existem pais de toda sorte, meu velho. As crianças e adolescentes precisam de limites e uma boa dose de autodisciplina para enfrentar o mundo moderno. Entretanto também precisam de autoconfiança, de independência. Por que há pais bem-sucedidos na criação de seus filhos e outros que não conseguem sê-lo?
- Talvez seja o meu caso.
- A pesquisadora Diana Baumrind, anos atrás, classificou os pais em várias categorias, tais como: pais competentes, pais autoritários, pais negligentes e pais ausentes. Na verdade, você se encaixa nesse último perfil.
- Está falando sério?
- Por que eu deveria mentir Virgílio? Estou sendo sincero. Nicole cresceu com ausência total de atenção e afeto. Sua filha não recebeu alimento afetivo necessário para o reconhecimento de sua própria existência. Nicole tem dificuldades no convívio social e é comum encontrar essa característica em jovens usuários de drogas.
Virgílio afundou a cabeça entre as mãos. Era-lhe difícil escutar tudo aquilo de uma vez só. Ainda mais vindo de um grande amigo seu.
- Se Nicole for internada, estarei assinando meu atestado de pai incompetente. Não seria melhor tentar enchê-la de alguns carinhos, presentes, talvez um carro zero ou mesmo uma viagem ao estrangeiro? Nicole iria mudar e não precisaria passar por clínica nenhuma.
- Isso até seria possível, caso sua filha tivesse começado há pouco tempo. Pelo que conversei com Bruno, parece-me que faz uns bons anos que ela se droga. Não feche os olhos para a triste realidade que se abate à sua frente. Sei que é difícil. Muitos pais não aceitam a verdade e tentam se apegar em fórmulas as mais mirabolantes a fim de se sentirem menos responsáveis.
- Farei o possível para ajudar minha filha.
- Faz bem. Fico contente em saber que vai deixar o orgulho de lado e fazer o possível para ajudar Nicole. Eu não tenho filhos, mas, caso os tivesse, faria o mesmo - ponderou.
- Ainda a tempo de você ser pai. Afinal, é poucos anos mais moço que eu.
- Falta encontrar a mulher ideal - suspirou.
- Cuidado. O tempo está passando, e daqui a pouco você vai precisar não de uma esposa, mas de uma enfermeira - tornou Virgílio, entre sorrisos.
- Sei esperar.
- Eu tirei Ivana de você.
Sidnei riu.
- Agradeço por você ter interceptado nossa relação e tirado Ivana de mim. Olhe a esposa que eu iria ter.
Virgílio concordou.
- Estou pagando caro por isso.
- Não me leve a sério. Éramos namoradinhos, nada mais.
- Logo vai encontrar uma dona à altura.
- Quero alguém jovem, uma mulher mais nova. Eu me sinto jovem por fora e por dentro. Não me sinto com cinqüenta anos de idade. Preciso de uma companheira que sinta o mesmo. De preferência alegre bem-humorada. E as mulheres de nossa idade estão preocupadas com ex-maridos, filhos, menopausa...
Conversaram mais um pouco e por fim Sidnei despediu-se e colocou-se à disposição para ajudá-los no que fosse preciso. Virgílio acompanhou o amigo até a porta de saída, sem antes dar à filha um carinhoso beijo no rosto. Chegando à porta, agradeceu o amigo imensamente. Por conta da discrição de Sidnei, a internação de Nicole não chegaria ao conhecimento dos jornais, revistas de fofocas ou programas vespertinos de televisão, daqueles que vivem à custa da desgraça de gente famosa para atrair a atenção do público e ganhar míseros pontos no ibope. Virgílio despediu-se e fechou a porta. Antes de subir as escadas, perguntou a um dos empregados por onde andava Ivana.
- Ela saiu logo cedo e disse que precisava visitar uma amiga em Campos do Jordão.
- Ivana subiu a serra? Num momento desses?
- Sim, senhor.
Aquela atitude era bem típica dela. Ivana odiava ser contrariada e não gostava também de aceitar a realidade e colaborar. Ela estava pouco se incomodando se a filha estava enfrentando graves problemas com a dependência química. Só pensava si mesma, sempre em si. Virgílio sentiu um nó na garganta. Seus olhos marejaram.
- Por que fui me deixar envolver e me casei com ela? Por que não fui mais firme e fiz outra escolha? Por que, meu Deus? Por quê?
Bruno acabara de chegar e acercou-se do pai. Abraçou-o por trás.
- Não fique assim, meu pai. Estou aqui ao seu lado. Conte comigo e com Michele. Tenho certeza de que tudo faremos pelo bem de Nicole.
Michele passou a mão delicadamente sobre o ombro de Virgílio.
- Nicole precisa de carinho e atenção. Entretanto, também precisa decidir se quer ou não largar o mundo das drogas.
- Ela não tem condições de tomar decisões.
- Sei que não é nada fácil para o senhor pensar nisso, mas sua filha é responsável por tudo que lhe acontece.
- Nicole foi criada à deriva. Não tem culpa de ser assim.
- Engano seu. Bruno também foi criado à deriva, e olhe a diferença. Por que essa disparidade?
- Não sei.
- Porque ele não quis. Seu espírito é mais forte. E tem outra coisa...
Michele pigarreou e silenciou-se. Bruno apertou sua mão como sinal de cooperação e apoio. Ele virou-se para o pai:
- Michele é espírita.
- Que agradável.
- Acha? - indagou o filho, surpreso.
- Alguns anos atrás, cheguei a ler algo a respeito. Deixe-me lembrar - Virgílio pousou o dedo no queixo. - Ah, já sei.
Ele se levantou e foi até o escritório. Voltou em seguida com um livro nas mãos.
- É este aqui, Reencarnação Baseada em Fatos, de Karl Müller.
Michele pegou o livro e sorriu.
- Há muitas obras que tratam do assunto de maneira leve e descomplicada. Este livro em particular - apontou - é muito bom. Eu já o li. Inclusive, quem fez a apresentação da edição brasileira foi o Dr. Hernani Guimarães Andrade, diretor do Instituto Brasileiro de Pesquisas Psicobiofísicas.
Virgílio admirou-se com a sagacidade de Michele. Bruno beijou-a levemente nos lábios.
- Essa mulher, além de linda, é inteligente.
- Bem se vê - tornou Virgílio, bem-humorado.
- Dr. Virgílio - ela foi direto ao ponto -, sou assistente social e espírita. Eu tenho sensibilidade bem apurada, ou mediunidade, caso fique mais claro.
- Interessante - comentou Virgílio.
- Lá na periferia, no tocante à população em geral, o assistente social atua principalmente com famílias, mulheres chefes de família, crianças e adolescentes, idosos, pessoas portadoras de deficiência e, em geral, pessoas em situação de risco social, fazemos um belo trabalho com os jovens, a fim de que não entrem no mundo das drogas. Formamos um grupo de assistentes sociais, médicos e psicólogos.
Michele suspirou e prosseguiu:
- Às vezes, tratamos de jovens dependentes químicos. Além de tratamento apropriado, rodeado de médicos competentes, concomitantemente temos pequeno salão onde promovemos debates, palestras, e também uma vez por semana realizamos sessões de passe, cura, oferecemos tratamento espiritual para aqueles que realmente precisam.
- Fico feliz que vocês estejam fazendo algo de útil e bom para si mesmos e para os outros. Quero discutir depois com Bruno sobre a ampliação de farmácias populares e...
Bruno interveio:
- Agora não, pai. Temos assunto mais urgente a tratar.
Virgílio pigarreou e recompôs-se.
- Desculpem-me. Eu me empolguei. Falaremos nisso numa outra oportunidade. Continue Michele.
- Nicole necessita de tratamento físico. Ela é dependente e precisa se tratar. Entretanto, sinto que ela sofre de interferência espiritual.
- Mesmo?
- Sim.
- Tem certeza? - indagou Virgílio, sinceramente preocupado.
- Quando cheguei ao hospital, senti uma sensação esquisita. Hospitais geralmente me dão calafrios, mas logo na entrada, avistei um amigo espiritual. Não sei se era parte de sua família, entretanto ele fez aceno com a cabeça e demonstrava estar preocupado com Nicole. Após a visita, assim que saímos do hospital, deparei com um espírito muito bravo, próximo ao estacionamento. Ele me xingou e disse que voltaria a assediar Nicole, que ela o tinha levado para o mundo do vício e agora ele estava se vingando.
Bruno foi categórico:
- Michele também tem vidência, pai.
- Santo Deus!
- É verdade, seu Virgílio. Eu o vi. E conversei com ele.
- Conversou com ele? Como?
- Por telepatia. Os espíritos percebem quando são notados.
- Não posso crer...
- Não foi muito difícil afastá-lo de Nicole. Existem tantas pessoas que se drogam no mundo que uma a mais OU a menos para os espíritos nada significa. Todavia este, em particular, dizia que ela o havia induzido às drogas.
- Não creio que minha filha chegasse a tanto. Nicole não é má pessoa. E somente uma dependente química.
- Pode ser de outras vidas. Nunca saberemos.
Virgílio estava confuso. Havia recebido muita informação. Assim que concatenou algumas idéias, indagou;
- Mas, se você diz espírito, é porque está morto. Se estiver morto, como pode ter vontade de se drogar?
- Ao desencarnar e se libertar do corpo físico, nosso perispírito ou nosso eu espiritual, carrega toda sorte de lembranças, vontades, tendências e vícios também. Uma pessoa que morreu em conseqüência do abuso de drogas dificilmente vai se livrar do vício após a morte. Seu espírito vai continuar preso às sensações e com forte necessidade de se drogar. E, como no astral o espírito ainda não tomou consciência de como criar ou mesmo adquirir a droga, ele se aproxima, cola-se a uma pessoa encarnada que é dependente química ou apresenta forte tendência para se drogar.
- E esse espírito, então, se afastou de minha filha?
- Por ora, sim. Mas, para que outros não se aproximem, é necessário que Nicole mude o teor de seus pensamentos. Ela precisa dar um basta se tratar, procurar mudar seu estilo de vida. É imperioso que ela faça amizades saudáveis. E que também perdoe a si mesma, a fim de afastar inimigos de outras vidas.
- Entendo - tornou Virgílio, impassível.
- Além do tratamento em clínica especializada, Nicole poderia freqüentar nossas sessões e fazer tratamento espiritual aliado ao de desintoxicação.
- Tudo que eu puder fazer por minha filha, eu farei. A partir de hoje não vou mais desgrudar os olhos de Nicole.
Bruno emocionou-se:
- Obrigado, pai. Saber que posso contar com você me alivia e me deixa muito feliz.
Abraçaram-se. Virgílio beijou Michele na testa.
- Obrigado pela ajuda que está prestando à minha família. Você está nos fazendo muito bem.
Eles mudaram de assunto e foram para a copa fazer um lanche.

CAPÍTULO 13

Mariana ligou outras tantas vezes, e Inácio continuava em reunião. Aquilo era estranho. Mesmo ocupado, antes ele a atendia e falava rapidamente. E já fazia dois dias que ela tentava alcançá-lo, sem sucesso. Mariana pousou o fone no gancho, um tanto desapontada. Nair vinha da cozinha com alguns remendos e panos sobre uma grande cesta de vime.
- O que foi? Não conseguiu falar com Inácio?
- Não. Ele não me atende. Está sempre em reunião.
- Ele é homem ocupado. Talvez esteja num dia difícil.
- Sinto algo estranho.
- Como o quê?
- Um incômodo. Ele ligou várias vezes nesta semana, e há dois dias não liga mais.
- Faz sentido. Ele quis falar com você e não conseguiu. Talvez tenha se afundado no trabalho.
- Não acha que é estranho as ligações terem parado de uma hora para outra?
Nair deu de ombros.
- Como disse, talvez seja bastante trabalho. Escute, por que não se arruma e vai até o escritório
- Pensei nisso, mas não sei se seria correto ir até o local de trabalho. O pessoal da Centax não me conhece...
- Deixe de lengalenga. Levante-se, tome um banho, coloque uma roupa bem bonita e vá esperá-lo na porta do prédio. Tenho certeza de que ele vai adorar a surpresa.
- Será?
- Deixe a dúvida de lado e tente.
- Pode ser.
- Você o ama, filha?
- Muito.
- Então não tenha dúvida. Vá se arrumar.
Mariana levantou-se de um salto do sofá, estalou um beijo na bochecha da mãe e subiu rapidamente as escadas. Nair balançou a cabeça para os lados.
- Essa juventude! -suspirou.
Disse isso e botou a cesta de roupas sobre a mesinha de centro. Ouviu barulho na porta de casa e afastou delicadamente a cortina com os dedos da mão. Era Virgílio.
- Essa não! - exclamou ela.
Mariana estava em casa. O que sua filha iria dizer? Nair teve um lampejo e gritou para a jovem, na ponta da escada:
- Vou levar encomenda para a Dona Elvira. Volto logo.
- Está bem, mamãe. Vou tomar banho e prometo que voltarei feliz e contente. Tranque a porta. Eu levarei a minha cópia de chave.
Nair torceu as mãos, aflita e correu até a porta. Abriu no exato momento em que Virgílio ia tocar a campainha.
- O que faz aqui?
- Preciso de ajuda.
- Ajuda? - perguntou ela, surpresa.
- Nair, por favor, estou precisando de um ombro amigo.
- Há esta hora? Uma de minhas filhas está em casa. Você não pode entrar.
A expressão no rosto dele não deixava dúvidas: estava mesmo desesperado, triste e abatido. As olheiras tomavam lugar de destaque, formando uma faixa bem escura ao redor dos olhos. Nair encostou a porta e perguntou:
- Aconteceu alguma coisa grave?
- Estou com sérios problemas e preciso que me ajude.
- Eu?
- Sim. Preciso de um conselho, de opinião amiga.
- Agora?
- Vamos, entre no meu carro.
- Não posso.
- Um minuto só. Vamos até algum lugar sossegado. Preciso desabafar. Trata-se de minha filha Nicole. Estou desesperado.
Nair hesitou por instantes, mas sentiu que Virgílio estava falando a verdade. Ele não iria usar o nome da filha em vão somente para sair com ela.
- Está bem. Dê-me um minuto, sim?
Ele concordou com a cabeça. Nair entrou em casa, apanhou a bolsa e saiu. Quando ela entrou no carro, Salete estava à espreita, do outro lado da rua. Fuzilou Nair com os olhos. Cutucou o braço de Creusa.
- Não disse que ela não prestava?
- Só vendo mesmo, para crer.
- Nair sempre foi leviana. Ela não presta. As filhas também não. Uma chegou outro dia com um desconhecido a tiracolo. A outra nos trata com frieza, com aquele ar metido e esnobe.
- Você está certa - assentiu Creusa. - Elas são um bando de levianas.
- Graças a Deus sou viúva de respeito e tenho um filho que vale ouro.
- É seu filho vale ouro. Você e seu filho são exemplo aqui para a vizinhança, quiçá para o bairro. Uma família pequena, porém perfeita. Você foi abençoada, Salete.
Salete sorriu e olhou para o alto.
- Sou abençoada mesmo, tenho a família perfeita.
Desde a entrega das fotos, Teresa ia todo fim de tarde até o escritório só para encher a cabeça do pobre Inácio de dúvidas e plantar insegurança, a fim de afastá-lo de Mariana. Estava conseguindo. Entretanto, faltava uma dose extra de veneno. Ela precisava sair com ele. E Inácio, mesmo descontente com Mariana, não se propunha a sair. Ou estava metido em reuniões, ou então ia para casa e se afundava no sofá. Ouvia músicas românticas e deixava o pranto correr solto. Por que Mariana o fizera de palhaço? Inácio não quisera se envolver afetivamente com ninguém. Depois que os pais se separaram, ele não mais acreditou no amor. Se seus pais, que se amavam e eram felizes, se separaram, por que ele deveria acreditar que as relações amorosas pudessem dar certo? Isso era ilusão. Pura ilusão. E ele havia se atirado de cabeça naquele namoro com Mariana. Ela lhe parecera à mulher ideal. Bonita, inteligente, companheira. Amava Inácio pelo que ele era, e não pelo que tinha. Isso o impressionara bastante. Também havia Otávio. Ele conhecera o pai dela e simpatizara muito com ele. E agora sentia essa dor sem igual, como se seu peito houvesse sido arrancado. Jamais se entregaria novamente dessa maneira. Nunca mais. Mas nesse dia Teresa estava convicta de que iria arrancá-lo do escritório e levá-lo até um bar. Para isso apostou todas as fichas em seus dotes físicos e abençoados pela natureza. Teresa foi ao cabeleireiro, fez escova, alisou os volumosos cabelos. Fez as unhas das mãos e dos pés. Passou parte do dia descansando o rosto em cremes e, após o almoço, passou no shopping. Foi até uma loja elegante e fina, comprou um vestido de organdi pregueado, de cor vinho, bem decorado. Muito bonito. Ela chegou em casa, tomou banho demorado, passou hidratante, perfumou-se com esmero. Maquiou-se com delicadeza. Colocou o vestido, calçou um bom par de saltos altos, apanhou sua pequena bolsa e foi à Centax.
- Hoje Inácio não me escapa.
E teve essa certeza assim que chegou à garagem do prédio comercial. Tão logo desceu do carro e entregou às chaves, Teresa foi motivo de muitas bocas abertas, queixos caídos e olhares de extrema cobiça. Os homens não conseguiam deixar de reparar em tamanha beleza, e ela sabia disso. Riu para si, e tomou o elevador, decidida a despertar algo mais em Inácio.
- Boa tarde, querida.
- Senhorita Teresa, como está linda! - exclamou Isabel.
- Obrigada.
Havia dois homens sentados na sala de espera, contígua à mesa de Isabel. Nenhum dos dois conseguia deixar de apreciai o corpo bem-feito e aspirar o delicado perfume de Teresa. Um deles suspirou:
- Se eu tivesse uma dona dessas, eu seria o homem mais feliz do mundo.
- E eu jamais olharia para outra mulher. Mas a realidade é dura, e o que me espera em casa não chega aos pés dessa aí - reclamou o outro.
Teresa solicitou ser atendida e em instantes adentrou a sala de Inácio. Nesse dia em particular ele não deixou de notar o mulherão à sua frente. Talvez indignado pelo fato de Mariana o tiver traído - assim ele pensava - ou até pelo fato de se sentir carente, Inácio ficou de queixo caído assim que Teresa entrou em sua sala. Ele não era de ferro.
- Você está linda.
- Obrigada.
- Vai a algum lugar em especial?
Ela o corrigiu:
- Nós vamos.
- Como assim?
- Vamos sair. Chega de ir para casa e se afundar em lágrimas e melancolia. Daremos uma espairecida, tomaremos um coquetel, jogaremos conversa fora.
- Não sei - disse ele, em tom hesitante.
Teresa mentiu:
- Estou preocupada com você. Está abatido.
- Não tenho fome, não tenho vontade de me alimentar. E, se quer saber, nem tenho vontade de tomar banho. Estou fazendo tudo no automático. Perdi o estímulo por tudo. Estou arrasado.
Teresa aproximou-se e fez beicinho:
- Oh, judiação! Vamos nos divertir uni pouco, está bem?
Inácio convenceu-se. Ir de novo para casa e chorar as pitangas pela namorada não valia pena. Não agüentava mais ouvir música popular brasileira. Estava cansado disso. As fotos vinham fortes à sua mente. Ele estava plenamente convencido de que Mariana estava lhe escondendo alguma coisa. Teresa tinha sido bastante ousada e ardilosa. Ao saírem da sala, Teresa fez questão de entregar lindo pacote, envolto por um grande laçarote vermelho, nas mãos de Isabel.
- O que é isso? - indagou a pobre moça, aturdida.
- Seu presente, lembra-se?
- A senhora estava falando sério?
- Claro querida. Você é uma jovem muito bonita e atraente. Eu queria lhe dar uma roupa que combinasse com você.
Isabel sorriu comovida. Teresa era muito legal. Preocupava-se com ela e a enaltecia. Nem mesmo um cego seria capaz de elogiá-la.
- Obrigada. Não precisava se incomodar.
- Um mimo para você. Escute querida, se alguém da família ligar - Teresa mudou o tom de voz nessa hora, diga que estamos no bar do hotel Hilton.
Isabel anotou com satisfação e sorriu alegre assim que ela e Inácio passaram pelo corredor.
- Teresa é pessoa tão boa, tão simpática, uma mulher fantástica - deduziu Isabel.
Ivana estava cansada de fazer nada. Havia três dias que estava no chalé de Otília, em Campos do Jordão. Saíra da cidade a fim de não encarar os problemas de frente.
Gostava de ficar sozinha em casa, e agora isso era impossível. Odiava dividir seu espaço com os outros. Nicole levaria mais uns dias até se restabelecer. Por esses dias também chegaria à sobrinha, vinda de longe. A pequena e charmosa cidade não lhe atraía em particular. Campos do Jordão fazia Ivana lembrar-se do passado, e ela não queria nada de lembranças. Fez tremendo esforço para esquecer um monte de recordações desagradáveis. Preferia que Otília estivesse na praia, ou em outro lugar qualquer. Mas fazer o quê? Ela não queria ficar sozinha e tinha de pagar o preço de subir a serra. E foi o que fez, assim que Virgílio correu ao hospital para acompanhar a internação da filha. Portanto, espairecer era o melhor, mas o ambiente estava ficando enfadonho. Otília gostava de fazer caminhadas, respirar ar puro, fazer exercícios ao ar livre. Ivana achava tudo isso muito chato. Não gostava de se exercitar, e começava a ficar impaciente. Sentia vontade de atirar algum objeto contra a parede. E nem tivera motivo nesses dias para ter um chilique que fosse. Pensativa, Ivana pousou a xícara de chá sobre a mesinha de centro e disse a Otília, num tom odioso:
- Não sei o que fiz para ter uma família tão estúpida. Acho que grudei chiclete no cabelo de Jesus.
Otília riu à beça e contemporizou:
- Não exagere amiga. Você tem uma linda família.
- Nem me diga uma coisa dessas! Não sei por que Deus me dotou de família, sabe? Se eu pudesse, voltaria no tempo e teria feito uma cirurgia. Poderia ter me dado o presente da esterilidade.
Otília bateu três vezes na madeira.
- Não fale um absurdo desses.
- Falo, sim, com conhecimento de causa.
- Tenho algo a lhe confessar.
Ivana encarou a amiga nos olhos.
- Confissões? Adoro confissões.
- Eu e Adamastor não tivemos filhos porque ele é estéril.
- Nunca me contou isso antes. Otília mordeu os lábios, apreensiva.
- Talvez culpe talvez vergonha. Pensei em adotar uma criança, mas Adamastor foi contra, sempre. Eu aceito seu modo de ser. Eu sempre amei meu marido, acima de tudo.
- E nem cogitou mais a adoção?
- Não. Com o passar dos anos, usei meu instinto maternal na promoção desses jovens artistas. Sinto-me como se fosse uma mãe para todos eles. Isso me conforta.
Ivana fez uma careta.
- Eu deveria fazer assim também. Dava um dinheiro, bancava uma exposição e depois adeus.
- Você me ofende ao falar nesse tom.
- Desculpe-me. Mas deveria ficar feliz em ter um marido estéril. Deus lhe deu o marido que deveria ter dado a mim.
- Não fale assim nem por brincadeira.
Uma pequena lágrima escorreu pelo canto do olho de Otília. Ela tinha certeza de que Ivana não podia estar dizendo a verdade. Era muito desumano. Ivana prosseguiu sem tato suficiente para desviar e até mesmo mudar o assunto.
- Fez bem você de não adotar, de não criar nenhuma criança. Eu estraguei meu corpo, sofri para colocá-los no mundo, tive de contratar enfermeiras, babás, amas-de-leite. Ao invés de gastar nesses anos todos com empregados e educação, poderia muito bem ter empregado o dinheiro em viagens, cirurgias plásticas e uma vida menos enfadonha. Veja só: Bruno é um molengão que adora se meter com gente bem aquém de nosso nível social. Está sempre rodeado de gente pobre e sem cultura. Um desgosto só. Se desgosto fosse uma doença incurável e fatal, eu estaria agonizando a esta hora.
Otília pigarreou:
- E Nicole...
- Bom essa é uma perdida.
- Acho Nicole tão bonita!
- Bonita e drogada, grande coisa... É viciada e não quer saber de se tratar. Só atrapalha.
- Em todo caso, é sua filha e precisa de sua atenção.
- Ela é adulta e sabe cuidar de si.
- Não sabe - protestou Otília. - Nicole precisa de você.
Ivana levantou-se irritada.
- Só não atiro esta xícara pelos ares porque o serviço de chá é inglês e sei que era de sua bisavó. Além do mais, você é minha amiga. Mas, por favor, nunca mais me diga uma barbaridade dessas.
- Bom, é que não estamos falando de qualquer pessoa, mas de sua filha. É sua responsabilidade fazer algo para o bem-estar de Nicole.
Ivana cheirou a xícara da amiga. Otília espantou-se.
- O que está fazendo?
- Cheirando sua xícara para saber se tinha algo estranho. Pensei que estivesse tomando algum chá alucinógeno.
- Nem por brincadeira.
- Então não fale mais besteira. Essa menina não vale o prato que come. Isso se chama ingratidão. Eu a coloquei nas melhores escolas dei-lhe estudo, boas babás, brinquedos, roupas, uma vida de princesa, e Nicole prefere se meter em buracos, guetos e andar na companhia de viciados, de dependentes químicos. A responsabilidade é minha por ela ser torta?
- Sim. Ao menos trate de conversar com sua filha. Às vezes uma boa conversa ajuda bastante.
- Eu não tenho habilidade para isso. Não sou terapeuta para escutar problema dos outros.
Otília balançou a cabeça para os lados. Ivana estava irascível. Era dura como uma pedra. Por fim retrucou:
- Você também é viciada.
- Eu?! Está louca?
- Você fuma cigarro.
- Vício aceitável pela sociedade.
- Não importa, mas é um vício.
- No entanto, se fizer algum mal, só farei a mim mesma. Eu não atrapalho a vida de ninguém, não crio problemas, não tenho ataques nem entro em convulsão caso acabe meu maço de cigarros. Eu sou controlada, oras! Não sou um estorvo para a sociedade. Mas Nicole é. Ela pensa que análise não custa caro. Eu pago uma fortuna para essa menina fazer terapia. E tenho certeza de que muito em breve terei de gastar dinheiro com clínicas para viciados.
- Converse com sua filha antes que seja tarde.
- Tenho certeza de que cada vez mais fica distante uma cura. Creio que Nicole não tem salvação.
- Não teme pelo pior?
Como assim:
- Sei lá, uma overdose, por exemplo.
- Problema dela. Ela escolheu essa vida, ela que responda por isso. Não moverei mais uma palha para ajudá-la. Ela é crescidinha, adulta. Ela quer usar drogas? Pois que use, oras. Mas saiba se controlar. Lembra-se de quando íamos às festas da Ângela?
Otília esboçou leve sorriso.
- Lembro-me como se fosse hoje.
- Tínhamos de tudo à mão, não tínhamos?
- Os tempos eram outros. Era uma época de liberação de costumes, de paz e amor, de quebra de convenções sociais. Foi um período de libertação, de brincadeiras. Éramos jovens e nunca poderíamos falar abertamente com nossos pais. Entretanto, hoje é diferente. Pais e filhos estão mais próximos.
- Diferente, nada - esbravejou Ivana. - Naquela época não tínhamos limite, nem nós nem toda a alta sociedade carioca, paulista e mineira juntas. Contudo, estamos aqui inteiras. Por quê?
- Bom, porque sabíamos o que queríamos e tudo não passava de brincadeira, de experimentos, mais nada. Nunca fomos ligados em droga alguma.
- Exatamente isso. Não éramos depressivas e dependentes. Mas Nicole não tem firmeza, não tem dignidade suficiente para se manter no controle sem cair no ridículo.
- Não teme se arrepender?
Ivana deu de ombros.
- Eu lavei as minhas mãos. Não quero mais saber dela e de seu envolvimento com drogas. Ela que pague o preço. Ou Virgílio. Ele quer se redimir e está atacando de bom pai.
- Talvez seja o remorso.
- Pior para ele. Eu não sei o que é remorso. Ainda bem.
- Nicole ainda namora aquele rapaz?
- O Artur?
- Esse mesmo.
- Não faço idéia. Eu o vi algumas vezes lá na porta de casa.
- Ele é um delinqüente.
- Exagero.
- Ele pode ser uma má influência para sua filha. Não me disse dia desses que Nicole piorou depois que passou a namorar Artur?
- Artur, Celso, João... São tantos os amigos que a levaram para o mau caminho... Nicole é fraca, essa é a verdade.
Otília notou a contrariedade nos olhos de Ivana. Procurou mudar a conversa.
- Quer outra xícara de chá?
- Não gosto muito de chá. Preferia uma vodca.
- Estamos no meio da tarde. E está um friozinho gostoso aqui na serra. Um chá, uma xícara de chocolate...
- Não. Você se cuida demais.
- É bom cuidar do corpo, da alimentação. Não acha que poderia se exercitar um pouco?
- Como assim?
- Fazer exercícios, dar umas caminhadas. O ar da serra é tão puro, tão bom... Como é gostoso encher nossos pulmões de ar fresco!
- Deus me livre! Não preciso. Não gosto. Não quero.
- Uma boa caminhada pode ajudá-la a descarregar as energias. Talvez diminuir sua irritação.
- Não creio ser necessário.
- Se mudar de opinião...
- Por falar em opinião, quando vai me levar na mulher que lê mãos?
- A Consuelo?
- Essa mesma - tornou Otília, desanimada.
- Descobri que é uma charlatona. Faz trabalhos escusos, tudo por dinheiro. Eu me enganei com ela.
Ivana deu de ombros.
- Eu falei. Esse povo que diz que vê e fala com espíritos, que lê cartas ou mãos, só quer arrancar dinheiro da gente.
- Não generalize. Existe muita gente boa que trabalha para o bem, que ajuda as pessoas de verdade.
- Você acredita demais no ser humano.
- Claro. Por que não deveria acreditar?
- Porque o ser humano mente, não é de confiança.
Otília consultou o relógio.
- Está ficando tarde. Vou acender a lareira.
- Não será necessário.
- Por quê?
- Estou cansada de ficar aqui, sem fazer nada.
- Trouxe algumas fitas de vídeo - volveu Otília, animada.
- Com aqueles filmes velhos e açucarados?
Otília riu da rabugice da amiga.
- Não. Trouxe alguns clássicos. Você escolhe.
Otília levantou-se e foi até uma prateleira no fundo da sala. Pegou algumas fitas de vídeo e trouxe até Ivana.
- Escolha você mesma. Tem Bette Davis, Lana Turner, Dóris Day, Rock Hudson...
Ivana interrompeu-a:
- Poupe-me de assistir a essa velharia.
- São filmes que víamos quando jovens, nas matinês.
- Nunca gostei de matinês. Ia ao cinema somente para ficar mais à vontade com os garotos. Nunca assisti a um filme por inteiro.
- Então está na hora de assistir a uma película do começo ao fim. Vou mandar preparar um chocolate quente e fazer pipoca.
Ivana foi ríspida.
- Assista sozinha. Tenho de voltar.
- Será que sua sobrinha já chegou?
Ivana procurou se conter, mas a raiva foi bem maior. Pegou um cinzeiro sobre a mesinha de Otília e atirou o objeto contra a parede, dando um grunhido.
- Ai, que ódio! Só de saber que essa fulaninha ficará em casa, perco o controle.
Otília estava acostumada com os ataques de histeria da amiga. Sabia com antecedência quando Ivana ia à sua casa, fosse na capital ou em Campos do Jordão, e pedia aos empregados que substituíssem os cristais por peças de vidro comum. Ivana não notava a diferença e, quando os atirava contra a parede, Otília não a recriminava.
Ela aprendera isso anos atrás, quando Ivana, num acesso de fúria extrema, acabou com uma coleção de cristal Lalique. Adamastor quase foi internado, tamanho desapontamento. Otília, esperta e vivaz, optou por trocar os objetos e manter a amizade. Gostava de Ivana. Talvez fosse a única pessoa no mundo que gostasse verdadeiramente dela. Ivana voltou ao normal:
- Desculpe-me, não pude evitar.
- Não tem problema.
- Perdi as estribeiras.
- Eu lhe devo desculpas. Não deveria falar de sua sobrinha.
- Só de me lembrar de Cininha fico possessa. A garota sabe me irritar, ela tem o dom de me irritar. Sempre teve.
- Você não a vê há muito tempo?
- Nunca fomos íntimas.
- Ela é sua única parente, não?
- Sim. Só sobrou essa fedelha, mais ninguém.
- Pensei que você conversasse com sua irmã.
- Não. Eu e minha irmã tínhamos uma relação bem distante. Estávamos em dívidas, meu pai estava com a corda no pescoço e aquele acordo com a família de Virgílio nos tirou da beira da falência. Minha irmã achou que ficou em desvantagem financeira e nunca me perdoou. Então ela se mudou com papai para bem longe e se casou com um pobre coitado. Foi viver no Espírito Santo.
Ivana suspirou. Depois, prosseguiu:
- Nunca tivemos muito contato. Depois que meu pai e meu cunhado morreram, cheguei a visitá-la uma ou duas vezes, mas a relação com minha sobrinha nunca foi das melhores.
Agora ela aparece do nada e vem passar uma temporada em casa.
- E se ela quiser ficar? - arriscou Otília, temendo novo ataque.
- Ela não vai ficar! - esbravejou Ivana. - Eu arrumarei um jeito de logo, logo, botar essa menina para correr. Você vai ver só.
- Talvez seja uma boa companhia para sua filha.
- Boa companhia... Essa é boa! - Ela riu em descontrole.
- Por que acha que não?
- Cininha vem de outro mundo, de outro planeta. É pobre, de vida comedida, não tem verniz social, e ela nada poder fazer por uma viciada em drogas.
- E por que motivo vai recebê-la? Às vezes você tem atitudes que não compreendo.
- Não gosto dela, mas, se eu não a receber, ela pode fazer algo que me irrite ainda mais. Ela tem o gênio de minha irmã. Cininha é um ser insuportável. Eu sei lidar com gente dessa laia. Eu a acolho por alguns dias e depois arrumo uma grande briga, faço um grande escândalo. A tonta vai embora e não me procura mais. Vou também dar um dinheiro para que ela compre uma casinha no subúrbio e desapareça de minha vida para sempre.
- Bom, então até mais, Ivana. Se precisar de mim, é só ligar.
Ivana abraçou a amiga e despediu-se.
- Obrigada. Sei que sempre poderei contar com você.
Ela ajeitou os cabelos no espelho do hall, apanhou a bolsa e saiu. A neblina estava alta. Otília preocupou-se.
- Está muito ruim o tempo. Fique e vá embora amanhã.
- Tenho de ir. Cansei da serra e de tanto verde. Eu é que vou ficar verde se continuar mais tempo aqui. Adeus.
Ivana entrou no carro e deu partida, preparando-se para descer a serra em direção à capital e também em direção a todos os problemas que a esperavam.

CAPÍTULO 14

Mariana vestiu-se com apuro e saiu contente de casa. Dobrou a esquina, andou mais algumas quadras e alcançou avenida bem movimentada. Logo depois adentrou a estação do metrô. Vinte minutos depois, ela estava próxima do escritório da Centax. Assim que o elevador abriu e ela avistou a moça à sua frente, arriscou:
- Você deve ser Isabel, certo?
A secretária olhou-a espantada.
- Você é... Mariana sorriu:
- Desculpe-me. É que nos conhecemos apenas por telefone. Eu sou Mariana.
- Ah, muito prazer - Isabel deu um sorrisinho malicioso. - A procura do Dr. Inácio?
- Isso mesmo. Será que ele já terminou a reunião?
- O Dr. Inácio terminou a reunião faz bastante tempo.
Mariana animou-se.
- Poderia chamá-lo? Preciso muito falar com ele.
Isabel ia responder com naturalidade, entretanto, ao virar-se para a visitante, seus olhos pousaram sobre o presente que havia ganhado de Teresa e ela subitamente mudou o tom de voz, mostrando quanto às pessoas são totalmente influenciáveis e podem mudar à deriva:
- Oh, sinto muito...
- Por quê? O que houve?
- É que o Dr. Inácio saiu faz mais de meia hora.
- Saiu? Estranho...
- Pois é.
- Ele volta ainda hoje?
Isabel riu maliciosa:
- Creio que não.
- Que pena! - tornou Mariana, entristecida. - Em todo caso, foi um prazer conhecê-la. Até mais.
- Até mais.
Isabel mordeu os lábios e, assim que Mariana começou a se afastar, ela comentou, sem mesmo pensar:
- O Dr. Inácio saiu daqui acompanhado pela senhorita Teresa Aguilar.
Mariana estancou o passo. Voltou até a mesa de Isabel.
- O que é que disse?
- Isso mesmo. Ele saiu daqui faz uma meia hora, acompanhado da senhorita Teresa.
Mariana sentiu as pernas falsearem por instantes. Teria ouvido aquilo mesmo? Procurou insistir:
- Tem certeza de que Inácio saiu daqui acompanhado pela... pela Teresa, a Teresa Aguilar?
- Essa mesma. Estavam numa prosa só. Animadíssimos, felizes!
Mariana pendeu a cabeça para os lados. Aquilo não podia estar acontecendo. Precisava ir mais a fundo nessa história.
- Tem certeza de que saíram?
Isabel fez ar de mofa. Estava ficando irritada por ter de responder várias vezes à mesma pergunta.
- Já disse que sim. E, a propósito, para você não ter mais dúvidas de que estou falando a verdade - ela consultou o relógio -, há esta hora ambos devem estar no bar do hotel Hilton.
Mariana saiu de rompante. Estava atarantada. Será que tudo aquilo era verdade? Será que Isabel não estava mentindo? Será? Será? Era tanta dúvida, tanta insegurança, que Mariana preferiu ver e tirar a prova com os próprios olhos. Mais uma vez. Chorosa, porém decidida, ela saiu do escritório e correu até a estação do metrô. Passava um pouco das seis da tarde, e muitas pessoas saíam dos escritórios e fábricas nesse horário. Mariana enfrentou uma fila imensa, empurra-empurra e a lentidão dos trens, que nesse horário andavam mais devagar em virtude da quantidade enorme de passageiros. Depois de muito aperto, ela desceu na estação República, soltando fogo pelas ventas. Nem esperou pela escada rolante. Foi saltando os degraus da escada, até subir à praça. Estugou o passo até o hotel, ali perto. Teresa e Inácio adentraram o hall do hotel e dirigiram-se até o bar, quase cheio. É que algumas pessoas, após o expediente, iam para casa, outras para a faculdade. Havia sempre um grupo de funcionários de bancos ou empresas que preferiam ir beber com amigos. Era o chamado happy hour, um momento de descontração após o expediente, quando muitos se reuniam para bebericar e relaxar, antes de voltar para seus lares. Inácio cumprimentou um colega de outra empresa, acenou para mais outro. Todos no bar ficaram extasiados com a beleza provocante e sedutora de Teresa. O rapaz sentiu-se embevecido, enlevado de fato. Aproximou-se do bar, e o garçom logo os atendeu. Pediram suas bebidas e acomodaram-se sobre duas banquetas presas ao chão e encostadas no balcão do bar. Teresa fez questão de dar aquela cruzada de pernas. O barman quase derrubou o coquetel que estava fazendo, tamanho deslumbre ao notar aquele lindo par de coxas bem torneadas, perfeitas. Ela sorriu maliciosa para Inácio e disse, numa simpatia contagiante:
- Você precisa conversar com Mariana. Tenho certeza de que ela o ama.
Inácio coçou a cabeça.
- Não sei ao certo. Essas fotos... Ainda não as consigo tirar de meu pensamento. Isso é muito dolorido, me entristeceu demasiadamente.
- Não tire conclusões precipitadas. Essas fotos podem não ter nada a ver.
- Será?
- Confie em mim. Sou sua amiga e torço bastante pela sua felicidade. Mariana é uma boa moça e...
Teresa não terminou de dizer. Foi surpreendida por duas mãos firmes e decididas a puxar-lhe os cabelos. A força de Mariana era tamanha que Teresa desequilibrou-se e só não foi ao chão porque ficou com os cabelos sendo sustentados por Mariana. Uma dor terrível. As pessoas ao redor estavam incrédulas, não acreditando na brutalidade de Mariana. Inácio abriu e fechou a boca. Não conseguia articular som que fosse. A cena era bizarra e surpreendera-o bastante. Mariana estava fora de si. Gritava ensandecida:
- Ordinária! Se passando por amiga da onça!
Teresa sentia dor, mas ao mesmo tempo sentia um prazer sádico em constatar que seu plano estava dando certo. Fingiu chorar:
- Por favor, não me machuque. Só estava conversando com seu namorado. Eu imploro não me machuque.
- Cale a boca - esbravejava Mariana.
Inácio estava atônito. De repente fora assaltado por pensamentos horríveis. Não podia ter se enganado tanto assim. Mariana não podia ser tão maldosa. Aparentava doçura, era inteligente, amorosa... Aquela à sua frente não se parecia em nada com a mulher por quem se apaixonara de verdade. Enquanto Inácio tentava realinhar as idéias, logo após o grande susto, Teresa sentia muita dor, mas estava feliz. Em seu íntimo, conseguira realizar grande feito, mesmo percebendo que seus cabelos poderiam ser arrancados do couro cabeludo, tamanha a fúria de Mariana. As pessoas ao redor se afastaram, chocadas. Dois garçons vieram apressados e tiveram dificuldade em apartar a briga. Inácio ficou parado, sem ação. Os rapazes conseguiram separá-las, por fim. Teresa incorporou a vítima. Tão logo se viu livre de Mariana, passou a mão nos cabelos e atirou-se nos braços de Inácio, fingindo medo.
- Deus do céu! Essa moça não está em seu juízo perfeito.
Mariana estava fora de si.
- Cale a boca, ou eu...
- Ainda por cima me ameaça? Cuidado, senão eu a processo!
- Atrevida!
Teresa fez muxoxo. Aproveitava a situação e apertava seu corpo contra o de Inácio.
- O que deu em você? - indagou Teresa, fingindo estupor.
- É tão possessiva e ciumenta que não reconhece que seu namorado e eu somos amigos?
Mariana bufava de raiva.
- Você não presta!
Teresa procurou ajeitar os cabelos. A cabeça latejava de dor, mas a cena valia bastante. Não tinha preço. Ela fez beicinho e encarou Inácio. Ele confirmou:
- Teresa é minha amiga.
- Ah, sua amiga - respondeu Mariana, voz entrecortada.
- Você não tinha o direito de entrar aqui e fazer essa cena. Que escândalo, Mariana! Não tem modos?
- Está me recriminando?
- Sim - disse ele, secamente.
- Ela está tentando nos afastar - suplicou a jovem, num sopro de voz.
- Creio que está na hora de ir embora.
- Temos de conversar, Inácio, por favor.
- Aqui não é o local ideal.
- Mas...
- Por favor - ele estava se impacientando -, não me obrigue a ser rude. Eu também estou magoado com você.
- Então vamos aproveitar e...
Inácio pendeu a cabeça para os lados, negativamente. Ele apanhou a carteira, tirou um punhado de notas e colocou-as nas mãos de Mariana.
- Pegue um táxi e vá para casa. Conversaremos outro dia.
- Está me dando dinheiro para ir embora?
- Por favor...
- Vai ficar aqui com essa... Essa sirigaita?
- Mariana... - Ele adotou postura enérgica na voz: - Por favor, vá embora e não queira mais nos causar problemas.
A jovem balançou a cabeça para os lados. Estava triste, desapontada, desiludida. Inácio não enxergava a realidade. Ela apanhou as notas de dinheiro e as jogou para o alto.
- Não preciso do seu dinheiro. E vou fazer um empréstimo para pagá-lo.
- Pagar-me? Não entendi.
- O dinheiro que nos emprestou quando meu pai morreu, eu vou arrumar um jeito de pagá-lo. Ah, se vou.
- Isso não tem nada a ver, e...
Mariana foi seca, curta e grossa:
- Nunca mais quero vê-lo na minha frente.
Disse isso e, antes de sair, seus olhos encontraram os de Teresa. A morena susteve a respiração.
- Você ainda vai se arrepender de ter feito isso conosco.
Ela falou e saiu cabisbaixa. Dessa vez Mariana não chorou. Pelo contrário, sentiu uma força sem igual. Caminhou até a Praça da República e adentrou a estação do metrô. Não queria pensar em mais nada. Estava perplexa e chocada, tanto com a situação quanto com sua atitude. Ela não era dada a brigas, odiava violência. Mas Teresa havia chegado longe demais. Assim que o trem chegou e as portas se abriram, Mariana jogou-se sobre um dos bancos, baixou o tronco e abraçou-se às pernas. Não queria mais pensar em nada. Queria chegar em casa, de qualquer maneira. Dominada pelo cansaço e embalada pelo ritmo hipnótico do trem passando nos trilhos, deixou-se tomar por leve estado de inconsciência. Em sua mente, de forma desordenada, começaram a desfilar imagens e sons dos acontecimentos recentes. Entremeando o devaneio, Teresa aparecia à sua frente várias vezes, vangloriando-se: "Agora ele é meu, querida! Agora ele é meu, querida!" Como se tivesse recebido um choque, Mariana acordou num salto. Imediatamente lembrou-se do dia do trote telefônico. Aquele vício de linguagem, querida, era o mesmo usado pela interlocutora na noite do trote. A mesma flexão de voz, o mesmo tom jocoso. A jovem teve um lampejo de lucidez e disse para si:
- Meu Deus! Foi Teresa!
Ela ficou feliz em descobrir isso. Seu peito se abriu, era como se sua intuição estivesse lhe mostrando o caminho a tomar. Mas agora de nada adiantava. Ivana contornou o suntuoso chalé de Otília, uma construção antiga, porém bem conservada, cuja mistura de pedra e madeira lhe conferia ar aconchegante. A casa era margeada por lindo jardim de azaléias. Ivana desceu o caminho e ganhou a rua.
- Não gosto desta cidade - disse para si, fazendo uma careta. - Tenho medo de pegar uma doença.
Localizada na Serra da Mantiqueira, a uma altitude de quase 1.700 metros, distante a duas horas da capital paulista e próxima à divisa dos Estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro, a cidade de Campos do Jordão possui clima de montanha, reconhecido como um dos melhores do mundo, idêntico ao dos Alpes suíços e local ideal para quem necessita se recuperar de doenças respiratórias. Quem fosse rico e tivesse problemas respiratórios ou fosse apanhado pela tuberculose, doença incurável anos atrás, ia se tratar na Suíça. Quem era pobre e tísico - nome popular da tuberculose -, ou quem não pudesse bancar uma viagem ao exterior, tinha de se contentar em se tratar na cidade, que se tornou um reduto no combate à doença. Alguns sanatórios foram construídos a fim de atender à grande demanda de doentes que procuravam a estância, sendo o primeiro deles o Divina Providência, em 1929. Só as pessoas ricas tinham acesso à internação. Todavia, muitos doentes carentes e sem recursos se abrigavam na estação ou mesmo nos vagões da via estrada de ferro Campos do Jordão. Alguns milionários que freqüentavam a região se sentiram sensibilizados e criaram uma sociedade beneficente, a Associação dos Sanatórios Populares de Campos do Jordão, que consistia num hospital feito em madeira, com poucos leitos, mas nos padrões dos sanatórios europeus. Por volta da década de 1940, o nome Sanatorinhos surgiu da expressão popular. Era só alguém apresentar o sintoma da doença e logo se ouvia:
- Meu Deus! Você vai acabar no Sanatorinhos.
Os médicos do grupo, extremamente competentes e dedicados, viajavam à Europa para se atualizar com métodos modernos de tratamento. A qualidade de atendimento foi melhorando, tornou-se conhecida e respeitada, e o nome Sanatorinhos passou a ser visto como sinônimo de qualidade e respeito. Em seguida, a associação construiu grande e portentoso hospital, todo em alvenaria, com quartos e enfermarias amplos, dotados de modernos aparelhos médicos e cirúrgicos. Esse era o motivo por que Ivana não gostava de ficar em Campos do Jordão. A cidade lhe trazia recordações muito desagradáveis, fatos do passado que de vez em quando a atormentavam. Quando Ivana tinha seis anos de idade, sua mãe adoeceu. Começou com uma tosse seca, e alguns dias depois sua mãe tossiu e encharcou o lenço com sangue. Ivana soube que a mãe fora se tratar em Campos do Jordão. Sua mãe nunca mais voltou para casa. Esse fato marcou profundamente a vida de Ivana. Com o tempo, personalidades do mundo social, artistas, políticos e empresários, principalmente de São Paulo, entraram numa moda que perdura até os dias de hoje: ter uma casa de veraneio em Campos do Jordão. Isso lhes conferia status, prestígio, e desse modo a fisionomia da cidade foi mudando, a partir da década de 1930. Foi então que Campos do Jordão deixou de ser cidade-sanatório e transformou-se numa próspera e aconchegante cidade turística, cheia de gente bonita e voltada para o turismo e lazer. Mas Ivana continuava presa ao conceito antigo de que a cidade servia somente para tratamento de físicos. A menção à cidade também lhe fazia voltar nos anos e lembrar-se da morte de sua mãe, vítima daquela doença. Embora toda a transformação da estância tivesse ocorrido havia mais de quarenta anos, era-lhe difícil mudar o conceito. Ivana era pessoa preconceituosa, além de emocionalmente desequilibrada, e havia duas coisas que a tiravam verdadeiramente do sério, deixavam-na amedrontada: a falta de dinheiro e a possibilidade de ser vítima de alguma doença grave. Ivana tinha horror à pobreza e a algum tipo de doença que viesse a lhe deixar inválida, imóvel, presa a uma cama.
- Meu santo é forte - bradou no carro.
Ela desceu a serra e, ao sair da Via Dutra e desembocar num braço da marginal do Tietê, notou o trânsito parado, cenário comum da cidade nos fins de tarde. Foi então que Ivana se deu conta de que devia ter saído de Campos do Jordão ou mais à noite ou na manhã seguinte, evitando o horário do rush.
- O que faço? - esbravejou para si, irritada.
Um motorista buzinou logo atrás. Ivana bufou. O trânsito estava praticamente parado, as vias todas congestionadas. Ela não tinha como dar passagem. Ivana fez sinal com as mãos, pelo retrovisor. O motorista não deu trégua e buzinou, sem cessar. Ivana não pensou duas vezes. Desceu o vidro e fez tremendo gesto obsceno com os dedos da mão. Após gritar alguns impropérios, subiu os vidros.
- Animais! - vociferou. - Pensam que, porque sou mulher, vou baixar a crista?
Mas, por conta de sintonia energética e o azar de Ivana, ela foi justamente se envolver com outro nervoso e neurótico, tão esquentadinho quanto ela. O sujeito não teve dúvida: acelerou e meteu seu carro na traseira do dela, sem dó nem piedade. O impacto foi tão forte que o carro de Ivana morreu... e não ligou mais. Indignada e enfurecida, ela desceu do carro e partiu para cima do carro do rapaz, com chutes e murros. Dois funcionários da Companhia de Engenharia de Tráfego passavam pelo local e conseguiram controlar a situação, evitando uma tragédia. À muito custo conseguiram controlar a ira de Ivana. O rapaz dentro do carro, num reflexo natural, afastou-se e encolheu-se no banco de trás.
- Essa é mais doida que eu - sibilou ele, desesperado.
Após aplacar sua raiva, Ivana foi até um orelhão, ligou para sua companhia de seguros e em seguida ligou para o guincho. Avisou onde o carro estava - os rapazes da CET ajudaram-na a empurrar o veículo até o meio-fio - e tomou um táxi. O motorista, habituado com o trânsito caótico da cidade, sugeriu alternativas.
- Faça o que bem entender, oras.
Todo simpático, o rapaz foi puxando conversa.
- Olha que trânsito, e...
Ivana cortou-o de supetão:
- Eu vou pagar pela corrida. E no preço não está incluído conversar com o motorista. Faça o favor de dirigir em silêncio. Fui clara?
O motorista engoliu seco. Pensou: "Se não precisasse do dinheiro, eu a largava na rua. Nunca peguei um passageiro tão grosso e estúpido."
O rapaz foi cortando o trânsito pesado e, habilidoso e acostumado com as ruas da cidade, conseguiu se safar do congestionamento da marginal. Fez caminhos alternativos, remendou aqui e ali, cruzou ruas e avenidas por onde Ivana nunca passara antes. Quando o motorista parou num sinal vermelho, Ivana tomou um dos maiores sustos de sua vida. Ela até passou a mão pelo vidro do carro, meio embaçado, para ver se enxergava melhor. Só teve tempo de dizer, entre dentes:
- Malditos!

CAPÍTULO 15

Fim de mais um dia de trabalho. Michele terminava uma consulta com uma jovem de quinze anos de idade, solteira e grávida de seis meses, quando Bruno adentrou o pequeno salão nos fundos da farmácia. A adolescente levantou-se e despediu-se de Michele. Quando a garota saiu, Michele sorriu para Bruno e, deslizando pela sala, chegou até ele e beijou-o nos lábios.
- Como foi o seu dia?
- Corrido.
- E sua irmã?
Bruno passou a mão pelos cabelos.
- Nicole se recupera aos poucos. Assim que começou sua crise de abstinência, eu e papai a levamos para uma clínica especializada no interior, recomendação do Dr. Sidnei. Hoje ela freqüentou sua primeira reunião em um grupo dos Narcóticos Anônimos.
- O processo de desintoxicação não é fácil. Além de bons profissionais, é preciso muita força de vontade para se livrar da dependência química. E, paralelo a essa força, a reunião e ajuda dos Narcóticos Anônimos é vital para recuperação do indivíduo. Torço e rezo por Nicole.
- Tem notado algum envolvimento, alguma interferência espiritual?
- Nicole está livre das entidades sugadoras, por ora. Ela resolveu se tratar e, caso não tenha recaído, será difícil algum espírito viciado aproximar-se dela. As orações que temos feito em grupo ajudam.
Bruno bateu três vezes na madeira. E procurou dar outro rumo à conversa:
- Este salão logo vai se transformar numa clínica completa.
- Deus o ouça. Os atendimentos não param. E estou muito feliz que a empresa de Inácio esteja nos dando suporte financeiro. A verba da prefeitura não estava cobrindo nossas despesas. Creio que em breve seremos auto-suficientes.
- Depois da conversa que tivemos com papai, ele quer se sentar comigo e propor negócio. Em pouco tempo, não precisaremos mais da Centax nem da prefeitura. Bancaremos tudo por conta própria.
- Isso me alivia - suspirou Michele. - É bom ser auto-suficiente, não ter de prestar contas e dar satisfações para quem não está envolvido de corpo e alma no trabalho social. Às vezes tenho de dar satisfações sobre gastos que eles não compreendem, porquanto não passam o dia todo aqui, com a população.
- E não precisaremos mais cobrar pelas consultas - sorriu Bruno, feliz.
- Com ou sem apoio financeiro, eu vou continuar a cobrar pela consulta.
- Sério?
- Sim.
- Não concordo muito com sua posição de cobrar pela consulta, Michele. Essas pessoas são pobres, miseráveis, mal têm dinheiro para comida, para o sustento de suas famílias.
Michele sorriu.
- São pobres, mas não podem perder o respeito por si mesmos. Têm de manter sua dignidade. A pobreza é um estado mental, em que a própria pessoa se põe numa situação cheia de limites.
- Bastante genérico. E os que já nascem nesse ambiente?
- Pura afinidade. Reencarnamos na Terra por afinidade de pensamentos e atitudes. Isso vai determinar o tipo de pais que teremos o ambiente onde vamos nascer o tipo de corpo que iremos desenvolver. Quem se priva e acredita no pouco, no menos, terá grande chance de viver muitas vidas na pobreza.
- Pela óptica espiritualista, eu sempre acreditei que nascemos pobres porque fomos ricos em outras vidas e não soubemos dar valor ao dinheiro.
- Não. Isso é uma maneira preconceituosa e cômoda de ficar estacionado na pobreza. A pessoa acredita que é um carma, que Deus quis assim, que a vida tem de ser cheia de sacrifícios, cria uma série de desculpas e assim vai ser. Cada um tem a vida que acredita.
- Talvez.
- É muito cômodo aceitar que sua vida é limitada, porquanto não precisa fazer muito esforço para crescer. Aquele que é forte, que não se contenta com pouco e acredita em si, em seu potencial, vence qualquer obstáculo. Nada lhe é empecilho, nem mesmo a pobreza. A pessoa arruma um jeito e vai crescendo, de uma forma ou de outra.
As leis universais, que trabalham única e exclusivamente para o bem, acabam por criar situações favoráveis para aqueles que almejam uma vida melhor.
Bruno interveio:
- Dessa forma a pessoa arruma um emprego melhor, conhece alguém que lhe estende a mão. Seria isso?
- Isso mesmo. Tudo começa a fluir de maneira positiva na vida da pessoa, porque ela decidiu mudar e não ficar presa à limitação que a pobreza lhe impôs, em todos os sentidos. Por essa razão - ela passou delicadamente o dedo no queixo de Bruno - vou cobrar um valor bem baixo, até simbólico, mas vou cobrar. Caso eu os atenda de graça, eles não darão valor ao meu trabalho e em breve começarão a exigir mais e mais de cada um de nós.
- Nisso você tem razão.
- Esses jovens precisam ser valorizados, necessitam que lhes demos estímulos, condições de trabalho e estudo, além de alimentá-los de idéias positivas e prósperas.
Aqueles que tiverem um espírito de luta e valentia irão para frente e logo sairão de suas vidas limitadas. Outros, infelizmente, continuarão tendo vida miserável e sem futuro algum, mas por pura imaturidade espiritual.
- Você fala com muita propriedade.
- Digo isso porque eu e Daniel somos negros e crescemos pobres e sob os olhos preconceituosos da sociedade. Se deixássemos nos levar pelo vitimismo, não teríamos progredido na vida. Nossos pais, antes de morrer, ensinaram-nos os verdadeiros valores do espírito. Acredito na existência do espírito, na força que dele podemos extrair. Sem o espírito, somos apenas um punhado de matéria, de carne - ela se tocou -, e mais nada. Nosso corpo físico só tem função por conta da existência dessa substância imaterial, incorpórea, inteligente, consciente de si, na qual se situam os processos psíquicos, à vontade, os princípios morais.
- Falou difícil, mas falou bonito.
- Essa definição você encontra em qualquer dicionário - tornou ela, sorridente. - Nunca se esqueça de que somos dotados de algo aqui dentro - Michele apontou para si - que nos faz semelhantes, porém completamente distintos uns dos outros. Veja como cada um de nós tem traços diferentes: cor de pele diferente, estaturas as mais variadas, feições diversas. Não há pessoas idênticas; nem mesmo os gêmeos o são. Sempre há uma mínima diferença, até imperceptível, seja física ou de caráter. Somos semelhantes, meu amor, mas jamais seremos iguais uns aos outros. A natureza é feita de diferenças, e devemos aceitá-las e apreciá-las.
- Faz sentido o que pensa.
- Veja essas pessoas aqui neste bairro afastado e desprovido de toda e qualquer infra-estrutura. Por que estão morando aqui e por que eu tenho uma vida melhor que a deles? E por que cargas d'água você vive melhor ainda?
- Não sei talvez obra do destino.
- Resposta simplória, que nos deixa à margem de muitas indagações. Nunca parou para pensar por que algumas pessoas nascem com a saúde debilitada e outras nascem perfeitas e saudáveis? Por que Deus, ou a força inteligente que sustenta o universo, criaria um jogo de interesses tão desvantajoso para nós? Não creio que a providência divina queira brincar conosco. Estamos em ambientes distintos e posições sociais, físicas, financeiras e morais diferentes por conta de nosso conjunto de crenças, atitudes e escolhas feitas ao longo de muitas e sucessivas vidas.
Bruno mordeu o lábio superior para evitar o riso. Michele falava de maneira especial. Lembrou-se da conversa que tiveram com Virgílio. Bruno estava interessado e queira conhecer cada vez mais sobre si mesmo e o mundo espiritual.
- Claro - tornou ele - que uma explicação espiritual diminui em muito minhas dúvidas acerca das diferenças sociais, dos mistérios da vida e da morte. Mas será que tudo isso é mesmo verdade?
Michele retorquiu:
- Se é verdade ou não, cabe a cada um de nós acreditar. Mas vamos falar de você.
- De mim?
- Sim. Responda-me: por que, afinal de contas, você nasceu num lar cuja mãe nunca lhe deu carinho e atenção?
- Não sei dizer...
- Por que sua mãe não é igual às outras? Por que Ivana é diferente e o trata de maneira fria e distante?
Bruno deixou-se pegar de surpresa. Não sabia o que responder. No seu íntimo, ansiava por saber a resposta. Sempre se fizera tal pergunta desde pequeno, e nunca encontrara uma resposta que pudesse aplacar sua revolta. Na infância e na adolescência fora muito duro viver privado dos carinhos de Ivana. Ela nunca lhe dera carinho, nunca demonstrou amabilidade. Jamais participara de nenhuma atividade que envolvesse os filhos, nunca fora a uma competição de colégio, por exemplo. Os anos passaram e Bruno cresceu. Decidido a ser feliz, estudou, fez terapia, melhorou bastante e não ligava mais para a falta de atenção da mãe. Acostumara-se com o distanciamento de Ivana. Michele arrancou-o de seus pensamentos e prosseguiu:
- Você atraiu uma mãe assim para crescer por si, dar-se o amor e o carinho que ela não lhe deu. A vida fez isso para você se tornar pessoa forte, diminuir suas fraquezas.
Ivana é pessoa nervosa e desequilibrada emocionalmente. Ela tem dificuldade em controlar suas emoções e sentimentos. A vida procurou lhe dar filhos para ver se atenuava essa ira que talvez venha de muitas vidas, mas a maternidade não serenou sua mente nervosa e agitada, tampouco enterneceu seu coração. Muito pelo contrário; sua mãe continuou fria, distante, não se deixou tocar pela bênção da maternidade. Parece que tem medo de si mesma, medo de sentir.
- Nunca olhei minha mãe por esse ângulo. Na verdade nunca compreendi o porquê de ela não gostar de mim ou de minha irmã.
- Sua mãe gosta de vocês do jeito dela. Vocês criaram em suas mentes que ela deveria se comportar como a mãe modelo, talvez como a maioria das mães de seus amiguinhos.
- Sempre esperei por isso. E nunca aconteceu.
- A mãe ideal não existe.
- Custei a perceber.
- Não adianta querer que as pessoas sejam como desejamos. Isso é terrível, nos causa mal-estar interior. É melhor aceitar que a vida lhe deu uma mãe ausente, aprender a se amar incondicionalmente e parar de implorar por uma migalha de atenção.
- Nunca implorei.
- Mas é o que deseja. Talvez seja por isso que teve uma mãe como Ivana.
- Acha mesmo?
- Claro. Você teve uma vida de órfão, porquanto seu pai também foi distante. Virgílio pode ter sido amoroso, mas nunca participou de sua vida. E o que você ganhou com isso?
- Não consigo perceber - considerou Bruno, pendendo a cabeça para os lados.
- Você foi obrigado a descobrir seus potenciais, melhorar sua auto-estima. A vida quis lhe mostrar que você não precisa de ninguém lhe paparicando, que você é auto-suficiente e pode se dar carinho e atenção a si próprio.
- Você está impossível hoje - disse Daniel, que entrava na sala.
- Michele me pegou para cristo hoje - disse Bruno, rindo.
- Mas fez-me pensar sobre muita coisa. Disse-me coisas muito interessantes.
- Minha irmã é uma mulher toda interessante - tomou Daniel, beijando-a na face.
- Não sinto ciúmes, porque são irmãos - advertiu Bruno, entre risos. - Se não fossem...
Daniel não chegara sozinho. Partiu para as apresentações:
- Esta é Sílvia, irmã de Inácio.
Eles a cumprimentaram com satisfação e alegria. Michele foi simpática:
- A ajuda que a empresa de seu irmão está nos dando é maravilhosa; complementa a verba da prefeitura. Pena que Inácio não tenha tempo de vir aqui com mais freqüência para saber a quantas anda o progresso dessas pessoas.
Sílvia retribuiu o cumprimento:
- Ele confia no trabalho de vocês. E na verdade esse dinheiro da Centax vai gerar bons profissionais no futuro, inclusive para o próprio quadro de funcionários da empresa. Um dos trabalhos sociais que vocês vêm realizando é o de afastar esses jovens do caminho das drogas e lhes proporcionar novo horizonte, perspectivas de vida positivas. Creio que se tornarão ótimos profissionais, e amanhã também serão melhores pais e cidadãos.
- Sem dúvida - disse Michele. - Essa é nossa meta. Fico contente em poder contribuir pela melhora da vida das pessoas, em todos os sentidos.
Daniel sorriu:
- Sílvia realizava trabalho semelhante na comunidade da Rocinha, no Rio de Janeiro.
- É mesmo? - perguntou Michele, interessada.
- Sim - respondeu Sílvia. - O trabalho de vocês se assemelha ao meu.
- Pretende ficar em São Paulo? - indagou Bruno.
- Sim. Penso em morar aqui.
- Poderemos conversar outra hora e, se quiser, estamos precisando de gente para trabalhar. A quantidade de pessoas atendidas aumenta a cada mês.
Sílvia sorriu satisfeita:
- Adoraria.
Bruno estendeu-lhe a mão e tornou:
- Estávamos tendo uma pequena aula de espiritualidade.
Sílvia admirou-se:
- O mundo espiritual me fascina. Só para constar, a crença na espiritualidade mudou muito minha vida.
- Não diga! - exclamou Michele.
- Eu sempre tive sensibilidade, sabe? - retorquiu Sílvia. - E desde pequena tenho sonhos.
- Sonhos? - indagou Bruno, surpreso.
- É. Sonhos premonitórios.
- Interessante... - ponderou Bruno. - Eu comecei este projeto porque tinha sonhos repetidos com este lugar, este bairro. Michele me afirmou que existem amigos espirituais que aproveitam nosso momento de descanso e nos enviam mensagens por meio dos sonhos. No princípio achei inverossímil, mas hoje, olhando para este prédio e estes jovens, tenho plena certeza de que fui orientado nos sonhos por amigos do astral superior.
- Como ele não é, ainda, estudioso do mundo espiritual, os espíritos decidiram escolher os sonhos para se comunicar com Bruno - finalizou Michele.
- Os meus geralmente são premonitórios - atestou Sílvia.
- Você enxerga o futuro? - indagou Michele.
- Às vezes. E isso me deixa um tanto encabulada. No começo era difícil, porque eu não conseguia manter a boca fechada e contava tudo, fosse na escola, fosse em casa. Arrumei algumas confusões e, depois de estudar o assunto e compreender melhor o que me ocorria, passei a ser mais discreta. Hoje só falo quando tenho liberdade, intimidade com a pessoa.
Sílvia e Michele simpatizaram-se de imediato, e as duas foram naturalmente entabulando conversação, deixando os moços à matroca.
- Que bela moça! - elogiou Bruno.
- Linda, não? - completou Daniel. - Inácio nos apresentou um ao outro, semana passada. Ela realizava bonito trabalho de promoção social. Sofreu terrível desilusão amorosa e veio para São Paulo se recuperar, junto à mãe e ao irmão.
- E pelo jeito ela vai se recuperar rapidinho dessa desilusão amorosa...
- Por que diz isso?
- Seus olhos brilham a cada momento que toca no nome de Sílvia. Você está apaixonado por ela. Não dá para disfarçar.
- Não dá, não é mesmo?
- Negativo.
Ambos caíram na risada.
- Você já se declarou?
Daniel balançou a cabeça.
- Ainda não. Ela está muito animada com o projeto e quer trabalhar conosco. No momento certo, creio eu, pretendo me declarar.
- Tomara que dê certo, meu amigo. Gostei da Sílvia.
- Ei, que tal todos irmos tomar um lanche? Estou faminto.
- Eu topo - assentiu Bruno. - Ei, garotas, estão a fim de pegar uma lanchonete?
- Claro! - responderam as meninas, em uníssono.
Enquanto se dirigiam ao exterior do salão, Sílvia sugeriu:
- Gostaria de dar uma passadinha num shopping. Preciso ver uma blusinha para uma festa.
Daniel suspirou:
- Ah, essas mulheres! São alucinadas por shopping centers, lojas e compras. Será que isso já vem no sangue de vocês? - perguntou, em tom de brincadeira.
Sílvia e Michele fizeram careta e, todos animados, entraram no carro de Bruno.

CAPÍTULO 16

Virgílio encostou o carro numa rua tranqüila. Desligou o motor e suspirou angustiado.
- O que está acontecendo? - perguntou Nair, preocupada.
- Não tenho me sentido bem ultimamente.
- Algum problema de saúde?
- Não. São tantos problemas, que...
Virgílio não segurou o pranto. Cobriu o rosto com as mãos em profundo estado de desespero. Nair condoeu-se. Pousou suas mãos sobre as dele a fim de lhe transmitir conforto.
- Temos muito que conversar. Há coisas que estão entaladas na minha garganta por mais de vinte anos. Entretanto, agora não sinto que seja momento apropriado. Mas essa sua angústia me preocupa. O que acontece? Por que você está me vigiando desde que Otávio morreu?
Virgílio enxugou os olhos com as costas das mãos. Deu duas fungadas e disparou:
- Desculpe meu descontrole. Estou me sentindo no limite de minhas forças. Parece que toda a minha vida está ruindo. Nem sei por onde começar...
- Comece pelo fato de estar me vigiando.
Ele sorriu.
- Não a estou vigiando. Eu fico entupido de problemas no trabalho e em casa. Pego o carro e saio por aí e acabo vindo parar na sua porta. É como se eu sentisse certo conforto, segurança, algo que não sei explicar. Por incrível que isso possa parecer, toda vez que chego perto de sua casa eu me lembro do meu pai.
Nair espantou-se.
- De seu pai? O Dr. Homero?
- Sim. Parece loucura, não?
- Você não deve estar bem da cabeça mesmo.
- Minha vida não anda nada boa.
- Ao chegar à minha casa, você poderia pensar em qualquer um, menos no seu pai. Aquele homem arruinou a minha vida.
- Soube da trama sórdida ungida entre meu pai e a família de Ivana. E tenho tantas dúvidas aqui comigo - disse ele, apontando para o peito. - Sinto que temos muito que conversar.
- Não creio que temos muito que conversar. O tempo passou, estamos ficando velhos.
Ela desviou o assunto. Nair ainda tinha segredos acerca daquele passado e não se sentia preparada para tocar no assunto. Virgílio cortou-a abruptamente:
- Não diga isso. Você mal completou quarenta anos. Eu estou com cinqüenta e dois. Temos ainda muito pela frente. - Ele apertou a mão de Nair. - Quero ainda conversar com você sobre nosso passado e nossa separação.
Ela sentiu as faces arderem. Não estava preparada para voltar e remexer em seu passado. Abriu a boca, mas Virgílio impediu-a:
- Também não quero tocar nesse assunto agora. Não seria justo nem para você nem para mim. Ainda há coisas na minha cabeça que preciso esclarecer a mim mesmo. São como peças de um quebra-cabeças que aos poucos me são mostradas. O que me trouxe até você foi... foi...
Nair estava impaciente.
- Diga logo, homem!
- Minha filha, a Nicole.
- Sua filha?
- É.
- Quer falar comigo sobre sua filha?
- Sim.
- Não tem a mãe dela para conversar? - perguntou ela, em tom jocoso.
- Não me leve a mal, por favor. Ivana não liga para os filhos. Sempre os tratou com frieza e distância, se você quer saber.
- Como assim?
- Ivana teve Bruno e Nicole à deriva, talvez até meio a contragosto. Nunca suportou assumir seu papel de mãe, nunca quis saber de participar da educação de meus filhos, jamais se sentiu responsável por eles.
- Que horror!
- Pois é.
- Eu tenho duas filhas e sou tão apaixonada por elas! Não consigo imaginar-me criando-as sem eira nem beira, com frieza e distanciamento.
- Ivana mal conversa com os filhos. Eu confesso ter sido pai ausente, fui relapso mesmo. Dediquei-me a vida toda ao trabalho e ao acúmulo de nossa fortuna, a fim de garantir bom futuro às crianças.
- Você fez o que geralmente um pai faz. Vai à luta para manter o bem-estar da prole.
- Mas me tornei ausente. Eu me arrependo de não ter participado das festinhas de meus filhos, dos aniversários, das reuniões escolares, de ser amigo e poder conversar sobre vários assuntos. Eu me distanciei de meus filhos e creio que esteja numa situação irreversível.
- Não existe situação irreversível. Para tudo se tem uma saída. Aprendi isso na pele, desde quando você me abandonou, e algum tempo atrás, quando perdi o Otávio. A gente escorrega, cai se machuca, mesmo assim consegue se reerguer e vai tocando a vida. Aprendi que tudo é uma questão de força de vontade. Isso depende única e exclusivamente de cada um.
- Sei disso. Compreendo. Meu filho Bruno é belo rapaz. Bonito, estudioso, esforçado, trabalha com jovens carentes na periferia.
- Que belo trabalho! Você deve sentir muito orgulho de seu filho.
- Sim. Bruno é o exemplo de filho ideal. Nunca deu problema na escola, sempre tirou boas notas. Graduou-se em Economia e namora uma menina linda. Tenho certeza de que meu filho será muito feliz.
Nair esboçou leve sorriso. Virgílio, aparentemente, não tinha do que reclamar. Será que estava tentando criar todo aquele clima para se aproximar? Ela ressabiou-se.
Virgílio, cabeça baixa, prosseguiu:
- O meu maior problema é Nicole, minha filha. Ela é o oposto de Bruno.
- Como assim?
- Nicole também cresceu à deriva, rodeada de babás e empregadas. Eu sempre viajando a negócios e Ivana sempre ocupada com seus afazeres, como lojas e salões de beleza. Eu não percebi o quanto minha filha sentiu nossa falta, precisou de nosso carinho, de nosso colo. Agora creio ser tarde demais. Se ao menos eu tivesse percebido, minha filha poderia ter maiores chances de recuperação.
- De que está falando? O que tem sua filha?
Ele cobriu novamente o rosto com as mãos, não de vergonha, mas por profundo desespero.
- Nicole é viciada em drogas.
Nair levou a mão à boca. Lembrou-se de suas filhas.
- Que triste!
- Triste e dolorido. A droga está acabando com a vida da minha filha e com a minha também.
- Imagino como deva estar se sentindo.
Virgílio suspirou e começou a contar a Nair tudo sobre o envolvimento da filha com as drogas, como Nicole tornou-se uma dependente química, desde a adolescência. Conforme ele ia falando, Nair sentia o peito oprimir-se. Ela procurava entender a dor do pai e tentar ajudá-lo de alguma maneira. O espírito de Homero, sentado no banco de trás do carro, emocionou-se com o relato do filho. Ele estava tão concentrado em redimir-se perante Nair que se esqueceu do filho, da nora, dos netos. Homero sentiu uma ponta de remorso e, assim que fechou os olhos, transportou-se para a colônia espiritual da qual fazia parte. Foi direto ao gabinete de Consuelo.
- Preciso fazer alguma coisa pela minha neta. Ela não está bem, tornou-se uma dependente química. Eu não sabia.
Consuelo nada disse. Balançou a cabeça para cima e para baixo. Homero prosseguiu:
- Estou me sentindo muito mal, porquanto fiquei com os olhos voltados para o meu próprio umbigo. Se eu tivesse zelado pela minha neta, talvez Nicole estivesse seguindo outro caminho.
- Quer ser Deus de novo? - perguntou Consuelo, voz pausada e doce.
- O que disse?
- Deu para consertar a vida de todo mundo? Não acha ser isso impossível?
- Mas veja Nicole... Ela está se matando.
- Não podemos atuar nessa jurisdição.
- Como assim?
- Nicole tem seu próprio guia espiritual.
Consuelo levantou-se e aproximou-se dele, tocando-lhe delicadamente o ombro.
- Não se esqueça de que todos os encarnados têm um guia, um anjo da guarda, um mentor, se assim preferir chamar. De certa maneira, você assumiu o papel de guia espiritual de Nair, só por enquanto. Isso foi permitido por conta dos laços que os unem há várias vidas. O guia dela afastou-se por ora, e você assumiu o cargo. Entretanto, todas as pessoas têm um protetor.
- Mas Nicole está sempre metida em drogas, más companhias, delinqüentes, gente da pior espécie. O guia dela não pode intervir? Que mentor é esse que deixa uma pobre menina inocente à beira da perdição, de um caminho sem volta?
Consuelo sorriu e nada disse. Pausadamente caminhou até a porta e mandou alguém entrar.
- Gostaria de apresentar-lhe. Creio que já se conhecem de outros tempos. Homero, este é...
Ele virou-se para a porta e seus olhos espremeram-se para enxergar melhor.
- Quem é você?
O espírito à sua frente fechou os olhos e concentrou-se. Em instantes adquiriu outra forma. Os olhos de Homero quase saltaram das órbitas. Não podia ser verdade. Ele balbuciou:
- Vo... vo... Você?
Everaldo aproximou-se e estendeu-lhe a mão.
- Como vai, Homero? Quanto tempo!
Homero mecanicamente apertou-lhe a mão.
- Não nos vemos... bem... é...
- Não nos vemos desde aquela nossa conversa horrível. Eu bem me lembro. Pensa que para mim é fácil ter minha consciência acusando-me a todo instante? Num gesto de desespero fiz um acordo com você e acabei com a felicidade de minhas filhas.
- E de meu filho - ponderou Homero.
- Depois que desencarnei, mudei meu jeito de ver as coisas. Percebi e entendi aqui no astral, que nada acontece por acaso. Em outra dimensão percebemos que as coisas acontecem de maneira peculiar. Não existe o certo nem o errado. As pessoas fazem escolhas e respondem por elas.
- Mas destruímos a vida de nossos filhos.
- Eu acreditei muitos anos nisso, mas hoje não enxergo assim.
- Não? - indagou Homero, surpreso.
Everaldo deu continuidade:
- Seu filho, Virgílio, deveria ser mais firme, pois é dotado de livre-arbítrio e podia recusar-se a casar com Ivana. Mas não se esqueça de que a vida, às vezes, nos mete em grandes enrascadas, tudo pelo nosso melhor.
- Como melhor? Veja como está a vida de Virgílio! Ou a vida de Nicole! Crê que estão caminhando para o melhor?
- Ele fez sua escolha, arcou com as conseqüências delas, aprendeu com o sofrimento, e no momento está repensando sua vida. Aos poucos ele está se desvencilhando de seus medos, culpas e frustrações. Logo vai assumir poder completo sobre sua vida e fazer novas escolhas, descobrir que ainda é possível ser feliz.
- Fiquei preocupado com Nicole.
- Estou cuidando dela - anuiu Everaldo.
- Então vai ser reprovado. Que espécie de guia é você que deixa sua protegida afundar-se num mundo tão vil quanto o da dependência química?
Everaldo fuzilou-o com o olhar. Consuelo interveio:
- Vamos nos acalmar.
Ela os afastou e indicou uma poltrona para cada um. Ambos obedeceram e sentaram-se. Consuelo procurou ser didática:
- A nossa tarefa, qual é?
Homero respondeu tímido:
- Nossa tarefa se resume em amparar um espírito com o qual temos afinidade, durante toda a sua jornada na Terra.
- Isso mesmo - afirmou Consuelo. - Todas as pessoas possuem um guia, um mentor. Geralmente, são designados os espíritos afins e simpáticos para estabelecer tal relação. Um guia espiritual é via de regra, um espírito mais evoluído que o seu protegido. Não raro, se vêem mães guiando filhos ou maridos guiando esposas, e assim por diante. Um guia acompanha o seu protegido, oferecendo-lhe apoio num momento de sofrimento, esclarecimento numa hora de dúvida, ajuda num instante de perigo, etc. As pessoas, mesmo sem perceber, estão submetidas à influência benévola desse guia constantemente e, ao mínimo pensamento feito a ele, o bondoso espírito se faz presente e exerce sua tarefa caridosa e despretensiosa.
Homero assentiu com a cabeça. Lembrou-se do curso de guia espiritual que fizera anos atrás. Everaldo tomou a palavra:
- Um guia está profundamente ligado à seu protegido por motivos de afinidade espiritual e sempre executa sua missão com sentimento espontâneo de ajuda, porquanto essa ajuda também significa o seu próprio desenvolvimento e evolução. A terminologia "anjo da guarda", utilizada por outras religiões, se encaixa no equivalente a protetor espiritual ou mentor espiritual, pois se enquadra perfeitamente para esse espírito missionário, que consiste no amigo constante e amoroso que a vida dispõe a todos os encarnados durante sua vida no orbe terrestre.
- Estamos num estágio de evolução em que cada ser encarnado na Terra está ligado a um protetor, um guia espiritual. Todos, sem exceção. Acontece que alguns são receptivos a esses guias. Outros nem imaginam que eles estejam por perto. E outros até conseguem afastá-los de suas vidas.
- Afastá-los?
- Sim.
- Isso é impossível! - exclamou Homero, contrariado.
- Não. Um guia não fica à mercê do encarnado, fazendo-lhe as vontades e protegendo-o vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana. Um guia tem o papel de orientar, sussurrar palavras de força e estímulo, transmitir mensagens positivas. Ou você se esqueceu do curso?
- Não me esqueci.
- Qual é o lema de um guia?
- Qual é? - retrucou Everaldo.
- Jamais se intrometer na vida do encarnado.
Consuelo ajuntou:
- Isso mesmo, Homero. Nós, como guias, não podemos interferir nas decisões, nas escolhas que os encarnados fazem. Podemos induzi-los a mudar, a tomar outro caminho, mas jamais fazer por eles. Veja o caso de Nair. Você só teve permissão de aproximar-se dela caso não interferisse cm sua vida. Você simplesmente lhe sugere idéias. Ela tem o livre-arbítrio e pode captar ou não o que você lhe diz. Mais nada. Fazer por ela é algo que nem mesmo espíritos mais evoluídos que nós, têm permissão de fazer. Cada ser é único e deve responder por tudo aquilo que pratica, seja bom ou não.
- Mas Nicole pode morrer.
Everaldo interveio, mais calmo:
- Pode, sim. Em todo caso, um dia todos que estão na Terra vão morrer, vão desencarnar. Uns mais cedo, outros mais tarde.
Homero baixou a cabeça, triste. Everaldo tocou em seu braço.
- Você precisa saber um pouco sobre algumas vidas passadas de sua neta.
- Ajudaria bastante.
- Nicole adotou uma postura de vítima nas duas últimas encarnações por conta de uma desilusão amorosa. Sentindo-se traída e sozinha, ela afundou-se no álcool e morreu em decorrência dos excessos provocados pela bebida. Surgiu nova oportunidade de reencarne, e então Nicole nasceu numa família rica, só que dessa vez sem perspectiva de vida afetiva, a fim de evitar nova desilusão amorosa. Entretanto, Nicole ansiava por nova paixão. Seu espírito possuía esse temperamento, e ela não conseguiu evitar. Apaixonou-se de novo.
Everaldo suspirou. Em sua mente vieram muitas lembranças. Era como se ele pudesse voltar e reviver aqueles tempos.
- Nicole apaixonou-se perdidamente por um oficial do exército inglês e parecia que tudo caminhava para um final feliz, porquanto ele também a amava.
- Então ela teve uma vida feliz, suponho?
- Ledo engano.
- O que aconteceu? - indagou Homero, apreensivo.
- Tudo mudou assim que Nicole recebeu um telegrama do Departamento Britânico de Guerra. Os telegramas, nos idos de 1916, eram enviados somente em caso de morte.
Nicole entrou em profunda depressão. Desesperada, perdida e sem rumo, novamente atirou-se à bebida. Só que naquele tempo as pessoas começavam a se viciar em drogas. Muitos usavam ópio e heroína. Nicole afundou-se nas drogas e desencarnou. Agora procuro ajudá-la a se afastar das drogas e não sucumbir novamente. Mas isso compete ao espírito dela. Não posso intervir. Nem tenho permissão para isso. Consuelo acrescentou:
- Para que serviria viver na Terra se, a todo problema, um guia pudesse intervir e fazer o que compete ao encarnado!
Homero mordeu os lábios:
- Você tem razão - e, virando-se para Everaldo, perguntou:
- Por que se interessa tanto por Nicole?
Everaldo exalou profundo suspiro. Encarou Homero nos olhos.
- Fui eu que abandonei Nicole, duas encarnações passadas.
Homero olhou-o espantado.
- Você?
- Sim.
Everaldo fechou os olhos e novamente voltou à forma de duas vidas atrás, da época em que Nicole se viciou pela primeira vez.
- Faço o possível para que ela consiga vencer o vício. Uma parte minha se sente responsável por tudo isso. Sei que somos cem por cento responsáveis por tudo que nos acontece, entretanto eu contribuí para o infortúnio de Nicole. É uma questão de consciência, e, ao invés de me matar de culpa, procuro fazer algo de positivo, algo de bom.
- Everaldo tem conseguido grandes feitos. Entretanto, há um obsessor encarnado, se assim podemos chamá-lo, que atrapalha bastante.
- Quem é? - indagou Homero, interessado.
- Trata-se de Artur. Ele tem forte ascendência sobre Nicole - declarou Consuelo. - Artur e Nicole se encontraram no umbral, após sua última encarnação. Ficaram anos encostando em encarnados viciados e sugando-lhes as energias para sentir o prazer que a droga lhes proporcionara em vida. Muito dos que morreram vítimas da dependência química, hoje no umbral, abusam de Nicole e Artur. Ou seja, estão fazendo a eles o mesmo que os dois faziam quando desencarnados.
- Situação complicada para todos.
- Mas tudo caminha para o melhor - tornou Everaldo, sorrindo. - Estou ao lado de Nicole e me comprometi que vou ajudá-la no que for possível. Penso em voltar a Terra como seu filho.
- Isso seria maravilhoso. Nicole poderia se livrar das drogas, tornar-se mãe, constituir família e ser feliz.
- É o que almejo - concluiu Everaldo.
A conversa fluiu agradável até o momento em que Homero sentiu sinal de perigo. Consuelo, sentada a seu lado, fez sinal afirmativo com a cabeça.
- Pode descer. Estou sentindo cheiro de confusão. Eu e Everaldo vamos ficar na vibração positiva. Boa sorte.
Homero levantou-se de um salto e sumiu. Em instantes estava novamente dentro do carro. Virgílio continuava falando sobre sua filha, sua vida, seus problemas. Discursava sobre seu casamento malogrado, suas frustrações, enfim, fazia um desabafo completo e total de tudo que vinha lhe acontecendo nos últimos anos. Nair estava sensibilizada e num ou outro momento deixou que lágrimas escorressem pelo canto do olho. Homero viu pela janela lateral, mas nada pôde fazer para evitar a tragédia que se abateria sobre ambos. Ele fechou os olhos e orou, orou com força e vontade. Logo pequena luz se fez presente dentro do veículo. Ivana apareceu em total descontrole, feito um bicho. Saltou do táxi e avançou para cima do carro. Antes, pegou um pedaço de uma barra de ferro no meio da rua e o arremessou sobre o veículo, repetidas vezes. Nair encolheu-se no banco e Virgílio fechou os vidros. Ivana estava fora de si.
- Malditos! Ordinários! Saiam já desse carro. Eu vou acabar com a vida dos dois, ou não me chamo Ivana!

CAPÍTULO 17

Bruno e Daniel resolveram dar uma volta enquanto Sílvia e Michele seguiram até uma loja de roupas femininas.
- Não demorem - asseverou Bruno. - Estamos com fome.
- Seremos rápidas - disse Sílvia. - Bem rápidas.
Despediram-se com um aceno. Bruno e Daniel se entretiveram numa loja de artigos eletrônicos enquanto as garotas passeavam, gesticulando animadas, olhando as vitrines. Sílvia encantou-se com um modelo de blusa numa vitrine e sugeriu:
- Gostei. Vamos dar uma olhada?
Entraram e foram atendidas em seguida.
- Desejam alguma coisa?
- Estou interessada naquela blusa que está na vitrine - Sílvia apontou com os dedos.
- Essa blusa está vendendo bastante. É muito bonita. Você tem excelente gosto.
- Obrigada.
- Qual o número, por favor?
- Creio que tamanho médio.
- Hum, infelizmente esse tamanho está em falta. Mesmo assim, vou dar uma olhada no estoque. Um minuto só.
Sílvia foi para o meio da loja. Michele comentou:
- Gostei muito dessa moça. Parece ser bem simpática, tem uma energia muito boa.
- Também senti a mesma coisa - concordou Sílvia.
Letícia voltou em seguida com dois modelos. Estava desolada:
- Desculpe-me, mas só temos tamanho grande. Creio que teremos o seu número em estoque daqui a uns dois dias.
- Que pena! - tornou Sílvia. - Gostei bastante do modelo. A gerente aproximou-se.
- Algum problema?
- Não - respondeu a vendedora. - Esta senhorita estava procurando pela blusa da vitrine, mas não temos o número dela.
A gerente encarou Letícia de maneira atravessada.
- Verificou se o modelo que veste a manequim na vitrine é tamanho médio?
- Sim, fiz isso assim que retornei do estoque, mas o modelo da vitrine veste tamanho grande.
- Experimente - sugeriu a gerente, encarando Sílvia, com sorriso patético nos lábios.
- Não, obrigada.
- Por quê?
- Eu não uso um tamanho tão grande assim. Prefiro esperar pelo modelo médio.
- Você tem os ombros largos, talvez o grande não fique tão mal - insistiu a gerente.
Sílvia ia responder, mas Letícia retrucou:
- Não vai ficar bom - disse, virando-se para a gerente.
- Ela usa tamanho médio, e não grande.
A gerente fuzilou-a com o olhar. Sílvia e Michele perceberam a saia justa. Sentiram-se constrangidas. Sílvia tomou a palavra:
- Aqui está o meu número de telefone. - Ela anotou-o num papelzinho. - Assim que chegar o próximo lote de blusas, você me liga.
Letícia sorriu e agradeceu. As duas estavam saindo da loja quando o bate-boca começou. Sílvia e Michele pararam para escutar. A gerente estava possessa:
- Podia ter empurrado aquela blusa.
- Eu não sou de empurrar nada para ninguém.
- Por que não?
- A moça queria tamanho médio. Se não o temos, paciência.
- Você não sabe vender.
- Como não?
- Crê que elas vão voltar?
- Claro que vão. Fui cortês.
- Tola! Acredita nisso? Elas nunca voltarão.
- Vão voltar, tenho certeza.
- Você perdeu uma cliente. Você mal a conhece... Podia ter empurrado a blusa.
- Pelo menos a minha consciência está tranqüila.
- Consciência tranqüila e comissão de menos. Deixou de ganhar por quê? Afinal, até que ela era bem peituda... Tenho certeza de que o tamanho grande lhe serviria melhor.
Sílvia ouviu e não gostou. Rodou nos calcanhares e voltou, imediatamente.
- Escute que tipo de gerente é você?
- Perdão? - volveu a mulher numa voz fria e impessoal.
- Não é de bom tom falar mal do cliente.
A mulher ficou pasma, uma cor no rosto entre amarelo e verde, talvez.
- Sinto muito. Eu não quis dizer isso - tentou se desculpar.
- E que essas vendedoras me tiram do sério e...
- Além de não assumir a responsabilidade pelo que fala, tem de culpar outra pessoa? Que falta de caráter! Letícia anuiu:
- Estou farta. Estou cansada de sua falta de caráter, de sua insegurança, de eu ter de fazer o trabalho pesado e você que leva os louros.
- Ei, mocinha, meça bem suas palavras quando se dirigir a mim. Não se esqueça de que minha cunhada é a dona dessa loja.
- Eu me demito.
A gerente olhou-a espantada. Letícia era a melhor vendedora da loja. Não podia perdê-la. E, para piorar, ela própria seria demitida, caso não fechasse a meta de vendas do mês. Tentou reconsiderar:
- Não me venha com ameaças. Só por conta de uma situação criada por você e uma cliente qualquer.
- Eu não criei situação nenhuma. E todo cliente deve ser tratado de maneira especial. São eles que pagam a minha comissão, o meu salário - apontou para o rosto dela - e o seu salário.
- Calma!
- Quero minhas contas.
- Você não pode me deixar na mão.
- Posso, sim. Estou cheia. Você é desumana. Não nos dá valor. Não tenho mais nada a fazer aqui.
A gerente irritou-se e perdeu a compostura.
- Você recebeu semana passada e não fez nenhuma venda até agora. Não temos nada para acertar. Pode apanhar suas coisas e ir. Mas tenha certeza de que, caso se arrependa, aqui você não bota mais os pés - ameaçou.
- Nem ela nem eu - afirmou Sílvia. - Você não tem um pingo de profissionalismo. Se eu conhecesse a dona da loja, não hesitaria em discorrer sobre suas péssimas qualidades.
- Como?
- Isso mesmo - afirmou Sílvia. - Você é péssima gerente.
A mulher descontrolou-se e passou a falar num tom acima do normal. Letícia foi até os fundos e apanhou seu casaco e sua bolsa. Michele tocou-lhe no braço.
- Você está bem?
- Sim, estou.
- Tem certeza?
- Quer dizer, estou meio aturdida. Eu preciso de trabalho, mas não posso me submeter mais os caprichos dessa mulher. Estou de consciência tranqüila. Logo vou arrumar emprego bem melhor.
- Muito antes do que você pensa - disse Michele, com convicção.
- Eu também acho - ajuntou Sílvia. - Adorei sua postura. Se precisar de alguma coisa, posso falar com amigos. De repente, você consegue um bom emprego.
- Obrigada.
- Estou com tanta fome... - disse Michele. - Os meninos devem estar nos esperando.
- E você? - perguntou Sílvia para Letícia. - Está com fome?
- Sim, mas marquei com meu namorado em frente à lanchonete, lá em cima.
- A que horas você marcou? - indagou Sílvia.
- Nove. E quando eu saio, quer dizer, costumava sair do trabalho. E ainda são sete e meia.
- Faça-nos companhia. Será um prazer.
Letícia estendeu o braço e apresentou-se. Michele e Sílvia fizeram o mesmo.
- Você é muito simpática, nasceu para trabalhar com o público. É atraente, cordial, atenciosa, tem fala pausada - ajuntou Michele.
- Adoro atender as pessoas...
A conversa fluiu agradável e em instantes estavam as três na companhia de Daniel e Bruno. Compraram lanches e refrescos, escolheram uma mesinha na praça de alimentação e Letícia se enturmou rapidamente no grupo. Mariana chegou à porta de sua casa e agradeceu aos céus assim que meteu a chave na fechadura e entrou. Acendeu a luz. Ninguém estava lá. Provavelmente a mãe fora fazer uma entrega ou visitar uma cliente, e ainda era cedo para Letícia voltar do trabalho. Ela suspirou e jogou-se pesadamente sobre o sofá. Estava cansada e triste. Não podia imaginar que Inácio fosse defender a ordinária da Teresa. Como alguém podia ser capaz de mudar a personalidade em tão pouco tempo? Como ela pudera se deixar enganar por aquele homem que tanto amava? A jovem balançou a cabeça para os lados. Que situação esquisita... Ela ainda nutria forte sentimento por Inácio. Sentia que ainda o amava. Mas o que fazer se ele se mostrava homem frio e insensível? E ainda por cima era cego a ponto de continuar amigo de Teresa? Essa era demais!
- Ah, Teresa! - suspirou. - Você é uma pedra no meu sapato.
Ela levantou-se com esforço e apagou a luz. Tateou os móveis e deitou-se no sofá, pensando em sua vida e em Inácio. Teresa ajeitou os cabelos e retocou os lábios com batom. A cena no bar tinha sido inesquecível e lhe renderia bons frutos. Só não poderia deixar que as fotos chegassem até Mariana, por enquanto.
- Isso não pode acontecer agora. Ela vai explicar que o rapaz a estava socorrendo, e naturalmente Inácio perceberá que foi um mal-entendido. Vai perdoada, porque está apaixonado. Preciso ganhar tempo.
Ela piscou para sua imagem refletida no espelho e saiu. Encontrou Inácio terminando de preencher o cheque.
- Já vamos?
- Sim - respondeu ele, num tom ríspido. - Não temos mais clima para ficar neste bar. As pessoas estão apontando para nós e fazendo comentários, dando risada nas nossas costas.
Teresa sacudiu os ombros. Ela não se importava com os outros, não estava nem aí, mas já não via mais motivos para ficar lá com Inácio, jogando conversa fora. A sua companhia era extremamente desagradável. Teresa fingia gostar dos mesmos assuntos. Fazia tremendo esforço para sorrir e afirmar que adorava músicas românticas. Pensou: "Odeio músicas românticas, sentimentalismo barato. Inácio é um tonto apaixonado. Tenho de fortalecer seu interesse por mim. Enquanto isso, preciso esforçar-me e agüentar sua conversa idiota e insossa.
Ela levantou os lábios, fingindo contentamento:
- Podemos ir.
- Não.
- Como não, Inácio?
- Vamos em carros separados.
- Eu vim com você. Meu carro está na garagem da Centax. Ele abriu a carteira e deu-lhe umas notas.
- Tome um táxi. Eu não estou bem. Preciso ir para casa.
- Mas como?
- Desculpe-me. Boa noite.
Disse e saiu em disparada. Teresa ficou fula da vida. Nenhum homem a deixava assim, largada. Tudo bem que o tonto ainda estava apaixonado pela sem graça da Mariana e estivesse abalado com a briga entre elas. Mas custava deixá-la em casa? Quanto desaforo! Ela rangeu os dentes de raiva.
- Ele me paga.
Ajeitou o decote do vestido e saiu. Teresa andou alguns metros na calçada a fim de fazer sinal para o táxi, quando uma mão vigorosa apertou-lhe o braço. Ela deu um gritinho de susto. Recompôs-se e perguntou, aturdida:
- Você? O que faz aqui?
- Quero dinheiro.
- Não tenho dinheiro.
Artur estava descontrolado. Os olhos pareciam querer saltar das órbitas, e círculos arroxeados ao redor dos olhos demonstravam que estava sem dormir havia dias, talvez. Suas pupilas estavam comprimidas. Uma baba espessa e branquicenta escorria pelo canto de sua boca. Os cabelos estavam em desalinho. A aparência era de um típico drogado. Teresa desvencilhou-se dele:
- Ei, eu o paguei pelas fotos. O que mais quer?
- Só posso recorrer a você.
- Não tenho dinheiro agora.
- Eu preciso de droga, entendeu?
- E eu com isso? Dei muita droga a você nesta vida.
- Por favor, Teresa. Estou desesperado.
- Peça à sua namoradinha, oras!
- Nicole me arrumava bastante droga, me dava de presente. Só que ela está tentando ficar limpa, está se tratando e até freqüenta reuniões nos Narcóticos Anônimos.
- Bom para ela. Por que não faz o mesmo?
- Não consigo. E também não quero - esbravejou. - não tenho recursos para manter meu vício.
- Problema seu.
Artur irritou-se.
- Problema nosso! Vou entregar os negativos das fotos para o Inácio. A irmã da Mariana está namorando o rapaz da foto, você sabia disso?
- E daí?
- Não vai ser difícil desfazer o mal-entendido.
Teresa gelou.
- Eles estão namorando? Isso estraga um pouco os meus planos. Terei de arrumar outra forma de afastá-los.
- Quero dinheiro.
- Já disse que não tenho.
Artur avançou sobre ela e arrancou de suas mãos as notas que Inácio havia lhe dado para o táxi.
- Vou ficar com esse troco.
- Não pode fazer isso comigo. Vou chamar a polícia.
Teresa ia gritar e pedir ajuda. Artur aproximou-se e meteu-lhe o dedo em riste.
- O Tonhão me procurou dia desses.
Uma bomba na cabeça de Teresa não teria feito estrago maior do que ouvir aquele maldito nome. Ela ficou estática, quase escorregou nos saltos.
- O que foi que disse?
Artur gargalhava sem parar. Estava fora de si.
- Tonhão me disse que o prazo para pagá-lo está chegando ao fim. Eu posso muito bem entregá-la e...
Ela considerou.
- Não, isso não! Tonhão vai me matar. Eu não tenho dinheiro. Preciso de mais tempo. Interceda por mim.
Artur balançou a cabeça para os lados.
- Não vou fazer nada por você. Caí neste mundo do vício por sua culpa.
Teresa ia falar, mas Artur a censurou.
- Qualquer dia, volto para pedir mais. Você me deve.
Artur rodou nos calcanhares e saiu em ziguezague, passos trôpegos. Dobrou a esquina e sumiu. Teresa mal podia acreditar na cena. E agora? Seu tempo estava chegando ao fim, e ela sabia que Tonhão não costumava estender seus prazos. Ela lhe devia muito dinheiro. Precisava unir-se a Inácio o mais rápido possível. No entanto, procurou não entrar em pânico. Cada coisa de uma vez. Tinha de primeiro ir para casa. Não tinha dinheiro para um táxi, e o carro estava um tanto longe dali. Teresa respirou fundo, ajeitou o decote do vestido e voltou para o bar. Não foi difícil encontrar um pretendente. Havia vários e escolheu um senhor meio bêbado. Aproximou-se e, com voz que procurou tornar sensual, ofereceu:
- Posso me sentar a seu lado?
O senhor assentiu e Teresa sorriu. Teria de fazer um pouco mais de sacrifício, mas iria para casa de carro. Ah, se iria... Nair chegou em casa e também agradeceu por estar bem e viva. Fazia muitos anos que não via Ivana e, aparentemente, salvo uma ruga aqui e ali, ela ainda continuava a mesma. Na aparência e nas atitudes. O tempo passou, porém ela continuava nervosa e atacada, sempre histérica.
- Santo Deus! Ela continua igual. Se continuar desse jeito, desesperada, em constante tensão, vai ter um ataque, um derrame.
- Falando sozinha, mãe?
- Oh, Mariana, não sabia que estava em casa. Por que está tudo escuro?
- Estava refletindo.
- O que foi?
- Estou tão desiludida... - falou e desatou a chorar.
Nair acendeu a luz e suspirou. Ela também precisava de alento, mas Mariana estava bem fragilizada. Aproximou-se da filha, sentou-se ao seu lado no sofá. Acariciou seu rosto.
- O que tanto a aflige?
Mariana não respondeu.
- Pelo jeito, o encontro com Inácio não foi tão agradável...
- Não, mãe - disse ela chorosa. - Encontrei-o com outra.
- Oh, pobrezinha, desabafe. Sou toda ouvidos.
- Seu aspecto também não é nada agradável. O que aconteceu?
- Uma história triste de cada vez. Conte-me a sua e em seguida eu lhe conto a minha.
Mariana esticou-se no sofá. Ergueu o corpo e deitou o rosto sobre as pernas da mãe.
- Fui atrás do Inácio.
- E então?
- Ele estava com a Teresa Aguilar.
- Como? - perguntou Nair, assombrada.
- Fui até a Centax e a secretária me informou que ele tinha saído com a Teresa. Passou-me o endereço e saí feito uma maluca atrás dos dois. E não é que os flagrei juntos?
- Juntos? Como?
- Juntos, oras. Conversando, rindo.
- E então?
Mariana bufou. Sentia-se envergonhada pelo ocorrido.
- Perdi o controle. Avancei sobre a Teresa, puxei-lhe os cabelos. Foi horrível.
- Por que foi perder a compostura, minha filha?
- A cabeça estava quente.
- E qual foi à reação de Inácio?
- A pior possível.
- Dá para imaginar.
- Ele me mandou embora! Disse que depois conversa-ríamos.
- Inácio agiu de maneira sensata.
- Saí daquele bar, tão irritada, desnorteada mesmo. Cheguei em casa e fiquei meditando no escuro. A Teresa aprontou alguma coisa. Algo me diz que ela jogou areia em nosso namoro.
- Acredita mesmo nisso?
- Afirmativo. Ela tem mania de chamar todo mundo de querido, de querida. É irritante. Mas foi justamente por causa dessa mania que acabei concatenando as coisas.
- Coisas? Que coisas?
- Lembra-se do trote? De quando disseram que Inácio estava num restaurante acompanhado de uma bela loira?
- Sim.
- Foi à mesma inflexão de voz, o mesmo tom jocoso e irritante. Lembro-me como se fosse agora. A moça no telefone dizia "Oi, querida", "Viu, querida", igualzinho ao modo de Teresa falar. E lá no bar a Teresa me olhava como se estivesse satisfeita, esperando por aquilo.
Nair lembrou-se de muitos anos atrás, quando teve encontro com Ivana e esta a encarou da mesma maneira. Ela pensou: "Será que Mariana vai ter o mesmo desgosto? Ela não merece passar pelo mesmo sofrimento que eu. Farei de tudo para evitar que ela tenha uma vida como a que tive. Mariana merece ser feliz." Nair abraçou-se à filha.
- Não fique assim. Tudo se resolve.
- Francamente, estou decepcionada.
- O melhor a fazer é sentar-se com Inácio. Conversar sempre é bom e não arranca pedaço.
- Estava pensando nisso. Mas procurá-lo depois de tudo isso?
- Minha filha - ela passou-lhe a mão pelos cabelos -, de que vai adiantar deixar as coisas como estão? Se acreditar verdadeiramente que Teresa esteja atrapalhando a relação de vocês, procure Inácio e converse com ele.
- Mesmo que ele não queira mais reatar o namoro?
- Mesmo assim. Você tem sua dignidade. Não pode baixar a crista desse jeito. Não conheço homem que goste de mulher sem atitude. Nos tempos atuais, a mulher precisa ter opinião, expressar seus sentimentos. A não ser que você não o ame... Aí é diferente.
- Não, mãe! Eu o amo.
- Mesmo depois de toda a confusão?
- Sim.
- Então vale à pena. Converse com ele.
- Você está certa. Ficar na dúvida só me traz perturbação.
- Ligue e converse com ele. Ele vai recebê-la, e tendo certeza de que vão se entender.
Mariana abraçou-se à mãe.
- Como eu precisava ouvir essas palavras! Você não sabe quanto essa conversa me confortou.
- As mães servem para alguma coisa disse Nair, em tom de brincadeira.
- Nem me fale... Eu só tenho você e Letícia. Sinto saudades do papai, mas eu sempre me abri com você, sempre fomos mais íntimas.
Nair suspirou:
- Eu e seu pai cumprimos nosso ciclo. Ele se foi, e eu continuo aqui, portanto preciso me dar forças para viver. Lembro-me de que foi muito duro o início da viuvez. Seu pai ganhava bom ordenado e era bom companheiro. De repente, de uma hora para outra, fiquei sem marido e sem sustento.
- Mas fomos nos adaptando à realidade. Consegui bolsa na faculdade, formei-me e estou prestes a ser promovida na clínica do Dr. Sidnei. A Letícia tem seu emprego e praticamente sustenta esta casa. Você saiu daquele estado depressivo, venceu a tristeza e reagiu. Agora faz pequenos consertos, costura para fora, conquistou freguesia e está fazendo bom dinheiro. Logo poderá pensar em montar um negócio.
- Nunca pensei que pudesse ter uma profissão, um trabalho. Tomei bastante gosto pela costura. Outro dia apanhei alguns cadernos do curso de modista. Devia ter me dedicado mais ao corte e costura.
- Nunca é tarde.
- Será? Passei dos quarenta anos.
- Não exagere. Mal completou quarenta. Tudo preconceito. Não há idade certa para se começar alguma coisa, um trabalho, um relacionamento, um negócio. Acreditar que idade faça a diferença é crer em limites. Por que não pode ser dona de seu próprio negócio?
- Seria tão bom! Penso numa confecção.
- Excelente idéia. Letícia leva jeito para lidar com o público. Você coordena os trabalhos, dá emprego a quem precisa, gera renda, e Letícia vai vender os modelos.
- Ah, quem me dera... Adorei a idéia. Eu, uma simples dona de casa, transformando-me numa empresária, gerando empregos, tendo responsabilidade social.
- Por que não? Qual é a principal empresária turística deste país?
Nair pensou por instantes.
- A Stella Barros, cuja companhia leva seu nome.
- Isso mesmo, mãe. E sabe quantos anos ela tinha quando começou seu negócio?
- Não faço idéia.
- Dona Stella tinha quarenta e sete anos.
- Quarenta e sete? Tem certeza, Mariana?
- Sim. O genial Walt Disney fundou a Disneylândia em 1957, em Anaheim, na Califórnia. Stella Barros teve idéia original e passou a acompanhar, pessoalmente, seu primeiro grupo de turistas ao parque temático. Ela fez isso até 1965, porquanto a grandiosidade e as dimensões do negócio já não permitiam que ela atendesse seus clientes pessoalmente. Daí veio a Stella Barros Turismo, em 1965. Dona Stella, ou Vovó Stella, como é conhecida, contava então com cinqüenta e sete anos de idade. Essa história lhe serve de estímulo?
Nair riu.
- E como! Na realidade, eu tenho mais dezessete anos para começar.
- Não seja molenga!
Mariana partiu para cima da mãe e fez-lhe cócegas. Nair procurou desvencilhar-se da filha e cada uma caiu numa ponta do sofá. Ambas estavam mais leves. Nair sorriu feliz.
- Não temos do que reclamar.
- Vamos melhorar cada vez mais.
Mariana notou que, embora descontraída, Nair chegara em casa preocupada, aflita.
- Mãe, notei que você chegou angustiada. Onde estava até agora?
Nair pensou e pensou. Para que mentir? Mais cedo ou mais tarde o assunto viria à baila e ela precisaria contar com o apoio das filhas. De nada adiantava evitar. Teria de enfrentar os fantasmas do passado e passar sua vida a limpo. E esta noite parecia ideal pata começar. Ela afirmou:
- Estive com um amigo.
Mariana fez uma careta.
- Amigo?
- Como assim? - Mariana riu. - Explique melhor isso.
- Um amigo de longa data.
- Nunca soube que você tivesse um amigo de longa data, mamãe.
- Há algo que preciso contar a você e sua irmã. Tem a ver com meu passado.
- Se quiser, pode me contar agora. Sou toda ouvidos.
Nair fechou os olhos e pediu ajuda ao alto, à sua maneira. Sentindo-se mais amparada após a pequena prece, sua memória voltou alguns anos no tempo.
- Eu era uma moça cheia de vida, bonita e muito apaixonada.
- Pelo papai?
- Não. Seu pai apareceu depois.
Mariana procurou ocultar o espanto. Nada disse. Percebeu que o assunto era sério e queria deixar a mãe à vontade. Nair, por sua vez, decidiu contar somente o necessário, omitindo fatos desagradáveis que no momento não interessariam a Mariana, tampouco a Letícia. Encheu os pulmões de ar e prosseguiu:
- Apaixonei-me perdidamente por um rapaz. Ele já era homem formado, uns doze anos mais velho que eu. Infelizmente, pertencíamos a classes sociais bem distintas.
Ele era rico, bastante rico. Então nos separamos. - Nair deixou escorrer uma lágrima. - Foi muito duro ter de abandoná-lo, mas não havia saída. A família dele era contra, havia interesses financeiros por trás de tudo, e no final das contas os interesses da família dele ficaram acima de nossos sentimentos. Triste e abatida,
decidi que não queria mais nada, mais ninguém. Fechei-me no mundo e fui adoecendo, perdendo as forças.
- Eu nunca poderia supor que você tivesse sofrido por amor.
- Mas sofri. Sofri muito. Chorei escondida, tinha crises depressivas, vontade de morrer. Algum tempo depois, conheci Otávio numa festa. Ele também tinha acabado de sofrer uma desilusão amorosa.
- Mesmo?
- Sim. Seu pai flagrou sua noiva nos braços de seu melhor amigo. Ficara horrorizado e bastante ferido em seus sentimentos. Na verdade, nós nos unimos pela dor. Um apoiou-se no outro, e assim resolvemos nos dar a chance de uma vida a dois.
- E conseguiram.
Nair passou novamente os dedos pelo rosto de Mariana.
- Você se parece muito com seu pai. Os mesmos OLHOS, O nariz fino... - Nair deu novo suspiro. - Enfim, eu e ele nos casamos, acreditando que o matrimônio pudesse cicatrizar nossas feridas emocionais. Casamo-nos sem amor. Nenhum enganou o outro. Eu sabia que seu pai amava muito a sua noiva e ele sabia que eu continuava apaixonada por Virgílio. Entretanto, ambos tentamos esquecer e tocar a vida adiante. Criamos uma aura de respeito e cumplicidade, mas totalmente desprovida de amor, visto que o coração de ambos estava ligado em outras pessoas.
- Eu notei, quando adulta, que vocês mal se abraçavam ou se tocavam. Achava que isso era decorrência da rotina, dos anos do casamento. Mas agora tudo faz sentido.
- Eu e seu pai nunca representamos. Havia respeito mútuo, mais nada.
- Os dois sofriam por amor.
- Sim.
Mariana emocionou-se. Abraçaram-se.
- Que barra deve ter sido para os dois. E vocês voltaram a encontrar esses amores do passado?
- Pensamos, eu e seu pai, em nos mudar de cidade, a fim de não os encontrar. Mas estávamos bem apertados financeiramente e surgiu a oportunidade de um bom cargo na empresa de componentes eletrônicos. Seu pai aceitou o cargo e nos mudamos para a Vila Carrão. Naquele tempo, essa região era bem afastada, não tínhamos avenidas largas. Nem trajeto de metrô havia.
- Permaneceram na mesma cidade... Que perigo!
- A noiva de seu pai voltou a procurá-lo logo que Letícia nasceu. Disse que estava doente arrependida. Disse que tinha pouco tempo de vida e desejava seu perdão.
- E papai?
- Embora estivesse profundamente magoado, Otávio a perdoou. Lídia massacrara seu coração, mas o que ele podia fazer? Seu grande amor estava arrependido e estava à beira da morte. Ele não tinha por que não perdoá-la. Quando soubemos da morte de Lídia, seu pai tornou-se mais amoroso com você e Letícia.
Parecia que todo o amor que ele represara por Lídia fluíra para as filhas.
- Papai era bastante amoroso. Sempre foi muito carinhoso comigo e com Letícia.
- Otávio foi marido formidável, pai exemplar. Cumpriu direitinho seu papel. Foi bom pai, bom marido, respeitador, atencioso, amigo. Mas nunca nos amamos. Isso eu posso lhe jurar.
- E agora você voltou a encontrar esse... esse...
- Virgílio.
- Ele é viúvo também?
- Não. Casou-se na mesma época que eu, mas parece viver um casamento tortuoso. Ele e a esposa também não se amam, vivem às turras e estão para se separar.
- Você tem chance de ser feliz.
- Sim. Mas ele tem uma filha que é viciada em drogas.
- Isso é mau.
- Ele tem me procurado desde que Otávio morreu. Diz que precisa de ombro amigo para desabafar e acredita que eu posso ajudá-lo na cura da filha.
- Situação delicada essa... Você até pode ajudar a menina, mas ele ainda é casado, né, mãe? Isso pode lhe trazer problemas.
Nair fechou os olhos e lembrou-se de horas atrás, quando Ivana tentou destruir o carro de Virgílio e surrar os dois. Ela deu novo suspiro e concordou:
- Não tenha dúvida. Ele ainda é casado, e isso pode me trazer problemas.
No canto da sala, dois espíritos ouviam a conversa. Otávio estava emocionado.
- Ela sempre me respeitou nunca me traiu.
- Nair é uma grande mulher.
- Creio que ela agora tem o direito de ser feliz.
- Você está coberto de razão - anuiu Lídia. - Nair merece uma nova chance. Aproveite o momento de harmonia e despeça-se delas.
Otávio aproximou-se e beijou a filha na testa. Aproveitou e fez o mesmo na fronte de Nair. Agradeceu-lhe por ter sido sua companheira em sua jornada. Depois, segurou a mão de Lídia.
- É hora de cuidarmos da nossa felicidade, Lídia.
- Prometo a você, Otávio, que agora tudo vai ser diferente. Ela sorriu e, num segundo, ambos os espíritos desvaneceram no ar, deixando sobre Nair e Mariana uma luz intensa, composta de vários matizes, causando-lhes agradável sensação de bem-estar.

CAPÍTULO 18

Rogério chegou no horário, nove horas da noite, em ponto. Estranhou ver Letícia rodeada de pessoas que ele não conhecia. Pareciam ser simpáticos os casais, mas ele ficou um tanto ressabiado. Aproximou-se e, mesmo hesitante, cumprimentou a todos com seu sorriso cativante. Letícia levantou-se de pronto.
- Oi, amor. Chegou bem na hora.
Ele beijou-a nos lábios.
- Boa noite.
Letícia introduziu o namorado à turma. De repente, Rogério ficou estático. A namorada percebeu e indagou:
- O que foi?
Ele se dirigiu a Bruno.
- Não posso acreditar! Há quanto tempo!
Bruno levantou-se e deu-lhe um abraço bem apertado.
- Rapaz! Que saudade! Outro dia eu e papai estávamos falando de você.
- Espero que coisas boas.
Bruno riu.
- Só coisas boas. Meu pai tem muito orgulho de você. E eu lhe tenho muita admiração.
- Obrigado.
Letícia estava boquiaberta.
- Vocês se conhecem?
- Há um bom tempo - respondeu Rogério.
Bruno apresentou-o aos demais. Os casais se levantaram e o cumprimentaram. Bruno puxou uma cadeira e abriram a roda.
- Três casais reunidos - tornou Rogério. - Difícil de ver hoje em dia.
Sílvia procurou consertar:
- Michele e Bruno namoram. Eu e Daniel somos só...
Daniel interrompeu-a:
- Somos namorados também - irrompeu o jovem, para surpresa de todos e muito mais para espanto de Sílvia.
O jovem apertou sua mão, deu-lhe um beijo no rosto e sussurrou em seu ouvido:
- Essa foi à maneira que encontrei para me declarar. Creio que você não vá se opor.
Sílvia estava tão emocionada que mal conseguiu articular som. Ela simplesmente pendeu a cabeça para cima e para baixo, em afirmativo.
- E vocês? - indagou Bruno, dirigindo-se a Rogério e Letícia. - Namoram há bastante tempo?
Letícia respondeu, animada:
- Foi muito interessante. Saímos para lanchar e fomos ao cinema. Quando percebemos, estávamos de mãos dadas e foi inevitável: saímos do cinema já namorados.
- O filme ajudou bastante - constatou Rogério.
- O que foram ver? - perguntou Michele.
- Ghost - Do Outro Lado da Vida - respondeu Letícia.
- Esse filme é lindo - respondeu Sílvia. - Tenho certeza de que os roteiristas foram guiados por amigos espirituais, porquanto o filme retrata com bastante fidelidade o mundo espiritual.
- É mesmo? - perguntou Daniel, interessado. - Não assisti.
Letícia animou-se e contou-lhe sobre o filme.
- Sam Wheat, interpretado por Patrick Swayze, e Molly Jensen, vivida por Demi Moore, formam um casal apaixonado e feliz. A felicidade dura pouco, pois logo suas vidas são destruídas. Ao voltarem de uma apresentação de teatro, o casal é atacado e Sam é morto. No entanto, seu espírito não vai para o outro plano, e ele decide ajudar Molly, porquanto ela corre risco de morte. Quem comanda a trama, e por sinal é o mesmo que tirou sua vida, aparentava ser o melhor amigo de Sam. Para poder se comunicar com Molly, Sam utiliza Oda Mae Brown, interpretada por Whoopi Goldberg, uma médium charlatona e trambiqueira, mas que consegue ouvi-lo e tenta alertar sua esposa do perigo que ela corre. Daniel adorou.
- Precisamos pegar uma cópia quando sair em vídeo.
- Há alguns momentos cômicos e absurdos - ressaltou Michele -, como no caso em que os espíritos entram no corpo da vidente. Isso não existe, é pura fantasia. Quando querem se comunicar, os espíritos se aproximam do médium. A comunicação se faz de aura para aura, e jamais eles entram no corpo físico.
- Concordo com você - replicou Sílvia. - Mas, no geral, o filme é muito tocante. O fim da sessão só podia resultar em namoro.
Todos riram. Rogério simpatizou de imediato com os jovens. Tinha a sensação de conhecê-los de longa data, algo como um déjà-vu. Bruno encarou-o nos olhos.
- Você tem interesse por assuntos espirituais?
- Sim, sou estudioso do assunto.
- É mesmo? - indagou Michele. - Nós todos aqui estudamos o mundo espiritual. Eu e Daniel somos médiuns e temos um grupo de amigos sensitivos que nos ajudam a oferecer tratamento espiritual às pessoas carentes e necessitadas da periferia.
- Isso me interessa bastante.
- Você nunca me disse nada a respeito disso - observou Letícia.
Rogério beijou-a no rosto.
- Não fique brava comigo - disse ele, fazendo voz melíflua.
- É que, quando minha mãe morreu, eu me senti bastante perdido. Eu tinha quinze anos de idade, era católico por convenção. Minha cabeça estava cheia de dúvidas e perguntas: o quê? Por quê? Como? Onde? - Rogério fez uma pausa e continuou: - Foi então que os sonhos começaram.
Michele cutucou Sílvia por baixo da mesa. Perguntou admirada:
- Sonhos?
- É, sonhos. Comecei a ter sonhos recorrentes com minha mãe. Os sonhos eram bem reais, eu parecia estar vivendo-os.
- Como assim? - interessou-se Sílvia.
- Minha mãe ficou muito doente e morreu bastante debilitada. Fiquei com medo de que ela fosse continuar a sofrer, afinal eu era moleque e mal compreendia os mecanismos da vida e da morte. Foi quando os sonhos começaram. Minha mãe aparecia e me dizia que estava bem, que estava se recuperando e que logo estaria pronta para novas oportunidades. Dizia que seu ciclo aqui havia se completado, mas, sempre que possível, ela visitaria a mim e papai.
Rogério pigarreou, a fim de ocultar a emoção.
- Você esteve com o espírito de sua mãe, pode acreditar - afirmou Daniel.
- Eu não estudei nada a respeito. Uma vez atendi uma senhora na farmácia em que trabalho e ela disse que eu tinha mediunidade. Fiquei um tanto chocado. Nunca freqüentei centro espírita ou desejei entrar em contato com espíritos. Cheguei a ler alguns livros, mas depois parei.
- Ainda tem medo? - indagou Letícia.
- Um pouco, talvez. Essa senhora me assustou, disse-me que era médium e que, se eu não desenvolvesse minha mediunidade, minha vida iria para trás. Disse que eu seria presa fácil dos espíritos inferiores.
Michele suspirou e meneou a cabeça para os lados.
- Na verdade, mediunidade não se desenvolve se educa. Infelizmente, muita gente mal informada acredita piamente que devemos desenvolver mediunidade ou então seremos vítimas de espíritos trevosos pelo resto da vida.
- Isso é verdade? - perguntou Rogério, temeroso. - Particularmente, eu não gostaria de desenvolver ou educar minha mediunidade.
- De forma alguma - devolveu Michele em franco sorriso. - Ninguém é obrigado a nada. Mas afirmar que não quer educar sua mediunidade é o mesmo que um bebê recusar-se a crescer. É algo inevitável, compreende? O surgimento, a abertura da sensibilidade é um fenômeno natural, acontece com todas as pessoas num determinado momento da evolução. Você pode muito bem fechar os olhos para o assunto, não querer estudar nem mesmo educar sua sensibilidade. Pode até mesmo fechar o corpo num terreiro, como muitos o fazem.
- Não gostaria de chegar a tanto - disse Rogério, apreensivo.
- Você tem livre-arbítrio e pode fazer as escolhas que quiser. No entanto, a captação das energias você não poderá evitar. Ao invés de se sentir mal com a mediunidade, você pode aprender a lidar com ela.
- Mas e se eu não trabalhar com os espíritos? Minha vida pode ir de mau a pior? Aquela senhora falou a verdade?
- Não se trata disso. Aquela senhora lhe disse o que acreditava ser verdade para ela. Muita gente acredita que, se não trabalhar num centro espírita ou mesmo num terreiro, vai sofrer ou mesmo ter uma vida miserável. Ledo engano. Gostaria que você soubesse que os espíritos superiores não nos obrigam jamais a fazer o que não queremos. Espíritos mais atrasados talvez até pensem nisso, mas os superiores não. Os amigos espirituais do bem aproximam-se de nós para doar amor, lucidez, alegria, contentamento.
Daniel interveio:
- Sua mediunidade é uma ferramenta que pode ajudá-lo a viver melhor. Você pode ter acesso às verdades do mundo espiritual, à sabedoria dos espíritos superiores. Pode alimentar seu próprio espírito, acabar com seus medos, valorizar as oportunidades que a vida lhe dá, reciclar seus valores, ampliar seus horizontes. Mas lembre-se de que tudo isso ocorre somente quando nos ligamos no positivo, na corrente universal do bem, ignorando o mal e acreditando que é possível ser feliz.
Rogério adorou a explanação. E Bruno finalizou:
- Vou resumir tudo para você: entre o bem e o mal, vai ser você quem vai escolher de que lado vai querer ficar. Entendeu?
Os jovens riram a valer. Daniel sugeriu:
- Estamos aqui conversando e nem perguntamos se Rogério se alimentou.
- Estou morrendo de fome - afirmou o rapaz.
Letícia ofereceu-se para acompanhá-lo e escolher um lanche. Rogério abraçou-a pelas costas.
- Não imaginei que conhecesse o Bruno e seus amigos.
- Eu os conheci hoje. Faz pouco mais de uma hora.
- Você está brincando comigo! - exclamou admirado.
- Pura verdade. Nem eu acredito.
- Isso é uma grande coincidência.
- Não acredito em coincidências - replicou ela. - Tudo aconteceu porque me demiti.
- Brigou com a gerente?
- Sim. E foi por isso que os conheci. Briguei com a gerente e arrumei esses novos amigos. A troca foi válida.
- Está sem emprego.
- Estou.
- Como vai fazer?
- Eu me viro. Amanhã saio para procurar alguma coisa. Vou a uma agência que a Michele me indicou.
Ele coçou o queixo e teve uma idéia:
- Tenho uma proposta a lhe fazer.
- Proposta?
- Sim.
- Se for casamento, ainda estou meio duranga.
- Não, amor - disse ele, rindo. - Eu já estava amadurecendo essa idéia havia algum tempo, mas agora parece que será o ideal.
- O que é?
- A Célia, que trabalha no caixa da farmácia, vai se afastar. Licença-maternidade. Será que aceitaria trabalhar no caixa e ser minha funcionária?
Letícia exultou de contentamento.
- Agarraria essa oportunidade com unhas e dentes. Nem que eu tenha de fazer algum curso para entender melhor os números.
Letícia abraçou-o e beijou-o com amor. Rogério parecia ser o anjo que Deus lhe mandara. Ivana acordou com uma enxaqueca daquelas. Fazia uma semana que havia enlouquecido e praticamente destruído o carro de Virgílio. Ainda se lembrava e rangia os dentes.
- Maldito! Como pôde ser tão vil? Falta pouco para assinarmos o acordo e nos separarmos. Por que tem de se meter com essa fulana? Não pode esperar um pouco mais?
A empregada apareceu e perguntou se Ivana queria tomar café na cama. Ela respondeu negativamente com um sonoro berro que ecoou por toda a casa. A pobre da empregada desceu as escadas aos pulos. Os empregados tinham verdadeiro pavor de se dirigir a Ivana. Ela bufou e pegou o maço de cigarros na mesinha de cabeceira. Acendeu e deu largas baforadas. Virgílio passava pelo corredor e meteu a cabeça dentro do quarto.
- Está melhor?
- Não me dirija mais a palavra, seu traidor.
- Eu não estava fazendo nada.
- Numa rua deserta, àquela hora da noite? Não sou idiota.
- Estava desabafando.
- Desabafo se faz com psiquiatra, psicólogo ou com o raio que o parta. Tinha de chorar as pitangas justo com ela?
- Não tive a intenção.
- Você nunca teve intenção. De nada. Você sempre foi um nada.
- Por que tanta bronca da Nair? Não está louca para se livrar de mim?
Ela apagou o cigarro e acendeu outro em seguida.
- Não agora. Temos um trato. Depois, se você vai se casar com ela, se mudar, sei lá, isso é problema seu. Mas que fiquem bem longe dos meus olhos. Estou me lixando se você vai se casar com ela ou com beltrana ou sicrana. Não me importo desde que assinemos a separação e eu receba meu quinhão. Quero meu dinheiro, mais nada.
- Você vai ter em breve seu dinheiro.
- Ainda bem. Não morro pobre, isso nunca.
- Pode ficar tranqüila. Nunca vai ficar pobre.
- Assim espero.
- Estou preocupado com sua filha.
- Agora se preocupa com os filhos? Não acha um tanto tarde para começar?
- Nunca é tarde.
- Problema seu.
- Nicole não dormiu em casa de novo.
Ivana deu de ombros. Ele continuou:
- Bruno me informou que ela não quer mais freqüentar as reuniões nos Narcóticos Anônimos nem seguir tratamento espiritual.
Ivana engasgou-se com o cigarro, tamanha a gargalhada que deu.
- E você acreditou que ela fosse se recuperar? Essa é boa!
- Vale tudo para a recuperação de minha filha.
- Nicole é uma fraca, está perdida. Eu já disse que não vou mover uma palha para fazer o que quer que seja para ela.
- Você tem responsabilidade. Ela é sua filha.
Ivana não agüentou. Apagou o cigarro e, mesmo com dores nas têmporas, consegui atirar o cinzeiro em direção a Virgílio. Ele baixou a cabeça e o objeto passou rasante, espatifando-se na parede do corredor.
- Essa foi por pouco. Está melhorando sua pontaria.
Ele falou e saiu. Desceu as escadas e ouviu motor de carro no lado de fora da casa. Pensou ser Nicole. Animou-se, mas não era. Uma moça de estatura mediana, cabelos anelados e dourados, pele alva e macia, olhos verdes e expressivos, saltou do táxi. Virgílio não conhecia a moça. Achou-a atraente. Afinal, era uma pequena e tanto. Muito bonita. Ela dirigiu-se até a porta e bateu. A empregada foi atender, mas Virgílio interrompeu-a.
- Deixe. Eu mesmo atendo.
Ele se pôs à frente e virou a maçaneta. A garota sorriu, mostrando os lábios vermelhos e carnudos, intercalados por dentes alvos e perfeitos. Sorriso encantador, por sinal. Ela se apresentou:
- Aqui é a casa do Sr. Virgílio Gama?
- Eu sou Virgílio.
Ela colocou a mala no chão e estendeu-lhe a mão.
- Como vai, tio?
- Tio?
- Eu sou a Cininha.
Virgílio lembrou-se da sobrinha de Ivana. Apertou-lhe a mão com satisfação.
- Entre, por favor.
- Obrigada.
- Fiquei ressabiado. Você ficou de aparecer a quase um mês.
- É que o rapaz dos correios anotou errado o telegrama. Como sei que tia Ivana não ficará muito contente em me ver, resolvi esperar.
- Pode ficar quanto tempo quiser em nossa casa. Seja muito bem-vinda. E, sinceramente, meus pêsames pela passagem de sua mãe.
- Faz mais de um ano, e acostumei-me com a situação. Mesmo assim, obrigada.
- Entre. Deve estar cansada. Vou mostrar seu quarto.
Cininha acompanhou-o e subiram as escadas.
Ele perguntou:
- Faz tempo que não vê sua tia?
- Alguns anos.
Subiram e Virgílio levou-a até o quarto de hóspedes, entre o dele e o de Nicole.
- Este será seu quarto - disse ele, apoiando-se no braço de Cininha. - Minha filha não está bem. Fez tratamento de desintoxicação, mas está numa fase de recaídas.
- Sinto muito.
- Quantos anos você tem?
- Vinte e dois.
- Ótimo. Nicole tem a mesma idade e está precisando de novas e boas amizades. Sinto que você poderá ser uma boa influência para ela.
- Obrigada, tio. Pode deixar que sou boa em fazer amigos.
- Quer cumprimentar sua tia?
- Sim.
Virgílio conduziu Cininha até o quarto de Ivana. Ele bateu de leve na porta e abriu. Antes de Ivana dizer qualquer impropério, Cininha irrompeu no quarto e deslizou até a cama. Ivana olhou-a de esguelha.
- Quem é você?
- Não se lembra de mim?
- Nunca a vi mais gorda.
A moça abriu largo sorriso e estendeu os braços.
- Sou eu, a Cininha.
- Argh! Você?
- Sim. Acabei de chegar, tia Ivanilda.
Ivana sentiu o sangue subir pelas faces. Havia mais de vinte anos que nenhum ser humano a tratava pelo nome de batismo. Ninguém ousava chamá-la assim, nem mesmo o marido e os filhos. Estavam terminantemente proibidos. E agora aparecia essa capixaba e lhe chamava por Ivanilda? Era muita ousadia. Cininha devia estar mesmo testando seus brios. Virgílio foi rápido o bastante para puxar Cininha com força, correr e fechar a porta. Logo atrás deles o barulho foi aterrador.
- O que foi isso?
- Sua tia acabou de atirar um abajur contra nós. Desta vez você foi poupada.
Os dois riram e desceram para o café.

CAPÍTULO 19

Depois de muitos dias ruminando pensamentos envoltos em dúvidas e inseguranças, Mariana finalmente decidiu procurar Inácio para uma conversa definitiva acerca dos acontecimentos que puseram em risco o namoro de ambos. Dessa vez não queria ir à Centax. Gostaria de encontrá-lo em outro lugar, de preferência num local neutro, onde o ambiente não interferisse. Mariana estava pensando nisso quando Letícia entrou no quarto, alegre e esfuziante.
- Aonde vai, toda faceira? - indagou Mariana, arrancada daquele mar de idéias.
- Eu e Rogério vamos tomar um refresco com a Sílvia. Vamos dar uma volta, fazer um programinha bem legal.
- Só vocês? E os outros amigos? Não são inseparáveis?
- Daniel, Bruno e Michele vão trabalhar até tarde. Pretendemos ir até o espaço deles logo mais.
Mariana fez uma careta.
- Programa de índio, isso sim. Estão todos envolvidos com bruxaria?
Letícia sorriu.
- Não. Michele e Daniel são espíritas e há muitos anos se debruçaram sobre as obras de Allan Kardec, professor francês que deu a base, fundou os pilares do Espiritismo. Não tem nada de bruxaria nisso. Não confunda as coisas. Por acaso crê que Chico Xavier seja bruxo?
- Não, de maneira alguma. Ele é tão doce, nos passa tanta serenidade, tranqüilidade.
- Está na hora de você rever seus pensamentos. Talvez, ampliando sua consciência, desprovida de preconceitos, você possa enxergar quais são exatamente seus pontos fracos, amadurecer, fortalecer seu espírito e melhorar sua vida neste mundo.
- Como se isso fosse fácil.
Letícia parou de escolher a roupa que ia usar para sair. Virou-se e sentou-se na beirada da cama de Mariana. Pegou delicadamente nas mãos da irmã.
- Você está dificultando as coisas.
- Como assim?
- Você está criando sua própria infelicidade.
Mariana espantou-se:
- Eu?!
- Sim.
- Impossível. Eu jamais me faria infeliz. São os fatos, Letícia. Os fatos.
- Ainda presa nesse mal-entendido com Inácio?
- Não consigo entender o que possa ter acontecido. Primeiro ele me liga desesperadamente e depois, de uma hora para outra, pára de ligar. Aí eu resolvo esclarecer sobre a loira do restaurante e ele não mais me recebe. E, quando me encho de coragem, tomo uma decisão e vou atrás da felicidade, encontro Inácio atrelado àquela sirigaita - finalizou nervosa.
- Chi! Calma! Não precisa se alterar. Creio que esteja no momento de conversar com Inácio.
- Talvez.
- Sabe o que Sílvia me disse ontem?
Mariana balançou a cabeça para os lados.
- Não faço a menor idéia.
- Ela me disse que Inácio anda triste e amuado. Quase não sai de casa, a não ser para ir ao trabalho. Talvez ele esteja pensando o mesmo que você.
Mariana animou-se.
- Acha?
- Sim. Vocês dois dão muito valor ao que os outros dizem. Por essa razão, estão deixando de viver uma linda história de amor. Depois não venha me dizer que a vida lhes foi injusta.
- Como farei? Gostaria de conversar com ele. Mas...
- Eu e Rogério vamos apanhar Sílvia logo mais. Não quer aproveitar a carona? Eu a apresento a Sílvia e você fica para conversar com Inácio.
- Será que ele vai estar lá?
- Enquanto eu me arrumo, ligue para a casa dele.
Letícia deu uma piscadinha para a irmã. Pegou sua roupa e dirigiu-se até o banheiro. Mariana sorriu feliz. Estava determinada a dar um basta naquela situação aflitiva. Ainda se sentia insegura, não confiava plenamente em si, e suas atitudes ora pareciam firmes como uma rocha, ora flácidas como uma bexiga estourada. Ela respirou fundo, levantou-se e desceu até o corredor. Pegou o telefone e discou. Uma das empregadas atendeu e chamou Íngrid.
- Como vai querida?
- Bem, e a senhora?
- Estou ótima. Estamos com saudades. Você não vem à minha casa há um bom tempo. Quando virá?
- Liguei para saber se posso fazer uma visita.
- Será um prazer.
- Queria saber se o Inácio está em casa e...
Íngrid interrompeu-a com delicadeza.
- Claro que está. Ele mal tem saído ultimamente. Os amigos ligam, mas ele se recusa a sair. Está triste e amuado. Conversei com ele e - Íngrid riu - vocês precisam desatar alguns nós.
- Será que ele me receberia?
- Sem dúvida.
- Como faço?
- Venha de surpresa. A que horas chega?
- A Letícia me convidou para dar uma volta, passar por aí e conhecer a Sílvia.
- Todo esse tempo, e ainda não conheceu minha filha?
Mariana tentou dar uma desculpa esfarrapada.
- O estágio na clínica do Dr. Sidnei tem me consumido bastante o tempo. Tenho me esforçado para ser efetivada.
- Vamos aguardá-la. Será um prazer revê-la.
Mariana desligou o telefone radiante. Subiu as escadas contente e abriu o guarda-roupas. Queria estar linda para a ocasião. Desejava muito se entender com Inácio e retomar o namoro. Ela o amava, muito. Depois de um bom período presa a um tratamento de desintoxicação de drogas e após participar das reuniões nos Narcóticos Anônimos, Nicole finalmente voltou para casa. A aparência da garota melhorara consideravelmente. As olheiras haviam desaparecido e os olhos pareciam mais expressivos, mais brilhantes. A pele tinha recuperado a coloração rosada e Nicole estava até mais cheinha. Seu corpo voltara a ter contornos. Sua aparência era saudável. E parecia que a época de trevas finalmente se dissipava. Ela entrou em casa acompanhada de Virgílio. Desde a internação, ele passara a estar mais próximo da filha, enchendo-a de mimos, carinho, afeto, presentes. Ia até a clínica todos os dias, a não ser quando viajava a negócios. Nessas ocasiões, Bruno tomava à dianteira e cumpria o mesmo papel de Virgílio. Nicole sentia-se confortável ao lado dos dois. A reaproximação do pai lhe fizera muito bem. Havia um pequeno problema, independente de falta ou não de carinho e ajuda profissional. Devido aos abusos cometidos em outras vidas, Nicole ainda trazia em sua jornada evolutiva alguns perseguidores espirituais, que se afastavam por um tempo, mas que, por invigilância dela mesma, voltavam com toda a força e tentavam a todo custo trazê-la de volta ao mundo das drogas, fosse por meio de sugestão, fosse por obsessão.
Dois desses espíritos estavam à espreita, a certa distância, aguardando o momento de atacar. Por enquanto ela estava bem e feliz. Ambos almejavam, suplicavam por uma recaída, um pensamento negativo, por exemplo, para se aproximarem e fazerem Nicole voltar a ser como antes. Nicole recusou-se a fazer tratamento espiritual, oferecido por Bruno e Michele. Achava tudo uma grande besteira. Já estava fazendo coisas demais; por que se envolveria com mais esse tratamento? Influenciada pelos espíritos obsessores, ela desistiu. Os dois espíritos ganharam aquela batalha. Eram eles que conseguiam interferir no raciocínio de Nicole e influenciá-la a ponto de não aceitar tratamento espiritual, de forma alguma. Enquanto a jovem ainda não cedia às drogas, gastava o tempo entre reuniões com os Narcóticos Anônimos e a vontade de ficar em casa, eles ficavam na cola de Artur. Artur não quis fazer tratamento. Nicole implorou, pediu, até chegou a conversar com Virgílio sobre a possibilidade de ajudar no tratamento do namorado, mas Artur recusou-se terminantemente a receber qualquer tipo de auxílio. Assim que Nicole foi internada, Artur sumiu por uns tempos, hospedou-se na quitinete de um amigo, também viciado, nas proximidades da Cracolândia. Tratava-se de um Vale dos Caídos: uma área livre para o consumo e o tráfico de crack e outras drogas, com todos os males associados: prostituição adulta e infantil, contrabando, moradias subumanas e a inesgotável variedade de exploração da miséria. Foi nessa época que começou a ocorrer à chamada "limpeza urbana": caminhões-pipa da prefeitura chegavam pela manhã e, com os jatos d'água, expulsavam quem estivesse dormindo em praça pública. As crianças e adolescentes se dispersavam, ocupando áreas mais distantes do centro da cidade. Artur, para não ser pego por um desses jatos d'água, preferia o ambiente malcheiroso e sem janelas de seu amigo. Pelo menos ali ele não seria incomodado. Diferentemente da cocaína, da qual deriva, o crack é fumado em uma espécie de cachimbo, atingindo imediatamente os alvéolos pulmonares, cuja área de absorção é duzentas vezes maior que a da mucosa nasal. Dessa forma, cai rapidamente na corrente sangüínea e em quinze segundos está no cérebro. Seu efeito, porém, dura cerca de cinco minutos, levando o dependente a repetir a dose várias vezes. E Artur estava cada vez mais seduzido pelos efeitos do crack em seu cérebro. Nicole sabia do paradeiro do namorado, mas no momento queria ficar em casa. Estava com saudade de seu quarto, de seus discos, de seus bichos de pelúcia. Ela entrou na sala e deparou com simpática moça sentada no sofá, como se estivesse à sua espera. Cininha levantou-se e caminhou até a prima. Abraçou-a.
- Como vai?
Nicole mordeu os lábios e, após os cumprimentos, perguntou ressabiada:
- Quem é você? Alguma enfermeira da clínica que vai me monitorar?
- De maneira alguma. Sou sua prima Cininha, filha da tia Leonilda.
Nicole deu de ombros.
- Nem me lembrava de ter uma tia ou uma prima.
- Mas tem. E temos quase a mesma idade. Poderemos fazer muitas atividades juntas.
Nicole fez muxoxo.
- Não estou interessada em atividade nenhuma. Na verdade, gostaria de ver minha mãe.
Cininha deu uma risadinha sem graça.
- Tia Ivanil... quer dizer, tia Ivana está no quarto, acometida de forte crise de enxaqueca.
- Vou vê-la.
Nicole falou e subiu, sem olhar para trás. Virgílio aproximou-se de Cininha.
- Não a leve tão a sério. Nicole ainda sofre pelos abusos cometidos. Sua consciência, seu humor, variam bastante. Os médicos nos orientaram a ter muita paciência e enchê-la de carinho.
- Não creio que somente isso surta o efeito necessário, tio. Nicole precisa de tratamento espiritual também.
Virgílio passou a mão pela cabeça.
- Meu filho bem que tentou convencê-la, mas Nicole recusa-se terminantemente. Fica possessa. Eu não toco mais no assunto, receio que ela tenha uma recaída.
- Estou sendo sincera. Qualquer contrariedade poderá levá-la a viciar-se de novo.
- Vire essa boca para lá.
Cininha espantou-se.
- Eu quero que Nicole fique bem, muito bem. Torço de verdade por isso. Mas de que adiantam tratamentos e reuniões em instituições especializadas se ela mesma não se dá força para mudar, para fazer tremenda mudança de valores? O tratamento espiritual pode ajudá-la também. Não custa nada, é de graça e, garanto, mal pelo menos não lhe fará.
- Será?
- Fazendo tratamento físico e espiritual em conjunto, ela terá grandes chances de vencer e se libertar das drogas. Caso contrário, vai voltar ao mundo das drogas.
- Isso me tira o sono, sabia?
- Se carinho resolvesse, nem precisaria de clínicas aos montes espalhadas por aí. Não queira deixar de enxergar e ir fundo no problema de sua filha. Quando se tem um filho drogado, a tendência é deixar para lá, com pérolas do tipo "Uma hora isso passa, é fase, logo vai crescer e se tornar adulto", desculpas as mais disparatadas e esfarrapadas possíveis. Não gostaria que minha prima voltasse a esse mundo.
- Ivana me disse que vai lhe pagar terapia.
Cininha ajuntou:
- Numa sessão de terapia, é preciso que o paciente se sinta bem, tenha confiança no terapeuta. De nada adianta levar Nicole ao melhor especialista do mundo, se ela não quiser. Ela precisa querer ter vontade de ir e se sentir à vontade com o terapeuta. Não é porque o analista tem fama e prestígio, como acredita tia Ivana, que ele irá resolver o problema de Nicole. Tem muita gente boa, à surdina, fazendo ótimo trabalho de recuperação. Nicole precisa deixar de ser mimada e arrogante, mais nada.
Virgílio encarou-a sério.
- Não admito que fale de minha filha nesse tom. Você mal a conhece.
- Além de depressiva, ela é menina fútil e mimada. Ainda bem que vou passar um bom tempo na sua casa. O senhor ainda vai me dar razão.
Virgílio coçou a cabeça, pensativo. Cininha estava sendo demasiadamente dura com ele. Nicole era excelente moça. Era carente, a pobrezinha. Precisava do amor dele e da mãe para poder se sentir segura e ter uma vida normal. O importante era que sua filha estava em casa. Isso bastava. Não tinha mais que gastar energia ou neurônios com esse problema. Dali a alguns dias ele e Ivana iriam se separar e ele estaria livre para cortejar Nair. Levaria Nicole para morar com ele, visto que Bruno tencionava casar-se com Michele. Desde o incidente envolvendo Nair e Ivana, quando esta destruiu o carro de Virgílio, ambos decidiram parar de se encontrar. Às vezes Virgílio ligava do escritório e contava a Nair às novidades, falando com alegria da recuperação - aparente - da filha. E mais nada. Em breve, tudo estaria resolvido e Virgílio vislumbrava uma vida cheia de encanto, na qual todos viveriam bem felizes. Pensando nisso, ele subiu e foi até seu quarto. Queria tomar um banho e descansar um pouco antes de almoçar. Nicole saiu de seu quarto e bateu levemente na porta do quarto da mãe. Entrou em seguida. Estava tudo escuro.
- Posso acender a luz?
- Nem pense nisso! - bramiu Ivana.
- Mamãe, sou eu.
Ivana levantou a viseira. Mesmo no escuro, ela cobria os olhos. Precisava de escuridão total quando era assaltada pelas crises de enxaqueca.
- Já se recuperou? Que bom.
- Podemos conversar?
- Agora não.
- Mas...
- Estou cansada e com dores de cabeça.
- Queria lhe dizer que estou melhor.
- Conseguiu se livrar das drogas?
- Aparentemente.
- Como se sente?
- Muito bem, até engordei um pouquinho. Você vai ver: daqui em diante eu serei uma nova pessoa, sem vícios.
Ivana deu uma gargalhada. Levantou a viseira e sentou-se na cama. Acendeu o abajur e ficou mirando a filha de baixo a cima.
- Não me faça de idiota. Você pode fazer seu pai e seu irmão de trouxas, mas não a mim. Pensa que vou cair nessa mirabolante história da carochinha?
- Como?
- Você está bem hoje, mas quero ver voltar à sua vida sem sal, às suas músicas irritantes, à vida estúpida que sempre teve. Logo você vai se afundar nas drogas e vai começar tudo de novo.
- Não, mamãe, eu mudei.
- Já vi esse filme antes.
- Agora estou me sentindo forte. Tenho freqüentado a reunião dos Narcóticos Anônimos. Existem outras pessoas como eu. E muitas superaram o vício.
- Está freqüentando o grupo errado. Deveria ir aos Idiotas Anônimos.
Nicole esmoreceu, seus lábios tremiam, e a custo ela evitou o choro. Ivana continuou:
- Muitas dessas pessoas voltam para as drogas porque são fracas, assim como você.
- Como, mamãe?
- Você é fraca, Nicole. Fraca, entendeu? Você não vale o prato que come. Logo vai estar estirada em algum canto, num buraco qualquer, coberta de formigas. Seu fim está decretado. Ou acredita mesmo que conseguirá tornar-se uma pessoa normal?
- Hã?
- Você não é normal, entende? Você é viciada, fraca, totalmente descartável para o mundo.
Os olhos de Nicole marejaram. Ivana prosseguiu com seu discurso frio e petulante:
- Você faz parte da escória da sociedade. Se dependesse de mim, eu criaria um lugar só para essa gente viciada. Não tenho dó de vocês. Não tenho. - Ivana falava num rompante, voz alterada. - Agora, por favor, saia do meu quarto. Estou com dor de cabeça e quero dormir mais um pouco.
As lágrimas de Nicole corriam insopitáveis. Ela nunca recebera críticas tão duras de sua mãe. Era a primeira tentativa de aproximação pacífica, estava se esforçando para que ambas pudessem se tornar amigas, e ela fracassara. Nicole fracassara mais uma vez. Tudo que aprendera na clínica e na reunião do grupo de apoio veio abaixo. A jovem foi tomada de imensa prostração. Ivana tinha razão: ela não era forte mesmo. Só tinha dado desgosto aos pais desde que nascera. Envolvera-se com as drogas, tinha dificuldade para se libertar do vício. Não tinha profissão, abandonara os estudos. Jogara a vida para o lixo, pensava. Naquele momento, Nicole sentiu-se profundamente magoada, abalada mesmo. Não tinha forças para rebater as duras críticas. As palavras da mãe lhe feriram fundo. Vale ressaltar que sua auto-estima era equivalente a zero. O espírito de Nicole tentava se libertar das amarras do passado, porém era como se ela estivesse presa nesse ciclo pernicioso das duas últimas encarnações. Agora estava tentando se salvar, levar nova vida, mas Ivana minara o pingo de auto-estima que ela conseguira adquirir nesse tempo todo metida entre tratamento e reunião de grupo de apoio a adictos. Everaldo desesperou-se:
- Essa conversa a abalou profundamente. Nicole não tem estrutura para críticas tão duras.
Consuelo pegou em suas mãos.
- Quando encarnados, estamos sujeitos a todo tipo de interferências. Cabe a nós juntar forças e perseverar. Ivana não precisava ser tão dura, entretanto Nicole aceitou as críticas sem um pingo de defesa. Não foi forte o suficiente para rebatê-las e tomar atitude mais positiva. Vamos vibrar para que ela não cometa desatinos.
Everaldo concordou com a cabeça. Ambos fecharam os olhos, ergueram a cabeça para o alto e proferiram comovem e prece pelo bem-estar da jovem. Graças a essa prece, os dois espíritos que perseguiam não conseguiram aproximar-se dela. Conseguiram influenciar Ivana a falar todos aqueles impropérios, mas não chegaram perto de Nicole.
- É só uma questão de tempo - disse um. - Ela vai sucumbir.
- Você tem razão, companheiro - tornou o outro. - Temos de nos vingar.
Nicole acatou tudo que ouvira de Ivana como sendo verdadeiro. Não havia dentro dela um sistema que fosse capaz de ouvir, refletir, peneirar e ficar somente com o que bem lhe aprouvesse. Não. Nicole ouvia e absorvia tudo como sendo seu, sem discernimento algum. A conversa desestabilizou-a de maneira profunda. E irreversível. Ela voltou para seu quarto e jogou-se na cama. Chorou bastante.
- Eu não valho nada. Eu não presto mesmo. Minha mãe tem razão: eu sou a vergonha desta família. O melhor que tenho a fazer é sumir, desaparecer.
A jovem chorou, chorou muito. Foi aí que lhe surgiu a idéia. Sim, por que não pensara nisso antes? Ela era maior de idade, sua família tinha dinheiro. Nicole pensou, refletiu e decidiu. Num instante arrumou sua mala, colocando nela algumas roupas e pertences. Foi até a escrivaninha e pegou sua identidade e seu passaporte. Pegou um de seus bichos de pelúcia, desses encapados com roupinha de zíper. Abriu e arrancou de dentro do bichinho dois pacotinhos de cocaína. Estavam guardados lá do tempo que ela se drogava no quarto, muito antes da internação. O pessoal da clínica informou Virgílio que jovens adictos tinham por hábito esconder droga entre seus pertences. Virgílio, tão logo recebera a informação, passou pente fino no quarto, uma inspeção minuciosa. Checara todas as gavetas, armários, o colchão, dentro de aparelhos de TV e som, todos os cantos do quarto. Absolutamente tudo. Jamais iria desconfiar ou mesmo deduzir que sua filha escondia droga dentro de bichos de pelúcia. Nicole sorriu para si.
- Ainda bem que ninguém em casa descobriu meu esconderijo. Tinha certeza de que nunca pensariam no meu ursinho.
Ela beijou o animalzinho felpudo, jogou-o sobre a cama, enfiou os pacotinhos na mala e fechou-a. Virgílio estava no banho, Ivana voltara a dormir. Nicole abriu a porta do quarto, olhou para os lados. Notou que a porta do quarto de Cininha estava entreaberta e ela estava distraída ao telefone. Nicole pegou sua pequena valise, botou os documentos na bolsa e desceu as escadas de maneira a não fazer barulho. Chegou ao corredor e certificou-se de que nenhum empregado estivesse à vista. Correu até o escritório de Virgílio. Vasculhou as gavetas de sua secretária e encontrou a combinação do cofre. Nicole riu satisfeita. Delicadamente foi girando os números na seqüência. Suspirou feliz quando ouviu pequeno estalo e a porta se abriu. Os olhos da jovem brilharam emocionados. Ela apanhou dois pacotes de notas, algo em torno de trinta mil dólares, que Virgílio mantinha em casa para eventual emergência, porquanto tempos atrás o governo confiscara o dinheiro de toda a população. Por essa razão, ele criara o hábito de trocar moeda nacional por dólar e guardava gorda quantia no cofre de casa. Nicole estava tão extasiada com a quantidade de dinheiro que não vasculhou mais. Aquela dinheirama toda era suficiente para fugir. Nicole enfiou tudo na bolsa. Apanhou a mala e saiu pela porta da frente. Se pegasse o carro, seria fácil localizá-la. Olhou para os lados. A rua estava praticamente vazia. A jovem estugou o passo e dobrou o quarteirão. Duas quadras depois chegou à Avenida Brasil e fez sinal para um táxi. Ela sabia exatamente onde encontrar Artur. Como se estivesse sendo movida por algo mais forte que ela, Nicole ordenou ao motorista, que acolheu com espanto o endereço que ela lhe dera:
- Toca para a Rua Aurora.
- Perdão, senhorita?
- É surdo ou idiota? Eu disse Rua Aurora.
- Sim, senhorita.
Os dois espíritos estavam colados nela. Um de cada lado.
- Agora vamos pegar esse dinheiro e torrar em droga.
- Isso mesmo - replicou o outro. - Vamos torrar em droga.
Mariana entrou no carro e cumprimentou Rogério, dando-lhe dois beijinhos no rosto. Ajeitou-se no banco de trás.
- Você está muito bonita - disse ele.
- Obrigada - tornou ela, envaidecida.
Letícia ajuntou:
- Fazia muito tempo que eu não a via tão bem. Quem sabe hoje tudo se resolve e você e Inácio reatam o namoro?
- Deus lhe ouça!
Rogério e elas foram conversando amenidades. No trajeto, pouco antes de chegarem à casa de Íngrid, ele encarou Mariana pelo retrovisor.
- Eu tive um sonho duas noites atrás.
- É mesmo? - perguntou Mariana, sem muito interesse.
Ela não era fã de sonhos. Somente se impressionara com os que ela mesma tivera com Teresa, mas já os havia esquecido por completo.
- Sim. Com você.
- Comigo?
- Sim - respondeu Rogério.
- Estou curiosa - tentou ser simpática. - Conte-me.
- Sonhei que um senhor, de aproximadamente uns cinqüenta anos, cabelos bem prateados, óculos de grau, estava lá na sua casa.
- Até podia ser meu pai, mas, pela descrição, não confere. Papai não tinha cabelos brancos, tampouco usava óculos. Ela entortou os lábios e prosseguiu: - E o que esse tal homem fazia na minha casa?
- Disse-me que tomava conta de sua mãe, às vezes, também tomava conta de você e de Letícia.
- Oh! Um anjo da guarda na família! Que bom! Depois de tantos reveses, até que seria uma ótima idéia.
Rogério prosseguiu indiferente à ironia impressa na voz de Mariana.
- Ele aproximou-se e pediu: "Diga a Mariana que os fatos não são nada daquilo que parecem ser. As aparências enganam. Ela não deve dar ouvido aos outros, e jamais deve acreditar no que os outros lhe dizem. Ela pode discernir o que é certo e errado e tomar suas próprias decisões. Ela não precisa dar ouvidos a ninguém".
- Grande coisa... - replicou Mariana, em tom de deboche.
Letícia interveio:
- Isso faz sentido, sim.
- Não vejo como.
- Você flagrou Inácio com uma moça num restaurante tempos atrás. E foi até o restaurante porque recebeu um trote. Você mesma não disse à mamãe que sonhara com Teresa e que desconfiava de que ela havia lhe passado o trote?
Mariana emudeceu.
- Mais ou menos.
- Não se faça de superior. Você acreditou naquele sonho que teve. Vamos, admita.
- Coincidência. Eu andava muito nervosa.
- Coincidências não existem. Não teria sido melhor ligar para Inácio no dia seguinte e contar-lhe sobre o trote? A história poderia ter sido diferente. Ambos teriam gasto menos tempo com dúvidas, inseguranças e desconfianças.
- Mas eu vi com os meus próprios olhos - tornou Mariana, com veemência.
- Poderia ter ido até eles e saber quem era a moça. Pela reação de Inácio, você saberia se era um flagrante ou não. E você não lhe deu essa chance. Preferiu acreditar num trote. Mas fiquei feliz com tudo isso.
- Feliz? Como? - indagou Mariana, estupefata.
- Por conta de seu desespero e insegurança, eu encontrei meu amor - suspirou Letícia.
Rogério beijou-a delicadamente nos lábios.
- Nosso encontro não foi por acaso. Mas que o sonho tem algo de verdadeiro, isso tem. Eu não tenho sonhos lúcidos e vivos com tanta freqüência. E eu posso jurar que saí do corpo e me encontrei com esse senhor, na sua casa.
- E ele tem nome, esse sujeito que mora lá conosco? - indagou Mariana, tom jocoso.
- Sim. O nome dele é Homero.
- Nunca ouvi falar.
Letícia retrucou:
- Eu também não. Vai ver, é um guia espiritual, um parente distante, coisa do tipo.
- É - arriscou Rogério -, pode ser.
Pouco depois, chegaram à casa de Íngrid. Mariana olhou a casa e sentiu um frio na espinha. Precisava ser forte e conversa definitiva com Inácio.

CAPÍTULO 20

Nicole saltou do táxi em franco desespero. O motorista recebeu o dinheiro da corrida e nem viu se a quantia estava certa, tamanho o medo. Acelerou, dobrou a rua e desapareceu. O ambiente não era dos mais agradáveis. Aquele pedaço da rua era cheio de dejetos e lixo. As calçadas estavam cobertas de adolescentes e jovens delinqüentes, a maioria com um cachimbo na mão e fumando crack. Outros ficavam agarrados a uma lata, dessas de molho de tomate, repletas de cola de sapateiro. A garotada inalava a cola e entrava em transe, entorpecendo os sentidos. Havia muitos deles jogados na rua, e os transeuntes que eram obrigados a passar por lá o faziam de maneira rápida e desconfiada. A jovem desviou de dois rapazes estirados no chão, saltando sobre seus corpos, totalmente entorpecidos por cola. Olhou o número do prédio e entrou. A portaria estava aberta, sem porteiro, sem ninguém. Era um prédio fétido, abandonado, sem energia, água ou infra-estrutura. Estava à beira de ser interditado, tamanho o risco que oferecia. Nicole estava acostumada a freqüentar aqueles ambientes. Era patricinha, admirava festas de embalo, mas, quando a situação apertava, ela e seus amigos corriam até o centro da cidade, ou lugares afastados na periferia, à procura de drogas. Na hora de comprar, metiam-se em qualquer buraco. Aos olhos humanos, o local era habitado por uma meia dúzia de desocupados, rapazes e moças que se drogavam e que mal tinham noção de onde estavam ou de como retornariam às suas casas, se bem que alguns nem casa tinham para voltar. Aos olhos do espírito, o local era habitado por uma quantidade imensa de espíritos dependentes e viciados. A grande maioria era composta por espíritos de jovens que desencarnaram ali mesmo, nas imediações da Cracolândia. Esses jovens, sem noção alguma de espiritualidade, continuavam ali, fora da matéria, mas presos ao vício, aspirando, por meio dos encarnados, qualquer droga que fosse. Ainda não compreendiam bem o fato de estarem mortos e ao mesmo tempo com necessidades de quando estavam vivos. Isso não importava; eles queriam aproveitar e sempre se aproximavam de encarnados dependentes químicos para sentir os efeitos que a droga lhes proporcionava. Nicole subiu dois lances de escada, dobrou o corredor e bateu numa porta. Um rapaz de aspecto tenebroso, olhos injetados e vermelhos, pele escurecida e arroxeada, atendeu a porta.
- Fala - tornou ele, voz pastosa.
- Vim atrás do Artur.
- Entra aí. Ta lá no fundo.
Nicole encostou a porta. O ar parecia querer sufocá-la, de tão pesado. Uma névoa de fumaça cobria todo o espaço. Ela adentrou pequeno cômodo, escuro e fétido. Os jovens ali dentro estavam tão enlouquecidos pelas drogas, que alguns cheiravam cinzas de cigarro acreditando ser cocaína. Estavam impossibilitados de distinguir a cinza do pó branco. A jovem passou por cima deles e avistou o namorado. No chão, quase sem consciência, estava caído Artur. Nicole aproximou-se, abaixou-se e colocou a cabeça do rapaz sobre uma de suas pernas. Acariciava seu rosto enquanto dizia:
- Voltei meu bem. Não precisamos mais ficar neste buraco.
Ele mal conseguia articular som. As palavras vinham desconexas.
- Meu amor, você está aqui - ele sorriu.
- Vamos sair daqui.
- Não temos como sair. Fui despejado do meu apartamento, e neste estado não consigo trabalhar.
- Que trabalhar, que nada! Você não precisa mais disso.
- Não?
- Não. Vamos viajar.
Artur esboçou leve sorriso.
- Adoro viajar. Nicole batia no seu rosto.
- Não durma. Preciso saber onde estão suas coisas.
- Eu não tenho coisas. Vendi tudo por droga.
- Seus documentos, onde estão?
- Sei lá. Acho que na mochila.
Nicole olhou ao redor e vasculhou. Só encontrou latas, restos de comida em estado pútrido, tudo rodeado de moscas e baratas, e algumas garrafas e bitucas de cigarro. A mochila de Artur desaparecera.
- Não está aqui.
Outro jovem, menos entorpecido, levantou-se devagarzinho.
- Ei, moça, a mochila do Artur foi roubada. Um bando invadiu aqui ontem e rapou tudo. Briga de gangues.
Nicole desesperou-se.
- Oh! Eu preciso dos documentos dele.
O rapaz deu meio sorriso.
- Se me der um papelote de cocaína, eu lhe dou o nome de um cara que é fera em falsificação. Faz qualquer documento.
Ela se interessou. Abriu a bolsa e apanhou um dos pacotinhos que tirara do bichinho de pelúcia e entregou ao moço. Ele avançou sobre ela. Contudo, Nicole estava sóbria e, portanto mais forte. Deu-lhe um empurrão.
- Alto lá. Primeiro me dê o endereço do cara. Depois eu lhe dou o pó.
O rapaz assentiu com a cabeça. Tirou um cartão sujo e amas-sado do bolso da calça.
- Aí está. Procure por esse cara.
- Aqui diz que ele é advogado - afirmou hesitante.
- Tudo fachada. Diga que foi o Gero que a mandou.
Nicole apanhou o cartão e entregou-lhe o papelote.
- Artur, acorde.
- Estou fraco, sinto moleza.
- Por favor, acorde. Eu vou ajudá-lo a sair daqui. Venha comigo.
Ela fez grande esforço, e aos poucos Artur levantou-se. Abraçou-se a ela e saiu do prédio com dificuldade. Hospedaram-se num hotel de quinta categoria, ali perto. O estado de Artur era deplorável, mas, desde que tivessem dinheiro para o quarto, qualquer um podia se hospedar. O gerente do estabelecimento estava acostumado a lidar com todo tipo gente, especialmente com jovens que lá se hospedavam somente para fumar crack ou mesmo cheirar cocaína. Nicole, com tremenda dificuldade, arrastou Artur até o pequeno quarto e o estirou sobre a cama. Tirou-lhe as vestes e abriu a janela. A brisa suave da madrugada invadiu o quarto e Artur respirou com mais facilidade. Nicole deu-lhe um copo de água.
- Descanse um pouco. Vou buscar comida e tratar de arrumar-lhe documentos.
- Hã - balbuciou ele.
- Vamos fugir.
Os dois espíritos, que a acompanharam desde que saltou do táxi, sorriram satisfeitos. Um deles cutucou o outro e disse:
- Não falei que ela era fraca?
O outro espírito assentiu com a cabeça e ambos se aproximaram de Nicole, totalmente receptiva à influência dessas entidades sugadoras e perdidas. Everaldo nada pôde fazer. A relativa distância assistiu àquela cena triste e, em pensamento, rogou ao alto que intercedesse a favor de sua pequena.
- Meu amor - suplicou a distância -, eu não posso tomar conta de você, tampouco protegê-la de tudo e de todos que a influenciam negativamente. Você precisa mudar sua postura, mudar suas crenças e atitudes. Eu não posso salvá-la. A cura depende única e exclusivamente de você.
Disse isso entre lágrimas. Nicole nem teria condições de captar a mensagem do espírito. Estava muito perturbada. Apanhou a bolsa cheia de dólares e, antes de sair, resolveu;
- Tem mais um pacotinho de cocaína aqui. Será que...
Os dois espíritos estavam loucos para que ela caísse cm tentação. Não conseguiram se aproximar de outros jovens, porquanto eles já eram escravos de uma falange de espíritos drogados.
- Não custa nada. É só abrir e pronto - insistiu um deles.
Nicole hesitou. Por fim, influenciada pelos espíritos, disse para si;
- Vou cheirar só esta carreira.
Nicole pegou o papelote de cocaína, abriu-o e esparramou sobre uma mesinha. Tirou um cartão de plástico da bolsa e fez duas fileiras. Depois mais duas e depois mais outra. Cheirou até suas narinas sangrarem. Mariana cumprimentou Íngrid e, assim, que Sílvia desceu as escadas e postou-se à sua frente, ela quase deu um pulo para trás. Ficou branca como cera. Íngrid perguntou, aflita;
- Aconteceu alguma coisa?
Mariana não respondeu. Sílvia sorriu e cumprimentou-a;
- Você é Mariana! - exclamou. - Como estava ansiosa em conhecê-la!
Mariana balbuciou:
- Prazer. Você é...
- Sou Sílvia, irmã de Inácio.
Mariana abraçou-a e fechou os olhos. Como tinha sido estúpida! Por que não chegou sequer a pensar nessa possibilidade? Por que só deixou a mente ser corrompida por pensamentos maledicentes? Por que se deixou levar por um trote idiota? Ela encarou Sílvia com profunda vergonha. E, afinal, por que demorara tanto tempo para descobrir a verdade? Mariana estava se entupindo de perguntas e querendo arrancar-se os cabelos, tamanho o arrependimento. Mas suspirou e controlou-se a contento.
- Você não sabe quanto estou feliz em conhecê-la - tornou ela, sincera e aliviada.
- O prazer também é todo meu. Nunca vi meu irmão se apaixonar antes. Espero que vocês possam resolver suas diferenças. Inácio gosta muito de você.
Íngrid interveio com delicadeza:
- Vamos até a copa tomar nosso lanche. Enquanto isso - apontou para Mariana - Suba. Inácio está no quarto, ouvindo música.
- Obrigada, Dona Íngrid.
- Vai ser uma grata surpresa. Não contamos ao Inácio que você viria.
Mariana sorriu feliz. Subiu as escadas, dobrou o corredor e respirou fundo. Bateu com delicadeza, e nada. Bateu novamente. Ela delicadamente virou a maçaneta e abriu a porta. O ambiente estava inundado pela voz de Maria Bethânia. A música tocava alto. Inácio, deitado na cama, os olhos fechados, voz cadenciada, cantarolava a melodia: De repente fico rindo à toa sem saber por quê. E vem a vontade de tentar de novo te encontrar. Foi tudo tão de repente, eu não consigo esquecer. E confesso tive medo, quase disse não... Mariana riu marota. Esperou que a canção terminasse. Inácio virou-se de lado e a música recomeçou. Ele havia programado o aparelho para tocar somente essa faixa do CD. Era a mesma que ouvira na casa de Mariana quando fora lá almoçar, muitos domingos atrás. Ela delicadamente andou pé ante pé até a cama. Sentou-se na beirada e passou delicadamente a mão sobre seus cabelos fartos e alaranjados. Cantarolou a música. Inácio reconheceu a voz e imediata-mente abriu os olhos. Tomou um susto e levantou-se. Esfregou os olhos. Só podia ser miragem.
- Mariana! - exclamou surpreso.
- Um dos dois tinha de tomar a iniciativa. Estou aqui para conversar.
- Eu mal posso acreditar. Pensei que nunca mais...
Ele não terminou de falar. Apertou-a de encontro ao peito e, com voz que a paixão tornava rouca, declarou:
- Estava com vergonha de procurá-la.
- Vergonha? De quê?
Ele a puxou pela mão e Mariana deitou-se sobre ele.
- Eu me sinto um idiota completo.
- Por quê?
- Acreditei numa farsa, numa armação, e, ao invés de consultar meu coração e falar com você, resolvi dar ouvidos à maledicência alheia. Fiquei tomado de ciúmes.
- Eu nunca lhe dei motivos para sentir ciúmes.
- Sei disso, meu amor.
- O que foi que fiz?
Inácio esboçou sorriso amarelo, sem graça. Abraçou-a e beijou-a várias vezes. Levantou-se e foi até a escrivaninha. Pegou um envelope pardo e entregou-o para a namorada. Ela perguntou:
- O que é isso?
- Abra e veja por si.
Mariana abriu o envelope e não conseguiu articular som de imediato. Respirou fundo e recompôs-se.
- Essas fotos foram tiradas no dia em que...
- Não sei quando - disse ele, triste. - O que importa é que essas fotos foram tiradas com o propósito de fazer-me acreditar que você me traía.
- Mas este é...
- Sim - afirmou ele -, é o Rogério. Agora sei quem é. Imagine meu espanto no dia que o encontrei abraçado à sua irmã. Quando conheci o Rogério, descobri que as fotos foram uma grande armação. Ele me contou como conhecera Letícia, que havia encontrado você no meio da rua, chorosa e perdida.
- Foi quando recebi um trote me instruindo a flagrá-lo com uma loira no restaurante e...
- E?
Ela mal sustinha a respiração. Aquilo era obra de Teresa, agora tinha certeza absoluta. De nada adiantaria falar, discutir, tirar satisfações. Ela o amava, e tudo não havia passado de mal-entendido. Mariana pendeu a cabeça para os lados.
- Eu também me senti envergonhada.
- Não tem motivos. Eu é que fui idiota.
- Fomos os dois.
- Não entendo.
- A moça que vi ao seu lado no restaurante e julguei ser outra... era sua irmã.
- Sílvia?
Ela levantou e baixou a cabeça várias vezes.
- Sim.
- Você está brincando comigo.
Mariana beijou-o nos lábios.
- Não, meu amor.
A jovem puxou Inácio pelo braço e conduziu-o até a cama. Baixou o volume do aparelho de som e contou-lhe tudo, desde o trote, os sonhos, a conversa com Rogério no carro, o estupor ao deparar com Sílvia.
- Acabei descobrindo que a loira era sua irmã.
- Quer dizer que você veio hoje aqui, mesmo sem saber se eu tinha saído com outra?
- Sim.
- Por quê?
- Porque eu o amo, Inácio, do fundo do meu coração.
Eles se beijaram com amor, longamente, repetidas vezes. Mais calmos, ela tornou:
- Foi tudo armação da Teresa.
- Foi por essa razão que você a pegou no bar e lhe deu aquela surra?
Mariana envergonhou-se.
- Não gosto de violência. Mas fiquei fora de mim. Eu sabia que ela havia aprontado comigo.
- E comigo também.
- Ela teve o que mereceu. Espero não ter que encontrá-la nunca mais.
Inácio passou a mão pelo seu rosto fino e delicado.
- Teresa não vai mais nos importunar. Nem ela, nem ninguém. Acredite em mim.
- Eu acredito. Nunca mais duvidarei de você.
- Ouviu a música?
- Como poderia esquecer? Naquele almoço, faz um bom tempo.
- Maria Bethânia é a nossa madrinha musical. Esta vai ser a nossa música, para sempre.
Inácio aumentou o volume do som e conduziu Mariana até sua cama. Deitaram-se e ficaram abraçados, ouvindo a música, cantarolando a melodia, trocando juras de amor. Teresa imaginou que logo os pombinhos voltariam a se juntar. Ela precisava continuar atirando pedras nesse relacionamento. Tonhão estava cada vez mais no seu pé. Ela tinha de arrumar um jeito. Finalmente apareceu um. Lembrou-se de uma amiga que se utilizava dos serviços de uma cigana que fazia trabalhos bem interessantes para amarração de homem. Ela não hesitou e ligou. A amiga foi solícita e deu-lhe o número de telefone.
- Essa cigana é boa mesmo?
- Ela não é cigana - riu a mulher do outro lado da linha. - O povo cigano tem código ético próprio e se dedica à música, vive de artesanato, da leitura da sorte e outras coisas. Dolores finge ser cigana e utiliza a denominação para lhe conferir status, mais nada. Mas uma coisa posso lhe dizer: ela é poderosa. Pode acreditar.
Graças aos trabalhos dela, os homens me disputam a tapa. Teresa sorriu maliciosa. Terminada a ligação, imediatamente ligou para a mulher e marcou hora para o dia seguinte. Dolores atendia num pequeno sobrado localizado em um bairro, classe média. Era uma bela casa no Brooklin, construção antiga, espaçosa, bem conservada. No jardim da frente, bem cuidado e repleto de flores e árvores, havia algumas estátuas de ciganos. Só para impressionar. De cigana e de espírita ela não tinha nada. Vestia-se com trajes ciganos e lia a sorte das pessoas à deriva. Algumas vezes acertava muitas outras errava em cheio. Isso porque sua mediunidade havia sido educada de maneira torpe. No início, muitos anos atrás, Dolores fora cercada de entidades do bem, espíritos amigos que se comprometeram a trabalhar com ela para promover o bem das pessoas por meio de orientação, aconselhamento, dicas e atitudes positivas. Todavia, ela foi depreciando suas virtudes, ignorando códigos de ética e respeito ao próximo. Acreditando ser dotada de poderes sobrenaturais, passou a cobrar valores altíssimos pelas consultas, e, como recebia muitas clientes inseguras e perdidas no amor, Dolores especializou-se em amarração de homem. A demanda foi crescendo, muitas mulheres inseguras e desesperadas corriam até ela e solicitavam seus serviços escusos, na tentativa de ter a seu lado o homem com quem tinham cismado. No começo não deu muito certo. Os amigos espirituais não compactuavam com esse tipo de trabalho. Interferiam bastante e ela não tinha retorno, porquanto os espíritos do bem desfaziam o feitiço. Mas Dolores não desistiu. Tentou, tentou e persistiu no mal. Até que um dia os espíritos de luz se cansaram dela, perceberam que estavam perdendo tempo e foram atrás de outra médium, que estivesse receptiva e disposta a trabalhar pelo bem das pessoas. Dolores então ficou à mercê de espíritos trapaceiros, enganadores de verdade. Com a mediunidade em descontrole, tornou-se serva desses espíritos aproveitadores e só fazia trabalhos espirituais para prejudicar os outros, sendo sua especialidade a prisão amorosa de homem - popularmente conhecida como amarração de homem.
Teresa foi atendida por uma empregada bem vestida. Em seguida foi conduzida a uma sala ricamente decorada, ambiente muito fino. Ela sorriu e gostou do que viu.
- Pelo menos não se parece com aqueles buracos que já freqüentei. Essa mulher deve ser muito boa mesmo. O lugar me inspira confiança.
Ela foi conduzida e convidada a sentar-se à frente de uma mesa em que havia duas estátuas uma cigana e um cigano que, um de frente para o outro, pareciam estar dançando. Tudo cena, somente para impressionar a clientela. Dolores apareceu na sala, entrada triunfante, tudo ensaiado, só para causar impressão. Ela se sentou do outro lado da mesa e a cumprimentou.
- Olá. Você é amiga da Joana?
- Sou. Ela vem sempre aqui?
- De vez em sempre - riu Dolores, deixando aparecer um sorriso sinistro, embora seus dentes fossem alvos e perfeitos.
- Preciso de um favor.
- Qual é?
- Tem um homem, sabe...
- Essa é minha especialidade.
- Ele está apaixonado por outra. Preciso afastá-lo dessa sirigaita e casar com ele. É um caso de vida ou morte.
Dolores fechou os olhos e fingiu fazer contato com entidades do astral.
- Meus guias disseram que podem ajudá-la.
- De que forma?
- Com um perfume.
- Perfume?
- Sim, um perfume enfeitiçado.
- E funciona?
- É tiro e queda.
- Você me garante?
- E como, minha filha! É só o trouxa passar umas gotas e vai se apaixonar pela primeira mulher que vir na frente.
- Não sei se vai dar certo.
- O que a aflige?
- Esse homem não quer me ver nem pintada de ouro. Eu preciso estar junto?
- Não necessariamente. Basta deixar o embrulho com uma foto sua. Sem querer, ele vai olhar para o perfume e para a foto. E só o que preciso para que dê certo.
- Se eu levar um frasco feito por você, ele vai desconfiar. Esse homem só usa perfume dos bons. E de marca importada.
- Não tem problema. Compre um frasco do perfume e me traga. Eu o enfeitiço para você. Assim que ele espargir sobre o corpo, vai ficar de quatro por você. Pode acreditar.
- Tem certeza? Parece muito fácil.
- Se ele espargir um bocadinho, vai entrar na sua. Ele ama muito essa mulher?
Teresa fez muxoxo. Odiava ter de falar a verdade, mas estava diante de alguém que poderia afastar Mariana e lhe deixar o caminho aberto para sua redenção. Entre cair nas garras de Tonhão e ter de baixar seu orgulho, ela escolheu este último.
- Ele a ama, quer dizer, parece que ama. Os homens são todos iguais.
- Hum, então fica mais difícil. Além de fazer o perfume, terei de montar guarda.
- Montar guarda?
- É. Vou ter de mandar uns guias para atrapalhar a vida dos dois, entende? Vai ficar mais caro.
- Dinheiro não é problema, por enquanto.
Dolores suspirou alegre. Pensou consigo mesma: "Mais uma otária. Que bom! Vou ganhar muito dinheiro à custa dessa aí." No dia seguinte, Teresa correu até uma loja de perfumes que conhecia na Rua Augusta e comprou o perfume predileto de Inácio. Disso ela se lembrava, com certeza, visto que ele usava essa mesma fragrância havia anos. Voltou até Dolores e entregou-lhe o frasco, para que ela fizesse o feitiço. Uma semana depois, Teresa andava com o pacotinho debaixo dos braços. Feliz da vida. Nem telefonou para a casa de Inácio; resolveu arriscar e ir direto. Assim que chegou e o viu abraçado a Mariana, quase teve uma síncope cardíaca. Teresa procurou ocultar a irritação e o ódio:
"Então os dois haviam reatado?", indagou para si, desolada. "Mas será por pouco tempo." Ela pigarreou e procurou ser gentil. Cumprimentou a todos. Inácio e Mariana a cumprimentaram com um aceno. Teresa percebeu que seria impossível entregar-lhe o presente. Ela pensou e decidiu:
"Amanhã passo na Centax e deixo o embrulho com a foto nas mãos de Isabel. Ela vai me ajudar."
Em seguida, Teresa pretextou compromisso, despediu-se e foi para casa. Ivana arrumou-se como de costume, num exagero só. Fazia dias que estava sem sair de casa. Finalmente a enxaqueca a deixara livre por uns tempos e ela pôde voltar a pensar em saracotear pela cidade, como sempre fazia acompanhada de Otília Amorim, sua única amiga. Exagerada, espargiu meio frasco de perfume sobre o corpo e ligou para a amiga.
- Quanto tempo seu motorista leva para me apanhar?
- Meia hora, Ivana. Faz tempo que não saímos, e hoje você vai fazer vários programas comigo.
- Preciso ficar longe desta casa o máximo de tempo possível. O clima aqui anda insuportável.
- Como está Nicole?
Ivana deu de ombros, enquanto se equilibrava no fone e passava rímel nos cílios.
- Sei lá. Acho que faz uns dois dias que não a vejo.
- Não se preocupa?
- De maneira alguma. Nicole é adulta, que aprenda a cuidar de sua vida. Eu não vou ficar correndo para cima e para baixo atrás de uma viciada. Isso nunca. Não tenho idade tampouco estrutura para isso.
- Você é impossível. Confesso que, mesmo sendo sua amiga, não apoio sua atitude.
Ivana irritou-se, mas procurou controlar-se. Evitava brigar com Otília. Afinal, era a única pessoa no mundo que a suportava.
- Eu e Nicole tivemos uma conversa dia desses. Falei o que sentia e ela irritou-se, acredito. Foi viajar.
- Viajar? Como? - Otília preocupou-se de verdade.
- Simplesmente fez as malas e viajou. Por que o espanto?
- Ela mal acabou de sair de uma clínica de desintoxicação, ingressou recentemente nos Narcóticos Anônimos.
- E daí?
Otília não conseguiu evitar o estupor:
- Isso é grave!
- Bobagem!
- Nicole pode ter uma recaída. Ainda é muito cedo para viajar sozinha, não acha?
Ivana deu uma risadinha nervosa. Otília era dramática e melosa. Preocupava-se com o bem-estar de Nicole. Entretanto, Ivana conteve-se.
- Assim que ela regressar de viagem eu lhe informo.
- Obrigada.
Otília acalmou-se e procurou dar novo rumo à conversa:
- E quanto à sua sobrinha?
Ivana fez um esgar de ojeriza. Acendeu um cigarro para controlar sua fúria e acrescentou:
- Nem me fale nessa fedelha, Otília, por favor. Não queira estragar o meu dia!
- Desculpe.
- A insuportável acha que vai ficar aqui por quanto tempo? Pensa o quê? Você vai ter de me ajudar.
- Eu?!
- É Otília, você. Quero dar um basta. Não quero mais Cininha na minha casa. É extremamente desagradável.
- Bom, meu motorista vai sair. Daqui a meia hora estamos aí - disse Otília num rompante, cansada das lamúrias de Ivana.
- Está certo. Até mais.
Ivana desligou o telefone, ajeitou a alça do vestido e desceu. Avistou Cininha sentada no jardim de inverno, aparentemente folheando um livro antigo, as páginas bem amareladas.
- Pegou esse livro do escritório? - perguntou num tom de reprovação.
Cininha levantou os olhos e sorriu.
- Não, titia. Era de minha mãe.
- Sua mãe não era dada a leitura.
- Nos últimos anos de vida ela tomou gosto pela leitura.
- É difícil acreditar. Sua mãe sempre foi meio ignorante.
Cininha era muito bem-humorada, estava sempre de bem com a vida e sabia tirar de letra as insinuações jocosas que a tia lhe despejava.
- Mamãe freqüentava um grupo de estudos e me deixou muitos livros.
Ivana deu uma gargalhada.
- Essa é boa! Sua mãe, participando de um grupo de estudos?
- Verdade.
- Sua mãe mal sabia escrever o próprio nome. Era praticamente uma analfabeta.
Cininha levantou-se e aproximou-se da tia. Ela nunca perdia o humor.
- Mamãe concluiu o primeiro grau. Não era analfabeta.
- Não gostava de estudar, mal sabia escrever.
- Mas mudou muito, tia. Ela fez supletivo, concluiu o segundo grau. Só não ingressou numa faculdade porque se descobriu doente. Era tarde demais. Foi quando ela se associou a esse grupo.
- Que grupo?
- Um grupo dedicado ao estudo do Espiritismo.
Ivana injetou os olhos de fúria.
- Não diga asneiras, menina.
Cininha assustou-se.
- Mas por quê?
- Isso é coisa de gente atrasada. Onde já se viu, falar de Espiritismo sob este teto? Ficou louca?
- Não sabia que era preconceituosa.
- Sou mesmo. Odeio os espíritas, os espiritualistas. Tudo gente de cabeça obtusa, pequena. Gente muito ignorante, assim como sua mãe.
- Muito se engana. Nesse grupo em particular havia pessoas bem cultas, até de posses, lá da cidade de Vitória.
- Gente de posses e ignorante, isso sim. Não vá me dizer que você acredita nessas coisas?
- Sim. Creio que a vida tem novo significado quando passamos a enxergar o mundo sob a óptica espiritualista. Tudo faz sentido. As guerras, as tragédias, os milagres, os acontecimentos fantásticos que ocorrem na vida de cada ser deste planeta...
Ivana cortou-a abruptamente:
- Idiotice. Pura idiotice. Nascemos, vivemos e morremos. E ponto final. Que mania ais disparatada de acreditar que a vida continua depois da morte.
- Há estudos sérios a respeito que falam sobre o assunto. Allan Kardec, por exemplo...
- Quem?
- Um professor francês, responsável pela codificação da doutrina espírita.
- Nunca ouvi falar.
- E ouviu falar de Chico Xavier, Waldo Vieira, Emmanuel, André Luiz, Yvone Pereira, Robson Pinheiro...
- Desses todos, só ouvi falar desse tal de Chico. Mas é tudo crendice, charlatanismo. Ninguém me convence.
Cininha deu uma risadinha.
- Engraçado, titia. Mamãe me disse, meses antes de morrer, que você chegou a fazer uma cirurgia com o Zé Arigó, lá em Congonhas do Campo.
Ivana ficou branca. Em seguida, a coloração de seu rosto passou para o vermelho e instantes depois para um arroxeado. Aquela menina era o capeta! Sabia de fatos que ela mesma fizera questão de meter nos escaninhos da memória.
- A sua mãe...
Cininha continuou:
- Minha mãe a acompanhou, isso sim. Parece que o Zé Arigó, durante uma cirurgia espiritual, extraiu um quisto do seu ovário. Não é verdade?
Ivana irritou-se sobremaneira. Aquela menina era mesmo desagradável e a tirava o sério. Apanhou uma estátua de porcelana sobre a mesinha que estava próxima e atirou-a contra a parede. Cininha tapou os ouvidos, para abafar o barulho.
- Diabos! Você me irrita. Isso tudo é mentira!
- Minha mãe nunca foi dada a mentiras.
- Estava ficando dementada.
- Não, tia Ivanilda, nunca.
Ivana inflou o peito de ar e bradou, num tom extremamente alto:
- Odeio que me chame de Ivanilda, entendeu? Odeio! Enquanto estiver na minha casa, se quiser continuar passando sua temporada aqui, nunca mais se dirija a mim usando esse nome.
- Sim, como queira... tia Ivana.
- Assim está melhor.
Ouviram uma buzina no lado de fora. Ivana suspirou:
- Graças a Deus, Otília chegou.
Apanhou a bolsa e saiu. Ruminando e esbravejando, ela deu um esbarrão em Bruno, arriscou um palavrão entre dentes e saiu, sem antes bater a porta com força. Bruno assustou-se de início, mas, ao ver Cininha rindo na saleta, descontraiu-se:
- O que aconteceu?
- Titia não quer que eu a chame pelo nome de batismo.
Bruno riu.
- Você é impossível, Cininha. Cuidado. Ainda pode se dar mal.
- É uma brincadeira.
- Mamãe é muito estúpida. E se ela se descontrolar e lhe der uns sopapos?
- Tentarei me defender - respondeu à jovem, sorrindo.
- Nem o papai ousa chamá-la pelo nome de batismo. Ela simplesmente abomina esse nome.
- Mas é o nome dela, não é? Por que não entrou com papelada na Justiça e trocou, ou mesmo alterou o nome?
- Ela preferiu omitir da sociedade, e ninguém sabe, ou finge não saber.
Ela riu e deu dois beijinhos no primo. Ele olhou para a mesinha. Interessou-se pelo livro.
- O que está lendo?
- O Livro dos Espíritos. Conhece?
Bruno admirou-se. Abaixou-se e apanhou-o.
- Que capa mais bonita!
- Mamãe ganhou este livro de uma amiga. Foi uma edição especial por ocasião do centenário do lançamento. Essa amiga, percebendo que mamãe tinha se interessado pelo assunto, presenteou-lhe com o próprio livro. Eu o guardo com todo o carinho do mundo. É uma maneira de estar conectada à minha mãe. Estudávamos juntas, sabe?
- Mesmo?
- Sim. Estudei tanto, que você pode me perguntar qualquer questão, e olhe que são 1.019 perguntas.
- Você conhece mesmo! - exclamou, admirado. - Desde quando estuda o mundo espiritual?
- Desde que minha mediunidade começou a aflorar. Isso faz alguns anos. Estava na flor da adolescência. Foi tudo natural. Mamãe me levou a um centro espírita, eu fiz tratamento adequado, fiz curso de orientação mediúnica. Em seguida passei a me reunir com um grupo seleto de pessoas que estudavam o mundo espiritual.
- Estou boquiaberto - suspirou ele. - Fico muito feliz que você acredite nisso, porque eu também acredito. Minha namorada é médium.
Cininha exultou:
- Que bom! Poderemos conversar bastante. Tinha certeza de que aqui na cidade encontraria pessoas que pensam como eu.
- Você vai adorar a Michele.
- Por que não a traz até aqui?
Bruno ressabiou-se.
- Acha que posso trazer alguém aqui com a mãe que tenho? Ela é capaz de atirar um vaso na cabeça de Michele. Sabe, mamãe é preconceituosa ao extremo.
- E daí?
- Michele é negra. Mamãe jamais permitiria uma união inter-racial na família. Ela é presa a velhos valores, tem conceitos muito rígidos. Parece que vive no tempo da escravidão.
- Que pena! - Cininha suspirou. - Acho muito pobre o ser humano querer dividir os semelhantes por raça, cor, orientação sexual. Pelo contrário, deveríamos aceitar e enaltecer as diferenças. Acho que, se todo mundo fosse negro ou branco ou se todos no planeta tivessem os olhinhos puxados - ela pousou delicadamente os indicadores nos olhos, puxando-os -, seria sem graça, não acha?
- Sim - disse ele sorrindo. - Isso nunca deveria ser problema. Mas para minha mãe é.
- E para seu pai?
- Meu pai achou Michele linda. Ele abençoou nossa relação. Papai não tem preconceitos.
- É tio Virgílio me parece um homem sensato, de bem.
Conversaram um pouco mais, até que Cininha tocou em assunto delicado.
- Bruno, não quero me meter na vida de vocês. Eu não sou da família e...
Ele a cortou:
- Claro que é. Você é minha prima, filha de minha tia. Embora não tenhamos travado contato durante anos, somos parentes, e o mais importante é que sinto muita afinidade com você. Parece que a conheço há muito tempo.
- Eu também sinto o mesmo em relação a você, seu pai, Nicole, tia Ivanil... Opa, quer dizer, Ivana...
Eles riram. Bruno anuiu:
- Pode falar o que quiser. Há algo aqui que a incomoda?
- Graças ao estudo de minha sensibilidade, tenho facilidade em perceber as energias dos lugares.
- Isso é fantástico. Eu estou aprendendo. É tão bom poder saber lidar com o mundo das energias, identificá-las, saber o que é nosso e o que é dos outros. Isso nos faz crescer, amadurece o espírito, nos dá força para viver melhor e com menos interferências, sejam de encarnados, sejam de desencarnados.
- Sim. Eu tenho facilidade em captar as energias dos ambientes. E é nisso que queria chegar.
- O que foi?
- É sobre Nicole.
- Você sente alguma coisa ruim? - perguntou Bruno, assustado.
- Faz dois dias que ela saiu de casa e não dá notícias.
- Engano seu.
Cininha franziu o cenho.
- Como?
- É. Nicole ligou para o papai hoje cedo. Está na casa de uma amiga no litoral. Disse que volta amanhã.
- Não acredito!
- Por quê? Ela saiu com pequena mala.
- O carro dela está na garagem.
Bruno sorriu.
- Ela viajou de carona. Foi sensata. Ainda está no processo de cura, preferiu não arriscar e não pegar no volante.
- Não é verdade.
- Por que diz isso? Sabe de alguma coisa?
- Receio que sim. Nicole não está bem. Quando cheguei à sua casa, ela havia sido liberada da clínica de desintoxicação. Entretanto, consegui captar algumas formas-pensamento dela e notei que Nicole continua muito depressiva, tem baixa auto-estima e se deixa levar pelas influências e conversas dos outros, como se não tivesse opinião própria.
Sua irmã não tem posse de si mesma. E por essa razão que espíritos perdidos, sem noção de responsabilidade e perturbados ao extremo, acercam-se dela, convidando-a de volta ao vício. Tenho orado bastante e conversado com alguns amigos espirituais.
- Michele disse algo parecido em nossa última reunião. Se minha irmã debandar de novo, afundar-se nas drogas novamente, creio que não terá mais salvação. Uma lágrima sentida escapou pelo canto dos olhos de Bruno. Cininha pousou delicadamente sua mão na dele.
- Sei que é triste não poder ajudar, pois sentimo-nos impotentes. Principalmente quando amamos alguém. Não se esqueça de que a responsabilidade é toda de Nicole.
Ela procurou esse caminho, foi ela que o escolheu. Não me venha dizer que foi por ter uma educação relapsa, por não ter tido o carinho e afeto dos pais.
- Por muitos anos pensei assim, entretanto Michele me mostrou que tanto Nicole quanto eu fomos criados do mesmo jeito. Nenhum dos dois recebeu carinho, afeto e atenção...
- E olhe a diferença: você percorreu outro caminho. Formou-se, trabalha, está ajudando as pessoas e vai ser feliz ao lado de Michele, porque a ama de verdade. Nicole poderia escolher o mesmo caminho. Portanto, sua irmã não foi influenciada pelo meio em que cresceu e viveu. Seu espírito já tinha forte tendência ao desequilíbrio e já faz algumas vidas que ela crê que as drogas vão sensibilizá-la de alguma maneira, diminuir seus medos e inseguranças.
- Como sabe disso. - perguntou ele, surpreso.
- Eu tive um sonho dia desses. Vi sua irmã numa vida passada.
- Pode ter sido só uma impressão, sugestão, sei lá.
- Não, eu vi Nicole em outra encarnação, numa situação muito parecida com a de hoje. No entanto, mesmo que ela seja responsável por tudo que lhe acontece, podemos fazer alguma coisa para ajudá-la. Receio que ela não esteja bem.
- Acha mesmo?
- Sim.
Bruno levantou-se nervoso.
- Oh! Mas papai me garantiu que Nicole ligou e...
No mesmo instante, Virgílio adentrou a casa. Aparentava tranqüilidade.
- Como estão?
- Papai - disse Bruno -, a Cininha está preocupada com a Nicole.
Virgílio acercou-se dela e abraço-a.
- Obrigado por mostrar preocupação, porém Nicole está ótima.
- Não é isso o que Cininha afirma papai.
Ele a encarou nos olhos.
- Por que acredita que minha filha não esteja bem?
Cininha mordeu os lábios.
- Tive um sonho ruim e, quando tenho esses sonhos...
- Diga - implorou VIRGÍLIO.
-... É porque é verdade. Creio que Nicole está correndo sério risco.
Virgílio sorriu.
- Você se impressionou com tudo que ocorreu nesta casa. É natural. Viu Nicole chegar, soube e acompanhou parte de sua triste história. Posso lhe assegurar de que está tudo bem. Ela me ligou hoje cedo e está na praia de Maresias, no litoral norte. Está na casa de uma amiga.
Cininha não se convenceu. Mas o que podia fazer? Era sua intuição contra os fatos que se lhe apresentavam. Não respondeu nada. Os olhos de Virgílio brilharam emocionados. Bruno indagou:
- O que aconteceu?
- Meu advogado vai dar início ao processo de separação.
Bruno não sabia do acordo entre Virgílio e Ivana. Acreditava que estavam juntos mais por convenção e comodidade, e incentivava o pai a procurar ser feliz ao lado de uma mulher que o amasse de verdade. Isso ele só percebeu depois que conheceu Michele. Assim que o amor aflorou em sua vida, Bruno desejou que todos ao seu redor também experimentassem viver no estado sublime a que o amor nos transporta. Abraçou o pai com satisfação.
- Pensei que nunca fossem se separar. E nunca entendi o porquê.
- Um dia você vai saber de tudo. O importante é que meu advogado ligou e pediu alguns documentos. Estão lá no cofre. Volto num instante.
Virgílio saiu e foi ao escritório. Cininha e Bruno ficaram na saleta de inverno, conversando amenidades. Alguns minutos depois, Virgílio irrompeu na saleta, suando frio, tremendo muito e branco como cera. Bruno levantou-se assustado.
- Papai, o que foi? Não está passando bem?
Virgílio procurou recompor-se do susto.
- O dinheiro do nosso cofre sumiu, desapareceu.
Bruno e Cininha olharam-se atônitos. Os três imediatamente pensaram a mesma coisa:
- Nicole!

CAPÍTULO 21

Uma carta na mão. Íngrid já lera e relera a carta várias vezes. Fazia alguns dias que ela andava meio cabisbaixa. Ela era mulher de alto astral, estava sempre bem-humorada. Sua filha resolvera ficar definitivamente na cidade, o que a alegrava. Inácio havia reatado o namoro com Mariana e pareciam felizes. No entanto, algo em seu peito a perturbava, a incomodava sobremaneira. Íngrid não queria olhar para o passado, havia feito esforço descomunal para esquecer o trauma que a separação lhe causara. Mas, então... espere um pouco. Íngrid não havia se separado de Aluísio numa boa? Não havia assinado os papéis e vindo para São Paulo a fim de deixar o marido viver sua vida de solteiro sem constrangimentos? Sim. Mas havia algo que Íngrid, mesmo passados quatro anos, não conseguia superar. Por mais que ela tentasse lutar contra esse sentimento, no fundo do peito uma certeza permanecia: ela ainda amava Aluísio. Essa era a mais pura verdade. Íngrid era mulher recatada, fina, elegante, e julgava estar bem casada. Pouco antes da separação, ela e Aluísio haviam celebrado bodas de prata. Tudo parecia bem. Foi quando ele apareceu numa noite e disse, sem mais nem menos:
- Vou fazer as malas.
- Vai viajar?
- Não, vou embora.
- Como assim?
- Acabou, Íngrid. Nosso casamento acabou. Estou apaixonado por outra mulher.
O mundo dela ruiu por completo. Íngrid precisou de toda a sua ascendência nórdica, de toda a firmeza do mundo para não se despedaçar na frente do marido. Viviam um casamento admirado por todos, haviam comemorado as bodas numa festa que sacudira a cidade e entrou na lista das festas inesquecíveis do Rio de Janeiro. Eram conhecidos como casal perfeito, um modelo a ser seguido. Íngrid era esposa amiga, companheira, cuidava do corpo, fazia exercícios, estava sempre bem vestida. Era culta e inteligente. Os amigos de Aluísio faziam-lhe galanteios. Era paquerada na rua. Íngrid, na época da separação, estava com pouco mais de quarenta anos de idade. Casara-se cedo. Ela nunca beijara outro homem na vida, e Aluísio tinha sido seu único namorado, seu primeiro homem. Aprendera os prazeres do sexo com ele, aprendera a amá-lo e satisfazê-lo em tudo. Cuidava da casa e dos filhos com esmero. Os anos foram passando, ela entrou na menopausa. Nessa fase da vida da mulher, a falta de estrogênio causa a secura vaginal e afeta o desejo sexual, pois transforma as relações em algo desagradável e doloroso. Íngrid acreditou que a intimidade não era mais tão importante e deixou de relacionar-se com o marido. Ela foi criando desculpas, e Aluísio, ignorando o que acontecia com a esposa, cansou das desculpas esfarrapadas e deixou de procurá-la. Júlia deu a ele o que lhe faltava em casa. E, numa noite qualquer, ele resolveu ir embora, num piscar de olhos. Íngrid mordeu os lábios e leu novamente a carta. Nela, Aluísio dizia-se profundamente arrependido. A vida íntima dele com Júlia esfriara e ele agora sabia por quê. Júlia fazia parte do passado, e ele e Íngrid necessitavam conversar. Aluísio confessava não ter coragem de telefonar e gostaria de colocar tudo em pratos limpos. Estava sinceramente arrependido. Pedia por uma nova chance. E agora? Ela ligava ou não? Santo Deus, ela passara os últimos quatro anos tentando estancar a ferida que ardia em seu peito. A mudança para São Paulo, na verdade, ocorreu porque Íngrid jamais suportaria ver Aluísio nos braços de outra. Ele era o grande amor de sua vida, disso ela tinha certeza. Mas o que fazer se ele não a queria mais? Iria rastejar viver de migalhas de amor? Não, isso não. Íngrid tinha lá seu valor. E que valor. Houve algumas paqueras, um flerte aqui, outro ali, mas nada sério. Íngrid sabia que jamais iria se relacionar com outro homem na vida. Seu coração pertencia a ALUÍSIO, era somente dele e de mais ninguém. Sílvia aproximou-se por trás da poltrona e beijou a mãe na testa. - Por que anda tão amuada ultimamente? Íngrid fechou os olhos e suspirou. Embora tivesse suas liberdades com a filha e ambas compartilhassem seus segredos mais íntimos, Íngrid não queria se abrir sobre o assunto. Sílvia notou a carta presa à mão da mãe e, de longe, reconheceu a letra.
- Sei que você não gostaria mais de tocar no assunto - tornou ela amorosa. - Esta carta é de papai, não é?
Íngrid assentiu com a cabeça. Sílvia perguntou:
- E o que a preocupa?
- Esta carta mexeu comigo, obriga-me a olhar para trás. Não queria mais confrontar o passado. Está morto e enterrado.
- Você não vai ter como fugir.
- Enquanto lia a carta, lembrei-me de que, tempos atrás, você me disse que havia sonhado comigo e com seu pai.
Sílvia sorriu.
- Sim. E sonhei mais duas outras vezes. Neles, vocês estavam juntos de novo.
Íngrid sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha.
- Isso mostra que papai vai procurá-la.
- Não vou responder a carta. Quem sabe, sem resposta, seu pai sossega e não me procura mais.
- Acho difícil.
- Por que diz isso?
- Papai não é de desistir. Vai vir atrás de você.
Íngrid amassou o papel e jogou-o a certa distância. Levantou-se da poltrona totalmente indignada.
- Seu pai não pode fazer isso comigo.
- Por que não?
Íngrid andava de um lado para o outro da sala. Estava visivelmente perturbada.
- Vivíamos felizes, estávamos apaixonados. Eu sempre amei seu pai e não duvido nem um pouco que ele sempre me amou esses anos todos. Todavia, seu pai fez sua escolha e...
Sílvia cortou-a com delicadeza:
- Ele fez uma escolha e errou. E daí?
- Como e daí? E eu? Tive de penar bastante, tive de estancar meu amor. Aceitei a decisão de seu pai, e nestes últimos anos tenho melhorado muito. Não acho justo que ele volte de uma hora para outra, peça perdão e tudo volte ao normal. Isso não.
- Mas as coisas não precisam ser desse jeito. Tudo pode ser diferente. Papai pode ter mudado muito com essa experiência.
- Duvido.
- Papai percebeu que sempre a amou e o que sentiu por Júlia foi somente uma paixão. Paixão é passageira.
- Não confunda minha cabeça, filha.
- Você não quer enxergar a realidade. Fica presa às ilusões. Se não ama mais o papai, tudo bem, diga-lhe que está tudo acabado e que você não sente mais nada, absolutamente nada por ele.
- Eu... eu não poderia fazer isso - balbuciou.
- Então consulte seu coração. Se ainda o ama, por que se deixar levar pelas convenções sociais? Por que se deixar levar pelo orgulho, arrastada num mar de preconceitos, com medo do que os outros irão dizer se no fundo ainda o ama? Mamãe pense direito! Talvez a vida lhe esteja dando a chance de viverem felizes, sem mais tropeços, sem mais paixonites. Um amor maduro e tranqüilo.
- Não.
- Dê-se mais uma chance. Você tem a possibilidade de ser feliz.
Íngrid nada disse. As palavras da filha calaram fundo em seu coração. Ela não queria admitir, tentava a todo custo ocultar seus sentimentos. Era difícil. Ela ainda amava Aluísio. Aliás, nunca deixara de amá-lo. E isso a irritava sobremaneira. Aluísio pedira o divórcio, arrumara outra, e agora queria voltar. Por mais que tentasse, Íngrid não conseguia deixar de amá-lo. Ela abraçou-se à filha e deixou que as lágrimas dessem livre curso. Íngrid estava cansada de lutar contra seu coração. Ivana havia comprado muitas roupas. A fim de controlar sua indocilidade e nervosismo, e na falta de atirar objetos contra a parede, ela gastava em compras. Comprava de tudo, desde utensílios para a cozinha - que ela jamais utilizaria, porquanto nunca pisara na cozinha de sua casa até as roupas mais espalhafatosas e de preços astronômicos. Seu ideal de bom gosto assemelhava-se ao da primeira-dama de País na época. Portanto, dá para se ter uma noção do gosto duvidoso. Ivana se vestia de maneira bastante extravagante. Não era à toa que ganhara a alcunha de perua. Ivana vivera uma vida pobre em todos os sentidos. A mãe morrera quando ela tinha acabado de completar seis anos de idade. O pai disse que a mãe fora viajar para Campos do Jordão e nunca mais voltou. Everaldo, um pai jovem e viúvo, teve de cuidar dela e de Leonilda. Ele não era muito chegado ao trabalho, todavia, quando Ivana completou dezesseis anos, um tio distante deixou de herança para Everaldo uma farmácia localizada num ponto nobre do centro da capital paulista. Tudo começou a mudar. Percebendo que o pai não tinha tino para os negócios, a esperta Ivana procurou pelo Dr. Homero, naquela época, comerciante próspero e respeitado na cidade. Ele sempre dava uma passadinha na farmácia e enchia Everaldo de propostas. Homero tinha muito interesse em ticar com aquela farmácia. Comprando aquele ponto, ele poderia levar adiante seu plano de expansão de sua rede de farmácias. Ele já possuía três. Se conseguisse a da família de Ivana, seu plano tinha tudo para deslanchar. Everaldo, mesmo não sabendo lidar com o negócio, não queria se desfazer da farmácia. Apesar de se mostrar desastrado nas finanças, obtinha lucro com o estabelecimento, e assim ele conseguia ter uma vida razoável. Isso bastava para ele. Ivana queria mais: queria ser rica, muito rica, e sabia que, se as coisas caminhassem daquele jeito, o pai em poucos anos destruiria a única fonte de renda que tinham. Ivana procurou Homero e bolaram um plano. Ela tentaria engravidar de Virgílio e dariam grande soma em dinheiro para Nair, suficiente para ela desaparecer de suas vidas. Dono de farmácia, Homero conhecia alguns medicamentos que eram capazes de causar sonolência, tirar a pessoa do ar por algumas horas. Diante disso, Ivana procurou Virgílio e, sem que ele percebesse, ela colocou algumas gotas de um líqüido na bebida do rapaz. Virgílio ficou meio grogue, passou a alucinar e, ainda apaixonado, viu em Ivana a imagem de Nair. Fizeram amor e Ivana engravidou. Everaldo foi obrigado a vender a farmácia, em troca de ter salvado e imaculada a honra de sua filha. Ivana casou-se com Virgílio e Everaldo mudou-se com Leonilda para uma cidade do Espírito Santo, porque lá a vida era mais barata e dava para ele viver bem. O resto é história. Ivana casou-se e tornou-se rica e admirada. Os anos passaram e Ivana continuou cada vez mais rica e cada vez mais bela, mesmo vestindo-se de maneira extravagante, com roupas floridas, listradas, abusando das cores berrantes. E, por que não dizer, tornou-se uma mulher cada vez mais insuportável. Ao lado de sua amiga Otília Amorim, Ivana estava particularmente de bom humor.
- Faz tempo que não a vejo assim, Ivana.
- Assim como?
- Feliz sorridente. Confesso que me assusto quando você está feliz.
- Por quê?
- Parece estar tramando algo.
Ivana deu uma gargalhada.
- Imagine! Estou ótima. Afinal de contas, no fim do mês eu e Virgílio vamos nos separar.
- Já?
Ivana encarou a amiga com os olhos injetados de fúria.
- Quer acabar com minha felicidade?
- Não, eu...
- Vinte e cinco anos e você me diz "já"? Está louca?
- Tem razão.
- Aturei mais do que devia. Agora estamos quites.
- Virgílio vai se unir àquela antiga namorada. Acha que ele vai ser feliz ao lado dela?
Ivana deu de ombros.
- Não penso nisso.
- E por que teve aquele ataque violento de ciúmes?
- Não foi ataque de ciúmes.
- Mas você destruiu o carro e quase bateu nos dois!
- Eu sou esquentada, você me conhece bem. Eu posso ter todos os defeitos do mundo, mas nunca traí o Virgilio. Fazia parte do nosso pacto. Quando o vi conversando com aquela fulana, me deu muita raiva. Por que ele estava pulando a cerca? Isso poderia colocar em risco nosso acordo. Fiquei mais nervosa por temer ficar sem dinheiro do que por vê-lo com outra.
- Como assim?
- O pai de Virgílio fez com que assinássemos um belo acordo nupcial. Se nesses vinte e cinco anos nós nos separássemos, ou mesmo se um de nós mantivesse vida dupla, toda a nossa fortuna iria para nossos filhos.
- Bruno e Nicole ficariam com tudo?
- É. O boboca do Bruno e a viciada da Nicole. Eu não merecia passar por isso. Provavelmente meu filho iria torrar sua parte em caridade e Nicole iria comprar uma montanha de cocaína para cheirar até morrer.
Otília mordeu os lábios.
- Não fale assim. São seus filhos.
Ivana fez ar de mofa.
- Filhos uma ova! São duas sanguessugas, dois parasitas que me rodeiam. Na separação, tenho certeza de que Virgílio vai transferir boa parte de seus bens para Bruno e Nicole. Ele se preocupa demais com os filhos.
- É natural.
- Não é natural. É estranho. Nós fizemos esse dinheirão todo. A fortuna pertence a nós. Não me sinto obrigada a dar aos meus filhos, e ainda de mão beijada, tudo que amealhei nos últimos anos.
Otília mudou de assunto. Ivana estava falando num tom mais alto e logo iria gritar.
- Não sente ciúmes dele? - indagou, dando novo rumo à conversa.
- De Virgílio?
- É.
Ivana riu.
- Não. Casei-me por interesse, mais nada. Nunca o amei.
- Você tem um jeito bem interessante de viver a vida.
- O jeito Ivana de ser.
Otília deu uma risadinha.
- Está de olho em alguém?
- Sim. Estou.
Otília deu um tapinha no braço de Ivana.
- Eu bem que suspeitava. Quem é o seu alvo?
Ivana sorriu satisfeita e feliz.
- Sidnei.
- Seu ex-namoradinho de juventude?
- Sim, ele mesmo.
- Gosta dele tanto assim?
- Sinto carinho por ele. Como eu lhe disse tempos atrás, foi meu namorado, era apaixonado por mim. Mas Sidnei era um pé-rapado, não tinha onde cair morto. Eu o troquei por Virgílio. Nunca pensei que fosse ser dono de uma clínica e ficar rico.
- Tem tido contato com ele ultimamente?
- Não. Mas soube que Noeli saiu com ele algumas vezes. Parece que ele não é de se prender. Mas eu vou usar de todo o meu charme, fazer lembrar-se do tempo em que namorávamos.
Otília foi espontânea. Não quis de maneira alguma ferir os brios de Ivana.
- Noeli tem idade para ser nossa filha.
- E daí?
- Não percebe? Sidnei só gosta de mocinhas.
Foi o suficiente para acabar com a felicidade de Ivana. Seu cenho franziu tanto que a testa se enrugou por completo. Ela irritou-se sobremaneira. Mordeu os lábios com tanta força que logo sentiu o gosto amargo de sangue. Algo nada palatável.
- Nunca mais diga uma coisa dessas.
- Desculpe Ivana, eu...
- Você é minha amiga ou não é?
- Sou sua amiga, sim. É que...
- Nem, mas nem meio, mas. Se for para falar besteira, melhor manter a boca fechada, entendido?
Otília assentiu com a cabeça. Tinha pavor de contrariar Ivana em público. Ela mudou logo de assunto.
- Veja - apontou.
- Aquela ali é Dolores.
- Que raio de Dolores?
- A cigana que faz leitura das mãos.
Ivana riu.
- O que vai fazer? Pedir uma consulta aqui no meio do shopping?
- Não, vamos conversar.
- Você disse que ela é embusteira.
Otília concordou, mas insistiu:
- Não custa nada. Você está interessada no Sidnei. Quem sabe?
- Pode ser.
Otília chamou e Dolores virou-se. Cumprimentaram-se e a apresentou-lhe Ivana.
- Tem medo do futuro? - perguntou a falsa cigana.
- Por que teria medo do futuro? - indagou Ivana, num tom irônico. - Sou rica e bonita.
Dolores aproximou-se e, sem cerimônia, pegou na mão dela.
- Deixe-me ver sua linha do destino.
Ivana levantou-se e girou os olhos sob as órbitas. Aquilo era ridículo.
- Você vai viver muito.
- Sei.
Dolores espremeu os olhos e concentrou-se em outras linhas da mão de Ivana. De repente, seus olhos se arregalaram e ela soltou a mão, num rompante.
Otília assustou-se.
- O que foi?
- Nada - respondeu Dolores, amedrontada.
- Como nada? O que você viu? Dolores estugou o passo e afastou-se.
- Até mais. Estou com pressa, tchau.
Otília preocupou-se:
- Dolores deve ter visto algo terrível.
Ivana deu uma gargalhada.
- Terrível nada. Essa aí é uma tremenda farsante, isso sim. Em seguida adentraram uma loja e esqueceram-se de Dolores. Mas Dolores não se esqueceu da mão de Ivana.
Ela era embusteira, fazia muito serviço sujo, comprometera-se com espíritos do astral inferior e um dia teria de arcar com as conseqüências de seus atos. No entanto, era dotada de mediunidade e, quando estava bem consigo mesma, sem pensar em dinheiro ou manipular as pessoas, de vez em quando previa o futuro. O que vira nas linhas da mão de Ivana era de assombrar qualquer ser humano. Dolores fez o sinal da cruz.
- Ainda bem que não estou em sua pele - disse para si.

CAPÍTULO 22

Inácio olhou-se no espelho e ajeitou a gravata. Aquela reunião era-lhe muito importante. Precisava ganhar o cliente. Embora fosse o engenheiro responsável do setor e não tivesse ligação com a área de marketing, ele tinha de passar boa impressão ao grupo estrangeiro. Se sua explanação dos produtos fosse bem-feita, talvez a Centax fosse incorporada ao grupo estrangeiro, o que faria com que Inácio ganhasse um punhado de ações, tornando-se sócio da empresa. Seria sua ascensão profissional, sonho que tanto almejara. Ele penteou os cabelos e aspergiu um pouco de perfume sobre a mão. Delicadamente perfumou o pescoço e parte das orelhas. Em seguida, sentou-se à mesa para passar última vista no relatório que iria apresentar. Enquanto isso, Teresa adentrou o escritório. Isabel abriu largo sorriso ao vê-la.
- Senhorita Teresa, como vai?
- Muito bem. E você, querida?
- Ótima. Procura pelo Dr. Inácio?
- Sim.
Isabel meneou a cabeça para os lados.
- Bom, ele tem uma reunião para daqui a pouco. Verei se pode atendê-la. Sente-se - Isabel apontou para um sofazinho - e fique à vontade.
- Obrigada, querida.
Teresa ajeitou-se no sofazinho próximo à recepção. Numa mão segurava sua bolsa e na outra um embrulho, um pacote bem bonito. Nele estava o frasco de perfume anexado a uma foto sua bem caprichada.
- A partir de hoje, esse homem vai gostar de mim. Só de mim - disse para si.
Isabel ligou para a sala de Inácio.
- Sim?
- A senhorita Teresa Aguilar está aqui.
Inácio sentiu ligeiro mal-estar. Teresa era sinônimo de confusão. Ela quase destruíra seu namoro. Ele fizera juramento para si mesmo e para Mariana: nunca mais lhe dirigiria a palavra. Ele foi ríspido:
- Não vou atendê-la.
- Mas, Dr. Inácio...
- Não quero falar com ela. Se insistir, chame a segurança. Eu não quero mais olhar na cara da Teresa.
- É... que...
Inácio irritou-se.
- Isabel, não insista.
- Sim, senhor.
A secretária desligou o telefone atônita. Não podia ser indelicada com Teresa. Ela era mulher tão bacana! Havia lhe dado uma blusinha de presente. Claro, que teve de correr à loja e trocar por dois números maiores. Mas valera a intenção. Teresa merecia sua consideração. Inácio estava nervoso por conta da reunião com o grupo estrangeiro. Era isso. Isabel ia dar um jeito de dispensá-la com classe, sem lhe passar a contrariedade do patrão.
- Senhorita Teresa, por favor.
Teresa levantou-se e foi até sua mesa.
- Sim?
- O Dr. Inácio está se preparando para uma reunião importante e...
Teresa sabia que corria esse risco. Inácio e Mariana se acertaram e descobriram que ela havia aprontado com os dois. Não precisava falar com ele, mas precisava fazer o perfume chegar até ele, mais nada. Contaria com os préstimos de Isabel, que só faltava lamber-lhe os pés, tamanha a admiração que lhe nutria. O que uma simples blusinha era capaz de fazer... Por isso Teresa interrompeu o discurso:
- Inácio deve estar bastante ocupado. Você pode fazer um favor para mim?
- Um favor?
- É.
- Claro. A senhorita é tão legal!
- Poderia lhe entregar esse embrulho?
- Pode deixar aqui, que eu entrego.
- Agora.
O tom na voz de Teresa soou implacável. Isabel nem hesitou. Levantou-se de pronto.
- Pode deixar. Vou levar agora mesmo.
Ela pegou o embrulho. Bateu na porta de Inácio e entrou. Teresa ficou olhando para a mesa de Isabel e seus olhos pousaram sobre um talão de cheques. Isabel fazia alguns pagamentos para a empresa. Teresa vibrou de emoção. Olhou para os lados e não viu ninguém por perto. Abaixou-se e pegou o talão. Ele estava praticamente cheio de folhas, quase sem uso ainda.
- Duas folhas de cheque não vão fazer falta.
Teresa pegou o talão e arrancou as duas últimas folhas. Aproveitou e pegou uma carta que Inácio acabara de assinar. Era útil ter a assinatura dele em mãos.
- Até a tonta descobrir que duas folhas foram arrancadas, eu já terei comprado minha passagem. Preciso viajar por uns tempos. Voltarei quando Inácio me ligar para vê-lo, cheio de amores.
Logo descansou o talão sobre a mesa, deixando-o do mesmo jeito que o encontrara. Isabel entrou na sala de Inácio.
- Desculpe, mas a senhorita Teresa pediu-me para lhe entregar isto.
- O que é?
- Não sei. Só pediu para lhe entregar.
- Pode deixar aí na mesa.
Isabel colocou o embrulho no canto da mesa.
- E o que digo a ela?
- Que suma, que desapareça.
- Dr. Inácio, a senhorita Teresa é tão bacana... Não sei por que...
Inácio deu um murro na mesa.
- Basta!
Isabel assustou-se. Ele nunca a tratara daquele jeito.
- Ponha essa mulher para correr do escritório, ou coloco você no olho da rua.
- Sim, senhor.
Inácio pegou o embrulho e nem o abriu. Jogou direto na lata de lixo.
- Você não vai mais nos atrapalhar - disse ele, com firmeza e convicção.
Isabel saiu da sala e não sabia o que dizer para Teresa. Nem precisava. Ela havia ido embora.
- Ué? Será que ela ouviu alguma coisa?
Isabel procurou e olhou nos corredores. Nada. Ligou para a portaria e afirmaram que Teresa havia deixado o crachá no térreo.
- Caso ela volte a ligar, eu vou pedir desculpas. A senhorita Teresa é muito especial. Não merece ser tratada assim - disse para si, enquanto se sentava e voltava a preencher os cheques para fazer os pagamentos.
Virgílio andava de um lado para o outro da sala, impaciente.
- Se Nicole pegou esse dinheiro, está tudo acabado.
- Sossegue tio - volveu Cininha, tentando acalmá-lo.
O telefone tocou e Bruno correu para atender. Era Nicole.
- Onde você está? Que susto você nos pregou!
- Quanta preocupação! Estou bem. Voltei da praia e estou na casa de uma amiga.
- Que amiga? - indagou Bruno, desconfiado.
- Estou na casa da Lurdes.
- Não conheço.
- É uma amiga dos Narcóticos Anônimos.
- Deixe-me falar com ela.
Nicole passou o telefone. Uma mulher falou.
- Oi.
- Quem fala?
- Lurdes. Sou amiga de sua irmã.
- Onde você mora?
- Na Bela Cintra.
Bruno estava bastante desconfiado.
- Me passe o endereço. Preciso ver minha irmã.
- Olhe - tornou a mulher -, nós vamos sair para lanchar. Depois eu deixo a Nicole em casa, tudo bem?
- Deixe-me falar com minha irmã.
- Está bem.
A mulher passou o telefone para Nicole.
- O que foi Bruno?
- Estou preocupado com você.
- Estou ótima. Vou jantar com a Lurdes e antes da meia-noite estarei em casa.
- Precisamos conversar.
- Aconteceu alguma coisa?
Ele não sabia se perguntava ou não. Por fim arriscou:
- Antes de viajar, você mexeu no cofre de casa?
- Eu?! Impossível! Eu nem sei a combinação. Por quê? Alguém mexeu no cofre?
Ele não quis perturbá-la.
- Não. Papai está à procura de alguns documentos e não os encontra.
- Quando chegar em casa eu os ajudo a procurar.
- Está bem. Cuida-se, irmã.
- Um beijo. Dê um beijo no papai.
- Tchau.
Despediram-se. Virgílio estava ansioso:
- Aconteceu alguma coisa?
- Nicole está com uma amiga e disse que antes da meia-noite volta para casa. - Bruno tentou tranqüilizar o pai: - Ela não sabe nada do cofre.
- Ela está mentindo - afirmou Cininha.
Bruno olhou-a com estupor.
- Nicole pode ter passado por sérios problemas, mas é correta. Creio que você está sendo preconceituosa. Só porque ela teve contato com as drogas, vai carregar essa mancha pelo resto da vida? Ela merece uma segunda chance.
- Nicole está mentindo.
- E por que mentiria? - perguntou Virgílio, nervoso.
- A minha mediunidade não me engana - disse a jovem com convicção. - Nicole está querendo ganhar tempo.
- Isso não faz o menor sentido.
- Faz, sim, tio.
Virgílio coçou a cabeça.
- Preciso dar um voto de confiança à minha filha. Ela vai chegar até meia-noite. Você vai ver.
Cininha duvidou. Em seu íntimo, tinha certeza de que Nicole nunca mais colocaria os pés naquela casa. Nunca mais. Nicole desligou o telefone do orelhão e sorriu, aliviada. Artur beijou-a nos lábios.
- Não falei que era uma barbada.
- Nunca pensei ser tão fácil. Eles acreditaram em mim - tornou Nicole, sorridente.
A mulher ao lado deles interveio:
- Fiz a minha parte. Falei às besteiras que vocês mandaram dizer. Agora me dê o dinheiro.
Artur tirou uma nota de cem dólares do bolso e entregou-a a mulher
- Quando quiserem passar novo trote, me chamem. Por essa quantia eu até choro, se for preciso.
Eles se despediram dela, e, antes de atravessar a rua, Artur disse à mulher:
- Obrigado, Lurdes.
Ela irritou-se:
- Vão se catar! Meu nome é Célia, oras.
Os jovens riram animados.
- Nunca pensei que fosse tão fácil conseguir documentos falsificados em tão pouco tempo.
Artur abraçou-a forte:
- Por cinco mil dólares, não é nada difícil achar quem se corrompa.
- Precisamos ir. Nosso vôo parte às dez da noite.
Fizeram sinal para um táxi. Nicole beijou Artur nos lábios.
- Eu o adoro.
- Eu também a adoro. Mas, a partir de agora, meu nome é Celso. Não se esqueça.
Ela concordou com a cabeça.
- Está certo, Celso.
Entraram no táxi e Artur - agora Celso - ordenou:
- Vamos para o aeroporto.
- Congonhas? - perguntou o motorista.
Nicole deu uma risadinha safada.
- Não, vamos para o de Guarulhos. Viagem internacional.
- Lua-de-mel - ajuntou Artur.
Letícia, depois de meses de treinamento, deu-se muito bem em seu novo emprego. Aprendeu com rapidez a trabalhar com a máquina registradora. Fazia serviço de caixa e atendia os clientes. Sua simpatia era contagiante e, com isso, atraía mais clientes à loja. Ao constatar que o público da farmácia era composto na maioria de pessoas idosas que moravam nas redondezas, ela teve a idéia de fazer o serviço de entrega de medicamentos em domicílio. Rogério acatou a idéia com entusiasmo. Contrataram um motoqueiro, e a clientela não só aprovou a novidade como também passou a recomendar o serviço a parentes e amigos. O volume de negócios cresceu, e a farmácia despontou como a mais lucrativa da rede de Virgílio.
Por conta disso, Rogério ganhou participação e tornou-se sócio dessa farmácia em particular. O salário aumentou e ele pôde realizar dois sonhos. Um deles era o de comprar um apartamento para o pai. Ismael poderia continuar seu trabalho de motorista, mas precisava ter sua casa, seu cantinho.
- Não creio ser necessário, filho.
- Chega de morar na casa dos outros.
- Dona Íngrid é excelente patroa. O meu quarto tem banheiro e é bastante confortável. Ela trocou a mobília faz pouco tempo.
- Não. Você precisa morar na sua própria casa - enfatizou Rogério.
- Por quê?
- E quando vierem os netos? Eles vão querer ir à casa do avô. Vou levá-los aonde? No quintal da Dona Íngrid?
Ismael emocionou-se. Rogério fora filho fora do comum desde que nascera. Honesto, trabalhador, estudioso. Homem íntegro, filho prestimoso, coisa rara de se ver nos dias atuais. Ele abraçou o filho com amor.
- Eu tenho muito orgulho de você.
- Eu também tenho orgulho de você, pai. Devo o que sou ao senhor. Você foi meu estímulo, meu guia. Sempre me espelhei em você, na sua determinação, na sua integridade. Eu agradeço todos os dias por tê-lo ao meu lado.
Ismael estava prestes a cair no pranto. Controlou-se. Era homem das antigas, não gostava de expressar seus sentimentos mais íntimos.
- Você disse netos?
- É.
- Ainda é muito jovem.
- Jovem apaixonado e feliz.
- Gosto muito da Letícia.
- Ela é a mulher da minha vida.
- Vai pedir a mão dela?
- Sim.
- Quando?
- Em breve. Dei entrada num apartamento.
- Mesmo?
- Comprei no meu nome e no de Letícia, mas ela nem sabe disso. Dona Nair é que me deu cópias de seus documentos. Vou fazer lhe uma surpresa.
- Você a ama de verdade, não?
- Muito.
- E o apartamento, é bom?
- É espaçoso, confortável, três quartos, uma suíte. Perto da farmácia. E o apartamento que vou comprar para você é lá também. Ficaremos todos próximos.
- Obrigado.
Abraçaram-se novamente. Ismael sonhava ter netos. Torcia para que Rogério e Letícia tivessem muitas crianças. O outro sonho de Rogério era o casamento. Estabilizado e com excelente rendimento, não via por que esperar para se casar. Tinha certeza de seu amor por Letícia. Estavam sempre juntos e não enjoavam da companhia um do outro. Muito pelo contrário. Ela sempre o ajudava a fechar as contas da farmácia. Depois iam até o prédio de Rogério. Ele tirava o carro da garagem e a levava para casa. Toda noite. Sem exceção. Naquela noite, porém, ele mudou o trajeto. Depois que Letícia entrou no carro, eles deixaram a garagem do prédio e seguiram por alguns quarteirões. Rogério parou o veículo em frente a um terreno. Letícia não entendeu.
- O que foi? Acabou a gasolina?
- Não.
- Por que parou aqui?
- Vamos sair - ordenou ele.
Letícia atendeu e saiu do carro. Na calçada, sem jeito, ela esperou.
- Pronto, saí do carro. E agora?
- Olhe - ele apontou.
- Para onde?
- Para frente.
Letícia riu.
- É um terreno. Grande, por sinal.
- Bem-vinda ao lar.
- Rogério, o que está dizendo? - Ela aproximou-se do namorado e cheirou seu hálito. - Pensei que tivesse bebido.
- Você vai morar aqui.
- Eu?
O jovem tirou uma pasta que estava sob o braço.
- Veja.
Letícia pegou o envelope. Abriu. Conforme lia, seus olhos começaram a marejar.
- Você está brincando comigo?
- Não - tornou ele, emocionado. - Acabei de comprar a nossa casa. Vai ser aqui. Daqui a dois anos.
- Isso quer dizer...
- Quer dizer...
- Vai, fala!
- É uma maneira diferente de pedir sua mão em casamento.
- Oh! - Letícia deu um gritinho abafado.
- Agora você não tem escapatória. O contrato está no nome de nós dois. Você vai ter de se casar comigo.
Letícia abraçou-se a ele.
- Eu o amo tanto!
- Eu também a amo muito, Letícia - tornou ele, voz rouca de emoção.
Beijaram-se e em seguida foram a um restaurante para comemorar. Tinham planos, muitos planos. Rogério e Letícia estavam apaixonados e muito, muito felizes.

CAPÍTULO 23

Faltavam dez minutos para a meia-noite quando Ivana chegou em casa, atolada de sacolas de compras. Jogou as sacolas no chão e chamou por um dos empregados.
- Sim, senhora?
- Leve estas sacolas para o meu quarto, agora.
O empregado assentiu. Pegou as sacolas, fez incrível malabarismo e subiu. Ivana foi até a sala de estar. Estranhou ver Cininha, Bruno e Virgílio sentados. E a expressão que carregavam no semblante não era animadora.
- Algum problema?
- Nicole - respondeu Virgílio.
Ivana bateu a mão na cintura.
- Essa é a preocupação?
- Mamãe - tornou Bruno -, Nicole ficou de chegar em casa até meia-noite. Está quase no horário. Temo que ela não venha.
- Por quê?
- Sumiu dinheiro do cofre - declarou Virgílio. Ivana não entendeu.
- O que foi que disse?
- O dinheiro que guardamos para emergências. Nossos dólares sumiram.
- Como sumiram?
Cininha levantou-se e aproximou-se de Ivana.
- Acreditamos que Nicole tenha pegado o dinheiro.
Ivana deu um grito histérico.
- Meu dinheiro! Aquela viciada pegou meu dinheiro! Gritou e correu até o escritório. Em seguida ouviram barulho de quebra-quebra.
Cininha assustou-se. Virgílio acalmou-a:
- Não se assuste. Sua tia está tendo um ataque de nervos.
- Está colocando o escritório abaixo - replicou Bruno.
- Ela é meio doida, não?
- Meio, não. É doida por inteiro - disse Virgílio. - Logo passa, e Ivana vai reclamar de enxaqueca e vai dormir por uns dois dias. Ela é assim.
- E não se preocupa com Nicole?
Bruno tocou em seu braço.
- Mamãe nunca se preocupou conosco.
- Mas Nicole pode estar correndo risco e...
Virgílio interrompeu-a:
- Eu sei, nós sabemos, e creio que Ivana também saiba. Mas ela não liga. Não quer saber de nada a não ser cuidar de si própria.
O badalo do relógio indicava ser meia-noite em ponto. Virgílio desesperou-se.
- Vamos para a delegacia.
Bruno assentiu com a cabeça. Ele telefonou para Michele e colocou-a a par da situação. Cininha apanhou sua bolsa e em seguida os três partiram rumo à delegacia mais próxima. Michele desligou o telefone, apreensiva. Sentiu o peito oprimido. Daniel preparava-se para deitar. Ele tinha o hábito de passar no quarto da irmã para lhe desejar boa noite. Entrou e notou sua aflição.
- O que é que está acontecendo?
- Bruno me ligou. Nicole não aparece em casa faz mais de dois dias.
- Isso é mau.
- Também acho. Ele e seu Virgílio foram à delegacia.
- Será que Nicole teve nova recaída?
- Sim, Daniel. Receio que sim. Precisamos fazer uma corrente de orações. Você se incomodaria de ligar para Sílvia e pedir para que viesse ao nosso encontro?
- Mas passa da meia-noite!
- Precisamos orar. Sinto que Nicole vai cometer uma grande besteira.
Daniel pendeu a cabeça para cima e para baixo, concordando com a irmã. Ligou para Sílvia, e Ismael se prontificou a levá-la. Era tarde da noite, e Michele e Daniel moravam na periferia da cidade, próximos da farmácia popular. Meia hora depois, Sílvia chegou à casa dos irmãos. Ismael os conduziu até o salão que utilizavam para atendimento e reuniões espirituais. Michele convidou-o:
- Gostaria de participar?
Ismael sentiu-se constrangido:
- Sou católico, e...
- Não tem problema - asseverou Sílvia. - Precisamos orar pedir aos amigos espirituais que dêem proteção a Nicole. Você reza à sua maneira. O que vale é a intenção.
- Está certo.
Os quatro adentraram o salão. Sentaram-se em volta de uma mesa oval e oraram por Nicole. Michele sentiu os pêlos de o corpo eriçarem.
- Aqui se encontra um amigo espiritual de Nicole.
Todos a olharam com interesse. Ismael assustou-se. Michele procurou acalmá-lo, usando voz pausada e amorosa.
- Nada de mau vai nos acontecer, Ismael. Não vou "receber" nenhum espírito.
Ele sorriu sem graça.
- Você consegue captar alguma coisa?- indagou Daniel.
- Sim. Ele nos pede que fiquemos em oração. Nicole está viva e ainda está bem. Ele pede que oremos, porquanto os próximos meses serão bastante difíceis para Nicole e sua família.
Sílvia também sentiu o peito oprimir-se.
- Não vamos nos deixar levar pela emoção. - tornou Michele, voz firme. - Nicole é dona de seu nariz e sabe o que faz. Não somos responsáveis por ela, tampouco podemos mudar o curso de seu destino. Só podemos orar e pedir que lhe aconteça o melhor.
Michele solicitou que todos se dessem as mãos. Ela rezou um pai-nosso e em seguida proferiu sentida prece em favor de Nicole. Os dias que se seguiram foram de tremenda angústia para Virgílio e Bruno. Eles prestaram queixa na delegacia. Um investigador amigo de Virgílio descobriu na polícia federal que Nicole havia embarcado para Paris, acompanhada de um jovem cujo nome era Celso Oliveira.
- Não conheço nenhum Celso - replicou Virgílio.
- Não poderia ser um namorado?
- Não - assegurou Bruno -, ela namorava o Artur. Não sei quem possa ser esse Celso.
- Passamos os nomes à polícia internacional. Assim que tivermos novidades, eu os aviso.
Isso ocorrera dez dias atrás. A polícia internacional não conseguira localizar Nicole. E nem conseguiria. Tão logo desembarcaram na capital francesa, Nicole e Artur foram para a casa de um conhecido dele. Chegando lá, começou a transformação de ambos. Nicole cortou os cabelos, pintou-os de loiro, pagou por nova documentação falsa. Artur também mudou o visual e, munido de documentos igualmente falsos, na semana seguinte pegaram vôo com destino a Amsterdã. A cidade era famosa pelos simpáticos canais que a cruzavam e desembocavam no rio Amstel e também porque o sexo e a droga, na Holanda, eram legalizados. Nicole e Artur podiam comprar droga, qualquer tipo de droga, sem problemas, sem recriminações. Havia até uma praça na cidade onde os usuários de drogas podiam cheirar fumar, injetar-se nas veias, sem ser incomodados. Com bastante dinheiro ainda na carteira, os jovens alugaram quarto num hotel modesto e consumiram todo tipo de droga. Para Nicole e Artur, aquilo, sim, era o paraíso. Ivana acordou e ainda sentia as pontadas na cabeça. Não acreditava que a filha podia ter chegado ao ponto de roubá-la.
- Além de drogada, é ladra - disse para si.
Ela levantou-se, acendeu seu cigarro e desceu para o desjejum. Encontrou Cininha na copa.
- O que faz aqui?
- O almoço vai ser servido logo mais.
- Almoço?
- Já passa da uma.
Ivana fez muxoxo. Gritou para uma das empregadas.
- Quero café. Preto e forte.
- Sim, senhora.
- Agora! - bramiu Ivana.
A empregada correu até a cozinha, apavorada.
- Tomara que ela tenha um treco - disse a empregada a si mesma entre ranger de dentes. - Só porque sou empregada, ela tem de me tratar assim? Grossa, estúpida!
Ivana sentou-se à mesa. Apagou o cigarro e acendeu outro.
- Tia, como consegue fumar tanto assim, logo que acorda?
- Problema meu.
- Deve ser horrível fumar de estômago vazio.
- O estômago é meu.
Ivana não acordara de bom humor, para variar. Cininha mudou o tom.
- Faz quase um mês, e nem sinal da Nicole.
- Falar dela é que me embrulha o estômago.
- Tio Virgílio está bastante preocupado.
- Dane-se ele e sua preocupação. Nicole não bota mais os pés nesta casa.
- Por quê? Não pode lhe dar uma segunda chance?
Ivana alterou-se.
- Segunda chance?
- Ela pode voltar e...
- Ela não vai voltar. Eu torço para que nunca mais volte.
- Ela é sua filha.
- Ela é drogada, ladra e inútil. Nicole pode ser tudo, menos boa filha. Isso não se faz a uma mãe.
- Ela se desesperou, deve ter tido uma recaída.
- Cale a boca, Cininha. Você nunca morou aqui, não sabe o que foi agüentar anos e anos de drogas, vergonha, internações. Você não sabe da missa a metade. Nicole sempre foi um estorvo em nossas vidas.
- Mesmo assim, é sua responsabilidade de mãe e...
Ivana cortou-a abruptamente:
- Ela é adulta, dona de si.
- Entretanto, ao invés de pensar em si, não poderia pensar um tiquinho só na sua filha? Não sente remorso?
Ivana irritou-se sobremaneira. Não gostava de Leonilda e, por tabela, não gostava da sobrinha. Não tinha obrigação de ficar ouvindo desaforos dentro de sua própria casa. A menina era petulante e desagradável. Estava na hora de dar um basta. Cininha percebeu a irritação estampada no rosto da tia e lembrou-se de que Bruno a alertara sobre a irritação da mãe. Mas ela não teve tempo de se proteger. Ivana saltou da mesa e jogou-se sobre seu corpo. Numa fúria incontrolável, Ivana bateu na menina com toda a força que tinha. Puxou-lhe os cabelos, arranhou-lhe as faces, deu-lhe tapas e murros. Cininha mal conseguiu se defender fora pega de surpresa. Os empregados ouviram os gritos e, apavorados, ligaram para Virgílio. Enquanto isso, duas empregadas fortes e robustas conseguiram afastar Ivana, que naquela altura estava sentada sobre o peito de Cininha, enchendo-lhe a cara de sopapos.
- Não agüento mais você! - vociferava. - Não agüento!
Cininha não conseguia articular som, estava cheia de dor e tomada de pavor. Ivana ajeitou os cabelos e acendeu novo cigarro.
- Eu não a quero mais aqui! Não quero!
Ela falou e subiu para seu quarto, como se nada tivesse acontecido. As empregadas levaram Cininha até a sala e deitaram-na no sofá.
- Ela está muito machucada - disse uma.
- O Dr. Virgílio ligou e disse que pediu ao Dr. Sidnei que viesse imediatamente para cá.
- Santo Deus! - exclamou outra. - Que ele chegue a tempo de salvá-la.
O almoço de domingo na casa de Íngrid era imperdível. Além dos filhos, vinham os namorados e amigos. Íngrid gostava dos jovens, sentia-se bem entre eles. Conversavam sobre todos os assuntos. Íngrid não sentia que diferença de idade fosse empecilho, muito ao contrário. Os jovens adoravam escutar suas histórias, ouvir falar de sua juventude. O único assunto que ela não conversava era seu casamento. Isso era assunto proibido na roda. Daniel e Sílvia, e também Inácio e Mariana, sempre almoçavam juntos no domingo. Letícia almoçava com Nair e depois saía com Rogério e Ismael. Às vezes, no fim da tarde, os casais se reuniam e ficavam no salão de jogos, conversando, cantando, jogando cartas, tocando violão. O almoço estava repleto de assuntos os mais variados.
- Descobriram o paradeiro de Nicole? - indagou Íngrid, interessada.
Daniel respondeu:
- Bruno me disse ontem que não há nenhuma pista. Nada.
- Será que ela... - Íngrid não quis concluir.
- Está morta? - perguntou Daniel.
Íngrid bateu três vezes sobre a mesa.
- Nem me fale uma coisa dessas.
- Michele garante que Nicole está viva. Temos nos reunido toda semana e fazemos oração. Emitimos vibrações positivas para ela.
- E o namorado? - indagou Sílvia.
- Isso é estranho - respondeu Daniel. - De acordo com o Bruno, a Nicole namorava tal de Artur. E o cara desapareceu, sumiu do mundo.
- Engraçado - interveio Mariana -, esse nome me parece familiar.
- Conhece algum Artur?
- Pode ser coincidência. Mas eu tinha um vizinho, mais ou menos da nossa idade, que se chamava Artur.
- Chamava? - perguntou Sílvia.
- Sim, porque esse Artur mudou-se faz anos. Ele era um perigo. Um terror. Cometia pequenos furtos, andava com uma turma de maconheiros lá do bairro e depois sumiu. Faz anos que não o vejo.
- Artur é um nome comum - tornou Íngrid. - Não deve ser a mesma pessoa.
- É talvez não seja.
- O que deu em seu namorado hoje, Mariana? - perguntou Íngrid, preocupada. - Inácio anda amuado, cabisbaixo...
Mariana havia notado o estado de prostração de Inácio. Ele estava sentado ao lado dela, mas não participara da conversa. Parecia alheio, distante. Mariana beliscou-o levemente.
- Ei, tem alguém aí?
- Hã?
- Está distante. Aconteceu alguma coisa?
Inácio ajeitou-se no sofá. Balançou a cabeça para os lados.
- São problemas lá na Centax.
- Algo desagradável? - perguntou Íngrid.
- Bastante, mãe.
- Pode nos dizer?
Ele exalou suspiro de contrariedade, mas precisava falar.
- Semana passada fui informado pelo nosso gerente financeiro de que uma quantia considerável de dinheiro foi sacada de uma das contas da Centax.
- Roubo? - perguntou Daniel.
- Aparentemente, sim. Percebemos tarde demais. E toda a culpa recaiu sobre minha secretária.
- Isabel? - perguntou Mariana, aturdida.
- Sim. Tive de demiti-la por justa causa. Ela era responsável pelos pagamentos do meu setor. E os saques em dinheiro no banco foram feitos com folhas do talão que
Isabel usava.
- Isabel? Não posso acreditar!
- Eu também não acreditei. Sempre confiei nela.
- Ela assumiu o desfalque?
- Não. Jurou que não sacou.
- E há como provar?
- O gerente do banco, antes de ser demitido, apontou Isabel como à responsável pelo saque. Diante das evidências...
- Que situação delicada!
- A quantia não é tão grande assim. O caixa pagou porque o gerente deu visto. Sabe como é, cheque ao portador, qualquer um pode sacar. Se não tivéssemos um bom controle financeiro, jamais descobriríamos.
- Isabel me parecia ser tão correta...
- A mim, também - disse Inácio, levantando-se. Não quero mais falar de assuntos desagradáveis e de trabalho. Ainda é domingo. Vamos mudar de assunto?
Mariana disse animada:
- Estou tão feliz com o noivado de Letícia e Rogério!
- Eles formam lindo casal - declarou Íngrid.
- Serão muito felizes - anuiu Sílvia.
- E nós bem que poderíamos ficar noivos também. Ainda estamos no namoro - protestou Daniel.
- Tenho pensado em casamento - comentou Inácio. - Mariana e eu queremos muito nos casar.
Daniel interveio:
- Sua irmã está me levando na conversa. Não quer assumir compromisso sério comigo.
Sílvia deu-lhe um tapinha nos braços:
- Mentiroso! Você não quer casar porque acha que não pode me oferecer o mesmo padrão de vida que tenho.
- E não posso mesmo, ainda - considerou Daniel.
- Isso não importa meu filho - ajuntou Íngrid. - Vocês são jovens e se amam. Você tem seu emprego e...
- Mas ganho pouco.
- Por enquanto. Logo vai ganhar mais. Podem começar uma vida mais comedida, mais simples. Sílvia não é dada a luxos. Você pode oferecer-lhe uma boa vida.
- Preciso comprar nosso apartamento. Depois, poderemos falar em casamento.
Sílvia fez beicinho.
- Vai demorar. Eu não quero namorar por tantos anos.
Íngrid levantou-se, saiu do salão e entrou em casa... Alguns minutos, depois voltou com um envelope nas mãos. Entregou-o a Daniel.
- O que é isso. Dona Íngrid?
- Seu passaporte para o casamento.
- Como?
Ela abaixou-se e pegou na mão dele.
- Daniel, você é homem muito bom. Ama sinceramente minha filha. E sei disso porque eu sei o que é amar. - Íngrid pigarreou, estava emocionada. - Sílvia veio a São Paulo completamente desiludida, triste e infeliz. Acreditava que nunca mais encontraria o amor. E quando você apareceu em sua vida tudo mudou.
Sílvia voltou a ser como era antes: alegre, extrovertida, sempre sorridente. Arrumou trabalho, sua vida só melhorou desde que o conheceu. Eu lhe sou muito grata e, se eu puder contribuir para que continuem juntos e felizes, gostaria de dar-lhes este presente. Daniel estava com os olhos marejados. Amava Sílvia com toda a intensidade do mundo. Pensava em casar-se, todavia queria comprar um imóvel. Não gostava de pagar aluguel; achava que estaria jogando dinheiro fora. Se quiser constituir família, precisava ter um lar, uma casa que fosse sua e de Sílvia. O rapaz abriu o envelope e mal conseguiu articular som. Abraçou-se a Íngrid e chorou, chorou muito. Íngrid comprara um apartamento perto da clínica onde realizavam serviço social, de dois quartos, nada sofisticado, porém gracioso e suficiente para que sua filha e seu futuro genro pudessem começar seu ninho de amor. Entre lágrimas, ele balbuciou:
- Meus pais morreram muito cedo, e eu e Michele batalhamos muito, lutamos sozinhos, tomamos conta um do outro. A vida que levamos nunca foi fácil. Vocês sabem - Daniel pigarreou - que, embora nosso país seja permeado pelo cruzamento de raças, sempre houve preconceito contra pessoas de pele negra. A escravidão acabou há anos, mas muitas pessoas na sociedade têm preconceito. Eu e minha irmã sofremos muito. Imaginem: ser preto e pobre no Brasil é passaporte para uma vida limitada e infeliz, sem perspectivas. Eu e minha irmã nunca acreditamos nisso. Foi muito difícil, mas estamos aqui, bem encaminhados na vida. Seguimos à risca os desejos de meus pais: que pudéssemos ter uma profissão, acreditar no nosso potencial, vencer o preconceito, constituir família.
- Por isso me orgulho de você - disse Íngrid. Minha filha não poderia ter escolhido melhor partido.
- Obrigado, Dona Íngrid. Muito obrigado.
Enquanto Daniel e Sílvia eram parabenizados, por Íngrid, Inácio e Mariana, dois espíritos envoltos muna luz cristalina sorriram felizes.
- Não falei meu velho? Nossos filhos sempre nos deram muito orgulho.
- E nos darão mais orgulho, quando vierem nossos netos.
Eles beijaram a fronte de Daniel e desapareceram no ar. Daniel, naquele momento, lembrou-se de seus pais, e mentalmente mandou-lhes um beijo de saudade, misturado a agradecimento.

CAPÍTULO 24

Virgílio andava de um lado para o outro da sala. O tempo passava, e nenhuma notícia de Nicole. Nada. Os papéis da separação haviam sido assinados e ele e Ivana estavam livres e desimpedidos. Ele sonhara com esse momento por vinte e cinco anos, mas não sentia vontade de comemorar. Estava triste. O sumiço da filha preocupava-o sobremaneira. E se ela tivesse sido raptada? E se ela tivesse sido morta? Onde ela estava? Eram tantas perguntas martelando sua cabeça, que nas últimas semanas Virgílio dormia à base de tranqüilizantes. O telefone tocou e ele correu a atender na esperança de ser sua filha ou de receber notícias dela.
- Alô!
- Oi, Virgílio.
- Nair, é você?
- Sim.
Ele ameaçou chorar:
- Estou desesperado.
- Eu sei. Letícia convidou Bruno e Michele, e eles vieram lanchar outro dia aqui em casa. Conversei bastante com Bruno, e ele estava desolado. Falou-me que você está muito mal.
- Estou. E você ligou para mim? Aqui em casa? Isso me conforta.
- Bruno me informou que Ivana, depois da separação, saiu de casa.
- É verdade. Ela assinou os papéis num dia e, assim que os advogados depositaram gorda quantia de dinheiro em sua conta-corrente, ela se mudou. Foi morar num flat.
- Por isso arrisquei ligar. Você deve estar muito só.
- Estou. Não tenho notícias de Nicole, e isso me consome a cada dia que passa. É horrível. Não sei o que fazer.
- Que tal sair um pouco?
- Não. O telefone pode tocar.
- Você não pode ficar preso em casa.
- Enquanto eu não receber notícias de minha filha, não arredo pé.
Nair foi firme:
- Deixe de ser infantil, homem!
- É que...
Ela o interrompeu de supetão:
- E sua sobrinha? Tem notícias dela?
- Cininha ainda está internada na clínica do Sidnei. Deve receber alta por esses dias. Fraturou uma costela, levou alguns pontos no supercílio. Mas se recupera e passa bem.
- Deveria visitá-la.
- Eu ligo para lá todos os dias.
- Vamos sair. Você precisa respirar ar puro. E sua sobrinha só tem a você.
- Mas...
- Sem, mas. Vou tomar um táxi e irei até sua casa. Daí seguiremos até a clínica. Quero conhecer Cininha. Sua filha está nas mãos de Deus, mas sua sobrinha está sozinha no mundo e precisa de você.
Virgílio concordou meio a contragosto.
- Está certo. Eu a espero.
A surra que Ivana dera em Cininha machucou-a bastante. A jovem fraturou uma costela, teve escoriações pelo corpo todo, levou pontos nos lábios e no supercílio. No dia do incidente, Sidnei foi rápido e chegou a tempo de socorrê-la A menina perdeu a consciência e ele a levou para sua clínica. Fazia pouco mais de um mês que Cininha estava internada. Recebia visitas de Bruno e Michele, assim como de Letícia, Rogério, Inácio, Daniel e Sílvia. Toda a trupe ia ao hospital, em dias alternados, fazer-lhe um pouco de companhia. Primeiro Bruno e Michele. Depois, sabendo do ocorrido, os amigos apiedaram-se dela. Afinal, Cininha mal chegara a São Paulo, e nem tivera tempo de travar amizades. E ainda apanhara feio da própria tia. Um absurdo. Letícia e Sílvia iam com freqüência visitá-la. Michele ia todos os dias. E Mariana cuidava dela com zelo. Afinal, a moça, após concluir o curso de enfermagem, fora efetivada e fazia parte do corpo de funcionários da clínica. Mariana tornou-se uma das mais competentes e requisitadas enfermeiras da clínica de Sidnei. Os pacientes a adoravam. Mariana afeiçoou-se a Cininha. Foi simpatia gratuita e imediata entre ambas. Travaram amizade, e logo Letícia, Sílvia e Michele formaram grupo unido, ao qual os namorados deram a alcunha de Clube da Luluzinha. Entretanto, havia alguém que se afeiçoara a Cininha de maneira diferente, digamos assim. Sidnei a princípio condoeu-se com a brutalidade com que ela fora ferida. Pediu que Cininha desse queixa na delegacia, mas ela não queria saber de confusões com Ivana.
- Melhor deixar para lá - rebateu ela.
Sidnei impressionou-se com a candura da moça, com sua alegria, seu humor contagiante. Conforme Cininha se recuperava, mais voltava ao seu estado de espírito espevitado. Isso mexeu com Sidnei e, pouco antes de ela receber alta, ele estava completamente apaixonado por ela. Era algo novo, inusitado. Sidnei era homem de mais de cinqüenta anos. Começava a acreditar que não iria se envolver a sério com mulher alguma. Saía e se divertia. As mais velhas não lhe atraíam, e, as mais novas, ou eram fúteis, ou queriam se aproximar por conta de seu dinheiro. Cininha era diferente. Articulada, conversava sobre qualquer assunto, era animada, inteligente. E, para finalizar, era muito bonita. Tinha um corpinho que mexia com os homens. Foi assim que Sidnei se descobriu apaixonado. Quando um funcionário da clínica fez comentário acerca dos atributos físicos de Cininha, Sidnei teve ciúmes, quase demitiu o rapaz e ficou bastante irritado. Consultou seu coração e descobriu estar apaixonado. Vislumbrou a chance de ser feliz. Nair chegou à casa de Virgílio e de lá o motorista seguiu para a clínica de Sidnei. Chegando ao local, o amigo os recepcionou.
- Como ela está?
- Muito bem. Recuperação fantástica. Ela é jovem, forte, saudável. E é tratada como uma princesa. Todos na clínica estão de amores por ela.
Virgílio notou os olhos brilhantes do amigo. Sorriu pela primeira vez em muitos dias.
- Você está diferente.
- Eu? - indagou Sidnei, surpreso. - Diferente como?
- Você sabe do que estou falando.
Sidnei deu uma risadinha. Virgílio apresentou:
- Esta é Nair.
Sidnei arqueou o sobrolho.
- Você é a Nair! Fazia tempos que eu estava querendo conhecê-la. Virgílio me fala muito de você. Mas, espere um pouco... Ele a olhou de cima a baixo. – Você não tem idade para ser mãe de Mariana. É muito jovem.
- Obrigada.
Virgílio interveio:
- Sem galanteios. Ela não pertence à sua faixa de caça.
Sidnei riu alto.
- Pode ficar sossegado, só estava tecendo um elogio.
Nair mudara muito sua aparência e jeito de ser nos últimos tempos. Mais forte e mais dona de si, reconquistara a dignidade com o trabalho. As costuras aumentaram sobremodo, e ela não dava mais conta do serviço sozinha. Teve de contratar uma garota da vizinhança para ajudá-la. Nair estava fazendo bom dinheiro. Com isso, passou a se cuidar mais. Depois de cair em depressão, por conta da morte de Otávio, não voltara a ganhar peso. O corpo estava em ótima forma. Passara a cortar os cabelos à moda e tingi-los numa tonalidade castanho-clara, que tornava seus olhos mais vivos e expressivos. A maquiagem e roupas da moda e de bom caimento enalteciam sua beleza e elegância. Ela merecia o elogio de Sidnei. Nair estava muito bonita, e muito bem consigo mesma. Sidnei conduziu-os até o quarto. Ele as apresentou e Cininha e Nair se deram muito bem. Conversaram bastante, trocaram figurinhas, e Nair descobriu que Cininha havia feito curso de corte e costura em Vitória.
- Você tem trabalho?
Cininha riu.
- Quando pensava em procurar trabalho, levei esta surra.
- Aceita proposta?
- Qual seria?
- Trabalhar comigo. Eu tenho pequena oficina nos fundos da minha casa. Tudo muito simples. Mas dá um bom dinheiro.
- Oh, adoraria! - exclamou a jovem, animada.
- Você também poderia morar lá em casa.
- Isso não! - protestou Virgílio.
As duas olharam-no de esguelha. Virgílio não sabia o que responder. Talvez fosse melhor para Cininha. Ele não tinha cabeça para nada, e talvez Nair tivesse razão. E se Ivana voltasse a casa e encontrasse Cininha? Definitivamente, essa idéia não era nada agradável. E ele ainda não tinha condições de propor compromisso a Nair. Pensou que iria assinar os papéis da separação num dia e viver com ela no dia seguinte. Mas a ausência de notícias da filha deixava-o aturdido. Cininha gostou da idéia.
- Se não for atrapalhar, adoraria. Não tenho para onde ir.
- Você não tem parentes, ou mesmo residência em Vitória? - indagou Nair.
- Não. Os parentes por lado de papai sempre foram distantes.
- E você não tem casa?
- Não. Quer dizer, eu tinha, mas precisei vendê-la para cus-tear o tratamento de minha mãe. Nosso sobrado era pequeno, não valia muita coisa. Mamãe sofreu muito no final de sua vida, e eu não quis que ela se tratasse em hospital público.
- Você se desfez da casa para tentar salvar sua mãe? - perguntou Nair, emocionada.
- Não. Eu e mamãe sabíamos que seu fim estava próximo. Mas mamãe, quando adoeceu, exigiu dignidade. E morreu com dignidade, num quarto de hospital particular. Como desejava.
- Virgílio, essa menina vale ouro. Eu a quero como filha.
Cininha riu.
- Obrigada, Dona Nair.
Sidnei entrou no quarto.
- Você receberá alta depois de amanhã.
Cininha encarou-o nos olhos.
- Que pena!
Ele respondeu do mesmo jeito, encarando-a com amor.
- Que pena!
Teresa estava feliz da vida. Conseguira sacar uma boa quantia no banco. Fez excelente falsificação no cheque e, depois de uma noitada boa e uma pequena quantia em dinheiro dada ao gerente do banco responsável pela conta da Centax, ela viu que não teria problemas em descontar os dois cheques. Sacado o dinheiro no banco, ela comprou uma passagem só de ida para Miami. O restante, equivalente a pouco mais de cinco mil dólares, seria o suficiente para recomeçar sua vida longe de todos seus desafetos e, principalmente, longe de Tonhão. Teresa comprou um lindo vestido e nem fez as malas. Pegou sua bolsa Louis Vuitton, os dólares, a passagem - de primeira classe, naturalmente -, o passaporte e os óculos escuros. Rumou para o aeroporto. Precisava sair logo do País. Quando estivesse em Miami, eles descobririam o desfalque no banco. Provavelmente o gerente seria demitido por ter avalizado e autorizado o saque, e Isabel levaria a culpa. E pagou mesmo. Isabel e o gerente não se bicavam muito. Na hora da acareação na delegacia, um trocou desaforo com o outro, não se chegou a um único culpado e ambos foram demitidos de seus respectivos empregos. Teresa não se importava. Queria era salvar sua pele, e os outros que se danassem. Pensando na desgraça alheia, ela apresentou o passaporte e a passagem no guichê da companhia aérea. Tudo acertado e, em poucas horas, Teresa estava confortavelmente instalada na primeira classe de vôo, sem escala, para Miami. Seriam oito horas de sonhos e regalias. Era a primeira vez que viajava de primeira classe. Teresa passou a mão pelo assento - bem maior que o da classe econômica -, sentiu o cheiro de riqueza no ar. A aeromoça serviu-lhe champanhe em seguida. Ela pegou a taça e, ao aproximá-la do rosto, a espuma fez-lhe cócegas no nariz. Teresa sorriu. Um cavalheiro ao seu lado ofereceu-lhe um lenço.
- Obrigada.
- Não há de quê.
- Adoro viajar a Miami de primeira classe. Não é um luxo para poucos?
O cavalheiro sorriu.
- Para bem poucos. - Ele fez uma pausa e perguntou: - Escute, você viaja sozinha?
- Sim.
- Alguém a espera em Miami?
- Não. Estou só.
- Não acredito!
- Por que o espantei?
- Você tem alguém? Namorado, marido?
- Não. Sou solteira. - Ela piscou para o homem. - Livre e desimpedida.
- Não pode ser verdade!
- Pode acreditar.
- Uma mulher linda, como você, não pode estar sozinha. Fizeram-lhe feitiço, só pode ser.
Teresa bebericou seu champanhe. Passou maliciosamente a língua pelos lábios.
- Os homens são tolos e fúteis. - Ela fez voz infantil: - Tive uma decepção amorosa e por isso estou viajando. Quero esquecer e espairecer.
- Oh, pobrezinha... Se eu puder confortá-la.
Ela estendeu a mão:
- Prazer. Teresa Aguilar.
- O prazer é todo meu. Guilherme Moura.
- O que você faz?
- Trabalho com gado.
- Gado?
- É. Tenho fazendas espalhadas por Mato Grosso e crio gado. Vou a Miami para assinar contratos de fornecimento de carne.
Teresa arregalou os olhos. Guilherme era homem bonito. Maduro, quarenta e cinco anos, os cabelos curtos e levemente prateados lhe conferiam aspecto interessante.
Tinha o rosto quadrado, másculo, bem viril. Algumas perfurações nas faces indicavam que ele tivera acne ou muitas espinhas na adolescência. Essas marcas aumentavam mais seu charme, conferiam-lhe ar meio cafajeste. Era alto, forte, e tinha uma mão bem grande.
- Você é casado?
- Divorciado.
- Tem filhos?
- Sou estéril. Meus filhos são os meus bois.
Teresa fez beicinho:
- Que bonitinho Gui.
O homem arregalou os olhos:
- Como disse?
- Ah, desculpe. É que lhe chamei por um apelido, um gesto carinhoso. Desculpe, sou extremamente romântica - mentiu.
Ele envaideceu-se.
- Pode me chamar do que quiser. Nunca ninguém me chamou com tanto carinho e tanta doçura. Pode me chamar de Gui.
Ela encostou-se nele, e foi essa melação a viagem toda. Gui para cá, Gui para lá, beijinhos, abraços e amasso. Só não chegaram a ter mais intimidade por respeito aos passageiros ao redor. Quando chegaram a Miami, Guilherme convidou Teresa para hospedar-se em sua casa. Era uma mansão em Fort Lauderdale, bairro nobre da cidade. Teresa não acreditou. Parecia estar vivendo um sonho. E estava mesmo.

CAPÍTULO 25

Após longos e infindáveis seis meses, Nicole deu notícias. Mandou uma carta ao pai e uma foto. Dizia estar bem e que estava aproveitando bastante a vida na Europa.
Logo estaria de volta, porquanto os dólares estavam acabando. A carta fora postada de Paris. Virgílio telefonou para um amigo investigador ligado à Interpol - Organização Internacional de Polícia Criminal. Com sede em Lyon, na França, a Interpol é uma organização internacional que coopera com polícias de diferentes países. Entretanto, ela não se envolve na investigação de crimes que não envolvam países-membros ou crimes políticos, religiosos e raciais. Trata-se de uma central de informações para que as polícias de todo o mundo possam trabalhar integradas no combate ao crime internacional, ao tráfico de drogas e aos contrabandos em geral.
O amigo ficou de investigar e dar-lhe notícias. Tudo em vão. Eles vasculharam e nenhuma pista do paradeiro de Nicole. Era muito estranho. E era mesmo, porquanto ela escrevera a carta em Amsterdã e mandara ser postada na França por uma conhecida sua. Na verdade, Nicole estava quase sem dinheiro, e ela já devia a alguns dealers - nome dado aos fornecedores de drogas - e pretendia voltar para casa. Faria novo tratamento de desintoxicação e fugiria de novo para a Europa, com mais dinheiro. Era assim que ela traçava seu futuro. Todavia, Nicole e Artur estavam tendo caso tórrido de amor com a heroína. Artur estava completamente dependente da droga. O corpo estava perfurado, todo arroxeado. Os calafrios eram constantes. Nem ele nem Nicole conseguiam ter controle sobre seus estômagos e intestinos. As dores abdominais tornaram-se cada vez mais insuportáveis. O quarto em que viviam se transformara num lugar fétido e pútrido, extremamente malcheiroso, por conta das diarréias e vômitos constantes. Os efeitos colaterais neles eram cada vez mais gritantes. Artur apresentava delírios constantes e suas válvulas cardíacas estavam inflamando cada vez mais. Nicole começava a apresentar quadro de cegueira agudo. Ambos estavam prestes a entrar em coma. Everaldo entrou em desespero:
- Eles vão desencarnar Consuelo!
- Fizemos todo o possível, você bem sabe. Mas eles não captaram nossas idéias, não quiseram nos ouvir. Eles têm livre-arbítrio. Nicole e Artur são responsáveis por tudo que lhes acontece. Devemos orar bastante para que, após o desencarne, tenhamos permissão de resgatar seus espíritos.
- Preciso fazer com que ela melhore.
- Impossível. O corpo físico de ambos está completamente debilitado, não há como salvá-los. Nicole começa a ficar cega e Artur vai entrar em coma, não vai demorar muito.
- O que podemos fazer?
- Orar, meu amigo.
- Eu falhei, Consuelo. Como guia, eu fui um fracasso.
Ela o abraçou carinhosamente.
- Você fez o melhor que pôde. Acompanhou seus passos, sussurrou-lhes palavras de estímulo e força. Nicole captou bem suas idéias quando estava em tratamento. Foi às reuniões dos Narcóticos Anônimos porque você lhe sugeriu. Ela escolheu outro caminho.
- Por que tanta dor?
- O sofrimento às vezes se faz necessário. Ele nos faz crescer e nos tornar mais fortes. Esta encarnação tem sido muito proveitosa para Nicole. Nada está perdido. Tudo é experiência e aprendizado. Afinal, temos muitas vidas pela frente.
- Você tem razão - tornou ele, triste.
- Poderia dar um beijo nela?
- Mande-o daqui. Nicole e Artur estão rodeados de espíritos que sugam suas energias para sentir o prazer da droga, como quando estavam encarnados.
- Mas são um bando de abutres. Assim vão matá-los.
- Não - finalizou Consuelo, entristecida. - Eles já estão se matando.
Virgílio tentou esconder de si mesmo a verdade. No fundo sentia que sua filha não estava bem. Algo lhe dizia claramente isso. Entretanto, apegou-se à foto e à cartinha. Embarcou na ilusão a fim de continuar a viver, levar sua vida e ter esperança de que logo Nicole estivesse de volta. Ele consultou o relógio. "Nair me espera para o almoço", pensou. Entrou no carro e foi para a casa dela. Lá chegando, encontrou Salete quase à porta.
- O senhor vem muito aqui.
- Sou amigo da Nair.
- Sei bem que tipo de amigo... - a desdenhou.
- A senhora não tem mais o que fazer?
- Perdão?
- Não tem casa para cuidar, marido para preparar almoço, filho para educar?
Salete ia responder, mas ficou sem ação. Virgílio falou e entrou na casa de Nair sem lhe dar mais atenção. Fora curto e grosso. Ela ficou parada lá fora, encostada na mureta. Ela não tinha ninguém. Salete era uma mulher triste e solitária. Ainda era-lhe duro aceitar a morte do marido. Quer dizer, a morte ela aceitara, mas a maneira como ele morrera - AIDS - era demais para seu orgulho. Salete morria de vergonha só de pensar. Sorte sua que alguns vizinhos que souberam da doença do falecido haviam mudado faz tempo e os outros que ficaram não mais tocavam no assunto. A cabeça de Salete era preconceituosa; a dos vizinhos, não. E havia seu filho. Seu único filho. Já fazia muito tempo que não lhe dava notícias. Ela suspirou e foi se arrastando até sua casa.
- Ah, Artur! A mamãe tem tanta saudade de você... Espero que esteja bem e que volte logo para mim.
Virgílio entrou e sentiu o cheiro gostoso de comida fresquinha, feita na hora.
- Hum, que delícia! - murmurou ele.
Nair enxugou a mão no avental e deu-lhe um beijo.
- Está com a cara boa. O que foi?
- Novidades.
Antes, porém, ele considerou:
- Muito intrometida essa sua vizinha da frente, não?
Nair riu.
- Qual delas?
- Não sei. Uma fortona, que está sempre na rua, observando o mundo todo.
- É a Salete - confirmou Nair. - Antes eu implicava com ela. Achava um absurdo ela querer tomar conta da vida de todos nós aqui da redondeza. Salete não passa de mulher carente, solitária, sem brilho, sem vida.
- Ela não tem família?
- Ela perdeu o marido há alguns anos e o filho trabalha no Pantanal, se não me engano. Não voltou mais.
- Ela tem outros filhos?
- Não. Só tem o Artur.
- Artur?
- Sim. Você nem imagina - disparou Nair. O menino deu trabalho para a pobre da Salete. Cresceu rodeado de cuidados. Salete não desgrudava do pé dele, ficava em cima, controlando seus passos, seus amigos, sua vida. Quando o marido morreu, foi uma tortura. O menino tornou-se adolescente rebelde, passou a praticar pequenos furtos na vizinhança e se envolveu com tóxico.
Virgílio fez sinal com as mãos.
- Nem me fale em tóxico. Já basta minha cota de sofrimento com Nicole. É, estranha coincidência, Nicole tinha um namorado chamado Artur, e ele era viciado também. Você nunca mais o viu?
- Quem?
- Esse menino, Artur.
- Não - respondeu Nair. - Quando completou dezoito anos ele prestou concurso e foi trabalhar para um jornal, tirar umas fotos. Foi o que Salete me disse.
- Então não é o mesmo que Nicole namorou. O namorado de minha filha sempre morou aqui.
- Definitivamente não é o mesmo.
- Recebi carta de Nicole.
Nair exultou.
- Mesmo?
- Sim.
- E como ela está?
- Aparentemente está bem. Mandou até uma foto. Veja como ela está ótima.
Virgílio pôs a mão por dentro do paletó e tirou o envelope. Entregou-o a Nair. Ela viu a foto e considerou:
- Como ela está bonita! Está bem, alegre.
Cininha, no quarto ao lado, terminou um bordado e fez pausa para o almoço. Entrou na sala e cumprimentou o tio:
- Que bom vê-lo! Estava com saudade!
Ele a abraçou e a beijou no rosto.
- Eu também estava com saudade. Como está?
- Cada vez melhor.
Cininha estava morando com Nair, e a experiência estava sendo bem agradável. Cininha era falante, bem-humorada. Em pouco tempo havia se curado da surra e abraçou o serviço de corte e costura. Ia até a Rua 25 de Março, comprava aviamentos, fazia moldes. Estava se realizando no trabalho. O entusiasmo de Cininha contagiou a freguesia, e o negócio foi prosperando cada vez mais.
Nair interveio na conversa:
- Ela está cada vez melhor. Recebe visitas constantes do médico.
Virgílio brincou.
- Sidnei não larga do seu pé, hein, menina?
- Não larga mesmo. Estou feliz.
- Ele tem idade para ser seu pai.
Cininha pôs a mão na cintura.
- Que horror! Sidnei tem idade para ser meu companheiro, isso sim.
- Não adianta - ponderou Nair. - Cininha está apaixonada pelo Sidnei. Creio que nada possamos fazer para impedir que isso termine em casamento.
- Vocês estão se vendo com freqüência?
- Sim.
Virgílio bateu a mão na cabeça:
- Fiquei tanto tempo preocupado com Nicole! E nem vi que você estava sendo assediada por um marmanjão.
- Tio! - protestou Cininha.
Nair ajuntou:
- Virgílio está feliz porque recebeu notícias de Nicole.
- Recebeu?
- Sim - respondeu ele, satisfeito. - Uma carta e uma foto.
Antes de Cininha pedir, Virgílio pegou o envelope sobre a mesa e entregou-o à sobrinha. Cininha leu a carta e em seguida viu a foto.
- Viu como ela está bem? - indagou Virgílio. - Você dizendo que ela não anda bem, que precisava de oração, etc. E Nicole anda sorridente e feliz, passeando pela Europa.
Nair declarou:
- Com trinta mil dólares, até eu passaria uma temporada na Europa.
- Isso é passado. Dinheiro eu recupero. Se esse valor fez minha filha feliz e a afastou das drogas, ainda foi pouco.
- Mesmo assim, pegar uma quantia de dinheiro dessas e sumir?
- Quando Nicole voltar conversaremos. Ela precisa de meu carinho e meu amor, e não de punição.
Cininha empalideceu. Ao olhar aquela foto, teve certeza de que os sonhos que tinha eram encontros com Nicole. Seu espírito se desprendia do corpo físico e ela ia ao encontro da prima, guiada por Everaldo e Consuelo. Juntos, eles ministravam um passe, tentavam revigorar o sistema físico de Nicole, em irreversível estado de deterioração. O dela e o de Artur. Sabia que eles estavam muito mal. Cininha ficou inspecionando a foto, atenta a todos os detalhes. Examinando a marca d'água impressa no verso da foto, ela notou algo esquisito. Olhou, olhou.
- Tio.
- Sim?
- Reparou bem na foto?
- Sim. Veja como Nicole está bem.
- Nesta foto - enfatizou - ela está muito bem.
- Então não temos com que nos preocupar e você - encostou o dedos na cabeça de Cininha - pode deixar de dizer que anda preocupada com sua prima. Está tudo bem.
Cininha meneou a cabeça para os lados, desolada.
- Desculpe tio, mas esta foto foi tirada há mais de um ano.
- Não. Você é que está enganada. Esta foto estava anexada à carta que Nicole enviou para mim. Foi colocada no correio semana passada.
Cininha apontou para trás da foto. Era quase imperceptível, mas estava lá. A data indicava que a foto fora tirada há mais de um ano. Teresa viveu vida de rainha em Miami. Por três meses morou no luxo, comprou vestidos de grifes famosas, perfumes, jóias. Guilherme não media esforços para agradá-la. Ela parecia viver no sétimo céu. Se fosse sonho, não queria acordar, de jeito nenhum. Guilherme tencionava oficializar a união e queria fazer discreta cerimônia em outro país. Ela implicava:
- Não, Gui, vamos nos casar aqui em Miami. Adoro a Flórida. Você pode convidar seus amigos, e faremos uma grande festa.
- Não. Quero algo só para você e para mim. Só nós dois. Quero que você seja a minha rainha. Eu sou seu súdito e quero agradá-la para todo o sempre.
Teresa adorava ouvir os galanteios do noivo.
- Ai, Gui, você não existe! É o homem que eu pedi a Deus. Confesso que nunca sonhei encontrar a felicidade neste mundo. E você me mostra que é possível ser feliz. Eu o amo.
Beijou-o longamente nos lábios.
- Eu tenho uma surpresa para você - disse ele.
- O que é?
- Adivinhe...
Teresa fez beicinho:
- Não faço idéia, Gui.
Guilherme tirou uma chave do bolso da calça e entregou-a a Teresa.
- Quando voltarmos de viagem, você terá seu próprio carro.
- Você comprou?
- Mustang conversível e vermelho, como você queria. Está na garagem.
Ela mal podia acreditar. Saiu dando pulinhos e gritinhos de felicidade pela casa até chegar à garagem. Não pôde acreditar no que viu. O carro estava envolto por um enorme plástico transparente enlaçado por gigantesca fita vermelha.
- Que este carro lhe traga muita sorte.
- Gui, você não existe.
Ela entregou-se a ele ali mesmo na garagem. Amaram-se até seus corpos se cansarem. Depois do ato, Guilherme acendeu um cigarro e, entre uma baforada e outra, tornou:
- Vamos para a Indonésia. Quero fazer uma cerimônia completamente diferente.
- Ai, que lindo! Sempre quis conhecer a Indonésia e suas ilhas.
Guilherme fechou os olhos e prosseguiu, extasiado:
- Já fiz o roteiro. Primeiro desceremos na capital, Jacarta. Depois seguiremos viagem pelas Ilhas Indonésias. Iremos à Ilha de Sulawesi, Malang, Java e, para finalizar. Bali.
Teresa gemeu de prazer.
- Bali. Veremos um dos mais espetaculares pores-do-sol do mundo, restaurantes, boates...
Guilherme apertou-a contra o peito.
- Você vai adorar essa viagem, minha rainha, tenho certeza. E - prosseguiu, cheio de planos - quando voltarmos vou comprar outra casa.
- Jura?
- E você poderá decorá-la como quiser, a seu gosto.
Ela o abraçou, emocionada. Teresa se sentia a mulher mais feliz e mais esperta do mundo. Tentara ludibriar Inácio e quase conseguira. Mas Guilherme valia mil vezes mais que Inácio. E tudo que ela fizera valeu à pena. Cometera pequeno desfalque na conta da Centax, causara a demissão de Isabel e do gerente do banco, mas sua consciência de nada a acusava. A frieza de Teresa era algo para ser estudado pelos mais renomados psiquiatras. Era linda por fora, mas, por dentro, era dura e bruta como uma rocha. Teresa nunca se importara com nada ou ninguém. "Gente tonta existe no mundo para se aproveitar delas. Isabel sempre fora idiota e insegura, e aquele gerente de banco era um sedutor de quinta categoria." Teresa não sentia remorso pelo mal que causara. Isabel custou a arrumar um emprego, porquanto a situação do País estava em polvorosa. O presidente da República havia acabado de sofrer impeachment. Isabel penou, penou e por fim conseguiu uma vaga de vendedora numa loja de roupas femininas num shopping. Por incrível que pareça, sempre existia vaga naquela loja. Não havia vendedora que agüentasse a estupidez e azedume da gerente. Por coincidência, era a mesma loja em que Letícia arrumara seu primeiro emprego. Isabel engolia seco as broncas da gerente, que continuava grossa e estúpida, cada vez mais insuportável. O gerente do banco amargou muito. Perdeu o cargo, o carro que o banco lhe bancava, os salários extras. A esposa, não agüentando mais, separou-se, foi embora com os filhos, e ele, sem rumo e desesperado, atirou-se à bebida. Teresa não sabia disso, nem queria saber. O único incomodo, a única perturbação que assolava seu íntimo era cair nas garras de Tonhão. Isso nunca poderia acontecer. Jamais. Guilherme perguntou:
- Está pensativa. O que foi?
- Nada, Gui, nada.
- Não quer viajar para a Indonésia. '' Se não quiser, não tem problema, vamos a outro lugar.
- Não! De forma alguma. Você se desdobra por mim, faz todos os meus caprichos. Eu tenho de ceder um pouco. Se você quer se casar comigo em Jacarta ou Bali, não vou me opor.
Ele a beijou nos lábios.
- Pois bem, rainha, prepare-se. Viajaremos no fim do mês.
- Fim do mês?
- É. Pode comprar novos vestidos. Eu quero que você cause furor naquelas ilhas todas.
- Você não existe, Gui.
Ivana adorou a idéia de morar em um flat. Era cômodo, ela tinha tudo à mão, serviços os mais diversos. O quarto estava sempre arrumado, a comida era servida na hora que bem entendesse, tinha bebida, cigarro, tudo. Não trocaria essa vida por nada deste mundo. Ela terminou seu banho e decidiu: agora que estava vivendo sua vida de solteira, iria flertar abertamente com Sidnei, para valer.
- Sou mulher, estou viva. E creio que Sidnei ainda gosta de mim.
Ivana produziu-se de maneira espalhafatosa, como de costume. Muito ouro, muitas jóias e penduricalhos pelo corpo, vestido de cor berrante e, para completar, um perfume extremamente adocicado. Ela desceu e pediu para apanhar seu carro. O rapaz da recepção cutucou o outro por baixo da mesa:
- Olha lá a perua do oitavo andar.
- Essa dona é exagerada, não?
Os dois riram. Ivana mal os notou. Apanhou seu carro, entrou, acelerou e ganhou a rua. Precisava falar com Sidnei. Rumou para sua clínica. Ao chegar, pediu para ser atendida.
- Lamento, mas o Dr. Sidnei está em consulta.
- Diga que Ivana Gama está na recepção.
Sidnei veio em seguida. Cumprimentou-a e deu uma tossidinha. O perfume o estava sufocando.
- Como vai, Ivana?
- Muito bem.
- Algo grave?
- Não. Por quê?
- Fui tirado do meio de uma consulta. A minha secretária insistiu e achei que fosse alguma notícia de Nicole.
Ivana fez cara de desdém. Entretanto, precisava ocultar a contrariedade. Precisava mostrar-se cordata.
- Não trago notícias de minha filha. - Ela baixou o tom de voz: - Preciso falar com você, em particular.
- Está certo. Aguarde um momento, eu já vou terminar.
Ivana sentou-se numa cadeira e pegou uma revista. Acendeu um cigarro e foi alertada pela recepcionista:
- Aqui dentro não é permitido fumar, senhora.
Ivana teve vontade de apagar o cigarro no braço da menina. Deu uma longa tragada e apagou o cigarro, rangendo os dentes de ódio. Logo Sidnei chamou-a até sua sala. Ele encostou a porta e foi até sua mesa. Sentou-se. Ivana sentou-se à sua frente.
- Em que posso ajudá-la?
- Bom, eu...
- Não me vá dizer que precisa dos meus serviços! Eu sou geriatra, e creio que ainda não é tempo de você se tratar. A não ser que tenha me procurado para começarmos um tratamento de prevenção.
Ivana segurou-se na cadeira para não avançar sobre ele. Ela estava toda arrumada, perfumada, produzida, e ele vinha falar em tratamento geriátrico? Era o cúmulo. Ela não era velha! Como ele ousava?
- Não vim para tratamento nenhum. Vim por causa de nós.
- Nós?
- Sim, nós.
Sidnei não entendeu de pronto.
- Você quer falar algo sobre o acidente com sua sobrinha, meses atrás?
- Não, não vim aqui para falar disso. Vim falar de mim e de você. De nós.
Sidnei sentiu o sangue gelar. Ivana olhava-o de maneira lânguida, passava a língua pelos lábios, mantinha a boca entreaberta, como se estivesse louca de desejo.
- Ivana, nós nos conhecemos há muitos anos. Sou amigo de Virgílio e...
Ela o interrompeu:
- E estamos separados. Sou uma mulher livre. E sei que você me deseja.
Ele a encarou de maneira apoplética.
- De onde tirou essa conclusão?
- Você me amava. Eu o deixei para me casar com Virgílio. Mas fui uma tola. Confesso estar arrependida. Podemos recomeçar.
- Faz parte do passado. Eu gostei de você, mas depois os anos foram passando, e isso ficou lá atrás. Não tem mais nada a ver. Garanto.
- Tolinho!
Ela se levantou e avançou sobre a mesa, encostando seu rosto no dele. Os rostos estavam tão próximos que Sidnei podia sentir uma mistura estranha de perfume com cigarro. Ele afastou-se e saltou da cadeira.
- Ivana, por favor.
- O que foi? Não vai dizer que não me quer?
- Não é isso, é que... bem...
- Então o que é gatão?
- Estou comprometido.
- Bobagem. Eu só preciso de carinho, mais nada.
- Por favor. Eu tenho namorada e vou me casar. Eu sou-lhe fiel.
Ivana estancou o passo.
- Mentiroso! Você nunca foi dado a namoro.
- Mudei. Estou pensando em me casar. Encontrei a mulher de minha vida.
- Não pode ser. Eu fui sua um dia.
- Há muitos anos. Acabou.
- Você está me rejeitando?
- Por favor, não insista.
Ivana deu um grito tão alto que a clínica toda entrou em grande rebuliço. Sidnei acuou-se num canto do consultório, enquanto Ivana quebrava tudo que via pela frente. Saiu de lá esbravejando e ruminando. A secretária de Sidnei pegou o telefone.
- Vou ligar para a polícia.
- Não será necessário - ponderou Sidnei.
- Ela é louca, doutor. Não se pode deixar uma louca dessas à solta pelas ruas.
- Deixe-a ir embora em paz. Caso apareça novamente, aí então você liga para a polícia.
A secretária pousou o fone no gancho e meneou a cabeça para os lados. Sidnei voltou para sua sala, pensando: "Essa mulher é uma doida varrida. Precisa ser internada num sanatório." Ivana saiu da clínica completamente fora de si. Se alguém aparecesse em sua frente, ela era capaz de tirar a vida do pobre coitado. Ela foi até seu carro, deu partida e saiu queimando os pneus. Precisava de Otília, a qualquer custo. Meia hora depois ela chegou à casa da amiga. Largou o carro de qualquer jeito e foi entrando, passos rápidos e nervosos. Uma das empregadas de Otília, que conhecia bem o gênio de Ivana, balbuciou:
- Dona Otília está no quarto.
Ivana nem respondeu. Com o cenho fechado, subiu e irrompeu no quarto da amiga.
- Que susto! - exclamou Otília. - Você está com aspecto horrível. O que aconteceu?
Ivana acendeu um cigarro. Tragou nervosamente e deu suas baforadas.
- Estive na clínica do Sidnei e ele me rejeitou.
Otília inclinou o corpo na cama e puxou os lençóis até o pescoço.
- Eu fui lá, linda e cheirosa. Eu me ofereci a ele, Otília, me ofereci, e o canalha me rejeitou.
- Como?
- Disse que vai se casar! Pode uma mentira dessas?
Ivana acendeu outro cigarro. Estava possessa. Seu rosto estava vermelho, inchado. Parecia que as veias estavam prestes a saltar do pescoço.
- Eu não pude acreditar, amiga. Fui lá, e ele veio com uma desculpa esfarrapada, dizendo que está namorando, que vai se casar. - Ela gargalhou. - Essa foi boa! Sidnei nunca foi chegado a matrimônio.
Otília colocou o penhoar e aproximou-se da amiga.
- Ivana, em que mundo você vive?
- O quê?
- É isso mesmo. Em que mundo você vive? Não acompanha o noticiário?
- Não sei o que quer dizer.
Ela levantou a mão para o alto.
- Eu não queria falar, porquanto achava ser assunto constrangedor, mas...
- Mas o quê?
Otília olhou ao redor. Havia muitas peças caras e valiosas em seu quarto. Ela tinha certeza de que Ivana iria se descontrolar e quebrar tudo. Então, com delicadeza, puxou a amiga e foi conduzindo-a até a beirada do hall, na ponta da escada.
- Ivana - disse séria. - Por favor, preste atenção.
- O que é?
Otília respirou fundo. Soltou o ar e disparou:
- Sidnei vai se casar com sua sobrinha.
Ivana não entendeu de pronto.
- O que disse? - a indagou, como se estivesse surda, dando largas tragadas no cigarro.
- Sidnei vai se casar com a Cininha. Deu nos jornais. Até na televisão.
A última palavra que Ivana registrou foi Cininha. E mais nada. A sua vista ficou turva, ela perdeu o equilíbrio e rolou escada abaixo. Otília deu um grito desesperador e correu até a amiga.
- Ivana, pelo amor de Deus, acorde!
Otília gritou e chamou, mas não obteve nenhuma resposta. Nem poderia. Ivana fora acometida de um derrame cerebral.

CAPÍTULO 26

Teresa começou a arrumar as malas. Guilherme puxou-a com delicadeza.
- Minha rainha, deixe isso de lado. Temos empregados para fazer as malas.
- Eu quero escolher meus vestidos.
- Escolha-os, e os empregados lhe fazem a mala.
- E se esquecerem de alguma peça?
- Eu lhe compro quantas você quiser minha rainha. Suas unhas estão tão lindas! Não gostaria de vê-las quebrarem-se.
Teresa beijou-o longamente nos lábios.
- Eu o amo, Guilherme Moura, o meu Gui.
- Eu também a amo - declarou ele. - Agora vá se vestir. Pegue sua mala de mão e vamos ao aeroporto. As malas grandes seguirão em seguida.
Ela concordou com a cabeça. Tomou banho, arrumou-se, escolheu um belo vestido Yves Saint-Laurent e apanhou sua bolsa de mão.
- Estou pronta.
Guilherme fez sinal a um dos empregados. O rapaz aproximou-se e pegou as malas. Colocaram tudo numa perua tipo van e partiram. Dentro do avião, num vôo de primeira classe, evidentemente, Teresa bebia sua champanhe e sorria feliz. A cada dia que passava, o medo de Tonhão perdia força e ela foi se esquecendo da dívida, das falcatruas, do passado que a condenava. É, mesmo sem um pingo de moral ou valor, completamente desonesta e impostora, Teresa estava se dando bem. O vôo decorreu tão agradável que ela nem percebeu que o avião estava aterrissando. Cutucou Guilherme, que dormia profundamente.
- Gui, o avião está pousando.
Ele remexeu-se na cadeira, sonolento.
- Mas já?
- Chegamos.
O avião fez o pouso. Eles se livraram do cinto de segurança, pegaram as malas de mão e desceram do avião, abraçados e felizes. Teresa contemplava o pôr-do-sol.
- Adorei a idéia de vir para cá. Você é um homem encantador, Gui.
Guilherme colocou a mão no peito. Seu rosto contraiu-se numa expressão de lancinante dor. Teresa assustou-se:
- O que foi Gui?
- Nada - ele passou a mão pelo peito. - Dormi e esqueci de tomar meu remédio do coração. Preciso ir ao banheiro.
- Vou com você.
- Não, rainha. Vá e pegue nossas malas. Eu a encontro na saída, ao lado da Imigração.
Teresa assentiu:
- Está bem.
Guilherme dirigiu-se ao banheiro, arfante. Teresa sorriu. Pensou: "Vou me casar e esse homem não vai durar muito. Vou ficar rica, milionária, e ainda vou sair com os homens que quiser. Vou escolher a dedo. Deus está sendo muito bom comigo."
Ela olhou para o alto e murmurou:
- Nunca acreditei em Deus, mas agora estou até começando a acreditar. Viver é muito bom.
Teresa disse isso e correu até a esteira para pegar as malas. Demorou um pouco, pois havia muitos passageiros, mas ela estava feliz e não se importou com a demora. Logo depois apareceram as malas. Ela pegou-as e colocou as no carrinho. Ficou esperando, mas Guilherme não aparecia. Os minutos passaram, e nada. Ela impacientou-se. Será que ele passara mal? Teresa pensou em procurá-lo. Empurrava o carrinho em direção ao sanitário quando foi agarrada por duas mãos bem fortes. Ela deu um grito de dor.
- Ei, o que é isso?
Um dos policias alfandegários lhe respondeu em inglês. Ela não entendeu. Ele lhe apontou uma placa logo à sua frente. Teresa entendeu algumas palavras. Entretanto, ao olhar dois enormes cães farejadores sobre suas malas, ela gelou. O outro policial, que dominava o espanhol e conhecia um pouco de português, foi categórico:
- Teresa Aguilar, você está presa. Narcotráfico.
Ela esperneou, gritou, mas não teve jeito. Foi presa imediata-mente. Teresa implorou, falou de Guilherme, contou sua história, explicou que ele estava no banheiro e passara mal, tudo em vão. Ele havia sumido. Nenhum Guilherme embarcara com ela. Afirmavam que era tudo fantasia de sua cabeça. Ela fora pega em flagrante e agora tentava se defender. Guilherme assistia a toda a cena escondido atrás de um pilar. Usara outros documentos, evidentemente. Embarcara como Leonel Strega. Teresa nem percebera. Ele sorriu e disse para si mesmo:
- Teresa, minha rainha. Esqueci de lhe dizer que, sem querer, coloquei três quilos de cocaína na sua mala. Ah - ele bateu a mão na testa -, esqueci também de lhe avisar que as leis na Indonésia são duras em relação ao narcotráfico. Creio que você vai ter o que merece.
Ele rodou nos calcanhares e dirigiu-se à esteira. Pegou outra mala, passou pela imigração e ganhou a rua. Havia um motorista esperando-o no meio-fio. Assim que chegou ao hotel. Guilherme solicitou ligação para o Brasil.
- Alô, Tonhão? Sou eu. Sim. Ela foi presa. O que gastamos com vestidos e passagens compensa. Ela vai para o inferno. Você se vingou.
Guilherme desligou o telefone e foi para o banho, assoviando uma antiga música do repertório de Roberto Carlos. Você foi dos amores que eu tive o mais complicado e o mais simples pra mim. Você foi o melhor dos meus erros... Nicole e Artur não resistiram aos excessos da droga. O corpo físico de ambos estava com as funções vitais comprometidas. Pouco tempo depois do envio da carta para Virgílio, o casal desencarnou. Artur morreu primeiro. Atacado por uma forte diarréia, seu corpo padeceu no banheiro do hotel. Nicole, já quase cega e com a saúde bastante abalada, morreu horas depois. Geralmente os que desencarnam por conta dos excessos de droga são imediatamente arremessados em um tipo de vale, no umbral, conhecido como Vale dos Drogados, ligado ao Vale dos Suicidas, porquanto o uso excessivo da droga não deixa de ser um tipo de suicídio, embora lento e gradual, porém fatal. O plano superior permitiu que Everaldo e outros espíritos amigos de Nicole e Artur pudessem resgatá-los e encaminhá-los para um posto de atendimento próximo da crosta terrestre, exclusivo para atender espíritos desencarnados em conseqüência das drogas. Mas, se ao desencarnar os drogados são arremessados automaticamente no vale, por que Nicole e Artur foram privilegiados? Ora, não podemos esquecer que Michele e Bruno, juntamente com Daniel, Sílvia, Letícia, Rogério e até mesmo Mariana e Inácio, reuniam-se toda semana e faziam orações, enviavam a Nicole vibrações de conforto, equilíbrio e lucidez. Cininha desgrudava-se do corpo físico e seu espírito prestava auxílio à prima. Embora Nicole e Artur captassem muito pouco das vibrações, porquanto a atenção de ambos era voltada para as drogas, as vibrações foram suficientes para que, ao desencarnar, ambos pudessem ser socorridos. Artur recebeu as vibrações porque estava ligado em Nicole. O grupo de orações não sabia ser ele o namorado que viajara com Nicole, todavia enviavam vibrações a ela e tal de Celso. O que valeu, nessa questão, foi à intenção do grupo pela melhora do casal. Everaldo, lágrimas nos olhos, sustentou nos braços o frágil e debilitado perispírito de Nicole. Outros amigos espirituais fizeram o mesmo com Artur. Inconscientes, os espíritos conduziram os jovens para o posto de atendimento.
- Não sinta culpa, Everaldo, de forma alguma - considerou Consuelo.
- É muito triste, eu bem que tentei ajudá-la.
- Não se esqueça de que ela escolheu seu caminho, e a maneira de desencarnar foi fruto daquilo que ela plantou ao longo de sua existência. Nicole foi advertida, antes de reencarnar, que teria contato com as drogas. Ela prometeu superar o vício.
- Talvez, se não tivesse entrado em contato com as drogas...
Consuelo bateu-lhe levemente no ombro.
- Nicole precisou confrontar-se com esse mundo da dependência química. Como é que iríamos saber se seu espírito estaria forte o bastante sem passar pela experiência?
- Por isso existe a bênção da reencarnação. A cada nova vida, vamos amadurecendo nosso espírito, fortalecendo nossa crença no bem. A vida não erra Everaldo. Nicole vai poder experimentar a possibilidade de nova vida na Terra, e talvez tenha a chance de vencer o vício. Todos caminhamos para o melhor, sempre.
- Isso me conforta. Espero sinceramente poder estar ao seu lado, numa próxima possibilidade de encarnação. Creio que no plano físico eu lhe serei mais útil.
- Vamos aguardar e serenar. Agora precisamos tirá-los daqui. O tempo urge e, mesmo com amigos espirituais dedicados e amigos, logo seremos atacados por falange de espíritos ávidos por sugar o pouco de energia vital que ainda emana dos perispírito de Nicole e Artur.
Everaldo assentiu com a cabeça. Num instante eles sumiram no ar e dirigiram-se ao posto de atendimento. Virgílio não ficou sabendo de imediato da morte da filha. Ele ficara cismado com a foto, com o detalhe que Cininha apontara na data, mas preferiu acreditar que a filha estava bem. A seu modo, também rezava todos os dia para que nada de mau acontecesse a Nicole. Isso ajudou bastante. Salete também contribuiu favoravelmente para o resgate do espírito de seu filho. Ela podia ser fofoqueira, metida e bisbilhoteira ao extremo, mas nutria profundo amor por Artur. Tinha o hábito de se confessar com o padre Alberto. Ela estranhava não ter mais notícias do filho. Sentia que algo grave havia lhe acontecido. Padre Alberto sugeria que ela rezasse muito pelo filho. Salete todo santo dia acendia uma vela branca, próximo a um altar que mantinha embaixo da escadaria de seu sobrado. No altar, além da vela, deixava uma imagem de Nossa Senhora e um retrato de Artur, ainda jovem, sorridente e feliz. A polícia encontrou os corpos uma semana depois, em adiantado estado de putrefação. Recolhidos ao necrotério de Amsterdã foi constatada morte por overdose de heroína. Os documentos apreendidos naquele pequeno quarto fétido indicavam serem dois jovens brasileiros, de nome Ana e Celso. Passados dois meses, e sem o aparente interesse da família, os corpos de Nicole e Artur foram enterrados no cemitério local. Sem mais notícias da filha, e cismado com a insistência de Cininha de que algo ruim havia acontecido, Virgílio solicitou à polícia brasileira que entrasse em contato com órgãos internacionais para localizar a filha e o namorado. Enquanto isso, os irmãos Inácio e Sílvia acertavam os detalhes de seus casamentos. Resolveram casar-se no mesmo dia. Mariana tirou licença na clínica de Sidnei e, juntamente com Sílvia e Íngrid, trataram dos preparativos comuns de qualquer casamento: Buffet, festa, convites e lista de convidados. Nair e Cininha ofereceram-se para confeccionar os vestidos das noivas. Os noivos, Inácio e Daniel, tratavam dos últimos detalhes da decoração de seus respectivos apartamentos. Num domingo à tarde, numa chácara próxima à capital, os jovens se casaram. Foi uma bonita cerimônia. Um amigo de Daniel, juiz de paz, proferiu linda mensagem sobre a importância do casamento, da união de duas pessoas que se amam. Falou do amor e, principalmente, da manutenção e sobrevivência desse nobre sacramento ao longo dos anos, sem se deixar influenciar por filhos ou por problemas naturais, financeiros, etc. Após a cerimônia, os noivos, felizes e emocionados, receberam os cumprimentos dos convidados. Íngrid estava muito feliz. Era como se tivesse cumprido e encerrado sua missão de mãe. Casara os dois filhos e tinha certeza de que ganhara uma nora e um genro maravilhosos. Ela gostava muito de Mariana e tinha bastante admiração por Daniel. Tinha certeza de que seus filhos seriam muito felizes e lhe dariam lindos netos. Em uma mesa localizada a sombra de uma árvore, Íngrid, Virgílio e Nair conversavam. Íngrid procurou entretê-lo, visto que ele andava bastante amargurado por não ter notícias da filha.
- Agradeço por ter comparecido.
Virgílio esboçou leve sorriso.
- Não poderia deixar de vir. Meu filho gosta muito dos seus, e Mariana é como se fosse minha filha...
- Virgílio tem tentado levar vida normal - tornou Nair. - Entendo o esforço que vem fazendo.
Íngrid pousou sua mão sobre a dele, transmitindo-lhe força e coragem.
- Caso eu possa fazer algo, não hesite em me procurar.
- Obrigado - respondeu ele, sincero.
Íngrid trocou mais algumas palavras com os dois:
- E Ivana, como está?
Virgílio exalou profundo suspiro:
- Continua em coma. O derrame destruiu muitas de suas funções. Só saberemos do estrago efetivo quando ela voltar do coma. Se voltar.
- Isso é muito triste. Uma mulher tão jovem! Jovem e inválida... - considerou.
- Mesmo que saia do coma, Ivana não vai sair da cama. Isso Sidnei já confirmou. O lado direito do seu corpo perdeu suas funções. Ela não terá condições de andar nem de falar.
Íngrid botou a mão na boca, demonstrando seu estupor.
- Santo Deus! Que tragédia!
- Sem dúvida - replicou Virgílio.
Um braço tocou no ombro de Íngrid e ela voltou seu rosto para cima e para trás. Ainda bem que estava sentada. Ela perdeu a fala. Empalideceu. Aluísio cumprimentou-a:
- Como vai, Íngrid?
Ela recuperou-se do susto.
- Pensei que não viesse. Você deveria fazer par comigo no altar. Contudo...
Aluísio interrompeu-a:
- O vôo atrasou, não pude chegar a tempo. Mil perdões.
- Viu nossos filhos?
- Acabei de parabenizá-los - disse ele, sorrindo. - Estou impressionado. Nunca os vi tão felizes.
Íngrid recompôs-se. Levantou-se da cadeira e apresentou-o a Virgílio e Nair. Em seguida ele a puxou discretamente pelo braço.
- Preciso falar com você.
- Comigo?
- Sim.
- Aconteceu alguma coisa?
Eles se afastaram, e Aluísio conduziu-a até pequeno bosque, rodeado de flores as mais variadas. Sentaram-se sob um caramanchão, revestido de trepadeiras cujas flores os convidavam à contemplação.
- Que lugar lindo! - suspirou ela, enquanto aspirava o perfume das flores.
- Faz-me lembrar dos bosques que percorríamos a pé, próximo de Estocolmo.
Íngrid sorriu.
- Quanta saudade daqueles bosques! Tenho tanta vontade de voltar à Suécia. Meus tios estão velhinhos, e, se demorar muito, irei me arrepender depois.
- Por que não vai para lá? Agora que nossos filhos se casaram, você está livre e pode distrair-se.
- Penso nisso. Mas vou esperar que tudo se ajeite. O apartamento de Inácio ainda não ficou totalmente pronto, e ele e Mariana vão morar uma temporada comigo. Nossa casa é muito grande.
- Nunca estive lá.
- Poderá conhecê-la. É um casarão bonito, mas muito grande. Eu me sinto muito só.
Aluísio apertou-lhe as mãos e olhou-a nos olhos.
- Íngrid, você está só porque quer.
- Não, por favor...
- Sim. Você está sozinha porque quer. Tenho certeza de que outros homens a procuraram, mas você os recusou. Você continua linda e exuberante.
Ela sorriu e em seguida fechou o cenho. Levantou-se nervosa.
- De que adiantam os elogios? Você me abandonou por uma mulher que tem a idade de nossa filha.
- Foi paixão, mas passou.
- Júlia tem a idade de nossa filha. Você não tem vergonha?
Aluísio levantou-se.
- Não, não tenho. Entendo o seu lado. Sei que a desapontei que a fiz sentir-se triste. Nosso sonho de amor ruiu. Mas fui sincero.
- Como disse?
Ele a abraçou e trouxe a cabeça dela ao encontro de seu peito.
- Íngrid, meu amor, escute. Eu poderia continuar levando nosso casamento e ter minhas aventuras extraconjugais. Nossa sociedade aceita e avaliza o adultério. Um homem que tem amante é visto como másculo e viril garanhão. Eu sempre lhe fui fiel. Sempre.
- Mesmo?
- Sim, sem dúvida. Nunca me aproximei ou mesmo tive relações com outra mulher. No entanto, você andava fria, me evitava, não queria mais fazer amor comigo.
- E por isso correu para o primeiro rabo de saia que lhe deu trela.
- Júlia me seduziu. Eu estava carente. Você não me dava mais atenção, recusava meus carinhos.
- Bom, eu... - ela tinha vergonha de falar sobre a menopausa, seus medos, as alterações do seu corpo.
Aluísio beijou sua mão e prosseguiu:
- Um dia, caminhando na praia, encontrei-me com o Dr. Martins, seu médico.
Íngrid gelou.
- E o que ele lhe disse?
Aluísio sorriu.
- Eu havia levado um chute bem grande da Júlia, andava cabisbaixo, triste. Conversamos bastante e, num determinado ponto eu o indaguei se você havia lhe confidenciado algo. Martins me disse que nunca trocaram confidências, mas que suspeitava que você tinha medo de me dizer que tinha entrado na menopausa.
- Mas...
- Eu sei minha querida. Não deve ter sido fácil para você. Mas o Martins me deu uma aula, explicou-me que, com a perda da produção de alguns hormônios na menopausa, a mulher fica com menos lubrificação vaginal, devendo ter maior cuidado durante o ato sexual, porquanto o ato poderá ser-lhe extremamente dolorido e desagradável. Martins me explicou que você deveria usar cremes lubrificantes, bem como considerar a possibilidade de reposição hormonal. Outro fenômeno que ocorre é a perda da gordura localizada nos grandes lábios, fazendo com que a vagina diminua de tamanho e esteja mais propensa a sofrer dor no coito.
- Eu tive medo de lhe contar. Pensei que não fosse me entender. Senti-me frágil.
- E eu me senti um completo idiota. Nunca tivemos problemas de cama, e eu deveria suspeitar que algo errado estava acontecendo com você. Fui tolo e mesquinho. Comprei livros, estudei o assunto. Agora sei como fazer, como tratá-la. E gostaria que me perdoasse.
- Perdoá-lo?
- Sim. - A voz de Aluísio estava entorpecida de emoção. - Íngrid, case-se comigo.
Ela procurou ocultar a emoção:
- Isso é impossível. Nós nos divorciamos.
- Não tem problema. Casamo-nos de novo.
- O que me pede é insano, Aluísio.
- Não. Elizabeth Taylor e Richard Burton casaram-se duas vezes. Eu me casaria tantas outras com você. Eu preciso de você.
- Aluísio, eu...
- Você é a mulher da minha vida.
Ele disse isso e a tomou nos braços. Inclinou seu corpo e beijou-a demoradamente nos lábios. Só terminaram e afastaram-se quando se viram cercados pelos filhos e outros convidados, batendo palmas e dando gritinhos de felicidade. Íngrid abraçou-se a Aluísio. Ela ainda o amava muito. E estava pronta para lhe dar uma segunda chance. E, também, de dar a si própria mais uma chance de ser feliz.

CAPÍTULO 27

Assim que passou mal, rolou escada abaixo e entrou em convulsão, Ivana foi levada para o hospital. Otília conseguiu chamar rápido por socorro. Afinal, nos casos de derrame cerebral, também conhecido como acidente vascular cerebral, ou AVC, quanto mais rápido se prestar socorro, menores serão as chances de lesões cerebrais que irão resultar em seqüelas. Infelizmente, isso não ocorreu com Ivana. Sua amiga Otília era prestativa e a ambulância chegara a tempo. O motorista, preocupado em chegar rápido ao hospital, ligou as sirenes e saiu a toda brida. Foi cortando caminho até desembocar na Avenida 23 de Maio. Mas ele não contava com um grave acidente que ocorrera ali minutos antes. Um ônibus e um automóvel se chocaram e mais cinco carros envolveram-se no acidente. O engavetamento congestionou a avenida e suas adjacências. Por mais que o motorista da ambulância tentasse, não dava para passar por cima dos veículos. Ele manobrou aqui e ali, mas não chegou ao hospital a tempo para que Ivana ficasse imune a lesões graves. O acidente entre o ônibus e o automóvel fora ocasionado por um motorista bêbado, que levara uma fechada e, entorpecido pela bebida e com a coordenação motora comprometida, atravessou a pista e, na contramão, chocou-se com o ônibus. O motorista, um ex-gerente de banco que fora demitido tempos atrás por avalizar o saque de um cheque falsificado, morreu na hora. Dois passageiros que estavam em pé no ônibus foram arremessados pelo vidro e tiveram morte instantânea. Duas velhas conhecidas. Uma delas era Creusa, vizinha de Salete e Nair. A outra era a gerente da loja onde Letícia trabalhara tempos atrás. Uma pena. Ivana foi medicada e levada para a unidade de terapia intensiva. Otília conseguiu o telefone de Bruno e alcançou-o no serviço. O rapaz correu até o hospital. Sidnei realizava atendimento duas vezes por semana naquele mesmo ambulatório. Bruno ligou para ele e Sidnei, ainda constrangido com a cena de escândalo que Ivana lhe aprontara horas atrás, foi para o hospital prestar ajuda. Afinal, sabia separar as coisas, e seu lado profissional falava mais alto. Sidnei chegou e conversou com os médicos que atenderam Ivana. Uma hora depois, ele sentou-se com Bruno e lhe expôs a situação:
- É grave, doutor?
- Receio que sim.
- O que minha mãe teve?
Sidnei colocou-o a par do ocorrido:
- Muitas das pessoas que sofrem um derrame cerebral, infelizmente, chegam tarde demais ao hospital para que possam receber um tratamento eficaz. Foi o que aconteceu com a sua mãe. O trânsito na cidade hoje está impossível, todas as principais vias estão engarrafadas.
- E então?
- Para que você me entenda melhor, Bruno, é importante saber que o tipo de derrame mais freqüente é chamado de isquêmico, que acontece quando uma artéria que nutre o cérebro tem o seu fluxo sangüíneo interrompido por um coágulo. Quando uma artéria se rompe, provocando derramamento de sangue dentro do cérebro, o derrame é considerado hemorrágico. Na situação mais freqüente, a do derrame do tipo isquêmico, a administração intravenosa de um medicamento é capaz de dissolver o coágulo e restabelecer a circulação na área cerebral afetada. Isso - ressaltou ele - se a intervenção for realizada a tempo, a fim de evitar as lesões cerebrais que resultarão em seqüelas graves. O ideal seria identificar o derrame o mais precocemente possível.
- Como assim?
- Ficar atento ao aparecimento repentino de sinais como, por exemplo, adormecimento no rosto, braço ou perna, especialmente se localizados em um lado do corpo; dificuldade de falar e de se fazer entender; dificuldade de andar, tonturas e perda de equilíbrio; e - finalizou - dor de cabeça forte, sem causa aparente.
Bruno assustou-se.
- Minha mãe tinha fortes dores de cabeça, sem causa aparente. Sabe como é ela sempre foi nervosa, agitada, irritada.
- Quando essas dores começaram, Ivana devia ter sido avaliada por um neurologista, a fim de iniciar tratamento adequado.
- E agora, doutor?
- Creio que é tarde demais. Não quero tirar conclusões precipitadas, mas Ivana, caso volte do coma, ficará com graves lesões.
- Que tipo de lesões?
- Talvez ela fique presa a uma cama e não possa mais articular som. Não sei, por enquanto procure serenar seu coração e rezar. Os médicos estão dando o melhor de si para ajudar sua mãe. Confie.
Bruno saiu do hospital desolado. Sua vida havia progredido bastante. Associara-se ao pai e tinha três farmácias populares, localizadas em áreas pobres da cidade. Seu relacionamento com Michele estava indo muito bem e marcaram a data do casamento. Entretanto, sempre que a data se aproximava, ele a adiava, na esperança de que a irmã voltasse a tempo de participar da cerimônia. Embora Michele o alertasse nas reuniões de oração, que temia pela integridade física da irmã, Bruno acreditava que a esperança é a última que morre. E agora sua mãe adoecia. Embora Ivana tivesse cortado relação com todos logo depois de assinar a separação e ter se mudado para um flat, Bruno era seu filho e sentia-se na responsabilidade de fazer por ela o que estivesse a seu alcance. Ivana fora uma mãe relapsa e ausente, mas isso era problema dela. Bruno aprendera com Michele:
- Sua mãe fez o que pôde. Você não podia cobrar dela o que ela não podia lhe dar.
- Ao menos um pouco de carinho e consideração...
- Mas ela não achava isso necessário. Ela tem seu jeito de ser. Você é diferente e, por mais que queira lutar, seu coração está ligado ao dela. Sei que é duro admitir, mas, mesmo com todos os defeitos do mundo, você ama sua mãe.
- Não posso negar. Mesmo ela tendo temperamento estourado e dotada de atitudes frias e distantes, eu gosto dela.
- Sentimento não tem como deixar de sentir. Se ela não o ama à sua maneira, problema dela. Faça diferente: ame-a a seu modo.
Bruno entrou no carro e resolveu:
- Eu gosto muito de minha mãe e vou cuidar dela. Se não fizer isso, terei forte crise de consciência.
Nicole e Artur receberam tratamento intensivo de desintoxicação no posto de socorro. O posto assemelhava-se a uma pequena colônia espiritual, rodeado de um lindo jardim florido. As janelas dos quartos eram grandes e, das camas, enfileiradas em harmonia, dava para apreciar um pouco do verde que se perdia no horizonte. Quando os pacientes se livravam de miasmas e energias densas acopladas ao perispírito, tinham permissão para receber visitas de amigos do astral, bem como fazer curtas caminhadas nas alamedas do pequeno hospital. Havia três pavilhões repletos de desencarnados, na maioria compostos por jovens recém-desencarnados, ora recolhidos do Vale dos Drogados, ora levados ali por parentes e amigos espirituais. Outros dois grandes pavilhões estavam sendo construídos, em virtude do grande número de espíritos que desencarnavam em conseqüência do abuso de drogas. Everaldo não arredava pé do posto. Todos os dias conversava com médicos e enfermeiros, e alegrou-se quando soube que Nicole voltara à consciência e seu perispírito mostrava sinais de reequilíbrio. Embora ainda estivesse com sua visão comprometida, ela sentia-se leve e aliviada. Foi numa tarde ensolarada que ela recebeu a visita de Everaldo.
- Não faz idéia de como é bom revê-la!
Nicole tinha grande dificuldade em enxergar, contudo, em seu íntimo, sabia reconhecer aquela voz. Era-lhe profundamente familiar, além de lhe trazer sentimentos há muito tempo esquecidos nos escaninhos de sua alma.
- Quem está aí?
- Um amigo de longa data.
Everaldo aproximou-se da cama e tomou-lhe a mão.
- Como se sente?
- Um pouco melhor, embora bastante cansada. Ontem fiz pequena caminhada, respirei ar puro, senti-me revigorada.
- Você vai ficar mais um bom tempo por aqui.
- Onde estou?
- Num hospital.
- Como fui encontrada?
- Eu e mais outros amigos preocupados com você fomos ao seu encontro.
- Estou cheia de dúvidas e...
Nicole começou a falar com voz entrecortada. Estava visivelmente cansada. Uma simpática enfermeira aproximou-se da cama.
- Ela precisa descansar. Vai ficar bastante tempo nesse estado, até que seu perispírito se veja livre das energias danosas que absorveu.
- Sua recuperação está indo muito bem, eu sinto isso. No entanto, percebi que ela está com tremenda dificuldade de enxergar.
- Por mais que tentemos ajudá-la, Nicole provavelmente ficará com a visão comprometida. Creio que, talvez numa eventual reencarnação e livre das drogas, seu novo corpo físico terá a visão limitada. Ela enfrentará problemas, como todo deficiente, mas poderá ter um novo ciclo longe das drogas.
- Há males que vêm para o melhor.
- Sempre, Everaldo. Sempre.
Everaldo pousou delicado beijo no rosto de Nicole. Ela adormeceu em seguida. Ele se afastou e, ao ver a cama ao lado vazia, indagou:
- O Artur está passeando? Está melhor?
A enfermeira meneou a cabeça para os lados:
- Lamento muito, Everaldo.
- O que aconteceu?
- Fizemos o possível, mas Artur não respondeu bem ao tratamento. Tão logo descobriu que não fazia mais parte do mundo terreno, revoltou-se e rebelou-se. Agrediu um de nossos funcionários e partiu.
- Partiu?
- Sim.
- Mas para onde? Como?
- Não sei. Fizemos pequena oração em seu favor, mas ele está muito abalado. E você sabe: nós não podemos prender ninguém nesta instituição. Ninguém é obrigado a ficar aqui. Artur escolheu sair.
- Isso pode retardar seu processo de melhora.
- Sim. Mas o tempo cuida de tudo. Em determinado ponto de sua evolução, ele será chamado a rever suas crenças e mudar sua postura. Talvez, então, ele tenha uma nova chance de ser feliz.
Everaldo saiu do quarto desolado. Sentia muito por Artur. O espírito do rapaz devia estar em forte desequilíbrio. Mentalmente ele lhe enviou vibrações positivas. Ao tomar conhecimento de que morrera vítima de overdose, Artur negou-se a acreditar. Agrediu funcionários do hospital, falou um monte de impropérios e, com sua força mental, seu espírito deslocou-se do posto de socorro e foi arremessado diretamente ao Vale dos Drogados. Em pouco tempo ele se juntou a um bando de espíritos rebeldes que partiam em caravana para a Terra, em várias partes do globo, à procura de pessoas que se drogavam. Não era uma tarefa difícil. Os espíritos os encontravam aos montes. Íngrid resolveu e decidiu: ela amava muito Aluísio e resolveu dar a ele e a si mesma uma nova chance. Casaram-se pela segunda vez e foram para Estocolmo, capital da Suécia. Íngrid queria rever alguns parentes e depois fazer turismo pela Europa. Aluísio e Íngrid conversaram bastante, falaram sobre suas frustrações, medos e inseguranças. Estavam prontos para começar do zero, uma nova etapa. Queriam ser felizes e, diante das afinidades e do amor que os uniam, foram se expressando e tornando mais intensa sua relação amorosa. O casal parecia estar numa constante lua-de-mel. Saíram de Estocolmo e foram a Londres. De lá, foram a Paris, depois Berlim e, por último, fizeram parada na Holanda. Aluísio mantinha muitos contratos de fornecimento de carne com países da Europa e tinha dois grandes clientes holandeses. Precisava rever os contratos e queria encontrar seus clientes pessoalmente. Íngrid entendia e falava o neerlandês, a língua nativa dos habitantes dos Países Baixos. Felizes e apaixonados, ele andaram pelos canais de Amsterdã, visitaram vários museus, entre eles o de Van Gogh, a casa de Anne Frank, bares e cafeterias e até casas noturnas. Foi num jantar com os clientes do marido que Íngrid soube de algo inusitado. Dois jovens brasileiros haviam morrido há um bom tempo e a família não aparecera para reclamar dos corpos. Entraram em contato com a embaixada brasileira no país, mas não obtiveram retorno. A conversa fluiu agradável, mas Íngrid ficou intrigada. Ao seu lado, o espírito de Everaldo sussurrava-lhe palavras, implorava-lhe que se interessasse mais por aqueles jovens. Por intermédio dela, Everaldo queria que o mistério do desaparecimento de Nicole e Artur fosse desvendado e que Virgílio e Bruno, assim como Salete, pudessem lidar com a trágica realidade e tocar suas vidas adiante, sem mais dúvidas ou esperanças. No fim do jantar, Íngrid perguntou a um dos clientes:
- O que mais sabem sobre o caso desses jovens?
- Minha esposa trabalha na polícia. Posso lhe arranjar os nomes, se interessar.
- Eu gostaria muito - tornou ela, agradecida.
No hotel, Aluísio estava intrigado:
- Por que esse interesse repentino no caso desses jovens indigentes?
Íngrid levou a mão ao peito.
- Não sei explicar. É algo que está me atormentando.
- Pensou em nossos filhos?
- Também. Imagine os pais desses jovens! Como devem estar se sentindo?
- Vai ver, eles nem tinham pais. As famílias não apareceram. E, segundo sei, os nomes foram divulgados na imprensa brasileira.
- Não sei ao certo, Aluísio. Estou preocupada. Não sei por que razão, mas tenho pensado muito na filha do Virgílio.
- Por quê?
- Ela era viciada em drogas.
- Puxa, que maçada!
- Pois é. A menina vivia entre clínicas de desintoxicação e, tempos atrás, quando aparentava estar bem, ela roubou o próprio pai e fugiu com o namorado para a Europa.
- E daí? Muitos jovens fazem o mesmo. Principalmente os filhos de pais ricos.
- Preciso ir mais fundo nesse caso.
- O que a faz pensar nisso?
- Faz meses que Nicole não dá notícias. Ela sumiu, desapareceu.
- Você acha...
Íngrid assentiu:
- Acho. Nicole teve sangue-frio para pegar toda aquela quantia. Foram milhares de dólares. Ela deve ter comprado documentos falsos. Não sei Aluísio, mas gostaria de investigar melhor a morte desses jovens.
- Nosso vôo parte depois de amanhã. Não sei se teremos notícias a tempo.
- Por favor - suplicou-a. - Cancele o vôo. Vamos ficar aqui até resolvermos essa questão. Eu jamais me perdoaria se descobrisse que esses jovens são Nicole e o namorado. Eu sou mãe, imagino como Virgílio deva estar se sentindo.
Aluísio sentou-se na cama e consolou-a:
- Chi! Calma. Você tem razão. Uns dias a mais não vão comprometer meus negócios. Aproveitaremos e faremos mais passeios.
- Obrigada.
Everaldo respirou aliviado. Agradeceu Íngrid e partiu rumo ao posto onde Nicole se encontrava. A triste notícia da verdadeira identidade dos corpos arrasou Virgílio e Bruno, como também devastou o pobre coração de Salete. Virgílio era pessoa conhecida da mídia. As revistas de fofoca tratavam o caso como algo circense, carregando nas tintas do sensacionalismo. A imprensa não poupou a dor da família.
Quando os corpos foram trasladados para o Brasil, havia uma quantidade imensa de jornalistas e repórteres no aeroporto. Afinal de contas, sabemos que todo cadáver tem o mesmo cheiro. No caso de gente famosa ou conhecida da sociedade, o cadáver tem um cheiro especial, fede de maneira bem distinta dos pobres mortais. Virgílio teve de ser afastado e levado para uma chácara no interior paulista até que a repercussão do caso fosse superada por outra tragédia. Isso levaria alguns dias somente. Bruno, devastado com a notícia da morte da irmã, teve forças para dar todo o apoio e assistência ao pai. A presença de Michele naquele momento foi fundamental para ambos. Eles conversavam, e, aos poucos, ela tentava mostrar a Virgílio que Nicole morrera por conta e risco do resultado de suas atitudes.
- Não é justo. Quando percebi que podia ter minha filha de volta, quando decidi me tornar um pai amoroso e participativo, a vida a tirou de mim. Chego a duvidar se Deus existe de verdade.
As conversas foram muitas. Virgílio não se perdoava. Afastara-se inclusive de Nair. Não sentia mais vontade de nada. Sua vida acabara. Durante um passeio pela chácara, Virgílio bateu na mesma tecla:
- Deus não existe!
Michele exalou profundo suspiro. Precisava lhe falar certas verdades, e a hora era aquela. Ela gentilmente o conduziu até um banco rodeado de gerânios e se sentaram.
- Creio que essa atitude não vai trazer sua filha de volta.
- Não me perdôo. Minha vida acabou.
- Você nunca seria capaz de resolver essa história.
- Como não? Era minha filha.
- Mas o problema não era seu. Nicole poderia receber ajuda e tratamento, mas deixaria de se viciar somente quando ela quisesse - enfatizou. - Não é nada agradável ver um filho estirado num chão, cheirando ou injetando-se drogas pelas veias. É uma doença terrível, que, por vezes, destroça uma família inteira, acaba com sua harmonia.
- Foi o que aconteceu comigo. Eu e Bruno fizemos tudo que estava ao nosso alcance para que ela melhorasse. Sabíamos que não podíamos contar com Ivana para nada. Mas nós dois nadamos, nadamos e, no final, morremos na praia.
- Você acreditou que devia superproteger sua filha, desculpando-a por toda falha que cometesse, acreditando que com isso estivesse ajudando. Ao contrário, esse comportamento aumentou a insegurança de Nicole, mantendo-a mais presa ao vício.
- Será?
- Sim. No momento em que o sofrimento se torna insuportável é que um viciado vai sinceramente atrás de ajuda, vai procurar a cura. Ele usa sua própria força e consegue vencer. No caso de Nicole, isso já vem ocorrendo há mais de duas encarnações.
Virgílio encarou-a estupefato.
- Como assim?
- É a terceira vez que Nicole desencarna em conseqüência do abuso de drogas.
- Então fui um pai relapso três vezes! - exclamou entristecido.
Michele sorriu.
- Não. Nas duas últimas encarnações, você não foi pai de Nicole.
- Não?
- Posso garantir pelo que meus amigos do astral superior me disseram. Virgílio - ela tocou em seu braço -, você não é responsável por Nicole nem pelo que lhe ocorreu.
Jamais poderia curá-la, porque isso é ilusão. Um dia ela vai encontrar uma maneira de vencer essa fraqueza. Talvez já na próxima encarnação.
- Juro que gostaria de estar com ela de novo.
- Nunca se sabe. Não tenho informações de como sua filha está. Aliás, a partir do momento em que Nicole desencarnou, ela deixou de ser sua filha.
- É duro admitir isso.
- Sei. Mas ela é um espírito livre, dona de si. E você não pode estragar sua própria vida.
- Mas...
- Não adianta acabar com sua felicidade por conta de algo que não depende de você e não está sob seu domínio. Bruno precisa muito de seu carinho.
- Ele vai se casar com você. Não precisará mais de mim.
- Mas precisará do seu amor. Pensa que ele não sofre? Ele também perdeu alguém que amava muito. Tente compreender. A vida faz tudo pelo melhor. Não deixe que a morte de sua filha atrapalhe seus sonhos. Não transfira esse infortúnio para sua vida.
- É difícil separar as coisas.
- Mas precisa aprender a separar. Você não tem o poder de mudar as pessoas. Aceite essa verdade. Não leve para casa energias pesadas que só irão infelicitá-lo.
- Eu não tenho lar. Pus minha casa à venda. Desde que soube da morte de Nicole, não entrei mais naquele lugar. Bruno tratou de tudo: desfez-se dos móveis, vendeu algumas peças, doou o resto aos empregados e instituições.
- E você vai ficar morando num hotel até quando?
- Não sei.
- E Nair?
Virgílio estremeceu. Ele a amava tinha certeza disso. Entretanto, não tinha forças para levar adiante uma nova relação afetiva. A morte de Nicole ferira-o fundo. Michele parecia tomada por algo mais forte que ela. Com a modulação de voz alterada, considerou:
- Nair merece uma nova chance, merece viver num ambiente alegre e harmonioso. Entregue sua filha nas mãos de Deus e pare de se torturar. Cuide de sua felicidade.
Garanto a você que Nicole vai encontrar seu próprio caminho. Ela não está só.
- Rezo por isso.
- Você deve pensar em você e preservar sua paz - finalizou Michele.
CAPÍTULO 28

Assediada diariamente por repórteres, Salete comeu o pão que o diabo amassou. Quando a imprensa descobriu o verdadeiro nome do namorado de Nicole, bandos de jornalistas correram até sua rua, como moscas no mel, à cata de informações, para saber como era a vida do rapaz, quando ele entrou no mundo do vício. Outro repórter, totalmente insensível, esmiuçou a vida de Salete e descobriu que o marido morrera em conseqüência da AIDS. Isso intensificava ainda mais o drama de Artur. A imprensa especulava, e escreviam-se as maiores atrocidades possíveis sobre Salete e o filho. Diziam que o menino havia fugido de casa porque descobrira que o pai era aidético; que o pai contraíra o vírus da AIDS porque era viciado em drogas e usara agulha contaminada; que Salete nunca fora boa esposa e boa mãe, etc., etc. Salete queria sumir do mapa. A morte do marido a entristecera, mas perder Artur foi um golpe muito duro. Ela nunca imaginara a possibilidade de perder o filho. Isso ia contra as regras da natureza em que ela acreditava. Ela não era benquista na vizinhança, porquanto se intrometia na vida de todo mundo. Era fofoqueira e agora sentia na pele o que era invadir e comentar a vida dos outros. Sua vida estava sendo exposta nos jornais, nos programas de televisão. Estavam explorando cada momento trágico de sua vida, sem dó nem piedade. Se Creusa estivesse viva, estaria ao seu lado. Mas, depois que sua amiga morreu num acidente de ônibus, Salete ficou só. Completamente só. Os vizinhos que não a suportavam passaram abertamente a hostilizá-la. Houve até quem atravessasse a calçada para não passar pela sua porta. Diziam ser um lar amaldiçoado. Nair trabalhava bastante e não dava atenção aos fuxicos e comentários maledicentes que os vizinhos faziam. Mas, como o caso de Artur se confundia com o de Nicole, ela se sensibilizou e foi procurar à vizinha. Salete não quis receber visita. Fechou-se em sua casa, em sua dor, em seu mundo triste e despedaçado. Alguns meses depois, Nair chamou o padre Alberto e foram a casa dela. Salete não quis abrir a porta de imediato. Ao reconhecer pelo olho mágico que Nair estava acompanhada do padre, ela se sentiu envergonhada, abriu a porta e os convidou a entrar. Eles se sentaram e aguardaram que Salete fizesse o mesmo. Salete era mulher de estatura baixa, cabelos curtos e prateados. Andava sempre de vestido comprido, de mangas curtas e botões nas costas e uma blusa por cima. Era fortona, rechonchuda. Mas a realidade lhes mostrava outra pessoa: uma mulher pálida, olhos inexpressivos, muitos quilos mais magra e a pele do rosto toda enrugada. Salete era uma sombra da mulher que fora. Estava profundamente abalada e debilitada.
- Meu mundo acabou padre.
- Não pense assim, minha amiga. Isso não é o fim. Você está viva.
- Fui escorraçada, invadiram minha privacidade - ela encarou Nair nos olhos e se envergonhou.
- O que passou, passou - interveio Nair. - Não estou aqui para tirar satisfações, não quero nada. Estou aqui porque me preocupo com você.
- Sério?
- Claro. Você está sozinha, não tem parentes, não tem ninguém.
- Pensei que meus vizinhos fossem meus amigos, mas todos viraram a cara para mim. Tem até gente que morre de medo de passar na minha porta. Dizem que sou agourenta. Se ao menos pudesse contar com a Creusa, mas ela não está aqui para me dar força.
- Mas eu estou - declarou Nair. - Sei que você não foi muito simpática nestes anos todos.
Salete baixou os olhos e mirou o chão. Estava sinceramente arrependida. Nair prosseguiu:
- Não estou aqui para julgar suas atitudes. O sofrimento que vivência é para que se liberte dos seus enganos.
- Deus me castigou. Tive uma língua ferina. Destruí a vida de muita gente. O marido da Norma a deixou porque eu fui fofocar. Enchi a cabeça dele de minhocas.
Padre Alberto interveio amoroso:
- Deus não castiga ninguém, Salete. Compreenda que isso não é verdade.
- Como não?
- Deus dispõe os fatos para que cada um de nós colha daquilo que plantou. Ele não se vinga tampouco se compraz do sofrimento humano.
- Deus não tem compaixão por mim.
- Tem por você e por todos. Sua compaixão se estende sempre, dosando a colheita de cada um de acordo com o que precisa aprender. Não existe punição, somente aprendizagem, nada mais. Cada um de nós precisa aprender a evoluir sem dor. Minha amiga - ele a tocou delicadamente no braço -, a fé só vem pela experiência. Quando isso acontece, muda nosso comportamento e nossa visão do mundo, das coisas, e, por conseguinte, afeta todas as nossas decisões. Percebemos então os valores espirituais, e nesse ponto temos condições de ensinar.
- Eu não tenho o que ensinar. Fui péssima esposa e péssima mãe.
- De nada vai adiantar se punir. A culpa só maltrata e nos põe para baixo, limitando nossa capacidade de reagir. E também nada vai trazer seu marido ou seu filho de volta. Salete, uma criança que aprende os valores espirituais jamais vai se transformar num marginal, porquanto na infância o espírito está mais sensível e influenciável.
- Quem me dera soubesse disso antes. Talvez as coisas fossem diferentes.
- Se você não pôde passar esses valores para Artur, poderá começar por si própria ou mesmo pelas crianças.
- Crianças? Que crianças?
- Da paróquia. Dar a elas um pouco de sua atenção, de seu carinho, de seu amor. Você pode fazer isso por elas. O resto confie e entregue nas mãos de Deus.
Salete deixou que as lágrimas lhe escorressem livremente pelas faces. Padre Alberto levantou-se e abraçou-a. Nair, emocionada, limpou as lágrimas, levantou-se e disse:
- Vou até a cozinha fazer um chá de cidreira. Creio que fará bem a todos nós.
Michele e Bruno casaram-se e mudaram-se para a periferia. Ambos estavam com bastante trabalho e não desejavam enfrentar o trânsito pesado e caótico da cidade todos os dias para ir e vir do serviço. Decidiram por uma casa térrea, grande, confortável, com uma bela varanda na frente e espaçoso quintal atrás, onde fizeram uma churrasqueira e geralmente nos fins de semana convidavam os amigos para um almoço, regado a carnes, saladas, pratos de maionese, cerveja, refrigerante, descontração e muita conversa fiada. Daniel e Sílvia compareciam sempre que possível. Eles moravam não muito distante de lá, num pequeno, porém gracioso apartamento com que Íngrid os havia presenteado. As farmácias de Bruno prosperaram e os atendimentos no salão dos fundos foram divididos em núcleos. Michele viu-se livre das interferências da prefeitura e dispensaram ajuda da Centax. Agora eram eles que ajudavam a empresa, enviando jovens estudantes que desejavam trabalhar. Ela e o irmão somaram forças e logo compraram bom terreno e construíram excelente clínica de serviço social à população. Outros amigos e profissionais se afiliaram, e a clínica cresceu e colaborou bastante para o progresso daquela região e de seus moradores. A clínica possuía três andares. No terceiro, Michele fez uma espécie de salão voltado para oração e estudos espirituais. Três vezes por semana abriam as portas para quem precisasse, ministrando passes, proferindo palestras edificantes, desvendando de maneira simples os mistérios da vida espiritual. Cininha e Sidnei se casaram e ela continuou trabalhando com Nair. O negócio prosperou, a clientela aumentou e, confiantes e decididas, compraram um galpão e iniciaram a confecção. Virgílio compreendeu e aceitou não ser responsável pela morte da filha e, livre do remorso, foi morar com Nair. Ele sugeriu que se mudassem do pequeno sobrado e fossem para outro bairro. Virgílio comprou belo apartamento perto do Parque da Aclimação. Todas as manhãs eles faziam caminhadas pelo parque, tomavam uma água de coco. Depois voltavam para casa e ele ia para seu escritório e Nair para a confecção. Dois anos após a assinatura de seu divórcio com Ivana, Virgílio pôde oficializar a união com Nair. Ele e ela fizeram uma pequena reunião no apartamento em que estavam morando. Os presentes eram os filhos deles, somente. Mais ninguém. Queriam uma reunião íntima e discreta. Bruno e Michele estavam radiantes. Ela estava grávida de cinco meses. Letícia também estava grávida. E insistiu para que Ismael fosse morar com ela e Rogério. De que adiantaria viver sozinho num apartamento, se ele não queria saber de casar? Preferiam ter Ismael por perto. Ela e Rogério trabalhavam bastante, e seria formidável contarem com a ajuda do avô na criação do filho. Virgílio suspirou feliz. Logo seu apartamento estaria repleto de crianças, correndo para lá e para cá, fazendo estripulias. Mariana não queria saber de filhos, por ora. Fazia especialização. Queria estudar mais um pouco e talvez mais para frente pensasse em filhos. Sidnei a promoveu, e agora ela era a enfermeira-chefe responsável pela clínica. Mariana mostrou-se profissional bastante competente. Após a oficialização da união e terminado o almoço, Nair reuniu todos na sala e tornou:
- Precisamos conversar. Está na hora de contar sobre o real motivo de meu afastamento de Virgílio, décadas atrás.
Os jovens acomodaram-se em cadeiras. Letícia e Michele deitaram-se num sofá. A gravidez não permitia que ficassem sentadas. A barriga estava atrapalhando. Nair começou:
- Como todos sabem, eu e Virgílio fomos apaixonados e não nos casamos por conta da interferência de sua família. O Dr. Homero e Ivana me procuraram e pediram que eu me afastasse da vida de Virgílio.
O silêncio se fez enorme. Estavam todos interessados e ansiosos. Nair prosseguiu:
- Eu era pobre e estava grávida. Virgílio encarou-a com estupor.
- Grávida?
- Sim, eu fiquei grávida de você, depois daquele final de semana que passamos na Ilha Porchat, em São Vicente.
Virgílio fechou os olhos e sua memória foi até aquele longínquo fim de semana. Fora memorável, inesquecível. Tinha sido o melhor e último fim de semana que passaram juntos. Ele abriu os olhos, e uma lágrima escorreu-lhe pelo canto do olho. Estava aturdido.
- Se ficou grávida, então Mariana é minha filha?
Mariana olhou para a mãe, incrédula, suplicando uma resposta negativa. Nair meneou a cabeça para os lados:
- De forma alguma. Mariana e Letícia são filhas de Otávio.
- Então...
Nair pousou a mão na boca do marido.
- Quando seu pai me procurou, eu não sabia que estava grávida. Ele me ofereceu um bom dinheiro e Ivana me ameaçou. Fiquei com medo, não tinha a quem recorrer. Peguei o dinheiro e comprei o sobrado no Carrão. Um mês depois, eu conheci Otávio. Contei-lhe que tinha herdado o sobrado e disse-lhe que, se ele estivesse disposto a um compromisso sério, poderíamos nos casar. Otávio sofrerá forte desilusão amorosa e eu estava emocionalmente fragilizada também.
Virgílio interveio:
- Se soubesse que estava grávida, eu teria mudado tudo. Talvez ficássemos juntos.
- Como eu disse, no começo eu também não sabia estar grávida. No dia em que Otávio pediu a minha mão, saímos para comemorar e eu senti leve enjôo. Na manhã seguinte, fui a um médico no centro da cidade e ele confirmou a gravidez. Fiquei aturdida. Não havia tido relações com Otávio e com homem nenhum. Eu havia sido somente sua - ela pousou os olhos marejados sobre os do marido - e tinha certeza de que o filho era nosso. Saí do consultório, trêmula, as pernas bambas, muito tensa. Não sabia que rumo tomar. Estava aflita. Afinal, como contar a Otávio?
- Devia ter falado comigo - insistiu Virgílio.
- Eu não quis procurá-lo. Ivana me perseguia, e eu, acuada, resolvi não o procurar mais. Afinal, havia recebido dinheiro e aceitara me afastar de você.
Nair respirou fundo e prosseguiu:
- Seja como for, logo em seguida houve o acidente.
- Acidente?
- Sim. Fui atropelada e socorrida. Dei entrada no hospital e não tive fraturas, somente escoriações pelo corpo. Mas perdi nosso filho - ela apertou a mão de Virgílio.
Suas filhas não contiveram o pranto. Virgílio a abraçou.
- E você escondeu isso por todos estes anos? Por quê?
- Não havia necessidade de contar nada a ninguém. Por que deveria contar esse triste episódio às minhas filhas? Elas não fizeram parte dessa etapa de minha vida.
Quando me casei com Otávio, esqueci de tudo e recomecei. Pensei que nunca mais fosse encontrar você.
- É uma grande mulher, Nair. Por isso eu a amo tanto.
- E tem outra coisa.
- O que é?
- Seu pai.
- Nunca vai perdoá-lo, certo?
Nair reconsiderou:
- Por muitos anos tive raiva de Homero.
Letícia e Mariana se entreolharam, estupefatas. Lembraram-se de que alguns anos atrás Rogério lhes falara que tinha sonhado com aquele homem. Encararam Rogério, e ele sorriu. Nair prosseguiu:
- Pensei muito e concluí: por que jogar a culpa sobre as costas dele? E se eu não tivesse aceitado o trato e tivesse enfrentado Ivana? Podia ter escolhido encarar tudo e todos e correr até você, explicar-lhe a situação. Tomada de medo e insegura, recuei. Por muitos anos eu não quis pensar no assunto. Entretanto, Otávio morreu, minha vida mudou, eu o reencontrei. Você passou por transformações dolorosas. Nicole morreu, Ivana está presa a uma cama de hospital pelo resto da vida. A experiência e maturidade me ensinaram a perdoar. Portanto eu perdoei seu pai e, o que é melhor, perdoei a mim mesma. Talvez esse tenha sido meu grande mérito.
- Perdoar-se é um ato divino e só fortalece o espírito - ajuntou Michele, voz entrecortada pela emoção.
Os jovens parabenizaram Nair pela coragem de se abrir e contar sobre suas fraquezas, seus medos, sua vida. Ela era exemplo de mulher a ser seguido. Perdera o marido, ficara sozinha no mundo, mas dera a volta por cima. Suas filhas estavam bem encaminhadas, casadas e felizes. Ela era uma empresária de sucesso, ganhava seu próprio dinheiro e não dependia de ninguém. Reencontrar seu único e verdadeiro amor, nesta altura de sua vida, mostrava-a claramente que podia ter nova chance de ser feliz. Por que não perdoaria Homero? Não queria mais ficar presa ao passado, não queria mais responsabilizar ninguém pelas suas desgraças. Aprendera a tomar posse de si e queria seguir adiante. Nair perdoou Homero do fundo de seu coração. Homero ouvia tudo e não conseguiu evitar o pranto. Esperou muito, mas valeu à pena, pois finalmente recebeu o perdão de Nair. Sentiu que ela estava sendo sincera. Sua consciência não mais o acusava, e ele estava livre da culpa que se infligira anos a fio. Marta acariciou seu rosto.
- Está na hora. Dê um beijo em Nair e Virgílio. Estão juntos porque você deu uma forcinha.
- É verdade.
- Agora vamos seguir nosso caminho. Não suportava mais esperá-lo. Estava com muita saudade.
Marta pegou-o pela mão, e, após se despedirem dos presentes, os dois espíritos desapareceram do ambiente. Homero sentia-se agora livre para continuar sua jornada evolutiva ao lado da mulher que sempre amara. Virgílio estava profundamente emocionado.
- Por Deus, você perdeu um filho meu?
- Sim.
- Perdi dois filhos, então - as lágrimas corriam insopitáveis. - Como pude?
- Não se sinta culpado. Eu também errei, aceitando o dinheiro de seu pai. Por outro lado, foi por conta dele que pude dar um teto para minhas filhas. Creio que estamos quites.
- Você poderia ter um filho meu! Um filho nosso!
- Ainda há tempo - tornou Rogério.
- Imagine! Não tenho idade.
- Mamãe! - protestou Mariana. - Hoje em dia muitas mulheres engravidam na casa dos quarenta. Você ainda pode ser mãe.
- Eu vou ser é avó. Como posso pensar em ser mãe? - indagou, rindo.
Virgílio afirmou:
- Adoraria ser pai novamente.
- Por quê? - indagou Nair, surpresa.
- Gostaria de fazer tudo que não fiz pelos meus dois, quer dizer, três filhos: amar, criar, educar, ouvir as primeiras palavras, contar histórias de ninar, participar das festinhas na escola, ensinar os valores espirituais. Seria um pai participativo.
- Podemos pensar no caso.
- Agora.
Nair bateu na mão de Virgílio:
- Virgílio! Olhe as crianças aí na frente. Perdeu a compostura?
Caíram todos numa grande gargalhada.

CAPÍTULO 29

Ivana ficara presa à cama de um hospital. Não voltara do coma, suas funções cerebrais haviam sofrido graves lesões. Ela não falava, e mal reconhecia as pessoas à sua volta. Virgílio e Bruno iam visitá-la, mas ela não os percebia no ambiente. Depois de meses, Sidnei transferiu-a para sua clínica. Deu-lhe um quarto particular, bem aparelhado e monitorado. Mariana e outras enfermeiras cuidavam de Ivana. O trabalho não era fácil. Deitada e imóvel, as enfermeiras precisavam virá-la de um lado para o outro a fim de evitar a formação de escara, um tipo de crosta resultante da morte de tecido, devido ao fato de o paciente permanecer muitas horas na mesma posição. A cada par de horas dobravam o corpo de Ivana, ora de um lado, ora de outro, ora de costas. Davam-lhe banho duas vezes ao dia. Com o tempo, Ivana foi emagrecendo e seu corpo tornou-se uma sombra do que fora um dia. Seu espírito ficava adormecido, a alguns palmos de seu corpo físico. O perispírito sofrerá lesões e também estava com órgãos comprometidos. Levaria bastante tempo para se regenerar do trauma. Às vezes seu corpo era assaltado por estremecimentos, e Ivana suava frio. Tinha pesadelos de toda sorte. Sonhava com Nicole, Bruno, Virgílio e até Nair. Às vezes os via nitidamente em seus sonhos; de outras tantas, eles apareciam com outros rostos, outras vestes, como se estivessem em outras épocas. Otília ia toda semana visitar a amiga enferma. Ficava lá ao seu lado, contava-lhe histórias, fazia de conta que Ivana estava bem e podia ouvi-la. Se Ivana registrava ou não, isso não tinha importância. Pelo menos, as tardes com Otília a deixavam longe dos pesadelos e das memórias de sua mente conturbada. Eram suas memórias de vidas passadas que se confundiam com o presente, numa confusão mental, e levaria muitos anos para que Ivana pudesse atingir um nível de lucidez satisfatório e pudesse receber melhor ajuda no mundo espiritual. Consuelo estava sempre presente. Dava-lhe passes, procurava ministrar-lhe energias revigorantes e, quando os pesadelos se tornavam insuportáveis, ela ajudava Ivana a se libertar deles e entrar em estado profundo de letargia, às vezes por dias. Nicole progredira bastante no posto e logo foi encaminhada a uma colônia espiritual. Foi morar com Everaldo. Entre os cuidados dispensados à sua amada e cursos e serviços prestados, de vez em quando ele vinha a Terra e visitava a pobre Ivana. Numa dessas visitas ele encontrou Consuelo no quarto, terminando de ministrar-lhe um passe.
- Atrapalho?
- De forma alguma - respondeu Consuelo.
- Como ela está?
- Sobrevivendo. Seu corpo físico foi bastante afetado e seu perispírito também. Ivana está presa às recordações do passado misturadas às do presente. Com as lesões cerebrais, não consegue distinguir o passado do presente.
- Ela vai ficar assim por muito tempo?
- Sim. Enquanto seu corpo físico resistir, ela vai ficar presa nessa cama. É melhor para ela. O coma vai lhe servir como uma trégua, um repouso. Quando desencarnar, estará mais serena, menos irritada e agressiva.
- Você tem muita afeição por ela, não?
Consuelo sorriu.
- Gosto muito de Ivana. Estamos ligadas há muitas vidas.
- Não me diga! - admirou-se Everaldo.
- Sim. E minha ligação com Ivana, por incrível que pareça, sempre foi permeada pelos laços do amor. Infelizmente, nesta vida atual, tive de deixá-la mais cedo. Fazia parte do nosso plano de encarnação.
- Quer dizer que...
- Sim, Everaldo. Eu fui mãe de Ivana. Desencarnei quando ela tinha apenas seis anos de idade.
- Eu sei disso. A mãe de Ivana morreu tísica, tuberculosa.
- Quando adoeci, no final da década de 1940, fui levada a Campos do Jordão. Fui tratada no Hospital Sanatorinhos. Eu tinha duas filhas pequenas e não queria aceitar a doença. Mesmo tendo recebido atendimento de qualidade e carinho dos médicos e enfermeiros, sucumbi à doença e desencarnei.
- Fechou mais um ciclo de existência terrena.
- Sim, mas fiquei tão grata ao hospital, que no astral estudei bastante e me especializei em enfermagem. Trabalhei em vários postos de socorro, fui voluntária de muitos hospitais na crosta terrestre. Agora divido meu trabalho entre cuidar de recém-desencarnados e Ivana. Agora tenho condições de poder ficar próxima de minha filha.
- Não é fácil ver nossos entes queridos doentes e não poder fazer-lhes nada.
- Ivana poderia evitar o derrame, a doença, se acreditasse ser forte e fosse dotada de atitudes sadias. O corpo de carne é uma máquina perfeita, contudo quem comanda o corpo é o espírito. Assim, quando temos atitudes que nos desequilibram, ele reage e provoca sintomas a fim de nos mostrar que não estamos fazendo o melhor que podemos. Minha filha maltratou seu corpo físico, encheu-o de substâncias tóxicas, não se alimentou direito, não fez exercícios, não tratou da mente nem do espírito.
O resultado não poderia ser outro. Foi por isso que ela e Nicole encarnaram juntas. O padrão destrutivo de suas mentes é semelhante.
- Nicole fez o mesmo com seu corpo e agora carrega marcas no perispírito. Somente uma nova encarnação irá ajudá-la a reconstituir alguns órgãos lesados.
- Ela está bem?
- Sim. Conseguiu livrar-se da compulsão pelas drogas. O fato de ter lesado os órgãos da visão mudaram-na completamente. Ela procura se reequilibrar e se adequar a essa nova realidade.
- Espero que ela tenha uma nova chance.
- Ela não vai nascer cega, mas terá sérios problemas visuais. Eles ocuparão bastante tempo de sua nova jornada e vão ajudá-la a ficar distante das drogas.
- Conversou com os espíritos superiores?
Everaldo sorriu.
- Sim. Eles estão elaborando nova etapa de vida na Terra para Nicole. E o melhor de tudo é que recebi sinal verde para vir junto.
Consuelo abraçou-o.
- Fico muito feliz que vai voltar.
- Aprendi que preciso estar ao lado de Nicole. Estamos numa época na Terra em que os valores estão sofrendo profundas mudanças. Quando ela me conhecer, não vai se sentir constrangida em namorar um rapaz três ou quatro anos mais moço que ela.
- Ela vai primeiro?
- Sim. - Everaldo pigarreou. - Gostaria muito que você estivesse comigo quando ela renascesse em novo corpo físico.
- Mas será um grande prazer. Estarei ao seu lado, pode acreditar.
- Obrigado. Você é de tato, um espírito iluminado.

EPÍLOGO

Mariana acabara de finalizar uma pesquisa para anexar à sua tese de doutorado. Andava cansada havia dias, com inchaço nas pernas, um cansaço sem igual. Inácio, deitado na cama, ordenou:
- Dá para desligar esse computador e vir se deitar?
- Já vou querido.
- Você não pode ficar muito tempo sentada com esse barrigão. O médico ordenou que repousasse bastante.
- Precisava terminar esta pesquisa. Depois que o bebê nascer, eu vou defender minha tese. Devo deixar tudo em ordem.
- Falou e disse: depois que nosso bebê nascer. Agora venha, desligue esse computador e deite-se. É uma ordem.
Mariana riu alto. Deixou as folhas sobre a escrivaninha, desligou o computador no escritório contíguo e voltou para o quarto. Deitou-se na cama. Ajeitou-se como pôde, afinal era-lhe difícil ficar numa posição confortável.
- Ligue a televisão, amor. Inácio resmungou sorridente:
- Mania de assistir televisão no quarto...
- Ah, é tão bom! Fico aqui agarradinha ao seu lado, em baixo deste edredom, bem quentinha, e aproveito para saber as notícias do mundo.
- Mas já não fica ligada no computador o tempo todo?
Ela pousou a mão em sua boca:
- Fico montando minha tese, mais nada. Não tenho tempo para navegar pela Internet. Por essa razão, quero assistir ao noticiário noturno.
- Só você mesmo!
Inácio apertou o controle remoto e ligou o aparelho. Foi mudando os canais e, quando passou pela estação que transmitia o noticiário noturno, Mariana pediu:
- Deixe aí. Adoro esse jornal. E o apresentador é bem bonito.
Inácio fingiu ciúmes:
- Alto lá. E eu?
Mariana apertou sua bochecha.
- Você é o meu gatinho, meu marido, meu tudo! O apresentador é só um amor platônico, um caso sem conseqüências.
Os dois riram juntos. As notícias foram variadas. Assuntos de toda natureza. Desde a chance de reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso até o triste desfecho da Copa do Mundo na França, quando a seleção brasileira, infelizmente, perdera o título. Mariana se divertia e acompanhava todas as notícias com avidez. Adorava estar atualizada. De repente, seus olhos ficaram estáticos. Por um instante ela ficou sem ação. Depois, cutucou Inácio. Ele estava quase adormecendo e acordou assustado.
- O que foi? O bebê?
- Não. Assista à reportagem.
- Não gosto de jornal na televisão.
- Assista isso! - insistiu ela, sacudindo-o com força.
Inácio abriu os olhos e, meio a contragosto, prestou atenção ao repórter. Em seguida ele sentiu um frio no estômago quando viu aquela foto estampada na tela da TV. Era ela. Mais velha e acabada, mas era ela. A reportagem era a seguinte:
- A carioca Teresa Aguilar, 29 anos, foi condenada à morte por fuzilamento pela Justiça da Indonésia.
Mariana levou a mão à boca para evitar o estupor. O repórter, enviado especial da emissora para fazer a cobertura do caso, prosseguiu:
- Teresa Aguilar é acusada de tráfico internacional de drogas, em julgamento realizado na tarde de ontem pela Corte Provincial de Tangerang, em Jacarta.
Teresa foi presa há cinco anos, no aeroporto de Jacarta, acusada de transportar três quilos de cocaína escondidos em suas malas. Na ocasião, ela disse ter sido usada por um grupo de traficantes cariocas. Sem testemunhas a seu favor, foi condenada. O repórter prosseguiu, enquanto imagens de Teresa, após o julgamento, apareciam no vídeo.
- Maior país muçulmano do mundo, a Indonésia combate com severidade o tráfico de drogas. A pena máxima é o fuzilamento. Teresa Aguilar teve duas chances para tentar rever o julgamento, recorrendo em duas instâncias, processo que durou três anos. Sem sucesso, ela apelou à Corte Superior. Em último caso, ela formalizou pedido de clemência ao governo indonésio, que lhe foi negado nesta semana. A extradição da brasileira não é possível porque a Indonésia não figura na lista de países com os quais o Brasil mantém acordo de transferência de presos. A embaixada do Brasil na Indonésia confirmou que não pode interferir na jurisdição do país, informando que há, inclusive, um aviso no aeroporto alertando estrangeiros sobre o rigor da justiça local com o narcotráfico. Mariana estava estupefata:
- Meu Deus, o que Teresa foi aprontar?
- Não sei meu bem, mas ela se meteu numa grande enrascada.
- Que Deus tenha misericórdia dela.
Mariana levantou-se e foi tomar um pouco de água. Condoeu-se pelo triste fim de Teresa. Ela meneou a cabeça para os lados, incrédula. O telefone tocou e ela foi arrancada de seus pensamentos.
- Alô?
- Mariana?
- Sim.
- Virgílio.
- O que foi?
- Mariana, não sei o que fazer. Estou tão nervoso!
- Calma o que aconteceu?
- Sua mãe...
Ele não conseguia articular palavra. Estava muito exaltado.
- A bolsa de Nair estourou e...
- Coloque-a no carro e vá para a maternidade. Eu e Inácio vamos em seguida. Consegue fazer isso?
- Consigo.
- Já nos encontramos.
Mariana pousou o fone no gancho e chamou o marido.
- Inácio!
- Sim.
- A bolsa de minha mãe estourou. Precisamos ir já para a maternidade.
Ele foi correndo até a cozinha e gritou feliz:
- Ganhei!
- Como foi?
- Ganhei a aposta. Virgílio vai ter de nos levar ao Fasano. Eu disse que o filho dele e de Nair nasceria primeiro.
- Bobo! - disse ela, rindo. - Apanhe minha bolsa. Vamos descer.
Consuelo, como prometido, acompanhou Everaldo até a maternidade. Chegaram no exato instante em que o médico dava uma palmadinha no bebê e seu choro ecoava forte pela sala de parto. Virgílio chorava emocionado e pegou sua filhinha, frágil, mas linda e rechonchuda. Encostou sua cabecinha próximo ao rosto de Nair.
- Não disse que íamos ter uma menina?
Ela respondeu, entre lágrimas:
- Você acertou. E, como ganhou a aposta, o nome dela será Nicole.
Virgílio beijou a filhinha com amor.
- Eu vou ser o melhor pai do mundo. Eu juro. Você vai ver.
Consuelo apertou a mão de Everaldo.
- Que linda menina!
- Linda, minha Nicole vai ser sempre linda - tornou emocionado. - Claro que daqui a um ano seus olhinhos vão lhe dar um pouco de trabalho. Mas a ciência e os médicos, aliados à sua força de vencer, vão ajudá-la a superar sua deficiência. E não se esqueça de que vou aparecer na sua vida quando ela achar que perdeu todas as esperanças de melhora.
- Vai ser médico?
- Seguirei a profissão de meu pai.
Consuelo sorriu.
- Sidnei e Cininha concordaram em ser seus pais?
- Sim.
- Vai especializar-se em Oftalmologia?
- É o que pretendo.
- Desejo-lhe toda a sorte do mundo. Se porventura eu ainda estiver do lado de cá, irei visitá-los amiúde. Eu os estimo muito.
- Obrigado, Consuelo, por tudo que fez por mim e por Nicole. Que Deus a abençoe.
- Que Deus nos abençoe a todos.
Os dois espíritos beijaram o bebezinho e desejaram-lhe sorte na nova jornada. Depois, cada qual voltou às suas atividades. Consuelo retornou ao quarto de Ivana e Everaldo dirigiu-se para sua colônia, feliz e radiante. No caminho, enquanto se entretinha e admirava o brilho das estrelas, ele teve plena certeza de que a vida sempre torna possível, a cada um de nós, uma nova chance de ser feliz.



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É PRECISO ALGO MAIS
ELISA MASSELLI

SINOPSE

O que leva um jovem de boa família, classe média, a ingressar no triste caminho das drogas? Mesmo sabendo que é um passaporte para a dependência física, para o crime, para a infelicidade, muitos são os que mergulham nessa aventura. Imaturidade? Curiosidade? Vontade de desafiar a própria força? Meio de vencer a timidez e se auto-afirmar? Os estudiosos procuram descobrir a cura e são unânimes em afirmar que para vencer essa dependência é indispensável querer. A torça de vontade é fundamental, mas não é suficiente. Os que saíram vencedores no mundo dos vícios reconhecem que precisaram dos recursos infinitos de forças espirituais invisíveis. Essa ajuda está sempre presente, seja qual for o problema, mas só pode agir quando o interessado sustenta com a sua própria fé. É por isso que afirmamos sem medo de errar, que não basta só querer, É PRECISO ALGO MAIS... Só Deus faz o impossível.

ZIBIA GASPARETTO


A violência está espalhada por todo o mundo. Na maioria das vezes está ligada à droga, seja ela qual for. Os motivos sociais que levam muitas pessoas para a droga todos conhecemos. Mas eu não estava satisfeita. Aprendi com a espiritualidade que tudo está sempre certo e que a lei é justa. Talvez por isso muitas vezes me perguntasse o porquê das drogas existirem. Por que Deus permite? Em uma manhã, ao acordar, estava novamente no início de um novo livro. Como das outras vezes, não sabia nada sobre a história, somente o início. Sabia apenas que era a história de um rapaz envolvido com drogas. Fiquei entusiasmada, pois sabia que finalmente teria a resposta do mundo espiritual, aquela que eu tanto ansiava. Comecei a escrever. Como os outros livros, este também teve suas paradas, às vezes de dias. Fui conhecendo a história de Artur, me apaixonando por ela, mas esperava o momento em que minhas dúvidas seriam esclarecidas. Até que um dia, finalmente, a resposta chegou. Uma resposta dita de um modo simples, como só o é no plano espiritual. Quando terminei de ler, estava encantada, e pensei: Até pode ser verdade. Recebi a resposta de que realmente tudo está certo e que a lei é mesmo justa. Desejo que a história de Artur sirva como consolo para todos aqueles que direta ou indiretamente esteja envolvido com drogas, sejam quais forem, e que pensem que em algum lugar, alguém pode estar dizendo: Estou esperando por você.

UM RAPAZ NORMAL

Como em todas as manhãs, Artur acordou com sua mãe colocando a mão em seu ombro e dizendo baixinho:
- Artur, acorde, já está na hora! Seu pai está terminando de tomar banho e logo estará tomando café. Hoje você não vai sair novamente sem se alimentar.
Ele abriu os olhos, queria se virar na cama e continuar dormindo, mas ela voltou a dizer:
- Não adianta se virar, sabe que está na hora!
- Já vou, mamãe! Já vou!
- Está bem, vou descer. Não se esqueça que precisa se levantar!
- Pode ir tranqüila, já estou me levantando.
Ele disse isso, mas voltou a se virar. Ela colocou novamente a mão em seu ombro:
- Vamos, Artur, não volte a dormir!
Ele abriu os olhos e, sentando-se na cama, disse:
- Pronto, já acordei.
Ela sorriu:
- Olhe lá, estou descendo.
Ela saiu do quarto. Artur olhou a sua volta. Seu quarto era grande e arejado. Dormia em uma cama confortável, tinha seu próprio armário, onde guardava suas roupas. Havia também uma estante para guardar livros. Ao lado de sua cama seu irmão Leandro dormia tranquilamente. Em um dos cantos havia uma escrivaninha, e sobre ela um computador. Artur olhou para ele, pensando: Você é minha maior alegria. Fiquei ontem até muito tarde tentando executar aquele programa! Vou aprender tudo sobre você e os programas, e em pouco tempo dominarei todos os seus segredos. Minha avó teve uma ótima idéia quando, no meu aniversário, me deu você de presente. De todos os presentes que ganhei até hoje, e foram muitos, você foi o que mais gostei. Faltam só dois anos para eu terminar o segundo grau. Mesmo contrariando a vontade do meu pai, não vou fazer Direito, vou fazer Ciências da Computação. Quero aprender tudo a seu respeito.... Levantou-se e foi para o banheiro tomar seu banho. Enquanto se banhava, ia pensando: O dia do meu aniversário esta chegando. Vou fazer dezesseis anos. Papai quer me dar uma festa em família, mas eu não quero hoje não se usa mais isso. Os jovens comemoram o aniversário em barzinhos e danceterias. Vou ter que convencê-lo. Não vai ser fácil, mas tenho que tentar. Olhou para um relógio que havia no banheiro. Sua mãe o colocara ali exatamente para que ele não perdesse a hora.
- Estou atrasado! Preciso me vestir depressa!
Foi para o quarto, mas antes se olhou no espelho:
- Essas espinhas! Meu rosto está todo tomado por elas! Como Mariana vai me notar?
Vestiu a roupa depressa e foi para a sala de refeições. Seu pai estava terminando de tomar o café. Disse:
- Atrasado, como sempre! Novamente não vai tomar café! Não posso esperar. Vou lhe dar dinheiro, com ele poderá tomar um lanche na cantina. Vamos embora?
- Vamos, sim! Tchau, mamãe!
- Tchau, meu filho, vão com Deus...
Lá fora, entrou no carro e seu pai saiu dirigindo. Artur já estava acostumado, todas as manhãs eram a mesma coisa. Assim que o carro saiu, ele olhou para o rádio no mesmo instante em que seu pai o ligou e sintonizou em uma estação que transmitia notícias. O pai continuava dirigindo, comentando as notícias que ia ouvindo. Artur sempre respondia, mas naquele dia em especial estava com seus pensamentos voltados para Mariana. Só a conheci há alguns meses. Ela veio transferida de outra escola. Não existe menina mais bonita. Até agora, nunca havia me interessado por menina alguma, sempre só me preocupei com meus estudos. O pai interrompeu seus pensamentos, dizendo:
- Em que está pensando?
- Estou pensando no meu aniversário.
- E, esta chegando. Continua ainda com aquela idéia de não comemorá-lo em família?
- Estava pensando justamente nisso.
- Não acho uma boa idéia. Você é ainda muito criança.
- Ora, papai! Não sou mais criança! Vou fazer dezesseis anos, já estou quase terminando o primeiro ano do Ensino Médio. Logo farei o cursinho para entrar na faculdade!
- Tem razão, não é mais uma criança. Vou pensar sobre o assunto.
Parou de falar, pois uma notícia no rádio chamou sua atenção. Artur voltou seu pensamento para Mariana. E, nunca me preocupei com garotas, mas desde que a vi, senti algo diferente. Ela é mesmo muito bonita, mas nunca irá me notar. Não enquanto eu tiver essas espinhas. Sei que, embora não seja feio, também não sou bonito. Em seu rosto um sorriso se formou: Está resolvido! Vou convidá-la para minha festa, quem sabe conseguirei falar com ela. Chegaram em frente à escola. Ele deu um beijo no pai e desceu de um lado da rua; teria que atravessá-la. Seu pai sorriu, dizendo:
- Não se esqueça, estarei aqui ao meio-dia em ponto.
- Não me esquecerei! Fique tranqüilo,
O pai foi embora e ele ficou olhando o trânsito. Precisava esperar paia poder atravessar. Estava ali olhando de um lado para o outro quando viu do outro lado da rua uma aglomeração. Atravessou correndo e foi para lá; como os outros, queria saber o que estava acontecendo. Assim que chegou perto, perguntou a um amigo:
- O que esta acontecendo?
- Esse rapaz foi pego roubando aquele carro!
Ele olhou para onde o amigo apontava e viu um rapaz, que devia ter a mesma idade que ele. O rapaz estava de cabeça baixa, muito sujo e algemado. Ao seu lado, um policial e um homem, que muito nervoso, gesticulava e dizia:
- Esse marginal estava roubando o rádio do meu carro!
O policial tentava acalmá-lo:
- Fique calmo, ele agora está preso e será encaminhado.
- Espero que seja mesmo, e que fique preso por muito tempo!
Artur não entendia por que, mas sentia muita pena dele. O rapaz estava assustado e com os olhos muito vermelhos; chorava. Artur olhava para ele sem parar, não conseguia desviar o olhar. O rapaz, parecendo perceber sua insistência, por um segundo levantou a cabeça e seus olhos se cruzaram. Artur sentiu uma emoção estranha. Em seguida, o rapaz voltou a baixar a cabeça. Artur continuou ali olhando para ele, quando ouviu uma voz atrás de si, dizendo:
- Que país é este que não cuida de seus jovens!
Artur voltou-se e viu que era o professor de Ciências que estava falando.
- Por que o senhor está dizendo isso?
- Porque o que está vendo aqui é fruto de uma sociedade injusta! De um mau governo!
Antes que Artur dissesse qualquer coisa, o policial colocou o rapaz dentro do carro e, juntamente com a vítima, se afastaram. A aglomeração foi se desfazendo e calmamente Artur se dirigiu para a escola. Todos iam comentando sobre o acontecido. Artur ouvia as pessoas conversando, mas não conseguia esquecer o rosto do rapaz, nem aquele olhar. A primeira aula foi de Português. A segunda seria de Ciências. O professor entrou. Estava com um semblante multo sério. Sentou-se em sua cadeira e olhou para a classe, perguntando:
- Quem viu o que aconteceu há pouco lá fora?
Quase todos levantaram a mão. Ele continuou:
- Alguém pode me dizer o que significou aquilo?
Alguns responderam, mas Artur ficou calado, só via na sua frente o rosto assustado do rapaz. Ele não entendia e se perguntava: Como uma pessoa pode chegar a uma situação como aquela? Que será que lhe aconteceu? O professor continuava falando:
- O que viram lá fora é o produto da miséria que existe neste país! E o fruto do mau governo que aqui existe! Governo que não se preocupa com o bem-estar do povo! A miséria está tomando conta de tudo e de quase todos, não há ninguém para mudar esse estado de coisas.
Todos olhavam para ele sem entender muito bem o que diria. Ele continuou:
- Vocês todos aqui não imaginam o que seja a pobreza! Todos são bem-nascidos, podem freqüentar uma escola cara como esta, mas a maioria do povo brasileiro não tem o que comer, e muito menos escola!
Os alunos começaram a discutir sobre o assunto. Artur ouvia uns e outros, mas não esquecia o rosto do rapaz... O professor continuou falando:
- Os nossos governantes não se preocupam com o bem-estar do povo. Só estão preocupados com seus próprios interesses, ou em um modo de conseguirem ganhar mais dinheiro!
Ficou falando por muito tempo. Naquele dia praticamente não deu aula, só falou sobre esse assunto. A aula terminou, outros professores chegaram, mas nenhum deles tocou no assunto. Artur prestou atenção às aulas. Tinha isso por norma, achava que se prestasse atenção quando o professor ensinava, teria mais facilidade para aprender. Quando as aulas terminaram, foi para o lugar do encontro com o pai. Em seguida ele chegou. Sorrindo, abriu a poria. Artur entrou. O pai, embora estivesse dirigindo, notou que ele estava muito calado:
- Aconteceu alguma coisa? Tenho a impressão que tem alguma preocupação.
- Aconteceu algo pela manhã que me impressionou muito. O professor de Ciências comentou na aula.
- Que foi que aconteceu?
Artur contou todo o acontecido. O pai ouvia em silêncio. Quando Artur terminou de falar, ele estava furioso:
- Esse professor é um idiota! Vou talar com a diretoria da escola! Que fruto de pobreza nada! São pessoas que nascem marginais! Nada, além disso! Você não tem que ficar preocupado dessa maneira. É um menino estudioso, que sempre se esforçou para aprender. Eu fui um menino pobre, e nem por isso me tornei um bandido. Estudei, e hoje sou um advogado bem-sucedido. Se você tem tudo, se pode estudar em uma escola como a sua, é porque também estudei muito e posso dar a você e a seu irmão o melhor!
- Chegaram em casa. Entraram. Artur continuava calado. Foi para o seu quarto, olhou à sua volta, ouvia a voz do professor dizendo: Enquanto vocês têm tudo, outros, e são muitos, não tem nem o que comer! Trocava de roupas e pensava: O professor tem razão, realmente tenho tudo. Aquele rapaz deve ser muito pobre, por isso estava roubando, devia estar com fome. Após terminar de se vestir foi para a sala almoçar. Seu irmão, Leandro, quatro anos mais novo que ele, estava sentado diante de um prato com batatas frita. Odete, a mãe, fazia isso para evitar que eles roubassem batatas um do outro, mas não adiantava, eles continuavam. A uma pequena distração, lá se iam às batatas. Artur sentou, mas para surpresa do irmão, não tentou roubar suas batatas. Permaneceu calado. Sua mãe estranhou:
- Artur, o que você tem?
- Não tenho nada, só estou pensando em algumas coisas.
Nesse exato momento, Álvaro, o pai, entrava na sala:
- Ele está preocupado porque presenciou uma cena que o impressionou.
- O que foi?
Artur contou. Quando terminou, ela perguntou:
- O que esta pensando a respeito?
- No rosto daquele rapaz, que parecia tão assustado, e em tudo aquilo que o professor disse. Será que existe mesmo toda essa pobreza? Será que as pessoas roubam por não terem o que comer?
Álvaro, interrompendo a conversa, respondeu:
- Já disse várias vezes que a pobreza não tem nada a ver com a marginalidade! Você não tem que ter sentimento de culpa por ter comida e boa escola. Trabalho muito para isso. O que tem que fazer é estudar o máximo que puder para que amanhã seus filhos possam ter uma vida igual, ou melhor, que a sua!
- Espere Álvaro! Sabe que dou aula na periferia e vejo muitas crianças com fome, e às vezes sem um agasalho. A pobreza existe, sim!
- Não estou negando isso, só estou dizendo que ela não é a causa da marginalidade. Quer ver uma coisa? Iracema, você mora na favela, não é?
Iracema era a empregada da casa. Já estava com eles havia muito tempo, desde que Artur tinha seis anos e Leandro dois. Ela ficava ali durante a semana e ia para sua casa na sexta-feira à tarde. Voltava no domingo à tarde, pois morava longe e precisava tomar duas conduções. Assustada com a pergunta de Álvaro, respondeu:
- Moro lá sim sinhô.
- Todos lá são bandidos?
- Não, dotô! Tem muita família boa que mora lá. Eu mesma vim do interior com meu marido porque lá não tinha trabaio. Assim que nóis chegô, ele morreu, fiquei com cinco filhos. Nenhum deles, graças à Deus, é bandido, não!
- Estão vendo? Imaginem se todos os pobres fossem bandidos! O que seria do mundo? Existem pessoas que já nascem com o instinto da maldade.
- Mas você não pode negar que se todos tivessem as mesmas oportunidades, poderia ser diferente...
- Oportunidades existem aos montes, temos que procurá-las. Quando jovem, com catorze anos, por necessidade de ajudar minha mãe, que era viúva, comecei a trabalhar como faxineiro em um escritório de advocacia. E hoje, além de ser um bom advogado, tenho o meu próprio escritório.
- Você teve sorte que o seu patrão se interessou por sua educação. Ele gostou de você e o encaminhou.
- Sorte? Não foi sorte! Desde o primeiro dia em que cheguei ao escritório sempre me interessei em aprender tudo. Ficava vendo os advogados discutindo algum caso. Prestava atenção e ia encontrando as soluções. Lia muito os códigos. Sempre fui e sou até hoje muito interessado.
- Dotô! O sinhô me dá licença! Já que o dotô ta dizendo isso, quero aproveitá esse momento pra pedir uma coisa, posso?
- Claro que pode o que é?
- O dotô já me ouviu falar sobre o meu filho Jarbas, num já?
- Sim, me parece que ia prestar o vestibular para Direito, não é isso?
- Isso mesmo, ele passou no vestibulâ, só que agora não tem dinheiro para paga a faculdade. Queria vê se o dotô não arranjava um emprego pra ele lá no seu escritório. Pra ele podê continua estudando
- Quantos anos ele tem?
- Vai fazê vinte e quatro anos em dezembro.
- Só agora prestou o vestibular?
- Lá onde a gente morava era muito pobre, num tinha escola. Também ele é o maior dos meus filho, precisava ajudá o pai no trabaio. Quando chegamo aqui, ele tinha doze anos. Coloquei ele na escola pra podê aprendê a leitura.
- Ele não fez o primário?
- Não, foi por isso que meu marido quis vim pra cá, pra que os minino pudesse estudá. Quando o pai morreu, ele teve que para de estuda e começô trabaiá pra me ajuda cria os otro. Depois de um tempo, eu e otro filho menor que ele começamo trabaiá também, aí ele foi estudá di noite. Não paro mais. Diz sempre que vai sê adevogado.
- Parece ser um rapaz com muita boa vontade. Mande-o Lá ao escritório, conversarei com ele. Está vendo, filho? Esse moço é pobre, mas se for honesto e interessado, terá toda a minha assistência. Não gosto de marginal! Tanto é que no meu escritório tramito por todas as varas, menos a criminal. Nunca vou defender um bandido!
- Brigada, dotô!
- Que é isso? Você já está há tanto tempo conosco que já a considero parte da família! Em tudo o que puder ajudar seu filho, ajudarei.
Iracema foi para a cozinha sorrindo intimamente. Sabia que seu filho nunca a decepcionaria: O meu filho vai sê um dotô! Ele sempre estudo muito! Terminaram de almoçar. Odete e Leandro foram para a escola. Ela dava aula à tarde em uma escola na periferia, e antes de ir para sua escola deixava Leandro na dele. Álvaro foi para o escritório. Artur ficou um pouco na sala assistindo televisão, depois foi para o seu quarto. Estava estudando um programa novo de computador. Com esse programa poderia fazer qualquer tipo de trabalho relativo a números. Sentou-se em frente ao computador e começou a estudar. De repente, a imagem de Mariana surgiu à sua frente: Ela é tão bonita, parece ser muito meiga, mas nunca me notará. Ao menos enquanto eu tiver todas essas espinhas em meu rosto... Com esta voz que não é nem grossa nem fina... Quem sabe na festa eu consigo me aproximar. Será que ela vai comparecer à minha festa? Tomara que sim. Levantou, olhou pela janela. O dia estava lindo. Olhando para a rua, voltou a se lembrar do rapaz. Por que será que chegou àquele ponto? Será que é mesmo muito pobre? Por que será que existem pobres no mundo? Voltou para o computador, continuou estudando aquele programa. No dia seguinte, na hora do almoço, Álvaro, ao chegar em casa, disse:
- Iracema, seu filho esteve hoje no escritório. Conversei muito com ele e gostei. Percebi que ele tem muita vontade de estudar, e pela sua perspicácia, será um bom advogado. Ele vai começar a trabalhar no escritório. A princípio, ajudará na limpeza e irá ao fórum para levar e trazer papéis. Disse a ele que vou testá-lo por um mês. Se ele mostrar interesse pelo trabalho, pagarei sua faculdade e darei mais algum dinheiro para que se mantenha. Ele será um ótimo advogado! Vou fazer por ele o mesmo que um dia alguém fez por mim.
- Muito obrigada, dotô! Tenho certeza que o dotô não vai se arrependê.
- Não vou, não! Tenho certeza!
Os dias se passaram. Faltavam poucos dias para a festa. Artur estava ansioso para que a hora chegasse, mas por outro lado, seus pais não se conformavam com aquele negócio de festa só para amigos em uma danceteria. Artur tentava convencê-los:
- Papai, mamãe, hoje as coisas mudaram, todos os meus amigos estão fazendo assim, não posso ser diferente!
Odete abraçou seu filho:
- Sei que você está certo, mas não pode impedir que estranhemos. Gostaria de uma festa aqui em casa para toda a família, como fazíamos quando você era criança. Nessa sua festa, como você disse, nós não poderemos comparecer Tem que aceitar que fiquemos descontentes.
Artur beijou sua mãe, dizendo:
- Dona Odete... Dona Odete. Seu filho cresceu, não é mais uma criança. Já sou quase um homem completo, olhe a minha voz!
Ela o beijou novamente:
- Tem razão, meu filho, preciso me acostumar. Mas para os pais um filho sempre será uma criança. Estou muito orgulhosa do filho que tenho! Precisamos saber o que vai querer de presente.
Artur ficou pensando por um breve instante, depois disse pausadamente:
- Presente? Presente... Eu queria um tênis importado.
Álvaro os interrompeu:
- Por que importado? Os nacionais são muito bons. E iguais a qualquer outro!
- Ora, papai! Todos os meus amigos estão usando tênis importados!
- Está bem, quanto custa?
- Mais ou menos oitenta dólares...
- Oitenta dólares?! E muito dinheiro!
- Sei que é, mas tenho tanta vontade de ter um...
- Ora, Álvaro, não é tão caro assim, se vai fazer o nosso filho feliz! Ele merece. E um bom aluno, não nos dá trabalho algum...
- Está bem, vamos à tarde comprar, mas use o tênis só de vez em quando. Ele terá que durar muito!
- Prometo que vai durar muito. Eu adoro os dois!
- Nós também o adoramos, meu filho. Seu pai, embora pareça um durão, na realidade não passa de um meloso e muito orgulhoso do filho!
- Quem disse que sou durão! Estou, sim, muito orgulhoso de você, meu filho. Feliz aniversário!
- Obrigado, papai. Tenho também muito orgulho do senhor. É o melhor pai do mundo!
Álvaro passou a mão nos cabelos de Artur num gesto carinhoso. Depois de muito pensar, disse:
- Está bem, meu filho. Já que tudo está mudando, preciso aceitar essas mudanças. Pode fazer sua festa onde quiser.
Artur levantou-se e abraçou o pai:
- Obrigado, papai. Não se preocupe, não vai acontecer nada demais. Só vou reunir meus amigos.
- Está bem, acredito nisso.
Naquela mesma tarde saíram para comprar o tênis. Artur escolheu e comprou aquele que mais gostou. Depois foram tomar um lanche. Daquele dia em diante, Artur se dedicou à preparação da sua festa. Fez contrato com a danceteria, marcou o dia, enviou convites para seus primos, primas, colegas da escola de natação e do curso de computação. Estava ansioso, pois teria a oportunidade de ficar ao lado de Mariana. Talvez tivesse coragem de se aproximar e conversar com ela.

MOMENTO DE DECISÃO

Finalmente o dia da festa chegou. Pela manhã, ao acordar e descer para o café, Artur teve uma surpresa. Em cima da mesa havia um bolo com dezesseis velinhas. Sua mãe disse:
- Sei que não quer nossa presença na sua festa, mas não pode nos impedir de cantar os parabéns.
Ele se emocionou. Os pais, Leandro e Iracema o estavam esperando. Cantaram os parabéns, comeram o bolo e em seguida entregaram os presentes. Iracema costumava ir para sua casa às sextas-feiras, mas naquela sexta não foi. Levantou-se muito cedo no sábado, queria dar os parabéns para Artur. Estava feliz por ver seu menino completar dezesseis anos. Aproximou-se:
- Muitas felicidades. Sei que vai te na vida tudo que deseja, é um bom minino e merece sê feliz.
- Obrigado, Iracema, sei que está sendo sincera.
- Craro que to! Te conheci quando era ainda um menininho, e hoje já ta um moção qui dá gosto!
Em seguida ela saiu. Odete quis passear e almoçar fora, queria comemorar o aniversário do filho. Passearam, almoçaram em um restaurante e voltaram para casa. Artur foi para o quarto se preparar para a festa. Viu no armário seu tênis novo. Pensou: Esse meu pai vale ouro! Vou guardar este tênis e só usá-lo em momentos especiais. Terminou de se vestir e desceu:
- Nossa, meu filho! Como você está bonito! Já está quase um homem mesmo!
- Obrigado, mamãe, mas estou atrasado. Papai, o senhor me leva até lá?
- Claro que sim, vamos indo.
Álvaro, acompanhado por Odete e Leandro, levou Artur até a entrada da danceteria. Artur não cabia em si de tanta felicidade. Quando estava saindo do carro, Álvaro perguntou:
- A que horas quer que venha buscá-lo?
- Não precisa papai, não sei a que horas vai terminar. Voltarei para casa com algum amigo, pode descansar sossegado.
- Acredita mesmo que vou ficar descansado até que volte para casa?
- Claro que sim! Não se preocupe, vou ficar muito bem, aqui tenho muitos amigos.
- Está bem, vou tentar não me preocupar.
Enquanto Artur entrava, os pais voltavam para casa. Dentro do carro, Leandro, acostumado a dormir cedo, adormeceu. Álvaro e Odete iam conversando:
- Sabe Odete, nem acredito que os nossos filhos já estejam criados. Artur está fazendo hoje dezesseis anos, e Leandro já está com doze. Estamos ficando velhos!
- Eles estão crescidos, não criados! São duas pérolas que Deus nos mandou!
Álvaro sorriu, e seguiram para casa. Enquanto isso, Artur entrava na danceteria. Ficou encantado com toda aquela iluminação. Ainda não havia chegado ninguém. Ele, sendo o aniversariante, precisou chegar primeiro para receber os demais. Ficou ali olhando tudo. Estava emocionado, pois era a primeira vez que seu aniversário seria comemorado longe dos seus familiares. Precisava que fosse assim, pois aquilo já havia se tornado normal. Já havia participado de muitos outros aniversários de colegas, por isso sabia que eles iriam. Mas, mesmo assim, estava ansioso, e no fundo sentia medo que não aparecessem. Aos poucos foram chegando. Alguns em turmas, outros sozinhos. Logo o ambiente estava todo tomado de muita alegria. Artur não cabia em si de felicidade. Os amigos chegavam e o cumprimentavam. Ele olhava a todo instante para a porta de entrada, esperando ver Mariana entrar por ela. De todos ali, quem mais ele queria ver era ela. Finalmente ela chegou, acompanhada por mais duas garotas. Aproximou-se dele e deu-lhe um beijo no rosto enquanto dizia:
- Feliz aniversário, espero que esteja e seja muito feliz!
- Obrigado por ter vindo.
Ela sorriu as amigas também o cumprimentaram. Afastaram-se, foram se encontrar com outras garotas. Ele ficou ali, olhando-a afastar-se. Estava tremendo, sentia ainda os lábios dela em seu rosto. Estava assim quando se aproximou um rapaz dizendo:
- Olá, Artur, feliz aniversário! Esta olhando para Mariana? Ela é mesmo muito bonita!
Artur voltou-se. Sorriu, respondendo:
- Olá, Rodrigo! Obrigado por ter vindo. Estou olhando mesmo, mas do que adianta? Ela nunca vai me notar, a não ser como amigo!
- Que é isso, amigo? Você até que é um cara legal e bem apanhado. Só tem que chegar até ela e dizer o que está sentindo!
- Nunca vou ter coragem para isso!
- Se quiser, posso ajudar!
- Como?
- Tenho aqui um cigarro. Se você fumar, vai se sentir bem.
- Cigarro?
- Não é bem um cigarro, mas sei que vai lhe fazer muito bem. É maconha.
- Maconha! Está louco? Nem pensar! Eu nem sequer fumo cigarro comum!
- Deixe de ser careta! A maconha não é tão ruim assim! Só se vicia quem quer! Mas em horas como esta, em que está se sentindo inseguro, nada como uma "puxada" pra ajudar. Experimente! Vai ver como vai se sentir outro!
- Nem pensar! Não quero entrar nessa!
- Você é quem sabe. Estarei aqui à noite toda. Se quiser, basta pedir. Sei que não vai se arrepender!
Artur se despediu e foi conversar com outras pessoas. Rodrigo ficou olhando de longe. Enquanto todos dançavam, Artur, que não sabia dançar, ficava andando de um lado para o outro. Mariana parecia feliz, ria muito, conversava com um pequeno grupo. Artur a observava enquanto pensava: Preciso me aproximar dela, mas como fazer isso? Ela é tão linda! Não vai nem querer me olhar! Queria, mas não conseguia, sentia-se muito alto e magro. Aquele rosto cheio de espinhas o incomodava. Não tinha coragem de se aproximar. Continuou assim, andando de um lado para o outro, conversando, mas seus olhos não se afastavam dela. Estava no balcão tomando um refrigerante quando Rodrigo se aproximou:
- Então, Artur! Conseguiu falar com Mariana?
- Não! Ainda não, mas até o final da noite vou conseguir.
- Vai nada! Você não tem coragem! Já disse que uma "puxada" vai ajudar você! Verá que assim tudo ficará mais fácil!
- Está maluco? E se eu me viciar?
- Viciar? Que nada! Só se vicia quem quer! Você só vai ter coragem para falar com Mariana, nada mais que isso! Amanhã não vai nem se lembrar!
- Tem certeza? Acredita que eu teria coragem para falar com ela?
- Claro que sim! Tente! Uma vez só não tem problema algum! O que não pode é ficar fumando sempre. Mas uma vez só não vai acontecer nada!
Artur afastou-se, foi para a sacada, precisava respirar. Sentia-se agoniado: Será que vou conseguir falar com ela? Dançar, ser agradável? Fazer com que ela me note. Voltou para dentro. Mariana permanecia junto a um grupo. Ria e falava muito. Artur tentou se aproximar, mas não conseguiu. Olhou para o outro lado. Rodrigo estava olhando para ele e sorrindo. Artur não pensou mais, aproximou-se do amigo:
- Rodrigo, você tem mesmo "aquilo" aí?
- Tenho! Resolveu tentar? Garanto que não vai se arrepender..
Artur olhou mais uma vez para Mariana, percebeu que ela até então não o havia notado. Decidido, disse:
- Está bem, vou tentar! Como vamos fazer?
- Muito bem, verá como vai se sair bem! Vamos lá para fora, daremos uma volta pelo quarteirão. Quando voltar será uma outra pessoa.
Saíram. Já na rua, Rodrigo acendeu um cigarro para si e outro para Artur. Com muita paciência, ensinou como o amigo deveria fazer para "puxar". Artur, a princípio, estava um pouco receoso. Levou um tempo para aprender como fumar. Tossiu um pouco, mas percebeu que estava se sentindo muito bem. Os dois, fumando, deram uma volta no quarteirão. Assim que terminaram os cigarros, voltaram para dentro da danceteria. Artur sentia-se estranho, parecia que levitava. Lá dentro viu Mariana, que ao longe continuava conversando e se divertindo muito. Ele se aproximou:
- Mariana! Já que sou o aniversariante, você me deve uma dança, pode ser?
Ela e os amigos com quem estava conversando estranharam aquela atitude de Artur, pois todos o conheciam como um grande tímido. Mais por surpresa do que por vontade, ela aceitou. Saíram dançando, e para surpresa dela, percebeu que ele dançava muito bem:
- Pensei que você não soubesse dançar.
Ele, rindo muito, respondeu:
- Também pensei! Acredito que eu só tinha medo!
- Como esse medo terminou!
- Não sei, mas agora me sinto mais seguro.
Dançaram muito. Ele, falante, chamou a atenção dela. Por ter sido sempre um bom estudante, ele tinha muitos assuntos, falava sobre tudo. Ela ficou encantada:
- Sabe Artur, nunca pensei que você fosse tão agradável assim, estou surpresa! Você é muito inteligente!
Conversaram, dançaram e se divertiram o resto da noite. Artur não cabia em si de tanta felicidade. Em dado momento, enquanto dançavam, seus lábios se encontraram, e trocaram um beijo. Para ele, aquilo foi à suprema felicidade. Finalmente ele conseguira aquilo com que sonhara desde que a vira pela primeira vez. A noite passou, o pai de Mariana foi buscá-la. Despediram-se com mais um beijo. Aos poucos, todos foram embora. Artur ficou com Rodrigo e mais alguns colegas. Saíram juntos. Um deles possuía carro. Entraram todos. Dentro do carro, mais cigarros foram acesos. Em determinado ponto, o motorista parou o carro e todos desceram. Haviam parado junto a um telefone publico, e rindo muito, destruíram-no. Artur, até aí, já havia fumado dois cigarros, mas estava muito bem, nunca se sentira solto daquela maneira. O carro parou em frente a sua casa. Ele desceu e entrou. Os outros continuaram sua jornada. Já em casa, encontrou seu pai, que estava na sala assistindo televisão. Ao ver o pai, ele ficou um pouco assustado, com medo que percebesse que estava diferente. Disse:
- Boa noite papai, ainda não foi dormir?
- Não, estava esperando você chegar. Tentei, mas não consegui dormir. Estava preocupado.
- Não precisava ficar preocupado, estou muito bem, só um pouco cansado. Vamos dormir?
O pai sorriu, beijou sua testa e os dois subiram para seus quartos. Ao entrar em seu quarto, Artur sorriu ao ver seu irmão dormindo ali. Levantou o cobertor e cobriu-o enquanto pensava: Não adianta, ele definitivamente nunca vai dormir em seu quarto. Ainda sorrindo, deitou-se. Lembrou-se da noite que passara e da felicidade que sentira por ter finalmente tido coragem de falar com Mariana. Lembrou-se também do beijo. Suspirou profundamente: Quando acordou já era mais de meio-dia. Abriu os olhos, olhou a sua volta. A cama de Leandro estava vazia: Que horas serão? Leandro não está mais dormindo. Ah, Leandro! Não tem jeito, nunca vai dormir sozinho. Mamãe; fez para ele um lindo quarto, mas não adianta, ele quer dormir comigo. Eu não ligo gosto muito dele e não me atrapalha em nada. Suspirou fundo enquanto pensava: Que noite maravilhosa eu passei! Aquele cigarro que Rodrigo me deu foi a melhor coisa que poderia ter-me acontecido. Com ele, consegui me aproximar de Mariana. Como ela é linda.... Sentou-se na cama, mas voltou a se deitar: Estou com dor de cabeça e de estômago. Deve ser fome, vou me levantar. Foi o que fez. Levantou-se, foi para o banheiro, tomou um banho, vestiu a roupa e desceu. Seu pai estava na sala lendo o jornal, Leandro assistia televisão, sua mãe devia estar na cozinha, pois aos domingos Iracema não ia trabalhar. Ele entrou na sala dizendo:
- Bom dia, papai! Dormi muito, não foi?
- Foi, sim, mas precisava. Parece que teve uma noite muito agitada!
Artur lembrou-se do telefone quebrado. Receoso, disse:
- Por que o senhor está dizendo isso?
- Porque sempre que vai a essas festas chega cedo. Mas ontem foi diferente, quando chegou já estava quase amanhecendo. Parece que a festa foi muito boa. Aconteceu alguma coisa?
- Não! Nada especial. Só que a festa estava boa mesmo.
Leandro disse:
- Papai, ele deve ter arrumado uma namorada!
Artur, ao ouvir aquilo, aliviado e rindo, jogou uma almofada na cabeça do irmão, que ria sem parar:
- Não foi nada disso, mas, e se tivesse sido? O que tem a ver com isso?
- Ele não tem nado mesmo, mas eu tenho. Você é ainda muito jovem, por enquanto deve se preocupar só com os estudos.
- Sei disso, não precisa se preocupar, vou ser o rei do computador!
- Preferia mesmo que fosse o rei dos advogados, mas se é isso que deseja que seja.
- Parece que os meus três homens estão muito bem hoje!
Era Odete, que entrava na sala e sorria. Artur levantou-se e foi até a mãe. Abraçou-se a ela, dizendo:
- Estamos, sim, nossa família é uma beleza. Também, com uma mãe tão bonita assim, como não seria?
- Está bem, já conheço você muito bem. O almoço já está pronto. Com esse papo não vai se livrar de arrumar a mesa.
Ela, rindo, saiu da sala. Artur e Leandro levantaram-se e foram para a sala de Jantar. Arrumaram a mesa com esmero, como a mãe os havia ensinado.

PRIMEIROS SINTOMAS

Almoçaram tranqüilos. Artur estava com muita fome, tanta que sua mãe se surpreendeu:
- Nossa, Artur, parece que faz um ano que não come! O que está acontecendo?
- Não está acontecendo nada! Só estou com fome! Não entendo, a senhora vive brigando porque não como, e agora está brigando porque estou comendo!
Os três olharam para ele, intrigados pelo tom de voz que usara:
- Não, meu filho, não estou brigando, estou até feliz! Por que está tão nervoso assim?
- Não estou nervoso, mas não quero comer mais! Vou para o meu quarto!
Levantou-se e ia saindo da mesa quando Álvaro, com voz firme, disse:
- Mocinho! Pode pedir desculpas a sua mãe e voltar a se sentar. Ainda não terminamos o almoço!
Só então Artur se deu conta de que havia sido mal-educado coma mãe:
- Desculpe mamãe, não sei o que me deu... Acredito que foi por estar cansado. Não estou acostumado a dormir tão tarde!
- Não se preocupe, volte a se sentar e termine seu almoço.
Ele voltou a se sentar. Continuou comendo, mas sentiu uma espécie de enjôo. Não disse nada, mas após o almoço pediu licença e foi para o seu quarto. Lá chegando, deitou-se na cama e começou a relembrar a noite anterior: O que será que tem naquele cigarro? Só sei que por causa dele consegui me aproximar de Mariana. Ela também parece que gostou da minha companhia. Amanhã na escola vou falar com ela novamente. Será que ela vai querer falar comigo? Levantou e olhou-se no espelho. Seu rosto ainda continuava cheio de espinhas. Sentiu uma cerca insegurança: O que ela viu em mim para que eu a agradasse! Será que ela não quis só ser educada? Não sou bonito como o César... César era um rapaz muito bem apessoado. Tinha dezoito anos. Era atleta, tinha um corpo perfeito. Todas as meninas da escola dariam tudo para que ele as olhasse. Artur, embora não fosse feio, estava começando a tomar corpo. Sentia que Mariana preferia que fosse César quem se interessasse por ela. Ficou no quarto dormindo quase a tarde toda.
- Artur, acorde! Mamãe está chamando, está na hora de irmos para o restaurante.
Ele abriu os olhos. Leandro o estava chamando. Com muito custo, conseguiu ficar com os olhos abertos. Lembrou-se que em quase todos os domingos iam jantar fora. Disse:
- Já vou me levantar. Logo estarei lá embaixo.
Leandro não disse nada. Saiu. Artur ficou mais um pouco de tempo deitado, depois se levantou. Sua cabeça doía. Deve ser porque não estou acostumado a dormir à tarde. Ou por ter passado quase a noite toda acordado. Relembrou mais uma vez de tudo o que havia acontecido na noite anterior: Estava muito legal, mas como ajudei a quebrar aquele telefone público? Será que foi o efeito do cigarro? Talvez tenha sido por isso é melhor que eu não volte a fumar. À noite saíram, foram jantar. Voltaram, ele foi para o seu quarto, ligou o computador e ficou estudando a lição que havia aprendido na última aula. Seus planos eram: assim que terminasse o ensino médio, prestaria vestibular para a Faculdade de Ciências da Computação. Queria essa profissão. Sabia que com ela teria seu futuro garantido, já eram quase onze horas quando resolveu dormir. No dia seguinte foi à mesma rotina. Acordou atrasado, o pai lhe deu dinheiro para o lanche. Quando chegou à escola viu Mariana conversando com outras meninas. Estremeceu, não sabia o que fazer ou como encará-la. Viu também Rodrigo, que se aproximava:
- Bom dia, Artur! Tudo bem com você?
- Bom dia, está tudo bem.
- Vi que estava olhando para Mariana.
- Estava sim, ela é mesmo muito bonita.
- Agora já sabe que pode falar com ela e, quem sabe, começar um namoro.
- Namorar! Não, ela é muito bonita! Não vai querer namorar alguém como eu!
- Que bobagem você está dizendo! Ela pareceu estar muito feliz ao seu lado. Parece que gosta de você...
Artur olhou novamente para Mariana que, distraída, conversando, não viu quando ele chegou. Disse:
- Não sei, não, acho que você está delirando. Ela nunca vai me querer.
Rodrigo não disse nada, apenas sorriu. Todos entraram para a sala de aula. Mariana passou por Artur e sorriu. Durante a primeira aula, ele arriscou olhar para ela, mas assim que percebia que ela também o estava olhando, tremia e desviava o olhar. Na hora do lanche ela continuou com as amigas. Artur estava comendo quando Rodrigo se aproximou:
- Então, Artur, já resolveu conversar com Mariana? Percebi que ela está lhe dando uma bola danada!
- Você está louco! Ela nem sabe que existo.
- Por que não vai falar com ela?
- Não posso! Nem sei como me aproximar...
- Tenho a solução, E só querer.
- Outro cigarro? Não, não posso!
- Você é quem sabe. Já viu que não fez mal algum.
Artur falou nervoso:
- Não, não quero isso é muito perigoso!
- Perigoso por quê:
- Fosso me viciar, e já ouvi muitas histórias...
- Disse bem, muitas histórias. Ninguém se vicia. Só continua nas drogas quem quer. Isso de vício é mentira.
- Tem certeza?
- Claro que tenho. Eu mesmo só uso quando quero, quando estou a fim. Se quisesse, hoje mesmo pararia.
- Tem certeza disso?
- Estou dizendo! Já uso há algum tempo, mas só quando quero.
- Não sei, não. Tenho medo.
- Por isso é que não consegue se aproximar dela. Tem medo de tudo!
Artur olhou novamente para o lado em que Mariana se encontrava. Ela continuava conversando com as colegas. Arriscava um olhar para ele, que assim que percebia, desviava o seu. Voltaram para a aula. Ele, como sempre, prestou atenção na aula e entendeu o que os professores ensinavam. Durante alguns dias foi assim. Ele olhava para Mariana, mas não tinha coragem de se aproximar. Rodrigo estava sempre por perto. Fazia já quinze dias desde aquela noite. Artur, em casa, fazia planos de como faria para falar com Mariana, mas sempre que ela se aproximava, ele não conseguia dizer o que havia planejado. Em uma manhã, quando estava tomando lanche, Mariana se aproximou:
- Olá, Artur. Por que você não me procurou mais desde aquela noite?
Ele começou a tremer, não sabia o que dizer. Ela continuou:
- Pensei que havia gostado da minha companhia!
Ele disse com a voz baixa:
- Claro que gostei só que estou estudando muito nos últimos tempos.
Ela apenas sorriu:
- Eu também estou estudando, mas nem por isso preciso me isolar das pessoas.
Ele não sabia o que dizer. Queria continuar conversando, mas não tinha assunto. Sorrindo, afastou-se. Agradeceu intimamente quando ouviu o sinal para que os alunos voltassem para a classe. Mais três dias se passou. Em casa, ele imaginava, mas na presença da Mariana, sua voz sumia. Naquela manhã, enquanto ouvia as explicações do professor de Português, arriscava olhar para ela, mas assim que a percebia olhando, rápido disfarçava, fingia que estava olhando para o outro lado. Em uma dessas vezes, seu olhar cruzou-se com o de Rodrigo, que prestava atenção nele. Um pouco sem graça, desviou o olhar. Sem perceber, começou a se lembrar daquela noite em que beijara Mariana: Naquela noite foi tudo tão fácil... eu sabia o que fazer ou falar... por que não consigo hoje? Será que Rodrigo tem razão? Será que se eu fumar mais uma vez conseguirei talar com Mariana. Não, é perigoso, meus pais sempre me alertaram contra isso. Mais um dia se passou. À noite, sozinho em seu quarto, voltou a se lembrar de Mariana e de como ela era bonita. Antes de dormir, resolveu: Amanhã vou falar com ela de qualquer maneira. Nem que seja preciso fumar novamente aquele cigarro. Vai ser só mais um. Na manhã seguinte, assim que chegou à escola, olhou para Mariana, tentou se aproximar, mas mais uma vez começou a tremer. Desviou o olhar e entrou na sala de aula. Durante o tempo todo tentou olhar para ela, mas não conseguia. O sinal tocou, era hora de todos irem para a cantina. Enquanto saíam, Rodrigo se aproximou:
- Então, Artur, como está?
- Estou bem, mas preciso falar com você.
- Que aconteceu?
- Quero falar com Mariana, mas não estou conseguindo. Será que você não poderia me arrumar outro cigarro daqueles?
Rodrigo começou a rir:
- Quer mesmo? Disse que tinha medo, que não queria...
- Tenho medo, pois sempre fui muito alertado, mas já faz algum tempo que fumei e não senti falta. Por isso sei que posso fumar só quando quiser. Vou fumar só mais um, falarei com Mariana e não vou precisar mais.
- Você é quem sabe. Tenho um aqui, se quiser, é pra já...
- Aqui na escola?
- Claro que não. Vamos sair, e na rua usaremos. Faço companhia pra você.
- Como sair? Não nos deixarão passar pelo portão!
- Não tem ninguém no portão, sempre saio. Vamos!
Ele acompanhou Rodrigo e estranhou que na portaria da escola não havia mesmo ninguém. Logo os dois estavam em uma pracinha que havia ali perto. Sentaram-se. Rodrigo tirou do bolso dois cigarros. Acendeu um e deu para Artur. Este olhou para o cigarro e para Rodrigo. Pensou um pouco, em seguida deu a primeira tragada. Essa foi a mais difícil, as outras foram mais rápidas e fáceis. Assim que terminaram o cigarro, voltaram para a escola. Ele não estava sentindo nada. Já na sala de aula arriscou novamente olhar para Mariana, justamente no momento em que ela estava olhando. Ele sorriu. Ela, admirada, sorriu também. Após o termino da aula, no corredor, ele se aproximou:
- Mariana, preciso falar com você.
Ela estranhou aquela atitude. Um pouco desajeitada, disse:
- Que bom, pensei que este dia nunca fosse chegar! Você está diferente! O que aconteceu?
Ele, rindo muito, respondeu:
- Diferente como? Só estou feliz por estar conversando com você.
- E só isso mesmo?
- Claro que é! Não quer conversar comigo!
- Que idéia! Estou feliz por isso. Só que não pode ser agora, minha mãe já deve estar lá fora me esperando.
Só então ele se lembrou do pai. Descontente, disse:
- Meu pai também deve estar aí fora, ou quase chegando.
Quando poderemos nos ver com mais calma?
- Hoje à tarde não vai dar, pois vou à aula de bale, mas amanhã, se quiser, pode ir tomar um lanche lá em casa. Você quer!
- Claro que sim. Amanhã lá pelas quatro vou até sua casa.
Chegaram ao portão, Mariana viu a mãe, que a estava esperando. Acenou para Artur se dirigiu a ela. Artur ficou olhando-a se afastar. Percebeu que o pai ainda não o estava esperando. Foi para o ponto de encontro. Não conseguia ficar parado, andava de um lado para o outro. Nunca seu pai demorara tanto para chegar. Finalmente o pai chegou. Artur entrou no carro e seguiram para casa. Durante o caminho seguia calado. Embora sentado, não conseguia ficar parado. Movia-se muito, Álvaro estranhou:
- Artur! O que você tem? Não pode ficar parado?
Artur demorou um pouco para responder:
- Não tenho nada. Só estou com fome.
- Tenha um pouco de paciência. Estamos chegando em casa. Sabe que o almoço está pronto.
Artur não respondeu. Voltou seu rosto para a janela e ficou olhando o caminho. Não sabia o que dizer. Não havia notado que estava se metendo canto. Tentou se controlar. Finalmente chegaram. Ele desceu quase correndo. Entrou em casa, subiu as escadas e foi para o seu quarto. Iracema estava preparando a mesa para o almoço. Viu Artur entrando calado e correndo. Admirou-se, pois sempre que ele chegava da escola brincava com ela ou dizia algo, mas nesse dia não fez nada. Admirou-se, mas não disse nada. Em seu quarto, Artur se jogou na cama. Preocupado, pensava: Não entendo o que está acontecendo. Por que este mal-estar? Por que esta vontade de chorar? Este vazio? Precisava descer para o almoço, mas não sentia fome alguma. Após alguns minutos, trocou de roupa e desceu. Almoçou em silencio, Leandro tentou falar com ele, mas não obteve resposta. Todos estranharam. Odete disse:
- Artur, o que você tem?
Ele também não entendia aquilo que sentia. Achou que aquele era o momento de contar o que estava passando. Sabia que algo não estava bem, mas.. Respondeu:
- Não tenho nada! Só estou um pouco nervoso!
- Nervoso por quê?
Ele não sabia o que responder, também não sabia o motivo. Alguns minutos depois, disse:
- Estou com problemas.
- Que problemas?
Ia contar o que estava acontecendo, mas lembrou-se de tudo que já ouvira falar sobre as drogas. Tinha medo de como seus pais reagiriam se contasse que tinha experimentado maconha. Inseguro, respondeu
- Com a aula de Português, não estou conseguindo entender.
- Ora, meu filho, não precisa ficar nervoso. Basta me dizer, qual é a sua duvida? Posso ajudá-lo.
- Não precisa mamãe, vou estudar mais um pouco, farei alguns exercícios, sei que vou entender.
- Está bem. Mas, se precisar, basta me dizer. Agora almoce. Sua comida vai esfriar.
Ele começou a comer, mas na realidade não sentia nenhuma vontade. Após o almoço, como todos os dias, todos saíram. Ele subiu para o seu quarto. Deitou-se na cama, tentou dormir, mas não conseguiu. Mariana surgiu em seu pensamento: 'Hoje consegui falar com ela. Não foi tão difícil como eu imaginava. Parece que ela também está interessada em mim. Será que está mesmo ou só está sendo educada? Amanhã irei ate sua casa. Teremos mais tempo para conversar. Vou dizer que quero namorá-la. Será que vai me aceitar? Assim pensando, adormeceu. Acordou algumas horas depois. Estava muito suado, sentia calor. Levantou-se, foi ao banheiro e tomou um banho frio. Sentia que seu corpo estremecia. Não entendia o que estava acontecendo. Devo estar com um início de resfriado. Vou pedir algum remédio para Iracema. Vestiu a roupa, desceu. Iracema estava na cozinha. Ele se aproximou:
- Iracema, você tem algum comprimido para gripe?
- Pur quê? Ta sentindo arguma coisa?
- Acho que estou com febre, estou muito quente.
Ela, com olhar preocupado, aproximou-se, colocou a mão em sua testa. Sorriu enquanto dizia:
- Não ta cum febre. Ta morna.
Irritado, ele disse:
- Como pode saber? Você não colocou o termômetro!
Ela estranhou seu tom de voz:
- Não preciso disso aí. O calô da febre é diferente. Tive muitos filhu, cunheço a diferença. Num ta cum febre.
- Mesmo assim, quero um remédio.
- Não podi toma remédio sem precisá.
- Muito nervoso, ele saiu da cozinha dizendo em voz baixa:
- Estou com febre! Sei o que estou sentindo. Ela não sabe nada.
Saiu de casa, começou a andar sem destino. Sentia necessidade de andar, não podia ficar parado. Andou a tarde toda. Eram quase seis horas quando retornou. Entrou em casa, não estava bem, isso ele sabia. A casa estava vazia, seus pais e Leandro ainda não haviam retornado. Ouvia um barulho que vinha da cozinha. Era Iracema que preparava o jantar. Foi para o seu quarto. Já lá dentro, olhou para o computador. Sabia que precisava estudar. Sentou-se e ligou o computador. Ficou alguns minutos estudando. Levantou-se, não conseguia se concentrar. Desceu, foi para a sala. Ligou o televisor. Assistiu um pouco, mas também não conseguia se concentrar na programação, Voltou para o quarto, ficou lá por alguns minutos, retornou para a sala. Fez isso várias vezes, até que sua mãe chegou acompanhada por Leandro:
- Olá, Artur, tudo bem?
Ele, com a voz muito baixa, respondeu:
- Tudo bem, a senhora demorou muito...
Odete aproximou-se e beijou-o, enquanto dizia:
- Não demorei! Chego todos os dias a esta hora! Não está bem? Está doente?
- Não tenho nada, só senti sua falta...
Ela percebeu que ele não estava bem. Olhou em seus olhos, perguntando:
- O que está acontecendo! Está triste!
Ele sentiu que aquele era o momento. Sentia-se mal, estava deprimido, o pior era que não sabia o motivo. Ia contar, quando a porta se abriu e por ela entrou Álvaro, sorrindo:
- Boa noite, família!
Os três olharam para ele, que se aproximou e beijou a todos. Após beijar o pai, Artur se afastou, foi para o seu quarto. Odete o acompanhou com os olhos enquanto ele subia vagarosamente a escada. Meu estômago está doendo. Por que será? Será por causa daquele cigarro que fumei? Rodrigo garantiu que não ia me acontecer nada! Ficou em seu quarto, não sentia vontade de conversar. A dor e a ansiedade foram aumentado, ele escava muito triste e sentia vontade de chorar. Por que estou me sentindo assim? Por que esta vontade de chorar? Por que esta tristeza? Isso não é normal! Enquanto isso, na sala, Odete e Álvaro conversavam:
- Álvaro, não sei o que está acontecendo com Artur. Ele parece muito nervoso.
- Isso não é nada, como ele mesmo disse, está com problemas com Português.
- Tomara que seja só isso mesmo. Estou preocupada, e se ele estiver doente?
- Só está cansado, mas se estiver doente, bastará levá-lo ao médico.
Artur continuava se sentindo mal. Aquele vazio e a ansiedade. Tentou mexer no computador, mas não conseguiu: Não estou conseguindo fazer nada. Que será que está acontecendo comigo? Vou ligar para Rodrigo, talvez ele tenha uma explicação para isso. Foi exatamente o que fez. Pegou o telefone e ligou:
- Oi, Rodrigo, sou eu, Artur!
- Oi, Artur! Estou estranhando você me ligar, aconteceu alguma coisa?
- Acredito que possa me responder: o que está acontecendo?
Estou com uma sensação estranha! Estou sentindo um enorme vazio, mas não sei por quê. E também estou muito ansioso, não consigo ficar parado!
- Isso não é nada! Às vezes a "erva" tem essa reação, mas vai passar. Se quiser, venha até aqui e lhe dou um remédio.
- Não posso sair agora, é hora do jantar! Meus pais não me deixarão sair!
- Então, não posso fazer nada.
- Isso vai passar?
- Como posso saber? Você deve ter comido alguma coisa que lhe fez mal...
- Não comi nada.
- Quando quiser, venha, estarei aqui.
- Está bem. Irei assim que for possível, não saia de casa.
- Não sairei, estarei esperando.
Artur desligou o telefone e sentou-se em frente ao computador.

