José Manuel Fernandes - 24-09-2010
Quarenta anos depois, os defeitos portugueses que autorizaram o
salazarismo continuam a apoquentar-nosQuando Salazar foi eleito o
"maior português de sempre" muitos encolheram os ombros: a votação
tinha pouco significado e era tudo menos representativa. Mas quando,
40 anos passados sobre a morte do ditador, entramos em qualquer
livraria e encontramos resmas de novidades que chegam a encabeçar as
listas dos livros mais vendidos, interrogamo-nos: porquê este fascínio
por Salazar?
Há uma resposta simples, talvez demasiado simples: a maioria dos
portugueses já não viveu como adulto sob o seu regime e, face ao
desencanto com os políticos de hoje, acaba a olhar ou para um Salazar
mitológico ou para um desconhecido que lhe suscita curiosidade. Esta
atracção também é devedora do registo maniqueísta que tem dominado o
discurso público sobre o ditador, um registo que não autoriza nuances
e alimenta estereótipos.
Mas há outra questão, mais profunda e inquietante: a de saber como foi
possível Salazar manter-se no poder durante 40 anos.
Na mais importante obra saída nos últimos meses, Salazar, Uma
Biografia Política, Filipe Ribeiro de Menezes prefere, contudo, olhar
para o porquê de Salazar se ter querido manter no poder. O historiador
propõe duas razões: "A primeira, e mais importante, era uma crença em
si próprio como agente providencial; a segunda era a percepção de que,
sem ele no centro, o regime, assente numa aliança tecida de um
delicado equilíbrio entre forças conservadoras, desabaria". Contudo,
se "durante a maior parte das quatro décadas [em que governou] a sua
principal prioridade foi manter-se no poder", essa vontade, mesmo que
muito forte, mesmo que servida por uma enorme capacidade para gerir os
equilíbrios no interior do regime, não explicam só por si a sua
longevidade. Também não a explica o aparelho repressivo do regime. Não
há dúvidas de que o Estado Novo era uma ditadura que utilizava sem
estados de alma instrumentos como a censura, a discriminação e a
perseguição dos opositores, a tortura nas prisões e a
discricionariedade na aplicação de penas indefinidas, só que a
contabilidade da repressão é, por comparação com outros regimes,
modesta. Mais: Portugal nunca foi um Estado totalitário, apenas (o que
não é pouco) autoritário. Salazar não se preocupava muito com a sua
popularidade, mas o regime contou ora com o apoio tácito da população,
ora com a sua indiferença, nunca teve de enfrentar uma hostilidade
generalizada. Só a organização clandestina do PCP manteve uma espécie
de guerra civil com a PIDE, a que a maioria de população foi quase
sempre indiferente. Infelizmente, o pouco que os portugueses se
mobilizaram para terem as suas liberdades de volta é um dado histórico
de que não nos podemos orgulhar.
Eaqui voltamos ao ponto central: como foi isso possível?
A resposta mais comum, e nem por isso falsa, é que a prolongada
indiferença face aos métodos da ditadura foi fruto da nossa condição
de país pobre, rural e semianalfabeto. Um país sem classe média, ou
onde a classe média é muito pequena, é por norma um país menos
exigente politicamente, e Portugal não escapou à regra: quando, a
partir do final dos anos 50, a economia acelerou, as cidades se
encheram e começou a aumentar o número de estudantes nos cursos médios
e universitários, de imediato aumentaram as dificuldades do regime.
Não por acaso Salazar preferia o Portugal rural, não por acaso
desencorajou ou desautorizou os muitos ministros "desenvolvimentistas"
com quem trabalhou, não por acaso vivia como um recluso numa
residência oficial onde se criavam galinhas para consumo doméstico.
Contudo, esta condição de "país pobre" não tinha de ser uma fatalidade
- era apenas a fatalidade que Salazar herdara após quase um século de
Governos liberais ou abertamente jacobinos. Durante todo o século XIX
e no início do século XX, Portugal divergiu da Europa e do mundo
desenvolvido, só conseguindo começar a reaproximar-se a partir da
estabilização financeira promovida por Salazar. É duro, mas é verdade,
pois significa que, mesmo oferecendo ritmos de crescimento pouco
ambiciosos, o salazarismo proporcionou a Portugal mais do que lhe
tinham oferecido os regimes anteriores. Não surpreende, por isso, que
muitos tivessem aceitado a falta de liberdade - para mais, apresentada
e vista como necessária a uma "paz interna" que contrastava com a
turbulência, instabilidade e ambiente de guerra civil larvar que
marcara a I República.