MUDANÇA DE HUMOR

Estava ali tentando entender um programa, mas percebeu que já não tinha a mesma facilidade que antes. Só pensava em uma maneira de sair de casa e encontrar Rodrigo. Leandro entrou:
- Artur, o que está acontecendo?
Ele, nervoso, respondeu:
- Não está acontecendo nada! Por que todos estão perguntando isso?
- Porque você está diferente.
- Não estou diferente! Sou o mesmo!
- Não é não! Está sempre calado, não brinca como antes! Não está nem roubando as minhas batatas!
Artur sorriu:
- Talvez você tenha razão, estou um pouco preocupado, só isso.
- Preocupado com o quê?
- Com as aulas de Português, mas logo vai passar.
- Sei que você me acha uma criança, mas gosto muito de você. É meu irmão, e se achar que posso ajudar, basta pedir, farei tudo por você.
Artur pensou: Talvez eu devesse contar a ele, ele falaria com meus pais. Eu não tenho coragem. Voltou o olhar para o irmão. Ia falar, quando Leandro disse:
- Sabe que você é meu herói! Quando crescer, vou ser igual a você!
Irritado, Artur gritou:
- Não diga isso! Você não vai ser igual a mim! Vai ser diferente!
Leandro se assustou com aquela reação:
- Por que está dizendo isso? Por que está tão nervoso?
- Não estou nervoso!
- Está sim! Esta gritando!
Artur voltou a si. Notou que, sem perceber, estava mesmo gritando. Deitou-se na cama, dizendo:
- Desculpe, estou mesmo muito nervoso. Agora, por favor, saia, preciso estudar um pouco.
Preocupado, Leandro saiu do quarto. Não estava reconhecendo o irmão. Na sala, sentou-se em frente ao televisor. Seu pai estava no banho, sua mãe na cozinha conversando com Iracema. Artur continuou no quarto até a hora do jantar. Desceu e, calado, jantou. Respondeu a algumas perguntas de seus pais. Após terminar o jantar, deu boa noite e voltou para o quarto. Estava triste, só tinha vontade de chorar. Estava deprimido. Naquela noite dormiu muito bem. Acordou, lembrou-se que era o dia de ir à casa de Mariana. Não sentia nada, todo aquele mal-estar terminara. Olhando no espelho, sorriu enquanto pensava: Hoje estou bem, assustei-me à toa. Devo mesmo ter comido algo que me fez mal. Fiquei preocupado sem razão. Imaginei muitas coisas. Fiquei com medo de estar viciado, mas como Rodrigo disse que só vou me viciar se quiser. Nunca mais vou fumar. Tudo passou. Tomou banho, desceu. Sua mãe havia ido ao supermercado. Seu pai, junto com Leandro, sorriu ao vê-lo entrar na sala. Leandro disse:
- Estamos esperando você para irmos ao clube.
- Não posso ir.
- Por quê?
- Vou até a casa de uma amiga da escola.
Leandro, com olhar maroto, disse:
- Papai, não disse que ele tinha arrumado uma namorada?
Álvaro olhou paca Artur, que respondeu irritado:
- Não é nada disso! E só uma amiga! Nós vamos estudar!
Álvaro disse:
- E só isso mesmo que deve fazer. Sabe que não quero que namore, ainda é muito cedo. Tem que estudar.
- Sei disso, não se preocupe, não estou namorando. E só uma amiga.
- Está bem. Não quer mesmo ir ao clube?
- Não.
- Então, até logo. Vamos, Leandro. Vamos aproveitar o sol.
Quando estavam saindo, Artur disse:
- Esperem só um pouco, só irei à casa de Mariana à tarde, tenho tempo para ir com vocês até o clube.
Álvaro sorriu:
- Está bem, mas apresse-se.
Artur subiu correndo para o quarto, pegou sua roupa de banho e desceu. Os três saíram alegres em direção ao clube. Lá, enquanto Álvaro jogava tênis, Artur e Leandro, alegres, nadavam. Artur estava feliz, sentia que tudo estava bem, voltara a ser como antes. Leandro também estava feliz. Disse:
- Artur, hoje você está bem, voltou a ser o meu irmão de antes.
Artur sorriu:
- Nunca deixei de ser seu irmão. Também não sei por que está dizendo isso.
Era quase meio-dia quando Odete chegou. Foi em direção à piscina. Viu seus filhos nadando e brincando. Sabia que Álvaro estava na quadra de tênis. Ficou olhando um pouco, depois chamou os dois:
- Artur! Leandro!
Eles olharam para ela e, juntos, saíram da piscina. Assim que chegaram perto, ela disse:
- Esta na hora do almoço, vamos até a quadra esperar o pai de vocês terminar de jogar.
Sob protestos, os dois a acompanharam. Álvaro terminou de jogar. Despediu-se dos amigos e foi para junto da família:
- Perdi a partida, mas não faz mal, ao menos fiz exercício físico.
Todos riram, pois sabiam que ele ficava muito bravo quando perdia no tênis. Almoçaram. Artur comeu muito bem. Após o almoço voltaram para casa, Artur estava ansioso, à hora de ir para a casa de Mariana estava chegando. Vestiu-se, colocou seu tênis. Olhou-se varias vezes no espelho. Queria mostrar boa aparência. Havia pensado muitas vezes no que diria a ela. Vou pedir para namorá-la. Ela vai aceitar, só tenho que deixar bem claro que preciso estudar. Mas poderemos nos ver na escola ou na sua casa. Depois a convidarei para que venha até aqui. Após julgar que estava pronto, deu uma última olhada no espelho e desceu. Na sala de televisão, seus pais conversavam; olhou para eles, dizendo.
- Papai, mamãe, estou saindo. Voltarei antes do jantar.
Odete aproximou-se e beijou o rosto do filho.
- Está bem, divirta-se.
Artur saiu. Mariana morava a quatro quadras de sua casa. Decidido, caminhou. Parou em frente ao portão da casa dela. Passou a mão pelo cabelo, respirou fundo. Ia apertar o botão da campainha, mas estremeceu. Não posso fazer isso. Não sei o que dizer. Não vou ter assunto. Vou parecer um bobo. Não, não posso entrar. Afastou-se dali quase correndo. Chegou à praça que existia lá perto. Sentou-se em um banco. Tremia muito, estava nervoso. Por que essa insegurança voltou? Sei que ela gosta da minha companhia. Não, ela gosta daquele Artur alegre e falante. Que conversa sobre todos os assuntos. Não deste que está aqui. Não saberei falar com ela... a não ser que fume um daqueles cigarros... isso mesmo. Preciso de um cigarro... vou ate a casa de Rodrigo, ele deve ter um. Saiu correndo. Assim que chegou, tocou repetidas vezes a campainha, mas ninguém atendeu. Estava nervoso. Trêmulo, tocou, tocou, mas nada. Teve que aceitar, Rodrigo não estava em casa. Saiu dali. Não posso voltar para casa. Todos vão querer saber por que voltei cedo. Vou tentar novamente. Vou até a casa de Mariana. Fez isso, mas, como da primeira vez, não conseguiu apertar a campainha. Não posso... não posso. Ficou andando o resto da tarde. Estava novamente triste e com aquele ardor no estômago. Às seis horas da tarde voltou para casa. Ali tudo continuava como sempre. Entrou, cumprimentou a todas, foi para o seu quarto. Quando estava subindo a escada, ouviu a voz de Leandro:
- Então, Artur, namorou muito?
Nervoso, ele respondeu:
- Já disse que não estou namorando! Pare de falar assim!
Álvaro disse:
- Espere ai, mocinho, seu irmão está apenas brincando, não precisa ser malcriado.
- Desculpe papai; desculpe Leandro. Só não quero que digam que estou fazendo algo que na realidade não estou.
Terminou de subir a escada, entrou no quarto. Era o único lugar onde se sentia bem. Mais tarde desceu para o jantar. Continuava nervoso e tremendo. Conversou um pouco, voltou para o quarto. Estava novamente com aquela tristeza da qual não sabia o motivo. Não conseguia ficar parado, andava de um lado para o outro. Deitava, levantava, ia ao banheiro. Isso durou a noite toda. Dormia, acordava, levantava e deitava novamente. Já eram onze horas da manha. Artur dormia profundamente quando Leandro entrou. Aproximou-se da cama e suavemente chamou:
- Artur, acorde...
Artur abriu os olhos. Ao ver Leandro ficou furioso. Sentou-se na cama e disse, gritando:
- O que você quer? Será que não posso dormir?
Assustado, Leandro respondeu:
- Mamãe pediu que eu viesse chamar você. Já é tarde...
Artur olhou para o relógio. Ao ver a hora, percebeu que realmente era tarde. Olhou para Leandro, notou que ele estava assustado:
- Desculpe, Está bem, pode descer, já vou me levantar.
Leandro saiu do quarto quase correndo. Artur permaneceu sentado na cama, sentiu que o tremor e a ansiedade continuavam. Percebeu que precisava de um remédio, sabia que só Rodrigo poderia ajudá-lo, ou pelo menos dizer por que estava sentido aquilo. Pegou o telefone, discou. O telefone chamou varias vezes, até que alguém atendeu:
- Alô, quem é?
- Oi, Rodrigo, sou eu, Artur. Preciso de sua ajuda! Não estou me sentindo bem...
- O que está sentindo?
- Estou nervoso, com aquela sensação estranha...
- Venha até aqui, vou lhe dar o remédio.
- Irei, mas, por favor, não saia de casa...
- Não vou sair, hoje é domingo, minha mãe está em casa.
- Está bem, logo mais estarei aí.
Desligou o telefone, foi até o banheiro, olhou-se no espelho. Estava com olheiras profundas: Vou, sim! Não estou agüentando mais! Aliviado, pois sabia que logo ficaria bem, ensaiou um sorriso e desceu. Após o almoço, disse:
- Papai, mamãe, vou até a casa de Rodrigo. Vamos ter uma prova, e ele está com um pouco de dificuldade. Ligou pedindo para que eu vá até sua casa.
Odete admirou-se:
- Mas, meu filho, hoje é domingo!
-Sei mamãe, mas a nossa prova é amanhã!
- Ora, Odete, deixe o menino ir. Isso é um sinal de que ele não está doente!
- Está bem, meu filho, mas não volte muito tarde.
Artur, aliviado, beijou o pai e a mãe e saiu. A ansiedade era intensa, seu corpo continuava tremendo. Chegou ao portão da casa de Rodrigo, que ficava duas ruas atrás da sua. Rodrigo morava em um sobrado junto com a mãe. O nível de vida dele era bem diferente do de Artur. Sua mãe separara-se de seu pai já havia algum tempo. Ela trabalhava muito para poder manter a casa e seu filho em uma boa escola. Por trabalhar muito, quase nunca estava em casa. Rodrigo vivia praticamente sozinho. Artur tocou a campainha. A mãe de Rodrigo abriu:
- Olá, Artur, como vai?
- Olá, dona Glória, estou muito bem. Vim aqui falar com Rodrigo.
- Que bom, pode entrar. Ele está em seu quarto, vou chamá-lo.
Artur entrou, sentou-se em um sofá enquanto dona Glória subia uma escada que levava ao andar superior. Ele ficou olhando tudo a sua volta. Aquela sala era bem diferente da sua, embora estivesse bem mobiliada. Era pequena e apertada. Os móveis também não eram da mesma qualidade dos seus. Enquanto Artur observava, Rodrigo chegou com a mãe:
- Olá, Artur, pensei que fosse demorar!
- Preciso tirar algumas dúvidas de Português.
Dona Glória admirou-se:
- Você acha que Rodrigo vai tirar essas dúvidas? Ele está indo tão mal na escola!
- Estou indo mal, mas em Português sou bom, não é, Artur?
Artur não estava acostumado a mentir. Aliás, nunca mentira, por isso não estava muito à vontade quando respondeu:
- E isso mesmo! Em Português ele é muito bom...
Rodrigo sorriu maroto:
- Venha, Artur, vamos para o meu quarto.
Artur, um pouco sem graça, seguiu Rodrigo. Já no quarto, disse nervoso:
- Rodrigo, não estou me sentindo bem! Estou com uma sensação estranha! Estou ansioso e também tremendo muito... Sabe me dizer o que é?
- Isso não é nada! Vou lhe dar aquele remédio, vai ver como ficará bom...
- Não há outra maneira? Estou ficando com medo! Não estou mais agüentando, precisei mentir para os meus pais, não gosto disso!
- Não se preocupe, vai ficar bem. Também, uma mentirinha não faz mal algum!
- Onde está o remédio?
- Não podemos usar aqui, minha mãe está em casa, precisamos sair. Vamos?
- Claro que vamos, preciso me livrar deste mal-estar!
Desceram. A mãe de Rodrigo estava na sala assistindo televisão. Ele se aproximou, dizendo:
- Mãe, eu e Artur vamos dar umas voltas por aí!
Sem tirar os olhos do televisor, disse:
- Não vão estudar?
- Primeiro vamos à casa de um amigo pegar um livro.
- Esta bem, meu filho, mas não demore. Não se esqueça que estou aqui sozinha...
- Não me esquecerei, sabe que adoro ficar em sua companhia.
Saíram para a rua. Artur estava sentindo-se cada vez pior:
- Rodrigo, dê-me o remédio, não estou me sentindo bem...
Ele não respondeu, apenas sorriu. Chegaram a uma praça. Rodrigo disse:
- Vamos nos sentar aqui.
- Sentar! Não quero sentar! Preciso do remédio!
Rodrigo falou devagar:
- Fique tranqüilo, aqui está o seu remédio. Vai ver como ficará bem...
Artur pegou em suas mãos o cigarro que Rodrigo lhe oferecia. Pensou um pouco. Devolvendo o cigano, disse:
- Não! Não quero! Tem que haver outro remédio! Estou achando que esse mal-estar que estou sentindo é por causa dos cigarros que fumei! Não quero!
- Você é quem sabe... O único remédio que conheço é este...
- Você me garantiu que eu não me viciaria!
- Não está viciado. Isso acontece com todos nas primeiras vezes, mas logo vai passar e não sentirá mais isso...
- Tem certeza do que está me dizendo?
- Claro que tenho... Fume este que estou lhe dando e verá como vai ficar bem...
Artur ainda pensou em não aceitar, mas estava mesmo sentindo-se muito mal. Pegou o cigarro que Rodrigo lhe oferecia:
- Vou tentar, preciso fazer qualquer coisa para ficar bem. Tenho que estudar, vamos realmente ter provas esta semana!
Rodrigo acendeu o cigarro, deu uma tragada e entregou para Artur, que também fumou do modo como ele havia lhe ensinado. Após ter dado três tragadas, percebeu que aquele mal-estar estava passando.
- Rodrigo! A ansiedade e o mal-estar estão passando!
- Não disse que ia ficar bem? E assim mesmo...
Continuou fumando. A cada tragada parecia que sua cabeça flutuava e sentia ser outra pessoa, diferente daquela que havia chegado à casa de Rodrigo. Não estava mais nervoso, sentia que estava flutuando. Rapidamente começou a rir e querer sair correndo. Rodrigo ficou olhando para ele sem dizer uma palavra, apenas observando. Logo Artur estava muito bem. Ficou mais um tempo por ali, olhando as árvores e vendo os pássaros, que para ele possuíam cores deslumbrantes. Começou a escurecer, lembrou-se que precisava voltar para casa. Rindo muito, falou:
- Preciso voltar para casa, meus pais não gostam que eu fique na rua durante a noite.
- Vamos voltar agora você está bem. Não diga nunca que não o ajudei. Foi até a casa de Mariana?
- Fui, mas não consegui tocar a campainha.
- Agora acredita que conseguiria?
Rindo muito, respondeu:
- Acredito que sim! Estou muito bem.
- For que não vai ate lá?
- Agora não posso, preciso voltar para casa.
- Amanhã vai conseguir.
- Acho que sim. Você é mesmo um amigão!
- Pode ter certeza que sou...
Despediram-se, e Artur voltou para casa. Sentia que estava tudo bem, todo aquele mal-estar havia passado e ele estava até muito feliz. Entrou em casa. Seu pai lia um jornal, sua mãe preparava o jantar e Leandro jogava vídeo game. Foi até a cozinha:
- Mamãe, estou com muita fome, o que temos para comer?
- Sabe que não gosto de anunciar a comida antes da hora, mas vai gostar muito do que estou preparando. Volte para a sala, logo mais estará pronto!
Em seu quarto, ligou o computador e começou a mexer, precisava fazer um trabalho que seu professor de computação havia pedido. Pensava: Sei que vou trabalhar toda a minha vida com computadores. Vou aprender cada vez mais. Quero dominar tudo muito bem. O que mais desejo é aprender a fazer programas. Ficou ali por um bom tempo, até que Leandro entrou sem bater.
- Artur, mamãe está chamando, o jantar está pronto!
Ele olhou para o irmão, levantou-se e mexeu nos cabelos dele da maneira que sabia que o deixava irritado. Leandro pegou uma almofada que estava em cima de um sofá, atirou nele e, rindo, saiu correndo. Artur, rindo também, correu atrás dele. Chegaram correndo na sala. Odete também sorriu ao ver os dois brincando, mas fingindo estar brava, disse:
- Vocês dois, querem parar com essa briga! Vamos jantar!
- Não estamos brigando, só que Artur mexeu nos meus cabelos, e eu não gosto!
- Ele me jogou uma almofada!
- Está bem, mas agora chega!
Todos se sentaram. Artur sentia muita fome. Ele mesmo estranhou, pois não era de comer muito. Sua mãe também percebeu que estava comendo mais do que o normal, mas lembrando do que havia acontecido no outro dia, não disse nada. Assim que terminaram de jantar, ele voltou para o seu quarto. Estava na metade do trabalho, precisava terminar. Voltou a mexer no computador, mas logo começou a sentir muito sono. Estranhou, porque não era de dormir cedo. Tentou continuar estudando, mas não conseguiu, o sono foi mais forte. Desligou o computador, deitou-se e dormiu imediatamente. Antes de deitar, Odete passou pelo quarto dele. Vinha acompanhada por Leandro. Os dois admiraram-se por ele já estar dormindo. Leandro se deitou, ela os cobriu e saiu. No meio da noite Artur acordou: Não, meu Deus! Não pode ser! Aquela sensação está voltando! Levantou-se. Com a mão sobre o estômago, foi até o banheiro. Olhou-se no espelho. Percebeu que ainda estava com grandes olheiras. Sua boca estava seca e o tremor voltava com mais intensidade: E agora, o que vou fazer? Resolveu tomar um banho para ver se melhorava. Ligou o chuveiro, entrou e ficou ali parado, apenas sentindo a água cair por seu corpo. Ficou ali por quase meia hora. Saiu do chuveiro, estava um pouco aliviado, mas percebeu que o tremor estava intenso. Foi para a cama, deitou-se e ficou o resto da noite virando de um lado para o outro. Odete, como fazia todos os dias pela manhã, abriu a porta. Estranhou ao ver Artur acordado olhando para o teto.
- O que aconteceu? Já está acordado? Esta sentindo alguma coisa? Está com alguma dor?
Ele sentiu vontade de contar o que estava acontecendo, mas não teve coragem. Sua mãe não entenderia e contaria para o seu pai, e isso ele não queria:
- Não estou sentindo nada, acordei porque ontem dormi cedo.
- Ainda bem. Levante-se, seu pai já está no banho. Já que acordou cedo, podem tomar café com ele.
- Vou fazer isso! Só assim ele não vai brigar comigo por eu sair sem me alimentar.
Ela saiu do quarto. Artur sentia aquela sensação ruim. Novamente foi para o chuveiro e tomou um banho rápido. Antes de sair, olhou para o espelho. Seu rosto continuava com muitas espinhas, mas aquilo não o preocupava mais. Havia conversado com Mariana e percebera que ela não se preocupava com elas. Sabia que as espinhas logo mais dariam lugar a uma bela barba. Apesar do mal-estar, sorriu e foi se vestir. Quando chegou à sala de refeições seu pai já ali se encontrava junto com sua mãe, e ambos tomavam café. Iracema os servia. Ele se sentou. Iracema, sorrindo, falou:
- Inda bem que o minino hoje vai toma café!
- Vou, sim, mas não estou com muita vontade!
Álvaro também estava feliz por ver seu filho ali. Ficava sempre muito preocupado, pois ele quase todos os dias saía sem se alimentar.
- Ainda bem que hoje vai alimentado para a escola. Coma uma fruta. Está numa idade em que precisa de boa alimentação. Fica só comendo aquelas bobagens da cantina...
Artur não respondeu, apenas comeu. O que queria era mesmo ir logo para a escola, precisava falar urgente com Rodrigo. Enquanto comia, ia pensando: Já sei que este mal-estar e o tremor só passarão com outro cigarro, mas Rodrigo garantiu que vai passar. Espero que sim, não quero me viciar.... Terminaram de tomar o café. Deram um beijo em Odete e os dois saíram. No carro, Artur não prestava muita atenção nas notícias que o radio ia dando. Só queria chegar logo à escola. Álvaro comentava alguma notícia, ele respondia por monossílabos. Parecia que a escola estava muito distante, parecia que o trânsito estava parado. Não estou agüentando tanta ansiedade. Tomara que Rodrigo já esteja lá, e que tenha um cigarro daqueles. Sinto que, sem ele, não conseguirei assistir às aulas.... Álvaro percebeu que ele estava muito calado:
- O que está acontecendo com você?
Artur assustou-se com aquela pergunta:
- Por que esta fazendo essa pergunta?
- Estou percebendo que você está um pouco distante, nem parece o mesmo de todos os dias. Sempre me atrapalha com perguntas quando estou ouvindo uma notícia! Está doente?
- Não, não estou doente, só que não dormi muito bem esta noite e agora estou com sono!
- Não dormiu por quê?
- Não sei, estava sentindo muito calor e acordei muitas vezes...
- Eu não senti calor, ao contrário, senti até um pouco de frio.
- Não sei o que me aconteceu.
Finalmente chegaram em frente à escola. Artur desceu apressado, esqueceu-se de dar o beijo que todos os dias dava no pai. Atravessou a rua correndo. Álvaro, intrigado, olhou o filho se afastando: Esse menino não está bem, ele está muito estranho. Será que está apaixonado! Sorriu, acelerou o carro e saiu pensando: Embora não queira admitir, meu filho já está um homem, não posso me admirar de ele estar apaixonado. Na idade dele eu já namorava. Artur entrou quase correndo na escola. Olhou para o lado em que Rodrigo sempre ficava conversando com alguns amigos, sempre os mesmos. Naquela manhã também, como sempre, estava ali. Artur se aproximou:
- Rodrigo, preciso falar com você.
Rodrigo sorriu, afastou-se dos outros levando com ele Artur:
- O que está acontecendo? Parece que está muito nervoso.
- Aquele mal-estar voltou e está intenso. Você precisa me ajudar, senão não vou conseguir assistir às aulas.
- Está bem, não precisa ficar nervoso! Ainda é cedo, teremos tempo de sair. Vamos sair da escola, e enquanto andamos pelo quarteirão, você dá uma puxada no bagulho. Vai ver como ficará bem.
Saíram da escola, e mais uma vez ninguém percebeu. Assim que chegaram à rua, Rodrigo deu a ele um cigarro. Artur pegou aquele cigarro e, nervoso, acendeu-o. Deu uma tragada depois da outra, quase sem intervalo. Aos poucos foi se sentindo melhor. Logo estava muito bem. Sentia que poderia assistir às aulas sem problema algum. Enquanto Artur fumava, Rodrigo, em silêncio, observava. Voltaram para a escola. Artur notou que estava com muita energia, mas que suas mãos estavam tremendo. Durante as aulas, percebeu que não conseguia, como antes, acompanhar as explicações dos professores. Sentia certa dificuldade de assimilação. Queria sair dali, olhava a todo instante para o relógio. Durante um dos intervalos, não se deu conta que Mariana se aproximara.
- Artur, por que não foi até minha casa? Fiquei esperando você.
Ele se voltou ao ouvir a voz dela, mas sua presença o incomodava, queria mesmo era sair dali. Respondeu seco:
- Não pude ir, tive que sair com meus pais.
Ela, nervosa, afastou-se. Finalmente a campainha tocou, dando por encerrada as aulas. Artur saiu correndo, não suportava ficar ali sentado. Queria correr sentir o ar fresco. Já na rua, respirou fundo. Olhou para o caminho pelo qual seu pai costumava chegar. Não conseguia ficar com o corpo parado. Ficou andando de um lado para o outro, até que finalmente seu pai chegou. Entrou rapidamente no carro. Novamente se esqueceu de beijar o pai. Ele notou, mas não disse nada. Acreditava que o filho estivesse apaixonado. Apenas sorriu, acelerou o carro e foram embora. Durante o caminho tentou conversar com Artur, mas ele estava distante. Como todos os dias, ligou o rádio e ficou ouvindo as notícias. Artur permanecia calado, parecia muito distante dali. Realmente, ele estava não só distante como também muito preocupado: O que será que está acontecendo comigo? Por que estou sentindo meu corpo tão estranho? Será que me viciei? Não pode ser! Fumei só alguns cigarros! E pouco pra me viciar. Hoje à tarde tenho aula de natação, vou nadar muito para tirar de mim toda essa droga. Chegaram em casa. Iracema já estava com a comida pronta para ser servida. Artur foi para o seu quarto, trocou de roupa, lavou as mãos e voltou para a sala de refeições. Sentou-se. Em silêncio, começou a comer. Iracema estava em pé ao lado da mesa, terminando de servir. Álvaro olhou para ela, dizendo:
- Iracema, estou muito contente com o trabalho do seu filho. Ele é mesmo muito inteligente, aprende tudo rápido. Aquele menino vai longe. Disse a ele que, se continuar assim, pagarei sua faculdade com mais prazer.
- Muito obrigada, dotô. Ele é mermo um bom minino! É muito bom filho e irmão também. O dotô não vai se arrepender de ajudá ele. O dotô vai vê!
- Tenho certeza disso. Ele é muito esforçado mesmo.
Artur ouvia o que diziam, mas não conseguia acompanhar a conversa. Estava muito preocupado consigo mesmo: E se eu estiver mesmo viciado? Como vai ser? Meu pai espera muito de mim, nunca poderei chegar pra ele e contar o que está acontecendo. O que vou fazer?
- Artur, por que está tão calado?
Ele ouviu o seu nome, mas não entendeu o que mais sua mãe perguntara:
- Não entendi mamãe! O que perguntou?
- O que está acontecendo com você? Parece que está muito distraído. Está acontecendo alguma coisa na escola?
Ele olhou para a mãe e para o pai, sentiu vontade de contar. Estava apenas começando, eles poderiam ajudá-lo. Pensou um pouco e, nervoso, respondeu:
- Não estou sentindo nada! Estou bem! Por que a senhora e o papai ficam fazendo essas perguntas?
A mãe estranhou sua reação:
- Estamos preocupados. Você está diferente! Deve estar acontecendo alguma coisa. Precisamos saber o que é para poder ajudá-lo.
- Não está acontecendo nada! Já disse que só estou com alguns problemas em Português. Nada, além disso.
- Sabe que sou professora e seu pai advogado. Não acredita que possamos ajudar?
- Claro que podem, mas não acho justo, já gastam tanto com a minha educação... O mínimo que posso fazer é aprender.
- Não tem que ser assim. Gastamos, sim, com a sua educação, mas nunca nos arrependemos disso. Você, além de ser um bom filho, é também um bom aluno. Só precisa nos dizer qual é a sua dúvida.
- Desculpe mamãe, é que estou muito nervoso. Não estou acostumado a não entender as aulas. Vou agora para o meu quarto tentar entender. Se não conseguir, vou pedir sua ajuda.
- Faça isso, mas se não conseguir, estamos aqui eu e seu pai. Nós o amamos muito.
Artur terminou de almoçar e foi para o seu quarto. Assim que se viu sozinho, entregou-se ao desespero: O que está acontecendo comigo? Por que toda essa irritação sem motivo? Ainda bem que não estou sentindo aquele mal-estar. Parece que passou mesmo! Tomara. Sentiu muita vontade de dormir, mas não podia, precisava ir à natação. Deitou-se só para descansar, mas, sem perceber, adormeceu. Odete, antes de sair para a escola, foi até o quarto de Artur para ver como estava. Estranhou ao ver que ele estava dormindo. Sorriu, fechou a porta e saiu. Foi falar com Iracema:
- Artur está dormindo, não se esqueça de acordá-lo para que possa ir à aula de natação.
- Pódi fica sussegada, eu acordo ele, sim.
Odete foi embora. Iracema voltou para seus afazeres. Artur, que já dormia por mais de uma hora, acordou sentindo aquele vazio aquele mal-estar, sintomas que já conhecia. Sabia que em breve ficaria pior. Levantou-se e, apavorado, foi para o banheiro. Olhou-se no espelho. As espinhas já não o incomodavam mais. Percebeu que seus olhos estavam vermelhos. Voltou para o quarto, olhou o relógio. Está na hora de ir para a natação, mas como poderei nadar com este mal-estar? Vou me apressar, e antes de ir para a aula vou procurar Rodrigo. Ele vai me dar outro cigarro e tudo ficará bem. Fez exatamente isso. Vestiu-se, colocou o tênis, pegou a mochila e saiu rapidamente. Quando passava pela sala, Iracema disse:
- Pur que ta cum tanta pressa? Não vai toma um lanche antes de saí?
- Não, estou atrasado, hoje preciso chegar mais cedo para a aula de natação!
- Ta bem, mas isso não ta certo não.
Ele não a ouviu, foi correndo em direção à casa de Rodrigo. Enquanto corria, ia pensando:
Preciso me apressar, senão vou perder a aula. Mas se for até lá sem fumar, não conseguirei nadar. Chegou finalmente em frente à casa de Rodrigo. Encostou-se ao portão e tocou a campainha. Rodrigo surgiu na janela:
- Olá, Artur! Quer falar comigo?
- Não estou bem, preciso de sua ajuda!
- Pode entrar não se preocupe, minha mãe está trabalhando. Artur entrou apressado:
- Você precisa me arrumar outro cigarro daqueles. Preciso ir à aula de natação, mas não conseguirei nadar com isto que estou sentindo!
- Está bem, mas só tem um problema, eu não tenho mais bagulho. Dei vários pra você, mas agora terminaram todos os que eu tinha, precisamos buscar mais.
- Então vamos rápido, não posso perder a aula!
- Você tem dinheiro aí?
- Dinheiro? Não. Não tenho. Por quê?
- Porque o bagulho custa dinheiro. Eu lhe dei os meus, mas agora vai ter que comprar para nós dois.
- Dinheiro!?! Não tenho! Comovamos fazer?
- Não sei, também estou precisando, também estou sentindo o mesmo que você!
- Você me garantiu que eu não ia me viciar, mas acredito já estar viciado. Não quero isso!
- É fácil. Basta voltar para sua casa e esquecer do bagulho.
- Não posso voltar para casa! Preciso ir para a aula!
- Então, meu amigo, não tem jeito, precisamos pegar mais bagulho.
- Como!?! Não temos dinheiro!
- Eu não tenho mesmo, mas você tem.
- Eu? Não tenho dinheiro.
- Dinheiro não, mas tem um belo par de tênis nos pés. Ele vale muito, dá pra comprar uma boa quantidade de bagulho.
- Que está dizendo? Meu tênis!?! Não posso! Que vou dizer para o meu pai?
- Seu tênis, sim! Vale muito dinheiro! É importado.
- Sei que vale muito dinheiro, mas o que vou dizer para o meu pai?
- Diga que foi assaltado e que levaram seu tênis. Ele vai ficar contente por você estar vivo não vai ligar para o tênis e até comprará outro. Hoje em dia é normal o tênis importado ser roubado. Ele não vai desconfiar de nada.
Artur estava tremendo, não sabia se era por aquela situação ou pelo mal-estar que sentia:
- Não posso fazer isso. Não saberei mentir. Nunca menti!
- Você é quem sabe. Não tenho dinheiro e nem bagulho. Volte para sua casa ou vá para a aula. Sem dinheiro, não posso fazer nada...
Artur começou a chorar. Sabia que estava perdido, pois a cada segundo sentia que precisava muito da droga. Pensou por algum tempo e disse:
- Está bem, como vamos fazer?
- Iremos até um lugar que conheço. Lá diremos que não temos dinheiro, mas que você tem o tênis. Conseguiremos uma boa quantidade, que vai dar para nós dois consumirmos por um bom tempo.
Artur, nervoso, concordou. Saíram.

HUMILHAÇÕES E MENTIRAS

Artur seguia Rodrigo como um robô. Entraram em uma favela. Enquanto caminhavam pelas vielas, Rodrigo andava e cumprimentava várias pessoas. Pararam em frente a um barraco. Lá dentro estava outro rapaz de mais ou menos dezenove anos, que ao ver Rodrigo, disse:
- Rodrigo! Você por aqui novamente? Veio buscar mais erva? Quem é esse?
Rodrigo, piscando um olho sem que Artur visse, respondeu:
- Vim buscar mais erva, sim. Este aqui é Artur, ele também quer um pouco.
- Você tem dinheiro?
- Não, mas Artur tem esse tênis, que é importado e vale muito.
O rapaz olhou primeiro para Artur, depois para o tênis que estava em seus pés.
- O tênis é bonito mesmo! Vale uma boa quantidade de erva. Você vai querer mesmo trocar!
Artur também olhou para o seu tênis. Aquele vazio aquela vontade cada vez mais forte... Sentiu que não poderia ficar sem a droga. Impotente, disse:
- Preciso fazer a troca, mas como vou andar sem tênis?
Rodrigo respondeu:
- O Jiló aqui empresta um dos dele, mas quando chegar perto de sua casa, você joga fora e entra em essa descalço, assim poderá contar uma boa história para os seus pais. Eles acreditarão, não se preocupe. Já vimos muitas vezes isso acontecer. Não é, Jiló?
Artur se abaixou, tirou os tênis e entregou-os a Jiló, que em troca lhe deu outro par velho e sujo. Ele o calçou, sentindo um mal-estar profundo. Mas sabia que aquela era a única solução. Em seguida, Jiló deu aos dois uma boa quantidade de um tipo de grama seca, que Artur até então não havia visto, pois Rodrigo sempre lhe dera os cigarros já prontos. Ali mesmo Rodrigo preparou e acendeu um cigarro e deu outro para Artur, que tremendo muito, fumou. Aos poucos, ele foi se sentindo melhor. Seu coração batia forte, mas ele sabia que daquele dia em diante estaria nas mãos daqueles dois. Sentiu um frio passar por sua espinha, quis sair dali rapidamente. Saiu correndo. Rodrigo o seguia de longe. Já fora da favela, Artur chorava muito enquanto pensava: O que vou fazer da minha vida? Como vou mentir para os meus pais? Rodrigo se aproximou:
- Não fique assim, tudo vai dar certo.
- Nunca menti para os meus pais! Não sei se vou conseguir!
- Vai sim. Tem sempre uma primeira vez. Esta vai ser a mais difícil, as outras serão fáceis.
- Nunca mais vou mentir! Será só esta vez. Nunca mais! Vou me livrar de tudo isso. Vou pedir ajuda para os meus pais. Eles me ajudarão!
- Está bem. Eles ajudarão, provavelmente o internarão em uma clínica. Mas enquanto isso não acontece, vamos dividir o bagulho. Metade para mim e a outra metade para você. Vou preparar, mas é bom aprender como se faz.
Artur ficou olhando Rodrigo preparar os cigarros. Ele tirou do bolso alguns pedaços de papel de seda. Disse que eram tirados dos maços de cigarro que eram jogados fora depois de usados. Preparou toda a parte de Artur. Em seguida entregou a ele.
- Não posso levar isso para casa. Não tenho onde guardar.
- Se eu fosse você, arrumaria um lugar, porque talvez sinta necessidade durante a noite.
- Não vou sentir. Vou me livrar dessa loucura. Não posso levar para casa. Não quero ser internado em clínica alguma!
- Você é quem sabe. Mas, mesmo assim, vou guardar aí na sua mochila.
Rodrigo abriu a mochila de Artur e colocou os cigarros. Artur saiu dali correndo, precisava chegar a tempo para a aula. Rodrigo o acompanhou até a saída da favela. Artur estava muito nervoso, queria sair dali o mais rápido possível. Já na rua, sem se despedir, saiu correndo. Assim que desapareceu, Rodrigo voltou novamente para o barraco de Jiló, que o estava esperando. Rodrigo disse-lhe:
- Jiló, como você viu esse agora já é nosso freguês. Cumpri a minha parte, trouxe mais um. Espero que não me deixe mais sem o bagulho.
Jiló, sorrindo, respondeu:
- Trabalhou direitinho, por um bom tempo vai ter todo o bagulho que precisar. Mas é bom ir procurando outro freguês.
Artur chegou apressado ao clube, e só então se lembrou que estava com um tênis muito sujo e rasgado. Pensou: Não posso entrar com este tênis. O que direi ao professor e aos meus colegas? Preciso ir para casa, mas como chegar lá sem o meu tênis? Sabia que não havia outra maneira, precisava ir para casa. Dirigiu-se para lá. Quando faltava uma quadra para chegar, tirou o tênis velho dos pés e começou a correr. Entrou em casa esbaforido e cansado. Iracema assustou-se por vê-lo entrar daquela maneira e àquela hora, pois deveria estar na aula de natação:
- Qui te aconteceu, minino?
- Fui assaltado por três rapazes, eles levaram o meu tênis!
- Deus do céu! Fizeram mais arguma mardade com ocê?
- Não! Só levaram o tênis!
- Inda bem! Vai tomá um banho e fica carmo, vou telefoná pró seu pai!
- Não faça isso! Já estou bem. Só vai fazer com que fique assustado. À noite falarei com ele. Vou para o meu quarto...
- Tem razão, o meió é que agora ocê ta bem. Vai díscansá...
Artur foi rápido para o seu quarto, precisava ficar sozinho. Precisava pensar no que faria dali para frente. Sabia que estava se viciando, mas não encontrava um caminho para se afastar. Já no quarto, tirou a mochila das costas. Só então se lembrou que Rodrigo havia colocado nela os cigarros restantes. Abriu, tirou-os e segurou-os nas mãos. Aquilo para ele era o início de uma longa caminhada. Meus pais falaram tanto a respeito de drogas! Como fui me deixar envolver? Preciso encontrar um lugar para esconder, mas onde? Olhou para o alto de seu armário, lembrou-se que ali estava guardado havia muito tempo o casaco que seu pai lhe comprara quando foram para os Estados Unidos. Subiu em uma cadeira, abriu o armário e pegou o casaco. Ele estava dobrado do lado do avesso, pois desde que voltaram da viagem nunca mais fora usado. Nunca consegui usá-lo aqui. O nosso frio não permite. Vou esconder dentro do bolso. Ninguém mexe nele mesmo.... Guardou todos os cigarros ali. Deitou-se na cama e ficou lembrando da viagem que fizeram. Meu pai quis nos fazer uma surpresa, levou-nos até a Disneylândia. Foi uma viagem maravilhosa. Ficamos ali por quinze dias, depois fomos para Nova York. Ao chegarmos, sentimos muito frio. Não conhecíamos a neve, sempre ouvimos falar que era muito fria, mas nunca poderíamos imaginar o quanto. Foi aí que meus pais resolveram comprar casacos para todos. Sem perceber, adormeceu. Acordou com sua mãe dizendo:
- Artur, acorde! Cheguei agora do trabalho e Iracema me contou o que aconteceu! Como foi? Você está bem? Não machucaram você?
Ele, com muito custo, abriu os olhos. Ao ver a mãe, começou a chorar. Queria contar tudo o que havia acontecido e pedir ajuda, mas não conseguia. Sentia vergonha da sua atual situação. Eles esperavam tanto dele, como poderia dizer que era um viciado?
- Estou bem, mamãe, não me machucaram, só levaram o meu tênis...
- Não chore meu filho. Não se preocupe com o tênis. Compraremos outro! O importante é que esteja bem...
- Estou bem, só um pouco assustado...
- Entendo. Seu pai já deve estar chegando, não falaremos nada antes do jantar. Após o jantar contaremos juntos. Ele vai ficar muito nervoso, mas comprará outro tênis.
- Está bem, mas não quero outro tênis. Vou agora terminar o meu trabalho de História que preciso entregar amanhã.
- Tudo bem, vou para o meu quarto, se precisar de alguma coisa, basta me chamar.
Odete saiu do quarto. Artur começou a chorar de forma violenta. Como consegui mentir tão friamente? Não posso continuar assim, quando meu pai chegar vou criar coragem e contar tudo O que está acontecendo. Sei que ele vai me entender e ajudar. Vou dizer que menti a respeito do tênis. Ficou ali deitado, tinha realmente que terminar o trabalho de História para levar no dia seguinte, mas não sentia vontade de se levantar da cama. Adormeceu novamente. Leandro entrou no quarto, Artur dormia:
- Artur, acorde! Papai já chegou, o jantar está pronto!
Artur abriu us olhos, olhou para o irmão. Não sabia se era dia ou noite. Sua cabeça e olhos pesavam muito. Sentou-se na cama ainda um pouco sonolento. Sentiu novamente aquele vazio, já sabia que logo mais se transformaria em ansiedade e naquela vontade imensa da droga. Seu irmão olhava para ele admirado:
- Você está doente? A mamãe me contou sobre o assalto! Machucaram você?
- Não estou doente, não! Não! Eles não me machucaram. Pode descer que irei em seguida.
Leandro, mais tranqüilo por ver o irmão bem, saiu do quarto. Artur levantou-se e foi para o banheiro. Olhou-se no espelho, percebeu que estava com os olhos vermelhos e com olheiras profundas. Ficou apavorado, com medo que seus pais notassem a diferença. Nem por um instante se lembrou das espinhas que tanto o incomodavam. O vazio aumentava. Olhou para suas mãos, elas tremiam. Tomou um banho, tentou se acalmar, sabia que a conversa com o pai seria difícil. Ele não vai acreditar em assalto... seria melhor que eu contasse a verdade... ele ficará bravo, mas me ajudará. Saiu do banheiro. Voltou para o quarto, penteou os cabelos e foi ao encontro de seu pai. Álvaro e Odete estavam sentados em um sofá conversando. Artur se aproximou, beijou o pai como fazia todos os dias. Olhou para sua mãe, não disse nada, apenas sentou-se e ficou assistindo televisão. Iracema entrou na sala avisando que o jantar estava servido. Dirigiram-se para a sala de jantar. Começaram a comer. Artur permanecia calado, comendo com a cabeça baixa. Não tinha coragem de olhar nos olhos dos pais. Enquanto comia, pensava: Vou contar tudo, não posso continuar assim, sinto que estou precisando cada vez mais da droga. Odete conversava com o marido, mas, preocupada, prestava atenção em Artur. Ele está triste e assustado, preciso fazer algo para tirá-lo desse estado. Artur tentava comer, mas não conseguia. Já sentia que a vontade da droga estava voltando mais forte. Queria sair dali e voltar para o seu quarto. Só ali se sentia bem. Finalmente todos terminaram de comer. Como em todas as noites, foram para a sala de televisão. Artur os acompanhou. Sabia que a hora de encarar os pais estava chegando. Assim que todos se sentaram, Odete disse:
- Álvaro, aconteceu algo muito desagradável com Artur...
Contou a ele o que havia sucedido. Álvaro, à medida que ouvia, ficava vermelho de ódio. Artur permanecia de cabeça baixa. Não tinha coragem de olhar para ele. Odete contou tudo, inclusive sobre o tênis. Quando terminou de falar, Álvaro, muito vermelho e tremendo, olhou para Artur:
- Meu filho, você está bem?
Artur olhou para o pai, sabia que aquele era o momento de contar toda a verdade. Mas não teve coragem, não podia causar a ele toda aquela tristeza. Respondeu:
- Estou bem, só um pouco assustado...
- Pois eu não estou assustado! Estou com muita raiva! Que cidade é esta, onde não podemos mais andar com tranqüilidade? Até quando vamos ficar à mercê desses marginais? Você, ainda o outro dia, ficou com pena daquele que foi preso perto da sua escola! O que acha que esses que o roubaram e assustaram merecem? Ser presos, sim! Ficar atrás das grades por muito tempo! Se não for assim, logo mais não poderemos ir nem até um parque em uma tarde de domingo! Não sei o que vai ser das pessoas honestas nas mãos desses bandidos! Não se preocupe, vou comprar outro tênis para você.
Artur ouvia o pai. Sabia que deveria contar tudo naquele momento, mas percebeu que o pai estava muito nervoso. Tentou:
- Papai... Eu... Eu...
- O quê? Quer me dizer alguma coisa?
- Eu? Não quero outro tênis. Será melhor eu andar com um nacional mesmo, assim não haverá mais perigo de ser assaltado...
- Olhe Odete! A que pontos chegamos! Nosso filho está abrindo mão do que gosta por causa desses marginais!
- Você tem razão, mas também acredito ser melhor que ele ande com um tênis comum. Desta vez não aconteceu algo mais grave, mas nada pode nos garantir que de uma próxima vez não aconteça...
Artur ouvia os pais conversando. Sentia vontade de contar a verdade, mas não teve coragem. Pediu licença, saiu da sala e foi para o seu quarto. Deitou-se na cama e novamente começou a chorar. A vontade da droga já era intensa. Sabia que para que ela passasse teria que fumar outro daqueles cigarros: Mas como vou fazer? Não me deixarão sair à noite, como vou fazer? Sinto que não vou conseguir dormir e esperar até amanhã. Olhou para o alto do armário, sabia que ali estava o seu alívio, mas como fazer? Levantou-se, foi até o armário e pegou o casaco onde havia escondido a maconha. Tirou um dos cigarros que Rodrigo havia preparado. Guardou embaixo do travesseiro. Tentou dormir, não conseguiu. Virou e revirou na cama. Percebeu quando seus pais foram para o quarto. Leandro entrou devagar, ele fingiu estar dormindo. Não queria conversar. Pensava em um modo de fumar o cigarro, Leandro se deitou. Logo mais, Artur percebeu que ele estava dormindo. Levantou-se e em silêncio saiu do quarto, levando em sua mão o cigarro. Desceu a escada, viu-se na grande sala. Devagar abriu a porta que dava para o quintal. Passou pelo quarto de Iracema, estava com a porta fechada e a luz apagada. Sem fazer qualquer ruído, saiu. Foi para bem longe da casa. Acendeu o cigarro e começou a fumar. Naquele momento, sentiu-se muito bem. Não lhe importava a mentira que havia dito ou o que o pai dissera. Só lhe interessava o bem-estar que sentia. Após terminar o cigarro, ficou ali fora por mais um tempo. Via luzes coloridas que o encantavam. Voltou para dentro da casa e em silêncio voltou para o seu quarto. Deitou-se na cama, mas não conseguiu dormir. Estava muito agitado e com vontade de sair correndo. Sentia que as paredes do quarto se apertavam, ele se encolhia na cama, sentindo então muito medo. Após muito tempo, sem perceber, adormeceu.
- Artur, acorde, acorde, já está na hora, seu pai já está tomando banho, não vá se atrasar.
Diferente dos outros dias, ele teve muito mais dificuldades para abrir os olhos. Com muito custo, respondeu:
- Já vou me levantar, não vou me atrasar...
Odete saiu do quarto. Ele se virou na cama e voltou a dormir. Vendo que ele não descia, ela voltou para o quarto:
- Artur, você voltou a dormir? Acorde, meu filho! Vai perder a hora!
Novamente ele ouvia aquela voz vindo de muito longe. Aos poucos foi percebendo que era a mãe que o estava acordando. Abriu os olhos, sentou-se na cama:
- Já vou mamãe, vou mesmo!
Levantou-se e correndo foi ao banheiro. Abriu o chuveiro e entrou de uma vez. A água quente ia caindo, ele ia despertando: Meu Deus, o que está acontecendo comigo? Não consegui acordar, não preparei o trabalho de História que teria que entregar hoje. Tomou o banho, vestiu-se e rapidamente desceu. Seu pai já havia terminando de tomar o café e estava se levantando para ir embora. Disse:
- Mais uma vez vai ter que sair sem tomar café. Isso não é bom.
Artur não respondeu, deu um beijo em sua mãe e saiu correndo atrás do pai, que se dirigia para o carro. Entrou e, em silencio, seguiram. Seu pai ligou o rádio, as notícias começaram. Após algum tempo, Álvaro disse:
- Está vendo? Só notícias ruins. Será que não acontece mais nada de bom neste país?
Artur não respondeu, estava novamente sentindo o vazio. Pensava: Até quando isso vai durar! Está ficando pior! O espaço de tempo está cada vez menor! Álvaro percebeu que seu filho não o havia escutado. Continuou:
- Artur, estou preocupado com você! O que está acontecendo? O que o está preocupando?
Novamente Artur sentiu que seria o momento de contar tudo e pedir ajuda. Ia falar, quando seu pai deu uma freada brusca. Nervoso, disse:
- Veja que irresponsável esse motorista! Você viu como ele me cortou?
Artur apenas balançou a cabeça. Seu pai estava nervoso, pensou que não seria uma boa hora para falar com ele. No trânsito, sua atenção não poderia ser desviada. Calou-se, pensando: Não vai adiantar eu falar com ele. Não agora. Mas, também, o que poderia fazer? Talvez me internar! Não! Eu não quero isso! Vou ter que encontrar uma maneira de me livrar. Tem que haver uma maneira. Chegaram finalmente em frente à escola. Artur desceu dessa vez lembrou-se de dar o beijo costumeiro. Adorava os pais e o irmão. Nunca daria a eles um motivo para sofrerem. Escava saindo do carro quando seu pai lhe disse:
- Como quase todos os dias, não teve tempo para tomar café. Pegue este dinheiro, compre um lanche na cantina.
Artur pegou o dinheiro. Percebeu que estava com fome. Entrou na sala de aula. Viu Mariana, mas não teve vontade de falar com ela. No íntimo a culpava por estar naquela situação. Ela se aproximou:
- Artur! Como vai? Por que não me procurou mais? Ele apenas sorriu:
- Estou tendo alguns problemas, mas logo estarei bem e voltarei a ser como antes.
- Posso ajudar de alguma maneira?
- Não! Não pode! Ninguém pode!
- Você esta me assustando! Por que está tão nervoso? O que está acontecendo? Sabe que gosto muito de você! Sou sua amiga! Nunca mais vou conseguir esquecer aquela noite, aquele beijo. Confie em mim.
- Também nunca mais vou me esquecer daquela noite, mas infelizmente por outros motivos.
- Não estou entendendo! Que outros motivos?
- Não é nada, não! São coisas minhas, mas está na hora de entrarmos na sala de aula. Vamos?
Entraram na sala de aula. Ele estava preocupado, o professor de História perguntaria pelo trabalho que ele não havia feito. Teria que inventar uma desculpa. O professor entrou Artur não se sentia bem. Não estava ainda sentindo falta da maconha, mas conhecia seu corpo, sabia que não era o mesmo. Teve dificuldade para se concentrar. Quase no final da aula, o professor pediu o trabalho de História. Levá-los-ia para casa e lá os corrigiria. Artur percebeu que seus colegas se levantavam e entregavam o trabalho. Ele permaneceu sentado. Após receber todos os trabalhos, o professor olhou para ele:
- Artur, você não entregou o trabalho?
Aquele era o momento temido. Artur precisava arrumar uma desculpa. Mas qual? Pensou rápido:
- Desculpe professor. Acordei atrasado, esqueci de pegar, mas na próxima aula eu trago.
- Esta bem. Sei que você o fez, sempre foi um ótimo aluno. Não se esqueça de trazer.
- Trarei sim, está pronto.
O professor sorriu, Artur respirou aliviado. Daquela havia escapado. Por dentro sorria. Estava orgulhoso da mentira que inventara feliz por descobrir que mentir não era tão difícil como pensava. Terminou a aula de História, ele não conseguiu se concentrar. O vazio do estômago estava voltando. Talvez seja fome, vou até a cantina tomar um lanche. Saiu da sala de aula acompanhando os colegas. Percebeu que eles saíam conversando entre si, mas ele não estava com vontade de conversar. Queria chegar logo à cantina e comer alguma coisa. O vazio e o tremor estavam aumentando. Não queria aceitar que estava novamente precisando da droga. Ele havia deixado todos os cigarros escondidos em casa. Na cantina, entrou na fila para pedir seu lanche. A vontade já era imensa. Estava preocupado, sem saber o que fazer:
- Bom dia, Artur. Está tudo bem?
Olhou para trás, era Rodrigo. Sentiu uma mescla de ódio e necessidade:
- Não está nada bem!
Saiu da fila, pegou no braço de Rodrigo e levou-o para um canto:
- Você tem algum bagulho aí?
- Tenho sim, por quê?
- Estou precisando agora, neste momento! Se não fumar, não vou conseguir assistir à próxima aula!
- Podemos fazer um acordo...
- Que acordo?
- Que estava fazendo na fila da cantina?
- Vou comprar um lanche!
- Estou com fome e não tenho dinheiro. Você paga o meu lanche e eu lhe dou o que está precisando...
- Pagar o seu lanche? Não tenho dinheiro para pagar os dois!
- Eu não posso lhe dar o bagulho. Tenho outros que me pagarão.
- Você não pode fazer isso comigo! Só tenho esse dinheiro! Dê-me agora e amanhã trago um dos meus e lhe dou!
- Amanhã será outro dia... Estou com fome agora... Resolva depressa, vamos ter que voltar para a sala de aula.
Artur percebeu que não havia como evitar. Sentiu que não conseguiria assistir às outras aulas se não fumasse o maldito bagulho.
- Está bem, eu lhe dou o dinheiro, mas como vamos fazer? Dentro da escola não vai poder ser, preciso agora!
- Vamos até aquela pracinha lá na frente da escola. Já sabe que lá não vai ter problema algum.
Artur sabia que não havia problema, pois ninguém prestava atenção. Disse.
- Está bem, vamos?
- Antes, dê-me o dinheiro, e enquanto eu compro o meu lanche, vá lá pra fora e me espere na pracinha. Não podemos sair juntos.
Artur percebeu que não havia outra forma. Deu o dinheiro e dirigiu-se ao portão da escola. Não sabia na realidade se o portão ficava aberto todos os dias. Passou pela sala da diretoria e a dos professores. As pessoas estavam lá dentro conversando entre si e não perceberam que ele estava saindo. O mesmo aconteceu na recepção. Logo se viu diante do portão. Não havia ninguém. Abriu e saiu. Foi em direção à praça. Sentou-se em um banco, ficou ansioso olhando para o portão. Sorriu aliviado quando viu Rodrigo saindo por ele. Rodrigo chegou, sentou-se ao seu lado. Tirou do bolso um cigano e entregou-o para Artur, que o pegou com sofreguidão. Tremia muito enquanto o acendia, Rodrigo, ao seu lado, comia tranquilamente o lanche que havia comprado com o dinheiro de Artur. À medida que ia tragando do bagulho, Artur percebeu que um bem-estar tremendo ia tomando conta de seu corpo. Começou a sentir-se bem novamente. Sentia que era o dono do mundo e que poderia fazer o que quisesse. Sentiu que poderia voltar para a sala de aula e assistir à próxima aula com tranqüilidade. Poderia até falar com Mariana. Estava bem demais para se preocupar com sua situação naquele momento, nada mais o incomodava. Terminou de fumar. Olhou para Rodrigo:
- Agora podemos voltar para a sala de aula, estou muito bem:
- Vamos, então. O meu lanche também estava muito bom.
Voltaram para a classe. Artur conseguiu assistir à aula, mas não via a hora que terminasse. Sentia-se preso. Queria sair, correr e quem sabe, até voar. Assim que as aulas terminaram, ele saiu, e como de costume, ficou esperando o pai chegar. Estava muito agitado. Não conseguia ficar parado, esperando. Começou a andar de um lado para o outro. Ficou irritado porque o pai estava demorando. Na realidade, não sabia ao certo se o pai estava demorando ou não. Havia perdido o sentido de tempo e horário. Álvaro parou o carro:
- Entre, Artur.
Ele entrou em silêncio e sentou-se ao lado do pai. Este acelerou e saiu. Artur ficou calado. Não tinha vontade de falar, nem de ficar dentro do carro. Na realidade, o que queria mesmo era sair correndo. Entrou em casa correndo. Sua mãe estava junto com Iracema terminando de colocar a mesa para o almoço. Ele passou por elas sem dizer nada e em disparada subiu a escada, indo para o banheiro. Odete estranhou a atitude do filho. Álvaro entrou em seguida. Ela, preocupada, perguntou:
- Aconteceu alguma coisa com Artur?
- Que eu saiba não, por quê?
- Ele entrou calado, subiu correndo!
- Deve ter ido ao banheiro. Não sei, não, mas estou achando que ele está um pouco diferente. Veio o caminho todo da escola até aqui sem dizer uma palavra sequer.
- Será que está doente?
- Pergunte a ele.
- Farei isso, mas agora vamos almoçar.
Sentaram-se para iniciar o almoço. Artur, no banheiro, abriu a torneira, molhou o rosto com água fria. Estava agitado, sabia que precisava almoçar com os outros, só que estava muito agitado, queria sair para a rua, correr, fazer qualquer coisa, só não podia ficar preso dentro de casa. Suava frio. Estava novamente sentindo aquela sensação. Sabia que em breve não estaria mais suportando. Por alguns segundos ficou olhando para seu rosto refletido no espelho; pensou: Que fiz com minha vida? Quando vou ter paz novamente? Começou a chorar. De seu peito saiam soluços profundos. Mas durou pouco tempo, logo voltou ao normal. Em um momento de lucidez, pensou: Estou me desesperando à toa. Não estou viciado! Vou ter força de vontade! Quando a vontade voltar, vou suportar! Não deve demorar muito. Não posso negar que esses cigarros me fazem muito bem. Com eles me sinto mais seguro, mais livre. É isso mesmo! Por que estou tão nervoso? Graças ao cigarro consegui falar com Mariana. Com ele vejo luzes maravilhosas, sinto-me livre! Não vou mais me preocupar. Vou almoçar, não estou com fome, mas vou comer algo para não levantar suspeita. Meu pai não pode nem sonhar com o que está acontecendo comigo. Enxugou o rosto. Olhou novamente para o espelho, deu um sorriso e saiu. Quando chegou à sala, seus pais e Leandro já estavam almoçando. Sentou-se, começou a colocar comida em seu prato. Quando pegou feijão com uma concha, sua mão tremeu e deixou cair o feijão sobre a mesa. Ficou irritado:
- Que porcaria! Olhem só o que fiz!
Bateu a concha com força na mesa e saiu correndo. Os pais ficaram atônitos vendo-o se afastar. Odete disse:
- Álvaro, esse menino não está bem! Vou lá falar com ele!
- Ele está é muito mal-educado! Você não vai, não! Vamos terminar o nosso almoço. Depois iremos os dois juntos.
- Deve ser a idade. Sabe como é, está naquela idade em que não é mais um menino, e nem é ainda um adulto.
- Pode ser, mas isso não lhe dá o direito de agir dessa maneira. Por enquanto vamos esquecer esse assunto e continuar o nosso almoço.
Ele disse essas palavras, mas como a esposa, sabia que não conseguiria mais continuar almoçando. Os dois fingiam que comiam, mas foi impossível. Leandro, não percebendo a gravidade do momento, continuou comendo normalmente. Iracema, que estava ao lado deles quando tudo aconteceu, saiu da sala em silêncio. Ela gostava muito daquela família. Já estava com eles havia muito tempo. Gostava muito mais de Artur, sempre o achara um menino muito bom. Além do mais, sempre a tratara com carinho. Na cozinha, ela juntou as mãos, dizendo em voz baixa:
- Meu pai du céu. Protege esse minino... Ele não ta bem não... Não é o mesmo minino di antes... Não deixa que nada de ruim aconteça com ele.
Álvaro e Odete terminaram de comer. Ela levantou-se e começou a subir a escada que a levaria para o quarto de Artur. Sentia que precisava descobrir o que estava acontecendo com o filho. Como Iracema, sabia que alguma coisa não estava bem. Só precisava descobrir o que era. Álvaro continuou sentado acompanhando com os olhos a esposa. Deixarei que ela fale com ele primeiro. Daqui a pouco vou subir e saber o que esta acontecendo. Odete entrou devagar no quarto. Artur estava andando de um lado para o outro. Ela percebeu que ele estava agitado. Nunca o tinha visto daquela maneira. Aproximou-se:
- Meu filho, o que está acontecendo com você? Por que está tão nervoso?
Ao ver a mãe, ele ficou mais nervoso ainda:
- Como pergunta o que está acontecendo? A senhora não viu o que fiz?
- O que fez que eu não vi!
- Derramei o feijão sobre a mesa!
- Foi só um acidente! Quantas vezes você ou qualquer um de nós já fez isso? Meu filho, você está tendo algum problema na escola? Esta precisando de umas aulas extras?
Ele olhou nos olhos da mãe. Mais uma vez sentiu que havia chegado o momento de contar tudo o que estava passando. Sabia que ela era compreensiva, sempre fora. Ela encontraria uma maneira de ajudá-lo. Abraçou-se a ela, ia começar a falar quando ouviu:
- Menino! Você vai ter que dar uma boa explicação por aquilo que fez. E não é por ter deixado o feijão cair, mas por sua atitude depois. Não sei se tem algum problema, não deve ter, pois faço tudo para que não tenha. Tem uma boa casa, boa cama e todo o alimento que precisa! Tem o nosso carinho. Procuro ser um bom pai. Ao menos me esforço para isso. Por esse mesmo motivo, não posso suportar uma mau criação como essa que você fez.
Artur olhou para o pai. Sentiu que ele estava sendo sincero. Em sua mente, e em poucos segundos, relembrou como tinha sido sua vida junto dele. Sabia que o que ele estava dizendo era à verdade. Realmente, ele procurava, e até então conseguira, ser um bom pai. Calado, olhando para o pai, pensou: Ele tem razão, não posso dar a ele nem a minha mãe um desgosto desses. Não posso dizer o que sou ou em que estou metido; um viciado em drogas, logo eu, que sempre fui tão alertado sobre isso. Começou a chorar novamente. Sua mãe o abraçou:
- Meu filho, conte o que esta acontecendo, nós o amamos, estamos aqui para ajudá-lo. Sei que essa idade que está vivendo agora não é fácil, mas logo passará. Daqui a pouco você vai ser um adulto completo, terminará a escola e irá para a faculdade. Um dia encontrará uma moça de quem goste, se casará e será feliz. Confie em nós...
Ele estava a ponto de contar, mas ao mesmo tempo, não queria lhes dar um desgosto. Novamente pensou: Não posso contar, vou sair dessa sozinho, não vou mais fumar! Nunca mais!
- Não está acontecendo nada, mamãe. A senhora mesmo disse que deve ser por causa da idade. Desculpe por eu ter derramado o feijão...
Odete se abraçou a ele com mais força. Sorrindo, disse:
- Ora, meu filho! Foi só um acidente! Poderia ter acontecido com qualquer um de nós. Você precisa agora voltar para a sala e continuar comendo. Pedi a Iracema para não tirar a mesa.
- Não estou com vontade de comer. Pode mandar tirar a mesa. Depois vou comer um sanduíche.
- Deve ter comido tarde na cantina, não foi! Já disse mil vezes para não comer na última aula. Tem que comer assim que chegar à escola, antes das aulas começarem.
- Foi isso mesmo que fiz. Papai desculpe, não tive a intenção de magoá-lo.
- Ora, meu filho, sua mãe tem razão. Deve ser a idade, mas é por isso mesmo que precisa confiar em nós. Ninguém gosta mais de você do que eu e sua mãe. Vou descer. Preciso olhar alguns papéis antes de ir para o fórum, hoje tenho audiência.
Os dois saíram do quarto. Artur foi novamente para o banheiro e olhou-se no espelho. Novamente começou a chorar desesperado. Não posso contar! Preciso sair dessa sozinho! Eles não suportariam saber no que estou me transformando! Eles não merecem isso! Da próxima vez que a vontade voltar, vou resistir! Nunca mais vou fumar maconha! Nunca mais! Voltou para o quarto, deitou-se de costas, ficou olhando para o teto. Sentia que afundava cada vez mais. Precisava fazer alguma coisa para se livrar daquilo, só não sabia como. Com os olhos fixos em um ponto, continuou pensando: Estou aqui me desesperando à toa. A droga não é tão ruim assim. Sinto que com ela me torno uma outra pessoa. Consigo fazer o que quero, até falar com Mariana ou outra menina qualquer. Não posso negar que com ela estou vivendo experiências antes desconhecidas. Mas, por tudo o que meus pais sempre disseram, sei que é muito perigoso, um caminho sem volta. Talvez não seja bem assim. Quando estou com a droga, sinto-me muito bem, muito mais do que quando estou sem ela. Só preciso aprender a me controlar e só usar de vez em quando. Continuou ali deitado, sem saber que caminho seguir. Até então vivera uma vida cerca, dentro dos conformes. Nesse momento seguia por um caminho desconhecido, mas que, embora lhe causasse medo, também o atraía. Levantou-se, foi para o banheiro, olhou-se no espelho. Preciso encontrar um meio de conciliar as duas coisas. Posso controlar meu corpo e só fumar no fim de semana. Assim poderei continuar meus estudos sem problema algum. Se conseguir isso, meus pais não desconfiarão. Afinal, não é tão ruim assim. Meus pais nunca usaram drogas, como podem dizer que é ruim? Só preciso aprender a me controlar. Só usar nos fins de semana. Nada, além disso. Voltou para o quarto. Seus olhos se dirigiram para o computador e para sua mochila. Lembrou-se do trabalho de História, que precisava entregar em dois dias. Ligou o computador, sentou-se. Pegou um livro, começou a ler. Para ele sempre fora fácil aprender qualquer coisa. Após dez minutos, percebeu que não conseguia pensar para fazer o trabalho. Seu pensamento estava distante, não conseguia se concentrar na leitura. Desligou o computador, voltou para cama. Estava cansado, deitou-se e adormeceu. Quando acordou, não soube dizer por quanto tempo esteve dormindo. A casa estava cm silêncio. Sua mãe e Leandro deviam ter ido para a escola. Iracema devia estar na lavanderia, ele sabia que todas as tardes ela ia para lá e passava roupa. Levantou-se, foi para o banheiro. Precisava voltar para o computador. Saiu, olhou para ele, mas não sentia vontade de escrever, queria mesmo era sair. Olhou para o alto do armário, sabia que ali estava aquilo que precisava. Com a troca do tênis, conseguira muito. Sabia também que por um bom tempo não precisaria se preocupar. Pensou: Não entendo por que as pessoas falam tão mal da droga, A mim ela só faz bem. Sinto que com ela nada é impossível. Meus pais falam muito, mas acho que têm muito preconceito. O único problema é o dinheiro para consegui-la. Por isso, já decidi: vou fumar esses que estão aí e não usarei mais. Só voltarei a fumar novamente depois que me formar e tiver uma profissão. Assim terei meu próprio dinheiro, sem precisar pedir a ninguém. Preciso ficar longe de Rodrigo, ele não é um bom amigo. Ele me enganou, disse que eu não me viciaria, mas sinto que isso está acontecendo. Como ele teve coragem de me deixar sem comer? De ficar com o meu lanche? E isso mesmo, vou usar essa maconha que tenho aqui, depois esquecerei. Seguirei minha vida como antes. Não quero mais falar com Rodrigo. Levantou-se, desceu.

PEDINDO AJUDA

Conforme previra, não havia ninguém em casa. Dirigiu-se à lavanderia, entrou devagar e chamando:
- Iracema!
Ela se assustou:
- Qui é isso, minino? Me assustou!
- Desculpe, não foi minha intenção:
- Qui cê ta fazendo aqui? Pensei que tivesse no seu quarto, mexendo naquele computadô.
- Por que diz isso?
- E o qui faiz sempre quando ta em casa.
- Tem razão, mas hoje preciso sair. Foi justamente para dizer isso que vim até aqui. Preciso ir à casa de um amigo, temos que entregar um trabalho.
- Purque isso? Sempre é eles que vêm aqui...
- Por isso mesmo, a mãe de um deles quer que façamos o trabalho na casa dela.
- To te estranhando, ocê ta diferente. Ta com algum pobrema?
Artur mudou o tom de voz. Nervoso, respondeu:
- Não tenho problema algum! Por que todos estão fazendo essa mesma pergunta?
- Não precisa fica nervoso. Gosto muito doce, te criei desde que era piquininho, por isso te conheço muito bem. Sei que ta acontecendo alguma coisa. Pode confiá, vô fazer tudo pra te ajudá.
Artur, furioso, não respondeu. Saiu batendo a porta, sob os olhos arregalados de Iracema, que não sabia o porquê de tanto nervosismo. Ele tremia muito. Nervoso, voltou ao quarto, pegou o casaco no armário, tirou um cigarro de maconha, colocou no bolso e saiu. Já na rua, saiu caminhando sem destino. Estava nervoso e tremia muito. Sabia que não estava bem, mas mesmo assim não queria aceitar o fato de que já estava viciado. Por que todos estão me achando diferente? Sou o mesmo de sempre! Será que não posso ter a minha privacidade? Tenho que dar satisfações de tudo o que faço? Foi em direção a uma praça, sentou-se, acendeu o cigarro e ficou ali fumando. A praça estava vazia àquela hora, não passava ninguém. Após alguns minutos, percebeu que escava se acalmando. A maconha tinha o poder de acalmá-lo, de deixá-lo muito bem. Levantou-se do banco em que se sentara e começou a caminhar, novamente sem rumo. Depois de algumas horas voltou para casa. Ao entrar, estranhou que sua mãe já estivesse em casa. Não percebera que havia caminhado tanto. Sua mãe, ao vê-lo, disse:
- Olá, Artur. O trabalho com seus amigos ficou pronto?
Ele se assustou:
- Que trabalho?
Sua mãe admirou-se ainda mais:
- Iracema me disse que você foi à casa de um amigo para fazer um trabalho da escola...
Só então ele voltou à realidade:
- Ah, foi isso mesmo. Desculpe mamãe, é que o trabalho foi tão complicado que estou ainda um pouco tonto. Depois de muito tempo conseguimos terminar, e acho que ficou muito bom.
- Ainda bem, mas está quase na hora do jantar, é melhor você tomar um banho. Sua aparência não está muito boa.
- Está bem, já vou.
Saiu da presença da mãe. Estava distante, queria mesmo era ficar sozinho. Foi para o quarto. Odete foi até a cozinha falar com Iracema:
- Sabe Iracema, estou preocupada com Artur.
- Pur que, dona Déte?
- Ele está diferente, parece distante, não é mais aquele menino de antes. Quase não fala, e às vezes parece que fica nervoso à toa.
- Também percebi isso, tentei fala com ele hoje di tarde, mais ele fico nervoso e saiu sem querê conversa.
- Será que ele está apaixonado por alguma menina que não o quer?
Iracema sorriu:
- Podi sê, sabe como é na idade dele. Acho que pras menina é mais fácil. Acho que podi sê isso mesmo. Todo apaixonado fica meio bobo mesmo, num é?
Odete saiu da cozinha rindo. Lembrou-se de como ela mesma era quando tinha a idade dele. Quantas vezes se apaixonara e quantas vezes pensara que o mundo fosse acabar, mas lembrou-se também que aquela idade passava depressa, que logo ele teria outras prioridades. Pensou: Ele é um bom menino, vai me dar muitas alegrias. Essa fase passará. Enquanto isso, no quarto, Artur estava deitado. Ainda sob o efeito da maconha, sentia que nada poderia lhe fazer mal. Começou a rir quando percebeu que não era tão difícil mentir. Lembrou-se das várias mentiras que havia dito e que ninguém descobrira. Mas sentia-se decidido: Vou fumar só essa maconha que tenho, depois nunca mais até me formar e ter o meu emprego. Não quero mais passar pela situação em que fiquei junto a Jiló e a Rodrigo, quando tive que dar o tênis e meu lanche. Foi para o banheiro, entrou embaixo do chuveiro e lá ficou por muito tempo. Vestiu uma roupa limpa e foi para a sala de jantar. Comeu em silêncio. Os pais notaram que ele estava calado, mas não disseram nada, apenas observaram. Assim que terminou de comer, Artur pediu licença e foi para o seu quarto. Odete, preocupada, disse:
- Não sei não, Álvaro, mas alguma coisa está acontecendo com Artur, ele está muito diferente.
- Também estou notando, mas talvez seja a idade. Logo vai passar.
- Acho que você tem razão, vamos esperar esse tempo passar.
No quarto, Artur olhou para o computador, aquilo que até então havia sido a sua paixão. Pensou em ligá-lo, mas depois de alguns segundos desistiu. Olhou para a cama e deitou-se. Dormiu em seguida. Naquela noite, ele mais uma vez se levantou e foi para fora fumar. Saiu com cuidado do quarto para não acordar Leandro, que dormia tranqüilamente. Enquanto saía, pensava: Preciso dar um jeito de tirá-lo do meu quarto. Sua presença está me incomodando. No dia seguinte tudo voltou ao normal. Levantou-se cedo, saiu junto com o pai, que o levou até a escola. Lá, ele não conseguiu acompanhar as aulas, mas não se importou. Na hora do lanche foi para a praça e fumou mais um cigarro. Aprendera por isso todos os dias levava um cigarro com ele, para não ter que passar outra vez por aquilo que passara com Rodrigo. Os dias se passaram. Em uma noite, quando foi pegar um cigarro no casaco, percebeu que havia só mais um. Ficou preocupado, mas ao mesmo tempo sabia que aquele seria o último. Já havia decidido que não fumaria mais. Precisava terminar seus estudos e conseguir um emprego que lhe desse o dinheiro que precisava para comprar a maconha. Antes disso, não voltaria a fumar. Não havia ainda conseguido encontrar um meio de tirar Leandro do seu quarto, por isso ainda continuava tendo cuidado para sair durante a noite. Já lá fora, fumou seu último cigarro. Mais uma vez viu luzes coloridas e se encantou, mais uma vez se sentiu muito bem. Depois de algum tempo, voltou para o quarto e adormeceu. No dia seguinte, quando sua mãe foi acordá-lo, sentiu muita dificuldade para despertar. Estava cansado. Depois de muita insistência, ela conseguiu finalmente fazê-lo levantar. Seus olhos estavam vermelhos e tinha umas olheiras profundas, mas nem ele nem seus pais perceberam. Só Iracema, que ao vê-lo ficou preocupada e desconfiada. Pensou: Os óio dele tão muito vremeio, e essas olheiras... não sei não, mas já vi isso antes. Lá na favela muitos óio são assim. Deus do céu! Que to pensando? Não podi ser. Ele é um menino muito bem-criado e educado, sabe tudo sobre a droga, nunca se deixaria envolve. Mas, mesmo assim, vou tenta fala cum ele. Embora preocupada, não pôde falar com ele naquele momento. Resolveu que esperaria até a tarde, quando estivessem os dois sozinhos. Gostava muito dele e sabia ser correspondida. Faria com que ele lhe contasse tudo, e se realmente confirmasse suas suspeitas, ela encontraria um modo para ajudá-lo. Artur saiu junto com o pai. Estava bem, pois durante a madrugada fumara seu último cigarro de maconha. Tinha também a certeza de que não usaria mais, só quando tivesse o seu próprio dinheiro. Ao chegar à escola, viu Rodrigo conversando com algumas pessoas. Sorriu. Sabia que ele os estava envolvendo para que usassem a maconha. Pensou: Preciso ficar longe dele. Com sua fala mansa, ele vai envolvendo. Sabe que ponto atingir. Mas ainda bem que estou livre. Vou continuar a minha vida, estudando, e logo mais terei o meu diploma. Assistiu à primeira aula. Conseguiu até acompanhar, não como antes, mas bem mais do que ultimamente. Na segunda aula percebeu que a vontade estava voltando. Apavorou-se: Não! Não, preciso resistir, sei que logo passará. Já não estava tranqüilo. Não conseguiu mais acompanhar a aula. Suas mãos começaram a tremer. Sentia-se abafado, preso, queria sair dali, não conseguia respirar. Quando terminou a segunda aula era hora do intervalo. Ele saiu correndo para o banheiro. Molhou o rosto com água fria, sentia que não suportaria, sabia que precisava da maconha e que sem ela não ficaria bem. Precisava entender a aula, no último mês tivera notas baixas. Estava ali quando Rodrigo entrou:
- Que é isso, amigo? Está doente? Precisa de ajuda?
Artur voltou-se, olhou com ódio para ele, mas sabia que mais uma vez precisava dele. Respondeu:
- Não estou bem e você sabe por quê. Preciso de um bagulho.
Tem que ser agora, senão, não conseguirei acompanhar as aulas.
- Tem dinheiro?
- Só o do lanche...
- Se me der, eu lhe dou um bagulho agora mesmo...
Artur não queria, mas sabia que ficaria cada vez pior. Desesperado, disse:
- Preciso comer, saí de casa sem tomar café. Pode me dar, amanhã trarei o dinheiro...
- Nem pensar. Amanhã será outro dia. Se quiser agora, tem que pagar. Se não receber o seu dinheiro, também ficarei sem, e isso não é justo. Preciso de dinheiro para comprar mais...
Sem alternativa, Artur concordou. Tirou do bolso o dinheiro que o pai havia lhe dado para o lanche e entregou-o a Rodrigo, que, sorrindo, tirou do bolso um bagulho. Artur colocou o cigarro no bolso e saiu em direção à portaria. Teria que sair da escola. Sabia que conseguiria, pois não havia vigilância. Na rua, rapidamente foi até a praça. Lá, outros jovens fingiam passear, mas ele sabia que, assim como ele, estavam fumando maconha ou usando outras drogas. Acendeu o cigarro e começou a fumar. Aos poucos foi se sentindo melhor. Era incrível o bem-estar que sentia. Começou a andar pela praça. Após alguns minutos, achou que já estava bem para voltar à escola. Foi o que fez. Voltou, entrou na sala de aula, o professor entrou em seguida. Artur olhava para a classe, parecia que todos estavam envolvidos em nuvens coloridas. O professor falava, mas ele não prestava atenção. Seu pensamento estava longe, queria sair e andar, não conseguia ficar parado. Finalmente as aulas terminaram, estava na hora de ir embora. Artur foi para o lugar de costume esperar o pai. Não conseguia ficar parado. Irritou-se, pois achou que ele estava demorando. Andava de um lado para o outro. Álvaro chegou, estranhou que Artur não estivesse ali no lugar de costume. Olhou em volta e viu-o na esquina. Buzinou. Artur ouviu e foi em sua direção. Entrou no carro. Álvaro perguntou:
- Por que não estava no lugar de sempre?
- O senhor demorou muito. Fui até a esquina, já estava voltando.
- Não demorei, cheguei na hora de sempre. Você não me parece bem. Está doente, sentindo alguma dor?
Artur irritou-se:
- Não estou doente nem sentindo dor!
- Por que está tão irritado? Aconteceu alguma coisa?
- Não aconteceu nada, estou preocupado porque não entendi um problema de Matemática.
- Estou percebendo que você está com dificuldades. Estranho, pois você nunca teve isso. Mas não precisa se desesperar. Eu e sua mãe não temos muito tempo, por isso vou contratar um professor. Verá que com algumas aulas logo entenderá tudo. Não precisa ficar nervoso. Matemática é assim mesmo. Parece difícil, mas com uma boa explicação, se aprende logo.
Artur sabia que o pai só queria ajudar. Sentiu que aquele era o momento. Sabia que não conseguiria se livrar da maconha, não sem ajuda. Olhou para o pai, que estava prestando atenção ao trânsito. Arriscou:
- Papai. Preciso lhe contar algo.
Sem tirar os olhos do trânsito, o pai disse:
- O que é? Está apaixonado? Sua mãe disse que pode ser isso.
Artur sorriu:
- Não é nada disso, estou preocupado com um amigo meu, ele está fumando maconha.
Por alguns segundos, Álvaro desviou os olhos do trânsito. Olhou para Artur:
- Fumando maconha? Quem é?
Artur percebeu que o pai estava irritado. Respondeu:
- O senhor não conhece.
Voltando os olhos novamente para o trânsito, Álvaro continuou:
- Ele é da escola? Onde consegue a maconha?
- Por que quer saber se ele é da escola?
- Porque se for um aluno, vamos juntos falar com o diretor. Ele precisa saber o que está acontecendo, maconha dentro da escola é um perigo para os outros alunos.
Artur percebeu que o pai ia querer saber muito. Resolveu contornar:
- Ele não é da escola, não sei onde consegue a maconha.
- Se não é da escola, quem é?
- O senhor não conhece.
- Não? Mas conheço todos os seus amigos. Onde o conheceu?
Artur sentiu que não poderia continuar aquela conversa. Seu pai descobriria que era dele mesmo que estava falando. Tentou remediar:
- Conheci na natação, mas hoje ele não nada mais.
- Ainda bem, meu filho, você tem que ficar longe dele. Uma pessoa que fuma maconha está a um passo das drogas, só pode trazer confusão. Ele não é uma boa companhia. Não quero que se preocupe com ele, quem tem que se preocupar são seus pais. Fique longe dele!
- Está bem, papai, farei isso.
Logo chegaram em casa. Artur entrou e foi direto para o seu quarto. Todos os dias fazia isso, antes do almoço trocava de roupa. No quarto, olhou para o espelho. Em seu rosto havia desespero. Não posso contar para o meu pai, ele não vai entender. Minha mãe, talvez, mas com certeza contará a ele. Que farão? Lembrou-se de Rodrigo quando um dia lhe dissera: ... eles o internarão em uma clínica.... Sentiu um tremor e, apavorado, disse em voz alta:
- Não! Não quero isso! Não posso ser internado! Preciso me livrar da maconha, mas como?
Ficou lá por algum tempo. Em seguida desceu. O almoço já estava sendo colocado por Iracema, que olhou para ele: Esse minino num ta bem. Vou vê se consigo fala cum ele. Almoçaram, como faziam todos os dias. Odete e Leandro foram para a escola. Álvaro para o escritório e Artur, dali a duas horas, deveria ir para o curso de computação. Tudo estava como sempre fora. Depois do almoço ele foi para o seu quarto. Olhou para o computador, lembrou-se que não havia feito o trabalho de História nem a lição que o professor de computação havia passado. Ligou o computador. Olhou, mas não sabia o que fazer. Seu raciocínio estava lento. Deitou-se e adormeceu. Na cozinha, Iracema estava cuidando dos pratos quando o telefone tocou. Ela estranhou, pois o telefone não costumava tocar à tarde, mas atendeu:
- Alô!
- Alô, preciso falar com Artur, ele está?
- Ta no quarto, mas quem é?
- Um amigo dele, Rodrigo.
- Espera um pouco, vou até lá chama ele.
Ela largou o telefone e subiu em direção ao quarto de Artur. Bateu na porta, mas não obteve resposta. Abriu devagar e entrou. Admirou-se ao ver que ele estava dormindo. Fechou a porta e voltou para o telefone:
- Rodrigo, ele ta dormindo.
- Está bem. Diga a ele que telefonei e que volto a ligar mais tarde. Muito obrigado.
- De nada, vô dizê.
Ela desligou o telefone e olhou para a escada que levava ao quarto de Artur. Pensou: Dormindo nesta hora? Ta estranho... Voltou para o quarto, colocou a mão com suavidade no ombro de Artur, que dormia profundamente:
- Artur, acorda...
Ele, com dificuldade, abriu os olhos. Olhou para ela e voltou a fechá-los. Ela tornou a chamar. Novamente ele abriu os olhos e, irritado, disse:
- O que você quer? Não vê que estou dormindo?
- Ta na hora de ocê i pra aula de computadô.
Ele abriu os olhos novamente. Sentou-se na cama:
- É mesmo, preciso ir pra aula. Vou levantar.
- Ta bom, vou prepara um lanche pra ocê come antes de saí.
Ele não respondeu. Ela, preocupada, saiu do quarto. Foi para a cozinha preparar o lanche. Enquanto preparava, pensava: Esse minino não ta bem não. Vô tenta fala cum ele. Após alguns minutos, ele entrou na cozinha:
- Iracema, estou indo.
- Espera um pouco, come antes de saí.
- Não quero, não estou com fome.
- Precisa come ocê não anda comendo bem. Que ta acontecendo? Teus óio tão vremeio e ta cum muita olheira.
Ele se irritou:
- Que está querendo dizer?
- Num to querendo dizê nada, só acho que ta com pobrema e que precisa de ajuda ou de conta pra arguém. Que ta acontecendo?
Ele ficou em silêncio olhando para ela. Ela praticamente o havia criado. Sabia que podia confiar nela, talvez ela encontrasse um modo para ajudá-lo. Ficou olhando, calado. Ela insistiu:
- Sabe Artur, sei que num tenho muita instrução, mas já vivi muito e sei que na tua idade se tem muitos pobrema. As veiz esses pobrema são difícil de resolve e a gente precisa de ajuda. Num qué mi contá o qui ta acontecendo?
Ele sabia que aquele era o momento de falar. Percebeu que ela já havia descoberto tudo, mas ficou com medo que contasse a seus pais:
- Não está acontecendo nada, só estou com dificuldade na escola, mas vou superar. Não precisa se preocupar, estou indo. Tchau.
Estava saindo quando ela disse:
- O teu amigo ligo. Ele parou:
- Que amigo?
- O Rodrigo. Ele se assustou:
- O que ele queria?
- Num disse, só falo que ia liga mais tarde.
- Se ele ligar novamente, diga que fui para a aula.
- Ta bem, mas num quer mesmo conversa? Mi conta o que ta acontecendo.
- Já disse que não está acontecendo nada. Tchau.
Precisava sair dali o mais rápido possível. Saiu correndo. Na rua parou de correr e seguiu pensando: Se Iracema está desconfiada, meus pais também logo descobrirão. Preciso sair dessa logo. O que será que Rodrigo queria? Ele não sabe que minha maconha terminou, pensa que hoje esqueci de levar para a escola. Estou sentindo que talvez não consiga resistir ao desejo. Não tenho dinheiro! O que vou fazer? Chegou à escola de computação, entrou na sala e em seguida a aula começou. Estava prestando atenção na explicação do professor quando sentiu aquela sensação que já era sua conhecida. Apavorou-se. Enquanto levava a mão até a cabeça, pensava: Esta voltando. Preciso me controlar, preciso resistir. Não conseguiu mais acompanhar a aula. Via o professor mover os lábios, mas já não entendia o que ele dizia. Com dificuldade, conseguiu ficar até o término da aula.

TRAINDO UMA AMIZADE

Artur saiu da escola rapidamente. A vontade da maconha já era intensa. Olhou para o relógio e pensou: Quatro horas da tarde. Não adianta, sei que a vontade vai ficar pior. Se não fumar aquele cigarro, começarei a tremer, já conheço todas as etapas. Se não fumar, às sete horas não conseguirei me sentar para o jantar. Vou falar com Rodrigo, ele vai me ajudar. Afinal, ele me colocou nessa. Caminhou em direção à casa de Rodrigo. Chegou ao portão, apertou a campainha. Ele apareceu na janela:
- Olá, Artur. Sabia que viria. Espere, já estou descendo.
Fechou a janela. Artur permaneceu no portão esperando. A porta se abriu e Rodrigo, sorrindo, saiu por ela. Ironicamente, perguntou:
- O que você quer aqui? Está precisando de alguma coisa?
Artur, irritado, respondeu:
- Sabe por que estou aqui, preciso da sua ajuda. Meu bagulho terminou, preciso de mais.
- Estou feliz.
- Feliz? Por quê?
- Você já está usando o nome certo.
- O que isso tem a ver?
- É sinal de que já está se acostumando e que já não lhe causa mais medo. Veio ao lugar certo. Trouxe dinheiro?
- Não tenho dinheiro, e você sabe disso. É também por esse motivo que tenho medo dela, sim!
Rodrigo, com aquela fala mansa, disse:
- É... Você tem razão... Sem dinheiro não tem bagulho. Sabe que sem dinheiro Jiló não vai dar...
- O que vou fazer? Onde vou arranjar dinheiro? Dê-me um hoje e amanhã na escola lhe dou o dinheiro do meu lanche.
- Sabe que o dinheiro do lanche é pouco. Dei-lhe em troca porque você estava desesperado, mas estou tendo prejuízo. Não posso continuar porque quem vai ficar sem sou eu...
Artur falou quase chorando:
- Você precisa me ajudar...
- Não tem jeito, não, trate de arranjar dinheiro.
- Não sei onde, nem como...
- Na sua casa deve ter alguma coisa que valha dinheiro.
- Não tem nada...
- Claro que tem. Rádio, televisão, qualquer coisa.
- Como vou tirar algo assim da minha casa? Meus pais notariam a falta...
Rodrigo soltou uma gargalhada, dizendo:
- Não sei, tem que se virar, afinal, você não é quadrado. Se vira, meu! Sinto muito, mas não posso ajudar.
Artur percebeu que não adiantava insistir. Ele não o ajudaria. Com a cabeça baixa, saiu dali, voltou para casa. Já estava muito mal, sabia que não conseguiria se controlar. Entrou e foi direto para o seu quarto. Iracema percebeu quando ele chegou. No quarto, ele se deitou sobre a cama. Ficou olhando para o teto. Precisava encontrar um modo de arranjar o dinheiro: Não sei como farei. Quem sabe, se eu falar com minha mãe ou com Iracema, elas possam me ajudar. Ou com o meu pai... Não, com ele não! Eu jamais teria coragem de falar com ele! Sei que sempre teve muita expectativa a meu respeito. Sempre esperou que eu fosse um bom profissional, não posso lhe dar esse desgosto. Mas, o que vou fazer? Levantou-se foi em direção ao banheiro. Estava com as mãos trêmulas e suando. Quando ia entrar no banheiro, olhou para a estante de livros que se encontrava encostada em uma parede do quarto. Ficou olhando para uma fotografia onde estavam ele, seus pais e Leandro. Estavam sorrindo. Lembrou-se que aquela foto fora tirada no casamento de sua tia, e que seus pais foram os padrinhos. Estavam todos muito bem-vestidos. Olhou para o rosto de sua mãe, ela sorria. Seus olhos pararam em um colar que ela usava. Lembrou-se do dia em que seu pai lhe dera de presente. Enquanto o colocava em seu pescoço, dissera:
- Hoje estamos fazendo dez anos de casados. Estou lhe dando este colar para agradecer por todos estes anos de felicidade e pelos dois filhos maravilhosos que me deu.
Artur, enquanto pensava, lembrava-se daquele dia e da felicidade que sua mãe sentira. Lembrou-se do que seu pai dissera:
- Olhe, este colar é muito caro, mas não paga nem a metade de toda a felicidade que você me proporcionou. Por isso, quero que o use sempre.
Ela o abraçara e, beijando-o, dissera:
- Muito obrigada, ele é lindo mesmo, mas se lhe proporcionei tanta felicidade, só posso dizer que você também só me fez feliz. Você é um ótimo pai e um marido melhor ainda. Eu o amo muito.
- Está bem. Então, a partir de agora, vai usá-lo todos os dias.
Ela começara a rir:
- Está louco! Este colar é valioso, precisa ser usado com roupa adequada. Vou guardá-lo muito bem e só o usarei em ocasiões especiais.
- Não o comprei para que fique guardado, quero que o use!
- Você não tem mesmo noção do que seja moda. Acredita que eu possa usar uma jóia como esta pra dar aula na periferia?
Ele ficara calado, olhando para o colar, depois dissera:
- Você tem razão. Mas adorei esse colar. Assim que o vi no joalheiro, achei que tinha a sua cara. Você não gostou?
- Claro que gostei! Ele é lindo! Só não posso usá-lo todos os dias. Fique tranqüilo, vou guardá-lo muito bem e o usarei em todas as oportunidades.
Artur sorriu ao se lembrar daquele dia e de como seu pai ficara triste. Lembrou-se que sua mãe guardara o colar em um pequeno porta-jóias que ela tinha em uma gaveta. Uma idéia passou por sua cabeça: O colar deve ainda estar lá. Mamãe só o usou algumas vezes. Posso pegá-lo e levá-lo para Jiló. Deixarei com ele até conseguir dinheiro para pegá-lo de volta. Mamãe não vai desconfiar. Assim que conseguir dinheiro o trarei de volta. Será que vou conseguir dinheiro para recuperá-lo? Claro que vou! Ou melhor, vou largar a maconha. Esta vai ser a ultima vez. Foi em direção ao quarto de sua mãe, abriu a gaveta e sorriu ao ver o porta-jóias e, dentro dele, o colar. Está aqui, vou levá-lo agora mesmo a Rodrigo e juntos iremos ate Jiló. Foi o que fez. Pegou a caixinha, abriu-a, tirou o colar e colocou-o no bolso. Saiu. Iracema estava na lavanderia, não percebeu quando ele saiu. Pensava que ele estava no quarto. Artur chegou novamente em frente à casa de Rodrigo e tocou a campainha. Novamente Rodrigo apareceu na janela do andar superior:
- Olá, Artur. Voltou? Conseguiu o dinheiro?
Artur, ansioso e nervoso, respondeu:
- Consegui! Venha logo! Precisamos ir depressa, tenho que voltar antes da hora do jantar!
Rodrigo sorriu e fechou a janela. Logo depois estava abrindo a porta e saindo por ela. Os dois se dirigiram à favela onde Jiló morava. Durante o caminho, Rodrigo perguntou:
- Onde conseguiu o dinheiro?
- Não tenho dinheiro, mas peguei uma jóia da minha mãe que vale muito. Só que não vou vendê-la. Vou deixá-la com Jiló, mas assim que conseguir o dinheiro vou buscá-la de volta. Preciso devolvê-la ao seu lugar antes que minha mãe sinta falta dela.
Rodrigo não disse nada, apenas sorriu. Chegaram à favela e ao barraco onde Jiló morava. Ele estava do lado de fora e, ao vê-los, sorriu:
- Novamente vocês dois por aqui? Vieram buscar mais um pouco de bagulho?
Foi Rodrigo quem respondeu:
- Isso mesmo. Artur está precisando e eu também. Ele trouxe uma jóia para que você lhe dê um pouco de bagulho.
Artur, tremendo, tirou o colar do bolso e deu-o para Jiló, que arregalou os olhos:
- Puxa! Isto aqui é jóia mesmo?
- Claro que é! Vale muito! Meu pai o comprou em um joalheiro. Só que não quero que você se desfaça dele por um tempo. Vou conseguir dinheiro e o quero de volta. Preciso colocá-lo novamente no lugar de onde tirei.
- Espere aí! Não faço esse tipo de acordo. Como acha que consigo a maconha? Preciso de dinheiro! Não posso ficar com o colar guardado!
- Esse colar não pode sumir pra sempre! Você tem que me dar um prazo para arrumar o dinheiro.
Jiló olhou para ele e para o colar. Disse:
- Está bem, vou guardá-lo por uma semana. Se não conseguir o dinheiro, vou passá-lo pra frente.
Artur estava completamente descontrolado, sentia que precisava fumar o cigarro naquele momento. Já não raciocinava direito. Disse:
- Está bem, em uma semana vou trazer o dinheiro. Quanto vai me dar por ele?
Jiló pensou por algum tempo. Disse:
- Vai poder levar uns oitenta bagulhos.
- Só isso?
- Estou dando muito! Não gosto de fazer esse tipo de negócio! Prefiro receber em dinheiro! Estou fazendo isso porque você é meu amigo e está precisando.
Artur não pensou muito:
- Está bem, aceito. Mas virei pegá-lo antes de uma semana.
Jiló entrou no barraco e saiu trazendo uma porção de cigarros já prontos. Contou alguns e deu para Artur. Ali mesmo ele acendeu e fumou.
Quando terminou, olhou para os dois, que acompanharam o desespero com que ele fumara. Disse:
- Agora tenho que ir embora. Você me prometeu que não vai se desfazer do colar.
- Prometi e vou cumprir. Mas, se não trouxer o dinheiro, vou ser obrigado.
- Está bem, eu voltarei.
Estavam saindo quando Rodrigo disse:
- Espere aí, Artur, quanto vou levar nessa?
- Como levar?
- Trouxe você até aqui. Também estou precisando e não tenho dinheiro.
- Que quer que eu faça? Tem que arrumar o seu próprio dinheiro! Não vou lhe dar você nunca me deu!
Rodrigo olhou para Jiló, que disse:
- Ei! Espere aí, Rodrigo é meu funcionário. Se você não der dez por cento a ele não vai ter nunca mais.
Artur, irritado, disse:
- Seu funcionário? Então é isso, ele encontra clientes pra você?
- Isso mesmo, e você pode fazer o mesmo!
- Quer que eu consiga outro alguém para ficar da maneira como estou?
- Qual é o problema? Seria um modo de ter sempre bagulho!
- Nunca! Nunca vou fazer isso! Só eu sei o inferno que estou passando, não vou me tornar um traficante!
- Você é quem sabe. Quando quiser, é só falar comigo.
- Isso nunca vai acontecer! Não quero que outro passe por tudo o que estou passando! Eu também vou conseguir sair dessa!
- Vai sair? Ah, ah, ah! Não vai sair! Sabe por quê? Porque você gosta! Sabe que esses bagulhos lhe fazem bem!
- Isso não é verdade! Estou desesperado! Não sei como sair!
- Está dizendo que não lhe faz bem?
Artur ficou pensando por alguns segundos, depois disse:
- Não posso negar que quando estou sob o efeito do bagulho me sinto muito bem, mas em seguida sinto que estou ficando cada vez mais viciado. Isso me dá medo...
- Medo do quê?
- De não ter dinheiro para sustentar meu vício! Jiló começou a rir com mais força. Disse:
- Dinheiro? Ora, isso você sempre arrumará?
- Não sei, não...
- Pode ter certeza que de uma maneira ou outra arrumará o dinheiro!
- Não sei... Não sei...
- Agora está bem, tem muito bagulho e por um bom tempo estará tranqüilo.
- Sei disso. Agora vou embora, preciso andar um pouco e pensar em uma maneira de recuperar o colar da minha mãe...
- Faça isso, faça isso.
Rodrigo disse:
- Vou com você. Também estou com vontade de andar. Vamos?
Os dois saíram andando. Caminharam pelos corredores estreitos da favela. Artur estava feliz, ria muito. Já na rua, os dois começaram a correr. Sentiam vontade de fazer coisas que sem o cigarro não teriam coragem. Rodrigo mexia com as pessoas. Artur, aos poucos, começou a imitá-lo. Ele se esqueceu do colar e da mãe. De repente, parou e começou a chorar. Rodrigo, que estava correndo mais à frente, parou. Voltou-se dizendo:
- O que aconteceu? Por que parou de repente?
- Estou pensando no que fiz. Se minha mãe sentir falta do colar, que vou fazer?
- Você disse que ela quase não usa. Como vai sentir falta?
- Ela só usa em ocasiões especiais. Não sei quando vai ser a próxima. E se for agora?
- Ora, deixe isso pra lá, não vai ser agora. E se acontecer, você dará um jeito e o pegará de volta. Por enquanto, vamos viver a vida!
Artur começou a rir novamente. Os dois continuaram andando, correndo e mexendo com as pessoas. Ficaram assim por muito tempo. Escureceu não se deram conta. Depois de andarem muito, fazerem coisas nunca antes pensadas, Artur percebeu que estava escuro:
- Nossa já está escuro! Que horas serão? Rodrigo, rindo muito, respondeu:
- Não sei! Não tenho relógio, o meu dei pro Jiló.
- Preciso ir pra casa. Vou agora mesmo, mas onde estamos?
Não sei que lugar é este...
- Também não sei, mas vamos encontrar o caminho.
Resolveram seguir por uma rua. Andaram muito até encontrarem uma rua conhecida e que era perto de suas casas. Seguiram por ela. Chegaram finalmente à rua em que Artur morava. Diante do portão, ele disse:
- Vou entrar, só não sei o que vou dizer.
- Diga que ficou estudando em minha casa, peça pra eles telefonarem, eu confirmo.
- Está bem.
Ainda rindo, entrou. Assim que abriu a porta, sua mãe correu. Abraçou-o, dizendo:
- Artur! Que bom que chegou! Estava começando a me desesperar. Já são quase dez horas! O que aconteceu? Foi assaltado novamente?
Por trás do ombro da mãe, viu o pai que o olhava. Percebeu que ele não estava bravo, mas preocupado. Soltou-se dos braços da mãe e disse:
- Não, mamãe, não fui assaltado, só estava na casa de Rodrigo estudando.
- Até agora?
- Sim.
- Por que não telefonou? Não sabia que ficaríamos preocupados?
- Desculpe, e que estávamos tão entretidos no estudo que nem percebemos o tempo passar.
Álvaro se aproximou, tinha o rosto crispado.
- Como pôde fazer isso? Não tem responsabilidade? Não imaginou que ficaríamos preocupados, ainda mais depois do assalto?
Artur baixou a cabeça:
- Desculpem, realmente não percebi o tempo passar. Mas não estava fazendo nada de errado! Só estava estudando!
Começou a chorar. Sua mãe voltou a abraçá-lo, dizendo:
- Está bem, já passou, o importante é que está aqui e bem. Nunca mais faça isso. Da próxima vez, telefone. Venha jantar, deve estar com fome.
Iracema entrou na sala. Ficou olhando sem saber o que dizer. Artur, tremendo muito, disse:
- Não estou com fome, comi um lanche na casa de Rodrigo. Quero ir para o meu quarto, posso?
Os três se entreolharam. Odete, com a cabeça, disse sim. Artur correu para a escada que levava ao seu quarto. Odete, olhando para Álvaro e Iracema, disse:
- Que estará acontecendo com esse menino?
Iracema pensou em contar o que estava suspeitando, mas não teve coragem. Percebeu que os patrões estavam muito preocupados. Não disse nada. Assim como ela, os pais se calaram, cada um preso em seu pensamento. No quarto, Artur, sobre a cama, chorava. Mais uma vez eu menti... Até quando isso vai durar? Seu corpo tremia, estava suando muito, a cabeça doía e sentia enjôo. Sua cabeça estava confusa, não conseguia pensar com clareza. Naquela noite, pela primeira vez em sua vida, adormeceu sem tomar banho. Durante a noite acordou, pegou outro bagulho e foi para fora fumar. Na manhã seguinte, quando sua mãe foi acordá-lo, já estava desperto. Ela se admirou, mas não disse nada. Ele se levantou, tomou banho e foi para a escola. Levou com ele um cigarro, sabia que na hora do intervalo sentiria vontade. O tempo passou, ele estava bem, pois tinha cigarros. Estava tão bem que se esqueceu do colar. Após quinze dias, estavam jantando quando Álvaro disse:
- Odete, fomos convidados para padrinhos de casamento de Odair.
Ela sorriu:
- Verdade? Quando vai ser?
- No mês que vem. Ele e a noiva fazem questão que aceitemos o que acha?
- Vou adorar! Sabe que gosto muito de Odair e Lídia. Sinto que serão felizes!
- Também sinto isso. Vou confirmar com ele.
- Preciso pensar no vestido que usarei!
- Não se esqueça de usar o colar.
- Claro que não! Por acaso acredita que vou deixar passar essa oportunidade?
Ao ouvir aquilo, Artur estremeceu. Lembrou-se do colar e do prazo que havia dado a Jiló. Lembrou-se também que o prazo havia passado. Entrou em pânico. Com muito custo, terminou o jantar. Em seguida foi para o seu quarto. Dessa vez os pais não estranharam, já estavam acostumados com ele sempre em seu quarto. Ele dizia que precisava estudar. Em seu quarto, Artur estava desesperado: Que vou fazer? Minha mãe vai descobrir que o colar não está mais na caixinha! Vai querer saber o que foi feito dele. Que vou dizer? Preciso recuperá-lo, mas como? Será que Jiló já o passou pra frente? Amanhã vou até a favela falar com ele. Vou pedir que o devolva, vou contar o que está acontecendo, ele vai entender.... Não conseguiu dormir direito. Acordava a toda hora. Olhava para a janela, esperando o dia clarear. Já havia planejado: Quando meu pai me deixar na frente da escola, não vou entrar, vou para a favela falar com Jiló. Pego o colar e volto antes da aula terminar. Meu pai não vai desconfiar de nada. Foi exatamente o que fez. Após se despedir do pai, atravessou a rua. Seu pai foi embora, ele se voltou e foi em direção à favela. Ali chegando, foi até o barraco de Jiló, que estava dormindo. Acordou com as batidas de Artur em sua porta. Limpando os olhos, abriu a porta. Viu Artur:
- O que está fazendo aqui? Há esta hora?
Artur, muito nervoso, respondeu:
- Preciso pegar de volta o colar da minha mãe, ela vai usar em um casamento.
- Que está dizendo? Precisa pegar o quê?
- O colar da minha mãe!
Jiló pensou um pouco. Depois de algum tempo, disse:
- Ah, sim... O colar... Estou me lembrando dele...
- Ainda está com você?
- Está, ou deve estar aí em qualquer lugar...
- Ainda bem, preciso colocá-lo de volta.
- Tudo bem, vou ver se o encontro. Espere aí mesmo onde está.
Entrou em casa. Artur, muito nervoso, ficou do lado de fora. Após alguns minutos, Jiló regressou com o colar na mão. Sorrindo, disse:
- Está aqui.
- Ainda bem. Pode me entregar?
Com a voz mansa, bem devagar, Jiló disse:
- Sim... Desde que me pague...
- Pagar! Como?
- Não sei... A única coisa que sei é que sem dinheiro não vai levar...
- Você não pode fazer isso! Preciso dele!
- Claro que posso você me deu em troca do bagulho...
- Não tenho dinheiro!
- Então... Não tem o colar...
- Por favor! Depois da festa eu o trago de volta! Jiló começou a rir:
- Vai trazer de volta? Está dizendo que vai trazer volta?
- Vou sim, mas, por favor, deixe-me colocá-lo no lugar de onde o tirei! Confie na minha palavra!
- Você pensa que estou louco? Acha que vou acreditar na palavra de um maconheiro?
- Não sou um maconheiro! Tenho palavra!
- Para mim, a palavra é dinheiro. Se trouxer o dinheiro, vai levar o colar, se não, não. Agora, por favor, vá embora, preciso voltar para a cama, estou com sono.
Entrou no barraco e fechou a porta. Artur, desesperado, ficou ali parado por um longo tempo. Não sabia o que fazer. Tirou um bagulho do bolso, acendeu, fumou... Logo a maconha começou a fazer efeito e ele a sentir-se bem. Já não estava tão preocupado. Pensou: Vou embora. Antes que minha mãe sinta falta do colar, eu encontrarei uma solução. Voltou para a escola. Chegou alguns minutos antes do pai. Assim que o pai chegou, entrou no carro e os dois seguiram para casa. Durante o caminho, Artur seguiu calado. Seu pai percebeu, mas pensou: Deve mesmo estar apaixonado, isso vai passar. Artur, por sua vez, pensava: A melhor coisa que tenho a fazer é contar tudo para minha mãe. Ela entenderá. Em casa, almoçou normalmente. Após o almoço, dirigiu-se até sua mãe:
- Mamãe, preciso conversar com a senhora.
- Está bem, o que é?
- É uma coisa muito complicada.
Ela, pensando que ele ia contar que estava apaixonado, sorriu enquanto dizia:
- Tenho que ir para a escola, deixe essa conversa para a noite. Quero que tenha todo o tempo que precisar para me contar tudo. Acredito que essa conversa não pode ser rápida.
Ele se assustou:
- A senhora sabe de alguma coisa?
- Não, mas estou desconfiada, porém não acredito que seja tão grave assim. Fique tranqüilo. Agora preciso me vestir e vestir Leandro. À noite conversaremos e me contará tudo, está bem?
Assustado e preocupado, disse:
- Está bem, sei que vai me ajudar...
- Pode ter certeza que sim. Não se esqueça de ir para a aula de computação.
- Não me esquecerei.
Ambos foram para seus quartos. Artur entrou. Olhou mais uma vez para o espelho. Ela sabe de tudo ou está desconfiada. Talvez seja o melhor. Jiló disse que sou um viciado, acredito que seja mesmo, ou que esteja ficando. Deitou-se na cama com os olhos presos no teto. Tremia, suava e sentia dor na cabeça, além do mal-estar no estômago. Escutou um grito, assustou-se e saiu correndo. O grito vinha do quarto de sua mãe. Entrou rápido. Álvaro estava na parte de baixo da casa, assim como Iracema. Os dois, assustados, subiram a escada. Ao entrarem no quarto, viram Odete com a caixinha na mão. Álvaro, assustado, perguntou:
- O que aconteceu? Por que gritou?
- Meu colar! Meu colar sumiu!
- Como sumiu?
- Não está aqui na caixinha!
- Deve estar em outro lugar. Não precisava ter gritado tanto, assustou a todos nós.
- Desculpe, mas eu também me assustei. Preciso ir para a escola. Iracema, por favor, procure o colar. Devo ter colocado em outro lugar.
- Num credito, dona Dete, pois ele sempre teve aí. Mais mesmo assim, vô procura.
Artur, assustado, assistiu a tudo calado. Estava tão apavorado que não conseguia dizer uma palavra. Pensou em contar tudo, aquele era o momento, mas seus pais estavam muito nervosos. Com medo da reação deles, foi para o seu quarto. Aquele era o único lugar em que se sentia protegido. Tremia, suava e sua cabeça parecia que ia explodir. Pensava em uma maneira de contar o que fizera com o colar. Os pais saíram, ele saiu do quarto, foi em direção à cozinha. Ia contar para Iracema, ela saberia como falar com seus pais. Ela não estava na cozinha. Ele subiu a escada, foi em direção ao quarto de sua mãe. Iracema estava ali tirando tudo o que havia dentro de uma gaveta e jogando sobre a cama. Ele se aproximou. Ela, percebendo sua presença, disse:
- Artur, ta precisando de arguma coisa?.
Ele ficou olhando. Quis contar, mas não teve coragem. Apenas disse:
- Não, não quero nada...
- Inda bem, pois vou revira este quarto, preciso encontra o colar da sua mãe.
Calado, ele saiu. Foi para a rua e ficou andando sem destino. Pensava em uma maneira, mas não encontrava. Chegou à praça, sentou-se e acendeu mais um cigarro de maconha. Quando o efeito da maconha começou a se fazer sentir, começou a rir: Não sei por que tanto medo. Meus pais entenderão. Eles me ajudarão! Sempre foram bons e compreensivos. Iracema também me ajudará. À noite vou contar tudo. Continuou andando. Esqueceu-se de ir para a aula de computação. Estava escurecendo quando resolveu voltar. Estava firme em seu propósito de contar tudo. O carro de seu pai estava na garagem. Ele se admirou: Meu pai já está em casa? Chegou mais cedo! Entrou. Na sala estavam os pais e Iracema. Álvaro estava furioso. Artur ficou calado, com muito medo. Achou que haviam descoberto tudo, mas mesmo assim se aproximou. Álvaro, raivoso, dizia:
- Iracema! Você vem me dizer com essa cara que não encontrou o colar?
- E isso memo dotô, procurei em todos os cantos e num encontrei. Todas as otra jóia tão aqui, mais o colar num ta não.
- Como não encontrou? Onde está?
- Num sei, dotô...
- Não sabe? Não sabe? Tem que saber! Você é a única pessoa estranha aqui dentro de casa! Você roubou o colar?
Iracema começou a chorar:
- Não dotô... Não fiz isso...
- Pare de chorar! Se não foi você, quem foi? Eu, Odete ou um dos meninos?
- Num sei, dotô, só sei que num fui eu...
- Só pode ter sido você.
- Num fui não... Num fiz isso... Não fiz...
- Vou dar parte na delegacia, vai ter que falar com o delegado! Ele vai saber como fazer você contar a verdade!
- Pur favô, doto, num faiz isso... Nunca entrei numa delegacia... Trabaio há tanto tempo aqui, nunca tirei nada, num sô ladrona...
- Pode parar de chorar! Não acredito no que está dizendo! Vamos para a delegacia!
- Não dotô... Pur favô...
Ela estava desesperada, chorava com mais intensidade. Olhou para Artur que, calado, assistia. Ele quis dizer alguma coisa, mas de sua garganta não saiu uma palavra. Leandro, chorando, disse:
- Papai! Não foi ela! Ela não faria isso! Gosta muito da gente!
- Gosta da gente? Estava aqui só nos roubando! Vai saber quantas outras coisas nos roubou sem que nos déssemos conta! Do lugar onde mora só podia sair isso! Ali só pode haver pessoas de mau caráter. Vamos!
Álvaro, aos trancos e empurrando Iracema, saiu de casa. Artur também chorava. Lágrimas caíam de seus olhos, mas não teve coragem de contar. Sua mãe também chorava:
- Não posso acreditar que ela tenha feito isso, mas ao mesmo tempo, quem teria feito? Ela é a única pessoa de fora da família, e sabemos que tem uma vida muito pobre.
Leandro disse:
- Mamãe... Não foi ela, não foi...
Artur não disse nada. Embora estivesse triste, estava também se sentindo bem. Por aquela vez havia escapado. Foi para o seu quarto. Algumas horas depois Álvaro voltou sozinho. Ainda muito nervoso, entrou em casa. Tirou a gravata e o paletó e jogou-os sobre o sofá. Artur, de seu quarto, ouviu o barulho do carro e desceu para saber o que havia acontecido. Na sala, Álvaro estava rodeado por Odete e Leandro. Ela perguntou:
- O que aconteceu? Ela confessou? Quase gritando, ele disse:
- Não! Ficou o tempo todo dizendo que não foi ela.
- O que o delegado disse?
- Que eu não conseguiria provar que havia sido ela, a não ser que encontrasse o colar em seu poder. Eu disse que não podia fazer isso, pois não sabia há quanto tempo ela o havia roubado. Ele disse que não podia fazer nada. Fiquei com muita raiva e saí logo dali.
- E ela?
- Não sei, deixei-a lá.
- Deu-lhe algum dinheiro para a condução?
- Claro que não!
- Ela mora longe! Como vai para casa?
- Não sei e não quero saber! Ela que se arranje! Telefone para alguém! Aliás, amanhã mesmo vou despedir seu filho! Não quero o filho de uma ladra trabalhando em meu escritório, sabe-se lá do que será capaz. Deve ser outro ladrão!
Odete quis dizer alguma coisa em favor do rapaz, mas sabia que o marido tinha razão: Se Iracema teve coragem de roubar o meu colar, com certeza o filho também roubaria. Artur permaneceu calado. Após ouvir tudo, voltou para o seu quarto e deitou-se chorando na cama. Durante a noite levantou-se, pegou um cigarro, foi para fora e fumou. De seu pensamento não saía a imagem de Iracema chorando. Ele bem que tentara, mas não conseguira dizer a verdade. Já sob o efeito da droga, pensou: Sinto muito por Iracema, mas foi a melhor coisa que poderia ter acontecido. Ela vai chorar um pouco, mas logo passará. Irá embora, arrumará outro trabalho e recomeçará sua vida. Eu vou deixar de fumar. Vou também recomeçar minha vida. Esta foi à última vez que passei por um apuro. Sei que não posso continuar assim, preciso mudar. Não fumarei mais. Tenho só mais alguns bagulhos, e serão os últimos. Começou a sentir-se muito bem, a droga dava-lhe um bem-estar incalculável. Com ela sabia que poderia fazer tudo o que quisesse. Aos poucos se esqueceu de Iracema e daquilo que lhe havia feito. Saiu para a rua. Era noite, mas a lua estava clara. Andou muito. Estava amanhecendo quando voltou para casa. Deitou-se e adormeceu. Na hora de sempre, sua mãe foi acordá-lo. Chamou-o por várias vezes, mas ele não acordou. Ela não entendia o que estava se passando. Sacudiu-o:
- Artur, acorde!
Ele, com dificuldade, abriu os olhos. Viu o rosto ansioso de sua mãe, sorriu, virou-se para o outro lado e voltou a dormir. Ela continuou a sacudi-lo, até que finalmente ele despertou. Sorriu:
- Está bem, mamãe, vou levantar.
- Até que enfim! O que aconteceu? Não dormiu bem?
- Não, esta noite foi muito difícil.
- Sei disso. Também não consegui dormir. Não consigo acreditar que Iracema tenha feito aquilo. O que acha? Você acredita?
Ele olhou para ela, notou sua tristeza, sentiu novamente que aquela era a hora de contar. Mas, como das outras vezes, respondeu:
- Não sei o que dizer. Também me custa acreditar, mas parece que foi ela mesma.
- Não sei... Ela esteve do nosso lado tanto tempo... Foi sempre muito dedicada... Se fez isso, foi por um motivo maior.
Ele, com os olhos perdidos, lembrando-se de Rodrigo, Jiló e do colar, disse:
- Não sei o que dizer... Não sei...
- Está bem, agora levante, seu pai está tomando café.
Ela saiu do quarto, ele se levantou e foi até o banheiro. Olhou-se no espelho. Viu um rosto que para ele estava se tornando desconhecido. Os olhos vermelhos, e as olheiras profundas. Desesperado, disse: O que estou fazendo? Preciso contar! Tenho que inocentar Iracema! Ela não merece o que está lhe acontecendo. Já sei, vou descer e agora mesmo contar tudo para meus pais. Eles entenderão e me ajudarão. Vestiu-se rapidamente e desceu. Seus pais e Leandro estavam sentados tomando café. Ele olhou para a cozinha, sabia que Iracema não estava lá. Ao vê-lo, seu pai disse:
- Novamente estamos atrasados, vou ter que lhe dar dinheiro para que possa comer na cantina. Vamos?
Ele, em silêncio, acompanhou o pai. Estava deprimido, distante, tendo em sua mente a imagem de Iracema chorando. Durante todo o caminho seguiu calado. Álvaro percebeu, mas ele também não estava com vontade de conversar. Ele também, apesar de tudo, estava triste. Ele também gostava de Iracema, mas havia resolvido: Assim que chegar ao escritório vou despedir seu filho. Não quero o filho de uma ladra trabalhando comigo. Artur entrou na escola, Álvaro seguiu para o escritório. Estava decidido, despediria o filho de Iracema. Mas, ao chegar, notou que ele não estava lá. O dia foi passando. Eram três horas da tarde quando Jarbas chegou. Bateu à porta de Álvaro. Entrou:
- Boa tarde, doutor!
Ao vê-lo, Álvaro admirou-se. Raivoso, disse:
- Boa tarde? Como tem coragem de vir até aqui?
- Não sei o que se passou em sua casa, mas tenho certeza que minha mãe não fez nada.
- Não fez nada? Quem você acha que roubou o colar?
- Não sei, mas minha mãe não roubou nada!
- Pois eu tenho certeza que foi ela. E, a propósito, não o quero mais aqui. Pode pegar suas coisas e ir embora agora mesmo!
Jarbas olhou desesperado.
- O senhor não pode fazer isso! Minha mãe não roubou nada!
Álvaro gritou:
- Não posso? Claro que posso! Antes que me pergunte, não vou mais pagar sua faculdade. Terá que arrumar outro para pagar, eu não o farei mais. Pode sair, não temos mais nada para conversar. Já perdi muito tempo. Jarbas ia dizer mais alguma coisa, mas percebeu que seria inútil. Olhando bem nos olhos de Álvaro, disse:
- O senhor está cometendo uma injustiça muito grande.
- Já disse para ir embora!
- O senhor está cometendo um grande erro, tenho certeza que vai se arrepender. Teve coragem de deixar minha mãe sozinha, sem se preocupar que era noite. Ela não dormiu a noite toda, está doente de tristeza.
- Não me interessa o que aconteceu ou o que está pensando, saia, por favor!
Jarbas saiu. Não conseguiu conter o ódio que sentia naquele momento. Tinha certeza que jamais o perdoaria e que na primeira oportunidade se vingaria. Álvaro, embora raivoso, voltou ao trabalho. Artur, assim que chegou à escola, viu Rodrigo, que como sempre conversava com as mesmas pessoas. Ele já sabia que eram clientes de Rodrigo, e como ele, deveriam estar passando pelos mesmos problemas. Tentou evitar que ele o visse. Conseguiu. Entrou rapidamente na sala de aula, mas assim que a aula terminou, Rodrigo se aproximou:
- Olá, Artur, como está? Artur, irritado, respondeu:
- Não estou nada bem!
- Por quê? O seu bagulho acabou?
- Não, tenho alguns ainda. O motivo é outro.
- Quer me contar? O que aconteceu? Alguém descobriu?
Quem foi? Sua mãe? Seu pai?
- Não é nada disso! Ninguém descobriu!
- Ainda bem, fiquei preocupado...
- Não, ninguém descobriu.
- Na hora do intervalo você não quer ir até a praça? Pela sua cara estou percebendo que está precisando.
- Não vou! Nem hoje nem nunca mais! Parei por aqui! Rodrigo, com a ironia de sempre, disse:
- Está bem, se é assim que quer, assim será.
Artur se afastou, queria ficar longe dele. Voltou para a sala de aula. No íntimo estava feliz por ter feito aquilo, sabia que precisava ficar longe dele. No meio da segunda aula começou a sentir os sintomas conhecidos. Ficou novamente apavorado, sabia que a tendência seria piorar e que logo mais não conseguiria se controlar. Encontrou dificuldade em assimilar o que o professor dizia. Assim que a aula terminou, ele saiu, era a hora do intervalo. A maioria dos alunos se dirigiu à cantina. Artur os acompanhou. Passou por Mariana, mas não olhou para ela. Sua única preocupação era a vontade que sentia. Pensou um pouco e resolveu: Não tem jeito, nunca conseguirei me livrar, vou lá para fora. Mudou a direção que estava seguindo e saiu para fora da escola. Foi em direção à praça. Ali chegando, acendeu um cigarro. Estava na metade dele quando Rodrigo chegou. Sentou-se ao seu lado, dizendo:
- Não conseguiu resistir?
- Não, mas estou determinado a parar, vou conseguir! Ainda mais agora, depois do que aconteceu.
- Não quer me contar? O que foi de tão grave?
Artur pensou: Talvez ele entenda e me ajude. Contou tudo o que havia se passado. Quando terminou, estava chorando. Rodrigo, que até então estivera sentado ao seu lado, levantou-se e começou a rir:
- Por que está tão nervoso? Não percebeu como foi bom isso ter acontecido?
Artur olhou para ele sem conseguir entender o que ele estava dizendo. Ao ver a cara que Artur fazia, Rodrigo disse:
- Não percebeu que essa era a melhor coisa que poderia ter acontecido?
- Como assim?
- Com isso que aconteceu você se livrou de um enorme problema!
- Por que está dizendo isso?
- Com tudo isso, sua mãe vai esquecer do colar, e você não terá que arrumar dinheiro para recuperá-lo!
- Mas ela gostava muito dele!
- Seu pai tem dinheiro, comprará outro!
- E Iracema? Como estará? Ela perdeu o emprego...
- Não se preocupe com isso, ela é lá do interior, e esse povo já está acostumado com a pobreza. Logo ela encontrará um emprego novo.
- Não foi só o emprego que ela perdeu... Saiu como uma ladra! Meu pai a levou à delegacia!
- Esqueça disso! Lembre-se apenas que está livre!
Já totalmente sob o efeito da maconha, Artur começou a rir muito:
- Você tem razão! Eu estava tão preocupado! Agora tudo foi resolvido. Mas, mesmo assim, vou sair dessa!
Novamente, com aquele sorriso irônico, Rodrigo disse:
- Está bem, mas agora está na hora de voltarmos para a classe, a aula já deve estar começando.
- Sabe de uma coisa? Não tenho vontade alguma de voltar para a classe! Queria mesmo era sair correndo por aí, andar a esmo, sem rumo!
- Também gostaria de fazer isso, mas é melhor não. Vamos entrar.
Entraram na classe no momento em que o professor chegou. Artur tentou assimilar a aula, mas não conseguiu. Aquela sensação boa estava com ele. Não conseguia pensar em nada, a não ser nas nuvens coloridas que via. As aulas terminaram. Os alunos saíram da escola. Artur fez o mesmo, foi para o lugar onde esperava o pai. Naquele dia, Álvaro e Odete não conseguiram esquecer de Iracema e de tudo o que havia acontecido. Após ter despedido Jarbas, Álvaro tentara trabalhar, mas não conseguira. Sua cabeça doía. Embora tivesse sido rude com o rapaz, no fundo sentia pena, pois sabia que ele era esforçado. Antes da hora de costume, saiu do escritório e foi para casa. Odete, com muito custo, deu sua aula. Ela também não estava bem. Chegou em casa acompanhada por Leandro que fez o caminho todo em silêncio. Ela estranhou ao ver o carro de Álvaro, pois ele chegava sempre depois dela. Entrou, ele estava recostado em uma poltrona com a sala semi-escura. Ela se aproximou e, beijando-o, disse:
- Chegou mais cedo hoje? Não está bem? Está doente?
- Não estou doente, só um pouco nervoso. Nervoso não, poderia dizer que estou triste.
- Sei... Também passei o dia todo assim. É muito difícil acreditar, não?
- Sim, ela sempre pareceu ser tão nossa amiga, cuidava muito bem da casa e era carinhosa com os meninos. Custo crer que tenha feito isso. Mas quem poderia ter sido?
- Estive pensando nos anos em que esteve ao nosso lado. Nunca imaginei que ela pudesse um dia fazer uma coisa como essa... Como você, também estou triste.
- Os meninos, como estão?
- Artur não diz nada. Sabe, ele está naquela fase complicada por causa da idade. Já o Leandro só sabe dizer que ela não fez aquilo. Ele está muito triste e nos achando uns monstros. Veio da escola até aqui sem dizer uma palavra. Sabe o quanto ele é falante. Sinceramente, não sei o que fazer.
- Não havia outra solução, ela não poderia permanecer nesta casa. Despedi o filho dela.
- Fez isso? Mas ele não tem culpa!
- Quem pode nos garantir isso? Não quero ter contato nenhum com aquela família.
- Artur onde está?
- Quando cheguei, a casa estava silenciosa, subi ao quarto dele, dormia profundamente.
- Ele me disse que não dormiu bem a noite passada.
- E quem dormiu?
- Acredito que nenhum de nós. Bem, tenho que preparar o jantar.
- E mesmo! Ela não está mais aqui. Precisamos arrumar outra pessoa.
Odete arregalou os olhos. Disse decidida:
- Não! Não quero mais ninguém estranho aqui em casa!
- Como vai ser? Você precisa de alguém!
- Darei um jeito, só não quero ninguém...
- Você é quem sabe. Eu e os meninos poderemos ajudar.
Com ar de deboche, ela disse:
- Isso mesmo. Só de não deixarem suas coisas jogadas já estarão ajudando, e muito!
Ela foi para a cozinha. Leandro estava diante do televisor. Ele não queria conversar. Estava triste. Após um tempo, Odete voltou para a sala:
- O jantar está pronto. Leandro vá chamar Artur.
Ele olhou para a mãe, não conseguia esconder o ressentimento que sentia. Em silêncio, levantou-se e foi em direção ao quarto de Artur. Ao entrar, estranhou, pois Artur estava deitado, com os olhos parados no teto, como se estivesse vendo alguma coisa. Ele se aproximou, dizendo:
- Artur! O que você tem?
Artur pareceu não ouvir. Continuou ali parado, olhando para o teto. Leandro tornou a perguntar, já mais alto:
- Artur! O que você tem? Está me assustando! Artur olhou para o irmão, respondendo:
- Estou vendo bolas coloridas, você não está?
Leandro olhou para o teto. Ficou olhando por um bom tempo, como se estivesse tentando ver algo. Disse:
- Não estou vendo nada! Você deve estar louco!
Artur voltou à realidade. Olhou para o irmão e percebeu que ele estava realmente assustado. Precisava fazer algo para remediar aquela situação. Pegou um travesseiro e jogou sobre ele, enquanto, rindo, dizia:
- Você é mesmo um bobo! Não estou vendo nada, só estava brincando.
Leandro, desviando-se do travesseiro, disse:
- Ainda bem, pensei que estivesse louco!
- Que quer aqui?
- O jantar está pronto, mamãe pediu que eu viesse acordá-lo.
- Eu não estava dormindo.
- Papai, quando chegou, veio até aqui e você estava dormindo.
- Ele chegou mais cedo?
- Chegou sim, parece que não está bem.
- O que ele tem?
- Está muito triste com tudo o que aconteceu com Iracema e principalmente com o filho dela.
- O que ele fez?
- Nada, mas papai o despediu do escritório.
Artur sentiu como se houvesse recebido uma flechada no coração. Com os olhos arregalados, disse:
- Ele não podia ter feito isso! O rapaz não tem culpa de nada!
- Por isso mesmo é que ele não está bem. Mas disse que se a mãe roubou com certeza o filho fará o mesmo.
Artur, com as mãos, enxugou uma lágrima. Disse:
- Ele não tem culpa de nada...
- Também acho, aliás, não consigo acreditar que Iracema tenha roubado nada. Você acredita que ela fez isso?
Artur demorou um pouco para responder. Ia contar a verdade, quando se lembrou das palavras de Rodrigo: ... eles vão interná-lo... Com tudo o que aconteceu, livrou-se de um enorme problema... sua mãe vai esquecer do colar... Seu pai tem dinheiro, comprará outro... Esses pensamentos passaram rapidamente. Parando de chorar, respondeu:
- Não sei... Não sei... Vamos descer? Estou com fome!
Leandro não ficou satisfeito com aquela resposta, mas sabia que nem todos pensavam como ele:
- Vamos sim. Também estou com fome.
Desceram. Ao chegar à sala, Artur viu o pai, que continuava recostado na poltrona. Aproximou-se dizendo:
- Olá, papai... Tudo bem?
Álvaro levantou os olhos. Sentou-se:
- Tudo bem. E você, como está?
Artur arregalou os olhos quando respondeu:
- Por que está perguntando isso?
Álvaro, estranhando aquela atitude, disse:
- É só um modo de falar. Agora, com a sua reação, estou preocupado. O que você tem? Está nervoso? Por quê?
Artur percebeu que havia exagerado:
- Não tenho nada, só estou nervoso com tudo o que aconteceu.
- Ah, é isso? Bem-vindo ao clube, hoje estamos todos nervosos. É difícil acreditar, mas aconteceu. Precisamos nos recuperar, vencer a tristeza e seguir nossas vidas. Vamos até a cozinha ajudar sua mãe com o jantar?
- Vamos sim...
Leandro, que acompanhara toda a conversa, seguiu com eles. Ao entrarem na cozinha, perceberam que Odete estava atrapalhada. Deixara uma colher cair. Artur abaixou-se para pegá-la. Ela, um pouco sem jeito, disse:
- Terão que ter paciência, sabem que não estou acostumada com esse tipo de trabalho.
Álvaro, rindo, disse:
- Isso eu sempre soube. Por isso disse que precisamos contratar alguém para ajudá-la.
- Já disse que não quero ninguém estranho aqui em casa. Se me ajudarem, aos poucos conseguiremos nos ajeitar. Por enquanto, vamos jantar? Não sei qual é o sabor da comida, mas fiz o máximo para que ficasse boa.
- Deve estar. Vamos?
Os três levaram a comida. Colocaram sobre a mesa, sentaram-se e jantaram em silêncio. Após terminarem de comer, todos elogiaram a comida. Ninguém quis comentar que o arroz estava sem sal. Odete percebeu, mas como não disseram nada, ela também se calou. Como faziam todas as noites, foram para a sala. Artur ficou ali por um tempo, em seguida foi para seu quarto. Estava começando a sentir os sintomas. Entrou e saiu várias vezes do banheiro. Ouviu quando sua mãe subiu acompanhada por Leandro. Deitou-se rápido, fingiu estar dormindo. Ao entrar no quarto, Odete, pensando que Artur estivesse dormindo, colocou o dedo sobre os lábios, pedindo que Leandro não falasse ou fizesse barulho. Ele balançou a cabeça, dizendo que havia entendido. Deitou-se na cama, ela o cobriu e beijou sua testa. Cobriu Artur e beijou-o também. Na ponta dos pés, saiu do quarto. Artur, embora com os olhos fechados, percebeu quando ela saiu. Esperou mais um pouco. Ao ver que todos estavam dormindo, pegou um cigarro e saiu. Foi para o lugar de sempre e fumou. No dia seguinte, acordou, foi para a escola, fumou na hora do intervalo. Tudo igual à sempre. Aos poucos, as coisas foram voltando ao normal. Odete fez o possível para conseguir cuidar de tudo. O nome de Iracema deixou de ser pronunciado naquela casa.

NO MUNDO DO CRIME

Artur estava cada vez mais envolvido. Sem a presença de Iracema ele tinha a tarde toda para fumar no quintal. Já não lutava mais contra. Aos poucos, começou a gostar da sensação que a maconha lhe proporcionava. Tinha momentos de alegria e outros de depressão. Os pais, acreditando que ele estava passando por uma idade difícil ou apaixonado, deixaram de se preocupar com suas mudanças de humor. Dias depois, ao mexer no bolso do casaco para pegar um cigarro de maconha, Artur notou que só restavam dois. Isso aconteceu depois do almoço. Todos haviam saído, e ele novamente ficou apavorado: E agora? O que vou fazer? Não tenho mais dinheiro! Vou ligar para Rodrigo. Pegou o telefone e ligou. No outro lado da linha, Rodrigo atendeu. Com voz ofegante, Artur disse:
- Alô, Rodrigo! Preciso falar com você!
- O que aconteceu?
- Meus bagulhos terminaram, preciso de mais!
- Tem dinheiro?
Artur demorou um pouco para responder. Mentiu:
- Tenho!
- Está bem, venha até aqui, iremos juntos.
- Já estou indo.
Desligou. Sabia que havia mentido, mas fora necessário: Se eu dissesse a verdade, ele não iria comigo. Até chegar lá, eu penso em um modo de conseguir bagulho. Na rua, Artur saiu correndo em direção à casa de Rodrigo. Precisava ir e voltar o mais rápido possível. Quando seus pais chegassem, ele já deveria estar em casa. Quando chegou, Rodrigo já o estava esperando no portão. Com aquele sorriso irônico de sempre, disse:
- Chegou logo! Está mesmo com pressa!
- Claro que sim, preciso voltar logo. Vamos?
Juntos foram para a favela. Jiló estava sentado em um banco em frente ao seu barraco. Ao vê-los, sorriu:
- De novo aqui? Vieram buscar bagulho?
Rodrigo respondeu:
- Isso mesmo. Os de Artur terminaram e os meus também, precisamos de mais.
- Trouxeram dinheiro?
- Eu não tenho, mas Artur tem.
- Quanto você tem?
Havia chegado à hora. Artur, com a cabeça baixa, disse:
- Também não tenho, mas o colar que eu lhe dei valia muito mais dos que a maconha que você me deu.
- Está querendo dizer o quê?
- Que preciso de mais maconha, e que você me deu muito pouco pelo colar. Quero pedir que me dê mais um pouco, depois eu trarei o dinheiro...
Jiló começou a rir. Rodrigo ficou nervoso, pois ele também não tinha mais bagulho nem dinheiro.
- Oh, cara! Você ainda não aprendeu que sem dinheiro não tem bagulho?
- Sei, mas estou precisando!
- Já disse que o bagulho não cai do céu, eu também preciso pagar para poder fornecer.
Artur já estava desesperado. Disse quase chorando:
- Mas eu preciso!
- Se não tem dinheiro, traga alguma coisa da sua casa.
- Não posso mais fazer isso, não tem mais nada que eu possa trazer sem que a falta seja notada.
- Então não tem jeito. Sem pagamento não tem bagulho.
Rodrigo, muito nervoso, disse:
- Artur! Você mentiu?
- Se eu dissesse a verdade você não teria vindo.
- Não teria mesmo!
Rodrigo olhou para Jiló, que também olhava ora para um, ora para outro. Rodrigo, em tom de súplica, disse:
- Ele me enganou, mas estou precisando também...
- Tem dinheiro?
- Não, mas depois eu trago outro freguês!
- Já faz muito tempo que você não traz ninguém. O último foi esse aí. Já levou toda a sua porcentagem.
Rodrigo, quase chorando, disse:
- Estou tentando, mas não estou conseguindo. Logo mais trarei outro.
- Quando trouxer, lhe darei...
- Estou sem bagulho! Como vou ficar?
- Pode sempre voltar a fazer "aquilo"...
- Não, não posso! É muito perigoso!
- Perigoso nada! Quantas vezes já fez e não aconteceu nada? Artur se interessou pela conversa:
- Do que estão falando?
- Se Rodrigo quiser, ele conta. Talvez seja uma solução para você também.
Rodrigo tentou mais uma vez:
- Não tem mesmo outro jeito?
- Não, sem dinheiro não tem bagulho. Se eu fosse vocês, aproveitaria que estamos no começo do mês. Hoje é um bom dia para se fazer o "trabalho".
Artur se entusiasmou:
- Trabalho? Faço qualquer trabalho!
- Rodrigo, está vendo? Ele faz qualquer tipo de trabalho. Está na hora de ensinar.
Ele olhou para Artur. Disse:
- Não adianta, ele não vai ter coragem, é muito medroso!
- Leve-o com você e mostre como se faz. Depois vão para outro lugar e você o deixa fazer. Se conseguirem, podem voltar, terão o bagulho que precisam.
Rodrigo olhou mais uma vez para Artur. Disse:
- Vamos, vou mostrar como se faz.
Artur seguiu-o. Rodrigo, calado, caminhava. Tomaram um ônibus. Embora não soubesse o que ia fazer, Artur estava animado, era o que mais queria. Ter seu próprio dinheiro para comprar a sua maconha. Desceram no centro de um bairro muito movimentado. Na rua principal existia muito comércio. As pessoas caminhavam de um lado para o outro. Rodrigo dirigiu-se até um banco, entrou, notou que havia muitas pessoas na fila do caixa. A fila era enorme. Prestou atenção em tudo. Levou Artur para um canto do banco e disse:
- Está vendo aquela senhora que está na fila?
- Qual?
- Aquela de casaco preto.
Artur olhou e logo identificou a senhora.
- Estou. Quem é ela?
- Não sei quem é ela. Você vai lá para fora, fica esperando que ela saia do banco. Eu sairei em seguida.
- Não estou entendendo.
- Não precisa entender, precisa só ficar esperto, e quando ela sair, veja para que lado ela vai. Siga-a de perto. Eu vou passar correndo, darei um empurrão para que ela caia. Assim que isso acontecer, você corre para ajudá-la a se levantar.
- Vai roubá-la?
Nervoso, Rodrigo respondeu:
- Não vou roubar! Vou arrumar o dinheiro que a gente precisa! Se quiser o bagulho, tem que fazer o que eu disse. Mas se não quiser, pode ir embora, farei sozinho!
Artur pensou um pouco, sabia que não poderia ficar sem a maconha. Aceitou com a cabeça. Saiu do banco e ficou ali até ver a senhora sair. Rodrigo saiu em seguida:
- Para onde ela foi?
- Naquela direção.
- Vamos atrás dela! Já sabe o que fazer.
- Estou com medo...
- Não quer o bagulho?
- Quero!
- Então faça o que eu disse.
A senhora caminhava devagar olhando as vitrines. Tinha sobre os ombros uma bolsa. Artur ficou mais ou menos a um metro atrás dela. Andava no mesmo passo que ela. Caminharam alguns metros, quando Artur viu Rodrigo passar correndo e empurrar a senhora, que com um grito, caiu. Ele se aproximou e abaixou-se, dizendo:
- A senhora está bem?
Ela, assustada e surpresa, disse:
- Estou meu filho, mas e minha bolsa? Minha bolsa! Alguém levou!
Artur, tremendo muito, ajudou-a a se levantar. Ela gritava, as pessoas olhavam para os lados. Artur também, mas não viu nem a sombra de Rodrigo. Ele aproveitara enquanto ela estava caída e saíra andando disfarçadamente. Ela, entre surpresa e assustada, chorava:
- Como vou fazer? Vim receber a minha aposentadoria! E agora? È todo o dinheiro que tenho para passar o mês...
As pessoas se aproximaram, tentavam consolá-la. Ela chorava, mas aos poucos as pessoas se afastaram. Artur ficou ali sem saber o que fazer ou dizer. Ela disse, chorando:
- Não tenho dinheiro nem para a condução, não sei como irei para casa. Meu filho, não teria ao menos esse dinheiro para me dar?
Artur não tinha. Mas uma senhora que estava por perto tinha e deu a ela, que chorando, agradeceu muito e foi embora. Ele voltou a olhar para os lados procurando por Rodrigo. Sem saber o que fazer, ficou andando de um lado para o outro. Após uns dez minutos, Rodrigo se aproximou falando rápido:
- Vamos sair daqui, siga-me.
Artur o seguiu, tremia e não se conformava com o que haviam feito. Chegaram ao ponto de ônibus. Rodrigo estava muito nervoso:
- Tanto trabalho para quase nada!
- Onde está a bolsa dela?
- Tirei o dinheiro e joguei fora!
- Não devíamos ter feito isso. Era todo o dinheiro que ela tinha...
- Não se preocupe com isso! Ela deve ter filhos!
- E se não tiver?
- Isso não é da nossa conta. Agora precisamos ir para a favela, estou muito mal! Preciso do bagulho.
Artur seguiu-o calado, pois ele também estava precisando, e muito. Na favela, Jiló os recebeu com um sorriso:
- Voltaram logo. Conseguiram? Rodrigo respondeu mostrando o dinheiro:
- Sim, está aqui!
- Só isso?
- Era tudo o que tinha na bolsa!
- Isso aqui não vai dar pra comprar muito bagulho, não!
- Sei disso. Amanhã iremos para outro bairro, conseguiremos mais e voltaremos.
- Está bem, aqui estão alguns bagulhos.
Deu alguns cigarros para Rodrigo que, ofegante, acendeu e deu um para Artur. Após terminarem, Rodrigo contou como havia sido.
- Está bem, mas sabem que precisarão de muito mais.
Artur não ouvia, via a imagem da mulher chorando. Ele também começou a chorar:
- Coitada da mulher... Só tinha aquele dinheiro para passar o mês...
Rodrigo disse raivoso:
- Pare de chorar! Parece uma menina! Chora à toa! Já disse que isso não é problema nosso!
- Como não, Rodrigo? Nós a roubamos!
- Sabe muito bem que não havia outra solução. Hoje você fez a parte mais fácil. Amanhã terá que dar o empurrão.
- Eu? Não conseguirei!
- Se não conseguir, não vou mais dividir!
Artur sabia que estava totalmente dominado pela maconha. Sabia também que teria que fazer aquilo. Rodrigo continuou:
- Já devia ter aprendido que é difícil só na primeira vez. Depois fica fácil.
- Está bem... Não tem outro jeito mesmo. Agora preciso ir para casa...
No dia seguinte, logo depois do almoço, Artur foi se encontrar com Rodrigo e, juntos, foram para outro bairro. Entraram no banco, escolheram a pessoa que seria assaltada. Artur deu o empurrão, Rodrigo a socorreu. Nesse dia tiveram mais sorte. A quantia era bem maior. Artur percebeu que realmente era muito fácil. Como Rodrigo dissera: só foi difícil a primeira vez. Daquele dia em diante, eles começaram a assaltar. Faziam isso no começo do mês, tinham assim quase toda a maconha de que precisavam. O tempo foi passando. Artur estava tranqüilo em relação ao modo como conseguiria pagar a maconha. Em casa tudo caminhava. Odete não quis mais uma empregada. Com a ajuda deles, conseguia manter a casa. Aos sábados, a mãe de um de seus alunos ia e fazia uma faxina. Odete pedira que fosse aos sábados, pois estaria em casa e poderia vigiá-la. Mesmo assim, as jóias, o dinheiro e os objetos de valor foram colocados em um cofre. Artur continuava saindo à noite para fumar no quintal. A presença de Leandro dormindo ao seu lado o incomodava. Um dia, pela manhã, quando sua mãe foi acordá-lo, ele pediu:
- Mamãe, já não está na hora de Leandro ir dormir no quarto dele?
Odete admirou-se:
- Por que está dizendo isso? Nunca reclamou.
- Sei, mas ele já está grande, às vezes eu quero levantar à noite e mexer no computador. Não faço porque tenho medo de acordá-lo.
- Você acorda durante a noite?
- Nem sempre, mas de vez em quando acordo.
- Vou falar com ele. Sei que vai ficar triste, está acostumado.
- Já está bem grandinho.
- Está bem, vou falar com ele, mas agora se levante.
Ela saiu do quarto. Não entendia o porquê daquilo, mas estava muito atarefada, precisava deixar a casa em ordem antes do almoço. Embora Álvaro lhe houvesse dito para deixar a escola, não quisera fazer isso. Naquela mesma noite, sob protesto, Leandro foi dormir em seu quarto. O dinheiro começava a chegar fácil. Rapidamente Artur se acostumou. As pessoas atacadas eram frágeis, não tinham como reagir, e eles assaltavam em um tempo cada vez mais curto. Fazia dois meses que estavam assaltando e dividindo toda a maconha que conseguiam. Em uma tarde, como fazia todos os dias, assim que todos saíram Artur foi para a casa de Rodrigo. Tocou a campainha e Rodrigo abriu a porta. Estranhou, ele estava diferente. Seu rosto estava vermelho, ele ria muito e dizia que via coisas e ouvia vozes. Falava com alguém que só ele via. Artur, assustado, perguntou:
- O que você tem?
- Cara! Você nem imagina o que to sentindo! É uma maravilha!
- O que é? O que está sentindo?
- Venha aqui, vou lhe mostrar! Artur o acompanhou até a sala.
Sobre a mesa, e espalhado, havia um corredor feito com um pó branco que Artur não conhecia. Rodrigo disse:
- Tape o nariz e inspire este pó, assim, deste jeito. Vai sentir algo que nunca sentiu antes.
- O que é isso?
- Não importa, faça do jeito que falei! Garanto que não vai se arrepender!
Entusiasmado com a atitude de Rodrigo, Artur obedeceu. Fez exatamente o que Rodrigo ensinara. Aproximou-se, debruçou-se sobre a mesa e inspirou. Após alguns minutos, começou a rir. Não conseguia descrever a sensação que sentia. O cigarro de maconha lhe dava prazer, mas aquilo era muito superior. Não sentia aquela vontade de sair correndo, queria ficar ali parado, ou melhor, sentado. As imagens que vinham a sua mente eram incríveis. Daquele dia em diante, deixou de usar maconha. Só queria o pó. Quando sentia que estava em depressão, saía em busca do pó. O tempo foi passando, Artur ficava sozinho em casa. Continuou fazendo os assaltos, tendo assim dinheiro para comprar o pó branco. Seu humor mudava de uma alegria imensa até uma depressão profunda, mas seus pais não notaram. Além de estarem preocupados com seus afazeres, achavam que era tudo questão da idade. Artur, sem a presença de Leandro em seu quarto e de Iracema em casa, não teve mais preocupação em esconder o pó no casaco. Deixava os pacotinhos do pó dentro de uma gaveta na mesa do computador. Sabia que ninguém entrava em seu quarto ou mexia nas suas coisas. Nunca mais foi para a aula de natação ou de computação. Passava toda a tarde andando com Rodrigo ou na favela junto com Jiló, planejando o próximo assalto. Na escola, procurou acompanhar as aulas, sem a pressão da falta do pó. Até que conseguiu, mas suas notas baixaram. Novamente seus pais não perceberam, porque não estavam acostumados a verificar isso. Além do mais, sabiam que ele sempre tirava notas altas nas provas. Naquele final de ano, Artur não foi muito bem, ficou de segunda época em quatro matérias: Português, Ciências, Matemática e História. Ficou preocupado: Como vou dizer para meus pais? Eles vão desconfiar. O que vou fazer? Tenho ainda uns quinze dias para dizer. Até lá, encontrarei uma maneira. Desde que começara a usar aquele pó, ele não se preocupava com mais nada. Achava que sempre encontraria uma solução fácil para seus problemas. Por estar preocupado com as notas, a única solução que encontrou naquele momento foi esparramar o pó sobre a mesa e aspirá-lo. Em uma das tardes em que conversava com Rodrigo e Jiló, este disse:
- Vocês agora estão usando o pó, e sabem que ele é bem mais caro. Têm que assaltar várias vezes para conseguir o dinheiro que precisam para o mês todo. Tenho um assunto pra tratar com vocês. Se aceitarem, poderão trabalhar só uma vez por mês.
Os dois se interessaram por aquela conversa. Rodrigo, curioso, perguntou:
- Que assunto?
- Tem um cara aí que precisa de um carro. Ele paga muito bem...
Artur se assustou:
- Não! Isso é muito perigoso! Não vou fazer!
Rodrigo continuou:
- Jiló, não sei se ele está preparado pra isso. Ainda é muito cedo.
- Não vou insistir, quando estiverem prontos é só falar. Se eu fosse vocês, pensaria bem no assunto. Acho que vale a pena. E uma boa...
Artur concordou com a cabeça. Ele e Rodrigo saíram dali. Artur seguia ao lado de Rodrigo. Aquela conversa com Jiló realmente o assustara. Disse:
- Rodrigo, o que você acha daquilo que Jiló disse?
- Que cara é essa, Artur? Já sabe que roubar não é tão difícil. Carro é ainda mais fácil. A gente só precisa esperar o dono estacionar e se afastar.
- Se ele ou alguém nos vir?
- Ninguém vai ver, e se acontecer, a gente corre.
- Não sei não...
- É muito mais perigoso a gente continuar assaltando velhinho, tem sempre muita gente por perto. Além disso, precisamos nos arriscar muitas vezes. Nem sempre a gente consegue um bom dinheiro que dê para o mês todo.
- Nisso você tem razão...
- Sabe muito bem que não consegue mais ficar sem o pó!
- Infelizmente, é verdade.
- Infelizmente coisa nenhuma! Bem que você gosta do pó! Quer saber de uma coisa? Eu vou até o barraco pra continuar o assunto com Jiló! Se você não quiser, não precisa ir, mas já sabe, não vou dividir mais! Vai ter que se virar!
Artur foi obrigado a concordar. No íntimo ele gostava de usar a droga. Ela lhe dava um prazer indescritível. Sem dizer mais nada, Rodrigo se voltou e começou a caminhar novamente em direção à favela. Artur ficou vendo-o se afastar. Em seguida, correu atrás dele.
- Está bem, vou com você. Vai dar tudo certo.
Rodrigo sorriu, e juntos chegaram ao barraco de Jiló, que ao vê-los, disse:
- Decidiram bem depressa! Toparam fazer o serviço?
Rodrigo foi quem respondeu:
- Estivemos conversando e decidimos fazer o trabalho.
- Assim é que se fala...
- Vamos ao que interessa. Quantos carros a gente vai precisar roubar pra ter pó por um mês?
Jiló pensou um pouco antes de responder. Levava os dedos aos lábios, como se estivesse fazendo uma conta. Disse:
- Um ou no máximo dois.
- Ta vendo, Artur? Vai ser muito mais fácil!.

PRIMEIRA AJUDA DO CÉU

Artur, como das outras vezes, sabia que precisaria da droga. Disse:
- Está bem, vamos tentar. Quando vai ser? Jiló, antes de responder, disse:
- Só tem um problema...
- Que problema?
- Não pode ser durante o dia, seria muito perigoso. O melhor é à noite, de preferência perto de alguma faculdade. Lá só tem carro bom. É tudo filhinho de papai.
- Não conseguirei sair à noite.
- Pode deixar, eu ligo para sua casa na hora do jantar. Digo que estou precisando da sua ajuda, seus pais não desconfiarão de nada.
- Será que não desconfiarão mesmo?
- Claro que não. Eles não imaginam o que você faz, confiam plenamente.
- É por isso que em alguns momentos fico triste. Não consigo imaginar o que fariam caso descobrissem.
- Agora não é hora de pensar nisso. Precisamos planejar como faremos. Jiló vamos conversar sobre a marca do carro e qual será a nossa parte em dinheiro.
- É assim que se fala. Esperem, vou lá dentro pegar tudo. Está tudo escrito em um papel.
Jiló entrou. Artur, como já vivia a muitos dias se drogando, estava meio entorpecido, não conseguia pensar com clareza, só sentia necessidade do pó. Jiló em seguida saiu com um papel na mão. Entregou-o para Rodrigo e os três planejaram como seria. Artur ia concordando com tudo. Naquela mesma noite, após o jantar, o telefone tocou. Odete atendeu. Artur estava sentado junto ao pai assistindo televisão. Após atender ao telefone, Odete disse:
- Artur, é para você!
- Quem é?
- Rodrigo, disse que está precisando da sua ajuda para a prova de amanhã.
- Que chato!
- Ora, meu filho, não custa nada ajudar. Nem todos têm a mesma facilidade que você para aprender.
Fingindo descontentamento, pegou o telefone.
- Alô.
- Oi, Artur, está tudo bem por aí?
- Está tudo bem, mas o que você quer?
- Posso falar?
- Claro!
- Precisa ser hoje, minha mãe ligou dizendo que vai precisar trabalhar até mais tarde. Diz aí que precisa vir para cá me ensinar.
- Não posso sair à noite.
- Me deixe falar com sua mãe.
- Está bem. Mamãe, ele quer falar com a senhora. Odete pegou o telefone.
- Alô! Pode falar.
- Dona Odete, amanhã vai ter uma prova muito difícil, e eu estou tendo um pouco de dificuldade. Será que Artur não pode vir até minha casa para me ajudar? A senhora sabe que ele é o melhor aluno da classe!
Ela, que até então não sabia que o filho já não era mais o melhor aluno, respondeu:
- Não sei se ele pode ou quer ir.
- Por favor, peça a ele...
Odete sorriu. Rodrigo sabia ser agradável.
- Está bem, vou tentar.
Olhou para Artur, que fingia não estar interessado.
- Artur, acredito que não custa nada, ele é seu amigo...
- Está bem, mamãe, eu vou.
Álvaro disse:
- Eu o levo.
- Não precisa, é aqui perto.
- Vá, meu filho. Quando terminar, se for tarde, vou buscá-lo.
- Não vai precisar papai, acho que não vai demorar. Não posso ficar muito tempo, preciso dormir. Também tenho a mesma prova amanhã.
Artur saiu. Na rua, começou a correr. Precisava realmente voltar logo para não despertar suspeitas. Quando chegou, Rodrigo já o estava esperando:
- Vamos logo. Você demorou!
- Não demorei, vim o mais rápido possível. Vamos!
- Espere, antes vamos entrar. Minha mãe ainda não chegou, dá tempo de dar uma cheirada antes de sair.
Entraram. O pó estava esparramado sobre a mesa. Cheiraram e saíram. Andavam pela rua sem saber muito bem o que estavam fazendo. Corriam, paravam e riam muito. Chegaram ao local planejado. Em frente havia uma faculdade. Vários rapazes e moças estacionavam seus carros e entravam. Eles ficaram observando. Logo o movimento de pessoas parou. As aulas começaram e todos os alunos estavam lá dentro. Rodrigo mostrou um carro para Artur.
- É aquele ali. Vamos rápido. Tenho aqui as ferramentas, vamos!
Aproximaram-se do carro. Artur se impressionou com a rapidez com que Rodrigo abrira a porta. Ficou do lado de fora enquanto Rodrigo entrou e puxou alguns fios que havia embaixo do painel. Cortou, estava fazendo a ligação quando ouviu uma voz:
- O que está fazendo aí?
Levantou a cabeça. Ficou horrorizado com a cena que viu. Um homem, tendo um revólver sobre a cabeça de Artur, que tremia muito, repetiu:
- O que está fazendo aí?
Rodrigo, também tremendo, ficou sem saber o que dizer. O homem, com voz firme, disse:
- Saia! Não tente nada. Sou um delegado de polícia.
O homem tirou duas algemas que tinha na cintura e colocou nos dois. Naquele momento, Artur se lembrou do rapaz que havia visto em frente à escola e que tanto o impressionara. Teve a resposta à pergunta que se fizera naquele dia. Sabia o porquê de o rapaz estar naquela situação. Com os dois algemados e com o revólver em suas costas, o delegado levou-os até um telefone que havia ali. Ligou para um número e logo depois uma viatura com dois policiais chegou. Empurrando os dois para dentro da viatura, disse a um policial:
- Leve estes dois para a delegacia. Vim trazer minha filha para a aula e de longe vi estes dois em atitude suspeita. Aproximei-me e vi que tinha razão. Eles estavam tentando furtar este carro. Faça o relatório. O delegado saberá o que fazer. Se for necessário, irei até a delegacia. Aqui está o número do meu telefone.
- Sim, doutor, farei isso.
Os policiais colocaram os dois na parte de trás da viatura. Eles estavam apavorados. Devido à droga, não percebiam muito bem a situação, mas sabiam que nada estava bem.
Assim que chegaram à delegacia, foram levados até uma sala. Um senhor com os cabelos grisalhos, com um sorriso e a voz calma, perguntou:
- O que estavam fazendo?
Artur permaneceu calado. Rodrigo, com voz trêmula, respondeu:
- Não estávamos fazendo nada! Foi tudo um engano! Aquele delegado se enganou, a gente só estava passando por aquela rua!
Com um sorriso o homem prosseguiu:
- Foi mesmo? Aqui neste papel diz que um de vocês estava dentro do carro tentando fazer uma ligação direta.
- È mentira...
- Pode ser, mas por que um delegado mentiria? O que ele ganharia com isso?
- Não sei, ele não deve ter gostado da gente...
- Vocês estão drogados?
Um olhou para o outro. Artur não dizia nada, não conseguia esquecer daquele dia em frente à escola, quando o rapaz fora preso. Naquele momento, no rosto de Rodrigo via a mesma expressão de medo e desespero que vira no rosto dele. Rodrigo respondeu:
- Não senhor! Não estamos drogados.
O delegado deu outro sorriso. Parecia que estava triste por aquela situação:
- Vocês já perceberam que não sou mais jovem, tenho uma longa vida aqui nesta delegacia. Por aqui passaram vários outros jovens como vocês. Sei que estão drogados, sei também que estavam roubando aquele carro para pagar a droga. Quantos anos vocês têm?
Disseram a idade. Os dois choravam. O delegado continuou:
- Preciso saber o nome de vocês e o endereço. Artur quase gritou:
- Por quê?
- Preciso avisar e pedir para que seus pais venham buscá-los. Artur, desesperado, disse:
- Por favor, senhor! Não faça isso! Meus pais não sabem de nada. Se souberem, morrerão!
- Eles não sabem?
- Não!
- Então, em vez de ficar chorando, deve agradecer por isto que está acontecendo. Da maneira como estão vestidos e falam, parecem pertencer a boas famílias. São bem-educados, por isso tenho certeza que seus pais também são esclarecidos e entenderão. Só poderão ajudá-los quando tomarem conhecimento.
Rodrigo tentou:
- Por favor, doutor, deixe a gente ir embora. Prometemos que nunca mais faremos isso! Deixaremos a droga, não é, Artur?
Artur não conseguia falar, estava nervoso, assustado e com muito medo. O delegado continuou:
- Não posso fazer isso. Conheço o drogado, ele promete, mente, pede perdão, diz que não vai mais usar, mas assim que se vê livre, volta a se drogar. Não consegue se livrar sozinho, precisa de ajuda. Para o bem de vocês, preciso avisar seus pais. Eles virão e eu conversarei com eles. Encontraremos uma maneira de ajudá-los. Já estiveram presos antes? Já traficam?
Com a cabeça, disseram que não.
- Se isso for verdade, é muito bom, é sinal que estão ainda no começo e que têm chance de se libertar. Agora preciso dos nomes e endereços.
Entendendo que não havia outra maneira, os dois disseram seus nomes e os endereços.
Enquanto isso, na casa de Artur, Odete, preocupada disse:
- Álvaro, já está tarde, são quase onze horas e Artur não voltou.
- Tem razão, ligue para a casa do amigo dele, diga que vou buscá-lo. Não quero que fique andando pelas ruas à uma hora dessas, é muito perigoso.
- Não sei o número do telefone. Ele não deixou...
- Deve estar nessa agenda perto do telefone.
Odete pegou a agenda, procurou, mas não encontrou. Álvaro disse:
- Artur deve ter uma agenda só dele.
- É mesmo, vou até o seu quarto ver se encontro.
Ela subiu a escada em direção ao quarto de Artur. Entrou, sorriu ao ver a bagunça. Pensou: Vou ter que falar sério com ele, precisa arrumar este quarto. Olhou em direção ao computador, aproximou-se. Procurou por sobre a mesa, mas não viu a agenda. Abriu a gaveta, também ali não estava. Viu alguns pacotinhos de pó branco. Pegou um deles em sua mão, olhou, mas não conhecia, não sabia o que era, pois nunca havia visto cocaína. Colocou de volta na gaveta, saiu. Voltou para junto de Álvaro, dizendo:
- Não achei nenhuma agenda.
- Sabe onde ele mora?
- Não, sei que é aqui perto, mas não sei onde.
- Bem, só nos resta esperar, logo mais ele vai telefonar ou chegar.
- Tem razão.
Estavam ali conversando e esperando por Artur. O telefone tocou. Álvaro, enquanto atendia, disse:
- Não disse que ele ia telefonar?
Odete sorriu aliviada. Ele atendeu:
- Alô.
Do outro lado da linha, uma voz de homem disse:
- Preciso falar com o doutor Álvaro Gomes de Matos.
- Sou eu.
- O senhor precisa vir até a delegacia.
- Delegacia!?! Por quê?
Odete deu um pulo do sofá onde estava sentada. Olhou desesperada para o marido, que ouvia o homem dizendo:
- Seu filho está aqui.
- Meu filho!?! Por quê? Foi assaltado novamente?
- Não posso dizer nada por telefone, o delegado o está esperando aqui.
- Mas ele está bem? Está ferido?
- Não, ele não está ferido. Venha o mais rápido possível.
- Irei agora mesmo. Qual é o endereço?
Enquanto ele anotava em um papel o endereço, Odete segurava em seu braço, desesperada, querendo saber o que estava acontecendo. Após terminar de anotar, muito nervoso, ele se voltou para ela, dizendo:
- Preciso ir para a delegacia, Artur está lá!
- Entendi isso, mas por quê?
- Não sei, a pessoa que ligou não quis dizer por telefone, mas disse que ele está bem, não está ferido! Vou agora!
- Vou com você!
- Não pode! Leandro está dormindo, não pode ficar sozinho.
- Vou ficar desesperada!
- Sei disso, mas não há outra maneira.
- Assim que chegar e tomar conhecimento do que aconteceu, ligue para me contar.
- Está bem, farei isso.
Ele deu-lhe um beijo e saiu. Ela ficou rezando, foi até o quarto de Leandro, que dormia profundamente. Voltou para a sala e ficou junto ao telefone.

SERVINDO DE INSTRUMENTO

Álvaro chegou ao pátio da delegacia, estacionou o carro e entrou. Encaminhou-se a um balcão, onde um homem o recebeu:
- Pois não?
- Meu nome é Álvaro Gomes de Matos, recebi um telefonema dizendo que meu filho está aqui. Seu nome é Artur. O que aconteceu?
- Eu mesmo liguei. Sente-se e aguarde um minuto. O delegado falará com o senhor.
Embora nervoso, ele sabia que precisava obedecer ao regulamento. Enquanto esperava, uma moça muito nervosa entrou e dirigiu-se ao balcão:
- Recebi um telefonema dizendo que meu filho está aqui! O nome dele é Rodrigo.
- Ele está aqui sim, mas, por favor, sente-se e aguarde um minuto.
- O que aconteceu com ele? Está ferido?
- Sente-se, o delegado logo mais falará com a senhora.
Ela se voltou, estava caminhando em direção a um banco. Álvaro se aproximou:
- Com licença, a senhora é a mãe de Rodrigo?
- Sim, mas quem é o senhor?
- Sou o pai de Artur.
- De Artur!?! Ele também está aqui?
- Sim.
- O que aconteceu? O senhor sabe?
- Não! Estou ansioso. Ansioso não, desesperado para saber!
- Eu também. Trabalhei até mais tarde. Assim que cheguei vi um bilhete escrito por Rodrigo dizendo que estava estudando na casa de Artur. Fiquei tranqüila. Logo depois recebi o telefonema. Não tenho a menor idéia do que aconteceu.
- Seu filho ligou para minha casa pedindo permissão para Artur ir para a sua, onde estudariam para a prova de amanhã. Isso tudo está muito estranho.
- Está mesmo...
Conversavam tentando entender o que estava acontecendo. O homem do balcão, com as mãos, fez um sinal chamando-os. Aproximaram-se. O homem disse:
- O delegado irá atendê-los, é naquela sala.
Ambos seguiram em direção à porta que com a mão o rapaz apontara. Assim que chegaram a frente à porta, pararam. A cena que viram dentro da sala fez com que ficassem como que paralisados. Artur e Rodrigo, em um canto da sala, algemados e com as cabeças baixas. Por detrás de uma mesa, o delegado sentado, e em frente a ela duas cadeiras. Da porta onde estava parado, Álvaro gritou:
- Artur! O que significa isto?
Glória, a mãe de Rodrigo, paralisada, não conseguiu dizer nada. Artur continuou de cabeça baixa, sem coragem de enfrentar o pai. O delegado, percebendo o desespero deles, com uma expressão preocupada, fez um sinal com a mão mostrando as cadeiras, pedindo que se sentassem. Eles pareciam estar vivendo um sonho. Devagar, sentaram-se. Álvaro, assustado e muito nervoso, disse:
- O que está acontecendo aqui? Por que meu filho está algemado?
O delegado, acostumado com aquela situação, respondeu.
- Procure se acalmar, sei o que está sentindo. Já estou aqui há muito tempo, já vi muitas cenas como esta.
- Como me acalmar? Meu filho está aí! Nessa situação! Por quê?
- Eles foram presos tentando furtar um carro.
Glória e Álvaro levantaram-se da cadeira ao mesmo tempo. Falaram juntos:
- Furtar!?! Um carro!?!
Álvaro continuou:
- Não pode ser! Aqui deve estar havendo um engano!
- Sentem-se, por favor, procurem se acalmar, temos muito para conversar.
Voltaram a se sentar. O delegado continuou:
- Não há nenhum engano. Foram presos em flagrante por um delegado.
Os dois olharam para Artur e Rodrigo, que continuavam de cabeça baixa. Glória balançava a cabeça, como se não acreditasse naquilo que via e ouvia. Álvaro, percebendo que Artur não dizia nada, temeu que o que o delegado estava dizendo fosse verdade. Olhou para Artur e disse:
- Artur, por quê? Para quê?
Artur continuou com a cabeça baixa. O delegado continuou:
- Artur, você quer responder?
Com a cabeça, ele disse que não. Álvaro olhou para o delegado, que disse:
- Eles fizeram isso porque precisavam de dinheiro.
- Dinheiro!?! Não pode ser!?! Ele tem todo o dinheiro que precisa! Procuro atendê-lo em todas as necessidades!
- Mas não lhe dá dinheiro para comprar droga.
- Droga!?! Não pode ser! Não pode ser! Meu filho não usa drogas!
Glória levantou-se e correu para o lado de Rodrigo. Começou a sacudi-lo:
- Rodrigo! Por favor, diga que ele está errado! Diga que aqui está acontecendo um engano!
Rodrigo também não respondia e continuava de cabeça baixa. Ela continuou:
- Você sabe o quanto trabalho para lhe dar tudo o que precisa, além de uma boa escola! Você sabe que desde que seu pai foi embora eu vivo só para você! Diga que é mentira!
Diante do silêncio de Rodrigo, o delegado continuou:
- Por favor, senhora, acalme-se e sente-se. Precisamos conversar.
Em seguida, chamou o homem do balcão:
- Pois não, doutor.
- Leve esses dois para a outra sala.
O homem pegou nos braços dos dois e os conduziu para fora. Ambos, sem resistir e em silêncio, o acompanharam. Assim que saíram, o delegado pediu:
- Por favor, os senhores precisam se acalmar. Já passaram por aqui vários jovens como esses e, infelizmente, muitos outros ainda passarão. A droga está destruindo nossos jovens. O pior é que muito pouco ou quase nada podemos fazer para exterminar os traficantes. Eles se multiplicam em uma escala geométrica.
Álvaro, completamente descontrolado, mas já aceitando a situação, disse quase chorando:
- Meu filho não pode estar usando drogas! Não pode!
- Consigo imaginar o que o senhor está sentindo, mas infelizmente está sim.
- Não pode ser! Sempre conversamos muito sobre isso. Eu e a mãe dele procuramos lhe dar tudo o que precisasse. Somos, ou pelo menos nos sentíamos bons pais. Ele está em uma boa escola, faz natação. Quando disse que queria aprender computação, o colocamos em uma escola. Não entendo por que ele fez isso...
- Ele não tem culpa de nada.
- Como não tem culpa? Ele não tinha motivo!
- Os traficantes usam argumentos, sabem que ponto atingir. Diria até que são melhores que os psicólogos.
- Todos deveriam morrer!
- Também penso assim, mas o senhor sabe quem ajuda os traficantes?
- Não, e nem me interessa.
- Pois deveria se interessar. Na maioria, é jovem como o seu filho.
Glória, que acompanhava a conversa, disse:
- Não pode ser ele é ainda uma criança...
- Por isso mesmo. As crianças são facilmente envolvidas. A droga é cara. Quando se viciam, como não têm dinheiro, são levados para o crime ou o tráfico. Ainda não sei em que grau de vício seus filhos estão não sei se já cometeram outros crimes ou delitos.
- Crimes? Delitos? Não! O senhor não está falando do meu filho! Ele sempre foi um bom aluno, o primeiro da escola. Nunca tive que me preocupar com suas notas.
- Há quanto tempo o senhor não olha as notas ou não vai até a escola para saber como ele está?
Álvaro ficou por um instante pensando. Depois disse:
- Acho que faz um bom tempo, aliás, faz muito tempo. Para dizer a verdade, desde que percebemos que era um bom aluno.
- Garanto para o senhor que se for hoje até a escola, terá notícias bem diferentes.
- Será?
- Sim, a droga interfere no cérebro do jovem. Aos poucos ele não consegue mais se concentrar. Seu único pensamento é encontrar uma maneira para consegui-la.
- Irei amanhã mesmo à escola.
- Faça isso.
Glória, enxugando as lágrimas, disse:
- Também farei isso. Nunca me preocupei muito com as notas de Rodrigo porque ele nunca foi um bom aluno. Sempre teve dificuldades em aprender. Suas notas nunca foram as melhores, mas sempre conseguiu passar de ano. Só não estou entendendo por que ele fez isso.
- Muitos são os motivos. O traficante sabe muito bem como usá-los. Alguns jovens são curiosos, querem fazer parte do grupo, e muitas vezes por timidez não conseguem. Outros querem estar em evidência. A maioria dos viciados é fruto da pobreza ou de lares desfeitos.
Álvaro, ao ouvir aquilo, disse:
- Meu filho não se enquadra em nenhum desses casos. Ele nunca me pareceu querer fazer parte de grupo algum, tem uma vida tranqüila em relação a dinheiro, eu e minha esposa nos damos muito bem. Sempre acreditei que minha família fosse perfeita...
- E deve ser, mas alguns jovens nessa idade, não importando o sexo, sentem-se feios, desajeitados. É quando o interesse pelo sexo oposto surge, e se eles não têm coragem de se aproximar da outra pessoa, entregam-se às drogas, que lhes dá uma falsa sensação de poder. Com ela, eles conseguem dizer e fazer o que desejam. Como podem ver, existe um vasto campo para ser explorado pelos traficantes.
Glória, insistindo em secar as lágrimas, falou:
- No meu caso, Rodrigo se encaixa, sim. Estou separada do seu pai há muito tempo. Desde então, dediquei-me ao trabalho para mantê-lo bem. Sou a culpada, não lhe dei a atenção devida. A única coisa que sempre me preocupou foi dar-lhe uma boa vida. Meu único desejo era que estudasse, se formasse e tivesse uma boa profissão.
O delegado, com voz mansa, continuou:
- A senhora fez o que achava certo. Qual pai não quer isso para o filho? Por isso, não deve se culpar por nada. No momento, não importa quais foram às razões ou os motivos. O que precisamos fazer agora é tentar tirar esses garotos do vício.
Álvaro estava transtornado. Sentia como se estivesse vivendo um pesadelo. Ouvia a voz do delegado, mas não conseguia acreditar, nem aceitar. Naquele momento lembrou-se de Odete que, em casa, deveria estar ansiosa. Disse:
- Não sei o que a mãe dele vai sentir. Ela, assim como eu, nunca se preocupou com isso.
- Não notaram a mudança no comportamento dele?
- Sim, e até nos preocupamos, mas após muito pensar, chegamos à conclusão de que era por causa da idade, da adolescência. Julgamos que passaria com o tempo. Nunca, jamais poderíamos imaginar isso.
- O senhor tem que entender e ajudar seu filho, é o que ele está precisando.
- Ajudar! Vou é dar-lhe uma boa surra! Vou prendê-lo em casa, não irá sozinho para lugar algum!
- Isso não adiantará, e o entregará mais depressa de volta para a droga. Hoje eles estão assustados, garanto-lhes que neste momento estão reavaliando o que a droga fez por eles e com eles. Estão com sentimento de culpa em relação aos senhores. Suas cabeças jovens estão pensando muito. È o momento de ajudá-los.
- Como?
- Existem não muitas, mas boas clínicas que se dedicam ao trabalho de desintoxicação. Algumas vezes conseguem bons resultados. Tenho aqui vários endereços e telefones. Poderão escolher a que quiserem.
- Clínica? O senhor está me aconselhando a colocar Artur em uma delas? Meu filho em uma clínica? Não! Não pode ser!
- Por que não? E a única chance dele se recuperar, e nem posso lhe garantir que conseguirá.
Álvaro parou por um instante. Tudo estava muito confuso, ele não sabia bem o que pensar ou fazer. Glória, com os olhos secos, interferiu:
- Eu estou disposta a fazer qualquer coisa para ajudar meu filho, só que não tenho dinheiro, não imagino como conseguirei pagar uma clínica como essa...
- Existem algumas que não cobram nada, a maioria delas é mantida por organizações religiosas.
- Que religião?
- Existem várias, não me lembro agora, mas isso não é importante. O que interessa é o que eles possam fazer por seus filhos. As clínicas geralmente ficam em lugares afastados, onde é muito difícil ter contato com a droga. Lá, eles viverão ao ar livre, terão boa alimentação, saúde, além de ouvir falar de Deus, o que sempre faz bem.
Glória, nervosa e ansiosa, perguntou:
- Quando o senhor acha que seria melhor eu levar Rodrigo?
- O ideal seria hoje mesmo, assim que saíssem daqui. Hoje, a noite está sendo muito difícil para eles. A necessidade da droga se fará mais forte.
- Como devo fazer?
- Vou lhe dar um número de telefone. Ali no corredor tem um público, pode ligar e falar com a pessoa que atender. Conte tudo que aconteceu, diga que seu filho está aqui e que não tem dinheiro para pagar o tratamento. Eles lhe dirão como deve proceder.
- Não tenho cartão telefônico...
Ele tirou do bolso um cartão telefônico e, ensaiando um sorriso, disse:
- Leve este, não posso permitir que use o telefone da delegacia. Sabe como é, contenção de despesas.
Ela, agradecendo, pegou o cartão e saiu da sala em direção ao corredor. Álvaro, com o semblante preocupado, disse:
- Não posso fazer isso, preciso discutir o assunto com minha esposa. Precisamos decidir a qual clínica o levaremos.
- Eu não aconselharia isso. Leve-o hoje para qualquer uma, depois terão tempo para escolher. Telefone para sua esposa. Conte a situação, ela entenderá.
- Não, não posso fazer isso, não estou conseguindo aceitar, mesmo vendo-o nessa situação. Ela não entenderá. Acredito ser melhor levá-lo para casa. Lá decidiremos, e amanhã bem cedo iremos para uma clínica.
- O senhor é quem sabe. Leve este papel, nele está endereço e telefones de várias clínicas. Poderá ligar e escolher aquela que achar melhor, mas o ideal seria que os dois fossem internados em clínicas diferentes.
Álvaro pegou o papel e colocou-o no bolso. Glória entrou novamente na sala, devolveu ao delegado o cartão telefônico que lhe havia emprestado.
- Conversei com um senhor, ele disse para eu levar Rodrigo hoje mesmo, estará lá me esperando. Lá me dará os regulamentos que terei que cumprir. O senhor sabe quais são?
- Cada clínica tem seu próprio regulamento. Em geral, por certo tempo não permite que os internos entrem em contato com a família ou alguém conhecido.
- Ficarei sem ver Rodrigo?
- Acredito que sim. Ele precisa ficar sozinho, longe de tudo que lhe lembre a droga.
- Mas eu não lhe lembro a droga!
- Lembra sim, ele tem muito sentimento de culpa em relação à senhora. Sabe o quanto fez e espera dele.
- O senhor talvez tenha razão, sempre esperei muito dele. Sempre quis e acreditei que seria um doutor ou que teria uma boa profissão.
Álvaro ouvia e pensava: Eu também sempre esperei muito de Artur. Esperei, não! Sempre acreditei que ele seria o melhor na profissão que escolhesse. O delegado continuou:
- Sempre esperamos muito dos filhos, sempre acreditamos e desejamos que eles sejam os melhores. Quando isso não acontece, nossa decepção é muito grande.
- O senhor tem razão.
- Infelizmente. Mas o senhor pretende mesmo levar seu filho para casa?
- Sim, preciso conversar com minha esposa, quero que ele esteja presente.
- Eu levarei Rodrigo para a clínica.
- A senhora tem condução?
- Sim, tenho meu carro.
- Sendo assim, só queria lhe dar mais um conselho. Daqui até a clínica levará mais ou menos três horas na estrada, não seria conveniente que fosse sozinha. Não terá ninguém que possa acompanhá-la?
- Vou ligar para uma amiga, talvez ela venha.
- Faça isso, será melhor.
- Só que para isso precisarei novamente do cartão.
Ele, sorrindo, devolveu-lhe o cartão. Ela saiu. Voltou alguns minutos depois:
- Minha amiga está vindo para cá.
O delegado sorriu, dizendo para ambos:
- Só me resta fazer uma última coisa. Vou pedir para trazê-los de volta. Só peço aos senhores que me deixem falar com eles e não interfiram.
Os dois concordaram com a cabeça. Em seguida, o delegado chamou o homem que havia lhes telefonado e os recebido e pediu que trouxesse os meninos de volta. Ele saiu da sala e em seguida voltou, trazendo com ele os dois, que continuavam com as cabeças baixas. O delegado, mudando completamente o tom de voz, disse com firmeza:
- Bem, rapazinhos, seus pais agora já sabem de tudo, por isso não será necessário haver mais mentiras. Vocês são dois garotos de sorte. Têm pais interessados, que estão dispostos a ajudá-los. Sei que cada um deles fará a sua parte, o resto depende de vocês. Devem e precisam colaborar. Quero que levantem a cabeça e olhem para os meus olhos.
Eles obedeceram, e vagarosamente levantaram a cabeça e olharam para o delegado, que continuou:
- Eles decidiram que farão todo o possível para ajudá-los. Para isso, serão enviados a uma clínica, onde receberão toda a assistência que necessitam no momento.
Ao ouvir aquilo, Artur estremeceu, mas continuou ouvindo o delegado, que continuou dizendo:
- Lá terão a oportunidade de se livrar da droga e voltar a ser como eram antes. Entenderam?
A única coisa que eles queriam naquele momento era sair dali. Concordaram com a cabeça.
- Pois bem. Você, Rodrigo, vai sair daqui com sua mãe e irá direto para uma clínica. Artur, seu pai achou melhor que fossem até sua casa primeiro conversar com sua mãe, e só irá amanhã cedo. Está bem assim?
Novamente concordaram.
- Agora é o momento de escolherem o caminho que desejam seguir. Deus queira que escolham o melhor. Hoje os estou deixando ir embora, mas se voltarem novamente a esta delegacia, os mandarei para uma instituição que cuida de menores. Ficarão lá até que faça dezoito anos.
Eles tornaram a baixar a cabeça. O delegado fez um sinal e os quatro saíram da sala. Assim que saíram, ele olhou para uma foto que havia em cima de sua mesa. Era a foto de uma jovem de mais ou menos dezessete anos. Com os olhos molhados, pensou: Tomara minha filha, que eu esteja servindo de instrumento para ajudar esses dois rapazes, já que com você não consegui. Do lado de fora da delegacia os quatro se despediram. Artur e o pai entraram no carro. Glória, junto com Rodrigo, voltou para dentro, precisava esperar a amiga. Artur seguia calado e de cabeça baixa. Podia imaginar o que seu pai estava sentindo naquele momento. Queria dizer alguma coisa, mas não conseguiu. Seu coração batia acelerado. Sabia que encontraria sua mãe e que ela também ficaria triste e decepcionada. Pensava: Vou mudar! Vou deixar a cocaína e não vou precisar de clínica alguma. Tenho que fazer isso sozinho! Álvaro estava triste, magoado e decepcionado demais para dizer qualquer coisa. Para ele o mundo havia caído. Tentava descobrir onde havia errado. Seu desespero era imenso. Intimamente se perguntava:
- Por quê? Por que ele fez isso?
Dirigia o carro. Artur percebeu pela primeira vez que o rádio estava desligado. Assim, em silêncio, chegaram a casa.

SENTIMENTO DE CULPA

Odete também estava nervosa e muito assustada, por isso, ao ouvir o barulho do carro entrando na garagem, foi correndo para lá. Ao vê-los, disse, ansiosa:
- Ainda bem que chegaram! Não agüentava mais de tanta preocupação!
Entraram calados, ela os seguiu. Já lá dentro, na sala, perguntou:
- Artur! O que aconteceu? Por que estava na delegacia? Por que demoraram tanto?
Leandro acordou com o barulho do carro. Olhou para o relógio, estranhou que seu pai estivesse chegando àquela hora. Saiu do seu quarto, seguiu pelo corredor e parou no alto da escada exatamente no momento em que eles entraram. Ao ouvir a palavra delegacia, parou. Sentou-se no primeiro degrau da escada. Embora não fosse visto, podia com tranqüilidade ouvir o que diziam. Ao ver o rosto de desespero de sua mulher, Álvaro disse:
- Odete, sente-se, teremos uma longa conversa.
Ela estranhou ao ouvi-lo chamá-la pelo primeiro nome. Ele nunca fazia isso, a não ser quando estava nervoso ou tinha um assunto muito grave. Muito nervosa, sentou-se. Ele sentou-se ao seu lado. Olhou para Artur, dizendo:
- Você quer que eu conte ou prefere contar?
Artur tremia muito, e continuou de cabeça baixa. Não conseguia olhar para a mãe. Álvaro, percebendo que ele não queria falar, seguiu:
- Nunca mais esquecerei a cena que vi ao chegar à delegacia.
- Que cena?
- Seu filho encostado no canto de uma sala e algemado.
- Algemado!?! Como!?! Por que!?!
- Por ter tentado furtar um carro.
- Furtar um carro!?!
- Isso mesmo.
- Você deve estar delirando! Por que ele faria isso?
- Para poder comprar droga.
Ela se levantou, não queria acreditar no que estava ouvindo, mas sabia que seu marido jamais inventaria ou brincaria com um assunto como aquele. Gritou:
- Droga? Não! Não pode ser!
Começou a chorar. Álvaro levantou-se e a abraçou:
- Sinto muito, mas é verdade, seu filho está usando drogas!
- Que tipo de drogas?
- Não sei! Pergunte a ele! Ela, desesperada, perguntou:
- Artur, que tipo de droga?
Ele, sem levantar a cabeça, disse:
- Cocaína.
- Meu Deus! Por que, Artur? Por quê? Ele não respondeu, apenas chorava.
Leandro continuava no alto da escada. Ao ouvir aquilo e ver o desespero dos pais, começou a chorar, mas não teve coragem para descer a escada. Continuou ali quieto e parado. Odete livrou-se dos braços de Álvaro e foi para junto de Artur. Com as mãos, levantou sua cabeça, fez com que ele ficasse com os olhos diante dos dela:
- Meu filho, por quê? Por quê? O que estava lhe faltando? Porque não nos pediu ajuda? Sei que o erro foi meu, deixei escapar alguma coisa, só não consigo imaginar o que seja. Que foi meu filho? O que deixei de fazer?
Artur só chorava, não conseguia dizer nada. Permaneceu calado. Ela continuou:
- Sempre me julguei uma boa mãe... Sempre achei que estava agindo certo... Meu Deus! E agora? Como vai ser?
Abraçou Artur bem forte junto ao seu coração. Ficou assim por um longo tempo, sem dizer nada, apenas abraçando-o e chorando. Ele também, por sua vez, fazia o mesmo. Por detrás dos ombros de Artur, olhou para o marido:
- O que faremos?
- Volte a se sentar.
Ela se sentou. Ele disse:
- O delegado é um homem com muita experiência nesses casos. Disse que a melhor solução será o internarmos em uma clínica de desintoxicação.
- Acredita mesmo que seja o melhor?
- Não sei! Nunca imaginei que um dia isso acontecesse! Também não sei o que é melhor!
Depois de muito tempo calado, Artur olhou para mãe e disse, chorando em tom de súplica:
- Não, mamãe... Por favor, não! Não quero ir para clínica alguma! Prometo que nunca mais vou usar cocaína ou outra droga qualquer. Voltarei a estudar, a nadar e a mexer no meu computador.
Antes que Odete dissesse qualquer coisa, Álvaro o interrompeu:
- O delegado disse para não confiarmos em nada do que ele dissesse, pois para conseguir a droga eles choram, mentem, enganam e até roubam.
Assim que terminou de dizer essa última palavra, olhou em direção à cozinha. A imagem de Iracema surgiu em sua frente. Lembrou-se com exatidão de tudo o que havia sucedido ali, naquela mesma sala. Levou como uma flechada no peito. Voltou-se para Artur:
- Artur, roubaram mesmo seu tênis? Foi Iracema quem tirou o colar de casa?
Ele sabia que já não precisava esconder mais nada, o que temia acontecera. Seus pais já sabiam de tudo. Com a cabeça baixa, respondeu:
- Não foi Iracema quem tirou o colar, e ninguém roubou meus tênis. Eu os troquei por maconha...
Odete soltou uma exclamação:
- Meu Deus! Como pôde Artur? Você não sentiu pena dela?
- Desculpe mamãe... Sinto muito...
Leandro não resistiu mais, desceu a escada correndo e gritando:
- Não disse que não tinha sido ela? Não disse? Como teve coragem de deixar que todos pensassem que tinha sido ela? Como teve coragem de deixar que o papai a levasse para a delegacia?
Odete abraçou o filho:
- Sempre teve razão, mas Artur precisa de nossa ajuda. Ele está doente. Amanhã, depois que o levarmos para a clínica, iremos juntos à favela onde ela mora e pediremos perdão. Vamos ver se conseguimos fazer com que ela volte.
- Vai fazer isso mesmo?
- Vou sim...
- Posso ir junto?
- Claro que pode.
Álvaro permaneceu calado. De repente, deu um soco em sua própria cabeça, dizendo:
- Como fui estúpido? E o filho dela? Um rapaz esforçado, estudioso e trabalhador! Que terá sido feito dele?
- Não adianta ficar assim, amanhã resolveremos isso. Pediremos perdão, e se ele ainda quiser, poderá fazer com que volte para o escritório.
- Agora não há nada mesmo que eu possa fazer. Você tem razão, amanhã faremos isso. Agora você, Artur, vá para o seu quarto, prepare uma maleta com algumas roupas, deixe tudo pronto. Amanhã terá a oportunidade de recomeçar. Logo cedo telefonarei para todas as clínicas que o delegado me deu. Escolherei aquela que me pareça a melhor. Pode subir.
Artur tentou abraçá-lo, mas ele não permitiu. Sua mãe o beijou, Leandro não quis olhar para ele. Lentamente subiu e entrou em seu quarto. Entrou no banheiro e tomou um banho. Não conseguia parar de chorar. Voltou para o quarto e deitou-se de costas como sempre fazia. Começou a relembrar tudo, desde o começo. A festa, Mariana, tudo que havia feito por causa da droga. O desespero de Iracema dizendo que não havia sido ela. O rosto de seu pai quando o encontrara na delegacia, a atitude de sua mãe quando tomara conhecimento, o olhar de ódio que Leandro lhe desferira. As imagens iam passando, e ele cada vez chorava mais. Decidiu: Nunca mais usarei droga, haja o que houver. Talvez eu consiga mesmo ser curado nessa clínica. Por que não? Pode ser a solução! Aos poucos, foi se acalmando. Adormeceu. Enquanto isso, na sala, Álvaro conversava com Leandro:
- Sei meu filho, que está muito triste. Tentou nos avisar sobre Iracema, mas como vê, jamais poderia ter imaginado que seu irmão estivesse envolvido nisso.
Ele chorava muito enquanto dizia:
- Sei disso, mas eu disse que ela não tinha feito aquilo.
Odete o abraçou:
- Sabemos disso, e estamos pedindo perdão. Já disse que amanhã iremos procurá-la, e se Deus quiser, a traremos de volta. Esse problema não vai ser difícil de resolver. O problema maior que temos é com Artur. Tomara que consigamos ajudá-lo a se curar.
Agora vá para seu quarto e tente dormir. Amanhã teremos um longo dia, com muitos problemas para resolver. Dê um beijo em seu pai e boa noite.
Ele se aproximou do pai e beijou seu rosto:
- Boa noite, papai.
- Boa noite, meu filho. Durma bem.
Olhou para a mãe, sorriu e subiu a escada. Passou pelo quarto de Artur, a porta estava aberta, mas não quis entrar, estava muito magoado. Não entendia a extensão de tudo que estava acontecendo. Só de uma coisa tinha certeza. Pensava: Jamais o perdoarei! Ele não podia ter feito aquilo com Iracema... Na sala, Odete se levantou e foi em direção à cozinha. Preparou um chá e em seguida voltou para a sala levando em uma bandeja duas xícaras, um pequeno bule e um açucareiro. Colocou a bandeja em cima da mesa de centro. Vagarosamente pôs o chá dentro das xícaras, adoçou e ofereceu ao marido. Pegou a dela e sentou-se ao lado dele. Ele começou a beber, mas ela notou que seus olhos estavam perdidos no espaço. Perguntou:
- Em que está pensando?
- Na minha infância, em minha mãe viúva, trabalhando como lavadeira para nos sustentar. Na revolta que eu sentia por viver naquela pobreza. No que eu dizia todas as noites antes de dormir.
- O que você dizia?
- Não me lembro com exatidão das palavras, mas era mais ou menos assim: Deus, se é que existe mesmo, faça com que eu ganhe muito dinheiro para poder ajudar minha mãe, dar todo o conforto que ela merece e aos meus irmãos também, e quando eu for grande e tiver meus filhos, não permita que eles sintam nunca falta de nada....
- Você conseguiu tudo isso. Sua mãe hoje mora em uma casa que você comprou para ela. Tem uma vida tranqüila. Quanto aos seus filhos, eles sempre tiveram tudo o que desejaram, nunca lhes faltou nada! Você é um vencedor!
- Também acreditava nisso, até esta noite. Consegui mesmo tudo o que havia desejado só que, em algum momento do caminho, eu me perdi. Estou agora tentando descobrir que momento foi esse.
Ela, segurando sua mão, respondeu:
- Não deve se torturar... Você sempre foi e é um bom pai e um marido maravilhoso. Se existe algum culpado nessa história, sou eu. Eu sim não devo ter dado a ele a atenção necessária. Devo ter deixado escapar alguma coisa. Talvez por ele ter sido sempre um bom menino, julguei que não havia problema algum.
- Não sei dizer qual de nós é o culpado, mas tentaremos descobrir.
Ela se levantou e deu um beijo em seu rosto, dizendo:
- Só que não vai ser agora. Já está tarde, vamos nos deitar e tentar dormir. Sinto que nem tudo está perdido, conseguiremos trazer nosso filho de volta.
Ele também se levantou, retribuiu o beijo e abraçou-a. Subiram a escada. Ao passarem pelo quarto de Artur, Odete percebeu que sua porta estava apenas encostada. Abriu devagar, viu que ele estava deitado e com os olhos fixos no teto. Segurando a mão do marido, entrou. Ele a acompanhou. Ela se dirigiu à cama de Artur, ajoelhou-se e disse:
- Artur... Sei que também não está sendo fácil para você. Eu e seu pai conversamos e chegamos à conclusão de que em algum momento nós falhamos.
Ele, chorando, disse:
- Não! Não falharam! São os pais mais maravilhosos deste mundo!
- Falhamos sim. Se assim não fosse, você teria nos contado qual era o problema...
- Por serem maravilhosos foi que não tive coragem de contar! Não queria que soubessem nunca! Não queria ver em seus rostos o que estou vendo agora! Decepção e tristeza.
- Você devia ter nos contado, mas agora já passou. Você é nosso filho e o amamos muito. Amanhã irá para a clínica, lá eles tirarão toda a droga que está em seu corpo e você não sentirá mais falta dela. Voltará a ser o filho que sempre foi de quem nos orgulhamos muito.
- A senhora acha mesmo que vou me curar?
- Claro que sim. Agora não se preocupe, trate de dormir.
Álvaro não disse nada, apenas aproximou-se e o beijou.
Artur sentiu um alívio profundo. Sorriu. Pai e mãe saíram abraçados do quarto.

MOMENTO DE ESCOLHA

Assim que seus pais saíram do quarto, Artur levantou-se e foi ao banheiro. Novamente olhou-se no espelho. As olheiras continuavam grandes, seus olhos estavam vermelhos e inchados. Já não era só por causa da droga, mas também pelo muito que havia chorado. Olhando-se no espelho, pensou: Eles são realmente os melhores pais do mundo. Por que não confiei neles? Mas, depois de tudo que passei esta noite e de ver o sofrimento em seus rostos, nunca mais usarei cocaína ou qualquer outra droga. Irei para a clínica. Sei que não será fácil, mas conseguirei! Voltou para o quarto, novamente se deitou. Devido às emoções do dia e do muito que chorara, adormeceu em seguida. Acordou no meio da noite. Olhou para o relógio, faltavam vinte minutos para as três horas da manhã. Estava suando. Levantou-se, sentiu um leve tremor. Voltou a se deitar após alguns segundos. Percebeu que não conseguiria. Desesperado, pensou: Estou novamente precisando da droga! Não! Não vou usar! Vou acordar meus pais e pedir ajuda! Abriu a porta. Uma luz fraca iluminava o corredor que levava aos quartos. Dirigiu-se ao quarto dos pais. Ia bater na porta, mas parou com a mão quase tocando nela: Não! Não posso fazer isso! Eles estão dormindo! Não é justo acordá-los! Voltou para o seu quarto. Lá dentro, entrou e saiu várias vezes do banheiro. O tremor aumentava a cada segundo. A vontade da droga foi se tornando insuportável. Entrou novamente no banheiro. Não sabia quantas vezes já havia feito esse percurso. Em uma das vezes, ao sair do banheiro, olhou para a mesa do computador e para sua gaveta. Não pensou muito. Abriu a gaveta: Aqui está o que preciso. Pegou um dos pacotinhos, esparramou o seu conteúdo em cima da capa de um livro, tapou um lado do nariz e com o outro inspirou. O efeito foi quase imediato. Sentiu aquele bem-estar tão seu conhecido. Em poucos minutos já era outro. Feliz, pensou: Definitivamente, eu gosto desta sensação. Não quero ficar sem a droga, ela só me faz bem. Não posso ir para clínica alguma, não vai adiantar. Mas também não posso continuar aqui em casa, meus pais não aceitarão, me levarão para lá. Olhou para o armário, abriu a porta, tirou uma calça, uma camisa e uma jaqueta. Pegou os pacotinhos que estavam na gaveta, colocou-os no bolso da jaqueta e abriu a porta bem devagar. Estava tudo em silêncio. Seus pais e Leandro dormiam. Na ponta dos pés, saiu do quarto e desceu a escada. Logo estava na porta da sala. Abriu-a e saiu. A noite estava escura, apenas iluminada pelas luzes dos postes de eletricidade. Ele saiu caminhando sem destino. Andou muito, não se preocupando para onde ir. Quando se deu conta, estava em frente à casa de Rodrigo. Ela estava toda escura. O carro da mãe dele não estava ali. Ela ainda não voltou. Para que clínica o terá levado? Sem saber o que fazer ou para onde ir, continuou andando. Só de uma coisa ele tinha certeza: Nunca mais voltarei para casa! Não quero ir para a clínica. Continuou andando. O dia estava clareando quando chegou à favela onde Jiló morava. Enquanto entrava por uma viela, algumas pessoas passaram por ele. Imaginou que elas estivessem se dirigindo ao trabalho. Lembrou-se quando Iracema disse:
- Não, dotô, na favela não tem só bandido, não! Tem muito trabaiadô!
Imediatamente ele se lembrou do dia em que, chorando, ela jurara ser inocente. Lembrou-se também de seu pai empurrando-a e levando-a para a delegacia. Uma lágrima quis se formar, mas ele a enxugou: Isso agora será resolvido. Hoje mesmo meus pais deverão ir até a casa dela e esclarecer tudo. Chegou finalmente à porta do barraco de Jiló. Ia bater quando se lembrou da última vez em que o acordara. Resolveu esperar até que ele acordasse. Sentou-se no chão, encostou a cabeça na parede do barraco. Ali sentado, lembrou-se do olhar de Leandro quando tomara conhecimento de que havia sido ele quem roubara o colar e permitira que Iracema levasse a culpa. Ele estava com muito ódio, acho que nunca mais me perdoará. Ficou ali sentado e pensando, sem ver o tempo passar. A porta do barraco se abriu. Jiló saiu. Ao ver Artur ali sentado, admirou-se:
- Que está fazendo aqui há esta hora? Sei que tem muita coca! Ao ver Jiló, ele se levantou, respondendo:
- Não estou aqui por causa da coca. Fugi de casa.
- O quê?
- E isso que disse, fugi de casa! Jiló com as mãos esfregou os olhos.
- Acho que ainda estou dormindo. O que você disse?
- Fugi da casa.
- Por quê? Está louco?
- Meus pais descobriram tudo e querem me levar para uma clínica, e eu não quero ir.
Jiló ficou pensando por um tempo, depois disse:
- Conte com calma, o que aconteceu?
Artur contou tudo, como haviam sido presos, dos rostos de seu pai e da mãe de Rodrigo quando os viram na delegacia. Após terminar, Jiló ficou pensando mais um pouco:
- E Rodrigo, onde está?
- Não sei, a mãe dele ia levá-lo direto para uma clínica.
- Foi mesmo?
- Foi.
- E agora? O que pretende fazer?
- Não sei, estou aqui para ver se você me ajuda ou me dá alguma idéia. Não sei o que fazer!
- Pensa que eu sei?
- Preciso de ajuda!
- A rua é bem grande! Tem bastante espaço!
- Não posso ir para a rua!
- Volte pra sua casa, então!
- Eles me internarão!
- É mano, é sua hora de escolher... Não posso fazer nada...
Entrou no barraco e fechou a porta. Artur ficou ali olhando, sem saber o que fazer. Lágrimas começaram a correr de seus olhos: Eu devia imaginar que ele faria isso. Nunca foi meu amigo, eu era simplesmente um freguês. O que preciso fazer é voltar para minha casa. Não há outro caminho. Estava ali ainda sentado quando um rapaz se aproximou. Viu Artur, mas não tomou conhecimento. Bateu na porta do barraco. Ela não se abriu. Ele insistiu e chamou por Jiló, só aí ele atendeu.
- Careca! É você? Entre aqui.
Afastou-se para que o rapaz pudesse entrar. Olhou em direção a Artur, não disse nada. Assim que entrou atrás do rapaz, fechou a porta. Artur ficou pensando: Deve ser mais um freguês que veio em busca da mercadoria. Mas não era disso que se tratava. Assim que entraram, o rapaz desabotoou a camisa e de dentro dela tirou um pacote grande. Entregou-o a Jiló, que disse:
- Trouxe uma boa quantidade, mas sabe que não é o suficiente. Minha freguesia cresce dia a dia.
- Sei disso, mas foi só isso que mandaram. Onde está o dinheiro?
Jiló tirou uma tábua do chão. Apareceu um buraco e de dentro dele tirou um pacote. Abriu-o e apareceram algumas notas. Entregou-as ao rapaz, dizendo:
- Aqui está tudo o que consegui. Assim que entregar esta mercadoria, terei mais dinheiro, por isso pode voltar daqui a dois dias e trazer mais.
O rapaz contou, embrulhou o dinheiro, tornou a enfiá-lo sob a camisa e saiu. Lá fora, olhou para Artur, dizendo:
- Você também veio comprar?
Desesperado, Artur respondeu:
- Não, estou com um problema, vim pedir ajuda pro Jiló. O rapaz começou a rir:
- Ajuda? Acreditou mesmo que aqui encontraria ajuda?
- Não tenho mais ninguém a quem recorrer.
- O que aconteceu?
Artur ia responder quando Jiló retornou e, raivoso, disse para Artur:
- Você ainda está aqui? Já não disse que não posso ajudar? Ao ouvir aquilo, o rapaz disse:
- Você parece que está em apuros e sem rumo.
- E isso mesmo, não sei o que fazer...
- Se quiser, pode vir comigo, talvez eu possa ajudar.
Artur levantou-se e, agradecendo, acompanhou-o. Durante o caminho foi contando tudo o que havia lhe acontecido. Após ouvir, o rapaz disse:
- Estou nessa vida há muito tempo, várias vezes quis sair, mas nunca consegui. Está vendo este pacote que está aqui embaixo da minha camisa?
Artur não viu o que era, mas percebeu que o volume era bem grande. Perguntou:
- O que é isso?
- Entreguei uma mercadoria para o Jiló, e ele pagou.
- Você é um traficante?
- Não! Sou apenas um entregador, nada mais. Quem vende prós malacas é o Jiló.
- Malacas?!
O rapaz começou a rir:
- Pelo jeito, você não entende gíria! Malaca é gente igual a você e eu: viciado.
- O que faz é o mesmo que traficar.
- Prefiro não pensar assim, prefiro pensar que sou só um entregador.
- Por que faz isso?
- Cheguei a um ponto que não me restou mais nada pra fazer. Já estou acostumado.
Não quero fazer isso
- Então, meu amigo, a melhor coisa que tem para fazer é voltar pra sua casa. Meus pais são pobres, nunca me pagariam uma clínica, mas você disse que os seus querem levá-lo. Talvez seja a única solução para se livrar. Isto aqui não é vida, não. A qualquer momento a gente morre. Se não for a polícia, vai ser um outro traficante. Eu não tenho mais futuro, mas você tem ainda uma chance.
Artur ficou só ouvindo. Chegaram a uma outra favela. Ele acompanhou o rapaz até um outro barraco. Entraram.
- Aqui é o meu mocó.
Artur ficou olhando. O rapaz começou a rir:
- Esqueci que você não está acostumado com algumas palavras! Logo aprenderá. Entre e sente-se aí.
Artur olhou a sua volta. Nunca havia visto um lugar igual àquele. O chão era de terra. Não havia quase nada lá dentro, só uma cama de solteiro, que parecia não ter colchão, uma mesa, uma cadeira quebrada e um fogareiro, mais nada. Em cima da mesa, uma panela com arroz queimado. Muita sujeira. O rapaz percebeu que ele estava olhando. Disse:
- Está vendo onde eu moro? Se continuar nessa vida, vai acabar morando assim. Meu nome é Careca, e o seu, como é?
Artur começou a rir:
- Meu nome é Artur, mas, Careca? Isso não é nome de gente!
- De gente não, mas de quem vive nessa vida, sim! Se fosse você, já ia pensando em um nome de guerra pra usar quando for traficante.
- Nunca serei um traficante!
- Será sim. Se continuar nessa vida, sim!
- Por que não me diz seu nome verdadeiro?
- Porque se os "ómi" pegarem você, não vai poder me entregar.
- Os "ómi"? O que é isso?
Ele novamente começou a rir:
- Esqueci que você não conhece algumas gírias. Estou falando da polícia.
- Mas eu nunca o entregaria!
- Isso você diz agora, mas quando estiver nas mãos deles, nem vai se lembrar disso que está dizendo. Quer comer um pouco desse arroz? A gente pode fritar uns "óio". Antes que pergunte o que é isso, vou dizer. É ovo.
Artur olhou novamente para a panela. Disse:
- Não, obrigado, não estou com fome.
- Mas eu estou.
Com uma colher, ele tirou o arroz queimado, colocou em uma panela e levou ao fogareiro para esquentar. Enquanto esquentava, em outra panela ele fritou dois ovos. Artur ficou olhando-o comer. Imaginou como uma pessoa podia comer aquilo. Lembrou-se da comida que havia em sua casa, principalmente daquela que Iracema cozinhava. Ficou pensativo.
Quando Careca terminou de comer, disse:
- Resolveu o que vai fazer da vida?
Artur suspirou antes de responder:
- Acho que sim. A melhor coisa é voltar para casa e tentar me livrar. Só estou pensando...
- No quê?
- Você não ganha dinheiro com o seu trabalho?
- Claro que ganho, mas com o passar do tempo, a gente vai precisando de mais droga, e de mais dinheiro para pagá-la. Todo dinheiro que ganho fica por contra da droga que uso. Também acho que deve voltar para casa. Esta vida não vale a pena, não.
- É isso mesmo que vou fazer. Tchau. Careca, com um sorriso e aliviado, disse:
- Tchau, e boa sorte.
Artur seguiu pelo caminho que o levaria de volta para casa. Enquanto caminhava pelas vielas da favela, ia prestando atenção em tudo. As vielas eram estreitas. Passava pelos barracos, alguns estavam com as portas abertas. Ele pôde notar que em quase todos existia a mesma pobreza que no de Careca. Crianças mal-vestidas brincavam. Lembrou-se do professor de Ciências quando naquele dia dissera: Tem muita pobreza neste país! Muitas pessoas não têm para comer, muito menos para estudar! Artur ia olhando e pensando: Ele tinha razão. Mas por que existe tanta pobreza neste mundo? Chegou finalmente ao fim da favela. Já na rua, caminhou decidido em direção a sua casa. Caminhou muito. Seus pensamentos estavam confusos. Sabia que realmente aquela era a única solução para tentar retornar à vida anterior às drogas, mas no íntimo sabia que jamais voltaria a ser o mesmo de antes. Vivera, conhecera sensações e coisas diferentes, antes nunca vividas. Era verão. Embora ainda fosse cedo, o sol já estava quente. Ele continuou andando. Chegou à rua em que morava. De longe podia ver sua casa. Viu quando o carro de seu pai se aproximou e entrou na garagem da casa. Os dois carros de seus pais estavam na garagem: Papai! De onde ele estará vindo? Ele não foi trabalhar hoje? Se eu for até lá, o que vou dizer? Eles não acreditarão em nada do que eu disser. Eu já os fiz sofrer muito. Não! Não posso entrar! Não sei o que dizer! Voltou-se e, correndo, tomou o caminho contrário ao da sua casa. Correu muito. Chegou à praça muito cansado. Já quase sem conseguir respirar, sentou-se em um banco. Embora soubesse que se entrasse em casa os pais o receberiam bem, pois eles o amavam, definitivamente não queria ir para a clínica. Colocou a mão no bolso, tirou um pacotinho. Ali não tinha como cheirar. Olhou para o chão, viu uma folha de jornal. Pegou, rasgou um pedaço, enrolou como se fosse um funil, colocou o pó dentro e cuidadosamente o inspirou. Em poucos minutos estava bem novamente: Não irei para clínica alguma! Levantou-se e continuou andando sem rumo. Assim que Artur saiu, Careca ficou olhando a sua volta. Percebeu a pobreza enorme em que vivia. Lembrou-se de como havia começado naquela vida. Eu não tinha catorze anos ainda, meu pai havia abandonado nossa casa. Minha mãe ficou sozinha com quatro filhos, eu fiquei desesperado, sem saber o que fazer. Era o mais velho dos irmãos. Poderia ter tentado encontrar um trabalho, mas meu amigo Créo me ofereceu um emprego onde eu poderia ganhar muito mais. O trabalho era fácil, só tinha que entregar uma mercadoria pra alguém. Lembro-me que ele dissera: O dinheiro que vai ganhar é muitas vezes mais do que vai ganhar trabalhando. Você sabe que não tem uma profissão, nem estudo. Logo nas primeiras entregas pude ver que ele dissera a verdade. Ganhei muito dinheiro, tanto que nunca em minha vida eu tinha visto igual. Fiquei encantado com tanto dinheiro e com tão pouco trabalho. Só tinha que entregar um pacote, pegar o dinheiro e levar pro seu Romeu, nada mais. Ia tudo bem, eu levava dinheiro pra casa. Minha mãe nunca desconfiou do trabalho que eu fazia, ficava contente quando eu lhe dava dinheiro pra ir à feira. Nunca perguntou onde eu conseguia. Durante uns seis meses eu trabalhei sem problema. Até que um dia Créo me deu o primeiro baseado. Fiquei empolgado com a sensação que ele me deu. Depois do primeiro, veio outro e mais outro, até que cheirei pela primeira vez a coca. Aí sim foi que vi o que me tornava com ela. Poderia ser o que quisesse nada me importava e nada era impossível fazer. Logo fui notando que para ter aquele prazer precisava de dinheiro, muito dinheiro. Hoje estou aqui, vivendo desse jeito... Sempre coloquei a culpa na pobreza, mas e Artur? Por tudo que me contou, é um menino rico! Tem uma família perfeita! Por que entrou nessa? Não sei, não sei mesmo. Foi em direção a uma gaveta, tirou uma seringa, aqueceu o pó e se aplicou. Em seguida, começou a rir muito. Saiu para a rua.

DESESPERO E PROCURA

Naquela manhã, Odete abriu os olhos, não havia dormido bem. Acordara e voltara a dormir várias vezes. Seu coração estava apertado, sentia uma pressão sobre o peito que lhe causava dificuldade para respirar. Várias vezes foi obrigada a respirar profundamente. Percebeu que Álvaro também não conseguira dormir bem. Olhou para ele, que estava deitado ao seu lado e naquele momento dormia profundamente. Sorriu enquanto pensava: Preciso me levantar, vou preparar o café, depois os chamarei. Hoje teremos um longo dia. Depois de levarmos Artur para a clínica, iremos em busca de Iracema. Na gaveta do escritório deve estar o seu endereço. Tomara que consigamos obter seu perdão. Ficou ali deitada por mais um tempo, pensando em tudo o que havia acontecido na noite anterior e tentando encontrar o momento em que havia se descuidado de Artur. Em seu pensamento só havia uma certeza: Eu falhei como mãe! Sou a culpada dele estar nessa situação, mas farei tudo para me redimir. Eu o trarei de volta! Levantou-se, em silêncio saiu do quarto, não queria que Álvaro acordasse. Ao passar pelo corredor viu que as portas dos quartos de Artur e Leandro estavam fechadas. Sorriu e foi para a cozinha. Preparou o café e a mesa para servi-lo. Antes de chamar Álvaro irei até o quarto de Artur. Verei como está. Conversarei a respeito da clínica, notei que está muito assustado. Foi para o quarto de Artur, abriu a porta e entrou bem devagar. Assim que olhou para a cama, levou um susto. Olhou para a porta do banheiro. Ela estava fechada. Sorriu. Bateu na porta:
- Artur! Você está aí?
Bateu e chamou por duas vezes. Não obtendo resposta, abriu a porta e entrou. Ficou desesperada ao ver que ele não estava ali. Foi correndo em direção ao seu quarto:
- Álvaro, acorde! Artur não está em casa!
Álvaro abriu os olhos e num pulo sentou-se na cama:
- Como não está em casa? Onde ele está?
- Não sei! Fui até seu quarto e ele não está lá!
Ele se levantou, foi em direção ao quarto de Artur, olhou tudo, até o banheiro.
- Ele não está mesmo! Para onde terá ido?
Odete olhou para a mesa do computador, lembrou-se dos pacotinhos que havia visto e não dado atenção. Correndo, abriu a gaveta; eles não estavam mais lá. Começou a chorar:
- Sou mesmo uma idiota!
- Por que está dizendo isso?
- Ontem, quando vim procurar a agenda de telefone, vi aqui nesta gaveta alguns pacotinhos com um pó branco, devia ser a droga, mas eu não sabia! Nunca vi droga em toda a minha vida! Não está mais aqui! Ele levou!
Álvaro se desesperou:
- Eu deveria ter dado ouvidos ao delegado! Ele tentou me alertar! Disse que Artur deveria ser levado para uma clínica assim que saíssemos da delegacia, que não deveria voltar para casa! Mas eu não quis! Queria que você tomasse conhecimento de tudo, e que pudéssemos escolher a melhor clínica para levá-lo!
- E agora? O que faremos?
- Não sei! Não sei! Onde ele estará?
Odete sentou-se na cama e começou a chorar com desespero. Ao vê-la daquela maneira, Álvaro se recompôs:
- Não fique assim... Não vai adiantar nos desesperarmos... O melhor que temos a fazer é irmos lá para baixo e pensarmos em uma maneira de encontrá-lo.
Levantou-a pelos braços. Assim que ela ficou de pé, deu-lhe um abraço muito forte, dizendo:
- Precisamos nos acalmar, nossa vida está se desmoronando, mas eu a amo... E amo nossos filhos... Sei que sou amado por vocês... Encontraremos uma maneira para ajudar nosso filho... E nos ajudar também...
Seus corações, que até aí batiam descompassados, aos poucos foram voltando ao ritmo normal. Ela parou de chorar. Afastou seu rosto do dele e disse com voz firme:
- Tem razão. Chorar não vai resolver nada. Que pretende fazer?
- Ligar para a delegacia e comunicar que ele desapareceu.
- E isso mesmo! Boa idéia.
Desceram abraçados. Assim que chegaram à sala, ele pegou imediatamente o telefone, ela ficou ao seu lado. Ele, com o telefone não mão, disse:
- Não sei o número da delegacia!
Embora nervosa, ela deu um sorriso. Abriu uma gaveta e pegou a lista telefônica. Ansioso, ele foi virando as páginas até encontrar o número que procurava:
- Encontrei! Está aqui!
Discou o número, uma pessoa atendeu. Ele comunicou o desaparecimento de Artur. A pessoa disse:
- O senhor precisa vir até a delegacia, e de preferência trazer uma foto do desaparecido.
- Está bem, irei agora mesmo.
Assim que colocou o telefone de volta no gancho, olhou para Odete.
- Preciso ir até a delegacia.
- Também irei!
- Não pode... Precisa ficar com Leandro. Fique calma, vou e volto o mais depressa possível. Preciso levar uma foto de Artur.
Ela não discutiu, sabia que ele tinha razão, Leandro não poderia ficar sozinho em casa. Afastou-se, foi para seu quarto e pegou uma foto de Artur que estava em um porta-retratos. Voltou com ela na mão:
- Está aqui, é bem recente, ele está lindo...
- Irei agora mesmo.
Com a foto nas mãos, ele foi saindo. Ela disse:
- Vai sair vestido com esse pijama?
Ele se olhou, um pouco sem graça, subiu e foi trocar de roupa. Voltou em seguida, deu-lhe um beijo no rosto e saiu. Assim que ele saiu, Odete novamente começou a chorar. Seu pensamento estava atormentado: Eu sou a culpada... não fui uma boa mãe... se assim não fosse, ele teria confiado e me contado seus problemas... ele deve ter um problema, mas qual? Ficou ali chorando, andando de um lado para o outro. Leandro acordou, levantou-se e foi para a sala. Estava com fome, queria tomar café. Assim que chegou, encontrou a mãe chorando. Assustado, perguntou:
- Mamãe! O que aconteceu? Por que está chorando?
Ela o abraçou e contou tudo. Ele, que já estava com raiva de Artur por ter mentido em relação à Iracema, ficou mais bravo ainda:
- Ele não pode fazer isso! Por que está fazendo essas coisas? Mentindo, roubando, fazendo à senhora e o papai ficarem nervosos! Estou sentindo um ódio muito grande por ele!
- Não diga isso, meu filho... Ele está doente... Precisa da nossa ajuda. Venha tomar o seu café.
Ele se sentou e ela o serviu. Após tomar o café, sentou-se ao lado dela em um sofá. Percebeu que ela estava nervosa, abraçou-se a ela e ficou quieto, sem dizer ou fazer nada. Ela parou de chorar, mas ficou com o olhar distante, relembrando o passado. Desde o dia em que Artur nascera, e pensava em como eram felizes. Após algum tempo, Leandro ligou o televisor e começou a assistir desenhos. Ela foi para a cozinha, ficou mexendo aqui e ali. Estava andando de um lado para o outro quando ouviu o barulho do carro de Álvaro entrando na garagem. Correu para fora. Leandro continuou assistindo à televisão. Não estava preocupado, mas sim com muita raiva. Ela chegou à garagem no momento em que Álvaro descia do carro:
- Então, Álvaro? O que eles disseram?
Ele a abraçou e a conduziu de volta para dentro da casa. Ao entrar, viu Leandro, que continuava na mesma posição. Ao ver o pai, levantou-se e correu para ele. O pai abriu os braços e o abraçou forte:
- Tudo bem, meu filho? Com lágrimas, ele respondeu:
- Tudo bem..
- Isso mesmo! Está tudo bem e ainda ficará melhor! Tenha certeza disso!
Leandro se soltou de seus braços e voltou seus olhos para a televisão. Álvaro fez um sinal para Odete e subiu a escada. Ela o acompanhou. Assim que chegaram ao quarto, ansiosa ela perguntou:
- O que eles disseram?
- Que é preciso esperar quarenta e oito horas para começar a busca.
- Quarenta e oito horas? Mas é muito tempo!
- Também disse isso, mas me foi dito que esse é o regulamento.
- E agora? Que faremos? Era o mesmo delegado de ontem?
- Não, era outro, mas foi também muito atencioso. Contei tudo o que havia acontecido. Ele se mostrou condoído. Disse que a droga está realmente destruindo uma boa parte da juventude, e que a polícia se sente impotente para lutar contra o tráfico. Deixei a foto de Artur. Passadas as quarenta e oito horas ela será colocada em todos os lugares estratégicos, e principalmente em todas as delegacias.
- Nas delegacias? Por quê?
- O delegado disse que, de acordo com sua prática, Artur logo aparecerá. Voltará para casa ou será preso novamente.
- Preso!?! Não pode ser! Por quê?
- Contei a ele sobre os pacotinhos que você viu. Ele disse que assim que eles terminarem Artur fará qualquer coisa para conseguir mais. Por isso, com certeza, tentará furtar novamente. Ela chorava desesperada.
- Não! Por favor, diga que isso que está dizendo não é verdade!
- Sinto muito, meu bem, mas foi isso que o delegado disse.
Por outro lado, tomara que seja logo, pois assim o encontraremos e o levaremos para a clínica.
- Não sei se devemos fazer isso... Ele pareceu muito assustado com essa idéia...
- Também notei, mas é o único caminho. Precisamos esperar, é o melhor que pode ser feito no momento...
Ela se abraçou a ele e ficou chorando baixinho. Estavam assim quando Leandro entrou no quarto. Da porta viu os pais abraçados e sua mãe chorando. Aquilo fez com que ele sentisse mais raiva de Artur. Sua mãe, ao vê-lo, enxugou as lágrimas e caminhou em sua direção:
- Leandro, está precisando de alguma coisa?
- Estou querendo saber quando iremos à casa de Iracema. Ela olhou para Álvaro. Ele também foi em direção a Leandro:
- Hoje não poderemos ir. Precisamos ficar aqui e esperar por Artur.
- Ele não vai voltar! Iracema deve estar muito triste! Ela não merece!
- Olhe meu filho, sei que está triste e revoltado, sei que Artur errou muito, mas ele ainda é seu irmão e nosso filho. Hoje ficaremos aqui em casa, você irá para a escola como sempre, e amanhã é sábado. Prometo que logo pela manhã iremos procurar Iracema, está bem assim?
Ele balançou a cabeça, dizendo que sim. A mãe o abraçou e deu-lhe um beijo na testa. Ele saiu do quarto. Ela se voltou para o marido:
- Ele está muito triste, precisamos dar-lhe muita atenção.
- Sim. Além do mais, precisamos mesmo procurar Iracema e Jarbas para pedir-lhes perdão.
Ela sorriu tristemente e, abraçados, saíram do quarto. Ao chegarem à sala, Álvaro olhou para Leandro, que continuava ali deitado no sofá e com os olhos fixos na televisão. Não fez nenhum movimento quando viu os pais entrarem. Odete sentia que o filho estava precisando dela, mas ela própria também estava precisando de consolo e conforto, não tinha e nem sabia mais o que dizer ou fazer. Caminhou em direção à cozinha. Aquele local havia se tornado o seu refúgio. Após alguns minutos, Álvaro entrou na cozinha:
- Odete, preciso ir até o escritório. Tenho hoje que representar um cliente perante o juiz e agora está muito tarde para que a audiência seja desmarcada.
- Estava aqui pensando; não estou em condições de dar aula. Ligarei para a escola e pedirei para hoje ser substituída. Ficarei esperando por Artur, sei que ele voltará. Pode ir para o escritório tranqüilo.
- E Leandro? Não irá hoje para a escola?
- Sim, eu o levarei e voltarei em seguida.
Ele saiu da cozinha e dirigiu-se ao seu quarto para se vestir e poder sair. Ela continuou ali, preparando algo para o almoço. Seus pensamentos estavam confusos, não acreditava que tudo aquilo estivesse acontecendo. Pensava:
- Desde que tudo foi descoberto Álvaro só me chama pelo meu nome. Isso demonstra o quanto está preocupado. Como a nossa vida pôde mudar tão de repente? Ontem mesmo éramos uma família feliz... A tranqüilidade reinava aqui... E agora? Como será que conseguiremos viver? Artur, meu filho! Onde você está?
Novamente, sem que conseguisse evitar, as lágrimas começaram a cair. Ela tentava inutilmente enxugá-las. Ouviu o barulho do telefone chamando. O som vinha da sala. Ela não estava bem, não queria falar com ninguém. Caminhou em direção à sala, mas antes que dissesse qualquer coisa, Leandro atendeu ao telefone:
- Alô!
- Leandro! Está tudo bem por aí?
- Não está não...
- Por quê? O que aconteceu?
- Artur fugiu de casa... E a mamãe está chorando... Odete chegou junto dele, pegou o telefone de suas mãos:
- Alô, mamãe!
- Odete! O que aconteceu?
Ela desabou, não conseguia conter as lágrimas, os soluços e nem falar. Do outro lado da linha, sua mãe desesperada dizia:
- Por favor! Pare de chorar! Diga-me, o que aconteceu?
Odete tentava, mas não conseguia se conter. Nesse momento, Álvaro, depois de trocar de roupa e se preparar para sair, entrou na sala. Ao ver aquela cena, correu em direção a Odete e tirou o telefone de sua mão:
- Alô!
- Álvaro! O que está acontecendo aí?
- Algo muito grave, Artur saiu de casa.
- Como? Por quê? Estou indo pra aí!
- Venha, por favor... Odete está precisando de ajuda, eu preciso ir para o escritório.
- Está bem. Já estou indo.
Ele desligou o telefone. Odete estava ali, sentada e tentando com as mãos enxugar as lágrimas. Ele se aproximou, dizendo:
- Meu bem, não fique assim... Tudo vai ficar bem... Sua mãe está vindo para cá. Sabe como ela é lúcida e tranqüila... Ela lhe fará companhia e assim poderei ir sossegado para o escritório. Voltarei o mais breve possível. Está bem assim?
Ela não conseguia falar, apenas balançou a cabeça. Ele beijou sua testa, deu um beijo em Leandro e saiu. Enquanto dirigia o carro para o escritório, também não ligou o rádio. Assim como Odete, ele também pensava: Como nossa vida mudou tanto? Por quê? Em que momento me descuidei de Artur? O que deixei de fazer por ele? Que estará ainda para acontecer? Chegou ao escritório. Ao entrar, lembrou-se de Jarbas, sempre ali, solícito e demonstrando interesse em aprender. Seu coração se apertou: Como consegui praticar uma injustiça como aquela? Preciso trazê-lo de volta. Mais ou menos após quarenta minutos de Odete ter falado com sua mãe, um táxi parou em frente à casa. Leandro, ao ouvir o barulho do táxi, abriu a porta e saiu correndo para fora. Do táxi desceu Noélia, uma senhora de mais ou menos sessenta anos. Bem vestida, com os cabelos levemente grisalhos, mas bem penteados. Quando viu Leandro correndo em sua direção, abriu os braços. Ele a abraçou e começou a chorar. Com os braços em volta dele, disse:
- Leandro... Não chore. Tudo ficará bem.
Abraçados, começaram a andar em direção à porta da sala. Odete, que estava na cozinha, ouviu o barulho do táxi. Chegou ao momento em que eles também chegavam. Ao ver a mãe, começou a chorar. Esta a abraçou e, em silêncio, entraram. Lá dentro, Odete a convidou para que fosse até a cozinha, onde estava terminando de preparar o almoço. Só para os três, Álvaro não iria almoçar. Na cozinha, enquanto se sentava Noélia perguntou:
- O que aconteceu? Por que Artur saiu de casa?
Odete ia recomeçar a chorar, mas Noélia, decidida, disse:
- Não chore! Isso não vai adiantar. Conte-me tudo.
Odete conhecia sua mãe, sabia como ela sempre fora uma mulher forte e decidida. Nunca em sua vida a vira chorar. Sempre resolvera todos os problemas. Enxugou as lágrimas, respirou fundo e contou com detalhes tudo o que acontecera. Noélia ouvia em seu rosto nenhum músculo se moveu. Seus olhos sim demonstravam preocupação e tristeza. Enquanto contava, Odete não se conteve. Mesmo sem soluçar, as lágrimas caíam. Noélia ouvia, não a recriminava mais por estar chorando. Ao contrário, ficou calada, com os olhos parados. Quando Odete terminou, após alguns segundos ela disse:
- Como foi que ele começou isso?
- Não sei. Nunca poderíamos imaginar que estivesse agindo assim! Foi sempre um bom menino, atencioso e calmo.
- Bem, minha filha, sei que o que vou dizer talvez não adiante, mas preciso dizer...
- Já sei! Vai dizer que eu fui à culpada! Que não soube cuidar do meu filho!
- De onde tirou essa idéia?
- Porque eu me sinto assim!
- Pois não deveria... Você não é a culpada de nada...
- Como não? Eu não lhe dei confiança o bastante para que me contasse seus problemas.
- A maioria dos pais, quando têm seus filhos, procura dar a eles o melhor. Sei que tanto você como Álvaro sempre deu para esses meninos não só educação, mas também carinho, conforto e muito amor.
- Também pensava assim, mas parece que faltou algo.
- Vocês deram a ele todas as condições para que tivesse uma vida tranqüila e produtiva. Porém, ele escolheu seu próprio caminho, e isso vocês não poderiam evitar...
- Como escolheu seu próprio caminho? Ele é ainda uma criança!
- Não é mais uma criança... Já é quase um adulto...
- Mas ainda não é!
- Como espírito, ele já é um velho...
Lá vem a senhora com essa sua religião
- Era exatamente sobre isso que queria conversar.
- Sabe que não acredito em nada disso!
- Sei sim... Nunca obriguei a nenhum dos meus filhos a seguir uma religião. Sempre acreditei que cada um de vocês teria o momento certo para fazer suas escolhas. E acho que o seu momento chegou.
- Acredita que se eu começar a seguir sua religião o meu filho voltará e tudo ficará bem?
- Não disse isso. Não importa a religião que siga tudo será como tem que ser. Mas tenha certeza que sempre é para um bem maior.
- Não estou entendendo. Como pode dizer que tudo o que agora está acontecendo poderá ser para um bem maior?
- Artur está agora vivendo um momento decisivo em sua vida. Terá a oportunidade de exercer o seu livre arbítrio.
- O que é isso?
- É a oportunidade que Deus nos dá para escolhermos nosso caminho.
- Continuo não entendendo, o que está querendo dizer?
- Como filhos de Deus, nascemos com boas e más qualidades. Ao longo de nossa existência vamos vivendo bons e maus momentos. Temos oportunidade de praticar boas e más coisas. Tudo dependerá de nossas escolhas.
- Escolhas? Que escolhas? Acredita que eu escolhi isto que me está acontecendo?
- Não, você não escolheu, mas isto tudo está acontecendo, e você terá que tomar uma atitude. Qual será?
- Não sei! Não sei o que fazer!
- Então, se não sabe, não faça nada.
- Como não fazer nada? Vou ver meu filho se destruir e não fazer nada?
- Você disse que não sabe o que fazer.
- A senhora sabe de alguma coisa que eu possa fazer?
- Se aceitar uma sugestão, eu diria que precisa encontrar esse Deus, entregar seu filho a Ele, pedir que o ilumine e lhe mostre o melhor caminho.
- Só isso?
- Sim, é só isso que pode fazer. As coisas de Deus são sempre simples. Nós é que costumamos complicar.
Noélia, enquanto dizia isso, sorria. Odete continuou:
- A senhora é mesmo muito simplista! Até hoje não me conformo como, dois meses após a morte de Romualdo naquele acidente, a senhora não ligava mais e nem chorava! Nem parecia que fora o seu filho a morrer! Deu-nos a todos a impressão de que não gostava dele!
Noélia ficou lívida, seus olhos demonstravam o que estava sentindo. Ficou por um tempo calada, depois disse:
- Naquele dia, uma parte de mim também morreu, mas foi por causa daquilo que procurei encontrar um Deus que me desse às explicações que eu procurava. Aprendi que Romualdo fora um presente que Deus me dera, mas que nunca fora meu na realidade. Ele veio para alegrar minha vida por um tempo, mas na hora e dia certos, voltou para o seu verdadeiro lugar. Aceitei essa explicação, por isso não sofri ao pensar nele. Sei que ele está em algum lugar e que mais cedo ou mais tarde eu o encontrarei.
Ao ver o rosto da mãe, Odete se arrependeu do que dissera. Sua mãe havia sido a melhor mãe que ela conhecera. Sempre estivera ao lado dos filhos, dando conselhos, mas sempre deixando que cada um seguisse o caminho escolhido. Muito envergonhada, disse:
- Perdão, mamãe... Não quis dizer isso... Sei que sempre nos amou a todos, principalmente a Romualdo, ele era o caçula.
- Não se preocupe com isso. Sempre me faz muito bem lembrar dele. Mas estávamos falando de Artur.
- Sim, a senhora disse que eu tenho que encontrar Deus e entregar-lhe o meu filho.
- Isso mesmo.
- Onde está Deus? Na sua religião?
- Não.
- Não? Se ele não está lá, por que a segue?
- Sou espírita por acreditar e aceitar seus ensinamentos. Porque através deles aprendi que todos os problemas são passageiros e, finalmente, porque me faz bem, mas sei que Deus não está em religião alguma. Todas elas são apenas denominações. Deus está dentro de cada um de nós. Sejamos religiosos ou não. Crentes ou ateus. Todos sempre teremos Deus ao nosso lado, nos ajudando e conduzindo para que encontremos o caminho que nos levará até ele.
- Acredita mesmo nisso?
- Sim, por isso acho que deve procurar esse Deus primeiro dentro de você, depois em qualquer religião, na qual se sinta bem.
- Não sei... Não sei se conseguirei isso...
- Tente minha filha... Tente. A presença de Deus em seu coração só lhe fará bem. Agora, está na hora de almoçarmos. Leandro vai para a escola, não vai?
Odete se levantou:
- Vai sim. Vamos arrumar a mesa? A comida está pronta.
- Vamos sim.
Almoçaram. Leandro colocou seu uniforme escolar. Quando estavam saindo, Noélia disse:
- E quanto a Iracema? O que pretende fazer?
- Amanhã eu, Álvaro e Leandro tentaremos encontrar sua casa. Contaremos tudo o que aconteceu, pediremos perdão a ela e a seu filho, e também que voltem a trabalhar conosco. Álvaro disse que dará um aumento de salário aos dois.
- Faça isso, minha filha. Não existe nada pior que uma injustiça. Tomara que consigam fazer isso e que eles os perdoem. Quer que, depois de levarmos Leandro, eu volte e fique com você?
- Hoje é sexta-feira, dia em que a senhora vai a seu centro espírita. Não acho justo perder seu compromisso por minha causa. Depois da conversa que tivemos estou bem. Preferia que a senhora fosse lá e pedisse por Artur.
- Está bem, farei isso. Depois de levar Leandro poderia me deixar em casa?
- Claro que sim. Obrigada por ter vindo.
Noélia apenas sorriu. Sabia que a filha estava sendo sincera e que a conversa que tiveram realmente lhe fizera bem.
Após deixar Leandro na escola, Odete seguiu para a casa de sua mãe. Estacionou o carro em frente a uma linda casa. Noélia perguntou:
- Você não vai entrar? Poderemos tomar um café e conversar mais um pouco.
- Não, mamãe, prefiro ir para casa. Se Artur voltar, quero estar lá.
- Está bem, mas não se esqueça daquilo que conversamos.
- Não me esquecerei, aquela conversa me deixou mais calma.
- Isso mesmo, minha filha. Deus é um pai amoroso e bom, não nos abandona nunca.
Dizendo isso, beijou a filha e desceu do carro. Odete retribuiu o beijo, deu adeus com a mão. Seguiu. Noélia ficou olhando a filha se afastar. Sorriu enquanto pensava: Deus a proteja, minha filha.... Quando o carro desapareceu, ela entrou em casa. Embora fosse dia e o sol brilhasse, a sala estava na penumbra. Zulmira, sua empregada, ao sair fechara a cortina, que era azul-marinho. Sentou-se em um sofá. Estava cansada, talvez não fisicamente, mas por tudo o que soubera. Meu neto! Meu adorado neto... que caminho é esse que está seguindo? Meu Deus proteja-o... não permita que ele destrua sua vida de agora e a futura.... Levantou-se e encaminhou-se à cozinha. Para chegar nela teria que passar pela sala de jantar. Quando chegou à porta, parou. Olhou para uma mesa grande de madeira escura, suas cadeiras eram forradas de cetim dourado. Lembrou-se de seus filhos crescendo e sentados em volta dela. Levantou os olhos em direção a uma cristaleira. Nela havia cristais caríssimos. Muitos ela comprara em viagens que fizera ao exterior acompanhando seu marido. Sobre a cristaleira havia um porta-retratos, onde estava a foto dela, seu marido e seus quatro filhos. Três moças e um rapaz. Seus olhos pararam no rosto de seu filho: Romualdo, meu filho querido. Sei que hoje está bem e que vela por todos nós. Graças a você conheci essa doutrina maravilhosa, que só me fez bem. Se assim não fosse, eu teria enlouquecido quando você se foi. Não sei qual foi o motivo para que Deus o levasse tão cedo, tendo ainda uma vida inteira pela frente, mas aprendi que Ele sabe tudo. Que nada está errado nesta vida. Não sei se pode, mas se puder, ajude Artur, ele está precisando muito. Uma lágrima de saudade se formou em seus olhos. A seu lado, Romualdo se fez presente. Estava acompanhado por um outro homem, bem mais velho que ele. Os dois sorriram e lançaram sobre ela uma quantidade imensa de luz. Noélia foi se sentindo muito bem. Respirou fundo, olhou para outro móvel onde guardava sua louça, que também era de porcelana finíssima. Sobre o móvel estavam mais três porta-retratos, esses menores, onde pôde ver fotos de suas filhas com os maridos e filhos. Odete, a mais velha, com Álvaro e os filhos. Gilda com o marido, dois meninos e uma menina. Claudete ao lado do marido e mais quatro crianças. Três meninas e um menino. Com um sorriso, pensou: Essa é a minha família... Tenho consciência de que os criei com carinho e dedicação. Amo-os muito. Deus me presenteou com marido e filhos maravilhosos. Não permitirá que meu neto se desvie do caminho... sei que neste momento preciso fazer muita prece, sei que isso ajudará muito, mas sei também que só ele poderá se libertar. Ele terá de escolher. Deus, meu Pai! Não permita que ele faça a escolha errada.

REPARANDO UMA INJUSTIÇA

Durante aquela noite, o único que conseguiu dormir foi Leandro. Estava tranqüilo, pois sabia que procurariam Iracema e, quem sabe, talvez ela retomasse para junto deles. Álvaro e Odete não conseguiram dormir. A preocupação que sentiam em relação a Artur era indescritível. Perguntavam-se o porquê de tudo aquilo estar acontecendo com eles. Ao mesmo tempo, culpavam-se e buscavam entender qual teria sido o motivo que levara Artur a consumir drogas. Não conseguiam também esquecer de Iracema e da injustiça que praticaram com ela. Ainda não eram seis horas da manhã quando Odete, não suportando mais, levantou-se. Tomou banho, vestiu a primeira roupa que encontrou e saiu do quarto. Passou pela porta do quarto de Leandro, entrou devagar, olhou. Ele dormia profundamente. Ao passar pelo quarto de Artur, uma leve esperança fez com que abrisse a porta, mas ele não estava lá. Carregando o mundo em suas costas, desceu a escada. Saiu para o quintal. Com a mente tomada pelo desespero, pensou: Artur! Onde você está? Por que fez isso? Por que fugiu? Nós o amamos e só queremos o seu bem! Lágrimas desciam por seu rosto. Naquele instante lembrou-se de tudo que sua mãe havia lhe dito. Levantou os olhos para o céu e disse em voz baixa:
- Meu Deus! Se tudo o que minha mãe disse for verdade... Entrego neste momento meu filho em suas mãos... Proteja-o, Senhor... Por favor...
Estava assim quando sentiu uma mão abraçando-a por trás. Voltou-se. Era Álvaro, que com a voz embargada e com lágrimas se formando em seus olhos, disse:
- Você está rezando... Pedindo por nosso filho... Não sei se tenho esse direito... Há muito tempo estou afastado de Deus... Há muito tempo a minha única preocupação tem sido ganhar cada vez mais dinheiro... Se rezar, não sei se Ele me atenderá...
Chorando, os dois abraçaram-se. Ficaram assim por muito tempo. Cada um a seu modo, conversando com Deus. Naquele momento, sem que percebessem, uma luz os envolveu. Ela saía das mãos de um homem que sorria. Ao seu lado estava um rapaz, que disse sorrindo:
- André, enquanto esse amor durar entre eles, sempre haverá uma esperança.
O espírito que jogava a luz respondeu:
- Sim, Romualdo, você tem razão. Eles agora estão passando por um momento decisivo, quando terão que reafirmar o amor que sempre existiu entre eles. Tenho fé que conseguirão...
Odete e Álvaro continuavam abraçados e chorando, mas aos poucos foram se acalmando. Uma paz imensa tomou conta dos dois. As lágrimas cessaram. Ainda abraçados, entraram novamente na casa. Foram acompanhados pelos dois espíritos. O mais velho disse:
- Ficaremos ao lado deles até que tudo volte ao normal. Romualdo, sorrindo, balançou a cabeça, dizendo que sim. Assim que Álvaro e Odete entraram na cozinha, ela disse:
- Filho, já está acordado? E vestido para sair? Realmente, Leandro estava entrando pela porta que ficava do lado oposto de onde eles entravam. Com o rosto sério, ele respondeu:
- Estou pronto para procurar Iracema.
- Mas ainda é muito cedo! Antes precisamos tomar o nosso café.
- Quando vai ser à hora?
Odete não se conteve. Sorriu e respondeu:
- Sei meu filho, que você está ansioso. Vamos fazer o seguinte: Vou preparar o café. Assim que terminarmos de tomá-lo, iremos. Está bem assim?
Ele apenas balançou a cabeça e saiu da cozinha. Odete olhou para Álvaro:
- Precisamos nos apressar, ele está mesmo muito ansioso.
- Tem razão. Eu também estou, preciso reparar a injustiça que pratiquei. Tomara que consiga.
- Conseguirá. Claro que conseguirá!
Ele sorriu e dirigiu-se para a sala. Odete continuou na cozinha. Assim que terminou de preparar o café, levou-o para a sala. Álvaro e Leandro terminavam de preparar a mesa. Sentaram-se e tomaram o café. Leandro ficou o tempo todo calado. Assim que terminaram, Odete e Álvaro subiram e foram se vestir. Após alguns minutos, regressaram. Leandro, assim que os viu, levantou-se dizendo:
- Agora podemos ir? Já está tarde.
Os pais não conseguiram deixar de notar que ele falava em um tom muito sério, nem parecia ser apenas uma criança. Álvaro o abraçou:
- Está na hora, sim. Espero que não seja tarde demais.
Leandro não disse nada, apenas dirigiu-se à porta de saída. Os pais o seguiram. Estavam entrando no carro quando Odete disse:
- Esperem, esqueci o endereço.
Entrou correndo na casa. Foi até o escritório e abriu uma gaveta. Dentro de uma pasta havia uma espécie de ficha de Iracema, com foto e endereço. Pegou a pasta e saiu.
- Está aqui, podemos ir.
- Você sabe onde ela mora?
- Não, mas tenho o nome do bairro, e sabemos que ela mora em uma favela. Teremos que procurar.
- Está bem, vamos.
Foram no carro de Álvaro, que dirigia pensando: Que direi a ela? O que precisarei fazer para que me perdoe? Nunca deveria ter sido tão injusto!. O bairro onde Iracema morava era bem distante. Mais de uma hora depois, finalmente chegaram. Perguntaram em uma padaria onde ficava a favela. Receberam a indicação. Seguiram o caminho indicado. Logo perceberam que estavam saindo do centro do bairro. Pegaram uma outra rua, quase desabitada, e seguiram por ela. Ao longe, viram uma favela, na encosta de um morro. Para se chegar a ela havia só uma rua, sem asfalto e esburacada. Álvaro levou o carro até ela e entrou devagar. Durante esse caminho, os três olhavam para cima. Viam barracos que pareciam que despencariam a qualquer momento. Perceberam que para chegar ao alto só havia uma rua. Nela existia uma escadaria, seus degraus feitos provavelmente pelos moradores. Eram de terra e seguros por algumas madeiras. Álvaro parou em frente à rua. Um homem vinha descendo. Leandro, assim que o pai parou, desceu do carro e subiu correndo a escadaria. Os pais quiseram evitar, mas era tarde. Em poucos minutos ele falava com o homem que vinha descendo:
- O senhor sabe onde mora Iracema?
Ele olhou para o menino e em seguida para Álvaro e Odete, que também subiam à escadaria. Assim que chegaram a seu lado, disse colocando a mão sobre o rosto, como se estivesse tentando se lembrar:
- O menino aqui está perguntando por uma Iracema, não sei não... Mas parece que lá no alto, antes da última viela, mora uma mulher com esse nome. Acho que ela veio do interior e tem uma porção de filhos...
Leandro falou alto:
- É ela mesma, tenho certeza! Onde é, moço?
O homem apontou para cima, mostrou o local e em seguida se afastou. Os três olharam para onde ele apontava. Leandro saiu correndo na frente. Álvaro e Odete novamente o seguiram. Após subirem alguns degraus, Álvaro, por ser esportista não sentiu nada, mas Odete se cansou e parou:
- Álvaro, estou cansada, não sei se agüentarei subir até lá no alto.
Ele também parou e chamou Leandro, que estava bem à frente. O menino ouviu e parou, olhando para trás. Álvaro disse em voz alta:
- Leandro, espere um pouco, sua mãe está cansada!
Ele desceu as escadas correndo e foi para junto da mãe:
- A senhora está muito cansada mesmo?
- Só um pouquinho, meu filho, mas logo estarei bem. Só preciso subir um pouco mais devagar, não consigo acompanhá-lo. Você está indo depressa demais. Iracema estará lá em dez minutos ou mais.
- Estou com saudades dela!
- Eu também, mas vamos subir devagar?
- Está bem.
Ela sorriu, e reiniciaram a subida, já bem mais devagar. Enquanto subiam iam passando por barracos e vielas. Algumas pessoas desciam e subiam à escada. Alguns traziam crianças seguras pelas mãos. Alguns cumprimentavam, outros não, mas eles puderam perceber que sua presença ali trazia curiosidade. Álvaro observava tudo. Pensava: Iracema tinha razão ao dizer que na favela havia muitas famílias e gente que trabalhava. Essas pessoas que estão passando são realmente famílias... Continuavam subindo. Perceberam que os barracos eram mal construídos e que havia muita pobreza. Álvaro subia em silêncio e pensando: Quanta pobreza... nunca vi igual. Fui uma criança pobre, mas sempre morei em uma casa e em uma rua. Nunca andei vestido como essas crianças que estou vendo aqui. Não... eu não tinha a menor idéia do que fosse uma favela, só ouvia dizer ou via em algum noticiário na televisão... Estava realmente impressionado por estar frente a frente com aquela realidade até então desconhecida por ele. Chegaram finalmente à viela que o homem havia apontado e entraram nela. Uma senhora ia saindo de um barraco. Leandro perguntou:
- A senhora sabe onde Iracema mora? Ela olhou os três de cima a baixo.
- Que quer com ela?
Leandro, ansioso, ia responder, quando Odete disse.
- Temos urgência em falar com ela.
- Acho que perderam a viagem...
- Por quê?
- Ela trabalhava muitos anos em uma casa de gente muito rica. Eles desconfiaram que ela tinha roubado uma jóia, levaram-na até a delegacia. Ficou muito triste, dizia que tinha quase certeza que quem tinha roubado era o filho deles, ela estava desconfiada e tentando descobrir se ele estava usando droga, mas não deu tempo. Ela disse que gostava muito de todos naquela casa, principalmente do tal filho. Não teve coragem de dizer do que estava desconfiando.
Álvaro ficou lívido, dos olhos de Odete lágrimas desciam livremente. Leandro, desesperado, disse:
- Onde ela mora? Onde ela está?
- Não sei não, menino. Ela ficou muito doente de tristeza e vergonha. Os filhos dela resolveram se mudar daqui. Venderam o barraco e foram embora. O Jarbas, filho dela, também foi mandado embora do emprego. Ele é um bom menino, muito estudioso, também ficou triste. Não sei onde estão.
Ao ouvir aquilo, Leandro, que chorava, disse:
- Está vendo, papai, o que o senhor fez?
Álvaro não respondeu. Odete, contendo-se para não chorar, disse:
- Por favor, senhora. Era em nossa casa que ela trabalhava. Só agora tomamos conhecimento de toda a verdade. Ela tinha razão, meu filho está mesmo envolvido com drogas. Estamos aqui justamente para lhe pedir perdão e para que ela volte a nossa casa. Se a senhora souber onde ela está, por favor, diga-nos...
- Sinto muito, senhora, mas não sei, não. Se soubesse, claro que diria, pois sei o quanto ela ficaria feliz se soubesse que tudo foi descoberto.
Perceberam, pelo seu tom de voz, que ela realmente não sabia. Despediram-se, voltaram para a escada e reiniciaram a descida. Estavam desolados. Leandro tinha o semblante fechado. Por sua cabeça só passavam pensamentos de tristeza e ódio contra Artur, que no seu entender era o responsável por tudo aquilo. Odete relembrava a presença de Iracema sempre a seu lado, nas horas mais difíceis que havia passado. Do amor que ela sempre demonstrara por todos eles. Seu coração estava apertado e ela fazia um esforço enorme para não chorar. Álvaro seguia calado. Sentia-se o último dos homens. Começou, sem perceber, a colocar em dúvida tudo o que tinha feito durante a vida. Para que estudei tanto? Para me tornar este carrasco? Que teve a coragem de julgar uma pessoa que durante muito tempo esteve ao nosso lado nos dando carinho e dedicação? Sem ter-lhe dado à chance de se defender? Logo eu! Um advogado! Aprendi que perante a lei todos são inocentes até que sejam julgados e condenados! De que vale ter dinheiro e tranqüilidade se estou perdendo meu filho e talvez tenha destruído a família de Iracema? Para que serviu ou serve tudo o que consegui? Para que serviu ou serve a minha vida? Sou um fracassado! O melhor seria acabar com a minha vida! De que me vale continuar vivendo? Leandro e Odete, assim como Álvaro, desciam calados. Do lado esquerdo havia um barraco, uma menina negra e magra estava na janela. Ao passarem por ela, timidamente lhes sorriu. Álvaro se emocionou. Sob os olhares confusos de Leandro e Odete, foi até junto dela:
- Como é o seu nome?
Ela, com os olhos brilhantes e sorrindo, respondeu:
- Meu nome é Rosinha, e o seu?
- O meu é Álvaro. Sua mãe está aí?
Antes que ela respondesse, uma senhora apareceu ao seu lado na janela:
- O senhor deseja alguma coisa?
Ele percebeu que ela estava assustada:
- Desculpe senhora, mas sua filha chamou a minha atenção. Ela parece ser uma menina feliz.
- O senhor tem razão, ela é uma menina feliz, apesar do seu problema.
- Que problema?
- Nasceu com um defeito na perna direita, não consegue andar...
- Não tem cura?
- Tem, precisa de muitas operações, depois vai precisar usar aparelho, mas o médico disse que com esse tratamento conseguirá andar. Tudo isso custa muito caro, faz tempo que estou tentando, mas até agora não consegui. Mas tenho certeza que ainda vou ver minha filhinha andando. Deus vai ajudar a gente. Ele sabe quando é a hora certa. E essa hora um dia vai chegar!
Ele olhou para a esposa e o filho. Eles perceberam que, embora ele tentasse, não conseguia evitar as lágrimas. Com elas caindo por seu rosto, disse:
- A hora chegou...
- Não entendo o que o senhor está dizendo. Ele tirou do bolso um cartão:
- Na segunda-feira, quero que a senhora leve essa linda menina a este endereço. É o meu escritório. Assim que chegar, iremos até um médico meu amigo. Ele vai examiná-la. Assim saberemos o que fazer para que ela ande.
Quem chorava então era a mãe da menina:
- O senhor não está brincando? Vai mesmo ajudar minha filhinha?
- Não estou brincando, mas também não estou ajudando sua filha. Ela é quem acaba de me ajudar, de me fazer renascer.
- Eu sabia meu Deus! Eu sabia que o Senhor não ia abandonar a gente. Muito obrigada.
Rosinha sorria. Tinha apenas seis anos, mas era muito esperta. Uma luz muito branca a envolvia, a ela e a todos eles. Essa luz saía das mãos dos mesmos seres que estavam na casa deles. Rosinha, com os olhos brilhando, perguntou:
- O senhor vai mesmo me fazer andar?
- Eu não! Os médicos.
- Os médicos e Deus! Não se esqueça Dele!
- Tem razão. Deve ter sido Ele mesmo. A minha hora de conhecê-lo também chegou...
- Não chore, não... Eu vou andar o senhor vai ver...
- Verei sim, com certeza, verei...
Odete segurou o braço do marido com força. Muito emocionada, não conseguia dizer nada. Leandro, pela primeira vez depois de muitos dias, ensaiou um sorriso. Despediram-se e em silêncio desceram à escadaria. No carro, já voltando para casa, Álvaro pelo retrovisor olhou para o filho:
- Sinto muito, meu filho, mas nossa vinda foi inútil. Não encontramos Iracema, nem sabemos onde está...
Ele sorriu:
- Não encontramos Iracema, mas encontramos Rosinha! Valeu, sim!
- Tem razão, meu filho. Valeu mesmo!
- Sabe papai, estou pensando: também vamos encontrar Iracema, o senhor vai ver.
- Tomara meu filho... Tomara.
Embora continuasse com os olhos no caminho e tomasse cuidado com o trânsito, não conseguia parar de pensar em tudo que havia acontecido. No sentimento de frustração que sentira. Na vontade que tivera de terminar com a vida e nos olhos daquela menina que aparecera do nada e lhe mostrara que nem tudo estava perdido. Só então ele tomara conhecimento do que era realmente a pobreza. Ele entendeu que o dinheiro que tinha conseguido com seu trabalho poderia ser usado para curar aquela criança. Naquele momento pensou em Deus e sentiu vontade de rezar e agradecer. Coisas que ele não fazia havia muito tempo. Tentou se lembrar de qual fora a última vez em que havia feito isso, mas não conseguiu. A última vez que rezei eu era ainda uma criança. Minha mãe nos fazia rezar sempre, mas depois que cresci e comecei a entender a vida, percebi que não adiantava rezar, o que precisava mesmo era estudar e trabalhar. Chegaram em casa. Odete entrou e quase correndo subiu a escada em direção ao quarto de Artur. Tinha esperança de que ele estivesse lá. Porém, o quarto estava vazio. Ela se ajoelhou:
- Meu Deus! Onde ele está? Artur, meu filho, onde passou a noite? Por que não volta para casa?

MOMENTO DE DESPERTAR

Ela chorava muito, tanto que seu corpo estremecia. Não entendia o porquê de tudo aquilo estar acontecendo em sua casa. Eles sempre tiveram uma vida tranqüila e sempre tiveram paz. Não havia problema algum. Sempre se julgara uma boa mãe. Embora trabalhasse, nunca deixara de dar atenção aos filhos. Mas ali, ajoelhada junto à cama de Artur, dizia:
- Devo ter errado em algum momento, não lhe dei a atenção que precisava, não notei que ele estava mudando... Pensei que fosse da idade. Meu Deus, por que tudo isso está acontecendo conosco? E Iracema? Será que um dia poderemos encontrá-la? Permita Deus que isso aconteça... Precisamos pedir perdão...
Não sabia havia quanto tempo estava ali. Não percebeu que Leandro entrara no quarto e ficara parado, olhando para ela, nem percebeu que ele, ao vê-la daquele modo, também chorava. Ele e Artur, embora tivessem uma diferença grande de idade, sempre se deram muito bem. Ele gostava do irmão, mas naquele momento sentia muita raiva por ver seus pais sofrerem tanto. Ficou ali, em pé, parado, sem ter coragem de dizer nada. A única coisa que queria naquele momento era encontrar Artur, dizer a ele o quanto todos estavam sofrendo. Odete, ao se levantar, viu-o ali:
- Leandro! Não sabia que você estava aí!
- Faz tempo que cheguei. Mamãe pode parar de chorar... Ele vai voltar...
Ela, com as mãos, secou as lágrimas:
- Sei meu filho... Sei, mas quando será isso? Não suporto a idéia de não saber onde e como ele está!
- E nem onde Iracema está...
- Tem razão. Em toda esta história, foi ela quem mais sofreu, foi ela quem foi julgada e condenada sem poder se defender...
- Será que algum dia vamos encontrá-la?
- Não sei meu filho... Espero que sim... Mas, vamos descer? Precisamos almoçar. Já passou da hora, não está com fome?
- Estou sim, vamos.
Abraçados, saíram do quarto e desceram a escada. Estavam descendo quando ouviram a campainha do telefone. O coração de Odete se apertou. Álvaro também se assustou, mas levantou o telefone do gancho:
- Alô, pois não.
Do outro lado, uma voz de mulher disse:
- Dr. Álvaro! Aqui é Glória, a mãe de Rodrigo, como o senhor está?
Ele olhou para Odete e Leandro, que chegavam junto dele. Respondeu:
- Estou mais ou menos, e a senhora?
- Um pouco mais tranqüila. Deixei Rodrigo na clínica, espero que fique lá até se curar...
- Isso é muito bom, também é o meu desejo... Ele é ainda muito jovem, tem a vida toda pela frente...
- E Artur, como está? Em que clínica o internou? Ainda olhando para Odete, respondeu:
- Não o internei... Ele fugiu durante a noite...
- Oh, meu Deus! E agora? O que pretende fazer?
- Não sei, não sei, estamos desolados, só nos resta esperar que apareça.
- Também espero, sei o que estão passando. Eu também fui tomada de surpresa. Sei que tive a culpa de tudo, só pensei no meu trabalho, não notei nada...
Ela começou a chorar. Ele, sem saber o que fazer, disse:
- Não deve continuar chorando. Também nos julgamos culpados. A senhora ao menos tomou a decisão certa. Seguiu os conselhos do delegado, por isso hoje está mais tranqüila. Sabe onde seu filho está. Nós, ao contrário, não temos a mínima idéia. Posso lhe garantir que nada é pior que isso.
- Talvez tenha razão, não posso imaginar o que seja isso. Deve ser muito triste mesmo. Mas vamos rezar para que tudo termine bem para nossos filhos.
- É só o que podemos fazer.
- Bem, foi só para isso que liguei. Queria saber come Artur estava... Infelizmente a notícia que recebo não é muito boa, mas vamos confiar em Deus.
- Isso mesmo, obrigado por ter ligado. Até logo.
Desligou o telefone. Ficou com os olhos parados. Odete perguntou:
- Quem era?
Ele a olhou, seus olhos estavam distantes. Respondeu:
- Era a mãe de Rodrigo, queria saber de Artur. Sabe que ela me disse algo que está me fazendo pensar...
- O que ela disse?
- Que precisamos rezar...
- O que tem isso?
- Nunca tive o hábito de rezar... Sempre acreditei que Deus não existia que era tudo uma lenda. Desde quando era criança e via minha mãe sozinha, criando os filhos. Via a pobreza em que vivíamos. Deixei de acreditar em Deus. Ele não pode existir. Se existisse, não permitiria tanta pobreza e maldade. Não permitiria que houvesse drogas no mundo! Não permitiria que tantos jovens fossem destruídos por ela! Eu sempre me considerei auto-suficiente, sempre achei que poderia conduzir minha vida, desde que estudasse e tivesse dinheiro. Mas hoje vejo que de nada adiantou... Tenho um diploma e dinheiro, mas estou perdendo meu filho, se é que já não o perdi...
- Não diga isso! Não o perdemos... Vamos encontrá-lo e trazê-lo de volta. Você é e sempre foi um bom pai. Nunca nos deixou faltar nada... Esteve sempre presente.
- Estou tentando me convencer disso. Estou tentando descobrir onde errei, pois com certeza em algum momento eu errei...
- Também tenho a mesma impressão. Também devo ter errado em algum momento, só não sei quando foi...
Ao ouvir aquilo, Leandro disse furioso:
- Papai! Mamãe! O que estão dizendo? Sempre foram os melhores pais do mundo! Artur é quem está errado! Ele que não pensou na gente! A mãe de Rodrigo disse que precisamos rezar! Acho que ela tem razão! Vamos rezar? Vamos?
Os dois olharam para o filho. Em seguida se olharam. Odete novamente secou as lágrimas, ajoelhou-se e abraçou Leandro, que a abraçou também:
- Vamos rezar mamãe... Vamos rezar...
- Vamos sim, meu filho...
Nesse instante o telefone tocou. Álvaro atendeu. -Alô!
- Oi, Álvaro, como está tudo por aí? Teve notícias de Artur?
- Oi, dona Noélia... Aqui está mais ou menos, não tivemos notícias de Artur.
- Posso falar com minha filha?
- Claro que sim.
Passou o telefone para Odete.
- Oi, mamãe.
- Como você está minha filha?
- Desesperada! Não sei o que fazer...
- Tenha calma, no fim tudo dá sempre certo...
- Como pode dizer isso? Nada está nem vai ficar certo!
- Claro que vai... Tudo passa... Logo Artur vai voltar pra casa... Acredite nisso. Deus é nosso pai e não nos abandona nunca... O que precisa fazer agora é rezar pedindo proteção para o seu filho, e confiar em Deus...
Odete não respondeu, lágrimas caíam novamente de seus olhos. Leandro percebeu que ela não conseguia falar. Pegou o telefone de suas mãos.
- Oi, vovó! A senhora ligou bem na hora em que a gente ia começar a rezar...
- É mesmo, meu filho? Faça isso! Ensine seus pais a rezar e confiar em Deus.
- Vou fazer isso, um beijo. Vou agora mesmo fazer isso também. Deus vai ouvir nossas preces. Um beijo, meu filho, e que deus o abençoe...
Desligou o telefone. Leandro colocou-o no gancho:
- A vovó disse que é pra gente rezar. Ela vai rezar também. Não sei o que vão fazer, mas eu vou lá pro meu quarto rezar, pedir ajuda pro Artur.
Dizendo isso, dirigiu-se para a escada. Odete e Álvaro ficaram olhando por um instante, depois foram atrás dele. No quarto, Leandro se ajoelhou, dizendo:
- Meu Deus... Não sei bem quem o senhor é... Só sei que deve ser muito bom, dizem que fez tudo o que tem na Terra, fez até a gente... Por isso, se fez mesmo, tem que tomar conta de tudo... Artur está perdido e a gente não sabe onde ele está... O senhor sabe que ele é meu irmão e que gosto muito dele. Fiquei um pouco bravo com ele por causa de Iracema, o senhor sabe, né? Ela não fez aquilo e agora também não sei onde ela está. Sei que o mundo é muito grande, e tem muita gente, deve ser difícil tomar conta de tanta coisa, mas o senhor é Deus e pode tudo. Proteja Artur, faça com que volte para casa... Deixe que encontremos Iracema... Muito obrigado... Mais uma coisinha... Não deixe mais minha mãe chorar... Ela é a melhor mãe do mundo... O meu pai também é o melhor pai do mundo... O senhor sabe, o conhece, sabe que ele gosta de tudo certo e que quase sempre está com a cara fechada, Mas o senhor sabe também que é preocupação... Ele quer ganhar muito dinheiro... Cada vez mais, por isso ele é assim, mas é o melhor pai do mundo...
Álvaro e Odete, ouvindo o que ele dizia, não conseguiram conter as lágrimas. Em silêncio, acompanharam tudo o que ele dizia e pediam as mesmas coisas. Álvaro abraçou-se ao filho:
- Obrigado, meu filho, por ter-me dito todas essas coisas...
- Não disse pro senhor! Disse pra Deus...
- Sei disso, meu filho, mas mesmo assim, muito obrigado.
Ao perceber que o pai também chorava abraçado a ele, por detrás de seus ombros Leandro levantou os olhos emocionados, dizendo:
- Deus, o senhor ainda está aí? Esqueci de dizer que não é pra deixar o meu pai chorar também. Obrigado.
Odete e Álvaro não conseguiram conter o riso. Álvaro se afastou, dizendo:
- Está bem, meu filho. Deus atendeu suas preces, nós não vamos mais chorar. Não é mesmo, Odete?
Ela, com lágrimas, mas sorrindo, disse:
- Isso mesmo, meu filho, nós não vamos mais chorar. Novamente Leandro levantou os olhos:
- Obrigado, Deus! O senhor é mesmo poderoso!
Assim dizendo, saiu correndo do quarto, foi para a sala e ligou o televisor. Os pais o seguiram. Não entendiam por que, mas sentiam um alívio imenso. Ele foi para o escritório e ela para a cozinha. Parecia que estava tudo bem. No mesmo instante em que Leandro rezava, Noélia em sua casa fazia o mesmo:
- Deus, meu pai, sei que os meus queridos estão passando por um momento muito difícil. Sei também que tudo passa e que de alguma forma, no final, algum aprendizado restará. Dê senhor, a eles, a serenidade para poderem passar bem por tudo isso. Proteja a todos, e principalmente a Artur. Derrame sua luz sobre eles. Encaminhe-o, meu Deus, ao seu caminho original. Que assim seja.
Após dizer essas palavras, respirou fundo. Ela acreditava na justiça e bondade de Deus. Sabia que ele nunca os abandonava. Foi em direção à sala de estar. Sentou-se em um sofá. A sala estava na penumbra. Fechou os olhos, pensando: Ontem, lá no centro, eu e meus irmãos de fé fizemos vibrações por todos eles e principalmente por Artur. Sei que em algum momento ele encontrará o caminho de retorno. Espero que não demore muito. Sabe meu Deus... fico pensando: acredito que tudo está certo, de acordo com sua justiça, mas às vezes não entendo. Durante todo esse tempo em que estou no centro, por muitas vezes vi chegar até nós jovens com problemas de drogas. Alguns conseguem se libertar, e na maioria das vezes se transformam de tal maneira que chego a me surpreender. Já percebi muitas vezes que eles têm sempre uma missão importante para cumprir. Não só com a vida deles, mas com a humanidade. Alguns dão palestras, dedicam-se a ajudar outros jovens, ou trabalham na periferia dando assistência aos mais necessitados. Outros se tornam artistas, pintores, escritores, e alguns até inventam alguma coisa boa. De alguma forma deixam suas obras como exemplo de vida. Por que será que a droga surgiu no mundo? Deve ter algum motivo, mas qual será? Por que, na maioria das vezes, os jovens mais inteligentes, com um potencial enorme, se deixam envolver por ela? Se tudo isso está acontecendo em minha família, sei que de alguma forma devo fazer parte. Só lhe peço meu Deus, nos dê coragem para que possamos passar por tudo e, no final, sairmos vencedores, crescidos espiritualmente, e acreditando cada vez mais na sua bondade e justiça. Embora ainda estivesse na parte da tarde, foi para seu quarto, deitou-se e adormeceu. Álvaro entrou no escritório. Sentou-se em uma cadeira que havia em frente à mesa. Ficou ali olhando para vários papéis espalhados sobre ela. Seus pensamentos estavam em Leandro e na oração que ele havia feito. Como uma criança como ele pôde dizer aquelas palavras? Como uma criança como ele pôde me levar às lágrimas? O que estará acontecendo comigo? Talvez seja por tudo isso que estou passando. Devo estar fraco psicologicamente. Nunca esperei uma coisa dessas em minha vida. Seus olhos se desviaram em direção à estante, que estava repleta de livros. Levantou-se, foi até ela, apanhou um livro grosso e voltou a se sentar. Começou a folhear o livro. Este é o Código Penal. Só o li durante as aulas, pois bem cedo resolvi que nunca me dedicaria a essa vara. Nunca defenderia um bandido. Meu Deus! A qualquer momento meu filho pode se transformar em um bandido! Se isso acontecer, terei que encontrar um advogado que o defenda! E se não encontrar? Se todos os advogados pensassem como eu? Como tenho estado errado esse tempo todo... Ficou ali folheando aquele livro havia muito tempo esquecido por ele. Enquanto folheava, se ia lembrando da sua infância, adolescência e, finalmente, já adulto, na Faculdade de Direito. Lembrou-se: Como fiquei feliz com aquele diploma em minhas mãos... como minha mãe também estava feliz ao me abraçar, dizendo:
- Meu filho, hoje estou me sentindo uma mulher realizada... nunca pensei que teria um filho doutor!
- Também estou feliz, mãe! Mas de hoje em diante, nossa vida vai mudar! Com este diploma todas as portas se abrirão! Não só por causa dele, mas porque serei um bom advogado! Bom não! O melhor de todos!
- Sei disso, meu filho! Sei disso!
Ela ficou mais feliz ainda no dia em que, juntos, fomos procurar e comprar a nossa casa. No dia da mudança, já instalada, ela disse:
- Estou muito feliz, não por você ter-me comprado uma casa, que sempre foi o meu maior desejo, mas por você ser o filho que É.
Eu apenas a abracei. Estava advogando havia dois anos quando conheci Odete, em um domingo na casa de um amigo. Ela também já havia se formado. Estava feliz por ter passado em um concurso público. Após sermos apresentados, ela, sorrindo, disse:
- Não acredito que consegui passar no concurso! Meu maior sonho sempre foi dar aula. Você já imaginou a felicidade que sentirei quando vir uma criança aprendendo a escrever?
Eu não respondi, apenas sorri pela felicidade que ela sentia. Confesso que também fiquei feliz. Não sei explicar o que senti, mas me parecia que já a conhecia de algum lugar. Aqueles olhos não me eram estranhos. Mas isso era impossível, eu nunca a havia visto antes, morávamos em bairros distantes... Parou de pensar nisso por um instante. Levantou os olhos em direção à estante de livros. Continuou pensando: Quantos livros existem nessa estante... quanto estudei para chegar a ser o advogado que sou. Mas, muito do meu sucesso com certeza devo a Odete. Ela sempre foi a melhor companheira que um homem poderia desejar. Nosso amor foi à primeira vista. Bastou um olhar para sabermos que ficaríamos juntos para sempre. Casamo-nos, Artur nasceu... foi um dos dias mais felizes da minha vida, só igualado ao dia do nascimento de Leandro. Até então éramos uma família feliz... hoje estou aqui, sou advogado, talvez não o melhor, mas sou muito bom... consegui concretizar todos os meus sonhos, mas do que adianta tudo isso se estou vendo minha família desmoronar? Se estou perdendo, ou já perdi meu filho para as drogas? Vi agora mesmo Leandro, apenas uma criança, dando-me uma lição de amor e fé... Meu Deus! Onde estiver, por favor, ajude-me e ajude ao meu filho! Lágrimas sentidas escorriam por seu rosto.

O CÉU CONTINUA AJUDANDO

Artur continuou andando o dia todo, não se alimentou, mas também não se preocupou com isso. Quando começou a escurecer, tentou reconhecer onde estava, mas não foi possível. Aos poucos foi notando que estava no centro da cidade. Pessoas iam e vinham, caminhavam apressadas para tomar o ônibus. Andou mais um pouco, o cheiro bom de comida que vinha das lanchonetes e dos restaurantes fez com que sentisse fome, mas sabia que não tinha dinheiro para comer. Lembrou-se de Rodrigo. Se ele estivesse aqui, tudo seria mais fácil, com certeza encontraria uma maneira de arrumar comida. Será que ele está mesmo na clínica? Se estiver, será que está gostando? Pensou mais um pouco, até perceber que não havia maneira de arrumar comida. Tirou mais um pacotinho do bolso, colocou o pó no papel e inspirou. Como por encanto, a fome desapareceu. As portas das lojas começaram a fechar, logo estava tudo deserto. Aos poucos, ele foi notando pessoas que chegavam. Estavam sujas e carregavam sacolas. Foram sentando-se juntos às portas. Ele andava de um lado para o outro da rua. As pessoas foram se ajeitando, encostavam as costas nas portas ou simplesmente se deitavam. Embora ele tivesse boa resistência física, pois sempre praticara esportes, estava cansado, andara o dia todo. Também se encostou a uma porta e adormeceu. Não sabia quanto tempo havia se passado. De repente, acordou com alguém o empurrando. Abriu os olhos assustado. Três rapazes e uma moça, rindo muito, tentavam tirar seu tênis, que embora não fosse importado, era novo. Ele tentou reagir, mas não adiantou, em pouco tempo estava sem ele e sem a jaqueta, onde estavam os pacotinhos. Eles, rindo muito, levaram tudo. Assustado e desolado, ainda tentou correr atrás deles, mas sabia que seria inútil. Voltou a se sentar, já chorando muito. Não sabia o que fazer ou para onde ir. Lembrou-se da sua casa, do seu quarto e de todo o conforto e segurança que havia ali. Mais uma vez sentiu o impulso de voltar. Só ali poderia encontrar proteção. Mas, ao mesmo tempo, lembrou-se da clínica. Não! Não posso voltar! Não quero ser internado! Ficou ali sentado sem saber o que fazer ou para onde ir, apenas chorando. Estava assim quando uma senhora de mais ou menos cinqüenta anos se aproximou:
- Menino, que está fazendo aqui? Esse lugar não é pra você...
Ele olhou para ela, lembrou-se de sua avó. Chorou ainda mais. Não conseguia se controlar. Ela continuou falando:
- Você não pode continuar na rua, deve ter família, não parece ser um abandonado.
- Como sabe disso?
- Pelas roupas que está vestindo. Criança de rua não vive vestida assim. Vá pra sua casa, sua mãe deve estar preocupada...
- Sei disso, mas não posso voltar...
- Como não? Garanto que ela vai ficar muito feliz se você fizer isso. Já está tarde, é quase meia-noite.
- Não sei como chegar lá, nem sei onde estou. Mas mesmo que soubesse, não voltaria para minha casa. Eles querem me internar em uma clínica.
- Você está metido com droga, não é?
Ele balançou a cabeça, afirmando. Ela continuou:
- Faz muito tempo?
Ele novamente apenas balançou a cabeça, dizendo que não.
- Se não faz muito tempo, você pode sair dessa vida. Disse que não quer ir pra clínica, mas é o único lugar que tem pra ser ajudado. Se seus pais podem pagar, você deve ir...
- Não! Não quero! Vou sair da droga sozinho. Quando voltar para casa, será sem ela!
- Não vai conseguir isso, não vai não. Sabe por que estou aqui na rua?
- Não...
- Porque quando eu não tinha nem trinta anos, comecei a beber. No começo foi um pouquinho, depois fui aumentado, até que chegou um ponto que eu não conseguia mais cuidar da casa e nem dos meus filhos. Sempre deixava pro outro dia, dizia que ia parar sozinha, mas não consegui. Um dia, larguei tudo e fugi de casa. Não tendo para onde ir, terminei na rua. Bebendo cada vez mais. Não sei como está a minha família, nem sequer os meus filhos. Vivo bêbada todos os dias.
- Mas agora a senhora não está bêbada!
- Não sei o que aconteceu hoje. O dia inteiro não tive vontade de beber e fiquei pensando muito nos meus filhos e no meu marido, que era um homem muito bom. Não sei o que aconteceu, não. Acho que era pra gente ter essa conversa...
- Será que foi isso?
- Não sei, mas estou com vontade de ir até a minha casa e ver como tudo está por lá...
- Vai fazer isso mesmo?
- Não sei, se ficar alguns dias sem beber, eu volto, sim. Você devia fazer o mesmo. Volte pra sua casa... Sua mãe deve mesmo estar preocupada. Você tem pai?
Ele se lembrou dos pais e de Leandro e de como eram felizes antes de tudo aquilo. Respondeu:
- Tenho sim, e um irmão de quem gosto muito.
- Então, todos devem estar muito preocupados. Quando saiu de casa?
- Esta madrugada.
- Volte meu filho... Só ali poderá encontrar ajuda... Não faça como eu... Não deixe passar tanto tempo...
- Acho que vou voltar mesmo. Obrigado por conversar comigo. Vou agora mesmo. Só não sei como voltar, e não tenho mais o meu tênis...
- Onde você mora?
Ele disse. Ela pegou um pedaço de pano muito sujo que estava em seu bolso e tirou de dentro dele alguns trocados:
- É tudo que tenho, mas vai dar pra você tomar aquele ônibus e ir pra sua casa. Corra, porque esse pode ser o último. Tênis eu não tenho, mas seus pais não vão se preocupar com isso. Ficarão felizes em vê-lo.
A princípio, Artur não quis pegar, mas sabia que ela tinha razão, só seus pais poderiam ajudá-lo. Seguindo apenas o instinto, ele a beijou no rosto e saiu correndo para o ponto do ônibus. O motorista estava saindo, Artur deu o sinal com os braços. O motorista olhou para ele e acelerou. Artur, desconsolado, viu o ônibus se afastar.
- E agora? O que vou fazer?
A senhora se aproximou:
- Ele não quis parar, viu você descalço, pensou que fosse um mendigo. Está percebendo o que significa continuar nessa vida?
- Não sei o que fazer...
- Siga por essa rua, daqui a três quadras vire à esquerda. Siga em frente, logo reconhecerá o caminho. Vá, meu filho, e que Deus o acompanhe.
Ele seguiu andando pela rua. Ela ficou olhando até vê-lo desaparecer. Pensou: Tomara que ele consiga sair dessa vida... Também vou tentar me recuperar... Como estarão meus filhos? Preciso voltar a ser como era antes da bebida... Artur seguia pensando: Preciso chegar logo em casa, meus pais devem estar mesmo preocupados. Após andar muito, finalmente começou a reconhecer o lugar em que estava. Estou ainda muito longe e meus pés estão doendo, mas conseguirei chegar. Sei que meus pais me ajudarão... Caminhou por mais algum tempo. De repente, a vontade da droga voltou. Ele se apavorou:
- E agora? Não tenho mais, eles levaram todos os pacotinhos. Preciso ser forte, meus pais estão preocupados...
Embora tivesse vontade de deixar a droga, breve sentiu que não suportaria por mais tempo. Começou a suar frio e a tremer. Seu coração batia descompassado. Sentiu fraqueza, pois durante o dia não havia comido nada. Seu estômago doía. Colocou a mão sobre ele. Estava diante de uma lanchonete, que àquela hora da noite estava vazia. Lembrou-se dos trocados que a senhora havia lhe dado. Preciso comer alguma coisa, não sei o que poderei comprar com este dinheiro, vamos ver... Entrou na lanchonete. O garçom que servia no balcão estava lavando os copos e limpando a chapa, já estava na hora de fechar. Ao vê-lo entrando, disse com voz brava:
- Pode ir saindo! Não o quero aqui dentro incomodando os clientes!
- Eu só estou com fome e preciso comer alguma coisa...
- Mas não vai ser aqui! Pode ir saindo!
- Tenho dinheiro para pagar...
- Tem é?! Quanto?
Ele abriu a mão e mostrou as moedas.
- Não é muito, mas dá para eu lhe dar um pedaço de pão com manteiga, está bem?
- Está, e muito obrigado...
Enquanto passava a manteiga no pão, foi dizendo:
- Embora esteja descalço, não parece ser um mendigo. Que está fazendo a esta hora na rua?
- Estou indo para casa. Mas não comi nada hoje...
- Onde está o seu sapato?
- Eu estava usando um tênis, mas alguns garotos levaram.
O garçom olhou bem para ele dizendo:
- Então foi isso que lhe aconteceu? Bem que eu percebi que você não tinha cara de menino de rua. Além do pão, vou lhe dar um copo de leite. Esta cidade está ficando cada vez mais perigosa mesmo...
Colocou sobre o balcão o pão e o copo com leite. Artur comeu rápido, estava realmente com muita fome. Após tomar o último gole de leite, sorrindo, disse:
- Muito obrigado, agora poderei seguir o meu caminho.
- Vá com Deus...
Já mais forte Artur saiu da lanchonete. Enquanto caminhava ia pensando: Hoje, já por duas vezes, ouvi falar em Deus. Estou estranhando, pois em minha casa pouco ou quase nada se falava sobre Ele. Será que existe mesmo Deus? Acho que não! Se existisse não permitiria tanta pobreza, nem a droga que destrói a gente...

CAINDO SEMPRE

Assim pensando, continuou a andar. Sabia que ainda estava muito longe, mas conseguiria chegar, apesar da dor nos pés, que já estava bem forte. Assim que comeu o pão, a vontade da droga desapareceu, e ele nem se lembrava mais dela. Mas não demorou muito para ela voltar com toda sua força. Ele estremeceu. Sabia que precisava resistir. Apertou o passo para chegar mais depressa. Andou por mais uns quinze minutos, depois parou: Não adianta, não posso mais resistir. Como vou chegar em casa nesta situação? Entrou em desespero: Não posso! Não posso! Meus pais não merecem isso! Além do mais, não quero ir para clínica alguma! Parou. Ficou analisando onde estava. Sabia em que direção ficava sua casa. Continuou seguindo, só que dessa vez em direção à favela onde Careca morava. E isso mesmo que tenho que fazer! Não adianta ficar lutando, não tenho mais remédio. Careca vai me ajudar, deve ter alguma droga lá no seu barraco! Caminhou com passos apressados, precisava chegar o mais rápido possível. Não estava bem, mas sabia que logo ficaria. Assim que cheirasse o pó. Finalmente chegou à viela que o levaria até o barraco. O dia ainda não clareara. Ele não tinha noção de que horas eram, mas isso não o preocupava, o que queria mesmo era poder usar a droga. Sabia que depois disso ficaria muito bem. Assim que chegou em frente ao barraco, bateu com força na porta. Demorou um pouco, mas ela se abriu. Careca, um pouco assustado, olhou colocando só a cabeça para fora. Ao ver que era Artur, assustou-se:
- O que está fazendo aqui? Há esta hora?
Artur falou rápido:
- Preciso de sua ajuda! Não sei o que fazer! Você é a única pessoa que pode me ajudar!
- Entre aqui.
Ele entrou. O barraco cheirava mal, mas ele não se importou. Sabia que o que precisava estava ali. Contou a Careca tudo o que havia lhe acontecido. Ele ouviu sem interromper. Artur terminou de falar:
- Como vê, não posso voltar para casa, não neste estado. Você pode me ajudar?
- Não tenho nada aqui. Tudo fica escondido, pois se os "ómi" chegar, não vão encontrar nada.
- Onde está?
- Não posso dizer. Além do mais, ela não é minha. É tudo encomendado, preciso entregar.
- Me dê só um pouco!
- Tem dinheiro?
- Não...
- Então não pode ser. Preciso prestar contas todos os dias. Se não fizer isso, vou ficar em maus lençóis. Não dá mesmo...
Artur chorava:
- Por favor! Sinto que vou enlouquecer!
- Não posso fazer nada. Se eu pudesse, ajudaria, mas não posso...
- Você não ganha comissão?
- Ganho, mas já cheirei e me apliquei tudo. Não tem jeito não... É melhor você voltar pra sua casa e ir para aquela clínica...
- Não posso voltar! Nem vou para a clínica!
- Você é quem sabe...
- Só sei que agora preciso de um pouco do pó.
- Se quiser, pode esperar aqui, vou falar com algumas pessoas. Quem sabe pode se juntar com alguém e fazer alguns assaltos. Sempre dá para livrar o pó.
- Não posso fazer isso! E se for preso novamente? Meu pai não vai me perdoar! Nunca!
- Pode levar a droga de um lugar para outro, assim como faço.
- Não sei... Tenho medo de ser preso... Careca disse furioso:
- Assim não dá! Não quer fazer nada e quer o pó? Acha que vai conseguir sem fazer nada?
- Não sei o que fazer, preciso de um pouco, assim pensarei melhor.
Careca serviu um pouco de café frio que estava em uma leiteira de alumínio. Em cima da mesa havia alguns pães duros. Artur olhou para eles. Careca percebeu:
- Está com fome? Pode pegar, está duro, mas é melhor que nada.
Artur não pensou muito, estava mesmo com fome. Pegou o pão e tomou o café. Quando terminaram, Careca olhou fixo para ele:
- Agora preciso sair. Não tenho pó para lhe dar, mas se quiser pode ficar por aqui. Sei que não dormiu à noite, pode deitar nessa cama.
Saiu. Artur ficou sozinho olhando tudo. Estava com sono, mas a vontade da cocaína era muito intensa. Deitou-se e, aos poucos, adormeceu. Sonhou com uma moça que lhe sorria e corria com os braços abertos em direção a ele. Ele ficou encantado com a beleza dela. Ela não falava, mas pôde perceber que seus olhos queriam lhe dizer algo. Mas quando ela se aproximou, ele acordou. Ficou ali deitado. Sabia onde estava, mas o rosto da moça não saía do seu pensamento. Ela era muito linda... o que será que estava querendo me dizer? Estava ainda deitado quando Careca retornou. Entrou no barraco sorrindo e dizendo:
- Então, como você está?
- Estou bem, acabei de acordar.
- Pensei muito a seu respeito, não vai poder ficar aqui se não trabalhar. Sei que vai precisar da coca, mas não tendo dinheiro vai me causar problemas.
- Não! Eu não farei isso! Não criarei problema algum! Não tenho para onde ir!
- Volte para sua casa ou me ajude. Falei com o meu patrão, contei a sua história. Ele disse que, se quiser, eu poderei lhe ensinar o trabalho. Ele tem alguns clientes que precisam ser visitados. Se quiser, ele o contrata.
- Quer que eu me torne um traficante?
- Já disse que não sou traficante, sou apenas um entregador.
- Não sei, não sei...
- Você precisa decidir logo. Se não quiser o trabalho, pode ir embora agora mesmo. Com o trabalho poderá conseguir toda a cocaína que precisar. Sem ele, me dará muito problema, e eu não estou a fim.
Artur ficou pensando, novamente teria que decidir o que fazer. Não queria tornar-se um traficante, mas também não queria ir para a clínica. Pensou, pensou e finalmente disse:
- Está bem, vou aceitar o trabalho.
- Ainda bem. Vou lhe dar um pouco de pó por conta. Amanhã vou levá-lo a um lugar, vai falar com o meu patrão.
- E se eu for preso?
- Não vai ser preso! Um cara boa pinta como você não desperta suspeita. Se ainda fosse preto como eu! Mas não é! Conversa muito bem. Vai dar tudo certo.
- Está bem. Tomara que dê certo, não quero ir para a clínica.
Careca saiu do barraco. De dentro de uma madeira falsa na parede tirou dois pacotinhos e retornou para dentro. Deu um para Artur e o outro ficou para ele. Os dois cheiraram. Após alguns instantes, saíram para a rua. Andaram muito, regressaram já altas horas. Artur deitou-se no chão em um colchonete velho e sujo, mas drogado como estava, não se importou. Já passava de uma hora da tarde quando acordaram. Careca estava apressado e dizia:
- Acorde, precisamos ir a um lugar!
Artur levantou-se rápido. Sabia que aquele seria o início de um novo caminho. Sentia medo, mas não via outra solução. Faria qualquer coisa, menos ir para a clínica. Saíram. Artur estranhou, pois Careca seguia em silêncio e em direção ao centro da cidade. Entraram em um edifício velho e escuro. Artur sentiu um pouco de medo. O elevador era pequeno. Pararam no oitavo andar. Careca, seguido por Artur, saiu do elevador e parou em frente a uma porta. Deu três batidas, entrou. Um rapaz os recebeu:
- Bom dia, Careca, chegou atrasado.
- Dormi muito. O seu Romeu ta aí?
- Está lá dentro, mas quem é esse aí?
- É o meu amigo. Ele quer trabalho. O rapaz deu um sorriso sarcástico.
- Trabalho... É...
Depois entrou por uma porta e saiu em seguida.
- O seu Romeu pediu para vocês entrarem.
Entraram. Um homem alto e bem vestido os recebeu.
- Bom dia, Careca. Então, vejo que trouxe o amigo de quem me falou. Bom dia, Fred.
Artur ficou olhando para ele sem entender bem o que ele dizia. O homem tornou a dizer:
- Fred! Estou falando com você.
Artur percebeu que o homem se dirigia a ele. Disse confuso:
- Meu nome não é Fred...
- A partir de hoje será. No nosso ramo de trabalho não sabemos o verdadeiro nome das pessoas. Não é Careca?
Rindo, Careca respondeu:
- É isso mesmo, eu já falei com ele a esse respeito. Artur lembrou-se da conversa que haviam tido. Disse:
- Está bem, gostei do nome, é mais bonito que Careca.
- Então está bem. Careca vai lhe ensinar o trabalho. Só precisa ficar atento e trabalhar com cuidado. Não tem perigo de nada.
- E se eu for preso?
- Está sob minha proteção. Será solto logo.
- Sou menor de idade, meu pai será avisado e me levará para uma clínica... Eu não quero ir...
- Se fizer tudo como Careca lhe ensinar, não tem perigo.
Artur estava assustado, mas sabia que não havia outra solução. Disse:
- Está bem.
- Daqui em diante, não vai mais precisar se preocupar com a droga. Se trabalhar direito, terá toda que precisar. Agora podem ir. Careca, ensine o trabalho para ele.
- Está bem, senhor.
Romeu se despediu. Os dois saíram.
Na rua, enquanto caminhava Careca disse:
- Agora vamos buscar a mercadoria.
Artur o acompanhou calado. Pensava em como sua vida havia mudado. Nunca pensou que existisse um lugar e um trabalho como aquele. Em um outro lugar tão horrível como o primeiro pegaram um pacote e foram fazer a entrega em uma favela que ele ainda não conhecia. Dali pra frente, aquilo se tornou uma rotina. Careca deu a ele uma lista de pessoas e lugares onde deveria entregar a droga. Ele não falava diretamente com os viciados, apenas entregava os pacotes para outros iguais a Jiló. Continuou morando com Careca. Usava toda a droga que queria e, aos poucos, acostumou-se com o ambiente e com o trabalho. Com uma parte do dinheiro que ganhou comprou algumas roupas e sapatos. Mas a maior parte era consumida com a droga. Sob o efeito dela, ele e Careca praticavam pequenos assaltos, só para verem a cara assustada das vítimas. Depois de cada assalto riam muito. Artur visitava favelas, mas também lugares finos. Para esses lugares Romeu sempre pedia que ele fosse, pois o julgava bem-educado e de boa aparência. Fazia mais de três meses que ele estava naquele trabalho. Certa vez, foi até um edifício fino para levar a mercadoria. Procurou o número da porta na qual deveria entrar. Encontrou. Em uma placa presa a ela estava escrito: Galeria de Arte. Assim que entrou na recepção, percebeu que aquele ambiente era diferente de todos os que haviam freqüentado. Identificou-se à recepcionista. Ela fez com que esperasse alguns minutos. Enquanto esperava, ficou observando o ambiente. Havia muitos quadros e esculturas que chamavam a atenção. Ele não entendia quase nada sobre arte, mas percebeu que aquelas obras eram de artistas famosos. Estava olhando com atenção quando a recepcionista pediu que ele entrasse em uma sala. Ele entrou. Uma senhora de mais ou menos quarenta e cinco anos o recebeu. Sorrindo, disse:
- Bom dia, meu jovem. Trouxe a mercadoria?
De dentro de uma pasta executiva ele tirou um pacote e entregou a ela. Ela passou o pacote de uma mão para outra, como se estivesse conferindo o peso. Séria, disse:
- Parece que está certo. Aqui está o dinheiro. Ele pegou o dinheiro. Quando ia saindo, ela disse:
- Como é o seu nome? Ele se voltou.
- Meu nome é Fred.
- Gostei muito de você. É bonito e parece ser de boa estirpe. Na sexta-feira haverá uma festa em minha casa, não gostaria de comparecer?
Ele levou um susto e, um pouco atrapalhado, respondeu:
- Não sei...
- Não sabe por quê?
- Não estou acostumado a ir a festas, e, além do mais, acredito não ter roupas adequadas. A senhora me parece ser uma pessoa com boas condições financeiras, com certeza em sua festa outras pessoas iguais à senhora comparecerão.
Ela começou a rir:
- Tem razão, mas não se preocupe com isso. Basta ir um pouco mais cedo, lá em casa tem a roupa que precisar. Meu sobrinho morava comigo, foi embora. Acredito que a roupa dele é do seu tamanho. Se resolver, aqui está o endereço. Basta telefonar, meu motorista vai buscá-lo onde estiver. A festa vai começar às dez horas, precisa chegar um pouco mais cedo para poder se vestir.
Ele pegou o cartão que ela lhe oferecia. Leu: Rosaria Maria Lins da Veiga. Ele não soube o que responder. Apenas se despediu. Assim que chegou à favela, contou a Careca o que havia acon¬tecido. Ele disse:
- Ela é muito rica, mora em um apartamento de luxo. Se gostar de você, lhe dará tudo o que precisar. Inclusive a droga.
- Não estou entendendo, por que faria isso?
- Você é um rapaz bem-apessoado e educado. Ela gosta de ter jovens como companhias.
- Não, eu não vou. Estou desconfiado dessa história.
- Desconfiado do quê? Se ela gostar de você vai lhe dar tudo o que precisar. Poderá deixar esta vida.
- Desculpe, sei que está tentando me ajudar, só que não sei o que fazer...
- Só sabe dizer isso? Não posso! Não sei! Eu é que não sei o que fazer com você. Estou indo embora! Tomara-me tivesse essa chance! Pense bem. Se resolver, ligue pra ela.
Saiu sem dizer mais nada. Artur ficou pensando em tudo o que Rosaria havia dito. Já era uma hora da tarde. Seu estômago começou a doer, ele não sabia se era fome ou vontade da droga. Comeu um pastel que haviam comprado na noite anterior e bebeu um gole de café. Após algum tempo, sentiu que precisava da droga, não havia como negar. Aceitou que definitivamente era um viciado. Por uma janela conseguia ver o sol. O dia estava lindo, mas para ele parecia uma noite escura. Olhava para fora e para o cartão. Decidiu: Não posso voltar para casa... nem posso continuar aqui... vou telefonar e ver o que acontece. Saiu para a rua procurando um telefone. Encontrou, ligou:
- Alô. Preciso falar com a senhora Rosaria.
- Sou eu mesma, pode falar.
- É Fred. Estive conversando com a senhora. Disse que eu podia ligar.
- Onde você está?
Artur deu o endereço. Ela disse:
- Sei onde é. Fique aí mesmo, meu motorista vai buscá-lo. O meu carro é preto e grande. Fique junto ao telefone.
- Está bem.
Ela desligou o telefone. Artur ficou andando de um lado para o outro. Não sabia muito bem o que encontraria ou o que teria que fazer. Não havia se passado nem meia hora quando um carro preto parou perto dele. O motorista desceu do carro me deu a volta, dizendo:
- Você é Fred?
- Sou eu mesmo.
- Suba no carro.
Abriu a porta traseira. Artur entrou e se sentou. O carro era belíssimo. Artur sentiu-se mal, estava nervoso e ansioso. O motorista seguiu em silêncio. Artur estava em seu limite, tremia e suava muito. Sentia frio e calor. Passaram por alguns bairros. Artur começou a sentir medo, pois não conhecia aquelas pessoas e nem sabia para onde estava indo. Mas sabia também que talvez fosse uma ótima solução. O carro entrou em uma rua com poucas casas, todas grandes e bonitas. Parou diante de um portão de ferro. O motorista desceu, abriu o portão, depois voltou ao carro. Entraram em uma alameda cercada de flores. Artur, curioso, olhava tudo. Ao longe, viu uma espécie de cachoeira cuja água caía sobre uma piscina. Árvores frondosas tomavam conta da paisagem. Ele pensou: E realmente muito bonito, parece àquelas casas que a gente só vê em filmes. Pararam em frente a uma porta. O motorista desceu e, com um sinal feito com a mão, conduziu Artur até ela. Entraram, a sala era também muito grande. Tinha uma enorme escadaria, que deveria levar ao andar superior. O motorista disse a Artur para se sentar em um sofá e entrou por uma outra porta que ficava à esquerda de onde Artur estava. Ele permaneceu ali olhando tudo. Não entendia de arte, mas sabia que os quadros que ali estavam eram de algum pintor famoso. Após mais ou menos cinco minutos, o motorista retornou. Disse com o semblante sério e a voz firme:
- Venha comigo.
Artur levantou-se e seguiu-o. Entraram pela mesma porta por onde ele havia saído. Chegaram a um corredor grande com quatro portas. O motorista entrou em uma delas. Dentro dela havia um escritório com uma mesa e um computador. Ao vê-lo, Artur teve um lampejo e lembrou-se do seu computador. Sentiu certa tristeza. Atrás de uma mesa, sentada em uma cadeira finíssima de couro, estava ela. Ao vê-lo, sorriu:
- Olá, pode sentar-se aí.
Artur obedeceu. Ela olhou para o motorista, que saiu imediatamente. Depois voltou seus olhos para Artur:
- Como vai? Fiz uma investigação a seu respeito. Sei seu nome, onde mora e quem são seus pais. Tem certeza que não quer mais voltar para sua casa?
Artur apenas moveu a cabeça, dizendo que sim.
- Está bem, se é assim, vamos tentar. Estou vendo que está impaciente e tremendo muito. Está precisando de um pouco de pó?
Os olhos de Artur brilharam enquanto dizia:
- É o que mais preciso neste momento.
Ela tirou de dentro de uma gaveta um pacotinho e uma espécie de canudo. Entregou os dois para Artur, que colocou o canudo dentro do pacotinho e inspirou com toda a força de seus pulmões. Logo estava se sentindo muito bem. Não tinha mais medo ou dúvida. Tudo estava bem para ele. Após algum tempo, Rosaria disse:
- Precisamos conversar, mas agora não será possível. Você está muito "louco" e precisando de um banho, e também de trocar essas roupas. Vou chamar João, ele lhe mostrará o quarto onde passará a viver.
Artur não disse nada, apenas ria sem parar. Rosaria apertou uma campainha que havia por baixo da mesa. João entrou.
- João, conduza-o até o quarto que era de Plínio. Eles têm o mesmo corpo, por isso às roupas devem servir nele. Faça com que tome um banho, dê alguma coisa para ele comer. Quando estiver pronto, traga-o de volta.
- Sim senhora.
Pegou no braço de Artur e conduziu-o até um quarto que ficava no andar superior. Artur não notou, mas o quarto era espaçoso. João o ajudou a tirar a roupa e colocou-o embaixo do chuveiro. Depois de tomar o banho, tornou a ajudá-lo a se vestir. Artur não sabia muito bem o que estava acontecendo, mas estava gostando. Terminou de se vestir e foi levado por João de volta ao escritório. Parecia que estava flutuando. Definitivamente, a droga lhe fazia muito bem. João mostrou-lhe a porta. Ele bateu e entrou. Ao vê-lo, Rosaria deu um sorriso:
- Está muito melhor agora, sente-se aí.
Artur obedeceu. Ela continuou:
- Já viu que esta casa é muito grande, mas moro sozinha. Casei-me algumas vezes, mas não tenho filhos e nem família. Conheceu no centro da cidade o meu escritório. Trabalho com arte, envio algumas para o exterior. Aqui em casa costumo abrigar garotos. Ficam aqui por um tempo, até que me enjoe deles e arrume outro. O último foi embora, era do Nordeste, voltou para sua terra.
- Por que ele foi embora?
- Ficou aqui por um ano, mas não tinha uma boa educação. Sei que você é bem-educado, pois pertence a uma boa família e estudava em uma boa escola.
Artur lembrou-se de sua família, de sua casa e também da escola. Respondeu:
- É verdade, mas agora também não tenho mais família, jamais me aceitariam da maneira como estou.
- Tem certeza disso? Seus pais com certeza o aceitarão.
- Talvez sim, mas já disseram que preciso ir para uma clínica, e eu não quero.
- Você acha que eles estão errados? Essa não seria uma boa solução?
- Estive pensando muito a respeito disso. Resolvi que não quero largar a droga, ela me faz muito bem. Com ela sinto que conseguirei fazer qualquer coisa. Estive muito assustado, mas agora sei que é esse o caminho que quero. A minha única preocupação é como conseguir o dinheiro que preciso. Ganho entregando a mercadoria, mas está ficando cada vez mais difícil, pois a cada dia que passa aumenta a necessidade, e o dinheiro que ganho já não está sendo suficiente.
- Se é assim, não precisa mais se preocupar. Aqui terá boa casa e comida, como também boas roupas e toda a droga que precisar.
- É verdade?
- Sim, só que para isso precisa me fazer companhia.
- Se é só isso, farei com prazer.
- Sou sozinha, mas recebo muitos amigos. Aqui sempre tem festa, onde rola muito sexo e droga.
Artur ficou calado, depois disse:
- Nunca pratiquei sexo, aliás, nunca namorei...
- Não se preocupe com isso, vai aprender como se faz, e garanto que vai gostar. Agora preciso trabalhar. Se quiser, pode ir para a piscina ou dormir. Você pode escolher o que preferir.
- Prefiro nadar, faz muito tempo que não faço isso.
- Vou pedir a João que o leve até a piscina.
Fez isso. Em poucos minutos João chegou, recebeu a ordem e saiu. Deu uma roupa de banho a Artur, que a se ver diante da piscina, não resistiu. Mergulhou e começou a nadar. Ele que fora sempre um ótimo nadador, que até competira e ganhara sempre entre os primeiros, sentia que já não era o mesmo de antes. Após dar algumas braçadas, era obrigado a parar e descansar. Mas mesmo assim, ficou lá por muito tempo. Após atravessar a piscina, saiu dela e sentou-se em uma cadeira. Fechou os olhos e ficou pensando: Como cheguei até aqui? Que caminho é esse que estou percorrendo? Esta casa é muito grande, parece que aqui existe todo o conforto. Dona Rosaria parece ser uma ótima pessoa. Sinto que aqui estarei protegido. Levantou-se, ficou olhando para o céu. Começou a andar em volta da piscina. Lembrou-se de sua família. Como estarão? Devem estar preocupados... não posso mais viver ao lado deles, mas também não é justo deixar que se preocupem. Preciso telefonar e dizer que estou bem. Parece que aqui não me faltará nada... Voltou para a cadeira, deitou-se ao sol. Estava assim pensando em tudo que estava lhe acontecendo quando ouviu uma voz:
- Fred, dona Rosaria quer conversar com você. Ele se levantou imediatamente:
- Onde ela está?
- No escritório, pediu que eu o acompanhasse até lá, venha. Assim dizendo, voltou-se e começou a andar. Artur precisou quase correr para alcançá-lo. João caminhava com passos firme e calado. Artur percebeu que ele não era de falar muito, estava sempre com o semblante fechado. Desde que o conhecera não havia visto nem a sombra de um sorriso. Ele deveria ter uns cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos. Chegaram à porta do escritório, que estava aberta. João entrou na frente:
- Ele está aqui.
Rosaria, com um sorriso, respondeu:
- Obrigada, João, agora pode se retirar.
Ele obedeceu sem mexer um músculo do rosto. Artur entrou. Estava com um roupão sobre a roupa de banho. Rosaria fez um sinal para que ele se sentasse. Ele obedeceu e sentou-se em uma cadeira que estava em frente à escrivaninha. Ficava assim bem de frente a Rosaria que o olhava com insistência. Seu olhar era tão intenso e profundo que fez com que Artur se sentisse mal. Após um sorriso, ela disse:
- Gostou da piscina?
- Sim! Ela é muito boa, sua dimensão é olímpica.
- Gosta de nadar?
- Gosto. Aliás, gostava. Eu ia ao clube duas vezes por semana para ter aula e treinar.
- Aqui poderá treinar o quanto quiser.
- Isso será muito bom.
- Aqui terá também tudo o que precisar para ser feliz. Poderá viver aqui para sempre, será o meu hóspede.
- A senhora já disse isso, só não entendo por quê.
- Estou vendo que você é um belo rapaz. Além do mais, é educado, sabe como se comportar e falar. Sabe que para tudo na vida há um preço...
- Sei disso, por isso não estou entendendo. Como farei para lhe pagar a hospedagem?
- Sou uma mulher sozinha. Devido ao cargo que ocupo na empresa, não posso me dar ao luxo de ter uma família. Por isso preciso de alguém em quem possa confiar para me fazer companhia. Gostei do seu modo, sinto que poderemos ter longas conversas.
- Se for só isso, aceito.
- Costumo dar muitas festas aqui, convido pessoas de fino trato, homens e mulheres...
- Parece que vai ser divertido.
- Geralmente é. As pessoas vêem aqui para se divertir e tratar de negócios. Preciso fazer com que se sintam bem, e para isso vou contar com você. Quero que lhes dê toda a atenção e que faça tudo o que quiserem. Está disposto?
- Tudo o quê?
- Elas precisam estar bem para que eu possa fechar bons negócios e ter dinheiro para manter tudo isso aqui, entendeu?
Pelo olhar dela, Artur começou a entender o que dizia. Um pouco preocupado, disse:
- Se estou entendendo bem, a senhora está dizendo que terei de ser agradável. Manter relações sexuais?
Com o olhar malicioso, ela disse:
- Não, isso só fará comigo...
Ele disse confuso:
- Não sei como se faz! Nunca tive uma relação sexual, o que sei aprendi nos livros e revistas, e algumas coisas meu pai me falava, mas sempre para me alertar do perigo que havia. Acredito que não poderei fazer isso.
Rosaria começou a rir:
- Ora! Não se preocupe com isso, foi por isso mesmo que me interessei por você. Terei prazer em ensinar-lhe tudo! A única coisa que tem a fazer é aprender o mais rápido possível. Venha comigo.
Ela levantou-se da mesa e caminhou com ele em direção à porta, que levava a um corredor bem comprido, onde havia muitas portas. Abriu e entrou por uma delas. Ao entrar atrás dela, Artur foi obrigado a exclamar:
- Nossa! Que maravilha!
Rosaria apenas sorriu:
- Aqui é o lugar mais importante para as minhas festas. É por causa disto que muitas pessoas atendem ao meu convite. São pessoas especiais.
Artur, sem entrar, olhava tudo de longe. Diante dele havia uma imensa sala, toda colorida, com muitas luzes e mesas com feltro verde, roletas e máquinas caça-níqueis. Era um verdadeiro cassino, como os que ele só havia visto nos filmes.
- É tudo muito bonito!
- Pode notar que tipos de pessoas vêem aqui. Será com elas que terá de lidar.
- Não sei se conseguirei. Nunca imaginei estar em um ambiente como este...
- Conseguirá, sim. Verá que não é tão difícil. Terá que se lembrar sempre que esse será o preço que estará pagando por todo o conforto e a droga que terá.
Artur não respondeu, estava deslumbrado com tudo que via e vivia. Lembrou-se dos pais.
- Não sei se poderei ficar aqui. Meu pai com certeza está me procurando, deve até ter colocado detetives para me achar. Eu o conheço, não sossegará enquanto não me encontrar...
- Isso poderá ser resolvido. Ele só vai procurar por você se não souber onde você está.
- Mas se souber que estou aqui, virá me buscar imediatamente!
- Não precisa saber que está aqui, só precisa saber que você está bem.
- Como farei isso?
- Basta telefonar dizendo que está em um lugar e com conforto, e que a qualquer momento voltará para casa.
- Acredita que isso será o suficiente?
- Claro que sim.
Artur olhou para o telefone que havia sobre uma mesa. Olhou para Rosaria para lhe pedir que o deixasse telefonar, mas antes que ele falasse qualquer coisa, ela disse:
- Vai telefonar, sim, mas não daqui. Se o fizer, em pouco tempo seu pai estará aqui.
- Como?
- Ele poderá ir à polícia, contar a história e conseguir que a ligação seja rastreada.
- Poderá mesmo?
- Claro que sim, ainda mais sendo advogado e em se tratando de drogas.
- Como farei?
- Ainda não são cinco horas, vou pedir a João que saia com você e o leve até um bairro distante. Você fará a ligação de um telefone público. Mesmo que tente, ele não conseguirá encontrá-lo.
Artur pensou por um instante, depois disse:
- Acho que assim é melhor mesmo. A senhora pensa em tudo.
- No ramo em que estou se não pensar estarei frita!
Dizendo isso, voltou-se, e os dois saíram da sala, voltando para o escritório. Rosaria apertou uma campainha, e logo João estava lá.
- Pois não, senhora.
- João, mostre a ele o quarto que vai ocupar a partir de hoje. Depois preciso que saia com ele e o leve até um bairro distante para que possa telefonar.
- Está bem, senhora.
Olhou para Artur ainda sem mexer um músculo do rosto. Disse:
- Fred, venha comigo.
Artur olhou mais uma vez para Rosaria, que lhe sorria. Iam saindo do escritório quando a ouviram dizer:
- De agora em diante não vai mais me chamar de senhora, a não ser na frente dos meus convidados.
- Está bem, entendi. Até mais, Rosaria...
Sorrindo, acompanhou João, que seguia novamente com o rosto fechado. Subiu uma escadaria em caracol que saía de uma sala imensa. No andar de cima, percebeu que havia várias portas, onde deveriam ser os quartos. João abriu uma delas. Artur entrou. Deslumbrou-se. No meio do quarto havia uma cama de casal com dois criados-mudos. Em cima de cada, um abajur, e do outro lado, um sofá e uma mesa de centro. Na parede em frente à cama uma espécie de estante, onde havia um aparelho de televisão. Ao seu lado um aparelho de som. Tudo estava muito limpo, a cama convidava a se deitar nela, mas ele resistiu. João mostrou uma outra porta que havia dentro do quarto. Abriu. Era um banheiro imenso, com chuveiro e banheira. Um armário, onde havia jogos completos de toalhas macias. Um lavatório com perfumes e cremes. Artur deslumbrou-se ainda mais com a vida que percebia a sua frente. Após mostrar tudo, João se despediu e saiu do quarto. Assim que se viu sozinho, não se conteve. Jogou-se sobre a cama. Sentiu que ela era fofa e macia, os travesseiros estavam forrados com fronhas de cetim de um azul bem claro, assim como os lençóis. Não se conteve e falou alto:
- Isto aqui é o paraíso!
Levantou-se, olhou para uma porta que João não havia lhe mostrado e abriu-a. Lá dentro havia outro quarto só que com armários, onde estavam muitas roupas e sapatos. Experimentou algumas peças. Serviram direitinho. Havia também um grande espelho, onde ele se olhou, e gostou do que viu. Ficou encantado. Parecia que aquele quarto fora feito para ele. Sabia que pertencia a um outro rapaz de nome Plínio, mas isso não lhe importava, pois a partir de então tudo aquilo era seu. Encheu a banheira, jogou um pouco de sais de banho que havia no armário, fez espuma e entrou. Estava ali deitado e com os olhos fechados quando ouviu uma batida na porta e a voz de João:
- Já está tarde, precisamos telefonar.
Só então Artur voltou à realidade. Levantou-se apressado e disse:
- Já estou indo.
Saiu do banheiro enrolado em uma toalha. Correu para o quarto onde estavam as roupas, vestiu-se rapidamente e saiu com João.
João, sempre em silêncio, levou-o até a garagem. Entraram no carro preto, e logo estavam novamente na avenida. Ele dirigiu por mais ou menos quarenta minutos. Estacionou o carro em frente a um telefone público, deu um cartão telefônico a Artur e fez-lhe um sinal, mostrando o telefone. Ele desceu e, junto ao telefone, parou por um instante. Precisava pensar no que diria. Tomou a decisão e discou o número de sua casa. Álvaro estava em casa, mas em seu escritório, onde estudava seus casos e lia, por isso não havia telefone, não gostava de ser incomodado. Deu um pulo da cadeira em que estava sentado quando ouviu o chamar do telefone. Saiu do escritório correndo. Chegou ao momento em que Odete atendia:
- Artur! Meu filho! Onde você está?
- Estou bem, mamãe, estou ligando para dizer que não precisam se preocupar comigo, estou muito bem...
- Não diga isso, meu filho! Como pode estar bem longe de casa e da gente?!
- Agora a senhora já sabe no que me transformei. Não posso mais continuar vivendo aí...
- Você está chorando, meu filho?
- Não, estou só triste por tudo isso que está acontecendo...
- Volte pra casa! Só aqui poderá ser ajudado! E só isso que precisa! Ajuda, e nós estamos aqui para isso, amamos você!
- Não, mamãe, não posso voltar. Preciso da droga. Encontrei um lugar onde terei toda que precisar...
- Não, Artur! Se isso for verdade, terá que pagar um preço muito alto! Ninguém faz nada de graça! Volte pra casa!.

IMPOTÊNCIA DIANTE DA DROGA

Álvaro e Leandro ouviam Odete falando, mas não sabiam o que Artur estava dizendo. Em um repente, Álvaro tirou o telefone da mão de Odete:
- Artur! Onde você está? Vou buscá-lo agora mesmo! Precisa voltar pra casa, vai nos deixar a todos loucos!
- Sinto muito, papai, mas não posso voltar. Não poderei mais viver sem a droga, e não quero lhes dar mais problemas. Estou bem, não se preocupe...
- Não está bem coisa nenhuma! Só estará bem aqui em casa e ao nosso lado! Se tiver um bom tratamento, não vai mais precisar da droga. Vai se livrar dela e poderá ser tudo como era antes. Onde você está?
- Não, papai... Nada nunca mais será como era antes... Estou indo embora porque o amo e não quero que sofram mais por minha causa. Dê um beijo no Leandro, diga a ele para que fique longe das drogas...
Antes que Álvaro dissesse qualquer coisa, Artur desligou o telefone. Chorava muito. João, que acompanhara toda a conversa, pela primeira vez expressou um sorriso:
- Tem certeza que está fazendo a coisa certa? Tem certeza que é esse mesmo o caminho que quer seguir?
Artur estranhou aquela atitude e a pergunta vinda daquele homem que ele não conhecia e que até então não havia dito uma palavra agradável. Tão estranho achou que não soube o que responder. Estava triste por ver a aflição de seus pais, mas sabia que jamais poderia voltar para casa. Um novo mundo se abria para ele um mundo onde conheceria outras pessoas e uma maneira nova de viver. Um mundo que o atraía e que ele queria conhecer. Assim que desligou o telefone, Álvaro olhou para a mulher e o filho. Os dois choravam. Leandro chorava por ver a tristeza e o sofrimento nos olhos dos pais. Ele se sentia impotente, havia rezado pedido a Deus para que seus pais não chorassem mais, mas de nada adiantara, porque naquele momento ele também chorava e não conseguia se conter. Pensou: Deus não ouviu minha prece, acho que ele não entendeu... Álvaro não sabia o que fazer. Sentiu que naquele momento perdia seu filho para sempre. Não aceitava aquilo, logo ele que havia lutado tanto para chegar aonde chegara. Disse com voz decidida:
- Estou indo agora mesmo para a delegacia, vou contar o que aconteceu. Talvez eles possam descobrir de onde ele telefonou. Se descobrirmos, talvez possamos encontrá-lo.
Odete pensou em impedi-lo, mas sabia que não adiantava, ele estava determinado a encontrar o filho. E por tudo que ela conhecia dele, sabia que só descansaria quando isso acontecesse. Pegou um paletó, e enquanto o vestia, ia saindo e dizendo:
- Preciso ir rápido, ele não pode estar muito longe do telefone, deve estar andando a pé.
Saiu. Odete olhou para Leandro, que assim como ela, seguia os passos do pai. Percebeu que ele chorava e lembrou-se da oração que havia feito naquele dia. Abraçou-se a ele dizendo em voz baixa:
- Meu Deus, não permita que meu filho chore, não esqueça que ele Lhe pediu isso.
Leandro, ao ouvi-la, levantou a cabeça. Olhava em seus olhos enquanto dizia:
- Ele não se esqueceu, mamãe, só vamos chorar mais um pouquinho. Artur vai voltar...
Ela, com os dedos, secou uma lágrima que corria pelo rosto dele:
- Sim, meu filho. Tudo vai ficar bem.
Álvaro chegou à delegacia. Foi encaminhado a uma sala. Ao entrar, encontrou o mesmo delegado que havia prendido Artur e o aconselhado a interná-lo. Ao vê-lo, soltou uma exclamação, enquanto perguntava:
- O senhor é o delegado de plantão?!
- Olá, como vai o senhor?
- Não estou bem, aconteceu muita coisa desde aquela noite.
- Posso imaginar, mas não quer me contar qual é o motivo da sua presença aqui?
Álvaro contou tudo o que acontecera desde a fuga de Artur. Quando terminou de falar, o delegado soltou um leve sorriso:
- Eu o avisei para levá-lo naquela noite mesmo para a clínica. Era a melhor oportunidade, ele estava assustado e não entendia muito bem o que havia acontecido.
- O senhor tem razão, mas agora já foi. Precisamos rastrear o telefone, talvez o encontremos.
- Se quiser, podemos fazer isso, mas posso lhe garantir que será inútil.
- Como pode saber?
- Se ele ligou dizendo que está bem, é porque encontrou um lugar para ficar. Caso contrário, teria ligado para lhe pedir que fosse buscá-lo.
- Mas não custa tentar! Já contratei um detetive, mas ele não o achou. Talvez por não ter sido eficiente. O senhor conhece algum que possa me indicar?
- Conheço e posso lhe indicar, mas sei que não vai adiantar.
Álvaro, nervoso com aquela atitude, disse:
- Preciso tentar! Como pode saber que não vai adiantar?
Ele tirou do bolso a foto de uma mocinha e entregou-a a Álvaro. Ela devia ter no máximo dezessete anos. Com os olhos muito tristes, disse:
- Estou dizendo isso porque já percorri todos esses caminhos.
- É sua filha?
- Era minha filha... Hoje não está mais aqui na Terra...
- Ela morreu?
- Sim, de overdose. Quando descobri, senti o mesmo que o senhor está sentindo. Fiz tudo isso que está querendo fazer, mas não adiantou. Ela não conseguiu ou não quis se afastar das drogas. Mentiu, roubou, enganou, fez tudo para disfarçar. Dizia que estava bem, que nunca mais usaria, mas um dia a encontramos morta em uma rua da cidade. Lugar por onde nunca poderíamos imaginar que andasse. Era nossa filha única. Eu e minha esposa quase morremos também. Ela havia sido criada com todo o carinho. Ao menos era assim que pensávamos. Por isso dedico minha vida a ajudar os jovens que estão nas drogas. Sempre que posso, indico uma clínica ou uma religião. Alguns têm conseguido sair e retomar a vida.
Álvaro estava estarrecido:
- Até onde isso vai? Por que os traficantes ficam impunes?
- O mundo das drogas é um mundo à parte. Nele existe muito dinheiro, e o senhor sabe, o dinheiro compra a tudo e a todos. Algumas vezes conseguimos descobrir um ponto de droga, prendemos até algumas pessoas, mas geralmente são pessoas sem importância alguma, os chamados "aviõezinhos". Os verdadeiros traficantes, os chefões, estão bem protegidos, escondidos atrás de uma identidade respeitável. A droga está espalhada pelo mundo todo. Viaja mais que qualquer ser humano. Todos os países estão preocupados com ela.
- O senhor está me dizendo que não há como combatê-la?
- Há claro que há. Mas para isso não adianta prender o traficante, pois ao prendermos um, dez tomarão o seu lugar. O que é preciso é acabar com o consumidor. Sem eles não haverá mais traficante. Mas isso também está longe de acontecer. A droga não está só com os jovens, está em toda parte. Pessoas influentes, como artistas, estudantes, advogados, políticos e até médicos fazem uso dela. O que precisamos é começar educando as crianças desde o primeiro ano escolar. Dar a elas condições de estudo e uma vida tranqüila junto a seus pais.
Ao ouvir aquilo, Álvaro lembrou-se de Iracema e da favela onde ela morava. Disse:
- Isso todo mundo diz, em todos os debates que vejo na televisão, mas é tudo demagogia. Nosso país é muito pobre. Estive em uma favela e não acreditei no que vi lá. Não entendo como as pessoas podem viver daquela maneira.
- Nosso país é muito pobre, sim, mas não precisaria ser e um dia não será. Quando encontrar homens que realmente o amem e governem para o bem-estar de todos. Esse dia chegará.
- O senhor acredita nisso?
- Acredito, preciso acreditar...
- Mas, de qualquer forma, Artur não se enquadra nesse perfil. Ele sempre teve tudo o que precisou. Nunca deixei que lhe faltasse nada. Sua mãe e eu vivemos na mais perfeita paz, nos damos muito bem. Ele cresceu em um ambiente saudável. Se fizemos alguma coisa de errado, juro ao senhor que tenho pensado todos esses dias, mas não consigo encontrar. Não sei onde falhei como pai.
- Se é assim, o senhor tem razão, talvez à pobreza não seja o motivo. Além do mais, o que sabemos da vida? Qual será o verdadeiro motivo que está escondido por trás de tudo o que nos acontece?
- Não sei se existe algum motivo escondido, mas se existir vou descobrir, isso lhe garanto.
O delegado sorriu:
- O senhor é mesmo um homem determinado.
Álvaro, um pouco constrangido, apenas sorriu e continuou dizendo:
- Apesar de tudo o que conversamos, eu queria tentar junto à companhia telefônica e também com o detetive. Pode me ajudar?
- Claro que sim.
O delegado escreveu alguma coisa em um papel e entregou a Álvaro, junto com um cartão de visita.
- Neste papel está o nome da pessoa com quem deve falar na companhia, e este cartão é o do detetive meu amigo. Se seu filho estiver em alguma favela, com certeza ele o encontrará. Tenha boa sorte, e se o encontrar, me comunique, estou muito interessado em saber notícias dele. Aqui está o telefone da minha casa. Se não me encontrar aqui, poderá me encontrar lá.
Álvaro pegou o papel e o cartão, agradeceu e saiu. Assim que chegou em casa, antes mesmo de dizer alguma coisa a Odete, ligou para o telefone que estava anotado no papel. Falou com a companhia telefônica em nome do delegado. O homem prontificou-se a ajudá-lo. Em seguida contou a Odete e a Leandro tudo o que havia conversado com o delegado.

PROCURANDO RODRIGO

Enquanto isso, Artur chegava à casa de Rosaria. Contou-lhe tudo o que havia dito a seus pais. Ela ouviu com atenção. Assim que ele terminou de contar, disse:
- Tem certeza de que fez a coisa certa?
Artur respondeu decidido:
- Tenho!
- Então está bem. João leve-o para conhecer o resto da casa.
Antes que saia, preciso lhe dizer que aqui só moramos eu, João e Rubinho, o nosso cozinheiro.
- Só os três? Rosaria riu:
- E agora você.
- Em uma casa tão grande como esta?
- Sim.
- Mas está tudo tão limpo... Quem faz a limpeza?
- Contratei uma companhia de limpeza. Eles vêm três dias por semana e cuidam de tudo. Não precisa se preocupar, tudo que precisar estará sempre em ordem. Tenho outra companhia especializada em festas. Nas noites de festa eles trazem garçons e tudo o que é preciso. Já estou com essas companhias há muito tempo. Você tem carteira de motorista?
- Ainda não, tenho só dezessete anos.
- Você é tão alto que esqueci desse detalhe. Assim que fizer dezoito anos, lhe darei um carro.
- Um carro?
- Sim, por quê?
- Nunca pensei em ter um carro só meu!
- Pois terá. Basta apenas dar conta do seu trabalho, e terá um carro e muito mais.
Artur não acreditava em tudo aquilo. Algumas horas antes estava no barraco de Careca sem saber o que fazer da vida, e naquele momento tudo aquilo. Tinha a impressão de estar sonhando. João, em seu quarto, pensava: Outro garoto... a este não vou me afeiçoar, sei que acontecerá com ele o que aconteceu com os outros. Morrerá de tanta droga, ou do modo como Plínio morreu. Não consigo esquecer daquela noite em que ele, completamente louco, sob o efeito da droga, caiu na piscina. No dia seguinte, quando o encontramos, tive que colocá-lo no porta-malas e jogá-lo na represa. Nunca ninguém descobriu como ele havia morrido. Quando o corpo foi encontrado, a polícia concluiu que ele havia se afogado lá mesmo. Só eu que não consigo esquecê-lo, gostava muito daquele menino. Por isso não quero me aproximar deste. Sei que vai acontecer à mesma coisa, e não quero sofrer mais. Na primeira festa que houve, Artur admirou-se com tanta gente que apareceu. Logo todos estavam em volta das mesas, roletas ou nas máquinas caça-níqueis. Percebeu também que havia muita bebida e droga. As pessoas não só cheiravam, mas algumas aplicavam nas veias. A princípio ficou assustado, mas depois, também sob o efeito da droga, começou a se divertir. Seguindo a recomendação de Rosaria, foi gentil com homens e mulheres. Não demorou muito para que também se aplicasse a droga na veia. Estava totalmente dominado. Tinha ao seu alcance toda a droga que precisava. Aos poucos, foi se esquecendo da família. Quando se lembrava deles, afastava logo o pensamento com mais uma cheirada ou picada. O tempo foi passando. Quando fez dezoito anos, como Rosaria havia lhe prometido, ganhou um carro último tipo. Ficou encantado. Precisava mostrar a alguém, mas quem? Lembrou-se de Rodrigo: Onde ele estará? Será que saiu das drogas? Em uma tarde saiu com o carro e seguiu em direção à casa de Rodrigo. Estacionou o carro na frente da casa. Desceu, tocou a campainha. Uma senhora que não conhecia abriu a porta.
- Pois não!
- Queria falar com Rodrigo. Ele está?
A mulher olhou para ele com um olhar estranho. Parecia não entender o que ele dizia. Ele repetiu:
- Preciso falar com Rodrigo, ele está?
- Aqui não tem ninguém com esse nome. Deve ter errado de casa.
- Há quanto tempo a senhora mora aqui?
- Faz mais de um ano. Comprei a casa de uma senhora que ia embora para o interior. O nome dela era Glória.
- Ela vendeu a casa?
- Sim. E eu comprei.
- O filho dela estava junto?
- Encontrei-me com ela só por duas vezes, mas não conversamos muito, apenas o referente à venda da casa. Nem sabia que ela tinha um filho.
- O que será que aconteceu?
- Não sei, nem sabia que tinha um filho...
- Obrigado.
Artur ia saindo quando ouviu uma voz:
- Ei, moço! Você não era amigo de Rodrigo?
Ele se voltou e reconheceu a vizinha que sempre via quando ia visitar Rodrigo. Respondeu:
- Sou eu mesmo. A senhora sabe onde ele está?
- Ele morreu.
- Morreu? Como?
- Dona Glória o internou em uma clínica. Ele ficou lá por mais de seis meses e voltou para casa. Ela estava feliz, pois ele parecia estar curado. Mas não demorou muito e logo começou se drogar novamente. Ela quis levá-lo de volta, mas ele fugiu e foi encontrado morto em uma rua distante. Ninguém sabe quem o matou, se foi à polícia ou os bandidos. Ela ficou desolada, vendeu a casa e foi embora para o interior.
Artur precisou se segurar no portão para não cair, tão grande foi o susto que levou. Quis dizer alguma coisa, mas sua garganta secou, não conseguiu dizer uma palavra. Deu adeus com a mão, entrou no carro e saiu em disparada. Estava perto de sua casa. Olhou no relógio do carro e viu que estava na hora de sua mãe chegar em casa acompanhada de Leandro. Dirigiu-se à entrada da sua rua, do lado oposto ao que sua mãe chegava. Estacionou o carro na esquina. De onde estava podia vê-la chegando, mas ela não poderia vê-lo. Não demorou muito e ele viu o carro entrando na rua e estacionando em sua garagem. A porta se abriu, e viu sua mãe descendo. Ela estava um pouco mais magra e parecia envelhecida. Do outro lado desceu Leandro. Ao vê-los, Artur sentiu vontade de correr para eles, mas se conteve. Olhou para Leandro enquanto ele entrava na casa atrás de sua mãe. Como ele cresceu! Deve estar quase da minha altura. Minha mãe parece tão triste... O que fiz com ela? Ficou ali parado olhando a casa por um bom tempo, mas sabia que não poderia e nem queria voltar. Vivia uma outra vida, já não era o mesmo menino que eles conheciam. Tornara-se um homem adulto e já tinha vivido muita coisa. Tinha todo tipo de droga, bebida e sexo. Nunca mais poderia voltar. Estava feliz com a vida que levava. Gostava e não queria sair. Ligou o carro e voltou para a casa de Rosaria. No dia seguinte haveria outra festa, e ele aproveitaria. Estacionou o carro em frente à porta de entrada. Foi para seu quarto, sabia que àquela hora Rosaria não estava em casa, devia estar no escritório que possuía na cidade. Foi para seu quarto, estava precisando da droga, pois estava deprimido com a morte de Rodrigo e saudoso de sua família. Ver sua mãe e o irmão não lhe fizera bem. No quarto de vestir, abriu uma gaveta. Lá guardava todo tipo de droga. Resolveu inspirar um pouco de pó. Não era tão forte como aquele que aplicava na veia, mas era só o que queria naquele momento. Esparramou o pó sobre a mesa e com a ajuda de um caninho inspirou o mais profundo que conseguiu. Queria se livrar daquela tristeza que sentia. Em poucos minutos começou a sentir o efeito. Normalmente ficava alegre e feliz, mas naquele dia isso não aconteceu. Ele continuava triste. Sentou em um canto do quarto e começou a chorar, enquanto pensava. Estou aqui há quase dois anos. Durante esse tempo todo tenho atendido a todos os desejos de Rosaria e de seus amigos. Tenho realmente tudo o que preciso, mas estou só... não tenho ninguém para conversar... hoje vi Leandro, ele está um moço, e eu não acompanhei seu crescimento... e minha mãe? Está tão diferente de como era... meu pai? Como estará? Rodrigo morreu... não quero mais viver minha vida está destruída, não sirvo pra nada... Cheirou mais um pouco de pó. Ficou ali por muito tempo, até que Rosaria entrou no quarto.
- Que está sentindo, por que está chorando dessa maneira?
Ele, com muito custo, contou tudo o que havia acontecido naquela tarde. Rosaria o abraçou, dizendo:
- Isso tudo vai passar. Sabe o quanto gosto de você, sabe que pelo seu jeito de agradar consegui muito dinheiro. Por sua causa, as pessoas apostam muito. Fique calmo, entre na banheira e tome um banho. Logo vai se sentir muito bem. Seu amigo morreu porque chegou à hora dele, você não tem nada a ver com isso. Sua vida é outra, aqui está protegido.
Como uma criança, ele obedeceu. Entrou na banheira e tomou um banho demorado. Ficou dentro da banheira por muito tempo. Depois se vestiu, deitou-se na cama e adormeceu. Quando acordou já eram quase onze horas da manhã. Tentou se levantar, mas foi obrigado a se deitar novamente, sua cabeça estava pesada. Não se lembrava muito bem do dia anterior. Pensou ter sonhado com sua mãe, o irmão e Rodrigo. Estava confuso. Levantou-se, entrou no banheiro, ligou o chuveiro e entrou. Após tomar o banho, vestiu uma roupa e desceu em direção à cozinha. Encontrou no corredor João, que ia exatamente acordá-lo. Ao vê-lo, Artur sorriu.
- Ia me acordar?
- Ia sim.
Artur mexeu em seus cabelos e saiu correndo. Rindo, disse:
- Confesse! Não pode viver sem a minha companhia!
João, embora não quisesse, foi obrigado a sorrir. Ele havia tentado manter distância de Artur, mas não havia conseguido. Aos poucos foi gostando dele, e já temia muito por seu destino. Era fiel a Rosaria, trabalhava com ela havia muito tempo, mas não gostava quando ela se aproveitava de garotos ingênuos como Artur era quando chegara àquela casa. Sorrindo, acompanhou-o até a cozinha. Viu quando ele chegara à tarde anterior, sentiu vontade de ir até seu quarto, mas sabia que Rosaria não queria. Os dois chegaram juntos na cozinha. Rubinho, o cozinheiro recebeu-os:
- Até que enfim você acordou. O café já esfriou daqui a pouco o almoço estará pronto.
Artur respondeu:
- Não se preocupe com isso, não estou com fome, vou só tomar um copo com leite e esperar o almoço. Sei que não vou me arrepender.
- Não vai mesmo, nem imagina o que estou preparando.
- Nem quero saber, sabe que gosto de surpresas.
Enquanto tomava seu copo de leite João tomava café. Assim que terminou, disse:
- Estou indo para o escritório, Rosaria quer vir almoçar em casa. Disse que não está bem do estômago, por isso não quer comer em restaurante. Quer que você faça só uma sopa leve.
Jerônimo ficava contente quando Rosaria deixava a boa comida dos restaurantes para comer a sua. Disse:
- Pode ir, vou agora mesmo preparar a sopa do jeito que ela gosta.
Artur e João saíram da cozinha. João foi para fora da casa. Artur para o escritório de Rosaria. Ao chegar, lá viu o computador, que estava desligado. Lembrou-se de suas aulas e de como gostava delas. Da facilidade que tinha em aprender. Sentiu uma enorme vontade de usá-lo. Ligou, abriu o programa seu conhecido. Começou a trabalhar nele. Fez uma planilha de custos, inventou alguns números. Estava distraído quando ouviu Rosaria, que com voz brava, dizia:
- O que está fazendo aí?
Ele se assustou e virou a cadeira:
- Estou apenas brincando, me distraindo...
Rosaria se aproximou, olhou e viu que ele realmente esta¬va fazendo algo que não tinha nada a ver com seus negócios. Perguntou:
- Você sabe mexer com programas?
- Era o que mais gostava de fazer, tinha verdadeira adoração por computador. Durante muito tempo freqüentei as aulas e dizia que seria o rei do computador. Mas isso faz muito tempo, agora não sou nem serei o rei de nada...
- Isso agora não tem importância. Preciso saber se sabe mesmo mexer com esse negócio.
- Sei claro que sei, e o que não sei posso aprender.
- Sabe o tipo de negócios que tenho e que a galeria é só uma fachada. A pessoa que cuidava de tudo faleceu e eu não confio em mais ninguém. Ele trabalhou ao meu lado durante muito tempo. Tenho cópias dos arquivos guardados no cofre. Será que consegue decifrar o programa e continuar o trabalho? Lá estão todos os nomes de fornecedores, clientes e pontos de venda. É um programa feito especialmente para isso. Quero que tente modificá-lo, que fique de uma maneira que só você conheça. Acha que pode fazer isso? Artur pensou um pouco, depois respondeu:
- Agora no momento não sei se posso fazer isso, mas se tiver alguns dados e um computador, tentarei. Talvez consiga.
- Está bem, hoje mesmo depois do almoço irá comigo até o escritório. Lá estudará um meio de fazer isso, mas ninguém pode saber que mora comigo, nem que o conheço. Será apenas mais um empregado. Terá um bom salário e, se conseguir esse programa, terá tanto dinheiro como nunca sonhou.
Artur sorriu. Estava feliz com a vida que levava. Quase nunca se lembrava de sua família. Quando isso acontecia, entrava em depressão, mas nada que uma dose de droga não afastasse. Algumas vezes sentia falta de fazer alguma coisa, tinha muito tempo livre e isso o aborrecia. Mas estava tendo a chance de trabalhar e, o mais importante, poderia voltar ao computador, o seu sonho. Depois do almoço foi junto com Rosaria até a galeria. Desde aquela primeira vez, ele nunca mais voltara ali. Tomaram o elevador, desceram no oitavo andar. Rosaria saiu na frente, seguida por Artur. Chegaram a frente à porta, onde estava à placa. Rosaria abriu a porta. Artur se deparou novamente com aquele ambiente de muito luxo. Uma moça estava sentada atrás de uma mesa decorada com um vaso de flores frescas. Não era a mesma recepcionista da vez anterior. Rosaria, sorrindo, disse:
- Olá, Vera, este é Fred, vai trabalhar conosco.
Ela olhou para Artur e ficou encantada com a bela figura de homem que estava a sua frente. Disse:
- Muito prazer, e seja bem-vindo.
Ela se encantou, e realmente tinha razão para isso. Ele se tornara um belo rapaz. Mais velho e encorpado, estava longe daquele garoto com o rosto cheio de espinhas. Ele apenas sorriu. Rosaria continuou andando, virou à direita e entrou em um corredor comprido. Artur notou que havia várias salas e que pessoas trabalhavam nela. Ia olhando tudo e seguia Rosaria. Notou que as pessoas sabiam que eles estavam ali, mas que não olhavam. No corredor um rapaz se aproximou:
- Boa tarde, dona Rosaria.
- Boa tarde, Gilberto. Este é Fred, vai trabalhar ao seu lado. Quero que o ajude em tudo que precisar.
- Fico contente. Seja bem-vindo, Fred. Estarei ao seu dispor, pode pedir tudo o que precisar.
Rosaria disse:
- Fred, este é Gilberto. Ele faz tudo aqui, e entende alguma coisa de computador.
Artur sorriu:
- Olá, Gilberto, espero que possamos nos dar bem.
- Se depender de mim, nos daremos sim.
- Podem começar agora mesmo. Gilberto acompanhe Fred até a sala dos computadores. Mostre todos a ele, estarei em minha sala.
- Sim senhora. Venha, Fred.
Artur o acompanhou. Entrou em uma sala onde havia vários computadores. Todos estavam ligados e mostravam muitos números. Perguntou:
- Que números são esses?
- Não sei, não tenho acesso a eles.
- Mas dona Rosaria disse que você entende alguma coisa.
- Entendo de folha de pagamento, contas a pagar e a receber, mas isso aí não entendo não.
- Gostaria de ver do que se trata.
- Sente-se e fique à vontade. Vou para minha sala, aquela segunda à esquerda. Se precisar, basta me chamar.
- Obrigado.
Gilberto saiu. Artur sentou-se em frente ao computador e começou a estudar.
Olhou, olhou. Alguma coisa sabia, mas para entender aquilo precisava de mais. Foi até a sala de Rosaria e disse:
- Rosaria, estive vendo o programa, acredito que possa entrar nele e descobrir como foi feito, mas para isso preciso de alguns livros. Posso ir até uma livraria e pesquisar qual seria o melhor livro para comprar?
- Pode ir e comprar o que precisar.
- Posso levar Gilberto comigo?
- Claro que sim. Ele é um bom rapaz.
Artur saiu da sala e foi para a de Gilberto. Contou a ele o que precisava e os dois saíram juntos. Daquele dia em diante, uma amizade grande começou entre os dois. Trabalhavam, almoçavam e tomavam o lanche juntos. Em menos de um mês descobriram como operar o programa. Tinham todo o controle de como a droga chegava ao país e como era distribuída. Muitos nomes apareceram. Artur sabia que eram fictícios, mas aquilo não lhe importava. Queria mesmo era que Rosaria ficasse feliz com seu trabalho. Aprendeu a se controlar com respeito às drogas. Tendo sempre que queria, não havia mais ansiedade. Só usava nas festas de Rosaria e nos fins de semana, algumas vezes durante a noite. Sua vida estava perfeita. Tinha dinheiro, drogas e um amigo com quem podia conversar. Gilberto era um pouco mais velho que ele, mas isso não fazia diferença. Os dois tinham os mesmos gostos, só que Gilberto não usava drogas e dizia:
- Fred, você tem que parar isso não vai levar a nada...
- Vou parar, um dia...
Gilberto logo percebeu que esse dia nunca chegaria, mas gostava de Artur. A vida foi continuando. Sempre que Artur se lembrava da família, mandava um cartão dizendo: Estou bem, não se preocupem, amo a todos. Cada vez que esse cartão chegava, era um motivo de tristeza e de felicidade. Álvaro lia e dizia:
- Por que isto está acontecendo?
Odete respondia:
- Não sei qual é o motivo, mas segundo a minha mãe, tudo está sempre certo. Ao menos sabemos que ele estava vivo.
Foi inútil a tentativa do detetive para descobrir. Investigou de todas as maneiras que conhecia, visitou favelas, consultou pessoas, mas não adiantou. Certa manhã telefonou para Álvaro:
- Sinto muito, doutor, mas não consegui encontrar o seu filho. Ele não está em nenhum ponto conhecido.
- Onde estará?
- Não sei o que lhe dizer, mas de acordo com a minha experiência, ele deve estar sendo protegido por alguém poderoso.
- Como assim?
- Não sei lhe dizer, mas correm boatos de que existem homens e mulheres que ajudam garotos em troca de favores.
Álvaro estremeceu:
- Que está dizendo? Acredita que meu filho pode ter se tornado um garoto desses?
- Não sei, mas o desaparecimento dele pode significar isso.
- Meu Deus, não pode ser...
- Sinto muito, mas vou continuar procurando.
- Faça isso, e não se preocupe com o dinheiro.
- Continuarei procurando, pois se tornou uma questão de honra, e o senhor não precisa pagar. O dinheiro que me deu foi o suficiente. Farei o possível. Até qualquer dia. Espero retornar com boas notícias.
Álvaro colocou o telefone de volta ao gancho e ficou com os olhos perdidos no passado. Lembrou-se da sua infância, do quanto havia trabalhado para que nunca faltasse nada a sua família. Do que adiantou eu ter planejado a minha vida? Não contou a Odete o que o detetive havia dito, sabia que ela sofreria ainda mais. Aos poucos a vida foi voltando ao normal. Odete continuou dando aulas. Prestava mais atenção aos alunos e, a qualquer mudança, chamava os pais e os alertava. Rosinha foi operada várias vezes, já estava andando quase perfeitamente. Para ajudar com o tratamento, Álvaro alugou uma casa perto do hospital e dava uma pensão mensal para que sua mãe pudesse levá-la para fazer fisioterapia. Dinheiro para isso não faltava. Ele, que já tinha bons clientes, conseguira muito mais. Leandro continuava estudando, não queria nem saber de drogas, embora muitas vezes lhe oferecesse. Toda a noite, ao seu modo, conversava com Deus, pedindo que Artur voltasse para casa. Após muita insistência de Noélia, Odete e Álvaro começaram a ler alguns livros que falavam sobre a espiritualidade. A princípio Álvaro se recusara, ele sempre acreditara só no seu trabalho. Mas com tudo o que havia acontecido, e após ler alguma coisa, começou a acreditar que havia algo além daquilo que pensava. Começaram a freqüentar o centro aonde Noélia ia. Os cartões de Artur lhes davam a tranqüilidade para continuar. Novamente naquela casa existia uma relativa paz. Artur e Gilberto continuavam com a amizade, mas ela se restringia ao escritório. Ele foi proibido por Rosaria de contar a qualquer pessoa, até mesmo a Gilberto, que morava com ela e que conheciam pessoalmente muitos dos nomes que apareciam no programa. O tempo passou, como sempre. Artur ia completar vinte anos. Fazia quase quatro anos que saíra de casa. Rosaria estava feliz com seu trabalho e companhia, por isso programou uma grande festa. Artur estava feliz, pois sabia que ela lhe daria um apartamento como pagamento pelo êxito do programa. Rosaria tinha tudo sob controle. Embora Artur estivesse em um caminho não muito bom, estava feliz, sem se preocupar com milhares de jovens que como ele entrava nas drogas. O que lhe interessava era só o dinheiro que ganhava com aquilo. Seguia ajudando Rosaria a ter cada vez mais dinheiro. Gilberto continuava ao seu lado. Um dia, enquanto estavam os dois na sala, trabalhando no computador, Gilberto disse:
- Sabe Fred, conheci uma moça. Ela é muito bonita e inteligente. Estou pensando em ficar noivo e me casar.
- Casar?! Para quê?
- Para que as pessoas se casam? Lógico que é para estarem juntas e ter filhos...
- Filhos?! Jamais terei um filho!
- Por quê?!
- Não quero que aconteça comigo o mesmo que aconteceu com meus pais. Eles me criaram com tanto carinho e dedicação, no fim foi essa a paga que lhes dei, tornei-me um drogado.
- Sempre pode voltar a ser como era antes.
- No princípio, pensei muito sobre isso, hoje não penso mais. Estou vivendo muito bem e fazendo o que gosto. Trabalho com computador e uso a droga que quiser, sempre que sentir vontade. Vou reclamar do quê?
- Sabe que a droga só o conduzirá a um fim triste. Hoje tem dona Rosaria, mas se ela faltar? Não está preparado para a vida. Não estudou.
- Nem quero pensar nisso. Além do mais, o que aprendi sozinho no computador com certeza me dará um bom trabalho, que será suficiente para manter a droga que preciso.
- Não sei, mas acredito que não estejamos nesta vida somente para viver. Acredito que todos nós tenhamos algo mais para fazer. Uma missão sabe lá...
- De onde tirou essas idéias?
- De alguns livros que estou lendo. A moça que conheci me emprestou.
- Esses livros falam sobre o quê?
- Da vida aqui na Terra e após a morte.
- Depois da morte? Está louco?! Depois da morte não existe nada!
- Será mesmo? Será que Deus nos colocou aqui na Terra, nos diferenciou dos animais, nos deu inteligência para aprendermos tanta coisa para, no final, nos destruir sem mais nem menos? Não acredito nisso. Acho que ele quer que cresçamos espiritualmente...
Artur começou a rir:
- Que Deus?! Aquele mesmo que inventou as drogas? Que permite todas essas mazelas no mundo? Toda essa pobreza? Não! Sinto muito, meu amigo, mas esse Deus não existe! O que existe são só as oportunidades, que podem levar qualquer um até o mais alto grau de riqueza. Sem essas oportunidades, não tem chance, não!
- Não estou falando de riquezas, mas de algo muito além, da eternidade...
- Não sei se ela existe. O que sei é o que estou vivendo aqui e agora. Isso eu sei que existe verdadeiramente, o resto é tudo história. Ninguém nunca voltou pra contar.
- Pois eu acredito que haja algo mais.
- Então espere! Eu continuarei vivendo a minha vida do modo como está. Tive uma oportunidade, aproveitei e aqui estou rico e feliz.
- Se você acredita ser feliz, quem sou eu para contrariá-lo?
Artur não respondeu. Continuou olhando para o computador.

NA ESPIRITUALIDADE

Uma moça subia correndo uma escadaria. No alto havia uma porta grande feita em madeira entalhada. Ela entrou pela porta. Atrás da porta havia uma sala grande, muito bem decorada. Na sala havia muitas portas. Ela se dirigiu a uma delas. Bateu com suavidade e abriu. Colocou a cabeça pela porta, dizendo:
- Posso entrar?
Essa sala também era grande. Atrás de uma mesa e sentado estava um homem com cabelos grisalhos, olhos brilhantes e um sorriso bonito. Respondeu:
- Letícia! Claro que pode entrar! Ela entrou:
- Olá, André! Preciso conversar com você!
- Claro, estava esperando por você. Sente-se. Ela, enquanto se sentava, dizia:
- Conforme o planejado está se aproximando o tempo em que devo renascer na Terra.
- Não gosta de viver aqui?
- Sim, aqui vivo bem, sei que estou protegida, mas estou ansiosa para me encontrar com Miguel.
- Só por isso quer ir para lá?
- Sim.
- Já não será mais necessário.
- Como não? Por quê?
- Ele vai regressar.
- Mas ainda não cumpriu o tempo! Não cumpriu sua missão!
- Infelizmente não, mas está se desviando do caminho, deixou-se novamente envolver pelo vício.
Letícia arregalou os olhos. Disse quase chorando:
- Não pode ser novamente...
- Estou tão triste quanto você, mas não posso fazer nada. Para seu próprio bem, ele terá que voltar para cá.
- Não diga isso, precisa esperar mais um pouco... Foi tudo planejado... Ele tem uma missão importante...
- Sei disso. Lembra-se de quando todos juntos, aqui nesta mesma sala, planejamos como seria a reencarnação dele?
- Sim, claro que me lembro. Estou todo esse tempo esperando a hora para estar a seu lado.
- Sei disso, minha filha, sei também que está muito triste, mas sabe que precisa ser assim. O livre arbítrio é a maior bondade de Deus para com todos nós. Graças a isso podemos escolher e percorrer nosso caminho. A única coisa que Deus deseja é o nosso aprimoramento.
- Tem certeza que não há mais nada que se possa fazer?
- Sempre existe a chance de se retornar, mas para isso é preciso muita força de vontade, e neste momento o que ele menos tem é isso.
- Não! Não posso aceitar! Temos de encontrar uma maneira! Poderia ir agora até onde ele está?
- Deseja mesmo? Não importando o que vai encontrar?
- Sim, desejo. Talvez possa fazer com que mude de idéia...
- Está bem, esse também é o meu desejo. Vamos.
Em poucos segundos estavam no quarto de Artur. Começava a anoitecer. Ele estava injetando cocaína na veia. Colocava a agulha sem muito cuidado. Letícia, ao ver aquilo, desesperou-se. Tentou evitar, mas foi contida por André.
- Não pode fazer isso! Se tocar nele, sua energia poderá lhe ser fatal. Ele está usando seu livre arbítrio, não podemos interferir.
Ela se afastou. Ficou olhando para Artur com os olhos cheios de lágrimas. Não queria acreditar no que estava vendo. André, condoído, disse:
- Posso imaginar o que você está sentindo. Mas quando ele retornou, sabíamos que poderia se deixar envolver novamente pelo vício.
- Sei disso, mas ele prometeu! Ele disse que conseguiria ser forte! Fizemos tantos planos... Para vivermos no céu!
- Infelizmente, ele não está pronto para a missão que devia cumprir, muito menos para ir pro céu.
- Isso não pode acontecer! Esta é a última chance que teremos para nos encontrarmos, sermos felizes e juntos escalarmos para um plano mais alto.
- Você já está pronta, poderá ir quando quiser.
- Não irei sem ele! Acredita que conseguiria ficar bem sabendo que ele não está?
- Você também pode exercer o seu livre arbítrio, também pode escolher.
- Sei disso, por isso mesmo estou dizendo que não irei sem ele.
- Está bem, mas sabe o risco que está correndo. Aqui está bem, pode exercer um trabalho edificante. Voltando para a Terra, poderá ser envolvida pelos problemas dele e sofrer com isso. Mas se quer mesmo, vamos tentar mais uma vez.
Estendeu a mão em direção a Artur. De seus dedos saíram luzes prateadas, que envolveram Artur por inteiro. Ele abriu os olhos, como se tivesse despertado. Caminhou em direção a um canto do quarto e sentou-se. Com os olhos parados, começou a relembrar seu passado, desde o dia em que, na festa, fumara o primeiro cigarro de maconha. Letícia podia ver seus pensamentos, acompanhava tudo com atenção. Artur chegou ao momento exato em que Álvaro acusava Iracema pelo roubo do colar e ele, calado, assistia a tudo. André olhou para um lado do quarto, segurou no braço de Letícia e, com um sinal, fez com que ela olhasse também. Lá estavam duas moças e três rapazes, que também assistiam a tudo. Sorriram ao vê-los chegar. André correspondeu ao sorriso. Perguntou.
- Como estão às coisas?
Um dos rapazes respondeu:
- Infelizmente, não estão muito bem. Estivemos nesse dia o tempo todo ao seu lado, alertando-o, fazendo com que pensasse, tentamos fazer com que retornasse ao caminho, mas ele pareceu não nos ouvir. Estava dominado pelo vício e com medo que o descobrissem.
André, com uma sombra de tristeza em seus olhos, não disse nada. Letícia, emocionada, não se conteve. Correu para abraçá-lo, mas não conseguiu. Uma espécie de nuvem densa a impediu. Ela olhou para André, que sorriu.
- Esqueceu que estamos em outra faixa? Esqueceu que ele agora possui um corpo humano?
- Sim, esqueci, mas o que ele está fazendo? Por que Nestor está gritando e Amélia chorando?
- Vejo que os está reconhecendo.
- Claro que sim! Somos companheiros de várias encarnações! Juntos vencemos várias etapas.
- Sim, é verdade. Desta vez, todos vieram só com um objetivo: ajudar Miguel. Nestor e Amélia vieram como pais de Miguel para lhe dar segurança e apoio. Sabíamos que esse encontro seria inevitável, seria a oportunidade de se perdoarem, ajudarem e juntos fazerem um grande trabalho em favor da humanidade.
- Lembro-me muito bem de quando tudo isso foi decidido, mas por que não deu certo? Também não me respondeu por que Nestor está gritando.
- Você sabe que entre todos, Miguel era o que mais precisava de ajuda, pois na realidade a missão era dele. Os outros só lhe dariam apoio e segurança para que ele a cumprisse. Naquele dia, ele estava se desviando do caminho e estava tendo mais uma chance para retornar. Essa foi à hora. Você precisa saber o que ele fez.
Letícia prestou atenção no que estava se passando. Aos poucos foi entendendo o que havia acontecido. Olhava para Artur com intensidade e em pensamento dizia: Miguel, meu amor! Por que não contou a verdade? Por que não defendeu Marilu? Por que não aproveitou essa chance de retornar ao caminho? Ao nosso caminho! Precisa voltar para o caminho e poder, assim, cumprir sua missão! Retorne para que eu possa voltar e ficar ao seu lado... Artur continuou relembrando. Naquele dia, sentira vontade de contar toda a verdade a seu pai, mas não tivera coragem, ficara calado. Quando Álvaro saiu para a delegacia levando consigo Iracema, André olhou para Letícia e os jovens que ali estavam. Disse:
- Infelizmente, naquele momento, calando-se, ele perdeu a chance de voltar.
Letícia, desesperada, disse:
- André, por favor, permita que eu continue ao lado dele. Permita que eu tente ajudá-lo, nem que seja só para intuí-lo...
- Ele agora vai adormecer. Quando isso acontecer, o levaremos conosco. Assim poderemos conversar e tentar ajudar.
Letícia sorriu. Olhou para Artur, que continuava encostado no canto da parede e relembrando. Com os olhos marejados, olhou para André. Este entendeu o que ela queria. Disse:
- Está bem, pode ficar com ele. Eu e os jovens daremos um passe para que se lembre de tudo e consiga entender o que está passando. Já sabemos tudo o que aconteceu naquele dia. Você estava se preparando para renascer, por isso não acompanhou todo o processo. Permaneça ao seu lado e saberá.
Ela sorriu:
- Obrigada, André. Sinto que encontrarei uma maneira de ajudá-lo, ao menos farei o possível.
- Está bem.
Após dizer isso, juntamente com os jovens, deu um passe em Artur. Ele sentiu muito sono, levantou-se e foi para a cama. Estava com os pensamentos confusos. Letícia sabia que não podia se aproximar. Um pouco distante, disse:
- Miguel, meu amor, estou aqui. Sei que conseguirá vencer. Sei que conseguiremos nos encontrar e ser felizes, desta vez para sempre.
Artur sentiu um bem-estar enorme. Ela se aproximou, começou a jogar sobre ele muita luz branca, que o foi envolvendo. Ele, as poucos, adormeceu. Ela ouviu uma risada que vinha por detrás de suas costas. Voltou-se e viu um homem que ria muito. Ao vê-lo, ela arregalou os olhos:
- Hélio?! Que está fazendo aqui?!
Com um tom irônico de voz, disse:
- Linda Letícia! Está novamente tentando ajudar esse perdedor?
- Sim, estou aqui tentando ajudar não um perdedor, mas o meu amor.
Ele continuou tendo em seu rosto um ar de deboche. Sorrindo com o canto dos lábios, disse:
- Amor... Amor... Amor... O que é isso? Sabe que não adianta! Isso de amor é só uma desculpa para se continuar errando.
- Por que está dizendo isso? Por que continua com tanto ódio e rancor?
- Você me pergunta isso? Logo você?
- Sabe que sempre quis a sua felicidade. Sabe que sempre estive ao seu lado... E que sempre fui sua amiga...
Ele, raivoso, disse:
- Não me venha com essa conversa de santa querendo me enganar! Sabe que não acredito em você, nem em toda essa baboseira de amor e perdão! Estou aqui e vou ficar até que consiga fazer com que ele volte, e novamente derrotado.
- Sabe que ele tem uma missão importante! Não pode continuar fazendo isso! Não pode continuar prejudicando-o!
- Prejudicando? Eu? Prejudicando? Como pode dizer isso? Logo você, que sabe muito bem o que ele me fez!
- Foi em outro tempo, em outra vida! Ele agora se arrependeu, está tendo uma nova oportunidade. Você, em vez de prejudicá-lo, deveria ajudá-lo para que vença! Sabe que se o ajudar também será ajudado! Também poderá voltar para a Terra! Evoluir para a luz!
Ele, sorrindo com ar de deboche, disse:
- Que retornar? Que luz? Ainda acredita nisso?
- Claro que sim! Todos têm oportunidade de evoluir!
- Você é muito ingênua. Acredita mesmo em toda essa baboseira? Eu, por minha parte, só acredito no ódio que sinto e no meu desejo de vingança!
- Só está fazendo mal a você mesmo! Enquanto não encontrar o perdão e o amor, continuará assim, envolto nessa nuvem negra que o impede de usufruir de toda a beleza que Deus nos dá.
- Não quero ouvir nada disso! Você é como tantos outros, só fica sonhando com algo que não existe!
- Claro que existe! Enquanto você está aqui tentando se vingar, está deixando de aprender, está deixando de encontrar as pessoas que o amam e sofrem por sua causa.
- A única coisa que me interessa é me vingar dele e de você! Foram os responsáveis por eu estar assim!
- Não fomos os responsáveis! Você não aceitou o nosso amor! A nossa união!
- Não vou aceitar nunca! Só vou ficar bem quando conseguir destruir os dois para sempre!
- Não diga isso... Pense em tudo o que está perdendo...
- Só quero pensar nisso! Não pensarei em outra coisa! Nunca! Também não quero mais ficar aqui ouvindo você! Vou embora! Voltarei quando ele acordar e vocês não estiverem mais aqui!
- Não vai conseguir, ficarei ao lado dele o tempo todo.
- Pode ficar o quanto quiser! Ele não notará a sua presença! Ele atrai a minha energia, não a sua!
Sem se despedir, e antes que ela dissesse qualquer coisa, ele desapareceu. Letícia olhou para Artur, que continuava dormindo. Embora seu corpo estivesse dormindo, seu espírito, entorpecido pela droga, estava fora do corpo, mas desesperado, pois queria sair do quarto. Porém, não conseguia, ficava andando de um lado para o outro. Desesperado, retornou ao corpo e despertou. Levantou-se, foi para a gaveta onde estava a droga, pegou uma seringa e se aplicou. Com lágrimas, Letícia o acompanhou enquanto ele se aplicava a droga. Ela dizia:
- Só você, meu amor, poderá encontrar a sua paz... Está em suas mãos o seu destino... Ficarei ao seu lado todo o tempo que me for permitido. Lute meu amor... Lute...
Após terminar de aplicar-se a droga, ele ficou ali relembrando. Letícia percebeu que sob o efeito da droga não conseguiria atingi-lo com seus pensamentos. De longe, jogava sobre ele luzes que o envolviam. Ele continuava pensando e, assim, Letícia ia tomando conhecimento de tudo. Ele se lembrou do que fizera quando Álvaro levara Iracema para a delegacia, do dia em que fora preso e das palavras do delegado aconselhando-o a deixar aquela vida. Lembrou-se do desespero de seus pais quando tomaram conhecimento, da mendiga bêbada que lhe dera dinheiro para que pudesse voltar para casa, do garçom que lhe dera um copo de leite. Lembrou-se até de Careca, que a princípio também o aconselhara. As imagens iam passando por seus pensamentos. Letícia, chorando, acompanhava tudo. Sentia-se impotente, amava Artur. Atingira um estágio de desenvolvimento espiritual no qual poderia ficar sem reencarnar e atingir um plano mais alto. Mas não quis, nem queria seguir sem ele. Por isso estava ali. Lutaria para fazer com que ele retornasse. Sem que ela pudesse fazer qualquer coisa, ele se levantou e se encaminhou para o jardim. Ela ficou ali parada. Um dos rapazes da equipe entrou. Ela disse:
- Ele está saindo para a rua!
- Não se preocupe, eu vou acompanhá-lo, agora só precisa de espaço para andar. Andarei com ele.
- Não vai deixá-lo sozinho?
- Claro que não. Eu o estarei protegendo de assédios indesejáveis. Agora ele só vai sentir o efeito que a droga lhe causa. Logo mais voltará e dormirá.
- Está bem. Vou falar com André para ver se posso permanecer aqui.
Ela deu uma olhada em Artur, que estava abrindo o portão e saindo para a rua. O rapaz correu para alcançá-lo. Ela sorriu tristemente e foi em busca de André. Entrou na sala. André conversava com Osmar, o responsável pela equipe que lá se encontrava. Ela se aproximou e em silêncio ficou ouvindo. André perguntou:
- Como ele está?
Letícia respondeu:
- Não está bem, aplicou-se a droga e saiu acompanhado por Inácio.
- Está em boa companhia.
- Hélio estava lá no quarto dele.
- Hélio?
Ela fez que sim com a cabeça. Osmar disse:
- Ele está ao lado dele desde o início. Tentamos afastá-lo, mas Miguel não permite. Com sua energia de tristeza, medo e insegurança, o atrai. Hélio se aproveita e o domina. Ele tem muito ódio ainda!
André tinha uma sombra de tristeza em seus olhos. Disse:
- Infelizmente, Hélio não conseguiu perdoar, por isso sofre e faz sofrer.
Letícia disse:
- Não podemos fazer nada quanto a isso?
- Receio que não, ao menos por enquanto. Miguel terá que reagir e não permitir que ele se aproxime.
- Ele não fará isso, não tem condições, está totalmente dominado.
André voltou os olhos para Osmar:
- O que lhe parece? Acredita que ele vai conseguir reagir?
- Não sei, estamos tentando, mas todos aqui sabemos o quanto isso é difícil, todos nós já passamos por isso.
- É verdade, todos da equipe também foram viciados, por isso tentam ajudar as pessoas que estão com o mesmo problema. Estão conseguindo algum êxito?
- Sim. Graças a Deus, sempre há um ou outro que consegue se livrar do vício. Sempre é mais fácil quando os amigos intercedem a seu favor. Se todas as famílias e amigos soubessem como é importante a oração, tudo se tornaria um pouco mais fácil.
- Você sabe que sempre demora um pouco, mas no final, a única esperança que resta é orar. E isso todos acabam fazendo.
- Esse é o nosso trabalho, inspirar os familiares e amigos para isso. Mas algumas vezes, após muitos ou pequenos crimes, idas e vindas da prisão, brigas e ofensas, casas roubadas e destruídas, alguns pais, inconscientemente, desejam que seus filhos morram para que eles próprios tenham paz.
- Sim, isso acontece muitas vezes, e eles sofrem por terem esses pensamentos.
- Para isso estamos aqui. Nossa equipe é formada pela quantidade de pessoas que estão envolvidas. Cada um fica ao lado de uma pessoa envolvida. Por isso estamos aqui, em cinco, pois temos cinco irmãos envolvidos.
Letícia interrompeu:
- Quer dizer que se a família fosse maior ou menor, a equipe também seria diferente?
- Sim. Aqui temos um pai, uma mãe, um irmão e a empregada.
- Ela não faz parte da família!
André sorriu:
- Ela não faz parte da família terrena, mas da espiritual é um membro importante. Sei que você se lembra dela. Vi quando a reconheceu.
- Também reconheci Nestor, Amélia e Mário, que está ainda em um corpo de criança.
- Pois é, é Marilu.
- Mas ela está muito diferente!
- Sim, mas é ela mesma. Lembra-se de como foi decidida à volta de Miguel? Lembra-se que ela também estava naquela reunião?
- Sim, eu me lembro.
- Ela, desta vez, retornou no corpo de uma mulher pobre e tendo que criar sozinha vários filhos. O encontro dela com Miguel estavam programados. Eles teriam a oportunidade de se perdoar e ajudar mutuamente.
- Estou entendendo, mas parece que não deu certo.
- Sim, mas não por culpa dela. Bem que tentou conversar com ele, alertá-lo. Ele não quis ser ajudado, exerceu seu livre arbítrio. Tinha esse direito.
- Agora precisamos voltar. Não temos mais nada para fazer aqui, ao menos por enquanto.
- André, queria lhe fazer um pedido.
- Já sei, quer ficar aqui, mas sabe que não pode.
- Por quê?
- Você tem seus próprios compromissos e trabalho, não pode simplesmente abandonar tudo. Para isso existem as equipes. Já percebeu que eles estão fazendo tudo para ajudar a todos.
- Sei disso, mas Hélio disse que iria embora, mas que voltaria quando saíssemos. Se eu ficar, ele não vai mais se aproximar.
- Sabe que não estava dizendo a verdade, sabe que o próprio Miguel o atrairá, e você não poderá fazer nada.
- Se eu ao menos pudesse conversar com ele! Se ele me visse e ouvisse, poderia se lembrar de tudo! Poderia entender que o que está fazendo não está prejudicando só a ele, mas a todos nós!
Se continuar assim, vai impedir que eu volte! Sua missão não será cumprida e ele desencarnará antes do tempo! Preciso conversar com ele! Por favor, André! Permita! Sei que pode!
André aproximou-se e abraçou-a, dizendo:
- Minha filha... Sei que está tentando tudo, mas sabe que isso não é possível... Ele sozinho tem que decidir o que fazer... Se você aparecer para ele e contar tudo, ele com certeza se lembrará do amor e dos compromissos que existiam entre vocês dois. Talvez até retorne ao caminho, mas qual seria o seu mérito? O que ele aprenderia? Continuaria para sempre sendo um espírito inseguro, covarde, sem condições de fazer suas escolhas.
- Desculpe, é que estou desesperada.
- Pois não devia ficar assim, já aprendeu o bastante para saber que tudo está certo de acordo com a lei maior. Nada está errado. Não poderei fazer com que ele a veja, mas posso fazer com que pense que sonhou. Já sei o que faremos. Hoje à noite, quando todos estiverem dormindo, os levaremos para a minha sala e lá poderemos recordar os compromissos assumidos. Poderemos fazer com que Miguel se lembre da missão que tem que cumprir. Está bem assim?
Letícia e Osmar sorriram, sabiam que seria uma boa oportunidade. Letícia humildemente disse:
- Obrigada, André, sabia que tentaria tudo o que estivesse ao seu alcance.
- Vamos nos reunir e, depois disso, teremos que tomar uma decisão.
- Está bem. Queira Deus que consigamos ajudá-lo. Posso lhe perguntar algo que está me incomodando?
- Claro que sim, o que é?
- Por que Deus permite que exista droga no mundo? Por que alguns a usam e outros não?
André começou a rir. Respondeu:
- Essa é uma pergunta que muitos fazem principalmente aqueles que estão diretamente envolvidos não só com as drogas, mas com a bebida, que também prejudica muitos espíritos, fazendo com que estacionem e percam sua encarnação e, por isso, sejam obrigados a renascer novamente. Em sua maioria, essas reencarnações são acompanhadas de muita dor e sofrimento, necessários para o aprimoramento do espírito.
- Mas por que existem os vícios?
- Se olhar agora para o alto verá o firmamento. Daqui de onde estamos pode ver as estrelas e a lua, que hoje está na sua fase crescente. Se fosse dia, veria um céu azul, com nuvens e o sol brilhando. Sabe que além deste sistema existem muitos outros planetas, luas e sóis. De qualquer planeta que estiver, verá esse mesmo firmamento, com toda a sua beleza. Tudo isso foi criação de uma força maior. Tudo no firmamento está em perfeita ordem e sob uma lei que comanda tudo, evitando que haja choque entre os planetas, estrelas, luas e sóis. Espiritualmente dizendo, existem planetas mais ou menos evoluídos que este ao qual chamamos de Terra. Também no princípio a natureza foi criada perfeita. Há terra, água e ar, indispensáveis à sobrevivência do ser humano. A certa altura, espíritos revoltados e que precisavam de aprendizado foram enviados para cá. Não tinham o que vestir, onde morar ou o que comer, porém sabiam que teriam de sobreviver. Embora estivessem nessa situação, nunca estiveram sós. Sempre esteve sob a proteção maior, assim como os adultos que ensinam as crianças a comer, falar, andar, etc., e, sobretudo, lhes dão proteção. Esses espíritos precisavam evoluir, e isso só seria conseguido se aprendessem a lutar contra seus medos, ódios e desejos de vingança. Tinham a chance de recomeçar e reparar os erros passados. Não tinham lembrança do passado, mas sabiam que precisavam sobreviver. Por isso tiveram que aprender a caçar, lutar contra os dinossauros e todos os animais que existiam. Moravam em cavernas, aprenderam a caçar e a beber água. Eram espíritos embrutecidos, trouxeram com eles muito ódio e rancor. Começaram a se juntar em pequenos grupos e fazer suas próprias leis. Os mais fortes fisicamente tornaram-se os líderes e descobriram o poder. Isso fez com que começassem a guerrear entre si. Eles não conheciam nada sobre espiritualidade, mas sabiam que existia algo além, por isso adoravam os elementos da natureza, inclusive animais. Precisavam evoluir ainda mais. Embora tenham sido mandados para cá, deixaram atrás de si outros espíritos amigos e companheiros de jornada. Esses, assim como você está tentando fazer agora, não se conformavam em ficar bem sabendo que seus amigos não estavam. Por isso, veio ajudá-los. Renasceram naquele ambiente hostil somente para auxiliar seus amigos. Com isso foi descoberto o fogo, a roda e tudo o mais, que foi facilitando a vida para eles. Sempre houve aqueles que inventaram isso ou aquilo. Letícia o interrompeu:
- O que tudo isso tem a ver com as drogas e o vício?
- Já chego lá. Eles foram evoluindo, conseguindo apetrechos para facilitar sua vida, mas sempre que ficavam doentes ou sofriam um acidente, não tinham uma anestesia e sofriam muito. Foram descobrindo que muitas plantas lhes proporcionavam uma espécie de anestesia e que, com ela, conseguiam evitar um pouco a dor física. A Ciência foi evoluindo, e surgiu a primeira droga que serviria como anestesia. A essa altura eles já haviam descoberto que o dinheiro lhes dava poder. Outras drogas foram surgindo. Por isso, aos poucos, essa droga, que a princípio deveria ajudar, transformou-se em uma fonte de dinheiro e poder. Para o bem da humanidade, as drogas não poderiam desaparecer. O espírito teria que conviver e vencer todas elas. Só quando conseguisse isso estaria em condições de se elevar.
- Está dizendo que elas não serão exterminadas? Que continuarão destruindo vidas?
- Sim. Uma parte da Ciência continuará se dedicando à luta para encontrar cura para as doenças, e para isso as drogas são necessárias. Outra parte se especializará em tornar as drogas cada vez mais potentes.
- Assim vai ser difícil combatê-las...
- Sim, é difícil, mas é uma batalha que cada um terá que travar. Para isso temos o nosso livre arbítrio. O espírito só estará pronto quando conseguir se libertar de todos os vícios.
- Mas não só os espíritos menos evoluídos aceitam o vício.
- Não, na maioria, assim como está acontecendo com Miguel, eles trazem consigo uma missão importante não só para a elevação de seu próprio espírito, mas para a humanidade.
- E se não conseguirem? Se deixarem dominar pelo vício?
- Será ruim para eles mesmos, ou para outros, como está acontecendo agora com você e Miguel. Por ele ter se deixado envolver pela droga não está só perdendo uma oportunidade de evoluir nesta encarnação, está fazendo com que tudo o que foi planejado por vocês dois seja adiado. Mas outros virão para cumprir a missão que eles deixaram de cumprir. A humanidade não pode parar de evoluir, muitas descobertas terão ainda que ser feitas.
Osmar, que ouvia tudo em silêncio, disse:
- Mas existem pessoas que não têm vício algum e, mesmo assim, praticam atrocidades.
Com a calma de sempre, novamente André respondeu:
- O vício não se limita às drogas. Existem outros, como o ódio, a ganância, a revolta, a inveja, a vingança, o rancor e o poder. Esses são iguais ou mais nocivos que a própria droga química. Muitas vezes é mais difícil se livrar de um deles do que da droga.
- Então não podemos fazer nada para impedir?
- Não, tudo depende do livre arbítrio de cada espírito. Mas, como você mesmo disse, estando ao lado deles e intuindo, um ou outro consegue se libertar e retornar ao seu caminho anteriormente planejado.
Letícia, embora tenha aceitado aquela resposta, disse inquieta:
- Tudo isso que disse tem coerência, mas muitas crianças estão sendo iniciadas nas drogas até com nove ou dez anos. Como poderão exercer o livre arbítrio?
- Tem razão, muitas estão sendo iniciadas, mas outras tantas não. Ou, se tentadas, reagem. Se pensarmos pelo lado espiritual, sabemos que o espírito, apesar de estar em um corpo de criança, é muito velho. Esse espírito que se deixa usar talvez esteja precisando passar por essa experiência e aprender a resistir.
- E aquelas que vivem em um lar pobre ou destruído, onde não encontram segurança?
- O espírito só passa pelas experiências que precisa. Lembre-se que cada um é responsável por si. Eu não posso viver sua experiência, assim como você não pode viver as minhas.
Ficaram em silêncio, apenas pensando e analisando tudo o que ouviram.

DURANTE O SONO

Inácio entrou na sala dizendo:
- Miguel deu algumas voltas pelo quarteirão e retornou, está agora deitado.
André, sorrindo, disse:
- Em breve ele e os outros estarão dormindo. Durante o sono, faremos com que nos acompanhem. Todos reunidos poderemos conversar sobre tudo que está se passando, e talvez possamos encontrar uma forma para ajudar Miguel e a todos.
Concordaram com a cabeça. Letícia, mais calma, porém ainda um pouco inquieta, perguntou:
- O que pretende fazer?
- Durante o sono, como você sabe, o espírito se liberta do corpo, podendo assim visitar vários lugares. Vamos fazer com que eles se encontrem.
Osmar perguntou:
- Acredita que ele com isso poderá mudar?
- Não sei, mas sempre será uma oportunidade rica de aprendizado. Agora, cada um de vocês deve ir à busca dos outros. Eu e Letícia conduziremos Miguel. Esperaremos vocês na minha sala.
Osmar concordou, dizendo:
- Está bem, agora mesmo reunirei a equipe e faremos isso. Até logo.
- Estaremos esperando.
Osmar saiu. Letícia e André foram para junto de Artur, que andava de um lado para o outro do quarto. Ele não entendia o que estava lhe acontecendo. Durante aqueles quase quatro anos vivera bem. Estava feliz com o trabalho que fazia, tinha dinheiro e toda a droga que precisava. Embora estivesse sob o efeito da droga, pensava: Por que agora estou sentindo isso? Por que agora estou sentindo essa tristeza? Por que sinto que falta algo que não sei o que é? André, ao vê-lo daquela forma, sorriu enquanto dizia:
- Está vendo, Letícia, como Deus é maravilhoso?
- Não estou entendendo, o que quer dizer?
- Agora, Deus está lhe dando mais uma chance para que retorne ao caminho e cumpra a missão para a qual foi enviado.
- Como assim?
- Ele estava muito bem, gostava da vida que levava, mas seu espírito reagiu, sabe que não é esse o caminho. Por isso se revolta, causando nele esses sentimentos de desconforto.
- Acredita que ele ainda poderá voltar?
- Estou estranhando essa pergunta.
- Por quê?
- Desde que você tomou conhecimento da situação dele, está dizendo que ele vai voltar que tem uma missão para cumprir, que juntos serão felizes, que quer ajudá-lo em tudo o que for possível. Por que essa dúvida?
- Desculpe como sempre, tem razão. Talvez eu esteja inquieta por estar envolvida na questão.
- É isso mesmo o que está acontecendo. Quando estamos envolvidos em algo, temos dificuldades de enxergar e acompanhar. Fique tranqüila, Miguel terá todas as chances.
Letícia sorriu. Artur estava sob o efeito da droga. Após andar muito de um lado para o outro, resolveu se deitar, e em poucos minutos estava dormindo. André disse:
- Precisamos esperar um pouco até que adormeça profundamente. Em seguida o conduziremos.
Ela não respondeu, apenas fechou os olhos e começou a orar pedindo para que Artur pudesse se lembrar dela e de seus compromissos. Osmar chegou à casa de Álvaro. Odete, enquanto cobria Leandro, o beijava e dizia:
- Durma bem, meu filho. Sonhe com os anjos.
Leandro olhou com ternura para ela:
- Sabe mamãe, estou pensando muito em Artur. Já se passou tanto tempo, onde estará?
Uma sombra passou pelos olhos de Odete. Respondeu:
- Não sei meu filho. Desde aquele dia em que ele saiu de casa, nunca mais o vimos. A única coisa que me conforta é saber que ele está vivo, pois seus cartões continuam chegando. Ainda bem que ele tem essa preocupação. Desde que comecei a freqüentar o centro onde sua avó me levou e ler a respeito do assunto, sinto uma esperança enorme de que ele um dia voltará.
- Parece que papai também pensa assim.
- Ele também mudou muito, já não é o mesmo de antes. Embora tenha sido sempre um homem bom para a família, era um pouco prepotente, sentia-se aquele que sabia de tudo e julgava ter a todos e a tudo sob controle. Hoje aprendeu que não é bem assim, que nada está sob nosso controle.
- Gostaria muito de encontrar Artur. Sempre penso nele e em Iracema. Onde estará ela?
- Sabe que seu pai fez de tudo para encontrá-la, mas foi inútil. Por tudo que aprendi, sei que um dia a encontraremos. Precisamos confiar na bondade e justiça de Deus, Ele é quem sabe de tudo. Agora vamos dormir, amanhã será um novo dia e temos muito para fazer. Boa noite, meu filho.
- Boa noite, mamãe.
Ela o beijou, apagou a luz e saiu. Foi para o seu quarto. Álvaro já havia se despedido do filho e estava recostado na cama lendo um livro. Assim que Odete entrou, disse:
- Ele já dormiu?
- Está pronto para isso.
- É um bom menino, espero que continue assim.
- Por que está dizendo isso?
- Não sei, mas estou pensando em Artur com muita força.
- Sempre penso nele!
- Sei disso, eu também penso nele todos os dias, mas hoje está intenso, não consigo nem me concentrar na leitura. Seu rosto vem ao meu pensamento a todo instante.
- Leandro me disse a mesma coisa. Confesso que também passei o dia todo pensando nele. Meu Deus!
- O que foi?
- Será que ele está em perigo?
Álvaro sentou-se na cama e, com voz preocupada, disse:
- Que está querendo dizer?
Com os olhos marejados, ela respondeu:
- Não sei, mas tenho medo que algo muito grave esteja acontecendo. Será que ele morreu ou vai morrer?
Álvaro levantou-se rapidamente:
- Não! Não pense assim! Ele está bem, mandou ainda na semana passada um de seus cartões!
- Sei disso, mas não sei o porquê deste pressentimento.
Enquanto falava, ela se vestia para dormir. Ele se aproximou, abraçou-a e, sem que ela esperasse, começou a chorar. Ela se assustou:
- O que é isso? Por que está chorando?
Ele não respondeu, apenas chorava. Ela percebeu e em silêncio agradeceu a Deus por aquele desabafo, pois havia muito tempo que ele não chorava daquela maneira. Por alguns minutos eles ficaram abraçados, ele chorando com soluços profundos, ela apenas abraçando-o. Finalmente ele se acalmou. Disse:
- Não sei o que aconteceu...
- Esteve durante este tempo todo se fazendo de forte, mas é um ser humano como todos nós.
- Estou me sentindo muito melhor. Essas lágrimas me fizeram muito bem. Por um momento vi meu filho morto, e isso me causou uma dor profunda. E não consegui me controlar.
- Já vi essa cena muitas vezes. Já vi meu filho morto das mais diferentes formas, e já chorei muitas vezes, assim como você está fazendo agora. Mas sempre no final eu dizia: Meu Deus... que seja feita a Vossa vontade. Acho que é isso o que tem que fazer também, verá como se sentirá bem.
Ainda abraçado a ela, ele disse:
- Que seja feita a Vossa vontade...
Odete sorriu. Ela sabia que o marido estava aceitando a nova doutrina que ela estava seguindo, e tinha certeza de que ele a estava entendendo. Seu marido, aquele a quem tanto amava, estava se tornando mais humano. Em seguida deitaram-se. Adormeceram. Osmar estava ao lado deles. Ao vê-los dormindo, disse ao seu companheiro:
- Logo estarão prontos.
Efetivamente, logo depois estavam todos na sala de André. Artur chegou sendo quase carregado por Letícia e André. Sob efeito da droga, não conseguia entender o que estava acontecendo. André sentou-se na cadeira da cabeceira da mesa. Letícia sentou-se ao seu lado e, com carinho, fez com que Artur também se sentasse. Em seguida, acompanhados por Osmar, chegaram Álvaro, Odete e Leandro. Estavam meio dormindo, meio acordados, por isso também não entendiam o que estava acontecendo. André sorriu, levou suas mãos na direção deles e delas saíram pequenos raios de luz branca, que os envolveram. Aos poucos foram despertando completamente. Álvaro, ao ver André, disse:
- André! Meu amigo! Que bom vê-lo novamente!
- Olá, Nestor. Também estou feliz por revê-lo. Você está muito bem.
Álvaro ia responder, quando olhou para o lado e viu Artur, que fazia um esforço enorme para ficar com os olhos abertos. Levantou-se da cadeira em que estava sentado e o abraçou, dizendo:
- Artur, meu filho! Por onde andou?
Artur abriu os olhos, olhou e sorriu tristemente. Não respondeu. Odete e Leandro também se levantaram e quiseram abraçá-lo e falar com ele, mas André disse:
- Não adianta querer falar com ele agora, pois ainda não está completamente desperto. Está ainda sob o efeito da droga. Mas logo estará bem.
Os três, tristes, voltaram a se sentar. Olharam para Letícia, que acompanhava a cena com lágrimas nos olhos. Odete foi a primeira a falar:
- Letícia! Você também está aqui? Que pergunta boba é essa que estou fazendo, claro que estaria nunca deixaria Miguel sozinho!
André a interrompeu:
- Vejo que já está se lembrando de tudo.
- Sim, estou... Estamos juntos novamente. Mas onde está Rui?
- Ele tem uma missão importante para ser executada amanhã. Não sabe ainda, mas terá também que tomar uma decisão da qual dependem sua vida terrena e seu futuro espiritual. Mesmo não sabendo dessa decisão, está ansioso, e por isso não está conseguindo dormir. Por isso, nós também não conseguimos trazê-lo.
Mas a presença dele aqui não é muito importante. Ele assistiu à última reunião. Você não se lembra da última reunião que tivemos aqui? Ela fechou os olhos como se quisesse se lembrar de algo. Após alguns minutos, disse:
- Lembro... Foi um pouco antes de Nestor renascer. Logo em seguida eu e os outros iríamos.
- Foi isso mesmo. E vocês, estão se lembrando?
Álvaro e Leandro fizeram que sim com a cabeça. André continuou:
- Estamos aqui por que os planos daquele dia estão tomando um rumo diferente. Miguel está se afastando deles, e precisamos tentar fazer algo para que ele retorne.
Álvaro começou a chorar:
- Sei disso, e o culpado fui eu. Não soube educá-lo, não soube ser um bom pai.
André continuou:
- Não diga isso. Você fez o que achou certo. Ele, ao seu lado, teve toda a segurança para bem cumprir a sua missão. Foi ele quem falhou novamente. Mas isso agora não tem importância, precisamos encontrar uma solução. Ficar lastimando o que foi ou não feito não vai adiantar.
Álvaro baixou a cabeça. Odete disse:
- E os outros? Também virão?
- Hélio deve estar chegando. Vamos esperar mais um pouco, enquanto isso faremos uma prece agradecendo por mais esta oportunidade.
Foi o que fizeram. Estavam terminando a oração quando ouviram uma voz raivosa e irônica que dizia:
- Olá! Os santos estão reunidos?!
Terminaram de fazer a oração, depois André calmamente disse:
- Seja bem-vindo, Hélio. Estávamos a sua espera...
- Para quê? Vejo que também o perdedor está aqui! Estão tentando salvá-lo?
- Vejo que continua inteligente, mas desta vez errou. Não estamos tentando salvá-lo, mas sim a você...
Hélio começou a rir mais alto:
- Estão tentando me salvar?! Eu não preciso de salvação, tudo isso é balela! Só preciso de vingança! E estou conseguindo! Estou me vingando de todos! Onde está Marilu?
- Ela chegará em seguida, mas sente-se...
- Não quero me sentar, vou embora daqui!
Com voz firme, André disse:
- Sinto muito, mas você não pode ir embora, tem que se sentar e ouvir o que temos para dizer.
- Não quero ouvir nada! Estou feliz por ver esse covarde derrotado da maneira como está!
Letícia chorava e, em oração, pedia ajuda. André fez um sinal ao rapaz que trouxera Hélio. Este fez com que ele se sentasse. Muito nervoso, olhou para todos e disse:
- Estão mesmo todos aqui! Até você, Mário, que se dizia meu amigo! Está também do lado deles?
Leandro, com outro corpo e rosto, sorriu tristemente:
- Estou, sim, e não era seu amigo. Ainda sou, mas também de Miguel.
Antes que Hélio dissesse alguma coisa, entraram na sala duas jovens que conduziam Iracema, que ao ver todos reunidos e olhando para Artur, disse:
- Eu tentei! Fiz a minha parte...
André sorriu:
- Olá, Marilu! Sabemos disso, mas é importante que hoje esteja aqui, pode se sentar...
Ela, olhando nos olhos de cada um, sentou-se.

O PASSADO

Artur já estava completamente bem, olhava para eles e aos poucos os ia reconhecendo. Olhou para o lado e seus olhos se encontraram com os de Letícia, que chorava. Por uns instantes ele ficou olhando, quando de repente deu um grito:
- Letícia! E você mesma? Letícia!
Sem perceber, os dois foram se levantando e em poucos segundos um estava abraçado ao outro, chorando. Beijavam-se e abraçavam-se, não conseguiam dizer nada. Apenas queriam ficar daquela maneira, sentindo todo o carinho e o amor que um sentia pelo outro. Os demais acompanhavam aquela cena e também não disseram uma palavra, eles conheciam a história, sabiam o porquê de tantas lágrimas. O encontro foi emocionante. Ficaram assim por muito tempo, até que Hélio, irritado, disse:
- Até quando vai durar essa palhaçada? Vou embora, não tenho nada para fazer aqui.
- Você não vai para lugar algum. Estamos aqui para conversar e esclarecer alguns pontos que ficaram obscuros.
- Não preciso esclarecer nada! Sei tudo o que aconteceu e nada está obscuro para mim!
André apenas olhou com severidade e disse:
- Sente-se.
Hélio sabia que não poderia lutar contra ele. Embora estivesse aborrecido com o encontro de Letícia e Artur, foi obrigado a sentar-se e ficar calado. André continuou dizendo:
- Letícia, Miguel, sentem-se.
Eles obedeceram.
- Estamos aqui para tentar fazer com que tudo volte ao seu lugar, para que assim possamos cumprir a missão que um dia planejamos.
Artur olhava ora para um, ora para outro. Foi reconhecendo um a um. Eles apareciam a seus olhos como amigos de outros tempos. Estavam diferentes em seus rostos e roupas, mas ele reconheceu a cada uma. Disse olhando para André:
- Estou feliz por estar aqui e por tê-los encontrado, mas não sei o que está acontecendo e por que estamos reunidos.
André, com sua calma conhecida, respondeu:
- Sabemos disso, estamos reunidos apenas para relembrar aquele dia em que, pela última vez, nos reunimos todos e discutimos o que foi planejado naquela ocasião. Todos estavam aqui, menos Hélio.
Artur fechou os olhos tentando se lembrar. André lhe disse:
- Não tente se lembrar, sua mente está um pouco entorpecida pela droga. Olhe para aquela tela.
No fundo da sala uma grande tela apareceu. Artur e os outros olharam para ela. Viram um enorme prédio, que parecia ser de um hospital ou faculdade. Dois rapazes caminhavam apressados. O que parecia ser o mais velho, disse:
- Miguel, estamos atrasados. O professor de Latim vai ficar uma fera.
Miguel soltou uma gargalhada:
- Não se preocupe, ele já está velho, nem vai notar quando entrarmos na sala de aula. Sabe que ele não enxerga muito bem.
O outro riu, mas mesmo assim apressaram o passo. Chegaram à sala de aula alguns minutos antes do professor entrar. Assim que ele entrou, todos os alunos se levantaram. Ele, com a mão, fez com que se sentassem. Assim que todos se sentaram, ele iniciou a aula dizendo:
- Sei que alguns dos senhores não gostam da minha aula, mas sei também que pretendem, um dia, tornarem-se advogados, e para isso é necessário que aprendam bem o Português. Em conseqüência, precisam aprender o Latim, pois foi dele que muitas palavras surgiram.
A classe permaneceu em silêncio, não se atreviam nem a respirar. Após a aula, reuniram-se no pátio da escola. Miguel e Hélio estavam conversando quando se aproximou outro rapaz:
- Olá! Estou entregando este convite para alguns de meus amigos.
Miguel recebeu o convite e, após lê-lo, disse:
- Vai ser a festa da sua irmã?
- Sim, Letícia vai completar quinze anos e meus pais resolveram dar uma festa para ela. Espero que compareçam.
Miguel olhou para o outro rapaz, que também lia o convite. Disse:
- Hélio, você vai?
Hélio levantou os olhos do convite, olhou para ele e respondeu:
- Só se você for.
Miguel respondeu com voz triste:
- Sabe que não posso comparecer a uma festa como essa... Mário, o rapaz que havia entregado os convites, perguntou:
- Por que não pode?
Miguel olhou para Hélio, depois para Mário, e respondeu:
- Os dois sabem que só freqüento esta escola por ter ganhado uma bolsa de estudos. Meu pai não tem posses como os seus. Sabem que assim que sair daqui preciso ir até o cartório onde trabalho. Não tenho roupa para me apresentar em uma festa como essa...
Hélio começou a rir:
- Ora, meu amigo! Isso não é problema, tenho muita. Temos o mesmo corpo, poderá escolher aquela que mais lhe agradar.
Mário, com entusiasmo, disse:
- Também tenho roupas, isso não será desculpa para não ir a minha casa.
Miguel percebeu que não poderia se recusar. Ia responder, quando ouviram alguém chamando. Olharam em direção à voz e sorriram. Um rapaz se aproximou ofegante:
- Ainda bem que os encontrei! Estava na biblioteca lendo um livro, sabem como vou mal em Literatura.
Os outros riram. Miguel, passando a mão sobre a cabeça do outro, disse em tom de deboche:
- Sabemos que vai mal em Literatura, mas por outro lado, com as mulheres não tem problema algum.
- Tem razão! Agora mesmo, lá na biblioteca, estive olhando para uma. Estava em uma foto, num livro.
Todos começaram a rir, pois Nestor só falava em mulher o tempo todo. Mas, na realidade, nunca havia namorado, assim como todos eles. Eram jovens estudantes, estavam todos praticamente com a mesma idade, em torno dos dezenove anos. As moças ficavam a maior parte do tempo em suas casas, sob a proteção dos pais e irmãos. A maioria não estudava, mas algumas tinham seus professores, que lhes davam aula em casa. Só saíam acompanhadas, e isso dificultava os encontros. Os rapazes estavam cursando o primeiro ano de faculdade, todos queriam ser advogados e pretendiam, assim que terminassem o curso, montar junto um escritório. Todos eram filhos de família abastada, menos Miguel, pois seu pai era apenas um funcionário de cartório. Era ele quem transcrevia as certidões. Usava para isso letras góticas, das quais muito se orgulhava. Sua caligrafia era perfeita. Trabalhando ali, conseguira que Miguel também trabalhasse, e com prazer lhe ensinara sua profissão. Ele era muito conhecido na cidade. Através de seus conhecimentos descobriu que a faculdade tinha certo número de bolsistas; fazia isso para não pagar muito imposto ao governo. Descobriu o dia em que seriam feitos os testes para esses bolsistas. Miguel, com alegria, participou desse teste e foi aceito. Assim que começaram as aulas, ele fez amizade com Hélio e em seguida com os outros dois. Eles sabiam de sua origem, mas não se importavam. Tornaram-se amigos inseparáveis. Estudavam e saíam juntos para todo lugar. Um ajudava o outro nas matérias que tivessem dificuldade. Estava quase terminando o ano letivo e todos estavam bem. Suas notas eram louváveis. Embora participasse do grupo, Miguel nunca havia freqüentado suas casas, não por falta de convites, mas por sentir-se diminuído diante deles. Sabia que não tinha roupas para isso. Dessa vez, parecia que não haveria escapatória, teria que ir. Mário entregou o convite a Nestor, que, ao recebê-lo, começou a rir, enquanto dizia:
- Uma festa? Claro que irei, assim poderei ver novamente sua irmã. Ela é linda!
Mário, também sorrindo, disse:
- Qual delas?
- Amélia, é claro, a outra é ainda uma pirralha. Hélio, com um ar de superioridade e rindo, disse:
- Uma pirralha, mas linda! Mário, fingindo estar irritado, disse:
- Esperem aí! Estão falando das minhas irmãs! Olhem o respeito!
- Não estamos faltando com o respeito. Quem manda você ter irmãs tão bonitas?
- Sabe Hélio, você tem razão, elas são bonitas mesmo, mas moças de respeito.
- Disso nunca duvidei.
Miguel acompanhava a conversa, mas estava tentando encontrar uma desculpa para não comparecer à festa. Ele não se sentia bem naquele ambiente. Gostava dos amigos, mas sabia que não pertencia ao mundo deles. Hélio, percebendo o ar de preocupação do amigo, disse:
- Sabe Nestor, Miguel não está querendo ir à festa.
- Por quê?
- Diz que não tem roupa adequada...
- Que é isso, Miguel! Sabe que tenho muitas roupas, poderá usar aquela que quiser!
- Eu e Mário dissemos isso a ele, mas parece que ele não está convencido.
Hélio falou furioso:
- Miguel! Já foi convidado para muitas festas e nunca aceitou, mas desta vez não terá desculpa, terá que ir.
Miguel percebeu que não haveria desculpas mesmo. Disse:
- Está bem, irei.
Todos riram e voltaram para a sala de aula. Assim que as aulas terminaram, Miguel se despediu dos amigos e saiu apressado. Precisava ir para o cartório, só trabalhava à tarde. Tinha tempo de chegar a casa, trocar de roupa e comer alguma coisa. Naquele dia fez o mesmo de sempre, mas não conseguia esquecer o convite. Estava realmente preocupado. Assim que chegou ao cartório, foi como sempre para a sala onde seu pai trabalhava. Ao entrar, viu o pai cercado por papéis e escrevendo. Ao vê-lo entrar, o pai disse:
- Ainda bem que chegou, tem muito para fazer, precisa carimbar estes papéis. Miguel não respondeu, pegou os papéis e ia saindo quando o pai disse:
- Miguel, espere.
Ele parou e se voltou:
- Pois não.
- Está acontecendo alguma coisa? Está com problemas na faculdade?
- Não, papai, está tudo bem, o senhor sabe que não tenho problemas quanto ao meu estudo.
- Então por que está com essa cara?
- Que cara?
- De preocupação. Está preocupado com o quê?
- Como sabe que estou preocupado?
- Eu o conheço há quase vinte anos. Sempre que chega aqui entra contando como foi à aula. Sempre tem algo para falar sobre seus amigos, mas, hoje, entrou calado, sem dizer uma palavra...
Miguel sorriu:
- O senhor presta atenção em tudo mesmo.
- Se não prestasse atenção em tudo, não poderia exercer a minha profissão. O que está acontecendo?
- Realmente estou com um problema. Um dos meus amigos me convidou para a festa de aniversário de sua irmã.
- Isso é muito bom, não vejo onde está o problema.
- O problema é que não posso ir.
- Não pode ir por quê?
- Não tenho roupa adequada. Precisaria de um fraque, camisa de seda e uma cartola. Isso é muito caro, sabe que não temos dinheiro.
- Mas seus amigos conhecem sua situação financeira, e se o convidaram é porque não se importam com isso.
- Sei disso, até me ofereceram as roupas deles, mas eu não me sinto bem.
- Sabe meu filho, você precisa aprender que não é o hábito que faz o monge. Eles gostam de você assim como é. São seus amigos...
Miguel ficou pensativo. O pai continuou:
- Sou um homem feliz, tenho a melhor família do mundo.
Você e seus irmãos me trazem toda a felicidade do mundo. Só fico triste por não poder dar um conforto melhor para todos.
Miguel percebeu que o pai estava realmente triste. Disse:
- O senhor é o melhor pai do mundo. E acredito que tenha razão, vou aceitar a roupa e irei a essa festa.
- Estive pensando. Sabe que conheço muitas pessoas. Vou falar com o Augusto da loja de tecidos e com o Matias. Ele é alfaiate. Depois falarei com o Aguinaldo da chapelaria. Você terá a sua roupa e pagarei aos poucos.
Miguel admirou-se:
- Não, papai! O senhor não pode fazer isso! Sabe muito bem que todo o dinheiro que ganhamos, eu e o senhor, dá apenas para mantermos a nossa casa!
- Não se preocupe com isso, sei o que estou dizendo. Você irá a essa festa com a sua própria roupa, assim não se sentirá diminuído perante seus amigos. Terá muito tempo para aprender o verdadeiro sentido da palavra amizade. Agora vá cuidar do seu trabalho.
Miguel saiu da sala. No íntimo estava feliz por ter sua própria roupa para a festa e cada vez mais gostava de seu pai. Ele sempre fora dedicado à família, ficara feliz por seu filho estar freqüentando uma faculdade tradicional e estava orgulhoso do filho que tinha. Os dias foram se passando. Miguel estava feliz, seu pai cumprira o que dissera, falara com as pessoas e, em poucos dias, ele já estava com o seu fraque, camisa de seda e sua bela cartola. Poderia comparecer à festa sem se sentir humilhado. Os amigos também ficaram felizes, principalmente Hélio, que julgava ser o melhor amigo de todos. O dia da festa chegou. Como havia combinado, Hélio passaria pela casa de Miguel e o levaria em seu coche. Na hora marcada estava lá. Sob os olhos orgulhosos de sua família, Miguel subiu no coche e foi para a festa tão esperada. Ele nunca fora à casa de Mário, por isso ficou maravilhado com o tamanho. Calculou que deveria ter muitos quartos, diferente da sua, que só tinha dois. Foram recebidos por um negro, que guardou suas capas e indicou o caminho que teriam que seguir. Ao entrar na sala, Miguel teve que respirar fundo, nunca havia visto uma sala como aquela. Só conseguiu ver um lustre enorme que pendia do teto. Ele tinha muitas velas, que iluminavam a sala toda, além de outras penduradas nas paredes. Tudo eram luxo e riqueza. Estava admirando quando ouviu a voz de Mário.
- Miguel! Ainda bem que veio! Pensei que desistiria na última hora!
- Confesso que quase fiz isso, mas acredito que me arrependeria, isto aqui é muito bonito.
- Está mais bonito porque todos os meus amigos estão aqui. Venha, vou lhe apresentar meus pais.
Estava indo em direção aos pais de Mário, que recebiam os convidados, quando, ofegante, Nestor chegou.
- Pensei que chegaria atrasado, sabe como é, fiquei conversando com uma moça.
Os três riram. Sabiam que ele estava mais uma vez contando lorota. Mário os conduziu até seus pais, que os receberam com alegria e um sorriso nos lábios. Assim que Miguel foi apresentado, os quatro se dirigiram a um canto do salão e ficaram conversando. Uma moça aproximou-se. Ao vê-la, Mário disse para Miguel:
- Essa que está se aproximando é minha irmã Amélia.
Miguel olhou para ela e ficou abismado com tanta beleza. Com cabelos castanho-claros presos na nuca, olhos cor-de-mel, trajando um vestido azul, realmente era linda. Nestor, ao vê-la se aproximando, disse:
- Eis aí a mulher da minha vida. Mário, fingindo estar bravo, disse:
- Cuidado, Nestor! Ela é minha irmã!
- Sei disso, estou dizendo a verdade, não é linda mesmo?
- Nem tanto, é apenas bonita.
- Você diz isso porque é sua irmã, mas eu vou me casar com ela.
Não houve tempo para que Mário respondesse. Amélia se aproximou. Mário a recebeu.
- Amélia, estes são meus amigos: Nestor e Hélio, que você já conhece, e este é Miguel. É a primeira vez que ele vem aqui.
Ela, sorrindo, estendeu a mão aos três, que delicadamente a beijaram. Miguel ficou encantado com a beleza da moça. Conversaram amenidades por um tempo, depois ela se afastou, sob os olhares embevecidos de Nestor. Os três olhavam-se entre si, rindo dele, que com os olhos a acompanhava até desaparecer no meio dos convidados. Assim que ela desapareceu, ele disse:
- Realmente, essa será a mulher da minha vida.
Os três riram e saíram andando. Uma música suave era tocada por um violonista. Miguel caminhava entre as pessoas, cada vez mais se admirava com o que via. De repente a música parou e o pai de Mário disse:
- Peço a atenção de todos a aniversariante vai descer por aquela escada.
Todos se voltaram para o alto e para a escadaria, que era forrada com um tapete vermelho. Em poucos instantes, uma moça começou a descer por ela. Miguel ficou estático, seu coração começou a disparar. Ele nunca em sua vida havia visto beleza igual àquela. Loura, com os cabelos cacheados, e sobre eles um pequeno casquete de flores azuis no mesmo tom de seu vestido - um pouco mais claro que o de Amélia -, que combinavam com seus olhos, que também eram azuis. Ela foi descendo suavemente e sorrindo. Atrás dela, outras moças também desceram. Tinham os vestidos iguais ao de Amélia. Ao pé da escada, o pai dela, orgulhoso, recebeu a filha. Atrás dele, rapazes, entre eles Mário, Hélio e Nestor, seguravam em suas mãos pequenas velas acesas. Receberam as outras moças e as conduziram ao centro da sala. Todos fizeram uma roda em volta de Letícia, que foi apagando todas as velas. Uma valsa se fez ouvir e todos saíram dançando animados. Miguel estava extasiado com tudo o que via, muito mais com a beleza de Letícia. A valsa terminou. Ele que havia poucos instantes, junto com os outros, brincara por causa da maneira como Nestor olhava para Amélia, estava da mesma maneira. Não conseguia desviar os olhos de Letícia. Seu coração parecia que ia explodir. Alguns minutos após a valsa ter terminado, Mário, acompanhado por Letícia, aproximou-se dele, dizendo:
- Miguel, esta é a aniversariante. Não está linda?
Miguel, a princípio, não conseguiu responder, a emoção que sentia fez com que ficasse calado. Em seguida, sem tirar os olhos dos dela, respondeu:
- Ela é linda, sim. Muito prazer, senhorita.
Ela apenas sorriu e lhe estendeu a mão. Ele fechou os olhos antes de beijá-la. Em seguida, sorrindo, ela se afastou. Miguel, assim como Nestor havia feito, seguira-a, até que desapareceu no meio dos convidados. Mário seguiu atrás dela e não notou como Miguel havia ficado. Estava assim pensando, quando foi interrompido por uma voz.
- Você conheceu Letícia?
Era Hélio quem perguntava. Miguel só conseguiu dizer:
- Sim, ela é muito bonita.
- Também acho. Sabe que nossos pais estão conversando a respeito do nosso casamento? Sabe como é, unir os nomes e as fortunas das famílias. Confesso que essa idéia me agrada.
Miguel respirou fundo. Aquelas palavras o trouxeram de volta à realidade. Apenas disse:
- Você é um homem de sorte, ela realmente é linda.
- Não contei a nenhum dos nossos amigos, sei que se contar serei alvo de brincadeiras, assim como Nestor. Mas vou confiar em você. Estou perdidamente apaixonado por ela e farei qualquer coisa para tê-la como esposa.
Novamente Miguel demorou a responder. Finalmente disse:
- Formam um belo par, acredito que serão felizes.
- Também acho.
Estavam ali quando uma moça, acompanhada de um rapaz, se aproximou. Enquanto estendia a mão para Hélio, dizia:
- Olá, Hélio! Como está?
- Olá, Marilu! Estou muito bem, e você?
- Estou adorando a festa, está tudo perfeito! Quem é o seu amigo?
- Desculpe, este é Miguel, nosso colega de faculdade e também um amigo muito querido.
Miguel, sorrindo, beijou a mão que ela estendia e disse:
- Muito prazer, senhorita.
- Hélio já conhece, mas o senhor ainda não. Este é o meu irmão Rui.
Miguel cumprimentou Rui, e ficaram conversando por alguns minutos. Depois que se afastou, Hélio disse:
- Eles são primos de Mário. Seus pais possuem uma grande fortuna, moram aqui na cidade. Ele estuda Medicina e ela não sei o que faz, mas, como as outras, deve bordar e tocar piano. São agradáveis, embora os achem um pouco pedantes. Principalmente Marilu.
- Não notei isso.
- Porque falou com ela por pouco tempo. Terá oportunidade de vê-la outras vezes, e assim notará.
Os pares rodopiavam no centro da sala. Nestor e Amélia ficaram o tempo todo dançando. Miguel sorriu ao vê-los. Percebeu que entre eles começava a acontecer algo. Estava assim observando quando viu Letícia, que caminhava em sua direção. Mais uma vez seu coração começou a bater descompassado. Sentiu até certa dificuldade para respirar. Ela se aproximou e, sorrindo, disse:
- Me desculpe não ter lhe dado muita atenção no início da festa, mas é que estava um pouco nervosa e tendo que cumprimentar muitas pessoas. O senhor é amigo do meu irmão, não é?
Ele, um pouco nervoso, respondeu:
- Sim, estudamos juntos, meu nome é Miguel.
- O meu como já deve saber, é Letícia. O senhor não dança?
- Confesso que não sei dançar...
- Não se preocupe, eu o ensinarei.
- Não sei se será razoável...
- Claro que será. Venha!
Sem que ele pudesse fazer um gesto, ela o levou até o centro da sala e começaram a dançar. Para espanto deles, ele logo aprendeu os passos da valsa, e em poucos minutos rodopiavam ao som da música. Dançaram muitas vezes seguidas, o que chamou a atenção de Hélio e Marilu.
Ela se aproximou de Hélio, dizendo com sarcasmo:
- Parece que seu amigo encantou minha prima.
- Estão apenas dançando.
- Da maneira como estão fazendo, nem parece que só estão dançando...
- Que maneira?
- Não percebeu que de quando em vez os olhos se cruzam?
- Não percebi nada. Além do mais, nossos pais já estão providenciando nosso casamento.
- Não sei não...
Assim dizendo, e com um sorriso no canto da boca, ela se afastou, deixando Hélio preocupado e prestando mais atenção em Miguel e Letícia, que continuavam dançando. Olhou para os outros pares que dançavam, olhou para Letícia e Miguel e percebeu que Marilu estava com a razão. A atitude deles era realmente estranha. De tempos em tempos se olhavam com um olhar apaixonado. Preocupado, pensou: Será que Marilu está certa? Estarão mesmo interessados um no outro? Letícia, hoje, como sempre, me tratou bem, mas não lembro de ter me dado um sorriso como esse que está dando a Miguel. Dançou algumas vezes comigo, mas já faz um bom tempo que só dança com ele. Realmente Marilu tinha razão. Entre Miguel e Letícia algo estava surgindo. Ambos sentiam-se as pessoas mais felizes do mundo. Miguel, embora a segurasse com suavidade, apertava sua cintura e sua mão com carinho. Ela correspondia, apertando a mão dele. Em dado momento, ela disse:
- Nas férias de fim de ano eu e minha família iremos para o Rio de Janeiro, temos uma casa na montanha. Você não gostaria de passar alguns dias lá?
Aquela pergunta fez com que ele voltasse à realidade. Como poderia passar dias sem trabalhar no cartório? Com que roupa se apresentaria todos os dias diante de seus anfitriões? Sem saber o que responder, apenas disse:
- Vou pensar, e lhe darei uma resposta.
A música parou. Os músicos precisavam descansar por alguns minutos. Amélia se aproximou.
- Letícia, venha comigo, precisamos conversar.
A contragosto, ela a acompanhou. Foram para o quarto de Amélia, onde Marilu as esperava. Assim que entraram, Marilu disse curiosa:
- Então, Letícia! Está gostando do amigo de Mário?
Letícia pensou um pouco, e em seguida respondeu:
- Ele é agradável e um belo rapaz, confesso que estou interessada.
Amélia a interrompeu:
- Você não pode fazer isso! Sabe que papai está conversando com os pais de Hélio a respeito do seu casamento. Sabe também como ele é intransigente quando decide algo, ainda mais se envolve dinheiro.
- Não posso me casar com Hélio. Gosto dele como amigo, e não quero passar o resto da minha vida a seu lado.
- Espero que mude de idéia. Papai não vai aceitar uma desobediência, sabe disso!
- Não sei o que farei, mas com Hélio não me casarei.
Marilu disse com olhar maroto:
- Ainda bem, pois eu estou apaixonada por ele, e me casarei com muito prazer.
Letícia riu, levantou-se e dirigiu-se novamente para a sala. As duas a seguiram. Na sala, procurou por Miguel, mas não o encontrou. Chamou Mário e perguntou:
- Onde está Miguel?
- Ele se despediu faz alguns minutos e saiu com Hélio. Por que pergunta?
- Por nada, só para saber.
Afastou-se, e Mário a seguiu com os olhos. Estava preocupado com a atitude dela. Não queria nem imaginar se o que estava pensando fosse verdade. Como todos em sua família, sabia que Letícia já estava prometida para Hélio. Assim que os músicos pararam para descansar e Letícia acompanhara a irmã, Hélio se aproximou de Miguel, dizendo:
- Parece que está gostando da festa.
- Estou sim, e muito, mas acredito que já está na hora de eu ir embora.
- Por quê? O que aconteceu?
- Nada, só estou cansado...
Um garçom passou por eles carregando uma bandeja com champanhe. Hélio, pegando uma taça de champanhe, ofereceu-a a Miguel. Percebendo que ele estava nervoso, disse:
- Aconteceu alguma coisa que o aborreceu?
Tomando o champanhe, Miguel respondeu:
- Não aconteceu nada, mas este não é o meu mundo. Preciso ir embora e retornar àquilo que sempre fui um pobre.
Hélio percebeu a amargura que o amigo sentia. Disse:
- Não sei qual é o motivo dessa revolta, mas acredito que não deve sentir isso, somos todos seus amigos e gostamos de você da forma que é. Nunca nos preocupamos com sua classe social.
- Sei disso, e agradeço a todos, mas quero ir embora. Vou alugar um coche.
- De maneira alguma, eu o trouxe e vou levá-lo de volta.
Antes que Miguel dissesse algo, Hélio segurou em seu braço e o conduziu para fora. Já no coche, disse:
- Você dançou muito com Letícia, o que acha dela?
- Uma linda moça, e agradável também.
- Ela disse algo que o magoou?
- Por que faz essa pergunta?
- Porque vocês pareciam tão felizes dançando. De repente você quis ir embora!
- Não, ela é adorável, só fiquei cansado, nada, além disso.
- Ainda bem que gostou dela. Sabe que pretendemos nos casar, e ficarei feliz se você comparecer ao casamento.
Com a voz embargada, Miguel disse:
- Irei... Claro que irei...
O coche parou em frente à casa de Miguel. Rapidamente ele desceu, dizendo:
- Obrigado por tudo, foi uma linda noite.
Hélio apenas sorriu e ordenou ao cocheiro que seguisse. Miguel entrou em casa. Não era ainda meia-noite. Seu pai estava sentado na sala lendo um livro. Assim que viu o filho entrando, perguntou:
- Como foi à festa? Divertiu-se?
Miguel, sentando-se a seu lado, respondeu:
- A festa foi maravilhosa, nunca imaginei que pudesse existir um lugar como aquele!
- Por que diz isso?
- A casa é luxuosa, e as pessoas que estavam lá ricas e muito bem-vestidas.
- Você também está bem-vestido!
Miguel começou a rir:
- Sei disso! O senhor me proporcionou esta roupa, não fiquei devendo nada a ninguém. Mas como o senhor mesmo disse a roupa não faz o monge.
- Por que está dizendo isso?
- Embora eu estivesse vestido como eles, não pertenço àquele mundo. Nunca poderei pertencer.
- Encontrou alguma moça que o agradou? Ele olhou assustado para o pai. Perguntou:
- De onde tirou essa idéia?
- Até agora nunca se importou com quem era sempre estudou para ser um bom advogado e, assim, conseguir uma vida mais confortável. De repente vem com essa conversa de diferença social... Deve ter encontrado uma moça de nível social diferente.
- O senhor talvez tenha razão. Meus amigos pertencem a uma classe social diferente, mas nunca fizeram qualquer coisa para que eu me lembrasse disso, a não ser agora com essa festa. Conheci uma moça, sim, ela é linda, mas pertence a uma das famílias mais ricas desta cidade. Nunca poderei almejar o seu amor.
- Por que não? Para o verdadeiro amor não existe diferença alguma. As pessoas se amam, simplesmente.
- Não é tão fácil assim. Existem entre eles certos códigos e acertos. Os pais dela e de Hélio, que também pertence a uma família rica, estão agora tratando da possibilidade de casamento dos dois, para que as fortunas das famílias se unam. Como vê, não é tão fácil assim.
- Os jovens se amam?
- Ela eu não sei, mas Hélio com certeza a ama, e muito.
- Para que um casamento seja perfeito é necessário que haja amor entre as duas partes.
- Também pensava assim, mas diante do que está acontecendo com eles, acredito que amor seja o que menos importa. Mesmo que não houvesse esse acordo entre seus pais e que a minha condição social não existisse, nunca poderia haver nada entre nós.
- Por quê?
- Hélio é o meu melhor amigo. Eu jamais faria algo que o desagradasse.
- E deixaria de lado sua própria felicidade?
Miguel ficou olhando para o infinito enquanto respondia.
- Sim. Não voltarei mais àquela casa, nunca mais a verei. Não é o meu mundo.
- Você é quem sabe, mas volto a lhe dizer que a pessoa não deve ser medida pelo que tem, mas sim pelo que é.
- Pode ser em teoria, mas na prática é diferente. Ontem foi assim, hoje é, e amanhã com certeza será também. Existem dois mundos: o dos ricos e o dos pobres.
- Você está muito deprimido. Nunca pensei que uma festa poderia deixá-lo dessa maneira! Esforcei-me tanto para que participasse dela...
- Não diga isso! Estou feliz por ter ido. O senhor foi maravilhoso, sei que se esforçou muito. Foi bom, porque tive certeza de que aquele é um outro mundo. Sei que jamais pertencerei a ele. Mas isso não me preocupa, sou feliz por ter um pai como o senhor. Agora vamos dormir? Amanhã é domingo, mas mesmo assim quero levantar cedo, preciso estudar. Como trabalho durante a semana, não me sobra muito tempo.
- Sei disso, mas o que ganho não é o suficiente para o nosso sustento...
- Não estou reclamando, só preciso estudar.
- Está bem, vá dormir. Estou terminando de ler este livro, irei em seguida.
Miguel foi para o seu quarto. Vestiu o pijama, deitou-se e tentou dormir. Tentou, mas não conseguiu. O rosto e o sorriso de Letícia não saíam de sua mente. Virou de um lado para o outro até que resolveu se levantar e ir à sala pegar uma bebida. Não estava acostumado a beber, mas naquele momento pensou que seria uma solução. Dentro de um móvel havia algumas garrafas de vinho e copos. As garrafas estavam ali só como enfeite, pois nem ele nem seu pai bebiam. Pegou uma garrafa, tirou a rolha, colocou em um dos copos e aos poucos foi bebendo. A imagem de Letícia ficava cada vez mais forte, e ele bebia mais. Sem perceber, bebeu a garrafa toda. Cambaleando, foi para o seu quarto, e dessa vez adormeceu. Hélio, assim que deixou Miguel em casa, ordenou ao cocheiro que o levasse de volta à festa. Assim que entrou, viu Letícia, que desfilava entre os convidados. Mas percebeu que ela já não estava tão feliz como no início da festa. Dirigiu-se até ela e tocou em seu braço, enquanto dizia:
- Letícia, poderia me conceder esta dança?
Ela, sorrindo, abriu os braços, e começaram a dançar. Durante a dança ela perguntou:
- Onde você estava? Procurei-o e não o encontrei.
- Sentiu minha falta?
- Sim, sua e de Miguel também.
- Saí exatamente com ele, quis ir para casa e eu o acompanhei.
- Por que ele quis ir embora?
- Não sei, pensei que você soubesse.
- Por que diz isso?
- Dançaram muitas vezes seguidas, acreditei que houvesse acontecido algo desagradável entre vocês.
Ela fez uma expressão de espanto.
- Não aconteceu nada! Eu não notei nada de errado.
- Sobre o que conversaram?
- Sobre muitas coisas. Ele é muito agradável. Convidei-o para que nas férias fosse conosco para o Rio de Janeiro. Disse que todos iriam, até você.
Hélio entendeu o que havia acontecido. Novamente a insegurança de Miguel. Ele conhecia sua origem, sabia o que sentia em relação a sua condição social. Entendeu, mas não disse nada a esse respeito, apenas comentou:
- Ele é um pouco estranho, mas é meu amigo. Parece que você se interessou por ele.
- Sim, é falante e educado. É uma pena ele ter se comportado dessa maneira. Mas não faltará ocasião para nos encontrarmos novamente. Quero conhecê-lo melhor.
- Por quê? Acredito que não seja correto.
- O que há de mal nisso?
- Sabe muito bem que nossos pais estão conversando a respeito do nosso casamento.
- Sei disso, mas não quero me casar com você. Quero-o para sempre como um amigo, mas não como esposo. Sonho encontrar o meu verdadeiro amor e com ele passar o resto da minha vida. E decididamente não é você. Quero, sim, sua amizade e poder contar com ela também para o resto da minha vida.
- Quando nos casarmos, farei tudo para que comece a me amar. Eu a amo por nós dois. Não acredita nisso?
Letícia ia responder, mas a música parou. Amélia aproximou-se, dizendo:
- Letícia, está na hora de cortar o bolo, venha!
Letícia em pensamento agradeceu a sua irmã por ter interrompido aquela conversa, que estava se tornando desagradável. Sorrindo, disse:
- Vamos sim, estou com muita vontade de comer bolo.
Olhou para Hélio, dizendo:
- Venha! Este é o momento mais esperado de qualquer aniversário!
Foram para o lado da mesa. O bolo foi cortado em meio a muita alegria. Depois disso, os convidados foram se despedindo. Marilu também fez o mesmo. Quando chegou perto de Hélio, disse:
- Não se esqueça, quero que me visite. Ele, sem muito entusiasmo, disse:
- Irei sim, irei.
Ela percebeu que ele não iria, mas pensou: Você ainda será meu. Todos os convidados se retiraram. Letícia, cansada, despediu-se dos pais e foi para o seu quarto. Deitada em sua cama, pensava em Miguel: Ele é tão bonito... por que me senti tão feliz em seus braços? Como eu queria que a música não terminasse para poder ficar ali com ele me enlaçando. Preciso encontrar uma maneira para que ele volte aqui em casa. Assim pensando, adormeceu. Marilu, acompanhada dos pais e do irmão, também chegou a casa e em seu quarto pensava na festa e em tudo o que havia acontecido naquela noite: Hélio quase nem me olhou! Só tem olhos para Letícia. Sei que seus pais estão planejando o casamento, mas não permitirei. Ele será meu marido! Só meu! Hélio também chegou a casa e estava em seu quarto pensando: Sei que ela não me ama, mas isso não importa. Nossos pais decidirão nosso futuro. Quando ela for minha esposa, farei com que me ame, sei que seremos felizes...

INSEGURANÇA

Na manhã seguinte, ao acordar, Miguel não sabia a hora, mas sentiu que já era tarde. Pegou o relógio de bolso que estava em seu criado-mudo e se assustou, pois já passava das dez horas. Levantou-se, mas foi obrigado a deitar-se novamente, pois sua cabeça doía terrivelmente. Logo entendeu que aquilo estava acontecendo por ter bebido muito na noite anterior. Após alguns minutos, e com muito esforço, conseguiu se levantar. Saiu do quarto e foi em direção à sala. Seu pai estava sentado em uma cadeira. Estava com o cotovelo sobre uma mesa e nas mãos segurava um livro, que parecia ler. Parecia, mas na realidade não conseguia, pois assim que se levantara, vira sobre a mesa uma garrafa de vinho vazia e um copo. Percebera quando Miguel se levantara durante a noite. Não quisera ir até a sala e perguntar por que ele não estava dormindo. Após a conversa que tiveram, sabia que ele estava com problemas. Esperaria o momento certo para perguntar, ou que ele próprio resolvesse lhe contar o que realmente acontecera na festa. Assim que viu o filho entrar, disse:
- Bom dia, meu filho. Não dormiu bem?
- Bom dia papai, não dormi mesmo, mas como sabe?
- Estava ainda acordado quando você se levantou, e hoje pela manhã encontrei esta garrafa e este copo. Por que bebeu tanto?
Um pouco envergonhado, Miguel respondeu:
- Desculpe papai, mas não conseguia dormir. Levantei-me e comecei a beber, não percebi o quanto até ver a garrafa vazia.
- Isso é muito mal...
- Por que diz isso?
- Se bebeu sem perceber, é preciso ficar longe da bebida, ela é muito perigosa...
- Que é isso, papai? Está pensando que vou me tornar um alcoólatra?
- Se não percebeu o quanto estava bebendo, é um sério candidato ao alcoolismo...
- Nem pense nisso! Estava preocupado, não conseguia dormir! Foi só isso que aconteceu! Além do mais, hoje é domingo, e eu não precisava levantar cedo nem ir para a faculdade!
- Quero acreditar que seja só isso mesmo. Deve aceitar que eu esteja preocupado, nunca antes o vi bebendo.
- E não verá nunca mais, pode ficar tranqüilo.
- Espero que tenha sido a primeira e última vez. Não gostaria de ter um filho viciado! Agora vou até o mercado comprar frutas e verduras e um frango para o almoço. O café está pronto.
- Está bem, papai, vou tomar café e depois preciso estudar.
Sem dizer nada, o pai saiu. Miguel percebeu a revolta, o sofrimento e a decepção que ele estava sentindo. Sabia que seu pai não merecia, e naquele momento jurou que aquela cena nunca mais aconteceria. Foi para a cozinha. Sua cabeça continuava doendo, mas não quis comentar com seu pai, pois sabia que ele ficaria preocupado, e isso ele não queria. Sabia o quanto o pai o amava e o quanto esperava dele. Tomou café e voltou a seu quarto. Pegou um livro de Latim e começou a ler. Começou, mas não conseguiu prosseguir. A imagem de Letícia surgiu em seu pensamento. Seu rosto, cabelos, olhos e principalmente seu sorriso. Tentou afastar o pensamento, mas não conseguiu. Levantou-se e saiu para a rua. O dia estava lindo, não havia nuvens escuras e o sol brilhava com intensidade. Olhou para os dois lados da rua, seguiu à esquerda. Caminhou alguns quarteirões. Enquanto caminhava, ia se lembrando da festa, e da casa de Letícia. A casa é imensa, já na sala pode-se ver o tamanho da fortuna de seus pais. Não consigo esquecê-la, mas isso não pode continuar. Ela é filha de uma das mais importantes famílias desta cidade! Eu sou apenas o filho de um escrivão de cartório! Ela está muito distante. Além de ser muito rica, é a prometida de Hélio. Que vou fazer? Preciso esquecê-la. Tentou se interessar pela paisagem, mas não adiantou. Parou em frente a um bar onde costumava tomar lanche junto com seus amigos. Por isso o garçom o conhecia. Assim que entrou, ele o recebeu com um sorriso:
- Olá, Miguel, o que está fazendo aqui? Hoje é domingo!
- Olá, Jeremias! Acordei e fiquei com vontade de andar. Quando me dei conta, estava aqui. Estou precisando espairecer. Dê-me um copo de vinho.
O garçom admirou-se:
- Vinho?! Nunca o vi beber!
- Mas hoje estou precisando esquecer. Sei que só o vinho poderá me ajudar...
- Tem certeza disso?
Miguel disse, irritado:
- Você vai ou não me vender o vinho?
Sem responder, o garçom encheu o copo. Miguel bebeu quase de uma vez. Assim que terminou, bebeu outro e mais outro. Quando percebeu que não estava bem, disse ao garçom:
- Jeremias, agora vou embora. Meu pai está me esperando para o almoço.
O garçom apenas acenou com a mão. Cambaleando, Miguel foi para casa. Assim que entrou, seu pai percebeu que ele estava bêbado. Não conseguia acreditar nem entender o que estava acontecendo com seu filho. Miguel quase caiu, e foi apoiado por seu pai, que disse:
- Venha, meu filho, vamos para o seu quarto. O que está acontecendo?
- Ela é linda, papai! Linda!
- Agora você vai dormir. Quando acordar, conversaremos. Venha.
Ajudou Miguel a se deitar. Bastante preocupado, ficou olhando e pensando: Meu Deus... o que está acontecendo com meu filho? O que posso fazer para ajudá-lo? Foi sempre um bom filho e responsável, nunca me deu trabalho algum? Que posso fazer? Deixou Miguel dormindo e voltou para a sala. Seu coração estava apertado. Miguel era seu filho único. Sempre fora um bom menino, carinhoso, estudioso, e sempre dizia que um dia seria um advogado e teria muito dinheiro. Muitas vezes ele havia dito ao filho:
- Meu filho, o dinheiro é importante, mas não deve ser o principal motivo que deve levá-lo a ser um advogado. Essa profissão é uma das maiores conquistas da humanidade, e com ela poderá ajudar a muitas pessoas. Você terá em suas mãos a defesa de inocentes.
Quando ele dizia isso, Miguel ria e respondia:
- De criminosos também!
O pai respondia:
- Sim, mas eles também merecem defesa.
- Papai, às vezes penso que o senhor não é deste mundo! Fica sempre procurando algo de bom em todas as pessoas.
- Porque todas as pessoas têm sempre algo de bom. A vida pode levá-las a fazer maldade, mas no íntimo sempre existe o bem.
- O senhor pode continuar pensando assim, mas eu só vou atender a quem possa me pagar. Para isso estou estudando.
Ele estava ali pensando em tudo o que havia conversado com o filho, mas naquele momento, aquele filho que sempre fora seguro e sabia o que queria da vida estava embriagado e perdendo suas referências. Seus olhos ficaram marejados, uma lágrima quis se formar, mas ele logo a afastou, pensando: Assim que ele acordar conversaremos. Precisa me contar o que está realmente acontecendo. Quem será essa moça? Letícia também naquela manhã acordou, mas diferente de Miguel, estava feliz pela festa que tivera e, principalmente, por tê-lo conhecido. Estava abrindo os olhos quando Amélia entrou dizendo:
- Bom dia, minha irmã! Como está esta manhã?
Letícia, com os olhos brilhantes, sentou-se na cama. Pegou um travesseiro, colocou sobre os joelhos e seus cotovelos sobre ele. Respondeu:
- Estou muito feliz, a festa foi linda!
- Foi mesmo! Você estava linda!
- Também achei. E você, como está?
- Feliz muito feliz!
- Por causa de Nestor? Amélia corou ao responder:
- Você notou algo?
- Letícia riu:
- Claro que sim! Todos perceberam vocês ficaram o tempo todo juntos, dançaram quase a noite toda. E o brilho dos olhos? Mesmo que quisessem esconder, ele não deixaria. Pareciam quatro faróis.
- Você também dançou muito com aquele rapaz amigo de Mário!
Dessa vez foram os olhos de Letícia que brilharam ao dizer.
- Foi mesmo! Ele não é lindo?
- Para ser sincera, não notei. Mas a que família ele pertence?
- Não sei! Não perguntei, mas se estuda na faculdade do largo São Francisco deve pertencer a uma família ilustre.
- Deve mesmo. Mesmo assim, você sabe que não pode ficar tão empolgada.
- Por que não?
- Papai já deixou claro que você vai se casar com Hélio. Uma sombra passou pelos olhos de Letícia.
- Não vou me casar com ele! Não o amo...
- Sabe que para nós, mulheres, isso de amor não importa.
Não somos donas de nossas vidas. Pertencemos a nossos pais. Eles decidem o nosso destino.
Letícia disse irritada:
- Isso não está certo! Não posso viver o resto da minha vida com alguém a quem não amo!
- Sinto muito, irmãzinha, mas tem que ser assim. Agora se levante Marilu chegará em breve. Vai passar o dia conosco.
- Ela é alegre e uma amiga sincera.
- È sim, gosto muito dela. Agora vou sair, preciso cumprimentar nossos pais. Eles já devem estar na mesa do café. Você não vem?
- Irei em seguida. Vou me preparar.
Amélia saiu. Letícia continuou na cama pensando em Miguel: Ele é lindo! A que família pertencerá? Tomara que a uma família com recursos, assim papai não se oporá ao nosso amor. Sim, porque eu o estou amando! Levantou-se, vestiu-se e em poucos minutos estava sentada à mesa do café. Seus pais e irmãos comentaram sobre a festa. Estavam felizes, pois tudo havia dado certo. Letícia os ouvia falando, mas não prestava atenção. Seu pensamento estava todo voltado para Miguel. Ele realmente a impressionara muito. Meia hora antes do almoço, Marilu chegou. Ela também era uma linda moça. Um pouco mais velha que Letícia, tinha os cabelos negros e caídos sobre os ombros em cachos delicados. Dentes perfeitos, olhos castanhos escuros. Ao chegar, Amélia e Letícia a levaram para o jardim, queriam comentar sobre a festa. Já no jardim, Amélia perguntou:
- Que achou da festa?
- Gostei muito. Você parece que gostou mais do que eu!
- Por que está dizendo isso?
- Ficou quase a noite toda nos braços de Nestor. Corada, Amélia perguntou:
- Também notou?
Marilu riu, enquanto respondia:
- Eu e todas as pessoas que estavam na festa.
As três riram. Marilu olhou para Letícia, dizendo:
- Você também dançou muito com aquele rapaz amigo de Mário. Quem é ele? A que família pertence?
Letícia, com o rosto de Miguel no pensamento, suspirou antes de responder:
- Não sei quem ele é, e nem a que família pertence, mas gostei muito dele.
Marilu segurou suas mãos enquanto dizia com voz pausada, mas firme:
- Não pode dizer isso, sabe que está quase prometida a Hélio...
Novamente irritada, Letícia respondeu:
- Não vou me casar com ele! Não vou!
Marilu pensou: Não vai mesmo! Não permitirei! Disse:
- Sabe que não poderá decidir isso.
- Sei que devo obediência aos meus pais, mas isso não é nada justo!
- Também acho que não é justo, mas é assim e nunca mudará...
- Tem que mudar! Precisa mudar!
Foram chamadas para o almoço. Miguel acordou. Lembrou-se do que havia acontecido. Envergonhado, continuou na cama, não sabia o que diria ao pai. Sabia que ele esperava que acordasse para pedir explicações. Não sei o que dizer! Não posso lhe dizer que estou envergonhado da minha situação social! Não posso dizer que estou apaixonado por uma moça como Letícia! Ele não entenderá! Seu pai entrou no quarto. Ao vê-lo acordado, disse:
- Finalmente acordou! Já vim aqui muitas vezes, você dormia profundamente. Como está?
- Estou bem, e quero lhe pedir mais uma vez que me desculpe. Prometo que isso não se repetirá...
- Você já disse isso, e foi hoje pela manhã. Estou preocupado. Se continuar assim, não conseguirá seguir e terminar a faculdade, não será aquele advogado que sempre sonhou ser.
- Sei disso, mas estou com um problema e preciso encontrar uma solução.
- Acredita que ela está na bebida?
- Claro que não, mas com ela consigo esquecer...
- Esquecer não! Dormir! Assim que acorda tudo volta novamente. Não quer me contar do que se trata?
Quis contar, mas pensou: Ele ficará triste se souber o que estou pensando. Não posso dizer que estou envergonhado de minha condição social. Ele poderá pensar que estou envergonhado dele, e isso não é verdade. Eu o adoro, só preferia ter nascido em outra casa, em uma família com posses. Se isso tivesse acontecido, agora não estaria com problema algum. Poderia falar com o pai de Letícia, casar-me com ela e ser feliz. Poderia? E Hélio? Pensou isso, mas respondeu:
- Não se preocupe papai, o problema é meu e vou resolvê-lo. Só quero que saiba que eu gosto muito do senhor e que não farei nada que lhe cause tristeza. Nunca mais tocarei em um copo de bebida. Serei aquele advogado sonhado por nós dois!
- Está bem, meu filho, quero e preciso acreditar nisso. Ficaria triste se fosse o contrário. Venha, vamos comer alguma coisa.
- Não estou com fome.
- Sei disso, mas precisa se alimentar.
Juntos e abraçados, foram em direção à cozinha. As jovens almoçaram, passaram o resto da tarde conversando sobre a festa e os rapazes. Amélia falava sobre Nestor, Letícia sobre Miguel. A única que não falava sobre rapaz algum era Marilu. Em dado momento, Letícia perguntou:
- Marilu, você não se interessou por rapaz algum?
Ela calmamente respondeu:
- Não, não me interessei. Como sabem me casaria com Hélio, se pudesse.
Elas riram e continuaram conversando. Estava quase anoitecendo quando um coche chegou. Vinha buscar Marilu, que se despediu de todos com abraços e beijos e foi para casa. Enquanto o coche seguia, ela, acompanhada por sua mucama, pensava: Preciso encontrar uma maneira de fazer com que Letícia se encontre com Miguel. Preciso fortalecer esse início de romance, só assim Hélio vai esquecê-la e poderei conquistá-lo. Mas como farei? Quem será ele? A que família pertencerá? Assim pensando, chegou em casa. Seu irmão estava na biblioteca lendo. Ela perguntou por ele, foi até lá. Entrou, beijou o irmão, dizendo:
- Preciso falar com você.
Rui, desviando os olhos do livro que lia, perguntou:
- Sobre o quê?
- Sobre Miguel, que estava na festa. Ele é amigo de Mário e dos rapazes.
- Não o conheço muito bem. Sei que estuda na faculdade de Direito e que é amigo deles, mas como sabe, estudo em outra faculdade. Vejo-os de vez em quando, mas minhas amizades são outras.
- Sei disso, mas preciso saber quem ele é. E a que família pertence.
- Por que o interesse? Está gostando dele?
Ela começou a rir:
- Não! Eu não, mas uma minha amiga está, e pediu que eu descobrisse tudo sobre ele.
- Está bem, farei algumas perguntas. Assim que souber algo, conto-lhe tudo. Está bem assim?
- Está ótimo, mas não demore, tenho urgência.
- Amanhã mesmo investigarei. Assim que voltar da faculdade devo ter uma resposta. Agora saia, deixe-me estudar.
Ela deu um beijo em sua testa e saiu.

A DESCOBERTA

No dia seguinte, Marilu esperou ansiosa a chegada do irmão da faculdade. Sabia que ele lhe traria uma resposta. Sempre fora assim entre os dois. Ele era seis anos mais velho que ela. Enquanto esperava, pensava: Ele sempre fez tudo o que lhe pedi. Sempre me tratou como se eu fosse uma criança. Por isso sei que me trará uma resposta. Hoje mesmo saberei quem é Miguel. Depois disso, terei que encontrar uma maneira para que se encontre com Letícia. Preciso que haja um romance entre eles, assim Hélio se decepcionará e me dará atenção. De fato, isso aconteceu. Assim que ela viu o coche parando em frente a sua casa, correu para encontrar Rui, que a recebeu com um sorriso:
- Sei que está ansiosa. Pode ficar calma, tenho todas as informações que quer. Mas, antes, preciso saber para quê.
Enquanto entravam, ela, com a mão no braço dele, respondia:
- Sabe que gosto de Hélio, mas ele está cego de amor por Letícia. Ela, por sua vez, não gosta dele. Conheceu Miguel e está interessada nele.
Ele começou a rir:
- Está pretendendo ser o cupido?
- Não, o que quero é Hélio.
- Mas o que lhe garante que se ela ficar com Miguel ele a notará como mulher? Sabe muito bem que ele só gosta de você como amiga!
- Sei disso, mas pode mudar. Depois que se decepcionar com Letícia, ficará triste e carente, e aí eu entro na história.
- Sinto muito, mas acredito que isso não vai ser fácil...
- Por quê?
- Miguel não pertence a nossa classe social.
- Que está dizendo?
- Isso mesmo, não é de boa família. Não tem fortuna, nem posses. Ele e seu pai trabalham no cartório. Seu pai é escrivão e ele faz pequenos trabalhos.
- Não posso acreditar no que está dizendo! Deve estar brincando! Ele estuda na melhor faculdade do país!
- Não estou brincando, irmãzinha, tudo o que lhe contei é a mais absoluta verdade. Ele conseguiu uma bolsa de estudos. Como vê um romance entre os dois é impossível. Os pais da Letícia nunca o aceitarão.
Ela ficou pensando. Estava preocupada, pois aquilo nunca havia passado por sua cabeça. Disse:
- Isso muda tudo, vou ter que encontrar uma outra maneira.
- Sei que encontrará. Conheço-a o bastante para dizer isso.
Ela sorriu e foi para o seu quarto. Precisava pensar. Queria o amor de Hélio e o conseguiria. Durante o resto do dia ficou pensando a esse respeito. À noite já havia tomado uma decisão. Contarei tudo a Letícia, mas preciso convencê-la de que a diferença de nível social não deve interferir no amor deles. Saberei como falar, a induzirei para que vá procurá-lo no cartório. Tinha tudo planejado, só precisava encontrar uma maneira de colocar o plano em ação. Como fazer para levar Letícia até o cartório? Se lhe contasse antes, talvez ela não quisesse mais saber de Miguel. Teria que ser uma surpresa. Pensou muito durante aquela noite. Na manhã seguinte, ao acordar, já tinha uma solução. Logo depois da manhã foi até sua mãe e disse-lhe:
- Mamãe, Letícia pediu que eu fosse até a casa dela para almoçar. À tarde, eu, ela e Amélia iremos ao centro da cidade, elas precisam fazer compras. Posso ir?
- Se levar sua mucama junto, não terá problema, mas precisamos falar com seu pai.
- Deixe que eu fale. Ele nunca me negou um pedido.
A mãe sorriu:
- Desde que você era pequena, foi sempre assim. Conseguiu sempre o que quis.
Marilu sorriu:
- É isso mesmo, foi sempre assim. Sou muito feliz pela família maravilhosa que tenho. Obrigada, mamãe.
Sob o olhar amoroso de sua mãe, ela se retirou e voltou para o seu quarto. Precisava ensaiar bem as palavras e o que dizer. Letícia não saía muito de casa, e quando isso acontecia estava sempre acompanhada por um dos irmãos. Marilu sabia que precisava convencer Amélia para que fosse junto. Depois do almoço, com o consentimento do pai e acompanhada da mucama, ela foi à casa de Letícia. Tinha tudo planejado, nada daria errado. O coche parou em frente à casa de Letícia. Logo um dos escravos foi abrir a portão. Ela entrou altiva e rapidamente, não tinha muito tempo. Assim que a viu entrar, Letícia, que estava bordando, levantou-se alegre:
- Marilu! Que bom que veio!
- Vim porque preciso de sua ajuda.
- Minha ajuda?! Para quê?
- Papai quer dar um presente para mamãe, no mês que vem será o aniversário de casamento deles. Ele quer lhe dar uma jóia, pediu que eu escolhesse. Não gostaria de fazer isso sozinha, tenho medo de não escolher bem, por isso preciso que você e Amélia venham junto comigo.
- Hoje?!
- Sim, precisa ser hoje. Na semana que vem papai vai viajar e quer que a jóia já esteja comprada.
- Amélia deve estar em seu quarto lendo. Vamos até lá?
Entraram no quarto. De fato, Amélia estava recostada na cama lendo. Ao vê-las, admirou-se. Marilu contou seu problema, e ela se prontificou a ajudar. Foram juntas conversar com a mãe e pedir permissão. A mãe foi até o escritório para falar com seu marido. Após alguns minutos, voltou com a permissão. As três saíram no coche de Marilu acompanhadas por sua mucama. No centro da cidade, entraram em algumas lojas. Em dado momento, Marilu, sob os olhos admirados das duas, entrou no cartório. Elas a acompanharam. Assim que entraram, Letícia ficou parada, branca como cera. Seu coração quase parou. Marilu segurou-a para que não caísse. No meio do salão estava Miguel, carregando uma caixa com muitos documentos. Amélia também o viu, e como Letícia, ficou sem saber o que fazer. Como que atraído pelo olhar delas, ele se voltou e as viu. Assim como elas, ficou petrificado. A caixa quase caiu de suas mãos, não sabia o que dizer ou fazer. A única que tinha o controle era Marilu, que fez um sinal com as mãos para que ele se aproximasse. Ele, cambaleando, obedeceu. Assim que se aproximou, Marilu, fingindo surpresa, disse:
- Miguel! Boa tarde! Não sabia que você trabalhava aqui!
Ele, gaguejando e sem coragem de olhar para Letícia, respondeu:
- Boa tarde, trabalho aqui sim, ajudo meu pai. Mas o que fazem aqui?
- Estávamos passeando. Letícia, você se lembra de Miguel? Ele estava em sua festa!
Ela, trêmula e com voz baixa, respondeu:
- Lembro sim, como vai, Miguel?
- Estou bem.
Letícia conseguiu superar o susto. Amélia, assim como ela, estava intrigada. Jamais poderia imaginar que aquele rapaz elegante e educado não pertencesse à mesma classe social que elas. Estavam sem saber como continuar a conversa quando Marilu disse:
- Miguel, falta muito tempo para terminar o expediente?
Ele olhou para o relógio que estava na parede, e ainda com a voz trêmula, respondeu:
- Quarenta minutos. Por quê?
- Poderemos esperá-lo para irmos juntos até a confeitaria tomar um chá. Que acham da minha idéia?
As moças concordaram, mas ele ficou em dúvida, pois teria que pagar a conta e não tinha dinheiro para isso. Mas, mesmo assim, disse:
- Está bem. Assim que terminar o expediente eu as encontrarei na confeitaria.
Disse aquilo, mas não sabia como faria. Assim que elas saíram, ele foi para a sala onde seu pai trabalhava. Em poucos minutos contou o acontecido e disse que precisava de dinheiro. Seu pai respondeu:
- Sabe que não temos dinheiro para essas extravagâncias, mas como parece ser importante para você, ei-lo.
Ele agradeceu ao pai ainda confuso e saiu da sala. Não sabia o que dizer. Mas, enfim, as cartas estavam jogadas. Impressionara-se com Letícia, mas sabia que ela pertencia a outro mundo. Tinha medo que ela o rechaçasse, mas já chegara à hora. Não teria como evitar o encontro. Assim que o expediente terminou, ele se despediu do pai e foi para a confeitaria. As moças já estavam sentadas esperando. Letícia, desde que saíra do cartório, não dissera uma palavra. Desde a noite da festa não conseguira esquecê-lo. Sabia que seria difícil convencer seu pai a não obrigá-la a se casar com Hélio, mas também sabia que ele nunca permitiria que se casasse com Miguel. Amélia também pensava a mesma coisa. Marilu era a única que estava controlada e feliz, pois seu plano estava dando certo. Bastava só convencer os dois de que a diferença social não deveria interferir no amor deles. Miguel chegou, cumprimentou-as e sentou-se em uma cadeira, que propositadamente Marilu deixara vaga ao lado de Letícia. Ficaram alguns minutos calados. Marilu iniciou a conversa:
- Então, Miguel! Foi uma surpresa encontrarmos você trabalhando no cartório!
Ele, ainda desconcertado, disse:
- Também fiquei surpreso ao vê-las. Preciso que me desculpem. Nada disse, mas de maneira alguma quis passar por aquilo que não era. Mário e os outros me conhecem e sabem da minha origem.
Marilu continuou:
- Assim como para eles isso não deve ter importância, para nós também não tem, não é, meninas?
Elas apenas balançaram a cabeça. Ficaram ali tomando chá e conversando amenidades. Marilu, com um sinal, fez com que Amélia a acompanhasse até o banheiro, deixando Miguel e Letícia a sós. Ela, intrigada, perguntou:
- Por que saiu da festa sem se despedir?
- Peço que me desculpe, mas senti que estava gostando de você e sabia que seria impossível. Achei melhor me afastar.
- Por que não me disse o que estava sentindo?
- Pensei que só eu estivesse sentindo aquilo. Como vê, sou de origem pobre, e sei que está prometida para Hélio, que é meu amigo.
- Nada disso importa. Não ligo para o dinheiro ou a origem. E quanto a Hélio, ele sabe que não o amo e que não quero me casar com ele.
- Do modo como fala parece que tudo é fácil.
- E é! Se gostar realmente de alguém, nada disso será empecilho!
- Você é ainda uma criança, não sabe o que está dizendo.
- Você não é muito mais velho que eu! Sei muito bem o que estou dizendo. Também me interessei por você e fiquei muito triste quando foi embora.
- Acredita mesmo que poderá haver algo entre nós?
- Tenho certeza disso!
- Poderemos nos ver?
- Isso será um pouco difícil, sabe que não posso sair sozinha de casa, mas darei um jeito. Se realmente quiser me ver, arrumarei uma forma.
- Claro que quero vê-la!
- Então vamos marcar. Na próxima semana, neste mesmo dia da semana, aqui neste lugar. Está bem assim?
- Claro que está. Tem certeza que poderá vir?
- Se não vier, foi porque não consegui, mas estarei com você em meus pensamentos.
Ele ia dizer algo quando Marilu e Amélia se aproximaram. Esta última disse:
- Letícia, está na hora de irmos embora. Se pretender sair outras vezes é melhor não nos atrasarmos.
- Tem razão. Miguel foi um prazer encontrá-lo. Não se esqueça do que combinamos.
Ele se levantou e, sorrindo, disse:
- O prazer foi todo meu. Espero vê-las novamente.
Acompanhou-as até o coche, que em seguida, sob o seu olhar, se afastou. No caminho de volta, Letícia contou o que havia conversado com ele enquanto elas estavam no banheiro e pediu ajuda para continuar se encontrando com ele. Elas disseram que ajudariam. Miguel também chegou feliz em casa e contou ao pai o acontecido. Após ouvi-lo, o pai disse:
- Sei que está feliz meu filho. Isso me alegra muito, e espero que tudo dê certo.
- Dará papai! Dará!
Jantaram e foram para os seus quartos.
Daquele dia em diante começaram a se encontrar uma vez por semana. O amor entre os dois foi crescendo cada vez mais. Letícia saía sempre acompanhada por Amélia e Marilu, que não cabia em si de felicidade, pois sabia que Hélio, não tendo mais Letícia, seria dela. Embora nunca mais Miguel tornasse a beber como das primeiras vezes, continuava bebendo. Um pouco menos, mas continuava. Fazia quase um ano que se encontravam uma vez por semana. Resolveram que não contariam a ninguém além de Amélia e Marilu, que juraram absoluto segredo. Miguel, quando conversava com Hélio, não comentava nada. Amava Letícia e faria o possível para continuar com ela. Aproximava-se novamente o aniversário dela. Letícia combinou com ele que nesse dia o apresentaria oficialmente a seus pais. Quando ela lhe disse isso, ele se assustou e perguntou:
- Tem certeza que será uma boa hora? Não acha que é ainda muito cedo? Falta muito tempo para eu me formar.
- A hora é essa. Farei dezesseis anos, sabe que nessa idade as moças costumam firmar compromissos de noivado. Temo que meu pai queira fazer isso entre mim e Hélio. Preciso me antecipar.
- Você é quem sabe. Farei tudo para vê-la feliz.
Naquela tarde chegou feliz em casa. A noite, na hora do jantar, contaria tudo o que estava acontecendo. Conversou com Amélia e convidou Marilu para o jantar.
- Preciso da presença das duas. Sei que me ajudarão! Elas riram. Marilu disse:
- Não se preocupe, dará tudo certo, sabemos o quanto se amam. Enquanto jantavam, Letícia ia pensando nas palavras que diria. Precisava tomar cuidado, pois seu pai, embora amasse os filhos, era rígido em suas decisões e exigia total obediência. Assim que terminaram de jantar, quando ela ia começar a falar, o pai a interrompeu dizendo:
- Letícia, preciso fazer um comunicado a todos, e principalmente a você. Conversei longamente com o pai de Hélio e decidimos que na festa de seu aniversário será uma ótima ocasião para anunciarmos seu noivado com Hélio.
Ela sentiu como se houvessem jogado um balde de água fria sobre ela. Olhou para Amélia e Marilu, que assim como ela, estavam abismadas com o que acabaram de ouvir Tomou coragem e disse, chorando:
- Não quero me casar com Hélio! Eu não o amo!
O pai a olhou secamente.
- Sempre soube que estávamos tratando disso. Não aceito desobediência, fará como estou dizendo.
Antes que ela ou alguém dissesse alguma coisa, ele se levantou e saiu da sala de jantar. Letícia chorava inconsolável. Marilu também estava nervosa, pois sentia que seus planos não haviam adiantado para nada. Se aquele casamento acontecesse, perderia Hélio para sempre. A mãe de Letícia disse:
- Sei minha filha, o que está sentindo, pois passei por isso também. Quando me casei não amava seu pai, foi também um acerto entre o pai dele e o meu. Mas hoje não me arrependo, aprendi a gostar dele, e ele me deu vocês três. Você também aprenderá a gostar de Hélio, ele me parece um bom rapaz.
- Não gostarei dele nunca! Sei que é um bom rapaz e um bom amigo também, mas não o quero como marido!
- Sinto muito, minha filha, sabe que terá de ser assim. Seu pai já deu a palavra ao pai de Hélio e não mudará de opinião.
- Não posso me casar com ele! Não posso!
Saiu da mesa e da sala em disparada. Foi para o seu quarto, e Amélia e Marilu a seguiram. Já no quarto, jogou-se chorando sobre a cama. Amélia não sabia o que dizer. Sabia que a mãe tinha dito a verdade, seu pai não mudaria de idéia, mas sabia também o quanto Letícia e Miguel se amavam. Marilu estava desesperada, sentia que seu amor lhe fugia pelos dedos. Mas naquele momento não soube o que dizer. Apenas tentou fazer com que Letícia parasse de chorar.
- Letícia, não fique assim, haveremos de encontrar uma solução. Você não se casará com Hélio. Posso até jurar, se for preciso. Fique calma, pensarei em alguma coisa.
- Sei que não haverá solução, meu pai já decidiu.
Deu um pulo da cama quase gritando:
- Hoje é sexta-feira! Não terei como contar a Miguel o que está acontecendo!
- É, minha irmã, isso é verdade. Ele terá de saber pela boca de Hélio, que com certeza contará a todos na segunda-feira durante a aula.
- Que farei? Que farei?
Marilu fez com que ela voltasse para a cama enquanto dizia:
- Por enquanto não pode fazer nada, mas encontrarei uma solução. Agora fique calma.
Com a presença das famílias de Hélio e de Marilu, o almoço transcorreu normalmente, a não ser por Letícia, que embora estivesse bem-vestida, estava pálida e com os olhos inchados de tanto chorar. Assim que o almoço terminou, todos foram conduzidos à sala onde seria servido o licor ou o café. Quando todos se acomodaram, o pai de Hélio disse:
- Como todos sabem, estou aqui para pedir oficialmente a mão de Letícia para o meu filho Hélio.
O pai de Letícia, sorrindo e feliz, disse:
- É com prazer que aceito o pedido. O casamento se dará dentro de um ano.
Todos se levantaram para cumprimentar os noivos. Letícia, sem muito entusiasmo, recebeu os cumprimentos, enquanto Hélio não cabia em si de tanta felicidade. Finalmente estava realizando o sonho de sua vida. Hélio tinha três irmãs e dois irmãos. Os rapazes foram para a sala de jogos. As moças ficaram conversando entre si sobre os vestidos que usariam no casamento. A mãe de Letícia, junto com as senhoras, discutia os quitutes que seriam servidos. Marilu olhava a tudo desesperada. Não havia ainda encontrado uma solução. Mais ou menos uma hora depois, Letícia se aproximou de Hélio e o convidou a ir ao jardim. Queria conversar com ele. Prazerosamente ele aceitou. Assim que chegaram ao jardim, ela se sentou em um banco e pediu a ele que se sentasse também. Quando ele se sentou, ela disse:
- Hélio, você é o único que pode impedir essa loucura!
- Por que está dizendo isso?
- Não posso me casar com você! Não o amo! Você pode dizer a seu pai que não me quer como esposa!
- Sabe muito bem que não posso fazer isso. Assim como o seu pai, o meu também decidiu. Sabe que eles têm total domínio sobre nossas vidas.
- Sei disso, mas com o homem é sempre diferente! Se conversar com ele, talvez lhe dê atenção!
- Poderia até tentar, mas não quero.
- Por que não?
- Porque eu a amo, e muito, e estou feliz por tê-la como esposa.
- Eu não o amo! Sabe muito bem que não seremos felizes!
- Mas eu a amo o suficiente por nós dois. Sei que com a convivência farei com que aprenda a me amar.
- Isso não acontecerá nunca! Gosto de você apenas como amigo, nada além disso. .
- Pagarei para ver. Garanto que em menos de um ano de casados estará totalmente apaixonada.
- Isso é loucura! Está em suas mãos nos livrar de uma vida inteira de sofrimentos!
- Você, como uma boa moça romântica, está sofrendo sem motivo. Verá como seremos felizes.
Assim dizendo, pegou em sua mão, a fez levantar e a conduziu de volta para dentro da casa. Letícia seguiu-o sem discutir. Sabia que seu destino estava nas mãos dele. Anoitecia quando os convidados começaram se despedir. No quarto de Letícia, as três moças conversavam. Letícia, inconsolável, chorava e dizia:
- Que farei? Miguel não pode ficar sabendo através de outra pessoa. Preciso falar com ele, mas como? Meus pais não me deixarão sair a esta hora da noite. Além do mais, não sei onde ele mora!
Marilu foi até uma cômoda, abriu uma gaveta e de dentro tirou um álbum que continha papéis de carta perfumados. Ela sabia que estavam ali, pois fora ela mesma quem trouxera de presente para Letícia de uma das vezes em que fora à Europa. Entregou o álbum a Letícia:
- Escreva uma carta contando tudo. Meu irmão sabe onde ele mora. Pedirei ao meu cocheiro que vá até a casa dele e lhe entregue a carta.
- Fará isso? Seu pai concordará com que o cocheiro se ausente?
- Não se preocupe, pedirei a Rui que me ajude. Direi que a carta é de extrema importância e que Miguel precisa recebê-la ainda hoje. Meu pai não se importará e deixará que use a carruagem.
Letícia tirou de dentro do álbum uma folha e escreveu.

Querido Miguel:

Infelizmente, nossos planos não poderão ser concretizados. Meu pai comunicou hoje o meu noivado com Hélio e o casamento para daqui a um ano. Não preciso lhe dizer o quanto estou desolada, mas não há nada que eu possa fazer. Embora continue amando-o - e sei que esse amor será para toda a eternidade -, não poderei mais encontrá-lo. Sou agora uma mulher comprometida e não posso trair meu noivo. Mas nada poderá me impedir de pensar em você e amá-lo.

Com carinho, e já com saudades, Letícia.

Assim que terminou de escrever, beijou o papel, colocou-o em um envelope e entregou-o a Marilu.

MARILU

Marilu, assim que chegou em casa, desceu do coche acompanhada dos pais e de Rui. Seguiu com ele em direção ao interior da casa. Disse:
- Vamos para o meu quarto, preciso conversar com você.
Ele não se admirou, pois sabia que quando a irmã falava assim queria dizer que estava tentando fazer algo não muito certo, e que precisava de sua ajuda. Entraram no quarto de Marilu. Ela, aflita, disse:
- Preciso que me ajude!
- O que é desta vez?
Ela contou tudo o que havia acontecido, desde o dia em que ele descobrira quem era Miguel. Disse que precisava fazer com que Miguel descobrisse sobre o casamento pela própria Letícia, pois assim restaria uma esperança e ela teria tempo de pensar em uma maneira para afastar Hélio de Letícia. Rui ouviu tudo em silêncio. Quando ela terminou, disse espantado:
- Letícia com Miguel? Mas ele é um dos melhores amigos de Hélio!
- Sei disso, mas ela não quer se casar, está sendo obrigada pelo pai.
- Hélio sabe sobre Miguel?
- Não! E nem pode saber! Só preciso que entregue esta carta para ele. Deixe o resto por minha conta.
- E como farei isso?
- Sabe muito bem que, como homem, pode usar o coche quando quiser. Eu não poderei sair à noite. Só quero que leve esta carta para Miguel!
- Não estou entendendo. Quer tanto ficar com Hélio, mas entregando essa carta fará com que o amor de Letícia e Miguel termine. Assim Hélio poderá ficar com ela sem problema algum...
Ela gritou:
- Nunca! Ele se casará comigo! Só preciso ter um tempo para planejar. A princípio parecerá que tudo está acabado, mas assim que Miguel deixar Letícia, encontrarei uma maneira para que fiquem juntos. Dará tudo certo! Eu ficarei com Hélio e ela com Miguel! Agora faça o que lhe pedi.
- Está bem, irmãzinha. Vou agora mesmo pedir a carruagem a papai.
Com um sorriso, saiu do quarto. Miguel estava estudando e sozinho em casa. Seu pai ganhara dois convites para assistir a uma peça de teatro. Convidara-o, mas ele não aceitara, pois realmente precisava estudar. Estava distraído com a leitura quando ouviu alguém batendo palmas em seu portão. Não esperava ninguém, ainda menos àquela hora. Saiu para ver do que se tratava. Ficou mais admirado ainda quando viu Rui. Não o conhecia muito bem. Encontrara-o algumas vezes quando saíra em companhia de Mário, Nestor e Hélio, mas como estudavam em faculdades diferentes, quase nunca se viam. Ao vê-lo, disse:
- Rui! Que está fazendo aqui?
- Boa noite, Miguel. Estou aqui cumprindo uma missão.
- Boa noite! Quer entrar?
- Não, obrigado, só vim mesmo para lhe entregar esta carta.
- Carta?! De quem é?
- Não sei, mas assim que ler saberá.
Entregou a carta. Miguel segurou-a em suas mãos. Ao pegá-la, sentiu o perfume. Sorrindo, disse:
- Parece ser de mulher. Quem lhe deu essa incumbência?
- Não posso dizer, mas assim que a ler entenderá. Bem, missão cumprida. Até mais.
Com a carta nas mãos, Miguel correspondeu com um sorriso. Disse:
- Embora não saiba o conteúdo da carta, agradeço-lhe pelo trabalho. Até mais.
O coche foi embora e Miguel voltou para dentro da casa. Antes de abrir a carta, cheirou-a. O perfume era suave e um tanto adocicado. Curioso, mas com cuidado, ele abriu o envelope. Começou a ler. Seu rosto foi se modificando. Quando terminou de ler, lágrimas caíam. Ficou com a carta em sua mão, parado, sem saber o que fazer. Desesperado, pensou: Sempre soube que isso aconteceria, mas sempre tive uma esperança... que farei da minha vida? Como viverei sem ela? Olhou para a cristaleira. Lá estava a solução para os seus problemas. Pegou uma garrafa de vinho e começou a beber. Seu pai, ao chegar, encontrou-o com a cabeça sobre a mesa e com a carta amassada na mão. Com cuidado, tirou a carta e leu. Pôde logo perceber por que seu filho estava daquela maneira. Ajudou-o a se levantar, conduziu-o para o quarto e o deitou. Miguel, ao perceber a presença do pai, começou a chorar:
- Papai... Eu a perdi para sempre! Ela vai se casar com Hélio! Não sei como viverei sem ela!
- Eu sei meu filho, mas agora precisa dormir. Quando acordar conversaremos.
- Não quero dormir! Quero morrer!
O pai não respondeu, apenas deitou-o. Em seguida saiu do quarto. Embora não chorasse, seu rosto estava crispado, demonstrando o grande sofrimento que sentia ao ver o filho daquela maneira. Sabia que seu filho havia se tornado um alcoólatra e que qualquer motivo era suficiente para que bebesse. Desesperado, pensou: Meu filho! Que posso fazer para ajudá-lo? Não sei, não sei apenas rezar e pedir a Deus que o ajude... Miguel só acordou na manhã seguinte e na hora de ir para a faculdade. Assim que abriu os olhos lembrou-se de tudo o que havia se passado. Sabia que seu pai deveria estar na sala lendo, como fazia todas as manhãs. Sentiu que seu corpo exalava odor de bebida. Sua cabeça doía, mas nada daquilo o incomodava. A única coisa que lhe importava era Letícia, que estava perdida para sempre. Lágrimas começaram a se formar em seus olhos. Levantou-se e foi ter com o pai. Estranhou, ao entrar na sala, não encontrá-lo lendo, como sempre fazia. Foi em direção à cozinha. Seu pai estava sentado tomando um café. Ao ver o filho entrar, disse:
- Bom dia. Vejo que acordou, mas parece que não está bem.
- Bom dia, papai. Sinto muito por mais uma vez ter me excedido na bebida. O senhor leu a carta de Letícia?
- Li, e entendi. E agora, o que pretende fazer? Continuar se embriagando?
- Não sei... Não sei.
- Com essa carta, ela demonstrou ser uma moça honesta e sensata. Sabe que será obrigada a obedecer ao pai, e que também honrará o marido e seu casamento. Você agora só tem dois caminhos a seguir. Aceita a situação, continua estudando para ser um bom advogado e conquistar tudo o que sonhou, ou se entrega à bebida e se torna um alcoólatra. Você é meu filho muito querido. Não sei o que fazer para ajudá-lo, mas seja o que for que escolher, estarei a seu lado. Pense bem, sua vida está em suas mãos. Não comprarei mais bebida alguma. Se quiser beber terá que ser fora de casa. Só posso lhe dizer que a bebida não é solução para nada.
Levantou-se da cadeira em que estava sentado e saiu da cozinha, dizendo:
- Estou indo para o cartório, preciso chegar mais cedo, tenho muito trabalho. Até mais tarde. Fiz um chá de losna para que tome, sei que não deve estar bem do estômago.
Saiu. Miguel sabia que ele estava mentindo e que não iria para o cartório àquela hora. Sentiu que seu pai não queria conversar com ele, e sabia qual era o motivo. Estava magoado e triste por tê-lo encontrado embriagado. Realmente aquilo era verdade. Seu pai saiu de casa pensando, e foi caminhando sem destino. É ainda muito cedo para ir ao cartório, mas não sei o que dizer a ele. Entendo seu sofrimento, mas não sei como ajudá-lo. Só ele poderá decidir sua vida... Miguel tomou o chá, preparou-se e saiu em direção à faculdade. Imaginava o que encontraria lá. E realmente encontrou. Hélio estava feliz e contando para os colegas de seu noivado e futuro casamento. Foi cumprimentado por todos e também por Miguel, que fez o máximo possível para não demonstrar o seu sofrimento. Letícia, por sua vez, também sofria muito. Sozinha em seu quarto, chorava enquanto pensava: Sei que não terei como evitar esse casamento, tenho que obedecer ao meu pai. Preciso esquecer Miguel, mas sei que nunca conseguirei e o amarei para sempre, até a eternidade. Mas, mesmo contra minha vontade, deverei honrar meu marido. Desde então, seus olhos nunca mais brilharam como antes, e quase sempre estavam vermelhos e inchados de chorar. O tempo foi passando. Miguel não conseguia ficar longe da bebida, todos os fins de semana passava embriagado, para desespero de seu pai. Suas notas decaíram, com muito custo conseguiu mantê-las no limite para ser aprovado. Já havia algum tempo corriam rumores de que a abolição da escravatura seria proclamada. Os estudantes estavam alvoroçados. Alguns tinham mesmo o sentimento de lutar pelos negros. Outros apenas acompanhavam os colegas, pois eram ricos, possuíam escravos e gostavam de ser atendidos por eles. Miguel nunca quisera participar dessa luta, pois em certa ocasião, quando comentara com o pai, este lhe dissera:
- Cuidado, meu filho. Essa luta é contra o Império, portanto, contra os poderosos.
- Mas papai, quase todos os meus colegas da faculdade estão envolvidos nela!
- Não se esqueça que eles pertencem a famílias ricas e também poderosas. Se forem presos, seus pais terão dinheiro para contratar bons advogados, e logo serão libertados. Mas conosco é diferente. Se você for preso, não terei como ajudá-lo.
Embora fosse simpatizante da causa e desejasse mesmo que os escravos fossem libertados, sabia também que o pai tinha razão no que dizia. Por isso, até então não havia participado. Mas desde que recebera a carta de Letícia e nunca mais a vira, só desejava morrer. Não havia mais motivo para continuar vivendo. Seus sonhos estavam desfeitos para sempre. Mário, Nestor e Hélio participavam ativamente. Ele começou a acompanhá-los às reuniões. Não lhe importava mais o que pudesse lhe acontecer. Sempre que os estudantes iam a essas reuniões, alguns deles levavam consigo armas, para se proteger caso houvesse um ataque da guarda Imperial. O tempo foi passando. A data do casamento estava se aproximando. As duas famílias se uniram e compraram uma bela casa, onde Letícia e Hélio viveriam. Letícia não esquecia Miguel, mas estava conformada, sabia que aquele amor era impossível. Marilu, por sua vez, não se conformava, não aceitava a idéia de ver Hélio casado com outra que não fosse ela. Durante todo o tempo tentou convencer Letícia:
- Você não pode aceitar isso sem lutar! Vocês se amam!
Com lágrimas Letícia respondia:
- Sei que o amo, mas não posso desobedecer meu pai, nem trair Hélio. Ele sabe que não o amo, mas mesmo assim insiste nesse casamento.
Marilu, irritada, disse:
- Nunca pensei que você fosse tão fraca! Pensei que gostasse de Miguel sinceramente!
- Eu gosto, e muito, mas sei que não adianta. Não posso desobedecer meu pai! Se fosse ao seu caso, o que faria?
Marilu ficou pensando antes de responder:
- Não sei. Assim como você, fui criada para obedecer, mas não acho isso justo! Só por sermos mulheres não somos diferentes! Temos os nossos sentimentos, assim como os homens! Dia virá em que seremos iguais! Poderemos nós mesmas decidir nossa vida!
- Acredita mesmo nisso?
- Não sei, mas gostaria muito que fosse assim.
Letícia também queria que fosse assim, mas no momento não era. Sabia que devia obediência a seu pai, e que, após o casamento, essa obediência seria transferida para Hélio. Marilu estava desesperada. Pensou muito em uma maneira de separar Hélio de Letícia para sempre. Para isso precisaria da ajuda de Rui, seu irmão.
- Rui, preciso que me ajude.
- No quê?
- O casamento de Hélio com Letícia está se aproximando. Preciso impedir!
Contou a ele seu plano:
- Quero que você convide Miguel para um encontro e o leve até um hotel barato. Farei com que Letícia também vá. Quando os dois estiverem lá conversando, você terá que encontrar uma forma de que Hélio descubra e vá encontrá-los.
- Isso é loucura! Não sabe o que pode acontecer!
- Não vai acontecer nada! Hélio só vai tomar conhecimento do amor que existe entre os dois. Sentindo-se traído, abandonará Letícia, e assim eu terei chance com ele!
- Como farei para convencer Miguel a ir a esse hotel?
- Você mesmo me disse que ele está gostando de beber. Basta só lhe oferecer uma bebida. Assim que estiver embriagado, leve-o até lá.
- Não sei se vai dar certo.
- Claro que vai. O importante é que Hélio e Letícia nunca descubram que estamos envolvidos nisso.
- Como farei?
- Após deixar Miguel dormindo no hotel, contrate um rapaz ou menino para levar uma mensagem a Hélio. Nessa mensagem, diga que nesse hotel haverá um encontro de estudantes. Eu falarei com Letícia e a convencerei a ir até lá.
- Acredita que vai dar certo mesmo?
- Vai! Hélio não suportará ser traído e a abandonará!
- Está bem, vou fazer como você quer. Quando será isso?
- Planejarei tudo direito para que nada saia errado. Assim que estiver tudo certo, comunico.
- Ficarei aguardando. Agora preciso estudar.
Rui saiu e ela ficou imaginando a melhor forma de colocar seu plano em ação. Era a última cartada, por isso nada poderia dar errado. Durante alguns dias ficou pensando, até que finalmente, com tudo meticulosamente planejado, foi novamente falar com Rui.
- Está tudo pronto. Você deve fazer do modo como vou lhe dizer. Amanhã à tarde, na hora em que Miguel costuma sair do cartório, disfarçadamente você deve encontrá-lo, como se fosse por acaso. Convide-o para tomar alguma coisa e conversar. Dê uma bebida a ele, depois outra. Assim que estiver embriagado, leve-o a esse hotel. Quando ele estiver deitado e dormindo, saia imediatamente. Fique em uma esquina perto do hotel. Assim que vir Letícia entrando, mande alguém dizer a Hélio para ir até lá para um encontro com outros estudantes.
- E se ele não for?
- Ele irá. O resto ficará por minha conta. Ele ouviu com atenção. Disse:
- Tem certeza que tudo dará certo?
- Claro que sim. Agora não se preocupe com isso. Faça da maneira que lhe disse.
Na tarde seguinte, conforme o planejado Rui estava andando pela rua do cartório quando viu Miguel saindo. Aproximou-se dele, dizendo:
- Miguel, que bom encontrá-lo! Como vai? Miguel, também surpreso, respondeu:
- Rui! É uma surpresa, o que está fazendo por aqui?
- Estou vendo se encontro uma cartola. Mas vamos conversar?
- Claro que sim. Só preciso avisar meu pai, senão ele ficará preocupado.
Voltou para dentro do cartório e disse ao pai:
- Estou saindo com um amigo, mas não me demorarei. O pai, um pouco preocupado, perguntou:
- Algum amigo da faculdade?
- Não, ele faz faculdade de Medicina. É amigo de Hélio e dos outros.
- Você não está indo para uma daquelas reuniões, está?
- Não, papai, não se preocupe, logo mais estarei em casa.
O pai sorriu e ele saiu. Rui estava nervoso esperando-o. Seguiram em direção ao bar que Miguel costumava freqüentar. Miguel não queria beber, mas diante da insistência de Rui, não teve como evitar. Beberam o primeiro copo, depois outros. Logo estava completamente embriagado. Rui, levantando-se, disse:
- Parece que não está bem, vou levá-lo para casa.
Miguel ainda tentou argumentar, mas percebeu que naquela situação em que estava não conseguiria chegar em casa. Deixou-se levar. De acordo com o combinado, Rui levou Miguel até o hotel. Assim que chegaram, Miguel percebeu que não estava em seu quarto, mas não conseguiu argumentar. Com a ajuda de Rui, deitou-se e adormeceu. Assim que Rui viu Miguel dormindo, rapidamente saiu dali. Encontrou um rapaz com o qual já havia combinado, deu a ele o envelope e o endereço de Hélio, dizendo:
- Vá a este endereço, lá pergunte por Hélio e entregue este envelope em mãos.
- E se ele não estiver em casa?
- Ele estará já me certifiquei disso. Mas não diga quem lhe pediu que fizesse isso.
O rapaz sorriu e saiu apressado. Dentro do envelope, havia um pequeno papel, onde estava escrito:

Hélio,

Você precisa vir até esse endereço. Estamos esperando você para uma reunião de emergência.

Só isso. Não havia assinatura, mas Hélio sabia tratar-se da reunião que os estudantes costumavam fazer para tratar de alguma estratégia a respeito da abolição. Assim que leu, disse:
- Estou indo agora mesmo.
Foi o que fez. Pegou o coche e pediu ao cocheiro que o levasse até o endereço. Enquanto isso, Marilu estava escondida em seu coche, em uma rua perto dali. Rui foi encontrá-la para dizer que tudo estava certo. Assim que tomou conhecimento que Miguel estava dormindo no hotel, pediu ao cocheiro que a levasse até a casa de Letícia. Assim que o coche parou em frente à casa de Letícia, ela desceu apressada. Letícia admirou-se por ela estar ali àquela hora. Marilu se aproximou, dizendo com a voz aflita:
- Você precisa vir comigo agora! Miguel está em péssimas condições!
Ela, assustada, perguntou:
- Que condições?
- Está bêbado em um hotel de quinta categoria!
- Como sabe disso?
- Rui me contou e disse que Miguel está armado e que se você não for até lá vai se suicidar!
- Não posso sair agora! Amélia saiu com mamãe! Estou sozinha em casa!
- Não podemos perder tempo! Quando tudo estiver resolvido, você volta, e se necessário, conta o acontecido. Certamente todos entenderão!
Enquanto falava, empurrava Letícia para fora da casa. Ela, assustada e querendo ajudar Miguel, deixou-se levar.
Assim que chegaram ao hotel, Marilu perguntou a um homem que estava atrás de um balcão:
- Em que quarto está um moço que chegou acompanhado por um outro?
- Aquele que chegou bêbado?
- Ele mesmo! Está lá em cima, no quarto vinte e cinco.
Ela seguiu na frente levando Letícia pela mão. Entraram no quarto. Miguel estava dormindo. Ao vê-lo daquela maneira, Letícia não resistiu. Correu em sua direção e abraçou-o, chorando e dizendo:
- Miguel, meu amor! O que você está fazendo com sua vida?
Sem perceber que Marilu havia saído, ela começou a beijar o rosto de Miguel, que com muito custo conseguiu abrir os olhos. Ao vê-la, julgou estar sonhando. Abraçou-a, dizendo:
- Letícia, meu amor! Você está aqui ou estarei sonhando? Se for um sonho, não quero nunca mais acordar. Eu a amo!
Estavam assim abraçados quando Hélio chegou. Ao ver aquela cena, não se conteve. Tomado de ódio, tirou da cintura um revólver que carregava sempre que ia a uma das reuniões. Letícia, ao vê-lo, levantou-se. Tentou contar a ele o que havia acontecido, mas não teve tempo. Hélio apontou o revolver em direção a Miguel e atirou. Em seguida, levou-o até o próprio ouvido e atirou também. Letícia começou a gritar sem parar. Em poucos minutos o recepcionista entrou no quarto. Ao ver os dois corpos ensangüentados, entenderam o que havia acontecido. Letícia continuava gritando desesperada. Marilu, depois que entrara com Letícia no quarto, ao ver que ela se abraçara a Miguel, saíra disfarçadamente. Na rua, pegara o coche e, acompanhada por Rui, que já estava nele, seguira para sua casa.

NA SALA DE ANDRÉ

Todos na sala de André assistiam e relembravam aquela história na qual estiveram envolvidos. Hélio, embora inquieto - pois julgava conhecer a história -, ficou o tempo todo querendo ir embora, mas foi impedido por André:
- Você precisa ficar até o fim.
- Mas eu não quero ficar! Conheço a maneira como fui traído pela mulher que amava e por meu melhor amigo.
- Fique até o fim, depois poderá ir embora.
Sem alternativa, ele permaneceu ali assistindo. Mas quando a história chegou ao ponto da traição, ele gritou raivoso, para Iracema:
- Foi você quem tramou tudo? Letícia e Miguel nunca me traíram, então?
Marilu não conseguiu dizer nada. André, tranqüilo, foi quem respondeu:
- Como viu, não. Você nunca foi traído. Letícia, embora sofrendo muito, resolveu respeitar você. E Miguel também fez o mesmo.
- Todos sabiam! Por que não me contaram?
- Porque naquele dia, depois do assassinato de Miguel e de, seu suicídio, você saiu em desabalada carreira. Em seguida foi perseguido por irmãos das trevas. No primeiro instante sofreu muito, mas logo se aliou a eles e desapareceu. Nunca conseguimos encontrá-lo.
Hélio, com as mãos na cabeça, repetia sem parar:
- Eu não sabia! Eu não sabia...
- Sei disso, mas agora já tomou conhecimento de tudo. Esta reunião foi feita por sua causa. Agora já poderemos apagar a tela e eu lhe contarei o resto.
- Preciso saber.
- É pra isso que estamos aqui reunidos. O recepcionista do hotel, ao comprovar a morte dos dois, retirou Letícia do quarto e chamou a polícia. Não a conhecia, mas por suas roupas e educação, percebeu que ela pertencia a uma família rica, e o mais importante, era ainda uma menina. Letícia continuava chorando, não queria sair do quarto, mas ele insistiu, até que ela o acompanhou. Antes que a polícia chegasse, ele pediu a ela que dissesse quem era e onde morava, pois não queria que ela permanecesse ali. A princípio ela resistiu, mas depois percebeu que aquela seria a melhor solução para o momento. Deu o endereço a ele, que chamou um coche de aluguel. Deu o endereço ao cocheiro e pediu que a levasse para casa. A polícia chegou e ele disse o que havia acontecido. Omitiu a presença de Letícia e de Marilu. Disse que Miguel estava no quarto e que em seguida Hélio chegara. Em seguida ouvira os dois disparos. Ele não sabia o nome verdadeiro de nenhum deles. Vendo que não havia criminoso para ser encontrado, a polícia deu o caso por encerrado. Assim que Letícia chegou em casa, foi obrigada a contar tudo o que havia sucedido, pois estava com as roupas sujas de sangue. Seu pai ficou bravo por ela ter saído sozinha de casa, ainda mais para encontrar Miguel, alguém que ele nem sabia que existia. Com medo que descobrissem o que havia sucedido, ele mandou que Letícia fosse para um convento. Ela não se importou, pois com a morte de Miguel não havia mais nada na vida que a atraísse. Tornou-se uma irmã de caridade. Dedicou o resto de sua vida a ajudar pessoas carentes, principalmente crianças. Trabalhou em hospitais e escolas. Miguel, ainda embriagado, não se deu conta do que havia acontecido. Foi levado para um hospital. Quando voltou a si, foi infor¬mado de tudo. Sofreu preocupado com o pai, Letícia e o próprio Hélio. Marilu e Rui não contaram a ninguém que haviam participado e do modo como o fizeram. Com essa atitude, atraíram espíritos das trevas, que passaram a persegui-los. Com aquele plano todo, eles mudaram a vida de todos. Miguel se tornaria um ótimo advogado, depois seria um político que colaboraria com a criação de leis que ajudariam a muitas pessoas. Depois da abolição, Hélio também se tornaria político, e junto com Miguel, lutaria em favor da população. Marilu casou-se dois anos depois com um homem da sociedade. Ele foi um mau marido, ciumento e tirano. Ela ficou ao lado dele, até que, com quarenta e dois anos, morreu de um ataque cardíaco. Rui continuou lutando a favor da abolição, mas daquele dia em diante nunca mais foi o mesmo. Sentia-se perseguido, e o remorso o levou a tornar-se um alcoólatra. Formou-se médico, mas por beber muito, sua licença foi caçada. Terminou seus dias em um hospital psiquiátrico. O pai de Miguel ficou desesperado com a morte do filho. Ficou algum tempo em casa, não conseguia trabalhar, mas com ajuda espiritual, ele reagiu. Voltou ao trabalho e, aos poucos, embora sentisse saudade do filho, continuou sua vida anterior. Morreu com cinqüenta e quatro anos. Nestor e Amélia se casaram, tiveram seis filhos e uma vida tranqüila, pois se amavam. E parece que se amam até hoje.
Quando disse isso, olhou para Odete e Álvaro, que permaneceram o tempo todo de mãos dadas. Continuou:
- Mário foi o único que conseguiu se formar e ser um bom advogado. Nunca quis ser político, mas ajudou muitas pessoas, dando assistência gratuita. Depois de tudo o que aconteceu com a irmã e sua família, viu seu pai definhar por ver a vida da filha destruída. Aprendeu que nada na vida tinha valor, a não ser as boas ações praticadas. Marilu e Rui ficaram vagando por muito tempo, sempre juntos, um tentando proteger o outro dos assédios que eles próprios atraíam. Tiveram momentos de terror e medo. Ficaram assim, até que um dia entenderam o grande mal que haviam praticado contra seus amigos, e muito mais, contra eles próprios. Pediram perdão e juntos foram resgatados e trazidos para cá, onde aos poucos foram se recuperando.
Hélio gritou:
- Isso jamais poderia ter acontecido! Eles não mereciam perdão!
André, com sua calma de sempre, disse:
- Somos todos filhos de Deus. Não importa a Ele o quanto vai demorar, pois sabe que um dia o encontraremos. Nem que para isso seja preciso que nos dê várias oportunidades.
Todos os outros permaneciam calados, só Hélio continuava inquieto e nervoso. Disse:
- Está me dizendo que apesar de tudo o que aconteceu por causa deles dois, no final ficaram bem?
- Sim, aos poucos todos foram se encontrando e conversando sobre o que havia acontecido. Foram entendendo e se perdoando. Miguel e Letícia permaneceram juntos, aprendendo e se preparando para uma nova encarnação. O amor entre eles já vinha de muito tempo. Se nada daquilo tivesse acontecido, seria a última encarnação dos dois na Terra.
Hélio olhou para Marilu e, com ódio, disse:
- Você foi à culpada da nossa desgraça! Você foi à culpada por eu ter ficado esse tempo todo vagando, perdido!
Iracema, que fora Marilu e que praticara aquele desatino, apenas chorava. Não tinha como pedir perdão ao homem que amara tanto e ainda amava. André foi quem continuou falando:
- Fique calmo, Hélio. Ela já pagou muito e ainda hoje paga. Todos aqui se lembram o que foi decidido naquela última reunião antes da reencarnação de cada um.
- Eu não estava aqui!
- Eu já lhe disse que você, tomado pelo ódio, aproximou-se e ficou protegido por energias pesadas que impediam que fôssemos em seu auxílio. Por esse motivo, você não estava aqui naquele dia e não pôde planejar sua reencarnação. Nela, teria a oportunidade de recomeçar uma nova etapa para a sua própria evolução.
- E o que decidiram nessa reunião?
- Vocês já estão juntos há muito tempo. Durante muitas encarnações vêm se ajudando. Naquela última, onde tudo aquilo aconteceu, havia sido planejado que depois dela não precisariam mais reencarnar na Terra. Poderiam permanecer aqui no plano espiritual trabalhando e ajudando os que ainda permanecem na Terra. Como não deu certo, e estavam todos preparados para uma nova jornada, nos reunimos para decidir o que cada um queria. Miguel reconheceu que havia fracassado por ser inseguro e ter se deixado dominar pelo vício, pois se naquele dia não estivesse embriagado, não teria caído naquela armadilha. Marilu também reconheceu que fracassou por ter sido uma menina rica e mimada, que quando queria algo, não media conseqüências para conseguir satisfazer seu desejo. Rui reconheceu que havia fracassado por também ser um fraco e não conseguir resistir, mesmo sabendo que estava cometendo um erro, inclusive ficando calado, sem dizer para ninguém o que havia realmente acontecido. Juntos decidiram que voltariam pobres, que teriam que lutar muito pela vida e que seriam também, um dia, vítimas da mesma injustiça que eles próprios haviam praticado. Artur, Álvaro e Odete se entreolharam. Foi ela quem disse:
- O colar! Por isso ela teve que ser acusada de ter roubado o colar?
- Sim, e Rui hoje seu filho, também foi indiretamente atingido. Perdeu o emprego e a chance de estudar. Um dia, indiretamente, ele ajudou no crime, e hoje indiretamente estava sendo julgado.
Todos ficaram calados e pensando. Álvaro foi quem interrompeu o silêncio:
- Que lei maravilhosa é essa!
André sorriu.
- Também é daquela que ninguém escapa. A lei dos homens pode condenar ou absolver, com justiça ou não, mas a lei divina não erra nunca e dá a cada um de acordo com a sua obra, seja ela boa ou má.
- É realmente maravilhoso...
- Naquela reunião, ficou claro para todos que Miguel e você, Hélio, foram os mais prejudicados. Nós o procuramos, mas não conseguimos encontrá-lo. Miguel pediu uma nova chance, que lhe foi dada. Letícia, Amélia, Nestor e Mário não precisariam mais voltar, mas se recusaram a deixar Miguel sozinho. Queriam voltar para ajudá-lo a lutar contra o vício, que inevitavelmente apareceria em sua vida, e assim ajudá-lo a ficar livre para sempre. Correndo todos os riscos, voltaram. Nestor como Álvaro e Amélia como Odete. Com eles, Miguel teria uma vida tranqüila, seria criado por pais amorosos e dedicados, não tendo assim a desculpa de ser pobre e sem recursos para se viciar. Mário quis vir como seu irmão e assim poder estar ao lado dele o tempo todo. Hélio, curioso, perguntou:
- E Letícia? Por que não voltou?
- Hoje a Ciência evoluiu. Já existe o computador, e Miguel teria a oportunidade de estudar e se dedicar a ele. Através desse equipamento descobriria um programa que ajudaria os cientistas a encontrar a cura para muitas doenças. Essa seria a sua missão. Letícia só apareceria em sua vida quando ele já tivesse cumprido essa tarefa. Caso contrário, ela não voltaria mais para viver ao seu lado. Ele, aos trinta e sete anos, deveria estar com sua missão cumprida, e então a encontraria e seriam felizes. Hoje Artur está com dezenove anos, seria o momento de Letícia renascer. Quando se encontrassem, ela teria dezoito anos, e nesse momento recomeçariam.
Hélio insistiu.
- Por que está falando como algo que não vai mais acontecer?
- Porque novamente Miguel, hoje no corpo de Artur, se deixou envolver pelo vício. Para que ele não se complique mais espiritualmente, em breve o traremos de volta. Assim sendo, Letícia não precisa renascer.
Artur, desesperado, disse:
- Por favor! Não faça isso! Agora que me lembrei de tudo o que se passou vou largar a droga e retomar o meu caminho! Não quero ficar longe de Letícia nunca mais! Quero cumprir a minha missão, sim!
- Está dizendo isso porque está aqui protegido por este ambiente onde as energias são puras. Mas amanhã, quando acordar, estará sujeito às energias que você mesmo fabricar. Embora tenha muitos amigos ao seu lado, tanto na Terra como aqui, não podemos interferir no seu livre arbítrio. Só você poderá decidir o que fazer.
- Vou decidir! Deixarei as drogas para sempre!
- Estamos todos desejando que isso seja verdade, mas sabemos que é difícil. Só mesmo com muita força de vontade conseguirá isso.
- Vou conseguir! Tenho certeza!
- Está bem. Terá o prazo de um mês. Se não conseguir, retornará, não mais para cá, mas para outro lugar, distante de todos nós, inclusive de Letícia.
Letícia, que estava quieta ouvindo, disse chorando:
- Não, André! Por favor, não me separe dele novamente!
- Sinto muito, querida, mas a lei tem que ser cumprida. Se ele fracassar novamente, terá que recomeçar, e dessa vez sem amigos por perto.
Ela se voltou para Miguel e disse:
- Por favor, meu amor! Não permita que tenhamos que ficar separados para sempre! Está em suas mãos! Não permita!
Ele, também chorando, segurou em suas mãos, dizendo:
- Fique tranqüila, eu vou resistir, por você. Mesmo que me esqueça de tudo o que aconteceu aqui, tenho certeza que de seus olhos não esquecerei. Vou resistir e retornar ao meu caminho.
André continuou falando:
- Todos aqui esperamos que realmente consiga. Será uma alegria. De nossa parte, faremos o possível para ajudá-lo. Agora está na hora de retornarem. Quando acordarem não se lembrarão de nada, apenas acreditarão que sonharam.
Hélio ficou calado. Olhou para Letícia, que estava com a mão sobre o braço de Artur. Com lágrimas nos olhos, disse:
- Letícia, também tive a minha parcela de culpa. Sabia que você não me amava, mas mesmo assim, por capricho, obriguei-a a ficar comigo. Quero pedir-lhe perdão.
Ela, com carinho, olhou para ele dizendo:
- Todos temos os nossos acertos e erros. Estou feliz por finalmente você estar ao nosso lado novamente. Não tenho nada para perdoar.
Hélio sorriu e disse, olhando para Artur:
- Será que algum dia poderá me perdoar por ter impedido você de cumprir sua missão e hoje estar tentando destruí-lo novamente?
Todos olharam para Miguel esperando sua resposta. Ele pensou um pouco antes de responder. Finalmente disse:
- Como Letícia disse, todos temos os nossos acertos e erros. Nada tenho para perdoar. Também não posso condená-lo por se apaixonar por ela. Ela é maravilhosa!
Todos riram, até Hélio. Letícia, corada, beliscou o braço de Artur. Em seguida, Artur olhou para André, colocou a mão sobre a mesa e estendeu-a em direção a ele. Com lágrimas nos olhos, disse:
- Meu pai, o que mais sinto é tê-lo tido como pai, convivido por muito tempo e não aprendido nada com seus conselhos. Que saudade sinto do tempo em que, juntos, trabalhávamos naquele cartório. O quanto tentou me ensinar, e o quanto deixei de aprender. Obrigado, papai.
André, por alguns minutos, deixou aquele ar seguro que até então mantinha. Uma lágrima começou a descer por seu rosto.
- Obrigado, meu filho. Só posso também agradecer por ter tido essa oportunidade. Você, antes e depois do vício, sempre foi muito querido.
Engoliu em seco e continuou:
- Agora precisam retornar ao corpo e acordar. Vamos agradecer a Deus por esta nova oportunidade que está nos dando.
Todos se deram as mãos, e André começou a dizer:
- Meu Pai santíssimo, bendita seja a Sua lei, que permite que numa noite como estas possam estar aqui reunidas, todos juntos, na tentativa de dar mais um passo em Sua direção. Bendito seja por dar sempre novas oportunidades para Seus filhos, que se deixam desviar durante o caminho. Que Sua luz bendita nos acompanhe e ilumine para sempre. Ajude-nos a conseguir galgar mais um degrau para que amanhã, todos juntos, companheiros de jornada, possamos subir a escada. Obrigado, meu Pai.
Assim que ele terminou, todos se despediram e voltaram ao corpo e para seus quartos. Letícia, com os olhos marejados, viu Artur ir embora. A única coisa que queria naquele momento era que ele conseguisse vencer, e assim ela pudesse ir ao seu encontro.

A FORÇA DA DROGA

Na manhã seguinte, Artur abriu os olhos, mas tornou a fechá-los, pensando: Quero dormir novamente e continuar sonhando. Não me lembro do que sonhei, só sei que havia muitas pessoas e uma linda moça. Quero continuar sonhando! Tentou dormir novamente, mas não conseguiu. Ao lado da cama estava Osmar, que sorriu ao vê-lo daquela maneira. Ele fora instruído por André para ficar ao lado de Artur e observar tudo o que ele fizesse. Deveria também mantê-lo informado. Para Osmar aquilo era um prazer, pois já estava ao lado de Artur havia muito tempo e aprendera a gostar dele. Sem conseguir dormir, Artur se levantou e foi para o banheiro. Estava terminando de tomar banho quando Rosaria entrou. Parecia nervosa. Ao vê-la, ele se enrolou em uma toalha e disse:
- Bom dia! Parece que está nervosa.
- Estou mesmo! Ontem à noite, quando cheguei, quis conversar com você, mas estava dormindo profundamente e não consegui acordá-lo.
- Recebi um comunicado dizendo que alguns homens importantes da organização querem se encontrar, e escolheram a galeria para isso. Disseram que por ser uma galeria de arte e pertencer a uma mulher, não despertará suspeita.
- E qual é o problema? Acredito que tenham razão.
- Tenho medo de que algo não dê certo. Gostaria que fosse em outro local.
- Diga então que não quer.
- Eles não aceitarão isso.
- Então aceite. Nunca ninguém desconfiará de nada.
- Acredita mesmo? Ele a abraçou, dizendo:
- Claro que acredito. Você é livre de qualquer suspeita. Pertence a mais alta sociedade deste país.
Ela começou a rir.
- Não brinque com uma coisa séria como essa!
- Não estou brincando, estou dizendo o que penso. Agora vamos ao trabalho, estou louco de vontade de ver o meu computador.
Saíram juntos, mas cada um em seu carro. Assim que chegou à galeria, Artur foi procurar Gilberto. Estava ansioso para lhe contar sobre um programa de computador que revolucionaria o mundo. Assim que entrou na sala de computadores, viu Gilberto sentado em um deles. Disse alegremente:
- Bom dia, Gilberto! Não sei o que aconteceu, mas estou pensando em um programa de computador que vai revolucionar o mundo. Não sei ainda para que sirva, nem como fazê-lo, mas estou certo de que juntos poderemos criá-lo!
Gilberto começou a rir:
- Pelo jeito, andou sonhando! Chega aqui e diz que quer fazer um programa de computador, mas não sabe qual é, nem como fazer! Está drogado logo pela manhã?
Artur respondeu sério:
- Nada disso! Não estou drogado, aliás, nunca mais usarei droga, e estou falando sério! Sei que preciso descobrir um programa novo, e vou precisar da sua ajuda.
- Está bem, mas para isso precisamos estudar. Sabe que tudo o que fazemos é meio na intuição. Você ainda teve escola, mas eu não. Tudo o que aprendi foi sozinho.
- Rosaria tem muito dinheiro. Ela poderá nos financiar e contratar o melhor professor que existir para nos ensinar aquilo que não sabemos.
- Já que é assim, mãos à obra. Fale com ela.
- Agora não posso, precisamos esperar uns quinze dias.
- Por quê?
- Hoje ela está nervosa, disse que daqui a quinze dias haverá aqui uma reunião de alguns chefões da organização.
Gilberto se admirou:
- Aqui?! Por quê?
- Eles dizem que por ser uma galeria e pertencer a uma mulher não despertará suspeitas.
- Nisso eles têm razão. Está bem, vamos deixar isso de profes¬sor para depois que eles forem embora.
O dia transcorreu normalmente. Artur não sentiu falta da droga em momento algum. A noite, em casa, após o jantar, foi para seu quarto. Rosaria não estava em casa, ele a havia deixado na galeria preparando a visita dos chefões. Ele se deitou em sua cama e começou a pensar em sua vida e na sua família. A vontade da droga surgiu. Ele resistiu, mas não por muito tempo. Logo estava abrindo a gaveta e pegando um pacotinho de pó, que inspirou prontamente. Em poucos minutos estava delirando sob o efeito do pó, para desespero de Letícia, que chamada por André, a um sinal de Osmar, estava ali. Ela começou a chorar:
- André! Você não pode fazer nada para impedir? Ele sozinho não vai conseguir resistir... A droga já tomou conta do seu organismo...
- Sinto muito, minha filha, mas não posso influir no livre arbítrio dele. Ele, e somente ele poderá escolher o caminho que deseja seguir.
Eles ficaram ao lado de Artur o resto da noite. Pela manhã, ele acordou enjoado. Estava bravo consigo mesmo por não ter resistido. Mais uma vez prometeu a si mesmo: Nunca mais vou usar! Preciso ficar bem para poder fazer o programa! Durante aqueles dias, quase não se encontrou com Rosaria em casa e na galeria. Ela chegava tarde e saía cedo. Precisava cuidar de tudo para a visita, e o mais importante, precisava de segurança para proteger os visitantes. Com a desculpa de estar sozinho e carente, Artur se drogava todas as noites. Toda a manhã Gilberto brigava com ele, pois assim que se encontravam percebia que os olhos de Artur estavam vermelhos, o que significava que ele havia se drogado. Finalmente, o dia da visita chegou. Rosaria saiu apressada de casa. Não eram ainda seis horas da manhã. Na noite anterior havia dito a Artur:
- Amanhã às dez horas será o encontro. Quero que esteja lá para qualquer coisa.
- Estarei, estarei... Não se preocupe.
Pontualmente às oito horas ele chegou. Encontrou com Gilberto, dizendo:
- Hoje é o grande dia. Depois que tudo terminar, falarei com ela a respeito dos nossos planos.
Gilberto sorriu:
- Estou ansioso. Se isso que está pensando der certo, ficaremos ricos!
Artur riu gostosamente. Não eram nove horas quando o primeiro convidado chegou. Artur e Rosaria o receberam no saguão da galeria. Depois deles, outros foram chegando e sendo recebidos pelos dois. Artur notou que todos estavam bem-vestidos, e que realmente não despertaria suspeita alguma, pois eram pessoas que com certeza teriam dinheiro para visitar uma galeria e comprar suas obras de arte. Gilberto estava em um canto da galeria. Rosaria lhe ordenara que ficasse ali, prestando atenção em tudo que acontecia. E, se houvesse algo de estranho, ele deveria avisar imediatamente. Quando haviam chegado dezoito homens e mulheres, Rosaria os encaminhou para a sala de reuniões que ficava no interior da galeria. Eles entraram e a porta foi fechada. Artur respirou aliviado. Disse para Gilberto:
- Agora poderemos descansar por um tempo. Essa reunião deverá demorar umas três horas.
Gilberto disse:
- Nós poderíamos aproveitar esse tempo para ir à lanchonete tomar um café. Acordei atrasado e vim correndo para cá, não tomei café e estou com fome.
Artur olhou em volta, estava tudo calmo. A recepcionista sorriu para ele. Ele lhe disse:
- Vou com Gilberto até a lanchonete. Se dona Rosaria perguntar, diga onde estou.
Ela sorriu, dizendo:
- Ela não vai perguntar, pois sabe que vocês todos os dias a esta hora vão para lá.
Os dois, sorrindo, saíram. A lanchonete ficava do outro lado da rua, em frente ao prédio da galeria. Na lanchonete fez seus pedidos ao garçom, o que era desnecessário, pois ele já os conhecia e sabia do que gostavam de comer e tomar. Enquanto esperavam o café e o lanche, Artur viu sobre o balcão um jornal. Começou a ler sem muito interesse. De repente soltou um grito que assustou Gilberto e o garçom. Os dois perguntaram juntos:
- Que foi que aconteceu?
Artur tremia muito e estava branco como a neve. Não conseguia falar, apenas apontou com o dedo para o jornal. Gilberto leu a manchete da primeira página: Filho de conceituado advogado sofre um assalto e reage. Gilberto abriu o jornal para ler a reportagem completa que dizia: Leandro Gomes de Matos, dezesseis anos, filho do doutor Álvaro Gomes de Matos, conceituado advogado desta cidade, reagiu a um assalto e foi baleado. Está em estado grave no hospital. Testemunhas dizem que, enquanto era conduzido ao hospital, Leandro dizia: Não podia deixá-los levar meu tênis, meu pai pensaria que eu estava mentindo. Assim que terminou de ler, Gilberto perguntou a Artur:
- Por que está tão nervoso? Isto acontece quase todos os dias! Artur, que chorava, disse:
- Ele é meu irmão...
Gilberto, tomado de surpresa, perguntou:
- Que está dizendo? Você é filho do doutor Álvaro?
- Sou, e o meu irmão resistiu porque um dia eu menti que havia sido assaltado e que os ladrões haviam levado meu tênis importado...
Gilberto estava nervoso com aquela situação. Não sabia o que dizer ou fazer. Olhou para o relógio e disse:
- Precisamos voltar para a galeria.
Artur, ainda chorando, disse:
- Não quero voltar... Preciso ir para o hospital... Quero ver o que aconteceu com meu irmão...
Gilberto, muito nervoso, disse:
- Hoje não! O assalto foi ontem, o que acha que seus pais farão quando o virem? Não se esqueça de que estão nervosos e com certeza culpando-o por tudo o que aconteceu com seu irmão. Vamos entrar logo.
Artur pensou por um minuto e viu que ele tinha razão. Acompanhou Gilberto de volta à galeria. Iam atravessando a rua quando Gilberto olhou novamente para o relógio e disse, quase gritando:
- Corra! Precisamos sair daqui!
Artur não entendeu o que estava acontecendo, porém Gilberto não lhe deu tempo para pensar. Agarrou-o pelo braço e saiu correndo. Assim que viraram a esquina, ele parou. Artur, ofegante, perguntou:
- O que aconteceu? Por que me fez correr assim?
Gilberto, também ofegante, ia responder, quando viram viaturas policiais cercando o prédio onde estava a galeria. Uma delas parou bem em frente a eles, fechando a rua de um lado. Vários soldados desceram e, armados, ficaram parados. Ao ver aquilo, Artur imediatamente percebeu o que estava acontecendo. Disse:
- O prédio está cercado, vão prender todos? Gilberto, com um sorriso aliviado, respondeu:
- Espero que sim.
- Até Rosaria?
- Sim, ela também. Você não pode negar que ela, embora tenha aquele rosto angelical, é também uma criminosa. Com seu trabalho acaba com a vida de muitos jovens e suas famílias, assim como aconteceu com você e sua família.
- Como pode dizer isso? Trabalhava lá! Todos confiavam em você. Afinal, quem é você na realidade?
- Agora já posso lhe dizer. Sou um policial, estou infiltrado lá já há muito tempo. Sabíamos que a galeria era só uma fachada. Com o programa que juntos desenvolvemos, consegui e entreguei ao meu superior nomes e endereços.
- Você é um policial?!
- Sim! Meu desejo era outro, mas a vida me encaminhou para a polícia.
- Por que não nos prenderam antes?
- Sabíamos que eles fazem esse tipo de reunião que estão fazendo hoje. Não queríamos prender só um, mas também nunca imaginamos que essa reunião seria feita aqui. Parece coisa de Deus. No dia em que me contou, imediatamente reportei ao meu superior, e tudo foi planejado.
- Você sabia que viriam?
- Claro que sim, por isso o tirei dali. Não queria que quando chegassem o encontrassem.
- Por que fez isso?
- Não sei. Eu o conheci, convivemos e me tornei seu amigo. É, talvez tenha sido isso...
- Se eu for até lá, o que acontecerá?
- Será preso junto com os outros, e eu não poderei fazer nada. Além do mais, precisa saber como seu irmão está.
- Você disse que meus pais não me receberiam.
- Disse e acredito. Por isso, você agora vai comigo para minha casa. Não poderá voltar para a casa de Rosaria, pois a polícia com certeza irá até lá. Ficará em minha casa e eu irei até o hospital e descobrirei como ele está.
Artur achou que aquela seria a melhor solução, mas no mesmo instante lembrou de João e Rubinho, que estavam em casa. Disse:
- Preciso telefonar para a casa de Rosaria, João e Rubinho não têm nada a ver com o trabalho dela. Eles precisam sair dali antes que a polícia chegue.
- Tem certeza que não estão envolvidos?
- Até onde eu sei, não.
- Está bem, vá até aquele telefone e ligue a cobrar. Não tenho cartão, e você não deve ter também.
Foi o que ele fez. Ligou, João atendeu. Em poucas palavras contou tudo o que havia acontecido. Assustado, João disse:
- Estamos indo embora agora mesmo, mas não se preocupe, Rosaria não ficará muito tempo presa, ela tem amigos influentes.
- Tem certeza disso?
- Claro que sim. Até um dia.
- Você tem dinheiro para a fuga?
- Sim, não se preocupe. Adeus, e, meu filho, saia dessa vida!
- Sairei. Pode ter certeza disso.
Artur desligou o telefone. Estava com os olhos marejados. Havia se afeiçoado a João. Gilberto perguntou:
- Tudo bem? Eles vão fugir?
- Sim, agora mesmo.
- Pois bem, vamos para minha casa.
Deu sinal a um táxi que passava. Entraram. Ele disse o nome de uma rua ao motorista. Seguiram. Artur percebeu que o táxi se dirigia a um bairro afastado. Não se preocupou com isso, seu pensamento estava voltado para Leandro e seus pais. Podia imaginar o que eles sentiam naquele momento. Ele próprio já havia lhes dado um desgosto enorme, e nesse momento, com isso que estava acontecendo, deveriam estar desesperados. Comentou com Gilberto.
- No jornal estava escrito que Leandro foi em estado grave para o hospital. Será que ele morreu?
Gilberto, que seguia o tempo todo calado, com o pensamento distante, demorou um pouco para responder:
- Não sei, tomara que não. Assim que o deixar em casa irei para lá.
- Estou ansioso, poderíamos passar antes pelo hospital.
- Agora não posso, tenho algo importante para resolver. Depois poderemos fazer o que você quiser.
Artur percebeu que ele estava preocupado. Não sabia do que se tratava, mas achou melhor concordar. De qualquer maneira, não poderia mesmo aparecer diante dos pais. Mas precisava saber notícias de Leandro, e só Gilberto poderia ajudá-lo. O táxi continuou. Gilberto seguia calado, Artur também não estava com vontade de conversar. Seguia pensando: Muita coisa aconteceu hoje. Descobri que meu irmão está em um hospital, e que reagiu ao assalto por minha culpa. Sim, não posso negar, se eu não tivesse mentido a reação dele seria outra. Se ele morrer, nunca me perdoarei. Descobri também que o meu melhor amigo, aliás, o único, esteve o tempo todo mentindo para mim. Estava apenas querendo tirar informações. Sei também que a droga me levou a isso, causando esse sofrimento para meus pais e Leandro. E ainda quase fui preso... Preciso largá-la para sempre. Sinto que tenho que descobrir esse programa. Mas sei também que sem ajuda não conseguirei deixar a droga. Enquanto pensava, lágrimas começaram a cair por seu rosto. Gilberto percebeu e perguntou:
- Por que está chorando?
- Estou aqui analisando a minha vida... Ela está destruída... Por causa da droga causei muito sofrimento para muitas pessoas. E agora meu irmão pode estar morrendo...
- Sempre lhe disse que precisava largar, mas você parecia feliz. A quem causou sofrimentos?
- Primeiro aos meus pais. Sei que eles devem estar sofrendo muito por minha ausência, e agora ainda mais por tudo que está acontecendo com Leandro...
- São seus pais, e eles com certeza o perdoarão e o ajudarão, se você fizer por merecer. Hoje talvez não, porque seu irmão está ferido, mas amanhã, quem sabe.
Artur estava desesperado, não sabia o que fazer. Continuou dizendo:
- Estou pensando. Por que não aceitei a ajuda do meu pai? Desde que descobriu, ele quis que eu fosse para uma clínica, mas eu fiquei com medo. Se tivesse ido naquela época, talvez nada disso estivesse acontecendo...
- Acredito nisso, mas sempre é tempo. Na minha família estamos todos seguindo uma doutrina que nos ensina que tudo está sempre certo. Que Deus é um pai amoroso e justo, e que nunca nos abandona.
- Não conheço muito sobre Deus. Nunca segui uma religião...
- Você pode não conhecê-lo, mas Ele com certeza o conhece e nunca o deixou só. Sua justiça é divina.
- Acredita mesmo nisso?
- Há algum tempo talvez eu não acreditasse, mas hoje acredito sim, e neste momento acredito mais ainda.
- Por quê?
Gilberto ia responder, mas o motorista do táxi perguntou:
- Onde fica sua casa? Gilberto respondeu:
- Ali, no número quarenta e seis.
Artur não percebera, mas o táxi entrara em uma rua onde as casas eram todas iguais. Casas modestas, de uma boa aparência. Pensou: Essas casas devem ter sido construídas por uma companhia. Até que são bonitinhas. O táxi parou em frente a um portão. Gilberto pagou o motorista e os dois desceram. Artur pôde notar que o jardim era bem cuidado e que tinha rosas de várias cores plantadas. Gilberto abriu o portão e fez com que ele entrasse. Uma moça ouviu o barulho do táxi. Saiu, queria ver quem havia chegado. Ao ver Gilberto, disse, sorrindo:
- Gilberto! Você há esta hora em casa? O que aconteceu?
- Não aconteceu nada, só preciso resolver um assunto. Este é um amigo meu, ele está precisando de um lugar para ficar. Vou ver se a mãe o deixa ficar aqui por alguns dias. Artur, esta é minha irmã, Narinha.
- Bom dia, Narinha.
- Bom dia. Meu nome na realidade é Nara, mas todos me chamam de Narinha.
- Não sei por que está preocupado. Conhece a mãe, claro que ela vai deixar. Sabe que ajuda todo mundo!
- Nunca se sabe nunca se sabe...
Artur calculou que ela deveria ter uns doze anos e percebeu também que era muito bonita. Entraram em casa. Na sala simples, embora agradável, Gilberto indicou a Artur um sofá e fez um sinal para que ele se sentasse. Depois perguntou a Narinha:
- A mãe está em casa?
- Claro que não! Se estivesse teria também ido lá fora para ver quem havia chegado.
- Onde ela está?
- Foi até a venda, disse que precisava comprar mistura pro almoço. Eu quis ir, sabe como ela gosta de andar.
- Sei sim. Artur fique à vontade. Você quer um café ou alguma coisa para beber? Chegamos quase na hora do almoço. Minha mãe cozinha muito bem, vai gostar.
- Obrigado, mas não estou com fome. Queria ir logo para o hospital.
- Eu disse que irei sozinho.
- Não, eu vou junto. Fico esperando do lado de fora!
- Está bem.
Sentado ali, Artur estava aflito para ir ao hospital. Não entendia por que Gilberto resolvera passar antes em casa. Mas, enfim, estava feito, teria que esperar. Narinha estava no portão ansiosa esperando a volta da mãe. Assim que a viu apontando no início da rua, correu para encontrá-la. Chegou perto dela e, esbaforida, disse:
- Mãe! Meu irmão ta lá em casa!
- Qui tem isso, minina!
- Ele está com um moço bonito!
- Menina! Que moço?
- Não sei, disse que ele está precisando de ajuda e vai pedir pra senhora o deixar ficar um pouco de tempo aqui em casa. Deixe mãe! Deixe!
- Pur que todo esse interesse?
- Ele é tão bonito!
A mãe começou a rir. Entendia perfeitamente a idade que a filha estava vivendo. Disse:
- Si continua falando desse jeito, não vô dexá ele fica em casa.
- Deixe mãe! Não vou falar mais nada, mas que ele é bonito, isso é!
- Ta bom, vô conversa com seu irmão e saber qui ta contecendo.
Entraram em casa. Assim que elas chegaram e entraram na sala, Artur se levantou e quase desmaiou. O mesmo aconteceu com a mãe de Gilberto, e ele correu em sua direção para ampará-la. Narinha não estava entendendo nada. Perguntou:
- Que foi?
Artur, com muito custo, disse:
- Iracema! Aqui é sua casa?
Ela também, tremendo muito, respondeu:
- É sim...
Olhou para o filho. Disse:
- Jarbas, que ta acontecendo? Você sabe quem ele é?
- Sei mãe, conheço-o já faz algum tempo, mas só fiquei sabendo hoje quem era realmente.
- E mesmo assim troxe ele aqui pra dentro da nossa casa?
- Precisava fazer isso. A senhora sabe o quanto o odiei e tentei encontrá-lo, mas hoje tudo é diferente. As coisas mudaram e ele está precisando da nossa ajuda.
- Nossa ajuda?
Artur, chorando, disse:
- Perdão, Iracema. Sei que não mereço, mas mesmo assim peço perdão.
- Não sei se vô consegui te perdoar, não, minino. Por sua causa sofri muito. Você não me defendeu e deixo que seu pai me levasse pra delegacia.
- Sei disso, mas me arrependi muito. Sei que me conhece desde criança e sabe que antes da droga eu era outra pessoa.
Ela não respondeu. Olhou para o filho, perguntando:
- O que acha que vô fazê?
- Não sei. No primeiro momento, quando descobri quem era ele, minha intenção foi prendê-lo. Mas decidi que a senhora era quem deveria dizer o que ele merecia.
- Eu?!
- Sim, pois foi à senhora quem mais sofreu com tudo o que aconteceu. Ficou doente. Sei que é mais de tristeza do que outra coisa qualquer. Por isso, a senhora é quem vai decidir. Poderemos ajudá-lo, ou posso prendê-lo, já que toda a quadrilha está presa. Iracema olhou para Artur, depois novamente para o filho. Perguntou:
- Pur que não prendeu ele logo?
- Convivi com ele por algum tempo, percebi que era um garoto perdido na droga, mas que era um bom garoto. Gostei dele sinceramente. Posso até dizer que até hoje pela manhã, antes de eu descobrir tudo, era o meu melhor amigo. Por isso o trouxe para cá, a senhora será quem decidirá a vida dele. O que decidir, eu farei.
Iracema ficou olhando para Artur e relembrando de quando ele era pequeno e ficava em torno dela, correndo, brincando com Leandro. Lembrou-se de Odete e Álvaro, que sempre a trataram bem e a ajudaram para que conseguisse criar os filhos. Sabia que também eles foram enganados. Com lágrimas nos olhos, disse:
- Sabe, Artur, naquele tempo foi tudo muito difici. Eu e o Jarbas perdemo o emprego e os otro era tudo piqueno, não podia trabaiá. Eu fiquei duenti, só chorava, não me conformava de pensa que ocê feiz aquilo. O Jarbas não continuo na faculdade pra ser adevogado, mas estudo sozinho e conseguiu entra na polícia, e hoje é um bom policiá. As otra criança foram crescendo. Todos começaram a trabaiá e nós conseguiu compra esta casa. Quando eu tava bem doente, uma vizinha me levo pra uma religião. Lá eu aprendi que tudo ta sempre certo. Qui nóis não deve julga ninguém. Vai sabe que mardade eu num fiz na outra incarnação, num é memo?
Artur não entendia nada do que ela dizia em relação à religião. Gilberto já havia comentado alguma coisa, mas ele não prestara atenção. Ainda aturdido, Artur olhou espantado para Gilberto:
- Então quer dizer que você é o Jarbas que papai demitiu no escritório?
- Sim.
- Mas por que o nome Gilberto?
- Da mesma maneira que você usava o nome Fred.
Artur sorriu. Gilberto continuou:
- Na polícia, nos envolvemos com marginais, pessoas sem escrúpulos. A mudança de nome, então, torna-se necessária. Só em casa me chamam de Jarbas. Para o mundo, como policial, sou Gilberto.
Artur baixou os olhos, emocionado. Iracema passou a mão em seu rosto. Em seguida voltou-se para o filho, dizendo:
- Sabe meu fio, ocê feiz bem em trazê ele aqui. Vou perdoa ele, e ele podi fica aqui em casa o tempo que precisa.
- No fundo, eu sabia que a senhora ia dizer isso. Mas ele não pode ficar aqui em casa. Se ficar, vai continuar se drogando.
Artur quase gritou:
- Nunca mais! Não quero me drogar! Vou conseguir deixar, você vai ver!
Gilberto começou a rir e perguntou:
- Quantas vezes você já disse isso? Sabe que sozinho não conseguirá. Conheço uma clínica que é muito boa, tem conseguido recuperar muitos que levei. Se quiser, sairemos daqui agora mesmo e o levarei até lá.
- Como vou pagar? Sabe que não tenho dinheiro!
- Ela é gratuita para quem não pode pagar. Aqueles que podem, pagam. Você quer ir?
Artur pensou um pouco e respondeu:
- Quero sim. Você tem razão, sozinho não vou conseguir.
Em seguida voltou-se para Iracema:
- Obrigado, Iracema. Embora eu tenha feito aquela maldade, sempre gostei de você. Obrigado por seu perdão.
Ela abriu os braços e ele se aconchegou a ela. Os dois, chorando, ficaram assim por muito tempo. Depois que se soltou, ela disse:
- Só vô ti perdoa di verdade quando dexá essa porcaria di lado e volta a sê aquele Artur de antes.
- Voltarei a ser o mesmo, sim, e também vou deixar essa porcaria de lado. Pode ter certeza disso. Não entendi o que disse sobre essa religião, encarnação e tudo o mais, mas gostaria de entender.
Gilberto foi quem disse:
- Na clínica vai ter muito tempo para ler e aprender. Prometo que não o deixarei sem livros.
Iracema sorriu:
- Isso memo, meu fio, faiz isso.
- Farei mãe, farei. Agora que está tudo resolvido, podemos ir para a clínica.
- Não posso ir agora! Antes preciso passar pelo hospital e ver como Leandro está!
Iracema se assustou:
- No hospital qui o Leandro ta jazendo lá?
Gilberto contou tudo o que havia acontecido. Ela disse:
- Vô junto cum ocês, perciso sabe como ele ta. Vô vê meu minino!
- Acha mesmo que deve ir?
- Acho meu fio, e vô.
- Vai encontrar com doutor Álvaro e dona Odete. Eles devem estar lá...
- Nun mi importo. Perciso vê o Leandro!
- Está bem, se quer assim, vamos. Mas, Artur, não pense que o deixarei escapar. Ficarei com você do lado de fora. Minha mãe vai entrar e trazer notícias.
- Não vou tentar escapar, aprendi muito. Só quero mesmo saber notícias de Leandro, depois irei com você.
- Então vamos logo.
Iracema trocou de roupa e foram embora. André, Letícia e agora Hélio estavam ali e acompanharam toda a conversa. Quando os três saíram, André disse:
- Ele está tendo mais uma chance, espero que agora aproveite. Letícia, sorrindo, disse:
- Vai aproveitar... Tem que aproveitar!
Narinha acompanhara toda a conversa. Quando tudo acontecera, ela era pequena, mas se lembrava da doença da mãe e sabia que fora o filho da sua patroa que havia mentido. Durante esse tempo todo, mesmo sem conhecê-lo, sentia muita raiva dele. Mas, ao tomar conhecimento de tudo, começou a mudar de idéia. Acompanhou-os até o portão. Assim que desapareceram na esquina, ela pensou: Ele é bonito mesmo!

AJUSTE DE CONTAS

A bala perfurara o intestino de Leandro. Assim que chegou ao hospital, foi imediatamente operado. Álvaro e Odete, avisados por dois soldados da polícia, chegaram o mais rápido possível. Quando chegaram, Leandro ainda estava na sala de cirurgia. Estavam desesperados. Quando Leandro saiu para ir à aula de Inglês, nunca poderiam imaginar que uma coisa daquela fosse acontecer. Ficaram na sala de espera, aguardando que a cirurgia terminasse e eles pudessem finalmente falar com o médico e realmente saber o estado de Leandro. Inevitavelmente, os dois se lembraram de Artur e da história que ele havia inventado quando trocara o tênis pela droga. Mas nenhum dos dois tocou no assunto. A preocupação deles no momento era Leandro, que sabiam estar gravemente ferido. Após duas horas de espera, o médico entrou na sala. Disse confiante:
- Terminei agora a cirurgia. Tudo o que era possível fazer, foi feito. Agora só vai depender do organismo dele reagir. Mas ele é um garoto saudável, tem tudo para resistir.
Álvaro, emocionado, não conseguia falar. Odete perguntou:
- Podemos vê-lo?
- Por enquanto, não. Ele está anestesiado e será enviado para a UTI. Ficará lá por quarenta e oito horas. Depois disso, se tudo estiver bem, irá para o quarto. Daqui a uns quinze minutos os senhores poderão vê-lo através do vidro. Depois disso, sugiro que vão para casa e voltem amanhã.
- Não sairemos daqui! Eu e meu marido precisamos de notícias dele!
- Se quiserem, podem ficar, mas aconselho que não. Amanhã precisam estar bem. Prometo que assim que ele acordar, a enfermeira ligará para dizer como ele está.
- Está bem, doutor, vamos ver o que faremos.
O médico saiu. Ela olhou para Álvaro, que continuava calado. Perguntou:
- O que devemos fazer?
- Não sei, mas ficarmos aqui nesta sala também não vai resolver. O médico tem razão, vamos para casa. Avise sua mãe e peça para ela ir até nossa casa. Juntos faremos uma prece e pediremos ajuda aos médicos espirituais. Aliás, eles já devem estar aqui e ajudando.
Odete admirou-se com o que ele dissera. Sabia que ele estava lendo muito e às vezes até participava de algumas sessões espíritas, mas não imaginava que ele acreditasse tanto. Disse:
- Está bem, querido. Faremos isso, e amanhã bem cedo retornaremos.
Foram para casa com o coração apertado, pois não sabiam o que aconteceria com Leandro. Assim que chegaram em casa, Odete telefonou para sua mãe e contou o que havia acontecido. Noélia, a princípio, levou um susto, mas em seguida disse:
- Minha filha, entregue a vida nas mãos de Deus. Ele é quem sabe de tudo, nós não sabemos de nada. Estou indo para aí.
Meia hora depois estava lá. Encontrou os dois abatidos e tristes. Abraçou-os, dizendo:
- Quando voltarão ao hospital?
- Amanhã bem cedo.
- Irei também, tenho certeza que teremos boas notícias.
Álvaro, ao abraçá-la, começou a chorar:
- Dona Noélia... Por que Deus está fazendo isso conosco? Já perdemos Artur e agora está levando Leandro...
Ela olhou bem em seus olhos. Respondeu:
- Não diga isso! Vocês não perderam Artur. Ele voltará, e Leandro também ficará bom. Só precisamos confiar na bondade e justiça de Deus.
- A senhora faria uma prece conosco?
- É claro que sim, para isso estou aqui.
Sentaram-se e juntos fizeram a prece pedindo por Leandro. Quando estavam quase terminando, Noélia disse:
- Meu Deus, por favor, proteja Artur. Faça com que ele volte ou ao menos nos dê notícias.
Meia hora depois ela se despediu e combinou que os encontraria pela manhã no hospital. Naquela noite, nenhum deles conseguiu dormir. Odete foi a primeira a se levantar. Foi para a cozinha preparar o café. Em seguida Álvaro chegou. Tomaram apenas um café preto e saíram em seguida. Assim que chegaram ao hospital, foram imediatamente para o andar onde estava a UTI. A enfermeira lhes disse que Leandro havia passado bem à noite, mas que eles não poderiam entrar. Entenderam, e ela deixou que eles o vissem pelo vidro. Leandro estava dormindo. Recebia soro e sangue. Ficaram no vidro por muito tempo, até que a enfermeira sorriu enquanto fechava a cortina. Eles ainda permaneceram ali por um bom tempo, depois foram para a sala de espera do andar. Em seguida Noélia chegou. Assim que os viu, foi encontrá-los. Foi informada de como estava seu neto. Os três sentaram-se e intimamente fizeram suas preces. Já passava do meio-dia quando Noélia disse:
- Deveríamos comer alguma coisa. Precisamos estar bem para entrar e ver Leandro.
Embora com problemas graves, eles entenderam que ela tinha razão. Resolveram que comeriam ali mesmo no hospital, pois havia uma lanchonete. Saíram da sala e se dirigiram ao elevador. Assim que a porta do elevador se abriu, viram Iracema e Jarbas que estavam saindo. O coração dos três começou a disparar. Ficaram mudos de surpresa. Noélia foi a primeira que conseguiu falar:
- Iracema! Que bom vê-la! Como está?
- To bem, dona Noélia. Só vim vê como ta o meu minino.
- Ele está melhorando, e agora, vendo-a aqui, tenho certeza que ele vai ficar bom e logo voltará para casa.
Odete, chorando, disse:
- Iracema! Nós a procuramos tanto, mas não a encontramos você havia se mudado. Quando descobrimos tudo sobre Artur, entendemos a grande injustiça que cometemos. Poderá nos perdoar?
- Dona Dete, isso num tem mais importança, não. Já se passo muito tempo. Aprendi que tudo ta certo nessa vida! Só o que importa agora é o Leandro. Ele vai fica bom, num vai?
- Vai sim! Claro que vai. O médico disse que às três horas poderemos um de cada vez, entrar no quarto e ficar com ele alguns minutos, só que não pode ser muito tempo.
- Sei que num sô da família, mais vô fica contente só di vê ele de longe.
Odete a abraçou, chorando. Disse:
- Claro que você vai entrar e falar com ele! Garanto que ele ficará muito feliz. Foi ele quem mais insistiu para que fossemos procurá-la, nunca acreditou na sua culpa. Ele gosta muito de você...
Iracema também a abraçou com carinho.
- Se a senhora dexá, craro que quero vê ele.
- Vai vê-lo sim.
Iracema olhou para Álvaro, dizendo:
- Como vai, doto?
Álvaro, emocionado e envergonhado, não dissera nada até aquele momento, mas diante da pergunta de Iracema, não teve como não falar. Respondeu:
- Desculpe, mas estou muito emocionado por encontrá-la. Não sei o que fazer para que me perdoe, e a você, Jarbas. Fui injusto e cruel.
Iracema olhou para o filho, que disse:
- Doutor, eu já senti muita raiva do senhor. Com sua injustiça não permitiu que eu realizasse o meu sonho de ser um advogado assim como o senhor. Mas, de qualquer maneira minha vida mudou. Hoje sou um policial e me orgulho muito disso.
- Se quiser, pode voltar ao escritório e para a faculdade. Será o mínimo que poderei fazer para me redimir.
- Obrigado, doutor, mas não precisa fazer nada disso, nem ficar com remorso. Estamos bem, e só queremos o bem de Leandro.
- Estou desesperado, não sei o que fazer. Já perdi Artur para a droga, e agora Leandro.
- Tenha fé que ele vai ficar bem. Quanto a Artur, também sempre existe uma chance dele se recuperar.
- Acredita mesmo nisso?
- Sim, já lhe disse que sou policial, já vi muitos se recuperarem. Acredite na proteção divina. Agora que já conversamos, preciso ir embora. Já percebi que não vou conseguir tirar minha mãe daqui antes que veja Leandro. Será que o senhor poderia colocá-la em um táxi quando ela quiser ir embora?
- Não se preocupe, eu mesmo a levarei para casa.
Jarbas despediu-se de todos e foi embora. Havia deixado Artur na rua. Não sabia se o encontraria, estava preocupado. Olhou para o lugar onde o havia deixado, mas ele não estava lá. Decepcionado, pensou:
- Ele fugiu... Eu sabia que isso poderia acontecer, mas precisava arriscar. E uma pena...
Estava indo embora quando ouviu:
- Gilberto!
Voltou-se e viu Artur, que vinha correndo. Sorriu aliviado e disse:
- Que bom que você está aí!
- Por que está dizendo isso?
- Pensei que tivesse fugido!
- Não! Só fui até o estacionamento ver se o carro do meu pai estava lá! Viu Leandro? Como ele está?
- Está na UTI, mas parece que vai ficar bom. Minha mãe ficou lá com seus pais e sua avó.
- Vai ficar bom mesmo?
- Vai sim, precisamos acreditar nisso.
- Cumpriu sua promessa? Não disse aos meus pais que eu estava aqui e que estou indo para a clínica?
- Não disse nada, já que você não quer.
- Não, não quero. Quando eles me virem novamente eu estarei curado. Mas tenho medo de não conseguir me livrar da droga.
- Terá uma oportunidade. A clínica para a qual o estou levando é muito boa, só dependerá de você. Estarei sempre ao seu lado. Mesmo não sabendo por que, tornei-me seu amigo e quero ajudá-lo. Agora está pronto? Vamos para a clínica?
- Vamos. Ao menos neste momento estou disposto a me livrar disso. Quero ser um homem livre e poder abraçar novamente meus pais e Leandro.
- Continue pensando assim e conseguirá. Vamos indo?
Artur concordou com a cabeça e juntos seguiram. Na clínica foi informado que teria de ficar três meses sem receber visitas. Ele concordou. Esses três meses foram muito difíceis. Sofreu muito com a abstinência, algumas vezes até tentou fugir e ir em busca da droga. Nessas horas sempre teve alguém a seu lado. Os médicos, enfermeiros e viciados como ele, mas que já estavam ali havia mais tempo. Letícia, André e Hélio também não se afastaram dele. Jarbas não podia vê-lo, mas sempre ia lá para saber como ele estava e lhe levava livros para que lesse. No primeiro dia depois dos três meses, Iracema e toda a sua família foi visitá-lo. Assim que os viu, ele não coube em si de tanta felicidade. Jarbas foi acompanhado de uma moça muito bonita. Ficou feliz por ver que Artur estava bem. Abraçando-o, disse:
- É, meu amigo, parece que conseguiu vencer.
- Ainda não. Estou tentando, e para isso nunca posso me esquecer que sou um doente e por isso preciso tomar cuidado.
- Quero lhe apresentar minha esposa. O nome dela é Marisa.
- Você se casou? Quando?
- Faz um mês, sabe como é. Aconteceu, e nós estamos esperando um filho.
- Um filho?! Meus parabéns! Marisa, você tirou a sorte grande. Jarbas é o melhor homem do mundo! Por mais que eu faça, nunca conseguirei agradecer por tudo que fez por mim. Olhou para Iracema e abraçou-a, dizendo:
- A você também, Iracema, nunca poderei agradecer por tudo, e principalmente por ter me perdoado.
- Dexa isso pra lá, meu fio. To feliz por te vê bonito como era antes.
- Estou bem mesmo, mas durante esse tempo todo não tive notícias de Leandro. Como ele está?
- Ta bem, minino! Muito bem! Ocê num sabe o qui cunteceu naquele dia que a gente foi lá!
- O que aconteceu?
- Na hora da visita, a sua mãe, aquela santa, dexô eu entrar pra vê o meu minino. Ele, coitadinho, num cunseguia nem fala de tão fraquinho que tava, mais ocê num vai credita na cara que ele feiz quando me viu. Abriu uma risada grande na cara e disse:
- Iracema! Você está aqui? Papai, mamãe! Conseguiram encontrá-la?
- Não, meu filho, ela nos encontrou, tudo para poder vê-lo.
- Eu chorava tanto que num consegui dizê nada. Só o beijei nada mais. Dispois desse dia, eu fui no hospitá todos os dia, até que ele foi pra casa. Teve qui toma remédio, mas eu tava lá pra isso.
- Você voltou a trabalhar lá em casa?
- Vortei sim, seus pai pediram, eu aceitei. Meus fio nun queria, mais eu gosto muito de oceis. Inda mais sabendo qui o Leandro tava percisando.
- Estou muito feliz por isso. Mas você não contou pra eles que estou aqui, contou?
- Quando via eles triste, muitas veiz tive vontade di conta, mas tinha prometido pra ocê, num pudia te trai.
- Mesmo eu tendo traído você um dia?
- Esquece isso, minino, só procura si cura. Tudo isso já passo.
- Obrigado, Iracema.
- Quem sabe o que eu fiz na outra incarnação, num é memo?
- Você não deve ter feito nada errado.
- Num sei não... Não sei não.
Ficaram ali durante todo o período de visita. Após um ano de tratamento, durante o qual Iracema e sua família nunca deixaram de visitá-lo, Artur finalmente teve alta. Em um sábado pela manhã Jarbas foi lá para buscá-lo. Estava radiante, pois pelos olhos de Artur percebeu que ele estava livre das drogas. Mas, como policial, disse:
- Parece que está bem. Agora veremos como se comportará lá fora...
Artur sorriu:
- Sei o que está pensando, mas nunca mais chegarei perto da droga outra vez. Nesse tempo todo em que estive aqui pude pensar muito em tudo o que aconteceu. Vi que não só quase destruí minha vida, como também daqueles que amo. Quase perdi meu irmão. Perdi muito tempo da minha vida envolvido nesse mundo de sonhos e ilusão. Mas ainda tenho chance para recuperar o tempo perdido.
Jarbas o abraçou, enquanto dizia:
- É isso aí, meu amigo, nunca é tarde para recomeçar. Espero que não se esqueça do que está dizendo hoje.
- Não me esquecerei. Além do mais, aprendi muito com os livros que você me trouxe. Hoje tenho muitas respostas para minhas dúvidas. Sei que nunca estou só, por isso quero estudar a fundo essa doutrina.
- Fico feliz por isso. Agora vamos? Quer ir para sua casa?
- Não, ainda não. Só voltarei para lá quando estiver realmente curado.
- Sabe muito bem que essa sua doença é incurável. Terá que ficar longe das drogas para sempre. Vamos para casa. Minha mãe me disse que, se você quiser, poderá ficar lá para sempre.
- Iracema é uma mulher maravilhosa!
- É sim, e eu me orgulho muito dela.
André e Hélio estavam lá. André sorriu e disse:
- Viu, Hélio, desde que você se afastou dele, deixou-o livre para decidir sua vida.
Hélio sorriu:
- Ainda bem que naquela noite você nos reuniu e eu pude saber de como tudo havia acontecido. Sabendo de tudo, não só me afastei de Miguel como eu próprio encontrei o meu caminho e a minha paz.
- Foi uma tentativa que deu certo.
- E se não tivesse dado certo?
- Haveria outra, e mais outra, até chegar naquela que daria certo. Agora vamos acompanhá-los. Quero estar presente quando Artur encontrar Iracema novamente.
Quando chegaram à casa de Iracema, a alegria foi geral. Um almoço estava preparado, pois Iracema tinha quase certeza que Artur iria para a casa dela. Marisa, esposa de Jarbas, aproximou-se. Trazia uma criança em seus braços. Depois de abraçar Artur, disse:
- Esta é a nossa filhinha, seu nome é Renata. Ela não é linda?
Artur, um pouco sem jeito, pegou a criança no colo. Assim que isso aconteceu, ela abriu os olhos e todos podiam jurar que ela sorrira. Artur ficou emocionado. Disse:
- Ela é linda mesmo! Esses olhos parecem que já vi antes...
Iracema, dando uma gargalhada, disse:
- Vai vê qui já viu mesmo! Quem sabe, né? A gente nun sabe nada dessa vida! Quem sabe ocê num conheceu ela di otra incarnação, num é mesmo?
Todos riram. A felicidade ali era completa. Com a convivência de todo aquele ano, a amizade entre todos crescera. Narinha estava encantada com a figura de Artur, mas ele olhava sem parar para os olhos da criança e pensava:
- Já vi esses olhos antes! Ela é linda!

PLANO DE VIDA

Artur continuou morando com eles. Com a ajuda de alguns amigos, Jarbas conseguiu um emprego para ele em uma oficina que consertava computadores. Ele começou a estudar sem parar, precisava recuperar o tempo perdido. Leandro estava completamente curado. Estava estudando para prestar o vestibular, queria ser médico, para tristeza de Álvaro, que queria que ele fosse advogado. Quando reclamava, Odete dizia:
- Não reclame com o menino, deixe-o ser o que quiser.
- Sei disso, mas para quem vou deixar meu escritório?
- Não se preocupe com isso.
Iracema continuava trabalhando lá. Ela já não precisava, mas não queria deixá-los. Sempre que via Odete ou Álvaro tristes pelos cantos, sentia vontade de dizer que Artur estava bem e na casa dela, mas havia prometido e não trairia sua confiança. Ainda mais naquele momento, que ele estava tão bem. Um ano e meio mais tarde, Iracema chegou trazendo em suas mãos um papel, onde havia um endereço. Entregou-o para Odete e Álvaro, que almoçavam. Disse para Álvaro.
- O meu filho pediu pra eu entrega esse papel, disse que sabe que o dotô ta preocupado cum as droga no mundo. Pediu pro doto i amanhã que vai tê uma palestra ou sei lá o quê. A senhora também, dona Dete, é bom ir.
Álvaro pegou o papel e leu o endereço. Passou para Odete, que após ler, passou para Leandro, que disse:
- Também quero ir. Vamos, papai! Sei que não gosta de falar sobre Artur, mas desde que tudo aquilo aconteceu, o senhor está interessado no assunto e ajudando várias clínicas que recuperam viciados.
Álvaro pensou um pouco e disse:
- Está bem, Iracema, pode dizer ao Jarbas que iremos. Já que perdi meu filho para as drogas, quem sabe não poderei ajudar outros a sair delas.
- Isso mesmo, dotô, quem sabe. O Jarbas vai fica contente, vai sim.
No dia seguinte, à hora marcada, Álvaro estacionou o carro no endereço marcado. Era uma escola. Nas paredes havia faixas e cartazes contra as drogas. Jarbas estava ansioso no portão andando de um lado para outro. Assim que os viu descendo do carro, correu para eles, dizendo:
- Ainda bem que chegaram! Daqui a dez minutos vai começar.
Eles entraram. Perceberam que muitos jovens estavam acompanhados por seus pais. Sentaram-se em poltronas que Jarbas lhes mostrara. Ficavam na quarta fileira do auditório, que era bem grande. No palco havia uma mesa com uma tolha branca e enfeitada com flores. Algumas pessoas entraram e tomaram assento nas cadeiras que estavam em volta dela. Quando todos estavam sentados, um senhor começou a falar:
- Hoje estamos aqui reunidos para discutirmos a droga, que está tomando conta de muitas pessoas, mas principalmente dos nossos jovens. Sei que muitos são pais ou parentes de dependentes químicos. Sabemos o mal que isso representa para a família e para o país. Eu, como pai de um ex-dependente, sei o quanto à família sofre, mas posso lhes dizer que o dependente sofre muito mais e precisa de toda a ajuda que possamos lhe dar, pois sempre há uma esperança. Para provar o que estou dizendo, chamo neste momento ao palco o senhor Artur. Ele nos contará sua história.
Ao ouvirem aquilo, Álvaro, Odete e Leandro levantaram-se sem perceber. Os três não sabiam se riam ou choravam. A emoção era tanta que eles não conseguiram dizer nada. Lágrimas caíam por seus rostos. As pessoas que estavam sentadas atrás deles pediram que se sentassem. Ainda chorando, e de mãos dadas, sentaram-se. Artur entrou no palco, o auditório estava lotado. Olhou para todos, viu muitas pessoas com o mesmo olhar que um dia vira no rosto de seus pais. Não viu que eles estavam no auditório. Já não era mais aquele garoto alto e magro, com o rosto cheio de espinhas. Havia tomado corpo, seus cabelos bem penteados, seus olhos com um brilho imenso de felicidade e lucidez. Começou a falar:
- Meu nome é Artur, sou um dependente químico, mas estou dia a dia lutando contra isso. Sei que muitos dos que estão aqui são pais, esposas, esposos ou simplesmente amigos de outros como eu. Sei o quanto estão sofrendo, mas como nosso dirigente disse, existe sempre uma esperança, e eu estou aqui para provar. Vou lhes contar minha história.
Começou a contar desde o início. Muitas vezes teve que parar, pois a emoção tomava conta dele e dos ouvintes. Enquanto falava, atrás dele André sorria. Quando terminou de contar tudo o que lhe havia acontecido e como conseguira se libertar, disse:
- Gostaria muito que meus pais e meu irmão estivessem aqui.
Durante esse tempo todo estive afastado deles e morro de saudades, mas prometi a mim mesmo que só voltaria a encontrá-los quando estivesse certo de que realmente eu havia conseguido. E, graças a Deus, esse dia chegou. Assim que sair daqui, irei para casa, pois preciso lhes contar que terminei o segundo grau, prestei o vestibular, e quero abraçá-los e voltar a dizer: agora sim, serei o rei dos computadores. A platéia começou a aplaudir. Todos estavam emocionados e, conforme ele previra, muitos choravam. Mas tinham uma esperança de dias melhores. Álvaro, Odete e Leandro não se contiveram. Saíram de onde estavam e dirigiram-se ao palco. Artur, ao vê-los, ficou paralisado. O coração deles batia sem controle. Jarbas aproximou-se de Álvaro, dizendo:
- Venham, vou levá-los até o palco. Enquanto subiam, Álvaro lhe disse:
- Por que não nos contou?
- Precisava ter certeza de que ele havia mesmo se libertado. E, além do mais, ele me proibiu.
Finalmente chegaram. Artur não sabia se ria ou chorava. Lágrimas caíam de seus olhos, mas dessa vez eram de felicidade. Estava diante das pessoas que mais amava. Correu para recebê-los. Assim que se encontraram não disseram nada, apenas se abraçaram, beijaram e choraram muito. O auditório estava todo em pé aplaudindo. Eles também estavam emocionados e felizes por ver aquela família reunida novamente. Ninguém havia dito que aquelas pessoas que subiram ao palco eram da família de Artur, mas não foi necessário, todos entenderam. Sem que a platéia visse, muitos amigos espirituais estavam presentes. Luzes brilhantes caíam sobre eles. Entre todos, André era o que parecia estar mais feliz. Assim que terminaram de se abraçar, Jarbas os conduziu para que descessem do palco. Foi o que fizeram, sob muitos aplausos. Embaixo, ao pé da escada, estavam Iracema e sua família, que também queriam abraçar a todos, principalmente a Artur. Ao vê-la, Odete não se conteve e abraçou-se a ela, dizendo:
- Obrigada, Iracema, por tudo que fez para ajudar meu filho! Nunca poderei pagar sua bondade, mas também nunca poderei perdoá-la por ter-nos escondido que ele estava em sua casa.
Iracema, também chorando, disse:
- Num pudia, dona Dete... Num pudia. Ele pidiu... Sabe que sempre fiz tudo que ele pidiu...
- Isso agora não tem mais importância, hoje é o dia mais feliz da minha vida!
- Da nossa, dona Dete! Da nossa!
Todos juntos, saíram dali. Já na rua, Leandro, abraçado ao irmão, disse:
- Poxa, cara! Precisei quase morrer pra você sarar da sua doença!
Artur, chorando, respondeu:
- Foi isso mesmo, cara! Mas você está bem e bonito pra caramba. Está quase da minha altura!
- Agora eu vou ganhar a briga! E você nunca mais vai me roubar batatas!
- Isso vamos ver! Pode ter certeza que continuarei tentando.
Álvaro, que escutava os dois conversando, disse:
- Já sabem que não gosto de brigas durante as refeições...
Artur voltou-se para ele. Os olhos se encontraram, um nó se formou na garganta. Queriam falar, mas não conseguiam. Apenas abriram os braços e se abraçaram com muita emoção. Álvaro disse:
- Seja bem-vindo, meu filho, de volta à família... Esperei com ansiedade por este dia, mas preciso confessar que algumas vezes pensei que nunca chegaria...
- Obrigado, papai, por tudo que tentou fazer para me ajudar. Sei que lhe causei muitos desgostos, mas prometo que de hoje em diante farei o possível para compensá-lo.
- Não se preocupe com isso... Só quero que seja feliz e conquiste sua felicidade. Desculpe se algumas vezes, mesmo sem saber, exigi muito de você...
- Não se culpe de nada, o senhor foi, é e será sempre um pai maravilhoso, e eu o amo muito...
Odete, que estava conversando com Iracema, ao ver o marido e o filho abraçados, disse:
- Iracema, finalmente este dia chegou. Preciso agradecer a Deus por tudo o que nos está acontecendo.
- Isso mesmo, dona Dete... Isso mesmo...
Álvaro levou todos para um restaurante. Precisavam comemorar aquele dia tão importante. Odete pediu licença e voltou para dentro da escola. Pediu para usar o telefone, ligou para sua mãe. Noélia lia um livro quando o telefone tocou. Assim que ouviu a voz de Odete, percebeu que algo havia acontecido. Disse:
- O que aconteceu, minha filha?
- Mamãe, a senhora não vai acreditar! Artur voltou! Está lindo e curado!
Noélia sentou-se, dizendo:
- Louvado seja Deus! Onde ele está?
- Aqui, mamãe! Estamos todos juntos e indo para o restaurante do Gino. A senhora pode ir até lá?
- Claro que sim. Estou indo agora mesmo.
- Venha, mamãe! Artur ficará muito feliz.
Desligaram. Noélia levantou os olhos para o alto, dizendo:
- Obrigada, meu Pai, por este momento, por ter trazido meu neto para junto de nós. Obrigada...
Vestiu-se e saiu rapidamente. Todos no restaurante, enquanto comiam, conversavam. A felicidade naquele momento era completa. Odete viu nos braços de Jarbas a pequena Renata. Aproximou-se, dizendo:
- Ela é muito bonita! Vai se tornar uma linda moça!
Artur, rindo, disse:
- É, meu amigo, ela vai lhe dar muito trabalho. Você vai ter que ter cuidado com os gaviões!
Jarbas, sorrindo, disse:
- Pode deixar aquele que se aproximar eu mato.
Foi preciso juntar muitas mesas no restaurante para que coubessem todos. Iracema olhou para Álvaro e disse:
- Dotô, quando o sinhô imaginô que um dia todos nóis ia ta sentado numa mesma mesa?
- Preciso confessar que nunca. Mas estou muito feliz!
- Eu tamén! Vai vê nóis tudo já foi amigo em outra incarnação! Num é mesmo?
- Quem sabe... Quem sabe...
Terminaram de comer e saíram. Lá fora, enquanto se despedia de Jarbas, Álvaro disse:
- Sei que cometi uma enorme injustiça com você, e você me devolveu meu filho. Preciso de alguma forma, compensá-lo.
- Deixe disso, doutor. Minha vida tomou outro rumo, estou contente com a profissão que tenho, e tão feliz quanto o senhor por ver Artur bem. Gosto muito dele.
- Sei disso, e lhe agradecerei pelo resto da minha vida. Mas, como sabe, meu escritório é grande, já viu que não terei para quem deixá-lo. Leandro diz que vai ser médico, Artur engenheiro de computação. De todo o único que sei que quer ser advogado é você. Queria lhe pagar a faculdade, e assim, quando eu me for desta Terra, saberei que meu escritório continuará.
Jarbas respirou fundo, não sabia o que responder. Artur, que ouvira o pai dizer aquilo, começou a rir:
- É, meu amigo, se você não aceitar, vai ter que ouvi-lo lhe pedindo pelo resto da vida! Ele adora aquele escritório. Se disse que é pra você que ele quer deixá-lo como herança, com certeza vai conseguir convencê-lo. Para evitar trabalho é melhor aceitar logo. Conheço o pai que tenho.
Jarbas disse:
- Não sei doutor. Não quero receber pagamento por algo que fiz por amizade.
- Quem está dizendo que quero pagar? Quero apenas dar-lhe uma oportunidade, como alguém um dia me deu! Sei que você será um ótimo advogado.
- Vou pensar e conversar com minha mãe e minha esposa. Depois lhe darei uma resposta.
Despediram-se. Voltaram para suas casas. Artur acompanhou os pais. Assim que entrou em seu quarto, pôde perceber que tudo estava igual. Deitou-se na cama, olhou para o teto, pensando: Obrigado, meu Deus, por mais esta oportunidade. Depois de tudo que aprendi sobre a Sua lei, sei que alguém está aqui neste momento. Sei também que fui muito ajudado. Seja você quem for, obrigado, muito obrigado... André, que estava ali, sorriu e disse:
- Meu filho, seja bem-vindo de retorno ao seu caminho. Deus o abençoe.
Jogou muita luz sobre ele. Tanta que o quarto ficou todo iluminado.

EPÍLOGO

Aquele dia em diante tudo se modificou e voltou ao normal. Artur dedicou-se intensamente aos estudos. Jarbas concordou em estudar, pois era o que mais queria na vida. Continuou como policial, conseguiu organizar sua vida para que pudesse estudar e trabalhar. Nas horas de folga ia para o escritório de Álvaro e o ajudava ao mesmo tempo em que aprendia na prática. Em toda oportunidade que tinha Álvaro dizia em alto e bom som, para que todos pudessem ouvir:
- Sabe, com Jarbas eu ganhei mais um filho. Esse moço vale ouro mesmo!
Ele e Odete respiravam tranqüilos. Renata ia completar cinco anos. Jarbas teve outro menino, dois anos mais novo que ela. Para seu aniversário foi organizada uma festinha simples, só mesmo para a família. No dia da festa, as duas famílias estavam reunidas. Iracema brincava com Renata quando Artur chegou e lhe entregou uma caixa grande. Assim que Renata pegou a caixa, quase a deixou cair. Artur abaixou-se para ajudá-la, os olhos se encontraram. Ele sentiu algo estranho, mas não deu atenção. Disse:
- Deixe que eu a ajude, é muito pesada.
- Já sei! É uma boneca!
- Isso mesmo! Será que vai gostar?
- Claro que vou! Foi você quem me deu!
- Por que está dizendo isso?
- Porque quando eu crescer vou me casar com você! Iracema e Artur riram. Ele disse:
- Isso é impossível, sou muito mais velho, poderia até ser seu pai.
Ela fez um beicinho e disse quase chorando:
- Não é! Vou me casar com você! Iracema, rindo, disse:
- Essa menina é muito esperta! Quem sabe ocês não se casam mesmo! Artur, rindo mais ainda, disse:
- Você deve estar louca!
- Num sei não, vai vê ocês já foram namorados em outra incarnação! Quem sabe, num é mesmo?
O tempo passou. Artur e Jarbas formaram-se. Jarbas deixou a polícia e foi trabalhar com Álvaro. Precisava aprender muito e sabia que ali seria o melhor lugar para isso. Leandro estava na faculdade de Medicina. Artur começou a trabalhar em uma grande empresa de medicamentos. Trabalhava com computador e ajudava na área de pesquisas. Ele não tinha ainda trinta anos quando, um dia, acordou com um programa todo pronto em sua cabeça. Foi para a empresa, trabalhou muito até conseguir. Surgiu um programa que facilitaria aos cientistas pesquisar a cura de muitas doenças. Ele foi muito premiado e elogiado, além de receber um aumento de salário. Álvaro e sua família e a família de Iracema compareceram à festa onde ele seria homenageado. Ao ver o neto recebendo aquela homenagem, Noélia não conseguiu evitar as lágrimas e, mais uma vez, agradeceu a Deus por tanta felicidade. Artur, trabalhando, viajou muito pelo mundo. Nunca se interessou por moça alguma. Dizia sempre que não tinha tempo para o casamento. Em uma das vezes em que estava em casa, ia acontecer novamente o aniversário de Renata. Ela ia fazer dezesseis anos. Novamente a família foi convidada. Assim que chegou à casa de Jarbas, viu Renata, que foi correndo para recebê-los. Ele ficou parado e pensando: Como ela está linda! Transformou-se! Não é mais aquela menina! Ela se aproximou, olhou bem em seus olhos, dizendo:
- Está quase chegando à hora da gente se casar.
Álvaro olhou para Odete, que olhou para Leandro, que olhou para Iracema, mas ninguém disse nada. Depois de alguns segundos, Iracema disse:
- Essa menina só diz bestagem! O pior é que sempre falou isso, desde que era piquininha!
Dessa vez, Artur não disse que não, estava encantado com aquela moça que lhe sorria. Só pensava: Já conheço esses olhos! A festa começou. Todos se divertiram muito. Havia paz no ar. Leandro já era médico e estava acompanhado de sua esposa e de um bebê recém-nascido. Álvaro conduziu Odete para o jardim. Lá fora, disse:
- Nossa família está feliz. Finalmente encontramos a paz, mas fico pensando: será que no final não foi bom tudo aquilo ter-nos acontecido?
- Por que está dizendo uma coisa como essa?
- Porque aprendemos muito. Eu, pelo menos, aprendi. Deixei de lado meus preconceitos e minha superioridade. Entendi que não somos nada nesta vida e que não temos nada sob controle. Além do mais, com tudo aquilo que aconteceu pudemos descobrir que o nosso amor é realmente verdadeiro. Eu a amo muito!
- Não mais que eu a você. Só posso agradecer a Deus por este momento e por ter-me dado um marido como você e dois filhos maravilhosos, que só me causam orgulho.
Artur estava em um canto da sala quando Renata se aproximou dizendo:
- Vamos dançar?
Ele, um pouco sem jeito, aceitou. Começaram a dançar calados, apenas os olhos se encontravam de vez em quando. André e Hélio acompanhavam tudo. Também estavam felizes, pois o filho e amigo de outros tempos tinha conseguido vencer suas fraquezas e estava ali, vitorioso. André disse:
- Finalmente estão juntos. Letícia conseguiu com seu amor e esperança.
Hélio interrompeu-o, nervoso:
- André! Não vai dar certo. A diferença de idade é muito grande. As famílias não concordarão!
- Ora, Hélio! Para o amor não existe idade! Haverá alguma confusão, mas no final dará tudo certo. O amor entre eles é imenso, nada nem ninguém poderá impedi-los de ficar juntos para sempre.
- Tem certeza disso?
- Claro que sim! E você, meu amigo, vá se preparando, que logo fará parte dessa família que está nascendo...
Hélio arregalou os olhos:
- Que está dizendo? Serei filho deles?
- Só se não quiser...
- Mas claro que quero! Serei o melhor filho do mundo! Você vai ver!
- Espero que seja mesmo!
Hélio, rindo muito, começou a volitar por toda a sala, e da ponta dos dedos jogava luz prateada sobre todos os presentes. Parecia uma criança que acabara de ganhar uma bala. André ria da felicidade dele e dizia baixinho:
- Espero que seja mesmo um bom filho, e que todos sejam felizes para sempre...



1


GISELLE - A AMANTE DO INQUISIDOR
MÔNICA DE CASTRO
(ESPÍRITO LEONEL)


SINOPSE

Na Espanha, no tempo da Inquisição, quando o poder da Igreja era quase absoluto, um inquisidor, em sua luta para obter mais poder, e a pretexto de "salvar as almas do pecado", pratica toda sorte de crimes. Sua amante, uma linda e ambiciosa mulher, une-se a ele, urdindo ciladas para as pessoas a quem ele deseja condenar. Assim tornou-se cúmplice dos crimes que o amante praticava. Encontrou, porém um homem que a despertou para um grande amor, inspirando-a a mudar de vida. Haveria tempo para ela fazer isso ou seria tarde demais? Você encontrará a resposta na emocionante história de Giselle (a amante do inquisidor).


PRÓLOGO

À medida que a chuva desabava pesada e grossa, Giselle subia a colina verdejante e escorregadia, parando por vezes para enxugar as pequeninas e abundantes gotas de suor, misturadas aos pingos da chuva que desciam pelo seu rosto cansado. O vento soprava insistente e veloz, fazendo com que o corpo de Giselle envergasse para trás, dificultando-lhe a caminhada. Ao longe, trovões ribombavam furiosos, acompanhando os raios que faiscavam no céu tempestuoso. Efetivamente, Giselle estava no meio de uma tormenta e não tinha certeza se conseguiria seguir adiante. Em dado momento, parou e olhou para baixo, espantada com o tanto que já havia subido, sem nem se dar conta. Suas pernas começavam a doer, talvez em função do sofrimento que lhes fora impingido, e uma forte exaustão começou a tomar conta de todo o seu corpo. Só agora seus músculos e ossos se ressentiam de tudo por que já haviam passado. Mas não podia desistir. Não agora. Diego lhe dissera que aquele era o caminho. Do outro lado da colina, o mar lhe acenaria com a liberdade. Abaixou a cabeça, contendo as lágrimas, e avançou mais um pouco. Não faltava muito, agora, e tinha que prosseguir. Já perdera muito em sua vida, mas precisava viver. Devia isso a Ramon, que morrera para não ter que matá-la. Parou por instantes, olhos enevoados pelo pranto e pela chuva, e tornou a subir. Sentia-se só e desamparada. Mais até do que quando estivera presa. Ramon estava morto, e ela não podia mais contar com Esteban. Ele a abandonara. O homem que fora o primeiro amante em sua vida, e a quem chegara a amar como pai, virara-lhe as costas covardemente. Ou será que ele tinha algo a ver com tudo aquilo? Teria sido Esteban quem a delatara e depois, por medo e covardia, não ousara mais encará-la? Não sabia ao certo. Por diversas vezes Esteban a alertara de que, se ela fosse presa, nada poderia fazer para salvá-la. Não. Ele não a traíra. Acovardara-se, temendo manchar seu nome e sua reputação. Mas não acreditava que houvesse sido ele o autor daquela denúncia infame. Finalmente, alcançou o topo da colina e ficou estarrecida com a visão do outro lado. Era uma encosta íngreme e rochosa, nada parecida com a grama verdejante por onde acabara de subir. Ao fundo, um imenso mar de águas revoltas se chocava contra as pedras, jogando a espuma branca a muitos metros de distância. A maré ia e vinha numa cadência aterradora, como se quisesse sugar todos os grãos de areia, as pedrinhas e as conchas que, inutilmente, lutavam para se agarrar às pedras incrustadas no chão arenoso. Por alguns momentos, Giselle ficou parada no alto da colina, paralisada ante aquela visão. Como é que Diego pretendia que ela entrasse naquele mar? O tempo não a estava ajudando e havia encapelado o mar de tal forma que seria praticamente suicídio aventurar-se por aquelas ondas. As vagas eram gigantescas e se chocavam com violência contra as pedras, arrastando qualquer coisa que se insinuasse por ali. Durante alguns minutos, permaneceu estudando o local. As ondas não conseguiam chegar até o pé do rochedo, perdendo força poucos centímetros antes. Mas seria uma travessia arriscada até a ponta do promontório, onde Diego lhe dissera que haveria um barco à sua espera. Giselle teria que conter o medo ante as gigantescas muralhas de água que as ondas formariam bem diante de seus olhos. Inspirou profundamente, tomando coragem, e pôs-se a descer, quase que rastejando pelas rochas. Ao menos, parará de chover. Apesar de íngreme, a descida não era tão difícil como pensara, pois havia uma espécie de trilha natural marcando o caminho por onde deveria passar. Em poucos instantes, alcançou a praia. Não era propriamente uma praia, mas uma estreita faixa de terreno arenoso e, mais à esquerda, as pedras que separavam a terra do mar. Subindo por elas, chegava-se a um caminho apertado e pedregoso, ladeando o penhasco e protegido pelas rochas à frente, que terminava num cabo largo e alto, fazendo como uma plataforma adentrando o mar. Se conseguisse chegar ao final da montanha, teria que dar um jeito de subir pelas pedras e se abrigar na plataforma, onde então ficaria à espera do barco que a iria resgatar. De um lado e de outro, imensas paredes de pedra, com uma espécie de gruta mais ao fundo. Aquilo mais parecia uma garganta. Giselle ficou pensando que seria muito fácil armar-se uma emboscada ali e começou a sentir medo. Por que é que Diego a enviara para um lugar tão perigoso? Não teria sido mais fácil marcar o encontro numa praia mais afastada? Mas ele dissera que não, que seria arriscado. Miguez então já teria descoberto a fuga e teria colocado todos os soldados em seu encalço. E depois, como poderia ele prever aquela tempestade? Mesmo assim, algo não lhe soava bem. Olhando para a ponta do cabo, ficou pensando no barco que conseguiria chegar até ali com aquele tempo. O mar estava muito revolto, era mesmo uma ressaca impiedosa. Que embarcação se atreveria a aproximar-se das pedras com aquelas ondas, arriscando-se a ser atirada contra as rochas e naufragar? Apurou os ouvidos, tentando escutar algum som. Nada. Não ouvia nada, a não ser o barulho do vento e das ondas estourando com violência nas pedras. Começou a ficar nervosa, pensando no que deveria fazer. Subitamente, a ponta de um barco surgiu por detrás do morro, e Giselle suspirou aliviada. Era um barco pequeno, e ela imaginou que a nau que a levaria embora devesse estar ancorada um pouco mais além, fora da influência daquela maré traiçoeira. Não sabia como faria para alcançar o barquinho, mas imaginou que alguém deveria lhe jogar uma corda ou algo parecido, puxando-a a bordo antes que as vagas a atirassem contra as rochas do cabo. De qualquer forma, teria que saltar ao mar. Não teve tempo de pensar em muita coisa. Enchendo-se de coragem, deu dois passos em direção às pedras. Ia começar a subir quando ouviu um estalido do outro lado. Olhou na direção daquele ruído e estacou abismada. Do fundo escuro da gruta, dezenas de homens apareceram, apontando para ela suas espadas ameaçadoras. Giselle não teve dúvida. Agarrou-se às pedras o mais que pôde e começou a subir, rezando para chegar ao barco antes que os soldados a alcançassem. Quando ergueu os olhos, outra surpresa. Ao invés de o barco se aproximar do promontório, começou a se afastar em direção ao alto-mar, e foi então que ela compreendeu tudo. Diego a traíra. Esperara até que ela lhe revelasse onde escondera seu tesouro, facilitara-lhe a fuga e a entregara a Miguez. Ficou desesperada. Não havia para onde fugir. Pensou em voltar pelo mesmo lugar por aonde viera, mas não havia tempo. Os homens se aproximavam cada vez mais e conseguiriam facilmente detê-la naquela subida íngreme. Não tinha escolha. Ou ia avante, ou seria capturada e morta. Começou a subir pelas pedras, em direção à parede do penhasco, rumo à ponta do cabo. Quem sabe não poderia atirar-se ao mar e nadar até o outro lado da montanha? Não sabia o que encontraria lá, mas deveria haver uma praia ou uma baía. Quando atingiu o caminho que circundava o morro, ergueu o corpo e levantou os olhos mais uma vez. Sentiu medo. Tanto medo que pensou que fosse desmaiar. Vistas de baixo, as ondas pareciam ainda maiores e engoliam as pedras com uma fúria sem igual, respingando o caminho por onde ela teria que passar. Se fosse apanhada por uma onda, ser-lhe-ia impossível escapar. Mesmo apavorada, seguiu em frente. Era sua única saída. Os homens de Miguez também já começavam a subir nas pedras e logo a alcançariam. Uma onda estourou a poucos centímetros e o repuxo quase a arrastou, mas ela conseguiu se sustentar e correr. Giselle deu um passo trôpego para junto da parede de pedras, aí colando seu corpo e experimentando nas pernas a friagem da água. Coração aos pulos sentiu na pele a iminência da morte. Os soldados pareciam temerosos e recuaram, hesitando em seguir avante. Era loucura demais. Estacaram onde estavam e ficaram apenas olhando, como se esperassem que algo acontecesse e a levasse de volta para eles. Sem lhes prestar mais atenção, Giselle, corpo ainda colado nas pedras frias do penhasco, foi-se arrastando lentamente, sentindo as pernas tremerem com o estrondo das vagas diante de seus olhos. Já ultrapassara a metade do caminho quando ouviu um novo alvoroço. Olhou novamente para a praia e notou que os homens haviam recuado e que outros se aproximavam. Giselle percebeu que eram arqueiros. Iam atirar nela! Com o corpo trêmulo, começou a chorar e continuou a arrastar-se, tentando não encarar as ondas que se agigantavam diante de seus olhos, avançando cada vez mais por cima das pedras à frente, que agora começavam a declinar para dentro da água cinzenta. A primeira flecha passou zunindo pelo seu ouvido e quase a acertou, mas foi desviada a tempo pela ventania. Os arqueiros, porém, não se deram por vencidos. Armaram-se novamente e tornaram a atirar, mas as flechas não conseguiam alcançá-la, perdendo força ante o vento que soprava em direção contrária. Sua pele já estava ferida e sangrando, esfolada que fora pelas rochas pontiagudas do penhasco. Giselle parecia nem sentir a dor. Depois de tudo por que passara, até que aquilo não era tão mau. Apesar das feridas que trazia e do corpo dolorido, ainda conseguira juntar forças para fugir e chegar até ali. Não iria desistir agora. Cada vez mais se afastava dos homens. As flechas não a atingiam, e Giselle pensou mesmo que estivesse fora de seu alcance. De repente, cessaram por completo. Os arqueiros pareciam haver desistido e aguardavam em posição de ataque. Mas alguém não desistira. Giselle já o havia visto uma vez, há muito tempo, quando ele a fora buscar para ir à masmorra ver Manuela. Era homem da confiança de Esteban, estava certa. Aquilo a encheu de tristeza. Então, aqueles soldados estavam ali não a mando de Miguez, como a princípio pensara, mas do próprio Esteban. O soldado olhou para onde Giselle estava, estudando rapidamente o local, e soltou a armadura e a espada no chão. Começou a subir pelas pedras, com habilidade e destreza, esgueirando-se com cuidado e evitando o encontro com as ondas, logo chegando à encosta por onde ela se arrastava. Sem nem olhar para o mar, encostou-se à parede e começou a arrastar-se também. Giselle se apavorou. Estava claro que ele a alcançaria em pouco tempo, antes mesmo que ela pudesse atingir a ponta do promontório e subir na plataforma. Tentou andar mais rápido, mas as ondas a detinham. Elas pareciam estourar cada vez mais perto agora, e não foram poucas às vezes em que tivera que parar para não ser atingida pela sua fúria incontida. Quase no final, estacou novamente. As pedras adiante, que protegiam a pequenina trilha encostada na montanha, praticamente desapareciam sob a água, e as ondas ganhavam força, chocando-se contra o promontório com mais violência. Se conseguisse ultrapassar esse ponto, poderia começar a subir para a plataforma, de onde se atiraria ao mar. Seria preciso esperar o repuxo e atravessar depressa. Giselle parou. As ondas espocavam com furor, arrastando tudo, e ela voltou a tremer. Sentia o perigo bem abaixo de seus pés e se deu conta de que não havia nada que a sustentasse se caísse. Ela olhava do homem para as pedras, enquanto ele ia se aproximando cada vez mais. Começou a se desesperar. As vagas não davam trégua, estourando uma atrás da outra, e o intervalo entre elas não era suficiente para que atravessasse. Seria atingida em cheio e arrastada antes que pudesse começar a subir para a plataforma. Foi quando o homem chegou mais perto. Tão perto que seus dedos roçaram nos dela, e Giselle não teve mais dúvidas. Ou atravessava, ou ele a agarrava. De qualquer forma, iria morrer. Tomou uma decisão. Esperou até que a última onda explodisse contra a rocha e recuasse, e avançou rapidamente. Mas não tão rápido a ponto de evitar o choque com a nova onda que estourou em seguida à primeira, tão grande que logo a encobriu. Apesar de atirada contra a parede com força descomunal, Giselle ainda teve forças para se segurar nas pedras. Mas o repuxo foi tão violento que ela não conseguiu manter-se agarrada, sentindo-se arrancada do chão e envolvida pela espuma branca e gelada da onda. Subitamente, seu corpo todo estremeceu como se estivesse sendo embrulhada e sacudida por imensa massa cinza. Estendeu os braços para frente e percebeu que não alcançava nada além da parede líquida e cinzenta que a ia tragando. Sentiu-se arrastada esticou ao máximo a ponta dos pés, tentando tocar algo sólido. Em poucos instantes, viu-se coberta pelo mar, sendo levada cada vez mais fundo. Seu corpo, apanhado pela correnteza, era agora levado para longe. Não teve tempo de chorar. Já havia engolido muita água e começou a sufocar. Não lutava mais. Era inútil. Seu corpo continuava sendo arrastado pela correnteza, e ela sabia que o fim era inevitável. Tentou não abrir a boca, para não engolir água. Em dado momento, sentindo-se asfixiar, inspirou profundamente pelo nariz e sentiu a corrente de água invadindo os seus pulmões, ao mesmo tempo em que fragmentos de sua vida lhe vieram à mente em questão de segundos. A última coisa em que pôde pensar foi na solidão. Nunca antes, em toda a sua vida, Giselle havia se sentido tão só. Deixou-se dominar por profunda tristeza, vendo-se na iminência da morte, sozinha no fundo do oceano, sem ninguém com quem compartilhar a sua dor. As testemunhas silenciosas de seu suplício jamais poderiam atestar a dor daquele momento. Giselle sentiu-se morrer em completa solidão, o corpo livre e solto no mar, distante de tudo o que um dia representara a sua vida. Com um movimento mecânico, parou onde estava e ficou olhando seu corpo sendo arrastado para o fundo do oceano. Como é que aquilo podia estar acontecendo? Não havia morrido? Morrera. Giselle não sabia explicar, mas estava quase certa de que havia morrido. Seu corpo, provavelmente, se fora, e o que permanecia ali era tão somente o seu espírito. Desgrudara-se da matéria e continuava boiando na água, ainda imersa, confusa demais para entender o que estava acontecendo. Será que ainda respirava? Aterrada, balançou a cabeça de um lado para outro e percebeu que ainda continuava no fundo do mar. Corpo ou espírito, o fato é que não estava mais sendo arrastada. Teria tudo sido ilusão e ela ainda permanecia viva? Subitamente, sentiu que o ar lhe faltava. Estava viva! Os mortos não precisavam respirar. Então, não morrera. Desmaiara, talvez, mas estava viva. Viva...! Já passava já das oito da manhã quando Esteban acordou. Tinha tido um dia cansativo na véspera, foram muitos os interrogatórios que tivera que presidir. O último, de um camponês acusado de pacto com as trevas, deixara-o particularmente esgotado. Fora difícil fazer o homem confessar, mas Esteban acabara convencendo-o. Não conseguira, porém, misericórdia para o seu crime. O homem seria executado na fogueira dali a alguns dias, como forma de purificação de sua alma possuída. Inspirou profundamente o ar da manhã e deixou que o sol atingisse seu rosto. Gostava de sol. Passava grande parte do tempo no calabouço, interrogando os prisioneiros, e sua vista já começava a se ressentir da escuridão. Esperou mais alguns minutos até se levantar. Em breve teria que acompanhar o arcebispo de Madri em uma importante visita às masmorras de Sevilha. Havia terminado de se vestir quando ouviu suaves batidas na porta, que se abriu devagarzinho. Um rapaz entrou e falou baixinho:
- Sou eu, monsenhor, Juan. Não queria acordá-lo. Mas é que está aí a senhorita Giselle...
Esteban não lhe deu tempo de terminar e respondeu apressadamente:
-  Diga-lhe que me encontre na antiga capela.
Juan saiu sem dizer nada. Era apenas um menino de seus dezoito anos, salvo pela bondade e generosidade de Esteban Navarro. Os pais haviam morrido quando ele tinha apenas três anos, vítimas do Santo Ofício, acusados de bruxaria. Navarro, por piedade, havia intercedido pelo menino e pedido para tomar a frente em sua educação, o que lhe foi permitido graças ao enorme prestígio de que gozava na Igreja. Criou o menino como se fosse seu filho, dedicando-lhe um amor sincero e paternal. A passos rápidos, Juan correu a avisar Giselle e seguiu a seu lado, em silêncio. Giselle era uma moça muito bonita, e Juan estava apaixonado, embora não ousasse partilhar seus sentimentos com ninguém, principalmente com monsenhor Navarro. Se ele soubesse, era bem capaz de castigá-lo. Em silêncio, abriu a porta para que Giselle pudesse passar e tornou a fechá-la. A moça se virou lentamente, sem lhe dirigir a palavra, e foi andando em direção ao altar de imagens velhas e descascadas. Fitou o semblante suave da Virgem Maria, ajoelhada aos pés da cruz, e desviou o rosto, acabrunhada. Não queria nada com santos e virgens. Esperou por cerca de vinte minutos até que Esteban aparecesse. Ele entrou apressado, e Giselle logo se atirou em seus braços, beijando-o com impetuosidade. Esteban correspondeu ao beijo sem muito ardor, mas, ainda assim, amaram-se ali mesmo, no chão, sob os olhos marejados da Virgem. Depois que terminaram, Giselle vestiu-se às pressas, de costas para a imagem, e esperou até que ele falasse:
- Lamento tê-la feito vir aqui, mas espero a visita do arcebispo de Madri e não pude me ausentar. Tenho uma nova missão para você.
- De quem se trata? - tornou ela sem muito interesse.
- Dom Fernão Lopes de Queiroz.
- O comerciante de sedas?
- Esse mesmo. Desconfio de seu envolvimento com uma descendente de mouros.
Envolvimento com mouros era considerado uma alta traição à Igreja. Os mouros eram hereges, uma vez que não professavam os sacramentos romanos, mesmo aqueles que haviam se convertido ao cristianismo, os chamados mouriscos.
- O que quer que eu faça?
- O de sempre. Não será muito difícil. Ouvi dizer que dom Fernão, apesar de apaixonado pela tal moura, tem uma queda especial por mulheres bonitas.
- E a moça?
- Quero-a também. Prendendo-o, não será difícil chegar a ela. Afinal, foi ela quem o seduziu com suas heresias e costumes profanos.
Esteban se retirou, e Giselle esperou cerca de cinco minutos para sair também. Do lado de fora, oculto atrás do muro, Juan já a aguardava. Depois que ela saiu, foi trancar a porta. Do alto das escadas, ficou vendo-a afastar-se, pensando em como seria bom poder estar com ela, fazer com ela as coisas que monsenhor Navarro fazia. Já em sua casa, Giselle pôs-se a pensar. O que faria para se aproximar de dom Fernão? Giselle era o que se poderia chamar de espia. Amante de Esteban Navarro, cardeal inquisidor do Santo Ofício, tornara-se sua delatora oficial. Monsenhor Navarro, como era conhecido pelos fiéis, era ardoroso defensor da fé católica e não permitia que ninguém a ela se opusesse, lutando com todas as suas armas e forças contra o que ele chamava de herege. Qualquer um podia ser herege. Qualquer um que não professasse a ideologia católica da época incorria no grave crime de heresia: judeus, mouros, feiticeiros, sodomitas, bruxos, qualquer um. Esteban envidara as mais ferrenhas perseguições contra os hereges, acreditando estar defendendo e preservando a verdadeira fé cristã. Julgava-se juiz da vontade divina, a quem fora outorgado o direito de reprimir e punir todo aquele que tentasse macular os dogmas católicos. Seus métodos, embora cruéis, eram considerados adequados para a salvação das almas caídas no pecado, e a tortura nada mais era do que instrumento divino de purificação. Essa era sua crença. Os artifícios utilizados para prender os hereges, por mais desleais e sórdidos que pudessem parecer, eram justificados pelo bem que ele julgava fazer àqueles apanhados em pecado. Para prender os hereges, Esteban contava com o concurso dos delatores. Qualquer um podia denunciar uma heresia, sendo mesmo um dever de todo cidadão temente a Deus. E era exatamente isso que Giselle fazia. Dona de uma beleza exótica, além de profunda conhecedora de magia negra, era-lhe muito fácil atrair e seduzir os suspeitos indicados por Esteban, deles obtendo as duvidosas confissões que serviam de base à instauração dos processos. Os hereges, em sua maioria, eram pessoas muito ricas, cujos bens eram logo confiscados pela Igreja. Como prêmio ao delator, cabia-lhe metade do patrimônio do acusado, ficando a outra metade em poder do clero. Nessas circunstâncias, Giselle enriqueceu. Juntou uma boa soma em ouro e jóias e comprou uma bonita e confortável mansão nos arredores de Sevilha, onde vivia em companhia de duas escravas negras, Belita e Belinda, compradas de um mercador português. Entrando em casa, Giselle seguiu direto para o porão. Abriu a pesada porta e entrou. Era ali que se dedicava à arte da magia. Havia vidros com líquidos estranhos, raízes de plantas desconhecidas, caixas com insetos e aranhas, ossos e caveiras, sangue de diversos animais engarrafado em pequenos frascos e cuidadosamente dispostos sobre uma prateleira. Mais ao fundo, encostado à parede, uma pesada estante de livros, repleta de volumes sobre magia e conhecimentos ocultos. Tudo ali tinha sua serventia. Sempre que se deparava com um caso importante ou difícil, recorria a seus apetrechos de bruxaria. Era o caso de dom Fernão. Embora Esteban lhe garantisse que o homem tinha lá as suas fraquezas por mulheres bonitas, era bom não facilitar. Ele podia estar muito apaixonado pela tal moura, e ela talvez encontrasse alguma dificuldade para seduzi-lo. Juntou alguns ingredientes, apanhou um livro de capa negra e abriu-o sobre a mesa. Escreveu o nome completo de dom Fernão com sangue de bicho e pôs-se a preparar seu feitiço. Ela não tinha nenhum objeto que lhe pertencesse, o que teria facilitado as coisas, visto que dele poderia extrair sua própria energia. Mesmo assim, preparou tudo. Invocou os espíritos das trevas, ofereceu-lhes presentes e sangue de animais, prometendo-lhes carne fresca de bode, caso conseguisse alcançar o seu intento. Depois que terminou, saiu e foi para a floresta, onde costumava colocar essas oferendas. Escolheu um canto mais escuro e afastado e depositou tudo no chão, invocando novamente os espíritos das trevas, que logo acorreram sequiosos de sangue. Recitou algumas palavras extraídas do livro, espargiu pó de ervas e minerais poderosos pelo chão e voltou para casa. Já estava pronta para se encontrar com dom Fernão. Lucena pousou o bordado que tinha nas mãos sobre o colo e olhou para o portão. Uma carruagem acabara de atravessá-lo. Vinha calma e serena, e ela sorriu para si mesma. Levantou-se apressada, depositou o bordado sobre a cadeira e ajeitou o vestido, preparando seu melhor sorriso para receber o visitante. A porta da carruagem se abriu e um jovem extremamente atraente desceu, estirando as mãos para a moça.
- Minha doce Lucena - disse ele em tom jovial.
- Ah! Ramon - respondeu ela lacrimosa -, por que demorou tanto? Quase morro de preocupação e saudade!
Ele deu um sorriso maroto e apertou sua bochecha, acrescentando com compreensão:
- Eu sei, mas os negócios me impediram de partir mais cedo. E depois, sabe como são os compromissos sociais.
- Espero que nenhuma portuguesa tenha se engraçado com você.
- Minha querida, o que é isso? - gracejou. - Sabe muito bem que só tenho olhos para você.
- Assim espero...
- E seu pai, onde está?
- Foi a uma reunião com Monsenhor Navarro.
- Monsenhor Navarro? Por quê?
- Não sei. Coisas das quais não devo me ocupar, segundo ele.
- Então, não se ocupe com elas. Temos coisas mais importantes em que pensar.
- É verdade. Nosso casamento, por exemplo. Já pensou numa data?
Ramon tossiu meio sem jeito e tentou desculpar-se:
- Sabe que ainda é cedo para isso...
- Por quê? Você já me faz a corte há quase um ano. Não sei por que esperar mais. Mês que vem completo dezoito anos. Já estou ficando velha.
- Deixe de tolices, Lucena, você ainda é muito jovem.
- Mas vou acabar ficando velha se você não se resolver logo.
- Você sabe que não quero me precipitar. Seu pai é um homem rico e poderoso, e eu jurei a ele que não deixaria faltar nada a você. Enquanto não me igualar a ele em fortuna, não poderemos nos casar.
- Não acha que está exagerando? Você também é rico. Não precisa ter a fortuna de meu pai.
Com um sorriso forçado, Ramon não respondeu. Puxou-a pelo braço e saiu caminhando com ela pelo jardim, pensando que não tinha mais nenhuma desculpa para dar. Homem rico? Só podia ser piada. Há muito Ramon deixara de ser rico. Seu patrimônio estava praticamente dilapidado, comprometido pelos vícios e exageros. Aos poucos ia vendendo suas propriedades, sem que Lucena ou seu pai soubessem. Se dom Fernão descobrisse, era bem capaz de obrigá-lo a terminar tudo com ela. Não podia permitir isso. Precisava dar um jeito de salvar alguma coisa antes que ele percebesse.
- E o romance de dom Fernão? - mudou de assunto. - Como vai?
- Você sabe tão bem quanto eu que papai evita falar nisso. Só o que sei é que está apaixonado.
- Quando é que vamos ter o prazer de conhecer a felizarda?
- Isso eu não sei. Papai faz tanto mistério que, se Consuelo não a tivesse visto, eu não acreditaria.
- Estranho, não é, Lucena? Por que ele não lhe contou? O que tem de mais um homem viúvo contrair novas núpcias?
- Não sei.
- Será que ela não é de boa família? Será alguma pobretona ou cortesã?
- Que horror! Deus me livre de tamanha desgraça!
- Tratando-se de seu pai, tudo é possível. Sua fama de conquistador é bastante conhecida.
- Não fale assim - tornou amuada. - Respeite meu pai.
- Desculpe-me, minha querida, não quis ofender. Vinham voltando para casa quando Consuelo os interpelou:
- Senhorita Lucena, quer que mande tirar o jantar?
- Meu pai já chegou?
- Ainda não.
Lucena inspirou profundamente, olhou para Ramon, que permaneceu impassível, e respondeu:
- Agora não, Consuelo. Vou esperar por papai.
A criada fez uma reverência e voltou para dentro.
- Acho bom entrarmos também - sugeriu Ramon. - Já está escurecendo.
- Você sabe que papai não gosta que nos encontremos a sós dentro de casa. Não fica bem.
- Mas Consuelo não está?
- Consuelo está ocupada com suas obrigações. Não vai ficar nos vigiando.
Virou-lhe as costas e começou a caminhar em direção ao banco em que estivera sentada antes que ele chegasse, mas Ramon segurou a sua mão e a puxou.
- Espere... - balbuciou a voz trêmula demonstrando emoção. - Para onde vai?
- Vamos para o jardim, esperar...
Não lhe deu tempo para concluir. Tapou sua boca com um beijo ardoroso, que ela correspondeu a princípio. Aos poucos recobrando o domínio sobre si mesma, afastou-se dele e empurrou-o com brusquidão, ao mesmo tempo em que censurava:
- Por quem me toma Ramon? Por alguma ordinária?
- Minha querida, não diga isso. Você sabe o quanto a amo...
- Mas não devia ter feito isso. Não fica hem.
- Não tem ninguém olhando. Que mal pode haver?
- Não está direito.
- Somos noivos, vamos nos casar. Isso não conta?
Ela hesitou. Seu pai vivia lhe dizendo que não deixasse nenhum homem encostar-lhe a mão. Mesmo Ramon. Os homens eram todos iguais; só pensavam em sexo. Se algum homem a desonrasse antes do casamento, estaria perdida. Lucena não respondeu e afastou-se dele acabrunhada, indo sentar-se no banco e apanhando o bordado.
- Está escuro para bordar - ponderou Ramon. - Por que não conversamos?
Ela tornou a pousar o bordado no colo, encarou-o com olhos penetrantes e retrucou friamente:
- Só se você prometer que não vai mais me beijar.
Ramon engoliu a raiva. Gostava de Lucena e pretendia se casar com ela. Contudo, todas as vezes que tentava se aproximar, ela o repelia, sempre com a mesma desculpa: não ficava bem. Aquilo o irritava deveras. Ainda que Lucena resistisse em se entregar a ele, podia ao menos permitir-lhe beijos e carícias, mas até isso ela lhe negava.
- Creio que já é hora de ir - tornou de má vontade. - Está ficando tarde e seu pai pode não gostar...
Fingindo não perceber a ironia em seu tom de voz, Lucena segurou-lhe as mãos e considerou:
- Não fique bravo, Ramon. Eu o amo.
- Mas você me trata como se eu fosse um aproveitador! Faz com que eu me sinta mal.
- Perdoe-me, mas é que não tenho mais mãe. Temo não saber me conduzir adequadamente pela vida.
- Mas não tem pai, ora essa? E ele não a orienta? Não cuida para que nada de mal lhe aconteça? - Ela assentiu. - Pois é. Tanto que deu permissão para que eu lhe fizesse a corte. Já estamos noivos, Lucena, noivos!
- Eu sei...
- E depois, não estamos fazendo nada de mais.
- Por favor, perdoe-me. Não falemos mais sobre isso. Tente entender. Eu o amo e quero que tudo dê certo entre nós.
Fitando-a com um misto ele paixão e raiva, ele acabou por concordar:
- Está certo, não vamos mais discutir. Mas é que também a amo e quero-a só para mim. É natural...
- Sei que é. Mas podemos esperar até o casamento, não podemos?
Ele assentiu contrariado. Nesse instante, a carruagem de dom Fernão cruzou os portões e, em poucos segundos, parava defronte a eles. Dom Fernão saltou e os cumprimentou formalmente:
- Está tudo bem, papai? - arriscou Lucena.
Apesar do ar de preocupação, Fernão conseguiu responder com aparente naturalidade:
- Está tudo bem, minha filha.
- O que monsenhor Navarro queria com o senhor?
- Nada de mais. Queria tratar de uma doação.
- Se puder ajudá-lo em alguma coisa, dom Fernão... - acrescentou Ramon com fingido interesse.
- Não, meu jovem, obrigado. Deixe que eu mesmo cuido disso. E depois, como disse, não é nada de mais. Monsenhor Navarro espera mais dinheiro. Como se o que lhe dou fosse pouco...
Passou por eles cabisbaixo e foi subindo as escadas do alpendre.
- Já jantou papai? - era Lucena novamente.
- Ainda não.
- Quer que mande servir?
- Por favor. - Virou-se para Ramon e indagou de forma cortês - Acompanha-nos ao jantar, Ramon?
- Se não for incomodar...
- Não é incômodo algum. A propósito, chegou hoje de viagem?
- Sim.
- E como foram os negócios?
- Bem...
- Excelente. Folga-me saber que o futuro marido de minha filha é um rapaz sensato e comedido.
Ramon deu um sorriso amarelo e não disse nada. Acompanhou Lucena até o interior da casa e aguardou até que desse as ordens a Consuelo. Ela daria uma excelente esposa. Era linda e culta, e sabia lidar com os empregados muito bem. Que homem não ficaria feliz em tê-la por mulher? Durante todo o jantar, dom Fernão permaneceu calado e pensativo. O diálogo que tivera com Navarro não fora dos mais animadores. Ele não falara claramente, mas viera com uma estranha conversa sobre hereges muçulmanos. Dissera-lhe que qualquer um que se associasse a um mouro seria considerado herege também, e dedicara grande parte de sua entrevista a digressões sobre o Santo Ofício. Embora a conversa não encerrasse nenhum tipo de ameaça, Fernão achou tudo muito estranho. Inspirou profundamente e fitou a filha e o futuro genro. Estava apenas à espera que eles se casassem para se casar com Blanca. Seria mais fácil para Lucena aceitar seu casamento se já estivesse casada. Só que Fernão não sabia que forças ocultas já se haviam derramado sobre ele. Sem que percebesse, duas sombras haviam se postado a seu lado, prontas para executar o trabalho pelo qual haviam sido pagas. Muito bem pagas por Giselle. Sentado à sombra de uma figueira, Juan pensava em sua vida. Estava prestes há fazer dezenove anos e ainda não conhecera mulher. Mas não queria uma mulher qualquer. Queria Giselle. Aquilo já estava virando uma obsessão. Giselle era seu último pensamento à noite e o primeiro pela manhã. Dormia e acordava com Giselle todos os dias, sentava-se à mesa ao lado dela, beijava o espelho imaginando beijá-la. Mas Giselle, além de mais velha, era concubina de monsenhor Navarro. Isto sim é que era um empecilho. Esteban jamais permitiria que ele se aproximasse da amante.
- Juan! - o grito repentino despertou-o de seus devaneios, e ele se empertigou, respondendo apressado:
- Sim?
- Monsenhor Navarro o está chamando - um dos padres veio avisar. - Disse para ir agora!
Juan ajeitou o hábito e tomou o caminho da abadia, rumo aos aposentos particulares de Esteban. Bateu à porta e entrou, indagando de forma humilde:
- Mandou chamar, monsenhor?
- Onde estava, Juan? Por que não atendeu ao meu chamado?
- Desculpe, eu estava lá fora...
- Bem, bem, não importa. Tenho uma tarefa para você - foi até a mesa e retirou um papel, colocando-o na mão do rapaz.
- Quero que leve isso à senhorita Giselle.
Esteban nem notou o ar de felicidade de Juan, que retrucou com jovialidade:
- Devo ir à sua casa?
- Não. Giselle está na taverna.
Para encobrir seus negócios escusos, Giselle comprara uma taverna do outro lado da cidade, onde costumava se apresentar dançando. A clientela era muito boa. Vinha atraída não só pelo excelente vinho que se servia, mas também pelas apresentações de Giselle.. Muitas pessoas acorriam a sua taverna apenas para vê-la dançar, e ela se deliciava com o efeito que a sua figura causava, principalmente nos homens. Quando Juan chegou, ela estava dançando sobre uma mesa, rodeada de vários homens. Ele ficou admirado. Além de linda, ela parecia despida de qualquer tipo de pudor. Enquanto dançava, Giselle levantava a saia até a altura dos joelhos, levando os homens ao delírio. Como é que monsenhor Navarro não se importava com aquilo? Monsenhor Navarro não era um homem ciumento. Podia ser possessivo e orgulhoso, mas não sentia ciúmes de nada. Por isso, não se importava que Giselle dançasse. Até gostava. Agradava-lhe ver que outros cobiçavam o que era dele. E depois, ela trabalhava para ele. Já dormira com vários homens, e até com algumas mulheres, para atender aos seus propósitos. Juan sentou-se a uma mesa e ficou esperando até que ela terminasse o seu número, encantado com sua graça e beleza. Giselle era uma mulher exuberante, de formas perfeitas, tez morena clara e cabelo negro, olhos de um verde escuro e penetrante. Não havia quem não se interessasse por ela. Ela percebia isso, porque também se deliciava em provocar os homens e colocá-los a seus pés. Só não dormia com ninguém. Além de Esteban, Giselle só se deitava com os suspeitos de heresia que ele lhe indicava. Quando terminou de dançar, desceu da mesa e foi na direção de Juan. O rapaz sentiu que o coração disparava, mas tentou se controlar.
- Boa tarde, Juan - cumprimentou ela, com um sorriso malicioso.
Ele sorriu de volta, embevecido, e não conseguiu responder. Percebendo o seu embaraço, Giselle puxou-o pela mão e levou-o para um pequeno aposento situado na parte de trás da taverna, que servia de escritório e gabinete particular. Trancou a porta e fê-lo sentar-se.
- Muito bem - prosseguiu ela. - O que o traz aqui?
Voltando de seu devaneio, Juan se ajeitou na cadeira, retirou a carta do bolso e estendeu-a para ela. Giselle desenrolou o papel e pôs-se a ler, seu semblante se contraindo de vez em quando. Terminou de ler e guardou a carta entre os seios.
- Diga monsenhor Navarro que está tudo acertado. Já dei início aos preparativos e estou pronta para agir.
Juan memorizou o recado e se foi, ainda sob o efeito que a visão estonteante de Giselle lhe havia causado. Depois que ele saiu, ela pegou novamente a carta e a releu. Esteban lhe dizia que havia tido uma conversa com dom Fernão e que o homem parecia assustado. Era hora de agir. Havia lhe pedido, como um favor especial, que fosse à taverna buscar um pequeno donativo de Giselle para a igreja. Dissera-lhe que, como o lugar não era bem freqüentado, não podia, ele mesmo, comparecer, mas não seria direito ignorarem-se as contribuições de pessoas simples, mas de boa fé. Por isso lhe pedira que fosse. Dissera-lhe que a moça estivera doente e fora curada pelas suas orações, e que agora pretendia retribuir a graça obtida com uma pequena doação particular. Giselle riu e rasgou a carta. Aquele Esteban era um demônio. Inventava as histórias mais estapafúrdias só para conseguir o que queria. Ainda que ninguém acreditasse nelas, não ousariam contestá-lo. Quem se atreveria a questionar a palavra do inquisidor? Ela deu ordens para que mantivessem tudo em ordem e foi para casa. Precisava se aprontar. Tinha em mente algo especial. Em casa, trancou-se no porão e foi mexer com seus feitiços. Nada poderia dar errado, ou Esteban ficaria furioso. Por volta das oito da noite, voltou à taverna. Estava linda em seu vestido vermelho, que realçava ainda mais a sua tez morena. Pouco depois, dom Fernão entrou. Ela não o conhecia, mas praticamente adivinhou que era ele. De onde estava ele não podia vê-la e se encaminhou diretamente para o balcão.
- Onde posso encontrar a senhorita Giselle? - perguntou, passando os olhos pelo recinto.
Sanchez, empregado que servia as bebidas, apontou com o queixo para um canto da taverna, onde Giselle estava sentada em companhia de um homem, fingindo prestar atenção a sua conversa enfadonha. Viu quando dom Fernão se aproximou e olhou para ele.
- Senhorita Giselle? - indagou, com visível admiração.
- Sim? - tornou ela, com voz açucarada.
- Meu nome é Fernão...
Ela fez um gesto com a mão, fazendo com que ele se calasse, levantou-se e disse bem baixinho:
- Aqui, não. Siga-me.
Saíram pela porta dos fundos, onde uma carruagem os aguardava. Giselle entrou com dom Fernão e deu ordens para que o cocheiro seguisse.
- Para onde vamos?
- À minha casa. Não posso arriscar-me a comprometer o bom nome de monsenhor Navarro. Alguém poderia ouvir, e isso não seria bom. Nos dias de hoje, é bom não facilitar, não é mesmo? Fernão deu um sorriso sem graça e não respondeu. Fizeram o resto do percurso em silêncio, até que a carruagem parou alguns minutos depois. A casa de Giselle não ficava longe da taverna, e Fernão achou-a muito grande e bonita para uma simples dona de taverna. Pensou que talvez Giselle possuísse algum amante rico, mas não disse nada. Não era problema seu e não queria se meter nos assuntos alheios. Ela abriu a porta da frente e chegou para o lado, dando-lhe passagem. Ele entrou primeiro e estudou a sala, admirado com o bom gosto da decoração.
- Devo confessar que estou impressionado, senhorita Giselle. Além de linda, a senhorita é muito fina e requintada. Veja essas obras de arte!
Giselle deu um sorriso maroto e foi apanhar duas taças de vinho, servindo dom Fernão e postando-se ao lado dele, diante de um pequeno vaso que ele admirava.
- É chinês?
- É sim.
- Como o conseguiu?
Ela deu de ombros e voltou para ele os olhos escuros, que a luz das tochas tornava quase negros, e ele sentiu estranha emoção. Nem percebia que duas sombras de mulher haviam se colado a ele, inspirando-lhe toda sorte de pensamentos lúbricos. Os espíritos chegavam mesmo a masturbá-lo, e, embora ele não sentisse os toques fisicamente, foi sendo invadido por um desejo incontrolável e, em poucos instantes, já estava excitado aos extremos. Sentindo a proximidade do corpo de Giselle, soltou a taça sobre o aparador e fixou os seus olhos nela.
- Senhorita Giselle... - balbuciou aturdido.
Ela colocou sua taça ao lado da dele, aproximou bem o rosto do seu e, com os lábios quase roçando os dele, sussurrou:
- Giselle... Para você, sou apenas Giselle.
Fernão não resistiu. Dominado pelo desejo, tomou-a nos braços e beijou-a ardentemente. Ela correspondeu ao beijo com ardor, fazendo-lhe carícias nunca antes experimentadas. Em poucos minutos estavam na cama. Amaram-se loucamente, e Fernão chegou mesmo a se assustar com algumas práticas de Giselle. Embora perplexo, ficou encantado. Aquela mulher não tinha pudor algum, e apesar do medo que isso lhe causava, dava-lhe também imenso prazer. Dom Fernão só saiu da casa de Giselle altas horas da madrugada, sem levar a pequena doação, que havia até ficado esquecida. Depois que ele se foi, Giselle desatou a rir. Fora muito mais fácil do que imaginara. O homem não oferecera nenhuma resistência. No primeiro impulso, cedera. Pensou no quanto ele era idiota e se felicitou. Naquela noite, não havia perguntado nada. Era preciso primeiro ganhar a sua confiança para só então iniciar a investigação. Na manhã seguinte, Esteban foi bater à sua porta. A casa de Giselle ficava do outro lado da cidade, longe das residências nobres e bem distante da abadia. Navarro tinha medo de ser visto em sua companhia e costumava visitá-la disfarçado. Apenas seu criado Juan sabia e o ajudava. Era ele quem dirigia a carruagem, certificava-se de que Giselle estava sozinha e ficava à espera do lado de fora, alerta a qualquer movimento suspeito.
- E então, minha querida? - perguntou ele, assim que entrou. - Como foi com dom Fernão?
- Melhor do que o esperado. O homem caiu direitinho na armadilha.
- Vocês dormiram juntos?
- É claro! Não perco tempo com tolices.
Esteban sorriu vitorioso. Giselle sempre se saía bem em suas missões.
- Ele já confessou alguma coisa?
- Ainda não toquei nesse assunto. Mas não se preocupe. Tenho certeza de que logo vai falar.
- Teve que utilizar algum artifício?
- Você sabe que não faço nada sem os meus amigos das trevas. Como pensa que consigo tudo?
Navarro sentiu um calafrio e não respondeu. Não queria se envolver com bruxaria. Aquelas práticas heréticas eram duramente combatidas, e a punição, por demais severas. Giselle não devia mexer com aquelas coisas, mas ele acabou tolerando-as em razão de sua finalidade. Não as estimulava, mas também não as reprimia. Tudo era permitido para prender um herege. Dom Fernão voltou para casa sentindo o arrependimento corroer-lhe a alma. Traíra sua Blanca com aquela ordinária, sem pensar nas conseqüências. Aquela mulher era terrível. Envolvera-o com seus gestos sensuais e atrevidos, e ele acabara caindo em sua armadilha. Por que fizera aquilo? Fora a sua casa buscar uma doação que ela faria a monsenhor Navarro. E onde estava a doação? Ela não lhe dera nada, e ele se esquecera de pedir. Esteban ficaria furioso ao descobrir que ele não cumprira a missão para a qual fora destinado. E Blanca? Se soubesse, ficaria arrasada. Ela era tão linda e tão pura... Não merecia ser traída. Mas não lhe diria nada. Ela nem desconfiaria. Não pretendia tornar a se encontrar com Giselle, e não haveria com o que se preocupar. Mas, e a doação? Pensando melhor, voltaria à taverna na noite seguinte, apenas para apanhar o dinheiro, e nunca mais apareceria. Ao entrar em casa, Lucena veio logo ao seu encontro, exclamando alarmada:
- Papai! Onde passou a noite? Fiquei preocupada.
Ele sorriu meio sem jeito. Não podia lhe dizer que passara a noite nos braços de uma cortesã, mas também não podia deixar que pensasse que dormira em casa de Blanca. Não queria lhe dar a idéia de que sua noiva era uma mulher qualquer.
- Dormi em casa do senhor Valência - mentiu. - Ficamos conversando sobre negócios, tomamos muito vinho e, quando dei por mim, já estava adormecido sobre as almofadas.
- Ah! Pensei que tivesse passado a noite com a moça...
- Não passei a noite com moça nenhuma.
Ela fez silêncio durante alguns segundos, até que indagou cautelosamente:
- Será que já não está na hora de apresentar-me sua noiva?
Tomado de surpresa, dom Fernão virou as costas para a filha e cerrou os olhos, tentando pensar em algo. Não havia nada a dizer, porém. Consuelo os havia visto juntos e contara a Lucena. Todos sabiam de seu romance com Blanca, e sua filha não compreendia por que ele a mantinha em segredo.
- Quando é que você e Ramon vão se casar? - desconversou.
- Casar...? - confundiu-se a moça. - Não sei ao certo. Ramon ainda está preso aos negócios...
- Pois quero falar com ele ainda hoje. Ou marca logo a data do casamento, ou eu mesmo rompo esse noivado de vocês.
- Papai! Não pode fazer isso.
- Posso, sim. Esse noivado já está se demorando demais. Faz quase um ano que ele me pediu para lhe fazer a corte, com promessas de casamento. Ficaram noivos há seis meses. Por que não se casaram ainda?
Lucena não sabia o que dizer. Também ela não entendia por que Ramon adiava tanto o casamento. No fundo, até que apreciara a impaciência do pai. Só assim Ramon seria forçado a tomar uma decisão.
 - Não sei por que Ramon insiste em não marcar a data. Confesso que também eu já lhe fiz essa mesma pergunta.
- Pois vou mandar chamá-lo aqui agora mesmo. Depois que vocês se casarem, também eu e Blanca nos acertaremos.
- Blanca? É esse o nome da moça?
Fernão hesitou. Havia deixado escapar o nome de sua noiva e agora não tinha mais como esconder. Pensando bem, que mal haveria se a filha soubesse o nome de sua futura madrasta? Já era mesmo hora de se conhecerem. Por quanto tempo mais poderia ocultar de Lucena a origem de Blanca? Ela era filha de um mouro e de uma espanhola, ambos já falecidos. Blanca crescera entre a fé católica e a muçulmana, mas, após a morte dos pais, acabara por se decidir pela Igreja. Ele encarou a filha com ternura, segurou as suas mãos e acabou por revelar:
- Sim, minha filha, o nome dela é Blanca. Blanca Vadez. É uma moça honesta e de boa família, e penso em apresentá-la a você o mais breve possível.
- Fico muito feliz com isso, papai. Tinha medo de que ela não fizesse parte da boa sociedade.
- Não precisa se preocupar com isso. Blanca é pessoa da mais alta distinção.
Lucena pareceu feliz. Finalmente ia conhecer a noiva do pai. Além disso, Ramon receberia um ultimato. Ela estava certa de que ele não teria como fugir e ver-se-ia forçado a marcar a data do casamento. Ramon chegou pouco depois da hora do almoço. O mensageiro apenas lhe dissera que dom Fernão o chamava a sua casa com a máxima urgência, sem declinar, contudo, o motivo de tanta pressa. Acomodado no imenso salão da casa de dom Fernão, ficou à espera que lhe dissessem o motivo daquele chamado súbito.
- Muito bem, Ramon - começou Fernão -, o assunto que me fez chamá-lo aqui é deveras grave. Trata-se de seu noivado com minha filha.
- Ah! Dom Fernão, não precisa se preocupar. Nosso noivado vai indo muito bem...
- Não se trata disso. E que penso que já está na hora de oficializarmos o matrimônio.
- Mas já? Ainda é cedo.
- Não é não. Minha Lucena já esperou demais. Ou vocês se casam logo, ou o compromisso entre vocês está desfeito. A escolha é sua.
Notando a indecisão nos olhos de Ramon, Lucena pôs-se a chorar.
- Você não me ama, Ramon?
- Não é isso... - balbuciou. - É que considero essa decisão prematura. Ainda temos tanto que fazer...
- Não há nada que fazer - cortou Fernão impaciente. - Lucena não pode esperar mais. Ou será que existe algo a seu respeito que eu não saiba?
Ramon sentiu o rosto arder e abaixou os olhos, confuso e envergonhado. Se dom Fernão soubesse que estava praticamente falido, jamais permitiria que aquele casamento se concretizasse. Mas já que as coisas estavam tomando aquele rumo, era melhor mesmo casar-se logo, antes de ficar inteiramente arruinado. Ao menos ainda possuía alguns poucos imóveis para apresentar, além de algumas jóias que herdara da mãe. Em breve, porém, com os cobradores batendo à sua porta, não lhe sobraria mais nem sombra de sua fortuna. Ele fitou Lucena discretamente, pigarreou e começou a dizer:
- O senhor tem razão, dom Fernão. Já está mesmo na hora de marcarmos a data. Por que não escolhe o senhor?
O brilho nos olhos de Lucena o comoveu, e ele foi a sua direção, tomando as suas mãos e beijando-as delicadamente. Gostava da moça. Podia ser interesseiro e quase um pobretão, mas nutria uma afeição sincera por Lucena.
- Muito bem - alegrou-se Fernão. - Escolho eu, então. Que tal dia 30 de julho? Ainda estaremos no verão e poderemos organizar uma bonita festa ao ar livre.
- Para mim está ótimo - concordou Ramon com alegria. - E para você, Lucena?
Mal contendo a felicidade, Lucena concordou:
- Para mim, também. Quanto antes, melhor.
- Excelente! Deixem tudo por minha conta. Eu mesmo tratarei a igreja e providenciarei os convites para a festa. Vai ser um banquete luxuoso, como nunca antes visto em Sevilha.
Dom Fernão sentiu-se mais animado. Depois do casamento da filha, trataria de arranjar o seu. Blanca já não era mais nenhuma menina, mas ficaria feliz com um casamento no estilo tradicional. Afinal, optara por seguir a religião da mãe, deixando de lado os velhos costumes da crença paterna. Não merecia a pecha de moura. Blanca era cristã e merecia integrar-se no seio da comunidade católica, e era o que ele pretendia ajudá-la a fazer. Era quase meia-noite quando Giselle fechou a porta de casa e tomou a direção da floresta. Envolta em seu manto negro, caminhou evitando os raios da lua, ocultando-se na escuridão da noite. Foi andando apressadamente, arrastando um bode que mandara comprar logo pela manhã. Finalmente, atingiu uma clareira, o local aonde sempre ia para fazer seus sacrifícios, sem que ninguém a visse. As pessoas eram muito impressionáveis e tinham medo da floresta à noite, o que conferia a Giselle certa aura de proteção. No centro da clareira havia uma pedra grande e muito lisa, que servia de altar. Arrastando o animal, Giselle se dirigiu para lá. Amarrou-o num galho de árvore que descia ao chão e ajoelhou-se diante do altar de pedra, proferindo estranhas palavras em latim. Abriu um pano negro aos pés da pedra, nele depositando algumas moedas de prata, um punhal e uma pequena bacia. Em seguida, continuou a fazer suas evocações, chamando os espíritos que a haviam ajudado para o banquete que lhes oferecia. Pouco depois, apanhou o animal. O bode tremia todo, talvez ciente do destino que lhe fora reservado. Giselle ergueu-o cuidadosamente e deitou-o sobre a pedra, segurando-o firmemente pelo pescoço com uma das mãos. Com a outra, levantou o punhal, sempre proferindo palavras estranhas, encostou-o na carne do animal e, num gesto rápido e preciso, cortou sua garganta, mantendo-o preso de encontro à pedra, enquanto seu corpo estremecia sob o estertor da morte. Giselle parecia em transe. Revirava os olhos e cantarolava baixinho, chamando aqueles que costumavam servi-la. Os espíritos das trevas, que aguardavam ansiosamente por aquela oferenda, logo se aproximaram. Alguns encostaram a boca na ferida do bode, sugando-lhe o fluido vital, enquanto outros disputavam o sangue derramado na bacia. Quando o animal soltou seu derradeiro estertor, e a última gota de sangue pingou na bacia, Giselle abriu os olhos com um sorriso de triunfo. Acomodou o corpo do bicho morto sobre a pedra, espargiu sobre ele uma mistura de ervas e apanhou a bacia. Levou-a aos lábios vagarosamente, sorvendo o sangue do bode em pequenos goles. Em seguida, depositou-a novamente aos pés do altar de pedra, sobre o manto negro, e terminou com uma frase:
- Deliciem-se, meus servos. Vocês mereceram.
Jogou o manto novamente sobre os ombros, virou as costas ao pequeno altar e tomou o caminho de volta. No dia seguinte, apanharia o corpo do bode, as moedas e a bacia, e jogaria tudo no rio mais abaixo, onde ninguém poderia ligá-los a ela. Por ora, tudo pertencia aos espíritos das sombras, que retirariam o máximo da energia que pudessem extrair daqueles elementos. Quando já estava quase em casa, viu uma pequena claridade perto de uma árvore e se voltou assustada. No meio da escuridão, um homem a fitava com olhar triste, envolto num halo de luz.
- Pai...? - balbuciou ela, assustada.
- Giselle - respondeu o espírito -, o que é que está fazendo com o conhecimento que lhe dei?
Giselle levou a mão à boca, aterrada, e, na mesma hora, a imagem se desvaneceu. Completamente aturdida, desatou a correr. Como aquilo fora acontecer com ela? Seu pai estava morto. Por que aparecia na sua frente de uma hora para outra? Era a primeira vez que o via. Sabia que possuía uma sensibilidade acima do normal, mas nunca antes havia visto qualquer espírito, nem mesmo aqueles que trabalhavam para ela. O pai, contudo, não só se aparecera diante dela, como lhe falara também. Parecia não zangado, mas triste. Por mais que dissesse não entender a razão de sua tristeza, Giselle sabia. Sabia que estava utilizando os conhecimentos que ele lhe dera de forma inadequada. Antes de morrer, o pai a fizera prometer que jamais se utilizaria da sabedoria para destruir.
- O conhecimento deve ser usado na prática do bem - dizia ele. - Jamais permita que a ganância, o orgulho e a vaidade afastem você do caminho da retidão.
Giselle ouvia seus conselhos sem lhes dar atenção. Em seu íntimo, sabia que faria exatamente o contrário do que o pai lhe dizia. Para que tantos conhecimentos se não podia utilizá-los em benefício próprio? Quem era ela para se preocupar com o bem-estar alheio? A Virgem Maria? Não, pensava. Deixaria aquelas tarefas para os santos e anjos. Ela precisava cuidar de sua própria vida, e foi exatamente o que fez depois que o pai morreu. O pai de Giselle, Ian MacKinley, era um druida escocês, que veio parar na Espanha fugindo da perseguição cristã aos praticantes da antiga seita da deusa-mãe. Não tencionava fixar residência na Espanha, temendo a Inquisição, mas, de passagem por Cartagena, acabou conhecendo Pilar, por quem se apaixonara e com quem se casara. Dessa união, nasceu-lhes a única filha, batizada com o nome de Giselle, que era a alegria do pai. Desde a mais tenra infância, Ian ensinou a Giselle os mistérios da sabedoria druida. A menina demonstrava grande interesse por aquela magia, embora não comungasse dos ideais do pai. Podia amá-lo profundamente, mas tencionava usar aqueles conhecimentos para conseguir algumas vantagens pessoais. Sua família era pobre, e ela pretendia enriquecer. Quando Ian morreu, Giselle contava apenas quinze anos e já era uma bruxa praticamente feita. A mãe morria de medo, temendo que alguém a denunciasse aos padres, mas Giselle a tranqüilizava, dizendo que ninguém sabia nada de sua vida. Um ano depois, a mãe contraiu novas núpcias. O padrasto de Giselle era um bêbado preguiçoso, que ficava em casa enquanto a mãe se matava de trabalhar para sustentar a família. Giselle o odiava. Um dia, quando ele tentou estuprá-la, decidiu-se. Não podia mais viver ali. Precisava partir o quanto antes. Arrumou suas trouxas e fugiu, levando livros perigosos e proibidos na bagagem. Foi para Sevilha. Apesar do Tribunal do Santo Ofício, a cidade a atraía. Por uma estranha razão, Giselle não acreditava que tivesse saído de sua terra para cair nas garras de algum inquisidor idiota. Não tinha medo, e foi a sua audácia que a aproximou de monsenhor Navarro. Esteban era então um jovem padre, recém-nomeado inquisidor para atuar no Tribunal de Sevilha. Giselle não o conhecia, mas sabia que muitos inquisidores tinham suas concubinas particulares, e o que ela mais queria era tornar-se amante de um inquisidor. Pôs-se à espera da melhor oportunidade. Desde que chegara, havia se hospedado em uma estalagem fétida e pouco iluminada, com carrapatos na cama e ratos que passeavam pelo quarto logo que a vela se apagava. Era um horror. No quarto ao lado, viviam duas moças que se diziam irmãs. Uma noite, Giselle ouviu um estranho ruído. Do outro lado da parede, alguém gemia. Encostou o ouvido à parede e escutou. Efetivamente, eram gemidos que escutava. Levantou-se na ponta dos pés e foi para o corredor, na esperança de ver alguma coisa. Espiou pelo buraco da fechadura, mas não conseguiu ver nada. No dia seguinte, foi direto ao Tribunal do Santo Ofício. Naquela época, Navarro era apenas um padre em início de carreira como inquisidor e integrava as Mesas Inquisitoriais. Embora hesitante Giselle se aproximou.
- O que deseja senhorita? - indagou Esteban, fixando-a admirado.
Assumindo um ar inocente, Giselle tornou com voz melíflua:
- Com quem poderia falar sobre... Bem, sobre algo que vi?
- O que foi que viu? - tornou Esteban interessado. - Vamos, pode falar. Você está diante de um juiz investido de autoridade divina pelo Criador.
Ela fez ar de dúvida. Na verdade, todos os seus gestos eram estudados e cuidadosamente preparados para impressionar o inquisidor. Ela queria parecer ingênua e preocupada com a moral cristã, e não ser tomada por uma devassa invejosa ou algo parecido.
- Bem... - continuou ela em tom hesitante - não sei se é apropriado falar.
- Pode falar criança. Não tenha medo. Estou aqui para ajudá-la. Diga-me: o que foi que viu?
- Bem, padre, é que não sei se o que vi é pecado.
- Mas o que é menina? Do que se trata?
Esteban já estava ficando impaciente, e ela achou que já era hora de contar. Chegou o corpo para frente, expondo os seios mal cobertos pelo vestido, e começou a sussurrar:
- É que onde moro há duas moças que... Bem... O senhor sabe... - calou-se envergonhada.
- O quê? - tornou Esteban, já dominado pelas entidades que acompanhavam Giselle. - Pode falar senhorita...
- Giselle.
- Pode falar Giselle. Lembre-se de que está num lugar santo. Pecado é calar sobre algo que pode ser uma heresia.
Giselle inspirou profundamente, chegou o rosto bem perto do seu e tornou a sussurrar:
- Bem, padre, como eu ia dizendo, moro numa pequena estalagem nos arredores da cidade. Nada de luxo, porque não posso pagar. Acontece que, na outra noite, ouvi um gemido estranho. Fiquei assustada, pensando que as moças que vivem no quarto ao lado estivessem passando mal. Pensando em oferecer-lhes ajuda, fui até seu quarto. Bati na porta, mas ninguém respondeu. Então, fiz algo que nunca antes havia feito: olhei pelo buraco da fechadura. Sei que é errado, padre, mas minha intenção era ajudar. As moças podiam estar doentes, impossibilitadas de abrir a porta.
- Sei, sei - tornou Esteban, cada vez mais impaciente. - Mas, e daí? O que foi que viu?
- Jura que nada vai me acontecer se falar?
Ela fingia tão bem que Esteban realmente acreditou na sua inocência e no seu medo. Já magnetizado por ela, respondeu com doçura:
- Um padre não precisa jurar minha filha, pois sua palavra já é a palavra de Deus. Contudo, se isso a faz sentir-se melhor, juro, não só que nada lhe irá acontecer, mas que irei ajudá-la no que for preciso.
Ela sorriu intimamente, exultando com sua vitória. Sabia que o havia conquistado e falou bem baixinho:
- Quando espiei pelo buraco da fechadura, vi que estavam nuas, agarradas, fazendo coisas estranhas na cama, esfregando seus corpos, tocando-se de maneira pouco digna - o padre abriu a boca, estupefato, e ela prosseguiu: - Fiquei apavorada. Nunca antes havia visto nada semelhante. Sufoquei um grito de pavor e voltei ao meu quarto, pensando no que deveria fazer. Aquilo não estava nada certo. Foi então que me ocorreu procurar o Tribunal. Não sei se isso é heresia, mas achei que era minha obrigação contar o que vi. Giselle não havia visto nada. Mas mentia tão bem que qualquer um acreditaria. Contudo, tinha certeza de que as moças estiveram mesmo se amando. Escutara aqueles gemidos muitas vezes, quando sua mãe e o padrasto faziam sexo. Não tinha dúvidas. Esteban tomou nota de tudo o que ela dizia e logo procedeu à abertura do processo inquisitorial. Giselle não sabia o nome das moças, mas deu o endereço a Esteban e voltou para a estalagem. Naquela mesma noite, soldados invadiram o quarto ao lado do seu, e as moças foram surpreendidas nos braços uma da outra. Giselle escutou barulho de luta, gritos desesperados, choros convulsos. A voz de Esteban se elevava furiosa, excomungando as moças. Riu vitoriosa. Voltou para sua cama e aguardou. Poucos minutos depois, ouviu batida na porta. Levantou-se e foi abrir.
- Senhorita Giselle - começou Esteban a dizer -, tinha razão. O demônio habita o corpo daquelas duas.
- Elas foram presas?
- A essa altura, já devem estar nas masmorras.
- Pobres moças...
- Não se lamente. Você fez o que era certo. Deus deve estar muito satisfeito com você - fez uma pausa e ficou olhando para ela, até que acrescentou embevecido: - Você é tão linda...
Ela abaixou os olhos, fingindo-se envergonhada, e retrucou com voz sumida:
- Padre... Nem sei o seu nome...
- Esteban. Esteban Navarro.
Ela soltou um suspiro e deixou que duas lágrimas caíssem de seu rosto. Esteban estava encantado. Ela era uma jovem muito sensível e atraente, e não merecia viver naquela espelunca.
- Onde estão os seus pais? - tornou ele com genuína preocupação.
- Morreram.
- E você ficou só?
- Sim, meu senhor. Não tenho ninguém por mim.
- Pois agora tem. Não se preocupe, vou ajudá-la.
- Vai? Por quê?
- Porque sou um homem generoso, e você, uma criança desamparada. É meu dever cuidar de você.
Era tudo o que Giselle esperava ouvir. No dia seguinte, Esteban tirou-a da estalagem e acomodou-a numa pequenina casa, um pouco afastada da cidade. Logo a tomou por amante e ficou encantado com o fato de ela ainda ser virgem. Aquilo era uma prova de que ela era uma criança inocente e pura, assustada com o mundo ao seu redor. Com o tempo, o romance entre os dois foi se intensificando. Sempre que aparecia, Esteban lhe contava sobre seus casos, falando que havia muitos hereges que ainda conseguiam escapar do poder do Santo Ofício. Foi quando a idéia lhe surgiu, e Giselle se ofereceu para ajudar. Era uma mulher bonita e não lhe seria difícil obter uma confissão dos suspeitos ou reunir elementos que os incriminassem. Bastava que os seduzisse, e eles acabariam por se entregar. Foi exatamente o que aconteceu. Utilizando-se de seus conhecimentos de magia das trevas, Giselle atraía os suspeitos, ganhava sua confiança e fazia com que lhe contassem tudo sobre suas vidas. Diante das informações que ela lhe passava, Esteban avaliava se havia algo herético na vida dos suspeitos, e todos eram conduzidos ao calabouço, torturados, espoliados e mortos. Esteban sentiu-se gratificado. Logo honrado com o título de monsenhor, em breve foi sagrado bispo, para depois receber o título de cardeal, e passou a presidir os processos de inquisição, abandonando as Mesas Inquisitoriais e dedicando-se à prática da tortura para obter a confissão. Giselle também foi gratificada. Tornou-se uma mulher rica, e Esteban lhe comprou a taverna, para acobertar o seu ofício. Aos poucos, Esteban foi tomando conhecimento das práticas de magia de Giselle. Embora assustado a princípio, acabou se acostumando. Era graças aos conhecimentos de Giselle que conseguiam prender muitos hereges. Poucos eram os que lhe escapavam, e quando isso acontecia até Esteban os acreditava inocentes, desistindo de persegui-los e acusá-los. Ele não sabia o quanto estava certo. Por mais que Giselle soubesse manipular os espíritos das sombras, nada do que fizesse surtiria efeito nas almas dignas, íntegras e bondosas. Os trabalhadores do mal, muitas das vezes, nem conseguiam chegar perto dessas pessoas, barrados que eram antes mesmo de adentrarem suas casas, pelos espíritos de luz encarregados de zelar pela sua segurança. Outras vezes, as vítimas chegavam a titubear. Mas a fé em Deus e a oração sincera acabavam por reequilibrar os seus pensamentos, e os espíritos das trevas eram afastados após curto período de perturbação. Giselle sabia que seu maior inimigo era a fé que algumas pessoas possuíam em Deus. A princípio, sempre que encontrava resistência de alguém, desdobrava-se em oferendas, certa de que acabaria conseguindo minar a força do inimigo. Mas o amor e a fé em Deus se sobrepõem a todo e qualquer malefício, por mais poderoso e sombrio que seja, e Giselle acabou se convencendo de que não possuía poder algum contra os mais religiosos, como ela, em sua ignorância, os compreendia e os chamava. Os sinos da abadia acabavam de dobrar, anunciando às seis horas da tarde, quando Esteban e Miguez cruzaram a imensa porta de cedro que dava acesso aos aposentos particulares dos padres.
- Meu caro Esteban - disse Miguez vagarosamente - sabe que não tenho nada com a sua vida nem pretendo me intrometer em seus assuntos. Mas não acha que seu romance com Giselle está indo longe demais?
- Por que diz isso? - tornou Esteban assustado, certo de que era discreto o bastante para não permitir falatórios.
- Porque já estão começando a comentar.
- Comentar o quê? Quem?
- Outro dia mesmo ouvi uma conversa entre padre Valentim e padre Donário. Diziam que você deveria ser mais cauteloso e não trazer a moça aqui.
- Mas eu não a trouxe!
- Não é o que dizem. Vocês foram vistos saindo da antiga capela.
Esteban fez um ar de contrariedade e desabafou:
- Por que não cuidam de suas próprias vidas?
- Não que isso vá prejudicá-lo... Não creio mesmo nisso. Afinal, que inquisidor não possui a sua amante, não é mesmo? - deu um sorriso mordaz e prosseguiu: - Eu mesmo tenho lá os meus encontros.
Haviam alcançado o corredor principal, onde ficavam os aposentos mais luxuosos, e Esteban parou. Fitou o interlocutor com ar maroto e indagou:
- Suas virgens?
Miguez olhou de um lado a outro e falou bem baixinho:
- Só gosto das virgens. E assim mesmo, das bem novinhas. Pode ser uma preferência um tanto quanto bizarra, mas depois que as defloro, perco o interesse por elas. O que me agrada, meu caro, é o medo das meninas, a sensação de poder ao senti-las trêmulas sob o meu corpo, a dor da penetração, as lágrimas de desespero, o sangue jovem a lhes escorrer do sexo. Está certo que faço tudo isso em nome do Senhor... - elevou as mãos aos céus e fez o sinal da cruz, logo retomando seu discurso: - Mas não é pecado ter prazer com o próprio trabalho, é?
- Por que está me dizendo isso, Miguez?
- Nunca me envolvi com nenhuma dessas mocinhas. Mas você... Está por demais envolvido com Giselle.
- Giselle trabalha para mim. Foi graças a ela que consegui prender e acusar tantos hereges.
- Sei disso e não quero que pense que o estou recriminando. Como disse você não é o primeiro nem será o último a ter uma concubina. Mas sou seu amigo e sinto-me no dever de alertá-lo. Giselle ainda pode lhe causar problemas.
- Não vejo que problemas ela possa me causar. É apenas uma mulher...
- Uma mulher é sempre perigosa. É através delas que o diabo costuma tentar os homens.
- Giselle é diferente. É muito dedicada a mim e só faz aquilo que eu mando.
- Ainda assim, meu amigo, tenha cuidado. Se o Tribunal se voltar contra ela, não a defenda. Deixe que a acusem.
- O que você sabe que eu não sei?
- Nada. Não sei de nada. Mas algo me diz que ela ainda vai acabar mal.
- Não entendo por que a preocupação, Miguez. Giselle não representa nenhuma ameaça.
- Eu não teria tanta certeza. Ela é traiçoeira e perigosa.
- Está enganado. Giselle me é extremamente fiel. É você que não gosta dela, embora ela nunca lhe tenha feito nada. E você sabe o quanto eu gosto dela.
- Por isso mesmo. Não me agradaria nada vê-lo às voltas com os inquisidores.
- Está se preocupando à toa. Não há nada contra mim. E, mesmo que houvesse, ninguém ousaria me acusar. Seria uma vergonha para a Igreja. Tenho certeza de que o arcebispo logo daria um jeito de acobertar tudo, como já fez outras vezes. E depois, sempre cumpri fielmente a minha missão. Devo ser o inquisidor com o maior número de confissões e condenações. Ninguém se atreverá a me acusar de nada.
Miguez suspirou profundamente e deu-lhe uma tapinha nas costas, seguindo para seus aposentos. Deitado em sua cama, ficou pensando no amigo. Ele e Esteban eram amigos há muitos anos. Juntos, já haviam feito centenas de condenações, presidido muitas torturas, presenciado várias execuções. Miguez sabia que Esteban era muito bem conceituado na Igreja, tinha fama de excelente inquisidor. Assim como ele. Miguez ansiava ser sagrado bispo, o que não deveria tardar. Mais tarde, em seu quarto, Esteban apagou a vela, mas não conseguiu dormir. Pensava nas palavras de Miguez. Não acreditava que alguém tivesse algo contra ele ou Giselle. A não ser o próprio Miguez. Desde que a conhecera o amigo não simpatizara com ela. Ouviu um ressonar e espiou. No aposento contíguo, Juan dormia a sono solto, despreocupado da vida. Seria uma pena despertá-lo, mas precisava dele naquela noite. Era imperioso que fosse ver Giselle ainda hoje. A conversa com Miguez o deixara preocupado, e ele queria se certificar de que tudo estava bem.
- Juan - chamou baixinho, cutucando o noviço.
- Hum...? O que é?
- Acorde, Juan, precisamos sair.
O rapaz se empertigou e esfregou os olhos, tentando espantar o sono e fitando o interlocutor:
- Monsenhor Navarro! Aconteceu alguma coisa?
- Preciso sair. Vamos, levante-se.
Rapidamente, o rapaz se levantou e vestiu-se às pressas. Em silêncio, saíram para o pátio da abadia, dirigindo-se para a cavalariça.
- Aonde vamos? - indagou, enquanto abria a porta da carruagem para Esteban entrar.
Ele se sentou rapidamente e disse com voz rouca:
- A casa de Giselle. E rápido.
O coração de Juan estremeceu. O que será que Navarro iria fazer em casa de Giselle àquelas horas? Não perguntou nada, porém. Era seu dever obedecer, não fazer perguntas.
Quando chegaram, Juan bateu à porta e esperou. Poucos minutos depois, uma das negras veio atender, e Esteban entrou apressado, ordenando ao noviço que o esperasse na carruagem.
- Vá chamar à senhorita Giselle - ordenou de má vontade.
A escrava não disse nada. De olhos baixos, saiu e foi buscar sua senhora. Voltou cerca de cinco minutos depois e, parada diante dele, sem ousar levantar a cabeça, falou com voz humilde:
- A senhorita Giselle não está em seu quarto.
- Onde está?
- Não sei senhor. Talvez esteja no porão.
Sem dizer nada, Esteban dirigiu-se para lá. Não gostava daquele porão cheio de ervas e coisas esquisitas, com cheiro de enxofre e inferno, mas estava com pressa. Escancarou a porta com estrondo. Giselle estava parada em frente a uma espécie de fogão a lenha, mexendo um caldeirão, e levantou os olhos assustada:
- Esteban! - exclamou surpresa. - O que faz aqui há essas horas?
Encarando-a com desconfiança, ele redargüiu em tom de censura:
- O que está fazendo aí, Giselle? Outro de seus feitiços?
- Nada de mais - tornou ela, dando de ombros. - Apenas uma infusão para aborto. Por quê?
- Está grávida de novo?
- É o que parece.
Vendo-a ali parada, mexendo o caldeirão feito uma bruxa, o coração de Esteban se apertou. Ainda a amava. Não sentia mais arder em seu corpo o fogo da paixão, mas gostava dela o suficiente para tentar protegê-la. Ela se arriscava demais, guardando em sua própria casa aqueles objetos profanos e demoníacos. Se alguém descobrisse, seria o seu fim. Giselle soltou a colher com que mexia o caldeirão e aproximou-se dele, tentando beijá-lo na boca. Ao ver que ele se esquivava, perguntou com voz amuada:
- O que há Esteban? Não me deseja mais?
- Não se trata disso. Mas é que vim aqui para falar de um assunto importante.
- Que assunto?
- Essas práticas nefastas.
- Por que está dizendo isso agora? Nunca se queixou quando elas o auxiliaram.
- Isso é bruxaria.
- Chame como quiser. Mas é com essa bruxaria que consigo praticamente tudo o que quero. E depois, se quer mesmo saber, acho que não tem nada de mais nisso que faço. Os druidas, de quem aprendi esses segredos, tratavam esses mistérios com muita naturalidade. Meu pai dizia que eles estavam acostumados a utilizar as forças ocultas da natureza, manipulando energias e fazendo contato com os espíritos...
- Isso é blasfêmia! É coisa do diabo!
- Que eu saiba você também já andou estudando essas blasfêmias.
- Não nego. Mas foi apenas para conhecê-las e poder combatê-las. Não me dedico a essas práticas. E você também deveria parar com isso.
Giselle abraçou-o e beijou o seu rosto, acrescentando com voz melíflua:
- Quer mesmo que eu pare Esteban? Sem a minha magia, talvez você não fosse o homem poderoso que é hoje. Quer jogar tudo isso para o alto?
Ele a encarou confuso e começou a dizer:
- Não... Não se trata disso.
- De que se trata, então? Nunca vi você preocupado com minha magia.
- Você sabe que eu jamais gostei dessas práticas.
- Mas nunca as condenou nem me pediu que parasse. Por que isso agora? Por que se deu ao trabalho de vir até aqui no meio da noite, só para me alertar sobre algo que você já está cansado de saber?
- Não sei. Estou confuso. Miguez veio com uma conversa estranha hoje. Algo sobre você ser acusada de heresia.
- Padre Miguez não sabe de nada. No fundo, está é com inveja, porque você subiu mais rápido do que ele.
- Não creio. Miguez e eu sempre fomos muito amigos.
- Está certo, Esteban - assentiu Giselle, tentando desviar o assunto. - Mas não se preocupe. Se depender de mim, ninguém nunca vai ficar sabendo de nada. Vou tomar mais cuidado. Escolherei até outro local para minhas oferendas. Está bem assim?
Ele sorriu meio sem jeito e assentiu. Em seguida, Giselle terminou de preparar a infusão e bebeu a goles largos. Já estava acostumada àquilo. Sempre que engravidava, preparava o chá abortivo e se livrava da criança. Não queria filhos. Nem Esteban. Ele tremia só de pensar que pudesse vir a ser pai. Ainda mais porque o filho poderia não ser dele. Do jeito que Giselle trabalhava para ele, aquela criança bem poderia ser de qualquer um. Ainda assim, a presença de uma criança só serviria para atrapalhar os seus planos e os de Giselle, e era de comum acordo que os abortos eram realizados. Em seu gabinete particular, Esteban ouvia as explicações de dom Fernão, que não tivera ainda tempo de buscar a tal doação que Giselle pretendia fazer à igreja.
- Pois é monsenhor Navarro - ia se desculpando -, ainda não pude encontrar a senhorita Giselle. É que andei ocupado, muitos negócios a resolver, o senhor entende. E depois, tem a minha filha. Lucena está noiva, e foi preciso ter uma conversa com o rapaz. Sabe como são os jovens, não é mesmo? Ramon de Toledo, um bom rapaz, embora um tanto quanto imaturo. Mas não se preocupe. Voltarei hoje mesmo à taverna da senhorita Giselle e resolverei tudo.
Esteban batia com os dedos na mesa e o fitava com ar incrédulo. Dom Fernão mentia descaradamente, mas ele não diria nada. Era preciso dar-lhe bastante corda para que se enforcasse. Quando ele terminou de falar, Esteban, olhando diretamente em seus olhos, tornou em tom veladamente ameaçador:
- Dom Fernão, não quero que pense que o estou obrigando a abandonar suas obrigações para me prestar esse favor. Pensei no senhor para essa missão porque é meu amigo e sei que tem prazer em ajudar a Santa Madre Igreja, principalmente nas tarefas mais difíceis. Mas se não puder ir, deixe por minha conta. Arranjarei outra pessoa.
- Não, não, é claro que poderei ir. Como lhe disse ainda hoje me desincumbirei dessa missão.
Naquela mesma noite, dom Fernão voltou à taverna. Giselle estava dançando sobre a mesa, como sempre fazia cercada de homens que a admiravam. Dom Fernão pretendia ser rápido. Escolheu uma mesa mais ao fundo e sentou-se, aguardando até que ela terminasse o seu número. Giselle o havia visto entrar, embora fingisse não ter visto nada. Terminou a dança e desceu da mesa, encaminhando-se diretamente para onde ele estava sentado, com uma caneca de vinho à frente.
- Boa noite, dom Fernão - cumprimentou com um sorriso sedutor. - Pensei que não viesse mais.
Fernão pigarreou meio sem jeito e retrucou encabulado:
- Perdoe-me, senhorita Giselle, mas é que nosso encontro passado foi... Um tanto quanto incomum... E, por isso... Bem, esqueci a missão que me foi confiada.
Com um riso maroto, ela se sentou ao lado dele, pedindo que lhe trouxessem uma caneca de vinho também. Apanhou-a e bebeu avidamente, estalando a língua ao final.
- Excelente vinho o meu! - disse ela com entusiasmo. - Não concorda dom Fernão?
- Sim... - balbuciou ele - Muito bom, realmente.
- E francês; excelente safra. Doce, puro, aromático. Uma beleza!
- Senhorita Giselle, perdoe-me... Mas não foi para falar de vinho que vim aqui.
Ela colocou a caneca sobre a mesa, passou a língua nos lábios e tornou com suavidade:
- Não. Foi para falar de sua missão. Contudo, o que o impede de saborear um bom vinho?
- Nada me impede. Mas é que não posso me demorar. Minha família me aguarda.
- Ah! A família. Essa nobre instituição criada por Deus...
Havia tanta ironia em sua voz que Fernão se assustou. Por que ela estava falando daquele jeito? Precisava logo apanhar o dinheiro e sair dali. Tentando ignorar o seu sarcasmo, replicou:
- Perdão novamente, senhorita...
- Pensei que tivéssemos dispensado essas formalidades. Já não somos íntimos?
Sem que ele tivesse tempo de responder, ela se levantou de onde estava e se abaixou perto dele, deixando os seios na altura do seu rosto. Na mesma hora, Fernão começou a sentir que a excitação o dominava. Ela se abaixou ainda mais e tocou sua orelha com os lábios, soprando com voz doce e suave:
- Por que não vamos a minha casa cumprir... A sua missão?
Ao sentir o hálito quente de Giselle em seu ouvido, Fernão teve um arrepio de prazer. O peito da moça subia e descia, acompanhando a respiração que ela, propositadamente, tornara ofegante, o que foi instigando-o ainda mais. Ainda assim, ele tentava resistir:
- Eu... Não posso... Gostaria, mas preciso apanhar o dinheiro...
Sem lhe dar tempo de concluir, Giselle tapou a sua boca com um beijo, e ele foi se levantando vagarosamente, apertando seu corpo contra o dela. Em seguida, saíram pela porta dos fundos e tomaram a carruagem, indo direto para sua casa. Amaram-se a noite toda. Giselle já estava cansada, mas ele parecia tomado de uma disposição fora do comum. Mesmo assim, não o rejeitou. Quanto mais ele se prendesse a ela, mais cedo alcançaria seu objetivo.
Depois que ele se saciou, recostou a cabeça sobre o seu colo e pareceu adormecer. Giselle esperou alguns minutos e, acariciando seus cabelos, começou a indagar:
- Fernão...
- Hum?
- Está dormindo?
- Não.
Ela deixou escapar um suspiro de prazer e acrescentou com voz estudadamente carinhosa:
- Há pouco falou em família. Você é casado? Ele se empertigou na cama e fitou-a espantado.
- Por que pergunta?
- Por nada. Gosto de conhecer os homens com quem me relaciono.
- Perdoe-me, Giselle, mas não creio que nos relacionemos. Você é uma mulher muito bonita e sensual, mas não pretendo tornar a vê-la.
- Não? Por quê?
- Por que... Porque não. Como disse, tenho a minha família e não posso me afastar dela.
- Então você é casado...
- O que há? Por acaso sou o único homem em sua vida?
- Não. Mas é que gostei de você. Ao contrário dos outros, é gentil, carinhoso, educado. A maioria dos homens que conheço é arrogante e grosseira.
Sentindo o peito inflamado de orgulho, Fernão retrucou:
- Sou um cavalheiro. Jamais trataria mal uma mulher.
- Eu sei, e foi por isso que me interessei por você. Hoje, quando o vi entrar na taverna, senti uma enorme alegria. Gosto de você e ficaria feliz se nos víssemos mais vezes.
Fernão estava confuso. Gostava de Giselle, mas amava Blanca. Giselle era uma rameira, ao passo que Blanca era uma mulher pura e virtuosa, aquela que escolhera para ocupar o lugar de sua falecida esposa. No entanto, por que não poderia ter Giselle como amante? Blanca, apesar de mais velha, ainda era uma moça solteira, e ele não poderia contar com suas carícias. Mas era homem. Não era obrigado a satisfazer o seu desejo nos leitos das meretrizes? Giselle não era propriamente uma meretriz, mas era quase isso. Mulheres feitas Giselle não serviam para esposas. Só serviam para concubinas. Que mal poderia haver se a tomasse por amante enquanto não se casasse? Ele beijou os seus cabelos e tornou com doçura:
- Também gosto de você. Por isso, não vejo mal algum em que nos encontremos de vez em quando.
- Que maravilha! - exclamou ela, beijando-o de leve na boca. - E sua mulher? Não vai desconfiar de nada?
- Quem foi que lhe disse que sou casado?
- Não é? Mas eu pensei...
- Pensou errado. Eu não disse que era casado. Disse que tenho família.
- Não estou entendendo...
- Sou viúvo e tenho uma filha, que está noiva. Além disso, também tenho uma noiva, e é com ela que pretendo me casar logo após o casamento de minha filha.
Era agora. Ele ao menos já confessara que estava noivo, coisa que ninguém antes conseguira apurar. Mais um pouco e ele falaria sobre a fé que a moça professava.
- Você está noivo? - tornou ela, fingindo-se surpresa. - E vai se casar?
- Sim. Lamento se a decepciono, mas não posso enganá-la. Você perguntou se eu era casado, e estou lhe dizendo que não. Mas não posso fingir que não há ninguém em minha vida.
- E claro que não.
- Não está zangada?
- Por que estaria? Só o conheci outro dia. Não podia esperar que fosse exclusividade minha.
- Quer dizer que não se importa?
- Não é bem assim - fez uma pausa estudada e prosseguiu: - Só duvido que sua noiva possa fazer o que eu faço por você.
- Minha noiva ainda é virgem.
- Foi o que pensei... E sua filha? Como se chama?
- Lucena. É uma linda moça.
- Imagino. Se sair ao pai, deve ser mesmo muito bonita. Ele a abraçou e replicou com ternura:
- Bonito, eu? Imagine...
- Pois fique sabendo que eu o acho muito atraente. E sua noiva também deve achar, ou não teria aceitado a sua corte.
Fernão não respondeu. Por mais que puxasse assunto, ele nada dizia sobre a moça, e Giselle não quis pressioná-lo muito. Ele deu por encerrado o assunto e começou a acariciá-la novamente. Giselle estava cansada. Não sentia a mínima vontade de fazer sexo com ele mais uma vez. Contudo, era preciso fingir e se submeter. Precisava acabar com aquele caso o mais rápido possível. Quanto antes ele revelasse a heresia da moça, mais cedo ela se livraria dele. Dom Fernão não era um homem feio, mas ela não sentia a menor atração por ele. Seu único desejo era fazer com que ele confessasse. Nada mais. Nada do que Ramon fizesse poderia convencer Lucena a adiar o casamento. Ela estava decidida, não podia mais esperar. Além disso, já estava passando da hora, e acabaria se tornando uma solteirona ranzinza. Não. Decididamente, o momento era aquele. O pai o estava pressionando, e Ramon também não encontrava mais desculpas para dar. Sentados lado a lado no imenso jardim da casa de dom Fernão, Lucena, com o bordado no colo, ia dizendo:
- Hoje teremos visita para o jantar. Papai, finalmente, decidiu-se a nos apresentar sua noiva.
- É mesmo? O que o fez mudar de idéia?
- Nós.
- Nós? Não entendi.
- Ele quer que nos casemos para se casar logo em seguida. Por Isso, vai trazer a moça hoje.
Ramon guardou silêncio. Não tinha mesmo como adiar aquele casamento. Dom Fernão parecia decidido, e Lucena, mais decidida ainda. O jeito era rezar para que o futuro sogro não descobrisse nada sobre sua real situação financeira. Se isso acontecesse, Ramon se sentiria extremamente humilhado e teria que enfrentar a repulsa de dom Fernão e de toda a sociedade espanhola. Os dois estavam sozinhos no jardim, e nuvens cinzentas começaram a se formar no céu. De vez em quando, um raio caía à distância, e trovões estouravam enfraquecidos.
- Acho que vai chover - observou Lucena displicente.
Sem prestar atenção a suas palavras, Ramon tentou nova investida. Não havia nenhum empregado olhando, e o momento era propício. Já não agüentava mais. Lucena sempre o evitava, o que o deixava louco. Quanto mais ela o repelia, mais ele a desejava. Com gestos delicados, segurou a sua mão e beijou-a com gentileza, fitando-a com um ar proposital de adoração.
- Lucena - começou a dizer com voz açucarada -, sabe o quanto a amo, não sabe?
Ela retirou a mão e respondeu as faces coradas:
- Não recomece Ramon.
- Mas Lucena, não entendo você. Seu pai quer que nos casemos logo. Por que não posso tocá-la?
- Por que não podemos esperar até a noite de núpcias?
- Porque você me enlouquece.
- Não diga essas coisas. Você sabe que não gosto de atrevimentos.
- Não é atrevimento. E amor. Eu a amo, Lucena. Deixe-me provar isso.
Tornou a beijar sua mão, olhando para os lados para ver se havia alguém observando. Levantou-se e puxou-a vagarosamente, e puseram-se a caminhar de braços dados pelas alamedas do jardim. Lucena sabia onde ele a estava levando, mas não disse nada. Pensou em contestar e exigir que voltassem, mas desistiu. Que mal faria? Iriam apenas conversar. Se Ramon pensava que iria conseguir alguma coisa, estava muito enganado. Mais um pouco e alcançariam o caramanchão. Foi quando começou a chover. Era verão, e grossos pingos despencaram do céu, obrigando-os a correr para se abrigarem. Entrou ofegante no caramanchão, Lucena toda encharcada, o peito arfante, quase sem conseguir respirar. Vendo-a parada, toda molhada, o vestido colado ao corpo, a mão suavemente pousada sobre o seio, que se insinuava alvo sob o decote, Ramon não conseguiu se conter. Arrebatou-a com furor e beijou-a com paixão. Assustada, Lucena tentou lutar. Dava-lhe tapas e tentava empurrá-lo, mas Ramon a prendia com força. Já não conseguia mais raciocinar. Deitou-a no chão e pôs-se a acariciá-la, sussurrando-lhe palavras de amor, carregadas de desejo. Aos poucos, Lucena deixou de resistir. O contato de Ramon despertara-lhe sentimentos nunca antes experimentados, e ela foi se entregando. Que mal haveria? Não ia mesmo se casar? Amaram-se com loucura. Ramon parecia um animal, tamanho o desejo reprimido. Ao final, ele a beijou nas faces, feliz e extasiado, e declarou solenemente:
- Oh! Lucena, não sabe como a amo. Juro que farei de você a mulher mais feliz e realizada do mundo.
Lucena exultou. Entregara-se antes do casamento, mas não estava arrependida. Ramon a amava e se casaria com ela, e tudo ficaria em seu devido lugar. Ninguém precisaria ficar sabendo do que acontecera, e o casamento trataria de colocar uma camada de tinta sobre aquela mácula. Mais tarde, naquele mesmo dia, Blanca foi apresentada a Lucena e a Ramon. Era uma moça fina e delicada, embora não muito bonita, já perto da casa dos trinta anos. Apesar de não ser mais nenhuma jovenzinha, parecia perfeita para seu pai. Era prendada, recebera boa educação e se mostrava cordata e gentil com todos, até mesmo com os serviçais. Já não tinha pais. Eles haviam falecido havia cerca de dois anos, e Blanca vivia só, em companhia de alguns poucos empregados. A única coisa que não haviam contado a Lucena fora acerca de sua origem. Dom Fernão temia que a filha não a aceitasse ou ficasse preocupada, e não julgou conveniente revelar a verdade naquele momento. Contaria mais tarde, após o casamento, se Blanca insistisse. Depois que o jantar terminou, dom Fernão pediu licença para levá-la em casa. Já era tarde, e Blanca não estava acostumada a ficar acordada até altas horas.
- Você também, Ramon - acrescentou. - Não se demore muito. Já está na hora de Lucena se recolher.
- Não se preocupe papai. Ramon já estava mesmo de saída, não estava?
- Estava sim
Blanca se despediu dos dois. Simpatizara muito com Lucena, e a moça ficou satisfeita com a futura esposa do pai. Temia que fosse alguma doidivanas ou interesseira, mas Blanca era uma moça fina e educada, o que a agradou bastante. Assim que eles saíram, Lucena virou-se para Ramon e considerou:
- Lembre-se do que papai falou. Já está na hora de me deitar.
Corpo ardendo de desejo, Ramon puxou-a para si e pousou-lhe um delicado beijo nos lábios, que ela correspondeu com frieza. Aos poucos, porém, aquele beijo foi se intensificando, até que Ramon passou a beijá-la com ardor, tentando acariciar seu corpo. Ela, assustada, deu-lhe um empurrão e uma leve bofetada no rosto, dizendo, coberta de horror:
- O que deu em você, Ramon? Enlouqueceu?
- Não, Lucena. O que deu foi em você? Por que agora me repele? Há pouco não concretizamos o nosso amor?
- Já não chega?
- Por quê? Não gostou? Não quer mais? Confusa e envergonhada, Lucena objetou:
- Aquilo não deve se repetir. Precisamos esquecer o que houve.
- Como posso esquecer o seu corpo, os seus beijos, o seu sexo?
- Não fale assim - retrucou indignada, cheia de pudor. – É pecado.
- Mas que pecado? Eu a amo e vamos nos casar em breve. Que mal há em nos amarmos?
- Podemos esperar.
Ramon abaixou os olhos, contrariado, tentando conter o ímpeto de jogá-la ao chão e possuí-la novamente. A muito custo, refreou o desejo e saiu, dando-lhe um boa noite carregado de frustração. Do lado de fora dos imensos jardins da mansão, foi caminhando a passos vagarosos, pensando aonde ir. Ouviu o ruído de cascos de cavalo estalando no chão de pedras e parou, meio encoberto pelas sombras. Era a carruagem de dom Fernão. A carruagem freou em frente aos portões, mas, ao invés de entrar, o cocheiro deu meia-volta nos cavalos e tornou a descer a rua, passando por Ramon sem notar a sua presença.
Num impulso, Ramon correu atrás da carruagem e agarrou-se a ela, prendendo pés e mãos nas ferragens traseiras. Aonde será que dom Fernão ia àquelas horas? Durante cerca de uma hora, Ramon permaneceu agarrado à traseira da carruagem, as mãos e os pés já dormentes, esforçando-se ao máximo para não cair. Se não chegassem logo ao seu destino, não saberia mais o quanto poderia se segurar. Quando a carruagem parou em frente à casa de Giselle, Ramon deu um salto de felino e foi para o outro lado. Protegido ainda pelas sombras, abaixou-se o mais que pôde, colocando-se fora das vistas do cocheiro. O homem desceu e abriu a porta para dom Fernão, que saltou apressado. Fernão caminhou a passos largos para a porta da frente e bateu. Minutos depois, uma negra veio atender e fê-lo entrar. Cada vez mais curioso Ramon esperou até que o cocheiro cochilasse no assento, para só então sair de onde estava. Vagarosamente, foi caminhando para a casa, na esperança de encontrar alguma janela por onde pudesse espiar. Mas a casa estava às escuras, e não havia janelas abertas no andar de baixo. Ramon escondeu-se entre os arbustos do pequeno jardim da casa de Giselle. A fama de dom Fernão já era conhecida, e o rapaz estava certo de que ele possuía uma amante secreta. Duvidava muito que aquela Blanca fosse uma mulher despojada. Mais parecia uma freira, assim como Lucena, e Ramon podia entender muito bem o gesto de dom Fernão. Do lado de dentro, dom Fernão envolvia Giselle num abraço lúbrico, levando-a para a cama sem dizer nada. Precisava desesperadamente de seu corpo. Rasgou sua camisola com fúria e jogou-a na cama, possuindo-a com um quase desespero. Em silêncio, Giselle se submeteu, tentando não pensar na repulsa que aquele homem começava a lhe causar, resfolegando sobre ela feito um animal. Quando ele terminou, ela deu um sorriso e acariciou o seu rosto, empurrando-o gentilmente de cima de seu corpo.
- O que foi que houve? - indagou, tentando parecer interessada e carinhosa. - Por que não avisou que vinha?
- Não pude. Nem eu sabia. Deixei Blanca em casa e senti o desejo a me consumir. Por isso, resolvi vir vê-la.
- Blanca?
- Minha noiva...
Sorrindo intimamente, ela fingiu-se compreensiva e tornou com doçura:
- Não lhe disse que ela não lhe pode dar o que lhe dou?
- É verdade, Giselle. Ninguém ama feito você. Mas também, você há de convir que, aos olhos de Deus, é um erro entregar-se antes do casamento.
- Sua noiva é muito religiosa? - ele não respondeu. - Deve ser. Mulheres beatas só pensam em Deus e acham que sexo é pecado.
- O que não é o seu caso, não é mesmo?
Ela riu e considerou:
- É claro que sou temente a Deus, como todo mundo. Mas se ele me reservou esse destino, o que fazer? Melhor aproveitar os atributos que ele me deu, não acha?
Ele sorriu e a beijou. Gostava de Giselle. Além de excelente amante, ela era inteligente e tinha senso de humor.
- Você vai à igreja? - perguntou ele, só agora se lembrando da doação que tinha que levar para monsenhor Navarro.
- Às vezes. Vou escondida. As pessoas não gostam muito de mulheres como eu, você sabe.
- Ainda assim, você conheceu monsenhor Navarro.
- Conheci. Ele me salvou. Há alguns meses, estive muito doente, e foi graças a suas orações que me curei. Monsenhor Navarro me encontrou sozinha na igreja e me ofereceu ajuda. Foi a sua fé que me salvou, e, por isso, eu lhe serei eternamente grata.
- Grata ao ponto de lhe oferecer uma pequena doação...
- Que você ainda não levou para ele, não é mesmo? - Giselle riu e continuou: - Daqui a pouco, ele vai começar a desconfiar.
- É verdade. Foi até bom nos lembrarmos. Não saio hoje daqui sem a sua doação.
Giselle se levantou e foi apanhar uma bolsinha com algumas moedas de ouro, que colocou nas mãos de dom Fernão.
- Aqui está. Há muito reservei essa quantia para a igreja. Não se esqueça de levá-la.
Fernão apanhou a bolsinha, experimentou-lhe o peso e foi amarrá-la na cinta de sua calça. Voltou para a cama em seguida e beijou Giselle novamente. A moça observou:
- Apesar de tudo, sou muito grata a Deus. Posso não ser um exemplo de virtude feito a sua Blanca, mas sou uma mulher de fé.
- Blanca é uma moça muito virtuosa, é verdade. E tem muita fé, embora...
Parou de falar abruptamente, já arrependido de ter começado. Mas Giselle atenta a todas as suas palavras viu ali a oportunidade que há tanto esperava.
- Embora o quê? - redargüiu com fingida inocência. - Não vá me dizer que ela pensa em ir para algum convento e deixá-lo!
- Não... Não... Ela... Bem... Blanca é uma boa cristã agora...
Calou-se. Não sabia se podia confiar em Giselle e temia pela vida de Blanca. Giselle, por sua vez, não queria pressioná-lo muito. Ele era inteligente e acabaria suspeitando de algo. Pensou em insistir para que ele continuasse a frase, mas sentiu o seu ar de desconfiança.
- Isso não importa - arrematou Giselle, dando-lhe um beijo na boca. - O que importa somos nós.
Fernão suspirou aliviado. Não lhe agradava muito ver o nome de sua noiva nos lábios de uma meretriz. Depois do beijo, levantou-se e aprontou-se para sair, e Giselle foi levá-lo até a porta. Do lado de fora, Ramon se impacientava. O cocheiro agora dormia a sono solto, e ele perdera a conta do tempo em que ficara ali esperando. Finalmente, depois de quase duas horas, a porta tornou a se abrir, e Ramon encolheu-se todo atrás dos arbustos. Dessa vez, porém, não foi à escrava que abriu, mas uma moça linda, envolta apenas numa manta de lã que lhe deixava à mostra os ombros morenos e bem torneados. Ramon fixou o seu rosto e ficou impressionado com a sorte de dom Fernão. Como conseguira uma amante daquela? Na certa, dava-lhe muito dinheiro. Rapidamente, Fernão voltou para a carruagem e acordou o cocheiro, dando-lhe ordens de ir para casa. Giselle ficou vendo a carruagem afastar-se e só então fechou a porta, nem percebendo que havia alguém a espreitá-la. Ramon voltou para casa com os pensamentos voltados para ela. Quem seria? Provavelmente, alguma meretriz de luxo que dom Fernão descobrira. Sentiu-se tomado de imensa curiosidade e não conseguiu dormir o resto da noite. A imagem de Giselle não lhe saía do pensamento e, no dia seguinte, bem cedo, partiu de novo para a sua casa. Parou do outro lado da rua e ficou à espreita. Viu quando as janelas se abriram e as escravas começaram a limpar a casa. Uma das moças saiu para fazer compras, e ele pensou em abordá-la quando voltava. Mas o que iria dizer-lhe? Que vira sua senhora na noite anterior e queria saber se ela era amante de dom Fernão? Até porque, isso parecia óbvio. Giselle só saiu de casa depois do meio-dia, e Ramon foi atrás dela. Viu quando ela entrou na taverna e entrou atrás. O lugar não lhe causou muito boa impressão. Não era o tipo de lugar que Ramon costumasse freqüentar. Apesar de tudo, era um nobre. Podia estar falido, mas tinha berço e não estava acostumado a tavernas feito aquela. Ainda assim, procurou uma mesa e sentou, acompanhando Giselle com o olhar. Ela sumiu por uma porta atrás do balcão, e ele pediu vinho e um assado. Ainda não havia se alimentado e estava com fome. Pouco depois, Giselle reapareceu. Vinha passando por entre as mesas, falando com um ou outro freqüentador, até que deu de cara com Ramon, que a fitava pelo canto do olho. A figura de Ramon não passou despercebida a Giselle, e ela deteve o olhar nele por uns instantes. De onde surgira aquele rapaz tão bonito e distinto? Bem se via que não era dali. Talvez fosse algum viajante. Já estava se encaminhando para sua mesa quando sentiu que alguém a segurava pelo braço.
- Ei, Giselle! - era um dos homens. - Dance um pouco para nós.
- Agora não - respondeu ela, sem tirar os olhos de Ramon.
- Ora, vamos, Giselle - pediu outro. - Estamos esperando.
- É isso mesmo, Giselle - concordou um terceiro. - Por que acha que viemos aqui?
O homem a puxou, enquanto outros limparam a mesa do centro do salão e a ergueram, colocando-a gentilmente sobre a mesa. Giselle não contestou. Seria até bom exibir-se para o desconhecido. Ergueu as mãos acima da cabeça, preparando-se para começar, e lançou-lhe um olhar penetrante. Ramon sentiu um arrepio e se empertigou todo na cadeira, agora vidrado na figura esguia de Giselle. Começou a movimentar os dedos com agilidade e destreza, estalando-os com graciosidade e ritmo. Com movimentos cadenciados e sensuais, pôs-se a executar sua dança. Dançava especialmente para ele, fazendo propositalmente a saia levantar, deixando à mostra seus tornozelos e joelhos. De vez em quando, olhava em sua direção, para se certificar de que ele acompanhava os seus passos. Quando terminou, explodiram palmas ao seu redor, e os homens começaram a bater nas mesas, elogiando com entusiasmo:
- Muito bem, Giselle!
- Foi perfeita, Giselle!
- Caprichou dessa vez, hein?
Sim, Giselle havia caprichado. Mais do que o habitual. Desceu da mesa e, sob os aplausos dos fregueses, caminhou em direção à mesa de Ramon. Parou em frente a ele e, depois que os homens silenciaram e voltaram suas atenções para a bebida, curvou o corpo e indagou com voz sonora:
- Você é novo por aqui? - ele assentiu. - Está de passagem?
Ramon não respondeu. Seu olhar não se desviava de Giselle, e ele chegou a sentir uma pontinha de inveja de dom Fernão. Notou os seus seios subindo e descendo sob o vestido, o peito ainda arfante dos movimentos que executara. Em sua testa, algumas gotículas de suor emprestavam à sua pele um brilho especial, e os olhos verdes e profundos pareciam penetrar até o fundo de sua alma.
- O que há com você? - tornou ela. - Por acaso é mudo?
Ramon sacudiu a cabeça e sorriu, levantando-se e puxando a cadeira a seu lado, ao mesmo tempo em que dizia:
- Perdoe-me a indelicadeza, senhorita. A fascinação diante de tão linda dama tirou-me os gestos e a educação e, por instantes, só o que pude foi admirar a sua beleza.
Pela primeira vez em sua vida, Giselle corou. Ninguém nunca havia lhe dito palavras tão doces. Aquilo a encantou, e ela se sentou na cadeira que ele lhe oferecia.
- Muito bem, senhor...
- Ramon de Toledo, sem o senhor.
Giselle riu encantada com o seu charme natural, e retrucou:
- Muito bem, Ramon, pode-se saber de onde é que veio?
- De onde vim? Na verdade, daqui mesmo.
- E de Sevilha?
- Sou.
- E o que faz por estas bandas? Na certa, não mora por aqui.
- Não. Estou apenas de passagem.
- Entendo...
- E você é Giselle...
Ela deu um sorriso encantador e completou:
- Giselle Mackinley - ante o seu ar de espanto, ela esclareceu:
- Meu pai era escocês.
Ramon e Giselle ficaram toda à tarde na taverna, conversando. A curiosidade do rapaz logo cedeu lugar ao encantamento, e ele percebeu que relutava em deixá-la. Pensou em Lucena e sentiu uma pontada de remorso. Sua noiva, tão pura, esperando-o em casa para salvar-lhe a honra maculada. E ele ali, preso ao magnetismo daquela mulher vivida e experiente. Já não estava mais curioso para saber sobre a relação de Giselle com dom Fernão. Pensava mesmo em tê-la em seus braços. Ao menos uma vez. Depois, satisfeito o desejo primitivo, voltaria para Lucena. O Tribunal do Santo Ofício realizava outro auto-de-fé, encerrando mais um dos muitos processos de heresia. O acusado não ousava levantar os olhos para seus inquisidores. Já quase não tinha mais consciência de si mesmo, tamanho o estado de flagelo em que foram colocados seu corpo e sua mente. A morte, naquele momento, seria para ele uma bênção. O processo havia transcorrido rapidamente. Alinhados à pesada mesa que formava a tribuna, os padres escutaram as acusações contra o réu. Era um homem ignorante, iletrado e nem sabia por que estava ali. Na verdade, o motivo era que olhara de forma comprometedora para uma freira. A religiosa, sentindo-se ofendida com os seus olhares lúbricos, tratara de denunciá-lo às Mesas Inquisitoriais, e logo o processo fora aberto por padre Miguez, que cuidara pessoalmente do interrogatório do acusado.
- Senhor Julião Ortiz - começara então padre Miguez -, não é verdade que o senhor, possuído pelo demônio, ousou conspurcar a imagem imaculada de irmã Maria? - o homem não respondera. - Pois foi isso mesmo o que aconteceu. Como podem ver, tenho aqui um documento assinado pelo acusado, reconhecendo-se presa de espíritos infernais, que dele se utilizaram para tentar violar a castidade de irmã Maria, uma freira cuja vida sempre foi dedicada a Nosso Senhor Jesus Cristo.
Exibira o papel aos outros padres, que o leram atentamente, passando-o de mão em mão. Efetivamente, o acusado havia confessado o seu crime, e a heresia estava mais do que provada. As marcas em seu corpo davam provas da eficácia do interrogatório a que fora submetido, e a sentença fora prolatada sem qualquer tipo de controvérsia. O homem havia sido condenado a morrer queimado na fogueira, e, agora, o público que assistia ao auto-de-fé era levado ao delírio. Imediatamente, o homem foi levado para o lugar da execução. Começou a chorar, sentindo a iminência da morte, embora ainda sem entender o que havia feito para merecer tão duro castigo. Foi amarrado ao poste, e os carrascos, com as tochas na mão, atearam fogo à palha cuidadosamente disposta a seus pés. Na mesma hora, as chamas o consumiram, e ouviram-se seus gritos agudos e desesperados.
O inquisidor-geral estava muito satisfeito, e Padre Miguez foi parabenizado pelo excelente trabalho que realizara. Obtivera a confissão do homem após longas sessões de tortura. Terminada a execução, os padres começaram a se retirar, e o auto-de-fé foi dissolvido. Os espectadores retornaram a seus lares, felizes com o espetáculo macabro que haviam acabado de presenciar. Esteban desceu da tribuna e foi juntar-se a Miguez, que recebia os cumprimentos dos demais padres. Um pouco mais atrás, Juan o seguia, atento a todos os seus gestos.
- Está de parabéns, como sempre, Miguez - elogiou Esteban. - Em breve será sagrado bispo.
- Acha mesmo?
- Ouvi algo a respeito. O arcebispo tem andado muito impressionado com a sua atuação.
Miguez sorriu intimamente orgulhoso de si mesmo. Apanhou o braço de Esteban e foi caminhando com ele em direção à abadia, seguidos por Juan, que vinha em silêncio mais atrás.
- E você, meu caro Esteban? Como vai indo o caso de dom Fernão?
- Por enquanto, não temos nenhuma novidade. Giselle ainda não conseguiu apurar nada.
- Acha mesmo necessário utilizar Giselle? Poderíamos mandar prendê-lo e fazer uma acusação formal.
- Como? Ninguém o denunciou, não há testemunhas. Com que elementos poderão instaurar a denúncia?
- Você é muito meticuloso. Eu, no seu lugar, não me preocuparia tanto com isso.
- Você sabe que não gosto de cometer injustiças.
- Mas afinal, quem lhe contou que dom Fernão anda metido com uma moura?
- Ninguém me contou. Fui eu que, ao acaso, o vi saindo furtivamente da casa de uma moça, que eu não conhecia. Indagando aqui e ali, descobri que ela se chamava Blanca Vadez e que os pais morreram há cerca de dois anos. Aquele nome ficou ressoando na minha cabeça, e fiquei tentando lembrar onde já o havia escutado. Foi quando me lembrei que dom Fernão tinha negócios com um comerciante em Granada, que lhe vendia peças de seda trazida do oriente.
- E daí?
- E daí que ele era muçulmano. Ele e a mulher morreram quando a Espanha reconquistou o Reino de Granada, há pouco mais de dois anos.
- E o que isso tem a ver com Blanca?
- Desconfio que esse homem fosse seu pai. Chamava-se Hamed Kamal e era casado com uma espanhola, de nome Engrácia Vadez. Os dois eram muito ricos, e o avô de Engrácia foi um grande comprador de indulgências. Mas Kamal era muçulmano e não pôde salvar-se, nem a esposa, quando o exército espanhol retomou Granada.
- Como foi que conseguiu descobrir tudo isso?
- Tenho amigos em Granada. Contaram-me que Hamed e Engrácia possuíam uma filha, embora desconhecessem o seu paradeiro. E, por coincidência, pouco depois da morte de ambos, Blanca apareceu por aqui...
- Tem certeza de que ela veio de Granada?
- Não. A não ser pelo nome, nada sei a seu respeito. Ela é muito reservada, quase não sai de casa. E, à exceção de dom Fernão, ninguém vai visitá-la. Não é estranho?
- Deveras...
- A moça, provavelmente com medo de ser descoberta, adotou o nome da mãe e passou a chamar-se Blanca Vades, em lugar de Blanca Kamal. Creio que isso tudo foi idéia de dom Fernão. A essa altura, já apaixonado por ela, deu um jeito de tirá-la de Granada e trazê-la incógnita para cá.
- Você tem certeza disso? Pode ser mera coincidência.
- É por isso que preciso reunir elementos.
- E acha que pode conseguir esses elementos através de Giselle?
- Ora, vamos, Miguez, sei que não gosta de Giselle, mas tem que concordar que ela é eficiente.
- Ela é uma meretriz, isso sim.
- E daí? Desde quando você se importa com isso? Você não é o primeiro a se deitar com qualquer moça?
- Com qualquer moça, não. Só gosto das jovens virgens. Não ousaria macular o meu corpo santo no leito de uma meretriz.
- Está bem, não falemos mais nisso. E depois, não sou o único.
- Sei que não é. Mas é que não gosto de Giselle. Não confio nela.
- Você não tem motivo nenhum para não gostar dela. Ou será que a cobiçou também?
- Eu?! Já lhe disse meu amigo, que não me interesso por meretrizes.
- No entanto, Giselle veio a mim quando era jovem...
- Giselle veio a qualquer um. Por acaso, foi você quem a atendeu. Mas poderia ter sido eu, ou Valentim, ou Pedro, ou Donário. Qualquer um.
- Está certo, Miguez, perdoe-me. Não quis ofendê-lo. Sei que você é meu amigo e não sentiria ciúmes de Giselle. Mas é que essa sua antipatia por ela me deixa inquieto.
- Não. Sou eu que devo lhe pedir perdão. Não tenho nada com a sua vida e não tenho o direito de me intrometer em seus assuntos pessoais.
- Você é meu amigo, e eu sempre respeitei muito a sua opinião. Mas está enganado sobre Giselle. Ela me ama, fui eu quem cuidou dela praticamente a vida inteira. Desde que ela chegou aqui, com pouco mais de dezesseis anos, tenho sido a única pessoa a cuidar dela. Sou seu amante e um pouco seu pai também.
- Giselle não precisa mais de pai. Já está com trinta e dois unos.
- Mas é uma mulher solitária. Conhece muitas pessoas, mas amigo mesmo, não tem nenhum.
Alcançaram os aposentos pessoais de Esteban, e Juan abriu-lhes a porta. Os dois padres entraram e foram para o gabinete, onde se sentaram, um defronte do outro. Juan correu a servir-lhes vinho e foi sentar-se numa poltrona perto da porta, permanecendo o mais quieto possível.
- Miguez - começou Esteban -, está enganado sobre Giselle. Ela é uma mulher muito eficiente.
- Não digo o contrário. Mas tanta eficiência dá para desconfiar.
- Por que diz isso? Com que direito a acusa?
- Com o mesmo direito que você acusa Blanca Vadez. Veja bem. Não quero defender ou acusar Blanca. Se ela é culpada, tem que pagar. Assim como Giselle. Não é porque é sua amante que vamos fechar os olhos ao que ela faz.
- Mas o que ela faz, além de me servir? Giselle me é fiel. Você é que anda cismado com ela.
Miguez preferiu não dizer nada. Nem ele saberia explicar por que não simpatizava com Giselle. Não se sentia atraído por ela, nunca se sentira. Desde que ela aparecera nas Mesas Inquisitoriais pela primeira vez, não gostara dela. Não era ciúme ou despeito. Giselle poderia aparecer nua para ele, que ele não se interessaria. Ela era ordinária, vulgar, sem classe. Muito diferente das moças a que estava acostumado. Miguez procurou mudar o rumo da conversa, e Esteban deu graças a Deus por não precisar mais falar de Giselle. Apenas Juan não parava de pensar no que ouvira. Será que padre Miguez tinha razão, e Giselle andava metida com heresias? Se assim fosse, seria muito perigoso. Monsenhor Navarro gostava dela e parecia querer protegê-la. Mas o que faria se ela fosse presa e acusada? No dia seguinte, logo após servir o desjejum de Esteban, Juan selou um cavalo è foi sozinho ter com Giselle. Precisava alertá-la. Bateu à sua porta e esperou. Belita, uma das escravas, veio abrir e se surpreendeu imensamente com a presença de Juan. Era a primeira vez que o via desacompanhado de monsenhor Navarro.
- O que deseja? - indagou desconfiada.
- Sua senhora está? Tenho urgência em falar-lhe.
Belita chegou para o lado, dando-lhe passagem. Mandou que ele se sentasse e foi ao quarto de Giselle, que ainda não havia despertado. Bateu à porta gentilmente, e ela abriu os olhos, piscando-os diversas vezes para espantar o sono e entender o que estava acontecendo.
- Senhora Giselle! Senhora Giselle! - chamava Belita do lado de fora.
- Hum... - espreguiçou-se Giselle. - Pode entrar.
Belita abriu a porta vagarosamente e entrou. Giselle, nua sob os lençóis, a fitava sonolenta, com Ramon a seu lado, dormindo a sono solto.
- Senhora Giselle - falou Belita em tom de desculpa -, Juan está aí e pede para falar-lhe. Disse que é urgente.
Mais que depressa, Giselle se levantou. Se Esteban mandara Juan até ali, era porque o assunto deveria ser muito grave. Vestiu-se às pressas, lavou-se correndo na bacia e, enquanto penteava os cabelos, disse para Belita:
- Não deixe que o senhor Ramon desça. Juan não pode vê-lo aqui.
A escrava assentiu, sentou-se em uma poltrona, em frente a ele, e Giselle saiu. Juan estava sentado na sala, olhos fechados, parecendo adormecido. Ela chegou vagarosamente e o tocou de leve nos ombros.
- Juan...
Ele abriu os olhos lentamente, fixando-os nos dela por alguns instantes. Sentiu o coração disparar e teve um estremecimento, ainda sentindo as mãos de Giselle sobre os seus ombros.
- Senhorita Giselle - falou meio sem jeito -, perdoe-me a intromissão há essas horas. Sei que a senhorita trabalha até tarde, mas precisava falar-lhe.
- Algum recado de Esteban?
Ele pareceu engasgar e respondeu hesitante:
- Não... Monsenhor Navarro nem sabe que estou aqui. Giselle ergueu as sobrancelhas e sentou-se a seu lado.
- Não? Por que foi então que você veio?
Pouco à vontade, Juan remexeu-se na poltrona, pigarreou e, olhos pregados no chão, começou a dizer:
- Não quero que pense que sou atrevido, mas é que ontem ouvi uma conversa...
Calou-se, temendo a sua reação. Tinha medo de que ela se zangasse e o expulsasse dali sem nem lhe dar chance de contar o que havia acontecido.
- Que conversa? - tornou Giselle, já demonstrando impaciência.
- Uma conversa entre monsenhor Navarro e padre Miguez.
- Padre Miguez não gosta de mim. Não é segredo nenhum.
- Por isso mesmo. Padre Miguez pode causar-lhe algum tipo de... Embaraço.
- Como assim? Seja mais claro, Juan, não estou entendendo aonde quer chegar.
Embora envergonhado, Juan narrou-lhe toda a conversa que ouvira entre os dois padres, culminando com as desconfianças de padre Miguez. Giselle ouviu tudo atentamente. Se ele descobrisse as suas magias, não hesitaria em denunciá-la.
- Padre Miguez é perigoso - completou Juan. - Pode prejudicá-la seriamente, e tenho medo de que monsenhor Navarro não faça nada para impedir.
- Por que está me contando isso? - o rosto de Juan se avermelhou, e ele sentiu as faces em fogo. - Por acaso você não é fiel a Esteban?
- Sim, senhorita - respondeu ele com voz sumida. - Mas é que lhe sou fiel também.
Giselle riu intimamente. O tolo do rapaz estava apaixonado por ela. Não podia descartar-se dele. Viviam em um mundo perigoso, os tempos eram difíceis e ninguém era digno de confiança. Ainda mais com aquele Miguez sempre a acusá-la. Por isso, precisava de Juan. O rapaz seria seu informante e a manteria a par de tudo o que acontecesse na abadia e no Tribunal.
- Juan - sussurrou ela com voz doce e melosa -, você foi muito corajoso, vindo aqui para contar-me isso. Nem sei como poderei retribuir esse favor.
Apanhou a sua mão e colocou-a sobre o seio, e o rapaz, rosto ardendo de desejo e vergonha, puxou-a apressadamente, com medo até dos pensamentos que o assaltavam naquele momento.
- Senhorita, eu... - balbuciou.
Giselle colocou os dedos sobre seus lábios, chegou mais para perto dele e ciciou em seu ouvido:
- Você pode me chamar de Giselle. De hoje em diante, seremos amigos.
Deu-lhe um beijo na ponta da orelha, e ele se arrepiou todo, levantando-se apressado e aproximando-se da parede.
- Giselle... Eu... Não sei o que dizer... Estou confuso... Perdoe-me...
Ela se levantou e acercou-se dele, segurando novamente sua mão e levando-a aos lábios. Juan sentiu que o corpo todo tremia e foi acometido de um desejo louco de arrebatá-la em seus braços e beijá-la, mas conseguiu se conter.
- Não precisa ficar confuso - tornou ela com voz sensual. - Não vou lhe fazer nenhum mal.
- Não... Sei que não... Como poderia? Uma moça tão linda...
- Gosta de mim, não é, Juan? - ele assentiu. - Também gosto de você.
- Você gosta?
- É claro. Você é um rapaz bonito, inteligente, corajoso. E demonstrou ser meu amigo. Por isso, quero ser sua amiga também.
- Jura?
- Será que preciso jurar? Você não vê? - ele assentiu novamente. - Ótimo. E como amigos, você tem que me prometer que vai me manter informada de tudo o que acontecer naquela abadia. Absolutamente tudo o que me disser respeito. Você promete?
- É claro. Não gosto que padre Miguez fale aquelas coisas de você. Não são verdades, são?
Ela sorriu sedutoramente, tornou a beijar suas mãos e retorquiu:
- E se fossem? Também me acusaria por isso?
Juan abriu a boca, estupefato, e asseverou:
- Nunca! Sei que você não está envolvida com nada de bruxaria, mas, se estivesse, eu não a acusaria.
- Ficaria do meu lado?
- Sempre.
Com um sorriso vitorioso, Giselle pousou de leve os seus lábios sobre os de Juan, e o rapaz recebeu o beijo entre atônito e extasiado, sem conseguir articular nenhum som ou esboçar qualquer reação. Depois disso, despediu-se. Não podia se demorar muito, ou Esteban acabaria desconfiando de algo. Giselle abriu-lhe a porta e apertou a sua mão.
- Adeus, Juan, e obrigada. Venha quando quiser.
Juan sorriu meio sem jeito, virou-lhe as costas e foi apanhar seu cavalo, certo de que havia percebido em seu olhar uma sombra de reconhecimento e paixão.
- O que foi que houve? - quis saber Ramon, assim que ela voltou para o quarto.
Desde aquele dia em que ele a seguira até a taverna, havia se tornados amantes, e o que deveria ter sido apenas uma aventura passageira logo passaram à paixão, daí à afinidade e, pouco depois, ao amor verdadeiro. Aos pouquinhos, o sentimento de Ramon para com Giselle foi se intensificando, e Lucena passou a ser uma sombra em seu coração. Agora reconhecia que nunca a havia amado. Impressionara-se com a sua beleza, a sua juventude, a sua elegância. Deixara-se levar pelo desejo, mas não a amava. Ramon e Giselle tinham muitas afinidades. Companheiros de outras vidas, suas almas logo se reconheceram e se aproximaram. Agora encarnados em sexos diferentes, podiam dar vazão a um sentimento antigo, que tanto os atormentara em existências passadas. Ramon e Giselle há muito se conheciam e se amavam, mas jamais haviam conseguido manter uma relação considerada normal para os padrões da época. Ou eram ambos homens, ou ambos mulheres, e um encontro sexual entre os dois jamais foi permitido. Por essa razão, muitas vezes amaram-se platônica ou secretamente, remoendo no íntimo a autocensura e o remorso. Em vista disso, agora, reconhecendo-se livres das amarras do medo e do preconceito, aproximaram-se naturalmente, ansiosos por poderem viver tudo aquilo que lhes fora anteriormente vedado. Consideravam-se isentos de quaisquer compromissos, pois suas mentes estreitas, naquele momento, somente conseguiam enxergar a anterior barreira do sexo, esquecendo-se da série de equívocos e desenganos com os quais se haviam comprometido em suas sucessivas encarnações. Giselle despediu a escrava e sentou-se ao lado dele na cama. Precisava contar-lhe tudo sobre sua vida, inclusive sobre Esteban e até sobre dom Fernão. Inspirou profundamente e começou a dizer:
- Sabe Ramon, não sou exatamente como você pensa que sou.
- Como assim? Você não me ama?
- Amo. E talvez seja essa a única coisa verdadeira em mim.
- Não estou entendendo Giselle. Aonde quer chegar?
Ela tornou a suspirar e continuou:
- Você sabe que sou uma mulher livre, não sabe? - ele fez que sim. - Pois é. Há muitos anos, quando cheguei a Sevilha, conheci monsenhor Navarro, cardeal do Santo Ofício...
- Sei quem é monsenhor Navarro.
- Pois é. Monsenhor Navarro e eu somos... Bem... Amantes...
Ele a fitou deveras espantado. Julgava-a amante de dom Fernão, e não de monsenhor Navarro.
- Amantes? - tornou perplexo. - Mas eu pensei...
- O que você pensou?
- Pensei que você fosse... Que você fosse... Amante de dom Fernão.
Giselle recuou, cheia de horror e indignação.
- Como é que sabe de dom Fernão?
Lembrando-se da noite em que o seguira, Ramon contou tudo a Giselle, sem omitir nenhum detalhe. Ela o escutou em silêncio, espantada demais para falar.
- Por que não me disse antes? - indagou amuada.
- Tive medo de que você me repelisse. Afinal, sou noivo da filha de dom Fernão.
- Noivo...
Era a primeira vez que Giselle sentia ciúmes de alguém. Não que não sentisse ciúmes de Esteban. Mas ele era um cardeal e nunca tivera outras amantes além dela. O que Ramon lhe dizia era diferente. Outra mulher o tocara, outra mulher o beijara. Sentiu a fragilidade que a acometia. Se Ramon a deixasse, seria bem capaz de se matar. Já o amava com todas as suas forças e sabia que não poderia viver sem ele.
- Ramon - choramingou -, você não pode se casar. Amo você. Não posso mais viver sem você.
- Eu sei Giselle. Também não penso mais em me casar.
- Verdade?
- Sim. Pensei um dia que amasse Lucena. Mas hoje sei que jamais poderei ser feliz ao lado de outra mulher.
- Mesmo que sua noiva seja uma moça jovem, fresca e pura?
- Amor nada vem a ver com juventude, frescor e pureza. Amamos aqueles por quem bate o nosso coração. E hoje posso lhe assegurar que o meu bate apenas por você.
Ela o fitou emocionada, cada vez mais envolvida pelo seu romantismo e pelas palavras doces que dizia. Com os olhos úmidos, indagou apaixonada:
- Está dizendo a verdade? Não diz isso só para me agradar?
- Por que faria isso? Será que não percebe o quanto já a amo? Também eu não poderia viver sem você.
- Tem certeza?
- Tenho. Você vai ver. Hoje mesmo, vou terminar tudo com Lucena e vou me casar com você.
- Não posso me casar.
- Por quê? Já é casada? - recordando de dom Fernão, mudou o tom de voz e observou com ironia: - Ou será que não quer perder a boa vida que seus amantes lhe dão? Sim, porque, pelo visto, você é amante de muita gente...
Giselle a fitou magoada e retrucou com voz sentida:
- Você está sendo injusto. Por que não me deixa falar sobre a minha vida?
Giselle contou tudo. Falou de seu pai, de sua mãe, de seu padrasto. Contou-lhe de quando chegara a Sevilha e de como granjeara a confiança e a proteção de monsenhor Navarro. Contou-lhe dos serviços que lhe prestava e de como dom Fernão passara a ser alvo das desconfianças de Esteban. Contou-lhe que só se tornara sua amante para poder denunciá-lo. Contou-lhe até de suas bruxarias. Ao final, havia lágrimas em seus olhos e, com voz cansada, argumentou:
- Percebe por que não posso me casar? Estou presa a Esteban e creio que ele jamais permitiria.
Ramon balançou a cabeça, pensativo. Não podia esconder a decepção. Esperava que se casassem e fossem felizes juntos. Nem ligava mais para o dinheiro e sua posição social. Estava disposto a abrir mão de tudo só para poder ficar com ela. Passaria por cima de qualquer coisa, até da repulsa que lhe causava aquele ofício.
- Sei que não tenho o direito de lhe pedir isso - prosseguiu Giselle. - Mas gostaria que entendesse e aceitasse.
- Eu entendo. Quanto a aceitar, não tenho alternativa.
Ela o beijou apaixonadamente e, após alguns minutos, tornou a perguntar:
- Você não sabe nada sobre a noiva de dom Fernão? Afinal, é noivo de sua filha.
- Não. Ele nos apresentou a moça outro dia, mas nada disse sobre sua vida. E depois, se você não se importa, preferia não me envolver nesse assunto. Causa-me calafrios.
Ela silenciou. Em seguida, levantou-se da cama e fez sinal para que ele a seguisse:
- Venha comigo.
De mãos dadas, desceram as escadas e foram até o porão. Giselle empurrou a porta e Ramon passou, impressionado com a quantidade de coisas que havia ali.
- É aqui que faz suas magias? - indagou curioso.
- Sim - ela seguiu direto até outra porta, na parede oposta, e a abriu, desvendando uma escada estreita e escura, ao final da qual havia outra pesada porta. - Por aqui.
Saíram para a floresta. Ainda de mãos dadas, foram seguindo por uma trilha, até que alcançaram a rua, um pouco mais abaixo.
- Onde estamos? - tornou ele, olhando ao redor.
- Na rua onde moro. Como pôde perceber, não há muitas casas por aqui. A vizinhança é escassa e ninguém vem muito por essas bandas. Basta você entrar na floresta e pegar a trilha que lhe mostrei, e ela o conduzirá direto a minha casa. Entendeu?
- Entendi.
- Então vamos voltar.
Fizeram o caminho de volta e tornaram a entrar pela pesada porta. Desceram a escada e alcançaram o porão.
- A partir de agora, você deve sempre entrar e sair por essa porta. Não quero correr o risco de você se encontrar com Esteban ou dom Fernão.
Naquele mesmo dia, Ramon rompeu seu noivado com Lucena. Chegou a sua casa logo depois do almoço, quando sabia que dom Fernão não estaria, levou-a para o jardim e terminou tudo, sem dar maiores explicações. Lucena ficou indignada a princípio. Mas, depois, sentiu-se dominada por uma raiva imensurável.
- Você tem outra mulher? - perguntou furiosa. - É isso, Ramon? Existe outra mulher em sua vida?
- Lucena, por favor, não se trata disso.
- Trata-se de quê, então? Você me usou, abusou de mim e agora me joga no lixo? E isso o que sou para você? Lixo?
- Não dificulte as coisas. Nosso casamento jamais daria certo.
- Por quê? Porque você já conseguiu o que queria? Já se deitou comigo, e agora não sirvo mais? E isso?
- Sinto muito se a deflorei...
- Sente muito? Você me desonrou. Como espera que eu me case daqui para frente? Que homem acha que irá me querer?
- Sei que isso é difícil, mas eu também não planejei nada. Simplesmente aconteceu.
- Aconteceu o quê? Você me desonrou e depois perdeu o interesse por mim? Por quê? Quem foi à meretriz que o atraiu?
- Não há meretriz alguma. Não há outra mulher.
- Não acredito! Seu verme! Bastardo! Cretino!
Estava descontrolada. Partiu para cima dele com fúria e pôs-se a arranhá-lo. Ramon defendeu-se o melhor que pôde. Podia ser um canalha, mas não era covarde e não pretendia bater em uma mulher. Segurou - à pelos punhos com força e, olhando fundo em seus olhos, disparou:
- Perdoe-me pelo que lhe fiz Lucena. Pensei que a amasse, mas estava enganado. Não posso me casar, você não é a mulher da minha vida.
Soltou os seus pulsos e rodou nos calcanhares. Lucena sentiu vontade de matá-lo. Tivesse uma arma ao seu alcance, teria atirado nele. Não conseguia chorar. A raiva era tanta que lhe toldava a visão. Em silêncio, ficou vendo-o afastar-se, remoendo seu ódio, pensando num jeito de fazer com que ele lhe pagasse a vergonha e a humilhação que a fizera passar. Quando Fernão chegou a casa naquela noite, encontrou Lucena envolta numa aura negra de raiva e despeito.
- O que houve minha filha? - perguntou alarmado.
- Ramon rompeu o noivado.
- Como assim? Já não havíamos marcado a data do casamento?
- Parece que isso o intimidou. Ele veio aqui e terminou tudo.
- Mas por quê?
- É o que gostaria de saber. Desconfio de outra mulher.
- Outra mulher?
- Sim. Alguém deve estar lhe dando certas facilidades que comigo não obtém.
- Isso não é motivo para romper com você. Meretrizes há muitas por aí, mas ninguém desfaz um noivado por causa disso. Deve ter havido alguma coisa.
- Não houve nada, já disse.
- Mas nenhum cavalheiro pode voltar assim com a palavra empenhada. Ramon se comprometeu.
- Ramon é um canalha. Só eu que não consegui ver isso.
- Ah! Mas isso não vai ficar assim. Vou apurar essa história direitinha. Seja o que for que tenha acontecido, Ramon vai me pagar. Ninguém descarta a filha de Fernão Lopes de Queiroz e sai impune para contar vitória. Vou descobrir o que aconteceu, minha filha, não se preocupe. E Ramon vai ter que pagar por toda a humilhação que a está fazendo passar.
Lucena estava com tanta raiva que nem conseguia chorar. Tinha como certo que a causa daquele rompimento fora outra mulher. Mas aquilo não ficaria assim. Seu pai era um homem extremamente influente e daria um jeito de se vingar. Só que Lucena nem de longe imaginava que o pai estava sendo investigado justamente pela mulher que lhe arrebatara o homem amado... Ao final da missa de domingo, Juan estava calado e pensativo, o que chamou a atenção de Esteban. Fazia já alguns dias que o rapaz andava estranho, cabisbaixo, sempre com olhar perdido. Até mesmo os outros padres já haviam notado, e muitos chegaram a indagar a razão daquele ar taciturno.
- Não é nada - respondeu Juan, tentando mudar de postura. - Ando um pouco cansado.
- Não está doente, está? - tornou Esteban com visível preocupação, o que encheu Juan de remorso.
- Não, senhor. É apenas cansaço mesmo.
- Olhe lá, hein, rapaz? Não me vá ficar doente. Se estiver sentindo alguma coisa, fale.
- Não se preocupe monsenhor, não é nada. Passa logo.
A afeição de Esteban por Juan era legítima. Afinal, recolhera o rapaz ainda em tenra idade e, desde então, passara a ser a única família que possuía. Juan também gostava dele. Navarro sempre o tratara bem e cuidara para que nada lhe faltasse. Tinha-o em conta de verdadeiro filho. No começo, Juan não simpatizara muito com Giselle. Ela era uma moça arrogante e não gostava de crianças. Não que o tratasse mal. Mas nunca lhe fizera um afago ou lhe dirigira uma palavra de carinho. À medida que ele foi crescendo, Giselle começou a dispensar-lhe um pouco mais de atenção, o que foi despertando no menino uma paixão muda e cada vez mais intensa. Ela era linda, e ele não podia deixar de pensar nela. Ainda mais agora, que ela lhe acenava com a possibilidade de um romance. Na cabeça de Juan, Giselle estava interessada nele, e ele nem de longe imaginava que o único interesse que ela possuía era nas informações que ele poderia lhe dar. Àquela hora da manhã, Giselle, provavelmente, ainda estaria dormindo. Pensou em fazer-lhe uma surpresa.
- Aonde vai? - indagou Esteban, desconfiado.
- Se não se importa, gostaria de dar uma volta.
O cardeal fitou-o com curiosidade, mas não o questionou. Limitou-se a assentir com a cabeça e concluiu:
- Não, meu filho. Vá.
Juan se despediu com um aceno e saiu. Quando chegou à casa de Giselle, ela ainda estava dormindo, mas ele não quis ir embora sem falar com ela.
- Vou esperar - disse a Belita.
A escrava fitou o noviço com certa contrariedade. Sabia que sua ama estava no quarto com o senhor Ramon e não ficaria nada satisfeita em vê-lo ali outra vez. Pediu licença e foi direto ao quarto de Giselle. Bateu de leve algumas vezes, mas ninguém respondeu. Vagarosamente, abriu a porta e entrou. Giselle e Ramon dormiam abraçados, e Belita tocou-a de leve no ombro. Aos poucos retornando do sono, Giselle esfregou os olhos e piscou várias vezes, encarando Belita como se ela fosse uma assombração. Quando finalmente a reconheceu, ergueu-se na cama e indagou num sussurro:
- Belita! O que há?
- Perdoe-me, senhora, mas está aí novamente aquele moço, o senhor Juan.
- O que ele quer?
- Pede para falar-lhe. Eu disse que a senhora estava dormindo, mas ele não quis ir embora.
- É algum recado de monsenhor Navarro?
- Não sei senhora. Ele não quis dizer.
- Diga-lhe que já vou.
Depois que Belita saiu, Giselle virou-se para Ramon. Ele dormia despreocupadamente, e ela sentiu o coração disparar. Como ele era bonito! Pela primeira vez olhava para um homem que achava bonito sem pensar em sexo. Pensava em amor. Giselle amava Ramon verdadeiramente. Por mais que dormisse com outros homens, nenhum seria igual a Ramon. Nem Esteban, que fora sua primeira paixão e seu primeiro amor. Como que sentindo o coração de Giselle, Ramon despertou. Espreguiçou-se gostosamente e sorriu para ela.
- Essa é a melhor visão que um homem pode ter na primeira hora do dia - disse galante.
Giselle puxou o seu rosto e beijou-o de leve nos lábios.
- Preciso descer - retrucou. - Juan está aí novamente.
- Quem é Juan?
- O pupilo de Esteban.
- O que ele quer?
- É o que vou descobrir - levantou-se, lavou o rosto na bacia e vestiu-se. - Por favor, Ramon, não saia daqui.
Atirou-lhe um beijo da porta e desceu as escadas, indo encontrar Juan sentado na sala, dedilhando uma pequena citara que encontrara a um canto. Giselle aproximou-se em silêncio e postou-se defronte a ele. Na mesma hora, Juan largou o instrumento, levantou-se e pigarreou, desculpando-se meio sem jeito:
- Senhorita Giselle... Perdoe-me. É que vi a citara ali no canto e...
- Não precisa se desculpar, Juan. Gosta de tocar? - ele assentiu. - Quem o ensinou?
- Padre Donário me dá aulas ao órgão. O resto é fácil.
- Sei...
- E você, Giselle? Também toca?
- Não. A citara era de um antigo trovador, que Esteban já executou faz tempo. Ele a esqueceu em minha taverna. Gostaria de ficar com ela?
- Sério? - ela balançou a cabeça, e ele exclamou radiante: - Muito obrigado. Adorei o presente.
Juan não estava propriamente interessado na citara. Havia algumas na abadia que ele poderia usar se quisesse. Embora preferisse o órgão, aquele era um presente de Giselle, e ele tencionava guardá-lo pelo resto de sua vida.
- Muito bem - continuou Giselle, sentando-se a seu lado.
- O que o traz aqui no domingo, logo pela manhã? Algum recado de Esteban?
Juan enrubesceu. Não sabia o que dizer. Fora até ali atendendo a um impulso de seu coração, mas agora se sentia um verdadeiro idiota. Rosto ardendo em fogo, ele abaixou os olhos e balbuciou:
- Eu... Vim aqui por que... Porque precisava lhe dizer uma coisa - fez uma pausa, inspirou profundamente e prosseguiu: - E que há muito... Há muito tempo não consigo... Parar de pensar em você... Você... Você é... Quero dizer, eu...
Não conseguiu concluir. Percebendo o que ele queria dizer, Giselle ficou alguns instantes pensativa. Não tinha interesse no rapaz, mas não podia repeli-lo. Precisava dele para mantê-la informada. Fazendo ar de compreensiva, ela se aproximou e segurou a sua mão, acrescentando num sussurro:
- O que foi Juan? O que está tentando me dizer?
Cada vez mais vermelho, Juan sentiu vontade de fugir correndo dali. Estava confuso, embaraçado com os gestos despojados de Giselle. A presença dela lhe causava arrepios, e ele só conseguia pensar no seu corpo de encontro ao dele. Horrorizado ante aqueles pensamentos pecaminosos, tentou se levantar, mas Giselle segurou-o pela mão e fê-lo sentar-se novamente, encarando-o com seus olhos verdes penetrantes. Juan não se conteve. Num ímpeto desesperado, atirou-se nos braços de Giselle e buscou a sua boca, beijando-a com sofreguidão.
- Giselle, eu... - sussurrava baixinho, ao mesmo tempo em que lhe beijava a boca e o pescoço - sinto que a amo...
Soltou-a apavorado e saiu correndo. Era tanto o seu desejo que tinha medo até de pensar. Se monsenhor Navarro descobrisse, acabaria com ele. Mas o que poderia fazer? Passara anos vendo Giselle nos braços de monsenhor. Vira-os até mesmo na cama, se amando, embora fingisse nada ver. E ela sempre linda, exuberante, sensual. Era praticamente impossível para alguém não se apaixonar por Giselle. Quando chegou de volta à abadia, Esteban se encontrava no jardim, cuidando de algumas flores que plantara. Viu quando Juan passou apressado e chamou-o diversas vezes, mas o rapaz não respondeu. Preocupado, largou o que estava fazendo, limpou as mãos e foi atrás dele.
Juan entrou no quarto feito um furacão e se atirou sobre a cama, queimando de febre e de desejo. Quando Esteban chegou, estava deitado de costas, olhos fechados, rosto afogueado e vermelho. Experimentou-lhe a testa. Estava ardendo em febre.
- Juan! - chamou alarmado. - O que você tem?
Como o rapaz não respondesse, saiu a chamar o médico da abadia. Padre Valentim entrou, seguido por padre Miguez, e foi examiná-lo.
- O que foi que aconteceu? - perguntou Miguez espantado.
- Não sei meu amigo. Ele me pediu para sair e voltou nesse estado. Ignoro o que tenha acontecido.
Silenciaram. Padre Valentim o examinava superficialmente. Abriu os seus olhos para ver-lhe as pupilas, colou o ouvido em seu peito, apalpou sua garganta. Não encontrou nada de anormal. Mas Juan, ao sentir as mãos de padre Valentim sobre ele, julgando tratar-se das mãos de Giselle, girava a cabeça de um lado para o outro, enquanto murmurava delirante:
- Giselle... Giselle... Amo...
Ao ouvir o nome da amante, Esteban e Miguez arregalaram os olhos, ao mesmo tempo em que Valentim, virando-se para eles, falou abruptamente:
- O rapaz está enfeitiçado. Isso é obra dos súcubos. Esteban levou a mão à boca, aterrado.
- Tem certeza?
- Tenho. Veja como ele está. Balbuciando o nome daquela mulher blasfema!
Percebendo o mal-estar de Esteban, Miguez tratou de intervir. Podia não gostar de Giselle, mas sua afeição por Navarro era genuína, e pretendia ele mesmo, resolver aquele assunto sem precisar recorrer ao Santo Ofício.
- Obrigado, padre Valentim, sua ajuda foi muito útil. Pode deixar que cuidaremos dele agora.
Padre Valentim deu de ombros, recolheu o seu material de médico e se foi. Juan, alheio ao que acontecia, continuava delirando, falando coisas sem nexo, suspirando e gemendo, por vezes chamando o nome de Giselle.
- Acha que ela o seduziu? - perguntou Miguez.
Esteban trincava os dentes. Recusava-se a crer que Giselle fosse capaz de tamanha baixeza.
- Miguez - ciciou em tom de súplica -, peço-lhe, por favor, que não leve esse caso ao conhecimento de ninguém. Deixe que resolva isso à minha maneira.
- Você sabe que sou seu amigo e que tudo farei para protegê-lo.
- Eu sei.
- Por que Giselle tinha que se envolver com Juan? Será que já não tem homens suficientes?
- Não fale assim de Giselle - revidou Esteban, entre zangado e magoado.
- Está certo, perdoe-me. Mas é que me preocupo. Você sabe o quanto é invejado pelos outros padres. Muitos gostariam de estar no seu lugar. Você é um dos melhores inquisidores que o Santo Ofício já teve, e isso causa despeito em muita gente.
- Você tem razão, mas não sei o que fazer. Não posso simplesmente entregar Giselle às Mesas Inquisitoriais.
- Não estou dizendo para fazer isso. Mas você precisa tomar alguma providência. Não pode mais continuar a vê-la.
- Já não a vejo mais com tanta freqüência.
- Ela ainda está trabalhando para você, não está?
- Sim. Está investigando dom Fernão.
- Deixe dom Fernão para lá. Suas suspeitas não são do conhecimento de ninguém.
- Mas ele é muito rico... Pense no bem que a sua fortuna faria à Igreja.
Um gemido mais alto de Juan chamou sua atenção, e Esteban aproximou-se dele. Experimentou-lhe a testa novamente e percebeu que a febre ainda não havia cedido.
- Pobre rapaz - lamentou-se. - Eu deveria ter percebido o que estava se passando. Devia ter imaginado que isso acabaria acontecendo algum dia.
- Aquela mulher é um demônio! - esbravejou Miguez, com tanto ódio que Esteban se assustou.
- Não entendo você, Miguez. Por que a odeia tanto? O padre deu de ombros e balançou a cabeça, declarando desanimado:
- Não sei dizer. Ela não me agrada. A presença dela me faz mal.
- Não pode negar a sua beleza.
- Não consigo vê-la bela. Para mim, ela é e sempre foi uma bruxa. Aposto como tem pacto com as trevas.
Esteban não disse nada. Não pretendia agora expor as habilidades de Giselle com o mundo das sombras. Já bastavam os problemas que tinha no mundo visível.
- Será que dormiram juntos? - retrucou, apontando para Juan.
- É bem possível. Pelo estado em que ele se encontra algo de muito grave deve ter acontecido.
Ante o silêncio do outro, Miguez prosseguiu:
- Sei que não é agradável, mas será que não está na hora de você considerar a hipótese de padre Valentim? Talvez ele tenha razão.
- Não vá me dizer que você também acha que Giselle está possuída por algum demônio.
- Os súcubos podem se manifestar de diversas formas. Será que não a utilizam para seus propósitos? Giselle tem muitos amantes. Não estaria servindo de instrumento...?
- O diabo não precisa de instrumentos. Íncubos e súcubos agem a seu bel-prazer. Não têm necessidade de se utilizar de ninguém.
- Mas podem fazê-lo, não podem?
- Sim... Creio que sim.
- Pois então?
- Não é o caso de Giselle. Você sabe tão bem quanto eu que Giselle só se deita com quem eu ordeno.
- Deita-se até com mulheres, se for necessário. Nem o diabo faz isso, Esteban! Você não vê? Todos os demônios abominam o ato sexual antinatural. Não percebe o quanto é grave o pecado de Giselle? Até os demônios consideram uma vergonha pecar contra a natureza!
- Pare! Não posso acusar Giselle! Será que você é que não consegue perceber?
- Você a ama...!
- Não da forma como você pensa. Sinto-me grato e responsável por ela. Não posso agora me voltar contra quem me serviu fielmente durante tantos anos.
- Não quero que pense que estou contra você. Não estou. Estou do seu lado, sou seu amigo. E é por isso que insisto com Giselle. Ela ainda vai acabar prejudicando você.
- Em nome da nossa amizade é que lhe peço: não faça nada contra Giselle. Deixe-me resolver isso à minha maneira.
- Que maneira?
- Vou encontrar um jeito.
Com um gesto de mãos, deu por encerrado o assunto e foi postar-se à cabeceira de Juan. O rapaz agora parecia mais calmo, a febre começara a ceder. Ajeitou-lhe as cobertas e foi para a igreja. Precisava rezar, pedindo a Deus forças e inspiração para ajudar Giselle. Para ajudar a si mesmo. Andando de um lado a outro no imenso salão de sua casa, Lucena esbravejava. Desde que Ramon a abandonara, seu humor havia se alterado consideravelmente.
- Como ainda não descobriu nada? Que espécie de pai é você?
- A única coisa que consegui apurar é que Ramon está quase falido.
- Mais um motivo para querer se casar. Você é um homem rico. Poderia ajudá-lo.
- Talvez ele estivesse envergonhado.
- Envergonhado? Ramon? Não acredito. Quero saber o que houve papai. Exijo que você descubra o nome da sem-vergonha que o tomou de mim!
- O que você quer que eu faça?
- Mande alguém segui-lo! Não deve ser assim tão difícil.
Dom Fernão suspirou desanimado. Desde que descobrira que Ramon perdera todos os seus bens em dívidas, deixara de ter interesse nele. Lucena que o perdoasse, mas ele não poderia permitir que sua filha se casasse com um pobretão. Sua família podia ser tradicional e nobre, mas Ramon estava falido. Aos poucos ia vendendo suas propriedades. Perdia tudo no jogo de dados, gastava fortunas em jóias e roupas, e descuidava das terras. Em breve não teria mais nem onde morar.
- Minha filha, pense bem. Ramon está falido. Esqueça-o. Posso arranjar-lhe coisa melhor.
- Quem foi que disse que ainda quero Ramon?
- Não quer? - tornou, com genuíno assombro.
- Não. Não quero mais um homem que se suja com meretrizes. Quero vingança. Ramon me usou, tentou abusar de minha pureza. E tudo isso para quê? Para acabar me trocando por uma vagabunda, ordinária!
- Acalme-se, Lucena. Você não sabe se ele tem outra mulher.
- Tem! Tenho certeza de que tem. E você vai descobrir. Vai descobrir e me contar. Eu exijo! Você prometeu!
Dando-se por vencido, dom Fernão saiu, deixando Lucena entregue a seu ódio. Ela não podia se controlar. Ramon a seduzira num dia para, poucos dias depois, terminar tudo com ela. Era um canalha. Dizia-se apaixonado, jurara-lhe eterno amor, prometera torná-la a mulher mais feliz do mundo. Tudo mentira. Só o que queria era enganá-la para seduzi-la. Agora que já conseguira o que queria, ela não tinha mais serventia. Por que se deixara convencer? Tornara-se, ela também, uma das vagabundas com quem ele se deitava. Ramon lhe dissera que não a amava mais e que, por isso, não podia se casar com ela. Mas aquilo não ficaria assim. Vingar-se-ia dos dois. Descobriria quem era a mulher e daria um jeito de vingar-se. Seu pai tinha dinheiro, não lhe seria difícil arranjar alguém que os matasse. Enquanto isso, dom Fernão seguia em silêncio para a casa de Blanca, mas não a encontrou. Precisava se consolar nos braços de alguém e pensou em Giselle. Já não tinha mais motivos para procurá-la, pois entregara a Esteban a doação que ela fizera. Ainda assim, sentiu que só ela poderia confortá-lo naquele momento. Depois de refletir por alguns segundos, deu ordens para que o cocheiro o levasse até a taverna. Giselle, como sempre, dançava sobre a mesa e sorriu quando ele entrou. Ao final da dança, foi ter com ele.
- Que prazer, dom Fernão! Estava com saudades!
Ele sorriu e sentou-a em seu colo, beijando o seu pescoço.
- Vamos sair daqui.
Ela se levantou e foi puxando-o pela mão. Saíram, tomaram a carruagem e, dentro em pouco, estavam nus sob os lençóis. Giselle já não agüentava mais aquele porco resfolegando sobre ela, mas tinha uma tarefa a cumprir. Seria a última. Depois diria a Esteban que era hora de parar. Já estava ficando velha demais para aquilo. Dom Fernão não tocou no assunto da filha. Giselle não tinha nada com aquilo, e ele não fora ali em busca de conselhos. Só o que queria era sexo. O sexo que Blanca ainda não podia lhe dar.
Passando os dedos sobre seu peito, Giselle observou com fingido ressentimento:
- Pensei que não o veria mais...
- Na verdade, não veria mesmo. Afinal, já cumpri a missão que monsenhor Navarro me confiou e não tinha mais motivos para procurá-la.
- Ainda assim, você veio.
- Senti a sua falta.
Ela o acariciou novamente e indagou em tom casual:
- E o casamento? Já marcou a data?
- Ainda não. Mas vai ser para breve.
Giselle suspirou fingida e acrescentou com ar sonhador:
- Vou sentir saudades.
- Virei vê-la vez por outra - mentiu.
- Gostaria de conhecê-la.
- Minha noiva? - ela assentiu. - Isso é impossível.
- Por quê?
- Blanca é uma moça direita. Não vai aos lugares que você freqüenta.
Giselle ficou indignada. O cretino ainda a humilhava. Bem merecia a fogueira.
- Sei que Blanca não é como eu - revidou, tentando conter a raiva. - Deve ser uma moça bastante prendada, para conquistar o seu afeto assim dessa maneira.
Percebendo que a havia ofendido, Fernão deu-lhe um beijo na testa e ponderou:
- Não se ofenda Giselle, não é nada pessoal. Gosto de você, mas você é uma mulher da vida.
- Não precisa lembrar-me disso. Sei muito bem o que sou e conheço o meu lugar. Só falei que gostaria de conhecer Blanca por curiosidade, para ver a mulher que arrebatou o seu coração.
Com um sorriso maroto, ele a abraçou e prosseguiu:
- Blanca é uma boa moça, mas não sai muito.
- Já sei. Só sai para ir à igreja. É beata mesmo, não é?
- Mais ou menos - respondeu cauteloso.
Ela fez uma pausa estudada e prosseguiu em tom de confidência:
- Sabe Fernão, resolvi me afastar da igreja. Não gosto dos olhares que as mulheres me lançam. Só porque não sou feito elas, pensam que são melhores cristãs do que eu.
- Entendo o que quer dizer. É muito ruim ser diferente, não é? Ser incompreendido.
- Isso também acontece com você?
- Mais ou menos. É... Pode-se dizer que sim.
- Por quê? O que foi que aconteceu?
- Não aconteceu nada - respondeu cauteloso. - É que Blanca...
- O que tem Blanca?
- Nada... Nada que lhe interesse.
- Por que não se abre comigo? Talvez possa ajudá-lo.
- Não pode.
Não estava funcionando. Giselle precisava mudar de tática. Já estava ficando cansada de se deitar com aquele porco, que só a usava sem nada dizer. Começou a acariciá-lo novamente e foi falando em seu ouvido:
- Posso fazer por você muito mais coisas do que imagina.
Continuou a acariciá-lo e a beijá-lo, deixando-o louco de desejo.
- Você é uma mulher e tanto, Giselle - murmurou ele, quase explodindo de prazer.
- No entanto, você não confia em mim - disse ela com voz sedutora, sem parar de acariciá-lo.
- Confio...
- Então, por que não me fala de Blanca?
- Por que insiste tanto em falar de Blanca?
- Porque quero conhecer melhor a mulher que vai tirá-lo de mim.
- Ela não vai me tirar de você...
Giselle intensificou seus movimentos, levando-o quase à loucura. Ele, já não agüentando mais, tentou acariciá-la também, mas ela se esquivou e continuou a falar:
- Não é o que parece. Você dorme comigo, mas não confia em mim o suficiente para me contar seus segredos. Será que tudo o que faço não demonstra o quanto gosto de você?
Louco de vontade de acabar com aquela conversa e possuí-la, Fernão não se conteve. A mente toldada pelo desejo deixou escapar a confissão:
- Blanca é uma moça honesta e pura. Só que é metade moura. É isso, Giselle. Está satisfeita? Blanca é filha de um mouro.
Esforçando-se para não dar a perceber seu ar de satisfação, Giselle continuou a conversa, tentando fazer com que ele lhe contasse tudo.
- Como assim, filha de um mouro? Seus pais não são daqui?
- Sua mãe era espanhola, mas seu pai era mouro. Durante a guerra pela retomada de Granada, que era onde ela vivia, os mouros foram executados ou expulsos. Seus pais foram mortos, mas eu consegui trazê-la para cá.
- Quer dizer que você lhe salvou a vida? - arregalou os olhos, dando mostras de profunda admiração. - Trouxe-a para cá, arriscando-se a ser descoberto e preso? Fernão, você é um herói!
Cheio de si, dom Fernão inflamou o peito e contou-lhe tudo, até o nome dos pais de Blanca. Giselle exultou. Conseguira, finalmente! Aquele porco nojento havia confessado que sua querida Blanca era moura, dando-lhe os elementos com que faria a denúncia contra ambos. Bem feito. Já não suportava mais vê-lo babando atrás dela. Ele lhe dava nojo, e só o que pensava agora era em sua liberdade. A liberdade que Esteban lhe daria. Quando dom Fernão chegou a casa naquela noite, Lucena estava sentada na sala, à sua espera, e se levantou apressada, logo que o ouviu entrar.
- Lucena! - exclamou ele assustado, levando a mão ao coração. - Quase me mata de susto!
- Já é tarde, papai. Onde esteve?
- Vai tomar conta da minha vida agora, vai?
- Não se trata disso. Mas o senhor sumiu... Até Blanca estava preocupada.
- Blanca esteve aqui?
- Veio à sua procura.
- O que disse a ela?
- O que poderia dizer? Que não sabia onde estava.
Ele balançou a cabeça e foi caminhando em direção ao corredor. Já passava da meia-noite e, no dia seguinte, precisaria levantar-se cedo.
- Vou me deitar. Boa noite.
- Não vai me dizer onde esteve?
Fernão parou no meio do corredor e olhou para ela com ar enigmático, dizendo com voz de cansaço:
- Estive em reunião com umas pessoas. Negócios...
- Até a essa hora?
- Por que está me vigiando?
- Por causa de sua promessa. Quero saber se já descobriu alguma coisa sobre Ramon.
- Não acha que está sendo muito insistente? Não tive nem tempo de tomar as devidas providências.
- De quanto tempo ainda vai precisar? Até que eu morra, consumida pelo ódio?
Fitando-a com ar de espanto, Fernão se aproximou e perguntou perplexo:
- Ódio... É isso que não entendo. Por que todo esse ódio?
- Já não lhe disse?
- Ramon tentou alguma coisa com você?
- Como assim?
- Você sabe. Tentou alguma intimidade?
Coberta pelo rubor, Lucena escondeu o rosto entre as mãos e virou-se de costas para ele, sentindo o rosto arder diante da chama que bruxuleava na tocha presa na parede.
- Não, pai... Odeio Ramon porque ele me enganou. Sei que tem outra mulher.
Havia tanto ódio na voz de Lucena que Fernão titubeou. Parecia-lhe mesmo que algo havia acontecido. A transformação da filha fora muito rápida, e Fernão sabia que só um motivo muito poderoso poderia causar tanta mudança. Ele inspirou profundamente, deu-lhe uma tapinha no ombro e finalizou:
- Vá dormir minha filha. Deixe Ramon comigo.
Foi para seu quarto, bocejando, os olhos já pesados de tanto sono. Só muito depois Lucena o seguiu. O dia estava quase amanhecendo quando ela conseguiu pegar no sono. Mal conseguira fechar os olhos quando pesadas batidas na porta a despertaram. Ouviu quando a criada foi abrir, e o ruído de botas batendo no chão irrompeu na casa. Vozes se altearam, vindas da sala, e o pai acordou. Lucena escutou quando ele saiu do quarto e foi para a sala, e ainda pôde ouvir suas palavras de indignação:
- Mas o que é que está acontecendo aqui?
No mesmo instante, foi agarrado por dois homens, que o prendiam com força, enquanto um terceiro desenrolava um pergaminho e começava a ler:
- Por ordem de sua eminência, o cardeal Esteban Navarro, inquisidor do Tribunal do Santo Ofício de Sevilha, fica dom Fernão Lopes de Queiroz, neste dia de 28 de maio de 1495, intimado a comparecer à sua presença no Tribunal, onde será recolhido à masmorra por tempo indeterminado, até que sejam apurados os fatos da mais alta heresia contra ele denunciados...
- O que... - balbuciava dom Fernão -... O que está acontecendo? Heresia? Como se atrevem?
Parada na porta da sala, Lucena os fitava sem nada entender, tentando imaginar o que estaria sucedendo. Como é que monsenhor Navarro ousava acusar seu pai de heresia? Pensou em intervir, mas o medo a paralisou. E se a ordem também a alcançasse? Indignada com o que se passava, ficou olhando sem nada dizer, respiração suspensa, à espera que o homem desenrolasse outro pergaminho e lesse o seu nome também. Mas isso não aconteceu. A ordem se referia apenas a seu pai, e ele foi sendo levado sob protestos. Em meio ao medo e ao desespero, Lucena ainda conseguiu perguntar:
- Do que acusam meu pai?
- Lamento senhorita, mas não posso dizer mais nada. Seu pai é acusado da prática de atos heréticos, e isso é só o que sei.
Empurrou-a para o lado e os homens passaram, arrastando dom Fernão, que esbravejava e reagia.
- Isso não vai ficar assim! - vociferava. - Monsenhor Navarro vai me pagar! Soltem-me! Não fiz nada! Soltem-me!
De nada adiantaram suas súplicas. Fernão foi arrastado e levado à força para a masmorra, sem nem saber do que estava sendo acusado. Somente dois dias depois, quando já havia sido submetido a toda sorte de torturas, foi que Esteban apareceu.
- Monsenhor Navarro - suplicou humilde. - Por que estão fazendo isso comigo? O que foi que fiz?
- Dom Fernão - declarou o outro, solene -, está sendo acusado da mais alta heresia por se envolver com uma mulher que adota práticas contrárias aos costumes de fé da Igreja. É de nosso conhecimento que sua noiva, Blanca Vadez, é filha de um mouro nojento, chamado Hamed Kamal. A limpeza de sangue é necessária, e não podemos permitir que a descendência moura continue a espalhar seu sangue profano por nossa terra santificada...
Apavorado, dom Fernão começou a chorar e a gemer em desespero:
- Onde está Blanca? O que fizeram com ela? Blanca! - pôs-se a gritar. - Blanca! Onde está? Pode me ouvir?
Na mesma hora, sentiu uma dor aguda nos pés e soltou um grito de pavor. O carrasco acabara de queimar a sola de seus pés, causando-lhe imenso sofrimento.
- Não adianta gritar, dom Fernão. Blanca não pode ouvi-lo de onde está. Por que não confessa logo o seu crime, como Blanca já o fez, e acaba logo com o seu suplício?
- Blanca confessou?
- É claro. Arrependeu-se e quis salvar sua alma. Por que não faz o mesmo?
Embora seu sofrimento fosse imenso, dom Fernão não se deu por vencido. Se confessasse, aí sim é que estaria tudo acabado.
- Não tenho o que confessar. Não fiz nada.
- Não é o que parece. A denúncia contra o senhor foi bastante clara.
- Que denúncia? Quem fez essa denúncia?
- Isso não importa. Seus atos foram testemunhados por alguém que veio às Mesas Inquisitoriais e o denunciou. E o quanto basta.
Tentando imaginar quem teria sido capaz de uma coisa daquelas, dom Fernão pôs-se a pensar. Até que a imagem de Giselle surgiu espontânea em sua mente. Teria sido ela? Seria possível? Na véspera, contara-lhe sobre Blanca, confessando que ela era filha de um muçulmano. Giselle teria sido capaz de traí-lo? Mas por quê? Não dizia que o amava? Ou tudo não teria passado de um embuste? Pensando melhor, fora monsenhor Navarro quem os aproximara, mandando-o a sua taverna para buscar a tal doação. E Giselle parecera mesmo muito receptiva, apaixonando-se por ele logo de início. Como é que uma mulher linda feita Giselle, com todos os homens a seus pés, fora se apaixonar logo por ele? Só então compreendeu. Quando ela se confessara apaixonada, seu orgulho e sua vaidade não deixaram que percebesse que aquilo não passava de fingimento. Giselle queria iludi-lo para conseguir fazer com que ele lhe desse informações sobre Blanca. E conseguira. Ele, tolamente, contara-lhe tudo. Ela era uma mulher sensual e ardilosa, e não fora difícil arrancar-lhe a confissão sob os lençóis de sua cama. Como fora estúpido!
- Foi Giselle, não foi? - tornou com raiva. - Aquela vagabunda, meretriz, ordinária! Como se atreve a dar ouvidos a uma vadia feito Giselle, em lugar de acreditar na palavra de um nobre honrado feito eu?
- A palavra de um nobre de nada vale se fere as leis de Deus.
- Não devia fazer isso, monsenhor. Sou um homem rico, influente. Giselle... Não é nada. É uma vagabunda delatora.
- Qualquer vagabundo pode ser testemunha de heresia. E é dever de todo homem ou mulher temente a Deus denunciar os delitos de que tenha conhecimento, sob pena de tornar-se cúmplice do crime.
- Giselle é uma meretriz. Isso não é crime também?
Esteban não respondeu. Com um aceno de cabeça, chamou o carrasco, para dar início a nova sessão de torturas. Dessa vez, participaria, ele mesmo, do processo inquisitorial. Precisava arrancar a confissão daquele herege, para depois purificar sua alma. Era seu dever de ofício. Em outra masmorra, Blanca era também supliciada. Logo após a prisão de dom Fernão, ela fora presa também e levada ao calabouço, onde fora interrogada e torturada. Ainda não vira monsenhor Navarro, mas sabia que ele apareceria. Haviam- lhe dito que Fernão a traíra e a delatara, mas ela não acreditara. Pois se fora ele mesmo quem a tirara de Granada, por que agora a entregaria aos padres? Não. Fernão nada tinha a ver com aquilo. A não ser pelo fato de que a amava, Blanca não podia ver nele nenhuma ofensa às leis da Igreja. teban descer da carruagem, diante de sua casa. Fazia já algum tempo que não o via e sentia sua falta. Seus sentimentos para com ele eram puros e verdadeiros, e, por mais que estivesse apaixonada por Ramon, amava Esteban como se fosse seu pai.
- Agiu muito bem com dom Fernão, Giselle - elogiou-o, após abraçá-la. - Sua confissão é questão de tempo.
- E a tal de Blanca? Também já confessou?
- Não. Blanca parece uma moça ingênua, mas confia no tolo. Se ela soubesse...
Giselle deu de ombros e foi puxando-o pela mão em direção a seu quarto. Não tinha muito interesse em dom Fernão ou qualquer outro acusado. Executava sua missão sempre da melhor forma possível, mas o destino daqueles a quem delatava não lhe interessava muito. Esteban deixou-se conduzir passivamente ao quarto da moça, embora não houvesse ido ali para aquilo. Giselle já não lhe despertava tanto desejo. Apesar de bonita e esbelta, não tinha mais o frescor da juventude, e seu corpo também não guardava mais a rigidez da mocidade. Ainda assim, seguiu-a sem dizer nada e aceitou o amor que ela lhe oferecia.
- Por que está tão calado? - a indagou, logo após se amarem.
Ele a olhou mansamente, tentando encontrar um jeito de lhe dizer o motivo que o levara até ali.
- Estou cansado - deixou escapar num suspiro.
- De mim?
- Da vida.
- Da sua vida ou da minha?
- Da de nós dois.
- Não estou entendendo, Esteban. Pensei que você me amasse.
- Gosto de você, mas acho que já está na hora de pararmos com isso.
- Por quê? - tornou ela, entre decepcionada e contente.
- Já estou ficando velho, e você também não é mais nenhuma garotinha. Você tem me servido com extrema fidelidade e eficiência durante todos esses anos, mas agora, não preciso mais desses serviços.
- Como assim? Quer dizer que não lhe sou mais útil?
- Não é isso. Mas creio que, hoje, posso prender os suspeitos de heresia sem o seu concurso.
- Como fez com dom Fernão? - ironizou.
- Dom Fernão foi o último.
Giselle silenciou. Por que estava discutindo com ele? Não era isso mesmo o que queria? Sua liberdade? Encerrar sua carreira de delatora e meretriz? Não pretendia agora se dedicar exclusivamente a Ramon? Pensando nele, considerou:
- Acho que está certo Esteban. Também estou ficando cansada.
- E já está rica, não é? Não precisa mais de mim nem do dinheiro que lhe dou. O que juntou durante todos esses anos é o suficiente para levar uma vida tranqüila e sem preocupações, não é mesmo?
Algo no tom de voz de Esteban chamou sua atenção. Ele devia saber de alguma coisa que ela não sabia. Cuidadosamente escolhendo as palavras, redargüiu:
- Está acontecendo alguma coisa que eu não saiba?
Ele soltou um profundo suspiro, alisou os seus cabelos e respondeu com fingida displicência:
- Não está acontecendo nada. O que eu quero é evitar que venha a acontecer. Miguez está me pressionando...
- Miguez, Miguez... Sempre Miguez. Aquele padre me odeia. Não entendo o que ele tem a ver com isso.
- Nada. Não se impressione. Miguez apenas se preocupa demais. Tem medo dos comentários dos outros padres.
- É só isso?
- O que mais poderia ser?
- Sei que muitos delatores acabaram também sendo delatados. Acha que corro esse risco?
- Você está sob a proteção de Esteban Navarro. Ninguém ousaria tocá-la.
- Tem certeza?
- Absoluta. Nem sequer se cogita de uma coisa dessas. O que acontece é que estou preocupado com a minha imagem. Não fica bem para um cardeal ser alvo dos comentários alheios. Sossegue minha querida, ninguém jamais ousaria associar o seu nome à heresia. Sou um inquisidor influente, talvez o melhor que Sevilha já tenha visto. Ninguém tem tantas condenações como eu, esteja certa. Meu nome goza de prestígio e respeito por toda a Espanha, até mesmo pela Europa. Quem pensaria em me enfrentar?
As meias verdades de Esteban acabaram por tranqüilizá-la. Do jeito como falava, parecia que ele estava acima de qualquer suspeita e jamais constituiria alvo do Santo Ofício. Realmente, seria muito difícil provar algo contra ele. Mas aqueles que o serviam poderiam facilmente ser atingidos. Embora Navarro tivesse esse medo, não deixou transparecer nada a Giselle. Sabia que ela corria grandes riscos, mas não queria alarmá-la. Se tudo corresse bem, conseguiria contornar aquela situação e controlar o ódio de Miguez. E ela estaria a salvo. Ao menos, era o que esperava.
- E você? - prosseguiu Giselle. - Não o verei mais?
- Acho que você deve se afastar de Sevilha.
- Ficou louco? Sevilha é o meu lar. Para onde espera que eu vá?
- Estive pensando... Creio mesmo que já chegou a hora de você se casar.
- Casar...? - tornou sonhadora, já antevendo sua felicidade ao lado de Ramon.
- Sim, casar. Será o melhor para você e para mim. Não concorda?
- Concordo... Sim, casar... Um homem maravilhoso, um lar de verdade... O respeito da sociedade...
- Que bom que concorda, porque já escolhi o seu noivo.
- Como assim, escolhi o seu noivo. O que quer dizer?
- Exatamente o que você ouviu. Já escolhi um noivo para você.
- Mas Esteban, você não pode... Não quero... Isto é, eu nem o conheço!
- Mas vai conhecer. Creia-me, ele é o melhor para você nesse momento. É um senhor viúvo muito rico, que mora em Cádiz. E aceitou desposá-la. Já está ficando velho e ficou feliz em poder ter uma esposa mais jovem.
- Não, Esteban, não quero me casar...
- Você acabou de concordar que seria o melhor.
- Mas não com esse noivo que você escolheu. Posso eu mesma, escolher o meu marido.
- Sinto, mas já está tudo acertado.
- Tudo acertado? Quer dizer que você tramou isso pelas minhas costas?
- Fiz o que era melhor para você.
- Não vou me casar com esse velho, não vou!
- O nome dele é Solano Díaz e é muito rico...
- Não me interessa! Não vou me casar com ele e pronto!
- Não entendo por que a recusa. Há pouco concordou que o casamento seria uma boa idéia. Pareceu-me mesmo bastante feliz.
- A idéia é excelente, mas quero me casar com o homem que eu escolher.
- Quem poderia ser esse homem? Que eu saiba você não tem ninguém... Ou será que tem?
Ela ficou confusa. E se lhe contasse sobre Ramon? Talvez ele aceitasse. Já que estava tentando arranjar-lhe um marido, não lhe custaria nada casá-la com o homem que ela amava.
- Esteban... - começou a balbuciar - há pouco conheci um homem... Ele é maravilhoso... É tudo com que sempre sonhei...
- Um homem...? - tornou desconfiado. - Você conheceu? Onde?
- Na taverna.
- Quem é esse homem?
- Chama-se Ramon de Toledo.
Durante alguns minutos, Esteban permaneceu remoendo aquele nome, tentando se lembrar de onde é que o conhecia. Por fim, deu um sorriso sarcástico e desdenhou:
- Ramon de Toledo é um vagabundo falido.
- Isso não me importa. Eu o amo.
- Ama? Será que foi por isso que trabalhou tão bem com dom Fernão? Queria o caminho livre para você?
- Se está se referindo ao fato de que ele e a filha de dom Fernão foram noivos, saiba que está enganado.
- Será mesmo? Foi o próprio dom Fernão quem me disse que eles iam casar-se.
- Iam, mas não se casaram. Ele me ama e, por isso, rompeu o noivado.
- Ramon de Toledo... Quem diria?
- Por favor, Esteban - suplicou Giselle, atirando-se a seus pés -, deixe que me case com Ramon. Prometo que você nunca mais ouvirá falar de mim.
Naquele momento, Esteban sentiu imensa piedade de Giselle. Sentia-se responsável por ela, fora por ele que ela ingressara naquela vida. Que culpa tinha de ser uma mulher bonita e ambiciosa? Quando chegara a Sevilha, Giselle era quase uma menina, pobre e inexperiente, cheia de sonhos e fantasias. Vivera na pobreza durante muitos anos, era natural que almejasse uma vida melhor. O casamento com Ramon talvez resolvesse seus problemas. Solano era um homem idoso e não saberia satisfazê-la. Quanto tempo decorreria antes que ela arranjasse um amante? Ele alisou os seus cabelos e ergueu-a pelos ombros. Ela estava chorando, e ele enxugou as suas lágrimas. Apertou o seu queixo e concluiu:
- Está certo, Giselle. Se for o que quer, que seja.
- Oh! Esteban! Nem posso acreditar que seja verdade!
- Aguarde alguns dias até que dom Fernão seja executado. Não quero que a filha dele cause problemas. Depois, eu mesmo providenciarei tudo. Como um presente de casamento.
- Por que não a prende também?
- Não temos nada contra Lucena. Mas não se preocupe com ela. O processo de expropriação de bens não é demorado e logo, logo, ela não será ninguém.
Depois que ele se foi, Giselle pôs-se a gritar pelas escravas. Belinda correu a atender, e Giselle foi logo perguntando:
- O senhor Ramon já chegou?
- Já, senhora. Belita está lá no porão com ele.
- Pois o que está esperando para chamá-lo? Vá, vá!
Aos tropeções, Belinda saiu em busca de Ramon. Quando monsenhor Navarro chegara, Belita, já orientada por Giselle, correra ao porão para esperá-lo. Assim que ele entrou, contou-lhe que o cardeal se encontrava em companhia de sua senhora, e Ramon foi obrigado a esperar. Já estava impaciente quando Belinda entrou.
- Senhor Ramon, a senhora Giselle o chama com urgência.
- Monsenhor Navarro já se foi?
- Já, sim.
De um salto, Ramon correu ao quarto de Giselle. Escancarou a porta e, sem lhe dar chance de dizer qualquer coisa, apertou-a de encontro a si e beijou-a sofregamente. Ao saber que Esteban estava com ela, tinha-se visto dominado por louco ciúme, imaginando-a nos braços do outro.
- Tolinho - gracejou Giselle, percebendo o seu ciúme. - Esteban agora é como um pai para mim.
- Pai... Sei. Que pai dorme com sua filha?
- Deixe de bobagens e sente-se. Tenho algo importante a lhe contar.
Curioso, Ramon sentou-se na cama, com Giselle a seu lado. Ela tomou a sua mão e acariciou-a, levando-a aos lábios e fitando-o com ar enigmático.
- O que houve? - tornou Ramon. - Por que tanto mistério?
- O que acha de se casar comigo?
- Casar-me com você? Seria a felicidade suprema.
- Pois pode ir-se acostumando a essa felicidade. Em breve, estaremos casados.
- Como assim?
Em minúcias, Giselle contou-lhe a conversa que tivera com Esteban, e Ramon exultou. Já estava começando a gostar dele.
- Esteban é um homem maravilhoso - elogiou Giselle. - Só o que quer é o meu bem. Você e eu vamos ser muito felizes, você vai ver.
- Não vai mais dormir com ninguém, vai?
Ela riu gostosamente e apertou suas bochechas.
- Só com você, meu amor. De hoje em diante, serei exclusivamente sua.
Entregaram-se ao amor. Estavam realmente felizes, certos de que poderiam levar uma vida tranqüila e sem preocupações. Naquele momento, era o que mais desejavam: viver em paz, um para o outro. Com a chegada do inverno, as ruas de Sevilha começaram a esvaziar-se, e as pessoas evitavam sair e enfrentar os ventos frios que sopravam com a nova estação. Já passava de meio-dia, e Giselle deixara Ramon em casa, adormecido, partindo apressada para a taverna. Agora, mais do que nunca, precisava cuidar dos negócios. Ramon dissera que iria ajudá-la, mas ficara dormindo em seu primeiro dia de trabalho. Agora viviam juntos. Desde que contara a Esteban sobre seu envolvimento, não tinham mais por que esconder que estavam apaixonados. Esperariam até que dom Fernão fosse executado e se casariam de verdade. O dia estava escuro, e as nuvens cinza anunciavam que uma tempestade em breve iria desabar. Giselle saltou da carruagem em frente à porta da taverna e, envolta em grosso manto de veludo, pôs-se a caminhar apressada, tentando fugir da ventania. Foi quando algo lhe chamou a atenção. Toda encolhida num canto da parede, uma mulher chorava baixinho. Giselle parou por alguns segundos e olhou para ela. A moça estava de cabeça baixa, mas percebeu que alguém a observava. Ao levantar o rosto, Giselle se surpreendeu. Jamais havia visto uma mulher tão bonita. Sua pele morena parecia de veludo, seus cabelos negros eram como seda, seus olhos escuros brilhavam feito duas contas de ébano. Ficou impressionada. Curiosa para saber o que uma moça tão bonita fazia atirada na calçada, aproximou-se. A outra se encolheu toda à sua chegada. Tentou levantar-se e fugir correndo dali, mas Giselle a deteve com um aceno de mãos.
- Por favor, espere - disse em tom cordial. - Não vou lhe fazer mal.
A moça foi se levantando vagarosamente, apoiada à parede, e parou de frente para ela. De perto, era ainda mais bonita.
- O que faz aí? - tornou Giselle interessada. Como a outra não respondesse, prosseguiu: - Está ferida? Alguém lhe fez algum mal? Não pode falar?
A moça balançou a cabeça e respondeu entre soluços:
- Perdoe-me, senhora. É que estava com fome...
Desatou a chorar descontrolada, ameaçando tombar no chão novamente. Foi então que Giselle percebeu o quanto ela devia estar fraca e com frio. Com cuidado, ajudou-a a erguer-se novamente e levou-a para dentro. Fazia muito frio, e a coitada estava quase congelando. Do lado de dentro da taverna, Giselle levou-a para perto da lareira, já acesa para espantar o frio.
- Sanchez! - gritou para o empregado. - Traga uma caneca de vinho e um bom assado para a moça comer.
Logo a comida e a bebida chegaram, e a moça devorou a perna de cordeiro que Sanchez lhe estendera. Bebeu o vinho a grandes goles e, aos poucos, foi sentindo que recobrava forças. Lambia os dedos de satisfação e virou-se para Giselle, acrescentando com timidez:
- Nem sei como lhe agradecer, senhora. Giselle sorriu e retrucou:
- Qual é o seu nome?
- Manuela.
- De onde você vem, Manuela?
- De Madri.
- Bem se vê que não é daqui. Tem um jeito de falar diferente.
Manuela deu um sorriso encantador e, já mais refeita, acrescentou:
- E você, como se chama?
- Giselle. Sou a dona deste lugar.
Rapidamente, Manuela passou os olhos pelo interior da taverna e considerou:
- Será que não está precisando de uma ajudante?
- Depende - respondeu Giselle, já imaginando onde gostaria de colocá-la. - O que sabe fazer?
Ela deu de ombros e respondeu timidamente:
- Posso arrumar as mesas.
- Sanchez já faz isso.
- Posso ajudar Sanchez.
Giselle balançou a cabeça negativamente e continuou:
- Sabe dançar?
- Sei, sim.
- Poderia dançar para mim?
- Agora?
- Por que não? A taverna está vazia.
Meio sem jeito, Manuela postou-se no meio do salão.
- E a música?
- Sanchez, cante uma canção para a moça dançar.
O empregado soltou uma risada debochada e pôs-se a cantar com sua voz de barítono desafinada, fazendo com que Manuela levasse a mão aos ouvidos e fizesse uma careta.
- Pode deixar que me arranjo sozinha - protestou.
Sanchez deu de ombros e foi lavar as canecas. Quando Manuela começou a dançar, ficaram admirados. Ela dançava tão bem quanto Giselle. Ao final da apresentação, Manuela olhou para Giselle e indagou com um sorriso, já sabendo o efeito que havia causado sobre ambos:
- E então? Gostaram?
Sanchez bateu palmas e assobiou, enquanto Giselle fazia com que ela se sentasse a seu lado.
- Gostei muito, Manuela. O que acha de um emprego de dançarina?
- Fala sério?
- Falo, sim. Quem dança aqui é eu, mas já estou ficando cansada. Não sou mais nenhuma menininha e quero me dedicar a outras coisas. Quando a vi, fiquei impressionada com a sua beleza e imaginei se não poderia me ajudar. Agora, vendo-a dançar, tive certeza de que você é a pessoa ideal para me substituir. Então? O que acha? Aceita o emprego?
- Se aceito? E claro que aceito!
- Enquanto não estiver dançando, você pode auxiliar Sanchez com as mesas - ela concordou e Giselle prosseguiu: - Tem algum lugar para ficar?
- Não. Acabei de chegar de Madri.
- Vou lhe indicar uma estalagem. Chama-se O Mascate. É bem perto daqui.
Giselle apanhou uma pena e escreveu o endereço num pequeno pedaço de papel, estendendo-o para Manuela, que o leu e retrucou emocionada:
- Obrigada.
Giselle limitou-se a sorrir e continuou:
- Por que você veio para Sevilha?
Ela abaixou os olhos, olhou de um lado para outro e confessou:
- Tive que fugir. Estava sendo perseguida.
Giselle sobressaltou-se. A última coisa que queria era uma fugitiva da Inquisição.
- Quem a estava perseguindo?
- Andei me metendo com gente importante em Madri. Um jovem conde, muito rico e bonito. Só que era casado...
- E a mulher dele descobriu e quis matar você - completou Giselle, num gracejo.
- Pior. Ela se suicidou, e o pai dela colocou todos os seus homens atrás de mim. O jeito foi fugir.
- E o tal conde?
- Sofreu muito... Ele me amava realmente, sabe?
- E você? Também o amava?
Ela deu de ombros e respondeu com certo alheamento:
- Não sei. Ele era bom para mim, tratava-me feito uma rainha. Dava-me jóias e sedas, que tive que deixar para trás. Não tive nem tempo de apanhar minhas coisas. Ou voltava para buscar minhas jóias, ou salvava a pele. Preferi salvar minha vida. Posso começar de novo do nada. Homens há muitos por aí.
Giselle se calou. Manuela tinha um jeito doce e meigo, mas parecia já haver sofrido bastante na vida. Contudo, sua beleza ser-lhe-ia muito útil naquele momento. Ela precisava descansar e dedicar mais tempo a Ramon. Mas não podia abandonar os negócios. Muitos homens iam ali para vê-la dançar e acabariam se afastando se ela simplesmente parasse. Mas se lhes apresentasse outra moça, linda e mais jovem, sensual e excelente dançarina, tinha certeza de que conseguiria manter a clientela. Afinal, não fora por outro motivo que a tirara do frio. Realmente, Manuela agradou. No dia seguinte, quando os clientes começaram a chegar à taverna, ficaram impressionados com tanta graça e beleza. Ainda gostavam muito de Giselle, mas não foi difícil fazê-los acostumarem-se a Manuela. Além de dançar muito bem, ela possuía um encanto natural que cativava os homens. Nas horas vagas, auxiliava Sanchez com as mesas, para alegria dos fregueses, que lhe davam palmadinhas e beliscões, sem que ela reclamasse, coisas que jamais ousariam fazer com Giselle. Até então, Ramon ainda não havia aparecido. Por mais que Giselle insistisse, ele não se animava a ir à taverna.
- Ramon, meu querido - disse ela certa vez. - Não se esqueça de que agora teremos que viver dos meus negócios. A taverna será minha única fonte de renda. E sua também. Você já vendeu tudo o que possuía, não tem mais nada. Não acha que já está na hora de se interessar pelo que é seu também?
Com um profundo suspiro, Ramon a abraçou e acabou concordando:
- Tem razão. É que não estou acostumado a trabalhar.
- Pois trate de ir se acostumando. A taverna até que é divertida. E depois, tem a Manuela. Quero que você a conheça. Vai ver se tenho ou não razão quando digo que ela é linda e que foi a pessoa ideal para me substituir.
No dia seguinte, ao meio-dia, Ramon entrava com Giselle na taverna. Sanchez arrumava as mesas, enquanto Manuela limpava o chão. Ramon cumprimentou Sanchez e foi apresentado a Manuela.
- Tem razão, Giselle - concordou admirado. - Manuela é mesmo uma moça muito bonita.
Ela deu um sorriso brejeiro e continuou a trabalhar, fingindo que não lhe prestava atenção. Ramon a observava atentamente, com olhar embevecido, acompanhando o molejo do seu corpo enquanto esfregava o chão. Essa admiração não passou despercebida a Giselle. Queria apresentar-lhe Manuela para que ele visse como era bonita. Não para que ficasse caído por ela. Ramon, percebendo o seu ciúme, puxou Giselle e sentou-a em seu colo, beijando-a com paixão.
- Não há mulher feito você, Giselle. Por mais linda que sejam as outras, jamais serão como você.
Ela sorriu satisfeita e apertou-se a ele. Entretanto, algo em seu olhar lhe dizia que tomasse cuidado, embora Giselle soubesse que jamais permitiria que Manuela lhe tomasse Ramon. Nem Manuela, nem qualquer outra mulher. Porque Ramon lhe pertencia. Somente a ela. Sentado diante da janela, Juan lia um trecho da bíblia para monsenhor Navarro, sem prestar a menor atenção a suas próprias palavras. Sem que percebesse, Esteban o observava. Desde o dia em que chegara com febre e delirando, chamando o nome de Giselle, não haviam conversado sobre o ocorrido. Juan não se lembrava de nada do que dissera no delírio, e Esteban achara melhor não tocar no assunto. Juan, em seu mutismo, pensava numa maneira de rever Giselle. Não sabia que Esteban havia terminado tudo com ela e pretendia casá-la com Ramon. O cardeal, não querendo fazê-lo sofrer, nada dissera a respeito, e o noviço alimentava a ilusão de que Giselle também gostava dele e que sentia a sua falta.
- Juan! - chamou Esteban. - Juan! Onde está com a cabeça, menino?
O rapaz havia interrompido a leitura e perdera-se em sua saudade. Precisava ver Giselle o quanto antes ou acabaria adoecendo.
- O quê...? - respondeu ele, em tom apalermado. - Chamou monsenhor Navarro?
- Por que parou de ler?
Juan olhou para a bíblia pousada sobre seu colo e segurou-a novamente, recomeçando a leitura. Se Juan não prestava atenção no que lia, Esteban também não entendia o que ouvia. Ambos estavam com o pensamento preso na mesma pessoa, embora por motivos diferentes. Subitamente, alguém bateu à porta. Era outro noviço, que vinha chamar monsenhor Navarro, dizendo que uma dama estava ali para vê-lo. Seria Giselle? Não, pensou Esteban. Giselle podia ser tudo, menos uma dama. Mandou que Juan continuasse a leitura e foi atender o chamado da tal dama. Ela havia sido introduzida em seu gabinete particular e, assim que ele entrou, correu ao seu encontro e beijou-lhe o anel, fazendo profunda reverência.
- Monsenhor Navarro - disse com voz sonora -, é um imenso prazer conhecê-lo.
Esteban recolheu a mão gentilmente e foi sentar-se em sua poltrona, mandando que ela se sentasse à sua frente.
- Em que posso servi-la, senhorita...?
- Lucena... Lucena Lopes de Queiroz.
Ele levou um susto, mas conseguiu controlar-se. Conhecia-a apenas de nome; jamais a havia visto pessoalmente. Ela era uma moça muito bonita, o que o deixou surpreso. Ramon trocara uma moça tão linda e fresca por Giselle. Por mais bela que Giselle fosse já não era mais uma mocinha.
- Muito bem, senhorita Lucena - prosseguiu ele, sem demonstrar surpresa -, o que posso fazer pela senhorita?
- Monsenhor Navarro, não quero que pense que sou atrevida ou desrespeitosa. Mas gostaria de saber o que foi que meu pai fez para ser preso.
A moça tinha coragem, era preciso reconhecer. Ir até ali, correndo o risco de ser acusada também, era realmente um ato de bravura. Esteban se levantou da poltrona e dirigiu-se para a janela, respondendo sem se virar:
- Seu pai é acusado de heresia.
- Isso, eu já entendi. Mas o que foi que ele fez?
Voltou-se para ela abruptamente e respondeu incisivo:
- Andou conspirando contra a Igreja, senhorita Lucena, envolvendo-se com uma mulher moura.
- Refere-se à Blanca Vadez?
- Ela mesma. Não sabia?
- Não, não sabia.
- Pois fique sabendo. E é muita sorte sua não estar ao lado dela no calabouço.
Lucena sentiu um arrepio de terror e quis fugir. Contudo, se saísse dali agora, deixaria a suspeita de que também estava envolvida com os mouros, se é que Blanca fosse moura, como ele dizia.
- Monsenhor Navarro, sou uma moça direita e temente a Deus, vou à igreja todos os domingos, faço minhas orações e comungo regularmente. Que motivos teriam o senhor para me atirar no calabouço junto de hereges que não respeitam a palavra de Deus?
Ele a olhou perplexo. Ela era uma moça muito corajosa e atrevida, realmente. Fitando-a com ar ameaçador, revidou austero:
- O que pretende senhorita Lucena? Libertar seu pai? Ou aquela mulher?
- Vim apenas lhe pedir, ou melhor, implorar pela vida de meu pai. Ele sempre foi um homem digno, não merece esse fim.
- Seu pai foi acusado de heresia.
- Quem o acusou?
- Isso não importa. O fato é que as acusações contra ele são gravíssimas e estão sendo devidamente comprovadas e apuradas. Não há nada que eu ou a senhorita possamos fazer.
Ela começou a chorar e atirou-se ao chão, beijando seus pés.
- Por favor, monsenhor Navarro - suplicou em lágrimas. - Eu lhe imploro. Tenha misericórdia. Meu pai é um homem digno.
- Ele foi denunciado.
- Quem o denunciou só pode ser seu inimigo.
- Engana-se. Ele foi denunciado por pessoa que nada tem contra ele. Ela apenas ouviu a sua confissão e nos contou. Era seu dever, assim como é o seu, não se intrometer nos assuntos da Inquisição.
- Por favor, reconsidere. Meu pai é um homem rico, pode recompensara sua misericórdia.
- Seu pai não é mais rico, senhorita Lucena, e nem você. Seus bens estão sendo confiscados pela Igreja.
- O que foi que disse? - murmurou atônita. - Confiscados? Não pode ser... O senhor... Não pode fazer isso. O que será de mim?
- Sinto muito, mas isso não é problema meu. Dê-se por satisfeita de não ter sido acusada também - Lucena chorava descontrolada, e ele aconselhou: - Quer ajudar o seu pai?
- É claro que quero. Diga-me o que é preciso, e eu farei.
- Pois então, aconselhe-o a confessar.
- Isso salvará a sua vida?
- Salvará a sua alma. Sua vida já está condenada, mas sua alma ainda tem salvação.
Rosto ardendo em fogo, Lucena levou a mão aos lábios, sufocando um grito de angústia.
- Monsenhor... - implorou, à beira do desespero - não faça isso, eu lhe suplico. Meu pai é inocente.
- Sou um homem justo, senhorita. Se seu pai não se tivesse envolvido com aquela falsa cristã, eu seria o primeiro a proclamar-lhe a inocência.
Lucena silenciou. Não sabia nada sobre Blanca ser moura, mas não queria acabar caindo na armadilha de Navarro. Se ele estava tentando usá-la para que entregasse o pai, era preciso ter muito cuidado. Com os olhos vermelhos de tanto chorar, ela engoliu em seco e finalizou:
- Lamento tê-lo incomodado. Vejo que o senhor está ainda bem longe de saber o que realmente significa justiça.
Virou-lhe as costas abruptamente para sair. Quando ia abrindo a porta, alguém a empurrou pelo lado de fora, e ela levou um tremendo susto ao sentir a batida da porta em sua cabeça. Na mesma hora apareceu um galo em sua testa.
- Meu Deus! - exclamou Miguez com perplexidade. - Perdoe-me, senhorita. Não sabia que estava do outro lado.
- Não foi nada - contestou Lucena, esfregando a testa, ao mesmo tempo em que se dirigia novamente para a saída.
Passou por ele e saiu para o corredor, caminhando apressada, sem olhar para trás. Ainda atônito com o incidente, Miguez fitava Esteban, tentando adivinhar o que havia acontecido. Mas a imagem de Lucena ficou martelando em sua cabeça, e ele foi atrás dela sem dizer uma palavra ao amigo.
- Senhorita! - chamou, vendo-a virar à esquerda, no fim do corredor.
Sem lhe prestar atenção, Lucena continuou caminhando a passos cada vez mais largos. Será que aquele homem queria prendê-la? Vendo que ela não parava, Miguez disparou a correr atrás dela, alcançando-a já no limiar do portão.
- Senhorita - falou ofegante, puxando-a pelo braço. - Um momento...
Ela foi obrigada a se voltar. Vendo os seus olhos inchados, o nariz vermelho, a testa ferida, Miguez sentiu que seu coração se apertava. Ela era linda e pura, exatamente como ele gostava.
- Perdão, padre - disse ela, entre um soluço e outro. - Preciso sair.
- Por que a pressa? - tornou Miguez, encantado com sua voz doce.
- É que tenho um compromisso...
- Será que não pode esperar?
- Por quê?
- Para que possamos conversar.
- Não tenho mais nada para conversar. Monsenhor Navarro disse tudo...
- Não sou monsenhor Navarro. Talvez possa ajudá-la. Por que não me conta o que a aflige?
Lucena podia sentir o seu olhar lúbrico e pensou que talvez ele pudesse ser de alguma valia. Imediatamente mudou de postura. Fez um beicinho gracioso e pôs-se a chorar de mansinho, agarrada à sua mão.
- Oh! Padre, não sei mais o que fazer! Estou desesperada!
Com os braços ao redor de seus ombros, Miguez foi conduzindo-a para o seu gabinete.
- Venha comigo, criança, e abra o seu coração. Deixe-me ser seu confessor.
Ela se deixou conduzir com passividade, a mente já tramando o que deveria-fazer. Entrou no gabinete de Miguez de cabeça baixa, agarrada ao braço que ele lhe estendera, sentou-se na poltrona e ficou olhando para ele com ar de súplica. Aquilo quase o levou à loucura. Seria ela virgem? Só podia ser.
- Muito bem, minha filha, agora que estamos sós, por que não me conta o que a está perturbando?
- Padre... Nem sei o seu nome.
- Miguez. Miguez Ortega, a seu dispor.
- Padre Miguez, meu pai foi preso e atirado ao calabouço, mas sei que é inocente.
- Quem é seu pai?
- Dom Fernão Lopes de Queiroz.
Com ar compreensivo, Miguez fez com que ela lhe contasse tudo. Sabia que seria impossível salvá-lo, e ele não queria se indispor com Esteban, mas precisava conquistar a sua confiança. Pousou a cabeça de Lucena sobre o seu colo e, acariciando seus cabelos, redargüiu em tom paternal:
- Não se preocupe criança. Verei o que posso fazer por você.
- Vai me ajudar? - ele assentiu. - Promete?
- Prometo tentar. E agora vamos, pare de chorar.
Com o lenço, enxugou as lágrimas de Lucena e apertou o seu queixo, forçando-a a um sorriso. Ela sorriu meio sem jeito e sussurrou:
- Obrigada.
- Deixe tudo por minha conta - levantou-se e abriu a porta. Era perigoso demais investir contra ela ali, em seu gabinete, e àquela hora. - Agora, vá para casa e aguarde meu chamado. Quando voltar, terei notícias para lhe dar.
Mais animada, Lucena se foi. Sabia que impressionara o padre e estava disposta a usá-lo e a deixar que ele a usasse para conseguir o que queria. Pretendia salvar o pai e, se possível, Blanca também. E queria saber o nome de quem o havia delatado. Era o mínimo que poderia fazer para vingar o suplício a que estava sendo submetido e a espoliação que ela mesma estava na iminência de sofrer. Quando Esteban chegou de volta a seus aposentos, Juan já não estava mais lá. A bíblia, pousada sobre a poltrona, continuava aberta na página onde haviam interrompido a leitura. Logo depois que Navarro saiu, Juan tomou uma decisão. Precisava ver Giselle o quanto antes. Saiu sem ser percebido e foi à casa da moça. Foi informado por Belinda que ela não estava que já havia partido para a taverna, e ele foi ao seu encontro. Na taverna, procurou Giselle por todos os cantos. Ela não estava dançando, e havia outra moça ajudando a servir as mesas. Ele se sentou a um canto, acabrunhado, e Manuela veio servi-lo.
- Ora, ora, ora - exprimiu em tom maroto. - Não é um noviço que temos aqui?
- Quero falar com a senhorita Giselle - anunciou Juan apressadamente, desviando o rosto das mãos de Manuela, que tentava beliscar-lhe as bochechas.
Com um sorriso irônico, Manuela se afastou. Será que Giselle andava seduzindo até noviços imberbes? Deu de ombros e foi para o quarto atrás da taverna, que também servia de escritório, onde Giselle fazia algumas contas em companhia de Ramon.
- O que é Manuela? - indagou, logo que a viu despontar na porta.
- Está aí um padreco querendo falar-lhe.
- Quem? - interveio Ramon, com medo de que se tratasse de monsenhor Navarro.
- Um noviço. Não sei o nome.
- Deve ser Juan - esclareceu Giselle. - O que será que quer dessa vez?
Levantou-se, e Ramon foi atrás dela. Saíram abraçados e foram em direção à mesa a que Juan estava sentado. Vendo-os juntos, o rapaz sentiu uma opressão no peito. Na mesma hora, o ciúme o corroeu, e ele pensou que fosse pular no pescoço de Ramon. Como aquele homem se atrevia a tocar o corpo de Giselle?
- O que faz aqui, Juan? - perguntou Giselle, tentando disfarçar a má vontade. - Algum recado de monsenhor Navarro?
Encarando Ramon com raiva, Juan replicou entre dentes:
- Nenhum recado. Passei aqui apenas para buscar a citara que a senhorita me deu e que, na pressa, deixei em sua casa naquele dia.
Era verdade. Juan ficara tão confuso com a proximidade de Giselle que fora embora, deixando à pequena citara que ela lhe dera caída no chão. Fora esse o pretexto que arranjara para procurá-la novamente.
- Se é só isso, podemos ir buscá-la agora - declarou Ramon.
- Não precisa se incomodar, senhor. Voltarei outro dia. Levantou-se apressado para sair, e Giselle foi atrás dele. Não podia perdê-lo. Contava com ele para mantê-la informada sobre os passos de Miguez.
- Juan - chamou-o, já na rua.
Reconhecendo a sua voz, o rapaz parou abruptamente.
- Giselle... - suspirou embaraçado. - Desculpe-me...
- Não precisa se desculpar. Você não fez nada de errado.
- Não devia ter vindo aqui.
- Não devia mesmo. Isso não é lugar para você. Se Esteban descobre que esteve aqui sem a sua ordem, vai ficar zangado.
- Eu... Vim aqui por que... Queria vê-la...
Calou-se ruborizado, e Giselle tornou com ar sedutor:
- Está tudo bem, não precisa se explicar.
- É que naquele dia, saí correndo e...
- Eu compreendo. Você se assustou.
Juan se aproximou dela e segurou a sua mão, levando-a aos lábios e beijando-a com paixão.
- Aquele moço lá dentro... - balbuciou -... É seu amante?
- Por que quer saber?
- Porque eu o odeio.
- Deixe isso para lá, Juan. Você é apenas um garoto.
- Eu a amo, Giselle. Não consigo mais parar de pensar em você. Lembro-me daquele dia, do seu beijo, do seu corpo quente de encontro ao meu. Penso que vou enlouquecer.
- Pare com isso. Você é apenas um menino.
- Não me importo. Eu a amo, Giselle!
- Se me ama de verdade, então tem que me prometer que não fará mais isso. Pode acabar me comprometendo. Se alguém descobrir que você vem a minha taverna, posso ser acusada de estar aliciando um jovem noviço e acabarei sendo presa. É isso o que você quer?
- Meu Deus, é claro que não!
- Pois então, não venha mais aqui. Pode ser perigoso para mim e para você.
- Está bem, Giselle.
- E preste atenção a tudo o que acontece naquela abadia. Padre Miguez quer a minha caveira.
- Não se preocupe. Se depender de mim, nada acontecerá a você.
Giselle beijou-o de leve nos lábios e o despachou. Podia ser que não precisasse dele, mas era bom não facilitar. Do jeito que Esteban falava, padre Miguez continuava instigando-o contra ela. Aquele padre era um demônio, e ela precisava de alguém que lhe desse notícias, caso algo acontecesse.
Quando voltou para a taverna, Manuela estava sentada à mesa com Ramon, ambos às gargalhadas. Sentiu uma pontinha de ciúme, que procurou disfarçar, e foi em direção a eles.
- Posso saber o que é tão engraçado? - perguntou, tentando parecer natural.
- Ah! Giselle - fez ele, olhos lacrimejantes de tanto rir. - Manuela estava me contando alguns casos. Não sabia que era tão engraçada.
Giselle forçou o riso e sentou-se no colo de Ramon, beijando-o com ardor.
- Agora chega de conversa - murmurou em seu ouvido. - Vamos para casa.
Sem responder, Ramon se levantou e foi embora com ela. Já era noite, e o movimento na taverna havia aumentado. Ainda assim eles se foram. Em casa, Giselle explodiu:
- O que deu em você, Ramon? Pensa que sou cega ou idiota? Fazendo ar de espanto, Ramon contestou com ingenuidade:
- Nossa, Giselle, por que está tão zangada?
- Então não sabe? -Não.
- Você e Manuela, contando historinhas engraçadas!
- Então é isso? - contestou Ramon num gracejo. - Está com ciúmes de Manuela? Ora, mas que tolice. Então já não lhe disse que você é a única que me interessa?
- Seu cínico. Eu bem percebi os seus olhares para ela.
- E o que tem? Manuela é uma mulher bonita, e eu seria um louco se negasse. Nem você acreditaria em mim. Mas isso não quer dizer que eu esteja interessado nela.
- Não está?
- Não - aproximou-se dela e tomou-a nos braços, beijando-a com paixão. - Quando é que você vai compreender que eu jamais poderei amar outra mulher além de você?
As palavras e as carícias de Ramon a convenceram. Realmente, Ramon não poderia amar mais ninguém. Manuela o impressionava pela beleza, sensualidade e graça. Mas, até então, não havia nada que o fizesse trair Giselle. Seu amor por ela era forte e verdadeiro, e ele lhe garantiu que ela não tinha motivos para sentir ciúmes. Manuela, contudo, não pensava assim. Não que estivesse apaixonada por Ramon, mas estava acostumada a seduzir. Sua própria mãe lhe ensinara. Filha de uma meretriz acostumara-se a ter todos os homens que desejava, e a indiferença de Ramon a incomodava. Por mais que ela se insinuasse, Ramon não a queria. Só pensava em Giselle, só tinha olhos para Giselle. Por mais que Manuela fosse grata a Giselle, não conseguia parar de pensar em Ramon. Ao menos enquanto não conseguisse seduzi-lo. Estava ficando cada vez mais difícil para dom Fernão resistir às torturas que lhe eram impingidas. A dor, a humilhação, o medo, faziam-no enfraquecer a cada dia. Mas ele não confessava. Seu corpo já estava todo flagelado, ossos esmagados, costelas partidas. Já nem conseguia mais falar direito. Contudo, ainda resistia. Apenas duas coisas o faziam não ceder: o amor por Blanca e o ódio por Giselle. Monsenhor Navarro não falara claramente, mas dera a entender que fora realmente ela a responsável por sua prisão. Estava tão certo da condenação de dom Fernão que nem se preocupava com uma possível vingança. Mas para este a vingança era certa. Fosse vivo ou morto, vingar-se-ia de Giselle com todas as forças de seu ódio. Enclausurado entre as frias paredes de pedra da masmorra, não sabia se era dia ou noite. Podia supor quando anoitecia, porque o movimento de torturadores diminuía bastante, e os guardas cochilavam em seus postos. Ele também sentia as pálpebras pesarem. Naquele dia, o corpo todo lhe doía, após intensa sessão no balcão de estiramento, ao qual permanecia ainda amarrado, braços e pernas dormentes. Após breve cochilo, foi despertado pelo ranger da porta de ferro, que se abriu vagarosamente. Com extrema dificuldade, viu quando dois vultos cobertos de negro entraram. Um deles permaneceu parado perto da porta, enquanto o outro se acercou do balcão. Na mesma hora, lágrimas começaram a escapar de seus olhos. Será que iriam iniciar uma nova sessão de torturas? O vulto vestido de negro se aproximou, e Fernão sentiu duas mãos macias apertarem a sua, presa às correntes que a atavam ao balcão. O vulto se curvou sobre ele e beijou de leve o seu rosto, e o capuz que lhe encobria as faces deslizou por seus ombros, revelando o rosto de Lucena, lívido e coberto de lágrimas.
- Lu... Lu... Lucena... - foi somente o que conseguiu balbuciar, o pranto dominando o seu peito.
- Oh! Papai! - gemeu ela baixinho, tomada pela dor. - O que foi que lhe fizeram?
Dom Fernão não conseguia falar. A emoção, as lágrimas, o desalento haviam embargado a sua voz de tal forma, que só o que podia era chorar. Somente depois de muito tempo, em que ele permaneceu chorando, com Lucena a seu lado, a chorar junto com ele, foi que conseguiu dizer:
- E... E... Blanca...?
- Ainda não pude vê-la. Quis primeiro vir até você.
Fernão fechou os olhos e soltou diversos soluços doloridos, fazendo com que Lucena também chorasse ainda mais.
- Salve... Por favor... Salve-a...
- Não posso. Se pudesse, salvaria você.
Juntando ao máximo as forças, dom Fernão conseguiu retrucar com certa clareza:
- Minha filha... Já estou... Estou perdido... Sei que vou... Morrer...
- Não diga isso!
- É verdade... Ninguém poderá me tirar daqui... Mas Blanca... Faça o que for necessário... Salve-a...
- Vou tentar.
- E Giselle...
- Quem é Giselle?
- A mulher... Que me colocou aqui...
- Que mulher é essa?
- Giselle... Mac... Mackinley... Tem uma taverna... Do outro lado da cidade... A dama... Da noite... Foi ela... Ela me traiu... Denunciou-me...
- Por quê? Como? O que fazia o senhor com essa Giselle?
- Isso... Não importa... Mas você... Você deve prometer... Que irá vingar a minha morte... Você tem que me prometer... Salvar Blanca... Vingar-me... Destruir Giselle...
Os olhos de dom Fernão começaram a revirar nas órbitas e sua boca começou a espumar, enquanto balbuciava coisas sem sentido. Lucena afastou-se horrorizada. Sentiu que uma mão a tocava no ombro, mas não conseguiu tirar os olhos do pai.
- Venha, Lucena - disse Miguez com piedade. - Ele está delirando.
Coberta de pavor, Lucena levou a mão aos lábios e sufocou o grito, enquanto Miguez a puxava para fora. Amparando-a, foi com ela para seus aposentos. Era alta madrugada, e não havia ninguém nos corredores. Não corriam o risco de ser surpreendidos. Rapidamente, Miguez abriu a porta de seu quarto e empurrou-a gentilmente para dentro. Lucena desabou sobre a cama e chorou por quase meia hora, sem que Miguez ousasse interrompê-la. Ao final, indagou em desespero:
- Por que não o deixam logo morrer?
- Não podemos. Há um médico que acompanha as sessões de tortura, para assegurar que ele viva. O suplício é que está depurando a sua alma.
Totalmente transtornada, Lucena enxugou os olhos, encarou Miguez e disse com ódio:
- Quero encontrar essa tal Giselle Mackinley e destruí-la.
Quero fazê-la sofrer tudo o que meu pai está sofrendo nesse momento.
Miguez exultou. Tudo o que mais queria era uma aliada. O ódio de Lucena bem poderia ajudá-lo a acabar com Giselle.
- Minha querida - tornou ele com ternura -, Giselle é uma mulher difícil de apanhar. É protegida de monsenhor Navarro.
- Protegida? Como assim?
- Bem - prosseguiu ele, aproximando-se dela na cama e acariciando a sua mão -, ela é, ou melhor, ela foi amiga íntima de nosso bom cardeal, se é que me entende.
- E daí? Quando foi que ela conheceu meu pai?
- Seu pai e ela eram amantes.
- Amantes? Mas papai estava noivo de Blanca Vadez... Iam se casar!
- Seu pai ia se casar com Blanca, mas dormia com Giselle. Isso não é nada de mais, minha querida. Giselle é uma meretriz, é para isso que serve.
- Mas como foi que papai foi se envolver com uma mulher dessas? Espere... Ele falou numa taverna. Como era mesmo o nome?
- Dama da Noite.
- Isso, Dama da Noite. Você conhece? Pode me levar até lá?
- O que você poderia fazer indo até lá?
- Vou matá-la.
- Quer ser presa? Quer juntar-se a seu pai e a Blanca? - ela não respondeu, mordendo os lábios, de ódio. - É claro que não quer, não é mesmo? Quer vingança, mas, para se vingar, deve ter paciência e esperar. O tempo irá nos ajudar.
- Nos ajudar! O que quer dizer?
- Vou ajudá-la, minha querida. Sozinha, será praticamente impossível conseguir atingi-la. Navarro a apanharia antes disso. Mas com a minha ajuda, tudo será mais fácil. Vou ajudá-la a se vingar de Giselle de tal forma que você se sentirá não apenas vingada, mas compensada de todos os seus sofrimentos. Giselle é uma vagabunda e não merece viver. Nem morrer. Merece sofrer, agonizar...
- O que você tem contra ela?
- Eu? Particularmente, nada. É que não gosto de ordinárias. Gosto de moças puras e castas feito você.
Com a respiração ofegante, Miguez aproximou o rosto do de Lucena, quase roçando seus lábios, mas ela se levantou apressada, suando frio e sentindo falta de ar. Levou a mão ao peito e, sem coragem de encará-lo, disse com voz miúda:
- Padre Miguez, por favor...
Ele não a seguiu. Permaneceu sentado onde estava olhando para ela com ar de paixão. O corpo todo ardia de desejo, e ele mal podia esperar a hora de tocá-la, de beijá-la, de possuí-la. Quanto mais pensava em seu corpo virgem tremendo sob o seu, mais o desejo o consumia. Contudo, tinha que admitir que ela fosse diferente das outras. As moças com quem se deitava eram acusadas de heresia, e ele apenas cumpria a sua função de verificar se eram virgens ou não. Jamais mantivera qualquer conversa com nenhuma delas. Deitava-se com elas por uma noite e enviava-as de volta para as masmorras, onde os carrascos cuidariam delas. Mas seu interesse por Lucena ia, além disso. Chegou mesmo a pensar se já não estava na hora de ter sua amante particular, como muitos outros inquisidores faziam. Lucena seria uma excelente concubina. Pura, prendada, culta, sozinha no mundo. E grata. Muito grata a ele pelo apoio que lhe estava dando para enfrentar a prisão do pai. Lucena, por sua vez, sabia no que ele estava pensando. Ele era como todos os outros, que só pensavam em sexo. O fato de ser padre não o eximia daquele desejo imundo. Entretanto, precisava dele e faria o que ele quisesse. Ao contrário do que ele pensava, ela não era nem pura, nem casta. Só que ele não sabia. Não sabia nada de seu envolvimento com Ramon. Pensava que ela era virgem, e ela saberia muito bem se aproveitar daquela situação.
- Perdoe-me, Lucena - redargüiu-o em tom de desculpa.
- Não foi minha intenção ofendê-la. Sei que você é pura, e eu não deveria ter feito isso. Não quero que esse infeliz episódio estrague a nossa amizade.
Suspirando aliviada, Lucena retorquiu:
- Não se preocupe padre. Sua amizade já é para mim de grande valia.
Deu-lhe um sorriso sedutor, e ele quase saltou sobre ela, mas conseguiu se conter. Precisava ter cuidado ou estragaria tudo. Lucena era uma dama e não estava acostumada a ser tratada como uma ordinária feito Giselle.
- Sente-se aqui a meu lado - chamou ele, disfarçando os pensamentos lúbricos.
Lucena se aproximou e sentou-se, mantendo cautelosa distância. Olho pregado no chão implorou sentida:
- Não há meios de salvá-lo?
- Infelizmente, minha querida, não há nada que eu possa fazer. Se houvesse, creia-me que o faria sem titubear. Lucena engoliu os soluços e continuou:
- E Blanca?
- Ela é a causa dessa situação. Não se esqueça de que seu pai só foi preso por se envolver com uma moura.
- Mas quem disse que ela é moura? De onde foi que surgiu essa história?
Miguez suspirou e contou-lhe tudo o que sabia sobre a procedência de Blanca, o que deixou Lucena deveras impressionada. Sabia que seu pai tinha negócios em Granada e até já ouvira falar num tal de Hamed Kamal. Mas jamais poderia suspeitar que ele tivesse uma filha, que essa filha fosse Blanca e que seu pai estivesse apaixonado por ela. Ainda assim, não via motivos para fazerem o que fizeram a ambos. Não eram criminosos, e só porque Blanca provinha de uma linhagem oriental não significava que fosse ruim ou herege.
- Não é possível salvá-la? - indagou com fraca esperança.
- Ao menos ela?
- Minha querida, se Blanca confessar, será a primeira a morrer. Não só porque descende de mouros, mas também porque aliciou seu pai para que traísse a verdadeira fé católica. Por isso, esqueça Blanca. Ela não tem salvação.
- Mas prometi a meu pai...
- Concentre-se em Giselle. É através dela que poderá vingar os dois. E estará cumprindo a sua promessa, de um jeito ou de outro.
- E os meus bens? Monsenhor Navarro está confiscando todas as minhas propriedades. Em breve, estarei na miséria.
- Não se preocupe com isso. Verei o que posso recuperar. E depois, Giselle é uma mulher rica.
- E daí?
- Ao longo de todos esses anos, vem prestando valorosos serviços a monsenhor Navarro, dividindo com ele o patrimônio dos condenados.
- E tudo poderá ser meu! - um brilho estranho perpassou os olhos de Lucena, e ela se levantou excitada. - Depois que Giselle for presa, sob a sua orientação, você poderá dar um jeito de transferir-me tudo o que lhe pertence.
- É o que quer?
- É claro. Quero tudo o que é dela. Inclusive sua alma.
- Você a terá. Farei o possível e o impossível para conseguir-lhe isso.
- E monsenhor Navarro? Não disse que ela é sua protegida?
- Monsenhor Navarro nada poderá contra as irrefutáveis provas de heresia que apresentarei contra ela. Nem ele se atreverá a defendê-la diante de tanto sacrilégio.
- Em que está pensando?
- Sei que Giselle anda metida com bruxarias...
- Meu Deus, que horror!
- Sim, é um horror, mas vai nos ajudar. Quando descobrir onde é que ela faz os seus trabalhinhos de magia, tratarei de prendê-la. Não vai ser difícil, você vai ver.
- Oh! Padre, nem sei como lhe agradecer!
Olhos brilhando de sensualidade, Miguez finalizou com voz vibrante de desejo:
- Volte amanhã, minha querida. Há mesma hora.
Quando Lucena saiu dos aposentos de padre Miguez, o dia já estava quase amanhecendo e, em breve, toda a abadia já estaria desperta. Ele se despediu dela a contragosto e foi deitar-se, pensando em dormir ainda por algumas poucas horas. Mas não conseguiu conciliar o sono, de tanto pensar em Lucena. Subitamente, percebeu que não ansiava só pelo seu corpo. Gostava de estar junto dela apenas para poder desfrutar de sua companhia. Aquilo era novo para ele. Miguez jamais havia sentido a falta de nenhuma mulher. Mas então, por que pensava tanto em Lucena? A resposta deixou-o estarrecido. Não queria apenas dormir com ela. Queria para sempre estar a seu lado. Porque a amava. Pela primeira vez em sua vida, Miguez sentiu que amava uma mulher. O sol já ia alto quando Miguez escutou fortes batidas invadindo seu quarto. O som vinha à distância, e ele pensou que ainda estava sonhando. Aos poucos, porém, as batidas foram se intensificando, e percebeu que havia alguém à porta. Abriu os olhos lentamente e olhou para a janela. Apesar de fechada, podia ver o sol se insinuando pelas frestas. Pigarreou diversas vezes, cocou a barba por fazer e ergueu-se com dificuldade, caminhando para a porta a passos vagarosos.
- Já vou, já vou! - esbravejou, ante as batidas cada vez mais insistentes.
Abriu a porta de chofre e deu de cara com Juan, que o olhava espantado.
- Padre Miguez, perdoe-me. É que monsenhor está preocupado. O senhor não apareceu ao desjejum, e ele mandou-me para ver se está tudo bem. Está tudo bem?
Juan tentava olhar por cima de seus ombros, para ver se havia alguma mocinha ali com ele. Mas Miguez se colocou à sua frente, impedindo-lhe a visão, e retrucou de mau humor:
- Diga a monsenhor Navarro que já irei ter com ele.
Fechou a porta na cara de Juan e voltou para dentro. Já eram quase nove horas, tarde demais para a abadia. Precisava arranjar uma desculpa para seu atraso. Arrumou-se às pressas e foi ter com Esteban, que já o aguardava para irem juntos ao Tribunal.
- Miguez! - exclamou o outro, com genuína preocupação ao ver as profundas olheiras que lhe sulcavam a face. - O que houve meu amigo?
Miguez sentiu uma pontada de remorso. Esteban gostava muito dele e era realmente seu amigo. Sua aflição era sincera, e ele quase desistiu de seu plano de apanhar Giselle. Mas logo se recuperou. A visão de Lucena e a certeza de que faria um bem ao outro lhe deram ânimo, e ele tornou, ainda com certa sonolência:
- Perdoe-me, Esteban, dormi demais. É que não passei bem à noite. Acho que foi algo que comi.
- Sente-se melhor agora?
- Sim... Não foi nada, já passou. Apenas um leve mal-estar, uma indisposição. Nem consegui comer nada ao desjejum.
- Não se esqueça de que hoje teremos outro auto-de-fé. Será que conseguirá comparecer?
- É verdade... Havia mesmo me esquecido.
- Hoje serão quatro executados. Três homens e uma mulher. Todos de padre Valentim. O processo inquisitório foi um sucesso, e os quatro confessaram...
Miguez já não ouvia mais o que ele dizia. Seu estômago doía, mas de fome, e ele teve que fingir que não sentia nada. Precisava sustentar sua mentira. Além disso, pensava em Lucena. Ela era linda e pura, e ele se reconhecia apaixonado. Enquanto conversavam, Juan não perdia uma palavra do que diziam. Padre Miguez estava muito esquisito, alheio, sonhador. Tinha certeza de que ele passara a noite com uma mulher. Mal-estar, pois sim! Podia apostar que padre Miguez estivera com alguém. Não vira nem ouvira nada, mas sua intuição lhe dizia que havia algo errado naquela história. Durante todo o dia, não voltaram a tocar no assunto. Era domingo, dia de execução, e todos estavam por demais ocupados, principalmente Esteban. Recebera a incumbência de substituir o inquisidor-geral, ausente em mais uma de suas muitas viagens a Madri. Ao final do auto-de-fé, Miguez pediu licença para se retirar. Estava muito cansado e precisava de repouso. Dormiu o resto da tarde e não apareceu para o jantar.
- Quer que vá chamá-lo, monsenhor? - indagou Juan, todo solícito.
- Não, Juan, deixe-o descansar. Ou melhor, prepare uma bandeja e leve a seus aposentos. Deve estar com fome.
Depois que terminou de comer, Juan fez como Esteban lhe ordenara. Preparou a bandeja e foi levá-la a padre Miguez. Como de manhã, teve que bater diversas vezes até que ele viesse atender. Miguez abriu a porta com brusquidão e já ia dar uma bronca em Juan, que tratou logo de se justificar:
- Perdoe-me, padre, mas foi o monsenhor quem me mandou aqui. Pensou que talvez estivesse com fome.
Estendeu-lhe a bandeja, e Miguez chegou para o lado, mandando-o entrar. Juan pousou a bandeja sobre a mesinha, fez uma reverência e saiu. Miguez estava com fome. Por causa de sua mentira, fora obrigado há passar o dia praticamente em jejum. Nem sabia por que Esteban lhe mandara aquela comida, mas sentiu-se confortado e comeu tudo. Como o dia fora particularmente exaustivo, Esteban apareceu mais tarde, apenas para ver como ele estava passando. Ficou alguns minutos e foi para seus aposentos. Também queria descansar. Por volta das dez horas, a abadia já estava em silêncio. Juan esperou até ouvir os roncos de Esteban, que dormia no quarto contíguo, levantou-se e foi espiar. O cardeal dormia a sono solto. Pé ante pé, abriu a porta e meteu a cabeça para o lado de fora. Olhou de um lado para outro no corredor às escuras. Nem sabia por que estava fazendo aquilo, mas algo lhe dizia que alguma coisa iria acontecer. Os espíritos a serviço de Giselle o estavam intuindo e direcionando. Giselle precisava saber da nova amizade entre Lucena e Miguez, e Juan era o único que poderia descobrir este fato. Com a porta entreaberta, Juan sentou-se no chão e pôs-se a esperar, cochilando de vez em quando. Já era quase meia-noite quando sentiu, mais do que ouviu, alguém chegar pelo corredor. Ergueu-se parcialmente e espiou. Viu quando um vulto negro se aproximou do quarto de padre Miguez, e a porta logo se abriu. Juan esperou alguns minutos e foi até lá, sem fazer qualquer ruído. Ouvido colado à porta escutou vozes no interior. Não conseguia perceber o que diziam, mas sabia que a outra voz era de uma mulher. De vez em quando, as vozes se elevavam, e ele ouvia algumas palavras soltas: meu pai... Vingança... Giselle... Ao ouvir o nome de Giselle, Juan apurou ainda mais os ouvidos. Teria sido mesmo o nome de sua amada que ouvira dos lábios de outra mulher? Mas quem seria aquela mulher e por que falava em Giselle? Seria mesmo a sua Giselle ou outra? Cada vez mais curioso, tentou espiar pelo buraco da fechadura, mas, à meia-luz, era-lhe difícil identificar a mulher. Depois de algum tempo, as vozes se aproximaram da porta, e Juan fez menção de fugir. Se padre Miguez o surpreendesse ali, seria o seu fim. Os espíritos a seu lado, porém, cuidaram para que ele permanecesse, enchendo-o de coragem e determinação, ao mesmo tempo em que trataram de levar Miguez e Lucena para perto da porta, sem que ele a abrisse. Agora mais confiante Juan encostou novamente o ouvido à porta. As vozes soaram mais nítidas, e o noviço escutou claramente o que diziam:
- Você prometeu ajudar!
- E o que estou fazendo.
- Não está! Não o bastante. Meu pai continua preso naquela masmorra infecta, enquanto Giselle anda por aí, espalhando sua luxúria para destruir homens de bem!
- Tenha calma, Lucena.
Do lado de fora, Juan afastou-se aterrado, abafando um grito de horror. Lucena? Então aquela era a filha de dom Fernão e parecia estar de caso com padre Miguez! Aquilo era extremamente perigoso. Aquela moça, pelo visto, já descobrira quem delatara o pai e tinha fortes motivos para odiar Giselle. E fora aliar-se justo a padre Miguez, que vivia à espera de uma oportunidade para destruí-la. Precisava apressar-se e contar tudo a Giselle. Somente na noite seguinte foi que Juan conseguiu despistar Esteban e ir à casa de Giselle. Mas já era tarde, e foi informado por Belinda que Giselle estava na taverna e só voltaria ao amanhecer. Não tinha remédio. Precisava ir ao seu encontro na taverna mesmo. Envergou um manto negro e partiu apressado. Quando entrou, Manuela dançava sobre a mesa, tendo a seus pés diversos homens, que gritavam e aplaudiam. Não viu Giselle e sentou-se para esperar. Sanchez foi caminhando em sua direção, mas Manuela já havia parado de dançar e descera da mesa, alcançando-o primeiro.
- Olá, rapazinho - cumprimentou ela, apertando-lhe o queixo. - O que faz aqui à uma hora dessas? Não devia estar na cama?
Juan afastou a mão dela com irritação e indagou exasperado:
- Onde está à senhorita Giselle?
Encarando-o com certa ternura, Manuela respondeu com ar materno:
- Sabe mocinho, não tenho nada com sua vida, mas vou dar-lhe um conselho: esqueça Giselle. Ela não é mulher para você.
Juan sentiu o rosto arder, e a raiva foi tomando conta de seu peito. Encarou Manuela com ódio e disparou:
- O que você tem com isso? Não tem nada com a minha vida nem com a de Giselle. Você tem é inveja dela.
Manuela ergueu o corpo e deu de ombros, acrescentando com frieza:
- Pense como quiser. Mas depois, não diga que não avisei. Giselle só tem olhos para Ramon...
- É mentira!
Nesse momento, Giselle e Ramon vinham vindo lá de dentro. Percebendo o ar exaltado de Juan, a moça fez sinal para Ramon, que se afastou, sob o olhar hostil do noviço. Manuela, por sua vez, deu de ombros novamente e foi servir as mesas do outro lado.
- Muito bem, Juan - falou Giselle sedutora. - O que o traz aqui dessa vez?
Juan procurou Ramon com os olhos, mas não o encontrou e respondeu taciturno:
- Aquele é Ramon?
- É sim. Por quê? Quem foi que lhe contou?
- Sua nova dançarina. A intrometida.
- É mesmo? - tornou Giselle irritada. - O que mais ela lhe disse?
- Disse que você só tem olhos para Ramon.
- Ela deve estar com ciúmes. Afinal, você é um rapaz bonito...
Sentou-se a seu lado e pousou a mão sobre o seu joelho, fazendo-lhe uma carícia discreta. Juan enrubesceu e quase caiu da cadeira, enquanto Giselle o fixava com um olhar cada vez mais sedutor.
- Giselle, eu... Eu...
- Não precisa ficar nervoso. Agora me diga. Tem alguma novidade para me contar?
Rosto coberto de rubor, Juan aquiesceu, o que causou certo sobressalto em Giselle. Embora mantivesse o noviço sob seu controle, confiava na palavra de Esteban de que nada lhe aconteceria. Em silêncio, apanhou a sua mão e puxou-o para dentro, indo com ele para o quarto que ficava nos fundos da taverna. Acomodou-o numa cadeira e sentou-se na mesa, balançando as pernas diante dele e fazendo com que o vestido se levantasse propositalmente até a altura dos joelhos. Juan não conseguia despregar os olhos das pernas de Giselle. Por mais que tentasse, havia nela um magnetismo que o atraía cada vez mais.
- Muito bem, Juan. Agora me conte o que aconteceu.
Prolongando-se o mais que pôde, Juan lhe contou sobre a visita da mulher a padre Miguez, que descobrira ser Lucena, filha de dom Fernão. Giselle ficou alarmada. Todos os seus sentidos se aguçaram, e ela teve certeza de que aquela amizade seria extremamente perigosa, não só para ela, mas também para Ramon. Se Lucena soubesse que Ramon a deixara por ela, seu ódio seria ainda maior.
- Por favor - implorou Juan -, não diga nada a monsenhor Navarro. Se ele descobrir que fiquei escutando, vai me castigar.
- Não se preocupe, não pretendo dizer nada. E agora vá. Preciso pensar no que fazer.
Juan se levantou timidamente e ficou parado diante dela, pensando no que lhe dizer.
- Senhorita Giselle... - balbuciou.
- O que foi?
- Sabe o quanto gosto de você, não sabe?
- Sei sim.
- E você disse que também gostava de mim...
- Ah! Mas eu gosto.
- Não está apenas me usando?
- Eu? Imagine Juan. Gosto de você. Só que não quero prejudicá-lo.
- Então, afaste-se desse tal de Ramon.
Aquele era um terreno perigoso. Juan morria de ciúmes de Ramon e, se descobrisse quem ele era, poderia traí-la e colocá-los em sério risco. Precisava fazer alguma coisa. Ao invés de responder, desceu da mesa e aproximou-se dele. No mesmo instante, o coração de Juan disparou. Calmamente, Giselle apanhou a sua mão e levou-a aos lábios, puxando-o para si com ar de paixão. Beijou-o com ardor, e Juan tentou fugir. Mas Giselle não permitiu. Com mãos hábeis, pôs-se a acariciar o seu corpo todo, até que ele não pôde mais resistir. Juan agarrou-a com volúpia e levou-a ao chão, desajeitadamente deitando-se sobre ela. Auxiliado por Giselle, Juan teve sua primeira noite de amor. Se antes já estava apaixonado por ela, agora, então, sentia que não poderia mais prescindir de seu corpo.
- Agora volte, para a abadia - falou Giselle, ao mesmo tempo em que o beijava. - Não queremos que Esteban dê pela sua falta, não é?
- Não... - calou-se envergonhado. - Posso vir vê-la amanhã?
- É perigoso.
- Darei um jeito.
- Não sei se seria prudente.
- Por que não quer que eu venha?
- Não é isso...
- É por causa de Ramon?
- Esqueça Ramon. Ele é apenas um amigo.
- De onde foi que surgiu esse amigo tão repentino?
- Não interessa. Ramon é meu amigo e pronto. Não é como você.
- Como eu?!
- Você é o meu menino, meu amor. Mas agora deve ir.
A muito custo conseguiu convencê-lo. Apesar de contrariado, Juan se foi, morto de ciúmes. Vendo-o afastar-se no fim da rua, Ramon voltou para a taverna. Ficara do lado de fora, à espera que o rapaz saísse, para não lhe despertar ainda mais ciúmes.
- Puxa! - exclamou, fechando a porta do pequeno gabinete onde Giselle se encontrava. - Pensei que ele não fosse mais embora!
Percebendo a cara de preocupação de Giselle, Ramon estacou alarmado.
- Você nem pode imaginar o que aconteceu.
- O que foi?
Ao saber que sua ex-noiva estava se encontrando com padre Miguez e que pretendia vingar-se de Giselle, Ramon sentiu um frio na espinha. Sabia que ela não era mais virgem, e tornar-se amante de Miguez era apenas questão de tempo. Quando descobrisse a verdade, não hesitaria em liquidá-los.
- Esteban está do nosso lado - Giselle procurou tranqüilizar. - Eu acho...
- Então, sugiro que vá falar com ele.
- Farei isso.
Ainda que Juan lhe pedisse que não contasse nada a Esteban, ela não podia permitir que Miguez tramasse a sua destruição junto com aquela Lucena, que ela sequer conhecia. Precisava agir antes deles. Padre Miguez era influente, mas Esteban era muito mais. Encontraria um jeito de protegê-la. Esteban conversava animadamente com um rapaz recém-chegado. Alto, moreno claro, olhos castanhos suaves, tipo galante e sedutor. Tratava-se de seu sobrinho, Diego Morales, que acabara de chegar de Madri. Diego era filho de sua única irmã, Marieta, que o mandara para Sevilha devido a complicações financeiras. O rapaz tinha um temperamento estouvado e vivia se metendo em encrencas. Marieta, uma respeitável senhora viúva, já não sabia mais o que fazer com ele, e uma viagem a Sevilha, aos cuidados do tio cardeal, pareceu uma boa saída para seus problemas.
- Então, Diego - dizia Esteban, segurando nas mãos a carta que a irmã lhe enviara -, continua fazendo das suas, hein, meu rapaz?
- Pois é, tio. Para o senhor ver.
- Quando é que vai tomar juízo? Sua mãe já não sabe mais o que fazer com você.
- Na verdade, tio Esteban, mamãe se preocupa demais. Não fiz nada.
- Não é o que ela conta aqui na carta. Sua mãe diz que você leva uma vida desregrada e está se enchendo de dívidas. O que espera da vida, meu filho?
- Minha mãe exagera. Eu apenas gosto de gozar a vida, e não há motivos para alarme. Meu pai nos deixou muito bem, embora minha mãe controle todo o nosso patrimônio.
- Tem se ausentado muito. Sua mãe se preocupa...
- Pois não devia. Ela sabe aonde vou.
Esteban balançou a cabeça, contrariado. Aquele rapaz não tinha juízo algum. Já estava beirando os trinta anos e não se emendava. Bem fizera o pai quando constituíra aquele usus et fructus(1) em favor da esposa. Não fosse assim, Diego, na certa, já teria dilapidado todo o patrimônio da família. Ao menos, com o gravame, ele só poderia livremente dispor dos bens após a morte da mãe.

(1) Usus et fructus = do latim, usufruto (N.A.)

- Você não se emenda, rapaz - repreendeu Esteban severamente.
Diego já ia retrucar quando bateram à porta e Juan entrou a cara mais branca do que nunca.
- O que é Juan? Por que nos interrompe assim?
Sem que tivesse tempo de responder, Giselle empurrou-o para o lado e entrou apressada, postando-se diante de Esteban. Sem nem se dar conta do ar embasbacado de Diego, foi falando em tom nervoso:
- Preciso falar-lhe, Esteban. É urgente!
- Giselle! - tornou Esteban aparvalhado, com medo do que o sobrinho pudesse pensar. - Como se atreve?
Só então Giselle se apercebeu da presença do rapaz. Estacou abruptamente e olhou para ele. Na mesma hora, Diego se empertigou todo e foi logo dizendo:
- Não se preocupe comigo, meu tio. Já estava mesmo de saída. Vou dar uma volta por aí com Juan e depois conversaremos. Mas antes, por que não me apresenta a beldade?
Confuso, Esteban se levantou e apanhou Giselle pelo braço, conduzindo-a para a porta.
- Monsenhor! - a suplicou. - Espere! Não faça isso! Preciso falar-lhe! É urgente!
- Ora, ora, meu tio, mas o que é isso? - ironizou Diego. - Isso não é jeito de tratar uma dama. Deixe que me apresente senhorita. Chamo-me Diego Morales, a seu dispor.
Fez uma reverência galante, que Giselle teria até apreciado em outros tempos. Contudo, dada a gravidade da situação, não se podia dar ao luxo de reparar naqueles gracejos.
- Por favor, monsenhor - tornou ela, sem responder à apresentação de Diego.
- Ora, vamos, meu tio, fale com a moça. Como é mesmo o seu nome?
- Giselle - respondeu ela, timidamente.
- Giselle... Soa como nome de princesa. Lindo, tal qual a dona.
- Diego, por favor, pode nos deixar a sós? - tornou Esteban com voz grave. - Creio que a senhorita Giselle deve ter algo importante a me dizer.
- Pois não, meu tio. Seria mesmo muita indelicadeza de sua parte não atender ao apelo de tão formosa dama.
Fez nova mesura e saiu, passando por Juan, que permanecia parado no mesmo lugar, sem dizer nada.
- E você, Juan? - continuou Esteban, mal contendo o nervosismo. - O que está esperando?
Juan ainda lançou um último olhar para Giselle, que não passou despercebido a Esteban. Desde aquela noite em que ele delirara, Navarro estava certo de seus sentimentos para com sua ex-amante. Será que os dois andavam se encontrando? Mas Giselle lhe dissera que estava apaixonada por Ramon de Toledo. O que estaria acontecendo?
Depois que Juan e Diego se foram, Esteban soltou o braço de Giselle e indagou com extrema contrariedade e irritação:
- O que deu em você, Giselle? Já não disse que não viesse mais aqui? Não quero que os padres comentem...
- Foi por isso mesmo que vim. Por causa de um padre. De padre Miguez!
- O que quer dizer?
- Não sei se você sabe, mas padre Miguez está se encontrando com Lucena Lopes de Queiroz, filha de dom Fernão.
Esteban abriu a boca, indignado, e retrucou sem acreditar:
- O que está dizendo, mulher? Por acaso você enlouqueceu?
- Não enlouqueci, não. Juan escutou tudo...
- Juan?
- Sim. Ele viu quando Lucena foi ao quarto de padre Miguez e ouviu os dois tramando contra mim.
- Tramando contra você? Mas como?
- Ela me odeia Esteban. Já deve saber que fui eu que delatei o seu querido paizinho. E está de caso com Miguez. Ele me odeia também. Já pensou no que os dois podem fazer contra mim, ainda mais se descobrirem sobre meu envolvimento com Ramon?
Esteban silenciou. Fazia sentido. No dia em que Lucena fora procurá-lo, implorando para que salvasse a vida de seu pai, Miguez quase a derrubara com a porta. Depois que ela se foi, ele saiu às pressas, provavelmente atrás dela. Navarro conhecia muito bem a fraqueza de Miguez. Lucena era uma jovem linda e fresca, provavelmente virgem, e era bem provável que Miguez estivesse louco para se deitar com ela.
Pensando nisso, levou as mãos à cabeça e desabou sobre a poltrona, fitando Giselle com um misto de medo e piedade. Naquele momento, foi acometido de estranha sensação. Sentiu um aperto no coração, um estrangulamento na garganta, e foi como se previsse o seu fim. Giselle estava condenada, ele sabia, embora relutasse em aceitar.
- Tem certeza disso? - tornou ele, após o susto do primeiro impacto.
- Tenho. Foi o próprio Juan quem me contou.
- Por que ele fez isso? Por que Juan foi até você? - como ela permanecesse calada, ele mesmo respondeu: - Porque o tolo está apaixonado, e você sabe se aproveitar disso, não é?
- Não é bem assim...
- Fique longe de Juan, Giselle, eu lhe imploro. O rapaz é inexperiente, pensa que está apaixonado.
- Mas eu não estou.
- Por isso mesmo. Por que enganá-lo? Ele sabe que você pretende se casar com Ramon?
- Não.
- Tampouco desconfia que Ramon fosse noivo de Lucena, não é?
- Não.
- Só eu sei disso. Vocês dois correm sério perigo. É bom que se separem.
- Não posso fazer isso! Você prometeu Esteban. Prometeu que eu me casaria com ele.
- O que você prefere? Casar-se com Ramon ou continuar viva? - ela abaixou os olhos e começou a chorar. - Deixe tudo por minha conta e faça exatamente como eu mandar.
- O que vai fazer?
- O que já deveria ter feito há muito tempo. Arranjar o seu casamento com dom Solano Díaz o quanto antes. Ele é um homem acima de qualquer suspeita.
- Por favor, Esteban, não faça isso. Não posso me casar com outro homem que não seja Ramon.
- Será que você não entende? Está claro que Miguez e Lucena estão tramando contra você. Se eles descobrirem sobre você e Ramon, farão de tudo para destruí-la. E se Miguez começar a investigar e acabar descobrindo o seu pequeno porão será o seu fim. Nem eu, com toda a minha influência, poderei ajudá-la.
Giselle desatou a chorar descontrolada. Não queria se casar com aquele Solano Díaz, mas também não queria morrer. Precisava salvar-se e salvar Ramon.
- Está certo, Esteban - concordou em lágrimas. - Confio em você e sei que fará o melhor por mim.
- Ótimo! Agora vá para casa e aguarde até que eu mande chamá-la. E diga a Ramon para desaparecer.
- Mas...
- Se você o ama, faça isso. Diga-lhe para sumir e nunca mais tornar a vê-la. Caso contrário, ambos estarão perdidos.
Com o coração pequenininho, Giselle voltou para casa. Ramon ainda estava dormindo, e ela deitou-se a seu lado, completamente arrasada. Sentindo o calor de seu corpo, Ramon despertou e abraçou-se a ela, tentando fazer com que se deitasse ao seu lado.
- Por favor, Ramon...
Ele esfregou os olhos e empertigou-se na cama, indagando entre bocejos:
- O que foi que houve? Você está toda arrumada. Vai sair? Vai ver monsenhor Navarro?
- Já fui.
- Falou com ele?
- Falei sim.
Minuciosamente, Giselle contou-lhe a conversa que tivera com Esteban. Apesar de não ficar nada satisfeito com o casamento, Ramon acabou concordando que, naquele momento, seria a melhor solução.
- Como pode dizer isso? Vamos nos separar.
- Nada poderá nos separar. Vamos continuar nos encontrando, só que às escondidas.
- Amante você quer dizer?
- E por que não? Não vai me dizer que adquiriu escrúpulos, de uma hora para outra.
- Mas não foi isso o que planejamos!
- Também não estava nos nossos planos esses casinho entre Lucena e o tal padre - fez uma pausa e continuou em tom sério. - Muito menos planejamos morrer.
- O que faremos?
- Você se casa com esse Solano, e eu continuo tomando conta da taverna com Manuela...
- Isso não! Vou despedir Manuela. Não quero deixá-la a sós com você.
- Não seja ciumenta. Sem você e sem Manuela, por que acha que os homens continuariam indo à taverna? Para me ver?
- Manuela está interessada em você, e sei o quanto você também a admira. Sem mim por perto, não sei o que poderá acontecer.
- Deixe de tolices. A taverna é uma excelente fonte de renda. Não gostaria de perdê-la.
- Não precisaremos mais dela. Meu futuro marido é um homem rico...
- E daí? É rico, mas o dinheiro é dele, não meu.
- Poderá ser seu um dia.
- Não vejo como... - calou-se, espantado com seus próprios pensamentos. - Pensando bem, homens ricos deixam viúvas ricas, minha querida. Não é verdade?
Uma nuvem de desconfiança passou pela cabeça de Giselle, e ela rebateu curiosa:
- No que é que está pensando, Ramon?
- Tudo há seu tempo, meu bem. Por ora, case-se com Solano e deixe-me com a taverna. Mais tarde, depois que tudo se acalmar, daremos um jeito nele.
Daquele dia em diante, Ramon nunca mais apareceu na taverna. Ia à casa de Giselle pela floresta e entrava pelo porão sem ser visto. Seria assim até o casamento e depois dele. Não podiam mais ser vistos juntos e não pretendiam deixar-se apanhar. Giselle estava esperançosa, confiante em Esteban. Mais um pouco e conheceria seu futuro marido, com quem se casaria e de quem, algum tempo mais tarde, se tornaria a infeliz viúva. Com tantas coisas acontecendo, Giselle não poderia permanecer inerte, à espera de ser presa ou surpreendida. Com cuidado, aprontou tudo de que precisava. Faria um poderoso trabalho de bruxaria, invocando os espíritos das trevas para que cuidassem de tudo. Levava-lhes sete carneiros, que imolaria em seu novo altar, montado em um lugar ainda mais afastado da floresta, onde a mata se tornava mais densa e a lua mal penetrava. Chamou Belinda e Belita e mandou que segurassem os cordeiros. Colocaram em uma bolsa vários objetos, como raízes, dentes de animais e até de pessoas, além de alguns ossos e uma caveira, que guardava para ocasiões especiais. Pena que não conseguira nada de uso pessoal de Miguez e de Lucena, para trabalhar bem com suas próprias energias. Mas não fazia mal. O resultado seria o mesmo. As escravas a serviam sem dizer nada. Em sua terra, já haviam visto muitos feitiços e conheciam bem aqueles procedimentos. Como das outras vezes, Giselle sacrificou os animais e chamou os espíritos das sombras, que já estavam a postos, prontos para sugar o sangue dos cordeiros. Giselle matou seis carneiros e ajeitou-os em círculo, com as bacias na frente, colocando no meio a caveira com os demais objetos. Em seguida, tornou a evocar os espíritos, proferindo os nomes de Miguez e Lucena várias vezes. Já quase em transe, apanhou o sétimo carneiro e, auxiliada pelas escravas, sacrificou-o sobre a caveira e os ossos e, enquanto o sangue escorria, apanhou um pedaço de papel e nele escreveu, com o sangue do animal, os nomes completos de Miguez e Lucena. Depois, retiraram de uma sacola dois bonecos de pano e colocou-os sobre cada um dos nomes que havia escrito, lambuzando-os de sangue também. Os espíritos ao redor exultavam. A matança instigara-lhes os instintos mais primitivos, e eles pareciam embriagados de tanto prazer. Giselle serviu-lhes rum também, e eles puseram-se a sugar a essência da bebida, juntamente com a do sangue. Quem pudesse ver o mundo astral pensaria estar diante de tenebrosa orgia. Alguns espíritos se entregavam mesmo a práticas lascivas, esfregando corpos, acariciando-se com euforia, fazendo sexo sobre o sangue derramado dos cordeiros. Giselle podia sentir a poderosa energia que afluía para o ambiente e permanecia parada diante do altar macabro, proferindo estranhas palavras em uma língua desconhecida. Belita e Belinda, embora nada dissessem, estavam apavoradas, sentindo que uma força maligna tomava conta da floresta. Olharam para Giselle e perceberam que ela estava em transe, fazendo gestos vibrantes e obscenos. Em dado momento, Giselle tombou ofegante, o corpo todo sacudido pelas últimas vibrações dos espíritos que para ali acorreram. Lembrava-se vagamente do que acontecera porque, nessas ocasiões, sentia a mente tomada por estranha força e parecia perder o domínio sobre si mesmo. Mas sabia que a oferenda havia sido bem aceita. Podia sentir a satisfação dos espíritos das sombras.
- Se vocês fizerem o que pedi - fremiu Giselle, a voz vibrante de ódio e excitação -, prometo-lhes muito mais! Prometo arranjar-lhes o sangue daqueles dois! De Miguez e de Lucena!
Belita e Belinda sentiram um calafrio e se encolheram sem coragem para dizer nada. Esperaram até que Giselle terminasse a sua magia e as chamasse, e as três partiram para casa em silêncio. Durante todo o caminho de volta, Giselle sentia que alguém a observava. De vez em quando, parava e olhava para trás, pensando surpreender algum bandido ou malfeitor. Mas ninguém apareceu, e ela chegou à casa assustada, presa de estranha sensação. As escravas pareciam não haver notado nada, porque não esboçaram nenhuma reação, e Giselle achou melhor se calar. Devia ser impressão. Foi para seu quarto, deitou-se e logo adormeceu. No mesmo instante, seu perispírito se desprendeu do corpo, e ela se surpreendeu com a presença do pai ali a seu lado. Envergonhada, não se aproximou, tentando retornar ao corpo e despertar.
- Por que faz isso, Giselle? - o indagou com profunda tristeza. - Por que não utiliza os seus conhecimentos na prática do bem?
Coberta de vergonha, ela parou perto da cama e se voltou para ele bruscamente, os olhos rasos d'água.
- Mas que bem é esse de que fala pai? Desde quando o mundo trabalha para o bem?
- Desde que existam pessoas amorosas e de boa-vontade.
- Isso não existe. O mundo é cruel, mesquinho, perverso. Você sabe disso.
- Não é verdade. O mundo nada mais é do que um reflexo dos espíritos que o habitam. No momento em que os homens modificarem suas atitudes, o mundo também se modificará.
- O que você fala é muito bonito. Mas acontece que ninguém é desse jeito. Até hoje, só conheci pessoas más e egoístas.
- Será mesmo, minha filha? Será que eu também sou assim?
- Você não é mais ninguém. É apenas uma sombra.
- Sou um espírito eterno, assim como você.
- Você não habita mais este mundo.
- Assim como você, em breve, também não mais habitará.
- Está blefando! Nada vai me acontecer. Fiz um trato com os espíritos das trevas.
- Os espíritos das trevas nada podem contra a poderosa força da vida e a escolha da morte.
- Não quero morrer, pai.
- No momento em que se envolveu com toda essa magia, você selou a hora de sua morte. Embora não saiba, sua alma já está cansada de tanta podridão.
- No fundo, você tem razão. Estou mesmo cansada de tudo isso. Queria viver em paz com Ramon, mas aqueles dois cretinos não permitiram.
- Ninguém pode viver em paz não tendo paz na consciência.
- Minha consciência não me acusa de nada.
- Não? E os muitos que você levou à morte?
- Não fui eu. Não matei ninguém.
- Será que os que morreram também pensam assim?
- Isso não me interessa.
- Eles estão por aí, Giselle. A maioria desses espíritos continua presa ao mundo corpóreo, sem conseguir perdoar, em busca de vingança. E sabe o que vai acontecer quando você desencarnar? Você vai sintonizar com eles e ser arrastada para o astral inferior, sem nem perceber os espíritos de luz à sua volta. É isso o que deseja?
- Não me importo. Deve ser melhor do que o céu onde você se encontra.
- Diz isso porque ainda não experimentou a verdadeira dor. Nada do que acontece nesse mundo pode se comparar às torturas que os espíritos inferiores são capazes de infligir. E sabe por quê? Porque eles não têm limites. No mundo invisível não há o limite da carne ou da morte, e por mais que se faça a um espírito, ele nunca poderá morrer e se libertar. Mesmo que se desintegre enquanto ser humano, mesmo que perca as formas e se transforme numa massa disforme e sem consciência, ainda assim estará em sofrimento, porque continuará vivo.
- Tenho amigos nas trevas, pai. Eles não permitirão que isso me aconteça.
- Ninguém tem amigos nas trevas. A amizade pressupõe nobreza de sentimentos, e os que assim sentem já estão prontos para deixar o astral inferior. O que há nas trevas é interesses. Os espíritos se ligam por afinidade de propósitos, por interesse, mas não pelo sentimento de amizade.
- Ainda assim. Posso mantê-los presos aos meus interesses.
- Até quando? Até o momento em que não tiver mais como satisfazê-los.
- Isso não acontecerá.
- Isso já está para acontecer.
- Pare com isso! Você não sabe o que diz.
- Ouça o que estou lhe dizendo, Giselle. No momento em que parar de satisfazer aos seus amigos das trevas, eles vão voltar-se contra você...
- Deixe disso, pai. Você não me impressiona.
- Não quero impressioná-la. Quero que você sinta o meu amor e desperte o amor que há dentro de você. O meu amor não toca o seu coração?
Giselle começou a chorar descontrolada. Encarou o pai e pensou em abraçá-lo, mas havia tanta luz emanando de seu corpo fluídico que ela se sentiu ofuscada e recuou.
- Você foi à única pessoa no mundo que me amou de verdade. Por que teve que me abandonar? Se estivesse ao meu lado, talvez nada disso tivesse acontecido.
- Não tente fugir a suas responsabilidades. Não fui eu que a obriguei a enveredar pelo espinhoso caminho do mal.
- Nem eu. Foi o destino...
- O destino, minha filha, somos nós que fazemos, de acordo com aquilo que desejamos e em que acreditamos. E você pode mudar o seu.
- Não posso - retrucou-a em lágrimas, começando a lhe dar razão. - Já estou condenada.
- Quem a condenou? - ela não respondeu. - Você mesma. É você mesma quem está se condenando, porque sua alma tem consciência da gravidade de seus atos. Mas não precisa ser assim. Você pode endireitar a sua vida e deixar de lado essas práticas nefastas.
- Não, pai. Estou por demais comprometida com as trevas para almejar a luz.
- Não tem que ser assim, Giselle, acredite. Ninguém se compromete a esse ponto com as trevas. Se você demonstrar um arrependimento sincero e se voltar para Deus com o seu coração, as trevas não terão forças contra você.
- Deus... Não quero nada com Deus, nem ele comigo.
- Não fale assim. Deus nos ama a todos com igualdade.
- Duvido. Deus jamais amaria uma criatura sórdida feito eu.
- Se já tem consciência de sua sordidez, por que não se propõe a mudar? Renuncie a essa vida de prazeres e abra o seu coração para as verdades do espírito.
- Não posso. Não quero. Se mudar significa renunciar, muito obrigada. Estou feliz do jeito que estou, e esteja certo de que os espíritos que me auxiliam não permitirão que nenhum mal me aconteça, ao contrário de você e do seu Deus, que nunca estão presentes quando preciso!
Virou-lhe as costas furiosa e retornou ao corpo, que estremeceu levemente no sono. Giselle despertou suando frio. Coração descompassado levantou-se e foi beber água. Ainda podia sentir a presença do pai a olhá-la entristecido. Apanhou a água e bebeu sofregamente. De repente, fixou os olhos num pequeno ponto luminoso perto de sua cama e deixou o copo cair ao chão, nem sentindo a ponta dos cacos que voavam sobre seus pés. Do outro lado do quarto, uma claridade foi se formando, e Giselle viu nitidamente a figura paterna. Semblante triste, envolto num halo de luz, Ian balançou a cabeça e voltou-lhe as costas, sumindo pela parede. Atrás dele, um rastro de luminosidade foi se esvanecendo no ar. Aturdida, Giselle correu em sua direção. Tarde demais. A imagem já havia sumido por completo, e apenas o que restou foi à parede fria de pedra. Aos prantos, Giselle fechou as mãos e começou a dar murros na parede, ao mesmo tempo em que desabafava sentida:
- Pai! Pai! Não me deixe! Por favor, pai, perdoe-me! Perdoe-me!
A voz foi morrendo na garganta, e Giselle deslizou até o chão, corpo sacudido pelos soluços, até novamente adormecer, encostada na parede, e esquecer o sonho e a oportunidade que o pai, tão amorosamente, lhe oferecera. Naquela noite quando Lucena chegou à abadia, encontrou Miguez acabrunhado e triste, mal conseguindo levantar os olhos para encará-la.
- O que foi que houve? - a indagou preocupada.
Após alguns breves minutos de silêncio, Miguez fitou-a com profunda tristeza e deixou escapar num desabafo:
- É o seu pai...
- Está morto?
- Ainda não. Mas não tarda.
- Meu Deus, padre, o que foi que aconteceu?
- Foi difícil obter-lhe a confissão. Mas Esteban, finalmente, conseguiu. Seu pai já nem raciocina mais direito, fala coisas sem nexo. Acho que sua mente já não funciona direito, após sucessivas sessões de tortura da gota (2).
Lucena começou a chorar descontrolada, atirando-se nos braços de Miguez. Naquele momento, a compaixão do padre foi genuína, e ele, afagou os seus cabelos, sentindo-se inebriado pelo seu perfume. Como a desejava! Mais do que isso, sentia que já a amava e, pensando melhor, talvez a morte de dom Fernão fosse até providencial. Sozinha no mundo e sem dinheiro, Lucena precisaria de um protetor, e ele poderia então tomá-la livremente por amante.
- Oh! Padre, padre! Preciso vê-lo.
- Você não deve. Ele está condenado. Sua morte é questão de horas.
- Por quê? O que foi feito dele? Onde está?
Com imenso pesar, Miguez abaixou o tom de voz e sussurrou com certa vergonha:
- Esteban o colocou na Virgem (3). Seu pai está fraco demais para comparecer ao auto-de-fé e acabaria morto antes da hora, o que poderia estragar o espetáculo e provocar uma comoção na turba sedenta de sangue.

(2) Tortura da gota = espécie de caixa d'água, sob a qual se prendiam as vítimas, e de onde caíam gotas d'água que acertavam sempre o mesmo ponto da nuca. (N.A.)
(3) Virgem de Nuremberg = espécie de sarcófago, cujo interior era repleto de lâminas que perfuravam partes não vitais do corpo da vítima, levando-a a morte lenta por hemorragia e infecção. (N.A.)