A debilidade de uma cultura de liberdade, se tinha raízes sociais e
históricas, era também cultural e política. Primeiro, porque Salazar
não mentia quando disse, em 1945, que "antes de nós e por dezenas de
anos - reconhecemo-lo com tristeza -, as ditaduras foram a forma
corrente da vida política e vimo-las alternar-se ou suceder-se quase
ininterruptamente, sob formas diversas". Na verdade, como assinalou o
historiador Rui Ramos, "nunca, antes de 1926, as eleições, envolvendo
apenas eleitorados restritos e tutelados, haviam sido consideradas
genuínas ou livres". Houvera partidos na Monarquia Constitucional, tal
como houvera partidos na I República, mas ou as eleições eram
tuteladas, ou o colégio eleitoral artificialmente restrito, ou o
ambiente político marcado pela coacção. Os portugueses não tinham
perdido com o advento de Salazar um regime aberto e plural como o que
hoje temos, pois apenas tinham conhecido oligarquias dilaceradas por
querelas internas.
Depois, porque nunca se consolidou em Portugal uma elite liberal. Como
explicou Vasco Pulido Valente, o fim do Antigo Regime e o advento do
"liberalismo" não foram produtos de um sobressalto interno, antes
subprodutos das Invasões Francesas: "A invasão e a guerra, por assim
dizer, "provocaram" o "liberalismo" em Portugal. Um produto exógeno,
que não podia ser aceite pacificamente", notou o historiador. Mas não
só: o "liberalismo", "por causa da sua intrínseca fraqueza e do seu
isolamento na sociedade portuguesa, viveu até muito tarde sob a tutela
do Exército" e "continuou também as tradições do "antigo regime"",
como um Estado "centralizado, despótico e intrusivo" que sustentava
"com dinheiro público uma classe média burocrática e "parasitária"" e
intervinha de forma constante na economia. Não mudámos assim tanto.
Há ainda a sublinhar a hegemonia do pensamento "francês" entre as
elites - uma hegemonia que justifica o carácter profundamente jacobino
e dirigista do pensamento republicano, que se prolonga na influência
de Maurras no pensamento autoritário de Salazar e que só recentemente
começou a perder, em alguns meios, para a tradição anglo-saxónica da
liberdade.
Salazar, para se manter no poder, não teve mais do que interpretar
esta maneira de ser do povo português. Ao contrário dos seus
antecessores, nem sequer promoveu uma revolução, não teve de
substituir as hierarquias nem de gerar novas obediências: teve apenas
de promover o que podemos designar como uma "acalmação", baixando a
"febre política" para permitir aos portugueses "viver habitualmente".
Por isso até aos anos 60, quando as coisas começaram a mudar, os
poucos sobressaltos sentidos pelo regime - como aquando do comício da
Fonte da Moura, no Porto, na campanha de Norton de Matos, ou sobretudo
durante a campanha de Humberto Delgado - nunca foram suficientes para
que se sentisse a aproximação do fim do regime.
Não deve, pois, surpreender-nos que a mesma mistura de apatia,
dependência do Estado e iliberalismo continuem a marcar a paisagem
política portuguesa. Facilmente é possível encontrarmos quem feche os
olhos ao autoritarismo ou ao desrespeito do Estado de Direito desde
que lhe falem em "desenvolvimento". Tal como é fácil assustar os
portugueses com a mínima perspectiva de abalo da babysitter estatal.
Ou tal como é popular, tanto à esquerda como à direita, criticar
qualquer actividade que dê lucro e fugir de tudo o que implique
riscos.
Quarenta anos depois da morte de Salazar, o país que o aturou
pacatamente mudou muito - mas sobretudo à superfície. Salazar já
pertence à história, mas os defeitos portugueses que autorizaram o
salazarismo continuam a apoquentar-nos. Todos os dias.
Jornalista
--
Regina Equileprote
Magnificent
O Nvda fuma muito!!!
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