Lucena levou as mãos aos ouvidos, tentando não escutar aquelas atrocidades. Podia imaginar o suplício de seu pai no interior daquela máquina, o que lhe causou um pranto sofrido e angustiado.
- Padre Miguez, por favor, preciso vê-lo - suplicou em lágrimas.
- Não, Lucena. Poupe-se desse sofrimento.
- Mas ele é meu pai! Preciso vê-lo ao menos uma vez antes de sua morte.
- Não há meios de vê-lo. Ele está enclausurado dentro da Virgem. E, mesmo que isso fosse possível, provavelmente, ele não poderia mais reconhecê-la.
- Mesmo assim. Por favor, padre, não me negue isso. Farei o que você quiser, mas, por favor, leve-me até meu pai.
Miguez suspirou profundamente. Apanhou a capa e saiu com Lucena pelo corredor às escuras, em direção às masmorras, que ficavam no prédio do Tribunal, contíguo à abadia. O ar era extremamente pesado e fétido, e Lucena sentiu-se mal. Parecia-lhe pior do que da outra vez em que ali estivera. A um sinal de Miguez, o carcereiro abriu a pesada porta da masmorra e eles entraram. Passaram entre os vários supliciados, presos aos mais variados instrumentos de tortura, até que alcançaram a Virgem. Ao ver o estranho sarcófago, Lucena engoliu em seco. Não havia nenhuma fenda por onde pudesse ver o seu interior, mas ela notou o filete de sangue que escorria pelas frestas abaixo. Mal contendo o pranto, aproximou-se do sarcófago e ajoelhou-se diante dele, tocando-o de leve com as mãos.
- Pai... - sussurrou num soluço angustiado.
Não conseguiu dizer mais nada. O pranto a consumiu totalmente, e Lucena pensou que fosse desmaiar. Por cerca de dez minutos permaneceu ali, agarrada ao sarcófago macabro, até que escutou uma tênue voz vinda de seu interior. Não era propriamente uma voz, mas um gemido agonizante, um murmúrio de lágrimas, e ela percebeu que o pai chorava. Ainda vivia, mas, pela fraqueza daqueles soluços, tinha certeza de que não por muito tempo.
- Pai - continuou Lucena, a voz vibrante de ódio e revolta - eu juro, pai, vou vingar a sua morte. Sei quem é Giselle. Ela não escapará. Nem ela, nem monsenhor Navarro. Vou vingá-lo, pai, a você e a Blanca.
Dom Fernão, em seus derradeiros momentos de vida, conseguiu escutar as últimas palavras de Lucena que, poucos instantes depois, ouviram o seu estertor de morte. Em seguida, silêncio. Lucena bateu de leve no sarcófago, mas nenhum som veio de seu interior. Ainda agarrada a ele, redobrou o pranto, até que foi amparada por Miguez, que, a muito custo, conseguiu arrancá-la dali.
- Venha, Lucena - o chamou ele com piedade -, vamos embora daqui. Ele já não pode mais ouvi-la.
Quase desfalecida, Lucena saiu apoiada nos braços de Miguez. O padre chamou uma carruagem e levou-a para casa. Entregou-a aos cuidados de Consuelo e voltou para a abadia. Na mesma hora, ela adormeceu. Havia sido tomada por profunda exaustão e por imenso desgaste emocional em razão dos últimos acontecimentos. No dia seguinte, acordou com Consuelo a seu lado, chorando e gesticulando sem parar. Aos poucos retornando do sono, Lucena ergueu-se na cama e indagou o que estava acontecendo.
- Oh! Senhorita - respondeu a criada, completamente transtornada. - Estão aí uns homens de monsenhor Navarro. Querem tomar a casa.
- Tomar a casa? Como assim?
- Disseram que a senhorita tem vinte e quatro horas para sair, levando apenas os seus pertences pessoais. Tem que deixar os móveis, a louça, a prataria...
Rapidamente, Lucena levantou-se e jogou uma capa sobre os ombros, saindo para a sala.
- Mas o que é que está acontecendo aqui? - perguntou furiosa. - Como ousam?
- Senhorita - falou um dos soldados -, são ordens de monsenhor Navarro. A senhorita tem vinte e quatro horas para desocupar a casa, levando apenas seus pertences pessoais, ou então seremos obrigados a despejá-la.
- Despejar-me? Como? Para onde é que irei?
O soldado deu de ombros e entregou-lhe um pergaminho, que ela desenrolou e pôs-se a ler avidamente. Por aquele documento, todas as propriedades de dom Fernão passavam agora ao poder da Igreja, inclusive a casa em que ela sempre vivera. O homem aguardou até que ela terminasse de ler tudo, certificando-se de que compreendera bem, fez sinal para os demais e, com gestos bruscos, virou-lhe as costas e se foi.
- Oh! Senhorita! - lamuriou-se Consuelo. - O que faremos agora?
Lucena nem ouvia o que a outra dizia. Voltou para o quarto e vestiu-se apressada, saindo em desabalada carreira para a abadia. Foi informada de que padre Miguez estava no Tribunal, em uma de suas sessões de tortura, e partiu para lá às pressas. Atravessou os corredores sem se importar com as pessoas, muitas das quais tentavam impedi-la, e foi direto para a masmorra, cujo caminho já conhecia muito bem.
À entrada, um soldado a deteve, falando-lhe rudemente:
- Aonde pensa que vai senhorita? Não pode entrar sem autorização.
- Deixe-me passar! Preciso falar com padre Miguez! Exijo vê-lo agora!
O homem segurava-a pelo braço e estava mesmo disposto a expulsá-la dali, mas Miguez apareceu subitamente. Assim que o viu, ela começou a esbravejar:
- Miserável! Cretino! Pensei que fosse meu amigo!
O soldado fez menção de que ia bater-lhe, mas, a um gesto de Miguez, encolheu a mão e soltou o seu braço. Sem alterar as feições, Miguez passou por ela e chamou baixinho:
- Venha.
Lucena seguiu-o em silêncio, até que alcançaram seu gabinete particular.
- Sente-se - ordenou ele.
A contragosto, Lucena acomodou-se na cadeira que ele lhe indicara. Sentado defronte a ela, Miguez cruzou as mãos sobre a boca e ficou a olhá-la, esperando que ela falasse algo.
- Padre Miguez - começou ela, lutando para conter a raiva -, pensei que quisesse me ajudar...
- E quero.
- No entanto, hoje fui despejada de minha casa. Monsenhor Navarro me deu um prazo de vinte e quatro horas para sair. Pensei que você fosse impedir isso.
- Minha cara - lamentou-se o padre com profundo suspiro -, se pudesse, creia-me, eu o teria feito de muito bom grado. Mas não tive como intervir na decisão de Esteban. O máximo que consegui foi uma prorrogação do prazo.
- Uma prorrogação do prazo? Como assim?
- Esteban queria colocá-la para fora na mesma hora, apenas com a roupa do corpo. Consegui não só que ele lhe desse vinte e quatro horas, como também que lhe permitisse levar os seus pertences pessoais. Pode levar consigo roupas, jóias, perfumes. O resto deve deixar.
Lucena abaixou os olhos e começou a chorar, não sabia se de desespero ou de gratidão.
- O que farei padre Miguez? Para onde é que irei? Não tenho mais ninguém no mundo.
Após um longo silêncio de tortura, Miguez retomou a palavra:
- Vou ajudá-la, criança, não se preocupe. Tenho uma propriedade aqui mesmo, nos arredores de Sevilha, num pequeno vilarejo chamado San Martin. Conhece? - ela meneou a cabeça, e ele prosseguiu: - Não faz mal. De qualquer sorte, é uma quinta grande e confortável, e lá você terá tudo de que necessita.
- Poderei levar minha criada, Consuelo?
- É claro que sim. Vá para casa, junte suas coisas e aguarde. Mandarei uma carruagem apanhá-las ainda hoje, no final da tarde.
- Obrigada, padre - disse ela, beijando-lhe o anel sacerdotal.
Tudo estava caminhando conforme o desejado. Dom Fernão morrera e Lucena acabara mesmo caindo em suas mãos, tornando-se inteiramente dependente dele. Tinha certeza de que, em breve, tornar-se-iam amantes e planejariam junto o fim de Giselle. Apenas uma coisa não lhe agradava: o ódio da moça por Esteban. O cardeal era seu amigo e apenas cumpria seu dever de ofício. Não agia movido por sentimentos pessoais contra quem quer que fosse. Ao contrário, orava com fervor, pedindo a Deus que livrasse as almas supliciadas da danação eterna. E conseguia. Cada vez que obtinha uma confissão, seguida da execução do condenado, Esteban tinha certeza de estar salvando a alma do infeliz. Não importava que enriquecesse com as expropriações. Fazia parte do processo e era apenas um detalhe dentro da grandeza que significava a salvação das almas dos pecadores. Miguez não podia permitir que Lucena voltasse sua vingança contra o amigo. Teria que convencê-la de que Esteban não fora responsável pela morte de seu pai, como não o seria pela de Blanca, cuja execução era apenas questão de dias. A culpada de tudo fora Giselle. Para todos os efeitos, fora ela que seduzira dom Fernão, com o único propósito de traí-lo e delatá-lo nas Mesas Inquisitoriais. Não seria difícil convencer Lucena. Miguez trataria de estimular nela o ódio pela meretriz. E tinha certeza de que os dois juntos conseguiriam ótimos resultados. Tudo correu conforme o planejado. Lucena mudou-se para a quinta de Miguez em San Martin e, na noite seguinte, o padre apareceu para ver como as coisas iam passando.
- E então, Lucena, como se sente?
- Melhor, padre, graças ao senhor.
Os dois estavam sozinhos na sala, e Miguez aproveitou-se da ocasião para tentar aproximar-se. Envolveu-a num abraço delicado e pousou-lhe discreto beijo na testa. Na mesma hora, ela ruborizou e abaixou os olhos, observando com aparente resignação:
- Veio cobrar a promessa que lhe fiz?
- Que promessa? - rebateu Miguez, surpreso.
- Eu não disse que faria o que você quisesse se me levasse até meu pai?
Ele se levantou indignado, as faces ardendo. Nem se lembrava mais do que ela havia dito e espantara-se com aquela pergunta.
- Assim você me ofende, Lucena. Não foi por outro motivo que a ajudei, senão por uma sincera afeição. Contudo, se me julga vil ao ponto de aproveitar-me de sua dor para conseguir levá-la para o leito, não tenho mais nada que fazer aqui. Peço que me perdoe.
Voltou-lhe as costas, coberto de genuína perplexidade. Estava realmente gostando de Lucena e somente queria possuí-la com o seu consentimento. Queria que ela o desejasse também, não que se entregasse a ele por um dever de gratidão.
- Padre Miguez - chamou ela, antes que ele alcançasse a porta. - Sou eu quem deve lhe pedir perdão. Não queria ofendê-lo. Mas o senhor há de convir que, diante de tantos acontecimentos funestos em minha vida, estou confusa e perdida. Não sei o que pensar.
Começou a chorar de mansinho, e Miguez correu em sua direção, abraçando-a com paixão. Buscou a sua boca com furor e deu-lhe ardoroso beijo, que ela correspondeu receosa. Estranhamente, aquele beijo lhe causou prazer, e ela se sobressaltou ante seus próprios sentimentos.
- Padre... - tornou em tom de desculpa. - Sinto muito. Não posso...
Levou a mão aos lábios, assustada, e afastou-se dele rapidamente.
- Perdoe-me novamente, minha criança - disse Miguez com compreensão. - Sei o quanto deve estar sofrendo, e seria muito egoísmo de minha parte pensar em amá-la depois de tudo. Demais disso, sei que é pura, e o momento não é o mais adequado para despojá-la de tanta inocência.
Cada vez mais envergonhada, Lucena não ousava encará-lo. Tinha medo de que seu olhar denunciasse que já não era mais virgem e o padre se desinteressasse dela. Precisava ocultar-lhe a verdade o máximo possível e, com voz de desgosto e sofrimento, acabou por concluir:
- Dê-me um pouco de tempo, padre...
- Não precisa mais me chamar de padre. De hoje em diante, para você, sou apenas Miguez.
Com um sorriso forçado, Lucena se despediu, e padre Miguez entrou na carruagem, tomado de profundo pesar. Lamentava imensamente o sofrimento de Lucena. Doía-lhe vê-la triste e desesperada, arrasada com a morte do pai. Contudo, algo de bom lhe sobrara de tudo aquilo. Ela ia ser dele. Agora, mais do que nunca, tinha certeza de que Lucena acabaria por lhe pertencer. Quanto mais pensava nela, mais seu coração se comprimia. Miguez estava certo de que a amava. Não apenas a desejava, mas amava-a cada dia mais e, por ela, seria capaz das maiores loucuras. Menos trair seu amigo cardeal. Ele e Esteban eram amigos há muitos anos, e sua afeição por ele era também genuína. Esteban era como seu irmão, e ele jamais poderiam trair um irmão. Tampouco poderia permitir que Lucena o fizesse. Daria um jeito de desviar-lhe a atenção de Esteban, concentrando-a em Giselle. Ela fora a única culpada. Esteban cumpria apenas o seu dever clerical, ao passo que Giselle era uma meretriz interesseira e sem escrúpulos. Quando chegou à abadia, já era tarde e todos dormiam. Apenas um pequeno lume se deixava entrever pela porta do quarto de Esteban. Seguindo um impulso de seu coração, Miguez se aproximou e bateu. Poucos segundos depois, o próprio Esteban veio atender.
- Miguez! - exclamou surpreso. - O que faz aqui há essa hora?
Miguez passou por ele e foi sentar-se em sua cama, fitando-o com certa angústia.
- Como está Blanca?
- Por que o interesse?
- Gostaria de saber como está passando.
- Está quase confessando também. Creio que conseguiremos levá-la ao auto-de-fé.
Padre Miguez inspirou profundamente e tornou em tom de confissão, sem prestar muita atenção às palavras do outro:
- Estou apaixonado por Lucena Lopes de Queiroz...
- Você o quê?
- Você ouviu. Apaixonei-me irremediavelmente pela filha de dom Fernão.
- Você é um tolo, Miguez. Eu devia ter imaginado, quando você veio a mim, interceder por ela. Mas pensei que seu interesse fosse apenas porque ela é ainda jovem e virgem.
- Também pensei que fosse, mas hoje tive certeza de que não. Estou mesmo apaixonado por Lucena e gostaria de lhe pedir que não a incomodasse.
- Não estou interessado nela, se é o que quer saber. Não tenho nada contra ela. Temo apenas que ela o esteja enganando.
- Enganando-me? Por que ela faria isso?
- Vingança. As pessoas são muito rancorosas.
Miguez silenciou, lembrando-se das palavras de Lucena. Sabia que ela queria se vingar, mas não acreditava que houvesse se ligado a ele apenas por esse motivo. Quando a beijara, ela parecera gostar e dera mostras de confusão.
- Não se preocupe com Lucena - considerou Miguez. - Não permitirei que ela faça nada contra você.
- Não me preocupo. Lucena agora é apenas uma pobre moça abandonada, que nada pode contra ninguém. A não ser, é claro, que você esteja por trás de tudo...
Miguez sentiu um calor subindo-lhe pelo rosto e, fitando o amigo profundamente, respondeu cheio de sinceridade:
- Nem de longe diga uma coisa dessas. Sou seu amigo, e nada nem ninguém poderá me colocar contra você.
- Diz isso porque ainda não experimentou as artimanhas de uma mulher. Depois que se vir completamente envolvido por Lucena, veremos se não será capaz de tudo para satisfazê-la.
- Engana-se, Esteban, e vou provar isso. Lucena o odeia, é verdade. Que pessoa não odiaria o responsável pela morte de seu pai?
- Dom Fernão era um herege!
- Mas era seu pai. E difícil para qualquer um aceitar isso. Contudo, com o tempo, Lucena deixará de odiá-lo, assim como passará a me amar. Eu estarei o seu lado e farei com que ela acabe por compreendê-lo. Jamais permitirei que ela ou qualquer outra pessoa erga a mão contra você.
A sinceridade na voz de Miguez o emocionou, e Esteban abraçou o amigo.
- Perdoe-me, eu não devia ter dito essas coisas. Foi apenas uma reação normal ante a revelação que você me fez. Dom Fernão foi um caso difícil, e Giselle... - parou de falar abruptamente, fitando o amigo com certa desconfiança. - Vocês não estão tramando nada contra Giselle, estão?
- Contra Giselle? - repetiu Miguez, tentando parecer natural. - Por quê?
- Porque você não gosta dela, e Lucena têm todos os motivos para odiá-la também.
- É verdade... Sabemos o que Giselle fez, não é, meu amigo?
- Deixe Giselle em paz. Sei que você não gosta dela, mas ela nunca lhe fez nada. E depois, vou afastá-la de tudo isso.
- Posso saber como?
- Casando-a com dom Solano Díaz.
- Muito conveniente. Solano Díaz é um velho e não trará problemas, não é mesmo?
- O que importa isso? Quero afastar Giselle disso tudo e de mim. Ela faz muitas bobagens, não pensa aonde vai parar.
- Se é assim, por que não deixa que eu cuide dela à minha maneira?
- Não posso. Giselle é como uma filha...
- Ela sempre foi sua amante. Como pode agora dizer que ela é como sua filha?
- Você não entende. Durante muitos anos, Giselle foi minha única amante, e tenho para com ela um sentimento especial. Quero o seu bem.
- Ela sabe demais, Esteban, é perigosa.
- Não é. Giselle é confiável.
- Até quando? Até se envolver com o primeiro vagabundo e começar a sair por aí, falando de você.
- Ainda que fizesse isso... O que importa? Quem lhe dará ouvidos?
Esteban não podia permitir que Giselle fosse apanhada. Faria o possível para mantê-la longe daquilo tudo. Ele sabia que Miguez a odiava, e agora, com o ódio de Lucena, os dois poderiam tramar alguma coisa contra ela. Se descobrissem então que Giselle e Ramon de Toledo estavam apaixonados, não queria nem pensar. O ódio de Lucena redobraria, e Miguez faria de tudo para facilitar a sua vingança.
- Miguez - tornou Esteban em tom de quase súplica -, se você é meu amigo como diz, escute o que lhe peço. Não faça nada contra Giselle, assim como eu nada farei contra Lucena. É uma troca. Ela vai casar-se e vai para Cádiz. Nunca mais iremos vê-la. Por favor...
O outro apenas balançou a cabeça. Cádiz era muito perto para se considerar que nunca mais a veriam. No fundo, sentia pena de Esteban. Mas algo dentro dele fazia com que odiasse Giselle cada vez mais. Não sabia o que fazer. Se, por um lado, seu ódio por ela era imenso, sua afeição pelo amigo também era sincera. E ainda havia Lucena. Mas Esteban não tinha nada contra ela, ao passo que Giselle...
- Não pense mais nisso, Esteban - finalizou Miguez. - Farei o que for melhor para todos.
A resposta de Miguez não o satisfez, mas Esteban não tinha mais o que dizer. Em seu íntimo, sabia que Giselle corria perigo, assim como sabia que, se ela fosse presa e acusada, não haveria nada que ele pudesse fazer. Só o que lhe restava agora era rezar. O casamento de Giselle e dom Solano Díaz realizaram-se dali a um mês. Foi uma cerimônia discreta e íntima, e contou com a presença de pouquíssimas pessoas, dentre as quais Esteban e seu sobrinho Diego. Giselle não parecia nada satisfeita. Solano era muito franzino e mais velho do que pensava. Esforçava-se para ser gentil e sorrir para os poucos convidados. Notou que Diego não tirava os olhos dela, sorrindo com ironia. Em dado momento, aproximou-se dele e falou entre dentes:
- Posso saber o que é tão engraçado?
- Nada - respondeu de um jeito mordaz. - É que vocês formam um lindo casal. O velho decrépito e a meretriz do inquisidor...
Indignada, Giselle ergueu a mão para esbofeteá-lo, mas Diego a segurou no ar e, olhos nos olhos, falou sem alterar o tom de voz:
- Não faça isso, querida. Posso gostar e querer me tornar um de seus amantes também.
Ela puxou o braço, cada vez mais indignada. Jamais havia visto homem mais atrevido e arrogante. Mas Solano chegou, e ela não pôde responder-lhe nada. No dia seguinte, partiriam para Cádiz, onde importantes negócios aguardavam seu marido. A noite de núpcias, para Solano, foi coroada de êxito e paixão, ao passo que, para Giselle, foi aborrecida e até mesmo indigesta. Com gestos maquinais, cumpriu seu papel de esposa e esperou até que ele acabasse de se satisfazer, dando graças a Deus quando ele adormeceu ao seu lado. Giselle virou o rosto para a parede, tentando ocultar a cara de nojo, e pensou em Ramon. Como lhe doía aquela separação! Tudo fora acertado. Ramon e Manuela ficariam tomando conta da taverna e, de vez em quando, eles iriam a Cádiz, onde ela daria um jeito de encontrar-se com ele. Sabia que seu marido era um poderoso navegador, dono de invejável frota que empreendia intensa atividade comercial na costa africana. Essa profissão lhe demandava bastante tempo, pois eram muitos os navios e contratos que tinha que administrar o que acabara por torná-lo um homem incrivelmente rico. No dia seguinte, quando Giselle despertou, Solano já não estava mais a seu lado. Já passava das nove horas quando ela se levantou e chamou Belinda, que a ajudou a aprontar-se para a viagem. Levara uma das escravas, ficando a outra incumbida de tomar conta da casa e de Ramon. Assim que desceu as escadas, encontrou o marido, que lhe deu um beijo na face e disse gentil:
- Apresse-se, minha querida. O sol já vai alto, e não quero pegar muito calor na estrada.
Com um sorriso forçado, Giselle terminou de beber um copo de leite, apanhou um pedaço de pão de centeio e saiu apressada, dirigindo-se para a carruagem. Entrou esbaforida, desacostumada daquelas roupas luxuosas, e sentou-se no banco, de frente para Solano. Foi só então que percebeu alguém a seu lado, rindo para ela com ar debochado.
- Diego! - exclamou aturdida. - O que faz aqui?
- Perdoe-me, querida - apressou-se Solano em dizer. - Convidei Diego para passar uns dias em nossa casa, se não se importa.
- Não sabia que vocês eram amigos - tornou acabrunhada.
- O tio de Diego e eu somos amigos de longa data. Vi Diego nascer, não é meu rapaz? - Diego assentiu, sem tirar os olhos debochados de Giselle. - E depois, creio que lhes fará bem. Preciso fazer algumas viagens, e um homem em casa será bom para defendê-las.
- Defendê-las, quem?
- A você e a Rúbia, minha filha.
- Não sabia que tinha uma filha.
- Tenho. Vai gostar de Rúbia. É uma boa moça.
Quando chegou ao castelo de dom Solano, Giselle ficou deveras impressionada com o seu tamanho. Quando a carruagem entrou no pátio principal, uma moça já os aguardava, sorridente, e ela imaginou que seria a tal de Rúbia. Solano desceu na frente, seguido por Giselle e Diego. A moça abraçou o pai e o rapaz, a quem já parecia conhecer de longa data, e depois se voltou para ela.
- E você deve ser Giselle - disse com um sorriso encantador, estendendo a mão para ela.
Giselle apertou-lhe a mão e sorriu de volta, e uma natural simpatia fluiu entre elas.
- Muito prazer - respondeu Giselle.
- Espero que goste daqui. Sei que é diferente de Sevilha, ainda mais porque vivemos num castelo afastado, mas é divertido. Você vai ver.
- Rúbia toca harpa como ninguém - elogiou Diego.
- Diego está exagerando.
- Não está não - concordou Solano. - Nunca vi mãos mais doces.
Solano beijou-lhe as mãos, e Giselle percebeu o quanto pai e filha se gostavam. Entraram no castelo. Era uma beleza, e Giselle ficou cada vez mais impressionada. Solano chamou os criados e deu-lhes ordens para que levassem os baús de Giselle para seus aposentos. Ela ficou ainda mais deslumbrada. Teria um quarto só para ela, perto do de Rúbia, o que a deixou satisfeita. O castelo era muito diferente de sua casa. Embora vivesse numa mansão confortável, não tinha o luxo e a beleza que havia ali. Ainda assim, sentiu saudades do lar. Esperava que Belita cuidasse bem de tudo e que Ramon não levasse ninguém para lá. Dali a dois dias, Solano partiu em viagem pela costa africana, e Giselle até que se sentiu satisfeita. Ao menos não precisaria mais dormir com aquele velho. Pensou em mandar um recado para Ramon ir vê-la, mas achou que não seria prudente. Eles haviam combinado esperar um mês até tornarem a se encontrar. A vida no castelo mostrou-se pacata demais para Giselle, acostumada ao barulho e à agitação da taverna em Sevilha. Além disso, era obrigada a ouvir os gracejos de Diego e suas observações infames, o que lhe causava indisfarçável desdém. Rúbia, contudo, parecia gostar do rapaz, e Giselle pôde perceber certa cumplicidade entre eles, o que a fez pensar se não seriam amantes.
- Você e Diego são muito amigos, não é, Rúbia? - indagou Giselle displicentemente, enquanto passeavam a cavalo pela campina perto do castelo.
Rúbia levantou os olhos para ela e sorriu ao mesmo tempo em que respondia com graça:
- Muito amigos. Diego vem visitar-nos constantemente.
- Confesso que fiquei surpresa com essa amizade.
- Monsenhor Navarro nunca lhe disse nada? - sentindo o seu constrangimento, Rúbia tranqüilizou: - Não se preocupe. Entre mim e meu pai não existem segredos. Sei muito bem por que se casou com ele.
Giselle corou e abaixou a cabeça, surpresa com as palavras de Rúbia.
- Não se importa? - tornou em tom hesitante.
- Por que deveria? Meu pai é muito grato a monsenhor Navarro. Deve-lhe muitos favores.
- Isso não a incomoda? Esse jogo de interesses?
- O que é a vida, senão um eterno jogo de interesses? As coisas são assim mesmo, Giselle. Um dia eu lhe sirvo, no outro, é você que me serve.
Giselle limitou-se a acenar com a cabeça e virou-se para o outro lado, enquanto os cavalos marchavam lentamente, lado a lado. Em dado momento, voltou a encarar Rúbia e prosseguiu:
- Você desconversou e acabou não me falando sobre Diego.
- O que quer saber?
- Nada, exatamente. Como disse, fiquei surpresa com tanta amizade.
- Pois não devia. Meu pai é amigo da família Navarro há muitos anos - abafou um risinho e continuou: - Queria até se casar com Marieta, irmã de monsenhor.
- Não diga! E por que não se casou?
- Naquela época, meu pai não tinha nada. Era um jovem pobretão, e os pais dela não permitiram o casamento. Ainda assim, foram muito apaixonados e chegaram a manter um romance. Quando o pai dela descobriu, obrigou-a a casar-se com outro.
- Sério? É por isso que Diego é tão seu amigo?
- Diego é meu irmão.
Giselle puxou a rédea do cavalo, fazendo-o estacar bruscamente.
- Diego é seu irmão? - repetiu atônita.
- Por que o espanto?
- Meu Deus! Jamais poderia imaginar uma coisa dessas.
- Para você ver. Meu pai e a mãe dele tiveram uma única noite de amor, e foi quando conceberam Diego.
- E o marido de Marieta? Sabia?
- Saber, não sabia. Ninguém nunca soube de verdade. A não ser meu pai, é claro, que revelou suas dúvidas a monsenhor Navarro. Monsenhor foi ter com a irmã, e ela acabou confessando tudo.
- Mas que história interessante!
- É sim. Depois do casamento de Marieta, meu pai jurou que iria tornar-se um homem rico. Ingressou na guerra pela reconquista da Espanha e lutou por terras e dinheiro. Ajudou a expulsar os muçulmanos de nosso reino, o que lhe valeu muito ouro e um título. Quando achou que já possuía bastante, voltou para casa. Mas Marieta, agora casada com outro, não podia mais ser dele. Assim, acabou casando-se com minha mãe, e eu nasci, quando Diego já contava oito anos.
- E sua mãe, Rúbia? Morreu há muito tempo?
- Há pouco mais de três anos.
- Por que seu pai não se casou com Marieta depois?
- O marido de Marieta morreu no ano passado.
- E Diego? O que diz disso tudo?
- Diego soube da verdade logo depois que minha mãe morreu. Ele nunca se deu bem com o pai, marido de Marieta, que talvez desconfiasse da verdade e, por isso, não se incomodava com os longos períodos que Diego passava aqui. Através de monsenhor Navarro, Diego foi introduzido em nossa família assim que eu nasci, a fim de que meu pai também pudesse acompanhar o seu crescimento. Esse envolvimento foi se acentuando, mas meu pai nunca disse nada a Diego, até minha mãe morrer. Creio que não queria magoá-la.
- Por isso Diego é tão sarcástico...
- Seu pai, antes de morrer, pôs um gravame nos bens, e Diego só poderá dispor deles quando a mãe morrer. Ele ficou furioso.
Chegaram de volta ao castelo, e o cavalariço veio apanhar os cavalos. Diego estava adormecido no terraço, tendo ao lado uma taça e uma garrafa de vinho vazia. Giselle ficou olhando-o. Efetivamente, era um homem bonito. Se ela não estivesse tão apaixonada por Ramon, talvez se interessasse por ele. Mas não. Não trairia Ramon por nada no mundo. Desde que Giselle partira, a vida de Ramon parecia haver perdido o sentido. Passava os dias na taverna, fazendo contas e cuidando das despesas e dos fornecedores. Depois ia para casa, altas horas da madrugada, e só reaparecia por volta do meio-dia. Aquela rotina já o estava cansando, e ele mal via a hora de ter Giselle em seus braços novamente. Havia Manuela. Ela era uma moça alegre e cativante, além de extremamente linda. Ramon pensou que seria muito fácil amar Manuela, se já não estivesse tão apaixonado por Giselle. Manuela tinha consciência de sua beleza e sabia que chamava a sua atenção. Por isso, vivia a insinuar-se para ele, tentando levá-lo para a cama. Mas Ramon não cedia. Por mais que se sentisse tentado, a lembrança de Giselle dissipava qualquer desejo que pudesse sentir por outra mulher. Ele estava sentado a um canto, calmamente bebericando uma caneca de vinho, enquanto Manuela dançava sobre uma mesa colocada no centro do salão. A seu redor, os homens aplaudiam e deliravam, alguns até atirando-lhe algumas moedas. Ela parecia gostar daquilo, porque, quanto mais eles batiam palmas, mais sensualmente ela se remexia, deixando as pernas à mostra até a altura dos joelhos, como Giselle costumava fazer. Quando encerrou seu número, desceu da mesa e foi sentar-se junto a Ramon, pedindo a Sanchez uma caneca de vinho para ela também.
- O que há Ramon? - perguntou ela, roçando a coxa na dele. - Parece triste. Está com saudade?
- Você sabe que sim.
- Por que não deixa que eu o ajude? - falou em tom sensual, alisando sua mão com a ponta do dedo. Instintivamente, Ramon puxou a mão e fitou-a com ar de reprovação.
- Não faça isso, Manuela. Giselle não vai gostar.
- Giselle não está aqui.
- Ainda assim. Eu a amo, e é só a ela que desejo. Ela deu de ombros e acrescentou com desdém:
- Que pena... Podia fazê-lo muito feliz.
- Agradeço, mas não precisa.
Ela não disse mais nada. Levantou-se lentamente e foi caminhando pelo meio das mesas, requebrando as ancas ao passar por entre os homens. Alguns a beliscavam e lhe davam tapas nas nádegas, e ela ria com vontade. Aquilo deixava Ramon contrariado. No fundo, sentia-se provocado também, mas não podia aceitar ou admitir isso, ainda mais porque sabia que seu coração estava preso ao de Giselle, por mais que, inconscientemente, ansiasse pelo corpo de Manuela. Ao mesmo tempo, Lucena também não conciliava o sono. Pensava em Giselle e em Ramon. Ainda não sabia que os dois havia se tornados amantes, mas o ex-noivo também estava nos seus planos de vingança. Há muito não tinha notícias de Ramon. Soubera que ele perdera tudo, mas não fazia idéia de seu paradeiro e nem de longe desconfiava que estivesse vivendo na casa de Giselle. Giselle havia se casado e partira para Cádiz, e não havia motivos para ir a sua casa ou à taverna. Depois que Consuelo lhe serviu o jantar, ela se levantou e foi para o quarto. Acendeu uma vela e pousou-a sobre o criado-mudo, indo apanhar um livro para ler. Precisava ocupar a cabeça, ou enlouqueceria. Por volta das nove horas da noite, alguém veio bater à sua porta, e ela ouviu quando Consuelo foi abrir. Pouco depois, soaram batidas na porta de seu quarto, e ela perguntou com fingida sonolência:
- Quem é?
- Sou eu - respondeu a voz num sussurro abafado -, Miguez. Ela ergueu o corpo na cama e ajeitou os cabelos, antes de responder:
- Pode entrar.
A porta se abriu lentamente e Miguez entrou, trazendo na mão um pequeno círio. Aproximou-se da cama de Lucena, colocou a vela ao lado da outra, sobre a mesinha, e sentou-se junto a ela.
- Já ia dormir? - ela assentiu, e ele desculpou-se: - Lamento Lucena, não sabia que se recolhia cedo.
- Não é cedo, Miguez. Já são quase dez horas.
Ele abaixou os olhos, confuso. Não sabia o que dizer. Estava apaixonado por ela, não pensava em outra coisa. Ela, por sua vez, convidava-o com o olhar. Ele ergueu os olhos para ela e não conseguiu se conter. Tomou-a nos braços e beijou-a ardentemente. Ela lhe correspondeu com volúpia. Em poucos minutos, já estavam despidos e se amando, e Miguez sentiu imensa frustração ao constatar que Lucena já não era mais virgem.
- Quem foi que lhe fez isso? - perguntou entre dentes. – Qual foi o cachorro que ousou macular a sua honra de moça?
Assustada, Lucena não respondeu. Tinha medo de que Miguez a mandasse embora. Se assim o fizesse, para onde é que iria? O que seria dela?
- Miguez... - balbuciou envergonhada. - Perdoe-me...
- Quem foi Lucena? Quem ousou tocá-la antes de mim?
Sem coragem de encará-lo, ela apertou o lençol entre as mãos e respondeu com voz sumida:
- Antes de isso tudo acontecer, eu fui noiva...
- Noiva de quem? Por que não me disse antes?
- Tive medo de que me deixasse.
Ele se levantou bruscamente e começou a vestir-se, ao mesmo tempo em que a ia recriminando:
- Enganei-me a seu respeito, Lucena. Pensei que você fosse virgem e pura, mas agora vejo que é tão ordinária quanto Giselle.
- Não diga isso, Miguez, não é verdade! Giselle é uma meretriz. Eu me entreguei por amor, porque fui enganada!
Lucena chorava descontrolada e tentou agarrar-se ao padre, mas ele a empurrou para o chão e desvencilhou-se de seus braços.
- Sua cadela! - vociferou. - Afaste-se de mim!
- Por favor, ouça-me! Não tive culpa do que aconteceu, e o que mais quero é vingar-me do homem que me desonrou.
- Quem é ele? Responda-me, vamos. Tenho o direito de saber.
- Seu nome é Ramon de Toledo.
- Aquele boa-vida, vagabundo, egoísta? Ora, Lucena, francamente. Ramon de Toledo é um irresponsável, que dilapidou a fortuna da família em poucos anos. Como pôde envolver-se com ele?
Vendo-a jogada sobre a cama, rosto lívido, olhos inchados de tanto chorar, o coração de Miguez se apertou. Apesar de tudo, ela lhe parecia tão indefesa!
- Ele me enganou. Iludiu-me com falsas promessas de amor. Nós estávamos noivos, íamos nos casar, e ele prometeu que nunca me deixaria. Num impulso impensado, entreguei-me a ele, certa de que nosso casamento me restabeleceria a honra perdida. Mas não foi o que aconteceu. Pouco tempo depois, Ramon veio procurar-me e rompeu o noivado.
- Por quê?
- Ele nunca me explicou. Disse que não me amava, mas eu tenho certeza de que se envolveu com outra mulher. Por que outro motivo me abandonaria às vésperas do casamento?
- Porque já tinha conseguido o que queria.
- Oh! Miguez, não seja cruel! Não tive culpa. Meu pai havia até marcado a data do casamento. Como poderia imaginar que ele fosse me abandonar de forma tão vil?
- Cachorro! Ele bem merecia morrer.
- É o que penso também. Contudo, não sei por onde anda. Desde que me abandonou, nunca mais ouvi falar dele. Nem sei se está em Sevilha.
Ele a fitou enternecido, e a raiva foi cedendo lugar ao compasso de seu coração.
- Lucena - tornou com voz subitamente doce - tenha calma. Não se desespere. Estou aqui e vou ajudá-la.
Ela ergueu os olhos, confusa, e balbuciou entre lágrimas:
- Não está mais zangado?
Como poderia estar zangado com ela se já a amava loucamente? Ficara decepcionado, era verdade, mas não podia mais viver sem ela. Aproximou-se e tomou-lhe as mãos entre as suas.
- Minha querida - disse emocionado -, peço que me perdoe. Por um momento, deixei-me levar pela frustração de não ter sido o primeiro e único homem em sua vida. Mas isso não é o suficiente para afastar-me de você, pois que já a amo mais do que a minha própria vida. Não tema. Nada fará com que eu me afaste de você. Quanto a seu ex-noivo, fique descansada. Darei um jeito de descobrir o seu paradeiro e enviá-lo para a morte. Ele vai arrepender-se amargamente do mal que lhe fez um dia e da humilhação que a está fazendo passar.
Lucena chorou agradecida, agarrada às mãos de Miguez. Também gostava dele, o que fez aumentar ainda mais o seu desejo de vingança. Ramon lhe roubara a virtude e a vida, mas não perdia por esperar. Mais cedo ou mais tarde, Miguez o encontraria, e ela mesma escolheria o castigo que gostaria de lhe impingir. Um mês havia se passado desde que Giselle se casara e, conforme o combinado, Ramon foi procurá-la. Belinda, que a havia acompanhado em sua nova casa, facilitou a entrada de Ramon no castelo. Passava da meia-noite quando ele entrou em seus aposentos. Giselle o aguardava e atirou-se em seus braços logo que ele atravessou a porta.
- Meu querido... - sussurrou, entre beijos e lágrimas. - Não agüentava mais de tanta saudade!
Ele a abraçou com ternura, inebriado com o perfume de seus cabelos.
- Também senti muito a sua falta.
Calaram-se com um beijo e se entregaram ao amor. Depois de saciados, permaneceram abraçados, aquecidos pelo calor de seus corpos, sentindo o quanto se amavam. Ramon ia beijando-lhe os cabelos enquanto dizia:
- Amo-a demais, Giselle. Não paro de pensar em você. Não consigo nem dormir direito.
- Tenha calma. Daqui a um ano ou dois, creio que as coisas estarão resolvidas. Padre Miguez estará se ocupando de outras coisas e já terá nos esquecido.
- Será? E seu marido? Acha que a deixará partir? Você está casada, e isso é um compromisso para toda a vida.
- Mas não depois da morte. Ou já se esqueceu de nosso plano?
- Que plano?
- Não se lembra? Você disse que daríamos um jeito nele. Ramon pigarreou pouco à vontade e considerou:
- Não sei se quero fazer isso. Não sou assassino.
- Ora, mas que nobre! Só que a idéia foi sua.
- Não é bem assim...
- Você sugeriu que o matássemos. Pode não ter falado abertamente, mas eu compreendi muito bem o que quis dizer.
- Eu sei, mas falei isso sem pensar, num momento de insensatez. Não poderia levar isso adiante. Como lhe disse, não sou assassino.
- Isso não importa. Não estou disposta a viver para sempre com um velho. Se não quer me ajudar a matá-lo, tanto faz. Farei tudo sozinha.
- Como?
- Ainda não sei. Mas quando chegar à hora vai saber. O único problema é que não herdarei nada.
- Por quê? Ele não é rico?
- É muito rico. Só que tem uma filha legítima e um filho bastardo, que pode vir a criar problemas mais tarde.
- Deixe para lá, Giselle. Não precisamos desse dinheiro mesmo. Temos a taverna.
- E eu tenho um pequeno tesouro guardado.
- Um tesouro? Onde?
- Em minha casa.
- Mas você nunca me disse nada!
- Estou dizendo agora. E digo por que confio em você como jamais confiei em outra pessoa. Vou contar-lhe onde está escondido, para que você possa usá-lo, se precisar - ela fitou o seu rosto espantado e continuou: - Está no porão, no canto esquerdo de quem entra enterrado sob uma pesada estante de livros de magia. Sabe qual é? - ele assentiu. - Quando arrastar a estante, você vai notar um mosaico de pedras no chão. Arranque a do meio e cave um pouco. Logo irá ver um pequeno baú. Dentro dele, encontrará uma pequena fortuna em pérolas e pedras preciosas: rubis, esmeraldas, diamantes. Tudo o que consegui juntar em quinze anos de dedicação a Esteban.
- E o que faço com tanta riqueza?
- Nada. Como lhe disse, use-a se precisar. Mas cuidado, não vá gastar demais. Esse tesouro é a nossa segurança de um futuro feliz. Depois que tudo estiver esquecido e que Solano morrer, vamos precisar. Não vou entrar em nenhuma briga por herança. Quero voltar para minha casa e levar uma vida tranqüila a seu lado. Talvez até possamos nos casar depois.
- Está certo, Giselle, não se preocupe. Pode confiar em mim. Do jeito que a amo, ficaria a seu lado mesmo que fosse para mendigar pelas ruas de Sevilha.
Ela o abraçou apertado e mudou de assunto:
- E Manuela, como vai?
- Bem... Por que a pergunta?
- É natural que me interesse por quem trabalha para mim, não acha?
- Não vai perguntar por Sanchez? Ele também trabalha para você.
Ela deu uma gargalhada e tornou irônica:
- Não seja debochado, Ramon. Sanchez não me preocupa.
- E Manuela a preocupa?
- Você sabe que sim. Pensa que não noto o jeito como o olha?
- Manuela é uma menina...
- Manuela é uma mulher, e você sabe disso tão bem quanto eu, não sabe? - ele não respondeu. - Não pense que só porque estou longe, você poderá fazer o que quiser. Se souber que você e Manuela andaram tendo alguma coisa, vão se arrepender.
- Mas o que é isso agora, Giselle? Por que esse ciúme? Já não disse que você é a única mulher que eu amo?
Estreitou-a com volúpia e beijou-a com ardor, chamando-a novamente para o amor. Não queria falar de Manuela. Ela estava tentando seduzi-lo de todas as maneiras, mas ele não queria que Giselle desconfiasse. Se ela descobrisse, mandaria a moça embora, e Manuela não tinha para onde ir. Giselle esqueceu-se dela, perdida nos braços de Ramon. Já quase ao amanhecer, Belinda veio buscá-lo e levou-o de volta à estrada, em segurança. Com promessas de amor, Ramon partiu, para voltar dali a um mês. Quando Giselle acordou, bem tarde naquele dia, Rúbia não estava em casa. Havia saído para um passeio e não quis despertá-la, deixando que dormisse o quanto quisesse.
- Boas tardes - disse Diego ironicamente, logo que a viu despontar no alto da escada.
- Onde está Rúbia? - indagou Giselle, ignorando o seu sarcasmo.
- Rúbia saiu para um passeio. Ao contrário de você, não tem motivos para dormir até tarde.
Giselle o fitou desconfiada. Será que ele sabia de alguma coisa?
- Você não tem nada com a minha vida. Durmo até a hora que quiser.
- Oh! Sim. Principalmente após uma noite de excessos, não é?
- Por que não me deixa em paz, Diego? O que foi que fiz a você?
- A mim, nada. Mas a dom Solano...
- O que quer dizer?
Diego se aproximou e encostou o seu corpo contra a parede, aproximando bem o rosto do dela. Quase lhe tocando os lábios, afirmou:
- Sei que havia um homem em seu quarto esta noite, e, com certeza, não era seu marido.
Ela enrubesceu imediatamente e desferiu-lhe sonora bofetada no rosto, acrescentando entre dentes:
- Canalha!
- Não sou eu que estou traindo alguém.
Giselle tentou fugir, mas ele a segurou pelo braço e tornou a encostá-la na parede.
- Não precisa fugir de mim, Giselle. Sou seu amigo.
- O que você quer de mim? Se pensa que vou deitar-me com você em troca de seu silêncio, está muito enganado. Pode ir correndo contar tudo a dom Solano.
- Ora, ora, mas o que é isso? Por quem me toma? Por algum covarde? Não vou me aproveitar de sua, digamos fraqueza, para dormir com você. Não estou interessado.
- Não?
- Não... Por enquanto. Mais tarde, não sei. Talvez. Você me agrada, mas, no momento, não sei se seria oportuno. É que gosto de outra, sabe?
- Cachorro! - vociferou Giselle, cada vez mais indignada. - Você não vale nada!
- Não sou muito diferente de você, não é mesmo?
Giselle se desvencilhou dele e correu para a porta, no mesmo instante em que Rúbia vinha chegando.
- Giselle! - espantou-se. - O que foi que houve? Está lívida feita uma cera. Diego, o que foi que disse a ela?
- Nada, irmãzinha. Giselle está um tanto quanto nervosa. Creio que não passou bem à noite.
Sem dizer mais nada, Diego passou por elas feito uma bala e sumiu no interior do castelo.
- Não deixe que Diego a atormente, Giselle. Ele é um bom rapaz, apesar de um pouco doidivanas. Está com raiva porque a mãe não quer lhe dar mais dinheiro, e monsenhor Navarro o mandou para cá para criar juízo.
- Ele é insuportável.
- Nem tanto. Com o tempo, vai ver que pode tornar-se bastante agradável.
Alguma coisa no tom de voz de Rúbia a impressionou. Seria simples admiração fraterna ou havia algo nas entrelinhas que ela não conseguia ver? Mas não podia ser. Ela lhe dissera que eram irmãos. Não poderiam estar envolvidos amorosa ou sexualmente. Ou será que podiam?
- Rúbia - falou Giselle com certa hesitação -, o que há entre você e Diego?
- Entre mim e Diego? Nada. Mas que idéia. Nós somos irmãos, não se lembra? Entre irmãos não pode haver nada além de uma afeição pura e fraterna.
Ela frisou demais aquele não pode o que deixou Giselle deveras cismada. Daquele dia em diante, passou a observar mais aqueles dois. Havia entre eles uma cumplicidade genuína; viviam se esbarrando, se abraçando, sussurrando pelos cantos. Era realmente muito estranho. Com o passar do tempo, vieram às intimidades, e Giselle estava certa de que havia mesmo algo entre eles. Embora não se beijassem ou se tocassem de maneira ostensiva, seus gestos eram por demais reveladores para que Giselle não ficasse desconfiada. Não disse nada, porém. Não era problema dela. Se Rúbia e Diego eram amantes, ela não tinha nada com isso. Só que gostava de Rúbia e tinha medo do que Solano poderia fazer se descobrisse.
- Sabe Giselle - prosseguiu Rúbia, com certa tristeza na voz -, quando Diego e eu descobrimos que éramos irmãos, já era tarde demais.
- Como assim?
- Isso foi há três anos, quando minha mãe morreu. Pode imaginar? Ele já era um homem feito, e eu, uma mocinha ingênua. Foi um choque para ambos.
Giselle silenciou. Não queria se envolver naquela história, ainda mais porque Diego lhe dissera aquelas coisas. Talvez Rúbia ficasse com ciúmes, e ela não queria desagradar-lhe. Gostava da moça sinceramente, tinha-a como verdadeira amiga, talvez a única que fizera em toda a sua vida. Se ela resolvera se envolver com o irmão, Giselle não queria se intrometer. Já tinha problemas demais. A vida de Ramon corria perigo, mas ele nem de longe desconfiava. O próprio Esteban não sabia de nada. Miguez, que desconhecia o romance entre Ramon e Giselle, não partilhara nada com o amigo. Sabia que Esteban não aprovava seu envolvimento com Lucena e queria fazer tudo sem precisar contar com a sua ajuda. Esteban, porém, percebia certa inquietação em Miguez. Ele continuava exercendo suas funções como sempre fizera. Talvez até com mais dedicação, chegando mesmo a demonstrar certos requintes de crueldade com homens de reputação duvidosa, os lascivos, os devassos. As mocinhas virgens já não o interessavam. Quando chamado para atestar a virgindade das meninas, Miguez se desculpava, alegando cansaço, passando a vez para os carrascos encarregados de tal missão. Tudo isso foi preocupando Esteban. Quando lhe perguntava o que estava acontecendo, Miguez sempre se desculpava com a justificativa de que estava trabalhando muito, embora Esteban soubesse que ele estava mentindo.
- Essa moça ainda vai acabar com você - disse ao amigo, enquanto caminhavam pelas alamedas do Tribunal.
- Que moça?
- Não se faça de desentendido, Miguez. Estou falando de Lucena.
- Ela não tem nada com isso.
- Não tem? Então, por que você está tão diferente? Nem parece mais o mesmo, não me procura mais para conversar. O que foi que houve? Será que ela o enfeitiçou?
- Meu amigo, não diga uma coisa dessas! Lucena é apenas uma criança e está sob a minha proteção.
- Você é um homem apaixonado, Miguez. Tenha cuidado.
- Não precisa se preocupar comigo. Sei o que estou fazendo.
- Espero que saiba mesmo - suspirou com tristeza e arrematou: - Mais uma coisa. Blanca, noiva de dom Fernão, vai ser executada domingo, no próximo auto-de-fé. Conto com a sua presença.
- Ela confessou?
- Confessou.
Miguez balançou a cabeça em assentimento, e os dois se separaram. Ambos tinham importantes interrogatórios a fazer. À noite, como de costume, Miguez foi ter com Lucena e participou-lhe a execução de Blanca. Lucena chorou muito, triste por não poder cumprir a promessa que fizera ao pai de libertar sua noiva.
- Não chore Lucena - tranqüilizou Miguez, abraçando-a com ternura. - A morte de ambos ainda será vingada.
- Quando? Esteban é seu amigo. Não vejo você tomar nenhuma providência contra ele.
- Minha querida - tornou quase em tom de desculpa -, não há nada que possamos fazer contra Esteban. Ele é cardeal, inquisidor conceituado e meu amigo. E depois, não tem culpa de nada...
- Como não tem? Pois se foi ele quem torturou meu pai e Blanca, quem o colocou naquele maldito sarcófago, quem vai mandar Blanca para o auto-de-fé! Como você pode dizer que ele não tem culpa de nada?
- Esteban é um inquisidor, está cumprindo seu dever. Não fosse a acusação que fizeram contra seu pai e Blanca, ele jamais os teria mandado prender. Fez-se o que fez, foi porque alguém o instigou alguém inventou aquelas histórias todas, forjou provas, contou casos absurdos de heresia. Esteban, zeloso cumpridor das leis católicas, só fez seguir o Manual dos Inquisidores e não teve outro remédio senão cumprir fielmente as suas determinações. O que você esperava que ele fizesse? Que ignorasse os mandamentos eclesiásticos?
- Mas meu pai não fez nada...
- Aos olhos da Igreja, ele foi um grande pecador, pois se associou a Blanca, que é descendente de mouros. Mas quem o denunciou? Quem levou o seu nome às Mesas Inquisitoriais? Não foi Esteban, porque ele nada sabia a respeito de seu pai - mentiu e olhou para ela, satisfeito por estar convencendo-a. - A única culpada pela morte de seu pai e de Blanca é aquela ordinária da Giselle. Foi ela quem seduziu seu pai, sabe-se lá com que propósitos, para denunciá-lo posteriormente como herege. É ela que merece ser punida. Ela é a única responsável pelo que aconteceu a você e a sua família. Pela morte dos seus, pela sua miséria. Giselle é uma mulher demoníaca, e é contra ela que você deve voltar todo o seu ódio.
Com os olhos injetados de sangue, Lucena fechou a mão e deu um soco na mesa, rugindo com todo o ódio que era capaz de sentir:
- Quero vê-la morta, Miguez! Quero a cabeça de Giselle!
- É isso mesmo. Giselle há de pagar por todo o mal que lhe fez.
Lucena tremia de tanto ódio, atraindo para si as mais variadas entidades das sombras, inclusive seu próprio pai. Os espíritos sofredores, levados à morte pelas mãos de Esteban, através da perfídia de Giselle, na mesma hora acorreram. Os pensamentos de Lucena, imediatamente, sintonizaram com o ódio daquelas criaturas que, movidas pelo desejo de vingança, colaram-se a ela, lideradas por seu próprio pai, cujo ódio chegava a fazer com que ela sentisse tonteiras. Dom Fernão estava tão enfurecido que seria capaz de tudo para se vingar de Giselle. Queria-a morta. Queria-a nas trevas. Queria-a escrava dos espíritos maus, para que ela sofresse e agonizasse nas cavernas mais profundas e fétidas do umbral. Miguez sabia que seria difícil apanhar Giselle. Ela estava casada com Solano Díaz, sob a proteção de Esteban. Precisava fazer tudo de forma a não provocar a ira do amigo. Não queria perder a amizade de Esteban. Precisava encontrar um jeito de acusá-la sem se sujar, sem ter que forjar provas ou testemunhas. Além disso, Miguez ainda tinha que se ocupar de Ramon. Não sabia onde o rapaz se encontrava e considerava-o um problema menor, mas não podia se esquecer dele. Não querendo mais conversar com Esteban sobre nada que atraísse a sua atenção para Lucena, Miguez começou a investigar, por conta própria, o paradeiro de Ramon. Indagou aqui e ali, mas ninguém sabia nada a seu respeito. Ele não recebera nenhuma acusação, e seu nome sequer fora mencionado no processo movido contra dom Fernão. Quando Esteban descobriu sobre suas investigações, foi perguntar-lhe o que estava acontecendo:
- Miguez, meu amigo, por que agora está tão interessado em Ramon de Toledo?
O outro tentou desconversar, mas viu-se encurralado e respondeu com aparente displicência:
- Ele foi noivo de Lucena. Não sabia?
- Sabia, sim, mas, e daí? Não temos nada contra ele. Ramon é apenas um folgazão. Não tem interesse para a Igreja.
- É apenas curiosidade.
- Deixe Ramon de lado. Ele não tem nada que lhe interesse. Por detrás de Navarro, os espíritos das sombras, liderados por dom Fernão, começaram a agir. Enquanto Giselle estava a seu lado, manipulando os espíritos a seu favor, ambos estavam como que protegidos. Mas agora, com Giselle longe, esses espíritos deixaram abruptamente de receber os seus agrados, o que não os deixou nada satisfeitos. Giselle lhes prometera até o sangue de Lucena e de Miguez, o que já não era mais capaz de cumprir, deixando frustradas as suas expectativas. Tinham como certo que iriam sugar os fluidos vitais de pessoas encarnadas, em lugar de animais, e ficaram zangados e com raiva ao constatar que nada mais receberiam. Giselle agora estava casada e não podia mais invocá-los ou lhes oferecer presentes.
Giselle já não lhes interessava mais. Precisavam agora de outra fonte de energia e acabaram se associando aos espíritos que haviam desencarnado sob a intervenção de Giselle. Começaram então a sugar as energias dos encarnados, principalmente de Esteban. Com isso, veio para eles também o desejo de vingança. Giselle os abandonara, suprimira o alimento que os mantinha vivos. Por isso, precisava pagar. Ninguém se compromete com os espíritos das trevas da forma como Giselle se comprometera, e simplesmente os abandona. Ela não tinha elevação moral para isso. Nem o seu pai, espírito de luz e esclarecido, poderia livrá-la de sua perseguição. Porque Giselle não merecia. Sequer acreditava que pudesse merecer. Esses espíritos, com raiva de Esteban também, puseram-se a atuar sobre ele, e o cardeal, de uma hora para outra, começou a sentir estranho mal-estar. Vivia com dores de cabeça, tinha freqüentes palpitações, era acometido por inexplicáveis tonteiras. Consultou o médico da abadia, mas ele nada pôde constatar. Receitou um xarope amargo e recomendou-lhe repouso. Esteban estava trabalhando demais. Mais um mês havia se passado, e Solano voltou de sua viagem à África. Chegou cansado e logo foi recebido por Rúbia, que correu a preparar-lhe um escalda-pés bem quentinho. Sentado confortavelmente entre almofadas macias, Solano se deliciava com a água tépida que acariciava seus pés cansados. A seu lado, Giselle não fazia o menor esforço para aparentar alegria. Estava mesmo bastante contrariada. Ramon chegaria no dia seguinte e teria que voltar sem que se falassem.
- Como foram as coisas na minha ausência? - perguntou de olhos fechados.
- Correu tudo bem, papai - apressou-se Rúbia em responder.
- E você, Giselle? Deu-se bem com minha filha?
- Otimamente. Rúbia é uma moça gentil e muito agradável.
- Fico feliz que se tenham entendido.
- É gentileza de Giselle, papai. Ela é que é uma pessoa maravilhosa.
Giselle sorriu carinhosamente para Rúbia, que lhe devolveu o sorriso com outro, ainda mais encantador.
- Onde está Diego?
- Saiu a cavalo. Não deve tardar.
Cerca de quinze minutos depois, Diego apareceu. Vinha esbaforido e suado, a pele morena tostada de sol. Aproximou-se do pai e estendeu-lhe a mão, cumprimentando-o com um formalismo disfarçado:
- Dom Solano... Como está?
O velho soltou um sorriso prazeroso e convidou o filho a sentar-se ao seu lado. Durante as duas horas seguintes, distraiu-se a contar-lhes suas aventuras, às quais ninguém prestava atenção, à exceção, talvez, de Rúbia. Giselle se mostrava aborrecida, bocejando de vez em quando e fingindo cochilar na poltrona. Solano não lhe deu importância e prosseguiu com sua conversa enfadonha. À noite, Solano a procurou em seu quarto. Entrou afoito, louco para possuí-la. Embora enojada, Giselle não teve saída. Foi obrigada a submeter-se passivamente, mas não fez o menor esforço para fingir que estava gostando. Solano, porém, nem se deu conta disso. Queria apenas satisfazer seus desejos e, depois que terminou, virou para o lado e dormiu. Aproveitando que ele roncava, Giselle jogou um manto sobre os ombros e saiu em busca de Belinda. Precisava dar-lhe ordens para avisar Ramon que não entrasse. Não podia arriscar-se. Ao passar pelo quarto de Rúbia, ouviu vozes abafadas. Estacou abruptamente, indecisa, pensando no que fazer. Rapidamente, tomou uma decisão e foi encostar o ouvido à porta. Do lado de dentro, duas vozes se elevavam. Rúbia conversava com Diego, e eles pareciam discutir. Em dado momento, fez-se silêncio, Giselle não podia ouvir mais nada. Ficou ainda alguns minutos com o ouvido colado à porta, tentando escutar algum ruído, mas nada. Só depois de muito tempo foi que lhe pareceu ouvir um gemido de prazer. Não tinha mais dúvidas. Rúbia e seu irmão Diego eram amantes. Em silêncio, continuou seguindo pelo corredor, até alcançar a ala dos criados. Entrou no quarto em que Belinda dormia, pôs a mão na sua boca, para que ela não gritasse, fazendo-a despertar assustada. Giselle fez-lhe sinal de silêncio e mandou que se levantasse. Cuidadosamente, Belinda obedeceu e a seguiu. Foram para uma sala reservada e, após certificar-se de que ninguém a ouvia, Giselle disse rapidamente:
- Belinda, amanhã, quando Ramon chegar, avise-o de que Solano voltou de viagem. Mande-o embora e diga-lhe para aguardar o meu chamado.
Voltou para seus aposentos, mas não escutou mais vozes no quarto de Rúbia. Na certa, já deviam ter terminado. Pensando nos dois juntos, sentiu imenso desejo. Há muito não se encontrava com Ramon, e o sexo mal feito de Solano só fez aguçar-lhe ainda mais a volúpia. Levou a mão à aldrava e quase a empurrou, mas mudou de idéia. A porta deveria estar trancada e, mesmo que não estivesse, o que diria a Rúbia e Diego? Que os ouvira se amando e se enchera de desejo? Em silêncio, retornou a seus aposentos e deitou-se ao lado de Solano. Ele havia ferrado no sono e dormira em sua cama, para seu desagrado. Ela passou a noite em claro, pois ele roncava feito um porco, e ela não conseguia dormir. Na manhã seguinte, bem cedo, ouviu quando ele despertou e fingiu-se adormecida. Ele se levantou ruidosamente, apanhou as roupas e bateu a porta, e Giselle concluiu que ele seguira para seus aposentos. Pensou que agora conseguiria dormir um pouco, mas o odor fétido que ele deixara sobre seus travesseiros a enjoara. Solano cheirava a suor e bebida, o que a enojava ainda mais. Furiosa, Giselle se levantou de um salto e arrancou os lençóis da cama, atirando para longe os travesseiros. Tornou a deitar-se sobre o colchão nu, pousando a cabeça sobre o braço e, finalmente, adormeceu. Quando despertou, o sol já ia a pino, e ela sentiu fome. Aprontou-se correndo e desceu para a sala, onde a família se encontrava reunida para o almoço.
- Acordou cedo hoje - ironizou Diego.
- Deixe-a em paz, Diego - repreendeu Rúbia. - Vamos, Giselle, sente-se aqui.
Giselle sentou-se na outra cabeceira, do lado oposto de Solano, que não lhe prestou muita atenção. Deu-lhe um sorriso insosso e continuou comendo, e a criada pôs-se a servir Giselle. Ao dar a primeira garfada, pensou que iria desmaiar. A cabeça começou a rodar, sentiu um forte enjôo e teve vontade de vomitar. Levou a mão à boca e levantou-se apressada, correndo em direção à cozinha. Apanhou uma bacia e vomitou diversas vezes, espantada com tamanho mal-estar. Ainda estava ofegante quando ouviu voz de Rúbia:
- O que foi que houve Giselle? Está tudo bem?
Giselle não respondeu. A cabeça toda rodava, seu estômago doía, e Rúbia continuou:
- Foi algo que comeu?
- Não... Não sei... - Giselle forçou a resposta, doida de vontade de sair correndo dali.
- Não estará grávida?
- Grávida, eu?
- Se estiver, não diga nada a papai.
- Por quê?
- Ora, Giselle, meu pai não tem mais idade para engravidar ninguém. Nem sei se consegue manter relações com você.
Com indescritível assombro, Giselle contestou:
- Engana-se, Rúbia. Seu pai ainda é um homem viril.
Aquela revelação deixou Rúbia surpresa e feliz, e ela auxiliou a outra a levantar-se. Giselle parecia satisfeita. Um filho até que não seria má idéia. Herdaria tudo em igualdade de condições com Rúbia, e ela se tornaria uma mulher extremamente rica. Ainda mais porque sabia que o filho não era de Solano, mas de Ramon. Estava certa disso. Se estiver grávida, Ramon era o pai da criança, e aquilo a encheu de felicidade. Pela primeira vez, acalentou a idéia de ser mãe. Teria aquele filho. Não propriamente para herdar os bens de Solano. Mas porque era fruto de seu amor e de Ramon, e ela não poderia matar uma parte deles dois.
De volta à sala, Solano se levantou e indagou com certa preocupação:
- Sente-se bem?
- Sim... Acho que sim...
- Será que Rúbia vai ganhar um irmãozinho? - disparou Diego.
Giselle e Rúbia fuzilaram-no com o olhar, enquanto Solano batia palmas de alegria.
- Será? - exultou. - Será que ainda poderei ser pai a essa altura da vida?
- Não é nada disso, papai - cortou Rúbia. - Giselle sentiu um passageiro mal-estar.
- Mas pode ser gravidez, não pode?
- Bem, tudo é possível.
- Então, vou mandar chamar um médico para examiná-la. Se você estiver grávida, pode ir começando a fazer repouso.
Giselle pensou em contestar, mas achou que havia algo de bom em tudo aquilo. Talvez assim Solano a deixasse em paz e não a procurasse mais. Ela teria sempre a desculpa dos enjôos para dar, e ele, orgulhoso do filho de outro, não a aborreceria e acabaria procurando uma das criadas para se aliviar. Com o auxílio de Rúbia, Giselle voltou para seu quarto. Os lençóis já haviam sido trocados, e ela se acomodou sobre os travesseiros, pousando a cabeça para descansar. Realmente, sentia-se presa de um esgotamento sem igual.
- Por que disse aquelas coisas? - perguntou a Rúbia, logo que esta se acomodou a seu lado.
- O quê?
- Por que acha que o filho não é de seu pai?
- E é?
- Não sei.
- Não sabe ou não quer dizer?
- O que faria se não fosse?
- Nada. Não tenho nada com isso.
Giselle fitou-a abismada. Rúbia era uma moça muito madura para sua idade.
- Não quero que você pense mal de mim.
- Não penso nada. Aliás, não sou a pessoa mais indicada para julgar quem quer que seja.
- Por que diz isso?
- Conhece alguém que seja amante do próprio irmão? Giselle abriu a boca, estupefata, mas acabou por confessar:
- Eu já desconfiava. Ouvi-os juntos a noite passada.
- Ouviu?
- Sim.
- E não ficou chocada?
- Por que deveria? Como você, também não posso julgar ninguém. Até já perdi a conta dos amantes que tive. Por que a julgaria pior do que eu?
Giselle nem sabia por que dizia aquelas coisas. Parecia-lhe que já conhecia Rúbia há muitos anos e que podia contar com ela. De repente, viu-se lhe contando detalhes de sua vida que jamais revelara a ninguém, nem a Esteban, nem a Ramon. Com Rúbia era diferente. Era mulher e parecia dividir com ela a cumplicidade dos anseios femininos.
- Você é uma pessoa especial, Giselle. Gosto de você.
- Também gosto muito de você, Rúbia. Rúbia apertou a mão da outra e continuou:
- Quando Diego e eu nos apaixonamos, não sabíamos que éramos irmãos. Ele vinha sempre com monsenhor Navarro, e nós acabamos sendo criados juntos. Para mim, ele era meu amiguinho mais velho, responsável pelas brincadeiras mais fantásticas. Até que os amiguinhos cresceram, e eu me tornei mulher. Já não via mais em Diego o companheiro de folguedos. Via nele o homem viril e atraente em que se transformara. Um dia, o inevitável aconteceu. Estávamos passeando a cavalo, fazia calor e fomos nadar. Imagine-se totalmente despida dentro de um riacho, em companhia de um homem maravilhoso! Pois foi o que aconteceu. A partir de então, tornamo-nos amantes. Pensávamos até em nos casar. Já íamos falar com meu pai, quando minha mãe morreu, e ficamos sabendo da verdade. Foi um choque para nós. Cheguei a ficar doente. Meu pai ficou preocupado, mas jamais imaginou que nós estivéssemos tendo um romance. Aos poucos, fui-me curando e tentei afastar-me de Diego. Mas não consegui. Assim como eu, ele também se apaixonara. Ficamos longe por cerca de dois meses. Depois disso, voltamos a nos encontrar. Papai nos revelara a verdade tarde demais. O inevitável já havia acontecido, e sabermo-nos irmãos não foi suficiente para sufocar o nosso amor e o nosso desejo. Assim, assumimos o pecado e a culpa, e continuamos nosso relacionamento.
- Isso é muito triste. Vocês devem ter sofrido bastante.
- Você nem imagina o quanto. Sabemos que o que fazemos é errado e temos certeza de que iremos para o inferno. Mas não podemos mais nos afastar. Não é justo. Papai deveria ter-nos contado a verdade há mais tempo. Teria evitado que nos atirássemos no pecado.
- Seu pai sabe?
- Deus me livre! Acho que papai morreria ou nos mataria. Ele nem desconfia, e é bom que continue assim.
- No que depender de mim, Rúbia, ele jamais saberá de nada.
- E quanto a seu amigo da outra noite, fique sossegada. - prosseguiu Rúbia com ar maroto. - Não precisa me olhar com essa cara de espanto. Diego me contou tudo.
Embora envergonhada, Giselle ficou feliz. Via em Rúbia uma amiga sincera, alguém em quem podia confiar. Ela não sabia como Rúbia conseguia fazer aquilo. Manter um caso com seu próprio irmão, apoiar a gravidez adulterina da madrasta, guardar segredo sobre seu envolvimento com outro homem e, ainda assim, amar o pai. Rúbia era, realmente, uma pessoa singular, e Giselle ficou feliz por tê-la como amiga e aliada. A gestação também a alegrara. Nunca antes pensara em levar avante nenhuma gravidez. Quanta e quanta poção não havia tomado para livrar-se dos fetos indesejados? Mas agora, sentia que não precisava mais disso. Não precisava mais de nada nem de ninguém. Mesmo seus amigos das trevas, que há anos a haviam servido, não lhe importavam mais. Desde que chegara a Cádiz, Giselle deixara de lado suas práticas de magia, com medo da reação de Solano. A princípio, ficara temerosa. Mas agora, segura do amor de Ramon, tinha certeza de que não precisaria mais deles. E nem de longe lhe passava pela cabeça que não poderia abandoná-los como se eles fossem trapos velhos. Os espíritos das sombras, revoltados com o pouco caso e a ingratidão de Giselle, cada vez mais se voltavam contra ela, tramando, sem que ela percebesse, os acontecimentos funestos com que pretendiam vingar-se. Ao receber a notícia de que não poderia ver Giselle naquela noite, Ramon quase desesperou. Pensou mesmo em invadir o castelo e ir ao encontro de sua amada. A muito custo Belinda conseguiu contê-lo, e ele voltou para casa mais frustrado do que nunca. No dia seguinte, entrou na taverna triste e cabisbaixo, sem falar com ninguém. Apanhou sua costumeira caneca de vinho e foi sentar-se à mesa de sempre, nem ligando para as contas que precisava conferir. Só pensava em Giselle. Passara o mês alimentando o desejo de vê-la e de tomá-la em seus braços, e partira para Cádiz com o coração aos pulos. E tudo para quê? Para ser despachado pela escrava, com a desculpa de que Solano havia voltado e era perigoso. Na certa, àquela hora, Giselle estava deitada em seu leito, recebendo o amor que deveria ser dele. Pensando no calor do corpo de Giselle, em seus beijos, seus cabelos macios, pensou que fosse enlouquecer. Ardendo de desejo, só pensava em tê-la em seus braços novamente. Começou a beber e bebeu além da conta. Já fragilizado, voltou à atenção para Manuela. Naquela noite em particular, ela estava deveras sedutora. Aproximou-se dele e dançou do jeito mais sensual que podia, provocando-o com seu corpo firme e rijo. Ele não resistiu. Puxou-a para si e beijou-a com volúpia. Mal contendo o desejo, levou-a para a casa de Giselle e amou-a com ardor. Naquele momento, não pensava em Giselle. Sabia que tinha Manuela em seus braços. Mas a solidão, a falta que a moça lhe fazia, o desejo incontrolável, tudo isso lhes facilitou a aproximação. Durante algumas horas, desligou-se de Giselle, feliz nos braços de Manuela. Não estivesse tão apaixonado, teria seguido com ela. Mas não podia. Era louco por Giselle e jamais permitiria que ela descobrisse o que havia acontecido. Não sei o que está acontecendo comigo - queixou-se Esteban a Miguez. - Há muitos dias não me sinto bem; a cabeça me dói, sinto um esmorecimento...
- O médico disse que você anda trabalhando demais - censurou Miguez com bonomia. - Deve descansar.
- Mas eu tenho que comparecer ao auto-de-fé. Tenho três condenados na execução de hoje, incluindo Blanca Vadez.
- Pode deixar que eu mesmo cuide de tudo. Também tenho um condenado hoje. Coisa simples, mas estarei presente mesmo assim.
- Mas Miguez, o inquisidor-geral está em viagem a Madri. Era de se esperar que eu o substituísse.
- Eu mesmo o substituirei. Você deve ficar e descansar.
- Padre Miguez tem razão - acrescentou Juan que, até então, permanecera alheio à conversa. - O senhor precisa descansar.
Esteban soltou um suspiro profundo e resignado. Fitou Miguez e Juan, e deu de ombros, desanimado.
- Está certo. Convenceram-me. Mas Juan deve ir junto, para me representar.
- Irei monsenhor, se for de sua vontade.
Pouco depois, Miguez e Juan partiam junto rumo à praça onde havia sido montado o auto-de-fé. O padre cumprimentou os demais, pediu licença e foi sentar-se na poltrona reservada a Esteban, anunciando que o representaria naquele dia. Juan sentou-se um pouco mais atrás, como de costume, e Miguez deu ordens para que se iniciassem as execuções. Eram cinco, no total. Três de Esteban, um dele e outro de padre Donário. Naquele dia, as execuções seriam todas realizadas pelo machado. Os condenados já não estavam muito bem e poderiam acabar morrendo antes mesmo de chegar à fogueira, o que seria um desperdício. Ao menos a lâmina do machado era mais rápida e garantiria o espetáculo da morte. Blanca era a terceira na fila, última de Esteban. Vinha com sua veste branca, o crime que praticara estampado em vermelho na túnica, para que todos conhecessem a sua heresia. Ao olhar para ela, Miguez sentiu uma pontada de tristeza. Ao saber do acontecimento, Lucena se sentiria extremamente infeliz. Blanca estava muito ferida e fraca, mal se sustinha em pé sem a ajuda dos carrascos. Ao chegar a sua vez, subiu ao cadafalso com passos trôpegos e olhou para frente, tentando enxergar o caminho por onde deveria seguir. Mas os olhos feridos pela brasa do aço já não podiam ver mais nada, e ela tropeçou e caiu, arrancando estrondosa gargalhada do público presente. Bateu com a cabeça no chão e desmaiou, e o verdugo pôs-se a cutucá-la com o pé, a fim de se certificar de que ainda vivia. Começaram então os apupos. A multidão, sedenta de sangue, queria ver o espetáculo macabro, e a queda de Blanca os fizera pensar que ela havia morrido antes da hora. Por mais que o carrasco a chutasse, ela não se movia. Um filete de sangue escorria de sua testa, e o homem olhou para Miguez e deu de ombros, como a perguntar o que deveria fazer. Na mesma hora, Miguez se levantou e se aproximou do corpo caído de Blanca. Ajoelhou-se ao lado dela e pôs o ouvido em seu peito, a fim de escutar as batidas de seu coração. Efetivamente, podia ouvir seus fracos batimentos cardíacos e certificou-se de que ela ainda estava viva. Tornou a olhá-la, penalizado. Sentia muita tristeza por Blanca, não pelo seu sofrimento, mas por todo sofrimento que causara a sua Lucena. Olhando para ela com os olhos rasos d'água, tomou uma decisão. No momento em que o médico oficial da Inquisição se aproximava, Miguez levantou-se decidido e declarou com ar solene:
- Não adianta mais. Esta aqui está morta.
Foi um desespero. O público gritava e vaiava, exigindo que fosse derramado o sangue da condenada. O médico ainda tentou experimentar-lhe o coração, mas Miguez segurou o seu braço, afirmando com tanta convicção, que nem o médico teve dúvidas:
- Já disse que ela está morta.
Nova comoção tomou conta do público, e Miguez chegou a pensar que eles fossem tomar conta da praça. Rapidamente, deu ordens a um dos homens que tirasse Blanca dali e a levasse de volta ao calabouço.
- Padre - interveio o homem -, deixe que a ponha diretamente na carroça com os demais corpos.
De carroça, os corpos seriam levados para um local afastado, onde seriam cremados. Miguez não queria que Blanca fosse para lá. Ela estava viva, mas apenas ele sabia disso. Contudo, não podia despertar a atenção de ninguém. Com um aceno de cabeça, concordou que o homem a levasse, e Blanca foi atirada na carroça juntamente com os demais corpos. Em seguida, Miguez deu ordens para que prosseguissem com o espetáculo funesto. Outro condenado foi trazido e executado, não sem antes ser levemente açoitado, a fim de que a turba se contentasse com o seu flagelo e não lamentasse tanto a morte intempestiva de Blanca. Ao final da carnificina, corpos e cabeças se amontoavam na carroça, numa massa disforme de carne, sangue e ossos. Logo após a cerimônia de encerramento, Miguez correu em direção à carroça, tomando cuidado para que ninguém o visse, principalmente Juan. O último corpo já havia sido atirado lá dentro, e o encarregado se preparava para partir em direção ao campo de cremação quando Miguez o interrompeu.
- Espere um instante - falou apressado.
O homem apertou as rédeas, segurando os cavalos.
- Algum problema, padre?
- Sim. Esta aqui vai para outro lugar.
Apontou para Blanca e esperou. O homem, sem nada entender, quis protestar:
- Mas padre, é uma herege, não pode ser enterrada em campo santo.
- Faça o que eu disse homem! E depois, quem foi que disse que ela vai para campo santo? É apenas um favor que estou fazendo a alguns parentes.
O homem estacou indeciso.
- Tem certeza?
- Não discuta comigo, rapaz. Faça o que estou mandando.
Aproximou-se do homem e estendeu-lhe uma bolsinha, que ele apanhou com um sorriso de cobiça, exibindo uns poucos dentes irregulares e amarelos.
- O senhor é quem manda padre. Aonde quer que a leve?
Miguez olhou de um lado a outro, a fim de se certificar de que ninguém estava olhando. Não podia mandar Blanca para sua casa; ela já nem tinha mais casa. Além disso, o homem podia dar com a língua nos dentes, o que acabaria por comprometê-lo. Mas ele estava com pressa. Blanca podia acordar e pôr tudo a perder. Num gesto rápido e preciso, subiu na carroça ao lado do outro e ordenou incisivo:
- Toque os cavalos. Direi onde deve parar.
O homem pôs os animais em movimento e seguiu adiante, à espera que Miguez lhe dissesse o que fazer. A certa altura do caminho, ouviram gemidos angustiados e olharam para trás ao mesmo tempo. Blanca acabara de despertar e tentava entender o que estava acontecendo. Cega, não sabia onde estava, mas sentia o cheiro e o visco do sangue dos executados colado em seu corpo.
- Ei! - exclamou o homem, atônito, freando os animais. - O que está acontecendo aqui?
Miguez fitou-o apavorado. O que deveria fazer? Pensou em saltar sobre ele e matá-lo, mas o homem era mais forte e, na certa, muito mais hábil do que ele. Não tinha saída. Virou-se para ele e falou apressadamente:
- Não diga nada. Se souber guardar segredo, farei de você um homem rico.
O outro o fitava com um brilho estranho no olhar, já antevendo a fortuna que iria arrancar daquele padre.
- Olhe padre, não quero que pense que sou um homem ganancioso. Mas o meu silêncio vai custar caro.
- Não se preocupe. Posso pagar. Agora, faça exatamente como eu mandar.
Miguez deu-lhe ordens para deixá-los próximo a sua casa em San Martin e depois seguir para o local onde os corpos seriam cremados, com a incumbência de não dizer nada a ninguém. Para todos os efeitos, apenas quatro pessoas haviam sido executadas naquele dia. Ninguém de nada sabia e ninguém nada iria perguntar.
- Só uma coisa - alertou Miguez -, se disser uma palavra disso a alguém, nosso trato está desfeito. Se, ao contrário, mantiver a sua palavra, garanto que não irá arrepender-se.
- Pode deixar padre. Não direi nada a ninguém.
Soltou um riso sarcástico e tornou a olhar para Blanca, tentando imaginar que interesse um padre poderia ter numa esfarrapada moribunda feito aquela. Não perguntou mais nada, porém. Só pensava no ouro que iria tirar de Miguez. Em sua cabeça já se via milionário, chantageando o padre cada vez que precisasse de mais dinheiro. Não diria nada a ninguém. Não queria compartilhar com outros a fortuna que merecia ser apenas dele.
Blanca, por sua vez, embora não visse nada, ouvia tudo o que eles diziam e, com medo do que estivesse acontecendo, encolheu-se toda na carroça e ficou chorando de mansinho. Cerca de uma hora depois, pararam alguns metros antes da casa de Lucena. Miguez saltou rapidamente e ajudou Blanca a descer, amparando-a para que não caísse.
- Pode andar? - perguntou a ela.
Ela assentiu agarrada ao seu braço, e ele passou a mão ao redor de sua cintura, apertando-a de encontro a seu próprio corpo. Depois, virou-se para o homem e finalizou:
- Amanhã receberá seu pagamento. Encontre-me ao anoitecer, nas ruínas do velho moinho, perto do riacho Doce. Sabe onde fica?
- Sim.
- Ótimo. Vá sozinho.
Deu-lhe as costas e foi amparando Blanca pela estrada, até que chegaram a sua casa. Bateu à porta e Consuelo veio abrir, exclamando com espanto:
- Minha Nossa Senhora, padre Miguez! O que é isso?
- Ajude-me, Consuelo, rápido!
Ouvindo aquela gritaria, Lucena veio correndo lá de dentro. Mal podia acreditar que era Blanca quem estava ali, mais morta do que viva. Olhou para Miguez emocionada e atirou-se em seus braços, naquele momento acreditando no quanto ele a amava, sentindo que o amava também. Levaram Blanca para um dos quartos e a acomodaram na cama, sob almofadas e lençóis macios. Consuelo correu a preparar-lhe uma boa refeição, enquanto Lucena, em lágrimas, limpava-lhe o sangue e as feridas espalhadas pelo seu corpo esquálido. Os olhos baços pareciam vidrados, fitando o vazio, o que só fez aumentar o ódio de Lucena por Giselle. Blanca mal falava. Conseguia apenas balbuciar umas poucas palavras, mas reconheceu a filha de seu noivo e pôde murmurar um obrigado quase inaudível. Depois de limpa e alimentada, adormeceu instantaneamente, como há muito não fazia. Depois que ela dormiu, Miguez contou a Lucena tudo o que havia acontecido, e ela se emocionou ainda mais. Só mesmo um amor verdadeiro para assumir os riscos que ele assumira.
- E o tal homem da carroça? - quis saber Lucena, depois que se acalmou.
- Amanhã vou fazer o pagamento.
- Vou com você.
- Isso é que não! É perigoso.
- Se você pôde se arriscar por mim, também posso me arriscar por você. E depois, não se preocupe. Não pretendo aparecer. Quero apenas estar ao seu lado.
Miguez sorriu agradecido. No dia seguinte, ao cair da noite, ele e Lucena partiram rumo ao local combinado para o encontro. O moinho estava abandonado e quase desabando, e ninguém se atrevia a entrar ali, com medo de acabar soterrado. O homem ainda não havia chegado, e Miguez se acomodou sobre uma mureta de pedras, enquanto Lucena se ocultava nas sombras, do outro lado. Não tardou muito, e o homem apareceu.
- Boa noite, padre - cumprimentou irônico.
Sem lhe prestar atenção, Miguez tornou de má vontade:
- Trouxe alguém com você?
- Não. Vim sozinho, conforme o combinado.
- E contou sobre isso a mais alguém?
- A ninguém.
- Ótimo.
Miguez enfiou a mão dentro da capa e dela retirou outra bolsinha de couro, mais pesada e recheada do que a primeira. O homem experimentou-lhe o peso, fitou Miguez com olhos ávidos e deu um sorriso que denotava toda a sua ambição. Ao abrir a boca para dizer alguma coisa, seus olhos se arregalaram e ele soltou uma tosse seca, parecendo sufocar. Pouco depois, cambaleou para frente, fitou o rosto espantado de Miguez, que recuou aterrado, sem entender o que estava acontecendo, e murmurou agonizante, no exato instante em que tombava bem diante de seus pés:
- Desgraçado...
Miguez fitou primeiro o corpo inerte do homem e depois levantou os olhos lentamente, mal acreditando no que acabara de acontecer. Parada diante dele, Lucena segurava uma faca reluzente, ainda suja com o sangue do homem.
- Ele ia acabar nos entregando... - disse ela, com olhar febril.
Embora assustado, Miguez abaixou-se perto do corpo do homem e retirou-lhe a bolsinha, ainda presa entre seus dedos. Aquilo não estava nos seus planos, mas fora melhor. Livrara-se de um problema. E se o homem, mais tarde, começasse a pedir mais e mais dinheiro em troca de seu silêncio? Segurando firmemente a bolsinha, correu para Lucena, tirou-lhe a faca das mãos e atirou-a sobre o corpo inerte do homem, abraçando-a com ternura.
- Você é muito esperta e corajosa, Lucena - disse cheio de admiração. - Estou orgulhoso de você.
Voltaram para casa, pensando no que deveriam fazer. E se alguém descobrisse Blanca ali? Agora que Lucena conseguira salvá-la, não queria perdê-la novamente. Quando já não tinha mais esperanças, acabara por cumprir parte da promessa que fizera ao pai. Ela prometera, em seu estertor de morte, salvar Blanca e vingar-se de Giselle. Blanca já estava salva. Giselle, em breve, estaria em seu lugar. Lucena correu ao quarto de Blanca, para ver como estava passando. Apesar de bastante ferida e fraca, sua respiração parecia regular. Suspirou aliviada e ajoelhou-se aos pés da cama, mal contendo as lágrimas. A seu lado, dom Fernão também chorava. Auxiliado pelos espíritos aos quais se associara, conseguira salvar Blanca da morte horrenda. Ela era muito pura para transformar-se num espectro feito ele. Precisava viver. Viver para presenciar de perto a vingança que ele e seus asseclas estavam tramando para Giselle. Beijou Blanca e Lucena no rosto e saiu pela parede. Apesar de Lucena não lhe registrar a presença, sentiu imensa saudade do pai e viu-se preso de um pranto convulso e desesperado. Miguez, preocupado, abraçou-a com força e levou-a dali, e ela só conseguia dizer o quanto odiava Giselle e gostaria de vê-la morta. Embora desse pela falta de Miguez, Juan nem de longe desconfiou de que ele havia conseguido salvar a vida de Blanca. Até porque, não estava interessado. Seus pensamentos ainda se voltavam para Giselle, e ele se roia, só de imaginá-la dormindo com outro homem. Ao voltar para os aposentos de Esteban, viu que ele já estava melhor e havia até se levantado.
- Monsenhor Navarro - censurou com certo carinho -, não devia estar de pé. Lembre-se do que o médico disse.
- Não se preocupe Juan, já estou melhor. E o auto-de-fé, como foi? Correu tudo bem?
- Teria sido melhor se Blanca não morresse antes de pôr a cabeça no tronco.
- Blanca morreu antes?
- Sim. Não agüentou.
- A multidão ficou furiosa?
- Ficou, mas padre Miguez contornou a situação. Mandou açoitar o próximo condenado antes da execução, e a turba pareceu satisfeita.
- Sabia que poderia contar com Miguez. Quanto a Blanca, bem, isso já era esperado. Ela estava mesmo muito mal. Só foi pena ter estragado o espetáculo.
- Pois é...
Esteban ficou vendo Juan se movimentar pelos aposentos, arrumando as camas e os livros na estante. Em dado momento, sentou-se numa cadeira perto da janela e chamou o noviço para junto de si:
- Sente-se aqui a meu lado, Juan. Quero falar com você. Juan obedeceu. Largou o que estava fazendo e sentou-se ao lado de Esteban, falando com extrema polidez:
- Pois não, monsenhor. Deseja alguma coisa?
- Não exatamente. Quero saber de você.
- De mim? Por quê?
- Tenho notado que você anda um tanto estranho. Muito calado, triste, acabrunhado. Está acontecendo alguma coisa?
- Não está acontecendo nada.
- Tem certeza?
- Tenho.
- Eu o conheço desde pequenino, Juan. Sei quando algo de errado está acontecendo com você.
- Não há nada de errado comigo, monsenhor.
- Em que anda pensando, meu rapaz? Em mulheres? Sente o desejo tomar conta de você? - Juan enrubesceu e sentiu o rosto arder, e Esteban prosseguiu: - É isso, não é? Você ainda é jovem, e seu corpo todo responde a tanta juventude. Não estou certo?
- Não... Não, monsenhor... Não é nada disso... Sinto-me feliz aqui...
- Não foi isso o que perguntei, mas sei que seu coraçãozinho está dolorido.
- Dolorido? Não, senhor...
- Ainda pensa em Giselle, não é?
A afirmação súbita e direta de Esteban o confundiu, e Juan sentiu-se corar ainda mais.
- Não... Não. Nem sei por que está falando isso. A senhorita Giselle...
- Giselle agora é uma senhora casada.
- Sei disso.
- E você não deveria mais pensar nela.
- Não penso nela, monsenhor. Por que haveria de pensar? Juan continuava sentado ao lado do cardeal, faces rubras, sem coragem de encará-lo, enquanto Esteban ia se lamentando:
- A culpa foi minha. Não devia ter deixado as coisas chegarem a esse ponto. Devia ter tomado uma providência logo que descobri essa sua paixão insana por Giselle.
- Monsenhor Navarro - objetou Juan, confuso e aturdido -, está enganado.
- Não adianta tentar mentir para mim. Sei de tudo. No outro dia, quando chegou aqui com febre, delirando... Só falava no nome de Giselle.
Juan sentiu que as lágrimas começavam a deslizar de seu rosto e se atirou aos pés de Esteban, rogando em súplica:
- Oh! Monsenhor, por favor, não me castigue! Eu tentei evitar, juro que tentei. Mas não consegui. Por mais que me esforce, não consigo parar de pensar em Giselle.
- Giselle não é mulher para você. Gosto dela também, mas ela é uma meretriz.
- O senhor está enganado. Ela me ama...
- Giselle não o ama. Por que está se iludindo desse jeito?
- Não estou me iludindo, ela me ama.
- Ela está casada com outro homem.
- Porque o senhor obrigou. Mas ela me ama, sei que me ama.
- Pare com isso, Juan! Não vê que assim só irá sofrer ainda mais? Giselle o ama... Não sei de onde tirou essa idéia!
- Ela me disse!
- Giselle disse que o ama?
- Disse e... - calou-se envergonhado, ocultando o rosto no colo de Esteban.
- E o quê? Vamos, Juan, conte-me. E o quê?
- Ela... Ela... Oh! Monsenhor...!
Não parava de chorar. Embora impaciente, Esteban afagou os seus cabelos e fez com que ele se levantasse, sentando-o novamente na cadeira, de frente para ele.
- Ela o quê? Vamos, diga-me! Exijo que me conte a verdade.
Intimidado pela autoridade do outro, Juan fechou os olhos e acabou por confessar:
- Ela me fez homem, monsenhor!
- Ela o quê? - horrorizou-se, levando a mão ao peito.
- Ela me fez homem... - repetiu com voz sumida.
- Vocês... Vocês dormiram juntos? Mantiveram conjunção carnal?
- Sim...
- Meu Deus! Giselle foi longe demais.
- Não fique zangado com ela, monsenhor. Ela não teve culpa. Sei que ela e o senhor eram amantes, mas não foi culpa nossa. Simplesmente aconteceu. Ah! Monsenhor perdoe-me, perdoe-me! Vivo aflito com essa traição. O senhor é como um pai para mim, e eu não quis traí-lo. Mas não consegui. Foi mais forte do que eu! Por favor, perdoe-me!
Ele estava totalmente descontrolado, e Esteban se aproximou dele, chamando-o à razão:
- Juan, contenha-se! Seja homem!
Ainda em lágrimas, Juan tentou conter o pranto e arrematou hesitante:
- Giselle me ama...
- Ela não o ama - disse em voz baixa, mais para si do que para o noviço. - Giselle não ama ninguém a não ser, talvez, aquele vagabundo do Ramon.
- Não é verdade! - explodiu Juan, que ouvira nitidamente as suas palavras. - Ela me disse que não havia nada entre eles. Ela me disse!
Arrependido de haver deixado escapar o nome de Ramon, Esteban tornou confuso:
- Conhece Ramon?
- Já o vi na taverna, em companhia de Giselle.
- Sabe quem ele é?
- Não...
- Ramon é um vagabundo, é isso o que ele é. E é por ele que Giselle está apaixonada.
- Não é! Ela está apaixonada por mim!
- Você é um tolo, Juan. Então não vê que Giselle o estava usando? Na certa para obter informações sobre padre Miguez?
- Não, não...
- Tanto que ela veio procurar-me, contando que você a informara sobre o relacionamento de Miguez e Lucena. Naquele mesmo dia, pedi-lhe que não se envolvesse com você... Sabe o que ela havia me pedido antes? Que a deixasse casar-se com Ramon de Toledo. É a ele que ela ama. Será que você não vê? Nem a mim, nem a você, mas a Ramon.
- Mas ela se casou com dom Solano. E só porque o senhor mandou...
- Não é bem assim. Você fala de coisas que não conhece. Giselle não ama você. Isso eu posso assegurar-lhe.
- O senhor está querendo me punir, não é monsenhor?
- Não tenho motivos para fazer isso. Estou tentando ajudá-lo. Gosto de você como se fosse meu filho, não quero que sofra por causa de Giselle.
- Oh! Monsenhor, eu a amo! O que posso fazer?
- Esqueça-a. Para o seu próprio bem, esqueça Giselle. Se quiser, posso arranjar umas mocinhas para você, sem que ninguém saiba.
- Não quero mocinhas. Quero Giselle.
Esteban fitou-o penalizado. Jamais deveria ter permitido que as coisas chegassem àquele ponto. Juan era um rapaz inexperiente e impressionável, e se deixara envolver pela sedução de Giselle. Que jovenzinho não se envolveria com uma mulher vivida e sensual feito ela?
Sem ter mais o que dizer, afagou-lhe novamente a cabeça e enxugou-lhe as lágrimas. Daquele dia em diante, tencionava não tocar mais no nome de Giselle na frente de Juan. Queria fazê-lo esquecer da moça e, não a vendo nem ouvindo falar o seu nome, talvez ele parasse de pensar nela. Juan era extremamente jovem, e o tempo se encarregaria de amadurecer tanta juventude. A felicidade por ter em seu ventre um filho de Ramon encheu Giselle de esperanças. Após o nascimento da criança, daria um jeito de livrar-se de Solano e casar-se com Ramon, e viveriam felizes para sempre, os três, longe de toda aquela sordidez. Solano, por outro lado, acreditava que o filho era dele e vivia gritando aos quatro cantos que ainda traria ao mundo mais um herdeiro antes de morrer. Giselle não tivera nem tempo de contar tudo a Ramon. Solano chegara e, por causa de sua gravidez, parecia que não iria mais embora. Ficou por duas semanas seguidas, até que resolveu partir. Depois que ele se foi, Rúbia foi bater à porta do quarto de Giselle. Ela estava descansando, e a outra entrou bem devagarzinho.
- Giselle - chamou baixinho. - Está dormindo?
- Não. Estava apenas descansando, fazendo planos.
- Que planos?
Não podia dizer a Rúbia que pensava em matar o seu pai. Por mais que a moça gostasse dela, ficaria com ódio se soubesse.
- Planos para o meu filho - despistou, acariciando a barriga.
- O pai dele já sabe?
- Ainda não - suspirou ela, um tanto sem jeito.
- Quer que eu mande chamá-lo aqui?
- Você faria isso?
- E por que não? Por acaso, também eu não vivo um romance ilícito e obscuro? O amor é assim mesmo, minha amiga. Não se pode ir contra ele.
No dia seguinte, Belinda apareceu em casa de Giselle para chamar Ramon. Ele estava dormindo com Manuela, e a escrava fez um ar de desagrado quando soube. Mas não disse nada. Tinha medo de Giselle e preferiu não se meter naquela história, como Belita já fazia.
Ao saber que Giselle o receberia, Ramon largou Manuela e seguiu direto para Cádiz em companhia de Belinda. Foi discretamente introduzido nos aposentos de Giselle, e os dois se amaram loucamente. Só depois que terminou ela lhe contou que estava grávida.
- Meu filho, Giselle? - exultou. - Você está esperando um filho meu? Tem certeza? Não é daquele porco do Solano?
- Tenho certeza, Ramon. É seu filho.
Giselle não queria lhe contar que pensava em dar cabo da vida de Solano. Ramon desistira da idéia do assassinato, e ela sabia que ele não queria envolver-se em nenhum crime e ainda tentaria fazer com que ela mudasse de idéia. Mas ela não permitiria que seu filho fosse criado por outro homem nem que desse a ele os carinhos que deveria reservar para seu verdadeiro pai.
- No momento oportuno, veremos o que fazer - disse ele, ainda em dúvida.
- E Manuela, como vai?
- Bem...
Tamanha era a felicidade de Giselle que ela nem percebeu as reticências de Ramon. Ele procurou desviar o assunto e pôs-se a contar-lhe sobre os negócios, mantendo-a informada sobre o que acontecia na taverna.
- Teve notícias de Esteban?
- Não. Nunca mais soube dele.
- É pena.
- Sente saudades?
- Na verdade, sinto sim. Você sabe o quanto gosto dele. Ramon não respondeu. Sentia um pouco de ciúmes de Esteban, mas não queria que ela soubesse. Ficou durante toda a noite. Na manhã seguinte, Rúbia veio chamá-lo. Ele levou um susto ao ver a moça ali, parada diante dele.
- Não se preocupe com Rúbia - tranqüilizou Giselle. - É minha amiga. Foi ela quem sugeriu trazê-lo aqui.
- Mas agora já é tarde - observou ela. - Você deve ir. Meu pai saiu, mas nunca sabemos quando irá voltar. Ainda mais agora, que pensa que vai ser pai.
- Por que está fazendo isso? - retrucou Ramon, sem nada entender. - Não gosta de seu pai?
- Gosto. E muito. Por isso, serei eternamente grata a Giselle pelo bem que está fazendo a ele. Mas não posso fechar os olhos para a realidade. Meu pai é um homem velho e feio, ao passo que Giselle é uma mulher jovem e linda. Eu seria uma tola se pretendesse que ela o amasse e lhe fosse fiel. Além disso...
- Além disso...
- Sei o quanto é triste amar-se uma pessoa que não se pode ter.
- Como assim?
- Outro dia Giselle lhe contará essa história. Agora venha. Meu pai pode voltar a qualquer momento.
Ramon não discutiu. Sentia-se grato àquela jovem por permitir que ele encontrasse sua amada. Beijou Giselle apaixonadamente, deu-lhe outro beijo no ventre e se foi. Belinda já o aguardava e conduziu-o direitinho para fora do castelo.
- É um bonito rapaz - elogiou Rúbia.
- É sim. E eu o amo muito.
Ramon não podia vir todo o dia. Além da distância, a prudência aconselhava que não se expusesse tanto. Solano, preocupado com a gravidez de Giselle, afastava-se muito pouco, e era só nessas oportunidades que Ramon a via às pressas. Com isso, seu romance com Manuela foi se intensificando. Seu coração ainda pertencia a Giselle, mas Manuela era uma mulher ardente e sensual, e Ramon foi se envolvendo. Sempre que Belinda aparecia para chamá-lo, ele largava Manuela e ia ao encontro de Giselle. Mas já não se consumia de paixão e desejo como antes, e a falta que Giselle fazia foi sendo suprida pelo calor do corpo de Manuela. Com isso Giselle também foi se sentindo só. Parará de ter enjôos, mas sua barriga ainda não começara a crescer. Ainda assim, não permitia mais que Solano a tocasse. Sempre que ele a procurava, ela se desculpava com os enjôos e as tonteiras, alegando que a gravidez lhe tirava o apetite sexual. Ele compreendia e não insistia, e Giselle passava as noites ardendo de desejo, pensando na falta que Ramon lhe fazia. Começou a perder o sono. Quanto mais ansiava por Ramon, menos conseguia dormir. Solano, em seu quarto, dormia de roncar, e Giselle, certa noite, irritada com a falta de sono, levantou-se na ponta dos pés. Sabia que Rúbia e Diego deveriam estar no quarto ao lado e dirigiu-se para lá. Colou o ouvido à porta, mas quase não escutava nada. De vez em quando, um gemido, um sussurro, risos... Aquilo a foi enchendo de desejo, e ela tomou coragem. Com a mão na aldrava, empurrou a porta e entrou. O quarto estava às escuras, e ela foi se encaminhando para a cama de Rúbia. Os dois estavam nus, se amando, e sorriram ao mesmo tempo quando ela se aproximou. Aquilo a espantou deveras. Pensava que Rúbia iria expulsá-la dali, mas, ao invés disso, ela lhe estendeu a mão, que Giselle tomou docemente, enquanto Diego a puxava pela outra mão. Giselle deitou-se com eles. Daquele dia em diante, assim como Ramon procurava o corpo quente de Manuela, Giselle passou a consumir o seu desejo na cama de Rúbia, ao lado dela e de Diego. Rúbia não se importava de vê-la e a Diego juntos. Ao contrário, parecia até gostar. Os três se tornaram amantes. Giselle não vinha sempre. Sabia o quanto eles se amavam e sabia que o que ela buscava neles era apenas sexo e conforto. Solano de nada desconfiou. Para todos os efeitos, Giselle sentia enjôos de gravidez. Muitas vezes, descobrira Giselle dormindo no quarto de Rúbia, mas nem de longe lhe passou pela cabeça o que estava acontecendo. Achava natural que a esposa buscasse a companhia de outra mulher naquelas horas, pois só outra mulher poderia ajudá-la com seus problemas íntimos. Giselle não teve coragem de contar nada a Ramon. Tinha medo de que ele não aceitasse. Casar-se com Solano fora uma questão de vida ou morte. Mas dormir com Diego e Rúbia era uma traição inaceitável. Por isso, não disse nada. Quando Solano viajava, Belinda o chamava, e ela não ia ao quarto de Rúbia. Dedicava-se inteiramente a Ramon, e ele nem de longe desconfiava que ela também o estivesse traindo. Com o decorrer dos dias, Juan foi se sentindo cada vez mais inquieto. Só conseguia pensar nas palavras de Esteban: Giselle não o amava. Amava Ramon, o vagabundo. Mas como podia ser verdade? Ela estava em Cádiz, com dom Solano. E Ramon? Será que continuava em Sevilha? Cada vez mais atormentado, resolveu sair. Esperou até que monsenhor Navarro dormisse e ganhou a rua. Em poucos instantes, adentrava a taverna de Giselle. Tudo parecia como antes, à exceção, talvez, de Manuela. Agora, era somente ela quem distraía os homens com sua dança. Em silêncio, Juan se sentou a uma mesa no canto e pôs-se a espiar. A taverna não estava muito cheia, e ele pôde prestar atenção a cada detalhe. Envolto em seu manto de veludo negro, Juan passou despercebido. Ninguém conseguira ver-lhe o hábito sob o manto e ninguém imaginou que ele era um religioso, a não ser Manuela, que já o conhecia. Ela terminou de dançar e foi para onde ele estava um sorriso malicioso estampado no rosto.
- Ora, ora, ora - disse em tom de malícia -, se não é o noviço por aqui novamente.
Juan sentiu o rosto enrubescer e teve vontade de se levantar e sair correndo dali, mas a curiosidade o deteve. Não havia visto Ramon e queria saber se ele ainda continuava por ali.
- Boa noite, senhorita Manuela - respondeu com excessiva cerimônia.
- O noviço sabe o meu nome!
- Por favor, senhorita, deixe de brincadeiras.
- Está bem - concordou ela, sentando-se a seu lado. - Mas diga-me: o que o traz aqui? Giselle não está mais à frente da taverna.
- Eu sei. Não vim por causa de Giselle.
- Não veio? E a que veio então? Não vá me dizer que veio por minha causa...
Fingindo não ouvir os seus gracejos, Juan virou o rosto de um lado a outro, como se procurasse alguém.
- Onde está Ramon? - indagou, com fingida naturalidade. - Não trabalha mais aqui?
- Ramon? - tornou Manuela desconfiada, com medo de que ele fosse algum tipo de espia de Giselle. - Não o vi hoje. Por quê?
- Por nada.
- Ora, vamos noviço...
- Será que não poderia me chamar pelo nome? - zangou-se. Manuela deu uma gargalhada e acrescentou:
- Está bem, Juan. Mas você ainda não me disse por que está atrás de Ramon. Ele está em débito com a igreja?
Juan ignorou o sarcasmo e ficou olhando para o seu rosto, imaginando se poderia confiar nela.
- Você é muito amiga de Giselle, não é?
Cada vez mais desconfiada, Manuela respondeu com cautela:
- Ela praticamente salvou a minha vida.
- Sei... E Ramon?
- O que tem ele?
Juan queria perguntar-lhe sobre o envolvimento de Ramon com Giselle, mas Manuela temia que ele quisesse averiguar se ela e Ramon eram amantes. Em sua ingenuidade, Juan sequer imaginava um envolvimento entre ambos.
Tentando parecer casual, prosseguiu:
- É que fiquei imaginando... Ramon deve estar sentindo muito a falta de Giselle, não é? Quero dizer, com o casamento e tudo o mais...
- É... Ramon deve mesmo estar sofrendo.
- Por que Ramon estaria sofrendo?
Manuela não estava entendendo nada. Aquele menino parecia dizer coisas sem sentido algum. Afinal, o que estaria tentando descobrir?
- Escute Juan - revidou ela com todo cuidado -, não entendo aonde quer chegar.
Ele a fitou com olhos ávidos e tomou coragem para perguntar:
- Giselle e Ramon são amantes? Ela suspirou aliviada.
- Você não sabe?
- São ou não são?
- É claro que são. Pensei que soubesse. Todo mundo sabe.
- Desde quando?
- Ora... Desde que se conheceram.
- Mas Giselle está casada com dom Solano!
- E daí? Desde quando casamento é empecilho para o amor?
Juan silenciou, lutando desesperadamente para conter a raiva. Giselle o enganara. Dissera que o amava, mas estava mentindo. Monsenhor Navarro é que tinha razão. Ela não amava ninguém, a não ser aquele porco imundo do Ramon. Sem dizer nada, levantou-se com o ódio a transfigurar-lhe as feições e foi se encaminhando para a porta. Ainda deu uma última olhada para dentro, tentando ver se Ramon estava por ali, mas ele não apareceu. Ramon estava no quarto atrás da taverna, cuidando da contabilidade, e nem sabia da chegada de Juan. Da porta, olhou rapidamente para Manuela, que permanecia fitando-o com ar de indignação, e se foi. Voltou para a abadia e foi deitar-se. Monsenhor Navarro ressonava alto no quarto ao lado e nem se apercebeu de sua saída. No dia seguinte, levantou-se mais cedo do que de costume, aprontou-se e saiu, deixando um bilhete conciso para Esteban. Tomou a carruagem e rumou para Cádiz. Quando chegou, o castelo já estava em plena atividade. Dom Solano havia saído para resolver uns assuntos, Rúbia e Diego estavam fora, andando a cavalo, e Giselle estava repousando. Foi recebido pelos criados, e Belinda correu ao quarto de Giselle para chamá-la. Ela se aprontou rapidamente e desceu apressada, pensando que Juan estivesse ali a mando de Esteban. Encontrou-o no salão principal, andando de um lado a outro, apertando as mãos, cheio de nervosismo.
- Juan! - exclamou Giselle, correndo para ele e segurando-lhe as mãos. - Aconteceu alguma coisa?
Ele olhou de soslaio para a escrava e respondeu bem baixinho:
- Precisava falar-lhe... A sós.
Giselle meneou a cabeça e levou-o para seu quarto. Afinal, era um religioso, e seu marido não iria reclamar de sua presença em seus aposentos particulares. Depois que ele se acomodou, Giselle sentou-se diante dele e tornou a falar:
- Muito bem. Agora me conte o que houve.
Ele permaneceu durante alguns minutos estudando o seu rosto. Ela parecia agitada, nervosa, com medo de alguma coisa. Seria medo de que algo houvesse acontecido ao amante?
- Giselle... - balbuciou ele - da última vez que nos vimos, disse que me amava...
A mente de Giselle começou a trabalhar rapidamente. Juan não estava ali para levar-lhe nenhuma notícia ruim. Estava ali para cobrar-lhe algo. Sabia que ele estava apaixonado por ela e lembrou-se de que havia lhe dito que o amava. Até dormira com ele e o transformara num homem. Seria prudente revelar-lhe a verdade sobre seu envolvimento com Ramon?
- O que quer dizer? - a retrucou, confusa.
- Disse ou não disse que me amava?
- Disse...
- E estava mentindo?
- Não - sustentou a mentira.
- Quando se deitou comigo, falando aquelas coisas, estava sendo sincera, não estava?
- Estava.
- Então, por que é que mantém um caso com esse tal de Ramon?
- Não diga isso! - censurou exaltada. - Não é verdade.
- Você disse que me amava, Giselle. Você jurou. Disse que Ramon era apenas um amigo.
- Mas é...
- Mentira! Manuela me contou tudo. Você e Ramon são amantes desde quando se conheceram. Mas quem é esse Ramon e como foi que entrou em sua vida?
Giselle começou a desesperar. Tinha em Juan um forte aliado contra as armadilhas de Miguez. Se perdesse a sua amizade e ele se passasse para o lado daquele padre maldito, nem queria pensar no que poderia acontecer. Rapidamente, chegou mais para perto dele e falou com aparente tranqüilidade:
- Foi Manuela quem lhe contou isso?
- Já disse que foi. E disse mais: disse que vocês ainda mantêm esse romance, a despeito de seu casamento com dom Solano.
- Manuela está mentindo - objetou entre dentes. - Ela tem ciúmes. Vive se insinuando para Ramon, mas ele não a quer, e ela acha que a culpa é minha. Mas não é. Se Ramon não a deseja, o problema não é meu. Só que ela não pode aceitar o fato de que ele não se sente atraído por ela e quis fazer intriga. Juan fitou-a em dúvida. Ela falava com tanta convicção que era difícil não acreditar.
- Mas monsenhor diz que você o ama...
- Ele está enganado. Na certa, só porque vendi a taverna para Ramon, ele ficou imaginando coisas.
Ela desviou os olhos, com medo de que ele percebesse a raiva que ia tomando conta de todo o seu corpo. Por que Manuela fizera aquilo? De Esteban, não dizia nada. Mas Manuela, que direito possuía de sair por aí falando de sua vida? E como é que sabia que ela e Ramon ainda eram amantes? Aos poucos foi percebendo que Manuela parecia saber demais sobre sua vida, o que a foi deixando inquieta. A seu lado, Juan permanecia calado, fitando-a com olhar ávido, como que tentando adivinhar o que ia a seu coração. Em seu íntimo, queria acreditar, embora soubesse que ela estava mentindo.
- Você e Ramon não têm se encontrado? - insistiu.
- Não. Depois que me casei nunca mais nos vimos.
- Tem certeza?
- Por que duvida? Não tenho motivos para mentir para você.
- Você ainda me ama?
- Amo... Só que agora sou uma mulher casada. Devo obediência e respeito a meu marido.
- Por que se casou com ele, Giselle? - choramingou, atirando-se a seus pés.
- Você sabe - tornou ela, acariciando-lhe os cabelos. - Foi preciso.
Ele não parava de chorar, agarrado a suas pernas. Aquele era o momento que Giselle esperava. Juan demonstrava fraqueza e fragilidade, e ela se aproveitou da situação para convencê-lo. Vagarosamente, foi erguendo-o pelos braços, até que ele se ajoelhou diante dela e pousou a cabeça em seu colo. Giselle beijou-lhe os cabelos e começou a erguer o seu queixo, beijando-o de mansinho. Ele não resistiu. Caiu em seus braços afoitamente e se entregou ao amor. Ao final, estava satisfeito e convencido. Do jeito como Giselle fizera, devia amá-lo de verdade.
- Não conte sobre isso a ninguém, Juan - pediu com voz melíflua. - Se meu marido souber, manda me matar.
- Não se preocupe Giselle, ficará somente entre nós.
- Ótimo. Lembre-se de que sou uma mulher casada e agora não posso mais dormir com outro homem que não seja meu marido. Você foi à única exceção.
Todo convencido, Juan sentiu o peito inflamar-se de orgulho e acabou retrucando:
- Fique descansada e confie em mim. Não contarei nada a ninguém.
- Nem a Esteban.
Ele titubeou, mas concordou:
- Nem a monsenhor.
Giselle sorriu exultante. Mais uma vez, conseguira convencer aquele noviço tolo de que ela o amava. Só mesmo uma cabecinha ingênua e pueril feito a de Juan para acreditar num disparate daquele. Mas ela sabia que o rapaz poderia ser-lhe útil ou perigoso. Se estivesse a seu lado, seria seu verdadeiro aliado. Contra ela, poderia se tornar um feroz inimigo. Ainda mais se descobrisse que ela mentira e que o usara durante todo aquele tempo. Quando Juan chegou de volta à abadia, Esteban estava quase desesperado à sua procura. Logo que o viu entrar, correu ao seu encontro, demonstrando genuína preocupação. A seu lado, Miguez o acompanhava, o olhar grave denotando que também estava preocupado.
- Juan! - explodiu Esteban. - Onde foi que se meteu?
- Não leu o meu bilhete?
- Isso? - estendeu para ele o bilhete e continuou: - Não diz nada. Monsenhor Navarro, preciso sair. Não se preocupe. Juan. Onde é que esteve?
- Nós ficamos preocupados, Juan - acrescentou Miguez. - Por pouco monsenhor não dá o alarme para a abadia inteira.
- Estão exagerando.
- Vai me dizer onde esteve ou não?
- Estive por aí.
- Onde?
- Em lugar nenhum. Saí, fui para o campo, precisava espairecer.
- Espairecer? - espantou-se Miguez. - Por quê?
Juan fitou Esteban pelo canto do olho. O cardeal sabia muito bem por quê. Não imaginava que ele houvesse ousado tanto, mas sabia que ele, na certa, estava tentando fugir de seus próprios sentimentos.
- Juan está com certas dúvidas - esclareceu Esteban mais que depressa. - Não sabe se quer mesmo se tornar padre.
- Ah! É isso? - tornou Miguez desconfiado, imaginando se não havia um dedo de Giselle naquela história - E o que lhe causa tantas dúvidas?
- Nada demais, amigo Miguez. Ele está enfrentando uma fase difícil. Coisas da idade, você entende.
Juan sentiu o rosto arder, coberto de vergonha. Deu um sorriso forçado e, pedindo licença, rodou nos calcanhares e foi para seu quarto.
- Creio que você deve arranjar uma mocinha para ele - sugeriu Miguez. - Juan não será feliz fora da vida monástica. Ele não tem ninguém nem preparo nenhum para enfrentar o mundo lá fora. E depois, são tempos difíceis...
- Tem razão, Miguez. Tratarei de providenciar isso.
- Se você quiser, posso arranjar-lhe algo. Ainda há muitas mocinhas nas masmorras, das quais não posso mais ocupar-me. Sua virgindade tem sido atestada pelos carrascos do Tribunal, e Juan ainda nos faria um favor.
- Obrigado. Vou falar com ele. Tenho certeza de que acabará concordando. Afinal, é uma tarefa honrosa, essa que lhe confia.
Com um aceno de cabeça, se despediram. Esteban precisava conversar com Juan, convencê-lo a aceitar o cargo que Miguez lhe oferecia. Serviria para mantê-lo ocupado e desviar sua atenção de Giselle. Juan era ainda muito jovem e não tardaria a esquecê-la. Ao menos, era o que ele pensava. Depois de intensa noite de amor, Manuela, envolta nos braços de Ramon, fechou os olhos e pôs-se a cantarolar. Ramon sorriu e beijou-lhe a face, soltando-a e virando o rosto para o lado, a fim de dormir. Pensava em Giselle. Por mais que gostasse de dormir com Manuela, Giselle era a dona de seu coração. Sentia imensa saudade dela e ficava sonhando com o dia em que poderiam viver felizes, ele, ela e o filho. Em dado momento, Manuela parou de cantar e puxou a sua cabeça, obrigando-o a virar o rosto em sua direção.
- Adivinhe quem veio nos visitar hoje - falou com certa excitação.
- Quem? - fez Ramon, um tanto quanto receoso.
- O noviço.
- Quem? Juan? - ela assentiu. - O que ele queria?
- Não sei bem. Perguntou sobre você e Giselle. No começo, fiquei assustada, pensando que ele quisesse saber de nós dois. Mas depois percebi que o que ele queria mesmo era saber de vocês.
- Estranho. E o que você disse?
- Nada demais. Que vocês eram amantes há bastante tempo.
- Você lhe disse isso?
- Por quê? Fiz mal?
Ramon não respondeu. Alguma coisa dentro dele lhe dizia que aquela história ainda ia acabar muito mal. Juan não podia saber que ele e Giselle eram amantes, pois o ciúme do rapaz ainda acabaria por colocá-los em alguma situação embaraçosa. Ainda em silêncio, tornou a virar o rosto para a parede e fingiu dormir. Não queria envolver Manuela. No dia seguinte, foi à vez de Ramon partir para o castelo de dom Solano. Sabia que poderia ser arriscado, mas precisava tentar. Com medo de causar algum embaraço à Giselle, bateu aos portões e pediu para falar com Rúbia. Dom Solano estava em um dos salões, em companhia de Giselle, e não ouviu quando foram chamar a filha. Rúbia apareceu imediatamente e mandou que Ramon entrasse. Conduziu-o para um dos terraços mais afastados e sentou-se com ele em um banco.
- Está sendo muito imprudente, Ramon - censurou Rúbia.
- Eu sei - desculpou-se acanhado. - Mas o assunto é deveras urgente.
- Não posso chamar Giselle. Meu pai está em casa.
- Por favor, Rúbia, o assunto é mesmo sério. Preciso falar com ela o mais rápido possível.
- Lamento não poder atendê-lo. Meu pai vai ficar desconfiado.
- Eu lhe imploro Rúbia. Invente uma desculpa e saia com ela. E só o que lhe peço.
- O que pode ter acontecido assim de tão grave para você estar desse jeito? Alguém descobriu alguma coisa sobre vocês?
- É o que temo.
Rúbia meneou a cabeça e falou:
- Saia do castelo agora e me espere mais abaixo, na beira da estrada. Darei um jeito de ir até lá, a cavalo, com Giselle. Só não garanto que possa ser logo.
- Esperarei o quanto for necessário.
Depois que ele saiu, Rúbia voltou para dentro. Giselle estava no salão com dom Solano, aparentando profundo enfado com sua conversa sobre as futuras possibilidades na América recém-descoberta. De vez em quando, bocejava e olhava pela janela, tentando arranjar uma desculpa para escapar de tão desagradável companhia. Foi quando Rúbia apareceu. Entrou sorridente, beijou o pai e Giselle e sentou-se ao lado dele. Por cerca de meia hora, ficou fazendo-lhes companhia, até que Diego também apareceu e foi juntar-se a eles.
- Ah! Diego - Rúbia foi logo dizendo -, que bom que você chegou. Assim pode fazer companhia a papai por uns instantes.
Dom Solano ergueu as sobrancelhas e encarou a filha.
- Fazer-me companhia? - repetiu indignado. - Por quê?
- Preciso de Giselle por uns instantes, papai. Coisas de mulher, você não vai se interessar.
Não foi preciso muito para Diego compreender que Rúbia precisava falar a sós com Giselle. Não sabia que Ramon fora procurá-la, mas compreendeu a urgência da situação e atalhou:
- Pode deixar que cuidarei bem dele, Rúbia. Vão e podem demorar-se o quanto quiserem.
Dom Solano ficou embevecido. Sempre que o filho lhe fazia companhia, ele se sentia extremamente feliz e agradecido. Sentindo a atenção do rapaz, pôs-se a falar sobre seus futuros planos na América. Enquanto isso, Rúbia saiu puxando Giselle pela mão, caminhando em direção às cocheiras.
- Aonde vamos? - indagou Giselle, assustada.
- Ramon está nos esperando. Precisa falar com você.
- Onde ele está?
- Na beira da estrada. Venha depressa! Não podemos nos demorar.
Rúbia apanhou dois cavalos e estendeu um para Giselle, que tomou as rédeas e montou com todo cuidado. No fundo, podia imaginar por que Ramon fora até ali daquele jeito. Na certa já ficara sabendo das indagações de Juan. Em silêncio, passaram pelos portões do castelo e seguiram pela estrada. Mais abaixo, Ramon as esperava. Já estava ficando vermelho de tanto apanhar sol; ficara lá por mais de uma hora. Mas não podia voltar sem falar com Giselle. Ramon ajudou Giselle a descer do cavalo, enquanto Rúbia foi sentar-se à sombra de uma árvore, do outro lado da estrada.
- Não se demorem - alertou. - Não quero que papai desconfie de nada.
De mãos dadas, Ramon e Giselle foram sentar-se debaixo de outra árvore, um pouco afastadas daquela em que Rúbia estava. Ele a beijou avidamente, mas sentiu certa frieza em seus gestos.
- O que há com você? - indagou decepcionado. - Pensei que fosse ficar feliz em me ver.
- Estou... - respondeu ela hesitante - mas também estou surpresa. O que aconteceu?
- Não sei se você já sabe, mas Juan andou fazendo perguntas sobre nós.
- Andou? A quem?
Ele hesitou, mas não podia deixar de responder.
- A Manuela.
- Como é que você sabe disso?
- Ora, Manuela me contou.
- Por quê?
- Porque ela trabalha para mim. Esqueceu?
- Não, não esqueci. Só não entendo como é que Manuela sabe tanto sobre nós. Sabe até quando foi que começamos a nos encontrar.
Na mesma hora, Ramon sentiu o rosto arder, e Giselle percebeu o rubor cobrindo as suas faces.
- Está acontecendo alguma coisa entre vocês? - tornou Giselle, cada vez mais desconfiada.
Por pouco Ramon não engasgou. Engoliu em seco e, cabeça baixa, revidou com voz sumida:
- O que é isso, Giselle? Por que essa desconfiança agora?
- Porque você está muito estranho. E Juan ficou sabendo de tudo a nosso respeito por intermédio dela.
- Você esteve com Juan?
- Assim como você, ele também veio procurar-me, louco de ciúmes.
- E o que você fez?
- Juan é um jovem tolo e ingênuo. Não foi difícil convencê-lo de que Manuela estava errada.
- Como foi que o convenceu, Giselle? Teve que dormir com ele?
- Isso não vem ao caso. Juan é apenas um garoto.
- Ah! Não vem ao caso, não é? Você sempre arranja uma desculpa para justificar o fato de que dorme com todo mundo.
- Eu não durmo com todo mundo!
- Só com dom Solano e com Juan, além de mim, é claro. E monsenhor Navarro? Ainda tem dormido com ele também?
Mal contendo a indignação, Giselle estalou-lhe uma bofetada no rosto, e Ramon levantou-se indignado.
- Não devia ter feito isso, Giselle - disse entre dentes. - Você não tem esse direito.
Já arrependida, Giselle correu para ele e atirou-se em seus braços, balbuciando em lágrimas:
- Ramon... Perdoe-me... Perdi a cabeça... É a gravidez... Deixa-me confusa...
Ao ouvir falar na gravidez, Ramon se acalmou. Não podia esquecer que ela carregava no ventre o seu filho.
- Está certo, Giselle, acalme-se.
- Perdoe-me... É que fico louca só de pensar que você possa estar dormindo com aquela Manuela.
- Não estou dormindo com ninguém.
- Eu sei...
- Embora não possa dizer o mesmo de você, não é mesmo?
- Ah! Ramon, não fique zangado comigo. Você sabe que não gosto de dormir com ninguém além de você. Mas Solano é meu marido, e Juan precisava ser calado. Quanto a Esteban, há muito não temos nada. Ele hoje é como um pai para mim. Por favor, não se zangue por causa de Juan. Eu fiquei desesperada. Quando ele veio me procurar, perguntando se nós éramos amantes, não sabia o que fazer...
- E então fez a única coisa que realmente sabe fazer, não é, Giselle? Fez sexo com ele.
- Fiz isso porque precisava. Foi à única forma que encontrei de fazê-lo acreditar em mim. Para nossa segurança, Juan precisa acreditar que o amo. Por favor, acredite.
Ramon acreditava. Era mesmo impossível que uma mulher feito Giselle fosse interessar-se por um rapazola magricelo e inexperiente feito Juan. Ainda assim, não podia deixar que ela desconfiasse de Manuela.
- Não falemos mais nisso - cortou ele de forma perspicaz. - Eu a amo, e nada pode abalar esse amor.
Ela se acalmou. Recostou a cabeça em seu peito e apanhou a sua mão, pousando-a sobre seu ventre. Ramon ficou embevecido, tentando sentir o bebê, mas a gestação ainda era muito recente, e ele não pôde perceber nada.
- Jura que não está dormindo com Manuela? - sondou de repente.
Mais uma vez, ele titubeou. Não esperava pela pergunta e sentiu a voz presa na garganta quando respondeu:
- Juro.
Foi lacônico demais, artificial demais, e Giselle não se convenceu. No entanto, naquele momento, não queria mais reavivar nenhuma discussão. Iria agir à sua maneira e daria um jeito de descobrir. Segurou-lhe o rosto entre as mãos e beijou-o com ardor, mal ouvindo a voz de Rúbia, que a chamava do outro lado da estrada:
- Giselle, vamos! É hora de voltar. Despediram-se e voltaram para o castelo.
Dom Solano, ainda preso à companhia de Diego, nem dera pela sua falta. Elas tornaram a entrar na sala e foram sentar-se perto dele.
- Ah! - fez ele, batendo no joelho de Giselle. - Já voltaram? Ela sorriu meio sem graça, e Diego perguntou, dirigindo-se a Rúbia:
- Que tal um passeio?
- Excelente idéia!
Os dois se levantaram e saíram, e Giselle ficou a sós com dom Solano, que ria para os filhos completamente embevecidos. Ficou vendo-os afastar-se e só então se voltou para Giselle e continuou com seus sonhos e planos, mal se apercebendo do ar de contrariedade e repulsa que Giselle, agora, nem se dava o trabalho de esconder. A casa de Miguez em San Martin ficava um tanto quanto afastada da cidade, e poucas pessoas costumavam passar por ali. Ninguém conhecia aquele seu recanto, e ele só aparecia à noite, quando não podia ser visto. Na abadia, ficaram sabendo do assassinato do homem que dirigia a carroça com os corpos dos executados, mas ninguém desconfiou de sua participação naquele crime. Para todos os efeitos, o homem se envolvera com bandidos e tivera o fim que merecera. Também para todos os efeitos, Blanca estava morta e seu corpo, cremado, e o caso de dom Fernão já era página virada no livro de execuções de Esteban. Naquele dia, porém, Miguez apareceu mais cedo. Ainda era dia quando ele chegou e viu que Lucena lia para Blanca no jardim. Blanca fitava o horizonte com olhos vítreos, que nada viam além da escuridão. Apesar de bastante magra e abatida, dava visíveis sinais de melhora. Lucena cuidava dela com carinho e dedicação, cobrindo-a de toda atenção possível. Aos pouquinhos, fora ganhando peso, e as chagas começavam a fechar-se. Miguez se aproximou e fez sinal para que Lucena concluísse a leitura. Sentou-se num banco próximo e ficou esperando até que ela terminasse. Ao final, Lucena chamou Consuelo e deu-lhe ordens para cuidar de Blanca, que acabara por adormecer sob o calor do sol. Lucena ajeitou-lhe a manta, beijou-a gentilmente no rosto e foi ao encontro de Miguez.
- O que o traz aqui tão cedo? - a indagou, beijando-o nos lábios.
- Vou ser sagrado bispo.
- É mesmo? Não diga!
- Recebi hoje a comunicação. Haverá uma solenidade em dois dias.
- Mas que maravilha, Miguez! Parabéns!
- Tenho trabalhado duro, Lucena...
- Preferia que não falasse sobre isso. Sabe que não aprovo o seu trabalho.
- Não fosse eu o que sou jamais teria conseguido salvar Blanca. Tampouco poderia tê-la ajudado.
- Sei disso - interrompeu-a com outro beijo. - Mas é que quando me lembro de meu pai...
Começou a chorar baixinho, olhando para Blanca com piedade. Miguez estreitou-a de encontro ao peito e beijou seus cabelos, falando com maciez:
- Não chore Lucena. A culpa não é do Santo Ofício. Estamos a serviço de Deus. A culpada foi Giselle. Foi ela quem delatou seu pai.
- Não fale no nome dessa mulher novamente! Eu a odeio! Odeio-a sem nem mesmo conhecê-la!
- Também a odeio, minha querida. E ela não perde por esperar. Tenho certeza de que Deus ainda colocará em minhas mãos as armas com que irei destruí-la.
- É o que espero.
- E depois, partiremos para seu ex-noivo.
- Soube alguma coisa dele?
- Ainda não. Com tantos acontecimentos, não tenho me empenhado muito nisso. Prefiro concentrar-me primeiro naquela mulher.
- Mas você a deixou escapar!
- Eu não a deixei escapar. Esteban insistiu em casá-la com dom Solano, e eu nada pude fazer. Contudo, tenho certeza de que ela ainda dará algum passo em falso que me ajudará a prendê-la.
- Quero que ela sofra tudo o que meu pai sofreu. E Blanca também. Devo isso a eles. Aquela mulher tem que pagar por todo o mal que nos fez.
- Farei com que pague com a vida.
- Não! A vida é pouco para o que ela me deve. Quero que seu corpo sangre como o de meu pai, que seus olhos queimem como os de Blanca, que ela perca tudo como eu perdi! Quero tudo o que lhe pertence, tudo!
- Não se preocupe com isso. Darei um jeito de lhe transferir todos os bens de Giselle. Não sei ao certo o que ela possui, mas, segundo o que Esteban disse, ela conseguiu juntar um tesouro considerável. Vai ser tudo seu.
- Ótimo. Quero que ela saiba disso. Quero que saiba que tudo o que é seu passará a pertencer à filha do homem que ela enganou e destruiu!
- Não se iluda Lucena. Giselle enganou e destruiu muitos homens. Seu pai não foi o primeiro.
- Cadela!
- Enganou até Esteban. Enfeitiçou-o com suas magias, e ele ficou caído por ela. Mas, no momento em que despertar, vai perceber quem ela realmente é e ainda vai nos ajudar a acabar com ela.
Ao ouvir o nome de Esteban, Lucena sentiu um arrepio. Por mais que Miguez lhe dissesse que ele não fora culpado de nada, ela não podia esquecer que fora ele quem mandara colocar seu pai na masmorra e, pior, naquele sarcófago maldito que eles chamavam de Virgem de Nuremberg.
- Vamos mudar de assunto, sim? - pediu ela. - Sei que Esteban é seu amigo, mas não posso mentir dizendo que gosto dele.
- Sei que não gosta. Mas Esteban é meu amigo, e eu jamais poderia fazer qualquer coisa contra ele. E nem você. Prometa-me que nunca vai tentar nada contra ele.
- E o que é que uma pobre moça desamparada pode contra um poderoso inquisidor do Santo Ofício?
Miguez ficou satisfeito. Quando voltou à abadia, soube que Esteban estava novamente acamado e foi visitá-lo em seus aposentos. Bateu à porta suavemente, e Juan veio atender.
- Monsenhor está dormindo? - perguntou baixinho.
Juan fez sinal com a cabeça que sim, mas a voz de Esteban chegou até eles, nítida e sonora:
- Deixe de bobagens, Juan, estou muito bem acordado. Com um gesto de resignação, Juan deu passagem a Miguez, que foi sentar-se ao lado de Esteban na cama.
- Como está, meu amigo? - indagou solícito.
- Melhor agora. É a maldita dor de cabeça. Não sei o que me causa esse mal-estar.
- Você precisa descansar. Sabe o que o médico diz - esperou alguns minutos antes de perguntar: - E Giselle, como está? Tem tido notícias dela?
- Por que a pergunta? - estranhou Esteban. - Você nunca teve interesse em Giselle.
- Por nada. Apenas curiosidade. Ela anda sumida...
- Giselle agora é uma senhora de respeito, casada com um homem íntegro e temente a Deus. Dom Solano é um bom cristão.
- Sei disso, Esteban, não fique zangado.
- Não estou zangado. Mas você sabe que não gosto de sua cisma com Giselle.
- Perdoe-me. Não pretendia contrariá-lo.
- Deixemos Giselle de lado, meu amigo. Nesse assunto, nós nunca concordaremos.
- Tem razão - fez uma pausa e prosseguiu: - E quanto a Ramon de Toledo? Tem ouvido falar dele?
Esteban sobressaltou-se. Mais uma vez, Miguez insistia com Ramon. Será que já sabia de algo?
- Por que tem tanto interesse em Ramon?
- Por nada. É apenas curiosidade.
- Curiosidade ou desejo de vingança?
- Como assim?
- Ramon foi noivo de Lucena...
- Ramon é um canalha!
- Você está mesmo apaixonado, não está?
- Você sabe que sim. Eu mesmo lhe confessei. É por esse motivo que preciso encontrar Ramon. Para fazê-lo pagar por toda humilhação que fez Lucena sofrer.
- Não acha que isso é um exagero? O rapaz só não quis se casar com ela.
- Para você, posso contar. Ramon seduziu Lucena às vésperas do casamento e depois a abandonou.
- Não me diga!
- Por isso preciso encontrá-lo.
- O que pretende fazer com ele?
- Ainda não sei. Vai depender do que Lucena decidir.
- Entendo.
- Bem, agora vou deixá-lo descansar. Creio que já tomei demais o seu tempo por hoje.
- Oh! Não, não. Você é meu amigo e é sempre bem-vindo. Por falar nisso, está feliz com o bispado?
- Confesse Esteban. Tem um dedo seu nisso, não tem?
- Mais ou menos. Roma pediu informações sobre todos os nossos inquisidores. Sabe que nosso inquisidor-geral viaja mais do que trabalha e me delegou praticamente todos os seus poderes. Por isso, fui eu que tive que atender ao pedido de Roma. Falei tudo sobre você e os outros padres, e é claro que o seu nome tinha que ser escolhido. Afinal, você é um dos melhores inquisidores que Sevilha já conheceu.
- Foi muita bondade sua. Ser bispo é um sonho antigo.
- Não fiz nada que você não merecesse. O mérito é todo seu, meu amigo.
- Mesmo assim. Não fosse por você, eu não teria conseguido.
Enquanto os dois padres conversavam, Juan ficou ruminando as palavras de Miguez. Aquela Lucena devia estar pressionando-o para descobrir o paradeiro de Ramon. E se ele mesmo contasse? Juan sabia muito bem onde ele estava e podia dizer-lhe tudo. Mas tinha medo da ira de monsenhor Navarro. Esteban parecia proteger o rapaz também e não ficaria nada satisfeito se soubesse que ele estava metido naquela história. Por mais que Giselle lhe jurasse que não havia nada entre ela e Ramon, era bom não facilitar. Saber que padre Miguez o estava procurando dava-lhe certa tranqüilidade. Se se sentisse ameaçado, bastaria apenas uma palavra para que Ramon saísse de seu caminho. Pediria a Miguez que não dissesse a Esteban que fora ele o informante. Será que concordaria? Talvez sim. Por maior que fosse a amizade entre ele e Esteban, o amor por Lucena haveria de falar mais alto, e Miguez ainda lhe seria eternamente grato por aquele pequeno favor. Desde seu último encontro com Ramon, Giselle perdera o sossego. As palavras de Ramon não saíam de sua mente, e ela via e revia o seu rosto rubro e dissimulado, afirmando que não tinha nada com Manuela. Era mentira, ela sabia. Tinha certeza de que ele estava mentindo. Aquilo a encheu de ciúme e de raiva. Dia após dia, Giselle só pensava na oportunidade de desmascarar aqueles dois. Seu humor ficou completamente alterado. Giselle vivia irritada, cenho fechado, parecendo de mal com a vida. Até dom Solano reparou, mas ela conseguiu se escusar, alegando o mal-estar próprio da gravidez. Ele não desconfiou. Mas Rúbia sim. E Diego também. O rapaz foi o primeiro a notar a alteração no comportamento de Giselle e foi quem chamou a atenção de Rúbia.
- Já notou como Giselle anda estranha?
- Já, sim. Mas ela disse que não anda se sentindo bem por causa da gravidez.
- Conversa. Aposto como aconteceu alguma coisa.
- Mas o quê? Será que foi com Ramon?
- É possível. Você não disse que ele veio aqui outro dia?
- Veio. Será que é aquela história do noviço, o Juan? Giselle tem medo de que ele possa falar com alguém sobre seu envolvimento com Ramon.
- Não sei Rúbia. De qualquer forma, algo não vai bem.
Rúbia ficou pensativa e começou a reparar melhor em Giselle. Efetivamente, seu humor ia de mal a pior. Gritava com os criados, batia em Belinda, jogava coisas no chão. Seu pai então, nem podia se aproximar dela. Solano ficava desgostoso, mas aceitava a desculpa da gravidez e não dizia nada, certo de que aquilo tudo passaria após o nascimento do bebê. Um dia, Rúbia não conseguiu mais se conter. Giselle havia acabado de dar uns bofetões em Belinda, por causa de uma comida muito salgada. Após o almoço, Rúbia foi puxando Giselle pelo braço e saiu com ela para o pátio.
- O que você quer? - indagou Giselle de mau humor. - Estou muito cansada para passear.
- Escute aqui, Giselle - objetou Rúbia com firmeza -, o que é que está acontecendo? Por que está tratando todo mundo desse jeito?
- De que jeito?
- Você está mal humorada, agressiva. O que há com você? Giselle desatou a chorar. Já estava mesmo sensível por causa da gravidez, e qualquer coisinha lhe trazia lágrimas aos olhos. A amiga passou o braço ao redor de seus ombros e deu-lhe um beijo nas faces. Giselle se agarrou a ela, falando aos tropeções:
- Oh! Rúbia ajude-me! Estou desolada, sem saber o que fazer!
- O que foi que houve?
- É o Ramon. Desconfio que anda tendo caso com Manuela.
- A dançarina da taverna?
- Essa mesma.
- Mas por quê? Ramon ama você.
- Ele está me traindo. Sei que está.
- Será que você não anda imaginando coisas? Talvez a gravidez a esteja deixando muito impressionável.
- Não, não. Tenho certeza. Vi em seus olhos. Ele disse que não há nada entre eles, mas eu sei que está mentindo. Ramon não consegue me enganar. Não a mim!
- Está certo, Giselle, acalme-se. Não quer que os outros desconfiem, quer? - ela meneou a cabeça. - Então, fique calma. Daqui a pouco, até papai vai perceber. E isso o que quer?
- Não.
- Então trate de sossegar.
- Não posso Rúbia. Preciso descobrir. Se Ramon está me traindo, preciso saber.
- Pense bem. Ramon a ama, disso tenho certeza. Mas você está longe, casada com outro homem. Não acha natural que ele também queira se divertir com outras mulheres?
- Não! Não posso suportar a idéia de vê-lo nos braços de outra.
- Mas você faz a mesma coisa.
- Não faço, não. Meu casamento com seu pai é uma farsa. Desculpe-me se falo assim de seu pai, Rúbia, mas você sabe que eu não o amo. Só me casei com ele porque Esteban insistiu.
- Sei disso, e ele também. Contudo, você está casada e está esperando um filho que bem poderia ser dele.
- Mas não é!
- Só que ninguém sabe disso. Todos pensam que sim. E depois, você faz sexo com ele, não faz?
- Mas é diferente!
- E teve que se deitar com Juan também, não teve?
- Foi preciso, Rúbia. Juan ia nos entregar.
- E faz sexo comigo e com Diego...
- Vocês são meus amigos. Ajudam-me a suportar a ausência de Ramon.
- Cada um tem os seus motivos, Giselle, mas o resultado é o mesmo. Você dorme com outros homens por interesse. Ramon dorme com outras mulheres por necessidade.
- Não sei por que o defende.
- Não o estou defendendo. Apenas quero mostrar-lhe que isso não é assim tão horrível. Pior seria se ele não a amasse, se a estivesse enganando em seus sentimentos, se a estivesse usando ou iludindo. Mas ele não faz nada disso. Ramon a ama muito, qualquer um pede perceber.
- Sei disso, Rúbia. Sei que ele me ama. Mas não posso! Por mais que queira, não posso aceitar o fato de que ele esteja dormindo com Manuela!
- Você não tem certeza disso.
- Eu preciso saber! Preciso ter certeza!
- Para quê? O que vai fazer? Abandoná-lo?
- Não! Isso nunca! Jamais poderia viver sem Ramon.
- Então, de que adianta saber?
- Posso dar um jeito em Manuela.
- Mas que jeito? Aposto como Manuela não representa nada para ele.
- Por isso mesmo. Preciso afastá-la de meu caminho - nesse momento, voltou a chorar descontrolada. - Oh! Rúbia ajude-me! Por favor, ajude-me!
- O que quer que eu faça Giselle? Ramon está em Sevilha. Não é assim tão perto.
- Mas eu vou até lá.
- No seu estado? É loucura.
- Loucura ou não, preciso ir. Tenho que me certificar com os meus próprios olhos.
- Eu não faria isso se fosse você. Pode não fazer bem ao bebê.
- O bebê que se dane!
- Giselle, que horror!
- Oh! Rúbia perdoe-me. Não é verdade, não quero fazer mal ao meu filho. Quero que ele nasça e seja criado pelos pais dele. Por mim e por Ramon... - calou-se aturdida.
- Criado por você e por Ramon? - tornou Rúbia confusa e perplexa. - Mas como, se você é casada com meu pai?
Giselle jamais poderia lhe contar os planos que tinha para dom Solano.
Rúbia podia apoiá-la em suas loucuras porque sabia que o pai era um velho, incapaz de satisfazê-la como merecia. E depois, sabia que, quando se casara, já era apaixonada por Ramon e só aceitara aquele casamento para fugir das garras de padre Miguez. Rúbia era bastante compreensiva e a vinha ajudando, mas nunca apoiaria o assassinato de seu próprio pai. Com medo de se delatar, Giselle respondeu aturdida:
- Desculpe a franqueza, Rúbia, mas seu pai já é um velho. Não vai durar para sempre.
Rúbia abaixou a cabeça pensativa. Giselle tinha razão. O pai já era um homem idoso e não era eterno. Depois que ele morresse, Giselle ficaria viúva e nada a impediria de casar-se com Ramon.
- Tem razão. Depois que ele se for, você estará livre para fazer o que quiser de sua vida. Mas por enquanto, ele ainda é seu marido.
- Não fique zangada comigo.
- Não estou.
- Está sim. Você ficou diferente.
- Não ligue. É que amo muito o meu pai. Entendo que você é uma mulher jovem e que é apaixonada por Ramon, e acho que ninguém tem o direito de separar um amor assim tão grande. Mas meu pai tem sido feliz ao seu lado, e eu não gostaria de ver a sua felicidade destruída.
- Isso não vai acontecer. Não vou fazer nada para desgostá-lo.
- Você sabe que eu nunca interferi em seu romance com Ramon, mas gostaria de lhe pedir uma coisa. Deixe que meu pai alimente a ilusão de que é o pai dessa criança que você espera. Isso está lhe fazendo um enorme bem.
Giselle engoliu em seco. Pretendia matá-lo, mas gostava muito de Rúbia e não queria enganá-la. Durante alguns minutos, permaneceu confusa, pensando no que deveria dizer. Podia mentir para ela, mas sua consciência lhe dizia que estaria perdendo a única amiga que conhecera em toda a sua vida. Por fim, tomou uma resolução. Ou fugiria com Ramon, ou esperaria que dom Solano morresse de causas naturais. Ele estava velho e não deveria durar muito tempo mesmo.
- Não se preocupe Rúbia - tranqüilizou-a, segurando a mão da amiga. - Isso não vai acontecer. Enquanto viver, seu pai acreditará que o filho é dele. Não lhe direi nada.
- Obrigada - retrucou Rúbia agradecida, beijando-lhe a mão.
Foram caminhando para o lado de fora e ganharam a campina em frente ao castelo.
A passos vagarosos continuaram passeando, e Giselle retomou a palavra:
- Sobre aquele outro assunto...
- Que assunto?
- Sobre Ramon e Manuela... Lamento, mas eu preciso saber.
- Não faça isso. Você poderá se arrepender.
- Ainda assim, tenho que descobrir. E vou descobrir.
- O que vai fazer?
- Vou até Sevilha.
- Como? Papai não vai permitir.
- Ele precisa ausentar-se do castelo por uns dias.
- Mas ele não quer.
- Ajude-me, Rúbia. Faça com que viaje.
- Como é que farei isso?
- Não sei. Dê um jeito. Peça a Diego para ajudar. Ele pode inventar uma história de que seu pai está sendo chamado para resolver algum assunto na África.
- A África é distante, Giselle. Uma viagem até lá demora muito tempo. Meu pai não irá.
- Ajude-me, Rúbia, por favor! É só o que lhe peço!
Com um suspiro de resignação, Rúbia acabou por concordar:
- Está certo. Verei o que posso fazer.
Na semana seguinte, a ajuda veio de forma inesperada. Diego recebeu uma carta de Esteban, pedindo-lhe que fosse a Madri imediatamente. Sua mãe estava muito mal e mandara chamá-los. Esteban informava que, no dia seguinte, iria ao castelo buscá-lo para, juntos, viajarem a Madri. Solano ficou desconsolado. Apesar dos longos anos que os distanciavam, ainda sentia por ela certa ternura. Afinal, era a mãe de seu primogênito.
- Por que não acompanhamos Diego, papai? - sugeriu Rúbia, já pensando na oportunidade que Giselle tanto esperava.
- Não posso minha filha. Bem que gostaria de prestar minhas últimas homenagens a Marieta. Mas não posso deixar Giselle sozinha.
- Ora, Solano, não precisa se preocupar comigo - objetou Giselle, com voz subitamente doce. - O castelo está cheio de criados. E depois, Belinda está comigo há anos e sabe muito bem cuidar de mim.
- Ainda falta muito para essa criança nascer, papai. A barriga de Giselle ainda nem cresceu!
- Vá, Solano. Não se preocupe comigo. Estarei bem.
- Não sei. Tenho medo de que algo lhe aconteça.
- Mas o que poderá me acontecer aqui? Ficarei bem, já disse.
- É isso mesmo, papai. Giselle já não é mais nenhuma garotinha. Pode cuidar de si e do bebê.
- Hum... - fez ele em dúvida. - Tem certeza?
- Absoluta.
- Não vai ficar aborrecida de ter que ficar sozinha?
- Terei com o que me distrair. Acho mesmo que vou começar a fiar algumas roupinhas para o bebê.
Dom Solano sorriu satisfeito.
- Está certo, então. Amanhã, quando monsenhor Navarro chegar, nós o acompanharemos.
No dia seguinte, Esteban chegou bem cedo e ficou surpreso com a comitiva que o acompanharia. Pensou que somente o sobrinho iria com ele e sentiu certa apreensão por ter que deixar Giselle só. Não que temesse pela sua segurança. Mas seu coração lhe dizia que algo não se encaixava naquela história. Ela estava muito solícita, alegre, falante. Quem não a conhecesse diria tratar-se de genuína alegria. Mas ele, que já a conhecia há bastante tempo, sabia que ela deveria estar tramando alguma coisa.
Dom Solano se despediu dela e saiu com Rúbia e Diego. A carruagem de Esteban era ampla e tinha espaço para os quatro.
- Não vem, titio? - perguntou Diego, vendo Esteban parado no salão, sem se mexer.
- Vá indo - respondeu ele, sem tirar os olhos de Giselle. - Há algo que tenho que falar com Giselle.
Esteban esperou até ter certeza de que os três já haviam mesmo saído e se aproximou de Giselle, que não ousava encará-lo.
- Giselle - chamou ele calmamente.
- O que é? - tornou ela, levantando os olhos úmidos para ele.
- Conheço-a melhor do que ninguém, Giselle. Melhor até do que Ramon, por quem você seria capaz de cometer as maiores loucuras.
- Esteban...
- Deixe-me terminar. Não sei o que está acontecendo nem o que você está pretendendo. Mas sei que está tramando algo. Só vou adverti-la de uma coisa: tenha cuidado. Nem sempre poderei salvá-la de sua própria insensatez.
- Não sei do que está falando, Esteban. Não estou tramando nada.
- Está. Meu coração diz isso. Não sei o que é, mas posso sentir.
- Está se preocupando à toa. Já disse que não estou fazendo nada.
- Tenha cuidado, Giselle. Miguez está de olho em você e em Ramon.
- Em Ramon?
- Sim. Quer vingar a honra perdida de Lucena. Se ele descobrir que você e Ramon...
- Não vai descobrir nada!
- Tenha cuidado! Tenho a estranha sensação de que algo terrível está para acontecer.
- Não vai acontecer nada, Esteban, já disse. Deixe de se preocupar à toa e vá. Os outros o esperam.
Esteban deu-lhe um beijo discreto no rosto e saiu coração opresso, temendo pela sua segurança. Depois que eles se foram, Giselle começou a inquietar-se. Precisava partir o quanto antes. Se eles a estivessem traindo, na certa estariam usando a sua casa. Chegaria de madrugada, depois que fechassem a taverna, e os flagraria juntos. Por volta das duas horas da madrugada, Ramon fechou a taverna e foi para casa em companhia de Manuela.
Como de costume, entraram e foram direto para o quarto, onde logo começaram a se amar. Pouco depois, a carruagem de Giselle parou na porta da frente, e ela saltou. Com cuidado, foi rodeando a casa, até que chegou à cozinha, onde Belita costumava dormir num quartinho atrás. Bateu de leve à porta, até que a escrava acordou. Bastante sonolenta, entreabriu a porta e espiou.
- Senhora Giselle! - exclamou assustada.
- Psiu! - fez Giselle, indicando-lhe que não devia fazer barulho.
Belita encolheu-se assustada. Sabia que Ramon e Manuela estavam no quarto e temia pelo que poderia acontecer. Sem dizer nada, correu de volta a seu quarto, rezando para que Giselle não a responsabilizasse por aquilo. Em silêncio, Giselle começou a subir as escadas. A casa estava toda às escuras, à exceção de seu quarto, cuja fraca luz das velas ainda luzia. Sem produzir qualquer ruído, encostou o ouvido na porta e escutou. Do lado de dentro, os conhecidos gemidos e sussurros. Não se conteve. Com um empurrão, escancarou a porta e entrou, flagrando Ramon e Manuela em pleno ato sexual. O susto que eles levaram foi imenso. Ramon, apanhado de surpresa, empurrou Manuela para o lado, e ela caiu sobre a cama, rosto lívido, espantada demais para falar.
- Giselle... - Ramon conseguiu balbuciar, a cara branca feito cera.
- Seu animal! Porco, imundo!
- Giselle, espere...
- Eu sabia! Foi só me ver pelas costas para me trair com essa vagabunda!
Descontrolada, Giselle partiu para cima de Manuela e começou a bater em seu rosto, ao mesmo tempo em que gritava:
- Sua ordinária! Meretriz! Tirei-a da rua quando você precisou, e é assim que me paga!
- Não, Giselle, não... - suplicava Manuela, tentando aparar os golpes.
- Você me paga! Ah! Se me paga!
Continuou a bater-lhe, até que Ramon conseguiu segurá-la por trás.
- Pare com isso, Giselle! Manuela não tem culpa de nada.
- Seus cretinos! Foi divertido me enganar, não foi? A tola, a estúpida, a idiota da Giselle que faz tudo pensando em Ramon! E Ramon gasta o seu amor no corpo dessa vadia!
- Acalme-se Giselle, por Deus!
- Vou matá-la! Solte-me, Ramon, vou matar essa vagabunda!
- Saia daqui, Manuela! - berrou Ramon.
Manuela não esperou uma segunda ordem. Mais que depressa, apanhou suas roupas e saiu ainda nua, indo vestir-se no corredor. Giselle estava completamente ensandecida e era bem capaz mesmo de matá-la.
- Largue-me, Ramon! Vou matá-la! Vou matar você!
Sem soltá-la, Ramon foi virando o corpo de Giselle, até que ela ficou de frente para ele. Segurando seus braços para trás, tentou argumentar:
- Giselle, não é o que está pensando...
- Não é? O que pensa que sou? Alguma imbecil? Então não vi com meus próprios olhos? Canalha! Patife!
Com as mãos presas atrás do corpo, Giselle pôs-se a chutar Ramon, e ele foi obrigado a apertar os seus punhos e torcer os seus braços com mais força, fazendo com que ela se acalmasse.
- Manuela não significa nada para mim. É apenas um corpo de mulher, nada mais. Durmo com Manuela porque não posso estar com você. Mas é a você que amo, só você.
- Mentira!
- Não é mentira. Você é meu único amor. O que Manuela me dá é apenas sexo. Ela não me preenche feito você. Só você aquece o meu coração. Quando durmo, é com você que sonho; quando acordo, você é a primeira em quem penso. Ao caminhar pelas ruas, é você que vejo nos rostos das outras mulheres, é pelo seu corpo que anseio quando o meu arde de desejo. Mas você não está. Está sempre longe, no leito de outro homem. Sinto-me só, Giselle, morro de saudades de você. Foi por isso que cedi aos apelos de Manuela, porque não agüentava mais a sua ausência.
Tocada pelas palavras sinceras de Ramon, Giselle foi se acalmando. Ele a amava tinha certeza. Na certa, fora Manuela quem o seduzira, e ele, fraco feito todo homem, deixara-se levar pelo desejo e os impulsos, e a tomara por amante. Mas fora ela a culpada. Estava claro.
- Ramon, eu... Não sei o que dizer... Sinto-me ultrajada, ferida, enganada...
- Tem razão de se sentir assim. Mas acredite em mim quando lhe digo que você é a única mulher que eu amo. Do contrário, já teria fugido com Manuela. Lembre-se de que sei onde você escondeu o seu tesouro e poderia muito bem tê-lo apanhado e fugido com ela. Mas não foi isso o que fiz, foi? Não, não foi. Mas podia, não podia? Podia, mas não fiz. E sabe por quê? Porque é você que eu amo, Giselle, você e mais ninguém.
Ele tinha razão. Giselle lhe confidenciara o segredo do seu tesouro oculto, e ele bem poderia tê-lo roubado e fugido com Manuela para bem longe. Mas não o fizera. Tivera todas as oportunidades, mas preferira ficar ali. E se ele não fugira, então era mesmo porque a amava. Sim, Ramon a amava. Tudo fora culpa de Manuela. Fora ela quem o seduzira.
- Aquela vagabunda, ordinária! - rugiu Giselle. - Dei-lhe acolhida e ela me traiu.
- Manuela é apenas uma tonta.
- Não a defenda! Jamais torne a defender outra mulher! Ela o seduziu, não foi? Tentou você até que conseguiu o que queria. Eu devia imaginar. Os olhares que ela lhe lançava... Como fui estúpida em mantê-la na taverna.
- Não pense nisso agora. Já passou.
- Não passou não! Ela é uma meretriz e vai ter o fim que merece!
- O que você vai fazer?
- Você vai ver.
Ainda segurando suas mãos para trás, Ramon beijou os seus lábios com ardor, e ela lhe correspondeu, cheia de paixão. Ele soltou os seus punhos e ela o abraçou e, em breve, os dois estavam na cama, se amando. Quando terminaram, Ramon acariciou o seu ventre e falou com ternura:
- E o meu filhinho, como é que vai aí dentro?
Giselle deu um sorriso forçado. Filhinho? Pois sim! Ela queria muito aquele filho, mas ficou imaginando o que Ramon faria quando sua barriga crescesse. Com seu corpo deformado, impossibilitando-a para o sexo, ele, na certa, acabaria procurando outras mulheres, e ela não poderia permitir. Já sabia o que fazer. O filho que a perdoasse, mas sua felicidade ao lado de Ramon era muito mais importante.
Em silêncio, Giselle desceu ao porão, onde seus objetos de magia ainda se encontravam guardados. Com a vela na mão, fechou a pesada porta e dirigiu-se para as prateleiras ao lado da estante de livros, onde guardava suas poções. Há quanto tempo! Não tinha ali todos os elementos, mas precisava reuni-los. Acobertada pela escuridão da noite, saiu pela porta que dava para a floresta e penetrou na mata escura. Não havia lua, e ela foi obrigada a usar uma lanterna para iluminar-lhe o caminho. Em pouco tempo, reuniu tudo de que necessitava e voltou para dentro de casa. Ramon não deveria desconfiar de nada ou poderia ficar aborrecido. Rapidamente, preparou a mesma infusão de que tantas vezes já fizera uso e guardou-a num frasco. Voltou para seu quarto e deitou-se ao lado de Ramon, que dormia um sono pesado. No dia seguinte, logo pela manhã, voltou ao castelo.
Aproveitando-se de que não havia mais ninguém ali além dos criados, trancou-se em seus aposentos e abriu o frasco. Ficou olhando para ele e para seu ventre, que ainda não dava os sinais da gestação. Pelos seus cálculos, devia estar lá pelo terceiro mês, e havia ainda tempo suficiente para fazer o aborto sem correrem muitos riscos. Pensou em Ramon. Ele ficaria triste. Queria muito aquele filho. Ela também. Mas não poderia aceitar perder o homem amado por causa de seu corpo disforme. Solano, igualmente, ficaria triste, mas era por ele também que chegava àquele ato extremo. Havia prometido a Rúbia que nada faria contra ele, o que se tornaria praticamente impossível com o filho de outro homem nos braços. Não. Decididamente, aquela criança não seria uma boa coisa para ninguém. Dando ainda uma última olhada para a barriga, decidiu-se. Virou o frasco todo na boca de um só gole e fez uma careta de repulsa. O líquido era amargo e desceu queimando em sua garganta. Deitou-se na cama para dormir. Dali a pouco, sentiu queimar-lhe também as entranhas. Aquela sensação já era conhecida e ela, pouco depois, sentiu o sangue descer pelas pernas. Com ele, o que teria sido seu filho. Chorou. Em outras circunstâncias, talvez aquela criança fosse à luz de sua existência, mas, naquele momento, poderia representar o princípio de sua destruição enquanto mulher. Uma semana depois, quando Solano chegou, não conseguiu conter o desapontamento. Esperava aquele filho como uma vitória de sua virilidade, mas Giselle não conseguira segurado durante os nove meses de gestação. Esteban olhou-a desconfiado, achando aquilo tudo muito estranho. Ficara sabendo de sua gravidez na carruagem, a caminho de Madri, e levou um tremendo susto. Embora Solano falasse da criança com toda a convicção de um pai, Esteban sabia que não podia ser dele. Giselle jamais se permitiria engravidar daquele homem. O filho só podia ser de Ramon.
- Não devia ter-me ausentado - queixou-se Solano. - Se eu estivesse aqui, isso não teria acontecido.
- Deixe de bobagens, Solano - repreendeu Giselle de má vontade. - Essas coisas são assim mesmo.
- Minha mãe morreu - declarou Diego solenemente, tentando chamar a atenção para si.
- Sinto muito, Diego - falou Giselle, sem demonstrar muito interesse.
- Como foi que aconteceu? - indagou Rúbia, também desconfiada, ignorando a intromissão de Diego.
- De repente. Eu estava sentada, lendo um livro, quando senti o sangue escorrer. Olhei para baixo e vi que estava certa.
- O que se há de fazer, não é mesmo? - tornou Diego em tom irônico.
O tio o censurou com os olhos, e ele se calou.
- Há algo que eu possa fazer por você, Giselle? - perguntou Esteban.
- Há, sim. Gostaria de consultar um médico em Sevilha.
- Nada mais justo - concordou Solano. - Mas não há necessidade de viajar para ver o médico. Posso chamar um aqui mesmo.
- Não Solano, não quero. Estou acostumada ao médico com o qual me consultava em Sevilha. É de confiança.
Olhou para Esteban de soslaio, mas ele não disse nada. Sabia que ela não costumava consultar médico algum e imaginou que estava arranjando um pretexto para se ausentar.
- Deixe que ela vá comigo, dom Solano - interveio Esteban. - Cuidarei bem dela.
Solano deu de ombros. Por ele, chamaria o médico que atendia o castelo, mas se Giselle insistia... Não tinha motivos para não concordar. E depois, iria com Esteban, a quem ele devia muitos favores.
- Muito bem - aquiesceu Solano. - Vá preparar suas coisas, Giselle. Monsenhor partirá amanhã, logo na primeira hora.
Mais do que contente, Giselle chamou Belinda para que fosse arrumar suas coisas. Já estava mesmo farta daquela vida de castelã. Não gostava nada de ficar em casa vendo o tempo passar sem ter o que fazer. Gostava de ver gente e sentia falta da agitação da taverna. Estava acostumada a ser livre, e aquela vida era pior do que uma prisão. E depois, tinha assuntos importantes a tratar com Esteban.
- Onde é que vai se hospedar, Giselle? - inquiriu Diego, ainda com ar malicioso. - Na abadia? Ou na taverna?
Giselle fuzilou-o com o olhar, mas respondeu com aparente calma:
- Em minha casa. E agora, com licença. Preciso me preparar para a viagem.
- Vou ajudá-la - disse Rúbia.
As duas moças pediram licença e foram para os aposentos de Giselle, seguidas de Belinda, que começou a preparar a bagagem. Enquanto a escrava ia arrumando as roupas dentro do baú, Rúbia perguntou curiosa:
- Diga-me a verdade, Giselle. O que foi que houve realmente?
- Quer mesmo saber?
- Quero sim.
- Pois vou lhe contar. Apenas lhe peço que não se zangue. Rapidamente, Giselle contou a Rúbia tudo o que se passou desde o dia em que eles haviam partido para Madri.
- Não vou dizer que não tenha ficado desapontada - comentou Rúbia. - Meu pai esperava esse filho mais do que qualquer outra coisa na vida. Mas não posso culpá-la. Também eu já fui obrigada a tomar essa drástica medida.
- Você? Já abortou alguma vez?
- O que você queria? Que eu desse o meu pai netos incestuosos? Jamais. Engravidei duas vezes e, nas duas, fui obrigada a consultar uma parteira. Foi ela quem me deu as ervas. Por isso, não me sinto no direito de condenar o que você fez.
Giselle apertou a mão da amiga e sorriu com afeição.
- O que há com Diego? - a indagou, mudando de assunto. - Pensei que, quando a mãe morresse, ficaria feliz em poder colocar a mão na herança.
- Qual herança, qual nada! Dona Marieta precisou gastar tudo o que tinha para pagar as dívidas de Diego. Embora ele não pudesse dispor de seu patrimônio, envolveu-se com gente da pior espécie, e a mãe foi obrigada a saldar-lhe as dívidas para que não o matassem.
- Não diga!
- Para você ver. Após a sua morte, não lhe restou muita coisa.
- É por isso que ele está tão sarcástico?
- É sim.
- Engraçado, não, Rúbia? A situação de Ramon é bem semelhante.
- Eu sei. Na época em que Diego consumiu todo o dinheiro da família Toledo, monsenhor Navarro ainda comentou que o cunhado fizera bem em deixar todo o patrimônio em usus et fructus para sua irmã. Mas Diego, ainda assim, deu um jeito de gastar tudo...
- Que coisa!
Depois que Belinda terminou de arrumar o baú, Giselle a dispensou e deitou-se na cama. Desde que abortara, sentia-se um pouco cansada. Já não era mais jovem e o corpo se ressentia de tantas extravagâncias.
- O que pretende fazer em Sevilha, Giselle? Na certa, não vai consultar nenhum médico.
- É claro que não.
- Não está indo ao encontro de Ramon, está?
- Não. Vou cuidar de outra pessoa.
- Que pessoa?
- De Manuela.
- Como?
- Vou destruí-la, Rúbia. Destruir a sua felicidade, como ela fez com a minha. Não fosse por ela, eu nem pensaria em abortar o meu filho.
- Não faça isso, Giselle. Deixe-a ir. Ela agora não pode mais nada contra você.
- Isso é que não. Ela me traiu e vai ter que me pagar.
- O que pretende fazer?
- Vou atirá-la no calabouço.
- Giselle! - Rúbia levou a mão à boca, horrorizada.
- Por que o espanto? Por acaso pensa que sou boazinha?
- Não faça isso. Ela vai sofrer horrores lá dentro.
- Pois que sofra! Quando me fez sofrer, não pensou nisso. Rúbia silenciou, tomada de profunda tristeza. Gostava muito de Giselle e sabia que ela era uma doidivanas que só pensava em sexo, mas jamais poderia supor que ela fosse capaz de uma torpeza daquelas. Sabia que ela fora amante de monsenhor Navarro, mas nunca imaginara que ela compactuasse com suas práticas nefastas.
Pobre Manuela! Por tão pouco se veria atirada nas garras dos torturadores. Com uma indefinível tristeza no olhar, Rúbia se afastou decepcionada ante a atitude de Giselle. Não sabia que ela era cruel. Mas ela era. Vingativa e cruel. De cabeça baixa, foi se aproximando da porta. Antes de sair, ainda parou e deu uma última olhada em Giselle, que a fitava com espanto. Fizera-a sofrer, sabia, mas não tinha como evitar. Teria dado o mundo para evitar o sofrimento de Rúbia, mas o mundo não era o bastante para conter o ódio que sentia pela mulher que ousara tocar o corpo de seu amado Ramon.
- Você tem que me ajudar! - berrava Giselle, parada na frente da mesa do gabinete particular de Esteban. - Aquela mulher é uma meretriz!
- Pense bem - ponderou Esteban. - A moça é uma pobre coitada. Por que não a deixa em paz?
- Porque ela seduziu Ramon, por isso.
- E daí, Giselle? Não posso mandar prendê-la. Não tenho nada contra ela.
- Pois eu tenho! Ou você a prende, ou irei daqui até as Mesas Inquisitoriais e farei pessoalmente a denúncia.
- Alegando o quê?
- Heresia!
- Com que provas?
- Desde quando você precisou de provas para incriminar alguém? A minha palavra, ou a de qualquer outro, sempre foi suficiente.
- Você ainda vai acabar se encrencando. Miguez está observando você e Ramon. Se ele descobrir que são amantes...
- E quem vai contar? Você?
- As paredes têm ouvidos... Alguém pode escutá-la. Imagine se Miguez descobre que Ramon de Toledo, o homem que ele procura que foi noivo de Lucena, o mesmo que a desonrou e desapareceu, é seu amante e está escondido em sua taverna?
- Não vai descobrir...
- E você foi muito imprudente vindo até aqui.
- Você não quis me ouvir. Passou a viagem inteira dormindo!
- Eu estava cansado. Excedi-me um pouco no vinho, na véspera...
- E o que esperava que eu fizesse? Que desistisse?
- Reflita no que vai fazer Giselle. Isso ainda pode acabar mal.
- Não! Exijo que você tome uma providência. Se não quiser que eu mesma o faça!
Esteban suspirou desanimado. Não adiantava discutir com Giselle. Ela estava descontrolada, fora de si. Só conseguia pensar em vingar-se da tal Manuela. Melhor seria fazer o que ela pedia. Um escândalo, àquela altura, só serviria para chamar a atenção de Miguez. Ele não vira Giselle entrar e, com sorte, não a veria sair. Contudo, se ela fosse às Mesas Inquisitoriais, poderia estar selando seu próprio destino. Se Miguez a seguisse, na certa encontraria Ramon em sua cama.
- Está bem, Giselle, farei como me pede. Onde posso encontrar essa tal Manuela?
- Ela vive numa espelunca chamada O Mascate. Conhece?
- Não, mas posso descobrir.
- Ótimo! Mande seus homens até lá e eles a encontrarão.
- Farei isso. E agora, volte para casa com cuidado. Depois que prender Manuela, mandarei avisá-la.
Giselle correu até ele e beijou-o nos lábios, feliz da vida com o que ela considerava uma vitória. Em silêncio, vestiu o manto negro e jogou o capuz sobre o rosto, saindo para o corredor. Ninguém a reconheceu. As faces ocultas não davam mostra de que era ela, e Giselle, assim como entrou, pôde sair sem maiores problemas. Alguns minutos depois que ela se foi, Esteban também se levantou. Estava ficando cansado daquilo. Giselle vivia se metendo em encrencas, e era ele quem tinha que consertar. Mas aquela seria a última vez. Se ela se envolvesse em mais alguma confusão, deixaria por conta dela. Não podia ser seu protetor para sempre. Suspirou com tristeza e abriu a porta, indo à busca de seus soldados. Assim que ele se foi, um vulto saiu de detrás da imensa estante de livros que circundava quase todo o gabinete de Esteban. Era Juan. Quando Giselle entrou, ele estava em uma ponta da estante, limpando os livros da prateleira de baixo, e ela nem se dera conta de sua presença. Ao vê-la entrar esbaforida, ele quase se levantou para recebê-la, mas suas palavras ásperas logo alertaram seus sentidos. Giselle estava zangada, e a prudência lhe dizia que não deveria se mostrar. Se ficasse quieto, ficaria sabendo o que estava acontecendo. Para sua surpresa, descobriu que ela e Ramon eram, efetivamente, amantes. E mais: que Ramon fora noivo de Lucena. Giselle mentira para ele enganara-o perfidamente. Não o amava. Amava aquele vagabundo metido à nobre. Agora que descobrira tudo, ficou pensando no que deveria fazer. Por mais que soubesse que Giselle o havia enganado, não podia fazer nada contra ela. Precisava era livrar-se de Ramon. Com ele fora de seu caminho, talvez ainda tivesse alguma chance com Giselle. Afinal, se ele desonrara Lucena, bem se via que não tinha o menor caráter. Não merecia Giselle. Esteban fez o que Giselle lhe pediu. Chamou seus homens e deu-lhes ordens para que fosse à estalagem chamada O Mascate e prendessem uma moça de nome Manuela Peña, acusada de heresia. Assim foi feito. No meio da noite, os soldados invadiram a estalagem à procura de Manuela, que foi arrancada da cama e levada amarrada, sem nem saber por que estava sendo presa. No dia seguinte à sua prisão, Esteban foi sozinho à casa de Giselle. Ela ainda estava dormindo, ao lado de Ramon, e Belita foi acordá-la. Ao saber que o cardeal estava ali, desceu correndo para ir ao seu encontro, tomando cuidado para não acordar o amante.
- E então? - perguntou ansiosa.
- Está feito, Giselle. Manuela já está nas masmorras.
- Que maravilha! Quando é que posso vê-la?
- Vê-la? Para quê?
- Ora essa Esteban. De que vale uma vingança se não se pode saboreá-la pessoalmente? Quer me tirar esse prazer?
- Pretende humilhá-la ainda mais?
- O que está havendo com você? Que eu saiba, nunca foi dado a crises de consciência.
- Está enganada, Giselle. Todos os que acusei eram culpados de algum tipo de heresia. Cumpri o meu dever levando-os ao calabouço e à morte, purifiquei as suas almas...
- E ficou com todo o seu dinheiro.
- Isso não vem ao caso. O confisco de bens é apenas conseqüência do processo de inquisição. Mas eles eram culpados. Todos eles. E mereceram o fim que tiveram. Mas essa moça... Não consigo ver nela nada que justifique uma acusação.
- Diz isso só porque ela é pobre e você não poderá tirar nada dela.
- Não é verdade. Essa moça é uma tonta, ingênua. Não fez mal a ninguém.
- Fez a mim!
- Está bem, não quero voltar a discutir esse assunto. De qualquer forma, ela já está presa.
- O que foi que fez com ela?
- Por enquanto, nada. Ela está apenas amarrada ao tronco.
- Só isso? Ela tem que ser torturada! Não é isso o que fazem com os hereges?
- Deixe a tortura comigo. Ou será que quer tomar o meu lugar de inquisidor?
- Não... Perdoe-me. Sei que me exaltei, mas é que odeio Manuela.
- Não precisa mais se preocupar com ela. Do lugar onde está não poderá mais atingi-la.
- Quero vê-la. É o último pedido que lhe faço.
Após alguns minutos de hesitação, Esteban acabou concordando:
- Está bem. Mas que seja mesmo a última coisa que me pede. De hoje em diante, não atenderei mais a nenhum pedido seu.
- Fique sossegado. Depois disso, vou deixá-lo em paz.
- Muito bem. Amanhã à noite mandarei um soldado de minha confiança vir aqui para buscá-la. Cubra-se com o manto e o acompanhe. Eu a estarei esperando para levá-la ao calabouço. Mas cuidado. Não deixe que ninguém a reconheça.
- Não se preocupe. Farei tudo direitinho.
Assim foi feito. Na noite seguinte, Giselle acompanhou o soldado que a fora buscar em sua casa. Não disse nada a Ramon, mas fez com que ele fosse até a taverna naquele dia, alegando que não seria bom que se ausentasse por tanto tempo. Desde que ela chegara, Ramon deixara a taverna aos cuidados de Sanchez, e o movimento caíra muito após a saída de Manuela. Na calada da noite, Giselle penetrou na masmorra do Tribunal, e a primeira coisa que sentiu foi o cheiro pútrido que vinha de seu interior. Instintivamente, tapou as narinas com a ponta do manto e foi seguindo pelos corredores, assustada com os fracos gemidos que, aqui e ali, se faziam ouvir. Até que avistou Esteban, parado no portão que conduzia ao cárcere feminino. Era a primeira vez que entrava no lugar para onde ajudara a mandar tanta gente e sentiu um leve arrepio. O que seria? Não estava frio ali, e nenhuma corrente de ar vinha do exterior. Era dom Fernão. A ida de Giselle ao calabouço o atraíra para junto dela, e ele se aproximou, sentindo o quanto a odiava, o quanto odiava os dois. Acompanhou-a até o local onde Manuela dormia amarrada à polé (4). Aquela visão a impressionou, mas Giselle seguiu adiante. Podia ser horrível, mas era o que Manuela merecia por havê-la traído. Aproximou-se dela e fitou o seu semblante exangue.
- Ela está morta? - perguntou a Esteban.
- Provavelmente não. Deve estar dormindo.
Apesar de atada à polé, ela não havia sido propriamente torturada e permanecia apenas suspensa no ar, sem ferros presos aos pés. Giselle cutucou-a com a mão, e Manuela abriu os olhos lentamente. Ao reconhecer Giselle ali parada, pensou que ela estivesse ali para soltá-la e pôs-se a chorar, implorando com voz sofrida:
- Ah! Giselle, você veio me ajudar. Que bom que me perdoou. Tire-me daqui. Não fiz nada, não sou nenhuma herege.
Naquele momento, Giselle sentiu o coração se apertar, e uma pontada de arrependimento começou a martelar em sua consciência. Aquele lugar era mesmo tenebroso, e Manuela sequer sabia por que fora presa.
- Diga-lhes que houve algum engano, Giselle. Não fiz nada...
- Não sabe por que está aqui, Manuela? - indagou Giselle, tentando manter a voz firme.
- Não. Na certa foi algum engano. Eu nada sei de heresias... Giselle, por pouco, não reconsiderou. Começava a sentir pena de Manuela, mas a moça, desconhecendo o motivo de sua prisão, continuou a falar:
- Perdoe-me por haver dormido com Ramon...
Aquilo reacendeu o seu ódio. Giselle lembrou-se da cena que vira quando os surpreendera na cama, nus, em plena conjunção carnal, e seu coração se encheu de rancor.

(4) Polé = instrumento de tortura que consistia em grossas cordas de cânhamo presas ao teto, onde era pendurado o supliciado, atado pelos pulsos e pelas mãos, e com pesos de ferro nos pés. (N.A.)

- Fique quieta ou será pior para você - revidou Giselle, com voz fria.
- Por quê? Eu não fiz nada. Por favor, diga a esse senhor que eu não fiz nada. Você me conhece, sabe que eu não fiz nada...
- Agora basta! Você é uma herege nojenta e deve pagar pelo seu crime!
- Crime? Que crime?
- Você não sabe mesmo, não é? Não sabe por que está aqui. Pois eu mesma tratarei de esclarecê-la. Você está aqui porque eu quero, porque você me traiu. Fui eu quem arranjou para você ser presa, Manuela. Eu!
Manuela piscava os olhos, coberta de pavor. As palavras de Giselle não faziam sentido algum, e ela desatou a chorar convulsivamente.
- Você? - tornou atônita. - Mas por quê? Você não pode fazer isso, Giselle. Não pode ser assim tão vingativa. Você não seria capaz. Por favor, tire-me daqui. Eu lhe imploro, tire-me daqui.
Fitando-a com olhar gélido, Giselle finalizou com desdém:
- Nunca.
Deu-lhe as costas e foi andando para o portão, seguida por Esteban, que não dissera uma palavra. Atrás deles, a voz de Manuela ainda se fazia ouvir, implorando que Giselle a perdoasse e ajudasse, despertando os outros presos. Em instantes, ouviu-se um mar de lamúrias e choros agonizantes, e Giselle disparou pelo corredor, em direção à saída.
- Satisfeita? - indagou Esteban, já do lado de fora.
- Sim - foi sua única resposta.
Ela rodou nos calcanhares e seguiu na direção em que uma carruagem a aguardava para levá-la de volta. Sentou-se no banco e, sem coragem de encarar Esteban, deu ordens ao cocheiro para que partisse. No caminho, ocultou o rosto entre as mãos e chorou novamente. Sentia pena de Manuela, mas o orgulho ferido falou mais alto, e ela cedeu ao desejo de vingança. Nesse momento, Manuela chorava desesperada, ainda mais porque o carrasco, responsabilizando-a pela balbúrdia que causara, atou alguns pesos a seus pés, e ela sentiu uma dor horrenda nas juntas, como se lhe fossem arrancar braços e pernas. Seu desespero era imenso, e, o seu lado, o espírito de dom Fernão chorava com ela. Assim como ele, aquela jovem era mais uma vítima da covardia de Giselle e da tirania de Esteban. Mas aquilo não ficaria assim. Ele reunira muitos elementos contra Giselle. Bastaria se esforçar e atuar sobre os encarnados, e eles, espíritos fracos e comprometidos, em breve acederiam a suas sugestões. Giselle teria o fim que merecia. Quanto a Manuela, faria tudo o que estivesse o seu alcance para salvá-la. Seria mais uma etapa de sua vingança. Aos pés da Virgem Maria, Juan orava, pedindo inspiração para o que deveria fazer. Agora que sabia quem era aquele Ramon e que ele era amante de Giselle, ficara em dúvida sobre que atitude tomar. Sua vontade era entregá-lo a padre Miguez imediatamente. Contudo, temia por Giselle. Padre Miguez não gostava de Giselle e era bem capaz de fazer algo contra ela também. Mas ele procurava Ramon de Toledo, responsável pela desonra de Lucena, e daria tudo para prendê-lo. Juan se decidiu. Falaria com padre Miguez, mas só lhe diria o paradeiro de Ramon depois que ele prometesse que não faria nada contra Giselle também. Miguez estava em seu gabinete no Tribunal, examinando os autos de um processo, quando Juan bateu à porta.
- Entre - disse a voz lá de dentro.
- Padre Miguez... - cumprimentou Juan, com um aceno de cabeça.
- Ah! Juan! Entre, meu jovem, entre.
Juan entrou e foi postar-se diante dele, encarando-o com ar grave. Miguez soltou o processo e o fitou de volta, perguntando com visível preocupação:
- Está tudo bem, Juan? Esteban piorou?
- Não, senhor. Monsenhor Navarro está muito bem. Sou eu quem precisa falar, com o senhor.
- Pois então se sente - Juan se sentou. - E então? Do que se trata?
Ele estava ruborizado, lutando para conter o embaraço.
- Bem, padre Miguez... - começou hesitante - é sobre aquele homem...
- Que homem?
- O ex-noivo da senhorita Lucena... - completou bem baixinho.
- Refere-se a Ramon de Toledo?
- Esse mesmo.
- O que tem ele? Por acaso sabe onde está?
- E se eu disser que sei?
- Se sabe, é seu dever me informar.
- Pode ser mesmo que eu saiba padre Miguez. No entanto, há certos aspectos que envolvem o senhor Ramon de Toledo que o senhor desconhece.
- Como assim?
- Bem, digamos que eu saiba o seu paradeiro e que esteja disposto a revelá-lo ao senhor em troca de... Um pequeno favor.
- Favor? - Miguez ergueu-se da cadeira, exaltado. - Que favor, Juan? Devo lembrá-lo de que é um jovem noviço, prestes a se ordenar, e que não é direito chantagear seus superiores.
O rosto de Juan tornou-se ainda mais rubro, e um forte calor começou a subir pelo seu pescoço, espalhando-se pelas suas faces.
- Não se trata disso - contestou com voz sumida. - Não estou aqui para chantageá-lo. É que Ramon está envolvido com uma pessoa muito minha conhecida.
- Quem? - Miguez não escondia a curiosidade.
- Não posso dizer.
- Como assim, não pode dizer?
- Tenho medo do que o senhor possa fazer contra essa outra pessoa.
Miguez fitou-o desconfiado, ainda sem pensar no nome de Giselle.
- Juan - tornou mais calmo -, diga-me quem é essa outra pessoa, e talvez eu possa ajudá-lo.
- Não posso padre.
- Por quê? Por acaso não confia em mim?
- Confio. Mas não posso permitir que essa outra pessoa sofra as conseqüências de algo que não fez.
- Se é assim, ela não tem o que temer.
- Gostaria de ter a sua certeza.
- E se eu lhe garantir que nada farei contra ela?
- Era isso mesmo o que esperava ouvir do senhor, padre Miguez. Quero total isenção para a pessoa envolvida com Ramon.
Algo no coração de Miguez, naquele momento, despertou-lhe os sentidos, e ele começou a desconfiar.
- Por acaso Esteban conhece essa outra pessoa? - indagou, após alguns minutos.
Juan titubeou. De nada adiantaria mentir sobre isso, mas ele não queria envolver o nome de monsenhor. De qualquer sorte, Miguez sabia da relação entre Giselle e Esteban, e ocultar-lhe que ele conhecia a pessoa com quem Ramon se envolvera era pura inutilidade. Por fim, acabou por aquiescer:
- Conhece.
- E ele sabe que você veio a mim? - Não.
Uma atroz desconfiança foi dominando Miguez. Aos pouquinhos, foi ligando os fatos, e uma terrível dúvida passou a assaltá-lo. Começava a perceber... Esteban, de uma hora para outra, dera para defender Ramon, tentando desviar sua atenção do rapaz. E agora, Juan aparecia querendo denunciar o mesmo Ramon, mas com medo de que outra pessoa pudesse ser acusada também. Só havia uma pessoa no mundo que Juan tentaria desesperadamente defender. A mesma que Esteban faria tudo para proteger... Será que Ramon se envolvera com quem ele pensava?
- Juan - falou com severidade -, exijo que você me diga o paradeiro de Ramon de Toledo. Isso é uma ordem. Ou você me diz, ou irei agora mesmo a Esteban e lhe contarei o que você está fazendo sem a sua autorização.
- Não! Por favor, padre Miguez, não faça isso.
- Diga-me então onde ele está.
- Só se o senhor me prometer que não fará nada contra a pessoa com quem ele está envolvido.
- Está certo, prometo. Prometo que a pessoa envolvida com Ramon não será acusada por manter relações com ele.
Juan suspirou aliviado. Em sua ingenuidade, achava que aquela promessa era o bastante. Contudo, não sabia o quão ardiloso padre Miguez podia ser e, de forma ingênua e mais confiante, acabou por revelar:
- Ramon de Toledo mantém um romance sigiloso com Giselle...
- O quê? - esbravejou, ante a confirmação de suas suspeitas. - Você quer dizer, Giselle Mackinley, a mesma protegida de Esteban?
- Sim.
Miguez desabou na cadeira. Lucena ia enlouquecer quando soubesse. Sua pior inimiga de caso com o homem por quem nutria um ódio descomunal. Seria demais para ela. Por outro lado, aquele romance até que poderia ser bem providencial. Prenderia os dois de uma única vez, acusados de fornicação. Mas havia Juan. Ele prometera ao rapaz que não faria nada contra Giselle e era um homem de palavra. Não podia acusá-la pelo único fato de manter relações com Ramon. Ele prometera. Entretanto, desconfiava de seu envolvimento com demônios. De que outro modo teria enfeitiçado Esteban a ponto de levá-lo aos atos mais extremos para protegê-la? Sim, pensou, havia de encontrar algo contra ela também.
- Diga-me onde encontrá-lo - disse Miguez em tom imperativo.
- Ele está morando na casa de Giselle e cuida de sua taverna.
- Conheço a taverna, mas não sei onde Giselle mora. Juan contou-lhe tudo. Deu o endereço da casa de Giselle, indicando-lhe os horários em que o encontraria na taverna. Quando terminou, pediu em voz súplice:
- Por favor, padre Miguez, não conte a monsenhor Navarro que fui eu que falei. Ele jamais me perdoaria.
- Está bem, Juan. Tem a minha palavra.
- Obrigado.
- Juan... Por que está fazendo isso?
Ele suspirou dolorosamente e deixou que duas grossas lágrimas escapassem de seus olhos, enxugando-as com as costas das mãos.
- Ramon de Toledo obrigou Giselle a me trair...
Rapidamente, Juan disse como descobrira sobre o envolvimento de Giselle e Ramon. Contou-lhe sobre o dia em que ela fora ao gabinete de Esteban e lhe falara sobre Manuela, que ele também conhecia e que agora estava nas masmorras. Contou-lhe tudo o que sabia, e Miguez foi sentindo a raiva crescer dentro dele. Enquanto Juan falava, sentia que odiava Giselle cada vez mais e tudo faria para que ela fosse dele... Para poder destruí-la com suas próprias mãos. Quando Miguez chegou à casa de Lucena, ela logo percebeu que alguma coisa havia acontecido. Ele estava com um estranho brilho no olhar e a beijou com mais intensidade do que de costume.
- O que foi que houve? - indagou curiosa.
- Minha querida Lucena - alegrou-se -, creio que hoje será um dos dias mais felizes da sua vida.
- Por quê? Por acaso conseguiu prender Giselle?
- Melhor. Vamos apanhar Giselle e Ramon com um só golpe.
- Como assim? O que quer dizer?
- Sente-se aqui junto a mim. E mande buscar Blanca. Quero que ela escute isso também.
Lucena deu ordens para que Consuelo fosse buscar Blanca em seu quarto. Depois de acomodá-la sobre as almofadas, Miguez começou a contar o que havia acontecido. À medida que falava, o rosto de Lucena ia se contraindo, até que ela, não conseguindo mais se conter, explodiu tomada de fúria:
- Aquela miserável! Além de tirar a vida de meu pai, de destruir a pobre Blanca, de arruinar a minha própria vida, ainda se atreve a seduzir, o meu noivo! Então foi por isso que ele me deixou! Mas como? Como foi que isso pôde acontecer?
- Não sei Lucena. Mas se seu pai tinha um caso com Giselle...
Parou de falar, já arrependido, ouvindo os soluços de Blanca.
- Perdoe-me, Blanca - lamentou Miguez, sinceramente compadecido -, não queria perturbá-la.
- Não devíamos tê-la chamado aqui - censurou Lucena. - Isso não podia fazer-lhe bem.
- Tem razão, Lucena - concordou Blanca, com sua vozinha fraca e insegura. - Mas faz-me ainda mais mal saber que essa história sanguinária não termina por aqui.
- O que quer dizer?
- Quero dizer que de nada adianta querer se vingar. Fernão me traiu e está morto, e eu... Não sou nem sombra da mulher que fui um dia. No entanto, prender e torturar Giselle não vai restituir nada daquilo que perdemos.
- Como pode falar assim, Blanca? - indignou-se Lucena. - Vai nos trazer conforto. Saber que a mulher que nos destruiu vai sofrer tudo aquilo por que nos fez passar vai nos consolar.
- Não. Vai apenas nos iludir. A vingança é apenas uma ilusão. Pensamos que estamos nos ressarcindo de algo que nos foi tomado quando, na verdade, estamos tentando tomar o que também não nos pertence. Mais tarde, teremos todos que acertar nossas contas.
- Blanca!
- Por favor, Consuelo, leve-me daqui - pediu Blanca, tentando se levantar sozinha. - Não quero mais saber de mortes ou carnificinas. Já basta o que passei.
Lucena e Miguez ficaram assistindo Blanca se afastar, atônitos. Não esperavam aquela reação. Ainda mais dela, que tanto sofrerá nas mãos dos verdugos. Blanca havia se tornado uma mulher triste e de poucas palavras, mas o que dissera causou constrangimento e embaraço no coração dos dois.
- Deixe-a - ponderou Miguez. - Ela sofreu muito. Deve estar mesmo cansada de tudo isso. É natural.
- Mas Miguez, ela não quer se vingar. Tem essa chance e não quer aproveitar. Como pode uma coisa dessas?
- Não sei Lucena. Blanca sofreu muito, e nem eu, nem você jamais poderemos alcançar tudo o que ela sentiu e ainda está sentindo. Há de ter os seus motivos.
Lucena abaixou os olhos e não respondeu. Se Blanca não queria se vingar, respeitaria seu desejo. Mas era o desejo dela, não o seu. Faria a vingança sozinha.
- Também tenho os meus motivos - revidou Lucena, voz fremente de ódio. - E não estou disposta a abrir mão deles. Giselle e Ramon têm que pagar. Agora, mais do que nunca!
- Não se preocupe minha querida. Eles não hão de escapar.
- E quanto a monsenhor Navarro?
- O que tem ele? Já disse que ele nada tem a ver com essa nossa vingança. Vamos deixá-lo fora disso tudo.
- O que dirá quando souber?
- Não poderá dizer nada.
- Na certa, vai tentar impedir.
- Ele não terá como. Darei um jeito de acusar Giselle de tal forma que nem ele ousará contestar a sua prisão.
- Quando vai prendê-los?
- O mais rápido possível. Giselle veio de Cádiz especialmente para mandar prender a tal Manuela e não iria desperdiçar a oportunidade de fornicar com seu amante. Talvez ainda esteja em Sevilha.
- Quero ir com você.
- Isso é que não! Não vou expor você a esse constrangimento.
- Não, Miguez. Quero estar presente para que eles saibam por que estão sendo presos.
- Está certa, minha querida. No fundo, tem esse direito. Amanhã de manhã virei buscá-la.
- Para que esperar tanto? Podemos ir prendê-los agora mesmo.
- Já é tarde. Não gostaria de arrastá-los pelas ruas em plena luz do dia, para que sofressem a humilhação e a vergonha de se verem expostos para toda a cidade?
- É uma ótima idéia.
- Pois então, prepare-se. Amanhã cedo estarei aqui. E não se preocupe. Dará tudo certo.
Naquela noite, Lucena não conseguiu dormir. Antegozava o prazer que teria com a prisão de seus dois maiores inimigos. Depois, com a ajuda de Miguez, faria com que sofressem e agonizassem, assim como seu pai, ela e Blanca haviam sofrido. Tiraria tudo de Giselle, que ainda teria que suportar a humilhação de ser espoliada por aquela a quem ajudara a levar à ruína.
Ao mesmo tempo em que Miguez e Lucena tramavam sua vingança, Giselle ia para casa com o coração oprimido, impressionada com o episódio que vivera na masmorra. Nunca antes alguém havia lhe causado tanta impressão. Ela já havia ajudado a mandar para o calabouço centenas de homens e mulheres, mas a visão de Manuela presa à polé não saía de sua cabeça. Quando voltou para casa naquela noite, Ramon estava acordado, à sua espera.
- Meu Deus, Giselle, o que foi que aconteceu? - o indagou, correndo para ela assim que a viu entrar, faces lívidas e olhos vermelhos.
Sem responder, Giselle sentou-se na cama e ocultou o rosto entre as mãos, desatando a chorar.
- Oh! Ramon!
- O que foi que houve?
Seriamente preocupado, Ramon sentou-se a seu lado e pousou sua cabeça em seu colo, acariciando seus cabelos.
- Não foi nada - murmurou ela. - Já vai passar.
- Onde é que você esteve? Acordei e não a vi. Fiquei preocupado.
Giselle tinha medo da reação de Ramon. Desde que chegara não lhe dissera de suas intenções para com Manuela, mas tinha certeza de que ele não aprovaria. Já havia ficado deveras decepcionado com a perda do bebê, cujo aborto julgara espontâneo, e Giselle não queria desgostá-lo ainda mais.
- É por causa do bebê que está chorando? - prosseguiu ele, penalizado, e ela redobrou o choro. - Por favor, acalme-se. Amo você. Na certa, teremos outros filhos.
- Não, Ramon, não teremos mais filhos. Já não sou mais nenhuma mocinha.
- Não faz mal. Se é isso o que a preocupa, então não precisa mais se preocupar. Eu a amo e não me importo de não termos filhos.
- Até que ponto você me ama?
- Até que ponto? Como assim? Que pergunta é essa?
- Você seria capaz de entender todos os meus gestos desesperados?
- Sim... Creio que sim. Por quê? O que você fez?
Ela enxugou as lágrimas e fitou-o com seriedade. Precisava contar-lhe a verdade. Ele acabaria descobrindo mais cedo ou mais tarde, e era melhor que fosse por seu intermédio.
- Fui ao Tribunal do Santo Ofício e denunciei Manuela como herege.
- Você o quê?
- Denunciei Manuela. Ela está presa. Ele mal conseguia esconder o assombro.
- Mas por que, Giselle? Por que fez isso?
- Porque ela me traiu.
Ramon passou a mãos pelos cabelos, acabrunhado.
- Você agiu muito mal - censurou-o.
- Por quê? Ela me traiu. Seduziu você para que me traísse.
- Manuela é uma tola. Não faz mal a ninguém.
- Fez a mim.
- Seria melhor se tivesse lhe dado uma surra.
- Não me rebaixaria tanto, sujando minhas mãos com aquela cadela.
- Acha que suas mãos estão limpas, Giselle? Depois do que você fez?
- O que há com você, Ramon? Agora deu para ter crises de consciência, é? Você sempre soube o que eu fazia e nunca disse nada.
- Eu nunca aprovei! Além disso, você não conhecia aquelas pessoas.
- Engana-se. Conheci cada uma delas... Intimamente.
- Ainda assim, é diferente. Aquelas pessoas não estavam envolvidas com a sua vida. Não era como Manuela. Você lhe deu abrigo, ela trabalhava para você, confiava em você...
- Pare! Pare! Se quiser defendê-la, vá fazer-lhe companhia!
Giselle caiu num pranto sentido e amargurado. Sabia que Ramon estava certo e, pela primeira vez, sua consciência lhe dizia que não havia agido direito. Com todos os outros, não se importara. Denunciá-los era sua tarefa. Ela se envolvia com eles por ordem de Esteban, para cumprir a missão que ele lhe confiara. Mas não os conhecia a fundo nem se relacionava com eles. Manuela não era feito eles, e ela só a denunciara movida por um sentimento mesquinho e vingativo. Era uma tonta, ingênua, doidivanas. Só pensava em sexo e em homens, gostava de seduzir, de fazer amor. Mas nunca prejudicara ninguém. Nem mesmo a ela. Era bem verdade que traíra a sua confiança, deitando-se com Ramon. Mas aquilo era o máximo que seria capaz de fazer. Seu desespero, entretanto, tocou o coração de Ramon. Por mais que não aprovasse o que ela fizera, no fundo, podia compreendê-la. Uma mulher ferida era capaz de qualquer coisa, ele já deveria saber, e Giselle não fugia a essa regra. Mas ele a amava. Fosse o que fosse que tivesse feito, ele continuaria sempre a amá-la.
- Giselle - sussurrou, abraçando-a com ternura -, não chore mais. Está tudo bem, já passou.
- Não está zangado, Ramon?
- Não, não estou. Fiquei um pouco chocado, mas posso compreender.
- Pode mesmo?
- Sim. Meu amor por você é maior do que tudo. Estarei sempre o seu lado, não importa o que tenha feito.
- Oh! Ramon!
Giselle estreitou-se a ele com volúpia, e logo os dois estavam se amando, esquecidos de Manuela. No dia seguinte, logo que o sol nasceu Giselle teve que partir. Já se demorara demais na pretensa visita ao médico, e Solano acabaria por desconfiar. Ramon lamentou a sorte da pobre Manuela, mas não podia se colocar contra Giselle. Jamais ficaria contra ela.
Despediu-se dela com um beijo prolongado e voltou a dormir. Ainda era muito cedo, e ele estava cansado. De repente, foi despertado por mãos que o agarravam e o puxavam da cama. Assustado, tentou entender o que estava acontecendo, até que se deu conta de que o quarto estava cheio de soldados armados e furiosos. Será que Giselle o havia denunciado também? Esse pensamento encheu-o de tristeza e indignação, e ele já estava quase acreditando nessa suspeita quando os soldados se afastaram para dar passagem a um homem. Um padre entrou com ar furioso e o encarou com ódio. Não era Esteban, ele sabia, mas talvez fosse alguém a mando dele.
- Ramon de Toledo! - esbravejou com voz tonitruante - Por ordem do Tribunal do Santo Ofício, está sendo recolhido ao calabouço, acusado da mais sórdida heresia!
- Heresia? - balbuciou aturdido. - Mas que heresia?
- Calem a boca do fornicador! - rugiu colérico.
Os soldados o amordaçaram mais que depressa e o derrubaram ao chão.
- Onde está sua comparsa? - prosseguiu, com os olhos injetados de sangue. - Vamos, responda!
Como Ramon estava amordaçado, não conseguiu falar, e um dos soldados deu-lhe um chute nas costelas, fazendo com que gemesse de dor. Sem nada entender, rosto colado no chão, viu quando de repente a barra de um vestido se aproximou. Com muita dificuldade, conseguiu levantar os olhos, temendo encontrar diante dele uma Giselle enciumada e enfurecida. Mas qual não foi o seu espanto ao dar de cara, não com Giselle, mas com Lucena, cujos olhos transbordavam de ódio.
- Desamarrem-no! - exigiu ela.
A um olhar de Miguez, os soldados desataram a mordaça, mas Ramon não conseguiu falar, tamanho o seu espanto, e permaneceu deitado no chão, cabeça baixa, evitando o olhar acusador de Lucena.
- De joelhos! - gritou Miguez.
Os soldados o ergueram bruscamente e o puseram de joelhos diante de Lucena, enquanto Miguez prosseguia:
- Agora beije os pés da mulher que você tentou conspurcar! Agora entendia. Mas o orgulho o paralisou, e ele permaneceu parado, fitando-a com um misto de mágoa e horror.
- Beije-lhe os pés, vamos! - vociferou Miguez novamente. Como Ramon não se decidisse, um dos soldados se aproximou por trás e desferiu-lhe violento golpe na nuca, fazendo com que ele caísse de bruços, bem perto dos pés de Lucena. Mas ele resistia. Seu orgulho e sua hombridade haviam sido duramente atingidos, e ele não estava disposto a se rebaixar diante daquela mulher.
- Não ouviu o que sua eminência falou? - disse o soldado entre dentes. - Beije os pés da moça!
Ramon não beijou. Nada no mundo o faria tocar Lucena novamente. O soldado puxou-o pelos cabelos e esfregou os seus lábios sobre os pés de Lucena, mas Ramon, coberto de ódio, ao invés de beijá-los, cuspiu em cima deles, o que provocou a ira de Miguez e do soldado, que o fez desmaiar com novo golpe.
- Cão imundo! - fremiu Lucena. - Verme!
- Levem-no daqui! - ordenou Miguez, rosto desfigurado pela cólera.
Os soldados erguerem Ramon e saíram arrastando-o desmaiado. Mais atrás, outro soldado segurava pelo braço Belita, que chorava sem parar. Miguez fez sinal para que ela se aproximasse, e o soldado empurrou-a na direção dele. Na mesma hora, Belita caiu de joelhos e começou a choramingar:
- Oh! Meu senhor tenha piedade! Sou uma pobre escrava deserdada da sorte...
- Cale-se! - gritou Miguez, desferindo-lhe uma bofetada. Belita engoliu o choro e abaixou os olhos, tremendo feito vara verde.
- Só fale quando sua eminência mandar - disse o soldado com frieza.
Ela fez como lhe ordenavam. Ficou de cabeça baixa, esperando que o padre à sua frente lhe perguntasse algo, temendo por sua vida. Foi quando Miguez começou a falar:
- Muito bem, criatura reles, onde está sua senhora?
- Minha senhora? A senhora Giselle?
- E quem mais poderia ser imbecil?
Belita começou a chorar novamente, e Miguez já ia lhe desferir nova bofetada quando Lucena interveio:
- Deixe a pobre criatura, Miguez. Ela está assustada.
- Mas Lucena, ela é criada daquela víbora herege.
- É apenas uma escrava, não tem vontade própria. Deixe-a comigo.
Miguez chegou para o lado e Lucena tomou à dianteira. Abaixou-se ao lado de Belita, ergueu o seu queixo e perguntou com serenidade:
- Qual é o seu nome?
- Belita, senhora.
- Muito bem, Belita. Estamos aqui para saber onde está Giselle. Se você sabe, diga-nos ou pode acabar se comprometendo também.
- Ela partiu hoje pela manhã. Pouco antes de os soldados chegarem. Voltou para Cádiz...
Lucena fitou Miguez que, impaciente, ordenou a seus soldados:
- Revistem a casa toda!
Não demorou muito e os soldados encontraram o porão onde Giselle costumava fazer suas magias. Rapidamente, um dos homens reapareceu no quarto e foi chamar Miguez.
- Venha depressa, eminência. Encontramos algo.
Imediatamente, Miguez seguiu o soldado, com Lucena atrás dele. Belita foi junto, arrastada por outro soldado. Miguez entrou nó porão empoeirado. Havia ali toda sorte de sortilégios. Poções ervas pêlos e unhas de animais, alguns ossos e livros altamente incriminadores. Miguez fez o sinal da cruz e Lucena se persignou, enquanto ele examinava cada objeto daquela estranha coleção.
- Creio que as provas contra Giselle são irrefutáveis - falou Miguez em tom mordaz. - Essa mulher tem parte com o demônio, se não é o demônio em pessoa.
Lucena exultou. Aquilo era mais do que poderia esperar. Vingara-se de Ramon e de Giselle de uma só vez. E, embora não pudesse se vingar de Esteban também, a acusação de sua protegida já seria para ele um grande castigo. Monsenhor Navarro nada poderia fazer para salvá-la e seria obrigado a presenciar calado o seu suplício. Sim. Através de Giselle, vingara-se dele também. Sem ver ou desconfiar de nada, Giselle chegou de volta ao castelo de dom Solano. Assim que entrou, ele veio recebê-la preocupado, um tanto embriagado, ansioso para saber o que o médico havia dito.
- Nada de mais - respondeu ela com certa impaciência.
Solano tentou beijá-la, mas ela o repeliu. Os acontecimentos vividos nos últimos dias fizeram com que ela perdesse toda a disposição de fingir para ele. A imagem de Manuela presa à polé não lhe saía da mente, e Giselle, intimamente, começou a culpar Solano pela atitude extrema a que fora levada. Não fosse por aquele maldito casamento, ela e Ramon ainda estaria junto, e ele não teria a necessidade de afogar suas mágoas no colo de outra mulher.
- O que há com você, Giselle? - tornou ele frustrado. - Por que está me tratando desse jeito?
- Deixe-me em paz! - gritou ela enfurecida.
Dando-lhe as costas, foi direto para o quarto. Rúbia e Diego estavam fora, como sempre, passeando a cavalo, aproveitando à tarde para desfrutar de seu amor proibido. Giselle não tinha a quem recorrer. E depois, não sabia como Rúbia a receberia. Ela também ficara decepcionada com sua reação ante a descoberta da traição de Ramon e ficaria ainda mais triste quando soubesse o que ela havia feito. Mas Solano desconhecia esses fatos. Embora soubesse que Giselle nunca o amara, naquele dia, em particular, ela lhe parecia bastante hostil e impaciente. Talvez a perda do bebê lhe houvesse ocasionado alguma enfermidade muito séria, e ela estivesse com medo de lhe contar.
- Giselle - chamou ele, antes que ela entrasse em seu quarto. - Diga-me o que houve lá em Sevilha. O médico lhe deu más notícias?
Giselle encarou-o com um misto de repulsa e desdém. Já não o agüentava mais, não suportava mais aquele casamento de mentira.
- Solano - revidou ela, a voz trêmula demonstrando a raiva que procurava conter -, estou lhe pedindo, por favor: deixe-me sozinha. Não quero conversar hoje.
- Mas você é minha esposa. Tem que me dizer o que aconteceu.
- Não aconteceu nada.
- Como não? Você saiu para ir ao médico. Passa dias fora e, quando volta, está mais aborrecida do que nunca. Quer então me convencer de que não houve nada? O que foi? O que ele lhe disse?
- Nada, Solano, não disse nada.
- Se não disse nada, por que está tão aborrecida?
- Quem foi que lhe disse que estou aborrecida?
- Basta olhar para você.
- Pois então não olhe!
- O que é isso? - o censurou, aproximando-se dela e tentando segurar a sua mão. - Por que essa agressividade toda? Você está doente? O médico diagnosticou alguma enfermidade grave? A perda do bebê lhe deixou seqüelas...?
- Pare Solano, pare! Você está me enervando!
- Mas Giselle, estou preocupado com você. Você saiu daqui para ir ao médico e voltou pior do que foi. Só pode ter sido algo ruim.
- Não precisa se preocupar. Já disse que não tenho nada.
- Você está mentindo, sei que está. O médico deve ter-lhe dito alguma coisa terrível para deixá-la assim nesse estado. O que foi? Não precisa me esconder nada.
- Não estou lhe escondendo nada.
- Abra-se comigo, Giselle. Você pode não me amar, mas eu sou seu marido. Tentarei ajudá-la. Consultaremos outros médicos.
- Que médicos?
- Iremos a Madri ou, quem sabe, a Paris? Tenho certeza de que poderão curá-la.
- Você está louco, Solano. Eu não estou doente.
- Se não está doente, por que está tão brava?
Ela virou-lhe as costas e foi saindo do quarto novamente. Ele foi atrás, falando e gesticulando ao mesmo tempo:
- Assim não é possível, Giselle. Estou tentando ajudá-la, mas você parece não querer a minha ajuda.
- Não quero.
Já começando a demonstrar irritação, Solano apressou o passo e alcançou-a quase na porta da sala, puxando-a pelo braço com força.
- Espere aí, Giselle! - falou em tom imperativo. - Você não tem o direito de me tratar assim.
- Solte-me, Solano.
- Aonde pensa que vai?
- Vou dar uma volta.
- Agora, não. Ainda não acabamos a nossa conversa.
- Por que está me atormentando desse jeito? A única coisa que desejo é ficar em paz.
- Você pode ficar em paz assim que me contar o que o médico lhe disse.
Giselle não agüentava mais. Aquela farsa já a estava irritando, e Solano a estava tirando do sério. Por que não se calava? Por que não a deixava em paz? Estava farta de tudo aquilo, daquele casamento de mentira, daquele velho que não amava. Tomou uma decisão. Aquele era seu último dia ali. Solano podia esbravejar e ofendê-la, mas ela iria embora. Afinal, não fizera o que fizera para ainda ter que ficar longe de Ramon. Fora obrigada a tomar medidas drásticas contra Manuela para poder assegurar o amor de Ramon por ela. Não tinha sentido agora deixá-lo de novo e voltar para a casa de um homem a quem não amava. A prisão de Manuela fora seu último ato extremo. Dali por diante, não estava mais disposta a se separar de Ramon. Houvesse o que houvesse, estaria o seu lado. E depois, ele tinha razão. Ela também não lhe era fiel e ele, na certa, não gostaria de saber sobre seu envolvimento com Rúbia e Diego. Não precisava mais daquilo. Não precisava mais de subterfúgios que lhe garantissem a segurança. Tinha dinheiro, era rica. Podia apanhar seu tesouro e fugir com Ramon. Ninguém nunca mais ouviria falar deles, e então poderiam ser felizes de verdade. Casar-se-iam e levariam uma vida normal, longe de padres, feitiços e tribunais. Com esse pensamento, virou-se para Solano e respondeu entre dentes:
- Não há médico nenhum.
- Não há? Como assim? O que quer dizer? Não estou entendendo.
- Mas como você é estúpido, Solano! O que estou tentando lhe dizer é que não fui consultar nenhum médico em Sevilha.
- Não foi? Aonde foi então?
Olhando bem fundo dentro de seus olhos, Giselle disparou com voz gélida:
- Fui ver o meu amante!
A princípio, Solano pensou que não havia entendido direito. Teria ela mesma dito que havia ido ver o amante? Mas que amante era aquele?
- Foi ver monsenhor Navarro?
Ela soltou uma gargalhada histérica e revidou em tom mordaz:
- Não. Fui ver o homem com quem vou dividir o resto da minha vida.
- O que quer dizer?
- Quero dizer que me vou embora. A partir de hoje, nosso casamento está desfeito.
- Não pode desfazer nosso casamento. Os laços do matrimônio são sagrados e eternos, e só se rompem com a morte.
- Pouco me importa!
Enfurecida, Giselle passou por ele em disparada e saiu bradando pelos corredores do palácio, enquanto caminhava de volta a seu quarto:
- Belinda! Belinda! Onde está? Belinda!
Entrou no quarto feito uma bala de canhão e tentou bater a porta, mas Solano a impediu, entrando logo atrás dela. Poucos segundos depois, Belinda apareceu esbaforida.
- Chamou senhora?
- Chamei. Prepare a minha bagagem e depois vá arrumar suas coisas. Nós vamos embora.
Apesar de surpresa, Belinda não ousou questionar. Saiu apanhando os baús e começou a aprontar tudo.
- O que está fazendo? - perguntou Solano, atônito.
- Você é surdo? Não ouviu? Disse que me vou embora.
- Pare com isso! - vociferou. - Estou ordenando, Giselle, pare já com essa besteira!
Solano partiu para cima de Belinda e começou a arrancar-lhe as roupas das mãos. A escrava se encolheu toda a um canto e ficou à espera. Na mesma hora, Giselle partiu para cima dele e começou a esbofeteá-lo.
- Largue minhas coisas, seu animal! - berrou ensandecida.
- Você não vai a lugar nenhum. É minha esposa!
- Eu o odeio, Solano!
- Não vai voltar para seu amante! Seja ele quem for não vai voltar para ele. Não vou permitir. Você é minha esposa, e não vou tolerar que homem nenhum tome aquilo que é meu.
- Eu não sou sua!
- É sim. Até um filho ia me dar...
- Ele não era seu filho! - gritou cada vez mais colérica. - Era filho do meu amante! Do meu amante!
Fora de si, Solano deu-lhe violenta bofetada, e ela caiu sobre a cama, um fio de sangue escorrendo do nariz. Coberto pela raiva, ele correu em sua direção e apanhou-a pelos cabelos, desferindo-lhe diversas bofetadas no rosto. Giselle tentava livrar-se de suas garras, mas ele não a largava. Apesar de velho e franzino, conseguira imobilizada de um jeito que ela não conseguia se soltar. Paralisada de horror, Belinda não sabia o que fazer. Via sua senhora apanhando bem na sua frente e começou a chorar. Ficou toda encolhida, chorando apavorada, até que a voz aguda de Giselle ressoou em seus ouvidos:
- Belinda, ajude-me! Faça alguma coisa!
Saindo de seu torpor, Belinda deu um salto e correu para eles, pendurando-se no pescoço de Solano. Sentindo-se sufocar, ele soltou Giselle, tombando ao chão juntamente com Belinda. A escrava, a um olhar de Giselle, puxou-lhe os braços acima da cabeça, ao mesmo tempo em que Giselle subia em cima dele e agarrava seu pescoço, apertando-o com fúria incontida. Solano esperneou e se debateu, tentando desvencilhar-se, mas as forças somadas das duas mulheres superaram a sua, e Belinda o segurava firme, enquanto Giselle não parava de apertar sua garganta. Mais alguns minutos e tudo estava terminado. Solano, olhos vítreos, fitava Giselle com um ódio imensurável. Apesar de morto, seu olhar transmitia todo ódio que levaria daquela vida e com o qual atravessaria ainda muitos séculos. As duas permaneceram paradas durante alguns minutos mais, tentando assimilar o que haviam feito.
- Ai, meu Deus! - choramingou Belinda. - Ele está morto... E agora, dona Giselle? O que faremos?
- Deixe-me pensar, Belinda - retrucou apressada. - Venha, ajude-me a levá-lo de volta a seu quarto.
Sem responder, Belinda se levantou, e juntas saíram arrastando o corpo de Solano, deitando-o em sua própria cama.
- E agora, dona Giselle?
- Não sei Belinda, não sei - Giselle estava à beira do descontrole. - Ele me agrediu. Queria me matar. Foi legítima defesa...
- Ninguém vai acreditar senhora!
- Mas tem que acreditar.
- Eu a ajudei, dona Giselle. Quem é que se defende assim?
- Você... Sim, Belinda, você me ajudou...
Um brilho estranho perpassou os olhos de Giselle, causando calafrios em Belinda. Em seu íntimo, a escrava sabia que ela é quem acabaria levando a culpa por aquilo.
- Senhora... - começou a balbuciar.
- Quieta Belinda! É isso mesmo. Ele me agrediu, começou a me bater, e você veio me ajudar. Derrubou-o ao chão e apertou o seu pescoço. Nem percebeu que o estava estrangulando e o matou.
Belinda chorava desconsolada. Não queria responder por aquilo, não era justo. Mas quem acreditaria na palavra de uma negra?
- Por favor, senhora, não faça isso comigo. Não fui eu...
- Foi você, sim! Para me salvar, é claro, mas foi você. Você o matou. Foi você, Belinda, entendeu? Você! Eu não fiz nada.
Belinda não parava de chorar. Já podia imaginar-se sob a lâmina do machado, pagando por um crime que não cometera. Ajudara a segurá-lo porque Giselle ordenara. E ela era apenas uma escrava. O que podiam as escravas contra as ordens de seus senhores?
- Pare de chorar, Belinda! - repreendeu Giselle.
- Mas senhora, vão me matar...
- Não vão fazer nada disso. Vou ajudá-la. Darei um jeito de tirá-la das masmorras.
- Vou ser torturada...
- E daí? Deixe de ser covarde. Vai ser por pouco tempo.
- Ai, senhora... - parou de falar, a voz embargada pelo pranto.
- Não seja tola, Belinda. Você vai ser presa, mas eu darei um jeito de soltá-la. E se não disser nada, dar-lhe-ei a liberdade. Então, o que acha? Não vale a pena? Está certo que ninguém acreditaria mesmo na palavra de uma negra, mas, ainda assim, quero recompensá-la. Vou lhe dar dinheiro e a liberdade. Mando-a até de volta para a África, se você quiser. Não é um bom negócio?
Belinda não achava. Tinha lá as suas dúvidas de que sua senhora manteria a palavra. Além disso, o plano podia não dar certo. Giselle já não gozava mais de tanto prestígio assim, e era bem capaz que não conseguisse libertá-la. Contudo, o que poderia fazer? Como Giselle mesma dissera quem acreditaria na palavra de uma negra? Ela não tinha saída. Sabia que seu destino estava selado e não tinha meios de modificá-lo. Só um milagre poderia salvá-la daquela sorte ingrata. As duas permaneceram paradas, o olhar de uma preso no olhar da outra, quando escutaram as vozes de Rúbia e Diego. Eles vinham chegando de seu passeio a cavalo e parecia que haviam parado na porta do quarto de Rúbia. Nesse instante, Giselle virou-se e correu. Abriu a porta às pressas e saiu para o corredor, gritando feito louca:
- Ah! Rúbia acuda! Aconteceu uma desgraça! Rúbia e Diego fitaram-na ao mesmo tempo.
- O que foi que houve Giselle? - perguntou Rúbia atônita.
- É seu pai... Uma desgraça...
Antes que ela terminasse de falar, Rúbia saiu correndo. Entrou no quarto do pai e estacou confusa.
- Papai... - sussurrou - o que aconteceu?
Vendo Belinda ajoelhada ao lado dele, chorando sem parar, Rúbia aproximou-se e fitou o rosto esbranquiçado do pai, a garganta arroxeada, os olhos sem vida fitando o vazio. Recuou horrorizada, e Diego a amparou por trás. Numa fração de segundos, deduziu o que havia acontecido e fitou Giselle, à espera de uma explicação.
- Foi horrível, Rúbia - começou ela a balbuciar, com fingida dor. - Cheguei de viagem... Vocês não estavam... Seu pai estava bêbado, fora de si... Começou a me acusar de coisas horríveis... Bateu-me... Tentou me matar... Veja! - exibiu as faces ainda vermelhas dos bofetões que levara o sangue seco no nariz. - Belinda veio me ajudar... Ficou transtornada, com medo, e não percebeu...
- Não percebeu que o estava estrangulando? - tornou Diego com ironia.
- Sim... Foi tudo muito rápido... Ela nem teve tempo de pensar...
- Nem você? - prosseguiu Diego.
Giselle lançou-lhe um olhar furioso, que ele devolveu com um sorriso debochado. Nem parecia abalado com a morte do pai. Apenas Rúbia demonstrava uma dor sincera. Ela se aproximou do leito em que o pai jazia e fitou o seu rosto exangue. Com os olhos rasos d'água, fitou Giselle, depois Belinda. A escrava, ainda ajoelhada aos pés da cama, não parava de chorar.
- Levante-se, Belinda - ordenou Rúbia.
Na mesma hora, a escrava se levantou olhos baixos, não ousando encará-la.
- O que vai fazer com ela? - quis saber Giselle.
Antes que Rúbia pudesse responder, a porta do quarto se abriu, e vários soldados entraram em fila. Já conheciam Giselle e não tiveram dificuldade alguma em identificá-la. Rapidamente, acercaram-se dela, sem nem se dar conta do corpo morto de dom Solano, e agarraram-na pelo braço. Um oficial desenrolou um pergaminho e começou a ler:
- Por ordem de sua eminência, o bispo Miguez Ortega, inquisidor do Tribunal do Santo Ofício...
Giselle, boquiaberta, fitou Rúbia como a implorar-lhe auxílio. Mas a moça estava por demais aturdidas para pensar em uma reação. Ainda não havia entendido o que realmente acontecera ao pai e permaneceu calada, apenas ouvindo a ordem de prisão que o oficial, tão imperativamente, lia em voz alta. Foi só quando ele terminou de ler que percebeu o corpo morto de dom Solano. A passos rápidos aproximou-se da cama e encostou o ouvido no peito do defunto.
- Este homem está morto! - asseverou surpreso, observando a mancha roxa ao redor de seu pescoço. - Foi estrangulado. Quem o matou?
Instintivamente, Belinda se adiantou e apontou o dedo para Giselle, afirmando com toda força de seu ódio:
- Foi ela!
Giselle não conseguiu contestar. Apenas abaixou a cabeça e pôs-se a chorar de mansinho...
Quando Esteban soube da prisão de Giselle, pensou que fosse explodir. Estava voltando do calabouço, após uma longa sessão de torturas, quando viu os soldados entrando com ela. Na mesma hora, quis ir a seu socorro, mas a prudência o fez recuar. Giselle vinha de cabeça baixa, amarrada e muito bem segura, e não o vira do outro lado. Naquele momento, Esteban não poderia descrever a dor que sentira. Era como se lhe arrancassem um braço ou uma perna, e a vontade que sentiu foi de correr em sua direção e arrancar aqueles homens de perto dela a pontapés. Mas estava atado à sua posição de inquisidor e não podia agir contra a instituição que defendia. Sabia que aquela ordem só podia ter partido de Miguez e foi até seu gabinete.
- O que significa isso? - foi logo dizendo, não ocultando à revolta e a indignação.
- Ah! Esteban é você - retrucou o outro, fingindo de nada saber.
- Eu lhe fiz uma pergunta, Miguez!
Miguez fixou nele seu olhar e, com voz calma, revidou:
- O que significa o quê?
Já sabia do que se tratava, mas precisava ganhar tempo. Há muito se preparara para aquele momento, mas tinha que reconhecer que era difícil. Esteban era seu amigo, e nem o ódio que sentia por Giselle, nem o amor que dedicava a Lucena seriam capazes de abalar um sentimento tão forte e verdadeiro.
- Você sabe! - rugiu Esteban, mal contendo a vontade que sentia de esmurrá-lo.
Miguez fitou-o com olhar grave. Não adiantaria nada fingir. Só serviria para aumentar ainda mais a raiva de Esteban. Sem alterar o tom de voz, respondeu calmamente:
- Se está se referindo a Giselle, quero que saiba que ela é acusada de alta bruxaria.
- Mas que bruxaria? Giselle é minha protegida!
- Cuidado com aqueles a quem protege Esteban. Pode acabar se comprometendo.
- Isso é um absurdo! Sou um inquisidor de respeito. Ninguém ousaria me acusar. E quem se atreveria a me torturar? Ou executar? Você?
- Não, meu amigo, eu jamais faria isso. Minha amizade por você está acima de tudo. Acima mesmo dessa bruxa que acabamos de prender e de quem pretendo libertá-lo.
Por uns instantes, Esteban fitou-o emocionado. Sentia a sinceridade de suas palavras e sabia que Miguez jamais ousaria levantar a espada contra ele. No entanto, seu ódio por Giselle já era conhecido, bem como sua relação com Lucena, e Esteban não podia concordar com aquela vingança pessoal.
- Agradeço pela sua amizade - tornou mais calmo -, e é em nome dela que lhe peço que não se meta com Giselle. Ela é assunto meu.
- Engana-se, meu caro. Giselle agora é assunto da Igreja.
- Você não tem nada contra ela, Miguez!
- Engana-se mais uma vez. Tenho provas robustas de que anda envolvida com bruxaria. Eu mesmo vi...
- Viu o quê?
- Seus apetrechos demoníacos.
- O que quer dizer?
- Quero dizer que descobri o seu covil. Sei onde ela praticava suas bruxarias.
- Como... Como descobriu isso?
- Revistando a sua casa, aqui mesmo, em Sevilha.
- Mas por quê? Giselle estava em Cádiz. O que você foi fazer lá?
- Fui prender seu comparsa. Prendendo-o, descobri todo o resto.
Esteban emudeceu. Estava abismado. Era óbvio que Miguez descobrira toda a verdade sobre o envolvimento de Giselle e Ramon. Faces lívidas e preocupadas, indagou com voz sumida:
- Ramon de Toledo também está preso?
- Está.
- Onde...?
Miguez se levantou e falou incisivo:
- Venha comigo.
Sentindo-se derrotado e traído, Esteban pôs-se a segui-lo. Eles entraram nas masmorras e foram seguindo por um corredor escuro, que Esteban sabia aonde conduzia. Aquele corredor ia dar nos cubículos. Eram pequenas celas sem luz ou ventilação, espécies de solitárias onde eram colocados os prisioneiros mais rebeldes, que precisavam ser dobrados antes de serem submetidos às sessões de tortura. De tão pequenos, as pessoas ali colocadas só podiam ficar sentadas. Eram baixos demais para comportarem um homem em pé e muito estreitos para que se pudesse deitar. Miguez parou em frente a uma das muitas portas, dispostas lado a lado no corredor escuro, e abriu uma portinhola.
- Veja.
Esteban olhou para dentro. Efetivamente, era Ramon de Toledo quem estava ali, sentado com as pernas encolhidas, no rosto uma expressão de dor e cansaço, provável reação às cãibras e ao formigamento que aquela posição incômoda devia estar lhe causando. Ramon olhou para ele e o reconheceu, mas não disse nada. Não iria se humilhar diante de nenhum padre nojento. Em silêncio, fizeram o caminho de volta. Esteban ia triste e pensativo, sentindo no peito uma angústia indizível. Se Miguez descobrira os objetos de bruxaria de Giselle, não havia mais muito a fazer. O processo, na certa, já fora instaurado, e ser-lhe-ia muito difícil apagar as provas existentes contra ela. De volta ao gabinete, Esteban indagou com profundo pesar:
- Por que fez isso, Miguez? Pensei que fosse mesmo meu amigo, mas sua amizade não é tão forte como diz. Do contrário, não a teria sobrepujado por causa daquela mulher... - calou-se, a voz embargada.
- Não me tome por inimigo ou traidor, Esteban. Não fiz isso por causa de Lucena, se é o que está pensando. Ramon, sim. Prendi Ramon para vingá-la. Mas Giselle é outra história. Você sabe que jamais gostei dela.
- Ela nunca lhe fez nada...
- Ela o enfeitiçou!
- Como Lucena o enfeitiçou também?
- É diferente.
- Não é não. Você sente por Lucena o que eu senti por Giselle um dia. Mas hoje... Hoje ela é como uma filha para mim. Tem idéia do quanto está me fazendo sofrer?
- Ela matou um homem! - tentou se justificar. - Matou o marido!
Apesar de surpreso, Esteban não respondeu. Olhos baixos, marejados de lágrimas, rodou nos calcanhares e saiu. Miguez ainda fez menção de ir atrás dele, mas não teve coragem. Sabia que ele estava triste e decepcionado, mas tinha esperanças de que aquele sentimento passaria. Com o tempo, Esteban ainda lhe agradeceria o favor. A passos vagarosos, Esteban foi caminhando para a capela. Entrou cabisbaixo e foi se ajoelhar diante do altar, fitando o rosto suave de Jesus. Pela primeira vez em muitos anos, chorou. Era um pranto pungente e sentido, carregado de angústia. Só podia pensar no sofrimento de Giselle e na solidão que ela devia estar sentindo naquela masmorra fria e soturna. Em silêncio, orou. Orou com um fervor até por ele desconhecido. Quando saiu da capela, já estava mais refeito. Apesar da tristeza, conseguiu raciocinar com um pouco mais de clareza. Sabia que não conseguiria salvar Giselle, mas pediria a Miguez que lhe desse uma morte rápida. Pensou em falar com ele naquele dia mesmo, mas mudou de idéia. Precisava descansar arrumar os pensamentos em sua cabeça e os sentimentos em seu coração. Com andar pesaroso, deixou o Tribunal e entrou na abadia, seguindo direto para seu quarto. Juan estava sentado perto da janela, lendo um trecho da bíblia, e sorriu quando ele entrou. Até então, Esteban ainda não havia desconfiado de que fora Juan quem contara a Miguez sobre Ramon, mas o rapaz percebeu que algo não ia bem.
- O que há monsenhor? - indagou solícito. - Sentindo-se mal outra vez?
Esteban fez um gesto com as mãos e foi-se deitar, fechando os olhos por um minuto. Quando tornou a abri-los, Juan estava a seu lado, fitando-o com visível preocupação.
- O que quer Juan?
- O senhor não está bem. Aconteceu alguma coisa?
Não adiantava esconder. Juan acabaria descobrindo mais cedo ou mais tarde.
- Há algo que preciso lhe contar, mas quero que você seja forte.
- O que foi monsenhor? É algo grave?
- É sim.
- O quê? O senhor está mal? Vai morrer?
- Não é nada disso, não é sobre mim. É sobre outra pessoa.
- Outra pessoa? Quem...? É Giselle? Ela está morta?
- Ainda não...
- O que quer dizer, monsenhor? O que foi que houve? Pelo amor de Deus, diga-me!
- Giselle está presa. Miguez mandou prendê-la. Ele levou a mão à boca, horrorizado.
- Presa? Mas por quê? O que ela fez?
- Miguez foi a sua casa prender Ramon e descobriu o seu pequeno reduto de magias. Foi o suficiente.
- Mas não pode ser. Não, monsenhor, deve haver algum engano.
- Lamento Juan, mas não há engano algum.
- Não, não... O senhor não está entendendo. Padre Miguez me prometeu... - calou-se alarmado.
- Prometeu o quê?
Juan já não escutava mais nada. Deu-lhe as costas e saiu correndo feito um louco, a visão turvada pelas lágrimas. Mais que depressa, saiu da abadia e alcançou o Tribunal, indo direto para o gabinete de Miguez. Ele estava sentado à sua mesa, tendo às mãos os processos de Giselle e Ramon, e teve um sobressalto quando o rapaz entrou.
- Como pôde fazer isso, padre Miguez? - esbravejou atônito. - O senhor me prometeu.
- Acalme-se, rapaz! - ordenou Miguez impaciente. - Não tem o direito de entrar aqui assim.
- Mas o senhor me prometeu - choramingou. - Prometeu-me que não ia prender Giselle...
- Prometi que não a prenderia por seu envolvimento com Ramon.
- Então...?
- Ela não foi presa por isso. Foi presa porque eu descobri o seu esconderijo. O esconderijo da bruxa, dos íncubos, dos súcubos!
- Como... Como assim?
- Sua amiguinha Giselle tinha hábitos bem interessantes, não sabia? - ele meneou a cabeça. - Não sabia que ela é uma bruxa imunda e sensual, que atraía os homens para seu covil só para atirá-los na perdição?
- Não, padre Miguez, está enganado...
- Não estou não. Giselle tinha em sua casa objetos que bem poderiam condená-la sumariamente. No entanto, não vou prescindir de uma lenta purificação.
- Não faça isso, por favor. O senhor prometeu...
- Não prometi nada disso, rapaz! A promessa que lhe fiz, já cumpri. Não prendi Giselle por causa de Ramon, como lhe disse. O motivo de sua prisão foi outro.
- Mas padre...
- Chega Juan! Não tenho mais tempo para suas tolices. E agora, saia! Deixe-me trabalhar.
Juan saiu derrotado. Jamais poderia esperar por uma coisa daquelas. Em sua cabeça, apenas Ramon seria preso. Padre Miguez arranjara um jeito de enganá-lo e prender Giselle também. Como fora estúpido acreditando nele! E ainda teria que contar a monsenhor Navarro o que fizera. Mas não. Não teria coragem. Monsenhor não precisava saber. Mas o que estava dizendo? Padre Miguez se encarregaria de contar, mais cedo ou mais tarde. Será que iria suportar? Teria condições de enfrentar a dor de duas perdas sucessivas? Monsenhor Navarro, na certa, não tornaria mais a falar com ele. E Giselle...
Pensando em Giselle, Juan desatou a correr. Seus pensamentos lhe diziam que ele seria o único responsável pelo seu martírio. Como a amava! Como lhe doeria ver o seu sofrimento. Não podia! Não podia presenciar o seu suplício. Precisava dar um jeito de não sofrer. Se não visse, não sofreria. Estava certo de que não. Era só fechar os olhos que o sofrimento deixaria de existir. Ao menos para ele. E só o que tinha a fazer era correr... Correr... Correr... Faltavam poucos minutos para a meia-noite quando Miguez entrou nas masmorras, em companhia de Lucena, que o seguia com um arrepio. Aquele lugar lhe lembrava a morte do pai lhe causava calafrios até na alma. Contudo, precisava vencer a aversão que sentia e seguir adiante. Era lá que estava a mulher que mais odiava no mundo. Aquela que lhe tirara a vida do pai seduzira o noivo e ajudara a roubar todo o seu patrimônio. Finalmente iria conhecê-la. Giselle estava amarrada a um tronco, rosto lívido, semi-acordada. Em silêncio, Miguez se postou diante dela e fez sinal para que Lucena também se aproximasse. Durante alguns minutos, permaneceram em silêncio, apenas fitando o seu rosto sofrido. Para Miguez, aquele era o momento da mais pura glória. Giselle não lhe fizera nada, mas sentia por ela um ódio incomensurável, que jamais poderia explicar. Pura Lucena, o ódio transformou-se em satisfação. Fitando o semblante pálido e sofrido de Giselle, sentiu um arrepio de prazer. Então era aquela a mulher responsável por todo o seu infortúnio! Tinha que reconhecer que era bonita, apesar de não ser mais nenhuma mocinha. Mas achou que o seu rosto possuía algo de maligno, como se guardasse impresso o resultado de seus inúmeros atos de magia. No instante mesmo em que Lucena esticou o pé para cutucá-la, Giselle abriu os olhos. Sentiu uma presença inimiga junto de si e despertou, e a primeira coisa que viu foi o rosto de Lucena a fitá-la com ar de satisfação e glória. Fixou nela seu olhar por uns instantes, tentando reconhecê-la e, mesmo sem nunca antes tê-la visto, sabia de quem se tratava. A figura odienta de Miguez, parado a seu lado com ar de triunfo, dava-lhe a certeza de que se tratava de Lucena Lopes de Queiroz.
- O que quer? - indagou Giselle entre dentes.
Há muito Lucena vinha guardando aquele ódio e, ao ouvir as primeiras palavras de sua maior inimiga, não conseguiu conter o ímpeto e desferiu-lhe uma bofetada no rosto, fazendo com que os olhos de Giselle chispassem de ódio também.
- Cadela! - vociferou Lucena. - Vou fazer com que pague por cada segundo de sofrimento que me causou!
Mal segurando a fúria que as correntes frias continham, Giselle encheu a boca e cuspiu no rosto de Lucena, que lhe desferiu outra bofetada, e outra, e mais outra. Não podendo se defender, Giselle recebeu os golpes com ódio e humilhação, lamentando o fato de estar acorrentada, impedida de estrangular aquela desgraçada. A seu lado, Miguez assistia a tudo com aparente passividade, nos lábios um sorriso frio de satisfação e orgulho. Foi só quando o rosto de Giselle começou a inchar que ele segurou o punho de Lucena e interveio com voz glacial:
- Já chega.
Na mesma hora, Lucena refreou o golpe. Cerrou os punhos e fitou as faces inchadas de Giselle, que mal conseguia divisá-la por detrás das lágrimas que procurava segurar.
- Demorou muito para vê-la presa e subjugada, mas não houve um minuto sequer em que não sonhasse com esse dia - rosnou Lucena, faces transfiguradas pelo ódio. - E agora é a minha vez de demonstrar quem é a mais forte!
- Solte-me e lhe mostrarei quem é mais forte - gemeu Giselle, a voz fremente de cólera.
- Ordinária! - esbravejou Lucena, dando-lhe outra bofetada.
O rosto de Giselle rodou para o outro lado, atingido novamente pela mão impiedosa de Lucena. Ao voltar-se para ela, porém, havia um estranho brilho no olhar de Giselle, e foi com ironia que falou:
- Por mais que você faça, jamais conseguirá retomar o que lhe tirei! Seu pai foi um porco imundo, que eu mesma poderia ter sangrado enquanto resfolegava e suava em minha cama. E Ramon... - regozijou-se com o efeito que aquele nome causava na outra - Ramon é um homem de verdade e jamais se contentaria com o esboço de mulher que você é.
- Demônio! - rugiu Lucena, novamente esbofeteando-lhe as faces. - Filha de Satanás! Bruxa maldita!
Foi preciso Miguez intervir para que Lucena não a matasse. Ela estava descontrolada e não parava de bater em Giselle, totalmente imobilizada no tronco pelas correntes, que lhe prendiam os braços para trás e atavam suas pernas desde a altura dos joelhos.
- Chega Lucena! - bramiu Miguez. - Ela não pode morrer. Não agora, não dessa maneira. O que tenho reservado para ela é muito pior.
Giselle engoliu em seco, enquanto Lucena se acalmava, nos lábios um sorriso de diabólica satisfação.
- Você vai me pagar, Giselle. Vou fazer de você um trapo e quero estar presente a todas as suas sessões de tortura.
- Lucena... - ia contestando Miguez.
- Não! Você me deve isso, Miguez. Quero ter esse privilégio. O privilégio de me sentar diante dessa cadela feiticeira e assistir triunfante ao seu declínio. Vou fazer de você uma morta viva, e quando você não puder mais suportar a dor, serei eu a lhe dar o golpe fatal. Bem lentamente... Para que você jamais se esqueça, nem aqui, nem no inferno, de quem é Lucena Lopes de Queiroz!
Aquelas palavras assustaram Giselle, e toda a fúria de seu orgulho não foi suficiente para sustentá-la diante do breve futuro de martírio e dor que a aguardava. Em silêncio, abaixou a cabeça e pôs-se a chorar de mansinho, segurando na ponta da língua o desejo que brotara de lhe pedir perdão. Intuitivamente, Lucena captou-lhe os pensamentos, porque apontou o dedo para ela e continuou com furor:
- Nem que você caísse de joelhos e me pedisse perdão, eu a perdoaria. Nem em mil anos, Giselle, nem por toda a eternidade, serei capaz de perdoá-la!
Giselle pressentiu a iminência da morte, mas recobrou um pouco do ânimo e perguntou com arrogância e soberba:
- Não sabe com quem está se metendo, Lucena. Esteban jamais irá permitir...
- Esteban não irá ajudá-la - interrompeu Miguez com desdém. - Ou será que não percebeu que ele nem veio vê-la?
- Ele não sabe que estou presa.
- Engana-se, bruxa. Ele sabe. Até mesmo a viu chegar.
- Viu? - Giselle mal conseguia ocultar a indignação. - E onde está? Por que ainda não veio me soltar?
- Ele não virá. Esteban foi um tolo que, durante muitos anos, se deixou influenciar pelas suas bruxarias. Você o enfeitiçou. Mas eu, finalmente, consegui livrá-lo de sua influência maligna. Esqueça- o, criatura das trevas! Esteban agora está livre de você. Livre!
Em seu íntimo, Giselle sabia que Miguez falava a verdade. Esteban cansara de alertá-la, pedindo-lhe que não cometesse mais nenhuma loucura. Mas ela fora imprudente e irresponsável; confiava tanto na sorte que nunca se imaginou presa. Não ela. Mais uma vez, abaixou os olhos e chorou. O que mais lhe restava fazer?
- Isso, demônio, chore - ironizou Lucena. - Onde está a sua força, que não consegue livrá-la agora? Onde estão os espíritos infernais que tanto a auxiliaram a fazer o mal? Por que não os invoca e pede que a tirem daqui?
Giselle não respondeu. Permanecia de cabeça baixa, chorando, e não tinha mais vontade de discutir. Tudo o que fizesse somente serviria para piorar ainda mais a sua situação. Ela sabia que as sessões de tortura estavam na iminência de começar. Provavelmente, ainda não haviam começado para que ela estivesse lúcida o suficiente para receber todo o ódio de Lucena.
Foi quando uma vozinha fraca se fez ouvir, vinda do outro lado da masmorra feminina.
- O que é isso? - indagou Lucena, assustada.
- Não se deixe impressionar, minha querida - tranqüilizou Miguez, abraçando-a com ternura. - É apenas a lamúria de mais uma herege...
Lucena fez-lhe sinal com a mão para que se calasse. A seu lado, invisível aos olhares dos encarnados, o espírito de dom Fernão a inspirava:
- Vá até lá, minha filha. Vá ver quem é. Você não vai se arrepender.
Dom Fernão estivera presente durante todo o encontro. Ficara feliz quando Giselle fora presa e exultara quando Lucena a esbofeteara, chegando mesmo a bater-lhe também. Outros espíritos, todas as vítimas da perfídia de Giselle, também haviam acorrido, e a masmorra, naquele momento, estava repleta de seres invisíveis, todos realizados e sequiosos de vingança. Acedendo às sugestões do pai, Lucena foi se encaminhando para onde Manuela estava presa ainda à polé. Sofrerá poucas torturas, porque Esteban não via nada contra ela além do ciúme de Giselle e dera ordens aos carrascos para que não a maltratassem muito. Ela fora estuprada várias vezes e pendurada à polé, embora sem os pesos nos pés. Seu corpo estava todo dolorido, parecia-lhe que os braços, a qualquer momento, se separariam do corpo, mas, no geral, Manuela estava bem. Junto a ela, o espírito de uma mulher também executada graças à intervenção de Giselle, a mando de dom Fernão, fazia com que ela gemesse alto, atraindo a atenção de Lucena.
- Quem é essa mulher? - a indagou, presa de estranha emoção ao vê-la.
Manuela, que gemia no sono agitado, abriu os olhos lentamente, assustando-se com a figura esbelta de Lucena, parada diante dela e fitando-a com ar de compaixão.
- Senhora... - murmurou ela - tenha piedade. Eu nada fiz para merecer estar aqui...
No mesmo instante, o coração de Lucena se apertou. Sentiu imensa piedade daquela mulher, tão jovem e tão bonita, embora extremamente lívida e magra, que parecia nada entender de tudo aquilo.
- Quem é ela? - repetiu Lucena.
Virou-se para Miguez, que permanecia parado um pouco mais atrás, assistindo a tudo com ar de espanto.
- Essa é Manuela Peña... Foi empregada na taverna de Giselle...
- Ora, não me diga! O que foi que ela fez?
- Pelo visto, nada. Parece que Giselle não gosta da moça e exigiu que Esteban a prendesse.
O assombro de Lucena foi genuíno. Por uma estranha coincidência, ela fora atraída justamente para o local onde se encontrava outra inimiga de Giselle. Aquilo a excitou, e ela revidou prontamente:
- Pois eu a quero solta.
- Não posso fazer isso. Ela é presa de Esteban.
- Que se dane! Dê um jeito de libertá-la.
Miguez puxou-a pelo braço e falou baixinho em seu ouvido:
- Quer saber por que ela foi presa? - Lucena assentiu. - Por que Giselle a flagrou nos braços de seu amante, Ramon...
Lucena ergueu as sobrancelhas e retrucou exultante:
- Mais um motivo. Ela fez com Giselle o que Giselle fez comigo. Quero que você liberte essa moça, Miguez.
- Mas Lucena, não posso. Por favor, querida, entenda. Não posso ir contra Esteban. Foi ele quem a prendeu, e ela ainda não foi julgada.
- Pois apresse o seu julgamento. E dê um jeito para que ela seja absolvida. Convença os outros inquisidores de que sua prisão foi um erro e ela não fez nada de errado.
- Não posso fazer isso.
- Pode sim! Você prometeu. Prometeu-me vingança contra Giselle. E essa moça é parte da minha vingança.
Miguez suspirou profundamente. Deu uma última olhada para Manuela, que os fitava com olhar súplice, e balançou a cabeça, finalizando desanimado:
- Está certo. Farei o possível e o impossível para libertar Manuela.
- Obrigada. Sabia que você não me decepcionaria - e, voltando-se para Manuela, acrescentou: - Não se preocupe Manuela. Eu a tirarei daí.
Manuela desatou a chorar. Lucena deu-lhe um sorriso de encorajamento e rodou nos calcanhares, voltando para onde Giselle estava.
- Por favor, senhora - implorou Manuela -, não me deixe aqui. Não me abandone.
- Confie.
Foi só o que Lucena tornou a lhe dizer. Voltou para perto de Giselle, que assistira a tudo com um misto de ódio e arrependimento. Aquela maldita ainda iria soltar Manuela só para espezinhá-la ainda mais.
- Quanto a você - falou Lucena, apontando novamente o dedo para Giselle -, não perde por esperar. Vou destruí-la, Giselle, mas não sem antes tomar tudo o que é seu.
Rodou nos calcanhares e se foi, seguida por Miguez, que se regozijava com tudo aquilo. Atrás deles, o séquito de dom Fernão, certo de que sua vingança estava apenas começando. Mais um pouco e Giselle se juntaria a eles, tornando-se vítima de todos aqueles de quem já fora algoz. Por insistência de Miguez, o julgamento de Manuela foi marcado para dali a duas semanas. Esteban não tinha mais forças para contrariá-lo e acabou concordando com tudo o que ele exigia.
- Não se lamente por nada, meu amigo - consolou Miguez. - Em breve irá me agradecer.
- Gostaria de pensar como você... Sabe o quanto está me fazendo sofrer.
- É pena que você ainda não consiga entender. Mas o que me conforta é saber que estou agindo para o seu próprio bem. Giselle é uma bruxa que, além de tudo, matou o marido, um homem direito e temente a Deus, deixando órfã a pobre filhinha...
Esteban inspirou com tristeza e olhou ao redor, tentando ocultar as lágrimas que, por pouco, não caíam.
- Você viu Juan? - desconversou. - Há dois dias anda sumido.
- Não, não vi. Mas ele não pode ter ido longe. Deve estar por aí.
- Ando preocupado com ele. Juan está apaixonado por Giselle. Receio que faça alguma bobagem.
Miguez não disse nada. Na certa, Esteban ainda não sabia que fora Juan quem a entregara, e aquele não era o melhor momento para revelar-lhe a verdade. O rapaz devia estar metido em algum lugar, provavelmente lá pelo sótão, escondido, com medo de encarar o monsenhor, e o melhor seria esperar até que ele aparecesse.
- Fique sossegado, Esteban. Logo, logo ele aparece. Depois que Miguez se foi, Esteban caiu na poltrona, entregue a profundo abatimento. Sua cabeça começou a latejar novamente, e ele foi até o armário buscar um xarope. Bebeu a infusão amarga e recostou-se na poltrona, esperando que a dor de cabeça passasse. Pouco depois, ouviu batida na porta, que se abriu logo em seguida.
- Meu tio - era a voz de Diego. - Posso entrar?
Esteban empertigou-se e olhou para ele, fazendo sinal com a cabeça para que entrasse. O rapaz entrou. Junto com ele, Rúbia vinha de olhar cabisbaixo. Ao vê-la, Esteban se levantou e foi ao seu encontro, estendendo a mão para ela.
- Como está, criança? Lamento pelo que aconteceu a seu pai.
- Foi uma coisa horrível.
- Não posso deixar de me sentir responsável. Afinal, fui eu quem sugeriu o casamento...
- Não devia se sentir assim. Belinda me disse que meu pai atacou Giselle primeiro. Ele ficou louco porque ela lhe revelou que tinha um amante, que era o pai de seu filho.
Esteban ocultou o rosto entre as mãos e desabafou num gemido:
- Giselle perdeu a cabeça.
- Nós devíamos ter imaginado que esse casamento nunca poderia dar certo. Giselle sempre amou outro homem. E agora... - Rúbia desatou a chorar, e Diego a abraçou com força.
- Chi! Não chore Rúbia. Vai passar.
Havia tanta paixão naquele abraço que Esteban desconfiou, mas não disse nada. Será que aqueles dois eram amantes? Eles sabiam que eram irmãos, mas, ainda assim, teriam tido coragem de se amar? Aquela impressão, contudo, não lhe tomou mais do que um minuto de sua preocupação. Esteban sentia-se cansado demais para repreendê-los ou alertá-los. Naquele momento, não tinha mais ânimo para enfrentar nenhuma situação difícil. E depois, se havia mesmo algo entre eles, era preferível não saber. A última coisa de que precisava naquele momento era de uma acusação de incesto contra seu sobrinho.
- Como está ela? - tornou Rúbia, tirando-o de seu devaneio.
- Hein? - fez Esteban assustado. - Quem? Giselle?
- É claro, titio - concordou Diego. - Onde é que está com a cabeça?
- Perdoem-me. É que a prisão de Giselle não está me fazendo bem.
- Não pode fazer nada para ajudá-la? - pediu Rúbia. - O senhor é um homem influente dentro da Igreja. Não pode interceder por ela?
- Quisera eu, minha filha. Contudo, as provas que Miguez colheu contra ela são irrefutáveis.
- Ora, titio, o senhor pode dizer que ela matou dom Solano em legítima defesa. E ninguém pode provar que ela e Ramon eram amantes.
- Não me refiro a isso, meu filho. Se fossem essas as acusações, não teria problema para soltá-la. Mas o fato é que Miguez descobriu objetos altamente comprometedores em sua casa, aqui em Sevilha.
- Que objetos?
- Talvez vocês não saibam, mas Giselle era adepta da magia...
- O quê? - cortou Rúbia, surpresa. - Mas ela nunca disse nada.
- Você há de convir comigo que isso não é coisa que se saia falando por aí, não é mesmo?
- Como foi que ele descobriu?
- Não sei. Mas Miguez tem seus métodos. Há muito estava desconfiado de Giselle.
- Meu Deus, monsenhor! - queixou-se Rúbia. - Isso é horrível! Giselle não merecia isso.
- Será que não? Ninguém mais do que eu tentou alertá-la e protegê-la. Mas Giselle não quis me ouvir. Continuou com suas práticas nefastas e com seu romance escuso com Ramon. Eu disse a ela que esperasse.
- Não se lamente o senhor também, titio. Giselle é mesmo uma doidivanas.
- Gostaria de vê-la, monsenhor - cortou Rúbia. - Falar com ela.
- Isso é impossível.
- Por favor, eu lhe imploro. Ao menos uma vez, deixe-me falar com ela. Sei que agiu mal, que cometeu muitas loucuras. Mas ela é minha amiga e eu a amo. Preciso dizer-lhe isso. Quero que ela saiba que não lhe guardo rancor ou ressentimento.
- O calabouço não é um lugar agradável para ninguém, minha filha. Muito menos para uma moça fina e sensível feito você.
- Não me importo. Eu preciso vê-la. Por favor, monsenhor, ao menos uma vez, deixe-me falar com ela.
Ele inspirou com tristeza e soltou os braços ao longo do corpo, acrescentando com pesar:
- Está bem. Verei o que posso fazer.
Na noite seguinte, Rúbia e Diego foram introduzidos nas masmorras, mas Esteban não ousou acompanhá-los. Ainda não se atrevera a visitá-la desde que chegara. Não sabia o que lhe dizer, tinha medo do que teria que enfrentar. Giselle continuava amarrada ao tronco. Já fora submetida a algumas sessões de tortura e não se encontrava com muito ânimo para falar. A pedido de Rúbia, Diego parou na porta e ela entrou sozinha. Queria conversar a sós com Giselle. Vê-la naquela situação causou imenso desgosto a Rúbia. A moça apertou os olhos com as mãos e desatou a chorar, despertando Giselle com seus soluços. Pouco a pouco, ela foi reconhecendo à amiga e começou a chorar também.
- Rúbia... - gemeu - o que... O que faz aqui?
- Oh! Giselle! - lamentou. - O que foi que fizeram a você?
- Foi... Foi aquele padre maldito... E sua concubina cruel... - parou por uns instantes, sacudida pelos soluços, até que continuou: - Perdoe-me, Rúbia... Eu não queria matar... O seu pai...
- Não fale mais nisso, Giselle, já passou.
- Você não está com raiva?
- Não. Fiquei triste, porque amava meu pai, mas já devia ter imaginado que isso poderia acontecer.
- Belinda... Entregou-me...
- Não fique com raiva dela, Giselle. Belinda estava assustada. Você queria incriminá-la.
- Ela é uma escrava.
- Belinda é gente. Tão gente como você. Mas não foi para falar de Belinda que vim aqui. Foi para falar de você.
- Rúbia, eu...
- Psiu! Não diga nada, apenas ouça. Meu tempo é curto. Pedi a monsenhor Navarro que me permitisse vê-la. Queria dizer-lhe o quanto a amo e o quanto a sua amizade foi importante para mim.
Giselle soltou um pranto sentido e revidou:
- Não mereço a sua amizade.
- Não diga isso. Gosto de você como se fosse minha irmã. Queria dizer-lhe isso. Não lhe guardo raiva, apenas uma grande tristeza. Tristeza por estar de pés e mãos atados neste momento e não poder fazer nada para ajudar. Lembre-se disso, Giselle. Eu amo você. Amo você como a uma irmã...
Não conseguiu mais continuar. Seu corpo foi violentamente sacudido pelos soluços, e Rúbia, não suportando mais ver Giselle naquela situação, tapou a boca com as mãos e saiu correndo, passando por Diego feito uma bala. O rapaz fez menção de ir atrás dela, mas ouviu o fraco chamado de Giselle e, embora hesitante, aproximou-se de onde ela estava.
- O que você quer?
- Ajude-me, Diego. A mim e a Ramon.
- Você sabe que não posso.
Virou-lhe as costas e começou a andar para a saída, mas a sua voz o interrompeu novamente.
- Posso pagar!
A ambição falou mais alto, e ele se voltou de mansinho, aproximando-se dela novamente.
- Com que dinheiro?
- Sou uma mulher rica.
- Já lhe tiraram tudo - rebateu ele, olhar entre cético e ambicioso.
- Ninguém sabe onde escondi o meu tesouro. Ele pode ser todo seu, se você nos ajudar.
- Não sei... É arriscado.
- Mas vai valer à pena. Posso fazer de você um homem rico. Não vai precisar do dinheiro de ninguém, nem do de Rúbia. Tenho ouro, Diego, e pedras preciosas.
Diego coçou o queixo e fitou-a com ar de cobiça. A palavra tesouro era para ele um argumento por demais poderoso. O carrasco, porém, apareceu na porta do calabouço, e Diego se assustou. Não queria despertar a atenção de ninguém. Deu uma última olhada para Giselle e rodou nos calcanhares, saindo apressado pela porta, ainda a tempo de ouvir suas últimas palavras:
- Pense nisso.
Depois que ele se foi, Giselle ficou sozinha a chorar. Nunca se sentira tão só em toda a sua vida. Todos a haviam abandonado. Sabia que Ramon estava preso também e já perdera as esperanças de reencontrá-lo com vida. Esteban a havia abandonado. Desde que chegara, ele ainda não fora vê-la. Até Juan parecia haver se esquecido dela. Só Rúbia se importava. Depois de tudo o que acontecera, Rúbia ainda gostava dela e a perdoara. De olhos baixos, Giselle chorou sentida, pensando na bondade do coração de Rúbia que, apesar de tudo, ainda a amava. Ficou imaginando o que poderia levar uma pessoa a um gesto tão desprendido e sincero de perdão. Giselle matara o pai de Rúbia, assim como levara à morte o pai de Lucena. Mas elas eram tão diferentes! Por quê? Por que tanta diferença? Comparando as duas, Giselle começou a perceber que a diferença entre ambas estava na nobreza de coração. Rúbia era uma mulher nobre e digna, dotada de uma inigualável compreensão das fraquezas humanas, ao passo que Lucena não conseguia enxergar as imperfeições alheias, julgando e condenando quem quer que lhe faça algum mal. Mas, o que ela esperava? Se estivesse no lugar de Lucena, como é que teria procedido? Perdoaria como Rúbia, ou alimentaria o desejo de vingança, assim como Lucena? Pensando nisso, achou que não possuía ainda a nobreza de sentimentos de Rúbia e teria ido ao inferno só para satisfazer o seu desejo de vingança. Se era assim, como poderia condenar em Lucena uma atitude que ela mesma teria tomado? Não, não podia. Se alguém ali deveria ser condenado, era ela mesma. Por tudo o que fizera. Pelos muitos crimes que cometera. Era por causa deles que se via naquela situação. Lembrando-se de suas muitas vítimas, Giselle começou a mostrar sinais de arrependimento. Se não tivesse sido tão vil, não teria que enfrentar o ódio de Lucena e de Miguez, e não seria forçada a experimentar os horrores da Inquisição. Mas agora, não tinha mais jeito. Ela buscara aquela sorte e não podia reclamar. Mas estava sofrendo. Quantas pessoas não teriam sofrido do mesmo jeito que ela, torturadas e mortas graças a sua maldade? Giselle não queria mais ser má. O sofrimento levou-a a colocar-se no lugar de suas vítimas e compreender que jamais deveria ter feito o que fez. E agora, não sabia como desfazer tanto mal. No dia seguinte, logo pela manhã, Miguez entrou e foi direto para onde ela estava. Vinha sozinho dessa vez, e Giselle sentiu um arrepio de terror quando ele se aproximou. Por que será que a odiava tanto? Quando parou defronte a ela, Giselle começou a tremer e a chorar, já antevendo as torturas por que iria passar.
- Agora chora, não é, cadela? - rosnou ele com ódio.
Ela abaixou os olhos e não disse nada. Ele puxou o seu cabelo para trás, fazendo-a levantar a cabeça e encará-lo. Seus olhos chispavam de tanto ódio, e Giselle pensou que Miguez fosse espancá-la, mas ele nada fez. Limitou-se a olhá-la dentro dos olhos, até que o carrasco se aproximou, trazendo nas mãos um chicote. Ela se encolheu toda, com medo da dor, e o homem soltou as correntes às quais se encontrava atada. Ela chorava sem parar, pensando que seria colocada em um dos muitos instrumentos de tortura que havia ali, mas o carrasco não fez nada disso. Segurando-a com força, foi empurrando-a para fora, e os três tomaram um corredor sujo e mal iluminado. Em pouco tempo, alcançaram os cubículos. Parada defronte a uma das portas estava Lucena, com aquele sorriso triunfante e diabólico no rosto. Logo que chegaram, Miguez se virou para o verdugo dali e deu-lhe ordens para que abrisse a porta. O teto da cela era extremamente baixo, não cabia um homem em pé, e, o carrasco teve que se abaixar para entrar. Pouco depois, saiu de lá de dentro com um homem todo sujo e barbado, e Giselle descobriu com horror que se tratava de Ramon. Quis correr para ele, mas o golpe do carrasco a impediu. Ramon mal se sustinha em pé. Suas pernas pareciam mesmo atrofiadas, e ele não conseguia colocar a coluna ereta. O verdugo o soltou, ele cambaleou e caiu de cara no chão, provocando a ira de Giselle. Ela deu um empurrão no homem que a segurava, distraído com a queda de Ramon, e soltou-se, correndo a passos trôpegos para ele.
- Ramon! - chamou, ajoelhando-se a seu lado.
Por ordem de Miguez, ninguém interveio. Ramon, por sua vez, reconhecendo a voz da amada, agarrou-se aos seus joelhos e começou a chorar.
- Giselle! Ah! Giselle, quase enlouqueci pensando que você tivesse morrido...
Ele não sabia que Lucena estava ali. Vendo o carinho com que se reencontravam e ouvindo as palavras de Ramon, a fúria de Lucena redobrou, e ela apanhou o chicote das mãos de um dos carrascos, estalando-o nas costas de Giselle. A moça soltou um urro de dor e tombou para frente, rosto colado ao de Ramon.
- Eu o amo, Ramon - conseguiu dizer, em meio à dor que as chibatadas lhe causavam.
Desmaiou. A dor foi intensa demais para que ela suportasse. Ramon queria defendê-la, mas estava fraco demais para reagir. Passara quase uma semana naquele cubículo, sem poder esticar o corpo, e seus músculos estavam todos retesados e doídos.
- E agora? - indagou um dos algozes.
- Tragam água - ordenou Miguez.
Na mesma hora, sua ordem foi atendida e, pouco depois, Giselle despertava com a água fria em seu rosto.
- Levante-se, bruxa! - falou o carrasco.
Giselle foi arrancada dos braços de Ramon, que a agarrava com força. Quanto mais ele demonstrava seu amor por ela, mais Lucena se enfurecia.
- Tragam-nos - falou Miguez incisivo.
Um segundo homem agarrou Ramon e fez com que ele se levantasse, enquanto outro ia empurrando Giselle para fora novamente. Sem nada poderem fazer, os dois foram levados ainda mais para baixo, até que entraram numa espécie de câmara fria e lúgubre, iluminada apenas por umas poucas tochas presas nas paredes. Ao centro, um enorme tronco estava encravado, e o carrasco levou Giselle para lá, amarrando-a de frente para eles. Em seguida, um dos homens rasgou-lhe o vestido, expondo-lhe os seios, e ela começou a chorar novamente. Ramon, aos poucos, foi recobrando os movimentos. Ainda não conseguia manter-se muito bem, mas ao menos as pernas já lhe obedeciam, e ele esticara o corpo até ficar praticamente ereto. Não entendia o que aquelas pessoas estavam pretendendo, mas imaginava que não era nada bom. Viu quando o carrasco amarrou Giselle e rasgou a sua roupa, e teve ímpetos de matá-lo. Mas não houve muito tempo para isso. O outro homem pôs-se a caminhar com ele de um lado para outro na câmara fria, até que ele pudesse recuperar os movimentos do corpo. Apesar de dolorido, Ramon conseguiu assenhorear-se novamente das articulações, e elas já lhe obedeciam quase normalmente. Foi colocado diante de Giselle e, em suas mãos, puseram o chicote. A princípio, Ramon não entendeu bem o que estava acontecendo, mas as lágrimas que jorravam dos olhos de Giselle o ajudaram a compreender tudo. Queriam que ele flagelasse o corpo de sua amada. Mais atrás, outro homem se postou, encostando a ponta da espada em seu pescoço.
- Se tentar alguma coisa, morre - falou em tom ameaçador.
- Muito bem - declarou Miguez -, agora comece.
Mas Ramon não se mexia. Não tinha coragem de maltratar sua Giselle. Olhou direto nos olhos de Lucena, que cambaleou e agarrou-se no braço de Miguez.
- Por que está fazendo isso, Lucena? - indagou, sem tirar seus olhos dos dela. - Será que não percebe que Giselle não foi responsável por eu ter deixado você? Deixei-a porque não a amava, Lucena. Ainda que não amasse Giselle, jamais poderia me casar com você.
- Você me desonrou - retrucou Lucena, com voz rouca.
- Foi um erro, agora compreendo. Mas naquela época, eu estava iludido. Só depois descobri que o que sentia por você não era amor, mas apenas desejo.
- Você tinha um dever de honra para comigo!
- Eu sei. Não nego isso. Mas a honra não foi mais forte do que o amor que então já sentia por Giselle. Nunca amei você, Lucena. Se a amasse de verdade, eu jamais teria me apaixonado por ela. O erro foi meu, e sou eu quem deve pagar. Giselle nada tem a ver com isso.
- Ela matou meu pai!
Não havendo como retrucar aquele argumento, Ramon soltou o chicote no chão e finalizou vencido:
- Sinto muito.
Completamente aturdida, Lucena largou o braço de Miguez e atirou-se contra ele, cravando-lhe as unhas no rosto.
- Desgraçado!
Por um instinto mesmo de defesa, Ramon desvencilhou-se dela e acertou-lhe um soco no queixo, quase lhe destroncando o maxilar. Foi tudo tão rápido e inesperado, que nem Miguez, nem os carrascos conseguirem intervir a tempo. Ramon não queria atingi-la, mas o inevitável acontecera. Lucena cambaleou, a boca sangrando, e ele correu para ampará-la. Pensando que Ramon iria atacá-la novamente, o carrasco, de forma impensada e mecânica, cravou-lhe a espada no tórax, e a lâmina atravessou-lhe o coração, fazendo com que ele tombasse morto antes de atingir o chão, as pupilas vidradas cravadas nos olhos de Lucena.
- Não! - gritou Giselle em desespero, tentando se soltar das amarras. - Ramon! Não! Não! Não...!
A voz foi sumindo na garganta. A um golpe do carrasco, Giselle desmaiou outra vez, para só acordar horas depois, novamente na masmorra, amarrada a seu costumeiro tronco, trazendo na mente apenas a lembrança do corpo de Ramon caindo inerte no chão. Fazia quase uma semana que Juan havia desaparecido, e Esteban estava realmente preocupado. Colocara todo mundo na abadia à sua procura, mas, até aquele momento, nada. Ninguém tinha notícias dele. Até no Tribunal foram procurá-lo, mas ele não fora encontrado em lugar nenhum. Esteban já estava ficando seriamente alarmado. Naquela tarde, tentava se concentrar na leitura de um processo quando um dos noviços chegou apressado, berrando o seu nome pelos corredores:
- Monsenhor Navarro! Monsenhor Navarro!
- O que é que está acontecendo? - resmungou o cardeal. Esteban abriu a porta de seu gabinete, e o rapaz entrou suado e esbaforido, falando aos tropeções:
- Monsenhor Navarro... Venha, depressa!
Não precisava perguntar o que havia acontecido, porque já sabia do que se tratava. Juan fora encontrado. A passos largos, Esteban saiu atrás do noviço, que deixou o Tribunal e se dirigiu para a abadia, passando direto pelo edifício principal e se dirigindo para a velha capela em ruínas. A porta estava aberta, e vários padres se encontravam do lado de fora, fazendo uma careta de nojo. Assim que Esteban entrou, sentiu o odor pútrido de carne em decomposição, e apanhou um lenço, levando-o às narinas. O noviço entrou no campanário e apontou para cima. Esteban nem precisava olhar para saber o que encontraria ali. Pendurada no badalo do sino, uma corda balançava... Presa a ela, o corpo sem vida de Juan.
- Meu Deus! - exclamou Esteban, persignando-se.
Imediatamente, deu ordens para que tirassem o corpo do rapaz dali. Ninguém se atrevia a tocá-lo. Todos estavam com medo de subir na torre. Mas a ordem de Esteban foi imperativa, e os padres mais novos tiveram que obedecer. Miguez também apareceu. Ao ser informado de que Juan fora encontrado pendurado na torre do sino, partiu imediatamente ao encontro de Esteban.
- Meu amigo - lamentou com sincero pesar -, que desgraça.
- Juan não pôde suportar a prisão de Giselle. Ele a amava.
- Amava-a tanto que a denunciou.
- O quê? - tornou Esteban perplexo. - O que disse?
- Você ouviu bem, Esteban. Lamento dizer-lhe isso nesse momento de dor. Mas foi Juan quem me contou sobre o envolvimento de Giselle com Ramon de Toledo e disse-me onde encontrá-lo. Creio que o que não conseguiu suportar foi o peso do remorso.
Esteban escondeu o rosto entre as mãos e chorou sentido. Agora compreendia tudo. Realmente, só a prisão de Giselle não era motivo suficiente para que Juan se matasse. Tinha que haver algo mais.
- Miguez, você vai me fazer um favor - pediu Esteban, ainda em lágrimas.
- O que quiser meu amigo.
- Não diga a ninguém que ele se matou. Quero dar-lhe um enterro digno.
- Mas Esteban, você sabe que Juan cometeu um pecado mortal. Não pode ser sepultado em campo santo.
- Por Deus, Miguez, faça isso por mim.
- Você não poderá enganar ninguém. Outros também viram.
- Ninguém ousará me contestar, além de você. Por favor, Miguez, ao menos isso você me deve.
Ele estava certo. Miguez já o decepcionara demais. E aquela era uma ótima oportunidade para reatar sua amizade com Esteban. Demonstrando solidariedade e compreensão pelo seu sofrimento, Esteban acabaria por perdoá-lo e esqueceria aquela pequena desavença.
- Tem razão, Esteban. É o mínimo que posso fazer por você.
Nesse momento, dois rapazes vinham descendo com o corpo pútrido de Juan, e Esteban, mais que depressa, começou a se lamentar:
- Pobre Juan. Eu bem lhe avisei que não se pendurasse em cordas para limpar o sino.
Os padres se entreolharam atônitos. Estava claro que o noviço havia se suicidado, e alguém ainda tentou contestar:
- Mas monsenhor, ele se matou...
- Não diga isso! - cortou Esteban irado. - Juan jamais faria uma coisa dessas. Ele caiu, entenderam? Foi limpar o sino e a corda se enrolou em seu pescoço. Foi um acidente.
- Mas monsenhor...
- Não ouviram o que monsenhor Navarro disse? - interrompeu Miguez com ar de zanga. - Juan foi limpar o sino e caiu. Foi um infeliz incidente. E não ousem sugerir ou insinuar outra coisa. Ouviram bem? Ou terão que se entender comigo depois.
- Sim, padre Miguez - responderam os outros, em uníssono.
- E agora, levem-no daqui e preparem-no para as exéquias.
- Sim, senhor.
Depois que os padres se foram, carregando o corpo de Juan, Esteban se abraçou a Miguez e desatou a chorar. O outro permaneceu parado e envolveu Esteban com seus braços, deixando que ele desse livre curso às lágrimas. Depois de muito chorar, Miguez enxugou-lhe os olhos e deu-lhe um beijo na testa, o que causou imensa emoção em Esteban.
- Miguez... Não sei como lhe agradecer. A dor que sinto nesse momento me impediria de convencê-los.
- Não precisa me agradecer meu amigo. Fiz isso em nome de nossa velha amizade. Gostaria que você nunca se esquecesse da nossa amizade. Tudo o que fiz e faço é pensando nela.
- Eu sei Miguez... Amigo. Sou-lhe muito grato por isso. Miguez deu-lhe um tapinha na face e, de braços dados, voltaram para a abadia. Algumas horas depois, depois de sentida missa proferida por Miguez, o cortejo carregando o esquife de Juan partiu para o cemitério. Esteban estava tão abalado que nem conseguiu dirigir a liturgia. Não fosse por Miguez, sempre a ampará-lo com sincera amizade, Esteban teria caído doente. Apesar das desconfianças, ninguém disse nada. Quem ousaria enfrentar dois poderosos cardeais, influentes inquisidores do Tribunal do Santo Ofício? A palavra de um inquisidor era algo incontestável, e nem seriam precisas testemunhas para comprovar o que diziam. De volta a seu gabinete, Esteban pôs-se a pensar. Já não agüentava mais tanta morte. Mas estava por demais envolvido com ela para pretender abandoná-la. O que alimentava a sua vida era a morte dos hereges, e Esteban não saberia o que fazer longe da Inquisição. Soubera da morte de Ramon e lamentara por Giselle. E agora, Juan também partira atormentado por uma culpa da qual jamais poderia se livrar em vida. Mais um pouco, e Giselle os seguiria. Ele tinha certeza de que Giselle não escaparia da perseguição de Miguez. Miguez era mesmo seu amigo. Esteban podia sentir a sinceridade de seus gestos e de suas palavras. No fundo, o amigo acreditava mesmo que Giselle era uma herege. Não fosse por esse motivo, jamais ousaria prendê-la. Mas ele estava convicto, e a convicção de um inquisidor era o quanto bastava para levar alguém à masmorra. Dali a dois dias, era o julgamento de Manuela. Ele sabia que a moça seria solta, porque não conseguira reunir nenhuma prova contra ela. Por mais que Giselle quisesse, não descobrira nada em Manuela que pudesse incriminá-la. Ao contrário, ela era uma moça tola e ingênua, e só conseguira compreender o motivo de sua prisão depois que Giselle despejara sobre ela o seu ciúme. Tudo aconteceu conforme Esteban imaginara. O Tribunal reunido não vislumbrou nenhum elemento que os convencesse de que Manuela era uma bruxa ou herege. Além do mais, Miguez tomara a sua defesa. Não era propriamente seu advogado, porque o Tribunal sempre nomeava um para cada acusado, que nada fazia além de tentar convencê-lo a confessar e apressar a prolação da sentença. Mas, naquele caso específico, era um dos próprios inquisidores quem pedia a absolvição da ré. E foi exatamente assim que tudo sucedeu. O Tribunal, numa de suas raras decisões, absolveu Manuela de todos os crimes que lhe haviam sido imputados, ou seja, nenhum. Ela fora presa por denúncia de Giselle Mackinley, que sequer conseguira reunir provas contra a moça. O inquisidor, é claro, cumprira seu papel. Recebeu a denúncia e instaurou o processo contra a rapariga, recolhendo-a imediatamente ao calabouço. Em seguida, iniciou as investigações, torturando-a para que confessasse. Mas Manuela não confessara, e não havia documentos, objetos ou testemunhas que depusessem contra ela. Como resultado, só podia ser inocente. Caberia a Esteban libertá-la do calabouço, mas ele não teve coragem de ir. Ainda não se atrevia a encontrar Giselle. Sabia que estava sendo covarde, mas não poderia suportar vê-la presa, acorrentada, flagelada por aqueles mesmos instrumentos que tantas vezes lhe fizeram a glória. Miguez aceitou o encargo de bom grado. Mandou chamar Lucena e foi com ela libertar Manuela. Lucena acompanhou tudo com indizível satisfação. Entrou na masmorra em companhia de Belita e Belinda, que mandara buscar em Cádiz. Giselle foi tomada de surpresa. Jamais poderia imaginar ver ali as suas antigas escravas. Quando a viu, Belita deixou as lágrimas caírem, mas Lucena deu-lhe ordens para que não falasse com ela. Belinda, por sua vez, não demonstrou qualquer piedade. Ainda estava com raiva e não a perdoara por tentar incriminá-la. Lucena parou diante dela, com as escravas mais atrás, e perguntou vitoriosa:
- Reconhece essas escravas? - Giselle não respondeu. - Pois agora são minhas. Miguez confiscou-as e deu-as a mim. Vê como estão felizes agora?
Efetivamente, Belita e Belinda pareciam muito mais bem-cuidadas por Lucena. Vestiam-se com roupas melhores e mais bonitas, e pareciam mais saudáveis. Belita permanecia de olhos baixos, penalizada, sentindo-se pouco à vontade diante de sua antiga ama, mas Belinda encarou-a com raiva, sem falar nada. Seus olhos, porém, diziam tudo. Diziam-lhe que era bem-feito Giselle estar ali, em lugar, dela, como antes pretendera.
Pouco depois, Manuela chegou amparada pelo carrasco e por Miguez. Os membros estavam bastante doridos, e ela não conseguia se manter em pé. Fora para isso que Lucena trouxera as escravas. Para que ajudassem Manuela a andar. As duas se postaram, uma de cada lado da moça, e susteve seu corpo, leve de tão esquálido. Giselle nem conseguia mais sentir raiva. Só o que sentia era a dor da humilhação. Lucena matara Ramon, tomara-lhe as escravas e agora libertava Manuela. Conseguira sua vingança.
- Sabe para onde vou levá-la, Giselle? - perguntou Lucena com ar irônico, apontando para Manuela. - Para casa. Vou cuidar dela, tratar de suas feridas, dar-lhe um lar. E ela vai trabalhar para mim. Sabe onde? Não, não sabe. Mas eu vou lhe dizer. Vai trabalhar na taverna Dama da Noite. Conhece? É claro que conhece. Era a sua taverna, não era? Mas agora é minha. Como tudo o que lhe pertenceu um dia. Até mesmo sua casa, que vou dar para Manuela morar. As escravas foram virando o corpo de Manuela, mas ela fez força para não ir. Abraçada às moças, começou a caminhar para frente. As escravas, percebendo que ela queria se aproximar de Giselle levou-na até lá, e Manuela, rosto colado ao da outra, cuspiu-lhe na face com imenso desdém, acrescentando com voz gélida:
- Espero que seu corpo apodreça nesse inferno. A morte é pouco para você.
Giselle cerrou os olhos e desatou a chorar. Não agüentava mais receber tantas injúrias e maldições. Tudo o que podia fazer para aliviar a sua dor, a sua revolta, o seu medo, era chorar. Lucena fez sinal para que as escravas a seguissem, e elas saíram levando Manuela. Quando cruzaram o portão de ferro, Miguez, que até então nada dissera, chamou o carrasco e lhe deu ordens para soltar Giselle. Iriam recomeçar as torturas.
- Você chora, não é mesmo? - falou com voz diabólica. - Pois vai chorar ainda mais quando o próprio Esteban ler a sua sentença final. Vou lhe dar essa honra. Quero que você pague por todo o mal que nos fez passar.
Ignorando o pranto aflito e agoniado de Giselle, Miguez foi cumprir o seu dever. Era seu direito. O direito de se vingar da pessoa que mais odiara em toda a sua vida. Giselle já começava a acreditar que seu fim estava próximo. Submetida a toda sorte de torturas e abusos, pensava mesmo em desistir. Já não estava mais conseguindo suportar a dor, e só a visão de Miguez ou do carrasco já era suficiente para quase levá-la à loucura. Além de tudo, ainda tinha que suportar a presença de Lucena, que se regozijava com o seu sofrimento. Em casa, Lucena não deu muitos detalhes sobre a prisão de Giselle. Apenas dissera a Blanca que ela fora presa, mas cuidava para não deixar escapar a felicidade que sentia ao ver o seu sofrimento. Blanca, por sua vez, também não dizia nada. Era muito grata a Lucena e a Miguez pelo que fizeram a ela e não pretendia desrespeitá-los. Se eles ainda se compraziam com aquela vingança, só o que ela podia fazer era orar para que o perdão tocasse os seus corações. Não havia mais muito tempo ou esperança para Giselle. Precisava sair dali o quanto antes. Ramon já estava morto e, apesar da dor que ela sentia pela sua perda, sabia que ele ao menos estava livre daquele inferno. Mas ela não. Fugiria sozinha. Só podia contar com Diego. Fizera-lhe a proposta havia já algum tempo, mas, desde então, nunca mais o vira. Sabia que Diego era ambicioso e esperava que ele aceitasse o seu suborno. A despeito do sofrimento de Rúbia, Diego não lhe disse nada sobre o que Giselle lhe propusera. Tencionava ir embora com ela da Espanha, pois só em outro país poderiam se casar. Diego sabia que seu tio jamais permitiria que ele e Rúbia se casassem, e, por isso, precisava partir com ela. Rúbia era rica, mas ele queria mais. E depois, Rúbia era uma mulher voluntariosa e inteligente, e ele não estava disposto a ficar em suas mãos. Queria ter o seu próprio negócio sem precisar dar-lhe satisfações. Poderia até comprar a companhia de seu pai e empreender viagens à América, tal qual ele sonhara um dia. Pensando em seu futuro, tomou uma resolução. Queria libertar Giselle, mas não poderia fazê-lo sozinho. Os soldados eram muitos e não aceitariam um suborno dele, pois o medo dos inquisidores era maior do que a sua ambição. Se fosse assim tão fácil suborná-los, as masmorras já se encontrariam vazias àquela altura, visto a enorme quantidade de nobres presos. Não. Tinha que haver outra maneira. Resolveu procurar o tio. Diego sabia o quanto ele lamentava a prisão de Giselle, e talvez concordasse em ajudar. Somente com a intervenção de um influente inquisidor é que conseguiria soltá-la. Na manhã seguinte, bem cedo, partiu de novo para Sevilha, onde pretendia ficar alguns dias, até que tudo terminasse. Assim que chegou, foi procurar o tio em seus aposentos. Ouvira falar da morte do jovem Juan e sabia que o tio se encontraria sozinho. Diego foi conduzido ao quarto de Esteban e bateu à porta com cuidado. Alguns minutos depois, Esteban veio atender, e Diego levou um susto com a sua aparência abatida e fatigada.
- Tio Esteban! - murmurou o rapaz. - O senhor está bem?
- Mais ou menos, meu filho. E essa maldita dor de cabeça.
Diego entrou rapidamente e fechou a porta atrás de si, correndo até as janelas e fechando-as de par em par, para assombro de Esteban. O cardeal ainda pensou em indagar o motivo daquilo tudo, mas desistiu. Sentia-se exausto, a cabeça a latejar, e recostou-se na cama, fechando os olhos por uns instantes.
- Tio... - chamou Diego a meia-voz - preciso falar-lhe com urgência.
Esteban abriu os olhos lentamente e fixou o rosto lívido e assustado do sobrinho.
- O que é Diego? Está com algum problema?
- Não.
- Alguma coisa com Rúbia?
- Não se trata disso. Vim para falar de outra pessoa.
- Que outra pessoa? De quem está falando? Vamos, rapaz, diga logo. Não estou com disposição para mistérios ou charadas.
- Não é mistério nenhum. Muito menos charada. Estou aqui para falar de Giselle.
O cardeal deu um salto da cama e colocou-se bem diante dele, agarrando-o pelo colarinho e sussurrando entre dentes:
- Você não tem nada que falar de Giselle. Já não basta o que ela está passando? E eu? Como pensa que estou me sentindo?
- Acalme-se, tio - retrucou Diego calmamente, tirando-lhe as mãos da gola de sua camisa. - Estou aqui para ajudar.
- Ajudar? Em quê? Não sei o que você poderia fazer para ajudar. Se nem eu consegui convencer Miguez...
- Não quero convencer ninguém. Meus métodos são bem outros.
- Mas que métodos? Do que é que está falando?
- De uma fuga - deu uma pausa, sentindo o efeito que suas palavras causavam no tio, e prosseguiu com firmeza: - Pretendo ajudar Giselle a fugir.
Com um suspiro, Esteban se afastou do sobrinho e se aproximou da porta, abrindo-a vagarosamente. Aquilo era muito perigoso para ser tratado ali, e ele tinha medo de que alguém escutasse. O corredor, porém, encontrava-se vazio. Não havia ninguém, e ele se certificou de que não corria nenhum perigo. Tornou a fechar a porta e se aproximou de Diego novamente, sentando-se a seu lado na cama.
- Posso saber como é que pretende fazer isso? - sussurrou o mais baixo que pôde.
O outro, sem altear a voz, ciente também do risco que corriam, retrucou hesitante:
- Ainda não sei bem...
- Isso é loucura. Você jamais conseguirá tirá-la de lá.
- Não sem a sua ajuda.
- Minha ajuda? O que há com você, Diego? Quer nos matar a ambos?
- Não é isso. Mas é que, com a sua ajuda, talvez seja mais fácil subornar os guardas.
- Suborná-los, é impossível. Eles tremem de medo, só de pensar na ira dos inquisidores.
- Deve haver uma maneira de tirá-la de lá. Sei que há.
- Se houvesse, pensa que eu já não o teria feito? Mas não há.
- Não é possível. Tem que ter um jeito.
- Só se... - Esteban parou hesitante.
- Só se o quê?
- Só se eles não estiverem acordados.
- Ótima idéia! - exclamou Diego, satisfeito em vislumbrar uma aparente solução. - Um pouco de sonífero no vinho seria o mais adequado... Mas como é que o sonífero vai parar nos seus vinhos? Quem o colocará? O senhor? É claro que não. Eu? Não tenho a menor chance.
- Deixe isso por minha conta. Farei uma visita à masmorra de noite e lhes levarei o vinho. Não desconfiarão de mim e beberão com prazer. Em poucos minutos, estarão fora do caminho.
- Mas tio, quando acordarem, vai denunciá-lo.
- Você não está entendendo. Eles não vão acordar.
- Não vão? O que quer dizer?
- Que eles devem morrer.
Diego estacou horrorizado. Afinal, nunca antes havia matado ninguém. Podia ser ambicioso e venal, mas matar já estava fora de seus planos. Não tinha coragem para isso.
- Mas tio - protestou veemente -, não posso fazer isso. Nunca matei ninguém.
- Você não. Mas eu já. Matei muitos...
- O que quer dizer?
- Que os homens vão ser envenenados.
- Vão desconfiar do senhor.
- Não poderão provar nada. Nem Miguez ousará me acusar.
- É arriscado, tio. Alguém pode vê-lo entrar na masmorra.
- Correrei o risco. E depois, coberto pelo manto e pelo capuz, ninguém de fora saberá que sou eu. Para todos os efeitos, estarei dormindo em minha cama, com uma forte dor de cabeça. Farei tudo rapidamente. Irei à masmorra e levarei o vinho para os guardas. Depois, voltarei para meu quarto e continuarei a dormir tranqüilamente. Depois de mortos, é com você. Aja com rapidez e leve-a para bem longe.
- Quando será?
- O mais rápido possível. Mais um pouco, e ela nem estará conseguindo andar.
- Quem irá avisá-la?
- Ninguém. Qualquer visita, nesse momento, despertará suspeita. Você simplesmente aparece e a solta. Leve-a para bem longe daqui.
Tudo ficou acertado para dali a dois dias. Esteban faria uma visita noturna à masmorra, entregaria o vinho envenenado aos guardas e depois sairia. Caberia o resto a Diego, que ficou de arranjar um barco para tirá-la da Espanha. Na véspera da fuga, Giselle continuava amarrada ao tronco, o qual até já desejava como forma de descanso. Ao menos, enquanto estava amarrada ali, não estava sendo torturada por Miguez. Já era noite quando a porta se abriu, e Giselle percebeu uma luminosidade intensa penetrando na masmorra. Olhou em volta assustada, pensando que dormia e sonhava, mas a dor no corpo a fez concluir que ainda estava acordada. A luminosidade veio se aproximando, e Giselle piscou os olhos diversas vezes, ofuscada por tamanha claridade. Aos poucos, porém, conseguiu divisar a figura de um guarda, trazendo pela mão uma menina. Não devia ter mais do que dez ou onze anos. Era linda, cabelos louros cacheados, olhos de um azul cristalino, lábios vermelhos qual uma rosa prestes a desabrochar. Parecia um anjo envolto em um halo de luz. Giselle percebeu que o anjo era apenas uma menina, e aquele clarão repentino, subitamente, desapareceu. Teria sido um sonho ou uma visão? A menina passou bem junto a ela, deixando-a estarrecida. Bem percebia que se tratava de uma criança, e a indignação foi tomando conta de sua mente. Ela, ao menos, era adulta e reconhecia que havia cometido muitos crimes. Mas que mal poderia uma criança ter feito aos padres para merecer tal sorte? A visão daquela menina causou estranha comoção em Giselle. Ela vinha cabisbaixa, segura pela mão do guarda, que a conduzia para uma das celas laterais. Quando passou ao lado de Giselle, a menina estacou de repente e levantou os olhos para ela por uns instantes, para depois abaixá-los novamente, continuando em sua triste trajetória de morte. Giselle estremeceu. A menina, tão pura, tão inocente, mais parecia uma flor no meio daquele lodaçal de dores e lamentações. Ela sabia que, em breve, o corpo da menina seria dilacerado e vilipendiado, e chorou. Pela primeira vez em sua vida, Giselle derramava lágrimas por alguém que não fosse ela mesma. Com o coração oprimido e os pensamentos ainda presos na criança, Giselle adormeceu. Novamente, viu aquela luminosidade e pensou que a menina houvesse se soltado da cela. Virou o pescoço lentamente para o lado e percebeu que a cela em que fora colocada ainda se encontrava fechada, e a menina dormia um sono agitado sobre a palha fétida despejada no chão. Tornou a olhar para frente e percebeu que a luminosidade havia se aproximado, pairando alguns centímetros acima do chão, quase tocando o seu corpo. Aos poucos, aquela luz a foi envolvendo, e Giselle sentiu imenso bem-estar, como se aquela claridade estivesse refazendo o seu corpo, aliviando-lhe as dores e as feridas. De repente, a luz se afastou um pouco e foi tomando forma, e ela viu extasiada a figura brilhante do pai se formar bem diante de seus olhos.
- Pai! - exclamou aos prantos. - Ajude-me!
Estirou os braços para frente e espantou-se ao constatar que, além dos braços realmente se estenderem, todo o seu corpo atendeu ao seu comando, e Giselle viu-se acolhida nos braços de seu pai. Durante muito tempo, permaneceu abraçada a ele, permitindo que as lágrimas fossem recolhidas pelas suas mãos amorosas. O pai não se apressou em soltá-la. Deixou que desse vazão ao pranto e, quando ela finalmente se acalmou, acariciou os seus cabelos e deu-lhe um beijo na face, indagando com extrema bondade:
- Vim lhe perguntar de novo, Giselle: o que foi que fez com o conhecimento que lhe dei?
Ela não resistiu. Agarrou-se a ele em desespero e começou a chorar novamente, respondendo entre lágrimas sentidas e angustiadas:
- Oh! Pai perdoe-me! Fui uma tola, ambiciosa, fútil. Deveria ter seguido os seus conselhos. Jamais deveria ter utilizado meus conhecimentos para o mal. Hoje compreendo. Ao ver aquela menina entrar aqui, pensei na fragilidade da vida e no quanto devemos nos esforçar para sermos bons. Ela está sofrendo, pai, eu sei. Mas seu semblante é tão doce...
- Porque sua alma é pura, minha filha. Assim como a sua também é.
- A minha? Não, pai, sei que sou uma perdida, criminosa, pecadora. Jamais chegarei aos pés daquela criança... Ou aos seus...
- Não se acuse tanto, Giselle. Sua alma é pura, porém ignorante. Você enveredou por um caminho de espinhos e só a muito custo conseguiu compreender que quem caminha no meio dos espinhos acaba tendo que assumir as feridas nos pés.
- Pai... Estou sofrendo tanto!
- Você mesma escolheu esse sofrimento, Giselle. Foi a sua opção.
- Jamais poderia ter escolhido tanta dor. Se estou sofrendo, é porque alguém me inflige esse sofrimento.
- Não acuse aqueles que apenas servem de instrumento aos seus desígnios. Você escolheu se envolver com essas pessoas e vivenciar tudo aquilo que elas poderiam lhe dar.
- Por favor, pai, ajude-me! Não quero mais sofrer. Tire-me daqui. Leve-me com você! Estou arrependida do que fiz... Sei que mereço passar por tudo isso, mas estou arrependida, eu juro!
- Sei que está. Seu arrependimento é sincero, mas não simples o suficiente. Você está começando a enveredar pela senda da culpa.
- Como não me sentir culpada diante da consciência de tudo o que fiz?
- Seja responsável por seus atos, Giselle, mas não se entregue à culpa. Você só vai sofrer.
- Não é o que mereço?
- Ninguém merece sofrer para aprender. Sofremos porque não compreendemos.
Hoje eu compreendo, pai. Compreendo que ajudei a matar e espoliar muitas pessoas. Talvez até crianças feitas aquela - engoliu um soluço sentido e apontou para a menina adormecida.
- Essa criança foi mais um instrumento para despertar a semente de bondade que você guarda em seu coração.
- Mas que bondade? Eu fui má, mesquinha, cruel... Ah! Pai, se pudesse voltar atrás e refazer a minha vida!
- Ninguém é mau, minha filha. Somos todos ignorantes. Não se culpe tanto.
- Ah! Pai, pai! Ajude-me! Tire-me daqui. Sei que pode. Leve-me com você. Prometo ser diferente. Prometo reparar todas as maldades que fiz. Prometo que vou me emendar. Você vai ver. Vou ser boa, generosa, piedosa. Mas por favor, não me deixe mais sofrer! Não me deixe!
- Acalme-se, Giselle. Não precisa prometer coisas que não sabe se será capaz de cumprir. Nem ninguém está lhe pedindo isso. Somente podemos dar aquilo que temos.
- Mas eu não tenho nada!
- Tem o seu coração, o seu amor...
- Que amor? A única pessoa que amei em minha vida foi Ramon... E você...
- Não, minha filha. Amou aquela criança que acabou de conhecer.
Giselle calou-se abismada. Fitou a menina novamente e tornou a olhar para o pai. Ele estava certo. Ao ver aquela criança entrar, envolta naquele halo de luz, algo dentro dela começou a despertar. Seu coração sentiu algo novo, um sentimento que até então jamais havia experimentado. Era um sentimento puro, desinteressado, carregado de compaixão e amorosidade. Giselle nunca fora mãe. Mas, se pudesse, estreitaria aquela menina em seus braços até que ela se sentisse acolhida e protegida, como nos braços de sua mãezinha. Olhos banhados em lágrimas fitaram o pai com amor e respondeu com sinceridade:
- Tem razão...
Deitou a cabeça no colo dele e entregou-se ao pranto. Compreendia as palavras do pai e lamentava não tê-las seguido há mais tempo.
- Não se lamente - tranqüilizou-o, lendo seus pensamentos. - Não a tempo de mais ou tempo de menos. O que há é o nosso próprio tempo, que é sempre o justo e o necessário para o nosso entendimento.
- Oh! Pai, o que fiz para merecer tudo isso?
- Quer mesmo saber?
Ela ergueu os olhos assustada e indagou em dúvida:
- Será que devo?
- Se você quiser...
- Vai me ajudar a mudar alguma coisa?
- Alguma coisa não. Mas pode ajudar a modificar você. O que você fez, está feito, ninguém jamais poderá apagar. Durante os séculos vindouros, tudo o que você fez estará guardado em algum lugar dentro de você, porque as lembranças de seus atos passados é que servirão para ajudá-la a construir uma personalidade mais íntegra no futuro. Ninguém pode apagar os seus atos, porque estaria apagando suas experiências. Mas você pode compreender com o coração tudo aquilo que já fez, e esses atos dos qual você se lamentam servirão de exemplo para novas atitudes. Então? O que me diz? Quer saber o que você fez, apenas para compreender por que escolheu estar aqui hoje?
- Quero - respondeu Giselle, decidida.
No mesmo instante, as paredes da masmorra desapareceram, e Giselle saiu para a friagem da noite. Em questão de segundos, a noite virou dia, e ela começou a se lembrar. Corria o ano de 1204, e a frota cruzada preparava-se para a terceira investida contra a capital bizantina. Os soldados já haviam conquistado e pilhado várias cidades daquele império, dentre elas, Calcedônia e Crisópolis, mas não estava sendo nada fácil tomar Constantinopla. O porto da cidade era protegido por grossas correntes que impediam a entrada dos navios invasores, e a única saída seria tomar a Torre de Gaiata e soltar as correntes que a ela se prendiam. Ultrapassada as correntes e penetrados o porto, a investida por mar ainda teria que vencer as demais torres de proteção, o que demandava tempo, homens e habilidade. Essa empreitada contou com o concurso de cruzados e venezianos, que haviam partido juntos de Veneza. Quando, por fim, a Torre de Gaiata foi tomada e as correntes, afrouxadas, os cruzados penetraram no porto e, agora em terra, acamparam do lado de fora das muralhas, a uma distância segura das catapultas inimigas. Os venezianos, por sua vez, permaneceram na investida por mar, e, enquanto lutavam para invadir as torres da cidade sitiada, os cruzados tentavam abrir uma fenda na muralha, até que conseguiram, finalmente, penetrar com seus cavaleiros montados, tomando tudo que encontravam à sua frente. Foi nesse clima hostil e sangrento que Giselle se reconheceu, envergando uma armadura brilhante onde se via no peito a cruz vermelha das Cruzadas. Giselle não era Giselle. Era Rômulo, um soldado forte e destemido, oficial graduado e competente, e engajara nas Cruzadas numa tentativa de reaver a herança perdida para seu irmão mais velho. Pelo direito de primogenitura, toda a fortuna de seu pai fora herdada pelo irmão, e Rômulo não recebera nada em terras ou dinheiro. Por isso, a Quarta Cruzada lhe surgiu como a chance que esperava de adquirir terras e riquezas no oriente. Sem dinheiro e sem galeras, os cruzados haviam praticamente se colocado nas mãos dos venezianos, que os levariam a Jerusalém em troca de ajuda para a retomada da cidade de Zara aos húngaros. Na viagem, Rômulo conheceu Leandro, um veneziano maduro e experiente, e uma forte amizade logo surgiu entre ambos. Cerca de quinze anos mais velho, Leandro tornou-se para o jovem Rômulo, além de amigo, um sábio conselheiro. A batalha pela conquista de Constantinopla não durou muito tempo. Logo o imperador fugiu com seu exército, e os bizantinos, decepcionados com a destruição de sua muralha, deram-se por derrotados. Reconhecendo-se verdadeiros conquistadores, sem encontrar resistência da população ou dos soldados, os cruzados iniciaram então a pilhagem da cidade. Milhares de civis e militares foram mortos ou aprisionados, e as mulheres, estupradas pelos cruzados. Imagens, altares, estátuas de ouro, tudo foi destruído e derretido por aqueles que partiram de Veneza jurando lutar pela fé cristã. Palácios e mansões foram tomados, seus residentes mortos ou aprisionados, e muitas obras de arte foram roubados. O saque foi imenso, e os cruzados, mais do que os venezianos, não hesitavam em destruir, queimar, matar... Rômulo era então um dos capitães dos cruzados, cruel e sanguinário, impiedoso e imoral. Em meio à pilhagem, invadiu o palácio de um oficial do exército bizantino, que havia se recusado a debandar ante a iminência da derrota. Domício era um homem íntegro, segundo os padrões da época, e resistiu ante a capitulação de sua amada Constantinopla. Ao entrar em seu rico palacete, todo feito de mármore e ouro, Rômulo quedou boquiaberto. Jamais havia visto tanta riqueza em toda a sua vida. Mesmo seu pai, que fora um rico senhor feudal, não poderia se igualar àquele Domício em luxo e fortuna. O homem ainda tentou resistir. Lutou com todas as suas forças contra vários soldados cruzados, mas acabou rendido e subjugado. Rômulo deu ordens para que ele fosse preso, e seus soldados puseram-se a vasculhar o palacete. Não demorou muito, e toda a família foi encontrada e levada à sua presença. No mesmo instante, seus olhares se fixaram na jovem esposa de Domício. Tratava-se de uma nobre de origem grega, Lísias, moça fina e de rara beleza. Rômulo sentiu imenso desejo por aquela mulher. Acostumado a tomar o que desejava, deitou-a no chão e estuprou-a ali mesmo, diante de toda a família. Naquele momento, Domício sentiu imenso ódio de Rômulo. Se ele os tivesse matado, a todos, não lhe guardaria tanto rancor. Era soldado também e considerava a execução e a morte coisas naturais numa guerra. Mas estuprar sua mulher era coisa que não poderia jamais admitir. Terminada a violência, Rômulo mandou que prendessem toda a família de Domício, menos sua mulher. Enquanto ardesse nele o fogo da paixão, Lísias serviria para saciar os seus instintos. Domício ainda tentou lutar, mas foi amarrado pelos soldados de Rômulo, que se preparavam para levá-lo à prisão. Foi nesse momento que chegou Leandro, seu companheiro de batalhas.
- O que está acontecendo aqui? - indagou Leandro, abismado.
- Ora, meu caro amigo - retrucou Rômulo com desdém -, estamos apenas nos divertindo.
Leandro fez um ar de contrariedade. Os venezianos costumavam ser mais comedidos em seus atos de pilhagem e saque, e Leandro, em especial, não se comprazia com os estupros.
- Está desonrando uma mulher casada! - censurou Leandro com veemência.
- Ela é mulher do inimigo. Não tem mais honra. Novamente, Leandro fez ar de desagrado. Era extremamente católico e considerava a atitude de Rômulo um atentado contra as leis da Igreja, da mesma Igreja que ele jurara defender. A mulher, além de tudo, era católica também, e não era direito forçá-la ao adultério.
- Rômulo - prosseguiu ele com aparente calma -, solte essa mulher. E uma mulher cristã.
- E daí? Ela agora me pertence. Veio de prêmio, junto com a pilhagem.
Soltou estrondosa gargalhada, o que deixou o amigo ainda mais indignado. Parado mais atrás, Domício não perdia uma só de suas palavras. Mesmo sendo inimigos, sentiu imensa gratidão pelo que Leandro estava fazendo. Reconheceu nele um homem honrado e digno, e passou a admirá-lo profundamente. Leandro podia pertencer ao conquistador inimigo, mas não era um mercenário feito aquele Rômulo.
- Solte-a! - falou incisivo. - É uma ordem.
- Você não dá ordens em mim. É meu amigo, não meu capitão-mor.
Nesse momento, Lísias atirou-se aos pés de Rômulo e, aos prantos, pôs-se a suplicar com pungente dor:
- Por favor, senhor, eu lhe imploro. Deixe-me ir. Solte meu marido e eu prometo que nunca mais nos verá. Partiremos hoje mesmo...
- Cale-se, mulher! - esbravejou Rômulo, desferindo-lhe uma bofetada.
De onde estava Domício tentou se soltar, mas os soldados o seguravam com força, e ele não conseguiu se mover. Contudo, foi remoendo o ódio por aquele capitão arrogante e cruel, que não poupava nem a fragilidade de uma mulher.
- Por Deus, Rômulo! - objetou Leandro novamente. - Não vê que ela é apenas uma mulher e que está assustada? Solte-a! Deixe-a ir!
Mais por orgulho do que por desejo, Rômulo não a soltava. Não podia permitir que outro homem, por mais amigo que fosse, passasse por cima de sua autoridade de capitão.
- Nunca! - bradou entre dentes. - Prefiro antes vê-la morta!
Na mesma hora, desembainhou a espada e cravou-a na garganta de Lísias, que morreu ante o olhar atônito e revoltado de Domício. Lísias veio ao chão, sobre uma poça de sangue, o que deixou Domício enlouquecido. Apesar de fortemente preso, puxou os soldados que o seguravam e partiu para cima de Rômulo, aos pontapés, sendo facilmente subjugado pelo outro.
- Idiota! - vociferou Rômulo. - Gosta tanto assim de sua mulher? Pois vá juntar-se a ela!
Com um só golpe, Rômulo tirou a vida de Domício também. Os dois desencarnaram levando imenso ódio no coração, ódio esse que os acompanharia durante os séculos seguintes, principalmente ao reencarnarem como Lucena e Miguez. Ambos não conseguiram superar o ódio, e o desejo de vingança fez com que envidassem todos os esforços para retribuir a Rômulo, na pele de Giselle, todo o mal que antes os fizera passar. Apesar de tudo, Domício nutriu sincera gratidão por Leandro, que perdurou também na encarnação seguinte, quando este voltou como Esteban. Nasceu daí uma forte e verdadeira amizade, fruto do reconhecimento de Domício pelos esforços de Leandro em salvar a vida e a honra de sua esposa. Com lágrimas nos olhos, Giselle voltou de suas reminiscências. Foram dolorosas as lembranças de sua vida passada, e ela ficou imaginando o quanto gostaria de ter feito tudo de forma diferente.
- Se soubesse disso antes, não teria feito o que fiz.
- Se soubesse disso antes, não teria feito esforço algum.
- E agora, pai, o que farei?
- Aceite o seu destino. Foi o que você escolheu para você.
- Não posso mudar? Estou presa as minhas escolhas?
- Não. Mudamos a todo tempo. Mas é preciso que essa mudança parta do seu coração, não do seu medo. Você só quer mudar porque está com medo de sofrer mais e de morrer. Não quer mudar o destino porque já aprendeu aquilo que veio aprender. Por isso é que digo que você não quer essa mudança. Sua alma não quer, porque ela sabe que você, em seu íntimo, ainda não está pronta para compreender e aceitar-se, a si mesma, como uma alma em evolução, que erra e cai, mas que não perde jamais.
- Está enganado, pai. É por compreender e me aceitar que não quero mais ficar aqui...
- O que sente agora com relação a tudo isso?
Giselle pensou durante alguns minutos, até que respondeu com profundo pesar:
- Culpa. Sinto-me culpada por tudo o que aconteceu.
- Como vê você ainda não compreendeu e, por isso, não pôde se aceitar. Se tivesse mesmo compreendido, não se sentiria culpada. Ao contrário, perdoar-se-ia, a si mesma, sem nenhuma restrição. Mas você não pode. Sua alma pesa de tanta culpa.
- Se isso não é compreender, então não sei o que é. Se não compreendesse, não me sentiria culpada pelo que fiz.
- Não, Giselle, é o contrário. Se você compreendesse, diria a si mesma que agiu por ignorância e não precisaria sofrer para aprender. É como a criança, que cai e bate no amiguinho porque ainda não aprendeu que não deve bater em seus semelhantes. Ela é má? Não. E apenas inexperiente. Quando entender que não deve bater nas outras crianças, vai aprender, mas sem nenhuma culpa ou remorso. Simplesmente não vai bater mais, porque vai internalizar o que é certo. E não vai precisar apanhar para deixar de bater. Vê como é diferente?
Com doloroso suspiro, Giselle abraçou-se ao pai. Ele tinha razão. Ela estava morrendo de remorso pelo que fizera e achava que merecia mesmo aquele sofrimento todo. Por mais que o temesse e não o quisesse, não se julgava merecedora do perdão.
- Ah! Pai ajude-me! O que será de mim?
- Você vai desencarnar - ela redobrou o pranto, e ele acariciou seus cabelos. - Não chore minha filha. Esse é o seu caminho de hoje, mas não precisa ser o de amanhã. Lute para fazer diferente no futuro.
- Como, pai? Como poderei fazer isso?
- Em primeiro lugar, tente vencer a culpa quando desencarnar. Se não, você não vai conseguir me acompanhar e vai sintonizar com os espíritos que a rodeiam, sequiosos de vingança. Eles vão arrastá-la, e eu não terei como evitar.
- Não quero pai! Não quero seguir com eles. Quero ir com você.
- Pois então, acredite nisso, deseje isso. Não é só porque você levou uma vida de desencontros que precisa ir para as trevas. Isso, nesse momento, você já entendeu. O que lhe falta agora é acreditar-se merecedora de alçar a um plano de luz. Acredite nisso, com fé, e ninguém conseguirá arrastá-la. Você vai me ver ao seu lado e vai desejar partir comigo. Será que pode fazer isso?
- Tentarei pai, juro que tentarei. O que mais quero é poder estar com você.
A imagem de Ian esvaneceu, e Giselle abriu os olhos assustada, ainda a tempo de ver desaparecer sua última centelha de luz. Olhou para o lado e viu a menina adormecida. Ao seu redor, as poucas mulheres presas não davam sinais de terem percebido nada. Apenas ela vira o pai e sabia que ele estivera ali de verdade. No dia seguinte, Miguez não apareceu para sua costumeira sessão de torturas. Como Ian havia energizado o corpo de Giselle, era preciso que ela não sofresse nenhum tipo de suplício naquele dia, ou toda aquela energia revitalizante acabaria perdida nos mecanismos de tortura. A solução foi pedir o concurso de Blanca. Ela era um espírito bastante esclarecido e iluminado, ciente de seus comprometimentos passados, e não via nada de útil em querer se vingar. Ao contrário, orava por Giselle todas as noites, para que ela fosse forte como ela própria o fora. Ian visitou Blanca em sonho, logo após deixar Giselle, e ela concordou em colaborar. Na manhã seguinte, acordou com uma inexplicável febre, para desespero de Lucena, que logo mandou chamar Miguez, com medo de que ela morresse. Miguez mandou buscar um médico na vila vizinha, pois não podia arriscar a segurança de Blanca trazendo um médico de Sevilha, que poderia reconhecê-la e denunciá-la novamente a Esteban. Isso levou algum tempo. Lucena, desesperada, não queria que ele saísse de perto delas, e Miguez foi ficando. Quando o médico terminou a consulta, a noite já havia caído, e ele estava cansado e sem ânimo para ir ao calabouço. Fez a refeição da noite em companhia de Lucena e acabou ficando para passar a noite, temendo que Blanca piorasse. Aquele fora um dia inútil, mas, no dia seguinte, acordaria bem cedo para recuperar o tempo perdido. Por volta da meia-noite, todos já estavam dormindo, inclusive Esteban, que, desde a hora do jantar, reclamava de forte dor de cabeça. Recolheu-se mais cedo, não sem antes tomar uma forte infusão que um dos padres lhe oferecera. Deitou-se na cama e apagou a luz da vela, e todos acharam mesmo que ele adormecera. Em silêncio, abriu a porta de seu quarto e saiu pé ante pé. Envolto em pesado manto negro, cujo capuz lhe encobria todo o rosto, atravessou a abadia e penetrou no Tribunal, levando sob o manto a garrafa de vinho envenenado. O silêncio imperava em todos os cantos. Ao abrir a porta da masmorra, o primeiro guarda se levantou, cumprimentando-o com voz sonolenta:
- Ah! Monsenhor Navarro, boa noite.
- Boa noite.
Sem dizer nada, Esteban seguiu direto para a masmorra masculina. O guarda de plantão abriu a porta e ele entrou, fingindo que ia averiguar algo em um dos prisioneiros. Por dez minutos, permaneceu estudando o morto vivo, até que resolveu sair. Fingiu que ia embora quando, no meio do caminho, voltou-se para o guarda.
- Como é o seu nome, rapaz?
- Martinez, senhor.
- Pois bem, Martinez. Antes de vir para cá, passei em meu gabinete para buscar essa garrafa de vinho que ganhei hoje cedo, mas não ando me sentindo bem e não posso tomá-la. Não gostaria de experimentar um trago?
O homem nem acreditou. Um vinho daquela qualidade, ofertado por um cardeal, devia ser uma delícia dos deuses. Martinez estalou a língua e respondeu animado:
- Será que posso monsenhor?
- É claro, meu rapaz - enquanto Martinez apanhava uma caneca sobre a mesa, Esteban aproveitou para sugerir: - Por que não vai chamar seu companheiro na outra masmorra? Assim os dois bebem juntos.
- Mas, monsenhor, ele não pode abandonar o seu posto.
- Ora, é só um instantinho. Que mal há? Aposto como ninguém vai fugir de lá de dentro, não é?
Martinez sorriu entusiasmado e correu a chamar o guarda da masmorra feminina. Os dois voltaram quase correndo, e o outro cumprimentou com um sorriso respeitoso e formal:
- Boa noite, monsenhor.
- Boa noite, rapaz. Trouxe sua caneca?
- Trouxe.
- Olhe lá, hein? É só um pouquinho. Não quero que amanhã digam que os embebedei.
Sob o sorriso maroto dos dois guardas, Esteban entornou o vinho nas canecas que eles lhe estendiam. Os dois levantaram as canecas num brinde meio sem jeito e entornou o vinho de uma vez, goela abaixo. Estalaram a língua, satisfeitos, e já iam agradecer quando sentiram uma estranha contração no estômago. Entreolharam-se atônitos e procuraram Esteban com a visão já nublada, mas ele havia sumido pelo corredor mal iluminado. Na porta da frente, repetiu a mesma coisa com o primeiro guarda. A exemplo dos demais, ele estendeu a caneca para Esteban, que derramou o vinho e esperou até que ele bebesse, a fim de se certificar de que morreria também. Minutos depois, o homem também jazia duro no chão. Esteban afastou o seu corpo da porta e correu para fora, rezando para que Diego já estivesse ali. Diego já estava à espreita. Logo que viu um vulto sair correndo do calabouço, dirigiu-se para lá a passos rápidos. A porta estava aberta, e ele entrou. Jogado a um canto da parede, o corpo do primeiro guarda apareceu, e ele seguiu avante, direto para a masmorra feminina. Não havia ninguém lá. O guarda dali havia morrido junto com o outro, e ele teve que sair à sua procura para buscar as chaves. Foi para a outra masmorra e encontrou os dois caídos no chão. Apanhou as chaves dos dois guardas e partiu de volta para onde Giselle estava. Foi experimentando as chaves uma a uma, até que encontrou a que procurava. Abriu a porta com cuidado e passou para o lado de dentro, indo direto para o tronco onde Giselle estava amarrada. Ela estava adormecida e não viu quando ele entrou. Diego teve que cutucá-la para que ela despertasse. Giselle abriu os olhos lentamente, tentando entender o que estava se passando. Será que Miguez resolvera aparecer para uma sessão noturna? Não era Miguez. Parado diante dela, Diego a chamava com insistência:
- Giselle! Giselle! Vamos, abra os olhos. Acorde, Giselle!
- Diego! - sussurrou assustada. - O que faz aqui?
- Resolvi aceitar a sua proposta.
- Que proposta?
- Não se lembra? Vim libertá-la em troca de seu tesouro.
Enquanto falava, Diego ia tentando encontrar a chave que abria o cadeado que a prendia ao tronco, até que finalmente o achou. Soltou as correntes, e Giselle deixou o corpo tombar para frente, tentando sentir a própria coluna.
- Venha. Não há tempo para exercícios agora. Vai ter que andar.
Ele puxou Giselle pelo braço, e ela se levantou a muito custo. O corpo estava todo doído, mas, graças ao passe revigorante de seu pai, conseguiu se erguer e caminhar. Sem pensar muito, segurou o braço de Diego com firmeza e deu dois passos em direção à porta. Foi quando se lembrou da menina que vira chegar no dia anterior. Parou abruptamente e voltou-se para a cela onde ela fora colocada. Atraída pela agitação, a menina despertara e a olhava com ar súplice.
- Dê-me as chaves - pediu Giselle num murmúrio.
- O quê? Para que quer as chaves?
Diego seguiu a direção do dedo de Giselle e viu a criança.
- Vou levá-la comigo.
- O quê? Ficou maluca? Não temos tempo para isso. E depois, uma criança só faria nos atrapalhar.
- Vou levá-la comigo, já disse! Vamos, dê-me as chaves!
Muito a contragosto, Diego passou o molho de chaves às mãos de Giselle, e ela foi a passos trôpegos abrir a cela da menina.
- Venha! - chamou, estendendo-lhe as mãos.
Na mesma hora, a criança segurou a mão de Giselle e saiu da cela, ajudando-a a caminhar.
- Como se chama?
- Marisol.
Amparada pela menina e por Diego, Giselle saiu da masmorra. Notou que não havia nenhum guarda por ali, mas não perguntou nada. Diego planejara tudo, e ela não estava disposta a perder tempo com perguntas inúteis. Do lado de fora, seguiram para uma carruagem parada no final da rua, fora do campo de visão do Tribunal. Diego ajudou Giselle e Marisol a subir e tomou as rédeas dos cavalos. Mais que depressa, chicoteou os animais e levou a carruagem para bem longe dali. Fora da cidade, Diego parou o carro, e as duas desceram rapidamente. Ele levou a carruagem para fora da estrada e ocultou-a atrás das árvores, sentando-se com Giselle e Marisol na grama úmida.
- E agora? - quis saber Giselle.
- Você vai a cavalo até Santa Maria. De lá, seguirá a pé até um pequeno povoado chamado Los Lobos. Fica aos pés de uma colina, que você deve subir até o fim e descer pelo outro lado. Logo que alcançar o topo, vai ver uma pequenina praia lá embaixo. Desça pela encosta e aguarde. Um barco virá para levá-la em segurança. Na terça-feira, ao meio-dia.
- Para onde irei?
- Para Alexandria - ela não contestou, e ele prosseguiu: - Muito bem. Cumpri a minha parte. Agora, cumpra a sua. Diga-me onde está o tesouro.
Com um profundo suspiro, Giselle contou-lhe onde escondera sua pequena fortuna em ouro e pedras preciosas. Embora sua casa houvesse sido revistada, duvidava que alguém tivesse descoberto esse esconderijo. Ela o ensinou a chegar lá pela floresta, para que ele não corresse o risco de ser surpreendido na porta de casa.
- E a garota? - indagou Diego, referindo-se a Marisol. - Não vai conseguir com ela.
- Não pretendo levá-la comigo. Vou deixá-la em Cádiz, com Rúbia.
- O quê? Você endoidou de vez. Não vai dar tempo. E se você perder o barco?
- Vai dar tempo, sim. Sei que vai. Se partir agora e cavalgar sem parar para descansar ou comer, terei tempo de passar em Cádiz e deixar Marisol com Rúbia.
- Isso é muito arriscado. E se alguém descobrir?
- Duvido muito. Ninguém terá motivos para procurá-la lá. Diego deu de ombros e arrematou:
- Você é quem sabe. Mas se perder o navio, não me culpe.
- Não o culparei. Bem, Diego, agora é hora de partir. Obrigada por tudo, e faça bom proveito do meu dinheiro.
Ela apanhou as rédeas do cavalo que ele soltara da carruagem, montou e puxou Marisol, colocando-a na garupa.
- Acha que poderá agüentar? - perguntou a ela.
- Sim.
Giselle deu um último sorriso para Diego e chicoteou o animal, que saiu em disparada pelo meio da floresta. Teria que viajar pelos bosques, sempre em meio às árvores. Sair pelas estradas era muito perigoso. Em breve, Miguez poria toda a guarda do Tribunal em seu encalço.
Ela apertou a mão de Marisol ao redor de sua cintura e seguiu confiante para Cádiz. Não sabia explicar aquela sensação de bem-estar que sentia. Não se lembrava das palavras exatas de seu pai e desconhecia que iria desencarnar em breve. Mas algo dentro dela lhe dizia que ela caminhava para a liberdade, e a única coisa que a impediria de ser livre seria sua própria fraqueza, que poderia acorrentá-la novamente aos grilhões de seus inimigos. A viagem até Cádiz foi desgastante e cansativa, principalmente para Giselle, que sentia o corpo todo doer por causa das torturas. Alcançou o castelo encoberta pelas sombras da noite e ainda precisava atravessar os portões sem chamar a atenção. Chamou insegura, mas os guardas nem desconfiaram quando ela disse que vinha de Sevilha e trazia um recado de monsenhor Navarro para Rúbia. Os portões foram abertos, e Giselle entrou, cobrindo o rosto com o manto e procurando permanecer fora do alcance da luz. Um dos guardas foi chamar Rúbia, que veio atender, ainda meio sonolenta. Mas logo reconheceu, no salão principal, a silhueta magra de Giselle. Olhou-a com estranha emoção, mas, contendo o ímpeto de se atirar em seus braços, falou para o guarda com estudada moderação:
- Pode ir agora. Obrigada.
Esperou até que o guarda se afastasse, para só então correr para ela.
- Rúbia... - sussurrou Giselle em lágrimas.
- Oh! Giselle, graças a Deus que está bem! - tornou a outra, estreitando-a em seus braços. - Como foi que saiu da masmorra?
- Diego não lhe contou?
- Diego? Não. Por quê? O que ele tem a ver com isso?
- Onde é que ele está?
- Em Sevilha... Por quê?
- Foi Diego quem me soltou.
- Diego? Mas como? Como foi possível?
- Ainda não sei bem. Só sei que os guardas estavam fora do caminho, e ele entrou na masmorra e me soltou.
- Meu Deus! Então foi por isso que ele viajou a Sevilha, dizendo que tinha negócios a tratar com seu tio. Não me disse nada.
- Talvez não quisesse preocupá-la. Ele se arriscou muito.
Giselle preferiu omitir a parte do tesouro. Mesmo que tivesse perdido tudo, era grata a Diego por tê-la ajudado a fugir e não pretendia causar nenhum desentendimento entre ele e Rúbia. Estirou a mão para a menina, que permanecera parada um pouco mais atrás, sem se mover, e puxou-a para junto de si, falando com ternura:
- Esta é Marisol.
- Muito prazer, Marisol - cumprimentou Rúbia, dando-lhe um beijo na face e encarando Giselle com uma interrogação no olhar.
- Trouxe-a comigo. Tirei-a do calabouço.
- Uma criança! O que ela fazia lá?
- Marisol me disse que seu pai era médico e foi surpreendido dando-lhe lições de anatomia. Ela falou algo sobre um livro com gravuras...
- Que horror! Prenderam uma criança por causa disso? Mas que disparate! Uma menina...
- Não se iluda Rúbia. Nem as crianças são poupadas da sanha assassina desses padres.
Só agora Giselle compreendia isso. Fora preciso sentir na carne a dor das torturas para entender a crueldade que significava a Inquisição. Fora preciso ver com seus próprios olhos a dor de uma criança para compreender que nada no mundo poderia justificar tamanha atrocidade.
- O que pretende fazer? - tornou Rúbia, ainda espantada.
- Fugir. Diego me arranjou a fuga. Mas não posso levar a menina comigo. Por isso a trouxe aqui. Gostaria que cuidasse dela para mim.
- E os pais dela?
- O pai está preso, e a mãe foi morta ao tentar defendê-la. Rúbia fitou Marisol, toda encolhida, agarrada à saia de Giselle. A menina parecia mesmo um anjo, de tão linda, e o coração de Rúbia se enterneceu. Rúbia era uma mulher boa e generosa, e logo se comoveu com a sorte daquela criança. Abaixou-se perto dela e falou com carinho:
- Você é uma menina muito bonita, Marisol. Tem os olhos de mar e o sol nos cabelos.
Marisol sorriu para ela, e Rúbia ficou encantada. A menina parecia ter um magnetismo especial, que a foi envolvendo e fazendo com que ela se apaixonasse.
- Então? - insistiu Giselle. - Vai cuidar dela para mim?
- É claro que vou. Não se preocupe Giselle, cuidarei dela como se fosse minha.
- Sei que é perigoso, mas não tinha outro lugar para levá-la. Deixá-la nas mãos dos carrascos, isso jamais poderia fazer.
- Já disse para não se preocupar. Darei um jeito. Vou escondê-la por uns tempos, até que possamos ajeitar tudo e partir.
- Vocês vão embora?
- Sim. A Espanha não é lugar para nós. Não podemos mais esconder o nosso amor, e aqui ninguém jamais nos aceitaria. Na certa, iríamos presos também.
Giselle precisou conter o ímpeto para não pular em seu pescoço e pedir a ela que fossem para Alexandria, onde poderia se juntar a eles e cuidar de Marisol. Ao invés disso, franziu a testa e observou com horror:
- Não diga uma coisa dessas nem brincando.
- Não se iluda Giselle. Se monsenhor Navarro não fosse tio de Diego, aposto que já estaríamos presos. Incesto é alta heresia.
- Oh! Rúbia sinto muito.
- Não é preciso. Vamos embora daqui sem nenhum tipo de remorso. A Espanha, muito mais do que o resto da Europa, se tornou um lugar muito perigoso para se viver. Precisamos partir para encontrar a felicidade.
- Para onde vão?
- Ainda não sei. Para qualquer lugar longe daqui. E levarei Marisol comigo.
Giselle começou a chorar de mansinho, louca para pedir que eles fossem para Alexandria, mas julgava-se tão criminosa que não se atrevia a pedir nada para si mesma. Ainda mais a Rúbia.
- Não chore Giselle - consolou Rúbia, abraçando-a com carinho. - Tudo vai acabar bem.
- Oh! Rúbia perdi tudo o que tinha no mundo. As pessoas a quem amava... Todas se foram. Meu pai morreu há muitos anos, Ramon foi assassinado. Esteban não se importa mais comigo. E agora, você também vai embora. Sinto-me tão só.
- Mas você agora está livre, e isso é o que importa. Já sabe para onde vai?
- Para Alexandria.
- Dizem que lá é maravilhoso. Mas tenha cuidado. Procure levar uma vida direita.
- Vou trabalhar Rúbia. Você vai ver. Posso fazer qualquer coisa.
- Talvez convença Diego a irmos para Alexandria também. Poderemos viver todos juntos lá.
Giselle exultou. Aquilo era tudo o que esperava ouvir.
- Seria maravilhoso... - sussurrou.
Rúbia soltou um suspiro sentido e prosseguiu:
- Gostaria que Diego estivesse aqui para que pudéssemos acertar tudo...
- Não posso me demorar muito. Se a guarda de Miguez me pegar, será o meu fim.
- Tem razão. Mas não se preocupe com nada. Vou lhe dar dinheiro suficiente para se manter por algum tempo, até arranjar algum trabalho.
Mal contendo a emoção, Giselle se atirou aos pés de Rúbia e beijou-lhe as mãos, molhando-as com lágrimas de gratidão.
- Não sei se mereço alguém feito você...
Aturdida e sem jeito, Rúbia puxou a mão e fez com que ela se levantasse, abraçando-a com ternura.
- Você é minha amiga, e o amor que sinto por você está além de qualquer coisa que você possa ter feito. Por mais que não concorde com nada do que você fez, não posso deixar de amá-la.
A emoção tomou conta de Giselle de forma arrebatadora, e ela desatou num pranto sentido e sincero. Aquele deveria ser o verdadeiro amor, e não os que Giselle experimentara até então.
- Obrigada... - foi só o que conseguiu dizer.
- Bem - retrucou Rúbia, tentando não chorar também. - É melhor você se apressar. Logo estarão aqui à sua procura.
Rúbia deu a Giselle uma bolsa com muitas moedas de ouro, e elas se despediram calorosamente. Giselle beijou Marisol e acariciou o seu rosto, tranqüilizando-a quanto ao futuro. Rúbia seria uma excelente mãe para ela. Em seguida, partiu de novo a cavalo, os olhos turvos das muitas lágrimas que derramava. Seguiu até Santa Maria e de lá tomou a direção do pequeno povoado chamado Los Lobos. O povoado era, na verdade, uma pequenina aglomeração de casas numa chapada, construídas ao pé de uma colina que se erguia ao lado de uma série de outras colinas. Giselle sabia que, do outro lado, encontraria o mar. Mas chegara um dia antes do combinado e teria que esperar. O céu havia se tornado cinza-chumbo, e ela deduziu que ia chover. Precisava se abrigar. Olhou em redor, mas não viu nenhuma estalagem ou coisa semelhante e acabou se ocultando numa pequena gruta, um pouco mais afastada. Rúbia lhe dera um pedaço de pão e queijo, e ela se alimentou vagarosamente, a cabeça já tombando de tanto sono. Em segundos, adormeceu, ouvindo ao longe o som dos trovões, que começavam a ribombar, e a chuva logo desabou sobre a colina. O primeiro inquisidor a entrar na masmorra naquele dia foi padre Donário, que ia ao encontro do pai de Marisol, por cuja prisão fora responsável. Esteban, desculpando-se com a dor de cabeça, não se levantou da cama, e Miguez ainda se ressentia da noite mal dormida ao lado de Blanca. Estava a caminho da masmorra quando viu padre Donário sair correndo e gritando.
- O que foi que houve? - quis saber Miguez, segurando-o pelo braço.
- Estão mortos! - berrou o outro, assustado. - Todos mortos!
- Quem? Quem está morto?
- Os guardas! Todos mortos! Envenenados!
Miguez soltou o braço do homem e correu para a masmorra. A porta da frente estava aberta, e ele seguiu direto para o cárcere feminino, cuja porta estava apenas encostada. Abriu-a de chofre e olhou para o tronco onde Giselle costumava ficar amarrada. Nada. Ela havia sumido. Nem deu pela falta de Marisol. A menina não era presa sua, e ele não estava interessado nela. Com ódio no olhar, voltou correndo para fora. Os soldados já começavam a chegar, junto com o inquisidor-geral, que se encontrava em Sevilha naquela oportunidade. Miguez nem os cumprimentou. Passou por eles feito uma bala e foi direto aos aposentos de Esteban. Ele estava acordado, embora ainda fingisse dormir, quando ouviu as batidas na porta. Miguez a esmurrou com força, e Esteban se levantou para atender, abrindo-a com ar de espanto.
- Miguez! - exclamou com fingida surpresa. - O que foi que deu em você? Por que vem aqui desse jeito?
- O que foi que você fez Esteban? - vociferou o outro, entrando apressado no quarto.
- O que foi que eu fiz? Como assim? Eu estava dormindo...
- Foi você, Esteban, eu sei! Não adianta fingir para mim.
- Não sei do que está falando. Tem certeza de que está se sentindo bem? Porque eu não estou. Desde ontem, estou com aquela terrível dor de cabeça.
- Pare com isso! A quem quer enganar?
- Não quero enganar ninguém, mas é que não estou entendendo nada. Por que é que não se senta e me conta o que foi que aconteceu?
Miguez quase o esmurrou. Estava coberto de ódio e tinha quase certeza de que aquilo fora obra de Esteban. Contudo, procurou se acalmar e revidou entre dentes:
- Giselle fugiu.
- Fugiu? Mas como pode ser?
- Pensei que você soubesse.
- Eu? Ora, Miguez, francamente. Como pode pensar que eu tive algo a ver com isso?
- Não adianta fingir, Esteban. Sei que foi você. Os guardas estão mortos, todos os três. Envenenados.
- Como é que sabe que foram envenenados?
- Pensa que sou estúpido? Eu mesmo os vi!
- Miguez, tente se acalmar. Lamento que Giselle tenha fugido, mas não tenho nada a ver com isso.
- Ah! Não? Pois se não foi você, quem é que foi então?
- Sei lá. Talvez um de seus amantes.
- O único amante que arriscaria a vida por ela está morto. E não creio que a alma de Ramon tenha se levantado do inferno para vir salvá-la.
Esteban tomou um gole de seu xarope e sentou-se na cama, apertando as têmporas, que realmente haviam começado a latejar.
- O que quer que eu faça Miguez? Não tenho nada com isso.
- Estou lhe avisando, Esteban. Sou seu amigo e daria a vida por você. Mas não posso permitir que tripudie sobre a autoridade da Inquisição!
- Da Inquisição ou da sua?
- É a mesma coisa! Eu sou a Inquisição. Você é a Inquisição!
Esteban engoliu em seco. Ele tinha razão. Agira contra seus próprios princípios, contra a instituição que jurara defender. Tudo por causa de uma mulher. Mas ela fora a sua mulher um dia, e agora era praticamente como sua filha. Como abandoná-la sem ao menos dar-lhe uma chance de tentar se salvar? Os argumentos de Miguez, contudo, eram por demais poderosos para serem ignorados, e ele tornou com angústia:
- O que quer de mim, Miguez? Já disse que não tive nada com isso.
- Pois então prove.
- Provar como?
- Dê ordens aos soldados para que a capturem.
- Como espera que eu faça isso? Nem sei onde ela está.
- Tenho certeza de que vai descobrir - finalizou, sussurrando bem baixinho em seu ouvido.
Em seguida, Miguez saiu dos aposentos de Esteban e foi para o Tribunal, onde acabou descobrindo que Giselle fugira levando consigo uma menina, de nome Marisol, cujo processo se encontrava aos cuidados de padre Donário. Vários homens foram mandados à sua procura, sem sucesso, porém. Até ao castelo de Rúbia haviam ido, mas ela, já prevenida, escondera a menina numa câmara secreta, e os soldados nada puderam encontrar. Em Sevilha, as buscas também continuavam. Ninguém sabia como Giselle podia ter desaparecido tão misteriosamente nem entendiam como os guardas haviam se deixado envenenar. Ficou esclarecido que haviam bebido vinho envenenado, e todos se perguntavam quem os teria dado. Aquilo era um disparate. Alguém fugir da masmorra era considerado uma falta gravíssima, e o prisioneiro, logo que capturado, seria sumariamente condenado, pois a fuga já era uma evidente prova de culpa. Por isso, ao ser recapturada, Giselle seria considerada culpada e o processo estaria terminado com a sua execução. Mas Miguez tinha algo especial para ela. A pedido de Lucena, Giselle teria a mesma sorte que dom Fernão. A fogueira seria pouca. O machado, então, uma bênção que ela não merecia receber. Não. Giselle precisava sofrer. Depois de longas sessões de tortura, quando seu corpo já não agüentasse mais, ele a colocaria na Virgem de Nuremberg, e Giselle morreria aos pouquinhos, de hemorragia e infecção, tal qual dom Fernão morrera. Esteban sabia de tudo isso e queria ao máximo evitar essa morte horrenda. Por isso, ajudara-a a fugir. Mas agora, as coisas poderiam se complicar para ele. Sentiu medo do que Miguez pudesse fazer. Por mais amigo que fosse ele estava com raiva, e a raiva costuma levar as pessoas aos atos mais extremos. Ainda que se arrependesse depois, Miguez poderia fazer algo que o comprometesse seriamente. Mesmo que não fosse levado ao Tribunal, sua honra seria maculada, e talvez até o papa o destituísse de suas funções inquisitoriais. Aquilo seria a ruína, uma ruína que precisava evitar. Tomou uma resolução. Gostava demais de Giselle, mas alertara-a seriamente das conseqüências de sua insensatez. Por várias vezes a advertira de que não poderia ajudá-la. Ainda assim, tentara. Só que agora, as coisas estavam fugindo ao seu controle. Miguez lhe fazia ameaças veladas, e ele precisava pensar em si próprio. Levantou-se e foi para o Tribunal. Miguez estava reunido com outros inquisidores, discutindo onde mais poderiam encontrar Giselle, quando Esteban entrou. Os outros o olharam de soslaio, ninguém tinha coragem de insinuar nada. Nem Miguez fizera qualquer insinuação. Aquilo deveria ficar entre eles. Com um aceno de cabeça, Esteban cumprimentou-os. Miguez pediu licença aos demais e saiu com ele para o pátio externo.
- Então? - indagou com ar intimidador. - Pensou bem no que lhe disse?
Esteban olhou o outro bem fundo nos olhos e respondeu com voz grave:
- Sim. E já tomei a minha decisão.
- Muito bem. Qual foi?
- Se mandar os homens atrás de Giselle, promete não fazer mais perguntas?
- Prometo.
- Não vai querer saber como ela saiu da masmorra nem quem a ajudou?
- Não. Pode confiar em mim. Você tem a minha palavra. Entendo o seu gesto e não vou acusá-lo, contudo, não posso permitir-me perder a mulher que mais odiei em toda a minha vida. Só o que quero é Giselle de volta. Ela agora me pertence!
Falou isso com tanto ódio, que Esteban sentiu um calafrio. Lamentava muito por Giselle, mas não tinha como salvá-la. Com um suspiro de profundo pesar, finalizou:
- Está certo. Aceito a sua palavra. Deixe tudo comigo e não faça perguntas.
Esteban reuniu os soldados e deu-lhes a indicação do local onde Giselle estaria seguindo as orientações que Diego lhe dera. O barco foi interceptado ainda no porto, e alguns soldados embarcaram. Tudo foi feito com muita rapidez, pois o dia marcado para o encontro já estava bem próximo. Os homens de Esteban se colocaram dentro da gruta que dava na pequena praia por onde Giselle supostamente desceria para esperar o barco. Com os ventos e a chuva, o mar havia se tornado extremamente agitado, com ondas rebentando gigantescas nas rochas diante do promontório. Quando Giselle terminou de descer a colina e alcançou a praia, a chuva havia dado uma trégua, e ela estudou com assombro o local em que estava. Era uma garganta estreita, perfeita para uma emboscada. Sentiu medo, mas não viu outra solução. Enchendo-se de coragem, começou a subir pelas pedras, rumo à faixa estreita que ladeava o penhasco e adentrava o mar. Foi quando ouviu um ruído e olhou. Saindo de dentro da gruta, dezenas de homens vinham em sua direção, espadas em punho, prontos para matar. Vendo-se sem saída, Giselle começou a arrastar-se pelas pedras, tentando ultrapassar a montanha e alcançar a plataforma que se erguia na ponta do cabo, alguns metros acima do mar revolto. Era perigoso, mas não podia se deixar pegar. Os homens de Esteban saíram em seu encalço, ao mesmo tempo em que flechas começaram a zunir diante de seus olhos. De repente, um dos soldados se adiantou e pôs-se a segui-la, enfrentando as vagas que espocavam nas rochas. O homem ainda se lembrava das ordens que Esteban lhe dera antes de sair de Sevilha:
- Mate-a. Acerte uma flecha em seu coração. Mas seja rápido. Não quero que ela sofra.
Acertá-la, era impossível. O vento não permitia que as flechas a atingissem, e a única solução seria alcançá-la e levá-la de volta. Ordenaria então uma execução rápida e depois diria que ela tentara fugir. Monsenhor Navarro não queria que ela sofresse, e ele faria tudo rapidamente.
Mas o mar, atiçado pela fúria da tempestade que desabara durante toda a noite, não estava ajudando. Nem a ele, nem a Giselle. Em dado momento, seus dedos chegaram a roçar os dela, mas as ondas foram mais rápidas. De repente, um imenso vagalhão a atingiu, e Giselle foi arrastada para o fundo do mar. O soldado ainda tentou segurá-la, mas em vão. A espuma das ondas logo a encobriu, e Giselle foi tragada pela água cinza e revolta. Por pouco, ele não fora também. Melhor, pensou. Assim não teria que correr o risco de padre Miguez não acreditar na sua palavra. Ele a queria viva para a Virgem e talvez não se convencesse de que ele tivera que matá-la para que ela não fugisse. Durante muito tempo, ficou olhando para a espuma branca do mar, agarrado à pedra, com medo até de se mover. Ainda precisava fazer o caminho de volta, o que não seria nada fácil. Se por terra a caminhada era difícil, na água então, seria impossível salvar-se. Giselle, àquela altura, já se encontrava no fundo do mar, e não havia nada que ele pudesse fazer para salvá-la. Todos os soldados foram testemunhas de que ele tentara levá-la de volta, mas o mar fora mais forte. Fizera todo o possível para tirá-la dali, mas ninguém tinha forças contra a fúria das ondas. Ninguém desconfiou das ordens de Esteban. O soldado, tampouco, nada dissera, e Miguez sentiu imensa decepção ao receber a notícia de que Giselle morrera tragada pelas ondas. Esteban, por sua vez, embora se entristecesse, sentiu-se aliviado por vê-la livre daquela morte indigna e cruel. Naquela noite, depois que recebeu a notícia, Miguez voltou para junto de Lucena cabisbaixo. O que iria lhe dizer? Abriu a porta vagarosamente e sentou-se na sala. Imediatamente, Lucena se aproximou e foi logo perguntando:
- E então? Encontraram-na?
- Sim...
- Excelente...! - só então percebeu o seu olhar de angústia e indagou alarmada: - O que foi que houve? Ela conseguiu fugir?
- Pior. Ela morreu.
- Morreu? Como?
- Tentou fugir e caiu no mar.
Lucena sentiu raiva e uma grande frustração. Não era aquilo que esperava para Giselle. Queria assistir a sua morte lenta, assim como fora obrigada a acompanhar os estertores de seu pai. Mas até isso ela lhe tomara. Roubara-lhe a chance de exultar ante a sua agonia.
- Cadela! - vociferou Lucena, com ódio. - Até na morte ela me vence.
- Não diga isso, Lucena. Você a venceu. Tomou-lhe tudo. E depois, ela está morta. Você não. Está viva. Pense nisso, Lucena. Você está viva!
Um sorriso diabólico desenhou-se no rosto de Lucena, que tornou com voz mordaz:
- Tem razão. Não vou deixar que a sua morte prematura me roube à alegria da vitória. Em breve poderei reabrir sua taverna, e Manuela continuará a trabalhar lá. Só que para mim.
- Tem certeza de que é isso o que quer? Cuidar da taverna?
- Quero possuir e usufruir de tudo o que lhe pertenceu. Estou até pensando em me mudar para a casa que foi dela. Creio que ninguém mais pensa em Blanca, todos a julgam mesmo morta. Ninguém vai suspeitar que ela esteja viva e morando comigo.
Embora não houvesse conseguido completar a sua vingança, Lucena ficou satisfeita. Tudo o que um dia fora de Giselle agora lhe pertencia. A única coisa que não conseguira lhe tomar fora sua alma.

EPÍLOGO

Finalmente, quando Giselle, emergiu das águas, inspirou avidamente, embora estivesse certa de que vira seu corpo ser arrastado pela correnteza. Talvez houvesse desmaiado por instantes e seu corpo tivesse flutuado até a superfície, o que lhe deixou aquela sensação esquisita. Ela havia trabalhado com muitos espíritos, mas estava certa de que o mundo invisível não poderia ser nada parecido com aquele. Afinal, ainda respirava. Só então se deu conta de que continuava sendo levada pela correnteza e notou que não havia terra por perto. Como pudera ter sido arremessada tão longe? Ao menos se livrara dos soldados e dos arqueiros, mas ainda não sabia como faria para voltar. Pelos seus cálculos, devia estar muito longe do litoral, e nadar seria impossível. Nem sabia para que lado devesse ir.
Foi quando percebeu uma luminosidade vinda do alto e olhou para cima. Parado um pouco acima de sua cabeça, um homem flutuava, envolto em suave luz branca. Giselle tomou um susto, mas fixou o olhar, tentando identificar de onde o conhecia. Ele foi se aproximando e colocou-se a sua frente, ainda flutuando alguns centímetros acima do mar. Ela o encarou por alguns minutos e, de repente, tudo se fez claro. Quem estava ali era seu pai, e seu olhar bondoso lhe dizia que viera para cumprir a promessa que lhe fizera de ir buscá-la quando desencarnasse. Giselle levou um susto. Naquele momento, vendo o olhar compreensivo do pai, teve certeza de que havia desencarnado, e ele ali estava mãos estendidas, pronto para puxá-la da água. Logo que Giselle pensou em segurar a sua mão, a lembrança de todos os seus crimes aflorou a sua mente. Na mesma hora, puxou a mão, envergonhada, e abaixou os olhos. Não era digna daquela bênção. No exato instante em que aquele pensamento perpassou a sua mente, sentiu que uma horda enegrecida a ia envolvendo. Ainda assim, levantou os olhos timidamente para o pai, que a olhava com bondade, ainda com as mãos estendidas, num convite mudo e suave para que ela o seguisse. Era o que ela mais queria. Já sofrerá tanto! Queria muito partir com seu pai para o mundo que ele habitava. Com certeza, se os anjos e santos viviam em algum lugar, era lá que seu pai estaria. Sentindo o desejo sincero de Giselle, a horda se afastou temerosa. Eram espíritos das sombras, muitos dos quais haviam deixado a carne envoltos em ódio e desejo de vingança, levados à morte pelas palavras traiçoeiras de Giselle. Outros eram espíritos ignorantes que, durante muitos anos, acorreram aos chamados de Giselle, todas as vezes que ela lhes fazia aquelas oferendas macabras na floresta. Mas todos estavam unidos num só propósito: arrastar Giselle para as cavernas mais sombrias do astral inferior. Por maior que fosse o seu poder das trevas, nenhum desses espíritos era forte o suficiente para enfrentar o poder da luz. Diante de um ser iluminado feito Ian, eles se sentiam intimidados e ameaçados, e não tinham coragem nem força para retirar Giselle de sua presença. Só o que podiam fazer era esperar até que Giselle se decidisse. Se resolvesse partir com Ian, eles nada poderiam fazer. Contudo, se não conseguisse vencer o pensamento secreto que a culpa lhe trouxera de que deveria ser punida, ela mesma acabaria se colocando nas mãos deles e não teria força suficiente para acreditar que não precisava habitar as trevas. A hesitação durou alguns minutos. Giselle oscilava entre o desejo sincero de se perdoar e a culpa que a atormentava, e tanto Ian quanto os outros permaneceram em silenciosa expectativa. A malta, louca para avançar sobre ela. Ian, em oração, tentava alcançar o coração da filha e dizer-lhe que não havia crime que não merecesse perdão. Mas a culpa de Giselle impediu o acesso dos pensamentos do pai e criou uma barreira invisível, fazendo com que ela acreditasse que não era digna de perdão. Nem dos que prejudicara, nem de si mesma. Assim, abaixou a cabeça novamente e chorou de mansinho, coração oprimido pela culpa, rompendo o elo poderoso que se havia estabelecido entre ela e o pai. Na mesma hora, ele foi-se desvanecendo diante de seus olhos, e Giselle, ligada agora aos espíritos das trevas, cerrou os olhos e sentiu todo o peso do remorso a lhe corroer a alma, martelando em sua cabeça que nenhum réprobo feito ela podia pretender tocar os pés de um espírito de luz. Imediatamente, Giselle sentiu-se de novo envolvida por aquela horda e foi sugada para o fundo do mar por dezenas de mãos que a seguravam impiedosas. Num gesto desesperado e aturdido, olhou de novo para cima, e a última coisa de que pôde se lembrar foi da claridade do dia, que inundava a superfície, sendo apagada à medida que ela descia para as profundezas do mar. Durante muitos anos, Giselle permaneceu no astral inferior, presa àqueles mesmos espíritos que ajudara a destruir. Dentre eles, dom Fernão era o mais assustador. Adquirira um ar de fera e não se cansava de lhe infligir toda sorte de torturas. Aos poucos, ele foi ganhando força e poder, e acabou conquistando uma posição invejável dentro da hierarquia das trevas. Mas não há trevas que não se dissipem, assim como não há culpa que não alcance o perdão. Os muitos anos de sofrimento no umbral trouxeram a Giselle o desejo de se perdoar e se modificar. Queria muito sair dali e reencontrar o pai. Nunca mais vira nem Rúbia, nem Ramon, nem Esteban. Giselle se sentia extremamente só. Não queria mais fazer parte daquele mundo de lama e de sombras. Em silêncio, orou aos céus, pedindo a Deus que permitisse que seu pai fosse ajudá-la novamente. Após a sincera oração, a luz se fez presente ao seu redor, e Ian tornou a aparecer envolto no mesmo halo de luz branca em que se acostumara a vê-lo. Giselle chorou por longos minutos, com medo de se aproximar. Mas Ian, tocado pelo seu sentimento, aproximou-se e estendeu-lhe a mão. Giselle a tomou timidamente, e o pai a envolveu num abraço amoroso e confortador. Cabeça encostada em seu peito, Giselle chorou. Não conseguia falar. Ian compreendeu o seu pranto sofrido e alisou os seus cabelos. Em seguida, passou a mão sobre a sua testa, e Giselle foi sentindo uma leve e suave sonolência, suas pálpebras foram pesando, e ela sentiu que o corpo todo amolecia nos braços do pai. Adormeceu profundamente, e Ian a envolveu novamente, volitando com ela em direção ao céu estrelado. Quando despertou, foi com alegria que Ian a recebeu.
- Como está, minha filha? - perguntou ele, acariciando seu rosto.
Giselle ficou olhando para ele por alguns minutos, sentindo os olhos úmidos de lágrimas. Apanhou a sua mão e beijou-a com fervor, falando entre soluços:
- Sinto-me bem, pai. Parece que renasci.
- E renasceu mesmo. Você hoje experimenta uma nova vida. Não porque esteja livre das trevas. Mas porque a sua alma não pertence mais àquele lugar.
- Oh! Pai! Por que tive que ser tão má?
- Não diga isso, Giselle. Ninguém no mundo é mau. Os que erram, o fazem por ignorância.
Giselle pensou durante alguns segundos, com olhar entristecido, até que retrucou:
- E os outros? O que foi feito deles?
- Assim como você, estão tentando entender. Sei que você está querendo é saber de Ramon. Fique sossegada. Ele está por perto e, em breve, poderá vê-lo - Ian fingiu não notar o rubor que lhe subia às faces e prosseguiu: - Esteban também veio para cá, após longo período de desespero nas trevas...
- Esteban... Durante todo o tempo em que permaneci nas trevas, jamais o encontrei.
- Isso porque a sua consciência ainda o atormenta muito, principalmente no que se refere a você. Não teve coragem de encará-la e amargou muitas culpas, mas agora se mostra arrependido e pede uma nova chance para se modificar.
- E Rúbia?
- Rúbia está muito bem. Está encarnada no momento, tentando ajudar Diego em suas relações com o mundo material. Ele ainda é muito apegado aos falsos valores da riqueza e dos prazeres fáceis.
Giselle silenciou novamente, com medo de fazer novas perguntas, temendo respostas que não sabia se estava pronta para ouvir.
- E... Os meus inimigos?
Com um sorriso entristecido, Ian respondeu:
- Lamentavelmente, alguns, como Lucena, Miguez e Fernão, ainda se julgam seus desafetos e alimentam desejos de vingança.
- Sei disso - tornou acabrunhada, sentindo um calafrio. - Ainda guardo vivas na lembrança as torturas que gostavam de me infligir. Foi difícil escapar de sua vigilância e da prisão em que encerraram meu espírito.
- Nem tão difícil. No momento exato em que você desejou isso de coração, a ajuda concretizou-se veloz. E você foi logo socorrida e trazida para cá.
- Imagino que eles devam estar inconformados. Sabem onde estou?
- Fazem uma idéia. E essa idéia os fez pensar. Miguez e Lucena estão a um passo de vislumbrar a luz da verdade e já começam a se questionar sobre tudo o que lhes aconteceu. Quanto a dom Fernão... Bem, ele ainda está renitente em seus propósitos de vingança e ódio. Não se conforma de havê-la perdido, e creio que vai levar ainda alguns anos até que abandone o importante cargo que ocupa na hierarquia das trevas. É muito difícil, minha filha, para os espíritos que conquistam importância nas trevas desapegarem-se de seu poder. Vivem na ilusão do poder e do orgulho e não querem perder essa posição, porque sabem que, do lado da luz, não existem cargos mais ou menos importantes do que outros. Todos são iguais em importância.
- E Blanca?
- Blanca é uma alma nobre. Foi muito bem recebida aqui e hoje trabalha auxiliando os espíritos que desencarnam nos autos de fé e nas rodas de tortura.
- O mundo ainda está nas mãos da Inquisição? - indagou perplexa.
- Lamentavelmente, minha filha, a Inquisição ainda há de reinar por mais alguns anos.
- Por que, pai? Por que tanto sofrimento?
- Nada no mundo acontece por acaso. A Inquisição, assim como as guerras e outras catástrofes, serve a um propósito divino. Muitos espíritos a ela acorreram na tentativa de compreender e refazer atitudes do passado, experimentando situações semelhantes àquelas nas quais se viram envolvidos por seus instintos mais primitivos. De um lado e de outro, há espíritos comprometidos com os horrores das muitas guerras, das arenas, dos sacrifícios. Vítimas e algozes lutam para compreender o valor do amor, do respeito e do perdão. São espíritos infantis, que apenas agem de acordo com o estágio de evolução em que se encontra a humanidade.
- A humanidade parece ainda estar bem longe da evolução.
- A humanidade caminha para o crescimento. Desde que o homem pisou na Terra pela primeira vez, vem lutando para evoluir, em todos os sentidos. Existem muitas diferenças entre o homem de hoje e o da pré-história, por exemplo. O homem de ontem não conhecia o fogo, o ferro, a espada. Também não sabia o que era amor, amizade, perdão. Vivia por seus instintos e para seus instintos. Se alguém o ameaçava, respondia com violência e agressão. Matava-se porque não se conhecia o valor da vida alheia, mas apenas o de sua própria vida. O homem de hoje, apesar de ainda guardar muito desse primitivismo, já foi se socializando e criou normas que o auxiliam a conviver com seus semelhantes. Só que o egocentrismo ainda perdura, trazendo a sede de poder, e falsos valores de moral e religiosidade imperam na mentalidade humana. Deus não quer a morte de suas criaturas. Quer que elas aprendam a se amar. Ninguém precisa matar para defender o nome de Deus, porque Ele é inatingível pelos atos humanos. Porque é amor em essência, e o amor tudo compreende e perdoa não se ressentindo das atitudes infantis de quem ainda não conhece os verdadeiros valores do espírito. Mesmo que você o repudie ou o ofenda, Deus jamais se zangará ou a punirá. Ao contrário, lhe enviará cada vez mais ondas vibrantes de amor, para que você possa despertar o amor dentro de você e crescer.
- Mas por que tem que ser assim? Por que precisamos errar e sofrer para aprender a amar?
- Ninguém precisa errar muito menos sofrer. O amor precisa ser despertado e estimulado, porque já existe em essência dentro de cada um de nós.
- É, mas hoje sei que o que fiz não foi certo. Minha consciência me acusa de meus crimes a todo instante. Como poderei não sofrer para pagar por tudo o que fiz?
- Se você consegue compreender a razão de seus atos, não precisa sofrer. Quanto a pagar, essa é uma compreensão errada das verdades divinas. Ninguém deve nada a ninguém, a não ser a si mesmo. Não é só porque você matou que vai precisar morrer. Vai morrer se quiser. Mas, se conseguir entender por que matou, libertando-se da culpa e se perdoando, não vai precisar ser assassinada por ninguém. Ao contrário, vai buscar caminhos mais úteis, salvando vidas, por exemplo, devolvendo ao mundo aquilo que ajudou a tomar.
- Como fazer isso, pai? A culpa é um tormento...
- É verdade. Mas precisamos aprender a nos libertar dela.
- Não é tão fácil. Ainda que eu consiga me perdoar, como obter o perdão daqueles que prejudiquei?
- Se você se perdoar de verdade, nenhum espírito conseguirá atingi-la, e você servirá de exemplo para que ele a perdoe também. Mas não se iluda Giselle. Perdoar os nossos inimigos é muito mais fácil do que perdoar a nós mesmos. Nós passamos pela vida com a intenção de aprender, mas todo aprendizado não deve passar só pela mente. É preciso que adentre o coração. Quando você racionaliza, é como se decorasse a lição e a repetisse, simplesmente porque aprendeu daquele jeito. Mas quando aquele ensinamento se abriga no coração, é porque você alcançou a compreensão verdadeira e não vai mais precisar repetir para se convencer. Aquela experiência, além de desnecessária, já não é mais útil para você.
- É isso o que o mundo está tentando aprender?
- Esse é um momento de transição, onde muitos espíritos receberam a chance de se libertar da animalidade e dar um salto para o futuro. Mas muitos ainda não estão prontos e não conseguem se desprender dos sentimentos mais primitivos, como o ódio, o orgulho, a vingança. São espíritos ainda muito egocêntricos, porque só o que conseguem desejar são o seu próprio bem-estar e o daqueles que lhes são mais caros. Mas ainda não conseguiram internalizar a necessidade do bem comum. Não sabem ainda reconhecer em seus semelhantes os mesmos sentimentos que também possuem. São como feras que matam para sobreviver. Por maldade? Não, por instinto. Porque, para elas, a única coisa que importa no mundo é a sua sobrevivência. Ninguém pode acusar um leão de crueldade, porque a única forma que ele conhece de saciar a sua fome é matando. Matar é da sua natureza.
- Um leão será sempre um leão. Não tem inteligência, não tem raciocínio.
- Mas a alma animal que nele habita, um dia, vai encontrar um novo jeito de se manifestar e se apresentar ao mundo, e vai retornar em outro corpo mais evoluído. A lei de evolução é eterna, e a vida que anima o leão também é impulsionada para evoluir. Quando isso acontecer, ela deixará de ser leão e voltará numa forma felídea já mais adiantada. A espécie, contudo, continuará existindo, para que muitas outras formas de vida animal, que abandonaram formas ainda inferiores, possam vivenciar aquela nova experiência, até que alcancem a compreensão e a maturidade que aquele instrumento busca lhes dar. Terão então conquistado novo aprendizado, importante para o grupo do qual fazem parte, e continuarão indo e vindo, trocando de forma, até que um dia estarão aptos à individualização.
- E os homens?
- Evoluem até que alcancem a perfeição relativa que é própria deste mundo. Um homem será sempre um homem, mas, diversamente dos animais, se utiliza da mesma forma física em seus processos de evolução. O espírito que anima a forma nominal, ao desencarnar e reencarnar continuará assumindo a forma humana, mas terá evoluído algo de seu intelecto e de sua moral. O homem já está apto a raciocinar e sentir, é um ser individualizado, consciente de si mesmo, embora ligado ao todo do qual escolhesse fazer parte. Quando um homem aprende, está auxiliando no aprendizado de toda humanidade. As novas idéias surgem dos grandes gênios, mas as suas obras não permanecem reclusas no seu estreito limite de existência. Ao contrário, saem para o mundo e passam a pertencer a toda humanidade.
Giselle permaneceu algum tempo pensando. Havia tantas coisas que não conseguia entender! Mesmo as palavras de seu pai soavam estranhas para ela. Entretanto, uma coisa havia compreendido: a necessidade de aprender os verdadeiros valores do espírito. Não queria mais permanecer nas trevas da ignorância, agindo como um animal em busca da satisfação de seus instintos.
- O que poderei fazer para me modificar? Prejudiquei muitas pessoas com a minha ignorância pai, e sinto necessidade de auxiliar no crescimento da humanidade. Queria devolver ao mundo o que ajudei a tirar de tantas pessoas, muitas, de cujos rostos nem consigo mais me lembrar.
- Seu coração está sentindo a necessidade de crescer, e isso é muito bom. Mas não se apresse. Estude com calma as possibilidades e trace planos para o futuro. Mas lembre-se: há pessoas que conviveram com você e com as quais você terá que se entender. Será que, quanto a elas, esse desejo ainda perdura?
- Não sei... Não havia pensado nisso.
- Pois pense. Planeje sua próxima reencarnação tendo em vista a necessidade de perdão e de aprimoramento. Você ainda não se perdoou Giselle, e sabe disso. E a culpa poderá ser um entrave ao seu crescimento.
- Creio que tem razão, pai. Mas o que poderei fazer? Não quero continuar carregando esse peso.
- Por isso é que lhe disse para pensar. Projete a sua vida futura em três níveis: um individual, outro coletivo e outro universal. Trabalhe a sua individualidade, analisando seus sentimentos, os seus processos de dor e de culpa, os seus desejos e tudo o mais que se refira somente a você. Seja sempre sincera consigo mesma e procure não mistificar a sua essência. Além disso, integre-se ao grupo no qual escolher nascer. Aprenda a ser filha, mãe, esposa, amiga. Vivencie todas essas posições tendo em vista as suas necessidades e a de seus semelhantes, sem abrir mão do que lhe pertence, mas sem desrespeitar o que não é seu. Saiba reconhecer o seu direito e o direito alheio, e procure compreender aqueles que não conseguirem alcançar os mesmos valores que você. Eles não serão nem melhores nem piores do que você. Apenas poderão estar em outro nível de compreensão, no qual você, fatalmente, um dia também já esteve. E, como é de seu desejo, escolha uma atividade voltada para o mundo em geral. Seja médica, religiosa, professora, artista. O que você quiser e o que mais lhe agradar. Mas faça algo que atinja várias pessoas, pessoas desconhecidas que poderão se beneficiar de suas obras. Agindo assim, você estará colaborando mais diretamente com o universo, levando às muitas almas aquilo de que elas mais necessitam: alívio, carinho, conhecimento, beleza... E sua ajuda será imparcial, porque voltada para aqueles que você nem conhece. Assim como você tirou dos que não conhecia, poderá estar auxiliando esses mesmos desconhecidos naquilo que lhes for mais necessário no momento.
As palavras de Ian tocaram fundo o coração de Giselle. Ela possuía consciência do quanto ainda era primitiva e desejava mudar. Sabia que muitos de seus antigos companheiros estariam imbuídos dos mesmos propósitos, mas outros não conseguiriam compreender e permaneceriam ainda atados ao ódio e à vingança. Mesmo assim, estava disposta a tentar. Se não conseguisse, tentaria de novo, e de novo, e de novo. Até que estivesse pronta para realmente dar um passo à frente e evoluir. Finalmente, estava em paz com o seu coração...



1




MÔNICA DE CASTRO

EM


COM O AMOR NÃO SE BRINCA



(Ditado por Leonel_Dez 2002_355 Pág.)




Para meus sobrinhos, Fernando e Felipe,
Filhos do meu coração.


Sinopse:

Há quem diga que o amor é à base de tudo, porém eles se esquecem que:
Há os que se anulam em nome do amor e acabam abandonados.
Há os que investem tudo nos outros acreditando que serão correspondidos e vivem reclamando do egoísmo alheio.
Há os que sonham com um amor perfeito, pretendem encaixar o ser amado nesse modelo e acabam descobrindo que cada um é como é e não temos poder para mudar ninguém.
Há os que confundem paixão com amor. Não percebe que paixão é admirar no outro o que recalca em si. Quando a ilusão projetiva desaparece percebemos o ridículo dos nossos atos apaixonados.
Há os que confundem apego com amor. São egoístas que esperam do outro exatamente o que não se dão.
O amor verdadeiro nunca faz sofrer. Traz alegria, motivação e prazer, agindo sempre com seu poder de harmonizar as relações humanas.
Quando ser feliz, passa a ser um objetivo sério nós logo percebemos que COM O AMOR NÃO SE BRINCA.

Zibia Gasparetto


CAPÍTULO 1

O dia amanheceu chuvoso e frio, mas todos estavam de pé logo cedo, prontos para seguir a urna funerária até o pequeno cemitério da fazenda, onde Licurgo seria enterrado ao lado da filha, Aline, e do genro, Cirilo. O cortejo seguia em silêncio, Palmira estampando no semblante toda a dor e a tristeza de haver perdido o companheiro de tantos anos. A seu lado, os filhos, Fausto e Rodolfo, tentavam ampará-la e consolá-la da melhor forma possível. Um pouco mais atrás, Camila, filha de seu primeiro casamento, ia cabisbaixa ao lado do marido e dos filhos, Dário e Túlio, talvez recordando as agruras por que passara naquelas terras. Junto de Palmira, sua irmã, Zuleica, já bastante idosa, seguia de braços dados com a filha Berenice.
Ao fundo, Terêncio, o capataz, chorava em silêncio. Amara seu Licurgo e sentiria muito sua falta. Sabia que nem todos ali gostavam dele e muita coisa ele já fizera a seu serviço, mas Licurgo sempre estivera a seu lado, protegendo-o e defendendo-o, até da própria filha. Mas agora, o que seria dele? Já estava velho também. O que faria se o mandassem embora? Abaixou a cabeça e começou a chorar, até que sentiu uma mão pousar sobre seu ombro e virou-se bruscamente. Era Aldo, o outro capataz, que lhe sorriu compreensivo. Ele respondeu ao sorriso com outro, meio sem jeito, e desvencilhou-se do companheiro, indo postar-se bem atrás de dona Palmira.
Parada um pouco mais além, uma mulher ocultava o rosto no manto de veludo negro e puído que lhe caía sobre as costas. Assistia a tudo à distância, e apenas seus olhos eram visíveis. Havia muita gente no enterro, e ninguém lhe prestou atenção. Apenas Terêncio, ao passar por ela, fitou seu rosto, e uma sombra de reconhecimento perpassou-lhe a mente. Aquela mulher era-lhe familiar, mas não se lembrava de onde a conhecia. No entanto, aqueles olhos... Onde já vira aqueles olhos escuros, de um verde quase cinzento?
Terminada a cerimônia fúnebre, todos voltaram para casa, e Palmira ia pensando em sua vida. O marido morrera já bem idoso e lhe deixara dois filhos maravilhosos. Olhando para eles, sentiu um aperto no coração. Eram gêmeos idênticos, e ela quase morrera ao dá-los à luz. Lembrou-se do parto difícil que tivera e do dilema para amamentá-los, tendo que contar com o leite de Tonha para não matar seus meninos de fome.
Assim como Palmira, a negra Tonha também tivera um parto dificílimo, e a criança, pobrezinha, não resistira. Josefa e a velha Maria, antigas escravas da fazenda, tudo fizeram para salvá-lo, mas o pequeno nascera mesmo sem vida. Tonha erguera o corpo do filhinho morto e chorara. Fora melhor assim. Ao menos a criança não teria o desgosto de viver como escrava. Seu filho nascera livre. Ao morrer, sua alma se libertara, e ele jamais conheceria o peso da chibata.
Por uma estranha coincidência, Palmira estava para dar à luz na mesma época em que Tonha. Quatro dias depois do bebê de Tonha nascer, quando ela já havia voltado para a senzala, sentindo ainda as dores do parto, Palmira começara a sentir contrações, e a parteira fora chamada às pressas. Palmira tivera gêmeos e precisava de uma ama-de-leite para alimentá-los. Mandaram chamar Josefa, indagando-lhe quem tivera filhos pela mesma época, que pudesse amamentar os pequenos. Contavam com uma negra forte e robusta, de nome Jacinta, que tivera filho poucos dias antes. Jacinta, no entanto, não resistira ao parto e morrera. Josefa, acabrunhada, respondera:
— Sinto muito, sinhá, mas a única escrava assim é Tonha. Jacinta teve criança, mas morreu...
— Tonha? Não quero aquela negra nojenta.
— Então, a sinhá me desculpe, mas não tem outra, não.
— Não é possível que ninguém mais tenha dado cria por esses dias - objetara Licurgo.
— Não deu não, sinhô. Tenho certeza.
— E agora, Licurgo - considerara Palmira -, o que vamos fazer? Não tenho leite para os meninos.
Josefa abaixara os olhos, à espera que lhe dissessem o que fazer. Licurgo mandara que saísse e esperasse na cozinha. Resolveriam e, então, mandariam chamá-la. Logo que ela saíra, Palmira voltara-se para o marido e exclamara:
— Não vou aceitar o leite daquela negra assassina!
— Palmira, pense bem. A idéia também não me agrada, mas não temos escolha. Nenhuma outra escrava deu cria por esses dias, só Tonha.
— Não, não quero. Mande Terêncio à vila comprar uma escrava leiteira.
— Mas, minha querida, e se não houver nenhuma à venda?
— Então, mande-o à vila vizinha. E mande Aldo à outra. Alguém há de encontrar uma ama-de-leite.
— E enquanto isso, nossos filhos morrem de fome? Pense bem, Palmira, uma escrava leiteira não é assim tão fácil de encontrar. E isso pode levar dias.
— Oh! Licurgo, por que não pensou nisso antes de nossos filhos nascerem?
— Eu pensei. Jacinta seria nossa ama-de-leite, mas teve que morrer. Que azar!
— E agora?
— Sinto muito, meu bem, mas não vejo outra saída. Temos que chamar Tonha.
— Já disse que não quero aquela negra. Perdemos três filhos por causa dela, não haveremos de perder outros dois.
— Palmira, seja razoável. Na verdade, sabemos que Tonha não matou ninguém.
— Como é que sabe? Afinal, só ela sobreviveu. Não acha isso estranho?
— Por que ela faria isso? Estava apaixonada, ganharia a liberdade. Não vê que isso não faz sentido?
— Não sei. Vingança. Como vou saber o que se passa no coração desses negros ingratos? Não, meu caro, desculpe, mas tenho todos os motivos do mundo para odiá-la e não a querer perto de nossos filhos.
Licurgo, durante alguns segundos, estacara e ficara olhando para a mulher. Não fazia nem um ano que perdera Aline, sua filha, e lembrava-se de tudo como se fosse ontem. Lembrava-se de que dera Tonha de presente a Aline quando ela era ainda menina, e que a escrava passara a ser sua protegida. As meninas cresceram juntas e, por uma cruel ironia do destino, Inácio, sobrinho de Palmira, por ela criado como se fosse seu próprio filho, acabara se apaixonando pela negra Tonha, com quem mantivera sigiloso romance. Aline, por sua vez, casara-se com Cirilo, filho do primeiro casamento de Palmira e irmão de Camila. Contudo, Constância...
Ele se lembrava bem de Constância. Uma moça linda, filha, de Zuleica, irmã de Palmira, era uma das preferidas no coração da mulher. Constância também se apaixonara por Inácio e tudo fizera para afastá-lo de Tonha. Não fosse seu ódio por Aline também, e ele, Licurgo, nem teria se importado com suas maldades para com a escrava. Mas Constância pretendia atingir também Aline, e isso ele não podia permitir, e acabara por expulsá-la dali. Depois, soubera que a moça voltara para a corte e que fugira logo após o casamento de Aline. Para onde fora? Ninguém o sabia.
Os olhos de Licurgo encheram-se de lágrimas quando se lembrara da noite de núpcias da filha. Ele fora chamado às pressas por causa de um incêndio na fazenda Ouro Velho, para onde ela e Cirilo haviam ido, juntamente com Tonha e Inácio. Inexplicavelmente, um incêndio começara, talvez por causa de um monte de palha seca deixado sob a janela do quarto dos noivos. O incêndio destruíra toda a ala sul da mansão, e Aline, Cirilo e Inácio padeceram sob as chamas. Apenas Tonha se salvara. Disseram-lhe que Aline, tentando salvar a negra, empurrara-a para fora do quarto no exato instante em que uma pesada viga desabara sobre ela. Fora uma tragédia horrível, e só Tonha sobrevivera.
Pensando nisso, Licurgo não podia recriminar Palmira. Fora muito estranho, era verdade, e ele quase mandara matar a negra. Em vez disso, optara por fazê-la sofrer todas as dores e humilhações de sua condição de escrava, atirada na senzala, experimentando na carne a ponta afiada do chicote.
Voltando à realidade, Licurgo considerara:
— Eu sei. Não tiro seus motivos. Em todo caso, não acredito que tenha sido ela. E depois, creio que ela já pagou um preço muito alto por seu atrevimento. Vamos, Palmira, reconsidere, pelo amor de Deus! As crianças estão famintas e precisam de leite. Ou quer que elas morram de fome?
Ao ouvir isso, Palmira não teve outro remédio senão aceitar o leite de Tonha. Afinal, era uma escrava e estaria apenas cumprindo suas ordens. Desse dia em diante, Tonha abandonara a senzala e voltara para dentro de casa, alojando-se no quarto dos meninos. Seria responsável por sua criação, mas que não contasse com favores especiais. Cumpriria seu dever com zelo e perfeição, porque era uma escrava e devia obediência a seus senhores. Mas não fosse esperando tratamento especial por causa disso. Ela fora chamada apenas porque as crianças precisavam de leite, e não por uma deferência ou preferência pessoal. Era apenas um dever que tinha a cumprir, e Palmira esperava que ela o desempenhasse da melhor forma possível. Caso contrário voltaria para a senzala, não sem antes passar pelo tronco.
Assim, Tonha passara a ama-seca dos meninos. A princípio, seria responsável por eles apenas durante o período de amamentação e, logo em seguida, voltaria para a senzala. No entanto, Tonha desvelara-se em atenção e carinhos para com Fausto e Rodolfo, e os meninos acabaram se apegando a ela. Embora Palmira e Licurgo tudo tivessem feito para levá-la de volta à senzala, o fato é que as crianças viviam a chamá-la e só iam para a cama se ela fosse junto, para contar-lhes as histórias maravilhosas que conhecia. Palmira não deixara de sentir uma pontadinha de ciúmes, mas acabara cedendo à vontade dos filhos, e Tonha fora ficando. Mesmo depois que cresceram, ela continuara como escrava de dentro, substituindo a velha Josefa, que falecera alguns anos antes.
Nesse ponto, alcançaram à casa grande, e Palmira pediu licença para se retirar. Estava cansada e precisava repousar. Afinal, já ultrapassara os setenta anos e as fortes emoções dos últimos dias acabaram por deixá-la extremamente fatigada. Já ia subindo as escadas quando ouviu a voz da filha atrás de si:
— Quer que lhe faça companhia, mamãe?
— Não, Camila, obrigada. Preciso ficar sozinha um pouco.
Subiu vagarosamente. A cada degrau que avançava, ia pensando na filha. Camila fora uma moça bonita e inteligente, embora sem juízo algum. Perdera a honra para um canalha de nome Virgílio, a mando de Basílio, um antigo namorado, que armara uma trama para levá-la ao altar, só para ficar com seu dinheiro. Mas Camila, para surpresa geral, não aceitara desposá-lo, optando por entregar a vida a Deus e enclausurando-se num convento em São Paulo. No entanto, poucos anos após sua partida, Palmira recebera a notícia de que ela iria se casar. Fora um alvoroço geral. Ninguém podia compreender o que havia se passado. Mais tarde, quando Palmira e Licurgo chegaram para o casamento, souberam de tudo. O rapaz, Leopoldo, era sobrinho da madre-superiora e se encantara com ela, tendo sido logo correspondido. A princípio, a madre não quisera permitir julgando aquele amor uma blasfêmia. Mas depois, vendo que os jovens se amavam sinceramente, e não tendo Camila ainda feito o voto, resolvera ceder. Os dois se casaram em cerimônia simples e sem luxo, e continuaram a viver em São Paulo, onde Leopoldo era dono de próspero negócio.
Apesar de tudo, Palmira ficara feliz. Não desejava mesmo que a filha terminasse seus dias num convento, embora concordasse que, dada sua condição de moça desonrada, aquela seria a melhor solução. No entanto, se Camila encontrara um homem que a aceitara do jeito que era, e que não se importava em desposar uma moça já deflorada, para ela estava tudo bem. Licurgo também ficara satisfeito. A enteada já lhe havia dado trabalho demais, e seria um alívio saber que estaria segura e bem cuidada por um homem que a amasse e a sustentasse.
Palmira chegou a seu quarto e se deitou, virando-se para a janela e olhando o horizonte. Já era quase meio-dia, e o céu continuava cinzento, com nuvens ameaçando chuva. Estava cansada, muito cansada. Vivera muitos anos ali, naquela fazenda, sob a guarda de Licurgo, e fora feliz com ele. Ao contrário do que muitos diziam, ele não fora um homem impiedoso e cruel; fora justo. Ainda com a imagem do marido no pensamento, adormeceu. Já não o tinha mais, mas ao menos possuía filhos. Eles, com certeza, não a abandonariam, e ela podia estar certa de que terminaria seus dias ali, junto dos seus".



CAPÍTULO 2



Fausto entrou na sala no exato momento em que a porta da frente se abria, dando passagem a uma jovem, que entrava esbaforida. Chegava acompanhada de um escravo e, logo que entrou, soltou no chão o bauzinho que levava, suspirando aliviada.
— Oh, meu Deus, até que enfim! - desabafou.
— Perdão, senhorita - observou Fausto -, mas não creio que a conheça.
A moça olhou-o atordoada. Entrara tão apressada que nem sequer percebera a presença de alguém ali. Mais que depressa, tratou de se apresentar.
— Oh! Senhor, queira me desculpar. Meu nome é Júlia Massada, e sou irmã de Leopoldo, marido de Camila. Conhece-a?
Fausto acenou com a cabeça, e ela continuou:
— Pois é. Vim aqui para o enterro do padrasto de Camila, mas creio que cheguei um pouco tarde.
— Sem dúvida. Mas vamos, entre. Venha descansar.
Júlia sentou-se na poltrona e suspirou. Estava exausta. Viajara o dia inteiro e, ainda por cima, acabara se perdendo no caminho. Ela olhou rapidamente para o escravo, que permanecera de pé, segurando a bagagem, e prosseguiu:
— O senhor é dono da casa?
— Sou sim. Chamo-me Fausto, e Licurgo era meu pai.
— Oh! Sinto muito. Meus sentimentos.
— Obrigado.
Ela ficou a olhá-lo, meio constrangida, até que continuou:
— Senhor Fausto, será que podia chamar minha cunhada? Sei que me demorei demais e não quero incomodar, mas...
— Não é incômodo algum. Camila nos disse de sua chegada, mas não a esperávamos mais.
— É verdade. Peço que me perdoe. Não conhecia a estrada e acabei por me perder.
— Se me permite a indiscrição, senhorita, por que não veio com seu irmão e sua cunhada? As estradas são perigosas para mocinhas desacompanhadas.
— Mas não vim só. Trajano me acompanhou - e indicou o escravo, que permanecia ainda na mesma posição. - Trajano! Ponha essas coisas no chão!
O escravo obedeceu e continuou ali calado, sem dizer nada, até que Fausto continuou:
— Pois é senhorita Júlia, até agora não me disse por que veio só...
— Oh, é mesmo. Bem, é que tive que resolver uns problemas lá em São Paulo e só então pude vir.
— Não pretendo ser intrometido, mas que problemas seriam esses, que tiveram que retardar sua viagem?
— Que problemas? Oh, sim, problemas.... Bem, senhor Fausto, digamos que eu estava ocupada com meus... Afazeres pessoais.
Fausto, percebendo que ela se esquivava de revelar o motivo de sua demora, achou melhor não insistir. Não queria parecer indelicado, ainda mais porque a moça o impressionara sobremaneira. Ela era linda, e ele estava admirado diante de tanta beleza.
A porta da frente se abriu e Camila entrou, em companhia de Leopoldo. Tinham ido dar um passeio a fim de desanuviar o pensamento, quando avistaram a carruagem de Júlia parada na porta.
— Júlia, querida! —exclamou Camila, abraçando-a. — Já estávamos preocupados. Por que demorou tanto?
Ela deixou-se abraçar e fitou Fausto pelo canto do olho. Ele a olhava com ar divertido, cheio de curiosidade.
— Perdoem-me, mas é que tive uns contratempos – finalizou Júlia.
Júlia lançou para eles um olhar extremamente significativo, que tanto o irmão quanto a cunhada pareceram compreender, e eles mudaram de assunto, deixando Fausto frustrado em sua curiosidade. Virando-se para Trajano, Leopoldo acrescentou:
— E então, Trajano, cuidou dela direitinho?
— Cuidei sim, sinhô. A sinhazinha Júlia é uma ótima moça e não deu trabalho algum.
— Muito bem.
— Vejo que já conheceu meu irmão... Fausto, não é? — indagou Camila, e ele assentiu.
— Conheci, sim.
— Fausto — disse Leopoldo —, como pode perceber, Júlia é minha irmã mais moça. E a caçula de onze filhos. Por isso nossa diferença de idade é tão grande. Júlia podia ser minha filha.
— E é como se fosse — acrescentou Camila. — Depois que meus sogros morreram, Júlia foi morar conosco, e nós nos afeiçoamos muito a ela. É um amor de menina.
— Obrigada, Camila.
Nesse momento, Palmira entrou na sala, amparada por Rodolfo, e foi sentar-se ao lado de Júlia, perguntando a Camila:
— Quem é a mocinha?
— Deixe que lhe apresente mamãe. Esta é Júlia, irmã de Leopoldo, de quem já lhe falei.
— Júlia... Júlia. Ah, sim, Júlia, sua cunhada. Como vai, minha filha?
— Vou bem, obrigada, e a senhora?
— Como vê nada bem - respondeu de má vontade. — Como pode uma viúva estar passando bem, não é mesmo?
— Desculpe-me senhora. Não quis aborrecê-la.
— Não aborreceu. Eu é que lhe peço desculpas. Não quis ser grosseira. É que ainda não me acostumei.
— Deixe disso, mamãe - cortou Rodolfo, impressionado com a figura de Júlia.
— Júlia, esse é meu irmão Rodolfo — apresentou Fausto. — Somos gêmeos.
— Sim, eu sei, Camila me disse. E mesmo que não soubesse, não poderia deixar de notar. A semelhança entre ambos é extraordinária!
— E sim, minha filha — concordou Palmira. — Mas não se preocupe. Com o tempo irá se acostumar e aprenderá a diferenciá-los. Se observar bem, verá que Fausto possui as maçãs do rosto um pouco mais salientes do que Rodolfo. Além disso, Rodolfo tem um sinal perto da orelha esquerda, que Fausto não tem.
— É verdade — disse Júlia, estudando-lhes os rostos. — Mas a diferença é muito sutil. Ninguém nota.
— Bem, por ora chega — disse Camila. — Vou mostrar a Júlia o seu quarto. Ela deve estar cansada.
— Obrigada, Camila. Estou realmente exausta. Trajano pode trazer minhas coisas, por favor?
O escravo apanhou a bagagem de Júlia e saiu atrás dela. Já na escada, Camila observou:
— É melhor não falar assim com Trajano por aqui.
— Assim como?
— Não seja tão educada. Já lhe disse que os escravos aqui não são tratados feito gente.
— Mas eu não falei nada de mais.
— Não importa. Mamãe não gosta de negros, e não queremos dar-lhe motivos para começar uma questão, não é mesmo?
— Claro que não. Mas onde ele ficará?
— Na senzala, junto com os outros escravos.
— Mas, Camila, Trajano é escravo de dentro.
— Não aqui. Não há escravos de dentro aqui. Só as mulheres trabalham na casa grande.
Júlia olhou para Trajano com olhar penalizado, e este a consolou:
— Não se preocupe sinhazinha, estarei bem.
Ela suspirou e entrou no quarto que Camila lhe indicara. Não gostava daquilo, mas o que poderia fazer? Trajano era um escravo meigo e dócil, e fora seu amigo e protetor durante toda a sua vida. Como poderia deixá-lo sozinho naquela senzala imunda? No entanto, teve que concordar com a cunhada. Era melhor não facilitar. Despediu-se de Camila e de Trajano e entrou, desabando na cama logo que a porta se fechou, adormecendo imediatamente. Estava exausta e só podia pensar em dormir.
Júlia só despertou no dia seguinte, bem cedo. Levantou-se da cama e desceu para a cozinha. Estava com fome e saiu em busca de um café bem quentinho. Ao chegar, viu que uma escrava preparava o café, cantando uma música numa língua que ela não conhecia. Achou aquela música muito bonita e, quando a negra terminou, cumprimentou da porta:
— Bom dia!
A escrava assustou-se e voltou-se para ela.
— Oh! Sinhazinha, perdão. Não sabia que estava aí.
— Não foi nada. Achei muito bonita a sua música.
— A sinhazinha gostou?
— Hum, hum. Onde a aprendeu?
— Ah, sinhazinha, são cantigas lá da minha terra. Ninguém se lembra mais...
— Como é o seu nome?
— Tonha, sinhá.
— Tonha? Você é que é a Tonha?
Tonha olhou-a meio espantada. De onde é que aquela sinhazinha a conhecia? Ela nunca a vira por ali. Sequer estivera presente no enterro. Quem seria ela? Um pouco desconfiada, respondeu hesitante:
— Sou sim. Por que a sinhazinha quer saber?
— Oh! Desculpe-me, nem me apresentei. Sou Júlia, cunhada de Camila. Cheguei ontem.
— Ah, então a sinhazinha é que é a irmã de sinhô Leopoldo?
— Sou eu mesma. É que me atrasei e não consegui chegar a tempo para o enterro.
Tonha olhou para ela e sorriu. Aquela menina, além de linda, era também muito amável. Tinha um semblante sereno, um ar assim de quem respeita a vida.
— A sinhazinha quer café? - perguntou afinal.
— Por favor. Cheguei ontem à tarde e estava tão cansada que nem comi. Caí na cama e dormi até hoje.
— Se a sinhazinha não se importar de comer na cozinha, sente aí que lhe preparo um café da manhã especial.
Júlia sentou-se e Tonha serviu-lhe café, leite, pão, manteiga, queijo, bolo e outras guloseimas que havia preparado. Gostara muito daquela menina e queria agradá-la apenas para ver seu ar de satisfação. Estava parada, admirando Júlia comer, quando escutou batidas na porta. Voltou-se e deu de cara com Trajano, cabeça baixa, segurando nas mãos o chapéu amassado.
— Ah! Trajano, entre! — chamou Júlia. — Está com fome?
Ele assentiu, e ela convidou-o a sentar-se à mesa. Tonha, desacostumada àquelas intimidades, disse alarmada:
— Sinhazinha, perdoe-me o atrevimento, mas sinhá Palmira não vai gostar nadinha de saber que a sinhá tomou café com um escravo.
— Ora, Tonha, mas o que é isso? Dona Palmira está dormindo.
— Mas ela pode ficar sabendo...
— Deixe de bobagens, Tonha. Trajano é meu amigo. E depois, quem contaria a ela? Você?
— Deus me livre, sinhá, que não sou dada a mexericos.
— Então não se preocupe. Trajano está acostumado a sentar-se à mesa conosco e não fará feio. Você verá.
— Não duvido disso, sinhá. Mas é que me preocupo também com o rapaz. Sinhá Palmira pode se zangar e...
— Sinhá Palmira não é dona de Trajano e nada pode fazer contra ele.
— Eu sei, mas pode ficar de birra com ele. É isso o que quer? Que ela implique com o moço?
Júlia pensou por alguns instantes e concordou:
— Tem razão, Tonha. Não vale a pena provocar dona Palmira. Trajano pegue seu café e vá tomá-lo lá no terreiro. É melhor.
— Também acho sinhá. Não quero criar problemas.
Trajano pegou sua refeição e saiu. Era um bom rapaz e gostava muito de Júlia para causar-lhe qualquer tipo de aborrecimento. E depois, não se importava. Era escravo mesmo, e lugar de escravo era na senzala. Eram poucos os que, como os Massada, tratavam negro feito gente.
Depois que ele saiu, Tonha indagou, curiosa:
— A sinhazinha vai me desculpar, mas não acha que esse seu jeito de tratar o escravo pode acabar mal?
Júlia olhou-a com ar divertido. Conhecia a história de Tonha e disse:
— Ora, Tonha, mas logo você? Pelo que soube, tinha uma amizade um tanto quanto especial com a filha de seu Licurgo, Aline.
Tonha parou estarrecida e, escolhendo as palavras, respondeu:
— Desculpe sinhazinha, mas como sabe de Aline?
— Sei de tudo o que aconteceu nesta casa. Minha cunhada me contou.
— Ah, sinhá Camila, é verdade. Ela conhece a história toda.
— Conhece sim. E gosta muito de você.
— Eu sei. Também gosto muito dela, e fiquei com muita pena quando...
— Pode falar Tonha, sei disso também. Meu irmão e eu sabemos tudo sobre Camila e não nos importamos. Ela é como uma mãe para mim.
Tonha lembrou-se de Aline, do quanto era sua amiga e do quanto se amavam. Por que tivera que morrer? Subitamente, duas lágrimas rolaram de seus olhos, e ela voltou o rosto para a janela, tentando ocultá-lo de Júlia.
— Você está chorando! Oh, sinto se a deixei triste. Não devia ter tocado nesse assunto.
— Não foi nada, sinhazinha, deixe estar. É que senti saudades...
— Posso imaginar. Mas, então, não falemos mais nisso. Não vale a pena desenterrar os mortos, porque eles não podem se levantar e voltar a viver entre nós.
— Tem razão, sinhazinha, desculpe.
— Deixe de bobagens. Você não tem nada do que se desculpar.
— Sinhazinha?
— Hum? O quê?
— E esse rapaz, o Trajano?
— O que tem ele?
— É um bonito rapaz, não é mesmo?
— É sim, Tonha, muito bonito.
— A sinhazinha e ele... Quero dizer... Vocês não... Vocês não estão...
Júlia soltou uma gargalhada e respondeu, gracejando:
— Enamorados, você quer dizer? Não, Tonha, claro que não.
Não que isso fosse impossível. Trajano é mesmo um rapaz muito bonito, e eu não tenho nada contra os negros. No entanto, Trajano e eu fomos acostumados um ao outro desde pequenos. Quando minha mãe morreu, eu era ainda muito criança e fui morar com meu irmão. Trajano ajudou a cuidar de mim, e tornamo-nos muito amigos.
— Fico feliz em saber disso, sinhazinha. O amor entre um branco e um negro pode ser muito doloroso...
— Eu sei Tonha, nem precisa dizer. Camila me contou sobre seu romance com o primo dela, Inácio, e o quanto você sofreu com sua morte.
— Foi muito triste, sinhá. Todos aqui passaram a me acusar, até que os meninos, Rodolfo e Fausto, nasceram.
— Eu sei Tonha.
— Sabe sinhá, eu tive um filho, mas ele morreu...
— Sei disso também, e sinto muito. O destino, às vezes, pode ser bem cruel.
— Será? Será que não foi melhor ele morrer ainda bebezinho? Ao menos assim não tive que sofrer vendo o sofrimento dele.
— Não sei. Mas, por favor, não pense mais nisso. Não falemos mais de coisas tristes.
De repente, a sineta tocou e Tonha foi atender. Era sinhá Palmira, mandando servir o café. Como Júlia já havia comido, levantou-se da mesa, apressada, e saiu para o terreiro.
— Diga a Camila e aos demais que saí para dar uma volta — pediu.
— Pode deixar sinhá.
— Obrigada, Tonha.
Júlia saiu para o terreiro e foi ao encontro de Trajano, convidando-o para um passeio. O escravo levantou-se sorridente e saiu em companhia da moça, seguindo pela estradinha que conduzia à estrada principal.
A mesa do café, a família encontrava-se reunida: Palmira, Leopoldo, Camila e os filhos, Rodolfo, Fausto, Zuleica e sua filha Berenice.
— Tia Palmira — iniciou Berenice —, mamãe e eu devemos partir amanhã pela manhã.
— Mas, já? — indagou Palmira, surpresa. — Pensei que fossem se demorar ainda um pouco mais.
— Sinto titia, mas Miguel ficou sozinho cuidando dos negócios para que pudéssemos viajar. Partiremos para Lisboa daqui a quinze dias, e sabe como são os homens sem suas esposas, não é mesmo?
— Pretendem demorar-se?
— Um pouco. Miguel já está há muito tempo longe e sente saudades da família.
— Tem razão, minha querida. Vão. Compreendo. E vocês, Camila, não vão ficar?
Leopoldo olhou para a sogra e respondeu:
— Eu não, dona Palmira, apenas Camila. Ela decidiu passar uns dias fazendo-lhe companhia, e os rapazes podem ficar com ela. Eu, porém, tenho que voltar. Tenho negócios em São Paulo. Creio que a companhia da família lhe fará muito bem.
— Papai tem razão - concordou Dário. — Penso que vovó ficaria feliz se estivéssemos todos juntos.
— Ficaria sim, meu filho — tornou Palmira.
— E Júlia também pode ficar se quiser — acrescentou Leopoldo. — Por falar nisso, onde está?
— Tonha disse que foi dar uma volta — respondeu Dário.
— Então, quando chegar, perguntaremos a ela.
Quando Júlia voltou, ficou muito feliz em poder passar uns dias ali na fazenda. Tinha planos e precisava de tempo para colocá-los em prática. E depois, havia Fausto. Ela mal o conhecia, mas sentira uma emoção especial ao vê-lo e pensou que seria maravilhoso conhecê-lo melhor.

**********

Dário olhou pela janela com ar amuado. A manhã fria e chuvosa impedia-o de sair pela fazenda, e ele não gostava de ficar trancado dentro de casa. Ouviu batidas na porta e disse sem maior interesse:
— Pode entrar.
A mãe entrou sorridente, sentou-se a seu lado e disse:
— E então, meu filho, dormiu bem?
— Otimamente, mamãe. Pena que está chovendo novamente. Gostaria de caminhar um pouco mais pela fazenda.
— Não se preocupe querido, haverá ainda bastante tempo para isso.
— Quanto tempo pretende ficar?
— Não sei bem. O suficiente para deixar Ezequiel e Rebeca à vontade na fazenda Ouro Velho.
— Acha que encontrarão algum tipo de problema?
— Não creio. Seu tio Fausto tem bom coração. Creio que não criará embaraços ao arrendamento da fazenda.
— E vovó?
— Sua avó não pode saber. Ao menos enquanto o negócio não estiver concluído.
— E Júlia, conseguiu alojá-los?
— Sim. Pelo que me disse, ela acomodou os três na estalagem da vila. Creio que hoje mesmo teremos notícias deles. A propósito, onde está seu irmão?
— Não sei mamãe. Não o vi.
A porta do quarto se abriu e Júlia entrou apressada. Estava ansiosa e não conseguira dormir durante quase toda a noite. A preocupação com os amigos a deixara acordada, pensando na sorte que o destino reservara à pobre Sara.
— Oh! Camila — começou a dizer —, que bom que a encontrei aqui. Estou tão nervosa!
— Fique calma, minha querida. Tudo vai dar certo.
— O que faremos? — perguntou Dário.
— Creio que o melhor a fazer é conversar com Fausto — ponderou Camila.
— Sim, creio que sim — concordou Júlia. — Você vai falar com ele?
— Vou sim.
— Posso ir junto? — pediu Dário.
— É claro, meu bem.
— Também gostaria de ir — acrescentou Júlia.
— Pois, então, vamos todos agora mesmo procurá-lo.
Os três saíram em busca de Fausto, que se levantara cedo e estava no estábulo, vistoriando os animais. Quando viu Júlia, seu rosto se iluminou. Ele já podia perceber que seu coração começava a se render aos encantos da concunhada e estava deliciado com sua presença ali, em sua casa. Quando eles chegaram, cumprimentou-os:
— Bom dia. O que os traz aqui logo pela manhã?
— Fausto - principiou Camila -, temos algo importante para lhe falar.
— Comigo?
— Será que podemos ir para algum lugar mais sossegado?
— Sim, claro que sim. Vamos para o gabinete que era de papai. Ninguém nos incomodará lá.
Os quatro seguiram em silêncio. Fausto não podia atinar no assunto que levara sua irmã, o filho e a cunhada a quererem falar com ele. Será que precisavam de dinheiro e, agora que o pai morrera, resolveram pedir-lhe ajuda? Não, certamente que não. Pelo que sabia, Leopoldo estava muito bem de vida e não precisava de nada. Mas, então, o que poderia ser? Bem, fosse o que fosse o fato é que levara para perto dele a menina Júlia, por quem demonstrava um interesse forte e genuíno. Ao entrarem no gabinete, Fausto fechou a porta e fez com que eles se sentassem, sentando-se bem à sua frente. Eles olharam-no por alguns instantes, sem dizer nada, até que ele os encorajou:
— Bem... O que têm de tão importante para me falar?
Camila olhou para ele e tossiu. Tinha medo da reação dele ao conhecer o motivo que os levara até ali.
— Fausto — começou —, a fazenda Ouro Velho, que pertencia a meu pai, hoje é administrada por você e Rodolfo, não é mesmo?
Ele a olhou com ar interessado e respondeu:
— Sim, por quê? Por acaso tem algum interesse nela?
— Bem, sim e não.
— Como assim? Ouça Camila, sei que parte daquelas terras lhe pertence, talvez até mais do que a mim. Afinal, você herdou um bom quinhão quando seu pai morreu, e nós não temos a intenção de lesá-la ou tomar o que é seu. Nós apenas a administramos como você bem disse, porque você se mudou para longe, e a fazenda ficou abandonada. Contudo, se você veio reclamar sua parte, é mais do que justo. Afinal, tem filhos, e eles também têm seus direitos...
— Por favor, Fausto, não se justifique. Sei que vocês não têm a intenção de me lesar, e não é sobre isso que vim falar. Tampouco pretendo reivindicar a posse de nada. Meus filhos e eu, com a graça de Deus, não precisamos da fazenda. No entanto, há algo que gostaria de pedir.
Verdade? O que é? Pode falar.
— Bem, a fazenda está abandonada, não é mesmo?
— Abandonada, não. Está desabitada. Mas nós continuamos a tratar da casa, e as terras continuam a ser cultivadas. Por quê?
— Bem, vou falar logo, porque sei que você é um homem sensato e de bom coração. Nós temos uma família, muito nossa amiga, que está passando por sérios problemas.
— Sim? Que tipo de problemas? Financeiros?
— Não. Eles são ricos e não precisam de dinheiro.
— E de que precisam, então?
— Digamos que precisam de... Saúde.
— Saúde? Não estou entendendo. Aonde quer chegar Camila?
— Por favor, Camila, pode deixar que eu conto tudo — apressou-se Júlia. - Afinal, Sara é muito mais minha amiga do que de vocês.
— Sara? Mas do que se trata pelo amor de Deus?
— Bem, Fausto, é o seguinte. Lá em São Paulo, temos um casal de amigos, cuja filha está seriamente doente e, por recomendação médica, devia procurar um lugar nas montanhas onde pudesse se restabelecer. O médico acha que o ar puro e o contato com a natureza poderiam ajudá-la a se curar.
— E daí?
— E daí que, quando resolvemos vir para cá, Camila se lembrou de que a fazenda Ouro Velho estava vazia e pensou que seria boa idéia arrendá-la para eles.
— Ah! Mas é só isso? Por que não falaram logo?
— Porque eles são judeus.
Fausto levantou a sobrancelha, espantado. Não esperava por aquilo. Não que tivesse alguma coisa contra os judeus, não era isso. Nem tinha contato com eles, não conhecia nenhum. Mas conhecia muito bem sua mãe e sabia que ela não gostava de ninguém que não fosse católico. Nem protestantes, nem muito menos judeus. Ele se levantou e caminhou para a janela, falando para Júlia, sem se virar para ela:
— Foi por isso que se atrasou Júlia? Ela hesitou, mas vendo o ar de aprovação de Camila, respondeu:
— Foi... Foi sim. Tive que acomodá-los.
— Bem, Júlia, você não conhece minha mãe, mas Camila sim. Sabe que será impossível convencê-la.
— Eu sei — concordou Camila. — Foi por isso que vim falar com você e não com ela ou com Rodolfo. Sei que você é uma boa pessoa e saberá compreender nossos motivos.
— Compreender, compreendo. Mas como acha que poderei convencer minha mãe a aceitar um negócio desses?
— Por que não trata de tudo você mesmo? — sugeriu Dário. — Vovó não precisa ficar sabendo.
— Sim — acrescentou Júlia. — Diga-lhe apenas que há interessados em arrendar a fazenda. Você não precisa especificar quem é. Você é o administrador legal, pode muito bem realizar o negócio.
— Eu, sozinho, não. A fazenda é administrada por mim e por Rodolfo. E não creio que ele concorde.
— Ele também não precisa saber — disse Dário, ansioso. — Por que teria que lhe contar?
— Sinto, mas o que me pede é impossível.
— Não é impossível — contestou Júlia. — Se você quiser, poderá muito bem fazê-lo.
— Não posso.
— Por que não diz que não quer? Porque tem medo?
— Não é isso. Mas não posso trair o mandato que me foi outorgado...
— Não se esqueça de que eu também sou uma das outorgantes — disse Camila. — E eu o estou autorizando a realizar o negócio.
— Por favor, tio Fausto, não seja tão duro — suplicou Dário. — Não se sente condoído pela dor alheia?
— Não se trata disso.
— E do que se trata, então? — indagou Júlia com ar incisivo. — De má vontade? Orgulho? Ou preconceito mesmo?
Fausto voltou-se para eles e encarou-os firmemente. Primeiro Júlia, depois Camila e Dário, até que levantou os ombros em sinal de resignação e disse:
— Está bem. Verei o que posso fazer.
— Oh, obrigada! — exclamou Júlia, ao mesmo tempo em que se atirava ao redor de seu pescoço, estalando-lhe um beijo na face. — Sabia que você não nos decepcionaria.
Ele levou a mão ao rosto enrubescido e retrucou:
— Tenha calma. Não estou lhes prometendo nada.
— Só a compreensão já é o suficiente para tentar — concluiu Camila.
Saindo dali, Fausto foi procurar a mãe e o irmão, levando-lhes a notícia de que havia pessoas interessadas em arrendar a fazenda Ouro Velho. Tratava-se de um casal com uma filha doente, conhecidos de Camila, que gostariam de passar uns tempos nas montanhas, em contato com a natureza. Palmira, a princípio, quis recusar. A fazenda fora de seu primeiro marido, e eles viveram ali muitos anos. Além disso, fora ali que perdera o filho, a nora e o sobrinho, mortos naquele incêndio fatídico. Como permitir que estranhos ocupem a casa como se fossem seus donos? Rodolfo, porém, sem de nada desconfiar, acabou por concordar com o irmão.
— Creio que Fausto tem razão, mamãe. A fazenda foi reformada, mas está vazia há anos. Por que não arrendá-la? Com o dinheiro, podemos pagar os impostos. Isso sem falar no fato de que haveria alguém morando lá, que a conservaria para nós.
— Sim, mamãe, é isso mesmo. E, depois, por que ficar apegada ao passado, a coisas e pessoas que se foram e que não voltam mais?
— Não fale assim de seu irmão, Fausto, você nem o conheceu. Quando ele morreu, você ainda nem era nascido.
— Por isso mesmo. Será que vale a pena fazer de uma casa o túmulo sagrado da lembrança de pessoas que já se foram?
— Vamos, mamãe, concorde. Será só por uns tempos.
— Está bem — disse Palmira por fim. — Que seja. Mas avise a essas pessoas que não vou tolerar abusos em minha casa. Não quero que tirem um só móvel do lugar nem que modifiquem nada.
— Pode deixar mamãe. Cuidarei disso pessoalmente, se Rodolfo não se importar.
— Ora, meu irmão, vá em frente. Você tem todo o meu apoio.
Dali, Fausto foi à busca de Camila e partiu com ela, Júlia e Dário para a vila, ao encontro de Ezequiel e Rebeca Zylberberg. Na estalagem, fecharam o negócio, e ficou acertado que a família se mudaria no dia seguinte. Foi uma felicidade geral. Ainda mais para Dário, cuja amizade por Sara havia muito se estreitava. Os dois eram inseparáveis e poderiam continuar a se ver. Dário tinha certeza de que ali, a seu lado, Sara melhoraria e, com a ajuda de Deus, logo se restabeleceria daquela enfermidade maldita, que lhe ia minando as forças e o alento.




CAPÍTULO 3 Com o amor não se brinca_Mônica de Castro


O Sol finalmente se firmou, e os jovens resolveram sair para um piquenique. Apesar do frio, fazia uma linda manhã, e todos se animaram. Trajano foi junto; não se separava de Júlia e dos meninos, como os chamava. Com eles, Etelvina, uma escrava bonitinha, de seus dezenove anos, que ia carregando as cestas com a comida.
Já no terreiro, Dário perguntou à mãe:
— Não quer vir conosco, mamãe?
— Não, meu filho. Prefiro ficar fazendo companhia a sua avó. E depois, a ocasião é para os jovens. Vão e divirtam-se.
Eles começaram a caminhada, rumo ao córrego que corria mais abaixo, seguindo a trilha no meio do mato. Fausto ia ao lado de Júlia, sem nem se dar conta do olhar de reprovação que Rodolfo, de quando em vez, lançava para eles. A moça, alegre e extrovertida, foi logo puxando conversa:
— Perdoe-me a indiscrição, Fausto, mas já que Camila disse em jovens, não pude deixar de observar que você e Rodolfo já não são assim tão moços.
Ele sorriu meio sem jeito e considerou:
— É verdade. Quando nascemos, minha mãe tinha mais ou menos quarenta anos. Como sabe, somos filhos de seu segundo casamento.
— Eu sei. Por falar em casamento, por que não se casaram?
— Por quê? Não sei ao certo. Creio que porque não houvesse por aqui muitas moças disponíveis. Ou, pelo menos, alguma que valesse a pena... Até agora.
Ela corou e abaixou os olhos, falando envergonhada:
— O que quer dizer? Está interessado em alguém?
— Não notou?
— Não sei dizer...
— Pois então, eu mesmo lhe direi. Até agora, nunca havia conhecido moça alguma que me interessasse. No entanto, quando vi você, confesso que fiquei impressionado.
— Impressionado com o quê?
— Com sua beleza, com sua bondade, com sua sensibilidade, com sua coragem. Isso basta?
— Não acha que está exagerando?
— Não, não acho. Acho que nem todos os elogios do mundo seriam suficientes para descrevê-la.
— Por favor, Fausto, está me encabulando.
— Desculpe-me, mas é a verdade.
— É sempre assim tão direto?
— Só com quem me interessa. E você, mais do que qualquer outra coisa, despertou em mim um enorme interesse.
Ela já ia responder quando ouviu atrás de si uma voz familiar, muito parecida com a de Fausto, dizendo num gracejo:
— Posso saber sobre o que falam os pombinhos? — era Rodolfo que, um pouco mais atrás, escutara toda a conversa.
— Sobre nada de especial — disse Fausto em tom vago.
— Por que quer saber?
— Por nada. Apenas gostaria que não privasse os demais da companhia de tão agradável jovem.
Fausto olhou-o surpreso. Só então percebeu que o irmão também se interessara por Júlia e ficou desconcertado. Era uma situação delicada, e ele não queria magoá-lo. No entanto, não abriria mão da moça. Gostava dela e tencionava cortejá-la. Ainda que isso desagradasse o irmão.
A verdade, porém, era que Rodolfo não estava propriamente interessado em Júlia, e sim em competir com Fausto. Desde a mais tenra idade, Rodolfo desenvolvera uma inveja desmedida do irmão, que nem mesmo ele sabia explicar. O fato era que tinha que possuir tudo o "que Fausto quisesse ou possuísse". Era uma necessidade. E se Fausto desejava Júlia, Rodolfo decidiu que teria que tê-la. Além do mais, ela era linda, e não seria nenhum sacrifício tomá-la do irmão.
Júlia, por sua vez, também notara o interesse de Rodolfo e, pedindo licença a ambos, apertou o passo, indo juntar-se aos sobrinhos. Discretamente, achegou-se a eles e tomou o braço de Dário, que caminhava pensativo.
— O que há com você? — indagou. — Parece triste.
Ele sorriu acabrunhado e, olhando para o chão, disse:
— Quer mesmo saber?
— É claro que quero. Pode confiar em mim. Além de sua tia, sou também sua amiga. Temos quase a mesma idade.
— Pois é...
— E então? O que o aflige?
— É Sara.
— Sara? O que tem ela? Que eu saiba, ela e a família já se instalaram na fazenda Ouro Velho. Assim que puder, irei vê-los.
— Júlia, Sara e eu, nós estamos apaixonados.
— Eu sei.
— E penso que já chegou à hora de nos casarmos.
— Mas isso é maravilhoso! E quando será?
— Não sei. Ainda não falei com seus pais.
— Pois fale logo. Vocês já estão namorando há algum tempo, e tenho certeza de que eles darão seu consentimento.
— Quisera eu estar assim tão certo.
— Por quê?
— Primeiro, porque nós somos católicos. E segundo, porque ela está gravemente enferma.
— E daí? Sabe que não temos nenhum preconceito, nem nós, nem a família de Sara. E quanto à enfermidade, tenho fé em Deus que ela irá se curar.
— Mas, e vovó? Será que aceitará?
— Dário, perdoe-me pelo que vou lhe dizer. Sua avó já está velha e não pode mandar em você. Nós moramos longe daqui, e ela pouco sabe a seu respeito ou de seu irmão. Não creio que tenha força suficiente para impedir seu romance.
— Espero que você esteja certa.
— Ora, pare de se preocupar e ponha um sorriso nesse rosto. Não quer que os outros desconfiem, quer?
— Não, claro que não.
O grupo alcançou o córrego e Trajano foi ajudar Etelvina a estender a toalha para o piquenique. A escrava estava distraída, arrumando as comidas sobre a toalha, e nem notou a presença de Túlio que, um pouco mais atrás, fitava-a com olhar de cobiça. Subitamente, como que guiada pela intuição, ela se voltou e deu de cara com ele, e assustou-se. Havia algo de estranho naquele olhar, e ela teve medo. Não conhecia aquele moço, mas logo percebeu suas más intenções.
Trajano, por sua vez, conhecia-o muito bem. Ajudara a criá-lo e sabia de suas tendências. Trajano olhou para ele com ar de reprovação e pediu a Etelvina que fosse chamar os sinhôs para o lanche. Ela dirigiu-lhe um olhar de agradecimento e foi chamá-los. Não gostara daquele moço e não queria ficar perto dele. Trajano, logo que ela se afastou, sentou-se ao lado de Túlio e disse em tom de reprovação:
— Sinhozinho, veja lá o que vai fazer. Etelvina parece uma moça direita.
— Mas o que é isso, Trajano? Por acaso pedi sua opinião? E depois, não estou fazendo nada.
— Eu conheço o sinhô e sei muito bem o que se passa na sua cabeça. Não pode ver rabo-de-saia.
— E daí? Por acaso a negrinha é alguma coisa sua, é? Ou você também está de olho nela?
Disse isso piscando um olho e dando um tapinha de leve no ombro do outro. Trajano, porém, respondeu calmamente:
— Não, sinhô. Mas ela é uma boa menina, e não quero que se magoe.
— Como é que sabe hein? Por acaso a conhece? — Ele balançou a cabeça. — Então não se preocupe. Ou melhor, não se meta.
— Desculpe sinhô, mas eu só estou falando porque depois o sinhozinho vem correndo pedindo para eu consertar suas besteiras.
— Não faz mais do que sua obrigação. E para isso que serve.
Trajano olhou-o magoado e acrescentou:
— O sinhozinho é um ingrato, isso sim. Mas deixe estar, que vou contar tudinho a sua mãe.
Levantou-se rapidamente para ir embora, mas Túlio chamou-o de volta.
— Espere Trajano. Para que isso? Eu só estava brincando.
— Não estava não. Conheço o sinhozinho muito bem e já vi esse olhar antes.
— Olhe, está bem. Não vou bulir com a negrinha, está bem? Não precisa contar nada a mamãe, está certo?
— Se o sinhô prometer...
— Prometo.
Trajano não disse mais nada. O grupo ia se aproximando animado, e ele não queria que ninguém soubesse o que estava se passando. No entanto, ficaria de olho em Túlio. Ele não era digno de confiança, e não valia à pena facilitar. Fitando Etelvina pelo canto dos olhos, Trajano pôde perceber o quanto ela era bonita. Ela, por sua vez, lançava-lhe olhares discretos, contente em saber-se admirada por ele. Só o que não lhe agradava eram os olhos de sinhô Túlio, que também não paravam de segui-la.

**********

Já era tarde da noite, e Júlia não conseguia conciliar o sono. Por mais que quisesse, não podia parar de pensar em Fausto. Ele era um rapaz maravilhoso. Bonito, maduro e, acima de tudo, uma alma boa e generosa. Lembrou-se do piquenique do outro dia, do quanto riram e gargalharam juntos. Estava feliz. Gostava dele e sabia que ele também gostava dela. Quem sabe, finalmente, não poderia amar alguém de verdade? Ela também já não era mais nenhuma menininha. Já passara dos vinte e cinco anos e ultrapassara, em muito, a idade de se casar. No entanto, jamais se apaixonara por ninguém. Todos os homens que conhecia eram frívolos e fúteis, e nada tinham a oferecer. Júlia, ao contrário das outras moças, não se importava de ficar solteira. O que não queria era casar-se por medo ou obrigação. Não precisava de ninguém, e pouco lhe importava a opinião que faziam a seu respeito. Se quisessem, que a chamassem de solteirona. Mas ela não se casaria sem amor. Isso nunca. Só que Fausto... Era diferente. Era íntegro, honesto, interessante, e ela já não conseguia esconder de si mesma a atração que sentia por ele.
Em seu quarto, Fausto também não parava de pensar em Júlia. Ela era maravilhosa! Linda, meiga, alegre e decidida. Tudo o que um homem feito poderia desejar numa mulher. Assim como Júlia,
Fausto também se apaixonara. Sabia que seu coração ansiava por encontrá-la novamente e sentia como se tivessem nascido um para o outro. No entanto, havia ainda Rodolfo. Ele conhecia o irmão muito bem para saber que ele também se interessara por ela. Mas, o que diria Júlia? Eles eram gêmeos, e será que ela já teria firmado uma preferência entre eles? Fausto sorriu intimamente. Estava certo de que Júlia gostara dele e não do irmão. Eles não ficaram quase tempo nenhum junto. Ele sentiu pena de Rodolfo. Se também estivesse apaixonado, sabia que sofreria, porque ele não abriria mão da amada por ninguém.
Rodolfo, por sua vez, passeava no jardim. Ia fumando seu charuto, caminhando vagarosamente, penetrando por entre a escuridão que a madrugada sem lua deitava sobre a Terra. Também ia pensando. Júlia era uma moça encantadora, e ele não podia esconder seu interesse. Sabia, porém, que o coração dela já estava preso ao de Fausto. Pudera perceber que o irmão gostava dela e que era correspondido nesse sentimento. Pensando nisso, sentiu uma pontada de raiva, e o ciúme começou a doer dentro do peito. O que fazer? Ele ficou ali, imaginando um meio de acabar com aquele encantamento entre Fausto e Júlia. Precisava tomá-la do irmão a qualquer preço. Depois que conseguisse separá-los, veria o que fazer com ela.
Quando o dia amanheceu, Fausto e Rodolfo se encontraram, ambos carregando no rosto as marcas de uma noite mal dormida.
— Nossa! — exclamou Fausto. — O que houve com você? Está horrível. Por acaso não dormiu?
Rodolfo olhou para ele com ar de mofa e respondeu:
— Você também não está lá essas coisas. O que foi que houve? Alguém lhe roubou o sono?
Fausto sentiu um quê de ironia nessa indagação, mas fingiu não perceber. Tentando mudar de assunto, perguntou:
— Já tomou seu café? — Já, sim.
— Então, podemos ir?
— Sim, claro. Dali partiria para a plantação. Já estavam saindo quando escutaram a voz de Júlia, que ia correndo atrás deles.
— Esperem! Esperem! - gritava.
— Júlia! — fez Rodolfo espontaneamente. — Mas que surpresa. Aonde vai?
— Gostaria de dar uma volta e procuro companhia — disse, olhando para Fausto pelo canto do olho, e ele sorriu em resposta. — Será que posso acompanhá-los?
— Ora, mas será um prazer desfrutar de tão bela companhia — apressou-se Fausto em dizer.
Como que se esquecendo da presença de Rodolfo, os dois puseram-se a caminhar lado a lado, indo à direção das cocheiras. Iam alegres e sorrindo, e Fausto, de quando em vez, pegava sua mão e a levava aos lábios, o que irritou profundamente Rodolfo. Só faltava se beijarem. E qual não foi o seu espanto quando Fausto, de repente, estacou na porta da cocheira e, tomando a cabeça de Júlia entre as mãos, pousou-lhe um beijo carinhoso e apaixonado, que a moça correspondeu sem relutar.
— Perdoe-me, Júlia... — começou Fausto a gaguejar logo que a soltou —... Não sei o que deu em mim... É que sua presença... Seu perfume... Júlia desculpe-me pelo que vou lhe dizer... Mas é que... É que...
— Sim? — indagou Júlia, aflita. — Vamos, diga logo. É que o quê?
— É que... Bem... É que... Eu acho que... Acho que a amo...
Ele olhou para ela com tanto amor, que ela não se conteve e atirou-se em seus braços, chorando de emoção.
— Oh! Fausto — exclamou entre lágrimas. — Nem pode imaginar o quanto fico feliz em ouvir isso.
— Quer dizer então que... Que também me ama?
— Sim, estou certa que sim. Desde o primeiro dia em que o vi, senti que havia algo especial em você e não pude mais parar de pensar em seu jeito, sua voz. Se isso não é amor, não sei o que é então!
— Minha querida. Minha doce Júlia. Quero pedir permissão a minha irmã para fazer-lhe a corte. Será que consentirá?
— Camila, além de minha cunhada, é também minha amiga. Tenho certeza de que não só concordará como dará todo o seu apoio.
Beijaram-se novamente. Estavam tão entretidos um com o outro que se esqueceram completamente da existência de Rodolfo e nem se deram conta quando ele se acercou deles, falando com azedume:
— Ora, ora, mas então os pombinhos resolveram colocar as asinhas de fora, é?
Os dois afastaram-se meio sem jeito, Júlia corando, até que Fausto respondeu:
— Não é nada disso, Rodolfo. E não sei por que está sendo sarcástico. Júlia e eu nos amamos e vamos assumir compromisso.
— É mesmo? Mas que notícia maravilhosa! Meus parabéns, meu irmão, e que vocês sejam muito felizes.
Sem esperar resposta, Rodolfo montou no cavalo que o escravo lhe oferecia e saiu a galope, rumo à plantação. Júlia olhou para Fausto preocupada e comentou:
— Acho que Rodolfo não gostou da novidade.
— Creio que você tem razão. Pelo que pude perceber Rodolfo também se interessou por você e deve estar se sentindo rejeitado.
— Já que você disse, também notei algo diferente em seu olhar. Contudo, apesar de vocês serem idênticos fisicamente, meu coração pendeu para o seu, pois sua alma me parece diferente da dele, e sinto como se já o amasse há muito tempo.
— Engraçado, também sinto a mesma coisa. — Ele a beijou novamente e indagou: — Acha-nos mesmo assim tão parecidos?
— Sem dúvida.
— Ainda não consegue nos distinguir?
— Quando estão próximos, sim. Mas de longe, confesso que não sei dizer quem é quem.
— É natural. Mas não se preocupe. Com o tempo, você irá se acostumar a perceber nossas diferenças.
— É o que espero.
— Eu também. Não gostaria de vê-la nos braços de meu irmão pensando que está nos meus.
Ela riu e apertou suas bochechas, falando num gracejo:
— Tolinho isso nunca vai acontecer. Posso confundi-los na aparência, mas só você consegue balançar meu coração.
— Será mesmo?
— É claro que sim. E agora, pare com essa preocupação. Rodolfo é seu irmão e, por mais que tenha se interessado por mim, sei que isso é passageiro e, logo, logo, ele vai superar.
Fausto não disse mais nada, mas o fato é que estava preocupado. E se Rodolfo não se conformasse? E se ficasse com raiva? A rejeição, muitas vezes, estimula sentimentos que nem sequer conhecemos. E depois, Rodolfo sempre lhe parecera um tanto quanto invejoso. Desde pequenos, sempre cobiçara seus brinquedos, suas roupas. Fausto achou melhor não pensar naquilo. Talvez Júlia tivesse razão, e ele estivesse fazendo mal juízo do irmão. Era só esperar e tudo se resolveria. Ou, ao menos, tudo se definiria.
Fausto não tocou mais no assunto e ajudou Júlia a montar no cavalo, saindo com ela em direção ao cafezal. Ela era exímia amazona, e ele ficou admirado. Gostava de mulheres que sabiam montar e cavalgar, e não daquelas que se limitava a sentar no cavalo e se deixar conduzir. Júlia era perfeita.
Quando chegaram à plantação, Rodolfo estava gritando com os escravos e distribuindo ordens ao capataz, nitidamente de má vontade. Rodolfo olhou para Júlia discretamente, mas ela fingiu não perceber. Estava claro que Rodolfo sentia ciúme e procurava descontar sua frustração nos escravos. Chegou mesmo a dar umas chicotadas em alguns deles.
Júlia não gostou nada daquilo e, virando-se para Fausto, arrematou:
— Creio que não foi boa idéia ter vindo até aqui. Seu irmão está zangado, e não gosto de presenciar crueldades.
— Sinto muito, Júlia. Não sabia que isso poderia acontecer.
— Não é culpa sua. No entanto, prefiro me retirar.
— Sinta-se à vontade. Compreendo seus motivos e não lhe tiro a razão.
— Obrigada. Será que posso ficar com o cavalo por mais algumas horas? Gostaria de visitar minha amiga, Sara.
— Claro, nem precisava perguntar. Ele é todo seu.
Júlia despediu-se de Fausto e partiu rumo à fazenda Ouro Velho, onde Sara estava alojada, em companhia dos pais. No coração, uma angústia que não sabia definir. Sim. Ela estava certa. Apesar de Rodolfo e Fausto serem absolutamente idênticos, estava muito distante em seus valores morais, e ela ficou feliz porque seu coração soubera escolher exatamente aquele que poderia compartilhar de seus ideais.




CAPÍTULO 4



Sara estava sentada em um banco do jardim quando viu um cavalo se aproximando. Pelas roupas, podia perceber, mesmo ao longe, que se tratava de uma mulher. Quando se certificou de que era Júlia, levantou-se ansiosa, esfregando as mãos com nervosismo. Júlia chegou e apeou, entregando o cavalo nas mãos de Juarez, escravo da família, para ser cuidado. Ele segurou o animal e sorriu, e ela sorriu de volta. Ele era um bom rapaz, quase da mesma idade que Trajano, e tomava conta de Sara nas brincadeiras.
— Como está Laurinda? — indagou, fazendo referência à sua mulher.
— Muito bem, sinhá, obrigado. Vou agora mesmo avisar que a sinhazinha chegou, e ela vai lhe preparar aquele bolo especial.
— Excelente idéia!
Juarez saiu para cuidar do animal, e Júlia correu ao encontro de Sara. Ela estava pálida, apesar do Sol que lhe banhava as faces. Segurou-lhe as mãos gentilmente e indagou:
— E então, minha amiga, sente-se melhor?
— Ainda não pude sentir muita diferença. Faz pouco tempo que chegamos, e o ar da montanha ainda não limpou meus pulmões.
— Mas limpará, tenho certeza.
Sara, voltando-se para a casa grande, começou a chamar, com uma voizinha fraca:
— Mamãe! Mamãe! Venha ver quem está aqui.
A mãe apareceu na porta e, vendo Júlia em companhia da filha, saiu apressada, falando enquanto caminhava:
— Júlia, minha filha, há quanto tempo! Por que não veio logo nos visitar?
— Sinto muito, dona Rebeca, mas só agora pude sair.
— Não faz mal. O importante é que você está aqui. E Dário, não veio?
— Não. Está ajudando mamãe e vovó com alguns papéis, mas virá depois. E seu Ezequiel? Não está?
— Está descansando. Acho que estranhou um pouco os novos ares...
— Não está se sentindo mal, está?
— Não, não, minha filha. O mal dele é a idade. Bem, agora vou entrar e deixá-las a sós. Devem ter muito que conversar. Mas não fique muito tempo aqui fora. Apesar do Sol, ainda faz frio.
— Pode deixar dona Rebeca. Daqui a pouco entraremos.
Sara olhou para Júlia com ar de ansiedade. Queria saber notícias de Dário, mas não tinha coragem de perguntar. A outra, porém, adivinhando-lhe os pensamentos, adiantou-se:
— Dário, em breve, virá vê-la. Ela corou e perguntou:
— Ele lhe contou?
— Sim.
— E o que você acha?
— Acho que vocês não terão problema algum. Tanto seus pais quanto os dele não se importam com essas bobagens de raça ou religião. Você sabe disso tão bem quanto eu. Aliás, nem entendo o porquê dessa preocupação, já que estão namorando há tanto tempo. Não acha que se alguém tivesse algo a opor, já o teria feito?
— Sim, creio que sim. Mas não é exatamente com isso que me preocupo.
— Não? Então com o que é?
— Com minha doença.
— Ora, Sara, mas que tolice. Você vai ficar boa.
— Não sei não, Júlia. Desconfio que esteja tísica.
— Deus me livre! Nem me fale uma coisa dessas. Você tem os pulmões fracos, é só.
— Mas por quê? Por que são fracos, se sou tão jovem?
— Não sei, Sara. São coisas de Deus, que não podemos compreender. Agora pare de pensar nessas bobagens. Você vai ficar boa, tenho certeza.
Sara desviou os olhos, que já começavam a se encher de lágrimas, e mudou de assunto para disfarçar:
— E dona Palmira, como vai?
— Bem, apesar da idade.
— Sabe Júlia, fiquei muito feliz em saber que dona Palmira não se importou de nos arrendar a fazenda, sabendo que somos judeus.
Júlia abaixou a cabeça um tanto quanto desconcertada e disse meio sem jeito:
— Sara, posso lhe contar uma coisa? Você jura que não conta a seus pais e que não ficará zangada?
— Sabe que sim. Vamos, Júlia, pode confiar em mim.
— Eu sei. Bem, é que dona Palmira e Rodolfo não sabe que vocês são judeus.
— Não? Meu Deus, Júlia, mas por quê?
— Porque talvez não aceitassem. Dona Palmira é uma mulher extremamente preconceituosa e não concordaria em tê-los aqui.
— Mas o senhor Fausto... Ele foi pessoalmente tratar dos papéis. Não é possível que não tenha percebido.
— Fausto sabe, e só ele. Por favor, Sara, não fique zangada. Nós achamos que seria melhor.
— Não sei não, Júlia. Não gosto de fazer nada escondido, muito menos papai e mamãe. Tenho certeza de que, se descobrirem, não irão querer mais ficar aqui.
— Eu sei. Por isso é que lhe peço para não lhes contar.
— Não contarei. Eu prometi. Embora não concorde, prometi não contar e não o farei. Mas que não está certo, não está.
— Tente compreender. Nós queríamos muito que vocês viessem, e foi à única solução que encontramos. Se você não falar, ninguém precisa ficar sabendo.
— Será mesmo, Júlia? A verdade sempre encontra um meio de se dar a conhecer.
— Não pense nisso. Se ninguém falar nada, dona Palmira nunca descobrirá.
— Está certo Júlia, você é quem sabe.
— Agora, fale-me de você.
— O que há para falar? Essa doença maldita parece não querer ceder, e confesso que às vezes chego a perder as esperanças.
— Pois não perca. Tenho certeza de que você vai se recuperar.
— Não estou bem certa. Às vezes me sinto tão mal que chego a pensar que vou mesmo morrer.
— Nem me fale uma coisa dessas. Você é ainda muito jovem e não vai morrer. Vai viver muitos anos, vai se casar com Dário, vai ter muitos filhos e conhecer seus netinhos. Agora vamos, deixe de bobagens e vamos entrar.
Depois do almoço, Júlia voltou para a fazenda São Jerônimo e saiu logo à procura de Dário. Ele estava em seu quarto, lendo, e ela entrou:
— Ah! Júlia! — exclamou. — Onde esteve? Ficamos preocupados.
— Fui visitar Sara.
— Você foi? E não me disse nada? Mas por quê? Poderia tê-la acompanhado.
— Perdoe-me, Dário, mas nem eu sabia. Resolvi de repente, quando estava andando a cavalo pela fazenda, e você estava aqui, com mamãe e vovó.
— E como ela está? Melhor? Diga-me. Estou ansioso por vê-la.
— Não sei ao certo. Creio que só o tempo poderá nos dizer.
— Quero vê-la.
— Pois vá logo. Ela está com muitas saudades de você.
— Também morro de saudades dela. Mal posso esperar para tê-la em meus braços, como minha esposa.
— Eu sei. Só que ela pensa que vai morrer.
— Morrer? Mas isso é um absurdo!
— Também acho. E é por isso que vocês devem se casar o mais rápido possível.
— Tem razão. Falarei com mamãe agora mesmo e, se ela concordar, irei ter com seu Ezequiel e pedir-lhe a mão de Sara em casamento.
— Isso mesmo, vá. E depois me conte como foi.
Ele saiu apressado e Júlia levantou-se para ir embora, quando algo do lado de fora da janela chamou sua atenção. Ela podia ver, ao longe, a figura esguia da escrava Etelvina, que ia chegando, trazendo nas mãos um cesto de roupa lavada. A seu lado, Túlio ia animado e sorridente, falando-lhe coisas que, embora ela não pudesse ouvir, sabia bem do que se tratava. Etelvina, porém, mantinha os olhos pregados no chão e não parecia nada satisfeita com aquela insistência. Ela passou pela lateral da casa, caminhando pela estradinha, sempre com Túlio a seu lado, até que se dirigiu para o terreiro atrás da casa, e ela os perdeu de vista. Seu coração se comprimiu e ela sentiu um leve tremor. Será que Túlio estava interessado em Etelvina? Que Deus a perdoasse, mas dessa vez ela não consentiria. Estava disposta a tudo para evitar que o sobrinho destruísse a vida de mais uma mocinha. Ela virou as costas para a janela e saiu decidida. Precisava falar com Camila. A cunhada, com certeza, saberia como agir.

**********

Camila recebeu a notícia com certa apreensão. Amava o filho, mas conhecia-o muito bem e tinha medo de suas tendências. Em outra ocasião, Túlio envolvera-se com Raimunda, uma das escravas de sua casa, e a moça acabara por falecer, ao dar à luz um filho seu. A criança, pobrezinha, também não resistira e morrera logo em seguida à mãe. Túlio, embora um tanto quanto abatido, não se deixara impressionar, e logo tornara a voltar os olhos para as escravas jovens e bonitas.
Júlia, interrompendo o pensamento da cunhada, perguntou após alguns minutos:
— E então, Camila, o que faremos?
— Não sei Júlia. Confesso que estou deveras preocupada. Será que já aconteceu alguma coisa?
— Acho que não. Não houve tempo ainda.
— Então precisamos evitar que o pior aconteça. Por favor, Júlia, vá chamar Trajano. Quero falar com ele.
— Vai pedir-lhe ajuda?
— Sim. Ele também lamentou o que aconteceu no passado e gosta muito de Túlio. Afinal, viu-o nascer e crescer. Tenho certeza de que nos ajudará.
Júlia saiu e voltou logo em seguida, em companhia de Trajano, que ainda não suspeitava do assunto que o levava ali. Ao entrar, cumprimentou Camila com um sorriso, e ela foi logo dizendo:
— Trajano, mandei chamá-lo porque preciso que me preste um favor.
— Pois não, sinhá. Basta à sinhá pedir que eu faço.
Sei disso. Você é um bom moço e muito fiel a nossa família, não é mesmo?
— Sim, sinhá. Por que pergunta?
— Bem, Trajano, gosto muito de você e confio muito em sua discrição para fazer-lhe uma pergunta. Você sabe de alguma coisa entre Túlio e uma escrava de nome Etelvina?
Trajano sobressaltou-se. Ele não dissera nada a ninguém, mas do jeito que Túlio agia, com certeza, alguém notara. Ele prometera não contar nada a Camila, mas não podia mentir. Cuidadosamente escolhendo as palavras, retrucou:
— Por que pergunta sinhá?
— Porque preciso saber. Mas não me responda com outra pergunta. Diga-me, você sabe de alguma coisa ou não?
Trajano estava confuso e embaraçado. Não sabia o que fazer. Era leal, sim, e não queria perder a confiança nem de Camila, nem de Túlio. Júlia, percebendo o conflito que lhe ia à alma, resolveu intervir:
— Ouça Trajano, está claro, por seus gestos, que você sabe de algo. E se sabe, não precisa ter medo. Pode nos contar.
— Não é medo, sinhá. É que prometi ao sinhozinho.
— Prometeu o quê?
— Prometi não falar nada, principalmente com a sinhá sua mãe.
— Pois eu o estou liberando dessa promessa — interrompeu Camila. — Vamos, Trajano, diga-nos.
Ele não falava, até que Júlia resolveu chamá-lo à razão:
— Escute Trajano, você se lembra muito bem do que aconteceu com Raimunda, não lembra? — Ele assentiu, sem tirar os olhos do chão. — E quer que isso se repita? Quer?
— Não, sinhá, por Deus. Raimunda era uma menina; não merecia aquilo.
— Pois então? — continuou Camila. — O que está esperando para nos contar o que sabe?
— Bem, não sei muita coisa. Mas no dia do piquenique, sinhozinho Túlio não tirava os olhos de Etelvina. A moça até se assustou.
Camila olhou para Trajano com ar de preocupação e prosseguiu:
— Pois muito bem, Trajano. Não queremos que Etelvina tenha o mesmo destino de Raimunda, não é?
— Não, sinhá.
— Pois, então, você tem que nos ajudar. Vigie os passos de Túlio. Não o deixe sozinho com a moça.
— Hoje mesmo eu os vi juntos — contou Júlia. — E foi isso o que me chamou a atenção.
— Pois é — tornou Camila. — Por isso é que você deve vigiá-lo constantemente. Mas não deixe que ele perceba. Faça amizade com a moça, acompanhe-a. Você não é escravo daqui, e ninguém pode impedi-lo de ir aonde quiser. Você promete?
— Prometo sinhá. Mas posso pedir uma coisa?
— Claro, fale.
— Gostaria que as sinhás não falassem nada disso com sinhô Túlio. Não quero que ele fique com raiva de mim.
— Não se preocupe. Túlio não vai ficar sabendo de nada. Isso ficará apenas entre nós três, está certo?
— Sim, sinhá, obrigado.
— Agora pode ir, Trajano, e obrigada por sua compreensão.
— Ora, sinhá, não precisa agradecer, não. Faço isso porque gosto das sinhás e dos meninos.
— Sei disso, Trajano, e agradeço. Agora pode ir. Procure-o e, disfarçadamente, fique por perto. Não o perca de vista um só minuto.
— Não, sinhá, pode deixar. Não se preocupe que farei tudo direitinho.
Ele saiu em direção ao terreiro, onde as escravas estavam trabalhando. Ao passar pela cozinha, porém, quase esbarrou em Terêncio, que ia entrando, atrasado para o almoço. Acabara de chegar do Rio de Janeiro, onde fora buscar umas encomendas, e chegava morto de fome. Trajano, acabrunhado, murmurou baixinho:
— Desculpe moço.
E saiu. Terêncio, que nunca vira por ali aquele negro, resolveu indagar de Tonha:
— Quem é esse?
— È Trajano, escravo de sinhá Camila.
Depois de comer, levantou-se mal-humorado, saindo atrás de Trajano. Foi encontrá-lo no terreiro atrás da casa, conversando com Etelvina. Terêncio não gostou daquilo. Não era de bom tom os escravos ficarem de prosa, ainda mais quando se tratava de um desconhecido. Com voz ríspida, chamou:
— Etelvina, venha até aqui!
Etelvina largou a vassoura com que batia nos tapetes, estirados sobre o muro, e correu para onde ele estava.
— Sim, seu Terêncio — disse humilde.
— Que história é essa de ficar proseando na hora do serviço? Não quero isso aqui, não.
— Por favor, moço — interrompeu Trajano —, não brigue com ela. Fui eu que puxei conversa.
— Pois não devia. Você não é daqui e, pelo visto, não faz nada. Mas nossos negros estão acostumados ao trabalho, e sinhá Palmira não gosta que fiquem de prosa. Atrapalha o serviço.
— Sim, senhor, desculpe. Isso não vai se repetir.
— Acho bom mesmo. E agora, Etelvina, volte ao serviço.
— Está bem, seu Terêncio.
Etelvina voltou a seus afazeres, e Trajano pediu licença para se retirar, quando Terêncio o alertou:
— Escute aqui, negro, fique longe das escravas, principalmente de Etelvina. Dona Palmira não gosta de namoricos entre os negros, e eles só se acasalam com a sua autorização.
Trajano mordeu os lábios e respondeu com os olhos se enchendo de lágrimas de raiva:
— Sim, senhor. Não precisa se preocupar que não quero nada com Etelvina. Estava apenas conversando.
— Acho bom. Caso contrário serei obrigado a tomar certas providências, digamos, um pouco mais drásticas. Entendeu?
— Sim, senhor. Entendi muito bem.
— Ótimo. Você me parece um escravo esperto. Continue esperto aqui e vamos nos dar muito bem.
Terêncio virou-lhe as costas e saiu em direção à sua casa. Estava cansado e precisava dormir. Ia caminhando devagar e já estava na porta quando um vulto, esgueirando-se por detrás de uma árvore, saltou à sua frente, encarando-o com um sorriso sarcástico. Ele deu um salto para trás e já ia sacando a pistola, presa à cinta, quando o vulto levantou a cabeça e afastou o capuz, mostrando-lhe o rosto envelhecido. Terêncio levou um susto. Fitou demoradamente aquele rosto, tentando lembrar-se de onde o conhecia, até que soltou uma perplexa indagação:
— Você?
Terêncio olhou de um lado para outro, mas não viu ninguém. Estavam sós. Acenou para que o vulto o seguisse e com ele entrou em casa. Fechou a porta rapidamente, e a mulher surgiu, deixando cair o manto e o capuz.
— Dona Constância! — exclamou surpreso. — Há quanto tempo! Julgava-a morta.
Ela olhou para ele com raiva e retrucou:
— Pareço morta?
— Bem, devo dizer que está um pouco... Digamos... Mudada.
Constância fez um ar de desdém e desabou na cadeira. Estava mudada sim, mas, internamente, continuava a mesma. Vendo uma cômoda no quarto contíguo, acima da qual estava pendurado um espelho velho e oxidado, correu para ele e, afastando os cabelos grisalhos e oleosos, exibiu profunda cicatriz, que lhe descia desde a altura da sobrancelha esquerda até a ponta da orelha.
— Aposto como está curioso para saber como ganhei isto — disse, apontando para a cicatriz.
— Estou sim. Não posso negar. Da última vez em que a vi, era uma moça bonita, esbelta, viçosa. Mas agora...
— Agora sou uma velha gorducha, com a cara marcada. — Ele não disse nada, e ela prosseguiu: — Tenho uma longa história para contar...
— Imagino. Gostaria de saber por onde andou durante todos esses anos. Seus pais tudo fizeram para encontrá-la, mas foi em vão.
— Ora, o que poderia eu fazer? Fui expulsa daqui por seu Licurgo. Como poderia viver em sociedade, coberta pela vergonha?
— Para onde foi?
— Não imagina?
— Não, não imagino.
Ela hesitou durante alguns instantes antes de continuar:
— Não sei se posso confiar em você. Depois de tudo o que me fez, é bem capaz de me trair novamente.
Constância virou-se para o outro lado. Não queria que ele visse as lágrimas que brotavam em seus olhos. Em silêncio, chorou baixinho, lembrando-se de que Licurgo a expulsara dali porque Terêncio a delatara, contando-lhe que fora pago por ela para facilitar sua vingança.
Vendo que ela não respondia, Terêncio disse, cortando-lhe os pensamentos:
— Isso foi há muito tempo. Ninguém mais se lembra dessa história.
— Será que não? Nem Tonha?
— Tonha é apenas uma escrava. Quem se importa com o que pensam os escravos?
Ela suspirou e perguntou:
— E tia Palmira?
— Está em casa.
— Será que me receberia? Hoje não sou mais aquela menina de antes. Receio que ela me repudie, tendo em vista minha atual condição.
— É, pelo visto, a vida lhe foi madrasta.
— Você nem imagina o quanto.
— Por que não me conta o que lhe aconteceu? Talvez possa ajudar.
Ela olhou para ele com ar malicioso. Afinal, o que tinha a perder?
— Bem — começou ela pausadamente —, depois que saí daqui, consorciei-me a Basílio...
— O quê? Casou-se com o homem que desgraçou a vida de dona Camila?
— Casar-me? Não. Mas Basílio e eu passamos a viver juntos. Éramos iguais, ambos fracassáramos em nossos propósitos, o que nos proporcionou um ótimo entendimento. Quando eu fugi, saí levando apenas algumas jóias, que garantiram nosso sustento por algum tempo. Mas, depois, quando o dinheiro acabou, fui obrigada a me utilizar de outros recursos para sobreviver. Basílio, vendo a pobreza se aproximar, abandonou-me, e eu passei a viver da troca de favores com os homens. Até que um dia, um marinheiro enciumado deixou-me esta marca no rosto.
— É. É uma história bastante triste. E por que resolveu voltar agora?
— Porque seu Licurgo morreu, e pensei em pedir auxílio à tia Palmira, contando com sua discrição. Não suporto mais essa vida e não tenho coragem de voltar para casa.
— Entendo... Sabe que Camila está aqui?
— Eu a vi no enterro, com os filhos. Teve sorte de encontrar alguém que ainda a quisesse, não é mesmo?
O capataz meteu um pedaço de fumo de rolo na boca, mastigou e cuspiu no chão, e Constância virou o rosto, enojada. Apesar de tudo, ainda era uma dama.
— Escute dona Constância, por que não espera enquanto vou chamar dona Palmira?
— Oh, não sei se poderia!
— É claro que poderia. Não foi para isso que veio?
Terêncio saiu e voltou sozinho, quase uma hora depois.
Palmira não quisera acompanhá-lo e não acreditara quando ele lhe dissera que sua sobrinha, Constância, estava de volta. No entanto, ele jurara que o que dizia era a mais pura verdade, e ela mandara que ele levasse a mulher até ali.
Constância entrou sozinha no quarto de Palmira. Ela estava só, sentada numa poltrona, perto da janela. Palmira permaneceu durante longo tempo a estudá-la, sem que Constância ousasse mexer um só músculo sequer. Até que, subitamente, olhos rasos d'água, ela abriu um sorriso e estirou os braços. Constância correu para ela e atirou-se a seus pés, escondendo a cabeça em seu colo e chorando, como há muito tempo não fazia.



CAPÍTULO 5 Com o amor não se brinca_Mônica de Castro



Dário acordou ansioso. Mal dormira na noite anterior, pensando na conversa que teria com Ezequiel. Levantou-se cedo e se aprontou, esmerando-se na vestimenta. Queria estar bonito para Sara. Ele a amava e estava decidido. Já conversara com a mãe; falaria nesse dia mesmo com os pais da moça e pediria sua mão em casamento. Já se amavam há muito, e não havia mais motivos para esperar.
Quando chegou à fazenda Ouro Velho, a família se encontrava reunida na sala. Ezequiel lia o jornal da manhã, e as moças bordavam toalhas para a mesa. Dário entrou, cumprimentou a todos e disse encabulado:
— Seu Ezequiel, será que eu podia falar a sós com o senhor?
— Aconteceu alguma coisa, meu filho? — perguntou ele. — Sua mãe está bem?
— Sim, senhor, todos estão passando muito bem, obrigado. O assunto não é esse, mas tem certa urgência.
Ezequiel fez cara de dúvida, mas aquiesceu:
— Está bem. Se for assim tão urgente, venha até a biblioteca.
Os dois saíram, e Rebeca olhou para Sara pelo canto do olho.
A moça apertava as mãos com nervosismo. Será que ele resolvera, finalmente, pedir a mão da filha em casamento? Ela sorriu intimamente e voltou à atenção para o bordado que tinha nas mãos. Gostava muito de Dário e de sua família, e ficaria muito satisfeita em tê-lo como genro.
Na biblioteca, Ezequiel indicou a Dário uma poltrona, sentando-se em outra, a seu lado.
— E então? — começou. — Do que se trata?
— Seu Ezequiel — começou meio sem jeito —, nossas famílias são amigas há muitos anos, não é mesmo?
— Sim. Por quê?
— Bem, como o senhor sabe, Sara e eu, já há algum tempo, dedicamo-nos mútua afeição...
— Sim? — fez ele, interessado.
— Por isso gostaria de me casar com ela, se o senhor consentir, é claro.
Ezequiel deu um salto e levantou-se, correndo para a porta e escancarando-a. Dário, assustado, pensou que ele o expulsaria dali e já ia atrás dele, tentando arranjar alguma desculpa, quando escutou a voz do outro, soando tonitruante na sala ao lado:
— Rebeca! Rebeca! Venha cá, mulher, levante-se!
— Mas o que foi que houve meu Deus? — perguntou ela, espantada. — Por que tanto alarde?
— Rebeca, hoje tive a notícia mais feliz da minha vida. Dário, finalmente, pediu a mão de nossa Sara em casamento.
Dário, que ia chegando logo atrás, quase desmaiou. Não esperava que ele ficasse tão contente e parou estupefato. Ezequiel, porém, voltou-se para ele e o abraçou, enquanto Sara chegava, pálida feito cera. Dário tomara aquela decisão sem consultá-la, e ela ficara um pouco surpresa.
— Papai, o que houve?
— Não ouviu minha filha? Dário disse que se amam e quer se casar com você. Não está feliz?
Ela começou a chorar, e o pai abraçou-a com carinho. Rebeca, ainda paralisada, balbuciou:
— É uma notícia... Maravilhosa.
— Oh, papai, o senhor nos dará seu consentimento?
— É claro, minha filha. Dário é como um filho para mim, e fico muito feliz com seu pedido. Sei que cuidará muito bem de você e que a fará feliz.
— E minha doença? Será que não morrerei antes?
— Nem pense nisso, minha querida — protestou Dário, estreitando-a nos braços. — Vamos nos casar e viver felizes para sempre.
— È verdade — concordou Ezequiel. — Você já está bem melhor. A cor até já voltou a suas faces.
— Mas tenho medo.
— Medo de quê, meu Deus?
— Medo de contaminar alguém.
— Ora, querida, mas que bobagem — objetou o pai. — Se tivesse que contaminar alguém, não acha que já o teria feito?
— Mas o doutor...
— O doutor não sabe de nada. Você está doente, é verdade, mas não é nada assim tão sério. Tenho certeza de que Dário não contrairá sua enfermidade.
— Mas e se for...
— Por favor, Sara, não diga mais nada. Não sabemos o que é.
— Mas papai...
— Nem mais nem menos. Você vai se casar e pronto. Ou será que não o corresponde nesse sentimento?
— È claro que sim. Amo Dário, e ele sabe disso.
— Então, querida — tornou ele —, por que não podemos nos casar? Pensei que fosse isso o que quisesse.
— É claro que quero. Mas não agora. Não antes de ter certeza de que minha doença não é contagiosa.
— Meu amor, como seu pai mesmo disse se fosse contagiosa, todos nós já a teríamos contraído. Vamos, deixe de tolices. Nós nos amamos você vai ficar boa, e seremos muito felizes.
— Seus pais já sabem? — quis saber Rebeca.
— Já, sim. Mamãe ficou muito contente e já escreveu a papai, contando-lhe tudo.
— Meu filho — tornou Ezequiel em tom grave —, tem certeza de que é isso mesmo o que quer?
— Ora, seu Ezequiel, então não me conhece? Não acredita em meu amor por sua filha?
— Não é isso. Mas é que você é ainda muito moço, e sei como é o coração dos jovens.
— Já vou fazer vinte e três anos e sei muito bem o que sinto. Amo sua filha mais do que tudo neste mundo e só posso ser feliz a seu lado.
— E você, minha filha, também o ama assim?
Ela olhou para Dário com os olhos úmidos, cheios de amor, e respondeu:
— Sem sombra de dúvida, papai. Amo-o além desta vida.
— Pois bem. Então está feito. Dário, assim que seu pai vier, poderemos marcar uma data para o noivado.
— Realizar-se-á aqui mesmo, na fazenda?
— Provavelmente. Ainda vamos nos demorar por aqui, e creio que não querem esperar.
— É claro que não, seu Ezequiel.
— Ótimo. Assim sua avó poderá vir com seus tios. A exceção do senhor Fausto, ainda não os conhecemos.
Dário teve um estremecimento. Não havia pensado naquilo. A avó ainda não sabia que Sara e a família eram judeus. Será que aceitaria? Contudo, achou melhor não pensar nisso no momento. A mãe, como sempre, saberia resolver aquele problema.
No dia seguinte, Dário saiu em busca de Camila, e ela prometeu pensar num meio de contar tudo a Palmira. Afinal, eles se amavam, e ela tinha que compreender. No entanto, aquele não seria o melhor momento para revelar-lhe a verdade. Ela já estava bastante idosa, e era preciso preparar-lhe o espírito. Camila procurou Rebeca e Ezequiel e contou-lhes seus temores.
— Mas, Camila — protestou Ezequiel —, não podemos concordar. Não está direito.
— Por favor, Ezequiel, tente entender. Eu não lhes pediria algo assim se não fosse extremamente importante e necessário.
— Mas nós pensávamos que ela já sabia de tudo a nosso respeito. Não posso concordar em permanecer incógnito. Não tenho do que me envergonhar.
— Não se trata disso.
— Trata-se de quê, então?
— De uma caridade. Caridade para com uma senhora, velha demais para começar a entender certas coisas.
— Hum... Não sei, não.
— Por favor, Ezequiel, é só por um tempo. Pense em nossos filhos, em como sofreriam se tivessem que se separar. E Sara? O que seria dela?
— Camila tem razão — intercedeu Rebeca. — Temos que pensar na saúde e na felicidade de Sara.
Ezequiel apertou as mãos, vencido. Embora não aprovasse aquela atitude, teria que concordar. Pelo bem de sua filha, não diria nada.
Saindo da casa dos amigos, Camila foi à busca de Trajano. Precisava saber como estava indo a vigilância sobre Túlio. Trajano estava ajudando Tonha, cortando lenha para o fogão, quando ela chegou por trás e disse:
— Olá, Trajano, como está?
Ele se voltou sorridente e respondeu em tom jovial:
— Muito bem, sinhá, obrigado.
— Será que poderia me acompanhar por uns minutos?
— Claro sinhá. Eu só estava ajudando Tonha porque não tinha nada para fazer, e a senhora sabe que não gosto de ficar à toa.
Ele foi em direção à cozinha e chamou Tonha, avisando-lhe que precisaria interromper o serviço. Depois que voltou, os dois se afastaram, caminhando lado a lado pela estradinha.
— E então, Trajano, como está se saindo o meu menino?
— Túlio?
— Sim. Você tem feito como mandei, não tem?
— Direitinho sinhá. Não perco o menino Túlio de vista um só instante sequer. Hoje ele ainda não saiu.
— E aí?
— Para ser sincero, ele bem que anda atrás da Etelvina. Mas quando percebe que estou por perto, fica furioso e se afasta.
— Não faz mal. Antes assim. Você não lhe contou nada, não é?
— Deus me livre, sinhá. Sinhozinho Túlio é até capaz de me matar.
— Não diga tolices. Túlio não seria capaz de matar ninguém.
Não é mau. É apenas meio doidivanas.
— A sinhá está certa. Sinhozinho Túlio tem bom coração, mas ainda não sabe disso.
— É verdade, Trajano. E nós precisamos mostrar-lhe, não é mesmo? Ele precisa que nós lhe indiquemos o caminho do bem. Bem, agora vou voltar. Obrigada pela informação, e continue a vigiá-lo.
— Não se preocupe sinhá.
No caminho de volta, Trajano avistou Etelvina voltando do riacho, carregando uma cesta de roupa lavada. Ficou encantado ao vê-la. Ela era linda. Mais que depressa, correu ao seu encontro, tomando-lhe das mãos o pesado cesto.
— Deixe que ajude você — disse solícito.
— Obrigado, Trajano. Você é muito gentil.
— Ora, Etelvina, o que é isso?
— É sim. Você é fino, tem educação. Bem se vê que não foi criado em senzala.
— Acha mesmo?
— Acho sim. Mas diga o que faz por aqui?
— Eu? Nada. Estava ajudando Tonha com a lenha.
Os dois seguiram conversando, até que avistaram Túlio saindo de casa. Ia ligeiro, segurando nas mãos uma vara de pescar. Ao passar por eles, cumprimentou:
— Olá, Trajano.
— Bom dia, sinhozinho. Vai pescar?
— Vou sim.
— Posso acompanhar o sinhô?
— Acompanhar-me? Depende. Se Etelvina vier junto, pode sim. Etelvina abaixou os olhos e respondeu com voz sumida:
— Perdão, sinhô, mas tenho que cuidar da roupa.
— A roupa pode esperar — concluiu ele, puxando-a pelo braço.
Ela se assustou e começou a chorar, até que Trajano, segurando o braço de Túlio, disse pausadamente:
— Sinhô Túlio, está assustando a moça.
— Estou? Ora, Etelvina, desculpe-me — zombou —, não tive a intenção. Apenas pensei que gostaria de descansar um pouco da lida.
— Agradecida, sinhô, mas não posso, não. Seu Terêncio me castiga.
— Pode deixar que falo com ele.
— Sinhô Túlio — interrompeu Trajano —, a moça disse que não pode. Por que não a deixa ir embora?
— Não se meta Trajano. Já estou farto de ver você me seguindo por aí. Vá arranjar o que fazer.
— Sinto sinhô, mas não vou deixar que maltrate a menina Etelvina.
— E quem disse que vou maltratá-la? Ao contrário, vou tratá-la com muito carinho — e soltou estrondosa gargalhada, olhando para ela com olhar lúbrico.
Etelvina, assustada, pediu licença e desatou a correr. Tinha medo de sinhozinho Túlio e não gostava de ficar perto dele. Ao vê-la correr desabalada, Túlio virou-se para Trajano e disse furioso:
— Viu o que você fez? Seu idiota.
— Desculpe sinhô, mas não pode tratar Etelvina desse jeito.
— E o que você tem com isso? Por acaso é pai dela? Não, claro que não. Você está é interessado nela, não é? Mas não se preocupe. Não pretendo tomá-la de você. Só o que quero é me divertir. Ela é uma cadelinha no cio e deve estar louquinha para ser possuída. Depois lhe conto tudinho como foi. Quem sabe até não abro caminho para você, e você pode servir-se dela? Depois de mim, é claro.
Trajano, perplexo, não conseguiu conter a indignação e acertou em cheio um soco no queixo de Túlio, que imediatamente tombou no chão, pondo-se a gritar. Na mesma hora se arrependeu e abaixou-se para ajudá-lo a se levantar. Túlio, porém, desfigurado pela raiva, revidou o golpe, desferindo no outro murros e pontapés, sem que Trajano se defendesse. Com a gritaria, todo mundo acorreu, e foi Palmira quem primeiro disse:
— Mas o que é que está acontecendo aqui, posso saber?
Vendo a avó ali parada, apoiada em sua bengala, ao lado de sua mãe, Túlio soltou o escravo e respondeu com rispidez:
— Nada de mais, vovó. Estou apenas dando uma lição nesse negro.
— O que foi que ele fez?
— Desrespeitou-me. Levantou a mão para mim, o insolente!
— Túlio, não acredito em você — contestou a mãe. — Conheço Trajano e sei que ele não seria capaz de desrespeitar ninguém. E, mesmo que o tivesse feito isso não seria motivo para espancá-lo.
— Mas ele me bateu primeiro!
— Mentira. Trajano não é violento e jamais bateu em ninguém.
— Mas é verdade. Pergunte a ele. Camila olhou para Trajano, que abaixou os olhos, já inchados de tanto apanhar. Sem esperar pela pergunta, ele foi logo falando:
— É verdade, sinhá. Eu perdi a cabeça e bati no sinhozinho Túlio.
— Você o quê? — indignou-se Palmira. — Como se atreveu a encostar a mão em meu neto, negro imundo?
— Perdão, sinhá, isso não vai se repetir.
— Ora, mas não vai mesmo. Terêncio! Terêncio! Venha cá! Terêncio apareceu em poucos minutos.
— Chamou dona Palmira?
— Chamei sim. Quero que leve este negro para o tronco e lhe dê uma lição.
— Sim, senhora.
— Espere Terêncio — protestou Camila. — Isso não será necessário. Eu mesma resolverei esta questão.
— Mas, Camila, ele bateu em seu filho. Não acha que merece um castigo?
— Não, mamãe, não acho. Conheço muito bem a ambos e sei que, se Trajano tomou uma atitude dessas, deve ter tido seus motivos, e bem fortes.
— Mas que horror! Como pode defender um escravo, colocando-se contra seu próprio filho? Você enlouqueceu?
— Não, mamãe, não enlouqueci. Mas, creia-me, sei o que estou fazendo.
— Mamãe — retrucou Túlio abismado —, vai defender esse negro?
— Vou, meu filho, e você sabe bem por quê.
— Camila, minha filha, não vejo que motivos possam existir para impedir o castigo do escravo que bateu em seu próprio filho. Seja o que for não está direito.
— Por favor, mamãe, sei o que estou fazendo. E agora, Túlio, venha comigo. Você e Trajano. Precisamos ter uma conversa.
— Sinto muito, mamãe, mas não vou aceitar uma reprimenda por causa de um escravo que, além de insolente, ainda me esmurrou.
Sem dar tempo a Camila para que esboçasse qualquer resposta, Túlio se levantou e se afastou, seguindo em direção à trilha que ia dar no riacho. Foi tão depressa que ninguém teve tempo de impedi-lo. Palmira, satisfeita, olhou para a filha com ar de reprovação e disse:
— Camila, você me surpreende e me decepciona. Onde já se viu ficar contra seu filho, meu neto, e a favor desse negro? — Ela não disse nada, e Palmira continuou: — Pois muito bem. Vou dar-lhe um aviso. Ou você manda castigar esse escravo insolente, ou terá que mandá-lo embora. Não quero mau exemplo aqui.
— Mamãe, a senhora não pode me obrigar!
— Você também não pode me obrigar a tê-lo em minha fazenda. Se aceitar o que ele fez, sem nenhum castigo, os outros pensarão que amoleci ou, pior, que não há mais ordem em minha casa. E isso não pode e não vou permitir.
Camila ficou abismada. Não sabia como proceder numa situação como aquela. Castigar Trajano estava fora de cogitação. Mandá-lo embora, impossível. Trajano, sem saber o que fazer, permaneceu calado e imóvel, parado junto a Júlia, que o incentivava com o olhar. Tentando apelar para a caridade, ela ainda arriscou:
— Dona Palmira, a senhora não conhece bem seu neto.
Trajano é nosso amigo e foi quem ajudou a nos criar, a mim, inclusive. Tenho certeza de que Túlio fez algo de muito grave para que Trajano tomasse a atitude que tomou.
Palmira olhou-a com desprezo e retrucou com azedume:
— Não importa que meu neto não tenha sido criado perto de mim e que, por isso, não o conheça muito bem. O que realmente tem importância é que ele carrega em suas veias o meu sangue e o sangue de meu primeiro marido, Gaspar, que Deus o tenha. E tanto eu quanto ele, e também Licurgo, jamais aceitaríamos tamanha barbaridade. Um escravo sempre será um ser inferior, não importa o quanto possa ter tentado agir corretamente. E enquanto eu for viva, jamais, ouviu bem? Jamais um neto meu será humilhado por um negro sem o devido castigo. E quanto a você, mocinha, é uma estranha nesta casa, e peço que se coloque em seu lugar, evitando dar opiniões quando não solicitadas. Devo lembrá-la de que a recebi aqui em consideração a minha filha, mas posso muito bem mudar de idéia e mandá-la embora junto com esse negro que você se atreve a chamar de amigo.
Palmira voltou-lhe as costas e se foi, espumando de raiva, seguida por Terêncio. Então aquela atrevida ainda ousava questioná-la? Camila, por mais errada que estivesse ainda era sua filha, e ela tinha que tolerar. Mas uma estranha? Isso não. Apesar da idade e da bengala, ela atravessou o terreiro feito uma bala, dando de cara com Tonha, que permanecera afastada, presenciando aquela cena com uma pontada de amargura. Ao passar por ela, Palmira estacou e, olhando fundo em seus olhos, esbravejou:
— Deve estar satisfeita, não é negra? Pensa que se vinga de mim com isso? Pensa que só porque minha filha e aquela mocinha se voltaram contra mim você pode me espezinhar? Pois está muito enganada. Ponho-os a todos para fora daqui, inclusive você. Não pense que vou admitir sem-vergonhices entre negros e brancos em minha casa novamente. Não está satisfeita com o que me fez, roubando-me a vida de meu filho e de Inácio? Pretende ainda desforrar-se de mim, acobertando pessoas que aqui vieram para me humilhar? Pois não vai, ouviu? Mato-a antes disso.
Tonha abaixou a cabeça, envergonhada. Podia sentir em suas palavras todo o rancor daqueles anos em que vivera naquela casa sob o ódio mal disfarçado de Palmira. Ela ainda a acusava pela morte de Inácio e de Cirilo, e aquela situação, não sabia por que, evocara todo o ressentimento que vinha ocultando dentro de si, fazendo com que voltasse contra ela sua ira desenfreada, como se ela fosse à culpada por aquele infeliz incidente.
Palmira nunca pudera perdoar Tonha pela morte de seus meninos. Mas a verdade é que, desde que Constância ali chegara pobre e envelhecida, o ódio de Palmira só fizera crescer. Ninguém sabia de sua presença ali. Ela apenas dissera que recebera a visita de uma amiga que chegara para passar uns dias. Contara que a senhora estava velha e só precisava de um lugar para repousar. Por isso, ninguém deveria incomodá-la. A princípio, todos ficaram curiosos, mas, com o passar dos dias, ela acabou caindo no esquecimento, e ninguém mais parecia se lembrar daquela velhinha. Contudo, Constância estava ali, e sua presença avivava o ódio de Palmira por Tonha e pelos escravos.
Nesse instante, Rodolfo e Fausto, que iam chegando da plantação, ainda puderam escutar parte da agressão da mãe e estacaram admirados.
— Mas o que é que está acontecendo aqui? — perguntou Fausto, indignado. — Por que está brigando com Tonha desse jeito?
— Nada! — gritou a mãe. — E saiam da minha frente. A última coisa de que preciso no momento é de mais um defensor de negros!
E empurrou-os para o lado, passando por eles feito um furacão. Rodolfo e Fausto entreolharam-se e deram de ombros, demonstrando que não haviam entendido nada daquela cena. Contudo, quando olharam mais adiante, avistando a família parada no terreiro, tiveram certeza de que algo muito sério deveria ter acontecido.
Rodolfo, mais que depressa, saiu atrás da mãe, na esperança de que ela lhe contasse algo. Fausto, por sua vez, foi ter com Júlia. A moça estava chorando, abraçada a Camila, que acariciava seus cabelos, tentando consolá-la. Preocupado, aproximou-se e indagou:
— Será que alguém pode me dizer o que está acontecendo por aqui?
Júlia olhou para ele em lágrimas e virou-lhe as costas, tomando a direção da casa grande. Ele tentou detê-la, mas foi impedido por Camila que, segurando-lhe o braço, disse com voz pesarosa:
— Deixe-a, Fausto. Ao menos por enquanto.
— Mas o que foi que houve? Preciso saber.
— Venha comigo e lhe contarei.
Trajano, que permanecera quieto durante o desenrolar de todo aquele drama, levantou-se de súbito e disse:
— Sinhá Camila, perdoe-me, eu não queria...
— Sei que não, Trajano.
— O que a senhora pretende fazer comigo?
Ela o olhou cheio de pena e disse para o filho:
— Dário, leve Trajano para a fazenda Ouro Velho e explique tudo a Ezequiel. Peça-lhe que o deixe ficar lá até que resolvamos o que fazer.
— Está bem, mamãe — concordou Dário. — Ia mesmo sugerir isso.
Os dois saíram em direção à senzala, onde Trajano pegou suas coisas, e partiram em seguida para a casa de Ezequiel. Camila, depois que eles se foram, puxou Fausto pelo braço e saiu em direção ao jardim, caminhando enquanto falava. Minuciosamente, contou-lhe tudo o que acontecera, desde quando escutara os gritos de Túlio, até aquela cena horrorosa que ele e Rodolfo haviam presenciado.
— Pobre Júlia - lamentou Fausto. — Mamãe sabe ser cruel quando quer.
— Júlia está arrasada. Francamente, mamãe não precisava ter falado com ela daquele jeito.
Fausto, estarrecido, ainda perguntou:
— Mas por que, meu Deus? Por que Trajano foi fazer isso?
— Não sei, mas desconfio. No entanto, ele não teve tempo de se explicar. Mais tarde, depois que a poeira abaixar, irei até a casa de Rebeca para descobrir o que realmente aconteceu.
— Desconfia de quê?
— Sabe aquela escrava bonitinha, que vive pra cima e pra baixo com uma cesta de roupas, a Etelvina?
— Sei. O que tem ela? Não vá me dizer que Túlio está atrás da menina.
— Isso mesmo.
— Ora, Camila, desculpe-me, mas não creio que isso seja motivo para Trajano bater nele.
— Isso porque você não conhece o seu passado.
— Como assim?
Camila narrou-lhe os antecedentes do filho. Fora um caso triste e trágico, a moça morrera na flor da idade, e ela não queria que isso se repetisse. Por isso mandara Trajano vigiar Túlio. Para impedir que uma nova desgraça sucedesse, repetindo aquela tragédia do passado.
— Compreendo — disse Fausto, pensativo. — Mas, ainda assim, minha irmã, não creio que Trajano tenha agido direito. Afinal, é um escravo. Deveria tê-la procurado e contado tudo.
— Fausto, não o julgue. Não sabemos o que realmente aconteceu. Túlio, com certeza, fez algo de extrema gravidade para que Trajano lhe batesse.
— E o que pretende fazer?
— Não sei. Preciso pensar. Acho que o melhor a fazer seria irmos todos embora daqui.
— Você não pode fazer isso!
— Por que não?
— Por que... Por que... Júlia e eu... Nós nos amamos...
Ela o encarou e suspirou. Fausto era um bom rapaz, e ele e Júlia pareciam feitos um para o outro. Ambos já não eram mais crianças e saberiam construir uma vida segura e sólida. No entanto, havia o problema com Trajano. Como poderia admitir que ele fosse expulso? Castigá-lo, jamais o faria. Fausto, amargurado, replicou:
— Ouça Camila, não estou pedindo para castigar o escravo. Nem que o expulse daqui. Mas se você já o mandou para a fazenda Ouro Velho, por que não deixá-lo lá por uns tempos? Mais tarde mamãe voltará atrás. Conversarei com ela, farei com que veja o quanto foi injusta.
— Acha que poderá?
— Tentarei. Não posso viver sem Júlia, e se ela partir, meu coração partirá com ela.
— Por que não vem conosco? Sabe que será muito bem-vindo em minha casa.
— Eu sei Camila, e agradeço. Mas não posso partir assim, deixando a fazenda só com Rodolfo. Tenho minhas obrigações aqui e gosto de administrar nosso patrimônio. Mais tarde, quem sabe? Mas agora, não. Mamãe precisa de mim.
— Entendo... Mas eu, sinceramente, não sei o que fazer. Júlia, provavelmente, está trancada no quarto, chorando. Não sei se vai querer ficar aqui depois disso.
— Deixe-me falar com ela. Nós nos amamos e vamos encontrar uma solução.
Ele abraçou a irmã e partiu em busca de sua amada. Júlia, conforme Camila previra, estava trancada no quarto e não queria falar com ninguém. Mas Fausto tanto bateu e tanto insistiu que ela acabou cedendo e abriu a porta. Ele entrou rapidamente e, tomando-a nos braços, beijou-a com ardor.
— Oh, minha querida — sussurrou em seu ouvido. — Já sei de tudo. Camila me contou.
Ela se apertou ainda mais contra ele e continuou a chorar, cada vez mais sentida.
— O que vou fazer, Fausto? Não posso mais ficar aqui depois do que aconteceu.
— Pode sim. Isso vai passar. Tenho certeza de que mamãe só disse aquilo na hora da raiva. Ela vai reconsiderar você vai ver.
— Não estou interessada em sua reconsideração. Sua mãe me ofendeu, humilhou-me, e isso não posso permitir. Tenho meus brios, meu orgulho. Não vou me sujeitar a esperar seu perdão ou sua condescendência. Prefiro antes partir, ainda que tenha que ficar longe de você.
— Por favor, minha querida, não se vá. Não posso viver sem você.
— Também não quero deixá-lo. No entanto, é a única solução possível.
— Deixe-me falar com mamãe primeiro. Tenho certeza de que ela vai cair em si e virá falar com você, pedindo-lhe desculpas.
Ela já está velha e deve estar um pouco senil.
— Sua mãe estava muito lúcida quando me atirou na face aquelas barbaridades. Além disso, ainda tem Camila. Com certeza, ela também desejará partir.
— Já falei com minha irmã, e ela concordou em esperar.
— Concordou?
— Sim. Eu praticamente lhe implorei.
— Ainda assim, não posso ficar. Não quero.
— Por favor, Júlia, você está sendo infantil.
— Infantil? Acho que estou sendo sensata. Não preciso me expor a esse tipo de constrangimento.
— Sei que não. Mas você não me ama?
— Você sabe que sim.
— Então, por que não me dá uma chance? Por que não dá uma chance a minha mãe? Deixe-me falar com ela, e se ela se recusar a pedir-lhe desculpas, você poderá partir, e eu irei com você. Caso contrário, você fica. Então, que tal? Não é uma proposta razoável?
Júlia pensou por alguns segundos, até que concordou:
— Está bem. Mas só esperarei até hoje à noite. Se ela não se conscientizar da injustiça que cometeu, partirei amanhã de manhã, com ou sem você.
— Está certo, querida, obrigado. Verá que não vai se arrepender.
Enquanto isso, no quarto de Palmira, Rodolfo tomava as dores da mãe, inflamando-a contra o escravo. Não gostara dele desde o início. Sempre andando de um lado para outro, de olho nas escravas de dentro. Não fazia nada, vivia a vagabundear pela fazenda. Não entendia por que Camila o trouxera. Ele era um inútil, não servia para nada. E depois, bater em seu sinhô? Era uma afronta que não merecia perdão.
Palmira, animada por suas palavras, cada vez mais se enchia de ódio por Trajano, julgando-o um verdadeiro demônio, que enfeitiçara sua filha para se apoderar de seus netos. Quem sabe até não fosse algum degenerado? Estimulada pela inveja de Rodolfo, que pretendia com isso vingar-se de Júlia, Palmira ia cada vez mais acreditando em suas fantasias e já pensava mesmo em mandar matar o escravo, quando ouviram batidas na porta. Maquinalmente ordenou:
— Entre.
A porta se abriu e Fausto entrou. Olhou para ela, depois para Rodolfo e disse:
— Como está, mamãe?
— Como queria que eu estivesse? Feliz?
— Não, claro que não. Foi um lamentável incidente.
— Chama de lamentável a ousadia de um negro que encosta a mão em um branco? Chama de incidente o fato desse mesmo negro haver batido em seu próprio sobrinho? Por muito menos seu pai mandou um escravo para o tronco, só porque se atreveu a segurar em meu braço.
— Não vim aqui para questionar isso, mamãe. Não quero me envolver nessa história.
— Ah, não? E por que veio então?
— Para falar de Júlia.
Ao ouvir o nome de Júlia, Rodolfo apurou os ouvidos. O que estaria pretendendo o irmão? Mal contendo a surpresa e a ansiedade, indagou:
— De Júlia?
— Sim, de Júlia.
— O que quer? — retrucou Palmira, fuzilando de ódio. — Defendê-la? Ela é uma atrevida e uma intrometida, isso sim. Não pertence a nossa família e não tinha o direito de se meter.
— Mas o escravo é dela...
— Pare Fausto, não vou permitir! — cortou Rodolfo. — Se veio aqui para defendê-la, pode ir dando o fora. Ela insultou nossa mãe, e você deveria ser o primeiro a não apoiá-la.
— Ela não insultou ninguém. Apenas tentou defender Trajano.
— Com que direito? Ela é tia de Túlio. Deveria ter tomado sua defesa, assim como nós estamos fazendo.
— Será? Será que ele merecia mesmo ser defendido?
— É claro que sim. Um negro o esbofeteou, e isso já é o suficiente para defendê-lo.
— Está certo, Rodolfo, não vamos brigar nós dois.
— Não quero brigar. Mas não vou admitir que você contrarie mamãe só para ficar do lado daquela vagabunda que, provavelmente, até já se deitou com o negro!
Nesse instante, Fausto não conseguiu se conter. A exemplo de Trajano desferiu violento golpe no queixo do irmão, que rodopiou e bateu contra a parede, espumando de ódio. Ele se recompôs rapidamente e partiu para cima de Fausto, e os dois puseram-se a brigar, distribuindo socos e pontapés. Palmira, horrorizada, começou a gritar:
— Parem com isso! Já não basta aquele escravo ter batido em meu neto? Agora vou ter que presenciar também uma briga entre meus filhos, por causa de uma mulher?
— Foi ele quem começou — disse Rodolfo, entre dentes.
— Não importa quem começou. Não vou permitir que meus filhos se matem por uma estranha.
— Mas, mamãe — objetou Fausto —, Rodolfo chamou Júlia de vagabunda. Acusou-a de se deitar com Trajano. Nunca ouvi ofensa maior.
— E daí? O que isso lhe diz respeito? Ela é cunhada de sua irmã. Não tem laços conosco. Túlio sim. É meu neto, seu sobrinho, sangue de meu sangue. Você devia se envergonhar de bater em seu irmão por causa de uma moça cuja reputação, ao que parece, é bastante duvidosa.
Fausto já ia retrucar quando Rodolfo, em tom sarcástico, antecipou-se:
— Deixe mamãe. Sei por que Fausto a está defendendo. É porque estão namorando, não é? Ela já se deitou com você também? Fausto encarou-o com ódio. Quase partiu para cima dele de novo, não fosse à mãe, que interveio perplexa.
— O quê? Meu filho, envolvido com uma defensora de negros? Jamais permitirei.
— Estou envolvido com Júlia sim, mas é porque nos amamos. E ela nada tem de vagabunda, nem nunca se deitou com ninguém. É uma moça honesta e decente, e pretendo casar-me com ela.
— O quê? Ficou louco? Se seu pai estivesse vivo, com certeza já lhe teria dado um corretivo.
— Acontece, mamãe, que papai está morto, e eu já estou bem grandinho para receber corretivos de quem quer que seja. Sou um homem, não um menino.
— È um tolo, isso sim. Aquela moça não presta, não é mulher para você.
— Posso saber por quê?
— Porque está do lado dos negros, e quem é a favor dos negros é contra mim.
— Lamento muito que a senhora pense assim, mamãe, mas já tomei minha decisão. Se não a aceitar, vou-me embora daqui amanhã mesmo.
Palmira estacou, indignada. Amava os filhos, eram as únicas pessoas que tinha no mundo, e não admitiria perdê-los para nenhuma aventureira. Um pouco hesitante, murmurou:
— Não pode estar falando sério.
— Jamais falei mais sério em toda a minha vida. Amo Júlia e ela me ama, e não podemos mais viver separados. Se não a aceitar, partirei com ela.
— Deixe que vá, mamãe — atalhou Rodolfo. — Será melhor para todos.
— Quieto, Rodolfo, você não sabe o que diz. — Voltando-se para Fausto, acrescentou: — Você não faria isso. Está blefando.
— Acha mesmo? Então experimente expulsá-la.
— Meu filho, por favor, não faça isso — revidou em tom de súplica. — Não suportarei perdê-lo.
— Não se preocupe. A senhora ainda terá Rodolfo, com quem poderá contar sempre.
— Mas você é tão meu filho quanto ele. Não posso prescindir de nenhum dos dois. Vocês são minha vida. São tudo o que tenho. Por favor, meu filho, não me mate. Se você for embora daqui, esteja certo de que não poderei agüentar e morrerei logo em seguida.
— Mamãe, está sendo dramática. A senhora não vai morrer.
— Será que não? Quer experimentar? Será que vai suportar carregar essa culpa pelo resto de sua vida?
Fausto titubeou. É claro que amava a mãe e não queria que ela sofresse muito menos que viesse a morrer. Contudo, não podia abrir mão de sua amada, e respondeu hesitante.
— Não... Claro que não quero que a senhora morra... Contudo, não vou ceder ao seu apelo ou a suas chantagens.
— O que quer que eu faça? Que reconsidere e a deixe ficar?
— Não exatamente. Quero que vá falar com ela e lhe peça desculpas.
Ela levantou-se, indignada.
— Isso nunca! Jamais descerei tão baixo!
— Mamãe, deixe de lado o orgulho e peça-lhe perdão. A senhora errou, foi injusta.
— Já disse que não. Peça-me o que quiser menos isso.
— Mas por quê? É tão difícil assim desculpar-se com alguém?
— Nesse caso, é. Ela me fez uma desfeita, e não posso perdoá-la.
— Foi à senhora quem a desrespeitou, mamãe, humilhando-a na frente de todos.
— Pouco me importa.
— É a sua última palavra?
— Sim.
— Pois então, sinto muito. Não tenho mais nada a fazer aqui. Amanhã mesmo deixarei esta casa em companhia de Júlia.
Ele virou-lhe as costas e dirigiu-se para a porta, passando por Rodolfo, que o olhava triunfante. Já ia girar a maçaneta quando a mãe o chamou de volta.
— Fausto, por favor, não faça isso, eu lhe imploro. Ele parou e indagou, sem se voltar para ela:
— Vai fazer o que lhe pedi?
— É isso o que quer?
— É isso.
— É a única maneira de mantê-lo ao meu lado?
— Sim.
Ela suspirou, deixando que os braços tombassem numa atitude de pura resignação, e disse com voz sumida.
— Então está bem. Se for o que quer, seja feita a sua vontade. Falarei com ela, pedir-lhe-ei perdão. Mas não me peça que goste dela.
— Obrigado, mamãe — agradeceu emocionado. — Com o tempo, tenho certeza de que a senhora esquecerá tudo e verá que moça maravilhosa ela é.
— Duvido muito. No entanto, não posso perdê-lo para ela, e se essa é a única maneira de impedir que você faça a besteira de partir daqui, eu me curvarei a sua vontade e me desculparei com Júlia.
Rodolfo, que até então permanecera calado, não podendo mais conter o ódio e a indignação, deu um salto na frente de Palmira e explodiu:
— Mamãe, a senhora não pode estar falando sério! Não vou permitir que se rebaixe, pedindo perdão àquela... Àquela...
Mas não concluiu. Olhando para Fausto, resolveu voltar atrás. Não queria começar nova briga.
— Não se meta Rodolfo. O que faço é para o bem de todos. O seu inclusive.
E saiu, em companhia de Fausto, dirigindo-se ao quarto de Júlia, a fim de pedir-lhe perdão. Embora Palmira, naquele momento, sentisse um ódio desmedido pela moça, o fato é que soube muito bem disfarçar e falou com ela amistosamente, como se estivesse realmente arrependida da injustiça que cometera. Pediu-lhe desculpas, justificando suas palavras com a lembrança do filho e do sobrinho, que haviam padecido muitos anos atrás, vítimas de nefasto incêndio, provocado por uma escrava.
Júlia, alma boa e generosa, embora não se tivesse convencido das palavras de Palmira, achou melhor não contestar. Também ela não queria deixar Fausto, tampouco queria forçá-lo a abandonar suas obrigações. Assim, calou em seu íntimo a dúvida acerca da sinceridade daquele gesto e aceitou o pedido de desculpas com simplicidade e humildade, permanecendo na fazenda, o que só serviu para inflamar ainda mais a raiva de Rodolfo.




CAPÍTULO 6 Com o amor não se brinca_Mônica de Castro



No dia seguinte, Camila foi ter com Júlia. Estava preocupada com Túlio e com Trajano. O filho sumira no meio do mato. Ninguém sabia de seu paradeiro. E Trajano, àquelas horas, com certeza já estava alojado na fazenda Ouro Velho.
— E então? — começou Camila a dizer. — Vamos saber notícias de Trajano?
— Sim, acho melhor irmos logo. Acha que ele está bem?
— Creio que sim. Rebeca é uma boa mulher, e Dário disse que ela o acolheu de boa vontade.
— E Túlio? Alguma notícia dele?
— Seu sobrinho desapareceu. Estou preocupada, mas sei que está bem. Do jeito que é, deve estar esperando a poeira assentar para aparecer.
— Tem razão. Mas onde andará?
— Não sei. Na vila, talvez. Com certeza, deve estar afogando as mágoas nos braços de alguma prostituta.
— É verdade, Camila. Por que será que Túlio é tão sem-juízo?
— Não sei minha filha. Mas deve ser culpa nossa. Minha e de seu irmão. Sinto que falhamos com ele em alguma coisa.
— Oh, não, Camila, não diga isso! Você e Leopoldo são pais maravilhosos. Veja Dário, e até eu, que fui criada por vocês desde pequenina. Não creio que tenham falhado com Túlio. Creio que ele é que não sabe reconhecer e agradecer pelos pais que tem.
— Você é muito gentil, minha querida. Quisera pensar como você. Bem, já está pronta? Então vamos.
Quando saíram, Dário já as estava esperando. Ele mesmo guiaria a charrete que os conduziria até a fazenda Ouro Velho.
— Tudo pronto, meu filho? — perguntou Camila.
— Sim, mamãe. Podemos partir.
— Aonde é que vocês vão? — indagou Rodolfo, que chegava de dentro de casa. As moças tiveram um sobressalto, mas Camila respondeu:
— Vamos dar um passeio.
— Posso saber onde?
— Não sei. Por aí. Agora, com licença, Rodolfo. Estamos com pressa.
Sem dar-lhe tempo de responder, elas subiram na carroça, ao lado de Dário, e partiram. Júlia se foi sem nem ao menos falar com ele, e Rodolfo indignou-se. Não era possível que ela preferisse o irmão a ele. Eram iguaiszinhos, por que não gostara dele? Pensando nisso, Rodolfo imaginou que seria muito fácil afastar Fausto de seu caminho. Ele tinha que tomar Júlia do irmão. Jamais poderia permitir que Fausto tivesse algo que ele não possuísse. Eram idênticos, e ela se afeiçoaria a ele tanto quanto se afeiçoara ao irmão. Rodolfo, em sua cegueira, não podia perceber que Júlia os distinguia, não pela aparência, mas pela nobreza de sentimentos. Depois de tudo o que vira e ouvira, ela estava certa de que Fausto era de um caráter nobre e digno, ao passo que Rodolfo parecia-lhe extremamente egoísta, mesquinho e maldoso.
Quando chegaram à fazenda Ouro Velho, o próprio Trajano fora recebê-los. Ia cabisbaixo, uma ruga de preocupação no rosto e profundas olheiras, demonstrando que quase não dormira. A seu lado, os amigos Juarez e Laurinda, que tentavam, a todo custo, animá-lo. Ele ajudou as moças a descer, e Camila perguntou:
— Como está, Trajano?
— Bem, sinhá, obrigado. E sinhozinho Túlio?
— Ainda está sumido, mas não se demora a aparecer. Júlia, vendo o arde tristeza estampado em seu rosto, resolveu consolá-lo:
— Não se preocupe Trajano, ele está bem. Depois que tudo se acalmar, com certeza, ele volta.
— Foi o que dissemos a ele — acrescentou Juarez. — Mas ele não nos dá ouvidos...
— Não é isso, Juarez — objetou Trajano. — Mas é que sinhozinho Túlio é um menino ainda. E depois, a culpa foi minha. Não devia ter batido nele. Não tinha esse direito.
Nesse instante, Rebeca chegou à companhia de Sara, e Dário correu para abraçá-la. Ela estava um pouco pálida e não se sentia muito bem. Depois dos habituais cumprimentos, o grupo entrou em casa, e foi só então que Trajano os colocou a par de tudo o que acontecera. No dia anterior não conseguira falar nada. Fizera todo o trajeto em silêncio, um brilho de tristeza no olhar, e se recolhera logo que instalado. Não quisera conversar com ninguém. Apenas com Juarez, que além de seu amigo, era também de sua raça e o único ali capaz de entender o que lhe ia à alma.
Ao final da narrativa, Camila olhou para ele com ar grave e ponderou:
— Não posso dizer que fez bem, Trajano, mas entendo seus motivos. Qualquer um, no seu lugar, teria feito o mesmo.
— Não, sinhá. Eu sou negro e escravo, e jamais poderia ter batido em sinhozinho Túlio.
— Deixe disso — cortou Júlia. — Você só é escravo porque quer. Leopoldo bem que quis alforriá-lo.
— Isso não vem ao caso, sinhazinha. O que faria sendo livre? Sou feliz onde estou e não saberia o que fazer com a liberdade. Para mim, a única coisa que importa é servir sinhá Camila e sua família.
— Sei disso, Trajano, e agradeço — disse Camila, emocionada. — E agora, não pense mais nisso. Deixe tudo por minha conta.
— Está bem, sinhá, mas o que será de mim?
— Por enquanto, é melhor que fique aqui, se Ezequiel e Rebeca não se importarem.
— É claro que não nos importamos — Ezequiel tratou logo de dizer. — Não é mesmo, Rebeca?
— Não, claro que não. Trajano sempre foi um bom rapaz, e vocês são nossos amigos.
— Então está ótimo.
— Mas até quando, sinhá?
— Por que, Trajano? — indagou Rebeca. — Por acaso não gosta de nós?
— Deus me livre de tamanha ingratidão, sinhá! Não é nada disso. Mas é que sinto falta dos meninos, principalmente de sinhazinha Júlia.
Júlia sorriu e retrucou:
— Pois não precisa. Dário e eu estaremos sempre por perto. Sara é minha amiga e está quase noiva de Dário.
— Por falar em noivado — cortou Sara —, ouvi dizer que você também está comprometida.
— Não é bem assim — contestou ela, corando. — Fausto e eu ainda não assumimos nenhum compromisso formal.
— O que não demorará muito a acontecer — acrescentou Camila, sorrindo.
De repente, Sara empalideceu e começou a tossir. Era uma tosse rouca, e ela parecia que ia engasgar. Seu semblante, de pálido foi passando a roxo, e todos pensaram que fosse sufocar. Foi um desespero geral. Rebeca, apavorada, dava-lhe tapinhas nas costas, tentando fazer com que o catarro se soltasse e liberasse passagem para o ar. Foi terrível. Ninguém sabia o que fazer, até que Camila tomou sua mão e tentou acalmá-la, pedindo a todos que se aquietassem. Com voz suave, dizia:
— Calma, Sara, devagar. Não fique nervosa. E só uma crise e vai passar. Procure manter a calma e respirar profunda e tranqüilamente, sem pressa, sem afobação.
Sara fez como Camila lhe dizia e, aos poucos, foi recobrando o alento, e a respiração pareceu quase normalizar. Mas ela ficara exausta e deixara a cabeça tombar sobre a almofada, quase desfalecida. A palidez voltou ao seu rosto, e ela ficou ali, de olhos fechados, parecendo dormir. Dário, apavorado, andava de um lado para outro, enquanto a mãe corria a preparar-lhe um chá. Camila, assustada, ainda indagou:
— Mas o que será que tem essa menina?
— O médico não sabe ao certo — respondeu Ezequiel, que não tirava os olhos da filha, certificando-se de que respirava.
— Mas nem desconfia? Não é possível que não tenha nenhuma suspeita.
— Ele não quer dar nenhum diagnóstico precipitado ou equivocado.
— Sim, mas o que ele pensa que é?
Ezequiel encarou-a com amargor e respondeu, desolado:
— Ele pensa que ela está tísica.
— Meu Deus!
— Mas ela não está! Sei que não está!
— Por favor, Ezequiel, acalme-se — disse Rebeca, que chegava da cozinha. — Isso não vai ajudá-la em nada. E depois, você sabe que ela mesma pensa assim.
— Mas ela está enganada. Deve ser uma outra coisa qualquer. Ela não pode estar tísica. É tão jovem, vai se casar. Isto é, se Dário ainda a quiser...
— Escute seu Ezequiel — interrompeu Dário. — Amo sua filha acima de qualquer coisa na vida, esteja ela doente ou não.
— Mas todos sabem que a tuberculose é contagiosa.
— Não estou preocupado com isso. Em primeiro lugar, porque não creio que ela esteja tísica. Em segundo lugar, porque não me importo.
Ezequiel olhou para Camila com ar interrogativo. O que ela pensaria de tudo aquilo? Afinal, era mãe e, com certeza, não gostaria de ver o filho padecer daquela doença horrorosa. Camila, adivinhando-lhe os pensamentos, foi logo o tranqüilizando.
— Não se preocupe com isso, Ezequiel. Deus sabe o que faz. E se meu Dário tiver que adoecer, não creio que seja por culpa de ninguém.
— Como não? Se ele adoecer, com certeza, terá contraído a doença de minha filha.
— Não estou bem certa disso. Acredito que as enfermidades tenham uma razão de ser, mas também creio que só as contraem aqueles que delas necessitam.
— Não entendo você, Camila — objetou Rebeca. — Quer dizer que acha que Sara precisava ficar doente?
— Não é bem assim. Creio que as doenças servem para nos alertar de algo, só não sei o que é. E não é que Sara precisasse ou merecesse ficar doente. Em absoluto. Apenas penso que essa doença deve estar sendo útil a ela de alguma forma.
— Mamãe! — protestou Dário, indignado. — Por acaso enlouqueceu, é? De onde tirou essas idéias?
— Da observação, da experiência. Todas as pessoas que adoecem possuem uma enfermidade na alma.
— Mas que enfermidade na alma? — contestou Ezequiel, que já começava a se zangar. — Quer dizer que minha Sara possui algum tipo de vício ou defeito?
— Não, não é isso. Mas se vocês observarem bem, Sara sempre foi uma menina fechada, triste, amarga. Pouco sorri, e mesmo quando criança, não raras eram às vezes em que se isolava, afastando-se das brincadeiras e dos folguedos.
— Sim, mas, e daí?
— E daí que, durante os anos em que estive naquele convento, ajudei a cuidar de vários doentes dos pulmões, e todos tinham uma característica em comum: eram todas as pessoas tristes, solitárias, que se sentiam abandonadas por tudo e por todos.
— Francamente, Camila — censurou Rebeca —, acho que você está imaginando coisas.
— Será mesmo? Pois bem. Prestem atenção ao comportamento de Sara e depois me digam se não é verdade.
— Camila tem razão — concordou Júlia. — Lembro-me muito bem de que Sara sempre foi dada a tristezas profundas, que nem ela sabia explicar.
— Bem, de qualquer forma — objetou Ezequiel —, ainda que isso seja verdade, não acha que ela já se modificou? Tem o amor de todos nós, tem até um noivo que a ama. Não vejo por que se sentir tão triste ou abandonada.
— Você não está entendendo, Ezequiel. Esses sentimentos vêm da alma, e não do corpo. São muito mais profundos do que podemos compreender. Talvez nem ela mesma saiba o porquê de tanta solidão. Mas o fato é que nós, muitas vezes, sentimos coisas que não sabemos definir e cujas origens não podemos precisar. Quem sabe por quê?
— Deus, talvez — arriscou Júlia.
— Com certeza, minha filha, Deus é único e soberano, e conhecem todos os seus filhos, mesmo aqueles mais calados e distantes.
— Talvez você tenha razão, Camila — começou Rebeca a concordar. — De hoje em diante, prometo prestar atenção em Sara.
— Faça isso. Tente falar com ela, fazer com que se abra e se sinta amada. Creio que só assim poderá se livrar desse mal que a aflige.
Nesse instante, Sara tossiu levemente e abriu os olhos, dando de cara com Dário, que estava sentado a seu lado. Ela se levantou, ainda sentindo-se fraca, e Laurinda chegou com o chá, que ela bebeu rapidamente. Estava com sede e sentiu-se melhor. Intuitivamente, dirigiu um olhar de agradecimento a Camila e lhe sorriu. Sem saber por que, sentia como se Camila, de repente, houvesse atingido o âmago de seu ser, iniciando a desvendar segredos e mistérios que nem ela, nessa vida, poderia imaginar.
Mais tarde, ao voltarem para casa, receberam a notícia de que Túlio havia retornado. Ele estava em seu quarto, em companhia de Rodolfo, e parecia não querer falar com mais ninguém. Camila, indignada, partiu para lá. Ele era seu filho, e ela precisava saber como estava. Cautelosamente, bateu na porta e esperou, até que uma voz lá de dentro ordenou:
— Entre.
Ela abriu a porta lentamente e encontrou-o sentado a uma mesinha, jogando xadrez com Rodolfo. Aquilo não deixou de causar-lhe certa irritação. Então ele fazia o que fazia e depois ficava ali sentado, jogando xadrez, como se nada tivesse acontecido? Ela teve vontade de gritar com ele, mas conteve seu ímpeto. Queria evitar brigas e disse mansamente:
— Túlio, meu filho, onde esteve? Fiquei preocupada. Ele a olhou com ar divertido e respondeu fazendo mofa:
— Ficou? Pois não devia.
— É claro que devia. Você é meu filho e preocupo-me com você. Quero saber onde esteve.
— Muito obrigado, mamãe, mas não precisa se preocupar. Tio Rodolfo cuidou de mim.
Ela olhou para o irmão com ar interrogativo, e ele balançou a cabeça, concordando com o que Túlio dissera.
— Como assim, cuidou de você?
— Ora, querida irmã — disse Rodolfo com desdém —, Túlio passou a noite comigo, em meu quarto.
— O quê? Quer dizer então que ele esteve aqui todo o tempo e você não me disse nada?
— E por que deveria?
— Porque sou a mãe dele. Estava preocupada, e você sabia disso. Devia ter-me contado.
— Não devia, não. E depois, se você se importasse tanto com seu filho, não o teria trocado por um negro!
Camila olhou-o magoada e respondeu:
— Isso não é justo. Eu jamais trocaria meu filho por quem quer que fosse.
— Ah, não, mamãe? E o que fez, então, tomando o partido de Trajano, como se ele fosse o senhor e eu um maldito criminoso? Afinal, não fiz nada de mais.
— Túlio, meu filho, não vou levar em consideração o que diz, porque sei que está com raiva. Mas se fizer um exame em sua consciência, verá que Trajano tinha certa razão.
— Mas que razão, Camila? — cortou Rodolfo. — Ora, francamente, minha irmã, creio que você perdeu o juízo. Onde já se viu tirar a razão de um branco para dá-la a um negro?
— Rodolfo, por favor, não se intrometa. Você não conhece os motivos que levaram Trajano...
— Conheço-os muito bem. E não vejo motivo para tanto alarde. Recriminar Túlio só porque se divertiu com uma negra? E daí? É para isso que elas servem.
— Rodolfo, como pode dizer uma coisa dessas? — Camila estava horrorizada. — Você, um homem civilizado, pensar isso de outro ser humano?
— Ouça Camila, não quero iniciar uma discussão sobre a natureza dos escravos. Essa questão não me interessa. Só o que sei é que os escravos têm por função nos servir, sejam eles gente ou animais. E se Túlio escolheu servir-se de uma negra, fez muito bem. E se ela morreu, tanto melhor. Ao menos assim ele não teve que se expor, correndo o risco de ter um mulatinho bastardo a correr atrás dele, agarrando na barra de sua calça e gritando papai!
Nesse momento, Camila não se conteve. Sem pensar, ergueu a mão e desferiu sonoro tapa no rosto de Rodolfo, que ficou vermelho de raiva. Ele até pensou em revidar, mas Camila, além de mulher, era também sua irmã mais velha, e o pouco de respeito que lhe restava impediu-o de devolver a agressão. No entanto, engoliu em seco e disparou:
— Ouça Camila, ainda vai se arrepender do dia em que resolveu me desferir esse tapa.
E saiu, batendo a porta atrás de si. Camila desabou na cama e começou a chorar. Perdera a cabeça. Não queria, mas perdera a cabeça. Olhou para o filho, como a pedir-lhe apoio e compreensão, mas ele disse amargamente:
— O que foi fazer mamãe? Como pôde bater em tio Rodolfo?
— Ele me provocou meu filho, você viu.
— Oh, sim, vi muito bem! Não é à toa que Trajano me bateu. Deve ter aprendido com a senhora, não é mesmo?
— Túlio, o que é isso? Perdeu o respeito, é? Sou sua mãe, e você me deve respeito, ainda que não queira.
Ele abaixou os olhos, envergonhado. Estava coberto de ódio, mas não podia deixar que isso transparecesse para a mãe. Sabia que o que dissera era uma injustiça, mas não podia perder a oportunidade de provocá-la. Com os olhos pregados no chão disse, fingindo arrependimento e humildade:
— Tem razão, mamãe, sinto muito.
Ela se levantou e aproximou-se dele, envolvendo-o em um abraço amigo e amoroso, e desabafou, em lágrimas:
— Oh! Meu filho, por que teve que fazer isso, por quê? Você é jovem, bonito, inteligente. Pode ter as moças que quiser. Por que tem que se envolver com as escravas, abusando de uma superioridade ilusória para conseguir seus intentos? Por quê? Por quê?
Túlio, porém, não respondeu. Ao contrário, fechou os olhos e riu intimamente. Se a mãe pensava que o comovia com aquela cena, estava muito enganada. Ele não dava a menor importância ao que ela dizia ou pensava. Concordava com Rodolfo. Os escravos existiam para servir, e ele se aproveitava disso da melhor forma que sabia. E não se arrependia.
Fora dali, Rodolfo roia-se de raiva. Primeiro fora Júlia, que o trocara pelo irmão. Depois Fausto que o humilhara e espezinhara. Em seguida, a mãe, que não lhe dera ouvidos, preferindo fazer a vontade de Fausto. E então Camila, que o agredia para defender os negros. Era uma verdadeira afronta. Todos pareciam estar contra ele, mas aquilo não ficaria assim. Não era saco de pancadas de ninguém, e cada vez mais sentia o ódio crescendo dentro dele.
Já era quase noite, e ele estava sentado na sala, no escuro, quando Tonha apareceu para acender as velas e os lampiões. Ao vê—lo ali sentado, sozinho, compadeceu-se. Ele era seu menino. Ela ajudara a criá-lo e não gostava de vê-lo tão abatido. Chegando-se mais para perto dele, indagou preocupada:
— O sinhozinho está sentindo alguma coisa, está?
Ele olhou para ela como se não a conhecesse, e só depois de alguns segundos, quando conseguiu conciliar as idéias, foi que retrucou:
— Hã? O quê? O que foi que disse?
— Perguntei se o sinhozinho está sentindo alguma coisa?
— Não estou, não, Tonha. Está tudo bem.
— Mas o sinhozinho está com uma cara...
— Está tudo bem. Não se preocupe. Vá cuidar de seus afazeres.
Tonha não insistiu. Conhecia o gênio de sinhozinho Rodolfo e não queria aborrecê-lo. Em silêncio, terminou de acender as velas e saiu, no mesmo instante em que Palmira chegava. Ela olhou para Tonha com raiva e virou-se para Rodolfo.
— Meu filho, hoje vocês conhecerão minha visita.
Rodolfo, que além de não perceber a entrada da mãe, nem se lembrava da hóspede misteriosa, retrucou confuso:
— Hã? O quê? O que foi que disse mamãe?
— Minha visita. A mulher que está hospedada em nossa casa.
— Ah, sim. Até já havia me esquecido dela.
— Pois não devia. É sua parenta.
— É mesmo? Quem é?
— Você não a conhece. Ela esteve fora durante muitos anos, perdeu o marido e agora retornou. Mas sossegue; logo, logo, você a conhecerá.
Em seguida, afastou-se enigmática. Já era quase hora do jantar, e ela faria a todos uma surpresa.
Às sete horas em ponto, o jantar foi servido, e todos repararam que havia mais um lugar à mesa. Assim que se acomodaram, e Tonha já se preparava para servi-los, Palmira mandou que esperasse e anunciou:
— Meus filhos, meus netos, tenho uma surpresa para vocês. É com muita satisfação que hoje dou a conhecer a identidade de nossa hóspede secreta.
Apontou para a porta da sala, para onde todos voltaram suas atenções. Constância entrou um pouco insegura, porém radiante. Passara algum tempo escondida, perdera alguns quilos, ajeitara o cabelo, voltara a vestir-se com apuro. Estava pronta, enfim, para enfrentar os seus.
Ao vê-la, Tonha quedou estupefata, quase deixando cair à travessa de sopa. Reconhecera-a instantaneamente. Ela estava mudada, mais gorda, mais velha, ganhara aquela enorme cicatriz no rosto, mas era a mesma Constância de antigamente. O mesmo rosto de esfinge, os mesmos olhos verde-escuros.
Camila, por sua vez, dando de cara com a prima, a quem chegara a julgar morta, deu um pulo da mesa e exclamou:
— Constância! È você mesma? Será possível? Mas como pode? Por onde andou?
— Calma calma — interrompeu Palmira. — Por favor, Camila, não crive sua prima de perguntas.
Palmira fez com que Constância se sentasse à mesa e, enquanto Tonha servia o jantar, apresentou-a formalmente aos filhos e aos netos, contando-lhes a história que inventara. Ela fugira e se casara com um rico barão, partindo para a Europa em seguida. Lá viveram durante muitos anos, até que uma tragédia sucedeu. Um dos empregados do castelo, querendo vingar-se do barão, matou-o enquanto dormia, só não matando Constância porque ela conseguira escapar e saíra gritando pelos corredores do palácio. O malfeitor foi morto a tiros, não sem antes imprimir-lhe aquela cicatriz horrorosa e indelével. Sentindo-se só e sem filhos, Constância resolveu voltar para a terra natal, onde tencionava terminar seus dias.
Ao final da narrativa, todos a olharam estarrecidos. Aquela história era fantástica e duvidosa, mas quem ousaria contestá-la? Constância exibia até uma grossa aliança de ouro no anelar da mão esquerda, que Palmira lhe dera, só para imprimir-lhe maior credibilidade.




CAPÍTULO 7



No domingo pela manhã, Fausto saiu bem cedo em direção à vila. Queria falar com o padre a respeito da capela que estavam construindo na fazenda. A capela era um projeto seu e de Rodolfo, que a idealizaram para satisfazer o desejo da mãe, que, bem velhinha, não tinha mais a mesma disposição de outrora para levantar cedo e ir à missa dominical.
Rodolfo, por sua vez, vendo que o irmão se ausentara, resolveu agir. Desceu cautelosamente e foi esperar Júlia na sala de jantar. Sabia que ela, em breve, desceria para o café, e ele tencionava abordá-la após o desjejum. A família em breve despertou, e todos se reuniram. A mãe tinha gestos artificiais, e Constância tudo fazia para esconder o nervosismo. Até que Júlia, tentando parecer casual, indagou meio sem jeito:
— Alguém viu Fausto?
Como ninguém respondesse Tonha, que acabara de colocar a leiteira sobre a mesa, disse, sem tirar os olhos do chão:
— Saiu logo cedo e disse que ia à vila.
— Fazer o quê? — quis saber Palmira.
— Acho que foi falar com o padre sobre a capela.
— Capela? Que capela? — perguntou Constância. Palmira olhou para ela e respondeu orgulhosa:
— Fausto e Rodolfo resolverem presentear-me com uma capelinha, que está sendo construída aqui na fazenda.
— Mas que maravilha mamãe! — elogiou Camila.
— É sim, minha filha. Bem, agora, se me dão licença, vou me retirar.
Palmira terminou o café e se levantou, seguida de Constância, que não a largava. Desde que voltara a sobrinha não se mostrava receptiva a ninguém e vivia a seguir Palmira por todos os lados. Depois que todos saíram, Júlia se levantou e também pediu licença. Ia cavalgar. Rodolfo aproveitou, e com ar displicente, perguntou:
— Posso acompanhá-la? Está um bonito dia, e não gostaria de perdê-lo, trancado aqui dentro de casa.
Ela ficou desconcertada. Não esperava por aquele convite inoportuno, mas não podia recusar. Se o fizesse, talvez estivesse declarando guerra aberta a Rodolfo e Palmira, e ela não queria se desentender com o futuro cunhado e, muito menos, com a futura sogra. Levantando os ombros, suspirou e disse:
— Pode sim.
— Então vamos?
Ele estendeu o braço para ela, e Júlia o tomou sem muito interesse. Apesar de idêntico a Fausto, Rodolfo não inspirava à mesma confiança. Havia algo nele que não a agradava. Sabia que ele era cruel e vingativo, mas não era só isso. Era certa inquietação que sentia em sua presença. Ela abanou a cabeça, tentando espantar aqueles pensamentos, e sorriu. Rodolfo falava alguma coisa sobre o tempo, mas ela não lhe prestava a menor atenção. Seu pensamento estava voltado para Fausto. Ela o amava imensamente e gostaria que ele estivesse ali, para ampará-la e protegê-la.
Os dois tomaram as montarias e saíram pela fazenda. Havia muitos lugares bonitos para se ver, muitos campos verdes para cavalgar, e eles iam em silêncio, apreciando a paisagem. Rodolfo ia à frente, indicando-lhe o caminho, e Júlia seguia-o maquinalmente, sem prestar atenção por aonde ia. Breve, alcançaram um recanto bem afastado, no extremo oposto da fazenda, perto da divisão com a Ouro Velho. Era um lugar lindo, cercado de árvores, embora um pouco deserto e sombrio. As árvores ali eram bem altas, e o Sol quase não penetrava. Rodolfo apeou e dirigiu-se para Júlia, e só então ela se deu conta do lugar em que estava, e sentiu medo. E se ele lhe fizesse algum mal? Ao vê-lo se aproximar, disse mais que depressa:
— Vamos voltar Rodolfo. Já nos afastamos bastante.
— Espere um instante — respondeu ele com voz melosa, ao mesmo tempo em que segurava o cavalo de Júlia pela rédea. — Por que não desmonta um pouquinho, só para descansar e desfrutar dessa paz?
Sem saber o que fazer, ela desmontou, deixando que Rodolfo a segurasse e a colocasse no chão. Ao contato de suas mãos, ela sentiu um calafrio e se encolheu toda, já arrependida de haver apeado.
— Rodolfo, acho que quero voltar. Já está ficando tarde e, logo, logo, Fausto estará de volta. Pode ficar preocupado.
— Ora, mas o que é isso? Então não sirvo?
— Como assim? O que quer dizer?
—Você sabe. Se gosta tanto de Fausto, por que não pode gostar de mim também?
— Rodolfo, eu... Não entendo o que quer dizer.
— Ora, minha querida, entende muito bem. Fausto e eu somos iguais. Se sente atração por ele, há de sentir por mim também. Não há diferença entre nós.
Ao dizer isso, ele a segurou pelos punhos e tentou beijá-la, mas ela desviou o rosto, enojada. Júlia estava apavorada. Sozinha ali, com aquele homem forte e ardiloso, sabia que corria grande perigo. Tentando manter a calma, ponderou:
— Por favor, Rodolfo, não faça isso.
— Por que não? Não disse que ama meu irmão? Por que não pode amar-me também?
— Porque é diferente. Vocês são iguais na aparência, mas internamente são muito diferentes.
— Diferentes em quê? Por acaso ele é melhor do que eu?
— Eu não disse isso. Vocês são diferentes, é só.
— Por que foi preferi-lo a mim? Por que não pôde me amar em lugar dele?
— Porque não se pode mandar no coração.
— Mas eu a quero! Não pode amá-lo mais do que a mim!
Ela tentou se desvencilhar, mas ele não a soltava. Ao contrário, cada vez apertava-a mais, até que ela gritou:
— Por favor, Rodolfo, solte-me, está me machucando!
— Oh, sinto muito. Não quero magoar essa pele tão alva e sensível.
E afrouxou um pouquinho. Júlia, no auge do desespero, desferiu-lhe um golpe com os joelhos, atingindo-o bem na virilha, e ele a soltou, dobrando no chão e uivando de dor. Ela correu para o seu cavalo e montou, e Rodolfo, recobrando forças, levantou-se e correu atrás dela. Rapidamente, tornou a montaria e partiu em seu encalço. Júlia, sem saber que caminho tomar, deu rédea ao animal e saltou a cerca, passando para o lado da fazenda Ouro Velho, sempre com Rodolfo atrás dela. Os dois cavalgavam muito bem, e a perseguição prosseguia implacável. Júlia, movida pelo instinto de preservação, corria em direção à casa grande, e Rodolfo, tomado pelo ódio e pelo ciúme, corria o mais que podia, na intenção de alcançá-la antes que chegasse.
Ele já a estava quase alcançando, cavalgando a seu lado e tentando segurar as rédeas do cavalo de Júlia, que o empurrava, dando-lhe tapas desajeitados. Rodolfo ria freneticamente, parecia enlouquecido, e gritava entre dentes:
— Vai ser minha, Júlia! Não adianta fugir, porque você vai ser minha. Fausto não pode tê-la, não pode!
Ela já estava cansada, e Rodolfo já estava quase conseguindo agarrar as rédeas do animal, quando Júlia avistou um vulto negro ao longe, com um machado na mão, cortando lenha. Ela esporeou o cavalo e ele se afastou um pouco de Rodolfo, que logo chegou a seu lado. O vulto, ouvindo o barulho dos cascos dos animais no solo, parou o serviço e olhou, tentando reconhecer os cavaleiros. A princípio, não os reconheceu. Mas depois, vendo a saia de Júlia voando ao vento, percebeu tratar-se de uma mulher, que acenava para ele, com um homem quase a alcançá-la. Júlia logo reconheceu Trajano e começou a agitar os braços, na esperança de que ele a visse e a ajudasse. Com efeito, assim que Trajano reconheceu sinhazinha Júlia, soltou o machado e correu, até que ela conseguiu chegar até ele. Rodolfo, a seu lado, não conseguia dissimular o ódio. Diminuiu a marcha e disse, tentando disfarçar:
— Bela corrida, Júlia. É exímia amazona.
Júlia olhou para ele, arfante, cheia de terror, e Trajano pôde perceber o medo em seus olhos. Estava tão ofegante que não conseguia falar, até que o escravo se adiantou, perguntando:
— Está tudo bem, sinhazinha Júlia?
Ela olhou para Rodolfo, que lhe endereçou um sorriso diabólico, e respondeu:
— Sim, Trajano, tudo bem.
— A sinhazinha estava apostando corrida, é?
— Estava sim — respondeu Rodolfo mal-humorado. — Por quê? O que tem com isso?
— Nada, sinhô. É que sinhá Júlia chegou tão assustada que pensei...
— Você não tem que pensar nada. Escravo não pensa, obedece.
— Desculpe sinhô, mas não lhe devo obediência, não.
— Ora, negro insolente. Como se atreve? Já não basta o que fez a Túlio? Ainda me desafia?
Trajano não respondeu. Estava preocupado com Júlia. Ele a conhecia muito bem e sabia que aquele moço tencionara fazer-lhe algum mal.
— Sinhô, com todo o respeito, vou pedir que vá embora. Vou acompanhar sinhazinha Júlia até a casa grande.
Rodolfo, ainda não convencido de que perdera sua presa, levantou o chicote que trazia preso à cinta e desferiu em Trajano violenta chibatada, fazendo com que ele levasse a mão ao ombro, onde fora atingido, enquanto o outro vociferava:
— Isso é por meu sobrinho, Túlio!
— Chega Rodolfo! — gritou Júlia. — Vá-se embora daqui.
— Vou se quiser. Não se esqueça de que estas terras são minhas, e posso vir aqui à hora que desejar.
— A fazenda está arrendada, e você não tem o direito de vir sem ser convidado. Agora vá embora!
Mas Rodolfo não parecia disposto a ceder. Perdera e não queria admitir. Depois disso, Júlia, com certeza, contaria a Fausto o que acontecera, e o irmão, na certa, tomar-lhe-ia satisfações. Vendo que o moço não se mexia, Trajano tratou de intervir novamente:
— Não ouviu o que ela disse sinhozinho? Por favor, saia daqui.
— Será que quer apanhar de novo, negro?
— Não, sinhô. Mas se o sinhô tentar me bater novamente, não vou permitir. Não sou seu escravo e não estou acostumado a apanhar.
Rodolfo fuzilou-o, abismado. Como era insolente aquele escravo! Merecia uma surra. Contudo, tinha que reconhecer que o negro era mais alto e mais forte que ele, e ser-lhe-ia muito fácil desarmá-lo e até matá-lo. Temeroso, engoliu o ódio e retrucou:
— Isso não vai ficar assim, Júlia. Quanto a você, negro, não perde por esperar.
Virou as rédeas do cavalo e foi embora. Sentia tanto ódio que parecia que ia explodir. Aquela era mais uma das muitas afrontas que vinha sofrendo e ele precisava se vingar. Daria um jeito de se vingar de todos e saborearia sua vingança pisando sobre seus inimigos.
Quando Fausto chegou da vila, recebeu a notícia de que Júlia não se encontrava em casa, pois havia saído logo após o desjejum para um passeio a cavalo com Rodolfo e ainda não retornara.
— E meu irmão? — indagou Fausto ao escravo que o recebera. — Também ainda não voltou?
— O sinhozinho Rodolfo está lá no rio, pescando.
Fausto rodou nos calcanhares e partiu em busca do irmão. Alguma coisa devia estar errada. Onde estava Júlia? Por que não voltara com ele? Encontrou-o sentado numa pedra, com as calças arregaçadas e um caniço na mão, pescando tranqüilamente, como se nada tivesse acontecido. A seu lado, Túlio mascava um pedaço de fumo de rolo e parecia desinteressado da pescaria. Fausto chegou por trás deles e chamou:
— Rodolfo, onde está Júlia?
Rodolfo olhou para ele com desprezo. Tinha vontade de esmurrá-lo, mas conteve o ímpeto e disse em tom de sarcasmo.
— Não sei. Deixei-a na fazenda Ouro Velho, em companhia de um negro.
Fausto já ia responder, mas mudou de idéia. Não queria estragar seu domingo com uma discussão sem propósito. Sabia que Rodolfo o estava provocando, mas não queria responder a suas provocações. Ele não deu resposta ao irmão e se foi, rumo à fazenda Ouro Velho. Não lhe agradara nada aquele passeio. Então Júlia não sabia que ele e o irmão haviam brigado?
Desde o dia em que ele e Rodolfo tiveram aquela briga em presença da mãe, nunca mais foram os mesmos. Mantinham um relacionamento cordial, mas Fausto podia perceber certa agressividade no tom de voz de Rodolfo todas as vezes que ele lhe dirigia a palavra. O irmão, sempre que podia, evitava encontrá-lo e quase não olhava mais para ele. Nos dias que se seguiram à briga, Rodolfo não o esperou mais para vistoriar a plantação, como sempre fazia, preferindo sair sozinho, mais cedo, ou então não indo mais.
Ao chegar à fazenda Ouro Velho, todos estavam reunidos no jardim, conversando, inclusive Dário, que chegara havia pouco para o almoço. Logo que Júlia o viu, levantou-se e correu. Estava ansiosa por vê-lo e não pôde ocultar que algo de muito errado se passara com ela. Ele a abraçou e, sentindo seu corpo trêmulo, indagou:
— Júlia, meu bem, aconteceu alguma coisa? Soube que saiu com Rodolfo...
Ela se abraçou ainda mais a ele e começou a chorar. Não queria contar-lhe o ocorrido, mas sentia que não poderia guardar aquilo só para si. Na fazenda, nada dissera a ninguém e pedira a Trajano que não comentasse o ocorrido. O escravo prometera guardar silêncio, e ela passara ali a manhã toda, sem que ninguém desconfiasse do sucedido.
— Oh, Fausto! — respondeu ela finalmente — Não queria que você soubesse, mas creio que não conseguirei ocultar nada de você.
— Diga-me, minha querida, o que foi que aconteceu?
Ele enxugou-lhe as lágrimas e, tomando-a pelo braço, saiu em direção oposta, acenando para os demais. Enquanto caminhavam, ela ia lhe contando tudo o que acontecera e podia sentir a raiva crescendo dentro dele. Quando terminou, ele disse entre dentes:
— Aquele cachorro! Miserável! Deveria matá-lo!
— Acalme-se, querido. Afinal, não aconteceu nada.
— Como não aconteceu nada? Ele quase a violentou.
— Não creio que pretendesse chegar tão longe. Penso que queria apenas me beijar.
— Beijar, pois sim. E pensar que eu, a princípio, até senti pena dele, julgando-o um pobre infeliz por se apaixonar por você. Como fui tolo! Ele não presta e merece uma lição.
— Não diga isso. Você é um homem bom e compreensivo, e tenho certeza de que conseguirá entender.
— Mas entender o que, meu Deus? Que ele a desrespeitou? Que quis me trair?
— Não. Que agiu feito uma criança, incapaz de compreender a extensão de seus atos.
— Júlia, como pode ainda defendê-lo?
— Mas não o estou defendendo. Estou apenas tentando mostrar-lhe que Rodolfo ainda não aprendeu a respeitar seus semelhantes.
— E daí? Isso por acaso é desculpa para ele fazer o que fez?
— Não, mas é motivo para que possamos compreendê-lo e ajudá-lo.
— Ajudá-lo? Mas como? O que quer que faça? Que o apóie? Que a divida com ele?
— Fausto que horror! Como pode dizer uma coisa dessas?
— Desculpe-me, meu bem, não quis ofendê-la. Mas é que essa sua atitude me deixou indignado. Pensei que tivesse ficado furiosa com o que ele fez.
— E fiquei. Mas Rodolfo é seu irmão, e acho que agiu movido pelo ciúme. Talvez não tenha tido intenção de ofender-me ou de traí—lo.
— E teve intenção de que, então?
— Não sei ao certo. Mas creio que Rodolfo está confundindo as coisas. Ele pensa que só porque vocês são gêmeos, eu deveria gostar dele tanto quanto gosto de você. Não entende por que fui preferi-lo a ele.
— E daí? Continuo achando que isso não é motivo para atacá-la. Um homem de caráter não agiria assim, não desrespeitaria uma moça só porque sente ciúmes. Não, Júlia, isso foi coisa de um patife, e ele bem merece uma reprimenda. Eu deveria matá-lo!
— Pelo amor de Deus, Fausto, nem pense numa coisa dessas!
— Júlia, não entendo você. Há pouco, quando cheguei, você chegava a tremer, não sei se de medo, de ódio, de revolta ou de tudo isso junto. Mas agora, parece que mudou. De repente, é como se você tivesse passado a aceitar tudo isso com extrema naturalidade.
— Não é nada disso, Fausto, não interprete tudo errado. Já disse que fiquei com medo e com raiva. Ninguém gosta de ser atacado, agredido, humilhado. No entanto, isso nada tem a ver com o fato de que sinto pena dele.
— Pena? Era só o que me faltava!
— Pena, sim. Como disse Rodolfo ainda está muito longe de entender o que é o respeito e pensa que pode tudo, só porque é branco e rico.
Fausto estava desanimado. Não adiantava tentar convencer Júlia de que Rodolfo deveria ser advertido. Ela possuía bom coração e não queria que ele se desentendesse com o irmão novamente por causa dela. Esgotados seus argumentos, acabou por concordar:
— Está bem, Júlia, você venceu. Não quero mais falar sobre isso.
— Então prometa que não tomará nenhuma atitude drástica contra ele.
— Está certo. Se for o que quer...
— Obrigada, Fausto. Sabia que você entenderia.
Os dois se beijaram e voltaram para junto dos demais, que já se preparavam para o almoço. Quando chegaram, Ezequiel cumprimentou sorridente:
— Senhor Fausto! Há quanto tempo não o vemos. Fico muito feliz que esteja aqui.
— Obrigado. É um prazer reencontrá-los.
— Creio que ainda não conhece nossa filha, Sara — disse Ezequiel, mostrando-lhe a menina.
— Não, ainda não. Muito prazer, senhorita.
— O prazer é todo meu — respondeu ela, acanhada.
— Sara e eu vamos ficar noivos — adiantou-se Dário.
— É mesmo? Quando?
— Não sabemos ainda. Logo que ela melhore.
— Senhor Fausto — interrompeu Rebeca —, por que não fica para o almoço?
— Oh, não, obrigado. Não quero causar incômodo.
— Mas não será incômodo algum. Dar-nos-ia imensa satisfação.
— Bem, se é assim, aceito.
— Ótimo. Agora, se me der licença, vou mandar pôr mais um prato à mesa.
O almoço transcorreu sem maiores preocupações. Sara e Dário fazia planos para o casamento, e todos estavam felizes. Fausto, porém, olhando mais para a moça, pôde perceber a enorme palidez de suas faces. Ela era, com certeza, uma moça enferma, e embora desconhecesse a natureza daquela enfermidade sabia tratar-se de algo sério. De vez em quando, ela tossia de leve, tentando disfarçar a falta de apetite. Quase não comia, e ele podia notar-lhe certo desânimo, como se estivesse muito cansada. Fausto teve um pressentimento ruim, mas não disse nada. Não queria impressionar Júlia, e tampouco saberia definir o porquê daquela sensação.




CAPÍTULO 8 Com o amor não se brinca_Mônica de Castro


O clima na fazenda São Jerônimo parecia haver retomado a normalidade, e ninguém mais tocava no assunto das brigas que se haviam sucedido em tão curto espaço de tempo. Palmira, apesar de tudo, gostava muito da convivência em família e, principalmente, de Túlio, por quem acabara se afeiçoando em demasia. O rapaz era muito parecido com seu primeiro marido, Gaspar, e isso a enchia de orgulho. Rodolfo, sempre que possível, juntava-se a eles, e Fausto escolhia as horas em que sabia que ele não estava para ficar junto da mãe.
Constância, por sua vez, começou a sair sozinha. À medida que o tempo passava, foi se acostumando a sua nova situação e arriscava algumas incursões pela casa e pela fazenda. Aos poucos foi se soltando e, em breve, voltou a ser a mesma Constância de sempre, alimentando seu ódio por Tonha. Ela vivia a vigiar a escrava. Não lhe dizia nada. Ficava apenas olhando-a, com ar mordaz. Nos lábios, um sorriso sarcástico a acompanhá-la. Tonha não dizia nada. Não gostava de Constância, mas o que poderia fazer? Ela era sobrinha de sinhá Palmira, e o melhor era tratá-la com respeito e deferência, sem, contudo, prestar-lhe muita atenção.
E ainda havia Túlio. Apesar da conversa que tivera com a mãe, ele não parava de pensar em Etelvina. Mesmo a avó não aprovava aquele interesse. Certa vez até chegara a lhe contar que Licurgo, seu segundo marido, criara o hábito de dormir com uma negrinha de dentro, mas que ela o forçara a abandoná-la, e ainda mandara dar-lhe uma surra. Pretendia, com isso, deixar claro que não toleraria aquele tipo de envolvimento em sua casa.
Com isso, Túlio começou a ficar desesperado. Ansiava pelo corpo de Etelvina, tão jovem, tão fresco. Ele vivia a segui-la com os olhos, mas ela, sempre que o via, fugia apavorada. Além disso, seu coração já estava preso ao de Trajano, e ela muito lamentara sua partida dali. Mal via a hora de tornar a vê-lo e rezava para que seus orixás o trouxessem de volta. Chegava mesmo a fazer diversas oferendas na cachoeira, pedindo a Oxum, a deusa do amor, que o levasse para seus braços. Nessas ocasiões, Túlio sempre ia atrás dela, mas nunca tivera coragem de se aproximar, com medo de que alguém descobrisse e contasse para a mãe ou a avó.
Apenas Rodolfo conhecia seus desejos. Só o tio era capaz de compreender sua aflição. Ele mesmo, por diversas vezes, servira-se das negras, a exemplo do pai, sem que a mãe jamais descobrisse. Ao saber disso, Túlio indagou abismado:
— Mas o quê? Quer dizer então que você já se deitou com as negras?
— É claro que sim. Por diversas vezes.
— E vovó nunca descobriu?
Ele soltou uma gargalhada e respondeu:
— Ela nunca nem sequer desconfiou.
— Mas como você consegue?
— Sabe o Terêncio?
— O capataz?
— É ele quem me arruma as negrinhas, como fazia antes com papai.
— Mas vovó disse que descobriu sobre seu pai e uma escrava, e que ele teve que parar de se encontrar com ela.
— Bom isso lá é verdade. Ele parou de se encontrar com ela, mas, pouco depois, passou a se deitar com qualquer uma que estivesse disponível. E vovó também nunca ficou sabendo.
— Ora, vejam só!
— Pois é. Por isso é que lhe digo. Não tenha receio de tomar à negra que quiser. Elas estão aqui para nos servir e não podem se recusar.
Túlio olhou-o com ar de cobiça, já mordendo os lábios, o corpo se enchendo de desejo só de imaginar a negra Etelvina sob seu corpo.
— Será mesmo? — perguntou com olhar lúbrico.
— É claro. Está interessado?
— Você sabe que sim.
— Eu sei. Etelvina, não é mesmo?
— É sim. Foi por causa dela que Trajano me bateu. Tenho certeza de que ele também gostou dela.
— Pior pra ele. Vai ter que suportar vê-lo... - Rodolfo parou de falar e encarou o sobrinho com ar diabólico, mudando de as¬sunto — Hei, espere aí. Quer se vingar daquele negro?
— Vingar-me? Como?
— Apenas me responda: quer vingar-se dele ou não quer?
— Sim... Seria divertido.
— Ótimo. Então, vai se vingar dele.
— Mas como? Em que está pensando?
— Quer mesmo saber? — ele assentiu. — Pois vou lhe contar.
Túlio chegou-se mais para perto de Rodolfo, profundamente interessado, e ele narrou-lhe em detalhes o plano que tinha para se vingar daquele negro imundo, como chamava Trajano. Túlio começou a rir. O plano era perfeito, e Trajano receberia a lição que merecia.
— Mas, como faremos para executá-lo?
— Deixe tudo por minha conta. Na hora certa de agir, eu o informarei e explicarei direitinho tudo o que tem que fazer. Por enquanto, basta ficar de olho na negra.
Túlio saiu dali animado. Era uma excelente idéia, e mataria dois coelhos com uma cajadada só. Passando pela porta da cozinha, dirigiu-se para o terreiro, onde Etelvina estava pendurando a roupa. Chegou perto dela e parou, encarando-a com um sorriso irônico no rosto. A moça assustou-se e encolheu-se toda, tentando realizar sua tarefa sem prestar-lhe atenção. Túlio, porém, sem tirar os olhos dela, disse com voz melíflua:
— Etelvina, sabe que é uma escrava muito bonita, não sabe? Ela abaixou os olhos, envergonhada, e suplicou:
— Por favor, sinhô, deixe-me trabalhar em paz.
— Mas eu não estou atrapalhando. Ou estou? Pode falar.
— Não, sinhô, não está.
— Então por que não me deixa ficar aqui e observá-la?
— Sinhô Túlio, por favor...
— Não se preocupe comigo, Etelvina. Ou melhor, faça de conta que não estou aqui. Só quero admirar sua beleza.
Ela estava constrangida e com medo. Olhou para a porta da cozinha e viu Tonha lá dentro, preparando o jantar. Tonha, como que sentindo o apelo mudo da outra, virou-se subitamente e logo percebeu o que estava se passando. Foi até a porta e gritou:
— Etelvina! Pode vir aqui um instante, sim?
Etelvina, agradecida, terminou de pendurar o lençol e correu para a cozinha, Túlio despindo-a com o olhar.
— Chamou Tonha?
— Chamei, sim. Será que pode me ajudar com esse bolo?
— É claro, Tonha. Agora mesmo.
Túlio chegou por detrás delas, sem que nenhuma das duas percebesse. Parecia um felino silencioso e traiçoeiro. Elas levaram o maior susto quando ele disse:
— Tonha, por que não se mete com sua própria vida? Tonha teve um sobressalto e respondeu as faces ardendo em fogo:
— O que disse sinhozinho?
— Você ouviu muito bem. Meta-se com sua própria vida e não se atravesse em meu caminho.
— Não sei o que o sinhozinho quer dizer.
— Sabe sim. Não pense que só porque tio Fausto e tio Rodolfo gostam de você, pode fazer o que quiser. Lembre-se de que minha avó somente a tolera aqui por causa deles, mas eu posso muito bem fazer com que ela mude de idéia.
— Sinhozinho, perdão, mas não compreendo...
— Não se faça de tonta, mulher, porque sei que não é. Estou avisando: não se meta comigo. Você não me conhece e não sabe do que sou capaz.
Sem dizer mais nada, voltou-lhe as costas e saiu porta afora. Tonha sentiu medo, e Etelvina começou a tremer, dizendo em lágrimas:
— Oh! Tonha desculpe, não devia ter metido você nessa história.
— Minha filha, a história de um negro é a história de seu povo. O que está acontecendo com você já vi acontecer muitas vezes e sei como sempre termina.
— Mas você não devia ter me chamado.
— Senti que você precisava de ajuda.
— A culpa foi minha. E agora, se sinhozinho Túlio fizer alguma coisa contra você, não poderei me perdoar.
— Não se preocupe menina. Nada vai me acontecer. E depois, não será a primeira vez.
— Mas não quero, não quero.
— Então pare de se preocupar e tenha cuidado. Evite sair sozinha.
— Mas eu tenho que lavar roupa lá no riacho.
— Eu sei, e isso você não pode evitar. Mas pode deixar de ir sozinha fazer oferendas a Oxum, não pode?
— Como sabe disso, Tonha?
— Por acaso pensa que sou boba, é? Ouça Etelvina, já vivi muito e já amei também. Sei como são essas coisas. Mas não vá mais fazer oferendas sozinha. Se não tiver com quem ir, não vá. É perigoso. Sinhozinho Túlio pode segui-la, e só Deus sabe o que poderá acontecer.
— Tem razão, Tonha. Estou sendo descuidada, não é?
— Está, e muito. Agora venha, acabe de bater esse bolo ou não ficará pronto a tempo para o jantar. Deixe que eu mesma termine de estender a roupa.
Tonha saiu para o terreiro e começou a pendurar os lençóis no varal. Estava preocupada com Etelvina. Sentia no coração um aperto de desgraça. Ela se abaixou para apanhar uma colcha na cesta e viu uma sombra de mulher projetando-se sobre seu corpo. Assustada, levou a mão ao peito e ergueu-se, virando-se apressada, dando de cara com Constância, que a olhava com aquele sorriso sarcástico de sempre.
— Sinhá Constância! — exclamou. — Deseja alguma coisa?
Como Constância não respondesse, Tonha voltou-lhe as costas e continuou a trabalhar, sob o olhar ameaçador da outra. Ficaram assim durante cerca de dez minutos, até que Tonha, terminando o serviço, disse acabrunhada:
— Licença, sinhá.
Constância chegou para o lado e Tonha passou de cabeça baixa. Deu dois passos e parou, ao ouvir a voz esganiçada da outra.
— Não pense que já a perdoei pelo que me fez. Tonha, ainda de costas, retrucou:
— Perdão, sinhá, mas não fiz nada, não.
— Ah, não? Pois olhe para mim! — Tonha não se moveu, e Constância puxou-a pelo ombro, fazendo com que se virasse e a encarasse. — Olhe para mim, estou mandando! O que vê? Alguma beldade?
Tonha, sem saber o que dizer, começou a gaguejar:
— Si... Sinhá... Não sei... Não sei o que quer de... De... Mim...
— Quero que pague os anos de alegria e juventude que me roubou!
A escrava, nervosa, começou a chorar baixinho, e Constância ergueu a mão para bater-lhe, quando ouviu uma voz atrás de si:
— Porque não a deixa em paz, Constância?Já não basta o que a fez passar?
Constância abaixou a mão e virou-se furiosa, olhando o interlocutor bem fundo dentro de seus olhos.
— Camila! — gritou. — O que quer? Saia daqui. Meu assunto não é com você.
— Mas o meu é com você. — Virou-se para Tonha e disse: — Pode ir, Tonha. Deixe que me entenda com sinhá Constância.
Mais que depressa, Tonha agarrou o cesto e voltou para a cozinha, de onde Etelvina as observava. Depois que ela se afastou, Camila continuou:
— Muito bem. Agora é entre mim e você.
— Ora, ora, querida prima. Vejo que o casamento a tornou corajosa.
— Nunca fui covarde, Constância, ao contrário de você, que amedronta escravas indefesas.
— Oh! Pobrezinha da Tonha! Tão indefesa...
— Não estou aqui para ouvir suas ironias. Sei muito bem quem você é e sei também do que é capaz.
— É mesmo? E daí? O que tem com isso?
— Pensa que pode me enganar com suas mentiras? Pois saiba que não acreditei em uma só palavra daquela história absurda.
— Pois pouco me importa no que você acreditou. Não voltei por sua causa.
— E voltou por quê?
— Não é da sua conta.
— Não creio mesmo que seja. Mas vou lhe dar um conselho: deixe Tonha em paz.
— Por quê? O que vai fazer se eu não deixar?
Camila ameaçou-a com o olhar e não respondeu. Rodou nos calcanhares e entrou em casa. Constância havia voltado com algum propósito, e estava claro que era Tonha. Será que ainda pretendia, depois de mais de trinta anos, prejudicá-la? Era o que parecia, mas Camila não deixaria.
Apesar de contrariado, Fausto cumprira a promessa que fizera a Júlia e não tomara nenhuma atitude drástica contra o irmão. No entanto, não podia deixar aquilo passar em branco, e resolveu procurá-lo, ao menos para dar-lhe um aviso. Bateu à porta de seu quarto e entrou, sem nem esperar resposta. Rodolfo estava se trocando para o jantar, e ele foi logo falando:
— Ouça Rodolfo, prometi a Júlia que não faria nada contra você, mas não posso ficar por aí fingindo que nada aconteceu, quando a vontade que tenho é de matá-lo.
Rodolfo olhou-o espantado. Naquele dia, depois que o irmão saíra para ir ao encontro de Júlia, ele pensou que teriam uma nova briga, e das mais sérias. Mas quando Fausto voltou e não disse nada, ele pensou que Júlia não lhe tivesse contado o ocorrido, por medo ou vergonha ou, quem sabe até, porque havia gostado. Mas agora, vendo a atitude ameaçadora do irmão, tinha certeza de que ele estava a par de tudo. No entanto, fingindo desconhecer do que se tratava, tornou indignado:
— Meu irmão! Do que é que está falando?
— Não se faça de desentendido. Sei muito bem o que você fez com Júlia. Mas quero que saiba que, apesar de ela não querer que eu brigue com você, não vou tolerar que isso se repita. De hoje em diante, quero dar-lhe um aviso: fique longe de Júlia. Ela é minha namorada, e nós vamos nos casar.
Rodolfo escutava-o, pensativo. Então Júlia não queria que brigassem. Por quê? Na certa porque gostara mesmo. Ficara nervosa, era verdade, com medo. Mas também, ele fora pior que um animal. Tentara agarrá-la à força, e ela se assustara. Não é assim que se trata uma dama. Mas, no fundo, ela gostara. Por que outro motivo pediria ao irmão que não fizesse nada contra ele, senão para protegê-lo, porque gostava dele? Sim, com certeza, era isso. Ele a estava conquistando e não podia pôr tudo a perder. Era preciso não irritar Fausto, ou Júlia poderia assustar-se de novo, e ele acabaria por perder a oportunidade de vencer o irmão. Ele deu um sorriso maquiavélico, sua cabeça já tramando um plano para derrotá-lo, e retrucou:
— Fausto, contenha-se. Não há motivo para ameaçar-me.
— Não o estou ameaçando. Estou apenas avisando-o. Não se meta mais com Júlia ou não responderei por mim.
Rodolfo abaixou os olhos e suspirou. Depois, olhou para o irmão com ar de fingido arrependimento e desabafou:
— Ouça Fausto, perdoe-me. Sei que agi errado com você, mas foi por amor.
Fausto retrocedeu confuso. Não esperava um pedido de desculpas e indagou perplexo:
— Como assim, por amor?
Rodolfo ergueu os ombros, desalentado, e prosseguiu:
— Infelizmente, meu irmão, o destino pregou-nos uma peça. Apaixonei-me por Júlia e confesso que, por uns momentos, cheguei a ficar cego por esse amor e quase perdi a razão.
— Rodolfo, eu...
— Não, deixe-me terminar, por favor. Sei que agi errado com você, tentando envenená-lo com mamãe e depois ultrajando sua amada. Mas quero que compreenda que eu estava fora de mim, cego pela paixão. Tão cego que não podia enxergar nada nem ninguém a minha frente. Foi por isso que fiz o que fiz. Foi por amor.
Fausto olhou-o desconfiado. Amava o irmão e sentia-se muito mal com aqueles desentendimentos.
— E por que só agora resolveu contar-me tudo isso?
— Porque, depois do que aconteceu entre mim e Júlia, percebi o quanto estava errado. Eu quase a desonrei e traí você, meu irmão, a quem dedico todo o meu afeto. E por pouco não me arruíno também. Eu queria muito lhe falar, mas não tinha coragem, com medo de que você me repelisse. No entanto, a ocasião se fez, e quero que me perdoe. Estou sinceramente arrependido e juro que isso nunca mais se repetirá. Vou tentar tirar Júlia de meu coração e transformá-la em verdadeira irmã.
Fausto estava emocionado. Já não tinha mais dúvidas da sinceridade de suas palavras. Rodolfo, por infortúnio, acabara por se apaixonar por sua Júlia, e isso não era culpa de ninguém. Afinal, quem pode mandar no coração? E ele estava certo de que o irmão só fizera o que fizera por amor e por revolta. Afinal, eram gêmeos, e não seria nada difícil que Júlia se interessasse por Rodolfo, em vez dele. Contudo, o contrário acontecera, e devia ser difícil ver-se rejeitado, trocado por seu irmão idêntico. Fausto se imaginou no lugar do irmão fazendo-se sempre a mesma pergunta: "por que não eu"?
— Rodolfo, meu irmão, não sabe como fico feliz em ouvir isso. Estava muito triste, pensando que você me havia traído.
— Como vê Fausto, isso não é verdade. Eu jamais trairia meu irmão. Graças a Deus que logo despertei dessa paixão, que me toldava a razão, e pude novamente raciocinar com clareza. Você é muito importante para mim, e não posso desentender-me com você por causa de mulher nenhuma. Ainda que seja por uma mulher maravilhosa feito Júlia. E então, será que pode me perdoar?
Fausto abraçou-o, emocionado, e respondeu com sinceridade:
— É claro que sim, meu irmão, meu amigo.
— Sem ressentimentos?
— Sem ressentimentos.
— Ótimo. E quero também pedir desculpas a Júlia.
— Acha isso necessário?
— É claro que sim. Não quero que minha futura cunhada me veja como um inimigo ou um monstro. Ao contrário, quero ser seu amigo e vou provar, a vocês dois que tudo isso, em breve, será parte do passado.
— Muito bem. Acho que é melhor mesmo. Só assim Júlia poderá esquecer tudo o que aconteceu.
— Espero que também possa me perdoar e confiar em mim. Você confia, não confia?
Fausto hesitou, mas acabou respondendo:
— Claro... Claro que sim...
— Não vai ficar agora desconfiando de tudo o que fizer ou disser nem com medo de me deixar a sós com Júlia, vai?
— É claro que não — Fausto queria acreditar. — Confio em você e sei que não vai me decepcionar.
Rodolfo estava satisfeito. O irmão era um perfeito idiota. Sempre tão impulsivo, de temperamento explosivo, mas ingênuo feito uma criança. Nem de longe percebera que ele estava mentindo o tempo todo. Arrependido... Pois sim. Eles que o aguardassem. Reconquistaria a confiança de ambos, e então eles veriam. Júlia seria só dele, e o irmão perderia mais aquela disputa.



CAPÍTULO 9



Palmira estava sentada na sala de estar, tendo aos pés o filho Fausto, que lia para ela uma carta de sua sobrinha, Berenice, quando um "hum, hum" chamou sua atenção. Voltando-se na direção do ruído, encontrou o capataz, Aldo, que segurava nas mãos o chapéu e foi logo dizendo:
— Bom dia, dona Palmira.
— Bom dia, Aldo — respondeu ela. — Deseja alguma coisa?
— Sim, senhora, gostaria de falar-lhe um momento.
— Pois não. Do que se trata?
— É que minha filha, Marta, terminou os estudos na corte, e hoje recebi uma carta da madre superiora, pedindo-me que fosse buscá-la.
Palmira olhou-o surpresa. Fazia algum tempo que seu marido, Licurgo, enviara a menina para estudar no Rio de Janeiro, como reconhecimento pelos inúmeros préstimos que Aldo lhes fizera durante todos aqueles anos. Era um bom capataz. Um homem digno e decente, e sempre executara suas ordens com zelo e cuidado. Quando a filha alcançara idade de estudar, Licurgo a enviara para um colégio de freiras na corte, para que recebesse uma educação mais refinada, o que, na certa, lhe facilitaria um bom casamento. No entanto, aquele dia não parecia assim tão distante, e Palmira se surpreendeu com a rapidez com que o tempo passara.
— Mas já? — indagou perplexa. — Parece que foi ontem que partiu.
— Para a senhora ver. Já faz sete anos que se ausentou.
— Tudo isso?
— Sim, senhora. Marta acabou de completar dezoito anos.
— Já tem algum pretendente?
— Não, senhora. Segundo me disse a madre superiora, ela não parece muito interessada em namoricos. A madre até pensou que ela quisesse ser freira, mas Marta, estranhamente, disse que não.
— É o que se há de fazer? Vão-se entender os filhos, não é mesmo? E quando pretende partir?
— Se a senhora não se opuser, amanhã mesmo. Minha mulher morre de saudades da menina.
— É natural. Bem, pode ir.
— Obrigado, dona Palmira.
Depois que Aldo saiu, Fausto olhou-a, curioso. Fazia muitos anos que não a via, e mesmo no tempo em que ali vivera não lhe prestara muita atenção. Lembrava-se apenas de que ela era uma menina feinha e um tanto quanto gordinha, que vivia correndo descalça pelo terreiro. Depois de alguns instantes, indagou:
— Será que ela mudou muito?
— Não sei meu filho. Quando saiu, era ainda uma menina, e agora vai voltar uma moça. Pena que não tenha arranjado um bom casamento lá mesmo, pela corte. Por aqui será muito mais difícil. Os pretendentes são poucos, e ninguém de nossa sociedade se interessará por ela. Apesar de tudo, ainda é uma moça pobre e sem berço.
No dia seguinte, quando ela chegou, foi um espanto geral. Marta tornara-se uma moça extremamente bonita e delicada. Perdera a gordura da infância, as feições se afilaram, os cabelos tornaram-se cheios e um pouco mais escuros, de um louro quase castanho. Os olhos, também castanhos, tinham um quê de tristeza, disfarçados por um sorriso gracioso, que deixava à mostra os dentinhos alvos e perfeitos. Rodolfo foi o primeiro a vê-la. Ela havia acabado de descer da carruagem e estava abraçada à mãe, enquanto Aldo retirava sua bagagem, quando ele se aproximou, indagando:
— Marta? É você mesma?
Ela se virou para ele meio sem graça e respondeu com timidez:
— Sim, senhor... — e não terminou, sem saber com quem estava falando.
— Rodolfo — completou-o. — Então não me reconhece mais?
— Perdão, senhor Rodolfo, mas é que faz muito tempo que não os vejo, e o senhor e seu irmão sempre foram tão parecido...
— Entendo. Mas não precisa se desculpar. Agora veja em que bela moça você se transformou!
Ela abaixou os olhos e disse as faces vermelhas, em fogo.
— Obrigada. O senhor é muito gentil.
Ele ficou parado, olhando-a embevecido, e não percebeu o olhar de desagrado de Aldo. O capataz não gostava muito de Rodolfo e estava cansado. Viajara o dia todo e só podia pensar em dormir. Tentando não desgostar o patrão, disse com humildade:
— Desculpe-me, senhor Rodolfo, mas Marta deve estar cansada. Se nos der licença agora, gostaríamos de entrar.
Rodolfo fuzilou-o com o olhar, mas não tinha o que dizer. Embora a contragosto, concordou:
— Sim, claro, fiquem à vontade.
Ele se foi, e Marta entrou em companhia dos pais. No coração, uma coisa diferente começava a despontar. Sem nem perceber, ficara deveras impressionada com Rodolfo. Ela sempre achara os gêmeos muito bonitos, mas nunca pensara em nenhum deles de maneira diferente. Eles eram mais velhos e eram os patrões. Mas agora, percebendo o olhar de Rodolfo sobre ela, suas palavras gentis, seus gestos atenciosos, ela se impressionara. Será que ele havia se interessado por ela? Discretamente, olhou para o pai, mas ele não disse nada. Aldo não queria nem pensar em um possível interesse de Rodolfo por sua filha.
Após o jantar, já na cama, Aldo confidenciou à mulher:
— Não gostei do jeito como seu Rodolfo olhou para Marta.
— Por quê? — retrucou Anita, espantada.
— Não sei. Ele a olhou de um jeito diferente, como se a estivesse desejando.
Ela ergueu-se na cama e encarou-o com gravidade.
— Tem certeza? — Ele aquiesceu. — Mas isso é maravilhoso!
— Enlouqueceu mulher? Seu Rodolfo é o patrão. O que pensa que pode querer com uma moça feito Marta?
— Ora, Aldo, você me surpreende. Marta é uma moça bonita e inteligente, e recebeu a melhor educação. Tornou-se uma moça fina, e é natural que os rapazes se interessem por ela.
— Ouça Anita, não se engane. O interesse de seu Rodolfo não vai além de uma noite de prazer.
— Acho que você está exagerando.
— Não estou não. Bem sei de suas conquistas.
— Mas que conquistas? E daí? Por acaso ele não é solteiro? Não tem o direito de se distrair? E depois, pelo que sei, ele nunca se interessou por ninguém. Só por uma escrava ou outra, para diverti-lo na cama, e por algumas cortesãs. E isso não é exatamente o que se possa chamar de conquista.
Aldo não disse nada. Conhecia a mulher e sabia que ela era sonhadora e ambiciosa, e não hesitaria em incentivar um romance entre Marta e Rodolfo. Mas ele não. Era um homem honesto e não estava disposto a entregar a filha a um aproveitador qualquer, ainda que fosse seu patrão. Em silêncio, virou-se para o lado e fingiu dormir. Não adiantava nada discutir. O jeito era ficar de olho na menina e rezar para que nada de mal lhe acontecesse.
Marta, porém, não partilhava da opinião do pai. Gostara do moço, do jeito como a olhara. Aquilo a impressionara sobremaneira, e ela, em sua inocência, julgava que Rodolfo talvez se apaixonasse por ela. Afinal, era uma moça prendada, capaz de fazer qualquer homem feliz. No entanto, sabia que o pai não aprovaria. Ela conhecia seus olhares e pôde perceber que ele não ficara nada satisfeito com o modo como Rodolfo a tratara. Mas ele não precisava se preocupar. Rodolfo era um bom moço, tinha certeza, e não faria nada que pudesse desgostá-lo. Pensando nisso, adormeceu, guardando no pensamento a imagem de Rodolfo a lhe sorrir. No dia seguinte, levantou cedo e saiu. O pai já estava na plantação, e a mãe indagou, de forma intencionalmente casual:
— Aonde vai?
— Não sei. Dar uma volta. Ver como vão às coisas. Estou fora há muito tempo e gostaria de rever a fazenda.
— Onde pretende ir primeiro?
— Hum... Acho que vou falar com dona Palmira.
Anita sorriu satisfeita. Dona Palmira, com certeza, era uma ótima pessoa para se visitar. Quem sabe Rodolfo também não estivesse por lá?
— Isso mesmo, minha filha, vá.
Marta saiu apressada em direção à casa grande, entrando pela porta dos fundos. Tonha estava na cozinha, terminando de preparar o café, quando ela cumprimentou:
— Bom dia.
Tonha olhou para ela, como que tentando reconhecê-la. Ouvira comentários de que ela estaria voltando e teve certeza de quem era.
— Meu Deus, sinhazinha Marta! — exclamou. — Como está bonita!
— Obrigada, Tonha. Como me reconheceu?
— Na verdade, não reconheci. É que ouvi falar de sua volta e não podia ser mais ninguém. E então, como foi lá na corte?
— Muito bem. O Rio de Janeiro é lindo, e o convento foi maravilhoso. Aprendi muitas coisas e estou pronta para ser uma boa esposa.
Nisso, Rodolfo entrou na cozinha. Ia passando, quando escutara vozes femininas e reconhecera, numa delas, a vozinha de Marta.
— Olá — disse sorridente. — Já por aqui tão cedo?
— Bom dia, sinhozinho Rodolfo — cumprimentou Tonha.
— Ora, Tonha — censurou-o. — Por que foi estragar a surpresa? Queria ver se Marta sabia que era eu.
Marta sorriu acanhada e retrucou:
— Oh, senhor Rodolfo, ia zombar de mim, é?
— Não. Ia apenas brincar com você. E não precisa me chamar de senhor, não. Agora venha, entre. Deseja falar com minha mãe? Ela não tarda a descer.
Rodolfo saiu puxando-a pelo braço, enquanto Tonha os observava. Vendo-os juntos, podia perceber que Rodolfo estava encantado com ela, e que Marta estava apaixonada por ele. Aquilo não daria certo, ela temia. Silenciosamente, elevou uma prece a seus orixás, pedindo-lhes que não permitissem que nenhuma desgraça sucedesse.
Breve, toda a família se reuniu para o café da manhã, menos Júlia, que saíra cedo para visitar Sara. Rodolfo convidou Marta a sentar-se com eles, sob o olhar reprovador da mãe. Palmira não gostara nada da companhia daquela empregadinha à mesa, mas não disse nada. Não queria se aborrecer com o filho logo cedo e preferiu calar-se. Marta, contudo, sem nada perceber, ia contando suas peripécias na corte, embevecida com a atenção que Rodolfo lhe dispensava. Todos perceberam que o rapaz a cobria de atenção, e Fausto sorriu satisfeito. Embora a mãe não aprovasse, ele estava feliz por ver que o irmão logo se interessara por outra moça, fazendo-o crer que sua paixão por Júlia em breve estaria terminada.
Rodolfo, porém, ria intimamente. Ele até que havia gostado de Marta. A moça era, realmente, muito bonita, mas ele precisava conquistar Júlia. Era uma questão de honra. No entanto, por mais que se esforçasse Marta não lhe saía da cabeça. Ela era linda e meiga, e seu coração disparava todas as vezes que pensava nela. Mas ele não podia se deixar levar por aquela emoção. Marta era apenas uma moça, ao passo que Júlia era sua vitória. Conquistar Marta acalmaria seu coração. Conquistar Júlia aplacaria seu orgulho. Assim, Rodolfo começava a desperdiçar a maravilhosa chance de ser feliz, não apenas ao lado de uma mulher que o amava, mas daquela a quem começava, verdadeiramente, a amar.





CAPÍTULO 10



Etelvina acabou de estender a roupa no varal e olhou para os lados, tentando ver se havia alguém por perto. Já eram quase duas horas e, com certeza, todos estavam recolhidos para a sesta ou, então, ocupados com seus próprios afazeres. Ela deu a volta no terreiro, procurando por sinhozinho Túlio, mas ele não estava ali. Sorriu satisfeita. Não havia ninguém por perto, e ela podia sair. Iria até o riacho levar as oferendas que preparara e voltaria rapidamente, sem que ninguém tivesse tempo de dar por sua falta. Lembrou-se dos conselhos de Tonha e ainda hesitou. E se alguém a visse? Mas não. Ela se certificara: não havia ninguém por ali, e ela poderia ir e voltar sem que ninguém notasse. Satisfeita, correu para o jardim e olhou. Como não viu ninguém, colheu algumas rosas brancas e voltou para o terreiro. Não fora vista, tinha certeza, e não precisava se preocupar. Mas estava enganada. Ao ver o vulto negro de Etelvina despontar do outro lado da casa, Túlio, que estava à janela de seu quarto, ocultou-se atrás da pesada cortina e espiou. Viu quando ela olhou para a casa grande e correu para o jardim, colhendo as flores da roseira branca. Seu coração disparou. Não havia ninguém por perto, e ele podia concretizar seus planos. Coração aos pulos, saiu em disparada rumo ao quarto de Rodolfo e entrou. O tio estava descansando e levou o maior susto quando o viu ali parado, esbaforido, gesticulando freneticamente.
— Túlio! Mas que susto você me deu! O que foi que houve?
— Etelvina... Ela estava agorinha mesmo no jardim, colhendo flores.
Rodolfo lançou para ele um olhar de malícia e sorriu, passando a língua nos lábios. O momento parecia propício. A quietude imperava na casa, e não haveria testemunhas para o que pretendiam fazer. Mais que depressa, Rodolfo levantou-se e ordenou: — Venha.
Túlio saiu atrás dele, e os dois se dirigiram para o riacho, dando a volta pela frente da casa. Sabiam que Etelvina estaria lá, oferecendo aquelas bobagens para seus deuses. A ocasião era perfeita. Em silêncio, foram seguindo pela estradinha, até que, ao se aproximarem do riacho, começaram a escutar a voz de Etelvina, que cantarolava baixinho, em uma língua que eles não compreendiam. Eles pararam, e Rodolfo disse a meia-voz:
— Vá buscar Trajano, rápido, e deixe Etelvina por minha conta. Sem responder, Túlio rodou nos calcanhares e se afastou indo direto à cocheira buscar um cavalo. Montou rapidamente e partiu para a fazenda Ouro Velho. Quando chegou, foi informado de que Trajano se encontrava na pequena horta que cultivavam atrás da casa, auxiliando Juarez a plantar algumas verduras. Ao vê-lo, o escravo franziu o cenho, preocupado. O que será que sinhozinho Túlio estava fazendo ali? Não estava com raiva dele? Ele se aproximou de Trajano e foi logo falando:
— Olá, Trajano, como está?
— Bem, e o sinhozinho?
— Bem... Isto é... Mais ou menos...
— Como assim? — fez Trajano, preocupado.
— Trajano, gostaria de falar com você.
— É claro, sinhozinho, pode falar.
— Aqui não. Gostaria que viesse comigo a um lugar mais reservado. O que tenho a dizer é muito importante, e não gostaria que ninguém mais ouvisse.
Sem desconfiar de nada, Trajano saiu atrás dele, e Túlio disse:
— Vá buscar um cavalo para você.
— Por quê? Aonde vamos?
— A fazenda, falar com minha mãe.
— Sinhá Camila está doente?
— Não. Mas está muito triste com o que aconteceu, e eu prometi a ela que me retrataria com você.
— Ora, sinhozinho, não precisa não. Já passou, e eu já esqueci. Aliás, quem lhe deve desculpas sou eu. Fui eu que primeiro lhe bati.
— Só porque eu provoquei. Ouça Trajano, você me conhece há muitos anos, sempre foi meu amigo. Não me sinto bem estando brigado com você.
Trajano ficou emocionado e seus olhos se encheram de lágrimas. Conhecia sinhozinho Túlio desde criança, e aquela briga o entristecera de verdade. Também sentia remorsos por haver batido nele. Sabia que se excedera que não devia ter feito aquilo e queria pedir desculpas a Túlio também.
— O sinhozinho é muito bondoso — disse com emoção. — Mas o mais errado fui eu. Jamais deveria ter-lhe batido.
— Isso não importa agora, Trajano. O que importa é que não devemos ficar brigados. Prometi a minha mãe que viria buscá-lo para nos reconciliarmos, e é isso o que farei.
— E sua avó?
— Minha avó não gostou nadinha do que você fez. Mas agora, depois que eu mesmo falei com ela, resolveu reconsiderar. É claro que está zangada. Mas não pensa mais em castigá-lo.
Trajano calou-se, montou no cavalo e seguiu atrás dele. Queria muito fazer as pazes com Túlio, acabar com aquele desentendimento, e a oportunidade aparecera. E tudo isso porque Túlio era um menino de ouro que, apesar de seus deslizes e tendências, tinha um coração bondoso e amigo. Precisava apenas de uma orientação com as mulheres. Não era mau e estava claro que gostava muito dele. Caso contrário, jamais se permitiria descer ao ponto de se desculpar com um negro.
Trajano estava cego. A bondade de seu coração não lhe permitia enxergar que Túlio mentia deslavadamente. Suas palavras soavam com um tom de falsidade tão cristalino, que até uma criança poderia perceber. Mas Trajano, querendo acreditar que fosse verdade, não deu ouvidos à voz da prudência e seguiu com ele. Túlio, em silêncio, levava-o direto ao riacho, e Trajano sequer desconfiava do plano sórdido que ele estava próximo de executar.
Enquanto isso, Rodolfo se aproximava de Etelvina. Chegou por trás e tocou em seu ombro, fazendo com que ela gritasse de susto e desse um salto para o lado, quase caindo dentro d'água.
— Sinhô...!
—... Rodolfo.
— Sinhô Rodolfo, o sinhô me assustou. Ele a olhou com malícia e retrucou:
— Desculpe-me, Etelvina, não foi minha intenção.
— Deseja alguma coisa, sinhô?
— Na verdade, desejo sim.
— É algo que eu possa fazer?
— Digamos que seja algo que só você pode fazer.
Ela sentiu medo e se encolheu, perguntando com voz sumida:
— Como assim?
— Está com medo? — Ela assentiu. — Pois não precisa. Não vai lhe acontecer nada de mau. Pelo contrário.
E desatou a rir. Ela se levantou devagar. Estava apavorada e pensou em fugir. Embora Rodolfo nunca lhe houvesse feito nada, ela sentia certo tom de perversidade em sua voz. Sem poder explicar, Etelvina sabia que algo de ruim ia lhe acontecer e começou a tremer. Já ia se virando para correr quando Rodolfo disse em tom incisivo e ameaçador:
— Nem pense nisso. Se sair daqui, mato-a.
Ela voltou e sentou-se apavorada, olhando para ele com ar interrogador. Estava subjugada e paralisada pelo medo. Juntando forças, indagou trêmula:
— Mas sinhô, o que foi que eu lhe fiz?
— A mim? Nada.
— Então por que faz isso comigo? Por que não me deixa ir?
— Porque não quero. Preciso de você.
Etelvina, pensando que ele a quisesse como mulher, retrucou angustiada:
— Mas há muitas outras escravas que podem servir o sinhozinho melhor do que eu. Eu nada sei dessas coisas...
— Calada! Não lhe perguntei nada. E depois, não é isso o que quero de você. Você não me atrai, e não sinto desejo por você.
— Mas então...
Rodolfo mandou que se calasse, e ela obedeceu cada vez se encolhendo mais. Estava sentada sob um tronco de árvore e recostou-se nele, tentando não pensar no que lhe aconteceria. Rodolfo, sentado defronte dela, não dizia nada. A todo instante olhava para a estradinha, como se esperasse alguém. Até que, finalmente, ela escutou o barulho dos cavalos se aproximando e teve certeza de que alguém chegava. Ergueu-se curiosa, e qual não foi o seu espanto quando viu aparecer diante de si o sinhozinho Túlio, seguido de Trajano, que estacou ao vê-la.
— Etelvina! — exclamou. — O que faz aqui? E por que viemos para cá?
Túlio lançou para ele um olhar de ódio e ordenou friamente:
— Cale-se, Trajano, e desça daí.
Trajano não se moveu, e Rodolfo acrescentou:
— Não ouviu o que ele disse? Desça daí, negro, ou será muito pior para você.
Sem nada entender, Trajano olhou para Rodolfo, depois para Túlio e, finalmente, para Etelvina, toda encolhida perto da árvore. Apesar da semelhança entre os gêmeos, ele sabia estar diante de Rodolfo. Fausto era um homem gentil e digno, e jamais usaria aquele tom de voz. Ele ainda não entendia o que estava para acontecer, mas sabia que não era coisa boa. Quis dar meia volta e sair dali, mas teve medo por Etelvina. Fosse o que fosse que estivesse planejando, o fato é que, se fosse embora, eles bem seriam capazes de tentar alguma coisa contra ela. Sem saída, Trajano desceu do cavalo e foi para perto de Etelvina, que não parava de tremer.
— O que está acontecendo? — indagou, acercando-se dela.
Trajano sentiu um golpe na cabeça e tombou. Estava meio inconsciente, mas pôde sentir que o arrastavam e erguiam seu corpo, amarrando-o de encontro à árvore na qual Etelvina estivera recostada. Pouco depois, atiraram-lhe água fria no rosto, e ele despertou olhando para os três sem nada entender. Túlio ria para ele com ar diabólico, e Rodolfo, agarrando Etelvina pelos cabelos, disse-lhe com sarcasmo:
— Então, o negro pensa que é gente e que pode bater num branco, não é mesmo? — Ele não respondeu. — Pois não pode.
Ainda mais se esse branco é meu sobrinho. E por quê? Porque está de olho na negrinha aqui, não é mesmo? O que queria? Deitar-se com ela? Pois não vai, está ouvindo? Ou melhor, pode até se deitar com ela, depois que Túlio se saciar e acabar com ela. Aí então, dependendo, você pode ficar com os restos.
Trajano olhou-os atônito e, virando-se para Túlio, suplicou amargurado:
Sinhozinho, não faça isso! Sei que é um menino bondoso. Não vai querer estragar a sua vida com o sangue de outra moça, vai?
— Cale essa boca, Trajano! — berrou Túlio. — Você não devia ter se interposto em meu caminho. Mas, já que o fez, agüente as conseqüências.
— É isso mesmo — concordou Rodolfo. — E depois, quem foi que disse que negro tem sangue? Pode ter sangue, sim, mas é de bicho. Vocês são uns animais, e estão aqui para nos servir. Essa é a vontade de Deus. Foi isso o que ele reservou para vocês. E como animais, não devem desobedecer a seus senhores, muito menos levantar a mão para lhes bater. Os que assim procedem não merecem outra coisa senão o castigo. Muito bem, Túlio pode começar.
Túlio agarrou Etelvina, que desatou a chorar, e começou a despi-la. Ela pôs-se a espernear, e ele bateu em seu rosto, o que fez com que ela caísse ao chão, tremendo sem parar. Estava apavorada e tinha medo de morrer.
— Quieta, negra — berrou Túlio —, ou mato-a de pancada! Etelvina, com medo de apanhar, deixou-se ficar e parou de se debater. Estava arrasada, mas não tinha forças para lutar. O medo da morte era maior, e ela fechou os olhos, pedindo a sua mãe Oxum que lhe desse coragem para enfrentar aquela triste prova. Trajano, por sua vez, também chorava. Chorava pela pobre Etelvina, por si mesmo, porque a amava, e chorava por Túlio, que enveredava pelo caminho do crime. No entanto, estava ali amarrado e não havia nada que pudesse fazer. Ele sabia que, quanto mais implorasse para que Túlio a largasse, mais ele a maltrataria, e fechou os olhos para não ver, até que sentiu uma chicotada no ombro. Abriu os olhos aturdidos e escutou a voz de Rodolfo, que lhe dizia cheio de rancor:
— Nada disso, negro! Você vai assistir a tudo, e de camarote! Se fechar os olhos novamente, acabo com você num piscar de olhos!
Trajano não teve remédio senão obedecer. Em silêncio, com lágrimas nos olhos, foi obrigado a presenciar a violência que Túlio cometia contra a indefesa Etelvina. Ele dava vazão a seus instintos mais primitivos e, vendo-a no chão, arrancou sua roupa com violência e se deitou sobre ela, apalpando seu corpo com brutalidade. Em seguida, possuiu-a feito um animal, fazendo com que ela gritasse de dor. Quanto mais ela gritava, mais ele se excitava e investia contra ela, roçando seu corpo na terra árida, causando-lhe imensurável sofrimento.
Trajano assistia a tudo sem nada dizer, sem nem piscar. No coração, uma tristeza indefinível, uma vontade enorme de morrer. Ainda tentou se soltar para impedir aquela barbaridade, mas suas mãos estavam bem atadas, e ele não pôde se mexer. Túlio a estava machucando e parecia não se importar com seu sofrimento. Só o que lhe importava era o prazer que sentia dominando o corpo da negra. Ele ficou muito tempo ali, deitado sobre ela, e só a largou quando estava exausto, sem forças para continuar. Quando ele se levantou, Etelvina estava chorando de mansinho, os olhos cerrados, a respiração ofegante. Trajano, em silêncio, agradeceu a Deus por tudo haver terminado, até que Rodolfo, virando-se para ela, começou a desafivelar o cinto, olhando-a com cupidez. Túlio, percebendo o que aconteceria, desatou a rir e disse, gargalhando:
— Muito bem, meu tio, sirva-se à vontade. A pretinha até que é bem apetitosa.
Rodolfo riu e se deitou sobre ela, que gemeu, não mais de dor, mas de humilhação. Ele começou a dar-lhe mordidas pelo corpo, e ela se contorcia toda, sentindo na carne a dor que aquelas mordidas lhe causavam, até que ele também a possuiu, com mais violência ainda do que Túlio. A moça, apavorada, começou a gritar, pedindo que ele parasse, mas Rodolfo, possuído pelo desejo e pelos instintos, foi aumentando cada vez mais o ritmo, e ela, arfante, implorava quase sem forças:
— Sinhô... Sinhô... Por... Favor...
Como Rodolfo não parasse, ela, conseguindo movimentar as mãos, começou a dar-lhe tapas e arranhar seu rosto, até que ele, fora de si, ao mesmo tempo em que a possuía, ia apertando seu pescoço, devagarzinho a princípio, e depois com mais força. Foi apertando, apertando, sem dar ouvido a ninguém, nem a Trajano, que suplicava que ele a soltasse, nem a Túlio, já então apavorado, com medo de que ele a matasse. Rodolfo não se importava com nada disso e continuou a apertar, e a moça, desesperada, tentava arrancar suas mãos de volta de sua garganta, abrindo a boca e lutando para respirar, até que ele, no auge da satisfação, ao mesmo tempo em que atingia o orgasmo, levava com ele o último alento de Etelvina.
Aplacada a selvageria, ele olhou para ela e só então se deu conta do que havia feito. A moça, morta sob seu corpo, fitava-o com olhos esbugalhados, a rouxidão espalhando-se pelo pescoço negro. Trajano chorava e Túlio estava bestificado. Mas Rodolfo, recompondo-se, levantou-se, apanhou a roupa e vestiu-se cuidadosamente. Em seguida, virou-se para Túlio e disse:
— Não se deixe impressionar por isso, meu sobrinho, e não fique triste. Prometo arranjar-lhe uma negrinha bem mais apetitosa do que essa aí. — Túlio não respondeu, e ele virou-se para Trajano: — Quanto a você, negro, não quero nem uma palavra do que viu aqui hoje. Se souber que abriu a boca, acabo com sua vida antes mesmo que você perceba. Entendeu?
Trajano não disse nada. Limitou-se a assentir, cheio de tristeza, guardando nos olhos uma indefinível sensação de dor.
Depois desse episódio infeliz, cada um voltou a seus afazeres, evitando tocar naquele assunto. Rodolfo fez com que Trajano enterrasse o corpo bem longe, do outro lado da fazenda, e deu-lhe ordens expressas para que se calasse. Se contasse algo a alguém, estaria morto. Não que sua mãe fosse castigá-lo pela morte de Etelvina. Ela era uma escrava, e acidentes desse tipo não eram raros. Ele mesmo sabia que Terêncio, por descuido, acabara por matar alguns escravos da fazenda, o que nunca dera em nada. Mas ele não queria provocar nenhuma reação dos negros e, principalmente, de Júlia. Sabia que ela era contra a escravidão e, com certeza, ficaria desgostosa com ele, e ele veria perdidas todas as esperanças de algum dia conquistá-la, e o irmão, novamente, sairia vencedor.
Trajano, humilde, teve que obedecer. O que lucraria falando a verdade? O tronco? Pior, a morte? Ele estava indignado, chocado, penalizado. Mas sabia que de nada adiantaria contar o que acontecera. Ele era negro, e ninguém ousaria recriminar sinhozinho Rodolfo pelo acontecido, enquanto ele podia até ter a língua cortada. Já ouvira falar de casos assim, de negros que falaram demais e que acabaram sem língua. E depois, havia sinhozinho Túlio. Trajano tinha certeza de que Túlio ficara muito abalado com aquilo. Era inconseqüente, irresponsável, mentiroso, conquistador... Mas não era um assassino. Mesmo quando Raimunda morrera, ele ficara um tanto quanto abatido. Não queria tomar parte na morte de ninguém, e sinhá Camila ficaria muito decepcionada. Não. Decididamente, não falaria nada a ninguém. Eles que se entendessem, mais tarde, com a justiça de Deus.
Túlio, por sua vez, estava contrariado. Queria divertir-se, era verdade. Até dera uns tapas na negrinha, isso não era nada de mais. Mas matá-la era outra história. Ele não conseguia compreender o que se passara na cabeça do tio. É bem verdade que Etelvina gritara e esperneara, mas isso não era motivo para ele fazer o que fizera. Desde esse dia, Túlio passou a evitar a companhia de Rodolfo e tornou-se acabrunhado e desconfiado, com medo do que ele seria capaz de fazer.
Na manhã seguinte, Tonha começou a estranhar a ausência de Etelvina. Onde aquela menina se metera? As horas iam se passando e ela não aparecia. Preocupada, procurou Aldo, que era mais humano, e contou-lhe que ela havia sumido. O capataz olhou para ela, desconfiado, e indagou:
— Será que fugiu?
— Não acredito. Para onde iria? E por quê?
— Não sei. Ouvi dizer que vivia lá na beira do riacho, fazendo oferendas para prender um amor. É verdade?
Tonha titubeou. Será que aquela desmiolada havia ido atrás de Trajano?
— Bem, é. Mas não creio que esteja com ele.
— Ele quem? É o tal de Trajano, não é? O que se encrencou com seu Túlio.
— É esse mesmo. Mas duvido muito que ela esteja com ele. Trajano é um rapaz direito, está na fazenda Ouro Velho e não se atreveria a esconder Etelvina.
— Hum... Não sei, não. De qualquer forma, vou até lá averiguar.
— Não vai avisar sinhá Palmira?
— Por enquanto não. Dona Palmira não vai gostar nadinha disso, e você bem sabe o que ela é capaz de fazer.
Tonha silenciou. Conhecia sinhá Palmira muito bem. Conhecia seu ódio pelos escravos, sua crueldade. Se ela descobrisse que Etelvina estava desaparecida, contrataria até um capitão-do-mato para encontrá-la, e aí seria pior. O castigo seria certo, e ela levaria bem umas cinqüenta chibatadas no tronco. Embora Aldo não gostasse de bater nos negros, Terêncio, apesar de velho, ainda agüentava levantar o chicote e não hesitaria em cumprir as ordens de Palmira, o que faria com a maior satisfação.
Aldo montou no cavalo e partiu, chegando logo em seguida à fazenda Ouro Velho. Lá, ninguém vira Etelvina nem ouvira falar dela. Mandou chamar Trajano, mas este dissera que não à vira também. Orientado por Rodolfo, contou que saíra em companhia de sinhozinho Túlio, para desculpar-se com ele, e que não vira ninguém.
Túlio confirmou a história de Trajano, e ninguém ousou desconfiar de sua palavra. Ele era branco, neto da dona da casa e não tinha por que mentir. Aldo, cada vez mais preocupado, dirigiu-se à beira do rio, lá encontrando as oferendas que Etelvina levara à sua mãe Oxum, mas não achou mais nada. Nenhum outro sinal que indicasse que ela estivera por ali. Trajano apagara todas as pistas e não deixara uma pegada, um galho quebrado, um trapo de roupa que pudesse dar indícios do que acontecera.
Diante disso tudo, Aldo não teve outro remédio senão levar o caso ao conhecimento de Palmira. Ela franziu o cenho, contrariada, e considerou:
— Hum... Essa história está muito mal contada.
— Túlio não sabe de nada? — perguntou Camila.
— Não, senhora — respondeu Aldo. — Perguntei a ele, mas ele disse que não a viu.
— E Trajano?
— Também não sabe. Diz que saiu com o senhor Túlio naquele dia. Ninguém a viu.
— Não estou gostando nada disso - disse Palmira. - Será que ela fugiu?
— Não creio mamãe. Aonde iria? Etelvina, ao que parece, sempre foi escrava de dentro, e não está acostumada a viver sozinha. Como se sairia lá fora, entregue à própria sorte? E depois, Tonha disse que ela vivia a fazer oferendas para seus deuses lá na beira do riacho.
— Será que caiu e se afogou?
Aldo cocou o queixo e concordou:
— É possível. Eu não havia pensado nisso, mas é possível. Quando fui até lá, encontrei as oferendas que levara, e me pareciam ainda frescas. O riacho é pequeno, mas ela pode ter batido com a cabeça numa pedra e se afogado, e a correnteza, na certa, a levou.
— O que você acha Rodolfo? — indagou Palmira ao filho que, até então, limitara-se a ouvir, sem nada dizer.
— Acho que foi isso mesmo o que aconteceu. Aquela Etelvina, ao que parece, não tinha juízo e vivia suspirando pelos cantos, apaixonada por aquele negro, o Trajano. Por diversas vezes foi sozinha ao riacho, mesmo contra as advertências de Tonha. Na certa, num desses momentos, ela se distraiu, escorregou e caiu dentro d'água, batendo com a cabeça. Depois, a correnteza a levou, e o rio, mais abaixo, possui fortes corredeiras e se alarga bastante. Se for isso o que aconteceu, a esta altura seu corpo já deve estar longe.
— É verdade — concordou Aldo. — Não creio que valha a pena procurá-la rio abaixo.
— Mas, e se estiver viva? — objetou Camila. — Pode estar ferida, precisando de ajuda. É nosso dever procurá-la.
Aldo olhou para Palmira, que aquiesceu, e disse para Camila:
— Se a senhora quiser, posso reunir alguns homens e procurar.
— Acho que seria o mais conveniente — disse Rodolfo, com fingida preocupação. — Eu mesmo o acompanharei nessa busca. Tenho certeza de que, se Etelvina estiver viva, nós a encontraremos. Afinal, é uma escrava jovem e saudável, e perdê-la seria um desperdício.
Rodolfo deu as ordens e foi para o terreiro esperar por Aldo, que fora reunir alguns escravos de confiança, para que saíssem à procura de Etelvina. Tonha, parada na porta da cozinha, rezava a seus orixás, no coração a certeza de que ela havia morrido. Túlio, por sua vez, foi chamado a juntar-se ao grupo, mas recusou, pretextando não possuir estômago para tão dura empreitada. Afinal, não gostava de tragédias, e se a moça estivesse realmente morta, não lhe agradaria nada ver seu corpo inerte, inchado e coberto pela rouxidão do afogamento.
Camila encarou-o, desconfiada. Sabia que o filho não gostava de ver gente morta, mas havia algo em suas palavras que a deixara inquieta. Eram estudadas demais, coerentes demais, decoradas demais. Havia algo de estranho ali, e ela, acercando-se do filho, saiu puxando-o discretamente pelo braço, conduzindo-o para a varanda que dava de frente para o jardim.
— Meu filho — começou —, não está me escondendo nada, está?
— Eu, mamãe? — o retrucou, sem coragem de encará-la. — O que poderia estar escondendo?
— Não sei. Por isso é que lhe pergunto. Você sabe de alguma coisa? Tem certeza de que não a viu?
Ele se remexeu inquieto e respondeu, sem tirar os olhos do chão:
— Já disse que não. Por quê? Está desconfiada de mim?
— Não é isso. Mas é que sei o quanto você se interessou pela moça, e conhecendo-o como o conheço...
— Pare com isso, mamãe. Por quem me toma? Então pensa que seria capaz de fazer-lhe algum mal?
— Não, deliberadamente não. Mas acidentes acontecem.
— Não aconteceu nada. Eu juro.
— Tem certeza?
— Sim.
— E por que foi procurar Trajano justo no dia em que ela sumiu?
— Porque queria falar com ele. Gosto de Trajano e queria que nos entendêssemos. Se não acredita, pergunte a ele.
— Não é necessário. Acredito em você.
Nisso, avistaram a tropa de homens, que saía a galope, rio abaixo, à procura do corpo de Etelvina. Rodolfo ia à frente e acenou para Túlio, que estremeceu. Camila não pôde deixar de perceber que o filho se inquietara com o cumprimento do tio e achou aquilo muito estranho. Eles, até então, viviam de segredinhos, não se largavam. Porém, parecia que Túlio evitava olhar para ele, e Rodolfo demonstrava certa influência sobre o rapaz, como se o intimidasse só com o fato de olhar para ele. Contudo, não disse nada. O melhor seria observar. Se alguma coisa acontecera, ela não tardaria a descobrir.
A tropa retornou à fazenda cerca de três horas depois. Haviam seguido a correnteza do rio, ladeando-o nas duas margens, mas não avistaram nada. Nenhum sinal da pobre Etelvina. No final da tarde, ao comando de Rodolfo, voltaram certos de que ela se afogara e que seu corpo fora arrastado pelas corredeiras, já se encontrando muito longe naquele momento ou, quem sabe, até comido pelos peixes.
Palmira ainda aventou a possibilidade de ela haver fugido, mas Rodolfo desconsiderou a idéia. Era muito pouco provável que uma escrava franzina e amedrontada feito a Etelvina tivesse fugido sozinha. Se algum negro forte houvesse desaparecido, aí sim, essa hipótese seria viável. Mas nenhum escravo fugira, e Trajano, por quem a tola da Etelvina se apaixonara, continuava trabalhando na fazenda Ouro Velho. Não, decididamente, ela não fugira. Rodolfo estava convicto de que ela, efetivamente, se afogara, e deu por encerradas as buscas. Em pouco tempo o episódio foi esquecido, e tudo retomou a normalidade. Ou quase tudo.




CAPÍTULO 11



Marta estava sentada sozinha na varanda, pensando em Rodolfo, quando uma vozinha delicada e meiga chamou sua atenção:
— Olá.
Era Júlia que, vendo-a ali sozinha, resolvera parar para cumprimentá-la. Marta teve um leve sobressalto e, olhando para ela com ar de interrogação, respondeu confusa:
— Oh! Desculpe-me, não a vi chegar.
— Não tem importância. Você é Marta, não é? A filha de Aldo, o capataz?
— Sou sim senhora. E a senhorita, quem é?
— Sou Júlia, cunhada de Camila. E não precisa me chamar de senhora ou senhorita, não. Está certo que devo ser mais velha que você, mas nem tanto assim.
— Perdoe-me... Júlia... Não foi minha intenção. Foi o respeito. Sou apenas uma criada aqui.
— Uma moça tão fina e educada, que recebeu educação aprimorada na corte? Não deve se sentir assim.
— Oh! Mas não tem importância. Eu não ligo. Sou muito grata a seu Licurgo e dona Palmira por me haverem proporcionado uma boa educação, mas sei qual é o meu lugar. E digo isso sem qualquer peso ou mágoa.
— Que bom. Mas, ainda assim, não precisa de formalismos comigo. Podemos ser amigas, o que acha?
— Verdade? Eu adoraria. Sinto-me sozinha aqui, sem ninguém da minha idade para conversar. Apenas Rodolfo conversa comigo de vez em quando...
Hum... Rodolfo é? Ele está lhe fazendo a corte?
— Não, Júlia, mas o que é isso? Ele é o patrão e é apenas gentil.
— Gentil, sei. Minha querida, nenhum homem é gentil desse jeito se não está interessado em uma moça.
— Acha mesmo?
— Acho sim.
— Será que Rodolfo está apaixonado por mim?
— Isso eu não sei. Pode ser que ele só esteja flertando com você. Mas se gostar mesmo de você, logo, logo, pedirá para fazer-lhe a corte. E só esperar.
Marta suspirou e acrescentou com ar sonhador:
— Espero que esteja certa.
Júlia sorriu e, segurando-lhe a mãozinha delicada, indagou com jovialidade:
— Não quer sair e dar uma volta? Está fazendo um dia tão bonito!
— Eu adoraria, mas não sei se posso. Minha mãe espera que a ajude com o almoço.
— Ora, peça a ela. E só um instante.
Marta entrou e foi procurar a mãe. Quando ela soube que a cunhada de dona Camila estava ali convidando a filha para passear, entusiasmou-se. Afinal, a moça era de família distinta e estava namorando o outro filho de dona Palmira, o que seria muito bom para Marta. Era uma amizade que ela não poderia dispensar, e Anita permitiu que a filha se ausentasse, recomendando-lhe apenas que tivesse juízo e bons modos. Podia demorar o tempo que quisesse. Ela já estava acostumada e podia muito bem dar conta do almoço sozinha.
— Ela deixou — disse Marta a Júlia, toda animada.
— Ótimo.
— Aonde vamos?
— Conhece a fazenda Ouro Velho?
— Estive lá uma ou duas vezes quando menina, mas não me lembro muito bem.
— Pois é para lá que vamos.
— É mesmo? Minha mãe me disse que está arrendada.
— Sim, está. Para uns amigos de nossa família.
— Vamos visitá-los?
— Sim. Eles têm uma filha, de nome Sara que está doente. Ela é quase noiva de meu irmão, Dário.
— Será que devo ir? Quero dizer não me leve a mal, eu adorei você ter me convidado. Mas é que você mal me conhece, e nem sei por que me convidou.
Júlia sorriu e acrescentou:
— Também não sei ao certo. Eu ia passando quando a vi sentada na varanda, e algo em meu peito me levou até você. Era como se eu tivesse que chamá-la.
— Eu, hein! Que coisa mais estranha.
— Para você ver. Eu nunca a havia visto em toda a minha vida, mas quando a avistei, senti que já a conhecia. Não sei explicar, mas senti uma imensa ternura por você e quis conhecê-la.
Marta olhou-a espantada. De alguma forma, as palavras de Júlia encontravam eco em seu coração, e ela também sentia como se já a conhecesse havia muitos anos. Seus olhos encheram-se de lágrimas, e ela respondeu emocionada:
— Obrigada. Sua amizade será muito importante para mim. Não sei por que, mas também sinto como se já a conhecesse. Não é estranho?
— Sim, muito. Contudo, aprendi a não questionar os desígnios de Deus e a aceitar suas determinações com confiança e naturalidade.
— Acha mesmo que é desígnio de Deus termos nos encontrado?
— Não sei, talvez. Mas você há de convir que essa sensação de que já nos conhecemos é muito estranha. E depois, sinto que posso confiar em você como em uma irmã, e eu nem a conheço!
— É verdade. Também sinto a mesma coisa.
— Pois então? Bem, agora vamos. Mandei preparar uma charrete para mim, coisa que raramente faço. Normalmente vou a cavalo, mas hoje, não sei por que, não senti vontade de cavalgar. E aí encontrei você, e uma charrete é bem mais apropriada para que viajemos juntas, pois assim poderemos ir conversando.
As duas subiram na charrete e Júlia, tomando as rédeas, pôs os cavalos em marcha, seguindo pela estradinha ensolarada. No caminho, Marta ia dizendo:
— Será que não se importarão? Afinal, nem me conhecem.
— Tenho certeza de que não. Seu Ezequiel e dona Rebeca são excelentes pessoas e ficarão felizes com sua presença. Você vai ver.
— E a moça, como é mesmo o nome dela?
— Sara?
— Sim, Sara. Você disse que ela está doente. O que tem ela?
Júlia entristeceu, e foi como se uma nuvem cinzenta encobrisse seu rosto. Com voz sentida, retrucou:
— Não sabemos ainda. Só o que sabemos é que é coisa do pulmão.
— Pobrezinha! Será tuberculose?
— Não sei. Por quê? Tem medo? Marta hesitou e gaguejou:
— Não... Não... Creio que não.
— Ótimo. Você não deve se preocupar. Acredita em Deus?
— É claro que sim. Recebi educação religiosa, não lhe disseram?
— Educação religiosa é uma coisa. Fé sincera é outra bem diferente. O que quero saber é se realmente acredita em Deus como uma força superior a guiar e orientar nossos destinos.
Marta pensou por alguns instantes, até que respondeu convicta:
— Sim, certamente.
— Então, não há o que temer. Sabe minha cunhada, Camila, que também viveu num convento, contou-me coisas muito interessantes sobre as doenças.
— Que tipo de coisas? O que quer dizer?
— Quero dizer que não acredito que tenhamos que contrair qualquer tipo de enfermidade pelo só fato de estarmos junto de alguém doente. Creio que só contraímos as doenças que já estão instaladas em nosso espírito, apenas esperando uma chance para refletir em nosso corpo de carne.
— Continuo não entendendo nada.
— Deixe pra lá. São idéias que tenho, mas que não posso provar.
— Não, por favor, explique-me. Não me julgue pelas aparências. Posso parecer uma moça tola, mas acredito na força do espírito.
— Como assim? — foi à vez de Júlia se espantar.
— Posso confiar em você?
— É claro que pode.
— Sei que sim. O que vou lhe falar é absolutamente sigiloso, e se alguém descobrir, nem sei o que poderá me acontecer.
Júlia virou-se para ela, curiosa, e incentivou:
— O que é? Vamos, fale.
— Bem, como sabe, fui mandada para um convento, a fim de terminar minha educação. Durante os primeiros meses tudo correu bem, e eu estava feliz, até que, de uma hora para outra, comecei a sentir coisas estranhas.
— Que tipo de coisas?
— Coisas, não sei. Sentia como se alguém estivesse ao meu lado, por vezes até ouvia vozes.
— Credo! Isso parece até história de fantasmas.
— Mais ou menos. Não é estranho?
— Muito. E o que aconteceu?
— Bem, foi um rebuliço danado. As freiras, a princípio, pensaram que eu estava louca. Depois, julgaram que algum demônio me havia possuído e chamaram frei Ângelo para me benzer.
— O que ele disse? — Júlia estava visivelmente interessada.
— Promete que não vai rir?
— Não, claro que não.
— Bem, ele disse que havia dois espíritos ao meu lado.
— Espíritos? Mas que espíritos?
— Isso ele não soube dizer. Apenas me disse que eram espíritos que, percebendo a minha sensibilidade, aproximaram-se de mim para se comunicar.
— Será? E como ele sabe que eram espíritos?
— Bem, frei Ângelo me disse que há muito tempo vem estudando certos fenômenos, que nada têm de sobrenatural, e que chegou à conclusão de que determinadas pessoas, por uma estranha razão, têm a faculdade de se comunicar com os espíritos. Ele não sabe por que isso acontece, mas disse que é bem freqüente.
Ele mesmo me contou que sofrerá interferência dos espíritos, que chegaram a falar através de sua boca.
— Nossa, Marta, será verdade?
— Não tenho dúvidas. Eu mesma passei por isso.
— Um espírito falou através de você? E o que foi que ele disse?
— Que me amava muito e que eu deveria ser forte.
Júlia ficou pensativa. Ao final de alguns minutos, tornou ainda em dúvida:
— Que esquisito!
— Não acredita?
— Não sei. Quando comecei a falar sobre a doença de Sara, não estava me referindo aos espíritos, mas a forças interiores que não conhecemos.
— E não é a mesma coisa?
— Não. Espíritos são criaturas externas a nós mesmos, enquanto que nossa força interior vem de dentro de nosso ser mais profundo.
— Tem razão. São coisas distintas, mas que têm a mesma origem.
— Que origem?
— Deus.
Júlia não disse mais nada. Simpatizara com Marta desde o primeiro instante em que a vira e não sabia explicar aquele sentimento nem a confiança que, intuitivamente, sabia poder depositar nela. No começo, pensou que ela fosse uma moça ingênua, que nada sabia da vida, mas se enganara profundamente. Marta demonstrava uma sabedoria muito superior à sua, e isso a assustava. Não que temesse perder para a outra em inteligência. Não era isso. Mas temia as coisas que não podia compreender e as conseqüências que podiam ter em sua vida.
Marta, por sua vez, achou melhor não falar mais sobre aquilo. Embora também sentisse o mesmo por Júlia, o fato é que aquela revelação era um segredo que vinha guardando a sete chaves e que só ousara dividir com frei Ângelo. Ele conseguira conversar com os espíritos que visitavam Marta, rezara por eles e acabara afastando-os. Com isso, afastara também as desconfianças das freiras, convencendo-as de que a menina era perfeitamente normal e que apenas atravessara uma fase difícil, dada a pouca idade com que fora arrancada do seio da família. As freiras se convenceram e, vendo que Marta não se queixava mais, julgaram que ela estava curada e pararam de importuná-la.
As duas moças fizeram o resto do caminho em silêncio. Tanto Júlia quanto Marta não queriam mais tocar naquele assunto. Ao menos por enquanto. Assim, entregaram-se a seus próprios pensamentos, certas de que uma amizade sincera e sólida acabara de se estabelecer entre ambas.
Na fazenda Ouro Velho, as coisas não iam nada bem. Sara acabara de ter uma crise e, pela primeira vez, expelira sangue pela boca. Rebeca e Ezequiel estavam desesperados, já então certos de que a menina estava tísica. A tristeza pairava no ar, a sensação de morte parecia ter invadido a casa. Até as flores pareciam recusar-se a desabrochar e murcharam nos vasos, ainda botões.
Quando Júlia e Marta chegaram, o clima era tenso. Ezequiel chamava Juarez, para que juntos fosse à vila, o mais rápido possível, ver se havia algum médico disponível. Estava tão desnorteado que nem deu pela presença das duas moças, e Júlia correu para o quarto, com Marta atrás de si. Ao entrar, ficou chocada. Sara jazia na cama feito morta, uma palidez cadavérica a alastrar-se pela face alva, a respiração ofegante demonstrando exaustão extrema. A seu lado, a mãe rezava fervorosamente, pedindo a Deus que salvasse sua filha. Júlia acercou-se de Rebeca e, colocando a mão em seu ombro, disse amargurada:
— Dona Rebeca, o que houve?
A outra a olhou assustada. Sequer havia notado que chegara. Vendo-a ali, preocupada, desabou num pranto convulso e respondeu:
— Oh! Júlia, não sei o que vai ser de minha menina. Veja!
Apontou para a toalha estirada no chão, salpicada do sangue da doente. Júlia sentiu um baque e fechou os olhos, tentando não acreditar no que via. Ao final de alguns minutos, porém, retrucou:
— Tenha calma, dona Rebeca. Tudo vai acabar bem.
— Não, Júlia. Minha filha vai morrer. Minha filha, minha filhinha. Por que Deus há de lhe ceifar a vida assim, tão jovem?
Marta, que até então nada dissera, deu um passo à frente e objetou:
— Perdoe-me, senhora, mas sua filha não vai morrer, não.
Rebeca assustou-se. Não notara sua presença e, com voz incrédula, perguntou:
— Quem é você? O que faz aqui?
— Desculpe-me, dona Rebeca — respondeu Júlia. — A culpa é minha. Na pressa e na angústia, esqueci de lhe apresentar. Esta é Marta, filha de um dos capatazes da fazenda, e acaba de chegar da corte.
Rebeca olhou-a com certa animosidade. Não sabia por que, mas não simpatizara com a moça. Atribuiu o fato ao momento delicado por que atravessavam e não lhe agradava em nada dividir seus problemas mais íntimos e dolorosos com uma estranha. Olhando-a com rancor, revidou:
— Por que a trouxe aqui? Ela não faz parte da família.
— Pensei em chamar Sara para darmos um passeio. Não sabia que a encontraria nesse estado.
— Pois não devia. Sinto muito, Júlia, mas você fez mal. Essa moça é uma estranha e ainda corre o risco de se contaminar.
— Não se preocupe dona Rebeca — interveio Marta. — Não vou me contaminar, estou certa.
— Como pode saber?
— Eu sei.
Ela falou com tanta convicção que até Júlia estranhou. Havia poucos minutos, quando lhe perguntara se tinha medo do contágio, Marta titubeara. Mas nesse momento falava com tanta certeza que era como se soubesse mesmo que nada de mal lhe aconteceria. Confusa, Júlia perguntou:
— Será que não é melhor irmos embora?
— Acho uma boa idéia — concordou Rebeca. — Não queremos correr riscos desnecessários.
— Gostaria de ficar — teimou Marta.
— Mas por quê? Não vê que pode se contaminar?
— Já disse que isso não vai acontecer.
— Por favor, mocinha, está sendo inconveniente. Isso não é hora para criar um caso.
— Não estou criando caso algum. Apenas gostaria de ficar.
— Mas por quê? — perguntou Júlia, espantada. — Afinal, você nem a conhece...
— Não sei. Mas sinto que não devo partir.
— Olhe moça, sei que tem boas intenções, mas não precisa...
Marta fechou os olhos e, sem dar atenção às recriminações de Rebeca, acercou-se do leito da enferma e estendeu as mãos acima dela, deslizando-as suavemente por todo o seu corpo. Rebeca ia protestar, mas, subitamente, Sara teve um estremecimento, depois outro e mais outro, até que sua respiração começou a se acalmar, e o peito logo voltou a subir e descer serenamente. As faces, em pouco tempo adquiriram certa cor, como se um punhado de vida se derramasse sobre aquela palidez de morte. Júlia, boquiaberta, não conseguia tirar os olhos daquela cena, e quando a menina se acalmou por completo, dormindo placidamente, indagou confusa:
— O que aconteceu? O que você fez?
Marta abriu os olhos, assustada. Nem ela mesma sabia o que fizera. Só o que sabia era que, de repente, sentira um desejo incontrolável de se aproximar da doente e pôr sobre ela suas mãos, entregando-se à vontade de Deus. Tinha consciência de tudo o que fizera, mas não entendia como. Era como se uma estranha força a impelisse para a cama de Sara, e ela acabou se deixando levar. Ela até sabia que poderia parar se assim o desejasse. Mas o mais estranho é que não queria. Tinha vontade de prosseguir, de ajudar à doente, e estava certa de que podia. Sentia uma confiança imensa em si mesma e no que quer que a esteja impulsionando. Sabia que aquela força era benigna e, sem resistência, entregara-se a ela, certa de que estava apta a levar um pouco de paz à doentinha. Encarando Júlia e depois Rebeca, Marta gaguejou:
— Não... Não sei... Só o que sei é que não pude parar. Foi mais forte que eu...
Sara abriu os olhos e olhou ao redor, tentando fazer um reconhecimento de onde estava. Parecia um pouco confusa, aérea, e quando deu de cara com Marta, exclamou:
— Mamãe! — e logo adormeceu.
As três se olharam atônitas, aproximando-se de Sara, preocupadas. Mas a moça dormia tranqüilamente. O que teria acontecido? Por que ela chamara Marta de mamãe?
— Com certeza, nos confundiu — justificou-se Rebeca. — Afinal, em seu estado, é natural que esteja fraca e confusa.
— É, tem razão — concordou Júlia. — Deve ter sido isso mesmo.
Marta não disse nada. Em seu íntimo, sabia que Sara não havia se confundido. Em seus olhos, quando a encarara, passara um brilho de reconhecimento, e Marta sentiu como se já a tivesse tido em seus braços inúmeras vezes. Aquilo era muito estranho, e ela não sabia explicar. Pensou que deveria ser influência dos espíritos, mas preferiu não dizer nada. Na certa, ninguém acreditaria, e ainda a tomariam por louca ou charlatã. Pensou em escrever uma carta a frei Ângelo. Ele teria uma explicação razoável para tudo aquilo.
Certificando-se de que a filha dormia, Rebeca convidou-as a passar para a outra sala. Não sabia o que dizer. Não simpatizara com Marta desde que chegara, mas o fato era que ela, por um inexplicável motivo, tirara Sara daquela crise em que se encontrava, e a menina parecia bem melhor. Ao vê-las acomodadas na poltrona, pediu que Laurinda lhes preparasse um pouco de chá e indagou com voz pausada:
— Alguém pode me explicar o que aconteceu?
Júlia e Marta se entreolharam. Depois da conversa que tiveram Júlia bem desconfiava da interferência dos espíritos. Era bem possível, ou melhor, provável, que Marta tivesse agido influenciada por algum espírito bondoso, interessado em ajudar. Contudo, sabia que não seria prudente revelar suas desconfianças. Ao menos por enquanto. Embora Rebeca e Ezequiel fossem pessoas boas e religiosas, seguiam crença diversa, e aquela revelação poderia chocá—los. E Júlia não queria desgostá-los ou transtorná-los. Ao contrário, amava-os muito e sabia que o respeito era poderosa arma de compreensão. O melhor a fazer seria esperar o momento mais oportuno para conversarem sobre aquilo, aguardando à hora em que ela estivesse pronta para compreender aquele novo caminho, que só então começavam a desvendar. Ela olhou para Marta com olhar significativo e respondeu:
— Não sei dona Rebeca. Juro que não sei.
Rebeca, querendo respostas imediatas, encarou Marta com um ar entre desafiador e agradecido, e ela retrucou:
— Não adianta olhar para mim. Nem eu mesma sei o que se passou.
— No entanto, parece que você a curou só com a imposição de suas mãos. Como isso é possível?
— Dona Rebeca — intercedeu Júlia —, não pode dizer que Sara está curada. Ela melhorou, é verdade, mas continua doente.
— Tem razão — acrescentou Marta. — Não sei bem o que fiz, mas sei que não a curei.
— Mas ela está melhor e dorme placidamente. Isso você não pode negar.
— Dona Rebeca, sinto se não lhe posso dar as respostas que tanto anseia. Como lhe disse, eu mesma desconheço o que se passou. Só o que posso dizer é que senti uma enorme vontade de ajudar.
— Só isso? Vontade de ajudar? Ora, francamente, ninguém faz o que você fez com a só vontade de ajudar. Deve haver algo mais.
— Dona Rebeca — interveio Júlia novamente —, quer me parecer que a senhora não ficou satisfeita com o que aconteceu. Sara está melhor e, no entanto, a senhora parece até estar com raiva. Por quê?
Rebeca ficou confusa. Júlia tinha razão. Ela deveria estar agradecida àquela estranha pelo que fizera, mas sentia como se Marta, ajudando-a, estivesse tentando roubar-lhe a afeição da filha, e isso a encheu de despeito. Contudo, sabia que isso era loucura. Conhecera a moça naquele momento. Sara nunca a havia encontrado. E depois, por que estaria ela interessada no amor de sua filha? Não, aquilo era tolice. Não havia nada de lógico nem de racional naquela antipatia, mas quem podia dizer que os sentimentos tinham que ser racionais? Eles simplesmente existem, sem que possamos explicar sua origem. Um tanto quanto envergonhada, Rebeca tornou:
— Desculpem-me... Não tive a intenção de ser grosseira ou mal-agradecida. É que fiquei confusa e curiosa. Nunca havia visto uma coisa dessas na vida e pensei...
— Pensou... — incentivou Júlia.
— Nada, nada. — E, voltando-se para Marta, acrescentou: — Quero que me perdoe. Estou muito grata pelo que fez.
— Ora, dona Rebeca, não é preciso se desculpar — objetou Marta, cheia de compreensão. — Com tudo o que aconteceu, é natural que esteja transtornada.
A porta da frente se abriu e Ezequiel entrou, seguido pelo médico. Era já um senhor idoso e entrou fazendo uma reverência para as senhoras. Dirigiu-se para o quarto, em companhia de Ezequiel. Rebeca saiu logo atrás, na esperança de que ele tivesse um diagnóstico mais animador. O facultativo examinou Sara e, após alguns minutos, chamou os pais a um canto e considerou:
— Bem, a pequena está mesmo doente, embora seu estado agora pareça estável. Pelo que o senhor me disse, tossia muito e expeliu pus e sangue, não está certo.
— Sim, senhor — concordou Ezequiel.
— Hum... Ela está melhor, é verdade. Mas os sintomas são reveladores.
— O que quer dizer com isso, doutor? — indagou Rebeca, assustada.
— Senhora, lamento pelo que vou dizer, mas sua filha está com tuberculose.
Rebeca desabou mortificada e começou a chorar. Ezequiel, tentando controlar as emoções, ainda indagou:
— Tem certeza? Não pode ser outra coisa?
— Certeza absoluta. Já vi muitos casos como esse.
— E o que faremos?
— Vou ministrar-lhe uma medicação, mas os resultados são imprevisíveis. Infelizmente, essa doença não tem cura, e muitos já padeceram vítimas desse mal.
— Oh! Meu Deus, meu Deus! — chorava Rebeca. — O que será de minha filhinha?
O médico olhou-a com bondade. Já passara por aquilo diversas vezes e sabia o quanto era doloroso para os parentes. Principalmente quando a vítima era tão jovem quanto aquela mocinha. Tentando animá-los um pouco, afirmou:
— Apesar de tudo, muitos conseguiram sobreviver.
— É mesmo? — animou-se Rebeca. — Como? O que fizeram?
— Não sei. Só o que sei é que o tratamento é igual para todos. No entanto, inexplicavelmente, algumas pessoas conseguem significativas melhoras e prolongam em muito seu tempo de vida. Creio que uma alimentação saudável e ar puro são os melhores remédios nesses casos.
O médico encerrou a consulta e se foi. Ezequiel e Rebeca se abraçaram, chorando. Amavam a filha mais do que qualquer coisa, e não suportariam perdê-la. Era jovem, em breve se casaria. Como aceitar que Deus fizesse uma injustiça dessas com eles, tirando de seu convívio uma moça tão cheia de vida quanto sua Sara? Por que não levava bandidos e malfeitores, em vez de sua menina? Logo ela, tão boa, tão pura. Aquilo não estava certo. Eles não queriam se revoltar contra os desígnios de Deus, mas aquilo, decididamente, não estava certo.
No caminho de volta, Marta e Júlia iam conversando.
— Tem alguma idéia do que aconteceu lá? — indagou Júlia.
— Tenho. Embora não tenha certeza, creio que foram os espíritos.
— Também pensei nisso. Mas por quê?
— Não sei.
— Isso já havia acontecido antes com você?
— Não, nunca. Conforme lhe falei, sempre os senti junto de mim, ouvia suas vozes, e uma vez até um deles me possuiu. Mas eu nunca havia tomado uma atitude dessas.
— Acha que estava possuída?
— Não sei dizer. Eu podia ver ouvir e sentir tudo o que fazia. Podia até parar, se quisesse. No entanto, sentia como se uma estranha força me houvesse dominado, influenciando minha vontade e fazendo-me desejar fazer aquelas coisas. Foi muito estranho.
— Foi maravilhoso!
— Acha mesmo?
— É claro que sim. Pena que Sara não tenha despertado. Gostaria que a conhecesse.
Marta olhou para Júlia com olhos úmidos e tornou:
— Sabe, gostaria de dizer-lhe algo, mas pode até parecer loucura.
— O que é?
— Lembra quando Sara olhou para mim e me chamou de mamãe?
— Lembro. O que tem? Ela, na certa, estava meio zonza e as confundiu.
— Pode ser. No entanto, quando vi seus olhos sobre mim, senti uma emoção estranha, como se não fosse à primeira vez que os estivesse vendo.
— Será? — Júlia estava incrédula. — Mas, como pode ser? Sara não é daqui, veio de São Paulo. Nunca antes esteve por estas bandas. Como pode achar que a conhece?
— Não sei dizer. Eu apenas senti, assim como senti que também a conhecia, Júlia, logo que nos encontramos.
— O que pretende fazer?
— Penso que seria bom escrever uma carta a frei Ângelo. Com certeza, ele poderá nos ajudar.
Júlia considerou por alguns instantes e acabou concordando:
— Tem razão. Será que ele não gostaria de passar uns dias aqui, na fazenda?
— Seria maravilhoso. No entanto, que desculpa daríamos para trazê-lo?
— Não sei. Mas prometo pensar em algo. Dona Palmira é muito religiosa, e os filhos estão construindo uma capela para ela. Quem sabe não gostaria de receber a visita de um frei? Para abençoar as obras, coisas desse tipo. Então, o que me diz?
— A idéia me parece boa. De qualquer maneira, não custa nada tentar.
Quando a charrete chegou à fazenda São Jerônimo, Fausto correu ao seu encontro. Estava preocupado com Júlia. Ela saíra e não dissera nada, demorando-se além do habitual. Logo que o carro estacionou, ele a abraçou e a suspendeu, puxando-a para fora. Júlia corou e olhou para Marta, que abaixou os olhos. Ao vê-lo se aproximar, pensara que era Rodolfo, mas quando ele abraçara Júlia, vira que estava enganada. No entanto, eram tão parecidos! Marta estava apaixonada por Rodolfo e, por mais que tentasse, não conseguia tirar os olhos de Fausto. Júlia, percebendo o que ia ao coração da amiga, perguntou:
— Onde está Rodolfo?
— Não sei. Deve estar na plantação. Por que a pergunta?
— Por nada — concluiu ela, lançando significativo olhar para Marta, que Fausto logo compreendeu.
— Por que não vamos para a varanda esperá-lo? - sugeriu.
— Ótima idéia.
— Sinto muito — interrompeu Marta. — Eu bem que gostaria, mas minha mãe já deve estar preocupada.
— Fausto pode mandar alguém avisá-la de que chegamos e que você está bem.
— Acha mesmo?
— É claro que sim. Por que não fica e almoça conosco?
— Eu adoraria!
Os três seguiram em direção ao alpendre e se sentaram. Já era quase hora do almoço, e estavam famintos. Júlia colocou Fausto a par do ocorrido, pedindo licença para contar tudo a Dário. Era noivo de Sara e precisava saber.
Dário estava sentado à sombra de uma figueira, calmamente lendo um periódico. Júlia chegou por trás dele e estalou-lhe um beijo na nuca, fazendo com que desse um salto.
— Júlia! — exclamou. — Sua louquinha, você me assustou.
— Sinto muito, não foi por querer. Mas agora me escute. Preciso falar com você.
— Aconteceu alguma coisa?
— Sim. E muito grave.
Antes mesmo de perguntar, Dário já sabia a resposta. Podia sentir, pelo tom de voz da tia, que algo muito sério havia acontecido com sua amada, e indagou:
— Com Sara?
— É. Lamento pelo que vou lhe dizer, mas você tem que saber.
— O quê?
— Sara está mesmo com tuberculose.
Dário enfiou a cabeça entre os joelhos e desabafou, angustiado:
— Meu Deus! Como soube?
Minuciosamente, Júlia contou-lhe o que acontecera, sem omitir nenhum detalhe, inclusive sobre a intervenção de Marta. Dário ficou confuso e transtornado, sem saber o que pensar. Não conhecia Marta direito. Somente a vira uma vez e pouco falara com ela. Seria confiável?
— Creio que sim — afirmou Júlia. — Marta me parece uma moça muito séria e bondosa. Podemos confiar nela. E agora venha, vamos entrar.
Eles se levantaram e puseram-se a caminhar, até que Júlia o chamou e o advertiu seriamente:
— Outra coisa. Nem uma palavra sobre isso dentro de casa. Dona Palmira não pode nem de longe desconfiar que Sara está tísica.
— Tem razão. Seria extremamente desagradável. Eu a conheço e sei o quanto ela é preconceituosa. Se souber que arrendou sua fazenda para alguém com uma enfermidade dessa natureza, é bem capaz de expulsá-los de lá.
— E o médico recomendou-lhe boa alimentação e ar puro.
— Não se preocupe Júlia, não direi nada a ninguém.
— Ótimo.
Nesse ponto, Júlia sentiu como se alguém os estivesse espionando e olhou para trás. No mesmo instante, sentiu o corpo todo se arrepiar, ao dar de cara com Terêncio, que vinha logo atrás, com ar distraído. Ele olhou para ela, sério, e cumprimentou:
— Bom dia, dona Júlia. Seu Dário...
— Bom dia, Terêncio — responderam em uníssono.
Sem falar mais nada, chegaram para o lado, abrindo caminho para que Terêncio passasse. O capataz bateu com a mão no chapéu, em sinal de agradecimento, e passou por eles calmamente, apertando o passo logo em seguida. Assim que ele se afastou, Dário indagou:
— Será que ele ouviu alguma coisa?
— Não, tenho certeza. Estava muito longe, e estávamos falando baixinho.
Terêncio, efetivamente, não escutara nada. Pensava em outras coisas e seguia preocupado. Havia pouco se encontrara com Constância e não gostara nada do que ouvira. Constância ainda pensava em vingar-se de Tonha e tivera a coragem de pedir-lhe ajuda. Mas ele não estava mais disposto a correr riscos. Não naquela idade.




CAPÍTULO 12 Com o amor não se brinca_Mônica de Castro



À medida que o tempo passava Marta cada vez mais se aproximava de Rodolfo. Ele era gentil e amável, e isso a encantava. Fausto e Júlia se alegraram imensamente com o interesse dos dois, certos de que Rodolfo, finalmente, havia se esquecido do surto de loucura de que fora acometido. Apenas Palmira não parecia satisfeita. Criara o filho com dedicação e esmero. Preparara-o para um casamento brilhante, com uma moça da mais alta sociedade, fosse da região, fosse da corte. Não que não tivesse por Marta certa admiração. Apreciava sua educação refinada e seus gestos delicados. No entanto, a moça era filha de seu capataz e, por mais educada que fosse, jamais poderia ocultar do mundo a inferioridade de sua origem.
Júlia, em sua inocência, não via mais em Rodolfo nenhuma ameaça. Ele a tratava bem, mas com cuidados de irmão, e jamais se aproximava dela de uma forma que pudesse levantar suspeitas.
Os jovens pareciam satisfeitos naquela manhã. Estavam animados, loucos para sair. Era dia de quermesse na vila, e estavam todos contentes. Apenas Dário, não querendo se afastar de Sara, recusou gentilmente o convite, pretextando não estar se sentindo bem, e Palmira estranhou. Já tivera problemas com um dos netos. Será que o outro também se metera em algum tipo de encrenca?
— O que foi que houve meu filho? — a indagou, olhando pelo vidro da janela, enquanto os demais se afastavam.
— Hã? — assustou-se Dário. — Por que pergunta vovó?
— Não sei. Você anda estranho. Quase não sai com seus tios, com seu irmão. Aconteceu alguma coisa?
Dário olhou para ela, imaginando o que estaria pensando, até que respondeu:
— Não, vovó, está tudo bem — virou-se para a porta e acrescentou: — E agora, se me der licença...
— Vai sair? Ele hesitou:
— Vou... Vou sim.
— Posso saber aonde vai?
— Bem, pensei em cavalgar um pouco.
— Por que não foi com seus tios?
— Ora, vovó, pense bem. Eles saíram acompanhados. O que iria eu fazer no meio de dois casais enamorados? Com certeza, só atrapalharia.
Ela pensou um pouco e retrucou:
— É, tem razão. Mas não fique triste. Por que não chama seu irmão para acompanhá-lo?
— Túlio? Não sei, vovó. Túlio anda estranho, arredio, não quer falar com ninguém.
— É mesmo? Não havia percebido.
— Mas é verdade. Desde que aquela escrava, a Etelvina, se afogou, ele anda esquisito.
— Porque será?
— Não sei. Será que teve alguma coisa a ver com o desaparecimento dela?
— Não creio meu filho. Seu irmão é um bom rapaz e não se envolveria com negros.
Ele abriu a boca para contestar, quando a entrada da mãe susteve sua observação.
— Olá! Posso interromper?
— É claro, mamãe.
— Deseja alguma coisa, minha filha? — indagou Palmira, mal-humorada.
— Nada de especial. Gostaria apenas de saber se Dário não quer me acompanhar num passeio pela fazenda. Está um dia tão bonito...
— Gostaria muito, mamãe — respondeu ele aliviado.
— Vamos, então?
Os dois saíram, e Palmira ficou a olhá-los. Eles andavam estranhos. Todos naquela casa já não eram mais os mesmos. Tocou a sineta e um negrinho apareceu.
— Vá chamar Terêncio — ordenou.
O negrinho saiu e o capataz surgiu cerca de quinze minutos depois. Entrou, tirou o chapéu e perguntou:
— Mandou chamar, dona Palmira?
— Mandei sim. Há pouco, Dário me disse que Túlio anda estranho. Quero saber o que está acontecendo.
— Sinto muito, dona Palmira, mas não sei de nada. Não o vejo há alguns dias.
— Tem notado algo de diferente em seu comportamento?
— Como disse, já faz algum tempo que não o vejo. Por que tanto interesse? Ele é jovem, pode estar enrabichado...
— É isso o que me preocupa.
— Por quê? Acha que ele pode estar envolvido com alguma negra?
— Não sei. Túlio é um bom rapaz, apesar de um pouco doidivanas. E depois do que aconteceu a Etelvina, não sei não...
— Etelvina sumiu.
— Por isso mesmo.
Terêncio lançou-lhe um olhar interrogador e retrucou:
— Acha que ele deu sumiço na negrinha?
— Não sei. Mas desconfio. Dário me disse que foi depois que ela sumiu que ele começou a ficar estranho.
— O que quer que eu faça dona Palmira?
— Quero que você tente descobrir alguma coisa.
— Dona Palmira, se me permite a intromissão, para que quer fazer isso? Se o rapaz usou a negra e depois se desfez dela, que mal há nisso? Não terá sido a primeira vez que isso acontece, e não é nenhum fim de mundo. Ou será que a senhora pretende castigá-lo?
— É claro que não. Onde já se viu, castigar meu neto por causa de uma escrava?
— Então, por que remexer nisso? Etelvina sumiu ninguém sabe dela. Provavelmente se afogou. Não acha que é melhor deixar as coisas como estão?
— Eu preciso saber.
— Mas por quê?
— Porque não quero que meu neto se envolva com esses animais. Essas negras são repulsivas, e não quero Túlio metido com elas.
— Mesmo assim. Se ele se envolveu com Etelvina, isso já passou. Ela não está mais aqui para reclamar.
— Não é isso, homem. Então não vê? Não é com Etelvina que estou preocupada nem com o que aconteceu a ela. Preocupo-me apenas com meu neto. Se ele se deitou com uma negra, quero tomar minhas providências para que isso não se repita nunca mais.
Não está direito. Um moço branco, rico, metido com essa escória. Agora chega de perguntas, Terêncio. Faça o que estou mandando, ou será que agora deu para desobedecer minhas ordens?
— Eu? Mas o que é isso, dona Palmira? Sempre lhe fui fiel, a senhora sabe disso.
— Sei. Mas isso não vem ao caso. Faça o que estou mandando e avise-me se descobrir alguma coisa.
— Sim, senhora.
Terêncio se foi e Palmira continuou pensativa. Ela já estava velha, mas não era nenhuma tola. Além disso, seu instinto dizia que Túlio tinha alguma coisa a ver com o desaparecimento de Etelvina, sim. No princípio, não desconfiara de nada. Mas depois do que Dário lhe dissera, estava quase certa de que ele, efetivamente, envolvera-se com ela e depois lhe dera um sumiço. Mas ela descobriria. Não queria seu sangue misturado ao sangue daquela gente e tudo faria para impedir tamanha desgraça. Ela começou a subir as escadas, quando Constância a chamou:
— Tia Palmira?
— Sim, querida, o que é?
— Aconteceu alguma coisa? Posso ajudá-la?
— Pensando bem, poderia mandar servir-me uma xícara de chá em meu quarto?
— Pois não, titia. Mandarei Tonha agora mesmo preparar o chá e levá-lo para a senhora.
Ao entrar na cozinha, Tonha não estava, e Constância saiu à sua procura. Ela estava no quintal, regando algumas plantas, quando viu Constância se aproximar, e disse com aparente normalidade:
— Bom dia, sinhá. Deseja alguma coisa?
Constância encarou-a com aquele sorriso enigmático e disse:
— Tia Palmira quer chá. Leve-o imediatamente ao seu quarto.
— Sim, sinhá.
Tonha largou o balde com que aguava as plantas e virou-se em direção à cozinha. Quando passou por Constância, ela propositadamente esticou o pé, e Tonha, nada percebendo, tropeçou e desabou no chão, ralando o rosto na terra. Constância desatou a rir e vociferou:
— Ha, ha, ha! Bem-feito, negra! Agora se levante! Ha, ha, ha! Ande, vamos! Levante-se e vá preparar o chá!
Tonha, faces sangrando, levantou-se dolorida, sentindo joelhos e cotovelos arderem, também arranhados. Sentia dor e tremia, não conseguia se mover. Constância, rindo cada vez mais alto, continuou a esbravejar:
— Ha, ha, ha! Ande negra, o que está esperando? Tia Palmira quer chá! Ha, ha, ha! Não se demore ou será castigada!
— Sinhá, eu...
Ela estava toda dolorida, humilhada, e não conseguia se mover. Constância chegou perto dela e empurrou-a, e Tonha quase tombou novamente, começando a chorar. Constância ria cada vez mais alto, ao mesmo tempo em que bradava:
— O chá! O que está esperando? Vá buscar o chá ou irá se arrepender!
Já ia empurrá-la de novo quando Camila surgiu do outro lado do terreiro, em companhia de Dário. Estavam passando por ali e escutaram as gargalhadas desvairadas de Constância, e Camila podia imaginar o que estava acontecendo. Ao vê-la, Constância fez uma careta de contrariedade e recuou. Camila aproximou-se delas, segurou Tonha pelo braço e fulminou a prima com o olhar, dizendo friamente:
— Não se preocupe Constância. Eu mesma levarei o chá para mamãe.
Tonha, auxiliada por Dário, voltou para a cozinha, e Camila ajudou-a a fazer curativo nas feridas. Em seguida, preparou o chá e levou-o para a mãe, pedindo a Dário que acompanhasse Tonha a seu quarto para descansar. Eram ordens dela, Camila, e que ninguém a incomodasse.
Palmira estranhou a ausência de Tonha, mas Camila disse que ela caíra e que a mandara cuidar dos ferimentos. Palmira não disse nada. Não tinha tempo para se ocupar com aquilo. Se ela se ferira era problema dela. Só o que não queria era que deixasse de cumprir com suas obrigações.
Depois que a mãe terminou, Camila pegou a bandeja e saiu. Pouco depois, entrava decidida no quarto de Constância. A outra a olhou assustada, e Camila, olhos rasos d'água, desabafou:
— Constância, não sei o que aconteceu com você. Houve um tempo em que éramos amigas, confiávamos uma na outra. Mas agora...
— Por que a nostalgia, Camila? Não foi você mesma quem começou a se afastar de mim por causa daquele traste do Basílio?
Camila olhou-a magoada e acrescentou com voz súplice:
— Será que não podemos voltar a ser amigas? Somos primas. Não podemos esquecer o passado e recomeçar, vivendo em paz como antes vivíamos?
Constância dirigiu-lhe um olhar de desdém e redargüiu com frieza:
— Você hoje é uma estranha para mim, e não costumo manter relações com estranhos. Ainda mais com aqueles que são amigos dos negros.
Diante dessas palavras, Camila silenciou. Rodou nos calcanhares e se foi, levando no coração a imensa mágoa de haver perdido a amiga, que continuava ainda entregue a sentimentos pobres e mesquinhos.
Na vila, Fausto e Júlia, Rodolfo e Marta passeavam de braços dados. Rodolfo parecia mesmo interessado em Marta. Cobria-a de atenções, comprava-lhe doces, flores e até um anelzinho de prata portuguesa, doado para arrecadar fundos para a igreja. Ele parecia à alegria em pessoa e realmente sentia-se bem na companhia da moça. Não fosse aquela inveja do irmão, que o fazia desejar tudo o que fosse de Fausto, poder-se-ia dizer que era a imagem da felicidade. De tão entretido com Marta, não deixara ninguém perceber que, sorrateiramente, tomava conta de todos os passos de Fausto. Remoendo amargo despeito, viu quando ele e Júlia, discretamente, beijaram-se, e quase enlouqueceu quando ele, rapidamente, cingiu-lhe a cintura pequenina. Tinha vontade de esganá-lo. No entanto, precisava manter a calma.
Júlia e Fausto, por sua vez, viviam uma felicidade plena. Amavam-se com ternura e sentiam imenso prazer na companhia um do outro. Estavam confiantes no futuro. Apesar de saberem que Palmira não fazia muito gosto naquele romance, não havia nada que ela pudesse fazer para separá-los, e não lhe restava alternativa senão conformar-se com o destino. Em breve se casariam e seriam muito felizes.
O Sol estava a pino quando Júlia pediu a Fausto que a levasse para descansar. Sentia muito calor e não queria expor-se ao Sol em demasia. Fausto, gentilmente, conduziu-a para um banco na praça em frente ao pátio da igreja, e de lá ficaram a apreciar a quermesse. Estava muito animada, com barraquinhas de quitutes, rendas, bordados e até algumas jóias de pequeno valor. Júlia, vendo o interesse de Fausto naquela agitação, aproveitou a oportunidade e indagou:
— E as obras da capela, como estão?
— Bastante adiantadas. Creio que mais um ou dois meses e estará pronta. Vai ficar uma beleza, garanto.
— Estou certa que sim — ela se calou por alguns segundos e continuou: — Quem vai rezar as missas?
— Quem? O padre João, se não me engano. É ele quem reza missa em todas as fazendas da região.
— É mesmo?
— Sim. Ele escolhe um dia, vai até a fazenda e reza a missa.
— É uma pena que não possa haver missa todos os dias, não é mesmo?
— Sim, é. Mas o padre João tem seus compromissos com a igreja aqui da vila e não pode se ausentar constantemente. Por quê?
— Por nada. É que andei pensando...
— Em quê?
— Quem sabe sua mãe não gostaria de ter um frei morando na fazenda? Assim poderia assistir à missa e confessar-se quando quisesse, sem ter que esperar pelo padre João.
Fausto olhou-a em dúvida. A idéia até que não era má. No entanto, trazer um frei para ali exigiria muitos gastos. Era preciso custear sua moradia, sua alimentação. E depois, não sabia se a Igreja consentiria. Teria que pedir autorização ao bispo, era muito complicado. Cocando o queixo, ele respondeu.
— Hum... Não sei, não. A idéia até que não é ruim, mas não daria certo.
— Por que não?
— Ora, Júlia, não é assim tão fácil como você pensa. Há os gastos, os transtornos e, além de tudo, precisamos de autorização do bispo. Afinal, uma capela não é uma paróquia.
Ela pensou durante alguns segundos e acabou por concordar:
— Tem razão, esqueça. Foi uma idéia tola.
— Mas por que você, de uma hora para outra, resolveu se preocupar com isso?
Júlia ficou ali a encará-lo. Eles se amavam, e ela sabia que podia confiar nele. Embora não soubesse se ele acreditava na influência dos espíritos na vida das pessoas, tinha certeza de que ele saberia respeitar suas crenças e não a julgaria louca ou tola.
— Quer mesmo que lhe diga?
— É claro. Por isso estou perguntando.
Rapidamente, Júlia contou-lhe os acontecimentos dos últimos dias. Como conhecera Marta e sua afeição imediata. A enfermidade de Sara, a crise e os episódios que Marta lhe narrara, terminando com a ajuda de frei Ângelo e a carta que ela tencionava escrever-lhe. Fausto olhou-a incrédulo. Não acreditava naquelas histórias de almas de outro mundo e achou aquele caso meio fantasioso. Por outro lado, conhecia sua Júlia e sabia que ela, além de inteligente, era uma moça sensata e ponderada, e jamais se deixaria enganar pelas crendices de uma beata ou de uma impostora. E depois, havia Sara. Júlia lhe dissera que Marta a ajudara só com a imposição das mãos. Apesar de um tanto quanto incrédulo, terminou por concluir:
— Bem, Júlia, o que você me diz é espantoso.
— Mas é a mais pura verdade.
— Não duvido. No entanto, mamãe jamais concordaria com uma coisa dessas. Chamaria de ignorância ou de feitiçaria, e trataria de denunciar o frei como herege e charlatão.
— Ela faria isso?
— Sem dúvida. Mamãe é uma pessoa muito ligada à Igreja e veria nesse frei Ângelo uma ameaça às verdades constituídas por seus dogmas. Jamais acreditaria.
Júlia entristeceu. Gostava de Sara como de uma irmã e não queria vê-la morrer. Além disso, ainda tinha o sobrinho. Dário a amava acima de tudo na vida e sofreria muito se a perdesse. Fausto, percebendo a decepção e a tristeza em seu olhar, ponderou:
— Por que não fala com seu Ezequiel e dona Rebeca? Afinal, eles são os maiores interessados. Quero dizer se não se importarem com a presença de um frei, sendo judeus.
— È mesmo. Não havia pensado nisso. Como frei Ângelo é amigo de Marta, pensei que o melhor seria trazê-lo para junto dela. Assim poderíamos desfrutar melhor de seus ensinamentos. Mas levá-lo para a fazenda Ouro Velho seria bem melhor. E depois, dona Rebeca e seu Ezequiel não têm nenhum preconceito contra quem quer que seja. Do contrário, jamais seríamos amigos. Tenho certeza de que não se incomodariam com a presença de um padre.
— Pois então? Lá, inclusive, ele teria mais privacidade para expor essas experiências. Isso sem falar no fato de que estaria mais perto de Sara e poderia atendê-la com toda a urgência que o caso requer.
— Acha que ele também poderia fazer o que Marta fez?
— Não sei. Mas se você diz que ele é como seu mentor, não vejo por que não poderia.
— Tem razão. Frei Ângelo, ao que tudo indica, tem profundo conhecimento do mundo dos espíritos, e se foi um espírito que ajudou Sara, ele poderá invocá-lo com mais facilidade.
— Isso mesmo. Fale com seu Ezequiel. Tenho certeza de que ele concordará. Um homem na posição dele, com a filha doente, são capazes de qualquer coisa para salvá-la.
— Você está certo. Falarei com eles e depois pedirei a Marta que escreva uma carta a frei Ângelo, explicando-lhe o caso e convidando-o há passar uns dias na fazenda.
Depois disso, a conversa mudou de rumo, e logo Rodolfo e Marta se juntaram a eles. Rodolfo, embora não desgrudasse de Marta, não os perdera de vista um instante sequer. Vira quando eles se afastaram em direção à praça e ficara a observá-los à distância. Enquanto só conversavam, não se aproximou. Mas assim que Fausto tomou-lhe a mãozinha delicada e levou-a aos lábios, Rodolfo não pôde mais se conter e chamou Marta para, juntos, procurarem o irmão e Júlia.
— Ah! Então foi aí que vocês se meteram! — exclamou Rodolfo, tentando aparentar naturalidade.
— Júlia estava cansada e com calor — justificou-se Fausto. — Por isso viemos nos sentar aqui.
— Vocês encontraram mesmo uma boa sombrinha — concordou Marta, sentando-se ao lado de Júlia. — Estou com sede.
— Por que você e Rodolfo não vão nos buscar uns refrescos? — sugeriu Júlia.
— Com todo prazer — retrucou Fausto, que se levantou e saiu em companhia do irmão.
Vendo-se sozinhas, Júlia participou a Marta a conversa que tivera com Fausto. Ela encarou-a pensativa, até que respondeu:
— A idéia me parece boa. Será que seu Ezequiel concordará?
— Tenho certeza que sim. Amanhã mesmo falarei com ele e com dona Rebeca.
Os rapazes voltaram com os refrescos e depois foram almoçar. Já passava do meio-dia, e eles estavam com fome. Animados, seguiram para a pequena taverna da vila que, naquele dia, estava cheia. A quermesse da igreja costumava ser bem movimentada e atraía gente de toda a região, inclusive das vilas vizinhas. Júlia e Marta riam gostosamente, enquanto Fausto, embevecido com sua amada, sequer notava o olhar de rancor que Rodolfo, a todo instante, lançava para ele.



CAPÍTULO 13



Túlio ouviu batida na porta do quarto e disse sem maior interesse:
— Entre. Não está trancada.
A porta se abriu e Camila entrou. Aproximou-se da cama, onde ele estava deitado com ar abatido, acariciou seus cabelos e perguntou:
— Meu filho, sente-se bem?
— Sim, mamãe. Por que pergunta?
— Não sei. Você anda estranho. Até sua avó já reparou.
— Vovó?
— Sim. Ela veio me perguntar se eu sabia de alguma coisa.
— Sobre o quê?
— Sobre você.
— Mas não há nada...
— Será que não? Você tem andado bastante estranho. Quase não sai, não conversa com ninguém. Alguma coisa está acontecendo, sei que está. Meu coração de mãe não se engana.
— Não está acontecendo nada, mamãe.
Camila, vendo que ele não estava disposto a dividir com ela seus problemas, mudou o tom de voz e disse, tentando imprimir-lhe cumplicidade:
— Ouça, meu filho, seja o que for que tenha acontecido, pode me contar. Sou sua mãe.
Túlio, pouco à vontade diante daquela insistência, levantou-se apressado e, bufando, revidou:
— Já disse que não há nada. Por que não me deixa em paz?
— Mas o que é isso, meu filho? Isso é jeito de falar com sua mãe?
— Desculpe. Não quis ser desrespeitoso. Mas é que sua desconfiança não tem fundamento.
— Que desconfiança?
— Não sei. Diga-me a senhora. De que desconfia? Eu não fiz nada, não sei de nada.
— Meu filho, acalme-se. Não sei do que está falando. Não estou desconfiada de nada nem o acuso de coisa alguma. Não creio que você saiba ou tenha feito nada. Estou apenas preocupada, é só.
Túlio acalmou-se. Ela não sabia de nada mesmo, e não havia nada que o ligasse ao desaparecimento de Etelvina. Aliás, desde o dia em que ela desaparecera ninguém nunca mais tocara em seu nome. Era apenas uma escrava e seu sumiço não era motivo de alarde para ninguém. Em tom mais conciliador, argumentou:
— Ouça mamãe, agradeço a preocupação, mas não está acontecendo nada comigo. Sinto-me apenas cansado.
— Cansado de quê?
— Não sei. Desta vida. Tudo aqui é muito calmo, muito monótono. Não há nada para fazer.
— Por que não vai se distrair na vila?
— Ora, o que pode haver de interessante por lá? É apenas um vilarejo, rodeado de fazendas e de florestas. Não há teatros, salões, tavernas. Nada de interessante.
Camila suspirou e acrescentou:
— Se é assim que pensa, por que continua aqui?
— Quer que eu vá embora?
— Eu não disse isso. Você é meu filho, e sua companhia me é motivo de imenso prazer. No entanto, não gosto de vê-lo assim, triste. Você é jovem, tem a vida toda pela frente. Não deve perder seu tempo trancado dentro de casa.
— Tem razão, mamãe. Creio mesmo que já é hora de partir.
— Você é quem sabe. Gostaria que ficasse comigo, e sua avó também sentirá muito sua falta. Ela se afeiçoou demais a você.
Contudo, prefiro vê-lo longe a ter que presenciar essa sua tristeza. Pense bem. Não se apresse. Seja o que for que resolva, estarei do seu lado.
Ela se aproximou dele, ergueu-se na ponta dos pés e beijou-o de leve na testa, virando-se para sair, e Túlio disse emocionado:
— Obrigado, mamãe.
Camila sorriu para ele, abriu a porta e saiu. Túlio deitou-se pensativo. Talvez a mãe tivesse razão, e o melhor mesmo fosse afastar-se dali. Apesar de saber que Etelvina era apenas uma escrava, e que a avó jamais o castigaria por haver-se envolvido em sua morte, o fato era que ele ficara profundamente impressionado com a atitude do tio. Servir-se da negra era uma coisa. Matá-la era outra totalmente diferente. Túlio não pensava como Rodolfo, que os escravos eram pouco mais do que animais. Sabia que eram pessoas, fora criado acreditando nisso. No entanto, o desejo nele falava mais alto, e não podia recusar as facilidades que as escravas lhe ofereciam. Túlio se utilizava delas não porque pensasse que eram seres inferiores, mas porque sabia que sua condição de homem branco o colocava em posição de superioridade, e ele aprendeu que podia se valer desse artifício para obrigá-las a se renderem aos seus caprichos.
Quando Raimunda morrera, ele lamentara, mas não se sentira culpado. Fora uma fatalidade, e ele não desejara nem tomara parte em sua morte. Mas com Etelvina fora diferente. Ele a violentara, o que até então não era motivo de preocupação para ele, e o tio a matara num acesso de loucura. Embora ele nada dissesse, estava claro que Rodolfo sentira prazer em matar, e isso o estarrecia. Desde aquele dia, Túlio, efetivamente, afastara-se de todos, permanecendo quieto e acabrunhado, com medo de Rodolfo. O tio parecia desequilibrado, e ele passou a ver em Rodolfo certa dose de maldade, que o fazia estremecer a cada vez que olhava para ele.
De repente, a porta se abriu e Rodolfo entrou, fechando-a cuidadosamente atrás de si. Túlio, embora assustado, permaneceu impassível, olhando-o com frieza.
— Aconteceu alguma coisa?
Rodolfo devolveu-lhe o olhar, e era como se lhe lançasse chispas ameaçadoras, revidando:
— Não sei. Você é quem vai me dizer.
Embora assustado, Túlio sustentou o olhar do tio, tentando ocultar o medo que lhe ia à alma. Ele sabia que se deixasse transparecer o medo, Rodolfo o dominaria, e ele, apesar de tudo, não estava disposto a se deixar intimidar. Precisava manter-se calmo e confiante, mostrando ao outro que não o temia. Por dentro, contudo, Túlio tremia. O tio, de uma hora para outra, tornara-se para ele uma grande ameaça.
— Dizer o quê?
— Se aconteceu alguma coisa.
— Não sei do que está falando.
— Sabe, sim. Estou falando do que fizemos.
— Eu não fiz nada.
— Estou certo, eu fiz. Mas você também participou.
— Ouça tio Rodolfo, se veio aqui me alertar, está perdendo seu tempo. Não falei nada a ninguém e nem pretendo falar.
— Sei que não.
— Então, por que veio? Deixe-me em paz.
— Calma rapaz. Qual foi o bicho que o mordeu? Túlio virou-se para a janela e prosseguiu:
— Então? O que quer?
— Vi Camila saindo de seu quarto ainda agorinha mesmo.
— E daí?
— Quero saber o que ela queria.
— Nada de mais. Por quê? Ela é minha mãe, pode vir à hora que quiser.
— Sabe Túlio, não estou entendendo essa sua reação. Você está agindo na defensiva, mas eu, em momento algum, o ataquei. Por que tem medo de mim?
— Não tenho medo de você.
— Não? Então por que me trata desse jeito?
— Você é um assassino.
— E você, o que é?
— Nunca matei ninguém.
— Pensa que sua atitude foi melhor do que a minha? Como pensa que Etelvina se sentiu quando você a possuiu? E Trajano? Por acaso foi correto com ele?
— Isso não vem ao caso. Pelo menos não sujei minhas mãos com o sangue de ninguém.
— Você se julga melhor do que eu, não é mesmo? Pois fique sabendo que não é.
— Por favor, tio Rodolfo, não quero mais falar sobre isso. Já disse que não vou contar nada. Vovó nunca ficará sabendo.
— Não me interessa o que você vai falar. E depois, minha mãe jamais tomaria qualquer atitude contra mim ou contra nós.
— Então, por que a preocupação?
— Já disse. Não quero provocar os negros.
— Pois então, esqueça.
— Só vou lhe avisar uma coisa...
— Vai me ameaçar?
— É claro que não. Vou apenas pedir-lhe. Cuidado com sua mãe. Camila é amiga dos negros, e se você der com a língua nos dentes, ela bem pode me prejudicar.
— Escute tio Rodolfo, por mais que você tema a reação dos escravos, não entendo por que tanta preocupação. Afinal, eles estão presos e desarmados. O que poderiam fazer contra você?
Rodolfo abaixou os olhos por uns instantes e, quando tornou a levantá-los, havia fogo em seu olhar. Era um misto de medo e de ódio, e ele retrucou:
— Os negros são traiçoeiros e imprevisíveis. Ninguém sabe do que são capazes.
Depois disso, rodou nos calcanhares e saiu. Túlio, intuitivamente, desconfiava do que ele tinha medo. Embora ninguém percebesse, ele achava que o tio estava interessado em Júlia, e se ela soubesse o que ele fizera, jamais tornaria a falar com ele. E Rodolfo, ao que parecia, estava disposto a enganar a todos, fingindo-se passar por um homem bom e generoso, só para cair nas boas graças de sua tia. Pensando nisso, Túlio sentiu um aperto no coração. Será que não devia alertá-la? Gostava muito de Júlia. Foram criados juntos, quase como irmãos, e ele não queria vê-la presa na teia urdida pelo tio. Mas o medo de Rodolfo falou mais alto, e Túlio estava disposto a fingir que nada percebera, só para que Rodolfo não o desafiasse. Júlia que o perdoasse. Gostava muito dela, mas não estava disposto a perder o pescoço só para salvá-la.
— Tonha! — era a voz de Palmira, que a chamava com impaciência. — Onde está, negra estúpida?
Tonha chegou apressada lá de dentro, segurando na mão uma colher de pau.
— Sim, sinhá. Deseja alguma coisa?
Palmira olhou-a com desdém e tornou com rispidez:
— Onde está Túlio?
— Não sei sinhá, não vi.
— Mas onde se meteu esse menino?
— Será que sinhá Camila ou sinhá Júlia não sabem?
— Não. Ninguém o viu. Por isso estou perguntando a você. Quem sabe ele não passou pela cozinha?
— Não, sinhá. Pela cozinha ele não passou, não.
— Mande alguém agora mesmo chamar Terêncio.
— Sim, sinhá.
Tonha voltou para a cozinha e Palmira ficou intrigada. Onde andaria aquele menino? Ninguém o havia visto sair. Minutos depois, Tonha voltou com a notícia de que Terêncio também não se encontrava, e Palmira suspirou. Talvez ele tivesse saído atrás do neto.
Em seu quarto, Camila também estava preocupada. Quando a mãe apareceu, procurando pelo filho, ela se sobressaltou. Em breve seria noite, e ele não devia andar sozinho pelo escuro. Camila chamou Júlia e contou-lhe de sua preocupação:
— Será que aconteceu alguma coisa?
— Não sei Camila. Vamos esperar.
— Ele anda tão estranho...
— Não devemos nos alarmar. Na certa, saiu para dar uma volta e logo, logo, aparecerá. Você vai ver.
— Não sei. Mamãe falou com tanta preocupação...
— Sua mãe está velha, e qualquer coisinha para ela adquire proporções imensas. Tenho certeza de que Túlio está bem.
— E Fausto? Não está?
— Não. Saiu com Rodolfo para tratar de negócios.
— Oh! Meu Deus cuide para que meu filho esteja bem.
Escutaram o ruído de uma porta batendo, e Camila correu para a porta, escancarando-a. Atravessando o corredor, foi ter no quarto de Túlio e bateu, chamando:
— Túlio? Túlio, meu filho, você está aí?
Logo em seguida, a porta se abriu e Túlio apareceu. Parecia calmo e, vendo o nervosismo da mãe, indagou preocupado:
— Aconteceu alguma coisa?
— Onde esteve, meu filho? Sua avó e eu ficamos preocupadas.
— Por quê? Fui apenas dar uma volta.
— Sozinho?
— Algum problema?
— Não, nenhum...
Túlio desvencilhou-se dela e voltou para o quarto, com a desculpa de que estava cansado e queria repousar até a hora do jantar. Camila, mais sossegada, virou-se para Júlia, que considerou:
— Viu só? Preocupou-se à toa.
— Tem razão.
Na biblioteca, trancada com Terêncio, Palmira escutava o que ele tinha a dizer. Terêncio, desde a ordem de Palmira, passara a vigiar a casa e vira quando Túlio saíra sozinho, embrenhando-se no meio do mato. Mais que depressa, pusera-se em seu encalço, sem que ele percebesse, e vira aonde tinha ido.
— E então? — perguntou Palmira, aflita. — Aonde foi?
— A lugar algum — respondeu Terêncio, confuso.
— Como assim, lugar algum?
— Pois é dona Palmira. Quando saí atrás dele, até pensei que fosse se encontrar com alguém. Esperava surpreendê-lo nos braços de alguma negra. Contudo, qual não foi o meu espanto quando ele, simplesmente, entrou pelo meio do mato e foi caminhando, até chegar ao fim da fazenda. Aí parou, ajoelhou-se, pegou um punhado de terra e começou a chorar.
— Mas o que significa isso?
— Não sei dona Palmira. Nem eu entendi. Confesso até que fiquei espantado. Ele andou durante muito tempo, só para apanhar um monte de terra. Por quê?
— É o que gostaria de saber.
— Será que queria ficar sozinho?
— Mesmo assim. Sair andando por aí, feito um doidivanas, embrenhando-se no mato para ficar chorando? Isso não está me cheirando nada bem.
— O que pretende fazer?
— Não sei. Mas não faça nada e não diga nada a ninguém.
Vou apurar essa história direitinho.
— Pode deixar dona Palmira, que não direi nada a ninguém.
No dia seguinte, bem cedo, Terêncio apanhou uma pá, montou em seu cavalo, certificando-se de que ninguém o estava vendo, e partiu rumo ao local onde vira Túlio agachado, chorando sobre um monte de terra. Aquilo era muito estranho, mas também muito revelador. Pelo tamanho e pelo formato, aquele monte de terra mais parecia uma cova. Apesar da ordem de Palmira, ele estava disposto a descobrir quem estava enterrado ali, se é que havia mesmo alguém enterrado.
Chegando ao local, desmontou e, segurando firmemente a pá, começou a cavar, parando de vez em quando para descansar. Terêncio já não era mais nenhum rapazinho e logo se cansava. Mas estava disposto a desvendar aquele mistério e não perderia essa oportunidade. Aos poucos, a terra foi sendo retirada, e logo apareceu uma coisa que parecia ser uma mão negra. Ele sorriu satisfeito e continuou a cavar, já sentindo o cheiro da podridão que exalava daquela sepultura improvisada. Em breve, o corpo de Etelvina surgiu nu e coberto de terra. Apesar de o processo de decomposição já se haver iniciado, ainda estava reconhecível. Terêncio apertou o nariz, tentando não sentir aquele odor pútrido, e observou-a melhor. Entre suas pernas havia uma crosta escura, parecida com sangue, o que indicava que ela havia sido desvirginada antes de morrer. Os olhos esbugalhados e a língua de fora, somados à rouxidão ao redor do pescoço, não deixavam dúvidas de que Etelvina havia sido estrangulada.
Terêncio afastou o rosto em busca de ar fresco e inspirou. Descobrira o porquê do comportamento estranho de Túlio e desvendara o mistério acerca do desaparecimento de Etelvina. No entanto, tinha dúvidas de se aquela descoberta era importante. Por que Túlio ocultara o corpo? Por que simplesmente não contara à avó o ocorrido? Dona Palmira, na certa, passar-lhe-ia um sabão, mas nada faria contra ele. Aquilo era estranho. Na certa, havia mais por detrás daquela morte. Túlio estava escondendo algo.
Cuidadosamente, recolocou o corpo de Etelvina na sepultura e cobriu-o de terra. O melhor a fazer seria esperar o desenrolar dos acontecimentos. Já sabia o que acontecera, só precisava descobrir o motivo. Terêncio nem imaginava que o motivo era Rodolfo e sua obsessão pelo irmão. De toda sorte, achou que o mais oportuno seria não revelar nada, principalmente a Palmira. No momento próprio, contaria tudo a Rodolfo. Ele saberia o que fazer.
Sem saber que o corpo de Etelvina havia sido descoberto, Rodolfo não se preocupava com nada. Só pensava em Fausto e Júlia e, em silêncio, via-os pela janela de seu quarto, passeando de mãos dadas pelo jardim. Iam felizes e despreocupados, a atenção de um presa nos gestos do outro, sorrindo e se abraçando inocentemente. Em seu enlevo, não perceberam que alguém os espiava e, julgando-se sozinhos, pararam perto das roseiras e se olharam. De onde estava Rodolfo não podia divisar-lhes os rostos, mas sabia que expressavam felicidade. De repente, Fausto colocou a mão na cintura de Júlia e empurrou-a para dentro do caramanchão, para onde convergiam todas as alamedas do jardim. Rodolfo, apesar de perdê-los de vista, sabia o que eles estavam fazendo. Com certeza, beijavam-se apaixonadamente, e ficou a imaginar as mãos de Fausto sobre o corpo da moça, acariciando-o, sentindo-lhe o frescor e a maciez. Sentiu imenso ódio. Aquilo não era justo. Por que só o irmão podia tê-la?
Rodolfo mordeu os lábios com raiva e afastou-se da janela. Ficou a imaginar o que fazer para impedir que Júlia e Fausto concretizassem seu amor. Ela era uma moça meio livre, criada sem pai nem mãe; o irmão, ausente, e a cunhada parecia não se importar. Não havia ninguém que tomasse conta dela, que lhe direcionasse os passos, que lhe dissesse o que devia e o que não devia fazer. Júlia era voluntariosa e estava acostumada a fazer o que bem entendia. Sua única esperança era Fausto. Ele conhecia o irmão e seus pudores. Mas não podia facilitar. O amor e o desejo, numa hora dessas, podiam falar mais alto, e ele veria ruírem para sempre seus sonhos de, um dia, tomar Júlia do irmão, fazendo-o sofrer.
Júlia e Fausto estavam longe de se amar antes do casamento. Ela era muito romântica e casta, e Fausto era por demais digno e correto para desonrá-la. Queria-a virgem para a noite de núpcias.
Ele a amava de verdade. Podia esperar. Quanto a Júlia, ansiava por entregar-se a ele, mas não queria fazer nada que pudesse macular sua pureza. Também o amava e também podia esperar. Sua intimidade não ia além de beijos e de abraços apertados, e os dois se sentiam felizes e satisfeitos por poderem compartilhar daquelas carícias sem o peso da culpa ou do medo.
Completamente desnorteado, Rodolfo saiu para o jardim. Queria flagrá-los em alguma atitude menos digna e saiu desabalado em direção ao caramanchão. Caminhando por outra alameda, divisou o vulto de uma mulher, sentada em um banco, distraída com a leitura de um romance. Rodolfo logo reconheceu Marta e mudou de idéia. Ela estava sozinha, entretida com a leitura, e nem percebeu que ele se aproximava. Chegando por detrás dela, colocou as mãos sobre seus olhos, e ela teve um sobressalto:
— Adivinhe quem é — disse ele, disfarçando a voz. Ela apalpou-lhe as mãos e respondeu eufórica:
— Rodolfo!
Afastando-lhe as mãos dos olhos, virou-se para ele, meio em dúvida, e sorriu. Rodolfo sentou-se ao lado dela e disse com voz melíflua:
— Como adivinhou que era eu?
— Ora, foi muito fácil. Primeiro, reconheci sua voz. Segundo, suas mãos são inconfundíveis... Se tivesse visto seu rosto, podia até ter me enganado, confundindo-o com Fausto. Mas só você tem as mãos úmidas e quentes, vibrantes de paixão.
Rodolfo olhou-a com interesse. Estava claro que ela gostava dele, ele já percebera isso. Mas até que ponto iria aquele amor? Ele, por sua vez, achava-a bastante atraente e amava-a sem perceber. Sua obsessão pelo irmão toldava-lhe a espontaneidade do coração, e Rodolfo, em sua cegueira, não podia perceber que seu interesse por Marta ia além de uma simples atração.
Pensando na cena que há pouco presenciara entre Júlia e o irmão, seu corpo encheu-se de desejo, e ele aproximou-se mais dela, segurando-lhe a mãozinha e beijando-a com ardor. Marta assustou-se e quis tirar a mão, mas ele não permitiu. Em vez disso, levou-a ao peito e sussurrou:
— Sente como meu coração bate forte? — Ela assentiu. — E por sua causa que ele bate assim. Eu a amo.
Rodolfo puxou-a para si e a beijou, e ela correspondeu. Estava extasiada, embevecida, enleada. Rodolfo era tudo com que sempre sonhara, e aquela declaração enchia-a de amor e desejo. Tomada pela paixão, ela gemia e sussurrava:
— Oh! Rodolfo, eu também o amo. Amo-o desde o primeiro instante em que o vi.
— Quer ser minha? — continuou ele em tom açucarado.
— Para sempre — respondeu ela, a voz trêmula de emoção.
— Então venha.
Ele se levantou e puxou-a pela mão, abraçando-a em seguida. Ele mal podia se conter, o corpo ardendo de desejo, e beijou-a novamente, com tanta sofreguidão, que ela quase sufocou. Em dado momento, ela tentou se esquivar, mas Rodolfo, completamente inebriado por aquele corpo jovem de mulher, buscou sua boca com furor e recomeçou a beijá-la, acariciando-a de forma ousada. Em seguida, deitou-a sobre o banco e deitou-se sobre ela, tentando levantar-lhe a saia, enquanto alisava seu corpo todo com a outra mão. Marta, apavorada, empurrou-o com força, levantou-se assustada, tentando recompor-se, e balbuciou:
— Rodolfo... O que... O que houve com você?
Ele, vendo que estava prestes a perder sua presa, partiu para cima dela e, enlaçando-a pela cintura, suplicou:
— Nada, minha querida. Eu a amo. Deixe-me fazê-la mulher.
Marta tentava, a todo custo, soltar-se das garras de Rodolfo, — mas ele era mais forte e não a largava.
— Não, não — implorava. — Não quero. Solte-me, por favor. Deixe-me ir, não posso...
— Não, meu amor. Vou fazê-la feliz, você vai gostar. Venha comigo.
— Não, por favor...
No auge do desespero, Marta conseguiu desvencilhar-se dele e, sem pensar, estalou-lhe uma bofetada no rosto, e ele imediatamente a soltou. A face começou a avermelhar-se, tanto pela ardência do tapa quanto pela vergonha de que era acometido. Rodolfo, transtornado, segurou-a pelos punhos e, sacudindo-a, começou a gritar:
— O que deu em você? Ficou louca?Como se atreve a bater-me?
Marta, completamente amedrontada, choramingava:
— Perdoe-me, Rodolfo, não foi por querer. Tive medo... Pensei que fosse me fazer mal...
Rodolfo, percebendo o que quase fizera, retrocedeu. Ele não podia perder a confiança de Marta. Temia que ela contasse a alguém, principalmente a Júlia. Soltando-lhe os pulsos, sentou-se no banco, afundou a cabeça entre as mãos e fingiu chorar:
— Oh! Marta, quem tem de lhe pedir perdão sou eu. Quase a machuquei. Não tinha o direito. Mas é que o amor... Eu a amo,
Marta, e não pude me conter. Por favor, perdoe-me, perdoe-me! Sou um cafajeste, não mereço você!
Marta, penalizada e acreditando na veracidade de suas palavras, ajoelhou-se a seu lado, segurou-lhe as mãos entre as suas e objetou:
— Não fale assim, Rodolfo. Eu compreendo. Você é um rapaz maravilhoso, e eu o amo.
— Você me ama? — tornou ele com olhos úmidos.
— É claro que sim.
— Pode perdoar-me por minha atitude indigna?
— Você foi movido pela emoção. Acontece.
— Mas eu quase... Quase...
— Nada aconteceu. Eu estou bem.
— Felizmente. Se algo tivesse acontecido, eu jamais me perdoaria.
— Se algo tivesse acontecido, seria porque eu também o amo.
— Mas não. Você é uma moça pura, e eu não poderia abusar de sua inocência. Mas é que o amor... Amo-a tanto, Marta, que quase não me contive. Por favor, diga que me perdoa.
— Está bem. Se for tão importante para você, eu o perdôo. Agora não pense mais nisso. Já passou.
Rodolfo abraçou-a com mansidão, e ela deixou-se abraçar. Já não havia mais o ardor de antes, e ela se acalmou. Sentira muito medo dele, mas amava-o tanto que seus olhos não conseguiram enxergar a realidade por detrás daquelas palavras. Em silêncio, ela ergueu seu queixo e enxugou seus olhos, e ele, sem nem perceber, sentiu imenso prazer naquele gesto tão simples. Instintivamente, segurou-lhe a mão e beijou-a delicadamente, acrescentando com voz melosa:
— Obrigado.
Marta sorriu de volta e apertou a mão de Rodolfo, levando-a as faces. Estava, ela também, agradecida. Acreditava que ele a amava e sentia-se feliz com seu amor. Em sua ingenuidade, prosseguiu:
— Se me ama de verdade, por que não fala com meu pai? Tenho certeza de que ele ficaria muito feliz. Minha mãe não fala em outra coisa. Admira-o demais.
— Vamos ver — concluiu ele.
Rodolfo não tinha a menor intenção de fazer a corte a Marta. Ao menos enquanto não destruísse a felicidade do irmão. Depois que afastasse Júlia dele, vendo Fausto vencido e humilhado, pensaria no que fazer com Marta. Ele gostava muito da moça, e não seria nenhum sacrifício, mais tarde, tê-la em seus braços também.




CAPÍTULO 14



Uma semana depois, Rodolfo, Fausto, Marta e Júlia partiam em viagem para o Rio de Janeiro. Estavam entediados com a rotina da fazenda e, como Fausto tinha negócios a resolver, aproveitaram para se distrair um pouco na corte. Camila achou a idéia ótima e até os teria acompanhado, não fosse por Dário que, por causa de Sara, recusara-se a ir. Aldo, embora a contragosto, não teve como recusar. Estimulado pela mulher, acabou por consentir que Marta os acompanhasse. Afinal, ia com os patrões e com dona Júlia. Que mal poderia haver?
Ao chegarem à corte, foram para um hotel de luxo e hospedaram-se. Marta ficou com Júlia, enquanto Fausto dividia o mesmo quarto com Rodolfo. A cidade fervilhava. Era o centro cultural do país, e havia muitas coisas para ver. Visitaram ruas e palácios, tavernas e confeitarias, museus e teatros. Júlia, encantada com o brilho e a moda da corte, comprou vestidos, sapatos e jóias, não se esquecendo de presentear Marta com diversos artigos finos e de bom gosto.
Certa manhã, em que Rodolfo acompanhava as moças nas compras, devido a compromissos de negócio ao qual Fausto não podia faltar, Júlia, estranhando o calor, sentiu-se mal e pensou que ia desmaiar. Estavam em uma casa comercial muito requintada, escolhendo perfumes vindos diretamente de França, e a atendente ofereceu-lhe um divã para descansar. Marta largou os frascos de perfume e aproximou-se dela. Vendo-lhe a palidez e o suor que lhe escorria da testa, disse alarmada:
— Meu Deus, Júlia, o que foi que houve?
— Não sei. Sinto-me terrivelmente mal. A cabeça me dói, o estômago parece revirado.
— Deve ser o calor... — arriscou a atendente.
— Com certeza — concluiu a gerente.
— Creio que seria melhor levá-la para o hotel — acrescentou Marta.
— Oh! Não — protestou Júlia. — Logo agora que você está se divertindo.
Nesse momento, Rodolfo passou pela porta. Havia se separado delas apenas um instante, parando diante de uma loja de chapéus masculinos. Depois de comprar o que queria, encaminhou-se para a casa de perfumes, onde sabia que elas estavam. Vendo Júlia deitada sobre o divã, branca feito cera, correu para ela, indagando assustado:
— Júlia! O que aconteceu?
— Ah! Rodolfo, que bom que chegou — disse Marta, aliviada. —Júlia sentiu-se mal e quase desmaiou. Acho que seria mais prudente voltarmos para o hotel.
— Mas o que é isso? — objetou Júlia novamente. — Não precisam se preocupar comigo. Posso muito bem chamar uma carruagem e ir sozinha. Não quero estragar suas compras, Marta.
— Nada disso. Você está doente. Não deve andar sozinha por aí, pois nem conhece a cidade direito. Além disso, já terminei de comprar o que tinha para comprar. Podemos ir.
— Mas você ainda ia visitar frei Ângelo.
— Frei Ângelo pode esperar.
— Mas ele a aguarda. Não é justo...
— O que não é justo é deixarmos você sair daqui sozinha, passando mal.
— Se você quiser Júlia — interrompeu Rodolfo —, posso acompanhá-la de volta ao hotel. Se Marta não se importar, é claro.
— É lógico que não me importo. Ficaria até muito grata. Assim poderia visitar frei Ângelo despreocupada.
— Não, Marta, você é que não deve sair sozinha.
— Bobagem, minha querida. Conheço a corte. Fui educada aqui, lembra-se?
— Mesmo assim.
— Não discuta Júlia. Você e Rodolfo podem ir. Visitarei frei Ângelo e, logo, logo, estarei de volta ao hotel.
Vendo que não adiantava discutir com Marta, Júlia não teve outro remédio senão aceitar a companhia de Rodolfo. O moço ficou extasiado. Teria algumas horas a sós com ela, e aquilo o encheu de desejo. E se ele tentasse novamente? Não. Ainda não era a hora. Para alcançar seu objetivo, era preciso torturar o irmão, minando-lhe a confiança que tinha em Júlia. Aquela seria apenas uma oportunidade para pôr em prática seu plano, e ele tinha que se controlar, caso contrário, poria tudo a perder.
Rodolfo beijou Marta no rosto e, dando o braço a Júlia, saiu com ela para a rua, tomando a carruagem que os levaria de volta ao hotel. No caminho, iam conversando amenidades, e ele, a todo instante, perguntava se se sentia melhor. Júlia ficou encantada com a atenção do futuro cunhado. Ele estava mesmo mudado. Tratava-a com respeito e distinção, não fazendo qualquer insinuação ou comentário maldoso. Em vez disso, não se cansava de elogiar Marta, referindo-se a ela como a moça que lhe conquistara o coração.
De volta ao hotel, Rodolfo ajudou Júlia a se recolher ao quarto, pediu a presença de um médico e prontificou-se a ajudar. Depois que o facultativo saiu, sentou-se à cabeceira de sua cama e ficou velando-lhe o sono, com a justificativa de que aguardava a volta de Fausto. Quando este chegou, foi informado na portaria de que a senhorita Júlia sentira-se mal, já tendo sido atendida pelo médico, e que se encontrava descansando em seu quarto, em companhia do senhor Rodolfo. Fausto dirigiu-se para lá apressado e entrou sem nem bater na porta. A meia luz viu que Júlia dormia tranqüilamente, tendo a seu lado Rodolfo, sentado numa poltrona, semi-adormecido. Fausto não pôde deixar de sentir certo ciúme e, batendo no ombro do irmão, despertou-o, chamando-o para a ante-sala.
— O que foi que houve? — indagou com certa exasperação na voz.
— Nada de mais — respondeu Rodolfo, com afetada preocupação. — Júlia sentiu-se mal na rua, devido ao calor, e eu a trouxe de volta. Mas agora já está melhor, graças a Deus.
Fausto encarou-o em dúvida e continuou:
— E Marta?
— Foi visitar um tal de frei Ângelo. Já ouviu falar?
— Já, sim. Foi seu amigo e confessor enquanto esteve no convento.
— Foi o que imaginei.
— Foi sozinha?
— Sim. Por quê?
— Deixa sua namorada sair sozinha só para trazer a minha para o hotel?
— Ouça Fausto, sei o que está pensando, mas não é nada disso. Eu só quis ser gentil. Marta está bem e foi ela mesma quem insistiu para que eu trouxesse Júlia.
Vendo que deixara transparecer o ciúme e a insegurança, Fausto, não querendo parecer desconfiado, relaxou a voz e concordou:
— Tem razão, meu irmão, perdoe-me. É que fiquei preocupado.
— Esqueça. Bem, agora que você chegou, já posso voltar para o quarto. Quero descansar um pouco — já ia saindo, quando se voltou da porta e indagou: — E os negócios? Conseguiu resolver tudo?
— Sim. Tive sorte e vendi quase toda a próxima safra.
— Excelente. Sabe Rodolfo, estive pensando...
— Em quê?
— Não é justo que você se ocupe sozinho dos negócios da fazenda.
— Mas é você mesmo quem diz que não tem tino para negócios e prefere cuidar da contabilidade.
— Eu sei. Mas se você quiser, posso tentar ajudá-lo. Não é justo que você fique trabalhando enquanto eu me distraio com as moças. Podemos dividir os encargos.
Fausto olhou-o emocionado, já sentindo remorso por havê-lo julgado mal.
— Não é necessário, meu irmão. Gosto do que faço e sinto imenso prazer em negociar.
— Está bem. Você é quem sabe. Mas, se desejar, não se acanhe. Sabe que pode contar comigo.
Ele sentou-se ao lado de Júlia e passou a mão sobre sua testa, sentindo-a fresca. Abaixou-se e beijou seus cabelos, sentindo-lhe o perfume e a maciez. Amava Júlia mais do que tudo no mundo e tinha certeza de que ela o amava também. Sabia que não precisava sentir ciúmes, mas havia alguma coisa estranha no irmão que, inconscientemente, o alertava. Sem saber identificar suas desconfianças, Fausto sentia-se culpado e procurava não dar ouvidos à voz interior que, a todo instante, tentava chamar sua atenção para a realidade por detrás da solicitude de Rodolfo.
Já no final da tarde, Marta chegou e encontrou Júlia acordada, tomando um caldo quente e saboroso, que Fausto, delicadamente, entornava em sua boca.
— Júlia, minha querida — cumprimentou Marta, beijando-a na face. — Como se sente?
— Muito melhor, obrigada.
— O médico a examinou?
— Examinou, sim — adiantou-se Fausto. — Rodolfo me contou que ele esteve aqui e disse que não é nada sério. Apenas uma leve indisposição, causada pelo calor. Júlia não está acostumada a clima tão quente.
— É verdade. Onde moro, o clima é bem mais ameno.
— Fico feliz em saber disso. Fiquei preocupada e quase não fui visitar frei Ângelo.
— Por falar nisso, como foi seu encontro com ele?
— Melhor do que o esperado.
— Quer dizer então que ele aceitou?
— Sim. No princípio relutou, mas depois que lhe contei tudo o que havia acontecido, acabou por concordar. Seguirá logo após a nossa partida, que é o tempo de que necessita para ajeitar tudo.
— Não vai contar a Rodolfo? — perguntou Júlia. — Afinal, vocês estão namorando, e creio que deva confiar nele.
— Tem razão. Mas temo que ele não compreenda. O que acha Fausto?
— Sinceramente, Marta, não sei. Rodolfo é um homem estranho. Ao mesmo tempo em que é gentil, pode ser extremamente passional.
— Será? Mas ele diz que me ama.
— De qualquer modo — cortou Júlia —, não é justo enganá-lo. Depois que descobrir, vai se sentir traído.
— Por que não lhe conta apenas que Sara está doente e que frei Ângelo tentará ajudá-la? Ele não precisa saber que ela é judia. Aliás, com a presença de um frade, sequer irá desconfiar.
— Fausto tem razão. Quem irá imaginar que um frei estará auxiliando uma família de judeus, e mais, hospedado em sua própria casa?
Marta olhou para eles e disse convencida:
— Tem razão. Farei isso agora mesmo.
Rodolfo recebeu a notícia sem maior interesse. Para ele, tanto fazia que a moça estivesse doente e que estivesse recebendo a ajuda de um frade, ou seja, lá o que fosse. Desde que isso não atrapalhasse seus planos, ele nada tinha a opor. Afinal, a fazenda estava arrendada para aquela família, cujo nome nem conhecia, e eles tinham o direito de convidar quem quisessem para visitá-los.
Fausto e Rodolfo, dada sua posição social, conheciam muitos nobres e fidalgos na corte, e foram convidados para inúmeras festas e concertos. Haviam ido a um baile, em comemoração às bodas de prata de um barão, amigo de sua família, e Marta encantou-se com o luxo e a pompa que imperavam nos salões. Estava feliz da vida, dançando com Rodolfo, enquanto Júlia e Fausto rodopiavam, aninhados nos braços um do outro. Rodolfo remoia cada vez mais a inveja e o despeito, mas não deixava transparecer. No intervalo da orquestra, as moças saíram para tomar ar puro, e Fausto viu-se preso por um comendador, com quem mantinha importantes negócios. Aproveitando-se da situação, Rodolfo saiu em busca de Júlia, encontrando-a no jardim, em animada prosa com Marta.
— As moças querem beber alguma coisa? — indagou, logo que se aproximou delas.
— Oh! Rodolfo, por favor — respondeu Marta. — Estamos morrendo de sede.
Rodolfo saiu e voltou logo em seguida, trazendo nas mãos duas taças de vinho, que imediatamente ofereceu a elas.
— Onde está Fausto? — quis saber Júlia.
— Conversando com um comendador, amigo da família. Ele mantém importantes negócios conosco.
— Oh, mas que maçante! Tratar de negócios logo num dia de festa.
— Não se importe Júlia. Tenho certeza de que ele conseguirá se desembaraçar do comendador e em breve se juntará a nós. E agora, se me der licença, gostaria de dançar com Marta novamente.
— Rodolfo — objetou Marta —, não seja grosseiro. Não devemos deixar Júlia sozinha.
— Não se importem comigo. Ficarei aqui, aguardando Fausto.
— Bem, se é assim...
Enquanto eles se afastavam, Júlia os ficou admirando. Formavam um bonito par, e ela estava satisfeita por Rodolfo tê-la esquecido, voltando suas atenções para outra moça. Marta amava-o com sinceridade, e via-se o quanto estava feliz em seus braços.
Quando a valsa terminou, Rodolfo e Marta saíram à procura de Fausto e Júlia, e foi encontrá-la sozinha, sentada numa poltrona, admirando a beleza do baile. Fausto, lamentavelmente, não conseguira ainda livrar-se do comendador e continuava preso a sua conversa enfadonha. Reparando no ar de aborrecimento de Júlia, privada da companhia do amado, Marta sugeriu a Rodolfo:
— Por que não tira Júlia para dançar? Ela já está ficando aborrecida com a ausência de Fausto.
— Não será melhor esperá-lo?
— Ora, querido, o que é isso? Não é justo nos divertirmos enquanto Júlia fica sentada. Vamos, convide-a para dançar.
— Tem certeza?
— É claro que tenho.
— Está bem. Se for o que quer...
Rodolfo inclinou-se para Júlia, convidando-a para a valsa, mas ela recusou. Não queria interromper a diversão da amiga e gostaria de estar ali para quando Fausto a procurasse.
— Não seja tola — recriminou Marta. — Fausto não vai se importar se você dançar um pouco. E depois, eu estarei aqui e falarei com ele.
Júlia fez um ar de dúvida, mas acabou aceitando. Adorava dançar e já estava entediada de ficar ali sentada, sem ter o que fazer, enquanto todos se divertiam. Levantou-se com graça, tomou o braço de Rodolfo e partiu com ele para o salão. Dali a poucos instantes, Fausto, finalmente livre da conversa do comendador, saiu a sua procura, contrariado por havê-la deixado sozinha tanto tempo. Não a encontrou, porém, mas avistou Marta, que ia caminhando em sua direção.
— Você viu Júlia?
— Júlia está dançando com Rodolfo.
Ele levantou uma sobrancelha, em sinal de indignação, e partiu para o salão. Havia muita gente ali, e ele pôs-se a procurá-la. Atrás dele, Marta seguia-o sem nada entender. Logo a avistou. Enlaçada pela cintura, Júlia deixava-se conduzir pelos braços de Rodolfo. De vez em quando, ele sussurrava algo em seu ouvido, e ela sorria graciosamente. Fausto sentiu o sangue ferver. Sem conseguir explicar o motivo, a visão de sua amada, envolvida pelos braços de seu irmão, encheu-o de ciúme e despeito. Já ia interromper a valsa dos dois quando Rodolfo o viu. Na mesma hora, parou a dança, cumprimentou o par e apontou para Fausto. Júlia sorriu e acenou para ele, correndo ao seu encontro. Assim que o alcançou, foi logo exclamando:
— Fausto! Até que enfim. Pensei que não o visse mais hoje.
— Pelo visto, está se divertindo — retrucou-o com certa ironia, que ela não percebeu.
— Oh! Sim, graças a Rodolfo que, tão gentilmente, convidou-me para dançar. E a nossa Marta também que, de bom grado, me cedeu o par por alguns instantes.
— Bem, não foi nada — disse Rodolfo educadamente. — E agora, se me permitem, gostaria de voltar aos braços de minha amada.
Com um sorriso nos lábios, Rodolfo deu o braço a Marta e partiu com ela para o meio do salão, enlaçando-a e rodopiando com ela. Fausto, envergonhado, não sabia o que dizer. Estava claro que o irmão apenas tentara ser gentil com Júlia, dançando com ela para que não se sentisse só ou aborrecida. Não havia nenhum outro interesse naquele gesto. Apenas a gentileza.
Quando voltaram para o hotel, já era tarde. Marta, desacostumada àquelas festas, acabou por adormecer, e Fausto seguia silencioso, pensando em seu ciúme, enquanto Júlia ia conversando animadamente com Rodolfo. Falavam da música muito bem tocada, da decoração magnífica do palacete do barão, dos trajes ricos e elegantes... Tudo fora perfeito naquela noite. Até a inesperada ausência de Fausto havia sido compensada pela gentileza de Rodolfo. Fausto não dizia nada. Ele não queria admitir, mas o fato era que estava morrendo de ciúmes. Embora Rodolfo fosse apenas gentil e educado, não demonstrando nenhum interesse maior em Júlia, Fausto sentia-se inseguro. Ele não sabia explicar, mas sentia no irmão uma grande ameaça à sua felicidade.
No dia seguinte, pensaram em visitar um museu. Havia uma exposição de pintores franceses na cidade, e Júlia estava louca para ver. Já estavam na porta do hotel, aguardando a carruagem, quando um pajem saiu correndo ao encontro deles, pedindo para falar com Fausto.
— Senhor Fausto! Senhor Fausto! Fausto virou-se desgostoso e retrucou:
— O que é rapaz?
— Mensagem urgente para o senhor.
O menino estendeu-lhe um bilhete, que ele abriu e leu ansiosamente. À medida que lia, seu rosto ia se contraindo e, quando terminou, fez uma careta de contrariedade e disse desgostoso:
— Lamento, mas não poderei acompanhá-los.
— Por quê? — indagou Rodolfo, mal contendo a alegria.
— Lamentavelmente, tenho negócios urgentes a resolver.
— Mas que negócios são esses que não podem esperar? — perguntou Júlia, decepcionada.
— Um de nossos clientes. Parece que quer desistir da compra.
— Por quê?
— Não sei. Mas parece que encontrou melhor preço.
— Isso não pode esperar? — insistiu Júlia.
— Infelizmente não, minha querida. Se perdermos esse negócio, teremos um prejuízo imenso.
— Quer que eu vá em seu lugar? — ofereceu-se Rodolfo.
— Não, claro que não. Você não está acostumado a esse tipo de negócio. Deixe comigo. Assim que resolver tudo, partirei ao seu encontro.
A carruagem chegou e os três se foram, enquanto Fausto pedia um outro carro para ele, espumando de raiva. Mas o que é que estava acontecendo? Parecia que de repente todos conspiravam contra ele, roubando-lhe a companhia de Júlia. Enfim, o que fazer? Perder o negócio era impossível. Era de clientes como aquele que dependia todo o seu sucesso. Vendo que não tinha remédio, Fausto tomou outra carruagem e partiu ao encontro do comprador insatisfeito.
Enquanto isso, Júlia, Rodolfo e Marta chegavam ao museu. A exposição era lindíssima, e eles se encantaram. Levaram a manhã inteira apreciando os quadros, as obras de arte, até que a hora do almoço chegou. Os três voltaram para o hotel, pediram a refeição e comeram, sem que Fausto desse sinal de vida. Terminado o almoço, Marta e Júlia pediram licença para se retirar. Estavam exaustas e queriam descansar até o anoitecer. Haviam combinado tomar chá em casa de uns conhecidos de Marta e queriam estar bem dispostas. Rodolfo, porém, tentando uma cartada para estar perto de Júlia, arriscou:
— Que pena. Queria tanto comprar um presente para mamãe!
— Oh! Meu querido — disse Marta. — Estou realmente cansada. Se não, até que o acompanharia.
— Eu sei. Não quero insistir. Podem deixar que irei só.
Júlia, porém, não se esquecendo das inúmeras gentilezas que ele, até então, lhe dispensara, quis retribuir e chamou-o de volta:
— Espere. Irei com você. Não estou assim tão cansada.
— Você?
— Se Marta não se importar...
— É claro que não me importo. Isto é, se você não estiver mesmo cansada.
— Pois não estou. E adoraria ajudá-lo a comprar um presente para dona Palmira. Mas não vamos demorar, não é?
— É claro que não.
Saíram de braços dados. Caminharam pelas ruas agitadas, parando em frente às vitrines, sem saber pelo que se decidir.
Até que, finalmente, Júlia escolheu em um lindo broche em forma de passarinho, todo de esmeraldas, e Rodolfo comprou sem hesitar. Levaram a tarde inteira naquilo e quando voltaram, já era quase hora do chá. Logo que entraram no saguão do hotel, avistaram Fausto, que estava sentado, esperando por eles. Havia chegado pouco depois que eles saíram e fora informado por Marta que haviam ido às compras e que não se demorariam. Ao vê-los entrar de braços dados, Fausto não se conteve e explodiu:
— Mas onde é que vocês estiveram? E fazendo o quê? Por acaso pensam que sou algum idiota, é?
Rodolfo olhou-o, fingindo-se magoado.
— Fomos apenas comprar um presente para mamãe — e exibiu-lhe o pequeno embrulho, contendo o broche de esmeraldas.
— Júlia, gentilmente, ajudou-me a escolher. Veja, coloquei seu nome no cartão.
Fausto olhou envergonhado. Deixara-se dominar pelo ciúme novamente e quase cometera uma injustiça. O irmão e Júlia eram apenas amigos, seriam cunhados. Era natural que se entendessem bem. E depois, havia Marta. Ela não se importava porque sabia que não havia nada entre eles. Mal conseguindo conter a vergonha, ele rodou nos calcanhares e tomou a direção da rua. Precisava sair pensar, refletir. Estava ficando louco, e Júlia não merecia. Rodolfo também não merecia. Ele era seu irmão, errara uma vez, confessara-lhe o erro e pedira-lhe perdão. Não havia motivo para desconfiar dele. Não que ele soubesse.
Envergonhado com sua desconfiança, e mais, com sua reação impensada, Fausto só voltou ao hotel tarde da noite. Quando entrou em seu quarto, além de Rodolfo, Júlia e Marta também se encontravam presentes. Estavam todos preocupados com seu desaparecimento, e ninguém conseguira dormir. Já passava da meia-noite quando ele abriu a porta, e Júlia, ao vê-lo, correu para ele, atirando-se em seus braços.
— Oh! Fausto, meu amor! — exclamou ela, ao mesmo tempo em que começou a chorar. — Por que fez isso conosco? Quase nos mata de susto e preocupação.
Fausto não conseguia encará-la. Nem a ela, nem a Marta, muito menos a Rodolfo. Tentando dissimular a vergonha, disse simplesmente:
— Perdão.
— Mas querido, não há o que perdoar.
— Isso mesmo, meu irmão — concordou Rodolfo. — O assunto já está esquecido. Você ficou com ciúmes, foi só. Mas não precisava ter fugido daquele jeito.
Ele encarou o irmão com olhar de agradecimento. No fundo, ainda sentia ciúmes, mas não queria demonstrar. Não queria nem ao menos sentir. Ele tornou a abraçar Júlia e sussurrou em seu ouvido, de modo que só ela pudesse escutar:
— Eu a amo.
Ela o estreitou forte e respondeu:
— Eu sei querido. Também o amo muito.
— Perdoe-me.
Júlia não respondeu com palavras, mas pousou-lhe um beijo suave nos lábios, e havia tanto amor, tanta doçura naquele beijo, que Rodolfo sentiu-se mal. Ele até que estava se saindo bem em sua silenciosa tarefa de incutir no espírito do irmão o ciúme e a desconfiança. Mas presenciar cenas de amor entre ele e Júlia era demais. Marta, por sua vez, estava feliz por ver que tudo acabara bem e abraçou Rodolfo, que por pouco não a repeliu. Ela, intimamente, sentiu um quê de rejeição em seu corpo, pois todos os seus músculos se contraíram ao toque de seus braços. Como, porém, amava-o loucamente, não conseguiu detectar o porquê daquela reação inesperada. Rodolfo, mal contendo a inveja e o despeito, rosnou entre dentes:
— Acho que já é hora de as moças se recolherem. Afinal, não fica bem permanecerem no quarto de dois rapazes solteiros até altas horas da madrugada.
Fausto soltou Júlia a contragosto e acabou por concordar:
— Tem razão, Rodolfo. É uma pena ter de deixá-la, Júlia, mas é para o bem de vocês.
— Não queremos que as moças fiquem faladas, não é mesmo, Fausto?
— Não, claro que não.
— Então vamos.
Depois que elas se foram, Rodolfo voltou-se para Fausto e, mãos pousadas em seus ombros, disse, cheio de emoção:
— Fausto, meu irmão. Peço que me perdoe se por acaso o ofendi. Não tive a intenção.
— Rodolfo, não...
— Por favor, não me interrompa. Preciso me explicar.
— Mas você não tem nada que se explicar...
— Mesmo assim. Só saí com Júlia porque Marta estava cansada para me acompanhar, e Júlia me ajudou a escolher um presente para mamãe. Como é seu aniversário no mês que vem, pensei que ela ficaria feliz com uma jóia comprada na corte. Mas quero que saiba que Júlia, apesar de haver balançado meu coração no passado, hoje nele ocupa o lugar de irmã, pois que o de amada é agora de Marta.
Fausto olhou-o emocionado. Apesar de tudo, amava o irmão e não podia esconder o arrependimento e a vergonha por havê-lo julgado mal. Segurando-lhe a mão pousada sobre seu ombro, retrucou agradecido:
— Sei disso, Rodolfo, e quero que você me perdoe. Fui um tolo ciumento, mas prometo que isso nunca mais vai acontecer.
No dia seguinte, partiram de volta à fazenda. Ninguém mais tocou no assunto da véspera, que pareceu haver ficado esquecido. Fausto tentava não demonstrar o ciúme que lhe corroia a alma. Mesmo após as escusas do irmão, mesmo depois de saber-se injusto e tolo, não conseguia dominar seu ciúme. Não sabia como explicá-lo. Por mais que quisesse, sentia como se o irmão representasse uma ameaça a sua felicidade com Júlia. Não havia razão plausível para aquilo, mas quem podia dominar os sentimentos? E mais, as sensações?
De volta à fazenda, foram recebidos com festa. Palmira, sabendo de seu retorno, mandara preparar lauto banquete. Não estava acostumada a separar-se dos dois filhos ao mesmo tempo e sentira muitas saudades. Sentados à mesa do almoço, Rodolfo e Fausto participaram à mãe sua intenção de dar uma festa, em comemoração a seu aniversário. As obras da capela também já estavam bastante adiantadas e, se tudo corresse bem, poderiam inaugurá-la no mesmo dia, e a festa começaria com a primeira missa rezada na fazenda. Palmira encantou-se. Era tudo o que podia desejar de filhos tão amorosos e dedicados.
Já no final da refeição, Fausto mandou que servissem champanhe e pediu licença para falar. Certificando-se de que todas as atenções estavam voltadas para ele, começou a dizer:
— Mamãe, Camila, talvez a hora não seja das mais próprias, mas não posso mais esperar — a mãe e a irmã olharam-no surpresas, e ele prosseguiu:
— Como já é do conhecimento de todos, Júlia e eu nos amamos e, por isso, gostaria de pedir sua mão em casamento.
Um raio não teria atingido Rodolfo com maior intensidade. Ele se levantou de chofre e acabou por derrubar a taça de champanhe sobre a mesa. Vendo o líquido espalhar-se sobre a toalha branca, emudeceu e tornou a sentar-se. Não havia o que dizer, e qualquer reação contrária poderiam pôr todos os seus planos a perder. Palmira olhou o filho e uma desconfiança começou a brotar em sua mente. Será que Rodolfo também estava apaixonado por Júlia? Era só o que faltava.
Quanto a Júlia, ergueu-se surpresa. Aquele pedido fora inesperado. Fausto não lhe participara a intenção de pedir-lhe a mão naquele dia, e isso a deixou embaraçada. No entanto, não podia esconder a felicidade. Amava-o imensamente e o que mais queria era tornar-se sua mulher. E depois, ele tinha razão. Já estavam enamorados há algum tempo, e nenhum dos dois era mais criança. Não havia motivo algum para que não concretizassem logo aquela união.
Dário sorriu para ela e estendeu-lhe a mão por cima da mesa. Gostava muito da tia e de tio Fausto, e achava que haviam sido feitos um para o outro. Ela segurou-lhe a mão, agradecida e, em seguida, olhou para Túlio, que permanecia cabisbaixo, sem nada dizer, bem como Constância, que comia a sobremesa sem prestar nenhuma atenção ao que se passava.
— Meu filho — começou Palmira, dirigindo-se a Fausto —, não acha que é ainda muito cedo?
— Não, mamãe, não acho. Como disse, Júlia e eu nos amamos, e não sei por que esperar.
— Mas Fausto Júlia não tem pai e o irmão é que é responsável por ela. Contudo, não se encontra aqui presente entre nós.
— Quanto a isso, mamãe — interrompeu Camila —, não precisa se preocupar. Tenho certeza de que Leopoldo não se oporá. Escrever-lhe-ei uma carta hoje mesmo, contando-lhe a novidade e pedindo-lhe que venha. Estou certa de que atenderá meu chamado.
Palmira lançou para ela um olhar de fogo. Aquele casamento não estava em seus planos, e ela não via meios de impedi-lo. Ainda pensou em tentar dissuadir o filho, mas achou que isso só serviria para aproximá-lo ainda mais de Júlia. Decidiu que seria melhor se calar. Ao menos por enquanto. Depois falaria com ele, longe das vistas dos demais, e tentaria chamá-lo à razão.
Agindo por um impulso que não saberia explicar, Fausto perguntou inesperadamente, dirigindo-se a Rodolfo:
— Por que não aproveita e não pede também a mão de Marta?
Rodolfo remexeu-se, confuso. Não tinha a menor intenção de desposar Marta, mas o irmão tratava de encurralá-lo e forçar uma atitude sua. A moça não estava presente. Fora direto para casa, e Palmira aproveitou para externar toda a sua indignação:
— O quê? Isso é que não!
Camila olhou para a mãe, indignada, e indagou:
— Por que, mamãe? Marta me parece uma excelente moça.
— Mas é pobre. É filha de capataz. Como Rodolfo pode pensar em desposá-la?
Rodolfo começou a ficar nervoso. Estava em território perigoso e precisava tomar cuidado para não se queimar. Se, por um lado, concordava com a mãe e não tinha a menor intenção de se casar com a filha de um mero capataz, por outro, não podia deixar que Fausto e Júlia percebessem suas reais intenções. Era uma faca de dois gumes, e ele precisava agir com muita cautela, a fim de não se delatar. Tentando escolher as palavras, disse de forma sutil e estudada:
— Não é bem assim, mamãe. Marta e eu nos gostamos, mas ainda estamos nos conhecendo.
— Ora, Rodolfo! — interrompeu Júlia. — Então já não se conhecem o suficiente? Não estiveram juntos na corte?
— Como assim? — perguntou Palmira, aflita.
— Acalme-se, mamãe — tranqüilizou Rodolfo. — Não é nada disso que a senhora está pensando.
— Oh! Não — apressou-se Júlia a corrigir suas palavras. — Por favor, dona Palmira, não me interprete mal. Marta é uma boa moça e muito direita também. Não era a isso que me referia. O que quis dizer é que Rodolfo e Marta passaram muito tempo juntos, conversando e se conhecendo.
— Júlia está certa, mamãe — endossou Fausto. — Eu mesmo fui testemunha de que ela é uma moça muito honesta e digna.
— Está bem, está bem — cortou Palmira, já enjoada daquela discussão exaltando as qualidades morais de Marta. — Mas, ainda assim, penso que ela não é moça para Rodolfo. Ele é um rapaz fino, educado, merece uma esposa à altura de sua posição social.
— E você, Rodolfo? — indagou Camila, voltando-se para o irmão. — Não diz nada?
Ele levantou os olhos, em dúvida.
— O que devo dizer? Marta é uma excelente moça, e gosto dela de verdade. No entanto, creio que ainda não chegou à hora de me decidir.
— Mas se foi você mesmo quem disse que a amava — lembrou-o Fausto, recordando a conversa que tiveram na noite anterior. — Ou será que já se esqueceu? Ou mudou de idéia?
— Não é nada disso.
— Mas você disse que amava Marta.
— Eu disse que Marta ocupava o lugar de amada em meu coração.
— Não é a mesma coisa?
Ele estava ficando confuso e transtornado. Queria fugir correndo dali e o teria feito, não fosse à mãe, que interviera em seu favor.
— Por favor, Fausto, não pressione seu irmão. Deixe que ele mesmo se decida. Eu, de minha parte, insisto em que essa moça não é para ele.
— Está bem, mamãe — arrematou Camila. — Deixemos essa conversa para depois. Não vê que Rodolfo não está gostando?
A conversa tomou novos rumos, mas Fausto não parava de exaltar seu amor por Júlia. Até que Rodolfo, não podendo mais se conter, pediu licença e se retirou, saindo para a varanda em busca de ar. Estava ficando sufocado ali dentro e precisava respirar. Já não suportava mais a felicidade do irmão.




CAPÍTULO 15



Uma semana depois, frei Ângelo chegou à fazenda Ouro Velho. Embora de religião e credo diferentes, ele logo simpatizou com a família de Ezequiel. O homem era amável e cortês, e sua esposa, gentil e educada, e ele, em pouco tempo, sentiu-se à vontade naquele ambiente. Marta, prevenida de sua chegada, tratara de ir esperá-lo, juntamente com Júlia, Camila e Dário, que muito ansiavam por conhecê-lo. Feitas as devidas apresentações, Júlia disse emocionada:
— Frei Ângelo, é um imenso prazer conhecê-lo. Há muito esperava essa oportunidade.
— Marta me falou muito bem da senhorita. Tem-lhe muito apreço e admiração.
— O sentimento é mútuo. Gosto de Marta como de uma irmã.
— Ouvimos muito falar de sua habilidade — disse Rebeca.
— Que habilidade?
— Ora, com as coisas extraordinárias e sobrenaturais.
Frei Ângelo sorriu complacente. Não era velho, aparentando cerca de cinqüenta anos, e guardava no semblante traços de uma bondade genuína e alegre.
— Minha senhora — disse —, mas o que é isso? Tenho algum conhecimento do mundo dos espíritos, mas posso assegurar-lhe que ele nada possui de extraordinário. Muito menos de sobrenatural. Isso são apenas crendices de gente ignorante.
Vendo que ela havia corado, frei Ângelo tratou logo de se corrigir:
— Perdoe-me, não quis ofendê-la. Não queria dizer que a senhora é ignorante, senão apenas das coisas espirituais. Mas não há com o que se preocupar. Quase ninguém tem acesso a essas informações, porque os homens estão ainda muito atrasados em relação às coisas de Deus. Tudo pensa que é obra do demônio, como se só o diabo fosse capaz de realizar feitos maravilhosos.
— Bem, frei Ângelo — disse Camila —, o senhor há de convir que fomos criados com essa crença.
— Sei disso e não pretendo mudá-la. Creio que ainda não é chegada a hora de se revelarem tais verdades.
— Por que não? — interessou-se Ezequiel.
— De que adianta uma revelação para ouvidos que ainda não estão prontos para ouvir?
— Como assim? — quis saber Júlia.
— Minha cara, de nada vale as verdades se quem as escuta permanece ainda preso a conceitos antigos. Por mais que tentemos e nos esforcemos, ninguém vai acreditar. Pense bem. Há quinhentos anos, tinha-se a crença de que a Terra era quadrada, e quem dissesse o contrário era até queimado como bruxo. E isso por quê? Porque o homem de então ainda não havia amadurecido suas idéias para compreender que o mundo é redondo. A mesma coisa acontece com a verdade do espírito. Hoje, essa verdade é tida até como heresia, e mesmo eu corro o risco de ser expulso da Igreja e até excomungado.
— Bem, isso lá é verdade — concordou Ezequiel. — E o senhor não tem medo?
— Medo? Eu? Não, não tenho. Abracei a carreira religiosa por vocação, porque acreditava que poderia servir a Deus de uma forma útil. Com o tempo, descobri que minha maneira de servi-lo era estudando e praticando seus ensinamentos de uma forma mais livre e consciente, menos arraigada a valores históricos e mais próximos das reais necessidades do ser humano.
— E quais seriam essas necessidades?
— Conhecermo-nos a nós mesmos, em primeiro lugar. Somente aquele que conhece a si próprio, seus pendores, instintos e sentimentos, está apto a compreendê-los e transformá-los em proveitosas lições de vida. Conhecendo-se, o homem pode se programar para ser feliz e evitar o sofrimento.
— Meu caro frei — tornou Ezequiel, incrédulo —, sem querer ofendê-lo, não acha que isso é um sonho? O sofrimento existe, faz parte da humanidade desde que o mundo é mundo. E é através dele que aprendemos e nos aproximamos de Deus.
— De certa forma, sim. Mas não porque isso seja necessário. Não é. Nós aprendemos com o sofrimento sim, porque ainda somos muito ignorantes para compreender que podemos optar por caminhos menos dolorosos para crescer. E se nos aproximamos de Deus, não é porque o sofrimento, por si só, nos tenha elevado a Ele, mas sim porque conseguimos, de alguma forma, tirar algum proveito da dor e transformá-la em nosso próprio benefício. Infelizmente, em nossa infância espiritual, ainda não podemos compreender que ninguém vem ao mundo para sofrer, senão para ser feliz.
— Mas o sofrimento existe, e isso o senhor não pode negar — insistiu Ezequiel.
— Existe, não nego. Mas dia haverá em que aprenderemos a transformar nossas imperfeições movidas pelo amor, e não pela dor.
Ezequiel continuava olhando-o incrédulo. Queria muito acreditar no que ele dizia, mas via no sofrimento algo que não se podia evitar e já começava a se resignar com o infortúnio de Sara.
— Veja minha filha, por exemplo. Por que sofre? Uma menina ainda, tão nova, tão meiga e, no entanto, padece vítima de maldita enfermidade.
Frei Ângelo endereçou-lhe um olhar bondoso e acrescentou:
— As enfermidades são apenas umas formas de nos mostrar que algo em nossa vida não vai bem. Elas nos indicam que há um desequilíbrio em nossas atitudes, apontando-nos o caminho para nosso restabelecimento, não só físico, mas também espiritual.
— Concordo plenamente com o senhor — interveio Camila. — Em minhas experiências no convento, tive a oportunidade de observar que todos aqueles que adoeciam tinham algum tipo de enfermidade da alma. Muitos eram tristes, outros eram rancorosos, outros ainda, viviam se atormentando por culpas, mágoas e ressentimentos.
— Minha querida — disse Ezequiel novamente —, isso faz parte da vida.
— Mas por quê? Será que a saúde não é o caminho natural da vida? Por que temos que adoecer?
— Não sei. Porque é a vontade de Deus.
— Por que Deus quer que Sara adoeça, enquanto há outros por aí, praticando o mal, que nada sentem de ruim?
— Não sei. São os mistérios divinos, aos qual ninguém tem acesso.
— Engana-se, meu caro — objetou frei Ângelo. — Os mistérios de Deus estão aí para serem desvendados. Cabem a nós, espíritos eternos, descortinar o véu que encobre as maravilhosas lições de sabedoria escritas no sagrado livro da divindade.
— Tenho cá minhas dúvidas.
— Pois não devia. E quanto à senhora, dona Camila, está certa. Também já tive a oportunidade de observar a relação entre as enfermidades e os nossos conflitos internos. Servi, durante muitos anos, no hospital beneficente mantido por nossa paróquia e, em minhas experiências, também pude tirar conclusões muito interessantes.
— Que conclusões seriam essas?
— Notem bem. Ninguém nunca comprovou nada. São apenas deduções extraídas dos muitos anos de convívio com os doentes, principalmente com aqueles ditos abandonados da sorte.
— Por favor, frei Ângelo, prossiga — estimulou Camila, bastante interessada. — Conte-nos como conseguiu chegar a essas conclusões.
— Em primeiro lugar, separei os doentes em razão de seus males. Em uma das alas do hospital coloquei aqueles que sofriam de doenças relacionadas ao aparelho digestivo. Em outra, acomodei os que sofriam dos pulmões, os que tinham problemas urinários e assim por diante. E sabem quais foram às conclusões que tirei?
— Quais?
— Em sua maioria, quem adoecia de problemas de fígado eram as pessoas que tinham muita raiva guardada dentro de si. Pessoas que alimentavam raiva por seus semelhantes, por seus pais, por seus desafetos, mas que nunca tiveram coragem de exprimir esse sentimento.
— Não acha que fizeram bem? — objetou Ezequiel. — Será que devemos agora sair por aí ofendendo, matando ou espancando as pessoas, só porque sentimos raiva delas?
— Não, em absoluto. O ser humano deve agir com discernimento e respeito, e jamais deve se deixar levar pelos impulsos e invadir a vida de seus irmãos.
— Então concorda comigo que a raiva é um sentimento que deve ser dominado, e não estimulado.
— Não se domina um sentimento fingindo que ele não existe. Quem assim age apenas mascara o sentimento, mas ele permanece ali, escondido, latente, sendo reprimido, quando deveria ser compreendido e externado.
— Ora, frei Ângelo — retrucou Rebeca —, se eu invejo alguém, por exemplo, sei exatamente por que estou invejando. Isso não é compreensão?
— Não, se não aceitar para si mesma que o que sente e inveja. Na maioria das vezes, nós colocamos uma capa na inveja e ela vira crítica. Se eu invejo alguém, não posso fingir que não tenho inveja só porque isso é feio ou reprovável pela sociedade. Não. Em primeiro lugar, tenho que aceitar que o sentimento existe e que é real. Em segundo lugar, devo tentar entender os motivos que me levaram a invejar, e eu preciso reconhecer que o sentimento parte de mim, nasce de uma incapacidade minha para alguma coisa. E, por fim, é preciso que eu o aceite e aprenda a conviver com ele, o que não significa que eu tenha que me resignar com a inveja e estimulá-la. Quando digo conviver com o sentimento, quero dizer que devo aceitá-lo como algo que existe em mim e que me incomoda, que faz mal a mim e a meus semelhantes. Se me faz mal, é preciso transformá-lo em algo positivo, e eu posso então aprender a direcionar essa inveja para construir algo que eu julgava impossível, mas que só depende de minha força de vontade e do meu grau de determinação.
— Com a inveja isso até pode ser fácil — ponderou Júlia —, porque podemos lidar com ela sem que tenhamos que envolver mais ninguém. Mas como externar determinados sentimentos, como a raiva, o ódio, sem agredir o ofensor?
— Para que nos expressemos, não é necessário agredir ninguém, bastando que sejamos sinceros com aquele que nos ofendeu.
— Devolvendo a ofensa? — sugeriu Dário.
— Não. Devolvendo o ato em forma de esclarecimento, para que nosso irmão tenha a oportunidade de revê-lo. Se você me ofende e eu sinto raiva, não devo me calar, pois que, calando, transfiro para o meu corpo o que poderia ser devolvido ao universo em forma de expressão. Não devemos guardar a raiva, devemos sempre expressá-la de uma forma saudável, de preferência falando, colocando-nos diante de nosso ofensor e expondo a ele a nossa insatisfação. E isso deve ser feito com qualquer sentimento, e não apenas com a raiva. Resolvem-se as mágoas, as tristezas, os medos; se assumimos o que sentimos, em vez de tentarmos nos enganar, mentindo para nós mesmos que não nos deixamos dominar por nenhum sentimento que costumamos denominar de ruim ou feio; se compreendemos por que sentimos, então estaremos prontos para nos modificar para melhor. Só assim poderemos manter nosso organismo em perfeito equilíbrio.
— Mas que interessante! — impressionou-se Camila.
— Sim, muito interessante — concordou Ezequiel. — Só não sei se acredito nisso. Perdoe-me, frei Ângelo, mas isso são apenas palavras bonitas, que impressionam, não nego, mas cujo sentido prático ainda está bem longe de ser comprovado. As coisas não são assim tão simples quanto quer fazer parecer.
— Meu amigo, a vida, em si, é muito simples. Nós é que temos a mania de complicá-la.
— E qual seria a fórmula milagrosa para tanta simplicidade? — ironizou Ezequiel.
— O amor e a compreensão — disse frei Ângelo com convicção. — Somente aquele que compreende a si e os seus irmãos agem com espontaneidade e simplicidade, porque é capaz de colocar amor em seus gestos e em suas palavras, e nunca age por maldade ou vingança.
— É verdade — disse Marta.
— E os problemas dos pulmões? — quis saber Rebeca, desviando o assunto. — A que se relacionaria?
— Normalmente estão relacionados a pessoas muito solitárias, tristes, carentes, que se sentem abandonadas ou rejeitadas.
— Viu só? — animou-se Camila. — Eu não falei?
— É verdade — concordou Rebeca. — Camila já nos havia dito a mesma coisa.
— Então minhas experiências não estão distantes da realidade! — concluiu frei Ângelo, com entusiasmo. — Se alguém que não conheço, em um lugar distante, tira as mesmas conclusões, é porque estamos no caminho certo!
— Não pode ser coincidência? — arriscou Dário.
— Não, meu filho. Acredito que coincidências não existam. As coisas estão todas nos seus lugares, assim como as pedras de uma pirâmide, que não estão dispostas ao acaso. Cada uma delas é essencial para a sustentação da construção inteira.
— Oh, frei Ângelo, suas palavras me parecem de profunda sabedoria — elogiou Rebeca. — Mal posso esperar para que conheça minha filha Sara.
— Então, o que estamos esperando? Por que não vamos agora mesmo ver a menina?
Frei Ângelo entrou no quarto de Sara acompanhado apenas por Rebeca. Vendo-a deitada sobre o leito, a respiração meio ofegante, condoeu-se. Aproximou-se da cama e, tocando-lhe gentilmente a testa, despertou-a. Sara abriu os olhos e sorriu para ele. Embora nunca o tivesse visto, não estranhou sua presença ali, e era como se já o estivesse esperando. Com um sorriso nos lábios, murmurou:
— Que bom que veio!
Rebeca, pensando que a filha delirava, adiantou-se e disse:
— Minha filha, este é frei Ângelo, de quem já lhe falei. Ele acaba de chegar. Veio aqui para tentar ajudá-la.
— Como vai, Sara?
— Estou bem. Na medida do possível, sinto-me bem.
Frei Ângelo olhou para ela com ternura. Vendo-a assim tão frágil, a impressão que dava era a de que ela não resistiria e perderia a batalha para aquela enfermidade cruel. No entanto, frei Ângelo sabia do potencial interno da menina. Podia sentir isso. Voltou-se para Rebeca e pediu:
— Gostaria de ficar a sós com ela por uns instantes.
Rebeca assentiu e se retirou. Estava esperançosa. Não sabia por que, mas tinha certeza de que aquele frei seria o único capaz de ajudá-los.
Quando frei Ângelo saiu do quarto de Sara, todos o aguardavam ansiosamente, e a primeira pergunta que lhes chegou à mente, e que Rebeca externou, foi:
— Ela vai ficar boa?
Frei Ângelo olhou-a penalizado. Podia sentir toda a sua angústia de mãe e gostaria de poder dar-lhe uma resposta mais conclusiva. Não querendo, porém, dar-lhe esperanças vãs, respondeu com a maior sinceridade possível:
— Isso só vai depender dela.
— Como assim? — indignou-se Ezequiel. — Sara está doente e é apenas uma menina. Como pode pretender que ela cure a si mesma?
— Seu Ezequiel — tornou frei Ângelo, bondoso e paciente. — Sua filha está em desequilíbrio e, por isso, adoeceu. Diante de um sentimento que não pôde compreender, não soube como expressá-lo e acabou por imprimir a enfermidade em seu corpo de carne. É preciso que ela entenda seus próprios sentimentos para, compreendendo-os, transformá-los em fonte de saúde e de vida.
— Lá vem o senhor com as suas teorias...
— Não foi para isso que me chamaram? Para tentar ajudar a menina com as minhas... Teorias?
— Sim, mas pensei que o senhor também conhecesse algum tipo de medicamento novo...
— Sinto decepcioná-lo, seu Ezequiel, mas meus métodos são esses, e o maior remédio que conheço é a fé incondicional em Deus.
— Isso mesmo, Ezequiel — recriminou Rebeca. — Precisamos tentar de tudo e chamamos frei Ângelo aqui porque ouvimos falar de sua bondade e de seus magníficos conhecimentos. Não vá você agora querer atrapalhar.
Ezequiel encarou o frei com certo ar de dúvida. Mas Rebeca estava certa. Era preciso tentar de tudo para salvar sua Sara, e se aquele frade dizia conhecer novos métodos, precisava dar-lhe crédito. Afinal, o homem era simpático e parecia ter bom coração e boa vontade. Dera-se ao trabalho de deixar a corte e viajar até ali, era porque estava, realmente, disposto a ajudar.
— Está bem — suspirou convencido. — O que devemos fazer?
— Em primeiro lugar, abrir as janelas. Deixar que a luz do Sol penetrasse em seu ambiente e renove suas energias.
— Mas, e as correntes de ar? — foi à vez de Rebeca protestar.
— Minha senhora, não precisa se preocupar com isso. Afinal, ela veio aqui para respirar ar puro, e trancando-a no quarto ela estará respirando sempre o mesmo ar contaminado.
— Faz sentido... — disse Camila de si para si.
— Deixe-a sair, sentir o Sol em seu rosto, caminhar ao ar livre.
— Ah, mas ela sai. Todas as manhãs, quando se sente bem, toma Sol no jardim.
— Deve tomar Sol sempre. Os raios solares são extremamente benéficos à saúde humana, desde que não haja uma exposição excessiva nem em horários muito quentes.
— Devo levá-la mesmo quando está de cama?
— Dona Rebeca, é preciso ter bom senso. Se Sara não estiver disposta, não devemos forçá-la. Só ela é capaz de dizer como está se sentindo. Mas se ela quiser sair, devemos fazer sua vontade e levá-la para passear.
— Passear?
— Sim, passear. Ela não caminha, não é mesmo?
— Bem, não. Ela se cansa facilmente, e temos medo de que o cansaço excessivo acabe por enfraquecer-lhe ainda mais os pulmões.
— De certa forma, a senhora tem razão. Mas não devemos exagerar. É claro que Sara não deve fazer caminhadas longas nem exaustivas. Mas andar pela fazenda, ir até o riacho e até cavalgar são exercícios que só lhe farão bem. O Sol e o ar puro devem invadi-la por completo, tocar sua pele, seus pulmões, fazer com que ela perceba a maravilha que é estar viva. Além disso, procurem sempre conversar com ela, dêem-lhe atenção, ajudem-na a sentir-se integrada à família e, principalmente, ao mundo.
— Muito bem — concordou Ezequiel, após alguns minutos de silêncio e expectativa. — E depois?
— Depois? Bem, estarei aqui para ajudá-la a entender seu processo de adoecimento e buscar a cura.
— Mas só? — indignou-se Ezequiel novamente. — Nenhum remédio?
— Por enquanto, não.
— Pretende curá-la só com sua conversa?
— Não, com meu auxílio. Pretendo ajudá-la a abrir seu coração e fortalecê-lo, para que ela acredite que a força da vida é capaz de nela penetrar, levando a seu corpo tudo o que for necessário para seu restabelecimento. Além disso, creio que posso ministrar-lhe doses de energia com minhas mãos.
Ezequiel estava incrédulo. Gostara de frei Ângelo, sentia que ele estava disposto a ajudar, mas ainda não confiava em seus métodos.
— Frei Ângelo — prosseguiu —, sei que suas intenções são boas. Contudo, quer negar o avanço da ciência?
— Em hipótese alguma. A ciência vem prestando valorosos préstimos no auxílio aos enfermos, e não posso negar que está a serviço de Deus. No entanto, a cura para a enfermidade de sua filha não foi ainda descoberta pela ciência. No futuro, quem sabe? Mas agora, precisamos lutar com outras armas.
— Que armas?
— A confiança e a fé em Deus.
— Não sei se acredito nisso. Curar uma doença sem nenhum remédio? Parece-me impossível.
— Sabe seu Ezequiel, quando adoecemos já trazemos em nosso íntimo o germe da cura. Basta que acreditemos nele e o desenvolvamos.
— Hum... Não sei, não.
— Por que não me deixa tentar?
— O senhor não está entendendo. E claro que deixarei que tente. Contudo, creio que seria melhor o acompanhamento de um médico também.
— Faça como quiser. Um médico em nada atrapalhará o desenvolvimento de meu trabalho. Ao contrário, poderá diagnosticar mais prontamente a melhora de sua filha.
— Será mesmo?
— Estou quase certo. Como disse, a cura está nas mãos de Sara. Só o que vou fazer é auxiliá-la a descobrir como utilizá-la. E gostaria também de experimentar algumas ervas medicinais.
— Ervas medicinais? Acredita nessas crendices?
— Não são crendices. Sabemos que os índios sempre se curaram com o auxílio das ervas. Por que não podemos fazer o mesmo?
— Porque somos homens civilizados.
— A civilização não está distante da natureza. Ao contrário, a química também se utiliza de diversas plantas medicinais, e são bastante conhecidas suas propriedades terapêuticas.
— Frei Ângelo — interrompeu Dário, emocionado. — Se me permite, gostaria de fazer-lhe um pedido especial.
— Diga meu filho.
— Gostaria que me permitisse acompanhar o tratamento de Sara. Nós estamos apaixonados e em breve pretendemos nos casar.
— Isso será maravilhoso. Tudo de que ela precisa é sentir-se amada e querida. Tenho certeza de que sua presença em muito a auxiliará, sobretudo a ter confiança em si mesma. E Marta também poderá ajudar-me bastante.
— Como? — quis protestar Rebeca. — Ela não entende nada de medicina e cura.
— Engana-se, dona Rebeca. Marta possui o extraordinário dom de se ligar ao mundo espiritual, e os espíritos amigos nos poderão ser de grande valia.
Rebeca abaixou os olhos, confusa. Continuava não simpatizando muito com Marta, mas não podia negar que fora ela quem iniciara tudo aquilo. Sem ter o que dizer, ela apenas balbuciou:
— Sinto muito, frei Ângelo. Isso tudo é novo para mim.
— Não se preocupe. Peço a vocês que confiem em Deus e que orem. Orem todos os dias, com fé, com sinceridade. Não profiram preces mecânicas e decoradas. Orem com fervor, que Deus jamais deixa de atender seus filhos.
— Frei Ângelo, esquece-se de que não partilhamos de sua religião?
— Deus não possui religião, minha filha. A religião universal, aquela que liga os homens a Deus, é a que vem do coração. O amor, o respeito e a compreensão são as verdadeiras religiões que nos aproximam do Criador.
— Sábias palavras, frei Ângelo — concordou Ezequiel. — Também penso assim. Tanto que somos amigos há muitos anos.
— É uma bonita amizade a de vocês. É muito bonito ver pessoas que se amam sem se importar com fronteiras ou diferenças.
— Creio que são as diferenças que nos fazem crescer — disse Júlia.
— Sem dúvida, minha filha. Porque somos diferentes é que podemos trocar experiências e aprender uns com os outros.
— Bem, creio que frei Ângelo gostaria de descansar um pouco agora — disse Rebeca. — Afinal, desde que chegou, nem foi conhecer seus aposentos.
— Tem razão — concordou Júlia. — Nós, em nossa ansiedade, acabamos por prendê-lo e nem nos demos conta de que deve estar exausto da viagem.
— Confesso que estou um pouco cansado, sim. Mas não foi nenhum sacrifício ficar aqui com vocês. São pessoas muito agradáveis.
— Obrigado, frei Ângelo. O senhor é que é muito gentil.
Rebeca tocou a sineta e Laurinda apareceu. Deu-lhe ordens para que levasse frei Ângelo ao quarto que lhe fora reservado. Ele estava tão cansado que logo adormeceu. Adormeceu e sonhou. Em seu sonho, via Sara, ainda criança, correndo por um campo muito verde, e Marta a seu lado, cuidando para que ela não se machucasse. Mais atrás, Rebeca surgiu e, a todo instante, chamava a atenção da menina. A menina, em dado momento, parou e sorriu para ela, estendendo as mãozinhas para que ela a erguesse no colo. Rebeca, porém, não lhe deu atenção. Seus olhos estavam presos na figura de um homem, que ia se aproximando pelo outro lado. Ela empurrou a menina para o lado e correu para ele, atirando-se em seus braços. No mesmo instante, Sara começou a chorar e logo foi atendida por Marta, que a colocou no colo e a embalou.
Frei Ângelo acordou assustado. O que significava aquilo? Com certeza, revira fragmentos de uma outra vida de Sara. Sim, ele acreditava em vidas passadas, e naquela, com certeza, acabaria por descobrir as origens da enfermidade da moça. Pensando nisso, tornou a fechar os olhos e agradeceu a Deus por lhe permitir desvendar os mistérios que acabariam por indicar a Sara o caminho da cura.




CAPÍTULO 16



Na fazenda São Jerônimo, Rodolfo se roia por dentro. Vira quando Júlia e Marta se afastaram, em companhia de Camila e Dário, e ficara curioso. Aonde teriam ido? Intuitivamente percebeu que se dirigiam à fazenda Ouro Velho. Lembrava-se de algo que Marta lhe dissera. Algo sobre a doença da filha de seus vizinhos, e que um frei estaria indo para ajudá-la. Será que teriam ido recepcionar o tal frade?
Subitamente, Rodolfo começou a desconfiar que houvesse algo de errado com aquela família. Se eram amigos de Camila, por que ela nunca os apresentara? Por que nunca os chamara ali para conhecerem o resto da família, preferindo sair sorrateiramente, sempre sem dizer nada a ninguém? Havia algo de estranho com aquela gente, algo que a irmã não queria que eles descobrissem. Mas ele descobriria. Decidido, foi em busca de Túlio. Soube, pelos escravos, que o rapaz havia saído pelo meio do mato, sem dizer aonde fora. Rodolfo ficou intrigado. Aonde teria ido? Estava disposto a montar no cavalo e partir em seu encalço quando Terêncio apareceu.
— Seu Rodolfo...? — indagou, querendo certificar-se.
— Sim.
— Procura seu Túlio?
— Por quê? Sabe onde ele está?
— Não sei, mas posso imaginar.
— E onde seria?
— Quer que o leve até lá?
— Quero. Se souber onde ele está, leve-me até ele.
Os dois montaram nos cavalos e partiram. À medida que ia avançando, Rodolfo ia reconhecendo o caminho e teve um estremecimento. Aquela era a direção do túmulo que improvisaram para Etelvina. Será que Terêncio descobrira tudo? Em breve chegaram ao local, e Rodolfo pôde constatar que era para lá mesmo que Túlio havia ido. Apearam e caminharam em silêncio, até se aproximarem bem do lugar onde Etelvina estava enterrada. A seu lado, ajoelhado, Túlio segurava um punhado de terra e chorava. Rodolfo, impressionado com aquilo, tomou a dianteira e bramiu:
— Mas o que significa isso?
Túlio pulou assustado. Não esperava que tivesse sido seguido e quase desmaiou de susto.
— Titio... O que faz aqui?
— Eu é que lhe pergunto. O que faz aí ajoelhado sobre esse monte de terra, chorando feito um bebê?
— Eu... Eu...
— Talvez o senhor Túlio esteja pranteando a morte de sua amada... — disse Terêncio ironicamente.
Rodolfo alarmou-se. Estava claro que Terêncio descobrira a verdade. Ele sabia que Etelvina jazia ali. Será que imaginara que ele, Rodolfo, fora quem a matara?
— O que quer dizer com isso? — retrucou, tentando aparentar inocência.
— Quero dizer seu Rodolfo, que a negra Etelvina está enterrada ali, bem debaixo dos pés de seu sobrinho.
Ele levantou a sobrancelha e encarou Túlio com fingida surpresa, perguntando logo em seguida:
— Isso é verdade?
— Como assim?
— Perguntei se Etelvina está enterrada aí.
Foi à vez de Túlio encarar o tio, surpreso. Rodolfo tentaria jogar nele a culpa pela morte da escrava. Mas ele não permitiria. Estava certo de que era apenas uma escrava, e que seu crime passaria impune. No entanto, recebera criação diversa da do tio. Por mais que soubesse de sua condição de superioridade, não podia deixar de pensar que havia um ser humano enterrado ali, um ser humano de cujo assassínio participara.
— Mas... Mas... — gaguejou — por que a pergunta?
— Quero saber se a negra Etelvina está enterrada aí.
Túlio, embora com medo, sustentou o olhar duro de Rodolfo e retrucou com raiva:
— Por que me faz perguntas cuja resposta já conhece?
— Como assim? Não sei nada sobre isso.
— Olhe tio Rodolfo, não adianta que não vou levar a culpa por algo que não fiz.
— O que quer dizer, rapaz?
— Quero dizer que você sabe que não fui eu quem a matou.
— Então ela está mesmo morta?
— Está sim, seu Rodolfo — concordou Terêncio. — Eu mesmo, no outro dia, a desenterrei.
— Você fez o quê?
— Descobri o corpo enterrado aí. Segui seu Túlio e o surpreendi na mesma atitude em que hoje o vimos. Depois que ele saiu, fui buscar uma pá e cavei. É a negra Etelvina quem está enterrada aí, pode ter certeza.
Túlio continuava a olhar para ele com ar desafiador. Estava morrendo de medo, mas não queria ser incriminado por aquilo. Já se envolvera demais com aquela história. Violentara a pobre da negra, humilhara seu amigo Trajano. Não queria ser acusado de assassinato. Rodolfo, vendo que Túlio não assumiria a culpa pela morte da escrava, voltou-se para Terêncio e ordenou:
— Terêncio, quero que volte agora mesmo para a fazenda. E bico calado. Ninguém deve saber o que houve aqui.
— Pois não, patrão. O senhor é quem manda.
Terêncio voltou para o lugar onde deixara seu cavalo e montou, sem maiores perguntas. Estava claro que fora Túlio quem matara a escrava. Quando ele se afastou, Rodolfo aproximou-se de Túlio e desfechou-lhe violento soco no queixo, fazendo com que o outro cambaleasse e caísse deitado sobre a cova rasa de Etelvina.
— Idiota! — vociferou. — O que pensa que está fazendo?
O outro se levantou hesitante, as mãos pousadas sobre o queixo, tentando conter o sangue que lhe escorria da boca. Lutando para conter o pânico que naquele momento o dominava, respondeu súplice:
Tio Rodolfo, por favor...
— Cale-se, imbecil! Quer nos destruir?
— Não... Não...
— Então por que fez isso?
— Mas eu não fiz nada! Foi você quem quis me acusar da morte de Etelvina.
— E daí? Era só uma escrava.
— Se pensa assim, por que não assume logo que a matou?
— Não posso, já disse. E você não deve falar nada.
— O que quer que eu faça? Que assuma a culpa sozinho? Sinto, mas eu é que não posso fazer isso. Não fui eu que a matei.
— Isso não faz a menor diferença.
— Pode não fazer para você, mas faz para mim.
— Posso saber o que houve para que você, de repente, sentisse arroubos de arrependimento?
— Se quer mesmo saber, estou realmente arrependido.
— Oh! Muito nobre de sua parte. E por isso pretende acusar-me?
— Eu não o acusei. Mas também não quero levar a culpa de algo que não fiz.
— Não entendo por que a preocupação. Já disse que Etelvina era só uma escrava. Quem se importa com os negros?
— Ótimo. Já que pensa mesmo assim, insisto para que diga logo que você a matou. Com certeza, vovó não fará nada contra você.
— Já disse, não quero um levante entre os negros.
— Não acredito em você. Você tem é medo de que certa pessoa descubra, não é mesmo?
— A quem se refere?
— A minha tia Júlia.
— Como se atreve? Júlia ficou noiva de meu irmão.
— Contudo, você a ama e pretende roubá-la dele, não é verdade? E se ela descobrir o monstro que você é não terá a mínima chance.
Rodolfo encarou-o, perplexo. O idiota até que chegara bem próximo da verdade.
— Cale essa boca! — gritou. — Você não sabe de nada!
— Sei muito mais do que imagina. Mas não se preocupe. Seu segredo ficará bem guardado comigo, desde que não queira transferir essa culpa para mim. Minha mãe jamais me perdoaria.
Rodolfo soltou um riso sarcástico e considerou:
— Como vê meu caro, estamos ambos preocupados em não desgostar alguém que nos é importante.
— Com uma diferença. Eu sou inocente.
— Será mesmo? Esquece-se de sua participação?
— Não, não me esqueço. Mas não fui eu quem a estrangulou.
— Está bem, isso não vem ao caso. O que importa agora é que nos protejamos mutuamente. Terêncio sabe de tudo e poderá nos delatar.
— Protegermo-nos como?
— Tenho medo de que Terêncio não guarde esse segredo por muito tempo. Por isso precisamos agir. Procurar um culpado.
— Um culpado? Mas quem, meu Deus?
— Aquele negro Trajano.
— Trajano? Mas ele não fez nada. Foi uma vítima.
— Ouça Túlio, o que quer? Que sua mãe descubra o que fez, é?
— Não... Claro que não...
— Então cale essa boca e faça o que eu mandar. Daremos um jeito de incriminar Trajano, e tudo ficará por isso mesmo.
— Esquece-se de que Trajano é protegido de minha mãe?
— E daí? O que ela fará para defender um assassino? Todos viram seus interesses por Etelvina. Viram que bateu em você por causa dela. Não será difícil fazer com que acreditem que ele, num acesso de ciúmes, a matou.
— Minha mãe jamais acreditará nessa história.
— Pouco me importa. Ela nada poderá provar contra nós. E depois, tudo isso poderia ter sido evitado se você não caísse na besteira de voltar aqui. O que deu em você, afinal? Isso lá é hora de sentir remorsos?
— Sinto muito, mas tenho consciência.
— Pois agora não é mais hora para isso. Se quiser salvar a pele, não diga nada a ninguém. Deixe tudo por minha conta. Quando estiver pronto, direi o que deve fazer.
Em seguida, voltaram para a fazenda. Túlio estava desgostoso consigo mesmo. Não queria mais participar daquilo. Já não prejudicara muita gente? Primeira fora Raimunda. Depois Etelvina, e agora Trajano? Não queria, não podia aumentar ainda mais sua culpa. Olhou para Rodolfo e sentiu uma imensa raiva crescer-lhe dentro do peito. Apesar disso, estava atado ao poder do tio, sobrepujado por sua maldade. Mas precisava fazer alguma coisa. Não permitiria mais injustiças. Precisava pensar numa maneira de se livrar daquilo. Precisava confiar em alguém.
Foi só quando voltaram que Rodolfo se lembrou do motivo que o levara a procurar Túlio. Queria saber mais a respeito da família que arrendara a fazenda Ouro Velho, e ele poderia ajudá-lo. Quando chegaram, Túlio foi direto para o quarto, e Rodolfo foi atrás dele. Fechou a porta e sentou-se na beira da cama, encarando-o com olhar perscrutador.
— O que mais quer de mim? — indagou Túlio de má vontade.
— Mais um favorzinho.
— Que tipo de favor?
— Gostaria que me esclarecesse uma dúvida. Quero saber tudo sobre a família que arrendou a fazenda Ouro Velho.
Túlio olhou-o desconfiado. Embora não fosse muito ligado aos Zylberberg, ele os estimava e sabia o quanto poderia ser perigoso falar sobre eles. Túlio sabia que seu irmão estava noivo de Sara, e que a família para ali fora a conselho do médico, em busca de melhores ares para a doença da moça.
— Por que o interesse repentino?
— Não sei. Mas alguma coisa me diz que me escondem algo.
— Ora, tio Rodolfo, o que poderia ser?
— Não sei. E o que pretendo descobrir.
— De minha parte, sinto muito. Não posso ajudá-lo.
— Não pode ou não quer?
— Ouça titio, essas pessoas são amigas de minha mãe, não minhas.
— Vai querer me convencer de que não as conhece?
— Vagamente.
— Ora, Túlio, mas o que é isso? Por acaso pensa que sou algum tonto? Então não vejo que todos os dias, à exceção de você, vão alguém para aqueles lados?
— E daí?
— E daí que é muito estranho.
— Não vejo nada de estranho nisso. São amigos de minha mãe e de Júlia. É natural que vai visitá-los.
— E seu irmão?
— O que tem Dário?
— Por que vai também?
— Não sei. Por que não pergunta a ele?
— Porque quero saber de você.
— Pois já disse que não sei de nada. São apenas pessoas, e eu não tenho a menor intimidade com elas.
— Como se chamam?
— Não me recordo.
Rodolfo coçou o queixo em sinal de dúvida. Estava claro que o sobrinho mentia. Por alguma razão, ele tentava proteger aquela família.
— Escute Túlio, quer me fazer crer que sua mãe é amiga de uma família há anos e que você sequer sabe seus nomes?
— Já disse que não me lembro. Minha mãe tem muitos conhecidos. Pode ser qualquer um deles.
— Por exemplo?
— Por exemplo... Os Silva e Souza, os Carvalho, os Arcoverde, os Soares Ferreira e tantos outros. Como vê, a lista é interminável.
Rodolfo encarou-o com ar cético. Não acreditara em uma palavra do que lhe dissera o sobrinho, mas achou melhor não insistir. Balançou a cabeça em sinal de assentimento, levantou-se e saiu, acenando para Túlio da porta. Sem dizer uma palavra, dirigiu-se para o gabinete que fora de seu pai. Era ali que ele e o irmão tratavam de negócios e onde guardavam todos os documentos importantes. Rodolfo entrou sorrateiramente, fechando a porta atrás de si, e começou a vasculhar as gavetas, somente encontrando papéis relacionados à venda de sacas de café, de gado, alguns títulos, certidões, contratos bancários. Nada. Não havia nada que pudesse esclarecê-lo sobre os arrendatários da Ouro Velho. Até que, de repente, seus olhos se prenderam numa pasta de couro cru, cuidadosamente escondida sob um monte de papéis velhos e amarelecida. Rodolfo retirou-os, afobado, e puxou a pasta, abrindo-a com ansiedade. Dentro, o contrato de arrendamento da fazenda, contendo os nomes do arrendador e do arrendatário. Como arrendador, constava o nome de sua mãe, Palmira Sales de Albuquerque, representado por seu filho, Fausto Sales de Albuquerque. Como arrendatário, imagine um tal de Ezequiel Zylberberg. Não era preciso dizer mais nada. Tudo estava esclarecido. Aquela família, que ninguém nunca vira, pertencia à desprezível classe dos judeus. Era lógico. Bastava ler aquele nome. Fora por isso que Fausto se encarregara de tratar pessoalmente das negociações. Ele sabia que a mãe jamais permitiria uma heresia daquelas, mas por estar apaixonado por Júlia, faria tudo o que ela desejasse. Não bastava que fosse amiga dos negros. Era também dos judeus.
De posse de tão preciosa prova, Rodolfo sentiu-se satisfeito. Colocou de volta no lugar a pasta incriminadora, cobriu-a com os mesmos papéis velhos, fechou as gavetas e saiu. Aquilo era uma preciosidade. Era com aquela descoberta que ele pretendia, cedo ou tarde, ter Júlia em suas mãos. Utilizar-se-ia de todos os recursos disponíveis para tê-la e, assim, atingir o irmão. Primeiro, tentaria conquistá-la, oferecendo-lhe sua amizade e provocando a desconfiança de Fausto. Faria com que ela percebesse que ele era gentil, educado e galante, muito mais do que Fausto sempre ocupado com os negócios. Mas, se isso não desse certo, saberia valer-se das provas que tinha em mãos. Mostrá-las-ia a Júlia e a faria ver que só dependia dele a permanência ou não de seus amiguinhos judeus em suas terras. Bastava mostrar aquilo à mãe para que ela mandasse expulsá-los dali, com ou sem contrato.
Dali foi sentar-se na varanda. Já entardecia, e logo Júlia despontaria com Camila e o sobrinho pela estradinha. Fausto, como sempre, iria ao seu encontro. Tudo parecia bem, e era assim que ele queria que continuasse.
Em pouco tempo a carruagem atravessou a cancela, e Fausto, montado em seu alazão, correu ao encontro da amada. Aquilo lhe dava náuseas. Ver como o irmão a beijava e a enlaçava dava-lhe vontade de matá-los. Mas seria por pouco tempo. Logo que a carruagem se aproximou mais da casa grande, com Fausto cavalgando a seu lado, Rodolfo se levantou e foi ao encontro de Marta, que também vinha com eles. Ajudou-a a descer, beijou-a de leve na face e olhou discretamente para Júlia. Sentiu a raiva crescer dentro dele, mas não disse nada. Em vez disso, estendeu a mão para auxiliá-la também, e quando ela segurou a mão que ele lhe oferecia, Rodolfo propositalmente puxou-a para baixo, fazendo com que Júlia se desequilibrasse e quase fosse ao chão. Imediatamente, ele a amparou, sustendo-a por sob os braços. Júlia corou e agradeceu logo se endireitando, e Fausto fingiu não perceber que ela enrubescia, talvez seduzida pelo contato de Rodolfo.
Enquanto Fausto chamava um escravo e entregava-lhe o cavalo, Rodolfo tratou logo de despachar Marta, sob o pretexto de que o pai a procurava, e ofereceu o braço a Júlia, seguindo com ela para dentro de casa. Ele a cobria de atenções, mas sempre fazendo aparentar certa displicência, certo desinteresse, no qual Fausto tentava acreditar. Já na sala de estar, Rodolfo indagou:
— E então, cara Júlia, divertiu-se hoje? Júlia fitou-o sem entender e retrucou:
— Por que a pergunta?
— Por nada. É que se ausentou tão cedo...
— Saí em companhia de minha cunhada. Por quê?
— Por nada. Só curiosidade — e após alguns segundos, acrescentou: — Foi visitar seus amigos?
— Amigos?
— Sim. Aqueles que arrendaram a Ouro Velho, como são mesmo o nome? — Júlia gelou, mas ele prosseguiu displicente: — Não importa. E o tal frei? Já chegou?
— Sim... Já sim...
— Que bom. Imagine um frei vir de tão longe só para rezar por uma doentinha. Deve ser muito bondoso, esse frei.
— É... É sim.
— E de que mal sofre mesmo a menina?
Júlia começava a se sentir acuada. Por que Rodolfo, de repente, crivava-a de tantas perguntas?
— Ainda não sabemos ao certo.
— Nada grave, espero.
— Não. Com certeza não.
— Fico muito feliz em ouvir isso.
Fausto chegou e pediu licença, segurando Júlia vigorosamente pelo braço e levando-a para varanda. Ela fez um ar de reprovação e disse, contrariada:
— O que há com você, Fausto? Por que me trata desse jeito?
O moço, percebendo que apertava em demasia o braço de Júlia, soltou-o de repente, acrescentando envergonhado.
— Perdoe-me, querida. É que não gosto de vê-la junto de Rodolfo.
— Por quê? Pois não foi você mesmo quem disse que sentia ciúmes à toa? Que ele havia se arrependido e que estava apaixonado por Marta?
— E está. Mas não consigo evitar o ciúme e quase enlouqueço só de vê-la perto dele.
Júlia riu gostosamente e estalou-lhe um beijo na testa, acrescentando bem-humorada:
— Mas que tolinho! Então não sabe que o amo, e só a você?
— Eu sei minha querida. Perdoe-me a insegurança. Eu também a amo e confio em você. Mas é que Rodolfo e eu somos tão iguais...
— Engana-se, meu amor. Hoje já posso distingui-los.
— Verdade? Como?
— Só você possui nos olhos o brilho do meu amor.
Fausto tomou-a nos braços e beijou-a com paixão, esquecendo-se da dúvida que o atormentava dia após dia.
Vendo o contato entre Fausto e Júlia, Rodolfo saiu desabalado. Sentia náuseas e precisava de ar puro. Correu para o jardim e inspirou. Era preciso acabar logo com aquilo. Enjoado, sentou-se num banco e ocultou o rosto entre as mãos, até que escutou um estalido próximo, como de passos quebrando um galho seco. Ergueu os olhos, assustado, e encontrou a prima parada diante dele, sempre com aquele sorriso diabólico, que lhe repuxava a cicatriz.
— Você já não pode mais suportar, não é mesmo? — disse ela.
— Prima Constância! Que susto me deu.
Ela continuava com aquele sorriso diabólico e acrescentou:
— Estou certa ou errada?
— Certa ou errada de quê?
— Do fato de que você já não pode mais suportar a felicidade de seu irmão.
— Não entendo o que quer dizer.
— Não mesmo? Não precisa fingir para mim. Estou do seu lado e posso ajudá-lo.
— Não sei do que está falando e não preciso de sua ajuda para nada.
— Será que não? Nem para conquistar Júlia?
— Está louca.
— Não estou não. Pensa que não percebi o modo como olha para ela?
— Não a olho de modo algum.
— Está bem. Se quiser acreditar nisso...
— Por que está me dizendo essas coisas?
— Porque quero ajudá-lo.
— A troco de quê? Nós mal nos conhecemos e não temos nada em comum.
— Nada, a não ser um objetivo.
— Como assim?
— Digamos que ambos queiramos destruir alguém.
Rodolfo calou-se e ficou olhando para ela. O que estaria pretendendo? Constância era praticamente uma estranha, e ele pouco sabia a seu respeito. Só o que sabia era que ela era filha da irmã de sua mãe e que fugira de casa, rejeitada por seu primo Inácio. Durante todos aqueles anos, quase não se tocara em seu nome. Ela havia sumido desaparecido na poeira dos anos, e acabara por cair no esquecimento. O que estaria pretendendo, então? Ele a encarou com ar perscrutador e indagou:
— O que quer? Vingar-se de alguém?
Ela escancarou a boca num riso diabólico e respondeu:
— Vejo que é um rapaz esperto.
— Não respondeu minha pergunta.
— Está bem. Sim. Quero vingar-me de alguém. Quero vingar-me de Tonha.
— E por que acha que eu a ajudaria? Afinal, Tonha foi minha ama-de-leite, e até que gosto dela...
— Não seja fingido. Sei que você não gosta de negros.
— Mas Tonha é diferente. Foi quem nos criou.
— Você é quem sabe. Mas pense bem. Pense no que é mais importante para você: defender Tonha ou conquistar Júlia?
Intimamente, Rodolfo sabia que o mais importante para ele era destruir a felicidade do irmão e respondeu sem hesitar:
— Júlia.
— Pois muito bem. Deixe-me ajudá-lo. Em troca, só lhe peço que me entregue à negra.
— O que fará com ela?
Sem nem pestanejar, Constância retrucou, a voz vibrando de ódio:
— Vou matá-la. Vou fazer o que deveria ter feito há muito tempo.
Rodolfo empalideceu. Tonha sempre fora uma boa ama-seca, e ele bem que se afeiçoara a ela, apesar de seu desprezo pelos negros. Ele não desejava vê-la morta, mas se a proposta da prima valesse à pena, ela que o perdoasse, mas consideraria justa a troca. Suspirou fundo e indagou:
— E qual seria sua oferta?
— Muito simples. Em dia e hora combinados, quando todos estiverem dormindo, você entra sorrateiramente no quarto de Júlia, vestido com as roupas de seu irmão. Procure agir feito ele, com seus gestos, sua voz.
— E daí?
— Aproxime-se de seu leito. Deite-se ao lado dela, seja gentil.
— Está louca? Júlia saberá que não é Fausto e, ou me repelirá, ou fará um escândalo.
— Não, se você agir direito. Não a force a nada. Limite-se a fazer o que ela permitir. Você e Fausto são gêmeos. No escuro, será difícil distingui-los. Beije-a, acaricie-a, sopre-lhe palavras de amor. Diga-lhe que a ama e que está louco para tê-la. Mas não a force. Ao contrário, diga que, apesar de seu amor, não se importa de esperar. Mas diga isso ao mesmo tempo em que a beija. Se ela ceder, ótimo. Consume o ato. Se não, não insista. Diga que compreende, beije-a profundamente e saia.
— E depois?
— Deixe o resto por minha conta. Na manhã seguinte, saberei agir, e bem rápido, antes que Júlia e Fausto tenham tempo de se falar.
Rodolfo ergueu as sobrancelhas e replicou:
— Será que dará certo? Ela vai desmentir. E se Fausto acreditar nela?
— Duvido. Pelo que pude observar, seu irmão é muito ciumento e já está meio desconfiado. E depois, não se engane meu bem. Conheço os homens e sei muito bem do que são capazes em nome do ciúme e da traição.
Constância alisou a cicatriz, lembrando-se do marinheiro que, num acesso de ciúme, quase a matara. Rodolfo, por sua vez, pôs-se a pensar. Talvez ela tivesse razão, e aquela fosse à oportunidade que vinha esperando havia tanto tempo. Havia muito vinha instigando o ciúme e a desconfiança do irmão, e não seria difícil incutir-lhe na mente a idéia de que Júlia o estava traindo. Ainda mais se pudesse contar com as oportunas e desinteressadas observações de Constância que, aparentemente, não teria motivo algum para fazer intrigas. E depois, ele e Fausto não eram iguais? Júlia não poderia mesmo diferenciá-los. Pensando em tudo isso, Rodolfo prosseguiu:
— O que acontecerá então?
— O resto é com você. Talvez Júlia fique com raiva e nunca mais queira vê-lo. Talvez se sinta envergonhada e o aceite, para encobrir sua vergonha. Não sei. E você, faça como quiser. Poderá escolher.
Rodolfo silenciou. Depois que conseguisse o que queria não se interessaria mais por Júlia e abandoná-la-ia também. Ela só serviria a seus propósitos de destruir o irmão. O que lhe aconteceria depois era problema dela. Que voltasse para São Paulo. Isso pouco lhe importava.
— E quanto a você? — tornou. — O que devo, exatamente, fazer para pagar esse favor?
— Só o que quero é a oportunidade de cravar um punhal no coração de Tonha. Arranje-me uma emboscada, um momento a sós com ela, e eu a matarei em silêncio. Ninguém saberá que fui eu.
Rodolfo assentiu. Apesar de sentir pena de Tonha, aquilo ainda serviria para desgostar o irmão ainda mais. Sabia o quanto ele gostava da escrava, e sua morte seria para ele motivo de grande pesar. Olhando para a prima, Rodolfo sentiu uma grande admiração por ela. Era uma mulher extraordinária e, não fosse à diferença de idade, muito gostaria de tê-la por amante. Fariam grandes coisas juntos!
— Agora vá — ordenou Constância. — Volte para casa e aguarde. Quando a hora chegar, eu o avisarei.
Rodolfo levantou-se, tomou a mão da prima e beijou-a suavemente. Em seguida, voltou para casa sorrindo. Estava certo de que a felicidade do irmão tinha os dias contados. E a sua... Bem, estava por começar.




CAPÍTULO 17




Frei Ângelo, sentado no jardim em companhia de Sara, observava-a com estudada atenção. Apesar de tudo, ela era uma menina muito estranha, muito triste e fechada, e somente depois de muitas tentativas foi que ele conseguiu que ela se abrisse com ele. Após alguns instantes, Laurinda apareceu, trazendo na mão o chá que frei Ângelo lhe preparara com algumas ervas medicinais. Ela sorveu o líquido calmamente e sentiu-se melhor. Encarou o frei e perguntou:
— Por que é tão bom comigo?
— Porque quero que fique boa.
— Não sei mais se acredito nisso.
— Sara, é muito importante não desistir. Se você desistir da vida, a morte tomará conta de você. Não troque pela morte uma vida que mal começou.
Sara desatou a chorar e frei Ângelo, gentilmente segurando-lhe as mãos, retrucou com voz doce:
— Chore criança. Chorar nos ajuda a ser mais humanos.
— Não entendo o que diz.
Frei Ângelo tomou-lhe novamente as mãozinhas finas e disse:
— Gostaria de lhe fazer uma pergunta.
— Que pergunta?
— Você é feliz?
Ela o encarou com ar de dúvida e respondeu indecisa:
— Não sei.
— Por que não sabe? Por acaso não gosta de sua mãe, de seu pai? Não tem um noivo que a ama?
— Sim...
— E, mesmo assim, sente-se infeliz?
— Sabe frei Ângelo, eu nunca fui uma menina alegre. Lembro-me de quando era criança... Sempre me sentia um estorvo na vida de minha... De meus pais.
— Como assim? Seja sincera, conte-me tudo.
— Bem, é que eu sentia como se os estivesse atrapalhando.
— A ambos? Ou somente a um deles?
Ela levantou para ele os grandes olhos azuis e implorou:
— Promete que não conta nada?
— Pode confiar em minha discrição. Entenda isso como um segredo de confessionário.
— A minha mãe.
— Interessante. Por quê?
— Não sei definir. Mas desde cedo sentia como se ela não me quisesse. Como se eu a estivesse atrapalhando de algum jeito. E acabava me sentindo culpada, porque minha mãe, ao contrário dos meus sentimentos, sempre se desvelou para me agradar. Tenho certeza de seu amor por mim.
— E ainda assim sente-se um estorvo em sua vida?
— Sim. E sinto-me culpada por isso. Ela não merece. Por causa disso, fui me tornando cada vez mais arredia. Sempre tive poucos amigos, porque sempre achei que não gostavam de mim. Com o tempo, comecei a me isolar de todos, e não fosse pela companhia de Júlia e Dário, de quem sempre fui amiga, creio que não teria mesmo mais ninguém.
— Mas por que isso Sara? Sua mãe parece muito preocupada com você. Não acha estranho que tenha essa sensação?
— Sim, acho muito estranho e até quero lutar contra isso. Mas não consigo. Embora ela tudo faça por mim, deixa sempre a impressão de que só faz por obrigação, de que não gosta de mim. Mas eu sei que gosta. Pensando nisso, a consciência me dói e fico confusa.
— E seu pai?
— Meu pai é diferente. Sinto nele um estranho. Também não sei definir.
— Mas não é o mesmo que sente com relação à sua mãe?
— Não. Como disse, sinto que minha mãe me rejeita. É um sentimento, de alguma forma. Com relação a meu pai, não. É como se ele fosse um estranho em minha vida. Gosto dele, mas é como se entre nós só existisse um vazio. Como se ele não fosse meu pai. Cheguei mesmo a pensar se não seria.
— No entanto, a semelhança entre vocês é muito grande.
— Eu sei. E é só por isso que hoje não desconfio mais de que não seja sua filha.
— E quanto a Júlia e Dário?
— Gosto muito deles. Sinto que são pessoas amigas. E Marta também. E sabe o que é mais estranho? Quando conheci Marta, logo gostei dela, e era como se já a conhecesse também.
— O que a leva a pensar assim?
Ela abaixou a voz e disse em tom de confidencia:
— Já sonhei com ela. Diversas vezes.
— Verdade?
Frei Ângelo estava profundamente impressionado. Também sonhara com Sara no dia em que chegara à fazenda, mas fora apenas um sonho isolado, sem continuação. Contudo, algo lhe dizia que Sara guardava dentro de si muitos segredos, segredos que tinha medo de partilhar com alguém. Cada vez mais interessado, continuou:
— Que tipo de sonhos você tem?
— São estranhos. Sonho com as pessoas, mas com outros rostos, com outras roupas, em outros lugares. São diferentes, mas posso reconhecer cada um naqueles rostos estranhos.
Aquilo estava ficando cada vez mais interessante. Aquela menina, além de comprovar sua teoria a respeito da causa das enfermidades, também o auxiliaria a provar que havia outras vidas, e que essa não seria a primeira vez que estariam no mundo. Frei Ângelo estava certo de que ela se lembrava de uma outra vida, uma vida na quais todos os personagens daquela vida atual estavam interligados. Mal contendo a ansiedade e a euforia, continuou investigando:
— Vamos, Sara, conte-me esses sonhos.
— Não vai me achar louca?
— Sara você não é louca. Quero que entenda que esses sonhos, ao que parece, são memórias de outras vidas, que muito nos podem ajudar a solucionar seus problemas de hoje.
— Não sei se acredito nisso.
— Então, como explica o fato de que já sonhou com Marta, antes mesmo de conhecê-la?
— Não sei.
— Pois eu sei. Você, de alguma forma, consegue estabelecer um contato com o mundo invisível e tem visões de fatos que se passou com você há muitos anos.
— Mundo invisível?
— Sim, o mundo dos espíritos. É como se eles nos auxiliassem a ver e compreender certas coisas que aconteceram muito antes dessa vida atual.
— Não sei frei Ângelo. Isso tudo é muito novo para mim.
— Por favor, acredite em mim. Você verá que tenho razão. E agora vamos, conte-me seus sonhos.
— São muitos...
— Conte-me um.
— Está bem. Da primeira vez que sonhei, vi-me como uma menina, correndo por um campo verdejante, e uma moça seguia ao meu lado. Mais tarde, vi que era Marta, e isso me assustou.
Nesse sonho, minha mãe me deixava para estar com um homem, não sei quem é não consegui vê-lo, mas parecia meu pai.
À medida que Sara falava, frei Ângelo estremecia. Tivera o mesmo sonho e sabia que aquilo não podia ser coincidência.
— Prossiga.
— Bem, quando minha mãe chegou perto desse homem, eu corri para ela, pedindo-lhe colo, mas ela me ignorou, empurrando-me para o lado. Depois, Marta chegou e me segurou.
— E o que mais?
— Mais nada. O sonho se misturou e tornou-se confuso.
— Pode-me dizer quando foi que esses sonhos começaram?
— Sim. Logo que chegamos aqui.
Frei Ângelo estava satisfeito. Sabia que estava no caminho certo e tinha certeza de que, se o tempo não estivesse contra ele, ajudaria Sara a encontrar a cura para sua doença, desvendando, ainda, alguns dos mistérios que velavam a natureza da morte. No entanto, sabia que só aquilo não bastava. Aliado ao conhecimento das vidas passadas, era necessário uma mudança de postura.
Sara tinha que se reaproximar das pessoas, não física, mas espiritualmente. Frei Ângelo sabia que a solidão era um estado de espírito e que, muitas vezes, embora rodeada de várias pessoas, podia-se ter a sensação do isolamento. Por isso era importante que Sara começasse a ver nos pais e nos amigos pessoas capazes de completá-la intimamente, com ela trocando experiências, sensações e sentimentos. Sara precisava ligar-se às pessoas, envolver-se com elas, buscar sua companhia só pelo fato de poder partilhar o mesmo espaço emocional.
Deu-lhe uma tapinha no joelho e continuou:
— Convidei Marta para vir aqui. Ela me ajudará.
— Como?
— Marta possui o estranho e maravilhoso dom de curar. Seus fluidos benéficos serão de grande valia no reequilíbrio e na reestruturação das células enfermas.
Pouco depois, Marta chegou em companhia de Júlia e Dário. Após os cumprimentos usuais, Marta levou Sara para dentro, para ministrar-lhe a troca energética. Depois que elas se afastaram, frei Ângelo disse a Dário:
— Meu filho, como sabe sua ajuda também é de grande valia. Sara o ama muito, e você deve estar sempre a seu lado, não propriamente com o corpo, mas com a alma e o coração. Sara deve sentir sua presença como alguém especial, em quem pode confiar e partilhar sua vida. Quando estiver com ela, esteja por inteiro. Mostre-lhe que seu pensamento está voltado para ela, não como se não existisse nada no mundo além dela, mas como se ela fosse uma parte importante do universo. É muito importante que ela se sinta parte de um todo, e você, mais do que ninguém, pode ajudá-la a integrar-se a ele.
— Creia-me — retrucou o rapaz, — farei o possível e o impossível para ver Sara bem e feliz.
— Ótimo. Assim é que se fala. Conto com a ajuda de todos.
— O que, mais especificamente, devemos fazer? — quis saber Júlia.
— Bom, para começar, convidem Sara para sair. É importante que ela se identifique com um grupo.
— Podemos organizar passeios e piqueniques — sugeriu Dário.
— Isso seria excelente. Coloquem-na em companhia de gente jovem e saudável. Ajudem-na a sentir-se querida e amada.
Pouco depois, os jovens se reuniam para uma prosa. Rebeca mandou servir limonadas, e o assunto do dia era o passeio que fariam à cascata da Esmeralda no dia seguinte. Apesar de um pouco distante, era um lugar lindo e maravilhoso.
Quando Júlia e Marta voltaram para a fazenda São Jerônimo, foram ter com Camila e Fausto. Era hora de formarem um grupo, e seria divertido passearem juntos. Fausto ficou encantado com a idéia e logo concordou em ajudar. O problema seria Rodolfo. Ninguém julgava que ele já conhecesse a procedência da menina, e tinham medo de contar-lhe a verdade.
— Acho melhor não dizermos nada — opinou Dário, preocupado. — Não é necessário que ele saiba.
— Não seja tolo, Dário — objetou Fausto. — Não precisa ser muito esperto para concluir, pelos nomes, que são pessoas de origem judaica.
— Isso não quer dizer nada — considerou Camila. — São todos os nomes bíblicos. Qualquer um poderia adotá-los.
— E o sobrenome? Zylberberg é muito revelador.
— Mas ele não precisa saber — sugeriu Júlia.
— E se ele perguntar?
— Ora, não sei — respondeu Dário, começando a ficar mal-humorado. — Invente qualquer coisa.
— Não será melhor contarmos logo a verdade? — ponderou Marta. — Mais cedo ou mais tarde ele vai acabar descobrindo mesmo. E depois, o que poderá fazer? Contar a dona Palmira? Expulsá-los daqui?
— Marta, você não conhece Rodolfo tão bem quanto eu. Ele é igual a minha mãe. Odeia os negros, os protestantes, os árabes e os judeus. Não sei o que será capaz de fazer, mas sei que não será boa coisa.
— Posso dar uma sugestão? — indagou Camila. — Sei que não é o mais correto, mas, em vista das circunstâncias, criem um sobrenome fictício, ao menos por um tempo. Enquanto isso, Marta o vai preparando aos pouquinhos, ao mesmo tempo em que o contato com os Zylberberg poderá mostrar-lhe o quanto eles são maravilhosos. Depois que se afeiçoar a eles, tenho certeza de que os aceitará e acabará compreendendo nossos motivos.
— É uma boa idéia — concordou Dário. — No entanto, a senhora mesma disse que seu Ezequiel não havia gostado nada dessa história de mentir.
— Mas acabaram concordando. Não se preocupem. Deixem-nos por minha conta.
Acertada a história, Marta partiu em busca de Rodolfo, fazendo-lhe o convite para o passeio, e ele aceitou sem titubear. Não perguntara nada, e embora todos estranhassem sua falta de curiosidade, acharam melhor silenciar. No dia seguinte, bem cedinho, partiram de charrete para a cascata da Esmeralda. Sara foi apresentada a Rodolfo e, apesar de não simpatizar com ele, não disse nada. Estava feliz ao lado de Dário, e só ele já lhe bastava.
O passeio transcorreu maravilhoso. O lugar era lindo e paradisíaco, e as moças chegaram a se banhar no lago, longe das vistas dos rapazes. À tardinha retornaram, e Júlia ficou satisfeita. Sara, deliciada, ria-se, abraçada a Dário. O passeio e os amigos fizeram-lhe muito bem, e ela pouco tossira durante o dia todo. Já começava a crer que se curaria.




CAPÍTULO 18



Aproximava-se o dia do aniversário de Palmira, e a capela já estava praticamente pronta para a inauguração. Fausto, em companhia de Júlia, acompanhava os últimos retoques, opinando sobre detalhes da pintura, aqui e ali. Estava entretido nessa tarefa quando Constância aproximou-se e elogiou:
— Está mesmo ficando uma beleza! È uma capela digna de uma rainha!
— Obrigado, prima — agradeceu ele, todo orgulhoso. — Mamãe merece.
— Fausto tem muito bom gosto — disse Júlia. — Foi ele mesmo quem escolheu as cores e as gravuras.
— Está muito bonito. Parabéns!
— Não se deixe impressionar pelo que Júlia diz. Ela tem a mania de enaltecer tudo o que faço.
— Ora, seu ingrato — protestou Júlia, num gracejo.
— Deixe estar, minha menina — objetou Constância. — Os homens são assim mesmo. Todos uns mal-agradecidos.
— Mas é verdade — tornou Fausto. — Tudo o que toco lhe parece fabuloso.
— As jovens apaixonadas são assim mesmo... Bem, agora vou deixá-los a sós. Imagino que devam ter muito que fazer.
Desde esse dia, Constância não perdia a oportunidade de elogiar a dedicação de Júlia, ressaltando o quanto era apaixonada por Fausto.
— Que sorte você tem — disse certa feita. — Fisgou-a antes de seu irmão.
— É mesmo muita sorte — concordou Fausto, com desagrado.
— Vocês são tão parecidos... Não sei como Júlia os distingue.
— Reconheço Fausto por sua maneira de ser — interrompeu Júlia —, pelos olhos cristalinos e sinceros, por sua voz, que é sempre tão amorosa...
— Você é mesmo um homem de sorte. Mas, cuidado; qualquer descuido e será bem fácil para Júlia trocá-lo por Rodolfo. E sem que você nem se dê conta.
— Isso jamais acontecerá! — contestou Júlia, indignada. — Amo Fausto e somente a ele. Jamais o trocaria por quem quer que fosse. Ainda mais por seu irmão.
— Ora, ora, minha querida, por que ficou tão zangada? Não quis ofendê-la e não falei por mal.
Júlia estava furiosa. Sem responder, levantou-se da poltrona onde estava sentada e saiu da sala, murmurando um "até logo" quase inaudível. Fausto levantou-se para ir atrás dela, e Constância, fingindo falar para si mesmo, disse baixinho:
— Ora, vejam só. Parece até que se doeu porque tenho razão.
— O que disse? — perguntou Fausto, perplexo, estacando subitamente.
— Quem, eu? Nada, não, Fausto. Pensava aqui com meus botões.
Não disse mais nada. Passados alguns minutos, Fausto encontrou Júlia na cozinha, bebendo água, o semblante transtornado.
— Por que se zangou tanto? — perguntou desconfiado. — Constância não disse por mal.
— Não sei, Fausto. Mas algo em seu tom de voz me soou falso. Aquela conversa parecia um discurso decorado e encomendado. Como se nos quisesse envenenar.
— Minha querida, você está imaginando coisas. Constância não tem motivo algum para isso.
— Pode até ser que você tenha razão. Mas a fala dela não me convenceu.
— Está bem, Júlia, deixemos isso pra lá.
— Sim, Fausto, esqueçamos sua prima. Afinal, são apenas observações maldosas e infundadas.
Fausto puxou-a para si e beijou-a delicadamente, pousando, em seguida, sua cabeça em seu peito. Embora não dissesse mais nada e preferisse até não pensar mais no assunto, não conseguiu mais tirar as palavras de Constância da cabeça. Ele não queria, mas a dúvida o assaltava cada vez mais. Será que a prima tinha razão? Será que Júlia, inconscientemente, pendia para Rodolfo e não tinha coragem de lhe contar a verdade? Ele balançou a cabeça e voltou sua atenção para ela. Não. Ela o amava. Tinha certeza. Queria ter.
Conforme ficara acertado, todos os domingos os jovens aproveitariam o dia para passear juntos, e naquele domingo não seria diferente. Fazia um bonito dia de Sol, e Rodolfo, que acordara cedo e ficara à espreita, à espera que Júlia descesse, encontrou-a sentada na varanda, apreciando os passarinhos que se banhavam ao Sol.
— Já de pé, logo tão cedo? — indagou, sorrindo polidamente.
— Ah! Bom dia... Rodolfo — respondeu ela com um pouco de dúvida. — É que está fazendo tanto calor... Não pude mais dormir.
— È verdade. Também eu não pude mais ficar na cama. Dias como este é que são bons para passear.
— Tem razão. Está mesmo um dia muito bonito. Hoje iremos até o riacho fazer um piquenique. Acho até que já vou chamar Fausto.
— Ele ainda não acordou.
— Pois então, vou acordá-lo.
— Por que primeiro não vamos buscar Marta? Com certeza já se levantou. Na volta, irei ao quarto de meu irmão e o acordarei.
— Hum... Está bem. Vamos. Deixemos que o preguiçoso durma um pouco mais.
Quando Fausto desceu para o desjejum, toda a família já estava reunida à mesa, com exceção de Rodolfo e Júlia. Estranhando a ausência de ambos, indagou:
— Onde estão Rodolfo e Júlia?
— Creio que saíram bem cedo — disse Constância, com certa malícia na voz.
— Onde foram?
— Não sei. Saíram sozinhos por aí...
Fausto silenciou sombrio. Não queria deixar transparecer, mas estava furioso. Como Júlia se atrevia a sair de manhã, em companhia do irmão, sem nem ao menos falar com ele? Constância ria intimamente. Estava claro que Fausto roia-se de ciúme de Rodolfo. Terminada a refeição matinal, todos se levantaram, e Fausto saiu apressado. Já na varanda, avistou Terêncio, que chegava pelo outro lado da casa. Correu ao seu encontro e, fingindo naturalidade, disse:
— Bom dia, Terêncio.
— Bom dia.
— Por acaso você viu Júlia?
— Vi sim. Estava agorinha mesmo lá atrás, no pomar, em companhia de seu irmão.
Ele empalideceu. O que estariam os dois fazendo sozinhos no pomar? Não era o lugar mais apropriado para sua noiva estar em companhia de Rodolfo. Sentindo a raiva crescer dentro do peito, Fausto partiu para lá. Ao longe, viu-os colhendo limões, e estacou estarrecido. Rodolfo, na tentativa de apanhar as frutas, tocava as mãos de Júlia, e ela sorria, apanhando os limões de suas mãos e deitando-os numa enorme cesta de palha. Aquilo o enfureceu. Rosto ardendo em fogo saiu em disparada, alcançando-os no exato instante em que a cesta tombava ao chão.
— Fausto! — exclamou Júlia. — Que bom que já acordou. Fausto olhou-a com raiva e retrucou:
— O que estão fazendo?
— Ora essa, colhendo limões — apressou-se Rodolfo em dizer. — Marta vai nos preparar uma torta.
— Marta?
— Sim, Marta — concordou Júlia. — Viemos chamá-la para um piquenique, e Rodolfo sugeriu que ela fizesse uma torta de limão para você. Disse que é a sua preferida. Ainda é cedo, e há bastante tempo para assá-la.
— Por que não me chamaram?
Os olhos de Fausto soltavam chispas de fogo, mas Rodolfo fingiu não perceber. Tentando um tom amoroso e acolhedor, Júlia retrucou:
— Você estava dormindo, e não quisemos acordá-lo logo. Preferimos esperar que tudo esteja pronto.
— Mas quanta gentileza de sua parte! Deixar-me dormir enquanto se diverte com meu irmão!
Júlia, percebendo o tom de ironia em sua voz, revidou magoada:
— Por que fala assim comigo? Não fiz nada.
— Fausto, meu irmão, o que é isso? De novo com esse ciúme? Não seja tolo.
Fausto já ia retrucar quando a voz de Marta se fez ouvir atrás deles.
— Então, como é? Esses limões vêm ou não? Assim não haverá tempo de assar a torta, e nos atrasaremos para pegar Sara.
Ela se aproximou e, vendo os limões caídos ao chão, começou a catá-los, quando Fausto declarou:
— Não se preocupem comigo, não quero torta alguma. E podem ir sem mim.
— Mas Fausto sem você não tem graça nenhuma — protestou Júlia.
— Não é o que parece.
— Posso saber o que é que está acontecendo aqui? — interveio Marta.
Fausto encarou-a e respondeu entre dentes:
— Pergunte a seu noivo. Ele sabe melhor do que ninguém.
Sem esperar resposta, rodou nos calcanhares e saiu desabalado, sumindo por detrás das árvores. Marta, ainda sem entender, segurava os limões, perguntando indignada:
— Mas o que foi que deu nele?
— Nada, Marta, não houve nada — respondeu Rodolfo, com um sorriso triunfante nos lábios. — Creio que Fausto não sabe controlar seus impulsos.
— Ainda vamos fazer o piquenique?
— É claro que sim. Não foi o que combinamos? Passeios aos domingos? E depois, Sara nos aguarda, não é?
— E a torta de limão? Era para Fausto, mas se ele não quer ir...
— Ora, deixe a torta pra lá. Prepare apenas alguns sanduíches e vamos embora. Dário já deve estar à nossa procura...
— Perdão, Rodolfo, mas vão sem mim. De repente, perdi toda a vontade de ir.
— Ora, Júlia, o que é isso? Não vai deixar que o mau humor de Fausto estrague nossos planos, não é mesmo?
— Não é isso. É que perdi mesmo a vontade de ir. Sem Fausto, nenhum passeio, por melhor que seja, tem graça. Se ele não vai, eu também não vou.
— Mas Júlia, nós já combinamos.
— Sinto, mas não vou. Vão vocês e divirtam-se.
— Sem você eu não vou — protestou Rodolfo, amuado.
Marta estacou. Ela o amava muito, e tudo com ele era divertido. Estar junto dele era tudo o que queria, e ela não podia entender por que ele precisava tanto da presença de Júlia.
— Por que não? — perguntou perplexa. — Por acaso minha companhia não lhe basta?
— Não é isso — respondeu confuso. — É que talvez Sara não se sinta à vontade sem a presença de Júlia.
— Isso é tolice — censurou Júlia. — Sara tem Dário. E você tem Marta...
— Júlia tem razão. Mas se não quiser ir, então está bem. Talvez eu não seja mesmo uma companhia tão interessante.
Marta estava profundamente sentida. Esperava que Rodolfo apreciasse sua companhia, mas de repente pôde perceber que ele, o tempo todo, ansiava por estar junto de Júlia. Como fora tola e ingênua! Estava claro que Rodolfo só a cortejava para disfarçar suas reais intenções. Era em Júlia que ele estava interessado, e Fausto já percebera isso. Apenas Júlia não percebia. Ou será que fingia não perceber?
Olhando para a amiga, Marta teve a certeza de que Júlia não estava interessada em Rodolfo. Só tinha olhos para Fausto, e Rodolfo nada significava para ela. Procurando disfarçar a dor que sentia naquele momento, com os lábios trêmulos, acrescentou:
— Bem, acho melhor deixarmos nosso piquenique para outro dia. Vou avisar Dário que hoje não iremos.
Com um meio sorriso, Júlia foi embora. Não tinha mais vontade de fazer nada. Se Fausto estava aborrecido com ela, ela iria esclarecer aquela situação de uma vez por todas. É claro que ele sentira ciúme de Rodolfo. Mas aquilo era uma tolice. Rodolfo era apenas seu amigo, e ela faria com que ele compreendesse isso de uma vez por todas. Amava-o e a mais ninguém, e provaria seu amor.
Quando Fausto deixou Júlia, partiu em desabalada carreira para a plantação. Não queria ver ninguém e pensou que ninguém se lembraria de procurá-lo no meio do cafezal, em pleno domingo. Quando Júlia chegou, procurando por ele, ninguém sabia onde estava. Ela ficou durante muito tempo esperando, mas nada. Fausto parecia haver desaparecido. Cansada de esperar, Júlia resolveu sair à sua procura. Mandou que lhe preparasse o cavalo e se foi. Depois de cerca de uma hora de cavalgada, finalmente, resolveu procurá-lo na plantação. Era o único lugar em que ainda não tinha ido, e talvez ele se houvesse refugiado ali. Com efeito, na entrada do cafezal, Júlia avistou o cavalo de Fausto amarrado a uma árvore, mas nem sinal de seu amado. Disposta a encontrá-lo, Júlia apeou e começou a caminhar por entre os pés de café. Foi andando pelas trilhas que se formavam entre uma fileira de cafezal e outra, até que finalmente o viu. Ele estava sentado do outro lado da plantação, recostado à cerca que demarcava a área do plantio, joelho dobrado, cabeça afundada nas mãos. Estava tão quieto que parecia dormir. Júlia chegou mansamente, ajoelhou-se ao seu lado e, tocando-lhe gentilmente as mãos, declarou:
— Fausto, por que não acredita quando digo que o amo?
Ele ergueu a cabeça, assustado. Estava tão absorto em seus pensamentos que sequer escutara os passos de Júlia se aproximando. Vendo-a ali parada, olhos serenos, brilhantes, transparentes de amor, ele se comoveu. Não era possível que aquela mulher, cujo olhar cristalino derramava sobre ele fulgores de amor, estivesse mentindo. Não. Ela o amava. Tinha que amá-lo. Por que outra razão estaria ali, ajoelhada a seu lado, enfrentando seu próprio orgulho só para convencê-lo? Sentindo o coração descompassado, Fausto puxou-a para si e a beijou, e aquele era o beijo de uma mulher apaixonada. Depois, gentilmente afastando-a, acariciou suas faces, enxugou-lhe as lágrimas e disse com emoção:
— Júlia, minha querida, perdoe-me.
Ela o abraçou forte e desabafou, sentindo na voz um misto de medo e desespero:
— Por que, Fausto, por que duvida de mim?
— Não sei... Não duvido de você. Mas é que quando a vejo com Rodolfo, não sei, o sangue me ferve, morro de ciúmes.
— Já não lhe disse que isso é bobagem?
— Será mesmo, Júlia?
— Não acredita em mim?
— Em você, sim, mas quanto a Rodolfo, tenho cá minhas dúvidas. Ele sempre arranja um jeito de se aproximar de você. E muito solícito, está sempre disponível a ajudá-la. E faz com que tudo pareça casual. Na verdade, não faz nada que possa, realmente, comprometê-lo, mas age de forma sorrateira, utilizando-se de palavras e gestos estudados, sempre dando a impressão de que é um amigo desinteressado, e eu é que sou o tolo ciumento, desconfiado do irmão que só quer ser gentil.
Júlia balançou a cabeça em sinal de compreensão e acrescentou: — Sei Fausto, no começo eu até pensei que você pudesse ter razão. Mas depois, vendo o modo como Rodolfo me trata, percebi que está errado. Ele é muito solícito sim, e às vezes até um pouco artificial. Mas creio que é o jeito dele. É porque tem medo do que você possa pensar.
— Acha mesmo?
— Acho sim. Ele teve diversas oportunidades para me abordar, mas nunca o fez. Não nego que ele possa até sentir certa atração por mim, mas ele está se esforçando. Caso contrário, já teria tentado alguma coisa. Como disse não lhe faltaram ocasiões.
— Não sei Júlia. Não sei explicar, mas não confio nele.
— Pois confie em mim. Quantas vezes têm que repetir que o amo?
Ela o beijou suavemente, e ele respondeu:
— Tem razão, Júlia. Sou mesmo um tolo.
— Um tolo apaixonado.
Ele suspirou e prosseguiu:
— Agora vamos voltar. Não quero que Rodolfo pense que estou zangado com ele ou que dou tanta importância ao que ele faz.
Ele se levantou, puxando-a pelas mãos e, antes que saísse, ela disse:
— Espere um instante. Quero que me prometa uma coisa. — O quê?
— Prometa-me que nunca mais vai desconfiar de mim.
— Eu prometo.
— E que também não brigará comigo, haja o que houver.
— Prometo.
— E, acima de tudo, prometa nunca mais duvidar de meu amor.
— Prometo.
Beijaram-se apaixonadamente e voltaram para a fazenda. Quando chegaram, Rodolfo os esperava ansiosamente. Eles desmontaram e seguiram em direção à casa grande de mãos dadas. Quando se aproximaram mais, Rodolfo, ocultando o despeito, interpelou-os:
— Vocês estão bem?
— Melhor impossível — respondeu Fausto. — Sabe Rodolfo, quero que perdoe a minha atitude de hoje cedo. Foi tolice de minha parte. Não há motivo algum para sentir ciúmes de você.
— Sim... É isso mesmo...
— Sei que Júlia e você são apenas bons amigos, e agora percebo que não tenho com o que me preocupar. Ela jamais me trocaria por você ou por qualquer outro homem.
— Sem dúvida — rosnou entre dentes.
Fausto beijou Júlia suavemente nos lábios, e Rodolfo se afastou, fuzilando de ódio. Quanto mais os via juntos, mais sentia a necessidade de separá-los. Era preciso colocar logo seu plano em ação, ou ele sentia que estouraria.



CAPÍTULO 19



Rodolfo deixou Fausto e Júlia às pressas e correu em direção à biblioteca, quase esbarrando em Túlio, que ia descendo as escadas.
— Túlio! — esbravejou. — Por que não olha por onde anda?
Túlio não respondeu e já ia seguindo avante, quando Rodolfo o deteve, entrando com ele na biblioteca.
— O que quer? — indagou Túlio de má vontade.
— Falar com você.
— Não tenho mais nada para falar com você. Já não chega o quanto me atormenta?
— Quero que saiba que já descobri o segredinho de seus amigos — ele não disse nada, e Rodolfo prosseguiu: — Zylberberg, hein? Ezequiel Zylberberg.
Túlio empalideceu e lançou-lhe um olhar frio, perguntando a meia-voz:
— O que tem isso de mais?
— Ora, não teria nada de mais se não fossem judeus.
— E daí? São apenas pessoas, como todo mundo. E depois, não devia falar assim. Não ficou amigo deles?
— Isso não vem ao caso. Mas é uma pena que minha mãe não pense como você, não é mesmo?
— Acho que está valorizando demais a informação que possui. Não creio que vovó fosse se ocupar de coisas tão pequenas.
— Acha mesmo que são pequenas? Pois deixe que o esclareça. Não são. Talvez até fossem para qualquer outra pessoa, mas não para minha mãe. Ela não gosta de negros, nem de protestantes, nem de judeus. Não gosta de ninguém que não idolatre Jesus pendurado na cruz. Aliás, para ela, os judeus são os únicos responsáveis pela morte de Jesus, e ela não lhes perdoa a imolação do Cordeiro.
— Tudo isso são tolices.
— Tolices que podem levar à expulsão de seus amigos daqui. Túlio não estava gostando nada daquela conversa. Não sabia aonde o tio queria chegar, mas sabia que ele deveria estar planejando alguma coisa sórdida e cruel. Tentando não demonstrar nenhum receio, procurou sondar:
— Por que está me falando tudo isso?
— Porque preciso de sua ajuda. Se quiser salvar seus amiguinhos, terá que me ajudar.
— O que o faz pensar que eu o ajudaria? Os Zylberberg são amigos de minha mãe, não meus. Pouco me importa o que acontecerá a eles.
— Não creio que você seja tão indiferente quanto quer parecer. Sei que gosta de sua mãe e de Júlía, e não gostaria de vê-las sofrer. Isso sem falar na tola paixão de seu irmão por aquela moça enfermiça. E agora, saia da minha frente. Se não quer me ajudar, não me atrapalhe. Mas depois, não diga que não avisei.
Ele já ia empurrando o sobrinho para fora da biblioteca, mas Túlio o impediu:
— Espere! O que quer que eu faça?
Rodolfo voltou-se para ele e dirigiu-lhe um sorriso diabólico, murmurando entre dentes:
— Agora estamos começando a nos entender. O que quero de você é muito simples. Quero que me ajude a separar Júlia de Fausto.
— Está louco. Não posso fazer isso.
— Ah! Pode sim.
— Não posso, não. E depois, não tenho a menor influência sobre eles.
— Mas não se trata disso. Pretendo usar outros artifícios.
— Que artifícios?
Rodolfo chegou mais para perto dele e, abaixando a voz, sussurrou:
— Etelvina.
— Etelvina? Por acaso está louco, é? O que tio Fausto e tia Júlia têm a ver com isso?
— Muita coisa. Imagine se Júlia descobre o que Fausto fez com a negrinha.
— Mas ele não fez nada.
— Só que ninguém precisa saber disso.
— Não entendo aonde quer chegar. Não estava disposto a incriminar Trajano?
— É que mudei de idéia, sabe? Resolvi que não me convém que Trajano tenha matado Etelvina. Para mim, melhor seria que o assassino fosse outro. Acho que Fausto seria excelente!
— Você enlouqueceu de vez. Não vê que isso é sandice? Que não dará certo? Ninguém acreditaria.
— Caberá a você convencer a todos.
— Quer me dizer como farei isso?
— Contando-lhes a história, praticamente como aconteceu. Apenas troque alguns personagens. Diga que, em vez de estar comigo, você estava com Fausto, e que foi ele quem violentou e matou a escrava.
— Mas como? E eu? Devo assinar minha confissão de culpa?
— Não seja tolo. Diga que Fausto mandou que você levasse Trajano à beira do riacho para conversarem, fazerem as pazes, e que lá encontraram Etelvina. Você, impressionado com a fatalidade que ocorreu no passado, desistiu da negrinha, mas seu tio Fausto, movido pelo desejo, tratou de violentá-la e depois, arrependido, para esconder o que fizera, resolveu matá-la, para não perder Júlia.
— Ninguém vai acreditar. Tio Fausto não costuma se deitar com as negras.
— Ah, mas isso foi antes de Júlia. Sua tia é muito casta, sabe? E não permite que Fausto a toque antes do casamento. Por isso, ele precisava aliviar o desejo que sentia por ela com outra pessoa. E só podia ser uma escrava.
— Você é completamente louco. Essa mentira não funcionará.
— Além do mais, há testemunhas...
— Testemunhas? Quem?
— Trajano. Chame o negro e faça com que confirme a história de que você o levou lá só para conversarem, e que ele viu Fausto matar a negra, sem que nada pudesse fazer.
— Trajano nunca fará isso.
— Fará se você o ameaçar. Diga-lhe que, se ele cooperar, salvará a pele do tronco. Caso contrário dará um jeito para que ele seja acusado e açoitado até a morte.
— Tio Rodolfo, essa é a maior insanidade que já ouvi. Não daria certo. Tio Fausto se defenderia. Ninguém acreditaria, e você é quem ficará desacreditado e vencido.
— Não diga isso. Se eu cair, levo-o comigo.
Rodolfo, furioso, virou-lhe as costas e saiu da biblioteca, deixando Túlio entregue a seus próprios pensamentos. Estava claro que o tio enlouquecera. Aquela idéia, além de absurda, era totalmente inverossímil. Ninguém, em sã consciência, acreditaria naquela versão. Contudo, Túlio tinha que concordar que o testemunho de Trajano em muito influenciaria naquela infâmia. A mãe e a tia tinham total confiança no negro, e se ele confirmasse aquela versão da história, as duas não duvidariam, e todas as evidências apontariam mesmo para Fausto.
Túlio estava com medo. Se concordasse em levar aquele plano adiante, poderia ser responsável pela infelicidade de Júlia e de Fausto. Do contrário, se recusasse talvez o mundo inteiro viesse sobre sua cabeça, e ele fosse obrigado a conviver com o repúdio e a indiferença da família. Quanto mais pensava, mais Túlio sentia que deveria fazer alguma coisa para evitar uma tragédia. Sentia como se a solução daquele caso estivesse em suas mãos. Precisava deter Rodolfo, mas, o que fazer? Em seu íntimo, sabia que só precisava ter coragem. Errara, sim, e muito. Mas não havia mais como apagar seu erro, e viver para o resto da vida carregando aquela culpa parecia-lhe um fardo pesado demais para suportar. Túlio sentia que chegava a uma encruzilhada em sua vida. Precisava decidir-se: ou falava a verdade e suportava o peso das conseqüências de seus atos, ou mentia e tentava resguardar sua imagem, já tão comprometida por um erro do passado. Pensando em tudo isso, tomou sua decisão. Salvar-se-ia.
Rodolfo, por sua vez, parecia fora de si. Pretendia não apenas acabar com a felicidade do irmão, mas também desmoralizá-lo e aniquilá-lo. O plano de Constância, por si só, já seria suficiente para acabar com ele. Mas Rodolfo queria mais. Queria destruí-lo totalmente. A história de Etelvina faria com que Júlia, Camila e Dário vissem nele um monstro, e ele teria sua imagem comprometida por aquele incidente. E ainda havia os Zylberberg. Fausto sabia, desde o princípio, que eles eram judeus e, ainda assim, arrendara-lhes a fazenda, ocultando da mãe à verdade sobre sua origem. Mas logo que ela descobrisse que Fausto silenciara só para agradar Júlia, voltar-se-ia contra ele também. Aí sua vingança estaria completa. Além de infeliz, desmoralizado e repudiado por todos, Fausto passaria por verdadeiro cafajeste, mentiroso e ardiloso, que enganara Júlia, a mãe e o resto da família só para conseguir seus objetivos. O que mais poderia desejar?
Já se passara muito tempo desde o fatídico episódio que culminara com a morte de Etelvina, e desde esse dia, Trajano nunca mais fora visto na fazenda São Jerônimo. Palmira, do alto de sua soberba, não esquecia que o escravo se atrevera a encostar a mão em seu neto e nunca mais permitiu que ele se aproximasse da fazenda. Se Camila queria protegê-lo, que o fizesse longe dali. Trajano até que estava feliz na fazenda Ouro Velho. Não havia outros escravos vivendo ali, à exceção de Laurinda e Juarez, e ele não precisava ficar trancado na senzala. Ajudava nos serviços domésticos, fazia compras, cortava lenha. E à noite, quando todos iam dormir, recolhia-se ao quarto contíguo ao de Juarez e Laurinda e, muitas vezes, chorava sozinho a perda da doce Etelvina, a quem poderia ter amado e tomado por esposa.
Em seu íntimo, contudo, lamentava a separação de seus senhores. Gostava de Camila, de Júlia e dos meninos. Apesar de vê-los constantemente, pois que sempre apareciam em visita a Sara, era diferente. Era obrigado a viver separado deles, e era como se houvesse sido arrancado do seio de sua família. Ainda sentia imensa mágoa de Túlio. Sempre fora seu amigo, encobrira suas peraltices da infância, justificara suas loucuras de juventude. E tudo isso para quê? Para terminar rejeitado pelo rapaz, odiado como se fosse seu inimigo. Apesar de tudo, Trajano continuava a gostar de Túlio. Sabia que o moço não era propriamente mau, e muito lhe doía perceber que enveredara por um caminho de perdição.
Naquele dia, em especial, Trajano não conseguia parar de pensar em Túlio. Chegara a sonhar com ele, e em seu sonho, o rapaz pedia-lhe perdão e ajuda. Ele não compreendia aquele sonho, mas temia que alguma coisa estivesse errada com o sinhozinho. Desde manhã não conseguia tirar Túlio da cabeça, e qual não fora seu espanto ao encontrá-lo na fazenda, sentado na sala de visitas, em companhia de Ezequiel e Rebeca. Quando o viu, Trajano não pôde conter a surpresa. Laurinda fora chamá-lo, dizendo que havia visita para ele, mas ele jamais poderia supor que fosse Túlio. Ao entrar na sala, passado o susto do primeiro momento, abaixou os olhos e indagou humilde:
— A sinhá mandou me chamar?
— Mandei sim — respondeu Rebeca. — Túlio veio visitar Sara e pediu para falar com você também.
Trajano levantou os olhos para ele, esperando encontrar algum tipo de ressentimento em seu olhar. Em vez disso, só o que pôde perceber foi à dor e a frustração, e isso o condoeu.
— Como vai, Trajano? — indagou Túlio, levantando-se e aproximando-se dele.
— Muito bem, sinhozinho, obrigado.
— Túlio quer lhe falar — adiantou-se Ezequiel.
— Será que podemos sair?
— Como o sinhô quiser.
Túlio pediu licença e saiu com Trajano para o quintal. Estava emocionado, e só então percebera o quanto sentira sua falta. Afinal, estava acostumado à presença do negro. Tinha-o como amigo e protetor, e muito lamentava tudo o que o fizera passar. Vendo que Trajano seguia mudo a seu lado, Túlio, escolhendo bem as palavras, principiou:
— Há muito queria falar-lhe.
O escravo pousou sobre ele os olhos negros, nos quais refletia a angústia da dúvida, do medo e da desconfiança, e retrucou:
— Por quê?
— Por que... Porque desejava pedir-lhe... Perdão. Trajano deu um salto para trás e disse, indignado:
— Mas o que é isso, sinhozinho? Quer me enganar de novo, é?
— Não, Trajano, não é nada disso. Queria falar-lhe. Estou arrependido do que fiz.
— O sinhô vai me desculpar, mas não acredito, não.
— Por favor, Trajano, acredite, é a verdade.
— O sinhozinho está tramando alguma coisa?
— Mas que horror! Não estou não.
— Então por que veio?
— Já disse. Queria falar-lhe. Estou arrependido. A culpa vem me corroendo por dentro. Não sei mais o que fazer.
O outro ainda o olhava em dúvida.
— Hum... Não sei, não. Acho que o sinhozinho está querendo alguma coisa. Mas o quê? Já não basta o que fez com a pobre
Etelvina? Comigo, não reclamo. Mas Etelvina... O que foi que ela lhe fez? Sinceramente, sinhô, ela não merecia...
Túlio desatou a chorar, atirando-se nos braços de Trajano, que ficou confuso, sem ter o que fazer. Estava sem jeito, sem saber o que pensar, e quanto mais tentava afastar-se do rapaz, mais Túlio se apegava a ele, chorando copiosamente. Até que Trajano, não podendo mais suportar aquela cena, acabou por convencer-se da sinceridade daquelas lágrimas e perguntou condoído:
— Mas o que houve? Por que chora assim?
— Oh! Trajano, então não percebe? A culpa me consome dia a dia. Sinto-me responsável pela morte de Etelvina. Não queria. Foi um acidente.
— O sinhozinho vai me desculpar outra vez, mas acidente não foi não. Sinhô Rodolfo matou a pobre da Etelvina muito bem matado. Eu vi. Ninguém me contou.
— Eu sei, eu sei. Mas eu não queria. Juro que não queria. E agora... Tenho medo.
— Medo de quê?
— Medo do que possa acontecer. De ser descoberto.
— Não sei do que tem medo. Seu tio nunca falará nada, e eu... Bem, o sinhozinho soube calar a minha boca direitinha.
— Não, Trajano, você não está entendendo.
— Não estou mesmo.
— Guarda raiva de mim?
Trajano hesitou.
— Raiva, não. Acho que fiquei magoado. Pensei que fosse meu amigo, que me quisesse bem como eu quero bem ao sinhozinho. Foi muito triste descobrir que sou apenas um monte de lixo.
— Não diga isso, Trajano. Você é uma pessoa muito especial.
— Hum... Sei. Especial para quê?
— Especial. Só especial.
— Escute sinhô Túlio, não acredito que veio até aqui só para me dizer essas coisas meio sem pé nem cabeça. Não estou entendendo aonde quer chegar.
Túlio suspirou e virou a cabeça para o outro lado, fitando o horizonte. Era preciso acabar logo com aquilo. Fora até ali com uma missão e precisava desincumbir-se dela o mais rápido possível. Quanto mais demorasse, mais difícil se tornaria. Passados alguns instantes, Túlio encheu-se de coragem e, olho nos olhos, declarou:
— Pois bem, Trajano, vou lhe dizer a que vim. Tio Rodolfo está desesperado. Quer, a todo custo, separar minha tia Júlia de meu tio Fausto.
— Por quê?
— Creio que está apaixonado por ela.
— Sinceramente, sinhozinho, sinhô Rodolfo não merece sinhazinha Júlia, não.
— Eu sei. Mas ele insiste, e o fato é que esboçou um plano para desacreditar tio Fausto, não só diante dela, mas de toda a família. E para isso conta com a sua... Colaboração.
— Minha colaboração? Não estou entendendo.
— Deixe que lhe explique.
Em poucas palavras, Túlio narrou a Trajano o plano traçado por Rodolfo. O escravo, à medida que o outro falava, ia ficando cada vez mais horrorizado. Não imaginava que podia haver tanta maldade no coração do ser humano. Quando Túlio terminou, Trajano estava arrasado. Aquilo era demais para ele. Fora obrigado a silenciar sobre o assassinato de Etelvina. Mas ter que mentir para incriminar um inocente? Ele cobriu o rosto e chorou, e Túlio pousou as mãos sobre seus ombros e disse, tentando parecer confiante:
— Não se preocupe. Tenho certeza de que tudo dará certo.
Caía uma chuva fininha, e Marta apressou o passo, encolhendo-se dentro da capa, tentando não se molhar muito. O caminho cheio de lama dificultava-lhe a caminhada, mas ela ia resoluta. Precisava falar com Rodolfo e não podia mais esperar. Encontrou-o na biblioteca, aprontando a contabilidade, pediu licença e entrou. Ao vê-la, ele demonstrou certa contrariedade. Sem lhe dar chance de falar, disse rispidamente:
— O que quer aqui, Marta? Não vê que estou ocupado?
— Preciso falar com você.
— Agora não.
— Mas não posso esperar.
— Seja o que for que tenha a me dizer, vai ter que esperar, sim. Agora, por favor, saia. Está me atrapalhando.
— O que há com você, Rodolfo? Por que me trata assim? Por acaso não me ama mais?
— Ouça Marta, não estou com vontade de escutar suas lamúrias.
— Lamúrias? Mas quando foi que me lamuriei com você? Ao contrário, sou sempre amável, gentil... Desvelo-me para agradá-lo.
— Pare com isso, por favor. Não estou com paciência para choramingo.
— Mas o que há com você? Há pouco dizia que me amava.
— Pare, já disse! Vá-se embora daqui. Não me aborreça mais! Marta começou a chorar e, atirando-se a seus pés, suplicou:
— Não me trate assim. Eu o amo.
— Não me interessa o seu amor.
— O que houve para você mudar tão de repente? Era tão carinhoso...
— Marta, já estou farto dessa ladainha. Saia daqui, ou serei obrigado a expulsá-la.
— Pensa que não sei?
— Não sabe o quê?
— Pensa que não sei que você me usou esse tempo todo, só para se aproximar de Júlia?
— Está louca — respondeu num sussurro.
— Será que estou mesmo? Ou será que foi você quem perdeu a cabeça por causa da noiva de seu irmão?
— Cale-se!
— Não, não vou me calar. Eu já percebi tudo. Você me usou. Nunca me amou. Só tem olhos para Júlia. Mas não adianta. Ela não o ama, e sim a Fausto. E por mais que você faça, nunca conseguirá ser igual a ele.
Rodolfo, sentindo já o sangue subindo às faces, não se conteve e esbofeteou Marta várias vezes, arrancando-lhe sentidas lágrimas de dor e de humilhação.
— Ordinária! — vociferou. — Quem pensa que é para falar comigo assim desse jeito?
— Eu o amo, Rodolfo. Quero ser sua mulher. Não importa o que faça, amo-o ainda assim. Meu amor é puro e verdadeiro. Só aqueles que conhecem a real acepção do amor são capazes de compreender e aceitar o ser amado como ele é. E eu, Rodolfo, por amá-lo demais, posso compreender e perdoar todas as suas atitudes impensadas e inconseqüentes.
Vendo-a ali caída no chão, chorando, o rosto inchado das bofetadas, Rodolfo retrocedeu. Ele não queria que ninguém soubesse daquela cena. Aquilo só atrapalharia seus planos. Era preciso fazer com que Marta se calasse.
— Ouça Marta, não quero brigar com você. Perdoe-me por ter-lhe batido. Perdi a cabeça, você me provocou.
— Sinto muito, mas eu só disse a verdade.
— Não, Marta, está enganada. Não sinto nada por Júlia. E de você que gosto.
— A quem quer enganar? A mim? Ou a você mesmo?
— Não quero enganar ninguém. Estou dizendo a verdade. Um dia, pensei mesmo que amasse Júlia. Mas depois percebi que tudo não passou de ilusão. E quando a conheci, apaixonei-me por você.
— Suas atitudes não são as de um homem apaixonado.
— Uma coisa nada ter a ver com outra. Sou um homem estouvado, tenho o sangue quente. Não consigo me conter quando me provocam. E você me tirou do sério. Mas não queria bater em você e estou arrependido. Juro que isso não vai mais acontecer.
— Isso não me importa.
— Mas importa para mim. Não quero que pense que sou um canalha.
— Por quê? Por haver me batido ou por desejar a futura mulher de seu irmão?
Rodolfo mordeu os lábios, segurando a raiva dentro de si. Tinha vontade de esganá-la, mas precisava se controlar.
— Por favor, Marta, pare com isso — retrucou, rangendo os dentes.
— Vou parar sim, Rodolfo, mas não porque está me pedindo. Vou parar porque já confirmei minhas suspeitas. No entanto, não se preocupe. Não pretendo dizer nada a ninguém.
— O que quer dizer?
— Quero dizer que eu o amo, não importa o que faça. E mais dia menos dia, você mesmo vai perceber que seu sentimento por Júlia é um erro. Ela não o ama e não é mulher para você. Dia chegará em que você só terá a mim para apoiá-lo.
Marta saiu e Rodolfo ficou pensativo. A tola! Pensava que ele estava apaixonado por Júlia. No fundo, sabia que gostava mesmo de Marta, mas o sabor da vingança era mais doce no corpo de Júlia. Embora Rodolfo nem soubesse bem do que pretendia se vingar...




CAPÍTULO 20


Sara conversava com frei Ângelo no jardim. Apesar de mais animada com os freqüentes passeios e a conversa com os amigos, naquele dia estava muito abatida. Quase não comera, e o peito doía-lhe a cada vez que respirava.
— E então, Sara? — indagou o frei. — Não quer me contar o que houve?
Ela olhou para ele desanimada. Estava cansada e sem muita vontade de conversar.
— Não sei — respondeu ela, afinal, sem muita convicção. — Não sei ao certo.
— Você hoje não está muito bem.
— Não sinto vontade de conversar.
— Não quer nem tentar? Por que não continua a me contar seus sonhos?
— Meus sonhos?
— Sim. No outro dia, você me disse que tinha sonhos muito estranhos e até me contou um deles, que achei muito interessante. Não quer me contar outro?
— Acha mesmo necessário? Não estou com muito ânimo para isso agora.
— Acho que, além de necessário, será muito útil. Mas, se você não quiser se não estiver disposta, não faz mal. Podemos deixar para outro dia.
Ela suspirou fundo e retrucou:
— Está bem. Se acha que é importante — ela fez uma pausa, tentando lembrar-se de algo, e começou: — Bem, teve uma vez que sonhei com minha mãe chorando muito. Estava toda de preto, debruçada sobre um caixão. Dentro, um homem jazia. Era seu marido e meu pai.
— Na vida atual?
— Não, apenas no sonho.
— Sabe quem era hoje?
— Não, não sei. Acho que não o conheço.
— Bem, não importa. E você?
— Em meu sonho, eu era ainda um bebê. Não devia ter mais do que um ano, um ano e meio.
— E o que aconteceu?
— Como disse, minha mãe chorava muito. Eu estava no colo de Marta, sem entender bem o que se passava. Era um enterro, e havia muitas pessoas conhecidas.
— E depois?
— Não me lembro direito. Só o que sei é que minha mãe só pensava no marido morto. Lembro-me de seu olhar para mim. Um olhar de ódio, de mágoa, como a perguntar: "por que ele, e não você?".
— Só isso?
— Sim.
— Hum... Interessante. Esse sonho só vem reforçar a minha teoria.
— Que teoria?
— De que você começou a se sentir abandonada em outra vida e trouxe para a atual esse sentimento.
— Será mesmo? — ela ainda duvidava.
— Estou quase certo.
Sara ficou pensativa. Aquilo tudo era muito confuso, mas fazia sentido. No entanto, não tinha elementos suficientes para acreditar completamente.
— Bem — prosseguiu ela —, seja como for, o fato é que o sonho me pareceu bem real.
— E foi com certeza. Na verdade, não foi propriamente um sonho, mas uma evocação, uma lembrança de outra vida.
— Não sei frei Ângelo, ainda não acredito muito nisso.
— Mas vai acreditar. — Ele fez uma pausa e continuou: — Não se lembra de mais nada? Outro sonho?
— Sim. Houve uma vez em que sonhei novamente com mamãe e Marta. E adivinhe! — frei Ângelo remexeu-se na cadeira, e ela prosseguiu: — Elas eram irmãs.
— É mesmo?
— Sim. Nesse sonho, Marta vinha me visitar e trazia muitos presentes. Pegava-me no colo, dava-me beijos, estreitava-me de encontro ao peito. Eu a adorava e costumava chamá-la, inclusive, de mãe.
— Interessante...
— Sim. E depois teve outro, em que eu via o segundo casamento de minha mãe, dessa vez com meu pai de verdade. Lembro-me de ouvi-lo falar para minha mãe que gostava muito de crianças e que gostaria que ela lhe desse filho. Como minha mãe não conseguia engravidar, ele queria que eu gostasse dele como pai, e disse que minha mãe deveria tratar-me com mais atenção. Depois a cena se modificou, e vi mamãe brigando com Marta, acusando-a de querer me roubar, e Marta foi proibida de me ver. Fui trancada em casa e chorei muito.
— E depois?
— Não sei. Tenho lembranças confusas.
— Agora compreendo por que sua mãe não simpatizou com Marta.
— É verdade. E segundo Júlia me disse, da primeira vez em que ela aqui esteve eu estava delirando, mas de repente abri os olhos e, quando a vi, chamei-a justamente de mamãe. Minha mãe ficou indignada. Pensou que fosse devido ao meu estado.
— Imagino.
— Em outro sonho, eu estava sentada na sala, brincando de bonecas, e o marido de minha mãe falava comigo. Ela, sentada numa poltrona, bordava uma toalha de linho e sorria para mim. De repente, meu pai se levantou e saiu, atendendo ao chamado de um criado. Eu voltei-me para minha mãe, mostrando-lhe a boneca, mas ela não me deu a menor importância. Ao contrário, repreendeu-me por atrapalhar seu bordado.
Frei Ângelo ficou pensativo. As coisas começavam a se encaixar, e ele disse para Sara:
— Isso que você me conta é muito revelador.
— Acha mesmo?
— É claro que sim. Não tenho mais dúvidas de que essa sua enfermidade começou em outra vida. Você perdeu o pai ainda bebê. Sua mãe não lhe dava atenção, obrigou-a a conviver com um homem que lhe era praticamente um estranho e, além disso, afastou-a da única pessoa a quem você realmente amava que era sua tia, hoje Marta. Não vê como tudo se encaixa?
— Não será apenas coincidência?
— Acredita mesmo em coincidências? Não acha que é coincidência demais você sonhar com essas pessoas, nas situações em que me descreveu, exatamente em circunstâncias que justifiquem o porquê de sua enfermidade?
— Pensando bem, é estranho, sim. Não creio, realmente, que tudo seja obra do acaso.
— Tampouco eu, minha cara. Há, por detrás dessa história, uma força em muito superior a nós, que entrelaça os destinos de forma a que tudo se encaixe perfeitamente, sem deixar uma peça sequer fora do lugar.
— É verdade.
— Está cansada? Aborrecida?
— Não, frei Ângelo, estou bem e gostaria de continuar.
— Ótimo.
Ela olhou para o alto, tentando se lembrar de mais alguma coisa, e prosseguiu:
— Lembro-me de haver sonhado com crianças brincando no jardim ao lado de minha casa. Elas me chamavam, e eu as olhava com olhar entristecido, recusando-me a brincar com elas.
— Foi se fechando.
— Sim. Fui me fechando e me isolando cada vez mais, e passei a me alimentar mal. Até que um dia...
Sara abaixou os olhos e começou a chorar de mansinho. Era óbvio que as lembranças que evocava eram profundamente dolorosas. Embora frei Ângelo percebesse isso, sabia que era fundamental para o tratamento e incentivou-a a continuar:
— Um dia...
— Um dia sonhei que corria na chuva, contra o vento. Depois, vi-me deitada numa cama imensa, ardendo em febre. Vi minha mãe entrar com o médico. Ele se abaixou sobre mim e disse: pneumonia. Em pouco tempo fui definhando, até que não pude mais resistir e morri ainda bem pequenina.
Ela ainda chorava, e frei Ângelo a abraçou. Podia imaginar como Sara estava se sentindo com tudo aquilo. Seus sonhos eram muito significativos, e ele estava certo de que os fatos ocorridos em sua vida passada acabaram por imprimir na menina o mal de que antes padecera e de que ainda hoje sofria. A conversa foi encerrada. Não precisava dizer mais nada. Todos os sonhos que tivera posteriormente estavam relacionados ao mesmo assunto: o sentimento de abandono por causa da mãe, que não a desejava, e porque Marta, a única pessoa que realmente se importava com ela, fora afastada de seu convívio. Sara conseguira alcançar o âmago de sua própria alma e só com o tempo poderia aprender a transformar a dor que sentia em lição de vida para o presente e o futuro.
Sara despediu-se de frei Ângelo e foi ao encontro de Dário, que chegava. O rapaz enlaçou-a pela cintura, beijando-a suavemente, e disse:
— Vim fazer-lhe um convite especial.
— Para quê?
— Vamos todos à vila hoje à tarde. Não gostaria de vir conosco? Sara entristeceu e replicou:
— Eu adoraria, mas não me sinto com forças para sair. Uma coisa é passear com você, Júlia, Marta, Fausto e Rodolfo. Outra coisa é estar no meio de gente estranha. Isso me assusta.
Frei Ângelo, que passava nesse exato momento, ouvindo as últimas palavras de Sara, repreendeu-a:
— Sara, Sara. Quando é que vai aprender?
— Aprender o quê?
— Quantas vezes têm que lhe dizer para não fugir do contato com as pessoas? É importante para você sair, misturar-se a elas, divertir-se.
— Era o que eu ia dizer-lhe, frei Ângelo — concordou Dário.
— Pois então, minha querida? Não perca essa oportunidade. Você tem feito excelentes progressos, em grande parte graças a seu próprio esforço. Por que recuar agora?
— E isso mesmo, Sara. Nosso bom frei tem razão, como sempre. Vamos não se enterre dentro de casa. Você não morreu. Ou será que já se julga morta?
Sara mordeu os lábios e acabou por concordar:
— Está bem. Convenceram-me.
— Ótimo. Assim é que se fala! Vá e se entregue. Não pense em nada e viva o momento. Faça de todos os momentos de sua vida um momento especial e você descobrirá como a vida pode ser maravilhosa!
Mais tarde, Sara partiu em companhia de Dário para a vila. Encontrar-se-iam com Fausto, Júlia, Rodolfo e Marta. Havia uma companhia de teatro amador na vila, e os atores encenariam Hamlet no pequeno teatro da escola dominical. Sara divertiu-se muito. Quando voltou para casa já era noite, e os pais estavam preocupados. Já ia repreendê-la, mas, ao notarem o ar de felicidade com que chegou, desistiram. Se ela estava feliz, não seriam eles a estragar sua felicidade. Porque a felicidade para Sara era mais do que um estado de alegria transitória. Era o caminho para a cura.




CAPÍTULO 21



Na véspera do aniversário de Palmira o alvoroço já era geral na fazenda São Jerônimo. A capela, finalmente, seria inaugurada, e Palmira queria que tudo estivesse perfeito. Desde cedo já se haviam iniciado os preparativos para a festa, e os escravos foram para frente da capela, enfeitando o terreiro com bandeirolas e lanterninhas. Todos os fazendeiros da região haviam sido convidados, e Rodolfo, logo pela manhã, tivera uma idéia que colocaria Júlia em pânico. Ele bateu na porta do quarto da mãe e entrou. Ela estava sentada em frente ao espelho, e uma escrava bem novinha escovava-lhe os cabelos encanecidos. Quando viu o filho, abriu um sorriso, e ele disse, logo após beijá-la nas faces:
— Então, mamãe, amanhã é o grande dia!
— Parece mentira que a capela ficou pronta.
— E a senhora fará mais um ano de vida...
— Na minha idade, meu filho, contamos anos a menos.
— Ora, mas o que é isso? A senhora é ainda muito jovem.
— Deixe de bobagens, Rodolfo. Então não sei que já estou bem próximo da morte?
— Não diga isso. A senhora ainda viverá muitos anos.
— Deus o ouça, meu filho, embora não creia muito... Rodolfo foi até a janela, olhou para fora e disse, sem encará-la:
— Mamãe, gostaria de falar com a senhora.
— Sim, meu filho, o que é?
— Estive pensando... Já que convidamos todos os fazendeiros da região, por que não convidarmos também nossos inquilinos da
Ouro Velho?
Palmira levantou as sobrancelhas e retrucou, sem maior interesse:
— Por quê? Nem os conhecemos.
— Por isso mesmo. Arrendamos a fazenda para eles, mas nunca fomos apresentados. Não acha uma indelicadeza?
— Não, não acho. O que temos com eles são negócios. Não são pessoas de nossas relações.
— Mas por que não podemos convidá-los? Poderia ser interessante. E depois, eles são amigos de Camila.
— De Camila?
— Sim, mamãe. A senhora não sabia? Palmira pensou durante alguns segundos e respondeu:
— Não me recordo.
— Pois Fausto lhe disse. A senhora é que não se lembra.
— Se não me lembro é porque não deve ser importante. Pois se nem Camila fala neles...
— Pois é. Não acha isso estranho?
Ela torceu os lábios. Sim, no fundo, era estranho. Nunca pensara sobre aquilo, mas já que Rodolfo falara, tinha que concordar que ele não deixava de ter razão. Se aquelas pessoas eram amigas de sua filha, por que ela nunca falava nelas? Por que nunca os convidara para ir até lá? Seria natural que se interessasse em aproximá-los. Pensando nisso, indagou:
— Será que não é gente direita?
— Não creio. Afinal, são amigos de Camila, e ela não faria amizade com pessoas desonestas ou de má índole.
— Mas então, por que nunca nos apresentou?
— Para falar a verdade, já vi a moça algumas vezes e até já a acompanhei em alguns passeios.
— Então, já os conhece?
— Não, somente Sara a filha. Já participei de alguns passeios em que ela estava presente, mas ainda não fui apresentado a seus pais. Seria uma ótima oportunidade para conhecê-los também.
— Acha que devemos?
— Sim, mamãe, acho que sim. Afinal, Camila falou deles muito por alto, e eu, até hoje, só vi a filha doente.
— Doente? Que doença tem ela?
— Não sei ao certo, mamãe. Mas Camila nos contou. Não se lembra?
Palmira apertou os olhos, tentando se lembrar. Sim, realmente, Camila falara algo sobre uma família com uma filha enferma, que para ali fora em busca de melhores ares. Lembrava-se de que, a princípio, relutara em arrendar-lhes a fazenda, mas Fausto acabara por convencê-la e resolvera tudo, e ela não dera muita importância ao caso. Ela já estava ficando velha e cansada, e sua memória também já não era mais a mesma. Costumava lembrar-se apenas do que era importante. Tentando recordar o que lhe dissera a filha, respondeu indecisa:
— Lembro-me de que Camila disse algo sobre eles...
— Então? Por que não os convidamos também?
— Não sei meu filho, não estou bem certa. Se a moça é doente, talvez seja melhor deixá-los quietos em seu canto.
— Mas que bobagem, mamãe. Talvez até lhe faça bem. Afinal, são pessoas de posses e posição.
— Meu filho, não entendo o porquê desse interesse repentino.
— Já disse. Porque são pessoas diferentes e devem ser interessantes.
— Mas virá tanta gente...
— Gente que estamos mais do que acostumados a ver.
— E daí? São todas as pessoas de bem.
— Mamãe, posso saber por que a relutância em convidá-los?
Ela estacou e encarou o filho. Na verdade, ele tinha razão.
Ela estava mesmo relutando em convidar seus vizinhos, mas nem sabia por quê. Nunca ouvira nada a seu respeito, mas sentiu certa inquietação ao pensar neles. Contudo, não havia nenhum motivo para recusar-se a convidá-los. Não os conhecia, mas sabia que eram pessoas ricas e direitas. Que mal faria? Pesando bem os motivos, acabou por dizer:
— Está bem. Você tem razão. Não há motivo algum para não os convidarmos. Mande um escravo hoje levar-lhes um convite.
— Obrigado, mamãe.
Rodolfo estalou-lhe um beijo na bochecha e correu em direção à porta. A mãe, de repente, como que se lembrando do motivo que a levara a não se interessar por aquela gente, gritou lá de dentro do quarto, tão alto que Rodolfo escutou-a já do alto da escada:
— Mas que não me tragam aquele negro insolente!
Partindo dali, Rodolfo saiu em busca de Túlio. O rapaz estava no terreiro, acompanhando a decoração da festa, e franziu o cenho quando viu o tio se aproximar. A seu lado, Camila, Júlia e Marta, animadas, davam ordens aos escravos, indicando-lhes onde deveriam prender as lanternas e as bandeirinhas. Ao ver o irmão se aproximar, Camila se retraiu e olhou para o filho, que lhe devolveu um olhar imperceptível, afastando-se logo em seguida. Rodolfo foi atrás dele e, segurando-o pelo braço, disse:
— Aonde pensa que vai?
— Solte-me — respondeu Túlio de má vontade, puxando o braço com violência.
— Espere um instante, rapaz. Quero falar com você.
— O que quer dessa vez?
— Adivinhe.
— Olhe tio Rodolfo, não estou nem um pouco interessado em seus gracejos. Vá logo ao assunto ou então me deixe em paz.
— Nossa, mas que mau humor!
— Não sei por que você está tão bem-humorado.
— Não sabe? Pois vou lhe contar — respondeu cantando. — Mamãe deu autorização para convidar seus amiguinhos, os Zylberberg, para a festa de amanhã. Não é fantástico?
Túlio gelou. O que o tio pretendia com aquilo?
— Ficou louco? — revidou em tom agressivo. — O que quer?
Arruinar minha mãe e minha tia? Por que não procura algo melhor para fazer e nos deixa em paz?
Rodolfo, visivelmente irritado, agarrou o sobrinho pelo colarinho e, olhos nos olhos, esbravejou, destilando veneno:
— Ouça aqui, garoto, não se faça de sonso comigo! Sei muito bem que você não é nenhum santinho!
Assustado, Túlio segurou-lhe as mãos e, sustentando-lhe o olhar, respondeu com aparente firmeza e ousadia:
— Solte-me. Não sou seu escravo para você me tratar desse jeito.
Rodolfo soltou um riso de escárnio e largou-lhe o colarinho, que Túlio logo tratou de ajeitar. Encarando-o ainda, ameaçou:
— Não se esqueça do que combinamos.
— Não me esqueci.
— Acho bom mesmo. Senão...
— Não me ameace tio Rodolfo. Você já me bateu uma vez, mas não me conhece e não sabe do que sou capaz.
— Ficou valente, rapaz? O que vai fazer? Bater-me também? Matar-me?
Túlio não respondeu. No fundo, morria de medo de Rodolfo. Julgava-o louco e bem sabia que, ele sim, era capaz das maiores barbaridades. No entanto, o temperamento ousado e atrevido de Túlio não lhe permitia enfraquecer, e ele tentava, a todo custo, manter sua hombridade, não se deixando acovardar diante de Rodolfo. Tinha medo, sim. Mas o tio não precisava saber disso, e ele pretendia não deixar transparecer. Ainda encarando-o, afirmou:
— De você, só quero distância.
— Não enquanto eu não conseguir o que quero. E para conseguir o que quero, preciso de sua, digamos, cooperação.
— O que quer que eu faça?
— Quero que vá à fazenda Ouro Velho convidar seus amigos. Diga-lhes que é um convite especial, da parte de minha mãe, e que não faltem.
— È só isso?
— Sim. Agora, vá.
Sem contestar, Túlio se foi. O que estaria Rodolfo pretendendo? Em silêncio, passou pelo terreiro e dirigiu-se para as cocheiras. Camila, vendo-o passar apressado, chamou-o, mas ele não respondeu. Mais que depressa, ela seguiu em seu encalço e viu quando ele encilhou o cavalo, partindo em disparada em direção à fazenda Ouro Velho. Ela pediu que lhe preparassem uma charrete e saiu atrás dele. Túlio, no meio do caminho, freou um pouco o animal e foi seguindo devagar pela trilha, sem pressa de chegar. Pouco depois, Camila o alcançou. Emparelhou com ele e dirigiu-lhe um olhar perscrutador, e ele saltou do cavalo, olhando para a mãe com ar de súplica. Ela desceu da carruagem e o abraçou, e ele começou a chorar. Túlio era um doidivanas, ela sabia, mas era um menino. Seu menino, a quem ela sempre amaria e ajudaria.
Voltando para o terreiro, Rodolfo saiu à procura de Marta que, juntamente com Júlia, ajudava os escravos com as bandeirinhas. O terreiro estava ficando uma beleza, e a festa seria um sucesso. Logo que as viu, correu para elas, beijando Marta friamente nos lábios. Sorriu para Júlia e disse com excitação:
— Vocês nem imaginam a surpresa que lhes preparei para amanhã.
— É mesmo, Rodolfo? — retrucou Júlia com interesse.
— É sim.
— Podemos saber o que é? — indagou Marta.
— Não, não podem. Pois se é surpresa...
— Não pode nem nos dar uma pista?
— Bem, só o que posso lhes dizer é que atingirá o coração de Júlia mais do que o de qualquer outro.
— De Júlia?
— Sim, minha querida. Mas não precisa ficar com ciúmes.
— Não estou com ciúmes — disse Marta zangada. — Sei que Júlia é minha amiga.
Fausto aproximou-se. Vinha apressado, olhos fixos em Rodolfo. Embora lutasse desesperadamente contra si mesmo, ainda não conseguia confiar no irmão.
— Olá! — cumprimentou. — O que estão fazendo?
— Nada de mais — disse Rodolfo. — Apenas apreciando os preparativos da festa. Parece que será um sucesso!
— Com certeza, meu irmão. Será uma festa muito especial.
— Disso eu não duvido — concluiu Rodolfo, soltando uma gargalhada estridente, enquanto se afastava, levando Marta pela mão.
Do outro lado, Constância os observava com ar malicioso. Já planejara tudo. Só precisava falar com Rodolfo e instruí-lo bem, para que não fizesse nada de errado. Quando eles passaram perto dela, Constância chamou:
— Rodolfo, será que poderia vir comigo um instante?
O rapaz encarou-a com ar significativo, pediu licença a Marta e saiu com a prima. Os dois foram caminhando lado a lado, e Constância ia dizendo:
— Será amanhã.
— Amanhã? Mas é a festa de mamãe...
— Por isso mesmo. Depois da festa, todos estarão exaustos e só pensarão em dormir. Ocasião ideal para uma pequena traição, não acha? Todos pensarão que Júlia, aproveitando-se do cansaço e do sono pesado de Fausto, atraiu você a seu quarto para que lhe fizesse o que seu irmão se recusa a fazer.
Rodolfo soltou uma gargalhada. Se aquele plano desse certo, Fausto estaria acabado e terminaria tudo com Júlia. Caso contrário... Não queria nem pensar. E havia ainda os Zylberberg. Avaliando as armas que tinha contra o irmão, achou que os Zylberberg poderiam esperar. Mesmo que comparecessem à festa, não faria nada contra eles... Por enquanto.
— O que devo fazer?
— Depois que a festa acabar, vá para o seu quarto. Lá encontrará as roupas de Fausto, que tirei de seu armário sem que ele percebesse. Se vista depressa e fique à espreita. Quando o lampião do quarto de Júlia se apagar, espere cerca de meia hora e entre. Depois, faça como lhe mandei. Mas não se esqueça: seja gentil e não a force. Disso vai depender todo o sucesso de nosso plano.
— Não se preocupe Constância. Farei tudo direitinho.
— Na manhã seguinte, agirei bem cedinho. A hora do café já terei contado tudo a Fausto, à minha maneira. Provavelmente ele ficará agressivo com você. Mas não revide nem tente desmentir o acontecido. Diga-lhe que Júlia o convidou, e que você, por mais que se esforçasse, não pôde resistir à tentação.
— E quanto a Júlia?
— Esqueça Júlia e confie em si mesmo. Você é inteligente e saberá escolher as palavras certas para se defender. Mas não tente dizer que não aconteceu. Diga que só aconteceu porque Júlia o provocou, e insista em que ela sabia que era você, e não Fausto.
Tudo acertado, Rodolfo voltou para perto de Marta, que não desconfiava de nada.
— O que ela queria? — indagou a moça.
— Nada. Apenas mostrar-me o presente que vai dar a mamãe.
No dia seguinte, os arranjos para a festa de Palmira estavam praticamente concluídos, restando apenas alguns detalhes de última hora. A matriarca da família Sales de Albuquerque, apesar de saudosa dos que a haviam precedido no túmulo, sentia-se feliz. Tinha a companhia dos filhos, dos netos e da sobrinha.
Constância despertou ansiosa. Estava bem próximo o dia em que, finalmente, ultimaria sua vingança. Mais um pouco e teria em suas mãos aquela que fora a causa de toda a sua desgraça. Mais um pouco e Tonha sentiria toda a fúria de seu ódio e experimentaria na carne a lâmina afiada de seu punhal. Já antegozava o prazer que sentiria ao ver o sangue da negra espalhado pelo chão. A imagem de Tonha morta encheu-a de euforia, e Constância foi para a cozinha, onde Tonha preparava os quitutes para a festa. Quando Tonha a viu entrar, soltou um grito e ficou parada a olhá-la, como se tivesse visto um fantasma, e a outra indagou com rispidez:
— O que foi que houve negra? Por acaso pareço alguma assombração?
Tonha ficou a olhá-la com ar de espanto, até que respondeu:
— Perdão, sinhá, não foi nada.
Tonha voltou a concentrar sua atenção nos doces que estava preparando. Constância aproximou-se do fogão e começou a levantar as tampas das caçarolas, cheirando seu conteúdo. Tonha, a seu lado, fingia não lhe prestar atenção, mas podia sentir a presença de alguém ali. Quando ela entrara, vira nitidamente o espírito de Inácio a seu lado, envolto em uma túnica branca, acompanhando-a com ar de tristeza e preocupação. Inácio... O grande amor de sua vida. Lembrou-se dele com ternura, da época em que estavam apaixonados, dos momentos em que mais nada parecia importar. Como o amara... E como sofrerá com sua perda. Desde que ele morrera naquele incêndio, não havia um dia sequer em que não pensasse nele.
Por uma fração de segundos, seus olhos se encontraram, e Tonha pôde perceber que Inácio tentava dizer-lhe alguma coisa, mas ela não conseguiu compreender. Há muito tempo nem sonhava com ele, e vê-lo causou-lhe enorme emoção. Tonha sabia que a presença de Inácio ali deveria ter algum motivo sério. Talvez quisesse alertá-la de algum perigo ou protegê-la. Não sabia. Em silêncio, elevou seu pensamento a Deus e guardou silêncio.
A festa estava marcada para começar às seis horas, com uma missa a ser rezada na capela pelo padre João, para comemorar tanto sua inauguração quanto o aniversário de Palmira. Ainda era cedo e já estava tudo praticamente pronto. Camila e Júlia cuidaram de tudo direitinho, e não havia muito mais o que fazer. Os quitutes estavam adiantados, a decoração impecável. Fausto até mandara trazer do Rio de Janeiro uma pequena orquestra, para animar o baile.
A hora do almoço, com a família toda reunida, Rodolfo pediu licença e levantou-se para falar. Todos voltaram para ele sua atenção, e ele, retirando do bolso um pequeno embrulho, depositou-o na frente de Palmira, dizendo com a voz carregada de uma emoção forçada e pouco convincente:
— Mamãe, quero que aceite esta pequena lembrança como um presente especial do meu coração.
Palmira abriu o embrulho com mãos trêmulas. Dentro, um pequeno pássaro todo de esmeraldas brilhou ao contato com a luz externa, e ela exclamou admirada:
— Oh! Meu filho, mas é lindo! Deve ter custado uma fortuna.
— O preço não importa. O que importa é vê-la feliz.
— Mas, meu filho, não precisava. Você e Fausto já não me deram a capela de presente? O que mais poderia desejar?
— Mas este é um presente especial de meu coração. Meu e de Júlia.
Júlia olhou-o espantada. O broche fora uma idéia dela sim, mas Rodolfo lhe dissera que o estava comprando para dá-lo em seu nome e no de Fausto. Colocara até o nome do irmão no cartão que escrevera na ocasião. Júlia apenas ajudara a escolher a jóia, nada mais.
— Seu e de Júlia? — repetiu Palmira.
— Sim, mamãe, meu e de Júlia.
— Na verdade, dona Palmira — contestou a moça —, eu apenas ajudei Rodolfo a escolher. Mas a idéia foi dele, não minha.
— Logo vi — disse Palmira para si mesma.
— Bem, mamãe, isso não importa, não é mesmo? — disse Fausto com ironia. — O que importa é que Rodolfo lhe deu o presente, não é?
Rodolfo enrubesceu, mas não disse nada. Palmira pegou o broche e admirou-o. Era mesmo uma beleza, e ela tencionava usá-lo mais tarde, na hora da missa.
Depois do almoço, Júlia saiu de braços dados com Fausto para o quintal, e Rodolfo seguia-os com o olhar. Era visível o esforço que Fausto fazia para não demonstrar contrariedade. Rodolfo mentira a respeito do broche. Por quê? E Júlia? Será que não sabia? Fausto sentia vontade de interpelá-la, mas, lembrando-se da promessa que lhe fizera, não disse nada. Júlia, por outro lado, não se sentia à vontade. Rodolfo armara-lhe uma cilada, e ela se sentia enganada e usada. O que estaria ele pretendendo? Será que ainda a amava? Pensando nisso, Júlia concluiu que Fausto talvez tivesse razão. E se Rodolfo estivesse fingindo todo aquele tempo, fazendo-se passar por amigo desinteressado quando, na verdade, o que queria mesmo era conquistá-la, afastando-a de Fausto? Ela sentiu um calafrio e já ia expor ao noivo suas idéias quando Terêncio apareceu, a mando de Rodolfo, chamando Fausto às pressas. Era um problema com o fornecedor de vinhos, e alguém precisava resolver.
— Mas justo hoje? — fez Fausto indignado. — Era só o que me faltava. Ficarmos sem vinho logo no dia da festa.
— Acalme-se, meu bem. Tenho certeza de que não é nada de mais.
Enquanto Fausto se afastava, Rodolfo resolveu entrar em ação. Vendo que Júlia voltava sozinha para a casa grande, esgueirou-se para o quintal e deu a volta por trás dela, surpreendendo-a pelas costas. A moça levou um susto enorme e soltou um grito agudo, mas Rodolfo tranqüilizou-a:
— Não se assuste Júlia. Sou eu...
Ela estava furiosa com ele, e foi logo exigindo explicações:
— Por que fez aquilo, Rodolfo?
— Aquilo o quê? — indagou, fingindo-se surpreso.
— Disse-me que o broche era um presente seu e de Fausto. Por que mentiu?
Fazendo-se de magoado, Rodolfo justificou:
— Perdoe-me, Júlia, mas não menti...
— Como não? Pois se inventou que o presente era meu também...
— Minha querida, mas que bobagem. Ficou aborrecida por isso? E eu que pensei que a estivesse ajudando... A você e a Fausto.
— Ajudando-nos? Mas como, se fez parecer que havia entre nós algum tipo de cumplicidade?
— Júlia, minha querida, você entendeu tudo errado. Eu apenas pensei que isso ajudaria mamãe a olhá-la com outros olhos. Minha mãe não é como eu, que esquece as ofensas rapidamente, e só o que quis foi mostrar-lhe que você não lhe guarda mágoa pelo que aconteceu no dia em que discutiram por causa de Trajano.
— Isso já foi há tanto tempo...
— Mas minha mãe não se esqueceu.
Ela coçou a testa, desconfiada, e retrucou:
— Se é assim, por que não incluiu Fausto também?
— Por quê? Não sei. Esqueci-me. Talvez tenha sido um erro e uma grosseria, mas não tive a intenção de causar nenhum problema. Fausto se aborreceu?
— Ele não me disse, mas creio que sim. Eu o conheço e sei que estava contrariado.
— Júlia, por favor, acredite em mim. Não quis aborrecê-los. Novamente, peço que me perdoe. E não se preocupe com Fausto. Falarei com ele e tudo se resolverá.
Júlia já não acreditava mais nele. Fausto tinha razão. Ele era ardiloso e parecia ter sempre uma desculpa para justificar suas boas intenções. No entanto, não queria brigar com ele. Afinal, era dia do aniversário de dona Palmira, e uma briga nesse momento só serviria para piorar as coisas. Ela daria razão ao filho e estabelecer-se-ia entre eles um clima de animosidade que era melhor evitar. O mais apropriado no momento era fingir que não percebera nada e ir mostrando-lhe que estava perdendo seu tempo, se pensava que ela trocaria Fausto por ele. Enquanto isso, Fausto se desembaraçara do fornecedor e voltara, à procura de Júlia. Rodolfo, aproveitando-se da distração da moça com a conversa, foi conduzindo—a para o jardim, em direção ao caramanchão, e ela nem percebera quando pararam e se sentaram em um banco, à sombra de uma roseira. Por isso Fausto não a encontrara. Constância, porém, mancomunada com o primo, logo que viu Fausto aparecer, seguiu distraída em sua direção, como se estivesse apenas passeando e tomando ar.
— Constância — chamou ele —, por acaso viu Júlia?
— Júlia? Ah, sim — e fingindo que os confundia, acrescentou: — Estava agorinha mesmo caminhando com Fausto pelas alamedas do jardim.
Sem responder, Fausto virou-lhe as costas e saiu desabalado em direção ao caramanchão, alcançando-o bem no momento em que Rodolfo, percebendo-lhe a aproximação, segurava a mãe de Júlia e perguntava:
— Amigos?
Fausto chegou feito um furacão e quase espancou Rodolfo que, espertamente, soltou a mão de Júlia e exclamou:
— Fausto! Que bom que chegou. Queria mesmo falar com você, pedir-lhe desculpas...
Mas Fausto não queria escutar. Estava farto de Rodolfo e de suas desculpas. E Júlia... Por mais que quisesse, não conseguia afastar a desconfiança. Ele olhou rapidamente para o irmão, sorriu amargamente e puxou Júlia pela mão, sem dizer nada. Fizera-lhe uma promessa e pretendia cumpri-la, mas não conseguia disfarçar o ciúme e o despeito que lhe oprimiam o coração. Júlia, temendo que Fausto se zangasse, começou a dizer:
— Fausto, deixe-me explicar...
— Não precisa explicar nada — cortou ele. — Já vi tudo e prefiro que não diga nada.
Júlia silenciou, os olhos rasos d'água. Será que Fausto duvidava dela? Tudo indicava que sim. E se duvidada mesmo, então não era mais digno de seu amor.



CAPÍTULO 22



Às seis horas em ponto, o padre João iniciou a missa na capela de São Jerônimo, padroeiro da fazenda havia mais de cinqüenta anos. A capela estava toda enfeitada, com a imagem do santo imponente sobre o altar. Todos os fazendeiros da região estavam presentes, e havia até gente em pé. Só a irmã de Palmira, Zuleica, e a sobrinha, Berenice, não compareceram. Estavam prestes a chegar da Europa, mas não conseguiram voltar a tempo.
Uma hora depois, quando o padre deu por encerrado o culto, Palmira convidou os presentes para o jantar. À noite, as portas do salão de baile se abriram. A orquestra começou a tocar e os pares começaram a se formar para a dança. Palmira, apesar de feliz, não aceitara o convite de nenhum dos filhos para a valsa. Ainda estava de luto, e o fato de haver concordado com aquela festa não a isentava dos procedimentos adequados ao seu estado de pesar pela morte do marido.
Fausto, cabisbaixo, procurava disfarçar o mau humor e dançava maquinalmente com Júlia, que tentava ocultar a mágoa e a decepção. Rodolfo não largava Marta e, a todo instante, tomava conta dos passos do irmão, intimamente adivinhando-lhe os pensamentos. Ele se deixara dominar pela desconfiança, e era patente que ele e Júlia havia se desentendido. Tanto melhor. Aquilo ainda facilitaria as coisas, pois Júlia, na ânsia de fazer as pazes com Fausto, acabaria por entregar-se a ele, Rodolfo, sem nem perceber.
Estava tão absorvido com os movimentos de Fausto que nem se lembrava mais dos Zylberberg. Embora ele soubesse que a presença deles ali acabaria por desequilibrar ainda mais o irmão, que tudo faria para afastá-los da companhia da mãe, os judeus haviam passado a segundo plano. Haveria tempo para eles, e não importava que não tivessem comparecido.
Os Zylberberg, na verdade, desconfiaram do convite de Túlio e acharam melhor consultar Camila. Embora ela muito quisesse apresentá-los à mãe, temia uma reação adversa por parte dela e achara melhor esperar. Assim, Camila aconselhara-os a não ir, e eles até se sentiram aliviados, não se considerando ainda prontos para enfrentar a adversidade de Palmira.
O baile transcorreu sem incidentes, e Palmira exibia orgulhosa, o broche de esmeraldas que Rodolfo lhe dera, cuidadosamente ajeitado sobre a renda preta do vestido. Apesar de não entender por que Fausto fora o único a não presenteá-la, não disse nada. Afinal, a capela era um presente maravilhoso, e ela não tinha do que se queixar. No fundo, porém, ao receber o broche de Rodolfo, esperou que Fausto também lhe desse algo mais pessoal e ficou um pouco decepcionada quando ele chegou ao baile de mãos abanando.
De madrugada, quando o último convidado se retirou, estavam todos exaustos e só o que queriam era dormir. Fausto ainda não voltara a falar direito com Júlia, e quando ela o procurou para dar-lhe um beijo de boa noite, ele virou discretamente o rosto, oferecendo-lhe a face. Aquilo a magoou profundamente, mas Rodolfo, que a tudo assistira, exultou. Parecia que o céu conspirava a seu favor. Já em seu quarto, Júlia trocou de roupa e deitou-se na cama, soprando o lampião, e pôs-se a pensar em Fausto. Ela o amava muito. Seu quase desprezo a magoara profundamente, e ela começou a chorar baixinho. Sentindo, porém, as pálpebras pesarem, Júlia logo adormeceu, ainda com Fausto em seus pensamentos. Cerca de meia hora depois, um ruído na porta fez com que despertasse. Ela abriu os olhos, sonolenta, e viu uma silhueta masculina aproximar-se da cama. Assustou-se e fez que fosse se levantar, mas o vulto, acercando-se mais dela, beijou-a apaixonadamente e sussurrou:
— Júlia, querida, perdoe-me. Eu a amo e fui injusto com você.
Não fossem aquelas suas palavras e talvez Júlia até desconfiasse. No entanto, ele dissera exatamente aquilo que ela esperara ouvir a noite toda, e ela nem pensou que pudesse não ser Fausto o homem que ali estava, atendendo ao seu desejo, desculpando-se e falando de amor. Além disso, Rodolfo falava tão baixinho, e sua voz era tão parecida com a de Fausto, que Júlia nem sequer desconfiou. Parecia-lhe que ele sussurrava em seu ouvido as doces palavras que ela, tão desesperadamente, ansiava por escutar. Totalmente enleada, retrucou:
— Oh! Fausto! Nem sabe o quanto esperava ouvir isso. Como pôde desconfiar de mim?
— Perdoe-me! Perdoe-me! — sua voz era quase súplice. — Fui cego, o ciúme me tirou a razão. Mas eu a amo tanto...
E começou a beijá-la delicadamente, primeiro nos lábios, depois descendo pelo pescoço, pelas orelhas, pela nuca. Júlia sentiu um arrepio de prazer. Sabia que não devia, mas ela o amava e também estava confiante em seu amor por ela. À medida que Rodolfo a beijava, ela ia amolecendo, e ele começou a deslizar as mãos sobre o seu corpo, ao mesmo tempo em que sussurrava:
— Meu amor... Quero que seja minha... Minha, para sempre...
Júlia já estava quase se deixando seduzir, sentindo o corpo trêmulo de Rodolfo de encontro ao seu. Ele começou a levantar-lhe a camisola, de forma suave e delicada, e ela foi se entregando. Até que, de repente, sentindo próxima a consumação do ato sexual, uma luzinha de discernimento começou a despontar dentro dela e, empurrando-o delicadamente, disse:
— Não, Fausto, não... Não está direito...
Rodolfo, consumido pelo desejo, a muito custo conseguiu conter-se. Com voz hesitante, respondeu baixinho:
— Tem razão, minha querida, perdoe-me. Não devia ter feito isso. Mas é que a amo...
Com gestos de calculada compreensão e resignação, Rodolfo afastou-se de Júlia, sentando-se na cama, de costas para ela. A moça, ouvindo-lhe a respiração ofegante, levantou o rosto para ele, vislumbrando-lhe o tórax musculoso na penumbra. Naquele momento, sentiu o coração disparar, e o desejo tomou conta de seu corpo. Ela abraçou-o por trás e mordeu-lhe o lóbulo da orelha, acrescentando, cheia de emoção:
— Eu o amo. Quero ser sua.
Rodolfo voltou-se para ela e tomou-a nos braços, mansamente recomeçando seu ritual de amor. Só que dessa vez, Júlia não o repeliu. Ao contrário, entregou-se a ele com paixão, certa de que estavam concretizando seu amor.
Tudo terminado, Rodolfo beijou-a apaixonada e carinhosamente, fez-lhe juras de amor e saiu. No corredor às escuras, caminhou de volta a seu quarto e ainda pôde vislumbrar a porta do quarto de Constância se fechando lentamente. Despiu as roupas de Fausto e guardou-as no armário, bem escondidas, para, no dia seguinte, colocá-las junto com a pilha de roupas para lavar. Estava exultante! O resultado de sua empreitada saíra melhor do que esperara.
Na manhã seguinte, bem cedo, Constância pulou da cama e foi bater na porta do quarto de Fausto. O rapaz, ainda semi-adormecido, foi atender e assustou-se com a presença da prima ali, àquelas horas.
— Constância! — exclamou, num bocejo. — O que faz aqui tão cedo?
— Vim preveni-lo — respondeu a meia-voz, entrando rapidamente e fechando a porta atrás de si.
— Prevenir-me? De quê?
— Ouça não quero me intrometer em sua vida, nem tampouco censurá-lo. Já fui jovem também e apaixonada, e sei como são os arroubos da juventude.
— Não entendo o que quer dizer.
— O que você fez foi muito imprudente. A sorte foi que fui eu quem viu, e não sua mãe...
Fausto, embora desconhecendo o que havia se passado, imaginou tratar-se de Rodolfo. Na certa, o irmão fizera alguma besteira, e ela os confundira. O mais provável era que tivesse dormido com alguma escrava, o que, efetivamente, enfureceria a mãe. Balançando a cabeça em negativa, protestou:
— Creio que está enganada, prima. Seja o que for que tenha visto, não fui eu. Provavelmente, Rodolfo.
— Rodolfo?! — fez ela, admirada. — Ora, meu caro, não precisa fingir para mim, pois não direi nada. Imagine... Rodolfo saindo do quarto de Júlia no meio da noite, semi-despido e desalinhado! Ora, Fausto, francamente...
Fausto desabou fulminado. O que era aquilo? Algum pesadelo? Completamente fora de si, correu em direção ao quarto de Júlia e escancarou a porta. A moça dormia placidamente, um sorriso de felicidade a iluminar-lhe o rosto. Por um momento, seu coração se enterneceu. Ela parecia um anjo e não seria capaz de traí-lo de forma tão vil. Constância devia ter se enganado. Na certa, sonhara e se confundira. Com os olhos úmidos, abaixou a cabeça e suspirou. Foi então que viu, jogado a um canto, um lençol branco, cuidadosamente dobrado e oculto sob a mesinha. Curioso, abaixou-se e puxou o lençol, desdobrando-o freneticamente. Em seguida, atirou-o no chão, horrorizado, e correu porta afora. Jamais esqueceria aquela imagem. A imagem do sangue de Júlia derramado sobre o lençol.
Partindo dali, correu para a cocheira, encilhou o cavalo e saiu sem rumo. Queria esquecer o que vira esquecer que amava Júlia. Esta, porém, logo que ele saiu, despertou com o barulho. Ao levantar-se, percebeu que alguém estivera ali. Vendo a porta escancarada e o lençol aberto, jogado no chão, compreendeu que havia sido descoberta. Rapidamente, lavou-se, vestiu-se e correu ao quarto de Camila. A cunhada também acabara de se levantar e preparava-se para o café.
— Bom dia — disse Camila, beijando-a no rosto. — Dormiu bem?
Júlia balbuciou um tanto quanto constrangida:
— Camila... Por acaso esteve em meu quarto hoje cedo?
— Eu? Não, por quê? -Jura?
— Juro. Por quê? O que foi que houve? Percebendo-lhe a palidez, Camila tomou-a pela mão e fê-la sentar-se.
— Muito bem — disse. — O que aconteceu? Vamos, conte-me.
Pode confiar em mim. Sou sua amiga e quero ajudá-la.
Júlia confiava em Camila como jamais confiara em mais ninguém. Se ela dissera que não havia estado em seu quarto, era porque não estivera mesmo. Mas quem teria sido? Pelo estado em que encontrara a porta e o lençol podia deduzir que, fosse quem fosse não gostara nada do que vira. E só havia duas pessoas que reagiriam assim: Rodolfo ou Palmira.
Calmamente, Júlia contou à cunhada tudo o que havia acontecido na noite anterior, sem omitir nenhum detalhe. Fora maravilhoso, mas alguém os descobrira, e ela precisava avisar Fausto. Ao final da narrativa, Camila considerou:
— Ouça, meu bem, não se atormente tanto. O que você fez foi uma loucura, uma precipitação. No entanto, é certo que vocês se amam e que pretendem se casar.
— É verdade.
— Então, não há com o que se preocupar. Por mais que mamãe ou Rodolfo os recriminem, não poderão fazer nada. Já está consumado. Só o que temos a fazer é marcar para logo a data do casamento.
— Acha mesmo?
— Claro que sim. Você e Fausto se amam, já tiveram uma noite de amor. Não há por que esperar.
— Oh! Camila, você é tão boa!
— Não se esqueça de que passei por situação semelhante. Só que o homem que me desonrou não me amava e quase arruinou minha vida.
Júlia, percebendo certo tom de tristeza na voz de Camila, retrucou penalizada:
— Eu sinto tanto!
— Não precisa minha filha. Hoje sou feliz ao lado de seu irmão. Mas você não precisa passar por nada do que eu passei. E agora, vá procurar Fausto e converse com ele. É importante que estejam unidos.
Por mais que tentasse, Júlia não conseguiu encontrar Fausto. Procurou por toda parte. Até foi a cavalo ao cafezal, onde ele se escondera da outra vez, mas nada. Ninguém o vira e ninguém sabia onde estava. Rodolfo também havia desaparecido. Desaparecido não. Refugiara-se no quarto o dia todo, pretextando uma forte dor de cabeça, conseqüência do vinho da noite anterior. Júlia começou a se inquietar. Será que Fausto se arrependera e não tinha coragem de enfrentá-la? Se assim fosse, era porque não a amava. Senão, que outros motivos teria para sumir no dia imediato à sua primeira noite de amor?
Ela estava desanimada e, ao cair da noite, sentou-se na varanda em companhia de Camila, que tentava, de todas as formas, encorajá-la. Foi então que divisaram no crepúsculo o vulto de Fausto se aproximando a cavalo. Júlia deu um salto da cadeira e, coração em disparada, correu para a escada, esperando que ele chegasse e fosse falar com ela. Em vez disso, ele subiu, batendo as botas no assoalho, e passou por ela feito uma bala, sem lhe dirigir um olhar sequer. Júlia foi atrás dele, tentando segurar-lhe o braço, e chamou:
— Fausto! O que houve? Por quê...?
Ele puxou o braço bruscamente, encarou-a com os olhos em fogo e, chispando de ódio, vociferou:
— Solte-me, sua ordinária! Por que não corre atrás de seu amante?
Os olhos de Júlia encheram-se de lágrimas e ela soltou-o, confusa. Fausto saiu em disparada, e ela lançou para Camila um olhar de indignação. Não conseguia compreender. Então Fausto a amava de noite e, no dia seguinte, a rejeitava e ofendia? Será que a estava acusando de indigna por haver-se entregado a ele antes do casamento? Teria ele coragem de acusá-la de mulher fácil só porque não o repelira, julgando-a indigna de tornar-se sua esposa? Pensaria que ela deveria ter resistido a suas carícias, mesmo sabendo que o amava e que só se entregaria a ele? A ele e a mais ninguém? Júlia não sabia o que pensar e desatou num choro convulso, que Camila tentava conter.
— Acalme-se, minha menina — disse com brandura. — Alguma coisa deve ter acontecido.
— Mas o quê? O quê? Fausto disse que me amava, prometeu casar-se comigo. Será que me enganei com ele?
— Não creio. O mais provável é que algo de muito grave tenha acontecido.
— Mas o quê? O que seria tão grave a ponto de fazê-lo esquecer nosso amor e humilhar-me daquela maneira?
—Não sei Júlia, mas prometo que vou descobrir.
Camila levou-a para o quarto, deitou-a na cama e só saiu depois que ela adormeceu indo direto bater na porta do quarto de Fausto. Como o irmão não respondesse, ela rodou a maçaneta e entrou. Fausto estava sentado em uma poltrona, de frente para a janela, e não a ouviu bater nem a viu entrar. Ela aproximou-se dele e tocou-o levemente no ombro. Fausto virou-se lentamente e fitou-a.
— O que quer? — indagou com raiva. — Veio tentar defender sua protegida?
— Como posso defender alguém que nem sabe do que é acusada?
— Ora, Camila, não se faça de desentendida. Duvido que Júlia não tenha lhe contado o que aconteceu.
— Contou sim. Mas isso não é motivo para tratá-la do jeito que a tratou. Se ela fez o que fez, foi por amor.
— Mas que bonito! Se ela ama Rodolfo, e não a mim, por que não foi sincera comigo e não me contou? Eu ficaria triste, é verdade, mas acabaria por entender e aceitar. Mas trair-me... Isso não. Não posso admitir.
Camila, a princípio, não entendeu bem do que ele estava falando e permaneceu ali parada, olhando para ele meio apalermada. No entanto, tudo começava a fazer sentido. O desaparecimento de Fausto, sua reação... A conveniente dor de cabeça de Rodolfo... De repente, foi como se todas as peças de um quebra-cabeça se encaixassem, e ela pôde nitidamente visualizar toda a trama de que Júlia fora vítima. Coberta de horror, ela deu um salto e indagou:
— O que está me dizendo? Era Rodolfo na noite passada, e não você?
— Ouça Camila, não adianta agora tentar me convencer de que Júlia não sabia que era Rodolfo. Esse truque dos irmãos gêmeos já é velho e não convence ninguém.
— Mas ela não sabia mesmo. Ela me disse que foi você...
— Mentira! Não adianta querer me fazer acreditar nesse conto da carochinha, porque não vai! Não sou nenhum tolo! Eu bem que deveria ter desconfiado. Aqueles dois, sempre juntos, sempre fingindo nada existir entre eles, fazendo com que parecesse que eu era um idiota ciumento. Como fui estúpido!
— Mas Fausto, ela não sabia. Posso lhe assegurar que os confundiu.
— Confundiu... Pois se foi ela mesma quem disse que éramos inconfundíveis.
— Mas estava escuro. Ela me disse que era você. A mesma voz, os mesmos gestos carinhosos. Até as roupas eram as suas. Fausto, você e Rodolfo são idênticos. Não é difícil se enganar, ainda mais na penumbra.
— Vai querer agora me convencer desse absurdo? De que Júlia se entregou a Rodolfo pensando que era eu? Ora, minha cara, isso é ridículo. E depois, Rodolfo jamais iria ao quarto de Júlia se ela não o convidasse ou, ao menos, o estimulasse.
— Está errado, Fausto. Tudo é possível.
— Será que Júlia não reconheceria meus beijos, meus carinhos? Não, Camila, Júlia sabia que estava nos braços de Rodolfo, e não nos meus. Na certa, pensou que eu não fosse bom demais para ela. Sempre a respeitando, querendo esperar. Ela é uma ordinária, isso sim.
— Não diga isso! Ela o ama.
— Bem se vê o quanto me ama.
Camila deixou caírem os braços ao longo do corpo e suspirou desanimada. Como faria para convencê-lo?
— Escute Fausto, e tente raciocinar. Se tudo ia bem entre vocês, por que Júlia se entregaria a Rodolfo?
— Não sei. Talvez não tenha tido coragem suficiente para assumir que já não era a mim que desejava, e sim a ele. Afinal, Rodolfo é impetuoso, arrojado, e eu sou um tolo respeitador. E as mulheres gostam disso, não é Camila? No fundo, gostam de homens atrevidos e ousados.
— Mas isso é um disparate!
— Será? Eu estava cego de amor e não pude perceber que Júlia já não se interessava mais por mim.
— Fausto isso é um absurdo. Júlia o ama, não o trocaria por ninguém.
— Não acredito em você. Ela estava me enganando, e bem debaixo do meu nariz. Não fosse por Constância, jamais teria descoberto.
— Constância? O que ela ter a ver com isso?
— Foi ela quem me avisou sobre eles.
Camila começava a entender. Tudo não passara de uma trama diabólica para separar Fausto e Júlia. Mas por quê? O que Constância lucraria com isso?
— Por que acha que Constância o avisou? Não acha que pretendia, deliberadamente, provocar uma briga entre vocês?
— Isso é uma tolice. Constância contou-me sem querer. Ela sim, confundiu Rodolfo comigo e pensou que fosse eu quem vira saindo do quarto de Júlia, no meio da noite. Veio alertar-me quanto à mamãe.
— Fausto, seja razoável. Não vê que Constância e Rodolfo armaram tudo isso direitinho? E que você caiu sem nem pestanejar?
— Por que Constância faria isso? O que lucraria com nossa separação?
— Não sei. Mas algum motivo deve existir.
— Não acredito nisso. Você está tentando arranjar uma desculpa que justifique a indignidade de Júlia.
— Ouça Fausto, conheço Constância muito bem. Ela sempre foi ardilosa, maquiavélica. Se entrou nessa história, é porque alguma coisa em troca Rodolfo lhe prometeu.
— Isso é loucura! Rodolfo nada tem que possa lhe interessar.
— Tem sim, Fausto. Só não sei o que é. Mas vou descobrir. Pode apostar.
Por mais que se esforçasse, Fausto não conseguiu conter o pranto e desatou a chorar, agarrando-se à cintura da irmã. Camila acariciou seus cabelos, ergueu seu queixo e perguntou:
— Você confia em mim?
Ele olhou-a em dúvida e replicou:
— Por quê?
— Confia ou não confia?
— Sim... — respondeu hesitante.
— Pois muito bem. Façamos o seguinte: deixe-me investigar. Se descobrir que Júlia é inocente, promete que a aceitará de volta?
— Vai perder seu tempo.
— Não faz mal. Você promete?
— Mas ela agora já não é mais moça... Como aceitá-la, se já foi deflorada por outro?
— Você a ama?
— Sim. Apesar de tudo, não posso negar que a amo.
— Então saberá vencer o preconceito e aceitá-la. Camila saiu dali disposta a descobrir a verdade. Ela não tinha dúvidas de que aquilo era obra de Constância. Era bem seu estilo. O que tinha a fazer era desmascará-la, e era o que faria.



CAPÍTULO 23



Mais um dia amanhecia, e Sara preparou-se para sair. Tivera uma noite péssima, com febre e calafrios. Tossira sem parar e chegara a pensar que morreria. Frei Ângelo não saiu de sua cabeceira, rezando e pedindo a Deus que não a deixasse desistir. Não quando tudo começava a melhorar. Aos poucos ela foi se acalmando, até que a febre cedeu, a tosse cessou e ela conseguiu adormecer.
Sara lavou-se e penteou os cabelos, auxiliada por Laurinda, e olhou-se no espelho. Sob os olhos, a mancha roxa começava a se dissipar. A tez, se bem que bastante pálida, já mostrava sinais de um colorido fugidio, embora ainda não houvesse readquirido o viço próprio da mocidade. Estava magra, quase esquálida, os ossos despontando aqui e ali, e ainda sentia no peito uma dor que parecia queimar. Apesar de sem apetite, pensou em juntar-se à família para o café. Podia não sentir muita fome, mas tinha vontade de participar da alegria do desjejum.
A mesa do café, apenas a mãe não estava presente. Encontrava-se na cozinha, preparando uma bandeja para levar-lhe no quarto. Frei Ângelo conversava com Ezequiel, que estacou, sustendo no ar a xícara de chá que já ia levando aos lábios assim que viu a filha se aproximar. De um salto, soltou a xícara e exclamou:
— Sara! O que faz aqui, minha filha?
— Ora, papai, vim juntar-me a vocês.
— Mas... Mas...
— Está se sentindo melhor? — indagou frei Ângelo.
— Sinto-me bem melhor sim, obrigada. Parece que recobrei um pouco do ânimo.
— Mas que notícia maravilhosa! — animou-se o pai. — Era tudo o que esperávamos ouvir.
— E mamãe?
— Na cozinha, preparando uma bandeja para levar a seu quarto.
— Pobre mamãe. Sempre a se desvelar. Pois vou lá dizer-lhe que não se incomode. Estou mais bem disposta hoje.
Nesse instante, Rebeca, avisada por Laurinda da presença de Sara à mesa, chegou apressada e, vendo a filha sentada ao lado do marido, derramou lágrimas de felicidade e disse:
— Oh! Graças aos céus, minha filha! Quando Laurinda me disse, não pude acreditar.
— Não pôde acreditar por que, dona Rebeca? — indignou-se frei Ângelo. — A recuperação de Sara já era esperada. Ou não era?
Rebeca, um pouco confusa, retrucou meio sem jeito:
— Claro... Claro que era... Mas depois da noite passada...
— Ora, mamãe, a noite passada foi apenas uma recaída. Não vai se repetir.
— Assim é que se fala minha filha — disse frei Ângelo, animando-a.
— Frei Ângelo está operando milagres — retrucou Sara, sorrindo para ele.
Rebeca voltou-se para ele e acrescentou com emoção:
— Obrigada, frei Ângelo. O que está fazendo por minha filha não tem preço.
— O único preço possível é sua felicidade. E agora, dona Rebeca, por que não se senta? Sara deve estar com fome.
Ela torceu o nariz e, olhando para um bolo de fubá que se encontrava sobre a mesa, objetou:
— Na verdade, não estou com muita fome, não. Mas queria fazer-lhes companhia.
Rebeca e Ezequiel se entreolharam, e ela insistiu:
— Por que não toma ao menos uma xícara de chá ou de leite?
Sara pensou por alguns instantes. Não sentia fome, era verdade, mas a idéia de uma xícara de leite até que lhe pareceu apetitosa, e ela acabou por concordar:
— Leite está bem, mamãe.
Rebeca serviu-lhe uma xícara de leite puro, e Sara começou a beber devagarzinho. Estava uma delícia! Doce e morninho, e ela sentiu imenso prazer em saborear aquele leite. Sem perceber, bebeu a xícara inteira e pediu mais, servindo-se de um pedacinho de pão, para acompanhar. Não comeu muito, mas já era um bom começo. Depois do café, frei Ângelo e Sara retiraram-se para o jardim, onde costumavam ter suas conversas. A manhã estava fresca e ensolarada, e Sara inspirou fundo, sentindo o ar puro penetrando em seus pulmões. Tossiu levemente, olhou para frei Ângelo e sorriu. Apesar do tanto que tossira na noite anterior, ao menos não expelira sangue, o que era bom sinal. Os dois sentaram-se e levantaram os rostos para o Sol. Àquela hora o calor ainda era ameno, e um banho de Sol era extremamente saudável e prazeroso. Frei Ângelo fechou os olhos e, sem abri-los, observou:
— Você nos assustou ontem, Sara. Pensei que fôssemos perdê-la.
— E por pouco não perdem mesmo. Cheguei a pensar que fosse morrer.
— Graças a Deus que você se recuperou.
— Sim, graças a Deus.
— Sabe, Sara, pensei que sair com Júlia e os demais fosse bom para você.
— Oh, mas é! Gosto de nossos passeios. À exceção de Rodolfo, sempre sarcástico e mordaz, os outros são muito agradáveis. Têm-me ajudado bastante.
— Ótimo! Fico feliz em saber disso.
— Não se deixe impressionar pelo que houve ontem, frei Ângelo. Foi uma crise isolada e passageira.
— O que será que provocou isso?
— Não sei. Talvez tenha sido a decepção por não poder estar junto de Dário na festa de sua avó.
— Será?
— Creio que sim. Eu queria ir estar junto dele, apresentar-me como sua noiva. Mas quando papai disse que não iríamos, fiquei frustrada, sentindo-me rejeitada de novo, só porque somos judeus. Como se ser judeu fosse algo do que se envergonhar.
— Não há do que se envergonhar Sara. Mas é bem possível que sua recaída tenha sido causada por isso, sim. Afinal, sabemos que uma das maiores causas de sua enfermidade é, justamente, o sentimento de rejeição, não é mesmo?
— É sim. Mas já passou. Sinto como se, em meio a toda aquela crise, algo em mim tivesse se transformado, trazendo para meu espírito uma compreensão que antes não sentia.
— Como assim?
— Não sei explicar. E como se conseguisse ter mais confiança em mim mesma e, sobretudo, em Deus. Se não pude estar junto de Dário ontem, com certeza é porque esse ainda não era o momento mais apropriado. Talvez dona Palmira fosse nos destratar ou algo de muito ruim pudesse nos acontecer.
— Que bom que pensa assim, Sara.
— Pois é. Fiquei imaginando que, se fosse algo bom para nós, tudo teria dado certo e nós teríamos ido à festa.
— Posso saber o que foi que deu em você para alcançar essa compreensão?
— O senhor, frei Ângelo. O senhor foi quem me ensinou a ter fé e confiança em mim e em Deus. Hoje de manhã, quando acordei e vi que havia sobrevivido à noite passada, foi que me dei conta da infinita bondade de Deus. Sei que Deus é perfeito e nada faria que pudesse me prejudicar. Só o que foi necessário foi que eu compreendesse que a ajuda que vem de Deus nem sempre é aquela que desejamos, mas, com certeza, é a de que mais precisamos no momento. Quando compreendi isso, foi muito mais fácil aceitar.
— Sara, o que me diz é maravilhoso. É por isso que você hoje está melhor. Se conseguiu entender essas coisas e está tentando transformá-las, não será mais necessário que a enfermidade venha para alertá-la.
— É verdade. Não vou dizer que não estou triste nem frustrada. Estou. Mas consegui encarar a tristeza e a frustração como coisas que acontecem na vida de todo mundo, com as quais aprendemos a lidar e, sobretudo, que elas não significam que não sejamos queridos ou que sejamos rejeitados por quem amamos.
— Continue assim, Sara, e tenho certeza de que conseguirá controlar sua doença.
— O senhor, mais do que ninguém, vem me ajudando muito. Os passeios e os amigos são agradáveis, fazem-me sentir viva e com vontade de viver. Mas só o senhor consegue acender em mim a luz da compreensão.
— Isso é muito bom. Somente quando nos compreendemos é que podemos nos modificar.
— Sabe, frei Ângelo, desde que o senhor aqui chegou, comecei a me olhar de uma maneira diferente. Não como uma pobrezinha ou um estorvo, mas como alguém que é capaz de ser alguém, de se dar o devido valor, de se olhar no espelho e se sentir capaz de ser amada. É claro que, de vez em quando, tenho uma recaída, como ontem, e me vejo de novo naquela posição da pobre menina abandonada. Mas isso passa rápido, e logo retomo o equilíbrio sobre mim mesmo.
— Sara, você é mesmo uma menina especial. E pode ter certeza: a cura de sua doença está mesmo em suas mãos.
— Pois é. Hoje acredito nisso. Com o desenrolar de nossas... Sessões... Comecei a analisar minha vida, meus medos, minha solidão, e hoje estou certa de que o senhor tinha razão. Eu sempre fui uma menina só e triste, e se esses sentimentos não têm origem nesta vida, essa origem só pode estar em vidas anteriores.
— Acredita agora?
— Sim. Os sonhos me levaram a isso. Analisando-os bem, vejo que tudo se encaixa. Só eles podem explicar o fato de eu sentir tanta rejeição, sem que nunca tenha sido rejeitada.
— É verdade. Como você mesma pôde perceber, em uma vida anterior você não conseguiu suportar essa rejeição e passou a se fechar cada vez mais dentro de si. Em vez de lutar contra a tristeza, deixou que o sentimento a dominasse e entregou-se ao desânimo, desistindo de tentar ser feliz. Com isso, foi-se fechando, fechando, até que adoeceu, e logo de quê? Dos pulmões.
— Sim. Como lhe disse, sonhei que era uma menina e que tinha pneumonia.
— Está vendo? Sempre a mesma coisa. Solidão e tristeza. Naquela vida você desenvolveu uma pneumonia que a acabou matando, e nessa, quase envereda pelo mesmo ou por caminho pior, abrindo espaço em seu corpo físico para que a tuberculose se instalasse.
— Tem razão. Mas não quero padecer. Não dessa vez. Sinto que deixei para trás algo muito importante em minha vida e que hoje quero resgatar.
— Dário?
— Sim. Sei que o perdi, pois a morte prematura impediu-me de viver a seu lado. Hoje tenho novamente essa oportunidade e não quero desperdiçá-la. Quero viver e ser feliz ao lado do homem que amo.
— Assim é que se fala, Sara.
— Sei que vou conseguir. Hoje posso dizer que compreendo minha doença, e graças ao senhor, que me fez acreditar que já vivemos muitas vidas.
Frei Ângelo voltou o rosto contra o Sol e viu que Dário ia se aproximando, em companhia de Júlia.
— Por falar em Dário...
Sara ergueu-se vagarosamente e estendeu os braços para ele, que foi correndo ao seu encontro. Logo que a alcançou, tomou-a nos braços e ergueu-a, beijando-a suavemente. Ela corou e, virando-se para Júlia, cumprimentou:
— Olá, Júlia.
— Olá, Sara. Como está?
— Melhor agora que vocês chegaram.
— Venha — interrompeu Dário. — Caminhemos um pouco ao Sol.
Frei Ângelo convidou Júlia a sentar-se junto dele. Ela estava abatida, e os olhos inchados demonstravam que havia chorado. Não querendo violar sua intimidade, mas ansioso por ajudá-la, perguntou:
—Está tudo bem, Júlia?
Júlia não respondeu. Desatou a chorar, e de forma tão sentida que frei Ângelo se preocupou. O que teria acontecido?
— Não quer me contar o que houve? — arriscou.
— Oh! Frei Ângelo, por favor, deixe-me apenas ficar aqui a seu lado.
Ela pousou a cabeça no colo do frei e continuou a soluçar. Embora ela não lhe dissesse, frei Ângelo tinha certeza de que algo muito sério havia acontecido, e sua intuição lhe dizia que havia sido com Fausto. Contudo, achou melhor não falar nada. Estava claro que Júlia não queria conversar. Queria apenas um colo amigo e acolhedor, onde pudesse dar livre curso às lágrimas e desabafar. Vendo que ela, finalmente, se acalmara, frei Ângelo tentou novamente:
— Não quer mesmo me contar o que aconteceu?
Júlia não sabia o que dizer. Sequer sabia ainda o que acontecera. Só o que sabia era que Fausto a tratara mal e não conseguia atinar no motivo.
— Frei Ângelo, gostaria de me confessar.
— Pois não, minha filha. Vamos lá dentro. Preciso me preparar e...
— Não, frei Ângelo, isso não será necessário. Posso confessar-me aqui mesmo, e sem qualquer indumentária especial.
— Está bem, minha filha, fale.
— Frei Ângelo, eu... Eu... Entreguei-me a Fausto na noite passada.
— E...?
— E agora ele me despreza. Oh! Frei Ângelo, estou desesperada, não sei o que fazer. Entreguei-me porque o amava e pensei que ele também me amasse. Mas agora, não sei mais em que acreditar. Ele me destratou, humilhou-me. Foi horrível! Sei que errei, mas foi por amor! Por amor, entende isso?
Ele tomou suas mãos com ternura e disse com voz bondosa:
— È claro que sim, criança. Não se desespere.
— Como não? Ele me abandonou, não quer me ver, não fala comigo...
— Minha filha, quer a absolvição do padre ou o conselho do amigo?
— Os dois.
— Pois bem. Como padre, devo recomendar-lhe que entregue seu coração a Deus e peça para que tudo se esclareça. Como amigo, devo dizer-lhe que não acredito que Fausto a tenha abandonado.
— Não?
— Não. Alguma coisa aconteceu que o fez tratá-la da forma como a tratou.
— Mas o quê? Eu não fiz nada.
— Não sei minha filha, mas sinto que vocês foram vítimas da maldade alheia.
— Será? Mas quem faria uma coisa dessas?
— Não sei e não quero conjecturas. Não devemos julgar nem levantar falsos testemunhos.
— E o que farei?
— Confie e aguarde. Deus jamais desampara aqueles que nele crêem.
Júlia voltou para casa com o coração mais sereno mais confiante. Em seu íntimo, sabia que estava prestes a atravessar duras provas, mas acreditava que as superaria. Tinha que acreditar.



CAPÍTULO 24



Quando Júlia descobriu o que havia acontecido, desesperou-se. Não fosse tão corajosa, teria se matado. Aquilo não podia ser real. Era uma crueldade do destino, e ela não podia se conformar, embora Camila tentasse, a todo custo, consolá-la.
— Acalme-se, querida. Desespero não leva a nada.
— Oh! Camila! Sinto que o mundo inteiro ruiu sob meus pés.
— Não diga isso. Nem tudo está perdido.
— Como não? O que será de mim agora? Perdi Fausto... A vida sem ele não vale a pena.
— Minha querida, deixe tudo por minha conta. Descobrirei a verdade e Fausto será seu novamente.
— Fausto nunca acreditará em mim. E depois, mesmo que acredite, já não servirei mais para ele.
— Engana-se. Ele a ama e saberá superar o que aconteceu.
— Acha mesmo que ele um dia poderá me perdoar?
— Não, não acho que você deva pedir-lhe perdão. O perdão é para os que erram, e você nada fez de errado. Você apenas seguiu seu coração e foi enganada, agiu sob a influência de uma ilusão. Pense apenas no sentimento que a moveu, e não no homem que a seduziu. Se soubesse que era Rodolfo quem ali estava, você jamais teria se entregado a ele. Mas lembre-se que o que sentiu foi verdadeiro e maravilhoso, porque sentiu por Fausto. Era a Fausto que você queria se entregar. Foi para Fausto que você soprou palavras de amor. Não invalide esse sentimento, que foi puro, só porque Fausto, naquele momento, era uma ilusão. Pense apenas no seu amor por ele, e esse amor lhe dará forças para colocá-lo no lugar que lhe pertence.
Júlia estava chorando e retrucou entre lágrimas:
— Camila, você é maravilhosa!
— Sou sua amiga, além de uma mulher bastante vivida, é claro.
— Como fará para descobrir a verdade?
— Se Constância está metida nisso, só pode ser por um motivo.
— Que motivo? Dona Constância mal me conhece; mal conhece seus irmãos. Que motivos poderia ter para querer destruir-me?
— Você não, meu bem. Acho que você foi apenas um instrumento. Tenho certeza de que o que ela quer é destruir Tonha.
— Tonha? Mas por quê?
— Lembra-se da história que lhe contei? De como Constância se apaixonou por Inácio que, por sua vez, apaixonou-se por Tonha? Pois é. Constância jamais conseguiu separá-los, e agora creio que voltou para terminar sua vingança.
— Se quer vingar-se de Tonha, por que teve que me usar? Gosto de Tonha, mas não tenho com ela nenhum tipo de relação.
— É isso o que me intriga. Se bem conheço minha prima, ela deve ter ajudado Rodolfo em troca de algum favor. Mas que favor seria esse?
— E quanto a Rodolfo?
— Não sei. Rodolfo está arredio, evitando encontrar-se com Fausto.
— Fausto não lhe tomou satisfações?
— Ao que me consta, não. Creio que Fausto não quer mais mexer na ferida, por medo ou por vergonha. Mas não está falando com Rodolfo.
— Minha vontade é de matá-lo! Eu mesma vou procurá-lo e exigir explicações! Aquele canalha!
— Você não vai fazer nada disso. E depois, de que adiantará? Só servirá para atiçar ainda mais o ódio de Fausto, que entenderá sua reação como cobrança de uma atitude por parte de Rodolfo, e não como desabafo e indignação.
Júlia desabou, desanimada.
— O que faço, então?
— Por enquanto, nada.
— Será que alguém mais sabe o que houve?
— Creio que não. Se mamãe soubesse, por exemplo, já teria acontecido algum rebuliço. Mas tudo está calmo, e é melhor que continue assim.
— Camila... Quero ir embora. Não posso mais ficar aqui entre Fausto e Rodolfo, agindo como se nada tivesse acontecido.
— Já esperava por isso e acho que tem razão. É melhor que você fique por uns tempos na fazenda Ouro Velho. Tenho certeza de que Ezequiel e Rebeca não se importarão.
No dia seguinte, bem cedo, Júlia partiu para a fazenda Ouro Velho sem maiores explicações. Palmira, apesar de desconhecer aquela história sórdida, logo desconfiou que Fausto e Júlia houvesse brigado, e exultou. Não disse nada, mas, intimamente, regozijava-se por ver a moça afastada dali.
Na Ouro Velho Júlia foi recebida com carinho, e todos respeitaram sua tristeza. Trataram de acomodá-la e fazer com que se sentisse em casa, e frei Ângelo dizia-lhe sempre:
— Não se preocupe minha filha. Tenha fé e Deus a ajudará.
Depois que Júlia se foi, Camila sentiu-se mais à vontade para agir.
Com a desculpa de que não andava se sentindo muito bem, pediu à mãe que lhe disponibilizasse uma negrinha, para fazer-lhe companhia durante a noite. Palmira, sem desconfiar de nada, mandou vir da senzala uma escrava novinha, e assim, toda a noite Camila mandava que ela montasse guarda, espreitando a porta do quarto de Constância. Durante o dia, Camila fazia-a dormir. Não queria que ela nem cochilasse em sua vigília, e a negrinha passava as noites em claro, sem nem piscar, para ver se Constância saía ao apagar das velas.
Enquanto isso, Rodolfo se felicitava. O plano fora perfeito, e o irmão estava arrasado. Ao contrário do que esperara Fausto não o procurara e nem dissera nada. Na certa, não queria expor sua vergonha, a vergonha de ser traído, enganado, ludibriado pela mulher que dizia amá-lo. Mas ele não podia perder a oportunidade de espicaçá-lo. Vencera e estava por cima, e era preciso humilhar e espezinhar o irmão.
Fausto, não querendo expor sua dor, tentou disfarçar o mais que pôde. Contudo, não podia suportar a presença do irmão. Não podia nem olhar para ele, muito menos escutar sua voz. Por isso, deixou de acompanhar a família às refeições, optando por comer em seu quarto ou na cozinha. Palmira sabia que havia algo errado, mas preferiu não perguntar. O filho brigara com Júlia, e era óbvio que não queria tocar no assunto com ninguém.
Alguns dias após a partida de Júlia, Rodolfo, vendo Fausto atravessar a sala a caminho da cozinha, perguntou a Camila, com falsa displicência:
— Por que Júlia partiu sem nem ao menos se despedir?
Pronto. Aquilo foi o suficiente para tirar Fausto do eixo. O rapaz, que vinha guardando dentro de si um ódio surdo e imensurável, não pôde resistir e explodiu:
— Canalha!
E desfechou violento soco no queixo do irmão, que caiu para trás, por cima da cadeira. Fausto, enlouquecido, partiu pra cima dele e continuou a esmurrá-lo, gritando com um brilho de ódio no olhar:
— Canalha! Cafajeste!
Os demais, apavorados, levantaram-se e acorreu, Dário tentando segurar os braços do tio.
— Pelo amor de Deus, tio Fausto — implorava —, o que foi que lhe deu?
Fausto não dava ouvido e continuava a bater. Apenas Túlio parecia satisfeito. Rodolfo bem que merecia uma surra. Palmira, porém, recobrando-se do susto, acercou-se deles e ordenou:
— Chega Fausto, estou mandando! Largue-o!
Ouvindo a voz da mãe, Fausto soltou o irmão e ajoelhou-se no chão, ao lado dele, arfando, exausto. Constância correu para Rodolfo, ajudando-o a se levantar, enquanto Tonha chegava da cozinha trazendo uma bacia com água morna e toalhas limpas. Ajudada por Dário, conduziram-no para o sofá e o deitaram, e Tonha pôs-se a limpar-lhe as feridas. Nesse momento, Constância lançou-lhe um olhar de tanto ódio, que Tonha chegou a sentir-se mal e recuou assustada. Mas Rodolfo precisava de cuidados, e ela não deixaria de cuidar de seu menino por causa daquela bruxa. O rapaz, vendo a bondade e a dedicação com que Tonha limpava e tratava seus ferimentos, por um momento, arrependeu-se. A prima, todavia, percebendo o que lhe ia à alma, sentou-se a seu lado e soprou-lhe no ouvido:
— Nem pense em voltar atrás na palavra empenhada.
E afastou-se no exato instante em que Palmira ia chegando. Conseguira, finalmente, acalmar Fausto e queria certificar-se de que Rodolfo estava bem. Vendo que não se ferira gravemente, indagou:
— Muito bem. Podem me explicar o que é que está acontecendo? Rodolfo, fingindo sofrimento, considerou:
— Pergunte a Fausto. Afinal, foi ele quem me bateu. Ela virou-se para Fausto e continuou:
— E então?
— E então o quê? — retrucou, num misto de raiva, vergonha e confusão.
— Estou esperando que me diga o que aconteceu. Por que bateu em seu irmão?
Fausto não queria dizer. Sentia tanto ódio que parecia que ia explodir, e rosnou entre dentes:
— Pergunte a ele.
— Estou perguntando a você. Você o agrediu. Quero saber por quê.
Como Fausto não respondesse, ela prosseguiu:
— Aposto que é por causa de Júlia, não é mesmo? É claro que é, e essa não é a primeira vez. Mas vocês deviam se envergonhar, os dois. Brigar assim pelo amor de uma mulher...
— Eles me traíram, mamãe! — explodiu Fausto, não conseguindo mais conter a fúria dentro do peito. — Dormiram juntos, aqui mesmo, nesta casa, bem debaixo de nossos narizes!
Palmira levou um choque. Não esperava por aquilo. Contudo, já vivera o suficiente para não se deixar impressionar e, tentando manter a calma, replicou:
— E isso é motivo para espancar seu irmão?
Ele fitou-a, incrédulo.
— Acha que não? Ele me traiu, meu próprio irmão, deitou-se com a mulher que eu amava, bem ao lado de minha porta!
— Só fiz isso porque ela me provocou — defendeu-se Rodolfo, com voz hesitante.
— Canalha! — gritou Fausto. — E você não podia perder a oportunidade, não é mesmo?
— Fausto — o retrucou em tom conciliador e amistoso —, sei que o que vou lhe dizer é difícil, mas procure entender. Não quis traí-lo, mas Júlia me provocou, se ofereceu...
— Cale-se! Cale-se, cretino! Não quero ouvir mais nada!
— Mas é preciso, Fausto, você tem que saber quem é Júlia.
— Não! Não!
— Sinto meu irmão, mas é Júlia quem não presta. Deitou-se comigo porque disse que você não era homem suficiente para ela. Roia-se de desejo, mas você, cheio de pudores, não queria fazê-la mulher...
— Pare! Por Deus, pare! Não me torture!
— Sinto muito, meu irmão. Eu não queria, tentei lutar contra meus instintos. Você é meu irmão, não queria traí-lo. Mas sou homem, e ela provocou... Fui fraco, sei, não resisti...
Constância estava impressionada. Rodolfo saía-se melhor do que ela esperava. Estava perfeito em seu papel de pobre irmão seduzido. Todos pareciam convencidos, até aquela idiota da Tonha. Só Camila não se deixara convencer. Em dado momento, não podendo mais suportar aquela cena patética, achou que já era hora de intervir.
— Chega Rodolfo! A quem quer enganar? Pensa que não sei o que fizeram? Pensam que não descobri seu plano sórdido?
— Camila — objetou a mãe —, do que é que está falando?
— Estou falando do plano que Rodolfo e Constância engendraram para destruir Júlia e Fausto.
— Eu?! — fez Constância, indignada. — Era só o que me faltava. Não seja ridícula, Camila. Sei o quanto gosta de Júlia, mas deixe-me fora dessa história. Não tenho nada com isso.
— Não seja tola, Camila — repreendeu Palmira. — Por que quer justificar a indignidade de sua cunhada acusando injustamente sua prima? Não vê que isso não é direito?
— Mas foi exatamente o que aconteceu.
— Não acredito em você. Constância não tem motivo algum para prejudicar Júlia.
— Vai defendê-la de novo, mamãe, como fez trinta anos atrás?
— Isso é uma outra história, minha filha. Não misture as coisas.
— Sim — cortou Constância, com voz chorosa. — Só porque errei uma vez serei culpada pelas desgraças de todo mundo?
— Constância está certa, Camila. Ela não tem nada com isso. Não arrume escusa insólita e infundada só para salvar Júlia.
Camila calou-se. Não adiantava tentar convencê-los, porque ninguém acreditaria. Não tinham mesmo motivos para acreditar. Assenhoreando-se da situação, Palmira decretou:
— Muito bem. Não quero ouvir mais nem uma palavra sobre essa história. Júlia não é digna de nenhum de meus filhos, e fico feliz que tenha partido. De hoje em diante, não se toca mais no nome daquela vagabunda aqui.
— Mamãe! — ia protestando Camila.
— Não diga mais nada, minha filha. Está decidido. E quem não estiver satisfeito, pode ir juntar-se a ela.
Ninguém disse mais nada. Camila estava perplexa e revoltada com a atitude da mãe. Mais uma vez ela defendia Constância, mesmo sabendo do que ela era capaz. Não fosse a determinação em desmascarar a prima, teria partido também. Mas, por enquanto, não podia. A felicidade de Júlia e de Fausto dependia dela, e ela não permitiria que a cunhada carregasse para sempre a culpa por algo que não cometera.



CAPÍTULO 25


Desde esse dia em diante, Palmira, sempre que possível, evitava tocar no nome de Júlia, considerando encerrada aquela história. Ela fora indigna e mentirosa, e não merecia perdão. Por isso, não queria mais ouvir falar em seu nome. Dário e Túlio também não acreditavam na versão de Rodolfo mas, aconselhados por Camila, não disseram nada. Túlio, principalmente, sabia muito bem do que o tio era capaz. Em vista disso, julgou que Rodolfo, já satisfeito, não precisasse mais dele, e começou a relaxar. Mas Rodolfo, ao contrário do que ele pensava, não se esquecera, e logo tratou de lembrá-lo de seu indigno compromisso.
— Olá, Túlio — disse Rodolfo, em tom sarcástico, assim que o sobrinho abriu a porta do quarto.
— O que quer? — perguntou apreensivo e nada satisfeito.
— Não vá me dizer que já se esqueceu do nosso compromisso.
— Não tenho compromisso algum com você.
— Ah, tem sim. E dos mais importantes.
— Escute aqui, tio Rodolfo, por que não me deixa em paz? Já não conseguiu o que queria? Não dormiu com minha tia Júlia? O que mais quer de mim?
— Quero apenas lembrá-lo de sua promessa.
— Por quê?
— Porque posso precisar. Não quero desperdiçar nenhuma das minhas armas contra Fausto.
— Está louco! O que pretende? Já não o destruiu?
— Não o suficiente.
Naquele momento, Túlio pôde perceber o quanto Rodolfo estava perturbado. Pensara que o tio gostava de Júlia, mas percebia que a verdade é que odiava o irmão. Rodolfo não estava interessado em conquistar o amor de sua tia, mas em destruir seu próprio irmão. Mas por quê? O que ele lhe fizera? Túlio, por mais que se esforçasse, não conseguia atinar nos motivos que impulsionavam Rodolfo a destruir Fausto. E, realmente, não havia motivo algum. Não nessa vida, mas em outra, muitos séculos atrás.
Túlio e Rodolfo eram, então, os filhos mais jovens de Licurgo, que ficara viúvo quando eles ainda eram bem pequenos. Não podendo suportar a ausência da mulher, Licurgo casara-se de novo, e sua nova esposa, Palmira, também viúva, trouxera consigo um filhinho, Fausto, quase da mesma idade que seus enteados.
A nova madrasta, embora não fosse pobre, não possuía a nobreza do pai de Rodolfo, o que, inclusive, levara seu irmão mais velho a abandonar a casa paterna. Rodolfo, porém, ainda criança, logo tratara de discriminar Fausto, afastando-o das brincadeiras e dos passeios. Quando Fausto, indignado, pedia para acompanhá-los, Rodolfo respondia do alto de sua soberba:
— Não pode. Você não é igual a mim.
Naquela época, Júlia era prima dos rapazes e ia se casar com Rodolfo, até que conhecera Fausto e interessara-se por ele. A moça, a princípio, ainda hesitara em romper o romance com o primo, em virtude de sua alta posição social, o que causara enorme desgosto em Fausto. Mas depois, vendo que seu coração pendia mesmo para Fausto, acabara por entregar-se a ele e abandonara o primo para poder desposá-lo, ocasionando violenta reação de Rodolfo.
Para completar, Fausto era um moço hábil e inteligente. Dedicara-se à carreira política e logo fora chamado a representar seu país em embaixadas do mundo todo. Ao mesmo tempo em que sua carreira crescia vertiginosamente, Rodolfo não conseguira ser mais do que um simples capitão, encarregado de dirigir inexpressivo exército e, assim mesmo, por influência de seu pai. A inveja o foi dominando. Fausto, embora não fosse dotado da mesma nobreza de sangue que ele, conseguia sobressair-se em tudo o que fazia, ao passo que Rodolfo, por mais que se esforçasse, não conseguia igualar o brilho e o sucesso do outro.
Fausto se casaria com Júlia e com ela partiria para um país distante. Mas Rodolfo não estava disposto a permitir. Às vésperas do casamento, lançara-lhe em face um duelo, e Fausto o teria matado, não fosse à interferência de Júlia. Rodolfo, porém, embora poupado, acabara humilhado, escarnecido por todos, e terminara seus dias sozinho, isolado no castelo da família, alimentado apenas pelo ódio que sentia do rival.
Mas a interferência de Júlia cobrira Fausto de desconfiança. Por mais que ela fizesse ou dissesse, o fato era que Fausto não conseguia acreditar que a moça não tinha mais nenhum interesse em Rodolfo e que só intercedera em seu favor por uma questão de humanidade. Afinal, eram primos, estiveram comprometidos, e não lhe agradava nada ser o motivo da morte de seu antigo namorado. Júlia sentia muita pena de Rodolfo e sempre que estava de volta a seu país ia visitá-lo em seu castelo. Quando Fausto descobrira, enchera-se de ciúme, julgando que a esposa o estava traindo, e não conseguira acreditar quando ela lhe dizia que não havia nada entre eles. Desde esse dia, Fausto passara a tratar Júlia com certa indiferença, sempre desconfiado de seus gestos e de suas palavras. Afinal, não havia se entregado a ele antes do casamento? Por que não poderia entregar-se a Rodolfo depois?
Depois que desencarnou Fausto e Rodolfo assumiu o compromisso de nascer como irmãos gêmeos, numa tentativa de superar suas diferenças, aprendendo que todos são iguais aos olhos de Deus. Fausto, mais consciente, mais depressa se imbuíra do desejo de se reconciliar com o irmão, mas Rodolfo, ainda muito apegado aos valores terrenos, não conseguira vencer suas próprias tendências e novamente enveredava pela amarga senda do ódio.
Mas nada disso Túlio conhecia. Para ele, o ódio de Rodolfo por Fausto não tinha motivo nem explicação, ainda mais porque eram gêmeos, e ele não conseguia entender aquela rivalidade. Achava que o tio estava enlouquecendo e sentia medo dele.
Mas queria afastar-se de tudo aquilo. Já não tinha seus problemas, sua culpa? Por que ter que carregar também a cruz de Rodolfo?
— Não se esqueça — tornou Rodolfo, chamando-o de volta à realidade. — Posso precisar de você. Não vá falhar comigo.
Túlio não respondeu, e ele se foi. Até quando seu martírio continuaria?
Em pouco tempo Rodolfo reunia-se a Constância. Precisava, ele também, pagar a promessa que fizera.
— Já pensou em tudo? — indagou Rodolfo.
— Como sempre.
— E o que idealizou dessa vez?
— Quero que a chame ao seu quarto.
— Para quê?
— Assim que todos se recolherem, chame-a ao seu quarto. Diga-lhe que a comida lhe causou certa indisposição e peça-lhe para preparar-lhe um chá. Pelo que conheço de Tonha, ela irá lá aos fundos colher algumas ervas. Por via das dúvidas, eu mesma me encarregarei de esvaziar as caixinhas de chá, o que a obrigará a usar ervas frescas. Lá, então, a sós com ela, executarei minha vingança.
— Esta noite?
— Esta noite. Não posso esperar nem mais um dia.
Naquela noite, depois que todos foram dormir, Rodolfo puxou a sineta, que tocava na cozinha, e Tonha apareceu.
— Deseja alguma coisa, sinhô?
— Sim, Tonha... — disse devagarzinho, enquanto se retorcia na cama, as mãos apertando a barriga.
— Está sentindo alguma coisa?
— Hum, hum. Uma dor aqui no estômago, não sei o que é.
— Será que foi algo que comeu? Eu bem falei a sinhá Palmira para não colocar pimenta no pirão...
— Por favor, Tonha, deixe isso pra lá. Faça-me um chá, por favor.
— É pra já, sinhozinho. Vou fazer um chá de boldo especial. Se vomitar, não faz mal. Vai limpar por dentro.
Quando Tonha saiu, a porta do quarto de Camila se fechou. A negrinha encarregada de vigiar os aposentos de Constância, ouvindo barulho no corredor, entreabriu a porta e espiou. Vendo, porém, que se tratava de Tonha, não deu importância ao fato e tornou a fechar a porta, vagarosamente. Com o clique da fechadura, Camila despertou.
— O que houve? — indagou sonolenta.
— Nada, sinhá. Foi apenas Tonha, que foi ao quarto de sinhô Rodolfo.
— Tonha? Está bem...
De repente, Camila deu um salto. O que estaria Tonha fazendo ali, justamente no quarto de Rodolfo, e àquelas horas? Ela pulou da cama e correu ao quarto de Constância, empurrando a porta bem devagar. A prima não estava, e a cama, ainda feita, delatava que ela ainda nem se deitara. Intuitivamente compreendendo o que estava se passando, voltou a seu quarto e ordenou à escrava:
— Vá agora mesmo ao quarto de mamãe e diga-lhe para se encontrar comigo lá fora!
— Mas sinhá...
— Agora! Vá!
Nesse ínterim, Tonha, não encontrando nenhuma erva na cozinha, saiu para o quintal, a fim de colher algumas para o chá. Ao chegar perto do canteiro, ouviu uma voz fantasmagórica atrás de si:
— Olá, Tonha.
Ela se assustou e levou a mão ao peito. Constância sorriu aquele sorriso diabólico e aproximou-se dela.
— Sinhá Constância! O que faz aqui?
— Quero conversar.
— Não acha que já é um pouco tarde? Só vim preparar um chá para...
— Nunca é tarde para falar de Inácio — cortou Constância, rispidamente.
— Inácio? Desculpe sinhá, mas Inácio está morto, e não quero falar sobre ele, não. A sinhá não tem o direito.
— Não? Mas eu o amava! E o merecia. Muito mais do que você... Negra!
Tonha abaixou os olhos e retrucou com voz sumida:
— O que quer sinhá?
— Vingança!
— Mas Inácio está morto. Não pode pensar que fui eu que o matei...
— Você? Não negra estúpida, sei que não foi você. E sabe como sei? Porque fui eu! Fui eu que matei Inácio!
— A sinhá?
— Por sua culpa, negra, ateamos fogo naquela casa, eu e Basílio, para queimá-la viva. A você e àquela intrometida da Aline, e seu maridinho. Pensávamos que Inácio estivesse em seu próprio quarto, na ala oposta da casa. Mas ele não estava não é negra? Estava com você, em sua cama, em seus braços...
— Sinhá, por favor...
— Por que foi se intrometer entre nós? Você é apenas uma escrava. Por que teve que me roubar Inácio? O único homem a quem amei em toda a minha vida.
Constância chorava desesperadamente. A saudade e o remorso a roíam por dentro, e ela não podia suportar. Tonha, apesar de tudo, condoeu-se dela. Colocando a mão em seu ombro, disse com voz humilde e branda:
— Sinhá Constância, deixe isso para lá. Já passou. Não adianta mais. A sinhá deve esquecer e viver sua vida...
— Não, negra! Jamais poderei viver em paz enquanto você não estiver morta!
Constância ergueu o braço, e a lâmina do punhal brilhou na luz do luar. Já ia desferir o golpe quando sentiu que a seguravam por trás, subjugando-a, e ela tombou.
— Não! — gritou Camila, enquanto se esforçava para dominá-la.
As duas lutaram, até que o punhal caiu da mão de Constância, e Palmira o recolheu. Quando a negrinha fora ao seu quarto, berrando feito uma cabrita, Palmira ficara furiosa e até lhe dera uns tapas. Mas ela falava no nome de Camila com tanta insistência, que ela acabou se convencendo. Andando o mais depressa que podia, auxiliada pela negrinha, chegou bem a tempo de ouvir a confissão de Constância. Camila, que chegara primeiro, vendo a porta da cozinha aberta, correu e avistou as duas discutindo. Em silêncio, deu a volta no terreiro e ocultou-se nas sombras, atrás da prima, o que lhe permitiu saltar sobre ela bem a tempo de impedir que desferisse em Tonha o golpe fatal.
— Pode soltá-la, Camila — ordenou Palmira, olhos secos, chispando de ódio. — Não suje suas mãos com o sangue de uma assassina.
— Tia Palmira, eu...
— Cale a boca, sua víbora! Como pôde enganar-me dessa forma? Confiei em você, dei-lhe meu apoio. Mais do que isso; amei-a como a uma filha. Por que me apunhala pelas costas?
— Eu... Eu...
— Você matou meu filho. Você matou Inácio... E Aline...
— Não, não. A culpa foi de Tonha...
— Tonha é uma tola e uma atrevida. Mas você... É uma assassina! Assassina!
Constância descontrolou-se. Ouvindo as acusações da tia, desatou a chorar. Nesse momento, atraídos pela gritaria, os outros começaram a chegar. Primeiro chegou Fausto. Depois chegaram Túlio e Dário. E, por fim, Rodolfo, todo nervoso. O plano falhara o que era extremamente perigoso.
— Saia daqui! — berrava Palmira. — Terêncio! Terêncio! Terêncio, cujas acomodações ficavam ali bem próximo, ouvira toda a conversa.
— Chamou dona Palmira?
— Terêncio, pegue essa criminosa, leve-a para a vila e entregue-a ao chefe da guarda — disse secamente. — Nunca mais quero vê-la.
— Sim, senhora.
Terêncio agarrou-a pelos punhos e começou a arrastá-la, ao mesmo tempo em que ela gritava:
— Por favor, tia Palmira, perdoe-me! Não quero ser presa! Foi um acidente, eu não queria! Tenha piedade, por favor!
Palmira já lhe havia dado as costas, fazendo-se surda a suas súplicas, quando Camila fez parar o capataz, dizendo:
— Espere um pouco, Terêncio. Há algo que preciso saber — virou-se para Constância e indagou: — Como foi que preparou tudo isso, Constância? Como sabia que Tonha estava aqui fora?
Ela encarou Rodolfo e gargalhou. Ia cair, sim, mas levaria mais alguém com ela. Sem hesitar, apontou para o primo e disparou:
— Foi à paga que recebi por ajudar Rodolfo a enganar aquela tola da Júlia e deitar-se com ela.
— O quê? — urrou Fausto, perplexo. — O que está dizendo?
— É mentira! — gritou Rodolfo. — Não vêem o que ela está fazendo? Quer acusar-me só para salvar a pele.
— É mesmo? — replicou Constância. — Então, como é que sei que ele chamou Tonha a seu quarto, fingindo uma indisposição, e pediu-lhe para preparar-lhe um chá? Como é que sei que não havia ervas em casa, e que ela veio colhê-las aqui no terreiro?
Fausto voltou-se para Tonha e indagou:
— Isso é verdade?
— Sim, sinhô — respondeu em lágrimas, fitando Rodolfo com mágoa.
— É mentira! — insistia Rodolfo.
— Não é não — protestou Constância. — Fui eu quem lhe disse para entrar no quarto de Júlia, naquela noite, fingindo-se passar por Fausto. Disse-lhe que usasse suas roupas, que imitasse sua voz, seus gestos, seus carinhos. Foi o que ele fez, e a tola, ingênua, pensando que se entregava ao amado, entregou-se ao rival!
Antes que Fausto pudesse alcançá-lo, Rodolfo fugiu. Sumiu no meio da noite. Fausto quis ir atrás dele, mas Camila não permitiu.
— Deixe-o — disse. — Estará a sós com sua consciência.
O dia mal clareara e Camila, em companhia de Dário, partiu rumo à fazenda Ouro velho. Precisava falar com Júlia o quanto antes, contar-lhe o que havia acontecido.
Quando chegaram, foram informados de que Sara ainda estava dormindo, e Dário sobressaltou-se. Teria ela piorado? Rebeca, contudo, tranqüilizou-o:
— Não foi nada disso, meu filho. É que ontem Sara resolveu nos brindar com um concerto ao piano, e ficamos até tarde a escutá-la.
— É mesmo? — fez Dário surpreso. — Ela tocou para vocês?
— Sim. E com que alegria!
— Mas isso é maravilhoso! Pena que não pude estar presente.
— Realmente, foi uma pena. Mas não se preocupe, não vão faltar oportunidades.
— Com certeza não faltarão — interrompeu frei Ângelo, que ia chegando. — Sara está muito melhor, e tenho certeza de que, em breve, poderão se casar.
— Fala sério?
— Você mesmo poderá dizer. Então não notou como ela vem melhorando ultimamente?
— É verdade. E tudo isso graças ao senhor.
— Tudo isso graças a ela mesma, a sua fé, a sua enorme capacidade de compreender as coisas.
— Mas que coisas são essas? — indagou Rebeca. — Vocês ficam o tempo todo por aí, cochichando, e eu não sei de nada...
— Ora, dona Rebeca — protestou Dário —, o que importa é que Sara está melhorando, não é mesmo?
— Tem razão, meu filho. Só o que quero é ver minha filha feliz e saudável.
— Rebeca — acrescentou Camila —, nem pode imaginar o quanto essa notícia também me deixa feliz. A felicidade de Sara e de Dário é um de meus maiores desejos.
— Quanto a isso, não precisa se preocupar. Sara está readquirindo a alegria de viver, principalmente de viver em família. Aos poucos ela vai saindo daquela solidão que a estava matando e integrando-se ao ambiente familiar.
— Oh! Mas ela sempre esteve integrada à família.
— De corpo, podia ser. Mas de alma...
— Não entendo o que diz.
— Quero dizer que Sara sempre viveu junto de vocês fisicamente, mas seu interior, sua essência, sempre se sentiu sozinha e abandonada.
— Ora essa, mas por quê?
— Quem pode saber? — fez frei Ângelo, ergueu os ombros em sinal de dúvida, não querendo revelar-lhes os segredos de Sara. — A alma humana é um mistério que só Deus é capaz de compreender.
— Bem — atalhou Camila —, seja como for, o importante é que Sara está praticamente curada.
— Sim, isso é o que importa, não é mesmo?
— É sim — concordou Rebeca.
Pouco depois Sara chegou. Estava bem mais corada e chegara a ganhar alguns quilinhos, perdendo aquelas feições cadavéricas que lhe roubavam a beleza. Vendo Dário ali presente, correu para ele e, abraçando-o, cumprimentou:
— Bom dia, meu querido. Que bom encontrá-lo aqui, logo pela manhã.
— Estava com saudades.
Dário tomou-lhe o braço e saiu com ela para o jardim, a fim de aproveitar o Sol da manhã.
— Ah, os jovens! — exclamou frei Ângelo. — Como é bom vê-los apaixonados!
— E Júlia, onde está? — perguntou Camila, logo que eles se afastaram.
— No jardim — respondeu frei Ângelo. — Estive até agora conversando com ela.
Camila pediu licença. O que tinha a falar com Júlia não podia esperar.
Júlia estava sentada de costas, fitando as montanhas, quando Camila se aproximou, tocando-a gentilmente no ombro.
— Júlia, querida, como está?
A moça levantou-se apressada e atirou-se nos braços da cunhada, exclamando:
— Camila! Que bom vê-la!
— Trago-lhe boas notícias.
— Boas notícias?
— Sim. Sente-se que lhe contarei tudo.
Minuciosamente, Camila contou a Júlia tudo o que se passara na noite anterior. Júlia ficou abismada. Aquele Rodolfo era mesmo uma praga. E Constância, então? Uma víbora. Mas, e Fausto? O que pensaria disso tudo?
— Fausto ainda está profundamente abalado e confuso.
— Não vai me perdoar, não é mesmo?
— Dê tempo ao tempo. Ele só precisa se acostumar. Tenho certeza de que, logo, logo, irá não perdoá-la, porque, como disse você não fez nada de errado. Mas aceitá-la.
— Será que posso sonhar com isso?
— Pode. Verá como seu sonho está a um passo de se realizar.



CAPÍTULO 26



Deixando o local onde se desenrolara todo aquele drama, Rodolfo embrenhou-se no mato, com medo da reação de Fausto. O irmão, na certa, o mataria. No dia seguinte, Palmira foi avisada de que faltava um cavalo na cocheira e concluiu que o filho, provavelmente, fugira para a vila. Mais tarde, quando Terêncio chegou, disse que vira o cavalo de Rodolfo parado em frente à estalagem, e que ele passara a noite lá.
— E Constância?
— Entreguei-a ao chefe da guarda e contei-lhe tudo o que aconteceu.
— O que ele disse?
— Disse que, pelo tempo, acha que não poderá fazer mais nada. Os crimes, provavelmente, já estão pescr... Presc...
— Prescritos — completou Palmira, e ele assentiu.
Ela mordeu os lábios e não disse mais nada. Ainda que estivessem prescritos, dado o enorme transcurso de tempo, ela arranjaria um jeito de fazer com que Constância apodrecesse na cadeia. Não havia nada que o dinheiro não pudesse comprar. No momento, porém, estava mais preocupada com seu filho, Rodolfo. Ele errara, traíra o irmão. Mas aquela Júlia... Na certa que o provocara. E agora, os filhos não se falavam por causa daquela mulher. Isso não estava direito.
— Mande preparar a carruagem — ordenou. — Quero ir à vila.
— Sim, senhora.
Palmira foi ter com o filho e ficou surpresa com seu estado de quase demência. Ele estava diferente, o olhar vidrado, o rosto afogueado, suando frio. Ela tocou sua testa e certificou-se: Rodolfo estava doente, muito doente. Mandou que Terêncio saísse à procura do médico e, quando ele chegou, examinou o rapaz e confirmou: ele estava com muita febre e começava a delirar. Em sua loucura, balbuciava:
— Não... Somos diferentes... O duelo!... Maldito!...
A mãe, sem entender que ele rememorava fragmentos de outra vida, julgava que aqueles delírios fossem resultados da febre e não lhes deu muita importância. Mas era preciso tirá-lo dali. Precisava levá-lo de volta a casa. Só lá poderia tratá-lo como devia, em meio a todo o conforto de seu lar. Quando a carruagem chegou, Fausto foi receber a mãe e estacou estarrecido ante a visão do irmão, deitado no banco, com a cabeça pousada no colo dela.
— O que significa isso, mamãe? — indagou, cheio de ódio. — Ainda tem coragem de trazer esse patife aqui?
— Quieto, Fausto, e escute-me. Seu irmão está doente.
— Doente... Ele está é fingindo isso sim.
— Deixe de besteira e ajude-me aqui.
Fausto não se moveu, e Terêncio deu a volta à carruagem, parando perto de Palmira. Ele estendeu os braços, tentando erguer Rodolfo, mas já estava velho, e o moço era muito pesado para ele carregar sozinho.
— O que está esperando? — tornou ela. — Não vê que Terêncio não pode com ele?
— Sinto mamãe, mas se quer acreditar nesse canalha, o problema é seu. Não conte comigo.
— Fausto, por favor, ajude seu irmão. Ele não está nada bem.
— Se ele entrar por aquela porta, eu saio por outra. Não vou dividir o mesmo teto com um crápula, um canalha, um patife, um cínico, um poltrão!
— Acabou o seu vocabulário de imprecações? Agora me ajude.
— Mamãe, estou falando sério! Se a senhora permitir a entrada desse biltre em nossa casa, juro que nunca mais vai me ver. Vou-me embora daqui agora mesmo!
— Fausto, pelo amor de Deus! — gritou ela, já impaciente. — Aquiete essa tempera e olhe para seu irmão. Ele está muito doente. O que quer que eu faça? Que o deixe morrer sozinho, atirado no quarto imundo de qualquer estalagem barata? Olhe para ele, vamos! Olhe para ele!
Ainda contrariado, Fausto fitou o rosto do irmão. Reparando melhor, viu que havia gotículas de suor banhando sua testa, e que seus lábios tremiam. Ele estava pálido feito cera, os olhos semicerrados parecendo sem vida. Aproximou a mão de sua têmpora e tocou-a de leve. Ele estava ardendo em febre. Em silêncio, fitou a mãe, já penalizado, e ela considerou:
— Fausto, meu filho, sei que o que Rodolfo fez foi muito grave e não lhe tiro a razão de estar zangado com ele. No entanto, é meu filho também, tem o seu sangue. Gostaria de ver morrer seu próprio irmão?
Ele engoliu em seco e retrucou:
— Não... Claro que não... Mas é que... Pensei que ele estivesse fingindo...
— Como vê, não está. Rodolfo está muito doente. O médico já o examinou, e o caso dele é grave. Se a febre não baixar, ele não vai resistir.
— Sinto muito...
— Agora vamos, ajude Terêncio a levá-lo de volta ao quarto.
Coração bondoso, Fausto ajudou o capataz a instalar o irmão de volta em seu quarto, e o médico todos os dias ia visitá-lo, levando-lhe elixires e infusões amargas, fazendo-lhe ventosas e sangrias, tudo na esperança de salvá-lo.
No dia seguinte à chegada de Rodolfo, Marta apareceu e montou guarda junto ao leito. Sabia de tudo o que tinha acontecido, mas não se importava. Amava-o de qualquer jeito e estava disposta a ficar ao lado dele, ainda que ele não a quisesse.
O tempo foi passando, e a recuperação de Rodolfo seguia lentamente. A febre custava muito a ceder, e ele vivia delirando, falando de coisas estranhas, que ninguém conhecia. Apesar das reservas que tinha quanto à posição social de Marta, Palmira não pôde deixar de observar-lhe a dedicação. Ela, efetivamente, montara guarda à cabeceira do doente e raramente se ausentava, fazendo suas refeições no quarto. À noite, depois que Rodolfo dormia, ela ia para casa, retornando no dia seguinte, bem cedo, para que ele, ao despertar, já a encontrasse ali. Aos poucos, Palmira foi se acostumando com a presença da moça. Ela era de uma amorosidade sem igual, e Palmira ficou-lhe extremamente grata. Já estava velha e cansada, e não tinha mais forças para cuidar do filho doente.
À medida que Rodolfo ia melhorando, Marta ia introduzindo novos métodos no auxílio à sua convalescença. Conhecendo já o dom que possuía, todo o dia elevava o pensamento a Deus e apunha suas mãos sobre o rapaz, o que fazia com que ele se sentisse bem melhor. Não raras eram às vezes em que vomitava, e Marta lhe dizia baixinho, com extrema ternura:
— Isso, meu querido, deixe sair todo esse ódio que invadiu seu coração e abra espaço para receber o meu amor.
Rodolfo, pouco a pouco, ia se sentindo melhor. A presença de Marta causava-lhe imensa alegria, e ele só conseguia dormir com ela a seu lado. No dia seguinte, se despertava muito cedo, ficava ansioso, remexendo-se na cama à espera que ela chegasse. Ela era seu alento.
Mais tarde, quando ele conseguiu reunir forças para se levantar, Marta levou-o a passear no jardim e lia para ele os novos romances que a mãe mandava vir da corte. Ele a escutava extasiado, bebendo-lhe as palavras e admirando-lhe a graça e a beleza. Marta, por sua vez, exultava! Estava certa de que conseguiria conquistar seu coração.
Quando Fausto descobrira o que o irmão fizera, tivera vontade de esganá-lo. Mas, vendo-o assim, totalmente dependente, sentiu um aperto no coração e compadeceu-se de seu sofrimento. Rodolfo enlouquecera, era a única explicação que conseguira encontrar. Em sua bondade e ingenuidade, Fausto concluíra que Rodolfo se apaixonara por Júlia e, ao contrário do que dissera, não a conseguira esquecer. Movido pelo ciúme e pelo despeito, deixara-se arrastar por aquele desatino e entregara-se à indignidade. Era uma pena!
Ao ver o irmão sentado no banco do jardim, com Marta a seu lado lendo para ele, Fausto pensava em Júlia, e seu coração se apertava. Ele a amava muito e queria perdoá-la. Mas como passar por cima do orgulho e da hombridade e desposar uma mulher que já pertencera a outro homem? Júlia, a cada dia esperava ansiosa que ele a fosse buscar, mas Fausto não aparecia. Cada cavalo, cada charrete, cada carruagem faziam seu coração se sobressaltar, e ela corria para a porta, na esperança de que fosse ele. Em seguida, voltava tristonha e decepcionada e já começava a acreditar que ele não a amava. Os Zylberberg se condoíam e faziam de tudo para animá-la. Até Sara parecia melhorar, vendo na dor da amiga uma oportunidade para se fazer mais presente em sua vida. Elas passavam longas horas a conversar e, às vezes, frei Ângelo juntava-se a elas. Tinha, então, duas almas para orientar. Muitas vezes, quando Júlia chorava de mansinho, ele lhe dizia:
— Não perca as esperanças, minha filha. Tenho certeza de que ele virá.
Mas Júlia já não acreditava mais. Fausto se fora para sempre, não queria mais vê-la, não a amava mais.
Certa vez, Fausto observava da janela o irmão passeando com Marta, que o amparava pelo braço, quando Camila chegou perto dele. Durante algum tempo também ficou a acompanhar o andar vagaroso e inseguro de Rodolfo, e comentou:
— Ele está sofrendo muito, não acha? Sem desviar os olhos da janela, Fausto respondeu:
— Está pagando pelo que fez.
— Não diga isso, Fausto. Ele é nosso irmão. Apesar de tudo, tem nosso sangue. Seu sangue ainda mais que o meu.
— Eu sei Camila. Não quis parecer insensível ou cruel. Sinto muita pena dele e compreendo que está louco. Mas não posso negar que, pensando em tudo o que ele fez, sinto um grande ódio. Ele estragou-me a felicidade, destruindo todas as chances que tinha de ser feliz ao lado de Júlia.
— Por quê?
— Você sabe.
— Sei, mas não compreendo e não aceito. Você não a ama?
— Você sabe que sim. Todavia, ela já não é mais moça e já não serve mais para o casamento.
— Isso é uma infâmia. Você se esquece, meu caro, de que eu também não me casei virgem?
— É diferente.
— Sim, muito. O canalha que me roubou a honra iludiu-me, fingindo amar-me, e depois sumiu, entregando-me nas mãos de outro, que só queria o meu dinheiro. Por isso fui para um convento. Porque não aceitei me casar com um aproveitador só para salvar minha reputação. Mas, hoje, sou feliz ao lado de Leopoldo. Ele se apaixonou por mim e me aceitou do jeito que sou. Casamo-nos e somos felizes, sem que ele nunca tenha me atirado na face o mau passo que dei. E dei porque quis, porque fui tola, porque me apaixonei pelo homem errado. Mas Júlia, não. Ela foi enganada, não por um homem que dizia amá-la, mas por um homem que se fez passar por aquele que é o seu verdadeiro amor — Fausto ficou pensativo, e ela prosseguiu: — Então, por que não vai falar com ela?
— Não posso Camila. Por mais que queira, não posso perdoá-la.
— Fausto, meu irmão, não pense em perdão. Pense em reencontro. Se conseguir entender que Júlia não errou, mas que agiu movida por uma ilusão, vai conseguir aceitá-la. Ela o ama.
— Eu sei. Sei também que ela foi vítima. Contudo, jamais poderei esquecer aquela mancha de sangue no lençol. Sangue que deveria ter sido derramado por mim, em nossa noite de núpcias.
— É isso o que ela representa para você? Uma mancha de sangue? Isso é que é importante em Júlia? E o amor, onde fica? Pensa que Júlia teria se entregado a Rodolfo? Não. Ela se entregou a Fausto. Naquela noite, foi a Fausto que viu, foi por ele que se deixou tocar, foi a Fausto que amou. Não a Rodolfo.
— Mas era Rodolfo!
— Só que ela não sabia. Ela pensou que fosse você, e só disse o que disse, só fez o que fez porque pensou que era você. Será que você é tão cabeça-dura que não consegue entender?
Fausto suspirou e tornou a olhar para o irmão, que também olhava em sua direção. Quando seus olhos se cruzaram, teve um estremecimento, mas Rodolfo não esboçou nenhum tipo de reconhecimento. Parecia alheio a tudo e só dava sinais de vida ao lado de Marta.
— Por favor, Camila, deixe-me pensar — tornou ele. — Quero ter Júlia de volta, mas não consigo.
— Seu orgulho fala mais alto do que seu amor. Sabe Fausto, você é mais digno de pena do que Rodolfo.
— O quê?
— Ao menos Rodolfo fez o que fez porque está adoecido, profundamente adoecido. Você não. É um homem são e desperdiça a felicidade por orgulho e preconceito.
Em seguida, sorriu para ele e rodou nos calcanhares, sumindo no interior da casa. Ela estava certa. Mas, por mais que se esforçasse, era-lhe difícil aceitar.



CAPÍTULO 27



Aquele dia chegou sombrio, e Tonha sentiu um arrepio estranho ao passar pela porta do quarto que Constância ocupara. Tinha ido levar o café para Rodolfo na cama e sentiu como se um hálito frio lhe percorresse a espinha. Instintivamente, persignou-se e seguiu avante. Aquilo parecia um presságio.
Mesmo sabendo que fora Rodolfo quem a entregara a Constância, Tonha não conseguia sentir raiva dele. Ao contrário, sabia-o enfermo, muito enfermo. Não do corpo, mas da alma. Tonha via em Rodolfo um ser doente, que envenenara sua própria alma em troca de alguns momentos de prazer. E, por ironia ou por destino, estava praticamente entrevado, sem nem sombra do rapaz robusto e ativo que costumava ser.
Ao entardecer, um homem bateu à porta. Vestia trajes estranhos e pediu para falar com Palmira. Tonha não o conhecia, mas sabia tratar-se de gente honesta, ou Aldo não o teria deixado passar. Palmira desceu às pressas, cumprimentou o estranho e trancou-se com ele na biblioteca. Vendo-se a sós, foi logo dizendo:
— E então? Conseguiu?
O homem olhou para ela, enfiou a mão no bolso e puxou uma bolsinha de couro, dela retirando um punhado de moedas de ouro.
— Isso não será mais necessário — disse com voz rouca e vibrante.
— Por quê? O que houve? Não vá me dizer que o magistrado se recusou a receber, digamos à oferta que lhe mandei.
— Não, senhora, não se trata disso.
— Trata-se de que, então?
O homem tossiu meio sem jeito e prosseguiu:
— Senhora, lamento informar que sua sobrinha faleceu...
— Faleceu?
— Enforcou-se hoje cedo, em sua cela.
Palmira debruçou-se sobre a mesa, escondendo o rosto entre as mãos. No fundo, era bem-feito. Teve o que merecia. Ela ergueu a cabeça, os olhos secos, e começou a recolher as moedas, que serviriam de suborno para que o juiz local arranjasse um meio de trancafiar Constância para sempre. Antes de colocar tudo de volta na bolsinha ela parou, escolheu uma moeda e colocou-a na mão do homem, dizendo:
— Muito obrigada por seus serviços. O homem olhou a moeda e sorriu.
— Eu é que agradeço senhora, por sua generosidade.
— Digamos que é apenas um agrado, em reconhecimento a sua boa vontade. E agora pode ir. Não preciso mais de seus serviços.
Depois que o homem se foi, Palmira mandou reunir a família. Apenas Rodolfo não estava presente. Depois que todos se acomodaram, ela tomou a palavra e, com voz solene, anunciou:
— Mandei reuni-los aqui para informar que minha sobrinha, Constância, suicidou-se hoje pela manhã, enforcando-se em sua cela. Apesar de Constância não ser bem quista por ninguém, aquela notícia era muito triste, e todos lamentaram aquele seu último gesto de desespero. Camila, penalizada, ainda desabafou:
— Pobre Constância...
Ninguém disse mais nada. Nem Palmira, que até sentira certo prazer com a morte da infeliz, teceu mais nenhum comentário. Apenas disse a Fausto:
— Meu filho, é preciso providenciar a remoção do corpo.
— Deixe tudo por minha conta, mamãe. Não precisa se preocupar com nada.
— Ótimo. Sabia que podia contar com você.
— Onde quer que a enterre?
— Enterrá-la? Não, não quero que a enterre. Não aqui, entre nossos entes queridos. Quero que leve seu corpo para a corte e o entregue a sua mãe, minha irmã Zuleica.
— Não estavam viajando?
— Já estão de volta. Outro dia mesmo recebi uma carta de Berenice. Eu ia escrever-lhe em resposta, contando-lhe o ocorrido, mas, em vista das circunstâncias...
— Não acha que será um choque?
— Sinto muito, mas o que posso fazer? Constância não é minha filha. Entregue-a para os seus.
— Está bem, mamãe, se é o que deseja.
— E depois, nunca mais quero escutar o nome daquela assassina nesta casa. Ela teve o fim que mereceu, e quero apagar de minha memória sua passagem por aqui.
Fausto fez como prometeu. Contratou um carro fúnebre e partiu primeiro sozinho, a cavalo, a fim de levar a notícia funesta. Depois que o corpo chegou, ele ficou para o enterro, só voltando à fazenda após o sepultamento.
Vinha ele voltando a cavalo, sozinho, e já quase alcançando a cancela que dava para a estradinha da fazenda quando avistou uma mancha branca correndo contra o Sol. Estreitou a vista, quase cego pela luminosidade, até que conseguiu distinguir o porte elegante e garboso de um cavalo branco. A visão foi rápida demais, e o cavalo dobrou a curva, desaparecendo de suas vistas. O coração de Fausto disparou. Embora não pudesse ver o cavaleiro, sabia tratar-se de uma dama. Tinha a impressão de ter visto um pequeno lenço azul esvoaçando ao vento. Seria Júlia? Só podia ser Júlia. Ele pensou em seguir avante e atravessar a cancela, mas algo em seu íntimo fez com que desistisse. Tinha que se certificar.
Fez meia-volta e deu rédea ao animal, disparando estrada acima. Perto da curva, estacou, procurando pelo lenço, até que o encontrou caído no chão, perto de uns arbustos. Imediatamente, saltou de seu alazão e apanhou o lenço, levando-o às narinas. Que perfume suave! Ele conhecia aquele perfume. Era de Júlia. Pensou em soltar o lenço ali mesmo e fugir, quando ouviu o ruído de cascos batendo no solo e se virou. Júlia ali estava, montada em belíssimo cavalo branco, os olhos a cintilar. Ao vê-la, seu coração tornou a disparar, mas tão forte e com tanta intensidade que ele pensou que Júlia o estivesse ouvindo.
Ele não sabia o que dizer, e Júlia, tentando conter a emoção, apontou para o lenço e disse:
— Obrigada por apanhar meu lenço.
Fausto ficou a encará-la, embevecido, e balbuciou:
— O... O... Quê...?
— Meu lenço. Vejo que o encontrou.
— Hein? Oh! Sim... O lenço.
Fausto estendeu para ela o objeto procurado, tocando de leve em suas mãos. Júlia, trêmula, apanhou o lenço e murmurou:
— Obrigada.
Em seguida, voltou-se bruscamente e chicoteou de leve o animal. Estava chorando e não queria que ele a visse chorar. O cavalo iniciou a marcha, e ela começou a se afastar. Fausto, olhando-a de costas, sentiu certo desespero, uma sensação de que, se a deixasse partir, a perderia para sempre. Mas ele a amava. E como a amava! Enquanto não a via, era-lhe mais fácil resistir. Mas, vendo-a ali, ao seu alcance, não pôde suportar a idéia de não tornar a vê-la. Mais que depressa, desatou a correr e chamou:
— Júlia! Júlia!
Ela virou-se para ele, ainda chorando. Eram lágrimas de felicidade, que Fausto logo reconheceu. Estendendo-lhe os braços, ajudou-a a descer. Ela trazia ao pescoço o lenço azul, que ele segurou e levou aos lábios. Em seguida, puxou-o pelas pontas e trouxe para perto de si o rosto de Júlia. Soltou o lenço, segurou-lhe as faces coradas e pousou-lhe um beijo doce e suave, que ela correspondeu com ternura. Depois a olhou bem fundo nos olhos e estreitou-a de encontro ao peito. E chorou. Ambos choraram. Sem nada dizer, permaneceram ali abraçados, apenas sentindo a enorme emoção que os unia. Naquele momento não precisavam de palavras. Só o que precisavam era de amor.
Camila exultou ao saber que Júlia e Fausto fizeram as pazes e pretendiam marcar a data do casamento. Imediatamente, correu ao seu quarto e escreveu uma carta a Leopoldo. Era imperioso que o marido estivesse presente nas bodas da irmã. Júlia concordou em esperar a volta do irmão. Também não queria casar-se sem a presença dele. Não tinha pai, e queria ser conduzida ao altar por Leopoldo, que a criara desde menina.
Apesar de também não guardar ódio de Rodolfo, Júlia preferiu permanecer na fazenda Ouro Velho até o dia do casamento. Chegaria bem cedinho e iria para seu antigo quarto se arrumar. Camila já teria deixado tudo pronto, e ela teria tempo de dar uma olhada nos preparativos para a festa e de vestir-se com calma. Júlia queria evitar o encontro com Rodolfo. Sabia que ele estava doente e que não poderia mais fazer-lhe nenhum mal. Fausto dissera-lhe que ele estava meio apatetado e quase não falava. Embora Júlia se apiedasse dele, alguma coisa dentro dela fazia com que o evitasse. Era um desconforto, um mal-estar, um instinto de defesa que despontavam logo que ouvia seu nome. Camila e Fausto acharam natural sua reação. O que ele lhe fizera fora muito grave, e Fausto até que preferia mantê-la afastada do irmão. Depois do casamento, quando voltassem da lua-de-mel, mudar-se-iam para a fazenda Ouro Velho. Ezequiel concordara em hospedá-los até o fim do contrato de arrendamento, quando então partiriam, e o jovem casal poderia assenhorear-se de sua nova residência.
Rodolfo parecia alheio a tudo e a todos. Olhava para as pessoas e as reconhecia, mas não demonstrava por elas qualquer tipo de sentimento. Era como se fossem estranhas. Pouco falava, quase sempre por monossílabos, e só se sentia à vontade em companhia de Marta. A moça era incansável.
A notícia do casamento de Fausto e Júlia, aparentemente, não lhe causaram nenhum impacto. Rodolfo permaneceu impassível, sem dar a menor importância ao fato, o que levaram todos a crer em seu total estado de alheamento. Palmira, se bem que um pouco contrariada, não se opôs. Fausto casar-se-ia com a moça de qualquer jeito, e era melhor que fosse ali, junto dela.
Rodolfo assistia aos preparativos do casamento sem maior interesse. Um tal de frei Ângelo celebraria a cerimônia, mas isso não fazia a menor diferença. Só o que parecia interessá-lo era a presença de Marta. Era como se ele soubesse que só Marta era capaz de compreendê-lo e amá-lo, e ele podia sentir-se seguro junto dela.
No entanto, um fato extraordinário abalou a tranqüilidade que então se instaurara na fazenda. Alguns dias antes do casamento, quando Marta lia para Rodolfo no jardim, ela se espantou ao ouvir com clareza sua voz, que dizia:
— Marta, quero que me faça um favor.
Ela se assustou e soltou o livro, encarando-o perplexa. Pensando que ele começava a recobrar o juízo, retrucou confusa:
— Rodolfo... Sua voz... Oh! Graças a Deus!
— Ouça Marta, não tenho tempo para isso — redargüiu-o, com certa rispidez.
— Mas, Rodolfo... O que foi que houve meu amor?
— Não houve nada. Sinto-me melhor agora, é só.
— Mas assim, de repente?
— É por quê? Não está feliz?
— Não se trata disso. Mas é que eu pensei...
— Pensou que eu estava inválido?
— Não, claro que não. Pensei, isto é, pensamos que você estava...
— Louco? Ora, minha cara, mas o que é isso? Louco, eu? Loucos são vocês de acreditarem numa tolice dessas.
— Mas, então...?
— Então nada. Passei um tempo doente e agora estou curado.
— Simples assim?
— Simples assim. Mas por que o espanto? Até parece que me preferia alienado. Não está feliz?
— Estou claro. Foi só a surpresa do momento, mas já passou.
— Ótimo.
Ela se levantou e anunciou:
— Sua mãe precisa saber disso. É o casamento de seu irmão e...
— Não! — cortou ele com exasperação. — Não conte nada a ninguém por enquanto.
— Mas por quê? Sua mãe ficará muito feliz ao ver que você já está curado.
— Por isso mesmo. Não quero precipitar as coisas. Não sei se estou curado ainda.
— Não sabe? Mas o que é isso que diz? Não estou entendendo.
— Não precisa entender. Quero apenas que confie em mim.
— Confiar em você? Para quê?
— Para fazer-me um favor.
Marta estava profundamente desconfiada. Aquela história estava ficando muito estranha.
— Favor?
— Sim, um favor.
— E que favor seria esse?
— Você me ama?
— Ainda duvida?
— Não. Sei que me ama, e é por isso que só posso contar com você.
Marta olhou-o magoada. Nenhuma palavra de gratidão, nenhum gesto de carinho. Nada que pudesse demonstrar o reconhecimento por tanta dedicação. Fazendo beicinho, tornou sentida:
— O que quer que eu faça?
— Isso, assim está melhor. Muito bem. Quero que traga Túlio até aqui.
— Túlio. Para quê?
— Não lhe interessa. Faça apenas o que estou pedindo.
Sem responder, Marta pousou o livro no banco e saiu, deixando Rodolfo com aquele ar idiota no rosto. Na verdade, desde que a febre baixara, ele recobrara suas faculdades mentais e tinha perfeita consciência do que acontecia ao seu redor. No entanto, era-lhe mais prudente fingir. Se todos soubessem que se curara, teria que se explicar e não conseguiria ultimar sua vingança.
Pouco depois, Marta voltou levando Túlio pela mão, e Rodolfo foi logo dizendo:
— Agora, deixe-nos a sós.
Marta rodou nos calcanhares, e Túlio, erguendo as sobrancelhas em sinal de espanto, indagou:
— Você não estava louco?
— Isso não vem ao caso.
— Estava fingindo não é mesmo?
— E daí?
— Eu devia imaginar. É bem típico de você.
— Sou esperto, não sou?
Túlio deu um sorriso de ironia e revidou:
— O que quer?
— Você sabe.
— Será possível que você não desiste? Por que não me deixa em paz? Não vê que seus truques não surtem mais efeito? Que ninguém mais vai acreditar em você?
— Escute aqui, rapaz, não se faça de besta comigo. Ainda posso contar a sua mamãezinha que você continua matando as negrinhas... Túlio fitou-o com raiva. Até quando seria presa daquele tormento?
— O que quer que eu faça?
— O combinado.
— Quando?
— Na manhã do casamento de Fausto.
— Quer impedir o casamento?
— Sim.
— Não vê que não conseguirá? Acha que alguém acreditará em você?
— Em mim, não, em você. Estou louco, lembra-se?
— Está mesmo.
— Cale essa boca, idiota, e escute-me. No dia do casamento, reúna a família em meu quarto e conte tudo, do jeitinho que combinamos. Dê um jeito de trazer Trajano e mande-o confirmar essa versão. O depoimento daquele negro imbecil será fundamental para aqueles tolos acreditarem.
— Acha mesmo que isso dará certo?
— Acho bom que dê. Para o seu bem, é melhor fazer tudo direitinho. Ou então, posso melhorar subitamente e contar a história verdadeira. Não tenho nada a perder, mas você...
O dia do casamento rapidamente chegou, e pouco antes do horário marcado para a cerimônia, Túlio foi ao quarto de Júlia. Camila atendeu e mandou-o entrar. O que poderia ele querer?
— Túlio! — exclamou Júlia. — O que faz aqui?
— Júlia preciso lhe falar.
— Agora não, querido. Estou me aprontando para a cerimônia. Frei Ângelo já deve estar chegando.
— Mas é importante.
— Nada pode ser mais importante do que meu casamento.
Júlia podia perceber o nervosismo na voz do sobrinho e imaginou que algo de muito grave deveria estar acontecendo. Caso contrário, ele não iria procurá-la justo no dia de seu casamento. Ela pousou na penteadeira a escova com a qual estava se penteando, encarou-o e indagou:
— Muito bem. Do que se trata?
— Será que pode me acompanhar ao quarto de tio Rodolfo? Por favor, é importante, principalmente para você. Disso vai depender toda a sua felicidade.
Ela estranhou aquele pedido e hesitou. Ir ao quarto de Rodolfo? Era pedir-lhe demais. Já ia protestar quando escutou a voz de Camila:
— Está tudo bem, querida, não se preocupe. Irei com você.
Júlia deu de ombros e aquiesceu. Com Camila a seu lado, não tinha o que temer. Saindo para o corredor, encontrou Fausto que, ao lado de Trajano, já os aguardava.
— Alguém pode me explicar o que é que está acontecendo?
Túlio pediu-me que o aguardasse aqui com Trajano. O que é que há? Seja o que for não pode esperar?
— Por favor, tio Fausto, venha comigo e não faça perguntas.
Acredite-me, é importante. Se não fosse, não os reuniria logo hoje, no dia do seu casamento.
Todos se calaram e seguiram para o quarto de Rodolfo. O rapaz estava sentado na cama, com Marta o seu lado, servindo-lhe uma xícara de chá. Pouco depois, Palmira apareceu seguida de Leopoldo e Dário. Vendo a família toda ali reunida, mais aquele escravo insolente, perguntou atônita:
— Mas o que significa isso?
— Tenha calma, vovó. Logo ficará sabendo de tudo. Todos ficarão. Por favor, escutem-me. Tenho uma revelação muito importante a fazer.
Logo que todos se acomodaram, Túlio encarou Fausto e começou:
— O assunto que me fez reuni-los aqui é deveras grave. Como todos sabem, tio Rodolfo perdeu o juízo e não poderá falar por si mesmo. Além disso, sua imagem está comprometida por seus atos ignóbeis, mas é preciso que não o condenemos por tudo o que acontece de ruim, só porque ele já errou uma vez. Não. Ele não é o único aqui a errar, e não deve agora também ser considerado culpado pelos erros dos outros. Eu, como seu sobrinho, não posso me calar, e sinto-me no dever de expor a todos a verdade sobre alguns fatos que aconteceram aqui.
— Que fatos?
— Trata-se de um crime.
— Um crime? Mas que crime?
— Um crime ao qual ninguém deu muita importância, mas que deve ser revelado antes de seu casamento, Júlia, para que você saiba tudo a respeito do homem com quem vai se casar.
— Túlio, pare já com isso! — explodiu Palmira. — Isso não é hora para brincadeiras desse tipo.
— Não, vovó, não são brincadeiras.
Rodolfo não mexia um músculo sequer. Nem piscava. Estava louco para pular daquela cama e atirar na face do irmão toda sorte de impropérios, mas se conteve. Júlia, indignada, retrucou:
— Não estou entendendo nada do que diz. Aonde quer chegar?
Sem tirar os olhos de Fausto, Túlio continuou:
— Quero chegar ao crime que meu tio cometeu, ou melhor, aos crimes que ele cometeu, violentando e matando uma pobre escrava indefesa, e depois ameaçando seu próprio sobrinho, caso ele contasse a verdade a alguém.
Um raio não os teria atingido com mais violência. Fausto abriu a boca perplexo, sem saber o que dizer. Nem sequer podia imaginar de onde Túlio tirara aquela história. Será que enlouquecera também?
— Túlio, você bebeu? — tornou indignado.
— Gostaria de ter bebido. Só assim poderia esquecer aquela monstruosidade. Mas não se espantem. Sei o que digo e posso provar. Há testemunhas.
— Testemunhas? — perguntou Júlia indignada — Quem? Testemunhas de que, meu Deus?
— Em primeiro lugar, eu mesmo.
— Você?
Ele olhou para Júlia rapidamente e, escolhendo bem as palavras, suspirou e começou a dizer:
— Sim, Júlia, eu presenciei a morte de Etelvina.
— Você o quê?
Túlio fitou o rosto estarrecido de Fausto e disparou, sem desviar o olhar do tio.
— Vi, com meus próprios olhos, meu tio matar Etelvina.
— O quê? — indignou-se Fausto. — Por acaso enlouqueceu? Por que está fazendo isso?
— Túlio — repreendeu Palmira severamente. — Eu o proíbo de falar sobre esse assunto. Você diz que Etelvina foi morta, embora isso nunca tenha ficado provado. E embora ela fosse apenas uma escrava, não acredito na participação de meu filho nesse episódio. Contudo, isso não vem ao caso agora, e eu lhe ordeno que se cale e não estrague o casamento de seu tio.
— Não, dona Palmira — objetou Júlia. — Embora também não acredite, Túlio diz que Fausto teve participação na morte da moça. E se Fausto tem mesmo alguma coisa a ver com isso, tenho o direito de saber.
— Mas esse assunto não é importante e pode esperar.
— Não — insistiu Júlia. — O assunto envolve Fausto, e quero saber do que se trata.
— Júlia, não vá me dizer que você acredita que eu tenha algo a ver com isso.
— Por favor, por favor — interrompeu Túlio. — Por que não me deixam terminar? Afinal, ainda não acusei ninguém.
— Isso é que não — disse Palmira. — Não vou permitir.
— Por favor, mamãe — interrompeu Fausto —, deixe que Túlio nos conte sua história. Não tenho nada a temer.
O rapaz suspirou e retomou a narrativa. Mas, para surpresa de Rodolfo, ele começou falando a verdade, desde o dia em que brigara com Trajano por causa da moça:
— Eu estava louco da vida. Louco com Trajano, que me batera, louco por Etelvina, que me parecia apetitosa. Foi então que meu tio me procurou com uma idéia. Iria me ajudar a deitar com a negrinha, ao mesmo tempo em que eu poderia vingar-me de Trajano. Nós sabíamos que ele estava apaixonado por Etelvina, e ela por ele, e meu tio pensou que seria uma boa idéia fazer com que ele presenciasse sua amada sendo ultrajada por mim.
Ele fez uma pausa e olhou para Rodolfo, que não tirava os olhos dele. Se Túlio resolvera contar de sua participação naquele episódio, tanto melhor. Dava até mais autenticidade. Só o que ele não podia era revelar seu nome. Rodolfo, porém, começou a sentir-se pouco à vontade. Por que estaria ele se incriminando, se tudo o que fizera fora exatamente para salvar a pele? E por que não falava logo o nome de Fausto, referindo-se ao autor do crime apenas por tio?
Túlio, engolindo em seco, prosseguiu:
— Bem, logo depois que eu me servi da negrinha, sob o olhar agoniado de Trajano, meu tio também resolveu aproveitar e deitou-se sobre ela. Mas Etelvina não parava de se debater, e ele começou a apertar seu pescoço, até que a esganou...
— Meu Deus! — exclamou Júlia horrorizada.
— Pois é. Depois disso, deu ordens para que Trajano a enterrasse e ameaçou-nos, a ele e a mim, caso falássemos alguma coisa.
— Túlio — interrompeu Fausto. — Por que está fazendo isso? Diga a verdade.
— Oh! Mas eu disse a verdade.
— Túlio! — gritou Palmira. — Essa história já foi longe demais. Exijo que essa reunião seja encerrada agora mesmo.
— Mas, vovó...
— Nada de, mas. Não quero ouvir nem mais uma palavra dessa infâmia. Seu tio jamais mataria alguém, ainda que uma escrava. E depois, deitar-se com uma negra? Isso é ultrajante, e meus filhos jamais se prestariam a esse papel.
— Lamento vovó, mas essa é a verdade. Meu tio não só se deitou com a escrava, como também a matou.
Fausto, não podendo mais suportar aquela agonia, agarrou Túlio pelos punhos e, sacudindo-o, explodiu:
— O que deu em você, Túlio? Por que não conta logo à verdade? Você diz que foi seu tio quem fez isso. Mas que tio?
Ele encarou Rodolfo com um brilho de satisfação nos olhos e, calmamente, declarou:
— Tio Rodolfo.
— É mentira! — gritou Rodolfo, dando um salto da cama, para espanto geral. — Mentira!
— Rodolfo, meu filho, o que significa isso? Como pode...?
Mas Rodolfo não escutava. Em sua loucura, só conseguia pensar em desmoralizar o irmão e continuou:
— Fausto o ameaçou, só pode ser isso. Mas o escravo sabe, ele viu. Vamos, Trajano, conte a verdade ou eu o mato!
Trajano, ante o olhar inquisidor dos presentes, respondeu com voz humilde:
— O sinhô sabe que sinhozinho Túlio disse a verdade.
— Mentira! Você também está mentindo. Passou-se para o lado deles! Fausto ameaçou-o também? Não acredite neles, mamãe! E tudo uma farsa. Um plano para acabar comigo e me impedir de contar-lhe a verdade! Fausto não quer ser desmascarado! Ele a enganou esse tempo todo, mamãe, e sabe que eu sou o único que conhece toda a verdade!
Palmira, sem entender bem por que obra miraculosa Rodolfo recobrara o juízo, retrucou surpresa:
— Mas que verdade? Do que é que você está falando?
Rodolfo, sem saber o que fazer, tentou sua última e desesperada cartada:
— Dos Zylberberg! É isso: os Zylberberg. Nossos vizinhos. São judeus.
Palmira olhou para o filho, penalizada. Ele pulava e gritava na sua frente, confirmando sua loucura. Seus olhos encheram-se de lágrimas e ela, tentando acalmá-lo, segurou-lhe a mão e disse com tranqüilidade:
— Eu já sabia.
Ele recuou estarrecido. Estava perdido. Tudo dera errado. Fora desmascarado e desmoralizado diante da mãe e de toda a família. Desesperado, virou-se para a porta e desatou a correr. Não lhe restava mais nada. Só o que lhe restava era morrer.
Rodolfo atravessou o quarto feito um furacão, e Marta saiu atrás dele. Ele alcançou a estradinha e desatou a correr, sem destino, com Marta em seu encalço, chamando por ele, mas ele não respondia. Só queria morrer. Por fim, extenuado, Rodolfo parou e se ajoelhou no chão de terra batida, ocultando o rosto entre as mãos e chorando em desespero. Marta parou a seu lado, ajoelhou-se junto a ele e envolveu sua cabeça com os braços desnudos, murmurando em seu ouvido:
— Meu querido, por que fez isso?
Rodolfo, em vez de responder, empurrou-a para longe, jogando-a ao chão, e levantou-se, encarando-a com horror e gritando, completamente fora de si:
— Deixe-me em paz! O que veio fazer aqui? Rir da minha vergonha?
Ela se recompôs e ajeitou o vestido, um tanto quanto sujo e amassado pelo tombo, e retrucou:
— Não, claro que não. Vim apenas ajudá-lo.
— Mentira! Veio acusar-me, humilhar-me. Mas não vou permitir, está ouvindo? Não vou permitir!
E começou a gesticular feito louco, ameaçando Marta com os punhos fechados. Ela, porém, calmamente acercou-se dele e, segurando com doçura as mãos fechadas do rapaz, acariciou-as e tentou tranqüilizá-lo:
— Psiu! Meu querido, mas o que é isso? Sou eu, Marta, quem está aqui. Não vim aqui para acusá-lo de nada. Eu o amo e estarei sempre a seu lado.
Ele fitou seu rosto sereno e contestou incrédulo:
— Não acredito! Você veio aqui a mando deles, só para me espicaçar ainda mais.
Em vez de contestar, Marta beijou-o suavemente. Mas Rodolfo continuava ainda desconfiado. Não sabia se podia confiar nela. Ela dizia que o amava, mas não estaria também se aproveitando da situação para vingar-se dele? Contudo, ao penetrar a doçura de seu olhar, não teve mais dúvidas. Marta o amava e jamais o trairia. Ele podia ver naqueles olhos toda a dor por vê-lo sofrer, e teve certeza de que ela estaria disposta a enfrentar tudo e todos só para ficar com ele. Desesperado e não podendo mais conter a frustração por ver malogrado seu plano de destruir o irmão, Rodolfo atirou-se a seus pés, agarrando sua cintura e chorando em desespero:
— Oh! Marta, Marta! Eles me humilharam, escarneceram de mim. Só quero morrer. Por favor, deixe-me morrer!
Ela ergueu-o gentilmente e o abraçou, e ele, desesperado, colou-se a ela e a beijou, buscando em seus lábios o sabor de seu beijo. Em seguida, afastou-há por uns instantes, olhou bem fundo em seus olhos e, como se uma sombra de lucidez e reconhecimento lhe perpassasse a mente, sussurrou:
— Marta, eu... Sinto muito... Você é tão boa... Não merece um homem feito eu...
Ela segurou seu queixo entre as mãozinhas alvas e suplicou:
— Eu o amo, Rodolfo, e você é o único homem que jamais sonhei merecer.
Sem dizer nada, Rodolfo beijou-a novamente, a princípio de mansinho, mas depois com uma paixão avassaladora, um desejo incontido, uma fúria quase animal. Marta assustou-se, mas o amor fez com que cedesse, ela também, ao enorme desejo que sentia por ele, e entregou-se ali mesmo, sobre a relva macia que ladeava a estradinha.
Quando terminaram de se amar, Marta estava feliz. Ele fora um pouco bruto, era verdade, mas aquele ato selara para sempre seu amor. Rodolfo seria somente seu, ela sabia, assim como sabia que ele se casaria com ela.
Rodolfo, por sua vez, apesar de arrasado, sentia-se um pouco mais confiante. A presença de Marta dava-lhe essa confiança, fazendo com que acreditasse que nem tudo estava perdido. Ele sabia que não tinha mais armas contra o irmão. Seus recursos haviam se esgotado, e ele não conseguiria mais separá-lo de Júlia. Casar-se-ia com Marta. Ao menos ela seria capaz de afogar seu despeito, ajudando-o a ostentar uma capa de dignidade e respeito, impedindo que seu orgulho fosse enxovalhado pela vergonha.



CAPÍTULO 28



Apesar desse episódio infeliz e insólito, o casamento de Júlia se realizou. Fausto, já farto das extravagâncias e das loucuras do irmão, recusou-se a adiar a cerimônia. Se Rodolfo quis se fazer passar por maluco, era problema dele. Mas ele não estava mais disposto a adiar sua felicidade por causa de seus desatinos. Era até melhor que ele não estivesse presente. Assim não precisaria ter o desgosto de casar-se na companhia de tão abominável criatura.
O casamento foi celebrado por frei Ângelo, e a festa transcorreu normalmente. Para os convidados que estranharam a ausência de Rodolfo, Palmira se justificou alegando que o filho estava doente e que piorara naquela tarde, em virtude da forte emoção.
A festa ia a meio quando Palmira pediu licença aos convidados e se recolheu ao seu quarto, alegando cansaço, deixando tudo a cargo de Camila, que se esforçava para esconder dos convidados o desagradável episódio que ali se desenrolara. Deitada em seu leito, Palmira relembrou a conversa que tivera com Fausto, quando então ficara sabendo da procedência de seus inquilinos.
— Mamãe — começara ele a dizer —, há algo que preciso lhe contar.
— Sim, meu filho, do que se trata?
— A senhora é uma mulher piedosa e temente a Deus, não é verdade?
Ela refletira durante alguns segundos, tentando imaginar o motivo daquela conversa, e retrucara:
— Sim, sou por quê?
— Porque o que tenho a lhe contar vai exigir sua piedade e compreensão, e será uma boa oportunidade para testar seu espírito cristão.
— Fausto, vá logo ao assunto. Não estou entendendo aonde quer chegar.
Enchendo-se de coragem, ele indagara:
— Bem, sabe os nossos inquilinos?
— O que há com eles? Não me vá dizer que estão atrasando o pagamento do aluguel.
— Não, não é isso. O aluguel é pago rigorosamente em dia.
— Então, do que se trata?
— Bem, mamãe, trata-se de sua, digamos, preferência religiosa. Ou melhor, de sua raça.
Palmira inquietara-se. Não estava gostando nada do rumo que aquela conversa estava tomando. Primeiro fora Rodolfo, pedindo-lhe que os convidasse para sua festa de aniversário, à qual, inclusive, eles nem foram, e agora era Fausto, que parecia saber algo comprometedor sobre aquela gente.
— Mas o que é que está tentando me dizer? Por acaso eles não são católicos?
— Não, mamãe.
— São protestantes?
— Também não.
— Mas o que são então? — diante do silêncio do filho, ela completara atônita: — Não me vá dizer que são judeus!
Olhando fundo em seus olhos, Fausto respondera:
— Sim, mamãe.
Ela ficara estarrecida. Se fossem protestantes, a situação seria ruim. Sendo judeus, era praticamente insustentável. Mal contendo a indignação, retorquira:
— Fausto, como pôde fazer uma coisa dessas comigo, sua própria mãe? Então não sabe que essa gente não presta, não tem escrúpulos ou moral?
— Mamãe, isso não é verdade. Os Zylberberg são pessoas honestas e decentes, e possuem elevados valores morais.
— Não acredito. Todos sabem que os judeus são imprestáveis, interesseiros e mesquinhos.
— No entanto, vêm pagando regiamente os aluguéis.
— Isso é outra história. Podem ser honestos, admito, mas a moral deles é outra.
— Que outra? Por acaso não pautam sua conduta pelos mesmos costumes sociais que nós? Por acaso não se vestem como nós? Não se sentam à mesa como nós? Não trabalham como nós? Não consigo ver onde possa estar à diferença.
— Meu filho, os judeus não prestam. Não acreditam no Nazareno.
— E daí, mamãe?
— E daí que Jesus morreu na cruz por causa da maldade deles.
— Não acha que é muito preconceito julgar e condenar a todos só porque alguns, há séculos e séculos passados, cometeram um ato que, pelos nossos padrões de conduta, seria considerado um crime medonho?
— Mas eles crucificaram Jesus. Isso não lhe parece medonho?
— Mamãe, isso é um fato histórico, como tantos outros. Por acaso os padres católicos, há bem pouco tempo, não levaram centenas de pessoas à fogueira só porque tinham algum tipo de crença ou de conhecimento que, pelos padrões da época, foi julgado imoral e ofensivo às leis divinas? E as Cruzadas? Quantos não padeceram em nome da Cruz? Acha justo que alguém tenha que morrer só por pensar ou agir diferente?
— Isso é outra coisa...
— Não é não. É a mesma coisa. A única diferença é que os judeus, como você diz, crucificaram um homem só, ao passo que os católicos, em nome desse mesmo Jesus, assassinaram inúmeros inocentes. E se quer saber, não creio que Jesus tenha ficado nada satisfeito com isso.
— Fausto, não blasfeme!
— Não estou blasfemando. Acredito em Jesus e em sua maravilhosa missão aqui na Terra. Mas se foi ele mesmo quem pregou o amor, como nos pode, séculos depois, pretender selecionar aqueles que são e os que não são dignos de ser amados? Ao que me conste, Jesus não fazia essa distinção. Ao contrário, amou a todos igualmente: ricos e pobres, cristãos e romanos, sadios e leprosos...
— Por favor, Fausto, pare! — gritara Palmira. — Você só está tentando me confundir.
— Não, mamãe. Estou apenas tentando chamá-la à razão. Os judeus, assim como quaisquer outras pessoas, são seres humanos. Têm os mesmos sentimentos, as mesmas necessidades, os mesmos desejos, os mesmos medos. Sujeitam-se às mesmas vicissitudes e alegrias que nós. Amam-se, casam-se, têm filhos. Em que são diferentes de nós?
— Não sei meu filho. Mas Jesus morreu para nos salvar...
— Para que aprendêssemos a nos amar e respeitar, e não para que nos odiássemos ou discriminássemos.
— Amar, sim. Mas não aos judeus.
— Por que não? Onde está escrito que católicos, judeus, protestantes, ne... — ia dizer negros, mas mudara de idéia e se corrigira —... Árabes e turcos não podem se amar?
— Isso que está dizendo é uma heresia.
— Será mesmo? Por que se julga tão superior? Por que acha que Deus só tem olhos para os católicos? Deus não tem religião e é cultuado em todas as religiões, até nas africanas. Nossos escravos também não cultuam seus deuses?
— Fausto, como pode comparar Nosso Senhor aos deuses africanos? Eles são pagãos, politeístas!
— Mas por quê? Porque alguém convencionou que só devemos amar a Deus da maneira como foi por uns concebidos? A concepção de Deus não deve ser limitada, mas de acordo com a crença e o coração de cada um.
— Meu filho, de onde tirou essas idéias?
Fausto olhara-a assustado. Nem ele sabia de onde surgiram aqueles pensamentos. Só o que sabia é que eles, de repente, afloraram em sua mente, clareando-a e tornando-a mais lúcida, como se o véu do obscurantismo fosse aos poucos caindo, descortinando idéias para as quais, até então, não havia ainda despertado. Como que retornando à realidade, ele respondera:
— Não sei mamãe. Confesso que isso me ocorreu agora. Mas não importa. O que importa é que essas idéias me parecem bastante lógicas e sensatas. Por que distinguir onde Deus não distingue?
Palmira estava perplexa. Apesar de sua patente aversão às pessoas não católicas, tinha que concordar que não sabia responder às perguntas que Fausto lhe fazia. Acostumara-se a rejeitar os judeus porque assim lhe ensinaram no catecismo, mas nunca lhe ocorrera pensar neles como pessoas de carne e osso. Contudo, era-lhe difícil abandonar tantos conceitos pré-concebidos assim, de forma tão repentina, conceitos há muito estabelecidos e aos quais já estava apegada pela força do hábito. Ela o encarara seriamente e, balançando a cabeça, acrescentara:
— Fausto, não tenho idéia do que está falando. Contudo, fui criada na Igreja e não me cabe discutir seus dogmas.
— Por que não? Por acaso não pensa, não tem raciocínio?
— Não nos é lícito raciocinar sobre verdades que a Igreja nos ensina.
— Mas que verdades? Como pode alguém intitular-se dono da verdade, se a verdade absoluta é privilégio de Deus? Ou será que alguém está tentando igualar-se a Deus?
— Fausto que horror! Isso é uma blasfêmia.
— Não, mamãe, isso é raciocínio. Deus nos deu a faculdade do raciocínio e não nos impôs limitações para usá-la. Não estaria de acordo com a natureza divina possuirmos um dom ou faculdade para não o utilizarmos. De que vale o violino se não há ninguém que o saiba tocar? Para que o dom da pintura se o artista não se dispõe a expressar-se nas telas? Não seria isso um desperdício?
— Meu filho, não sei o que lhe dizer. Nunca havia pensado nessas coisas e nem sei se é direito pensar nelas agora.
— Mamãe, por favor, seja razoável. Os Zylberberg são pessoas de bem. Cumprem suas obrigações para conosco em dia. Têm uma filha doente, que está se recuperando graças, em parte, ao ar puro de nossa região. O que pretende fazer? Expulsá-los daqui só porque não acreditam que Jesus seja o Messias?
— Não sei meu filho, confesso que não sei o que fazer. Não quero parecer insensível, mas ter contato com judeus... Já é demais.
— E se eu lhe disser que alguns membros de nossa família mantêm estreitas relações com eles?
— Refere-se à Camila e Júlia? Eu sei, mas o que posso fazer? Embora lamente muito, Camila é adulta, e não posso obrigá-la a cortar relações com essa gente. Só o que posso lhe pedir é que não me peça para aceitar sua presença em minha casa. E quanto a Júlia, bem, ainda não é parte da família.
— Não é a Camila que me refiro. Nem a Júlia.
— Não? E a quem mais?
— Mamãe, Dário está comprometido com a moça, Sara, e quero que saiba que pretendem se casar.
Ela quedara mortificada. Aquilo já era demais. Seu neto misturar seu sangue ao sangue de uma judia? Nunca! Só passando por cima de seu cadáver.
— O que está me dizendo? — indagara atônita. — Isso só pode ser alguma brincadeira.
— Pois lhe asseguro que não é brincadeira alguma. Dário e Sara estão apaixonados e vão se casar assim que ela melhorar.
— Não, isso não pode ser verdade. Não vou admitir. Vou falar com Camila, fazer com que veja o absurdo desse romance.
— Pare mamãe. Não há absurdo algum, e a senhora não vai fazer nada. Lembre-se do que aconteceu a Inácio. Acha justo deixar que seu neto também sofra por causa de um amor incompreendido?
Palmira calara-se e ficara a pensar. Já estava ficando velha e cansada, e talvez nem vivesse para ver o casamento dos netos. Será que valeria a pena desgostar-se com eles só para fazer valer sua vontade?
— Não quero fazer ninguém sofrer.
— Pois então, mamãe, aceite e verá que Sara é uma excelente moça, e que seus pais são pessoas bondosas e decentes. Tenho certeza de que gostará muito deles.
— Não sei Fausto. Não sei se conseguirei.
— Por favor, mamãe, tente. Dário ama a moça e vai se casar com ela, quer a senhora queira, quer não. Se a senhora não a aceitar, eles com certeza partirão daqui magoados com a senhora. É isso o que quer?
— Tem razão, meu filho. Amo meu neto e não quero desgostar-me com ele — ela ficara pensativa por alguns segundos, até que continuara: — Apenas não entendo uma coisa.
— O que é?
— Por que resolveu me contar isso agora? Por que não antes ou nunca?
Ele acercara-se dela, segurara-lhe as mãos com firmeza e dissera:
— Porque vou me casar com Júlia, e é importante a presença deles em nosso casamento. E se é importante para Júlia, é importante para mim também.
— Entendo.
Diante disso, Palmira achara melhor não insistir. Ainda não sabia que a doença de Rodolfo era uma farsa e não queria indispor-se com Fausto. Por isso, resolvera tolerar aquela gente. O que mais poderia fazer?
Logo que marcaram a data, Fausto, a pedido de Júlia, acompanhara Dário em uma de suas visitas a Sara. Queria formalizar o convite para seu casamento. Esperara que Sara e Dário terminassem de se abraçar, chamara Rebeca e Ezequiel, e anunciara:
— Meus amigos, vim aqui para, juntamente com Júlia, fazer-lhes um convite especial. Gostaríamos de convidá-los para o nosso casamento, que se realizará dentro de um mês, aproximadamente.
— O quê? — indagara Ezequiel. — Mas já?
— Sim, já. Não temos por que esperar.
— E onde será o matrimônio? — perguntara frei Ângelo.
— Lá mesmo na fazenda — respondera Júlia. — E gostaríamos que o senhor, frei Ângelo, celebrasse a cerimônia.
— Ora, será um prazer.
— E vocês irão, não é mesmo, Rebeca?
— Gostaríamos muito, mas não sei se devemos. Dona Palmira, na certa, não aprovará nossa presença.
— Quanto a isso, não precisam se preocupar — objetara Fausto. — Já conversei com mamãe e contei-lhe tudo sobre vocês.
— Quer dizer que ela já sabe que somos judeus?
— Já, sim.
— E o que ela disse?
— Não vou mentir. No começo, ficou um pouco chocada. Mas depois acabou concordando que os convidássemos.
— Posso perguntar como foi que conseguiu essa proeza?
— Nem eu mesmo sei seu Ezequiel. Só o que sei é que mamãe acabou se convencendo, ao menos parcialmente, de que esse preconceito não tem fundamento.
— Será que não a constrangeremos com nossa presença?
— Em absoluto. Podem ir sem se preocupar. Mamãe não os importunará e nem se sentirá ofendida com a presença de vocês. Ao contrário, tratá-los-á muito bem. Ainda mais agora, que sabe que Dário e Sara vão se casar.
— Você contou a ela? — indagara Sara, perplexa.
— Sim, meu bem — dissera Dário. — E ela aceitou. Não é maravilhoso?
— É sim. Oh! Papai podemos ir? Diga que iremos, por favor.
— Bom, se é assim, iremos — concordara Ezequiel.
— Imaginem se faltaria ao casamento de minha querida Júlia, a quem considero como uma filha — acrescentara Rebeca.
— Obrigada, dona Rebeca. Ficarei muito feliz com a presença de vocês.
Lembrando-se de sua conversa com o filho, Palmira suspirou e fechou os olhos. Estava feliz por Fausto e triste com o comportamento de Rodolfo. Por isso, a festa para ela perdera metade de seu encanto. Não se sentia com ânimo para fingir mais diante dos convidados. Ela sabia que Camila se desincumbiria bem da tarefa que lhe dera e não se preocupou.
Ao final da festa os noivos se recolheram e, no dia seguinte, bem cedo, partiram para Paris em viagem de núpcias. Apesar de tudo, estavam felizes. Lamentavam o ocorrido, mas Rodolfo escolhera seu próprio destino. Tivera a chance de se reconciliar com o irmão e Júlia e de desfrutar de sua companhia. Em vez disso, optara por atirar-se naquele precipício de ciúme e inveja, de onde já não podia retornar.
Marta e Rodolfo ficaram até altas horas assistindo de longe o movimento do casamento do irmão. Depois que o último convidado se retirou, ele tornou a beijá-la, levantou-se e estendeu-lhe a mão, perguntando em seguida:
— E agora? O que faremos?
Ela não sabia bem a que ele se referia. Se ao fato de havê-la deflorado ou se ao episódio de ainda há pouco. Ela estalou-lhe um beijo na testa e retrucou:
— Por que não vamos até minha casa? Tenho certeza de que papai não se importará que você passe a noite lá. Pode dormir na poltrona...
— Você acha melhor?
— Acho, sim. O que aconteceu em sua casa foi muito grave, e é melhor que você não volte lá por enquanto.
— Tem razão.
Puseram-se a caminhar de mãos dadas, e Marta acrescentou:
— Por que fez isso?
Rodolfo suspirou e chutou uma pedrinha, respondendo com voz sumida:
— Não sei. Não sei se você entenderia.
Ela parou, virou-se para ele e, apertando forte suas mãos, decretou:
— Ouça Rodolfo, quero que compreenda uma coisa. Hoje me tornei sua mulher e quero continuar sendo sua mulher pelo resto de nossas vidas. Mas quero que saiba que, acima de tudo, serei sempre sua amiga.
Rodolfo encarou-a, emocionado, e disse-lhe do ódio que sentia pelo irmão, cuja origem ou razão desconhecia. Estranhamente, sabia que podia confiar em Marta e no seu amor. Ela jamais o julgaria ou trairia, e isso lhe dava certo conforto, como se ela passasse, de repente, a representar a figura do abrigo seguro em noites de tempestade. Marta ouviu tudo em silêncio, sem esboçar nenhum tipo de reação. Quando chegaram à porta de sua casa, sua fisionomia continuava serena, e ela beijou-o de leve nos lábios, dizendo bem de mansinho:
— Obrigada por confiar em mim.
No dia seguinte, quando Anita acordou, ficou extremamente surpresa ao encontrar Rodolfo adormecido na poltrona da sala, todo torto, e correu a chamar o marido. Aldo chegou sem nada entender, sentou-se ao seu lado e, cutucando-o devagar, tentou despertá-lo. Rodolfo abriu os olhos um pouco aturdidos e, logo que se lembrou de tudo o que havia acontecido, pulou da poltrona e ficou a olhar o capataz, meio sem jeito. Aldo, surpreso, disse:
— Seu Rodolfo, o que foi que aconteceu? O que está fazendo aqui? Não está doente? Sente-se bem? Precisa de ajuda?
Marta, ouvindo vozes na sala, levantou-se apressada, jogou o penhoar por cima da camisola e correu para onde eles estavam chegando bem a tempo de ouvir as emocionadas palavras de Rodolfo:
— Aldo, peço que me perdoe à intromissão. Vim aqui para pedir-lhe a mão de Marta em casamento e ficaria muito feliz se a concedesse.
Foi uma surpresa. Anita, a princípio, quedou boquiaberta, e Aldo, atônito, retrucou:
— Seu Rodolfo, há pouco estava doente, mal falava...
— Para você ver, Aldo. Foi o amor de sua filha que me curou.
Aldo e Anita se entreolharam, e ele prosseguiu:
— Seu Rodolfo, tem certeza de que é isso mesmo o que quer? O senhor é o patrão, e Marta é apenas uma menina pobre...
— Sim, Aldo, tenho certeza. Sua filha e eu nos amamos e queremos nos casar.
Diante disso, Aldo não teve outro remédio senão consentir no casamento. Ele não sabia de nada do que acontecera, mas não gostava muito de Rodolfo. Contudo, tinha que concordar que ele era um excelente partido, membro de uma das mais importantes famílias da região. E depois, se Marta o amava, que direito teria ele de impedir que fosse feliz? Ele só esperava que ela, realmente, conseguisse ser feliz.
Túlio, por sua vez, vendo que Rodolfo o ameaçava, tentando forçá-lo a executar seus planos sórdidos, primeiro contra Trajano, depois contra Fausto, achara que já era hora de acabar com aquilo. Desesperado e arrependido enchera-se de coragem e acabara por procurar a mãe, abrindo-se com ela, e Camila orientara-o no sentido de dizer a verdade, pois só a verdade seria capaz de libertá-lo, não só da culpa, mas também do medo de ser descoberto. Seria um passo difícil, ela sabia, mas a coragem era uma virtude nobre, e assumir seus erros, um ato de bravura e dignidade. Túlio se arrependera e, com isso, dera o primeiro passo para sua regeneração. Mas era preciso enfrentar seus medos e sua culpa, assumindo seu erro com coragem e sinceridade. Só assim conseguiria o respeito por si mesmo e conquistaria o respeito dos demais.
Fingindo concordar com as idéias do tio, a conselho da mãe, Túlio saíra em busca de Trajano, colocando-o a par do acontecido instruindo-o para que, ao ser chamado à sua presença, falasse apenas a verdade, sem medo de ser humilhado ou castigado. Trajano ficara muito feliz com a atitude de Túlio. Ainda mais porque pudera se reconciliar com ele, por quem nutria sincera afeição.
No entanto, Túlio estava envergonhado de si mesmo, e depois de tudo o que fizera não se sentia com ânimo de encarar Fausto e Júlia. Afinal, não fora a primeira vez que se metera em situação semelhante e começara a julgar-se um réprobo, merecedor de todo desprezo que lhe pudessem endereçar. Com isso, foi se tornando cada vez mais acabrunhado e tristonho. Evitava a companhia dos demais e voltara a trancar-se no quarto. Por mais que a mãe, a avó, o irmão, Júlia e Fausto tentassem animá-lo, ele não conseguia se livrar da culpa. Túlio, a todo instante, lembrava-se de Etelvina, por cuja morte fora diretamente responsável. Sua própria consciência atormentava-o dia e noite, acusando-o de estuprador e assassino. Ninguém conseguia animá-lo, a não ser Trajano, que o visitava regularmente. Palmira, vendo o abatimento do neto, a quem adorava, acabara por consentir que o escravo o visitasse, e era só na presença de Trajano que Túlio dava vazão à culpa, chorando e implorando-lhe que o perdoasse. Túlio estava sinceramente arrependido e, se pudesse tudo faria para reparar os crimes que havia cometido. Tão sincero era seu arrependimento, que o espírito de Etelvina, alma nobre e generosa, acabara por se aproximar dele, e Túlio sonhara.
Em seu sonho, ele estava novamente no local em que tudo acontecera, chorando à beira do riacho. De repente, ouvira ruído de passos na relva e, quando se virará, quase caíra de susto. Etelvina estava ali, parada diante dele, um sorriso nos lábios, convidando-o para um passeio. Túlio sentira medo e quisera fugir, mas ela docemente o chamara:
— Por que foge Túlio? Não se lembra mais de mim?
— Lembro-me sim. Você é Etelvina, a quem vi morrer aí mesmo onde está parada.
— Não, Túlio. Não se lembre de Etelvina. Lembre-se de sua antiga criada.
De repente, Etelvina como que desaparecera, e em seu lugar surgira uma moça bonita, muito loura, de seus dezenove anos, vestida em trajes de serviçal. Túlio assustara-se, e ela correra para dentro da mata. Sem pensar, ele correra atrás dela e atravessara uma porta, indo parar na imensa cozinha de um castelo medieval. Atônito, olhara em volta e vira Etelvina ajudando a cozinheira a rechear um faisão. Ele se aproximara mais da moça e ela olhara para ele, abaixando os olhos e sorrindo maliciosamente. Em seguida, cochichara alguma coisa no ouvido da cozinheira e saíra por uma porta lateral, e Túlio saíra atrás dela.
Nessa época, Túlio e Rodolfo eram irmãos, e Trajano, capitão da guarda de seu pai. Rapaz orgulhoso e frio morria de inveja dos patrões. Era filho bastardo de um tio dos rapazes, e o máximo que conseguira na vida, por condescendência do patrão, fora aquele cargo de guarda pessoal. No entanto, apaixonara-se por Etelvina e pretendia casar-se com ela. Mas eram pobres, e a vida que se lhes apresentava era uma vida simplória, sem qualquer tipo de luxo ou conforto. Etelvina e Trajano, extremamente ambiciosos, armaram um plano. Roubariam os patrões e fugiriam. Como chefe da guarda, ser-lhe-ia fácil arranjar uma fuga, assim como seria fácil para Etelvina entrar na sala de tesouros do castelo.
Para isso, Etelvina contava com o desejo e a paixão de Túlio. O moço vivia seguindo-a com o olhar e só não a forçara a entregar-se a ele com medo de que o pai descobrisse. Um dia, porém, a sorte lhe sorrira. A moça estava polindo a prataria quando vira Túlio se aproximar. Conhecedora de sua influência sobre o rapaz, logo o seduzira, tornando-se sua amante. A partir daí, encontravam-se todas as noites, e ela sempre insinuava que muito lhe apreciaria entrar na sala de tesouros de seu pai. No princípio, ele recusara. Era muito perigoso. Mas depois, quando a paixão dominara-o por completo, não pudera mais se furtar. Etelvina ameaçava deixá-lo, caso não atendesse àquele seu capricho.
Marcaram a visita para o dia seguinte, e Etelvina prevenira Trajano, que, esgueirando-se pelos corredores do castelo, ocultara-se nas sombras, à porta do quarto de Túlio. Já era madrugada quando saíram, e Trajano os seguira de longe, sem produzir um só ruído. O rapaz entrara num salão, chegara perto da pintura de sua mãe, ladeada por duas tochas, e torcera a da esquerda. Imediatamente a parede se abrira, e eles passaram. Etelvina estava assustada, mas não dissera nada. Caminharam por um corredor escuro, até que chegaram diante de outra porta, cuja chave Túlio tirara do quarto do pai. Ele abrira a fechadura e empurrara. Etelvina ficara maravilhada. Aquele tesouro era incalculável. Havia ali pratarias, tapeçarias e um baú cheio de jóias e pedras preciosas.
Trajano, que vinha logo atrás, esperara cerca de dez minutos e repetira o gesto de Túlio, abrindo a passagem secreta e caminhando pelo corredor, até chegar à sala dos tesouros. Quando entrara, Túlio se espantara vendo a lâmina que reluzia em sua mão. Olhando para Etelvina, compreendera tudo e quisera fugir. Tarde demais. A lâmina cortara-lhe a garganta, e ele tombara morto sem pronunciar um ai sequer.
No dia seguinte, Rodolfo, irmão de Túlio, saíra a sua procura. Os dois eram íntimos, combinavam em tudo e tudo sabia a respeito um do outro. Rodolfo sabia que Túlio e Etelvina havia se tornado amantes, e até o estimulara. Mas quando o irmão lhe contara que pretendia mostrar a ela a sala de tesouros, não concordara. Pensara até em contar ao pai, mas Túlio implorara. Estava apaixonado pela moça e não queria perdê-la. E depois, que mal haveria? Ela era apenas uma mulher e nada poderia contra ele. Rodolfo, a contragosto, não tivera outro remédio senão concordar.
Quando ele abrira a porta do quarto de Túlio e não o encontrara, correra para a sala de tesouros. Atravessara a passagem secreta e, quando vira a porta entreaberta, seu coração disparara. Túlio jazia morto sobre o chão de pedra, a garganta cortada, olhos fitando o vazio. Olhando ao redor, vira que o baú estava aberto e que várias peças haviam sido retiradas. Aquilo o enchera de ódio. Teria Etelvina agido sozinha?
Dado o alarme, constatara-se que o capitão da guarda havia sumido, bem como Etelvina, e não fora difícil adivinhar o que havia acontecido. O pai de Túlio enviara seus homens por toda parte, mas ninguém conseguira encontrá-los, e os criminosos permaneceram impunes.
Rodolfo, no entanto, não se conformava. O ódio o consumia cada vez mais, e ele sempre se lembrava da aterradora visão que tivera do irmão morto. Aquela cena macabra o acompanhava por toda parte, e ele fizera um juramento. Faria com que Etelvina e Trajano pagassem tudo na mesma moeda.
Estarrecido diante desse sonho, ou melhor, dessa visão, Túlio sentira-se envolvido por uma nuvem perfumada, e logo fora transportado de volta ao seu quarto, onde Etelvina o aguardava. Ela o beijara suavemente e partira e, desde esse dia, Túlio tornara-se um rapaz mais alegre, embora comedido e discreto. Sorria com moderação, largara os vícios, deixara de molestar as escravas. Concentrara-se no futuro, ávido por retornar a sua cidade e dedicar-se a auxiliar o pai com os negócios. Tencionava casar-se e ter filhos. Queria ser um homem normal, levando uma vida normal, porque já era outro homem: digno, honesto, gentil. E tudo graças a um estranho sonho que tivera, cuja lembrança lhe parecia um pouco nebulosa, mas que fora capaz de acender em sua alma a chama da esperança e do perdão.



CAPÍTULO 29


Desde que frei Ângelo chegara à fazenda Ouro Velho, Sara começou a se sentir melhor. Todo o dia bebia as infusões que ele mandava preparar para ela, que pareciam fortalecê-la cada vez mais. Além disso, a companhia dos amigos e as conversas que tinha com o frei foram aos poucos a animando. Ela sempre falava de seus sonhos, de seus temores e de suas dúvidas. Abria seu coração para ele, revelando-lhe suas angústias e seus sentimentos, e já estava consciente de que o mal de que sofria realmente tivera uma causa no passado, e que essa causa estava mesmo ligada a sua relação com seus pais em outra vida.
Naquele dia, ao sair para o jardim, frei Ângelo lá estava, olhos fechados, banhando-se ao Sol. Ela chegou e levemente o tocou, dizendo sorridente:
— Bom dia, frei Ângelo. Desculpe-me se o desperto do sono...
— Oh, não, minha menina, não estava dormindo. Apenas aproveitava o Sol da manhã. Mas vamos, sente-se aqui junto de mim e diga-me: como se sente esta manhã?
Ela sentou-se a seu lado, encheu os pulmões com o ar fresco da manhã e respondeu com jovialidade:
— Maravilhosamente!
— Ótimo. Seu progresso tem mesmo sido notável.
— Graças ao senhor.
— Graças a você mesma. Ao seu desejo de se curar. A sua enorme capacidade de compreender, aceitar e modificar as coisas.
— Sabe, frei Ângelo, sinto como se, de repente, pudesse compreender por que meus pais são como são, e por que eu sinto tanta insegurança.
— E por quê?
— Pelo que pude compreender de todos os sonhos que já tive, minha mãe ficou viúva logo cedo, mas não se conformava em viver só. Por isso, vivia flertando com vários homens, sempre na esperança de arranjar novo marido. Mas os homens, logo que descobriam que ela tinha uma filha, em sua maioria se afastavam, e ela ficava aborrecida comigo. Passou então a quase me ignorar. Tratava-me bem, cumpria com seus deveres de mãe, ou seja, alimentava-me, dava-me roupas, brinquedos... Mas nenhum carinho. Não tinha tempo para isso. Creio mesmo que ela tentava compensar sua falta de amor comprando-me presentes caros e bonitos. Bem, o fato é que eu fui me sentindo cada vez mais sozinha, fui me isolando, pensando que não era amada.
Ela suspirou e prosseguiu:
— Agora compreendo a antipatia que minha mãe sentiu por Marta. Ela afeiçoou-se muito a mim e tratava-me como se eu fosse sua filha. Dava-me coisas também, mas, em especial, dava-me atenção, carinho, amor. Era bondosa e compreensiva, e eu fui me apegando a ela e, com o tempo, passei a não ligar mais para minha mãe. Eu era também pequenina, devia ter uns seis anos no máximo, e substituí o amor de minha mãe pelo de Marta, feliz por haver encontrado alguém que me fizesse sentir amada. E minha mãe, quando se deu conta do que havia acontecido, ficou furiosa. Ela nem teria notado, não fosse pelo fato de haver conhecido meu pai, que passou a cobrar-lhe que me desse atenção, e ela, para agradá-lo, procurava a minha companhia. Mas eu, cada vez mais distante, não queria estar junto deles, mas sim de minha tia, o que deixou minha mãe furiosa. Daí o sentimento que ela tem por Marta, que nem sabe explicar.
— É verdade. E como você se sentiu com tudo isso?
— Eu fiquei extremamente infeliz. Apesar de procurar minha companhia, eu sentia que aquele interesse não era sincero. Minha mãe só queria impressionar seu novo marido. Na frente dele dava-me beijos, abraços. Mas depois que ele saía, colocava-me no chão e voltava a me ignorar. Segundo dizia, não tinha paciência para manhas de crianças.
— Você deve ter se sentido extremamente só.
— E como! Minha tia foi proibida de me ver, e eu sofria muito com isso. O que mais desejava no mundo era poder estar junto de Marta. Com o tempo, fui me fechando cada vez mais. Não saía para brincar e me alimentava muito mal. Até que, um dia, bastante enfraquecida pela má alimentação, apanhei um golpe de ar e adoeci. Tossia sem parar e ardia em febre. Minha mãe se apavorou e chamou o médico, mas já não havia muito que fazer. A pneumonia já havia tomado conta de meu pulmão, e só o que se podia fazer era esperar. Poucos dias depois, vim a falecer, deixando minha mãe entregue a profundo abatimento, sentindo-se culpada por minha morte. Mas, não querendo admitir sua culpa, passou a acusar Marta, dizendo que ela havia colocado coisas na minha cabeça, na esperança de roubar-me dela. Marta e ela cortaram relações e, durante anos, não mais se falaram. Até que, mais tarde, por conveniências políticas, passaram a manter uma relação fria e artificial. Minha mãe nunca pôde perdoá-la e morreu levando consigo muita mágoa e ressentimento.
Sara calou-se e frei Ângelo ficou olhando-a, profundamente emocionado com o que acabara de ouvir. Toda a história fazia sentido, e ele estava feliz por ver que a moça conseguira, sem muito esforço, chegar àquelas conclusões. Depois de alguns instantes, segurou-lhe a mão e indagou:
— E agora, o que pretende fazer? Vai contar a verdade a seus pais?
— Não, absolutamente não. Meus pais jamais entenderiam. Principalmente minha mãe.
— Bem se vê que ela carrega muita culpa no coração.
— Por isso mesmo. Se ela acreditasse nessa história, passaria a se culpar. Isso sem falar que poderia aumentar sua antipatia por Marta.
— Tem razão, minha filha. È muito sábia essa decisão. Foi por isso que Deus permitiu que você descobrisse essas verdades, porque sabia que você já estava preparada para entendê-las e aceitá-las. Seus pais, contudo, ainda precisam de mais algum amadurecimento. Revelar-lhes essas coisas agora poderia causar-lhes mais mal do que bem, visto que eles não conseguiriam alcançar a magnitude da justiça de Deus.
— Minha mãe entenderia justiça como vingança. Pensaria que Deus a estaria castigando por haver me rejeitado.
— Como se Deus castigasse alguém...
— Vê como é melhor deixar tudo como está?
Nesse instante, Dário se aproximou. Ia sorrindo, vendo a alegria de Sara. Era impressionante sua melhora, e Dário pensou que frei Ângelo operara um verdadeiro milagre. Acercando-se mais dela, segurou sua mão e beijou-a na face, falando sorridente:
— Sara minha querida, como está alegre!
— Sim, Dário, sinto-me muito bem.
— Isso é maravilhoso!
— É sim.
— Em breve poderemos nos casar.
Ele olhou para frei Ângelo, que se levantou, pediu licença e se retirou. Era hora de entrar e deixar que os moços aproveitassem à juventude e o amor. Dário sentou-se ao lado de Sara, e ela o encarou com ar enigmático. Lembrou-se de outro sonho que tivera, talvez de uma vida anterior, quando ele fora seu marido e morrera bem velhinho a seu lado. Ela sorriu para ele e, segurando-lhe o queixo entre as mãos, disse cheia de ternura:
— Sabe que o amo há muito, muito tempo?
Dário, pensando que ela se referia ao tempo em que se conheciam, abraçou-a com ternura, estreitando-a de encontro ao peito, certo de que ela viveria para continuar a amá-lo por muito, mas muito mais tempo ainda.
Até a partida de Fausto e Júlia em viagem de lua-de-mel, no dia seguinte ao casamento, Rodolfo permaneceu oculto na casa de Marta. Aldo e Anita estranharam, mas não disseram nada. Ele era o patrão, e não convinha contrariá-lo.
Quando a carruagem levando os recém-casados saiu da estradinha que ligava à casa grande, o capataz foi avisá-lo, e Rodolfo voltou para casa cabisbaixo e desconfiado. Entrou sem falar com ninguém e foi direto para o quarto. Poucos minutos depois, escutou batida na porta. Era a mãe, que ia ver como estava passando.
— Como está, meu filho? Por onde andou? Fiquei preocupada.
Ele virou o rosto para a janela e retrucou:
— Por quê? Pensei que também quisesse ver-me longe daqui.
— Não diga isso. Você é meu filho. Haja o que houver, será sempre meu filho.
Encarando-a, Rodolfo declarou:
— Mamãe, sei que errei, mas errei porque pensava amar Júlia. — mentiu — No entanto, agora vejo que não a amava tanto assim. Por causa dela, quase destruí meu irmão. Quase me destruí...
— Não pense mais nisso. O importante agora é que vocês se reconciliem. Ele partiu para a Europa, vai demorar a voltar. É o tempo de que necessitamos para que tudo se ajeite.
— Acha mesmo?
— Tenho certeza. Fausto é um bom rapaz, e Júlia também me parece que tem bom coração. Irão perdoá-lo e esquecer o ocorrido. Mas você tem que me prometer que nunca mais tentará nada contra eles. Promete?
Ele ainda hesitou, mas acabou concordando.
— Prometo.
— Muito bem.
— Eles vão continuar morando aqui?
— Não. Eles vão para a Ouro Velho. E melhor assim.
— Sim, é. Escute mamãe, não quero mais saber de Júlia. Por isso, gostaria de anunciar que pretendo me casar com Marta.
— Fico muito feliz, meu filho, que tenha decidido se casar com ela. Confesso que, no começo, não a julgava digna de você. Mas depois, vendo-lhe a dedicação, comecei a rever meus conceitos. Marta tem muito valor, e sei que o ama.
— Quer dizer, então, que nos dará sua bênção?
— Sim. E ficarei muito feliz se continuarem vivendo aqui. Com Fausto na outra fazenda, e Camila de volta a São Paulo com meus netos, sentir-me-ei muito só.
— Nada me dará mais prazer, mamãe. E não se preocupe. Pretendo encher esta casa de crianças.
Ela sorriu e deu uma tapinha de leve em seu braço.
— Agora me diga meu filho, apenas por curiosidade. Desde quando estava se fingindo de doente?
Ele abaixou os olhos e suspirou com amargura.
— Há muito tempo, mamãe. Tanto que nem posso me lembrar.
Palmira achou estranha aquela resposta e mudou de assunto:
— Vou mandar providenciar um novo quarto para vocês. Este aqui é muito pequeno para acomodar um casal.
— Como quiser mamãe. Ah, já ia me esquecendo. Prometi a Aldo que lhe daria um pequeno sítio, para que possa se aposentar e viver com a mulher. Não fica bem meu sogro trabalhando para mim de capataz.
— Fez bem.
O casamento se realizou conforme o esperado, em cerimônia simples, só com a presença dos familiares. Nenhum amigo, nenhum fazendeiro da região ou pessoa ilustre foi convidada. Rodolfo não tinha ânimo para festas, e Marta não fazia questão de luxo. Ele apenas quis receber a noiva no altar, toda de branco. Depois da cerimônia, partiram para a corte em lua-de-mel e só retornaram dali a um mês.
Quando voltaram, Marta parecia feliz, apesar de mais madura e vivida. Camila já havia partido em companhia de Leopoldo e Túlio, e apenas Dário permanecera. Não queria ir sem Sara. A moça freqüentava a fazenda São Jerônimo e lá iam quase todos os dias em companhia de frei Ângelo. Vendo a amizade entre um frei e uma judia, Palmira se espantou. Frei Ângelo, porém, dissera-lhe:
— Dona Palmira, Deus não se preocupa com raça, cor ou credo. Ele enviou seu filho não para que desagregasse os homens, impondo-lhes diferentes crenças e conceitos, mas para que, reconhecendo suas próprias diferenças, pudessem se amar e se reconhecer como irmãos.
— Mas... E a crucificação?
— Jesus foi crucificado pela incompreensão de uns, e não pela maldade de todos. Não é justo nos julgarmos melhores do que ninguém, ainda mais porque os cristãos surgiram do meio dos judeus. Não é verdade?
— Sim... Pensando bem, Jesus também nasceu judeu.
— E então? Viu? Não perca a oportunidade, dona Palmira, de conhecer pessoas maravilhosas, que muito têm a oferecer, só porque seguem uma crença diferente.
A exemplo de Marta Sara era também uma boa moça. Um pouco pálida, talvez, mas muito franca e generosa.
— O que será dela? — tornou Palmira. — O que será dela quando voltar a São Paulo?
— Não sei. Esperamos que sua doença não volte a evoluir longe do ar puro das montanhas. Sara tem a doença sob controle, mas não se pode afirmar que esteja propriamente curada.
— Mas por que ela tem que voltar? Por que não pode ficar aqui? Por acaso não gosta da vida na fazenda?
— Não sei dizer. Por que não pergunta a ela?
Sara amava a vida na fazenda, mas ela não lhe pertencia. Pertencia a Fausto e a Júlia, que para ali se mudariam tão logo voltassem de sua viagem. E ela não tinha o direito de tomar-lhes o lugar. Palmira, porém, já afeiçoada à moça e com medo de que ela piorasse se voltasse para São Paulo, tomou uma decisão. Falaria com Fausto. Se ele concordasse, pediria a Ezequiel e Rebeca que se mudasse em definitivo para lá com a menina, depois do casamento. Apesar da tristeza que a partida de Fausto lhe causaria, Palmira pensou que aquela seria a decisão mais acertada a tomar. Fausto e Júlia tinham saúde e viveriam bem em qualquer lugar.



CAPÍTULO 30


Fausto e Júlia voltaram cerca de seis meses depois. Chegaram felizes, cheios de presentes, novidades e muitas saudades. A alegria foi geral, e Júlia ficou espantada ao saber que Marta e Rodolfo havia se casado. Depois que se acomodou, Júlia foi ter com a amiga e acariciou seu ventre, que já começava a se avolumar.
— Está feliz? — perguntou Júlia. Marta fitou o horizonte e respondeu:
— Sim. Era o que eu queria, não era?
— Ele a trata bem?
— Ele é gentil e carinhoso. E está feliz com o bebê.
— Fico feliz por você também, Marta. Torço para que tudo dê certo.
— Quando vão partir?
— Daqui a uns dias. Logo após o casamento de Dário e Sara.
— Vocês foram muito generosos cedendo-lhes a fazenda Ouro Velho.
— Eles merecem. E Trajano ficará com eles.
— Vocês também não poderiam ficar?
— Não, Marta. Fausto e eu já havíamos mesmo decidido partir. Ainda que Sara não precisasse da fazenda, nós partiríamos. Para nós é difícil estar perto de Rodolfo.
— Sei disso e compreendo. Mas sentirei muito sua falta.
— Em breve não sentirá — gracejou, apontando para sua barriga.
— Tem razão. Rodolfo e eu queremos ter muitos filhos.
— Isso é ótimo.
Naquela noite, quando Marta se recolheu, teve um sonho estranho. Sonhou que era irmã de Rebeca e que havia brigado com ela por causa de Sara, sua sobrinha, a quem amava como se fosse sua filha. Depois que a menina morrera, Marta sentira-se muito só e casara-se logo em seguida. Tivera, então, três filhos, sendo Rodolfo e Túlio os mais novos. Mas Rodolfo era seu preferido, era a razão de sua existência, e ela se desvelava por ele. Amava-o profundamente e cuidava dele com muita dedicação. Quatro anos depois, ao dar à luz novamente, Marta não resistira ao parto difícil e desencarnara, logo após o nascimento de Túlio. Liberta da carne, Marta continuara a amparar Rodolfo, a quem já amava havia muitas e muitas vidas.
Rebeca, sua irmã, após perder a filhinha, tivera uma outra menina, fruto de seu segundo casamento com Ezequiel. A menina, Júlia, era prima de Rodolfo e Túlio, e fora crescendo com eles, até que, um dia, conhecera Fausto, filho de Palmira, nova madrasta de Rodolfo. Júlia era então namorada de Rodolfo, mas acabara por apaixonar-se por Fausto, que pedira sua mão em casamento. Mas Rodolfo, cheio de ciúme, desafiara-o para um duelo, e ele só não fora morto porque Júlia intercedera, o que o cobrira de vergonha, e ele acabara seus dias desmoralizado e desonrado, só em seu castelo.
Marta despertou suando frio. Lembrava-se parcialmente do sonho, mas ficara com uma sensação estranha a oprimir-lhe o peito.
— O que foi?— indagou Rodolfo, despertando assustado. — É o bebê?
— Não foi nada, querido, durma.
Depois do casamento de Dário e Sara Fausto achou que já era hora de partir. Aproveitando a companhia de Camila, aprontou suas coisas e se foi com Júlia, ansioso por uma nova vida. Era um bom negociante e, com a ajuda de Leopoldo, não seria difícil se estabelecer.
Assim que a carruagem sumiu na estrada, Rodolfo, em casa, teve um estremecimento. Não pudera ver quando eles deixaram à fazenda, mas sentira que se distanciavam e começou a chorar. Não estava triste. Ao contrário, sentia-se aliviado por não precisar mais dividir o mesmo teto com o irmão. Mas era uma sensação estranha; um misto de alívio e de perda, como se, de alguma forma, uma parte de sua vida estivesse partindo com ele.
Palmira, depois das despedidas, sentou-se à janela e pôs-se a observar as carruagens, até que desaparecessem e, depois disso, continuou ainda sentada ali. Estava tão absorta em seus pensamentos que nem percebeu quando Terêncio entrou. Depois que Aldo se estabelecera com a mulher, o cargo de capataz ficara vago, e fora logo ocupado por um rapaz jovem e robusto.
— Dona Palmira — começou —, será que eu poderia falar com a senhora?
— O que quer? — respondeu ela, sem olhar para ele.
— Bem, dona Palmira, é que os meninos se casaram, veio um novo capataz, e eu estava pensando. Já estou velho, não agüento mais a labuta. Será que a senhora também não pode me substituir? Conheço um rapaz muito bom que poderia ficar em meu lugar.
— Está bem, Terêncio, o que pede é justo.
— A senhora concorda?
— Concordo sim. Mande-o vir amanhã para falar com Rodolfo.
— Mais uma coisa, dona Palmira.
— O que é?
— Será que eu poderia morar na casa que foi de Aldo? È que fica um pouco mais afastada e é mais sossegada.
— Como quiser Terêncio. Apesar de tudo o que se passou, você foi fiel a Licurgo durante muitos anos. É justo que receba uma recompensa.
— Obrigado, dona Palmira — agradeceu com os olhos rasos d'água.
Terêncio nunca fora um homem bom. Ao contrário, sempre fora cruel e sanguinário, gostava de bater nos escravos e de se deitar com as negras. Além disso, era venal e egoísta, e só pensava em si mesmo. Terêncio era capaz de tudo por dinheiro, até mesmo de trair e matar. Só nunca traíra Licurgo, para com quem tinha uma lealdade exagerada, que beirava o absurdo. Terêncio amava e respeitava Licurgo acima de qualquer coisa, e seria capaz de matar e morrer por ele.
Na verdade, Terêncio era filho de Licurgo, embora nunca tivesse ficado sabendo disso. Palmira também não sabia. Só descobrira a verdade quando o marido, sentindo a aproximação da morte, confidenciara-lhe esse segredo, pedindo-lhe que o mantivesse bem guardado. Da mãe, uma costureira pobre que ele deixara na Bahia, nunca mais ouvira falar. E, como último desejo, Licurgo pedira a Palmira que não desamparasse o capataz, como ele fizera durante todos aqueles anos em que o protegera em silêncio. Terêncio nunca desconfiara de sua origem, e não seria conveniente revelá-la nesse momento. E depois, ele também já era um velho. Para onde iria?
Depois que ele saiu, Palmira continuou ali, até que a noite chegou, e quando Tonha entrou para acender as velas, assustou-se com a sinhá, sentada ali no escuro, fitando as trevas que se estendiam sobre o horizonte. Ela deu um salto para trás e, levando a mão ao coração, exclamou:
— Sinhá Palmira! O que faz aí no escuro?
Palmira voltou-se lentamente para ela e sorriu. Já não lhe tinha mais ódio. Chegava mesmo a ter-lhe certa admiração. Ainda sorrindo, chamou:
— Deixe isso, Tonha, e sente-se aqui ao meu lado. Tonha, sem entender, balbuciou:
— Como... Como disse, sinhá?
— Disse para sentar-se junto a mim. Vamos, venha não tenha medo.
Um tanto quanto confusa, Tonha obedeceu e sentou-se junto dela. Palmira tornou a fitar o horizonte e foi só após alguns minutos que disse:
— Sabe Tonha, hoje sinto que renasci...
Tonha voltou à cabeça para ela, cada vez entendendo menos, mas ela parecia dormir. Os olhos semicerrados pareciam voltados para dentro de si, e ela, adormecida, sonhou.
Palmira caminhava por entre os escombros de uma fazenda que parecia em ruínas, sentindo nas narinas um forte odor de cinzas. Fora andando vagarosamente, passando as mãos por cima dos móveis semi-destruídos, experimentando na pele a sensação porosa da fuligem. Onde estaria? Aquele lugar lhe parecia familiar, mas não atinava onde fosse. Só o que podia perceber era que os cômodos por onde andava estavam praticamente destruídos, vigas e pilastras derrubadas no chão, às paredes cobertas por uma crosta negra e grossa.
Chegara perto de uma janela e olhara para fora. Era quase noite, mas a paisagem que se ia descortinando despertara sua lembrança. Como não havia percebido antes? Estava na fazenda Ouro Velho, caminhava por seus corredores, adentrava seus quartos, e era a floresta exuberante que via estender-se diante de seus olhos. No entanto, estava diferente, destruída, como no dia em que aquele incêndio nefasto havia tirado a vida de Inácio, Cirilo e Aline.
Mas como era possível? Apesar dos escombros, Palmira tinha certeza de que aquele incêndio havia acontecido mais de trinta anos antes. E a fazenda havia sido reformada. Como podia então estar ainda destruída? Sem entender, ela entrara por um corredor comprido, que levava à sala, e estacara quando lá chegara. Sentados em uma poltrona de veludo, dois rapazes a fitavam com um sorriso no rosto. Eram jovens e bonitos, e vestiam-se com calça e túnica brancas. Por uns instantes, Palmira ficara a olhá-los também. De onde é que os conhecia?
Subitamente, seu coração disparara e ela soltara um grito de euforia:
— Cirilo! Inácio! São vocês mesmo?
Os rapazes se levantaram no mesmo instante, aproximando-se dela e abraçando-a afetuosamente. Palmira, de tão abismada, quase não conseguia falar. Efetivamente, eram seu filho e seu sobrinho que tinha ali diante de si. Mas como podia ser? Eles não haviam morrido? Será que ela morrera também? Ou será que estava sonhando?
— Não, mamãe — apressara-se Cirilo em dizer, lendo-lhe os pensamentos. — A senhora não morreu.
Completamente inebriada com a presença do filho e do sobrinho, Palmira deixara-se abraçar com alegria.
— Meus queridos — balbuciou —, quantas saudades senti de vocês!
— Nós sabemos mamãe, e estamos aqui para ajudá-la.
— Ajudar-me. Por quê? O que vai me acontecer?
— Tia Palmira, em breve a senhora deixará esse corpo de carne e partirá para uma nova vida. No entanto, é preciso que reveja algumas de suas atitudes, a fim de que sua consciência não a conduza para mundos inferiores.
— Como assim? Serei julgada?
— É claro que não, mamãe. O julgamento que fará de si mesma partirá de seu próprio coração, e não de um tribunal ilusório. Ele poderá até existir, se a senhora assim desejar. Mas só será real no seu plano de pensamento, pois que será mera criação mental. No entanto, como disse, é preciso rever suas atitudes. Só assim alcançará a compreensão libertadora.
— Mas... Em toda minha vida, fiz apenas o que achava certo.
— A concepção de certo e errado muitas vezes esbarra no sentimento que devemos nutrir por nós e por nossos semelhantes. Antes de os julgarmos ou condenarmos, devemos entender que são nossos iguais, filhos do mesmo Deus que nos criou, nem melhores, nem piores do que nós mesmos. Apenas seres humanos que, como nós, encontra-se em franco processo de evolução. Sejam escravos, judeus, protestantes. Pobres ou ricos, somos todos essência do mesmo sopro divino, que nos dá vida e nos anima, impulsionando-nos a buscar nosso crescimento através das provas e dificuldades que experimentamos, sempre atendendo ao nosso livre-arbítrio e às escolhas que fazemos. A natureza divina é perfeita, e nós, como parte dessa perfeição, devemos libertar o germe da compreensão que trazemos dentro de nós e regá-lo com amor. Só assim poderemos encontrar a felicidade.
Palmira abaixou a cabeça e sussurrou:
— Então estou condenada. Minha consciência me diz que tenho muito que aprender.
— Pois então aprenda. Com humildade, com benevolência, com simplicidade. Ore e peça a Deus uma nova chance. Reconheça seus erros e procure transformá-los em lições para o futuro. Mas não se condene. Não se deixe abater pala culpa ou pelo medo. Tenha fé e confiança, e saiba que todos esses processos de amadurecimento, apesar de dolorosos, são necessários para a compreensão dos verdadeiros valores do espírito. E ame mamãe. Sobretudo, abra seu coração para o amor. Só ele é capaz de nos libertar...
Gradativamente, Palmira foi abrindo os olhos, ainda escutando as palavras do filho e do sobrinho ecoando em seus ouvidos. Já era noite fechada, mas ela pôde ver na escuridão dois vultos brancos se esvaecendo no ar, e ouviu perfeitamente quando Cirilo disse a Inácio:
— Talvez precise reencarnar... No corpo de uma negra, serviçal, para aprender a reconhecer os verdadeiros valores do espírito e desapegar-se do orgulho...
Reconhecendo naqueles vultos as figuras do filho e do sobrinho, e não compreendendo bem aquela conversa, Palmira arregalou os olhos, estendeu as mãos para frente e exclamou:
— Inácio! Cirilo! Não me deixem! Esperem-me... Esperem-me...
E tombando a cabeça sobre o peito, abandonou o corpo e os seguiu.


Fim










SEMPRE EXISTE UMA RAZÃO
ELISA MASSELLI




SINOPSE:

Maria Clara estava revoltada com a vida. Não entendia por que todos os seus relacionamentos terminavam assim que falasse em casamento ou em algo mais sério. Muito menos entendia por que havia sido abandonada ao nascer e nunca tivera o que mais desejava; uma família! Se conhecesse a história de Sofia, talvez compreendesse que, para tudo, Sempre Existe uma Razão.


ENCARNAÇÃO ATUAL

Solange, nervosa, tocava a campainha e batia com força à porta do apartamento de Maria Clara. Já estava ali há alguns minutos. A cada pancada, seu coração batia mais forte. Estava com medo de que algo grave houvesse acontecido com a amiga, dentro do apartamento. Chamava, gritando:
- Maria Clara, abra essa porta! Maria Clara, você está aí?
A porta do apartamento ao lado se abriu e surgiu uma senhora que, também parecendo preocupada, perguntou:
- O que está acontecendo, Solange?
- Não sei, dona Hilda, já faz três dias que a Maria Clara não vai ao escritório. Telefonei várias vezes, mas ninguém atende. Estamos preocupados, receio que aconteceu algo com ela!
A senhora saiu de sua porta e caminhou para junto de Solange. Nervosa, disse:
- Também não a tenho visto. Todas as tardes, quando chega do trabalho, costuma vir até o meu apartamento. Eu, sabendo disso, preparo um café, conversamos um pouco, depois ela vai para o seu apartamento. Notei que, há alguns dias, ela não veio. Entretanto, ao mesmo tempo, fiquei tranqüila, pois ela havia me dito que ia tirar férias e que, provavelmente, iria viajar. Estranhei que ela não se despedisse, mas você a conhece melhor do que eu e sabe como é cheia de manias. Além do mais, quando está namorando, também a vejo pouco. Ela se dedica totalmente ao namorado.
- Ela vai tirar férias, dona Hilda, sim, mas isso só vai acontecer na próxima semana. Por isso é que não estou entendendo e fiquei preocupada.
- Justamente por entrar em férias é que deveria deixar todo o seu trabalho em ordem. Agora, estou, também, começando a ficar preocupada, Solange. Será que aconteceu alguma coisa? Será que ela está aí dentro?
- Não sei dona Hilda, mas, se ela não atender, vou chamar a polícia para que arrombem a porta.
- Acho que devemos fazer isso mesmo, Solange. Não estou vendo outra solução.
Solange, desesperada, bateu mais uma vez, tocou a campainha e chamou:
- Maria Clara! Maria Clara!
Não obtendo resposta, perguntou:
- Dona Hilda, podemos ir até seu apartamento para telefonar para a policia? Estou muito preocupada. Deve mesmo, ter acontecido alguma coisa!
Hilda, também preocupada, respondeu apreensiva:
- Claro que sim! Vamos agora mesmo!
Estavam entrando no apartamento de Hilda, quando a porta se abriu e surgiu uma moça muito bonita. Loura, seus olhos verdes estavam vermelhos de tanto chorar. Ao vê-la, Solange disse aliviada:
- Maria Clara! Ainda bem que está aí! Por que não atendeu, o telefone nem abriu a porta quando toquei a campainha e chamei por você? Pelo tom de minha voz, pode perceber que eu estava desesperada!
- Por que eu não quero falar com ninguém!
- O que aconteceu? Parece que você está chorando há muito tempo, seus olhos estão inchados e vermelhos!
- Nada aconteceu, Solange, só estou cansada de viver! Minha vida não tem sentido... Por isso, quero morrer...
- Não diz isso nem de brincadeira! Está muito nervosa e não sabe o que está falando!
- Diz isso porque é minha amiga, mas sabe que estou dizendo a verdade... Não presto para nada, e não sei para que fosse, que nasci...quero morrer, Solange...
Disse essas palavras, chorando, desesperada.
- Não diga isso, nem de brincadeira! Você é linda e muito inteligente! Tem um ótimo emprego e um salário melhor ainda! Tem tudo para ser feliz, Maria Clara...
- Quem não me conhece, e me vê, com um bom salário, vivendo bem, pode pensar assim, mas você, não, Solange. Conhece-me desde pequena e sabe como foi a minha vida. Estou cansada... Do que adianta tudo isso se não tenho o resto...
- Que resto Maria Clara?
- Uma família, pai, mãe, irmãos, marido e filhos! Nunca tive alguém... Estou cansada. Não vejo um futuro, Solange ...
- Como não? Você é ainda muito jovem, tem tempo para construir uma família e garanto que, quando isso acontecer, vai se arrepender do que está falando, porque família dá muito trabalho. Cada um deles tem um problema, algumas vezes existem brigas e todos se dividem. Fica um sem conversar com o outro e, quando isso acontece, sou eu quem tem de resolver...
- É exatamente isso que me faz falta, dona Hilda. Queria; ter todos esses seus problemas, mas não tenho... Minha vida não tem sentido mesmo...
Solange, embora um pouco mais calma e aliviada por ver que Maria Clara estava bem, mas ainda nervosa, disse:
- Até agora não disse o que aconteceu para que ficasse assim, Maria Clara.
- O Claudinei me abandonou...
- O que está dizendo, Maria Clara?
- Assim como aconteceu com todos os outros, ele me abandonou...
Solange respirou fundo, pois já ouvira Maria Clara dizer aquilo muitas vezes. Disse:
- Você está com uma aparência horrível, Maria Clara. Acho que devíamos entrar. Você toma um banho, ajeita esse cabelo e depois vai nos contar o que aconteceu. Está bem assim?
- Não, preferia que fossem embora e que me deixassem sozinha...
- Nada disso! Não sei a Solange, mas eu não saio mais do seu lado, até que fique bem! Embora não tenha família, mora aqui ao meu lado há muito tempo e a considero como se fosse minha filha! Não vou deixar você nesse estado!
- Também não vou sair daqui, dona Hilda! Maria Clara, você vai ter de nos agüentar. - disse rindo e com uma ponta de ironia na voz.
Maria Clara, percebendo que não tinha como se livrar delas, disse:
- Está bem, vamos entrar. Vou tomar um banho, me arrumar e depois conversaremos. Acho que não é necessário, pois a história se repetiu, deviam estar acostumadas...
- A história pode ter se repetido, mas não é motivo para que fique assim. Vamos entrar e você vai nos contar tudo.
Maria Clara se afastou da porta e permitiu que elas passassem. Entraram e puderam perceber que a sala estava toda desarrumada. Estranharam, porque Maria Clara era organizada e gostava de ter seu apartamento sempre em ordem. Foram até a cozinha e viram que, sobre a pia, havia uma porção de copos sujos e sobre a mesa, várias garrafas de vinho. Qualquer um podia notar que Maria Clara havia bebido muito. Solange olhou para Hilda que, depois de observar tudo, perguntou, nervosa:
- Maria Clara, você andou bebendo?
- Sim, mas o que tem de mais?
- Tem tudo, você nunca bebeu e sempre criticou aqueles que bebiam. Não estou reconhecendo você, Maria Clara...
- Depois do que Claudinei me disse, só senti vontade de beber para poder dormir...
- Bebida nunca foi nem é um bom remédio.
- Sei disso, mas não sabia o que fazer...
- Está bem, vai nos contar tudo. Agora, enquanto você toma banho, eu e a Solange vamos dar um jeito nesse apartamento. Vou abrir as janelas para que o ar entre e, depois de tudo arrumado, vou preparar um café para que possamos conversar com tranqüilidade. Está bem assim?
Maria Clara conhecia-as o suficiente para saber que elas não iriam embora. Impotente, respondeu:
- Está bem, façam o que quiserem...
Enquanto ela entrava no banheiro, Solange e Hilda começaram a arrumar tudo e a conversar. Solange disse:
- Não entendo por que Maria Clara é assim tão negativa.
- Também, não é para menos, Solange, parece que, realmente, nada dá certo para ela.
- Como não, dona Hilda? Ela tem um bom emprego. Olhe este apartamento, embora pequeno, é lindo! Sei que seu salário não é muito alto, mas dá para ela viver com tranqüilidade.
- Para algumas pessoas, não haveria problema algum, por que, gostam de estar sozinhas Solange, mas para Maria Clara a solidão se transforma em suplício. Ela quer muito ter uma família, só fala nisso.
- Pois eu trocaria a minha vida, num piscar de olhos. Já imaginou chegar a um apartamento como este, dormir em uma cama como esta e no mais completo silêncio, sem ouvir criança falando, chorando ou brigando ou marido reclamando porque a comida está sem sal? Seria a glória!
Hilda sorriu e disse:
- Eu também penso assim. Como gostaria de ter um momento só meu, na mais perfeita solidão, mas, como a Maria Clara disse, pensamos assim porque temos marido e filhos, mas, se não tivéssemos, será que pensaríamos dessa maneira?
- Será que não, dona Hilda?
- Pode ter certeza que não, Solange. O ser humano nunca está satisfeito com o que tem, sempre quer mais ou diferente.
- Não acredito que seja assim. Existem muitas pessoas que estão felizes com a vida que têm.
- sei que sim, mas pode contar nos dedos. A maioria é da maneira como falei, daria tudo para ter a vida do outro.
- Falou o quê, dona Hilda?
- As duas se voltaram e vira Maria Clara saindo do banheiro. Estava enrolada em uma toalha azul e com outra pequena nos cabelos. Hilda respondeu:
- Não estava falando nada, só jogando conversa fora. Parece que você está melhor, não é, Solange?
- Parece, sim. Sente-se aqui, Maria Clara, vamos tomar um café e você vai se sentir ainda melhor.
Maria Clara sorriu e sentou-se na cadeira que Solange lhe apontava. Depois de sentada, disse:
- Sei que estavam preocupadas comigo, por isso, peço desculpas. Eu estava tão triste e desesperada que nem me lembrei de avisar que não iria trabalhar por alguns dias. Agora, como podem ver, estou bem.
- Amanhã, vai voltar ao escritório, Maria Clara?
- Não sei... Não estou me sentindo bem...
- Precisa ir! Sabe que, antes de entrar em férias, precisa deixar tudo em ordem.
- Sei disso, mas estou cansada da minha vida, de tudo. Estou reavaliando tudo e vendo se vale a pena continuar...
Ao ouvir aquilo, Solange se preocupou e, quase gritando, perguntou:
- Vale a pena o quê?
- Viver, Solange... Viver...
- Que bobagem é essa que está dizendo? Viver sempre valeu a pena!
- Pode me dizer por quê?
- Porque a vida é boa, existem alguns momentos de tristeza, sim, mas muitos de felicidade...
- Isso pode acontecer com você e com algumas pessoas, mas a maioria, tem mais momentos de tristeza do que de felicidade e outras, assim como eu, só de tristeza...
- Você está exagerando, Maria Clara...
- Não estou, Solange. Você conhece a minha história. Sabe que, quando eu era recém-nascida e não tinha nem perdido o umbigo, fui encontrada pela Irmã Maria Paulo. Fui abandonada. Minha mãe não me quis e me jogou fora...
- Conheço sua história, ela não é diferente da de todas aquelas crianças que estavam no orfanato e das que estão hoje. Sempre existiram crianças abandonadas e, infelizmente, continuarão existindo.
- Também sei disso, mas não é justo. Toda criança deveria ter o direito de ter uma família e ser feliz.
- Penso da mesma maneira, mas não me revolto com isso. Só posso pensar que a mãe que abandona seu filho deve ter um problema muito grande e pensa que, se deixar sua criança abrigada, sofrerá menos do que se continuasse ao seu lado.
- Pois eu não penso assim. Acho que uma mãe deveria fazer tudo para ter o filho ao seu lado. Não aceito que uma criança abrigada sofrerá menos do que se continuasse ao seu lado.
- Pois eu não penso assim. Acho que uma mãe deveria fazer tudo para ter o filho ao seu lado. Não aceito que uma criança seja abandonada, Solange.
- Pode não aceitar, mas, muitas mulheres, se não fizessem isso, só poderiam cometer um aborto e se sua mãe tivesse feito um aborto, você não estaria aqui para recriminá-la. Pelo menos, Maria Clara, ela permitiu que você nascesse e tivesse uma chance de ser feliz. Ela deve ter achado que você seria adotada e criada ao lado de pessoas que a amariam.
- Mas nunca fui adotada, Solange! Nunca ninguém me quis e nunca fui amada!
- Você está certa ao dizer que nunca fui adotada até eu não entendo por que isso aconteceu, mas dizer que nunca foi amada, isso não é verdade. Você teve e ainda tem a Irmã Maria Paula que nunca escondeu o quanto gosta de você. Todas nós, no orfanato, sabíamos disso e muitas vezes ficamos com raiva.
Maria Clara sorriu e disse:
- Nisso você tem razão. Ela sempre me tratou com muito carinho.
- Está vendo como não é tão infeliz e como nunca esteve sozinha; como diz? Reclama de ter sido criada em um orfanato, mas teve sorte de sua mãe tê-la deixado naquele onde à irmã Maria Paula era noviça. Lembra-se de como seus olhos brilhavam quando nos contava como havia encontrado você?
- Lembro-me e, naqueles momentos, eu, me sentia privilegiada...
- Está vendo? Acho que se não houvesse um motivo para que vivesse; não teria nascido. A vida é um bem precioso, por isso temos de dar muito valor a ela.
- Não sei se existe um motivo para que eu nascesse e vivesse, pois até agora, não encontrei motivo algum. Minha vida é tão sem graça...
- Pode pensar assim, mas eu não acho. Deve haver algum motivo Maria Clara, basta esperar que, a qualquer momento, você vai descobrir.
- Não sei não, Solange, não sei mesmo ...
- Você pode não saber, mas acredito que todos temos um motivo para haver nascido e nos tornado adultos. A qualquer momento, vai descobrir isso.
- Será?
- Claro que sim, se não fosse assim, por que está viva até hoje, por que teve a Irmã Maria Paula ao seu lado? Lembra-se de como ela ficava feliz quando nos reunia e começava a falar:
- Era uma manhã fria de junho, Maria Clara. Ouvi a campainha no grande portão do orfanato. Fui abrir e não havia qualquer pessoa. Estranhei, mas pensei que devia ter sido alguma criança que, só para brincar, tocava a campainha e saía correndo. Estava voltando, quando ouvi um choro, choro não, um grunhido. Voltei e olhei para o lado e para baixo e vi um pacote de roupas. Peguei e encontrei você, Maria Clara. Assim que a vi, não sei o porquê, me emocionei. Você, embora fosse muito pequena e ainda estivesse um pouco inchada, o que demonstrava que havia acabado de nascer, era linda, carequinha, e quando, fazendo um esforço enorme, conseguiu abrir os olhos, percebi que eram verdes. Entrei correndo e a levei para a madre superiora que, assim como eu, achou você linda. Ela, com você nos braços, disse:
- Maria Paula, essa criança é linda e de fácil adoção. Vamos cuidar dela e comunicar ao juizado de menores.
- Vai ser fácil mesmo, madre. Ela é tão linda, precisamos dar-lhe um nome.
- Pense em algum nome, depois me comunique.
- Já sei qual vai ser o seu nome. Tão branquinha, que tal Maria Clara?
- Para mim está bem.
- Peguei você novamente no meu colo e a levei até a enfermaria, onde lhe dei um banho rápido e troquei suas roupas. Depois de vestida, olhei novamente e disse em pensamento: você é linda mesmo, estou muito feliz por estar aqui. Seja bem vinda a este mundo e tomara que seja feliz...
Maria Clara, ao ouvir Solange e relembrando-se do dia em que foi encontrada, disse:
- É verdade, a Irmã Maria Paula sempre contava essa história, mas nada daquilo se realizou. Embora todos achassem que, por eu ser bonita seria logo adotada, isso não aconteceu. Você também morava lá, Solange.
- Morava e era três anos mais velha do que você. Fomos crescendo e nos tornamos as melhores amigas.
- É verdade. Quando pequena, não entendia que morava em um lugar criado para crianças sem pais. Nem sabia o significado dessa palavra, mas, com o tempo, fui aprendendo e percebi que as outras crianças eram levadas por casais que, sorridentes e felizes, saiam com elas nos braços, mas eu não, sempre continuava ali. Quando os casais andavam pelo orfanato escolhendo a criança que levariam, me olhavam, sorriam e eu ficava feliz e ansiosa por ser escolhida, porém eles sempre seguiam adiante. A cada criança que ia embora, eu sofria e chorava muito.
- Também sentia isso e achava que o motivo era minha cor negra, pois a criança escolhida era sempre branca e bonita. Lembro-me de que lhe disse uma vez:
- Maria Clara, sei que você vai embora depressa, mas eu vou continuar aqui...
- Por que está falando isso, Solange?
- Você é bonita, branca e eu sou negra, ninguém vai me querer.
- Será que a cor tem alguma coisa a ver com isso?
- Claro que tem, Maria Clara. Quantas crianças negras você viu serem escolhidas?
- Depois de pensar um pouco, você disse:
- Nenhuma, Solange...
- Está vendo, agora sabe por que vou continuar aqui, ainda mais porque já estou com dez anos!
- Naquele dia, fiquei pensando no que me disse e, ao mesmo tempo, pensei: se isso que ela está dizendo for verdade, eu vou ser adotada logo...
- Mas isso não aconteceu, Solange. Quando você ia completar onze anos e eu, oito, continuávamos as melhores amigas e vivíamos sempre juntas. Um dia, a Irmã Maria Paula nos chamou e disse:
- Pedi que vocês duas viessem até aqui porque tenho uma notícia muito boa para você, Solange e sei que muito triste para você, Maria Clara.
- Que notícia? - perguntamos quase juntas.
- Solange, lembra-se daquele casal que esteve aqui na semana passada e que conversou muito tempo com você?
- Sim...
- Eles resolveram, conversaram com o juiz e conseguiram uma permissão para levá-la com eles. Querem ser seus pais. Eles me pareceram ser boas pessoas, tenho certeza de que cuidarão muito bem de você.
- Ela tinha razão, eles foram os melhores pais que alguém já teve, pois além de me darem um lar e carinho, me deram estudo e hoje, tenho um bom trabalho graças a isso. Eu tive muita sorte, Maria Clara.
- Teve mesmo. Eles são mesmo maravilhosos.
- Eles e toda a família. Nunca senti diferença alguma entre mim e os meus primos. No dia do meu casamento, estava colocando meu vestido de noiva, quando minha mãe entrou no quarto, me abraçou e chorando, disse:
- Espero que você seja muito feliz, minha filha.
- Eu, também a abraçando e chorando, disse:
- Devo essa felicidade à senhora e ao papai, por terem me adotado. Se não fosse isso, talvez eu nunca tivesse saído dali.
- Não diga isso, Solange. Não tem o que agradecer. Você foi á razão de nossa existência e só nos trouxe felicidade.
Sei que, se tivesse nascido de mim, não me faria mais feliz. Obrigada por ser quem é.
- Eu a abracei e agradeci a Deus por ter colocado aquela família em minha vida. Nunca pensei muito na minha mãe verdadeira ou na outra família que poderia ter tido. Estava feliz com a que tinha.
- Você, sendo mais velha, sabia o que aquilo representava em sua vida. Eu, ao contrário, por ser mais nova e por sempre haver vivido ao lado de outras crianças sem família, não tinha a dimensão do que significava ser adotada. Naquele momento, somente sabia que você, minha melhor amiga, ia embora. Fiquei muito triste mas, com o tempo, aos poucos e graças ao carinho da Irmã Maria Paula, quase me esqueci de você. Fui crescendo, tendo outras amigas que também foram embora. A cada partida, eu sentia muita dor e ficava três ou quatro dias chorando. Embora muitos casais me vissem, conversassem comigo, para espanto da Irmã Maria Paula, nunca fui adotada. Quando tive a noção certa do que significava uma mãe, me perguntava: por que minha mãe me abandonou? Como ela teve coragem? Não entendia e queria porque queria saber onde estava, não só ela, mas meu pai e possíveis irmãos.
- Quando falava sobre isso com a Irmã Maria Paula, ela dizia:
- Não pense muito nessas coisas, Maria Clara. Não há como saber quem é sua mãe. Ela deixou você no portão do orfanato, sem pista alguma. Precisa cuidar da sua vida. Precisa estudar para que, quando tiver de sair daqui, possa ter um trabalho que a sustente.
- Ao ouvir aquilo disse:
- Irmã, quando crescer e me casar, vou ter um marido e muitos filhos! Quero ter uma família muito grande!
- Quando completei quinze anos, aceitei a minha situação e, seguindo os conselhos da Irmã Maria Paula; decidi que, enquanto não encontrasse um homem para me casar a fim de ter a minha família, deveria estudar para ter um bom futuro. O colégio tinha uma educação acadêmica muito rígida. Mesmo assim, estudando muito, consegui terminar o colegial. Quando completei dezoito anos, precisava sair do orfanato. Com a ajuda da madre superiora e da Irmã Maria Paula, consegui um emprego na empresa de um amigo delas e foi onde nos reencontramos, Solange.
- Lembro-me daquele dia, Maria Clara. Quando chegou, percebemos que você era tímida. O gerente nos reuniu e a apresentou, pedindo que a ajudássemos e lhe ensinássemos o trabalho. Enquanto ele falava, eu olhava para você, sabia que a conhecia, só não conseguia me lembrar de onde. Só quando ele disse o seu nome e que estava vindo do orfanato, foi que me lembrei e fiquei muito feliz. Quando ele terminou de falar e saiu, me aproximei e disse:
- Maria Clara! Você não se lembra de mim?
- Você ficou me olhando, sem conseguir se lembrar. Entendi que seria muito difícil isso acontecer. Quando nos separamos, você só tinha sete anos e eu dez. Éramos crianças e durante todo aquele tempo mudamos muito. Aos poucos, conversando, fiz com que você se lembrasse. Sua felicidade foi igual à minha. Nós nos abraçamos e, daquele dia em diante, nunca mais nos separamos. Eu estava me preparando para me casar. Você e minha mãe adotiva, que foi a melhor mãe que alguém poderia desejar, me ajudaram com o enxoval, o vestido de noiva e a festa, enfim, em tudo. No dia do meu casamento, você estava radiante.
- Estava mesmo. Seu marido parecia gostar muito de você. Eu tinha certeza de que seria muito feliz.
- Realmente, fui e sou muito feliz. Quando minha primeira filha nasceu, você foi à madrinha.
- É verdade, mas ela como sempre acontecia, nunca gostou de mim e sempre que eu ia à sua casa, ela se escondia sem querer me ver.
- Não fale assim, Maria Clara! Ela era só uma criança...
- Você sabe que estou dizendo a verdade, pois até hoje, ela só conversa o necessário e só responde a alguma pergunta que faço. Ela não me suporta, Solange.
- Como sempre, você está exagerando, Maria Clara...
Maria Clara riu e continuou:
- Está bem, posso até estar exagerando, mas que ela não gosta de mim, não gosta mesmo.
- Eu preciso lhe confessar Solange, que muitas vezes senti inveja da sua felicidade, da sua família.
- Não se preocupe com isso, Maria Clara. Conheço seus motivos e sei que gosta de mim, do meu marido e dos meus filhos. Sei o quanto deseja uma família. Você está só com trinta anos, é bonita, logo encontrará o homem da sua vida. Terá muitos filhos e será feliz como sou.
- Só trinta anos? Já sou uma solteirona! Desde os meus dezoito anos, por ser bonita, senti a aproximação de vários homens. Sempre que comecei a namorar, entreguei-me totalmente, fui carinhosa e fiz tudo que estava ao meu alcance para que quem estivesse ao meu lado fosse feliz, mas de nada adiantou. Eles, a principio, pareciam apaixonados, porém quando eu falava em casamento e filhos, eles desapareciam sem dar explicações. O último foi o Claudinei. Há três dias, eu lhe falei do meu desejo de ter uma família, ele sorriu da mesma maneira que os outros fizeram e disse que também queria uma família. Foi embora e não voltou mais. Quando telefonei para seu trabalho, me disseram que ele havia pedido transferência para o Rio de Janeiro. Vocês entenderam o que aconteceu? Ele, como os outros, me abandonou sem dar explicação. Eu sou uma azarada! Nunca vou ter uma família! Estou condenada a viver na solidão! Nunca ninguém me amou, me fez um carinho!
Solange olhou para Hilda e, não conseguindo esconder sua tristeza, disse:
- Ele, como os outros, foi embora porque não era um homem de caráter e estava querendo só se aproveitar do seu amor e do seu carinho. O homem certo ainda vai aparecer, Maria Clara. Também não pode dizer que nunca ninguém a amou nem lhe fez carinho. A Irmã Maria Paula sempre a tratou com muito carinho e amor. Ela foi, para você, muito mais mãe do que tantas mães que conheço. Sei que, se você a procurar neste momento, vai encontrar o mesmo carinho e amor que ela sempre lhe dedicou.
Maria Clara pensou um pouco e disse:
- Nisso você tem razão, se existe alguém que realmente gosta de mim, é a Irmã Paula...
- Então, já que sabe disso, por que não vai conversar com ela?
- Vou até lá, mas já sei o que vai me dizer:
- Maria Clara, você é linda! Vai encontrar alguém que realmente a mereça e vai conseguir ter aquela família com que tanto sonha!
- Ela tem razão, Maria Clara! Não existe motivo algum para que você não consiga o que tanto quer!
- Eu também não encontro motivo! Sei que sou bonita, inteligente e bem educada. Sou uma pessoa boa, se não faço bem, com certeza também não faço mal a ninguém. Por saber o que pensam crianças internadas em um orfanato, duas ou três vezes por mês, vou até lá, conto-lhes histórias, penteio seus cabelos, pego-as no colo, abraço-as, beijo-as e brinco com elas. Não entendo. Não quero muito desta vida, não me importo com dinheiro, pois o que tenho, embora seja pouco, dá para que eu viva muito bem. Já que não tive pais nem irmãos, só quero ter uma família!
Levantou as mãos para o alto e gritou:
- É pedir muito, Deus?
Hilda, que o tempo todo ficou calada ouvindo, disse:
- Parece que não existe motivo algum para que não realize o seu sonho, Maria Clara. Enquanto conversavam, fiquei pensando. Embora não conheça nada a respeito, já ouvi falar em reencarnação. Será que você foi muito má na passada?
- Também já ouvi falar sobre isso, mas se eu fui má, foi na passada e não é justo pagar nesta!
- Mas, dizem que há um motivo e uma razão para tudo o que nos acontece.
Maria Clara começou a rir e disse:
- Levando em conta que eu acredite em reencarnação, por tudo o que tenho sofrido nesta, eu devo ter sido aquele soldado que pregou Jesus na cruz ou um feitor de escravo muito ruim.
As três riram. Hilda disse:
- Quem sabe não foi isso o que aconteceu?
Elas não sabiam, mas prestando atenção em tudo o que falavam e intuindo Hilda, estavam duas entidades, uma de homem, outra de mulher. O homem disse:
- Ela nem imagina, Matilde... nem imagina...
- Tem razão, Gusmão...

ENCARNAÇÃO PASSADA

Anita chegou a casa. Entrou e, como de costume, olhou à sua volta. Tudo estava em ordem e perfeito. Foi para seu quarto, deitou-se sobre a cama e, com os olhos voltados para o teto, começou a pensar: O meu jantar vai ser maravilhoso. É preciso que tudo dê certo para que dona Sofia fique contente e não me recrimine. Sei que isso vai ser difícil, pois não sei o porquê, ela não me suporta e não perde uma oportunidade para me ofender. Amo o Ricardo e sei que sou amada por ele. Tenho tudo, uma casa linda, dinheiro para comprar o que desejar, mas do que adianta ter luxo e riqueza, poder viajar pelo mundo, se não tenho o que mais desejo... um filho... tentei tudo o que a medicina pode oferecer e problema algum foi encontrado. Esta vida não é justa! Existem tantas crianças pobres, a quem os pais não tem condições de dar nada e eu, que poderia dar tudo a uma ou várias crianças, não tenho filhos. Isso não está certo! Sempre que pensava a esse respeito, ficava nervosa e abatida. Sabia que logo entraria em depressão, mas depois de muita terapia, havia aprendido a lutar e, com o tempo, conseguiu afastar a tristeza. Contudo, temia que ela voltasse e tudo recomeçasse. Levantou-se e foi para o banheiro. Precisava se preparar, pois naquela noite, haveria um jantar especial. Estava comemorando quatro anos de casada e a volta dela e do marido de Portugal. Ricardo resolveu oferecer um jantar para os parentes e amigos mais chegados. Ela havia planejado tudo e, se não fosse por Sofia, tinha certeza de que tudo daria certo. Saiu do banheiro, sabia que em poucos minutos, o cabeleireiro e a manicura chegariam. Mandou fazer o vestido que usaria naquela noite. Ás dez horas em ponto, o jantar foi servido. Todos os convidados compareceram. Enquanto jantavam, conversavam. Sofia, sua sogra, embora tivesse nascido pobre e de família humilde, conheceu o marido, um rico fazendeiro e casaram-se. Depois do casamento, estudou, teve aulas de etiqueta e se tornou uma mulher educada, que sabia se comportar em qualquer lugar. Teve dois filhos, Ricardo e Maurício. Seu marido, político de carreira, atendendo a uma idéia dela, fez uma fundação com o seu nome e, através dela, dava assistência às pessoas carentes da cidade. Com isso, sempre recebeu muitos votos. Sofia, para manter a fundação e poder fazer com que o nome do marido e, conseqüentemente o seu, não fosse esquecido, organizava chás, jantares e festas. Assim, arrecadava fundos. O casal era amado na cidade e por todos os que os conheciam. Fazia quatro anos que Pedro Henrique, seu marido, havia falecido. A morte dele lhe causou uma dor imensa, mas o desejo de não perder o poder fez com que ela mesma seguisse a carreira política do marido. Todavia, seu maior sonho era ver um dos filhos, principalmente Ricardo, se tornar um senador e até presidente da república. Era uma bela mulher. Educada e elegante. Tinha mais de cinqüenta anos. Conversava sobre todos os assuntos, o que fazia com que se tornasse uma ótima companhia. Só tinha um problema, era muito agarrada aos filhos, principalmente a Ricardo, o que, muitas vezes, causou constrangimento para Anita. Naquela noite, Anita estava feliz. O jantar havia saído como o planejado. Os convidados comiam com satisfação, ela podia ver pela expressão de seus rostos. Quando terminaram de comer, começaram a se levantar, elogiando o jantar. Na vez de Sofia, ela disse:
- O jantar estava perfeito, Anita. Pena que a comida estava com pouco tempero e a decoração da mesa não está combinando.
Anita sentiu que todo o sangue de seu corpo subiu para o seu rosto. Mesmo sem ter um espelho, sabia que ele estava vermelho. Olhou para Ricardo, que estava ao seu lado e que, assim como os outros convidados, ficou constrangido, mas permaneceu calado. Anita estava com muita raiva. Sua vontade era pegar um prato e jogar sobre a cabeça de Sofia, mas sabia que não poderia fazer aquilo, pois estava perante outras pessoas, inclusive sua cunhada Stela, esposa de Maurício e por quem Sofia sempre mostrou predileção. Fez um esforço imenso. Engoliu em seco e, expressando um sorriso, disse:
- Deve ter razão, dona Sofia. Só me resta pedir desculpas à senhora e a todos os demais. Agora, vamos passar a outra sala onde serão servidos licor e café.
Stela e Maurício também ficaram constrangidos, principalmente ele, que gostava de Anita e muito mais do irmão e sabia que, quando a mãe de Ricardo não gostava de alguém, era terrível. Acompanhando os demais, foram para a outra sala. Anita e os convidados tentaram manter uma conversação, mas por mais que quisessem, aquilo se tornou quase impossível. Aos poucos, todos foram se despedindo e indo embora. Entre eles, Sofia. Ricardo e Anita despediram-se de todos, na porta de casa. Após a saída do último convidado, Anita e Ricardo entraram. Assim que se viu sozinha na sala, Anita gritou tão alto que até os empregados da casa vieram para ver o que estava acontecendo. Ricardo, com a mão, fez um sinal para que eles fossem embora. Após o grito, Anita começou a chorar e a dizer, berrando, tomada de muita raiva:
- Não suporto mais, Ricardo! Sua mãe me odeia e não perde a oportunidade de me ofender e humilhar! Estou cansada!
- Não fique assim, Anita. Você conhece muito bem a minha mãe e sabe como ela é. Foi sempre assim, nunca permitiu que alguém pudesse brilhar mais do que ela. Sabe que, desde que meu pai morreu, ela se dedicou inteiramente a mim e ao Maurício. Não quis se casar novamente, pois não queria que tivéssemos um padrasto. Ela, como todas as pessoas, pode ter defeitos, mas além de ser minha mãe, é uma grande mulher e eu a amo e respeito muito.
Anita, enquanto Ricardo falava, ficou olhando sem querer acreditar no que estava ouvindo. Quando ele terminou, ela disse:
- Não suporto mais, Ricardo. Não suporto nem vou agüentar mais! Já que sempre fica do lado de sua mãe, vai ficar com ela!
- O que está dizendo, Anita!
- Estou dizendo que amanhã, bem cedo, vou para a capital, ficar na casa dos meus pais e, assim, você terá muito tempo para pensar o que quer realmente da vida!
Calada, saiu da sala e chorando, foi para seu quarto. Ricardo pegou um drinque, sentou-se em um sofá e ficou bebendo. Anita, em seu quarto, chorava. Seu coração estava apertado por, mais uma vez, perceber que seu marido, além de não a amar, não a respeitava. Tentando parar de chorar, pensava: preciso tomar uma decisão em minha vida e vou tomar! Fiquei muito tempo sem saber o que fazer, mas agora chega! Sempre soube o que precisava fazer, mas nunca tive coragem. Sei que, para fazer o que preciso, terei de dizer a todas as pessoas que meu casamento é uma farsa. Desde que conheci Ricardo e ele me apresentou à sua mãe, percebi que ela não havia gostado de mim. Depois, com o tempo, fui percebendo a diferença que ela sempre fez entre mim e Stela. Ela se levantou, foi até o banheiro e lavou o rosto. Olhou para o espelho e lembrou-se do dia em que conheceu Ricardo: Por que tive de ir àquela festa? Eu não queria ir. Só fui por muita insistência de Magda, minha amiga, que conhecia Ricardo. Eles estudavam na mesma faculdade. Assim que o vi, meu coração bateu mais forte. Ele era, não, ainda é muito bonito, além de ter um belo porte. Um homem que faz o coração de qualquer mulher tremer. Eu estava em pé, junto à mesa de frios, quando ele se aproximou e me disse, sorrindo:
- Boa noite, senhorita. Está aqui, sozinha?
Eu respondi com a voz trêmula:
- Boa noite, não, não estou sozinha. Minha amiga está dançando.
- E você, por que não está dançando?
- Não sei dançar muito bem, também, ninguém me convidou. - respondi, sorrindo.
- Por isso não. Quer me dar o prazer da próxima dança?
- Vai demorar, essa música que está tocando apenas começou...
- Não tem importância. Enquanto ela não termina, podemos tomar um drinque e conversar.
Dançamos e, depois daquele dia, por insistência dele e felicidade minha, começamos a namorar.
Ao se lembrar daquele tempo, ela se emocionou, enxugou o rosto e sorriu. Voltou para o quarto, deitou-se e continuou relembrando.

A DESCONFIANÇA DE SOFIA

Enquanto Anita se recordava do tempo passado, Sofia chegava a casa. O carro, após seguir por uma imensa alameda, parou diante de uma porta. O motorista desceu, abriu a porta traseira do carro e pegou na mão de Sofia, para ajudá-la a descer. Sofia, parecendo feliz, desceu e entrou em uma sala semi-iluminada. Olhou para um retrato que estava em uma das paredes, onde estavam ela e o marido. Sorriu, pensando: Você viu, Pedro Henrique? Consegui, outra vez, estragar a festa daquela mulher! Sei que, para se casar e pertencer à nossa família, ela envolveu o nosso filho, talvez até com macumba, mas não faz mal, eu acabarei com aquele casamento e Ricardo voltará para casa! Pode ter certeza disso! Além do mais, não permitirei que nosso nome desapareça, porque aquela incompetente não consegue nem ter um filho! Já sei o que vou fazer para desmanchar aquele casamento. Usarei das mesmas armas que ela usou, procurarei alguém que faça uma macumba para que ele se afaste dela para sempre! Pode ficar tranqüilo meu velho, nosso filho voltará para casa e voltaremos a ser uma família feliz... agora, está na hora de me deitar e sonhar com os anjos... Subiu os degraus da enorme escada que levava ao andar superior, onde ficavam os quartos. Em seu quarto, vestiu um pijama e deitou-se, mas não dormiu, ficou relembrando o dia em que Ricardo trouxe Anita para conhecê-la: eles namoravam há pouco tempo. Ele chegou, feliz, segurando-a pela mão e disse:
- Mamãe, está é Anita, estamos namorando.
Olhei-a de cima a baixo. Não estava preocupada, pois sabia que aquela seria como as outras que ele já havia me apresentado, apenas uma aventura. Ela se aproximou e, sorrindo estendeu a mão para que eu apertasse. Embora contra vontade, mas para não magoar Ricardo, também sorri e segurei sua mão. Ela apertou forte e, olhando bem nos meus olhos, disse:
- Muito prazer, estou encantada de estar em sua casa e de conhecê-la pessoalmente. A senhora é uma pessoa importante na cidade. Estou muito orgulhosa!
Ela apertou minha mão com muita força e me olhou de frente. Ao sentir aquele aperto de mão, percebi que aquela moça era diferente de todas as outras que ele havia me apresentado, mas não me preocupei muito. Posso dizer que até gostei dela, mas mesmo assim, percebi que deveria tomar cuidado, pois sabia que ela seria capaz de roubar o meu filho. Eu o conhecia o suficiente para saber que, daquela vez, era diferente. Sem conseguir parar de pensar, Sofia se levantou e foi ao banheiro. Parou em frente ao espelho, mexeu nos cabelos e continuou pensando: Conversamos durante o lanche. Ela falou a respeito de sua família, mas eu desconversei. Não me interessava saber nada a seu respeito, muito menos a respeito de sua família. Enquanto ela falava, eu pensava: Não! Definitivamente, você não é a moça que eu quero para ser a mulher de meu filho! Eu não quero e você não vai ser. Tremendo de ódio, ela saiu do banheiro e, no quarto, foi até uma cômoda, onde, por sua ordem, a copeira, todas as noites, deixava uma jarra com água. Encheu um copo e tomou. Voltou para a cama e continuou pensando: Eu não queria, mas, infelizmente, ela conseguiu. Não sei o que fez, deve mesmo ter ido a um macumbeiro, porque Ricardo ficou encantado por ela e em pouco tempo marcaram o casamento. Ela morava na capital, onde seu pai tinha uma empresa. Poucos dias antes do casamento, eles compareceram a nossa casa. Quando os conheci, tive a certeza de que aquele casamento não poderia se realizar, pois não daria certo, mas não tive como evitar. Casaram-se. Isso já faz oito anos. Porém, ainda não me dei por vencida, sei que conseguirei fazer com que se separem! Ela não foi nem é a mulher ideal para meu filho! É arrogante e está sempre pronta para me afrontar! Diferente de Stela, tão meiga e amorosa, que faz sempre tudo o que quero e está sempre ao meu lado. Entretanto, mesmo contra minha vontade, sempre defende aquela mulher. Quando fico nervosa, ela me diz:
- Não é assim, dona Sofia, a Anita é uma boa moça. Eles se gostam e Ricardo parece feliz ao seu lado. Em algumas coisas a senhora tem razão. Ela é, realmente, um pouco arrogante, mas no geral, é uma boa pessoa. Não se envolva, deixe que os dois decidam suas vidas.
A Stela que me perdoe, mas como posso deixar que decidam suas vidas? O Ricardo está totalmente dominado por aquela mulher! Ele não sabe tomar uma decisão! Eu preciso decidir por ele! Amanhã, vou encontrar aquele homem e ver o que pode fazer. Se ela fez alguma macumba, ele vai desmanchar e meu filho ficará livre para decidir sua vida. Olhou para o relógio que estava sobre o criado-mudo. Faltavam dez minutos para a meia-noite. Pensou: será que Stela já está dormindo? Acho que não, devem ter acabado de chegar a casa. Preciso falar com ela. Pegou o telefone e, sem se importar com a hora, discou um numero. Do outro lado da linha, uma voz de mulher atendeu:
- Alô.
- Stela, sou eu, precisamos conversar. Está dormindo? Estou incomodando-a?
- Não, dona Sofia, não estou dormindo e a senhora nunca me incomoda. Que aconteceu?
- Não aconteceu nada. Só queria saber o que achou do jantar que aquela mulher preparou.
Stela, conhecendo a sogra e sabendo a resposta que ela queria ouvir, respondeu:
- O jantar estava muito ruim, nisso a senhora tem razão, mas não entendi porque teve de falar daquela maneira. Foi constrangedor, porém, aqui entre nós, até que gostei. Não tenho nada contra a Anita, mas já que a senhora não gosta dela, também não posso gostar. Não sei por que eles tiveram de voltar. Durante o tempo em que estiveram em Portugal, não tivemos problema algum.
- Voltaram porque ela estava com saudade da família. Como se aquela família fosse importante. Todavia, estou feliz pois tenho meu filho outra vez ao meu lado.
- Nesse ponto a senhora tem razão. Ricardo parece estar muito bem.
- Ele é lindo, não é?
Stela soltou uma gargalhada e respondeu:
- Sim, ele está muito bem. Parece que, quanto mais o tempo passa, mais bonito ele fica.
- Por isso mesmo ele não pode continuar casado com aquela mulher! Maurício está aí com você?
- Não, ele está tomando banho.
- Estou telefonando, porque preciso da sua ajuda.
- Minha ajuda? Que posso fazer? Sabe que, apesar de tudo, não quero me envolver nem ser responsável por uma possível separação.
- Você sabe que sempre desconfiei que aquela mulher fez macumba para segurar o Ricardo, não sabe?
- A senhora sempre disse isso, mas nunca acreditei e não acredito nessas coisas.
- Nem eu, mas não custa nada tentar. E, se existir mesmo essa coisa de macumba? E se ela fez mesmo, uma macumba para envolver o Ricardo a ponto de fazer com que ele se casasse com ela? Estive pensando e, na dúvida, acho melhor tomarmos uma providência.
- Tomarmos?! - Stela perguntou, confusa.
- Claro que sim! Você precisa me ajudar! Tenho certeza de que ela fez uma macumba e das brabas!
- A senhora acredita mesmo nisso?
- Não acredito nem desacredito, mas, pelo sim pelo não, é melhor me prevenir.
- Acha que vai valer a pena, dona Sofia?
- Acho que sim. Se existir, farei com que seja desmanchada. Se não existir, não acontecerá nada nem a ela nem a mim.
- Não sei... tenho medo de mexer com essas coisas. Mesmo porque, não acredito que ela teria coragem de fazer qualquer coisa nesse sentido. Ela, e parece que toda a família, sempre foram muito religiosos.
- Medo do quê? Ouvi dizer que, se bem pago, qualquer trabalho é feito e não me falta dinheiro. Gastarei até o último centavo para afastar aquela inútil da vida do meu filho.
- Por que diz que ela é inútil?
- Claro que é inútil, não consegue nem ter um filho!
- Isso não quer dizer que ela seja inútil, só precisa talvez, fazer um tratamento....
- Já fez vários e parece que não tem jeito não, ela jamais terá um filho, o que acho muito bom!
- Bom, por quê?
- Porque quando eles se separarem, não restará vínculo algum. Nunca mais precisaremos sequer falar com aquela mulher. Se houvesse um filho, ela estaria sempre presente em nossas vidas!
- Nisso a senhora tem razão...
- Sempre tenho razão, Stela. Será que ainda não descobriu isso?
Stela soltou outra gargalhada e respondeu:
- Claro que já descobri, dona Sofia!
- Amanhã, depois que mandar as crianças para a escola, quero que venha me pegar e iremos juntas, até o tal homem.
- Por que não vamos no seu carro, com o motorista, dona Sofia?
- O tal homem mora há quarenta minutos, uma hora daqui. Lá onde ele mora, ninguém nos conhece e isso é muito bom. Se formos no meu carro com motorista, chamaremos a atenção e alguém poderá nos reconhecer e não quero isso Stela...
- Acho que a senhora tem razão. Ainda mais agora que as eleições estão chegando. Não ficaria bem descobrirem que alguém da família freqüenta um lugar como esse.
- Você entendeu muito bem. O Maurício vai se candidatar e vencer as eleições, você será a primeira dama da cidade. Não é isso que quer?
- Claro que quero, mas será que ele vai ganhar mesmo?
- Claro que vai! O nome da família de Pedro Henrique sempre teve e ainda tem muita força! Eles sempre foram muito queridos por toda população e não se esqueça de que tenho trabalhado muito para que o povo não se esqueça deles. Nossa família não pode perder a eleição!
- Sim, sei que a senhora tem trabalhado muito. Faz muita caridade. O povo todo a adora...
Sofia sorriu, ela sabia que aquilo era verdade. Ajudava a população pobre da cidade. Quando alguém vinha pedir uma ajuda, ela estava sempre disposta a resolver o problema, Fazia aquilo não porque sentisse qualquer coisa pelo povo, mas por saber que, assim teria a população ao lado da família e poderia continuar sempre com o poder nas mãos. Era só isso que queria. Quanto mais a população continuasse precisando dela, mais poder ela e a família teriam. Disse:
- O povo me adora realmente, Stela. Você sabe que até sobre isso aquela mulher me critica?
- Sei, sim dona Sofia. Ela diz que a Prefeitura, ao invés de ajudar as pessoas dando dinheiro ou coisas, deveria encontrar uma maneira de providenciar algum tipo de trabalho. Deveria explorar o artesanato da cidade, dando assim, oportunidade para que ganhasse dinheiro com trabalho. Ela acha que a Prefeitura tem como fazer isso. Poderia não só ajudar o trabalho, como também a promoção de vendas, quem sabe até, exportação.
- Ela tem essas idéias porque nunca esteve à frente da Prefeitura ou qualquer cargo de comando. Ela não permitiu que Ricardo se candidatasse e o levou para Portugal.
- A senhora sabe que não foi bem assim, dona Sofia. Quem não quis se candidatar foi o Ricardo, ele preferiu ir para Portugal, pois, visitando os castelos e fortalezas que existem naquele país, poderia conhecer melhor a nossa história.
- Isso ele disse, mas na realidade ele não queria ir, ela sim. Queria conhecer a terra de seus antepassados!
Se fosse para estudar, deveriam ter ido para os Estados Unidos! Aquele sim, é um país de primeiro mundo! O que tem em Portugal? Estão mais atrasados que nós!
- A senhora sabe como Ricardo gosta de história. Sabe que o que ele quer mesmo é ser professor.
- Professor, professor! Como ele pode querer ser professor? Uma profissão sem valor algum!
- Ele, assim como Anita, também quer que o povo seja instruído.
- Instruído para quê? O povo não precisa de instrução, precisa de comida na mesa!
- Ricardo e Anita não pensam assim, dona Sofia. Eles dizem que o povo precisa estudar para poder trabalhar e promover seu próprio sustento.
- Tudo isso é bobagem, Anita! O povo está muito bem! Você já viu alguém pedindo escola? Claro que não! Todos estão muito felizes, acostumados a viver com o pouco que têm. A Prefeitura desta cidade não deixa que lhes falte nada!
- Sim, mas segundo eles, isso faz com que ninguém se importe em melhorar, estudar e trabalhar. Dizem que as pessoas, por não terem oportunidade, se acomodam à situação.
- Não quero mais continuar com esta conversa. O importante é irmos amanhã naquele homem e vermos o que pode ser feito para que eles se separem. Só isso está me importando no momento.
- Está bem. O Maurício já voltou para o quarto. Precisamos dormir. Amanhã, assim que as crianças forem para a escola, vou até aí pegar à senhora e iremos.
- Estarei esperando por você. Boa noite, Stela, sei que, esta noite vou dormir como um anjo e garanto que aquela mulher não está conseguindo pregar os olhos.
Stela sorriu e disse:
- Boa noite, dona Sofia.
Sofia desligou o telefone e fechou os olhos, tentando dormir. Stela também fez o mesmo. Olhou para Maurício que estava ao lado da cama e perguntou:
- O que minha mãe queria, Stela?
- Nada, Maurício, só comentar sobre o jantar.
- Você disse a ela que não gostei do que fez?
- Não, Mauricio, não disse. Você conhece sua mãe, ela jamais aceitaria uma crítica.
- Sei que ela é assim, mas nunca achei certo. Ela, às vezes, extrapola e comete injustiças, assim como faz com a Anita. Meu irmão está feliz ao lado da mulher que escolheu, ela deveria respeitar isso.
Stela não disse o que realmente havia conversado com Sofia e o que haviam combinado para a manhã seguinte, pois sabia que seu marido não aprovaria. Ele gostava de Anita e muito mais do irmão. Deitaram-se e adormeceram. Sofia sorriu, ajeitou o travesseiro e voltou a se deitar. Ao seu lado, sem que soubesse, um vulto de homem que, durante o tempo todo esteve ao seu lado, disse:
- Por que está fazendo isso, Sofia? Por que continua a mesma de sempre?
Como se houvesse escutado o que ele perguntou, pensou: preciso fazer isso, não posso deixar que aquela mulher continue ao lado do meu filho! Ela não presta!
- Não presta, Sofia, por quê?
Não consegue ter um filho! Ricardo me disse que estão pensando em adotar uma criança! Imagine se vou permitir! Eles acham que vou deixar que o nosso nome seja colocado em um enjeitadinho qualquer? Nunca! Isso não vai acontecer! Nunca!
- Por que não, Sofia? É só um nome... nada mais que isso. Perante a espiritualidade, não representa nada.
Ela, lembrando-se do marido, continuou pensando: se o Pedro Henrique estivesse aqui, diria que nada disso tem importância, que é só um nome e que para a espiritualidade não tem valor. Ele, desde que começou a ler aqueles livros, mudou de atitude. Começou a falar coisas que me deixavam muito nervosa. Como nome e dinheiro não tem valor? Claro que tem! Ele dizia que o que importava era aquilo que trazíamos no coração. O amor por todos, a caridade e a nossa preparação para a vida eterna. O que me interessa a vida eterna? Quero viver esta! Não quero saber o que vai me acontecer depois que eu morrer. Acho que não existe nada depois da morte, por isso, sempre vivi pensando no presente e fiz tudo o que podia para viver bem e ter tudo de bom que esta vida pode me dar. Não quero nem me lembrar de como era minha vida antes de conhecer o Pedro Henrique ... Pedro Henrique sorriu e disse:
- Tudo o que eu dizia era verdade, Sofia. A vida eterna existe e você ainda está em tempo de mudar sua atitude.
Ele dizia isso, mas o que me importa é o hoje, o agora. Preciso dormir, amanhã será um dia de muita emoção. Está decidido, vou até aquele homem e ele vai dar um jeito naquela mulherzinha! Ela queria dormir, mas não conseguia. Os pensamentos fervilhavam em sua cabeça. Sentou-se, afofou o travesseiro, tornou a se deitar, virou de lado, fechou os olhos e, depois de algum tempo, sem perceber, adormeceu. Pedro Henrique, triste, desapareceu.

DESABAFO

Fazia mais de uma hora que Anita havia ido, nervosa, para o quarto. Ricardo permaneceu sentado em um sofá da sala. Ele sabia que ela tinha razão em estar nervosa, mas conhecia sua mãe e também sabia que ela não havia gostado de Anita desde que a conheceu. Ele não entendia por que aquilo acontecia. Pensava: não sei por que mamãe age assim com a Anita. Ela pertence a uma boa família, é estudada e seus pais estão muito bem. Minha mãe não pode dizer que ela se casou comigo por causa de dinheiro. Não entendo também por que Anita até hoje fica nervosa com a atitude de minha mãe. Já devia ter se acostumado... Levantou-se e foi para o quarto. Anita estava deitada, ainda relembrando e chorando. Ao ver o marido entrando, fingiu estar dormindo. Não queria conversar. Sentia-se ofendida não só com Sofia, mas com Ricardo também, por ele não a ter defendido. Assim que Ricardo entrou no quarto, percebeu que Anita fingia dormir. Deitou-se ao seu lado e, carinhosamente, a abraçou. Ela não se moveu. Ele percebeu que ela não estava dormindo e que não queria mais conversar. Anita continuou fingindo que dormia. Ele insistiu, dizendo:
- Anita, não fique assim. O jantar terminou e, em minha opinião e posso garantir, na de todos, estava muito bom.
Ela, nervosa, sentou-se na cama e disse, quase gritando:
- Como estava bom? Você não ouviu o que sua mãe disse?
- Ouvi e, assim como eu, ninguém deu atenção a ela. Todos que estavam aqui a conhecem muito bem e sabem da má vontade que ela tem em relação a você.
Ninguém ligou, Anita ...
- Você está mentindo, Ricardo! Mesmo que fosse verdade, eu me importei! Eu me senti humilhada!
- Ora, meu amor... abrace-me e vamos esquecer o que aconteceu...
- Não posso esquecer, estou com muita raiva!
- Não entendo por que você ainda fica com raiva. Conhece minha mãe, sabe que ela, quando quer, pode ser rude, mas sabe também que ela nos ama...
- O que está dizendo? Ela nos ama? Não, Ricardo, ela não me suporta nem eu a ela! Estou cansada de ser humilhada! Para mim, chega! Vou repetir! Amanhã, assim que clarear, estou indo embora desta casa, da sua vida e da vida dela!
- Que bobagem é essa que está dizendo, Anita? Vai embora por quê?
- Cansei de ser humilhada! Estou com muita raiva de sua mãe, mas muito mais de você!
- Por que está dizendo isso?
- Você não gosta mais de mim. Acho até que nunca gostou!
- De onde tirou essa idéia?
- Da sua atitude! Nunca me defende de sua mãe! Sempre que ela faz algo que me magoa, você fica calado, como se eu não fosse ninguém!
- Ora Anita, deixe de bobagem, você sabe que não é assim. Sabe que, desde que a vi naquele baile, me apaixonei e essa paixão dura até hoje...
- Não Ricardo, você é apaixonado por sua mãe! Fique com ela, estou indo embora!
- Você é que não sabe lidar com a minha mãe! Por que não age como a Stela? Dela minha mãe gosta...
- Ser como a Stela? Nunca! Ela faz tudo o que sua mãe quer, parece um cachorrinho! Não posso e não quero fazer isso! A Stela está fazendo com os filhos o mesmo que sua mãe fez com vocês! Eles também estão se tornando fracos e sem respeito por si mesmos!
Ricardo, que até agora tentava se manter calmo, ficou nervoso e disse furioso:
- Está ouvindo o que está dizendo? Está percebendo que está me ofendendo?
- Não estou ofendendo você, Ricardo! Estou dizendo a verdade! Você é fraco, sem opinião própria. Já que disse que eu devia ser como a Stela, você deveria ser como seu irmão, que não se deixa levar por sua mãe e decide sua vida!
- Acho melhor terminarmos esta conversa por aqui, pois, se continuarmos, vamos acabar brigando de uma forma como nunca aconteceu!
- Também acho. Além do mais, por mais que conversemos, não vai adiantar. Já me decidi, vou embora para sempre!
- Faça o que quiser! Estou cansado de suas lamúrias! Você não passa de uma menina mimada! Não cresceu!
Assim, dizendo, pegou seu travesseiro e saiu do quarto. Anita o acompanhou com os olhos. Estava decidida, seu casamento terminara ali. Em lágrimas, pensou: não adianta continuar insistindo, Ricardo não vai mudar, ele sempre foi e vai continuar sendo dominado pela mãe. Com isso, todo o encanto que havia, terminou. Sei que tanto ele como ela me culpa por não ter tido um filho, mas que me culpa tenho? Já fiz todos os exames aqui e em Portugal e não encontraram um motivo. Não sei mais o que fazer. Agora, também, não me importa mais. Vou embora, o difícil vai ser contar para meus pais. Eles gostam muito de Ricardo. Eu também, mas não dá para continuar assim. Deitou-se e tentou dormir. Sabia que seria difícil, pois em alguns momentos, todos os seus sonhos tinham sido destruídos. Odiava Sofia por isso.

AJUDA DO CÉU

Na manhã seguinte, Anita se levantou e foi até o quarto de hóspedes para conversar com Ricardo, mas, para sua surpresa, ele não estava lá. A cama estava desfeita, o que demonstrava que ele havia se levantado mais cedo e saído. Apesar da curiosidade, ficou com mais raiva. Balançou os ombros, saiu e voltou para seu quarto. Calmamente, começou a arrumar suas malas. Enquanto fazia isso, pensava: onde será que ele foi tão cedo? Sei que ficou nervoso com aquilo que falei, mas é a pura verdade, ele é totalmente dominado pela mãe! É incapaz de tomar uma decisão sem antes falar com ela! Somente quando decidiu ir para Portugal, apesar da negativa dela, insistiu e foi. Acho que não deveríamos ter voltado. Enquanto vivemos lá, foi tudo tranqüilo, embora ela telefonasse duas ou três vezes por semana. Também, agora não adianta ficar pensando, tomei minha decisão e só voltarei para casa se ele mudar o comportamento e consentir em se mudar para a capital, para junto dos meus pais. Sei que minha mãe vai dizer que estou errada, que preciso salvar meu casamento, mas por que só eu? Por que ele também não tem que querer salvar o casamento? Para mim, chega! Acabou! Acabou mesmo! Olhou para o criado mudo e viu que, sobre ele, havia um bilhete. Pegou-o em sua mão e leu:

Querida Anita,

Estive pensando em tudo o que me disse e cheguei à conclusão de que você tem razão. Embora a ame com loucura e não deseje que nosso casamento termine, acredito que chegou a hora de repensarmos nossa vida. Por isso, não precisa sair de casa, pois eu estou fazendo isso. Assim, teremos tempo de refletir sobre todo o tempo em que estamos juntos e o quanto gostamos um do outro. Lembre-se de que a amo e de que quero ficar ao seu lado até o fim da minha vida.

Com carinho e muito amor, Ricardo.

Anita terminou de ler e começou a chorar, pensando: por que isso tinha de acontecer? Por que dona Sofia me odeia tanto? Com o bilhete na mão, continuou chorando. Enquanto isso, em sua casa, Sofia também acordou. Estava feliz e também decidida. Ainda deitada, pensou: São sete horas da manhã, logo mais a Stela vai estar aqui e iremos falar com aquele homem. Hoje vai terminar o reinado daquela mulher! Ela não pode mais continuar vivendo ao lado do meu filho nem pertencer a esta família! Eu a odeio e a todos de sua casa! Levantou-se e começou a se arrumar. Abriu a janela e olhou. O sol estava brilhando, sorriu, voltou para o quarto, foi até o guarda-roupa, ficou olhando e pensando: hoje o dia vai ser quente, preciso escolher um vestido leve. Sei que vai ser cansativo, mas não tem importância, desde que eu consiga salvar meu filho daquela mulher! Pedro Henrique e Maria Rita estavam ali, acompanhando todos os movimentos de Sofia. Desesperado, ele disse:
- Mamãe, será que ela vai mesmo fazer isso? Será que ela vai se unir às forças do mal?
- Acredito que sim, meu filho. Ela parece estar determinada...
- Ela não pode fazer isso! Ela vai se destruir!
- Sei disso, mas sinto que não poderemos fazer nada, apenas pedir a Deus por ela.
- Não pode ser, mamãe! Essa não é a Sofia que conheço! Ela mudou muito!
O quarto se iluminou, em seguida duas entidades apareceram. Ao vê-las, Pedro Henrique e Maria Rita sorriram. Admirado, perguntou:
- Gusmão? Matilde? Por que estão aqui?
- Embora não saibam, estamos ao lado de Sofia há muito tempo. Nós a ajudamos a preparar sua reencarnação e permanecemos ao seu lado, na tentativa de que tudo desse certo.
- Vocês a conhecem?
- Não só a ela, mas a todos vocês que renasceram para se ajudar mutuamente.
Maria Rita disse, surpresa:
- Embora os conhecesse, não sabia que faziam parte de nossas vidas. Por que não nos contaram?
- Sabemos que nos conheciam. Não contamos porque não havia necessidade. Agora, parece ser necessário. Por isso estamos aqui. Viemos para tentar impedir que Sofia faça algo de que, com certeza, outra vez vai se arrepender.
Pedro Henrique, ainda confuso, disse:
- Não estou entendendo, essa não é a Sofia que conheço. Ela sempre foi tão gentil e amorosa. Nunca pensei que pudesse, sequer, imaginar uma coisa como essa...
- Você nunca conheceu Sofia. Ela sempre foi dissimulada, Pedro Henrique.
- Não pode ser verdade...
- Infelizmente, é verdade. Ela planejou sua encarnação e pediu que a ajudássemos. Prometemos que estaríamos sempre ao seu lado e assim fizemos. Não só eu e Matilde, mas muitos outros.
- Quem é Sofia realmente, Gusmão? Pode nos contar?
- Sim, enquanto ela se prepara para sair, poderemos conversar.
- Por favor, Matilde. Preciso entender o que está acontecendo. Essa Sofia que esta aí se preparando para destruir a vida de meu filho não é aquela que conheci e amei durante toda a vida...
- Vou contar, Pedro Henrique e no final, entenderá tudo o que aconteceu e está acontecendo agora. Sofia morava em um sítio distante da cidade. Seus pais viviam uma vida com muita dificuldade, mas a amavam muito. Ela acordava muito cedo e caminhava ao lado de outras crianças da redondeza, em direção à cidade. Entre elas ia Osmar, que morava em um sítio próximo ao dela. Ele era um ano mais velho. Estavam indo para a escola. Faziam isso todos os dias. Era filha única. Sua mãe, Nadir, passou muito mal quando Sofia nasceu e nunca mais pôde ter outro filho. Sofia era muito tímida e sentia falta de irmãos. Queria ao menos, mais um. Ela fazia aquela caminhada sem reclamar. Com dez anos, estava ainda no primeiro ano e aprendia a ler e a escrever as primeiras palavras. Estava atrasada, mas isso aconteceu porque demorou para que uma escola fosse construída. Isso só aconteceu quando o avô de Pedro Henrique foi eleito prefeito da cidade. Ela nunca havia pensado em estudar e só foi para a escola depois de muita insistência de minha mãe. Seu pai, Romeu, achava que estudo não era importante para mulher, pois sabia que logo ela se casaria e teria apenas de cuidar do seu marido e filhos. Ela aceitava aquilo com naturalidade, mas sua mãe não. Dizia:
- Sofia, você precisa estudar para poder ser alguém na vida. Se continuar como eu, sem saber ao menos ler, vai ter uma vida assim como a minha...
- Sofia a ouvia dizendo aquilo, mas não tinha o alcance do que significava. Somente quando começou a juntar as letras, formar palavras, podendo assim, ver e ler as revistas com artistas, foi que passou a se interessar realmente. Nas revistas, via moças com vestidos e cabelos lindos, casas bonitas, bem pintadas e grandes. Ao ver tudo aquilo, começou a sonhar e a querer ter todas aquelas coisas. Só aí foi que percebeu o significado daquilo que sua mãe dizia e, enquanto ia para a escola ao lado das outras crianças, dizia:
- A gente precisa estudar e aprender bem rápido.
- Osmar me olhava e, confuso, perguntava:
- Estudar para quê, Sofia? Já sabe como vai ser a nossa vida.
- A sua, você pode saber, Osmar, mas a minha não! Ela vai ser diferente! Sei que, se estudar, vou poder comprar aqueles vestidos lindos que vi na revista... cortar os meus cabelos e morar em uma casa linda, igual a uma daquelas. Ainda bem que consegui fazer com que meu pai me deixasse ficar sem trabalhar na roça para poder ir para a escola. Minha mãe conversou com ele a esse respeito, ele ficou brabo e disse:
- Estudar para quê, Nadir? Sabe que ela só vai perder tempo. Ela precisa mesmo é aprender a cuidar da casa e fazer uma boa comida para ser uma boa mulher e mãe. Além do mais, enquanto não se casar vai poder cuidar da casa enquanto você trabalha comigo, lá na roça.
- Se ela estudar, Romeu, ela vai poder ter uma vida diferente...
- Nadir tanto insistiu que ele não teve como discordar. - continuou Gusmão.
- Sofia, que estava diante do espelho penteando os cabelos, sem saber a causa, também começou a relembrar o passado e, a se ver criança novamente, se emocionou e uma lágrima escorreu por seu rosto. Matilde apontou com a mão, todos viram e sorriram. Ela disse:
- Parece que a nossa presença aqui ao seu lado, intuindo-a para que se recorde, está dando resultado, Pedro Henrique. Se ela continuar assim, talvez desista de ir ao encontro daquele homem.
- Acha que isso pode acontecer, Gusmão? Acha que ela pode desistir?
- Por que não? Precisamos sempre ter a esperança de que o sentimento maior, o amor, é mais forte.
- Tomara mesmo, Gusmão. Tomara que ela, recordando-se de como tudo aconteceu e de como chegou onde está hoje, mude de idéia e aceite a Anita como sua filha. Ela precisa mudar de idéia. Se não fizer isso, vai causar muito sofrimento a ela e a toda família...
- É verdade, Matilde, mas não podemos duvidar da bondade e justiça de nosso Pai e criador.
Sofia balançou a cabeça como querendo afastar aquelas lembranças. Olhou novamente para o espelho, ajeitou um fio de cabelo rebelde e sorriu, pensando: Tudo o que passei faz parte do passado. Hoje, que consegui tudo o que sempre desejei, preciso cuidar para que minha família continue com o nome e respeito que sempre teve e isso só poderá acontecer se não se misturar com uma família como a daquela mulher. Preciso e vou afastá-los!
Pedro Henrique, ao ouvir aquilo, começou a tremer e a chorar. Disse, soluçando:
- Realmente, essa não é a Sofia que conheci e amei...
- Ela sempre foi assim, determinada a conseguir o que desejava, e para isso, nunca poupou esforços. Mas ainda está em tempo. Estamos e vamos continuar ao seu lado, tentando fazer com que encontre o caminho de que se desviou há muito tempo.
- É o que mais desejo, Gusmão. Quero ver novamente a minha Sofia...
- Vamos pedir a Deus que isso aconteça, mas vou continuar a contar a história.
- O pai de Sofia plantava verduras e legumes. Todos os domingos ia até o centro da cidade e vendia tudo na feira. Em um domingo, apareceu em casa com uma criança recém-nascida. Com ela no colo, disse:
- Eu estava voltando com a carroça e, quase chegando aqui, uma mulher caiu bem na minha frente. Desci da carroça e fui ver o que havia acontecido. Ela estava com os olhos parados e percebi que estava morta. Olhei para o lado e lá estava esta criança e esta sacola. Acho que aí dentro tem as roupas da criança. Fiquei assustado, por lá não passa qualquer pessoa. Então, trouxe a criança para que você cuide dela, Nadir, enquanto volto à cidade para avisar o delegado.
- A mulher ainda está no mesmo lugar, Romeu?
- Esta, mas já estou voltando. Cuide da criança.
- Quero ir com você.
- Não precisa. Se eu for no cavalo, chego mais rápido e você precisa cuidar da criança.
- A Sofia pode cuidar. Quero ir com você.
- Como ela vai cuidar, Nadir? Ela nunca esteve perto de uma criança tão pequena.
- O pai tem razão, mãe. Não sei e não quero cuidar dessa criança!
- Está bem, eu fico, mas volta depressa para me contar o que houve e o que vai acontecer com esta criança.
- Romeu saiu apressado. Nadir pegou a criança, apertou-a bem junto ao peito e disse:
- Como é bom ter um neném de novo no colo.
- Aquelas palavras pareciam flechas atiradas no peito de Sofia. Ficou com muita raiva, pois nunca vira no rosto da mãe, uma expressão de felicidade como aquela. Sabia que era querida, tanto por ela como pelo pai, mas nenhum dos dois nunca demonstrou tanto carinho por ela. Nadir tirou as roupinhas da criança e disse, feliz:
- É um menino, Sofia! Olha como é lindo e gordinho!
- Sofia olhou para o menino e não viu nada de bonito. Era uma criança feia, careca, vermelha e parecia que estava inchada. Nadir disse:
- O umbigo ainda não caiu, Sofia. Ele acabou de nascer. Quem será que era sua mãe?
- Sofia ficou parada, só olhando. Nadir abriu a sacola e, realmente, dentro dela, havia roupinhas de criança. Demonstrando a felicidade que estava sentindo, Nadir cuidou dela com muito carinho. Mais tarde, Romeu voltou e contou o que havia acontecido na cidade:
- Voltei ao lugar onde encontrei a moça morta e ela continuava ali. Fui para a cidade procurar o delegado. Quando cheguei, contei o que tinha acontecido. Ele me ouviu e, em seguida, pegou a viatura da polícia e fomos até lá. A moça continuava no mesmo lugar. Pegamos à moça e a colocamos na parte de trás da viatura e voltamos para a cidade.
- Você contou do menino, Romeu?
- É um menino? Que bom! Não, Nadir. Perguntei ao delegado o que acontecia com crianças que não tinham família. Ele me disse que elas eram encaminhadas ao juiz de menor e depois iam para um orfanato.
Quando ele me disse isso, me lembrei de como você e a Sofia queriam uma criança e fiquei quieto. Vamos deixar passar um pouco de tempo, depois volto à cidade e falo que você teve uma criança aqui no sítio, assim ela vai poder ser registrada no nosso nome. Vai ser nosso filho e você, Sofia, vai ter um irmãozinho! Está feliz com isso?
- Sofia ficou olhando para ele sem saber o que responder. Na realidade, ela sempre quis ter um irmão, mas quando viu o carinho com que a mãe pegou aquela criança, não sabia se ainda queria, mas seu pai estava decidido e sua mãe parecia muito feliz. Não respondeu, apenas sorriu. Nadir, com a criança no colo, perguntou:
- Acha que vai dar certo, Romeu? Será que eles não vão desconfiar e descobrir?
- Claro que vai dar certo, mulher. Sabe que aqui na cidade não tem hospital e que todas as crianças nascem em casa. Vai dar certo, sim!
- Alguns dias depois, Romeu foi à cidade e contou aquela história. Assim, registrou Gustavo em seu nome e Sofia, de repente, tinha um irmão. A princípio, ficou feliz, mas essa felicidade terminou no dia em que Romeu chegou e disse:
- Você não vai mais poder ir à escola, Sofia.
- Por que, pai?
- Sua mãe precisa me ajudar na roça e, agora com o menino, isso não vai ser possível. Por isso, enquanto ela estiver comigo, você precisa cuidar da casa e dele.
- Ela ficou revoltada e disse, nervosa:
- O senhor não pode fazer isso, pai! Eu gosto de estudar! Quero aprender para poder sair desta casa e deste lugar!
- Por que quer sair daqui?
- Não quero ter uma vida igual à sua e à da mãe! Quero ser rica e ter tudo o que desejo!
- Pode esquecer! A sua vida não vai ser diferente da nossa! A gente nasceu pobre pela vontade de Deus e vai morrer pobre...
- Não! A minha vida não vai ser assim! Vou ser rica!
- Está bem, mas por enquanto, precisa ajudar aqui em casa. Enquanto você fica sonhando com toda essa riqueza, a gente precisa trabalhar para continuar vivendo.
- Isso não é justo! Eu quero estudar!
- A vida não é justa. Também queria ter uma porção de coisas que sei, nunca vou ter. Você precisa viver na realidade e a realidade é que a gente precisa plantar e colher. O resto é sonho. Pode continuar sonhando, mas vai ficar aqui em casa ajudando na lavoura e cuidando de seu irmão.
- Ele não é meu irmão!
- Romeu deu uma bofetada no rosto dela e gritou, nervoso:
- Nunca mais repita isso! Ele é seu irmão, entendeu bem?
- Sofia saiu chorando para o quintal. Estava quase anoitecendo, algumas estrelas surgiam no céu. Olhou para o alto e disse, baixinho:
- Eu vou sair deste lugar! Eu vou ser rica!
- Sofia começou a tremer. Seu coração batia acelerado. Pela primeira vez, seu pai havia lhe batido. Logo ele que sempre fora tão carinhoso e que, apesar da pobreza em que viviam, fazia o possível para que não lhe faltasse nada. Ele não sabia, mas assim que saiu, Nadir, sua mãe, perguntou nervosa:
- Por que bateu nela, Romeu? Você nunca tinha feito isso!
- Não sei, Nadir, fiquei nervoso! Sabe que quando menti e registrei o Gustavo no nosso nome, cometi um crime e, se alguém descobrir, poderei até ser preso! Por isso, ninguém pode descobrir! Por isso também, não podemos nem pensar, muito menos falar que ele não é nosso! Quando Sofia disse que ele não era seu irmão, perdi o controle...
Sofia afastou o pensamento. Após tomar o café, voltou para o quarto e ficou esperando o telefonema de Stela. Estava ansiosa, queria resolver logo aquele assunto que a incomodava desde o dia em que Ricardo trouxera Anita para conhecê-la. Recostou-se na cama e ficou fazendo planos para depois que houvesse a separação. Não sei como vai acontecer, só espero que Ricardo fique bem. Sei que ele não gosta daquela mulher, ele está enfeitiçado. Ficou recostada por alguns instantes, começou a relembrar o passado. Ficou nervosa e irritada, não queria relembrar, mas não sabia por que, não conseguia parar. Levantou-se e foi beber um pouco de água. Não entendia aquilo que estava acontecendo. Fazia muito tempo que não se lembrava do passado. Era uma coisa que ela sempre quis esquecer e conseguiu. Olhou no espelho que havia na porta do guarda-roupa e pensou: por que estou pensando nisso agora? Não posso desviar meu pensamento, preciso me concentrar só naquele homem e no que vai acontecer com aquela mulher! As entidades acompanhavam seus passos. Pedro Henrique, nervoso, disse:
- Não, Sofia! Precisa se concentrar no seu passado para entender que nada pode ser feito para separar nosso filho de Anita. Eles se gostam e têm juntado, um longo caminho pela frente.
Matilde segurou no braço de Pedro Henrique e, tristemente, disse:
- Não adianta, Pedro Henrique. Ela está determinada e muito pouco poderá fazer para que mude de idéia. Você a conhece e sabe como é determinada. Se ela continuar nessa faixa de pensamento, não poderemos continuar aqui. Logo mais, ela estará tão envolvida pelas energias do mal que não conseguirá nos ouvir mais.
- Sei disso, Matilde, por isso mesmo estou pedindo que me ajude a fazer com que se lembre de tudo. Quem sabe, assim, ela mude de idéia e deixe Ricardo viver em paz com a mulher.
- Enquanto estou contando sua história para vocês, ela, embora não saiba, também está ouvindo. Enquanto ela nos ouvir, continuaremos tentando. Ficaremos ao seu lado até que seja possível.
- Obrigado Gusmão. Ainda bem que vieram...
Gusmão sorriu. Sofia voltou para a cama, recostou-se novamente e tentou pensar só no trabalho que o homem ia fazer. Olhou para o relógio, embora achasse que Stela estava demorando. Percebeu que isso não era verdade, pois faltava mais de trinta minutos para a hora marcada. Pedro Henrique, ao seu lado, disse:
- Sofia, você está querendo pisar em um terreno muito perigoso. Por enquanto, estamos aqui mas não sei por quanto tempo, por isso, é preciso que reconsidere e não cometa essa loucura.
- Não adianta, Pedro Henrique, ela está totalmente tomada pelo ódio. Vou continuar contando a história, talvez ela relembrando-se, mude a faixa de pensamento. No final, vamos ver o que acontece.
- Vamos tentar tudo o que for possível, Gusmão...
- Vamos sim, Pedro Henrique. Depois do dia em que Romeu lhe deu aquele tapa, Sofia nunca mais foi à escola. Ficava em casa cuidando de tudo para que sua mãe pudesse ajudar seu pai na roça. O tempo passou. Ela estava agora com quatorze anos e, embora tivesse deixado de ir à escola, não deixou de estudar. Osmar, que também fora obrigado a deixar de estudar para ajudar o pai na roça, ia, muitas vezes durante a semana para a cidade e sempre trazia livros da biblioteca. Sabia que ela gostava e ele só queria vê-la feliz. Romeu, todos os domingos, também ia para a cidade. Ele levava as verduras e legumes que plantava para serem vendidos na feira e, assim, conseguia o dinheiro de que precisava para manter a família. A vida era dura, mas viviam em paz. Sofia sempre o acompanhava e ficava com ele na barraca, ajudando-o a vender. Quando conseguia alguns momentos de folga, ia para a casa de Magali, uma amiga da escola que lhe passava a lição que a professora havia dado naquela semana. Além dos livros da escola e dos que Osmar pegava na biblioteca, lia também revistas de moda e de histórias em quadrinhos. Entre elas, as que falavam de amor. Ficava encantada com as casas e roupas que via nas revistas e sonhava: como eu queria ter uma casa como essa e essas roupas, então?
Isso sim é que é viver... mas como minha mãe diz, não adianta sonhar. Minha vida vai ser sempre assim, como a dela. Vou me casar e vou continuar vivendo aqui, neste lugar.
Sei que vou ter uma porção de filhos e ficar velha antes do tempo...
- Osmar, embora trouxesse os livros, não entendia por que ela sempre repetia aquilo. Em uma tarde, quando conversavam sentados em um banquinho de madeira que havia sob uma árvore, perguntou:
- Para que você lê tantos livros e revistas, Sofia?
- Não quero continuar vivendo aqui, Osmar. Quero aprender sobre tudo o que existe fora daqui! Quero falar direito e conhecer outros lugares. Por enquanto, sei que não posso, então aprendo a falar através dos livros e nas fotografias que vejo nas revistas, conheço outros lugares e como as moças se vestem. Você já viu os vestidos lindos que elas usam?
- Eu não ligo pra essas coisas. Você gosta de mim, Sofia?
- Claro que sim, Osmar!
- Então, por que a gente não começa a namorar?
- Namorar!? - ela perguntou, assustada e confusa.
- Claro que sim, a gente se gosta e já está chegando à hora de eu me casar. Conversei com meu pai. Você sabe que tanto ele como os seus pais fazem gosto no nosso casamento. Ele disse que, assim que eu fizer dezoito anos, vai me dar um pedaço de terra e a gente vai poder construir a nossa casinha. Ela vai ficar muito bonita, aí a gente vai poder se casar e ser feliz pra sempre.
- Que bom que ele disse isso. Minha mãe acha que é um pouco cedo. Ela disse que a vida de casado não é fácil e, por isso, acho que a gente devia esperar mais um pouco.
- A vida só não é fácil quando a gente não gosta da outra pessoa, mas a gente desde criança se gosta muito, não é?
- Sempre gostei de você, Osmar, mas não sei se quero me casar. Sabe que não quero continuar vivendo aqui neste lugar.
- Você sempre disse isso, mas sabe que não adianta, vai ter de continuar aqui. Eu gosto muito de você e sei que a gente vai ser feliz. Se quiser, vou conversar com seu pai e, assim que eu fizer dezoito anos, a gente se casa.
- Ela pensou um pouco, depois disse, continuou Gusmão:
- Está bem, você tem razão, nunca vou sair deste lugar, esta é a minha sina. Pode falar com meu pai.
- Eu sabia que ela tinha tido um namorado, Gusmão...
- Sei que sabia, mas não sabe de muita coisa, Pedro Henrique. Vou continuar. Naquele dia, estavam distraídos conversando e não viram quando Romeu se aproximou e pôde ouvir as últimas palavras. Curioso, perguntou:
- Sobre o que estão conversando?
- Voltaram-se e Osmar sorrindo, respondeu:
- Estamos falando sobre o nosso futuro, seu Romeu. Eu e a Sofia queremos começar a namorar. Estava dizendo para ela que ia conversar com o senhor e pedir sua permissão.
- Namorar? Vocês são ainda muito crianças!
- A gente sabe disso. A gente só vai namorar, seu Romeu. Meu pai disse que quando eu fizer dezoito anos e quiser me casar, ele vai me dar um pedaço de terra só minha. Assim vou poder construir uma casa, plantar e ser feliz com ela.
- Se for assim, está bem. Mas tomem cuidado com esse namoro.
- Não precisa se preocupar, seu Romeu. O senhor sabe que, desde que era criança, gosto de Sofia e nunca vou fazer qualquer coisa para deixá-la triste.
- Está bem, você é um bom moço e sua família também. A gente sempre se deu bem e se seu pai vai lhe dar um pedaço de terra, já é um bom começo. Podem namorar.
- Romeu se afastou. Osmar pegou na mão de Sofia e emocionado, disse:
- Você não pode imaginar como estou contente, Sofia! A gente vai ser feliz, você vai ver! Sei que tem medo de continuar nessa pobreza, mas com a gente, não vai ser assim! Vou ser diferente do meu pai e do seu. Não vou vender a nossa mercadoria só na feira, vou procurar levar para a capital. Meu pai me levou uma vez lá e você não pode imaginar como é grande!
Tem uma porção de prédios altos, muitos carros e um lugar muito grande, onde as pessoas vendem frutas, verduras e legumes! Eles compram de tudo e depois distribuem pela cidade! Você precisava ver! Não vai acreditar!
- Por que seu pai não vende pra eles?
- Sabe que meu pai não tem estudo nem sabe conversar direito. Ele tem medo, porque, para vender pra eles, a gente vai ter que aumentar a plantação, quem sabe, até vai ter de contratar mais gente para trabalhar e meu pai tem medo de que, depois não vá conseguir vender nem ter como pagar tudo o que gastou.
- Você não tem medo, Osmar?
- Tenho, mas se a gente não tentar, a gente vai continuar sempre assim, sem ter quase o que comer. Assim que a gente se casar e eu já tiver a minha terra, vou para a capital procurar quem é que compra. Vou negociar e aí, é só trabalhar. A gente vai ficar rico! Você vai ver, Sofia!
- Ela ficou impressionada com o entusiasmo e determinação de Osmar e disse:
- Acho que vai dar certo mesmo, Osmar! Se precisar, eu até ajudo você na roça!
- Você não vai precisar trabalhar na roça. Vou contratar gente para fazer isso. Só vai ter que cuidar da casa e dos nossos filhos!
- Filhos?!
- Claro que filhos! Quero muitos! Além do mais, a gente vai precisar de muitos braços pra trabalhar, não é? - perguntou, rindo.
- Não é não senhor! Não vou querer meus filhos trabalhando na roça, quero que eles estudem! - disse, nervosa.
- Também quero isso, sua boba. Estava só brincando. Nossos filhos vão ter uma vida completamente diferente da nossa. Pra isso vou trabalhar muito.
- Ele a abraçou e lhe deu um beijo nos lábios. Aquele foi o primeiro. Ela estava feliz. Desde criança, gostava realmente de Osmar. Seu único medo de se casar com ele era continuar vivendo para sempre naquele lugar e naquela pobreza, mas agora, tudo era diferente.
Ele tinha planos que poderiam fazer com que tivessem uma outra vida.
- Ela nunca me falou sobre esses planos... - disse Pedro Henrique.
Gusmão sorriu e continuou:
- Não havia por que contar. Conversaram mais um pouco. Depois, ele deu um beijo na sua testa e se afastou. Ela ficou olhando-o ir embora. Sorriu, pensando: definitivamente, eu gosto dele. Vamos começar uma vida nova e, com a ajuda de Deus, vamos ser felizes.
- Assim que ele desapareceu no horizonte, ela foi para casa. Entrou no exato momento em que Nadir, sua mãe, dizia:
- Eles são muito crianças para começarem a namorar, Romeu!
- Sei que são crianças, mas sei também que não adiante proibir. Sabe muito bem o que aconteceu com a gente, Nadir. Seu pai proibiu e a gente fugiu para se casar. Aqueles dois se gostam desde crianças. Sempre viveram grudados e ele sempre fez todas as vontades dela. Além do mais, o casamento não vai ser agora, só quando ele tiver dezoito anos e ela, dezessete. Até lá, muita coisa pode acontecer.
- Não sei... tenho muito medo...
- Medo do quê, mãe?
- Nadir e Romeu se voltaram e viram quem perguntava. Ela caminhou na direção de Sofia e respondeu:
- Sei que você gosta do Osmar e ele de você, mas sempre disse que quando se casasse, ia embora daqui. Sabe que, se casar com ele, continuará aqui e será infeliz. Não quero isso pra você, filha...
- Ora mãe, eu dizia isso quando era criança, mas agora sei que, pra sair daqui, vou ter que conhecer um homem rico e isso nunca vai acontecer. Como vou conhecer um homem rico? O único lugar a que vou é para a feira vender as nossas coisas. Gosto do Osmar, sei que com ele vou ser feliz.
- Está bem, já que esse é o seu desejo. Preciso começar a fazer o seu enxoval. Sabe que o dinheiro é pouco, por isso preciso começar agora.
- Sorriu e foi para a cozinha tomar um pouco de água,. Ao lado dela, estávamos Matilde e eu, que sorri e disse:
- É, Matilde. Tudo está caminhando como o planejado. Se tudo der certo, eles vão se casar e vão cumprir tudo o que prometeram.
- Por que está dizendo isso, Gusmão? Não é sempre assim? Todos têm um destino traçado e dele não podem fugir, não é?
- Não existe destino, Matilde, o que existe são escolhas feitas.
- Eles não decidiram, quando estavam aqui, que se encontrariam, se casariam e tentariam cumprir, juntos, uma missão?
- Sim, decidiram, mas isso aconteceu quando estavam aqui, deste lado. Todavia, na Terra, quando encarnados, tudo fica diferente.
- Por que é assim, Gusmão?
- Com o esquecimento das promessas feitas e tendo de decidir no momento, muitas vezes, infelizmente, isso não acontece, Matilde. Para que o espírito possa evoluir, ele tem de superar todas as suas fraquezas. Por isso, as mesmas situações sempre voltam e ele se verá envolvido nelas, até que consiga superá-las.
- E se não conseguir?
- Se não conseguir, elas se repetirão por muitas encarnações, até que o espírito consiga vencer.
- Isso sempre acontece?
- Sim, não importa o tempo que demore. Um dia, o espírito encontra seu caminho e pode seguir tranqüilo.
- Estou aprendendo tantas coisas com você, Gusmão. Que bom que me escolheram para acompanhar você nesta missão.
- Eu também sei que vou aprender muito com você, Matilde.
- Aprender comigo? Não tenho nada para lhe ensinar... você é um espírito iluminado, já conquistou sua luz, eu ao contrário, preciso caminhar muito...
- Todos sempre têm algo para aprender e para ensinar. Embora eu tenha conquistado minha luz, não pense que sou infalível.
Assim como você, tenho meus momentos de dúvidas e de medo. Ainda não consegui superar. Para isso estamos aqui. Eu e você temos muito a aprender, Matilde...
- Eu fiquei calada, não entendia o que Gusmão dizia, pois desde que ouvira falar nele, sempre foi como sendo um espírito iluminado, destacado para cumprir as missões julgadas mais difíceis. Por isso, fiquei feliz quando fui convidada para acompanhá-lo naquela missão.
Matilde falou emocionada. Gusmão sorriu e continuou:
- Daquele dia em diante, Sofia e Osmar começaram a namorar. Todas as tardes, assim que voltava da roça, ele ia até a casa dela, ficavam conversando e sonhando com o futuro.

MOMENTO DE ESCOLHA

Sofia, ainda recostada na cama, tentou afastar o pensamento do passado e voltou a olhar para o relógio. Havia passado apenas dez minutos, mas para ela, parecia mais de uma hora. Nervosa, pensou: parece que o tempo não passa! Stela está demorando muito para telefonar. Será que aconteceu alguma coisa? Vou telefonar. Pegou o telefone e discou o número da casa de Stela, que atendeu:
- Dona Sofia, sabia que era a senhora. Sei que está ansiosa, mas ainda é cedo. Não terminei de preparar as crianças para irem à escola. Fique calma, daqui a pouco estarei aí.
- Desculpe-me, Stela, mas estou mesmo muito ansiosa. Sabe como essa nossa visita é importante.
- Sei, sim dona Sofia, embora ainda ache que não devíamos ir.
- Como não ir? Estou tentando há muito tempo separar o meu filho daquela mulher! Agora que encontrei uma maneira, não vou desistir!
- Sei que está determinada, mas não seria melhor pensar melhor e deixar para outro dia...
- Nem pensar, Stela! Nunca deixo para depois o que posso fazer agora! Se me conhecesse, saberia que sempre fui assim. - disse com a voz alterada.
- Está bem, vamos fazer como à senhora quer. Estarei aí daqui a pouco.
- Estarei esperando.
Nervosa, Sofia desligou o telefone. Pedro Henrique e os outros acompanharam a conversa. Ele estava preocupado, mas não pôde deixar de dizer:
- Ela disse a verdade, Gusmão, sempre foi determinada e nunca deixou para depois o que pudesse fazer na hora. Sempre que queria alguma coisa, conseguia...
- Sim, Pedro Henrique, ela sempre foi assim , eu não diria que determinada, mas obstinada. Por isso, sempre conseguiu tudo o que quis, não se importando com nada nem com ninguém.
- Não conheço ninguém a quem ela tenha feito mal, Gusmão.
- Ela sempre soube como fazer as coisas e nunca deixou pistas de seus atos. Isso já vem de muitas encarnações e em todas elas, sempre teve a oportunidade de mudar. Nunca conseguiu e parece que nesta também não vai conseguir. Vou continuar contando a história.
- Faça isso, por favor. Preciso realmente conhecer, de verdade, a mulher com quem convivi por tanto tempo.
Gusmão sorriu e continuou:
- O tempo passou. Sofia estava, agora, com dezesseis anos. Transformou-se em uma linda moça. Cabelos negros e compridos, pele morena e grandes olhos verdes. Gustavo, protegido pelo amor de Nadir e Romeu, também cresceu e estava com sete anos. Era um menino saudável e muito feliz. Sofia gostava dele, mas sempre que relembrava que havia sido obrigada a parar de estudar por sua causa, sentia muita raiva e, no íntimo, nunca lhe havia perdoado. Mas, mesmo assim, continuou levando a vida de sempre. Ajudava na lavoura, cuidava da casa, do menino e ainda, usando uma cartilha velha, o ensinava a ler e a escrever. Seu enxoval estava quase pronto e no próximo ano se casaria. O pai de Osmar, vendo que ele ia mesmo se casar, mediu e lhe deu a terra prometida e ele já havia começado a construir a casa que no começo seria pequena, porém ele e Sofia já tinham desenhado como seria depois que ele fosse para a capital e começasse a vender sua mercadoria. Tudo parecia caminhar bem, mas antes de renascer, ela havia combinado e desejado passar por algumas provas e, assim, conseguir deixar de ser egoísta e exclusivista.
- Não estou entendendo, Gusmão. Ela havia combinado o quê, com quem?
- Não é difícil de entender, Pedro Henrique. Durante várias encarnações, ela sempre foi muito gananciosa e, por isso, sempre fez tudo o que achava ser necessário para conseguir o que quisesse. Por essa ganância, prejudicou pessoas que encontrou pelo caminho e que, segundo ela, eram empecilhos. Antes de renascer, desta vez, pediu para ser uma criança pobre e para, através de seu trabalho, sem usar ou prejudicar qualquer pessoa, voltar vitoriosa. Sabia que teria alguns momentos de provas, mas quando renasceu, foi com muita esperança de, desta vez, conseguir.
- Ainda não entendo por que isso tem de acontecer. Não seria melhor deixar que tudo corresse bem, sem nada que pudesse complicar a evolução do espírito?
- Seria melhor, mais fácil, mas não seria justo.
- Ainda não estou entendendo.
- Não seria justo, pois aqueles que foram prejudicados, ficariam sem respostas e aqueles que infringiram a lei, ficariam impunes e isso não pode acontecer. Todo crime, seja em que escala for, terá de ser corrigido e isso só é possível através da reencarnação e com a própria vontade daquele que se julga responsável. Essa é a Lei de ação e reação. Para que um espírito possa continuar na sua plenitude, é necessário que corrija todos os erros ou enganos cometidos e, para que isso aconteça, será preciso que as mesmas situações se repitam para que possam ser superadas.
- Pensando-se assim, existe uma lógica. Parece ser o certo.
- A Lei Divina é justa. Disso pode ter certeza, Pedro Henrique. Tudo aquilo que for feito por um espírito de bem ou de mal, voltará para quem o cometeu.
- Então não adianta o arrependimento? Não adianta o perdão por parte daquele que foi prejudicado?
- Claro que sim, Matilde. O arrependimento e o perdão são cruciais para o espírito.
Sem eles, não haveria como caminhar, mas mesmo assim, o espírito terá de corrigir-se a si mesmo e, para isso, precisa renascer, passar pelas mesmas circunstâncias e vencer.
Muitos amigos espirituais pedem para renascer juntos, ajudando-se na empreitada. O espírito nunca está só. Como aconteceu com Sofia, ela teve Romeu, Nadir, Osmar e você, Matilde, para a ajudarem a conseguir vencer. Você também, Pedro Henrique, que esteve ao seu lado por muitas encarnações como amigo e confidente.
- Eu?!
- Sim, você. Em algumas encarnações, estiveram juntos e juntos praticaram muita maldade e prejudicaram a muitos. Essa caminhada foi longa. Durante ela, você percebeu todo o tempo que havia perdido, se arrependeu e venceu. Sofia não. Ela, em nome da ganância e do poder, continuou cometendo os mesmos erros. Você, como está acontecendo agora, muitas vezes torceu para que ela vencesse e sofria quando via que ela não conseguiria. O mesmo aconteceu com Nadir, Romeu, Osmar, Gustavo e você, Matilde. Venceram. Poderiam continuar a jornada sozinhos, mas estiveram juntos durante muito tempo e nunca quiseram se separar e, assim que um conseguia sua libertação, continuava renascendo para ajudar os que restavam. Daquele grupo que se iniciou há muito tempo, só resta Sofia e talvez, desta vez, possam seguir juntos. Eu e Matilde, embora neste momento não saibam, também fazemos parte do mesmo grupo e, apesar de, desta vez não havermos renascido, sempre estivemos ao lado de todos vocês, procurando ajudar no que fosse possível. Agora, todos nós juntos, precisamos orar com muita fé para que Sofia consiga vencer.
- Por tudo o que estamos vendo, não vai ser fácil. Ela ainda continua se deixando envolver pelos mesmos sentimentos de ganância e poder.
- Infelizmente, você está com a razão, Matilde, mas não podemos perder a esperança. Sabemos que, para Deus, nada é impossível.
- Esperamos que sim. Gusmão, pode continuar nos contando a história e qual foi à primeira prova pela qual ela teve que passar?
- Sim, vou continuar, mas antes, prestem atenção em como ela está nervosa e ansiosa. Parece mesmo que a nossa conversa a está afetando e as lembranças a estão confundindo. Todos se voltaram para Sofia que continuava recostada na cama, olhando a todo instante, para o relógio: Stela está demorando. Será que aconteceu alguma coisa? O pior é que não entendo por que estou me relembrando de coisas que sempre quis e consegui esquecer. Não conseguia esconder sua irritação. Levantou-se, foi até a janela, olhou para o jardim e para a alameda pela qual Stela deveria chegar. Estava tudo calmo, apenas pôde perceber que um vento leve balançava as folhas. Ficou ali por alguns segundos. Pedro Henrique e os outros acompanhavam seus movimentos. Ele perguntou:
- Gusmão, a nossa presença aqui está fazendo com que ela se recorde?
- Sim, com isso, estamos tentando levá-la a desistir da visita programada e, quem sabe se arrepender e voltar para o caminho.
- Para o nosso Pai, a palavra nunca não existe, Matilde. Sempre haverá o momento do arrependimento, não importa quanto demore. Sofia, agora, está tendo mais uma chance. Todos nós estamos aqui para isso. Nós a amamos, queremos continuar a nossa caminhada, mas não iremos sem ela. Se algum de vocês quiser desistir, pode fazer sem constrangimento. Conseguiram, através dos tempos, esse direito.
Gusmão olhou para eles, que sorriram demonstrando que permaneceriam ali o tempo que fosse necessário. O único que sabia da história deles era Gusmão, mas sentiam que sempre estiveram juntos e que assim permaneceriam. Sofia era uma deles e ficariam ao seu lado até que conseguissem fazer com que ela os acompanhasse. Matilde disse:
- Sabe que ficaremos, Gusmão. Eu e, acredito que os outros, não nos recordamos de como tem sido a nossa caminhada, por isso, gostaríamos que continuasse nos contando o que Sofia fez de certo ou errado nesta encarnação.
- Claro que vou continuar. Não só por todos nós, mas principalmente, pela própria Sofia. Tudo corria bem e parecia que o destino já estava traçado, mas não foi bem assim. Sofia deveria passar pela prova de que já havia lhes falado. Em um sábado à tarde, enquanto Gustavo brincava com um carrinho feito de madeira, Sofia estava lendo, sentada em um banquinho do lado de fora da casa. Gustavo gritou:
- Sofia, olha aqueles homens chegando!
- Ela levantou os olhos do livro que estava lendo e viu, ao longe na estrada, vários homens que, montados a cavalos, se aproximavam. Aquilo não era normal, por isso, curiosa e um pouco assustada, se levantou, colocou Gustavo atrás de si e ficou olhando. Seu pai, que estava na lavoura, também viu os cavaleiros e caminhou em direção à cerca que separava a casa da estrada e chegou minutos antes dos cavaleiros. Eles se aproximaram e desceram dos cavalos. Entre todos, Sofia olhou para um em especial. Um jovem bonito, elegante e com um lindo sorriso. Assim que desceram dos cavalos, um dos homens, o mais velho de todos, disse:
- Boa tarde, senhor. Estamos com sede e indo para a cidade, será que poderia nos oferecer um copo com água?
- Romeu, o pai de Sofia, sorriu e olhando para ela, disse:
- Sofia, vai buscar água pros homens.
- Sofia, tímida, entrou em casa, pegou uma moringa de barro que estava cheia de água, algumas canecas de alumínio e foi até a cerca, onde seu pai e os cavaleiros estavam. Começou a encher as canecas e a oferecer aos cavaleiros. Quando se aproximou do jovem, seus olhos se encontraram, sentiram o coração bater mais forte. Ele, sorrindo, disse:
- Sofia, seu nome é muito bonito, assim como você.
- Ela, envergonhada, sem saber o que dizer, abaixou os olhos. Os homens terminaram de beber a água, montaram novamente nos cavalos e foram embora. O rapaz, sem tirar os olhos de Sofia, montou no cavalo e afastou-se. Ela não sabia o que fazer ou pensar. Romeu voltou para a lavoura e ela ficou olhando os cavalos se afastarem até que sumissem. Depois, voltou a sentar-se no banquinho, pegou o livro que estava lendo e tentou continuar a leitura, mas não conseguia afastar do pensamento os olhos daquele rapaz.
- Eu me lembro desse dia, Gusmão. Estava voltando da cidade, eu, meu pai e alguns amigos. Também fiquei impressionado quando vi Sofia. Ela era linda! Não sabia que ela havia ficado pensando em mim. Achei que não a tinha impressionado.
- Ficou impressionada, sim, Pedro Henrique. Vocês não sabiam, mas aquele encontro havia sido planejado antes de renascerem. Depois daquele dia, ela não conseguiu mais esquecer o rosto do rapaz e, principalmente, seus olhos. Pensava: quem será ele? Onde será que mora? Por que não consigo me esquecer daqueles olhos?
- Passaram-se três meses. O casamento estava marcado para daí a quatro meses. A casa estava quase pronta e Osmar sorria feliz ao vê-la dessa maneira. Sofia sabia que, embora fosse continuar morando ali, seria feliz com Osmar. De vez em quando, ela se lembrava do rapaz da água, mas logo afastava o pensamento: não adianta ficar pensando nele. Sei que nunca mais vou ver aquele rosto e, principalmente, aqueles olhos. Como ele é bonito...
- Em uma tarde, ela estava no tanque lavando roupa, quando Gustavo veio para junto dela, gritando e gesticulando muito:
- Olha lá, Sofia! Aquele moço está chegando!
- Que moço?
- Aquele para quem você deu água!
- Ela olhou para onde o irmão apontava. Realmente, o rapaz se aproximava. O calor era imenso, ela estava suada e com os cabelos presos. Uma situação que não gostaria que ninguém visse, muito menos ele. Tentou entrar em casa para se esconder, mas não deu tempo. Ele já havia descido do cavalo e estava no portão da casa. Sorrindo, perguntou:
- Olá, Sofia! Está tudo bem com você?
- Ela, trêmula, ficou olhando sem conseguir responder. Ele interpretou aquela reação como se ela não o tivesse reconhecido.
- Também não me recordo desse dia! Realmente, achei que ela não havia me reconhecido e, meio sem graça, perguntei:
- Não está me reconhecendo?
Pois eu, desde que a vi naquele dia, não consegui esquecer você ...
- Eu falei pra ela que o senhor é aquele moço pra quem ela deu água! - disse Gustavo.
- Até seu irmão se lembra de mim, Sofia! Como você pode ter esquecido?
- Foi assim mesmo que aconteceu, Pedro Henrique. Ela continuou calada e com os olhos baixos. Romeu, que estava na lavoura, viu quando você se aproximou e foi ao seu encontro. Quando chegou, disse:
- Boa tarde, moço. Posso saber o que está fazendo por estas bandas?
- Boa tarde. O senhor não está se lembrando de mim?
- Não moço, não estou me lembrando...
- Estive aqui uma vez com meu pai e alguns amigos e o senhor nos ofereceu água.
- Ah... estou me lembrando...
- Ainda bem. Meu nome é Pedro Henrique. Sou filho do Coronel José Antônio.
- O Prefeito?
- Ele mesmo. Compramos o sítio aqui ao lado do seu e outras terras vizinhas. Isso já faz um bom tempo. Eu estava estudando fora e, agora que voltei, vamos construir uma casa para a família passar os fins de semana e transformaremos tudo aqui em uma grande fazenda de gado. Queria saber se o senhor pode nos emprestar água, até que o nosso poço fique pronto.
- Sabia que o compadre Manezinho tinha vendido às terras faz muito tempo, mas não sabia que quem tinha comprado era o Prefeito.
- Quando meu pai comprou, ainda não era Prefeito. Depois daquele dia que passamos por aqui, vi como tudo neste lugar é bonito. Sabia que meu pai tinha estas terras e o convenci a construir a casa.
- Foi isso mesmo que aconteceu! - eu falava, olhando para o pai de Sofia mas muito mais para ela, que parecia me ignorar. Continuei falando:
- A casa vai ser muito grande e bonita. Desenhei a planta e ela já foi aprovada. Já podemos começar. O senhor pode nos dar a água?
- Claro que sim! O meu poço tem muita água.
- Obrigado. Agora preciso ir embora. Vou falar com o engenheiro. Preciso dizer a ele que já podemos começar a construção. Amanhã mesmo, alguns homens virão para começar a limpar o terreno e a perfurar o poço. Obrigado pela água, senhor... desculpe, mas não sei o seu nome.
- Meu nome é Romeu.
- Pois bem, senhor Romeu. Obrigado pela água, garanto que não se arrependerá de nos ajudar.
- Assim dizendo, você montou no cavalo e saiu dando adeus com a mão. Sofia, que o tempo todo ficou estática, sem mover um músculo, acompanhou toda a conversa e com os olhos o seguiu até que desaparecesse. Nadir, que havia se aproximado e que só ouviu o final da conversa, perguntou:
- O que aconteceu, Romeu? Quem é esse moço?
- É o filho do Prefeito, mulher.
- Filho do Prefeito? O que ele quer aqui?
- O compadre Manezinho vendeu as terras pro Prefeito.
- Foi pro Prefeito? Por que ele não contou?
- Não sei mulher, mas o moço disse que naquele tempo o pai dele ainda não era Prefeito. O compadre queria muito ir embora daqui, só disse que tinha vendido às terras.
- O que o moço queria?
- Ele disse que o Prefeito vai fazer uma casa e que eles vão vir no fim de semana e vão criar gado. Já pensou mulher, a gente ser vizinho do Prefeito? Ele queria saber se eu podia dar água pra eles, enquanto o poço não fica pronto.
- Nossa! Deve ser uma casa muito bonita.
- Deve mesmo...
- Você vai dar a água?
- Claro que vou. A gente tem muita e, além do mais, ele é o Prefeito. Agora, vamos voltar pro trabalho.
- Os pais de Sofia voltaram para a roça. Ela, só aí conseguiu respirar com tranqüilidade. Suas pernas ainda tremiam, por isso, entrou em casa e se sentou em uma cadeira. Não estava acreditando que, depois de tanto tempo, ele havia estado lá. Nem no que ele disse, que não a havia esquecido. Não estou acreditando que tudo isso aconteceu. Ele voltou! Disse que não me esqueceu! Será que é verdade mesmo? Ele me olhou de um jeito... não sei o que pensar. Não que eu já tivesse me esquecido dele, mas nunca pensei que um dia ele voltaria. Preciso parar de pensar nele. Vou me casar com o Osmar. É só com isso que tenho de me preocupar. Já está quase tudo pronto.
- No dia seguinte bem cedo, vários homens chegaram e começaram a trabalhar. Depois do almoço, você Pedro Henrique, também chegou e foi para junto da cerca que separava suas terras das dos pais de Sofia. Ela estava na cozinha lavando a louça do almoço, quando ouviu alguém batendo palmas. Saiu para ver de quem se tratava e o encontrou. Notou que você estava mais bonito do que no dia anterior. Sorrindo, disse:
- Boa tarde, como você está, Sofia?
- Ela, com voz trêmula, respondeu:
- Estou bem, mas o que o senhor quer?
- Não me chame de senhor, não sou tão mais velho que você. Já disse que meu nome é Pedro Henrique. Estou aqui por dois motivos: primeiro, queria saber se podia me arrumar uma moringa com água.
- Claro que posso dar a água. Meu pai já autorizou. Qual é o outro motivo?
- Precisava ver você. Não consigo esquecer como me olhou naquele dia em que me deu a caneca com água... podemos conversar?
Pedro Henrique começou a rir, dizendo:
- Parecia que eu estava calmo, mas não era a verdade, Gusmão. Estava encantado com ela e precisava de alguma desculpa para me aproximar. Tentei ser o mais normal possível, mas foi difícil. Tinha medo de que ela descobrisse o meu nervosismo.
- Ela não desconfiou, assim como você também tentava disfarçar. Percebeu que todo o sangue de seu corpo subia para seu rosto. Sabia que ele estava vermelho. Demonstrando uma força que não sentia, respondeu:
- Não tenho nada para falar com o senhor. Espere um pouco que vou pegar a moringa e encher com água do poço.
- Com muito esforço, conseguiu entrar em casa. Seu coração batia forte e, enquanto pegava a moringa, pensava: ele é muito bonito, mas só está querendo brincar. Não posso me deixar envolver. Vou me casar com o Osmar.
Pedro Henrique disse, emocionado:
- Eu não estava querendo brincar, Gusmão, havia me apaixonado assim que a vi!
- Sei disso, mas ela não sabia. Pegou a moringa, saiu e caminhou em direção ao poço. Mesmo antes de chegar lá, viu você que tirava a água do poço, usando para isso, uma manivela onde, na ponta de uma corda, estava amarrado um balde. Quando ela chegou perto do poço, o balde estava quase em cima. Você, calado e olhando em seus olhos, pegou a moringa de suas mãos e a encheu com a água. Sofia tentou desviar os olhos mas não conseguiu. Eles eram como um ímã que a atraía. Você terminou de encher a moringa e sorrindo, disse:
- Obrigado pela água. Vou levar para os homens e depois mando um deles vir devolver a moringa. Até amanhã.
- Ela se desapontou, pois pensou que você ficaria mais um pouco tentando conversar, mas você se afastou e caminhou firme. Quando estava a uns quinze metros distante dela, se voltou e sorrindo, acenou. Foi para junto dos homens, distribuir a água.
Pedro Henrique estava feliz recordando-se daquele tempo que parecia tão distante. Disse:
- Eu não podia ficar ali, Gusmão. Estava nervoso e não sabia o que dizer.
- Ela também estava fingindo. Assim que você saiu, ficou escondida atrás de uma árvore, viu quando você montou no cavalo e se afastou. Embora não quisesse, não conseguia deixar de pensar em você. Quase não conseguiu dormir naquela noite. Estava ansiosa para que o dia amanhecesse, pois sabia que você voltaria e era o que ela mais queria: vê-lo outra vez.
No dia seguinte, levantou cedo e pensou: ontem, quando ele me chegou estava desarrumada, mas hoje vai ser diferente. Vou terminar bem depressa o serviço da casa e, depois do almoço quando ele chegar, vou estar bem bonita...
- Foi o que fez. Cuidou da casa, lavou a roupa e foi para a cozinha preparar o almoço. Sabia que, em poucos minutos, seus pais chegariam para almoçar. Pensou: assim que todos almoçarem e eu arrumar a cozinha, vou tomar um banho e colocar o meu vestido verde. Sei que não é novo, mas é o mais bonito que tenho e bem melhor do que aquele com que eu estava ontem. Sei que aquele moço só está querendo brincar comigo, mas mesmo assim, não quero que me veja desarrumada. Ele é tão lindo. Nossa, o Osmar não pode nem imaginar que eu estou pensando essas coisas!
- Estava assim pensando, quando ouviu o som de batidas de palmas. Foi até a porta da cozinha, olhou para o portão, não havia ninguém. Achou que fosse Gustavo querendo brincar. Estava voltando para a cozinha, quando ouviu uma voz que a fez estremecer:
- Bom dia. Está vindo um cheiro muito bom da sua cozinha. Está preparando o almoço?
- Ela ficou apavorada quando viu você, Pedro Henrique, do outro lado da cerca e bem perto da cozinha, onde ela estava.
- Sim, é verdade Gusmão. Eu voltei, mas fora de hora. Não sabia o que ela sentia por mim. Achei que chegando de repente poderia sentir sua reação.
- Sim, e você tinha razão. Para ela, foi uma surpresa. Não estava preparada para que você a visse. Com a voz trêmula, respondeu:
- Bom dia, estou sim, terminando o almoço. Veio pegar a moringa com água? Um dos homens veio mais cedo e levou. Já terminou?
- Não, ainda tem água na moringa. Vim mais cedo somente para ver você. Não conseguia mais esperar e, como sempre, está muito bonita.
- Ela, entre nervosa e feliz, disse:
- Moço, sou pobre e minha família é humilde, mas isso não dá direito ao senhor de vir com brincadeira!
- Quem está brincando? Não precisa ficar nervosa... desde aquele dia em que me deu a água, não consegui mais me esquecer de você. Só não voltei antes porque tive de ir embora para terminar o ano de faculdade. Mas, agora voltei e quero realmente conhecer você melhor. Se quiser, se sentir algo por mim, posso conversar com seu pai e pedir autorização para podermos começar a namorar.
- Ao ouvir aquilo, ela ficou mais nervosa ainda:
- O senhor está mesmo de brincadeira e eu não tenho tempo para isso! Se não for embora agora mesmo, vou mandar chamar meu pai!
- Por que acha que estou brincando?
- Como um moço igual ao senhor pode se interessar por uma moça igual a mim?
- Uma moça igual a você, como?
- Sou pobre, não tenho instrução, enquanto o senhor é rico, instruído e além de tudo, é filho do Prefeito.
- Nada disso que falou tem valor algum para mim. A única coisa que sei é que, quando a vi naquele dia, senti que você era a mulher que eu queria para viver ao meu lado durante toda a minha vida. Precisa acreditar nisso, Sofia...
- Não pode ser!
- Não pode ser, por quê?
- Isso não vai dar certo. Mesmo que fosse verdade que sente isso por mim, acha que seus pais me aceitariam? Nunca! Eles devem querer uma moça à sua altura, não uma pobretona e ignorante como eu...
- Pobre você é, mas ignorante não. Você conversa muito bem e tenho quase certeza, deve ler muito.
- Leio mesmo, mas não tenho diploma algum.
- Isso é só uma questão de você querer estudar. Quando nos casarmos, poderá freqüentar uma escola ou mesmo ter uma professora que venha em casa lhe dar aula.
- Ela olhou para você, Pedro Henrique, sem acreditar no que estava ouvindo.
Tudo aquilo era o que ela, muitas vezes havia sonhado e desejado, mas sempre soube que era um sonho que nunca poderia se realizar. Ela se julgava muito distante de você e da sua família. Não acreditava, mesmo quando não sabia quem você era, imagine agora, sabendo que era de uma família rica e filho do Prefeito. Começou a chorar.
- Como está me fazendo bem relembrar o passado, Gusmão. Lembro-me muito bem daquele dia e, ao ver que ela estava chorando, dei a volta, fui até o portão, abri o trinco e comecei a entrar no quintal.
- Sim, você não percebeu, mas Romeu e Nadir estavam vindo para o almoço e ao vê-lo entrando em seu quintal e se aproximando de Sofia, Romeu apressou o passo, deixando Nadir para trás.
- Quando você estava se aproximando de Sofia, viu que Romeu chegava, parou. Ele, vendo a filha chorando, perguntou aflito:
- Que está acontecendo aqui, Sofia? E o senhor, o que está fazendo dentro de meu terreiro?
- Bom dia, senhor Romeu. Não está acontecendo nada. Somente estou tentando convencer Sofia a me deixar falar com o senhor, mas parece que ela não quer.
- Não quer, por que, Sofia? Por que está chorando? Ele falou alguma coisa que ofendeu você?
- Ela não conseguia responder. Embora tivesse ficado o tempo todo pensando em você, nunca imaginou que aquilo aconteceria. Como não respondeu, Romeu ficou mais nervoso ainda e gritou:
- Moço! Não sei o que o senhor falou ou fez para minha filha, mas por favor, quer sair do meu terreiro?
- Você, Pedro Henrique, também surpreso com a reação de Sofia, disse:
- Espere, senhor, se ela quiser que eu vá, eu vou, mas preciso que ela mesma diga isso. Sofia, se você não disser alguma coisa e eu for embora agora, nunca mais me verá. Está em suas mãos realizarmos tudo o que conversamos.
- Sofia olhou primeiro para você e depois para o pai, abaixou os olhos e disse:
- Ele estava dizendo que gosta de mim, pai e que quer se casar e pediu pra conversar com o senhor.
- O quê?!
- É isso mesmo, senhor Romeu.
- O senhor deve estar brincando, moço! - Romeu gritou.
- Não estou brincando, não, senhor. Quero mesmo namorar sua filha e me casar com ela. Isso só não acontecerá se ela não quiser.
Nadir e Gustavo aproximaram-se e, calados, ficaram ouvindo a conversa. A mãe de Sofia apertou o braço do marido e disse:
- Espere ai, Romeu. Não fale nada. Parece que o moço está sendo sincero. Sofia é quem tem de decidir.
- Está doida, mulher! Não vê que esse moço só está querendo brincar com a gente e com a nossa filha?
- Eu, naquele dia, fiquei desnorteado, Gusmão. Não entendia a causa de tanto nervosismo. Estava sendo sincero. Minhas intenções eram as melhores possíveis. Lembro-me de que disse nervoso:
- Brincando por que, senhor Romeu? Gosto mesmo da sua filha e quero me casar com ela...
- Porque é um moço rico e acha que pode brincar com uma moça de família pobre. A gente é pobre, mas é honesta. Sofia, você disse pro moço que está noiva e quase se casando?
- Noiva? Quase casando?
- Você, Pedro Henrique, perguntou com a voz trêmula.
- Estou me lembrando, Gusmão, fiquei surpreso pois só naquele momento fiquei sabendo que ela estava compromissada. Ela respondeu para seu pai com a voz trêmula.
- Eu não disse, pai. Ele não deu tempo.
- É isso mesmo, moço. Ela está noiva e vai se casar daqui a três meses.
- Você, Pedro Henrique, parecendo ter levado um soco no rosto, empalideceu e ficou alguns segundos sem nada dizer. Depois disse:
- Preciso pedir desculpas ao senhor e a você, Sofia. Realmente não dei tempo para que me contasse. Até mais.
- Você se afastou lentamente, parecendo ter o mundo em suas costas.
- Fiquei abatido porque nunca passou pelo meu pensamento que ela tivesse um namorado. Assim que a vi, me apaixonei e quis que fosse minha para sempre.
- Sei disso, Pedro Henrique. Sofia o acompanhou, com os olhos. Seu coração batia forte. Ela estava vendo a oportunidade de sua vida, aquilo com que sempre havia sonhado, escapar de suas mãos. Tentou dizer alguma coisa, mas não conseguiu. Chorando, entrou em casa. Seu pai e sua mãe, nervosos, entraram atrás dela. Ela chorava muito. Seu pai, pegando-a pelo braço, perguntou?
- Que aconteceu lá fora, Sofia? O que você fez para que aquele moço falasse daquela maneira?
- Não fiz nada, pai!
- Como não? Você acha que ele ia querer falar comigo se você não tivesse feito alguma coisa para ele pensar que podia fazer isso?
- Não sei o que ele pensou, pai! Não fiz nada!
- Não estou gostando nada disso, Sofia! Você é uma moça séria e não pode se esquecer de que está de casamento marcado.
- Sei disso...
Romeu saiu e Nadir perguntou:
- Sofia, o que aconteceu? Vi um brilho diferente nos seus olhos.
- Não aconteceu nada, mãe! Que coisa! Por que está me perguntando isso?
- Parece que você gostou de ouvir o moço dizendo aquelas coisas.
- Não gostei e não sei por que ele disse aquilo.
- Está bem. Não vou insistir. Você é quem sabe da sua vida, mas como disse o seu pai, não pode se esquecer de que está com o casamento marcado.
- Não vou me esquecer, mãe.
Assim dizendo, saiu e foi se sentar naquele mesmo banquinho. Já sentada, começou a pensar: Sei que estou com o casamento marcado, mas será que é isso mesmo o que quero? Ele, além de muito bonito, é o filho do Prefeito e pode me dar tudo aquilo com que sempre sonhei. Se me casar com o Osmar, pode ser que algum dia consiga ter alguma coisa. Pode ser... se o plano dele der certo, mas... e se não der? Vou continuar vivendo aqui, nessa pobreza, e em pouco tempo vou estar velha, cheia de filhos e todos eles, como eu, continuarão vivendo nesta miséria... será que é isso que quero pra minha vida?
- Olhou para frente e viu Osmar que, sorrindo, se aproximava. Ele estava com a roupa limpa e com os cabelos bem penteados. Ela, olhando para ele, pensou: Osmar é um bonito rapaz e sei que gosto muito dele. Mas... seria tão bom se aquele moço estivesse falando a verdade e que realmente gostasse de mim. Eu poderia me casar com ele e ter tudo com o que sempre sonhei.
- Nunca imaginei que ela havia pensado isso, Gusmão. Ela parecia tão criança, sem saber de nada dessa vida...
- Ela não sabia muito da vida, Pedro Henrique, mas ela sabia que se casasse com você, teria tudo.
Pedro Henrique engoliu seco, sem conseguir esconder seu espanto e desilusão. Gusmão continuou:
- Osmar se aproximou e, beijando os lábios de Sofia, perguntou admirado:
- Você ainda não está pronta, Sofia? Esqueceu-se da festa?
- Ela, só naquele momento se lembrou da festa de aniversário de Ataíde, rapaz que morava em um dos sítios da redondeza. Sem graça, respondeu:
- Esqueci, Osmar. Mas não se preocupe, em poucos minutos vou estar pronta.
- Como esqueceu, Sofia? Você sabe que o churrasco vai ser bom e que vai ter baile. A gente vai poder dançar muito!
- Precisa me desculpar Osmar, me esqueci mesmo, mas já vou entrar e volto bem depressa.
- Está bem, enquanto isso vou procurar seu pai e perguntar se ele não pode ir lá na nossa casa. Já está pronta, só falta pintar. Acho que ele vai querer me ajudar a fazer isso. Meus irmãos me ajudaram na construção e disseram que a pintura vai ficar por minha conta.
- Ela ficou calada, apenas sorriu e entrou. Osmar viu Romeu que estava a alguns passos dali, dando comida para os porcos. Foi na direção dele. Sofia entrou. Poucos minutos depois, saiu. Estava com seu vestido verde e com os cabelos soltos. Como sempre, muito bonita. Foi até Osmar, que continuava ao lado de Romeu. Assim que se aproximou, disse:
- Estou pronta, Osmar. Já podemos ir.
- Osmar olhou para ela da cabeça aos pés e não conseguiu deixar de falar:
- Você está linda, Sofia. É mesmo a moça mais bonita desta redondeza!
- Ela sorriu, olhou para o pai que estava com o rosto crispado. Sabia muito bem o que ele estava pensando, mas ficou calada. Osmar, não cabendo em si de tanta felicidade, disse:
- A gente já está indo, seu Romeu mas não precisa se preocupar, a gente não vai voltar tarde. Só vamos comer bastante churrasco e dançar um pouco.
- Está bem, meu filho. Sei que posso confiar em você. Só não sei dizer se posso pensar o mesmo da Sofia...
- Por que está dizendo isso, seu Romeu? O que ela fez? O que está acontecendo?
- Sofia pegou Osmar pelo braço e sorrindo, respondeu:
- Não está acontecendo nada, Osmar. Sabe como meu pai é implicante. Vamos embora. Estou louca de vontade de comer churrasco e de dançar.
- Ele, sem imaginar o que havia acontecido, acompanhou-a. Romeu ficou olhando os dois se afastarem e pensou:
Tomara que essa menina não faça uma bobagem com a sua vida... O Osmar é menino muito bom e não merece sofrer, muito menos ser enganado...
- Nunca imaginei que isso estivesse acontecendo, Gusmão.
- Mas aconteceu, Pedro Henrique. Osmar e Sofia caminhando, foram para a festa. Comeram, dançaram e se divertiram muito. Ela perguntou:
- Osmar, você quer mesmo se casar agora?
- Claro que sim, Sofia. É o que mais desejo! Mas, por que está me perguntando isso?
- Não sei, estou com medo...
- Medo do quê, Sofia?
- Acho que a gente é muito criança, não sei se estou preparada pra me casar...
- O que é isso, Sofia? A gente vai se casar e ficar junto pro resto da vida! Já pensou? A gente vai poder dormir e acordar junto todos os dias e, logo, vamos ter nossos filhos! Sei que a gente vai ser feliz!
- Não sei, Osmar... não sei...
- Deixa disso, você está preocupada, sei bem com o quê. Mas não precisa. Sei que, quando eu for para a capital, vou conseguir vender toda a nossa mercadoria e vou ficar rico. Tenho certeza disso, Sofia!
- Ela olhou para ele e tentou adivinhar o seu futuro. Não conseguia deixar de pensar em você, Pedro Henrique, ele além de ser muito bonito, tem um sorriso lindo e vai poder me dar tudo. Se me casar com Osmar, talvez um dia, ele consiga me tirar deste lugar e me dar algum conforto, mas nunca será o que o filho do Prefeito pode me dar. O que Osmar me oferece parece ser muito bonito, mas está muito distante e por enquanto, não passa de um sonho. Ao contrário do filho do Prefeito, que pode me dar tudo, agora, nesse momento.
Pedro Henrique ouvia o que Gusmão dizia. Relembrava-se daquele tempo e sentiu-se mal ao perceber que Sofia havia se casado com ele somente por interesse. Gusmão percebeu que ele estava abatido e triste. Perguntou:
- Se quiser, posso parar de falar, Pedro Henrique. Parece que essas revelações não estão fazendo bem a você...
- Tem razão, Gusmão. Estou surpreso e não entendo como fui enganado durante tanto tempo, mas precisa continuar relembrando para que Sofia também relembre. Essa, agora, é a nossa missão.
- Tem certeza? Quer mesmo que eu continue?
- Sim, Gusmão. Se eu tivesse descoberto tudo isso quando estava na Terra, talvez não entendesse e me revoltasse, mas hoje, deste lado, aprendi muito e sei que tudo sempre é como deve ser. Que todos renascemos para tentar nos aprimorar sempre mais e que esse aprimoramento é muito difícil e que nem todos conseguem. Sofia vivia uma vida muito difícil. Era justo tentar mudá-la.
- Ainda bem que pensa assim. Tem razão, nossa missão é fazer com que Sofia se encontre e possa nos acompanhar. Vou continuar. A festa terminou e eles iniciaram a caminhada de volta. Após o diálogo entre Osmar e Sofia, esta se calou. Enquanto caminhavam, só Osmar falava. Quando chegaram a casa, Sofia com um beijo se despediu dele e entrou. Romeu já estava deitado. Nadir estava passando roupa e, assim que a viu, perguntou:
- Como foi à festa, Sofia?
- Foi muito boa, mãe. Tinha bastante carne e a gente dançou muito.
- Que bom, minha filha. Mas, parece que você não está feliz. Que aconteceu?
- Nada, mãe. Só estou pensando se quero me casar mesmo. A senhora não acha que sou muito nova e que deveria esperar mais um pouco?
- Sempre achei isso, mas você não quis me ouvir. Você é muito nova e bonita. Pode esperar mais um pouco de tempo. Casando-se agora, logo vai estar cheia de filhos e essa juventude vai acabar bem depressa, assim como aconteceu comigo. Além do mais, percebi como você ficou quando aquele moço disse aquelas coisas. Você gostou dele, não foi?
- Gostei, mãe, mas sei que ele só está querendo brincar...
- Será que é isso mesmo, Sofia? E se ele estivesse dizendo a verdade e se quisesse mesmo se casar?
- Não pode ser, mãe. Ele, além de muito bonito, é um moço rico e pode ter a mulher que quiser. Não ia escolher uma moça como eu...
- Por quê? Você também é muito bonita. Não é rica, mas é inteligente. Sempre leu muito, por isso sabe conversar bem. Não sei, não, mas me pareceu que ele estava falando a verdade.
Se ele só quisesse brincar, não tinha falado daquele jeito com seu pai. Acho que ele estava interessado mesmo ...
- Será, mãe?
- Não sei, mas de uma coisa tenho certeza, o que tiver de ser, será. A gente quando nasce, já traz um destino e ninguém pode mudar.
- Não sei não, mãe. Não quero ficar pensando nessas coisas. Embora saiba que se fosse verdade, eu poderia ter tudo àquilo com que sempre sonhei. Poder morar na cidade, freqüentar cabeleireiro, ir a qualquer loja e comprar a roupa que quiser. Já pensou, mãe, como eu ia ser feliz?
- Ia mesmo, filha. Ia ser muito bom...
- Também acho, mas sei que não passa de um sonho. Um moço como aquele só está querendo brincar.
- Sofia beijou a mãe na testa e foi se deitar. Já na cama não conseguia se esquecer de você, Pedro Henrique e de como você era bonito. Depois de algum tempo, adormeceu.
- Estou surpreso com tudo o que nos contou, Gusmão.
- Sei disso e não era para menos. Ela sempre foi determinada e soube fazer as coisas, como está fazendo agora.
- Tomara que desta vez consigamos fazer com que desista.
- Tomara, Matilde... tomara...
- Gusmão, sabe que preciso me preparar para a palestra que, todos os dias, dou para os recém-chegados. Preciso ir.
- Está certo, Matilde. Pode ir. Eu, Maria Rita e Pedro Henrique vamos continuar ao lado de Sofia.
Matilde, sorrindo e acenando com a mão, se despediu.

A CAMINHO DO MAL

Sofia, ainda deitada na cama, estava inquieta. Levantou-se e balançou a cabeça na tentativa de afastar os pensamentos. Irritada, pensou: por que isso agora? Por que relembrar o passado? Onde está Stela que não chega? Não quero ficar relembrando, isso não importa agora! Preciso me concentrar naquilo que decidi fazer! Aquele homem vai fazer um trabalho e sei que vou conseguir separar aquela mulher do meu filho! Ele é muito bom e não merece ficar casado com ela! Ela não presta e sua família também não! Ficou andando pelo quarto. Embora não quisesse, não conseguia deixar de relembrar: quando conheci o Pedro Henrique, percebi que minha vida poderia mudar. Ele tinha tudo para me fazer feliz. Gostava de Osmar. Eu o conhecia desde criança, mas sabia que ele continuaria pobre e viveria naquela pobreza com a qual, por mais que eu quisesse, não conseguia me acostumar. Não queria isso para o resto da minha vida. Eu não podia me arriscar! Não tinha certeza se Pedro Henrique estava dizendo a verdade ou só querendo brincar, por isso foi até aquele lugar.
- Aonde ela foi, Gusmão? O que ela fez?
Pedro Henrique perguntou nervoso. Gusmão ia responder, mas o telefone tocou e Sofia atendeu.
- Alô! É você, Stela?
- Claro que sou eu, dona Sofia. Quem lhe telefonaria a essa hora da manhã?
- Não vou ficar braba com você, porque estou muito nervosa. Já está vindo?
- Sim, terminei de arrumar as crianças, vou levá-las para a escola e depois vou para aí. Dentro de mais ou menos vinte minutos estarei chegando.
- Até que enfim! Estou cansada de esperar!
- A senhora está ansiosa. Fique calma, estou chegando.
- Está bem, vou esperar você lá no jardim.
Desligou o telefone. Pegou sua bolsa e saiu do quarto. Desceu a escada, entrou na sala, olhou tudo e para a fotografia de Pedro Henrique, sorriu e saiu. No jardim, sentou-se em um banco, sob uma árvore. Ficou olhando à sua volta e pensando: depois de tanto tempo, ainda me admiro com a beleza desta casa. Realmente ela é linda! Às vezes fico pensando em tudo o que fiz para conseguir melhorar de vida. Embora tenha sonhado muito e desejado, na realidade nunca pensei que conseguiria tanto. Esta casa é muito mais do que sonhei um dia... Ficou ali por um tempo que, para ela pareceu uma eternidade. Pedro Henrique, nervoso, perguntou:
- Ela vai mesmo fazer o que planejou, Gusmão? O tempo todo que estamos aqui fazendo com que se relembrasse de nada adiantou? Precisamos impedir!
- Sei que está aflito, Pedro Henrique, pois sabe que com essa atitude, ela está se envolvendo com as forças do mal. Mas, infelizmente, nada poderemos fazer. Estamos aqui fazendo com que ela relembre, na tentativa de que mude de idéia. Nada mais podemos fazer além disso. Ela tem seu livre-arbítrio e não temos como interferir nele.
- Não consigo me conformar com isso, Gusmão! Deveria existir uma maneira de que coisas como essa fossem impedidas. Sofia está dominada pelo ódio que sente por Anita. Eu, até hoje, não entendi o motivo. Ela é uma boa moça, estudada, sua família tem boa situação financeira e é muito respeitada e, o mais importante, ela e Ricardo se amam. Se não fosse por Sofia, seriam completamente felizes.
- Não fique aflito, Pedro Henrique, tudo sempre é como tem de ser. Sofia precisa entender por si só e mudar. Tudo o que puder ser feito para a ajudarmos, vamos fazer. Enquanto Stela não chega, vamos fazer com que relembre mais um pouco. Quem sabe, assim, mudará de idéia, é tudo o que podemos fazer.
Maria Rita abraçou o filho, dizendo:
- Não fique assim, meu filho! Assim como você, também estou surpresa. Convivi durante tanto tempo com Sofia e nunca imaginei que ela tivesse dentro de si pensamentos de ódio e de destruição. Vamos acreditar no que Gusmão está dizendo. Sabe que, se houver alguma maneira de impedir que ela faça o que está pretendendo, ele fará.
Gusmão sorriu, estendeu a mão em direção a Sofia e começou a falar. Enquanto ele falava, as imagens iam se formando na cabeça de Sofia.
- No dia seguinte, Sofia acordou, esticou-se na cama e ficou pensando em você, Pedro Henrique. E seu coração começou a bater mais forte ao pensar: seria tão bom se ele estivesse dizendo a verdade... se me casasse com ele, poderia ter tudo e, tenho certeza, seria muito feliz... mas tudo isso não passa de um sonho. Vou mesmo me casar com Osmar e continuarei vivendo aqui, neste lugar. Nasci pobre e sei que vou morrer assim... mas por que não aceito essa minha vida? Tantas mulheres, assim como minha mãe, aceitam e vivem bem... não sei, mas agora não dá para ficar pensando. Preciso me levantar e começar o meu dia, que vai ser como todos os outros...
- Levantou-se e foi para a cozinha, onde como todos os dias, sua mãe já estava preparando o café. Olhou para a mãe junto ao fogão e, tristemente pensou: desde que me lembro, sempre foi assim. Minha mãe acorda antes de todos nós e prepara o café. Meu pai, eu e Gustavo acordamos depois. Todos tomam o café. Minha mãe e meu pai vão para a roça e Gustavo para a escola e eu tenho de cuidar da casa. Minha mãe disse que não gosta de cuidar da casa e que prefere que eu fique aqui. Para ser sincera, também prefiro. Nossa vida foi sempre assim e sei que vai continuar igual... nada vai mudar... a não ser que eu me case com ele... mas isso é impossível...
- Bom dia, mãe.
- Bom dia, Sofia. Acordou sozinha? Não precisei chamar você!
- Acordei, mãe.
- Está preocupada com alguma coisa?
- Não... não estou. Não sei por que acordei cedo. Dormi muito bem. Foi bom, porque tenho muito trabalho. Preciso cuidar da casa, lavar roupa e fazer a comida.
- Sei que não é fácil, mas infelizmente, tem de ser assim. Sabe que preciso ir pra roça ajudar seu pai e que você precisa cuidar do Gustavo e da casa. Precisa levá-lo para a escola.
- Não faz mal, mãe. Já estou acostumada. Só fico triste por não poder ter continuado os estudos. Acho que, se tivesse continuado, talvez pudesse ter uma vida diferente.
- Tem razão, Sofia. Mas você já sabe ler. Ele precisa continuar indo à escola nem que seja apenas para aprender a escrever o nome. Depois, quando crescer mais um pouco, vai junto com a gente pra roça.
- Sei disso, mas não acho certo, mãe. Acho que todas as crianças deviam ter o direito de estudar e ser alguém na vida.
- Também já pensei muitas vezes nisso. Será que se eu tivesse estudado a minha vida seria diferente? Mas, de qualquer maneira, não me arrependo por ter me casado com seu pai. Apesar de tudo, sou muito feliz, pois tenho vocês dois. O que me deixa triste é pensar que você e o Gustavo, um dia, vão embora e eu vou ficar sozinha, mas essa é a vida. O importante é que vocês sejam muito felizes. A minha vida já passou, a de vocês está apenas começando.
- Comigo a senhora não precisa se preocupar. Vou me casar com o Osmar e vou continuar vivendo aqui do lado. A gente vai poder se ver todos os dias. O Osmar está com muitos planos e sei que vou ter de ajudá-lo na roça.
- Sei que não era isso o que você queria pra sua vida, Sofia...
- Não era mãe, mas eu não tenho escolha. A senhora sabe que já estou na hora de me casar e, se demorar muito, vou ficar solteirona e isso, pelo amor de Deus, não quero!
- Nadir sorriu. Sabia que Sofia tinha razão, uma moça que chegasse aos vinte anos sem se casar dificilmente encontraria um homem que se interessasse por ela.
- Tem razão, mas agora o café já está pronto, pode acordar seu irmão. Seu pai já deve estar acordado e só esperando a gente chamar.
- Sofia foi para o quarto, onde dormia com o irmão. Acordou Gustavo. Ele não queria se levantar mas Sofia, carinhosamente, disse:
- Sei que ainda é muito cedo e que você gostaria de continuar dormindo, mas sabe que a escola fica longe...
- Eu não preciso estudar, Sofia...
- Precisa sim, Gustavo. Você vai estudar, ter um diploma e quando ficar moço, vai poder ir pra capital e arrumar um bom emprego. Vai se casar com uma moça de lá e vai ser muito feliz...
- Quem disse que eu quero ir pra capital? Quero ficar aqui, junto com você...
- Isso você quer hoje, porque é muito pequeno, mas quando crescer, vai pensar diferente.
- Não vou não, Sofia...
- Vai sim, mas agora levanta. Está passando da hora.
- Enquanto ela trocava a roupa de Gustavo, falava:
- Eu também achava difícil me levantar e ir pra escola, Gustavo. Tinha que caminhar muito, mas me lembro também de como fiquei feliz quando consegui juntar as primeiras letras, depois comecei a ler. Foi por causa dos livros que comecei a conhecer outros lugares e outras pessoas que tinham uma vida diferente da minha. Saber ler foi muito importante na minha vida...
- Terminou de ajudar o menino a se vestir, depois foram para a cozinha. Nadir já estava com a mesa colocada. O pão e o leite eram entregues por um carroceiro que chegava todos os dias bem cedo. Ele vinha da cidade e atendia todas as moradias que havia por ali. Depois voltava. Muitas vezes, no caminho, encontrava algumas crianças que iam para a escola. Quando isso acontecia, ele colocava algumas delas sobre a carroça e as levava. Na carroça não cabiam todos, por isso a disputa era grande. Depois de tomarem o café, Gustavo saiu. Logo em seguida, Nadir e Romeu também saíram. Sofia ficou sozinha. Olhou para um monte de roupa suja, sabia que precisava lavar logo cedo, pois não tinham muitas. Se lavasse cedo, à tarde, quando todos voltassem, elas já estariam secas e poderiam trocar. Com as roupas nas mãos, saiu para o quintal e olhou para o lado, onde você, Pedro Henrique, ia construir a casa. Viu que vários homens chegavam montados em cavalos. De onde estava, podia ver os cavalos mas não quem estava sobre eles. Pela cor, reconheceu o seu cavalo. Sabia que você estava lá. Viu quando os homens começaram a descer dos cavalos. Entre eles, sabia que você estava também. Seu coração voltou a bater mais forte, pensou: se ele estivesse dizendo a verdade, deve ter ficado muito brabo quando meu pai disse que eu estava com o casamento marcado... mas, se estivesse mentindo, foi muito bom.
- Sorriu e continuou andando em direção ao tanque. Não queria, mas seus olhos teimavam em ficar olhando para onde os homens já estavam trabalhando: ele está lá... por que não consigo me esquecer daqueles olhos?
- Naquele dia, eu também estava olhando em direção à sua casa Gusmão, mas assim como ela, não conseguia vê-la. Estava triste por saber que ela tinha compromisso e decidi que não voltaria a vê-la.
- Nem sempre conseguimos levar a sério as nossas decisões, não é?
Pedro Henrique sorriu e pediu:
- Tem razão, mas por favor, continue contando o que aconteceu naquele dia.
- Vou continuar, Pedro Henrique. Sofia terminou de lavar a roupa. Estava pendurando no varal, quando viu que um cavaleiro se aproximava. Ele tinha sobre o cavalo duas latas iguais àquelas em que o leiteiro trazia leite. Ela ficou olhando, até que ele chegasse perto da cerca que dividia as terras. Assim que chegou, desceu do cavalo, dizendo:
- Moça, o patrão me mandou vir até aqui e ver se a moça me deixa encher essas duas latas de água pra gente beber.
- Ele não vem pegar a água?
- Acho que não, moça.
- Ela, desapontada, disse:
- Está bem, pode ir até o poço e pegar a água.
- O homem desceu do cavalo e foi até o poço. Com a ajuda de uma corda e de um balde, trouxe a água do poço e colocou-as nas latas, depois as amarrou no cavalo e foi embora. Sofia ficou olhando até que ele desaparecesse. Depois, voltou a pendurar as roupas. Estava preocupada, pois sentia que o havia perdido para sempre e, junto com você, a vida boa que poderia ter. Continuou seus afazeres, mas não conseguiu se conformar por ter perdido você, Pedro Henrique. Pensou: não posso mais ficar pensando nele. Vou me casar com Osmar e continuar nesta vida de sempre.
- Os dias passaram. Você nunca mais voltou e ela, embora não quisesse, não conseguia se esquecer do seu sorriso e de como seria feliz se casasse com você.
- Eu também não conseguia esquecê-la, Gusmão. A vontade que tinha era de ir até sua casa e ficava procurando um motivo qualquer, mas sabia que ela ia se casar e portanto, não havia esperança para aquele amor que eu sentia.
- Sim, era isso que você pensava. A princípio, ela também pensava assim, mas conforme os dias foram passando, o desespero tomou conta dela e resolveu que mudaria aquela situação.
Gusmão ia continuar falando, mas notaram que Sofia se levantara e olhava para o portão de entrada. Viram o carro de Stela que se aproximava. Stela estacionou o carro e Sofia eufórica, disse:
- Até que enfim, Stela! Pensei que não ia chegar nunca!
- A senhora é que está muito ansiosa dona Sofia. Estou no horário.
- Está bem, vamos embora. Preciso resolver logo esse assunto.
- Tem certeza mesmo, que quer fazer isso? Não acha que deveria pensar melhor?
- Tenho toda certeza do mundo, Stela! Sei que esse homem vai conseguir afastar aquela mulher do meu filho!
- Como pode ter tanta certeza?
- Não sei, mas tenho. Agora vamos deixar de conversa, precisamos ir.
- Está bem, se é isso que deseja, só posso acompanhá-la. Entre no carro.
Sofia entrou no carro e partiram, acompanhadas por Gusmão e os outros. Durante o caminho, foram conversando sobre outras coisas. Stela não achava que aquilo era certo, mas sabia que não podia contrariar Sofia. Enquanto estiver preocupada com a Anita, não se preocupará comigo e com o meu casamento. Ainda bem que ela gosta de mim... aconteça o que acontecer nessa visita, não tenho culpa de nada. Ela é a única responsável, estou sendo apenas a motorista.
- Após quase uma hora de viagem, chegaram à cidade onde Sofia sabia que morava aquele homem. Enquanto ia mostrando o caminho para Stela, pensava: embora tenha se passado muito tempo, não me esqueço desse caminho. Parece que nada mudou. Naquele dia em que estive aqui, ele me ajudou e sei que vai me ajudar novamente. Ele é muito bom no que faz.
Stela estranhou ao ver que Sofia indicava o caminho como se já conhecesse o lugar. Perguntou:
- Dona Sofia, a senhora já esteve aqui algum dia?
Sofia, assustada por ter sido descoberta, respondeu quase gritando:
- Claro que não, Stela! De onde tirou essa idéia?
- A senhora está me indicando o caminho, parece que já o conhece.
- A pessoa que me falou a respeito desse homem me deu o endereço e o modo como chegar lá. Estou apenas seguindo o que ela disse!
- Está bem, não precisa ficar nervosa, só estranhei...
- Não estou nervosa, Stela! Só estou querendo resolver logo esse problema.
Stela sorriu e continuou dirigindo. Pedro Henrique, ao acompanhar aquela conversa, perguntou, assustado:
- Ela conhecia esse homem, Gusmão? Ela já esteve aqui?
- Não, não conhecia, mas sabia como funcionava.
- Como ela sabia?
- Ela já esteve em um lugar parecido com este.
- Quando? Nunca soube disso! Eu sempre soube o que ela fez, nunca saiu sozinha! Se tivesse ido a um lugar distante como este, eu saberia!
- Ela esteve antes de se casarem.
- Antes? Quando?
- Agora não vai dar para eu contar, pois estamos quase chegando. Precisamos, mais uma vez, tentar fazer com que ela mude de idéia. Teremos, mais tarde, muito tempo para conversarmos. Agora, concentre-se somente em tentar impedi-la. Vamos fazer uma oração, pois é a única coisa que podemos fazer; entregar Sofia nas mãos de Deus. Só ele saberá o que fazer. Todos se concentraram na tentativa de impedir Sofia.
Stela dirigia e seguia as orientações de Sofia que, nervosa, continuava a ensinar o caminho. De repente, Stela percebeu que o carro puxava para um lado. Assustada, parou o carro e disse:
- Dona Sofia! Acho que furou um pneu.
- Como isso foi acontecer, Stela?
- Não sei, pode ter sido algum prego. Esta estrada não é asfaltada e parece que ninguém passa por aqui. Vamos descer para ver.
Desceram do carro, olharam para os pneus e viram que o da frente, do lado do motorista, estava no chão. Sofia ficou mais nervosa ainda e perguntou:
- O que vamos fazer, Stela? Você sabe trocar pneu?
- Não, dona Sofia. Precisamos esperar que alguém passe por aqui.
- Assim, vamos nos atrasar!
Gusmão estendeu suas mãos em direção a Stela, falou em voz alta e ela repetiu:
- Acho que não tem importância. O homem deve estar lá a qualquer hora, mas será que isso não aconteceu para que a senhora pensasse mais um pouco e resolvesse que não deve fazer isso?
- Está louca? Claro que não é nada disso! Foi apenas um pneu que furou!
- Está bem, não precisa ficar nervosa. Se a senhora acha que deve fazer, está bem. Alguém deve passar logo por aqui. Vamos nos sentar no carro e esperar.
Sentaram-se no carro e, por estar muito calor, ficaram com as portas abertas. Pedro Henrique perguntou, confuso:
- Gusmão, você fez com que Stela falasse o que queria?
Gusmão sorriu e respondeu:
- Não pensei que fosse ficar confuso, Pedro Henrique. Fazemos isso muitas vezes. Quando tentamos influir o pensamento e não conseguimos, é preciso que alguém fale e, como não temos som na voz para que o encarnado possa ouvir, usamos desse expediente e quase sempre dá certo. Você nunca tinha visto?
- Não. É a primeira vez. Como consegue fazer isso?
- Sempre que é preciso, usamos a força do pensamento e da oração. Quando alguém está em perigo ou próximo de cometer um erro grave, fazemos tudo o que for possível para que isso seja evitado.
- Nunca pensei que isso pudesse se feito.
- Você e quase a maioria dos encarnados não imaginam o quanto o plano espiritual trabalha para que possam levar adiante e com sucesso a missão que escolheram.
- Está dizendo que sempre acontece?
- Sim, não só quando existe um perigo, mas também, quando o encarnado precisa receber algum recado para que possa seguir o seu caminho e assim, cumprir sua missão. Nesses casos, um outro encarnado é usado para que, através do plano espiritual, esse recado seja dado. Os encarnados não sabem, alguns nem imaginam que nunca estão sós. Haverá sempre ao seu lado um espírito amigo, tentando ajudá-lo.
- Sofia estava precisando receber um recado e foi por isso que fez com que Stela falasse?
- Sim, nesse momento Sofia está prestes a cometer novamente o mesmo engano.
Ninguém melhor do que Stela, de quem ela gosta e em quem confia, para que esse recado seja transmitido.
- Mesmo engano? Por que está dizendo isso, Gusmão? Qual foi o engano que ela cometeu? Você disse que ela foi a um lugar como esse a que está querendo ir.
- Sim, Pedro Henrique, ela foi, só que naquela ocasião, conversou com uma senhora.
- O que ela queria indo a um lugar assim?
Gusmão ia responder mas percebeu que Sofia saía do carro, dizendo:
- Stela, estou ficando cada vez mais nervosa! Será que não vai passar ninguém por aqui? Esta estrada é deserta!
Gusmão novamente voltou suas mãos na direção de Stela, que disse:
- Dona Sofia, não consigo parar de pensar, será que isso não aconteceu para que a senhora pensasse um pouco melhor e não fizesse o que está pretendendo?
- Por que está dizendo isso, Stela?
- Não sei, mas sinto que não é certo. Anita e Ricardo se gostam, acho que, à maneira deles são felizes. Não sei se esse homem pode mesmo separá-los, mas por que não deixamos que seja feita a vontade de Deus? Acho que uma separação só causará sofrimento para eles.
- O que está dizendo, Stela? Acha mesmo que Ricardo gosta daquela mulher?
- Acho que sim, dona Sofia...
- Pois está errada! Ele só está com ela por causa de macumba!
- Como pode dizer isso? É apenas uma desconfiança. A senhora não pode ter certeza. Nunca soube que Anita freqüentasse um lugar como esse; ao contrário, ela é muito católica. Ela e toda a família.
- Você é mesmo muito ingênua, Stela. Acha que alguém que freqüenta um lugar como esse vai proclamar para o mundo? Não, Stela, não vai! Essas coisas são feitas no maior sigilo possível. Esse negócio de ser muito católica é só um disfarce para que ninguém desconfie! Mas a mim, ela não engana! Sei que fez macumba para agarrar o meu filho!
Gusmão e os outros ouviam o que Sofia falava. Pedro Henrique, surpreso com o que ouvia, disse:
- Gusmão, a cada momento que passa mais me admiro e fico confuso ao ouvir Sofia falar. Estivemos casados há tanto tempo e não a conhecia. Nunca pensei que fosse capaz de sentir tanto ódio e rancor.
- Sei disso, Pedro Henrique. Como você mesmo disse, ela sempre soube o que queria e sempre foi determinada. Ela conseguiu tudo com o que sonhou, mesmo que para isso tenha usado de meios não recomendáveis.
- Estou vendo. Assim como Stela, também estou confuso com a maneira como ela fala. Como pode ter tanta certeza de que Anita fez macumba?
Gusmão ia responder, mas com a ponta dos dedos, apontou para Sofia que começava a caminhar, dizendo:
- Stela, não consigo mais ficar parada. Vou até aquela curva ver se tem alguém se aproximando. Daqui onde estamos paradas, não dá para ver.
- Não dá para ver, mas se alguém estiver vindo pela estrada, terá de passar por aqui. Não estou com vontade de andar, dona Sofia. Prefiro ficar aqui sentada.
Sofia irritada, não respondeu e começou a andar. Sua cabeça fervilhava. Nervosa, pensou: Ela não sabe, mas tenho certeza de que Anita fez macumba! Se não tivesse feito, jamais teria se casado com Ricardo! Continuou andando. Gusmão e os outros acompanhavam seus passos. Uma cena começou a se formar em sua mente. Estava novamente em sua casa, no dia em que, embora estivesse esperando, Pedro Henrique não veio. Lembrou-se de como ficou frustrada e irritada. Gusmão disse:
- Naquele dia em que você não foi Pedro Henrique, ela percebeu que o havia perdido e, junto com você, todos os seus sonhos de riqueza e felicidade. Irritada, pensou: ele não vai voltar! Meu pai não devia ter dito que vou me casar! Nem sei se isso vai acontecer! Gosto do Osmar, mas não quero me casar com ele, prefiro me casar com esse moço, que pode me dar tudo. Preciso fazer alguma coisa para que ele volte, mas o quê?
Gusmão continuou falando:
- Ela olhou para o lado em que sua casa estava sendo construída. Sabia que você estava lá, pois podia ver o seu cavalo, mas sabia também que você não viria mais. Sabia que o havia perdido. A semana se passou e você não voltou. Ela, a cada dia que passava ficava mais nervosa e com a certeza de que estava tudo perdido. Depois de quinze dias sem que você aparecesse, ela desesperada, pensou: ele não vai voltar. Preciso fazer alguma coisa. Não posso ir até lá, mas já ouvi falar daquela mulher que mora lá no começo da estrada. As pessoas falam que ela consegue fazer muita coisa. Dizem que ela, com ervas, cura muitas doenças e faz até marido voltar para casa. Vou até lá, para ver se o filho do prefeito casa comigo, de verdade...
- Ela pensou isso, Gusmão?
- Não só pensou, ela foi Pedro Henrique. No domingo, como sempre fazia, foi com o pai para a feira, onde vendiam as verduras e frutas que plantavam. Quando chegou lá, inventou uma desculpa para Romeu e foi até a casa a casa de Magali, uma amiga conhecida desde o tempo da escola. Ela não estranhou, pois ela costumava fazer isso. Magali lhe emprestava livros e revistas que ela devolvia e trocava por outros. Assim que chegou, disse:
- Magali, preciso que me ajude.
- Ajudar? Em que e como?
- Estou sentindo muita dor de cabeça e não sei o motivo. Disseram que aquela mulher que mora lá no começo da estrada dá umas ervas pra gente fazer chá. Dizem que ela cura muita gente... Você vai comigo até lá?
- Não sei, Sofia. Tenho medo dessas coisas...
- Medo do quê, Magali? Ela só vai me dar algumas ervas.
- Não sei não, Sofia. Dizem que ela faz macumba e você sabe que isso é coisa do diabo. Tenho medo...
- Diabo coisa nenhuma! Isso não existe! Preciso ir e não posso fazer isso sozinha. Meu pai não vai me deixar sair de casa sozinha.
- Está bem, eu vou, mas como vamos fazer?
- Meu pai está lá na barraca. Vamos até lá e você pede pra ele me deixar aqui, porque é o seu aniversário e vai ter uma festinha.
- Mas não é o meu aniversário!
- Eu sei, mas ele não sabe. Ele vai deixar.
- Como você vai voltar pra casa?
- Falo pro meu pai pedir pro Osmar vir de cavalo me buscar. Ele, de vez em quando faz isso, não é?
- Faz, sim...
- Então, está tudo certo. Você tem alguma revista ou livro pra me emprestar?
- Tenho. Peguei um livro na biblioteca e arrumei as revistas desta semana. Vou pegar.
Pedro Henrique estava abismado com aquilo que Gusmão contava. Nunca havia imaginado que aquilo pudesse ter acontecido. Sofia, caminhando, também se lembrou daquele dia e de como tudo aconteceu: eu e a Magali fomos falar com meu pai. Ele deixou que eu ficasse para a festinha e assim que terminou a feira e ele foi embora, fomos até a casa da mulher. Estávamos nervosas e com um pouco de medo, mas minha vontade de que Pedro Henrique voltasse era mais forte do que tudo. Quando chegamos, vimos que a casa era pequena, feita de madeira. O terreno era enorme e cercado com arame. Paramos em frente do portão e batemos palmas. A porta da casa se abriu e apareceu uma senhora. Ela era idosa, mas tinha um sorriso bonito. Do portão onde estávamos, até a casa, havia mais ou menos uns dez metros. A senhora se aproximou e sorrindo, disse:
- Boa tarde, meninas. Posso ajudar em alguma coisa?
Magali assustada, olhou para mim, ficou quieta e tremendo. Eu, que precisava falar com a senhora, embora estivesse também com um pouco de medo, respondi:
- Eu preciso conversar com a senhora. Disseram que a senhora cura doenças...
- Eu não minha filha, quem cura é Jesus Cristo. Mas, por que está aqui? Está doente ou tem alguém doente na família?
Eu não queria que a Magali soubesse o que na realidade eu queria, por isso pisquei um olho e disse:
- Eu estou com muita dor de cabeça, acho que a senhora pode me ajudar.
Ela entendeu o meu sinal, sorriu e disse:
- Está bem, podem entrar.
Ela abriu o portão, entramos. Ela seguiu na frente e nós a seguimos. A Magali segurou no meu braço e pude sentir o quanto ela tremia. Eu, ao contrário estava calada, senti que aquela mulher não representava perigo algum. Entramos na casa que era simples, mas muito limpa. No quintal, havia verduras, legumes e muitas ervas que eu não conhecia, mas ela sim. Assim que entramos, ela nos mostrou umas cadeiras e disse:
- Podem se sentar, vamos conversar.
Eu e a Magali nos sentamos. Ela perguntou:
- Agora, preciso saber o que querem realmente.
Olhou para mim que, sem que a Magali visse, fiz um sinal com a cabeça para que ela entendesse que eu precisava falar sozinha com ela. Ela entendeu e olhando firme para nós duas, disse:
- Vou fazer um suco e vou falar com cada uma em separado. Primeiro você. - disse, apontando para a Magali.
Magali olhou assustada para mim e disse:
- Eu não preciso falar com a senhora. Quem quer falar é ela...
A senhora, ainda sorrindo, disse:
- Está bem. Então, vou fazer o suco e enquanto converso com Sofia, você vai lá para o quintal e senta naquele banco que tem embaixo daquela árvore.
Magali, ainda muito assustada, olhou para mim. Com a cabeça, fiz um sinal demonstrando que estava tudo bem e que ela poderia ir sem problema. Assim que ela saiu, a senhora olhando dentro dos meus olhos, perguntou:
- Agora que estamos sozinhas, pode me dizer o que veio fazer aqui? O que quer realmente?
Sofia estava pensando, distraída e não percebeu que Stela se aproximou, dizendo:
- Dona Sofia, no que está pensando?
Sofia se assustou e voltando-se para ela, respondeu:
- Estou pensando em quanto tempo vamos ficar aqui, paradas. O tempo está passando, vai ficar tarde para irmos até o homem.
- Está preocupada com o tempo, por quê? Não tem crianças para cuidar nem mamadeira para dar - Stela disse rindo.
- Sofia, muito nervosa, não só por estar ali, impotente sem nada poder fazer, mas muito mais por não conseguir afastar as lembranças que a estavam incomodando, disse:
- Eu não tenho, mas você tem Stela. As crianças vão voltar da escola na hora do almoço e já deveríamos estar lá, mas se demorar muito isso não vai ser possível.
- Não precisa ficar preocupada com isso. Como eu sabia que estaríamos longe de casa, deixei a Rosa avisada e, se eu não chegar, ela vai dar o almoço para as crianças. Por isso, pode ficar tranqüila. A senhora sabe como ela é dedicada e gosta das crianças.
- Ainda bem que você fez isso, Stela. Está vendo por que gosto de você?
Stella sorriu. Ela conhecia Sofia o suficiente e sabia o que fazer para deixá-la feliz.
- Ora, dona Sofia, sabe que também gosto muito da senhora e faço o que for possível para que fique feliz. A senhora sempre foi muito boa para mim. Foi mais que uma mãe.
Sofia sorriu e disse:
- Você faz por merecer, Stela. Além do mais, tive como exemplo a minha sogra. Ela também sempre me tratou muito bem e eu, assim como você, fazia tudo para que ela ficasse feliz. Ela foi para mim muito mais que uma mãe e eu sinto muita saudade dela.
Sofia disse isso, sem sequer imaginar que Pedro Henrique e a mãe estavam ali, acompanhando aquela conversa e todos os seus pensamentos. Maria Rita se emocionou, Pedro Henrique também apertou o braço da mãe, que disse:
- Ela está dizendo a verdade. Eu gostava e ainda, apesar de tudo o que ficamos sabendo, ainda gosto.
Quando vocês se casaram, ela era ainda uma menina, parecia que precisava de cuidados.
Gusmão sorriu:
- Realmente, ela parecia uma criança que precisava de cuidados, mas na realidade não era. Tudo o que fez foi sempre muito calculado. Enquanto ela conversa com Stela, vou continuar contando o que aconteceu naquele dia.
- Faça isso, Gusmão. Estou intrigado e curioso para saber o que ela falou para a mulher.
Ela estava sentada em frente à mulher e sentiu que seu olhar era forte e penetrante. Sabia que a hora havia chegado e que teria de contar o verdadeiro motivo daquela visita. Magali estava lá fora, a uma distância que não poderia ouvir o que conversavam. Olhou para a porta por onde ela havia saído e de uma vez, disse:
- Gosto de um moço e quero me casar com ele.
- Por que não casa? Ele não quer?
- Parece que ele queria, mas meu pai contou que estou noiva de outro, ele foi embora e não voltou mais.
- Espere aí, menina. Não estou entendendo muito bem essa história. Você está noiva de um, mas quer se casar com outro?
- É isso mesmo, estava tudo certo para o meu casamento, meu noivo até construiu a nossa casa, mas esse moço apareceu e eu quero me casar com ele.
- Você não gosta do seu noivo?
- Gosto muito. Acho que nunca vou gostar de alguém como gosto dele.
- Então, por que não se casa e fica tudo bem?
- Ele é muito pobre e eu não quero continuar vivendo como agora. Não quero ser como minha mãe, que nunca saiu desse lugar e dessa casa. Quero mais, muito mais! Quero poder usar vestidos bonitos, poder andar com o cabelo sempre arrumado, ter uma casa bonita e poder viajar muito. O meu noivo nunca vai poder me dar isso. Ele tem boa vontade, diz até que vai fazer uns negócios que poderão dar muito dinheiro, mas eu não acredito. Tudo o que ele fala não passa de sonhos.
- E desse outro moço, você gosta?
- Não como gosto do meu noivo, mas gosto sim. Com ele, vou poder ter tudo com o que sempre sonhei...
Pedro Henrique ouvia o que Gusmão falava e não conseguia acreditar. Nunca, durante todo o tempo em que esteve casado, imaginou que aquilo poderia ter acontecido. Em sua opinião, Sofia havia sido uma mulher e mãe maravilhosa. Olhou para a mãe que, assim como ele, também estava chocada. Gusmão disse:
- Não fique assim, Pedro Henrique. Sei que está surpreso, mas vai ficar ainda mais. Muita coisa aconteceu sem que você soubesse. Dona Filomena, a mulher que Sofia visitou, tinha muito conhecimento sobre as ervas e sobre o plano espiritual. Entendeu o que Sofia estava sentindo naquele momento, sabia que estava na hora de ela tomar uma decisão que teria reflexos em sua vida. Compreensiva, disse:
- Sabe, minha filha, você está vivendo um momento decisivo de escolha em sua vida. É ainda muito jovem. Disse que gosta muito do seu noivo, mas está encantada comesse outro que pode lhe dar o que deseja. Sei que a decisão é difícil, mas poderia esperar um pouco mais. Acho melhor que vá para casa e pense bem no que quer fazer realmente. Não se esqueça de que a decisão que tomar vai influir na sua vida e pode modificar tudo o que foi antes planejado.
- Não estou entendendo muito bem o que a senhora está falando, só sei que já tomei a minha decisão. Gosto sim, do Osmar, mas gosto do outro também. Gostaria muito de ficar com os dois, mas como não é possível, preciso fazer uma escolha. Quero ficar com aquele que pode me dar tudo. Não preciso pensar mais e não posso deixar para outro dia, porque foi muito difícil eu escapar do meu pai e vir até aqui. Se for embora sem ter feito o que quero, vai ser muito difícil poder voltar.
Gusmão continuou:
- Filomena sorriu. Fazia aquele trabalho há muito tempo. Muitas vezes esteve em uma situação como aquela em que as pessoas queriam porque queriam que ela fizesse algum tipo de trabalho para trazer ou afastar alguém. Várias jovens, assim como Sofia, já haviam passado por lá. Ela nunca fazia o trabalho, mas sempre dava alguns conselhos e um paliativo qualquer. Naquele dia, não seria diferente. Olhou dentro dos olhos de Sofia e disse:
- Todos, quando nascemos, trazemos um destino mais ou menos traçado. Durante nossa vida, conhecemos amigos e inimigos para que possamos nos amar e perdoar mutuamente. Nesses encontros, termos a oportunidade de escolher que caminho tomar. Poucas vezes conseguimos seguir o caminho antes programado, mas mesmo assim, tudo está sempre certo. O seu caminho está à sua frente, cabe a você escolher.
- Não estou entendendo muito bem o que está dizendo. Só sei que não posso perder aquele moço!
- Você disse que gosta do seu noivo. Não será ele quem você escolheu, antes de nascer.
- Antes de nascer? Que conversa é essa?
- O espírito é eterno. Precisamos nascer e renascer muitas vezes para que possamos nos aprimorar e encontrar o caminho da luz.
- Quanto mais a senhora fala, menos entendo. Não sei se o espírito é eterno, só sei que estou vivendo aqui e neste momento, o que quero é ser feliz e isso só vai acontecer se eu me casar com alguém que possa me dar tudo com o que sempre sonhei! Não sei se existe um destino, mas se existir, ele vai ser do jeito que eu quero! A senhora pode fazer isso, porque, se não puder, sei que vou encontrar alguém que possa!
Gusmão continuou falando:
- Filomena, continuando com os olhos dentro dos de Sofia, disse:
- Está bem, se acha que é isso mesmo que quer, vou lhe ensinar uma simpatia que sempre dá certo. Vamos até lá fora. Vou pegar algumas ervas. Coloque uma panela com água no fogo e, quando estiver quase fervendo, levantando aquelas bolinhas, jogue as ervas dentro e tampe a panela. Deixe esfriar. À noite, antes de se deitar, tome um banho e jogue a água sobre seu corpo. Depois se seque e vá dormir. Se tiver de ser, se esse é o caminho que deve tomar, o rapaz que tanto quer vai voltar e tudo vai estar entregue nas mãos de Deus.
- Saíram para o quintal. Filomena colheu algumas ervas e entregou para Sofia que pegou e, agradecendo, foi embora.
- Ela não precisava ter feito isso, Gusmão! Eu estava completamente apaixonado e fazia um esforço enorme para não ir até a sua casa!
- Você sabe disso, eu também, mas Sofia não sabia. Em seu desespero e com todo o medo que sentia de perder você, foi até as ultimas conseqüências. Isso acontece todos os dias. O espírito, quando encarnado e muitos até depois disso, se deixa levar pela ansiedade. Quando desejam algo que não conseguem se desesperam, mas na realidade, quando o resultado não sai o esperado, é porque embora se deseje muito, não é o certo, aquilo que traria felicidade nem o caminho que deveria seguir e, enquanto esse caminho não é encontrado, nada parece dar certo.
- Isso acontece sempre?
- Sim, muitas vezes, pois o espírito precisa trilhar um longo caminho para seu aperfeiçoamento e todas as oportunidades serão dadas.
- Ela tomou o tal banho, Gusmão?
- Naquela mesma noite. Estava ansiosa, não admitia um segundo sequer, que poderia perdê-lo. Fez exatamente como Filomena havia dito. Depois do banho, deitou-se e sorrindo confiante, adormeceu.
- Gusmão! Está me dizendo que voltei só por ela ter tomado o tal banho?
- Claro que não, como você mesmo disse, estava completamente apaixonado e voltaria de qualquer maneira, mas para ela, o banho foi o responsável. Filomena sabia que, se não fizesse alguma coisa, Sofia continuaria procurando e poderia encontrar alguém que a enganasse. Por isso, achou melhor lhe dar uma receita que não lhe faria mal algum a não ser, talvez, carregar suas energias. Mas nesse e em muitos outros casos o que importa é a crença.
Sofia acreditou em tudo o que Filomena fez e saiu dali com a certeza de que, se fizesse tudo direito, você voltaria.
- Eu voltei realmente...
- Sim, voltou. Lembra-se daquele dia?
- Sim, como poderia me esquecer?
- Olhe lá, dona Sofia, um caminhão está se aproximando, vamos pedir ajuda!
Todos olharam para Stela que quase gritava, não conseguindo esconder sua alegria. Sofia também olhou e disse:
- Ainda bem, Stela. Estamos aqui há muito tempo. Estou cansada.
O caminhão se aproximou e o motorista percebeu que elas precisavam de ajuda. Perguntou:
- As senhoras estão com algum problema?
- Sim, o pneu furou e não sabemos trocar, será que poderia nos ajudar? - Stela respondeu de uma só vez.
Ele, enquanto descia e rindo, pensou com desdém:
- Mulheres, acham que são independentes e não conseguem trocar um pneu.
- Não se preocupem, troco esse pneu num instante.
Foi o que fez. Em poucos minutos, o pneu estava trocado. Sofia disse.
- Quanto o senhor vai cobrar?
- Nada não, senhora. Não deu nenhum trabalho e, além do mais, estou acostumado. A senhora viu quantos pneus tem o meu caminhão? - respondeu, sorrindo.
- Então, se for assim, obrigada por sua ajuda. Sabe que nos tirou de um problema muito grande.
Ele, sorrindo, tornou a subir no caminhão e foi embora. Elas também entraram no carro e Stela começou a dirigir, sem imaginar que eles também entraram e sentaram-se no banco de trás. Todos juntos, seguiram em direção à casa do tal homem que ia fazer o trabalho.

O PEDIDO DE CASAMENTO

Stela dirigia. Sofia, sob a influência de Gusmão, relembrava: sei que isso que vou fazer vai separar meu filho daquela mulher! Ele não pode continuar casado com ela! Eu a odeio e a toda sua família! Se eu não tivesse tomado aquele banho, Pedro Henrique jamais teria voltado! Ter ido à casa de dona Filomena foi a melhor coisa que fiz. Ele voltou a me procurar e nos casamos, tivemos uma vida boa, embora eu nunca tenha me esquecido do Osmar. Pedro Henrique, ainda surpreso com tudo o que Gusmão disse, perguntou:
- Ela acredita mesmo que foi o banho que fez com que eu voltasse e me casasse com ela?
- Sim, Pedro Henrique e se analisarmos bem, ela tem razão de assim pensar.
- Por que, Gusmão?
- Depois daquela noite em que tomou o banho, durante quase uma semana, ela todas as manhãs, assim que os pais saíam para trabalhar, ia para o quintal e ficava olhando para a construção na esperança de ver o seu cavalo e talvez, você chegando. Tinha a certeza de que você viria. Confiava que o banho daria certo.
- Lembro-me daquele tempo. Eu pensava nela a todo o momento. Estava realmente apaixonado e queria muito me casar, mas tinha medo de me aproximar.
- Foi isso mesmo o que aconteceu. Em uma manhã, assim que saiu para o quintal e olhou, viu que um cavalo se aproximava. Sabia que não era o seu cavalo, mas mesmo assim ficou esperando. O cavalo se aproximou e ela pôde ver que se tratava de um dos seus trabalhadores.
O homem desceu e entregou um pacote, dizendo:
- O patrão me mandou trazer este pacote para o seu pai.
- O que é isso?
- Acho que é carne. Está gelado.
- Por que ele mandou essa carne?
- Não sei, mas acho que é para pagar a água.
- Meu pai já disse que ele pode pegar quanta água precisar e não precisa pagar por isso! O nosso poço tem muita água! Pode levar a carne de volta!
- Não sei nada disso, moça! Só estou cumprindo ordem! Não vou levar a carne, não. Se a moça quiser, pode levar a carne, eu não vou fazer isso não.
- Entregou o pacote e foi pegar a água no poço.
- Eu e Matilde vimos que Sofia sem saber o que fazer ou dizer, ficou olhando para o homem, enquanto descia as duas latas de água. Depois de algum tempo, Sofia, fingindo uma indignação que na realidade não estava sentindo, ficou ali parada olhando para o lado onde estavam os homens trabalhando. Sabia que você estava lá e pensou: ele só está querendo me humilhar. Está querendo mostrar que tem muito e, por isso, não está se importando com o que eu possa estar pensando! Será que ele fez isso por causa do banho ou quer mesmo me mostrar à diferença que existe entre nós? Se for isso, está muito enganado! Agora mesmo vou até lá para jogar esta carne na sua cara! Quero ver qual vai ser a sua reação.
- Deixou o homem tirando a água do poço e decidida, caminhou em direção ao lugar onde achava que você estava. Assim que chegou, viu que ao seu lado, alguns homens mediam algo que ela não sabia o que era. Você não viu quando ela se aproximou, só ouviu sua voz que, para você, parecia alterada:
- Quem o senhor pensa que é?
- Você se voltou e, ao vê-la, sorriu dizendo:
- Bom dia, Sofia... por que está tão nervosa, o que foi que eu fiz?
- Mandou este pedaço de carne, como se a gente estivesse passando fome! A gente é pobre, mas nunca faltou comida lá em casa!
- Lembro-me bem naquele dia, Gusmão. E de como fiquei abismado:
- Não sei do que está falando, Sofia. Eu não disse que vocês passavam fome. O dono do matadouro deu ao meu pai um pedaço muito grande de carne. Sabe como é, tudo para agradar o prefeito - disse, rindo. Quando minha mãe estava dividindo entre as minhas irmãs, pedi um pedaço e trouxe para o seu pai em agradecimento pela água. Foi só isso o que aconteceu. Eu só quis ser gentil. Não precisa ficar nervosa dessa maneira. Só estou querendo agradecer a seu pai por ter me dado à água, pois sem ela, meus homens não conseguiriam trabalhar. Eles não poderiam ficar sem beber água durante o dia todo. Foi só isso, nada mais...
- Você falava olhando bem dentro dos olhos dela, que não conseguiu segurar o olhar e, por várias vezes, desviou-o. Depois, com a voz trêmula, perguntou:
- Foi só isso mesmo? O senhor não quis ofender a gente?
- Claro que não, Sofia! De onde tirou essa idéia? Estou triste por saber que você vai se casar, pois assim que a vi, fiquei apaixonado, mas isso não quer dizer que estou pretendendo humilhar você e muito menos o seu pai. Gostei e ainda gosto muito de você, mas infelizmente cheguei tarde.
- Ela baixou os olhos. Você, percebendo que ela estava confusa, perguntou:
- Cheguei tarde, Sofia?
- Ela não respondeu. Você insistiu:
- Cheguei tarde, Sofia?
- Ela levantou os olhos e ficou olhando. Não sabia o que responder. Você, Pedro Henrique, sorriu, colocou a mão sobre o queixo dela e tornou a perguntar:
- Cheguei tarde, Sofia?
- Ela não acreditava que aquilo estivesse acontecendo. Embora, desde que tomara o banho, tinha certeza de que aconteceria, ficou mesmo sem saber o que responder.
Por sua cabeça, passou toda a sua vida naquele lugar, seus sonhos e Osmar. Sim Osmar, o que faria com ele?
- Você, vendo que ela não respondia e sem que ela esperasse, com as mãos, levou seu rosto para junto do dela e lhe deu um beijo. Ela, a principio, tentou se afastar, mas logo se entregou aquele beijo. Assim que você a soltou, ela, com lágrimas nos olhos, se afastou correndo. Você a acompanhou com os olhos. Quando viu que ela chegava à sua casa, sorriu e se voltou para os homens que haviam assistido aquela cena. Eles nada disseram. Foi você quem falou:
- Agora, vamos voltar ao trabalho. Esse poço precisa ficar pronto. Quero construir logo a casa.
- Os homens voltaram ao trabalho. Você voltou o olhar para a casa de Sofia e sorriu.
- Sim, lembro-me de que sorri feliz ao ver a reação dela, Gusmão. Com aquele beijo, tive a certeza de que ela realmente gostava de mim, que íamos nos casar e pensei: ela está lá e, com certeza, pensando em mim.
- Realmente ela estava em casa e só agora percebeu que, em suas mãos, estava o pacote de carne. Chorava de alegria, pois sabia que sua vida estava mudando e que você não estava brincando, porém também, muito confusa, sem saber o que fazer com a sua vida e com Osmar: não sei o que fazer... sinto que gosto muito dele, não tanto como de Osmar, mas sei também que se me casar com ele, vou ter tudo. Ter uma vida rica com festas e ser apresentada a todas as pessoas como a esposa do filho do prefeito. Que mais posso querer? Mas, e o Osmar? O que vou dizer pra ele? Ele está tão ansioso para que o dia do casamento chegue logo. Como posso chegar e dizer o que está acontecendo? Como posso dizer que encontrei outro que poderá me dar tudo? Não sei... acho que não vou ter coragem de fazer isso... mas, agora preciso fazer o almoço. Todos, daqui a pouco vão estar aqui.
- Desembrulhou o pacote e, diante dela, surgiu um pedaço muito grande de carne. A carne era de boa qualidade, o que, em sua casa, era difícil de aparecer.
Seu pai, de vez em quando, trazia carne para casa, mas sempre de segunda, que precisava ser cozida, pois era dura. Aquela não, era de primeira e podia ser cortada em bifes. Foi o que ela fez. Cortou em vários bifes e deixou sobre o fogão para ser frita quando todos estivessem lá. Continuou fazendo o almoço e pensando em você, Pedro Henrique, naquele beijo e em tudo o que você poderia lhe dar: ele é maravilhoso! Aquele beijo, tão diferente dos de Osmar... como pude permitir que ele me beijasse daquela maneira? Onde estava com a cabeça? Por que não resisti? Não quero nem imaginar o que ele está pensando de mim... deve estar achando que sou uma moça sem valor... como fui permitir? Mas, que foi bom, foi. Não sei por que estou tão preocupada. Desde aquele dia em que fui lá na dona Filomena, sabia que isso ia acontecer. Com aquele banho e as rezas que ela fez, não tinha como ele me esquecer. Vai se casar comigo, tenho certeza!
- Ela achava mesmo que tinha sido o banho e as rezas que fizeram com que eu me casasse com ela?
- Pensava não, até hoje ainda pensa, por isso está querendo fazer a mesma coisa, mas no sentido contrário. Ao invés de fazer algo assim sem maiores problemas, está tentando desfazer um casamento e isso é muito grave. Por isso estamos aqui tentando fazer com que mude de idéia.
- Tem razão, Gusmão. Precisamos conseguir, mas ainda tenho uma dúvida.
- Qual?
- Se ela não tivesse tomado o banho, eu teria mesmo me casado com ela?
- Claro que sim. Nada acontece por acaso. Todos os encontros são planejados e deles depende o comportamento do espírito. Você, ela e Osmar estão juntos há muito tempo. Na última encarnação, você e ele eram muito amigos. Sofia apareceu e, usando de sua beleza e perspicácia, pois sempre foi muito decidida, fez com que vocês brigassem e terminassem uma amizade sincera. No final, não ficou com nenhum dos dois e se casou com outro muito rico. Quando voltaram ao plano espiritual, decidiram que tornariam a se encontrar e ela teria de escolher outra vez, mas com honestidade. Deveria escolher aquele que seu coração realmente desejasse, independente de raça ou situação financeira.
- Ela não escolheu com honestidade, não foi?
- Infelizmente não e essa escolha a acompanhou pelo resto da vida. Ela gostava de você, mas muito mais de Osmar. Seu coração pedia por ele, mas sua cabeça queria você. A cabeça venceu.
- Estou pensando em todo o tempo em que estivemos casados. Não posso dizer que ela tenha sido uma má esposa, ao contrário, foi sempre boa esposa, mãe e companheira. Nunca passou por minha cabeça que tudo isso havia acontecido e que ela não gostava de mim.
- Nisso você tem razão. Apesar de ter trocado o grande amor de sua vida por você, fez o possível para que o casamento fosse feliz. Vou continuar contando o que aconteceu naquele dia.
- Faça isso, Gusmão, estou realmente curioso.
- Ela, sabendo que faltavam poucos minutos para que todos chegassem para o almoço, começou a fritar os bifes. O cheiro se espalhou por toda a casa. Assim que eles chegaram e sentiram o cheiro, Romeu perguntou:
- Que cheiro de carne é esse, Sofia?
- Ela rindo, respondeu:
- Um homem que trabalha pro filho do Prefeito trouxe.
- Que história é essa? Por que ele mandou essa carne?
- Também fiquei curiosa e, por isso, fui até lá pra saber. O moço disse que era pra pagar a água que o senhor está dando.
- Eu não disse que ele precisava pagar. Como pôde aceitar, Sofia? Ele está pensando que a gente está morrendo de fome?
- Eu disse isso, mas ele falou que o pai dele recebeu do dono do matadouro uma porção de carne e que era muita, por isso ele tirou um pedaço e trouxe pra gente. Disse que se o senhor não tivesse dado a água, ia ser muito difícil os homens trabalharem.
Ele ia precisar trazer a água da cidade em latas, mas com a viagem, ela chegaria aqui quente e muito ruim. Disse que não está pagando, apenas agradecendo.
- Não estou gostando nada disso!
- Nadir respirou fundo - continuou Gusmão, para poder sentir o cheiro do bife que estava na frigideira e disse:
- Pare com isso, Romeu. Olhe só que cheiro bom! Quanto tempo faz que a gente não come uma carne como essa? Você não pediu e, se o moço trouxe, a gente tem mais é que comer.
- Gustavo também respirou fundo e disse:
- Mãe, o cheiro está muito bom mesmo!
- Romeu, embora estivesse bravo, não podia negar que o cheiro estava bom e que fazia muito tempo que não comiam uma carne como aquela. Deixando os braços caírem sobre o corpo, disse:
- Está bem, eu não pedi e já que ele trouxe, vamos comer.
- Sofia sorriu. Terminou de fritar os bifes, colocou sobre a mesa e todos se deliciaram.
Depois do almoço e após descansarem um pouco, voltaram para a roça. - continuou Gusmão. Gustavo, todas as tardes, acompanhado de Sofia, fazia a lição de casa. Naquele dia, Sofia os acompanhou até o portão. Eles foram embora e ela entrou. Mas, antes de entrar, olhou para o lado em que sabia que você estava. Lembrou-se do beijo, respirou fundo e pensou: que bom ia ser se ele estivesse gostando mesmo de mim...
- Entrou em casa e continuou seu trabalho. Precisava lavar a louça do almoço e tinha uma porção de roupa para passar. Enquanto passava a roupa, pensava: não sei se ele está dizendo a verdade, mas de uma coisa tenho certeza, não posso me casar com o Osmar. Sei que gosto dele e que seria feliz ao seu lado, mas não é isso que quero pra minha vida. Sei que ele está com muitos sonhos. Sei que acha que, um dia, poderá ficar rico, mas e se esse dia não chegar? Se tudo com o que ele está sonhando não se realizar? Vou ter que passar o resto da minha vida aqui, neste lugar? Além do mais, Pedro Henrique é rico, bonito e o seu beijo, então? Que maravilha! Não posso me casar com o Osmar e vou precisar dizer isso pra ele. Sei que vai ser difícil, mas é a única coisa que posso fazer. Meu pai vai ficar furioso, mas não tem outro jeito, não... não posso me casar com ele e ser infeliz pro resto da minha vida. Afinal, foi para isso que fui até a casa da dona Filomena ...
- Durante à tarde, várias vezes foi para o quintal e olhou para o lado em que sabia que você, Pedro Henrique, estava. Notou que o seu cavalo não estava mais ali, pensou: pra onde será que ele foi? Que pergunta mais boba, claro que foi pra casa. Ele deve ter coisas mais importantes pra fazer do que ficar olhando os homens trabalhando.
- Entrou e saiu muitas vezes e só sossegou quando viu o seu cavalo novamente. A tarde passou. Ela terminou todo o seu trabalho. Tomou um banho e vestiu um vestido limpo. Penteou os cabelos. Sabia que Osmar, logo mais, estaria ali. Não podia adiar. Precisava contar a ele a sua decisão. Lá pelas quatro horas da tarde, como todos os dias, Osmar chegou. Os pais de Sofia também chegariam logo mais. Sentaram-se no banquinho e começaram a conversar. Ele animado, disse:
- Nossa casa já está pronta, Sofia! Você precisa ir ver como ela está bonita!
- Sei que está, Osmar, mas preciso conversar com você uma coisa muito séria.
- O que é Sofia? Parece que você está muito preocupada. Que aconteceu?
- Estive pensando muito no nosso casamento e cheguei à conclusão de que a gente não pode se casar.
- Como não? Por que está dizendo isso?
- Sabe que gosto de você desde que era criança, mas não posso me casar. Você me conhece, sempre soube qual eram os meus sonhos. Sempre soube que eu não quero continuar vivendo aqui nesta pobreza, pelo resto da minha vida. Quero me casar com um homem que tenha muito dinheiro, porque só assim eu vou poder ser feliz. Gosto muito de você, sei que também gosta de mim, mas isso não é o suficiente.
- Que está dizendo, Sofia? Eu lhe disse que tenho planos e que se tudo der certo como espero, vou ficar rico e vou dar pra você tudo o que sempre quis! A gente se gosta muito...
- Sei que, assim como eu, tem sonhos. Sei que, se der certo vai ficar muito rico, mas e se não der certo? Como vai ser? A gente vai ter de continuar vivendo aqui e não quero isso! Precisa entender, Osmar! Não quero ser infeliz pro resto da minha vida!
- Que aconteceu pra que você mudasse de idéia tão de repente?
- Não aconteceu nada, Osmar. Só estive pensando e cheguei a essa conclusão. Vou esperar que apareça um homem rico e que possa me dar tudo com o que sempre sonhei.
- Você deve estar ficando louca, Sofia! Acha que um homem rico vai querer se casar com você? Um homem rico vai se casar com uma moça também rica! A gente se gosta, Sofia! Sei que vamos ser muito felizes.
- Não, Osmar. Não quero arriscar toda a minha vida. Vou esperar esse homem rico aparecer, mas se ele não chegar, quando eu for mais velha, vou embora daqui quero morar na capital onde sei que existem muitos homens ricos. Não quero mais continuar aqui neste lugar, que só tem muito trabalho e pobreza. Não posso me casar com você, Osmar. Sinto muito. Se eu fizer isso, não só eu, mas você também vai ser muito infeliz e você não merece isso. Merece uma moça boa, que aceite morar aqui e ser pobre para sempre. Eu não...
- Seu pai já sabe dessa sua decisão?
- Não, mas vou contar hoje mesmo.
- Sabe que ele vai ficar muito brabo, não sabe?
- Sei, mas a vida é minha! Sou eu quem precisa decidir o que quero fazer com ela e de uma coisa tenho certeza, não quero continuar vivendo aqui!
Osmar engoliu seco e fez uma força tremenda para não chorar. Com o pouco de dignidade que lhe restava, levantou-se e sem nada dizer, foi embora. Depois que se afastou dela, começou a chorar em desespero. Sofia ficou olhando-o se afastar e também começou a chorar. Sentia que uma parte da sua vida estava terminando. Gostava de Osmar, sabia que ia sentir muita falta de sua companhia, mas sabia também que era a única coisa que podia fazer naquele momento. Agora, estava livre para ser feliz ao seu lado, Pedro Henrique. Sem que imaginassem, eu e Matilde estávamos ao lado deles e acompanhamos toda a conversa. Matilde olhou assustada para mim e perguntou:
- E agora, Gusmão, o que vai acontecer? Não era isso que estava programado!
- Tem razão, Matilde. Neste momento, com sua escolha, ela mudou o seu destino e tudo o que havia planejado.
- Ela não podia ter feito isso! Eles precisavam continuar juntos!
- Eles precisavam e foi isso o que planejaram quando estavam deste lado, mas você sabe que, quando estamos na carne, tudo fica diferente.
- Ela não podia fazer isso, Gusmão!
- Não devia, mas podia. Todos temos nosso livre-arbítrio, Matilde, você se esqueceu disso? Se assim não fosse, tudo seria imposto e não teria valor. O livre-arbítrio existe exatamente para isso, para que o espírito seja livre para decidir o que achar melhor. Por muitas encarnações, ela tem sido rica e poderosa. Na última, ao ver que só o dinheiro e o poder não traziam a felicidade para seu espírito, pediu para que nesta, fosse diferente. Pediu para nascer em uma casa pobre e ter de lutar arduamente pela vida. E agora que surgiu a oportunidade de voltar a ser rica e poderosa, ela novamente, deixou seu amor e vai tentar ser feliz ao lado daquele que pode lhe dar tudo a que aspirou nesta vida. Nada pode ser feito. Sabe que esses três há muitas encarnações lutam entre si. Nesta, tiveram a chance de se reconciliarem, mas parece que, mais uma vez, não vai acontecer.
- O que vai acontecer com todo o programado? O que vai acontecer com o Osmar?
- Quando as coisas são programadas, sempre existe a chance de não saírem como o programado, por isso algumas coisas sempre podem ser mudadas. Osmar seguirá outro caminho, mas com certeza, assim como Sofia, cumprirá sua missão. Não importa o caminho que escolhemos, em qualquer um deles sempre teremos a oportunidade de realizarmos o que planejamos.
- Algo pode ser feito para fazer com que ela mude de idéia e volte ao plano original, Gusmão?
- Não, Matilde, sabe que não. Podemos intuir bons pensamentos, mas nunca interferirmos no livre-arbítrio. Ele pertence a cada um de nós.
- Tem razão, mas é uma pena. Só não entendo uma coisa, Gusmão.
- Que coisa?
- Já que Sofia e todos sabiam que eles deviam continuar juntos e que tinham uma missão para cumprir, por que não nasceram em um lar rico? Por que tiveram de nascer pobres? Se os dois pertencessem a um lar rico nada disso estaria acontecendo.
- Sim, mas ela continuaria não dando valor para outras coisas que não fosse o dinheiro e o poder e era justamente isso que, para seu aperfeiçoamento, ela precisava superar. Pelo que parece, outra vez não conseguiu, mas mesmo assim, terá a oportunidade de sozinha, sem Osmar, cumprir a sua missão. Só nos resta esperar.
- Como ficarão aqueles que iam nascer e como seus filhos?
- Nascerão no lugar em que precisarem nascer. Eles se encontrarão e só Deus sabe o que será feito. Agora, acho bom irmos até o Osmar. Ele deve estar desesperado e precisando da nossa ajuda, vamos?
- Matilde sorriu e fomos para junto de Osmar que caminhava pela estradinha de terra que separava o sítio de Sofia do seu. Ele, como prevíamos, realmente chorava desesperado. Eu e Matilde nos colocamos um de cada lado e caminhamos juntos.
Osmar chorava e pensava desesperado: como ela pôde fazer isso comigo? Ela sempre soube que eu gostava dela e faria tudo o que fosse possível pra gente ser feliz! O que vou fazer com a nossa casa? Como vou dizer pros meus pais que não vai mais ter casamento?
- Naquele momento, Sofia mudou seu destino.
Stela continuava dirigindo. Perguntou, nervosa:
- Será que falta muito, dona Sofia? Está um horror dirigir nesta estrada. Tem muito buraco.
Sofia não ouviu o que Stela disse, porque, ao se lembrar daquele dia, sentiu um nó na garganta e uma lágrima escorreu por seu rosto. Vendo que ela não respondia, Stela voltou a perguntar:
- Será que falta muito, dona Sofia?
Só aí Sofia ouviu, olhou para Stela e respondeu:
- Não sei, pelas informações que tivemos, deve estar chegando.
- A senhora tem mesmo certeza de que deve fazer isso? Não seria melhor voltarmos?
- Claro que tenho, Stela! Não quero voltar! Preciso fazer isso!
- Está bem, não precisa ficar nervosa.
Stela se calou e continuou dirigindo. Ela conhecia Sofia muito bem e por isso, sabia que não deveria contrariá-la. A fortuna de Sofia era imensa e ela sabia que, se continuasse sendo a preferida ficaria com uma parte maior. No fundo, ficou feliz por Anita não ter tido um filho. Seria um a menos para dividir a herança que Sofia deixaria. Por isso, embora sentisse muita raiva, fazia tudo o que a sogra queria. Sofia voltou a se lembrar daquele dia em que afastou Osmar para sempre de sua vida: aquele dia foi muito difícil, mas foi uma decisão que precisei tomar. Se eu soubesse como a vida ia mudar, jamais o teria feito. Eu sempre tentei, mas nunca fui totalmente feliz ao lado de Pedro Henrique. Gostava de Osmar e quando lembro que poderíamos ter casado fico triste, mas já passou. Não adianta sofrer. Agora, estou velha e minha vida, apesar de tudo, foi maravilhosa. Não tenho do que me arrepender e nem sei por que estou pensando nessas coisas. Gusmão e os outros acompanhavam tudo o que acontecia. Sofia voltou a se lembrar daquele dia: depois que Osmar foi embora, senti um aperto no coração e fiquei com vontade de correr atrás dele, mas me contive, pois sabia que aquela tinha sido a decisão mais certa para minha vida. Eu gostava dele, estava acostumada com suas conversas e sabia que ele também gostava de mim de verdade, mas não era o suficiente, eu queria mais, muito mais. Depois que ele se afastou, olhei para o lado em que a casa de Pedro Henrique estava sendo construída e pensei; essa casa vai ser minha! Ela e tudo o que ele possui! Vou ser rica e poderosa! O Osmar vai continuar nesta vidinha de sempre. Agora que desfiz o noivado, preciso fazer com que o filho do prefeito saiba disso. Sei que, depois do banho que dona Filomena me ensinou, não vai ter como ele se afastar. Está preso a mim para sempre.
- Não posso acreditar que tudo isso aconteceu sem que eu soubesse, Gusmão...
- Mas aconteceu, Pedro Henrique. Lembra-se daquele dia em que você voltou ao sítio de Sofia e que ela estava regando o jardim?
- Sim, lembro-me.
- Foi no dia seguinte. Ela sabia que você ia voltar e por isso, colocou seu melhor vestido e ficou olhando para onde você deveria chegar. Quando viu que você se aproximava, pegou o regador e, como se não pensasse em você, começou a regar as flores. Você se aproximou e disse:
- Olá, Sofia. Suas flores estão muito bonitas.
- Ela olhou para você e sorrindo disse:
- Estão sim, talvez seja porque eu cuido com muito carinho delas.
- Você hoje também está muito bonita...
Ela sorriu e você, completamente apaixonado, disse:
- Você também é uma bela flor, Sofia. Tão bela que eu gostaria de ter sempre ao meu lado, mas é impossível.
- Impossível, por quê?
- Você já tem dono, cheguei atrasado...
- Não tenho dono e nunca vou ter. Estou livre.
- Desmanchou o noivado?
- Sim, eu não poderia me casar com ele.
- Por que, Sofia?
- Eu não gosto dele o suficiente. Nós nos conhecemos desde criança, eu achava que gostava dele, mas agora estou com muitas dúvidas. Acho que não sabia o que era o amor.
- Fiquei muito feliz ao ouvir aquilo, Gusmão, pois desde o beijo, sabia ou tinha quase certeza de que ela me amava. Emocionado, perguntei:
- Já que está livre, quer se casar comigo?
- Lembro-me que ela abaixou a cabeça. Seu rosto estava vermelho, mas seus olhos brilhavam, o que a deixava mais bonita ainda. Ela olhou dentro dos meus olhos e respondeu:
- Eu não desmanchei o noivado por sua causa.
- Sei disso, mas já que está livre, podemos pensar no nosso futuro. Se quiser, converso com seus pais e poderemos nos casar o mais breve possível.
- O senhor quer mesmo isso?
- Claro que sim, Sofia! É o que mais desejo. Sei que também é o que você quer. Tenho certeza que, assim como eu, também gosta de mim. Prometo que farei o possível para que seja feliz. Se me aceitar, sei que não vai se arrepender.
- Está bem. Já que é o que deseja, pode conversar com meus pais e se eles deixarem a gente se casa. Eu realmente estou gostando muito do senhor.
- Sei disso, vou conversar com seus pais, mas antes, precisa parar de me chamar de senhor. Não sou muito mais velho que você e afinal, vamos nos casar, não é?
- Lembro-me de que ela sorriu e de que aquele sorriso me fez o homem mais feliz do mundo. Jamais poderia imaginar que ela estivesse me enganando...
- Mas estava. Via em você apenas o homem que poderia lhe dar tudo com o que sempre sonhou, pois na realidade, ela gostava mesmo era de Osmar.
- De qualquer maneira, por não saber a verdade, fui muito feliz ao lado dela.
- Nisso você tem razão. Ela procurou ser a melhor mulher do mundo e conseguiu. Naquela mesma tarde, você esperou a chegada de Romeu e de Nadir e, assim que eles chegaram, você disse:
- Boa tarde, senhor Romeu, como está?
- Estou muito bem, só não sei o que o senhor está fazendo em minha casa...
- Estou conversando com Sofia. Estou esperando o senhor e a dona Nadir para pedir a mão de Sofia em casamento.
- Nadir apertou o braço do marido para que ficasse calmo. Ele nervoso, perguntou:
- O senhor está de brincadeira? Acha que, por ser rico, filho do prefeito, pode vir e brincar com a gente?
- Você, Pedro Henrique, agora muito nervoso, perguntou:
- Quantas vezes terei de repetir que não estou brincando? Quero mesmo namorar Sofia e me casar com ela.
- Nadir tornou a apertar o braço do marido e ele disse:
- Está bem, moço. Se for o que deseja e se é o que Sofia quer, a gente vai dar autorização, mas nunca se esqueça de que ela, apesar de ser uma moça pobre, é honesta.
- Nunca duvidei disso, senhor Romeu. - você disse, sorrindo e olhando nos olhos de Sofia, que mesmo sem querer, não pode impedir o brilho deles.
- O senhor pode vir visitar a Sofia, mas só quando a gente estiver em casa. Nunca mais vai fazer o que fez hoje. Não quero que fale com ela quando ela estiver sozinha.
- Está bem, senhor. Pode ficar tranqüilo, não desejo fazer mal algum a Sofia, somente lhe dar toda felicidade do mundo.
- Sofia estava firme mas por dentro tremia inteira. Nunca acreditou que um dia, aquilo pudesse acontecer, mas estava - disse Gusmão.
Romeu perguntou:
- Sofia, a comida está pronta?
- Está, sim senhor.
- Coloca mais um prato, o moço vai comer com a gente.
- Não precisa, senhor Romeu. Estou indo para casa.
- Nada disso. Quem fez a comida foi a Sofia. O senhor precisa comer pra ver se gosta do tempero.
- Sendo assim, eu fico.
Romeu sorriu e disse:
- Agora Sofia, entre e traga aquela da boa pra eu e o moço bebermos enquanto você coloca mais um prato na mesa.
- Sofia, ainda tremendo e acompanhada pela mãe, entrou. Saiu logo em seguida, trazendo uma garrafa de aguardente e dois copos. Romeu encheu um e deu para você, depois encheu outro para ele mesmo. Vocês ficaram bebendo.

A VIDA COMEÇA A MUDAR

Sob a influência de Gusmão, as imagens passavam rapidamente, pela cabeça de Sofia. Ela ia revivendo tudo o que aconteceu em sua vida.
- Daquele dia em diante, você foi todos os dias visitar Sofia, mas só à tarde, quando toda a família estava ali. Ela estava vivendo um sonho. Às vezes sentia medo de que você estivesse brincando, mas sempre que isso acontecia, lembrava-se do banho e que, por causa dele, se casaria de verdade com você. Sentados em dois banquinhos no quintal, sempre que ela ficava confusa e aflita, você dizia:
- Não sei por que ainda não acredita que gosto mesmo de você.
- Até acredito que goste, mas e a sua família? Acha que seus pais vão me aceitar?
- Não aceitariam, por quê?
- Ora, sabe que sou simples e pobre. Seus pais, com certeza, imaginaram para você, uma moça bem diferente de mim... rica e de boa família.
- Já disse que não precisa se preocupar com isso. Meus pais, embora sempre tivessem dinheiro, são muito simples. Eles só pensam em minha felicidade e se eu disser que você é a minha felicidade, aceitarão você sem pestanejar.
- Tem certeza disso?
- Claro que tenho. Pode se preparar que, assim que a casa ficar pronta, faremos uma grande festa e nesse dia, eu apresentarei você a eles.
- Vai fazer isso mesmo?
- Claro que sim. Já conversei com eles, disse que assim que a construção terminar, pretendo me casar. Disse também que você é uma moça simples. Eles querem conhecer você e toda a sua família. Por isso, vou anunciar o nosso namoro no meio de uma grande festa, com todos os amigos e conhecidos presentes.
- Você disse isso, mesmo?
- Disse!
- Eles aceitaram me conhecer?
- Não só a você, mas a toda sua família. Meu pai sempre quis que eu fosse para a faculdade. Fiz a sua vontade e me formei em agronomia, pois não me imagino morando em algum lugar que não seja no campo. Fiz a sua vontade, agora ele tem que fazer a minha. Aceitar você de coração. Sei que não só ele, mas toda a minha família e amigos também farão isso. Por isso, não precisa se preocupar. Tudo dará certo, nós nos casaremos e seremos felizes para sempre.
- Está bem. Prefiro acreditar nisso.
- Assim é que tem que ser. Por que sofrer antes do tempo? Vamos deixar a vida tomar conta de tudo.
- Outra vez, você a convenceu, Pedro Henrique. Passaram-se mais de seis meses. A casa ficou pronta, a fazenda toda cercada e as primeiras cabeças de gado começaram a chegar. Como a sede da fazenda ficava a uns cinqüenta metros da cerca do sítio de Romeu, você mandou que fosse construído um portão que ligava o sítio à fazenda e por ali entrava e saía. A festa foi programada e muitas pessoas foram convidadas. Pedro Henrique, você estava animado e disse para Sofia:
- No próximo fim de semana, vamos fazer a festa de inauguração da fazenda, quero que vá com seus pais até a cidade e compre roupas novas, para todos. Vou apresentá-los à minha família e a meus amigos. Vá até a loja do senhor João e compre tudo do que precisar. Já conversei com ele e sabe que irão até lá. Não se preocupe com dinheiro, compre o que quiser. Quero que esteja bem bonita na festa.
Gusmão continuou:
- Sofia estava exultante, sentia que tudo era verdade e que se casaria mesmo com você e poderia assim, deixar aquela vida de pobreza e, como você disse, poderia até continuar estudando. No dia seguinte, todos foram para o centro da cidade e compraram roupas para a festa. Romeu estava preocupado e disse para a esposa:
- Nadir, será que a nossa filha vai mesmo se casar com este moço rico?
- Acho que sim, se ele não estivesse com boas intenções não ia querer que a gente fosse à festa. Ele disse que vai apresentar a gente pra toda a família. Já pensou, Romeu, a gente vai ter uma filha rica!
- Ela estava muito feliz, nunca em sua vida imaginou que aquilo pudesse acontecer. Sabia que Sofia era uma moça muito bonita, mas sempre pensava: eu também era bonita, mas nunca encontrei um homem rico e bonito como esse. Gosto do Romeu, mas se ele fosse rico eu ia gostar muito mais. Já pensou? A Sofia vai ter tudo o que desejar nesta vida! Ela tem muita sorte! Parece que tem um anjo cuidando da vida dela...
- Ela não sabia, mas todos temos amigos cuidando dos nossos passos e nos ajudando sempre que possível. Não podem interferir em nossas escolhas, mas podem e nos dão boas intuições. Eu e Matilde ficamos o tempo todo e ainda estamos, ao lado de Sofia.
- Tem razão, Gusmão, se quando encarnados soubéssemos disso, muita ansiedade e sofrimento seriam evitados.
- A maioria dos espíritos, Pedro Henrique, quando encarnados, embora aceitem que existe uma força maior, não acreditam realmente e por isso, sofrem muito sem necessidade, mas é assim e será por muito tempo. O espírito, através das reencarnações, tem a oportunidade de ir aprendendo. Sofia havia mudado o que planejara antes de renascer mas, mesmo assim, continuamos ao seu lado. Ela era a nossa missão.
- Mesmo depois de desencarnados, temos uma missão para cumprir?
Gusmão riu com aquela pergunta de Pedro Henrique e respondeu:
- Claro que sim, Pedro Henrique. Você não é daqueles que acreditam que com a morte tudo se acaba. Todo o espírito, esteja onde estiver, encarnado ou não, sempre terá um trabalho para cumprir. Todos estamos aqui tentando fazer com que Sofia encontre o seu caminho para que possa nos acompanhar para esferas mais altas da espiritualidade. Estamos tentando há muito tempo e quem sabe, desta vez, consigamos. Essa é a nossa esperança e a nossa missão. Pedro Henrique sorriu. Ele, quando morreu, foi recebido por sua mãe e ela, a partir daí, lhe deu toda a assistência. Havia lhe contado que a vida após a morte existia e que ele deveria continuar sempre se aprimorando e trabalhando para sua evolução. Por isso, jamais deveria ter feito aquela pergunta, mas já que havia feito, ficou feliz com os esclarecimentos de Gusmão, que continuou falando:
- No sábado pela manhã, toda a família estava eufórica. Começaram a ver os carros e as pessoas chegando. Sabiam que um boi havia sido morto para o churrasco, muitas caixas de cerveja e refrigerantes também chegaram. Sofia vestiu o vestido azul que havia comprado e prendeu seus cabelos com um laço da mesma cor. Estava nervosa, já conhecia os pais de Pedro Henrique, aliás, todos na cidade os conheciam. Sua família já há várias gerações, pertencia à classe política. O coronel José Antônio era pai de quatro filhos, três moças e só um homem, você Pedro Henrique, por isso seu maior desejo era que você também seguisse a carreira política, mas sempre que lhe falava isso, você dizia:
- Pai, não nasci para ser político. Gosto do campo, do gado. Não saberia viver neste mundo de fingimento em que o senhor vive. Teria de aturar pessoas de que não gosto só para ter seu apoio político e conseguir ganhar as eleições. Quem sabe um dia, mas por enquanto não.
- É verdade Gusmão. Eu não suportava pensar em viver no meio daquela gente fingida e dissimulada. O mundo da política não era para mim. Preferia viver ao ar livre e na companhia de animais. Eles sim, eram sinceros.
- Sim, você pensava assim, mas Sofia não. Ela queria pertencer a esse mundo que você detestava, mas naquele dia, ela não pensava em mais nada, a não ser no que aconteceria e como se portaria na festa. Quando já havia muitas pessoas na festa, você, vendo que ela e a família não chegavam, foi até o portão que havia mandado construir e que dividia as duas propriedades. Gustavo, que estava do lado de fora, gritou:
- Sofia, o Pedro Henrique está aqui!
- Ela saiu e foi ao seu encontro. Assim que se aproximou, você disse:
- Como você está linda, Sofia! Por que ainda não foram para a festa?
- A gente não sabia se estava na hora. Eu estava esperando que, quando chegasse à hora, você viesse até aqui.
- Está bem, você ainda não entendeu o seu lugar. Quero que você e toda a sua família vão agora para a festa. Chegaremos todos juntos. Chame seus pais.
- Sofia sorriu, entrou em casa e chamou seus pais e Gustavo. Em seguida, saíram e ao seu lado, entraram na fazenda e caminharam até a sede onde a festa se desenrolava. Você entrou abraçado à Sofia, o que causou curiosidade a todos. Altivo e caminhando firme, você sorria para todos e ao se aproximar de seus pais, disse:
- Pai, mãe, este é o senhor Romeu e esta é dona Nadir, sua esposa. Eles são os pais de Sofia, esta linda moça com quem pretendo me casar.
- José Antônio abriu um sorriso e disse:
- Muito prazer, seu Romeu. Estou feliz que tenha vindo e a toda sua família. Vejo que você é mesmo muito bonita, Sofia. Agora entendo por que meu filho está tão entusiasmado. Mas, vamos entrar: a festa está rolando solta. Tem uma da boa e sei que o senhor vai gostar.
Lembra-se Maria Rita, quando você se aproximou de Nadir e disse:
- Assim como meu marido, estou feliz que a senhora tenha vindo. E ele também tem razão quando diz que sua filha é muito bonita. Sejam bem vindos à nossa casa. Espero que aproveitem bem a festa.
- Lembro-me sim, Gusmão. Pedro Henrique havia me falado muito nela e confesso que estava morrendo de curiosidade. Eu também era de uma família humilde quando me casei com José Antônio e sabia o que ela e sua família estavam sentindo naquele momento, por isso fiz o possível para que ficassem a vontade.
- Fez isso mesmo. Embora estivessem sendo bem recebidos, a família de Sofia não estava sentindo-se bem. Não pertenciam e sabiam disso, àquele lugar, mas fizeram o possível para ficarem o mais natural possível. Gustavo, por ser criança, não sentia a diferença que existia. Logo estava brincando com as outras crianças. Você, Pedro Henrique, sempre com os braços sobre os ombros de Sofia, ia conversando com um e outro e apresentando-a como sua noiva. Claro que os comentários foram muitos. Ninguém conseguia entender como você, um moço de boa família, podia ter se envolvido com uma moça como Sofia. Os comentários eram piores por parte das moças solteiras e de seus familiares que sonhavam em conseguir que uma delas se casasse com você. Todos que estavam na festa começaram a comer e vários grupos foram se formando. A maioria das pessoas que estavam ali fazia parte do mundo político, tinha interesse em ser ou parecer amigo do prefeito, pois sabia que assim, poderia obter alguma vantagem. Romeu e Nadir ficaram ali por um curto espaço de tempo e depois foram embora, deixando os filhos na festa. Eles não se sentiam bem no meio daquelas pessoas tão diferentes deles. Sofia, ao contrário, aos poucos foi se sentindo segura ao seu lado e logo estava conversando com as pessoas. O dia transcorreu no meio de muita alegria. No fim da tarde, quando as pessoas começaram a ir embora você, sempre abraçado a Sofia e na companhia dos pais, ia se despedindo de todos. Quando o último convidado foi embora, você, Maria Rita, olhou nos olhos de Sofia e disse:
- Gostei muito de você. Parece que é uma moça que além de bonita, tem um olhar muito terno. Estou feliz por meu filho ter escolhido você para ser sua noiva.
- Sofia que, a principio sentia muito medo daquele encontro, agora estava tranqüila, pois o seu olhar parecia sincero.
Mesmo assim, não conseguiu dizer nada, olhou para você Pedro Henrique que sorrindo, disse:
- Não lhe disse, Sofia que meus pais a receberiam com todo o carinho e que eles só pensariam na minha felicidade? Ela estava com medo de vir aqui e de encontrar à senhora, mamãe.
- Medo, por quê?
- Ela diz que é uma moça pobre e que a senhora não a aceitaria como minha namorada.
- Pois está muito enganada, Sofia. Eu também quando conheci o José Antônio, vinha de uma família humilde. Mesmo assim, fui aceita por toda a família e ajudada por minha sogra, estudei, aprendi e com isso, me tornei quem sou hoje. Por isso, a sua condição social não me incomoda. A única coisa que me importo é, como Pedro Henrique disse, a felicidade do meu filho. Ele, desde que a conheceu, está muito feliz.
- Mas eu não tenho estudo e não sei me comportar na presença das pessoas que fazem parte de suas amizades.
- Isso para mim não tem importância alguma e também como aconteceu comigo, são coisas que se quiser, poderá aprender. A única coisa que quero é que faça meu filho feliz.
- Ela fará, mamãe. Ela fará. Tenho certeza disso!
Jose Antônio, que estava se despedindo de alguns amigos, se aproximou e ouviu uma parte da conversa. Assim que Maria Rita terminou de falar, ele disse:
- Eu também estou feliz com você, Sofia. Enquanto fizer meu filho feliz, terá todo nosso carinho e apoio para fazer de sua vida o que quiser. Quanto ao estudo e às boas maneiras, como disse Maria Rita, terá todas as chances para aprender.
Sofia ouviu aquelas pessoas que para ela sempre foram tão distantes e ficou emocionada. Apenas disse:
- No que depender de mim, ele será o homem mais feliz deste mundo dona Maria Rita.
- É isso o que importa. Agora, podemos ir embora, estou cansada, o dia foi muito agitado e eu não estou acostumada.
- Também estou cansado, mulher. Não temos mais idade para toda essa agitação.
- Vou levar Sofia até em casa e irei em seguida.
- Eles foram embora. Você, Pedro Henrique e Sofia saíram caminhando em direção a casa dela. Enquanto caminhavam, você disse:
- Não falei que eles iam aceitar você sem problema algum? Minha mãe nunca escondeu sua origem e sempre fez questão de nos ensinar que as pessoas valiam por quem eram e não pelos bens que possuíam. Sei que ela além de aceitar, irá ajudar você para que se torne a mulher que desejar ser.
- Não estou acreditando que tudo isso está acontecendo comigo...
- Mas está e daqui para frente só terá felicidade em sua vida.
- Estou muito feliz e devo tudo isso a você.
- Também estou feliz, mas agora vamos descansar, a partir de amanhã precisamos começar a pensar no nosso casamento.
- Casamento?
- Casamento, claro! Acha que eu vou ficar até quando só namorando? Quero você ao meu lado para o resto da minha vida! Dormir e acordar ao seu lado e ter você como minha mulher!
- Está falando sério?
- Estou, mas sei que você só vai acreditar no dia em que estivermos diante do juiz e depois, diante do padre e me ouvir dizendo sim.
- Ela sorriu. Você parou de andar e a puxou para junto de si, ia beijá-la quando ouviu alguém tossindo. Era Romeu. Estavam tão distraídos, caminhando e conversando que não perceberam que já estavam junto à cerca e bem perto da casa. Romeu disse:
- Boa noite, moço. A festa foi muito boa.
- Foi sim, seu Romeu. Mas por que veio embora tão cedo?
- Eu tinha que preparar a mercadoria para levar à feira amanhã bem cedo. Sabe que vivo do que planto.
- Sei disso, mas foi uma pena. A festa estava muito boa. Estou indo agora mas voltarei amanhã para conversarmos a respeito do nosso casamento.
- Casamento?
- Sim, casamento. Pretendo me casar o mais rápido possível com Sofia.
- Tem certeza disso, moço?
- Tenho sim, mas só conversaremos amanhã.
- Seus pais estão de acordo?
- Claro que estão, mas é melhor deixarmos para amanhã. Hoje bebi um pouco além da conta e estou cansado. Boa noite.
- Boa noite... disse Romeu, um pouco assustado com aquela conversa.
- Você passou a mão sobre os cabelos de Sofia, voltou para a casa da fazenda, montou em seu cavalo e foi embora.
- Lembro-me muito bem daquele dia, Gusmão e de como estava feliz.
- Sofia entrou em casa. Estava muito feliz. Sua mãe que ouviu a conversa, com os olhos brilhantes, disse:
- Sofia! Ele quer mesmo se casar com você?
- Acho que sim, mãe! Ele disse que vai conversar com o pai e que quer marcar a data.
- A mãe dele concordou?
- A senhora não sabe, mas ela também era pobre! Ela disse que foi a sogra que a ajudou para que se tornasse a mulher que é hoje e que se eu quiser, ela vai fazer o mesmo comigo!
- Que bom, minha filha! Você vai ser uma mulher rica e vai poder fazer aquilo que sempre quis, sair desta casa e estudar.
- Eu não queria sair desta casa mãe, eu queria sair deste lugar, desta vida...
- De qualquer maneira precisa agradecer muito a Deus por tudo o que está fazendo com sua vida.
Ele está lhe dando a oportunidade de cumprir sua missão. Acho que ela está começando agora.
- Não estou entendendo o que a senhora está querendo dizer. Que missão? Que conversa é essa, mãe?
- Parece que Nadir não estava ali. Como se estivesse voltando de um lugar distante, respondeu:
- Não sei... deu-me vontade de falar isso...
- Sofia, surpresa, olhou para a mãe e também não entendeu de onde havia surgido aquela conversa. Sem que nos vissem, eu e Matilde estávamos ao lado delas. Matilde, retirando a mão que estava sobre a garganta de Nadir, disse:
- É Gusmão, ela está mesmo começando sua missão.
- Sei disso, Matilde. Vamos esperar que ela consiga, sabemos que não será fácil. Mas agora, já podemos ir embora. O resto ficará por conta de Sofia...
- Beijamos Sofia e Nadir e fomos embora.

O CASAMENTO

Stela continuava dirigindo e tomando cuidado com os buracos da estrada. Percebeu que Sofia permaneceu o tempo todo calada. Estranhou, pois Sofia gostava muito de falar. Perguntou:
- O que está acontecendo, dona Sofia?
- Por que está perguntando isso?
- Estamos já nesta estrada há quase meia hora e a senhora permaneceu o tempo todo calada. No que está pensando?
- Não sei, Stela, mas desde que acordei pela manhã, não paro de pensar na minha vida. De como ela foi, das pessoas que conheci e do rumo que ela tomou. Neste momento, estava relembrando do meu casamento e como foi.
- A senhora nunca me contou como foi. Sei que era uma moça pobre e que se casou com o senhor Pedro Henrique, mas nunca soube como isso aconteceu. Parece que a senhora viveu um conto de fadas com príncipe encantado!
- Com cavalo branco e tudo! - Sofia disse rindo. Um dia qualquer eu lhe conto como tudo aconteceu, mas não vai ser hoje. Preciso me concentrar no que vou pedir para o homem. O trabalho precisará ser muito bem feito. Tem de ser definitivo.
- A senhora não vai mudar mesmo de idéia?
- Claro que não, Stela! Não suporto aquela mulher! Ela precisa sair das nossas vidas!
Stela sabia que não adiantava continuar insistindo. Conhecia Sofia e sabia que quando ela decidia alguma coisa, nada poderia ser feito para que mudasse de idéia. Resolveu se calar. Embora Sofia tivesse dito que não queria falar, ainda sob a influência de Gusmão, não conseguia parar de relembrar: Com o pedido de casamento de Pedro Henrique e depois da festa, eu fiquei muito empolgada. Sabia que, agora não tinha mais volta. Tudo estava correndo muito rápido em minha vida. A maneira como fui recebida por seus pais e principalmente por sua mãe me encorajou ainda mais. Em uma tarde, Pedro Henrique disse para meu pai:
- Senhor Romeu, minha mãe está convidando o senhor e sua família para um almoço no domingo. Ela quer combinar como será o nosso casamento.
- Casamento? Não é ainda muito cedo, vocês acabaram de se conhecer!
- Para mim, não é. Assim que vi Sofia pela primeira vez, soube que ela seria a mulher com quem quero viver para o resto da minha vida. E você, Sofia, acha que é muito cedo?
Eu estava muito nervosa e com a voz trêmula, respondi:
- Não, também gosto muito de você, Pedro Henrique. Se você acha que já está na hora de a gente se casar, também quero. Vou fazer sempre tudo o que você quiser.
- Então está bem. Pode avisar sua mãe que a gente vai no domingo. - disse meu pai.
Stela a interrompeu:
- Dona Sofia, será que se houver mesmo uma separação, Ricardo não vai sofrer muito?
Sofia voltou de seus pensamentos e respondeu:
- No começo pode ser que sofra, mas encontrarei uma moça para lhe fazer companhia. Não se preocupe Stela, tudo vai ficar bem.
Stela outra vez se calou e continuou dirigindo. Gusmão voltou a falar e Sofia continuou relembrando:
- No domingo todos se arrumaram da melhor maneira que conseguiram. Romeu preparou a carroça e foram felizes para a cidade. Você, Maria Rita, por entender a situação deles, pois já havia passado por igual, os recebeu com um largo sorriso, dizendo:
- Sejam bem vindos. José Antônio não está em casa, foi visitar um amigo que está doente, mas voltará antes do almoço.
- Entraram naquela casa que só viam quando passavam pela rua e que sabiam ser a casa do prefeito, por isso nunca imaginaram que um dia iriam até lá. Estavam preocupados. Sofia estava com medo de que seus pais e Gustavo não soubessem se comportar. Queria mesmo se casar e por isso, nada de errado podia acontecer. Você, Maria Rita, percebendo o nervosismo dela, tentou colocá-los à vontade, dizendo:
- Sei que estão nervosos, mas não precisa. Também sou de família humilde e também eu e meus pais ficamos nervosos quando fomos pela primeira vez na casa de José Antônio, mas depois do casamento a mãe dele fez questão de me ensinar tudo o que sei e de continuar a amizade com a minha família. Enquanto minha mãe e meu pai viveram, sempre nos visitaram e nós o visitamos também. Meus irmãos e a família sempre vêm aqui em casa. Ter dinheiro ou educação é só uma questão de momento. De repente, tudo pode mudar para melhor ou pior.
- Ao ouvir aquilo, Sofia e seus pais ficaram mais tranqüilos e, em pouco tempo, estavam conversando como se já se conhecessem há muito tempo. Combinaram tudo. Enxoval, roupas, igreja, festa e convidados. Marcaram o casamento para três meses depois, tempo que acharam suficiente para que tudo fosse preparado. Sofia ouvia os pais conversando e enquanto isso pensava: vou me casar mesmo! Mas o melhor de tudo é que vou sair daquele lugar, poder realizar o meu sonho de estudar...
- Depois de tudo combinado, voltaram para casa. Nadir e Romeu também estavam felizes. Sua filha iria se casar o que sempre foi uma preocupação deles, pois temiam que ela ficasse solteirona. Ela estava com dezessete anos e seu tempo já estava passando. Nadir estava mais feliz do que todos, pois Sofia além de casar, o faria com um homem como você, Pedro Henrique, rico e poderoso.
- Nunca imaginei que isso estivesse acontecendo, Gusmão. Estava feliz demais, só pensava em Sofia e em quanto eu gostava dela...
- Sei disso, você estava completamente apaixonado. - Gusmão disse, rindo, e continuou:
- Faltava um mês para o casamento. Você disse:
- Sofia, estive conversando com meu pai e disse que quero morar na fazenda.
- Na fazenda?
- Sim, na fazenda. Desde pequeno sempre gostei de lidar com gado e lavoura. Por isso fui estudar agronomia. Também para você, vai ser bom, pois poderá continuar perto da sua família. Não quero ver você triste, sentindo saudade deles.
- Ela levou um susto, mas disfarçou, apenas sorriu, pensando: não era isso o que eu queria. Não quero morar em fazenda alguma! Quero morar na cidade, fazer parte da sociedade, ter roupas bonitas e freqüentar festas. Mas não posso dizer agora. Depois do casamento, encontrarei uma maneira de fazer com que ele mude de idéia.
- Como que se adivinhasse o que ela estava pensando, você falou:
- Talvez você esteja preocupada em não poder estudar, mas agora não será mais necessário. Terá muito trabalho, sendo mãe e esposa. Comprarei todos os livros que quiser ler.
- Ela, com muita raiva por dentro, sorriu e disse:
- Está bem, vou fazer tudo o que você quiser.
- Nadir que estava ao lado, ao ver o que Sofia disse, ficou olhando para ela e pensando: sei que ela não quer morar aqui, ao contrário, quer ficar bem longe de toda esta pobreza, mas parece que está disposta a fazer tudo para se casar com Pedro Henrique. Fico feliz, pois sei que ele é um ótimo rapaz e que vai fazer tudo para que ela seja feliz.
- Terminaram a conversa a esse respeito e começaram a falar sobre o casamento que estava se aproximando. Você, Maria Rita, levou Sofia e Nadir a uma modista famosa na cidade. Lá, foram-lhe mostrados vários figurinos de vestidos de noiva. Sofia olhou, olhou, mas não conseguiu se decidir qual era o mais bonito. Perguntou:
- Dona Maria Rita, qual a senhora acha que é o mais bonito?
- Eu já escolhi um, mas quem tem de decidir é você, Sofia.
- E a senhora, mãe? Qual é o mais bonito?
- Também não consegui escolher, são todos tão bonitos...
- Depois de muito olhar, Sofia se decidiu por um feito com renda e cetim.
- Lembro-me muito bem daquele dia, Gusmão e depois do modelo escolhido, eu as levei até à loja de tecidos que havia na cidade. Compramos o tecido e voltamos para a modista. Eu estava muito feliz, pois via como Pedro Henrique gostava daquela moça e só queria a sua felicidade. Ele sempre fora um ótimo filho e merecia ser feliz. - disse isso, olhando para Pedro Henrique que, emocionado, beijou-a na testa. Gusmão continuou:
- Em casa à noite quando se deitou, Sofia ficou pensando: como vai ficar lindo o meu vestido... quando eu poderia imaginar que o meu casamento seria assim, tão grandioso. Mas, deve ser porque mereço...
- Adormeceu, ainda pensando no vestido e na festa. No dia seguinte, continuaram a maratona de compras. Com a sua presença sempre constante, Maria Rita, compraram todo o enxoval, desde pano de prato até toalhas de banho, lençóis, fronhas, cobertores e colchas. O dia do casamento chegou. Sofia estava nervosa e ansiosa. Nadir ficou ao seu lado o tempo todo, tentando fazer com que ela se acalmasse, embora soubesse que era uma coisa quase impossível. A festa foi grandiosa e pessoas e políticos importantes da cidade e de outras localidades compareceram. Sofia, como toda noiva, estava feliz com aquela festa grandiosa. Embora tivesse ao longo de sua vida sonhado com esse dia, nunca imaginou que seria tão maravilhoso. Mas mesmo assim, não se sentia segura o bastante para conversar com as pessoas. Recebia os cumprimentos, sorria e se afastava. Tinha medo de falar alguma coisa que não fosse do agrado das pessoas. Sabia que Pedro Henrique a amava. Sabia que havia sido bem recebida por toda a sua família. Sabia que seria feliz ao seu lado, mas sentia-se diminuída e como nunca aceitou sua condição de humilde e pobre, mesmo vivendo aquele momento de felicidade, sentia medo. Nadir estava feliz por ver a filha se transformando em uma dama da sociedade. Sabia que, com aquele casamento, Sofia teria tudo com o que sempre sonhou. Tinha certeza de que você faria de tudo para que ela fosse feliz.
- Eu também estava muito feliz, Gusmão. Aquele casamento era tudo o que mais queria naquele momento.
- Mesmo antes de a festa terminar, vocês despediram-se e foram para o Rio de Janeiro passar a lua de mel. Você já conhecia a cidade, mas Sofia não e era um de seus sonhos. Quando ela falou de sua vontade, você sorrindo disse:
- É uma vontade sua, pois será a primeira de muitas que vou realizar. Só quero que seja feliz.
- Eu, naquele tempo e durante toda a nossa vida juntos, sempre fiz todas as suas vontades. Queria realmente fazê-la feliz. Ir para o Rio de Janeiro era o mínimo que poderia fazer. Lembro-me de como ela exultou de felicidade e como me beijou carinhosamente.
- Isso é verdade, ela estava realmente muito feliz e essa felicidade duraria para sempre se ela, apesar de saber o quanto você gostava dela, não confiasse o bastante nesse amor.
- Por que está dizendo isso, Gusmão? Que mais aconteceu que eu não fiquei sabendo?
- Muita coisa, Pedro Henrique... muita coisa... mas deixemos para depois. Neste momento, estamos aqui para tentar fazer com que ela não cometa mais um erro. Vamos aguardar.

MUITO MAIS DO QUE UM SONHO

Sofia enquanto pensava, ficava nervosa com a demora em chegar à casa do homem. Ela balançava a cabeça, tentando afastar os pensamentos, mas não conseguia. Stela também estava ficando cansada e nervosa, pois quando aceitou acompanhar Sofia não pensou que a casa ficasse tão longe. Além disso, não imaginou que teria de passar por uma estrada como aquela, o que tornava a viagem mais demorada. Mesmo assim, não haveria mais volta, deviam estar chegando. Gusmão continuou falando:
- Vocês ficaram viajando por mais de um mês. A lua de mel foi maravilhosa. Você, Pedro Henrique, sempre carinhoso parecia que adivinhava todos os desejos de Sofia. Quando lhe mostrou o Pão-de-Açúcar e disse que tomariam aquele bondinho que no momento passava por sobre suas cabeças, ela ficou com medo e disse que não queria ir, mas você a convenceu e foram para a estação. Quando o bondinho começou a subir, ela segurou firme no seu braço, mas aos poucos, foi se encantando com a beleza que se deslumbrava e foi se soltando. Em poucos minutos, olhava para aquela paisagem linda e ria de satisfação. Foram ao Corcovado, e outra vez, ela se encantou. Para ela, que nunca havia saído daquela cidade em que nasceu e o lugar mais longe a que tinha ido era o centro da cidade, tudo aquilo era um deslumbramento. Ficou mais encantada ainda quando viu o mar e entrou nele. Aquela água salgada batendo em seu corpo a fazia rir como se fosse uma criança. Tudo estava perfeito. Ela não parava para pensar em tudo o que estava acontecendo em sua vida e quase não se lembrava mais daquela menina pobre que havia sido até então. Chegaram à cidade e foram para a sua casa, Maria Rita.
Você sabia que eles chegariam naquele dia, por isso mandou preparar um almoço bem do gosto de Pedro Henrique. Eles chegaram cansados da viagem, mas felizes. Você, Maria Rita, perguntou como havia sido a viagem e os dois, falando quase ao mesmo tempo, foram contando tudo. Durante o almoço você, Pedro Henrique, deu ao seu pai um cachimbo com cabo em marfim que havia comprado para ele. Sofia deu à Maria Rita algumas miniaturas do Corcovado e do Pão-de-Açúcar que havia comprado para ela. Ficaram o tempo todo falando sobre a viagem. Depois do almoço, mostraram todas as fotografias que haviam tirado. Quando estavam se despedindo você, Maria Rita, disse:
- Pedro Henrique, vou organizar um almoço no domingo, assim suas irmãs poderão vir. Elas e as crianças estão morrendo de saudade e também querendo saber como foi à viagem. Convide seus pais, Sofia.
- Obrigada, dona Maria Rita vou convidar mas não sei se eles vão querer vir. A senhora sabe como eles são...
- Sei, sim. No começo é assim, para mim também foi difícil fazer com que a minha família começasse a freqüentar a nossa casa. Mas com o tempo e com muita paciência, você vai conseguir fazê-los entender que agora, eles fazem parte da nossa família e que serão sempre bem vindos à nossa casa. Tente Sofia, verá que logo estaremos todos juntos almoçando em uma mesma mesa.
- Vou tentar...
- Lembro-me desse dia e aceitei o que Sofia disse pois realmente, havia passado por aquilo e talvez por isso, não tenha dado tanta importância. Sabia que seria só uma questão de tempo.
- Você pensava assim, mas Sofia não. Pensava exatamente o contrário. Despediram-se e foram para a casa na fazenda, que ficava distante mais ou menos quarenta minutos da cidade. Por ser longe da cidade, a estrada que levava até ela era de terra, por isso Pedro Henrique ia sempre a cavalo. Agora que Sofia também teria de ir, eles foram em um jipe. Quando chegaram, já estava quase anoitecendo. Estavam cansados e sujos da poeira da estrada. Sofia entrou naquela casa que daquele dia em diante seria sua. Já tinha estado lá muitas vezes mas só naquele momento olhou tudo mais detalhadamente. Por ser recém construída, os móveis e a decoração eram todos novos e de muito bom gosto. Quem escolheu tudo foi você, Maria Rita. A casa era enorme. Fora construída para a sua família, Maria Rita, por isso tinha oito quartos. Um para você e José Antônio, outros três para cada uma das suas filhas e seus maridos, dois para as crianças, um para Pedro Henrique e ou outro para hóspedes. Sofia caminhou por todos os compartimentos da casa. A cada quarto em que entrava, ia se encantando com o tamanho e a decoração. Ao entrar naquele que seria o seu, parou à porta e ficou olhando. Durante a viagem você havia mandado decorá-lo. Aquele que seria um quarto de solteiro se transformou em um lindo quarto de casal, digno de uma noiva. Sofia ficou sem saber o que dizer. Pedro Henrique, que estava ao seu lado, começou a rir e disse:
- Este é o nosso quarto, Sofia. Gostou?
- Ela, quase sem conseguir falar, respondeu com a voz entrecortada pela emoção.
- É lindo, Pedro Henrique...
- Não mais do que você. Minha mãe me perguntou se podia decorar o quarto, eu disse que sim. Sei que ela tem muito bom gosto, mas confesso que até eu estou abismado. Está realmente muito bonito.
- Bonito? Está maravilhoso! Sua mãe é também uma mulher maravilhosa!
- É sim, a melhor mãe do mundo. Mas agora, vamos tomar um banho e tirar toda essa poeira do corpo. Depois vamos jantar. Estou morrendo de fome.
- Jantar? É mesmo, preciso fazer o jantar. Será que sua mãe fez compras de mantimentos? Deve ter feito. Ela pensa em tudo. Enquanto você toma banho, vou começar a preparar a comida. Depois, enquanto as panelas ficam no fogo, vou também tomar banho.
- Você sorriu e disse:
- Você ainda não visitou todas as dependências da casa, falta à cozinha. Se quiser começar a preparar o jantar, é melhor ir até lá.
- Ela começou a rir:
- Está bem, vou até lá e vou começar o jantar. Vá para o banheiro.
- Você beijou-a. Ela saiu rindo. Quando estava se aproximando, sentiu cheiro de comida que por sinal, estava muito bom. Entrou na cozinha e uma mulher sorridente disse:
- Boa noite, senhora. O jantar está quase pronto. Espero que goste do meu tempero.
- Sofia, com a boca aberta ficou parada à porta. Sentiu braços em seus ombros, se voltou e Pedro Henrique disse:
- Esta é Delzira, ela é mulher de um dos empregados da fazenda. Eles moram em uma das casas que mandamos construir para os empregados. Ela vai cuidar da cozinha e da nossa alimentação.
- Sofia olhou para aquela mulher que sorria. Ficou sem poder falar por alguns segundos, depois disse:
- Muito prazer, Delzira. Tenho certeza de que vou gostar muito da sua comida.
- Estavam ali, quando pela porta entrou uma outra mulher que ao ver vocês, se assustou e tentou sair novamente, mas você disse:
- Não precisa se assustar, Noélia, não vamos comer você. Sofia, esta é Noélia. Ela e Delzira cuidarão da casa e de tudo por aqui.
- Sofia olhou para ela e sorriu. Não sabia o que fazer, pois durante toda sua vida foi quem cuidou da casa e da alimentação de sua família. Não conseguia acreditar que, dali para frente teria quem cuidasse dela e de tudo. Emocionada não conseguiu falar, apenas sorriu. Você, ao perceber que ela estava emocionada, disse:
- Agora, enquanto elas terminam o jantar, vamos tomar o nosso banho.
- Saíram abraçados. Jantaram e não tiveram o que reclamar. A comida estava realmente muito boa. Após o jantar, foram para a varanda que rodeava toda a casa. Em frente à porta da sala, havia duas poltronas em vime. Uma maior e a outra menor. Abraçados, sentaram-se na maior. Sofia colocou a cabeça sobre as suas pernas e ficaram olhando para o céu.
Estava uma noite linda, fresca e com um luar que convidava ao romance. O céu, muito estrelado, tanto que parecia que uma estrela estava a dois centímetros da outra. Sofia fechou os olhos e ficou se lembrando de como era sua vida até ter conhecido você e no que ela se transformara. Você, acariciando seus cabelos, disse:
- Espero que você seja muito feliz aqui, Sofia, mas se alguma coisa a incomodar, basta só me dizer.
- Estou e sei que vou ser feliz aqui, Pedro Henrique. Eu amo você, isso é o que me dá a certeza de que vou ser feliz.
- Você beijou seus cabelos.
- Também amo você... agora, não acha que está na hora de irmos dormir?
- Queria ficar mais um pouco de tempo aqui, Pedro Henrique. Pode ir, daqui a pouco vou também.
- Estou cansado. Amanhã preciso acordar cedo. Tenho muito trabalho a fazer. As férias terminaram.
- Você se levantou, deu um beijo em sua testa e entrou em casa. Sofia continuou ali sentada, olhando para o céu e para as estrelas. Seu coração estava feliz. Eu e Matilde, embora não pudéssemos ser vistos, estávamos lá. Matilde disse:
- Apesar de Sofia ter mudado o planejado, está tudo caminhando bem, Gusmão. Eles se encontraram e embora Sofia tenha escolhido Pedro Henrique, desta vez também está tendo toda a oportunidade de se redimir. Espero que ela consiga
- Também espero, Matilde, também espero...
- Sofia, sem imaginar que nós estávamos ali, levantou-se e encostou-se na grade que separava a varanda do quintal. Olhou ao longe e viu uma luz muito fraca acesa. Sabia que aquela era a sua casa, onde seus pais e irmão naquele momento, deveriam estar dormindo. Pensou: Dona Maria Rita quer que eu os convide para o almoço em família, mas como posso fazer isso? Eles não sabem se comportar, nunca viram uma mesa daquele tamanho e com tudo colocado em seu lugar. Já imaginou o que vão fazer quando virem todos aqueles copos e talheres? Eu mesma me confundo e só começo a comer quando todos já estão comendo. Eu tenho esse cuidado, pois não quero parecer um bicho do mato, mas eles não vão se preocupar com isso. Também sei que dona Maria Rita não está preocupada em unir nossas famílias. O que ela quer mesmo é me humilhar. Ela pensa que não sei o que ela quer desde quando me viu? Quer que Pedro Henrique descubra que eu não presto para ele! Por isso vem com todo aquele carinho e toda aquela bondade! Tudo mentira, não pode existir alguém tão bom assim! Ela, desde que me conheceu, sabendo que eu era humilde e pobre, tomou conta de tudo! Foi ela quem escolheu meu vestido, meu enxoval e como e onde seria a festa. Decorou o meu quarto. Colocou comida na minha dispensa e até contratou as empregadas! Acha mesmo que eu não tenho capacidade!
- Matilde olhou para mim e com a voz triste, disse:
- Gusmão, parece que tudo vai se repetir...
- Esperemos que não, Matilde. Isso é um pensamento de momento.
- Matilde elevou a sua mão e estendeu-a sobre a cabeça de Sofia que imediatamente pensou: bem, o meu vestido não, ela não quis escolher, deixou que eu escolhesse e pensando bem, o resto também. Acho que ela não é tão ruim assim. Só muito preocupada com os filhos. Por isso mesmo não deve estar contente com a escolha de Pedro Henrique. Mas agora não adianta pensar, Pedro Henrique está no quarto me esperando.
- Sofia respirou fundo, olhou mais uma vez para sua casa e para o céu e entrou. Quando ela entrou no quarto, Pedro Henrique a recebeu com um sorriso. Ela se deitou e tiveram uma noite de amor. Olhei para Matilde, sorri e disse:
- Desta vez, Matilde acho que conseguiremos fazer com que ela aja diferente.
- Espero que sim, mas sabe muito bem que só podemos intuir bons pensamentos, não podemos interferir nas suas decisões.
- Ela estava totalmente errada, Gusmão! Eu a recebi com carinho e gostei dela desde a primeira vez que a vi. Sabia que meu filho gostava dela e só queria a sua felicidade. Nunca pensei que ao ajudá-la a escolher o vestido de noiva, cuidar da festa e da decoração, tivesse causado essa impressão - Maria Rita disse, com a voz triste.
- Não precisa ficar triste, Maria Rita, você fez o que achou ser o certo. Sofia é quem era insegura, por isso precisava achar um culpado para seu possível fracasso no casamento. Mas como sabemos, nada disso aconteceu. Ela e Pedro Henrique continuaram casados por muito tempo. Em parte, ela conseguiu se livrar daquela insegurança.
- Realmente, isso aconteceu. Neste momento, vamos torcer para que tudo caminhe como o combinado. Quando ela entrou em minha família, foi recebida como uma filha e irmã.
- Sim, como acontece com todos os espíritos encarnados ou não, quando o caminho está certo todas as oportunidades são dadas.
- Ao contrário, aprendi que se o caminho está errado por mais que se faça, nada dá certo. Se todos soubessem disso não insistiriam e escolheriam outro caminho, não é Gusmão?
- Talvez, mas o importante é o aprendizado que se adquire com os acertos e erros. Essa é a razão principal da vida de um espírito. O aprendizado...
- É tudo muito complicado, Gusmão...
- Não é não, Maria Rita, é tudo muito simples. O espírito é quem complica.
- Por que está dizendo isso?
- A vida será como o planejado. No final, embora o caminho possa ser desviado, tudo voltará ao rumo. O que sempre estragou e ainda estraga é a ansiedade, a falta de fé na bondade de Deus que nunca abandona seus filhos. Todos, independentes de religião, raça ou condição social têm sempre espíritos amigos ao seu lado. Basta apenas confiar.
Pedro Henrique começou a rir. Gusmão estranhou e perguntou:
- Por que está rindo, Pedro Henrique?
- Desculpe Gusmão, mas ao ouvi-lo falando assim, só posso pensar que esse entendimento só é adquirido depois da morte, pois quando estamos encarnados e nos momentos de dificuldade, jamais teremos tempo para pensarmos assim. A vida, muitas vezes se torna muito difícil e é quase impossível acreditar no que está dizendo.
- Tem razão, isso acontece muitas vezes, mas se prestar atenção, verá que tenho razão e que no final, tudo sempre dará certo. Pedro Henrique basta se ter paciência e a certeza de que o nosso Criador não nos abandona nunca.
Pedro Henrique se calou e ficou refletindo sobre o que Gusmão havia dito. Sofia e Stela continuavam na estradinha repleta de buracos.

DISCRIMINAÇÃO

Stela estava cada vez mais nervosa e arrependida por haver aceitado o convite, mas ficou calada. Sabia que não podia nem devia afrontar Sofia. Anita tentou se impor e tornara-se inimiga e alvo principal do ódio dela. Estava dirigindo quando, na estrada diante delas, apareceu um pedaço completamente tomado por água. Stela parou e disse:
- Nesse pedaço tem muita água, o que vamos fazer?
Sofia, assim como ela estava nervosa, mas sua vontade de chegar logo e resolver o assunto fez com que respondesse:
- Não podemos ficar paradas, Stela. Atravesse.
- Se houver um buraco e o carro encalhar?
- Isso não vai acontecer. De qualquer maneira, precisamos continuar, não podemos fazer outra coisa. Atravesse, Stela!
- A senhora tem certeza? Não seria melhor esperarmos alguém que conheça a estrada ou que passe primeiro para vermos se não há problema?
- Nada disso! Você não viu quanto tempo tivemos de esperar até que alguém chegasse e nos ajudasse a trocar o pneu? Não podemos esperar mais, estamos muito atrasadas!
Stela, sabendo que não havia outra coisa a fazer, colocou o carro na primeira marcha e entrou na água. O carro começou a andar, mas logo depois de passar a primeira roda, encalhou. Stela se desesperou, acelerou com mais força, o carro derrapou e afundou mais no buraco. Ela, depois de tentar muito, desligou o carro e disse:
- Não tem jeito, dona Sofia, não vamos conseguir passar. Se eu tentar mais, o carro vai atolar sempre mais. O que vamos fazer?
- Não sei, Stela! Só sei que não podemos ficar paradas! Você precisa sair desse buraco!
- Não tem como, dona Sofia! Se eu tentar mais, vai ficar pior!
- Precisa tentar!
Stela estava muito nervosa e arrependida de ter acompanhado Sofia. Quase gritando disse:
- Que coisa, parece que alguém está querendo impedir que cheguemos à casa do tal homem! Não será melhor assim que conseguirmos sair deste buraco, voltar, dona Sofia?
Pedro Henrique e Maria Rita olharam para Gusmão que sorriu e disse:
- Stela tem toda razão. Alguém está tentando fazê-las voltar. Estão no caminho errado. Isso sempre acontece, mas é difícil entendermos.
- Não estou entendendo, Gusmão.
- Neste momento, está acontecendo com elas aquilo que eu havia dito. Nesta viagem, por estar no rumo errado, muita coisa aconteceu e talvez ainda aconteça. Sofia não deve fazer o que está pretendendo. Como Deus nunca nos abandona, está colocando alguns empecilhos em seu caminho para que pare o que está fazendo e reflita. Isso sempre acontece em muitas ocasiões. Ela deveria parar, refletir no que está fazendo e mudar de atitude. É assim que o plano espiritual trabalha.
- Deixando a pessoa desesperada, sem saber o que fazer ou que caminho tomar? Isso não é justo, por que não é mostrado o caminho certo, Gusmão!
- Está se esquecendo do livre arbítrio, da lei da escolha? Sofia não tinha o direito de interferir na vida do filho. Ela, se não fosse o orgulho e o ódio que sente por Anita, deveria deixar que vivessem em paz. Está fazendo esta viagem com a intenção de praticar o mal.
- Neste caso, você tem razão, mas há outros, quando o desejo não é de fazer o mal, mas simplesmente de se conseguir algo na vida. Um trabalho, um negócio, enfim, um modo de sobreviver. Por que o caminho não é mostrado? Se isso acontecesse, muito sofrimento e desespero seriam evitados...
- No momento em que as coisas começam a não dar certo é hora de parar, refletir no que está fazendo e com certeza, se entenderá o que está errado e assim, pode-se mudar. Se a mudança for a certa, tudo começará a caminhar e não haverá empecilho algum. Esse é o único caminho que se tem para seguir. Se estiver perdido em algum lugar e começar a andar sem rumo, vai rodar, rodar e voltar sempre ao mesmo lugar. Só vai conseguir encontrar o caminho se parar, olhar à volta com atenção. Assim acontece com a vida.
- Isso é fácil de dizer, mas quando os problemas são muitos, não se consegue pensar com clareza e muito menos parar.
- Por isso, é preciso deixar a ansiedade de lado, acreditar em Deus e caminhar. A vida sempre vai dar toda a oportunidade para se encontrar o caminho, o resto deverá ser feito pelo indivíduo. É preciso aprender a confiar...
- Continuo dizendo que é muito difícil, Gusmão...
- Difícil sim, Pedro Henrique, mas não impossível. Por mais que demore, sempre o caminho será encontrado.
- O que vai acontecer agora com Sofia e Stela?
- Terão de ficar um bom tempo aqui paradas. O tempo suficiente para que reflitam no que estão fazendo e se Deus quiser, quando forem tiradas desse buraco, retornem e não façam o que estão pretendendo.
- Acha que isso pode acontecer? Sabe que Sofia sempre foi muito determinada.
- É mais uma chance que está tendo. Está acontecendo o que lhe disse. Existe um ditado muito antigo que diz: A vida, quando o caminho está errado, coloca empecilhos mas quando está certo, faz com que tudo dê certo, mas sempre respeitando o livre arbítrio de cada um . Nada mais podemos fazer a não ser que ela mesma decida. Está tendo um tempo para refletir. Vamos esperar, pois aconteça o que acontecer, como diz o ditado, a vida ensina.
Stela olhou para fora e viu que a água estava no meio do pneu. Disse:
- Dona Sofia, não podemos descer, a água está no meio do pneu. Precisamos ficar aqui dentro.
Sofia, irritadíssima, disse:
- Já percebi isso, o que vamos fazer Stela?
- Nada temos para fazer a não ser esperar que alguém apareça e nos ajude a sair daqui. Não sei, dona Sofia. A senhora sabe que não sou muito religiosa, mas estou impressionada com tudo o que está acontecendo. Será que Deus não está nos mostrando algo? Não está tentando nos mostrar que será melhor, assim que alguém nos ajudar, voltar para casa?
- Nada do que está acontecendo estava em meus planos e isso me deixa muito irritada! Sempre conduzi minha vida como quis e nunca permiti que nada me afastasse de meus planos. Esses incidentes de hoje não vão fazer com que mude de idéia! Nem que seja meia noite, vou chegar à casa do homem e fazer o que tem de ser feito!
Stela, conhecendo Sofia, se calou. Olhou para trás e no banco havia alguns livros. Pegou um deles e disse:
- Já que temos de esperar, vou ver se consigo terminar de ler este livro. Ele é muito interessante e já estou quase no fim. Se a senhora quiser ler, tem mais alguns e todos são muito bons.
Dizendo isso, abriu o livro na página que estava marcada e começou a ler. Sofia olhou para os livros, escolheu um e começou a ler também, mas logo nas primeiras páginas percebeu que não estava conseguindo acompanhar a leitura. Seu pensamento, ainda pela influência de Gusmão, continuou voltado para o passado. Gusmão e outros que acompanhavam todos os seus movimentos olharam para elas e sorriram. Gusmão disse:
- Agora posso continuar, pois elas ficarão aqui paradas por um bom tempo. No dia seguinte, após aquela primeira noite que passaram na casa nova, você, Pedro Henrique, acordou cedo. Olhou para o lado e viu que Sofia dormia profundamente. Sorriu, se levantou e saiu bem devagar do quarto. Ela, embora parecesse estar dormindo, ouviu você saindo, mas estava com muito sono, virou-se na cama e voltou a dormir. Você foi para a sala onde a mesa do café já estava servida. Tomou seu café e foi se encontrar com Josias, o capataz da fazenda. Uma hora depois, Sofia acordou. O quarto estava escuro. Ela olhou para o relógio que estava sobre o criado mudo e espantou-se ao ver que eram quase nove horas da manhã. Sentou-se na cama e pensou, assustada: Nossa, são quase nove horas! Como dormi! Sempre acordei muito cedo para poder cuidar de tudo lá em casa. Definitivamente, minha vida mudou muito. Ainda bem que foi para melhor.
- Levantou-se, trocou-se e saiu do quarto. Quando chegou, percebeu que a mesa estava colocada mas mesmo assim, foi para a cozinha. Viu Delzira junto ao fogão.
- Bom dia, Delzira.
- Delzira se voltou e ao ver Sofia, sorriu e disse:
- Bom dia, senhora. Pode se sentar lá na sala, já vou levar o café.
- Sofia começou a rir. Delzira sem entender, perguntou:
- Por que a senhora está rindo?
- Sofia queria responder, mas não conseguia. Delzira, ainda sem entender, continuou olhando para ela que depois de algum tempo parou de rir e disse:
- É disso que estou rindo. Uma senhora da sua idade me chamando de senhora. Como pode?
- Ah, é disso. A senhora é a mulher do patrão e dona da casa...
- Sei que deve ser assim, mas para mim é muito estranho...
- Delzira, calada, ficou olhando para ela sem saber o que dizer. Saber ela sabia, mas não tinha como falar, apenas pensou: tem razão, é ainda uma menina e já é dona de tudo por aqui e muito mais. Eta menina de sorte...
- Sofia saiu da cozinha e foi para a sala. Sentou-se e ficou esperando que Delzira trouxesse café e leite, pois os pães e bolos já estavam sobre a mesa. Delzira entrou logo em seguida e colocou o que faltava sobre a mesa, depois saiu. Sofia enquanto comia, pensava: é muito estranho tudo o que está acontecendo. Ainda não consigo acreditar que sou realmente a dona de tudo. Pensar que, há pouco tempo, eu vivia em toda aquela pobreza. Tenho mesmo uma grande sorte...
- Terminou de tomar o café, saiu para a varanda e ficou olhando a imensa paisagem. Até onde podia ver, tudo pertencia à fazenda e portanto, a ela. Caminhou pela varanda e logo estava do outro lado, de onde podia ver a sua casa. Ficou olhando para aquela que, durante tanto tempo havia lhe servido como abrigo. Pequena, simples, muito diferente da sua agora: eles devem estar na lavoura... que vida é essa que levam. Ainda bem que a minha mudou. Dona Maria Rita quer que eu convide todos para o almoço, mas como posso fazer isso? Eles com certeza vão me envergonhar. Preciso ir até lá para conversar com minha mãe. Ela deve estar curiosa para saber como foi à viagem. Vou até lá, mas não direi nada sobre o almoço. Agora a minha vida mudou e eu não posso me arriscar a pôr tudo a perder por causa deles. Eles não podem fazer parte das minhas amizades, agora sou uma outra pessoa.
- Entrou em casa. Pegou um dos chapéus que havia comprado na viagem, colocou na cabeça e foi até a cozinha. Entrou, dizendo:
- Delzira, vou para a minha casa, se o Pedro Henrique chegar diga a ele.
- Está bem, senhora.
- Ela saiu, montou em um cavalo que Pedro Henrique havia lhe dado e cavalgou em direção à casa de seus pais. Como previra, a casa estava vazia, mas não trancada. Entrou e ficou olhando tudo. Foi até seu antigo quarto, olhou e saiu. Tudo aquilo para ela agora era passado. Saiu e foi até a roça, onde sabia que seu pai e sua mãe estavam. Gustavo naquela hora devia estar na escola. Seus pais, assim que a viram chegando, correram para encontrá-la. Abraçaram-se e Nadir abraçada a ela, foi para casa. Romeu ficou olhando até que desaparecessem e voltou para o seu trabalho. Assim que chegaram à cozinha, Nadir começou a preparar o almoço e a fazer perguntas sobre a viagem.
- Vou preparar um suco. Sofia, você precisa me contar tudo, como foi à viagem e os lugares que viu. Pode imaginar como estou curiosa. Eu, que nunca saí daqui.
- Está bem, mãe, foi para isso que vim.
- Nadir pegou uma jarra e a encheu com o suco de laranja que havia espremido. Sofia começou a contar. Falou sobre a viagem e sobre os lugares que conheceu. Terminou, dizendo:
- O Rio de Janeiro é muito bonito. Por mais que eu tente dizer como é, não consigo mãe. Tem umas montanhas lindas... e o mar! É lindo! Eu não sabia que a água era salgada. Adorei tudo!
- Você vai levar a gente para conhecer tudo isso, Sofia?
- Ela demorou um pouco para responder, depois disse:
- Claro que vou! Quero que a senhora, o pai e Gustavo conheçam tudo o que vi. Mas agora preciso ir. O Pedro Henrique deve estar chegando para o almoço. Depois eu volto.
- Montou no cavalo novamente, abanou a mão e se afastou. Enquanto cavalgava, ia pensando: nunca percebi como eles são ignorantes. Não sabem conversar. Como posso deixar que participem da minha nova vida? Não tem como. Vou tentar ajudar de alguma maneira, mas não convivendo com eles. Agora sou outra pessoa. Minha vida mudou e a vida que tive aqui ao lado deles, ficou para trás e preciso esquecer...
- O domingo chegou. - continuou Gusmão Bem cedo, você, Pedro Henrique e Sofia, foram para a cidade, montados em cavalos. Ela adorava cavalgar. Quando estavam saindo da propriedade, encontraram Romeu que vinha do outro lado montado em um cavalo e que, assim que os viu, parou e disse:
- Bons dias! Estão indo passear?
- Bom dia, seu Romeu! Estamos indo almoçar na casa dos meus pais. Minha mãe convidou o senhor e sua família para irem também. Sofia não lhes disse?
- Romeu olhou para Sofia e viu em seus olhos desespero. No mesmo instante, percebeu o que estava acontecendo. Sorriu e respondeu:
- Ela disse sim, mas a gente não quis ir. Sabe como é moço, a gente tem muito trabalho, a família é grande, não dá para ir, não. Peça desculpas pra sua mãe. Um outro dia a gente vai.
- Está bem, seu Romeu, mas não esqueça que a nossa família agora é uma só. Minha mãe ficará muito feliz em recebê-los.
- Obrigado, a gente vai sim. Até mais.
- Você sorriu, acenou com o braço e colocou o cavalo em movimento. Sofia olhou para o pai e calada também colocou seu cavalo em movimento. Foram para a cidade. Romeu os acompanhou com os olhos, até que sumissem na estrada. Enquanto olhava, pensava: por que ela não disse que dona Maria Rita tinha convidado a gente pro almoço? Não sei... essa menina mudou muito...
- Ainda intrigado, foi para casa. Nadir, assim que o viu chegar foi ao seu encontro.
- Romeu, estive pensando, vou pegar duas galinhas e fazer um almoço bem bom. Acho quer vou mandar um dos meninos chamar a Sofia e o Pedro Henrique.
- Não, Nadir.
- Não, por quê?
- Encontrei com eles agorinha mesmo. Eles estão indo pra cidade. Vão almoçar na casa da dona Maria Rita. - disse, enquanto prendia o cavalo em uma árvore.
- A Sofia não me disse que ia almoçar na cidade.
- Romeu ficou calado por um tempo, só pensando: não posso dizer pra ela que a Sofia não disse pra gente que dona Maria Rita queria que a gente fosse a casa dela. A Nadir, assim como eu, não vai entender. É melhor deixar pra lá... - disse:
- Quem sabe ela mesma não sabia, Nadir. O Pedro Henrique só dever ter avisado ontem à noite e não deu tempo. Mas mesmo assim, está na hora de você fazer o almoço. Estou ficando com fome.
- É, deve de ter sido isso que aconteceu. Vou começar o almoço. Logo vai ficar pronto.
- Eu me lembro desse dia, Gusmão. Não entendo por que Sofia pensava daquela maneira. Eu e minha família sabíamos que ela pertencia a uma família humilde. Nunca houve qualquer preconceito. Quando minha mãe os convidou, foi para que houvesse uma integração.
- Tem razão, meu filho. Sem saber o que Sofia pensava, pedia a ela que os convidasse várias vezes.
- Nunca podemos imaginar o que o outro pensa realmente. Já imaginou se isso fosse possível? Gusmão perguntou, rindo.
- Os outros também riram, pois realmente se todos os pensamentos pudessem ser ouvidos, o mundo se tornaria uma balburdia. Gusmão continuou:
- Enquanto Nadir depenava as galinhas, pensava: será que foi isso mesmo que aconteceu? Será que a Sofia não teve tempo de avisar a gente ou será que a dona Maria Rita não quer a gente na casa dela? Acho que é isso mesmo... a gente é muito simples... já pensou, almoçar na casa do prefeito? Não ia dar certo, não. No outro dia, quando fomos pra tratar do casamento, foi difícil conseguir comer. Acho que eu ou o Romeu deve ter feito alguma coisa de errado e ela não quer mais a gente na casa dela. Que pena... eu queria tanto...
Romeu, depois de prender o cavalo, foi até a cozinha. Viu Nadir preparando o almoço. Viu também que ela estava pensativa. Pegou uma garrafa, um copo e voltou para o quintal. Abriu a garrafa, colocou um pouco de cachaça nele e começou a beber bem devagar e a pensar: acho que a Sofia tem vergonha da gente. A dona Maria Rita não... ela disse que também era de família humilde e por isso entendia a nossa situação. Não, não foi ela, foi a Sofia mesmo quem não quis levar a gente. Não posso contar pra Nadir... ela não ia entender...
- Continuou bebendo e pensando. Enquanto isso, Sofia cavalgava ao seu lado, Pedro Henrique. Cavalgavam em um passo lento. Você olhava com orgulho aquela imensidão de terra que pertencia à fazenda. Sofia ia pensando: notei o olhar do meu pai. Será que ele percebeu que eu não quis que eles fossem para o almoço? Acho que não. Mas, se percebeu, sei que não vai entender. Eu sempre disse que embora tenha nascido naquela casa, nunca senti que fazia parte de tudo aquilo. Sempre soube que um dia, eu seria rica e poderosa. Toda essa terra agora é minha. Moro em uma casa maravilhosa, com todo conforto e tenho ao meu lado um homem também maravilhoso. Não posso me deixar influenciar pelo sentimentalismo. Quero esquecer o tempo em que fui pobre. Em que podia ler só livros emprestados. Hoje, posso ter quantos livros eu quiser para ler. Não acredito que alguém que consegue sair da pobreza queira lembrar desse tempo. Só mesmo a dona Maria Rita faz questão de não esquecer e fica dizendo a toda hora, de como era sua vida antes de conhecer o prefeito. Acho que ela fala isso só para me humilhar! Ela convidou a minha família para esse almoço só para mostrar para os outros como eles são sem educação. Ela sabe que eles não sabem se comportar. Sei o que ela queria! Queria que todos vissem como eles são chucros para depois quando a gente saísse, ela e os convidados morressem de rir às nossas custas! Mas isso eu não vou permitir! Ela pensa que é esperta, mas eu sou muito mais!
Maria Rita, ao ouvir Gusmão dizer isso, ficou horrorizada e disse:
- Não posso acreditar que ela tenha pensado isso, Gusmão. Nunca passou pela minha cabeça humilhá-los. Queria realmente que as famílias se unissem. Queria que não houvesse empecilho algum para que meu filho fosse feliz...
- Sei disso. Sofia não sabia e nem sabe que você escolheu nascer alguém que a ajudaria na sua caminhada. Isso acontece muito, Maria Rita, nem sempre sabemos valorizar as pessoas que estão ao nosso lado.
- Tem razão, Gusmão. Quantas pessoas passaram por nossa vida e nos ajudaram, sem termos muita convivência ou até nenhuma. Elas aparecem do nada, nos ajudam e da mesma maneira que chegaram, desaparecem...
- Sim, Maria Rita, sabe que todos temos uma missão, mas algumas vezes por um pouco de tempo, nos afastamos dela para ajudarmos alguém e retornamos em seguida. A maioria dá e recebe ajuda sem perceber e por isso, não dá valor. Isso acontece com o espírito na sua caminhada de aprendizado.
Maria Rita sorriu, Gusmão continuou:
- Você, alheio a tudo o que Sofia pensava, disse:
- Vamos apostar corrida Sofia?
- Sofia voltou de seus pensamentos e olhou para você. Sorriu, apertou as esporas e saiu cavalgando rapidamente. Você, também, feliz tentou alcançá-la, mas não conseguiu. Ela havia sido criada no sítio e desde criança cavalgava. Você, ao contrário, quando criança sempre morou na cidade e quando cresceu foi estudar fora. Vocês cavalgavam e riam. Sofia estava tendo uma vida que nunca pensou existir, por mais que tivesse imaginado e desejado. Ela tinha tudo para ser feliz e era.
- Eu também nesse tempo fui muito feliz, Gusmão.
Gusmão sorriu e continuou falando:
- Vocês continuaram cavalgando e rindo. Quando estavam chegando perto da cidade, pararam os cavalos, desceram e continuaram o caminho abraçados, cada um conduzindo pelas rédeas seu cavalo. Você beijava os cabelos de Sofia e a abraçava sempre com mais força. Quando chegaram a sua casa, Maria Rita, o almoço já estava pronto e as mesas, colocadas. Uma para os adultos e outra para as crianças. Assim que entraram, você perguntou:
- Seus pais não vieram, Sofia?
- Você foi quem respondeu, Pedro Henrique:
- Eles não quiseram vir, mamãe. Sabe como é. O senhor Romeu disse que vai ficar para uma outra vez.
- É uma pena. Sei como eles se sentem. Não fique triste, Sofia. Com o tempo e com muita paciência, sei que vai conseguir convencê-los de que fazemos parte de uma mesma família e que serão sempre bem vindos aqui em casa. Tenha fé, você vai conseguir.
- Sofia ficou calada, apenas sorriu. Suas irmãs, Pedro Henrique, chegaram acompanhadas pelos maridos e pelos filhos. Em pouco tempo, aquela casa se tornou uma balburdia com todos falando ao mesmo tempo. Sofia observava cada gesto que faziam. Ficou quase o tempo todo calada. Tinha medo de dizer alguma palavra errada e quando fosse embora, servir de chacota. Na hora da refeição, foi à mesma coisa. Ela só se servia depois dos outros, não queria cometer deslize algum. Suas irmãs fizeram um esforço tremendo para que ela fizesse parte da conversa, mas foi em vão, Sofia se limitava a dizer sim ou não. Você, Maria Rita, observava e calada pensava: ela é igualzinha a mim quando tinha sua idade e quando, pela primeira vez, fui almoçar com a família de José Antônio. Sei muito bem o que está sentindo. Mas com o tempo, entenderá e aceitará que faz parte de nossa família e que não há diferença alguma entre nós. Deixará de ter preconceito.
- Era isso exatamente o que eu pensava, Gusmão. Que pena que não consegui convencê-la disso.
- Sofia foi sempre muito teimosa, por isso não se culpe. Ela teve a oportunidade e ainda está tendo de deixar todos esses sentimentos destrutivos. Vamos torcer para que, desta vez, consiga...

A MENSAGEM

Stela e Sofia continuavam dentro do carro, fingindo ler. Stela, embora estivesse gostando da leitura, assim como Sofia não conseguia se concentrar, lia e relia sempre a mesma página. Estava exausta, irritada com Sofia por tê-la praticamente obrigado a acompanhá-la. Com o livro nas mãos, pensava: eu não devia estar aqui, sei que dona Sofia quando quer alguma coisa consegue e por isso, sempre procurei fazer tudo o que me pediu, mas agora, parada neste lugar perdido, estou tendo tempo para refletir no que me tornei. Sou a sua sombra, aquela que sempre obedece sem reclamar. Muita coisa já fiz contra minha vontade, somente para que ela não ficasse nervosa e não fizesse comigo o que tem feito com Anita, somente porque nunca conseguiu e sabe que não conseguirá dominá-la. Quando conheci o Maurício e ele me apresentou à sua família, de pronto percebi a influência que ela exercia junto ao marido e principalmente, aos filhos. Achei melhor tê-la como amiga por isso me submeti, mas agora estou ficando cansada e isso não pode continuar. Esta é a última vez que a acompanho em seus desmandos. O que ela quer fazer com Anita e Ricardo, somente por um capricho não é certo, penso até que todos esses problemas que estão aparecendo é para que ela tenha tempo de refletir, mas parece que não está adiantando. Parece que a cada momento que passa, fica com mais raiva de Anita e com mais vontade de prejudicá-la. Não sei o que fazer para impedi-la, só sei que esta será a última vez! Sofia também fingia ler, porém desde o início, não conseguia. E, como estava acontecendo desde quando acordou pela manhã, pensava em como havia sido sua vida. Gusmão, olhando primeiro para elas e depois para os outros, continuou falando:
- O tempo foi passando. Sofia, aos poucos foi se acostumando com sua nova vida. Sentia-se feliz por estar a seu lado, Pedro Henrique, que fazia o impossível para que todos os seus desejos fossem atendidos. Ela gostava de se sentir dona de tudo aquilo e principalmente, em ser servida. Não ia visitar sua família. Quem sempre vinha visitá-la era Nadir. Em uma manhã, Sofia caminhava pela varanda, olhando as flores que havia plantado, quando ouviu uma voz:
- Olá Sofia, parece que você está muito bem.
- Ela se voltou e viu Nadir que sorria enquanto continuava falando:
- Suas flores estão lindas!
- Estão mesmo, não é mãe? Mas o que traz a senhora até aqui?
- Desde aquele dia em que foi lá em casa quando voltou da viagem, nunca mais voltou. Fiquei preocupada e queria saber como você está. O Pedro Henrique não quer deixar você ir lá em casa?
- Sofia ficou olhando para sua mãe sem saber o que responder. Mas, até que aquela seria uma boa desculpa. Forçando um sorriso, respondeu:
- Não é que ele não deixa mãe, mas sei que não gosta que eu saia de casa, por isso eu evito. Não quero brigar com ele.
- Está certo você não deve mesmo brigar com o seu marido, mas não é certo ele proibir você de visitar a sua família! Vou falar com ele!
- Não, mãe! A senhora não pode fazer isso! Eu disse que não quero brigar com meu marido e se falar com ele, isso vai acontecer! Ele é um bom marido, gosta muito de mim, só tem um pouco de ciúmes. Sempre que puder eu irei lá em casa e a senhora ou qualquer um poderá vir sempre que quiser. Mas não fale com o Pedro Henrique, por favor!
- Está bem não vou falar, mas que não está certo, não está, Sofia.
- Com o tempo, isso tudo vai passar mãe. A senhora não quer beber um suco? Está muito quente.
- Quero sim. Posso entrar?
- Claro que pode. Vamos?
- Entraram. Nadir já tinha ido lá, mas só antes do casamento. Maria Rita providenciou tudo, ela não havia visto o quarto nem as cortinas da sala. Disse:
- As cortinas da sala estão bonitas, Sofia. Foi você quem escolheu?
- Não, quando voltei da viagem estavam todas colocadas. Também foi dona Maria Rita quem decorou meu quarto. Venha ver como está bonito!
- Pegou a mãe pela mão e a levou até o quarto. Assim que abriu a porta, Nadir ficou parada, apenas olhando. Colocou a mão sobre a boca e depois de alguns segundos, disse abismada:
- Está muito lindo, Sofia! Nunca vi nem imaginei que pudesse existir um quarto assim! Olhe só a cama! Parece que é muito macia!
- É macia mesmo, mãe! Também nunca pude imaginar que um dia pudesse dormir em um quarto como esse e em uma cama como essa!
- Sofia, você disse que foi a dona Maria Rita que escolheu tudo?
- Foi, mãe. Quando voltei da viagem, estava tudo assim.
- Você acha que está certo ela cuidar da sua vida assim?
- No começo fiquei um pouco nervosa, mas depois entendi. Ela sabe que não sei decorar uma casa e só quis me ajudar.
- É, pensando bem você tem razão. Não pode mesmo brigar com o seu marido... ele lhe deu coisas que nunca pude imaginar... ele não quer que você vá visitar a gente, não tem problema. O que importa é que você esteja feliz e depois de tudo o que estou vendo, acho que isso está acontecendo. Você está feliz, não está minha filha?
- Estou, mãe. Ele é um marido maravilhoso, mas a senhora me conhece e sabe que eu gostaria muito mais de estar vivendo na cidade, mas, enfim estou hoje muito melhor do que estive durante toda minha vida, não é?
- É sim, Sofia. Não fique triste por ele não querer se misturar com a gente, sempre que eu sentir saudade eu venho ver como você está. Eu queria tanto poder freqüentar a casa do prefeito, ir às festas... pensei que quando você se casasse eu ia poder fazer isso, mas pelo visto não vai dar. Estou triste, mas não tem importância. O que importa é que você está feliz e que seu marido, além de lhe dar tudo isso ainda gosta de você.
- Ele gosta mesmo, mãe. Eu também gosto dele e estou muito feliz.
- É isso que importa, Sofia. Só a sua felicidade. Agora, vamos tomar o suco?
- Vamos sim, mãe.
- Voltaram para a sala. Sofia chamou Noélia, pediu o suco e em poucos minutos, ela voltou trazendo uma bandeja que colocou sobre uma mesinha. Sofia colocou o suco nos dois copos. Enquanto tomavam o suco, Nadir disse:
- Estou aqui imaginando uma coisa, Sofia.
- O quê, mãe?
- Por que será que Deus lhe deu tudo isso?
- Não entendi. Por que está dizendo isso, mãe?
- Não sei, só estou pensando. Como sua vida mudou tão de repente. Você agora é uma moça rica. Tem uma linda casa e até uma empregada que a serve. Logo você que até pouco tempo era quem fazia a comida e cuidava da casa... será que não existe um motivo maior? Será que você não tem que fazer alguma coisa em troca?
- Credo, mãe! Não estou gostando dessa conversa. Não sei por que minha vida mudou tanto. Também não quero saber, mas acho que se for pensar da maneira como à senhora está pensando, devo ter algum merecimento. Sempre fui uma pessoa boa, nunca desejei o mal pra ninguém...
- Tem razão, minha filha. Não sei por que disse isso...
- Ela não sabia, mas eu e Matilde estávamos lá e sabíamos. Matilde sorriu enquanto retirou a mão da garganta de Nadir.
Assim que terminou de tomar o suco, Nadir se levantou dizendo:
- Agora preciso ir. Preciso fazer o almoço. Sabe como eles chegam morrendo de fome e se a comida não estiver pronta, seu pai vai brigar.
- Sei sim e como sei...
- Nadir beijou a filha e saiu andando em direção à sua casa. Sofia ficou olhando a mãe se afastar. Estava intrigada: por que será que ela disse aquilo? Nunca parei para pensar nisso. Já sei, ela está com inveja da minha vida! Sei que sempre sonhou com uma vida melhor do que a que tem! Não vou me deixar levar por sua conversa! Se Deus me deu tudo isso é porque mereço ou porque nunca aceitei aquela vida que levava.
- Eu olhei para Matilde que desanimada, balançou a cabeça, dizendo:
- Vai ser mais difícil do que pensávamos, Gusmão. Ela, apesar do nosso esforço, insiste em não nos ouvir. Por enquanto vamos embora, precisamos acompanhar a Nadir. Mais tarde, voltaremos e tentaremos novamente.
- Foi o que fizemos. Nadir continuou andando, quando estava chegando em sua casa, olhou para trás, não podia ver Sofia, mas sabia que ela estava lá e feliz. Ela não imaginava que quem não queria ter contato com eles era Sofia e que tanto Pedro Henrique como sua mãe não tinham preconceito e pensavam justamente o contrário.
- Não consigo aceitar que vivi tanto tempo ao lado dela sem imaginar que pensasse assim, Gusmão. Na realidade, nem eu nem minha família tínhamos preconceito. Quem estava tendo era Sofia.
Maria Rita balançou a cabeça concordando com o filho. Gusmão disse:
- Isso acontece muito, Pedro Henrique. O preconceito está implícito no ser humano, mas Sofia não agia assim por preconceito e sim pelo seu sentimento de inferioridade. Ela queria esquecer quem fora e a presença de sua família, em sua opinião, impedia que isso acontecesse. Matilde, através de Nadir, lhe enviou uma mensagem no sentido de que pensasse bem em tudo o que estava acontecendo em sua vida. A nossa intenção era de que ela, embora estivesse tendo tudo com o que sempre sonhou, não se afastasse daquela que até agora fora sua família, que não deixasse de ampará-la e que tentasse, de algum modo, retribuir tudo o que havia recebido das mãos de Deus. Contudo como viram, ela não entendeu a mensagem e olhando a mãe se afastar pensou: será que ela nunca vai entender que agora sou uma outra pessoa? Será que não vai entender que minha vida não tem mais nada a ver com a deles? Não sei, mas acho que a qualquer momento, vou ter de dizer. Meu pai nunca veio aqui. Ele, naquela manhã quando nos viu indo para a cidade, deve ter entendido. Tomara que minha mãe também entenda. Eu gosto deles, só que nunca se comportarão como se deve. Dona Maria Rita vive dizendo para eu levar todos para almoçar, mas eu sei que ela só quer humilhar a gente! Não acredito na bondade dela...
- Estava tão distraída em seus pensamentos que não viu quando você chegou, se aproximou e abraçou-a por trás, perguntando:
- Não é sua mãe que está indo ali, Sofia?
- Ela se voltou para você e enquanto o beijava no rosto, respondeu:
- É sim. Ela veio me visitar.
- Que bom. Sei que sente falta deles. Falou do convite que minha mãe vive fazendo para irem lá em casa?
- Falei, mas ela disse que não quer ir. Ela acha que eles não saberiam se comportar na casa do prefeito.
- Que bobagem é essa? Lá não é a casa do prefeito, é a casa dos meus pais! Vocês todos agora fazem parte da minha família. Depois do almoço vou até lá falar com ela e com seu pai. Eles precisam deixar essa besteira para lá, Sofia!
- Ela estremeceu, não podia deixar que aquilo acontecesse. Forçando um sorriso, disse:
- Por favor, não faça isso Pedro Henrique! Eles iam se sentir mais humilhados ainda! Vamos dar tempo ao tempo. Sei que vou conseguir convencê-los. Sua mãe mesma disse que só precisamos ter paciência...
- Você sorriu, beijou-a nos lábios e disse:
- Tem razão. Vamos dar tempo ao tempo. Minha mãe sempre me disse que demorou muito para que seus pais aceitassem a nova vida dela e que só aceitaram quando eu nasci. Ela diz que quando minha avó me viu, se apaixonou e até se esqueceu de quem eu era filho! - você disse, piscando um olho e rindo alto. Ela também riu, dizendo:
- Você deve ter sido um neném lindo...
- Fui não, sou!
- Você é muito vaidoso! Agora vou até a cozinha ver como está o almoço.
- Faça isso, levantei muito cedo e estou com fome. Quando saí, você estava dormindo e não viu.
- Claro que vi. Só que estava com tanto sono...
- Entraram abraçados. Enquanto iam para a cozinha, você perguntou:
- Será que quando tivermos o nosso filho, sua mãe vai fazer igual a minha avó?
- Ela estremeceu. Não queria um filho, pelo menos não naquele tempo, mas respondeu:
- Não sei, acho que sim. O nosso filho vai ser lindo! Também, filho de quem é...
- Você sorriu, apertou seu ombro com mais força. Entraram na cozinha.
- Ela era tão doce, Gusmão, por isso me custa muito acreditar que ela pensasse daquela maneira...
Gusmão novamente sorriu e entendendo o que Pedro Henrique estava sentindo, continuou:
- Nadir chegou a casa e foi diretamente para a cozinha. Estava atrasada com o almoço. Sabia que logo mais seu marido e Gustavo chegariam. Realmente, logo depois chegaram. O almoço estava um pouco atrasado, o que fez com que Romeu perguntasse:
- Atrasou o almoço, Nadir. Que aconteceu?
- É atrasei, mas já está quase pronto. Fui à casa da fazenda visitar a Sofia.
- Por que fez isso?
- Ela, estranhando o tom de voz do marido, perguntou:
- Fui ver a minha filha! Por que está tão nervoso?
- Não estou nervoso. Só acho que você não devia ter ido lá.
- Por que não? Ela é minha filha!
- Quantas vezes ela veio aqui depois do casamento? Somos a sua família, mas ela parece não se importar. Sua filha mudou, Nadir. Ela não quer mais saber da gente.
- Que bobagem você está dizendo, Romeu! Ela continua sendo a nossa filha, só que o Pedro Henrique não gosta que ela saia de casa e ela pra não brigar com ele, obedece.
- Romeu se lembrou do dia em que encontrou Sofia e Pedro Henrique indo para a cidade almoçar na casa de Maria Rita e como Sofia ficou quando ele perguntou se ela havia convidado os pais para o almoço. Percebeu naquele momento que ela não queria unir as famílias. Não entendia o motivo, mas sabia que deveria ficar o mais longe possível dela. Pensou: eu devia contar para Nadir o que aconteceu naquele dia, mas ela não vai acreditar. Parece que a Sofia encontrou uma boa desculpa pra manter a gente distante.
- Nadir, nervosa por ele ter dito aquelas coisas da filha, disse:
- Como pode dizer uma coisa dessas, Romeu. Ela é nossa filha! Fiquei tão feliz de ter ido lá. A casa dela é linda! O Pedro Henrique gosta muito dela! Quando eu estava lá, fiquei pensando. Você lembra o dia em que ela nasceu? A gente era tão jovem... eu tinha dezessete anos e você dezenove. A gente não entendia nada da vida.
- Claro que me lembro, Nadir. A gente se conheceu naquele baile que tinha todo fim de semana e se casou logo depois. Quando você me disse que estava esperando criança, fiquei assustado. A gente era muito pobre. Eu trabalhava como pedreiro e morávamos na casa da minha mãe. Eu não tinha como levar você pra um outro lugar.
- Eu também me assustei, mas também fiquei muito contente. Ainda bem que naquele tempo a gente morava na cidade. Foi muito difícil. Eu passei muito mal durante todo o tempo em que fiquei esperando por ela. Quantas vezes o médico disse que ela talvez não conseguisse nascer...
- Mas ela nasceu, Nadir! Foi sempre uma menina muito doente. Quantas noites a gente passou cuidando dela, com medo de que morresse...
- Ela não morreu, Romeu. Foi sempre uma lutadora. Acho que tinha muita coisa pra fazer nesta Terra. Por isso Deus não a levou. Agora está aí, casada e muito bem. Morando em uma casa linda e tendo tudo o que jamais imaginou.
- Tem razão. Ela sempre foi uma lutadora. Mesmo quando não podia estudar porque precisava ajudar aqui em casa, pegava os livros emprestados e ainda ensinava o irmão.
- Está vendo, Romeu? Ela é muito boa e merece tudo o que está recebendo de Deus...
- Acho que você tem razão. Mas agora ela tem outra vida. A gente não faz mais parte do mundo dela. Deixe-a viver a vida dela e a gente vai continuar vivendo a nossa...
- Como você pode dizer isso? Ela está rica, mas ainda é nossa filha. Mesmo que o marido dela não queira que ela venha aqui em casa, eu vou sempre lá. Preciso ter certeza de que ela continua feliz.
- Romeu, sentindo-se impotente e não querendo contar o que havia acontecido para que a mulher não ficasse triste, se calou e perguntou:
- Está bem, mas esse almoço vai ficar pronto ou não?
- Está pronto, sim. Pode se sentar. Vou lá ao quintal chamar o Gustavo. Ele deve estar trepado na árvore.
- Ele se sentou, ela saiu e voltou logo depois acompanhada de Gustavo. Almoçaram.

NOTÍCIA INESPERADA

Sofia levantou os olhos do livro que tentava ler e viu à sua frente um cavalo se aproximando e sobre ele um homem. Disse eufórica!
- Olhe lá, Stela, um homem está se aproximando.
Stela, ao ouvi-la, levantou os olhos e também viu o cavalo. Disse:
- Ainda bem dona Sofia, mas ele está a cavalo, como vai poder nos ajudar?
- Não sei, mas já é alguma coisa. Se tiver uma corda, talvez o cavalo consiga nos tirar deste buraco.
- Vamos esperar que chegue. Só assim poderemos saber.
Depois de alguns minutos, o homem se aproximou, olhou a água que estava por todo lado, com cuidado entrou e fez o cavalo parar junto à janela do lado de Stela. Perguntou:
- Bom dia, moça. Encalhou né, moça?
Stela, embora morasse na cidade, havia sido criada na capital e não tinha muito contato com pessoas que moravam na área rural, por isso estranhou um pouco a maneira como ele falava. Olhou para Sofia e depois para o homem e respondeu:
- Bom dia, não sei como isso foi acontecer, quando cheguei vi a água, fiquei com medo de entrar, temendo justamente isso, mas como precisamos continuar, arrisquei e parece que não deu certo. Será que o senhor pode nos ajudar?
- Acho que não, moça. Meu cavalo não vai conseguir puxar o carro. A única coisa que posso fazer é ir até a cidade e conseguir alguma ajuda. Meu compadre tem um jipe, vou ver se ele pode vir ajudar à senhora.
- Faça isso, por favor. Estamos ficando desesperadas.
O homem olhou para Sofia que também o olhava, sorriu e fez um movimento no cavalo que saiu andando. Sofia e Stela ficaram vendo-o se afastar. Quando não conseguiam mais ver o homem, Sofia perguntou:
- Será que ele vai mesmo nos ajudar, Stela?
Gusmão levou a mão em direção à garganta de Stela que respondeu:
- Não sei, dona Sofia, mas por enquanto é a única esperança que temos. Quanto mais o tempo passa, mais estou arrependida de ter vindo com a senhora.
- Pois não devia estar! Estamos quase chegando, vamos até a casa do homem depois voltamos.
- Ainda bem que disse ao Maurício que ia sair com a senhora e não sabia se voltaria para o almoço.
- Disse aonde íamos?
- Claro que não, dona Sofia. Ele não ia permitir. Sabe como gosta do irmão e de Anita. Ele sempre diz que eles se amam e que merecem a felicidade que demonstram.
- Maurício não sabe de nada! Não sei como ainda não desconfiou de como aquela mulher é dissimulada e mentirosa!
- Não sei, dona Sofia. Acho que a senhora tem raiva dela sem motivo. Ela nunca me fez nada que me levasse a pensar assim. Sabe que não temos uma grande convivência, mas todas as vezes que nos encontramos ela sempre foi gentil e atenciosa comigo e com as crianças.
- Você também, Stela? Não vai me dizer que gosta dela...
- Não gosto nem desgosto. Acho que, por sua causa, nunca me aproximei o suficiente para conhecê-la melhor.
- Você acha que poderia ser diferente? Claro que não! Já disse que ela é dissimulada. Pode ter certeza de que, enquanto sorri, está imaginando uma maneira de me ferir.
- Estou achando que isso já se transformou em paranóia, dona Sofia.
Gusmão sorriu e disse:
- Stela, com a nossa ajuda, está começando a enxergar o que tem feito de sua vida desde que começou a fazer tudo o que Sofia mandava.
Esta viagem, apesar de ter começado com o intuito de prejudicar Anita, está se tornando uma fonte de aprendizado para as duas. Sofia acusa Anita daquilo que ela sempre foi dissimulada e mentirosa. Como um dia fez um trabalho e achando que ele foi o responsável por ter se casado com você e, por conseqüência, sua vida ter mudado de uma forma radical, sabe, acha e acredita que Anita tenha feito à mesma coisa. É igual àquele velho ditado: quem usa, acusa . Ela sabe que, se teve coragem de fazer qualquer coisa para ter você, Anita também se precisasse, faria o mesmo. Esperamos que durante a viagem e antes que cheguem, mude de idéia.
- Acredita que isso possa acontecer, Gusmão? Parece que ela está mesmo determinada e que nada fará com que mude de idéia.
- Estamos aqui justamente para isso. Este é o nosso trabalho, Pedro Henrique.
- Essa mudança de pensamento de Stela está acontecendo porque estamos aqui, mas e se não estivéssemos, acredita que o resultado seria o mesmo, Gusmão?
- O resultado não sei, mas a tentativa sim Maria Rita, pois se não estivéssemos, outros estariam. Toda decisão, quando errada e que poderá trazer arrependimento, é sempre acompanhada pelo plano espiritual na tentativa de evitar um mal maior.
- Tomara que consigamos.
Sofia estava mais irritada ainda, pois começou a perceber que Stela estava mudando de atitude. Para evitar que mais palavras fossem ditas e que elas brigassem, voltou seu olhar para o livro. Stela percebeu e fez o mesmo. Sabia que não tinham mais o que conversar. Sofia começou novamente a relembrar seu passado. Gusmão continuou contando:
- O tempo foi passando. Fazia quase um ano que vocês estavam casados. Ela, que sempre fora acostumada a uma vida de muito trabalho, aos poucos foi ficando entediada com tudo aquilo. O deslumbramento inicial estava passando e ela já não achava a casa tão bonita e muito menos seu quarto. Passava o dia sem ter o que fazer a não ser ler, mas até disso já estava enjoada. Nadir vinha duas ou três vezes por semana visitar a filha, mas Sofia nunca mais voltou à sua casa antiga. Odiava tudo aquilo e por isso, não queria nem chegar perto. Sempre se sentava em uma poltrona de vime que havia na varanda e pensava : agora, sou uma outra pessoa, não pertenço mais àquele mundo! Se não fosse minha mãe vir tanto aqui, eu já teria esquecido. Poderia pedir ao Pedro Henrique que reformasse a casa. Sei que ele não se incomodaria; mas não posso fazer isso, minha mãe descobriria que não é ele quem não me deixa ir até lá e isso eu não quero! É melhor que as coisas continuem assim como estão. Os almoços de domingo na casa de Maria Rita continuavam e sempre que Sofia estava lá, as irmãs de Pedro Henrique e você, Maria Rita, comentavam da última festa a que haviam comparecido, dos chás da tarde na companhia de outras senhoras e da nova roupa que haviam comprado. Sofia ouvia tudo e ficava pensando: por que não posso ter a mesma vida que elas? Sou esposa de Pedro Henrique! Pertenço a esta família!
- Pensava, mas não dizia. Sabia que você não era muito chegado a essas coisas. Era simples e gostava da vida na fazenda. Aos poucos, ela foi ficando triste e não achava mais graça em nada na fazenda. Dormia muito e não tinha ânimo para nada. Em uma manhã em que estava sentada na sua poltrona de vime olhando para o horizonte, viu que sua mãe se aproximava. Novamente sentiu aquele mal estar que sempre sentia quando a mãe vinha visitá-la. Temia que ela o encontrasse, Pedro Henrique, e que você a recriminasse por não querer visitar sua mãe. Mas isso dificilmente aconteceria, pois Nadir só vinha no horário em que sabia que você estava trabalhando. Nadir se aproximou. Estava cansada, pois embora a sua casa não ficasse longe da casa de Sofia, era uma boa caminhada. Subiu os degraus da escada e sentou-se em outra poltrona ao lado da que Sofia estava sentada. Respirando fundo, disse:
- Bom dia, Sofia. Está tudo bem com você?
- Está, mãe. Tudo igual como estava no outro dia em que a senhora veio aqui...
- Nossa, Sofia, que cara é essa? Que aconteceu? O Pedro Henrique a maltratou?
- Não, mãe! Claro que não! Ele é um marido perfeito! Perfeito até demais!
- Então, por que essa cara? Você tem tudo para ser feliz!
- Deveria ter, mas não tenho...
- Como não? Tem esta casa linda! Pessoas que a servem e acho que Pedro Henrique atende a todos os seus desejos. O que mais pode querer?
- Está certo que tenho hoje o que nunca imaginei, mas agora que cheguei até aqui, queria e sei que posso realizar outros sonhos.
- Que sonhos? O que está lhe faltando?
- Queria ser uma dama da sociedade, freqüentar as festas e ser admirada por todos. Isso sim que deve ser uma vida feliz! Não esta que estou tendo aqui na fazenda, neste fim de mundo! Não sei como Pedro Henrique pode gostar tanto daqui! Ele é um marido perfeito, pena que não goste de festas nem de roupas bonitas. Quando reclamo, ele diz:
- Você não precisa ter outras roupas mais bonitas, você é linda por natureza!
- Nisso ele tem razão, você é mesmo muito bonita!
- Sei que sou bonita, mas poderei ficar mais bonita ainda com belas roupas. Se eu morasse na cidade, poderia andar sempre de salto alto, com o cabelo arrumado e maquiada. Sei que isso é quase impossível de acontecer. Pedro Henrique nunca vai querer morar na cidade. Ele ama tudo aqui.
- Nadir não conseguia acreditar no que estava ouvindo. Disse, nervosa:
- Não pode estar falando sério, Sofia! Não consigo acreditar! Sempre tive vontade de ser uma mulher rica, assim como você é hoje e se tivesse tido a mesma sorte que você, não ia reclamar nunca! Nunca mesmo!
- Talvez a senhora tenha razão, mas é mais forte que eu. Estou cansada desta vida.
Como pode dizer isso, Sofia? Tem uma casa linda, vive como uma princesa e, além disso, tem um marido que apesar de não querer você perto da gente, trata-a muito bem ! Não consigo entender... Não consigo mesmo...
- Também às vezes não consigo, mas é isso que estou sentindo neste momento. Pedro Henrique é bom demais, mãe. Queria que ele me desse um motivo para brigar, mas ele não dá! Isso me deixa nervosa!
- Você deve estar ficando louca, Sofia! Acho que precisa ir a uma igreja se benzer! Onde já se viu uma coisa dessas! Uma mulher reclamar porque o marido a trata com carinho?
- Sei disso mãe, também não entendo, mas apesar de ele me tratar com carinho, insiste em continuar morando aqui e não era isso que eu queria para minha vida! Sempre quis ir embora deste lugar! Sempre quis estudar, se alguém!
- Você já conversou com ele a esse respeito?
- Não...
- Por que não?
- Não adianta, sei que ele não quer morar na cidade! Ele gosta muito daqui, desta vida...
- Converse com ele, Sofia, diga o que está sentindo, talvez ele entenda e mude de idéia.
- Vou tentar, mas sei que não vai adiantar, mãe.
- A dona Maria Rita sabe o que está acontecendo?
- Não, ela desde que voltamos da viagem nunca mais veio até aqui e eu só a vejo nos domingos, quando a gente vai almoçar lá.
- Ela não está mais se metendo na sua vida? Escolhendo as coisas para sua casa, como fez antes do casamento?
- Não, nunca mais disse nada. Só disse que como o Pedro Henrique está feliz, para ela está tudo bem.
- Como ela trata você?
- Muito bem, mãe. Quando estou na casa dela não consigo conversar. Ela e as irmãs do Pedro Henrique falam das festas e dos vestidos que compraram. Eu fico junto delas calada, com medo de dizer alguma palavra errada. Elas até que no começo insistiram em conversar, mas como eu só respondia com um sim ou um não, pararam de falar comigo e só falam o necessário. Tenho muito medo de envergonhar o Pedro Henrique...
- Isso não está certo, Sofia! Você agora faz parte da família! Todos sabem quem você é e a aceitaram! Você tem de se esforçar pra demonstrar que não se sente inferior!
- Sei que sou inferior, mãe!
- Você não é inferior, Sofia! Apesar de não ter muita escola, sempre leu muito e sabe falar bem. Além do mais, ele a escolheu pra ser sua mulher! Deixa disso! Durante toda nossa vida temos sempre dois caminhos para seguir. O certo e o errado. Não existe outro. Você precisa escolher que caminho quer tomar.
- Não sei, mãe. Sei que deveria estar feliz. Sempre soube que a minha vida seria diferente da que a senhora teve, mas nunca imaginei que fosse assim. Por isso, não entendo por que não estou feliz. Não sei qual é o caminho certo...
- Como não sabe, Sofia? Você não gosta do Pedro Henrique?
- Não sei...
- O que está dizendo? Como não sabe?
- No começo achei que gostava. Depois, quando soube quem ele era, percebi que ficaria rica se me casasse com ele. Hoje que consegui, não sei se valeu à pena meu sacrifício...
- Está dizendo que viver em uma casa como esta, com um marido que a adora, é um sacrifício? Você está louca mesmo, Sofia! Precisa ir a um médico ou à igreja se benzer!
- Não estou louca, mãe! Só estou entediada!
- Entediada? Entediada? Está precisando arrumar alguma coisa pra fazer! Já está a quase um ano casada e até agora não teve um filho! É isso que está faltando na sua vida! Quando tiver uma criança pra cuidar, não vai ter tempo de pensar nessas bobagens!
- Crianças? - Sofia perguntou, indignada. A senhora é quem está louca! Não quero estragar o meu corpo e muito menos ficar presa, cuidando de uma criança!
- Pois eu acho que é isso que está faltando em sua vida. Algo para fazer, alguém com quem se preocupar que não seja você mesma!
- Nem pensar, mãe! Nem pensar!
- Está bem, sei que não posso mais interferir em sua vida. Você agora é uma mulher casada e deve resolver seus problemas com seu marido. Se ele não fosse tão orgulhoso e não quisesse afastar você da gente, eu mesma conversaria, mas já que ele não aceita a gente como família não tenho o que fazer, a não ser rezar para que recupere o seu juízo.
- Não se preocupe, mãe, estou bem. Isso que estou sentindo vai passar. Vou conversar com Pedro Henrique e ver se consigo convencê-lo a ir morar na cidade. Por favor, não converse com ele. Isso só iria piorar tudo.
- Está bem, tomara que consiga superar tudo isso. Pense bem na vida que tem e na que tinha. Não deixe tudo isso escapar.
- Pode ficar calma. Tudo vai se arranjar.
- Tomara que se arranje mesmo. Vim aqui pra contar-lhe uma coisa e quando a vi assim, esqueci.
- Contar o quê?
- Você não imagina quem convidou a gente pro casamento!
- Quem, mãe?
- O Osmar foi lá em casa convidar a gente pro casamento.
- O Osmar vai se casar? - Sofia perguntou, gritando.
- Vai, sim. Imagine, parecia que gostava tanto de você.
- Ele não pode fazer isso, mãe!
- Não pode, por quê?
- Ele sempre disse que gostava de mim e que nunca se casaria com ninguém.
Você se casou, Sofia! O que queria que ele fizesse, ficasse solteiro pro resto da vida?
- Eu me casei porque queria mudar de vida, mas nunca disse que não gostava do Osmar, mãe! Nunca pensei que ele me esquecesse tão rapidamente! Ele não podia ter feito isso!
- Talvez ele tenha pensado o mesmo que você, também quer mudar de vida.
- Por que está dizendo isso?
- Ele vai se casar com a Beatriz Lins de Souza e Souza.
- Sofia ficou pálida e perguntou, ainda descontrolada. - continuou Gusmão.
- A filha do dono de todas aquelas lojas? A família dela é muito rica!
- Ela mesma. Eu e seu pai também ficamos abismados. Nunca pensamos que ele poderia se casar com uma moça como aquela. A família dela é muito rica! É verdade, Sofia se não for mais rica do que o prefeito, é igual! A família, além de todas aquelas lojas, tem várias propriedades e fazendas de gado de leite e corte. O Osmar, casando-se com ela, será igual ou até mais rico do que você.
- Não pode ser, mãe! Como ele se aproximou dela?
- Isso eu não sei, só sei que o casamento vai ser no dia vinte e cinco do mês que vem.
- Sofia ficou desesperada. Como sempre, só pensou em si mesma, não podia admitir que Osmar houvesse tido tanta sorte. Não quis se casar com ele, mas não queria que se casasse com outra, muito menos com uma moça tão rica e bonita - disse Gusmão. - Nadir não entendeu aquela reação de Sofia e depois de algum tempo, foi embora. Sofia ficou irritada e pensou:
- Estou muito triste, nunca pensei que ele fizesse isso.
- Assim como Nadir, também não entendo essa reação, Gusmão. Estávamos casados e para mim parecia que tudo corria bem. Nunca imaginei que ela estivesse entediada ou que ainda pensasse em Osmar. Sabia como sua vida havia mudado e pensava que agora, vivendo muito melhor, fosse feliz.
- Estava enganado, Pedro Henrique, ela estava entediada, triste e agora com a notícia que Nadir lhe trouxera, ficou decepcionada e com muita raiva.
- Gusmão, não estou entendendo por que está me contando tudo isso. Confesso que estou ficando com muita raiva de Sofia e esse é um sentimento que não sentia desde que cheguei ao plano espiritual.
- Também estou sentindo isso, Gusmão. Quando Sofia se casou, fiquei feliz e nunca poderia imaginar que ela era infeliz e pensava em outro homem. Pedro Henrique sempre foi o melhor marido do mundo, só se comparando com o pai. Não quero sentir o que estou sentindo. - Maria Rita disse, também muito nervosa.
- Sabia que esse sentimento poderia aflorar em vocês, mas já lhes disse que estamos aqui para tentar ajudar Sofia a modificar seu comportamento. Não seria justo que a ajudassem sem saber o que ela fez realmente, de certo e de errado. Como estão vendo, toda a dificuldade que está enfrentando nesta viagem está servindo como oportunidade de repensar sua vida, se arrepender dos muitos erros que teve e mudar sua faixa de pensamento. Só assim, ela poderá nos acompanhar para esferas mais altas, para missões de socorro. Do contrário, terá de continuar a jornada sem a nossa companhia.
- Já havíamos concordado em não deixá-la sozinha.
- Sim, Maria Rita isso é verdade, mas não podem atrasar a sua caminhada sem saber se realmente ela merece que esse sacrifício seja feito. Outros chegarão aqui para nos acompanhar nessas lembranças. No final, depois de tudo esclarecido, resolveremos o que fazer.
- Está bem, Gusmão. Acredito que saiba o que está fazendo. O que mais Sofia fez?
- Vou continuar contando, mas acho melhor que antes de recomeçar, façamos uma oração para nos acalmarmos, pois o que vem por aí é bem pior e vocês nunca imaginaram.
- Também acho que seja o melhor. Estou sentindo que todos nós precisamos de ajuda para não nos desviarmos da faixa de pensamento em que nos encontramos.
Entraram em oração.

REVELAÇÕES

Após terminarem a oração e Gusmão perceber que eles estavam tranqüilos, olharam para Sofia que no carro, continuava tentando ler. Ela se lembrou daquele dia em que soube que Osmar ia se casar, ficou mais nervosa do que estava. Disse:
- Stela, já faz um bom tempo que aquele homem passou por aqui. Será que ele vai trazer ajuda?
- Tomara que sim, dona Sofia, pois se ele não voltar, não sei por quanto tempo vamos ficar aqui.
Impotente com aquela situação, Sofia voltou a olhar para a página do livro que estava lendo, mas mesmo sem querer e sob a influência de Gusmão, continuou pensando: Eu não podia aceitar aquilo! Osmar não poderia se casar com ninguém, muito menos com uma moça rica como Beatriz. Precisava fazer alguma coisa e fiz!
- O que ela fez, Gusmão!
- Tudo isso aconteceu no tempo em que seu pai ficou doente, você se lembra, Pedro Henrique?
- Sim, ele teve um problema muito sério no coração. Na cidade não havia recursos para o tratamento, por isso eu o acompanhei até a capital.
- Sim, isso aconteceu e você ficou por lá por mais de dois meses, não foi? Depois daquele dia em que Nadir lhe contou sobre o casamento de Osmar, Sofia não pensava em outra coisa. No mesmo dia em que pela manhã, você partiu acompanhando seu pai, ela à tarde foi até o sitio de Osmar. Não sabia se ele ainda estava trabalhando, mas mesmo assim, tentou. Quando chegou e olhou em direção à plantação, não viu ninguém. Foi em direção à casa que seria deles quando se casassem.
Ao ver a casa ficou emocionada, pois estava pronta, pintada de branco e muito bonita. Ela se aproximou, bateu à porta que estava aberta. Osmar saiu da cozinha onde estava tomando café e se admirou ao vê-la lá. Perguntou:
- O que está fazendo aqui, Sofia?
- Precisamos conversar, Osmar.
- Não temos nada para conversar.
- Temos sim! - ela disse, transtornada.
- Não, Sofia, não temos!
- Minha mãe me disse que você vai se casar. Quero saber se é verdade?
- É verdade, só não entendo o que você tem a ver com isso.
- Você não pode se casar, Osmar!
- Não posso, por quê?
- Sempre disse que gostava de mim e que não se casaria com ninguém que não fosse eu!
- Osmar, a princípio, ficou olhando para ela sem entender o que estava acontecendo. Depois, começou a rir. Ela, nervosa ao ver sua reação, gritou:
- Por que está rindo, Osmar?
- Não entendo você, Sofia. Tem razão, sempre disse que gostava de você e que queria me casar, tanto isso é verdade que construí esta casa, mas você não quis, você me abandonou, fazendo com que eu ficasse em uma situação muito difícil perante meus amigos e minha família. Agora, vem com essa conversa. Não estou entendendo, não está feliz com seu marido rico? Não está feliz com a vida que leva?
- Sei que errei, devia ter ficado com você, só quando minha mãe me contou que você ia se casar foi que descobri isso. Não quero que se case, Osmar!
- Quer o quê? Que eu fique solteiro para o resto da minha vida, esperando que seu marido morra? Não, Sofia, desde criança fui apaixonado por você, sempre achei que a gente ia se casar e ser feliz, mas me enganei. Agora que conheci Beatriz, descobri o que é o verdadeiro amor. Vou me casar e sei que vou ser muito feliz. Agora, descobri que estive enganado esse tempo todo. Se ele tivesse tido algum aprendizado, quando chegou deste lado tudo teria sido mais fácil. Saberia que aquela situação era de momento, pois todos, inclusive Sofia, também um dia chegariam.
- Isso é verdade, quando ele chegou demorou muito para aceitar. Tivemos muito trabalho para convencê-lo de que estava tudo certo e bem. Hoje, depois de tanto tempo, ele estava muito bem e ficou feliz por poder nos acompanhar. Agora, ele está sofrendo e poderá se revoltar novamente. Não precisava ter contado, Gusmão. Ele estava preparado para, ao nosso lado, seguir para outra esfera da espiritualidade. Agora, já não sei...
- Como você disse, acompanhei tudo e pensei que ele estivesse preparado para continuar a caminhada, mas será que estava mesmo, Maria Rita? Será que ele já deixou de lado todos os sentimentos de ódio e apego? Não sei. Por isso, ele precisava saber como tudo aconteceu realmente. Precisava conhecer a verdadeira Sofia para poder decidir se quer continuar a seu lado ou seguir. Por isso, também ele neste momento, precisa ficar sozinho e decidir que caminho quer tomar. Ele tem esse direito e não podemos evitar nem interferir. Só ele pode decidir o que vai fazer.
- É muito difícil, Gusmão. Eu mesma, que achava já ter superado todos esses sentimentos, confesso que também fiquei com raiva de Sofia. Sei que isso não deveria acontecer, mas aconteceu.
- Essas revelações estão servindo de teste para todos nós, Maria Rita. Vamos ver se nós também estamos preparados e esperar que Pedro Henrique reflita bem e quando voltar saberemos se ele está pronto para ouvir o resto.
- Ainda tem mais, Gusmão?
- Sim, muito mais, Maria Rita e prepare-se, pois o que ouvirá talvez faça com que os sentimentos aflorem com mais força.
- Estou ficando com medo, Gusmão...
- Medo do quê, Maria Rita?
- De não estar preparada para seguir em frente, de ainda ter de renascer muitas vezes para conseguir superar os sentimentos destrutivos do espírito.
- É um risco que corremos Maria Rita. Por enquanto, vamos orar pedindo ajuda para todos nós...
Assim fizeram. Colocaram-se em oração.

CRIME PLANEJADO

Pedro Henrique correu muito. Não conseguia evitar as lágrimas que corriam por seu rosto. Sua vida toda ao lado de Sofia, passou por seu pensamento. Chorou muito, tentou colocar os pensamentos em ordem. Quando morreu não conhecia nada sobre a vida espiritual, mas agora conhecia. Sabia que todos os espíritos têm muitas oportunidades para entenderem e resgatarem aquilo que para eles, é considerado como erro. Aprendeu que, para Deus, o erro não existe, o que existe são apenas aprendizados. Sabia tudo isso, mas naquele momento após aquelas revelações, estava sendo muito difícil aceitar. Continuou ali, olhando para a imensa plantação de cana de açúcar. O sol estava forte e seus raios faziam com que a plantação tivesse um brilho estonteante e maravilhoso, demonstrando uma das maravilhas da criação. Enquanto isso, Sofia, sem imaginar o que estava acontecendo, continuava dentro do carro esperando pela ajuda para poder sair daquele buraco onde o carro encalhara. Levantou os olhos do livro que tentava ler e disse:
- Stela, o homem está demorando muito. Acho que ele não vai conseguir ajuda.
Stela também levantou os olhos do livro, olhou para Sofia e respondeu:
- Tomara que ele volte, dona Sofia. Também não faz tanto tempo assim. Não se passaram nem quinze minutos. A senhora sabe quanto tempo ficamos na estrada depois que passamos pelo centro da cidade e estamos de carro. Imagine quanto tempo ele vai demorar estando a cavalo! Vamos ter paciência. A única coisa que precisamos fazer é esperar e rezar para que ele volte.
Ao ouvir aquilo, Sofia pensou: rezar? Quanto tempo faz que não rezo? Acho que a última vez foi quando eu era ainda uma criança e meu cachorrinho ficou doente. Mesmo depois de rezar muito ele morreu e eu nunca mais rezei. Nunca pensei ou tive tempo para rezar. Minha vida tomava todo o meu tempo. Além disso, depois de tudo o que fiz, será que Deus ouviria as minhas orações? Acho que não. Ele não me ouviu quando meu cachorrinho morreu, por que ouviria agora?
Voltou novamente os olhos para o livro. Pedro Henrique, após chorar e pensar muito voltou para o carro e sentou-se. Olhou para a mãe e Gusmão e disse:
- Desculpem-me pelo meu comportamento, mas não consegui me conter. Tudo o que ouvi me deixou transtornado. Sei que isso não devia acontecer, mas aconteceu.
- Tudo bem, Pedro Henrique, mas como você está agora?
- Mais calmo, mas sinto que não posso ir para uma esfera mais alta da espiritualidade, ainda não estou pronto.
- Por que está dizendo isso?
- Ora, Gusmão, como posso seguir se ainda estou preso a sentimentos destrutivos?
- Isso aconteceu e acontecerá muitas vezes com todos os espíritos a caminho da Luz. O espírito, por mais que tenha aprendido e recebido luz, sempre encontrará à sua frente problemas com outros a quem ama e muitas vezes, se deixará envolver. Por isso, é preciso estar alerta e vigiar sempre. Jesus já nos ensinou isso há muito, muito tempo, não foi?
- É verdade... é verdade...
- Como vê, Pedro Henrique, o que aconteceu com você estava previsto. Viemos até aqui para tentar fazer com que Sofia, que pertence ao nosso grupo há muito tempo, possa nos acompanhar a esferas mais altas, mas para que isso seja possível, é necessário que esteja à altura. Sei que você há muitas encarnações, esteve ao lado dela dando-lhe o apoio que ela nunca reconheceu, mas desta vez, talvez seja a última e você, só você, deverá decidir o que deseja.
- Confesso que estou confuso, Gusmão e queria pedir, se fosse possível, para deixarmos para outro dia. Sei que não deveria, mas não estou conseguindo perdoar e entender por que ela me enganou dessa maneira.
- Está bem, vamos deixar para outro dia o resto. Peço que se prepare, através de muita oração, pois o que tem para ouvir é muito grave, muito mais do que possa imaginar.
- Estou preocupado, Gusmão.
- Por que, Pedro Henrique?
- Achei que já tinha ouvido tudo e não consigo imaginar que haja algo pior.
- Infelizmente há. Mas é preciso que conheça toda a verdade, pois só assim poderá tomar uma decisão da qual não se arrependa depois.
- Sendo assim, acredito que não devemos esperar. Já que preciso tomar uma decisão, é melhor que tudo seja esclarecido o mais rápido possível. Estou pronto para conhecer o resto. Confesso que, depois do que ouvi, nada mais poderá me afetar.
- Receio que esteja errado, mas já que tem de ser feito, que seja. Vou continuar.
Maria Rita e Pedro Henrique acomodaram-se no assento do carro. Gusmão começou a falar:
- Naquela tarde, quando saiu da casa de Osmar, estava ao mesmo tempo feliz e desesperada. Feliz por ter a certeza de que ele ainda gostava dela e infeliz por saber que havia cometido algo errado. Osmar também por sua vez, não estava entendendo o que havia acontecido. Feliz por ver Sofia em seus braços e triste por ter enganado a noiva de quem pensava gostar. Os sentimentos estavam confusos. Ambos prometeram a si mesmos que aquilo não tornaria a se repetir.
- Não se repetiu, Gusmão?
- A vontade era essa, mas o desejo foi maior. Daquele dia em diante, Sofia, todos os fins de tarde, montava em seu cavalo e ia ao encontro de Osmar que, a principio, tentou evitar, mas não conseguiu.
Embora não quisesse admitir, amava Sofia com todas as forças de seu coração.
- Continuou, Gusmão? - Pedro Henrique perguntou, com lágrimas nos olhos.
- Sim, até o dia em que você retornou e haviam se passado quase dois meses. Em uma das vezes, após terminarem de se amar, Osmar disse:
- Não podemos continuar nos vendo, Sofia.
- Por que, Osmar?
- Está se aproximando o dia do meu casamento e você está casada. Isso está errado, precisamos parar...
- Você não pode se casar, Osmar. Você ainda gosta de mim e não vai ser feliz!
- Até certo ponto você tem razão, mas não existe alternativa. Talvez não goste de Beatriz como gosto de você, mas sinto por ela um carinho imenso e sei que se me esforçar, poderei ser muito feliz. O que não está certo é continuarmos nos enganando e enganando aos dois. Esta foi à última vez.
- Você está errado, Osmar! Podemos ficar juntos, a gente pode ser feliz. Quando Pedro Henrique voltar, vou lhe dizer que não gosto mais dele e que quero a separação!
- Vai fazer isso, Sofia?
- Vou, Osmar. Não vou conseguir viver ao lado dele tendo a certeza de que não gosto mais. Preciso fazer isso e vou fazer!
- Pense bem, Sofia. A meu lado vai ter de viver aqui para sempre e morar nesta casa simples. Não vai ter ninguém para servir você e, ao contrário, vai ter de fazer todo o serviço da casa. Não sei se vai se acostumar com isso.
- Nada disso importa, já percebi que o dinheiro, a boa casa e a boa vida não trazem a felicidade. Nunca me senti tão feliz nos braços de Pedro Henrique como me sinto com você e isso não tem preço. Gosto de você e quero viver ao seu lado para sempre.
- Isso não aconteceu, Gusmão. Quando a voltei me recebeu com beijos e abraços que, para mim, eram de saudade. Eu estava ansioso para voltar. Meu pai, depois de um longo tratamento melhorou e por isso os médicos que o atendiam deram-lhe alta e pudemos voltar. Lembro-me como se fosse hoje, da felicidade que senti por estar novamente em casa e ao lado de Sofia.
- Sim, isso realmente aconteceu. Sofia, embora estivesse feliz com sua volta, também ficou preocupada, pois não poderia mais se encontrar com Osmar. Mesmo assim, recebeu você com muito carinho. Tanto que você nunca poderia imaginar o que havia acontecido.
- Não poderia mesmo.
- Um dia antes de você voltar, quando estava retornando da casa de Osmar, encontrou Gustavo que vinha do rio carregando uma vara de pesca. Ela sabia que, para que ele voltasse do rio, teria de passar pela casa de Osmar. Preocupada, parou o cavalo e perguntou ao menino:
- Estava pescando, Gustavo?
- Estava, Sofia, olha quanto peixe pesquei. Hoje a mãe vai poder fritar e a gente vai comer muito bem.
- Que bom que pescou bastante.
- O que você estava fazendo na casa do Osmar, Sofia?
- Eu não estava lá...
- Claro que estava, vi seu cavalo parado na frente da porta. Não tinha certeza se era o seu cavalo, mas agora estou vendo que era ele mesmo.
- Você está enganado, Gustavo. Deve ser um cavalo igual ao meu. Eu não estava lá.
- O menino olhou para ela e para o cavalo repetidas vezes. Depois, passando a mão pela testa, disse:
- Não sei não... mas acho que era o seu cavalo sim...
- Não era não, Gustavo.
- Sofia, muito nervosa disse isso e com a espora fez com que o cavalo saísse em disparada. Gustavo, sem entender por que ela estava tão nervosa, continuou andando em direção à sua casa.
- Gusmão, por favor, diga que aquilo que estou pensando não aconteceu...
- Infelizmente, acredito que não vou poder atender a isso que está me pedindo, Pedro Henrique.
- Não pode ser, Gusmão ela não pode ter feito uma coisa como essa!
- Ela fez, Pedro Henrique... ela fez...
- Estão falando do quê? - Maria Rita perguntou, assustada ao notar a tristeza nos olhos deles.
- Logo saberá, Maria Rita. Naquela mesma noite, sabendo que você chegaria no dia seguinte, Sofia foi se deitar, mas não conseguia dormir. Sabia que com a sua volta, precisava tomar uma decisão. Sabia que a decisão mais certa era a de lhe contar toda a verdade, pedir a separação para assim, poder ficar ao lado de Osmar a quem sabia amar realmente. Não conseguiu dormir por muito tempo. Pensou nas conseqüências de seu ato. Sabia, como Osmar havia dito, que se houvesse a separação, haveria um custo. Teria de voltar a ter a mesma vida da qual fez questão de fugir. Teria de viver na pobreza e na esperança de um dia, ele conseguir montar a distribuição de frutas e legumes com que tanto sonhava. Ela poderia ser feliz ao lado dele por quanto tempo? Seria feliz mesmo sem dinheiro, após ter conhecido uma vida de riqueza? Desesperada, pensou: não posso fazer isso! Sei que meu amor por Osmar não vai resistir à pobreza e a vida sacrificada. Não posso abandonar Pedro Henrique e tudo o quer ele pode me dar. Nunca mais vou procurar o Osmar. Ele que se case e seja feliz. O preço é muito alto e eu não estou disposta a pagar. Vou continuar com Pedro Henrique...
Gusmão sorriu e com a voz triste, continuou:
- Após tomar essa decisão, lembrou-se de que Gustavo a havia visto na casa de Osmar. Ficou com medo e à tarde, quando você saiu para ver como estava tudo na fazenda, ela montou no cavalo e foi até a casa de Romeu. Sabia que naquela hora Gustavo estaria em casa sozinho, pois Nadir deveria estar na roça ao lado do marido. Tinha razão. Assim que chegou encontrou Gustavo, que estava pegando a vara de pescar. Quando a viu, perguntou admirado:
- O que está fazendo aqui, Sofia?
- Vim ver como vocês estão. A mãe está em casa?
- Não, ela está lá na roça com o pai.
- Ela se aproximou do menino e perguntou com a voz carinhosa:
- Gustavo, você contou pra mãe que viu meu cavalo na casa do Osmar?
- Não, até me esqueci, mas por que está perguntando isso?
- Por nada. Não conta, estou combinando com o Osmar pra gente fazer uma festa surpresa no aniversário da mãe. Ela não pode saber. Promete que não vai estragar a surpresa?
- Se é pra ter uma festa não vou contar. Eu não ia contar mesmo. O que quero mesmo é ir pescar.
- Já que você não vai estragar a festa, vou lhe dar uma vara de pesca nova. Igual àquela que o Pedro Henrique usa, você quer?
- Claro que quero, Sofia!
- Amanhã eu volto com a vara, está bem assim?
- Você não pode imaginar como estou feliz! Obrigado, Sofia.
- Sofia sorriu e disse:
- Agora vou até a roça conversar com o pai e com a mãe. Quer ir também?
- Não, vou pescar! Tchau, Sofia.
- Tchau, Gustavo, tomara que pesque muito! Eu trouxe para você um pedaço de bolo de chocolate, sei que gosta muito!
- Agora não estou com vontade de comer.
- Leve e enquanto estiver pescando, sei que vai ficar com fome.
- Acho que vou mesmo. Agora preciso ir. Tem muito peixe lá no rio.
- Gustavo saiu carregando a vara de pescar. Sofia, com os olhos o acompanhou até que desaparecesse. Depois, foi até a roça encontrar com os pais, que se admiraram por vê-la ali. Nadir, ao vê-la, perguntou intrigada:
- O que está fazendo aqui, Sofia?
- O Pedro Henrique voltou, mãe!
- Que bom, como está o pai dele?
- Parece que está fora de perigo, só vai ter de continuar tomando os remédios.
- Também estou estranhando, desde que se casou nunca mais voltou pra visitar a gente. O que está acontecendo, Sofia?
- Não está acontecendo nada, pai. O Pedro Henrique quer no domingo, fazer um churrasco e pediu que eu viesse até aqui para convidar o senhor, a mãe e o Gustavo.Vai ser uma festa muito boa.
- Ele fez isso? Ele quer que a gente vá mesmo?
- Claro que quer, mãe. Ele está muito feliz por seu pai estar bem e por ter voltado para casa. Quer que todos os parentes e amigos venham para a festa.
- Não sei não, isso está estranho. Ele nunca quis se misturar com a gente...
- Isso já passou, mãe. Ele agora, depois de quase perder o pai, entendeu como me sinto por ficar longe da minha família e quer consertar tudo o que fez de errado. Quer mesmo que a senhora, o pai e o Gustavo vão à festa.
- Está bem, vou pensar, conversar com sua mãe e vamos ver o que a gente vai fazer.
- Não tem o que pensar, pai! Só precisa ir, comer e beber muito!
- Romeu ficou calado. Sofia beijou os dois e voltou para casa, onde havia deixado o cavalo, olhou em direção ao rio e foi embora.
Maria Rita arregalou os olhos e disse:
- Agora estou entendendo por que você ficou desconfiado, Pedro Henrique. Ela não pode ter feito aquilo!
- Ela fez, mamãe, ela fez...
- Infelizmente fez. Você se lembra daquela noite, Pedro Henrique?
- Como poderia me esquecer, Gusmão? Estávamos jantando quando Romeu chegou desesperado em casa. Ele estava muito cansado, pois viera correndo da sua casa até a nossa e quase não conseguia falar. Ao vê-lo naquele estado, assustado perguntei:
- Que aconteceu, seu Romeu?
- O Gustavo não voltou para o jantar. Eu fui procurar e encontrei-o perto do rio. Ele está muito mal, preciso ir pra cidade, mas não pode ser a cavalo, vim até aqui ver se você pode me levar no seu jipe!
- Fiquei apavorado e no mesmo instante, fui acompanhado por ele até a garagem, peguei meu jipe e fomos até a sua casa.
- Foi assim mesmo que aconteceu. Você sequer perguntou o que Romeu achava que havia acontecido e saíram em disparada. Sofia, apavorada, ficou em casa, morrendo de medo de que Gustavo contasse que ela havia estado lá e lhe dado o bolo de chocolate, pois fora ela quem o havia preparado e colocado no meio um veneno muito forte que você usava na fazenda. Estava tão apavorada que não teve coragem de pedir para ir junto.
- Agora estou me lembrando daquela noite. Vi que ela chorava muito, mas pensei que fosse por causa do irmão, não por medo.
- Mas era de medo, sim. Com medo de ser descoberta na sua traição com Osmar, ela decidiu matar o menino.
- Não pode ser, Gusmão!
- Não poderia ser, mas foi, Maria Rita.
- Quando eu e o senhor Romeu chegamos a sua casa, percebi que não havia mais nada para ser feito. O menino estava morto. Foi um desespero enorme. Nadir chorava muito abraçada ao filho. Romeu saiu de casa, foi para o quintal e também começou a chorar sem parar. Logo em seguida, Sofia chegou montada no cavalo, desceu e, correndo, entrou em casa. Precisava ver se Gustavo tinha dito alguma coisa. Ao ver que ele estava morto, respirou fundo e começou a gritar, demonstrando muita dor. Eu a abracei, dizendo:
- Não fique assim, Sofia.
- O que aconteceu, Pedro Henrique? Ele não disse nada?
- Não sei, Sofia. Quando chegamos, ele já estava morto. Não tenho a menor idéia.
- Sofia se aproximou da mãe, para ver se ela sabia de alguma coisa. Abraçando-a, perguntou:
- Que aconteceu, mãe?
- Nadir, chorando desesperada, respondeu:
- Não sei, Sofia. Na hora do almoço ele estava muito bem. Disse que ia pescar e trazer muito peixe pra eu fritar na hora da janta.
- Ele não disse nada?
- Não, quando seu pai o encontrou, embora estivesse vivo, já estava desmaiado. Seu pai pegou-o no colo, veio aqui pra casa e foi até a sua casa pedir ajuda. Quando eles voltaram com o jipe, Gustavo já estava morto.
- O que a senhora acha que aconteceu?
- Não sei, pode ter sido picado por algum bicho ou comido alguma erva venenosa. Não sei.
- Sofia continuou chorando, não de dor pela morte do irmão, mas com medo de que descobrissem ter sido ela a culpada, aquela que deu o veneno para o menino. - Gusmão continuou falando. Ela estava apavorada. Você há consolou o tempo todo, Pedro Henrique.
- Sim, eu entendia todo aquele sofrimento. Não sabia, até hoje, que Gustavo não era seu irmão legitimo, para mim ele era o único irmão que ela tinha e, portanto, devia gostar muito dele.
- Também fui avisada e como todos, fiquei chocada com aquela tragédia e também com pena de Sofia e de sua família. Nunca poderia imaginar que Sofia havia sido a responsável por aquela tragédia.
- Você nem ninguém Maria Rita. A cidade era pequena, não havia histórias de crimes, por isso só havia dois soldados e um único médico que cuidavam de todos. Como ninguém desconfiasse do crime, o médico deu o atestado de óbito, dizendo que Gustavo havia morrido por picada de algum bicho. O corpo foi velado na sua casa, Pedro Henrique.
- Sim, durante o tempo todo Sofia ficou acordada o que para todos foi considerado um ato de amor, mas na realidade não era. Ela queria ter a certeza de que ninguém descobrisse o que realmente havia acontecido.
Osmar e toda sua família compareceram ao enterro. Assim que chegou, cumprimentou Romeu, Nadir e Sofia, que o recebeu com frieza e àquela hora ele percebeu que, com sua volta, tudo entre ele e Sofia havia terminado. Percebeu que ela não deixaria a segurança que tinha vivendo ao seu lado, Pedro Henrique, por uma vida incerta ao lado dele. Saiu dali com a certeza de que toda aquela loucura havia terminado e que deveria se casar com Beatriz e tentar ser feliz. O enterro foi realizado e depois, todos voltaram para suas casas. Sofia entrou em casa e foi tomar um banho. Esteve o tempo todo sobre uma tensão muito forte, agora poderia descansar aliviada.
- Gusmão, essa não é a Sofia que conheci e com quem fiquei casado por tanto tempo. Jamais poderia imaginar que ela fosse capaz de cometer um crime tão bárbaro. O pior é que ficou impune. Nunca ninguém desconfiou de coisa alguma. Isso não pode ser, Gusmão! Ela precisa ser desmascarada! Precisa pagar por tudo o que fez!
- Embora, perante as leis dos homens, ela não tenha sido descoberta e tenha ficado impune, pelas leis de Deus será condenada e terá de pagar.
- O que aconteceu com Gustavo depois da morte?
- Ele foi amparado por amigos espirituais e levado em segurança para uma das colônias que existem espalhadas em volta da Terra. Está muito bem, preparando-se para uma nova encarnação. Quando ele renasceu como irmão de Sofia, era para ambos resgatarem erros passados. Sofia teria a chance de resgatar todo o mal que havia lhe feito em encarnações passadas. Sempre houve o risco de que ela não fizesse isso, mas era preciso ser tentado. Porém outra vez, ela não conseguiu.
- Não entendo, Gusmão, por que depois de tudo isso que ela fez, estamos aqui tentando fazer com que ela se arrependa e possa nos acompanhar? Ela não está pronta para ir a uma esfera mais alta da espiritualidade, muito menos fazer parte de uma equipe e prestar socorro.
- Sim, tem razão, Maria Rita.
Ela não está pronta, mas vocês estavam dispostos a continuarem aqui, pois não queriam deixá-la para trás, por esse motivo é que estou aqui para lhes mostrar a verdadeira Sofia e, só assim, poderem tomar essa decisão que influenciará suas vidas espirituais. Lembre-se de que todos, bons ou maus, somos filhos de um mesmo Deus e que Ele nos ama a todos da mesma maneira e com o mesmo amor, por isso sempre nos dará todas as chances para que possamos encontrar Sua Luz. Sofia está tendo mais uma chance, tomara que a receba com carinho. Pedro Henrique e Maria Rita se olharam, abaixaram os olhos e fizeram uma prece, agradecendo a Deus por toda sua bondade.

O ERRO MAIOR

Naquele instante, sem saber o porquê, Sofia se lembrou de Gustavo e do dia da sua morte. Um arrepio percorreu todo o seu corpo. Ela, embora não quisesse, lembrava-se dele todos os dias. Lembrava-se do dia em que Romeu o trouxera para sua casa e da felicidade que Nadir sentiu quando pegou aquela criança no colo. Lembrava-se de como o ensinou a ler e escrever e do ódio que sentiu no dia em que Romeu deu uma bofetada em seu rosto por ter dito que ele não era seu irmão. Sempre que se lembrava do dia da morte dele, fazia um esforço enorme para mudar o pensamento. Em sua opinião, ele havia sido picado por um bicho qualquer. Se todos haviam acreditado naquilo, por que ela não acreditaria? Sua alma doentia tentava se enganar. Não queria ser e não se sentia responsável pela morte do menino. Mesmo assim, enquanto andava pela casa, via vultos e à noite, sonhava com o rosto de Gustavo disforme, com a aparência de um monstro que a atacava e acusava. Acordava suando muito e em terror.
- Era ele, Gusmão?
- Não, Gusmão estava protegido por amigos espirituais. O que fazia com que aquelas imagens surgissem era o sentimento de culpa, a consciência culpada, pois dela, ninguém consegue escapar. Por isso, embora ela quisesse afastar, as imagens a perseguiam a todo instante.
Naquele momento, sob a influência de Gusmão, Stela perguntou:
- Dona Sofia, fiquei sabendo que a senhora teve um irmão. Por que não fala sobre ele?
Sofia respirou fundo, sentou-se melhor no acento do carro e sabendo que não teria como evitar a resposta, respondeu:
- Sim, tive um irmão que morreu ainda criança.
- Do que ele morreu?
Sofia, visivelmente incomodada, respondeu:
- Ele foi picado por um bicho, que não sabemos qual é.
Stela ia fazer uma outra pergunta, mas Sofia a interrompeu:
- Por favor, Stela, não quero continuar com esse assunto. Ele me traz lembranças dolorosas e me faz mal muito mal.
Stela conhecia Sofia o suficiente para saber que deveria terminar aquela conversa. Tornou a voltar os olhos para a estrada. Percebendo que não havia movimento algum, começou a ler novamente. Sofia fez o mesmo e como estava fazendo desde que o carro atolou, também voltou a ler, mas não conseguiu. Stela, com aquela pergunta, fez com que ela se voltasse totalmente para o dia em que Gustavo morreu e ela começou a pensar: nos dias que sucederam à morte de Gustavo, tive de ter muita força para não contar a Pedro Henrique o que havia acontecido realmente. A única maneira que encontrei para me livrar foi ficar dentro do meu quarto, esperando o tempo passar. Sabia que ele estava preocupado comigo e que, por isso, evitaria tocar no assunto.
- Realmente ela estava certa, Gusmão. Eu queria me aproximar, mas achava que ela não estava em condições e que estava sofrendo muito. Deixei os dias passarem.
- Eu acompanhei todo o seu sofrimento, meu filho. Nós também, embora não fôssemos da família, sentimos muito por toda aquela tragédia que se abateu sobre a família de Sofia. Nunca, por um minuto sequer, pensamos que ela poderia ter sido a autora de todo aquele sofrimento e de tanta maldade. Gusmão, nem sei dizer o que estou pensando. Estou muito abalada com todas essas revelações que está nos fazendo.
- Entendo como estão se sentindo, mas ainda não terminou, tem muito mais, Maria Rita.
- Ainda tem mais, Gusmão? Não posso acreditar que fui tão enganado!
- Você estava apaixonado, Pedro Henrique e a paixão muitas vezes faz com que não se enxergue a realidade.
Além do mais, Sofia planejou muito bem, por isso jamais seria como não foi, desmascarada. Lembra-se do que mais aconteceu naquele tempo?
- Sim, eu estava muito preocupado, pois Sofia não dormia bem nem se alimentava e, muitas vezes, sentia enjôos e quase desmaiava, por isso propus levá-la ao médico. A princípio ela não queria ir, mas diante de minha insistência, fomos para a cidade. O médico, após examiná-la, disse:
- Bem, vou precisar fazer alguns exames, mas, desde já, posso dizer que a senhora está grávida, dona Sofia.
- Sofia pareceu assustada. Eu, sem nada perceber, achei que fosse por que ela não queria ter um filho. Mesmo sabendo disso, não consegui esconder minha felicidade.
- Sofia, vamos ter um filho! Já imaginou como isso vai ser bom? A fazenda está precisando muito de uma criança! Estou muito feliz, meu amor.
- Sofia começou a chorar, achei que fosse de felicidade, mas por tudo o que nos contou o motivo era outro, não era, Gusmão?
- Realmente Pedro Henrique, as lágrimas que ela deixou que caíssem pelo seu rosto eram por saber que aquele filho que esperava não era seu, mas de Osmar. Você ficou fora de casa por quase dois meses e nesse tempo, ela se encontrou com Osmar quase todos os dias. Chorou com medo de que você desconfiasse e descobrisse. Lembra-se de que ela disse, chorando:
- Eu estava desconfiada mesmo antes de você ir viajar, só não tinha certeza.
- Eu acreditei nela, Gusmão! Agora estou descobrindo que Maurício não é meu filho e isso para mim não têm a maior importância.
- Não poderia esperar outra coisa de você, Pedro Henrique. Sempre foi um pai dedicado. Amou aos dois da mesma maneira, mas Sofia não; sempre que olhava e ainda olha para Maurício, lembra-se da traição que praticou, mas como não poderia deixar de ser, culpou Osmar por isso. Julgou-se uma vítima dele, quando na realidade sabemos que, ao contrário, ele foi o menos culpado.
- Tem razão. Mas por mais que eu queira, não consigo esquecer a felicidade que senti ao saber que ia ter um filho. Mauricio foi e ainda é, um excelente filho, dedicado e amigo, talvez toda essa amizade e dedicação tenha herdado do pai, pois embora não tenha conhecido Osmar, estou percebendo que assim como eu, também foi uma vítima de Sofia.
- Eu também, meu filho, nunca imaginei que Maurício não fosse meu neto verdadeiro e sempre o amei da mesma maneira que amei Ricardo. Porém, agora que nos contou a verdade, Gusmão, entendo muita coisa que não entendia na atitude de Sofia.
- O quê, mamãe?
- Ela sempre demonstrou e nunca fez questão de ocultar a diferença com que tratava os dois. Todo seu carinho e dedicação sempre foram para Ricardo. Com Maurício, ela me parecia fria e distante. Eu não entendia qual era o motivo. Hoje sei.
- Tem razão, Maria Rita. A presença de Mauricio era a lembrança de sua traição e de todos os crimes que cometeu.
- Além de matar o irmão, ela cometeu outros crimes, Gusmão?
- Infelizmente sim, Pedro Henrique. Depois que Gustavo morreu, Sofia ficou muitos dias em seu quarto e só começou a sair depois que percebeu que seu crime não seria descoberto. O menino foi enterrado, a missa de sétimo dia foi realizada e quase um mês se passou. Depois disso, você voltou ao trabalho e tudo voltou a ser como antes. Todos tinham suas obrigações para cumprir. Você, em especial tinha muito trabalho, pois estava começando a criação de bezerros e por isso precisava ter muito cuidado com suas mães e isso lhe tomava muito tempo. Mas, depois que Gustavo morreu e preocupado com Sofia, procurava chegar mais cedo para poder ficar ao lado dela.
- Sim, Gusmão, eu me lembro daquele tempo, estava mesmo muito preocupado. Lembra-se de uma tarde em que estava com Sofia sentado na varanda e viu Romeu se aproximando?
Pedro Henrique fechou os olhos para poder se lembrar daquele dia. Após alguns segundos, respondeu:
- Sim, estou me lembrando, Gusmão. Ele se aproximou e logo percebi que estava muito preocupado. Assim que ele chegou perto, eu disse?
- Como está, senhor Romeu? Que surpresa!
- Ele, parecendo muito nervoso, respondeu:
- Não estou bem, não.
- Por que, aconteceu alguma coisa?
- A Nadir não está bem, estou muito preocupado, por isso vim até aqui. Preciso ir com ela lá na cidade para ver o médico, mas acho que na carroça vai ser muito demorado e cansativo, por isso vim até aqui para ver se o senhor pode levar a gente no seu jipe.
- Sofia quando viu o pai, começou a tremer temendo que ele houvesse ido lá por ter descoberto alguma coisa. Forçou e conseguiu que algumas lágrimas caíssem de seu rosto. Perguntou, demonstrando uma preocupação que, na realidade, não sentia:
- O que ela tem, pai?
- Desde que Gustavo a morreu ficou muito triste, não quis mais voltar para a roça, fica o tempo todo deitada, não se alimenta e está muito fraca. Quando cheguei a casa agora a pouco, ela estava desmaiada junto ao fogão, por isso estou aqui. Preciso da ajuda de vocês para levá-la ao médico.
- Claro que sim, senhor Romeu! Devia ter vindo antes!
- Vi que ela estava triste, mas achei que era por causa do Gustavo e que ia passar logo, mas não passou...
- Bem, vamos agora mesmo! Sofia, você quer ir?
- Sofia, ainda preocupada, não queria deixar você sozinho com ele. Respondeu:
- Claro que quero, Pedro Henrique!
- Está bem, vou até os fundos de a casa pegar o jipe.
- Você saiu e ela ficou sozinha com o pai. Ele, com o olhar triste e preocupado, perguntou:
- Você está bem, Sofia?
- Ela, querendo saber se o pai desconfiava de alguma coisa, com a voz trêmula respondeu:
- Estou tentando continuar minha vida pai, mas está sendo difícil, até agora não entendo como Gustavo pôde morrer. Ele era ainda uma criança...
- Também não entendo, mas foi à vontade de Deus e contra isso, a gente não tem nada a fazer, não é mesmo?
- Também fiquei muito triste com a morte do Gustavo, mas Pedro Henrique me mostrou que de nada adianta. Como o senhor mesmo disse, deve ter sido a vontade de Deus.
- Ela, com a mão, enxugou as lágrimas e aliviada por perceber que o pai não desconfiava do que realmente havia acontecido, disse:
- O senhor deve ter razão...
- Você voltou, Pedro Henrique e juntos, foram até a casa de Romeu. Encontraram Nadir deitada sobre a cama. O que menos Sofia queria era voltar para aquela casa onde havia cometido o crime, mas como sempre, pensou em tudo, sabia que se recusasse, poderia levantar suspeitas. Resolveu ir. Quando chegaram e entrara na casa, seu corpo todo tremeu ao lembrar-se do irmão, mas logo se controlou. Nadir estava muito abatida, Sofia se aproximou. Ao vê-la, Nadir começou a chorar. Sofia perguntou:
- O que a senhora tem, mãe?
- Nadir olhou para ela e com muita dificuldade para falar, respondeu:
- Seu pai ficou preocupado à toa, Sofia... não tenho nada, só estou muito triste...
- Com a morte do Gustavo?
- Também...
- Também como, Nadir? Tem mais alguma coisa?
- Nadir olhou para ela e respondeu:
- Não sei, Sofia... nem sei o que estou pensando...
- Você, Pedro Henrique, que acompanhou toda a conversa pensando que Nadir dizia aquilo por estar muito fraca e, portanto, sem conseguir pensar direito, disse:
- Não vamos perder tempo conversando, vamos agora mesmo para a cidade! Sofia, prepare sua mãe, troque sua roupa. Eu e seu pai vamos esperar lá fora. Senhor Romeu, ainda tem aquela da boa? Preciso tomar um trago.
- Eu disse aquilo não porque gostasse de beber, mas sabia que ele gostava e precisava, de alguma maneira, acalmá-lo.
- Vocês saíram, Sofia sentou-se na cama em que Nadir estava deitada e disse:
- Mãe, a senhora precisa se levantar, tomar um banho e trocar sua roupa. Depois, vamos ao médico, ele vai lhe dar algum remédio e a senhora vai ficar bem novamente. Sei o que está sofrendo por causa do Gustavo, mas nada mais pode se fazer. Ele foi embora. Nós estamos aqui e precisamos continuar.
- Estou muito triste sim, Sofia. Gustavo era tudo o que tinha. Fico esperando que a qualquer momento ele vai entrar, feliz, trazendo os peixes que tanto gostava de pescar.
- Sei que a senhora pensa muito nele, mas agora precisa continuar vivendo e deve ficar muito feliz. Estou grávida, vou ter um filho, mãe!
- Nadir, sem que Sofia esperasse, segurou o braço dela com muita força e disse, chorando - continuou Gusmão:
- Era disso que eu tinha medo, Sofia!
- Medo do quê, mãe?
- De quanto tempo você está grávida, Sofia?
- Sofia não esperava aquela pergunta e ficou sem saber o que responder. Depois, disse:
- Não sei, mãe, não tenho certeza... não sei, mãe e não entendo por que está me fazendo essa pergunta!
- Você sabe, Sofia. Toda mulher sabe quando está esperando um filho.
- Não sei, mas o que isso tem a ver com a minha felicidade em estar esperando uma criança? Pedro Henrique também está muito feliz. Por que está fazendo isso, mãe? Não está feliz em ter um neto?
- Quando o Gustavo me disse que viu seu cavalo na casa de Osmar, aquela em que vocês iam morar depois de casados, fiquei com medo que isso se espalhasse e que todos ficassem sabendo, principalmente seu marido e pedi a ele pra não contar pra ninguém, nem mesmo pra você.
- Não estou entendendo, mãe! O que é isso que está falando?
- Eu sei que, enquanto seu marido esteve viajando, você se encontrou várias vezes com Osmar. Pelo tempo que ele ficou fora, se você estiver com um pouco mais de um mês, tenho certeza que essa criança que vai nascer não é filha dele, Sofia...
- Sofia começou a se desesperar quando percebeu que havia sido descoberta e que Gustavo havia contado para sua mãe. Contudo, controlou-se rapidamente e disse:
- Mãe, isso não é verdade! Gustavo mentiu!
- Não, Sofia, ele não mentiu. Era uma criança e falou com toda sua inocência. Sei que estava dizendo a verdade.
- Como pode saber? Gustavo mentiu!
- Depois que ele me disse que via sempre o seu cavalo lá, eu mesma em uma tarde, fui até lá e também vi. Você se encontrou sim, várias vezes, com Osmar.
- Ao ouvir aquilo, Sofia se desesperou mais ainda e chorando muito, disse:
- Mãe, por favor, esquece tudo isso, já passou! Não comente com ninguém! Sabe que, se Pedro Henrique descobrir o que aconteceu, nem sei o que pode fazer! Foi uma loucura, mas prometo que não vai se repetir! Por favor, mãe!
- Nadir, desolada, olhou para Sofia e também chorando, perguntou:
- Por que fez isso, Sofia? Sei que seu marido não gosta da gente, mas gosta muito de você e faz de tudo pra que você seja feliz! Ele não merecia que você o traísse...
- Eu sei disso, mãe, mas não sei o que aconteceu! Quando soube que o Osmar ia se casar com uma moça que tinha muito dinheiro, me desesperei e fiz essa loucura!
- Sempre o dinheiro, Sofia... sempre o dinheiro. Por causa dele abandonou Osmar e, agora, para não perder tudo o que conseguiu, vai continuar mentindo e enganando?
- Acabou, mãe! Acabou! - Sofia disse, chorando desesperada.
- Não acabou, Sofia. Está apenas começando...
- Acabou, mãe! Nunca mais vou ver o Osmar!
- Talvez isso seja verdade, mas sempre que olhar para essa criança que vai nascer, vai também, mesmo sem querer, se lembrar dele e de sua traição. O melhor que tem a fazer é contar a verdade para o seu marido. Ele é um bom homem, gosta muito de você e vai entender...
- Não posso fazer isso, mãe! Não posso, ele nunca vai entender e vai me abandonar junto com a criança que vai nascer! Não posso fazer isso, mãe!
- Precisa, minha filha, pois só assim tem uma chance de viver em paz. Se você não contar, eu mesma vou ser obrigada a fazer isso...
- Sofia, desesperada e sem saber o que fazer ficou calada por um tempo. Depois de pensar um pouco, disse:
- A senhora tem razão, mãe. Preciso contar e vou fazer isso, mas não agora. A senhora precisa ficar bem para, se o Pedro Henrique me abandonar, me ajudar a criar essa criança que vai nascer.
- Nadir sorriu e disse:
- Sou sua mãe, Sofia e sempre vou estar disposta a ajudar você. Por isso, pode contar tudo ao seu marido. Sei que ele vai perdoar o que fez, sabe que você é muito nova e por isso, se deixou levar, mas se ele não entender e abandonar você pode voltar aqui para casa. Eu e seu pai vamos ajudar você a criar essa criança.
- Sofia respirou fundo. Abraçou a mãe, dizendo:
- Obrigada mãe. A senhora, como sempre, tem razão, vou fazer tudo como à senhora disse, mas não pode ser hoje. A senhora precisa ir ao médico. Está muito fraca, precisa tomar alguma vitamina pra ficar forte de novo. Pedro Henrique e o pai estão aí fora esperando. A senhora vai no médico e quando a gente voltar à noite, eu converso com o Pedro Henrique e só aí é que a gente vai ver como tudo vai ficar. Está bem assim?
- Está bem, minha filha. Vamos esperar com muito carinho essa criança e fazer tudo pra que seja muito feliz.
- Sofia ficou tranqüila, sabia que tinha conseguido convencer a mãe de que falaria com você. Ajudou-a a se vestir e antes de saírem, você perguntou:
- Também quer ir, Sofia, ou prefere ficar em casa?
- Ela, demonstrando preocupação, respondeu:
- Claro que quero, Pedro Henrique! Só vou ficar tranqüila quando souber que minha mãe está bem!
- Sim, foi isso que aconteceu Gusmão. Falando daquela maneira, ela me convenceu de que estava mesmo preocupada com a mãe.
- Na realidade, o que ela não queria era deixar que você e a mãe ficassem sozinhos. Temia que a mãe, até sem perceber, deixasse escapar alguma coisa que levantasse suspeita. Vocês foram para a cidade. Depois que o médico examinou Nadir, disse:
- Dona Nadir, a senhora está muito fraca, vou receitar algumas vitaminas e um calmante para que possa reagir. Lembre-se de que posso cuidar de seu físico, mas de sua alma a senhora mesma é quem tem de cuidar. Hoje já está tarde, mas mesmo assim, vou conversar com Mauro, o farmacêutico. Ele mora perto da minha casa. Vou pedir que manipule a receita. Amanhã cedo, podem vir buscar.
- Eu olhei para Nadir e depois para Sofia e disse:
- Faça isso por favor doutor e não se preocupe que amanhã, bem cedo, vou estar aqui e esperar que o remédio fique pronto. Depois, eu mesmo levo para dona Nadir.
- Está bem, Pedro Henrique, mas preciso voltar a dizer para a senhora, dona Nadir, que este remédio é muito forte, por isso só pode tomar vinte gotas durante as refeições. Ele vai ajudar a senhora a se livrar dessa depressão, mas isso só acontecerá se entender que tudo na vida é sempre como tem de ser. Seu filho morreu, sei que a dor e a saudade são muito fortes, mas a vida continua. A senhora tem seu marido e sua filha que precisam muito de carinho, além do mais, Sofia está esperando uma criança que vai encher sua vida de felicidade. Pense nisso, dona Nadir...
- Vocês voltaram para casa, deixaram Nadir e Romeu em casa e depois, foram para a sua. Sofia estava inquieta, você achou que era por preocupação com a doença da mãe, quando na realidade, ela estava com muito medo de perder tudo o que havia conseguido.
- Nunca poderia imaginar que ela estivesse agindo daquela maneira estranha por causa disso, Gusmão. Achei que realmente ela estava preocupada com a mãe. Ela não pensou em acatar o que a mãe havia dito e me contar tudo o que havia acontecido?
- Nem por um minuto, isso era o que eu mais temia. Durante toda aquela noite, quase não dormiu e ficou imaginando uma maneira de evitar que isso acontecesse. Pela manhã, enquanto tomavam café, ela disse:
- Pedro Henrique, o médico só levou a receita à noite para o seu Mauro, por isso acho que o remédio só vai ficar pronto lá pelas dez ou onze horas. É muito tempo para você ficar esperando. Acho melhor você mandar o Tião. Ele pode ficar o tempo que for preciso. Pela para ele trazer o remédio aqui em casa, eu vou com ele na carroça levar para minha mãe.
- Não precisa Sofia, ele mesmo pode levar.
- Eu quero ir para ver como minha mãe está.
- Tudo bem, se você quer vou conversar com ele.
- Foi o que fiz, Gusmão, conversei com Tião e ele foi para a cidade.
- Quando voltou, já era quase meio dia. Assim que chegou, Sofia pediu para que ele lhe mostrasse o remédio. Ele lhe deu dois vidrinhos, um com um líquido escuro e outro com líquido branco. Ela pegou os vidrinhos, dizendo:
- Vou pegar um pedaço de carne para que minha mãe ou meu pai prepare para o almoço.
- Tião, sem desconfiar, sorriu e enquanto ela entrava com os vidrinhos, ficou esperando. Logo depois ela voltou trazendo em suas mãos um pacote e os dois vidrinhos. Foram para a casa de Romeu que, quando eles chegaram, não estava lá. Sofia entrou e conversou com a mãe.
- Mãe, eu trouxe um pedaço de carne para o almoço e o remédio que o doutor Xavier receitou. Precisa tomar direitinho. Não se esqueça de que não pode ser mais de vinte gotas de cada um.
- Não vou me esquecer, Sofia.
- Quer que eu prepare o almoço?
- Não precisa, seu marido já deve estar chegando para comer. Estou bem e vou preparar a comida do seu pai.
- Está bem, então já vou indo.
- Ela estava saindo de casa, quando Nadir perguntou:
- Já conversou com seu marido, Sofia?
- Sofia queria evitar aquela pergunta, por isso estava saindo apressada, mas diante da insistência da mãe, respondeu:
- Ainda não, mãe. Ontem, quando o chegamos estava muito cansado, tomou um banho e adormeceu logo. Hoje pela manhã, saiu antes de eu acordar, mas não se preocupe, vou conversar com ele. A senhora me convenceu de que esse era o melhor caminho.
- Faça isso, Sofia, vai ser bom pra você e pro seu casamento.
- Vou fazer, mãe... estou com medo, mas vou fazer...
- Nadir sorriu, Sofia subiu na carroça onde Tião estava e foram embora. Quando você chegou para o almoço, a primeira coisa que perguntou foi:
- O Tião trouxe o remédio, Sofia?
- Trouxe e eu fui com ele até a casa da minha mãe.
- Como ela está?
- Ela, com um ar de tristeza e preocupação, respondeu:
- Não está bem não, Pedro Henrique. Estava chorando muito e não queria se levantar da cama, tive de brigar com ela.
- Ela se levantou?
- Depois de eu falar muito. Quis preparar o almoço, mas ela não deixou. Disse que ia preparar. Prometeu que vai tomar os remédios direitinho, como o doutor Xavier mandou.
- Ela vai ficar bem, Sofia. Isso que ela está sentindo é normal. Afinal de contas, perdeu um filho e isso não deve ser fácil...
- Com os olhos cheios de água, ela disse:
- Vai sim, Pedro Henrique, tenho fé que isso vai acontecer logo...
- Três dias se passaram, vocês estavam tomando café quando Romeu, logo pela manhã, chegou desesperado e chorando muito. Ao vê-lo chegando daquela maneira, você se levantou e preocupado, perguntou:
- Que aconteceu, senhor Romeu?
- Ele chorava muito, tanto que estava com dificuldade para responder. Você se aproximou dele, colocou o braço em volta de suas costas e disse:
- Tente se acalmar para que possa nos contar o que aconteceu, parece que foi algo muito grave.
- Ele respirou fundo e disse:
- Hoje pela manhã quando acordei, estranhei que Nadir ainda não havia acordado. Mexi nela e percebi que ela estava morta...
- Morta? Como? - você perguntou, abismado.
- Não sei, ela, mesmo tomando os remédios, não melhorou...
- Sofia começou a chorar e perguntou:
- O senhor tem certeza de que ela tomou mesmo o remédio, pai?
- Tomou sim, eu mesmo fiz questão de dar. Mas acho que ela não conseguiu se livrar da tristeza que sentia. Vocês se lembram de que o doutor Xavier disse que só os remédios não iam adiantar se ela não reagisse? Ela não reagiu. Meu Deus do céu, o que vou fazer agora com a minha vida? Perdi meu filho de uma maneira idiota que nem sei como foi e agora, a minha mulher...
- Lembro-me daquele dia, Gusmão e de como Sofia chorava sem parar. Eu não sabia qual dos dois devia consolar primeiro, pois assim como eles, não estava acreditando como tudo aquilo estava acontecendo. Como tanta desgraça podia se abater em uma família?
- Você ficou apavorado e demorou um pouco para dizer:
- Precisamos levá-la para a cidade. O doutor Xavier precisa vê-la e descobrir o que aconteceu.
- Sofia estremeceu e ainda chorando, perguntou?
- Vai ser preciso mesmo, Pedro Henrique?
- Vai, Sofia. Ele precisa dar o atestado de óbito.
- Não posso ir, quero ver minha mãe.
- Ela gritou desesperada e você ficou preocupado com ela. Achava que estava daquele jeito pelo choque da morte da mãe, quando na realidade não era.
- Como não era, Gusmão? Por que ela estava daquela maneira?
- Por medo, Pedro Henrique, por medo...
- Medo do quê, Gusmão?
- Quando Tião lhe entregou os dois vidrinhos e ela disse que ia pegar um pedaço de carne, na realidade foi pegar o veneno que havia colocado no bolo de chocolate que deu a Gustavo. Derramou um pouco do remédio na pia do banheiro e completou com o veneno. Ela não sabia quanto tempo ia demorar, mas arriscou. Sabia que o veneno agiria. Seu único medo era de que fosse descoberta.
- Ela não fez isso, Gusmão! Ela não matou a própria mãe!
- Infelizmente fez, Maria Rita. Estava com muito medo de que a mãe contasse para o pai aquilo que sabia.
- Meu Deus, Gusmão! Conhecendo Sofia, custa-me acreditar. Ela me pareceu humilde e também sempre foi muito dedicada ao Pedro Henrique...
- Ela sempre soube o que fazia. Planejava qualquer coisa para não perder o que tinha conquistado...
- Sabemos que ela não foi descoberta. Como isso pôde acontecer? Será que ninguém desconfiou que Gustavo e Nadir morreram de uma maneira estranha?
- Pedro Henrique, lembra-se de que resolveu ir até a cidade para pedir que o médico e o delegado viessem até a casa de Romeu?
- Sim, achei melhor para que pudessem constatar que ela estava morta e assim, pudéssemos enterrá-la.
- Eles foram. A cidade era muito pequena e não havia recurso algum. Doutor Xavier, por saber que Nadir estava muito fraca e em uma depressão profunda, não estranhou que houvesse morrido e até achou que havia sido de inanição.
- Como isso pôde acontecer, Gusmão?
- Ainda hoje existem cidades como aquela. Pequenas, sem recursos e sem maldade, com dois soldados e um só médico para cuidar da população.
- Naquele dia, depois que foi constatada a morte de Nadir, Sofia chorou o tempo inteiro até a hora em que a mãe foi enterrada. Foi confortada por muitas pessoas. Eu mesmo fiquei muito preocupado e por ela estar esperando criança, tentei acalmá-la várias vezes. Insisti para que fosse se deitar, mas ela se recusou...
- Ela não podia se afastar. Precisava ter a certeza de que ninguém desconfiaria. Depois do enterro, foi para casa, comeu, tomou um banho e dormiu a noite inteira.
- Não sei o que estamos fazendo aqui, Gusmão! - Pedro Henrique disse, muito nervoso.
- Estamos aqui na tentativa de que ela mude de idéia, se arrependa e confesse todos os seus crimes.
- Ela não vai fazer isso, nunca! É um espírito embrutecido! Mesmo que confesse, não está pronta para nos acompanhar, terá de resgatar tudo o que fez...
- Sim, Maria Rita, isso é verdade, mas quando viemos para junto dela, foi porque vocês sabiam que ela precisava de ajuda. Queriam se sacrificar e continuar ao lado dela. Por isso, é preciso que conheçam toda a verdade para, no fim, se ainda desejarem, continuarem com esse propósito.
- Não sei, Gusmão, continuou achando que estamos perdendo tempo. Ela não vai mudar...
- Lembre-se, Pedro Henrique, de que todo espírito terá seu momento de lucidez. Sofia, por mais delitos que tenha cometido, ainda é filha de um Pai amoroso e que está disposto a perdoar sempre e que para isso, dará todas as oportunidades. Por isso, vou dizer mais uma vez, ficaremos aqui até que todos os recursos sejam usados e não reste mais esperança alguma...
- Mesmo com um espírito como o de Sofia?
- Com um espírito como o dela, principalmente.Você não se lembra da parábola do filho pródigo ou do pastor que abandonou suas ovelhas para ir em busca de uma desgarrada? Deus é assim, muito mais do que um pai aqui na Terra, que sempre perdoa os filhos, Ele perdoa muitas vezes mais e embora possa dar algum corretivo, estará sempre pronto para receber, com muito carinho, um filho seu perdido.
Pedro Henrique e Maria Rita levantaram a cabeça e em silêncio, fizeram uma oração.

OUTRA CHANCE PARA REPENSAR

Sofia, sentada dentro do carro, ao relembrar o dia em que Nadir morreu, começou a tremer. Seu rosto foi ficando pálido e sua cabeça tombou para frente. Sentia dificuldade para respirar. Com esforço, tocou no braço de Stela que ao vê-la daquela maneira, muito nervosa disse:
- O que a senhora tem, dona Sofia?
- Quase sem poder falar, respondeu com a voz fraca e baixa:
- Não sei, de repente comecei a passar mal. Estou me sentindo muito fraca.
Stela, desesperada e sem saber o que fazer, olhou para frente e para trás, na esperança de ver alguém se aproximando, mas não havia ninguém. Maria Rita e Pedro Henrique também estranharam aquilo. Maria Rita perguntou:
- O que ela tem, Gusmão?
- Tudo isso que conversamos se passou há muito tempo. Sofia, no princípio, ficou com medo de ser descoberta, mas com o tempo percebeu que ninguém havia desconfiado. Sentiu-se segura e continuou vivendo. Ela nunca soube, mas energias pesadas grudaram-se em seu corpo. Sempre sentiu essa ou aquela dor, mas nunca deu atenção. Hoje está desde cedo, relembrando o passado e todos os seus crimes. Sua energia enfraqueceu e as energias pesadas que estivessem com ela ficaram mais fortes e a estão atacando.
- Por que isso só aconteceu agora?
- O corpo é uma extensão do espírito. Se o espírito não estiver bem, o corpo também não estará. Sofia, ao relembrar, teve um sentimento que há muito havia esquecido. Sentimento de culpa que é o que contém maior força de destruição.
- Ela não tem como lutar contra isso?
- Tem e pode se livrar dessas energias, mas vai demorar muito para que entenda. O sentimento de culpa acompanha um espírito que realmente cometeu algum delito ou julga ter cometido.
- Não estou entendendo.
- Muitas vezes um espírito comete algo que seja errado, mas que na realidade não é. O simples fato de pensar que é, já o torna realidade. A única maneira de reparar o estrago que esse sentimento pode causar é tentar remediar o que foi feito. Algumas vezes dá; outras, como no caso de Sofia, não há como reparar, pois Gustavo e Nadir não voltarão a viver ao seu lado.
- Então, ela não tem chance alguma?
- Tem, bastaria que confessasse tudo o que praticou e se arrependesse com sinceridade, mas ela sabe que precisaria pagar aqui, na Terra, por seus crimes e isso é muito difícil de acontecer.
- E se ela não fizer isso até o dia da sua morte física?
- Infelizmente, Pedro Henrique, essas energias pesadas que a acompanham tomarão conta de seu espírito e ela será atormentada por muito tempo, até o dia em que o plano espiritual entenda que dever parar. Será resgatada e preparada para uma nova encarnação que, como podem imaginar, não será das mais fáceis.
- A Lei é justa não é, Gusmão?
- Sim, Pedro Henrique. Na Terra ou em outro lugar onde o espírito viva, pode haver impunidade, mas no plano espiritual, não. A Lei se encarregará de fazer justiça e de quanto tempo vai durar, sem nos esquecermos de que sempre o espírito poderá encontrar a luz.
- Você disse que ela está envolvida por energias pesadas, mas não estamos vendo.
- Isso acontece porque nossas energias são diferentes. Se quisermos ver, precisamos baixar nossas energias.
- Isso pode ser feito?
- Sim, vou fazer isso para que possam ver.
Gusmão fechou os olhos e, em poucos minutos, começaram a ver as energias em volta de todo o corpo de Sofia. Eram pequenas porções de nuvens escuras no formato de flechas. Algumas pareciam ser atiradas com muita força e iam grudando no coração de Sofia. A cena era grotesca. Maria Rita colocou as mãos sobre os olhos e perguntou:
- Gusmão, como ela suporta isso? Parece que machuca!
- Neste momento, ela está sentindo muita dor e se fosse a hora de morrer, nada poderia evitar, mas olhem bem e vejam aquela pequena luz branca quase totalmente apagada.
Os dois olharam mais atentamente e viram. Pedro Henrique perguntou, curioso:
- Que luz é aquela, Gusmão?
- Todo espírito, encarnado ou não, tem em algum lugar, alguém a quem ama e por quem é amado. Por incrível que possa parecer, essa luz é resultado dos pedidos de Nadir, que ama Sofia com todos os seus defeitos. Há muito tempo já lhe perdoou e quer que seja resgatada.
- Não pode ser, Gusmão! Nadir?
- Sim, Pedro Henrique, Nadir! Ela está muito bem e tem luz que pode iluminar a nós todos. Só conseguiu essa luz através de muito esforço, perdão e amor. Essa pequena luz está conseguindo fazer com que as energias pesadas não fiquem muito tempo sobre Sofia. Elas, através do amor de Nadir, são afastadas por algum tempo, mas voltam assim que Sofia relembra o que fez e não se arrepende, como está acontecendo agora, mas mesmo assim, Nadir não desiste. Prestem atenção como à luz branca está aumentando e as pequenas flechas estão sendo retiradas. Isso é somente o resultado do amor e perdão de Nadir.
Pedro Henrique, com a cabeça, disse que havia entendido e olhou para Sofia que ainda continuava muito branca e com dificuldade para respirar. Perguntou:
- Ela vai morrer, Gusmão?
- Não, Pedro Henrique, se isso fosse acontecer depois de tudo o que ela fez, não estaríamos aqui e em nosso lugar estariam outras companhias que ela atraiu para o seu lado, durante toda sua vida aqui na Terra. Por isso, se ainda estamos aqui, significa que ela ainda tem uma chance. Esse mal-estar vai passar dentro de instantes.
Olharam para Sofia que pareceu estar melhorando. Aos poucos, a cor de seu rosto começou a voltar e sentiu que podia respirar com mais tranqüilidade. Stela, muito preocupada por não saber o que fazer olhou para ela e percebeu o que estava acontecendo. Disse:
- Graças a Deus! Parece que a senhora está melhorando, dona Sofia...
- Estou sim, o mal-estar que eu estava sentindo já passou.
- O que será que aconteceu?
- Deve ser a tensão, esta viagem está sendo muito complicada. Aconteceu muita coisa, devo ter ficado nervosa. Mas, agora estou bem. Vamos torcer para que aquele homem volte logo, se é que vai voltar...
- Ele vai voltar sim, dona Sofia, mas se não voltar alguém deve passar por aqui e vai nos ajudar. O importante é que a senhora esteja bem, fiquei muito preocupada...
Sofia, ainda fraca, começou a rir. Stela não entendeu e perguntou:
- Por que a senhora está rindo? O que aconteceu?
- Você disse que ficou preocupada, acredito que sim, mas o que queria mesmo era que eu morresse...
- O quê? A senhora não sabe o que está dizendo. Por que acha que eu queria sua morte?
- Ora, Stela. Acha que não sei a imensa fortuna que tenho? Acha que não sabe que, se eu morrer, vocês vão herdar tudo o que é meu?
- Dona Sofia, não acredito que a senhora está pensando em uma coisa como essa! Sabe muito bem que nem o Maurício nem o Ricardo precisam do seu dinheiro! Fiquei preocupada sim, por estarmos aqui nesse fim de mundo e por não saber o que fazer... nada além disso...
Sofia, com ironia na voz, disse:
- Está bem, Stela. Acredito que esteja dizendo a verdade.
Stela, demonstrando muita raiva, se calou, mas pensou: sempre soube que essa mulher é uma cobra, mas nunca pensei que fosse tanto, embora ela não deixe de ter um pouco de razão. Se morresse, o Maurício ia herdar um bom dinheiro que daria para muitas coisas, além de podermos comprar aquela casa de praia que tanto desejo. Quando ela morrer não vai fazer falta alguma, só não quero que seja hoje sozinha comigo, aqui neste fim de mundo. Por que, se isso acontece, vou ter de explicar o que estávamos fazendo aqui e isso não quero...
Em poucos minutos, Sofia estava bem. Nem parecia que havia passado tão mal. Gusmão apontou para a luz que vinha de Nadir e disse:
- Olhem a força do amor. De todos nós, Nadir é quem se preocupa mais com Sofia.
- É difícil de se acreditar nisso, mas estou vendo acontecer, Gusmão...
- Tem razão, Maria Rita. Amar a quem nos ama é fácil, o difícil é amar a um inimigo. Sabendo disso, Jesus já nos disse: perdoai setenta vezes sete, não foi?
- Foi sim, Gusmão. Ele sabia o que dizia...
- O amor, embora possa não acreditar, tem muita força. Essa luz quando chega modifica qualquer situação. O mesmo acontece com alguém que morre. Normalmente, quando isso acontece e ela retorna para o plano, fica assustada e preocupada com aqueles que aqui ficaram e sofrem muito quando sabem que estes estão sofrendo e inconformados. Querem voltar e ficar ao lado deles, o que pode trazer muitos transtornos para a vida do encarnado. Por isso muitas vezes são impedidos de voltar, mas quando essa proibição se torna um problema para o recém desencarnado, ele recebe autorização para voltar, nem que seja por um período muito curto. A simples presença ao lado daqueles que deixou, por sua energia ser diferente, causa muitos problemas. Muitas doenças de difícil diagnóstico ou até bem diagnosticadas são causadas pela presença desses espíritos que, embora sejam amigos, sem saber ou compreender, causam muito mal. A maioria das depressões que existem são causadas por esses espíritos. Como sabem, quando desencarnados, levamos conosco todas as nossas qualidades e os nossos defeitos. Se, ao desencarnarmos não aceitarmos a morte e por isso, entrarmos em depressão, continuaremos assim e aqueles de quem nos aproximarmos também, sem saber ou ter um motivo aparente, entrarão em depressão, o que poderá causar problemas muito sérios, levando algumas vezes, até ao desencarne.
- Isso pode mesmo acontecer, Gusmão?
- Sim, muito mais do que possa calcular. O espírito desencarnado sofre muito com o sofrimento daqueles que aqui deixaram.
- Nada se pode fazer para que isso não aconteça?
- O aprendizado é longo, mas aos poucos, todos os espíritos encarnados entenderão que a morte não é um fim, pois mais cedo ou mais tarde, todos terão de morrer. Quando isso acontecer, reencontrarão aqueles que foram na sua frente. Aprenderão que a morte, muitas vezes, é um bem.
- Quando?
- Quando a pessoa sofre de uma doença que lhe causa muita dor ou sofrimento. Deus, que é um Pai amoroso, manda a morte para que o espírito possa se livrar da dor e continuar evoluindo. Quando isso acontece, o corpo que serviu de abrigo por muito ou pouco tempo para o espírito, desaparece, mas ele não. O espírito continua na sua evolução, no seu aprendizado.
- Está dizendo que quando alguém morre, não devemos chorar nem nos desesperar?
- Mais ou menos isso. Claro que, quando alguém morre, sentimos muita dor e sofrimento, pois estamos acostumados com aquela pessoa sempre ao nosso lado, mas se acreditarmos que a vida continua, essa dor, aos poucos, vai desaparecendo, restando somente uma saudade que sabemos, um dia passará, pois estaremos novamente ao lado daquele que se foi.
- Isso é fácil de se dizer, mas quando acontece, não é tão fácil. Lembro-me de como fiquei triste quando a senhora, mamãe, morreu.
- Tem razão, Pedro Henrique. Assim que me dei conta de que havia morrido, sentia muita dor no peito, como se uma lança o perfurasse.
Quando perguntei qual era o motivo, me disseram que aquelas pequenas flechas vinham do coração daqueles que eu havia deixado na Terra. Depois de algum tempo, permitiram que voltasse para visitá-los e com tristeza constatei o quanto vocês estavam sofrendo. Fiquei muito triste, não sabia o que fazer, mas Isaura, que estava me acompanhando, disse:
- Não fique assim, Maria Rita, a vida se encarregará para que todos fiquem bem.
- Como assim?
- A vida vem acompanhada de situações difíceis. O ser humano precisa continuar vivendo ou sobrevivendo, por isso, os problemas com o tempo, farão que a sua imagem ou presença vá ficando cada vez mais distante.
- Se pensarmos bem, mamãe, isso é verdade. Depois que a senhora e o papai morreram, fiquei triste e sofri muito, mas as crianças eram pequenas, Sofia insistia para que eu me tornasse político, coisa que eu nunca quis. Aquilo me tomou muito tempo e preocupação. Sem perceber, acho que esqueci os dois. Esqueci não, lembrava-me com menos freqüência.
- É isso que estou dizendo Pedro Henrique, a vida nos ajuda sempre, tanto na nossa evolução como no nosso aprendizado, por isso, o espírito quando está desencarnado, sente tanta vontade de renascer para que isso possa acontecer.
- O que o encarnado pode fazer para ajudar aqueles que partiram na frente?
- Embora não possa esquecer definitivamente, sempre que se lembrar daquele que foi, embora sinta saudade, não pode sentir dor. Deve tentar relembrar os momentos bons que passaram juntos, as coisas boas, fechar os olhos e imaginar que bolas de luz estão saindo de seu corpo e sendo enviadas para aqueles que se foram. Essas bolas de luz encontrarão aquele a quem foram destinadas em qualquer lugar em que estejam e lhes causa um bem enorme, pois ao invés de flechas que lhe causam dor, estas se transformarão em bolas de luz que só lhes causam muita paz e felicidade.
- A espiritualidade é sabia mesmo.
- É sim, Pedro Henrique. Tudo está sob controle e todas as chances para que o espírito possa evoluir em paz serão dadas.
Stela não sentia vontade de conversar. Ao ver que Sofia estava bem, continuou olhando para os dois lados da estrada, na esperança de que alguém aparecesse para ajudá-las. Sofia, embora estivesse bem, continuava preocupada com o que havia acontecido e também olhava para os dois lados da estrada com o mesmo pensamento de Stela. Precisavam sair daquele lugar. Já era quase uma hora da tarde, o tempo estava passando e logo a tarde chegaria e quando isso acontecesse já deveriam estar em casa. No mesmo instante em que olharam, viram que, pela parte da frente, vinha em sua direção o homem que havia passado por elas e dito que voltaria com ajuda. Stela disse, eufórica:
- Olhe lá, dona Sofia, o homem voltou e está acompanhado!
- Estou vendo, Stela, já não era sem tempo. Estou cansada de ficar aqui e temos um compromisso que não pode ser adiado. Stela ia falar algo, mas o homem se aproximou. Ele vinha montado em seu cavalo, mas logo atrás o acompanhava um jipe. Ele se aproximou da janela onde Stela estava e disse:
- Eu falei que ia voltar. Demorei um pouco porque tive de ir até a fazenda do meu compadre e fica um pouco distante, mas ele aceitou ajudar as senhoras.
As duas olharam para eles e Stela disse:
- Só posso agradecer por tanta gentileza, realmente estamos muito preocupadas e precisamos sair daqui.
- Não precisa agradecer, a gente está neste mundo para ajudar um ao outro, não é mesmo?
- Stela sorriu. Nunca havia pensado naquilo e, talvez se estivesse no lugar dele, teria passado sem sequer pensar em ajudar. Teria ido embora e se esquecido dele e de seu problema. Ele olhou para o compadre e disse:
- Acho que a gente precisa colocar as correntes aí no chassi do carro e puxar, não vai ser difícil não é compadre?
O compadre sorriu, saiu do jipe, foi até a carroceria, pegou algumas correntes e entrou na água. Ele e o homem estavam com botas altas e, por isso, não havia perigo de se molharem. Antes de amarrarem as correntes, o homem disse:
- Sei que as senhoras não são da cidade, por isso preciso perguntar para que lado querem que puxemos o carro.
- Por quê? - Stela perguntou.
- Por que, se seguirem em frente terão de voltar por esta mesma estrada e vão atolar novamente, por isso acho melhor puxar para trás, aí às senhoras poderão voltar por aonde vieram.
Ao ouvir aquilo, Sofia ficou muito nervosa e disse:
- Não podemos voltar, Stela! Temos um encontro marcado. Precisamos seguir em frente!
- Não sei, dona Sofia, esta viagem já teve tantos problemas, acho que é um aviso para que voltemos. Além do mais, como este senhor disse, se continuarmos teremos de voltar por esta estrada e encontraremos novamente este pedaço, onde ficaremos presas outra vez...
- Não podemos voltar, Stela! Precisamos continuar! Senhor, não existe outra estrada por onde poderemos voltar?
- Tem, só que ela aumenta o caminho em mais de uma hora.
- Está em boas condições?
- Está, é totalmente asfaltada.
- Viu, Stela, podemos voltar por ela! Pode puxar o carro para frente, senhor.
- A senhora é quem sabe, estamos aqui só para ajudar. Se tiver tempo, a estrada é muito boa mesmo.
Sofia, impaciente com toda aquela conversa, sorriu. Os dois homens amarraram as correntes e em poucos instantes o carro, embora estivesse todo sujo de lama, estava livre. Sofia e Stela sorriram aliviadas. Os homens, também felizes, sorriram. Stela disse:
- Muito obrigada, podem imaginar o bem enorme que fizeram. Quanto vão cobrar pelo serviço?
- O primeiro homem, demonstrando nervosismo, respondeu:
- A gente não vai cobrar nada não moça. A gente só está ajudando, nada mais que isso. Agora que já estão livres, continuem sua viagem e que Deus acompanhe as senhoras.
Ao ouvir aquilo, Sofia disse, demonstrando nervosismo:
- Como não vão cobrar? O senhor teve um trabalho imenso, foi buscar seu compadre que perdeu tempo e gastou gasolina para vir até aqui, precisam cobrar!
- A gente não precisa não, dona. O que o compadre gastou com gasolina é quase nada e o tempo à gente tem bastante. A gente só ajudou porque as senhoras precisavam. Deus já deu tanto pra gente, não é compadre?
O outro homem sorriu e balançou a cabeça, dizendo que sim e acenando o braço, um entrou no jipe, o outro montou no cavalo e sorrindo foram embora. Stela e Sofia ficaram olhando-os irem embora. Quando desapareceram totalmente, Stela, sob a influência de Gusmão, disse:
- Dona Sofia, ainda acho que devíamos voltar e deixar essa história para outro dia. Já tivemos tantos avisos. Acho que o que estamos fazendo está errado e de alguma maneira, Deus está tentando nos avisar e impedir.
- Stela, o que está acontecendo com você?
- Por que está perguntando isso?
- Desde que iniciamos esta viagem, fui notando que você está mudando.
- Mudando por quê?
- Está a todo o momento me contradizendo. Você nunca foi assim, Stela! Sempre fez tudo o que mandei e quis, sem perguntar nem pestanejar. Não estou gostando de sua atitude!
- Não sei o que aconteceu, a senhora deve estar vendo coisas. Não mudei, só acho que desta vez a senhora está fazendo algo que não é certo.
- O que não é certo?
- A senhora quer separar a Anita do Ricardo, acho que isso não está certo. Eles dois se gostam muito, isso qualquer um pode ver. A senhora tem uma raiva de Anita, que a meu ver, é sem motivo. A senhora parece não estar preocupada com seu filho, mas sim com um ódio que parece pessoal. Qual é na verdade o motivo de tanto ódio pela Anita?
- Não estou entendendo o que está dizendo, Stela, mas vou responder: eu não gostei da Anita desde o primeiro dia em que a vi. Ela é dissimulada, pedante e só faz o meu filho sofrer! Ela não é mulher para ele! O Ricardo merece muito mais!
- Mas foi ele quem a escolheu, dona Sofia! Nem a senhora nem ninguém tem o direito de interferir nessa escolha!
Sofia ficou irritada e disse, quase gritando:
- Você é quem não tem o direito de interferir nas minhas decisões! Só tem de cumprir o que quero e mando! Sabe que a boa vida que tem deve-se ao motivo de ter se casado com Maurício, pois se não fosse isso, estaria vivendo na mesma casa onde seus pais vivem até hoje! Naquela pobreza toda! Por isso, vamos continuar essa viagem e fazer i que tem de ser feito. Quanto a você, só precisa me acompanhar e não contar a ninguém, ninguém mesmo, muito menos ao Maurício, o que viemos fazer nesta viagem.
- Ele vai perguntar por que demoramos tanto.
- Invente qualquer coisa, diga que viemos até esta cidade para fazer compras. Ele vai acreditar. Diga que estava comigo, ele sabe que se está comigo, está com Deus! - Sofia, ao dizer isso, soltou uma estridente gargalhada.
Stela estava sem saber o que falar. Sempre soube que nunca deveria enfrentar Sofia, pois com certeza, ela usaria, como usou, sua origem humilde e sua vida de luxo de agora. Por isso, sempre fez o que ela quis, mas agora, estava se cansando. Precisava parar com aquilo. Ficou calada, ligou o carro, acelerou e continuaram pela estradinha, rumo à casa do tal homem. Pedro Henrique, que acompanhava toda a conversa, balançou a cabeça em sinal de desânimo e disse:
- Não adianta insistir, Gusmão. Sofia está completamente perdida e não mudará nunca! Ela é má mesmo!
- Chego a concordar com você, Pedro Henrique. Apesar de todos os avisos que teve em forma de empecilhos, não entendeu e não quis rever sua atitude. Mas, se ainda estamos aqui, se não recebemos um aviso para voltar, é porque ainda existe uma esperança. Vamos continuar ao lado delas e ver até onde vai essa loucura.
- Acho que estamos perdendo tempo, mas se acha que devemos ficar, vamos fazer isso, não é mamãe?
- Sim, meu filho. Como Gusmão já disse várias vezes, precisamos esgotar até o último recurso.
Ficaram em silêncio, olhando para a estrada.

O TRABALHO

Stela continuou dirigindo em silêncio, porém agora seus pensamentos estavam diferentes daqueles que tinha quando iniciou a viagem: não deveria ter, desde o começo, tentado agradar dona Sofia. Somente hoje estou percebendo como ela é má. Isso tem de terminar! Mas preciso tomar cuidado, ela assim como está fazendo com Anita, poderá fazer contra mim. Ela tem razão, minha família é humilde e só tenho as condições de hoje por ter me casado com Maurício, mas quando me casei, eu o amava e ainda continuo amando. Preciso me afastar dela, mas vai ter de ser aos poucos, sem que perceba, se isso for possível. Ela me sufoca! Sofia, por sua vez, só queria chegar o mais rápido possível e resolver aquilo que, para ela, era um tormento: ver seu filho casado com aquela mulher. Vinte minutos depois, entraram numa rua de uma pequena vila. Assim que entraram, perceberam que devia haver três ou quatro ruas sem asfalto. As casas eram simples e pequenas, embora a maioria dos terrenos parecesse ser grande. A rua em que estavam parecia ser a principal porque havia alguns pontos de comércio. Perguntaram e logo foram informadas do endereço do tal homem. Seguiram as indicações e chegaram a uma das travessas da rua principal. Sofia olhou o nome da rua e o número da casa. Pararam o carro em frente a uma casa que, como as outras também vista de fora, parecia ser pequena. Era cercada com arame onde foram plantadas várias trepadeiras. Desceram do carro. Sofia procurou uma campainha, mas não encontrou. Bateu palmas com muita força. Logo uma senhora apareceu. Ela estava vestida com uma saia colorida e longa. Vagarosamente se aproximou. Assim que chegou ao portão, perguntou:
- Posso ajudar?
Sofia, muito nervosa, respondeu:
- Sim, temos hora marcada com o Pai Jorge.
- Acho que ele não tem ninguém marcado para esta hora.
- Tem razão, a hora estava marcada para antes do almoço, mas só conseguimos chegar agora.
- Um momento, por favor.
Assim dizendo, voltou-se e andou em direção a casa. Sofia e Stela ficaram olhando. Poucos minutos depois ela voltou, abriu o portão e apontou com a mão para que entrassem. Stela estava temerosa, embora a aparência da casa fosse boa, não sabia o porquê, mas não estava se sentindo bem. Continuaram andando com a mulher na frente. Chegaram à porta principal da casa, a mulher abriu a porta e se afastou para que elas entrassem. Sofia estava ansiosa para falar com o homem. Tinha pressa, estavam atrasadas e longe de casa. Naquela hora, já deveria estar quase chegando em casa. Stela também estava preocupada, sabia que sua demora seria notada por Maurício e que teria de mentir. Já havia feito muito isso, mentido por causa de Sofia, mas agora não queria mais fazer isso. Estava cansada de ter agido daquela maneira durante tanto tempo. Precisava e queria mudar, só não sabia se conseguiria. Entraram em uma sala que tinha apenas dois pequenos sofás. A mulher, com a mão pediu que sentassem e esperassem. Em seguida, abriu e entrou em uma porta. Poucos minutos depois, voltou e ainda calada, apontou para a porta, pedindo que entrassem. Sofia e Stela se levantaram e entraram em uma outra sala. Esta era diferente da primeira. Não havia móveis, apenas algumas almofadas espalhadas pelo chão. Havia somente uma pequena mesa coberta por uma toalha vermelha com velas de várias cores e uma espécie de peneira sobre ela. Dos dois lados da mesa havia pequenos bancos, também cobertos por um tecido vermelho. O homem, assim que elas entraram, com a voz mansa e falando bem devagar, disse:
- Demoraram em chegar ...
Stela sorriu e falou:
- Desculpe, mas a culpa não foi nossa. Tivemos muitos problemas para chegarmos aqui, quase desistimos.
O homem riu e ainda com a voz mansa e falando devagar, disse:
- É assim mesmo que acontece com quase todas as pessoas que vêm aqui para me ver. Elas têm uma porção de problemas.
- Por que isso acontece?
Ele sorriu com malícia e, piscando um olho, respondeu:
- Alguns espíritos que não têm o que fazer tentam impedir.
Pedro Henrique, Gusmão e Maria Rita, que também estavam lá, sorriram. Gusmão disse:
- Nisso ele tem razão, sempre tentamos impedir, mas quase nunca conseguimos.
- As energias que estão aqui, embora não possamos ver, me parecem bem pesadas, Gusmão. Não estou me sentindo bem...
- Tem razão, Maria Rita. Vou fazer com que possam ver o que se passa aqui.
Assim dizendo, levantou as mãos para o alto e fez uma oração. Em poucos instantes a sala toda se iluminou. Perplexos, viram vários vultos negros que se movimentavam de um lado para o outro sem parar. Pedro Henrique e Maria Rita se assustaram. Gusmão sorriu e disse:
- Não precisam se preocupar, eles não estão nos vendo. Estamos em outra energia.
- Quem são eles?
- São as companhias que foram atraídas para cá, mas depois conversaremos sobre isso. Agora, vamos prestar atenção naquilo que vai acontecer aqui.
Os três se voltaram para o homem e Sofia, que conversavam. O homem disse:
- Pelo que parece foi à senhora quem marcou a hora.
- Foi sim, estou com um problema muito grande e preciso de ajuda. Pelo que me disseram, somente o senhor poderá fazer isso.
- Depende do que deseja, nem tudo consigo fazer.
- Sei que aquilo de que preciso o senhor poderá fazer.
O homem sorriu. Estava acostumado com pessoas como Sofia. Sabia que ela, com certeza, estava lá para pedir o mal para alguém e que, para isso, faria e pagaria tudo o que fosse necessário. Sorrindo, disse para Stela:
- Se a senhora não se importar, gostaria que esperasse lá fora. Preciso conversar com esta senhora.
Stela, ao ouvir aquilo, ficou assustada. Estava ali naquele lugar que não conhecia, sabendo o que Sofia pretendia fazer e, por isso, não queria sair dali e ficar sozinha do lado de fora. Nervosa, olhou para Sofia e perguntou:
- Preciso sair, dona Sofia?
Sofia, que estava ansiosa para conversar com o homem, não percebeu o nervosismo e medo de Stela. Respondeu:
- Se ele disse que precisa, acho bom que saia. Não fiquei preocupada, acho que não vai demorar muito, não é mesmo, Pai Jorge?
O homem sorriu e falando mais manso ainda, respondeu:
- Não vai demorar, não senhora. Moça pode ficar tranqüila, nada de mal vai lhe acontecer. Pode ficar na outra sala. Minha esposa vai lhe preparar um suco.
O que menos Stela queria era ficar sozinha na outra sala e menos ainda, tomar um suco feito naquela casa, mas diante do olhar de Sofia, sem alternativa saiu, foi para a outra sala e sentou-se no sofá. A mulher saiu e voltou logo depois, trazendo um copo com suco. Stela, além de estar com sede, estava também com muita fome. Havia tomado café pela manhã antes de sair de casa, mas com todo aquele atraso e a vontade de Sofia de chegar logo ali, não comeram nada durante a viagem. Mesmo assim, disse:
- Obrigada senhora, mas não estou com sede.
A mulher, entendendo que ela estava receosa, disse:
- Não precisa ficar preocupada, neste suco só tem água, limão e açúcar. Pode tomar sem medo. Está calor e sei que a senhora está com sede.
Stela envergonhada, disse:
- Não estou com medo nem com sede, mas mesmo assim, para que não se ofenda, vou tomar o suco.
Pegou o copo que a mulher lhe oferecia e temerosa, tomou.
- A mulher sorriu, pegou o copo de volta e saiu pela porta por onde havia entrado. Assim que saiu, Stela respirou fundo e ficou olhando para a porta que dava para a sala onde Sofia estava.
Lá dentro, Sofia e o homem conversavam. Ele perguntou:
- Posso saber em que posso ajudar à senhora?
Sofia sorriu e começou a falar:
- Meu filho está casado com uma mulher que não o merece. Ele sofre muito ao lado dela, mas não consegue se separar. Preciso que faça algum trabalho para que isso aconteça! Sei que pode fazer isso. Já ouvi falar muito sobre o senhor e o seu trabalho.
- Se já ouviu falar sobre o meu trabalho, sabe que consigo sem problema algum e se é isso mesmo o que quer, seu filho vai estar separado dessa mulher bem depressa.
Sofia sorriu e disse, ansiosa:
- Claro que é! O senhor não pode imaginar como foi difícil chegar até aqui! Só cheguei aqui porque a vontade que tenho de ver meu filho livre daquela mulher é muito grande!
- Vamos fazer isso...
- A pessoa que me falou a seu respeito disse que o senhor faz o bem e o mal também.
- Ela está certa, mas depende do que a senhora ache o que seja o mal.
- Não sei, não entendo nada disso.
- O mal e o bem caminham juntos. Isso a senhora mesma vai poder confirmar.
- Não estou entendendo. Como vou comprovar?
- A seu pedido, vou tentar separar o seu filho da esposa. Não é mesmo?
- Sim, esse é o meu desejo.
- Pois bem, para muitas pessoas separar um casal pode ser considerado um mal, mas para a senhora essa separação será um bem, não é mesmo?
- Pode ter certeza que sim! Quando isso acontecer vou ser a mulher mais feliz deste mundo!
- Está vendo, não lhe disse que o mal e o bem caminham juntos?
- Tem razão, mas o que está me interessando mesmo é saber como esse trabalho vai ser feito.
- Sendo assim, vou consultar os Orixás, eles vão dizer o que querem.
Assim dizendo, pegou algumas conchas que estavam ao lado da peneira, começou a falar uma língua que Sofia não conhecia e a jogar as conchas sobre a peneira. Fez isso por várias vezes, depois disse:
- Já sei tudo o que é preciso fazer. Os Orixás deram à resposta.
- Sofia não entendia nada do que estava acontecendo, mas perguntou:
- O que é preciso fazer?
O homem abriu uma gaveta que havia na mesa, tirou dela uma caderneta, uma caneta e disse:
- Enquanto eu for falando, a senhora vai anotando.
Assim dizendo, voltou a jogar as conchas sobre a peneira e a falar daquele modo estranho. A cada jogada, ia dizendo o que era preciso e Sofia ia anotando. Fez assim várias vezes. Depois, parou de jogar as conchas e disse:
- Está tudo aí o que vou precisar. A senhora me traz tudo e eu faço o trabalho.
A lista era enorme. Nela havia pedidos de flores, velas de todas as cores, charutos, cigarros, cachaça, champanhe, farinha para que fosse feita uma farofa, pimenta vermelha, vários alguidares, galinhas pretas e de angola e por último, um bode. Sofia leu com atenção e perguntou:
- O que é alguidar? Nunca ouvi falar sobre isso.
- É um prato de barro para que as oferendas sejam colocadas.
Sofia continuou lendo a lista.
- É uma coisa, espero que o trabalho dê certo e que meu filho fique livre daquela mulher.
- Ele vai ficar, pode ter certeza, basta à senhora me trazer tudo o que está aí.
- Em quanto tempo?
- A senhora vai ver o resultado entre sete a vinte e um dias.
- O senhor tem certeza?
- Claro que tenho, já fiz isso várias vezes.
- Nunca fiz um trabalho como este, não sei onde comprar estas coisas e além do mais, moro longe. Se eu lhe der o dinheiro, o senhor não poderia providenciar tudo?
- Eu ia lhe falar isso mesmo. Como sempre compro esse material e tem um fazendeiro amigo meu que faz criação de bode, posso comprar tudo e a senhora só espera o resultado. Se não der certo pode voltar, mas sei que não vai precisar fazer isso, os meus trabalhos sempre dão certo.
- Espero que sim, pois se conseguir separar o meu filho daquela mulher, vou ser a pessoa mais feliz deste mundo!
- Pode ficar tranqüila, vai ter o que deseja...
- O senhor sabe qual vai ser o valor?
O homem pegou de volta a caderneta que estava na mão de Sofia e, ao lado de cada item, foi escrevendo um valor. Quando terminou, somou tudo e devolveu a caderneta para Sofia que, ao ver o resultado, disse:
- Tudo isso? É muito dinheiro!
- Pode parecer, mas não se esqueça de que para um trabalho como esse dar certo, é preciso muita coisa. O mais caro de tudo, como pode notar, são os animais.
Sofia voltou a ler o valor e disse:
- Está bem, dinheiro para mim não é problema, mas estou notando que o senhor não colocou o valor do seu trabalho, quanto tenho de dar a mais além do que está marcado aqui?
O homem, mostrando-se ofendido, respondeu:
- Senhora, não cobro pelo meu trabalho! Ele foi um dom que Deus me deu, por isso não posso cobrar. Só preciso das coisas que estão na lista, foram pedidas pelos Orixás, a senhora mesma viu quando eles pediram, não foi?
Sofia na realidade não entendeu nada quando ele falava a língua estrangeira, mas diante de sua reação, disse:
- Está bem, vou deixar o dinheiro. Ainda bem que ontem fui até o banco. A pessoa que me falou sobre o senhor disse mais ou menos em quanto ficava o seu trabalho.
- Então, por que estranhou quando viu o valor?
- Pensei que o meu fosse mais simples e que por isso, ficaria mais barato.
- O seu trabalho embora possa não parecer, é muito complicado, afinal estamos mexendo com duas vidas, a da sua nora e a do seu filho. Por isso, precisa ser feito com muito cuidado e muita fé e o dinheiro tem de ser dado de boa vontade; do contrário, o trabalho não vai dar certo...
- Está bem.
Dizendo isso, abriu a bolsa, tirou uma quantidade de notas e as entregou para o homem que, sério, as colocou na gaveta e depois sorrindo, disse:
- Agora, a senhora já pode ir embora. Assim que sair vou em busca de tudo o que está na lista e até a fazenda buscar os animais. Hoje mesmo, depois da meia noite, vou fazer o trabalho.
- Assim espero.
- Pode esperar, tenho a certeza de que vai ficar muito feliz. Basta esperar até vinte e um dias.
- Se isso acontecer, vou mesmo ficar muito feliz e vou voltar e lhe trazer mais dinheiro. Pois ver meu filho separado daquela mulher não tem preço!
- Pode ficar tranqüila, vai ter o seu desejo realizado. Durante todos os anos que trabalho com isso, foram poucas as vezes que os meus trabalhos não deram certo.
Sorriu, levantou-se e caminhou em direção à porta. Sofia o acompanhou até a sala onde Stela estava esperando. Assim que entraram, ele disse:
- Lourdes, acompanhe as senhoras até o portão.
Despediram-se. A mulher deixou que elas saíssem na frente e as acompanhou.
Pedro Henrique e Maria Rita, abismados com tudo o que haviam presenciado, também iam sair, mas foram contidos por Gusmão, que disse:
- Esperem, a nossa presença aqui não está completa.
Eles não entenderam, mas ficaram aguardando.
O homem, assim que Stela e Sofia saíram de casa, voltou para o quarto onde tinha atendido Sofia. Abriu a gaveta e tirou o dinheiro, contou para ver se estava certo. A mulher após se despedir delas, voltou para a casa e foi ao encontro do marido que, ao vê-la, começou a jogar as notas para cima e a dizer, eufórico:
- Assim que vi aquela mulher entrar não imaginei que fosse tão fácil, Lourdes!
- Ela lhe deu todo esse dinheiro?
- Sim, a vontade de fazer mal para a nora era tão forte que apesar de ter reclamado um pouco nem ligou e se eu tivesse pedido, teria me dado muito mais! A mulher é uma megera, Lourdes!
- Disse a ela como ia fazer o trabalho?
- Ela não quis saber, eu disse que precisava do dinheiro para comprar o material. Ela abriu a bolsa e me deu tudo isto!
- Vai comprar o material?
- Claro que não! Vou para a cidade comprar um pouco de comida e gastar todo o resto em cachaça, depois vou convidar algumas pessoas. Hoje à noite, vai ter uma festa danada aqui em casa!
Lourdes sorriu, pegou algumas notas que estavam espalhadas pelo chão e disse:
- Antes, vou separar algum dinheiro para mim, quero comprar um sapato lindo que vi lá na loja.
- Pode pegar, tem muito e de onde esse veio, tem muito mais! Essa mulher vai sustentar a gente por muito tempo!
Pedro Henrique olhou para a mãe, que sem entender o que estava acontecendo, perguntou:
- Ele não vai fazer o trabalho, Gusmão?
Gusmão sorriu e respondeu:
- Não, Maria Rita, ele nunca fez trabalho algum.
- Por que não?
- Porque não sabe. Ele nunca aprendeu como fazer.
- Não estou entendendo. Ele não representa aquela religião que é respeitada por muitos?
- Sim, representa, mas como em toda a atividade humana existem os bons, aqueles que exercem com carinho e seriedade suas funções, mas, também existem aqueles que somente exploram o nome da atividade que exercem. Toda religião é boa. Todas elas ensinam um caminho para se chegar a Deus, o único problema são as pessoas que as dirigem, aquelas que ensinam suas doutrinas. Existem sim, como não poderia deixar de ser, pessoas honestas e que praticam sua religião com amor e fé, mas neste caso, é um exemplo típico daquilo que costumam chamar de mau caráter.
- Não estou entendendo. Como isso pode ser possível?
- Esse homem freqüentou um terreiro por algum tempo, aprendeu algumas coisas e depois se autodenominou pai-de-santo.
- Ele não é?
- Não. Essa religião foi trazida da África pelos escravos. Ela é formada por rituais, obrigações, danças e oferendas. Seus seguidores devotam sua fé nos Orixás, que representam as forças da Natureza. Leva muitos anos para que uma pessoa possa se tornar Pai ou Mãe-de-santo. Faz obrigações, oferendas e precisa ficar vários dias confinado, aprendendo a usar a magia. Isso não se aprende apenas freqüentando ou julgando-se conhecedor.
- Ele disse que ia consultar os Orixás, mas não vi luz alguma enquanto falava aquela língua estranha. Que língua era aquela, Gusmão?
- Não viu luz alguma ao lado dele porque ela não estava lá, assim como os Orixás, tanto uma como a outra estão distantes dele. O que ouviram dizer também nada representa. São algumas palavras que ele inventou, mas que na realidade, nada representam. Ele as usa para enganar as pessoas.
- Mas as pessoas acreditam...
- Sim, porque pensam ser uma língua morta, desconhecida. Além do mais, como poderiam dizer se é ou não, se não a conhecem? Qual é a utilidade em se falar um idioma que ninguém conhece? Quais são os ensinamentos que ele pode transmitir?
- Tem razão, é perda de tempo... só não entendo uma coisa...
- O quê, Maria Rita?
- Como ele consegue continuar enganando as pessoas, dizendo que os trabalhos sempre dão certo e que consegue tudo o que quer?
- Os trabalhos só darão certo se estiverem programados para isso.
- Não estou entendendo.
- Vou tentar explicar. No caso de Anita e Ricardo, o trabalho que Sofia pensa que vai ser feito poderá até dar certo se a separação deles foi programada antes de renascerem e se eles mesmos pediram para que acontecesse, mas se isso não foi feito, nada conseguirá separá-los. Por isso, em alguns casos, os trabalhos que ele disse ter feito deram o resultado esperado e sua fama cresceu entre aqueles que o procuram. Estes começaram a recomendá-lo a outras pessoas.
- Mesmo usando da fé das pessoas, nada lhe acontece? Nunca vai ser descoberto?
- Talvez não pela lei humana, pois sempre que a pessoa vem até ele reclamar que aquilo que pediu e pagou para que fosse feito não deu resultado, ele diz que a culpa foi da pessoa que não acreditou e deu o dinheiro sem vontade. A culpa é sempre dos outros, nunca dele. Não podemos nos esquecer de que a maioria das pessoas que o procuram são como Sofia, ela vem em busca do mal e por isso, não têm a quem recorrer. Não podem chegar à delegacia e dizer que o mal que pagou para ser feito não teve o resultado desejado. Assim, ele continua enganando as pessoas que merecem ser enganadas.
- Nunca pensei que isso pudesse existir.
- Porém, por outro lado, não é necessário que todo esse trabalho seja feito para que a pessoa possa se ligar ao mal e trazer para sua companhia espíritos que estão perdidos ou no mal.
- Não estou entendendo.
- Ele pediu uma grande quantidade de material para poder ficar com o dinheiro, mas quando se deseja realmente fazer o mal, não é necessário nada disso, basta apenas se ter a intenção de que o mal aconteça. O pensamento e o desejo do mal, embora possam não atingir a quem for dirigido, foram feitos e de acordo com a Lei de Ação e Reação, voltarão para quem o desejou.
- É assim que acontece? Não é preciso fazer todas essas oferendas, acender velas?
- Não, Maria Rita, não é preciso, basta somente à vontade de fazer o mal e o retorno será cobrado. Quando pedi que olhassem a casa foi para lhes mostrar que todas essas manchas negras que viram é resultado do que esse homem ao longo do tempo tem feito e vem atraindo para o seu lado. Embora talvez não seja castigado pela lei humana, com certeza será punido pela Lei Divina. Essas companhias que tem agora o estarão esperando no dia de sua morte física e cobrarão o seu trabalho. Não só por tê-las usado para o mal, mas principalmente, por ter usado o nome de uma Doutrina que ensina o caminho do bem e que é respeitada por muitos que vivem no corpo físico e outros tantos que vivem no plano espiritual.
- Estou entendendo, Gusmão. Disse que não é preciso que o trabalho seja feito?
- Isso mesmo, Pedro Henrique, todo esse material que foi pedido para Sofia, poderia sim, ser usado par que fossem feitas oferendas para o bem, para que uma doença fosse curada ou tirar alguém do desespero momentâneo, mas tudo isso pode ser conseguido se houver uma fé segura em Deus, nosso criador e Pai amoroso.
- Está dizendo que as pessoas que seguem essa religião estão perdendo tempo, fazendo tudo errado?
- Não, estou dizendo que aquele que deseja fazer o mal não precisa acender uma vela ou colocar uma farofa ou cachaça para espírito algum. Basta pensar em fazer o mal que o mal já estará feito, não contra aquele que ele deseja, mas a si próprio. Para isso, existe a Lei de Ação e Reação, que diz: tudo o que se faz de bem ou de mal, voltará na mesma quantidade para quem fez. Hoje presenciamos aqui, Sofia desejando que um trabalho seja feito para que Anita e Ricardo sejam separados. Como vimos, esse trabalho não será feito, mas Sofia está em dívida, pois desejou ardentemente e esse trabalho, mesmo sem ter sido feito, será cobrado. Durante toda a sua vida, diante dos crimes que cometeu, ela atraiu sobre si companhias que cobrarão por esse trabalho, tendo ele sido feito ou não.
- Sempre soube que nós mesmos atraímos para o nosso lado as companhias que queremos e escolhemos.
- Isso é verdade, Pedro Henrique. Como sabemos, o espírito quando retorna para o plano espiritual, volta com todos os seus defeitos e qualidades. Aqueles que eram bons continuam bons. Aqueles que eram maus continuam maus, aqueles que eram depressivos continuarão em depressão. Como sabemos que os iguais se atraem, podemos deduzir que se formos bons, atrairemos para o nosso lado espíritos igualmente bons e assim por diante. Quando uma pessoa se sente triste e deprimida, atrai para si espíritos na mesma situação. Por isso, todo espírito vivendo no plano espiritual ou no corpo físico precisa ficar sempre alerta com os pensamentos que tem, para poder assim, atrair para o seu lado somente espíritos bons que estarão sempre dispostos a ajudá-lo quando precisar.
- Sempre soube disso, mesmo quando estava no corpo físico e conhecia muito pouco sobre a espiritualidade. Sempre me policiei para não ser injusto ou praticar qualquer coisa que fosse danosa para os demais.
- Todo espírito quando nasce leva consigo esses valores, todos sabem o que é certo e errado, pode-se ver isso em lares desajustados nos quais mesmo sem uma boa educação familiar, alguns se tornam pessoas de bem.
- Com tudo o que está dizendo, Sofia está totalmente rodeada por espíritos do mal. Por que não vemos esses espíritos?
- Como já disse em outra ocasião, estamos em uma faixa de energia diferente e se quisermos, poderemos vê-los, mas eles também se quisermos, não poderão nos ver.
- Infelizmente isso está acontecendo com ela...
- Sim, Maria Rita, infelizmente ela escolheu as companhias que quis ter ao seu lado. Agora, vamos ao encontro de Sofia e de Stela...

ESCOLHENDO AS COMPANHIAS

Assim que se despediram da mulher, Stela e Sofia entraram no carro. Stela ligou o motor e saiu rapidamente. Sentia uma vontade imensa de fugir daquele local. Estava curiosa para saber o que havia acontecido e se Sofia havia pedido realmente que aquele homem fizesse o trabalho e se ele disse que conseguiria. Dirigiu por algum tempo, calada. Queria que Sofia iniciasse o assunto, mas ao perceber que isso não ia acontecer, perguntou:
- Como foi tudo, dona Sofia?
- Tudo o quê, Stela?
- O que a senhora falou com aquele homem?
- Aquilo que viemos fazer. Pedi a ele que fizesse o trabalho.
- Ele vai fazer?
- Claro que sim e me garantiu que entre sete e vinte e um dias, Ricardo estará separado daquela mulher.
- Ele deu certeza?
- Deu.
- Quanto ele cobrou pelo trabalho?
- Não cobrou nada...
- Como, nada?
- Nada, Stela, ele disse que recebeu um dom de Deus e por isso, não pode cobrar.
- Estou admirada. Sempre ouvi dizer que esse tipo de trabalho era cobrado.
- Também sempre ouvi isso, mas estávamos enganadas. Ele não cobrou, só me pediu para comprar algumas coisas para que o trabalho pudesse ser feito.
- A senhora vai comprar?
- Não, disse a ele que moro longe e que teria dificuldade para retornar. Dei a ele o dinheiro para que compre tudo o que for necessário.
- Fez bem, já pensou se tivéssemos de voltar?
- Espero não precisar. Espero que ele tenha dito a verdade e que, no máximo em vinte e um dias, tudo esteja resolvido, mas se for preciso, voltaremos tantas vezes quantas forem necessárias.
Stela sentiu um arrepio por seu corpo e ficou calada. Embora a estrada que tomaram fosse mais longa, chegaram em casa com menos tempo, pois não houve problema algum. Eram quase quatro horas da tarde quando Stela deixou Sofia em casa e foi para a sua. Estava cansada. Aquela viagem fez com que tivesse tempo de pensar em como sua vida havia sido até ali. Sofia também estava cansada e embora não tenha descido do carro enquanto esteve atolado, sentia um mau cheiro insuportável. O que mais queria naquele momento era tomar um banho e se deitar, nem que fosse até a hora do jantar. Entrou em casa, jogou a bolsa sobre um sofá e estava indo para o seu quarto quando foi interrompida por Edite, sua empregada, que disse:
- Ainda bem que chegou, dona Sofia? A senhora demorou muito. Estava preocupada.
- Preocupada com o quê, Edite?
- A senhora não costuma sair e ficar tanto tempo fora de casa.
Sofia estava muito cansada para dizer qualquer coisa. Começou a subir a escada que levava para o andar superior e aos quartos. Edite, vendo que ela ia embora, disse:
- O doutor Ricardo voltou para casa.
Sofia parou, voltou-se e intrigada, perguntou:
- O que você disse, Edite?
- O doutor Ricardo voltou para casa.
- Como voltou para casa?
- Ele chegou hoje na hora do almoço, não disse nada, apenas almoçou e subiu para o quarto que era dele.
- Como sabe que ele voltou?
- Ele veio trazendo uma mala com roupas.
Ao ouvir aquilo, Sofia estremeceu e pensou: O trabalho já deu resultado. Não foi preciso esperar um dia sequer! Aquele homem é muito bom mesmo! Emocionada, perguntou:
- Ele ainda está em seu quarto?
- Está sim. Almoçou, foi para lá e não saiu até agora.
Sofia sorriu e rapidamente subiu a escada. Chegou a um corredor com várias portas, bateu e entrou em uma delas. Entrou, perguntando:
- O que está fazendo aqui, Ricardo?
- Eu não estava muito bem com Anita, tivemos uma briga e resolvi voltar para casa. Preciso de um tempo para pensar o que quero da minha vida.
- Não estavam bem, por quê?
- Ela sempre reclamou muito da maneira como à senhora a tratava e a última gota foi a sua atitude no jantar. Ela ficou furiosa.
Sofia, vibrando por dentro e fingindo estar muito preocupada, perguntou:
- Por minha causa? O que fiz no jantar que a deixou tão preocupada e nervosa?
- Ora mamãe, a senhora sabe o que fez. Tentou o tempo todo fazer com que Anita ficasse, perante os convidados, em uma situação difícil.
Sofia colocou no rosto um ar de surpresa e perguntou:
- Eu fiz isso, Ricardo?
- Fez, mamãe. Anita se esforçou muito para que tudo corresse bem no jantar. A senhora e eu sabemos que tudo estava perfeito, mas como sempre, a senhora precisava encontrar uma maneira de humilhá-la.
- Você está enganado, Ricardo. Eu gosto da sua mulher, acontece que ela é ainda muito jovem e precisa aprender algumas coisas. Quando chamo sua atenção de vez em quando, é com a intenção de ajudá-la.
- Mas não tem ajudado. Desde que nos casamos, a senhora tem feito de tudo para que haja uma separação.
- Não é nada disso, filho! Só quero a sua felicidade, apenas isso...
- Sei disso, mamãe, mas algumas vezes não entendo seu modo de agir. Não entendi até hoje por que trata Anita de um modo tão diferente da maneira como trata Stela. Parece que a senhora sente por ela um ódio incontrolável. Parece ser pessoal...
- Trato as duas da mesma maneira. Acontece que Stela sabe que tenho mais experiência de vida e acata tudo o que falo. Anita, não. Ela está sempre pronta para me afrontar.
- Anita é uma mulher bem resolvida, teve uma boa educação, tanto familiar como acadêmica. Por isso, sabe muito bem quem é e o que quer. A senhora muitas vezes tentou e tenta se envolver em nossas vidas sem se importar se está machucando os nossos sentimentos. Como é de se esperar, Anita reage.
- Bem, agora tudo isso passou e está tudo bem. Você está aqui em casa e tudo voltará a ser como antes... - Sofia disse, tentando esconder sua felicidade.
- Nada está bem, mamãe. Anita deve estar sofrendo. Hoje pela manhã quando acordei, achei que não queria mais ficar brigando. Isso acontece desde que nos casamos e só parou no tempo em que vivemos em Portugal. Lá, nossa vida foi tranqüila. Resolvi vir até aqui para pensar um pouco. Anita quer terminar o nosso casamento, não sei se ela está certa, pois sei que nos amamos e que sentiremos muita falta um do outro.
- Com o tempo isso vai passar, ainda bem que resolveu sair de casa, mas não se preocupe, sei que logo mais vocês vão se acertar e tudo vai voltar a ser como antes. Sofia disse isso, colocando as mãos para trás e fazendo duas figas. Embora no rosto demonstrasse preocupação e tristeza, no íntimo estava feliz. Assim pensando, disse:
- Agora vou tomar um banho e tentar dormir até a hora do jantar. Estou muito cansada. A viagem que eu e Stela fizemos foi muito cansativa.
- Foram aonde?
- A Stela descobriu que havia uma malharia na cidade próxima e que eles estavam liquidando e me convenceu a ir com ela. Aceitei e fomos. Só que furou um pneu do carro e atolamos. A estrada em que estávamos não tinha asfalto e poucas pessoas passavam por lá. Ficamos horas esperando ajuda.
- Pelo menos a viagem valeu a pena?
Sofia, lembrando-se de Pai Jorge, feliz por Ricardo estar ali, respondeu:
- Valeu sim, meu filho! Como valeu!
Beijou Ricardo no rosto e saiu feliz, em direção ao seu quarto. Ricardo continuou no quarto relembrando tudo o que havia conversado com Anita e agora, com a mãe. Gusmão, Pedro Henrique e Maria Rita acompanharam toda a conversa. Pedro Henrique disse:
- Não entendo, Sofia, ela não está nem um pouco preocupada com o filho, só com o ódio que sente por Anita. Que ódio é esse que não entendo...
- Também não entendo, meu filho. Apesar de só ter conhecido Anita por pouco tempo, pois quando Ricardo a trouxe à minha casa para nos apresentar eu já estava doente, sempre a achei muito gentil e carinhosa, não só com Ricardo como comigo também.
- Digo a mesma coisa, mamãe. Ela é uma moça educada, tem uma família com condições financeiras invejáveis, é formada. Não entendo mesmo, mamãe...
Gusmão ouviu o que eles disseram, mas permaneceu calado. Assim que Sofia entrou no quarto, sentiu com mais força um cheiro desagradável que saía de suas roupas. Pensou: embora não tenha saído do carro, o cheiro daquela água se impregnou nas minhas roupas. Tirou as roupas e jogou-as dentro de um cesto de roupas que havia em um dos cantos do quarto. Foi para o banheiro e ligou o chuveiro. Voltou para o quarto, abriu uma gaveta, tirou dela duas toalhas e abrindo outra, roupas de baixo. Voltou ao banheiro e tomou um banho. O banho foi demorado e relaxante. Enquanto se banhava, continuou a pensar: parece que agora está tudo bem. A melhor coisa que fiz foi ter ido até o Pai Jorge. Já havia falado nele, mas nunca pensei que fosse tão bom! Meu filho está de volta e aquela mulher vai ser afastada de nossa família para sempre... estou feliz porque sei que, daqui para frente, não vou ficar mais sozinha. Desde que os meninos se casaram e depois que Pedro Henrique morreu, tenho vivido aqui nesta casa tão grande, completamente só. Mas tudo agora vai mudar. Sou mesmo uma mulher de muita sorte. Sorte, não! Escolhi o meu destino e soube lutar por ele! Saiu do banheiro, vestiu-se, ia se deitar quando pensou: Stela já deve ter chegado em casa, preciso contar a ela que Ricardo está aqui em casa. Sentou-se na cama, pegou o telefone que estava sobre o criado mudo e discou o número do telefone de Stela, que atendeu.
- Stela! Você não vai acreditar no que aconteceu!
Stela, irritada por ter passado o dia inteiro fora de casa e por tantos problemas, com má vontade perguntou:
- O que, dona Sofia?
- O Ricardo!
- O que tem ele?
- Ele voltou definitivamente...
- Como, definitivamente?
- Abandonou aquela mulher, veio com uma mala e disse que vai dar um tempo no casamento, mas pelo visto, acho que não vai ter volta!
Stela estremeceu e preocupada, perguntou:
- Por que ele fez isso?
- Não entendeu ainda, Stela?
- Entender o quê?
- Foi o Pai Jorge! Ele disse que eu precisava esperar até vinte e um dias, mas parece que o trabalho já deu certo!
- Não pode ser, dona Sofia! Ele não teve tempo para fazer o trabalho... acabamos de sair de lá...
- Não sei explicar o que aconteceu, mas o trabalho deu certo! Meu filho está aqui em casa!
Stela acabara de chegar a casa. Também se sentia suja e queria tomar um banho. Por isso, não estava em condições de conversar e disse:
- Já que a senhora acredita que o trabalho deu certo e está feliz, também fico. Agora preciso tomar um banho, estou muito cansada...
- Está bem, Stela, já tomei o meu banho e vou me deitar até a hora do jantar. Depois conversaremos.
Desligaram o telefone. Sofia, feliz, deitou-se na cama. Ajeitou o travesseiro e fechou os olhos. O que mais queria naquele momento era dormir. Pedro Henrique, que acompanhou todos os movimentos dela, disse:
- Não entendo Gusmão, como ela, depois de ter passado o dia inteiro relembrando toda sua vida e todos os crimes que cometeu, consegue se deitar e dormir tranqüilamente!
- Ela se deitou e pretende dormir, mas como não terminou de relembrar os crimes que cometeu, logo vai perceber que o sono não virá tão fácil como imaginou...
- Mais crimes? Ela cometeu outros?
- Sim, Maria Rita. Prestem atenção nas figuras que estão ao seu lado.
Eles olharam e viram vultos negros que rodopiavam em volta de Sofia, que embora quisesse, não conseguia dormir. Em seu pensamento, com a ajuda de Gusmão, surgiu à imagem de Romeu, seu pai. Seu corpo estremeceu e, dando um pulo, sentou-se na cama. Pedro Henrique e Maria Rita se admiraram. Ele, temeroso pela resposta que Gusmão lhe daria, perguntou:
- Ela também fez algo ao senhor Romeu?
- Ela mesma vai lhe dar essa resposta, Pedro Henrique.
Voltaram o olhar para Sofia que, sentada na cama, começou a balançar a cabeça na tentativa de afastar as lembranças que insistiam em permanecer e que ela não queria ter. Pedro Henrique, inconformado com o que via, disse:
- Apesar de ter estado surpreso durante todo o dia com tudo o que nos contou, nunca pensei que ela pudesse ter ido além. Que pudesse fazer mal ao pai. Por que, Gusmão? Ela já havia afastado sua mãe e o irmão, que representavam uma ameaça.
- Tem razão, mas ela precisava ter a certeza de que nada nem ninguém a prejudicaria. Vou lhes contar como tudo se passou. Fazia seis meses que Nadir havia morrido. Desde o dia do enterro ela nunca mais foi visitar o pai e nem se preocupou com ele. Naquela manha, você Pedro Henrique, acordou cedo, tomou café e foi acompanhar o nascimento de um bezerro. Sofia continuou na cama por mais algum tempo, depois se levantou, tomou o café e foi até o jardim que havia na parte da frente da casa. Ela estava bem pesada, pois faltava pouco tempo para o nascimento de Maurício. Ela estava tirando algumas folhas queimadas das plantas quando viu, vindo da direção de sua casa, um cavaleiro. Ficou olhando e quando ele se aproximou, reconheceu o Sr. Antônio, um vizinho do sítio do pai. Esperou que ele chegasse e assim que desmontou, preocupada perguntou:
- Que aconteceu, seu Antônio? Nunca esteve por aqui.
- Estou preocupado com o seu pai, Sofia.
- Preocupado, por quê?
- Percebi que a roça dele está abandonada e que durante vários dias não o vi trabalhando. Fiquei preocupado e fui até a sua casa para ver o que estava acontecendo. Quando cheguei lá, fiquei assustado.
- Assustado, por quê?
- Ele está muito abatido, acho que não tem se alimentado bem. Está deitado e com muita fraqueza, não consegue nem se levantar. Quando perguntei por que estava daquela maneira, respondeu:
- Perdi minha mulher e o meu filho. Sofia está casada e bem, não tenho mais motivo para continuar vivendo. Trabalhei tanto na minha vida, mesmo assim ela sempre foi de muita dificuldade. Lutei tanto para quê Antônio, se no final terminei aqui sozinho? Acho que está na hora de eu morrer e me encontrar com a Nadir e o Gustavo.
- Ele disse isso?
- Disse, por isso estou aqui. Acho que você devia ir até lá e tentar trazê-lo para morar aqui.
- Morar aqui?
- Se continuar do jeito que ele está, vai morrer Sofia!
- Sofia não estava gostando daquela conversa - continuou Gusmão, mas não podia deixar que o vizinho percebesse. Demonstrando preocupação, disse:
- Obrigada por ter vindo me avisar, seu Antônio. Quando o Pedro Henrique vier para o almoço, vou com ele até lá para conversar com o meu pai.
- Faça isso, Sofia. Ele está precisando muito de você.
Ela sorriu, ele foi embora. Assim que ele montou novamente no cavalo e se afastou, ela pensou: Não posso trazer o meu pai para cá, pois se conviver com o Pedro Henrique, os dois vão perceber que fui eu quem afastou as famílias e não sei se minha mãe contou alguma coisa para ele e se contou, mesmo sem querer, ele pode deixar escapar e minha vida será destruída. Preciso evitar que se encontre com meu marido.
- Entrou em casa e pediu que Noêmia fosse chamar Tião. Como ele cuidava do jardim e dos pequenos trabalhos da casa, estava sempre por ali. Assim que ele chegou, ela disse:
- Tião, preciso que prepare a charrete. Perece que meu pai não está bem, preciso ir até lá.
- Ele está doente?
- Parece que sim, o seu Antônio veio me avisar.
- Está bem, vou agora mesmo preparar a charrete.
Ele saiu e logo depois voltou trazendo a charrete. Ajudou Sofia a subir e foram para a casa de Romeu. Quando chegou à casa do pai, entrou. Não se sentia bem lá, pois fora naquela casa que envenenara o irmão e a mãe. Achava que eles poderiam estar ali, mas sabia também que precisava fazer aquilo. Tinha que ter a certeza de que o pai não conhecia o que havia acontecido entre ela e Osmar. Ao ver o pai deitado sobre a cama e tendo Tião como testemunha, perguntou com a voz chorosa:
- O que aconteceu, pai? Por que está assim?
- Não sei o que aconteceu, só sei que não tenho mais vontade de viver... estou cansado dessa vida, filha...
- Não pode falar assim, pai! O senhor é ainda muito novo.
- Estive pensando em minha vida e cheguei à conclusão de que não adiantou ter trabalhado tanto. Hoje, depois de uma vida tão sofrida sem conseguir quase nada, estou sozinho. Sua mãe e seu irmão morreram de uma maneira que até agora não entendi e eu não quero mais viver. Quero morrer pra poder me encontrar com eles...
- Ao ouvir aquilo, Sofia olhou para Tião que prestava atenção na conversa e, pegando nas mãos do pai, disse, quase chorando:
- Pai! Não fale assim! Eu ainda estou aqui!
- É isso mesmo, seu Romeu... a dona Sofia também é sua filha e gosta muito do senhor. Por que o senhor não vai viver com ela? Ela vai precisar muito do senhor, ainda mais agora que o neném vai nascer, não é mesmo dona Sofia?
- Sofia, que não esperava por aquela intromissão de Tião, olhou para ele, sorriu e respondeu:
- É isso mesmo, Tião. Pai, ele tem razão, vou conversar com o Pedro Henrique e o senhor pode ir morar lá em casa e quando o neném nascer vai poder me ajudar.
- Não adianta filha, você sabe que o seu marido nunca gostou da gente e nunca quis a nossa amizade. Não vai dar certo, não...
- O que é isso, seu Romeu? O patrão é uma pessoa muito boa. Ele vai ficar contente em saber que o senhor vai morar lá...
Sofia ficou aflita com aquela conversa. Ela não queria o pai morando com Pedro Henrique, mas percebendo que Tião ia continuar insistindo, disse:
- Deixe pra lá, Tião. Meu pai é muito teimoso, mas vou falar com Pedro Henrique e ele vai convencer o meu pai.
Agora, vá até lá fora e dê uma limpada no quintal, está tudo abandonado. Enquanto isso; vou arrumar tudo aqui dentro. Esta casa está uma bagunça, está até cheirando mal.
- Tião saiu. Sofia ficou arrumando tudo e pensando em uma maneira de impedir que seu pai fosse para sua casa.
- Depois de limpar o quintal, Tião entrou novamente na casa. Sofia estava terminando de arrumar tudo. Ao vê-lo, ela disse:
- Agora já está tudo arrumado. Tião, vamos para casa, vou pedir a Noêmia que prepare comida e você vem trazer para o meu pai. Está bem assim?
- Claro que está, dona Sofia. Seu Romeu, não se preocupe o senhor vai ficar bem, só precisa comer direitinho e toda essa fraqueza vai embora. O senhor vai morar lá na casa grande e vai ser muito feliz, não vai mesmo dona Sofia?
- Sofia e Tião subiram novamente na charrete e foram embora. - Gusmão continuou falando. Romeu continuou deitado. No caminho, enquanto voltavam, Sofia foi pensando como evitar a ida do pai para sua casa. Assim que chegaram, ela rapidamente foi até a cozinha e pediu para que Noêmia preparasse um prato para que Tião levasse ao pai. Como o almoço já estava pronto, ela preparou e avisou Sofia, que estava em seu quarto. Assim que foi avisada, ela saiu do quarto e foi até a cozinha. Pegou o prato, foi para o lado de fora da casa. Tião, sabendo que o almoço deveria estar pronto, ficou esperando. Do alto da varanda, ela disse:
- Tião, aqui está o prato de comida para que você leve para o meu pai. Quero que fique com ele até que coma tudo. Você viu como ele está fraco e precisa se alimentar.
- Pode deixar, dona Sofia. Vou ficar com ele o tempo todo e só vou voltar quando ele comer tudinho!
- Sofia desceu a escada e deu o prato de comida que Noêmia havia enrolado em um pano de prato. Tião pegou e enquanto montava o cavalo, Sofia sorrindo disse:
- Diga ao meu pai que à tarde, depois que Pedro Henrique voltar do trabalho, a gente vai até lá.
- Vou dizer dona Sofia. Sei que ele vai ficar muito feliz! - disse rindo e começou a cavalgar.
- Sofia o acompanhou com os olhos, depois entrou em casa e ficou esperando por você, Pedro Henrique.
- Lembro-me desse dia, Gusmão. Assim que cheguei, ela me contou tudo o que havia acontecido, exatamente da mesma maneira como você contou, claro que omitindo a parte do medo de que o pai viesse morar conosco. Lembro-me de que, após ouvir tudo, lhe disse:
- Você me deixou preocupado, Sofia e, se quiser, podemos ir agora mesmo buscar o seu pai.
- Não é preciso ser agora, Pedro Henrique. Sei que está com muito trabalho e acompanhando o nascimento do bezerro, por isso disse ao Tião que avisasse o meu pai que iremos à tarde, quando você estiver mais tranqüilo.
- Achando que estava tudo bem, acatei o seu desejo.
- Como não poderia deixar de ser Pedro Henrique, você tomou a atitude certa. Por isso, à tarde quando chegou do trabalho, a primeira coisa que disse foi:
- Sofia, vamos de charrete buscar o seu pai.
- Foi isso que aconteceu, Gusmão. Quando chegamos, notamos que estava tudo muito quieto. Quando falei sobre isso, ela disse:
- Não lhe falei que meu pai não estava bem? Deve estar na cama. Ele não quer viver mais, Pedro Henrique. Disse que quer morrer para se encontrar com a minha mãe e com o Gustavo.
- Entramos e realmente vimos o senhor Romeu deitado sobre a cama. Sofia se aproximou, dizendo:
- Pai, estamos aqui. Não lhe disse que o Pedro Henrique ia vir conversar com o senhor?
- O senhor Romeu não respondeu. Ela insistiu:
- Pai, está dormindo?
- Como ele não respondeu, me aproximei, coloquei minha mão em seu ombro e percebi que alguma coisa não estava bem. Retirei a colcha que o cobria e, desesperado, disse:
- Parece que ele está morto, Sofia!
- Ela, demonstrando muita dor, se aproximou, olhou para o pai e percebeu que ele estava morto realmente. Começou a chorar e me abraçando, disse:
- Isso não pode ter acontecido, Pedro Henrique. Hoje pela manhã, eu e o Tião percebemos que ele estava muito fraco, mas não pensei que fosse tanto... Eu fui à culpada disso ter acontecido...
- Por que está dizendo isso, Sofia?
- Eu, desde que minha mãe morreu, nunca mais vim até aqui para saber como ele estava... se tivesse vindo, teria visto que não estava bem e o teria levado para a nossa casa...
- Eu, acreditando na sua dor, disse:
- Você não teve culpa, Sofia! Está grávida e sem condições de sair de casa e se existe algum culpado, esse alguém sou eu que devia ter pensado nisso.
- Ela, chorando muito, se abraçou em mim e eu,vendo o seu desespero, a conduzi para fora de casa, dizendo:
- Vou levar você para casa e depois preciso ir até a cidade comunicar ao delegado o que aconteceu. Ele precisa vir até aqui para poder liberar o corpo e assim, podermos enterrá-lo.
- Ela, ainda chorando, balançou a cabeça dizendo sim. Depois de ajudá-la a subir na charrete e de deixá-la em casa, fui para a cidade comunicar aos meus pais e ao delegado o que havia acontecido. Até hoje, quando nos contou tudo o que ela fez, custo a acreditar que ela cometeu mais um crime.
- Foi isso que aconteceu. Quando ela, na companhia de Tião voltava para casa, foi pensando no que poderia fazer para evitar que você se encontrasse com seu sogro. Como havia usado o veneno por duas vezes e não foi descoberta, pensava: já que ninguém descobriu o que fiz com Gustavo e minha mãe, vou tentar novamente com o meu pai. Não posso permitir que ele se encontre com Pedro Henrique e se minha mãe contou alguma coisa sobre o Osmar, ele não vai ter tempo de contar ao meu marido. Foi muito bom o Tião ter vindo e visto como o meu pai estava doente. Vai ser fácil convencer a todos de que ele morreu de tristeza.
- Ela tinha razão, Gusmão. Eu naquele tempo, estava preocupado com a doença do meu pai, pois apesar de todo o tratamento a que ele estava se submetendo, sabíamos que era de difícil cura. Por isso, nem eu nem ninguém poderia imaginar que ela havia feito aquilo. Tião podia jurar que o senhor Romeu estava muito doente. Sofia demonstrou um desespero e sofrimento tão grande que ninguém desconfiou. Ficou impune de mais um crime...
- A impunidade foi que a levou a praticar um crime atrás do outro, Pedro Henrique, mas seu espírito, apesar de toda a ajuda que sempre teve do plano espiritual, se negou a refletir e voltou a cometer os mesmos erros que havia cometido em encarnações passadas...
- Ela já tinha feito isso antes?
- Sim, e sempre contra Nadir, Romeu e Gustavo. Toda vez que retornava ao plano e tomava conhecimento da verdade espiritual, ela se arrependia e prometia que na próxima vez, se lhe dessem outra chance, seria diferente, mas como podem ver, também nesta isso não aconteceu.
- Você disse que ela sempre se voltou contra Gustavo, Nadir e Romeu. Por que eles continuaram renascendo ao lado dela?
- Eles, assim como nós, estamos ao lado dela desde sempre. Sabemos que um dia, ela encontrará o seu caminho. Pensando assim e pelo imenso amor que sentem por ela, insistiram mais uma vez em renascer ao seu lado, para tentar fazer com que ela mudasse.
- Acredita que vai chegar o dia em que ela se arrependerá realmente de tudo o que fez e encontrará o caminho?
- Sim, Maria Rita. Por isso estamos aqui. Os próximos dias serão decisivos e se permitiram que estivéssemos aqui, é porque existe uma esperança.
- Como podemos ajudá-la, Gusmão? Não vejo um caminho.
- Com nossas orações e tentando enviar luz, estamos procurando fazer com que Sofia reflita, mas como podem ver, isso está ficando cada vez mais difícil. A cada momento que passa, ela se deixa envolver sempre mais pelas energias pesadas, o que dificulta a nossa ação, mas a luz que está chegando de Nadir, Romeu e Gustavo poderão nos ajudar. Vamos ver o que vai acontecer e esperar que ela encontre o seu caminho, arrependa-se de tudo o que fez e confesse seus erros, só assim encontrará a paz e o caminho de volta. Essas energias fizeram com que nós nos afastássemos dela. Ela está envolvida pelas companhias que escolheu e respeitando o seu livre-arbítrio, nada podemos fazer. Por isso o espírito, encarnado ou não, tem que estar sempre alerta e prestar atenção às companhias que atrai sobre si. Noventa por centro das doenças que existem na Terra são motivadas por espíritos errantes que, se tiverem oportunidade, chegarão e ficarão por perto, fazendo que o espírito sinta o que eles sentem. Por isso há muita depressão, maldade, ódio, vingança e todos os males que assolam uma sociedade.
- Estou entendendo o que está nos dizendo, que em última análise o que importa é o perdão, mas como podemos perdoar alguém que nos enganou, mentiu e cometeu tantos crimes? Se assim fizermos, não estamos também de certa maneira permitindo que ela continue impune perante o plano espiritual?
- O perdão é a maior arma que temos para que possamos encontrar o caminho para o Pai. Por isso, se perdoarmos a todos aqueles que nos fizerem mal, não quer dizer que se o mal foi praticado, haverá impunidade. Ela pode acontecer perante as leis e justiça dos homens, mas nunca perante a justiça divina. Como existe a lei do amor e do perdão, existe também a lei de ação e reação. Aquela que coloca tudo em seu devido lugar. Existem as companhias atraídas que cobrarão e farão a sua justiça e posso garantir que é pior do que qualquer castigo que possa vir por parte de Deus.
- Hoje, vivendo no plano espiritual, posso entender o que está nos dizendo Gusmão, mas se estivesse vivendo no plano físico e presenciasse alguém como Sofia ficar livre, sem pagar de algum modo, impune, não sei se aceitaria da mesma maneira...
- Isso é compreensível, Pedro Henrique. O espírito quando está vivo no plano físico, está com as energias do planeta, que são pesadas, pois os sentimentos espalhados são conflitantes. Existe a luta de todos os dias, sofrimento, dor e desesperança, por isso é difícil aceitar maldades cometidas por pessoas e vê-las impunes, mas como existem todos esses sentimentos negativos, existem também e todos conhecessem quais são, os sentimentos de amor, caridade e a confiança de que há um Deus que a tudo vê. Por isso, o que deve fazer é lutar contra tudo o que se traduzir em mal, confiar em Deus e seguir em frente. Se assim fizer, estará atraindo para junto de si, companhias de luz que o ajudarão a enfrentar as energias ruins que o cercam. Se cada um que acreditar deixar de fazer uma maldade, muitos caminharão para a luz, sempre bem acompanhados. Sofia escolheu suas companhias e terá de responder, não só a Deus, mas a essas companhias. Estou me lembrando, Gusmão, que foi nesse tempo que nos mudamos para a cidade.
- Sim, Pedro Henrique. Depois que o pai morreu, Sofia achou que aquele seria o momento ideal. Embora você não tenha se dado conta, ela sabia que o nascimento de Maurício estava perto. Não sabia ainda o que dizer quando o menino nascesse antes do tempo esperado. Você havia lhe dito que um mês antes a levaria para a cidade e para sua casa, Maria Rita. Você queria que ela tivesse toda a assistência médica, mas ela queria mais. Embora a casa da fazenda fosse grande e bonita, estava muito afastada do conforto da cidade. Sofia queria pertencer à sociedade, andar com vestidos bonitos, usar salto alto e freqüentar cabeleireiro e festas. Pensando assim, uma semana depois da morte de Romeu, ela chorosa, se aproximou e disse:
- Pedro Henrique, desde a morte de Gustavo e de minha mãe, já estava muito triste e não consigo entender como eles puderam morrer daquela maneira. Sofri muito, mas tinha o meu pai e sempre que olhava para o lado em que minha casa está, sabia que ao menos meu pai estava lá. Que eu ainda tinha família, mas agora sei que não tenho mais ninguém. Estou sozinha ...
- Não está sozinha, Sofia... estou aqui e tem toda a minha família que gosta muito de você...
Sei que sua família gosta de mim, também gosto deles, mas mesmo assim, não consigo tirar essa tristeza do meu coração...
- Deve ser por causa da gravidez. Depois que a criança nascer, vai ser diferente. Você terá mais alguém para cuidar e amar...
- Ela, percebendo que não conseguiria convencê-lo a se mudar para a cidade, abraçou-se a você e começou a chorar baixinho.
- Ela tinha razão, Gusmão. O que menos eu queria era ir morar na cidade. Eu adorava a fazenda e não conseguia ver a minha vida futura se não fosse ali. Nunca imaginei que ela fosse tão infeliz. Tinha tudo, não precisava se preocupar com nada. Era servida por empregadas e eu já estava procurando uma mulher para cuidar da criança que ia nascer.
- Ela sabia disso, mas precisava encontrar uma maneira de convencê-lo. Sabendo que aquele não era o momento, continuou abraçada a você e se calou. Dois dias depois de terem tido essa conversa, ela acordou durante a noite dizendo sentir muita dor na barriga. Você se assustou e perguntou:
- Será que é a criança, Sofia?
- Ela, chorando de muita dor, que na realidade não estava sentindo, disse:
- Não pode ser, Pedro Henrique, ainda é muito cedo para ela nascer...
- O que é então?
- Não sei, só sei que está doendo muito.
- Você ficou desesperado e com muito medo. Ela, vendo o seu desespero enquanto você andava de um lado para outro do quarto, sorriu e disse:
- Acho que não posso ficar mais aqui. Você disse que um mês antes de a criança nascer ia me levar para a cidade, acho que a gente devia ir agora. Você sabe que tem criança que nasce antes do tempo, não sabe?
- Sei, claro que sei... você tem razão, não há motivo para continuar aqui. Já está amanhecendo. Assim que clarear, vamos para a cidade e você vai ficar na casa da minha mãe até a criança nascer. Está bem assim?
- E você?
- Não posso ficar longe da fazenda, mas todas as noites eu vou para a cidade. Não quero deixar você sozinha. Acha que pode esperar até o amanhecer?
- Ela fez uma cara de quem estava sentindo muita dor e com a voz fraca, respondeu:
- Acho que sim. Estou melhor.
- Que bom, tente dormir mais um pouco e não se esqueça de que estou aqui ao seu lado.
- Ela sorriu, deu um beijo em você e dormiu em seguida. Antes que o dia amanhecesse, você já estava preparando o jipe para a viagem. Foi até a casa de Noêmia, que morava em uma das casas da fazenda. Contou-lhe o que havia acontecido e que ia levar Sofia para a cidade. Pediu para que ela fosse mais cedo para casa e que preparasse as roupas que Sofia queria levar. Ela, assustada, foi imediatamente.
- Foi assim que aconteceu. Fomos para a cidade e não voltamos nunca mais. Naquele dia eu não sabia, mas o meu sonho e desejo de continuar vivendo ali fazendo o que eu gostava havia terminado, por todo o amor que eu sentia por Sofia.
- Sim, seu amor era imenso e ela sabia disso. Dez dias depois que estavam na cidade, Maurício nasceu. Foi uma correria, pois todos achavam que a criança tinha nascido antes do tempo. Somente Sofia sabia a verdade e quando viu que você estava preocupado com a saúde dele, disse:
- Não fique assim, Pedro Henrique, não importa que ele tenha nascido antes do tempo. Parece que está bem e a cada dia que passar, vai crescer e vai se tornar um belo rapaz.
- Ela disse isso e eu me acalmei. Nem eu nem ninguém poderíamos sequer imaginar que ele não fosse meu filho e que, para que a verdadeira história ficasse escondida, Sofia havia cometido tantos crimes. Alem do mais, foi nessa época que meu pai, apesar de toda a assistência que teve, não resistiu e morreu. A morte dele me abalou muito, fiquei triste por muito tempo.
- O mesmo aconteceu comigo, estava casada há trinta anos e sempre fui feliz ao lado dele.
- Isso é compreensível, Maria Rita. Vocês foram um daqueles poucos espíritos que se encontram e que apesar da longa vida juntos, continuam vivendo com amor e harmonia. Sofia percebeu que vocês dois estavam abalados e, portanto, fáceis de serem conduzidos. Ela se abraçou a você, Pedro Henrique, e falando com a voz baixa e compassada, disse:
- Pedro Henrique, depois que seu pai morreu, sua mãe está muito triste. Quase não fala e fica a maior parte do tempo no seu quarto. Estou preocupada.
- Já havia notado isso e não sei o que fazer. Tenho medo de que ela também venha a ficar doente. Não posso continuar muito tempo longe da fazenda. O Maurício está bem e forte. Está chegando à hora de voltarmos. Não sei o que fazer com minha mãe. Sabe que minhas irmãs moram na capital e que minha mãe se recusa a ir morar com elas.
- Também estive pensando sobre isso e cheguei à conclusão que devemos continuar morando aqui ao lado dela.
- Não podemos, Sofia! Preciso cuidar da fazenda!
- Você não precisa abandonar a fazenda. Pode contratar um administrador e ir lá duas ou três vezes por semana.
- Naquele momento senti uma dor no meu peito. Sabia que aquela decisão mudaria minha vida que eu não queria que mudasse, pensei um pouco e disse:
- Sofia, minha mãe pode ir morar conosco lá na fazenda. Tendo o Maurício para cuidar, sei que em breve ela estará bem.
- Ao ouvir aquilo, Sofia, embora não tenha demonstrado, ficou desesperada. Ela não queria voltar para a fazenda, muito menos levar Maria Rita. Ficou por um pouco de tempo sem saber o que fazer, mas não demorou muito. Logo depois, disse:
- Não podemos fazer isso, Pedro Henrique! Sua mãe, sendo esposa de político, sempre teve muitas obrigações, tem suas amigas e compromissos e, se a levarmos embora, sei que sofrerá muito longe da casa em que viveu toda sua vida e das pessoas que conhece. Ainda acho que o melhor seria continuarmos aqui. A principio eu não queria aceitar, mas sem que eu soubesse, Sofia conversava muito com minha mãe, até convencê-la de que a melhor solução seria a que ela havia pensado.
- Agora estou me lembrando daquele tempo, tem razão, meu filho. Sofia era completamente diferente. Era envolvente e muito humilde. Falava baixo e quase nunca levantava os olhos. Qualquer pessoa que convivesse com ela acharia que se tratava de uma pessoa boa e seria envolvida. Por isso, sem que eu desconfiasse das reais intenções dela, me deixei envolver e ser convencida. Depois disso, mais eu do que ela o convenci, Pedro Henrique, de que ela estava certa e que seria bom que viessem morar comigo.
- É verdade, mamãe. Somente hoje estou descobrindo quem era a verdadeira Sofia. Atendendo ao seu pedido, deixei que Sofia e Maurício ficassem morando com a senhora. No começo, eu ia e voltava todos os dias, mas com o tempo, fui me cansando e contratei um administrador.
- Sofia, quando viu que havia conseguido o que queria, ficou feliz. Usando de sua humildade e simpatia, logo conseguiu convencer você, Maria Rita, a levá-la a festas e compromissos sociais. Contratou uma cabeleireira que vinha três vezes por semana até sua casa.
- Foi mesmo, Gusmão. Ela foi muito inteligente...
- Ela agora estava feliz morando naquela casa. Quando criança, sempre que passava por ali, ficava imaginando como seriam felizes as pessoas que moravam ali. Agora, ela não só era uma moradora, como sua dona também. Sua vida outra vez mudou radicalmente. Era senhora de tudo, pois aos poucos, sem que você percebesse, foi tomando atitudes perante os empregados, as suas amizades e foi dominando a tudo e a todos. Você, Maria Rita, se transformou em uma marionete e fazia tudo o que ela desejava.
- O engraçado em tudo isso, Gusmão, é que eu não percebia. Achava Sofia inteligente e sentia muita pena por ela ter perdido toda a família e estar sozinha. Por isso, eu e Pedro Henrique fazíamos todas as suas vontades. Além do mais, depois que José Antônio morreu, achava que um pouco da minha vida havia morrido com ele. Havíamos lutado tanto para que a cidade evoluísse, ele foi um político honesto que durante todo o tempo, só pensou no bem-estar de todos. Sempre o ajudei e com sua morte, minha vida deixou de ter sentido.
- Esse é um grande perigo que os encarnados sofrem. Por não conhecerem a espiritualidade quando morre alguém a quem ama, pensam que será para sempre e sofrem muito. Esse sofrimento muitas vezes as conduz para a depressão, que nada mais é do que a aproximação de espíritos, também depressivos que as envolvem, fazendo que se deprimam sempre mais e se tornem presas fáceis, assim como aconteceu com você, Maria Rita.
- Sim! Gusmão hoje sei disso, mas naquele tempo não tinha a menor idéia.
- Assim como você, muitos não imaginam o que realmente acontece. Sabemos que o espírito quando desencarna, continua da mesma maneira que sempre foi, com seus defeitos e suas qualidades, não é?
- Sim, hoje sei, mas naquele tempo não sabia e achava que alguém que morresse se tornava poderoso, podendo assim, ajudar aqueles que ficaram. Muitas vezes em minhas orações, pedi ajuda ao José Antônio sem saber se ele poderia me ajudar ou não.
- O espírito ao desencarnar precisa seguir o seu caminho, ir em busca de entendimento e sabedoria. Lógico que não esquece daqueles que continuam encarnados e a quem amou. Se estiver bem assistido e com condições, procura através de vibrações e enviando luz, ajudar, mas é tudo o que pode fazer, pois depende de cada espírito sua própria evolução. Porém, muitas vezes, o espírito ao desencarnar, está doente, deprimido, depressão essa que, apesar de todo o esforço da espiritualidade se transforma em suicídio. Esse espírito, por não aceitar sua condição e ajuda, fica vagando sem rumo ao lado de outros como ele. Ao encontrar um encarnado que, por qualquer motivo esteja em depressão, aproxima-se e fica ao seu lado, causando assim, mais depressão. Na maioria das vezes em que a pessoa sente-se deprimida e tem pensamentos destrutivos, esses pensamentos não são seus e sim desses espíritos que têm esses sentimentos. Não sabendo e não acreditando esses encarnados vão ficando sempre mais deprimidos, o que pode levá-los às últimas conseqüências, como demência ou suicídio. Existem também aqueles que ao voltarem para o plano espiritual e ao acordarem, sentem seu corpo igual a quando era vivo, portanto as mesmas necessidades de se alimentar ou se drogar ou se embebedar, saem à procura disso. Encontram com facilidade aqueles encarnados que estão pré-dispostos a esses mesmos vícios. Aproximam-se e ficam sugerindo a todo o momento, a necessidade dessas coisas. Os encarnados, sem saber e pensando que a vontade é deles, partem em busca daquilo que julgam necessitar, quando na realidade, essa vontade não é deles, mas dos espíritos que estão ao seu lado.
- Isso tudo o que está dizendo, Gusmão, é difícil de entender, muito menos quando se está encarnado. Para isso, é preciso ser espírita e conhecer todas essas coisas da espiritualidade, pois para aquele que não conhece, é quase impossível se libertar.
- Não é preciso ser espírita, pois os espíritos errantes não escolhem religião e sim, pela pré-disposição de cada um. Além do mais, toda religião, não importa qual seja, ensina que se deve ficar longe dos vícios.
- Sim, é verdade, todas ensinam...
Gusmão sorriu e continuou:
- Vocês estavam felizes por ver Sofia feliz.
- Tem razão, Gusmão, mas embora eu estivesse feliz por ela, também estava triste por ter abandonado a fazenda e a vida que vivia ali. Sentia falta de tudo, dos animais, de ver um bezerro nascer, da liberdade que sentia quando estava montado no cavalo. A vida que Sofia queria levar era completamente diferente da que eu queria.
- Embora tudo isso estivesse acontecendo com ela, não estava totalmente feliz. Queria passar na rua, ser reconhecida e admirada e para que isso acontecesse, só existia uma maneira: fazer parte da política da cidade. Vocês conhecem as pessoas do interior. Acham que alguma autoridade, juiz, advogado, médico e principalmente os políticos, são pessoas admiradas e que devem ser respeitadas e até temidas. Muitos deixam de ir procurar um advogado quando sofrem uma injustiça, por medo até de falar com ele. O temor de estar frente a frente com um juiz faz com que não lutem por seus direitos. Mal sabem eles que essas pessoas são iguais a todas as outras e que se exercem um cargo qualquer, esse cargo deve servir para o bem do povo que tanto os temem. Sofia sabia disso e sabia também que, para conseguir o respeito e admiração de todas as pessoas, teria de pertencer a esse mundo.
- Somente agora estou percebendo como fui manipulado mais uma vez, Gusmão. Em uma tarde, estávamos sentados na varanda de casa e ela, com aquele jeito de quem não quer nada, como se o que ia dizer tinha surgido naquele momento, sorrindo disse:
- Pedro Henrique! estou pensando...
- O que está dizendo, Sofia?
- Ela deu um sorriso e pegando em minha mão, respondeu:
- Desde que seu pai morreu, os políticos que restaram alem de não terem capacidade não estão muito preocupados com o povo, somente com eles mesmos e com suas vaidades.
- Tem razão, meu pai era especial e realmente se preocupava com o bem estar de todos.
- Pois é... meu pai e todas as pessoas que conheço sempre o elogiaram muito. Por todos os lugares que ando e com as pessoas que converso, ouço falar da falta que ele faz...
- Isso é verdade, Sofia. Também sinto muita falta dele...
- Por que você não se candidata a Prefeito? Sabe que seria eleito por quase a maioria das pessoas desta cidade e assim, poderia continuar o trabalho dele...
- Eu me levantei e disse nervoso:
- Está louca, Sofia? Nunca pensei em ser político! Você sempre soube que minha felicidade era viver na fazenda com tudo de bom que ela tem. Não saberia ser um político...
Ela, com aquele jeitinho de sempre e com a voz mansa, disse:
- Eu ajudo você, Pedro Henrique! Tenho uma porção de idéias que, se conseguir colocarem em prática, vai ser bom para a cidade e para todos os que moram aqui...
- Ela, sabendo que ia ser difícil convencê-lo, recorreu a você outra vez, Maria Rita.
- É verdade, Gusmão. Uma manhã, ela, com aquele ar de menina abandonada, disse com a voz baixa e compassada:
- Dona Maria Rita, estive pensando em quanto o seu marido faz falta não só para a senhora, mas para a cidade também.
- Tem razão, Sofia. Ele, além de ter sido um bom pai e marido, foi também o melhor prefeito que esta cidade teve.
- O nome dele sempre foi muito respeitado, não foi?
- Foi sim...
- Sobre isso estive pensando. Depois de tudo o que ele fez pela cidade, não é justo que seu nome desapareça, dona Maria Rita...
- Não estou entendendo o que está querendo dizer, Sofia.
- Estou dizendo que o nome dele deve continuar sendo lembrado e respeitado...
- O povo desta cidade nunca vai esquecer o José Antônio.
- Sei que não vai, mas como à senhora sabe, o tempo passa, outras coisas acontecem e as pessoas vão ficando no esquecimento. Só existe uma maneira para que ele nunca seja esquecido...
- Qual?
- O Pedro Henrique poderia se candidatar e ser eleito Prefeito e continuar o trabalho do pai...
- Isso nunca vai acontecer, Sofia!
- Por que não? Ele tem capacidade...
- O Pedro Henrique odeia política! Nunca vai aceitar essa sua idéia!
- Sei que se eu falar com ele; talvez não aceite, mas se a senhora falar, sei que vai conseguir convencê-lo, pois mesmo sem ter sido candidata ou eleita, sempre conviveu nesse meio; e deve ter argumentos ...
- Eu achei aquela idéia louca, Gusmão, mas ao mesmo tempo achei que ela poderia ter razão, pois se o Pedro Henrique fosse eleito, poderia não só evitar que o nosso nome caísse no esquecimento como também continuar trabalhando pela cidade. Disse:
- Não sei, Sofia, se vou conseguir convencer o Pedro Henrique, mas vou tentar. Acho sim, que ele tem condições para isso. Como você disse, ele tem capacidade e comprovou isso administrando a fazenda, fazendo com que ela, se dedicando à criação de gado, desse muito lucro.
- Com muito trabalho e conversa, consegui convencê-lo, meu filho. Você se candidatou e se tornou, como Sofia havia previsto, um ótimo prefeito, assim como fora seu pai.
- Embora eu não quisesse, não consegui resistir aos argumentos das duas. Como à senhora disse mamãe, tornei-me um prefeito respeitado pelo povo da cidade e procurei não desmerecer o nome do meu pai, mas só consegui isso, justiça seja feita, pelo apoio que tanto a senhora como Sofia me deram.
- Sei disso, meu filho. Eu tinha larga experiência.
- Ser prefeito era a sua missão, Pedro Henrique e graças a Deus, a cumpriu com galhardia. Pegou alguns projetos de seu pai que ele não tinha conseguido colocar em prática e depois de muito pensar e conversar com outros políticos conseguiu levar para a cidade uma tecelagem. Assim fazendo, conseguiu não só aumentar a arrecadação como dar emprego para aqueles que não se dedicavam à agricultura. Além da ajuda de sua mãe, que como ela mesma disse, tinha muita experiência. Sofia, lembrando-se daquilo que conversava com Osmar e de seus sonhos, um dia lhe disse:
- Pedro Henrique, por que não convida os agricultores da cidade e lhes propõe trabalhar junto com a Prefeitura?
- Trabalhar como?
- A Prefeitura poderia lhes financiar a plantação e a colheita e a distribuir tudo o que fosse colhido. No final, eles pagariam o que haviam recebido. Você poderia montar aqui na cidade um centro de distribuição, não só para as cidades vizinhas como também para a capital.
- Não sei, Sofia. Essa é uma decisão que não posso tomar sozinho. Preciso pensar e conversar com os vereadores.
- Você pensou durante algum tempo, conversou com várias pessoas e viu que poderia ser feito e que talvez desse certo.
- E deu, Gusmão, aquela foi sim uma ótima idéia. Só que nunca imaginei que essa idéia tão genial não fosse de Sofia, mas sim de Osmar.
- Não importa de quem tenha sido a idéia, o que importa foi que você a colocou em prática e assim, ajudou a sua cidade e muito aos agricultores. Conseguiu convencer alguns e aos poucos outros vieram, inclusive a família de Osmar. Em pouco tempo a idéia correu por todas as cidades que rodeavam a sua cidade e como elas dependiam exclusivamente da criação de gado, tornaram-se compradoras das frutas, verduras e legumes cultivados na sua. Enfim, a idéia de Osmar transmitida por Sofia deu certo. Todos estavam felizes com o resultado. Você e Sofia foram homenageados, festas foram promovidas pelos agricultores agradecidos. Sofia, a cada festa que comparecia e ao ser homenageada, pois você dizia em todo discurso que a idéia havia sido dela, ficava feliz e orgulhosa, mas não era o bastante, queria mais. Lembrando-se do tempo em que era criança e no quanto demorava e precisava andar para chegar à escola, o convenceu a construir escolas rurais nos lugares mais distantes e dizia:
- Assim, Pedro Henrique, todas as crianças poderão estudar ou ao menos aprender a ler.
- Eu a ouvia em tudo o que dizia, pois sabia que suas idéias geralmente eram boas.
- Com isso, embora não tenha sido sua vontade, Sofia que só queria admiração, poder e ser reconhecida, conseguiu ajudar a cidade e suas crianças. Ela, por ser sua esposa, foi reconhecida e aclamada. Estava orgulhosa, tudo corria bem, além do que, um dia ela houvera imaginado. Até hoje, muitas daquelas crianças, hoje adultas, rezam para que ela seja feliz e tenha boa saúde. Talvez seja por esse motivo que estamos aqui tentando evitar que cometa mais erros do que aqueles que já cometeu. Como já lhes disse, todos os espíritos têm um lado bom e um lado ruim, todos têm, sem exceção, erros e acertos, por isso e mesmo que demore muito tempo, todos encontrarão o caminho da luz. Durante sua passagem por este mundo e outros, vai mesmo sem saber, conquistando amigos e inimigos, mas como o amor de um amigo é maior que o ódio de cem inimigos, no final os amigos serão em maior quantidade. Como podem ver, apesar de todo o mal que fez, existem ainda aqueles que oram por ela.
- Tem razão, Gusmão... tem razão...
- Quando ela ficou grávida de Ricardo, ficou muito nervosa pois achava que aquele não era o momento de ter uma criança, tinha muitos compromissos sociais onde sempre era homenageada, mas diante de sua felicidade, não teve como evitar que ele nascesse. Maurício, desde muito cedo, foi criado por babás que ela sempre escolheu a dedo. Com Ricardo não foi diferente, porém assim que ele nasceu e ao ver que era homem, sabia que, para continuar tendo aquela vida e continuar sendo reconhecida e homenageada, queria que ele seguisse os seus passos, porém, à medida que ele foi crescendo, percebeu que seu interesse era outro. Gostava de história antiga e moderna e gostava mais ainda de falar sobre ela. Sempre que lhe perguntavam o que queria ser quando crescesse, respondia professor. Toda vez que Sofia o ouvia dizendo isso ficava irada e nervosa lhe dizia:
- Você não vai ser professor, vai ser Presidente do Brasil!
- Ele, quando pequeno, ao ouvi-la dizendo isso chorava, depois que cresceu, sorria.
- Eu não entendia por que ela brigava tanto com ele, Gusmão e não incentivava Maurício que, desde muito cedo demonstrou sua tendência para a política.
Já na escola, brigava com os professores para expor sua opinião ou para defender algum aluno que julgava ter sido injustiçado.
- Porque com seu espírito doente, por saber que ele não era seu filho, achava que não tinha o direito de seguir seus passos. Achava que, por direito, esse caminho pertencia a Ricardo.
- Estou pensando, Gusmão, se eu não tivesse vivido tudo isso não conseguiria acreditar, pois Maurício embora não fosse meu filho, era dela...
- Sim, mas representava seu erro e o medo de que, a qualquer momento, tudo fosse descoberto.
- Você foi eleito e reeleito muitas vezes. Quando se candidatou a deputado federal, por ser conhecido em toda a redondeza, também foi eleito e tiveram de mudar para o Rio de Janeiro. Lá, seus filhos estudaram nas melhores escolas. Sofia continuou insistindo para que Ricardo se candidatasse a algum cargo político, mas ele se recusou, estudou História. Queria mesmo era ser professor. Porém, Sofia não se conformava com isso. Quando ele trouxe Anita para conhecê-los, ela de pronto achou que poderia envolvê-la como fez com vocês e poderia ajudá-la a convencer Ricardo, mas logo percebeu que não seria possível, pois Anita não tinha ambição política nem pessoal. Ela somente queria ter uma casa com filhos e viver em paz como em sua casa, pois seus pais se gostavam muito e ela fora criada em um lar de muita tranqüilidade. Incentivava Ricardo a ser professor, pois achava ser uma profissão dignificante.
- Será esse o motivo de ela não gostar de Anita?
- Talvez seja isso, não sei como lhe responder, Maria Rita, só sei que tudo corria bem. Sofia, apesar de Ricardo se recusar a fazer o que ela queria, continuava freqüentando festas, agora mais sofisticadas, mas nem tudo é como se deseja, você teve um infarto e morreu de repente. Aquilo para Sofia foi desesperador, pois apesar de seu egoísmo e de ter casado com você por interesse, com o tempo se acostumou a viver ao seu lado e sentiu muito a sua falta, mas com o tempo logo retornou à sua vida de festas. Por você ter sido um deputado conceituado, ela conseguiu muitas amizades que a consolaram. Quando Ricardo se casou e resolveu ir morar em Portugal para conhecer a história mais de perto, visitar castelos europeus, ela se desesperou e culpou Anita por isso. Durante todo o tempo em que eles estiveram morando na Europa, ela ficou arquitetando um meio de separá-los. Sempre que pôde, culpava Anita por eles não terem tido um filho.
- Agora que ela mandou fazer esse trabalho e eles estão brigando, será que vai conseguir?
- Sabemos que não foi feito trabalho algum. Portanto, se algo acontecer, não foi por causa do trabalho. O que ela conseguiu com esse gesto foi atrair para junto de si energias pesadas que só podem lhe fazer mal. Porém, mesmo o trabalho não tendo sido feito, o desejo existiu. Por isso, tanto ela como Pai Jorge terão de responder. A cobrança virá e normalmente nesses casos ela é alta.
- Chego a sentir pena dela, Gusmão.
- Sim, ela embora não saiba ou admita, é digna de pena e necessita muito de nossas orações. Sua próxima encarnação deverá ser muito sofrida para reparar todo o mal que causou.
- Mesmo se Nadir, Romeu e Gustavo não fizerem essa cobrança?
- O aprendizado é inerente a todo espírito. A lei de ação e reação, também. O espírito precisa aprender e isso só acontecerá se resgatar seus erros. Embora eles não cobrem, o próprio espírito de Sofia cobrará, pois sabe que usando seu livre-arbítrio, Sofia adiou sua evolução. Nunca podemos nos esquecer de que, embora Deus nos ame e queira a nossa felicidade, Ele precisa ser justo. Por isso, deixou-nos Suas leis, que devem ser cumpridas.
- Como Sofia pôde continuar vivendo com tudo o que fez, Gusmão?
- Ela nunca mais pensou na sua família e muito menos no que havia acontecido. Quando isso acontecia, mudava de pensamento, pensando na próxima festa ou chá da tarde que precisava comparecer.
- Você disse que os próximos dias serão decisivos. O que vai acontecer?
- Não sei, Pedro Henrique, não me disseram. Só sei que precisamos ficar aqui até que não haja mais recurso algum para ajudá-la.
- Sendo assim, precisamos esperar e ver o que acontece.
- Isso mesmo, Maria Rita. Vamos orar e esperar em Deus que tudo se resolva da melhor maneira.

A PRESENÇA DO AMOR

Sofia, na cama, ao se lembrar do dia em que o pai morreu, arregalou os olhos, percebeu que seu corpo estava molhado por estar transpirando muito. Sentiu o coração bater descompassado, além de dificuldade para respirar. Levantou-se e foi até o banheiro, abriu a torneira do lavatório e molhou o rosto e o pescoço. Depois, olhou para o espelho e pensou: Stela tem razão, preciso ir ao médico. Não estou entendendo o que está acontecendo. Por que hoje, desde manhã, estou relembrando o meu passado? Por que não consigo esquecer? Já faz tanto tempo que tudo aquilo aconteceu. Eu não tive culpa, fui obrigada a fazer o que fiz para me defender. Preciso esquecer. Ninguém descobriu o que aconteceu e jamais descobrirá. O que importa é que meu filho está em casa e que deixou aquela mulher para sempre... Voltou a molhar o rosto e quando tornou a olhar para o espelho, deu um grito assustado e pulou para trás, pois ao invés de ver o seu rosto, viu os de Gustavo, Nadir e Romeu, que com gestos, a ameaçavam. Pedro Henrique e os outros acompanhavam o que ela pensava e surpresos, viram o que ela via. Pedro Henrique perguntou:
- Por que ela está se sentindo tão mal e por que está vendo essas imagens, se Gustavo, Nadir e Romeu não estão aqui?
- Claro que não estão aqui e sabemos que mesmo à distância estão tentando ajudá-la, mas o espírito pode tomar a forma que quiser e neste momento, as companhias que ela atraiu durante todo o tempo querem que ela sinta medo das pessoas a quem prejudicou e que retorne para o plano espiritual, para assim, poderem se apoderar de seu espírito e fazerem com ela o que acharem justo.
- Eles querem fazer justiça?
- Sim, a justiça se estende por todos os elos da criação.
- Não estou entendendo, Gusmão...
- Vou dar um exemplo. Vocês não ouviram várias vezes dizer que em penitenciárias, onde espíritos estão pagando seus crimes, até os próprios prisioneiros têm um código de honra e não aceitam alguns tipos de crimes? Quando algum preso chega acusado de um crime que eles acham terrível, tomam para si a justiça e fazem esse preso pagar de uma maneira brutal e humilhante.
- Sim, ouvimos falar.
- O mesmo acontece no plano espiritual. Quando Sofia cometeu o primeiro crime, não foi influenciada por espírito algum, somente usou do livre-arbítrio e escolheu fazer o que fez. Naquele momento, depois do crime praticado e, só naquele momento, foi que atraiu para junto de si, espíritos igualmente criminosos que vagueiam sem destino e sem esperança. Esses espíritos, atraídos pela energia dela, cheia de ódio, rancor e crueldade, ficaram ao seu lado e estão até hoje. A estes primeiros, juntaram-se outros que a têm perseguido desde aí. Sofia está rodeada de energias pesadas. Somente o amor de Nadir, Gustavo e Romeu é que a tem protegido e evitado que morra e perca uma oportunidade imensa de se regenerar e de voltar ao plano vitoriosa, com a missão cumprida. A Terra é uma escola de aprendizado sem fim. Os espíritos que a acompanham, embora estejam também presos a energias pesadas, guardam ainda dentro de si o amor por alguém que deixaram para trás, pode ser um pai, uma mãe, um irmão, filhos, esposas. Quando alguém como Sofia comete um crime contra um individuo que lhes faz lembrar essas pessoas, eles a ajudam, mas ficam à espreita para que, assim que ela morra, possam castigá-la de maneira muito cruel e humilhante.
- É assim que acontece? Eles embora estejam ao seu lado, ajudando-a a cometer os crimes, não são seus amigos?
- Não são amigos dela e de espírito algum que a eles se liguem.
- Por tudo o que está dizendo, podemos concluir que estes que estão ao lado de Sofia estão irremediavelmente perdidos?
- Não, Maria Rita. A vida no plano espiritual é quase igual àquela que se vive aqui na Terra ou em qualquer outro lugar. Na Terra, a população é formada por núcleos a que se dá o nome de família. No plano é a mesma coisa. Fazemos parte da mesma família há muito tempo. Assim como estamos aqui tentando ajudar Sofia, muitos outros devem estar tentando ajudar aqueles que a acompanham. Um dia, pode demorar pouco ou muito, ajudados por essa legião de amigos, todos sem exceção, encontrarão o caminho. Para o Pai, todos são considerados como o filho pródigo de quem Jesus nos falou. Não existem pessoas más e sim espíritos doentes que precisam de ajuda. Sofia é um deles. Está doente e precisa do nosso perdão e da nossa ajuda.
- Depois de tudo o que nos contou, é muito difícil perdoar. Eu achei que estava pronto para seguir em frente, ir para esferas mais altas da espiritualidade, mas diante do que estou sentindo, acho que ainda não estou preparado, Gusmão. Acho que tenho muito a aprender.
- Todos temos, Pedro Henrique, até o espírito de maior luz que possa conhecer. Todos, não importa em que grau da espiritualidade estejamos, sempre teremos o que aprender. Você e todos os que conviveram com Sofia estão prontos para seguir o caminho. Só depende de sua escolha: querem ir realmente, deixando que ela fique para trás, perdida junto a essas companhias que embora ela mesma tenha escolhido, sabemos que só lhe farão mal, ou preferem ficar e ajudá-la?
- Não sei, Gusmão. Talvez eu esteja sendo egoísta, mas acredito que Sofia não vai se arrepender nunca e se isso acontecer, vai demorar muito. Não sei se vale a pena esperarmos, deixarmos de conhecer lugares de maior felicidade na espiritualidade.
- Todos temos o direito de escolher. Por isso, se resolverem partir e deixá-la para trás, ninguém vai condená-los. Vocês sempre agiram bem. Conquistaram a luz e têm o direito de continuar. Sofia foi quem se entregou ao mal e se afastou da luz. Não precisam deixar de seguir o caminho que conquistaram, mas antes, vamos tentar mais um pouco. Como já disse várias vezes, se ainda não fomos chamados de volta, é porque ainda resta uma esperança.
Pedro Henrique baixou a cabeça e ficou pensando. Maria Rita perguntou:
- Por que ela está se sentindo tão mal? Será que vai morrer?
- Acredito que não, Maria Rita, se fosse acontecer eu teria sido avisado. O corpo é um reflexo do espírito. O espírito de Sofia está doente, seu corpo demonstra isso.
- O mal-estar que está sentindo é um reflexo de seu próprio espírito?
- Sim, pois embora exista o livre-arbítrio, todo espírito sabe que deve seguir o caminho do bem para poder evoluir e chegar mais perto da luz. Quando renasce, traz consigo essa certeza, mas com o passar do tempo e com o peso do corpo físico, muitas vezes se deixa levar, esquecendo tudo o que havia prometido e escolhido. Não aceita a vida que tem, como aconteceu com Sofia e se volta para o mal, para prejudicar as pessoas que o amam.
- Está dizendo que todos precisam aceitar a vida que tem, sem reagir e tentar mudar?
- Não! O espírito nasceu para ser feliz. O sofrimento é causado pela ansiedade, pela falta de fé. Quando o espírito encontra o seu caminho, vê que tudo como por encanto se resolve e não entende como pôde ser tão fácil. Basta somente acreditar que é filho de um criador amoroso e que está sempre disposto a ajudar e a receber com muito carinho e que nunca o deixará só. O espírito encarnado ou não, precisa sempre tentar e conseguir evoluir. No plano, procurar trabalhar e aprender sempre mais. Reencarnado também estudar, trabalhar e sabendo que é livre para escolher o seu caminho, procurar sempre o melhor que a vida pode lhe oferecer, sem que para isso seja preciso prejudicar uma outra pessoa ou cometer um crime ou vários, como fez Sofia. Finalmente, entender que sempre está tudo certo e que cada espírito escolheu a vida que vive na Terra ou em outro lugar qualquer.
- Da maneira como fala, Gusmão, parece ser simples, mas na realidade não é. Quando os problemas surgem, é difícil pensar que tudo está sempre certo, que fomos nós quem escolhemos passar por todos eles.
- Quando não se confia em um criador maravilhoso, realmente é difícil, mas mesmo não acreditando nem aceitando isso a ajuda virá. Tudo que é bom ou ruim não dura para sempre. Com o tempo os problemas vão se resolvendo, outros vão surgindo e é assim que o espírito aprende e caminha sempre para a luz.
- Eu agora sei de tudo isso, mas mesmo assim ainda continuo achando que é muito difícil.
Gusmão sorriu. Sofia, ainda assustada com as imagens que viu no espelho, voltou para o quarto e deitou-se. Percebeu que seu coração, embora ainda batesse descompassado, estava melhor. Pedro Henrique e Maria Rita acompanharam o olhar de Gusmão e surpreendidos, viram Nadir e Romeu chegar. Nadir, ao mesmo tempo em que sorria estava com um olhar triste. Gusmão sorriu e disse:
- Que bom que estão aqui. Fico feliz, pois sei que a luz que emana de vocês poderá iluminar este quarto e se Deus quiser, o coração de Sofia.
- Ficamos sabendo de tudo o que se passou. Do esforço que fizeram para que ela não cometesse mais um engano, mas soubemos também que foi em vão. Ela se ligou ainda mais ao mal. Sabem que o tempo está terminando e Sofia em breve deixará o plano físico. Se não se arrepender e confessar todos os seus crimes, será levada para lugares em que não podemos entrar.
- Também estou feliz em vê-los. Nunca imaginei que Sofia evitou a nossa amizade. Quero que me perdoem por não ter percebido nem insistido mais para nos aproximarmos.
- Ora, Pedro Henrique, hoje sabemos como tudo aconteceu. Sabemos também que fazemos parte do mesmo grupo e que, juntos, tentamos fazer com que Sofia se voltasse para o bem e para o nosso convívio. Nós fizemos o melhor que podíamos diante da situação em que vivemos. Sofia, desde o principio teve proteção. Nasceu em um lar que embora pobre, era feito de amor. Na encarnação passada foi muito rica, teve todas as oportunidades para crescer espiritualmente, mas deixou que o orgulho e o poder a desviassem do caminho. Quando entendeu tudo o que havia feito, pediu para renascer em um lar pobre, para assim, poder dar valor às pequenas coisas, mas como vimos, não adiantou. Seu orgulho, ganância e desejo de poder fizeram com que estivesse aqui nesta situação. E nós, seus amigos de sempre, estamos aqui ao seu lado para tentarmos ajudá-la.
- Nadir, ela nem imagina que estamos aqui e tão preocupados...
- Tem razão, Maria Rita, ela não imagina o quanto é amada...
Olharam para Sofia que, deitada, tentava dormir. Gusmão sério, disse:
- Precisamos ir para a casa de Stela. Sinto que ela está precisando de nossa presença.
- Podem ir, eu e Romeu vamos ficar aqui ao lado de Sofia e assim que ela adormecer, vamos tentar conversar com ela.
- Vamos fazer isso, Nadir. Sofia não poderia estar em melhores mãos.
Nadir e Romeu sorriram. Gusmão, Pedro Henrique e Maria Rita se despediram e foram para a casa de Stela.

A AJUDA DA LUZ

Stela também chegou a casa. Assim como Sofia, estava cansada e sentia-se suja. Queria tomar um banho e descansar. Estava passando pela sala quando o telefone tocou. Atendeu e conversou com Sofia. Depois olhou pelo vitrô e viu que as crianças, Juninho e Dora, brincavam na piscina. Continuou andando, passou pela cozinha e notou que Clarice, sua empregada, arrumava a cozinha. Ouviu o barulho da máquina de lavar roupas, foi até a lavanderia e Maria Tereza, ao mesmo tempo em que esperava a roupa terminar de ser lavada, também passava as que estavam secas. Sorriu e pensou: Está tudo certo aqui em casa. Posso, sem problema algum, tomar meu banho e descansar. Sem que ninguém a notasse, foi para o seu quarto. Não viu nem percebeu mas, desde que deixou Sofia em casa, foi acompanhada por algumas das entidades que estavam junto a Sofia e que estiveram ao lado delas durante todo o dia. Assim que entrou, sentou-se na cama e começou a pensar: Dona Sofia, quando me telefonou, estava feliz. Será que ela tem razão, será que foi o trabalho daquele homem que separou Ricardo de Anita? Não pode ser, nós nem bem saímos dali. Ele não teve tempo de fazer trabalho algum. Mas e se foi ele? Também, mesmo sem querer, eu participei de tudo. O que fizemos não está certo. Não tínhamos o direito de interferir dessa maneira na vida deles. A Anita não que a minha amizade, mas em parte, tem razão. Logo que se casou, tentou fazer amizade comigo, mas influenciada por dona Sofia, sempre a tratei com indiferença e demonstrei que queria distância. O que ela poderia fazer? Hoje, durante aquela viagem louca, tive tempo para pensar, analisar dona Sofia e perceber como ela é egoísta e diria até que má. Como permiti que ela me envolvesse dessa maneira? Não posso contar ao Maurício o que fizemos, pois do jeito que gosta do irmão, não me perdoaria nunca e com razão... odeio dona Sofia, queria que ela morresse!
Ela mesma estava assustada com aqueles pensamentos. Desde a primeira vez em que viu Sofia, percebeu como ela era orgulhosa e prepotente, mas como vinha de uma família humilde e gostava muito de Maurício, resolveu que ao invés de enfrentá-la deveria unir-se a ela e para isso se anulou e deixou que Sofia tomasse conta de sua vida, desde como arrumar sua casa, comprar os móveis e colocar os quadros. Aquilo sempre a irritou, mas achou melhor concordar e viveu bem até este dia. Sempre noite a diferença entre o modo como ela trata Maurício e Ricardo. Não sei por que, mas ela faz diferença e não faz questão alguma de disfarçar. Nunca entendi por que Maurício aceitou esse tratamento. Uma ou duas vezes em que comentei, ele disse:
- Não se preocupe com isso, Stela. Minha mãe é cheia de manias. Todo o amor e carinho que ela não me deu, recebi em dobro ou mais ainda do meu pai. Ele gostava muito de mim e também não fazia questão de disfarçar. Sinto muita falta dele...
Stela, assim pensando, pegou as toalhas, entrou no banheiro e tomou um banho demorado que a renovou. Ao voltar para o quarto, viu com surpresa que Maurício estava deitado. Aproximou-se dele, abaixou-se e enquanto fazia isso, perguntou:
- Já em casa, Maurício. O que aconteceu? Está doente?
- Por que pergunta isso?
- Você não costuma chegar cedo em casa... não está bem?
- Estou bem, mas hoje não sei por que, fiquei com vontade de vir para casa. Sinto que alguma coisa de ruim está acontecendo ou para acontecer.
Ela deitou-se ao seu lado, dizendo:
- Credo, Maurício, nem me fale uma coisa como essa. Aqui em casa está tudo bem e vai continuar assim. Não existe motivo algum para que mude.
- Não sei, Stela, mas algo não está bem.
- Está tudo bem, você deve estar muito cansado. Tem trabalhado muito...
- Tem razão, desde que meu pai morreu tive de tomar a frente de todos os negócios. Ainda bem que Ricardo voltou e vai poder me ajudar. Ele é inteligente e está disposto a ficar aqui para sempre. Logo tomará conhecimento de como as empresas funcionam e poderei tirar umas férias longas. Vamos viajar e levar as crianças para conhecer lugares maravilhosos.
- Acho que isso não vai acontecer...
- Por que está dizendo isso?
- Assim que deixei sua mãe em casa e cheguei aqui, ela me telefonou e contou que Ricardo voltou para casa.
- Como voltou para casa?
- Não sei muito bem o que aconteceu, ela disse que quando chegou ele estava lá e que tinha vindo com uma mala de roupas.
- Ele se separou de Anita?
- Não tenho certeza, mas receio que sim...
- Tenho certeza de que isso tem um dedo da minha mãe! Ela, desde que conheceu Anita e sua família quis e tentou de várias maneiras que o casamento não se realizasse. Como não conseguiu, sempre fez de tudo para que houvesse uma separação. Você está sabendo de alguma coisa, Stela?
Stela pensou por alguns segundos. Aquela era a hora de contar tudo o que estava acontecendo e aonde tinham ido, mas se calou. Sentiu medo de que Maurício não entendesse.
- Não estou sabendo de nada, Maurício. Assim como você, também percebo como sua mãe trata Anita, mas não sei nada além disso.
- Ela deve ter feito algo de muito grave para que essa separação acontecesse, Stela. Já sei, deve ter sido por causa do jantar.
- Do jantar?
- Sim, eu, você e todas as pessoas que estavam lá percebemos como Anita ficou furiosa. O jantar estava perfeito e ela deve ter tido muito trabalho para que tudo desse certo e minha mãe com sua grosseria costumeira conseguiu estragar.
- Sei que o que sua mãe fez foi desagradável, mas não tão grave para que houvesse uma separação. Já presenciamos cenas muito mais fortes do que aquela.
-Tem razão, foi uma somatória de coisas. O jantar foi à gota De água, Stela. Vamos até a casa da minha mãe.
- Fazer o que, Maurício.
- Preciso conversar com meu irmão e saber o que aconteceu exatamente e se houve qualquer interferência da minha mãe. Vou tentar fazer com que Ricardo repense e volte para casa.
- Acha que deve fazer isso?
- Não só acho, como vou fazer!
Maurício estava muito nervoso e irritado. Sentou-se na cama para se levantar, mas sentiu uma tontura e foi obrigado a se deitar novamente. Ficou branco como cera. Stela se assustou e, quase gritando, perguntou:
- O que aconteceu, Maurício? O que está sentindo?
Ele quase sem forças para responder, disse baixinho:
- Não sei, de repente senti uma tontura muito forte.
Ela, muito assustada e nervosa, disse:
- Está vendo! Você está nervoso e provocou isso. Fique deitado, vou até a cozinha pegar um copo com água e açúcar.
Saiu correndo do quarto. Gusmão olhou para Pedro Henrique e Maria Rita e com os olhos, fez um sinal em direção a Maurício, estendendo as mãos em sua direção e jogando jatos de luz sobre ele, gesto que foi seguido pelos outros. Aos poucos, perceberam que a cor foi voltando ao seu rosto e ele começou a se sentir melhor. Quando Stela voltou com o copo De água, ele já estava bem. Ela admirada, perguntou:
- Você está bem, Mauricio?
- Sim, da mesma maneira que fiquei mal, também desapareceu.
- Ainda quer ir à casa de sua mãe?
- Claro que sim. Preciso conversar com o Ricardo antes de tudo fuja do controle e essa separação seja irreversível!
- Precisa ser hoje? Você passou mal, acho que devíamos ir ao médico. Você precisa fazer alguns exames e ver qual foi à razão de ter ficado tão mal.
- Faremos isso amanhã. Hoje, preciso falar com o meu irmão! Vou tomar um banho, trocar minha roupa e se você não quiser ir, não precisa! Vou sozinho!
- Mesmo que quisesse, não posso ir. As crianças estão brincando na piscina e logo sairão com muita fome. Preciso ficar aqui para atendê-las.
Stela mentiu, pois se as crianças precisassem de atendimento, tanto Clarice como Maria Tereza estavam ali para isso. Na realidade, não queria estar presente quando Maurício conversasse com o irmão e ao lado de Sofia. Pegou e entregou para Maurício toalhas e roupas. Ele entrou no banheiro, ela se deitou e ficou esperando. Antes de entrar no banheiro, Maurício disse:
- Não vou obrigá-la a fazer algo que não quer, mas gostaria muito que fosse comigo.
Assim que Maurício entrou no banheiro, Pedro Henrique e Maria Rita olharam para Gusmão e Pedro Henrique perguntou.
- O que aconteceu aqui, Gusmão?
- Vocês não viram como as entidades se atiraram sobre Maurício, quando ele disse que ia falar com o irmão?
- Sim, vimos. Elas foram com tanta força que quase o mataram.
- Foi exatamente isso que aconteceu. Elas, percebendo que Maurício poderia fazer com que a separação de Ricardo e Anita não se concretizasse realmente, tentaram evitar.
- Por quê?
- Eles estão ao lado de Sofia e querem que ela se envolva cada vez mais na escuridão.
Hoje, pretendeu e pagou para que houvesse a separação, se isso não acontecer eles terão mais dificuldade para envolvê-la ainda mais. Por isso, tentaram evitar.
- Se não estivéssemos aqui, teriam conseguido?
- Não, pois se não estivéssemos aqui, outros de nosso grupo estariam. Maurício, assim como Ricardo, Anita e Stela, faz parte do nosso grupo original e mesmo sem saber, está tentando ajudar Sofia e evitando a separação estará contribuindo para que essa ajuda seja efetivada.
- Não entendo como
depois de tudo o que ela fez, ainda existam espíritos querendo ajudá-la...
Gusmão sorriu e disse:
- Estamos aqui, não estamos?
Os dois também sorriram. Maurício saiu do banheiro. Stela continuou na cama, temerosa de que ele descobrisse o que ela havia feito ao lado de Sofia. Gusmão olhou para ele com carinho. Maurício não imaginava como estava bem acompanhado. Gusmão disse:
- Agora podemos voltar para junto de Sofia. A vinda de Nadir e Romeu significa que eles também tentarão até o último recurso ajudar Sofia.
TOMADA DE DECISÃO

Anita em casa, após chorar muito, esperou até a hora do almoço para ver se Ricardo voltava. Como ele não voltou, decidiu: ele não vai voltar. Escolheu a mãe. Para mim, só resta uma alternativa. Enquanto pensava, pegou o telefone, discou um número. Do outro lado da linha, uma voz de mulher atendeu.
- Alô!
Anita, chorando, só conseguiu dizer:
- Mãe!
- Anita? Que aconteceu, por que está chorando?
- Ricardo me abandonou...
- Abandonou, como? Para onde ele foi?
- Ontem à noite brigamos por causa da mãe dele. Hoje, quando acordei, ele não estava em casa. Olhei o guarda-roupa e vi que estavam faltando algumas roupas e uma mala. Deve ter ido para a casa de a mãe pedir sua benção...
- Você outra vez brigou com seu marido por causa daquela mulher, minha filha? Já lhe disse tantas vezes para não ligar para qualquer coisa que ela fizesse!
- Disse muitas vezes mãe, mas não suportei. Vou lhe contar o que aconteceu. A senhora sabe que preparei um jantar para os amigos e parentes para celebrar a nossa volta, não sabe?
- Claro que sei, você nos convidou, mas seu pai, por causa dos negócios e da época do ano, não podia se afastar daqui e combinamos que você faria um outro jantar em outra data, só para a família. Mas até agora não estou entendendo o que aconteceu.
Anita contou tudo o que havia acontecido. A briga que teve com Ricardo e a sua decisão de abandonar tudo. Contou também da reação dele, o que fez com que ficasse com mais raiva ainda. Terminou dizendo:
- Como pode ver, mamãe, ele escolheu a mãe. Não gosta de mim e não me respeita!
- O que ele fez realmente é grave, mas precisa entender que se trata da mãe dele!
- Pode ser a mãe dele, mas também é uma megera e não sei qual é o motivo, mas me odeia!
- O que quer que façamos por você?
- Preciso voltar para casa nem que seja por um tempo, até que eu consiga refazer a minha vida...
- Claro que pode voltar! Você é nossa única filha e esta casa é sua, embora eu acredite que você não deva fazer isso. Deveria esperar seu marido voltar, porque tenho certeza de que isso vai acontecer. Precisam conversar e tentar acertar tudo. O Ricardo é um bom homem. Nunca traiu você e sempre a tratou com muito carinho. Essa briga não foi causada porque vocês não se gostam, mas por outra pessoa, por isso acho que ainda há esperança.
- Não há mais esperança, mamãe. Ele escolheu. Não posso mais continuar morando aqui... preciso voltar para casa...
- Está bem, quer que eu converse com seu pai e peça para o Olavo ir apanhar você?
- Não precisa, mamãe. O Olavo é o motorista da casa, deve ter muito que fazer. Eu mesma vou dirigindo, a senhora sabe o quanto gosto da estrada.
- Sei que dirige muito bem e que gosta, mas nas condições em que está e chorando dessa maneira, acha que vai conseguir?
- Vou, não se preocupe, embora esteja chorando estou bem. Ainda é cedo e chegarei a duas horas.
- Está bem, estarei esperando por você.
Anita desligou o telefone, olhou para o guarda-roupa, foi até ele, tirou algumas roupas que estavam penduradas, outras que estavam dobradas na gaveta, colocou em duas malas, chamou Celeste, sua empregada, que a ajudou a levar até o carro. Antes de entrar no carro, disse:
- Celeste, se o doutor Ricardo voltar e perguntar por mim, diga que não sabe para onde fui.
- Não estou entendendo, senhora. Está indo embora de casa?
- Sim, mas não se preocupe, está tudo bem.
Celeste ficou sem saber o que fazer. Era empregada deles há pouco tempo, desde que chegaram de Portugal. Sorriu, ajudou Anita a colocar as malas no porta-malas. Depois, Anita entrou no carro, com um lenço secou as lágrimas, ligou o motor, acelerou e saiu, acenando para Celeste que com os olhos e preocupada, a acompanhou. Duas horas depois, estava estacionando o carro na garagem da casa de seus pais. Sua mãe veio até ela, dizendo:
- Ainda bem que chegou, minha filha! Eu estava morrendo de preocupação.
Anita, assim que viu a mãe, não se conteve mais e começou a chorar em desespero. A mãe a abraçou e disse:
- Fique calma, agora está em casa. Vamos entrar, conversar e ver como vai ficar.
- Não vai ficar, mamãe, já ficou... Infelizmente, meu casamento terminou...
- Isso não pode acontecer, Anita! Você não pode se deixar vencer por aquela mulher! Você e seu marido se gostam e quando o amor é verdadeiro, nada pode separar...
- Isso é bonito de se ler em romance, mas a realidade é diferente mamãe. Ricardo não gosta de mim de verdade. Ele é fraco e sempre foi dominado pela mãe, que o trata como se ainda fosse uma criança. Ela não entende que Ricardo cresceu e se tornou um homem e que precisa ter uma família! Ter a sua própria vida...
- Vamos entrar, Anita. Você está muito nervosa. Telefonei para o seu pai, contei o que estava acontecendo, ele já deve estar chegando. Quando ele chegar, vamos ver o que pode ser feito.
Entraram. Olavo retirou as malas do carro e entrou depois delas. Anita sentou-se em um dos sofás da sala e continuou chorando. Sua mãe, sem saber o que fazer ou falar para acalmá-la, sentou-se em outro e ficou olhando.
Alguns minutos depois o pai de Anita chegou e ao ver a filha naquele estado, perguntou nervoso:
- O que aconteceu, Anita? Sua mãe não soube me explicar direito:
Ela, ao ver o pai, levantou-se e começou a chorar com mais força. Tentou se acalmar, mas não conseguiu evitar os soluços que vinham do fundo do coração e saíam por sua garganta. Ele a abraçou e disse:
- Não precisa ficar assim, minha filha. Sabe que estamos ao seu lado. Só não entendi o que aconteceu de tão grave que a fez sair de casa. Você e seu marido se gostam muito. Isso qualquer um pode ver. Vamos nos sentar e você vai me contar tudo.
Sentaram-se e Anita, ainda chorando, contou tudo o que havia acontecido. Os pais ouviam atentamente o que ela dizia. Ela terminou, dizendo:
- Foi isso que aconteceu, papai. Gosto muito do Ricardo e sei que ele também gosta de mim, mas a dona Sofia me odeia e nunca vai aceitar o nosso casamento.
O pai se levantou e pensando, ficou andando de um lado para outro. Depois de pensar muito, disse:
- Diante de tudo o que me contou, só me resta uma alternativa. Vou até lá conversar com o seu marido e se for preciso, com aquela mulher também.
Anita se levantou e disse, desesperada:
- Não quero que o senhor faça isso. Não adianta mais! Ele escolheu e vai ficar com a mamãezinha! Eu estou bem, só preciso de um tempo para organizar a minha vida! Nada além disso, papai!
- Está bem, se é assim que quer, assim será feito! Só não acho certo que essa separação tenha sido por causa de outra pessoa que nada tem a ver com a vida de vocês dois. Se houvesse tido uma traição, se vocês tivessem se cansado um do outro, eu até entenderia, mas por causa daquela mulher, eu não posso aceitar! Ainda acredito que o melhor a fazer seria eu ir até lá e conversar com Ricardo. Ele é um homem educado, bem preparado profissionalmente e deve saber tomar suas decisões, sem a interferência de ninguém, inclusive a sua, Anita. Isso tudo o que aconteceu não está certo e precisamos encontrar uma maneira de remediar. Aquela mulher precisa pensar na felicidade do filho e deixá-los viver em paz.
- Também acho que deveria ser assim, mas infelizmente não é. Ela domina Ricardo totalmente. Não me perdoa até hoje por termos ido para Portugal, embora a idéia tenha sido dele. Ela não acredita e me culpa pelos anos que ficamos distantes.
- Parece ser impossível acontecer isso tudo que está me contando!
- Mas está acontecendo, papai. Ela me odeia! Como pode ser isso, se nunca fiz nada de mal para ela ou para o Ricardo?
O pai pensou um pouco antes de responder. Depois, disse:
- Deve haver algum motivo e precisamos descobrir qual é. Por isso, ainda acho que devemos ir até sua casa para conversar com Ricardo e com a mãe.
- Não, papai, não quero! Depois da briga que tivemos, ele foi embora de casa, o que demonstra que não quer mais viver ao meu lado. Não quero obrigá-lo a nada...
O pai se voltou para a mãe e perguntou:
- O que você acha que devemos fazer?
Ela, forçando um sorriso, respondeu:
- Também acho que deveríamos ir até lá e conversar, mas ao mesmo tempo acho que Anita tem razão. Ele fez a sua escolha. Assim como estamos culpando a mãe dele por interferir, também não podemos nem devemos fazer o mesmo. Eles são adultos e somente eles poderão decidir o que querem para suas vidas.
Anita e o pai olharam para a mãe e ficaram calados. Sabiam que ela tinha razão naquilo que havia dito. Depois, Anita disse:
- Acho que é assim mesmo que tem de ser, mamãe. Ele deve ter voltado para a casa da mãe e eu, para cá. Por mim, está tudo acabado, não quero mais ser humilhada por aquela megera!
- Sabe minha filha, desde que conheci Ricardo e sua mãe, sentia que esse casamento não daria certo.
- Por que achou isso, papai?
- Não sei, aquela mulher me pareceu ser muito perigosa...
Mãe e filha riram da expressão que ele fez. Anita disse:
- O senhor tinha razão, papai. Ela é realmente perigosa...
- Está tudo bem, minha filha. O que eu e sua mãe queremos é a sua felicidade e se não está feliz no casamento, se não houver outra maneira, por nós tudo bem. Fique aqui em casa o tempo que precisar. Esta casa é sua...
Anita, que havia parado de chorar, abraçou-se ao pai e recomeçou a chorar. Ele também a abraçou, dizendo:
- Agora, vamos ver se tem algo para se comer nesta casa! Hoje não almocei direito e estou morrendo de fome.
Mãe e filha olharam com carinho para ele e abraçados, foram em direção à sala de refeições.

CONVERSA EM SONHOS

Enquanto isso acontecia na casa de Anita, Maurício saiu do banheiro e terminou de se vestir e antes de sair, perguntou:
- Não quer mesmo ir comigo?
Stela, que havia pensado muito enquanto ele se vestia, resolveu que o melhor seria ir com ele para ficar ao lado de Sofia e ajudá-la em qualquer situação. Assim, poderia impedir que ele descobrisse o que elas haviam feito. Respondeu:
- Enquanto você tomava banho, pensei bastante e resolvi que devo ir com você, embora continue achando que não devíamos nos intrometer na vida de seu irmão. Ele é adulto e deve saber o que quer da vida.
- Está bem que pense assim, mas podemos ir?
Stela, que ainda continuava deitada, olhou para ele e perguntou:
- Tem certeza de que é isso mesmo que devemos fazer?
- Claro que tenho, Stela! Sei que nessa briga do Ricardo com a Anita, tem um dedo da minha mãe e não posso permitir que isso aconteça.
- Não sei, Maurício, mas volto a dizer que a briga deles não é da nossa conta...
- Entendo sua preocupação, mas isso acontece porque você não conhece minha mãe. Não sabe como ela é na realidade! Ela, não sei o motivo, não gosta de Anita! Desde o começo notei isso.
- Você está exagerando, não tenho nada contra sua mãe e ela sempre me tratou muito bem.
- Sei disso e até estranho, pois entre mim e Ricardo ela sempre fez uma diferença enorme. Ele sempre foi o preferido e ela nunca fez questão de esconder sua preferência.
Stela sorriu e com ar de deboche, disse:
- Você está com ciúmes...
- Não se trata de ciúmes, há muito tempo superei essa diferença. Exatamente por isso é que estou preocupado com Ricardo. Minha mãe sempre acreditou que ele seria dela para sempre e que nunca a abandonaria. Quando ele conheceu Anita e quis se casar, acho que minha mãe não aceitou a separação e por isso, sente esse ódio mortal por Anita.
- Você acha isso mesmo?
- Acho, pois não há motivo algum para que ela não goste de Anita. É uma moça culta, educada, de uma família com muito dinheiro e posses. Se ela fosse pobre, poderíamos dizer que estava com Ricardo por causa do dinheiro, mas isso não acontece. A família dela tem muito mais que a nossa. Eles se amam de verdade, por isso vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para evitar essa separação.
- Está bem, não quero discutir com você, embora não tenha reclamação alguma dela.
- Claro que não, eu não sou o preferido... ela não tinha medo de me perder, até desejava...
Disse isso dando um beijo na testa dela. Piscando um olho ajudou-a a se levantar.
Stela sorriu e quando estava em pé, ficou nas pontas dos dedos, beijou-o com carinho e disse:
- Já que resolveu ser esse o caminho e acha que o que está fazendo é o certo, vou ficar ao seu lado.
Saíram no exato momento em que Gusmão, Pedro Henrique e Maria Rita chegavam à casa de Sofia, que dormia. Romeu e Nadir ao vê-los, sorriram. Ela disse:
- Com a nossa ajuda, ela adormeceu. Fizemos isso porque precisamos conversar com ela e vocês sabem que isso só é possível quando o encarnado está dormindo. Seu espírito se desprende do corpo e sua visão se expande.
Sofia embora dormisse profundamente, abriu os olhos e os viu diante de si. O primeiro que viu foi Pedro Henrique. Sorriu e feliz, disse:
- Você está aqui? Eu estava morrendo de saudade!
Tentou abraçá-lo, mas ele evitou. Sabia que suas energias eram diferentes e que um contato físico poderia lhe fazer mal. Sorrindo e olhando para os outros, respondeu:
- Sim, Sofia, sou eu. Também sinto sua falta. Estamos aqui porque precisamos conversar.
- Conversar sobre o quê, Pedro Henrique? A não ser a saudade que sinto de você, tudo está bem.
- Não está, Sofia. Tomei conhecimento de tudo o que fez.
- Não fiz nada além de proteger o meu filho e separá-lo daquela mulher. Ela não presta, Pedro Henrique.
- Não estamos aqui para falar de Anita ou de Ricardo. Estamos aqui para falar de você e da sua vida espiritual.
- Que conversa é essa, Pedro Henrique? Que vida espiritual? Você nunca foi dado a essas coisas.
- Nisso você tem razão, nunca fui, mas agora tomei conhecimento da verdade.
- Que verdade? - ela perguntou, com medo de ter sido descoberta.
- Que existe vida após a morte e que o espírito é eterno.
- Isso é verdade mesmo?
- Sim, é verdade, Sofia. Como é verdade que os erros cometidos terão de ser resgatados.
- Não estou entendendo o que quer dizer...
- Sei que está entendendo muito bem e para que entenda melhor, estou acompanhado.
Ela desviou os olhos dele e olhando a sua volta, viu os outros que sorriam. Ao ver os pais, sentou-se e gritou:
- Pai, mãe, o que estão fazendo aqui? Vocês estão mortos.
- Não estamos mortos, Sofia e viemos para ajudá-la, minha filha...
- Não estão mortos, como não? Eu mesma os vi mortos e acompanhei os enterros.
- O que você enterrou foi nosso corpo físico, mas nosso espírito é eterno, por isso não pode ser morto.
- Não estou entendendo o que está dizendo. Disse que veio me ajudar. Ajudar em quê, mãe?
- Ajudá-la a retornar para o caminho da luz...
- Não sei o que está dizendo, só sei que não tive nada a ver com a morte de vocês e por isso, podem ir embora!
- Sabemos tudo o que fez, Sofia, mas não estamos aqui para julgá-la e sim, para ajudá-la.
- Mãe, que jeito é esse que está falando?
- Que jeito?
- Está falando certo, nem parece à mesma...
- Sou a mesma, só que agora não estou mais presa ao corpo, portanto posso falar certo, como aprendi durante uma longa caminhada.
- Não estou entendendo. Quer me ajudar, por quê? O que foi que fiz?
- Você sabe o que fez. Seu tempo na Terra está terminando, precisa confessar o que fez, pois só assim, poderá seguir ao nosso lado.
- Como meu tempo está terminando, o que a senhora está querendo dizer com isso?
- Estou dizendo que você vai deixar o seu corpo aqui e seguir pela espiritualidade e que depende só de você com quais companhias.
- Está dizendo que vou morrer? Isso não pode acontecer, sou muito nova!
- Para voltar, não existe tempo. O espírito renasce para aprender na escola da vida. Quando seu tempo de aprendizado termina, ele volta, assim como acontece em uma escola, quando seu tempo termina, recebe um diploma e escolhe se deseja continuar estudando ou não. Isso também acontece na espiritualidade. Quando retornamos e tomamos conhecimento da nossa situação, temos o direito de escolher o que queremos fazer para o nosso aprendizado e evolução. Podemos continuar estudando, trabalhando em equipes, nos preparando para seguir em escala de evolução e trabalhos maiores ou simplesmente não fazermos nada, somente esperando uma nova chance para reencarnar, mas isso só acontece se essa nova encarnação servir de aprendizado. Assim, como quando encarnados pertencemos a uma família, quando desencarnados, fazemos parte de um grupo original. Do nosso grupo, todos evoluíram e estão preparados para trabalhar em uma escala superior, só resta você, Sofia e é por isso que estamos aqui. Sabemos que, diante dos crimes que cometeu, terá de continuar muito tempo reencarnado. Mesmo assim, embora nenhum de nós precise renascer, talvez algum de nós, diante do seu arrependimento, resolva continuar renascendo ao seu lado para ajudá-la. Depende do que você desejar e decidir. Nenhum de nós pode fazer essa escolha. Ela é só sua.
- Não sei o que está dizendo! Tudo o que fiz foi para me proteger, pois sabia que dependendo de uma palavra sua, do pai ou do Gustavo, minha vida estaria perdida! Não tenho culpa, o culpado foi o Gustavo por ter uma língua comprida, se ele tivesse feito como eu havia pedido e não comentado com a senhora que tinha me visto com o Osmar, nada daquilo teria acontecido!
- Não adianta continuar acusando os outros para se defender. Você sabe que aquilo que fez, não era certo. Além do mais, se culpar ou procurar se defender não adianta mais. O que fez foi feito e nada poderá mudar. Agora, o que precisa é confessar aos seus filhos e esperar o julgamento deles, pois o de Deus com certeza virá. Estamos aqui para ajudá-la a tomar essa decisão.
- A senhora está louca! Não posso fazer isso! Eles não vão entender!
Voltou-se para Pedro Henrique, perguntando:
- Se eu, na época, contasse a você, me perdoaria Pedro Henrique?
Ele, tomado de surpresa e não esperando aquela pergunta, ficou sem saber o que responder, mas ao notar que todos o olhavam para saber o que responderia, olhou firme para Sofia e respondeu:
- Não sei, Sofia. Hoje, aqui no plano espiritual, é mais fácil entender o que acontece quando estamos no plano físico, porém penso que da maneira que a amava, talvez tivesse entendido e perdoado. Só sei de uma coisa, você nunca deveria ter chegado ao extremo que chegou, embora eu não seja ninguém para condená-la. Também tenho meus erros e acertos. Talvez eu não tenha prestado atenção e não tenha percebido o quanto você era infeliz.
Gusmão e os outros sorriram. Nadir disse:
- De tudo o que falou tem razão em uma coisa, não podemos e não devemos julgar outro espírito irmão. Todos, durante nossa caminhada, cometemos erros e acertos. Por isso, existem várias oportunidades para que nossos acertos sejam multiplicados e nossos erros, corrigidos. A reencarnação é uma dessas oportunidades, pois, através dela, temos a oportunidade de reparar danos causados a nós e a outros que passaram por nosso caminho e que prejudicamos. Está em suas mãos, Sofia, a sua redenção. Maurício está chegando.
- Maurício? O que ele vem fazer aqui?
- Vem em socorro do irmão, para fazer com que ele volte para casa e seja feliz com Anita.
- Ele não pode fazer isso mãe, não tem esse direito! Odeio aquela mulher e quero vê-la longe da minha vista e da minha família!
- Sabe que esse ódio não tem fundamento e se ela faz parte da sua família, é porque a ela pertence e, quanto a isso, você nada poderá fazer.
- Como nada poderei fazer? Claro que posso fazer, se for preciso vou em busca daquele mesmo veneno que usei contra vocês que queriam destruir a minha vida!
- Apesar de tudo o que falamos, teria coragem de fazer novamente?
- Claro que sim! Pois se daquela vez deu certo, dará novamente! Não vou permitir que ela destrua a vida do meu filho, ele não merece!
- Sabe muito bem que esse não é o verdadeiro motivo. Sabe que, mais uma vez, está dominada pelo egoísmo e pelo medo.
- Não sei o que está dizendo! Não sou egoísta nem muito menos tenho medo. Só quero a felicidade do meu filho. Além do mais, não quero mais conversar com vocês! Mandei fazer um trabalho e ele já deu resultado. Ricardo está aqui em casa, voltou para mim!
- Não houve trabalho algum e Maurício está chegando.
- O que ele pode fazer? Não tem provas de que eu fiz alguma coisa para separar os dois.
- Ele pode muito. Por ter sido rejeitado por você durante todo o tempo, não foi envolvido por suas artimanhas e a conhece muito bem. Saberá como conversar com o irmão e para eles, tudo ficará bem, Sofia.
- Não adianta, ele não vai conseguir! Não quero mais falar com vocês nem relembrar o que aconteceu, já faz muito tempo. Se naquela época, nada me aconteceu, não vai ser agora que vai acontecer! Estou cansada, preciso dormir...
- Está tendo a última chance, Sofia. Maurício está chegando, por isso você vai despertar e poder contar toda a verdade. Não vai se lembrar de que estivemos aqui, só restará uma pequena lembrança e saberá que sonhou conosco. Embora não ache necessário, continuaremos aqui ao seu lado. Nós amamos você, Sofia...
Sofia, muito nervosa e assustada, ficou calada. Minutos depois, abriu os olhos e viu que estava em sua cama. Suas roupas estavam molhadas de suor e seu coração batia descompassado. Levantou-se e foi para o banheiro, pensando: que sonho estranho... parece que vi meu pai, minha mãe e Pedro Henrique, só não recordo o que fizemos ou falamos. Pedro Henrique estava muito bonito... aliás, isso ele sempre foi, até mesmo depois de velho... Voltou para o quarto, trocou de roupa e desceu. Estava bem...

O CONFRONTO

Quando estava terminando de descer a escada que levava à sala, deparou-se com Maurício e Stela, que estavam acompanhados da empregada. Ao vê-los, sorriu e disse:
- Maurício, Stela! Que estão fazendo aqui?
Stela sorriu, Maurício respondeu:
- Viemos conversar com Ricardo, mamãe.
Ela assustada, perguntou:
- Conversar sobre o quê?
- Precisamos evitar que essa separação seja definitiva, mamãe!
- Como precisamos, Maurício? O problema é deles, não nosso!
- Sei que a senhora está feliz por ter conseguido o que sempre quis e sei o quanto tem feito para que essa separação acontecesse!
Ao ouvir aquilo, Sofia tomada de ódio, olhou para Stela com os olhos faiscando e perguntou, gritando:
- Stela, você contou a ele aonde fomos hoje e o que fizemos?
Stela empalideceu e com os olhos, tentou dizer que não. Não pôde fazer gesto algum, pois Maurício, assim que ouviu o que a mãe disse, olhou para ela firmemente, esperando a resposta. Ela sentiu tanto medo que não conseguiu responder. Ficou calada, com os olhos arregalados e tremendo muito. Sofia não percebeu o seu desespero e continuou olhando para ela com muita raiva. Maurício, ao ver como Stela estava, perguntou:
- O que vocês fizeram hoje, Stela?
Ela começou a chorar com medo de que ele descobrisse o que ela, ao lado de Sofia, havia feito. Maurício, que já estava nervoso, ficou irado e voltou a perguntar, só que agora, gritando e segurando em seu braço:
- O que vocês fizeram e aonde foram hoje?
Ricardo, que estava em seu quarto durante o dia todo, só pensando em sua vida e no que ia fazer, saiu. Estava descendo a escada, quando ouviu Maurício e a mãe gritando. Ao ouvir o que Maurício, irado, perguntava, parou e ficou ouvindo. Sofia percebeu pela situação de Stela, que ela não havia dito nada e tentou consertar:
- Fomos fazer compras, não foi Stela?
Stela, nervosa começou a chorar e não respondeu. Naquele momento passou por sua cabeça toda a felicidade que vivia ao lado de Maurício e dos filhos. Ele sempre fora um pai e marido dedicado, mas sempre exigiu não só dele próprio, mas dela e dos filhos, a sinceridade e acima de tudo que a verdade sempre fosse dita. Desde que as crianças eram bem pequenas, aprenderam que, acontecesse o que acontecesse, a verdade sempre teria de ser dita. Por isso, Stela pensava muito na resposta que daria. Se contasse a verdade, Maurício, além de ficar muito brabo, poderia abandoná-la e ela não poderia fazer nada, pois se sentia culpada por ter ajudado Sofia nos seus desmandos e sabia que a teria como inimiga e isso, não queria. Contudo, se não contasse, ele poderia descobrir e aí sim, não haveria perdão. Por isso, continuou calada.
Maurício, diante do silêncio de Stela, voltou-se para a mãe e com mais raiva ainda, disse:
- A atitude de Stela está demonstrando que algo aconteceu. O que foi mamãe? O que a senhora fez para destruir o casamento de Ricardo? O que a senhora fez, mamãe?
- Não fiz nada, Maurício! Você está nervoso e não está pensando direito. Sempre foi assim desde pequeno, quando queria algo tanto fazia até conseguir. Sempre esteve ao lado daqueles que julgava serem injustiçados. Por isso se tornou um advogado e dos bons. - disse isso, tentando sorrir.
Ao ouvir aquilo, Maurício gritou mais alto:
- Não tente mudar o assunto, mamãe! Sou sim, um ótimo advogado, por isso sei que a senhora está mentindo! Sei que fez alguma coisa contra Anita! Sei que a senhora a odeia e não a quer em nossa família! Sei que quer que Ricardo fique ao seu lado para sempre! Sei que quer torná-lo político para que, como sua mãe, possa ser homenageada e convidada para festas! Sei de tudo isso, só não sei o que vocês fizeram hoje para acabar com o casamento do meu irmão e é isso que quero saber!
Ricardo, que ouvia a conversa, ao ouvir aquilo terminou de descer a escada e também nervoso, perguntou:
- O que você está dizendo, Maurício? O que mamãe fez para me separar de Anita?
Todos se voltaram para ele. Maurício respondeu:
- Não sei o que ela fez Ricardo, mas tenho certeza de que fez alguma coisa e que foi ajudada por Stela! - disse nervoso e quase gritando.
Sofia, ao ver Ricardo, ficou mais nervosa do que estava e se aproximando dele, o abraçou, dizendo:
- Eu não fiz nada, filho! Maurício não sabe o que está falando! Sabe como ele sempre foi comigo! Parece que não gosta de mim, não me trata como mãe!
- A senhora é mesmo uma dissimulada, mamãe! Isso que está dizendo é uma maneira de fugir do assunto, claro que sempre a enfrentei, pois desde muito cedo, percebi como manipulava a todos! Diz que não gosto da senhora, mas isso não é verdade. Gosto muito da senhora, é minha mãe, só não suporto suas maldades! Desconfiava de que tivesse feito algo para separar Ricardo de Anita e tive essa confirmação diante da sua atitude e da de Stela. O que fizeram hoje? - perguntou, gritando.
- Já lhe disse que fomos fazer compras!
- Está mentindo, mamãe! Fizeram alguma coisa contra Anita!
- Você está louco! Sei que me odeia e por isso, está inventando essas coisas!
- Eu não a odeio, mas não suporto o seu modo de ser. O que fez contra Anita?
Não vou responder a uma pergunta sem cabimento como essa e se veio aqui para me colocar contra Ricardo, pode ir embora e não volte nunca mais!
- Mamãe, para que Maurício esteja da maneira como está, deve saber de alguma coisa, senão ele não agiria assim. Conheço meu irmão e sei como ele é justo e honesto. O que a senhora fez? Aonde foi hoje?
- Ele está louco. Ricardo! Não fiz nada! Stela pode confirmar que fomos fazer compras, só isso.
Ricardo se voltou para Stela e perguntou:
- Ela está dizendo a verdade, Stela?
Stela que chorava muito, não conseguia e não queria responder. Maurício, ao ver a atitude dela, disse:
- Está vendo, Ricardo? Stela não quer responder pois sabe que se eu descobrisse que está mentindo não lhe perdoaria jamais! Elas fizeram alguma coisa, por isso ficaram fora de casa quase o dia todo!
- Ele está louco, Ricardo. Ficamos fora o dia todo porque o pneu do carro furou e depois atolamos o carro e demorou muito para aparecer alguém que nos ajudasse! Não é verdade, Stela?
Stela, sem conseguir responder, apenas acenou com a cabeça dizendo que sim.
- Em que estrada estavam para que demorasse muito para que alguém aparecesse? Pelo que sei as estradas que levam a qualquer parte das redondezas da cidade são asfaltadas e muito freqüentadas. Portanto, se um pneu tivesse furado, logo um carro passaria e as ajudaria. Como o carro atolou se as estradas são asfaltadas? Aonde foram, mamãe?
Sofia pensou rápido e respondeu:
- Alguém nos disse que em uma pequena vila havia uma fábrica de roupas que vendia mais barato, só que para chegar lá era preciso usar uma pequena estrada sem asfalto. Resolvemos arriscar, mas depois nos arrependemos. Ela, além de muito ruim, era deserta. Por isso, demorou tanto para recebermos ajuda. Foi só isso que aconteceu, não foi Stela?
Stela, ainda chorando, acenou com a cabeça.
- Está bem mamãe, se o que está dizendo for à verdade, iremos amanhã bem cedo até essa fábrica.
Sofia, vendo que seria desmascarada, disse gritando:
- Eu não vou a lugar algum! Não tenho nada o que esconder e muito menos do que me defender! Você é meu filho e tem de me respeitar! Está querendo fazer um inferno nesta casa e me colocar contra seu irmão e isso não vou permitir Maurício! Saia desta casa e não precisa voltar nunca mais. Pode levar com você essa sua mulherzinha!
Maurício, ao ouvir aquilo, olhou para Stela e disse:
- Está vendo, Stela, como ela é? Você, no momento em que não serve mais para seus interesses, está sendo descartada, agora é simplesmente uma mulherzinha. De hoje em diante você se tornou uma ameaça, uma inimiga! Pense bem no que está fazendo. Eu a conheço muito bem, por isso sei que está escondendo alguma coisa. Você também me conhece muito bem e sabe que vou descobrir aonde foram e o que foram fazer. Pense bem no que fez e no que precisa nos contar. Vou perguntar pela última vez, aonde vocês foram e o que fizeram?
Stela, que durante o dia passado ao lado de Sofia havia mudado seu pensamento em relação a ela, pois percebeu o quanto era má e diante da possibilidade de ver seu casamento terminar, respondeu ainda chorando:
- Fomos até um homem que faz trabalhos para separar casais...
Ricardo e Maurício perguntaram juntos:
- O quê?
Ricardo, desesperado, perguntou:
- Que homem, que tipo de trabalho?
Stela não respondeu. Maurício, nervoso, disse:
- Responda Stela. Que homem? Que tipo de trabalho?
- Dona Sofia ficou sabendo que havia um homem e que fazia trabalho de macumba para separar casais. Fomos lá para que ele fizesse um trabalho e separasse você de Anita, Ricardo...
- Macumba, mamãe? Como pôde fazer isso?
Sofia, tomada de ódio, se atirou sobre ela gritando:
- Você está mentindo, Stela! Por que está fazendo isso?
- Não posso mais continuar mentindo nem fazendo tudo o que a senhora quer, dona Sofia. Durante o dia todo eu disse e pedi que a senhora não fizesse aquilo. Disse que Ricardo e Anita se amavam e que a senhora não tinha o direito de separá-los, mas a senhora não quis me ouvir.
- Você está mentindo! Está querendo fazer com que haja uma briga entre mim e meus filhos!
- A senhora sabe que o que estou dizendo é verdade e como ficou feliz quando chegou em casa e viu que Ricardo estava aqui.
- Você está mentindo, Stela! Você não passa de uma invejosa que sempre quis ter a minha vida e ser como eu, mas não é! É uma fraca!
Stela, ainda chorando, olhou para Maurício que a abraçando, disse:
- Está tudo bem, Stela. Eu sabia que estava escondendo algo, mas felizmente e para nossa felicidade, você contou a verdade.
- É mentira, Ricardo! É mentira! Ela está inventando! Ela quer me destruir! O que mais desejo neste momento é que você morra, Stela!
- Ela não está mentindo, mamãe, conheço a senhora o suficiente para saber como manipula as pessoas.
- Só podia esperar algo assim de uma pessoa que veio do nada! Que não tem uma família respeitável. Que sempre foi pobre e se casou com você por causa do nosso dinheiro e posição!
- Ela pode ter vindo do nada. Sua família pode ser pobre, mas nem por isso, deixar de ser respeitável, mas a senhora sabe muito bem o que está falando. Também veio de uma família pobre e deve ter se casado com meu pai para mudar de vida e ter um nome respeitável. Porém mamãe, não é de Stela ou sua família que estamos falando, estamos falando do casamento e felicidade de Ricardo!
- Não tenho o que falar a esse respeito, Maurício! Ricardo, você sabe que sempre quis só a sua felicidade, não sabe?
Ricardo, atônito com tudo o que estava ouvindo, demorou um pouco para responder, depois disse:
Sempre soube que a senhora era possessiva e ciumenta, por isso, quando descobri que não aceitaria meu casamento com Anita ou outra qualquer, resolvi ir embora, pois sabia que só assim poderia ser feliz!Estou decepcionado, mamãe!
- Não é verdade o que está dizendo, meu filho! Não sou possessiva, sempre quis só a sua felicidade! Agora está tudo bem, você voltou, está aqui em casa, não se preocupe com mais nada!
- Nada está bem, mamãe! Durante o dia pensei em tudo o que havia acontecido e na minha vida com Anita. Somos felizes, nos amamos e nos respeitamos. Depois de pensar muito cheguei à conclusão de que ela tem razão em muita coisa! A senhora realmente sempre interferiu em nossa vida! Sempre quis nos separar, mas nunca imaginei que chegaria ao ponto de ir a um macumbeiro para nos separar! Estava descendo à sua procura para lhe comunicar a minha decisão, quando ouvi a discussão entre vocês e tomei conhecimento de que tudo o que sempre quis foi me separar de Anita por um simples capricho. Agora terminou mamãe, estou indo embora!
- É mentira, Ricardo! Eu não fiz nada disso! Stela está querendo me prejudicar!
- De qualquer maneira mamãe, acho que devemos parar com esta discussão. Como estava dizendo, pensei muito e resolvi voltar para casa e depois de tudo, se Anita me aceitar de volta, vamos para a capital, vou arrumar um emprego e viver feliz ao lado da mulher que escolhi para ser minha esposa e o principal, viver bem longe da senhora!
- Você não pode fazer isso, Ricardo! Sabe que sempre quis que fosse o prefeito da nossa cidade! Você precisa ser meu filho, dediquei minha vida toda a isso!
- Quando a senhora vai entender que eu não nasci para ser político? Quando vai entender que esse sonho é seu não meu? Por que não realiza o seu sonho através do Maurício, ele sim gosta, tem tendência para ser um bom político, está no seu sangue! Sei que, se eleito, vai ser igual, ou melhor, que o papai e o vovô!
- Ele não pode ser o prefeito nem melhor do que seu pai e seu avô, quem tem de ser é você, Ricardo!
- Já disse que só ele tem condições para isso, mamãe. Está no sangue! Ele é igual ao papai e ao vovô, nasceu para isso!
- Ele não pode ser prefeito nem igual ao seu avô ou seu pai, ele não tem o sangue deles! Você tem, meu filho!
Ela mesma, ao ouvir o que disse, se calou, assustada. Não entendia como havia dito aquilo, mas não teve tempo para reagir. Maurício, que estava abraçado a Stela, largou-a e foi para junto de Sofia. Pegando com força em seus braços, perguntou:
- O que a senhora está dizendo? Não tenho o sangue deles? O meu sangue é de quem?
Sofia, sabendo que havia falado muito, disse quase chorando:
- Não ligue para o que falei, Maurício. Estou nervosa e nem sei do que estou falando. Claro que você tem o sangue da família! Inventei isso para que Ricardo não fosse embora. Ele não pode nos abandonar! Vivi minha vida em função de vê-lo no meio político, sendo aplaudido e homenageado.
Maurício, transtornado, começou a sacudi-la e a dizer:
- Não, mamãe, não queira desconversar! A senhora disse com todas as letras que não tenho o sangue do meu pai e nem o de meu avô, quero saber de quem é o meu sangue?
- Eu falei bobagem, Maurício, claro que você tem o sangue deles!
- Por estar nervosa e descontrolada, foi que disse um pouco de verdade! Eu quero saber de toda a verdade, mamãe, de quem é o meu sangue?
- Estou nervosa, não quero falar mais nada! Ricardo, não quero que você volte para aquela mulher! Precisa continuar aqui!
Ricardo, também atônito com o que acabara de ouvir, disse:
- Estou indo embora, mamãe, só que antes, assim como Maurício quero saber de toda a verdade.
- Não existe verdade alguma! Será que vocês não entendem que eu não sabia o que estava dizendo?
- Não adianta querer escapar, a senhora precisa e vai ter de contar, mamãe!
Sofia, vendo que não teria como escapar daquela conversa que ela não queria, chorando desesperada, saiu correndo, subiu a escada e foi para o seu quarto. Entrou, trancou a porta e jogou-se em sua cama. Ficou pensando: como pude fazer uma besteira dessas? O que vou fazer agora? Não posso contar a verdade, ficaria desmoralizada para sempre! Preciso encontrar uma maneira de contar sem que para isso precise contar o que realmente aconteceu. Como vou fazer isso? Pedro Henrique, você precisa me ajudar... Ao ouvir aquilo, Pedro Henrique sorriu e balançou a cabeça de um lado para outro, não conseguindo acreditar naquilo que ela pensava. Olhou para Gusmão que também sorrindo, com tristeza disse:
- Sei o que está pensando, Pedro Henrique. A maioria dos encarnados acredita que, depois da morte, adquirimos poderes para ajudar, quando na realidade isso não acontece, ainda mais no caso de Sofia que deseja sua ajuda para esconder os seus crimes. Podemos sim, ajudar intuindo bons pensamentos, nada além disso. A decisão pertence a cada um.
- Sei disso, Gusmão, por isso sorri. Hoje conheço Sofia e sei do que é capaz, estou preocupado com Maurício. Ele não está entendendo o que aconteceu. Sofia foi imprudente, ele nunca deveria conhecer a verdade dessa maneira...
- Não se preocupe com Maurício, ele é um espírito iluminado e também renasceu para ajudar Sofia.
Maurício e Ricardo seguiram Sofia. Stela ficou parada sem saber o que fazer, pois jamais poderia ter imaginado que Maurício não fosse filho de Pedro Henrique. Assim que eles chegaram à porta de Sofia, Maurício começou a bater com força e a gritar:
- Mamãe, abra essa porta, não adianta, mais cedo ou mais tarde vai ter de me contar toda a verdade!
Sofia ouvia o grito desesperado de Maurício e sabia que ele tinha razão, pois não importava quanto tempo demorasse, ela sabia que teria de contar tudo. Por isso, embora ele continuasse a bater, ela não respondia. Ricardo, entendendo a gravidade e recebendo muita luz de todos os amigos espirituais que estavam lá no momento, segurou no braço do irmão, dizendo:
- Não adianta insistir, Maurício, você a conhece e sabe que não vai abrir a porta. Vamos descer e conversar mais um pouco.
- Não posso ir embora, Ricardo! Preciso saber da verdade! Você ouviu o que ela disse? Não tenho o mesmo sangue que o papai!
- Ouvi o que ela disse, mas não adianta você ficar aqui. Ela não vai abrir essa porta. Vamos até o meu quarto. Preciso pegar a mala que trouxe. Depois vou para casa e queira Deus que Anita esteja lá e me receba de volta. Venha, meu irmão.
Segurou o braço do irmão com tanto carinho que ele, sabendo que Sofia não ia abrir a porta, o acompanhou. Assim que entraram no quarto, Ricardo começou a recolher algumas peças de roupa que estavam espalhadas. Maurício se deitou na cama e chorando, disse:
- Desde criança sempre senti que mamãe não gostava de mim. Muitas vezes cheguei a pensar que não era filho dela, mas papai era tão carinhoso comigo e eu logo esquecia. Quando adolescente e até depois de adulto continuei tendo essa sensação, mas logo desviava o pensamento. Sempre notei a diferença de tratamento que existia entre nós. Hoje, entendo. Não sou filho de papai, mas será que sou dela?
- Claro que é, Maurício! Você se parece com ela, muito mais que eu.
- Foi essa semelhança que fez com que eu desviasse os maus pensamentos. Por ela, tinha a certeza de que era seu filho. Sendo assim, se eu não sou filho de papai, o que aconteceu e quando? Sempre soubemos que quando se casaram, ela era muito jovem. Será que o papai sabia que eu não era filho dele? Quem é o meu pai verdadeiro?
- Nada disso importa, Maurício.
- Como não, Ricardo? Claro que importa!
- Não conhecemos a história verdadeira, mas você mesmo disse que papai era carinhoso com você. Preciso confessar que muitas vezes, percebi essa diferença e senti ciúmes.
- Será que se ele soubesse que eu não era seu filho, teria me tratado da mesma maneira?
- Claro que sim, ele era um bom homem, honesto e muito justo. Apesar de tudo, quero lhe dizer que essa conversa que tivemos com a mamãe não mudou em nada o que sinto por você e só posso lhe agradecer por todo o tempo em que esteve ao meu lado, me defendendo e ajudando. Gosto muito de você, meu irmão. Graças a você, consegui ver quem mamãe é realmente. Volte para sua casa. Um outro dia voltaremos aqui e a obrigaremos a contar toda essa história. Você está nervoso e sabe que o nervosismo não ajuda em uma discussão.
Pedro Henrique sorriu e mandou um beijo para os dois, que parecendo sentir, sorriram. Ricardo continuou falando:
- Pode parecer egoísmo, mas preciso voltar para casa e tentar convencer a Anita a me perdoar. Ela sempre teve razão, eu é quem nunca quis acreditar que minha própria mãe queria a minha infelicidade. Maurício, recebendo muita luz, sorriu e disse:
- Tem razão, meu irmão. Precisa ir rápido para sua casa. Eu vou para a minha, mas a conversa com a mamãe não terminou.
- Claro que não, Maurício. Quero estar presente na próxima conversa, também quero conhecer toda a história. Depois do que aconteceu hoje, ela não vai ter escapatória, precisa contar tudo o que aconteceu.
Ricardo fechou a mala e saíram. Desceram à escada. Stela estava lá, esperando pelo marido. Percebeu que o clima entre os dois estava bom. Sorriu e em silêncio se abraçou a Maurício, que beijou sua testa. Os três saíram. Sofia, que estava na janela do quarto, viu quando entraram em seus carros. Assim que os carros desapareceram na alameda, voltou para a cama, continuou chorando e tentando encontrar uma maneira de contornar aquela situação que ela mesma havia criado. Já estava escuro quando Ricardo estacionou o carro e entrou correndo em casa. Precisava ver Anita, beijá-la e pedir que o desculpasse por ter ido embora. Assim que entrou na sala, chamou:
- Anita! Anita!
Quem apareceu em uma das portas da sala foi Celeste, que disse:
- A patroa não está em casa, senhor.
- Como não está em casa, para onde ela foi?
- Não sei, ela não disse. Só sei que saiu com duas malas.
- Duas malas? Então ela foi embora de casa?
- Receio que sim, senhor.
Ricardo ficou desesperado, foi para o seu quarto em busca de algum bilhete, pois sempre que saíam, deixavam um bilhete dizendo onde estariam. Mas naquela noite foi diferente, ele não encontrou bilhete algum. Sentou-se na cama e sem tentar evitar, começou a chorar. Sabia que, se Anita tomara aquela atitude, devia ter pensado muito, por isso sabia também que seria muito difícil convencê-la a voltar. Desesperado, chorava e pensava: como fui deixar isso acontecer? Como nunca acreditei quando ela dizia que minha mãe a odiava? Não tinha como acreditar, pois não havia motivo algum. Sem saber o que fazer entrou no quarto e saiu dele várias vezes. Foi até o jardim, caminhou e voltou. Pensou na conversa que tivera com sua mãe e Maurício, também naquilo que ela havia dito. Sentou-se em um dos bancos que havia no jardim: tudo aquilo que minha mãe disse é uma loucura. Depois de acertar a minha situação com Anita, vou visitar minha mãe, mas sem o Maurício. Talvez assim ela me conte toda a verdade. Agora, preciso me preocupar com Anita. Ela só pode ter ido para a capital, para a casa dos pais. Hoje está tarde, não gosto de dirigir à noite, ainda mais nervoso como estou, mas amanha bem cedo vou para lá. Levantou-se, foi para o quarto. Deitou-se e ficou relembrando sua vida com Anita e de como havia sido feliz: ela é uma mulher maravilhosa, não posso perdê-la... Maurício e Stela também chegaram em casa. Durante todo o caminho de volta ele permaneceu calado. Stela sabia em que ele estava pensando, com certeza no mesmo que ela. Nunca imaginei que ele não fosse filho do senhor Pedro Henrique. O que será que aconteceu? Dona Sofia sempre se mostrou como uma mulher honesta e austera. Sempre condenou qualquer tipo de traição de suas amigas. A não ser...que Maurício tenha sido adotado...não, não pode ser...ele é o espelho dela. O que será que aconteceu? Estacionaram e entraram em casa. As crianças estavam na sala de televisão. Maurício se aproximou e as abraçou com carinho. Mesmo sem querer, começou a chorar. Estava perdido com tudo o que havia acontecido. Abraçado ao filho, pensava: se eu não pertenço àquela família, de onde vim, onde estão meus pais? Não, como Ricardo falou, filho da minha mãe eu sou, pois infelizmente, me pareço muito com ela, mas...então...o que aconteceu? Quem é e onde está o meu pai?
- O senhor está me machucando, papai...
Só aí Maurício percebeu que estava apertando o filho. Afastou-se e disse, rindo:
- Sabe que nem percebi. É que gosto muito de vocês, por isso apertei tanto.
- O senhor está chorando? Está com alguma dor?
- É mesmo, papai, está chorando? O que aconteceu?
Maurício percebeu que estava deixando os filhos assustados. Afastou-se, dizendo:
- Estou sim com muita dor de cabeça, mas vou tomar um comprimido e vai passar. Agora, continuem assistindo à televisão.
Saiu da sala, foi para o seu quarto e se deitou. Stela o seguiu, aproximou-se e deitou-se ao seu lado. Ele a abraçou, dizendo:
- O que está acontecendo em nossa vida, Stela?
- Sei que sou culpada de muita coisa, Maurício, não devia ter me deixado levar por sua mãe. Acontece que, desde o casamento de Ricardo, vi como ela tratava Anita e não queria que fizesse o mesmo comigo. Por isso, fiz sempre sem discutir, tudo o que ela pediu.
- Não precisa me dizer o poder que minha mãe tem sobre todos. Ela é pior do que eu pensava. Nunca imaginei que poderia ir a um macumbeiro com a intenção de destruir o meu irmão, mas o pior de tudo foi ela ter me contado que eu não era filho do meu pai. Não consigo entender nem aceitar isso. Meu pai foi um homem maravilhoso. Sempre dedicou muito amor, não só a ela, mas a mim e ao Ricardo também. Por isso, eu sempre quis ser igual a ele, tratar minha mulher e filhos da mesma maneira. Hoje, fico sabendo que minha vida foi toda feita de mentiras. Será que meu pai conhecia toda essa história? Será que ele sabia que eu não era seu filho? Pois, se sabia, nunca deixou transparecer qualquer diferença entre mim e Ricardo.
- Nem eu pensei que ela chegasse a tanto. Hoje, durante a viagem em que tudo deu errado, tive tempo para pensar e ver como ela é egoísta e má. Tinha decidido que nunca mais ia fazer o que ela me pedisse. Tinha decidido evitar ao máximo, me encontrar com ela. Não imaginei que toda essa história existisse e pudesse vir à tona. Quanto ao seu pai, não precisa se preocupar, ele gostava muito de vocês e, principalmente de você, Maurício e é isso o que importa. Somos felizes, nossos filhos são crianças boas e com saúde. Vamos continuar a nossa vida e fazer de conta que nada disso aconteceu. Ricardo e Anita se amam, sei que conseguirão se acertar. Sua mãe, infelizmente, vai ter de continuar sua vida sozinha.
- Não posso fazer isso, Stela! Preciso saber de toda a verdade! Quero saber, se não sou filho do meu pai, sou filho de quem?
- Isso não importa, Maurício. Você teve um pai maravilhoso que o criou com todo o carinho que possa existir neste mundo...
- Importa sim, Stela. Vou tentar dormir e amanhã bem cedo, vou até a casa de minha mãe e sozinhos, ela vai ter de me contar toda a verdade.
- Está bem, se é assim que quer, precisa fazer. Agora, como você disse, vamos tentar dormir.
Stela foi para a sala onde as crianças assistiam à televisão, levou-as para os seus quartos, beijou-as e voltou para o quarto. Maurício estava com os olhos fechados. Ela sabia que ele não estava dormindo, mas sabia também que ele não queria conversar, deitou-se, fechou os olhos e tentou dormir. Sofia em seu quarto também chorava e pensava: não encontro uma explicação plausível, que possa convencer Maurício e Ricardo. Não posso dizer que ele é adotado, não acreditariam, pois ele é muito parecido comigo. Não posso dizer que traí Pedro Henrique, eles não me perdoariam, como eu mesma nunca me perdoei. O que vou fazer? Fiz tanto para esconder esse segredo e agora, ele vem à tona, somente por minha culpa. O que vou fazer? Nadir e Romeu permaneciam ao seu lado. Pedro Henrique e Maria Rita, junto de Maurício, e Gusmão e Matilde, que retornou, ao lado de Ricardo. Depois que Maurício se acalmou e Ricardo decidiu ir em busca de Anita, todos se reuniram novamente. Gusmão disse:
- Esta vai ser uma longa noite. O melhor a fazer é ajudá-los a dormir. Assim, poderemos conversar com todos ao mesmo tempo.
Foi o que fizeram. Durante o sono, todos se encontraram e conversaram. Mesmo dormindo, Sofia continuou negando tudo o que havia feito. Na visão dela, não havia cometido crime algum, só havia se defendido. Disse:
- Só fiz tudo àquilo para me proteger, para me salvar...
- Você cometeu três assassinatos, Sofia. Não se arrepende disso?
Olhou para Nadir que perguntava e respondeu:
- Não mãe, sinto muito, mas eu precisava resguardar o meu segredo. O Gustavo já havia contado para a senhora que poderia, mesmo sem querer, comentar com o pai que poderia, mesmo sem querer, comentar com alguém e minha vida estaria destruída e isso eu não podia permitir...
Gusmão sorriu e disse:
- Sempre haveria um caminho, Sofia, mas você escolheu o mais fácil.
Sofia balançou os ombros e disse:
- Foi o único caminho que encontrei e faria novamente.
- Está bem, Sofia. Fez com consciência, sabendo que estava errado, agora vai ter de arcar com as conseqüências do seu ato. Agora durma. Ela adormeceu.

O REENCONTRO

No dia seguinte, antes das oito horas, Maurício acordou. Stela, que estava preparando as crianças para irem à escola, ao vê-lo disse admirada:
- Já está acordado? Ainda é cedo.
- Sabe que não consegui dormir bem, Stela. Preciso ir até a casa de minha mãe. Ela vai ter de me contar tudo o que aconteceu. Enquanto isso não acontecer, não vou poder retornar à minha vida normal.
- Está certo, acho que precisa fazer isso mesmo, mas ainda é muito cedo. Ela não deve ter se levantado, ainda mais hoje porque assim como você, também não deve ter dormido bem.
- Sei que talvez, quando chegar lá, ela esteja dormindo, mas não faz mal, vou esperar. Enquanto isso vou conversar com Maria José, ela trabalha há muito tempo lá em casa e pode saber de alguma coisa.
- Acha prudente conversar com ela? Será que ela sabe de alguma coisa?
- Não sei, mas não custa tentar. Desde que me conheço por gente, ela sempre esteve lá.
- Você acha que deve fazer isso?
- Sim, não existe outro caminho. Preciso saber de tudo.
- Sendo assim, só posso concordar, mas você não vai até a empresa?
- Depois que conversar com minha mãe. Antes disso, não tenho condições de tomar decisão alguma.
Ele se voltou para sair. Ela perguntou:
- Não vai tomar café? A mesa já está colocada.
- Não estou com vontade. Tomo café na casa de minha mãe.
Ele beijou-a no rosto e saiu. Stela ficou pensando em tudo o que estava acontecendo, mas não por muito tempo, precisava atender às crianças. Voltou aos seus afazeres. Como havia imaginado, quando chegou à casa de Sofia, Maurício abriu a porta e percebeu que tudo estava em silêncio. Foi para a cozinha, onde sabia estar Maria José. De fato, ela estava lá, preparando o café. Ao vê-lo, estranhou:
- Maurício, o que está fazendo aqui tão cedo?
- Preciso conversar com minha mãe.
- Ela ainda está dormindo.
- Sei disso, mas na realidade vim conversar com você.
- Comigo? Quer falar sobre o quê?
- Você está trabalhando para minha mãe há muito tempo, preciso saber se quando veio trabalhar para ela, eu já havia nascido.
- Sim, você e Ricardo também. Eram ainda muito pequenos. Por que quer saber?
- Você não pode negar que ouviu a nossa conversa ontem à tarde.
Ela abaixou a cabeça. Ele continuou:
- Não precisa se preocupar. Diante da distância entre a sala e a cozinha, ouviria mesmo que não quisesse.
- Desculpe, Maurício, mas não consegui evitar.
- O que achou de tudo o que ouviu?
- Não posso dar opinião, sou apenas a empregada da casa.
Maurício riu. Sabia que ela não podia interferir, muito menos opinar em um assunto como aquele. Ela não tinha família e já estava em idade avançada, se saísse dali não teria para onde ir ou trabalhar. Ele respeitou.
- Está bem, não precisa ficar nervosa. Se, quando veio para cá eu já havia nascido, não deve saber de coisa alguma.
- Realmente, não sei nada a respeito desse assunto, mas sei que seu pai era um homem muito bom e que gostava muito de vocês. Vivia sempre brincando com os dois e nunca percebi diferença alguma.
Dona Sofia estava muito nervosa, Maurício, não deve dar atenção para aquilo que ela falou. Maurício sorriu e disse:
- Está bem, Maria José. Estou com fome, posso tomar café?
- Claro que sim. Pode ir para a sala que vou levar.
- Não, prefiro tomar aqui mesmo na cozinha. Assim, enquanto minha mãe não se levanta, podemos ficar conversando. Lembra-se de quantas vezes fizemos isso, antes que eu me casasse?
Ela, com um olhar saudoso e um sorriso, respondeu:
- Claro que me lembro. Sinto muita falta daquele tempo. Você acordava sempre atrasado e precisava sair correndo para a faculdade, não tinha tempo de esperar que eu arrumasse a mesa e tomava café aqui mesmo.
- Também sinto saudade daquele tempo, embora hoje esteja feliz com Stela e com as crianças.
Maria José sorriu e disse:
- Sente-se aí, vamos relembrar os velhos tempos.
Ele obedeceu, ela preparou e o serviu com o mesmo carinho de sempre. Depois de terminar de tomar o café, ficaram conversando. Sofia acordou, olhou para o relógio e se assustou: quase nove horas? Como dormi tanto? Logo esta noite que pensei que não conseguiria dormir... Levantou-se, vestiu-se e desceu. Estava com fome. Saiu do quarto e foi para a sala de refeições. Estava passando pela sala quando ouviu a campainha. Sabia que Maria José estava na cozinha e que demoraria a chegar. Resolveu abrir a porta. Assim que abriu, empalideceu e seu coração começou a bater com mais força.
- Bom dia, Sofia.
Ela, quase sem conseguir falar, disse:
- Bom dia...Osmar...
- Posso entrar?
Ela, desajeitada, se afastou para que ele entrasse. Ele, pisando firme e com o rosto crispado, entrou. Ela apontou um sofá para que ele se sentasse. Depois, disse:
- Posso saber o que significa essa sua visita, Osmar?
- Posso até dizer, mas você sabe qual é o motivo.
- Como sei?
- Minha filha abandonou seu filho e voltou para casa. Não suportou sua perseguição. Por que fez isso, Sofia?
Ela, fingindo não entender, perguntou:
- Fiz o quê, Osmar?
- Quando conheceu Anita, tratou-a muito bem e até parecia ter gostado da escolha de seu filho, até o dia em que fomos convidados para um almoço de confraternização, para que as famílias se conhecessem. Daquele dia em diante, tudo ficou diferente e você fez o possível e o impossível para que o casamento não se realizasse e não conseguindo evitar, continuou fazendo tudo o que estava ao seu alcance para que eles se separassem. Estou aqui para lhe dar os parabéns, você conseguiu. Estão separados, o que você ganhou com isso? Assim como minha filha, sei que Ricardo também está sofrendo. Era isso o que queria, Sofia?
Ela, ainda surpresa com a visita dele, respondeu:
- Não sei do que está falando. Disse que estão separados, eu não sabia disso.
- Claro que sabe, Sofia. Só não entendo por que me odeia tanto! Nunca lhe fiz mal algum, a não ser ter dado a você todo o meu amor.
- Não entendo o que está dizendo. Você se casou...
- Como não entende? Quase destruiu minha vida! Quase me levou à loucura! A minha sorte foi que conheci Beatriz que com seu amor, me apoiou e ajudou. Quando me casei com ela, logo no começo percebi que tinha sido a melhor coisa que poderia ter feito. Somos felizes, Sofia. Minha filha é uma moça maravilhosa, gosta do seu filho e só não foram mais felizes por sua culpa.
Sofia, que desde o dia anterior estava descontrolada, começou a gritar:
- Por minha culpa? Por minha culpa? Tudo o que acontece de ruim nesta família é por minha culpa? E você não tem culpa alguma? Você quase destruiu meu casamento!
- Como quase destruí seu casamento?
- Você, contando para todos que ia se casar sabia que eu não suportaria perdê-lo e fez aquilo só para me afrontar!
- Você está louca, Sofia? Nunca pensei em afrontá-la. Depois que me abandonou e se casou, o que queria que eu fizesse? Graças a Deus, Beatriz apareceu em minha vida e me ensinou que amor não é loucura, como aquilo que eu sentia por você, mas sim, o que tenho com ela, tranqüilidade e paz.
- Para você, falar em tranqüilidade e paz é fácil, mas para mim, não! Carreguei durante todos esses anos, o fruto daquela estupidez que cometi. Nunca consegui me esquecer de você nem do que fiz!
- Que fruto? O que está falando, Sofia?
- Um filho, Osmar! Um filho que me faz lembrar de você todos os dias!
- Um filho? Como pode ser?
- Naquele tempo em que nos encontramos, você sabia que meu marido estava na capital atendendo ao pai que estava doente, não sabia?
- Claro que sabia. Você disse que assim que ele voltasse, pediria a separação e ficaríamos juntos. Eu, como sempre, acreditei em você e quase terminei o meu casamento que estava marcado.
- Eu não queria que você se casasse, só quando minha mãe falou a respeito do seu casamento foi que descobri que gostava de você e que não suportaria vê-lo casado com outra.
- Sim, e quase me convenceu a desmanchar o casamento e a ficar com você, mas isso não aconteceu. Assim que seu marido voltou, você não quis mais me ver e continuou com ele.
- Eu não podia abandoná-lo! Ele me dava segurança e eu sabia que, ao lado dele poderia ter tudo com o que havia sonhado.
- Sim, demorou muito para que eu a entendesse, Sofia. Você sempre foi má, egoísta. Quase morri de tristeza e só não morri porque tive ao meu lado uma mulher de verdade e que realmente gostava de mim. Não mude de assunto, que história é essa de filho?
- Quando meu marido voltou, percebi que estava grávida e fazendo as contas, descobri que não podia ser filho de Pedro Henrique, ele era seu filho, Osmar.
- Por que não me contou?
- Não podia, Pedro Henrique nem ninguém desconfiou. O menino nasceu e eu tive de passar o resto da minha vida guardando esse segredo. Você não pode imaginar o que tive de fazer para que isso acontecesse...
- Não posso acreditar que tenha feito isso, Sofia, escondendo que eu tinha um filho!
- O que queria que eu fizesse, que gritasse para o resto do mundo que havia traído meu marido? Queria me ver na rua da amargura?
- Não, Sofia, somente queria ter tido o direito de saber.
- Agora sabe, o que vai fazer?
- Vim até aqui para lhe pedir que se afaste da vida de nossos filhos. Eles se gostam e não podem ficar separados, mas agora, diante do que me contou, preciso conversar com Maurício. Ele precisa saber que sou seu pai e que só tomei conhecimento disso agora.
Sofia, prevendo o que estava para acontecer, gritou desesperada:
- Você não pode fazer isso! Minha vida já está uma confusão e você não vai piorar as coisas. Prometo que se não disser nada ao Maurício, nunca mais me intrometo na vida de sua filha e ela poderá ser feliz ao lado de Ricardo.
- Você não mudou, Sofia. Está tentando-me chantagear, mas não vai conseguir! Agora que me contou esse absurdo que fez, escondendo que eu tinha um filho, não posso ficar sem tomar uma atitude. Assim que sair daqui, vou procurar Maurício e lhe contar toda a verdade.
- Você vai me destruir, Osmar!
- Não, vou acertar uma situação. Você mesma, Sofia, durante toda sua vida, plantou o que está colhendo.
- Não pode fazer isso, não pode! Fique sabendo que se fizer isso, do que depender de mim sua filha ficará longe da minha família! Não quero o seu sangue misturado com o nosso!
- Você pensa tão pequeno, Sofia. O sangue não tem nada a ver com sentimentos. Sinto pena de você e agradeço a Deus todos os dias por tê-la afastado de mim e da minha vida.
- Você não pode conversar com Maurício, Osmar! Ele não vai entender!
- Posso e vou fazer. Só preciso descobrir o endereço dele ou o local em que trabalha. Sabe que por sua causa, mesmo sendo cunhado de minha filha, nunca tive contato com ele.
- Nunca lhe darei o endereço dele! Fique longe da minha família!
- Não posso, Sofia, ela mesmo contra sua vontade, está misturada, começou com Anita casando-se com Ricardo e agora com Maurício sendo meu filho. Não precisa me dar o seu endereço, vou procurar e sei que vou encontrar.
- Não precisa procurar, estou aqui.
Sofia e Osmar se voltaram e viram Maurício que, com os olhos molhados, dizia aquilo. Ao vê-lo, Sofia gritou:
- Maurício, o que está fazendo aqui?
- Cheguei cedo, mamãe. Precisava conversar com a senhora para descobrir toda a verdade, mas agora não é mais preciso, ouvi tudo.
Osmar, que só tinha encontrado com Maurício duas vezes, a primeira no almoço de confraternização entre as famílias e depois, no dia do casamento de Ricardo e Anita, aproximou-se dele, dizendo:
- Maurício, perdão, eu não sabia...
- Eu sei. Ouvi tudo o que conversaram. Como havia dito, cheguei cedo e estava na cozinha tomando café quando a campainha tocou. Vendo que Maria José estava ocupada, vim abrir a porta, mas a senhora, mamãe, chegou primeiro. Ao perceber que se admirou com quem havia chegado, resolvi esperar e fiquei na outra sala, ouvi tudo.
- Você não ouviu direito, meu filho! Osmar é um velho amigo, praticamente nos criamos juntos.
- Não precisa continuar mentindo, mamãe! Eu ouvi tudo! Só não entendo por que me odeia tanto, por uma culpa que não tenho! A senhora é mentirosa e dissimulada! Não consigo entender como pode haver alguém assim, tão egoísta e má. Estou indo embora e nunca mais voltarei a esta casa!
Ele, nervoso, estava se voltando em direção à porta, quando Sofia desesperada por ter sido descoberta, gritou:
- Você não pode fazer isso, Maurício, está enganado! Eu não o odeio, só queria protegê-lo. Por isso nunca contei a verdade...
- Não precisa continuar mentindo, mamãe! A senhora sempre quis proteger a si mesma! Adeus!
Estava saindo, quando Osmar disse:
- Espere, Maurício, precisamos conversar.
- Sei que essa conversa deve existir, senhor Osmar, mas não pode ser agora, não tenho condições. Qualquer dia desses, depois que eu conseguir assimilar tudo o que aconteceu, eu mesmo vou procurá-lo e poderemos conversar. Sei que assim como eu e meu pai, o senhor também foi uma vítima dessa mulher má e sem coração.
Sofia estava desesperada, sem saber o que fazer. Osmar, entendendo o que estava se passando na cabeça de Maurício, disse:
- Estarei esperando a sua decisão. Infelizmente não pude acompanhar o seu crescimento nem estar ao seu lado nos momentos difíceis que, como todo adolescente, deve ter passado, mas ainda é tempo, poderemos nos conhecer melhor e tentarmos recuperar o tempo perdido. Estou feliz por ter um filho como você.
- Não se preocupe com isso, embora o senhor não estivesse presente, meu pai nunca deixou que eu sentisse falta de carinho. Ele foi um homem muito bom e me deu todo o apoio de que precisei. Precisamos conversar sim, mas como já disse, não pode ser agora. Entrarei em contato. Só agora percebo o motivo de ter gostado de Anita assim que a vi. Ela é minha irmã!
- Ela também gosta de você, Maurício. Sempre disse isso, mas como é o seu desejo, vamos deixar essa conversa para outro dia.
Pedro Henrique e os outros também estavam ali, assim como os vultos com energias pesadas que rodeasse Sofia e estavam saltitando de um lado para outro. Assim que Maurício caminhou em direção à porta, Sofia deu um grito. Levou a mão ao coração, dizendo:
- Meu braço e meu coração estão doendo, acho que vou desmaiar.
Maurício, com ódio e sem parar, se voltou e disse:
- Tomara que morra!
Foi embora. Sofia, que não estava mentindo, deu um grito de dor e caiu. Osmar desesperado e sem saber o que fazer gritou:
- Maurício, ela desmaiou!
Mauricio, embora já tivesse saído, estava a uma distância que podia ouvir Osmar, mas não parou. Entrou no carro e foi embora. Maria José, que estava no mesmo lugar de onde Maurício ouviu toda a conversa, entrou correndo na sala e gritando, perguntou:
- O que aconteceu com ela, senhor?
- Não sei, ela disse que o braço e o coração estavam doendo e depois desmaiou, só não caiu porque a segurei. Chame uma ambulância, ela precisa de ajuda!
Maria José, desesperada, foi até a mesinha onde estava o telefone, procurou em uma agenda o número de um telefone e discou. Em seguida, voltou para junto de Osmar, que havia colocado Sofia em um sofá e disse:
- Eles estão vindo, senhor! Meu Deus do céu, o que será que ela tem?
- Não sei, mas acho que ela está tendo um ataque no coração.
Eles não podiam ver, mas Pedro Henrique e os outros, sim. Aqueles vultos que acompanhavam Sofia por muito tempo, ao vê-la desesperada e sem controle sobre si, lançaram-se sobre ela e começaram a bater. Alguns deles batiam na cabeça, outros por todo seu corpo. Um deles, transpassando o corpo dela, segurou com força seu coração e apertou sem parar. Em poucos minutos ela deu o último suspiro. Seu espírito foi arrancado do corpo com violência e levado. Pedro Henrique tentou impedir, mas devido às energias pesadas que a envolviam, não conseguiu. Gusmão, vendo o desespero dele, disse:
- Não adianta Pedro Henrique, ela está sob o controle das energias que atraiu para si e nada podemos fazer.
- Nada?
- Ao menos por enquanto, não. Estivemos ao seu lado durante todo o tempo, intuindo-a para que confessasse todos seus crimes, mas ela se recusou. Podia ter feito uma outra escolha, para isso tinha seu livre-arbítrio, portanto por ora, não pode ser feito.
Pedro Henrique, muito nervoso, olhou para Osmar que, tocando no pescoço de Sofia, disse:
- Ela está morta, quando a ambulância chegar nada mais poderá ser feito.
Maria José aproximou-se, ajoelhou-se perto de Sofia e começou a chorar. Gusmão, sabendo que nada mais poderia ser feito ali, disse:
- Nada mais temos para fazer aqui. Precisamos ir até os outros.
Todos concordaram e desapareceram.

A RECONCILIAÇÃO

Anita só conseguiu dormir quando já era de madrugada, embora tivesse tentado desesperadamente. Pela manhã ao acordar, voltou a se lembrar de tudo o que havia acontecido e da atitude que havia tomado. Naquele momento, sentia que talvez tivesse exagerado. Ficou pensando: eu devia ter um pouco mais de paciência e entender que dona Sofia é sua mãe e que deve ser difícil para ele ter de escolher. Vou me levantar e voltar para casa. Vou propor a ele que nos mudemos para cá. Aqui, ele poderá dar aula em uma faculdade, que é o que sempre desejou. Uma ou duas vezes por mês, poderemos visitar dona Sofia, mas apenas visitar. Fazendo isso, evitaremos que ela se intrometa em nossa vida. É isso mesmo que vou fazer. Ele deve estar na casa dela e se for preciso, vou até lá. Levantou-se, vestiu-se e desceu indo em direção à sala de refeições. Enquanto caminhava, pensava: sei que papai e mamãe talvez não entendam essa minha atitude, mas gosto muito de Ricardo e se não fosse por causa de sua mãe, sei que viveríamos muito bem. Entrou na sala que estava vazia. A mesa estava colocada para um só lugar, o que significava que seus pais já haviam tomado café. Foi até a cozinha, onde Dora estava junto ao fogão. Perguntou:
- Dora, meus pais já tomaram café?
- Sua mãe sim, mas seu pai não.
- Por que não?
- Quando me levantei, estranhei que na hora de sempre ele não estivesse pronto para o trabalho, depois sua mãe me disse que ele havia ido viajar.
- Viajar, para onde?
- Não sei, ela não me disse.
- Onde está minha mãe?
- Deve estar em seu quarto.
- Obrigada, vou até lá.
- Não vai tomar o seu café?
- Daqui a pouco, agora preciso conversar com minha mãe.
Foi até o quarto da mãe, que estava deitada. Entrou, perguntando:
- Para onde o papai foi, mamãe?
- Conversar com a mãe de Ricardo.
- Por que, mamãe? Eu disse a ele que não queria!
- Também disse, mas ele insistiu e não pude evitar.
- Ele não vai conseguir fazer com que ela mude de idéia. Ela, em relação a mim, é intransigente, me odeia!
- Talvez ele consiga muito mais do que imagina, Anita.
- Como assim? Não entendi. Dona Sofia é uma mulher de difícil convivência, sente-se a toda poderosa e não vai permitir interferência de estranhos.
- Eles não são estranhos, Anita, se conhecem há muito tempo.
- O que está dizendo? Conhecem-se? Não pode ser!
- Não só eles, mas eu também conheço Sofia. Sempre soube que ela era sonhadora, que queria muito da vida, mas nunca pensei que se tornaria uma pessoa tão arrogante e poderosa. O poder, minha filha, corrompe qualquer pessoa.
- Como a conhecem, mamãe?
- Quando crianças morávamos na mesma cidade. Eu morava na cidade, ela no campo, em um sítio ao lado do se seu pai. Freqüentávamos a mesma escola. Embora pobre Sofia nunca aceitou essa situação. Eu gostava de seu pai, mas ele só tinha olhos para ela. Quando crescemos, eles ficaram noivos, seu pai chegou a construir uma casa para eles, mas faltando pouco tempo para o casamento, Sofia conheceu Pedro Henrique, o filho do prefeito, que se apaixonou por ela. Sem pensar muito, pois ele representava tudo o que ela havia sonhado, desmanchou o casamento com seu pai e se casou com o filho do prefeito. Seu pai ficou arrasado, dava até dó de ver. Eu, ao contrário, quando soube fiquei feliz por saber que ele não havia se casado. Depois de algum tempo, me aproximei dele e começamos a namorar. Seu pai, embora nunca tenha escondido o grande amor que sentia por ela, fazia de tudo para que eu fosse feliz. Marcamos o nosso casamento e depois de alguns dias, ele ficou diferente. Quase não vinha me ver e quando vinha, ficava distante, sempre parecendo pensar em outra coisa. Eu percebi, mas o amava e tinha muito medo de perdê-lo. Sempre que vinha a minha casa, eu achava que era para desmanchar o noivado. Isso durou mais de um mês. Eu já havia me conformado que não haveria casamento, quando um dia, ele chegou com os olhos vermelhos de tanto chorar. Estava desalinhado, com a barba por fazer.
- O que aconteceu, mamãe?
- Ele me contou que, enquanto o marido de Sofia estava viajando, ela o procurara e o convencera que só gostava dele e que assim que seu marido voltasse da viagem que estava fazendo, ia pedir a separação. Seu pai acreditou e se deixou envolver por ela, mas assim que Pedro Henrique voltou, ela nunca mais quis ver seu pai e ele ficou naquele estado. Ele me pediu perdão.
- O que a senhora fez, mamãe?
- Pode imaginar, Anita. Perdoei, nos casamos e viemos morar aqui na capital. Seu pai tinha a idéia de se tornar um distribuidor de alimentos. Com a ajuda de meu pai, ele conseguiu realizar o que pretendia e hoje é muito bem sucedido. A nossa vida continuou, nunca mais soubemos de Sofia. Havia muito trabalho para ser feito. Algum tempo depois você nasceu e nos dedicamos inteiramente à sua criação e educação. Nunca mais não sei o porquê, tivemos outro filho, mas não nos importamos, você preenchia nossas vidas e não sentíamos falta de outra criança.
Anita se abraçou à mãe e a beijou com carinho. Beatriz continuou:
- Nunca mais soubemos de Sofia. Você cresceu, se tornou essa linda moça que é, só nos deu alegria. Tudo caminhava bem, até o dia em que você chegou feliz em casa, dizendo:
- Mamãe! conheci um moço maravilhoso. Ele me pediu em namoro e quer conhecer a senhora e o papai.
- A principio ficamos apavorados, pois para nós, embora tivesse vinte anos, era ainda uma criança, mas diante de sua felicidade só pude dizer:
- Que bom, minha filha. Quem é ele?
- Estudamos juntos, a única coisa que sei é que mora em uma cidade do interior cujo nome não sei, mas isso não importa, o que importa é que fico muito feliz ao lado dele!
- Vendo a sua felicidade, eu disse:
- Tem razão, minha filha, nada disso tem importância, só mesmo a sua felicidade.
- Lembro-me desse dia, mamãe. Eu estava muito feliz. Ricardo era carinhoso, fazia todas as minhas vontades.
- Contei a seu pai e ele como não poderia deixar de ser, ficou apavorado, pois também achava que era muito cedo para que você se casasse, mas eu o convenci de que você estava feliz e isso era o que importava. Você trouxe Ricardo para nos conhecer e diante de um rapaz que além de bonito era inteligente e educado não tivemos opção, o aceitamos de coração e ele começou a freqüentar nossa casa. Nunca falamos sobre nomes ou sobrenomes. Para nós nada interessava, só a maneira como a tratava. Depois de algum tempo de namoro ele nos pediu autorização para levá-la até a cidade onde sua família morava. Sem discutir, aceitamos. Ele disse que sairiam bem cedo, almoçariam e voltariam em seguida, estariam em casa naquele mesmo domingo. Vocês foram e quando voltou, você estava entusiasmada:
- Mamãe, a viagem foi maravilhosa! A família de Ricardo me recebeu muito bem! A mãe dele, assim que me viu, disse que eu era a moça com quem ela havia sonhado para o filho. Estou tão feliz!
- Também fiquei feliz em ver sua felicidade. Contei ao seu pai e ele nervoso, disse:
- Não estou gostando dessa história, Anita é ainda muito jovem para se casar...
- Eu sorrindo, o abracei dizendo:
- Ela tem a mesma idade que eu tinha quando me casei com você ...
- Ele me olhou e não soube o que dizer. Eu continuei:
- O que importa é que ela está feliz, Ricardo é um bom moço e pertence a uma família que parece ser boa também.
- O que você sabe sobre a família dele? Não sabemos nem o seu sobrenome!
- Nomes não importam, Osmar. O que importa é a felicidade de nossa filha, nada além disso.
- Ele me abraçou, dizendo:
- Tem razão e embora eu não quisesse, parece que ela está feliz.
- Está sim.
- Vocês continuaram estudando e namorando. Quando terminaram a faculdade, Ricardo nos disse:
- Agora que terminamos a faculdade, acho que chegou à hora de nos casarmos.
- Eu e seu pai nos assustamos, mas diante dos seus olhos que irradiavam tanta felicidade, só pudemos concordar. Assim que seu pai concordou, Ricardo disse:
- Já conversei com a minha família e eles querem conhecê-los, minha mãe vai preparar dentro de quinze dias, um almoço. Ela achou melhor que seja em um sábado, para que possam ter tempo de conhecerem a cidade.
- Estávamos tão assustados com a idéia do seu casamento, de vê-la sair de casa, que não nos preocupamos em perguntar que cidade era. Apenas com a cabeça, concordamos. Ricardo queria que fôssemos no carro dele, mas seu pai não concordou. Achou melhor que fôssemos no nosso, pois se alguma coisa não desse certo, poderíamos voltar a qualquer hora. Depois de muita discussão, Ricardo concordou e fomos em dois carros. No dia marcado Ricardo estava bem cedo, com o carro parado aí em frente. Nos, diante de sua ansiedade e nossa também, já estávamos preparados. Descemos, levando cada um, uma pequena maleta. Ficaríamos lá só por uma noite, portanto não precisaríamos de muita roupa.
Fomos ao encontro de Ricardo e antes de entrarmos no carro, seu pai disse:
- Ricardo, até agora não sabemos o nome da cidade onde sua família mora.
- Ele disse o nome da cidade. Eu e seu pai nos olhamos, íamos dizer que conhecíamos a cidade, que havíamos nascido e sido criados ali, mas diante da surpresa ficamos calados e seguimos viagem. Quando entramos na cidade muitas lembranças surgiram. É uma cidade agradável, que continua como sempre, com um povo pacifico e feliz. Algumas coisas estavam mudadas, mas era quase tudo igual como quando a deixamos. Seguimos o carro de Ricardo. Ele entrou pela rua principal e rodeou a praça que conhecíamos muito bem. Quando ele entrou pelo portão e pela alameda que levava até a casa de Sofia, eu e seu pai paramos. Seu pai disse:
- Não pode ser, Beatriz, ele não pode ser o filho de Sofia.
- Eu sorri, toquei em sua mão, dizendo:
- Parece que sim, Osmar. O destino está fazendo uma brincadeira conosco.
- Não podemos aceitar esse casamento, Beatriz!
- Do que tem medo, Osmar? Que o seu amor por Sofia retorne?
- Não é nada disso, Beatriz, eu a conheço e sei como é má e egoísta, assim que souber que Anita é nossa filha vai transformar a vida dela em um inferno!
- Você está exagerando, Osmar. Já se passou muito tempo. Nada do que aconteceu deve ter importância, éramos jovens e cada um seguiu o seu destino. Além do mais, Anita tem Ricardo que a protegerá. Vamos entrar, cumprimentar Sofia com todo carinho e relembrar os bons tempos.
- Está bem, tomara que seja como está dizendo.
- Ricardo estacionou o carro em frente à porta de entrada da casa. Logo ela se abriu e apareceram Sofia, Maurício, Stela e as crianças. Assim que nos viu, ela sorriu e se aproximou. Fingindo não nos conhecer, disse:
- Estou muito feliz em que tenham aceitado o meu convite. Entrem, por favor.
- Ela fingiu não reconhecê-los, por que mamãe, e se ela não os reconheceu mesmo?
- Isso era impossível, Anita. Ninguém muda tanto. Apesar de mais velhos, tínhamos como temos, os mesmos traços.
- Também nos apresentamos e ela, estendendo o braço em direção à sala e se afastando para que entrássemos, disse:
- Sejam bem vindos à minha casa. Entrem, por favor. Este é Maurício, meu outro filho, sua esposa Stela e seus filhos.
- O que aconteceu depois?
- Ela foi amável e tentou nos deixar à vontade. Você e Ricardo não perceberam nem mesmo quando, após o almoço, seu pai disse:
- Desculpem, mas precisamos ir embora.
- Tão cedo, não vieram para ficar?
- Sim, Ricardo, mas me lembrei de que deixei algo pendente na empresa, preciso voltar para resolver.
- Por que papai fez isso?
- O clima estava insuportável. Embora Sofia tenha tentado fazer com que nos sentíssemos à vontade, isso não foi possível. Por isso, a melhor solução que seu pai encontrou foi aquela. Saímos dali o mais rápido que podíamos. Ricardo pediu e nós concordamos que você ficasse mais um dia. No carro, enquanto seu pai dirigia, percebi que estava preocupado, mas me calei. Em dado momento, ele disse:
- Esse casamento não vai dar certo, Beatriz...
- Por que está dizendo isso?
- Sofia demonstrou com o olhar que vai fazer o possível e o impossível para evitar que se realize e se mesmo assim se realizar, não vai durar.
- Ainda acho que está exagerando, Osmar. Mesmo que Sofia queira prejudicar Anita, o que não acredito, Ricardo gosta muito de nossa filha e vai protegê-la.
- Tomara que esteja certa, mas estou preocupado.
- Seguimos a viagem em silêncio.
- Eu, nem por um minuto desconfiei de que isso estivesse acontecendo. Por que não me contaram?
Não achamos ser necessário. Você estava muito feliz e não queríamos que se preocupasse.
- Os meses que se seguiram foram todos dedicados à preparação do casamento. Eu e seu pai estávamos preocupados, só ficamos tranqüilos quando Ricardo nos comunicou a sua intenção de ir para Portugal. Sabíamos que a distância seria grande e a saudade também, mas aquela viagem seria a única chance de que vocês fossem felizes no casamento, pois a mesma distância que haveria entre nós haveria também entre Sofia.
- Agora estou entendendo a mudança em relação a mim, mamãe. Só agora percebo que a mudança se deu depois daquele almoço. Eu não entendia qual era o motivo de tanto ódio que ela sentia por mim, agora entendo. No final das contas ela conseguiu o que queria, estou separada de Ricardo. Estou sofrendo e sei que ele também está.
- Não, Anita, seu casamento não vai terminar. Você e Ricardo foram destinados um para o outro. Estão passando por um momento difícil, isso não podemos negar, mas tenho certeza de que não será definitivo.
- A senhora acredita nisso, mamãe?
- Claro que sim. Vocês se amam, isso qualquer um pode ver. Tenho certeza de que seu pai, determinado como saiu daqui, vai conseguir afastar Sofia da vida de vocês para sempre.
- Ele não vai conseguir isso, mamãe. Dona Sofia é a mãe de Ricardo e ele não vai querer ficar longe dela para sempre!
- Eu não disse que ela vai ficar longe de vocês, mas sim da sua vida. Ela não vai mais interferir.
- Tomara que a senhora esteja certa, mas não tenho tanta certeza. Dona Sofia é ardilosa, a senhora sabe muito bem disso.
- Sei sim, mas também conheço o seu pai. Ele vai conseguir.
Estavam conversando quando Dora bateu à porta e entrou, dizendo:
- Anita, o Ricardo está aí.
Anita começou a tremer e perguntou:
- Aqui?
- Sim e pediu que eu viesse avisá-la. Parece que está muito nervoso.
- O que faço, mamãe?
- Vá ao encontro de seu marido, a vinda dele até aqui é o sinal de que seu casamento não terminou.
Anita sorriu, beijou a mãe e desceu a escada correndo. Ricardo, que estava sentado em um sofá na sala, ao vê-la chegando levantou-se e antes de dizer qualquer coisa, a beijou apaixonadamente. Beatriz, que desceu atrás de Anita, sorriu e com um sinal, fez com que Dora a seguisse até a cozinha. Quando terminaram de se beijar, Ricardo ainda abraçado à Anita, disse:
- Por que veio embora?
- Foi você quem saiu de casa. Eu fiquei sem saber o que fazer. Não podia continuar sozinha naquela casa. Vim até aqui para poder pensar.
- Sei que errei, mas fui levado pelo impulso, mas no final foi bom.
- Bom, por quê?
- A minha ida até a casa de minha mãe fez com que eu tivesse tempo para pensar em todo o tempo em que estamos juntos e em como somos felizes. Estando lá sozinho, descobri que amo você e que não quero ficar um minuto sequer separado. Você ainda me aceita de volta?
Anita, depois de tudo o que a mãe contou, não tinha mais dúvida alguma da maldade de Sofia. Sabia que Ricardo a amava, assim como ela a ele. Disse, com lágrimas nos olhos:
- Claro que lhe perdôo e o aceito de volta. Também descobri que não quero ficar separada de você.
- Só queria lhe fazer um pedido.
- Qual?
- Queria vir morar aqui na capital. Meu pai tem muitos conhecimentos e pode com facilidade, arrumar uma faculdade em que possa dar aula. Não precisamos morar aqui, podemos alugar uma casa, mas quero ficar perto dos meus pais.
- Não posso fazer isso, Anita. Sabe que só voltamos de Portugal porque Maurício está querendo entrar para a política e precisa de minha ajuda para continuar com as empresas.
Em nossa cidade poderei fazer isso e ainda dar aula na faculdade. Além do mais, sei que não é para estar perto de sua família que quer vir morar aqui, é por causa da minha mãe não é?
Anita baixou os olhos sem saber o que responder. Ricardo continuou:
- Não precisa mais se preocupar com minha mãe. Ontem, Maurício esteve lá em casa e discutimos muito com mamãe. Você não vai acreditar, mas ela mandou fazer um trabalho em um macumbeiro para nos separar.
Ricardo contou tudo o que havia acontecido. Terminou, dizendo:
- Maurício está determinado a descobrir quem é seu pai.
- Não posso acreditar que tudo isso aconteceu, muito menos que Maurício não seja filho do seu pai. Deve ter sido uma confusão e vocês entenderam errado...
- É verdade, Anita. Quando minha mãe falou, ela estava muito nervosa por ter sido descoberta e perdeu o controle.
Estavam ainda conversando, quando o telefone tocou. Como Anita estava perto da mesinha, atendeu. Do outro lado, Osmar disse:
- Anita, está tudo bem aí em casa?
- Sim, papai, está tudo bem. Ricardo acabou de chegar.
- Ele está aí?
- Sim.
- Preciso conversar com ele.
Anita sem entender passou o telefone para Ricardo que atendeu:
- Senhor Osmar, sei que deseja falar comigo, mas antes preciso lhe dizer que estou aqui para conversar com Anita e levá-la de volta para a nossa casa.
- Estou feliz em saber isso, mas quero conversar sobre outro assunto.
- Pois não, do que se trata?
- Estou aqui na casa da sua mãe e precisamos conversar.
- Na casa da minha mãe? O que está fazendo aí?
- Vim conversar com ela a respeito de vocês. Ela me atendeu, depois da nossa conversa, que foi longa, ela se sentiu mal e teve um ataque do coração. Acredito que seja bom que venha logo.
- Ataque do coração? Como isso foi acontecer?
- Ela ficou muito nervosa, Maurício estava aqui.
- Maurício estava aí? Não estou entendendo, como ela está?
- Não está bem, por isso é melhor que venho logo.
- Estou indo agora mesmo.
- Venha, sim. Por favor, chame Beatriz, preciso falar com ela.
- Está bem.
Anita, ao ver a gravidade da conversa, foi até a cozinha e chamou a mãe. Ela estava chegando quando Ricardo, tremendo muito, lhe entregou o telefone. Ela atendeu. Osmar disse:
- Não diga nada a Ricardo, mas Sofia faleceu.
Ela levou um susto e teve de se sentar.
- Como isso aconteceu, Osmar?
- Eu estava aqui e Maurício, o irmão de Ricardo, também. Ele ouviu toda a conversa, mas é uma longa história, quando chegar eu lhe conto. Agora, não deixe Ricardo desconfiar do que aconteceu realmente e venha com eles para cá.
Arrumaram-se e saíram rapidamente.

A REAÇÃO DE MAURÍCIO.

Maurício saiu descontrolado da casa de Sofia. Estava totalmente fora de si com a descoberta que havia feito. Ouviu Osmar chamando, mas não deu atenção. Não queria conversar com aquele homem que mal conhecia, com quem havia encontrado em duas ocasiões, no almoço em família e no casamento de Ricardo e que agora, lhe era apresentado como pai. Entrou no carro e começou a dirigir sem rumo. Precisava pensar, colocar sua cabeça e seus sentimentos no lugar. Estacionou o carro junto ao rio que cortava a cidade. Desceu, sentou-se na grama que acompanhava toda a extensão da margem e ficou olhando a água que tranqüilamente passava. Seu coração batia descontrolado. Enquanto olhava a água, pensava: como minha mãe pôde fazer uma coisa como essa? Como conseguiu esconder durante tanto tempo, que eu não era filho do meu pai, a quem amei e ainda amo de todo o meu coração? Como posso chegar para um desconhecido e chamá-lo de pai? Não. Esta tudo errado! Pedro Henrique e Maria Rita estavam ao seu lado, sentados, um de cada lado, na mesma grama. Pedro Henrique, sentindo toda a dor de Maurício, disse:
- Não precisa ficar assim, Maurício, você é meu filho amado. Não importa que sangue tenha, no momento em que me foi apresentado por filho eu o aceitei e agora, depois de tudo o que descobrimos, nada mudou. Embora não saiba, nossa amizade vem de muito tempo. Não importa o sangue que corre nas veias, pois um dia ele vai voltar para a terra, o que importa são os laços de amor adquiridos durante tanto tempo.
Vá para sua casa, não fique mais se lastimando. Ainda não sabe, mas tem um longo dia pela frente. Sua mãe está agora na companhia daqueles que escolheu e nada poderemos fazer por ela. Vá para casa, meu filho. Você tem ainda pela frente uma longa jornada e eu sempre que possível, vou estar ao seu lado. Enquanto falava, ele e Maria Rita jogavam luz branca sobre Maurício, que aos poucos foi se acalmando e pensando: depois de tudo, só restou algo de bom. Anita é minha irmã e estou muito feliz por isso. Agora, preciso ir para casa. Stela deve estar preocupada. Vou passar lá só por um instante, contar tudo o que aconteceu e depois, vou para a empresa. Ainda bem que Ricardo voltou para me ajudar. Levantou-se, entrou no carro, ligou e acelerou. Enquanto isso, a ambulância chegou, mas logo foi constatado que mais nada poderia ser feito por Sofia. A ambulância a levou para que fosse providenciado um atestado de óbito. Depois que levaram Sofia, Osmar disse para Maria José:
- Precisamos avisar Ricardo e Maurício. Por favor, telefone para a casa de Maurício e depois para Ricardo. Preciso avisar minha esposa e Anita do que aconteceu.
Maria José estava transtornada e triste, pois vivia ao lado de Sofia já há muito tempo e acostumara-se a seu modo de ser. Sabia que ela era determinada e arrogante, mas mesmo assim gostava dela e dos meninos, como chamava Maurício e Ricardo. Era carinhosa com eles e também recebia muito carinho deles, pois devido aos afazeres e compromissos sociais de Sofia, praticamente fora ela quem os criara.
Telefonou para a casa de Maurício e quem atendeu foi Stela. Soluçando, perguntou:
- Stela, o Maurício está aí?
- Não, Maria José, ele saiu cedo para ir aí falar com a dona Sofia. Ele não está aí.?
- Esteve, mas já foi embora.
- Que aconteceu, Maria José? Você está chorando?
- Estou, aconteceu uma desgraça, Stela...
- Que aconteceu, Maria José?
- Dona Sofia morreu ...
- Meu Deus do céu, o Maurício matou a mãe?
Maria José, embora abalada, não pôde conter um sorriso e respondeu:
- Não, Stela, não foi ele. Quando saiu, ela estava começando a passar mal. O médico esteve aqui e disse que ela teve um ataque do coração...
- Não pode ser, ela é ainda muito nova, embora ontem quando estivéssemos no carro ela se sentiu mal, mas não pensei que fosse tão grave.
- Algumas vezes ela passou mal aqui em casa e eu sempre lhe disse que deveria ir consultar um médico, mas ria e deixava para o dia seguinte. Acho que ela tinha algum problema no coração há muito tempo.
- Não sei onde Maurício está e você me deixou preocupada. Eles brigaram?
- Foi muito mais que uma briga, Stela.
- Ela disse a verdade para ele?
- Não, mas ele descobriu.
- Você ouviu a conversa, não adianta dizer que não, sei que ouve tudo o que se diz naquela casa.
- Sim, ouvi e posso lhe garantir que fiquei confusa e abalada.
- O que foi que ouviu Maria José?
- O que ouvi é muito grave e por isso, somente Maurício pode lhe contar. Não quero me intrometer nessa história.
- Está bem, Maria José, não vou insistir. Agora, preciso encontrar Maurício. Para onde terá ido?
- Não sei. Antes de telefonar para você, telefonei para a empresa, mas ele não estava lá.
- Acho melhor ficar aqui em casa e esperar que ele volte. Depois, iremos para aí.
- Tudo bem, mas venha logo.
Desligaram o telefone. Stela estava surpresa e nervosa. Nunca havia imaginado que um dia, passaria por uma situação daquela. Maria José desligou o telefone, olhou para Osmar e disse:
- Maurício não está em casa.
- Para onde terá ido?
- Não sei. Stela também está preocupada. Ele saiu daqui tão nervoso. Será que fez alguma loucura?
- Não senhor, isso ele não fez. É um menino que tem a cabeça no lugar. Deve estar andando por aí, pensando na vida. Vamos esperar, sei que a qualquer momento ele vai aparecer.
- Tomara que sim, também estou agoniado com essa falta de notícia. Agora, vou telefonar lá para casa. Depois você pode telefonar para Ricardo.
- Está bem.
Osmar pegou o telefone e falou com Beatriz e lhe contou tudo o que havia acontecido. Depois, colocando o telefone no gancho, disse:
- Não precisa telefonar para Ricardo, ele está lá em casa e já estão vindo.
- Graças a Deus...
- O senhor está muito nervoso e abalado, vou lhe preparar um café.
- Faça isso, por favor. Estou mesmo muito nervoso e abalado. O dia hoje foi de muitas surpresas e revelações.
- Desculpe senhor, estou nesta casa há muito tempo. Ajudei a criar os dois, por isso os considero como filhos. Embora dona Sofia fosse de convivência difícil, eu gostava dela.
Osmar, com os olhos distantes, disse:
- Eu também... eu também gostava muito dela. Ela era uma mulher especial...
- Só tinha um defeito.
- Qual?
- Por se sentir toda poderosa, achava que era a dona da verdade e isso não existe. Ninguém é dono da verdade e poderoso, só Deus e mesmo assim, Ele, de vez em quando, leva umas rasteiras do diabo e perde muitas almas...
Osmar, ao ouvir aquilo, não conseguiu evitar um sorriso e com a cabeça, concordou com Maria José. Ela saiu, foi para a cozinha preparar um café. Precisava também preparar o almoço, pois sabia que, em breve, todos estariam ali e por mais tristes que estivessem, precisavam comer. Osmar levantou-se do sofá em que estava sentado e olhou à sua volta. A sala era imensa, com móveis, cortinas de boa qualidade e quadros de pintores famosos. Enquanto olhava tudo, pensava: estou me lembrando de Sofia quando criança e nas conversas que tínhamos. Ela sonhava com este mundo onde houvesse dinheiro, fama e poder. Não imagino o que fez para conseguir, mas conseguiu muito mais do que havia sonhado, porém o que adiantou ter vivido sob uma mentira e com medo de a qualquer momento, ser descoberta, se o fim de todos nós é só um, a morte. Para que tanta ambição, tanto desejo de poder? Voltou a sentar-se no sofá e continuou pensando: quando vi Maurício pela primeira vez, naquela manhã de sábado, jamais poderia pensar que ele fosse meu filho. Embora não o conheça, me pareceu ser um homem de bom caráter e gostava muito do pai. Estranho... tenho um filho de cuja existência nunca soube, como Sofia teve a coragem de me esconder isso? Preciso contar para Beatriz e tomara que entenda. Naquela época, eu lhe disse que Sofia havia me procurado e quase caí na tentação. Hoje, ela vai entender que eu não consegui resistir e a traí? Qual vai ser sua reação? Minha vida está uma loucura... Enquanto isso, Maurício, acompanhado por Pedro Henrique e Maria Rita, chegou em casa. Assim que o viu entrando, aliviada, Stela correu para ele e o abraçou, chorando. Ele estranhou e depois do abraço, afastando-se dela, perguntou:
- Por que está chorando assim, Stela?
- Maria José telefonou e disse que você saiu de lá muito nervoso. Onde você estava, Maurício?
- Estava andando por aí sem rumo e depois fui até a margem do rio. Fiquei sentado na grama vendo a água passar e pensando. Depois do que descobri, só tinha isso para fazer, pensar...
- O que descobriu?
- Que minha mãe foi uma mentirosa e traidora!
- Como assim?
- Ela traiu o meu pai com o pai de Anita. Eu sou filho dele, Stela!
- O quê?
- Isso mesmo, sou filho do pai de Anita, ela é minha irmã!
- Não pode ser, eles se conheciam e sua mãe nunca nos disse?
- Ela não disse, provavelmente por temer ser descoberta! Ela é má, Stela e eu a odeio!
- Não fale assim, Maurício, ela é sua mãe...
- Contra sua vontade! Mesmo sendo minha mãe, não posso me esquecer de toda maldade que fez!
- Precisa perdoar...
- Nunca, Stela, nunca! Quero que morra e que vá para o inferno!
- Não fale assim, Maurício, você pode se arrepender...
- Não sei se algum dia vou me arrepender, mas neste momento, é o que estou sentindo.
- Sente-se, preciso lhe contar algo grave que aconteceu depois que saiu da casa de sua mãe...
- O que aconteceu, Stela! Fale logo!
- Depois que você saiu, sua mãe passou mal e não resistiu. Não sei muito bem da história, mas parece que ela sofreu um ataque no coração e não resistiu.
- O que está dizendo, Stela? Minha mãe morreu?
- Sim, foi por isso que Maria José telefonou procurando por você.
Maurício, ao ouvir aquilo, começou a rir sem conseguir se controlar. Stela ficou apavorada com aquela atitude e nervosa disse:
- Pare com isso, Maurício, a situação não é para riso!
Ele, embora quisesse, não conseguia parar de rir.
Stela, percebendo que ele estava fora de mim, pegou em seu braço e o sacudiu com violência.
Maurício parou de rir e disse, muito nervoso.
- Até a hora da morte ela conseguiu escolher! Sabia que tinha muito que contar, por isso preferiu morrer! Ela não presta mesmo!
- Não fale assim, Maurício! Ninguém escolhe a hora da morte!
- Você não conhecia dona Sofia! Ela escolheu, pode ter certeza disso!
- Está fora de si e não sabe o que está falando. Precisamos ir até lá.
- Eu não vou! Vá você!
- Não pode deixar de ir! Ela é sua mãe!
- Não quero ir, não posso chegar lá e demonstrar uma dor que não estou sentindo! Eu a odeio e não é por ter morrido que vou esquecer de tudo o que me fez! Quero que ela queime no fogo do inferno!
- O que vou dizer para as pessoas e, principalmente, para Ricardo?
- Diga o que quiser, eu não me importo, ou melhor, diga a verdade, que ela não prestava!
- Você está descontrolado e não posso deixá-lo assim, também não vou...
- Faça o que quiser, Stela. Eu vou para o meu quarto, neste momento só quero dormir!
Stela, sabendo que ele não ia mudar de idéia, disse:
- Está bem, faça isso e se conseguir dormir eu vou até lá.
Maurício, calado, caminhou em direção ao quarto. Entrou, deitou e tentou dormir. Stela o acompanhou e depois de vê-lo instalado, saiu. Depois de um tempo, voltou para o quarto e percebeu que ele havia dormido realmente. Sorriu e saiu.

CONHECENDO A HISTÓRIA

Ricardo, Anita e Beatriz chegaram e foram recebidos por Osmar que continuava ali:
- Que bom que chegaram, estava ansioso e sem saber o que fazer.
- Que aconteceu, seu Osmar? Como minha mãe está?
- Sinto muito, Ricardo, mas ela não resistiu.
Ricardo empalideceu e perguntou desesperado:
- Está dizendo que ela morreu?
- Infelizmente...
- Não pode ser, qual foi o motivo?
- De acordo com Maria José, ela teve alguns problemas, mas não quis ir ao médico. Teve um ataque do coração e não resistiu.
- Onde ela está?
- Foi levada para que seja decretada morta e possamos obter o atestado de óbito.
- Quero ir até onde ela está, preciso vê-la!
- Eu estava esperando que você ou Maurício chegassem para providenciarmos toda a documentação necessária. Podemos ir?
- Maurício ainda não veio?
- Não, ele esteve aqui e assim que saiu ela começou a passar mal, tentamos encontrá-lo, mas não conseguimos.
- Onde ele está?
- Não sabemos, deve estar andando por aí.
- Por que faria isso? O senhor sabe qual é o motivo?
- Acredito que sim, mas agora não é o momento para conversarmos sobre isso. Vamos ao encontro de sua mãe, depois teremos muito tempo para conversarmos, eu, você e Maurício.
- O que temos para conversar que só pode ser entre nós?
- Não precisa ser só entre nós. Anita, Stela e Beatriz também podem e devem participar, pois o assunto interessa a todos nós.
- Continuou não entendendo.
- Sei disso, mas agora não temos tempo. Depois conversaremos.
Saíram e quando voltaram, já haviam providenciado tudo. O corpo de Sofia chegaria logo mais.
Como não pode deixar de ser, a noticia se espalhou e em uma cidade pequena como aquela todos ficaram sabendo e se apressaram em comparecer. A maioria das pessoas nunca havia entrado naquela casa e movidas pela curiosidade, queriam ver como era por dentro. Além do mais, quando esposa do prefeito ela havia feito coisas boas para a cidade e para o povo também. O corpo chegou e foi velado. Houve muito discurso e homenagem para aquela que fora a benfeitora de tantos. Todos estranharam a falta de Maurício e quando perguntava por ele, Stela respondia:
- Ele está muito abalado e o médico lhe deu um remédio para que dormisse.
Todos que a ouviam se convenciam de que ela estava dizendo a verdade, menos Osmar e Maria José, ambos sabiam dos sentimentos dele para com Sofia. No dia seguinte, logo depois que o enterro foi realizado, as pessoas se despediram. Como Maurício não quis comparecer, Stela pegou as crianças pelas mãos e foi para sua casa. Osmar, Beatriz, Anita e Ricardo foram para a casa de Sofia que era maior que a deles e poderia abrigar a todos. Assim que chegaram, Osmar disse:
- Agora que está tudo terminado e que sua mãe está descansando em paz Ricardo, precisamos conversar e esclarecer alguns pontos.
- Acredito que isso que temos para conversar tem alguma coisa a ver com Maurício e foi à causa de ele não ter comparecido ao enterro.
- Tem sim, Ricardo, por isso precisamos conversar todos juntos.
- Parece que ele não quer conversar com ninguém...
- Sei disso, mas é importante. Como preciso voltar para a capital, precisa ser hoje. Depois do almoço, iremos até a casa dele e querendo ou não, ele precisa conversar conosco.
Beatriz, adivinhando e temendo o que ia ouvir, perguntou:
- Precisa ser hoje, Osmar? Não podemos deixar para um outro dia?
- Não, Beatriz, precisa ser hoje. As coisas estão confusas e Maurício deve estar sofrendo muito.
- Está bem, sendo assim faremos como você quer.
Assim fizeram e depois do almoço foram para a casa de Maurício. Quem os recebeu foi Stela que, ao vê-los, disse:
- Que bom que vieram. Maurício não está bem. Desde ontem quando chegou da casa de dona Sofia, entrou no quarto e não saiu mais. Estou preocupada, ele não se alimentou, apenas bebeu água. Ricardo, talvez você consiga tirá-lo do quarto.
- Vou tentar, Stela. Precisamos conversar, para isso Anita e seus pais estão aqui.
Ela sorriu e não quis dizer que sabia do que se tratava. Acompanhou Ricardo até o quarto de Maurício e entrou, dizendo:
- Maurício, Ricardo está aqui e quer conversar com você.
Maurício abriu os olhos e olhando para o irmão, começou a chorar.
- Ela morreu, Ricardo! Ela morreu!
- Sim, Mauricio, infelizmente isso aconteceu. Estamos todos arrasados por ter sido tão inesperado. Sei que sua dor, assim como a minha, é profunda, mas precisamos reagir. Temos a vida toda pela frente. Precisa se levantar dessa cama, meu irmão...
- Minha dor? Você acha que estou assim porque estou sentindo dor? Não, Ricardo, estou assim porque não consigo tirar do meu peito o ódio infinito que sinto dela, de todas as suas mentiras e de sua traição! Eu a odeio, quero que queime para todo o sempre no fogo do inferno!
- O que está falando, Maurício?
- Ela foi uma mentirosa, Ricardo, ela traiu nosso pai e você não imagina com quem!
- Maurício, você não está bem. Precisa ver um médico...
- Estou bem, Ricardo. Ontem descobri que ela havia traído o papai com o pai de Anita!
- O quê?
- Isso mesmo, e dessa traição eu nasci. Sou filho dele, irmão de Anita!
- Não pode ser verdade, Maurício, você deve estar enganado!
- Não estou, Ricardo, ouvi os dois conversando! Não sabiam que eu estava lá!
Ricardo colocou as mãos na cabeça, depois sobre o joelho e ficou dizendo:
- Não pode ser... não pode ser...
- Não poderia ser, mas é, Ricardo!
Ricardo levantou a cabeça e encarando o irmão, disse nervoso:
- Não sabemos como tudo isso aconteceu. Precisamos saber de toda a história, agora entendo por que o pai de Anita fez questão de vir até aqui para que juntos, conversássemos. Ele está querendo nos contar toda a história. Além do mais, mamãe está morta e deve estar no céu...
Maurício, ao ouvir aquilo, levantou-se e perguntou, gritando:
- No céu? No céu, Ricardo? Não, ela não pode estar no céu, pois se isso acontecer é porque não existe justiça! Ela deve estar e vai ficar por toda a eternidade no inferno! No céu?
Pedro Henrique e Maria Rita, que continuaram ao lado de Maurício o tempo todo, jogavam luzes sobre os dois. Pedro Henrique disse:
- Acalmem-se, meus filhos. Todo esse ódio só pode atrair energias pesadas sobre vocês.
Sofia está neste momento, recolhendo o que plantou, está ao lado das companhias que escolheu. Além do mais, entre os espíritos que vivem aqui na Terra ou ao redor dela, não existe nenhum bom o suficiente para viver no paraíso celestial nem ruim o bastante para queimar eternamente no fogo do inferno. Estamos todos caminhando rumo à perfeição. Alguns mais na frente, outros mais atrás, mas todos caminhando. Acalmem-se ... Acalmem-se.
Aos poucos, eles foram se acalmando. Maurício foi até o banheiro, lavou o rosto e voltou dizendo:
- Está bem, Ricardo. Acho que tem razão, se o pai de Anita veio até aqui é porque está querendo nos contar o que realmente aconteceu. Vou descer e vamos ouvi-lo.
- Assim que se fala, meu irmão. Sabe que essa noticia que me deu em nada vai mudar o que sinto por você. É meu irmão querido que sempre me defendeu em todos os momentos de que precisei. Vamos descer.
- Estou há muito tempo nessa cama. Preciso tomar um banho, trocar de roupa para me apresentar diante das pessoas que estão me esperando. Vá na frente, descerei em seguida.
Ricardo sorriu e saiu do quarto. Quando chegou à sala onde todos estavam acomodados, disse:
- Ele está bem, vai descer em seguida.
Stela sorriu e os outros respiraram aliviados. Quinze minutos depois, Maurício apareceu. Estava com os cabelos molhados, com uma camisa rosa e calças pretas. Olhando para ele com outros olhos, Osmar percebeu como ele se parecia com Sofia. Era o seu retrato. Assim que chegou, disse:
- Desculpem a demora, mas como todos sabem, eu não estava bem.
Osmar se levantou, estendeu a mão, dizendo:
- Entendo tudo o que está sentindo. Sei que está confuso e querendo saber como tudo aconteceu e é por isso que estou aqui. Vou lhe contar toda a história.
- O senhor tem razão, estou mesmo muito confuso...
- Sente-se. Vou começar desde o início.
Maurício sentou-se e Osmar começou a falar. Contou tudo desde o início, de quando era criança, dos sonhos de Sofia e do amor que sentia por ela. Contou do inicio do namoro, da casa que construiu para eles, de quando Sofia querendo se casar com Pedro Henrique, desmanchou o noivado, de como ele ficou arrasado e como conheceu Beatriz. Contou também do reencontro que teve com Sofia ao qual não resistiu e se entregou totalmente a ponto de querer desmanchar seu casamento que já estava marcado. Enfim, contou tudo em detalhes e terminou, dizendo:
- Eu, depois que me casei, fui embora para a capital e nunca mais pensei em Sofia. Nas poucas vezes em que me lembrava dela, afastava o pensamento. Era feliz com Beatriz, ela havia me feito conhecer um amor verdadeiro, sem paixão ou ilusão. Anita nasceu e completou minha felicidade. Essa tranqüilidade continuou até o dia em que, por uma brincadeira do destino, você Ricardo e Anita se conheceram, se apaixonaram e quiseram se casar. Nós viemos almoçar na sua casa e me deparei com Sofia. Eu não sentia nada mais por ela, mas ao ver que ela fez de conta que não nos conhecia, senti medo por aquilo que poderia fazer contra minha filha. Pensava que ela poderia fazer algum mal para Anita, porque a conhecia e sabia que ela era vingativa e que nunca havia aceitado o meu casamento. Nunca imaginei que seu ódio era por outro motivo, o medo de que eu descobrisse que você, Maurício, fosse meu filho. Fruto daqueles encontros que tivemos, quando o marido dela teve de viajar e ela não queria que eu me casasse.
Anita, ao ouvir aquilo, levantou-se, gritando:
- O que o senhor está dizendo, Maurício é seu filho? Meu irmão?
- Sim, Anita. Eu não sabia, mas não posso negar que estou feliz em saber que tenho um filho que apesar de Sofia, é um homem de bem.
Anita olhou para Maurício que olhava para ela e disse:
- Por isso que sempre gostei de você...
Ele também se levantou e a abraçou, dizendo:
- Também sempre gostei muito de você. Não imaginava que fosse minha irmã. Mas sabia o quanto gostava de Ricardo e isso já era o suficiente para que eu a defendesse de todas as maldades que minha mãe quis fazer e fez contra você.
- Vamos esquecer tudo isso, Maurício. Ela morreu e deve agora estar tendo de justificar aquilo que fez. Ricardo me contou tudo o que ela fez para tentar nos separar. Sei que foi até um macumbeiro, mas de nada adiantou, porque o nosso amor é maior do que tudo. Ele me contou também que foi para nos defender que você descobriu que não era filho de seu pai, mas não me contou que era filho do meu...
- Eu não sabia! Fiquei sabendo agora a poucos minutos, quando fui até o quarto dele.
Stela, vendo Anita e Maurício abraçados e felizes, pensou: E eu que ajudei dona Sofia a quase destruir essa felicidade... Osmar olhou para Beatriz, dizendo:
- Você vai conseguir me perdoar, Beatriz? Naquela época eu lhe disse que havia resistido a Sofia, mas estava mentindo. Eu não resisti e me entreguei àquele louco amor que julgava sentir por ela.
Beatriz, que continuava sentada olhando Maurício e Anita abraçados, disse emocionada:
- Eu sempre soube dos seus sentimentos para com Sofia. Quando me disse que havia se reencontrado com ela, deduzi que algo de mais grave pudesse ter acontecido, mas eu o amava e lhe perdoei, por isso não precisa pedir perdão, isso já aconteceu naquele tempo e não me arrependo porque você foi um marido e pai perfeito, só me trouxe felicidade.
Sem que ninguém esperasse, cada um foi se levantando e se abraçando. Logo, estavam todos unidos em um abraço fraterno e feliz. Stela, emocionada e sentindo-se culpada por quase ter estragado toda aquela felicidade, disse:
- Está na hora do lanche. Se me derem licença, vou até a cozinha para providenciar.
Ela saiu e ninguém percebeu seu mal-estar. Estavam tão felizes que, naquele momento, nada mais importava. Gusmão e os outros também estavam lá e sorriram felizes. Gusmão disse:
- Ao menos, esses encontraram o caminho.

AMIGOS ETERNOS

Assim que Sofia morreu, Gusmão convocou uma reunião com todos que faziam parte do grupo de Sofia e disse:
- Sofia não conseguiu sua reabilitação. Infelizmente, nesta encarnação, perdeu uma oportunidade maravilhosa, mas mesmo assim continua sendo nossa companheira. Entretanto, não seria justo interrompermos nossa jornada por sua causa. Por isso pedi a todos que viessem aqui para que cada um possa decidir o que deseja. Cada um de nós, com muita dedicação e trabalho, conquistou a sua luz e pode continuar para esferas mais altas, onde terá a oportunidade de aprender mais e servir melhor. Todos sabem que o espírito é livre para decidir e que nada nem ninguém pode aprisioná-lo, portanto cabe a cada um escolher o que achar melhor para si.
Gusmão, ao mesmo tempo em que dizia isso, sabia que alguns, durante várias encarnações e reencarnações, haviam convivido com espíritos de outros grupos e que desejavam continuar ao lado dos novos amigos. Não se admirou, pois, quando alguns lhe disseram que desejavam continuar a jornada, mas que estariam presentes para ajudar Sofia sempre que precisasse.
Após decidirem quem continuaria a jornada, Nadir disse:
- Eu, como mãe de Sofia, sei que não tive a força necessária para orientá-la e ajudá-la como seria o esperado de uma mãe. Por isso, desejo ficar ao seu lado e esperar o tempo que for necessário para renascer como sua mãe novamente e tentar, mais uma vez.
Gusmão sorriu e disse:
- Sabe que não precisa fazer isso, Nadir. Você a educou da maneira como sabia e como podia. O seu único desejo sempre foi de que ela fosse feliz e se Sofia não conseguiu, foi por causa da ganância e do desejo de poder. Sabemos que ela terá de renascer e lutar contra esses sentimentos. Você poderá ajudá-la, mas ela, só ela, poderá escolher o caminho a seguir.
- Sei disso, Gusmão, mas mesmo assim, quero tentar.
- Está bem, mas preciso lhe lembrar que não estará ao seu lado como mãe.
- Por que não?
- Sofia teve uma família que a amou, mas ela diante de seus sentimentos, os afastou de maneira violenta. Por isso, provavelmente na próxima encarnação, não terá família e sentirá muita falta e essa falta lhe causará muita dor e sofrimento.
- Sei disso, Gusmão, mas mesmo assim, se não puder vir como mãe, sei que posso ser bem próxima dela e assim, ajudá-la de alguma maneira.
Gusmão sorriu, dizendo:
- Está bem, Nadir. A escolha só pode ser sua.
- Eu também, Gusmão, desejo continuar ao lado dela.
- Tem certeza disso, Pedro Henrique? Assim como a Nadir, você também não precisa, pode continuar sua jornada.
- Não, Gusmão, preciso ficar ao lado dela porque, se não fizer isso, embora esteja em uma esfera superior, não poderei ser feliz. Isso só acontecerá quando ela estiver ao meu lado.
O mesmo disseram Romeu e Gustavo. Dois meses se passaram desde a morte de Sofia. Em uma manhã, Anita sentiu-se mal e foi ao médico que lhe pediu um exame de sangue. Após alguns dias, acompanhada por Ricardo, voltou ao médico e ele lhes disse:
- Dona Anita, tenho uma boa noticia para lhe dar.
- Qual doutor?
- Depois de tanto tempo e de eu ter-lhe dito que a senhora não tinha motivo algum para não engravidar, finalmente aconteceu!
- Aconteceu o quê, doutor?
- A senhora está grávida!
Anita olhou para Ricardo. Ele sorrindo abriu os braços e juntos, choraram de felicidade. Eles ficaram felizes, mas muito mais Nadir, por estar voltando para ajudar Sofia novamente a encontrar o caminho da luz. Anita, chorando e rindo ao mesmo tempo, olhou para Ricardo e falou, emocionada:
- Vai ser uma menina, Ricardo!
- Não importa se for menino ou menina, Anita, o que importa é que está chegando!
- Tem razão, mas sei que vai ser uma menina e que se chamará Paula.
- Está bem, Anita, o que importa é que estou muito feliz!
- Eu também, Ricardo... eu também.
Sofia, desde o dia da sua morte não foi mais encontrada por seus amigos. Suas companhias não permitiam. Ela foi perseguida pelo remorso e via diante de si, Gustavo, Nadir e Romeu que, parecendo monstros, a perseguiam. Sentiu fome, frio e um terror constante. Tentava esconder-se em grutas escuras, mas não adiantava, os monstros criados por ela e suas companhias a perseguiam sem trégua. A princípio tentava se justificar, como fazia quando estava viva e fugindo de um lado para outro, gritava:
- Não foi minha culpa! Eu precisei fazer tudo aquilo! Vocês queriam me destruir!
Porém com o tempo, foi reconhecendo que havia cometido vários crimes, que havia afastado de sua vida seu irmão e os pais. Aqueles pensamentos e o arrependimento eram insuportáveis. Quase vinte anos se passaram desde o dia da morte de Sofia. Gusmão e todos aqueles que sempre estiveram ao seu lado se recusaram seguir para esferas mais altas, o que os impediria de participar de equipes de socorro, onde poderiam aprender muito mais. Queriam, como já havia acontecido em outras vezes, continuar ao lado dela, dando-lhe mais uma oportunidade. Continuaram com os mesmos trabalhos que faziam até então e esperando até o dia em que ela fosse resgatada e preparada para uma nova encarnação. Nadir foi a primeira a renascer, mesmo antes de Sofia ser resgatada. Precisava renascer antes, para que quando Sofia renascesse, ela já fosse adulta e pudesse cuidar dela com muito carinho. Pedro Henrique sempre que podia vinha visitar seus filhos. Ricardo e Anita tiveram mais três filhos. No total, quatro. Três meninos e só uma menina, a quem deram o nome de Paula. Maurício e Stela continuaram vivendo. Ele se tornou um político respeitado na cidade, continuando assim, com o nome da família. Ele nunca chamou Osmar de pai, mas desde aquele dia em que toda a verdade foi revelada, tornaram-se grandes amigos e passaram a conviver e a se conhecer. Enfim, todos continuaram a sua jornada, com acertos e erros, mas sempre caminhando. Em uma tarde, Gusmão chamou Pedro Henrique e assim que ele chegou, disse:
- Chegou uma luz nos sinalizando a localização de Sofia. Estou formando uma equipe para resgatá-la. Você quer ir conosco?
- Claro que sim, Gusmão. Sabe que isso é o que mais tenho desejado por muito tempo.
Gusmão sorriu e disse:
- Sabia que sua resposta seria essa. Amanhã iremos em busca dela.
Pedro Henrique sorriu feliz e levantando os olhos, agradeceu a Deus. Como o combinado, no dia seguinte bem cedo Gusmão e mais espíritos amigos, entre eles Pedro Henrique, partiram em direção ao vale, onde Sofia se encontrava. Foram recebidos por um dos muitos espíritos que trabalhavam ali e encaminhados até ela. Enquanto caminhavam, Pedro Henrique que, diferente dos outros nunca havia estado lá, ficou assustado e ao mesmo tempo com pena daqueles que ali viviam. O lugar era escuro, úmido e malcheiroso. Os espíritos que estavam lá tinham sinais de demência, gritavam e choravam muito. O barulho era ensurdecedor. Depois de andarem por quase cinco minutos, encontraram Sofia. Ela estava completamente diferente daquela Sofia que haviam conhecido. Desencarnada, com roupas sujas e cheirando mal. Chamava e pedia perdão aos pais, Gustavo e Pedro Henrique. Chorava desesperada, só repetindo:
- Perdão...perdão...perdão...
Pedro Henrique ao vê-la, se aproximou e ajoelhando-se na sua frente, disse emocionado:
- Sofia, sou eu, Pedro Henrique, estou aqui para tirá-la deste lugar.
Ela olhou para ele, ouviu sua voz, mas não o reconheceu e tentou fugir, mas foi impedida por ele e pelos outros que o acompanhavam e após receber muita luz branca, desmaiou. Pedro Henrique pegou-a em seus braços e iniciaram o caminho de volta. Ele, embora tenha descoberto tudo o que ela havia feito, não guardava rancor e enquanto caminhava com ela nos braços, pensava: foi apenas um aprendizado, Sofia, da próxima vez será melhor. Sofia foi tratada durante algum tempo. Desmemoriada, teve dificuldade para entender o que estava acontecendo. Sentia medo e a todo instante queria fugir, mas Pedro Henrique e seus outros amigos estavam ali para ajudá-la. Aos poucos foi entendendo o que estava acontecendo e sentindo-se culpada, embora não tivesse sigo julgada e condenada pelos assassinatos dos pais e do irmão, sabia que precisava resgatar seus crimes. Depois de algum tempo, já com todas as suas faculdades restabelecidas, foi chamada por Gusmão. Após ter sido relembrada de todos os acertos e erros cometidos, Gusmão lhe disse:
- Agora Sofia, está em suas mãos à maneira como deseja renascer e viver. Estamos aqui e faremos o que desejar para seu aperfeiçoamento.
- Eu não sei, Gusmão. Entendo que minha nova encarnação não vai ser fácil, farei o que desejarem.
- Sabe que teve todas as condições para ter uma encarnação perfeita. Teve uma família que a amou e que fez tudo para a sua felicidade, mas não lhe deu valor, assim como marido e filhos que estiveram sempre ao seu lado, mas se deixou levar pela ganância e pelo desejo de poder e reconhecimento. Na próxima encarnação, se concordar, não terá mãe, pai, irmãos, nem marido nem filhos.
Sofia, ao ouvir aquilo, baixou a cabeça e ficou relembrando de como havia sido sua vida, mas permaneceu calada. Gusmão continuou:
- Sabe que aqui programamos uma linha de conduta, mas que tudo de acordo com o correr dos acontecimentos, pode ser mudado.
- Não estou entendendo.
- Você renascerá e será entregue a uma instituição. Será criada por estranhos e quando crescer, não terá marido ou filhos. Precisa saber que isso para você será muito triste e que poderá, algumas vezes, se revoltar. Tudo isso está previsto, mas dependendo do seu comportamento e de sua vontade de ajudar e trabalhar não só pelo seu próprio bem, mas para o bem de outros, alguma coisa poderá ser mudada.
Ao ouvir aquilo, Sofia perguntou, surpresa:
- O que for programado aqui poderá ser mudado?
- Sim, Deus é um Pai maravilhoso que só quer o nosso bem. Ele pode até nos mandar algum tipo de castigo, fazendo com que sintamos falta daquilo que desprezamos, mas nunca nos desampara e está disposto a nos receber, em Seus braços, a qualquer momento. Por isso, se seguir uma vida reta, tentando evitar cometer os mesmos erros anteriores, tudo o que for programado aqui poderá ser mudado.
- Quer dizer que poderei voltar a ter uma família, pais, irmãos, marido e filhos?
- Sim, tudo vai depender do seu comportamento.
Sofia sorriu:
- Seria mais fácil se eu me lembrasse do que fiz, assim poderia evitar.
- Sei que seria, mas não haveria mérito algum. O esquecimento é necessário para que o espírito possa merecer sua luz.
- Espero que desta vez, eu consiga...
- Também esperamos, Sofia, e lembre-se de que embora vá nos esquecer, estaremos sempre ao seu lado.

EPÍLOGO

Maria Clara, seguindo o conselho de Solange, foi até o orfanato conversar com a Irmã Maria Paula . Assim que chegou e após se abraçarem, Maria Paula perguntou:
- O que aconteceu, Maria Clara?
- Por que está perguntado isso, Irmã?
- Você só vem me procurar quando está com algum problema...
- Não fale assim, sabe que sempre volto para vê-la, mas tem razão, estou com um problema.
- Qual é dessa vez, não me venha dizer que é o de sempre.
- É sim, o mesmo de sempre. O Claudinei, assim como todos os outros, me abandonou...
- Outra vez?
- Sim, outra vez... acho que, definitivamente, não vou conseguir ter uma família. Por que isso acontece comigo, Irmã?
- Não sei. Eu também não me casei, não tive filhos e nem por isso sou infeliz.
- Sei disso, mas pelo menos teve pais que já morreram, mas ainda tem irmãos e sobrinhos a quem pode visitar e por quem pode ser visitada. Eu não tenho ninguém, Irmã...
- Tem razão, minha família é maravilhosa.
- Estive conversando com umas amigas e uma delas disse que pode ser coisa de reencarnação. Eu devo ter tido uma família para quem não dei valor. A senhora acredita nisso?
Maria Paula ficou pensando por um instante e depois, respondeu:
- Não sei, Maria Clara. Sabe que sempre fui católica; e que dediquei minha vida ao apostolado de Cristo, mas diante de tudo o que tenho visto aqui neste orfanato, às vezes chego a pensar que deve mesmo, existir reencarnação, porque não encontro respostas para tanta coisa que vejo. Tanta criança abandonada, sem o carinho de uma mãe... dá o que pensar...
- Também estive pensando muito a esse respeito.
- Tem outra coisa, Maria Clara, até hoje não consigo entender a felicidade que senti quando a peguei no colo em frente ao portão do orfanato. Muitas crianças passaram por aqui. Gostei de todas e me dediquei com carinho, mas com você foi diferente. Será que é coisa de outra encarnação? Será que nos conhecemos antes?
- Não sei se acredito nessas coisas Irmã, mas se for verdade a senhora deve ter sido minha mãe.
- Devo ter sido mesmo.
Riram e se abraçaram. O tempo passou, Maria Clara procurou aprender tudo sobre reencarnação e aos poucos, foi se conformando em ser só. Passou a dedicar ainda mais suas horas de folga a ajudar a Irmã Maria Paula no orfanato. Estava, sempre que podia, ao lado das crianças dando-lhes amor e carinho. Em uma tarde enquanto trabalhava, sentiu uma dor de dente muito forte. Assim que terminou o expediente, foi ao dentista. Quando chegou, havia várias pessoas esperando. Sentou-se e ficou esperando a sua vez. Logo depois que chegou, entrou um rapaz que se sentou ao seu lado. Ela olhou para ele e sorriu. Depois de algum tempo, ele disse:
- Não entendo o que aconteceu. Hoje, do nada, meu dente começou a doer.
- O meu também. Achei estranho porque nunca deixei de cuidar dos meus dentes.
- Nem eu... é estranho mesmo. De qualquer maneira, estou feliz por ter vindo.
- Por quê?
- Porque pude conhecê-la. Meu nome é Pedro Henrique. Qual é o seu?
Ela sorriu e pegando na mão que ele lhe oferecia, respondeu:
- Maria Clara.
- Parece loucura, Maria Clara, mas assim que a vi me pareceu que já a conhecia há muito tempo, como isso é possível?
Ela, lembrando de tudo o que havia estudado sobre reencarnação, sorriu e respondeu:
- Talvez tenha sido em outra vida, não é?
- Sim, tem razão, talvez tenha sido em outra vida...
Gusmão e Matilde que estavam ali sorriram. Gusmão disse:
- Sofia está tendo outra chance, Matilde.
- Sim, Gusmão, Deus é mesmo um Pai amoroso e justo. Tomara que, desta vez, ela consiga...



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ZIBIA GASPARETTO














O FIO DO DESTINO

Ditado pelo espírito Lucius
(out/1988, 320 páginas)







Sinopse:

Em cada minuto, uma escolha. Em cada escolha,
um resultado. Em cada resultado, uma experiência.


Experimentar é viver.
No emaranhado das sensações, o reconhecimento
do poder de criar nossas próprias vivências, nos
limites das leis da vida.
Para uns é um jogo, para outros é carregar a
espada da luta no fio do destino.

ZIBIA GASPARETTO





Prólogo...









Hoje, após tantos anos, retorno ao antigo lar
abandonado, buscando encontrar ali as dulcíssimas
emoções de antanho. Entretanto, a poeira do tempo
varreu a sede das minhas lembranças e o progresso
estabeleceu novo ambiente no mesmo local.

A vida nos auxilia, oferecendo-nos oportunidade
de nos desapegarmos dos objetos, das formas
materiais, chamando-nos para a profundidade da
essência pura. Estabelecendo em nós apenas a
destilação dos nossos sentimentos, transforma-os
em precioso perfume.
Na tela de minha mente, deslizam nesta hora,
como o desenrolar de uma película cinematográfica,
todos os acontecimentos dramáticos e emotivos
vividos naqueles tempos, e – curiosa sensação –
meus sentimentos registram todas as emoções
passadas que pareciam adormecidas no
esquecimento, sepultadas pela constante
necessidade de superar o sofrimento, de aprimorar
o espírito, na luta, pela evolução.
As emoções se avolumam e eu, colocado frente
a frente com as recordações, vivo-as de novo, na


maratona maravilhosa e profunda da mente. Dir-se-
ia que, de repente, um véu tivesse sido retirado do
meu cérebro, desdobrando minha capacidade de
memória, retrocedendo no tempo, penetrando os
mistérios do passando, sentindo, como um
encantamento, as emoções de antanho.

Assim, continuo olhando dentro de mim, e rio
quando revivo um momento feliz; sofro e choro
quando revivo um trecho doloroso. Mas, apesar de
tudo, sinto útil esse mergulho no torvelinho das
lutas passadas, porque, agora, consciência um
pouco mais desperta do que então, vejo também os
erros cometidos, as atitudes impensadas e
imprudentes que tantos sofrimentos causaram mais
tarde. Contudo, na gloriosa apoteose da
introspecção emotiva, apesar dos múltiplos
sofrimentos revividos, uma luz nova e serena me
domina o ser, oferecendo-me uma segurança nunca
antes pressentida e uma profunda confiança no
futuro.
Dessa maneira, talvez minhas lembranças
possam ser úteis a outras criaturas, pela
experiência que representam, porque, na verdade,
poucos na vida terão amado, poucos não terão
confiado, poucos não terão sido traídos,
desprezados, adulados, perseguidos, e nenhum
certamente terá vivido sem o sofrimento.
Como as Leis que regem os destinos dos seres
são imutáveis porque perfeitas, a evolução do
espírito se processa lenta e seguramente. Na tela
das experiências de cada um os deslizes e as
conquistas se assemelham bastante. Por isso de
alguma valia será certamente a experiência de um
amigo que deseja de alguma forma perseverar no
bem e continua lutando duramente,
entusiasticamente, para sua libertação.


Estes são, pois os objetivos a que proponho
compondo esta obra.
Dissipar as ilusões e procurar mostrar a
realidade, porque, como já nos disse o excelso
mestre Jesus, .A verdade nos fará livres.







Capítulo I







A carruagem rodava mansamente,
bamboleando ao som cadenciado do matraquear
dos cascos dos animais que castigavam
ritmicamente as pedras do calçamento.
Paris, no ano de 1891, era uma bela cidade. As
crises políticas que atravessara na época das
mudanças de sistema de governo trouxeram, à
esplêndida capital, os homens mais eminentes, as
figuras mais respeitáveis do cenário cultural do país.
Era justo mesmo que a república, pela sua
maneira liberal de exercer o poder, favorecesse a
livre iniciativa, incentivando as pessoas cultas a
cerrarem fileiras nas disputas do Senado e da
Constituinte.
Alem disso, Paris continuava a manter sua
tradição em todo o mundo nos setores de elegância,
das artes e da literatura. Paris, no ano citado, era a
capital do mundo.
A noite estava cálida e bela. Pelas cortinas
abertas, suave aragem penetrava causando
agradável sensação. Eu, porém, um tanto
indiferente, permanecia sentado no banco acetinado
do carro, ligeiramente entediado.
Com vinte e cinco anos, esgotara toda a


capacidade emotiva que o dinheiro podia comprar.
Único filho homem de abastada família, tinha todos
os desejos satisfeitos.

As mulheres rodeavam-me, alimentando-me a
vaidade, e o espelho contava-me que era possuidor
de um tipo físico atraente. Alto, cabelos negros,
naturalmente ondulados, moreno pálido, barba
cerrada que, embora bem raspada, sombreava-me
o rosto, tornando-o másculo. O queixo, ligeiramente
pronunciado, denotava caráter dominante, e os
gestos, o tom de voz, revelavam o hábito de
ordenar.
Nem sempre eu fora um indiferente. Sensível e
emotivo, um tanto sentimental na adolescência,
fora-me modificando ao contato com a sociedade. O
excesso de facilidades que encontrava por toda
parte, na realização dos menores desejos, sepultava
os primeiros anseios, sob as frias cadeias sociais,
criadas pelas aparências.
Meus pais residiam em cidade próxima.
Afastara-me do lar para estudar e conseguir
bacharelar-me em leis. O sonho dos meus resumia-
se nesse diploma que, quando em minha primeira
juventude, eu transformara em ideal, mas agora,
cursando o quarto ano da Sorbonne, não lhe dava
grande importância.

Estudava, sim. Tinha até cerca facilidade para
aprender, mas a noção do ideal desvanecera-se.
Agora, queria terminar o curso para conseguir o
título de Doutor, cumprindo um dever de honra para
com os meus e satisfazendo também minha vaidade
de regressar vencedor.
Longe estava o tempo em que sonhara legislar
no Congresso, que idealizara trabalhar pelo bem-
estar da coletividade, dando-lhe leis mais sábias e
condizentes com as necessidades do progresso.


Distante estava de mim a lembrança dos ideais
sonhados. Dirigia-me à ópera para assistir a um
espetáculo de gala. Era a estréia de Madame
Germaine Latiell, soprano consagrada pela crítica
contemporânea, arrancando aplausos entusiastas
das mais seletas platéias do mundo.
Na realidade, eu não ia ao teatro propriamente
pela musica, nem pelo espetáculo em si, mas pelo
hábito social de aparecer sempre que alguma
estréia importante engalanasse os meios
representativos da alta sociedade de então.
Geralmente, comparecia sozinho a esses
espetáculos. Ocupava uma frisa bem localizada e
fleumaticamente assistia ao programa, sem muitos
arroubos e entusiasmo.

Apesar de estar constantemente envolvido em
aventuras amorosas, jamais comparecia em público
acompanhado, o que de certa forma criava ao meu
redor uma auréola de inconquistável.
Agradava-me mostrar-me indiferente, superior
e distante. Assim, com o decorrer de algum tempo,
tornei-me realmente insensível e, o que eu simulara
apenas por vaidade, acabou sepultando minha
sensibilidade, encobrindo-a.
Apesar disso, a bem da verdade devo
esclarecer que o traço marcante da minha
personalidade era a honestidade. Odiava mentir, e
jamais perdoava a quem errasse ou fraquejasse em
qualquer circunstância. Nesse particular era
irredutível.

Mas o indiferentismo com que me revestira
encobrindo as emoções, sufocando-as como
fraquezas condenáveis, tinha me tornado há vida
um pouco tediosa.
Dia a dia sentia-me mais sem vontade para
buscar o ideal da profissão que prazerosamente


resolvera seguir.
À força de tentar suplantar a maioria, de ser
auto-suficiente, arrojara de mim o desejo de
trabalhar em benefício da coletividade.
Por isso, dirigia-me ao teatro sem a alegria que
minha situação de moço rico e disputado, naquela
fase tão entusiasta da mocidade, deveria despertar.
Ouvindo o bimbalhar dos sinos da catedral,
senti-me um pouco inquieto. Não gostava de
atrasos. A falta de pontualidade parecia-me falta de
responsabilidade.
Felizmente, deveríamos estar perto já.
De fato, dali a instantes o cocheiro parou o
veículo e pressurosamente desceu da boléia para
abri a portinhola com a usual mesura.
Desci um tanto apressado, atirei-lhe algumas
moedas e a passos rápidos entrei no teatro.
Os corredores regurgitavam e ouvia-se um
zunzum de palestras a meia voz, de despedidas e
acenos, pois que as primeiras luzes já começavam a
ser apagadas lentamente, como de praxe.
Cumprimentando com ligeira inclinação de
cabeça alguns conhecidos que encontrei pelo
caminho, conseguir por fim chegar à porta do meu
camarote. Girando o trinco delicadamente, entrei.
Imediatamente senti-me contrariado. Vislumbrei um
pedaço brilhante de um rico vestido e parei
incontinenti. A dama virou surpreendida a cabeça
para a porta. Friamente desculpei-me e saí. Com
certeza entrara errado. Coisa muito desagradável,
mas que se justificava pela pressa com que
chegara.
Na porta estava o numero da frisa com meu
cartão fixado no lugar correspondente.
Minha irritação aumentou. Por lamentável
equívoco tinham ocupado meu camarote. E o


espetáculo já se ia iniciar.
Resolutamente retrocedi e entrei novamente na
frisa.

Situação desagradável pensou, principalmente
porque a dama estava só e seria indelicadeza de
minha parte manda-la sair.
Novamente ela me olhou, e desta vez pude
observar que era jovem. Seu olhar de altivez
parecia interrogativo. Senti-me como se eu fosse o
intruso. Sustentei seu olhar, que não se desviou.
Parecia esperar que eu explicasse minha presença
ali. Havia tanto orgulho naquele olhar que minha
irritação cresceu, e foi com secura que disse:
— Senhora, certamente não conseguiu encontrar
seu camarote e assim, acomodou-se no meu.
Permita-me que chame o cicerone para indicar-lhe
onde deverá acomodar-se.
Vi, apesar da obscuridade reinante no teatro,
que seu rosto coloriu-se e empalideceu
sucessivamente quanto seu olhar tornou-se mais
brilhante.
— Isto é um abuso intolerável! Como ousa dizer-me
tais palavras? Pensei que na França o cavalheirismo
tivesse sobrevivido no regime republicano. Enganei-
me! Peço-lhe que me liberte da sua presença.
Desejo assistir ao espetáculo sozinha!
Surdo rancor brotou dentro de mim. Petulante
jovem! Além de não se encabular com minha falta
de cortesia, me expulsava como a um criado!
Furioso, saí. O espetáculo estava começando. A
orquestra já tocava o prelúdio. Fui procurar o
gerente.
Assim que me viu, correu para mim com a mão
estendida.
— Sr. Jacques! Procurei-o por toda parte. Acreditei
que Vossa Senhoria não tivesse vindo hoje.


Aproveitei para desabafar meu mau humor.
— O que significa Sr. Latorre, o incidente desta
noite? Quem permitiu que meu camarote fosse
ocupado sem minha autorização, além do mais por
uma mulher?
— Para isso o procurava. Como não o vi entrar...
Fiquei na porta a espera até a poucos minutos.
Agarrando-me pelo braço, conduziu-me à
pequena sala onde estava situado seu gabinete,
enquanto dizia:

— Um caso desagradável, Sr. Jacques, mas não
tivemos culpa. Isso pode garantir. Existem
circunstancias às quais não conseguimos fugir.
Devemos a Vossa Senhoria nossas desculpas e
algumas explicações. Mas entremos em meu
gabinete. O que vou dizer não pode ser ouvido por
terceiros. Acomode-se, Se. Jacques.

Sentei-me visivelmente nervoso.
— Nada justifica sua falta de honestidade. Afinal já
havia reservado a frisa com bastante antecedência.
E por que preço!

Ouvindo a alusão ao preço, o gerente pareceu
ligeiramente embaraçado. É que se habituara a
negociar os melhores lugares, cedendo-os a quem
melhor lhos pagasse, embora o preço fosse, por lei,
taxado igualmente nos ingressos.
— Quanto a isso, podemos sanar as dificuldades,
devolveremos o seu dinheiro, como é justo.
Senti-me mais irritado. Levantei-me.
— Até agora não ouvi nada que explicasse o
acontecimento, a não ser que o senhor tenha
encontrado quem lhe oferecesse mais pela frisa e
tenha tido a desonestidade de vendê-la duas vezes!
Agarrando o assustado homenzinho pelo gasnete,
continuei:
— Mas isto irá ao conhecimento do chefe de polícia!


— Não, Sr. Jacques! Não faça isso! Quer arruinar-
me? Já disse que posso explicar tudo! Por favor!...
Largue-me. Deixe-me falar!...
— Está bem. Mas que sua explicação seja
satisfatória!
O Sr. Latorre tirou um lenço do bolso e
enxugou a testa molhada de suor.

— Eu bem sabia que este caso iria aborrecer-me.
Mas, Sr. Jacques, o senhor tem razão realmente. É
freqüentador habitual do teatro e sabe que jamais
houve caso semelhante! Acontece que hoje, pouco
antes de o espetáculo começar, recebi um portador
do governador ordenando que reservasse um lugar
especial para sua convidada. Com o devido respeito,
respondi-lhe que a casa já estava tomada e que não
seria mais possível a reserva do lugar. Irritado,
respondeu-me que o problema era meu e que eu
deveria solucioná-lo. Pode Vossa Senhoria calcular
minha situação! Tentei objetar ainda, mais meu
interlocutor foi positivo. Disse tratar-se de uma
nobre dama inglesa que viajava incógnita e que
manifestara o desejo de assistir ao espetáculo sem
que seu nome aparecesse. Disse-me ainda que meu
emprego na gerência do teatro dependia do
acolhimento que dispensasse à ilustre dama. Assim,
Sr. Jacques, começou esse problema. Pouco depois,
chegou a nobre senhora e disse-me que desejava
escolher um bom lugar! Oh, Sr. Jacques! Como se
fosse possível tal escolha! Mas ela me tratou como a
um lacaio e, ao chegar frente ao camarote de Vossa
Senhoria, disse-me:

.— Ficarei com este. Pode ir..
— Coloque-se em meu lugar, Sr. Jacques. O que
poderia fazer? Corri à porta para preveni-lo, mas
infelizmente nos desencontramos.
— É inacreditável! Se fosse à época da monarquia,


compreender-se-ia, mas hoje?! Em plena era
republicana! Pois fique sabendo, Sr. Latorre, que
não aceito esta imposição. Vim ao espetáculo e
paguei alto preço pelo meu lugar. Não há outra frisa
que essa senhora seja convidada a ocupar, portanto
consinto que ela assista ao espetáculo da minha
frisa, mas eu é que não ficarei sem assisti-lo. Vou
imediatamente para o meu lugar. A ópera já teve
início.
O gerente fez um gesto de impotência.
— Por favor, Sr. Jacques! Não me arruíne! Preciso
deste emprego! Estamos dispostos a devolver o
dinheiro, a reservar outro lugar graciosamente em
outro espetáculo. Faremos o que o senhor desejar!
— Nada disso, Sr. Latorre. Estamos em um país de
liberdade, onde o protecionismo e o abuso
acabaram. Vou assistir ao espetáculo da minha
frisa! Passe bem, Sr. Latorre!
Saí. Fechei a porta rapidamente para fugir aos
protestos e aos rogos do pobre homem.
Apressado, voltei ao meu camarote e, sem
bater levemente, como era de praxe, entrei.
A jovem senhora estava com o rosto voltado
para o palco e voltou-o para a porta e assim que
pressentiu minha presença. Percebi o pequeno
contrair de sobrancelhas e um ligeiro gesto de
contrariedade.
Senti-me mais calmo. Se aquela mulher
orgulhosa e pedante pensava fazer na França o que
certamente faria em sua terra, eu lhe provaria que
estava enganada.
Sentei-me em uma cadeira um passo atrás.
Mas do lado oposto ao seu. Olhou-me e murmurou
baixinho:
— O que significa isto? O senhor novamente?


Curvei ligeiramente a cabeça e respondi-lhe algo
irônico:
— Poderia pergunta-lhe a mesma coisa, uma vez
que esta frisa é minha. Entretanto, para que não
ajuíze mal do nosso cavalheirismo, vejo-me
constrangido a convidá-la a assistir daqui ao
espetáculo.
Seu olhar fuzilou-me rancoroso.
— Saia imediatamente! – Sua voz, que a raiva
parecia metalizar, soou autoritária.
— Pelo contrário, minha senhora, ficarei. Nada nem
ninguém me farão desistir do espetáculo.
— O senhor pagará por isso. No primeiro intervalo,
mandarei enxota-lo daqui.
— Se lhe agrada o escândalo, a mim não
impressiona nem molesta. Faça o que lhe parecer
melhor.
Ela nada mais disse. Voltou-se para frente e
pareceu concentrar toda sua atenção no palco.
Procurei fazer o mesmo, porém minha atenção
estava voltada para aquela mulher e
disfarçadamente busquei na semiobscuridade do
ambiente observa-la melhor.
Apesar de meu orgulho desejar encontrar nela
motivos de crítica, não pôde deixar de reconhecer a
beleza do seu perfil delicado, o belo tom dourado de
seus bastos cabelos, a classe, a distinção de suas
roupas e atitudes.
Com o decorrer dos minutos, cheguei a
esquecer o local onde nos encontrávamos.
Procurava estudar-lhe a fisionomia, que se
transformava extraordinariamente sentindo as
emoções do espetáculo.
Quem era aquela mulher?
Por que o incógnito? Alguma aventura de amor
ou alguma intriga política? Qual o mistério que a


envolvia? Devia ter muito prestigio. Suas maneiras
demonstravam que estava acostumada a mandar
sem restrições.
Criatura antipática. Merecia uma lição.
O pano baixou ao término do primeiro ato. As
luzes parcialmente se acenderam e ela levantou-se
arrepanhando a saia com um gesto gracioso.
Lançando-me um olhar rancoroso, saiu do
camarote.
Remexi-me no lugar. Aonde teria ido?

Levantei-me e dirigi-me ao fumoir. Alguns
amigos me cercaram imediatamente.
— Jacques. Quem é aquela?
— Criatura admirável!
— Como é linda!
— Onde a descobriu?
Irritado com a avalancha de perguntas,
principalmente porque a elogiavam tanto, respondi
mal-humorado e de maneira evasiva. Minha atitude
provocou da parte deles protestos e risadas.
— Quer ocultar-nos, hein?
— Não confia nos amigos?
— Nós descobriremos tudo, pode deixar.
— Não estranhem companheiros. Jacques é o
homem dos mistérios.
Escondi meu aborrecimento. Seria pior se eles o
notassem. Depois de alguns minutos de palestras,
que procurei cuidadosamente desviar da ilustre
desconhecida, retornei ao camarote. Estava vazio.
Esperei enervado que a musica reiniciasse. De
repente, notei que o programa era insípido. Irritante
mesmo. Tive ímpetos de sair, ir-me embora.
Mas... E se ela voltasse? Haveria de rir-se de
mim, julgando-me derrotado. Contudo os minutos
se escoavam e ela não voltava. Teria ido embora?
Nesse caso, perdera para mim. Meu orgulho sentia-


se satisfeito. Apesar disso, ao menor ruído, voltava-
me para a porta sobressaltado.
Ao término do segundo ato, eu já não tinha
mais duvidas: ela havia se retirado. Saí para o
corredor, que regurgitava.
Comentava-se o sucesso da estreante. Alguns
conhecidos perguntaram minha opinião. Era exímio
em matéria de crítica teatral. Embaraçado, notei
que nem sequer prestara atenção ao espetáculo. À
noite para mim não fora agradável. Apenas por uma
questão de hábito assistira até o final.
Sentia-me contrariado. Não estava acostumado
a ser tratado com tal rudeza. Aquela mulher
preferira sair, perder o espetáculo, que tanto prazer
parecia lhe causar, a permanecer comigo por mais
tempo dentro da frisa.

Contudo, experimentava também alguma
alegria: eu a trato com uma dureza que certamente
ela não conhecia. Estávamos quites.
Saí do teatro assim que o pano baixou. Recusei
alguns convites para cear com amigos. Fui para
casa.









Capítulo II







Durante os dias que se seguiram fui
envolvido por uma série de compromissos.
Não tinha tempo de meditar sobre a
ocorrência do teatro e quase a esqueci.
O ano letivo estava no fim e eu precisava
estudar para vencer os exames.


O incidente do teatro, visto agora, já com
mais serenidade, provocava-me o riso pelo
que tinha de grotesco. Somente a curiosidade
fazia-me recordar a figura da desconhecida.
Qual a sua identidade?
No tempo da monarquia e do império, as
ligações amorosas e escandalosas dos mais
nobres senhores do poder se multiplicavam, e
até nossos dias chegam às notícias sobre as
favoritas da corte. Com o advento da
república, apenas os homens tinham sido
substituídos, porque os chefes de governo
continuavam também a manter as suas
concubinas, dando-lhes autoridade e prestígio.
Poderia aquela mulher ser também uma
daquelas? Jamais conseguiria saber.
Passei nos exames e numa fria manhã de
inverno viajei rumo à casa paterna.
Ia satisfeito e orgulhoso. Rever os meus e
ao mesmo tempo apresentar-lhes as boas
notas conquistadas. Mais dois anos e estaria
bacharel! Doutor! Depois, bem... depois
resolveria que rumo dar à minha vida.
Quando a carruagem parou frente aos
portões de nossa casa, estes abriram-se de
par em par. Escrevera avisando-os da minha
chegada. Era esperado certamente.
Foi com alegria que revi os belos jardins
da minha infância. Na entrada do antigo, mas
confortável palácio, rostos amigos e
carinhosos me esperavam.


Minha mãe, senhora que os anos não
conseguiram envelhecer, ereta e altiva, como
sempre, apareceu na soleira. Esperou que eu
a abraçasse e deu-me as boas-vindas.
Assim era minha mãe. Boa criatura, mas
um tanto inibida para demonstrar sua
afetividade. Não acariciava nunca, mas eu
sabia que adorava ser acariciada. Muito
cumpridora dos seus deveres para o lar e a
família. Pelos seus olhos passou um lampejo
de ternura quando a abracei.
Minha jovem irmã correu para mim,
apertando-me nos braços, beijando-me
carinhosamente nas faces.
Lenice era o oposto de minha mãe. Seu
temperamento afetuoso e amigo expandia-se
com facilidade, demonstrando claramente a
sensibilidade emotiva do seu espírito.
— E papai? — Indaguei, procurando descobri-
lo com olhar.
— Precisou sair muito cedo, mas logo estará
de volta. Agora vamos, filho precisa comer
alguma coisa e descansar.
Sorri. A viagem fora curta e não havia
necessidade de repouso. Pelo contrário,
desejava rever os pormenores de minha
infância, percorrendo meus sítios preferidos.
Porém eu já não era a criança de
antigamente e não podia correr como um
garoto pelas dependências amigas.
Contive a impaciência e entramos na casa.
Nada mudara! O ambiente familiar


permanecera inalterado. Os mesmos móveis
antigos dispostos da mesma maneira, os belos
castiçais de prata luzindo impecáveis, os
cristais e os bibelôs brilhando como sempre e
o agradável odor característico de açafrão do
qual mamãe tanto gostava.
Tomamos chá com bolos na sala de estar
e palestramos agradavelmente.
Somente ao jantar foi que revi a figura
ereta e nobre do meu querido pai. Ele
pareceu-me um tanto mudado. Um pouco
mais envelhecido, talvez.
Mas sorriu e palestrou normalmente
conosco, inteirando-se das minhas atividades
na capital.
Apesar da sua austeridade, meu pai era
um homem bom e compreensivo.
Descendente de família nobre estirpe, soubera
amoldar-se aos costumes modernos e,
lançando-se no mundo das altas finanças,
conseguira multiplicar o exíguo patrimônio da
família.

Se for verdade que os abusos da corte da
monarquia e no império deram lugar às
loucuras e à sanha revolucionária, onde a
ignorância comandava as massas e por essa
circunstancia criaturas incultas viram-se
guindados a altos postos administrativos,
passados alguns anos, serenados os ânimos,
pesadas as conseqüências, gradativamente, e
por lógica cultural, os homens cultos e
competentes foram sendo procurados e


recolocados frente às responsabilidades
administrativas.
Assim, apesar de tudo, voltava o poder às
mãos da elite do país. O que é natural, porque
os pobres de então eram miseráveis demais e
embrutecidos pelos trabalhos rudes. A classe
média possuía, em sua maioria, uma
estreiteza de vistas meramente deplorável,
deliberadamente combatendo a educação e o
progresso.
Nossa família era, pois muito conceituada
e papai um homem efetivamente culto e
respeitado.
Também aprendêramos a respeitá-lo
dentro do lar. Suas palavras compreensivas e
serenas eram sempre acatadas sem
discussões.
Às nove horas subi ao meu aposento para
dormir. Um bem-estar agradável me
dominava pelo regresso ao lar, e eu
antegozava já as delícias de um bom sono na
velha cama macia.
Entrei. Os objetos de uso pessoal que
trouxera já haviam sido dispostos nos lugares
usuais e a roupa arrumada nas gavetas.
Preparei-me e deitei. Dormir.
Pouco depois acordei sobressaltado:
alguém batia apressado na porta do meu
quarto.
Meio entontecido ainda, fui abrir. Marie, a
velha e dedicada serva, parecia transtornada.
— Sr. Jacques!... Sr. Jacques! Depressa... Por


favor, depressa!!
— O que houve Marie? Que aconteceu?
— Oh! O Sr. Latour! Foi acometido de um
ataque!
Senti um frio incontrolável, enquanto meu
estômago revoltava-se. Sem ouvir mais nada,
avancei pelo corredor escuro e em poucos
instantes alcancei os aposentos de meus pais.
Empurrei a porta entreaberta e angustiado
vislumbrei a cena dolorosa:

Meu pai, sentado sobre a poltrona, cabeça
pendendo para frente, braços abandonados e
inertes ao longo das partes laterais da
cadeira.
Minha mãe, em trajes de dormir, pálida e
aflita, chamando-o pelo nome, friccionando-
lhes as mãos, a testa, numa tentativa
desesperada para reanimá-lo. No banquinho a
seus pés, minha irmã, longas tranças,
pendentes descuidadas sobre a camisa azul,
não conseguia dominar o pranto.
Avancei, sentindo aumentar meu mal-
estar.
— O que houve, mamãe?
— Não sei explicar. Ele parecia bem.
Conversávamos em voz alta, eu no quarto de
dormir, ele aqui. Disse-me que precisava
tratar de um assunto urgente e que ainda se
demoraria em deitar. Pouco depois, chamou-
me com voz rouca e aflita. Quando entrei na
sala, já o encontrei caído na poltrona. Fiz o
possível para reanimá-lo. Martin já foi


procurar o doutor Flaubert.
Levantei o rosto tão querido de meu pai.
Estava com olhos entreabertos, boca cerrada
fortemente, corpo gelado e endurecido.
Senti-me aterrado. Jamais presenciara
cenas dolorosas. Fugia das doenças e dos
doentes com verdadeiro terror, não por
covardia propriamente, mas por sentir-me
impotente para sanar o mal e desgostava-me
o sofrimento humano.
— Acho melhor remove-lo para a cama –
volveu minha mãe. – Afrouxando a roupa,
deixando-o mais descansado, quem sabe
melhorará.
Com muito esforço, conseguimos
transporta-lo para sua cama e mudar-lhe a
roupa.

Quando chegou o médico, três pares de
olhos ansiosos aguardavam o diagnóstico.
— Congestão cerebral — disse-nos o doutor
Flaubert um tanto preocupado.
A moléstia era muito grave.
Nos dias que se seguiram, lutamos
desesperadamente para vencê-la, mas não
conseguimos.
Após vinte dias de vigília e sofrimento,
meu pai se foi, deixando-nos sós com a nossa
dor.

Contara passar dias alegres juntos aos
meus e encontrara dor e sofrimento.
Meu pai permanecera quase todo o tempo
inconsciente, tendo tido poucos instantes de


lucidez, quando nos olhava com tristeza
infinita. Nessas ocasiões, demonstrava desejo
de falar, mais não conseguia.
Dias após o seu passamento, recebi a
visita do procurador que administrava nossos
haveres, naturalmente dirigido por meu pai.
Foi então que compreendemos a causa da
súbita moléstia que o acometera. Seus
últimos empreendimentos, malsucedidos,
haviam consumido quase todo o patrimônio
que ele em outros tempos fizera multiplicar.
Feitas as contas, os acertos, verificamos
que ficáramos reduzidos a pouca coisa, que
certamente não daria para manter o nível de
vida ao qual nos habituáramos.
Fora naturalmente essa certeza que o
preocupara, forçando-o a arriscar vultosas
quantias em negócios poucos seguros, mas
que representavam única oportunidade para
uma recuperação.
Quando finalmente viu inutilizada sua
ultima esperança, ao tomar conhecimento
dessa notícia, sua comoção foi tão forte que o
abateu.
Reunidos em nossa bela sala de estar,
mamãe, minha irmã e eu procurávamos dar
um rumo a traçar planos para nosso futuro.
Minha mãe, triste mas resoluta, resolveu:
— Venderemos esta casa, iremos para uma
menor. Talvez em Paris. Assim pouparemos
maiores despesas com seu alojamento e
estaremos reunidos.


— Mas, mamãe, talvez agora eu já não possa
estudar.
— Nem pense nisso, meu filho. Agora mais do
que nunca você precisa conquistar o diploma.
Depois, seu pai queria vê-lo formado.
A idéia de minha mãe não me seduzia. Eu
estava profundamente humilhado com o golpe
que recebera. Ser pobre era pior do que ser
doente. Morar em uma casa modesta, não
poder mais freqüentas os teatros e os lugares
elegantes e, principalmente, descer da posição
excepcional em que me colocara frente às
minhas relações, era-me bastante doloroso.

Eu jamais pensara na possibilidade de ter
que modificar minha maneira de ser. Naquela
ocasião, preferia abandonar tudo, seguir para
um lugar qualquer, onde não fosse conhecido,
para então começar vida nova.
Por isso não concordei com as palavras
sensatas de minha mãe.
Lenice, calada e abatida, nada dizia.
Também seria forçada a deixar uma série de
coisas às quais estava habituada. Suas
amizades, a casa da qual tanto gostava o
conforto e as alegrias de uma vida
despreocupada.
— Não, minha mãe. A vida em Paris é difícil,
nós não nos habituaríamos lá sem dinheiro.
Precisamos encontrar outra solução.
— Mas...Qual? Nossos recursos não nos
permitem manter esta casa.
— Talvez possamos encontrar uma solução


sem precisarmos vendê-la.
— Acho difícil. Temos muitas dívidas, e o que
possuímos não dará para cobri-las.
— Deixe-me pensar, mamãe. Dê-me tempo, e
quem sabe resolveremos a questão.
Certamente poderemos convencer alguns
credores a esperar. Tudo faremos para não
vender esta casa, que tão cara é ao nosso
coração.
Minha mãe ouviu pensativa. Seu traje
negro e severo acentuava a palidez e o
abatimento da sua fisionomia, mas em seu
olhar havia determinação e um lampejo de
esperança.
— Acho difícil. Contudo, poderemos
contemporizar por mais alguns dias.
— Enquanto isso, mamãe, poderei estudar
bem nossa situação. Verificar os documentos
e os livros de papai. Haveremos de encontrar
solução. Vou agora mesmo ao seu gabinete.
Levantei-me animado por uma onda de
energia.
Mergulhei no estudo daqueles documentos,
procurando balancear a situação, que
realmente era precária.
Idealizei um plano para conseguir
apaziguar nossos maiores credores.
Devíamos vultosas quantias a dos homens
importantes no cenário político: Sr. Marcel
Martin, secretario geral da Republique Societé,
e Sr. Jean Leterre, presidente do senado


republicano. Os outros eram dividas menores
e mais fáceis de prorrogar.

Conhecia pessoalmente os dois grandes
credores. Contava de alguma sorte conseguir
prazo para reorganizar os negócios da família.
Pensava vender algumas propriedades
para fazer frente às primeiras despesas e com
o tempo saldar os compromissos sem
desfazer-me porém da nossa casa, onde
conhecêramos felizes momentos de uma
ventura terna e serena.
No dia seguinte pela manhã, chamei o
notário e juntos estudamos as condições
básicas.
Feitos os cálculos, ainda que tudo saísse a
contento, ficaríamos praticamente sem nada.
Somente poderíamos conservar a casa se
saldássemos a hipoteca que pesava sobre ela.
Senti que a batalha seria hercúlea. Porém
o horror à pobreza e ao descrédito perante a
sociedade na qual eu continuava a brilhar nos
primeiros lugares deu-me coragem para
tentar o impossível.
Participei aos meus a resolução tomada.
Minha mãe, cujo luto fechado tornara ainda
mais pálida, levantou a cabeça fitando-me
com o olhar firme:
— Você faz muito bem. É jovem, pode e deve
lutar. Farei o que puder para ajudá-lo. Lenice
não irá mais estudar. Precisamos conter os
gastos.
Senti brotar em mim surda revolta, ao


pensar na dura realidade. Pobre Lenice!
Sempre gostara de estudar. Colocava nisto
toda sua vontade jovem e era aluna bastante
aplicada.
— Talvez não seja preciso – retruquei
indeciso.
— Não podemos continuar só gastando.
Resta-nos pouco dinheiro. Quando acabar,
nem sei o que faremos!
Lenice colocou docemente a sua mão
delicada sobre o meu braço.
— Não se preocupe por isso. Nossa situação
será temporária, bem sei. Quando as coisas
melhorarem, continuarei meus estudos.
Aceitei a renúncia de minha irmã com
naturalidade. Eu estava habituado a que os
outros se sacrificassem por mim. Sempre
exigira o melhor em tudo e achei normal a
atitude de Lenice.

Arrumei minha bagagem e na manhã
seguinte retornei a paris. Sabia que minha
situação era difícil. Mas eu não pensava em
um possível fracasso. Nem por um instante
permiti que esse pensamento me dominasse.







Capítulo III





No dia imediato, ao entardecer, fui à
residência do Sr. Martin. Tratava-se de um


homem alto, um tanto forte, cabelos
grisalhos, quase brancos, suíças alongadas,
rosto corado, maçãs salientes algo lustrosos
olhos pequenos, belicosos.
Vestia-se vaidosamente no rigor da moda
e estava sempre envolvido em aventuras
galantes.
Vindo de família humilde que se tornara
rapidamente rica nos dias negros da evolução,
orgulhava-se dos serviços dos seus
antepassados. Possuía grande coleção de
objetos, suvenires revolucionários que exibia
prazerosamente.
Alguns gostam de exibir seus nomes
ilustres; como não possuía, Martin exibia
façanhas dos seus familiares na sangrenta
luta como mérito próprio e pessoal.
Recebeu-me com amabilidades. Um pouco
humilhado pela dureza da situação que me
colocava em posição subalterna, após as
saudações iniciais, entrou no assunto.
— Sr. Martin vim procurá-lo para tratar de um
assunto muito sério.
Martin fixou-me um pouco solene.
— Já esperava pela sua visita. Ser-me-ia
sumamente desagradável ter que procura-lo
para tratarmos desse assunto.
— Sei o meu dever, senhor. Sou agora o chefe
da família. Devo gerir os negócios.
Infelizmente, meu pai ocultou-me a real
situação dos nossos haveres, o que de certa
forma vem dificultar a solução imediata dos


compromissos por ele assumidos.
O Sr. Martin levantou-se da cadeira
pensativo e com significativa ruga no centro
da testa.
A certa altura, parou e disse olhando-me
fixamente:
— O que significam suas palavras?

— Significam que vim procurá-lo para juntos
estudarmos a melhor maneira de liquidarmos
esse compromisso. Espero que o senhor
compreenda e conceda certo prazo para
pagamento da dívida.
O Sr. Martin permaneceu pensativo por
alguns instantes, torcendo fleumaticamente a
ponta do bigode.
— Sr. Jacques, o que me pede é impossível.
Preciso receber logo o dinheiro. Depois...
Quais as garantias que me pode oferecer? Sei
que o Sr. Latour morreu completamente
arruinado.
Era a primeira vez que eu tinha que
suportar tal humilhação.
O sangue fugiu-me do rosto enquanto
ligeira tontura me turvou a mente. Senti um
desejo violento de ter o dinheiro, ali, naquele
momento, para atirá-lo ao rosto do Sr. Martin.
Mas eu não possuía. Duzentos mil francos era
muito dinheiro para mim naquela
circunstância.
Contive minha ira, procurando manter o
sangue-frio. Fora até ali resolvido a tirar
vantagens, não a brigar.


Por isso, procurando tornar firme a voz
que a ira fazia tremer, eu respondi:
— Dou-lhe a garantia da minha palavra. Não
lhe basta? Pretendo lutar e restabelecer o
patrimônio da família.
O Sr. Martin olhou-me sério a principio,
depois desatou a rir. Seu riso encheu-me o
coração de amargura e de humilhação.
— Ora, Sr. Jacques! Se o Sr. Latour, com toda
sua capacidade e competência, não conseguiu
refazer sua fortuna, como o conseguirá o
senhor, jovem, inexperiente, simples
estudante? Embora o senhor trabalhe muito,
jamais conseguirá o suficiente para manter-se
no luxo e no desperdício a que se habituou.
Como fazer para pagar tantas dívidas?
— Acredito que o senhor não esteja bem
informado quanto à nossa situação financeira.
Devemos boa soma, é verdade, mas
possuímos muitas propriedades. Embora
tenhamos que nos desfazer de algumas,
pensamos conservar outras, cujos
rendimentos serão acumulados para
pagamento das dívidas restantes. Preciso
apenas de certo prazo. Vim aqui para dizer-
lhe isto. Pagarei tudo.

— Meu rapaz, poderíamos fazer um arranjo.
Gostaria de comprar o castelo Latour. Pagarei
boa soma por ele. Sempre desejei possuir
uma casa como aquela. Levarei para lá minha
Marie Louise. É o Maximo que posso fazer por
você.


— Não penso vender a casa de minha família.
Sr. Martin. Ela nos é muito cara. Nenhum
dinheiro do mundo pagaria o quanto vale para
nós.
— Sr. Jacques, sentimentalismo não vai
ajudá-lo a resolver seus problemas. Somente
os ricos podem dar-se ao luxo de serem
sentimentais. Os outros têm que usar o
raciocínio. O que lhe proponho é um bom
negócio. É só o que posso fazer pelo senhor.
Quanto ao mais, espero que os títulos sejam
resgatados na época certa. Caso contrario, irei
ao Palácio da Justiça. Aguardarei uma
resposta sua. Faltam só oito dias para o
vencimento da dívida.

Talvez que meu rosto de certa forma
retratasse o que me ia à alma, a avalancha de
emoções às quais não estava habituado,
porque meu interlocutor olhou-me com certo
ar de comiseração ou talvez de zombaria:
— Pobre rapaz! Com a sua aparência e seu
nome de família talvez pudesse arrumar um
casamento rico. Seria a única solução. Por que
não tenta?
Súbito rubor invadiu-me as faces. A
indignação era tanta que me levantei. Com
ligeiro censo despedi-me dizendo
simplesmente:
— Dentro de oito dias trarei a sua resposta.
Saí de casa de Martin completamente
aturdido. Aquele homem inspirava-me fundo
sentimento de repulsa. Comprar nossa casa.


Ele, um homem sem escrúpulos e sem
nobreza. E o que era pior: levar para lá sua
última conquista!
Eu aprendera a respeitar nossa casa como
um santuário. Papai tinha verdadeira adoração
pela propriedade que há muitos anos era
patrimônio da família. Como permitir que
outrem a desrespeitasse? Ademais, nos
últimos tempos, eu levara uma vida boêmia,
devassa talvez, como era comum a um jovem
estudante como eu. Conhecera sórdidos
ambientes, sórdidas criaturas, mas, apesar da
descrença e da indiferença que esses
ambientes provocaram em mim, havia sempre
no fundo do meu eu, da minha maneira de
ser, um pouco da pureza e da ingenuidade na
consideração e no respeito que dispensava à
nossa casa e ao nosso ambiente doméstico.

Quando o tédio e o nojo da vida que eu
levava em Paris me aborreciam, passava
alguns dias em casa dos meus pais e, ao
voltar para a cidade, vinha renovado e sereno.
Em suma, aquela casa representava para
mim um local de refazimento, de erguimento
espiritual, tinha o condão de devolver-me a
dignidade.
Essa era a razão de eu não desejar
desfazer-me dela. Vê-la ocupada por
estranhos, que profanariam suas
dependências, transformando-a em local
diferente, modificando-lhe o familiar e
costumeiro aspecto, era-me insuportável.


Era como se me quisessem roubar o
último reduto de ingenuidade, de confiança e
de dignidade.
Onde correr quando me sentisse
deprimido e descrente? Onde buscar a pureza,
a infância senão na querida casa onde passara
os melhores anos de minha vida?
Lutaria com todas as minhas forças, faria
qualquer coisa para não ser despojado da
nossa casa.
A cabeça estalava-me de dor. Eu
caminhava pelas ruas, revoltado, indiferente,
voltando às minhas preocupações. Depois de
andar durante algum tempo, fui para casa.
Nem por um instante deixei de pensar no
caso. Precisava arranjar solução, o que me
parecia difícil.
No dia seguinte, pela manhã, resolvi ir à
casa do Sr. Jean Leterre, a quem devíamos a
polpuda soma de trezentos mil francos. Quem
sabe com ele teria melhor sorte.
A residência do Sr. Leterre situava-se em
St. Paul, bairro fino e aristocrático. Ao
contrario do Sr. Martin, Leterre procedia de
família nobre. Tinha a classe, a distinção que
somente às pessoas de fino trato possuem.
Alto, esbelto, ereto apesar dos anos,
cabelos grisalhos, rosto sombreado por
generosa barba também grisalha e dois olhos
negros firmes e altivos. Eis a figura do homem
que eu devia enfrentar.
Seu palácio, elegante, sóbrio e mobiliado


com um luxo discreto, produziu-me a
sensação de ordem e eficiência.
Contribuiu de certa forma para serenar
um pouco a minha mente.

Circunspecto e atencioso, criado
conduziram-me até o gabinete do Sr. Jean.
— Queira acomodar-se, excelência. O Sr.
Leterre virá em seguida.
Apesar das preocupações que me
envolviam, pude observar a elegância e o
conforto da sala onde me encontrava.
Admirei com o olhar a bela escrivaninha
ricamente lavrada, os candelabros de prata,
as belas poltronas, os livros finamente
encadernados colocados em estantes
caprichosamente trabalhadas. Foi então que
deparei com um quadro que me chamou
especial atenção.
Surpreso, levantei-me, aproximando-me
do retrato. Não contive uma exclamação de
estupor: a moça do quadro era a mesma que
eu conhecera no teatro. O mesmo rosto
delicado e altivo, a mesma expressão
orgulhosa luzindo no olhar firme.
Como e por que teria o Sr. Leterre o
retrato daquela mulher? Seria seu parente?
Afastei logo essa idéia. Ele era francês e
de origem tradicional; a jovem era inglesa.
Também não poderia ser uma aventura
amorosa. Um homem sóbrio como Leterre não
a colocaria em seu gabinete.
Tão entretido estava que me sobressaltou


ouvir um seco pigarro. Voltei-me um tanto
embaraçado.
— Perdão, Sr. Leterre. Estava admirando tão
lindo quadro que nem o vi chegar.
O outro respondeu-me com ligeiro aceno
de cortesia.
O Sr. Leterre não era muito prolixo. Só
usava as palavras quando necessárias.
— Queira acomodar-se. Sr. Latour.
Sentei-me na elegante poltrona à frente
da imponente escrivaninha, por trás da qual
por sua vez sentou-se o meu interlocutor.
Olhava-me fixamente, esperando que eu
falasse.
Senti-me pouco à vontade. Infelizmente o
assunto era bastante desagradável para mim.
Criando coragem, comecei:
— Sr. Leterre, vim procurá-lo para tratarmos
de negócios.
O outro balançou a cabeça em afirmativa.
Sua atitude não era de molde a me ajudar.
Entretanto, continuei:

— Sabe o senhor do súbito falecimento do
meu genitor. Vim para lhe dizer que não
poderemos saldar no prazo marcado nossa
dívida para consigo...
O Sr. Leterre ouviu impassível. Apenas
ligeiro arquear de sobrancelhas, nada disse.
Era exasperante o seu silencio.
Apressadamente continuei:
— Entretanto, trata-se de uma fase apenas.
Espero vencer todas as dificuldades dentro de


pouco tempo. Conto com sua compreensão.
Desejo que nos conceda prorrogação do
vencimento.
— O que me pede é impossível! O bom nome
de sua família e o prestigio pessoal do Sr.
Latour possibilitaram-me utilizar os
documentos em meu poder, negociando-os.
Não podia esperar que o eficiente Sr. Latour,
a quem os melhores banqueiros e financistas
procuravam imitar nos negócios, viesse a
fracassar. Da maneira em que estão os meus
negócios, sou eu o responsável perante
terceiros por essa dívida. Se os senhores não
pagarem, terei meu nome seriamente
comprometido.
Vendo que não conseguia o adiamento
desejado; não pude controlar minhas
palavras.
— De qualquer forma, não posso pagar no
prazo estipulado. Se concordasse em conceder
a prorrogação, teria chance de receber tudo.
Assim, arrisca-se a perder.
— O senhor se engana. Quanto mais tempo
passar, menos restará para ser arrecadado
em pagamento da dívida. O senhor está
habituado a uma vida faustosa, sua família
também. Como ninguém trabalha, está claro
que o patrimônio que ainda resta irá sendo
consumido. Portanto, quanto antes
realizarmos o acerto, melhor para mim.
Eu, me que levantara no ardor da
palestra, deixei-me cair, arrasado, sobre a


cadeira.
Compreendia que ele tinha razão.

— O senhor está enfrentando o problema de
maneira errada. O prazo não irá ajudá-lo. Pelo
contrário: o senhor passará a viver na ilusão
do passado e quando acordar estará em
piores condições. Sei a situação em que estão
os negócios de sua família. Informei-me muito
bem. Não lhe resta senão uma saída:
enfrentar corajosamente a ruína. Vender tudo.
Apurar o máximo que puder. Saldar os mais
prementes compromissos em primeiro lugar e
procurar trabalhar para ganhar o sustento dos
seus. O senhor é estudante. Possui cultura.
Não lhe será difícil arranja um bom emprego.
O importante é conservar impoluta a honra da
família.

Num gesto de desespero afundou a
cabeça entre as mãos. Sentia o rosto
enrubescido pela humilhação.
— Depois – continuou ele -, com seu esforço
poderá reconstruir seu patrimônio.
A perspectiva era-me muito desagradável.
Nas presentes condições eu deveria sujeitar-
me a um patrão e de maneira alguma
suportaria essa dependência. Trabalhar não
era vergonha, mas desde que fosse como
chefe, dirigindo. Em condições subalternas, eu
nem sequer cogitava faze-lo. Entretanto, as
palavras de Leterre retratavam a dura
realidade. Foi isto o que mais me feriu.
Permaneci por algum tempo cabisbaixo,


rosto enterrado nas mãos, pensamentos
febricitantes povoando-me a mente.
Realizei vigoroso esforço para dominar a
avalancha de sentimentos desordenados que
me perturbavam. Por fim, levantei o rosto um
tanto contraído e fitei a fisionomia austera do
meu interlocutor. Estava séria. Um brilho de
energia e determinação fulgia em seu olhar.
— O senhor está me levando ao extremo
desespero. Sem o prazo de que eu preciso.
Não poderei saldar o compromisso, o que
representa sem dúvida a mais completa ruína.
Não sei se terei forças para suportar este
estado de coisas.
Aflito, levantei-me da cadeira e num gesto
um tanto dramático completei:
— Talvez a morte seja a solução para todos os
meus problemas.
— Mais uma vez o senhor se engana. A morte
é a solução dos covardes! Na sua situação,
ainda será pior. Sua mãe e sua irmã ficarão
em piores condições do que estão.
As palavras de Leterre aumentaram minha
irritação. Comecei a pensar que ele estava
querendo aproveitar-se da minha situação de
inferioridade. Meus brios se acenderam,
obrigando-me a controlar as emoções.
— Quer dizer que não concederá uma
prorrogação ?

— Não posso.
— Neste caso, devo retirar-me. Passar bem,
Sr. Leterre.


O outro inclinou a cabeça silenciosamente.
Saí. Minha cabeça doía terrivelmente.
Estava tudo perdido! A última esperança
diluíra-se.
Entretanto, precisava encontrar solução!
Não podia aceitar a realidade passivamente.
Não queria pensar na dura e adversa ruína
financeira, não desejava intimamente
enfrenta-la.
Envolvido pelos mais contraditórios
pensamentos, caminhei a esmo pelas ruas do
aristocrático bairro onde residia o Sr. Leterre.
Ia indiferente a tudo o que me cercava,
imerso na angústia da própria impotência
frente aos fatos. As ruas um tanto
enlameadas naquela época do ano, um
inverno triste e cinzento salpicavam minhas
elegantes e luzidas botinas. O vento frio
assanhava-me os cabelos e batia contra meu
rosto de maneira irritante.
Mas eu prosseguia, aturdido e excitado,
pensando, pensando, na ânsia de resolver o
trágico problema.
Após horas de inútil caminhada, fui para
casa. Sentia-me cansando e faminto.
Era já noite. Passara o dia inteiro andando
pelas ruas.
Meu aspecto em desalinho e a expressão
trágica do meu rosto causaram estranheza em
alguns vizinho que me viram chegar. Isso me
aborreceu ainda mais. Fui precipitadamente
para não ser forçado a dar explicações.


No quarto, atirei-me ao leito e não me
envergonho de confessar que chorei.
Eu não fora preparado para enfrentar a
vida. A educação que recebera fora sempre no
sentido de saber mandar, saber gastar e saber
aparentar. Julgara-me sempre um ser
superior aos demais. Não possuía, por isso,
noção da vida como é na realidade. Não
compreendia que há mais coragem e valor em
saber obedecer do que em saber mandar. Que
há menos responsabilidade em ser conduzido
do que conduzir.
Atirado de repente a uma situação de
inferioridade financeira, não tive forças para
compreender. A inferioridade do subalterno,
para mim, era sinônimo de incapacidade.
Doía-me o simples pensamento de que me
veria da contingência de procurar um
emprego.

A má vontade dos nossos credores em
conceder o prazo que eu pedira parecia-me
perseguição e deliberação em arruinar-me.
Odiei aqueles dois homens com intensidade.
Pensava, no delírio incessante em que me
achava possuído, que eles tentavam espoliar-
me.
No paroxismo da angústia, prometi a mim
mesmo que muito trabalho lhes daria para
receber o dinheiro.
Eu era quase um doutor em leis.
Conhecia-as a fundo. Sabia lidar com a
justiça.


Dali em diante nada mais me importava
senão evitar a todo custo entregar-lhes os
meus bens.
Faria isso mesmo que tivesse que mentir,
enganar, caluniar, alterar documentos,
falsificar.
Eu, que condenava sempre os que
erravam, que detestava a mentira, frente à
pobreza esquecia-me de todos esses
pensamentos, base marcante da minha
personalidade até ali.
Mas a luta moral fora muito forte para
mim e ao meu redor só via os dois homens
que visitara como inimigos comprazendo-se
com minha desgraça.
Então, percebi que nada mais restava a
fazer em Paris. As aulas ainda não se haviam
reiniciado e eu precisava organizar outros
planos para a luta. Minha honra de cavalheiro
exigia que eu entregasse aos credores todos
os haveres. Porém, iludindo-os, poderia
ganhar tempo.
O bom nome da família ajudaria a
conseguir dinheiro e talvez pudéssemos viver
assim durante algum tempo, o suficiente para
que eu me formasse.
Passei a noite insone, revolvendo-me no
leito, a mente voltada aos últimos
acontecimentos.
No dia seguinte, voltei para casa.
Durante a viagem, as palavras duras do
Sr. Leterre martelavam insistentemente o


meu cérebro, implacáveis, porque sentia-as
verdadeiras. Entretanto, eu só sabia ver na
sua atitude a má-fé e o prazer de tripudiar
sobre a minha desgraça.

Foi nessa noite que meu coração fechou-
se ainda mais às coisas puras e simples da
vida e o gelo do orgulho o envolveu,
tornando-me um homem calculista,
irredutível, insensível e inescrupuloso,
disposto a valer-me de todos os meios que
fossem possíveis para alcançar meus fins.
Era uma batalha desigual, porquanto eu
era jovem e inexperiente, mas tinha a força
da minha vontade a ajudar-me na luta.









CAPÍTULO IV





Ninguém diria, vendo nossa casa
ricamente iluminada, o brilho dos candelabros
de prata primorosamente entalhados, a
fartura com que corria pelos copos o generoso
vinho velho e os mais finos licores, a pompa,
a magnificência da nossa recepção, que
estávamos arruinados. Ninguém, a não ser
alguns amigos mais íntimos, sabia da nossa
real situação financeira. O segredo desse
estado de coisas era justamente o saber
aparentar. Nós gastávamos regiamente. E a


maioria dos nossos credores impressionava-se
com essa ostentação.
Só eu sabia os sacrifícios que realizava
para manter as aparências. Quando há alguns
meses passados retornara de Paris,
encontrara em nossa casa uma carta de Jean
Lasseur. Tratava-se de um moço riquíssimo,
que fora meu colega de colégio. Fiquei
bastante surpreendido, porquanto nossas
relações nunca tinham sido muito amistosas.
Pelo contrário, mal nos suportávamos e
somente a rígida disciplina escolar evitara
atritos mais sérios. Quando terminamos o
curso, o que realizamos juntos deixamos de
nos encontrar. Depois desse tempo, nunca
mais nos vimos.
Abri o envelope rápido e li:


"Caro Jacques. Cheguei hoje. Vim para
passar algum tempo no castelo de
Romão, agora de minha propriedade.
Somos vizinhos, portanto. Lembrei-me
dos agradáveis dias da nossa infância.
Irei ao próximo dia 15 fazer-lhe uma
visita e espero possamos ser bons
amigos. Saudações. Jean Lasseur".


A perspectiva não me foi agradável. Eu não
estava com disposição para receber visitas,
principalmente de Lasseur. Porém não podia furtar-
me a essa obrigação, por isso participei aos meus
sua visita dali a dois dias.


Quando chegou, Lasseur pareceu-me bastante
diferente do rapazinho presunçoso e antipático que
havia conhecido. Tornara-se um homem elegante e
refinado. Vestia-se com apuro e suas atitudes
primavam pela mais perfeita cortesia.

Apresentei-o à minha mãe, que se inclinou
murmurando algumas palavras de boas-vindas e só
então notei que Lenice estava pálida, parecendo não
sentir-se bem. Mal estendeu os dedos na direção do
visitante, cujos lábios não conseguiram nem roçá-
los de leve, tal a rapidez do gesto.
Sentados na elegante sala de estar,
palestrávamos sobre assuntos triviais, trocando
idéias a respeito do valor das propriedades e do
vertiginoso progresso que andava por toda parte.
Enquanto isso, eu podia observá-lo melhor.
Notei então que o mesmo antagonismo de outrora
renascia. Eu não tinha explicação plausível para
esse meu sentimento. Talvez que o orgulho e a
vaidade de Lasseur, sua maneira sempre arrogante
de colocar-se em grau de superioridade frente aos
demais se chocassem com minha própria vaidade,
dando às nossas relações certo cunho de rivalidade.
Rivalidade oculta, surda, agressiva, que não
transparecia em nossas palavras ou em nossos
gestos, mas que se fazia presente dentro de nós
sempre que conversávamos.
Lasseur mostrou-se delicadíssimo. Cumulou-nos
de gentilezas e atenções a pretexto do nosso antigo
conhecimento e da sua triste solidão. Seu pai, viúvo
há muitos anos, falecera havia poucos meses e ele
não possuíam irmãos. Estava só no mundo.
Essa condição despertou em minha mãe certa
afetuosidade que me foi indiferente. Depois desse
dia, Lasseur passou a visitar-nos com freqüência.
Lenice, sempre tão alegre e jovial, tornava-se


quieta e retraída sempre que Lasseur estava
conosco. Percebi que nosso visitante fazia-lhe a
corte e compreendi finalmente a razão de sua súbita
amizade por mim.
A idéia deixou-me radiante. Nossa situação
estava dia a dia mais difícil. A custo conseguira
arranjar com um agiota parte da importância do
título que vencera com o Sr. Martin.
Se Lenice desposasse Lasseur, poderíamos
resolver nossas dificuldades. Ele era riquíssimo
daria bom dote à sua mulher.

Eu tinha pressa. Dentro de poucas semanas as
aulas seriam reiniciadas e eu precisaria voltar a
Paris. Felizmente, a pressa não era somente minha.
Lasseur também estava apressado para pedir Lenice
em casamento. Desejava faze-lo antes de minha
viagem.
Assim, numa tarde cinzenta e fria. Lasseur a
sós comigo na sala, falou-me sobre o assunto.
— Jacques, hoje preciso falar-lhe de assunto muito
sério.
— Estou às suas ordens.
— Você me conhece há muito tempo. Sabe da
posição que ocupo na sociedade. Sabe, também,
que herdei de meu pai considerável fortuna.
Portanto, acredito dispensar maiores informações a
meu respeito. Assim sendo, tenho a honra de pedir-
lhe a mão de sua irmã em casamento.
Procurei controlar minha satisfação. Não
desejava que Jeans a notasse. Procurei imprimir em
meu rosto uma expressão séria e compenetrada.
Minha resposta foi perfeitamente natural.
— Sinto-me honrado com o seu pedido.
Naturalmente, será um prazer recebe-lo em nossa
família. Entretanto, preciso falar com Lenice.
— Naturalmente. Esperarei pela resposta. Todavia,


gostaria de obter antes da sua partida. Como você
sabe, vivo muito só. Desejo casar-me o mais breve
possível. Estou quase com trinta anos e tenho vida
regularizada. Não há razão para esperar.
A custo contive minha satisfação. A pressa de
Lasseur vinha ao encontro dos meus interesses.
— Tem razão, Jean. Casando minha irmã, estarei
tranqüilo quanto ao seu futuro e à sua felicidade.
Você sabe que agora sou o chefe da família. Assim,
poderei considerar bem cumprida minha
responsabilidade para com ela.
Num impulso levantei-me e toquei a sineta.
Martin atendeu pressuroso. Era nosso mordomo há
muitos anos e muito escrupuloso no atendimento
das suas obrigações.

— Diga a Lenice que preciso falar-lhe aqui na sala.
Peça à mamãe também que venha.
Martin curvou-se ligeiramente e saiu. Olhei para
Jean. Apesar da nossa pouca afinidade, não pude
deixar de reconhecer que ele era um belo homem.
Alto, elegante, olhos muito azuis e expressivos,
cabelos louros e naturalmente ondulados. Tinha a
pele clara e acetinada de uma beleza quase
feminina, entretanto o bigode aparado encobria
lábios finos e firmes. De sua pessoa emanava
sempre fino perfume e suas roupas eram
impecáveis.

Certamente minha irmã sentir-se-ia muito feliz
em desposá-lo.
Permanecemos silenciosos aguardando a
chegada das duas mulheres. Entraram na sala, e,
após a troca de cumprimentos, fui direto ao
assunto.
— Minha mãe, o Sr. Lasseur veio hoje pedir a mão
de Lenice. Ele deseja receber uma resposta breve,
por isso convidei-as para esta reunião a fim de


resolvermos este assunto.
Mamãe não respondeu de pronto. Parecia
surpreendida. Lenice estava pálida e pareceu-me
nervosa. Eu, que esperara aclamações de alegria,
fiquei confuso. O silêncio pesava e eu tornei:
— E então ?
— Sr. Lasseur. Ignorava que fosse fazer esse
pedido. Não o autorizei a fazê-lo. Sinto-me muito
honrada, mais não posso aceitar. Não desejo casar-
me. Por isso, peço-lhe desculpas, mais não aceito
seu pedido de casamento.
A voz de Lenice estava trêmula. Senti-me
desapontado. Minha irmã estava atirando fora nossa
única oportunidade de evitar a ruína completa.
Jean levantou-se e disse com voz firme:
— Sua recusa é evasiva e não a aceito. Quero os
motivos. Por acaso sou-lhe antipático?
— Não se trata disso, Sr. Lasseur. Nada tenho
contra o senhor. Pelo contrário: tem sido sempre
muito bem recebido em nossa casa como amigo de
Jacques, mas um casamento, para ser realizado, é
preciso que exista amor de parte a parte. Somente
quando duas pessoas se amam é que poderão ser
felizes. Eu não o amo, Sr. Jean, e os sentimentos
não se podem mudar ao nosso desejo. Por isso, não
posso aceitar seu pedido. Desejava poupar-lhe esta
franqueza, mas o senhor a exigiu.
Jean levantou-se e num gesto displicente
começou a rir. Confesso que fiquei chocado com sua
atitude. Afinal não era nada agradável enfrentar
uma situação como aquela, ainda mais diante de
terceiros.

— Lenice! Francamente, eu acreditava que você
fosse mais amadurecida, mais moderna. Amor! Por
acaso falei em amor?
Vivo rubor coloriu o rosto jovem de minha irmã.


Jean continuou:
— Entre criaturas educadas e cultas, o amor é
colocado no lugar que lhe compete. Aliás, o amor
como você o entende é ilusão dos poetas, não
existe na realidade. O que existe é a paixão, uma
doença que perturba a mente do individuo e o faz
cometer uma série de disparates. Não tenho ilusões,
não procuro uma paixão. O que desejo é constituir
um lar. A necessidade de um herdeiro é
preponderante. Em você, pensei ter encontrado a
mulher ideal para o casamento. È culta, bonita,
meiga e de boa família. Por isso fiz o pedido. Espero
que reconsidere sua decisão.
Percebendo que Lenice esforçava-se por reter
as lagrimas e que seus lábios apertavam-se
rancorosos, disse apressado:
— Jean, sua proposta foi inesperada. Fiz mal em
transmiti-la a Lenice sem preparação prévia.
Conceda-nos alguns dias para uma resposta
definitiva.
Fingi não perceber o gesto de impaciência de
Lenice.
— Está bem. Dentro de três dias virei saber uma
resposta. Espero que seja satisfatória.
Curvou-se ligeiramente e saiu. Então, pude
desabafar:
— Lenice, como pode ser tão leviana?
Minha irmã olhou-me dolorosamente
surpreendida. Seus grandes olhos negros fitavam-
me angustiados.
— Não compreendo, Jacques. Fui apenas sincera.
Não sinto pelo Sr. Lasseur a amizade e o afeto
necessários à união conjugal. Não posso de maneira
alguma dar-lhe esperanças.
Desapontado, respondi:
— Sabe bem o que isto significa para todos nós?!! A


miséria, a ruína total. Terei que deixar os estudos e
procurar trabalho! Mamãe, depois de viver sempre
no luxo e no conforto, terá que se sujeitar a uma
velhice dolorosa e humilhante! Você mesma, ver-se-
á na contingência de trabalhar para ganhar o pão a
fim de não morrer de fome. Quer atirar fora uma
ocasião rara de consolidar nossa situação financeira,
levada por uma ilusão sentimental.

Lenice ouviu séria, cabeça baixa.
Minha mãe, pensativa, olhava-nos com ar
preocupado. Desejoso de ganhar terreno
prosseguiu:
— Depois, Lenice, que experiência você possui da
vida e das coisas? Jean é um belo homem, de boa
família, uma das grandes fortunas da França. Culto,
inteligente, personalidade cativante para qualquer
mulher. Partido disputado pelas moças mais
exigentes. Por que recusar tanta honra? O amor
verdadeiro vem com a convivência, no decorrer dos
anos de vida em comum. Esta é a realidade, o resto
são ilusões que o tempo encarrega-se de destruir.
Minha irmã ergueu o rosto e pude ver um brilho de
triste em seus olhos.
— Você quer que eu aceite o Sr. Lasseur por
marido?
Sorri meio embaraçado. Eu sabia, no íntimo do
meu ser, estar visando somente meus interesses.
Não simpatizava com Jean. Se outra fosse nossa
situação, eu nunca consentiria em tal união. Era
meu pavor da ruína que não só me fazia aceitar o
casamento, como o advogava com todo o
entusiasmo. Para encobrir os reflexos da
consciência, eu tentava convencer-me de que eles
seriam felizes e que nossa falta de afinidade fora
apenas um mal-entendido que ficara sepultado no
passado.


— Por que não? Trata-se de um amigo meu. Depois
minha irmã, não estamos em condições de escolher.
Procurei dar certo ar de preocupação à minha
fisionomia e continuei:
— Sou agora o chefe da casa. Preocupa-me o seu
futuro. Sinto-me deprimido por não poder oferecer-
lhes o mesmo padrão de vida que sempre tivemos.
Infelizmente, estamos irremediavelmente
arruinados. A princípio, tive esperanças de debelar a
crise, mas todas as portas foram cerradas. Até
agora, conseguimos a custo manter as aparências,
porém o cerco aperta-se cada vez mais. Amanhã ou
depois teremos que ceder, não poderemos
continuar lutando. Então, o que será das suas
ilusões e da sua juventude?
Lenice olhou-me triste e respondeu:

— Nada disso é essencial para a conquista da
felicidade. Não temo a pobreza. Tenho forças para
trabalhar. Algum dia hei de encontrar um homem a
quem eu ame e que me faça feliz.
Sorri novamente com incredulidade.
— Você crê realmente que poderá encontrar um
homem nessas condições? Como você é jovem e
ingênua! Sua situação será bem diversa do que
imagina. Um homem culto, rico e de posição não se
casará com você se formos pobres a ponto de
trabalharmos para nosso sustento. Lembre-se de
que seremos forçados a viver em outro ambiente
onde eles raramente aparecem. Um homem pobre e
inculto também não conseguirá despertar o seu
interesse porque, sendo fina e educada, não haverá
afinidade entre ambos. Lenice, recusando esta
oportunidade excelente, você se transformará em
uma pessoa deslocada e solteirona para o resto da
vida.
Lenice olhou esperançosa para minha mãe


quando disse:
— Já sei o que você deseja, Jacques. Mas a
senhora, minha mãe, o que diz?
Mamãe levantou-se. Fisionomia grave,
preocupada.
Depois de caminhar um pouco pela sala, parou
fixando-se e dizendo com voz firme:
— Lenice. Você é ainda muito jovem. Está
habituada a ver satisfeitos todos os seus desejos.
Gostaria de poder dizer-lhe que reprovo este
casamento. Entretanto, não vejo motivo serio que
me autorize a fazê-lo. Mesmo desprezando a parte
vantajosa para nós da fortuna do Sr. Lasseur, ele
tem se mostrado sempre um homem de caráter,
honesto e nada há que possa denegrir o seu nome.
Sua família é tradicional e respeitada em toda parte.
Possui também o Sr. Lasseur uma figura jovem e
acho-o elegante. Como mulher, acho-o um homem
bastante atraente. Por que então recusa-lo como
marido?
Lenice deixou-se cair desalentada sobre uma
cadeira. Seu rosto delicado parecia mais miúdo pela
palidez:
— Já sei o que desejam de mim. Ser-me-á difícil
faze-lo. Não amo o Sr. Lasseur.
Minha mãe sorriu complacente.
— Eu sei, minha filha. Mas o amor virá com o
tempo. Sei o que estou afirmando.

— Tenho três dias para pensar. Não preciso de
prazo. Embora saiba que não serei feliz, podem
dizer ao Sr. Lasseur que serei sua esposa.
Entretanto, é preciso que ele saiba que se casa com
uma moça pobre.
Minha expressão de alegria ao ouvir as palavras
de Lenice foi transformada em impaciência.
— Isso não. Ele não pode saber nossa real situação


por enquanto. Na véspera do casamento saberei
coloca-lo a par da realidade.
Lenice abanou a cabeça com ar de reprovação.
— Onde está seu amor à verdade? Receia que ele
queira romper o seu compromisso quando souber?
— Não se trata disso. Apenas não é agradável para
eu contar-lhe tudo agora. Tenho esperanças de
conseguir um bom empréstimo que nos ajudara a
resolver a crise. Mas isso só será possível se o seu
noivado for anunciado. Conto com isso para garantir
a divida. Depois, é possível que eu consiga aos
poucos equilibrar nossas finanças. Se eu conseguir,
não teremos necessidade de passarmos por essa
humilhação.
Minha irmã deu de ombros e disse:
— Então não aceito. O que exigem de mim é uma
deslealdade, principalmente levando-se em conta
minha pouca simpatia pelo Sr. Lasseur.
— Ora, minha irmã! Já disse que penso jogar com
seu noivado para refazer nosso credito. Quando o
casamento se realizar, certamente você já estará
em condições de levar um bom dote.
Sabia ser impossível realizar tal milagre em tão
pouco tempo, mas um só desejo dominava-me:
convencer Lenice a aceitar a proposta de Lasseur.
— Jacques, sinto dizer-lhe isto. Temos sido sempre
muito amigos, porém você está me empurrando
para uma união indesejável. Gostaria de poder
ceder, entretanto não é possível. Sinto desgosta-lo,
não me casarei com ele.
Senti-me enrubescer de raiva. Contive-me a
custo. Não conseguiria nada brigando com ela, pelo
contrario. Devia agir com brandura. Respondi
apenas:
— Se deseja atirar-nos na ruína completa, seja.
Porém, mais tarde, se diante de uma situação


insolúvel eu me vir forçado a uma atitude extrema e
irremediável, a culpa será toda sua. Lembre-se bem
disso.

Fingindo não ver a expressão de terror que se
desenhou em seu rosto, saí da sala triste e
cabisbaixo. Encerrei-me no gabinete que fora de
papai e não saí durante o resto do dia.
Nos dias subseqüentes, deixei-me dominar por
extrema depressão. Sentia-me realmente
apavorado diante da miséria. Mal vi minha irmã,
que, também deprimida e angustiada, pouco saíra
do quarto. Finalmente, recebemos a temida visita
de Jean.
Aborrecido com o rumo que os acontecimentos
tinham tomado, em face da obstinação de Lenice,
ordenei-lhe que o recebesse a sós, a fim de dar-lhe
sua resposta. Movido por irreprimível curiosidade,
postei-me atrás da porta ligeiramente entreaberta
para assistir à cena que se iria desenrolar.
Fisionomia um tanto abatida. Lenice recebeu
seu pretendente com cortesia e dignidade.
Acomodados na sala, após as saudações de praxe,
Jean foi direto ao assunto.
— Lenice, vim saber sua resposta.
Lenice levantou os olhos para ele, triste, e
respondeu com suavidade:
— Sr. Lasseur. Sua proposta muito nos honra.
Creia-me que usar um nome digno como o seu
envaideceria qualquer mulher. Entretanto, nas
presentes condições, não me sinto com o direito de
aceita-lo. Peço-lhe que me perdoe.
Jean, o sobrecenho ligeiramente franzido,
levantou-se dizendo sério:
— Não estou habituado a perder. Desejo tomá-la
por esposa e hei de conseguir. Por que razão recusa
meu pedido?


Com voz um pouco tremula, minha irmã respondeu:
— Minha afeição pelo senhor não é suficiente para
justificar um casamento. Além dessa, outra razão
existe, de igual importância.
— Posso saber qual é?
— Não é elegante de sua parte insistir. È algo que
não desejo revelar.
— Mas eu quero saber!
— O senhor está se tornando impertinente.

O rosto de Lenice estava enrubescido. Jean riu
francamente, fazendo-a sentir-se mais nervosa.
— Ora, menina. Deixemos de infantilidades. Não
sairei daqui sem saber a verdade. È um direito que
me assiste.
Sem poder conter-se, Lenice respondeu com voz
áspera:
— O senhor é desagradável! Já que insiste, conto-
lhe. Estamos arruinados. Irremediavelmente
arruinados. Sou pobre agora. Não posso casar-me
com sua riqueza.
Senti o rosto corar de vergonha com a
revelação. Doía-me que Jean, meu velho rival das
lides escolares, soubesse a verdade. Olhei para ele.
Permaneceu impassível. Odiei-o naquele instante.
Parecia desprovido de sentimentos. Não teve um
gesto bom para com a lealdade de Lenice. Ela
permanecia em pé, a olhá-lo desafiadora. Parecia-
me vê-la pela primeira vez. Jamais pensei que a
meiga, a serena, a alegre e dócil Lenice pudesse ser
tão altiva, tão orgulhosa, tão corajosa.
Tive ímpetos de abraçá-la e espantar dali a
figura elegante de Jean. Com toda a calma, ele
sentou-se novamente:
— Suas razoes não justificam a recusa. Por isso não
a aceito. Desejo casar-me com você e possuo
dinheiro suficiente para ambos. Já sabia da sua


situação financeira há muito tempo. A falta de
dinheiro na mulher é um bem. Torna-a dependente
e submissa.
Lenice abriu a boca estupefata, sem saber o
que dizer. Ele prosseguiu:
— Agora chega de brincadeiras. Posso dizer-lhe que
não tem alternativa senão aceitar.
— Por que diz isso? – volveu Lenice admirada.
— porque para sua família represento a tábua da
salvação. Se recusar minha oferta, será
irremediavelmente lançada a ruína. A ruína e a
desonra, que os levarão a conseqüências
imprevisíveis.
Minha irmã abriu os olhos assustada:
— Desonra? Não é verdade. Será apenas a ruína.
Não temo a pobreza. Não importa trabalhar para
viver. Sou jovem e o futuro certamente trará dias
melhores.
— Trabalhar? – Jean riu incrédulo. – Em quê?
Ademais, ninguém dará emprego a você ou ao seu
irmão depois que estourar o escândalo.

— Você precisa saber que mesmo entregando tudo
quanto possuem, não conseguirão pagar o que
devem. Alguns ficarão sem receber, e pode calcular
o barulho que farão. Depois, certo de que você
aceitaria meu pedido, tomei a liberdade de liquidar
o compromisso que tinham com o Sr. Martin, muito
volumoso, por sinal. Era-me desagradável ver o
nome de minha noiva envolvido em comentários
pouco dignos.
Enquanto falava, Jean tirou do bolso um maço
de documentos que exibiu enfático. Lenice olhava-o
sem entender bem o que ele dizia. Sem poder
conter-me, entrei na sala.
— Ouvi suas ultimas palavras e desejo que me
esclareça. Terei compreendido bem?


A humilhação tornara um tanto insegura o tom
de minha voz. Calmamente, Lasseur respondeu:
— Certamente. Você é meu amigo e deve saber que
os amigos, são para as ocasiões difíceis.
— Como soube que devíamos a Martin?
— Interessei-me quando ouvi certos rumores sobre
a sua situação financeira. Foi muito fácil descobrir a
lista dos credores, e naturalmente o mais temível
era Martin. Estava ameaçador. Se não tivesse
pagado, a estas horas talvez vocês não estivessem
mais nesta casa...
Jean dizia a verdade e eu o sabia. De certa
maneira, eu estranhara não receber noticias de
Martin, vencido o exíguo prazo que marcara.
Procurando reunir a altivez que restava em mim,
disse com seriedade:
— Somos gratos pelo que fez a nós. Aceitamos sua
ajuda a título de empréstimo que pagarei assim que
puder.
Jean olhou para Lenice, que, cabisbaixa e
confundida, permanecia calada.
— Não aceito o pagamento do que me deve. Em
troca desejo a mão de Lenice para esposa.
Aquilo era inaudito! Vivo rubor tingiu minhas
faces de vergonha. Tive vontade de esbofeteá-lo.
Procurei controlar-me
— Jacques, peça ao Sr. Lasseur que se retire.
A voz de minha irmã continha profundo
desprezo.

— Não é preciso. Pretendo retirar-me em seguida.
Agora, desejo que se lembre de uma coisa: ou
Lenice se casa comigo ou devolvo os títulos ao Sr.
Martin, com quem mantenho outros negócios, e
autorizo-o a cobrá-lo devidamente, usando para isto
de todas as prerrogativas conferidas pela lei.
Esperarei até amanha impreterivelmente. Passem


muito bem.
Inclinando-se elegante, Jean retirou-se
enquanto eu e minha irmã permanecemos rijos,
eretos e mudos. Uma onda de desespero invadiu-
me o ser. Senti mais do que nunca a necessidade
de refazer a nossa fortuna. Somente o dinheiro,
pensava nos conserva a salvo das humilhações. Não
suportava viver daquela forma.
— O que ele disse é verdade? – perguntou Lenice
num suspiro.
— Sim. Infelizmente é verdade. – Mergulhei a
cabeça entre as mãos no paroxismo da angustia. –
Não sei se terei forças para suportar a dura
realidade.
Lenice pareceu despertar de repente e correu
para mim. Abraçamo-nos.
— Jacques, não diga isso!
Misturamos nossas lagrimas.
Depois de alguns instantes ela continuou:
— Mande um mensageiro ao castelo de Lasseur
dizer que aceito ser sua esposa.
Desejei naquele instante recusar o sacrifício de
minha irmã. Entretanto, ao mesmo tempo,
compreendi que a melhor solução seria essa.
Lasseur não consentiria que nosso nome fosse
enxovalhado e certamente ajudar-me-ia a recompor
a nossa fortuna.
Porém confesso que não pude olhar minha irmã
de frente. Um sentimento vivo de vergonha
mantinha meus olhos baixos, enquanto uma
sensação de intranqüilidade, de insatisfação tomava
conta de mim. Um pouco por minha irmã e um
pouco por receber justamente de Jean aquele favor.
A velha rivalidade dos tempos de escola vinha à
tona naquele instante para recordar que Jean
vencera. Conseguira, depois de tantos anos de lutas


dissimuladas, acobertadas pelo verniz social,
colocar—se em atitude superior. Violenta luta
interior colocava-me em terrível indecisão.

Por vezes, sentia ímpetos de enfrentar a
realidade e recusar o pedido de Jean. Ao mesmo
tempo, desejava aceitar o casamento de Lenice,
porque assim teria chance de reerguer-me
prontamente. Mas, apesar dos sentimentos
contraditórios, no intimo do meu ser, eu sabia que
aceitaria passivamente o sacrifício de minha irmã.
Procurei reagir. Sacrifício por quê? Afinal,
Lasseur era uma figura atraente e de prestigio na
sociedade, alem de dono de imensa fortuna.
Procurei sorrir numa tentativa de afastar os meus
pensamentos. Fitando Lenice de frente, disse:
— Boa e acertada resolução sua. Embora no
momento você não goste dele, deve convir que se
trate de um ótimo partido e nós no momento não
estamos em condições de exigir. Poucos teriam
aceitado uma aliança com a nossa família agora.
Minha jovem irmã sacudiu a cabeça com altivez e
respondeu:
— Já resolvi aceita-lo por marido. Isso deve bastar
para satisfação e tranqüilidade de todos.
Permaneceu calada durante alguns segundos,
depois terminou:
— Quanto ao futuro, só Deus sabe.
Olhei para ela tentando penetrar no enigma
daquele coração. Notei-lhe o porte altivo, a maneira
orgulhosa de erguer a linda cabeça de sedosos
cabelos escuros. Onde estava a menina meiga e
alegre de outros tempos? Desaparecera ao contato
com a dureza da vida, sepultada na sobriedade do
seu traje negro que enlutara também seus projetos
para o futuro.
— Está certo – tornei com doçura. – Precisamos


falar com mamãe e notifica-la sobre os últimos
acontecimentos.
No dia imediato, ao anoitecer, Jean compareceu
à nossa casa. Vinha, como sempre, elegantíssimo, e
sua fisionomia não revelava o prazer da vitória. Ele
soube ganhar a primeira batalha sem humilhar os
vencidos.
Depois de enviarmos nossa resposta ao seu
pedido, eu esperava com certo receio sua visita.
Temia alusões à nossa capitulação, ironias e
demonstrações de superioridade. Nada disso
aconteceu. Jean mostrou-se polido, um tanto mais
solene e sério do que o comum.

Pediu formalmente a mão de Lenice à minha mãe.
Uma vez aceito, disse apenas algumas palavras:

— Muito obrigado, Sra. Latour, pela honra de
conceder-me a mão de sua filha. Procurarei torna-la
feliz.
Eu estava admirado. Afinal, qual a verdadeira
personalidade de Jean? Fez o papel de noivo com
galanteria e cavalheirismo. Conduzindo Lenice ao
jardim, palestrava com atenção e delicadeza.
Sentaram-se em um banco.
Lá, ele lhe entregou pequena caixa que ela
muda e indiferente abriu. Tratava-se de um anel.
Magnífico brilhante artisticamente incrustado em
platina. Minha irmã olhou-o admirada.
— Não precisava dar-se a esse trabalho.
Jean tornou-se sério e disse com certa rispidez:
— Sei o meu dever. Como minha noiva e depois
como minha esposa, deve aceitar com prazer as
ofertas que eu lhe fizer.
— Não gosto de jóias e no momento estou de luto.
Sou uma moça simples e sem ambição. Não desejo
viver adornada.
Tomando-lhe a fina e delicada mão, ele lhe


colocou o anel no dedo anular, dizendo:
— Um anel de compromisso não ferira o rigor do
seu luto. Porém, lembre-se de que, como minha
esposa, terá que brilhar na sociedade. As mulheres
de nossa casa sempre foram as primeiras em gosto
e elegância. Embora você se diga simples, terá que
modificar de acordo com a posição de seu marido.
Retirando depressa a mão que ele ainda retinha
entre as suas, Lenice respondeu-lhe com voz fria:
— Por que continuar com esta farsa? Você não me
ama nunca me falou de amor. Sabe que eu também
não o amo. Somente cedi por causa da sua ameaça
em precipitar-nos na ruína. Por que continuar com
esta situação absurda? Qual sua verdadeira
intenção? Não vê que não poderemos ser felizes?
Ele sorriu, porém em seus olhos brilhava funda
determinação.

— Você é muito jovem, Lenice. Aconselho-a a ser
mais submissa se quiser dar-se bem comigo. Pode
ter a certeza de que, quando me proponho a
realizar qualquer coisa, ninguém consegue
demover-me. Espero que compreenda isso de uma
vez por todas.
A emoção desapareceu do rosto de Lenice,
enquanto seu semblante vestiu-se de profunda
frieza.

— Se deseja casar-se com uma mulher de
sociedade, que brilhe nas recepções e satisfaça sua
vaidade, não sei por que escolheu a mim. Não
pretendo uma coisa nem outra. Desejo, também,
tornar bem claro: não mudarei! Não sufocarei
minha personalidade apenas para dar-lhe prazer.
Não sou a esposa mais indicada para você. Ainda
está em tempo, podemos terminar nosso
compromisso!
Jean ouviu impassível, contudo sua voz era


dura quando respondeu:
— Você tem demasiada vontade de romper nosso
compromisso. Talvez seja este um motivo para que
eu insista em mantê-lo.
— É inútil. Você desconhece as mais elementares
noções de cavalheirismo.
Jean virou-se de frente para ela, e colocou
ambas as mãos em seus braços apertando-os com
força.
— Nunca mais diga isso! Não admitirei! Será muito
pior para você se quiser manter-se nessa atitude
hostil. Também sei ser cruel e duro quando
necessário. Porém, se for dócil e obediente, serei
para você um bom esposo e poderemos viver em
paz.
Lenice não respondeu. Seus braços doíam e
Jean, sem parecer nota-lo, ainda os apertava. Por
fim, largou-os, deixando cair às mãos ao longo do
corpo.
— Entremos, nada mais temos para conversar.
— Como queira.
Lutando contra a avalancha de lagrimas que
estava pronta para despencar, Lenice levantou-se e
encaminhou-se para dentro. Não parecia notar que
o noivo a conduzia cortesmente pelo braço. O
noivado oficial foi marcado para a semana seguinte.
Durante aqueles dias, Jean cortejava a noiva
com elegância e atenção. Tudo quanto um noivo
enamorado faz nessa circunstancia, ele fez.
Visitava-a diariamente, mandava-lhe flores todas as
manhas acompanhadas por delicados presentes.
Lenice pareceu-me mais serena, embora
recebesse com indiferença as atenções do noivo.
Fiquei admirado. Ela, que sempre fora muito
sensível ao menor gesto de cavalheirismo, que era


muito sentimental e delicada, parecia não perceber
as atenções de Jean.

Combinamos com Lasseur oferecer uma
recepção, a fim de oficializarmos o noivado,
marcando a data para o casamento. Lenice
desejava apenas a presença dos amigos mais
íntimos, mas Jean não concordou.
— Meu noivado é um acontecimento social. Tenho
muitos amigos e você deve lembrar-se, Lenice, de
que faço questão da vida em sociedade. Afinal, uma
recepção é necessidade na união de duas casas
ilustres.
Minha mãe resolveu a questão respondendo
com seriedade:
— Sr. Lasseur. Conheço meus deveres de mãe e a
responsabilidade que nos cabe. Não há necessidade
de sua advertência. Eu mesma já tinha resolvido
dar uma recepção. Entretanto, devo lembrar-lhe o
nosso luto recente que nos isenta em parte desse
dever. Daremos uma recepção às pessoas de
nossas relações mais intimas e aos outros
escreveremos uma participação, excusando-nos em
virtude do luto.
Lasseur retorquiu firme:
— Dentro de poucos dias completar-se-ão seis
meses do passamento do Sr. Latour. Hoje em dia
não é usual na sociedade um luto prolongado. Não
aceito suas razoes para evitar a recepção. Se for
por questões financeiras, pagarei todas as
despesas.
Pelo aspecto de minha mãe, pela expressão de
sua fisionomia, compreendi que o noivado de Lenice
periclitava. Intervim, tentando aparentar uma calma
que estava longe de sentir.
— podemos resolver bem a situação. Guarde seu
dinheiro, Jean, não é esse o motivo. Minha mãe tem


razão quanto ao nosso luto. Entretanto, poderemos
oferecer um jantar de gala, sem baile e sem
musica. Apenas para anunciar o compromisso.
Jean sorriu. Havia certa ironia em sua voz ao
dizer:

— Você escolheu bem sua profissão. Será um bom
advogado. Está certo. Assim será.
Esse era o motivo da festa suntuosa, em nossa
casa, seis meses após o falecimento de meu pai.
Todavia, a noticia do casamento próximo de minha
irmã abrira-me todas as portas. Conseguira vultosos
empréstimos, com os quais continuava mantendo as
aparências e renovando o prazo de alguns
compromissos urgentes. O Sr. Leterre resolvera
esperar para receber seu dinheiro, animado pela
aliança de minha irmã.

Gozando a aragem cariciosa do jardim, sentado
em um banco eu meditava sobre os últimos
acontecimentos. Estava tranqüilo quanto ao futuro.
Mas um ano e estaria formado. Acariciava intenção
de ingressar na política. Um lugar na Câmara ou no
Senado certamente daria ao meu nome a distinção
necessária. Seria também uma forma de receber
alto salário, que me ajudaria certamente a refazer
nossas finanças.
Conforme o combinado, houvera apenas o
jantar, um banquete finíssimo que decorrera com
grande sucesso, após o qual os convidados
dirigiam-se ao salão principal onde, reunidos em
pequenos grupos, palestravam cordialmente.
Eu me refugiara naquele recanto, por alguns
instantes, para descansar um pouco. De repente,
quebrando a calma e a alegria do ambiente, minha
atenção foi despertada por um soluço abafado.
Duvidei do que ouvira. Concentrei toda a minha
atenção na escuta. Sim, eram soluços. Alguém bem


perto dali chorava sentidamente.
Lancei os olhos ao redor e não vi ninguém.
Onde estaria? Procurando não fazer ruído, tentei
localizar o local de onde partiam os soluços.
Caminhei para lá cautelosamente. Circunvagando
um pequeno arbusto, de frondosa copa, descobri
um vulto de mulher que, sentada em um banco, no
local mais escondido, rosto entre as mãos, chorava
desconsoladamente. Penalizado, chamei:
— Por favor...
Com pequeno grito assustado, a jovem dama
descobriu o rosto e tentou recompor-se.
— Elisa! O que aconteceu?
Tratava-se de uma jovem de nossas relações.
Seu pai fora muito amigo do meu e conheciamo-nos
desde tenra idade.
Como ela era bonita! Seu rosto claro, a tez
sedosa e alva, sem uma mancha sequer, fazia
ressaltar ainda mais o negror dos seus olhos
sombreados por enormes cílios. Os cabelos fartos e
escuros eram muito bem cuidados, realçando-lhe
sempre a beleza. O talhe esbelto, elegante, casava-
se bem com a fidalguia das suas atitudes de moça
rica e de sociedade.

Fiquei boquiaberto por surpreendê-la naquela
atitude pouco elegante. Habituara-me desde a
infância a vê-la sempre ereta e bem-posta, educada
e convencional. Notando-lhe o embaraço, disse:
— Desculpe-me estou sendo importuno. O que
houve? Alguém a ofendeu? Você esta em minha
casa. Rogo-lhe que explique o que a magoa.
Saberei tomar uma atitude. Por que chora?
Visivelmente nervosa. Elisa lutava para
readquirir o domínio interior. Quando conseguiu
serenar, disse-me tentando um sorriso:
— Desculpe-me, Jacques. Estou envergonhada por


esta demonstração de fraqueza. Não me pergunte
nada, não poderia responder!
— Elisa! Doeu-me o seu sofrimento. Você sabe o
quanto a estimo. Algo deve ter acontecido para que
chorasse tão sentidamente. Não quer confiar em
mim?
Ligeiro estremecimento sacudiu-lhe os olhos
delicados. Procurando acalmar-se, respondeu:
— Por favor, meu amigo! Nada há para ser
confiado. Deixei-me dominar pela melancolia, eis
tudo. Apelo para seu cavalheirismo no sentido de
não divulgar a cena que surpreendeu.
Sua mão fina e bem cuidada segurava-me o
braço num gesto súplice. Sorri.
— Certamente, Elisa. Lamento não poder ser-lhe
útil, uma vez que não deseja contar-me os motivos
da sua contrariedade. Entretanto, desejo que
esqueça sua tristeza e procure entreter-se em
minha casa. Vamos caminhar um pouco? A noite
está tão bonita!
— Você é muito amável. Entretanto, preciso
recompor meu rosto. Vou entrar por um momento.
Ninguém deve ver-me tão desalinhada. Mais tarde
conversaremos. Com licença.
Levantando-se graciosa, acenando ligeiramente
a cabeça, Elisa deixou-me. Segui com o olhar a
elegante figura que desaparecia em uma curva do
jardim. Viva curiosidade dominou-me. O que teria
acontecido para descontrolar tanto a bela Elisa?
Segui-a automaticamente, disposto a observá-la
melhor.

Entrei no salão. Os convidados formavam
grupos elegantes e alegres, palestrando
animadamente. Sorrindo e trocando palavras
convencionais, atravessei a sala procurando Elisa


com o olhar. Quando a localizei, pude observar que
estava aparentemente serena.

Nada em sua fisionomia recordava a arrebatada
atitude de momentos antes. Ria e conversava com
desenvoltura. Observando-a com muita atenção,
somente percebi um brilho excitado no olhar, onde
pareceu-me, em um dado momento, fulgurar um
lampejo de rancor. Segui a direção de seus olhos e
vi-os fixos em Jean, que ao lado da noiva palestrava
animado.
A revelação surpreendeu-me. Elisa seria uma
das muitas enamoradas do meu futuro cunhado?
Agora, ela já desviara o olhar e ninguém duvidaria
que estava absorta na palestra de elegante senhora.
Eu, todavia, senti-me um pouco aborrecido.
Teria observado bem? No entanto, por mais que eu
observasse Jean, não lhe surpreendi um olhar
sequer para Elisa. Isto deu-me certa tranqüilidade.
Afinal, se Elisa o amava chorava de ciúmes, nada
devia importar-me. Eu sabia as paixões que a figura
elegante e bem cuidada de Jean despertava em
nossa sociedade. Quanto a ele, estaria realmente
apaixonado por Lenice? Não a desposaria por um
capricho qualquer?
Eu tentava acalmar-me e era em vão que
intimamente procurava argumentos que me
fizessem afugentar os receios e confiar no futuro.
Uma onda de tristeza abateu-me, embora eu me
esforçasse para aparentar alegria e serenidade.
Aproximei-me dos noivos e sorri para Lenice
com carinho.
— Você está muito elegante! Cumprimentos pelo
bom gosto!
Ela me olhou um pouco surpresa. Não esperava
meu elogio, que, embora fosse sincero, refletia no
fundo uma espécie de bajulação para desfazer a má


impressão que a minha atitude, advogando seu
casamento, forçosamente lhe causara. Franzindo
ligeiramente a testa, respondeu baixinho:
— Estou cansada! Gostaria que tudo terminasse
logo.
Havia em seus olhos um brilho triste, embora
seus lábios se esforçassem para sorrir. Não me
sentir bem. A onda de insatisfação aumentou. Saí
novamente do salão. Caminhava lentamente
encontrando certo prazer em ouvir o ruído seco dos
meus sapatos na areia do jardim.
— Jacques!
Voltei-me incontinenti.

— Posso fazer-lhe companhia?
— Será um prazer, Elisa.
Aproximei-me, voltando sobre meus passos e
oferecendo-lhe o braço com elegância. Fomos
caminhando vagarosamente pelas alamedas do
parque. Minha companheira permanecia pensativa e
calada. De repente disse:
— Jacques, ficou decepcionada comigo esta noite?
— Por que pergunta?
— Pela atitude que surpreendeu...
— Absolutamente, Elisa. As lagrimas dão à mulher
maior feminilidade e inspira-nos vivo desejo de
consolá-la.
— Fala sério?
Volveu para mim seus belos olhos procurando
ler meus pensamentos. Adorável criatura pensei.
Pressionei ligeiramente o braço que se apoiava no
meu e fitando-a nos olhos respondi:
— Muito sério! Não tenho jeito para confidente,
mas, se precisa de um amigo, pode confiar em
mim.
— Sinto que você é sincera. Esta noite descobri que
fui traída. Uma pessoa em que eu depositava


profunda confiança deu-me grande desgosto,
terrível decepção. Sofri muito, como você viu, não
pude refrear a revolta, mas, depois que você falou
comigo, acalmei-me. Agora, não sei o que está
acontecendo, não sofro mais, sinto-me muito feliz
por estar aqui a seu lado, a sós.
Senti-me envaidecido. Não duvidei da
sinceridade de Elisa. Não pensei que a modificação
fora muito repentina e não percebi que Elisa mentia.
Eu era muito vaidoso e despertara já muitas paixões
em formosas criaturas. Por isso, sem pensar,
aproveitando a semi-obscuridade do jardim, dei-lhe
furtivo beijo nos cabelos e abracei-a com carinho.
— Elisa! Você é encantadora.
— Sinto-me envergonhada, Jacques. Voltaremos.
Dominado por forte entusiasmo, beijei-a nos
lábios com calor.
— Voltemos, Jacques, por favor.
Voltamos. A inesperada aventura afugentara do
meu coração a incomoda sensação de
descontentamento. Foi como um par de namorados
que regressamos ao salão. Pude ver que os olhos de
Elisa brilhavam. Ela estava realmente linda. Havia
excitação e euforia em seu semblante. Conhecia-a a
tantos anos, entretanto parecia-me vê-la pela
primeira vez.

Entretivemo-nos em palestra com alguns
amigos. Quando ela despediu-se na companhia do
pai, pousei-lhe demorado beijo na mão bem tratada
e bonita.
Nos dias subseqüentes, visitei Elisa com
assiduidade. Eu sabia que com ela não poderia
manter uma simples aventura. Respeitava-lhe o pai,
considerava-o muito. Por causa disso, algumas
vezes pensava em afastar-me definitivamente do
seu convívio, mas a moça me atraia, revelando-se


de marcante personalidade. E eu voltava sempre a
visitá-la, cortejando-a.
Horas agradáveis passamos juntos, à sombra
amiga das arvores do parque ou no aconchego
acolhedor de sua sala de estar, sob o beneplácito de
Ruth, sua dama de companhia.
Eu não acreditava no amor. Conhecera em
outros tempos a paixão exuberante e passageira.
Para casar-me, desejava conciliar interesses e
tradição. Elisa preenchia estes itens. Talvez no
futuro pudéssemos acertar isso.
O casamento de Lenice fora marcado para dali
a um mês.
Em uma tarde fria de setembro, sob os círios
bruxuleantes da Igreja do Sagrado Coração, minha
irmã entrou vestida com suntuoso traje nupcial.
Estava linda! Envolta em rendas e tules, parecia
uma fada, caminhando graciosa pela neve. Porem
faltava em seus olhos o brilho da felicidade que
transmite às noivas uma beleza diferente. Suas
faces estavam pálidas como a cor do seu traje. Ao
vê-la assim, senti doloroso aperto no coração.
Enquanto Jean e Lenice, agora em frente ao
altar, uniam-se pelos sagrados laços matrimoniais,
a sensação de tristeza invadiu-me o ser. Quando
olhei para Elisa ao meu lado, surpreendi-me com
sua palidez, notei-lhe as mãos finas e aristocráticas,
nervosamente crispadas. Seus olhos estavam fixos
no casal que se unia no altar.
Vencendo meu próprio sentimento depressivo,
perguntei numa voz que desejava tornar alegre:
— Elisa, o que se passa? Vejo-a pálida e nervosa.
Sente-se mal?

Ela pareceu arrancada de um sonho. Olhou-me
meio inconsciente e nada disse.
— Sente-se mal? – renovei.


— Eu?
— Parece-me pálida e nervosa!
— Oh! Sim. A aglomeração e o cheiro de incenso
causaram-me ligeira indisposição. Não é nada.
Assim que sairmos ao ar fresco, tudo passará.
— Deseja sair agora?
— Esperamos até o fim. Não deve demorar, já está
consumado.
Havia em sua voz um tom desalentador.
Observei-lhe a palidez e fiquei apreensivo.
Felizmente a cerimônia terminou.
Precedido pelas damas de honra, Jean,
elegantíssimo, avançava conduzindo Lenice pelo
braço rumo à saída da Igreja. Como de praxe, os
familiares dos noivos seguiam logo após e, por fim,
os amigos.
Fiquei satisfeito por poder retirar Elisa da
Igreja. Certamente, o ar fresco da tarde haveria de
fazer-lhe bem.
Subimos em elegante carruagem que nos
levaria à minha casa para a recepção: minha mãe
seguiu com uma de suas irmãs e nós tínhamos a
companhia sóbria do Sr. Trèville, pai de Elisa.
A moça permaneceu recostada nas almofadas
do carro durante todo o trajeto, olhos cerrados,
faces pálidas. Seu pai preocupava-se com seu mal-
estar:
— Não sei o que aconteceu. Tantas vezes temos
vindo à igreja e nunca Elisa sentiu-se mal.
— Talvez tenha sido o cheiro forte dos círios acesos,
do incenso e das flores. Esse aroma sempre me
deixa indisposto.
Enquanto palestrávamos. Elisa parecia nem nos
ouvir, respondendo apenas quando lhe
perguntávamos pela sua saúde.
— Estou melhor. Deixem-me descansar um pouco e


tudo passará.
De fato, quando chegamos a casa, ela parecia
estar melhor.
A festa estava animada. Por todos os lados os
criados iam e vinham na azáfama de atender a
todos os convivas. Os candelabros luziam e os
cristais brilhavam alegremente no suntuoso salão.

Nossa casa estava realmente bela! Os jardins
iluminados, o hall elegante tendo ao meio graciosa
escadaria de mármore recoberta de tapeçaria
vermelha que conduzia ao pavimento superior. À
direita, o salão de recepção, mobiliado no estilo Luís
XV, unindo-se atrás do hall à esquerda com o salão
de banquetes, onde lauta mesa já estava
artisticamente preparada. Ricos reposteiros
guarneciam as portas e as janelas.
Vendo-a assim, não nego que experimentei vivo
sentimento de orgulho. Aquela casa sempre haveria
de ser minha, custasse o que custasse.
Entrei no salão como quem tivesse vencido uma
guerra. O brilho de satisfação em meus olhos
acentuou minha posição de dono da casa e percebi
a admiração, o respeito dos velhos amigos de papai,
pela minha boa estrela ou quem sabe pelo meu tino
que, contra todos os prognósticos, tinha conseguido
manter a posição e a honra da família.
O jantar, servido com classe e muito bom
gosto, reuniu em nossa mesa a fidalguia mais
expressiva daquela época. E eu era o senhor de
tudo. Estava particularmente feliz.
Após o jantar, os convivas reuniram-se em
grupos, alguns no fumoir, outros circulando pelos
jardins. Jean procurou-me.
— Jacques, vamos ao seu gabinete. Precisamos
conversar.
Meus olhos alegres o fixaram. Estava o mesmo


de sempre, como se as emoções daquela noite não
o envolvessem.
— Está bem – concordei. – Vamos.
Uma vez acomodados, ele esclareceu:
— Há já algum tempo que desejo falar-lhe. Julguei
mais oportuno agora que nos tornamos parentes.
Você sabe que estou informado dos problemas da
sua família. Sei que estão arruinados e que para
manter as aparências vocês têm lutado com todas
as forças.
Sem saber o que dizer, olhei-o em silencio. Ele
prosseguiu:
— Reconheço que, se estivesse em seu lugar, talvez
fizesse o mesmo. A pobreza é insuportável. Não é
segredo também que você não me aprecia. Aliás,
você nunca me tolerou nos tempos de colégio. Não
guardo ilusões. Se me deu a mão de Lenice, foi
porque sou rico.

Fiz um gesto negativo querendo interrompê-lo,
mas ele, sem me atender, continuou:
— Sei ainda que ela não me aceitaria se vocês não
estivessem precisando do meu dinheiro para sair do
buraco.
Empalideci. Uma raiva surda começou a nascer-
me dentro do peito. —- Entretanto, eu decidi que
ela seria minha esposa, Agrada-me contraria-los.
Assim sendo, tenho consciência de que este
casamento não passa de um negocio como qualquer
outro, onde eu ainda não sei se teria empregado
bem o meu dinheiro.
Tive ímpetos de esbofeteá-lo. Contive-me, com
medo do escândalo.
— Você fala de minha irmã como de um objeto –
consegui balbuciar, tremulo de raiva.
— Não é bem assim. Se ela concordou em ser
vendida e se a família quis vendê-la, eu concordei


em comprá-la. Mas isso não é importante. Você
sabe que eu tenho muito dinheiro e para mim
torna-se desagradável ver seu nome exposto nos
meios nos quais realizo meus negócios. Por isso,
paguei todas as dívidas que seu pai deixou e esses
títulos estão comigo, com quem ficarão guardados
para sempre. Esse foi o presente que resolvi
oferecer à família de minha mulher. Ainda, fora isso,
há o dote régio que é de vontade de Lenice seja
entregue à sua casa e que acredito suficiente para
que, aplicando-o devidamente, você volte a ser o
rico fidalgo que sempre foi.
Vendo-o tratar tão friamente o próprio
casamento, tive medo. Minha irmã, tão doce, tão
romântica, tão meiga, casada com um homem tão
mercenário, tão calculista, tão frio. O sentimento de
frustração e de culpa invadiu-me novamente o
coração.
Ele, porém, apesar de tudo, oferecia-me a
liberdade, o luxo, a vida de sempre. Procurei
sepultar meus sentimentos e pude reconhecer que
ele de fato dizia a verdade.
Eu tinha deliberadamente planejado aquele
casamento como uma tábua de salvação. Isso não
podia negar. Ele não se deixara enganar. De certa
forma era melhor assim. Pelo o menos, ele não
poderia mais tarde acusar-me de ludibriá-lo,
envolve-lo. Estava consciente a aceitara as regras
do jogo.

Quando, controlando meus impulsos, respondi,
sentia dentro de mim que, apesar de Jean ser
marido de minha irmã, jamais seriamos amigos.
Minha voz era fria como a dele:
— É muito generoso. Espero que faça minha irmã
feliz.
— Ela agora é minha esposa. Vou ensiná-la a viver.


Abstive-me de perguntar. Queria esquecer o
drama de Lenice. Queria convencer-me de que ela
conseguiria construir sua vida como ele e, quem
sabe, chegasse a amá-lo. Ele era jovem e belo. Ela,
linda, bondosa e meiga. Por que não?
Jean continuou:
— Lenice prepara-se para nossa viagem. Partiremos
dentro de uma hora. Amanha meu notário vira
procura-lo para entregar-lhe o dote de Lenice.
Quanto aos títulos da divida, claro, guardá-los-ei. É
direito meu, já que os resgatei.
Aquilo era um insulto. Eu, pálido, nada disse.
Sentia ímpetos de atirar-me sobre ele e dar-lhe o
corretivo que merecia. Detinha-me a consciência da
minha culpa em tudo aquilo e a inutilidade do
escândalo. Se me indispusesse com ele, seria pior.
Poderia arruinar-me ou impedir-me de ver Lenice, o
que não suportaria.
Reconheci que escapara da ruína, mas que
estava nas mãos de Jean e que naquele momento
nada eu poderia fazer.
— Agora, voltemos aos convidados.
O brilho vitorioso dos seus olhos deu-me vontade de
esbofeteá-lo. Mas apenas respondi:
— Tem razão. Os deveres em primeiro lugar.
Saímos. Ele se afastou na postura elegante de
sempre, e eu estava arrasado. Minha alegria, meu
sentimento de vitória tinham se transformado em
amarga sensação de derrota.
Olhei o salão iluminado, o brilho da recepção, a
beleza das festa e pela a primeira vez me
perguntei: valeria a pena?

Saí para o jardim. Precisava respirar um pouco
de ar puro. Ia passar. Afinal, Jean era homem
inteligente. Entrara no jogo conhecendo as regras.
Por que enraivecer? Mas os seus olhos frios, o brilho


de superioridade, a antiga rivalidade que ele
conseguira vencer causavam-me mal-estar.
Precisava ver Lenice, despedir-me dela. Porém
faltava-me coragem. O que lhe diria? Amava-a
muito, mas não titubeara em forçá-la a um
casamento indesejado. Acreditaria na sinceridade do
meu amor? Alguém enfiou o braço no meu e
delicioso perfume me envolveu.

— Elisa! – murmurei encantando.
— Estou aqui. Você passou por mim e nem me viu.
É assim que você me ama?
Ela estava gentil, e isso maravilhou-me. Elisa,
apesar de encorajar-me as atenções, em certos
momentos mostrava-se distante e difícil. Era
sempre eu quem a cumulava de gentilezas,
fazendo-lhe a corte, enquanto ela jamais
demonstrava emoção mais profunda. Isto, de certa
forma, estimulava-me o interesse, uma vez que
estava habituado ao sucesso com as mulheres.
Fixei-a e vi um brilho forte em seus olhos
bonitos. Apertei sua mão com força, enquanto
brando calor me envolvia o coração.
— Eu a amo – retorqui e, num ímpeto, abracei-a,
beijando-lhe os lábios entreabertos.
Queria esquecer os problemas desagradáveis
de momentos antes e apagar a consciência da
minha participação no casamento de Lenice.
Ela retribuiu o meu beijo e exultei. A custo Elisa
conseguiu desvencilhar-se do meu abraço.
— Por favor, contenha-se – disse aflita. – Estamos
em publico. Os convidados podem ver.
Olhei ao redor e puxei-a para trás de uma sebe
florida. Lá, estaríamos mais ocultos dos olhos
indiscretos. Ela resistia:
— Vamos embora. Agora não.
Mas de súbito passou os braços pelo meu


pescoço, abandonando-se ao meu beijo
inesperadamente. Exultei. Entreguei-me à emoção,
beijando-a repetidas vezes. Porém, de repente, ela
cerrou os lábios empurrando-me com força.
— Tem gente aqui... – murmurou assustada.
Larguei-a, enquanto vi Jean no bando ao lado,
olhando distraidamente para o outro lado.
— É Jean – tornei teimoso. – Não importa.
— Vamos embora. Acho de mau gosto ficarmos aos
beijos escondidos aqui.

— Eu acho bom – tornei com entusiasmo.
Jean levantou-se e saiu sem sequer nos olhar.
Isto renovou meu entusiasmo. Tentei abraça-la de
novo, mas ela me repeliu, saindo de onde
estávamos. Estava fria e controlada. Seu rosto tinha
uma expressão cruel e desagradável que me
assustou, jogando um jato de água fria em meu
entusiasmo. Vivo sentimento de frustração me
acometeu. Tive vontade de voltar a Paris, esquecer
tudo e procurar mergulhar em emoções novas a fim
de voltar à antiga alegria.
Silenciosos, voltamos ao salão. Aquela festa, de
repente, tornou-se cansativa e não via a hora em
que tudo acabasse. Felizmente, as despedidas iriam
começar. Eu e mamãe ficamos a postos no saguão,
precedidos de Lenice e Jean.
Os amigos desfilaram em despedida e foi com
indiferença que me despedi de Elisa. Estava mesmo
incapaz de qualquer emoção. O cansaço tomava
conta de mim.
Ela tentou apagar a impressão desagradável de
momentos antes, dizendo-me baixinho:
— Espero você amanha. Precisamos conversar.
— Está bem – concordei indiferente.
Quando todos se foram, ficamos só os quatro,
um tanto embaraçados. Minha mãe adiantou-se


abraçando Lenice, depositando um beijo em sua
testa.
— Agora é a Sra. Lasseur. Que seja muito feliz. Sei
que vai honrar o nome de nossa casa e o de seu
marido. Que Deus a abençoe.
Abraçou Jean, pousando delicado beijo em sua
face.
— Você é agora meu filho. Confio em seu
cavalheirismo. Lenice é inexperiente, porém será
uma boa esposa. Trate-a com brandura e
compreensão.
Jean curvou-se ligeiramente com um brilho
orgulhoso no olhar.
— É minha esposa. Gozará de todos os privilégios
desta posição.
Fingindo não perceber a palidez de minha irmã
nem o tremor de seus lábios, beijei-lhe a mãozinha
gelada e abracei-a beijando-lhes as faces.
— Você será feliz, tenho certeza – murmurei, não
sei se para convencer-me disso ou se para
encorajá-la.
Ela olhou-me e nada disse. Havia um brilho de
dos em seu olhar.

— Adeus – tornei para Jean. – Boa viagem.
Enquanto a carruagem esperava com a
bagagem, abracei Lenice com força, apertando-a de
encontro ao peito. Disse-lhe ao ouvido em tom
angustiado:
— Eu a quero muito. Não esqueça nunca. Perdoe-
me se não pude fazer diferente.
Ela não respondeu. Correspondeu ao meu
abraço e em seus olhos brilhava uma lagrima. Foi
com o coração partido que os vi subirem na
carruagem e partirem. O olhar de Lenice
acompanhou-me durante o resto da noite, e eu,
insone, insatisfeito, preocupado, não consegui


dormir.
No dia seguinte, depois de o notário de Jean ter
me procurado e acertado tudo, tive uma conversa
com minha mãe. Agora, estava tudo em paz. Eu
podia voltar a Paris, concluir meus estudos, levando
a mesma vida de sempre.
Queria voltar o quanto antes. Pensava que lá,
na cidade que amava, em meio aos amigos e aos
divertimentos, aos estudos e aos negócios que teria
que conduzir, depressa esqueceria os momentos
desagradáveis daquele casamento.
Pensei em Elisa. Desejava-a. Mas o casamento
não estava na área das minhas cogitações naquele
momento. Queria sair dali, usufruir da minha
liberdade, da minha posição cujo preço fora tão
caro. Se Elisa quisesse casar-se comigo, teria que
esperar. Esperar que eu me formasse e regressasse
voluntariamente ao lar. Agora, eu podia dar-me ao
luxo de esperar.
Procurei-a à noite, para despedir-me.
Tencionava voltar a Paris dali a dois dias.
Eu tinha esfriado um pouco o entusiasmo. A
atitude dela naquela noite tinha jogado água fria em
meu ardor. Senti-me ridículo, não correspondido.
Embora picado em minha vaidade, de repente
aquele namoro pareceu-me sem razão de ser.
Fui disposto a usar de franqueza e encerrar o
caso. Elisa recebeu-me com gentileza. Eu, contudo,
estava distante e frio. Disse-lhe que tinha vindo
despedir-me. Regressaria a Paris, de onde só
voltaria dentro de um ano.

Ao contrário do que eu esperava, Elisa
mostrou-se triste e delicada. Disse-me que se sentia
só, uma vez que o Sr. Trèville tinha viajado para
outra cidade para tratar de negócios urgentes.
Mostrou-se tão acessível, bastante diferente do


nosso ultimo encontro.
Fomos caminhar pelos jardins. Ela, muito
próxima, linda e perfumada, não me parecia tão fria
como naquela noite.
A certa altura, aproximou-se de mim
enlaçando-me o pescoço e beijando-me com ardor.
Esqueci meus propósitos de despedida e tudo o
mais. Beijei-a repetidas vezes dominado pelo calor
do momento. A custo ela me conteve. Entramos.
Elisa sorria e estava linda.
— Quero que esta noite seja inesquecível – disse-
me, olhando-me com paixão.
Tomou duas taças e encheu-as de vinho.
— Vamos brindar ao amor! – disse-me com olhos
brilhantes.
— Sim – respondi com voz rouca. – Ao amor!
Bebemos o vinho, e, entre beijos, perdi a noção
do tempo e de tudo. Ainda hoje, quando me lembro
daquela noite, há sempre um pedaço obscuro que
não consigo recordar.
Acordei ainda atordoado, sem saber bem onde
estava. Elisa sacudia-me aflita.
— Jacques. Jacques. Acordei. Meu Deus!
Sacudi a cabeça aturdido. O que estava
acontecendo? Olhei ao redor e estava em um quarto
desconhecido.
— O que aconteceu? – indaguei assustado.
— Não sabe? Então já esqueceu?
— Esquecei o quê?! Onde estamos?
— Em meu quarto.
Assustei-me de fato. Passei as mãos pelos
cabelos, num gesto aflito. Aos poucos comecei a
recordar-me. A paixão tinha tomado conta de mim.
Elisa estava ardente e eu não tinha me contido.
Tínhamos bebido mais eu não me lembrava de ter
perdido assim a consciência anteriormente.


Elisa estava nervosa e torcia as mãos
desesperada.
— E agora? Por que não resisti? O que vai ser de
mim se meu pai descobrir?

Senti uma desagradável sensação no estomago.
Não tinha desejado aquela situação, mas era um
cavalheiro. Não podia negar-me à reparação. Afinal,
Elisa era uma moça de família importante e
honesta. Não podia deixá-la naquela situação.
Tomei-lhe as mãos procurando acalmá-la.
— Calma. Daremos um jeito. Não tema.
— Você vai embora. E eu, como farei?
— Preciso voltar aos estudos, mas não a deixarei
em dificuldade.
— Como?
— Veremos. Podemos nos casar.
— Quando?
— Quando eu voltar, daqui a um ano.
Ela desatou a chorar.
— Por que chora? Já não disse que nos casaremos?
— Um ano é muito tempo. Você vai esquecer-me. E
aí, o que será de mim?
Eu relutava, contudo sabia que ela estava
certa. Queria sair dali o quanto antes. Se o Sr.
Trèville aparecesse, como explicar minha presença?
— Falo a seu pai antes de partir e marcaremos a
data – prometi ansioso para ir embora.
— Hoje mesmo? – inquiriu ela contente.
— Hoje mesmo.
Vestia-me apressado quando, para susto meu,
a porta abriu-se e o Sr. Trèville apareceu na minha
frente. Estava rubro de cólera.
— Finalmente eu o surpreendi! – disse com uma voz
que a raiva dificultava. – Bem que desconfiei vendo
o chapéu no salão, os copos, as garrafas. Então é
assim que um homem de honra procede em um lar


honesto que lhe abriu as portas?
Eu estava apavorado. Ele tinha razão até para
matar-me como a um cão.
Quando pude falar, balbuciei:
— Sr. Trèville, quero casar-me com sua filha o mais
breve possível. Lamento o que aconteceu. Quando
vim aqui ontem, não tinha nenhuma intenção. A
tentação foi mais forte. Peço-lhe que me perdoe e
aceite como genro.

— O senhor não precisava vir na calada da noite. A
amizade de nossas famílias sempre lhe abriu as
portas de nossa casa.
Elisa chorava a um canto. O Sr. Trèville continuou:
— Espero que repare a nossa honra o quanto antes.
— Estou às ordens – murmurei envergonhado.
O casamento ficou acertado para dali a uma
semana e eu mais uma vez tive que adiar minha
viagem. Estava aborrecido e entediado. Por que
tinha cometido àquela loucura? Sempre soube
controlar-me. Por que com Elisa tinha sido
diferente? Seria amor o que eu sentia por ela? Por
certo, porquanto eu não me lembrava de ter sentido
antes aquela avalancha de emoções e perdido a
cabeça daquela forma.
Minha mãe recebeu a noticia com surpresa.
Sabia que eu tinha outros planos. Embora não se
sentisse muito à vontade com Elisa, nada disse. Em
meu coração, os sentimentos mais contraditórios
afloravam. Momentos havia em que o
arrependimento tomava conta de mim. Entretanto,
eu não podia fugir da situação.
Casamo-nos uma semana depois, na capela
pequenina do palácio do Sr. Trèville. Foi servido um
almoço na casa de Elisa, e à tarde viajamos para a
casa de campo de minha esposa em Averne, onde
passaríamos alguns dias. Depois regressaríamos e


Elisa ficaria com o pai até que eu terminasse os
estudos em Paris.
Ela tinha preferido assim, em vez de ficar em
nossa casa com minha mãe, como era de se
esperar. Alegava que o pai iria ficar só e ela
preocupava-se com a sua saúde. Quando eu me
formasse, então iríamos para minha casa. Aceitei.
Para minha mãe foi um alivio. Embora ela nada
tenha dito, percebi pelo seu rosto. Mandamos
participação para Lenice e Jean e para os amigos.
Diante da emoção do Sr. Trèville e os olhos
preocupados de minha mãe, despedimo-nos rumo à
lua-de-mel. Apesar de tudo, eu estava emocionado.
Elisa era uma linda mulher. Pretendia torna-la
feliz. Queria construir uma família como meu pai
tinha feito, com dedicação e honestidade. Não tinha
desejado aquele casamento, mas, uma vez
efetuado, lutaria para mantê-lo.

Assim que a carruagem começou a
movimentar-se, Elisa recostou-se nas almofadas.
— Está cansada? – indaguei com gentileza.
— Estou. Parece que gastei todas as minhas
energias.
Fitei penalizado seu rosto um tanto pálido.
— Vem aqui, recoste a cabeça em meu peito. Não
tema. Agora estamos juntos para sempre.
Ela pediu-me com voz fraca:
— Deixe-me descansar um pouco, por favor.
Larguei-a um pouco decepcionado. Ela se
recostou nas almofadas novamente, olhos fechados,
extenuada. Recostei-me por minha vez, fechando os
olhos e procurando dormir.
Assim decorreu toda a viagem, e era já noite
quando chegamos à casa de campo onde a
governanta nos esperava atenciosa e gentil. O lugar
era lindo e acolhedor. Eu, porem, não estava muito


disposto. Vendo o rosto cansado de Elisa, não tinha
ânimo para qualquer arroubo amoroso. Tinha
imaginado nossa viagem de forma bem diferente.
Contudo, era cedo para ajuizar. Afinal, aquela
semana fora cheia de emoções novas para ela, que
decerto se ressentia. Nunca tinha se separado do
pai.
O jantar foi servido em romântica sala e
programado com muito carinho pela governanta.
Estava delicioso e eu tentei dar tempo a Elisa,
tratando-a com carinho e atenção. Ela parecia triste
e distante.
Depois, sentamo-nos na sala e tentei acalma-la.
— Elisa, você está triste e sem disposição. Por
acaso, algo a desagrada?
— Não. Tudo está bem. Bem demais.
— Então não tem motivo para estar com essa
tristeza.
— Sou uma mulher triste, é bom que saiba.
Abracei-a com carinho.
— Deixe isso de lado. Saberei acabar com sua
tristeza. Você será muito feliz!
— A felicidade não existe. Não creio nela.
Olhei-a surpreendido.
— Não crê que sejamos felizes? Você não confia no
futuro?

— Tudo é falso, fingimento, interesse. É só o que
existe.
— Elisa, não seja amarga. Não crê que a amo?
— Não, não creio. Você se casou comigo contra a
vontade, e se não tivesse acontecido o que
aconteceu, você estaria em Paris, gozando sua
posição e seu dinheiro.
No fundo eu lhe reconhecia certa dose de razão.
— Reconheço que casei com você por causa do que
aconteceu, mas se aconteceu foi porque eu a amo.


Não resisti aos seus encantos. E agora estou sendo
sincero, desejo faze-la feliz.
Ela me olhou seria e havia certa frieza em sua voz.
— Não tente iludir-me. O amor existe conforme o
interesse. Não acredito que exista de verdade.
— Sinto que esteja tão desencantada. Deve
compreender o que aconteceu. Agora, estamos
juntos. Vamos aproveitar estes momentos, viver
esta hora que é nossa.
Ela olhou-me firme. Depois disse:
— Está bem. Aproveitemos. É o que a vida nos pode
dar. Que seja.
Levantou-se, apanhou uma garrafa de
champanhe, colocando-a em uma bandeja em que
as taças estavam dispostas, e convidou:
— Venha! Vamos para o quarto. Brindemos à vida,
ao amor, a tudo! Tem razão. Somos jovens, vamos
gozar a vida!
Olhei-a admirado. Estranha mulher. Diferente
de todas as que eu tinha conhecido. Mas eu não
queria pensar. Acompanhei-a e mergulhei com ela
num mundo de sensações em que cada um
procurou esquecer tudo o mais.







CAPÍTULO V





A carruagem balançava cadenciada e alegrou-
me reconhecer Paris, seu casario, suas ruas tão
familiares.
Finalmente, estava de volta. Muitas coisas
tinham mudado desde que eu partira, mas a
emoção de rever a cidade querida ainda era a


mesma.
Fazia quinze dias apenas que eu tinha me
casado, e as emoções sucediam-se dentro de mim.
Elisa continuava sendo para mim um enigma que eu
não conseguia decifrar. Era capaz de tornar-se
amante ardente e apaixonada e logo após
transformar-se em mulher apática, fria, triste e
distante.
Durante a semana da nossa lua-de-mel, muitas
vezes me perguntei se ela de fato me amava. Meu
orgulho recusava-se a admitir a possibilidade de
não ser amado. Havia momentos no
comportamento dela em que eu me sentia
recusado, desprezado e mesmo inoportuno. Ela
transformava-se com facilidade, e em outro
momento tornava-se apaixonada, sequiosa de
afeto, exigindo o de mim o máximo.
Meu relacionamento com Elisa era apaixonado,
avassalador. Exacerbava minhas emoções
despertando uma paixão, uma sede, que a cada dia
mais se acentuava. Era como uma doença, um
mergulho na sensação. Ela despertava-me o desejo,
e sua instabilidade emocional alimentava-me a
fantasia.
Quando estava longe, não sentia muito sua
falta. Mas bastava estar a seu lado, um roçar de
mãos, um olhar, um suspiro, para que meu desejo
se acendesse.
Apesar desse torvelinho de emoções
descontroladas em que mergulhara pela primeira
vez, queria voltar a Paris e terminar os estudos. A
própria Elisa insistiu para que eu o fizesse.
Agora, na carruagem, olhando as ruas da
cidade, esquecia-me do fascínio de Elisa para
pensar apenas que eu estava de volta.


Tinha vencido. Continuava sendo o moço rico e
respeitado. Disputaria os primeiros lugares no
teatro, nas rodas de luxo. Na Sorbonne não seria
colocado à margem como um estudante pobre e
sem nome.
A carruagem parou em frente à mesma velha
casa. Com emoção paguei o cocheiro e, segurando
minha maleta, toquei a sineta. Foi com alegria que
ocupei meu antigo quarto e abri as janelas, olhando
a paisagem.
Finalmente, estava em Paris! Finalmente eu
tinha vencido! Naquele momento esqueci-me de
Lenice, de Jean, de Elisa e até de minha mãe. Eu
tinha conseguido. No dia seguinte, iria à
universidade. Embora estivesse um pouco atrasado,
contava ainda conseguir cursar as aulas e não
perder o ano.
Entrevistado pelo reitor, a quem expus meus
problemas particulares – à minha maneira, é claro -
, obtive sua permissão para prosseguir o curso.
Estava claro que deveria estudar e repor as aulas
que perdera, mas eu o faria de boa vontade. Foi
com entusiasmo que reiniciei os estudos.
Percebia a admiração dos amigos que haviam
ironizado minha situação de fidalgo arruinado e
agora passaram a bajular-me por conhecerem
minha boa situação financeira. Desprezava-os.
Porém a mudança das suas atitudes satisfazia-me a
vaidade. Eu gostava de ser tratado com deferência,
com superioridade, com destaque.
Minha vida passou a ser o que era antes da
morte de meu pai, com a diferença de que agora eu
valorizava muito mais a riqueza, a posição e tudo
quanto possuía.
O tempo foi passando e a cada dia mais eu me
acomodava à situação. De vez em quando recebia


carta de Elisa. Esquecia-me dela e do casamento.
Teria sido sonho ou acontecera mesmo? Aqueles
dias pareciam-me tão distantes que eram como se
não tivessem acontecido.
Minha mãe escrevia informando-me dos
negócios de que eu cuidava atencioso, de Lenice,
que vivia com o marido no castelo de Lasseur e
parecia estar muito bem.

Fazia dois meses que estava em Paris quando
Elisa escreveu-me dizendo que estava grávida.
Fiquei emocionado. Um filho! Naquela noite senti
saudades de Elisa e desejei estar com ela.

Porém, apesar da emoção, no dia seguinte tudo
voltou a ser como antes. Parecia-me que Elisa
estava falando de outra pessoa. De um casamento
que não era o meu e de um filho que não me
pertencia.
Escrevi-lhe uma carta carinhosa, dizendo-lhe
que desejava estar a seu lado, porém não podia
afastar-me para não prejudicar os estudos que
agora eu tinha conseguido regularizar. Dali mais
quatro meses, eu poderia ir vê-la e passar suas ou
três semanas a seu lado.
Após as experiências difíceis pelas quais eu
tinha passado. Valorizava a conclusão do meu
curso. Parecia-me que, diante das mudanças sociais
pelas quais a França passava, ele representava o
caminho mais eficiente para conquistas posição e
sucesso.
Eu tinha sentido que possuía condições para
vencer e confiava em minha habilidade. Tinha
vencido onde a maioria por certo teria sido
derrotada. Pela primeira vez havia experimentado a
minha própria força e a ambição chamava-me para
novas conquistas de poder e de posição.
O mundo estava mudando, os homens ávidos


de progresso e a Republica abrindo campo vasto de
atuação e participação social. Até onde poderia ir?
Até onde poderia subir?
Para isso precisava de formação cultural.
Bacharelar-me em leis poderia abrir-me as portas
da Câmara ou do Senado e até do governo. Sentia
dentro de mim a volúpia de liderar, conduzir, ser
ouvido, respeitado, acatado.
Atirei-me aos estudos com um afinco dantes
nunca sentido.
No final do ano, voltei para casa satisfeito e
orgulhoso com meu desempenho.
Na realidade, apesar disso, eu relutava em
voltar por vários motivos. Tinha medo do
reencontro com Lenice, de presenciar sua
infelicidade ao lado de Jean. Ao mesmo tempo,
depois de tanto tempo de afastamento, Elisa
afigurava-se-me quase como uma estranha.
Como me receberia? Enchi-me de coragem, de
presentes e preparei-me para o regresso.

Fui direto a nossa casa, onde minha mãe
abraçou-me saudosa. Aquele ambiente tão querido,
o aroma agradável e tão especial daquele lar tão
amado, a presença de minha mãe, tudo contribuiu
para desanuviar-me o espírito.

Sentado a seu lado na sala, informei-me de
tudo. Lenice parecia muito bem e o casal jantava
com ela aos sábados, ou passava à tarde do
domingo.
— Como está Lenice? Como vive com o marido? –
indaguei preocupado.
— Parece bem. Tratam-se com cortesia e Jean tem
sido muito delicado com ela. Lenice está corada,
muito bem vestida, e o marido a cobre de jóias.
— Será feliz?
Minha mãe deu de ombros.


— Nunca me fez confidencias. Porém, pelo que pude
observar, parece que sim.
Suspirei aliviado. Ao mesmo tempo senti um
pouco de ciúmes. Jean teria conquistado o amor de
minha irmã?
— E Elisa? – indaguei.
— Tem vindo visitar-me de vez em quando, em
companhia do pai. Está passando bem, apesar do
seu estado. Você vai ficar lá com ela ou ficarão
ambos aqui? Você não me disse nada quanto a isso.
Preparei seu quarto, mas podem ficar no meu, que
é de casal.
— Ainda não sei. Vou até lá ver Elisa e
resolveremos.
Não me agradava hospedar-me lá. Amava
minha casa, meu quarto, meu lar. Preferia trazer
Elisa para nossa casa.
Estava anoitecendo quando fui introduzido em
casa de Elisa. Abraçamo-nos. Beijei-a com carinho.
Vendo-a, emocionei-me. Meu filho estava com ela.
Era um laço forte e definitivo para mim.
Ela pareceu-me um tanto triste, o que
sensibilizou-me ainda mais. Talvez eu tivesse sido
egoísta e indiferente, pensando em meu futuro e
deixando-a sozinha durante tanto tempo. Redobrei
as atenções e ela me apareceu mais alegre. Seu pai
não estava bem de saúde e por isso renunciei à
alegria de ficar em nossa casa e aceitei a
hospedagem do Sr. Trèville.
Elisa contou-me que estava muito apreensiva
com o pai, cujo coração estava atingido. Não tive
coragem de separá-los, ainda que por pouco tempo.
Esforcei-me por adaptar-me ao convívio deles,
porém sentia-me deslocado. Procurava pretextos
para visitar minha mãe e lá permanecia por longo
tempo.


Foi no domingo que nos encontramos com
Lenice e Jean. Elisa estava particularmente alegre
nesse dia e esmerou-se na sua toalete. Eram suas
da tarde quando chegamos: eu, Elisa e o Sr.
Trèville. Estávamos conversando animadamente
com mamãe na sala quando eles chegaram.
Levantei-me emocionado. Era a primeira vez
que via Lenice depois do seu casamento. Estava
linda. Elegantíssima, custei a reconhecer a nossa
Lenice naquela jovem senhora desembaraçada e
dona de si que retribuía meu abraço educadamente.
Fiquei admirado. Apertei a mão de Jean com a
frieza cortes de sempre. Sentamo-nos e eu não
conseguia tirar os olhos de Lenice. Parecia outra
mulher. Ganhara em beleza, classe, desembaraço,
mas onde estava minha Lenice de olhos doces e
amorosos? Não conseguia vê-la.
Conversamos sobre assuntos gerais como
pessoas bem-educadas, e a tarde decorreu amena e
agradável. Tinham acontecido muitas coisas durante
aquele ano, porém aparentemente estava tudo
bem. Contudo, eu não me sentia à vontade. Algo
me incomodava. O que era? Não saberia dizer. Uma
sensação de malogro, de decepção, de fracasso, de
raiva me dominou. Por quê? Procurei sair dessa
onda de pensamentos.
Quando pude por alguns momentos encontrar
Lenice a sós no corredor, indaguei ansioso:
— Lenice, você é feliz?
Ela olhou-me contrafeita e respondeu:
— Por quê? Não pareço bem?
— Sabe que me preocupo com você. Seu
casamento...
— Está consumado. Não se recrimine. Aceitei as
condições. Vivemos muito bem.
— Não fiz mal a você?


Ela me olhou admirada e respondeu:
— Esqueça o passado. Hoje tudo está diferente.
— Ele tem sido bom?
— Melhor do que eu poderia esperar nas
circunstancias em que nos casamos.
— Eu e ele não nos afinamos muito.

— Bobagens de adolescentes. Se conhecessem
melhor, se apreciariam.
Senti desanuviarem-se meus receios.
— Desejo que você seja muito feliz. Arrependo-me
de ter agido como agi.
Ela deu de ombros.
— Esqueça. Não vale a pena se atormentar.
Abraçamo-nos. Fiquei mais calmo. Quando entrei na
sala, Elisa estava pálida e de olhos vermelhos. Teria
chorado? Aproximei-me.
— Não está bem?
— não é nada. Apenas leve mal-estar. Você sabe
como são essas coisas... No meu estado...
— Quer repousar um pouco em meu quarto?
— Agradeceria.
Acomodei-a em minha cama. Tirei-lhe os
sapatos, cobri-a com carinho e tomei sua mão com
ternura. Elisa desatou a chorar. Preocupado, curvei-
me sobre o leito.
— O que aconteceu?
— Sou uma boba. Estou comovida com seu carinho.
Tenho vivido muito só. Suas atenções me
comovem.
Acariciei-a emocionado.
Eu sabia que as mulheres ficam muito emotivas
durante a gravidez. Minha mãe e Lenice vieram vê-
la e confortar. Jean conversava na sala com meu
sogro.
Enquanto minha mãe oferecia um chá a Elisa,
eu e Lenice voltávamos à sala. Ela parou de repente


e perguntou-me:
— Jacques, por que se casou com ela?
Olhei minha irmã admirado. Recordei-me que
Lenice nunca a suportara.
— Apaixonei-me. Fui afoito e avancei demais. Não
tive outro remédio senão o casamento. Por que
pergunta.
— Esse casamento surpreendeu-me muito. Elisa não
demonstrava amar você.
— Eu também, apesar de atraído por sua beleza,
não a amava. Aconteceu muito de repente.
— Quando começou? – havia ansiedade na voz de
Lenice.

— Foi na noite do seu noivado. Ela estava no
jardim, encontramo-nos e tudo começou.
— Tudo aconteceu tão depressa... Uma semana
depois do meu casamento estavam casados.
— Eu já disse. A culpa foi minha. Fiz o que não
devia. Apesar disso, amamo-nos e somos felizes.
Lenice olhou-me com ar preocupado.
— Espero que continuem felizes.
Estremeci, e a sensação de insegurança voltou.
— Seremos – repeti, tentando expulsar de mim o
mal-estar.
Nos dias que se seguiram, essa sensação
continuou a acompanhar-me. Os achaques do Sr.
Trèville, os humores de Elisa, minha
desambientação em sua casa, tudo criava dentro de
mim uma vontade irresistível de voltar a Paris e
mergulhar em minha vida de sempre, tentando
esquecer os problemas familiares.
Foi com alivio que retornei às aulas. Nem a
expectativa de meu filho chegar ao inicio da
primavera conseguia motivar minha permanência na
casa de Elisa. Agora, mais do que nunca, queria
aprofundar-me nos estudos e graduar-me.


Meu filho nasceu em Averne e eu recebi a
notícia com emoção.
Elisa, pouco depois do meu regresso a Paris,
tinha ido para o campo na tentativa de melhorar a
saúde combalida de seu pai. Por isso, meu filho
nasceu lá e eu usei a distancia como pretexto para
não ir vê-los.
Mandei uma carta carinhosa, muitos presentes
e a promessa de ir ter com eles assim que fosse
possível.
Estava no ultimo ano da universidade e muito
preocupado com minha carreira. Contudo, meu filho
deveria chamar-se Julien, como meu pai.
Foi no meio do ano que tive repentinamente
que voltar. A morte do Sr. Trèville não me permitiu
permanecer distante do lar. Elisa estava arrasada e
só meu filho me oferecia motivo de alegria. Era um
lindo bebe grande, forte, que tomei nos braços
emocionado, procurando nele as semelhanças de
família.
Como sempre, as opiniões eram varias e eu não
podia negar que era muito parecido com meu
falecido sogro.

Passadas as cerimônias dos funerais, tentei
confortar o desespero de Elisa. Ela estava magra e
derrotada. Compreendi sua dor.
Herdara toda a fortuna do pai, como única filha
e descendente. Assim, nossa fortuna cresceu
vertiginosamente.
Elisa se recusou a morar em minha casa com
minha mãe. Foi irredutível. Eu não gostava de
morar no castelo, mas ela foi decidida. Por que
deveria perturbar a tranqüilidade de minha mãe e
deixar sua casa abandonada? Tinha o dever de
cuidar de tudo e não deixaria seu patrimônio.
Vendo-a tão determinada, resolvi


contemporizar. Afinal, minha mãe ficaria
constrangida em recebê-la, e, de certo modo, Elisa
tinha razão. Quando eu regressasse
definitivamente, resolveria diferente. Era possível
que fossemos residir em Paris, passando lá boa
parte do ano.
Foi com emoção e orgulho que colei grau na
universidade. Tinha conseguido. E o que era
melhor: era respeitado, estimados e citados como
exemplo aos demais alunos. Agradava-me ser
destacado como modelo e orgulhava-me disso.
Naquele tempo, esqueci-me completamente dos
meios e das lutas que utilizara para esse fim. Afinal,
eu era um vencedor e a vida não tinha conseguido
me derrotar!
Recebi o abraço emocionado de minha mãe e
os cumprimentos de Elisa com redobrada alegria.
Tinham chegado à véspera e eu lhes reservara uma
surpresa: uma graciosa vivenda em St. Germain,
que eu comprara e preparara com esmero, para
onde tinha me mudado havia duas semanas.
Era linda, com seu telhado gracioso e
jardineiras floridas sob as janelas. Possuía cinco
quartos, duas salas e um salão elegante que eu
mobiliara com requinte e bom gosto.
Nas cocheiras, duas mudas de garbosos
animais, um fiacre elegante e uma carruagem de
gala para grandes ocasiões. Contrataram criados e
uma governanta finíssima e muito bem escolhida.
Saboreei a alegria das duas. O quarto de Julien e da
ama provocou exclamações de entusiasmo.
Eu estava feliz. Orgulhoso. Dali para frente, a
fama, a gloria, o poder. Por que não? Tinha tudo
para isso.

Expus meu desejo de permanecer em Paris
grande parte do tempo. Eu pretendia trabalhar e,


alem de ativar nossos interesses gerindo nosso
patrimônio, dedicar-me à política. Um pouco triste,
ela concordou. Compreendia que não podia viver no
castelo de Trèville o tempo todo.
Tentei tornar aqueles dias muito felizes.
Fizemos passeios muito agradáveis, fomos a teatros
e visitamos pessoas importantes com as quais eu
pretendia estreitar relações, oferecendo a casa e,
quando a situação se tornasse propicia, jantares,
chás, saraus musicais em nosso salão. Eu precisava
de prestigio e de posição. Tinha facilidade para
conversar, atrair.
Fixamo-nos em Paris. Dentro de pouco tempo
nosso salão reunia o que era de mais fino e
representativo da alta sociedade da época.
Orgulhoso, via Elisa linda, educada, fina,
receber com graça e gentileza e sentia-me contente
por te—la escolhido. Uma mulher assim era por
certo do que eu precisava.
Entretanto, na intimidade, Elisa continuava
caprichosa e muitas vezes eu não a conseguia
entender. Tinha momentos de entusiasmo quando
correspondia ao meu afeto, mas amiudadamente
caia em depressão, demonstrando indiferença e
frieza, cujo motivo eu não podia perceber.
Com o tempo, passei a ignorar esses momentos
porque diante dos outros ela era impecável,
educada, tratava-me com muito carinho.
Foi em junho de 1893, quando Julien completou
um ano, que recebemos em nossa casa de pais a
visita de Jean e Lenice. Eu estava tão feliz em
receber e hospedar Lenice que a perspectiva de
rever Jean não me aborreceu. Afinal, se ele era bom
para minha irmã, eu tinha o dever de recebê-lo com
cortesia e deferência. Elisa estava contente e


preparou a recepção com muito carinho. Minha mãe
também estava conosco.

Eu estava radiante. Ia reunir sob o meu teto as
pessoas que amava. Foi com emoção que abracei
Lenice na tarde de sua chegada. Ela estava linda e
muito elegante. Com desembaraço e classe abraçou
mamãe e Elisa. Jean apertou-me a mão com
cortesia, beijou a face de mamãe e a mão de Elisa.
Foi com orgulho que mostrei a casa. Lenice
observou alegre:

— Vamos aproveitar nossa estadia em Paris para
visitar algumas propriedades que possuímos.
Resolvemos também morar em Paris.
Olhei surpreso para Jean.
— É verdade – esclareceu ele. – Possuímos algumas
propriedades aqui. É meu propósito levar Lenice a
conhece-las – Aproximou-se da esposa, segurando
sua mão com gentileza. – Contudo, se ela preferir,
compramos uma vivenda mais moderna na cidade.
Vejo que ela apreciou muito esta casa. Alias
Jacques, é muito confortável e de extremo bom
gosto.
Exultei. Não só pela delicadeza com que ele
tratava a esposa como pela maneira como se referia
a mim. Jean teria mudado? Teria esquecido as
desagradáveis circunstancias em que eu concordara
com aquele casamento? Tudo indicava que sim e eu
me senti muito envaidecido.
Estávamos tomando chá na sala quando a ama
trouxe Julien. Eles ainda não o haviam visto,
portanto ele tirava sua sesta costumeira na hora em
que tinham chegado. Ele veio caminhando com seus
pezinhos ainda sem muito desembaraço pela mão
da ama. Apresentado a um por um dos presentes,
recebeu beijos de minha mãe, caricias de Jean.
Lenice, porém, de repente pareceu-me indisposta.


Ficou pálida e mal passou a mão tremula sobre a
cabecinha loura de meu filho.
Estava branca como um papel. Preocupado,
aproximei-me:
— Lenice, o que aconteceu? Sente-se indisposta?
Ela olhou-me e havia muita dor em seus olhos.
Passou a mão tremula sobre a testa gelada.
— Não é nada. Vai passar logo.
— Quer repousar um pouco? – indaguei.
— Não é preciso. Estou melhorando.
De fato, seu rosto estava mais refeito e menos
pálido.
Eu, porém, continuava preocupado. Estaria ela
doente? Senti-me inquieto. Naquele minuto, Lenice
parecia-me estar sofrendo muito. Haveria algum
problema entre ela e Jean? A felicidade deles seria
só de aparência?
Jean aproximou-se:
— Você esta fatigada. Quer repousar um pouco?

— Não – murmurou ela em voz baixa, porém firme.
– Foi ligeiro mal-estar. Já passou. Prefiro ficar aqui
com todos. Afinal, há muito tempo que não nos
reunimos. Quero aproveitar cada momento.
Jean olhou-a serio. Curvou-se atencioso.
— Como queira.
Depois desse momento, Lenice mostrou-se
afável e bem-disposta. Conversou com todos e
surpreendeu-me sua inteligência, seu brilhantismo.
Orgulhei-me dela.
Lenice tinha se transformado em uma
encantadora mulher, aliando beleza, classe a uma
lucidez de idéias e apreciação intelectual raras em
uma mulher.
Elisa era linda, fina, recebia com muita arte,
sabia ser agradável, porém nunca se tinha
interessado por assuntos mais sérios e jamais


conversava sobre política.
Lenice ia muito alem. Tive prazer em conversar
com ela, Jean juntou-se a nós naturalmente.
Conversamos durante longo tempo esquecidos
de tudo. Falamos sobre o progresso do homem, a
nova era dentro do novo século que se aproximava.
— O homem não pode parar – disse Lenice. – Deve
progredir sempre. É lei da vida.
— Como assim? – perguntei admirado.
— Deus quer que nos tornemos bons e sábios, e só
o conseguiremos continuando a aprender.
— Mas o homem usa tudo quanto aprende para
fazer o mal – ajuntou Jean convicto.
— Por agora – retorquiu ela. – É lei da vida que
quem planta colhe. Quem faz o mal, causando
sofrimentos aos outros, um dia recolhera o mesmo
sofrimento no próprio coração. Só assim avaliara o
mal que causou e não mais tornara a cometê-lo.
— Acredita mesmo nisso? – indaguei admirado.
— Acredito — disse ela convicta. — Se der ao
trabalho de observar o que acontece ao seu redor,
percebera muito bem como a vida responde a cada
um dando conforme suas obras.
— Justiça de Deus? – inquiri cético. – Não sabia que
você era religiosa...

— E não sou. Mas existe a força das coisas que
move os acontecimentos e que responde aos nossos
atos. Deus está na direção de tudo.
Sacudi a cabeça com incredulidade.
— Nesse caso, sua justiça deveria ser perfeita.
Entretanto, não existe maior injustiça do que o
nosso mundo. Como pode ser?
Lenice olhou-me séria. Havia uma chama
luminosa em seus olhos quando disse:
— As injustiças do mundo são só aparentes.
Decorrem da precariedade da nossa observação.


Não temos capacidade de conhecer profundamente
a intimidade de cada um, nem suas necessidades
interiores. Vemos apenas o exterior, a aparência,
nos enganamos e somos enganados muitas vezes.
Contudo, Deus tudo vê, tudo sabe e determina. E
responde não pelo que aparentamos ou julgamos
ser, mas pelo que verdadeiramente somos.
— Nesse caso, como explicar que pessoas bondosas
sofram terrivelmente ou que crianças nasçam
defeituosas e aleijadas? Onde está essa tão
apregoada justiça de Deus que os padres pregam e
que nunca ninguém viu?
Eu sempre tinha sido avesso a qualquer
religião. Considerava-as como a anticultura que
ilude o homem, tornando-o covarde e conformado
com as maldades dos outros, a ignorância, o
fanatismo. Agora Lenice vinha com essas idéias. Eu
não podia aceitar.
— Muitos não a querem ou não podem ver porque
lhes falta a chave para poderem compreender.
Olhei-a admirado. Ela prosseguiu:
— Não falo de religião, que é uma maneira humana
e parcial de enxergar Deus, que cada um exerce
como pode, mas da vida em si, da sua maneira de
expressar-se, de nos conduzir. Já pensou nisso? Já
sentiu que a vida é a única e objetiva linguagem de
Deus?
Olhei-a surpreso. Seu rosto parecia-me tocado
de uma luz diferente, sua voz adquirira modulações
novas. Jean observava calado, olho fixo em Lenice.
— Como assim? – indaguei.

— Se quer perceber Deus, é melhor deixar de lado
certos conceitos humanos. É preciso sentir a vida,
observar os fatos do dia-a-dia para através deles
tentar entender o que Deus nos quer ensinar. São


lições que nos buscam para que aprendam a viver
melhor.

— Mesmo nas tragédias e na dor? – indaguei.
— Principalmente. As lutas, as dores, os problemas,
embora sejam desagradáveis e duros, nos ajudam a
desenvolver aptidões e força para nos tornarmos
mais sábios e amadurecidos.
Fiquei pensativo. Não podia deixar de
reconhecer que no meu caso tinha acontecido isso.
Não quis dar-me por achado e retorqui:
— E a injustiça, a desigualdade social, como
compreende-las?
— Há uma chave que esclarece tudo: é a
reencarnação.
Fiquei estupefato. Minha irmã acreditaria nisso?
Que absurdo! Seria diminuir a dignidade humana!
— Não pode estar falando serio – retruquei.
— Estou. Acredito seriamente nisso. Já vivemos
antes de estar-mos aqui. Sentimos que viemos de
algum lugar. Às vezes até lembramos de pessoas,
cenas, fatos, outras vidas. Você nunca foi a um
lugar pela primeira vez e sentiu já ter estado ali?
— Já me ocorreu isso – declarou Jean sério.
— A mim também, mas isso não explica nada –
deduzi incrédulo.
— Pode dar-me uma explicação melhor a respeito?
– perguntou ela.
Na verdade, eu não podia. Ela continuou:
— Pense como tudo fica claro a partir dessa chave.
As injustiças de hoje, inexplicáveis na vida atual,
são respostas da vida em reação aos nossos atos de
ontem, praticados em outras vidas. Acontecem para
nos ensinar a maneira certa de viver e conviver com
responsabilidades.
— Se eu tivesse vivido outras vidas, por certo me
lembraria – redargüi interessado.


— Quem pode garantir isso? Seria útil recordar-se
de erros passados, carregando o peso das culpas e
dos ódios, das divergências e das quedas? Como
conviver de novo com inimigos de vidas passadas,
às vezes até dentro do mesmo lar, e poder esquecer
e perdoar?
— De que adianta reencontra-los se tudo ficou
esquecido? – interferiu Jean um pouco ansioso.

— As lembranças, os fatos foram esquecidos, porem
a animosidade ou afinidades permanece. É o que
explica a antipatia sem justa causa, a atenção e a
repulsa entre pessoas.
Fiquei assustado. Nunca me afinara com Jean.
Lenice teria razão? Teríamos vivido outras vidas?
Não querendo das a perceber minha emoção,
retruquei sorrindo:
— Você com certeza andou lendo livros
orientalistas. Eles é que acreditam nessas coisas...
— Engana-se – respondeu-me ela com suavidade. –
Li livros do maior mestre que este país já teve. Um
francês de escol, professor, cientista, discípulo de
Pestalozzi e físico de nome.
— Quem é? – indaguei admirado.
— O professor Hypolite Leon Denizard Rivail.
— O mestre de Lyon que escreveu a Gramática
Francesa?
— Esse mesmo. Assinou pseudônimo de Allan
Kardec e faleceu há três anos mais ou menos.
Codificou a Doutrina Espírita e pesquisou muito esse
assunto. Lamento não te-lo conhecido
pessoalmente. Contudo pretendo visitar-lhe o
tumulo de Père Lachaise, para orar agradecida pelo
grande serviço que prestou à humanidade.
Eu estava boquiaberto. Aquela não era Lenice,
minha doce e meiga irmã, tão infantil, tão simples.
Era uma outra pessoa que assustava e preocupava.


Olhei Jean como a indagar. Ele limitou-se a dizer:
— Por certo, querida. Iremos até lá.
Fiquei sem saber o que dizer. Elisa aproximou-
se, passou o braço pelo meu e foi dizendo:
— Mandei preparar um chá. Façamos uma pausa,
há mais de uma hora que estão conversando.
Em sua voz havia dissimulada censura. Sentia-
se isolada. Lenice convidou:
— Junte-se a nós.
Ela sorriu e respondeu:
— Certamente, com prazer. Mais eis nosso chá, que
vai ser servido.
Embora a contragosto, acompanhei Elisa. Ela
sente ciúmes de Lenice, pensei envaidecido.
Procurei ser mais atencioso com ela, que se
mostrava encantadora. Só Jean, calado, sério,
parecia-me um tanto distante. Jean havia mudado,
mas eu não saberia dizer em quê. Às vezes, havia o
mesmo brilho de ironia em seu olhar altivo e o
mesmo sorriso cortês, frio, que tinha o dom de me
irritar, fazendo-me reviver nossas turras da
adolescência. Contudo, estava mais sério, mais
amadurecido. Talvez eu também tivesse mudado a
maneira de vê-lo. Já que era bom para Lenice, eu
pretendia esquecer nossos desacertos e conviver
com ele dignamente.

A amizade de minha irmã, o sentido de família,
de troca afetiva, era muito importante para mim.
Quando eu tinha lutado para conservar nossa casa,
nossos bens eram em grande parte motivada pelo
desejo de conservar nossa vida familiar, apesar de
tudo. Amava nossa casa como ela era, com minha
mãe cuidando de tudo, mesmo sem meu pai. Lenice
fazia parte dessa vida. Eu a amava muito. Sua
amizade era-me preciosa.


No dia seguinte, apesar do mau tempo, uma
chuvinha miúda e constante, fomos ao Père
Lachaise. Elisa recusou-se, e eu fui para ser
agradável à minha irmã. Jean nos acompanhou.

Enquanto Lenice comovida colocava um ramo
de flores no dólma florido e, silenciosa, olhos
fechados, permanecia meditando, corri os olhos
curiosos pelo busto daquele homem de fisionomia
austera que estava ali, numa póstuma homenagem.
Teria ele descoberto o segredo da vida? Li: "Nascer,
viver, morrer, renascer ainda, esta é a lei". Uma
emoção estranha acometeu-me. Teríamos vivido
outras vidas? Depois de mortos, voltaríamos a
nascer aqui? Senti um arrepio percorrer-me o
corpo.

Jean estava sério e circunspecto. O que
pensaria? Acreditaria nas idéias, da esposa? Uma
coisa era visível: o túmulo estava repleto de flores
frescas, denotando o carinho e o amor das pessoas
para com ele.

De repente, a situação começou a incomodar-
me. Não gostava de cemitérios. Por que aceitara
vir? Uma inquietação tomou conta de mim e a
sensação de insegurança apareceu forte e
desagradável.

Suspirei aliviado quando finalmente Lenice resolveu
sair. Estava comovida. Olhou-me com olhos úmidos
e considerou:

— Um dia Jacques, você compreenderá esse grande
homem e verá como sua doutrina pode nos ajudar
nas lutas de cada dia!

Jean nada disse. Nos dias que se seguiram,
movimentamo-nos em intensas atividades.
Recepções, teatros, passeios. Lenice visitou as
propriedades do marido e gostou imensamente de
uma casa solarenga em Montparnasse, concordando


em restaurá-la convenientemente para suas
temporadas em Paris.

Elisa e Lenice, apesar de manterem as
aparências e tratar-se educadamente, não se
suportavam. Só conversavam o necessário. Apesar
de apreciar decoração e ter bom gosto, Elisa não
participava das atividades da cunhada. Parecia
mesmo ignorar o que estava acontecendo.

A princípio, eu tinha procurado aproximá-las,
mas percebendo as barreiras decidira dar tempo
para que se entendessem. Afinal, eu também não
me afinava muito com Jean. Essas coisas podem
acontecer.

A restauração da casa levou quatro meses,
durante os quais Lenice permaneceu conosco. Minha
mãe voltara para casa e Jean ausentara-se algumas
vezes para cuidar de seus negócios. Pude usufruir
da companhia de Lenice, que me surpreendia a
cada dia, revelando-se muito diferente da menina
doce e ingênua que sempre fora.

Eu não saberia dizer o que tinha mudado nela.
Entretanto, ela estava mais dona de, si, mais lúcida.
A seu lado, eu não conseguia ater—me aos assuntos
fúteis de salão que eram a delícia das mulheres
daquele tempo, mas mergulhava em temas
surpreendentes dos quais eu saía sempre pensando,
revendo antigos conceitos, questionando. Era isto
que Elisa não compreendia. Embora não
expressasse sua desaprovação, não aceitava a
maneira de Lenice ver as coisas. E durante esses
momentos, entre os assuntos com Lenice e as
interferências de Elisa, tentando não desagradar
nenhuma das duas, eu percebia claramente a
futilidade e a mediocridade de minha mulher.

O que fazer? Naqueles tempos eu não colocava
a inteligência como necessária a uma mulher.


Bastava-lhe a figura física, a educação, o bom
gosto, a alegria. Porém, percebi naqueles meses de
convivência que Lenice ia aos poucos modificando
esse conceito. Eu sentia enorme prazer em
conversar com ela.

Vendo-lhe o entusiasmo, concordei em ler O
Livro aos Espíritos, de Allan Kardec, e isso nos
ofereceu ensejo a que permanecêssemos
conversando durante horas, a ponto de Elisa amuar-
se.

Jean assistia a algumas dessas conversas e
raramente emitia opinião. Quando participava
desses momentos, falava pouco, observando-nos
enquanto eu debatia com minha irmã aquela
filosofia que, embora me parecesse racional, lógica,
era-me difícil ainda aceitar.

Confesso que aqueles foram belos momentos,
apesar do mau humor de Elisa, que se excluía, e do
olhar enigmático de Jean.

Uma noite, quando reunidos na sala, Jean,
Lenice e eu conversávamos sobre banalidades. Elisa
ouvia-nos e a certa altura relatou-nos um caso que
ocorrera com uma senhora de nossas relações.
Sua nora, jovem e da mais nobre linhagem, tinha
enlouquecido e sido internada em um hospício.
Ainda sob o peso do drama, Elisa comentou:

— Contaram—me que ela gritava que queria vingar-
se do marido e da sogra. E se não a tivessem
dominado, tê-los-ia agredido. Uma moça tão bonita!
Que horror!

— O que teria acontecido? — inquiriu Lenice
pensativa.
Contente por ver-se alvo da atenção de todos, Elisa
prosseguiu:

— Minha camareira contou-me um segredo de
família. Uma sua amiga serviu em casa de Madame


Chaulier durante anos. Como toda pessoa
ignorante, é supersticiosa. Garante que foi a alma
de Daniele que voltou para vingar-se.

— Como assim? — inquiri interessado.

— Disse-me ela que o filho de Madame Chaulier,
aos dezoito anos, teve um romance com Daniele,
uma jovem camareira da casa.
Quando Madame descobriu que ela esperava um
filho, enxotou-a e obrigou o jovem a repudiá-la.
Daniele, desesperada, suicidou-se jurando vingança.
Não é um escândalo? Uma camareira tendo pudores
e exigindo reparação?

Senti-me inquieto. O caso era lamentável. Jean
olhou para ela e perguntou:

— E você, o que acha?

Elisa sacudiu os ombros com graça. Jean quase
nunca dirigia a palavra à minha mulher. Era cortês,
delicado, mas frio. Parecia-me que não a apreciava.

— Fantasias de gente ignorante. Essa gente
simplória vê fantasmas por toda parte.

— Não devemos acreditar, certamente —
acrescentei um pouco picado. Eu também não me
detinha nesses assuntos, mas as últimas conversas
com Lenice tinham me forçado a meditar e já a
dúvida despertara em mim.

— São histórias. Claro que fantasias. Se fosse
verdade, onde já se viu essa coitada querer vingar-
se? O que pretendia casar-se com seu senhor?
Esbulhar essa família?

Lenice ouvia calada. Era evidente que Elisa
levantara o assunto para provocá-la. Mas como
Lenice nada respondeu, Elisa exultou. Finalmente
Lenice, depois dessa, não mais falaria sobre aqueles
assuntos tão cacetes, monopolizando toda a
atenção.

Foi Jean quem perguntou:


— E você, Lenice, como vê esse fato?

Ela olhou firme para nós e disse com voz segura:

— Quem pode julgar? Quem pode saber o que
realmente aconteceu? Se para nós existem ainda
servos e senhores, para Deus há apenas seres
humanos, todos somos seus filhos e todos têm sua
ajuda.

A única coisa que posso afirmar com segurança é
que nada permanece oculto para sempre. A
mentira, o preconceito, o orgulho, a aparência, a
máscara que colocamos diante dos outros querendo
aparentar virtudes que não temos tudo isso, a vida
vai modificar e desnudar. É uma história triste, de
opressão, de agressão do forte contra o fraco,
lamentável a vingança, mais lamentável ainda a
nossa falta de compreensão diante dos sofrimentos
de tantas criaturas.

Elisa esta pálida. A custo lutava para dominar-
se. Conhecendo-a, percebi que um daqueles
acessos de raiva estava iminente. Tentei intervir,
porém Lenice, calma, segura, com voz um pouco
modificada, continuou:

— Ninguém consegue enganar as leis de Deus.
Nada fica em oculto. Tudo o que fazemos está sob
os olhos de Deus, que responde sempre de acordo
com nossos atos, exercendo a justiça. Por isso,
guardemos a certeza de que, seja o que for Deus
está no leme e, embora nossas opiniões possam ser
divergentes, fará sempre o melhor.

Elisa, tentando dominar-se, inquiriu jocosa:

— Você crê que foi o fantasma de Daniele que se
vingou da família?

— Se foi, eu não sei. O que sei é que a morte não é
o fim de tudo, que a vida continua e que o espírito é
eterno. Sei também que a dor, a paixão, a revolta,
o desequilíbrio são próprios do ser humano, seja


nobre ou plebeu, senhor ou servo. Quando
morremos, deixamos o mundo da Terra, nosso
espírito vai viver em outro lugar, mas conserva
sempre sua individualidade. Continua sendo o
mesmo, com seus afetos, suas mágoas, seus
rancores. Nesse caso, se ele pudesse se
conseguisse, se a dor e o ódio o envolvessem a
ponto de cegá-lo para outros ângulos da vida, por
que ele não poderia vingar-se?

— Não acredito nessa loucura — tornou Elisa com
azedume.

— É um direito seu. Só respondi por que me
perguntaram. Não desejo impor minha opinião.
Aliás, mudemos de assunto, é melhor.

Mas Elisa parecia obstinada.

— Quer fugir da luta? Lenice sorriu com
simplicidade.

— Luta? Por favor, Elisa, não coloque nesse ponto.
Ela não conseguiu controlar-se:

— Irrita-me esse descaso por nossa posição,
colocando os criados no mesmo plano que nós.
Deus os colocou exatamente no lugar que devem
ficar. Foram criados para nos servir. Apenas isso.
Sempre houve e sempre haverá senhores e servos.
Se eles pudessem ter os mesmos direitos que nós,
seria o fim do mundo!

Eu queria intervir, mas temia piorar a situação.
Jean olhava as duas e o velho brilho irônico refletia-
se-lhe no olhar. Parecia deliciar-se com a situação,
que a mim era desagradável.

— Compreendo — disse Lenice educadamente. —
Embora pense diferente, respeito sua posição.

Elisa não se deu por satisfeita.

— Diz isso porque seus argumentos são pobres.
Imagine onde ficaríamos se isso fosse possível!

Lenice respondeu calma:


— Diante de Deus, somos todos iguais, com direito
à vida e ao respeito. Aquele que nasce pobre, e por
isso precisa ganhar seu pão nas tarefas humildes,
pode ter qualidades e virtudes que muitos do nosso
meio ainda não possuem. Para mim, o homem vale
não pelo que tem ou pela posição que ocupa, mas
pelas qualidades morais que possui. Não se esqueça
de que o maior que nasceu neste mundo, diante do
qual todos nos curvamos, era simples carpinteiro.

— Você torce os fatos. Mas nada me fará aceitar
essa loucura. Sempre haverá ricos e pobres. Os que
mandam e os que obedecem.

— Concordo consigo. Porém a vida deseja que
aprendamos a respeitar os outros e principalmente
que desenvolvamos nossas aptidões. Por isso,
voltamos várias vezes ao mundo, em diferentes
posições conforme a necessidade.

Aquele pensamento era-nos muito desagradável.
Considerei:

— Não creio nisso. Quer dizer que eu, Elisa, Jean,
qualquer de nós poderia vir a nascer como servo
ignorante? Você não afirmou ontem que existe uma
lei de Evolução e que nosso espírito nunca regride?

— Essas idéias disparatadas não merecem nem
serem consideradas — fez Elisa triunfante.

— É difícil para nosso orgulho admitir que nossas
vantagens de agora não serão eternas. Um dia
partiremos do mundo, e o que levaremos? Posição,
bens, nome, tudo ficará aqui. Lá, do outro lado, no
mundo onde todos viverão, seremos apreciados
pelo que somos não pelo que temos. E se tivermos
que nascer de novo em berço pobre, é porque só
vivendo e sentindo aquela situação vamos enxergar
a verdade. Compreenderemos que o trabalho rude,
porém honesto não é vergonha nenhuma. E se


estamos compreendendo mais, estamos evoluindo,
enriquecendo nosso espírito, que é meta da vida.

Não concordei com minha irmã. A perspectiva
de nascer pobre era-me insuportável. Anulava tudo
quanto eu tinha lutado por conseguir a vida inteira:

— É um absurdo! — comentou Elisa.

Lenice tornou:

— Só expus minhas idéias porque Elisa insistiu. E já
que comecei, gostaria de dizer ainda que o homem
carregue muitas ilusões e enganos que fatalmente
terá que perder. Deus quer a verdade e ela é mais
bela do que imaginamos. Ela é luz, progresso,
alegria, amor. No futuro, todos os homens se
amarão como irmãos. Por isso, não há nada que
permaneça oculto para sempre na face da Terra. O
homem comete deslizes, enganos, crimes,
ocultamente, porque, não vendo ninguém por perto,
acredita-se impune. Não sente o pensamento alheio
e por isso acredita que ninguém possa perscrutar o
seu. Mas chega para cada um a hora da verdade,
quando tudo será revelado e então o
arrependimento empurra-os para a reparação. É
nessa hora que, aprendendo a dura lição, queremos
esquecer refazer, e a vida nos conduz de novo à
reencarnação.

Lenice olhava firme para o rosto de Elisa, que
estava branca como cera. Teria caído se eu não a
tivesse sustentado.

— O que tem? — indaguei assustado. Lenice
levantou-se séria.

— Lamento. Peço desculpas. Este assunto não
agrada a Elisa.

— Foi ela quem insistiu, murmurei a contragosto.

Jean estava mudo. Enquanto eu insistia para que
Elisa tomasse um copo de água, Lenice era a única
que estava calma, como sempre.


Dali para frente, resolvi evitar esses assuntos.
Eram desagradáveis e Elisa ressentia-se. Mais
tarde, em nossos aposentos, minha mulher
confidenciou:

— Até quando Lenice vai provocar-me? Até quando
falará sobre coisas próprias da ralé?

— Acalme-se, Elisa — ponderei sério. — Não
permitirei mais esses assuntos, se a desagradam,
mas você deve convir que ela não queria, você
insistiu.

— Não acredito que alguém com o berço de sua
irmã possa pensar daquele jeito.

— Também não é o caso de se irritar a esse ponto.
Se ela respeita suas idéias, por que não
respeitarmos as dela? Não há razão para que você
se aborreça desta forma.

— Quero que ela vá embora daqui — exigiu ela com
raiva. — Tive um choque.

— Não me peça tal coisa. A casa deles já está
praticamente pronta. Um pouco mais de paciência e
logo irão embora. Você não é criança.

Dali para frente procurei evitar esses assuntos
e nem Lenice nem Jean tornaram a eles.

Quinze dias depois se instalou em sua nova
casa. Apesar da delicadeza de Lenice, convidando
Elisa e mostrando-lhe os arranjos da casa, minha
mulher continuava fria para com ela, limitando-se
ao estritamente necessário, embora educadamente.

Essa situação desagradava-me, porquanto
gostaria que elas se estimassem.

Reconhecia que Elisa era caprichosa e fútil,
enquanto Lenice continuava serena como sempre e,
apesar de suas idéias extravagantes, era muito
lúcida e ponderada nas atitudes.

Essa situação entre as duas espaçou um pouco
nossos encontros, mas eu ia muitas vezes à tarde


tomar chá no salão de Lenice e conversávamos
longa e livremente.

Se eu não podia aceitar suas idéias, respeitava-
as. Eram lógicas e de uma beleza profunda. Pena
que eu não acreditasse em suas bases. Ela me
recebia com carinho e muita atenção. Foram
deliciosos esses momentos.

Era meu desejo fazer carreira e ingressar na
magistratura. Foi com orgulho que recebi um
convite para lecionar na Sorbonne. Quem me fez a
solicitação foi o Sr. Leterre, exatamente aquele a
quem meu pai devia e que se recusara a reformar o
prazo para pagamento da dívida.

Fiquei radiante quando ele me procurou de
maneira informal, em minha própria casa, para
formular esse convite em nome do grupo de
conselheiros da universidade, do qual fazia parte.

Recebi-o com deferência. Agora eu estava em
condições de esquecer aqueles tempos,
aparentemente, porquanto essa visita honrosa era-
me sumamente agradável. Ele estava envelhecido e
sua figura inspirava respeito. Agradeci o convite
sensibilizado, comprometendo-me a comparecer em
reunião com os demais membros do conselho e da
reitoria.

— Alguns anos se passaram desde que nos vimos
pela última vez — recordei orgulhoso.

— Sim — respondeu ele com o olhar percuciente
fixo em mim. — As coisas hoje estão muito
diferentes. O senhor realmente conseguiu vencer e
sobrepor-se aos problemas. Admiro-o por isso,
creia.

— Foi difícil, mas quando se luta com coragem e
tenacidade, muito se consegue.

Ele sorriu e seu rosto se rejuvenescia quando sorria.


— O senhor estava apavorado, mas devo
penitenciar-me. Não acreditava que conseguiria.
Nós, os mais velhos, às vezes subestimamos a
mocidade. Eu estava errado. Reconheço. Sorri bem-
disposto.

— Recordo-me agora de que vi um retrato de uma
dama em seu escritório. Quem era?

— Por que quer saber?

— Conheci-a na ópera. Houve um incidente entre
nós. Impressionou-me bastante e nunca consegui
descobrir-lhe a identidade. Quando o visitei, vi o
retrato. Estava tão preocupado com meus negócios
que nem tive coragem de perguntar. Agora, o caso
veio-me à memória e a curiosidade ainda é a
mesma.

— Não sei de quem fala Sr. Latour.

— De uma dama linda, loura, vestido cor de pérola,
olhos muito expressivos, colo exuberante e bem-
feito, lindas mãos, porte altivo e elegante. Tinha
uma maneira de mexer o lábio inferior adorável.

Ele riu divertido.

— Pelo jeito, ainda não a esqueceu.

— Com efeito. Foi uma singular aventura... Contei-
lhe o episódio da ópera.

Ao término, ele respondeu:

— Realmente, ela estava incógnita. Lembro-me de
sua visita. Trata-se de dama da mais alta linhagem
no seu país.

— Ainda hoje a curiosidade me angustia. Quem é
ela?

— A jovem condessa viajou incógnita. Era-lhe
perigoso revelar a identidade. Entretanto, depois
desses anos posso dizer-lhe que se fazia chamar por
Helen Robinson.

— Era seu nome verdadeiro?


— Não. Viajava incógnita porque em seu país a
situação política não era satisfatória. Havia
descontentamento, temia-se um atentado. Tinha
casamento arranjado com um nobre inglês Foi o que
aconteceu. Meu pai era aparentado com eles e por
isso nossa amizade de família vem de longa data.
Conheci Helen desde a infância. Era encantadora.

— Casou-se com o nobre inglês?

— Sim. O arranjo consumou-se e tudo deu certo.
Embora não tenha sido um casamento de amor,
como Helen queria. Afinal, em política essas coisas
nunca andam juntas.

— E agora, onde estão eles?

— O marido ocupa destacada posição em seu país e
sua jovem esposa faz as honras devidas,
naturalmente.

— Vejo que não menciona nomes.

— Prefiro ser discreto. Afinal compreendo por que
Helen retornou tão cedo da ópera naquela noite.
Nunca me disse. Ela estava hospedada em minha
casa.

Fiquei surpreendido. Em minha fantasia, uma
dama misteriosa, intrigas palacianas, tudo me
aguçava a curiosidade.

— Gostaria de saber mais sobre ela.

— Sinto, Sr. Latour. Empenhei minha palavra que
nada diria.

— Fiquei muito impressionado com ela.

— Realmente, Helen possui uma beleza invulgar.

— É orgulhosa. Enxotou-me sem piedade. Lamento
não ter sido mais gentil. Hoje, depois de tanto
tempo, confesso que não que¬ria perder a chance
de tê-la conhecido. Fiquei fascinado.

O Sr. Leterre sorriu.

— É a mais bela mulher que conheci.

— Concordo. Pena que não tenha voltado a vê-la.


— Melhor para o senhor. Helen tem muitos
compromissos. Tanto se espera dela que o senhor
certamente não seria bem-sucedido. Além disso, ela
é muito cercada, seria perigoso aproximar-se.

Essas palavras tiveram o dom de aumentar-me
o interesse. Entretanto, o Sr. Leterre nada mais
disse. Formulei o propósito de investigar melhor,
agora que eu iria estar mais tempo com ele.

Desviei o assunto com habilidade. Embora
aparentasse não mais me interessar, tinha dentro
de mim a idéia de não descansar até descobrir
aquele enigma.

Ingressei na magistratura naquele mesmo mês
e dediquei-me de corpo e alma ao trabalho. Queria
prestígio, poder, glória, destaque. Tinha chegado a
um ponto de minha vida em que o dinheiro já não
era o bastante. Tinha provado o sabor da vitória e
pensava que ela fosse apenas uma questão de
ousadia e capacidade.

Elisa estava bastante ocupada com a moda e as
recepções. Raramente nos víamos a sós. Eu, a
pretexto de minha ocupação, acompanhava-há
muito pouco, reduzindo minha presença ao
absolutamente indispensável.

Entretanto, meu prazer era visitar Lenice, com
quem conversava, abrindo o coração nas minhas
mais caras ambições, satisfeito por não encontrar
Jean. À tarde ele se ausentava e eu procurava estar
com minha irmã sempre a sós. Eram momentos
deliciosos.

Certa tarde, tomando chá em sua sala de estar,
sentindo-a um pouco mais calada do que o usual,
perguntei-lhe à queima-roupa:

— Lenice, você está triste?

— Não. Apenas pensando, meditando.


— Você é feliz? Um dia fiz esta pergunta e você me
respondeu afirmativamente. Mas às vezes penso
que não é verdade. Hoje é um dia.

Ela sorriu.

— Aceitei o que a vida me deu e procuro viver o
melhor possível.

— Isso não quer dizer que está feliz. Ás vezes me
preocupo pensando que a empurrei para um
casamento que a desagradava.

Ela tocou meu braço com delicadeza.

— Não se preocupe. Você não tem culpa de nada.
Eu só obedeci. Também quis manter nossa situação.

— Consola-me ver que Jean não é mau para você.

Ela sorriu e em seus olhos havia um brilho emotivo.

— É um homem de palavra. Orgulhoso, porém um
cavalheiro. É muito culto e possui vontade férrea.

— Vejo que o admira.

— Sim. Admiro-o. Pena que tenhamos tido tão mau
início.

Olhei-a admirado.

O que havia por trás daquele relacionamento?

— Vocês não têm filhos. Por acaso há algum
problema de saúde?

Ela estremeceu, e em seu rosto passou uma nuvem
de tristeza.

— Nenhum — respondeu séria. — Mas deixemos
esses assuntos do passado e vivamos o presente.

Fiquei intrigado. Lenice por certo escondia de
mim alguma coisa. Ela se emocionava quando
falava nele e ao mesmo tempo entristecia-se.
Tomei-lhe as mãos com carinho.

— Lenice, está preocupada. O que é? Conte-me
tudo, talvez eu possa ajudar.

— Ninguém pode. Só Deus. Não se preocupe. Há
dias em que nos tornamos sentimentais. Só isso.


Sorriu e seu rosto descontraído afugentou-me
as preocupações.

Tudo para mim corria muito bem. Meu nome ia
ficando conhecido como juiz e as teses que eu
publicava dando uma visão nova e mais aberta a
respeito da justiça e do homem, as aulas na
universidade, tinham feito tanto sucesso que eu,
fascinado, comecei a escrever livros, ensaios sobre
psicologia humana e sobre a justiça, numa
linguagem clara e menos técnica, que fizeram à
delícia dos intelectuais da Sorbonne, mesmo fora da
minha área.

Embora se envaidecesse com meu sucesso,
Elisa continuava com sua intensa vida social. Era
Lenice quem discutia comigo as idéias, muitas vezes
modificando minha maneira de ver as coisas, e hoje
sei o quanto ela contribuiu para meu êxito como
escritor. Comecei a ficar conhecido e ser convidado
para paraninfar formaturas na universidade e
esporadicamente para fazer palestras em vários
lugares.

Estes acontecimentos empolgaram-me e
afundei-me nos estudos, cada vez mais próximo de
Lenice e a cada dia mais distante de Elisa.

Para amenizar essa situação, de que, aliás, ela
não reclamava, procurava fazer-lhe todas as
vontades. Comprei uma vila no campo, onde ela
convidou muitos amigos para passarmos as férias
de verão. Era uma linda vivenda, e fiquei muito feliz
quando ela insistiu pela presença de Lenice com o
marido. Elas sempre se evitaram e se não podiam
ser íntimas pelo menos que pudessem conviver com
naturalidade.

Adorei a idéia e convenci Lenice a ir, porquanto
estava escrevendo novo livro e gostaria de discuti-lo
com ela. Quando ela aceitou, fiquei feliz.


Foi com alegria que ajudei Elisa a preparar tudo
para a viagem. Julien estava alegre e falante. Nosso
filho era um menino voluntarioso, porém
encantador. Seus olhos de um azul escuro
suavizavam-se quando sorria contente e escureciam
quando se irritava. Era um pouco teimoso, mas
muito inteligente, e eu tinha compreendido que,
para que ele aceitasse as coisas, era-lhe necessário
apenas compreender. Elisa não gostava de
argumentar e queria impor-lhe suas determinações,
o que, apesar da pouca idade do menino, já
causava atrito entre eles.

Enquanto comigo ele se portava como um
homenzinho aos sete anos, com ela fazia birra e
mostrava-se recalcitrante. Contudo, isso eles
superavam pelo afeto que os unia. Elisa amava o
filho apaixonadamente. Tinha para com ele
arroubos e preocupações que nunca tivera comigo
ou com ninguém.

Estávamos felizes e há muito eu não via Elisa
tão alegre e cordata como naqueles dias. Nossa vila
era encantadora e tudo era alegria em nós.

— Não convidei muita gente — disse Elisa contente.
— Apenas pessoas que se harmonizam. Assim,
descansaremos e poderemos usufruir mais a
companhia uns dos outros.

Elisa, desejosa de agradar-me, havia convidado
pessoas que eu admirava, e o Sr. Leterre aceitara
vir com a filha. Estava viúvo e nosso convite foi
aceito com prazer. Elisa tivera o cuidado de não
convidar nenhum dos seus amigos fúteis que eu não
apreciava. Pareceu-me mais linda e havia um brilho
emotivo em seus olhos.

Senti-me um pouco culpado por ter-me
afastado demais do seu afeto e desejoso de
aproveitar esses momentos de convivência. Porém


ela não se mostrou com vontade de aproximar-se
de mim, aceitando minhas atenções com certa
indiferença.

Sentindo que a tinha negligenciado, tratei de
rodeá-la de gentilezas. Estava de férias e com
tempo para dedicar-me à família.

Lenice e Jean chegaram no sábado e a maioria
dos convidados já tinha chegado. Éramos doze
pessoas tão bem escolhidas que logo o ambiente
tornou-se agradável e descontraído como só as
casas de campo podem ser. Ver Lenice ali era para
mim motivo de muita alegria.

No domingo cedo estava muito bem-disposto e
alegre. Depois do café, dirigi-me ao salão e de
repente tive um choque sentindo as pernas
fraquejarem. Sentado em uma poltrona, Jean
folheava um livro de gravuras e pacientemente
explicava a Julien a história da vida animal, e o
menino em pé a seu lado, fascinado, bebia-lhe as
palavras. Suas cabeças próximas uma da outra e o
rosto um ao lado do outro me fizeram empalidecer.

Estaria sendo vítima de uma ilusão? Só isso
poderia explicar aquela semelhança absurda entre
eles. A mesma cor de cabelos, o mesmo brilho, o
mesmo nariz, o mesmo queixo voluntarioso.

Tive vontade de sair dali. Controlei-me. Que
loucura. Estaria com ciúme de meu filho?

Seria minha hostilidade com Jean tão profunda
que eu recusava aceitar sua atenção para com
Julien? Mas... E a semelhança? Saltava aos olhos!

A vida tem coisas bem estranhas, pensei,
tentando acalmar meu espírito, procurando
explicação para esse fenômeno. Ia retirar-me
quando Julien percebeu minha presença.


— Venha, papai. Veja que linda essa girafa. Ela tem
o pescoço comprido porque gosta de comer a rama
dos galhos altos. Não é engraçado?

Aproximei-me. Jean calou-se. Parecia
embaraçado. Teria percebido meu ciúme?

— Continue, Jean. Julien aprecia muito a natureza.
Jean levantou-se.

— Agora chega, Julien. Faz mais de uma hora que
estamos aqui.

— Depois o senhor conta mais? — indagou ansioso.

— Claro. Amanhã voltaremos ao assunto.

A voz dele tremia um pouco ou foi impressão?
Vendo meu filho afastar-se, indaguei:

— Gosta de crianças, Jean?

— Não é o meu forte — respondeu seco.

— Julien apreciou sua companhia. Uma criança traz
alegria a um lar. Por que vocês não têm filhos?
Lenice disse que nada os impede.

— Ela disse? — Os olhos dele brilharam emotivos. —
Eu gostaria de ter um filho — concluiu ele, olhos
perdidos em um ponto indefinido.

— E por que não?

— É, acho que precisamos pensar nisso. Aliás,
tenho me preocupado com a continuidade da
família.

Havia um pouco de tristeza em sua voz. Pela
primeira vez pareceu-me mais humano.

Contudo, a cena de momentos antes ainda me
preocupava. Um pensamento louco, uma suspeita
começou a nascer em mim. Tentei varrer aqueles
pensamentos incômodos.

Nos dias que se seguiram, eles tornaram-se
para mim uma obsessão. Comecei a observar Elisa
e percebi o quanto à presença de Jean a
perturbava. Vi que ele a evitava e que ela o seguia
por toda parte. O que havia entre eles? Estaria


enlouquecendo? Meus ciúmes estariam me levando
a uma suspeita maluca?

Fui para o jardim. Precisava pensar.

Sentei-me em uma pedra que a guisa de banco
encontrei detrás de uma sebe. Quanto mais
pensava, mais e mais suspeitava de Elisa. Teria ela
tido algum romance com Jean? Só à simples
suspeita, meu coração descompassava-se. Foi
quando ouvi vozes vindas do outro lado da sebe.
Havia um banco lá. Quis retirar-me, mas a
curiosidade foi maior. A voz de Jean chamou-me a
atenção. Falava fria e calculadamente.

— Deve entender meu problema. Não desejo
impor nada. Mas é preciso que o nome de família se
perpetue. Um filho é o que mais desejo. Se
proponho isso, é porque é absolutamente
necessário. Não posso deixar acabar o nome de
família. Preciso desse filho, Lenice! Quero que
compreenda que é necessário.

— Você já tem um filho — respondeu Lenice com
frieza. — Logo, o herdeiro de que precisa já existe.

— Quer prosseguir nessa loucura? Ofende-me por
acreditar-me capaz de tal atitude.

— A semelhança a cada dia é mais forte. Isso você
não pode negar.

— Reconheço esse ponto. Mas juro que nunca
mais vi Elisa depois que a conheci. Seria incapaz
dessa indignidade.

Fez-se silêncio por alguns instantes. Eu, pálido,
sentia o coração bater tanto que parecia querer
sair-me pela boca.

— Não sei explicar essa semelhança que você diz
haver entre mim e seu sobrinho. Sabe que Elisa
nunca se conformou com o nosso rompimento.


— Sei. Sei também que ela iludiu Jacques para ficar
perto de você. Meu irmão é bom, nobre, não
merece ser tão miseravelmente enganado!

Senti tudo rodar à minha volta. O chão parecia
fugir-me. Lutei desesperadamente para controlar-
me, tinha que ouvir tudo até o fim.

— Não sei por que estranha força ele se parece
comigo. Talvez, por ela estar obstinada, imprimiu
essa semelhança. Elisa é capaz de tudo.

— Não é elegante de sua parte deixá-la com toda
a culpa num ato que sempre é feito a dois. Depois,
não precisa explicar-me nada. Fizemos um trato e
nele o amor não entrou. Você é livre para fazer o
que quiser desde que respeite meu irmão. Nesse
ponto eu não transijo.

— Lenice, está levando longe demais nosso estúpido
trato. Elisa nunca significou nada. Eu juro
novamente que nunca a vi depois que conheci você.
Acredite. Deixemos Elisa de lado com sua loucura.
Eu quero um filho e para isso preciso de você. Deve
convir que tenho razão.

Silêncio. Eu estava arrasado. Ouvi Lenice dizer:

— Concordo. Está bem.

— Sabe que se não fosse tão necessário não lhe
pediria esse sacrifício.

A voz dele era fria e áspera. Parecia mais uma
sentença de morte do que um encontro de amor.

Eu não compreendia o que havia entre eles.
Estava agoniado e o mundo tinha desabado ao meu
redor.

Ouvi ainda Lenice dizer:

— Está bem.

— Esta noite, irei ter com você.

— Como queira.

A voz dele tremia um pouco. Ele saiu e ela
ficou. Eu não sabia o que fazer. Lenice também


suspeitara de um romance entre eles e tinha notado
a semelhança! Ela parecia saber de algo mais que
eu desconhecia.

Num gesto decidido, atravessei a sebe e Lenice
deu pequeno grito de susto.

— Jacques? O que foi? Por acaso...

— Ouvi. Sem querer, mas ouvi. Não pode negar
suas suspeitas. Eu também notei a semelhança de
Julien com Jean. Preciso saber a verdade.

Lenice estava pálida.

— E só uma suspeita. Como você ouviu, Jean nega
e não há provas. Podemos estar cometendo uma
tremenda injustiça.

— Tenho notado que Elisa muda quando Jean
aparece que ela o segue o tempo todo com o olhar.
Claro que já houve algo entre eles. Conte-me tudo.

— Isso é verdade. Mas foi antes de Jean
freqüentar nossa casa. Eles tiveram um breve
romance. Jean contou que Elisa dizia-se apaixonada
e ele, não querendo iludi-la, declarou-lhe que não a
amava e tudo parou aí.

— Elisa nunca me contou.

— Descobri isso logo que conheci Jean, através de
uma amiga que conhecia o romance deles. Contudo,
ele nunca deu motivos para suspeitas.

— Lenice, há muitas coisas que eu ignoro. Conte-
me tudo. Deve-me essa explicação. A conversa que
ouvi foi estranha para marido e mulher. O que
aconteceu entre vocês dois?

Lenice suspirou.

— Vou contar-lhe a verdade. Você precisa saber
de tudo.

Sentei-me a seu lado e minhas pernas estavam
trêmulas. A emoção tornava-me inseguro, sentia-
me culpado de tudo. Eu e minha ambição.

Ela me olhou preocupada, depois começou:


— Como sabe, eu não queria casar-me com Jean.
Havia algo nele que eu detestava. Suas maneiras de
dono da situação, sua frieza, deixavam-me
temerosa.

— Eu fui o culpado. Eu impus esse casamento!

— Naquele momento, você realmente me
pressionou. Quando aceitei, pensei que se ele
conhecesse a verdade, naturalmente, como
cavalheiro, se recusaria a casar-se e eu estaria
livre. Não me importava trabalhar para viver.
Preferia isso à riqueza que vinha dele. Suas
superioridades, sua calma, tinham o dom de irritar-
me.

Uma tarde, nos jardins da nossa casa, quando
éramos noivos, conversei com ele francamente.
Disse-lhe que não o amava e que me era
extremamente penosa à idéia do nosso casamento.

— E ele? — indaguei.

— Apesar de um pouco pálido, respondeu:

— Bobagens. Nosso casamento vai realizar-se e
verá que tudo mudará.

— Mas eu não o amo! — ajuntei entre lágrimas. —
Vou me casar com você unicamente pelo seu
dinheiro, pela sua posição! Porque meu irmão quer.
Sabe que estamos arruinados.

Ele tornou-se frio ao responder-me:

— Controle-se. Chorar não adianta. Não me
comove. Eu não disse ainda que a amo. Nosso
casamento não é um casamento de amor. É um
arranjo entre mim e sua família. Estou a par de
tudo quanto me contou. Não vejo motivo para esta
cena. Odeio queixas, é bom que saiba desde agora.

Sua atitude inesperada irritou-me ainda mais:

— Eu odeio você! — gritei furiosa. — Se fosse um
cavalheiro, jamais aceitaria casar-se comigo


sabendo que não o amo e que estou sendo forçada
a fazê-lo!

Ele pegou meu braço e apertou-o com força.

— Jamais repita isso. Fiz um trato com seu irmão.
Vamos nos casar. O amor é ilusão passageira. Há
coisas mais importantes do que ele. Verá que está
enganada em seu julgamento.

Fiquei arrasada. Solucei descontrolada. Ele frio,
ao lado, esperou até que eu esgotasse as lágrimas,
depois me deu um lenço dizendo:

— Vamos respirar ar puro, andar um pouco.
Venha. Vai fazer-lhe bem.

Odiei-o naquele momento. Se pudesse, fulminava-o
ali sem piedade.

Tomei a mão de Lenice. Estava arrependido.

— Perdoe-me, querida — disse. — Eu estava
louco!

Ela suspirou e prosseguiu:

— Eu queria ter reagido, mas mamãe estava tão
esperançosa e você tão contente! Na véspera do
nosso casamento, Jean disse-me solene:

— Amanhã estaremos casados! Não precisa temer
nada. Como minha esposa, terá todas as atenções
devidas. Espero o mesmo de você. Ninguém precisa
saber que não me ama.

— Pede-me para fingir?

— Peço-lhe dignidade. Será minha esposa. Não
percebe os deveres que lhe competem?

Corei enraivecida. Ninguém, muito menos Jean,
tinha o direito de dar-me aulas de boas maneiras.
Procurei cumprir meu papel. Apesar de aterrorizada,
fui amável para com ele e nossos convida¬dos. Ele
ficou satisfeito. Quando partimos para viajar,
sentei-me num canto da carruagem. Estava
trêmula, apavorada. Ele me olhou conciliador.


— Agradeço-lhe, Lenice. Tudo saiu perfeito. Meus
amigos nada perceberam.

Eu tremia de frio e de medo. Ele, vendo meu
estado, cobriu-me com a manta e sentou-se no
outro extremo do banco. Eu tinha vontade de
chorar; ele parecia seguro de si, calmo. Odiei-o por
isso. Afinal, por que ele tinha insistido naquele
casamento absurdo? Talvez apenas para contrariar-
nos, para mostrar-nos sua superioridade, esmagar-
nos com seu dinheiro.

Enquanto eu, trêmula, sentia um nó na
garganta, ele, recostado nas almofadas, parecia
dormir calmamente.

Chegamos a Petit Château Enchanté, graciosa
casa de campo cercada por lindos bosques e onde
Jean costumava passar o verão. A noite estava fria
e Jean levou-me à lareira para aquecer-me. Estava
delicado, atencioso. Deu-me um cálice de licor. Aos
poucos, o frio passou, mas estava inquieta,
nervosa.

Ele me olhou calmo.

— Por certo deseja descansar. Vou levá-la aos
seus aposentos.

Suspirei aliviada. Tínhamos aposentos
separados. Eu tinha sido apresentada à governanta
que me dera as boas-vindas e à camareira, que
maliciosa e diligente preparou meus aposentos,
onde ao entrar enrubesci vendo a enorme cama de
casal. Sobre ela, havia lindíssima lingerie que minha
mãe tinha comprado. O leito preparado. Na mesinha
da ante-sala havia champanhe, biscoitos e
bombons. O ar estava perfumado. Fiquei
apavorada.

Jean, porém, estava calmo como se nada fosse.
Acompanhou-me até o quarto dizendo que voltaria
dentro de meia hora. Voltaria mesmo, ou teria dito


aquilo por causa da criada? Quis despedi-la, porém
ela se mostrou ofendida, dizendo que era uma
honra preparar-me para tão grande noite. Para não
dar escândalo, deixei-a aprontar-me como quis. As
massagens nas costas, para aliviar a tensão e o
cansaço da viagem, fizeram-me bem. Vestiu-me
com aquelas roupas finíssimas, escovou-me os
cabelos e, contemplando-me no fim, disse
orgulhosa:

— Madame está linda! Jamais vi noiva tão bela!

Jean bateu à porta discretamente e entrou.
Estava com um robe de seda sobre o traje de
dormir. Eu não soube o que dizer. A criada
despediu-se com uma mesura e o olhar
embevecido. Nós ficamos ali, olhando-nos como
dois inimigos. Eu estava de sobreaviso pressentindo
um novo perigo.

Ele desfez a tensão com voz fria:

— Estamos em nosso papel. Precisamos
representá-lo bem. Não posso permitir que amanhã
todos os criados saibam que não nos amamos.
Temos que cumprir a tradição.

Calmo, abriu o champanhe e colocou-o nas
duas taças. Ofereceu-me uma dizendo:

— Vamos brindar. Apesar de tudo, nosso
casamento deverá ser um casamento bem-
sucedido. Para isso, terá todos os seus direitos
respeitados e o mesmo espero de você. Verá que
não sou tão difícil como pensa. Espero que saiba
respeitar esta casa, meu nome e sua posição. Assim
sendo, tudo irá bem. Lenice há coisas nas quais não
transijo. Socialmente, ninguém deverá jamais saber
o que se passa entre nós. Nem seus parentes.
Quero sua palavra de que assim será.

Levantei a cabeça com orgulho.


— Sei dos meus deveres de esposa e tenho
dignidade bastante para respeitar meu marido e
meu novo estado. Não precisa recomendar-me isso!

— Se você não tivesse essas qualidades, eu
jamais a teria desposado.

— O amor não é importante para você?

Ele riu com leve ironia.

— Amor? O amor é apenas troca de interesses,
jamais existiu.

Não passa de ilusão, nada mais.

Eu me perguntava o que aconteceria depois.
Temia o pior. Por isso, tomei o champanhe e pedi
outra taça. Jean encheu nossas taças de novo.
Minha cabeça rodava. Eu não tinha comido nada, tal
a minha ansiedade.

Ele se aproximou de mim dizendo-me com voz
rouca:

— Lenice, sou seu marido e cumprirei meus
deveres até o fim.

Ninguém poderá dizer amanhã que um Lasseur
desonrou o nome na noite de núpcias.

Minha cabeça rodava. Ele me tomou nos braços
e levou-me até o leito. Meu coração batia
descompassado, querendo saltar pela boca.

Jean tinha braços fortes e firmes. Comecei a chorar,
ele me atirou ao leito dizendo-me com raiva:

— Você chora? Odeia-me tanto assim? Verá como
sou, pois é minha esposa, quer queira quer não.

Encolhi-me assustada. Ele parecia outro
homem, tão ardente e tão delicado, tão amoroso e
tão forte, que em seus braços, cansada e submissa,
depois de tudo, adormeci.

Ela fez uma pausa e eu beijei-lhe a mãozinha
fria. Seu rosto estava emocionado recordando. Ela
prosseguiu:


— Quando acordei no dia seguinte, um belo dia de
sol, Jean já se tinha levantado, eu estava só.
Perturbada, lembrava os acontecimentos, e um
misto de emoção e receio me acometia. Tinha
desejado que ele não me tocasse. Não me parecia
justo, uma vez que nosso casamento era apenas
um trato. Aliás, ele tinha cumprido seu papel de
marido como um dever de honra. Ao mesmo tempo,
perturbava-me a lembrança de suas carícias e de
seus beijos. Eu estava confusa e assustada. Como
um homem frio, odioso e prepotente podia ser tão
ardente?

Não tive ânimo para levantar-me. Meu corpo
doía e eu estava arrasada.

Jean cobriu-me de atenções, mandou-me
flores, e os criados tratavam-me com muito carinho.
Sem saber o que fazer, eu chorava perdida num
oceano de dúvidas e emoções. Entretanto, há
primeira semana passou e eu aos poucos fui me
equilibrando. Não amava Jean, mas podia conviver
com ele educadamente, uma vez que ele se
mostrava atencioso e delicado.

Todas as noites ele ia ao meu quarto cumprir
seu papel de marido. Eu nesses momentos
esquecia-me de que o amor não existia entre nós. A
notícia do seu casamento com Elisa sacudiu-me o
suficiente para que eu pudesse raciocinar. Chocada,
com sua carta nas mãos, fiquei parada pensando.
Jean encontrou-me assim e indagou:

— Más notícias?

— Meu irmão casou-se com Elisa de Trèville. Ele
surpreendeu-se:

— Elisa?

— Sim.

— O que há de errado nisso?


— Tudo. Jacques não amava Elisa, nem pensava
em casar-se.

Ao contrário, queria voltar para Paris, terminar seus
estudos.

Ele deu de ombros.

— O amor não é o bastante para ele.

Enrubesci:

— Quer dizer que ele se casou pelo dinheiro dela?
Acusa meu irmão de mercenário?

Ele fez um gesto de surpresa:

— Não quis dizer isso, porém você mesma o disse.

— Não aprecio Elisa. Com certeza ela o envolveu.

— Pode estar enganada.

— Você a defende porque teve um romance com
ela. Já sei disso.

Ele fez um gesto vago.

— Nada sério, foi há muito tempo. Ela não é a
mulher que me atrai nem a que desejava para
esposa.

— Com certeza Elisa não o obedeceria. Nem
respeitaria sua intimidade.

Eu estava com raiva e vontade de chorar. Ele ficou
muito pálido. Segurou-me pelo braço com força.

— Jamais lhe faltei com o respeito. Por que me
acusa?

— Porque num casamento de negócios, sem amor,
não teria obrigatoriamente que haver intimidades.

Ele tornou-se irônico.

— De negócios? Eu dei tudo a você: meu nome,
meus bens, tudo que uma esposa tem direito. Em
troca, o que me ofereceu? Em se tratando de um
negócio, o logrado fui eu. Pode estar certa de que

Elisa, nesse ponto, não agiria como você. Estaria a
meu lado implorando cada carícia.

Um vivo rancor brotou dentro de mim.


— Não quero ser comparada com Elisa. Pelo que
diz, deve conhecê-la bem melhor do que eu. Se
você se sente logrado em seus interesses, se não
valho o que pagou por mim, por que não me
devolve para minha família? Por que não
terminamos logo com essa farsa para que eu possa
ir embora?

Lágrimas rolaram pelo meu rosto. A fisionomia
de Jean estava fechada, fria. Apertou meu braço
dizendo com raiva:

— Odeia-me a tal ponto? Repudia todos os
momentos que vivemos juntos e quer voltar à sua
família? Saiba que eu não aceito. Casamo-nos.
Levaremos isto até o fim. Um Lasseur jamais volta
atrás em uma decisão. Se minha companhia lhe é
tão penosa, não mais irei ao seu quarto, nem à sua
cama. Contudo, nosso fracasso só deve ser
conhecido por nós. Ninguém mais deve saber disso.
Não posso ceder mais do que isso sem ferir minha
honra. Se quiser assim, não privarei mais da sua
intimidade.

— É muito fácil para você, naturalmente — disse.
— Eu estava muito magoada. Nunca houve amor.

— Já lhe disse que o amor é ilusão! Não deve
entrar em nossas discussões.

— Está bem. Nesse caso eu aceito. Ficarei. Se me
respeitar, diante dos outros serei tua esposa e não
darei motivos a nenhuma suspeita. Eis aí nossa
vida, Jacques. Resume-se a isso.

— E agora, como estão às coisas? — perguntei.

— Durante esses anos, aprendi muitas coisas,
principalmente sobre Jean. Pergunto-me, às vezes,
se não tenho sido injusta com ele.

— Por quê?

— Tem sido perfeito cavalheiro. Atencioso,
educado, temos conversado e pude apreciar sua


grande cultura, seus grandes dotes de honra, de
caráter, que estava longe de supor. Tenho pensado
muito e lamento tê-lo conhecido de forma tão
dolorosa.

— Fala como se o apreciasse.

Ela corou um pouco.

— Sim, aprecio-o. Gostaria que o conhecesse
melhor. É orgulhoso, teimoso, porém muito nobre
em certas ocasiões. Tenho comprovado isso. É
muito respeitado nos seus domínios pelos servos e
criados.

Olhei-a nos olhos admirado.

— Você o ama, Lenice!

Ela balançou a cabeça afirmativamente, mas disse:

— Talvez. Isto pode surpreendê-lo, porém nestes
anos de convivência tenho me perguntado se não
fui muito ingênua com aquela atitude. Se tudo
continuasse como começou, poderíamos ter
chegado a viver bem.

— Por que não diz isso a ele? Ele também a
aprecia e respeita. Pode ser que também a ame.

— Não creio. Não sei o que foi, qual a desilusão
que o fez assim. Ele não acredita no amor. Agora
não há mais remédio.

— Crê que entre Elisa e ele pode haver alguma
coisa? — indaguei temeroso.

— Não agora. Mas a semelhança de seu filho com
ele é marcante. Pensei nisso desde a primeira vez
que o vi.

— É estranho! Elisa parece fascinada por Jean —
observei com raiva. — Teriam voltado ao antigo
romance?

Lenice abanou a cabeça.

— Não. Jean tem sido muito discreto. Só veio por
insistência minha. Não é homem para isso.

— Vejo que confia nele.


— Não tenho motivos para desconfiar. Apenas
uma hipótese explicaria essa semelhança. A idade
de Julien. Perdoe-me, mas se o filho não for seu, ela
se casou com você para salvar as aparências.

Senti-me como se um raio me tivesse
fulminado. Lenice dissera exatamente o que eu
temia e pensava sem querer admitir.

— Tenho certeza de que Jean não se encontrou com
ela depois do nosso casamento. Além disso, seu
casamento com ela foi muito rápido. Você pode ter
sido envolvido.

Deixei cair à cabeça entre as mãos arrasado.
Pela minha memória passaram todas as
circunstâncias que me levaram ao casamento.
Agora, depois de tudo isso, a situação estava clara.
Elisa tinha se casado comigo para fugir ao
escândalo e para dar o nome ao seu filho.

Uma dor aguda feriu-me o peito. Julien! Doía-me a
suspeita de que ele não fosse meu filho.

— Não se deixe abater — disse Lenice alisando-me
os cabelos. — Nem sequer sabemos se é verdade.

— Tem razão. Entretanto, agora muitas coisas se
aclararam em minha cabeça. Compreendo tudo.

— Não sejamos precipitados. Podemos estar
enganados.

— Dói-me pensar que Julien pode não ser meu
filho!

— Não cometa esta injustiça. Ele é seu filho! Se
não o for pelo sangue, o é pelo coração. Lembre-se
de que ele não tem culpa de nada nesta história
toda. Ele o ama e o vê como seu verdadeiro pai.

— Vou obrigar Elisa a contar-me tudo!

— O que lucraria? Por que não perdoar? Se
aconteceu, foi antes do seu casamento. Não pode
negar que Elisa tem sido esposa fiel e dedicada.


Pretende destruir seu lar por uma coisa que
aconteceu antes do seu namoro com ela?

— Ela me enganou e eu cedi. Caí feito um bobo.
Nem sequer percebi como ela planejou tudo!

— Deixe o orgulho de lado — aconselhou ela. —
Ele sempre atrapalha. Calma. Procure esquecer.
Perdoe. Aja como se não soubesse. É o melhor a
fazer por agora.

— Será muito humilhante confessar que sei de
tudo — ajuntei perdido em minhas cogitações.

Compreendia que Lenice tinha razão. Contudo,
a dor, a dúvida, a incerteza, o desgosto,
queimavam-me como fogo.

Mal toquei nos alimentos e disfarçadamente
pus-me a observar Elisa. Ela parecia fascinada por
Jean. Onde quer que ele esteja ela aparecia. Foi
com certa satisfação, apesar da raiva, que percebi
que ele lhe fugia ao assédio. Lenice tinha razão
nesse ponto. Jean não a desejava.

À noite, não consegui dormir. Remexia-me no
leito e resolvi dar uma volta no jardim. Estava uma
linda noite, apesar de fria, e havia calma no ar. Fui
andando pensativo, procurando lembrar os fatos,
ligar as coincidências, entender como tudo se tinha
passado.

O ruído de vozes surpreendeu-me. Elisa falava
com voz abafada. Aproximei-me, cauteloso. O
coração a querer saltar pela boca.

— Por favor, dizia ela. Por que foge de mim? Há
quanto tempo venho esperando essa oportunidade!

— Não há nada para dizer—Jean respondeu com
voz fria e dura.

— Mas eu tenho. Sei que sua mulher é estéril. Até
agora não lhe deu filhos! Eu dei a você um belo
varão. Por que me repudia?


Pensei que fosse cair ali mesmo, tal minha emoção.
Controlei-me a custo. Queria saber a verdade.

— Julien é uma bela criança, mas tem seu pai.
Não creio nesta história. Depois, ainda que fosse
verdadeira, é muito tarde.

— Não pode ter esquecido! Eu o amo. Tudo fiz por
você, por que me repele? Não vê que estou me
humilhando? Por que me trocou por aquela mulher
que nem sequer o ama e que se casou por causa do
seu dinheiro?

Jean enfureceu-se.

— Não repita isso! Não admito. Não meta Lenice
nesta história. Exijo que a respeite.

— Você não a ama! Sei que vivem como dois
estranhos.

— Não se meta em nossa vida. Não tolerarei
nenhuma intromissão.

— Por que não podemos ser felizes? Podemos ir
para longe, nós três. Viveremos nossa vida. Não
importa o mundo. Você gosta de Julien, não tem
herdeiro, ele é seu filho! Por que o repele?

— Está louca. Eu não a amo. Deixe o menino
como está. Jacques o ama e é bom pai. Não pode
jamais saber desta história. Controle suas emoções.
Amanhã mesmo voltarei para Paris. Se quiser saber
a verdade, digo-lhe: amo minha esposa, admiro-a.
Se ela casou comigo pelo meu dinheiro, foi porque
eu quis. Desejei-a para esposa desde que a vi. Eu a
amo, compreende? Jamais a trocaria por qualquer
mulher. Sinto o que houve entre nós. Eu não sabia
que você estava esperando um filho. Não acreditei
quando me disse. Nunca a amei! Agora que já sabe,
se tem um pouco de dignidade, procure fazer feliz
seu marido e seu filho. Sua loucura já nos tem
infelicitado e se interpôs entre mim e Lenice. Deixe-
nos em paz. Trate de viver para o seu lar, sua


família. Não me procure mais, por favor. Não quero
vê-la nunca mais.

Ela agarrou-o a soluçar:

— Jean, não me deixe! Ele empurrou-a decidido.

— Não faça cenas. Odeio-as. Saia do meu
caminho!

Ele saiu apressado e eu me escondi para não
ser visto. Lenice tinha razão. Jean não era o canalha
que eu sempre tinha pensado. Era digno e a amava.
Seria verdade? Teria ele se casado com ela por
amor? Isso explicava sua obstinação em desposá-la,
mesmo contra sua vontade. Seu orgulho não o
deixava demonstrar isso.

Elisa chorou convulsivamente e eu, ouvindo
seus soluços, tive vontade de sumir. De ignorar, de
não estar ali. Tudo ficou claro para mim. Ela só
tinha se casado comigo para encobrir seu erro e
ficar perto de Jean. Eu tinha caído como um
ingênuo. Eu, o expert em mulheres, o vaidoso, o
inconquistável.

Naquele instante, chorei emocionado e percebi
que meu amor por Elisa não passava de orgulho,
sem profundidade nem beleza.

Deixei-me envolver, seguro de que ela me
amava, e meu orgulho nem sequer me permitiu
perceber o que havia de estranho em nosso
relacionamento. Desejei partir, não estar ali. Depois
do que ouvira, ser-me-ia impossível qualquer
entendimento com Elisa. A separação seria
inevitável.

Enquanto ela soluçava desalentada, senti
ímpetos de lançar-lhe em rosto toda sua maldade. A
lembrança de Julien, a quem amava
profundamente, impedia-me. Decidi partir. Não
suportaria estar com outras pessoas os dias que


ainda nos restavam de descanso, representando
meu papel.

Apareci na frente de Elisa pálido e triste. Ela,
vendo-me, deu pequeno grito de susto.

— Ouvi tudo — disse com voz fria. — Sempre me
perguntei por que você se casou comigo. Hoje
descobri a resposta. Como pode ser tão ordinária?

Ela, aterrorizada, tremia qual folha sacudida
pelo vento. Sentindo crescer a revolta, eu procurava
conter-me para não esbofeteá-la.

— Jacques, perdoe-me. Foi há tanto tempo! Eu
estava com medo do escândalo!

— Essa indignidade é tão sórdida que, se eu não a
tivesse ouvido de seus lábios, jamais acreditaria! O
que me fere ainda mais é que, se ele a quisesse
você não hesitaria em segui-lo, levando Julien,
deixando-me. Foi ele quem não a quis. Você chora
por ele! Não quero vê-la nunca mais. Tudo acabou
entre nós. Vou embora para sempre.

— Será um escândalo. O que direi aos nossos
convidados? E sua carreira? Ficará prejudicada.

— Nada me importa agora. Amanhã mesmo
deixarei esta casa. Cuidarei da nossa separação. A
comédia acabou.

Elisa tentou demover-me. Pediu perdão,
chorou. Eu, porém, estava imune às suas lágrimas
fingidas.

Saí dali arrasado, meu coração pesava como
chumbo. Fui até o quarto de Lenice. Tencionava
partir bem cedo e antes queria falar com ela.
Atendeu-me e vestindo um robe acompanhou-me
até meu gabinete. Olhava-me preocupada.

— Lenice, parto amanhã bem cedo. Preciso falar
com você agora.

— Pense bem antes de tomar alguma atitude.


— Sei o que estou fazendo. Há poucos instantes
surpreendi uma cena entre Elisa e Jean. Você tinha
razão.

Narrei-lhe tudo quanto tinha presenciado e finalizei:

— Lenice, Jean não é o mau-caráter que sempre
pensei. E um homem de bem. Ele a ama. Disse a
Elisa que se casou com você por amor!

Ela abanou a cabeça e ligeiro rubor coloriu-lhe as
faces.

— Não creio. Ele o disse apenas para obrigar Elisa
a desistir.

— Meu sofrimento não me impede de ver a
verdade. Ele a ama! Se Elisa casou-se comigo para
encobrir seu erro, por que ele se teria casado com
você? Por que dentre tantas que o amavam e que
dariam tudo para ser sua esposa ele escolheu
justamente você, pobre e sem amor, suportando
nosso orgulho e a sua indiferença? Por que a tratou
com tanto carinho? Acha que ele seria capaz de
fingir?

— Se o que me diz é verdade, por que nunca me
disse? Por que aceitou minha intransigência,
colocando um muro entre nós?

— Orgulho ferido. Só isso. Ele esperava que com o
tempo você viesse a amá-lo. Desejava conquistá-la.
Porém deve ter chegado à conclusão de que você
jamais o amaria.

Ela suspirou fundo:

— Se ele soubesse!

— Eu sei. Você o ama há muito tempo. — Tomei-
lhe as mãos com carinho. — Lenice, não atire fora
sua felicidade. Fui o causador dos seus sofrimentos,
impondo um casamento que você não desejava.
Quero ter a alegria de saber que não fui tão mau
assim, que vocês se amam e se compreendem.
Aproveite seus momentos. Apesar de tudo, ele lhe é


fiel. Por que não tem um entendimento franco com
Jean?

— Não sei. Vamos ver. Viver bem com ele é tudo
quanto mais desejo neste mundo.

— Então não perca tempo. Você feriu muito seu
orgulho recusando-o. E sua vez agora de dizer-lhe
isso. Garanto que valerá a pena.

— Vou pensar. E você, o que pensa fazer?

— Irei embora amanhã bem cedo. Não posso viver
mais com Elisa. Está tudo acabado entre nós. Estou
me separando dela.

— É muito nobre de sua parte pensar na minha
felicidade com Jean nesta hora.

— Ele não tem culpa de nada. Tenho a certeza de
que nunca a procurou depois que se casou. É um
homem de bem.

Lenice levantou-se e beijou-me a face com carinho.

— Você também é um homem de bem. Não foi
muito feliz. Espero que as coisas possam mudar.
Que algum dia encontre a mulher que o possa amar
e dar-lhe tudo quanto merece.

— Não quero mais saber de amor — disse
convicto. — Agora, só a carreira vai interessar-me.

— E Julien?

— Oficialmente continuará meu filho. Farei por ele
tudo quanto puder. É vítima inocente de sua
perversa mãe.

— Não seja tão severo com ela. Sempre viveu
muito dentro das convenções sociais. Para ela, seu
filho sem pai seria uma tragédia tão grande que
chega a explicar o seu gesto, envolvendo-o. Se ela
lhe contasse a verdade, você não a teria desposado.

— Por certo. Eu nem sequer queria casar-me na
ocasião.

— Não a justifico, porém posso compreender
como alguém como ela se sentiria.


— Talvez até eu também pudesse compreender
esse gesto. Mas, agora, como explicar sua traição?
Não posso esquecer-me de que ela só não me
abandonou porque Jean a repeliu. E isso que me
convence de que entre mim e ela nada mais é
possível.

Lenice abraçou-me penalizada, mas nada disse.

— Adeus! — murmurei, apertando-a nos braços.
— Reze por mim. Sei que tem esse poder.

— Deus vai ajudá-lo. Porém Julien jamais deverá
saber o que aconteceu esta noite. Ele é seu filho,
ama-o e para ele é você seu verdadeiro pai.
Compreenda isso. Ele não tem culpa.

— Julien é parte de mim. Amo-o. Jamais deixarei
de amá-lo. Não penso em contar-lhe a verdade.
Farei tudo que puder por ele. Esse segredo morrerá
comigo. Mas Elisa eu não quero mais. Não a
suportaria.

— Deus guie seus passos. Para onde pretende ir?

— Para Paris. Lá, em minha casa, pensarei no que
fazer. Preciso meditar clarear as idéias. Tenho
vivido iludido, enganado. A ilusão acabou.

— Obrigada por ter confiado em mim.

— Um dia ainda pretendo ter uma longa conversa
com Jean. Talvez possamos nos conhecer melhor e
mais intimamente. Se sair de Paris por algum
tempo, escrever-lhe-ei. Desejo que seja feliz.

Abraçamo-nos demoradamente. Apesar de tudo, eu
me sentia mais calmo depois de ter falado com ela.

— Conte-me se as coisas melhorarem com Jean.

— Contarei — respondeu ela com olhos úmidos.

Fui para meu quarto. Ouvindo ruído no quarto
de Elisa, passei a chave na porta de ligação. Não
desejava vê-la mais naquela noite.

Não conseguia dormir. Aproveitei o tempo para
arrumar minha mala e todos os meus pertences.


Depois, sentei-me em uma poltrona e recordei
minha vida toda, a doença de meu pai, sua morte,
tudo com detalhes. Tinha sido ingênuo. Sempre o
orgulho como conselheiro. Estava consciente do
meu erro. Tinha sido vítima estúpida da minha
própria vaidade. Não titubeara em forçar o
casamento de Lenice com um homem que eu não
apreciava, unicamente por interesse, indiferente ao
seu sofrimento. Entretanto, a vida preparara tudo.
Eu tinha entrado em um casamento muito pior do
que o de Lenice. Jean não se casara enganado e era
um homem de bem. Eu, com toda minha esperteza,
tinha sido ludibriado com facilidade e desposara
voluntariamente uma mulher indigna e fútil,
apaixonada por outro homem.

Poderia haver maior castigo? Estaria eu sendo
punido para compreender que ninguém pode querer
conduzir o destino dos outros em proveito próprio?
Com justa razão, Elisa tinha feito à mesma coisa
que eu. Defendera-se. Para conseguir seu objetivo,
enganara, fingira e me envolvera. Exatamente como
eu tinha feito com mamãe e Lenice.

Senti-me deprimido, triste. Existiria mesmo
esse Deus a nos ensinar através da vida, como
Lenice dizia? Cada ação nossa provocaria uma
reação, uma resposta correspondente? Nesse caso,
eu, ali, naquela hora, estava recebendo a minha
resposta. Se eu não tivesse feito o que fiz com
Lenice, minha vida teria sido diferente da que fora?
Estas perguntas queimavam-me a mente.

O dia estava amanhecendo quando resolvi
tomar um café para partir. Saí do quarto e dirigi-me
à cozinha. Minha boca estava amarga, porém eu
estava calmo.

Aceitara o fato de ter recebido da vida o mesmo
que eu tinha dado. Na copa fiz um gesto de


surpresa. Jean estava sentado tomando uma xícara
de café. Vendo-me, levantou-se dizendo:

— Os criados dormem ainda e tomei a liberdade
de fazer um café. Não podia dormir. Aceita uma
xícara?

Olhei-o. Afinal, nunca tinha procurado conhecê-
lo mais intimamente. Parecia outro homem à meia-
luz do amanhecer, metido no seu robe.

— Aceito — respondi calmo.

Aquele café me faria bem. Sentei-me a seu lado
na mesa e, enquanto bebia o café lentamente,
disse-lhe com seriedade:

— Esta é a noite da verdade. O tempo parece que
parou. Ela não acaba nunca.

Ele estremeceu:

— Por que diz isso?

— Vou partir agora. Não pensava vê-lo antes
disso.

— Isso o preocupa?

— De forma alguma. Nesta noite existe uma força
estranha no ar, mexendo os pauzinhos do nosso
destino.

— Não entendo...

— Como se fôssemos marionetes. Como se
alguém que comanda os destinos humanos tivesse
resolvido de repente colocar cada coisa em seu
lugar. Arrumar o que levamos anos em deturpar e
confundir. Esta é a noite da verdade. Eu aceito esse
jogo.

Jean olhou-me admirado. E na penumbra da sala
seus olhos brilharam.

— Se não entendeu, eu explico. Durante anos,
todos nos enganamos mutuamente. Hoje é a noite
de esclarecer tudo.

— O que quer dizer? — inquiriu ele um pouco
assustado.


— Ouvi sua conversa com Elisa no jardim ontem à
noite.

Ele fixou-me sério e disse com voz firme:

— Foi uma cena muito desagradável para mim.
Hoje mesmo sairemos desta casa. Estou esperando
apenas amanhecer para convidar Lenice a partir.

— Ela já sabe de tudo.

— Também?

— Sim. Aliás, devo dizer que ouvi sua conversa
com ela. Sei que estão separados e salvam as
aparências.

— Ela contou?

— Contou porque eu já sabia. Ouvi quando lhe
pediu para terem um filho.

Jean calou-se. Eu prossegui:

— Apesar de tudo, Jean, nesta noite aprendi a
confiar em sua honestidade. Se quer saber,
arrependi-me de ter forçado o casamento de Lenice
por dinheiro com um homem que eu nem sequer
podia apreciar porque não conhecia. Se o conforta
saber, reconheço que o enganado fui eu. Manobrei
minha mãe e Lenice a serviço dos meus interesses e
não percebi que fui manobrado por Elisa pelos
interesses dela. Enquanto você é bom para Lenice,
Elisa não titubearia em trair-me se você a tivesse
aceitado. Vê que estou sendo sincero.

— Posso afirmar-lhe que jamais amei Elisa. Nosso
relacionamento foi forte, a paixão nos envolveu,
porém de minha parte durou apenas alguns dias.
Ela não possuía as qualidades que desejo numa
mulher! Jamais pensei que ela pudesse ter se
casado com você para enganá-lo. Disse-me estar
grávida, mas ela era mulher cheia de subterfúgios e
mentiras. Não acreditei. Pensei que ela tivesse se
apaixonado por você com o mesmo ímpeto que o
fora por mim. Fiquei aliviado de certa forma ao


saber que ela se tinha casado. Jamais tive qualquer
intimidade com ela depois que o nosso
relacionamento acabou, eu afirmo.

— Acredito. Ouvi como a repeliu. Jean, apesar de
tudo, nesta história toda, desejo muito que Lenice
seja feliz.

Ele suspirou fundo.

— Eu também. Mas ela jamais me aceitou. Foi um
erro pensar que com o tempo ela viesse a esquecer
o passado.

— Hoje aprendi a conhecê-lo melhor e lamento
não ter feito isso antes. Reconheço que o orgulho é
mal conselheiro. Sei que você pode fazer Lenice
muito feliz.

— Se ela quiser.

Não sei se a minha franqueza ou a penumbra
favorecia confidências. O fato é que Jean jamais me
pareceu tão humano.

— Sei que você se casou com ela por amor,
embora seu orgulho o impeça de reconhecer isso.
Você a desejou desde o primeiro dia.

— É verdade — disse ele pensativo. — Ela parecia
detestar-me, mas eu contava conquistar-lhe o amor
com o tempo. Quanto mais a conhecia, mais
percebia o quanto ela era digna, pura, bondosa.
Lenice é meu tipo de mulher. Aprecio cada gesto
seu cada pensamento, cada atitude. É bela por
dentro e por fora. Sim. Eu a amo! Amo tanto que
não sei mais viver longe dela. Passei esta noite
amargurado, triste, consumido de mágoa por ver
que a mulher que amo é a única que não me aceita.

— Hoje posso saldar minha dívida com Lenice.

— Como assim?

— Posso contribuir para sua felicidade para que
ela esqueça meus atos passados. Ela também o
ama! Confessou-me esta noite! Deixe o orgulho de


lado e vá ter com ela, agora mesmo. Abra o seu
coração. Garanto que tudo ficará bem entre ambos.
Ela merece toda a felicidade deste mundo.

Jean colocou a mão em meu braço, apertando com
força.

— Repita o que disse. Ela me ama? Está seguro
disso?

— Claro. Mostrou-se triste. Reconheceu que, se
não tivesse sido tão orgulhosa e ingênua truncando
o relacionamento de ambos, tudo poderia estar
bem. Não perca tempo. Ela o espera. Vá agora e
conte-lhe tudo. Esta é a noite da verdade. A vida
vai pôr cada coisa no seu lugar.

Ele levantou-se, estendendo-me a mão.

— Obrigado, Jacques. Lamento tudo de ruim que
houve entre nós. Você tem a alma nobre. Apesar de
tudo quanto fiz, de aparecer como vilão com Elisa,
de ter errado muito, não só me perdoa como me faz
o homem mais feliz do mundo... Ser-lhe-ei
eternamente grato. Quero ser seu verdadeiro
amigo.

Apertei-lhe a mão com um nó na garganta.

Sentia-me digno pela primeira vez depois de
tantos anos.

Enquanto ele corria para os braços de Lenice,
eu, solitário, triste, porém de cabeça erguida,
coloquei minha bagagem na carruagem e iniciei
minha viagem de volta.

Cheguei a Paris cansado. Em meu quarto, em
meio aos objetos que me eram caros, meditei muito
em todos os meus atos passados. Estava arrasado,
desiludido, mas apesar disso havia dentro de mim
uma força nova. Reconhecia o quanto tinha sido
indigno. Isso me fazia aceitar sem revolta a amarga
colheita da minha semeadura.


Aos poucos fui me sentindo livre como há muito
não me sentia. Meu compromisso com Elisa tinha
acabado. Meu amor por ela se transformara em
desprezo, só não se transformando em rancor
porque, por incrível que possa parecer, eu pude
compreender sua posição. O estúpido tinha sido eu.
Eu e mais ninguém.

Só depois de alguns dias foi que pensei em
separação legal. A lei não me facultava liberdade
total, porém eu poderia separar os bens sem acordo
com Elisa e desfazer nosso contrato de casamento,
embora nenhum dos dois pudesse casar-se
novamente.

Eu, apesar de bacharel em leis, precisava de
um representante legal para tratar do assunto.
Naquela hora crucial, veio-me à mente a figura do
Sr. Leterre. Confiava nele. Naqueles dias tinha
perce¬bido a inutilidade do orgulho.

Procurei-o e, recebido em seu gabinete, abri-
lhe meu coração. Contei-lhe tudo como teria
contado a meu pai. Ele ouviu-me comovido e no
final disse:

— Lamento o que aconteceu. Eu suspeitava a
verdade, porém não sabia o preço.

— O preço foi alto demais. Minha honra, minha
dignidade. Estou arrependido. Reconheço que errei.
Preciso da sua ajuda! Falo-lhe como o faria a meu
pai.

— O que deseja de mim?

— Que o senhor aceite ser meu procurador. Quero
a separação de nossos bens, dentro do mais estrito
direito, em tudo o que for justo, e partir para uma
viagem em que possa pensar que rumo dar à minha
vida.

— Pensou bem no que vai fazer?


— Sim. Julien é meu filho do coração e continua
meu herdeiro. Jamais deverá saber a verdade. Elisa,
não quero mais ver. Quero cortar todos os vínculos
possíveis.

— Compreendo e aprovo. Creia-me, Jacques, que
o admiro. Você toma a atitude que seu pai
aprovaria. Conte comigo. Farei o possível para não
desmerecer sua confiança.

Trocamos um aperto de mão e ali mesmo
acertamos as primeiras providências. Elisa, a
princípio, recusou-se ao entendimento. Queria ver-
me, tentar a aproximação. Fui irredutível. Nesse
ponto não consegui transigir. Nem sequer quis vê-
la.

Quando tudo ficou resolvido, Elisa com situação
boa, com todos os bens que herdara do pai, tive
uma entrevista com Julien. Pedi-lhe que ela não
viesse, e Ruth, a governanta, encarregou-se de
trazê-lo. Seus olhinhos preocupados me comoveram
e abracei-o com muito amor.

Disse-lhe que iria fazer uma viagem e que
quando voltasse iria vê-lo. Despedimo-nos e a custo
contive as lágrimas.

Eu tinha ficado com a casa de Paris, da qual
gostava muito, e tinha cedido outra vivenda de
minha propriedade para Elisa. Queria viajar, antes
de recomeçar a trabalhar em minha carreira como
juiz.

O Sr. Leterre revelou-se mais do que um
amigo. Colocou-se no papel de pai e com delicada
firmeza cuidou de todos os meus negócios,
apreciando minha sede de justiça, minha vontade
de acertar e fazer o melhor. Vendo meu
abatimento, ofereceu-me sua vila nos arredores de
Viena para que eu fosse refazer as energias. Depois,


quando eu voltasse, tudo seria mais fácil e, com
calma, mais refeito, eu poderia retomar minha vida.

Aceitei. A perspectiva de mudar de cenário, de
país, era-me sumamente benéfica naquela hora. Foi
com o coração desiludido, a alma dorida, porém
com uma tranqüilidade que nunca tinha
experimentado, que apanhei o trem que me levaria
a Viena.









Capítulo VI





O inverno já se fazia sentir rigoroso e havia
grande euforia nas pessoas. Só então compreendi
por quê. Estávamos nos primeiros dias de dezembro
e em menos de um mês estaríamos dobrando o
século. Era emocionante passar para 1900.

Ali estava eu, aos trinta e três anos, livre e só,
dolorido, desiludido, assistindo à chegada do novo
tempo.

A vila do Sr. Leterre era uma rica e agradável
vivenda, em pequena e encantadora cidade, a vinte
quilômetros de Viena. Cercada de lindo jardim com
árvores bem cuidadas, que naquela época do ano
pareciam de prata, porque a neve já as
transformara em brilhantes troféus.

Nas cavalariças, uma carruagem fechada e de
gala, e um fiacre para ocasiões informais. Os
cavalos saíam vestidos de grossas mantas de lã,
permitindo-lhes suportar o frio, com penachos
coloridos oferecendo à paisagem cinzenta alegre


contraste. As cavalariças eram aquecidas e limpas;
os animais, escovados e muito bem tratados com
alimentação especial. Eram lindos e brilhantes.

A casa era graciosa e a decoração logo me
cativou pelo bom gosto e pelos cuidados dados a
cada canto de seus aposentos. Apesar de muito
grande, ela conservava sua graça.

Por toda parte sentia-se a presença de mãos
femininas e muito bom gosto.

Quando cheguei, Frau Hilda recebeu-me
atenciosa, enquanto um criado ocupava-se em levar
minha bagagem para meus aposentos.

Frau Hilda convidou-me para tomar assento em
uma sala, onde, afundado em macia poltrona ao
lado da lareira, aqueci-me com prazer e foi-me
servido delicioso chocolate com delicados biscoitos.
Era já tarde da noite e aceitei um cálice de saboroso
licor feito em casa. Senti-me bem melhor.

Adorei os aposentos para onde fui conduzido.
Cansado, meti-me logo na cama aquecida e macia.
Lá, finalmente, adormeci profundamente como há
muito tempo não conseguia fazer.

Acordei no dia seguinte um pouco espantado de
ver-me em local estranho. Olhando o quarto
gracioso, cheio de almofadas e babados, recordei-
me de tudo.

Saltei do leito com alegria. Um criado atendeu-
me trazendo água quente na jarra e eu me lavei na
bacia toda pintada com ramalhetes coloridos, muito
diferente das nossas pesadas bacias de cobre e
prata.

Eu parecia um adolescente em férias. Iria
começar um novo século e eu queria ser um novo
homem, e apesar das minhas desilusões e dos meus
erros, era ainda jovem e sentia que para mim,
também, a vida poderia começar outra vez.


Os dias que se seguiram foram de
encantamento e de alegria. Apesar da ferida que
sangrava ainda em meu peito, aquele ambiente
acolhedor, agradável, delicioso, as pessoas que
conheci a pequena vila, com suas casas de chá e
confeitarias, onde se podia ouvir boa música e
saborear guloseimas, e principalmente a felicidade
daquela gente alegre e simples que parecia
conhecer o segredo de bem viver, tudo isso me fez
sentir muito melhor e com maiores esperanças.

Frau Hilda, de quem eu conquistara as
simpatias, cobria-me de gentilezas que eu fazia o
possível para retribuir. Todas as tardes, quando eu
regressava dos meus passeios, conversávamos
muito. Mulher fina e culta vinha de muito boa
linhagem. Era amiga a muitos anos do Sr. Leterre,
que, vendo-a em triste situação financeira,
oferecera-lhe o cargo de governanta de sua vila,
aonde ia duas vezes ao ano e onde, além de
regiamente paga, era respeitada e tinha autonomia,
zelando por tudo com delicado carinho. Amava cada
canto daquela propriedade como se fosse sua.
Sentia-se feliz naquela casa e falava nela com
orgulho.

Uma semana de convivência e eu já tinha
percebido o quanto ela era dedicada e inteligente.

Uma tarde, ao chegar, Hilda estava mais
agitada do que o costume. Quando a convidei à
palestra costumeira, respondeu-me com olhos
brilhantes:

— Hoje não posso. Aconteceu um imprevisto.
Vamos receber pessoa importante.

— Vai hospedar-se aqui? — perguntei um pouco
aborrecido, não querendo perder a privacidade.

— Vai. Mas não se preocupe. Não o molestará.
Ficará na ala direita. Aliás, quando ela vem, sempre


quer ficar só. O Sr. Leterre jamais ocupa aquela ala
da casa. É reservada só para ela!

— Deve ser importante!

— Se é! Quando vem aqui, não deseja ser
incomodada.

— Quem é essa senhora?

— Não estou autorizada a dizer. É uma dama
ilustre a quem o Sr. Leterre é muito dedicado.

— Gostaria de conhecê-la.

— Duvido que o receba. É muito retraída.

— É muito velha?

— Pelo contrário. E moça.

— Por que tanto mistério?

— Não há mistério. Ela é senhora de um condado
na Inglaterra e pertence à família real. Tem por isso
muitos compromissos políticos.

Minha curiosidade cresceu. Lembrei-me do
retrato em casa do Sr. Leterre. A moça do teatro da
ópera. Seria ela? Iria revê-la depois de tantos anos?

— Quando chegará?

— Hoje à noite. Por isso estou muito ocupada.
Tudo deverá estar impecável.

— Poderei conhecê-la?

Frau Hilda sorriu com malícia.

— A senhora é muito linda, mas muito orgulhosa.
Não convém desagradá-la. O Sr. Leterre ficaria
muito aborrecido.

— Não pretendo aborrecê-lo, contudo quero
conhecer essa dama. Promete que me ajudará?

— Vamos ver. Posso tentar. Quem sabe. Mas não
prometo nada.

Fiquei excitado. Aprontei-me com apuro,
apanhei um livro e fiquei à espera. Não consegui
ler. De onde eu estava não via a outra ala da casa,
mas tinha um bom ângulo do jardim e da estrada


de pedras da entrada principal que ia do grande
portão às faces de entrada da casa.

Meus olhos não saíam daquele local, à espera
da ilustre dama. Era um lugar obrigatório por onde
sua carruagem teria que passar.

Durante duas horas esperei inutilmente. Estava
desanimando quando finalmente uma carruagem
passou por ali, porém, para minha decepção, trazia
as cortinas corridas. Não pude ver nada. Seria
realmente ela?

Ansioso, esperei que Frau Hilda aparecesse,
mas as horas foram passando e a única notícia era
de que a governanta estava ocupada em instalar a
ilustre dama com apuro.

Eu estava inquieto e emocionado. Lembrava-me
da cena do teatro com detalhes, apesar de tantos
anos decorridos e de nunca mais tê-la encontrado.
Seria ela mesma ou eu estaria sendo vítima de um
engano?

Tive ímpetos de ir até lá. Porém a prudência
aconselhava-me a não passar por cima do
protocolo. E se não fosse ela? Meu coração batia
mais forte.

O melhor seria esperar Frau Hilda e ver a
melhor forma de conseguir uma entrevista ou,
quem sabe, uma apresentação. Por que não? Não
era hóspede na mesma casa? No dia seguinte, me
faria anunciar e iria apresentar meus cumprimentos.
Então saberia a verdade. Mal podia esperar.

Esperei por Frau Hilda até tarde, mas, apesar
de nada me ter faltado e a completa assistência dos
criados, ela não apareceu. Resignado, recolhi-me. O
rosto da jovem do teatro não saía da minha
lembrança. No dia seguinte, iria saber a verdade.

Levantei-me cedo, mas foi só na hora do almoço
que vi Frau Hilda. Curioso, perguntei-lhe pela dama.


— Chegou muito cansada.

— Gostaria de apresentar-lhe meus
cumprimentos.

— Lamento, mas ela se mostrou contrariada por
ter hóspede aqui e quer manter-se à distância.

Decepcionado, perguntei:

— Ela disse isso?

— Disse. Sinto muito, mas não quero aborrecê-la.

— Hum... — resmunguei contrariado. — Está bem.
Se for isso que ela quer.

A governanta suspirou aliviada. Temia que eu não
aceitasse a decisão.

— Melhor assim. A senhora é muito exigente. Não
gostaria que ela se aborrecesse.

— Quis ser cortês. Mas se ela não quer, estou
dispensado de qualquer atenção.

— Agradeço-lhe, Sr. Jacques, pela compreensão.

Compreendi que não podia esperar nenhuma
cooperação de Frau Hilda. Eu estava longe de
desistir. Ao contrário, estava mais curioso do que
nunca. Resolvi não despertar suspeitas.

Saí depois do almoço, fui à vila como de hábito
e estive por lá algum tempo. Estava inquieto.

Resolvi voltar. Dispensei a carruagem à entrada do
portão principal. Apesar do frio, o céu estava azul e
eu queria andar um pouco. Bem aquecido em
delicioso abrigo de peles, caminhar era para mim
excelente exercício.

Assim que me vi distante da carruagem, dirigi-
me à ala direita da casa. Queria ver a ilustre
visitante e descobrir se de fato era a dama do
teatro. Aproximei-me, mas a casa estava fechada e
eu não conseguia ver nada. Espiei pelas janelas:
nada. Fui dando volta a casa até que, finalmente,
olhando por uma delas, eu a vi.


Estava sentada, com um livro entre as mãos,
mas não parecia ler. Estremeci. Era ela sem dúvida.
Estava um pouco mudada. Os cabelos penteados de
modo diferente, mas o rosto, de uma
impressionante beleza, era o mesmo.

Meu coração batia tanto que queria saltar pela
boca. Continuei espiando. Ela estava pensativa e
triste. Estendido a seus pés, um enorme cão dormia
tranqüilo.

Eu precisava dar um jeito. E se eu batesse na
porta? Ela me atenderia? Não tive tempo, porém. O
cão, pressentindo minha presença, levantou a
cabeça fixando a janela atrás da qual eu estava.
Pensei em fugir, mas uma mão pesada caiu-me
sobre o ombro e senti uma pancada na cabeça.
Ainda vi um homem alto, forte, manietar-me e
arrastar-me para dentro da casa.

Eu queria falar, mas não podia. Aos poucos fui
me refazendo do susto e do golpe. O brutamonte,
agarrado ao meu braço, sacudia-me diante dela,
que, assustada, olhava-me sem saber o que dizer,
segurando pela coleira o cão, que rosnava
ameaçador.

— Surpreendi este espião, senhora. Atrás da
janela.

Ela me olhava séria. Animei-me e, sacudindo o
braço com violência, soltei-me e retruquei sério:

— Não sou espião e, se me permitir, apresento-
me. Sou Jacques Latour, hóspede do Sr. Leterre e
muito seu amigo. Estou na ala esquerda da casa.

Uma das criadas estava presente e confirmou.

— E doutor Jacques, sim senhora. E nosso
hóspede.

O homem desculpou-se.


— Eu não sabia. O senhor estava espiando... Eu
pensei... Tenho esta tarefa de defender a senhora.
Cumpro meu dever...

— Pode sair, Jeoffrey. Leve Wolf.

O homem pegou o cão pela coleira e, inclinando-se,
saiu. Senti-me melhor sem aqueles olhos caninos a
examinar-me. Eu estava emocionado. Ela
continuava linda e eu a olhava encantado.

— Muito bem, Sr. Jacques. Agora pode explicar-
me o que fazia espiando através da nossa janela?

— Queria vê-la. Recusou-se a receber-me e eu
estava curioso. Queria saber se minha suspeita era
verdadeira.

— Suspeita?

— Sim. Já nos conhecemos antes. Não se lembra?
Ela me fixou com olhos penetrantes.

— Sinto, mas não me recordo do senhor.

— Pois eu jamais a esqueci. Foi no teatro da
Ópera de Paris. Ocupou minha frisa e fiquei furioso.
Não se lembra?

Ela me olhou curiosa.

— Aquele antipático cavalheiro era o senhor?

— Era. Lamento não ter sido mais gentil.

— Sua atitude com uma dama não foi das mais
amáveis.

— Peço-lhe desculpas. Se quer saber, não saí da
frisa naquela noite porque sua presença me
eletrizou.

Ela ficou séria.

— O senhor nem sequer permitiu que eu assistisse
ao espetáculo até o fim.

— De maneira alguma. Fiquei ali, havia comprado
a frisa e julgava-me com o direito de assistir ao
espetáculo.

— O dinheiro deve ser mais importante para o
senhor do que o cavalheirismo.


Senti-me picado. Aquela mulher era muito
orgulhosa.

— O dinheiro tem sua importância, mas não era
isso que me incomodava. Sei ser cavalheiro, e se
me conhecesse não diria isso.

Nem sequer fui consultado. Ao comprar a frisa
adquiri o direito sobre ela, e vi o meu direito ir por
terra por uma arbitrariedade do senhor prefeito,
que nem sequer colocou alguém para esclarecer-me
e evitar meu desagrado.

Ela me olhou curiosa. Tinha lindos olhos cor-de-mel.

— Não sabia que o simples desejo de ir ao teatro
pudesse causar-lhe tanto transtorno.

— A princípio. Depois sua presença encantou-me.
Se tivesse ficado, por certo não guardaria tal
impressão de mim.

Ela me olhou bem nos olhos.

— Não sei. Pelo que percebo o senhor não aceita
uma recusa. Parece que não sabe perder.

— Engana-se. Apesar de sempre lutar pelo que
quero, estou aqui como perdedor.

Um brilho de curiosidade passou-lhe pelo olhar.

— Porque Jeoffrey o surpreendeu à janela?

— Não. Porque a vida me venceu. Refugiei-me
aqui para poder esquecer.

Eu sabia que não dispunha de muito tempo. A
qualquer hora ela iria pedir que eu saísse e por isso
eu tinha que aproveitar a oportunidade para
interessá-la.

— O senhor não parece ser um derrotado. Ao
contrário. Tem ótima aparência.

Ela me olhou interessada. Fechou o livro que ainda
segurava e colocou-o sobre a mesinha.

— Devo confessar-lhe que desde ontem não
consegui pensar em outra coisa senão em conhecê-
la — continuei.


— Por quê?

— Quando Hilda mencionou sua chegada, lembrei-
me do seu retrato em casa do Sr. Leterre e
imediatamente senti que era a dama da ópera. Se
quer saber, nunca a esqueci. Estava tão
impressionado que a procurei durante muito tempo.
Quando descobri o seu retrato, pensei poder
encontrá-la, mas o Sr. Leterre jamais me favoreceu.

Ela olhou-me um tanto divertida.

— Não quer sentar-se, senhor...

— Jacques. Obrigado.

— Aceita tomar uma xícara de chá?

Exultei. Ela, apesar de cerimoniosa, não me
expulsara. Decidi aproveitar a chance. Era uma
dama de alta classe, gestos delicados e seguros.
Uma verdadeira lady. Mostrei-me encantador e
polido.

A princípio, falamos de teatro, de concertos, de
autores. Depois ela se mostrou interessada pela
França, seus costumes, suas particularidades, e eu
pude discorrer com facilidade sobre minha terra
com verdadeiro prazer e orgulho, vendo seus olhos
cor-de-mel e seu rosto alvo fixados em mim com
atenção. Quando o relógio da sala deu sete
badaladas, olhamo-nos assustados.

— Já? — tornou ela ligeiramente corada.

— O tempo passou e nem sequer percebemos.
Estou abusando. Há muitos anos não passava
momentos tão deliciosos. O prazer de uma boa
palestra.

— É. Realmente não sentimos o tempo passar.

— Espero que me perdoe a forma pela qual entrei
aqui. Não suportava mais a curiosidade. Queria
descobrir se a nova hóspede era mesmo a dama da
ópera.

Ela me fitou séria.


— Agora já sabe.

— Sim. Desejaria apagar a impressão
desagradável que teve de mim. Terei conseguido?

— Pode ser. Saiba que não costumo falar com
desconhecidos.

— Mas eu não sou um desconhecido. Conhecemo-
nos há muitos anos. Depois, somos hóspedes do Sr.
Leterre. Refugiei-me aqui, desiludido e triste, só e
cansado. Estou em uma encruzilhada da vida, onde
devo recomeçar tentando esquecer o que foi. Nosso
encontro fez-me bem. Mostrou-me o que a vida
ainda tem de bom para oferecer. Sou-lhe grato por
ter-me escutado.

— Eu também me sentia só. Parece que
conseguimos esquecer o mundo lá fora.

— Aceitaria almoçar comigo amanhã? Ela hesitou,
depois disse:

— Talvez não possa.

— Gostaria de levá-la a conhecer um lugar
encantador onde se come muito bem e há um vinho
delicioso. Aceite, por favor.

Um brilho de alegria passou pelo seu olhar.

— Gostaria, mas não posso.

— Algo a impede?

Ela suspirou, depois disse:

— O senhor não me conhece. Não sabe dos meus
problemas. Mas vou dar um jeito.

— Virei buscá-la a que horas?

— Não. Irei encontrá-lo em algum lugar. Terei que
sair sozinha.

Apesar de curioso, não insisti. Estava tão feliz
que mal podia esperar. Ela conhecia bem as
redondezas e combinamos um encontro à uma hora
na pequena cabana que havia logo na saída da vila.
Despedi-me comovido e tomei sua mão com


delicadeza, beijando a ponta de seus dedos com
emoção.

— Amigos?— indaguei olhando-a nos olhos.

— Amigos. Por favor, não comente com ninguém
nosso encontro de amanhã.

— Por certo. Teremos um dia delicioso. Verá.

Ela sorriu e um brilho malicioso fluiu-lhe nos
olhos. Curvei-me e saí. Apesar do frio e da
escuridão da noite, meu coração cantava. Que
mulher! Que olhos! Apesar da classe e do controle
que ela exercia sobre as emoções, eu sentia que ela
era emotiva e ardente. Quando eu quebrasse o
gelo, por certo ela se revelaria. Meu coração batia
descompassado. Mal podia esperar.

Entrei na casa procurando conter a emoção. Eu
sabia que a discrição seria minha força principal.
Ninguém podia saber do nosso encontro e esse
mistério que havia em redor dela excitava-me a
imaginação. Frau Hilda esperava-me com ar
preocupado.

— Tome alguma coisa quente para não pegar um
resfriado — foi dizendo logo. — Já sei o que o
senhor fez. Podia ter sido morto por Wolf. Ele já
estraçalhou um homem que tentou aproximar-se de
sua dona.

— Desculpe, Hilda. Mas a curiosidade era demais.
Eu só fui espiar da janela. Não esperava ser visto.
Mas está tudo bem. Não molestei a senhora, que foi
muito amável. Aceitou minhas desculpas e
convidou-me ao chá. Agora, estou satisfeito.

Hilda suspirou:

— Ainda bem. Não gostaria de causar desgosto à
senhora.

— Está tudo bem agora.

— O jantar vai ser servido — avisou ela.


Eu estava tão contente que queria cantar, falar,
gritar minha alegria.

Dominei-me. O dia seguinte custaria a chegar.
Como esperar?

Mas ele chegou e eu parecia um adolescente
em férias. Para nossa aventura precisávamos de um
aliado. Eu combinara com Josef, velho cocheiro de
quem me fizera amigo, que me levava muitas vezes
à vila, apanhá-la em local combinado e levá-la à
cabana onde eu estaria. Josef tinha-lhe levado um
bilhete logo cedo e ela aceitara a cooperação do
velho cocheiro, a quem dedicava amizade e
confiança, conhecendo-o há muito tempo.

Josef tinha ficado feliz em cooperar quando eu
o procurei e contei-lhe nossos planos.

— A senhora quer passear incógnita.

— Eu sei. Ela não pode fazer o que quer. Pobre
senhora. Terei prazer em servi-los, serei um
túmulo.

Curioso, indaguei:

— Conhece a senhora há muito tempo. Que
mistério é esse que a envolve?

Ele olhou para os lados e sussurrou:

— Melhor não falar. As paredes têm ouvido. Ainda
vai saber.

Eu, porém, nada posso dizer.

Apesar de intrigado, não insisti. Tinha a certeza
de que com o tempo descobriria tudo. A aventura
fascinava. Eu tinha mergulhado completamente
nela.

Cheguei à cabana meia hora antes e fiquei à
espera, ouvidos alerta a qualquer ruído.

Há uma hora em ponto a carruagem parou e
Josef bateu à porta. Abri emocionado. Convidou-me
a entrar na carruagem, que estava com as cortinas
cerradas.


Com o coração batendo, entrei. Ela estava lá
recostada nas almofadas, rosto corado e expressivo.
Vestia traje singelo, sem jóias ou adereços, como se
fosse gente do povo. Sorriu para mim com excitada
alegria.

— Estamos fugindo — disse, estendendo-me a
mão alva e sem anéis.

— Gostaria que fosse para sempre — respondi,
levando seus dedos aos lábios trêmulos.

Há muitos anos não experimentava tal emoção.

— Aonde vamos? — indagou ela com alegria.

— Se estamos fugindo, não sei se a senhora
aceitará ir ao almoço. Acredito que a senhora
Gertrudes terá um local discreto para nós.

— Trouxe este chapéu, que colocarei ao descer.
Seu véu me protegerá.

Eu me sentia herói de folhetim, transportando
minha rainha. Ao mesmo tempo perguntava-me que
mistério era esse que sufocava aquela bela criatura
ao ponto de nem ao menos poder sair para um
simples passeio.

— Nem sequer sei o seu nome — murmurei
fixando seu belo rosto.

— Anne. Pode chamar-me assim.

— Anne... Condessa, duquesa, princesa ou o quê?

— Só Anne para o senhor.

— Não me permite saber mais a seu respeito?

— Essa é uma regra do jogo. Preciso respirar um
pouco. Gosto da sua companhia. Não quero me
lembrar de nada mais. Quero viver cada momento,
conhecer o que puder. Quero fugir da minha
realidade, quero esquecer. Ontem o senhor o
conseguiu. Estava entediada e só. Agora estamos
aqui. Para que mais?


Senti uma onda de emoção invadir-me o
coração. Sim. Estávamos ali os dois, juntos naquela
aventura fascinante. Para que mais?

— Concordo Anne. Deixe-me chamá-la assim.
Também quero esquecer minha vida. Vamos
aproveitar nosso tempo.

Meu coração cantava de alegria e eu percebi que
começava a amar outra vez.











Capítulo VII





Os dias que se seguiram foram de alegria e
encantamento. Em casa, permanecíamos como dois
estranhos, cada um na sua ala, mas assim que nos
era possível, com a cumplicidade de Josef, nos
encontrávamos e nos entregávamos ao nosso
enlevo.

Eu sabia que dispunha de pouco tempo. Até
quando ela estaria ali? Sempre que eu mencionava
o assunto, ela se entristecia, fazendo-me supor que
nosso tempo era contado. Eu estava loucamente
apaixonado, como nunca antes estivera. Meu
coração descompassava-se a vendo, minhas mãos
tremiam ao tocá-la de leve e minha felicidade
estava presa ao seu sorriso.

Não suportei a emoção durante muito tempo.
Minha admiração, meu amor extravasavam-se
naturalmente de mim, e minha alegria foi imensa
compreendendo que era correspondido.


Estávamos vivendo uma situação de exceção.
Por isso, no terceiro encontro declarei todo o meu
amor e pude senti-la trêmula em meus braços.

Ah! Como descrever em palavras esses
momentos sublimes? Como relatar nossa alegria,
nosso enlevo, nosso amor?

Amamo-nos loucamente. Porém, eu sentia
dentro de mim que era definitivo. Aquela mulher
marcava minha vida para sempre. Nossas almas se
buscavam com enlevo e parecia-nos que sempre
tínhamos nos amado e estado juntos.

Apesar disso, Anne recusava-se a falar de sua
vida, de seus problemas. Eu, apesar do êxtase,
sofria o medo de perdê-la. Eu estava disposto a
arrostar todos os perigos, a largar tudo pelo seu
amor.

Às vezes, quando eu insistia, ela chorava e
pedia-me para não lembrar sua vida. Alegava que
gostaria de ser uma mulher vulgar para poder fazer
o que quisesse. Porém não era dona de si. Eu a
abraçava e dizia-lhe que jamais a abandonaria.

Durante um mês vivemos de felicidade e de
amor. Meu mundo resumia-se em Anne e no cenário
maravilhoso em que estávamos vivendo.

Eu estava feliz. Recebera carta de Lenice, única
pessoa que sabia do meu paradeiro. Ela me falava
da sua felicidade com Jean. Eles tinham finalmente
encontrado o amor e eu vivia os momentos mais
felizes de minha vida.

Um dia, levantei-me particularmente feliz.
Tínhamos passado à noite quase inteira na cabana
em que Josef preparara tudo para nós. Tínhamos
ceado conversado muito, permanecendo de mãos
enlaçadas estendidos em almofadas e peles, perto
do fogo que ardia agradável na lareira.


Anne estivera particularmente carinhosa. Sua
meiguice tocara-me fundo o coração. Dissera-me
que me amava muito e que jamais amara outro
antes de mim. Fora uma noite inesquecível. Eu
estremecia ao recordá-la.

Hilda convidou-me ao almoço e em seus olhos
notei vestígios de lágrimas. Eu estava feliz. Não
queria que ninguém sofresse. Por isso, olhei-a com
carinho e perguntei solícito:

— Você está triste. O que aconteceu?

Ela olhou-me preocupada, receosa de dizer.

— Fale, Hilda. O que foi?

— Foi à senhora. Partiu hoje bem cedo. Não
entendi de pronto.

— Partiu? Quem?

— A senhora Anne.

Uma bomba que estourasse em meus pés não
teria me assustado tanto. Alucinado, esqueci-me
das conveniências.

— Impossível! — retruquei. — Não pode ser! Ela
não iria assim sem se despedir.

Frau Hilda olhou-me penalizada. Em seus olhos
brilhava uma lágrima.

— Partiu. Estava triste e abatida. Pobre senhora!
O tempo que passou aqui foi o único em que pôde
ter paz.

Não quis ouvir. Saí como louco, sem me
importar com nada, e fui à outra ala da casa em
busca de Anne. Para o meu desespero, era mesmo
verdade. Ela tinha partido. As lágrimas saltavam-me
dos olhos e uma dor imensa invadia-me o coração.

Eu não estava disposto a renunciar. Iria
procurá-la até o fim do mundo. Por certo ela haveria
de libertar-se de seus mistérios e ficar comigo.

Apanhei o livro que estava sobre a mesinha e
que ela costumava ler. Peguei o marcador delicado


que ela esquecera dentro do livro e beijei-o
emocionado. Seu delicado perfume estava nele e o
desespero tomou conta de mim. Nem sequer sabia
seu sobrenome e onde vivia. Mas Hilda deveria
saber, e eu estava disposto a procurá-la.

Voltei à nossa sala e Hilda olhou-me comovida.
Percebi que ela sabia. Por certo não escaparam à
sensibilidade de mulher minha euforia, a alegria de
Anne, nossas ausências prolongadas.

Desabafei:

— Estou desesperado, Hilda. Ela lhe disse algo,
algum recado, não deixou nada para mim?

— Sim. Deu-me esta carta. Pobre senhora, estava
pálida e triste.

Apanhei o envelope rosado com ansiedade e
retirei-me ao quarto para ler. Ela dizia:



"Meu amor. Não quero que me
procure. Nosso amor é impossível. Quero
que saiba que esses momentos foram os
mais felizes de minha vida.

No entanto, preciso partir. O dever
chama-me e é preciso sacrificar tudo a
ele. Creia que o amarei pelo resto de
minha vida e jamais esquecerei os dias
que estivemos juntos.

Adeus. Sei que me amará para sempre
e isso me dará forças para prosseguir.
Não procure seguir-me. Se eu pudesse,
se houvesse uma possibilidade, eu lhe
diria. Amo-o muito. Deus o abençoe".

Anne.




Lágrimas me vinham aos olhos. Eu não podia
conformar-me. Que mistério era esse que nos
separava? Por que nosso amor era impossível?
Agora que eu tinha encontrado o amor, não queria
perdê-lo.

Frau Hilda... Ela deveria saber alguma coisa
mais. Procurei-a ainda com olhos vermelhos.

Ela me olhou penalizada. Crivei-a de perguntas.
Negou-se a dizer-me o que sabia. Alegou nada
conhecer sobre a vida de Anne. Emocionado, falei-
lhe do nosso amor. Havia lágrimas em seus olhos
quan¬do respondeu:

— Pobre senhora. Nunca a vi tão feliz. Vocês
foram feitos um para o outro. É impossível, porém.

— Por quê? — indaguei inconformado.

— Só sei que ela é casada.

— Casada?!

— Sim. É só o que sei. Não posso dizer-lhe mais.
Gostaria de ajudá-los, mas penso que ela tem
razão. O mais prudente é esquecer. Não ir procurá-
la nunca mais.

— Não me conformarei nunca.

— Deve ter paciência. Todos os anos ela vem para
cá. Poderá vê-la de novo então.

Não me conformei. Era muito tempo e eu não
agüentaria esperar. Ela era casada! Não julgava
empecilho. Eu também tinha sido casado. Podia
perfeitamente separar-se do marido. Se ela me
amasse o bastante, ninguém conseguiria separar-
nos.

Fui ter com Josef. Interroguei-o duramente. Ele
parecia saber tanto quanto Hilda.

O que fazer? Minhas férias terminaram. Não
tinha mais nada a fazer ali. Decidi voltar a Paris. O
Sr. Leterre era minha esperança. Ele conhecia o


segredo de Anne. Era meu amigo. Haveria de
ganhar-lhe a simpatia para minha causa.

Ultimei os preparativos, despedi-me de Josef,
abracei Hilda, que me pareceu solidária com meu
sofrimento. Disse-lhe comovido:

— Tem em mim um amigo para o resto da vida.

Ela me abraçou um pouco triste.

— Sinto sua partida, Jacques. Esta casa ficará
muito triste sem vocês dois.

— Um dia estaremos juntos e voltaremos aqui.

— Cuidado, Jacques. É prudente atender ao
pedido dela.

— Você sabe mais do que me disse. Eu vou
descobrir. Jamais desistirei.

Despedi-me e parti. Durante a viagem de volta,
só tinha um objetivo: chegar a Paris e convencer o
Sr. Leterre a contar-me toda a verdade.

Quanto cheguei a Paris, estava escurecendo e
uma chuva fina castigava a paisagem. Sem me
importar com nada, deixei minhas malas em casa.
Preparei-me e dirigi-me à casa do Sr. Leterre.

Este se surpreendeu ao ver-me e abraçou-me
com cordialidade. Eu mal continha minha
impaciência.

— Aconteceu alguma coisa? — indagou-me ele
admirado. — Julgava-o ainda em Bradenburg.

— Cheguei hoje. Vim porque preciso muito de sua
ajuda. Ele se admirou.

— O que aconteceu?

Sentado em confortável poltrona à sua frente,
num acesso de desespero, contei-lhe tudo. E
terminei:

— Preciso de sua ajuda. Não me conformo com a
separação. Minha vida estava destruída e eu a
encontrei. Jamais senti algo igual.


É o amor de minha vida. Não quero perdê-la. Não
me conformo. Preciso dela como do ar que respiro.

Ele me olhou penalizado.

— Anne é admirável. Posso compreender sua
paixão. Entretanto, nada posso fazer.

Pode, sim. Preciso saber a verdade. Esse
mistério que a cerca, tenho o direito de descobrir.
Preciso realmente saber se não há chance. Quando
duas pessoas se amam, nada as impedirá de
viverem juntas.

O Sr. Leterre abanou a cabeça pensativo, depois
disse:

— No caso de Anne acho difícil. Ela empenhou sua
palavra, sacrificou-se para a união de seu povo. Não
deixará sua posição, tenho certeza.

— Como assim?

— Vou contar-lhe em poucas palavras. A família
de Anne, ligada à coroa, dirige um condado que
seus antepassados conquistaram há séculos
passados. Esse poder é entregue sempre ao filho
varão. As coisas não iam bem no condado e seu pai,
homem rígido porém muito orgulhoso e severo, com
sua intransigência levou seus súditos ao
descontentamento. Odiado e temido, era tolerado
porque esperavam que, com a maioridade, seu
filho, jovem estimado e culto, assumisse a direção
da cidade e tudo iria melhorar. Contudo, para a
desgraça de todos, o jovem conde foi assassinado
em uma emboscada e isso gerou a revolta entre o
povo. Nesse caso, não havia outro varão, apenas
Anne. Por isso, o povo exigiu a renúncia do velho
conde e a revolta fazia crer que o deporiam pela
força. Tramava-se por toda parte, e o conde
procurou sair da crise sem perder a situação de
privilegiado. Ofereceu ao povo como solução o
casamento da filha Anne com um rico cavalheiro,


temido por sua espada em favor dos oprimidos e
muito respeitado pelo povo. Sir Anthony, convidado
ao castelo do conde, aceitou a proposta de
casamento, sendo que, embora ocupasse lugar de
honra na cidade, o velho conde continuaria a
governar sua possessão e somente passaria o poder
ao filho varão do casal, como de praxe.

Eu tremia de emoção. Sr. Leterre evitava falar
nomes, locais, para impedir-me de tentar alguma
coisa.

Ele terminou:

— Anne aceitou a situação que lhe foi imposta.
Casou-se com Sir Anthony. Para ela o pai sempre
foi um tirano, jamais lhe permitindo liberdade.
Agora ela tem dois tiranos. Pelo que sei, o marido é
homem duro e demasiadamente interessado em
política e poder pessoal. A pobre Anne só consegue
passar alguns dias, uma vez por ano, em minha
casa em Bradenburg. Naturalmente cercada de
guardas e espiões por todos os lados.

Suspirei fundo.

— Eu sei.

— Temos um longínquo laço de parentesco. Tive
ocasião, certa vez, de prestar um serviço
diplomático a seu pai e ele me distinguiu com sua
amizade, embora seja comigo muito cerimonioso.
Porém, percebe o quanto Anne aprecia a mim e à
minha família, e permite que ela de quando em vez
se aproxime de nós.

— Ela se submete a tudo?

— Sim. Tem o dever em alta conta. Acredita que
sua atitude tem evitado à revolta e o derramamento
de sangue. E, até certo ponto, tem razão. O povo a
adora. Espera que ela tenha um filho varão.

Estremeci.

— Ela não tem filhos?


— Não. É casada há dois anos, e, até agora, nada.

Um pensamento sombrio entristeceu-me o
rosto. O ciúme brotou em meu coração fazendo-me
sofrer.

— Contei-lhe tudo para que compreenda e deixe
Anne em paz. Você pode criar-lhe muitos problemas
se for procurá-la.

— Mas eu não desisto. Agora que a encontrei, não
posso perdê-la. Podemos fugir juntos. Viver em um
lugar distante.

O Sr. Leterre abanou a cabeça.

— Impossível. Você não conhece o pai de Anne e
muito menos o marido. Eles vivem ainda no tempo
da barbárie. Não hesitariam em matá-los. Não
importa o lugar em que se escondessem, eles os
achariam. São austeros e violentos. Jamais
aceitariam qualquer solução que não fosse o
cumprimento da sua própria vontade. O melhor
para ambos é tentar esquecer. Esse amor é
impossível. O castelo do conde é uma verdadeira
fortaleza e sua rede de espiões é temida.

— Não posso conformar-me em perdê-la! Nós nos
amamos muito.

— Ela sabe que é impossível. Foi sensata e partiu
sem lhe deixar endereço.

Eu estava arrasado. Mas, por mais que a situação
se complicasse, eu não pensava em desistir.

— Agradeço-lhe ter-me contado tudo. Preciso
conhecer a extensão do poder dos meus inimigos.
Quero que saiba que não desisti. Vou lutar.

— Espero que não a procure no castelo. É
arriscado e inútil. Pode sair ferido.

— Não se preocupe. Não penso em tornar-me alvo
fácil desses tiranos. Ainda hei de encontrar um meio
de vencer.

Ele me olhou admirado.


— Pela segunda vez você faz uma afirmativa que
julgo impossível. Na primeira eu estava enganado,
contudo, agora...

— Verá que continua a enganar-se a meu
respeito.

— O que pensa fazer?

— Pode ficar sossegado que não pretendo expor
Anne ou minha vida a perigos inúteis. Contudo, não
desistirei. Gostaria muito que nos ajudasse.

Ele me olhou pensativo.

— Você me coloca em situação delicada.

— Prometa-me que me ajudará. Seus conselhos
serão à base de minhas lutas. Pode crer que não o
comprometerei.

— Farei o possível. Aprecio Anne como a uma
filha. Admiro-lhe o caráter, a beleza, a finura.
Veremos. Se eu puder, ajudarei.

— Obrigado. Pensarei em um jeito. Trabalharei
duro se preciso for. Daqui para frente, tenho um
objetivo. Amanhã voltarei aqui, se me permitir, e já
terei algo planejado. Muito obrigado, Sr. Leterre.

Saí de lá exausto e febril.

Tinha que traçar planos para uma luta que nem
sequer sabia como começar.

Apesar de muito cansado, revirei-me no leito
sem poder dormir e só consegui conciliar o sono
quando o dia clareou de todo. Eu já tinha em mente
um plano para começar.

Meu impulso maior era de ir direto ao castelo e
fugir com ela, mas reconhecia a imprudência e os
riscos que corríamos.

Por outro lado, a luta se me afigurava difícil,
mas eu a escolhi como saída, ainda que para isso
tivesse que trabalhar durante toda a minha vida.

Naquela noite, quando voltei à casa do Sr.
Leterre, surpreendi-o com meu plano.


— Quero ingressar na diplomacia. Tenho todos os
quesitos, e afinal esse sempre foi o desejo de meu
pai. Para isso preciso do seu prestígio. Sei que pode
conseguir isso para mim.

— O que pretende conseguir?

— Quero ser designado para uma missão na
Inglaterra. Lá, começarei a agir.

— Cuidado!

— Pode ficar tranqüilo. Quero agir dentro do
direito e da lei. Tenho a certeza de que haverá um
jeito de resolver nosso problema.

— Como?

— Ainda não sei. Vou descobrir. Sinto que a
maldade, a mentira, o orgulho e a tirania não
podem vencer sempre.

Um brilho de admiração passou pelos olhos do Sr.
Leterre.

— Seu pai se orgulharia de você. Escolheu um
difícil caminho, porém o mais decente.

— Por agora, quero conhecer bem o inimigo e
avaliar seus direitos. Não acredito que Anne precise
sacrificar-se para manter o poder do pai. Hoje em
dia, isso já passou. Estamos iniciando o século
vinte. A nova era precisa ser diferente. Ajude-me, e
o senhor não vai envergonhar-se de mim.

— Muito bem. Vamos trabalhar. Escreva-me, por
favor, todas as informações suas, os cursos que fez,
suas experiências, seus objetivos políticos. Preciso
delas para conseguir-lhe um lugar.

Ali mesmo, no gabinete do Sr. Leterre, escrevi
minha vida profissional e pública e, satisfeito,
entreguei o papel ao meu amigo. Saí mais
esperançoso e aliviado.

No dia seguinte, visitei Lenice, e sua felicidade
encheu-me o coração de prazer.


Soube também que Elisa estivera em sua casa,
abatida e triste, arrependida e querendo obter
notícias minhas, pois me escrevera inúmeras cartas
sem obter resposta.

Eu as tinha achado em minha casa e nem
sequer as abrira. Elisa negou que continuasse
apaixonada por Jean.

Lenice tornou:

— Tive pena dela. Infelizmente para ela, agora é
tarde. Jean nunca a amou e eu acredito nele.
Sempre gostou de mim. Agora você percebe que
jamais a amou.

— Não lamente Elisa. Ela não é de perder tempo.
Quando tiver a certeza de que jamais voltarei e que
é inútil procurar-me, arranjará outra pessoa. Aliás,
ela nunca me amou. Você sabe disso. Sinto-me à
vontade para deixá-la. Esse casamento nunca
deveria ter acontecido. A você não posso enganar.
Amo outra mulher e é a primeira vez.

Na penumbra agradável da sala de Lenice,
contei-lhe minha extraordinária aventura e meus
projetos para o futuro. Ela me olhou com seus olhos
lúcidos, tomou minhas mãos entre as suas e disse:

— Lute, Jacques. Lute pelo que quer. Mas lute
pelo direito, pelo bem, com honestidade e justiça.

Senti-me emocionado. Ela prosseguiu:

— Se fizer assim, Deus estará ao seu lado, e
vencerá. Não importa o tempo que leve, nem o
quanto você sofra. Importa que seja para sempre e
de tal forma que nem a morte conseguirá separá-
los.

Olhei-a admirado e ela continuou:

— A vida é eterna e a morte não é o fim. Se o seu
amor é verdadeiro, por certo nem a morte poderá
destruí-lo. Mesmo que na Terra seja impossível esse
amor, se houver sinceridade, honestidade, essas


barreiras terrenas deixarão de existir. Lute, porém,
com nobreza, seja digno desse amor para merecê-
lo.

— Acha que não conseguirei tê-la para mim desde
agora?

— Não sei. A vida tem seus motivos e o passado
atua no presente. Só Deus sabe o futuro.

— Hei de vencer, desde agora. Amo-a
loucamente. Não pretendo passar a vida sozinho.
Quero ser feliz com Anne.

— Deus o ajude, Jacques. Contudo, noto-o
agitado, quase febril. Vamos fazer uma prece.
Precisa acalmar-se. Essa luta exigirá paciência e
discernimento.

— Ajude-me, Lenice. Não consigo dormir, e não
posso esquecer pensar em outra coisa.

Lenice levantou-se e silenciosa acariciou minha
cabeça.

— Pense em Deus, Jacques. Peça-lhe proteção e
ajuda.

Eu não estava habituado a rezar, mas, naquela
hora angustiosa, obedeci. Em pensamento supliquei
a Deus por mim, por Anne e pelo nosso futuro.

Em pé na minha frente, tendo a mão direita
espalmada sobre minha testa, Lenice orava em
silêncio. Aos poucos o peso de minha cabeça foi
passando e senti-me aliviado. Uma brisa suave
envolveu—me, trazendo-me grande sensação de
calma.

Depois de alguns minutos ela perguntou:

— Sente-se melhor?

— Muito — respondi admirado.

— A prece é excelente alimento para o nosso
espírito. Não se esqueça disso. E ainda favorece a
ocasião para que espíritos bons e amigos nos


ajudem. Ore todos os dias e confie em Deus,
fazendo o bem.

Eu, realmente, me sentia muito melhor. A
angústia e a ansiedade, a inquietação e o desespero
tinham cedido. Eu estava calmo.

— Sua prece fez-me bem — reconheci admirado.

— Deus não tem preferências. A sua ou a minha,
qualquer prece, quando sincera, é ouvida.

Prometi a Lenice não me esquecer da oração.
Senti um carinho muito grande por ela, tão cheia de
fé e de sinceridade. Saí de lá cheio de esperanças e
tecendo sonhos para o futuro.

Nos dias que se seguiram, aguardei
ansiosamente notícias do Sr. Leterre. Quinze dias se
haviam passado sem que nada acontecesse.

Eu tinha procurado ver Julien, e Elisa consentira
que ele passasse uma semana comigo. Sabendo do
meu regresso, ela tinha tentado ver-me. Porém,
era-me profundamente desagradável sua presença.
Recusei-me a recebê-la e escrevi-lhe uma carta em
que joguei por terra suas últimas ilusões de uma
reconciliação.

Ela, em suas cartas, pedia-me perdão e dizia
reconhecer seu engano. Jurava que me amava e
estava muito arrependida. Jurava fidelidade, pedia
nova oportunidade. Eu não dei. Nunca a tinha
amado. Agora isso estava bem claro dentro de mim.

Sentia-me desobrigado de qualquer
compromisso com ela. Sua traição, sua indignidade
garantiam-me o direito à liberdade.

Sem remorsos nem penas, recusei a
reconciliação. O único laço que nos prendia ainda
era Julien. Eu o amava muito. Ele não tinha culpa
de nada.

Vendo seu rostinho ansioso, sentindo seus
bracinhos ao redor do meu pescoço, sua alegria ao


ver-me, sentindo seu amor por mim, abracei-o com
força. Para mim, ele seria sempre um filho querido.
Durante a semana que passamos juntos, tivemos
bons momentos. Fiz o possível para que
compreendesse que o meu amor por ele não tinha
nada a ver com o fato de eu não estar vivendo mais
com Elisa.

Quando ele se foi, senti-me muito só.
Confortava-me pensar em Anne e reviver nossos
momentos de amor e de felicidade.

Quando o Sr. Leterre me chamou, fiquei
eufórico. O coração batia forte e o atendi
imediatamente. Ele foi logo dizendo:

— Jacques, tenho boas notícias para você.
Consegui um lugar no ministério das relações
exteriores. De início, é modesto. Como você é
bacharel em leis, exercerá o cargo adjunto à
comissão chefiada pelo juiz Leopold Charrier, que
deverá seguir para a Inglaterra brevemente, para
trabalhar em nossa chancelaria. Essa comissão
julgará os casos que envolvam os interesses de
nossos cidadãos naquele país. Terá que trabalhar
muito e sua função será subalterna. Você está
iniciando e eu o consegui graças ao nome
respeitado de sua família.

Eu estava radiante.

— Está muito bem. O que quero é ir para lá. Creia
que trabalharei com esforço e honestidade. Não
desmerecerei sua recomendação.

— Tenho certeza disso. Por isso o recomendei.
Deverá apresentar-se no ministério depois de
amanhã. Tem aqui todas as indicações.

Agradeci sensibilizado e saí. Foi emocionado que
retornei três semanas depois para despedir-me.


— Tudo certo. Partimos amanhã. Desejo
agradecer-lhe tudo quanto tem feito por mim.
Todavia, preciso de um último favor.

— Já sei. Informações sobre Dolgellau, no
condado de Merionthshire, onde vive Anne.

Meus olhos brilharam de prazer.

— Tome este envelope. Dentro encontrará todos
os informes.

Decore-os e queime-os em seguida. Confio em sua
palavra que usará de cautela e bom senso.

Apanhei o envelope com mão trêmula.

— Pode estar certo de que pretendo encontrar
solução pacata e honesta. Não se arrependerá de
ter confiado em mim.

Abracei-o comovido e saí. No dia imediato,
depois de abraçar Jean e Lenice, embarcamos para
Londres. Nossa comitiva compunha-se de cinco
pessoas e o juiz que nos comandava.

Mais uma vez minha vida modificava-se. De
novo eu pretendia recomeçar. Agora, não mais em
busca de dinheiro e posição, que eu já tinha
conquistado, mas de algo bem maior, da realização
do amor, que caudaloso e forte me inundava o
coração.

Havia quinze dias que eu tinha chegado a
Londres.

Estava bem instalado em agradável vivenda,
procurando desempenhar minhas novas funções sob
a orientação exigente e sóbria do Sr. Charrier.
Assim que dispus de tempo, procurei informações
sobre Dolgellau, consultando museus e livrarias,
tentando encontrar dados históricos.

Encontrei alguns livros e gravuras, que comprei
emocionado. Vi o castelo dos condes de Loucester
em Merionthshire e acompanhei com emoção a lista
de ancestrais, até encontrar no fim o nome de Mary


Anne Caroline Templeton, condessa de Loucester e
seu marido Sir Anthony Joseph Templeton. A lista
terminava aí.

Meu coração batia forte. Anne... Finalmente
sabia quem era e onde vivia. Um magnífico castelo
rodeado de prados verdejantes.

Enquanto procurava uma forma de ir até lá, lia
e relia aquelas linhas e já conhecia de cor toda a
história de sua família.

Trabalhei duro e sem descanso. Assim que
dispus de uma semana livre, resolvi ir até
Merionthshire. A viagem era um tanto longa e eu
estava impaciente. Não quis descansar, ordenando
a muda dos cavalos. Queria chegar depressa.

Estávamos em maio e os campos estavam tão
verdes que pareciam um tapete de uma gravura.
Eu, coração aos pulos, não via a hora de chegar a
Dolgellau.

Estava anoitecendo quando desci em uma
estalagem da pequena, mas graciosa vila. A emoção
misturava-se ao cansaço e eu desejaria sair
imediatamente à procura de Anne. Impossível, no
entanto. Tomei aposentos na taberna. Durante a
ceia procurei descobrir mais sobre a família de
Anne.

Soube desde logo que o povo amava Lady Anne
e seu marido Sif Anthony, mas apenas suportava o
velho conde de Loucester, sobre quem se contavam
muitas lendas de feitiçaria e de abuso do poder.
Havia muito carinho para Lady Anne e a esperança
de que logo ela teria o esperado filho, que seria o
herdeiro daquele condado.

Senti-me quase inerte diante de tanto poderio.
Contudo, não podia desanimar. Meu amor dar-me-ia
forças para vencer. Estava disposto a representar o
papel de um diplomata interessado na história,


estudioso de costumes, pesquisando, pretendendo
melhorar sua cultura para progredir
profissionalmente.

A ansiedade tomava conta de mim. Queria ver
Anne, matar a imensa saudade. Dispunha de menos
de uma semana e tinha um grande amor no
coração.

Foi no dia seguinte cedo que recebi da
camareira a informação. Era sábado e a família do
conde compareceria ao culto na igreja do condado.

Com o coração aos saltos, aprontei-me. Iria
rever Anne?

Meia hora antes já me encontrava sentado na
primeira fila dos bancos da igreja, erguida numa
graciosa colina, rodeada de sebes floridas e
perfumadas.

Às dez horas em ponto, o velho conde deu
entrada na cava. Era forte, apesar de magro, e seu
rosto duro refletia o orgulho e a prepotência. Olhava
o povo de cima para baixo, nem sequer
respondendo à saudação das pessoas que se
curvavam à sua passagem.

De repente, meu coração parecia querer sair
pela boca. Anne estava entrando e encaminhando-
se para a tribuna de honra. A seu lado um homem
moço ainda, magro, bastos cabelos alourados, olhos
duros, traços fortes. Era com certeza. Sir Anthony.
Nossos olhos se encontraram e senti um frio pela
espinha. Ali estava meu inimigo.

Foi quando Anne me fixou. Apesar do seu
esforço, vi que titubeou por um instante enquanto o
sangue lhe fugia das faces. Que emoção! Vê-la, tê-
la diante de mim, sem poder abraçá-la e dizer-lhe
do meu amor.

Ela se dirigiu ao lugar de honra que lhe era
reservado e de onde eu podia ver seu perfil


delicado. Apesar de pálida, estava mais linda do que
nunca. Eu precisava ter um encontro com ela, mas
como?

Foi com pesar que o culto acabou e Anne pelo
braço do marido passou por entre o povo que se
curvava à sua passagem, procurando sorrir.

Como os demais, acompanhei o casal que
acenava de quando em vez e foi na hora de subir na
carruagem que Anne desfaleceu.

Tive ímpetos de correr para ela. Contive-me.
Sir Anthony amparou-a e, carregando-a, colocou-a
nas almofadas da carruagem, partindo
imediatamente.

Fiquei desesperado. Teria sido a emoção que a
fizera desmaiar? Sentia remorsos, mas ao mesmo
tempo satisfação.

O comentário do dia em todas as bocas era o
mal-estar de Anne. Decidi-me a procurar Sir John,
primo do conde de Loucester, muito amigo do Sr.
Leterre e a quem eu levava uma carta de
apresentação.

Fui procurá-lo na tarde do mesmo dia. Sir John
recebeu-me com cortesia. Era o oposto do primo,
conforme pude perceber. Homem viajado e culto, de
idéias modernas, possuía conversa agradável e
afável.

Sabendo-me um diplomata e na qualidade de
amigo e protegido do Sr. Leterre, não aceitou minha
permanência na estalagem e imediatamente
considerou-me seu hóspede, mandando buscar
minha bagagem. As coisas iam melhor do que eu
esperava.

Foi agradável percorrer sua linda vivenda, onde
havia retratos de família e onde Anne aparecia em
várias idades.


Simpatizei imediatamente com Sir John. As
horas passaram depressa e eu, procurando revelar
um interesse histórico, ia colhendo mais
informações sobre a vida de Anne.

No domingo pela manhã, fui sacudido por
intensa emoção. Estávamos passeando a cavalo e
Sir John, orgulhosamente, mostrava-me a
propriedade quando os sinos começaram a
bimbalhar. Ele, admirado, disse-me:

— Alguma novidade. Vamos ver o que é.

Quando voltávamos para casa, um criado nos
esperava no pátio para dar-nos a notícia.

— Hoje é dia de festa em Dolgellau. Lady Anne
espera um filho!

Uma bofetada não teria me assustado tanto.
Anne ia ser mãe!

Senti um aperto de ciúme no coração. Mas, ao
mesmo tempo, uma louca esperança, um desejo
imenso tomou conta de mim. Esse filho poderia ser
meu. Eu queria saber. Como descobrir a verdade?
Precisava vê-la, agora mais do que nunca. Estava
desesperado, tentando demonstrar indiferença
enquanto Sir John, olhos brilhantes e emocionados,
dizia entre dentes:

— Eles conseguiram arredar-me por agora. Vamos
ver o que nos reserva o futuro.

Percebi que Sir John não estava participando da
alegria geral e compreendi. Ele ainda conservava
esperanças de vir a ser um dia conde de Loucester.
Teria encontrado um aliado?

Procurei incentivá-lo, comentando:

— O que acontecerá se Lady Anne der à luz uma
menina?

Ele sorriu com satisfação.

— Não poderá herdar Merionthshire. Ela terá que
tentar até conseguir.


— E se não conseguir?

— Então herdarei o condado. Eu e meu filho
William.

Tentando aparentar indiferença, comentei:

— Pela história que eu li, o povo andava
descontente. Havia pedido a renúncia do conde,
mas ele se recusou e preferiu casar a filha na
esperança de um herdeiro.

— Está certo. Não se pode esquecer que ninguém
pode tirar-lhe esse título, cujo direito só acaba com
a morte. O povo encontrava-se rebelado e quase o
fez pela força. Foi preciso enérgica intervenção de
vários cavalheiros, aos quais apoiei, para manter a
ordem.

— O senhor não deseja ser conde? — indaguei.

Seus olhos brilharam.

— Por certo. Mas com honra e por direito.
Entristece-me o sofrimento do povo. Eu poderia
fazer muito por eles se herdasse o título. Contudo,
Charles jamais renunciaria. Ama o poder, o domínio.
E detesta-me. Sente-se ameaçado por mim, embora
eu nada faça para isso. Coisas de família, Sr.
Jacques. Jamais nos entendemos.

— É pena — ajuntei —, porque nesse caso já
existiria o herdeiro, e Lady Anne não precisaria
sacrificar-se.

Ele me olhou admirado.

— Vejo que é perspicaz. O que me penaliza é ver
o sacrifício de Lady Anne. Ela jamais gozou de
liberdade para nada e não tem feito outra coisa
senão obedecer ao velho Charles, que a tem quase
como uma prisioneira. Nem sequer permite que
Lady Anne me visite. Teme que eu a incentive à
revolta. Anne é uma linda e culta mulher, uma flor
sufocada pela ambição de um homem e que agora


se encontra nas mãos de outro déspota: Sir
Anthony.

— Vi-os na igreja. É um belo homem.

— Duro como uma rocha, ambicioso como
Charles. Para eles, o que importa é o poder, de
qualquer forma e acima de tudo. Sir Anthony
conquistou a simpatia do povo pela sua luta. É um
espadachim como poucos, valente, e diz colocar
suas armas em favor dos oprimidos.

— E tem feito isso?

— Fazia na mocidade, quando, com seus homens,
lutava em defesa dos oprimidos. Mas desistiu
quando lhe surgiu a chance de ser um deles. O povo
esperava que ele, unido à casa de Loucester,
defendesse seus interesses, porém tal não
aconteceu. Ele se colocou em defesa do conde de
Loucester e de seus interesses.

— Seria mais certo que o senhor herdasse esse
título, já que possui o filho para dirigir o condado.
Não seria mais justo?

Ele abanou a cabeça, dizendo com emoção:

— Deus sabe que não fujo ao meu dever. Mas não
movo um dedo para prejudicar Charles. Se eu tiver
que herdar esse título, será pela vontade de Deus.

Admirei sua dignidade e senti profundo respeito
por aquele homem. Sentir-me-ia muito orgulhoso
de ser seu amigo. Estendi a mão com simpatia.

— Permita-me apertar-lhe a mão. É uma honra.

Olhamo-nos comovidos. Estava selada nossa
amizade. Fiquei feliz, porque talvez ali estivesse a
única chance de libertar Anne do seu compromisso.

Era cedo ainda para dizer, mas ter Sir John
como amigo representava um poderoso trunfo.

Precisava ver Anne. Como fazer? Tinha pouco
tempo. Sabia que o castelo era bem guardado e eu
não teria condições de entrar. Estava amargurado e


triste porque o tempo ia passando e em breve eu
teria que voltar.

Agoniado, à tarde, passeava pelos jardins da
vivenda quando aproximou-se uma serva.

— Sr. Jacques? — indagou em voz baixa.

— Sim — respondi.

— Trago uma mensagem para o senhor. Vem de
Loucester. Meu coração bateu forte. Apanhei o
papel com mão trêmula e li:

"Vá hoje à noite às onze horas na cabana de caça.
Estarei lá." Não estava assinado e a letra era
irregular, mas não tive dúvida. Era dela.

— Tem resposta, senhor?

— Diga que irei

A serva se foi e eu segurava o bilhete com emoção.

Não sabia onde ficava a cabana, mas
descobriria. Á tarde consultei os livros e mapas
descritivos de Loucester e não me foi difícil localizá-
la.

Com o coração palpitando, quase na hora
marcada, saí sorrateiramente. Minha ansiedade era
tão grande que mal podia respirar. Cheguei à
cabana e empurrei a porta. Estava aberta. Entrei e,
à luz bru-xuleante de uma vela, esperei.

Ao menor ruído, estremecia de emoção. De
repente a porta abriu-se e um vulto de mulher
apareceu na soleira. Trazia um manto ocultando-lhe
os cabelos. Levantei-me tenso.

— Jacques! — murmurou ela.

Estendi os braços e num instante nos abraçávamos
com loucura.

— Anne! Que saudade. Como esperei por este
momento!

— Que loucura! Sua vida corre perigo. Se Anthony
descobre, mata-o. Pelo amor de Deus, diga que
nunca mais voltará aqui.


— Quero que vá comigo. Eu a amo e a quero.

Beijamo-nos com paixão. Apertei-a com força de
encontro ao peito.

— É impossível! Não posso fazer isso. Eles nos
encontrariam no fim do mundo e nos matariam. Não
quero que nada lhe aconteça.

— Sem você não posso — disse num arroubo de
amor. — Vim para encontrar uma solução para nós.
Vamos embora. Iremos para a França. O Sr. Leterre
nos ajudará.

Ela abanou a cabeça com tristeza.

— Não adianta. Não deixarei o meu povo, que
confia em mim.

Estou esperando um filho!

Meu coração bateu forte.

— Jacques, nosso filho! Ele herdará Loucester e
chefiará nosso povo. Será bom, justo e amado por
todos.

— Anne, vem comigo. O filho é nosso é nós o
amaremos muito. Há Sir John, um homem bom e
nobre. Ele pode herdar o título. Seu filho William é
bom e justo.

— Você não sabe o que diz. Não quero ver tio
John assassinado. Se ainda não o fizeram, foi
porque aguardam a chegada de meu filho. Sei que,
se amanhã eu desaparecer ou não der esse filho a
Anthony, ele assumirá o poder pela força. Matará tio
John e William traiçoeiramente. Pela sua ambição,
está disposto a tudo. Acha que poderei viver em paz
tendo essa desgraça na consciência? Apertei-a com
força nos braços.

— Mas eu a amo! Não estou disposto a renunciar a
você.

— Eu também o amo. Mas é a única saída. Vim
pedir-lhe que se vá e nunca mais volte. Se eu puder


ir a Bradenburg, aviso. É a única maneira. Prometa-
me que partirá amanhã.

— Pede-me o impossível.

— Acha que se houvesse uma possibilidade para
nós eu o deixaria ir?

— Você aceita a derrota passivamente.

Ela ergueu a cabeça com orgulho.

— Não sabe o que diz. Jamais contribuirei para um
derramamento de sangue. Se algum dia as coisas
mudarem e houver a menor possibilidade, eu o
avisarei. Lembre-se de que você é o único homem a
quem amei até hoje. Vivo recordando nossos
encontros, nossos momentos felizes. Eles viverão
comigo até a morte. Nosso filho herdará tudo isto e
você saberá que a sua semente deu frutos de amor
e de progresso a todo um povo. Quero que se
orgulhe disso. Que seja digno e forte. Confio na
justiça de Deus. Se ele nos exige agora o sacrifício
da separação, é porque esta é a melhor solução.
Nem sempre as coisas podem ser como queremos,
mas o dever feito com coragem e honestidade faz a
têmpera de um homem.

Apesar da dor que sentia, a dignidade
orgulhosa de Anne tocou-me fundo.

A nobreza de seus sentimentos, colocando o
bem dos outros diante do seu próprio, elevava-a em
meu conceito, fazendo-me sentir profundo respeito
por ela.

Abracei-a com força.

— Será difícil — solucei, emocionado.

Ela apertou-me com carinho.

— Crê que será fácil para mim? Ajude-me,
Jacques, a que eu tenha forças para levar avante
minha missão. Educarei nosso filho com amor e
justiça. Ele será um homem de bem. Ensiná-lo-ei a


amar a França e seu idioma. Em sua homenagem.
Agora, diga que concorda em partir. É preciso.

— Tenho que partir — murmurei com voz trêmula.
— Mas não quero que seja para sempre.

— Farei o possível para ir a Bradenburg. Darei
notícias. Prometa-me que não procurará ver-me. É
perigoso. Não quero que nada lhe aconteça.

— Prometa-me que irá ver-me ou mandar notícias
sempre que for possível!

— Assim farei. Agora é preciso ir.

— Já?

— Sim. Tenho medo. Aqui as paredes têm
ouvidos. Espere alguns minutos para sair.

— Anne, não me deixe — solucei agoniado.

Beijei-a repetidas vezes.

— É preciso, Jacques. Deus o guarde. Adeus!

Trocamos um último beijo. Ela colocou o manto
e o capuz sobre os cabelos e saiu. Eu fiquei com o
coração partido e uma enorme desilusão cantando
dentro de mim.

Voltei para casa arrasado. Embora sentisse
alegria em saber que o filho era meu, havia a
tristeza da separação sem remédio. Eu ainda não
havia perdido as esperanças. Devia haver um jeito
de arrancar Anne daquela triste situação. Mas
como?

Sir John percebeu minha tristeza. Disse-lhe que
estava viajando para esquecer um amor impossível.
Sentia que ele, Sir John, era minha única
esperança. Não me arriscava a contar-lhe meu
segredo, porém contava de alguma forma incentivá-
lo à luta pelo que tinha direito.

Ele, porém, acreditava sinceramente que Deus
lhe colocaria tudo nas mãos se isso fosse verdade.
Conversamos muito e eu procurava mostrar-lhe a
necessidade de fazer alguma coisa para melhorar o


nível de vida do povo, que sofriam espoliado e
miserável, explorado e contido pela força.

— Reconheço que a omissão também é um erro.
Contudo, respeito à lei e não faria nada que a
transgredisse.

— Defender o povo sofrido não é uma causa justa?
As leis são feitas para defender os direitos de cada
um. A interpretação da lei deve sempre ser feita
com espírito público, visando o bem geral.

— Concordo. Mas isso exigiria luta. Se eu me
posicionasse, haveria muito derramamento de
sangue. É precisamente o que quero evitar. Se
depender de mim, ninguém dará sua vida para
mudar a situação.

— De certa maneira, seu modo de agir facilita as
coisas para o conde. Permite-lhe continuar a
explorar o povo e a dominá-lo pela força.

Sir John empalideceu:

— Sr. Jacques!

— Peço-lhe desculpas. Em minhas considerações
fui longe demais. Não quis ofendê-lo. Não tenho
nenhum direito em externar minha opinião. É que
sou um estudioso desses assuntos — justifiquei
sério — e não posso deixar de ver outros aspectos
da questão.

Sir John passou a mão pela testa pensativo, depois
disse:

— O senhor foi rigoroso em sua análise. Não tinha
ainda pensado nesse lado da questão.

— Mudemos de assunto — disse eu
delicadamente. — Receio ofendê-lo.

Ele abanou a cabeça.

— Não. Sua observação foi inesperada, mas
gostaria de falar mais, sua opinião não me ofende.
Continue por favor. Por que me responsabiliza
também pelo atual estado de coisas? Tenho


procurado viver sem me envolver com política
porque não tenho esse direito.

— Mas reconhece que tudo está errado e há anos
que seu povo sofre as conseqüências de um mau
governo.

— É verdade. Não depende de mim.

— O que pergunto é: as coisas continuariam assim
se alguém se opusesse? Se alguém que tem direito
e pode oferecer vida melhor procurasse colocar-se
junto com o povo para ajudá-lo a reagir?

Sir John meneou a cabeça.

— O senhor ignora o que se passa. Uma atitude
dessas provocaria uma guerra de conseqüências
imprevisíveis. Não. Não quero fazer isso. Não quero
recorrer à intriga, ao assassínio, ao golpe. Vê, Sr.
Jacques, que é muito difícil fazer alguma coisa. Sem
falar que, se eu mover um dedo, por certo os
homens de Anthony cairão sobre William ou sobre
mim. Não teríamos nenhuma chance. Não sou
covarde. Mas não sou idiota a ponto de expor
nossas vidas inutilmente. Enquanto estivermos
vivos, representamos uma pedra no sapato de
Charles.

Suspirei preocupado. Estava difícil encontrar
solução. Senti-me desanimado.

— É triste uma situação dessas. Lamento muito.

— Sensibiliza-me vê-lo tão interessado, Sr.
Jacques. Mas, como vê, não é fácil tentar alguma
coisa.

Senti-me triste, como se estivesse esmurrando
um muro de aço sem a mais leve chance de
derrubá-lo. Tinha dois dias para qualquer tentativa
e percebia desesperado que não havia nada a fazer.

Eu não era homem de guerra. Jamais usara
arma. Acreditava sempre na força do direito e da
lei. Os homens de Sir Anthony mais pareciam


soldados da Idade Média, para quem a vida humana
nada valia, estavam adestrados e armados até os
dentes.

Eu não podia considerar-me vencido, estava
desanimado. Precisava pelo menos ver Anne mais
uma vez antes de partir. Mas como? Não podia
confiar em ninguém e não dispunha de pessoa de
confiança.

Naquela tarde, recebemos a visita do capitão
dos homens de Sir Anthony. Apresentou-se a Sir
John inesperadamente. Foi recebido educadamente
e tomou chá conosco no salão.

Sir John apresentou-me a ele, que me fixou com
olhos penetrantes, perguntando-me sério.

— Por que um diplomata francês teria curiosidade
de vir a Merionthshire?

Fixando-o também com serenidade, respondi
educado:

— Estou fazendo estudos sobre o País de Gales.
Interessa-me muito a cultura nas diferentes regiões
da Inglaterra.

— O Sr. Jacques partirá amanhã de volta a
Londres, onde trabalha.

— Ah! — fez ele sério. — O senhor parte amanhã!

— Sim.

— E o que estudou aqui?

— Não deu para estudar muito, mas adquiri livros
e gravuras, como tenho feito em outras localidades.
Pretendo escrever um livro histórico.

— Onde por certo mencionará o conde de
Loucester e sua família.

— Claro. De acordo com os livros que adquiri aqui.

O capitão despediu-se e Sir John, depois que ele se
foi, olhou-me desolado.

— Como vê, sou vigiado constantemente. Sua
presença aqui provocou essa "visita".


— Espero não lhe ter causado nenhum problema.

— Não causou. Nada temos a esconder.

— Ainda bem — respondi, sentindo um arrepio
pelo corpo.

Comecei a entender que Anne tinha razão.
Nada restava a fazer por agora senão aceitar a
separação.

Com o coração partido, no dia seguinte
preparei-me para deixar Dolgellau. Despedi-me de
Sir John, agradecendo-lhe a hospitalidade, e voltei a
Londres. Tinha perdido a primeira batalha, mas não
a esperança.

Alguma coisa teria que acontecer para que
pudéssemos realizar nossos sonhos de felicidade e
de amor.

Entretanto, nada aconteceu. Os dias foram
passando e eu, desesperançado, resolvi regressar a
Paris. De nada me adiantava estar em Londres,
onde não obtinha nenhuma notícia. Em Paris, o Sr.
Leterre sempre teria alguma informação. Depois, se
Anne voltasse a Bradenburg, eu não queria perder
essa chance. Era a única saída que me restava para
vê-la.

Era muito pouco. Porém, no desespero em que
me encontrava, essa idéia passou a alimentar-me.
Recordava os momentos deliciosos que havíamos
desfrutado juntos e as saudades doíam ainda mais.

Pedi exoneração do cargo e voltei a Paris. Fui ver
Lenice e desabafei contando-lhe todo meu
sofrimento. Em seus olhos brilhou uma lágrima
quando disse:

— Nem sempre a vida nos dá o que pedimos.
Deve ter as suas razões. Esquecer é difícil. Anne é
um espírito nobre e forte. Contudo, você pode
compreender a situação e tentar fazer o melhor.


— Como? Sem Anne a vida parece-me descolorida
e sem graça. Não sei o que fazer. Não há nada que
me motive.

Lenice tomou minha mão, apertando-a com força.

— O melhor será encarar com dignidade a
situação, que não depende de você. E fazer o que
puder para ocupar suas horas no trabalho útil e no
progresso do seu espírito.

— Sem Anne, não posso.

— Pode, sim. Você não é uma criança caprichosa
que se rebela diante da primeira negativa. É antes
de mais nada um espírito eterno, reencarnado na
Terra para desenvolver suas aptidões e harmonizar-
se com a obra de Deus.

Olhei-a admirado. Ela prosseguiu:

— Por que se rebela? Se a vida ainda não lhe
concedeu o que deseja, é porque ainda não é hora.
Muitas vezes precisamos aprender a esperar.

— Você acha que podemos vencer?

— Acho. Se o amor que sentem for sincero e
souberem esperar, tudo dará certo.

Respirei esperançoso.

— A situação está difícil. Não vejo solução por
agora.

— Esqueça o tempo. Quando falo em futuro, não
menciono quando. Porém, o espírito é eterno. A
vida continua além da Terra e da morte.
Continuamos amando e progredindo sempre. Por
agora, Anne encontra-se presa a compromissos
sérios e inadiáveis. Ela sabe disso e deseja honrá-
los até o fim. Quando ela conseguir resolvê-los, por
certo a vida a libertará. Então, se seu amor tiver
sido bastante forte, poderão ser felizes juntos.

Apesar de minha impaciência desejar já a
solução dos nossos problemas, as palavras de
Lenice calavam fundo em meu coração, fazendo-me


enorme bem. Sua certeza, ainda que distante,
dava-me alento e esperança.

— Por que não pode ser agora? — inquiri teimoso.
— Por que, se há Sir John, que seria muito melhor
para governar o povo do que Sir Charles?

Lenice olhou-me séria.

— O melhor para o povo é sempre aquele que
está. Duvida do poder de Deus? Acredita que
alguém esteja no comando sem que a vontade de
Deus consinta?

— Ele é cruel e déspota. Como aceitar que Deus o
tenha colocado ali?

— Ele está ali com a permissão de Deus. Nasceu
para ser o conde de Loucester. Se ainda permanece,
é porque sua presença é necessária.

— Não posso crer. Ele não faz seu povo feliz.

— Não podemos julgar ninguém. O que eu sei é
que não cai uma folha da árvore sem que Deus o
permita. Sir Charles deve ter com esses homens
que lidera sérios compromissos de vidas passadas,
que ainda não conseguiu saldar.

— Como, se ele os domina e os reduz à miséria?

— Pode, em vidas passadas, tê-los conduzido aos
excessos que agora drasticamente tenta modificar.
A chefia de um grupo, a liderança, tem o seu preço.
Muitas vezes esses líderes, tendo a eles unidos seus
súditos, voltam à Terra várias vezes, na tentativa
de conduzi-los da melhor maneira. São espíritos
ainda inseguros que comodamente se agarram ao
chefe e o seguem indefinidamente até que
aprendam a escolher o seu próprio caminho.
Enquanto isso se pendura nele, sofrendo com isso
suas experiências. Este por sua vez, que começara
pela ânsia de poder e orgulho, vai percebendo sua
responsabilidade e aos poucos procura ajudar seus
tutelados na senda do progresso e do bem.


— Sua teoria é inusitada. Estou admirado. Como
pode Sir Charles ser um bem para o seu povo? Há
miséria, opressão, sofrimento.

— E difícil dizer, mas, por certo, as leis de Deus
são justas e jamais se enganam. Se ele detém o
poder, é porque Deus o permite. Caso contrário,
fácil seria tirá-lo do mundo dos vivos. A morte é um
sopro divino que ninguém pode impedir. E com ela
sempre vem a mudança.

— Não consigo aceitar.

Lenice, olhos perdidos na distância, voz
emocionada, tornou:

— Suponha que, em vida passada, Sir Charles
tenha sido um pirata, ou um guerreiro, que tenha
com seus homens assaltado, roubado, matado,
afundado na embriaguez e nas disputas vis; tenha
mergulhado nos vícios e na ambição; tenha enfim
empurrado seu grupo para a desordem e os desvios
morais e com isso tenha passado por este mundo
como uma peste dolorosa. Ao chegar do outro lado
da vida, depois da morte, tenha percebido os erros
cometidos e, diante do sofrimento de sua gente,
sentindo-se responsável, tenha suplicado a chance
de voltar para uma nova vida na Terra, desejoso de
refazer seus caminhos e ajudar os seus. E tenha
conseguido. Escolheu sua posição de comando e
com medo das passadas fraquezas traz agora seus
homens, os mesmos espíritos de antes, presos à
pobreza e à carência, para que aprendam a
valorizar a família, o lar, desenvolver sentimentos
bons e novos valores.

Eu estava boquiaberto. Ela continuou:

— Claro que ele ainda é o mesmo de antes,
apesar de mais experiente e dos propósitos novos.
Poderia ser melhor para eles do que tem sido, mas


quem nos garante que aquele povo não esteja
aprendendo com ele sua melhor lição?

Eu não soube o que dizer. Olhei para Lenice com
muito respeito.

— E Anne — indaguei sério —, por que está ali?

— As mulheres são muitas vezes inspiradoras dos
atos dos homens. Por certo, se está presa a esse
compromisso, é porque participou do grupo no
passado.

— O que se pode fazer para ajudar?

— Trabalhar no bem de todos é o melhor remédio.
Além de nos granjear progresso e experiência,
colocam muitos amigos em nosso favor. Uma coisa
é certa: quando o compromisso espiritual acaba, as
ligações se dissolvem e a liberdade vem
naturalmente.

— Acredita nisso?

— Tenho certeza.

— Mas quando?

— Só Deus sabe.

— O que fazer durante esse tempo? Como
esperar? Anseio por Anne, agora que ela vai ser
mãe. Um filho é tudo quanto desejo.

Lenice olhou-me séria.

— Tem Julien.

— Ele não é meu filho.

— É o filho que Deus colocou em seus braços.
Ama-o muito.

— Eu também o quero como a um filho. Sabe que
farei por ele o que puder.

Lenice sorriu.

— Eu sei. Encontrei Elisa — disse ela devagar.

Olhei-a interdito. Ela prosseguiu:

— Está triste e acabada. Muito diferente do que
era. Perguntou por você e mostrou-se arrependida.

Tive um assomo de revolta.


— Elisa para mim acabou. Não acredito em suas
mentiras. Não quero mais vê-la.

— Talvez ela precise de você. Pareceu-me doente.

— Há de arranjar-se bem sem mim — respondi
convicto.

— Pelo menos você poderia visitá-la.

Olhei-a admirado.

— Depois de tudo, ainda intercede por ela? Você
foi tão injuriada quanto eu. Afinal, ela amava Jean.

Lenice não se perturbou.

— Quem somos nós para julgar os sentimentos
alheios? O passado está morto, e hoje Jean tem se
revelado bom companheiro. Amamo-nos e vivemos
felizes. Elisa tem sido infeliz e não soube conduzir-
se na vida. Hoje, arrepende-se. Deve ter
compreendido muitas coisas. Acha que não merece
perdão? Você acredita que sejamos tão fortes que
não possamos também cometer erros e vir a
precisar de perdão tanto quanto ela? Jacques, o
orgulho é mal conselheiro.

— Ela me enganou, feriu meus sentimentos. Nem
sequer teve vergonha de impingir-me o filho de
outro homem.

— Ela estava sofrendo e quis defender-se.

— Você a defende?

— Não. Mas reconheço os quantos são fracos
quando as paixões nos dominam.

— Mudemos de assunto. Não gosto de falar sobre
isso.

— Você considera Anne culpada por impingir seu
filho como de Sir Anthony? Como gostaria que ele a
tratasse se viesse a conhecer a verdade?

Senti um baque no coração. Na verdade, eu
estava fazendo a outro homem o mesmo que
haviam feito a mim. Senti-me inquieto,
desassossegado.


Se Sir Anthony viesse, a saber, por certo a
mataria. Ou não? Seria para ele o herdeiro mais
importante do que a honra e o amor de Anne?

Meu coração apertou-se e não pude responder
no mesmo instante. Depois de alguns minutos,
tornei com voz fraca:

— Você coloca Elisa e Anne no mesmo plano.
Contudo, Anne tem um causa nobre a defender. Por
amor ao seu povo, leva avante essa situação.

— Quando uma pessoa envolve-se em uma
situação dessas, encontra sempre justificativas para
seus atos. Ambas tinham motivos, cada qual à sua
maneira, mas, para elas, esses motivos foram fortes
o bastante para justificar suas atitudes. Quem agiu
certo ou errado, quem teve maior dose de razão, só
Deus pode avaliar. Não seremos nós, pobres
pessoas falíveis e orgulhosas, que teremos
condições para julgar.

Suspirei fundo. Eu não tinha ainda pensado
dessa forma. Não justificava Elisa, porém começava
já a compreender como podemos nos envolver em
situações vexatórias e adentrarmos pela mentira e
pelo engano.

Apesar de tudo, eu não estava arrependido do
meu relacionamento com Anne. Minha consciência
não me acusava de nada. Quando eu a amei, não o
fizera para enganar seu marido ou conspurcar-lhe a
honra. Dera o melhor de mim. Tinha acontecido. Ela
também o fizera por amor.

Baixei a cabeça meditando calado. E Elisa?
Quando se entregara a Jean, nem sequer mantinha
qualquer compromisso comigo. Certo que também o
fizera por amor. Só que Jean não a amava. Fora
apenas um capricho. Pensei no que eu sofreria se
Anne também não me amasse.


Pela primeira vez pensei no sofrimento de Elisa.
Considerei com voz triste:

— Elisa deve ter sofrido, reconheço.

Lenice colocou a sua mão sobre a minha,
apertando-a carinhosamente.

— Também acho. Você não a amava. Seu orgulho
está ferido.

Porém, ainda que não seja mais possível vida em
comum entre os dois, pelo menos você pode
perdoar e manter com ela um relacionamento
amistoso.

— Talvez — considerei mais calmo. — Você que
conhece tantos mistérios da vida, ore por mim.
Sinto-me muito triste e sem fé.

— Não se deixe envolver pela desilusão. O orgulho
é mal conselheiro. A vida sempre sabe o que é
melhor para nós. Por isso, aceita sem queixa os
fatos que você não pode mudar. Procure refazer sua
vida. Sendo útil ao seu semelhante. Ampare Elisa,
seja um bom pai para Julien, que o ama muito e
não sabe a verdade. Faça todo o bem que possa e
espere, porque a melhor forma de receber é dar, é
plantar o bem para um dia colher a felicidade.

Lenice levantou-se e colocou a mão sobre minha
cabeça.

— Vamos orar — disse.

E enquanto ela orava, senti forte emoção
banhar-me o espírito. Não pude reprimir o pranto e
chorei qual menino angustiado, sentindo naquele
instante grande alívio no coração.











CAPÍTULO VIII










Em fins de setembro, meu filho nasceu.

Sir John, com quem eu mantinha espaçada
correspondência, participou-me a notícia e, apesar
de perder o direito à sucessão do conde, parecia
satisfeito com o evento. Admirei seu caráter íntegro,
seu amor pelo povo.

Ele apreciava Anne e confiava que ela educaria
o filho de forma a tornar-se um benfeitor daquela
gente. Estava esperançoso e sereno.

Meu primeiro impulso foi de correr para
Dolgellau, contudo era impossível. Não podia pôr
em risco a segurança daqueles a quem mais amava
no mundo. Pedi a Sir John que me enviasse todas
as publicações a respeito para minhas pesquisas e
esperei.

Foi com o coração aos saltos que recebi, dois
meses depois, uma gravura com a família reunida.
Sir Charles, Sir Anthony, Anne tendo ao colo o
bebê, todos em traje de gala.

Com mãos trêmulas, segurei a gravura
tentando perceber os traços do menino, mas não
consegui.

Meu coração batia descompassado de emoção e
naquele momento agradeci a Deus o milagre da
vida que traçara um elo de união entre mim e Anne.
Um dia nosso amor nos uniria de novo. Porém,
quando?

A partir desse dia, começou para mim uma vida
em que eu procurava afastar a melancolia.

Mergulhei no trabalho, dedicando-me
novamente à magistratura e desligando-me da
diplomacia.


Apesar de desejar, não estava interessado em
voltar a Dolgellau. Sabia que lá não teria nenhuma
possibilidade de acercar-me de Anne e de
Christopher. Esperava ansioso que eles fossem a
Bradenburg para ir-lhes ao encontro.

Era essa esperança que me dava alento para
viver. Porém, naquele ano Anne não viajou, nem no
ano seguinte.

Mergulhado no trabalho, meus momentos de
alegria resumiam-se às visitas a Lenice. O
nascimento de sua filha Mirelle encheu meu peito de
emoção. Um nascimento é sempre uma luz em
nossas vidas. Tomando-a nos braços, vendo-lhe o
rostinho rosado e a pele macia, eu pensava em meu
filho, a quem não me fora lícito abraçar.

Era lá, no amor de Lenice e Mirelle, no
aconchego daquele lar, que eu encontrava as mais
puras alegrias e conforto. Até Jean, por quem eu
não sentia afinidade, recebia-me com atenção e aos
poucos se desenvolveu entre nós sincera amizade.
Apesar disso, jamais tínhamos conversado sobre
Julien e eu às vezes pensava se ele sentia por ele
algum afeto especial.

Quando o via, tratava-o com afeto e atenção
como um tio, nada, além disso. Eu, às vezes,
vendo-os juntos, sentia—me um pouco angustiado.
A semelhança física entre eles recordava-me a
traição de Elisa, e eu tinha ciúmes do afeto de
Julien.

Ele, porém, demonstrava nitidamente sua
afeição por mim, embora fosse amigo e carinhoso
para com Jean.

Foi Lenice que uma tarde, quando estávamos
sozinhos em sua sala, ventilou o assunto.

— Você sente ciúmes de Jean com Julien — disse
ela.


Senti um abalo no coração.

— Um pouco — confessei. — Mas é que eles têm a
mesma cor de cabelos, o mesmo sorriso, até o
mesmo jeito de andar. A cada dia mais essa
semelhança aparece.

— É natural — volveu ela calma. — Ele fisicamente
é seu pai.

— O pai de Julien sou eu! — retruquei irritado.

— Eu disse fisicamente apenas. É claro que ele o
ama muito mais do que a Jean. Julien o adora.

Senti-me mais calmo.

— É uma situação delicada a sua. Alegra-me
perceber que Julien é seu filho de coração. Ama-o
sinceramente.

— É verdade. Ele não tem culpa dos problemas
dos pais. Quando vejo seus olhos ansiosos e sinto
seus braços ao redor do meu pescoço, esqueço tudo
o mais.

Lenice sorriu.

— Está claro que você tem com Julien forte
ligação espiritual de vidas passadas. É provável que
já tenham sido ligados em outra encarnação.

— Você tem mencionado isso. Mas parece-me
muito irreal.

— Sua ligação com Julien?

— Não. A reencarnação. Gostaria de entender,
mas parece-me difícil aceitar essa hipótese. Se isso
fosse verdade, no fundo eu deveria lembrar-me de
alguma coisa.

— Por quê? Somos pródigos em esquecer. Nem
sequer nos recordamos de muitos fatos vividos na
vida atual. Como, condicionados na faixa relativa da
Terra, poderíamos ter essa consciência prodigiosa?

— Seria bom, para sabermos melhor agir na
escolha dos nossos caminhos.


— Engano seu. A vida só nos dá o que é melhor e
mais útil à nossa fase de experiência. Conhecer
nossas vidas passadas significaria carregar o peso
dos enganos e dos erros que cometemos pela vida
afora. Um ressentimento, uma falta, uma culpa,
estando muito viva dentro de nós e em nossas
lembranças, impediria nossa ação no
desenvolvimento das nossas virtudes. Começar de
novo, passar temporariamente uma esponja nos
problemas passados, aviva nosso otimismo e abre
um campo enorme para novas experiências. Há
momentos, durante nossa vida, que gostaríamos de
poder fazer isso. Esquecer, passar uma esponja em
tudo e recomeçar.

Fundo suspiro escapou-se-me do peito.

— É verdade. Como seria bom se eu pudesse
esquecer tudo e começar de novo, qual criança
ingênua e inocente. Ser como Mirelle ou
Christopher. Entrar pela vida nascendo de novo!
Começo a compreender como isso é bom. Se eu
pudesse...

— Nós já fizemos isso. O livro das nossas vidas
não começou agora. Estamos em novo capítulo e,
embora tenhamos à nossa frente páginas em
branco para continuarmos a escrevê-lo, os capítulos
anteriores estão ligados a eles. Mesmo que não nos
recordemos de seus detalhes, sentimos dentro de
nós as emoções e os reflexos da nossa experiência.

— Começo a pensar que a vida seja mais
grandiosa e bela do que nos parece à primeira vista.

Lenice pousou delicadamente sua mão sobre a
minha:

— Tem razão. A sabedoria divina se expressa em
todos os acontecimentos do cotidiano. E é nesse
livro que estou procurando aprender a ler. A cada


dia percebo deslumbrada novas facetas de beleza,
de grandeza e de amor!

Apanhei a mão de Lenice e apertei-a com força.

— Eu também gostaria de aprender. Apesar da
minha incredulidade e desilusão, quem sabe eu
possa descobrir a causa dos meus desenganos, das
minhas desilusões. Fui amado por muitas mulheres
e nessa ilusão escolhi para esposa uma que não me
amava. Quando consegui amar, fui correspondido,
mas o amor é impossível. Impingiram-me um filho
que não era meu, e meu filho muito amado passa
por filho de outro homem. Haverá uma causa para
tudo isto? Haverá mesmo um destino que comanda
nossas vidas e dispõe de nossos sentimentos?

— Claro que há. Em tudo quanto lhe aconteceu,
apesar de ter tido liberdade de escolha, você sente
uma força que independe da sua vontade,
transformando os acontecimentos, conduzindo seus
passos, muitas vezes para rumos que você não
esperava ou desejava. Isso o contraria. Você
gostaria que os fatos fossem de outra forma.
Contudo, pelo que tenho aprendido, esses fatos são
sábias respostas da vida aos seus atos. Ela sempre
nos dá o melhor porque tem condições de saber
tudo a nosso respeito e não se atem ao momento
presente, mas ao objetivo maior, que é o de
desenvolver nossas virtudes e qualidades,
transformando-nos em seres mais evoluídos e
fortes, mais felizes e conscientes, mais participantes
da obra divina.

Sacudi a cabeça admirado. Como a frustração, a
desilusão, o sofrimento poderiam fazer-me feliz?

— Não vejo felicidade na vida. Ao contrário.
Olhando ao redor de nós, só encontramos
sofrimento, ódio, mágoa, desilusão, pobreza, morte,
guerra, traição, hipocrisia. Acha que seja bom?


— Você acaba de enumerar muitas das nossas
fraquezas, provocadas pelo nosso orgulho. É ele
quem nos tem infelicitado muito. Esses problemas
representam ainda nossa falta de visão, de
conhecimento e excesso de ilusão. Nossos
sofrimentos advêm das nossas condições. Porém a
vida, que é sábia e generosa, mostra-nos sempre a
verdade, destrói nossos enganos, sensibiliza-nos o
espírito e faz mais. Assim como nos colocou na
Terra protegendo-nos com o esquecimento
temporário, tira-nos dela com a morte, liberta-nos
do cativeiro e permite que possamos renovar
atitudes, perceber os enganos e, revendo nossos
atos, amadurecer para continuar.

— O que me diz é surpreendente, tem lógica, mas
é doloroso aceitar.

— Engana-se. A aceitação dessa verdade nos
ajuda a compreender melhor a dor e os sofrimentos
e alivia nossa angústia, acenando-nos com um
futuro maior e mais amplo, mais radioso e
verdadeiro. Ao invés de acabar na morte,
recomeçamos numa vida maior. Ao invés da
pequenez dos nossos desejos humanos de alguns
anos na Terra, temos uma possibilidade incalculável
de progresso e felicidade.

— Sua conversa fez-me grande bem. Gostaria de
aprender mais.

— Faço meus estudos todas as semanas na
quinta-feira à noite, juntamente com Jean. Se você
quiser vir, poderemos aprender mais.

A partir desse dia passei a visitar Lenice todas
as semanas e com prazer estudávamos o Livro dos
Espíritos.

Momentos havia em que eu me sentia
deprimido, triste, porém aos poucos comecei a
perceber, através daquela filosofia, muitas coisas


que antes não via. E, muitas vezes no silêncio do
meu quarto solitário, eu revia meus atos passados,
meu orgulho que tinha forçado Lenice ao casamento
e me cegado a ponto de não ver o drama de Elisa e
acreditar em seu amor.

Compreendi que tudo quanto me acontecera
fora unicamente por minha invigilância e por minha
culpa. Minha animosidade contra Elisa foi
desaparecendo, e quando um dia Julien procurou-
me aflito para pedir ajuda, senti brotar a piedade no
coração.

Elisa estava doente. Os médicos não
conseguiam melhorar-lhe a saúde. Fui vê-la.
Fitando-lhe o rosto pálido e magro, o ar sofrido e
cansado, os últimos resquícios de rancor
desapareceram.

Seu rosto iluminou-se ao ver-me e ela tentou
ser alegre. Seus olhos ansiosos procuravam os
meus. Neles de quando em vez brilhavam reflexos
da chama de outros tempos.

Conversamos longamente.

Vendo-a feliz com minha visita, passei a ir vê-la
quase que diariamente. Interessei-me pelo seu
bem-estar. Julien, comovido, abraçava-me
esperançoso.

Elisa estava mudada. Não era mais a mulher
voluntariosa e exigente, nem tão interessada nas
futilidades da vida social. Sua precária saúde
impedia-a de sair e por isso seu gosto pela leitura
crescera. Muitas vezes a encontrei lendo os livros
espiritualistas de Lenice e satisfeito descobri que
minha irmã visitava-a amiúde e entre elas havia
uma amizade sincera, que eu jamais ousara
esperar.

Jean conservava-se arredio e não acompanhava
Lenice nessas visitas. Eu podia compreender que ele


se sentisse constrangido, mas ao mesmo tempo
admirava Lenice pelo seu alto grau de compreensão
e bondade.

Eu sabia que Elisa a tinha odiado fora preterida
e sabia que Jean se tinha casado por amor. Mas a
bondade e o respeito, o afeto e a sinceridade são
virtudes que sempre conseguem convencer e
modificar as pessoas.

Assim, Elisa, que nunca aceitara aquele
casamento, que invejava sua rival quando nos
separamos, encontrou em Lenice o apoio sincero, o
afeto de que precisava.

De surpreendida, passara à gratidão.

Quando adoeceu, vendo-lhe a dedicação e o
carinho, o interesse pelo seu bem-estar,
envergonhou-se de suas atitudes anteriores. Ela
havia amado Jean, tinha um filho dele, enganara
seu único irmão e tudo fizera para roubar-lhe o
amor de marido. Lenice deveria odiá-la. No entanto,
compreendia-a. Não a acusava nem exigia nada,
mas com simplicidade tocante e sincera reconhecia-
lhe o sofrimento e respeitava-lhe os sentimentos.

Foi com os olhos cheios de lágrimas que Elisa
contou-me tudo.

Houve um dia em que, inconformada com o
abandono em que eu a deixara e o malogro de suas
ilusões, recebera a visita de Lenice com irritação.

— Vim ver como você está. Tenho saudade de
Julien.

— Não creio. Você veio para ver o meu fracasso e
gozar a minha derrota — disse Elisa.

— Engana-se mais uma vez. E o orgulho que a
cega, impede-a de perceber a verdade. Por que se
atormenta assim?

— Não pode ser sincera. Depois de tudo!


— Pode pensar como quiser. Contudo eu vim
apenas para dizer-lhe que nada tenho contra você.
Todos nós nos enganamos muitas vezes e é assim
que aprendemos as lições da vida. Você amava
Jean.

Eu nem sequer o conhecia. Não me casei com ele
por amor. Você sabe bem. Assim como você quis
proteger o fruto de seu amor, eu quis ajudar a
família. Nós duas fomos fracas, não soubemos
resistir ao assédio do orgulho e das ilusões. Nós
duas erramos igualmente.

Ela olhou-a mais calma. Sua rival olhava-a com
olhos brilhantes de sinceridade. Sentiu a irritação
desaparecer.

— Eu estava cega — disse como para si mesma.

Lenice abanou a cabeça.

— Eu também. Com o tempo apaixonei-me por
Jean. Aconteceu. Soube que ele me amava e agora
estamos nos compreendendo. Poderia ter
acontecido o mesmo com você e Jacques.

Fundo suspiro escapou do peito de Elisa.

— Poderia. Eu também compreendi o quanto
Jacques é importante para mim. Porém ele não me
ama. Fui duas vezes rejeitada.

Lenice colocou a mão delicada sobre o braço de
Elisa.

— Não diga isso. Nunca é tarde para recomeçar.
Eu gostaria muito que as coisas se modificassem.

Elisa olhou-a admirada.

— Não me acusa? Apesar da minha conduta
leviana, não me acusa?

Lenice deu de ombros.

— Como poderia? Não sei nada sobre a sua dor,
seus sofrimentos, suas aspirações. Amo meu irmão
e gosto de Julien. Acredito que você tenha tido
ocasião de avaliar melhor seu sentimento. Sei que


você é uma mulher digna e acredito que, se houver
um recomeço entre ambos, as bases agora serão
mais verdadeiras. Tudo é possível, quem sabe?

Por um momento, nos olhos de Elisa luziu a
chama ardente de outros tempos.

Agarrou a mão de Lenice e disse comovida:

— É uma alma nobre e bondosa. Perdoa-me tê-la
agredido. Você não tem culpa do que me aconteceu.
Apesar do que lhe fiz, ainda encontra justificativas
aos meus desatinos.

— Nada tenho a perdoar, Elisa. Gostaria que
aceitasse minha amizade, deixando de lado os
problemas passados.

Elisa baixou a cabeça permanecendo alguns
segundos silenciosa. Depois disse:

— É muita generosidade sua. Porém não consigo
esquecer. Acuso-me todos os dias. Fui cega,
leviana, egoísta e indigna. Jacques jamais me
perdoará. E o pior é que agora percebi como ele é
bom, inteligente, afetuoso e o quanto poderiamos
ter sido felizes se eu não estivesse tão cega! Ser
abandonada quando se está no auge da paixão é
muito doloroso. Eu queria a todo custo obter o amor
de Jean e não percebi que ele nunca existiu. Corri
atrás de uma ilusão e deixei passar a minha
verdadeira felicidade. Estraguei a vida, Lenice,
agora é tarde. Só a mim devo culpar em tudo isso.
Feri a dignidade de Jacques e ele nunca me
perdoará.

— Calma, Elisa. Aguardemos a bênção do tempo.
Ele acalma os corações e ajuda a esquecer.

As duas conversaram durante horas, como
nunca acontecera antes.

Daquele dia em diante, Lenice passou a visitar
Elisa com regularidade, estabelecendo-se uma
amizade sincera entre ambas.


Elisa a cada dia sentia crescer mais sua
admiração por Lenice e sua maneira diferente de
ver a vida e as coisas. Foi quando Lenice começou a
falar-lhe sobre a imortalidade, as leis divinas que
regem o mundo e a reencarnação.

Emprestou-lhe livros, e quando voltei a visitar
Elisa, percebi o quanto ela tinha mudado. Todavia,
em meu coração só havia lugar para Anne. Com o
tempo, aos poucos, meu rancor por Elisa foi
desaparecendo.

Ela havia se tornado mais humana mais simples
e natural. Agora, eu conseguia compreender melhor
seu pensamento.

E havia Julien. Era de ver-se o brilho de seus
olhos quando eu comparecia à casa de Elisa com
guloseimas para o chá e lá permanecia durante
horas, conversando com ambos, mas
principalmente com Elisa, que recostada em uma
poltrona macia parecia ganhar nova vida em seu
rosto magro.

Eu sentia prazer nesses minutos. Estava
carente de afeto. Anne não aparecia e eu estava
muito só. As atividades sociais não preenchiam meu
espírito.

Elisa, agora, já conseguia encarar a vida de
forma mais ampla, mantendo conversação
interessante e agradável.

Eu sabia que Julien esperava nossa
reconciliação. Talvez Elisa também, contudo eu
amava Anne e não queria iludir Elisa com a
possibilidade de um amor inexistente.

Deixei tudo seguir seu rumo natural. Elisa,
apesar de desejar que eu voltasse, nunca tocou no
assunto. Foi Lenice quem indagou sobre meus
sentimentos. Fui sincero.


— Hoje, gosto de Elisa. Posso até compreender
seus erros passados e esquecer. Contudo, não a
amo. Não poderia iludi-la. Minha vida é Anne e meu
filho.

— Vai ficar o resto da sua vida sozinho? Ainda tem
esperança de que Anne possa ser sua?

— Não sei. Às vezes teimo em acreditar que um
dia ela virá para mim. Ao mesmo tempo, sinto que
isso jamais acontecerá. É um tormento em que eu
vou da esperança à depressão, da euforia ao
desânimo.

— A vida é abençoada chance de progresso e
muito preciosa para que você a desgaste dessa
forma.

— O que posso fazer?

— Muitas coisas. Enquanto espera por Anne, não
deve anular o que pode produzir de bom. A vida
tirou-lhe Anne por agora e coloca Elisa e Julien em
seu caminho. Não será com eles agora sua chance
maior? Não sabe as tramas que se escondem no
passado, mas pode perceber com clareza que Deus
tem colocado em seu caminho outras pessoas a
quem, por certo, você deve amor e carinho e o
amam muito. Não perca a oportunidade que tem
nas mãos. Faça o melhor que puder para dar-lhes
apoio e compreensão, amizade e proteção.

— Não fui eu quem provocou esta situação.

— Não estou tão segura. A vida jamais erra. Se ela
os uniu, teria boas razões. E não me recorde os
enganos de Elisa, porque desconhecemos nossos
próprios enganos em vidas passadas, que
justificaram nossas lutas de hoje.

— Acha que mereci o que aconteceu? — indaguei
um pouco agastado.

— Por certo. Por acaso duvida da justiça divina? Se
aconteceu, foi porque isso era necessário, para que


todos aprendêssemos lições de amadurecimento.
Seria injusto e cruel atirar toda a responsabilidade
sobre Elisa. Aceitemos isso, humildemente. Não
somos infalíveis.

Baixei a cabeça pensativo. Por que teria que ser
assim? Por que me apaixonara por Anne, cujo amor
era impossível? As indagações surgiam-me, sem
resposta. Lenice teria razão?

— Tenho feito o possível para demonstrar meu afeto
por Julien e Elisa. Mais do que isso não poderia
fazer sem recorrer à mentira e à ilusão.

— Sei — murmurou Lenice meigamente. —
Compreendo. Preocupa-me vê-lo tão só. Com eles,
poderia encontrar novos interesses, novas alegrias.

Abanei a cabeça convicto.

— Não acredito. Prefiro continuar como até aqui.
Vendo-os amiúde, porém preservando minha
liberdade. Nada faltará a Elisa, eu prometo. E Julien
será meu filho, como sempre.

— Elisa espera algo mais.

— Eu sei. Mas o que ela deseja eu não posso dar.

Lenice olhou-me séria.

— A doença de Elisa é grave. Talvez não tenha
muito tempo mais de vida. Quando ela se for, você
se sentirá reconfortado por tê-la assistido com
amor.

Senti um baque no coração. A morte sempre me
assustava.

— Ela está assim tão mal? Parece-me mais refeita,
mais disposta.

— Infelizmente, essa melhora é aparente. Tenho
conversado com seu médico e sei da gravidade do
seu estado.

— Irei vê-la diariamente. Procuraremos outros
recursos médicos. Elisa não vai morrer! Tão moça,
tão cheia de vida!


— Faça o que quiser, contudo a gravidade do seu
estado preocupa. Confio em seu coração. Sei que
fará tudo para ajudá-la.

Desde esse dia, passei a visitar Elisa todos os
dias, demorando tanto quanto podia a seu lado e
realmente pude perceber seu precário estado de
saúde.

Inconformado, busquei todos os recursos da
medicina, sem obter senão esporádicas melhoras de
pouca duração.

Vendo-lhe o rosto pálido, seus achaques, suas
dores, seu sofrimento, esqueci-me de tudo o mais,
para tentar aliviar seus padecimentos. Elisa
agarrou-se a mim como um náufrago à sua tábua
de salvação.

Seus olhos brilhavam ao ver-me. Por minha
causa, lutava desesperadamente para recuperar a
saúde. Minha dedicação acendera-lhe no coração a
certeza de que eu a amava, e seus olhos enchiam-
se de lágrimas quando me falava do seu verdadeiro
amor por mim. Reconhecia que sua louca paixão por
Jean tinha sido uma ilusão, uma doença, que lhe
arruinara a vida. Jamais sentira por alguém o que
sentia por mim.

Eu, comovido, ouvindo-a falar do seu amor, não
tinha coragem para desfazer seu engano, e, para
ser sincero, creio mesmo que na minha ânsia de vê-
la feliz talvez até o tenha estimulado.

Ser carinhoso com Elisa, agora que ela estava
tão debilitada, era-me fácil. Descobri que a queria
muito bem e desejava ardentemente que ela se
recuperasse.

Porém seu estado agravava-se dia a dia e
Julien desalentava-se, necessitando do meu apoio.
Foram dias difíceis, mas apesar disso nossa amizade
cresceu e nos unimos muito mais.


Eu não me sentia mais só, apesar de sentir
saudade de Anne e vontade de ver meu filho.

Foi em janeiro de 1904 que o estado de Elisa
agravou-se e ela não mais se levantou do leito. Eu
passava a seu lado todo o tempo disponível e Lenice
me secundava nessa triste tarefa.

Preocupado, pedi uma licença ao Tribunal, onde
exercia meu trabalho de juiz, para poder ficar com
Elisa todo o tempo.

Sabia que estava no fim. O médico me
prevenira de que teria pouco tempo mais.

O que eu sentia, não saberia explicar. Sabia
que não amava Elisa como esposa, no entanto, no
fundo do meu ser, havia um sentimento verdadeiro
por ela e uma dor muito grande pela fatalidade de
sua partida.

Foi esse sentimento que me fez permanecer ao
lado dela noite e dia. Mesmo quando Lenice ou
Julien me obrigavam ao descanso, eu me deitava na
cama que colocara no próprio quarto dela e ali
dormia algumas horas.

Quando ela sofria, eu lhe segurava a mão fria e
contraída e rezava para que a dor passasse. Foi
naqueles dias que laços muito profundos de
amizade estabeleceram-se entre nós dois.

E foi em meio a esse estado de coisas que o Sr.
Leterre visitou-me para dizer-me que Anne estaria
em Bradenburg dali a dois dias e a casa à minha
disposição.

Senti um aperto no coração. Depois de quatro
anos, eu tinha chance de rever Anne e conhecer
meu filho. Senti ímpetos de correr dali, em busca
dos braços de Anne, e do menino.

— Irei — disse ao Sr. Leterre, agradecendo a
bondade.


Pensei logo em arrumar a bagagem e correr
para lá. Porém, olhando o rosto encovado e sofrido
de Elisa, senti esmaecer meu entusiasmo. Claro que
iria, mas como dizer a Elisa? Ausentar-me durante
um mês era por certo não voltar a vê-la. Era deixá-
la só na hora extrema. Era abandonar Julien no
momento mais triste de sua vida.

Começou para mim um tormento difícil de
descrever. De um lado, Anne trazendo de volta
vida, amor, felicidade, enlevo. O encanto de meu
filho, com suas graças infantis. Do outro, a dor, o
sofrimento, a morte, a tristeza, a desolação. E
Julien, meu filho do coração, esperando meu apoio,
meu afeto, minha presença.

A vida de Elisa estava por pouco e nem o
médico poderia prever ao certo quando o desenlace
se daria.

Apesar disso, eu queria ir. Era a chance única
de rever Anne e eu a tinha esperado durante largo
tempo. Como resistir? Várias vezes aproximei-me
de Elisa para dizer-lhe que me ausentaria por
alguns dias, mas ela se agarrava às minhas mãos
com avidez, encontrava em mim tanto conforto,
minha presença ajudava-a tanto, dava-lhe tanto
alento, que eu não tinha coragem de afastar-me.

Havia uma semana que Anne encontrava-se em
Bradenburg e eu ainda lutava sem conseguir sair
dali e correr para minha amada.

Abri meu coração a Lenice e não me
envergonho de dizer que chorei. Eu estava
emocionalmente desgastado e descontrolado. Nunca
assistira um doente grave nem convivera com a
morte. Apesar de crer na sobrevivência, não
conseguia fugir ao terror de pensar que Elisa, moça
e tão bela, se transformaria em rígido cadáver,
candidato à decomposição.


Lenice acariciou-me os cabelos, dizendo-me com
carinho:

— Só você pode decidir. Acalme seu coração. Deus
cuida de todos nós e nos conduz ao melhor.
Confiemos.

— Eu quero ver Anne! Quero ver meu filho! Mas não
posso deixar Elisa agora. Se ela morrer e eu não
estiver aqui, jamais me perdoarei. Não posso
abandoná-la agora.

— Acalme-se. Você tem se dedicado muito a Elisa.
Tem feito o melhor. Não se deixe envolver pelo
desespero. Pense, reflita com calma. Encontrará a
melhor solução, tenho a certeza.

— Lenice, o que devo fazer?

— A decisão é sua. Confio que fará o melhor.
Entretanto, se decidir-se a ir, eu me comprometo a
ficar com Elisa, aconteça o que acontecer.

Beijei-lhe o rosto emotivo com carinho.

— Você é um anjo. Obrigado. Vou pensar.

Faltava-me coragem para deixar Elisa. Vendo-
lhe o rosto sofrido e angustiado, a figura
desesperada de Julien, cuja mão procurava a minha
nas horas de crise, eu não conseguia falar.

Houve um dia em que eu decidi. Iria apenas
para ver Anne e voltar em seguida. Demoraria dois
ou três dias. Pretextei chamado profissional
inadiável e, com o coração apertado, optei pela
viagem. Lenice encarregou-se de velar por eles e eu
finalmente parti.

Era uma noite fria, mas eu nem sequer sentia.
Meu coração estava cheio de contraditórios
sentimentos. Cheguei a Bradenburg no dia seguinte
cedo e com emoção abracei Frau Hilda, que,
delicada, explicou:

— Temos esperado pelo senhor todos os dias.

— Não pude vir antes. Caso de doença na família.


— Sinto muito. Aqui há de sentir-se melhor.

— Pena que não possa ficar muito. Obrigado por
tudo.

— Instalei-me no quarto onde sonhara voltar e meu
coração bateu forte. Anne estava tão perto! Como
vê-la sem despertar suspeitas?

Lembrei-me da janela, mas decidi-me a uma
visita formal. Mandei um cartão de cumprimentos e
esperei. Uma serva trouxe-me a resposta. Anne
esperava-me ao entardecer. Que esperasse na porta
de ligação com a outra ala da casa.

Almocei as deliciosas iguarias que Hilda
mandara servir e resolvi descansar um pouco. Mas,
estirado no leito, não consegui dormir. Mal podia
esperar.

A claridade ainda banhava a paisagem e eu me
sentei na sala tendo nas mãos um livro que não lia,
olhando a porta insistentemente. Até que por fim
ela se abriu. Levantei-me de um salto, atravessei-a.
Anne estava diante de mim. Seus olhos brilhavam
de emoção e eu me esqueci de tudo o mais.
Abracei-a com paixão, beijando-lhe os lábios
delicados com amor.

— Há dias eu o espero. Por que demorou tanto?

— Deus sabe quanto tenho desejado estar consigo.
Não pude vir depois explico por quê.

Eu não queria falar-lhe sobre Elisa naquele
momento. Temia que não me compreendesse.
Passados os primeiros arroubos, Anne tomou-me a
mão e disse com orgulho:

— Christopher dorme. Venha vê-lo.

Meu coração batia descompassado quando
entrei no quarto onde nosso filho dormia. Lágrimas
vieram-me aos olhos vendo seu rostinho redondo
tranqüilamente adormecido. Era um lindo menino.
Estava com pouco mais de três anos.


— Melhor que ele não o veja — disse ela séria. —
Gostaria que fosse diferente. Mas ele é muito vivo e
mencionaria sua presença, o que não seria
desejável.

Senti-me triste. Nem sequer podia brincar com
meu filho. Vendo que eu ia responder, Anne fez-me
sinal de silêncio e arrastou-me para o seu quarto,
onde fechou a porta à chave.

— Aqui estaremos protegidos.

— Não é justo, Anne — balbuciei triste.

— Não vamos voltar a essa discussão. Sabe o que
eu penso. Amo-o muito, mas só podemos nos ver
assim. Pensei que viesse logo.

Por que veio depois de tantos dias? Sabe que não
posso ficar nem mais um dia além do que foi
marcado.

— Tive problemas de doença na família. Não
poderei ficar até o fim de suas férias.

— E diz que me ama!

— Não falemos disso agora. Você sabe que a quero
muito.

Abracei-a com calor. Naqueles momentos me
esqueci de tudo e de todos.

Anne estava em meus braços e eu sentia um
misto de alegria e dor, de realização e de perda,
querendo esquecer que logo teríamos que nos
separar de novo.

Eu tinha planejado voltar no dia seguinte,
porém fui adiando. Passava com Anne todos os
momentos em que ela se livrava dos criados e
recolhia-se ao quarto, abrindo a porta de ligação
das duas alas da casa.

Eu queria despedir-me dela, dizer-lhe que
precisava regressar, porém estava como que
fascinado com sua presença. Tinha visto meu filho
passeando com a ama e, emocionado, encontrara


no seu rostinho corado traços da fisionomia querida
de papai. Eu estava dividido.

Às vezes sonhava com Julien me chamando a
dizer-me que Elisa morria e acordava angustiado
dizendo a mim mesmo que iria embora no dia
seguinte. Mas não ia. Preocupado, telefonei para a
casa de Lenice. Falei com Jean. Lenice estava com
Elisa. Ela estava muito mal. Talvez fosse o fim.

Fundo remorso me acometeu. Estava sendo
egoísta. Encontrei coragem para falar com Anne, a
quem contei toda a verdade. Ela me ouviu triste e
disse com seriedade:

— Compreendo. É por isso que eu o amo. Você é
um homem digno e forte. É nobre de sua parte esse
procedimento. Ficarei aqui mais uma semana.
Talvez ela não agüente esperar tanto tempo. Se
quiser ir, compreenderei.

Abracei-a com lágrimas nos olhos.

— Às vezes me revolto — disse emocionado. —
Esperei tanto tempo por esses momentos com você!
Por que teria que ser assim? Se eu ficar, e ela
morrer, não me perdoarei.

— Há deveres dolorosos, eu sei bem, mas cumpri-
los dignifica nosso espírito. Seja esta noite nossa
despedida. Quando eu puder, voltarei, então
haveremos de estar juntos mais tempo.

— Por que tem que ser assim? Por que não
largamos tudo e saímos pelo mundo com nosso filho
e nosso amor?

Ela pôs delicadamente a mão sobre meus lábios.

— Sabe que não teríamos paz. Nós nos amamos,
mas temos caminhos diferentes. Contentemo-nos
com aquilo que a vida pode nos dar. Estou disposta
a cumprir meu dever até o fim. Sei que me
compreende.


Beijei-lhe os cabelos com ardor. Era nossa
última noite juntos. No dia seguinte eu partiria para
ver Elisa e, por certo, lá me esperavam momentos
de tristeza e de desolação.

— Vamos esquecer tudo esta noite — murmurei ao
seu ouvido. — Seremos felizes pelo menos agora.

Ela assentiu. Não falamos mais no assunto.
Tínhamos pouco tempo, precisávamos aproveitar.
Aquelas horas que passamos juntos foram
realmente belos momentos de minha vida que
jamais hei de esquecer.

O amanhã chegou depressa e nos
conscientizamos da despedida. Foi com o coração
partido que deixei Bradenburg de volta à França.

Em meus braços sentia ainda o calor do corpo
de Anne e nos lábios o gosto doce de seus beijos.

Teria feito bem em voltar? Não teria sido
melhor esperar aquela semana que faltava e
usufruir da companhia de Anne? Elisa podia não
estar tão mal assim.

Contudo, quando horas mais tarde adentrei o
quarto de Elisa, percebi que ela não podia esperar.
Seu aspecto era mais triste e seu estado tinha se
agravado muito. Ouvindo-me a voz, Elisa abriu
lentamente os olhos e sorriu levemente:

— Eu sabia que viria — disse baixinho. — Eu não
poderia ir sem me despedir de você...

Tomei-lhe a mão fria e magra.

— Não diga isso. Vamos reagir. Você ficará boa.
Verá. Estou aqui para cuidar de você.

Cuide de Julien. Ele o ama muito. Peço que me
perdoe. Eu estava cega.

Coloquei os dedos levemente sobre seus lábios.

— Não fale mais nisso. Eu a quero muito. Lembre-se
disso sempre.


— Eu o amo — disse ela com voz fraca. — Agora sei
o quanto o amo. Pena. Gostaria de viver, de
reconquistar seu amor. Acho que conseguiria.

— Claro! Nunca resisti aos seus encantos — disse
comovido.

— Gostaria tanto de viver para estar com você!

— Viverá — menti com lágrimas nos olhos. —
Juntos voltaremos a viver!

— Verdade? — fez ela com voz fraca.

— Sim — disse com voz que procurei tornar firme.

Ela fechou os olhos e adormeceu um sono
tranqüilo, sua mão na minha. Lenice olhou-me com
olhos enevoados. Sem dizer palavra, beijou-me a
testa com carinho. Seu beijo disse mais do que
qualquer palavra.

Apesar de sua vontade de viver, Elisa morreu
suavemente dois dias depois. Com emoção beijei
sua testa sofrida e abracei Julien, que, assustado,
não sabia o que fazer. Era seu primeiro contato com
a morte. Acalmei-o. Falei-lhe da sobrevivência da
alma, da vida eterna, da reencarnação, das
verdades que Lenice tinha me ensinado a perceber.

Jean apareceu. Abraçou-me com seriedade dizendo-
me:

— Sinto muito. Arrependi-me de certos momentos
de meu passado. Porém, agora, só posso dizer-lhe
que gostaria muito que tudo tivesse sido diferente.

— Eu sei — respondi convicto. — Todos nos
enganamos. O passado está morto. E o presente fez
de seu casamento com Lenice um lar feliz. Por isso
eu o aprecio e respeito. Ela o ama muito. Sejam
felizes. Viva esse amor com toda sua força. Lenice
merece ser muito feliz.

— Somos felizes. Amo-a muito. O amor de Lenice é
um prêmio que nem sequer mereço. Espero que
você refaça sua vida, agora que Elisa se foi. É moço


e está livre. Pode encontrar alguém que abra as
portas do seu coração.

Fundo suspiro escapou-se-me do peito oprimido.

— Jamais poderei ser feliz. Mas agradeço seus
votos. Sei que são sinceros.

Lenice aproximou-se, tomou minha mão e segurou-
a com força. Enquanto Jean afastava-se, disse-me
amorosamente:

— Você está livre do seu compromisso na Terra.
Venceu sua batalha. Deu a Elisa o melhor de si
mesmo.

— De que adianta? — inquiri com amargura. —
Anne está perdida para mim.

Lenice alisou-me os cabelos com suavidade.

— Não se rebele. A vida se move constantemente e
a cada dia mais se aproxima da realização dos seus
sonhos.

— Por que diz isso? Sabe que nosso amor é
impossível.

— Por agora. Você cumpriu seu dever com Elisa e
acredito que o cumprirá com Julien. Anne está
consciente e determinada. Fará sua parte até o fim.

— Isso eu sei. É justamente o que nos separa.

— Engana-se. É justamente o que os unirá.
Cumprindo os compromissos morais, aceitando as
exigências da vida, fazendo o melhor e entregando
a Deus nossos atos é que nos libertamos para a
felicidade e a realização dos nossos elevados
desejos. Seu amor por Anne é sincero e
correspondido. Um dia, vencidas as etapas terrenas,
estarão unidos para sempre.

— Quando você fala assim, sinto renascer a
esperança.

— Ela o ama. Isso é o que importa. Diante desse
fato, e do seu amor, todas as coisas passarão. Pode
ter esperança. Quando for oportuno, a vida lhe dará


esse prêmio. O que são alguns anos de espera na
Terra diante desse fato?

Beijei Lenice na testa, agradecido. Respirei forte,
sentindo-me confortado.

— Tem razão. Esperarei por Anne o tempo que for.

— Com alegria, fazendo sua parte. Julien precisa do
seu convívio e da sua experiência. Ficou só no
mundo.

— Irá morar comigo. É meu filho e vou educá-lo,
torná-lo um homem de bem.

— Vai prepará-lo para enfrentar o mundo e suas
lutas, não se esqueça disto. Faça dele um espírito
forte, que sabe resolver seus próprios problemas e
encarar suas dificuldades. A vida não o poupará,
assim como não nos tem poupado a nós. O melhor
que pode fazer por ele é ajudá-lo a perceber sua
própria força e desenvolvê-la conscientemente.

— Sei o que quer dizer. Tem razão. Eu vivi esse
drama na carne. Quando papai morreu, eu era um
jovem imaturo, ambicioso e egoísta. Fiz muitas
asneiras, sofri muito. Ajudarei Julien a ver as coisas.
Mas as decisões, ele as tomará. Escolherá seu
próprio caminho.

— Muito bem, Jacques.

No enterro de Elisa, não me envergonho de
dizer que chorei. Era parte de minha vida que
enterrava com ela. Minha mocidade, grande parte
das minhas ilusões e muitas lembranças.

Confortamo-nos, eu e Julien. Levei-o para
minha casa no mesmo dia. Olhando seu rosto
magro e emocionado, vi em seus olhos um brilho
novo e percebi que ele também tinha amadurecido
crescido, e sua infância tinha também sido
enterrada com Elisa.

— Juntos, viveremos em paz — disse-lhe
conduzindo-o ao seu novo quarto. — De hoje em


diante sou para você o apoio maior. Conte sempre
comigo. Tenho certeza de que Elisa nos ajudará e
velará por nós.

Havia determinação e firmeza em minha voz e
Julien abraçou-me sério.

— Estou feliz por ser seu filho. Vou sentir saudades
dela, mas ainda tenho você e isto me conforta e
enche meu coração de gratidão.

Beijei-lhe a testa desejando-lhe uma boa noite.
Apesar das lutas e dos sofrimentos pelos quais
passara pela perda de Elisa, pelo amor impossível
de Anne, senti um profundo sentimento de paz
encher-me o coração.

Tinha feito o melhor, pensei satisfeito. Pela
primeira vez em minha vida, senti-me digno,
humano, sereno. E, nesse sentimento brando,
adormeci.









CAPÍTULO IX







Sentado em agradável poltrona, olhando o fogo
que crepitava na lareira, eu pensava em Anne. Fazia
três anos que tínhamos nos separado em
Bradenburg e desde então Anne não voltara lá. Por
quê?

A princípio, eu tinha esperado com ansiedade e
sentira funda decepção com sua ausência.

Porém Anne não fora a Bradenburg nos anos
seguintes e o Sr. Leterre apenas informava-me que
os motivos eram alheios à vontade dela.


Acreditei nos primeiros tempos, mas confesso
que houve momentos em que me senti esquecido e
relegado a segundo plano.

Sofri, pensando que talvez estivesse sendo
substituído no coração dela. Por diversas vezes,
senti vontade de voltar a Dolgellau. Sir John
escrevia-me de quando em vez, enviando-me
notícias da família e gravuras históricas em que
Christopher aparecia. Era um homem admirável,
que se sentia feliz em colocar toda a esperança do
bem-estar de seu povo nas mãos daquela criança.
Com apenas sete anos, Christopher já se revelava
sensível e digno. Eu, orgulhosamente, re-lia o
trecho de sua última carta:

"Ele tem a postura de um grande líder, mas
suas atitudes refletem principalmente dignidade e
entranhado amor ao seu povo e à sua terra. Tenho
a certeza de que será um grande chefe. Sei
reconhecer um espírito nobre, mesmo sendo ainda
criança."

Lágrimas vieram-me aos olhos. Christopher era
meu filho! Anne por certo o estaria educando
adequadamente. Ah, se eu pudesse! Se eu pudesse
ir até lá! Vê-lo, falar com ele! Mas era impossível.
Eu não tinha o direito de perturbá-lo em sua
missão. Eu era carta fora do baralho, não podia
optar.

Senti-me esquecido e rejeitado. Anne! Por que
não tinha mais voltado a Bradenburg? Notando
minha tristeza, Lenice preocupava-se.

— Jacques! Você ama Anne, porém nada pode fazer
por agora. Não depende de você. Esqueça esse
amor que tanto o faz sofrer.

É um homem moço, a solidão não é agradável.

Eu abanava a cabeça desalentado.

— Amo Anne. Nenhuma outra mulher me interessa.


— Há outras mulheres que poderiam ajudá-lo a
esquecer. Uma boa esposa que enchesse sua casa
de alegria e de amor.

— É impossível. Jamais me unirei a outra mulher.
Não a faria feliz.

Contudo, olhando as labaredas que lambiam o
ar estalando na lareira, sentia-me muito só. Funda
amargura abatia-se sobre mim. Meu antigo
entusiasmo de viver tinha desaparecido.

Senti a mão de Julien sobre a minha.

— Pai — disse carinhosamente —, você está triste
esta noite. Suspirei fundo.

— Sim. Estou. Minha tristeza não tem remédio.

— Se não tem remédio, o melhor será esquecê-la —
respondeu ele tentando sorrir.

Olhei-o sério. Preocupado com meu drama
íntimo, esquecera-me dele. Estava com dezesseis
anos e na idade dos entretenimentos. Eu tinha me
transformado em um homem amargo e triste. Não
era boa companhia para ele. Fiquei um pouco
picado pelo remorso.

— Não tenho sido bom companheiro, não é?

Ele sorriu.

— Tudo está bem comigo. O que me aborrece é sua
tristeza. Gostaria de vê-lo feliz. Minha presença não
consegue alegrá-lo.

Senti-me envergonhado. Estava sendo egoísta.

— Sinto-me feliz quando você está por perto.
Amanhã, vamos sair para passear. Haveremos de
divertir-nos bastante. Iremos ao Louvre e depois
almoçaremos em um restaurante. Faremos o que
nos der vontade. É domingo, tiraremos o dia só
para nós.

Julien sorriu de novo e seus olhos brilharam de
felicidade.


Saímos cedo, antegozando o prazer do passeio.
Julien sentia-se feliz em minha companhia e eu
procurava alegrá-lo, conversando animadamente.
Adentramos o Louvre com prazer. Estávamos
admirando uma pintura, quando Julien tornou
alegre:

— Madame Javert! Venha, papai, vamos
cumprimentá-la!

Arrastou-me pela mão e vi-me diante de uma
mulher jovem e agradável. Olhando seu rosto
expressivo, não lhe reconhecia traços de uma
beleza clássica. Porém seus olhos negros e
veludosos emprestavam-lhe à fisionomia um
magnetismo invulgar. Alta, porte elegante, vestia-se
com simplicidade e seus cabelos castanhos, presos
em birote na nuca, eram brilhantes e sedosos,
embora seu gracioso chapéu, com um véuzinho
delicado, o cobrisse quase totalmente.

— Que prazer, Madame Javert! Permita-me
apresentar meu pai. Ela levantou os olhos para
mim. Curvei-me atencioso.

— Jacques Latour.

— Pai, Madame Javert é minha professora de arte.

— Encantado, madame.

— Alegro-me de vê-lo aqui. As belezas da arte
desenvolvem e sensibilizam o espírito.

Quantos anos teria? Pensei curioso. Era jovem
e sua voz grave, muito agradável. Julien estava
alegre e interessado. Aquele encontro tinha sido
muito a seu gosto. Ele tinha se mostrado muito
dedicado à arte nos últimos meses. Teria a
professora a ver com isso?

— Agrada-me saber que Julien interessa-se pela
pintura.

— Claro. É um jovem sensível e inteligente.


— Madame Javert, poderia vir conosco? Gostaria
muito de ouvir sua opinião sobre os quadros —
pediu Julien.

Ela me olhou interdita.

— Será um prazer, senhora.

— Disponho de uma hora. Poderemos aproveitar o
tempo. Venha, Julien.

Com alegria ele a seguiu è eu os acompanhei
curioso. Levou-nos diante de uma tela de
Rembrandt e começou a falar-nos sobre ela,
mostrando-nos aspectos e nuances que eu nunca
tinha visto.

Circulara em museus, considerava-me
apreciador razoável das obras de arte, porém
Madame Javert fez-me ver aspectos de luz, cor,
arte, beleza inimaginados. Sua voz grave, diferente,
a emotividade de seu rosto expressivo fizeram-nos
esquecer de tudo e mergulhar em um mundo cheio
de encantamento e beleza.

A certa altura, ela disse:

— Meu Deus! Como é tarde! Falei demais.

— Absolutamente — disse eu encantado.

— Meu tempo se foi. Preciso ir.

— Madame Javert, aceitaria almoçar conosco? Dar-
nos-ia muito prazer.

— Obrigada, senhor. Não disponho de mais tempo.

— É pena — disse eu com sinceridade.

— Espero não tê-los cansado.

— Eu adorei — disse Julien satisfeito.

— Aprendi muito esta manhã... Pena que precise ir-
se. Ela sorriu.

— São muito amáveis. Minha filha precisa de mim.

— Quem sabe um outro dia... — ajuntei.

— Por certo. Adeus, Julien. Passe bem, Sr. Jacques.
Estendeu-me a mão, que eu delicadamente beijei.
Afastou-se.


Fiquei curioso.

— Muito boa esta professora de arte.

— Adoro-a — disse Julien convicto. — Suas aulas
são sempre muito agradáveis e ela me ensinou a
ver e a olhar para as coisas belas.

— Pena que não pudesse ficar para o almoço. A
família por certo a espera.

— Ela vive com a mãe, tem uma filha de três anos.

— E o marido?

— Não sei. Acho que morreu.

A notícia agradou-me. Madame Javert era
encantadora.

A partir daquele dia interessei-me pelas aulas
de arte de Julien e procurei encontrar-me com
Madame Javert. Ela me recebia com prazer, tendo
aceitado tomar chá conosco, para a alegria de
Julien. Com esses encontros minha vida melhorou.

Embora guardasse ainda momentos de infinita
tristeza e meu coração chamasse por Anne com
desespero, os momentos em companhia de Eliane,
como a chamava agora, eram agradáveis e
sinceros. Graças a eles, eu tinha voltado a
interessar-me pela vida no dia-a-dia, e tornara-me
otimista.

Madame Sorell, a mãe de Eliane, mulher fina e
delicada, recebera-nos com distinção e amizade e a
pequena Milena era encantadora. Dentro daquele lar
harmonioso, tanto eu quanto Julien nos sentíamos
aconchegados e felizes. Estar ali era preencher o
vazio de nossas vidas e esquecer a solidão. Aos
poucos fomos nos aproximando em agradável
convivência. Julien sentia-se feliz e eu me habituara
àquele convívio, estreitando os laços da nossa
amizade.

A suavidade, a inteligência, a delicadeza, a
doçura, a alegria de viver de Eliane faziam-me


muito bem. Voltei a interessar-me pelas coisas, pela
vida, e aos poucos comecei a ter esperança de
encontrar a felicidade de novo.

Não compreendia o que se passava comigo.
Quando estava com Eliane, esquecia-me de tudo,
da minha paixão por Anne, do meu filho distante, do
amor impossível. Porém, quando voltava para casa,
sentia-me solitário e os fantasmas do passado
reapareciam, povoando minha saudade.

Várias vezes tinha voltado à casa de minha
mãe, procurando reviver momentos de alegria
familiar, mas embora ela conservasse tudo como
dantes, estava solitária e triste, não era mais a
mesma, eu não era o mesmo e a situação
modificara-se. E eu voltava a Paris mais triste e
mais amargurado.

No lar de Eliane, eu havia reencontrado a
alegria de viver. Meu relacionamento com ela era de
amizade. Contudo, ela era jovem e bela. Possuía um
magnetismo impressionante. A seu lado, todos os
meus fantasmas desapareciam. Sua alegria
espontânea, seus olhos brilhantes e emotivos, seu
riso franco e sincero foram conquistando minha
admiração e aos poucos um lugar especial em meu
coração. Eu lutava com as emoções, porquanto
meu amor por Anne ainda continuava vivo dentro
de mim. No entanto, esse amor era impossível. Eu
deveria permanecer sozinho pelo resto da vida?
Eliane representava esquecimento, renovação,
amizade, esperança. Julien a queria com carinho e
respeito. Por que lutar contra esse sentimento? Por
que permanecer carregando o peso de um amor
impossível? Aos poucos minha resistência foi
desaparecendo e com naturalidade tomei sua mão,
beijei-lhe os lábios e retribuí o afeto que descobri
em seus olhos negros e brilhantes.


O mundo se coloriu de novo de beleza e alegria.
Eu voltara a viver e talvez houvesse reencontrado a
alegria de amar. Ás vezes, recordava o rosto
mimoso de Anne e sentia um aperto no coração.
Mas ela estava perdida para mim.

Em uma bela manhã de primavera, casamo-nos
em cerimônia simples, na sala de estar de Madame
Sorell, com a presença de Lenice, Jean e Mirelle.
Julien estava feliz. Eu também. Encontrara uma
mulher inteligente, bela, que me amava e com
quem eu seria feliz. Daquele dia em diante, lutaria
para esquecer Anne e Christopher e dedicar-me-ia
inteiramente ao meu novo lar.

Olhando o brilho emocionado dos olhos de
Eliane, seu rosto expressivo, e apertando seu corpo
jovem de encontro ao meu, tinha a certeza de
conseguir.

Assim começou para mim uma vida nova.

Sentado comodamente em agradável poltrona
frente à lareira, eu me deixara ficar
preguiçosamente, gozando o momento de repouso e
de paz. Era domingo e a tarde ia avançada. Apesar
do frio que fazia lá fora, Julien saíra com amigos e
Eliane fora acompanhar Milena ao quarto para o
descanso da tarde.

Olhando as chamas que caprichosamente
lambiam o ar, senti-me tranqüilo e feliz. Havia
quase dois anos que tinha casado. Minha vida com
Eliane decorria agradável e serena. Ela era
encantadora. Atenciosa, inteligente e culta, porém
simples e prática de atitudes, prudente e segura,
sempre encontrava soluções boas para os
problemas naturais do dia-a-dia.

Seu magnetismo pessoal era envolvente e eu
me admirava de como tanto Julien quanto Milena a
obedeciam prontamente. Julien estava em uma fase


da juventude um tanto controvertida, e às vezes eu
não conseguia fazê-lo compreender e aceitar certas
coisas. Eliane, porém intervinha e ele a acatava com
prazer.

Éramos felizes. Morávamos em minha bela casa
em Paris e meus negócios iam muito bem.
Momentos havia em que me recordava de Anne,
contudo estava conformado com a separação e ela
não me doía como antes.

Espreguicei-me gostosamente e num gesto
rápido apanhei o jornal na mesinha ao lado.
Comecei a lê-lo. Entretido, virei suas páginas e de
repente o sangue fugiu-me do rosto assustado.
"Rebelião e revolta no País de Gales." "Sangue em
Dolgellau." "O povo invadiu o castelo de Loucester e
seus membros encontram-se desaparecidos. O
príncipe de Gales mandou tropas para restabelecer
a ordem."

Senti um baque no coração. O que teria
acontecido? A notícia era lacônica e não me
satisfazia. Senti-me inquieto, ansioso. Precisava
descobrir a verdade. Como? Era domingo e o
consulado estava fechado.

Peguei o telefone e liguei para o Sr. Leterre. Talvez
soubesse alguma coisa.

— Estou apreensivo, Jacques — disse-me ele. — As
últimas notícias não eram boas. Ainda não sei bem
como aconteceu. Sei apenas o que diz o jornal.
Porém tenho um informante que está investigando.
Dentro em breve terei pormenores.

— Acha que aconteceu o pior?

— Não sei... Penso que estão vivos. Se tivessem
morrido, nós saberíamos.

Suspirei conformado.

— Gostaria de ter notícias logo que souber de
alguma coisa.


— Compreendo. Assim que obtiver informe,
avisarei.

— Obrigado, Sr. Leterre.

Naquela tarde, nem o carinho atencioso de
Eliane nem a tagarelice de Milena conseguiram
desviar o fio das preocupações.

Não contei nada a Eliane, que não sabia a que
atribuir minha súbita mudança, meu ar sério e
minha introspecção.

Somente dois dias depois foi que o Sr. Leterre
telefonou-me, pedindo-me para ir vê-lo. Com o
coração descompassado, fui ao seu encontro.

Sentados em seu gabinete, esperei que ele falasse.

— Tive notícias — disse sério. — Eles estão bem. Sir
Anthony foi ferido, mas todos estão a salvo no
interior da Inglaterra, procurando deixar o país.

— Naturalmente, o senhor vai ajudá-los.

— Claro. Estou fazendo o possível para isso. Anne
e Christopher estão bem.

Suspirei aliviado.

— Como aconteceu? Ultimamente tenho procurado
esquecer.

O Sr. Leterre abanou a cabeça concordando.

— É justo. Tudo começou com a morte de Sir
Charles. O povo estava sofrido, com fome e
revoltado com o governo dele. Sua morte
representava mudança, oportunidade de melhores
dias. Anne era amada por eles e Christopher
representava novas esperanças. Com a morte de Sir
Charles, eles sabiam que Christopher, herdeiro
natural do condado, ainda uma criança, não tinha
condições de dirigir tudo, desejavam que Sir John,
homem estimado e de nobres sentimentos,
assumisse o cargo, ajudando Christopher,
educando-o para oportunamente ocupar o lugar do
avô. Contudo, Sir Anthony não concordou. Ignorou


a vontade do povo e tomou posse de tudo,
revelando-se mais cruel, ambicioso e duro do que
Sir Charles. Inconformados, os súditos foram
revoltando-se e uma parcela da força de defesa de
Dolgellau sublevou-se, juntando-se ao povo. Então
foi o que se viu. Anthony teve a idéia infeliz de
mandar matar Sir John e aí o clamor e a revolta
eclodiram. Anos de sofrimento e repressão, mágoas
e desespero transformaram aqueles homens
pacatos em soldados cruéis. Vendo sua guarda
desmantelada, Anthony conseguiu fugir com Anne e
Christopher e, agora, disfarçados em camponeses,
procuram deixar a Bretanha. O príncipe de Gales
condenou a atitude de Anthony e restabeleceu a
ordem colocando o filho de Sir John como
mandatário do condado.

— Quer dizer que Anne perdeu tudo?

— Por agora, sim. O povo amava Sir John. Era um
homem sério e ponderado.

— Eu o conheci. Apreciava-o muito. Lamento que
ele tenha morrido.

O Sr. Leterre suspirou desalentado.

— Eu também. O pior é que Sir Anthony é violento,
ambicioso e traiçoeiro. Não creio que se conforme
em salvar a pele.

Meu coração bateu mais forte.

— Acha que pode acontecer algo com Anne e
Christopher?

— Vou tentar tirá-los de lá.

— Se eu puder fazer algo para ajudar...

— Por ora, não pode.

— Gostaria de estar informado.

— Por certo.

— Se precisar de dinheiro, estou às ordens.

— Obrigado, Jacques.


Despedi-me dele preocupado com Anne e com
meu filho. O que seria deles agora?

Angustiado, procurei Lenice para desabafar.
Suas palavras sensatas e confiantes acalmaram-me
o coração.

— Entregue a Deus — disse ela com seriedade. —
Ore e acalme-se. Não cai uma folha da árvore sem
a permissão de Deus. Só vai acontecer o que for
bom para todos.

— Como pode ser bom passar o que ela está
passando?

— Do ponto de vista mundano, talvez não, mas do
educativo espiritual, o que sabemos nós? Deus é pai
bom e justo. Se permitiu o que aconteceu, é porque
a experiência será valiosa para todos.

— Não concordo — respondi. — Revolta, sangue,
morte. Sir John era homem bom e honesto. Não
merecia o fim triste que teve.

— Como pode saber o que ele merecia ou não? Que
condições tem para avaliar e julgar? O que sabe de
suas necessidades íntimas ou de suas existências
passadas?

— Não me conformo que Deus permita a um
homem mau e vingativo como Sir Anthony matar
um homem honesto e bom como Sir John.

— Tudo quanto Deus faz está certo. Ele jamais erra.
Ele é perfeito. Se a maldade de Anthony atingiu Sir
John, foi porque desse acontecimento doloroso que
ele não provocou pode tirar benefícios novos que
ajudarão a todos.

— De que forma?

Lenice sorriu calma e respondeu:

— Sir John amava aquele povo e era homem bom.
Quem nos garante que ele não tenha concordado
em dar a vida em benefício de sua gente?

— Como pode ser isso?


— Como espírito, fora do corpo, ele pode ter se
oferecido para isso. Afinal, foi sua morte dolorosa
que deu forças a que o povo reagisse. Como espírito
ele sabe que é eterno. O que significa um corpo
perecível diante dos valores sagrados da vida?

— Essa atitude seria digna dele — avaliei admirado.

— Por outro lado, conhecemos Sir John como é
agora. Não sabemos o que teria sido em
encarnações anteriores, quando pode ter sido mais
violento, mais agressivo, passível de sofrer a
violência de agora.

— É difícil saber.

— Então, não vamos julgar.

— E Sir Anthony, será punido pela maldade?

— Não se sabe até que ponto ele é doente.

— Ele não é um doente.

— Ambição desmedida, crueldade, agressividade e
morte do semelhante não são doenças graves para
você? Que sofrimentos e lutas terá ele que
enfrentar para curar-se desses males? Já pensou
nisso?

— Mas Anne e Christopher estão inocentes. Como
deixá-los à mercê desse malvado?

— Não fomos nós que os reunimos, foi Deus. Por
mais que você tenha lutado, não conseguiu evitar
isso. Devemos confiar que Deus sabe o que faz. A
hora que for possível e se isso for o melhor, ele os
separará. O que está faltando ao seu coração é
confiança em Deus. A angústia, o receio, a
insegurança revelam sempre nossa falta de fé na
Providência Divina. Acalme-se. Ore. Confie.
Ninguém está só ou é injustiçado. Deus tudo sabe e
prevê. Tenha fé. Tenha esperança.

Senti-me mais aliviado. Lenice tinha sempre o
poder de acalmar-me. Apesar disso, aqueles dias
foram de sobressaltos e preocupações. Eliane


procurava envolver-me com o seu carinho, mas eu
continuava apreensivo e triste.

Ela ignorava a causa de minhas preocupações.
Meu amor por Anne era um segredo que eu
guardava no coração.

Somente quinze dias depois o Sr. Leterre mandou-
me chamar. Atendi imediatamente.

— Jacques, finalmente — disse-me ele com emoção
— estão salvos. Consegui localizá-los e dispor tudo
para alcançarem Bradenburg dentro de dois ou três
dias.

— Estão todos bem? — indaguei com euforia.

— Sim. Arrasados, cansados, abatidos, porém
ilesos.

— Ainda bem — suspirei aliviado. — Ficarão em
Bradenburg?

— Por agora. Pretendo ir até lá, para inteirar-me de
tudo e saber o que pretendem fazer. Preciso avaliar
a situação.

— Gostaria de ir com o senhor...

— Não acho prudente.

— Não vou suportar esperar. Eu poderia ver meu
filho.

— Não acho prudente, repito.

— Desejo apenas ajudar.

— Talvez eu vá precisar de pessoa de confiança
para ajudar-me. No momento, porém, quero ir só.
Tranqüilize-se. Dar-lhe-ei notícias assim que
puder. Sir Anthony relutou em ir para Bradenburg.
Conserva idéias de revolta e não está conformado
com a derrota. Está desconfiado de tudo e de todos.
Se perceber ou suspeitar da verdade, não terá
escrúpulos em atingir Anne e até Christopher. É
prepotente e cruel.

— É penoso não poder estar com eles nessa hora
difícil.


— Compreendo — fez o Sr. Leterre com voz grave.
— Porém você está casado e com vida regular.
Desfruta de tranqüilidade. Sua esposa é mulher
encantadora e por certo desconhece essa passagem
de sua vida.

— É verdade — concordei.

— Por outro lado, além da desconfiança e da revolta
de Sir Anthony, temo que o reencontro com Anne
possa reacender a velha chama. Acha isso
prudente?

Deixei-me cair na poltrona com a cabeça entre
as mãos. Estava desesperado, ansioso, contudo tive
que reconhecer que ele dizia a verdade.

— Tem razão. Agora que consegui retomar minha
vida, rever Anne pode trazer à tona todo nosso
velho sentimento.

— Aconselho-o a esperar. Prometo colocá-lo a par
de tudo. Direi a Anne da sua preocupação.

— Ela não sabe que reconstruí minha vida...

— Deverá saber.

— Gostaria de contar-lhe pessoalmente.

— Não seria possível nem prudente.

— Não gostaria que ela soubesse por terceiros.
Pensei em escrever-lhe, mas achei comprometedor.

— Seria loucura! Uma carta pode criar problemas
maiores. Eu posso conversar com ela, explicar tudo
detalhadamente. Ela compreenderá. É o mais
acertado. Poderei levar seu recado verbal, claro, e
tudo estará bem. E só o que pode fazer por agora.

Saí da casa do Sr. Leterre arrasado. Sentia
ímpetos de correr para Anne e abraçá-la, rever
Christopher e estar com eles. Apesar disso, eu tinha
aumentado à barreira que nos separava. Havia
Eliane, que ignorava tudo e se transformara em
uma peça importante em minha vida. Era mulher


admirável e dedicava-se em trazer felicidade a mim
e à nossa família.

Como envolvê-la em minhas preocupações?
Minha cabeça doía e eu estava em pane. Caminhei
pelas ruas, ruminando meus problemas. E quanto
mais pensava, mais reconhecia que o Sr. Leterre
estava certo. Afinal, a situação em si não tinha
mudado. Anne ainda era casada e vivia com o
marido. Mesmo que eu estivesse livre, de nada
valeria. Este pensamento confortou-me e voltei para
casa.

O aconchego da sala aquecida, o beijo
carinhoso de Eliane, os bracinhos de Milena ao redor
do meu pescoço, sua vozinha a relatar-me as
diabruras do seu cãozinho Joqueur, o chá servido
em linda e caprichada bandeja e por fim a mão de
Eliane segurando a minha, deram-me finalmente
abençoada sensação de paz.

Olhei Eliane agradecido. Ela percebeu que eu
estava em crise, porém nada perguntou. Ofereceu-
me seu carinho, seu afeto, e naquele momento
senti-me protegido e forte. Eliane era realmente
muito importante para mim.

Não saberia explicar meus sentimentos. Meu
amor por Anne era intenso e sincero, mas Eliane era
como a brisa leve que tinha o dom de serenar
minha alma atormentada. E, ao mesmo tempo, eu a
amava também, mergulhando nos seus braços e
esquecendo temporariamente todas as mágoas.

Às vezes julgava-me um tanto cínico. Amar
duas mulheres ao mesmo tempo feria meu senso de
honestidade, porém não podia fugir à realidade do
que sentia. Não procurava Anne nos braços de
Eliane. Isso nunca me ocorrera. Ambas eram tão
diferentes uma da outra que isso jamais acontecera.
Várias vezes senti-me egoísta e fútil.


Uma tarde, vendo-me a sós com Lenice, abri meu
coração.

— Estou dividido — considerei. — Como posso amar
duas mulheres? Considero-me infiel e cínico,
incapaz de sentimentos nobres.

— Por quê?

— Meu amor por Anne é grande e verdadeiro. Por
outro lado, Eliane também me é cara. Confesso que
a amo muito, como espírito e como mulher. Não
estarei sendo leviano e hipócrita?

Lenice olhou-me nos olhos como a querer
penetrar-me a alma. Depois disse:

— O amor nunca será um mal, mesmo quando nós
o reduzimos às emoções humanas ou terrenas. O
que avilta ou prejudica são as nossas ações quando
ferem os sentimentos alheios ao invés de dignificá-
los. Você pode impedir seu coração de sentir amor
por Anne?

— Não. Penso nela e me enterneço. Lembro seus
beijos e emociono-me. Mas por outro lado, quando
estou ao lado de Eliane, sinto-me bem. Amo-a
muito. Embora ela me enterneça de maneira
diferente, vibro com seus beijos, e seus carinhos
conseguem despertar muito amor. Lenice, por acaso
serei hipócrita? Serei leviano? Por outro lado,
deveria contar a Eliane o que me vai à alma?

Lenice suspirou quando disse:

— O coração humano tem seus segredos. Amar
duas pessoas talvez não seja um mal quando
sentimos que todos precisamos aprender a amar
toda a humanidade. O amor é lei da vida. Apesar de
você guardar esse sentimento por Anne, sabe que
esse amor é impossível. Seu relacionamento com
ela cessou depois que encontrou Eliane. Agora, por
que preocupá-la com suas lembranças dolorosas?
Por que dividir com ela o peso de sua frustração


passada? Ela, que lhe deu afeto, compreensão,
carinho e nunca cobrou nada quanto ao passado?

— Estou atormentado. Às vezes penso que se Anne
ficar livre, se seu marido morrer, o que farei?
Correrei para ela, deixarei Eliane, terei coragem?

— Está sofrendo por algo que não aconteceu e
talvez não aconteça. Acalme-se. Você e Anne
amam-se, porém por agora esse amor é impossível.
A vida os separou. Você tinha o direito de refazer
sua vida de outra forma. Guarde seu amor por
Anne, já que ele brota espontâneo em seu coração.
Porém a vida deu-lhe o afeto de Eliane, a quem
você corresponde e ama. Aceite a situação que lhe é
oferecida e busque fazer o melhor. Seja para Eliane
o companheiro, o melhor amigo e o mais carinhoso,
fiel e generoso. Viva com serenidade. E se o amor
que sente por Anne e ela por você for mesmo
verdadeiro, um dia tudo se resolverá naturalmente.
Sem empecilhos ou violências. Aprenda a esperar,
fazendo o melhor.

Permaneci pensativo por alguns instantes. Depois
disse:

— E se Anne me chamar? E se precisar de mim? Às
vezes tenho ímpetos de correr para ela, de largar
tudo.

— Lute contra isso. O dever sempre mostra o
caminho mais acertado. Se fizer isso, criará
problemas maiores para o futuro.

— Há momentos em que temo não resistir.

— Resistirá. As tentações representam sempre
velhos problemas não solucionados que
carregamos. Quando aprendermos a resistir a eles,
perderão sua força. Acabarão. Não é fácil resistir a
esse arrastamento, mas, apesar disso, quando
lutamos e reagimos, é porque, tendo cedido outras
vezes, percebemos que isso nos agrava a situação,


vamos nos tornando mais firmes na resistência e, a
cada dia, mais aptos a vencer.

— Ajude-me, Lenice. Sei que está com a razão.
Ademais, Anne continua casada e com o marido.
Não tenho o direito de criar-lhe mais problemas.

— Essa é a sua luta. Continue firme, resista a essa
tentação. Deus o ajudará. Ao mesmo tempo,
procure dar todo o afeto a Julien e Eliane, que o
amam e merecem a felicidade. Guarde seu segredo
com dignidade. Não é crime amar. O egoísmo ilude-
nos para que tentemos dividir o peso das nossas
angústias com os que nos amam. Às vezes fazemos
isso em nome da sinceridade. Puro engano.
Guardemos os espinhos que carregamos na alma e
procuremos envolvê-los com o algodão da fé e da
serenidade. Procuremos dar aos que nos amam
apenas o bem, a alegria, a paz e o amor que
conseguimos construir, colocando o bem-estar e a
felicidade deles acima da nossa. Essa é a verdadeira
maneira de viver.

Vieram-me lágrimas aos olhos. Sem poder
conter-me, levantei-me e abracei-a comovido.
Ficamos abraçados alguns momentos em silêncio.

Depois, segurando suas mãos com força,
murmurei comovido:

— Agradeço a Deus ter colocado você em meu
caminho. Eu, que fui covarde forçando seu
casamento por ambição. Quando penso nisto, o
remorso incomoda-me.

Ela olhou-me séria.

— Sou muito feliz. Amo Jean e ele me ama. Não
vamos falar disso de novo.

Suspirei resignado.

— Está bem. Como sempre, tem razão. Por certo
Deus cuidou do seu futuro melhor do que eu,
suavizando meu erro.


— Cada um só passa o que Deus permite. Agora,
falemos de coisas mais amenas. Quer uma xícara de
chá?

Aceitei com prazer. Estava mais calmo e
relaxado. Lenice tinha razão. Eu sabia o rumo a
seguir e faria todo esforço para não me desviar
dele.

Os dias que se seguiram foram calmos e de
rotina. Eu estava mais equilibrado. Procurava
afastar os pensamentos sobre o futuro porque me
atormentavam inutilmente.

O Sr. Leterre, no entanto, não escondia sua
preocupação. Sir Antony não se conformava com a
derrota. Embora negasse o Sr. Leterre estava
desconfiado de que ele tramava contra o filho de Sir
John, pensando em reconquistar o poder. Dizia que
Christopher era o único dono de Loucester e que
tinham sido embrulhados. Anne procurava acalmá-
lo, dizendo-lhe que no momento de nada lhes valia
reagir, representando essa atitude verdadeiro
perigo para a segurança de todos.

— Não devia aceitar essa derrota com essa calma —
dizia ele.

— Não é justo. Haveremos de retornar a Dolgellau
como vencedores. Verá.

O Sr. Leterre mantivera com Anne longas
conversas e a informara sobre o que sabia a
respeito do que se passava em Dolgellau.

O filho de Sir John fora apoiado por
unanimidade pelo povo. Tratava-se de um moço
honesto e digno.

Aceitara o cargo com responsabilidade e a
calma voltara a reinar no condado. Sua bondade e
senso de justiça já começavam a ser comentados
entre o povo.

Anne, ao saber disso, sentira-se mais calma.


— Perdemos tudo, e meu filho foi prejudicado.
Reconheço, porém que Anthony não era o homem
indicado para conduzir os destinos do nosso povo
até Christopher poder assumir.

— O que pretende fazer? — indagara o Sr. Leterre
respeitosamente.

— Por agora, nada. Se o povo está melhor, sinto-
me feliz. Para isto sacrifiquei toda minha vida. Mais
tarde, veremos.

— Anne é uma mulher corajosa e digna — dissera-
me o Sr. Leterre. — Sua camareira contou-me que
Sir Anthony tomou-lhe todas as jóias em que deitou
os olhos. E se não a deixou sem nada, foi porque a
mesma camareira conseguiu esconder um saco
delas sem que ele percebesse, entregando-as
depois à sua senhora.

— Esse homem é um selvagem — respondi
enraivecido.

— Concordo. Contudo, nada podemos fazer quanto
a isso.

— Ela não pensa em deixá-lo?

— Anne não lhe tem amor. Porém teme sua reação.
Ela representa para ele a única possibilidade de
voltar a reinar em Dolgellau.

Não creio que a deixe partir.

Baixei a cabeça pensativo. Se fosse livre, talvez
pudéssemos tentar uma fuga para longe de tudo.
Porém havia Eliane, e eu não tinha o direito de
arrastá-la ao sofrimento. O Sr. Leterre colocou a
mão sobre o meu braço.

— Não se torture Jacques. Nada podemos fazer por
agora.

— Contou a ela que me casei? — indaguei
preocupado.

— Sim. A princípio olhou-me assustada. Depois seus
olhos encheram-se de lágrimas.


Senti um aperto no coração.

— O que disse ela?

— Que você merece ser muito feliz. Perguntou como
era ela e se era bonita.

Corei como um adolescente. Anne preocupava-se
em saber se fora esquecida.

— Disse-lhe tudo, conforme pedi?

— Sim. Expliquei sua solidão, a bondade e o carinho
de Eliane. Disse-lhe que você continua a amá-la
apesar de tudo.

— E ela?

— Suspirou fundo, guardou silêncio por alguns
minutos. Depois disse: "Foi melhor assim. Eu não
poderia fazê-lo feliz. Espero que ela o faça". E
mudou de assunto.

Eu me sentia um pouco decepcionado. Anne
tinha aceitado meu casamento com calma e eu não
pude deixar de dizer com tristeza:

— Parece que Anne não se importou muito com
isso.

O Sr. Leterre olhou-me sério.

— Se quer saber se ela sofreu com a notícia, eu
arriscaria dizer que sim: seus olhos brilharam
emotivos e magoados, mas é mulher digna e
controlada, habituada desde a infância a dominar
seus sentimentos. Nela o dever sempre está
primeiro e a justiça é um traço forte do seu caráter.
Sabe que não tinha o direito de exigir que você
continuasse só pelo resto da vida. Aceita a situação,
mas isso não quer dizer que não o ama. Nas
circunstâncias atuais, não sei se faço bem em dizer-
lhe isso. Melhor seria que você tentasse esquecer.

— Isso não é possível! — protestei veemente.

— Muito bem. Então saibamos compreender.

— Gostaria de fazer alguma coisa em favor de meu
filho.


— Não pode Jacques. Porém, se um dia eu precisar
do seu auxílio, chamo-o.

Apesar de tudo, saí dali com certa mágoa.
Talvez Anne não me amasse tanto quanto eu
pensava. Eu não tinha nenhum direito de exigir o
seu amor, porém doía-me pensar que eu pudesse
ter sido esquecido.

Sentia-me insatisfeito e perturbado. Por que me
tinha casado, por quê? Em casa sentia-me triste e
retraído. Eliane fazia o possível para deixar-me mais
calmo, mas eu estava inquieto e angustiado.

Ás vezes lutava para vencer esse estado de
espírito. Eliane não tinha nenhuma culpa do que se
passava comigo. Não era justo que sofresse.
Contudo, a angústia voltava e eu não sabia como
sair dela.

Mergulhei no trabalho para fugir aos meus
pensamentos atribulados. Saber que Anne e
Christopher estavam em Bradenburg aumentava
minha vontade de vê-los. Continha-me. Entretanto,
a insatisfação e a angústia aumentavam.

Quando me sentia muito aflito, procurava o Sr.
Leterre para saber notícias. Foi no dia em que ele
me contou que Sir Anthony viajara que tive a idéia
de rever Anne. Ele estava preocupado porque Sir
Anthony juntara-se a outros expatriados, em sua
maioria aventureiros da pior espécie, para tentar
estabelecer um plano que certamente colocaria a
vida do filho de Sir John em perigo.

Eu, porém, no meu egoísmo, pensava que Anne
estava só e que eu poderia vê-la e a meu filho.

Não disse nada ao Sr. Leterre. Sabia que ele não
aprovaria minha ida a Bradenburg.

Pretextando uma viagem de negócios, parti naquela
mesma tarde, coração aos saltos, peito oprimido.


A situação não tinha mudado, porém, eu queria
ver Anne, confortá-la, dizer que apesar de tudo eu
continuava a amá-la. Meu filho! Emocionava-me ao
pensar nele. Vê-lo, ainda que ele não me pudesse
abraçar, causava-me grande emoção.

Cheguei a Bradenburg já de noite e procurei um
hotel para hospedar-me. Depois saí, dirigindo-me à
casa que me era tão querida.

As luzes estavam acesas e eu não sabia como
falar com Anne sem que os outros soubessem.
Fiquei ali, esperando durante algum tempo, com
grande ansiedade. Anne com certeza estaria
ocupando os mesmos aposentos de antes.

Entrei no jardim e espiei por uma das janelas.
Meu coração deu um salto. Anne estava já, sentada
em uma cadeira, segurando um livro que não lia
pensativa. Sem poder conter-me, bati na janela. Ela
se assustou e aproximou-se cautelosa.

— Quem está aí? — indagou preocupada.

— Jacques. Ela correu o ferrolho e abriu uma parte
da janela.

— Jacques? Que loucura! O que está fazendo aqui?
Corri para ela e segurei sua mão com ardor.

— Precisava vê-la. Não suportava mais. Sei que Sir
Anthony viajou.

— Vou abrir a porta. Venha.

Em alguns segundos eu a estava abraçando
comovido. Ela estava mais magra e em seu rosto
havia um ar mais amadurecido.

— Anne, que saudades! — murmurei com
arrebatamento.

Ela me apertou com força.

— Eu também. Pensava em você e recordava.
Beijei-a nos lábios com paixão.

— Anne, por que precisamos viver separados? Por
quê? Ela reagiu e delicadamente afastou-se de mim.


— Agora não sou só eu que tenho compromissos,
você também. Eu não queria pensar em Eliane
naquela hora.

— Quero dizer-lhe que sempre a amei. Meu
casamento aconteceu, gosto de Eliane. É boa
esposa, porém meu amor por você continua em
meu coração. Não consigo esquecer.

— Nem eu. Cada momento que vivemos juntos
permanece em minha lembrança e tem me dado
coragem para suportar minha desgraça.

— Anne — disse eu segurando suas mãos com força
—, vamos fugir, nós três. Iremos para bem longe,
onde nada nem ninguém possam nos encontrar.
Viveremos felizes.

Anne abanou a cabeça pensativa, depois disse:

— Anthony nos perseguirá até o inferno. Está
obcecado. Só pensa em voltar a Dolgellau e
Christopher representa para ele a arma maior.
Depois, você tem família, o que quer fazer não é
certo. O dever nos indica um caminho diferente.

Apertei-a nos braços com força, beijando-lhe os
cabelos com amor.

— Eu a quero. Não é justo.

— Por favor, Jacques. Estar com você é tudo que eu
mais quero neste mundo, porém não posso. Não
quero prejudicá-lo. Se Anthony descobre, sua vida
correrá perigo.

— E nosso filho?

— Christopher está bem. Pensa que Anthony é seu
pai.

— Não posso vê-los sofrer. Gostaria de dar-lhes
tudo. Sei que sua situação financeira é difícil.

Ela corou, porém disse com voz firme:

— Temos o suficiente. Não se preocupe.

— Se precisar de ajuda, prometa que me procurará.
Afinal, eu posso e quero fazer algo por vocês.


Ela assentiu com a cabeça. Comovido, indaguei:

— Como está ele?

— Dorme. Está bem. Para a criança tudo é alegria.
Não tem ainda condições de avaliar o que perdeu.

— Posso vê-lo?

— Vem comigo. Procure não fazer ruído.

Com o coração palpitando, acompanhei-a.
Christopher dormia tranqüilo. Funda emoção me
acometeu ao fitar-lhe o rostinho calmo. Havia nele
alguns traços familiares, a curva do queixo
lembrava papai e a testa larga era um traço em
nossa família.

Curvei-me e beijei levemente seus cabelos
louros. Meu filho! Como eu gostaria de estreitá-lo
em meus braços. Mas era impossível!

Foi quando ouvimos ruídos na porta principal. Anne
empalideceu.

— Meu Deus! É Anthony.

— Já?

— Só pode ser ele. Venha rápido. Terá que sair pela
janela. Conduziu-me ao cômodo contíguo e
recomendou:

— Espere um pouco. Vou ver se é ele. Tentarei
distrai-lo. Fuja por essa janela. Que Deus o proteja.
Não volte mais aqui, por favor!

Ela saiu fechando a porta e eu, sobressaltado,
abri a janela cuidadosamente e olhei ao redor. Tudo
calmo. Saltei para o jardim. Pude perceber dentro
da casa ruído de vozes. Procurei afastar-me. Estava
quase ganhando a rua quando senti cair sobre mim
uma mão forte, enquanto uma voz irritada gritou:

— Aonde pensa que vai? O que estava fazendo
aqui? Estava espionando?

Passado o susto, eu disse com seriedade, tentado
soltar-me daquela mão de ferro:


— Estou simplesmente a passeio. Não sei do que
está falando.

— O que fazia no jardim?

— Conheço esta casa. É de meu amigo. Já estive
hospedado nela. Estava passeando.

— Vai ter que explicar isso ao meu patrão.

— Deixe-me ir. Não quero incomodar. O homem
deu uma risada irônica.

— Vamos incomodar, sim. Vamos lá.

Empurrou-me com firmeza e eu pude ver em
sua outra mão o brilho de uma lâmina. Não tive
remédio senão obedecer. Com a pulsação acelerada
foi que, em frente à porta principal, esperei
enquanto ele batia.

— Sir Anthony — chamou —, peguei um espião.
Abra.

Imediatamente a porta abriu-se e Sir Anthony
apareceu na soleira, olhando-me admirado. Anne,
pálida, estava atrás dele.

— Entre — disse ele, olhando-me como querendo
devassar-me a alma.

— Peguei-o no jardim quando pretendia ganhar a
rua.

— Há de convir que precisa ter uma boa explicação
para invadir uma casa a estas horas, sem nossa
permissão.

— Lamento o que aconteceu, mas posso explicar.

— Pode largá-lo — ordenou Sir Anthony. — Espero
que sua explicação seja satisfatória.

— Conheço esta casa. Sou amigo do Sr. Leterre
desde a infância. Meu pai vinha aqui com
freqüência. Vim a Bradenburg, quis rever esta
casa, porém não desejava incomodar seus
moradores, que não conheço. Aqui chegando, fui
tentado a dar uma volta pelo jardim. Foi uma visita
sentimental, peço perdão se os assustei.


— Não sei se devo acreditar nessa história tão
simplória — disse Sir Anthony. — Vê-se que é um
cavalheiro francês. Estariam os franceses
interessados em política?

— Por que diz isso? Por acaso eu deveria estar?

— Talvez. Nunca se sabe. Mas se não é política, que
interesse poderia ter?

— Já disse que vim apenas rever a casa na qual
costumava passar férias na minha infância.

Eu estava em situação embaraçosa e aquele
homem parecia astuto e cruel. Anne, pálida, nada
dizia.

Foi quando apareceu Hilda, que se aproximou
e, vendo-me, abraçou-me com carinho.

— Jacques! Que prazer! Por que não avisou que
estava em Bradenburg?

— A casa estava com hóspedes, não quis
incomodar.

— Sabe que sempre é bem-vindo aqui.

— Conhece este homem? — indagou Sir Anthony
com voz rude.

— Claro. Seu pai era muito amigo do Sr. Leterre.
Passavam temporadas aqui. Como vai sua mãe?

Eu queria beijar Frau Hilda por tanta presença de
espírito.

— Regular, enfrentando alguns problemas de saúde.
Eu não queria incomodar e acabei por assustar seus
hóspedes. Lamento muito. Queria somente olhar a
casa. Quando cheguei aqui, não resisti e entrei no
jardim, pretendia sair em seguida, quando fui
surpreendido.

— Entre, Jacques. Não fique na porta. Agora que
está aqui, vamos tomar uma xícara de chá. Sir
Anthony e Lady Anne, aceitam uma xícara de chá?

Sir Anthony observava-me sério e respondeu:

— Um chá. Está bem.


Eu preferia que ele não aceitasse, porém ele estava
muito curioso para recusar. Foi Anne quem disse:

— Obrigada, Hilda, mas está na hora de me
recolher.

Sir Anthony tomou a mão da esposa e disse com
certa ironia:

— Recusa-se a tomar um chá comigo? Não é muito
gentil de sua parte, sendo que acabo de chegar.

Anne retirou a mão com delicadeza e respondeu:

— Está bem. Aceito.

Sentado na sala de estar de Hilda, eu me sentia
observado e arrependia-me de ter ido a
Bradenburg. Não queria causar nenhum problema a
Anne. Percebia-se que seu relacionamento com o
marido era difícil e eu não queria nem pensar no
que poderia acontecer se Sir Anthony descobrisse a
verdade. Comecei a pensar que Lenice tinha razão.
Porém agora eu tinha que salvar Anne do
embaraço.

Frau Hilda, muito à vontade, serviu o chá com
biscoitos, e perguntou-me com naturalidade:

— Como vai a sua esposa? O Sr. Leterre disse-me
que ela é encantadora.

— O Sr. Leterre é um bom amigo. Eliane está bem,
tem uma filha encantadora que muito nos alegra.
Julien a estima muito. Mas não quero cansar seus
hóspedes.

— E bom que os conheça. Estamos honrados com
sua presença nesta casa. Ele é Sir Anthony Joseph
Templeton e Lady Anne, sua esposa. Tem um filho
lindo, Christopher.

Foi aí que Sir Anthony deu um salto da cadeira.

— Já vi o seu rosto! Conheço-o de algum lugar! Já
esteve em Dolgellau!

Apanhando de surpresa, fiquei sem saber o que
dizer.


— Sim. Conheço Dolgellau. Conheço todo o País de
Gales. Aliás, sou advogado e já fui comissionado em
Londres, há alguns anos.

— Por que foi a Dolgellau? — inquiriu ele sério.

— Estive lá apenas dois ou três dias, a passeio. Faz
tempo, nem me recordo bem.

— Esteve em casa de Sir John, lembro-me disso.

— Esse cavalheiro convidou-me. Foi muito gentil.

— Muita coincidência... — retrucou
intencionalmente.

— Não sei por que diz isso. Afinal faz tanto tempo e
eu agora não me dedico mais à diplomacia. Exerço
a magistratura e cuido dos negócios da minha
família.

— Pois se preza mesmo sua família, Sr. Jacques, é
bom que não se envolva com outros assuntos. Pode
dar-se mal.

Anne interveio com voz calma.

— Desculpe Sr. Jacques, Sir Anthony está muito
preocupado com política. Vê espiões por todos os
lados.

— Espiões e traidores — volveu ele com rancor. —
Mas eles que tremam, porque hei de agarrá-los a
todos.

Levantei-me.

— Preciso ir. Já causei muitos aborrecimentos. Peço
desculpas mais uma vez.

— Pretende demorar-se, Jacques? — indagou Frau
Hilda.

— Não. Vim resolver um negócio. Infelizmente não
posso demorar-me. Parto amanhã mesmo.

Despedi-me, curvando-me diante de Anne e de
Sir Anthony. Ao abraçar Frau Hilda na porta, ao
sair, disse-lhe baixinho ao ouvido:

— Deus a abençoe pelo que fez.

Ela sorriu, murmurando:


— Tenha cuidado. Não venha mais por aqui. — Em
voz alta:

— Boa viagem, Jacques. Recomendações à sua mãe
e a Eliane.

Saí dali respirando aliviado. Por pouco eu não
tinha posto tudo a perder. O olhar de Sir Anthony
continuava desconfiado e eu não sabia se ele tinha
acreditado no que eu dissera. Porém eu iria embora
no dia seguinte e ele não teria motivos para duvidar
das minhas palavras. Confiava que dentro em breve
ele tivesse esquecido.

Cheguei ao hotel, preparei a bagagem para
partir. Deitado no leito, remexia-me sem conseguir
adormecer. Sentia ainda o perfume de Anne e na
boca o gosto doce de seus lábios delicados. Um
sentimento de revolta me acometeu. Por que não
podíamos ficar juntos?

Passei a noite amargurado, insone. Tendo
adormecido algumas vezes, tive pesadelos em que
o rosto de Sir Anthony, de Christopher e de Anne se
sucedia, angustiados e sofridos, fazendo-me
acordar mais inquieto, mais amargurado e mais
entristecido.

No dia seguinte, levantei-me bem cedo e assim
que foi possível voltei a Paris.







Capítulo X





Sentado em minha poltrona favorita, tendo às
mãos um jornal que eu folheava distraído, meu
pensamento emocionado não podia desligar-se dos
últimos acontecimentos.


Fazia mais de um ano que eu tinha estado em
Bradenburg e a saudade doía no meu coração.
Visitara o Sr. Leterre em busca de notícias e
procurava de todas as formas ajudar Anne na difícil
situação em que se encontrava.

Sir Anthony não desistia de seus propósitos e,
apesar da precariedade de recursos financeiros,
arranjava sempre meios para conspirar. Conseguia
dinheiro que em suas mãos servia apenas para
manter alguns espiões e tramar contra a vida de Sir
William. Para isto não titubeava em deixar a família
sem recursos.

O Sr. Leterre ajudava-os como podia, e eu
mesmo várias vezes passara-lhe às mãos dinheiro
para mantê-los. Porém Anne sofria muito, chocada
com a situação. Recusava-se a aceitar dinheiro do
Sr. Leterre e nós sabíamos que uma a uma suas
jóias iam sendo vendidas às escondidas de Sir
Anthony, que ignorava que ela ainda as tivesse.

Anne preocupava-se com o futuro e achava que
estava abusando da hospitalidade e da bondade do
Sr. Leterre. Queria dar um rumo à sua vida. Não
acreditava que pudessem voltar a Dolgellau,
reavendo a posição perdida.

Sir Anthony, porém, não cedia. Não conseguia
aceitar o desterro e sonhava com a volta triunfante
ao condado. Debalde procurava, através da
embaixada inglesa, conseguir uma audiência com o
rei. Ele fora banido e reconhecido como responsável
pela morte de Sir John. Sua volta poderia levá-lo à
prisão ou à forca.

Apesar disso, ele não se conformava.
Recusava-se a dar uma definição, um rumo à sua
vida que não aquele ao qual se julgava com direito.
Anne sofria. Eu não podia aceitar que ela e
Christopher passassem dificuldades. Ele era meu


filho e eu tinha o direito de ajudá-los. Ela não
deveria ter escrúpulos em aceitar a ajuda que eu
podia e desejava dar-lhe. Ela era orgulhosa e digna,
corajosa e decidida. Queria enfrentar a nova vida
libertando-se da tutela do Sr. Leterre. Não
pretendia abusar de sua bondade nem de sua bolsa.

Foi quando eu procurei o Sr. Leterre, com uma
idéia nova: trazê-los para Paris.

A princípio ele não concordou:

— Não acho prudente — disse. — Com eles por
perto, você não conseguirá conter-se.

— Se eles vierem para cá, eu juro que não irei
procurá-los, a não ser que Anne me chame ou
venha precisar de mim.

— Acha que conseguiria?

— Sim. Não pretendo causar-lhe problemas
maiores. Comprarei uma vila em lugar sossegado,
darei a Christopher boa soma em dinheiro que,
aplicada, dará o suficiente para viver.

O Sr. Leterre ficou pensativo.

— Você tem o direito de ajudá-los. Trata-se de seu
filho! Como fazer isso sem despertar suspeita?
Como explicar a Sir Anthony?

— Sei fazer as coisas. Meu nome não aparecerá. O
senhor terá em mãos papéis necessários para que
eles acreditem que um inglês simpatizante com sua
causa deixou para Christopher, ao morrer, a vila e a
pensão. Escreverei uma carta na qual ele explicará
sua atitude. Ninguém, a não ser nós dois, deverá
saber a verdade. Nem Anne. Assim, tudo ficará bem
e eles estarão amparados.

O Sr. Leterre apertou-me a mão comovido.

— É um homem de bem, Jacques. Meu receio é que,
tendo-os perto, não consiga dominar-se.

Fechei os olhos e fundo suspiro escapou-me do
peito.


— Pode estar tranqüilo — disse com serenidade. —
Sei que Sir Anthony é homem perigoso. Não desejo
que ele atormente Anne.

Não irei perturbá-los.

Foi com carinho e ansiedade que procurei a
casa para eles. Não queria dar-lhes uma das minhas
propriedades para não despertar suspeitas. Foi com
amor que cuidei de todos os detalhes do mobiliário,
das obras de arte, colocando ali conforto e beleza
que pudessem agradar ao espírito requintado de
Anne e favorecessem a Christopher viver em um
ambiente bom e belo.

Consegui fazer a transação em nome de outra
pessoa e escrevi uma carta, disfarçando a letra,
explicando politicamente aquela doação, como se
fosse um admirador da família, pretendendo
remediar a injustiça de que eles tinham sido
vítimas. Para evitar que Sir Anthony prejudicasse a
família, colocara a casa e o dinheiro em nome de
Christopher, alegando que com isso pretendia
ajudá-lo para que um dia, quando fosse adulto,
pudesse retomar seus direitos, voltando a Dolgellau.

O Sr. Leterre exultou e aceitou tudo com
entusiasmo. Preocupava-o a situação de Anne e
essa era a única solução capaz de oferecer-lhe paz,
segurança e meios para recomeçar a reorganizar
sua vida, criando o filho com decência e conforto.

Eu soube que Anne, ao receber a notícia,
chorou comovida. Sir Anthony sentiu-se orgulhoso e
valorizado.

— Eu sabia! O povo nos quer de volta. Sempre fui
defensor de seus direitos! Um dia voltaremos com
pompa e honrarias. Vocês vão ver!

— Sr. Leterre tem sido nosso amigo de todas as
horas. Esses recursos vieram mesmo desse nobre
inglês?


— Sim — disse ele sério. — Tenho aqui a carta que
ele deixou, com o legado em que explica seus
motivos.

Anne passou os olhos pela carta e entregou-a ao
marido, que leu exultante.

— É bom saber que ainda há quem acredite em nós.
Viajaremos o mais breve possível. A propriedade é
boa?

— Muito boa. Estive lá para conhecê-la. Sei que
ficarão confortáveis.

Anne olhou-os com ar preocupado.

— Acha que devemos aceitar?

— Não temos escolha — retrucou Anthony. — Se
não nos agradar, poderemos vendê-la.

— Isso não será possível. A propriedade foi doada a
Christopher e só ele, quando tiver a maioridade,
poderá fazê-lo. O dinheiro também está aplicado,
garante boa renda, mas não poderá ser retirado, a
não ser por ele, nas mesmas condições.

Anne olhou para o Sr. Leterre e seus olhos
pareciam querer indagar alguma coisa. Porém
manteve-se calada. Sir Anthony, um tanto
agastado, comentou:

— Que homem excêntrico. Por que agiu assim?
Christopher é uma criança, não sabe o que é
melhor.

— Entendo esse gesto — disse Anne com calma. —
Ele confia em Christopher e reconhece que ele é o
herdeiro de Loucester. Ele quer dizer que, legando a
ele esses bens, quer protegê-lo até a maioridade.
Compreendo e sou-lhe muito grata.

Através do Sr. Leterre eu tinha acompanhado
todos os passos deles daí para frente. A alegria de
Anne percorrendo a bela casa que eu tão
carinhosamente preparara para eles, a alegria de
Christopher descobrindo alguns brinquedos, livros


de gravuras, de selos que eu colocara ali como que
ao acaso e que o encantaram.

Anne desconfiou da verdade. Assim que ficou a sós
com o Sr. Leterre, disse comovida:

— Esta casa foi preparada com amor. Só quem ama
tem atenções e delicadezas como as que encontrei
aqui. Sr. Leterre, eu sei quem preparou tudo isso.
Sei e estou muito comovida.

— Não estou autorizado a dizer-lhe nada.

— Não precisa. Percebi assim que entrei.

Senti-me feliz. Sabendo-os protegidos e
acomodados, sentia-me mais calmo. O fato de
saber que eles estavam na mesma cidade dava-me
tranqüilidade, apesar da imensa vontade de vê-los e
abraçá-los. Porém, mantinha minha palavra.

Se Sir Anthony me visse novamente, poderia
desconfiar da verdade e desencadear uma tragédia,
amargurando a vida de Anne. A experiência em
Bradenburg tinha sido muito desagradável. Aquele
homem era cruel e perverso, e eu temia por eles.
Eu não tinha o direito de perturbá-los.

Procurava ser para Eliane, Julien e Milena o
melhor possível, dedicando-me a eles com carinho e
sinceridade. Às vezes, a preocupação, a saudade de
Anne e Christopher, meu amor impossível, a
recordação dos poucos momentos de felicidade que
desfrutáramos toldavam-me o espírito e Eliane
percebia meu alheamento. A princípio, tentara saber
os motivos. Depois, deixara de perguntar,
oferecendo-me carinho, amizade, respeitando meu
silêncio, segurando minha mão com força ou
procurando assuntos amenos e agradáveis para
conversar, se fosse oportuno.

Eliane tinha o dom de ser sempre oportuna, de
saber o que era mais adequado em cada momento.
Por isso eu a amava muito. Era a alegria de minha


vida tão cheia de frustrações, o apoio natural e
seguro nos momentos de crise, a amiga certa de
todas as horas. Era carinhosa, sabia ser mulher e
amante, fazendo-me esquecer os problemas e as
dificuldades do dia-a-dia.

Eu a queria muito e isso me deixava mais
insatisfeito. Por que eu não conseguia esquecer
Anne? Por que seu amor atormentava-me, fazendo-
me sofrer, se eu tinha Eliane, tão boa, tão mulher e
que me dava tudo quanto um homem podia desejar
na vida?

Era com Lenice que eu desabafava, e ela me
ouvia pacientemente. Estava a par de tudo e
aconselhava-me prudência, compreensão e o
cumprimento do dever. O nascimento de André
completara a felicidade de Lenice. Eu, vendo-os tão
bem, sentia-me feliz.

A pedido de Lenice, eu freqüentava sua casa
uma vez por semana para estudar espiritismo.
Eliane e Julien, aos poucos, interessaram-se pelo
assunto e passaram a acompanhar-me nessas
reuniões, onde Lenice sempre explicava o que não
conseguíamos entender.

Nossa amizade estreitou-se e Jean também
participava atencioso e sério. Foram momentos de
harmonia e paz em que aprendemos a olhar a vida
sob um ângulo diferente daquele a que estávamos
habituados.

Sentado, pensativo, jornal entre os dedos, eu
não lia. Quando eu organizara a biblioteca na casa
que comprara para Anne, colocara entre os livros
vários volumes sobre espiritismo. Allan Kardec,
Arthur Conan Doyle, Ernesto Bozzano, Flamarion,
Sir William Crookes e outros. Esperava que Anne os
lesse e pudesse encontrar o mesmo conforto, a
mesma compreensão que eu tinha encontrado. Mas


como saber? A esse pensamento a angústia me
acometia. Procurava dominar-me e pensar que eu
nada podia fazer para mudar as coisas. E se
pudesse o que eu faria? Esse pensamento era-me
muito penoso e eu lutava para sair dele. De que
valia alimentá-lo? Começava a aprender que a
angústia, o pessimismo, a queixa jamais resolvem
nossos problemas. Têm o poder de nos
desequilibrar, de abater nossas energias, destruir
nossas forças, toldar a alegria e nada mais. Apesar
disso, era difícil lutar contra tudo isso e muitas
vezes eu ainda resvalara para a inquietação e para
a tristeza.

Eliane aproximou-se colocando sua mão sobre a
minha.

— Está uma linda tarde — disse com um sorriso.

— É?

— Vamos sair um pouco, dar uma volta, gozar a
beleza e a paz deste dia.

Olhei-a e um sentimento de remorso me acometeu.
Fechado em minhas emoções, eu estava sendo
egoísta.

— Vamos, concordei.

Saímos a pé, Eliane com Milena pela mão,
braço enfiado no meu. Aspirei gostosamente o ar.
Estávamos na primavera. Eliane chamava-me a
atenção ora para uma bela vivenda, ora para um
jardim bem tratado, e eu deixava-me conduzir
preguiçosamente, indo aos poucos me interessando
pelas coisas agradáveis e belas da vida. A certa
altura, ela parou, olhou-me nos olhos e disse:

— Jacques, vamos ter um filho.

Senti um baque no coração. Durante os anos do
nosso casamento, tínhamos esperado por esse
acontecimento. Como não vinha eu tinha me
conformado. Estava destinado a não ter a alegria de


um filho legítimo, que eu pudesse ver crescer e
amar.

A princípio, isso me aborreceu um pouco.
Depois, refleti que tinha Julien, Christopher, Milena.
Se não podia estar sempre com Christopher, os
outros dois amavam-me e para eles eu era o pai
verdadeiro e amigo.

Agora, tinha acontecido. Passei o braço pela
cintura de Eliane e apertei-a de encontro ao peito.

— Eliane! Tem certeza?

— Sim — afirmou ela com alegria.

— Teremos mais um filho. Olhou-me séria e
compreendi o que queria dizer. Era por isso que eu
a admirava.

Respondi alegre:

— Sim. Mais um filho para nos trazer alegria e a
quem daremos muito amor!

Naquele momento esqueci meus problemas e
senti-me muito feliz.

Em uma tarde fria de outono nossa filha
nasceu. Tomando-a nos braços tão pequenina e
delicada, meu coração sensibilizou-se. Senti
despertar dentro de mim um amor imenso e
profundo.

Eliane, rodeada por Milena e Julien, tendo à
pequenina nos braços, sentia-se muito feliz. Lisete,
desde o primeiro instante, encheu nossa vida de
luz. Tendo-a nos braços, sentia um enternecimento
muito grande. Olhando seu rostinho mimoso, uma
onda de calor inundava-me a alma.









Capítulo XI






E o tempo passou por nós rapidamente, em
meio ao desabrochar encantador de Lisete, as
graças de Milena e a juventude inquieta de Julien.

Apesar do amor da família, do profundo
sentimento que Lisete fizera nascer em mim,
durante seu primeiro ano de existência, eu me
lembrava muitas vezes de Anne, obtendo sempre
notícias com o Sr. Leterre.

Mesmo residindo na mesma cidade, não nos
vimos durante esse tempo. Anne levava vida
discreta e não freqüentava os lugares da moda.
Quando eu comparecia ao Teatro da Ópera, buscava
sempre encontrá-la entre os assistentes,
recordando seu amor pela música e o nosso
primeiro encontro.

Porém nunca a encontrei. Eu sabia que ela era
grande apreciadora da arte e a renda que ela
"herdara" do suposto súdito que eu lhe fizera
chegar às mãos era mais do que suficiente para que
ela pudesse decentemente ir à ópera e desfrutar do
meio social a que estava habituada. Eu não
compreendia por que ela, jovem e bela, permanecia
afastada dos prazeres naturais da vida, preferindo
ficar sempre entre as paredes de sua casa.

Algumas vezes mencionei esse fato ao Sr.
Leterre. Apesar de não poder estar com ela, ter o
seu amor, eu ansiava por vê-la ainda que de longe
e acompanhar um pouco sua vida com Christopher.

— Compreendo Anne — disse-me um dia.

— É uma mulher de muita vida interior. Lê muito e
não está indiferente ao progresso nem às
descobertas do mundo moderno. Não vive reclusa
como você pensa. Ao contrário, é muito bem


informada. Porém não gosta de freqüentar as rodas
sociais. Foge disso sempre.

— Por quê? — indaguei contrariado. — Tem receio
de ver-me?

O Sr. Leterre sacudiu a cabeça pensativo.

— Não sei. O que ela mesma me disse é que não
gosta das pessoas que os têm procurado por causa
da nobreza de sua linhagem. Alguns visando
projeção social, outros tentando explorar a
possibilidade de uma tentativa de reivindicação dos
direitos de Christopher ao condado de Loucester.

— Ainda há quem pense nisso?

— Certamente. Nobres ingleses banidos, pessoas
interesseiras, pretendendo usufruir futuros
benefícios... Eles rodeiam Anthony, cujos anseios
alimentam e estão sempre conspirando, procurando
uma forma de tentar uma volta a Dolgellau.

— Eu não sabia... E Anne?

— Anne não os aceita. Tem acompanhado com
interesse as notícias sobre Dolgellau e disse-me
estar satisfeita com as melhorias e os benefícios
que Sir William tem feito ao seu povo. Informou-me
textualmente:

— Se Sir William não tivesse sendo bom para o
condado, eu me levantaria para reivindicar os
direitos de Christopher. Desde que cumpre com
seus deveres e desempenha satisfatoriamente suas
tarefas, não há motivo para que alguém tente
modificar as coisas.

— Mas Christopher é o legítimo herdeiro de tudo
aquilo.

— É, porém a vida tirou-lhe dos ombros esse
encargo e nós não sabemos se ele suportaria bem
esse peso. Comandar um povo não é tarefa simples
e é preciso ser forte o bastante para isso.

— Quer dizer que não vai fazer nada?


— Enquanto Sir William estiver sendo bom e justo,
capaz e eficiente, nada farei. Anthony é ambicioso e
anseia o poder. Seria muito cruel para o nosso povo
tê-lo de volta. Seria ruim para Christopher, a quem
por certo tentaria envolver com suas idéias
perigosas. Deus sabe o que faz. Meu filho tem bons
sentimentos e nobreza de alma. Não desejo
envolvê-lo com as intrigas políticas. Se ele tiver que
comandar Loucester algum dia, Deus o colocará lá
da mesma forma que o tirou. Está tudo bem como
está.

— Que mulher! — suspirei admirado.

— Tem razão. Lady Anne é uma verdadeira dama.

— Sendo assim, o que ela faz, então? Como
preenche o tempo? O Sr. Leterre sorriu:

— Você ainda se interessa por ela.

— Sempre. Amo Anne, sempre a amarei. Estamos
separados, mas o amor permanece.

— Cuidado. Não se deixe levar pela fantasia. Um
amor impossível parece sempre maior do que
realmente é.

— Não pretendo perturbar a vida de Anne nem a de
Christopher. Se puder compreender, eu amo minha
família. Eliane é esposa dedicada e muito querida.
Mas Anne desperta em meu coração um amor
diferente, profundo, pleno. É difícil definir.

O Sr. Leterre suspirou, dizendo sério.

— Os mistérios do coração humano são
impenetráveis. Anne é mulher ativa, se quer saber.
Dirige a casa deliberando com eficiência sobre tudo,
orienta ela própria a educação de Christopher e até
agora dispensou professores. Lê e pinta. Tenho
encontrado em sua sala algumas moças às quais ela
dá aulas.

— Aulas? Por acaso estará precisando de dinheiro?
— indaguei contrariado.


— Não se trata disso. São estudantes que não têm
meios para pagar e desejam ilustrar-se. Anne não
cobra nada.

— Por que fará isso? — indaguei admirado.

— Porque gosta. Essa mulher admirável acha que a
cultura abre as portas do espírito e o saber
transforma as criaturas. Diz que o mundo só vai
melhorar quando os homens se tornarem melhores.
Que é dever dos que sabem mais ensinar o que
sabem menos, se eles querem aprender.

— E dedica o seu tempo a isso?

— Sim. Vive rodeada de jovens que a admiram e
respeitam, sendo que muitos nada fazem sem lhe
pedir opinião.

— É singular — considerei, sentindo dentro de mim
uma ponta de ciúme.

Eles podiam estar com ela, eu não.

— Anne não é uma mulher comum, é uma alma
nobre, uma verdadeira dama.

Daquela hora em diante, comecei a pensar na
futilidade da minha vida, ainda às voltas com as
rodas sociais, cheias de ilusões e de hipocrisia.



**********



Foi com Lenice, irmã e confidente, que
comentei o fato, manifestando estranheza. Para
mim, as mulheres eram como flores de estufa, para
serem cultivadas, amadas, encherem nossa vida de
beleza, alegria e nada mais.

Lenice respondeu com energia:

— Do que se admira? Anne é um espírito lúcido que
compreende sua posição diante da vida. Gostaria de
conhecê-la para abraçá-la. Admiro-a e respeito.

— Mas ela não precisa fazer isso. Dar aulas e
ocupar-se dessas funções.


— Ela gosta de ser útil, quer distribuir os talentos
que Deus lhe deu. É um dever que compete a todos.
O mundo seria muito melhor se os que sabem mais
ensinassem os que sabem menos, se os que têm
mais ajudassem os que têm menos para que
conquistem a capacidade de conseguir mais, os
fortes ensinando aos fracos como desenvolverem
suas forças, e assim por diante. É a lei da vida. Feliz
daquele que percebe isso e se integra nesse
caminho. Fatalmente vencerá.

— Você diz isso com tanta firmeza e eu fico
pensando na futilidade com que tenho gasto meu
tempo de lazer, entre os divertimentos sociais, que
nem sempre me dão alegria.

Ela sorriu.

— Não vamos exagerar. Você tem sua vida, seus
negócios, sua família, gosta de distrair-se na ópera,
de receber os amigos, de conviver socialmente. Não
há nada de mal nisso.

— Mas às vezes sinto um vazio dentro de mim.
Parece que falta algo. Que estou fazendo tudo
quanto poderia e essa sensação de incapacidade
deixa-me deprimido, triste, insatisfeito.

Lenice alisou minha cabeça com carinho.

— Seu espírito está despertando para outras
necessidades, é preciso perceber quais são.

— De que forma?

— Aos poucos você conseguirá defini-las.

— Não pode dizer-me?

— Não. Minha visão é diferente da sua. Não sei o
que seria melhor para você. Confio que você mesmo
possa sentir e procurar seu próprio caminho. Calma.
Tudo virá a seu tempo.

Baixei a cabeça pensativo. Anne para mim
continuava inatingível.


— Sinto-me insatisfeito. Tenho a impressão de que
Anne se distancia de mim cada vez mais.

— O que não o impede de amá-la como sempre. O
amor verdadeiro contenta-se em dar. Rejubila-se
com o progresso do ser amado e jamais tenta
impedi-lo de progredir. Anne é um espírito que sabe
discernir. Você não conseguirá detê-la.

— Nunca consegui. Isto me torna inseguro. Se ela
me amasse, teria deixado tudo por mim.

— Não seja criança. Anne conhece seus deveres
diante da vida e sabe perfeitamente o que deve
fazer e procura fazê-lo bem. Deve deixar de lado
esse ciúme descabido e perceber que ela luta
corajosamente. Deve ajudá-la, compreendendo-
lhe o esforço. Se ela não o amasse, jamais teria
correspondido ao seu afeto. Não me parece mulher
capaz de uma aventura.

— Tem razão. Às vezes, perco a noção da realidade.

— Se o amor de vocês for verdadeiro, um dia ele os
reunirá definitivamente, seja onde for.

Respirei fundo. Algum dia...

Em minha impaciência, considerava isso tão
distante, quase impossível. Mas eu não tinha outra
alternativa senão deixar o tempo correr e esperar.



**********



.A notícia caiu sobre mim como uma bomba.
Abri o jornal como de hábito e lá estava ela:

"Nobre inglês assassinado misteriosamente. Sir
Anthony Joseph Templeton foi assassinado
barbaramente e seu corpo encontrado em pequena
casa abandonada em bairro afastado. A polícia
ainda não tem nenhuma pista, mas suspeita que Sir
Anthony tenha se envolvido em conspiração e
espionagem com membros de seu país."


Deixei cair o jornal sentindo as pernas trêmulas
e o coração batendo forte. Anne estava livre! Tive
ímpetos de correr para ela, ajudá-la a suportar os
momentos de dificuldade que por certo estaria
enfrentando.

Passei a mão pelos cabelos sem saber o que
fazer. Saí em busca do Sr. Leterre. Não estava em
casa. O velho amigo estava com Anne, certamente
amparando-a naquela hora. Não pude suportar a
angústia e fui até lá.

A casa estava cercada por policiais e fui
obrigado a identificar-me como amigo do Sr. Leterre
e disse estar à sua procura. Não declinei minha
amizade com Anne.

— O Sr. Leterre não está — disse o policial,
olhando-me fixamente.

— Fui informado de que ele teria vindo para cá —
expliquei decepcionado.

— Veio de fato. Mas saiu. Foi cuidar de alguns
papéis. Exigências da lei. Não sei quando voltará.

Eu sentia um desejo enorme de entrar, de
abraçar Anne, de dizer-lhe que estava ali. Porém
não achei prudente. Havia repórteres, curiosos, a
polícia investigando e eu não pretendia
comprometer Anne naquela hora. Tirei um cartão do
bolso e disse com voz que procurei tornar
indiferente e formal:

— Apresento condolências à viúva. Queira, por
favor, transmitir-lhe meus sentimentos.

Afastei-me procurando conter a ansiedade.
Precisava ter notícias. Decidi voltar à casa do Sr.
Leterre. O velho amigo ainda não tinha voltado e eu
resolvi esperar. Ele era o meu único contato, o
ponto de ligação para saber como estavam às
coisas.


Foi no meio da tarde que ele finalmente
chegou. Fisionomia cansada abraçou-me com a
delicadeza de sempre.

— Imaginei que você estivesse querendo notícias,
porém não houve tempo para muita coisa.

— Está cansado, mas tenha paciência e conte-me
como aconteceu. Li a notícia nos jornais.

— Não há muito mais para dizer. Sir Anthony saiu
para uma viagem de fim de semana. Não disse
aonde ia. Os dias foram passando e ele não voltava.
Ontem a polícia procurou Anne. Tinham encontrado
o corpo, e embora não houvesse documentos, havia
o anel blasonado e puderam identificá-lo. Anne,
chocada, acompanhou os policiais e reconheceu o
corpo. Pediu para que eu fosse avisado e desde
ontem estou fazendo o possível para tratar de tudo.
Ele era estrangeiro, há formalidades, papéis...

— A polícia suspeita de alguém, tem pistas?

— Quase nada. Ele foi morto a facadas. Tanto pode
ser um crime passional quanto político. A hipótese
de roubo está afastada. Sir Anthony perdeu apenas
os documentos. Embora ele fosse belicoso,
atrabiliário e por isso tenha granjeado muitas
inimizades, a polícia acha menos provável que
tenha sido um crime passional. Sua ambição, seu
desejo de voltar a Dolgellau, ter o antigo poder, era
conhecida de todos. Anne acredita que ele nunca
tenha deixado de conspirar. É possível que tenha se
envolvido com pessoas inescrupulosas, pretendendo
alcançar seus fins. É apenas uma suspeita. Não há
provas concretas de que tenha sido assim.

— É o mais provável — concordei pensativo. —
Estive na casa de Anne, mas procurei pelo senhor.
Não quis comprometê-la.

— Fez muito bem. A polícia procura suspeitos em
toda parte. Investiga todos os que têm ou tiveram


qualquer ligação com a família. Se descobrisse a
ligação passada de vocês, seria desastroso. Além do
escândalo, não sei a que extremos poderiam
chegar. Seria desagradável. Deve afastar-se o mais
possível dela neste instante. Nada há que possa
fazer. Tomei todas as providências legais e temos
agora que esperar a liberação do corpo para
sepultá-lo. Vou descansar um pouco, refazer as
energias e voltar à casa de Anne. Ela também se
recolheu para descansar. Passamos a noite em
claro.

— Compreendo. Vou embora. Só lhe peço para dar
notícias. Avalio o sofrimento de Anne. Não amava o
marido, mas por certo estará chocada com o crime.

— Muito. Ficou abalada. Christopher também, está
muito assustado.

— Gostaria de estar ao lado deles e dar-lhes forças,
amparo nesta hora.

— Eu sei. Mas é impossível. Pode ficar tranqüilo,
farei tudo que puder. Gosto de Anne como de uma
filha. Admiro-a. Darei notícias de tudo assim que
houver alguma novidade.

— Mesmo que não haja, quero saber se estão bem.

— Está certo. Farei isso.

Saí da casa do Sr. Leterre emocionado. Desejei
caminhar um pouco. Fui andando, pensativo,
indiferente ao movimento das ruas, imerso em meu
mundo interior. Apesar da brutalidade do crime, que
eu não desejara, do choque que Anne estava
passando, do desagradável envolvimento com a
polícia, jornais, havia um ponto positivo: Anne
estava livre. Quando tudo passasse e o crime fosse
resolvido ou esquecido, eu poderia vê-la livremente.
Abraçar Christopher. Nada poderia impedir-me.

Andei bastante e só quando me senti muito
cansado fui para casa. Pelo olhar admirado de


Eliane, percebi que meu aspecto não era dos
melhores.

— O que aconteceu? — indagou ela, procurando
meus olhos com carinho.

Tentei recompor a fisionomia.

— Nada. Estava indisposto e fui andar um pouco.
Estou melhor.

Já passou.

Fui para o quarto, tentando recompor a
aparência. Não queria que ninguém soubesse o
ocorrido. Embora lutando para ser o mesmo de
sempre, sentia em mim uma diferença. Havia algo
no ar, modificando tudo. Eu tinha receio de
perceber o que era.

Tentei dar atenção às brincadeiras de Milena,
aos gracejos de Julien e às graças de Lisete, mas no
fundo, no fundo, dentro de mim, eu sentia que
tudo, dali por diante, poderia mudar.

Os dias que se seguiram foram de expectativa.
Sentimentos os mais contraditórios banhavam-me o
coração. O Sr. Leterre dava-me notícias e os jornais
diziam que a polícia não tinha nenhuma pista
segura do crime. Dez dias depois do sepultamento
de Sir Anthony, Anne e Christopher partiram para
Bradenburg. Tinha chance de vê-la, conversar com
ela, abraçá-la. O Sr. Leterre tentou dissuadir-me.

— Não faça isso! A polícia tem agentes
encarregados de vigiá-la. Receiam que o crime
tenha sido político e temem que atentem contra a
vida de Christopher.

Estremeci de horror.

— Acha que ele corre perigo?

— Não sabemos. Esses fanáticos são capazes de
tudo. Em todo caso, há agentes atentos. A polícia
acha que assim poderá encontrar alguma pista. Por


isso, não é aconselhável sua presença. Não convém
envolver-se.

Fiquei contrariado. Ele tinha razão.

— Anne está livre agora. Pensei que nada pudesse
impedir-me de vê-la.

— É preciso paciência.

— Desejo vê-la. Confortá-la.

— Posso compreender. Todavia, melhor será
esperar. Apesar de tudo, entre vocês as coisas não
mudaram muito. Anne é livre, você não. É preciso
ser prudente e não precipitar os acontecimentos.

As palavras do Sr. Leterre abalaram-me
profundamente. Ele tinha razão. Anne estava livre,
eu não. Senti-me inquieto. Procurei afastar esse
pensamento.

— Eu só queria vê-los. Saber se estão bem. Nada
mais.

O Sr. Leterre fixou-me e percebi o brilho emotivo
em seus olhos quando disse:

— Por certo, Jacques. Melhor assim.

Apesar de saber que não deveria procurar
Anne, eu sentia enorme desejo de largar tudo e
correr para Bradenburg, onde tudo nos falava de
amor.

Por certo, Anne andaria pela casa, olharia
aquelas paisagens e se lembraria comovida dos
momentos de intensa emoção que tínhamos
desfrutado. Seus olhos percorreriam os lugares
vazios onde tínhamos estado juntos e eu temia que
ela, sentindo-me ausente, sabendo-me casado com
outra, duvidasse do meu amor, sofresse ou
procurasse esquecer-me.

Esses pensamentos inquietavam-me, faziam-
me perder o sono, enchendo meu coração de
angústia. Eu queria correr para ela, dizer-lhe que
ainda a amava e que nunca a esquecera.


Então, lembrava-me de Eliane e Lisete. Elas
também ocupavam um lugar em meu coração.
Apesar disso, arrependia-me de ter casado. Por que
não soubera esperar? Por que não permanecera fiel
ao amor de Anne, sem comprometer-me com
Eliane? Se não tivesse casado, não haveria Lisete.
Lisete! Seu rostinho alegre, suas mãozinhas
carinhosas, seus braços estendidos para mim, sua
voz delicada dizendo as primeiras frases, sua figura
adorada enchia meu coração de amor. Ela era parte
de mim e eu bendizia a hora em que ela viera ao
mundo.

Atormentado, eu não conseguia trabalhar com
isenção. E os processos avolumavam-se em minha
mesa para serem estudados. Eu gostava de exercer
a magistratura. A Justiça sempre me fascinara e a
faculdade de decidir, de ajudar, de poder conceder
ou cobrar o que era de direito era para mim como
um sacerdócio. Um privilégio que eu levava muito a
sério.

Apesar de a interpretação da lei ser uma arte
magistral e absorvente, eu me sentia mais
influenciado pelos problemas humanos e Lenice
exercia grande influência sobre mim quando eu
discutia com ela os casos e os processos que
passavam pelas minhas mãos. Por ter resolvido
certos casos com prudência e encontrado soluções
adequadas sentenciando e penalizando com certa
sabedoria, eu tinha conseguido sucesso em minha
carreira. Apesar de ser mais moço do que a maioria
dos magistrados, era muito considerado e era
designado para julgar os casos mais complexos.

Claro que recorria a Lenice, com quem trocava
idéias e nessas conversas eu quase sempre
conseguia perceber novos aspectos do caso e
descobrir por isso soluções mais justas.


Foi do meu trabalho que eu desenvolvera
melhor meu senso de justiça. Embora em minha
vida particular eu por vezes transigisse, acreditava
que comigo eu podia facilitar. Quando se tratava
dos outros, das pessoas que esperavam minha
decisão como juiz, tudo se modificava. Eu vestia a
toga de corpo e alma. Naquela hora me tornava
puro e transparente como o vidro. Era como se em
mim se manifestasse algo sobrenatural, uma
espécie de Deus que deveria justiçar os homens,
premiando o bem e castigando o mal. No estado de
perturbação em que me encontrava, não conseguia
equilíbrio para trabalhar, estudar os processos.

Nas sessões espíritas que fazíamos na casa de
Lenice uma vez por semana, após os momentos de
estudos, discutíamos a filosofia dos espíritos e seus
ensinamentos, o evangelho de Jesus e suas
conseqüências na vida prática. Lenice sempre
recebia a visita de um espírito amigo que nos
esclarecia sobre os pontos estudados e a quem
podíamos expor nossas dúvidas e necessidades.

Eliane também comparecia a essas reuniões.
Por isso mesmo, querendo perguntar a respeito de
Anne e do crime, eu não me atrevia.

Foram eles que espontaneamente mencionaram
o assunto, de maneira discreta e esclarecedora.
Falaram dos crimes políticos, das ambições, dos
choques de poder, explicando que a violência gera
violência e que cedo ou tarde ela volta sobre quem
a praticou.

Compreendi. Anthony fora muito violento
cometera crimes pela ânsia do poder, agora
tombara por sua vez pela agressão. E Anne, como
estaria? E Christopher? Como conseguiriam viver
afastados dessa luta política?


Novamente o mentor espiritual, através de
Lenice, esclareceu: — Os que vivem na justiça e
não ferem ninguém serão protegidos pelo Senhor.

Suspirei aliviado. Anne não era ambiciosa nem
violenta. Era nobre e justa, honesta e de paz. Por
certo seria preservada. Era difícil para eu suportar a
separação agora. Sentia ímpetos de correr para
Anne, saber como ela estava, dizer-lhe o quanto
ainda a amava. Isso não era possível e eu
procurava acalmar-me e ter paciência para esperar.
Esperar o quê? Eu não sabia. Essa incerteza era
meu tormento.

Bondosamente Lenice me havia aconselhado.

— Procure no trabalho sua proteção.

— Não posso trabalhar. Minha cabeça está confusa.
Como decidir sobre os destinos das pessoas sem a
clareza de raciocínio para perceber os fatos? Como
julgar sem base?

Lenice olhou-me séria:

— Não se coloque em lugar de um fraco, o que você
não é.

Você é um homem digno, que compreende os
problemas alheios. Não é Deus. Fatalmente
cometerá erros, como todas as pessoas. Enquanto
se tortura por algo que no momento não tem
solução, por um problema que não pode modificar,
há pessoas esperando pela sua palavra para
decidirem suas vidas, aguardando a dignidade de
verem seus direitos respeitados, suas questões e
pendências solucionadas.

Fiquei um pouco irritado. Lenice nunca me falara
daquela forma, objetei:

— Está sendo dura comigo. Estou em crise. Não
tenho condições de trabalhar. Vivo perturbado,
aflito, inseguro, insatisfeito.

— O que deseja realmente?


— Não sei. Tenho ímpetos de correr para Anne,
porém sei que ela não me aceitará por causa de
Eliane. Depois, há Lisete...

Lenice passou a mão pelos meus cabelos com
carinho, porém sua voz era firme quando disse:

— Jacques, não destrua sua vida por uma ilusão.

— Ilusão?! Eu amo Anne!

— Pode ser. Mas você nunca se casou com ela. Não
a conhece na intimidade, nos problemas do
cotidiano. Na convivência é que percebemos se
realmente amamos ou não.

— Anne é maravilhosa, eu a adoro. Sei que me faria
feliz.

— Acredito. Pensa em deixar sua família e ir viver
com ela?

Fiquei assustado.

— Não. Não posso. Anseio por Anne, mas ao mesmo
tempo Eliane é generosa, boa companheira. Há
crianças, não posso deixar Lisete.

— Nesse caso, você já decidiu.

— Já?

— Claro. Não deixe a sua família.

— Não posso abandoná-los.

— Então precisa esquecer Anne. Está se
atormentando inutilmente. Ou pretende tê-la como
amante?

Não tive coragem para dizer isso em voz alta. No
fundo era isso o que eu queria. Não desejava perder
nada, escolher, optar. Eu queria tudo. Calei. Lenice
prosseguiu firme:

— Acha que Anne aceitaria? Concordaria em ser a
outra, em ter você de vez em quando, às
escondidas? E Christopher, quando descobrisse, o
que pensaria?

— Não faça esse juízo de Anne. Ela é orgulhosa e
digna. Jamais aceitaria uma situação dessas.


— Então, por que se atormenta? A situação já está
definida. Se você não larga a família e ela não
aceita ser sua amante, por que se tortura?

— Porque eu a amo e não posso esquecer.

— Você se colocou nessa situação voluntariamente.
Não tem sido feliz com Eliane? E uma bela e
inteligente mulher. Boa mãe e esposa. Ama-o
muito. Não acha que está sendo caprichoso?

— Não — respondi com sinceridade. — A vida é
que tem sido caprichosa comigo. Desposei Elisa
pressionado e enganado. Quando encontrei o amor,
ele era impossível. Tentei refazer minha vida de
outra forma. Agora que Anne ficou livre, eu é que
estou comprometido. Tenho motivos de sobra para
lamentar-me.

Lenice fixou-me os olhos com doçura e respondeu
com voz firme:

— Não transfira sua responsabilidade diante dos
fatos, querendo aparecer como vítima. Não é
verdade. Você sempre fez o que quis. Depois, se
você não quer separar-se de sua família, o melhor
será esquecer Anne. Dedicar-se ao bem-estar dos
seus filhos, da sua mulher, usufruir da felicidade
que já possui.

— Não estou feliz. Ao contrário. Vivo atormentado.
A recordação de Anne e Christopher não me deixa.

— Você quer tudo. Entretanto, a vida, que é
disciplinada, nos força a optar. Uma coisa de cada
vez. Jacques é preciso aceitar suas condições, seus
limites. Deus sempre determina o melhor. Você não
vai poder ter Eliane e Anne. São duas situações
diferentes. Você diz que já escolheu, porém não o
fez. Sua consciência aponta-lhe o dever, a
dignidade e até seus sentimentos reforçam a
hipótese de ficar junto à sua família. Mas a vaidade,


a fantasia, o orgulho o convidam a buscar Anne e
não abrir mão do seu amor.

Senti-me ofendido.

— Amo Anne profundamente. Não é por vaidade
que a quero. Você está sendo rude.

— Quero que perceba a verdade. Você ama sua
família, todavia atormenta-se inutilmente por uma
aventura. Será mesmo amor o que sente por Anne?

— Claro que é amor! — protestei ofendido.

— Nunca se perguntou se as dificuldades, o
mistério, a posição de Anne, sua beleza, sua
inteligência não estimularam sua vaidade? Não
colocou nesse relacionamento muitas fantasias?

Senti-me magoado. — Pensei que me
compreendesse — disse triste. — Amo Anne.

— Não duvido da sua sinceridade. Entretanto, pense
no que eu disse. Acautele-se. Analise seus
sentimentos profundamente para não tomar
nenhuma decisão da qual possa vir a arrepender-se.
O orgulho nos prega muitas peças. Todo cuidado é
pouco.

— Não tenho nenhuma dúvida quanto ao meu amor
por Anne.

Anseio por vê-la, estar com ela, sentir seu perfume,
ver seu sorriso, respirar o seu ar.

Lenice olhou-me triste.

— Não mergulhe na fantasia cultivando um
sentimento que agora só lhe trará problemas.
Mesmo que seu amor seja verdadeiro, no momento
ainda não é possível sua realização. Você quer viver
com a sua família. Por que então não se aproveitar
dessa oportunidade para ser feliz com eles tanto
quanto já lhe é possível? Por que atormentar-se
com um sonho irrealizável por ora e atirar fora a
felicidade verdadeira e real que já detém nas mãos?
Não estará agravando seu problema?


Eu sentia que Lenice tinha razão. Era-me difícil
aceitar que Anne deveria ser esquecida, ainda que
temporariamente. Sem argumentos, respondi:

— Tem razão. Vou tentar esquecer Anne.

— Será melhor. Você tem uma família maravilhosa
que o ama muito. Coloque seu amor por eles para
fora. Dedique-se, aproveite essa alegria. Tenho
certeza de que será muito feliz.

Saí da casa de Lenice pensativo. Sentia que
amava a família e que dar-lhes amor não me seria
difícil. Por outro lado, Anne era a aventura, o
inesperado. Como esquecer?











CAPÍTULO XII





A notícia me perturbou. Anne estava de volta!
Durante aqueles dois meses em que ela estivera em
Bradenburg, eu tinha conseguido dominar a
impaciência.

O conselho de Lenice fizera-me muito bem.
Voltara ao trabalho com coragem e dedicara-me à
família com sinceridade. Interessava-me pelas
experiências amorosas de Julien, o talento de Milena
para o desenho, a graça de Lisete recitando poesias,
mergulhara nos braços de Eliane com redobrado
carinho.

Ocupara todos os momentos e embora sentisse
dentro de mim as saudades de Anne, usufruía horas
felizes em que a alegria cobrira minha alma de paz.
Estava vencendo meu conflito.

Todavia, quando o Sr. Leterre informou-me da
volta de Anne, a tentação reapareceu.


Anne estava tão perto! Agora, não havia mais a
presença de Sir Anthony. Poderíamos conversar
livremente. Ninguém nos estaria espiando,
nenhuma ameaça pesava sobre nossas cabeças. Eu
precisava vê-la. Mesmo que nosso amor fosse
impossível, havia muitas coisas a dizer. Queria
confortá-la. Tinha passado por momentos difíceis e
eu nada pudera fazer.

Naquele dia foi-me difícil trabalhar. Lia e relia
os autos que tinha em mãos, sem compreender os
fatos, sentindo o coração oprimido e as lembranças
do passado com Anne povoando-me a mente. Saí.
Inútil insistir.

Andei um pouco pelas ruas da cidade, sem
disposição para regressar à minha casa.

A tarde tinha acabado e a noite já começava a
descer quando toquei a sineta da casa de Anne.
Uma criada introduziu-me à sala de estar indicando-
me uma cadeira com delicadeza. Não me sentei.
Estava ansioso, transtornado. Quando Anne surgiu,
muito alva em seu vestido negro, corri para ela
tomando-lhe a mão e beijando-a demoradamente:

— Anne! — murmurei. — Esperei muito por este
momento!

Puxei-a para mim e abracei-a procurando seus
lábios. Aquele beijo reacendeu a chama daquele
amor que eu tinha lutado para apagar.

Esquecido de tudo, de todos, eu a apertava nos
braços beijando-a com enlevo repetidas vezes.

Foi ela quem me afastou com delicadeza.

— Que saudade!

Ela não disse nada. Olhava-me emocionada e
seus olhos refletiam os sentimentos que lhe
invadiam o coração. Exultei! Anne ainda me amava.
Apesar de tudo, não tinha conseguido esquecer.
Estava abatida dentro do luto fechado que usava.


Um pouco mais magra talvez. Mas os mesmos belos
olhos que eu não tirava da mente, o mesmo rosto
delicado, a mesma boca que eu sempre queria
beijar.

— Precisamos nos acalmar — disse ela com voz que
procurava tornar firme.

Lutei para dominar a euforia. Sentamo-nos lado
a lado no belíssimo sofá adamascado. Olhei-a
tentando dominar a avalancha de emoções que
brotava dentro de mim. Viera pensando em
confortá-la, entretanto, naquele instante, vendo-a
ali, toda minha angústia reapareceu e dei largas ao
que me ia à alma.

— Tenho sofrido muito — reclamei. — Queria estar
a seu lado, mas foi impossível. Sua casa estava
sendo vigiada pela polícia, não quis prejudicá-la.

— Eu sei. Recebi seu cartão. O Sr. Leterre contou-
me tudo.

Tomei-lhe as mãos dizendo emocionado:

— Anne! Amo-a tanto!

Ela olhou-me com amor e não me contive,
tomei-a nos braços beijando-a novamente, sentindo
crescer a emoção. Foi ela de novo quem conseguiu
desvencilhar-se dos meus braços.

— Precisamos nos conter. Por favor! Christopher
pode entrar e as criadas. Não quero ser
surpreendida.

Esforcei-me para dominar meus sentimentos.
Anne tinha razão. Sentei-me em frente a ela
olhando-a nos olhos. A custo continha a impaciência
e o desejo de apertá-la de novo nos braços.

— Gostaria de ter ficado a seu lado quando tudo
aconteceu.

Fundo suspiro escapou do peito de Anne.


— As coisas não são como nós gostaríamos. O Sr.
Leterre, mais uma vez, deu-me todo o apoio. Tem
sido como um pai, bondoso, prestativo.

— Infelizmente não pude fazer nada. Só teria
complicado a situação.

Anne assentiu com a cabeça:

— Compreendo. Agora tudo já está mais calmo.
Nem a polícia nem os jornais têm me incomodado.
O tempo passa e agora eles já começam a
esquecer.

— Para você não é tão fácil.

— Tem razão. A princípio o choque, o inesperado, o
terror.

Você sabe, nunca amei meu marido. Nosso
casamento foi imposto por meu pai. Apesar do
engano que ele cometeu, não o censuro. Acreditava
sinceramente ter encontrado o homem ideal para
comandar Dolgellau quando ele morresse. Queria o
herdeiro. Anthony era um homem forte fisicamente,
saudável, soube conquistar-lhe a simpatia.
Identificava-se com ele em muitos aspectos. Meu
pai também não foi um chefe preocupado com o
bem-estar de seus súditos.

Apesar de tudo isso, fiquei muito chocada com a
morte de Anthony.

Não lhe desejava tão triste fim.

— Ele nunca se conformou com o exílio.

— É verdade. Nunca deixou de conspirar. Meteu-se
com aventureiros interessados em explorar-lhe os
sentimentos em proveito próprio. Procurei demovê-
lo. Por isso, ele passou a fazer tudo secretamente.
Nunca me contou nada, porém eu desconfiava que
ele estivesse tramando.

— Esse crime só pode ter sido político.

— Foi à conclusão a que a polícia chegou.

— Eles têm alguma pista?


Anne balançou a cabeça.

— Não. Mas os fatos, as circunstâncias fazem crer
que assim tenha sido.

— Espero que deixem Christopher em paz. Ele ainda
é o herdeiro de Loucester.

— É. Para evitar isso é que sempre tenho afirmado
não pretender nada para ele. Tudo está bem como
está. William tem sido bom e justo para com nosso
povo. O poder é um peso que não desejo para meu
filho. Traz mais problemas, mais lutas do que
satisfação e alegria. Governar Dolgellau seria uma
responsabilidade que nós só assumiríamos caso o
bem-estar dos nossos estivesse em jogo.

Não pude deixar de admirá-la. Anne sempre
demonstrara muito bonita lucidez e dignidade.

— O que pensa fazer?

Ela olhou-me séria enquanto dizia:

— Ocupar-me com coisas úteis. Talvez forme uma
classe de aulas para jovens. Ainda não decidi.

— Mas você não precisa fazer isso! — protestei
contrariado.

— É verdade. Você foi muito generoso conosco.
Financeiramente nada nos falta. Porém a ociosidade
me oprime e entedia. A solidão é má companheira e
não a desejo.

— Poderia freqüentar a sociedade, conviver com os
de sua classe.

— Não aprecio as reuniões frívolas e sem proveito.
A vida é muito preciosa para que venhamos a
desperdiçá-la. Eu quero viver bem. Aproveitar todos
os minutos. Produzir o bem. Aprender o que puder e
ensinar o que já sei. Estou consciente dessa minha
necessidade.

— É uma maneira singular de pensar.

— Pode ser, mas é a única que me satisfaz. Quero
que Christopher aprenda a conviver com as


pessoas, saiba compreendê-las e perceba que viver
é uma oportunidade de aprender sempre, de
enriquecer o espírito, de fazer o que é bom.

Não pude deixar de sorrir.

— Você está muito parecida com Lenice.

— Lenice?

— Minha irmã. É uma pessoa a quem amo muito.
Anne sorriu.

— Nunca me falou sobre sua família.

— Minha mãe vive só na casa onde nasci. Lenice é
minha única irmã, é casada e mora aqui em Paris.

— Gostaria de ter uma irmã. Ser sozinha não é
muito agradável. Christopher ainda é criança para
compreender certas coisas.

Senti uma onda de emoção.

— A vida não tem sido fácil para você. Lenice tem
sido minha amiga e confidente. Nos momentos de
crise, sempre vou ter com ela. Sua compreensão,
sua lucidez têm me ajudado muito.

Anne balançou a cabeça.

— Não me queixo da vida. Tenho o que Deus
permitiu, mas gostaria muito de ter uma irmã como
ela.

— Lenice não é uma pessoa comum. É uma
sensitiva. Percebe coisas que a maioria das pessoas
não vê. Acredita na sobrevivência do espírito depois
da morte, na reencarnação. Isto é, que nós já
tenhamos tido outras vidas na Terra, antes desta.
Que nossos problemas de hoje refletem os nossos
atos daqueles tempos.

— Que interessante! Sempre tive a sensação de já
ter vivido na Terra antes de agora. De vez em
quando, tenho a impressão de conhecer certos
lugares que visito pela primeira vez. Paris, para
mim, sempre foi muito familiar. Quando aqui vim
pela primeira vez, conhecia certos lugares, sem


haver estado neles anteriormente. Pode
compreender?

— Posso — respondi convicto. — Você poderia ter
vivido em Paris numa outra existência.

— Nunca tive explicação para isso.

— Lenice estuda esses assuntos. É seguidora do
espiritismo.

— Espiritismo?

— É uma ciência, uma filosofia, que os faz
compreender o porquê da vida e respondem muitas
das nossas indagações.

— Gostaria de conhecê-la.

— Vou trazer-lhe os livros. Trata-se de obra
extraordinária codificada de forma sui generis pelo
seu autor, o professor Rivail, que adotou o nome de
Allan Kardec, porque descobriu que o usara em uma
de suas existências anteriores.

— Como descobriu isso?

— Conversando com os espíritos de pessoas que já
viveram neste mundo e agora estão em outra
dimensão da vida.

— De que forma?

— Através de diferentes sensitivos a quem deu o
nome de médiuns, fazendo perguntas e comparando
as respostas.

— Você leu esses livros?

— Li. Através deles compreendi muitas coisas.
Naquele tempo, eu estava desesperado. Não me
conformava em separar-me de você e de
Christopher.

Aquele assunto tinha dado um tempo para que
eu conseguisse dominar a emoção do reencontro.
Ao pensar em nós, essa emoção reapareceu.

Anne permaneceu pensativa durante alguns
segundos. Depois disse:


— Os nossos destinos estão separados. Gostaria de
descobrir por quê.

Tomei sua mão, procurando dominar a emoção.

— Porque não tive calma para esperar. Porque a
solidão doía e eu tinha perdido a esperança de
poder casar com você! A culpa da nossa separação
é só minha. Se eu fosse livre, agora poderíamos
ficar juntos para sempre!

— Não o culpo por isso. Prefiro pensar que foi o
destino. Ninguém poderia prever o que aconteceu.
O que eu queria saber é por que era este o nosso
destino. Qual a razão de não podermos estar juntos
para sempre?

— Reconheço que tenho a culpa.

— Refiro-me à causa maior, à força das coisas que
nos separou. Sinto que, se a vida quisesse nos
reunir, tudo teria sido diferente. Ela é que nos tem
separado. Por quê?

Não encontrei palavras para responder. A
nobreza de Anne preferia isentar-me da culpa.

— Nós podemos mudar isso. Você é livre. Se quiser,
iremos embora para qualquer lugar, viveremos
felizes pelo resto da vida. Ninguém há de nos
separar.

Anne olhou-me e, apesar das lágrimas que
brilhavam em seus olhos, havia muita firmeza em
sua voz quando disse:

— Não pretendo desviá-lo de seus deveres com sua
família.

Você os assumiu livremente. Deve honrá-los
agora. Você não pode ser livre enquanto houver
pessoas que dependam de você, filhos para serem
orientados, esposa que o ama e a quem você
prometeu amar e proteger. Eles o amam e iriam
sofrer. Nenhuma felicidade pode ser construída
sobre os sofrimentos dos outros. Você não


suportaria, eu perderia a dignidade, logo seríamos
infelizes.

— Eu a amo!

— Eu também o amo. Infelizmente estamos
separados, por agora. É preferível sofrermos nós
dois do que a pretexto de uma ilusão arrastarmos
nossos filhos ao sofrimento.

— Meu amor não é ilusão — teimei inconformado.

— Não é. O meu também não. Ilusão é pensarmos
que seríamos felizes abandonando nossos
compromissos, causando sofrimentos aos que
amamos. Não, Jacques. Deus sabe como eu o amo.
Mas, pelo nosso bem, tudo deverá ficar como está.

Olhei-a emocionado.

— Eu quero ficar com você!

Ela abanou a cabeça, dizendo com voz firme:

— Você sabe que não é possível. Ainda não
podemos. Ajude-me, por favor! Não torne mais
difícil este momento!

Tomei-lhe as mãos apertando-as com força.

— Anne! Não me expulse de sua vida! Eu a amo!

Ela estava pálida, mas sua voz continuava firme.

— Não repita o que eu sei, nem me obrigue a
repetir o que eu já disse. Eu o amo. Por agora não é
possível. Porém, se algum dia você estiver livre,
então ficaremos juntos para sempre.

Não pude evitar as lágrimas.

— Anne, pelo menos me deixe vê-la de vez em
quando, beijar seus lábios, mostrar-lhe a força do
meu amor! Poderemos estar juntos, viver
momentos felizes! Podemos nos amar apesar de
tudo. Manterei meus deveres de família,
guardaremos segredo do nosso amor. Ninguém será
prejudicado e nós poderemos viver! Diga que
concorda...


Exaltado, tomei-a nos braços beijando-lhe os
lábios com ardor, dando vazão às emoções tanto
tempo reprimidas. Quando a vi trêmula e vencida
em meus braços, ébrio de felicidade levei-a para o
quarto, fechei a porta com chave. Tendo-a tão
perto, tudo o mais desapareceu do meu
pensamento. Dando largas à emoção que nos
envolvia o coração, todas as barreiras ruíram, nos
entregamos um ao outro apaixonadamente.

Quando as emoções serenaram, tendo-a ainda
nos braços, eu não queria falar quebrar o encanto
daquele momento mágico. Não queria enfrentar de
novo a realidade da nossa separação. Foi ela quem
conseguiu reagir primeiro.

— Jacques!

Coloquei o dedo sobre seus lábios.

— Pssiu! Não diga nada. Este é o nosso momento!
Fundo suspiro escapou-se-lhe do peito.

— Queria que o tempo parasse!

— Esqueça as coisas tristes. Estamos juntos!

Beijei-a novamente e nova onda de emoção nos
envolveu o coração e o mundo desapareceu para
nós naquele instante. Só o amor vibrava, tangendo
as cordas de nossas vidas, enquanto, atacados, nós
não queríamos voltar a pensar.

Quando saí da casa de Anne duas horas depois,
a alegria cantava em meu coração.

A euforia tomava conta de mim. Finalmente, eu
tinha conseguido o amor de Anne. Embora não
tivéssemos tocado no assunto, o envolvimento de
Anne fora tão forte que eu não tinha dúvidas: ela
não iria resistir. Quando eu quisesse, poderia ter
com ela, dar vazão ao amor que me inundava o
coração. Nós nos amávamos, eu pensava. Que mal
havia em nos entregarmos a esse sentimento? Eu
não ia abandonar a família. Procuraria ser ainda


melhor para eles. Ninguém seria prejudicado.
Finalmente eu tinha encontrado a fórmula
adequada.

Anne era o amor, a emoção, a magia. Eliane, a
companheira, a amiga. Não me sentia
impossibilitado de amá-la também, embora de
forma um pouco diversa, menos ardente, mais
serena.

Cheguei em casa alegre, bem-humorado.
Apesar do adiantado da hora, Eliane ainda me
esperava para o jantar. As duas meninas dormiam e
Julien saíra a passeio. Beijei-a com carinho.
Sentamo-nos à mesa e eu estava com muito
apetite.

— Está muito bem esta noite — disse ela. —
Aconteceu alguma coisa?

Levei um ligeiro susto:

— Nada, por quê?

Ela sorriu.

— Ultimamente, você andava triste, preocupado,
distraído. Fiquei apreensiva. Cheguei a falar com
Lenice sobre o assunto. Hoje, você me aparece
muito bem, como antigamente.

Sorri procurando responder com naturalidade:

— Sinto-me melhor. Quero mudar. Quero ser para
você e para nossos filhos um pai alegre e
compreensivo.

Eliane admirou-se.

— Por que diz isso? Você sempre foi um bom pai e
muito compreensivo. Você está diferente. Alguma
coisa aconteceu, não quer contar-me?

Sorri respondendo em tom de brincadeira:

— Pensei, refleti, resolvi mudar. Nada de mau
humor, preocupações, temores. De hoje em diante,
tudo será melhor para nós.


Ela olhou-me admirada. Procurei desviar sua
atenção falando sobre outros assuntos.

Quando nos recolhemos, beijei-a na face e,
sentindo que ela me fixava de forma diferente,
disse:

— Você não ficou alegre vendo-me bem-disposto e
de bom humor.

Eliane respondeu sem desviar os olhos:

— Claro que eu gosto de vê-lo bem, Jacques.
Contudo, você me parece muito distante de mim
esta noite. Sinto que a sua alegria me exclui.

Tentei dissimular:

— Por que diz isso?

— Jacques, sinto que você nunca foi inteiramente
meu. Que nunca se entregou ao meu amor de
forma total. Não da mesma forma que eu.

— Impressão sua. A que vem isso agora?

— Deixe-me falar. Sempre desejei dizer-lhe isso.
Sinto que me entreguei ao seu amor de corpo e
alma. Não há em mim nenhuma reserva. Foi uma
entrega total, absoluta. Entretanto, sinto que com
você não aconteceu assim. Você guarda aspectos,
partes de seu ser, nos quais não me permite entrar.
Percebo que você guarda segredos e emoções das
quais eu não participo.

— Bobagens, Eliane. De onde tirou essa idéia?

Tentei dar à voz uma entonação natural. Estava
surpreendido com a perspicácia dela. Não queria
causar-lhe sofrimento. Ela nunca deveria saber a
verdade.

Ela prosseguia:

— Nunca tive certeza de que você me ama da
mesma forma que eu o amo. Há momentos em que
você se isola, permanece tão distante que eu me
sinto uma intrusa em sua vida.

Tomei-lhe a mão beijando-a com carinho.


— Não diga isso. Tente compreender. Eu sou assim
mesmo.

Gosto de abstrair-me, pensar. Às vezes exagero,
mas eu a quero muito. Você tem sido a amiga, a
companheira, tem trazido encanto à minha vida.

Ela sorriu.

— Não sei por que, esta noite essa impressão
aumentou.

— Porque resolvi ser alegre?

— Porque, de repente, tive a sensação de que você
estava diferente. Não vi nenhum motivo especial
para essa mudança. Senti que você se distanciava
de mim, que o seu outro lado, o lado que não
conheço, me excluía, não dividia comigo suas
emoções. Fiquei insegura.

Sorri tentando encobrir a preocupação. As
mulheres, às vezes, têm um sexto sentido.

— Não há nenhum motivo para preocupar-se.
Vamos dormir.

Beijei-a novamente na face e ela se calou.
Estirado no leito, eu me analisava, tentando
perceber de onde Eliane tirava suas conclusões.
Comecei a pensar que a culpa fora minha. Eu não
estava habituado a dissimular. Depois, minha
alegria era tão grande que não pudera ocultá-la.

Não me sentia envergonhado por mentir. Eliane
era inocente, e eu não queria fazê-la sofrer. Tudo
faria para ocultar-lhe a verdade. Ela não seria
prejudicada. Eu cumpriria todos os meus deveres
até o fim. Não me sentia culpado por isso, ao
contrário. Meu amor por Anne era imenso. Vendo-a
de vez em quando, sem assumir definitivamente
uma vida em comum com ela, eu entendia estar me
sacrificando em favor da família, para não
prejudicá-la.


Ao lembrar-me de Anne, sentia grande emoção.
Não me julgava capaz de resistir a esse amor. Ela
também não conseguira. Foi recordando seu rosto
emotivo e belo que adormeci. Tinha encontrado, no
amor, novo encanto de viver.







CAPÍTULO XIII







A tarde ia a meio quando resolvi passar pela
casa de Anne. A partir daquela noite, eu vinha
freqüentando regularmente sua casa, porém sempre
à noite, depois de Christopher ter-se recolhido.

Anne tentara reagir, recusando meu amor,
porém eu lhe vencia a resistência alegando que não
estávamos prejudicando ninguém, uma vez que eu
continuava dando à minha família tudo quanto lhe
era devido.

O amor não era um mal, alegava eu com
veemência, e, vendo-nos de vez em quando,
estávamos tornando suportável uma separação que
de outra forma seria insustentável. Melhor nos
encontrarmos de vez em quando do que eu
abandonar meus deveres e vivermos juntos para
sempre. Eu estava convencido do que afirmava.
Todavia, não tivera coragem de contar tudo a
Lenice, como era meu costume. Temia que ela
discordasse, e incomodava-me muito essa hipótese.

Por essa razão, pretextando trabalho, espaçara
minhas visitas e não comparecia mais às reuniões
espíritas das quais tanto gostava. Eliane continuava
a freqüentá-las e entusiasmada descobrira possuir
sensibilidade. Era médium. Aquelas luzes coloridas,


os rostos e até as cenas que via de vez em quando,
de forma inesperada, não eram comuns a todas as
pessoas, como sempre tinha pensado. Eram visões
percebidas do mundo espiritual.

Insistia para que eu fosse a cada reunião,
relatava visões que tivera, despertava
verdadeiramente para as coisas do espírito e eu
cheguei a pensar que ela estivesse exagerando.
Lenice, por certo, saberia esclarecê-la. Era
prudente, criteriosa.

Pensei em Anne com alegria. A saudade batia
forte em meu peito. Por certo encontraria
Christopher. Pretendia apenas uma visita formal.
Vê-la, conversar, estar a seu lado, usufruir da sua
presença, rever seu sorriso.

Ao chegar, porém, tive uma surpresa: a casa
aberta e, ao ser conduzido pela criada ao salão, um
burburinho festivo enchia o ar. Anne estava ao
piano, rodeada por alguns jovens que marcavam o
compasso com os pés. Outros cantavam a meia voz.
Dois casais dançavam. Não quis ser anunciado. Não
deixei a criada dizer o meu nome. Estava irritado.
Aqueles intrusos na casa de Anne, usufruindo de
sua companhia! Olhei Anne ao piano de costas para
mim. Um belo jovem, forte, elegante, a seu lado
olhava atentamente a pauta da música e virava as
páginas no momento preciso. Uma onda de ciúme
me acometeu. Era assim que Anne gastava o seu
dia? Eram esses os amigos que ela dizia ter, aos
quais dava aulas sobre vários temas?

Fiquei em pé, parado, irritado, querendo
expulsá-los dali. Quando a música parou, Anne
levantou-se sob o aplauso geral e disse:

— Agora, passemos ao nosso chá.

Designou a mesa que a um canto do salão já
estava lindamente preparada. Foi aí que percebeu


minha presença. Aproximou-se me estendendo a
mão.

— Dr. Jacques, como vai?

Beijei a mão que ela me estendera.

— Bem, obrigado. Precisava falar-lhe. Não esperava
encontrá-la ocupada.

Ela percebeu minha contrariedade, mas respondeu
calma:

— Hoje encerramos uma etapa em nosso curso de
história e geografia. Sempre comemoramos o
progresso alcançado. Aceita tomar chá conosco?

Aceitei. Não queria sair dali deixando-a no meio
de tantos jovens bonitos que a olhavam com
carinho. Tive vontade de gritar que Anne me
pertencia, que eles todos se fossem. Sofreando
meus impulsos, tomei o chá, mastiguei um
biscoitinho que me pareceu amargo demais. Meu
olhar abrandou-se diante de Christopher, alegre,
conversando com as pessoas. Senti-me orgulhoso
dele. Era belo e muito bem-educado. Parecia um
principezinho. Vendo-o, uma onda de revolta
apareceu-me em meu coração.

Por que eu precisava estar ali como um
estranho? Por que eu não podia assumir meu lugar,
mostrando a todos os presentes que Anne me
pertencia e eu era o pai de Christopher? Fiquei
amargurado.

Anne estava encantadora. Muito solicitada,
atendia a todos com classe e delicadeza. Quando se
aproximou de mim, não me contive:

— Estou decepcionado — disse. — Não suportava as
saudades, vim vê-la. Não esperava encontrá-la tão
acompanhada.

Ela sorriu, porém pelos seus olhos passou um
lampejo de contrariedade. Disse com voz natural:


— É verdade. Estou em muito boa companhia. Eles
enchem minha vida de calor humano, alegria e
amor. Adoro-os.

Senti crescer meu ciúme. Decidi ir-me embora.
Não suportava mais dividir Anne com aquela gente.
Despedi-me e saí. Estava insatisfeito e só.

Até quando suportaria aquela situação?
Pensamentos depressivos começaram a incomodar-
me. Anne era uma mulher livre. E se ela se
apaixonasse por um daqueles moços? E se
mantivesse um romance com um deles?

Senti aumentar minha angústia. Tal era minha
exaltação que cheguei a "ver" a cena do moço que
atentamente virava as páginas da partitura com
Anne nos braços.

Andei pelas ruas sem ânimo de ir para casa.
Pensei em Lenice. Deu-me vontade de ir vê-la, abrir
para ela meu coração, procurar a paz. Não tive
coragem. Temia sua reprovação, não queria
envolvê-la em minhas preocupações.

A noite já tinha descido completamente quando
fui para casa. Eliane esperava-me com a solicitude
de sempre. Isso me irritou ainda mais. Por causa
dela não podia casar-me com Anne. Ela era o
empecilho para a realização dos meus sonhos de
amor.

Estava mal-humorado e Eliane, depois de
reiteradas tentativas para melhorar minha
disposição sem obter resultado, afastou-se indo
para o quarto com Milena e, a pretexto de
acomodá-la para dormir, deixou-me só. Dei larga à
insatisfação. Eu, que fora bastante forte para vencer
todos os obstáculos, os reveses da fortuna, que
soubera lutar para alcançar meus objetivos,
mostrava-me incapaz para conquistar a felicidade.
Deixara-me envolver por escrúpulos e, por essa


razão, estava nessa situação falsa, quando a
qualquer momento poderia perder Anne.

Ludibriado no primeiro casamento, empurrado
pela solidão, entrara no segundo, sem amor. Por
que cometera essa loucura? Eu tinha direito à
felicidade. No amor, ser correspondido é um
prêmio. Eu ganhara esse prêmio e o atirara fora
pelas convenções do mundo.

Envolvido por esses pensamentos, sentindo-me
vítima, inconformado e insatisfeito, não pude
dormir. Remexia-me no leito, entre as cenas que
imaginava da traição de Anne e a convicção cada
vez mais forte da minha infelicidade. Só consegui
adormecer quando o dia começou a clarear.

Na noite seguinte, fui ter com Anne. Tinha
permanecido amargurado durante todo o dia.
Estava disposto a ter uma conversa séria com ela.
Tomar uma resolução. Eu estava abatido e
preocupado. Vendo-me, Anne perguntou:

— O que aconteceu você está bem?

Sacudi a cabeça negativamente.

— Não. Desde ontem que eu sofro. Precisamos
conversar tomar uma resolução.

Ela me olhou séria. Tomei-lhe as mãos, apertando-
as com força:

— Anne! Não suporto mais esta situação. Estar aqui
como um ladrão na calada da noite! Eu a amo,
quero gritar aos quatro ventos que você é minha,
que Christopher é meu que nos amamos!

Anne retirou as mãos, continuando a olhar-me
calada. Eu prossegui:

— Não suporto vê-la rodeada por todos aqueles
homens que vêem em você uma mulher livre, a
qual pode desejar e possuir. Não agüento mais isso.
Quero deixar minha família e ficar com você.

— Terminou? — perguntou ela com voz fria.


— Sim — respondi —, vamos resolver agora nossas
vidas. Estou decidido. Nada é mais importante do
que a nossa felicidade. A vida é uma guerra na qual
cada um precisa conquistar o que deseja. Estou
cansado de pensar nos outros. Cada um que cuide
de si. Eu quero ser feliz, tenho esse direito. E minha
felicidade é você!

Anne fixou-me nos olhos com seriedade.

— Até ontem você parecia muito interessado em
cumprir seus deveres de família. O que mudou? O
que fez com que você queira agora abandonar tudo,
mudar as coisas?

— Meu amor por você. Tenho medo de perdê-la, de
que se apaixone por um daqueles moços que
estavam aqui. Aquele do piano olhava-a com
adoração. Não suporto vê-la entre eles. Você me
ama, é minha!

— Amo-o, é verdade, mas não pertenço a você nem
a ninguém. Sou livre. Amo em você a dignidade, o
carinho com que fala de seus filhos, o respeito que
demonstra por sua mulher, a preocupação em não
lhes causar nenhuma mágoa. Esse é o Jacques que
eu amo.

Que confia em minhas virtudes, mesmo depois que,
por amor, eu coloquei de lado as convenções sociais
e entreguei-me a ele. Quanto àquele que pretende
desertar dos seus deveres, que me julga capaz de
um procedimento leviano, que se coloca como
vítima, nem sequer conheço e não pretendo
conhecer.

Não gostei de ser contrariado. Reagi:

— Pensei que fosse exultar que desejasse tanto
quanto eu nossa união definitiva. Que me amasse
tanto quanto eu a amo!

— Você sabe que eu o amo! Sabe que por esse
amor passei por cima de muitas coisas. Que é por


ele que tenho correspondido aos seus desejos,
recebendo-o aqui, numa situação irregular que
contraria todos os meus princípios.

— É justamente isso o que eu quero evitar. Quero
ficar aqui para sempre. Ser seu marido, o pai de
meu filho. Acabar com essa situação falsa e
desgastante.

— Isso não é possível. Você não pode ser meu
marido porque já é casado.

— Quero ficar com você!

— Infelizmente não é possível. Christopher já está
quase com treze anos. Como contar-lhe que
Anthony não era seu pai? Como dizer-lhe que eu
tive um amante ainda quanto vivia com meu
marido? Tenho dado a ele uma educação rígida
quanto aos princípios, de acordo com sua
verdadeira posição. Não posso esquecer que ele
continua sendo o legítimo herdeiro de Loucester e
que é meu dever educá-lo como se ele fosse
assumir esse posto.

— Esse pensamento é falso. Você sabe que ele
nunca assumirá esse cargo. Sir William jamais
abandonará o poder. É moço, por certo se casará,
terá filhos que serão seus herdeiros. Christopher
não precisa carregar esse peso. Foi você mesma
quem disse isso.

Anne abanou a cabeça.

— Deus sabe que eu prefiro vê-lo distante desse
encargo. Mas é meu dever prepará-lo, porque, se
um dia Deus determinar que ele assuma, não só
deverá aceitar como saber desempenhar sua
missão.

— Isto nunca acontecerá — concluí, procurando
controlar meu desgosto.

Anne colocou a mão em meu braço, olhando-me
firme nos olhos quando disse:


— Jacques, ninguém pode saber o que acontecerá
amanhã.

Mas, mesmo que tudo continue como está não
pretendo desviar-me do dever. Se como mulher me
permito assumir meu amor por você, vivendo um
romance que satisfaz meus sentimentos, como mãe
preciso manter a dignidade, não confundindo a
cabeça de Christopher com problemas que são
meus e que ele ainda não teria capacidade de
compreender. Depois de ensinar-lhe o caminho do
dever, da honestidade, da justiça, como passar por
cima das leis e do direito para satisfazer meus
próprios interesses?

— Esconder nosso amor é uma situação falsa e a
hipocrisia não educa ninguém.

— Não confunda as coisas. Você tem família,
esposa, filhos, que sofreriam por causa disso. Eles
não têm culpa de nada.

— Eu sou culpado por ter me casado de novo.

— Ninguém tem culpa de nada. Você casou porque
precisava de companhia. Sua esposa é uma boa
mulher, aliás, você mesmo disse que a aprecia.

— Mas é você que eu amo. Quero ficar para sempre
a seu lado.

— Não pode. Quando você veio aqui à primeira vez
e nos entregamos um ao outro, pensei muito sobre
o assunto e concluí que o sentimento que nos une é
muito forte. Meu senso de dever fazia-me desejar
fugir e acabar com nossos encontros, que, eu sabia,
iria repetir-se. Mas a idéia de que você não
pretendia prejudicar os seus e manter seus deveres
de família confortou-me. Nosso amor é um
sentimento tão profundo e verdadeiro, tão
espontâneo, que nos inunda a alma de alegria.
Entregar-nos a ele é como respirar, viver, é natural.
É uma coisa só nossa que independe do resto.


— É isso mesmo. Por esta razão é que eu quero
assumir outra posição.

Anne abanou a cabeça.

— Não daria certo. Não podemos estabelecer a
nossa felicidade ocasionando a infelicidade alheia.
Como sua mulher receberia esta notícia? Como seus
filhos reagiriam? Como Christopher se sentiria?

— Anne, você não pode colocar o dever acima do
amor e dos sentimentos.

— Posso. O dever está acima porque trabalha junto
com a dignidade e a consciência. É à base do nosso
equilíbrio. Quando ele nos aponta um caminho,
ainda que esteja em desacordo com o que
desejamos, se o seguimos, podemos lutar sofrer a
princípio, mas aos poucos sentiremos alívio,
serenidade, força moral e, o que é importante, paz
de consciência. Bem-estar, por termos agido de
acordo com ela. Se você abandonasse sua família e
viesse morar aqui, nos sentiríamos constrangidos,
angustiados, diminuídos. Dentro de algum tempo,
nosso relacionamento estaria ruim e ambos
seríamos infelizes.

Abanei a cabeça contrariado.

— A seu lado jamais eu seria infeliz.

Anne sorriu.

— Nós nunca convivemos durante muito tempo, no
dia-a-dia.

Você pode estar exagerando.

Tomei-lhe as mãos apertando-as com força.

— Eu a amo. Você sabe disso.

— Sei. Nosso amor é um fato.

— Então por que continuarmos separados?

— Porque a vida nos separou. Se você aceita
continuar como até aqui, continuaremos a nos ver
de vez em quando. Acredito em nosso amor e acho
que quando estamos juntos não estamos fazendo


nenhum mal a ninguém. Você volta para seus
compromissos, eu para os meus, e aqueles
momentos que foram só nossos, o afeto que
trocamos, faz bem à nossa alma, alimenta-nos o
coração. Mas se a pretexto do nosso sentimento
vamos perturbar a vida dos nossos familiares, então
o melhor é nos separarmos agora, para sempre. Se
não puder conter-se, não voltaremos a ver-nos.

No fundo, eu sentia que Anne estava certa. Sua
maneira de pensar, apesar de contrariar meus
desejos, começava a serenar minha insatisfação.
Baixei a cabeça pensativo. Anne alisou-me os
cabelos com carinho.

— Um dia, quem sabe, quando Deus quiser,
seremos livres e poderemos ficar juntos.

Abracei-a comovido e ficamos assim, calados,
ouvindo as batidas do nosso coração e sentindo a
força dos nossos sentimentos.











CAPÍTULO XIV







A notícia ecoou como uma bomba. A Alemanha
invadira a Bélgica e era iminente a declaração de
guerra contra o Kaiser. O povo foi às ruas para
conhecer os detalhes e os jornaleiros passavam
gritando as últimas notícias em manchetes
garrafais. Todos os jornais da cidade tiraram várias
edições, que se esgotavam rapidamente no
torvelinho das informações desencontradas e ainda
incertas.

Agitado, sentindo o coração opresso, comprei o
jornal e folheei-o apressadamente. Há dias que os


boatos circulavam pela cidade, prognosticando um
conflito iminente, por causa das pressões
econômicas e a ambição de países que, não se
satisfazendo com seu espaço, buscavam na
conquista e no poder, subjugar outros povos.

Por toda parte havia o temor e a indignação
ante o ataque brutal e, apesar de tudo, inesperado.

Fiquei preocupado. Fui para casa. Uma guerra
indesejada, segundo os entendidos, poderia assumir
proporções mundiais, tais os interesses que
envolvia. Eliane estava tão preocupada quanto eu.
Nosso exército, por certo, não estava preparado
para enfrentar o inimigo, que, segundo se sabia,
planejara o ataque e adestrara-se deliberadamente.

O temor, a insegurança, tomou conta de mim.
Eu queria fazer alguma coisa, mas não sabia o quê.
Julien estava indignado. Os estudantes saíram à
rua, discursando inflamados, cantando hinos,
exigindo do governo uma resposta à altura. E ela
veio depressa: a declaração formal de guerra contra
a Alemanha e a convocação militar dos soldados da
reserva para reforçarem as fileiras do nosso
exército.

Nos dias que se seguiram, as notícias
desencontradas e os boatos sucediam-se. Eram
unânimes em afirmar as vantagens do inimigo
vencendo em toda a linha e as baixas e os recuos
dos nossos.

O exército abriu postos de alistamento de civis
e muitos já estavam se inscrevendo. Eu estava
preocupado. Julien mostrava-se exaltado e eu temia
que ele resolvesse alistar-se. Eu procurava dar aos
acontecimentos um enfoque mais otimista, mas, no
fundo, eu temia que aquela guerra se estendesse de
maneira impiedosa.


Nervoso, preocupado, procurei Lenice. Ela me
abraçou com carinho. Seu rosto estava sério ao
ouvir minhas dúvidas e temores. Em seus olhos
havia um brilho emotivo quando disse:

— É triste que tenham optado pela guerra. Nunca se
sabe a que sentimentos um confronto desses pode
levar.

— Você acha que vai durar muito?

— Não sei. Há muito ódio, muita ambição, muitos
interesses em jogo.

— Estou angustiado — declarei, segurando sua mão
com força. — Julien está muito exaltado. Temo que
se envolva.

Lenice suspirou pensativa, depois respondeu:

— É hora de oração. Todos precisam manter a
calma, a fé. Angústia e preocupação não vão
ajudar. O medo também não.

— Você tem feito sessões, o que pensam os
espíritos?

— Há muito nos alertavam para a necessidade de
buscarmos orar pela paz. Sempre são contra a
violência.

— Se são contra, por que não impediram de
acontecer? Afinal, eles podem ver as coisas com
mais profundidade.

— Acalme-se. Você sabe que somos livres para
escolher nossos caminhos e eles não interferem. Se
os homens preferiram à luta armada, eles, embora
estejam convencidos de que isso trará muitos
sofrimentos para a humanidade, nada farão.

— Não acho isso justo. Quem escolhe são os
governos e todos pagarão por isso.

— O sofrimento é um bem que só atinge quem
necessita dele. Os outros, apesar de tudo, sairão
ilesos.

— Você acha isso?


— Claro! Deus é bom e justo e só faz o que é certo.

— Fico descontrolado só em pensar que Julien pode
ir para a luta.

Lenice alisou minha cabeça com carinho:

— Jacques. Onde está sua fé? Por que permite que
o medo faça morada em seu coração? Não sabe que
o medo atrai aquilo que teme? Senti um aperto no
coração.

— Não quero ter medo, mas quando penso em
Julien...

— Guardemos a calma. Vamos orar juntos. Faz
tempo que você não vem às nossas sessões. Tenho
sentido sua falta.

Baixei a cabeça envergonhado. Não queria que
ela soubesse sobre meu relacionamento com Anne.
Temia que não pudesse compreender. Eu queria
parecer sempre correto. Queria que ela me
admirasse.

— Não tenho tido tempo para vir. Lenice sorriu.

— O importante é que você está aqui hoje. Estou
muito contente.

Fechou os olhos por alguns instantes depois
continuou:

— Jacques, preciso falar com você!

Notei que sua voz modificara-se e seu rosto tinha
expressão diferente.

— O que é?

— Estava com saudade. Faz tanto tempo!

Um arrepio percorreu-me o corpo. Alguém
falava através de Lenice. Em silêncio esperei que
ela continuasse. Lenice suspirou e de olhos fechados
prosseguiu:

— Desde minha partida tenho desejado vir, mas só
agora me foi possível. Não me reconhece?

Pensei em Elisa, mas não tinha certeza.


— Sou eu mesma — disse ela. — Você tem sido
bom para Julien e eu lhe sou muito grata.

Fiquei comovido.

— Elisa! — murmurei admirado.

— Sim. Sou eu. Finalmente estou bem. Tenho
saúde, alegria. Só a saudade por vezes aparece,
despertando o desejo de estar aí com vocês. Devo
conformar-me. Não é possível. Sei que é questão de
tempo. Vim para falar-lhe. Tenho percebido sua
angústia e suas preocupações. Onde está a sua fé?
Onde está aquela força que tanto me ajudou
quando eu, doente e fraca, despedia-me da Terra?
Por que se afasta de Deus e dos espíritos que o
querem ajudar?

Baixei a cabeça sem saber o que responder. Teria
Elisa percebido a verdadeira razão? Conheceria tudo
que se passava dentro de mim? Ela continuou:

— Jacques, quando vivemos na Terra, enxergamos
apenas o momento presente, a vida material. Não
temos paciência para esperar a hora da nossa
verdadeira felicidade. Não damos à vida tempo para
realizá-la. Queremos conseguir tudo na hora e do
jeito que nós idealizamos.

Uma onda de revolta invadiu-me o coração.

— Estou esperando há muito tempo e até agora não
consegui.

Quando encontrei o amor, não pude vivê-lo
plenamente. Desculpe se a magôo.

Lenice sorriu levemente meneando a cabeça.

— Não me magoa por nada. Eu usei você para
resolver meus problemas. Arrependo-me, você
sabe. Mas não é esse o ponto. Hoje estou vendo as
coisas de forma diferente. Sob outro prisma. Se por
um lado não agi corretamente, escolhi você porque
você também, por sua vez, estava propício a essa
experiência. Sem apagar meus enganos, só


consegui envolvê-lo porque permitiu. Não vim falar
do passado. Conheço a nobreza do seu espírito e
agradeço ter aceitado Julien como seu filho. Vim
para dizer-lhe que não se afaste das nossas
sessões, principalmente agora.

— Por quê?

— Vejo-o confuso, triste, preocupado. Os encontros
com a espiritualidade vão ajudá-lo muito. Lembre-
se de que os espíritos não julgam ninguém. Você é
livre para escolher o seu caminho. Não importa o
que tem acontecido em sua vida. Peço-lhe para não
se afastar da oração e das coisas espirituais. Leia,
procure instruir-se. Você é um juiz. Como exercer
sua função, seu trabalho, sem se aprofundar no
conhecimento das leis eternas?

Senti-me envergonhado. Estava claro que Elisa
sabia tudo sobre mim.

— Obrigado — respondi. — Procurarei comparecer
sempre. Você tem razão.

— Aconteça o que acontecer, não falte. Lembre-se
de que tudo está certo como está e que Deus dirige
tudo. Ore e confie. Preciso ir. Diga a Julien que o
amo muito. Hoje é um dia feliz para mim. Jamais o
esqueci. Tem em mim uma devotada serva.
Obrigada por tudo. Estarei pronta a ajudá-lo.
Adeus!

Lenice suspirou fundo e estremeceu levemente.
Abriu os olhos e fitou-me parecendo ainda um
pouco alheia. Eu estava comovido. Muitas vezes me
perguntara o que teria sido feito de Elisa. Não se
tinha comunicado antes.

Era confortador saber que ela não me
condenava pelo meu procedimento com Anne, nem
os outros espíritos. Senti-me mais calmo. Lenice
olhava-me séria.

— E então? — indagou.


— Elisa me comoveu. De hoje em diante, virei todas
as semanas à nossa reunião. Realmente, tenho
muito que aprender.

— Alegra-me que tenha resolvido isso. Eliane não
falta. Acompanhe-a, será ótimo.

Sorri.

— Estou bem agora. — Acariciei-lhe a face com
carinho. — Você é o anjo bom da minha vida.

— Vou fazer um chá para você.

Quando saí de lá, estava sereno. Deus estava
cuidando de tudo, o que temer?

A partir daquele dia, passei a ir todas as
semanas às sessões de Lenice. Surpreendeu-me o
progresso de Eliane. Ela realmente via os espíritos.
Descreveu a figura de meu pai, de Elisa, de forma
impressionante. Ela não os conhecera em vida.
Jean, por sua vez, também confirmara as descrições
que ela fazia dos seus parentes mortos.

Eu não deixara de ver Anne, porém estava mais
calmo e aceitava melhor a situação. Foi quando
tudo aconteceu. A notícia pegou-me de forma
inesperada. O que eu nunca julgara possível
ocorreu. Sir William fora morto em um acidente um
tanto suspeito. Os conselheiros reuniram-se às
pressas e, como ele não tivesse herdeiros,
reivindicaram para Christopher o lugar. Por causa
da guerra, as notícias demoravam a chegar, mas
Anne recebeu um portador convocando-a
imediatamente a levar Christopher para Dolgellau.

Exasperei-me. Sabia que Anne iria. Sua noção
de dever e de patriotismo não lhe permitiria
recusar. Fui chamado à sua casa e inteirado de
tudo. Tentei convencê-la a não ir. Foi inútil.

— Você não me ama! — gritei irritado. — Como
pode ir para tão longe?


— Mais uma vez a vida nos separa Jacques. Não é
nossa hora ainda.

Ela estava pálida, porém firme.

— Nossa hora nós a fazemos. Anne... Não vá!
Vamos embora juntos, eu, você e Christopher.
Vamos lutar pela nossa felicidade!

— Nossa felicidade não está em abandonarmos
nossos deveres. Eu também acho difícil nossa
separação. Tenha paciência. Poderemos nos ver nas
férias, em Bradenburg ou, quem sabe, aqui mesmo
em Paris.

Retirei o braço em que ela pousara a mão.

— Não posso conformar-me com essas migalhas. Já
é difícil suportar essa situação. O que fazer quando
vier a vontade de abraçá-la, de estar com você?
Como suportar essa distância entre nós?

— Acalme-se, Jacques. Partiremos daqui a dois dias.
Contudo, não sei o que encontraremos lá. Há muita
coisa para ser decidida. Vão fazer propostas, expor
condições, terei que estudá-las. Só aceitarei o que
for digno, honroso e justo. Bom para Christopher e
para nosso povo. Há muitas coisas para saber antes
de decidir.

— Irei com você.

— Não. Não gostaria de despertar nenhuma
suspeita a nosso respeito.

Saí da casa de Anne transtornado.
Pensamentos desordenados afluíam-me à mente.
Como evitar a partida de Anne? E se eu revelasse a
verdade de que Christopher não era filho de Sir
Anthony? Talvez eles procurassem outra solução.
Não, não faria isso. De nada adiantaria. Serviria
apenas para causar um escândalo e ferir a
reputação de Anne, nada mais. Além do mais, ele
era neto de Sir Charles, senhor daquelas terras. Era
o herdeiro legítimo, fosse quem fosse o pai.


Senti-me indisposto e sem vontade de ir à casa
de Lenice naquela noite. Esqueci-me de que
prometera não faltar.

— Não vou, Eliane. Não estou me sentindo bem.
Fica para a próxima vez.

Eliane, sempre tão cordata, olhou-me séria e
respondeu:

— Hoje você não pode faltar. Vamos, por favor!

— Por quê?

— Está precisando.

— Vocês estão ficando fanáticas. Uma noite que eu
quero ficar sem ir não tem importância.

Eliane olhou-me indecisa, depois disse um pouco
assustada:

— Há um espírito do seu lado e ele está muito
zangado. Ameaça-o e está jogando ódio em você.
Sinto medo.

Fiquei curioso e indaguei:

— Como é ele?

— Um velho, alvos cabelos, parece estrangeiro.
Veste roupa de gala, toda cheia de medalhas. Olhos
muito magnéticos. Ele diz que se chama Charles.

Empalideci. Eliane ignorava tudo a respeito.

— O que ele quer de mim? — inquiri tentando testá-
la.

— Ele diz que lutou muito para conseguir levá-los
de volta. Teve que tirar pessoas do caminho. Não
entendo o que ele quer dizer, não tem sentido!

— Não se importe com isso. Procure ouvi-lo. O que
diz mais?

— Para você não se meter no caminho dele.
Ameaça-o. Está muito zangado. Diz que você sabe
do que se trata. Acho melhor ir à sessão. É um
espírito determinado e perigoso.

Senti um arrepio pelo corpo. Então era isso! Eu não
podia duvidar.


— Iremos, decidi.

Eu estava angustiado. Ele teria alguma coisa a
ver com a morte de William? Podiam os espíritos
intervir e tirar a vida de uma pessoa? Nesse caso,
onde está a justiça de Deus?

Estava perturbado e confuso. Queria falar com
Anne, aproveitar o pouco tempo que nos restava
para estarmos juntos, mas eu não podia deixar de
esclarecer o assunto. Fui assaltado pelo medo. O
velho conde de Loucester estava manipulando tudo.
Dominara Christopher e Anne, interferindo em suas
vidas?

Apesar das dúvidas que me queimavam a alma,
não pude falar claramente no assunto com Lenice
por causa de Eliane. Havia também um casal que
participava das sessões. Sentados ao redor da
mesa, antes de iniciarmos os estudos da noite,
Eliane relatou o que vira e eu completei:

— Acredito que seja o conde de Loucester de
Dolgellau. Sir William, que governava esse condado,
morreu dia atrás, vitimado por um acidente.

Lenice ouvira com atenção e sugeriu:

— Guarde calma. Vamos nos preparar para nossos
estudos de hoje e rogar a Deus por esses espíritos.

Após a prece, perguntei:

— Até que ponto chega à influência de um espírito
desencarnado sobre as pessoas? Pode chegar a
provocar a morte?

— Penso que não — disse Jean. — Só Deus tem o
poder absoluto. Nada acontece sem sua permissão.
Se os espíritos pudessem matar, todos nós
estaríamos indefesos, não seria justo.

— Sempre pensei assim — continuei. — Mas, agora,
estou em dúvida.

Lenice interveio:


— Não se pode generalizar em assunto tão vasto e
delicado. Se você acha que um ser desencarnado
pode pegar uma arma e matar, é claro que não
seria possível. Porém as pessoas são influenciáveis
e influenciam-se uma às outras muito mais do que
seria razoável. No mundo das idéias, não existem
barreiras. A telepatia, a persuasão, a força de
pensamento realizam sugestões que podem
envolver as criaturas e provocar acontecimentos,
materializar situações que eventualmente poderão
causar a morte.

— Isso é pior do que um assalto à mão armada —
respondi. — Porque você não enxerga o agressor.

— Foi por isso que Jesus nos ensinou a orar para
ganhar forças e vigiar para não permitir que esses
intrusos invadam a sagrada intimidade do nosso
pensamento. Quem procura pensar de forma
positiva e adequada, ficando atento para as
sugestões mentais negativas e não as alimentando,
está fechando a porta a essas influências. Nem
sempre elas vêm de espíritos desencarnados.
Podem conviver conosco, vir de pessoas como nós,
amigos, parentes e até familiares.

— E apavorante — retruquei assustado.

— Nunca se deu conta dessa verdade? Nunca
prestou atenção, por exemplo, em quantas coisas
você fez impulsionado pelos ditames sociais ou
pelos costumes?

— Está exagerando — respondi chocado.

Eu sempre dera grande valor aos preceitos
sociais. Fora por causa deles que eu lutara para
manter a fortuna e a posição. Lenice sacudiu a
cabeça negativamente.

— Não exagero. Procure perceber. O homem cria
leis, estabelece limites, de acordo com seus
interesses do momento. O tempo encarrega-se de


transformar tudo, modificando as coisas. As leis que
foram úteis e aceitas durante certo tempo não são
mais suficientes e se estabelecem novos padrões.
As transformações sociais estão na história da nossa
civilização a mostrar a precariedade desses
costumes.

— É preciso regras para sustentar a estrutura social
e proteger o direito de cada um — considerei.

— Concordo. Mas as pessoas não as vêem como são
e as aceitam como verdades absolutas e eternas.
Muitos já estão maduros para mudar e compreender
melhor a vida, porém sufocam seus anseios de
progresso e conhecimento que a Natureza luta para
trazer à tona, presos aos pensamentos
preconceituosos. Os espíritos desencarnados, ou as
pessoas que pretendem nos influenciar, usam
nossas próprias idéias negativas para nos arrastar
aos enganos.

— De que forma? — indagou Jean.

— É fácil, por exemplo, sugerir pensamentos de
vingança a uma pessoa orgulhosa, que se julga
preterida no afeto, no emprego. E fácil sugerir
depressão e até suicídio para quem se coloca na
posição de vítima, pensando que todos o rejeitam
só porque não consegue que as pessoas façam
todas as suas vontades.

— O que está dizendo é muito sério — disse Jean.
— Precisamos pensar mais sobre o assunto.

— Quero que percebam como Deus é justo. Se as
coisas não estão como desejamos, se somos
prejudicados por influências perniciosas, precisamos
encontrar qual a nossa atitude mental que permitiu
que isso acontecesse.

— Esse é um campo vasto. Precisamos saber mais
— ajuntei, pensando nos casos que tratava na
justiça.


— Tem razão — concordou Lenice. — Voltaremos ao
assunto sempre que possível. Só quero que
percebam que, mesmo o que nos parece mal,
porque é desagradável, acaba permitindo nosso
progresso e desenvolvimento. Essa é a sabedoria
divina, é a vida.

Marie, a jovem senhora amiga de Lenice, começou a
agitar-se tentando conter-se, o que não lhe era
muito fácil.

— Passemos agora à outra parte — disse Jean sério,
apagando as luzes e deixando a sala fracamente
iluminada.

Marie suspirava aflita e perturbada.

— Pode deixar — disse Lenice. — Todos orem por
ele.

Marie deu violento soco sobre a mesa, praguejando
com voz rouca, grossa e empastada. A custo
conseguimos entender.

— Eu exijo respeito! O que pensam que são? Não
sabem com quem estão falando?

Falava com forte acento inglês.

— O que deseja? — perguntou Jean sério.

— Eu é que faço as perguntas. O que pretendem,
segurando-me desta forma? Não sabem que posso
prendê-los a todos? A uma ordem minha posso
acabar com todos vocês. Meus soldados os
destruirão.

— Não somos seus inimigos. Não precisa preocupar-
se — disse Jean.

— Aqueles cachorros! Pensaram que tinham me
destruído só porque meu corpo foi para o túmulo.
Enganaram-se. Eles não são donos de tudo. Não
podem mudar o que eu deixei. Agora estou vingado.
Logo estarei de volta e tomarei conta de tudo para
sempre.


— Seu tempo acabou — disse Jean com voz suave,
porém firme.

— Quem me fala? — indagou Marie.

— Olhe-me bem, Charles. Não me reconhece?

— Elizabeth! O que faz aqui? Por que volta do
inferno para atormentar-me?

— Sou eu. Não desejo atormentá-lo. Ao contrário,
posso agora ajudá-lo.

— Você?! Posso esmagá-la de novo como a um
verme. Saia do meu caminho. Não vai impedir-me
agora que estou conseguindo a vitória.

— Não pode. Você está morto e o condado não mais
lhe pertence, acabou.

— Saia da minha frente — vociferou ele.

— Pense bem. Chegou à hora de arrepender-se de
seus erros. Não pode intervir mais.

— Ninguém vai impedir-me. Depois de tanto tempo
e trabalho, não vou deixar tudo. Eles têm que
assumir o lugar a que têm direito. Foi por isso que
tirei todos do caminho.

— Anthony não se conforma. Procura-o por toda
parte. Deseja vingar-se.

— Aquele cachorro. Fingido. Depois de tudo quanto
fiz por ele, me traiu. Mas pagou caro por isso.

— William nada fez.

— Tomou meu lugar. Usurpou o que era meu.

— Não é verdade, ele usou seus direitos. Você está
morto, nada mais lhe pertence.

— Vou ocupar de novo meu lugar.

— Essa criança tem defesa.

— Se fala da mãe, ela não é tão santa como você
pensa. Sei como pegá-la. Eles farão tudo quanto eu
quiser, e eu estarei de novo no poder.

Fiquei apavorado. Tudo estava claro para mim.
Sir Charles pretendia envolver Christopher e Anne e
através deles alimentar sua ambição. Isso não podia


acontecer. Naquele instante, não pensei em meus
problemas, mas apenas no bem-estar de Anne e de
meu filho. Eles não podiam ficar à mercê de criatura
tão cruel. Com toda a convicção de que era capaz,
orei pedindo a Jesus que o esclarecesse e afastasse
dos meus entes queridos.

— Diga a ele para não se intrometer em meus
negócios — continuou Marie. — Se eu tolerei a
presença dele lá com ela, foi porque servia aos
meus fins. Ela sempre optando pelo dever! Nunca
pude dominá-la. Um deslize convinha-me. Mas
agora ele quer impedir-nos de ir, quer afastar-me e
isso eu não posso permitir. Vou tirá-lo do caminho
da mesma forma que fiz com os outros.

Senti que ele falava para mim, mesmo assim
continuei orando, firme. Lenice prosseguiu:

— Por que teima em não ver a verdade? Não receia
o clamor dos seus desafetos, que o buscam para o
ajuste de contas? Agora você não pode mais
esconder-se no seu castelo, sob a proteção dos seus
soldados. Vai ter que confrontá-los de igual para
igual, um a um. Já pensou nisso?

— É mentira! Essa corja, eu esmago com o tacão da
minha bengala! Eles não se aproximam porque
temem. Sou forte, ainda tenho soldados que me
obedecem. Deixo meu aviso. Ele que não se meta.
Saia do meu caminho.

— Você vai deixá-lo.

— Depende dele.

— Pense no que eu disse. Seu tempo acabou. Não
lhe será permitido perturbar quem não merece.

— Veremos.

— Voltaremos a nos ver.

— Vou embora — disse ele. — Já disse o que queria.


O corpo delicado de Marie foi sacudido por um
tremor e depois pendeu sobre a mesa, como um
saco vazio. Lenice suspirou fundo, depois disse:

— Vamos orar com muito amor, para ele e para
Marie.

Alguns instantes depois a moça remexeu-se,
levantou a cabeça empastada de suor e respirou
fundo. Lenice encerrou a sessão e Jean acendeu as
luzes.

Eu estava assustado. O espírito de Charles não
cedera e pretendia continuar perseguindo seus
escusos objetivos. Eu não queria de forma alguma
que ele estivesse perto de Anne e Christopher.

Lenice, percebendo minha preocupação e embaraço
diante de Eliane, disse séria:

— Embora ele não tenha concordado se Elizabeth
disse que seu tempo acabou ele por certo será
contido.

— De que forma? — indaguei.

— Os espíritos superiores têm meios para evitar que
ele cumpra suas ameaças, se for necessário e se as
pessoas visadas não merecerem. Há legiões de
espíritos ignorantes e belicosos, ambiciosos e
cruéis. Se eles pudessem fazer tudo que querem,
ninguém poderia viver em paz neste mundo. Eles só
permitem quando há necessidade de aprendizagem
dos envolvidos. Sempre a lei das influências de que
eu falei. A sintonia é outra lei que regulamenta
essas relações.

— Não entendi bem — disse Eliane. — Mas tive
medo dele. Era um espírito cruel e egoísta. Lançava
farpas escuras contra você. Parecia conhecê-lo.
Pode dizer-me por quê?

— Em minhas viagens, há muitos anos, estive em
Dolgellau e conheci essas pessoas.


— Não devemos comentar muito o assunto para não
atrai-lo novamente. Procuremos esquecer o que
aconteceu confiar em Deus, que cuidará de tudo e
melhor do que nós. Vamos tomar um café.

A conversa generalizou-se e eu procurei desviar
a atenção dos presentes, falando de outros
assuntos, porém no fundo do meu coração a
preocupação e a dúvida permaneciam. Eu queria
muito conversar com Lenice, contar-lhe tudo e
esclarecer as indagações que me afligiam. Naquele
instante não era possível. Resignei-me e fomos para
casa.

O dia seguinte era o último dia de Anne em
Paris. Essa idéia me atormentava. Não pude dormir.
Vendo Eliane adormecida, levantei-me sorrateiro,
vesti-me e saí.

Entrei na casa de Anne com a chave que ela me
dera e fui aos seus aposentos. Acordei-a
suavemente. Vendo-me, ela abraçou-me com força.

— Pensei que não viesse.

— Não pude dormir. Nossos últimos dias!

— Não fale assim — pediu ela. — Ninguém sabe do
futuro.

— Estou desesperado! Não quero perdê-la.

— Não vai me perder. Eu o amo muito!

Beijei-a com amor. Queria contar-lhe tudo, mas
ao mesmo tempo temia assustá-la. Por fim resolvi.
Pedi-lhe que se sentasse confortavelmente no sofá
e sentei-me ao seu lado. Segurando sua mão com
carinho, contei-lhe tudo. Ela ouviu séria e não
interrompeu. Quando concluí, Anne disse com voz
firme:

— Ele tem estado aqui.

— Como soube?

— Christopher o viu. Estava no salão, sorria para
ele. O menino assustou-se. Procurou-me aflito, seu


coração batia descompassado. Custei a acalmá-lo.
Disse-lhe que não devia temer o avô, que não
desejava fazer-lhe mal. Ele, porém, estava pálido e
trêmulo.

— Como sabe que era ele?

— Pelo relato. Christopher reconheceu-o descreveu
seu traje, como você o fez. Não tenho nenhuma
dúvida de que ele tem estado aqui.

— Quando foi? Por que nada me disse?

— Há uma semana. Não quis preocupá-lo com isso.
Podia ser alucinação de Christopher. Ele às vezes vê
coisas. Não acredito muito. É um menino muito
criativo. Julguei fantasia.

— Agora sabe que não é. Ele viu realmente o avô. E
é provável que tenha visto outros espíritos. Ele é
médium, Anne. Você sabe o que é isso?

— Sei. Mas ele não pode preocupar-se com essas
coisas agora. Tem sérios compromissos a cumprir. A
presença de meu pai era um aviso, queria prevenir-
nos do que ia acontecer.

Fiquei preocupado. Anne parecia não ter
compreendido bem o que estava acontecendo.

— Anne — tornei sério —, você precisa ter muito
cuidado, fazer alguma coisa. O espírito de Sir
Charles pretende usar Christopher para dar vazão à
sua ambição. Quer governar através dele. Quer
dominá-lo.

— Isso é possível? — indagou ela assustada.

— É. Precisa a todo custo protegê-lo. Seu pai era
homem cruel e continua voltado aos mesmos
pensamentos.

— Confio em Deus — disse ela. — Cumprindo o
dever e fazendo o que é certo, estaremos a salvo de
qualquer má influência.

Balancei a cabeça pensativo.


Anne era pessoa digna. Ele tivera dificuldade em
envolvê-la. Mas Christopher era uma criança.

— Observe muito tudo o que acontecer. Pense bem
antes de tomar suas decisões. Aqui em nossas
sessões, faremos sempre orações para vocês.
Qualquer coisa diferente que aconteça, escreva-me.
Temos espíritos amigos que nos ajudarão a evitar a
interferência dele.

— Saberei defender Christopher — garantiu ela com
firmeza. — Nada de mal nos acontecerá.

— Eu preferia que ficasse aqui. Que não fosse
preciso assumir compromissos tão pesados quanto
perigosos.

Sabe o que eu penso. Não queria que
acontecesse, porém, aconteceu, cabe-nos assumir
nossa parte. Nosso povo precisa de nós. Haveremos
de governá-los bem, de forma humanitária e justa.

Abracei-a. Sabia que era inútil tentar convencê-la
do contrário.

— Aproveitemos o tempo que nos resta — disse
baixinho.

— Sim — concordou ela, enlaçando-me o pescoço
com amor.











CAPÍTULO XV







Fazia dois meses que Anne partira e eu,
acabrunhado, sentia aumentar a saudade. Por que
tínhamos que viver separados? Por que não
podíamos desfrutar sequer de um relacionamento
furtivo, que, se não satisfazia nossos anseios, pelo
menos nos ajudavam a suportar a situação?


Era com Lenice que eu aliviava o coração no
desabafo aflito. Depois daquela sessão com a
presença de Sir Charles, eu lhe contara tudo.
Precisava da sua ajuda. A idéia de que esse espírito
pudesse envolver Anne e Christopher atormentava-
me.

Ela me repreendia delicadamente.

— Você deveria agradecer a Deus pela ajuda, ao
invés de revoltar-se. Aprenda uma coisa. Tudo está
certo como está.

— Não posso aceitar essa separação.

— Ela é necessária. Com a proximidade de Anne,
você não conseguia controlar seus impulsos. E isso
podia agravar a situação.

— Por quê? Eu não deixei de cumprir meus deveres
de marido. Sempre poupei e amei a família. Anne
sempre exigiu isso de mim. Não nos ver mais
exigiria muito de nós, iria além das nossas forças.
Anne é livre e nós já nos amávamos antes de eu
conhecer Eliane. Temos um filho! Está sendo severa
e preconceituosa — disse nervoso.

— Compreenda Jacques. Não se trata de
preconceito meu, nem do que eu acho do assunto.
Aliás, eu não pretendo julgá-los. Trata-se das
conseqüências perniciosas que poderiam advir se
essa situação continuasse.

— Como assim?

— Anne é mulher digna e com noções acentuadas
do dever. Para ela, por mais que se rendesse ao
amor que os une, sempre estaria sendo a outra.
Você é casado. Sua mulher é uma boa esposa. Ela
se entregava a você com uma sensação de culpa,
de deslize.

— Isso é verdade — concordei.

Lenice prosseguiu.


Por outro lado, por ligações e compromissos
passados, ela e Christopher estão ligados a
Merionthshire e a todos os que lá viveram e vivem.
O espírito de Charles deseja envolvê-los em seu
jogo de poder. Quem nos garante que essa
sensação de culpa que Anne carrega não acabaria
por torná-la vulnerável à sua influência?

Fiz um gesto contrariado.

— Você me assusta — disse.

— Apenas tento perceber a verdade. Deus sempre
faz o melhor. Se os afastou de você agora, é porque
isso é o melhor. Longe, Anne terá mais paz interior,
perderá essa sensação de culpa e se tornará livre do
assédio dele. Se se recorda, ele tornou claro esse
ponto quando aludiu que lhe convinham os deslizes
de Anne. Só se irritou com você quando percebeu
que desejava impedi-los de voltar a Dolgellau. É
quase certo que ele estava perto de vocês há muito
tempo.

— Não sei o que dizer. Talvez tenha razão —
concordei com alguma dificuldade.

— Por outro lado, você diz que nunca prejudicou
sua família, cumprindo seus deveres. Tem certeza
de que realmente ofereceu a Eliane todo o amor e a
atenção que ela desejava? Pode afirmar com
segurança que ela nunca desconfiou de nada?

Olhei-a admirado.

— Ela lhe disse alguma coisa? — indaguei
apreensivo.

— Não. Jamais deu a perceber a menor diferença.
Contudo, atrevo-me a dizer que, se Jean tivesse
outra mulher, por certo eu saberia. É difícil esconder
um sentimento tão forte como o seu principalmente
da mulher que o ama. Eliane o quer muito, e isso se
pode notar em seus olhos quando o vê, em seu
rosto quando está a seu lado.


Um vago sentimento de culpa tomou conta de mim.

— Não gostaria que ela sofresse — disse. — Ela não
tem culpa de nada.

— Você também não tem culpa de amar Anne e ter
Christopher. Contudo, é preciso optar. Ninguém
poder viver dividido. Se você e Anne quisessem
assumir o amor que sentem um pelo outro, melhor
teria sido fazê-lo publicamente, enfrentando as
conseqüências com coragem e dignidade. Mas se
preferiram optar pelo dever e por não magoar sua
família, teria sido melhor acabar com esse
relacionamento mal assumido e realmente dar à sua
família o amor e a atenção que ela merece e que
você pretendia lhe dar.

Baixei a cabeça envergonhado. Lenice tinha
razão. Longe de Anne e dominando melhor meu
sentimento, eu podia perceber isso.

— Começo a pensar que tem razão.

— É melhor perceber como você é assistido pela
bondade divina, que colocou tudo nos devidos
lugares. Decidiu por você, num momento em que
você não se mostrava capaz, e, como sempre, fez o
melhor. Não deve lamentar, deve agradecer. Não
deve ficar triste, mas procurar realizar com alegria e
bom ânimo a tarefa que lhe coube.

— E meu amor por Anne? E a saudade?

— Guarde-os no coração com muito carinho. Um
dia, quando for o momento, a vida os reunirá e, se
o amor for verdadeiro, estarão juntos para sempre.

Suspirei fundo. Minha revolta tinha passado.
Lenice tinha o condão de me tranqüilizar. Apesar
disso, considerei:

— Anne é mais forte do que eu. Tem acentuado
ideal. Acredita que pode ajudar seu povo e isso
parece ser mais importante para ela do que sua
própria felicidade, ou a minha.


— É um belo gesto e ela deve ser respeitada por
isso.

— Mas... E eu? O que fazer da vida?

— Sempre pensei que desejasse trabalhar por uma
justiça social mais elevada e eqüitativa. Não tem
sido este o seu ideal?

Sacudi a cabeça negativamente.

— Estou desiludido. Sonhei com a magistratura,
pensando em fazer valer o direito de cada um, no
equilíbrio das relações sociais, fazendo brilhar uma
justiça limpa e equânime. Cedo me desiludi. O
homem faz da justiça um jogo sórdido a serviço dos
seus interesses nem sempre confessáveis, e nelas
muitos são massacrados. É muito difícil encontrar a
verdade dos fatos nesse cipoal controvertido dos
interesses de cada um.

— Está muito amargo. Esse sentimento o faz ver as
coisas de um ponto muito negativo.

— Mas verdadeiro. Cansei-me de sonhar.
Ultimamente, tenho pensado em deixar a
magistratura.

Lenice ficou pensativa durante alguns instantes,
depois disse:

— Não o julgava covarde.

Uma onda de indignação me envolveu.

— E não sou. Por que diz isso?

— Porque pretende abandonar todos os seus ideais.
Não enxerga mais a beleza do direito, da liberdade
e da responsabilidade?

— O homem abusa de tudo e, em suas mãos, tudo
quanto eu pensava transformou-se em hipocrisia e
vileza. Não pretendo servir a esses interesses.

— Por que se deixa influenciar pelos outros? É tão
fraco que permite à opinião alheia dominá-lo a
ponto de destruir seu ideal, ou será que não os
tinha?


Senti-me inseguro. Meu orgulho estava ferido.
Eu deixar-me dominar pelos outros? Ela estava
enganada.

— Por que me diz essas coisas? É claro que minhas
idéias permanecem. Não estou sendo guiado pelos
outros. Entretanto, reconheço que não há campo
para as realizações que eu pretendia.

— E vai desistir assim?

— O que posso fazer? Como mudar as pessoas,
fazê-las entender os valores que desconhecem?

— Questione seus pontos de vista. Sinta se são
verdadeiros. Se postos em prática, poderiam
melhorar o meio social, beneficiar pessoas, elevar o
padrão da vida, dar mais calma, paz, harmonia.

— Quanto a isso não tenho dúvida. Se houvesse
mais compreensão dos direitos de cada um, mais
respeito pelo outro, tudo seria melhor.

— Se tem certeza disso, calar-se, desistir, cruzar os
braços na inércia será atender aos mesmos
interesses que diz repudiar.

— Jamais faria isso — respondi sério.

— Então, posicione-se. Pregue seus pontos de vista,
continue escrevendo livros, aja de acordo com o
que ensina. Sacuda a poeira dos velhos interesses
subalternos, lute por suas idéias. Faça de sua vida
uma bandeira do seu ideal. Garanto que, sendo
verdadeiro, ele frutificará e beneficiará muitas
pessoas. Não se preocupe com os negativistas nem
com os cegos, que preferem continuar pelos velhos
caminhos. Porém você vai à frente, abrindo as
portas da inteligência e dos sentimentos daqueles
que estiverem prontos para alcançar sua
mensagem.

Senti uma onda de entusiasmo envolver-me o
coração.

— Acha que serei capaz?


— Consulte seu coração. Reveja seus pontos de
vista. Escolha sua postura. Só tem dois caminhos:
partir para a execução dos seus ideais ou cruzar os
braços frente às dificuldades, omitir-se. Sinta qual
das duas hipóteses o fará mais feliz.

Lenice tinha o dom de expor as coisas de
maneira clara para mim. Vistas daquela forma senti
abalarem-se dentro de mim os temores que me
fizeram desanimar na profissão.

— Vou pensar no assunto — respondi.

— Pense. A vida é maravilhosa e guarda infinitas
possibilidades de alegria e felicidade. Se não
podemos em algum momento realizar um sonho
bom, porque talvez não estejamos prontos ainda
para vivê-lo, sempre haverá outros que estão em
nossas mãos naquela hora, possíveis e oportunos,
que nos farão igualmente felizes.

Beijei-lhe a face agradecido.

— Apesar de estar sendo muito severa comigo,
reconheço que tem certa dose de razão.

Ela sorriu alegre.

— Conheço-o bastante para saber que não desistirá.

— Pensei que não acreditasse na justiça dos
homens. Afinal, você sempre prega a justiça de
Deus.

— A justiça de Deus age sempre, nunca falha. Não
precisa de nós para que seja exercida. Todavia, a
justiça dos homens expressa o nível espiritual em
que a humanidade estagia em sua compreensão do
direito e da responsabilidade. Ela se modifica à
medida que o seu desenvolvimento espiritual
cresce, no entendimento das leis divinas. E essas
modificações acontecem através daqueles homens
que conseguiram perceber melhor a verdade e
procuram expressá-la aos demais. São os grandes


pensadores, os sábios, os justos, os mais afinados
com a essência divina.

— Você crê que eu possa fazer isso?

— Por que não? Eles eram homens como você.
Descobriram coisas verdadeiras e as divulgaram.
Sua força estava na certeza do que afirmavam e na
própria verdade que ninguém conseguirá encobrir.

— O que deverei fazer?

— O que eu disse. Procurar dentro de você, rever
idéias, sentimentos, ideais. Estudá-los.
Compreendê-los. Quando se sentir seguro,
preparado posicione-se. Garanto que, então, as
coisas começarão a acontecer ao seu redor para
impulsioná-lo à execução do seu trabalho. A
verdade tem uma força irresistível. Quando temos
certeza a respeito de alguma coisa, nosso
pensamento movimenta poderosas energias em
nosso favor. Você verá. É essa chama que vemos
brilhar nos olhos dos grandes homens, que os
distingue dos demais e atrai multidões ao seu redor.
Nosso espírito é sedento de verdade. Sente a
necessidade de crescer e progredir. Quem tiver algo
para matar nossa sede de espiritualidade nos atrairá
imediatamente. Essa necessidade tem nos levado,
algumas vezes, aos enganos do fanatismo em seitas
e religiões que acenam com vislumbres de verdade,
mas que nos encarceram com exigências e práticas
inúteis.

— Não representa um perigo?

— Não. Os enganos e as desilusões pretendem nos
ensinar a não esperar dos outros o nosso progresso
espiritual. Se pudermos receber idéias, influências e
até alguma segurança das outras pessoas, só vão
nos beneficiar delas se as experimentarmos, se nos
voltarmos para nossos próprios recursos e
procurarmos desenvolver nosso próprio espírito.


Ninguém poderá fazer isso por nós. Cada um deve
andar com suas próprias pernas.

A voz de Lenice estava modificada e eu sabia que
ela não falava por si mesma.

— Vou pensar — disse sério.

— Pense. Você tem condições de cumprir bem sua
missão na Terra. Estude, aprenda, experimente,
descubra, observe, trabalhe, escreva, fale,
transmita aos outros suas experiências. Faça todo o
bem às pessoas. Dedique-se. Garanto que será
muito auxiliado pelos espíritos. Nada lhe faltará.
Sentirá alegria e paz. E um dia, quando for o
momento, chegará aonde deseja.

Lenice suspirou fundo. Senti uma onda de
emoção. Um desejo forte e sincero de realizar algo
bom, grande, útil, belo, verdadeiro, tomou conta de
mim. Naquele instante, veio-me a certeza de que eu
poderia fazê-lo.

Sentindo no coração uma onda de gratidão,
fechei os olhos e em pensamento fiz comovida
oração. Quando os abri, estava sereno e alegre.
Lenice olhava-me com carinho e eu a abracei
calorosamente.

A partir desse dia, senti-me mais calmo e
aceitei melhor a situação. Lenice tinha razão. De
que me adiantaria conservar a amargura e a
revolta?

A guerra recrudescia e outros problemas
solicitavam-me a atenção. Havia sofrimento e dor
em muitas famílias e o temor da invasão e da
crueldade do inimigo. As atrocidades que chegavam
ao nosso conhecimento, vindas do campo da luta,
onde perdíamos terreno, aumentavam nossa
insegurança. Eu temia por Julien, vendo-o desejoso
de alistar-se.


Não me envergonho de dizer que fiz o possível
para que ele não fosse chamado. Usei minha
influência, as amizades, tudo, sem que ele
soubesse. Eu o amava muito e nem sequer me
lembrava de que eu não o tinha gerado. Era meu
filho e eu não queria que algo ruim lhe acontecesse.

Fiquei desesperado quando ele se alistou. Veio
para casa emocionado e sério, esperando meu
apoio. Não pude esconder a contrariedade. Tentei
dissuadi-lo, inutilmente.

— Esquecerei suas palavras — disse fitando-me com
olhos brilhantes. — Tenho a certeza de que você
não deseja ter um filho covarde. Muitos amigos
meus estão combatendo. Eu acredito na paz e na
liberdade. Esses valores estão ameaçados. Não
posso cruzar os braços.

Olhei-o e lágrimas vieram-me aos olhos. Meu
filho era um homem e eu ainda não dera por isso.
Abracei-o, sentindo um misto de orgulho e receio.

— Por que você? Nesse caso, eu irei você fica.

Ele balançou a cabeça negativamente.

— Não, meu pai. Os solteiros devem seguir
primeiro. Você é mais útil aqui, com a família. Nós
vamos ganhar essa guerra! Você verá!

Quisera sentir o mesmo entusiasmo, porém um
arrepio de medo me envolvia, vendo-o preparar-se
para partir. Depois de dois meses de treinamento
ele se foi e eu fiquei triste e preocupado. Detestava
as guerras. Sempre fora contrário a elas. Era um
homem da lei e da justiça. Acreditava que todas as
questões poderiam ser resolvidas pacificamente.
Não via necessidade de as pessoas se matarem, se
torturarem, se destruírem, por divergência.

Morrer numa guerra, para mim, não era tornar-
se um herói, mas compactuar com a ignorância
daqueles a quem a sede de poder cegou. A guerra


parecia-me um erro tão visível que era lamentável
os homens a aceitarem e pagarem por isso.

Quando ele partiu, foi nas sessões na casa de
Lenice que encontrei conforto, serenidade.

— Sinto que a guerra é um erro clamoroso dos
povos. Não é por aí que precisamos seguir para
encontrar a alegria e a felicidade, o progresso e a
maturidade — desabafei. — No fim, ela só leva à
desolação e à dor. A vitória é tão amarga e
sangrenta quanto a derrota, e a violência nunca
solucionou os problemas humanos.

— Tem razão — respondeu Lenice.

Sentindo o apoio de Lenice e a aprovação de
Jean, que me ouvia pensativo, prossegui falando
com entusiasmo sobre a paz e a necessidade de o
homem modificar sua postura diante dos problemas
de relacionamento entre os povos. Expus idéias,
sentimentos, reflexões. Quando me calei, Lenice
falou:

— Você está certo. Por que não escreve um livro
sobre isso? Você sente profundamente o que
expressa. Conseguiu uma visão adequada e
verdadeira do assunto. Está amadurecido e
preparado. Concordo com você. A guerra é um
flagelo triste e desnecessário.

— Faça isso — ajuntou Jean. — Fará bem às
pessoas. Tenho visto muita amargura, ódio e
ressentimento nos corações. Além do que a
indústria da guerra, o interesse dos grupos,
alimenta-se do ódio que fomentam de todas as
formas, para que não lhes faltem pessoas que,
exaltadas, se submetam a essa luta inglória.
Alguém precisa falar de amor, de paz, de justiça,
nesse momento de loucura e dor.

Fiquei comovido.


— Vou escrever — respondi firme. — Deus me
ajudará.

— Por certo — disse Lenice com convicção. —
Quando você fala no amor, na paz, na fraternidade
e na compreensão, está expressando a força de
Deus. Todos os bons espíritos o ajudarão.

Fui para casa disposto a começar naquela noite
mesmo. Hoje reconheço que escrever esse livro foi
realmente uma bênção de valor inestimável para
mim.

Fazia quase um ano que Anne se fora e
nenhuma notícia me chegara. Soubera pelo Sr.
Leterre que Christopher fora reconhecido como
legítimo conde de Loucester e que Anne,
assessorada pelo magistrado representante do
príncipe de Gales, governaria o condado até
Christopher completar dezesseis anos, quando teria
sua maioridade declarada.

Anne, por certo, tentara escrever-me, mas a
guerra tornara difícil e incerta a correspondência.
Julien também fora há quase dois meses e nem
sequer sabíamos onde estava.

Escrever meu livro me proporcionava um
momento de encontro com minha alma e a
necessidade interior de expressar aquela parcela de
verdade que eu conseguia perceber.

Dediquei-me com afinco à magistratura, ao
livro e à minha família. Estudei com muito interesse
livros e fenômenos, experiências e fatos que
falavam da realidade do espírito, da sobrevivência
da alma após a morte, da reencarnação, das
influências de espíritos desencarnados em nossas
vidas.

Entreguei-me de corpo e alma a esse trabalho.
Conheci outros médiuns, pesquisei e depois de


algum tempo fui convidado a escrever artigos para
um jornal de estudos psíquicos.

Eliane via com entusiasmo meu trabalho.
Médium vidente, lúcida e equilibrada, prestava-me
inestimável serviço. Esse trabalho me revigorava e
havia momentos ao escrever em que minhas idéias
se tornavam tão claras que me parecia impossível
que as outras pessoas não as pudessem perceber.

Uma noite, em uma sessão na casa de Lenice,
Elisa apareceu. Percebi sua presença assim que
Lenice começou a falar. Estava feliz. Falou muito a
respeito do meu trabalho, incentivando-me a
prosseguir.

— Continue — disse ela —, porque a hora é de
muita luta. É preciso falar de perdão, de amor e de
esperança! Principalmente para aqueles que
perderam seus entes queridos nessa luta. Você
precisa contar que a morte é ilusão e que a vida
continua. Ninguém morre. Apenas muda de casa. É
preciso compreender, apesar das ilusões e dos
enganos dos homens, que Deus está na direção de
tudo. Com sua sabedoria, tudo faz de forma
adequada. Escreva sobre isso, fale sobre isso, pense
muito sobre isso. Eu estou muito feliz e quero que
sinta.

Naquele momento, um sentimento de alegria
banhou-me a alma. Quando terminou a sessão,
Eliane descreveu Elisa. Ela me abraçara com o rosto
radioso de felicidade.

— Sua emoção era muito grande — descreveu
Eliane. — Ela alisou seus cabelos e em seus olhos
havia uma lágrima.

Lenice olhou-me séria, mas nada disse. Saí
entusiasmado, sentindo ainda a alegria na alma.
Estava disposto a continuar escrevendo sobre os
temas que ela pedira.


Foi uma semana depois que o telegrama
chegou .Tombou no campo de batalha Julien Latour.
Nossos sentimentos, etc." Quase desfaleci. Meu
filho! Julien estava morto.

Eliane, assustada, tomou o telegrama dos meus
dedos crispados e um soluço a sacudiu. Abraçou-me
e juntos misturamos nossas lágrimas.

Meu filho! Tão jovem e tão belo, cheio de
sonhos de amor, nobreza de alma e bondade, tinha
sido devorado pela máquina do ódio, da cegueira de
alguns governantes.

Milena e Lisete abraçaram-se a nós, chorando
conosco. Vendo-as tão aflitas, procuramos conter
nossa aflição.

Foram momentos de dor e de tristeza, sentindo
a própria impotência diante dos fatos. Nem sequer
tivemos o conforto de saber como acontecera ou de
prestar-lhe a última homenagem.

Fiquei arrasado. Nessa hora, é difícil manter as
idéias claras. Durante vários dias deixei-me ficar ao
sabor da angústia que me atormentava a alma.

Lenice e Jean vieram ver-me e confortar-me.
Olhei para Jean e não me contive, abracei-o forte e
naquela hora esqueci todos os preconceitos.

— Nós perdemos Julien — disse. — Você também
deve estar sofrendo.

Em seus olhos pude ver o brilho das lágrimas.

— Não o perdemos — respondeu. — Ele partiu
primeiro. Vai nos esperar, por certo.

— Tão jovem — murmurei triste —, tão cheio de
vida e de amor!

— Você fala como se a morte fosse o fim de tudo —
disse Lenice com suavidade. — Ele está bem. Peça a
Deus que ajude você a aceitar a separação.

— É difícil. Quando penso que a guerra, esse
monstro destruidor, a serviço dos interesses de


grupos, mata nossos jovens, enluta as famílias,
ceifa nossas esperanças, sinto desejos de destruí-
los a todos.

Lenice abraçou-me com carinho.

— Lembre-se de que só acontece o que Deus
permite. E ele só permite o que é melhor para nós.

Sacudi a cabeça energicamente.

— Não posso aceitar isso. Como pode haver
bondade nessa destruição terrível?

— Somos todos crianças aprendendo a viver bem.
Nossa ignorância tem nos criado sofrimentos e dor,
mas por outro lado eles nos amadurecem e
ensinam. Em meio a tudo isso, é preciso confiar em
Deus, que tudo criou e conduz com sabedoria. Deu-
nos tudo, deu-nos a vida, o amor, a bondade, a
alegria. Deu-nos este universo maravilhoso, nosso
mundo, cheio de luz e de estrelas. Ao seu ritmo,
tudo caminha em harmonia. Criou-nos para sermos
felizes. Um dia aprenderemos a enxergar mais a
beleza do que a feiúra, a bondade do que a
maldade, a alegria do que a tristeza, o bem de
todos do que só o nosso. Ele não erra nunca, ainda
quando permite que a dor nos visite a alma e
chame para a outra vida um jovem como Julien.

Acalmei-me um pouco, mas a tristeza era imensa.

— Mortifica-me pensar no que deve ter sofrido, lá
longe, a dor, a falta de socorro... Dói pensar nisso,
sem ter podido fazer nada para aliviá-lo.

Lenice afagou minha cabeça com carinho.

— Não se atormente com pensamentos tão
dolorosos. Não o ajudarão em nada. Ao contrário.
Ele agora precisa receber de todos nós força e
compreensão. Devemos ser fortes. Depois, Deus
guarda recursos que desconhecemos. Quem nos
garante que ele tenha sofrido? A vida espiritual é
plena de amor e luz. Tudo foi programado. Tinha


chegado sua hora. Elisa veio para preveni-lo. Não
percebeu isso? Abri os olhos admirados.

— Será?

— Por certo. Quando ela o abraçou, havia uma
lágrima em seus olhos. Ela sabia que você iria
sofrer. Pediu-lhe para que continuasse a escrever,
principalmente sobre as verdades da vida espiritual.
Por outro lado, ela estava radiante porque em breve
Julien estaria com ela.

Senti um arrepio percorrer-me o corpo.

— Ela sabia!

— Sabia. Não tenho dúvida. Eu mesma pensei em
Julien naquela noite.

— Lenice falou-me sobre isso — disse Jean.

— Falou o quê? — indaguei.

— Estava com pressentimentos de que Julien
poderia ser ferido. Agora sei que ela sentia o que
iria acontecer e quis poupar-me também. Sempre o
apreciei. Orgulhava-me dele.

— Com razão — respondi.

— Jacques — continuou Lenice —, não se deixe
abater. Você sabe que a morte não é o fim. Tem o
conforto de conhecer a verdade. Amanhã ou depois,
Deus permitirá que ele venha ter conosco. Sabemos
que ele continua vivo. Pense na dor daqueles que
nada sabem. Para quem o "nunca mais" representa
um obstáculo intransponível. Que apenas têm o
conforto de olhar para uma lápide fria e dolorosa.
Faça da própria dor uma bandeira que possa
mostrar aos que sofre nesta guerra cruel a perda de
seus filhos, que eles continuam vivos, felizes e
saudáveis em outra dimensão da vida, com os
mesmos sentimentos de amor e de amizade, e que
um dia poderão vê-los, abraçá-los, estar com eles
de novo. Julien apreciaria muito que fizesse isso.
Por certo, até o ajudaria.


Apesar da minha tristeza, senti que Lenice tinha
razão. Abracei-a com força e disse com sinceridade:

— De hoje em diante, quero dedicar-me ao
esclarecimento das pessoas. Estudarei, observarei,
experimentarei e depois escreverei livros. Procurarei
de todas as formas contar tudo quanto souber.

Lenice sorriu.

— Eu sabia que você compreenderia. Deus o
abençoe. Conte comigo. Há muito que eu também
me matriculei na escola da vida. Precisamos
encontrar a felicidade. Sei que Deus nos destinou a
ela. Vamos descobrir o caminho e mostrá-lo aos
outros.

— Também quero participar — disse Jean sério.

— Eu também — tornou Eliane, que de olhos
marejados nos observava.

Senti-me confortado. A partir daquele dia,
passei a estudar ainda com mais assiduidade os
livros espiritualistas, as pesquisas científicas e a
freqüentar a casa de Lenice duas vezes por semana.

O grupo foi aumentando. Eu e Jean compramos
uma casa onde passamos a dar palestras públicas.
Recebemos muitas pessoas cujos entes queridos
tinham morrido na guerra. Dediquei-me a confortá-
los, a mostrar-lhes a continuidade da vida. Lenice
reunia alguns médiuns uma vez por semana, e
naquela casa singela muitos encontraram
consolação e conforto.

Eliane participava e, com sua capacidade para
ver os espíritos, descrevia-os depois das sessões.
Muitos reconheceram, emocionados, seus entes
queridos.

Naqueles tempos, publiquei vários livros.
Alguns sobre problemas de direito civil, tentando
lançar luz aos intrincados assuntos da justiça
humana. Mais tarde, compreendi que a justiça dos


homens é exercida de acordo com sua maturidade
espiritual. É por isso que existem tantas
interpretações de uma mesma lei.

Por essa razão, cheguei à conclusão de que,
para melhorar o nível judiciário no mundo, era
fundamental amadurecer o homem. Esse era o
trabalho mais importante e necessário.

Então, com a ajuda de Deus e de alguns amigos
espirituais, estudei os problemas humanos à luz da
vida eterna e das leis divinas.

Quando acabou a guerra, havia um sopro
renovador sobre toda a Europa. Mudança de
costumes, o progresso da ciência, o automóvel, o
rádio, o cinema. Minhas filhas enchiam nossa vida
de alegria. Milene transformara-se em bela
mocinha. Lisete estava encantadora. Mirelle e André
eram adoráveis e, às vezes, olhando para meu
sobrinho reconhecia nele traços de Julien.

De vez em quando eu sentia sua presença
carinhosa. Eliane o vira inúmeras vezes ao meu
lado. O Sr. Leterre também era visto. Ele morrera
quase um ano depois que Julien. Chorei sua
ausência. Estimava-o muito. Sem ele, como poderia
rever Anne e Christopher? Eu pretendia encontrá-la
em Bradenburg. No entanto, ela nunca mais esteve
lá. Depois da morte do nosso amigo, perdi as
esperanças.

Todos os anos, eu recebia um retrato da
condessa de Loucester e seu filho Christopher, bem
como um folheto das atividades e das benfeitorias
do condado. Várias vezes senti vontade de ir vê-los.
Agora, não havia mais a figura ameaçadora de Sir
Charles ou de Anthony. A guerra não permitiu essa
viagem. Quando ela acabou, eu estava empolgado
com o trabalho no centro de estudos psíquicos que
tínhamos fundado e com os livros.


Havia tanta gente interessada e sofrida que fui
absorvido pelas atividades. A casa de Anne, em
Paris, tornara-se local de hospedagem dos membros
do conselho de Dolgellau, que com suas famílias
ocupavam-na temporariamente, cuidando dos
interesses de Merionthshire ou simplesmente
passando temporadas. Quando a guerra acabou,
tive esperanças de que Anne viesse, mas ela não
veio.

Em meus estudos e pesquisas, eu me
correspondia com outros estudiosos em outros
países. Trocávamos experiências e idéias, e eu lhes
mandava meus livros e conferências. Por causa
delas, várias vezes recebi convites para visitar esses
grupos e falar, expor minhas idéias. Tornei-me
militante e atuante no movimento espiritualista que
banhou o mundo depois da guerra.

Viajei para a Inglaterra com o coração cheio de
esperanças. Estava decidido a ir a Dolgellau. Agora
que tudo estava diferente, poderia visitar Anne, ver
Christopher, sem despertar suspeitas.

Cheguei a Londres desejoso de resolver meus
assuntos ali, para depois seguir para Dolgellau. Fui
recebido com carinho por Arthur Conan Doyle,
famoso escritor, e pude ter nas mãos o material
resultante de suas pesquisas com Florence Cook, os
filmes das fotos de Katie King, feitas por Sir William
Crookes.

Fiquei empolgado. Conheci o Sr. MacDowell,
que me apresentou alguns membros da Sociedade
de Estudos Psíquicos e dois médiuns dedicados ao
auxílio do próximo com os quais trabalhava.

Conversando animadamente, disse MacDowell:

— Tanto Ernest quanto Philip são muito procurados
por gente importante. — Baixou a voz em tom
confidencial. — Ainda ontem chegou um pedido de


uma mãe de um chefe de estado, que precisa de
socorro. Um caso de obsessão.

Curioso, perguntei:

— De onde ele é?

— Há sigilo, o senhor sabe... Só posso dizer que é
do país de Gales.

Senti um receio súbito, uma suspeita. Preocupado,
coloquei a mão no braço de MacDowell e perguntei:

— Sabe quem eles irão ver, isto é, sabe o nome?

MacDowell abanou a cabeça.

— Não. Se é sigilo, não comentamos. Eles seguirão
amanhã. É só o que sei.

Fiquei aflito. Lembrei-me do espírito de Sir Charles.
Estaria perturbando Christopher?

Apresentado aos dois médiuns, chamei-os a um
canto da sala e disse:

— Sei que viajam amanhã para atender a um caso
de obsessão.

Ernest assentiu com a cabeça.

— Por favor. Eu prefiro saber de quem se trata.
Tenho sérias suspeitas e é necessário esclarecer
tudo.

Ernest olhou-me nos olhos, depois respondeu:

— Há coisas que não estou autorizado a revelar.

— Pode fazer-me um favor?

— Se for possível...

— Vamos fazer assim. Eu falo o nome das pessoas
que me são muito caras e a quem tudo farei para
ajudar. Se forem elas que vão visitar, dirão? Devo
esclarecer que estou ligado a essas pessoas por
laços de forte amizade. Que vim à Bretanha
pensando visitá-los antes de voltar a Paris. Algo me
diz que precisam de mim.

— Está bem — concordou Philip. — Se já sabe do
caso, não vejo por que ocultar.


— Trata-se de Lady Anne e de seu filho Christopher,
conde de Loucester?

Os dois entreolharam-se, e foi Ernest quem
respondeu:

— Sim. Trata-se do jovem conde.

— Conte-me tudo, por favor — pedi.

— Não há muito para dizer ainda. Um portador de
Lady Anne procurou-nos trazendo uma carta em
que ela nos relata que coisas estranhas vêm
acontecendo com o jovem conde, desde que ele
completou a maioridade e assumiu a direção do
condado. Ele tem tido crises e Lady Anne acredita
que ele esteja sendo envolvido pelo seu avô. Pede-
nos para ir até lá.

— Foi Deus quem me guiou os passos até aqui —
disse emocionado. — Quero ir com os senhores.
Fazer parte da sua comitiva. Ajudar.

Os dois entreolharam-se.

— Não sei se será possível. Lady Anne pediu-nos
segredo — volveu Ernest.

Olhei-os emocionado. Havia o brilho de uma lágrima
em meus olhos quando disse:

— Garanto que tenho todo o direito de estar ao lado
deles nessa hora. Há um segredo entre nós, que
não posso revelar. Lady Anne ficará confortada com
minha presença, eu garanto. Depois, conheço esses
casos, estudo-os há anos. Conheci Sir Charles em
vida. Seu espírito visitou-me, ameaçou-me, ainda
quando Lady Anne vivia em Paris. Ele não fez
segredo de que pretendia voltar ao poder em
Loucester, através do neto. Christopher viu-o várias
vezes e Lady Anne conversou comigo a esse
respeito.

Os dois olharam-me satisfeitos.


— Nesse caso, concordo que foi Deus quem o
enviou aqui. Será um prazer tê-lo conosco — tornou
Ernest.

— Estou sentindo isso mesmo — afirmou Philip.

Senti-me agradecido e esperançoso.
Combinamos tudo. Eu ainda poderia proferir a
conferência programada para aquela noite. No dia
seguinte, seguiríamos para Dolgellau.

Depois de cumprir meu compromisso no Centro
de Estudos Psíquicos, quando me recolhi para
dormir senti uma onda de gratidão e confiança
invadir-me o coração. Era evidente que eu estava
ali porque Deus determinara. Não acreditava em
coincidências. Se ele permitira que eu pudesse
participar da ajuda ao meu filho, foi porque tinha
chegado o momento de ele ser libertado.

O recurso espiritual com o concurso de dois
médiuns capacitados indicava que Sir Charles seria
afastado definitivamente. Eu não tinha dúvida de
que Deus estava nos guiando. Fiquei emocionado.
Agradeci a Deus por ter me dedicado a esses
estudos e poder, naquela hora, utilizar meus
conhecimentos em benefício de Christopher. Deus é
tão generoso!

Eu me dedicara a esse ideal porque entendera
que conhecer essa parcela de verdade que me
iluminava a alma levaria alento e conforto às
pessoas aflitas e desesperadas. Agora, eu tinha
essa possibilidade abençoada de socorrer meu filho.

O sentimento de felicidade e gratidão foi tão
intenso que, naquele instante, decidi dedicar-me
mais e definitivamente a essa causa, em todos os
momentos de minha vida.

Era já madrugada quando consegui acalmar a
emoção e em brando sono adormeci.










CAPÍTULO XVI







Chegamos a Loucester no entardecer do dia
seguinte. Fazia quase vinte anos que eu estivera em
Dolgellau e pude observar que tudo tinha se
modificado para melhor.

A vila graciosa transformara-se em pequena
cidade com iluminação nas ruas, casas de comércio
e outras benfeitorias do progresso. Por toda parte
havia prosperidade e alegria.

Enterneci-me pensando em Anne. Por certo, ela
fora a responsável por essa mudança.

Pela primeira vez pensei que nossa separação
fora um bem. Se ela tivesse se recusado a aceitar
seu dever para com aquele povo, era possível que
as coisas não estivessem assim.

Eu, também, se tivesse abandonado a família
para viver com ela, não teria aprendido a enxergar
a vida com realismo, percebendo o outro mundo, a
outra dimensão da vida, as leis da mente, para
onde vão nossos mortos e sua influência em nossas
vidas.

Tive que reconhecer que Deus sempre faz tudo
certo, ainda que não seja da forma como
desejamos.

Ficaríamos hospedados em Loucester e eu,
dentro do automóvel que nos fora buscar na
estação de Dolgellau, sentia meu coração bater
tanto que parecia querer sair-me pela boca.

Um criado tomou conta da nossa bagagem e
fomos conduzidos aos nossos aposentos.


Uma criada informou-nos que Lady Anne nos
receberia dentro de meia hora. Tirei um cartão do
bolso e disse a ela:

— O entregue a Lady Anne e diga-lhe que preciso
vê-la imediatamente.

Lavei o rosto, as mãos, penteei os cabelos.
Olhei-me no espelho. Estava mais velho, um pouco
grisalho nas têmporas, mas ainda era o mesmo.

E Anne, como estaria? A criada voltou em seguida.
Abri a porta ansioso.

— Lady Anne espera-o em seu gabinete. Queira
acompanhar-me.

A emoção sufocava-me. Entrei no gabinete e a
criada se foi, fechando a porta. Anne estava diante
de mim. Olhamo-nos. Atiramo-nos um nos braços
do outro. Beijei-a repetidas vezes preso de grande
emoção.

Passados os primeiros arroubos, eu disse com
voz que a emoção modificava:

— Anne! É você! Que saudade!

— Custei a acreditar que fosse você. Sonhei muito
tempo com este instante.

— Muitas vezes desejei vir — pensei muito. — Se eu
tivesse vindo não teria coragem de separar-me de
novo. Esperei que fosse a Bradenburg ou a Paris.

— A guerra... Depois tive medo. Você tinha sua
família e eu não tinha o direito de perturbá-lo.

— Pensei que me houvesse esquecido — tornei
emocionado. — Nunca me procurou.

— Você sabe que era preciso.

— Anne! Ainda a amo! Sempre a amarei.

Ela abraçou-me com força.

— Eu também. Tentei esquecê-lo, não consegui.
Vivo das recordações dos tempos em que estivemos
juntos.


— Jamais a esqueci. Entretanto, hoje, posso
compreender melhor certas coisas. Inclusive o que
Lenice sempre falou que se o nosso amor for
verdadeiro, um dia, seja onde for à vida os reunirá
para sempre.

— Um dia estaremos juntos, sem nada que nos
separe. Sei que será assim.

Quando nos sentimos mais calmos, sentamo-
nos no sofá, lado a lado, e eu lhe contei tudo
quanto se passara comigo durante aqueles anos. A
morte de Julien, meus ideais de espiritualidade e
renovação. Ela me ouviu comovida.

— Eu sabia que você faria da sua vida um objetivo
nobre. Sempre admirei seu senso de justiça, sua
bondade, sua inteligência. Quero ler seus livros,
conhecer melhor essas idéias. Jacques precisa
ajudar Christopher. Conforta-me saber que está
aqui e que nos vai ajudar. Confio em seu bom
senso, em seus conhecimentos. Foi Deus quem o
trouxe de volta.

— Por que não me chamou?

— Não queria perturbar sua vida. Não sabia que
estava tão voltado a esses assuntos. Recorri à
Sociedade de Estudos Psíquicos de Londres porque
não estou conseguindo afastar papai daqui. Não me
esqueço das suas recomendações em Paris.
Impressionaram-me muito na ocasião. Mas como no
início tudo estava bem, não me preocupei.

— Conte-me tudo.

— Quando chegamos a Dolgellau, o conselho de
anciãos nos esperava. O povo estava revoltado e
miserável. O enviado do príncipe de Gales afirmou
que era da vontade de sua majestade que eu
aceitasse dirigir Loucester, assessorada por ele, até
que Christopher completasse dezesseis anos,
quando sua maioridade seria decretada e ele


assumiria o comando. Aceitei. No início havia muita
revolta e necessidade entre os súditos, mas aos
poucos, com esforço, trabalho e perseverança, tudo
foi melhorando. Christopher sempre foi um menino
inteligente, firme, de caráter. Conversávamos
muito. Expliquei-lhe todas as coisas com relação ao
nosso povo e ele se interessou muito. Compreendeu
e aceitou ser o conde de Loucester, cuidar do
progresso e do bem-estar da nossa gente. Bonito,
justo e bondoso, aos poucos foi sendo estimado por
todos. Recebeu professores e educadores que lhe
ensinaram, prepararam para a difícil arte de
governar. Depois da guerra, as coisas mudaram
bastante. Temos a câmara que legisla para todo o
Reino Unido e nossa função é mais moderada. Mas,
ainda assim, guardamos atribuições que permitem
atuar na direção de Merionthshire como
governadores. Christopher é o chefe de vasto
território que vai além dos limites de Loucester, por
escolha e determinação de sua majestade, satisfeito
com nosso trabalho aqui.

— Pude ver com satisfação as mudanças na vida do
povo. Nota-se o progresso por toda parte.

Anne concordou com a cabeça.

— É verdade. Sinto-me feliz por isso. Como eu
disse, estávamos bem, cumprindo nossos deveres
com alegria. Todavia, depois que Christopher
completou dezesseis anos e assumiu o governo,
passou a sofrer de inquietação, perdeu o apetite,
emagreceu e, o que ficou evidente, modificou sua
maneira de ser, seu temperamento.

— Como assim?

— Sempre foi alegre, comunicativo, discreto, porém
carinhoso e inteligente, cordato, compreensivo. Há
algum tempo, passou a ter crises de humor, de
irritação e nesses momentos grita, impõe sua


vontade, torna-se agressivo e prepotente. Quando
passa, ele se envergonha muito, sente-se
acabrunhado, triste. Não dorme bem, anda nervoso
e sensível. Passa da euforia à depressão sem
motivo aparente. Os médicos acham que ele está
com esgotamento nervoso e culpam a política.
Alegam que ele é muito jovem para arcar com tanta
responsabilidade.

— Não acredito que seja isso.

— Nem eu. Christopher tem visto o avô. Várias
vezes o viu em nossa sala de estar, em seu
gabinete e até no carro, quando saí.

— O que ele sente quando o vê?

— A princípio teve medo. Depois achou graça: "Ele
não quer fazer-me mal", explicou-me. "Fala comigo
com carinho e têm me ensinado coisas".

— Não acredito que ele o esteja ajudando.

— Christopher não percebe, mas em suas crises
torna-se muito parecido com ele. Chega a usar as
mesmas palavras que ele usava. Nessas horas,
comete injustiças, torna-se intolerante, como ele.

Por isso, eu acho que é ele quem o está
influenciando. Cumpriu o que disse, está tentando
governar Merionthshire. Tenho rezado, pedido a ele
que se vá que nos deixe cuidar de nossa vida. Mas
parece que ele fica pior. Quando eu peço,
Christopher fica mais envolvido por ele. Penso que
ele, assim, deseja mostrar-me que é mais forte do
que eu. Por isso apelei para os senhores Ernest e
Philip. Tenho informações de que são pessoas
excelentes e com capacidade para ajudar-nos.
Temos que afastar papai daqui.

— Acalme-se. Com a ajuda de Deus, tudo vai
melhorar. Desta vez ele será afastado.


— Deus o ouça. Temo pelo equilíbrio de
Christopher. Quando se descontrola, fala coisas
estranhas, sem sentido.

Apertei a mão de Anne, que detinha entre as
minhas, para transmitir-lhe força e confiança.

— Vamos falar com os nossos amigos médiuns.
Conte-lhes tudo, resolverão o que fazer. Contudo,
Anne, devo dizer-lhe que, conforme tenho estudado
esses assuntos, aprendi que há pessoas sensíveis
que precisam aprender a entender as leis que
regem o mundo hiperfísico, para que cuidem do
próprio equilíbrio. São os médiuns. Christopher é
um deles.

Anne suspirou angustiada:

— Mas eu não quero! Ele tem outras tarefas. Precisa
de toda sua lucidez para seu trabalho, não pode
pensar nessas coisas.

— Anne, nesse caso, sua vontade ou a dele não
prevalece. A sensibilidade é condição da pessoa que
nasce com ela. Funciona independente da nossa
vontade.

— O que farei para impedir?

— Não pode. É uma força da natureza. Um dia
todas as pessoas a terão. Por isso eu disse que é
necessário estudar o assunto, compreender,
aprender a viver com ela. Posso garantir-lhe que
não é um mal, ao contrário. É algo mais que pode
enriquecer muito o espírito, dando-lhe chance de
perceber melhor a verdade do mundo que nos cerca
e viver melhor.

— Acha isso?

— Acho. Christopher precisa estudar. Há livros,
pesquisas sobre isso, de cientistas sérios e
dedicados. Pense Anne: se ele vê o avô, poderá ver
outros espíritos que estão à nossa volta, que são
bons e desejam ajudar-nos. Tem prova da


sobrevivência da alma, portanto a morte para ele
não é mais um doloroso mistério. Pensou nisso?

— Não. Não tinha pensado. Acho indigno e injusto
que estejamos expostos à influência ruim de
espíritos que nem sequer enxergamos e que podem
nos influenciar tanto.

— São pessoas infelizes que não desejam aceitar as
mudanças necessárias. Com o tempo e a
observação, verá que não passam de seres que
precisam de ajuda e esclarecimento.

— Eu disse a Christopher que receberia a visita de
dois médiuns da Sociedade Psíquica. Não contei que
os tinha chamado para ajudá-lo. Ele não acredita
que esteja sendo influenciado.

— Vamos falar com eles. Juntos combinaremos
tudo.

— Está bem. Estou feliz por contar com você aqui
nesta hora.

Sorri comovido. Anne chamou a criada e pediu para
os dois médiuns virem ter conosco. Quando eles
chegaram, depois dos cumprimentos, Anne colocou-
os a par de tudo e finalizou:

— Espero que os senhores consigam afastá-lo
daqui.

— Peçamos a Deus que nos ajude a esclarecer esse
espírito — tornou Ernest sério.

Fez-se silêncio por alguns instantes. Foi Philip quem
falou primeiro.

— Vamos fazer uma sessão hoje à noite. Seu filho
concordaria em participar?

— Certamente. Ele acredita nos espíritos. Só não
desejo que saiba o verdadeiro motivo pelo qual os
convidei.

— Não se preocupe Lady Anne. Podemos marcar
para hoje à noite às oito horas? — disse Ernest.

— Sim. O jantar será servido às seis e meia.


— Se não se importa, preferimos alguma coisa leve
— pediu Philip.

— Providenciaremos tudo como deseja.

— Vamos nos recolher, preparar-nos — disse
Ernest.

— Está certo. Serviremos às seis e meia.

Os dois inclinaram-se e saíram. Eu fiquei.

A presença de Anne me eletrizava. Tantos anos
afastados não tinham apagado do meu coração
aquele amor tão grande. Vendo-nos a sós, eu disse:

— Você está linda!

Ela sorriu olhos brilhantes de emoção.

— Anne — disse —, sinto vontade de beijá-la, de
apertá-la de encontro ao meu coração e nunca mais
deixá-la sair.

— Contenha-se.

— Vamos passar aqui pouco tempo. Quero ficar a
seu lado o mais que puder.

— Eu também — disse ela refletindo nos olhos o
amor que sentia. — Christopher deve estar em casa
e desejo apresentá-lo antes do jantar.

Senti-me ansioso e um pouco inquieto.

— Ele não é mais uma criança — respondi
pensativo. — Como me receberá?

— Muito bem. Vamos vê-lo.

Levantei-me e segui-a até uma bela sala de
estar onde ela pediu à criada para avisar que
tinham visitas. Sentamo-nos cerimoniosamente e
esperamos. Meu coração batia descompassado. Ia
rever meu filho! Christopher entrou na sala e
levantei-me.

— Esse é o Sr. Jacques Latour, lembra-se dele?
Amigo do Sr. Leterre, visitava-nos em Paris.

Christopher inclinou-se cortês.

— Sim — disse. — Lembro-me. Como está Sr.
Latour?


— Muito bem.

— Sente-se, por favor — disse ele educadamente.

Eu estava emocionado e orgulhoso. Era um belo
moço, cabelos louros, olhos claros como os de
Anne, pele delicada, alto, porte elegante e altivo.

Sentamo-nos.

— É a primeira vez que vem a Loucester?

— Aqui, nesta casa, é. Estive em Dolgellau há cerca
de vinte anos, quando estava na carreira
diplomática. Fui hóspede de Sir John, de quem me
orgulho de ter sido amigo.

— Como era nossa cidade tantos anos atrás?

— Uma pequena vila, sem muito conforto. Fiquei
admirado pelo progresso que houve aqui. Felicito-o,
senhor conde. Transformou tudo para melhor.

Ele sorriu, mostrando dentes alvos e bem
distribuídos. Senti um baque no coração. Ele
parecia-se extraordinariamente com papai quando
sorria. A boca, o nariz, o formato do queixo eram
muito semelhantes aos dele e um pouco aos meus.

Conversamos de política e tive o prazer de
perceber-lhe a inteligência arguta e o senso de
observação bastante amadurecido para a idade.

Falamos do Sr. Leterre, da nossa amizade, das
suas qualidades de coração e caráter. Falamos da
morte e pude sentir que meu filho a encarava com
naturalidade e fé. Falei-lhe da França, suas belezas,
suas tradições dos meus ideais na aplicação da
justiça, na magistratura, e o tempo passou rápido.

Quase na hora do jantar, Ernest e Philip
juntaram-se a nós e pude notar que Christopher,
que os recebeu cordialmente, logo depois perdeu a
loquacidade e fechou-se, não mais participando dos
assuntos. Remexia-se inquieto na cadeira e a certa
altura saiu da sala. Anne olhou-nos apreensiva.


— Não se preocupe — disse Ernest. — Tudo sairá
bem.

— Ele mudou de repente — disse ela. — Estava bem
conversando com o doutor Jacques.

— Pouco depois que chegamos — tornou Philip.

— É verdade — concordei.

— Tem razão, Lady Anne. Sir Charles tem envolvido
seu filho.

Está obstinado. Quer reinar neste condado de forma
absoluta. Ficou furioso com nossa chegada. Disse
que ninguém conseguirá demovê-lo — esclareceu
Ernest.

— Falou com ele? — inquiriu Anne preocupada.

— Philip o viu. Tentou conversar, mas ele foge de
um contato maior — esclareceu Ernest.

— Não se preocupe Lady Anne. Vê-lo e conhecer-lhe
as intenções é um grande passo — afirmei
esperançoso. — Deus nos ajudará a conseguir o que
desejamos.

— É verdade — ajuntou Philip.

O jantar foi servido e Christopher não
compareceu. Anne mandou a criada chamá-lo e ela
também não apareceu.

— Queiram desculpar — disse Anne decepcionada.
— Ele sempre é bem-educado com as pessoas.
Talvez não esteja bem. Com licença.

Anne afastou-se e reapareceu alguns minutos
depois com a fisionomia transtornada.

— É ele — disse aflita. — A criada foi chamá-lo e ele
ficou furioso, gritou com ela, até ameaçou espancá-
la. A pobre moça está na copa, chorando muito
assustada. Meu Deus! Ele está furioso.

— Deixe-o lá por agora — disse Ernest.

— O que faremos? — inquiriu Anne.


— Nada — respondeu Philip. — Ele quer conturbar o
nosso ambiente e assustar-nos. Vamos confiar em
Deus e jantar serenamente.

Anne concordou:

— Por favor, queiram sentar-se.

O jantar decorreu normalmente, embora
pudéssemos sentir certa tensão no ar. Anne mal
tocou nos alimentos. Contudo, esforçamo-nos para
manter a serenidade.

Após o jantar, voltamos à sala principal.

Anne, aflita, considerou:

— E se ele não vier à sessão?

— Ajude-nos com sua fé — pediu Philip. —
Precisamos dela. O pensamento positivo é força
poderosa para conseguirmos nossos objetivos. Está
na hora. Queremos uma sala tranqüila onde
ninguém nos interrompa.

— Venham comigo.

Anne conduziu-nos à pequena sala de estar,
acolhedora e finamente mobiliada. A um canto,
havia uma mesa e algumas cadeiras.

— Aqui está bem — disse Ernest. — Queremos uma
jarra com água e alguns copos.

Enquanto Anne pedia à criada para
providenciar, Ernest corria o grosso reposteiro.

Philip saiu da sala, voltando logo depois com
uma caixa, que colocou sobre a mesa. Anne olhava
curiosa.

— É a luz vermelha. Por fora tem esse papel
vermelho e dentro a lâmpada. É especial para
sessões porque a luz branca queima o ectoplasma.
Isto é a energia da qual nos utilizaremos para
comunicar-nos com os espíritos — expliquei.

Anne observava tudo atentamente.

— Vou chamar Christopher — disse.


— Pode ir — concordou Ernest —, porém, não
insista. Diga-lhe apenas que vamos começar agora.

Ela saiu e nós nos sentamos ao redor da mesa.
Ernest ligara a lâmpada que colocara sobre um
móvel lateral e que espalhava pela sala tênue luz
avermelhada. Anne voltou em seguida.

— Ele não virá. Disse que está com sono.

— Não faz mal. Feche a porta, por favor. Não
devemos ser interrompidos em hipótese alguma.

— Correrei o ferrolho — disse Anne.

— Muito bem. Queira sentar-se aqui, por favor —
pediu Ernest.

Vendo-a acomodada, ele apagou as luzes, ficando a
sala em escuro total.

— Vamos orar agora. Pedir a Deus que nos permita
evocar o espírito de Sir Charles que está nesta casa.
Pedimos às forças do bem e de Jesus Cristo que nos
tragam o espírito de Sir Charles. Precisamos
conversar.

Ernest calou-se e todos, atentos, esperávamos.

O silêncio era absoluto. Depois de alguns minutos,
Ernest fez nova evocação.

— Sei que está aqui, Sir Charles. Não desejamos
molestá-lo. Venha conversar conosco. Vamos orar
em pensamento para que Deus nos permita obter
essa graça.

Durante meia hora Ernest pediu preces aos
presentes e evocou o espírito de Charles, sem obter
êxito. De repente, Philip começou a inquietar-se e
remexer-se na cadeira. Sua cabeça pendeu para
frente e ele inclinou-se encostando seu rosto na
mesa. Alguns gemidos saíam de seus lábios.

— Graças a Deus — disse Ernest. — Não se
preocupem, continuemos orando.


Algumas pancadas soaram em lugares
diferentes, às vezes no teto, outras nos móveis da
sala.

— Graças a Deus — repetiu Ernest. — Seja bem-
vindo.

A luz vermelha acendeu-se sem que ninguém a
tocasse e pudemos ver uma fumaça branca saindo
da boca de Philip. Eu não queria perder nada. Abri
bem os olhos, sem desviá-los dele. Aquela fumaça
transformou-se em uma massa branca subindo
sobre a cabeça do médium adormecido e foi aos
poucos tomando forma, adensando-se até
transformar-se num busto formoso de mulher.
Loura, linda, trajes antigos, muito luxuosos.

— Mamãe! — gritou Anne emocionada.

Ela sorriu e seus lábios moveram-se dizendo:

— Não tenho muito tempo. Estamos ajudando,
continuem.

— Obrigado, Lady Elizabeth. Pode nos dizer como
conseguir o que precisamos?

— Continuem. Estamos aqui.

Sua voz calou-se, sua figura desfez-se e a luz
vermelha apagou-se. Anne tremia qual folha batida
pelo vento. Segurou minha mão com força. Percebi
que chorava. A emoção fora forte demais. Eu
sentia-me impressionado. Já assistira algumas
sessões de materializações, mas nunca daquela
forma. Era sempre um local preparado por outras
pessoas e no escuro total, condição que sempre nos
deixava algumas dúvidas.

Ali, porém, na casa de Anne, sua mãe,
materializada apenas a cabeça, os ombros e a parte
do colo, que se formara diante dos nossos olhos e
desaparecera da mesma forma... Não havia como
duvidar.


Eu sentia no coração imensa gratidão por Deus
ter-me permitido estar ali e presenciar aquele
acontecimento. Há muito eu não tinha dúvidas
sobre a existência dos espíritos, todavia ver esse
fenômeno consolidou mais minha fé. Foi
emocionante.

Ernest prosseguiu, pedindo-nos orações e
chamando pelo espírito de Sir Charles. Mas ele não
compareceu.

— Estou vendo meu guia espiritual. Está junto com
Lady Elizabeth. Diz para mantermos nossa fé. Eles
estão trabalhando no caso. Amanhã, à mesma hora,
faremos nova sessão. Agora, podemos ir. Vamos
orar agradecendo a Deus pelo que recebemos hoje
e pedir que abençoe esta casa.

Ernest acendeu a luz vermelha e proferiu
sentida prece. Philip ainda estava com o rosto
encostado na mesa, adormecido. Não acordou
mesmo quando Ernest acendeu totalmente as luzes.

Anne estava muito emocionada e olhou para Philip
ligeiramente apreensiva.

— Não se preocupe Lady Anne, logo ele voltará ao
corpo.

— Foi extraordinário — disse ela. — Jamais pensei
que fosse possível! Minha mãe! É inacreditável!

— Realmente, foi uma manifestação excelente!
Estou encantado — disse eu com entusiasmo.

Pena que Christopher não tenha visto! Foi uma
experiência inesquecível. Minha mãe!

— Que linda ela é! — exclamei.

— É verdade. Pode comprovar isso nos quadros da
galeria, embora hoje eu a tenha achado bem mais
bela — enfatizou Anne.

— Ela tem elevação espiritual — esclareceu Ernest.
— Sua beleza vem da alma.


— Estou muito feliz. Agradeço aos senhores terem
vindo e me proporcionado assistir a esse
acontecimento. Jamais esquecerei, obrigada.

Ernest fixou-a com uma indefinível expressão
em seus olhos brilhantes.

— Talvez agora, Lady Anne, possa compreender por
que nos dedicamos tanto ao estudo desses
fenômenos e à sua divulgação.

Ela assentiu com a cabeça e ele prosseguiu calmo:

— Quem enxergar a vida como ela é levantar a
ponta do véu que encobre o mundo espiritual,
conhecer-lhe as leis, mudará completamente seus
objetivos, seus valores, seu enfoque dos problemas
humanos. Se, além disso, sentir dentro de si a força
das energias superiores, certamente não mais as
dispensará. Terá descoberto o estado de felicidade
que sempre procurou, mas que nunca tinha
encontrado.

Anne estendeu-lhe a mão, dizendo:

— Deus o abençoe e ao seu ideal. Depois do que
presenciei e senti esta noite, também quero estudar
esses fatos. Não quero mais ter os olhos fechados
para o que for verdadeiro e eterno. Acha que
aprenderei?

Ernest apertou a mão dela com entusiasmo,
dizendo:

— Nesses assuntos, cada um vive a própria
experiência. Não me sinto em condições de ensinar.
Podemos trocar idéias, livros e fatos.

Nossa sociedade, em Londres, está à sua disposição
para o que quiser. Ficaremos muito honrados com
sua visita.

Antes que ela pudesse responder, tivemos a
atenção voltada para Philip, que acordara e passava
a mão pelos cabelos, ajeitando-os. Olhou ao redor


como querendo situar-se. Dirigindo-se a Ernest,
perguntou:

— E então?

— Tudo bem. Veio Lady Elizabeth, materializou-se
parcialmente, mas muito nítida. Conversou conosco,
animando-nos a prosseguir. Está ajudando.

— Ótimo — disse Philip.

— Amanhã continuaremos — concluiu Ernest.

Quando saímos da sala, Anne perguntou pelo
filho, mas ele não saíra do quarto. Ela mandou
servir um chá com bolos e conversamos durante
mais meia hora sobre os acontecimentos da noite e
as indagações que eles nos suscitaram.

Quando os dois médiuns retiraram-se, eu
fiquei. A proximidade de Anne reacendera a velha
chama e eu sentia meu coração acelerar seus
batimentos. Vendo-me sozinho com ela, não me
contive. Abracei-a, beijando-lhe os lábios com
amor.

— Anne — disse baixinho em seu ouvido—, não me
obrigue a deixá-la nesta noite. Eu preciso de você!

A respiração dela estava irregular e sua voz cheia
de emoção.

— Vá para seu quarto. Deite-se e deixe-o às
escuras. Irei ter com você.

Não pude conter a alegria. Obedeci
prontamente. Mal podia esperar. Preparei tudo e
deitei-me, sem passar a chave na porta atento ao
menor ruído.

Finalmente ela chegou. Escutei o barulho da
chave fechando e logo depois Anne estava de novo
em meus braços.

A emoção era tanta que senti medo de acordar.
Mas não era sonho. Anne realmente estava ali, e eu
me entreguei ao momento de felicidade,


aproveitando cada instante, sem querer parar ou
pensar.

No dia seguinte, quando acordei, Anne já se
tinha ido, mas eu conservava no coração a alegria
do reencontro. Levantei-me rápido. Queria ficar
perto dela o maior tempo possível.

Ela já se encontrava na sala e convidou-me ao
desjejum na pequena sala de almoço. Sentou-se ao
meu lado e conversamos enquanto comíamos.

Ela estava um pouco tensa, preocupada com
Christopher. Ele saíra ao clarear do dia, apesar do
mau tempo, sem dizer para onde ia. Tentei
tranqüilizá-la.

— Acalme-se. Foi dar uma volta. Por certo estará
de volta até a hora do almoço.

Mas ele não voltou e eu também me senti
ansioso, embora tentasse ocultar a preocupação
para não afligir Anne ainda mais. Eu sabia que Sir
Charles estava tentando afastá-lo da nossa
influência. Procurei explicar isso a Anne.

— Tenho medo — disse ela.

— Nada de mal acontecerá a ele. Sir Charles o
protegerá. E seu instrumento para conseguir o que
deseja.

— Ele nunca agiu assim — considerou Anne.

Entretanto, os dois médiuns estavam confiantes e
serenos.

— Não vamos dar força ao problema cultivando o
medo ou a insegurança. Nosso papel é de confiança
e vitória. Lady Elizabeth nos disse que estão
ajudando. Esperemos, agradecendo a Deus pelo
esclarecimento de Sir Charles, pela sua
compreensão — explicou Ernest com calma.

— Sir Charles pretende conservar o senhor conde
fora da nossa influência, tentando inutilizar nossos
propósitos — esclareceu Philip.


— O que vamos fazer? — indagou Anne.

— Esperar e confiar — propôs Ernest. — Nossos
amigos espirituais sabem melhor do que nós o que
fazer.

Anne, com gentileza, ofereceu-nos o carro para
um passeio pelos arredores. Recusei com delicadeza
e os dois também não aceitaram, preferindo
recolher-se aos seus aposentos.

— No momento, é necessário permanecermos aqui
— disse Ernest.

Quando se foram, eu e Anne nos sentamos em
uma sala pequena para conversar. Apesar da nossa
ansiedade com relação a Christopher, foi muito bom
podermos reviver os velhos tempos.

Contudo, à medida que as horas passavam e
Christopher não voltava, sentíamos aumentar nossa
ansiedade. Estava já escurecendo quando os dois
médiuns nos procuraram. Anne não se conteve:

— Christopher não voltou até agora! Aonde terá
ido?

— Precisamos de ajuda — disse Ernest. — Vamos
buscá-lo.

— Como? — indagou Anne.

— Vamos à sala da nossa reunião de ontem —
convidou Philip.

Obedecemos prontamente. Sentamo-nos ao redor
da mesa.

— Todos desejam a volta do senhor conde —
garantiu Ernest.

— Para que isso aconteça, vamos pensar nele e
imaginá-lo entrando nesta casa, regressando.

— Será o bastante? — indagou Anne admirada.

— O pensamento é uma força viva e atuante.
Vamos pensar no senhor conde e "vê-lo" se
aproximando e entrando nesta casa. Sem ansiedade
nem medo ou justificativas. Apenas com segurança


e certeza, com calma e serenidade.
Compreenderam?

— Sinto-me ansiosa. Como vou conseguir ter
serenidade agora? — perguntou Anne angustiada.

— Reconhecendo que, se você não sabe onde ele se
encontra, Deus sabe. Entregue, pois a ele a
incumbência de trazê-lo de volta. Deus sempre faz
o melhor e o que é certo. Diga isso no íntimo do seu
coração e procure sentir como Deus é generoso,
bom, perfeito e tudo pode. Sendo assim, entregue
seu filho a ele e sinta que pode ter confiança em
que ele o protegerá. Fechemos os olhos e
busquemos dentro do nosso ser sentir a ligação com
a força divina. Agradeçamos a Deus todas as coisas
boas que conhecemos. Vamos sentir como ele é
forte e nos tem protegido sempre. Ele está aqui,
particularizado em cada um de nós e está também
em Christopher e em Sir Charles. Dentro desse
encontro divino, nós nos abraçamos e
reconhecemos que, embora todos nós sejamos um
com Deus, cada ser tem seu próprio caminho, suas
escolhas e suas experiências individuais e
intransferíveis. Assim, eu, Ernest, tenho minha
escolha livre e soberana, Philip tem a dele, Lady
Anne a sua, o doutor Jacques também. Por isso, o
conde Christopher deve seguir o rumo que lhe é
peculiar e Sir Charles, por certo, terá também seu
próprio destino.

Ernest calou-se, respirou fundo e prosseguiu:

— O destino de cada um é sua própria felicidade. É
o programa com o qual Deus o individualizou. E
como ele só será feliz cumprindo essa
determinante, todas as vezes que se afastar desse
rumo sofrerá até que volte novamente e reencontre
seu real destino. Pensemos em Sir Charles. Deus
tem programado para ele, como filho, todo o bem e


as coisas que particularmente o fará muito feliz.
Para nós reservou, igualmente, maravilhosas
condições de felicidade. Porém, uma não é igual à
outra. Na conquista desses preciosos valores que
nos darão à maturidade espiritual, cada
personalidade deverá seguir e aprender,
experienciar e aperfeiçoasse. A vida, suas leis,
defende inapelavelmente esses princípios,
preservando os objetivos divinos ideais de cada ser.
Assim sendo, não toleram por muito tempo as
distorções, as imposições e os enganos humanos,
suas ilusões obstinadas, acabando sempre por
corrigir o afastamento da programação divina,
recolocando o ser no rumo adequado. Torna-se
inútil, portanto, a insistência obstinada do homem,
querendo comandar a vida, as pessoas, dominar a
natureza. Conquanto possa conhecer um pouco
mais, jamais o conseguirá. O melhor será aceitar as
situações e as mudanças que a vida impõe tentar
compreender o que ela deseja nos ensinar e
procurarmos nos esforçar para fazer o melhor.

Eu me sentia comovido com os conceitos de
Ernest. De repente, muitas coisas ficaram claras na
minha cabeça. Eu também tentara comandar a vida
e ela reagira sempre, mudando as peças do jogo
sem que eu pudesse impedir. Um profundo respeito,
um sentimento fundo de gratidão brotou-me na
alma. Minha confiança em Deus cresceu clara,
firme, verdadeira.

— Continuemos mentalizando Sir Charles — pediu
Ernest. — Ele está nos ouvindo agora. É um homem
inteligente e altamente capacitado para exercer
liderança. Contudo, não pode querer fazê-lo através
de outra pessoa. Não terá espaço nem chance para
colocar todo seu potencial. O melhor seria preparar-
se. As coisas mudaram. O progresso é vertiginoso.


Ele poderá renascer aqui, de novo. Ter um outro
corpo de carne só seu, onde poderá exercer
livremente sua liderança. Posso conversar com ele e
tornar isso possível. Só há esse caminho. Ele não
poderá reviver seu velho corpo, que já foi
decomposto. Mas Deus fará melhor. Dar-lhe-á um
corpo novo, jovem, forte, com o qual poderá ser ele
mesmo, sem sofrer limitações. Estou pronto a
conversar com ele calma e sensatamente, como
pessoas civilizadas. Ninguém pretende discutir ou
prejudicá-lo. Só o que ele tem a fazer é trazer o
neto de volta e dispor-se a ouvir. Nós podemos
tornar seu desejo realidade.

Eu estava admirado com aquela linguagem
muito diferente da que estava habituado nas
sessões que freqüentara. Ernest prosseguiu:

— Vamos agora, durante alguns minutos, pensar e
"ver" o conde entrar em casa.

Ficamos em silêncio e eu coloquei toda a
firmeza em imaginar Christopher em casa. Depois
de certo tempo, Ernest concluiu:

— Agradecemos senhor Deus, a volta do conde
Christopher e a compreensão de Sir Charles. Muito
obrigado por essa graça.

— E então, como se sente? — perguntei a Anne.

— Melhor — respondeu ela mais calma.

— Ótimo — considerou Ernest. — A serenidade, o
bom senso, o pensamento adequado aumentam
nossa força.

— Faremos à sessão conforme o programado? —
perguntei.

— Sim. Os espíritos marcaram, vamos atender.

— Christopher voltará a tempo? — inquiriu Anne.

— Ele estará em casa no devido momento —
declarou Philip.


Anne mandara preparar um jantar leve,
conforme solicitamos, e comemos em seguida. Os
dois recolheram-se a seus aposentos e nós dois,
lado a lado, no aconchego do sofá, preferimos
conversar.

Faltavam cinco minutos para as oito quando os
dois voltaram convidando-nos à reunião. Nenhuma
notícia de Christopher. Anne mandara alguns
homens à sua procura logo após o almoço e eles
ainda não tinham regressado. Ela voltara a ficar
apreensiva e eu lutava para manter a confiança,
procurando animá-la.

Sentamo-nos ao redor da mesa e as luzes
foram apagadas. Apenas a luz vermelha de Ernest
permaneceu acesa. Philip fez ligeira prece,
evocando seus amigos espirituais. Ficamos em
silêncio. De repente, Ernest suspirou
profundamente. Depois de alguns instantes disse
em voz um tanto diferenciada:

— Boa noite, amigos. Continuemos confiantes.
Nesta noite, vencida uma etapa, poderemos
compreender melhor a causa dos problemas que
têm afligido esta casa. Ela se perde no passado,
quando se armaram os laços que ora tentamos
desatar.

Um sentimento de fundo respeito invadiu-me o
coração. Por que eu me unira a Anne por laços tão
profundos e estava ali naquela noite, em uma terra
distante, envolvido naqueles acontecimentos?

Ernest conservou-se silencioso por alguns
instantes. Depois prosseguiu:

— Tem razão, meu amigo, você também participou
desse passado. Viveu na Inglaterra, foi membro
ativo do Parlamento ao tempo de Guilherme IV. A
política era sua paixão. Quando a rainha Vitória
subiu ao trono, você, trabalhador e inteligente,


inflexível e duro, granjearam a simpatia da rainha,
sendo para ela um apoio fiel e dedicado. Seus
espiões trabalhavam com eficiência e tenacidade
informando-o e à rainha das intrigas políticas contra
o seu poder. Muitas cabeças rolaram na defesa dos
interesses do trono e você se sentia forte e
orgulhoso de fazer justiça. Tinha esposa e filhos, os
quais tratavam com honesta severidade. Até que
conheceu a esposa do conde de Loucester.
Apaixonou-se. Influente, procurou aproximar-se
dela, afastando o marido para longas viagens.
Correspondido, tornaram-se amantes. Um dia,
surpreendido pelo conde, usou de sua arma,
matando-o para defender-se. Ninguém soube da
verdade. Apenas, a partir daquela noite, a condessa
não conseguiu mais ter saúde, sofrendo
esgotamento nervoso e loucura. Você se sentiu
culpado e a partir daí foi decaindo do poder. Deixou
o Parlamento no ostracismo, tornou-se deprimido e
neurastênico. Lady Helen terminou tristemente seus
dias e o condado foi entregue ao seu filho mais
velho, pai de Sir Charles.

Eu estava emocionado, trêmulo, e era como se
de repente todos aqueles fatos nos quais participara
estivessem acontecendo de novo. Anne chorava
baixinho e eu compreendi que ela fora Lady Helen,
cujo amor ainda vivia dentro de mim. Mas... E o seu
esposo? Eu receava perguntar. Ernest, que se
calara, continuou:

— O conde morreu cheio de ódio e não quis
perdoar. Abraçou-se a Lady Helen jurando
vingança. Nos momentos em que a via abatida,
procurava o rival para atormentá-lo também.
Debalde seus guias espirituais procuraram ajudá-
los. A culpa que carregavam os tornava vulnerável
aos pensamentos dele. Foi depois que todos


morreram, e Deus os ajudou a equilibrar-se, que
puderam reencontrar—se e estabelecer um plano de
refazimento que pudesse devolver-lhes a paz da
consciência e o próprio perdão. Nesse plano, estava
a devolução da vida e dos bens do conde
assassinado. Tudo decorreu muito bem. Você e Lady
Helen conseguiram superar interesses pessoais e
realizar a sua parte do plano. Deram vida ao conde
e hoje ele é novamente o dono de Loucester e Lady
Helen está a seu lado, agora como mãe, para ajudá-
lo. Você como magistrado, está aprendendo a
exercer melhor a justiça. Vocês não contavam com
a interferência de Sir Charles, mas afianço que ele
já compreendeu. Assim, Christopher poderá agora
governar Loucester e prosseguir suas experiências
interrompidas.

Eu estava muito comovido.

Anne chorava. Eu não tinha coragem de falar. Não
tinha o direito ao amor de Anne.

Estaríamos separados para sempre?

Foi Ernest quem respondeu meus pensamentos
íntimos.

— A vida é eterna — disse. — O amor, quando
verdadeiro, é abençoado. Um dia, quando for
oportuno, vocês estarão juntos para sempre.
Continuem confiando em Deus, ouvindo à voz da
própria consciência. Lembrem-se de que os estudos
sobre a vida espiritual, cultivando a ligação
constante com Deus, lhes darão alegria e fé,
compreensão, paciência para esperar. Não temam.
Guardem o coração em paz. Deus os abençoe.

Ernest calou-se. Philip fez singela prece de
agradecimento e encerrou a sessão.

Estávamos por demais emocionados para falar.
As palavras que ouvíramos calaram fundo em nosso
espírito.


Pude perceber que Anne, tanto quanto eu
sentia que eram verdadeiras.

Os dois médiuns, discretos e atenciosos, nada
comentaram. Eu os abracei agradecido.

— Obrigado por estarem nos ajudando nesta hora.
Sinto que conhece a nosso respeito mais do que nós
próprios. Esta noite pude entender o porquê de tudo
quanto nos tem acontecido.

— Sim — concordou Anne. — Os senhores têm toda
minha gratidão. Nossa alma viveu cheia de conflitos
e apelos e a vida foi nos guiando para fatos
inesperados. A luta entre o desejo e o dever. Estou
feliz por haver optado pelo dever.

Ernest assentiu.

— Sua consciência precisava dessa força para estar
em paz.

— Desde quando sabiam que eu estava envolvido
com o caso? — indaguei curioso.

Foi Philip quem respondeu:

— Desde que o conhecemos em Londres. Foi por
isso que permitimos que nos acompanhasse.

Anne olhou-os admirada.

— Meu guia espiritual — disse Ernest — me avisara
que deveríamos atender seu caso, cuja missiva
acabávamos de receber. Mas que precisávamos
esperar por uma pessoa que viria e deveria nos
acompanhar, porque estava diretamente ligada ao
assunto e ajudaria na solução.

— Como me identificaram?

— Foi fácil, o senhor mesmo se revelou assim que
soube que viajaríamos a pedido de pessoa
importante.

— É verdade, eu estava realmente ansioso. Que
mais ele lhe disse?

— Que o passado tem muita força. No momento
oportuno atrai as pessoas e as reúne para o


entendimento. Como conhecem as coisas
espirituais, foi-lhes permitido saber a verdade.

— Por um ato impensado do passado, teremos que
permanecer separados para sempre? Não há
esperanças para nós?

— Claro que sim — tornou Ernest com doçura. — A
meu ver, quando um sentimento de amor é
bastante forte para sobreviver a tantas
experiências, e até ao tempo, acabará por
conquistar seu lugar, realizando-se.

— Mas a vida tem colocado barreiras em nosso
caminho — disse Anne pensativa. — Ainda agora
não podemos ficar juntos como gostaríamos porque
há impedimentos.

— A vida sempre faz o melhor — tornou Ernest. —
Se colocou barreiras, foi porque ambos não estavam
suficientemente livres e preparados para viverem
juntos. Acha que seria fácil para o conde
Christopher aceitar a presença do homem que, além
de roubar-lhe o amor da esposa, tirara-lhe a vida?
Acham que o espírito que estava habituado ao
poder, através do qual atraíra várias pessoas para
sua vida, poderia sujeitar-se a ficar em segundo
plano neste condado? Meus amigos, a vida, com sua
sabedoria, concederam-lhes tempo para um
amadurecimento interior. Um dia, quando se
sentirem livres da culpa do passado, forem mais
experientes, se o amor perma¬necer, então a vida
não colocará barreiras, mas os aproximará e tudo
será possível, de uma forma mais bela e mais
completa. É só ter paciência e confiar em Deus.

Um sentimento de paz brotou dentro de mim. Só
um pensamento ainda me incomodava:

— Não conseguirei que Christopher me aprecie? —
indaguei.


— Certamente — respondeu Philip. — As coisas são
diferentes agora. Devolveu-lhe a vida, a esposa e
tem lhe dado amor. O passado se apagará
definitivamente. Ele conhecerá uma moça, será um
reencontro com alguém que ele amou e que muito o
ama. Será muito feliz e muito fará pelo progresso
do seu povo.

— Vou conquistar-lhe a simpatia — disse. — Ele
acabará por estimar-me.

— Naturalmente — disse Anne. — Contudo, é tarde
e ele ainda não apareceu.

— Não se preocupe — respondeu Ernest. — Ele
estará de volta antes do amanhecer.

Tomamos um chá com torradas e os dois
recolheram-se enquanto nós nos demoramos
conversando numa pequena e aconchegante sala.

— Estou fascinada — comentou Anne. — Como eles
puderam descobrir tudo?

— A mediunidade exercida com honestidade pode
fazer muito em nosso benefício.

— De hoje em diante, desejo aprender sobre isso.
Christopher vê os espíritos.

— Não só vê como sente e é envolvido por eles.
Seria útil que ele compreendesse e estudasse as leis
que regem esses fatos. Só assim poderá conhecer
as causas das influências e proteger-se.

— Agora que tudo isso aconteceu, não descuidarei.

— Gostaria de ajudar. Tenho estudado, pesquisado,
e seria também uma oportunidade para aproximar-
me dele. Desejo muito que ele seja meu amigo.

— Compreendo e aprecio seu gesto. Tem todo o
direito de tentar isso.

— Obrigado, Anne. Vou pensar em uma maneira.

Ficamos conversando durante muito tempo. Entre
nós havia agora um novo entendimento.


Era muito tarde quando a criada entrou um tanto
apressada, dizendo:

— Senhora, senhora, o senhor conde acaba de
chegar!

Levantamo-nos incontinenti. Anne acompanhou a
criada e eu fui atrás. Na sala de refeições,
Christopher estava sentado à mesa enquanto uma
serva colocava à sua frente coisas para comer.
Vendo-nos aproximar, levantou-se, dizendo
admirado:

— Acordados até esta hora? Terei feito barulho?

Apesar de empoeirado e as vestes um pouco rotas,
parecia bem-disposto.

— Lady Anne estava preocupada com sua demora,
não conseguia dormir. Eu fazia-lhe companhia.

— Desculpe mamãe — disse ele beijando-a na face
com desenvoltura. — Não pensei demorar-me tanto.
Sinto tê-la afligido.

— Está tudo bem, meu filho. Estou feliz por vê-lo de
volta.

— Tenho fome. Aceitam comer um pouco comigo?
Anne olhou-me indecisa, mas eu aproveitei a
oportunidade.

— Aceito — disse.

— Eu também — concordou Anne.

Sentamo-nos. Christopher estava alegre e bem-
disposto. Muito diferente do moço que eu vira ao
chegar.

— Fui ver as coisas de perto. Saí a cavalo, pela
floresta, e devo ter dormido, não sei bem. Andei o
dia todo, estava cansado e com fome. Parei em uma
cabana e fiquei lá. Comi biscoitos que encontrei em
um pote. Com certeza, lá morava algum caçador.
Não o vi. Devo ter dormido demais. Meu cavalo
escapou e não o encontrei mais. Voltei a pé. Tinha
fome e muita vontade de chegar. Afinal, nem sei


por que saí. Senti medo. Acho que essas coisas de
espíritos mexeram comigo.

Christopher comia com apetite e notei que ele
estava muito bem. Anne estava feliz e eu também.
Conversamos bastante. Anne contou-lhe a
materialização de Lady Elizabeth e ele ficou cheio de
curiosidade. Arrependeu-se de não ter estado
presente.

O dia estava amanhecendo quando nos
recolhemos. Eu sentia muita alegria no coração.

Christopher não demonstrara nenhuma
animosidade. Eu poderia ter esperanças.

Reunimo-nos ao almoço. O ambiente estava
agradável e sereno. Christopher fazia as honras da
casa com cortesia e atenção. Ernest anunciou a
partida para o dia seguinte e eu senti um aperto no
coração. Christopher desculpou-se por não ter
estado presente nas sessões anteriores e pediu para
que fizessem mais uma.

Eles concordaram. Durante a tarde, Anne
conversou longamente com o filho. Relatou-lhe o
que se passara com Sir Charles, omitindo as
revelações sobre o nosso passado. Aconselhou-o a
estudar esses assuntos para que não voltasse a ser
joguete nas mãos de espíritos não esclarecidos. Ele
ficou impressionado e pensativo.

Antes do jantar fomos à galeria dos
antepassados, ver os retratos. Reconhecemos logo
Lady Elizabeth. Fomos ver os outros. Em frente à
Lady Helen, paramos. Havia nela alguma coisa que
lembrava Anne, e eu comentei:

— Parece-se com Lady Anne.

Christopher respondeu prontamente:

— Lembra um pouco, mas elas são muito
diferentes. Lady Helen era atormentada e doente.
Perdeu o marido em um acidente. Nunca se


conformou. Mamãe é equilibrada, forte, lúcida.
Perdeu o marido assassinado e manteve o
equilíbrio.

Inclinei-me delicado:

— Tem razão, conde.

Ele parou frente ao retrato de um homem moço
e em traje de gala.

— De todos os retratos, este é o que mais gosto. O
marido de Lady Helen, por sinal. Um homem
inteligente tinha um futuro político promissor. Pena
que tenha morrido tão prematuramente.

Olhei o retrato e estremeci. Era muito parecido
com Christopher. Senti-me inquieto.

— O senhor conhece bem a história da família —
comentei.

— Sim. Adoro Loucester. Mas esse conde era
brilhante. Tinha projeção na corte e contava com a
proteção de um membro do Parlamento, apoiado
diretamente pela rainha. Aliás, chegou a ser
distinguido pela honra de desempenhar tarefas de
confiança para a coroa, a pedido de Sua Majestade.
Foi ao regressar de uma dessas viagens que sofreu
o acidente que lhe tirou a vida.

— Christopher sempre se sentiu atraído por essa
história — comentou Anne.

— É verdade — prosseguiu ele. — Infelizmente não
encontrei informações mais detalhadas sobre esse
acidente e muitas vezes cheguei a pensar que
talvez os fatos tivessem ocorrido de forma
diferente. Para mim, ele pode ter sido vítima de
alguma armadilha intencional.

Senti um frio percorrer-me a espinha.
Christopher se lembraria da verdade?

— Impressão, meu filho — considerou Anne. —
Fantasia. Nem sequer houve suspeita.

Christopher não se deu por vencido:


— Naqueles tempos, havia muita sede de poder.
Inveja. Ele era brilhante. Pode ter sido uma trama
política. Seja como for, quanto mais penso, mais
tenho a certeza de que ele foi assassinado.

Senti-me inquieto e contrafeito. Felizmente,
fomos andando e vendo os outros retratos.
Christopher pressentia parte da verdade. Contudo,
falara com naturalidade, não deixando transparecer
nenhuma emoção.

Fiquei pensando em como a vida nos
aproximara de novo, depois de tanto tempo. Percebi
que era a oportunidade que Deus me oferecia de
ajudar aquele a quem eu prejudicara e que agora
aprendera a amar de verdade.

Naquela noite, quando nos reunimos na
pequena sala para a nossa sessão, enquanto Ernest
orava comovido, eu pedi ardentemente a Deus que
me mostrasse como eu poderia ser útil ao meu filho
e ganhar o seu afeto.

Logo nos primeiros instantes, Christopher
mostrou-se inquieto. Quis levantar-se, mas Ernest
aproximou-se, colocando as mãos em seus ombros,
dizendo:

— Não tenha medo, senhor conde.

— É vovô. Ele está de volta.

— Deixe-o aproximar-se. Não resista. Relaxe.

Christopher respirou fundo e logo começou a tossir.
Anne estava tensa. Era a tosse inconfundível de Sir
Charles.

— Eu quero falar — disse Christopher em voz
arrastada.

— Seja bem-vindo, senhor conde. Estamos ouvindo.

— Quero deixar claro que vou embora porque
quero. Ninguém me obriga a fazer nada.

— Certamente, senhor — concordou Ernest.


— Sou um homem inteligente. Prefiro preparar-me
para voltar a viver nesse mundo, com um corpo só
meu, a quem eu possa comandar como eu quero,
sem interferências. Estarei ausente por algum
tempo, não sei bem quanto, quero deixar algumas
instruções para Christopher. Ele não pode ser tão
mole quanto sua mãe. Precisa ser duro com o
populacho. Ninguém é respeitado se não se impuser
com rigor. Quando eu voltar, quero encontrar as
coisas muito bem. Ele precisa mandar e todos
devem obedecer. Quando eu estiver de volta,
assumirei o comando. Agora, devo ir. Ai de vocês se
não fizerem o que ordenei. Seguirei com a gente da
nobreza que está me levando. Adeus.

A cabeça de Christopher pendeu sobre a mesa
e Ernest, com a mão espalmada sobre ele, orava
em silêncio. Vendo Christopher voltar ao normal,
sentou-se ao lado de Philip, que gemia e respirava
de forma irregular. Logo começou a sair de sua
boca uma substância branca que aos poucos foi se
adensando e, quando a pequena luz vermelha se
acendeu, eles viram o busto de Lady Elizabeth.
Christopher olhava-a fascinado. Ela imediatamente
postou-se na frente dele, que estava acometido de
intensa emoção.

Lady Elizabeth estava mais luminosa e bela do
que no retrato. E vibrante de vida. Olhando
Christopher com penetrante lucidez e muito amor,
disse:

— Christopher querido. Quero dizer-lhe que
vencemos uma etapa do passado. Charles, apesar
do que disse, antes de poder regressar a Loucester
deverá amadurecer na compreensão e por certo ao
voltar não mais terá a dureza que o marcou até
agora. Essa força, ao toque do entendimento, se
transformará na firmeza positiva que trará muitos


benefícios ao nosso povo. Você, Christopher, tem
nas mãos todas as oportunidades para realizar seus
desejos de progresso. Procure dirigir o condado com
justiça, mas com compaixão e benevolência. Esse
povo precisa ser orientado para que possa
desenvolver suas qualidades e conduzir-se melhor.
Para isto, você deve estudar a vida espiritual. Sua
sensibilidade deve ser educada e você precisa
aprender a fazer dela um instrumento útil. Peça ao
doutor Jacques que o ajude nesse campo. Ele está
preparado para ser seu professor e amigo. Agora,
devo ir, abençôo a todos vocês, a esta casa que
tanto amo, ao meu povo. Agradeço a Deus por este
privilégio. Adeus.

A figura de Lady Elizabeth foi se desfazendo, e
a luz vermelha apagou-se.

Ernest proferiu ligeira prece e encerrou a
sessão. Quando a luz se acendeu, Christopher
estava entusiasmado. Não podia conter-se. Falava
da beleza da avó, admirava-se de que tal fenômeno
não fosse do domínio público.

Anne estava emocionada.

— Não sei como agradecer tanta bondade —
considerou. — Foi um privilégio.

— Foi extraordinário — comentei.

— Realmente — concordou Ernest. — Nem sempre
conseguimos manifestações como às duas que
obtivemos aqui. É lícito entender que houve muito
interesse da parte dos espíritos nessas
demonstrações. Tenho comigo que o que se passou
aqui, desde que chegamos, foi muito mais
importante do que nós podemos compreender.

— O que quer dizer? — indagou Christopher com
interesse.


— Não saberia explicar. Mas os espíritos sempre
dão mais quando cuidam dos interesses que
envolvem muitas pessoas.

— O que não é o nosso caso — tornou Christopher.

Ernest sacudiu a cabeça negativamente.

— Não penso assim. O senhor conde é o líder de
todo um povo. Muitos espíritos que pretendem
ajudar essas pessoas se interessam pelo senhor.
Depois, há o doutor Jacques, que vem
desenvolvendo um trabalho de esclarecimento
através dos seus livros. Muitas pessoas estão sendo
e serão beneficiadas por eles. Confio no futuro.
Tudo que acontece é para melhor.

Conversando com entusiasmo, fomos tomar
nosso chá, e o ambiente estava alegre e acolhedor.
Christopher aproximou-se de mim, olhando-me com
interesse:

— Doutor Jacques — disse —, vovó falou que o
senhor tem condições de orientar-me quanto à
parte espiritual. Não estarei abusando da sua boa
vontade, depois de tudo quanto nos tem feito?

Senti um brando calor aquecer-me o coração. Notei
o olhar emocionado de Anne pousado em nós.

— De forma alguma — disse. — Nesses últimos
anos, tenho dedicado grande parte do meu tempo
ao estudo desses assuntos. Cheguei à conclusão de
que são poucas as pessoas que percebem a
influência dos espíritos em nossas vidas, sendo
muitas vezes seus instrumentos sem o saber.

— Como eu — tornou ele.

— O senhor sabia, tem o dom de ver.

— Ainda assim, deixei-me envolver. Agora percebo
bem. O que devo fazer?

— Posso indicar-lhe alguns livros.

— Pena que vá embora amanhã — considerou ele.


— Disponho de mais alguns dias. Se interessar,
poderei ficar um pouco mais.

Os olhos de Christopher brilharam.

— Eu apreciaria muito. Na verdade, não me atrevia
a lhe pedir. Afinal, o senhor já nos ajudou muito.

— Seja. Ficarei mais alguns dias, se Lady Anne
concordar, naturalmente.

— Com prazer, Dr. Jacques. O senhor faz-me
lembrar do nosso querido Sr. Leterre, de saudosa
memória.

— Ele sempre o acompanha — disse Christopher
olhando fixamente para mim.

— Pode vê-lo? — inquiri.

— Sim. Hoje por duas vezes eu o vi a seu lado.
Parece-me muito bem. Ele não disse, mas eu "sei"
que ele o ajuda quando escreve seus livros.

Sorri alegre.

— Parece que não terei muito a ensinar-lhe sobre as
coisas espirituais...

Naquela noite inesquecível, ao recolher-me,
agradeci a Deus tanta bondade. Sentia dentro da
alma uma felicidade imensa e um novo sentimento
de paz e harmonia banhando-me o coração.









CAPÍTULO XVII









Andando pelas alamedas perfumadas daquele
jardim, eu sentia no peito grande saudade. O tempo
varrera todas as coisas e tudo transformara. Eu, no


entanto, ainda era o mesmo. O amor por Anne, à
amizade por Eliane, Elisa, o carinho por Julien,
Milena, Christopher, minha mãe, meu pai, Mirelle,
André, Lenice e Jean. As pessoas que marcaram
minha vida, muitas das quais ainda se demoravam
na Terra. Eu voltara primeiro, depois Lenice, Eliane
e Jean.

Sentei-me em um banco agradável e pus-me a
recordar. Aquela viagem a Dolgellau tinha sido o
marco que transformara minha vida
definitivamente.

Depois que Ernest e Philip partiram, fiquei, e
durante um mês vivi naquele encantamento. Levei
muito a sério a tarefa de esclarecer Christopher e
mandei buscar livros, estudamos juntos, fizemos
sessões, tornamo-nos inseparáveis. Descobrimos
pontos de afinidade e, quando finalmente regressei
a Paris, continuamos a nos corresponder com
assiduidade. Dediquei-me aos estudos e escrevi
alguns livros que foram recebidos com entusiasmo
por todos os que eu amava. Eliane ajudou-me muito
nessa tarefa. Voltamos a ver-nos, Anne e
Christopher, algumas vezes, com alegria e afeto.

Tudo quanto Ernest previra aconteceu.
Christopher apaixonou-se, casou-se e viveu feliz.
Sua mediunidade ajudou-o a perceber melhor as
coisas e a reinar em seus domínios com bondade e
justiça. Era adorado pelo povo.

Lembrei-me da tristeza que senti ao deixar a
Terra, da saudade de Anne, sem poder vê-la para
despedir-me. Logo ao chegar, quando estava me
recuperando, tive a grata surpresa de receber a
visita de Elisa e Julien.

Chorei ao abraçá-los. Eles estavam muito bem
e cheios de projetos para o futuro. Procurei sair da
depressão e refazer-me. Estava volitando para casa


e, apesar do velho apego a Terra, sabia que a vida
muda sempre para melhor. Aceitar a mudança é
harmonizar-se com ela e encontrar a felicidade e a
paz.

Quando Eliane chegou, cinco anos depois, fui
visitá-la. Sentia-me bem e conseguira juntar-me a
um grupo que trabalhava no esclarecimento das
coisas espirituais, atuando nos Centros Espíritas da
Terra. Conheci o Brasil, apaixonei-me por suas
belezas, muito diferentes das que eu conhecera. Fiz
muitos amigos. Eliane estava bem. Era credora de
muitas amizades no plano mais alto. Soube que ela
logo seguiria para outro lugar mais adequado ao
seu espírito.

Abraçamo-nos com afeto. Sabíamos que nossa
ligação, apesar de sincera, terminara na Terra.
Vendo-me um pouco constrangido, segurou-me a
mão dizendo com doçura:

— Não se perturbe. Não pretendo cobrar nada. Há
muito que compreendi que o sentimento que nos
une está longe de ser definitivo. Estimo-o de
verdade. Sempre recordarei os anos que vivemos
juntos com carinho e respeito. No entanto, eu sei
que não sou a sua companheira para sempre.
Outros afetos me chamam em outro lugar e você
também sente a mesma coisa.

Ela estava com a razão. Abraçamo-nos
novamente com muito carinho. Estivemos juntos
enquanto ela ficou em nossa cidade e despedimo-
nos com alegria. Veríamos-nos de vez em quando e
eu estava em paz.

Dediquei-me com alegria ao trabalho de
esclarecimento espiritual. Durante esse tempo,
interessei-me pelo estudo do comportamento
humano, tentando compreender para viver melhor.


Olhei a beleza das árvores frondosas e aspirei o
ar leve e agradável com prazer. Anne ainda estava
na Terra. Senti uma onda de saudade. Era-me
permitido vê-la e eu sempre que podia comparecia
ao velho castelo de Loucester, onde podia abraçá-la
e acompanhar seu progresso espiritual.

Anne também se transformara depois daquelas
sessões memoráveis. Dedicara-se aos estudos dos
fenômenos espíritas, mantendo contato com a
Sociedade Psíquica de Londres e outros grupos de
estudiosos, participando ativamente dessas
pesquisas, contribuindo até financeiramente para
isso.

Seu espírito nobre e reto encontrou muita
alegria no conhecimento da dinâmica da vida, da
justiça de Deus, da reencarnação e da sobrevivência
da alma. Pensando nela, sentia-me contente,
observando que ela estava abrindo seu espírito para
o conhecimento dos verdadeiros valores da vida.

Fechei os olhos com profundo sentimento de
amor. Que bom se eu pudesse tê-la ao meu lado,
ali, para sempre!

— Jacques!

Uma emoção enorme me invadiu.

— Anne!

Abri os olhos. Ela estava diante de mim,
parada, braços estendidos. Se for uma ilusão, vai
desfazer-se, pensei com euforia, enquanto corria
para seus braços apertando-a de encontro ao peito.

Beijei seu rosto com muito amor e continuei a
abraçá-la para certificar-me de que ela estava
realmente ali. Muitas vezes imaginara nosso
encontro, o momento em que não houvesse mais a
barreira da carne entre nós. Via-me abraçando-a
como agora, mas, por fim, ela se desvanecia e eu
percebia que era apenas imaginação.


Desta vez, ela não se desfez. Abraçou-me com
força e eu podia sentir seu corpo tremer de emoção
e de alegria.

— Anne! É você?! Não posso crer.

— Sou eu, sim, Jacques. Finalmente nos
encontramos. Posso dizer da minha saudade, do
meu amor! Agora, somos livres!

Apertei-a de novo de encontro ao peito e beijei-
a nos lábios com muito amor. Quando nos
acalmamos, olhei-a com carinho. Ela estava tal qual
eu a vira em Loucester quando fora com Ernest e
Philip. Eu estivera no velho castelo havia duas
semanas e a encontrara bonita, saudável, porém
com cerca de oitenta anos. Como acontecera aquele
milagre?

Sentamo-nos no banco abraçados. Eu queria saber.

— Custo a acreditar — disse. — Estive com você em
Loucester há duas semanas e você estava bem.
Quando veio?

— Apenas há dez dias.

— Como foi? Por que não fui avisado? Tudo faria
para recebê-la.

— Eu sei. Foi o coração. Adormeci e acordei aqui,
dois dias depois. Nada sofri. Passei muito bem.

— Por que não me avisou?

Anne sorriu.

— Eu estava muito feia, queria melhorar a
aparência. Deixei um corpo velho, conservava dele
forte impressão.

Olhei-a com admiração.

— Você está linda. Precisa ensinar-me como
conseguiu remoçar assim.

— Usei a força do pensamento e a alegria de revê-
lo, reviver nossos momentos felizes. Você também
remoçou. Não ia gostar mais de mim daquele jeito.

Abracei-a comovido.


— Gosto de você de qualquer forma. Onde está
residindo?

— Aqui mesmo, nesta cidade. Minha mãe já veio
visitar-me. Foi ela quem me disse que você estava
aqui.

— Lady Elizabeth é o anjo bom que nos tem
protegido. Anne precisamos procurar nosso diretor.
Estou disposto a trabalhar muito, fazer o que for
necessário para ficarmos juntos. Sinto que estou
livre dos meus compromissos. Elisa está bem e
segue seu rumo. Eliane compreendeu que nosso
relacionamento é apenas de amizade e seguiu seu
destino em outros planos, onde tem outros afetos.
Estou livre!

— Eu também. Cumpri a parte do trato e sinto a
consciência tranqüila. Eu quero ficar com você!

Naquele momento mesmo, mãos entrelaçadas,
corações vibrando harmoniosamente, cheios de
amor, nos entregamos aos nossos projetos de
alegria e paz. E neles, além do amor que nos unia,
incluímos o desejo sempre maior de estudar a vida,
aprender a enxergar a luz, o bem, a viver a
experiência de Deus em tudo e em todos, para
desenvolver nossas almas, crescer, participar e
amar cada vez mais.

As primeiras estrelas começaram a brilhar e
nós, ainda abraçados, sentíamos muita gratidão por
Deus nos ter dado a glória de estarmos juntos para
sempre e de viver.





FIM












--

Muita paz !

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